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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


0 ABRAÇO DO CREPUSCULO / Maggie Shayne
0 ABRAÇO DO CREPUSCULO / Maggie Shayne

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

       Sarafina era uma criatura da noite sedenta de vingança. Tratava de não recordar o tempo em que tinha conhecido o amor... Antes de sofrer a maldição de seu sangue.

Seduzia os homens por diversão, mas nunca procurava algo duradouro. Quando viu Willem Stone naquele bar pensou imediatamente que queria fazê-lo seu para saciar suas ânsias. O poder e a força que desprendia daquele homem a excitavam, mas Will era muito mais do que ela imaginava.

Era um homem com uma coragem quase desumana. Estava tão vivo quanto ela... Mas ele era mortal... E irresistível.

O desejo iria levá-los a um mundo onde perigosos intrusos se divertiam jogando com os Imortais. Ali, Sarafina e Will se viram obrigados a enfrentar uma força mais forte que nenhuma outra: a do amor.

 

 

 

 

       O gorgio[1] deixou cair três moedas de prata na palma da mão da mulher. Quando ela fechou o punho, Will se deu conta de que era uma bela mão. Morena e magra, mas forte, não frágil, como estavam acostumadas a ser as mãos esbeltas. Levava anéis em todos os dedos, e braceletes de prata e ouro nos pulsos, que tilintavam cada vez que ela se movia.

   — Obrigado. — ela disse ao homem pálido com o que estava falando — Quando minhas predições se fizerem realidade, diga aos seus amigos. E, diga a eles que perguntem pela Sarafina quando vierem.

Ele deu dois passos para trás, assentindo nervosamente. Não lhe deu as costas em nenhum momento, enquanto saía. Assim que pôs os pés fora da loja, benzeu-se e pôs-se a correr.

Era possível que os gorgios o negassem, pensou Sarafina, mas eram exatamente iguais aos ciganos em matéria de superstição. Ciganos. Will pensou que era estranho que pudesse ouvir o que aquela mulher estava pensando tão claramente como se estivesse falando em voz alta. Era quase como se ele houvesse entrado à mente da cigana para escapar da dor, em vez de ficar na sua própria mente.

Mas seu sorriso o distraiu daquela idéia. A mulher sorriu lentamente, e aquilo mudou sua cara. De algo escuro, mal-humorado e exótico se transformou em uma beleza absoluta e brilhante. Ele a amava. Amava todo o seu ser, desde sua suave pele de cor azeitona até a juba de cabelo negro e encaracolado, que lhe caía selvagem pelos ombros e as costas. Amava seus olhos, que brilhavam como dois ônix sob umas sobrancelhas espessas.

Ela meteu as moedas na bolsa que tinha pendurada no cinturão.

   — Já levo dez esta semana. — sussurrou, e se inclinou sobre a mesa para cobrir a bola de cristal com um pano de seda negra.

A mesa era uma gaveta de embalagem coberta com mais panos de seda, como sua cadeira. A outra cadeira, a cadeira em que se sentavam os clientes, também era outra gaveta, mas sem vestir. Não estava disposta a que um deles se sentasse sobre sua seda.

André. Ela estava pensando em André.

Will notou uma pontada de amargura ao dar-se conta de que à mulher saltava o coração quando pensava naquele homem, mas de todas as formas ficou com ela, como uma sombra escondida em sua alma. Ela saiu da loja e cruzou o acampamento. Will adorou que ela saísse, porque o acampamento era um lugar fascinante. As carretas e as lojas formavam círculos concêntricos ao redor do lugar de reunião. No centro se acendiam as fogueiras comunais, embora também houvesse outras menores, dispersas. E ali se reunia a gente, e freqüentemente havia música e baile. As mulheres levavam suas saias matizadas com incontáveis lenços de seda que as seguiam como cometas quando giravam a toda velocidade. Os homens levavam calças ajustadas e camisas vermelhas e douradas. Os músicos tocavam o violino, os pandeirinhos e as gaitas de fole.

Eram gente bela e vibrante, aqueles ciganos. Ele não sabia onde estavam, nem tampouco em que época viviam. Entretanto, não tinha importância, já que eram fragmentos de sua imaginação.

Muito vívidos, detalhado demais para ser real.

Muitos saudavam Sarafina quando passava junto a eles. Os mais jovens se inclinavam respeitosamente, enquanto que os anciões a olhavam como a uma igual. Era espetacular. Caminhava com a cabeça alta, movendo os quadris, orgulhosa.

Era adivinha, e usava aquele dom para proporcionar riqueza à comunidade. O grupo a respeitava. Entretanto, Will estava preocupado pela mulher. Ultimamente não se sentia bem, e nem sequer ela, com seus dotes de adivinha, sabia a causa.

Havia muita gente reunida ao calor da grande fogueira, escutando as histórias dos mayqres. Eram lendas de aventuras e travessuras cometidas pelos jovens, que provocavam as exclamações e a risada daqueles que escutavam.

Sarafina adorava sua gente. Eles eram sua família. Eles eram o único que lhe importava no mundo. E eles também a queriam. Salvo, é obvio, sua irmã. Katerina era de seu próprio sangue, mas tinha odiado a Sarafina desde que tinha nascido. Ela queria pensar que o ódio era mútuo.

Mas não era certo. O ódio de sua irmã lhe roia a alma.

A “carroça” da Katerina estava ao outro extremo do acampamento. Enquanto Sarafina se aproximava, uma silhueta escura saiu do veículo e se afastou rapidamente entre as sombras. Um homem, pensou Will.

Sarafina subiu os degraus. Quando abriu a lona da porta e entrou, as campainhas que tinha atadas ao tecido tilintaram. Sua irmã a olhou com um sorriso espectador que se transformou em um gesto de desagrado assim que se deu conta de quem era. Elas duas eram muito diferentes. Katerina tinha o cabelo negro e muito comprido, mas completamente liso. Tinha os olhos pequenos, juntos e redondos, como duas pedrinhas negras. Eram como os olhos de um tubarão.

   — Acreditava que seu amante havia voltado, Katerina? — perguntou-lhe Sarafina com aspereza — Sinto muito te desgostar.

   — Não tem feito mais que me desgostar desde dia em que nossa mãe morreu ao lhe trazer para este mundo, irmãzinha. Por que começa a te desculpar agora?

Aquelas palavras lhe fizeram mal. Will sentiu tão agudamente quanto a própria Sarafina. Entretanto, o coração daquela mulher se calejou com os anos, devido aos constantes ataques de sua irmã. Não lhe doíam tanto como o tinham feito tempo atrás.

Sorrindo, Sara levantou sua bolsa de moedas e a fez sacolejar na palma da mão para que as peças de prata ressonassem.

   — Esta semana vieram para ver-me dez gorgios. Dez, Katerina. O dobro dos que vieram lhe ver para que você visse seu futuro.

Sua irmã se encolheu de ombros.

   — Sua carroça está mais perto do caminho que a minha.

   — Perguntam por mim. — replicou Sarafina — Vêm para ver-me, para mim porque sou a melhor adivinha deste acampamento, e porque a fama de meu dom se está estendendo pelo povo. A semana que vem terei inclusive mais que esta. E predigo que você terá menos.

   — Ora! A semana que vem, quando nenhuma de suas predições se torne realidade, eles se darão conta de que seu dom não é tão bom assim, e começarão a vir para mim. — Katerina moveu sua juba — Nós duas sabemos a verdade. Não só sou a adivinha com mais talento, mas além disso sou a verdadeira Shuvani da tribo, Sarafina.

Will se encolheu ao ouvir aquilo. Sabia que não havia nada que pudesse enfurecer mais a Sarafina. Ninguém se livrava de sua cólera se punha em questão seus dotes de adivinhação, e muito menos seu status como uma das duas mulheres sábias da tribo. A maioria das outras comunidades só tinha uma. E não cabia dúvida de que sua tribo também teria tido só uma, se Sarafina tivesse sido a primogênita de seus pais.

   — Por causa de suas falsas predições, os camponeses voltarão a nos chamar de ciganos mentirosos e ladrões. — continuou Katerina — E nos veremos obrigados a nos mudar de novo. Por sua culpa, mais uma vez.

   — Minhas predições não são falsas! Sou uma vidente muito melhor que você, e sabe disso.

   — Não tão boa, acredito. Do contrário, saberia quem é o homem que acaba de partir de minha casa.

Aquelas palavras a deixaram sem fôlego. Olhou a seu redor, pelo camarote de sua irmã, embora Will lhe sussurrasse que mantivesse a calma, que resistisse a morder o anzol que lhe apresentava Katerina. Mas ele sabia que ela não o ouviria. Ela nunca o ouvia.

A cama estava desfeita e os lençóis revoltos.

Na mesa de esquina, que tinha pertencido a sua mãe, não havia bola de cristal, nem cartas, a não ser um abajur de azeite, dois copos e uma jarra de vinho vazia.

A suave risada da Katerina fez que Sarafina se voltasse rapidamente para ela.

— Ele é muito bom para ti, mas agora sabe que há uma mulher de verdade que o deseja.

   — Você está me dizendo que era André o homem que vi saindo de sua carroça quando vinha?

Will pensou que, se Katerina dava valor a sua vida, negaria.

   — É obvio que era André. É o homem mais bonito, mais forte e mais rico de todo o acampamento. Não ia consentir que você ficasse com ele.

   — Desgraçada! — gritou Sara, enquanto se lançava para ela. Deu-lhe uma bofetada e lhe arranhou a bochecha com as unhas.

Katerina nem sequer se deteve para sentir a dor. Lançou-se também para sua irmã com os olhos cintilantes e agitando os braços. As duas chocaram, caíram ao chão e rodaram em uma confusão de saias e lenços. Golpearam a mesa e esta caiu ao chão. O abajur se desfez em mil pedaços e o azeite se expandiu em um atoleiro de chamas azuis. Will sentiu que o pânico enchia seu peito enquanto elas seguiam lutando, cravando as unhas e os dentes, gritando.

Will tentou gritar uma advertência. Concentrou-se com todas as suas forças em Sarafina e gritou uma só palavra: FOGO!

Sarafina tirou sua irmã de cima com um poderoso empurrão e olhou a seu redor como se tivesse ouvido algo. Will se deu conta de que se reuniu uma multidão ao redor do carroça, provavelmente atraída pela comoção da briga.

Eles também estavam gritando. Ele não tinha maneira de saber se a voz que Sarafina tinha ouvido era a sua ou a de alguém de sua tribo. De todas as formas, aquilo não tinha importância naquele momento. Viu como mudava a expressão da cara quando se deu conta de que todo a carroça estava em chamas.

— Olhe o que fez! — gritou Katerina— Vamos queimar vivas por sua culpa!

Sarafina procurou algum lugar por onde sair, mas o fogo já estava devorando todos os lados da lona. Entretanto, de repente, alguém chegou junto a elas, saindo dentre as chamas. Era André, envolto em mantas molhadas. Deixou-as cair ao chão.

   — Envolvam-se nas mantas! — ordenou-lhes — Rápido!

As duas mulheres se apressaram a obedecer, e André tomou a bacia cheia de água que havia junto à cama da Katerina e a jogou em cima das duas. Depois ele colocou outra das mantas por cima.

   — Saiam por aí! — disse, assinalando um oco — Devem correr tanto como possam. Se duvidarem, morrerão! — tomou a Katerina com o braço esquerdo e a Sarafina com o direito — Agora! — gritou.

Sarafina fechou os olhos e se afundou no muro de fogo. Sentiu um calor abrasador na cara e nos pés, mas só brevemente. Um instante de tortura, e depois estava sobre a terra fresca. Deu-se um golpe forte ao cair. Liberou-se da manta úmida e se sentou para observar o fogo que ardia ante ela. Will estava quase fraco pelo alívio que sentia porque ela estivesse bem.

A maioria dos ciganos estava ao seu redor, olhando a ela e a sua irmã, que tinha saltado a seu lado. Todos tinham uma expressão de desgosto e desaprovação no rosto. Will sabia que Sarafina estava profundamente ferida em sua dignidade.

   — Foi por sua culpa! — gritou Katerina, ficando de pé — Acusou-me de tentar lhe roubar seu homem e me atacou. Perdi tudo! — gritou, assinalando com dramalhões para as chamas.

A gente gemeu, murmurou, sacudiram as cabeças com lástima enquanto o carro da Katerina e todas as suas posses se reduziam a cinzas ante seus olhos.

   — É mentira. — disse Sarafina — Foi ela quem começou isto. Eu só o terminei.

André se inclinou para ajudá-la a que se levantasse. Durante um instante, estudou seu rosto e, depois, abraçou-a com força. Will se encolheu de ciúmes.

   — OH, Sarafina, me diga que não acreditou que nenhuma outra poderia me tentar. Você é a que amo. É você a que tomarei por esposa. A ninguém mais.

Sarafina o olhou fixamente. De repente, soube que sua irmã lhe tinha mentido. Katerina só estava tentando plantar as sementes da dúvida para que crescessem fortes e destroçassem o que André e ela compartilhavam, disse-se. Era certo que alguém tinha saído da carroça da Sarafina aquela noite, mas não tinha sido André.

Will sacudiu a cabeça lentamente, lhe sussurrando: “OH, Sarafina, não seja tola...”

Sarafina olhou triunfantemente para sua irmã, mas então ficou gelada ao ver o olhar que Katerina lhe devolvia. Era frio e letal.

Antes que pudesse entender o que significava, ouviu-se um grito horrível do outro lado do acampamento.

Todo mundo ficou rígido e imóvel, como se aquele som houvesse os tornado de pedra.

   — Não. Pelo amor do Devel, outra vez não. — sussurrou alguém. Will pensou que era Gervaise, o ancião-chefe da tribo. Não entendeu o que queria dizer, e se perguntou se estava a ponto de averiguá-lo.

Entretanto, antes de poder inteirar-se de mais nada, saiu daquela fantasia, miserável pela sensação de que a água gelada lhe enchia os pulmões.

Alguém tinha agarrado-o pelo cabelo e puxou-o para lhe tirar a cabeça do tonel de água gelada. Will tomou uma baforada faminta e desesperada de ar, antes que aquela mão voltasse a lhe colocar a cabeça de novo sob a superfície e a mantivesse ali.

Tinha as mãos atadas às costas, e as pernas amarradas pelos tornozelos. O corpo lhe gritava de dor, dor da qual tinha conseguido escapar só uns momentos antes. Mas tudo aquilo empalidecia comparado com a necessidade imperiosa de ar nos pulmões. Depois de seus olhos fechados dançavam pequenas explosões vermelhas. Ia desmaiar, e depois se afogaria.

A mão voltou a atirar dele para fora, e enquanto Will inalava com desespero, sentaram-no em uma cadeira. A água lhe caía do cabelo e a cara sobre a camisa rota e suja.

Um homem com barba, que levava um traje branco e imaculado levantou o queixo de Will e o olhou fixamente. Depois se dirigiu a um dos guardas, em um dos dialetos tribais que Will falava com fluidez, embora tivesse arrumado para mantê-lo em segredo... Pelo menos, até o momento.

   — Voltou para seu corpo. Pode continuar torturando-o agora.

   — Por que perdemos o tempo? Só voltará a partir quando a dor seja muita para ele. Como o faz? Aonde vai?

O primeiro homem se encolheu de ombros e se dirigiu para os restos de uma fogueira que tinha estado acesa um pouco antes, no chão da cova. Converteu-se em um leito de brasas vermelhas. Eles tinham posto umas varas de ferro entre as brasas, e o homem de branco tomou uma delas, usando um trapo como cabo. O extremo mais quente estava vermelho vivo. Isso recordou ao Will o néon do anúncio de cerveja de seu bar favorito, em casa.

   — E agora, coronel Stone. — disse o homem, em um inglês com um acento muito forte — Dirá-me o que quero saber.

   — Já disse. — repetiu ele brandamente, embora os lábios inchados e quebrados lhe doíam ao falar — Não há espiões americanos em seus campos de treinamento.

Em realidade, sim, havia. Havia treze, para ser exato. Will sabia quem eram, que nome estavam usando e em que campos se infiltraram. Já se teriam informado de sua captura. Saberiam exatamente o que tinham que fazer, onde tinham que ir, quando se reuniriam para a evacuação. Ainda demorariam outras quarenta e oito horas em ficar a salvo, pensou.

Tinha que agüentar até que aqueles homens estivessem fora do país.

   — Se não tem espiões, como se inteiram os americanos de nossos planos?

Will nem sequer se encolheu de ombros. Teria doído muito.

   — Tecnologia?

O homem pôs o ferro ardente sobre o peito de Will. Aquela dor insuportável fez que jogasse a cabeça para trás e apertasse os dentes com força, enquanto o aroma de sua própria carne queimada o afogava.

Inclusive quando retiraram a vara de ferro, a horrível sensação permaneceu. Era uma dor ardente que ficou dentro dele. Fechou os olhos e tentou encontrar aquele lugar que havia em sua mente onde tinha estado escondendo-se antes. Viu a mulher nos limites longínquos de sua mente. Sarafina, a mulher morena e exótica de sua fantasia, que habitava tão vividamente em sua mente que era capaz de afastá-lo da tortura e da dor.

Tropeçou com ela por acaso quando eles o tinham golpeado até deixá-lo quase inconsciente. Tinha visto seus olhos negros e brilhantes. Concentrou-se naqueles olhos, deixando-se apanhar por eles, afundando-se de novo naquelas profundidades escuras. Enquanto o fazia, a dor desapareceu. E uma vez que o deixou atrás, emergiu do outro lado, em outro lugar e outro tempo, como um observador invisível e silencioso da vida da mulher.

No primeiro momento, tinha descoberto que podia usar a dor para encontrar aquele lugar de novo. O truque era não lutar contra a agonia, a não ser abraçá-la. E então, podia fechar os olhos e procurá-la. Afundava-se em seu mundo, e o sofrimento já não podia alcançá-lo.

Ela era pura fantasia, como sua história. Will sabia. Mas também era sua salvação. E a salvação daqueles treze americanos que seriam torturados até a morte a menos que ele mantivesse seus nomes em segredo.

Assim fechou os olhos enquanto lhe punham os ferros candentes na pele. Relaxou a mandíbula e tentou não lutar contra a dor. Deixou que o aproximasse dela, até que Sarafina se voltou para ele. Ela abriu muito os olhos enquanto ele se afundava em sua profundidade. Então, esteve completamente imerso, deixando seu corpo atrás. E se perguntou se em um daqueles momentos algum de seus captores lhe faria o favor de matá-lo, para poder ficar naquele outro lugar para sempre. Mas... Permaneceria aberto para ele seu céu imaginário? Ou se desvaneceria quando as células de seu cérebro morressem lentamente? Naquele momento, já não lhe importava.

  

Durante um instante, Sarafina sentiu uma presença estranha em sua mente, como se alguém invisível estivesse vigiando-a.

Havia sentido aquela presença desconhecida muitas vezes. Muitas vezes. Sentia-o. Sabia que era um homem. Sentia que era protetor com ela. Enchia-a de calidez, de segurança. Era como se fosse um espírito poderoso e que seu único trabalho fosse cuidar dela. Amá-la. Vigiá-la.

Acreditava que era seu guardião. Seu guia. E cada vez que chegava, Sarafina pensava que estava se aproximando mais e mais de vê-lo, de falar com ele, de tocá-lo. Naquela ocasião tinha ouvido-o. Muito brevemente, mas com claridade.

Tentou concentrar-se em seu amado espírito, mas parecia que havia se retirado. Suspirou desgostosa e apartou aquelas idéias da cabeça. Depois se apressou a unir-se aos outros, que já estavam correndo pelos bosques para o lugar de que provinham os horríveis gritos. Assim como ela, a maioria já sabia o que ia encontrar lá.

Ela foi a mais rápida, apesar de estar mal de saúde ultimamente. Mais que isso, sabia exatamente aonde ir. Não podia dizer por que sabia. Guiava-a algum escuro instinto, e ela não o questionou. Era vidente e uma Shuvani. Saber coisas que não deveria saber era parte daquilo, assim, velozmente, alcançou aos de sua tribo e depois se separou deles, virando entre as árvores na direção que a conduzia para o lugar.

Chegou até as duas mulheres antes que nenhum outro. Melina, uma anciã que era prima da mãe da Sarafina, estava agachada no chão, com o corpo dobrado sobre sua filha adolescente, Belinda. Havia uma tocha meio apagada a seu lado. Sarafina a levantou para ver melhor à mulher que chorava e a jovem que estava no chão, imóvel. À luz da tocha, os braços magros da Belinda e seu rosto estavam tão brancos como a neve, e tinha os olhos abertos com o olhar inconfundível da morte.

Sarafina pôs uma mão nas costas tremente de Melina e disse-lhe:

   — Vamos, se afaste dela. Foi-se deste mundo.

Soluçando, a anciã se incorporou e levantou a cabeça. As lágrimas derramavam-se pelas bochechas enrugadas.

   — Um demônio matou minha Belinda!

   — Vamos. — os outros estavam chegando, atraídos por seus gritos. Muitos deles também levavam tochas. Sarafina ajudou à anciã a levantar-se, abraçou-a forte e olhou a Belinda por cima de seu ombro. Aquela menina tinha sido mais que uma prima. Tinha sido uma amiga. Sarafina levantou mais alto a tocha e observou a garganta pálida de Belinda, até que viu o que sabia que veria. Duas pequenas feridas, de onde emanavam dois filetes de sangue escarlate.

Algo dentro dela despertou, como se saísse de um comprido sonho. Não podia apartar os olhos das feridas e, involuntariamente, lambeu-se os lábios.

   — Ocorreu de novo. — disse um homem. Era André, que estava a seu lado. Katerina estava a sua direita, observando a sua irmã com os olhos entrecerrados. Teria notado a estranha reação de Sarafina para o aroma do sangue fresco?

Obrigou-se a não olhar o corpo de novo, nem as duas punções que tinha no pescoço. Entretanto, o aroma fez com que abrissem mais os buracos do nariz e que o estômago encolhesse de fome. Era algo doentio. Sarafina detestava que seu corpo estivesse reagindo assim.

E, exatamente igual nas demais ocasiões, sentia a criatura que o tinha feito. Estava perto. Deu-se conta de repente, e olhou para sua gente, que estava formando redemoinhos junto a eles. Os meninos, com os olhos muito abertos pelo medo, estavam agarrados às saias de suas mães.

   — Que levem aos meninos daqui. — sussurrou, assinalando-os.

O ancião da tribo, Gervaise, olhou-a com uma sobrancelha arqueada.

   — Por que, Sarafina?

   — Está aqui. — disse ela, em voz muito baixa — Ainda está aqui. Sinto muito. Gervaise, que levem aos meninos daqui.

Não houve hesitações. Gervaise assentiu e todo mundo obedeceu, levando-se aos meninos em braços e pela mão para o acampamento. Só ficaram alguns homens jovens, incluído André. Katerina também ficou.

   — Ponham guardas ao redor do acampamento. — Gervaise disse a um dos homens, que estava esperando suas ordens — E que alguns comecem a fazer o ataúde. Dois de vocês vão pegar as armas e voltem aqui. Temos que vigiar este lugar até o amanhecer. — ordenou. Os homens correram para cumprir as ordens.

   — Como sabia? — sussurrou-lhe Katerina.

Sarafina tremeu ao ouvir o tom de voz de sua irmã. Deu-se conta. Deu-se conta de que ela tinha sido a primeira em chegar, e tinha notado como tinha reagido ao ver o assassinato que tinha cometido o demônio. E não tinha sido a primeira vez que Katerina o presenciava.

   — E como é que você não sabia? — perguntou-lhe Sarafina — Supõe-se que seja vidente, como eu.

   — Ao contrário de você, eu não tenho laços com nenhum demônio.

   — Não me acuse, irmã. Não sabe nada disto.

   — Foi igual às outras vezes. — disse André, levantando-se lentamente do chão. Tinha estado examinando as feridas do pescoço de Belinda, embora sem tocar o corpo. Então, olhou à mãe que chorava — Sinto muitíssimo, Melina.

   — O demônio tornou a nos encontrar. Devemos enterrá-la rapidamente e partir. — disse alguém.

   — E do que servirá? — perguntou Katerina — Ele nos perseguirá e nos encontrará de novo, exatamente igual a ocorreu desde que a maldição do nascimento de minha irmãzinha caiu sobre nossa tribo.

Melina gemeu e Gervaise franziu o cenho. André pôs a mão sobre o ombro de Katerina.

   — Este não é o momento de...

   — Todos devem saber que é verdade! A primeira vez que o demônio levou alguém do acampamento foi no verão em que nasceu Sarafina. Eu estudei tudo, e consultei aos espíritos. Todos os presságios me dizem que ela está unida, de algum jeito, a esta criatura que nos acossa. Ela é a razão da praga.

   — Isso é uma loucura! — gritou Sarafina. Olhou as caras de todos os que a rodeavam e viu a especulação em seus rostos.

   — Sabia que estava perto. — disse Katerina — Sempre sabe.

   — Sou vidente.

   — Só ataca de noite. E você, cada vez mais, está se convertendo em uma criatura da noite. Dorme durante o dia. — disse, e olhou aos outros — Todos notarão.

Melina assentiu.

   — É certo.

   — Eu durmo quando tenho sono. — disse Sarafina com suavidade — Mas isso não significa que tenha algo que ver com essa criatura.

Katerina olhou a seu redor. Possivelmente viu nas caras das pessoas que duvidavam do que havia dito, e se encolheu de ombros.

   — Acredito que deveríamos comprovar se não é a ti a quem o demônio segue tão persistentemente.

Sarafina olhou a sua irmã, sem entender o que dizia.

   — Comprová-lo?

   — Nos deixe. Deixa a tribo. Fica esta vez, enquanto o resto de nós parte. Se o demônio nos seguir de novo, inclusive embora você não esteja, essa será a prova de sua inocência.

André deu um passo adiante e pôs a Sarafina um braço sobre os ombros, de forma protetora.

   — Não permitirei isso, Katerina.

   — Nem eu, tampouco. — disse Gervaise. Estudou o rosto da Sarafina enquanto se apoiava cansadamente em sua bengala — Todos estão assustados e muito tristes pela perda de Belinda. Entretanto, nos voltar uns contra os outros não é a resposta. Não devemos permitir que esse demônio nos divida.

Naquele momento, todo mundo assentiu, incluindo os dois jovens que acabavam de voltar do acampamento com os rifles. Todo mundo exceto Katerina.

Gervaise olhou com severidade às duas irmãs.

   — Vocês duas, preparem Belinda para seu enterro.

Katerina empalideceu. Sarafina notou que lhe gelava o sangue e balbuciou:

   — Certamente, poderá encarregar isso a um par de gorgios...

   — Serão vocês duas que farão.

   — Com todo o respeito, Gervaise. — disse Katerina — Minha casa e todas as minhas posses se queimaram por culpa de minha irmã. Devo encontrar algum sítio onde dormir esta noite.

   — Você, Katerina, compartilhará a casa e as posses de sua irmã. Já é hora de que as duas aprendam o que significa família. — respondeu o ancião. Depois olhou a Belinda, e sua voz se converteu em um sussurro —É que nenhuma das duas compreende o papel que representam para a tribo? Sua mãe está morta e, do verão passado, sua avó também. Vocês são as videntes. E são as Shuvani.

Melina sacudiu a cabeça.

   — Desde o começo, disse que eram muito jovens para serem as mulheres sábias da tribo.

   — São tudo o que temos. — disse Gervaise com respeito, antes de voltar-se de novo para as duas irmãs — E agora, cumpram seu dever para com a Belinda. Ela está morta, e a vocês só ocorre brigar e causar problemas. Não nos envergonhem. Belinda está apanhada entre dois mundos. Sabem o que terá que fazer?

   — Eu sei. — respondeu Sarafina, brandamente, e olhou a sua irmã — Terá que reunir madeira. — disse — Temos que fazer um pequeno fogo.

  

Gervaise colocou um homem a cada lado do corpo, o suficientemente perto para proteger às mulheres enquanto preparavam o corpo, mas um pouco apartados para lhes conceder a privacidade necessária para levar a cabo o rito. Katerina tinha acompanhado a Melina ao acampamento para recolher a roupa que poriam em Belinda para enterrá-la. Enquanto estava sozinha, Sarafina pôs palitos e troncos no chão, ao redor de sua prima, mas não muito perto.

Katerina voltou com três pacotes de ervas. Deu a sua irmã um pouco de cada uma.

   — Começamos? — perguntou.

Sarafina assentiu, e baixou a tocha até a pilha de palitos. O fogo pegou em seguida, o que era um bom presságio. As chamas se estenderam rapidamente. Sara encaixou a tocha no nó de uma árvore próxima.

   — Primeiro o tomilho. — disse, e as duas jogaram um punhado das ervas no fogo.

   — Depois a sálvia. — sussurrou Katerina — E por último o romeiro.

Arrojaram as ervas no fogo na ordem correta e começaram a caminhar para trás, e depois para diante, enquanto a fumaça cheia de fragrâncias se elevava para o céu.

   — Belinda Rosemerta Prastika. — sussurraram juntas, enquanto caminhavam ao redor do fogo. Deram sete voltas enquanto sussurravam o nome de sua prima, e quando terminaram, Sarafina sentiu a energia que tinham provocado ao redor do corpo de Belinda, e esperou com todas as suas forças que a alma de sua prima se levasse diretamente aos céus.

Finalmente, permitiram que seus corpos se relaxassem e ficaram imóveis e silenciosas, cada uma perdida em seus próprios pensamentos. Sarafina fechou os olhos, suspirou e baixou a cabeça.

   — O ritual é trabalho das Shuvani. — disse Katerina — É um trabalho de honra. E o temos feito bem. Preparar o corpo não é.

Tocar o corpo de um morto era uma tarefa desprezada entre a tribo. Quando sua própria avó tinha morrido, tinham-na banhado e a tinham vestido com sua melhor roupa enquanto agonizava. Nenhum cigano queria tocar em um morto.

   — Possivelmente Gervaise queira nos dar uma lição de humildade. —sugeriu Sarafina — Agora fique calada. Vem, Melina.

Melina trazia roupa e uma bacia cheia de água perfumada com ervas nas mãos, e um trapo suave. Olhou a pequena fogueira, mas não disse nada. Tinha vivido muito tempo, e sem dúvida, tinha visto aquele fogo mais vezes. Não ia perguntar o que significava. Os ritos dos mortos eram secretos. Só as Shuvani os conheciam, e passavam de mãe para filha. Sarafina e sua irmã os tinham aprendido de sua avó, como tantas outras coisas.

Melina se ajoelhou, observando em silêncio, esperando que elas duas fizessem o trabalho que lhes tinha encomendado. Assim que as duas irmãs, comovidas, ajoelharam-se também e começaram a despir o corpo da Belinda. Lavaram a jovem cuidadosamente, embora com cada roce, Sarafina se estremecia. Belinda estava fria. Tentou manter o trapo entre sua mão e a pele da garota, mas algumas vezes ele escorregava.

Uma vez que tiveram lavado o corpo, vestiram-na e a envolveram em um grande tecido vermelho que lhes tinha levado Melina, deixando ao descoberto só os pés e o rosto de Belinda. Quando terminaram, Sarafina pensou que tinham feito um bom trabalho.

   — Queria usar esse tecido para fazer um vestido para ela. — sussurrou Melina — E agora vai servir de sudário.

A pequena fogueira tinha ficado reduzida a umas quantas brasas. Katerina se levantou e se aproximou da bacia de água para lavar as mãos.

   — Deveria haver mais luz. — sussurrou Melina — Não deveríamos deixá-la aqui, na escuridão, desta maneira.

   — Meu trabalho já terminou. — disse Katerina, se levantando e secando as mãos na saia — Vou voltar para o acampamento. Mandarei alguém com faróis.

Melina assentiu sem olhá-la. Quando os sons de seus passos emudeceram, disse a Sarafina:

   — Você também pode ir. Eu a velarei até que amanheça.

   — Vou ficar com você. — replicou Sarafina — Não te deixarei sozinha.

Melina levantou a cabeça e olhou Sara nos olhos, como se estivesse tentando averiguar algo. Parecia quase como se não estivesse cômoda ficando a sós com ela. Estava muito escuro no bosque. Os olmos e os carvalhos se elevavam quase até o céu, e o solo estava coberto de ervas e folhas. Só dispunham da débil luz da tocha. A noite estava estranhamente silenciosa.

Então, Melina olhou além de Sarafina, por volta de um de dos jovens que estava de vigia, e pareceu que se relaxava um pouco. Sarafina se sentou no chão, junto ao esbelto corpo de sua prima, e se perguntou como era possível que alguém, inclusive um demônio, pudesse ter assassinado a sua prima de uma forma tão cruel.

   “Eu não a assassinei, eu a libertei, e no fundo, você sabe que é verdade.”

Sarafina elevou a cabeça, sobressaltada, ao ouvir com claridade o som de uma voz masculina. Um homem que não era seu amado espírito.

   — Quem é?

Melina elevou a cabeça.

   — Quem?

   — Essa voz. Não a ouve? — respondeu Sarafina, e se levantou para olhar a seu redor. Tinha todos os sentidos em alerta. Então, escutou uma voz profunda, isso, gargalhadas! – Não o ouve?

   — Eu não ouço nada, Sarafina. — respondeu a anciã. Levantou-se e se afastou uns quantos passos dela — Possivelmente... Possivelmente devesse voltar para acampamento.

   — Não. Está aí. Não posso te deixar sozinha.

   “Exato. Estou aqui. Mas você sabe que não é à anciã que quero. É a ti, Sarafina. Sempre foi você. Deixa a essa banda de traidores e vêem comigo.”

   — Não! — gritou ela, apertando as mãos contra os ouvidos— Deixe-me em paz! Deixe-me em paz! — voltou-se para fugir, mas imediatamente se chocou contra o torso forte de André. Ao vê-lo, notou em seus olhos um olhar de preocupação. Soluçando, pendurou-se em seu pescoço e enterrou a cabeça em seu peito.

Entretanto, ouviu a voz de sua irmã e ficou rígida.

   — O que ocorre?

Piscando, Sarafina levantou a cabeça e ao olhar a seu redor viu sua irmã com um farol em cada mão. Sarafina secou as lágrimas das bochechas.

   — Acreditava que foste ficar no acampamento.

   — Decidi ajudar André a trazer os faróis. — respondeu sua irmã.

Então, Sarafina se deu conta de que André também tinha as mãos ocupadas com duas lanternas, e que por isso não a tinha abraçado como fazia de costume.

   — O que ocorreu? — perguntou ele.

   — Nada. Nada. Eu... Estou preocupada, isso é tudo.

   — Leve-lhe ao acampamento, André. — disse Melina — Leve-a e vai. Katerina ficará comigo até que amanheça.

   — Mas eu posso ficar. Estou bem. — disse Sarafina.

A anciã sacudiu a cabeça, e seguiu fazendo-o inclusive quando André deixou os faróis no chão e levou Sarafina brandamente, abraçando-a.

Sarafina sabia perfeitamente que a velha Melina ia contar a sua irmã tudo o que tinha ocorrido, e aquilo serviria para dar a Katerina mais argumentos contra ela. Sua irmã não ficaria tranqüila até que fosse a única Shuvani da tribo. Ela sabia que Sarafina, embora fosse mais jovem, também era melhor vidente, mais forte e com mais talento, e não podia suportá-lo.

André a ajudou a voltar para seu camarote, e ela entrou, esgotada. Logo amanheceria. E ainda assim, não podia conciliar o sonho.

   — Você gostaria que ficasse contigo para te acompanhar enquanto dorme? — perguntou-lhe André.

Sarafina sacudiu a cabeça.

   — Não. Quero... Quero ficar sozinha.

Na realidade, não queria. Queria sentir a presença reconfortante de seu anjo, de seu guia. Queria ouvir sua voz de novo, queria que lhe explicasse tudo aquilo com claridade. O que lhe estava ocorrendo? O que estava acontecendo com sua vida? E a sua tribo? E por quê?

   — Você ficou muito assustada aí fora, Sara. Não quer me dizer por quê?

      De novo, ela sacudiu a cabeça.

   — Todo mundo tem medo de... A criatura que matou a pobre Belinda, e aos outros antes dela. Por que eu não ia ter medo?

   — Não sei. Pareceu-me... Algo mais que medo.

   — Parece minha irmã. Não será que você também crê que estou unida com os demônios?

   — É obvio que não. — respondeu ele, e acariciou seu cabelo com ternura — Durma, Sara. Não tem bom aspecto.

   — Vou dormir. Boa noite, André.

Ele se inclinou para Sarafina e deu um breve beijo em seus lábios. Depois partiu e a deixou sozinha. Sarafina não se deitou. Sentou-se na pequena mesa que havia no centro de sua casa e, com as mãos trementes, tirou-lhe o pano de seda à bola de cristal. Depois se sentou ante ela e olhou em suas profundidades. Deixou que sua mente se detivesse e que sua vista se desfocasse. Fechou os olhos. Nunca tinha tentado convocar a seu espírito daquela maneira. Entretanto, de repente, quis tentá-lo.

   — Vêem comigo, amado meu. Vêem comigo, porque agora necessito de sua sabedoria. Diga-me, qual é meu destino? — perguntou-lhe — Se for certo que estou unida a um demônio, como posso romper o malefício?

O cristal se nublou e, quando a nuvem se desvaneceu, viu que uma pessoa tomava forma frente a ela. Era um homem. Era bonito e moreno, embora não era cigano. Tinha o cabelo molhado e a camisa rota e suja. E, no peito nu, uma terrível queimadura.

Enquanto olhava aquela visão, perguntando-se o que significaria, ele levantou a cabeça e a olhou aos olhos. E ela o reconheceu.

   — Vi você antes. — sussurrou — Quem é?

Entretanto, enquanto perguntava já conhecia a resposta. Aquele homem era seu guia, seu espírito, a voz que falava com ela, a presença que caminhava a seu lado. Mas, por que estava molhado, e tão golpeado? Seria o fantasma de algum mártir que tinha morrido por defender alguma causa?

Ele continuou olhando-a, aferrando-se a seus olhos. Havia outros homens a seu redor, vestidos com roupas estrangeiras. Estavam maltratando-o, abrasando sua pele com ferros quentes.

O coração de Sarafina se encolheu ao vê-lo. Apertava as palmas das mãos contra o cristal como se pudesse deter aquela tortura. Entretanto, o homem nem sequer se moveu. Seus olhos seguiram cravados nos dela através do cristal.

Então, o cristal voltou a nublar-se e ele desapareceu.

Fina se recostou no respaldo da cadeira, com o estômago revolto. Ele não era o demônio que estava acossando ao seu povo. Ela soube sem ter que refletir. Mas por que o estavam atormentando? Ele não parecia um espírito absolutamente. Tinha-lhe parecido um homem corrente.

Embora não daquele lugar e, possivelmente, nem sequer daquele tempo.

  

   — Por que o mantemos com vida? Se tiver havido algum espião entre nós, certamente terá fugido quando os americanos declararam a vitória e tiraram as tropas de nossas terras. É impossível saber onde estavam, tendo tantos homens desaparecidos, mortos e perdidos no deserto.

A conversação se desenvolvia em outro dialeto, que Will também conhecia, embora não tão bem como alguns outros. Era capaz de entender a maior parte do que estavam falando. Que o exército dos Estados Unidos se retirou não o surpreendia. Nunca se tinha planejado que aquela operação fosse algo contínuo, como a do Afeganistão. Aquele ramo da Operação Liberdade Duradoura era uma lição potente, curta e simples com parâmetros claros. Teria que infiltrar-se nas células terroristas, e depois, guiados por espiões que já estavam dentro, lançar ataques a seus campos de treinamento e depois sair correndo.

E tinha funcionado. Dizimaram-se as células, os sobreviventes se dispersaram e a liderança tinha sido erradicada. Aquela banda que tinha capturado a ele, por desgraça, o tinha descoberto quando se dirigia para o ponto de evacuação. Já tinha divisado o helicóptero quando se deu conta de que lhe seguiam os passos, e não tinha podido fazer outra coisa que ficar a coberto e abrir fogo para mantê-los a distância da nave cheia de soldados norte-americanos, enquanto levantava vôo.

   — Eu digo que lhe coloquemos uma bala entre sobrancelha e sobrancelha e o deixemos aos abutres.

   “Estupendo.”, pensou ele. “Que o façam, e assim terminaremos com tudo isto”. Quanto tempo levava ali? Semanas? Meses? Era impossível estar seguro. Tinha um pé quebrado e várias costelas, e doía tanto que não podia dormir. E uma infecção, que lhe tinha posto tão fraco que passava a maior parte do tempo encolhido em uma esquina, tremendo, ao menos quando não estava vomitando.

Tinha tido a esperança de que as forças dos Estados Unidos fossem resgatá-lo, mas parecia que o tinham dado por morto. É obvio que o tinham dado por morto. Não tinha falado. Não tinha identificado a nenhum dos homens que se infiltraram nos grupos terroristas. Tinham tido tempo para escapar. Seus superiores teriam suposto que tinha morrido com muita mais facilidade do que assumiriam que tinha suportado semanas de tortura sem dizer um só nome.

A voz do homem que levava o turbante de seda lhe chegou com claridade.

   — Daremos um tiro quando Ahkmed diga que o façamos. Agora sujeite-o, e vamos tirar uma foto.

   — Quer pedir resgate? — perguntou o outro.

   — Têm a nossos homens prisioneiros em Guantánamo. Possivelmente possamos usar ao coronel para que devolvam a alguns.

   — Por cima de meu cadáver. — sussurrou ele. Teria gritado se tivesse podido, mas tinha a garganta tão ardida que o único que podia fazer era murmurar.

Quando se abriu a porta de sua cela, a luz o cegou, e teve que tampar os olhos com as mãos. Continuou escondido onde estava, na esquina de uma caixa de metal que tinha sido parte de um caminhão de carga.

   — Sai, porco. Vamos fazer uma foto.

Ele levantou a cabeça, olhando-os entre piscadas, e ficou em movimento. Cada passo que dava com o pé quebrado era uma agonia, mas tinha aprendido o que acontecia quando titubeava ou desobedecia.

Quando se aproximou o suficiente, tiraram-no lhe atirando dos braços. Ele estava esforçando-se por ver algo. As covas estavam iluminadas por refletores, alimentados por um gerador que devia estar, provavelmente, perto da entrada.

Sentaram-no em uma cadeira. Alguém o apontou com um rifle enquanto o outro lhe dava um periódico. Ele o olhou. Deus, estava em inglês.

   — Sujeita isto de frente à câmara, para que se veja a data.

Ele levantou a vista para olhar ao que lhe falava.

   — Isto diz que os americanos deixaram o país. É que querem lhes dar uma razão para que voltem e lhes matem a todos?

   — Deveria te calar e fazer o que te diz. Vamos trocar você por prisioneiros. Esta é sua única oportunidade de sair daqui com vida.

Ele sacudiu a cabeça lentamente e decidiu que usaria aquilo para obter alguma vantagem. Tinha as feridas infectadas, e precisava lavá-las.

   — Não me reconhecerão assim. — disse, passando a mão pela cara sem barbear — E se reconhecerem, se zangarão tanto pelo que têm feito que voltarão a bombardear.

Os dois homens se olharam.

   — Pode ser que tenha razão. Acha que deveríamos deixar que se lavasse primeiro? — perguntou-lhe um ao outro, em sua língua nativa.

   — Eu... Vou perguntar ao Ahkmed.

Os dois se voltaram e o deixaram ali, sozinho, naquela seção das covas. É obvio, não havia nem uma arma à vista, e não podia tentar escapar, porque só havia uma saída, e estava vigiada. Mas mesmo assim...

Levantou-se, apoiando-se no pé bom, e se aproximou da mesa. Ali havia uma jarra de água e uma parte de pão. Farejou dentro da jarra e se deu conta de que a água estava boa, ao menos mais limpa que a que davam a ele. Bebeu tudo o que pôde e depois se meteu uma parte de pão na boca, mastigou-o e voltou a beber para tragá-lo.

Então se deu conta de que havia uma faca. Não tinha fio e não cortava, mas de todas as formas, tomou, junto com o resto do pão. Levou as duas coisas, coxeando, a sua caixa, e as jogou em uma esquina.

   Voltou a sentar-se justo quando chegavam os dois homens. Um deles levava um balde de água. O outro levava roupa, uma navalha e uma pastilha de sabão.

   — Ahkmed diz para você se lavar e barbear. Depois ponha esta roupa. — colocaram a bacia diante dele — E faz bom uso da água. Não terá mais.

Ele assentiu, satisfeito porque tivessem mordido o anzol.

Sem levantar-se, tirou-se a camisa rota e sangrenta, e tomou o sabão, que era caseiro e o suficientemente forte para lhe queimar os olhos. Também lhe tinham dado um trapo. Bem. Pareceu-lhe muito bem, se lhe tirava algo da sujeira.

Os homens se mantiveram detrás dele, com as armas preparadas, vigiando-o. Ele se limpou as queimaduras e as feridas do peito e dos braços, embora o sabão era pior que o álcool sobre a carne viva. Devia ser feito de alvejante.

   — É a cara o que tem que lavar, Stone. Faça isso.

Ele assentiu e obedeceu. Ensaboou-se a cara e o cabelo e se esfregou com o pano. Depois se inclinou sobre o balde e colocou a cabeça inteira para esclarecer-se. Logo se aproximou a navalha à cara, mas se deteve o ver seu reflexo na água. A barba lhe estava crescendo muito bem. Seria uma camuflagem excelente se alguma vez conseguia sair dali.

   — Eu gostaria de ficar com a barba, se puder.

Os homens se olharam o um ao outro, e depois a ele.

   — É americano. Não vale o suficiente para levar barba. Barbeia-lhe isso.  

Suspirando, não viu que teria nenhum benefício discutindo. Barbeou-se com a navalha sem fio, arranhando a cara no processo.

   — E agora, ponha esta roupa. — ordenou um deles.

Ele se apoiou na mesa para ficar de pé, embora manteve o peso no pé direito. Então, guardando o equilíbrio, as arrumou para tirar as calças e a cueca. Não tinha nenhum problema em ficar nu ante eles, se aquilo significava poder lavar-se pela primeira vez em um mês.

Tomou o trapo e começou a esfregar-se antes que seus carcereiros tivessem tempo de pôr objeções.

A água já estava suja e cheia de cabelos e espuma, mas mesmo assim, tinha valor para ele.

   — A roupa, Stone!

   — Sim, sim. — disse. Então, tomou o balde e o pôs sob a mesa, junto à cadeira, como se o estivesse movendo para fazer lugar para a roupa.

Um dos homens a entregou ao Will, e ele se encolheu ao dar-se conta de que era o uniforme de um soldado americano.

   Colocou as calças. Não lhe tinham dada cueca.

   — De onde você tirou isto?

   — Cale-se e ponha isso.  

Will obedeceu. Mas, primeiro, sentou-se na cadeira, inclinou-se rapidamente para metê-la primeira perna da calça pela perna esquerda e ato seguido afundou o pé no balde sem que se dessem conta. Havia bastante sabão de alvejante na água para desinfetar as feridas, e a água estava gelada, assim não lhe viria mal ao inchaço. Depois, lentamente, seguiu ficando o resto da roupa, lentamente, enquanto se esclarecia o pé.

   — Acredito que já estou preparado. — disse, e se passou a mão pelo cabelo, para pentear-lhe com os dedos.

Os dois assentiram e deram o periódico a ele.

Ele o sustentou obedientemente enquanto tiravam a fotografia com uma câmera Polaroid, que estava totalmente fora naquele contexto.

Observaram a fotografia enquanto se revelava, e assentiram ao ver o resultado. Alguém partiu com ela, certamente para mostrar ao Ahkmed, enquanto o outro continuava vigiando-o. Até o momento, nenhum dos dois se deu conta de que tinha o pé metido na bacia sob a mesa. Ou, se tinham dado conta, não parecia ter importância.

Seu pé esquerdo pulsava constantemente. Tinha uma interessante mescla de cores: arroxeado, negro e azul. Também havia um pouco de verde nas bordas das manchas. Estava inchado até o dobro do tamanho normal. Tinha uma estranha forma.

Um dos métodos que tinham usado para interrogá-lo tinha sido lhe pôr o pé em um torno e apertá-lo cada vez que lhe repetiam uma pergunta.

Não tinha funcionado. Embora ele mesmo não se concedia muito mérito por ter agüentado aquela tortura. Para ser sincero consigo mesmo, tinha que admitir que parte da motivação para suportar todo aquilo era a certeza de que, assim que lhes tivesse proporcionado a informação que queriam, teriam dado um tiro nele. Outra parte tinha sido o fato de saber que outros homens, alguns dos quais eram bons amigos deles, teriam morrido se ele tivesse falado. Mas o resto tinha provindo da ira. Teria preferido morrer de dor antes de ajudá-los em sua causa.

   — Ahkmed diz que a foto está boa. — disse o que se partiu, entrando de novo na estadia — Vamos, volta para seu chiqueiro.

Ele assentiu e tirou o pé da bacia. Depois se voltou para voltar para a caixa.

Um deles lhe murmurou ao outro em seu idioma:

   — Por Alá, o pé piorou muito.

   — Por mim, que apodreça e caia. É um americano.

Entretanto, o outro estava preocupado. Will se tropeçou deliberadamente, e o homem se aproximou dele para ajudá-lo a voltar para a caixa de metal. Will se inclinou para ele e lhe sussurrou:

   — Direi a minha gente quem foi amável comigo e quem não, quando fizerem a troca, para que quando voltarem, saibam a quem têm que matar e a quem não.

O homem olhou para trás nervosamente, mas seu companheiro não tinha ouvido nada. Estava vários metros mais à frente. Enquanto ajudava ao Will a entrar na cama, o homem lhe disse:

   — Pegue isso. — e deu ao Will a faixa branca que levava na cintura — Enfaixe o pé.

   — Obrigado.

O homem assentiu e fechou rapidamente a porta da caixa. Will apoiou as costas na porta enquanto o homem punha a cadeia e o cadeado. Esperou até que o carcereiro partiu para afrouxar a pressão, e depois se voltou e viu que a cadeia estava solta. Podia empurrar e abrir a porta vários centímetros.

E aquilo, pensou, era tudo o que necessitava.

  

Aquela noite, a infecção, que tinha ido piorando, chegou a seu ponto crítico. Will lutou contra ela enquanto ardia de febre, tremia e se estremecia. Tinha que esperar que os homens saíssem, tinha que estar acordado até que todos dormissem, dentro de umas horas.

Entretanto, ao final, a febre venceu. Caiu em um sonho tenso e doloroso, e se encontrou de novo ali, no bosque aos subúrbios do acampamento cigano, seguindo as cores brilhantes da saia da mulher enquanto corria entre as árvores, na escuridão.

Custou-lhe um momento orientar-se, mas finalmente se deu conta de onde estava e do que estava fazendo. Foi toda uma sensação caminhar sem que lhe doesse o pé, até que recordou que aquele lugar não era real. Não estava seguro de por que estava seguindo a aquela mulher pelo bosque, mas sabia que era importante. Desejava com todas suas forças voltar a vê-la.

Por fim, a beleza apareceu entre umas árvores, olhando a seu redor, como se estivesse procurando a alguém. Como se soubesse que ele se aproximava.

Entretanto, ao vê-la de perto, Will se deu conta de que não era Sarafina, a não ser Katerina a que tinha estado seguindo.

Cheirava tão mal que o deixou aniquilado, até que se deu conta de que levava uma réstia de alhos pendurada no pescoço. Aquilo explicava o aroma. Não estava seguro do que estava fazendo no bosque àquela hora da noite. Certamente, ia encontrar-se com André, embora o alho fosse algo desconcertante.

Então recordou sua última visita, induzida pela dor. Tinha havido um assassinato. Ele tinha estado indo e vindo, mas tinha sido testemunha de parte do acontecido. Supôs que sua imaginação estava a ponto de lhe acrescentar um monstro à história.

   — Te mostre, sai de seu esconderijo! — disse ela, de repente — Sei que está perto. Tenho algo que você quer!

Ao princípio, Will ficou assombrado, perguntando-se se era com ele com quem estava falando.

   — Vamos, não tenho muito tempo. Supõe-se que estou velando a sua última vítima.

Assim que a irmã de Sarafina não tinha permanecido junto ao cadáver de Belinda, como tinha prometido que faria. Em vez disso, afastou-se com qualquer desculpa e entrou no bosque. Em busca do assassino de Belinda?

Ela seguiu caminhando com a bolsa que tinha presa à cintura bem agarrada na mão.

   — Criatura! Vampiro! Vamos, sai. Não tem nada que temer de mim.

Will sentiu algo, uma presença escura, depois dela. Tentou avisá-la, mas a mulher não o ouvia. Um homem emergiu de entre as sombras. Ou, ao menos, parecia um homem; um homem muito alto, extremamente pálido, que se aproximou dela pelas costas sem fazer um só som. Inclinou-se para a Katerina e lhe sussurrou ao ouvido:

   — Que eu não tenho nada que temer de ti? Quer ser minha próxima comida, cigana?

Ela deu um salto para afastar-se, e depois se girou rapidamente para olhá-lo à cara, com uma mão apertada contra o peito.

   — Pelos deuses, fede a alho! — disse o vampiro, com um gesto de repugnância que deixou à vista, ligeiramente, seus incisivos. Depois, o gesto se converteu em um sorriso — Me resulta divertida. O alho é, verdadeiramente, uma poderosa raiz. Pode limpar a energia negativa de uma habitação, desencardir um corpo humano e desterrar aos demônios e os maus espíritos. O fato de que você pense que te vai proteger de mim significa que me considera uma dessas coisas. Pensa que sou um veneno, uma impureza ou um demônio?

Ela tomou sua bolsinha e a agitou frente à cara como se fora uma arma, ao mesmo tempo em que dava uns passos atrás.

   — Não te aproxime, vampiro! — gritou-lhe.

O vampiro farejou o ar e sacudiu a cabeça.

   — Repelente para lobos? Bom, isso poderia funcionar em caso de que estivesse tratando com um licantropo. Mas não é o caso.

   — Chamei-te para falar. Só para que falemos.

   — Então, é tola. Eu não falo com os mortais. Alimento-me deles. Vou deixar-lhe seca em um momento, e não pode fazer nada para impedi-lo.

Will viu o medo refletido no rosto de Katerina, em seus olhos, e soube que o homem, o vampiro, tinha-o visto também. Pareceu que satisfazia a ele. Entretanto, Katerina tentou dissimulá-lo, levantou o queixo e se obrigou a falar.

   — Posso te dar Sarafina. — disse.

   — Não! — gritou Will. Entretanto, quem ia ouvi-lo?

O vampiro ficou imóvel, olhando-a com o cenho franzido. Ela tinha captado toda sua atenção.

   — É minha irmã. — disse Katerina — E sei que é a razão pela que segue a minha tribo e caças nela.

O vampiro olhou para cima, sorrindo.

   — Não sabe nada, mortal. Eu só mato a aqueles que o merecem. E só lhes sigo para protegê-la.

   — Protegê-la? Tolices. Você só quer matá-la, como a Belinda.

Ele não disse nada, mas se lambeu os lábios e cravou o olhar no pescoço da Katerina.

   — Os outros também estão começando a perguntar se Sarafina tem alguma conexão contigo. — disse Katerina, falando rapidamente enquanto se tampava o pescoço com uma mão — Notaram seu comportamento. Ela não está bem. Há algo que a debilita.

   — Sempre é igual. — sussurrou o vampiro.

Will franziu o cenho. Que demônios significava aquilo?

   — Do que está falando? — perguntou Katerina, como se fosse um eco dos pensamentos do Will.

   — De nada. Diga-me, por que quer entregar a sua própria irmã a uma criatura que, segundo você, vai matá-la?

Ela se encolheu de ombros.

   — Isso não é de sua incumbência.

   — Vigio a sua tribo, Katerina. — disse ele. E ela se sobressaltou ao dar-se conta de que conhecia seu nome — Sei o que sente por esse homem, André. E sei que lhe queimam os ciúmes. Enegrecem sua alma e lhe rodeiam como um fedor, mais poderoso, inclusive, que o alho que pensava que me repeliria.

Ela se tornou para trás como se a tivesse golpeado. Entretanto, recuperou-se em seguida.

   — Você a quer ou não?

   — Quero-a. — disse ele — Mas a quero viva e intacta.

Ela assentiu.

   — Há uma caverna por ali. — disse, assinalando — No mais profundo corre um riacho. Sabe qual é?

“Deus, outra caverna não”, pensou Will. Já tinha tido suficiente.

O vampiro assentiu.

   — Conheço-a.

   — Ela te estará esperando ali amanhã a meia-noite. — disse Katerina, e se deu a volta para partir.

O vampiro a deteve, tomando-a pelo braço com sua mão enorme e pálida.

Ela ficou imóvel.

— Se me matas, não terá nenhuma oportunidade de consegui-la.

   — Irei tê-la de todas as formas. — disse ele — A minha maneira, e quando goste. Mas, me diga, como o vais fazer?

Ela começou a tremer de medo.

   — Prometo-te que não lhe farei mal. Só lhe darei um sonífero em pó. Porei no jantar, e para a meia-noite, os efeitos quase terão passado. Estará acordada para que a use como quer.

Ele a soltou rapidamente e se limpou a mão nas calças.

   — Não vale para nada como irmã, Katerina. Provavelmente, matarei-te depois disto, embora esteja seguro de seu sangue será mais amargo que a bílis.

   — Não serei uma presa fácil, vampiro. — respondeu ela.

   — Não há dúvida de que seu alho e sua repelente de lobo serão todo um desafio para mim. Continua. Volta para sua patética banda antes que dita lhe fazer um favor a um homem mortal, te matando.

Houve algo, um pressentimento, que disse ao Will que tinha que retirar-se daquele lugar do fundo de sua mente. Entretanto, não quis obedecer. Tinha que seguir observando. Seguiu a Katerina através do bosque, até que a moça chegou junto à anciã que velava a sua filha e se ajoelhou. A mulher continuou balançando-se lentamente, em uma espécie de transe. Nem sequer tinha notado a ausência da Katerina.

As palavras do vampiro ressonavam na mente do Will.

“Eu só Mato a aqueles que o merecem.”

O que teria feito Belinda para merecer a morte, segundo aquela criatura?

Retirou sua concentração delas e procurou Sarafina. Tinha que lhe advertir o que ia ocorrer, de alguma forma.

Olhou a seu redor, mas não soube para onde ir. Finalmente, imaginou, pensou em sua cara, em seus olhos e no som de sua risada, que o tinham mantido com vida durante semanas. Através da tortura, da fome, das noites mais escuras de sua alma, ela tinha estado ali. Will sempre tinha sido capaz de encontrá-la. Certamente também poderia fazê-lo naquela ocasião.

Seguiu pensando nela e, de repente, como por arte de magia, encontrou-se em meio de seu camarote, olhando-a enquanto dormia.

Era maravilhosa. Morria de vontades de acariciá-la, e tremendo, alargou uma mão para tocar-lhe o cabelo. Mas sua própria carne não era sólida. Ou possivelmente fora ela a que era feita de algo irreal. Fora qual fora a razão, sua mão a atravessou. Não pôde acariciá-la. Tentou falar com ela, primeiro em voz alta, depois através da mente, mas nenhum dos dois intentos conseguiu que a mulher reagisse.

Deus, estava cansado. Mais cansado do que nunca tivesse estado. E tinha frio. Estava tremendo. Sabia que deveria ir-se, que havia algo muito urgente que o estava esperando no mundo real. Mas não podia deixar sabendo que estava em perigo. Tinha que ficar com ela. Tinha que advertir de que sua irmã ia drogá-la e entregar-lhe a um monstro no bosque...

Brandamente, Will se tombou a seu lado enquanto ela dormia. A cama não se moveu em resposta a seu peso. Aproximou-se tanto a ela que algumas parte de seu corpo se fundiram com partes do corpo da Sarafina, mas não pôde senti-la. Aproximou-se ainda mais, até que seu corpo ocupou o mesmo espaço que o dela. Estava dentro dela e a seu redor, ao mesmo tempo.

Na mente de Sarafina os sonhos giravam. Sonhava com que estava olhando a bola de cristal... E vendo a ele.

       Estavam olhando-se fixamente aos olhos.

   — Estou aqui. — sussurrou ele, conferindo toda a força que pôde a suas palavras — Não confie em sua irmã. Não confie nela. Trairá você. Escute-me, Sarafina.

Suspirando, a bela mulher deixou que a imagem de Will se desvanecesse e se perdeu em um sonho ainda mais profundo. Então, imediatamente, voltou a vê-lo de novo. Dentro de sua mente e de seus sonhos.

Ele estava convexo ao seu lado, na cama de seu camarote. Ela o olhou nos olhos e sorriu.

   — Sabia que viria.

   — Estive contigo todo o tempo. — sussurrou, pensando que ela não o ouviria. Entretanto, Sarafina o ouviu.

   — Sei. — respondeu — Sentia você comigo.

   — Não deve confiar em sua irmã. — ele disse— Vai trair você.

Ela sacudiu a cabeça lentamente.

   — Está com ciúmes e é cruel. Mas é minha irmã. Não me faria mal.

   — Eu acredito que sim.

A dor que ela experimentou era quase insuportável. Ele o sentiu também. Entretanto, Sarafina se sobrepôs e pediu a ele:

   — Beije-me, espírito.

E ele o fez. Beijou-a, e o sonho de Sarafina floresceu e cresceu. Já não lhe importou mais sua voz. Seus avisos foram esquecidos enquanto se rendia a aquele sonho dos dois.

Acariciou-a livremente, intimamente. Explorou seu corpo, seu aroma e seu sabor, e todos os sons que ela emitiu foram reais. Inclusive as reações que Will sentiu foram reais, físicas e viscerais, e mesmo assim, tenras e profundas. Fez-lhe o amor ali, em seu camarote, e ela se pendurou em seu corpo e disse a ele que era seu amante secreto, o único que sabia com certeza que não a abandonaria nunca.

E depois, abraçando-o, adormeceu. E quase contra sua vontade, ele se afundou nela e dormiu, também.

  

Quando Will despertou, o primeiro que pensou foi que Sarafina já não estava com ele na cama. Foi-se. Estava sozinho. Mas então, a realidade se impôs. Não estava no mundo místico que sua mente tinha criado para que escapasse. Naquele outro havia dor e frio. Estava encerrado em uma caixa de metal, em uma caverna escura, em meio a um território hostil.

Parte de sua mente, a parte febril que tinha confundido aquele sonho com algo real, queria voltar para mundo de fantasia dos ciganos, mas o resto lhe dizia que não podia fazê-lo, não naquele momento. Não sabia de onde demônios sua cabeça estava tirando aquelas histórias. Parecia tão reais que era difícil pensar que era só uma fantasia.

Estava empapado em suor, e entendia o significado daquilo: a febre tinha chegado a seu ponto máximo aquela noite, enquanto ele dormia. Normalmente, não sonhava com a Sarafina e sua tribo. Escapava a aquele reino só quando o estavam torturando.

Demônios, aquela febre, combinada com a dor do pé, devia ter sido como uma tortura de algum tipo para haver-lhe feito ter um sonho tão vivido. Além disso, tinha-lhe acrescentado novos mecanismos de escapamento. Estava vendo vampiros e fazendo amor com um produto de sua imaginação.

Moveu-se lentamente, com muito cuidado. Apalpou-se o corpo e estirou os braços para fazer trabalhar um pouco as articulações. Então, ficou imóvel ao recordar quando adormeceu: estava esperando que seus captores dormissem primeiro, porque uma vez que o tivessem feito, ele teria podido tentar escapar.

Aquela podia ser sua única oportunidade. Sabia muito bem que o novo plano daqueles homens não ia funcionar. O governo dos Estados Unidos estaria feliz de saber que ele estava vivo, mas aquilo não queria dizer que fossem trocar uma pilha de prisioneiros pela vida de um soldado. Sobre tudo de um como ele, sem família, sem laços de nenhum tipo. A opinião pública de seu país, provavelmente, nunca saberia de sua existência. Aquela era parte da razão pela qual o tinham elegido para aquela missão, e ele sabia. Não tinha nada a perder.

Arrastou-se até a porta e a empurrou para abri-la aqueles centímetros. Depois escutou atentamente na escuridão.

Parecia que a habitação estava vazia, embora estivesse tão escuro que era impossível sabê-lo. Só se ouvia o silêncio. Tomou a faca do pão que tinha roubado horas antes, voltou para a porta e tirou a mão pela fresta. A cadeia que servia de ferrolho estava enganchada a uma barra de ferro no exterior da porta. A barra estava fixada com duas porcas. Will as arrumou para inserir a ponta da faca na ranhura de uma das porcas, e o girou. Não era fácil. A porca estava muito dura, assim teve que apertar a faca com muita força. Will seguiu trabalhando, pacientemente, até que conseguiu soltá-la. Em vinte minutos esteve o suficientemente frouxa para tirá-la. Fez, e a guardou no bolso.

Doía-lhe a mão e a garganta ardia, e estava tão enjoado que quase não se mantinha em pé, mas tinha chegado muito longe para deter-se naquele momento, assim que ficou a trabalhar na segunda porca.

Uma hora mais tarde, a cadeia estava solta. Meteu-se a parte de pão e a faca no bolso e abriu a porta com cuidado para evitar que chiasse. Olhou a seu redor, mas só viu escuridão e algumas sombras, nenhuma delas humana. Com cuidado, saiu da caixa e fechou de novo a porta. Tirou-se as porcas do bolso e voltou a colocar a barra em seu lugar. A primeira vista, sua cela não tinha mudado. Até que tentassem abrir a porta para tirá-lo de novo, algo que era provável que não fizessem em vários dias, não saberiam que escapou.

Envolveu o pé no tecido branco que seu captor havia dado, assim, ao menos, estava protegida. Não ficou mais remédio que apoiá-lo enquanto andava pela caverna em silêncio. Sabia mais ou menos onde estava a entrada da parte da caverna onde se encontrava, mas a partir daquele ponto, não tinha nem idéia de por onde seguir. Não via nada. Ficou imóvel durante um momento, desejando fervorosamente que algo lhe proporcionasse uma pista. E então um som. Um gemido. O vento? Sim, era o vento! “Deus”, pensou, “guia-me para que possa sair deste inferno”. Lentamente, moveu-se para o som, apalpando a parede.

Finalmente, viu uma luz vacilante ao longe, que iluminava uma abertura da caverna. Andou com toda a rapidez que pôde para ela, apesar de que a cada passo dado a dor atravessava seu pé. Pela primeira vez desde que tinha escapado da caixa, sentiu esperança. Mas quando chegou a aquela abertura, ficou gelado. Inclusive deixou de respirar.

A luz provinha de uma pequena fogueira no centro de uma enorme habitação. E, ao redor daquela estadia, havia uma dúzia de homens, ou possivelmente mais, dormindo, respirando profundamente, alguns inclusive roncando de vez em quando. E mais à frente, ao final da fila, havia outra abertura, através da qual se viam as estrelas brilhando no céu noturno.

A liberdade.

Cheirava-a, saboreava-a. Estava muito perto. Tragou saliva. O corpo e a mente lhe diziam que corresse para a saída, mas não o fez. Tinha que pensar se queria seguir com vida. Umedeceu-se os lábios emendados e olhou aos homens que estavam dormindo no chão. A maioria levava túnicas, e alguns estavam tampados com mantas.

Então se ajoelhou silenciosamente e tirou o trapo branco do pé para ficar como turbante. Oxalá não tivessem obrigado a barbear-se. Para esconder sua mandíbula sem barba, tampou-se até debaixo dos olhos com um extremo do tecido.

Finalmente, seguiu andando. A cada passo, o pé explorava de agonia, inclusive mais, sem o amparo do tecido. Entretanto, continuou caminhando com os dentes apertados. Moveu-se entre os soldados, passou a fogueira e chegou à saída.

Quando saiu, o ar fresco lhe acariciou a cara e ele respirou profundamente, enquanto continuava coxeando e afastando-se da caverna. Ao final, teve que deter-se para averiguar onde estava.

Estava no mais alto de uma montanha, e não tinha nem idéia de qual seria o caminho para a liberdade. Não havia caminho nem sinais por ali. E muito menos, luzes que pudessem guiá-lo.

Estava a uns vinte metros da cova quando ouviu a voz de um homem que o chamava desde atrás.

   — Aonde vai à metade da noite? Ocorre algo?

Ele ficou imóvel e não se voltou. Tragou-se o medo, disse-se a si mesmo que não podia danificá-lo tudo quando já quase o tinha conseguido. Respondeu ao homem em sua própria língua.

   — Não ouviste os disparos? — perguntou-lhe — O som vinha dali. — disse, e assinalou para diante.

   — Disparos?

   — Sim, estou seguro. Possivelmente tenham voltado os americanos.

O outro homem se sobressaltou. Depois, disse:

   — Não podem ser os americanos. A fronteira está ao leste daqui, não ao oeste. E só podem vir pelo oeste. — explicou ao Will, e suspirou — Será melhor que desperte ao Ahkmed.

   — Espera! — disse-lhe Will — Estou vendo algo aí abaixo. Olhe!

O homem se aproximou correndo e olhou para baixo, pelo precipício, para a escuridão total.

   — Onde? Não vejo nada.

Com um movimento suave e silencioso, Will se adiantou, tampou-lhe a boca com uma mão, pô-lhe a outra na parte de atrás da cabeça e girou para um lado com ferocidade. "O pescoço do homem se rompeu e fez um som horrível. Seu corpo ficou sem forças, como o de um boneco de trapo. Will o deixou no chão, tomou pelos ombros e o arrastou até um saliente da rocha, onde se escondeu.

Tão rapidamente como pôde, tirou-lhe a roupa e a pôs. Tirou-lhe também o rifle e uma pequena espada curva com uma capa. Envolveu de novo o pé com o turbante do morto e depois olhou para as rochas, muito quieto, observando e escutando.

Não percebeu nenhum som que proviesse da cova. Arrastou o corpo até o bordo do precipício e o atirou. Depois, começou a descer pela montanha, e tomou a direção do este, por que o homem o havia dito.

Quando chegou abaixo, começou a caminhar. Usava o rifle como bengala, e caminhou a pesar da dor insuportável do pé e da febre.

Quando saiu o sol, seus primeiros raios se levaram o frio da noite. Ele o agradeceu durante um momento. Mas pouco depois, quando o calor lhe caiu sem piedade sobre a cabeça e as costas, amaldiçoou-o. A montanha tinha ficado detrás dele, e seguiu afastando-se, entrando no deserto, e quanto mais caminhava, o calor piorava mais. Estava já desidratado pela falta de água, a enfermidade e a febre.

Ele tentou seguir movendo-se sob o sol, pondo um pé diante do outro. Não tinha nem idéia de quanto tempo poderia continuar, ou quanta distância tinha percorrido já, quando finalmente caiu de cara à areia.

Ficou ali convexo, tentando aferrar-se ao estado consciente com todas suas forças, sabendo que, se desmaiasse ali, morreria. Os abutres se encarregariam de deixar só os ossos. Tentou levantar-se, mas não pôde. Então, tentou engatinhar.

E depois desmaiou.

  

Quando abriu os olhos, estava ao lado de Sarafina, observando-a enquanto despertava lentamente. Estava pálida. Tinha a cara tensa, e umas profundas olheiras sob seus preciosos olhos.

Sentou-se, olhando a seu redor, franzindo o cenho para proteger do sol que entrava pela porta da carroça. Levantou-se, levantou o tecido e olhou ao céu.

   — Já é tarde. Quase está entardecendo, e eu dormi todo o dia outra vez.

Suspirando, baixou a cabeça. Colocou um vestido verde sobre a camisola branca que levava, e passou as mãos pelos cachos indomáveis enquanto olhava à cama, sorrindo. Estava recordando o sonho que tinha tido a noite anterior.

   — Meu querido espírito. — sussurrou — Me pergunto se virá comigo esta noite, também.

   — Estou aqui. Estou aqui agora mesmo. — lhe disse Will, mas ela não o ouviu.

Desceu da carroça e passeou pelo acampamento até que se encontrou ao André. O pêlo de Will se eriçou. Odiava aquele homem.

   — Sara, estivemos muito preocupados. Está melhor?

Ela franziu o cenho.

   — Melhor?

   — Pensamos que você estava doente. Por que foste dormir durante todo o dia, se não?

Ela se encolheu de ombros.

   — Fiquei até muito tarde preparando a Belinda. Só estava cansada. Não estou doente.

Ela tentou continuar andando, mas ele tomou pela bochecha e fez que levantasse a cara como se fosse a beijá-la, mas não o fez. Tão somente a estudou atentamente.

   — Não tem bom aspecto, Sarafina. Acredito que está doente e te empenha em negá-lo.

   — Eu não te mentiria, André. — respondeu ela, e se aproximou dele para beijá-lo nos lábios. Entretanto, ele se apartou.

Will viu a dor refletida nos olhos de Sarafina, inclusive quando André disse:

   — Só no caso de estar doente, amor. Não quero que me contagie com essa enfermidade.

   — Eu te disse que não estou doente! — exclamou ela, e pôs-se a andar para a fogueira central do acampamento — O que passou com a Belinda? — perguntou ao homem, quando a alcançou e ficou a caminhar a seu lado.

   — Enterramo-la esta manhã, com a maioria de suas coisas. O resto, queimamos, incluído seu camarote. Eu queria te despertar, mas Gervaise ordenou que deixássemos você descansar. Ele também pensa que está doente.

   — Repito-te que estou bem. E Melina? Que tal se encontra?

André sacudiu a cabeça lentamente.

   — Está destroçada. Nós a obrigamos a comer algo na hora da comida, mas muito pouco... A propósito... — avançou para a fogueira e tomou uma terrina que havia em cima de uma pedra, junto ao fogo, para entregar a Sarafina — Deveria comer. Não tomaste nada desde ontem de noite, e está muito pálida.

Ela sorriu. Tinha a calidez do agradecimento nos olhos, e quando sorria assim, era a criatura mais bela que Will jamais viu. Necessitava muito pouco para que seu sorriso resplandecesse. Com a mais ligeira consideração daquele homem que ela acreditava que amava, Sarafina se voltava luminosa.

Ela olhou o guisado e sentiu que a fome despertava no estômago. Sentou-se sobre um tronco e tomou a colher que havia na terrina.

   — OH, André, foi muito amável por sua parte que me guardasse isto. Obrigado. — disse, e tomou um pouco, e depois um pouco mais.

   — Não fui eu. Em realidade, foi sua irmã que te guardou o guisado.

Sarafina deteve a colher a meio caminho para sua boca. Will sentiu que o coração encolhia.

   — Minha irmã?

   — Gervaise ordenou que fizessem as pazes. — disse André — Acredito que ela quer tentá-lo.

Sarafina ficou olhando a terrina. Só ficava um pouco de carne e uma parte de batata. Ela deixou a colher.

   — Minha irmã quer me fazer dano. — disse ela, brandamente.

   — Isso é mentira. — disse André, com o cenho franzido.

   — Não. É certo. Disseram-me isso. Advertiram-me que não confie nela.

   — Quem?

   — Não sei... Um espírito. Ele... Veio para ver-me ontem à noite, e me disse que não confiasse nela, porque me trairia.

“OH, Deus, o guisado”, pensou Will.

   — Pôs algo na comida, André. Sinto-me... Tão...

Sarafina se levantou, com uma mão posta na cabeça, cambaleando-se. André ficou ao seu lado imediatamente e a segurou pelos ombros. Assustada, ela levantou a cabeça e olhou a seu redor.

   — Onde está todo mundo? Por que está tão vazio o acampamento?

   — Foram caçar ao vampiro. — explicou André — Eu fiquei para cuidar de ti.

   — Você sozinho? — sussurrou Sarafina, apoiando-se nele.

   — Não. Eu... E sua irmã. — ele sorriu com ternura, e lhe acariciou o cabelo para tirar-se da cara — Sarafina, tola. É Katerina a que quero. Sempre quis a ela. Agora terá tudo o que te pertence, incluindo seu status na tribo. Ela será a única Shuvani. A mulher mais respeitada do clã. E como seu marido, eu serei o chefe quando Gervaise morrer.

   — Você... Quer a Katerina?

   — Ia me casar contigo só para me assegurar a posição na tribo. Todo mundo sabe que você tem mais talento que ela. Seu dom é mais forte.

   — Mas...

   — Durante um tempo, consolaremo-nos o um ao outro. Ao final, parecerá algo natural que estejamos juntos.

   — Mas, André, eu te quero.

   — Dorme, Sarafina. É possível que nunca mais desperte.

Will sentiu que a raiva para aquele homem o transbordava, mas não pôde fazer nada. Não podia lhe fazer dano, embora uivou e amaldiçoou e inclusive tentou golpeá-lo. Mas não houve nada, nada, que pudesse fazer para salvar Sarafina...

Ela desmaiou e caiu para trás, e ele a tomou em seus braços. Então, Katerina saiu dentre as sombras, sorrindo. Tomou uma tocha e a acendeu na fogueira.

   — Por aqui. — disse a André — Traga-a.

Will os seguiu. Deus, tinha que parar aquilo de algum jeito. Mas, como? O que ele podia fazer? Sarafina o tinha visto e tinha ouvido suas advertências. Inclusive tinha acreditado, embora tivesse querido negá-lo. O sabia. Mas ela não sabia nada da traição de André. Se Will a tivesse advertido daquilo... Entretanto, já não podia fazer nada mais, salvo observar como André e Katerina a levavam para o mais profundo do bosque e, finalmente, entravam com ela na caverna.

Will não queria entrar na cova. Não podia. Vagamente, recordava que acabava de escapar de outra, uma muito maior. Entretanto, seguiu-os até o mais profundo e depois de rodear uma curva, viu uma corrente subterrânea que corria ao fundo da caverna.

   — Aí, nessa rocha. — disse Katerina — Coloca-a aí.

André o fez. Katerina deixou a tocha no chão e se aproximou de sua irmã. Tirou-lhe o vestido verde e esteve a ponto de deixar cair a Sarafina ao chão enquanto o fazia.

   — Esta era a camisola de nossa mãe. Não entendo essa estúpida a conseguiu. — disse.

Tirou-lhe também a camisola e depois se inclinou sobre o corpo de sua irmã. Naquele momento, soou o ruído de umas cadeias que, conforme pôde ver Will, estavam fixadas ao chão por uma argola. Com elas lhe atou os braços e, colocando o vestido verde e a camisola sobre ombro como se fosse um troféu, jogou um último olhar a Sarafina, drogada e indefesa.

   — Queime no inferno com seu amigo, o demônio. — sussurrou. Depois cuspiu e saiu correndo da caverna, com seu cão mulherengo, André, ao lado.

Will se aproximou da preciosa Sarafina, com os olhos cheios de lágrimas. Tentou liberá-la, mas suas mãos não podiam tocar as cadeias. Tentou despertá-la, falar com ela, mas ela estava imóvel. Tentou fazer tudo o que pudesse para ajudá-la, mas fracassou.

Algum tempo depois, Will não sabia quanto, ela abriu os olhos. Piscou a suave luz da tocha e tentou incorporar-se. Tinha as costas arqueadas contra a rocha, com a cabeça mais baixa que o peito. Estava gelada, mas levantou a cabeça para tentar ver algo na escuridão. Will experimentava seus pensamentos e suas sensações iguais a ela. Sarafina ouviu o murmúrio da água que ressonava sem cessar. Tentou sentar-se, e só então se deu conta de que tinha as mãos encadeadas. O medo despertou por completo, e puxou as correntes, mas o único que conseguiu foi se machucar.

   — Sinto-o. — disse Will — Estou aqui. Estou contigo. Não te deixarei, mas me temo que não possa te ajudar. Sinto muito.

Ela ficou imóvel.

   — Meu espírito? Meu querido espírito, está aí?

   — Sim.

   — Tem que me ajudar. Ajude-me!

Will sentiu que lhe derramavam as lágrimas ao lhe responder, em um sussurro:

   — Não posso. Sinto muito, mas não posso.

De repente, ela se deu conta de que havia uma presença escura de pé, a seu lado. Uma sombra tinha emerso da escuridão, e se havia interposto entre ela e a luz da tocha.

Ela ofegou quando uma mão, fria e morta, acariciou-lhe a cara. Os dedos desenharam o contorno da mandíbula, inclusive embora ela voltou a cabeça a um lado.

   — Sua irmã te traiu, Sarafina. Mas eu nunca o farei.

Will conhecia aquela voz. O vampiro.

   — Quem é você? O que quer de mim?

   — Não te farei mal. Vim te salvar.

     “Mentiroso”, pensou Will.

   — Então, me tire estas correntes e me ajude a voltar para minha família.

   — Ainda não. Primeiro tem que saber algumas coisas. Liberarei-te quando as tiver ouvido todas.

   — Me libere agora, e ficarei te escutando.

   — Não.

Ela esteve a ponto de ficar a chorar. Will notava as lágrimas quentes em seus olhos, e o medo que enchia seu peito. Entretanto, também sentiu o controle supremo que ela exercia em ambas as coisas. Ela acreditava que podia enganar à besta e assim conseguir alguma vantagem.

   — Ao menos, me conceda um pouco de luz, — disse ela, forçando sua voz para que não tremesse — para que possa verte.

O vampiro assentiu e deu a volta à rocha até que a luz da tocha o iluminou. Ela o olhou, e Will também.

Era grande, muito grande. Pesado, mas não gordo. Seu corpo recordou ao Will o de um lutador profissional. Era muito pálido, mas tinha os olhos e o cabelo negros como os de um cigano. Ele olhou a Sarafina, e se deu conta de que logo que levava roupa, só sua roupa interior branca.

   — Me conte esses teus segredos, e depois deixa que eu parta. —ordenou.

Entretanto, a voz tremia sem que já pudesse fazer nada para evitá-lo. Só a estatura daquela criatura era suficiente para aterrorizar a qualquer um.

O vampiro assentiu.

   — O primeiro que te direi é algo que você já sabe. Cada vez está mais débil, e te enjoa com freqüência. Algumas vezes, inclusive desmaia. Dorme mais e mais, sobre tudo durante o dia. E freqüentemente tem frio, apesar do forte que luza o sol, ou de quantas mantas ponha na cama.

Ela piscou, surpreendida.

   — Como sabe? Como pode saber essas coisas?

   — Porque sempre ocorre igual com os Escolhidos.

   — Escolhidos?

   — Assim é como chamamos a esses poucos mortais que estão unidos de uma maneira inexplicável a nós. Só eles podem converter-se no que somos. Sempre os conhecemos, vigiamo-los e os protegemos se formos capazes. Por isso estive seguindo a sua tribo. Para te proteger, porque você é um dos Escolhidos.

Ela o olhou fixamente.

   — Quem é?

   — Meu nome é Bartrone. — respondeu ele — Sou um vampiro.

Sarafina se moveu reflexivamente, e Will soube que teria feito algum sinal mágico para proteger-se se tivesse podido mover os braços. Mas só pôde atirar espasmodicamente das cadeias.

   — Por favor, não tenha medo. Você está morrendo, Sarafina. Sua vida mortal se está desvanecendo. Os sintomas que estiveste sofrendo são a prova disso. Os Escolhidos sempre morrem jovens. Pode te deixar levar e morrer sozinha, ou pode deixar que compartilhe meu dom contigo, e te converta no que eu sou. Pode te converter... Em minha amiga e minha companheira.

   “Não.”, pensou Will. “Não!”

   — Não, não. Você é um demônio, um assassino. Assassinas a inocentes. Eu nunca serei como você!

   — Nada de inocentes. — replicou Bartrone – Sua querida Belinda se fartou de cuidar de sua anciã mãe, e a estava envenenando.

Sarafina ficou imóvel na escuridão.

   — O que? Envenenando-a?

   — Não tinha notado que a saúde da mulher era cada vez pior?

   — Sim, mas...

   — Eu só lhes livrei que os desfeitos de sua tribo, Sarafina. Daqueles que mereciam morrer. Embora devesse haver me ocupado de sua irmã muito antes de lhe permitir que te traísse desta maneira.

   — De que maneira?

Ele baixou a cabeça.

   — Por favor, não finja que não sabe. Sabe sobre ela e André. Tem que sabê-lo.

Ela apartou o olhar, com os olhos alagados de lágrimas, enquanto recordava sua última conversação com o homem com o que tinha acreditado que se casaria. Ao Will doeu a alma por ela.

   — Só queria casar-se contigo porque foi a mais preciosa das duas, e porque sabia que seus dons eram muito mais fortes que os de sua irmã. Entretanto, de noite, Katerina e ele se escondiam no bosque, onde copulavam no chão, ou contra uma árvore, ou a quatro patas, como os animais. Eu os vigiei. Vi-o tudo.

   — Mentes. — disse ela, embora logo que podia falar. Will sabia que tinha acreditado tudo o que havia dito o monstro.

   — Não importa. Não pode voltar ali.

   — Posso. Tenho que fazê-lo. Deixa que me parta. — e, de novo, atirou das correntes.

O vampiro se inclinou para ela e a olhou nos olhos. Depois tomou os pulsos com as mãos.

   — Não pode voltar. A solidão de minha vida é algo insuportável. A menos que aceite o que te estou oferecendo, Sarafina, morrerá. E me temo que não tenha nem a menor intenção de te deixar escolher.

Liberou-lhe as mãos e tomou o queixo para lhe obrigar a que voltasse a cabeça. Depois lhe apartou a juba e deixou à vista seu pescoço esbelto. Sujeitando-a daquela maneira, o vampiro aproximou sua boca ao pescoço de Sarafina e mordeu com força, sem piedade. Afundou as presas na carne. Will sentiu a mesma dor que Sarafina, e sentiu como a criatura sugava, bebendo seu sangue enquanto ela se debilitava pouco a pouco embaixo dele.

Sentiu como se a alma estivesse escapando do corpo. Olhou para cima, para o monstro que estava se alimentando dela, e depois ao Will, e ele se deu conta de que podia vê-lo. Estava ofegando, e seu peito subia e baixava, e o do Will também, enquanto os dois observavam ao vampiro. Era algo erótico, delicioso, excitante. Deveria ter sido espantoso, mas não o era.

Então, a criatura levantou a cabeça e olhou a Sarafina.

“Então, matou-me?”, Sarafina fez a pergunta ao Will, olhando-o fixamente enquanto falava. “É você o espírito que veio a me buscar para me levar a outro lado?”

“Eu não sou um espírito. Sou real. Sou um homem, e te quero.”

Ela olhou para baixo, a seu próprio corpo. Tinha os olhos muito abertos, e o olhar perdido. Estava mais pálida que nunca.

“Nunca voltarei a amar ninguém. De as todas formas, não importa. Acredito que estou morta.”

O vampiro tirou uma pequena adaga de uma capa que levava na cintura e se fez um corte no pescoço. Sarafina o observou, assombrada, e ficou hipnotizada quando ele apertou para que brotasse o sangue na pequena ferida.

O vampiro se inclinou para ela de novo e tomou a cabeça entre as mãos. Depois lhe apertou o pescoço contra os lábios.

  

De repente, Sarafina voltou para seu corpo em um rápido golpe, que terminou impactando em seu coração. Provou a primeira gota de sangue e todos os nervos de seu corpo começaram a tremer, voltando para a vida. Will o sentiu. Sentiu-o tudo. Ela fechou os lábios ao redor da ferida e sugou o sangue, sentindo-se mais e mais forte com cada gole.

Finalmente, o vampiro segurou a Sarafina pela frente e apartou o pescoço de sua boca faminta.

   — E agora, — sussurrou, sem fôlego, ofegando e com os olhos cintilantes — descansa a meu lado. Mais tarde poderá visitar seu clã para vê-los pela primeira vez sem o véu que cobria seus olhos.

Ela olhou a seu redor.

   — Tudo parece diferente. Vejo a cor de todas as chamas da tocha! E as ouço. Cada uma tem uma canção diferente.

   — Tudo será distinto a partir de agora. — disse Bartrone — É imortal. Não tem que morrer nunca.

   — Você também parece diferente... Pelo Devel, tenho os sentidos muito mais agudos que antes... Mil vezes mais. É quase insuportável.

   — Com o tempo você se acostuma. Terá muito tempo. Mas agora tem que descansar. E quando despertar, será mais forte, e te explicarei as coisas. Agora é como eu, Sarafina. É uma vampiresa.

   — Sou uma vampiresa...

   — Dorme. — sussurrou ele — Dorme.

E ela dormiu.

Will abriu os olhos e os raios do sol lhe cravaram na pupila, cegando-o. Voltou a fechá-los imediatamente e tratou de incorporar-se.

   — Tranqüilo, tranqüilo, amigo. Não se mova muito.

Aquela voz era jovem, masculina e... Norte-americana?

Tentou abrir os olhos de novo, só um pouco. Quando a visão lhe esclareceu um pouco, deu-se conta de que a luz não era a do sol, mas sim de uma fluorescente que havia sobre sua cabeça. Estava em uma cama, abafado com um lençol branco que cheirava a desinfetante, e a seu lado havia um jovem com um cartão de identificação que dizia Danny Miller, enfermeiro.

   — Onde estou? — perguntou Will.

   — Olhe a seu redor. Está em um hospital.

O menino apertou um botão e a parte superior da maca ascendeu brandamente para levantar ao Will. Depois, aproximou-lhe um copo de plástico e lhe sustentou o canudo entre os lábios.

Enquanto bebia, Will sentiu a água fresca descendo pela garganta ressecada. Então se fixou nas bolsas de soro que havia pendurando de um tubo de metal a seu lado, e que tinha conectadas aos pulsos, e olhou para baixo, ao pé. Não sabia como estava. Ainda não tinha sensações no corpo.

   — Em que hospital? — perguntou, tentando mover o pé.

   — Bethesda.

Will fechou os olhos. Sentiu um alívio tão intenso que quase lhe causava dor. Estava em casa. Nos Estados Unidos.

   — O doutor virá em qualquer momento. Olhe, supõe-se que tenho que avisar a outros tipos quando você desperte. Quer falar com eles depois de que o doutor lhe dê permissão?

   — Depende dos quais sejam. Embora tema que já sei.

   — São militares. Com muitas medalhas no peito.

Will assentiu. Quereriam lhe passar o retiro do exército. Era o procedimento normal naqueles casos.

   — Sim, está bem. Mas primeiro quero saber que tal está o pé.

O menino apartou o lençol e Will viu que o tinha enfaixado.

   — Não se preocupe, vai conservá-lo. O doutor lhe dará mais informação depois.

Efetivamente, o médico lhe disse que conservaria o pé. Entretanto, teria que suportar uma terapia de recuperação muito intensa, e ficaria uma claudicação para o resto de sua vida. Poderia caminhar, mas não correr. E teria que usar bengala.

Will não aceitou aquele diagnóstico.

Passou um mês no hospital. A reabilitação foi dolorosa, mas muito menos que outras torturas que tinha agüentado. Durante aquele mês foi retirado do exército pelos militares e foi declarado herói nacional pela imprensa. Concederam-lhe uma enorme indenização pelo dano do pé, além da pensão. Também lhe penduraram uma medalha de honra e se desfizeram em elogios para ele. Tudo aquilo, antes que saísse do hospital.

Ele não queria retirar-se. Não queria o dinheiro, nem a medalha nem as honras. Entretanto, com o pé naquele estado, não teve muito que dizer, assim aceitou as cartas que lhe haviam enviado, suportou o tratamento e a reabilitação e passeou pelos corredores do hospital durante as noites, primeiro em cadeira de rodas e depois com a bengala, porque não podia dormir.

Sobre tudo, aquela última noite antes de voltar para casa. Voltar para casa era uma expressão que não tinha muito significado para ele. Tinha sido soldado durante muito tempo, e em realidade, não tinha um lar. Não tinha nenhum lugar aonde ir. Tinha muitíssimo dinheiro, certo, mas possivelmente era o único que nunca lhe tinha importado.

Toda sua vida ficou vazia. E, quando pensava em todas as coisas que tinha perdido, havia uma delas, tola e ridícula, que aparecia no primeiro lugar da lista. Tinha perdido sua fantasia. Tinha perdido o acampamento cigano ao que fugia quando a dor era insuportável, e tinha perdido a aquela preciosa mulher que habitava nele. Freqüentemente se perguntava por ela, como se fora uma pessoa real.

Tentava conjurar sua imagem durante as sessões de reabilitação, mas parecia que a dor que sofria não era o suficientemente intenso para invocá-la. Não encontrava o lugar onde se retirou com ela. E, embora soubesse que não era real, preocupava-se com ela, pelo que lhe tinha ocorrido e por como se teria adaptado à mudança.

Às vezes pensava que possivelmente houvesse alguma razão pela que sua mente tinha criado a aquela preciosa cigana e tinha idealizado sua trágica história. Possivelmente ele sabia, no mais profundo de sua alma, que sua própria vida ia sofrer uma mudança drástica, e a tinha criado para que as coisas não lhe parecessem tão más, em comparação. O tinha perdido muito: o movimento normal do pé, a carreira nas Forças Especiais do Exército, o trabalho de toda uma vida. Mas ela tinha perdido mais ainda. Tinha perdido a seu amante, a sua família, a sua tribo, e por último, sua humanidade, ao transformar-se em algo diferente. Will se perguntava como se teria enfrentado ao feito de converter-se em uma criatura escura. Teria passado a ser alguém mau porque era o que se esperava dela, ou teria sido só uma mudança física, como a mudança que tinha sofrido ele?

Pensava naquelas coisas enquanto percorria os silenciosos corredores do hospital às três da madrugada. Gostava das noites. Era o único momento em que podia estar sozinho, caminhar sem que o ajudassem, sem obstáculos. As enfermeiras, que sabiam que lhe resultava doloroso caminhar com aquele pé, embora estivesse curando-se o motivavam e o animavam por cada centímetro que avançava, como se fora um bebê que estava dando seus primeiros passos. Ele o odiava, embora soubesse que só queriam ajudá-lo. Estava claro que preferia a privacidade durante aquela tortura.

Aquela última noite estava passeando por uma parte do hospital quase abandonada durante a noite. Não havia pacientes, nem enfermeiras de guarda. E, entretanto, ouviu um som. Não tinha sido um ruído estrondoso nem alarmante, mas não encaixava naquele contexto. Vinha de detrás de uma porta de cristal que havia a sua esquerda. Aquela habitação estava totalmente às escuras, e tinha um sinal que proibia o passo salvo a pessoal do hospital.

O instinto lhe disse duas coisas: que havia alguém naquela habitação, e que não tinha por que estar ali.

Era muito para resistir. Will olhou para ambos os lados do corredor e não viu ninguém. Silenciosamente, aproximou-se da porta, abriu-a e entrou. Naquele momento, deu-se conta do tremendo esforço que lhe estava custando mover-se sigilosamente. Antes era capaz de deslizar-se entre as sombras como uma pantera. Entretanto, seus passos eram irregulares e além disso, tinha a maldita bengala, que fazia com que uma de suas mãos não estivesse disponíveis.

A parte dianteira da habitação estava vazia, mas sentiu a alguém na parte de atrás. O sentido comum lhe disse que não seguisse. Deveria sair dali e avisar a segurança rapidamente. Entretanto, não o fez. Fazia tanto tempo que não tinha nenhum tipo de ação, que estava quase obcecado por averiguar como poderia arrumar-lhe naquele estado. Queria saber se seria efetivo. Poderia enfrentar-se a um pouco tão comum como um empregado que roubava um pouco de medicação para usos recreativos?

Entretanto, não foi aquilo o que se encontrou.

O que se encontrou foi a um homem a ponto de saltar pela janela aberta. Estava-lhe dando as costas ao Will. Levava uma camisa de algodão negra e uns jeans escuros. Tinha um pé apoiado no batente e estava agarrado a ambos os lados da janela. À costas, tinha pendurada uma bolsa.

   — Não salte. — lhe disse Will rapidamente — Não sou segurança. Sou um paciente.

O homem ficou imóvel. Deu-se a volta e se voltou para o Will.

Will o observou com atenção e franziu o cenho. Notou que lhe resultava completamente familiar. Tinha a pele muito pálida, mas parecia saudável. Era luminosa, como uma pérola. Seus olhos também tinham um brilho estranho, um poder inegável. Era algo invisível, mas evidente. E havia algo mais, algo que o fazia diferente aos olhos do Will, mas não sabia exatamente como defini-lo. Aquele homem não era como outros.

E então soube. Era a mesma percepção que tinha tido sobre o Bartrone, o vampiro de sua fantasia.

O homem, que também estava estudando ao Will, abriu muito os olhos, mas só um instante. Depois controlou sua expressão. Will se deu conta de que estava tentando dissimular sua reação de assombro, embora não soube a razão daquela surpresa.

   — Sua cara me resulta conhecida. Vimo-nos antes? —perguntou-lhe o homem.

Will se encolheu de ombros e depois lhe lançou um olhar a um lado do homem.

   — O que está roubando? Drogas?

   — Eu não tomo drogas. O que te passou no pé?

   — Feriram-me. Por que foste sair pela janela em vez de pela porta?

   — Eu... A tenho aberto para que entrasse ar fresco. Por que está passeando pelo hospital a estas horas da noite?

   — Não podia dormir.

O homem sorriu ligeiramente.

   — É muito bom respondendo perguntas sem dizer nada.

   — Você também. O que leva na bolsa?

O homem sacudiu a cabeça e olhou para a janela uma vez mais. Will olhou a seu redor pela habitação. Seus olhos já se acostumaram à escuridão. Viu um refrigerador com uma cruz vermelha na porta.

   — É um banco de sangue. — disse quase para ele mesmo. Entretanto, o homem o ouviu e assentiu.

   — Exato. — respondeu. Voltou a subir o pé ao batente. Entretanto, deteve-se e se deu a volta — Já sei onde te vi. Na capa de Teme Magazine. Também li o artigo.

   — Isso é muito agradável, de verdade, mas não é a explicação de por que está roubando sangue de um hospital às três da manhã.

   — OH, deixa-o já. Soubeste o que sou do primeiro momento em que me viu. Embora eu não me explique por que. Quem é esse Bartrone que você acredita que eu te recordo?

   — Um produto de minha imaginação. — respondeu Will, e ficou gelado — Eu não o hei dito em voz alta.

   — É obvio que não. Sou um vampiro. Posso ler sua a mente.

   — Seriamente? Tenta-o. O que estou pensando agora mesmo?

O outro homem o olhou fixamente. Ao cabo de uns segundos, franziu o cenho.

   — Não sei. Está bloqueando seus pensamentos.

   — Estou bloqueando meus pensamentos? — repetiu Will.

   — Possivelmente inconscientemente, mas sim. Tem uma vontade forte, verdade?

Will se encolheu de ombros.

   — Se não poder me ler a mente agora, por que pudeste antes?

   — Não sei. Você é o que baixou a guarda e deixou que seus pensamentos fluíssem. Possivelmente, estava muito surpreso.

Will olhou ao teto, deixou escapar um suspiro e se aproximou do homem, caminhando com ajuda da bengala. A cada passo que dava, sentia cãibras de dor que lhe percorriam o corpo. Quando chegou a seu lado, atirou um pouco da abertura da mochila e olhou dentro. Estava cheia de bolsas de sangue.

   — Está roubando sangue de verdade.

O homem assentiu.

   — É melhor que a alternativa.

   — Refere-te a matar para consegui-la?

   — Refiro-me a morrer de fome. Eu não mataria a ninguém inocente, exatamente igual a você.

Will sacudiu a cabeça.

   — Isto não pode ser real. Os vampiros não existem.

   — Então, como soubeste que eu era um imediatamente?

Will baixou a cabeça.

   — Não sei.

Houve uma pausa.

   — O artigo dizia que suportou semanas de tortura e que não falou. Dizia que com seu silêncio, você salvou a vida a muitíssimos soldados americanos.

Will se encolheu de ombros uma vez mais.

   — Caminhou perto de sessenta quilômetros através do deserto depois de escapar. — o homem olhou o seu pé — Tendo em conta a dor que te produz agora, não posso imaginar como o conseguiu então.

Will sacudiu a cabeça.

   — Sim, de acordo, é certo que leste o artigo. Quer um autógrafo?

O vampiro sorriu.

   — Tenho que ir. — disse, e se voltou de novo para a janela.

   — Não, espera. Preciso falar contigo. Tenho umas perguntas...

   — Perguntas que não posso responder, amigo. Nem sequer a um mortal tão excepcional como você. Sinto-o. — se voltou para a janela, mas voltou a meter-se à habitação rapidamente — Maldita seja, viram-me. Há uma multidão aí abaixo, me assinalando com o dedo.

Will olhou para a porta. Ouviam-se passos.

   — Vem alguém. Diga-me, vampiro, é um homem de palavra?

   — Sim.

   — Então, dê-me isso. Agora te cobrirei, e você responderá a umas quantas perguntas depois. De acordo?

Os passos se ouviam claramente. O vampiro olhou para a porta, e depois para a janela.

   — Pergunta sobre o que?

   — Sobre uma vampiresa chamada Sarafina.

   — Por quê?

Will tragou saliva.

   — Preciso saber se é real. Isso é tudo... Está de acordo, ou não?

   — De acordo. — disse o vampiro.

A porta se estava abrindo.

   — Por aqui, detrás desta tela. — sussurrou Will.

O vampiro se moveu com tanta rapidez que foi como um borrão na escuridão. Se Will tinha tido alguma dúvida, desvaneceu-se. Nenhum humano teria podido mover-se a tal velocidade.

   — Não me disse seu nome. — sussurrou Will.

   — Jameson Bryant. — vaiou o vampiro.

   — Willem Stone. — respondeu Will.

   — Me alegro de te conhecer. — disse o vampiro, com certa ironia no tom de voz.

   — Eu também. Acredito.

Naquele momento, três anciões irromperam na habitação e acenderam a luz. Os três ficaram olhando ao Will, que estava junto à janela aberta. Ele baixou a cabeça e pôs cara de angústia.

   — Escute, não salte. — lhe disse um deles — Essa não é a resposta. Sabe.

   — Meu deus, esse é o Stone. — murmurou outro— Senhor Stone, você é um herói...

   — Sou o coronel Stone. — disse ele — Ou ao menos, era-o.

   —Sim, é certo. — disse o terceiro — Coronel, não nos diga que sobreviveu a todo isso para render-se agora.

   — Coronel Stone, senhor, eu acabo de me retirar do exército. Eu conheço sua situação. Deixe-me que lhe diga que nos tem feito sentir orgulho. Se se render agora, vai destroçar a todos esses soldados que o vêem como um herói.

Will se voltou lentamente, olhando-os.

   — Fiquem onde estão, de acordo? Tenho que pensar.

Os três anciões detiveram seu lento progresso.

   — Vamos, venha aqui. Pode pensar aqui igual à tão perto da janela.

Então, abriu-se a porta de novo, e entrou uma mulher. Tinha uns cinqüenta anos e estava em boa forma.

   — Senhor Stone, sou Amelia Ashby. Sou psiquiatra do hospital.

Uma psiquiatra era justo o que necessitava, pensou, sobre tudo tendo em conta que acabava de manter uma conversação com um vampiro. Esteve a ponto de tornar-se a rir, mas aquilo teria quebrado o numerozinho do suicídio.

   — Diga-me o que está sentindo. Por favor, eu só quero ajudá-lo.

Ele apertou os lábios e suspirou. Perguntou-se se aquilo provocaria que lhe alargassem a estadia no hospital, quando tinha estado desejando que lhe dessem alta. Separou-se da janela e a fechou. Depois tomou a bengala.

   — Não ia saltar. Simplesmente, estava caminhando pelo corredor.

   — Bem. Muito bem. E por que entrou aqui?

   — Doía-me muito a perna. Estava procurando algum lugar para me sentar um momento.

   — Já vejo. — disse ela, e se aproximou lentamente ao Will.

Para evitar que chegasse ao ponto onde podia divisar ao Jameson, o ladrão de sangue, Will saiu a seu passo.

   — Olhe, vou voltar para meu quarto, certo?

   — Claro. Como queira.

Um dos anciões lhe abriu a porta, e outro lhe deu um golpe no ombro conforme passava seu lado.

   — Resistência, senhor. Necessitamos mais homens como você, coronel Stone.

O soldado retirado se quadrou e lhe fez uma saudação marcial.

Todos seguiram ao Will pelo corredor, e ao cabo de uns segundos, os anciões se voltaram para seus quartos.

A doutora Ashby caminhava devagar.

   — Está sofrendo muitas dores, verdade?

   — Na perna? Bom, não é para tanto.

   — O suficiente para expor o suicídio.

   — Pensa que seria capaz de me matar por um pouco de dor? Posso agüentar o bastante, doutora Ashby.

Ela assentiu e sorriu com um pouco de arrependimento.

   — Suponho que deveria saber isso. A dor física não levaria a um homem como você a tomar uma decisão tão extrema.

   — Não foi uma decisão. Foi mais um pensamento passageiro.

   — Assim, realmente, não tinha a intenção de atirar-se pela janela.

   — Não. Abri-a e estive um momento ali, pensando naquela idéia, mas nunca me teria atirado.

   — Porque se deu conta de que tem muitas coisas pelas que viver?

   — Porque me dava conta de que não estava à altura suficiente para me assegurar um final rápido. Pode que tenha uma tolerância alta à dor, doutora Ashby, mas não sou masoquista. Se tivesse estado pensando a sério em me atirar, teria subido no elevador até o último piso, ou melhor, ao telhado.

Ela piscou.

   — Não estou segura de que isso seja reconfortante ou preocupante.

   — Reconfortante. — disse ele — Juro.

  

Sem saber como, Will os convenceu de que o deixassem partir do hospital segundo o previsto. Mesmo assim, a doutora Ashby marcou uma entrevista com um especialista em Nova York para começar a receber terapia psicológica. Terapia que ele não necessitava. Nem sequer acreditava nela. Ou se estava cordato, ou não se estava cordato.

Ele sim o estava. Estava perfeitamente cordato, se não se tinham em conta as visões. Mas, demônios, sofrendo tortura, a mente fazia o que tinha que fazer para sobreviver. Se aquilo significava que tinha que criar uma terra de fantasia com preciosas ciganas e perigosos vampiros, pois estupendo. Aquelas pequenas viagens à terra dos ciganos não eram sinais de instabilidade. Provavelmente, era o único que tinha conseguido que se mantivera em seus cabais.

Entretanto, aquilo não lhe oferecia nenhuma explicação sobre o vampiro que tinha conhecido aquela noite no hospital. Nem tampouco o fato de que ao Will tivesse caído bem.

Fazer julgamentos instantâneos sobre as pessoas não era algo incomum para ele. Durante anos se treinou para avaliar a uma pessoa com apenas um olhar, assim que aquilo não era um problema. O problema era que ele acreditava que aquela pessoa era um vampiro, e de verdade. Ao menos, até que se tinha levantado aquela manhã, tinha refletido sobre aquela teoria à luz do dia, e se tinha dado conta de como era ridícula. Possivelmente era mais fácil acreditar nas fantasias em um laboratório às escuras, em plena noite. Além disso, durante o mês que tinha estado no hospital o tinham drogado bastante. Muito mais do que lhe tivesse gostado.

Devia ter sido aquilo. Provavelmente, ele tinha imaginado tudo. Demônios, era todo um milagre que não tivesse sofrido efeitos secundários muito piores depois de ter suportado semanas de torturas, e depois de ter estado a ponto de morrer no deserto. Seu cérebro tinha cozido, seu corpo tinha desidratado e lhe tinham embotado os sentidos. Se combinasse tudo aquilo com um pouco de morfina, algo podia ocorrer.

A enfermeira empurrou a cadeira até as portas duplas, que se abriram automaticamente. Will tomou a primeira baforada de ar fresca que tinha desfrutado em semanas, embora estivesse um pouco suja de fumaça. Era primavera. Deus, como gostava da primavera.

Havia um táxi esperando na curva. Ele sorriu à enfermeira.

   — Daqui já posso sozinho, muito obrigado.

   — Não o duvido.

Ele se levantou, apoiando o peso no pé bom, e a enfermeira lhe passou seus escassos pertences em uma bolsa de plástico e a bengala. Em realidade, não tinha muitas coisas. Ao menos, até que tinha voltado para casa. O tio Sam lhe tinha proporcionado um apartamento na cidade que ele escolhesse. E tinha escolhido Nova York. Tinham mobiliado, e lhe haviam dito que haveria um carro esperando-o no estacionamento quando chegasse. Todas as suas posses terrestres, que cabiam em uma bolsa do exército, já tinham sido enviadas ao apartamento.

Murmurou seu destino ao taxista do assento de atrás, e depois se acomodou para o trajeto até o aeroporto.

O vôo foi curto e ligeiro. Entretanto, não tinha nem idéia do que lhe estava esperando no aeroporto de La Guarda. O terminal principal estava cheio de imprensa, de câmeras, de jornalistas e de pessoas agitando bandeirinhas, e Will se perguntou qual seria a celebridade que tinha chegado no mesmo avião que ele. Então, um jornalista lhe gritou:

   — Bem-vindo a Nova York, coronel Stone! Como se sente ao voltar para casa?

O microfone se manteve imóvel frente a sua cara, e ele esteve a ponto de tornar-se a rir. Aquilo não era sua casa. Sua casa era uma lona de camuflagem, ou algum buraco na terra. Eram os homens cansados com rifles semi-automáticos, comida má e água quente, e injeções para vacinar-se contra o gás nervoso... Sua casa não era aquela.

Entretanto, respondeu:

   — Estupendo. Sinto-me muito bem. Estou contente de ter voltado.

   — Coronel, que tal está sua perna?

   — É meu pé. — corrigiu ele — Bom, está tão bem como alguém pode esperar, suponho.

   — Qual foi sua reação ao conhecer as notícias de que se lançou um ataque nas colinas onde você estava seqüestrado?

   — Não me tinham informado. — se perguntou se algum de seus captores teria sido tão estúpido para haver ficado ali depois de que ele escapasse — Capturaram a alguém?

   — Bom, ainda estavam procurando entre os restos.

Ele se tragou sua verdadeira reação ante aquilo e se perguntou a quem teriam matado para vingar ao último herói americano do momento. Deixou de fazer perguntas e se abriu caminho entre a multidão para fora do aeroporto. Custou-lhe um bom trabalho, mas não se rendeu até que chegou a um táxi.

Só então, quando o carro estava arrancando, viu-a.

Estava entrando em uma limusine negra. Levava óculos escuros e o cabelo solto e comprido, que lhe caía como uma cascata de cachos pelas costas. Tinha a pele branquíssima, como o alabastro, e quase brilhava a débil luz do anoitecer. Suas pernas eram intermináveis, e levava as unhas tão vermelhas como os lábios.

   — Pare o carro! Pare!

O taxista cravou o pé no freio e virou o volante para um lado, mas já era muito tarde. Ela já estava em seu carro, subindo uma de suas largas pernas atrás dela e fechando a porta. Depois, a limusine ficou em marcha e a levou.

Ele olhou a matrícula, mas o reflexo do sol sobre o cristal traseiro o cegou, e não pôde ver o número. Depois, ficou ali sentado, olhando a rua, durante uns largos instantes.

   — Quer ficar aí todo o dia? — perguntou-lhe o taxista.

Will voltou em si mesmo de um pulo.

   — Não. Siga, por favor.

De novo, o táxi ficou em marcha. Mas Will sabia, no mais profundo de sua alma, que acabava de ver a Sarafina. Sua preciosa fantasia. E então, perguntou-se se possivelmente devesse seguir o conselho da doutora Ashby e aceitar as sessões de terapia.

  

Fazia dois meses que estava tentando tirar a aquela mulher de fantasia da cabeça, mas cada vez estava mais desesperado por vê-la.

Bem. Aquele dia o conseguiria. Se era possível encontrá-la de novo, encontrar aquele lugar de novo, faria-o. Deixou de tomar os analgésicos, caminhou em excesso e deixou a bengala em casa. Ao final do dia, doía-lhe o pé de uma forma insuportável. Quando voltou para o apartamento, estava empapado em suor e o corpo todo tremia.

Foi diretamente ao dormitório. As cortinas estavam jogadas e a luz apagada. E já tinha anoitecido. Aquele era o momento, possivelmente.

Caiu sobre a cama e fechou os olhos para tentar apartar sua mente daquela dor. Antes tinha a firme decisão de deixá-la partir para poder seguir com sua vida. Mas ela o obcecava. Seus olhos. Seu sorriso. Seu cabelo.

Em parte, tinha medo de ficar apanhado em sua própria fantasia e passar o resto de sua existência retirado naquela terra que só ele conhecia. Entretanto, o desejo e a necessidade que sentia por ela eram cada vez mais intensos. Tinha que vê-la de novo. E o tentou, tal e como o tinha tentado mil vezes.

Nada. Nada.

Com os olhos fechados, tomou a bengala que tinha deixado apoiado contra a cabeceira e se deu um golpe forte e repentino no pé.

A dor foi como uma descarga elétrica que lhe chegou ao peito e à cabeça. Deixou cair a bengala ao chão e se retirou à esquina mais escura de sua mente e se acomodou ali, onde o sofrimento não pudesse alcançá-lo.

E então a encontrou. Viu seus olhos brilhando na escuridão, e se afundou neles, em seu mundo e em seu passado.

Sarafina.

Estava sentada em uma habitação brandamente iluminada pelo fogo da chaminé. Ao princípio, ao Will surpreendeu ser capaz de ver a habitação com tanta claridade apesar da pouca luz. Estava luxuosamente mobiliada, e as cores eram tão vivas como se estivessem expostos à luz do dia. Então, Will recordou que o via tudo através dos olhos da Sarafina. E ela, aparentemente, via na escuridão.

Estava mais forte e mais viva do que Will se recordava de suas visitas anteriores. Entretanto, também tinha uma dureza que ele não tinha percebido nunca. Recordou a angústia ao saber que seu amante a estava traindo com sua própria irmã, e pensou que aquilo poderia ser a explicação.

Estava sentada em uma poltrona estofada de veludo, junto a uma pequena mesa. Levava uma saia larga azul e um pulôver turquesa que deixava ao descoberto seus branquíssimos ombros. Do pescoço e das orelhas lhe penduravam jóias, e levava anéis em todos os dedos. Estava jogando distraidamente com um baralho de cartas, e levava o cabelo solto.

   — Sarafina, estou aqui. — sussurrou Will — Sente-me?

Sarafina franziu o cenho. Voltou a cabeça para olhar a seu redor na habitação, mas só viu o homem que a tinha transformado, tanto tempo atrás, no que era hoje. Bartrone.

Estava sentado em uma poltrona igual à dela, mas maior, perto da chaminé. Entretanto, nele não se percebia tanta vitalidade como na Sarafina. Ele estava... Cansado. Muito cansado.

   — Ouviste? — perguntou-lhe Sarafina.

Ele não respondeu. Ficou exatamente na mesma postura, com os ombros ligeiramente afundados e o olhar perdido, absorto em seus pensamentos.

   — Bartrone?

Ele levantou a cabeça lentamente.

   — Sim?

   — Ouviste algo? — repetiu Sarafina. Entretanto, seu companheiro a olhou sem entender nada, e Sarafina sacudiu a cabeça com frustração — Não, é obvio que não. Como foi ouvir algo? Nem sequer me ouve. O que te ocorre, Bartrone?

Ele se encolheu de ombros.

   — Sabe quantos anos tenho, meu amor? Alguma vez lhe hei isso dito, em todos os anos que foste minha companheira?

Todos os anos? Naquele momento, Will se perguntou quanto tempo teria passado até aquele momento que estava presenciando.

Ela piscou lentamente, tentando recordar.

   — Não. Acredito que não me há disse isso nunca, apesar de que eu lhe perguntei isso muitas vezes.

Ele suspirou e ficou pensativo durante um momento, antes de responder.

   — Ouviste falar da Babilônia?

Sarafina se sentou um pouco mais erguida, com os olhos muito abertos.

   — Como não ia ouvi-lo, com todos os livros que me tem feito ler, com tudo o que me ensinaste?

   — A imortalidade, vivida na ignorância, não é nada.

   — Isso é o que me estiveste dizendo durante estes últimos cinqüenta anos.

Cinqüenta anos? Tanto? Mas se ela não tinha envelhecido nem um só dia!

Bartrone assentiu e tomou ar.

   — Eu nasci ali.

   — Na Babilônia?

   — O ano de meu nascimento, segundo o calendário moderno, teria sido o setecentos e um antes de Cristo. — disse, e a olhou fixamente — Tenho mais de dois mil anos, minha preciosa Sarafina. E cheguei a entender que, em realidade, a imortalidade não existe.

Ela deixou de embaralhar as cartas e suas mãos ficaram imóveis.

   — Isso não é certo, querido. Você é a prova.

   — Temo-me que sou exatamente o contrário disso. — disse ele, e baixou a cabeça — Estou cansado, Sarafina. Cansado de não ver a luz do sol. De matar para viver.

   — Então, é a consciência o que está te incomodando? — ela se levantou e se aproximou dele. Inclinou-se e passou uma mão pelo cabelo, comprido e moreno — Você só mata àqueles que o merecem, meu amor. Quantas vezes você mesmo me explicou isso? Que devemos matar para sobreviver, mas que nunca devemos machucar a um inocente. Os deuses sabem que há criminosos suficientes para nos alimentar. Pederastas. Assassinos.

Ele assentiu.

   — Somos predadores naturais, como o leão ou o tubarão. Mas, ao contrário deles, temos consciência, e acredito que também temos alma. —seguiu ele, e depois deixou escapar um profundo suspiro — Não é natural que um humano viva para sempre, Sarafina.

   — Nós não somos humanos. Somos vampiros. Para nós é perfeitamente natural.

   — Sim, somos humanos. Nascemos como humanos. Esta nossa condição é uma aberração... Uma maldição, possivelmente.

Ela teve vontades de ficar a discutir com ele por aquilo, mas conseguiu controlar a ira que lhe tinha feito sentir. E de repente, Will se deu conta de todas as coisas que tinha sido aquele monstro para ela. Um professor, um mentor, alguém que a tinha protegido e a tinha guiado... Ela o amava. Não apaixonadamente, mas sim profundamente.

   — Você nunca pensou essas coisas antes, Bartrone. Ensinou-me a aceitar minha força e meu poder sobrenaturais, e a entesourar esta vida e tudo o que me oferecia.

   — Sei, amor, sei. Mas com a idade chega a sabedoria, e uma nova forma de conhecimento se estabeleceu em minha mente e em minha alma durante estes últimos meses.

   — Sabedoria? E não será simplesmente melancolia?

Ele exalou lentamente.

   — Sinto haver trazido você para esta vida, Sarafina. — disse Bartrone. Levantou a mão e lhe acariciou a cara — Necessito que me perdoe.

   — Perdoar você? Bartrone, salvou-me da morte. Eu já estava acusando toda a debilidade de minha enfermidade. E se não tivesse morrido por causas naturais, minha irmã teria me matado. Ela, e meu amado André, que estavam unidos, tramando contra mim. Você me mostrou a verdade. Deu-me o poder para sobrevivê-los. Assim não me peça que te perdoe. Quando o único que posso fazer é te agradecer pelo presente que me deu.

Ele sorriu lentamente, embora a tristeza que tinha estado descrevendo ainda lhe nublava os olhos.

   — Tem tanta vida... Converteste-te em algo feroz. Possivelmente para ti seja diferente. Por Deus, espero-o com todas minhas forças, Sarafina. Mas para mim se terminou.

Ela ficou olhando-o atônita, imóvel.

   — O que quer dizer?

   — Eu ensinei-te bem. Estará bem, você sozinha.

   — Eu sozinha? Bartrone, diz coisas sem sentido. Possivelmente tenha que comer, ou que descansar.

   — Alimentei-me pela última vez, Sarafina. — disse, e olhou ao relógio que havia sobre a chaminé — Em pouco tempo amanhecerá. E hoje tenho a intenção de ver o sol.

   — Não diga tolices. Não pode. Nem sequer deve tentá-lo. Vamos à cama, meu amor. Você se sentirá muito melhor quando despertarmos amanhã de noite. Faremos algo fabuloso. Iremos de viagem, isso é o que faremos. Podemos ir ao deserto, e pode me contar coisas sobre a Babilônia. Quero saber como era a vida ali. Vê? Ainda tem muitas coisas que me ensinar.

Enquanto falava, caminhava com ele pela habitação, e ele a seguia sem discutir, assentindo e murmurando:

   — Está bem, meu amor. Está bem. Irei contigo.

Will sentia o medo no coração da Sarafina. Medo de estar sozinha, tão intenso que quase a paralisava. Estava tremendo, a ponto de chorar ao pensá-lo.

Levou ao Bartrone ao porão, através de uma porta escondida, até uma habitação completamente às escuras. Will se sobressaltou quando ela levantou parte do chão, mas se deu conta de que era um alçapão com dobradiças. Dava passo a umas escadas de caracol que baixavam até o ventre da terra.

   — Meus espiões me trouxeram notícias. — disse Bartrone — Sua irmã está muito velha. Seu marido morreu jovem, cumprindo a primeira parte da maldição que lhes jogou. A segunda parte ocorreu recentemente.

Ela se deteve e o olhou fixamente.

   — Nasceu um menino, um tataraneto de sua irmã. chama-se Dante, e é um dos escolhidos.

A ela lhe acelerou o coração.

   — Tenho família de novo? — sussurrou.

Ele assentiu.

   — Seu sangue é como o nosso. É um dos poucos que pode converter-se no que nós somos. Mas ainda é um bebê. Pensa meticulosamente o que vai fazer, Sarafina. Deixa que o menino se converta em um homem, e recorda o que te hei dito. Esta vida que vivemos é de uma vez um presente e uma maldição. Pensa nisso antes de decidir se o leva contigo à escuridão.

Ela fechou os olhos e sacudiu a cabeça.

   — A única alternativa seria ver como se debilita e morre jovem, Bartrone.

   — Pode que ele o prefira. Deixa que decida.

Ela assentiu.

   — Vou pensar. Temos muitos anos ainda para falar sobre isso. Passará muito tempo antes que se converta em um adulto... — e de repente, levantou a cabeça com os olhos brilhantes — Oh, temos que visitá-lo! É maravilhoso ter família de novo. Família de verdade, de meu próprio clã.

   — Sua irmã é a mulher mais anciã, e a Shuvani, meu amor. Não é provável que permita que te aproxime dele.

Sarafina o olhou com a expressão endurecida.

   — Não pode me impedir.

Ele assentiu.

   — Recorda o que te disse. E recorda que te quero, Sarafina. Durante todos os séculos que vivi, nunca quis a outra como quis a ti. — disse, e elevou uma mão para silenciá-la — Não, não me responda para me corresponder, meu amor. Sei que nunca foi o mesmo para ti. Não importa. Foste boa comigo. Foste minha companheira, minha amiga e minha amante. Sinto ter que te pagar de uma forma tão cruel.

E depois daquilo, separou-se dela e a empurrou escada abaixo. Sarafina rodou pelas escadas. Quando chegou ao chão, ficou de pé imediatamente, agarrou-se a saia com as mãos e subiu como um raio para o alçapão. Entretanto, ele já a tinha deixado cair.

   — Bartrone! — gritou ela, enquanto empurrava portinhola para cima — Bartrone, não faça uma tolice! Por favor!

   — Adeus, meu amor. — se despediu ele. Ela ouviu seus passos afastando-se para cima, pelas escadas.

   — Não! — gritou Sarafina — Não! Não te permitirei que faça isso!

Voltou-se e baixou a toda velocidade a escada, vendo com tanta claridade como um gato na escuridão. Movia-se com tanta velocidade que as paredes a seu redor não eram mais que um borrão. Para o Will, aquela sensação era vertiginosa.

Então, Sarafina já estava em outra porta, abrindo-a.

A luz do sol caiu sobre ela e a queimou como se fosse fogo. Will o sentiu. Ela se protegeu a cara com os braços e retrocedeu para as sombras. Depois baixou os braços lentamente, com a respiração entrecortada. Tinha queimaduras na pele. Will leu seu pensamento. Sabia que suas feridas se curariam durante o sonho diurno. Como as de Bartrone, se conseguisse alcançá-lo a tempo.

Então, olhou para cima e o viu. Estava sobre uma colina suave e coberta de erva, na distância, de costas a ela, com os braços abertos ao sol. E quando a esfera dourada começou a sair, sua forma se converteu em uma silhueta escura. E então, em uma chama.

Sarafina gritou. Foi um gemido de dor insuportável. Caiu de joelhos, olhando cheia de angústia como seu companheiro se consumia no fogo. Ele não emitiu um som. Queimou-se vivo sem emitir nem um gemido.

Então, já não viu mais sua figura, e as chamas se fizeram mais baixas e finalmente se extinguiram. Onde tinha estado Bartrone só ficava um pedaço de terra carbonizada.

Sarafina se fez um novelo no chão, chorando.

A porta ainda estava aberta, e o sol continuava subindo no céu. Os raios se aproximavam mais e mais a ela.

   — Sarafina. — disse Will — Sarafina, tem que levantar. Vamos, maldita seja, ou então você vai queimar como ele!

   — Deixe-me, espírito. — sussurrou ela, entre soluços — Deixe-me com minha pena, porque perdi ao único companheiro que tinha.

   — Não. Não o perdeste. Eu estou aqui.

Ela sacudiu a cabeça.

   — Não é certo. Não ouvi sua voz, nem hei sentido sua presença, durante cinqüenta anos. Nem sequer sei... Nem sequer sei o que é.

   — Para mim só foram dois meses, Sarafina. E não sou um espírito. Sou um homem. Vivo em outro tempo, em um tempo longínquo do futuro. Vivo em Nova York. Não sei por que nem como te encontro desta forma, nem tampouco entendo por que te quero tão desesperadamente. Mas é certo. Quero-te, Sarafina.

Ela levantou a cabeça sem deixar de soluçar.

   — Todo mundo que há dito que me queria terminou por me trair. Ganham meu coração, minha confiança, meu amor, e depois levam tudo e me deixam sozinha. — disse, e fechou os olhos.

   — Eu não o farei. Juro-lhe isso.

Ela seguiu chorando.

   — OH, Bartrone, por quê? Por que me deixaste sozinha?

   — Não está sozinha.

   — Você não conta, espírito. Quem sabe quando voltarei a saber de ti? Um dia para ti poderia ser um século para mim.

Will se espremeu o cérebro para lhe dizer algo ao que pudesse aferrar-se. Algo. E o encontrou.

   — Existe esse menino. — disse rapidamente — O menino sobre o que te falou Bartrone. Dante. Não quererá te render sem conhecê-lo, verdade?

Ela ficou em silencio durante um momento. Finalmente, ficou de pé com dificuldade, apoiando-se na parede. Will desejava com todas suas forças ajudá-la, e lhe pôs um braço ao redor da cintura para sujeitá-la e obrigá-la a que se afastasse dos raios do sol.

Sarafina chegou à porta e a fechou. Jogou o ferrolho de dentro, e lentamente seguiu o caminho que a conduzia até seu leito subterrâneo.

   — Espírito? Ainda está aí?

   — Sim.

   — Fica comigo até que durma. E tenta... Tenta vir para ver-me de novo. Esta vez, mais logo. Poderá fazê-lo?

   — Não sei se posso. Mas, juro que tentarei.

Ela assentiu e se aproximou de uma enorme caixa de madeira. Não era um ataúde, a não ser um espaço muito mais largo e profundo. Abriu a tampa e Will pôde ver que, por dentro, estava cheio de lençóis de cetim brancos e de travesseiros. E ao dar-se conta de que ali era onde Bartrone dormia com ela, sentiu uma pontada de dor.

Ela se meteu dentro, colocou a tampa e fechou os olhos. Sussurrou o nome do Bartrone até que ficou dormida.

Will se deixou levar pelo sonho também.

  

Sarafina deu instruções a seu chofer para que a deixasse à porta de um de seus lugares favoritos, um pequeno bar no lado oeste da cidade. Passava horas naquele lugar, e em lugares como aquele, quando estava na cidade. E ia a Nova York muito freqüentemente.

Possivelmente fosse estúpido. Seu amante imaginário não podia ser real. Nem tampouco o que lhe havia dito: que era um homem normal, que vivia em Nova York durante os primeiros anos do século vinte e um. Tudo aquilo não era mais que um sonho que a mente de Sarafina tinha criado para ter uma razão para continuar.

Não era real. Não tinha voltado para ela em cem anos. Não ia aparecer naquele momento.

Passou horas no bar, aquela noite, observando às pessoas desde sua mesa afastada enquanto escrevia seu diário. Estava tentando recordar os detalhes com exatidão para gravá-los no papel. Queria ser fiel aos sentimentos que tinha experimentado quando as coisas tinham ocorrido.

Na noite de sua transformação tinha sentido ira. Ao princípio não. Ao princípio só tinha sentido confusão e medo ao renascer a uma vida nova e estranha. Mas depois tinha voltado para o acampamento e se encontrou com sua irmã. Estava nos braços de André, fingindo que chorava porque o vampiro levou finalmente a sua irmã, e Sarafina só tinha podido sentir raiva.

Tinha reunido todas as suas forças e sua magia de Shuvani e lhe tinha arrojado uma maldição da escuridão. Todos os que estavam junto à fogueira, esquentando-se, tinham podido ouvi-la: André não sobreviveria a aquela década, mas Katerina sim. Viveria o suficiente para ver um de seus descendentes converter-se no que era Sarafina. Aquela era sua maldição.

E tudo tinha ocorrido assim.

Sarafina se recostou no respaldo do assento, deixou a caneta sobre a mesa e fechou a tampa do diário. Gostava de ficar a recordar em lugares como aquele, embora não tinha analisado as razões e não tinha vontades de fazê-lo. O ambiente daquele bar lhe resultava reconfortante. Gostava do aroma da fumaça, e inclusive algumas vezes ela mesma fumava. Também desfrutava do sabor da vodca, do calor do álcool pela língua e a garganta, embora em realidade, seu corpo não o digerisse. Gostava de estar ali. Havia muita gente passando o momento, preocupados só em si mesmos e no que podiam obter de outros. E a música... O baixo era tão forte que reverberava em seu peito e detrás de seus olhos com cada nota.

Gostava daquele bar. Ninguém sabia que ela estava ali. Não importava a ninguém. E se alguém interrompia seu trabalho para tentar cercar conversação ou seduzi-la, só tinha que lhes lançar um olhar para conseguir que saíssem correndo.

Supôs que lhe tinha ocorrido algo. Ao ver a história de Dante na tela do cinema, ao ver como sua vida se converteu em algo imortal de verdade, tinha começado a desejar compartilhar também a sua. Entretanto, ela não tinha a ninguém com quem compartilhá-la. Nem tampouco necessitava a ninguém. Escrevê-lo era um bom substituto. Para falar a verdade, nem sequer embora um escritor no futuro encontrasse seus diários, como tinha ocorrido com os de seu precioso Dante, e os compartilhasse com o mundo, isso a converteria em um ser imortal. Nenhum deles era verdadeiramente imortal.

Alguns se voltavam loucos e tinham que destruí-los. Outros se voltavam loucos e se autodestruíam, como seu amado Bartrone. Tão ancião, tão forte, tão sábio. Inclusive ele tinha sucumbido ao inevitável da morte, ao final. Outros, muitos, eram assassinados pelos caçadores de vampiros. Stiles e seus homens tinham construído uma poderosa organização durante os anos passados.

Os diários de Dante se converteram em guias de cinema, e embora aquilo tinha estado a ponto de supor um desastre para ele, Sarafina tinha começado a escrever seu próprio diário quase imediatamente depois de que voltasse as costas a ela, à mulher que lhe tinha dado a vida na escuridão. Tinha escolhido a sua preciosa Morgan por cima dela.

Seus diários, jurou-se Sarafina, estariam bem guardados. Não os deixaria embolorar em uma água-furtada poeirenta, e não os confiaria a ninguém. Eram seus pensamentos, sua vida, sua história.

Algum dia, quando deixasse aquele corpo, suas histórias permaneceriam. Possivelmente, se tinha sorte, encontraria a alguém a quem deixar-lhe que merecesse a pena. Ou poderia enterrá-los em algum lugar para que as gerações futuras os encontrassem.

Fechou o diário. Por aquela noite já tinha terminado. Tinha chegado a hora de encontrar alguma distração. Tinha fome.

Colocou o livro na bolsa e ficou de pé. Ia a aquele bar freqüentemente e conhecia os assíduos, assim não ia danificar a possibilidade de seguir freqüentando seu lugar favorito caçando ali. Se alguém desaparecesse, outros se dariam conta e começariam a fazer perguntas.

Sarafina levava umas calças de seda granada, que lhe caíam da cintura como a mais elegante das saias. A blusa de muito finos suspensórios ia a jogo, e levava diamantes no pescoço e nas orelhas. O casaco era de pele de lobo.

Tirou-o do assento e o pôs. Depois saiu do bar, fazendo caso omisso dos olhares de interesse que atraía.

Fora, a chuva caía sobre as calçadas e os carros. Era uma garoa suave. Sarafina caminhou desfrutando do beijo da água na cara. Notava a umidade da noite e o frio muito mais intensamente que qualquer mortal, mas não se estremeceu.

Seguiu caminhando. Aquele não era um bairro grande, mas piorava a cada passo que dava naquela direção. Havia lixo, ratos, tijolos quebrados, sinais de fogueiras no pavimento... As luzes não funcionavam.

Era um de seus lugares de caça favoritos, quando estava de humor para fazê-lo. Não tinha por que. Tinha um par de escravos servis em casa, bem dispostos a satisfazer seu apetite quando ela o ordenasse. Entretanto, algumas vezes necessitava sangue fresco.

Aquela noite, as ruas estavam desertas. Onde estaria sua próxima comida?

   — É, neném, bonito casaco esse seu.

Ela ficou imóvel, sorrindo, e se voltou para o jovem que tinha saído da escuridão, depois dela.

   — Aqui está você... — disse ela, olhando para cima, porque o moço era muito mais alto.

   — Aqui estou. — respondeu ele, sorrindo. Tinha uma navalha na mão — Levarei o casaco. E esse colar tão brilhante que leva, também.

   — Você acha mesmo? — perguntou-lhe ela. Então, agarrou-lhe pela mão tão rápido que ele não teve tempo para reagir. Soou o ruído de um osso quebrado, e Sarafina lhe torceu a mão um pouco, justo para que soltasse a navalha e a folha ressonasse contra o chão.

   — Deus, o que...

   — Shhh... — ela se levou um dedo aos lábios — Gostaria muito que se pusesse de joelhos. Acredito que eu adoraria. — disse, e lhe retorceu a mão até que ele caiu de joelhos ao chão.

Então ela o olhou com atenção. Tinha a pele de bronze, os olhos marrons e profundos e as pestanas espessas e largas. Uma cicatriz lhe cruzava a ponte do nariz, e tinha um piercing na sobrancelha. Tinha os lábios grossos e vermelhos. Era jovem e forte.

   — O que está fazendo, senhora? Vamos, sinto muito, de acordo? Só estava brincando. Vamos, me solte o pulso. Você está me matando.

   — É possível que lhe mate, é possível que não. Deus, isto vai ser muito bom... — sussurrou. Com a mão livre, fez com que inclinasse a cabeça, inclinou-se para ele e lhe pôs os lábios no pescoço.

Ele se estremeceu e tentou afastar a cabeça. Ela provou sua pele e sentiu o sangue que fluía por suas veias. O estômago lhe encolheu de impaciência enquanto mordia.

Ele gritou, mas imediatamente se relaxou. Sarafina lhe soltou o pulso, porque sabia que já não representava nenhuma resistência. Não. Encantava-lhe aquilo. Ela bebeu, e o moço resultou tão bom como tinha suposto. Doce, jovem, com um sabor vibrante.

Seguiu bebendo enquanto ele se derretia contra seu corpo, e quando terminou, o menino caiu a um lado e ficou no chão, com os olhos abertos como pratos, olhando-a fixamente. Estava muito fraco para mover-se.

   — Você foi muito bom menino. Agora Sara te dará um pequeno prêmio, tudo bem? — disse-lhe ela. Tirou-se uma pequena faca do bolso e se fez um corte no dedo indicador. Quando o sangue brotou, deslizou-lhe o dedo entre os lábios.

O corpo do moço se esticou ao sentir o sangue na língua. Piscou e começou a sugar com força. Entretanto, ela retirou a mão antes que tivesse podido tomar nada mais que umas gotas.

   — Muito bem, já é suficiente por agora. Dou mais depois, de acordo?

Ele estava tremendo, desejando-a. Com alguns deles era tão fácil... Com outros custava um pouco mais. Entretanto, ao final sempre conseguia convertê-los em umas marionetes sem vontade e sem cérebro, que só viviam para agradá-la, completamente viciados nas preciosas gotas de sangue que ela lhes dava quando gostava. O suficiente para mantê-los vivos e relativamente sãos.

   — Pode te levantar? — perguntou-lhe.

Ele ficou de pé como pode, e naquele instante, a limusine apareceu e se deteve. Edward saiu, rodeou o carro e abriu a porta traseira para Sarafina. Ela o recompensou com um beijo que lhe deixou provar o sangue de seus lábios.

   — Vamos conservar este, senhora? — perguntou ele.  

  

Sarafina observou a sua nova aquisição enquanto ele se apoiava na porta do carro, débil. Estava quase babando. Que pouco apetecível. Ela deixou escapar um suspiro, decepcionada.

   — Não, Edward, suponho que não. Nem sequer é um pequeno desafio, e acredito que me cansaria dele em seguida.

   — Então, vamos ao hospital?

   — Por quê? Parece-te que tomei muito? — de novo, olhou ao moço. Estava de pé só porque se sustentava contra o carro. Estava muito pálido, e tinha as pálpebras azuis — Oh, Meu deus. Sim. Vamos ao hospital. —respondeu. Pôs os olhos em branco, jogou o menino ao assento de atrás da limusine e subiu junto a ele — Não vais voltar a roubar, nem a utilizar armas, e muito menos contra gente inocente. Nunca mais. Entendeu?

Lançou um sorriso, com os lábios úmidos.

   — O que você mandar.

   — Tampouco tomará mais drogas. Deixei você viver, e não permitirei que esbanje a oportunidade. Você vai procurar trabalho, e se manterá por meios legais. Fará algo proveitoso na vida.

   — Sim, sim... — respondeu ele, e pegou a sua mão fracamente.

Ela puxou o braço para soltar-se e se voltou para fixar sua atenção na rua e nas pessoas que caminhavam pelas calçadas. Olhava todas as caras. Aquilo se tinha convertido em um costume que não conseguia perder. Seu espírito amante lhe havia dito uma vez que só era um homem. Teria morrido, então? Ou simplesmente a teria abandonado, tal e como tinham feito todos os que haviam dito que a queriam?

Suspirou brandamente. Não importava. Ninguém voltaria a abandoná-la, porque não o permitiria. Seus únicos companheiros eram seus serventes, e ela os possuía em corpo e alma. Eram incapazes de deixá-la. Não poderiam suportá-lo.

Era melhor assim, pensou enquanto seguia observando os rostos da gente. Ao menos, assim sabia que podia confiar neles. Era a única forma em que pensava que poderia confiar.

  

   — Vamos, mamãe, vais falar com ele?

A adolescente rogou a sua mãe sem nenhuma esperança.

Angélica baixou o olhar e sacudiu a cabeça lentamente.

   — Sinto muito, carinho, mas seu pai tem razão. É muito perigoso.

   — Tenho dezoito anos!

   — Se quer conhecer Nova Iorque, pode fazê-lo conosco — insistiu Jameson — E se não gostar que seus pais a acompanhem, estou seguro de que Rhiannon ou Tâmara estarão muito contentes de...

Amber Lily fechou os olhos, apertou os punhos e estampou o pé contra o chão. Ao outro lado da estadia, um vaso caiu da estante e se fez pedacinhos no chão.

   — Já está bem, mocinha. — disse sua mãe.

   — Mocinha. — repetiu Amber — Deus, mamãe, é que não te dá conta de que você mesma parece de minha idade?

   — E sua tia Rhiannon também, embora seja vários séculos mais velha que você. E o que tem isso a ver, de todas as formas?

Amber olhou ao teto enquanto soltava um suspiro de impaciência.

   — Tudo! Sou uma adulta. Posso fazer o que quiser, e o farei. Com sua permissão ou sem ela!

Seus pais se lançaram olhares de assombro. Amber suspeitou que estivessem compartilhando algo mais que as olhadas. Resultava-lhe frustrante até extremos insuspeitados o fato de não poder ler seus pensamentos a menos que eles quisessem. Quem demônios tinha pais como aqueles? Por que ela não podia ser uma adolescente normal, com pais normais, agradáveis, de classe média?

   — Olhem, vivi toda a vida seguindo suas regras. São muito protetores. Agora já sou adulta, e me decidi. Terminei o instituto, e o inverno que vem começarei a estudar na universidade. Vou me divertir este verão. Alicia e eu vamos à Nova York passar um par de semanas. Ficaremos em um hotel bonito, e vamos ver uma peça de teatro, e iremos a lojas, e passear pela cidade... Fazer as coisas normais que fazem as garotas de nossa idade. Por uma vez em minha vida, quero ser normal.

Com aquela última frase, lhe encheram os olhos de lágrimas e se deu a volta para que seus pais não pudessem vê-lo. Era melhor que seguissem acreditando que estava zangada e mimada e não a verdade.

Entretanto, já era muito tarde.

   — Amber. — sussurrou sua mãe, aproximando-se dela para lhe dar um abraço — OH, carinho, sinto muito. Sinto que as coisas tenham sido difíceis para ti.

   — Não é isso...

   — Sim, é. É a filha de dois vampiros. É a única de sua espécie, que se saiba até o momento. E nem sequer sabemos ainda até onde podem chegar vocês... Vocês...

   —Mutações. — disse Amber — Digamos claramente, mamãe. Sou um inseto estranho. Leio-lhe o pensamento às pessoas, se não saberem protegê-lo. Movo coisas com a mente. Sou dez vezes mais forte que uma pessoa normal. E só Deus sabe o que outras estranhezas ocultas eu tenho, esperando para manifestar-se conforme eu cresça. Não sou humana, mas tampouco sou uma vampira. E, ao contrário de vocês, envelheço, mas não sei se isso significa que sou mortal. Ninguém sabe.

   — É diferente, Amber. É especial. E essas coisas às que chama mutações são dons.

   — Dons? Mamãe, durante toda minha vida só tive uma amiga de verdade, Alicia. E ela tem que viver uma existência tão resguardada quanto a minha, por causa da lealdade que a mãe dela tem por vocês. Tampouco é justo para ela.

Angélica olhou ao Jameson.

   — É certo. Susan vive conosco desde que eram bebês, e nunca revelaram nossos segredos. Não poderíamos ter criado você sem sua ajuda, Amber.

   — E alguma vez me ouviu fazendo queixas? — perguntou uma mulher que se aproximava.

Eles se voltaram para a porta, por onde acabava de entrar Susan Jennings. Ao contrário de Angélica e Jameson, ela envelhecia com a idade. Tinha linhas de expressão ao redor dos olhos, e os quadris largos. Para Amber era reconfortante. Era uma mãe como as que tinham o resto de seus companheiros de instituto.

   — Amber. — continuou Susan — Seus pais me pagam um salário extremamente generoso para cuidar de ti. Além disso, proporcionam a Alicia e a mim um lar, e inclusive vão mandar a Alicia à universidade. — olhou ao Jameson, com os olhos brilhantes — Mas, mesmo que não fosse assim, também teriam minha lealdade. E possivelmente já seja hora de que saiba por que.

   — Possivelmente já seja hora de que saiba muitas coisas. — disse Jameson — Sente-se, Amber.

   — Papai, tudo isto é necessário? É uma simples petição. Não requer uma reunião familiar.

   — Sente-se.

Suspirando, Amber se sentou. Sua mãe se sentou a seu lado, e seu pai e Susan sentaram em poltronas em frente.

   — Quando você nasceu, nos separaram de ti. — começou Jameson.

Amber ficou boquiaberta, e olhou a seus pais alternadamente.

   — Como?

   — Foi o Departamento de Investigações Paranormais, o DIP. Você nos ouviu falar deles, verdade?

Ela assentiu lentamente, enquanto notava que lhe encolhia o estômago.

   — São uma escura agência do governo que se dedica a perseguir os vampiros.

   — Fazem algo mais que nos perseguir. Caçam-nos. Capturam-nos e nos metem em celas para nos usar como porquinhos da Índia em seus experimentos. Querem aprender mais coisas sobre nossa raça e nos aniquilar.

   — Jamey, você está assustando ela. — disse Angélica.

Amber lhe acariciou a mão a sua mãe.

   — Não. Eu quero saber.

   — Mas não acredito que...

Jameson interrompeu as objeções de sua mulher.

   — Sua mãe passou a gravidez em uma dessas celas, e você nasceu ali.

Amber se tampou a boca com os dedos inconscientemente.

   — O DIP não pôde deixar escapar a oportunidade de lhe pôr suas sujas mãos em cima a única criança conhecida que tinha nascido de um vampiro. Você era o prêmio do laboratório, Amber. E, quando eu me inteirei de tudo aquilo e fui buscar vocês, já lhe tinham separado de sua mãe e a tinham trancado em uma caixa de cimento para que morresse ali.

O coração de Amber deu um tombo. Voltou-se, com os olhos como pratos, para sua mãe.

   — Fizeram-lhe isso?

Ela baixou o olhar.

   — Não deveria lhe contar tudo isso, Jameson.

Amber a olhou fixamente à cara.

   — Por isso ainda é um pouco claustrofóbica?

   — Sim. — admitiu Angélica depois de uma ligeira hesitação. Depois, olhou por fim a Amber nos olhos.

   — Mas papai tirou você dali, verdade? E depois me encontraram.

   — Ele me tirou dali, e fomos buscar você.

   — Sua mãe sentia você. — explicou Jameson — Os laços entre vocês duas sempre foram assombrosamente fortes, desde o começo.

Angélica assentiu.

   — Ainda o são. Sempre sei quando está perto ou tem algum problema. A menos que esteja adormecida. E mesmo assim, tem que estar muito profundamente adormecida.

   — Assim vieram me buscar.

   — E eu tive sorte de que o fizessem. — interveio Susan — Porque, pelo caminho, chegaram à cena de um acidente. Meu carro tinha capotado e se incendiou. A mim tinham podido tirar, mas meu bebê estava dentro.

   — Alicia? — perguntou Amber, com os olhos ainda mais abertos.

   — Sim. Seu pai foi para o carro, embora estivesse envolto em chamas, e a tirou. Teve queimaduras graves, e sabendo tudo o que sei agora, parece-me ainda mais assombroso que fizesse o que fez. E o fez, apesar de tudo.

Amber baixou a cabeça. Ela também sabia, igual à Susan, que a carne de um vampiro era uma das substâncias mais inflamáveis que se pudessem imaginar. Poderia ter morrido muito facilmente.

   — Mais tarde, tive a oportunidade de cuidar de ti e manter você escondida e a salvo até que seus pais viessem por ti. E após isso, sempre estivemos juntos. — disse ela, sorrindo a Angélica e ao Jameson.

— Eu... Não sabia. Não sabia nada disto. —disse Amber, e olhou a seu pai, sorrindo — É incrível, papai. E você também, mamãe. Passaram por tudo isso e sobreviveram... Mas... — interrompeu-se e se mordeu o lábio inferior.

   — Mas? — perguntou Jameson.

   — Mas ainda não sei que relação tem tudo isto com minha viagem a Nova York.

Jameson fechou os olhos e Angélica olhou ao teto. Susan sacudiu a cabeça levemente.

   — Bom, vamos. O DIP deixou de existir faz tempo. Pode que eu não soubesse todo o resto, mas todo mundo se inteirou da história de que os vampiros atacaram o quartel geral do departamento e o queimaram. É algo legendário. E então, não entendo como pode afetar essa organização, que já não existe, a minha viagem a Nova York.

   — Carinho, o fato de que o DIP já não exista não significa que tenha deixado de haver ameaças aí fora. — disse Angélica.

   — Mamãe, sempre haverá coisas perigosas. Os adolescentes normais têm que conviver com elas, e nem por isso têm que encerrar-se em casa para sempre. E eu não sou como eles. Quero dizer, que sou muito mais forte que uma garota normal. Não acredito que vão me atracar, nem nada disso. — disse, e deixou escapar um suspiro — Vamos, só são duas semanas.

De novo, seus pais trocaram um olhar. Depois, seu pai disse em voz alta:

   — Uma semana.

Amber tentou não sorrir de orelha a orelha.

   — De verdade?

   — Jamey, não sei se... — disse Angélica.

   — Entretanto, haverá condições. — continuou Jameson — Nós reservaremos o hotel, e teremos o itinerário em papel. Chamará-nos por telefone todas as noites. De fato, acredito que você vai levar um telefone móvel para que nós possamos te chamar a qualquer hora. Não irão a bares, nem a clubes. E nada de beber álcool.

   — É obvio que não. — disse Amber, assentindo tanto como era capaz.

Ele elevou uma mão.

   — Ainda não terminei. Isto só vai ocorrer se Susan também aceitar. Ao fim e ao cabo, Alicia iria contigo.

Susan franziu o cenho.

   — Suponho que... Se você crê que é seguro...

   — Oh, sim! Será! — disse Amber rapidamente — Seremos tão boas que vocês não poderão acreditar. Chamaremos constantemente. Prometo-o. Oh, Deus, tenho que ir dizer a Alicia!

Amber saiu correndo do salão. Alicia tinha preferido esconder-se em seu quarto enquanto Amber tinha aquela conversa com seus pais. Ela não era tão persuasiva como Amber. De fato, Alicia era muito tímida. Odiava as confrontações de qualquer tipo.

Oh, mas iam à Nova York. Duas garotas de dezoito anos perdidas na Grande Maçã, sem que nenhum pai as fiscalizasse. Que bem iam passar!

Angélica lhe lançou um olhar assassino e se levantou no mesmo instante em que Amber saiu correndo. Jamey soube que tinha problemas.

   — Sei, sei, mas tenho um plano. Não teria cedido se não tivesse.

Ela cruzou os braços.

   — Mais vale que seja bom, vampiro. Muito bom.

   — E é. Acredito. — disse ele, e foi até o revisteiro que havia na esquina. Ali começou a olhar as revistas — Só necessitam que alguém as vigie a uma distância prudencial.

   — Amber notaria em seguida que outro vampiro a está seguindo. — lhe recordou sua mulher.

   — Por isso não vamos contratar a outro vampiro para fazer este trabalho. Escuta, conheço um homem, a um mortal com muito talento, que casualmente vive em Nova York neste momento.

   — E?

   — Que só temos que contratá-lo como guarda-costas. Pagaremos-lhe o suficiente para que as vigie vinte e quatro horas do dia durante os sete dias da semana, e lhe diremos que fique em contato conosco assim que surja o mínimo problema.

   — Mmmm. — Angélica se apartou o cabeli do pescoço — E quem é esse homem que impressionou tanto você, que lhe confiaria a vida de sua própria filha?

   — Ah, aqui está. — disse Jameson, e tirou uma das revistas. Era um exemplar do Teme. Na capa estava a fotografia de um homem, com uma expressão tão dura como o granito no rosto, e de fundo, a bandeira americana. O título dizia:

   “Não puderam lhe obrigar a falar! A incrível história do coronel Willem Stone, capturado e torturado, mas intacto ao fim. Escapou de seus carcereiros e viveu para contá-lo.”

   — E por que pensa que este homem aceitará o trabalho? — perguntou Angélica.

   — Ajudou-me em uma ocasião. — lhe explicou Jameson — Quando estávamos visitando o Eric e a Tam na Virginia, eu... Né... Fui a Bethesda pegar um pouco de comida para levar. Ele estava ali. Soube o que eu era de imediato, e depois me cobriu quando estavam a ponto de me apanhar.

Ela franziu o cenho.

   — E o que te pediu em troca?

Jamey se encolheu de ombros.

   — Disse que queria me fazer umas quantas perguntas. Prometi-lhe que me poria em contato com ele mais tarde. Mas... Né... Não o fiz. Agora, entretanto...

   — Agora você precisa de sua ajuda de novo. Assim que lhe dirá o que queria saber.

   — Sempre e quando não for nada que possa usar contra nós, sim. É um bom homem, Angélica. Só precisa vê-lo para saber.

   — Suponho... Bom, a casa de Rhiannon está perto. Darei uma chave a Amber, e o endereço. Acredito que Roland e Rhiannon haverão voltado de viagem então?

Jameson encolheu os ombros de novo.

   — Acredita que... Este Stone aceitará o trato?

   — Aceitará. — disse Jameson — Acredito que sim.

   — Não farei. — disse Will.

Jameson Bryant, seu primeiro convidado desde que vivia em Nova York, estava sentado frente a ele no salão.

   — Não? — repetiu o vampiro.

   — Olhe, sou um soldado retirado, não uma babá. E, além disso... —deixou que sua voz se desvanecesse e olhou ao Jameson fixamente.

   — Além disso, ainda não está convencido de que sou o que digo.

   — Nem sequer estou convencido de que esteja aqui sentado, mantendo esta conversa comigo.

   — Mas você já falou comigo em outra ocasião, quando me cobriu as costas no hospital.

Will apartou o olhar.

   — Estava sob a influência de algumas drogas muito fortes que se usam como paliativos da dor.

   — Assim pensa que nosso encontro foi uma alucinação. Nesse caso, Willem, como explica o fato de que eu esteja aqui agora?

Will obrigou a si mesmo a voltar a olhar ao homem. Jameson tinha uns olhos penetrantes, que pareciam cravar-se em seu crânio. Em sua mente.

   — Não seria a primeira vez que a cabeça me... Prega uma peça.

Bryant continuou olhando-o, medindo-o com os olhos.

   — Está tentando me hipnotizar, ou só quer me reduzir a cinzas com esse olhar?

O outro homem piscou.

   —Em realidade, estava tentando ler seus pensamentos. Entretanto, parece que é todo um perito bloqueando-o. Acredito que o notei quando nos conhecemos.

Will encolheu os ombros.

   — Não o faço deliberadamente.

   — Isso faz com que seja ainda mais interessante. Conte-me em que outras ocasiões sua mente pregou-lhe... Peças.

   — Não. Não é de sua incumbência.

Bryant assentiu.

   — Isso é certo. Diga-me como soube que eu era um vampiro assim que nos conhecemos.

   — Não soube nada disso. Não sei nem sequer agora.

O homem deixou escapar o ar entre os dentes. Depois ficou pensativo e em seguida falou de novo.

   — Perguntou-me por uma mulher aquela noite. Sarafina. O que é ela para ti?

— Outro produto de minha imaginação.

   — Não. Não é. Sabia que podia me custar trabalho convencer você, Willem. Sobre tudo, porque não cumpri minha parte do trato a última vez. Assim que tomei a liberdade de comprovar seu nome, discretamente, é obvio. É uma vampiresa, como eu. E está aqui mesmo, em Nova York.

Will sentiu um calafrio, embora tentou dissimulá-lo. Entretanto, sua mente voltou rapidamente para o dia em que tinha chegado à Nova York. A mulher que tinha visto saindo do aeroporto, subindo a uma limusine que ficou em marcha e se afastou a toda velocidade. Ele só tinha visto fugazmente, o cabelo, as maçãs do rosto... Sua forma de mover-se... Mas tinha sido algo mais. Havia-a sentido, tinha percebido como o atraía. Depois se tinha tentado convencer de que não podia ser Sarafina. Senhor, e se realmente era?

   — Willem? — disse-lhe o vampiro.

Will pigarreou e se concentrou naquele momento.

   — Isso é impossível. Ela não é real.

   — É tão real como eu.

Will ia começar a dizer que ele tampouco era real, mas se deteve. Aquele homem estava sentado em seu salão em carne e osso, às duas da madrugada. Não era como outros homens. A maioria das pessoas possivelmente não o notasse a primeira vista, mas Will tinha recebido um treinamento especial para perceber as coisas, sobre tudo as coisas anormais. Os olhos daquele homem começavam a brilhar de uma forma estranha quando se agitava ou se zangava. Tinha a pele pálida, mas não como se não estivesse sadio, mas sim de uma forma brilhante, como uma pérola.

   — Por isso me inteirei que a Sarafina, provém de uma tribo de ciganos. Era um pequeno grupo que vivia como nômades na Itália. Faz uns dois séculos, um vampiro chamado Bartrone a transformou e... — então, Jameson deixou de falar, e sorriu lentamente. Will lhe viu as pontas das presas, que apareciam ligeiramente sob o lábio superior — Sabia tudo isso sobre ela?

   — Eu... Imaginei. Mas não é real.

Bryant começou a levantar-se, mas antes de que Will pudesse ver como se incorporava por completo, estava a seu lado, tomando-o pelo braço. Levantou-o de um suave puxão, e Will sentiu que o estou acostumado a desaparecia sob seus pés. Quando voltou a senti-lo, estava frente ao espelho de seu quarto de banho.

   — Com demônios...

   — Já lhe hei isso dito. Sou um vampiro. Sou muito mais forte e rápido que qualquer mortal. E agora, olhe. — e assinalou ao espelho com um gesto da cabeça.

Will olhou. Só viu seu próprio reflexo. E, enquanto seguia com a vista fixa no espelho, o pente que havia sobre a bancada se levantou flutuando no ar. Will olhou ao vampiro, porque já estava seguro de que o era, e viu que estava sujeitando o pente frente ao espelho. Então voltou a olhar seu reflexo, e a seu lado viu flutuar o pente.

   — Está bem. Está bem. É o que diz que é.

   — Até que enfim.

   — Mas, entretanto, não entendo por que quer que eu faça este trabalho. Deveria ter claro que não quero fazê-lo. Demônios, com todos os seus super poderes, por que não o faz você mesmo?

O vampiro saiu do quarto de banho, suspirando brandamente. Will o seguiu, coxeando muito, porque não tinha a bengala. Afundou-se em sua poltrona, e o vampiro voltou a sentar-se frente a ele.

   — Não posso fazê-lo. Amber saberia. E também se daria conta, se o encarregasse a outro vampiro. Não quero romper sua confiança em mim para sempre, mas sei que tenho razão ao pensar que estaria em perigo desprotegida. Assim tem que ser alguém mortal.

   — Isso tem mais sentido. Mas mesmo assim, tem que haver cem homens muito mais qualificados que eu. Homens que façam isto para ganhar a vida.

   — Isso é certo. Mas nós não vamos por aí anunciando nossa existência aos mortais, se podemos evitá-lo. Você já sabe que existimos. Sabia aquela noite, no hospital.

   — Haverá outros que saibam de sua existência.

Jameson Bryant arqueou as sobrancelhas.

   — Oh, é obvio que os há. Isso é parte do problema. Dedicam-se a nos caçar como se fôssemos animais. Massacram-nos, se for possível.

Will não disse nada. Só o olhou em silêncio.

   — Além de tudo isso, Willem Stone, eu confio em ti.

   — Apenas me conhece.

   — Sei o que fez por mim aquela noite, no hospital. E sei que classe de homem é. Sou muito bom percebendo essas coisas, como você.

Will baixou a cabeça para pensar. Naquele momento, não tinha trabalho. Dispunha de todo o tempo do mundo.

   — Pagarei tudo o que queira. — disse o vampiro.

   — Tenho mais dinheiro neste momento do que nunca tenha desejado ou necessitado.

   — Então, o que? Como posso te convencer de que faça isto por mim?

Will tragou saliva e olhou à criatura aos olhos.

   — Mostre-me Sarafina.

  

Caminharam pelas calçadas molhadas, sob a chuva, pelas ruas do Village, no midtown de Nova York, procurando o lugar onde, provavelmente, encontrariam a Sarafina.

   — É aqui? — perguntou Will. Estava impaciente. Sentia o cansaço em sua perna sadia, por causa de sustentar quase todo seu peso, enquanto que a ferida lhe doía ligeiramente. O efeito dos calmantes estava se dissipando.

   — Não estou fazendo isto à toa, Stone. — disse Jameson — Nós nunca revelamos a identidade de outro vampiro a um mortal.

   — Para lhes proteger daqueles que lhes querem caçar. — disse Will, assentindo para confirmar que estava de acordo com aquela medida — Mas sabe que eu não sou um deles.

   — Sim, sei. E sei que não representa uma ameaça para esta mulher.

Will deveria haver-se sentido insultado.

   — Por minha ferida de guerra.

   — Não. Pelo poder que tem.

Will apartou a vista da porta vermelha e do letreiro que havia em cima, onde umas letras estilizadas formavam o nome “The Rede Lion”, e se concentrou no Bryant. Não parecia que estivesse brincando, pela expressão de sua cara.

   — Sabia que me faria perguntas sobre ela em troca de sua ajuda, meu amigo. Como já te disse, investiguei um pouco antes de aparecer esta noite em sua casa. E o que averigüei sobre a Sarafina... Bom, não é agradável.

Will arqueou ambas as sobrancelhas.

   — Então não é a mulher a que procuro. A Sarafina que eu conheço... Ou imagino, é uma pessoa jovem e confiada. Muito inocente, temo-me.

   — Você não mudou nada desde que tinha, digamos, oito anos?

Will entendeu o que queria dizer, e não se incomodou em responder. A resposta era evidente. Ele era uma pessoa completamente diferente do que tinha sido de menino.

   — Ela viveu cinco vezes mais que você, Willem.

Will assentiu.

   — Então, o que quer dizer? Que não é um vampiro sociável e dócil, como você?

   — E agora, o que acontece? Vai me tratar com condescendência?

Ele apartou o olhar.

   — Sinto muito. Não tinha por que ter dito isso. Não merece isso.

   — Não. Não mereço isso. — disse Jameson. Suspirou com certo cansaço, e continuou — Pelo que eu sei, Sarafina é... Perigosa. A maioria de nós vive de sangue de animais, ou do que roubamos nos bancos de sangue. Alguns bebem de seres humanos, mas só pequenas quantidades, e os deixam sãos e salvos.

   — E essas pessoas não recordam nada depois? Não saem correndo para contar aos periódicos?

   — Só recordam o que nós lhes permitimos recordar.

Will assimilou aquilo sem formular nenhuma das perguntas que lhe estavam bombardeando a cabeça, embora Bryant fizesse uma pausa para lhe dar tempo a que as formulasse. Ao Will não importava como o conseguiam. Queria saber coisas sobre a Sarafina.

   — Sarafina é diferente. Corre o rumor de que... Algumas de suas vítimas desaparecem.

Ele piscou. Aquela não podia ser a mesma mulher, boa e doce, que ele tinha conhecido em sua mente. Entretanto, o mesmo Will tinha presenciado muitas coisas pelas que ela tinha passado. Acaso o fato de perder ao Bartrone havia a tornado má?

   — Tenho entendido que não guarda muito apreço aos humanos. — disse Bryant.

   — Então, por que vamos procurar a aqui, em um bar cheio de pessoas?

   — Não sei. Disseram-me que vem freqüentemente por aqui, senta-se em uma mesa afastada e fica escrevendo em um livro. Nunca caça aqui, assim é o lugar mais seguro para que você se aproxime dela.

   — E por que nunca... Caça aqui?

   — Isso provocaria que as pessoas começassem a fazer-se perguntas e atrairia aos caçadores de vampiros. Então, já não poderia continuar vindo. Os lugares nos que não há nenhum sinal de vampiros é onde os encontrará, Willem. Um lugar aonde houve alguma morte, ou em um banco de sangue que tenha sido roubado, não é provável que encontre nenhum.

Will assentiu.

   — Seriam muito bons soldados.

   — Em certo modo, é exatamente o que somos. — disse Jameson. Deteve-se um momento, olhou ao Will e pôs a mão sobre a porta — Preparado?

Ele assentiu de novo, mas no fundo, só estava preparado para uma decepção. Aquela não ia ser sua encantadora cigana. Não o era. Não havia forma de que sua Sarafina se convertesse em uma assassina.

   — Eu não vou entrar contigo. Ela perceberia a presença de outro vampiro imediatamente, e é possível que pensasse que você representa uma ameaça. Tenho entendido que rechaça a companhia de outros como ela.

   — Assim não quer ter a companhia de humanos, nem de vampiros. —resumiu Will — Possivelmente seja apenas que queira estar sozinha.

Olhou através da porta que Bryant tinha aberto. Havia bastante gente na barra e sentada nas mesas. O lugar estava cheio de fumaça, e a música estava um pouco alta para seu gosto. Ele preferia o rock clássico, provavelmente, sinal de sua idade.

   — Vejo você amanhã de noite em seu apartamento para terminar de selar nosso trato, Willem. — disse Jameson Bryant.

   — De acordo. — respondeu ele.

   — Tome cuidado.

Will assentiu, quase sem ouvir o que ele estava dizendo. A porta se fechou atrás dele. Chegou coxeando até o primeiro tamborete que viu livre, sentou-se para descansar a perna e pediu um copo do Black Velvet.

    

Sarafina estava sentada ao fundo, em seu lugar de costume. Movia a caneta lentamente sobre as páginas de seu livro. Estava escrevendo sobre Dante, sobre sua traição e seu posterior distanciamento. Era sua única família, seu sobrinho neto. Mas tinham sido algo mais que aquilo, um para o outro. Ela se tinha convertido em sua mãe, ao encontrá-lo meio morto no bosque e o alimentar de suas próprias veias. Tinha-o convertido em um ser imortal, como ela. Converteu-se em sua irmã, quando ele tinha desenvolvido seu poder e sua sabedoria e se igualou a ela. E depois, converteu-se em um traidor, ao escolher a seu precioso amor por cima dela.

Dante e Morgan viviam felizes, como um matrimônio de mortais comum, no Maine. Dante se converteu em um ser completamente dócil. Serrou as presas e cortou as garras. Já não vivia a vida solitária de um predador. A vida de um vampiro.

Ela sim. Adorava-a. E sempre o faria.

Sarafina sentiu um estranho frio na nuca e deixou de escrever. Levantou a cabeça, lentamente para sentir às pessoas que havia a seu redor. Havia alguém conhecido no bar.

Voltou-se e passeou o olhar por todos os rincões. Notou algo como um sussurro na mente, uma sensação igual a uma de tanto tempo atrás. Fazia um século que não sentia aquela presença. Entretanto, a última vez lhe havia dito seu nome. Willem. E que vivia em Nova Iorque. E, embora odiasse reconhecê-lo, aquela era uma das razões pelas que tinha voltado para aquela cidade depois de romper com Dante. Jurou-se que nunca voltaria a depender de outro ser vivente para ser feliz. Sempre acabavam por abandoná-la.

Mas possivelmente seu amigo do reino dos espíritos ficasse em contato com ela em Nova York. E, tinha que admitir que aquilo, sim, lhe agradaria. Fazia tanto tempo...

   — Sarafina?

A voz lhe chegou pelas costas. Era a voz de seu espírito. Nunca poderia confundi-la. E mesmo assim, não lhe chegava como um sussurro mental, mas sim como um som real. Aquilo era possível?

Voltou a cabeça lentamente, sem levantar-se.

Ali havia um homem. Um mortal. Ela tinha visto seu espírito uma vez, na bola de cristal. Aquele homem parecia mais duro. Menos místico, mais físico.

Ele estendeu a mão para saudá-la.

   — Meu nome é Willem Stone. Lembra-se de mim?

Ela ficou olhando a mão.

   — É só um homem. — disse. Não podia ser ele. Não era possível. Só tinha a mesma voz e o mesmo físico. Mas seu espírito não podia ser de carne e osso. Ela não confiava nas pessoas como tinha acreditado nele. Não podia ser ele. Não podia ser um homem normal.

Ele retirou a mão lentamente e assentiu uma vez.

   — Sim. Importa-se que fale com você? Só serão uns minutos.

Ela piscou e o percorreu com o olhar, atentamente. Possivelmente não fosse tão normal. Seu corpo e sua psique irradiavam poder. Devia ser muito forte, para ser um mortal. Ajudava-se de uma bengala para caminhar, e ela supôs que tinha algum defeito, mas era recente, sentiu Sarafina. Tinha dores. Ela soube imediatamente. Entretanto, mantinha o sofrimento confinado em um espaço de sua mente, como se ele fora o que o controlava, e não ao reverso. Levava umas calças de lona cor cáqui e um pulôver de lã gordo, de cor oliva.

Possivelmente não fosse tão comum, absolutamente.

   — Sente-se comigo durante um momento.

Ele rodeou a mesa, coxeando, e se sentou frente a ela. Havia uma vela no centro da mesa, e a luz lhe refletiu no rosto. Não era bonito, a não ser duro. Tinha os rasgos muito marcados. A mandíbula e o nariz afiados. Uma frente férrea. Os olhos eram de um azul muito claro, tão frios como o céu do Ártico, e aquela cor contrastava agudamente com seu cabelo negro e muito curto e com sua pele bronzeada.

   — Do que queria me falar? — perguntou-lhe Sarafina, recostando-se no respaldo, desfrutando daquela exploração que lhe estava fazendo. E desfrutando do fato de que não lhe incomodasse nem lhe inquietasse absolutamente.

   — Desculpe? Sinto interromper. — disse uma garçonete que se aproximou da mesa.

Sarafina arqueou as sobrancelhas, lhe lançando adagas com o olhar, mas a garota estava muito concentrada no Will para dar-se conta.

   — É você o coronel Stone? — perguntou-lhe — Porque tenho a capa guardada da revista Time, e me perguntava se poderia me assinar um autógrafo. Acredito que você acaba de...

Ele elevou uma mão para deter o bate-papo da moça.

   — Sinto-o. — lhe disse — Isto me ocorre freqüentemente, mas não sou ele.

A garota franziu o cenho, confusa.

   — Oh. Sinto muito, senhor. — disse então, e partiu.

Sarafina o olhou.

   — Assim é o coronel Willem Stone.

   — Retirado.

   — É uma espécie de... Herói de guerra?

   — Capturaram-me e me torturaram, e vivi para contá-lo. Para alguns, isso me converte em um herói. Se me tivessem dado a escolher, teria preferido não ter esse prazer.

Ela não pôde evitar sorrir. Então, recordou uma visão de seu espírito amante, ferido e torturado com ferros candentes. Aquilo fez com que se estremecesse. Aquele não era ele, embora usasse o mesmo homem e tivesse aparecido no mesmo lugar que seu espírito lhe havia dito que faria.

   — Conheço-te. — disse Will. Deixou cair as palavras e depois ficou em silêncio.

Sarafina não sabia muito bem o que esperava ele que fizesse com elas.

   — Duvido-o, Willem. Nenhum homem me conhece de verdade.

   — Eu sim. Sei tudo a respeito de ti. Conheço o acampamento no qual nasceu. Conheço sua irmã, Katerina, e sei como André e ela lhe traíram. Conheci o Bartrone, e sei como morreu. E sei o que é.

Ela o escutou imóvel, enquanto um medo desconhecido lhe invadia o peito. Quando ele terminou de falar, Sarafina se apoiou na mesa, pôs-lhe a mão na nuca e o atraiu para sua cara para lhe sussurrar algo ao ouvido.

   — E pensa que posso permitir que siga vivendo, agora que me confessou tudo o que sabe de mim?

O sussurro de Will, tão suave como o seu, tão próximo que notou como seus lábios se moviam junto a sua própria orelha, deixou-a assombrada.

   — Não sou um homem fácil de matar, Sarafina. Mas se quer tentá-lo, estarei encantado de jogar.

Aquele fôlego quente acendeu em Sarafina um fogo em suas virilhas. As imagens da noite que tinha compartilhado com o espírito em sonhos, de como lhe tinha feito amor, de uma forma em que nenhum homem nem nenhum vampiro o tinha feito nunca, conseguiram que se estremecesse de desejo. Separou-se dele com brutalidade e o olhou aos olhos.

   — Possivelmente joguemos primeiro. E pode morrer depois.

   — Como você quiser.

Ela assentiu lentamente, recordando-se que aquele não era seu espírito. Era seguro amar a um espírito, mas não a um homem.

   — Como sabe todas essas coisas sobre mim, Willem Stone?

Will lhe sustentou o olhar, tentando lhe ler os pensamentos como se ele mesmo fora um vampiro.

   — Meu deus, Sarafina, tem que recordá-lo. Eu estava ali. Estava contigo. Era a voz que falava em sua mente. Chamava-me seu querido espírito. Disse-te que só era um homem.

Ela assentiu lentamente, enquanto procurava na mente de Will alguma explicação mais para aquilo. Ele ia desterrar a única luz que ficava na vida, a esperança de que um dia seu espírito voltasse para ela e a amasse como tinha feito tanto tempo atrás.

   — Isso é impossível. — sussurrou ela — Nem sequer tinha nascido quando eu experimentei aquelas coisas.

   — Sei que é impossível, mas também sei que ocorreu. Antes o duvidava. Pensava que possivelmente minha mente tivesse imaginado aquele truque para conseguir escapar do sofrimento da tortura, mas agora que te vi... —sacudiu a cabeça — Sei que foi real, Sarafina. Você não?

   — As coisas que você me descreveu, realmente ocorreram. Havia uma voz que me falava naqueles momentos. Dizia-me as mesmas coisas que você repetiu agora. Eu nunca tinha contado essas coisas a ninguém, nem sequer as tinha escrito em meus diários.

   — Então, não há forma de que eu soubesse, exceto que tivesse estado ali.

Sarafina assentiu, tentando dissimular o fato de que suas palavras tinham feito pedacinhos das coisas que ficavam escondidas dele em seu coração. Era real. Físico. Os seres físicos mentiam, traíam e morriam, e deixavam a aqueles que os amavam sozinhos, sofrendo. Ela não poderia amar a seu espírito se era um ser físico. Não o faria.

   — E agora, o que quer de mim?

Ele ficou assombrado. Parecia que aquela pergunta lhe tinha feito mal.

   — Eu... Não sei. Suponho que só queria ver você para convencer a mim mesmo de que não estava ficando louco.

   — Necessitava que suas experiências se validassem. — disse ela. Resultou-lhe difícil evitar que lhe tremesse a voz de dor — Já entendi. E que mais?

   — Tinha que saber que estava bem. A última vez que te vi, estava...

A dor superou o comedimento da Sarafina.

   — A última vez que me viu, prometeu-me que voltaria para ver-me assim que pudesse. Mas não retornou e não soube nada de ti até agora. Passou cem anos, Willem.

   — Para mim, isso ocorreu faz duas noites. — replicou ele.

Ela o olhou nos olhos. Sustentou-lhe o olhar só durante um instante, e depois separou do poder que ele irradiava.

   — Estou bem.

   — Já o vejo. — respondeu Will, e respirou fundo — Você mudou.

   — As pessoas mudam. Isso é irrelevante. E que mais quer de mim, mortal?

Ele tomou seu tempo para responder. Apoiou-se no respaldo e a estudou abertamente, tanto como ela o tinha observado a ele. Possivelmente ele também estivesse escondendo sua dor detrás daqueles olhos azuis. Se era certo, não o demonstrou. Tinha tanta capacidade de controle como ela mesma.

   — Quero saber como ocorreu. Quero entender como fui capaz de me colocar em suas lembranças e em seu passado.

Ela sorriu ligeiramente.

   — O que? O que tem de divertido?

   — É típico. Os mortais e suas mentes curiosas. Sempre andam procurando respostas. Durante os séculos, a gente acaba aprendendo que as coisas simplesmente acontecem. Não há ritmo nem razão. Os jovens de minha raça passam um inevitável período de perguntas. Questionam-se o motivo e o propósito da existência. Normalmente, leva-nos a duração normal de uma vida humana deixar de nos fazer perguntas e aceitar, simplesmente, a existência.

Ele inclinou a cabeça.

   — Não acredita que há um propósito para tudo isso? Um grande destino?

   — Que você e eu sejamos almas gêmeas, que tenhamos nos conectado através do tempo e que estivéssemos destinados a nos encontrar, ao fim, neste tempo e neste lugar?

   — Sim, algo assim.

Ela pôs os olhos em branco e reprimiu um soluço que queria escapar do peito, antes que a delatasse.

   — Isso são tolices.

   — Muito bem. Possivelmente sejam tolices.

   — Então, já não fica nada do que falar. Terminou o tempo.

Ele alargou os braços por cima da mesa e tomou as mãos.

   — Quero te conhecer, Sarafina. Quero saber o que te ocorreu depois da morte de Bartrone.

Ela olhou suas mãos, e sentiu sua calidez. Aquele contato lhe estava provocando um desejo na alma, muito intenso para não lhe prestar atenção. Ele tinha algum tipo de estúpida conexão sentimental com ela, igual a ela com ele. Mas a sua estava apoiada na mulher que Sarafina tinha sido uma vez, e ela já não era essa mulher. Entretanto, seguia desejando-o. Deus, como o desejava. Aquilo era perigoso. Outorgava a aquele homem o poder de feri-la, possivelmente inclusive de destruí-la.

Fazia muito tempo que tinha decidido relacionar-se só com aqueles que a desagradavam, ou que não tinham nenhum interesse para ela. Ou com os escravos, pelos quais tinha chegado a sentir certo afeto. Entretanto, aquele era um afeto seguro, porque eles não podiam traí-la.

Willem Stone não era nenhuma daquelas duas coisas, e por isso era perigoso. E tinha a sensação de que não deixaria de aproximar-se dela, sobre tudo se sentia coisas tão fortes por ela como as que ela sentia por ele. Tinha tido um século para acostumar-se a estar sem ele. Ele só tinha tido... Quanto lhe havia dito, dois dias?

Possivelmente devesse lhe demonstrar que já não era a menina inocente a que ele tinha acreditado que queria.

   — Você gostaria de saber o que eu quero de ti, Willem Stone?

   — Sim.

Sarafina o agarrou pela camisa e o aproximou dela, por cima da mesa. Sabia que era um homem forte. Queria que resistisse, para poder lhe demonstrar que ela o era ainda mais. Entretanto, ele se deixou levar.

   — Quero te montar até que esteja completamente exausto, e depois quero sugar todo o seu sangue até te deixar seco. Quero conseguir prazer com seu corpo e me saciar com seu sangue. E isso é tudo o que eu quero.

   — De verdade pensa isso?

   — Sim.

Então, Will lhe passou uma mão pela nuca, entrelaçou os dedos em seu cabelo e a atraiu para ele para que suas bocas se juntassem. Ela não resistiu. Deixou que a beijasse, permitiu-lhe que lhe deslizasse a língua entre os lábios e a saboreasse. Permitiu-lhe sentir suas presas, afiados como uma faca, na carne.

Então, ele rompeu o beijo.

   — Pois eu acredito que quer mais, mas está lutando contra você mesma. E não sei por que.

   — Engana a ti mesmo. E ao fazê-lo, arrisca a vida.

   — Queria que voltasse para ti quando não era nada mais que um espírito, uma voz que ressonava em sua mente. Não queria nem meu sangue nem meu corpo naquele momento, porque pensava que não o tinha. Queria-me. Amava-me, Sarafina. Sei que é verdade.

   — Queria companhia. Teria me valido com um gato. Mas me curei desse defeito, Stone. Já não necessito a ninguém. De fato, prefiro estar sozinha.

Então se afastaram um do outro. Voltaram a ocupar seus assentos, olhando-se fixamente.

   — Então, suponho que deveria partir. — disse ele.

   — Faça isso enquanto pode.

Ele sorriu lentamente. Levantou-se, pegou a bengala que tinha apoiado na cadeira e se afastou sem olhar para trás. Sarafina tragou saliva. Tinha tratado ele tão mal... Desejava-o. Desejava-o exatamente da maneira que lhe tinha explicado, com uma exceção: não queria matá-lo. Apesar de si mesmo, sentia-se fascinada por ele. Queria ouvir sua voz, desfrutar de sua amizade, de sua presença reconfortante na escuridão, da mesma maneira que a tinha tido uma vez no passado.

Mas aqueles eram desejos que não poderia ver cumpridos. Ele era um mortal, e nem sequer pertencia aos Escolhidos. Não podia se permitir o luxo de amar a uma criatura que, de novo, a deixaria sozinha. Conhecia aquela dor muito bem, e não queria voltar a experimentá-la.

Não. E sobre tudo, não com ele.

Sarafina fechou os olhos e voltou o rosto para a parede do fundo. Pela primeira vez em muito tempo, chorou. As lágrimas lhe derramaram pelas bochechas, contra sua vontade.

Ainda o sentia ali, com ela. Não sabia onde estava, mas sabia que ele percebia seu pranto. E também soube que Willem Stone estava sangrando por dentro.

  

Will voltou para seu apartamento. O vampiro, Jameson Bryant, estava-o esperando ali.

   — Acreditava que havia dito que nos veríamos amanhã de noite. — comentou Will.

Entretanto, não se sentia muito surpreso ao vê-lo ali, sentado na mesa de sua cozinha. Tomou uma cerveja da geladeira e a mostrou ao Jameson, arqueando as sobrancelhas.

O vampiro sacudiu a cabeça.

   — Nunca bebo álcool.

   — Então, para que veio?

   — Não podia esperar. — disse Jameson. Depois, franziu o cenho — Antes parecia mais morto que eu. Agora, pelo menos, tem um pouco de cor nas bochechas. Se fosse um de nós, diria que acaba de te alimentar.

   — Isso é repugnante. — respondeu Will, e deu um gole à cerveja. Depois se sentou.

   — Antes estava de acordo com isso. — disse Jameson, e encolheu os ombros — Você falou com a Sarafina?

   — Sim. — respondeu ele, com um suspiro — Sim.

   — E?

Will olhou ao Jameson aos olhos.

   — Você cumpriu sua parte do trato. E eu cumprirei a minha.

   — Isso já sabia, mas, o que passou entre a vampiresa e você?

   —Não quero falar disso, Bryant. Fale-me de sua filha.

Bryant sorriu e aceitou a mudança de tema.

   — Tem dezoito anos, e não é uma vampiresa.

Will ficou surpreso ao escutar aquilo.

   — E como é possível?

   — É uma larga história. Algum dia lhe contarei isso. Eu era mortal quando minha filha foi concebida. Minha mulher não. Amber Lily é a única de sua raça, e aqueles que nos querem aniquilar dariam tudo para capturá-la.

   — Assim é... Normal?

   — Mmm... Não exatamente. Ela não é vampiresa. Até o momento, cresceu com normalidade. Pode expor-se à luz do sol. Não precisa beber sangue, e come comida normal, embora requeira muitas proteínas. Isso é uma resolução difícil, agora que se proclamou vegetariana.

Will riu.

   — É bastante irônico, verdade? — perguntou Bryant, sorrindo.

   — Ligeiramente.

   — Amber tem o mesmo antígeno no sangue que todos os vampiros levam quando ainda são humanos. Chama-se o antígeno Belladonna. Embora os resultados das provas que se fizeram até agora dizem que o antígeno está mudado nela.

— E o que faz esse antígeno naqueles que o têm? — perguntou Will. Tinha começado a ter um extraordinário interesse em tudo aquilo.

   — Só os humanos que têm o antígeno podem converter-se em vampiros. Se tentássemos transformar a outro mortal, morreria. É um antígeno muito escasso, e os que o têm não vivem mais de trinta anos. — explicou Bryant. Ao terminar, a sua voz quebrou ligeiramente.

Will pensou em Sarafina, nas primeiras vezes em que a tinha visto. Então ela se cansava muito facilmente, e estava muito preocupada com sua debilidade. Então, recordou-se a si mesmo que aquele homem estava falando de sua própria filha, e se obrigou a voltar para presente.

   — Diz que, em sua filha, o antígeno está mudado. Então, é possível que esse não seja seu caso, verdade? E inclusive se o for, não a poderia transformar em um vampiro como você, e ainda assim estaria bem?

   — Não podemos saber se o antígeno fará com que Amber Lily morra jovem ou não. Tampouco podemos saber se sobreviveria à transformação. Como já disse, é única.

Will viu a dor nos olhos do outro homem. Era a dor de alguém que se via obrigado a considerar a morte de sua própria filha.

   — Sinto muito.

Jameson pigarreou e tirou uma fotografia da carteira. Mostrou-a ao Will. Era de sua filha. Will tomou e a olhou com atenção.

   — É... Impressionante.

   — E a foto não lhe faz justiça. Pensamos que ia ter o cabelo de cor azeviche, como sua mãe. Mas não foi assim. Tem-no mogno escuro, e quando o sol se reflete na cabeleira parece de fogo. Tem os olhos azuis, mas tão escuros, que às vezes parecem de ébano. — Jameson tomou a foto e voltou a guardar – É mais forte que as meninas normais. E mais rápida. É boa lendo pensamentos que não tenham sido bloqueados. E parece que tem certas habilidades telecinéticas, embora não as controle ainda.

   — Telecinésia... Quer dizer que move coisas com a mente?

   — Mmm. — Bryant assentiu.

   — E algo mais?

   — Sim. É mais teimosa que uma mula. Está muito mimada. É uma romântica incorrigível, e muito aventureira para seu próprio bem. Como nós, sofre de um grau de hemofilia, embora muito mais fraco que o nosso. Se se corta, sangra em abundância, embora finalmente o sangue coagule. Entretanto, não se cura das feridas enquanto dorme, ao contrário dos vampiros. Além disso, não estou seguro se tem mais pontos vulneráveis. Espero que nunca tenha que averiguá-lo. Nunca esteve doente, nem se quebrou um osso. Entretanto, pode ser que seja porque nós passamos a vida protegendo-a. Vigiando-a.

   — Não é estranho que deseje sair voando do ninho.

Jameson lançou ao Will um olhar que poderia havê-lo carbonizado. Ele tentou aplacá-lo com um sorriso.

   — Sinto muito. Só estava brincando.

   — Muito perto da verdade, temo-me. — disse o vampiro, e ficou de pé — Amber tem uma reserva no hotel Marriott Manquis para o sábado. Aqui estão os dados de seu vôo. — lhe disse, e lhe entregou uma parte de papel dobrado — Sua melhor amiga, Alicia, irá com ela. É uma garota loira e delgada. Viajarão como irmãs, sob o nome de Howe. De acordo?

   — De acordo.

Jameson meteu a mão no bolso interior da jaqueta e tirou um grosso maço de bilhetes, envolto em papel de embalar.

   — Cem mil dólares. — disse, e pôs o dinheiro sobre a mesa — Sei que disse que não o necessitava, mas não acredito que queira trabalhar grátis para mim, verdade? E a vida de minha filha não tem preço. Eu farei outro pagamento pela mesma quantia quando ela voltar para casa sã e salva.

Will olhou o dinheiro.

   — E quanto tempo vai estar em Nova York?

   — Uma semana.

   — Duzentos mil dólares para bancar a babá para a Supergirl durante uma semana. Demônios, estou roubando você, Bryant. — Will pegou o dinheiro.

   — É possível que me peça mais quando terminar a semana. Se o fizer, não poria nenhuma objeção.

Will não acreditava que fosse ter nenhum problema com a garota.

   — O mais importante é que ela não saiba que contratei você. Deve acreditar que está sozinha. Do contrário, esta viagem não servirá de nada, e estará esperando qualquer outra oportunidade para estirar as asas.

Will arqueou uma sobrancelha.

   — Você está falando metaforicamente, verdade? Não terá asas...

O vampiro lhe lançou outro olhar assassino, mas ele se limitou a encolher os ombros. Em realidade, se podia haver vampiros e moças com super-poderes, por que não haveria pessoas com asas?

   — Estou confiando a você a vida de minha filha, Willem. Não falhe.

   — Não se preocupe. — respondeu Will — É o encargo mais fácil que tive em minha vida.

  

Amber e Alicia estavam cantando a gritos, seguindo os lamentos e as maldições do vocalista descamisado de um grupo de rock, junto a outros quantos milhares de adolescentes. Will estava exausto. Quase não tinha podido seguir o ritmo das garotas, e era só seu primeiro dia na cidade. Ele não sabia o que esperar. Uma criatura miúda, etérea, mística, ou algo assim. Em vez daquilo, a filha do vampiro era algo muito mais terrorífico: era uma adolescente típica.

As duas garotas tinham chegado ao hotel em um táxi do aeroporto, e não tinham passado na suíte que papai vampiro tinha reservado para elas nem cinco minutos. Depois de deixar suas bolsas junto às camas, tinham saído de novo.

Parecia que Amber tinha tirado as entradas do concerto antes da viagem, porque Will não tinha encontrado ingressos. Tinha tido que penetrar na área de segurança e roubar uma camiseta e um cartão de identidade. A cara da fotografia não se parecia nada à sua, mas aquilo não importava nada, dada a escuridão do auditório.

Os golpes, o estrépito e os gritos que provinham do cenário eram ensurdecedores. Fazia que lhe chiassem os ouvidos, e os saltos e empurrões dos adolescentes estavam destroçando seu o pé. Já levavam ali duas horas.

Para as garotas, entretanto, aquilo era como um baile. Mantinham os braços no alto e balançavam os cabelos para frente e para trás enquanto rugiam as letras com o cantor, as palavras malsoantes incluídas.

Por fim, a banda terminou de tocar e partiu do cenário. Aquilo só fez com que os gritos se intensificassem. Então, Amber começou a puxar o braço de Alicia para guiá-la para a saída.

Will as seguiu para ouvir que dizia:

   — Ora, “Men in Chains” nunca fazem bis. O mais seguro é que já estejam no ônibus.

Com um suspiro, Will as seguiu entre a multidão que seguia gritando para pedir um bis, certamente porque não sabiam tanto como Amber Lily daquelas coisas. Graças a Deus. As teria perdido entre a multidão para sempre.

Sem perder de vista às duas garotas, meteu-se depois de um pilar e tirou o cartão de identificação e a camiseta amarela de segurança, sob a qual levava sua camiseta negra. Depois atirou as coisas a um cesto de papéis.

Supôs que tinha sorte porque as duas garotas eram tão chamativas. Alicia era loira platinada, e o cabelo mogno de Amber era tão escuro que parecia quase negro. Era difícil perder de vista aquelas duas cabecinhas entre todas as pessoas enquanto se dirigiam para as portas.

Saíram, e ele as seguiu a uma distância prudencial. Amber era muito atenta. Parou duas vezes para olhar detrás dela, como se sentisse o interesse de alguém. Ainda não o tinha visto, mas o faria se ele não tomasse cuidado.

   — E agora o que? — perguntou Alicia — Voltamos para hotel para nos deitar?

   — Está de brincadeira? Só temos uma semana. Vamos a uma discoteca e dançar até que a fechem.

Will gemeu em silêncio. Era evidente que teria que procurar métodos alternativos com aquelas duas. Uma semana assim poderia matá-lo.

  

Frank Stiles foi à entrevista que tinha com os homens que tinham estado seguindo ao Jameson e a Angélica Bryant, e a sua descendência, durante os últimos anos. Cada vez que encontravam ao casal em uma zona, os monstros se mudavam sem deixar rastro. Naquela ocasião, entretanto, tinham-nos.

   — Colocaram a duas adolescentes que viajam com o nome do Howe em um avião. Tínhamos homens esperando no aeroporto, e as seguiram até o Marriott Marquis.

   — E uma delas é a garota que queremos.

   — Sim, mas não estamos seguros de qual.

   — E por que não? —perguntou Stiles, olhando a todos os homens com seu olho bom — Não deveria ser tão difícil de averiguar, se estivesse vigiando-os.

   — Senhor, neste caso há uma pequena diferença. As duas saem durante o dia, as duas foram vistas comendo comida normal, e até o momento, nenhuma das duas mostrou sinais de ser outra coisa que... Bom, são umas adolescentes comuns.

Stiles passou a mão pela cara em um gesto inconsciente. A palma se moveu sobre a pele suave do lado direito do rosto até a carne enrugada e cicatrizada do esquerdo. Aquilo lhe recordou que os vampiros não eram outra coisa que animais raivosos que teria que eliminar. Suas investigações estavam aproximando da concepção de outra arma. Seria um interessante reforço para o arsenal que já estavam utilizando contra eles. E, além disso, a arma mais importante de todas.

   — Não é uma adolescente normal, cavalheiros. É a descendência de um par de cães assassinos. Pode ser que pareça humana, mas não é. Tenham isso em conta. Se não tem coragem para fazer o que terá que fazer, então temos formas de solucionar o problema.

Os homens se olharam. Não eram tolos. Stiles não recrutava a tolos. Sabiam que ninguém deixava aquela organização com vida. Ele não estava disposto a arriscar-se a que ex-agentes fossem por aí contando histórias.

   — Apanharemos as duas. — disse Stiles, quando soube que sua mensagem tinha sido assimilada — E depois já averiguaremos quem é a humana traidora e quem é a mutante.  

  

Willem estava exausto quando as garotas decidiram dar por terminada a noite, o qual excedia em muito sua hora de deitar. Entretanto, Will sabia que tampouco ia poder descansar. Ainda não. Enquanto as garotas dormiam a salvo na suíte, ele tinha que mover-se rapidamente. Não tinha esperado que fosse semelhante desafio para ele.

Antes do meio-dia já tinha reservado a suíte ao lado da das moças e tinha feito uma viagem rápida para conseguir algumas armas difíceis de encontrar, que um antigo companheiro seu poderia lhe proporcionar. Mike Mulahey tinha sido soldado das Forças Especiais fazia uns anos, e tinha sido um dos bons. O que fazia não era exatamente legal, mas só tratava com clientes privados e não fazia nada antiamericano ou escuro. De fato, orgulhava-se de seu patriotismo.

Will comprou alguns dispositivos de vigilância inteligentemente desenhados, que iriam facilitar muito o seu trabalho. Mike o convenceu também para que levasse alguns outros artefatos que tinha em liquidação. Demônios, Will não sabia para que iria necessitar explosivos plásticos e temporizadores, mas Mike precisava desfazer-se deles por alguma razão, assim Will imaginou que o mínimo que podia fazer era ajudar a um velho companheiro. Pôs o pacote, cuidadosamente envolto, no porta-malas do carro, sob o pneu step. Aquilo era ilegal. Depois, pôs a bolsa da equipe de vigilância no assento dianteiro, junto a ele.

Quando chegava a sua suíte, as garotas estavam saindo ao corredor, sorridentes e faladoras. Ele olhou a seu redor enquanto fingia que procurava a chave, tomando notas mentalmente. Foram vestidas de forma muito parecida, com jeans de cintura baixa e camisetas justas que deixavam à vista suas pequenas cinturas. Alicia levava um piercing no umbigo, mas Amber não. Ele se perguntou se seria por uma eleição de estilo ou porque a garota tinha tendência a sangrar-se. Tampouco levava pendentes nas orelhas.

   — Assim, tomamos o café da manhã no hotel, e depois vamos às compras na Quinta Avenida. — disse Amber.

   — Depois, ao estúdio da MTV, para ver se por acaso podemos ver algum artista... — Alicia franziu o cenho — E depois o que, Amber?

Amber encolheu os ombros.

   — Já o veremos. Eu acredito que esta noite temos que ir a outra discoteca.

   — Eu também.

As duas se dirigiram para os elevadores, mas Amber se deteve a poucos passos, voltou-se de repente e o olhou.

Will fingiu que toda a sua atenção estava posta em abrir a porta de sua suíte. Entretanto, sentiu aqueles olhos nele como se fosse uma carícia física. Teria visto-o na noite anterior? Suspeitaria dele? Demônios, ela era boa.

Will entrou na habitação, mas não fechou a porta por completo, para poder escutar o que diziam.

   — O que ocorre, Amber?

Houve uma pausa, e depois um suspiro.

   — Nada. Estou começando a ficar tão paranóica como meus pais.

   — Não pode ser. Ninguém é tão paranóico quanto seus pais, exceto minha mãe. E agora que penso, será melhor que liguemos antes de tomar o café da manhã, ou avisará à polícia e aos bombeiros.

   — Ou pior ainda, à tia Rhiannon quando anoitecer. Ela vive perto. Se é que está em casa.

   — Que Deus nos ajude se é que está! — as duas riram. Depois, Will ouviu o sino do elevador e as comportas se fecharam. Suas vozes se desvaneceram.

Perfeito. Teria tempo de trabalhar enquanto as garotas tomavam o café da manhã, e com sorte, poderia alcançá-las antes que saíssem do hotel.

Utilizou o cartão magnético que lhe tinha proporcionado seu amigo Mike para abrir a suíte das garotas. Foi tão fácil que quase ficou nervoso, porque seria igualmente fácil para todo mundo. Ele não acreditava que Jameson Bryant fosse um paranóico, ao contrário de sua filha. Parecia-lhe uma pessoa inteligente e verdadeiramente preocupada pela segurança de sua filha. Will supôs que o homem teria suas razões.

Fez tudo rápida e minuciosamente. Em uns minutos tinha colocado uns microfones na suíte para escutar claramente em caso de que tivessem algum problema. E tinha rodeado o marco da porta com um cabo sensível que não se notava mais do que se nota uma fita adesiva transparente.

Fechou a porta e tirou de sua bolsa o indicador, uma caixa com um interruptor e duas luzes. Quando acendeu o interruptor, a luz verde se acendeu. Will abriu a porta. A luz verde se apagou e se acendeu a vermelha, com um pequeno assobio.

Perfeito. Daquela forma, sempre saberia quando se abria a porta da suíte das garotas.

Colocou de novo a caixa na bolsa e voltou para sua suíte. Ali demorou só uns minutos mais em terminar o trabalho. Pôs o indicador sobre sua mesinha de cabeceira, junto com os fones de ouvidos para escutar justo ao lado, e terminou.

Olhou a hora e se felicitou por sua rapidez. Depois retirou outras duas coisas da bolsa, dois artefatos de rastreamento em forma de caneta que, a primeira vista, pareciam normais. Meteu-se uma das canetas no bolso e o outro deixou na gaveta da mesinha. Ter sempre um recâmbio, sobre tudo quando se tratava de um aparelho eletrônico, era parte do que lhe tinham ensinado durante seus muitos treinamentos. Finalmente, saiu em direção à sala de jantar do hotel.

Não teve tempo para tomar o café da manhã. As garotas já estavam na recepção deixando a chave e se dirigiam à saída. Que Deus o ajudasse. Pegou um par de croissants do bufê do hotel. É obvio, não tinha tempo nem para um café. Iriam conseguir matá-lo antes que acabasse a semana. Nem sequer tinha dormido.

Deu-lhes tempo para que avançassem um pouco e saiu atrás delas.

  

Sarafina se levantou ao entardecer, e seus confiáveis serventes já estavam esperando-a. Misty tinha sido uma viciada em diferentes drogas quando Sara a tinha encontrado. Estava a ponto de vender a sua filha, de uns dois anos, a um traficante, em troca de uma dose de uma substância parecida com o cristal, chamada crack.

Sarafina tinha lido com facilidade a mente do traficante, e suas intenções para a menina eram tão espantosas que Sarafina só tinha podido retirar-se de sua cabeça com repugnância.

Quando tinha terminado seu trabalho aquela noite, o traficante estava morto em um beco. Ela nem sequer tinha tido estômago para beber seu sangue, assim que se limitou a lhe romper o pescoço.

Então, alimentou-se da mãe da menina. Depois lhe tinha dado umas gotas de seu sangue para transformá-la em sua servente, e a tinha metido no carro junto ao bebê.

A menina não chorava nem ria. Em realidade, seu rosto não expressava nada. Estava suja, desnutrida e tinha feridas e hematomas. Sarafina estava surpreendida de que tivesse sobrevivido.

Sarafina não era terna. Entretanto, as crianças eram uma de suas debilidades. Ela nunca tinha tido uma própria, e aquela era sua única pena. Se tivesse tido um filho de sua própria carne, certamente teria sido o único ser do universo em quem teria podido confiar e que não a tivesse falhado.

Entretanto, tampouco tinha nenhuma garantia daquilo.

Havia dito ao Edward que conduzisse para o hospital mais próximo. Ali tinha visto, do carro, um grupo de empregados do hospital, com trajes verdes, junto à porta, fumando um cigarro. Tinha baixado o vidro.

   — Ei, vocês! Venham rápido!

Um par de homens se aproximaram, com o cenho franzido, e ela entregou-lhes a menina pelo vidro rapidamente, sem lhes dar tempo de reagir, e Edward se pôs em marcha de novo.

E assim era como tinha conseguido a Misty. A garota já não era uma prostituta que se vendia para conseguir crack, a não ser uma serva completamente dedicada a sua senhora, e disposta a dar sua vida por ela e por umas preciosas gotas de sua nova droga.

Misty apareceu no mesmo momento em que Sarafina abriu os olhos, ao sentir que sua ama havia despertado. Ficou junto à cama, sustentando uma bata de cetim negro.

   — Descansou bem, senhora?

   — Bastante bem, obrigado. — Sarafina deslizou os braços pelas mangas e atou a bata à cintura.

   — Preparei-lhe o banho.

   — Muito bem.

Misty subiu a manga e lhe mostrou o braço.

Sarafina a olhou. Observou a quantidade de feridas que tinha, pequenos pontos na pele. Então sacudiu a cabeça só uma vez.

   — Não tenho fome hoje, Misty. Tenho muitas coisas na cabeça. — se voltou e foi para o banho — Traga-me o traje de seda esmeralda, e escolha as jóias. Sinto-me... Tenho vontades de explorar, esta noite.

Misty assentiu e foi ao armário. Sarafina entrou no banheiro, tirou-se a bata e se meteu na banheira quente, com a esperança de que o calor lhe relaxasse a tensão do corpo.

Tinha que encontrar outro lugar. Aquele bar do Village ao que se tinha afeiçoado já não era aconselhável. Era uma pena que aquele homem a tivesse encontrado ali.

Aquele homem.

Sarafina fechou os olhos e pensou nele. Resultava-lhe tão dolorosamente familiar... No momento em que se aproximou dela, tinha-o reconhecido. Ele era aquela voz que tinha ouvido em seu interior várias vezes, durante sua vida mortal. O dia da morte de sua prima, o dia que tinha conhecido a traição de seu amante. O dia em que se transformou em uma vampiresa. Tinha acreditado que ele era um fantasma, ou um guia espiritual, ou possivelmente um anjo da guarda...

Qualquer daquelas coisas teria sido preferível ao que dizia ser: um homem mortal, comum.

Deus, nem sequer tinha o antígeno Belladonna. Não era um dos Escolhidos. Não havia nenhuma razão pela qual ela devesse sentir aquilo... Aquele laço tão intenso com ele. E não havia nenhuma razão pela que ele tivesse podido viajar através do tempo e dos continentes para estar com ela nos momentos que tinham significado as mudanças mais importantes de sua vida.

Entretanto, era impossível pensar que ele estivesse inventando tudo e que estivesse mentindo. Não. Nunca lhe tinha contado a ninguém que tinha escutado uma voz forte, tenra e carinhosa em sua cabeça. A ninguém. Nem sequer tinha escrito em seus diários. E, entretanto, ele conhecia detalhes e os descrevia tal e como ela os tinha vivido.

E estava em Nova York, o lugar onde lhe havia dito que estaria, no momento em que lhe havia dito que estaria. E, acima de tudo aquilo, ela sabia que era ele. Sentia-o.

Amava-o.

Não! Aquilo não. Nunca.

Seu espírito amante a tinha abandonado. E embora tivesse jurado que nunca deixaria que ninguém voltasse a lhe importar tanto ao ponto de fazer com que se sentisse mal quando não estivesse, Sarafina tinha ido a Nova York de todas maneiras. Possivelmente só para averiguar se seu espírito tinha sido real.

E o tinha averiguado. Oxalá não o tivesse feito.

Tivesse preferido seguir acreditando que era um deus, ou um fantasma, antes que fosse um homem mortal.

Não. Não devia voltar para aquele bar. Ele sabia onde encontrá-la, e ela não queria voltar a vê-lo.

Era uma mentira. Sim, queria vê-lo. Estava morrendo por vê-lo de novo. Mas não podia. Era uma questão de autodefesa.

Quando saiu da banheira, Sarafina encontrou a roupa esperando-a sobre a cama e a Misty esperando-a com a escova na mão.

Sarafina tomou.

   — Eu me escovarei o cabelo esta noite, amor. Vá dizer ao Edward que prepare o carro. Esta noite vamos passear pela cidade.

   — Agora mesmo, senhora.

  

   — Até o momento, não conseguimos nada. — disse Alicia.

Amber sabia que, embora sua amiga ainda não estivesse se queixando, não passaria muito tempo antes que ela quereria partir para o hotel e terminar a noite. A lista de discotecas e bares que tinha tirado da Internet estava sem atualizar. Observou a folha, e depois elevou a cabeça para olhar pelo vidro, para estudar um edifício de escritórios não muito bonito.

O taxista, um moço moreno com os olhos marrons e uns cílios magníficos, olhou para trás, às garotas.

   — Este é o lugar? — perguntou.

   — Não acredito.

   — Vamos dar uma olhada. Possivelmente o clube esteja no porão, ou algo assim. — disse Amber, enquanto alcançava o abridor da porta.

   — Sua amiga tem razão. — disse o taxista. Tinha um acento muito sexy, pensou Amber. Perguntou-se quantos anos teria. Não parecia que tivesse nem vinte — Este lugar... Não é bom para vocês.

Amber suspirou e olhou para ambos os lados da rua. Poderia ter discutido com ele, mas não quis fazê-lo. Em vez disso, deu ao menino um pouco de dinheiro e abriu a porta.

   — Amber!

   — Só quero olhar.

O taxista suspirou e sacudiu a cabeça.

   — Eu espero aqui.

   — De acordo.

   — E eu fico com ele. — informou Alicia, desnecessariamente.

A Amber pareceu uma boa idéia. Se alguma coisa se movesse entre as sombras, a sua amiga daria um ataque de nervos. Caminhou pela calçada, viu uma escada que descia para uma porta e desceu pelo corrimão. Além da porta havia luz. Supôs que haveria um bar. A direção era correta.

Tinha descido dois degraus quando apareceram três meninos do fundo da escada.

   — Mmm, mmm, mmm. — disse um, olhando-a de cima abaixo, enquanto subiam para ela — Veio me buscar?

Ela inclinou a cabeça para observá-los.

   — Em seus sonhos, possivelmente. Estou procurando um clube chamado “The Iron Mili”. Conhece-o?

Os meninos se olharam. Ela pôde ler suas mentes com claridade. O clube tinha fechado uns anos antes.

   — Claro. Encontraste-o. Está justo aí. Vamos, acompanho você até lá.

   — Sim, claro. — disse ela, sacudindo a cabeça. Deu-se a volta para subir os dois degraus de novo, mas os meninos a rodearam, e um deles a agarrou pelo peito e a pressionou a seu corpo.

   — Não me dê as costas, neném. Isso não é nada amável.

A Amber subiu o coração à garganta, mas manteve o controle de sua voz.

   — De verdade? De acordo, se insistir.

   — Isso está melhor. — disse ele, lhe acariciando o pescoço enquanto o dizia.

   — Não. Para ti não.

Amber deslizou a mão para trás para lhe agarrar a cabeça e o lançou por cima de seu ombro. Os outros dois tentaram detê-la, mas lhes deu um chute a cada um e os mandou rodando pelas escadas. Então saiu correndo para o táxi. Alicia a estava esperando a meio caminho entre a escada e o veículo, com uma garrafa quebrada na mão. A tímida Alicia, pálida como a neve, aterrorizada, com os olhos tão abertos que Amber pensou que alguém poderia cair dentro.

Sua amiga estava a ponto de meter-se na briga para defendê-la.

   — É a melhor, sabia? — disse-lhe.

   — Está bem? — perguntou-lhe Alicia. Sua voz tremia.

   — Claro que sim. — lhe tirou a garrafa da mão, atirou-a a um cesto de papéis e depois olhou para o táxi.

O taxista ainda estava dentro, colocando algo brilhante e metálico sob seu assento. Aquele rapaz tinha uma arma, e embora não tinha saltado a defendê-la, Amber não acreditava que ele teria deixado a matassem, tampouco. Estava lendo seus pensamentos quando notou que havia alguém mais.

Voltou-se, olhando para o outro lado da rua.

Havia um homem alto metendo-se em um carro. Resultava-lhe familiar, mas Amber não sabia exatamente por que.

   — Quem é? — perguntou Alicia.

   — Não sei. Parece... Estou segura de que o vi antes.

Alicia franziu o cenho.

   — Crê que iria ajudar?

   — Essa foi minha primeira impressão.

   — A minha também. — disse Alicia — Hmm... Entretanto, as pessoas dizem que os nova-iorquinos não fazem essas coisas. Já sabe, envolver-se. Tentar ajudar aos outros.

   — Possivelmente as pessoas estejam equivocadas.

   — Possivelmente.

O carro negro do homem passou perto delas enquanto se afastava. As janelas estavam com insulfim, assim não puderam vê-lo.

Alicia abriu a porta do táxi e entrou. Pegou a lista, que tinha caído no chão, e a passou ao condutor enquanto Amber entrava também.

   — Queremos ir a uma discoteca decente por uma zona agradável. Poderia recomendamos alguma?

   — Não tiveram suficientes emoções para uma noite, nem sequer agora, não é? — disse ele, e assentiu — Feche as portas. — disse. Depois repassou a lista, murmurando — Fechada, fechada, cheia de prostitutas, fechado... Ah, esta. Esta está bem.

Amber fechou a porta e viu que os três meninos ajudavam um ao outro e começavam a andar, coxeando, em direção contrária ao táxi.

Alicia pegou a lista que estava devolvendo o taxista.

   — “Starcrossed”?

   — Essa. Põem a música bem alta, há muitos meninos e garotas de sua idade e está em uma boa parte da cidade. É segura para vocês. Querem que lhes leve?

Amber tirou a lista a Alicia e encontrou o nome ao final.

   — Claro, por que não?

  

Will estacionou em uma esquina da qual veria o táxi quando partisse. Estavam em uma rua de um só sentido, assim teria que passar ao seu lado. Deixou o carro em marcha e ficou ali esperando, pensando no que tinha ocorrido.

A garota se defendeu como se fosse do exército.

Fechou os olhos e sacudiu a cabeça. Tinha-a visto sair do táxi e tinha pensado que não tinha sentido comum por ficar a passear por um lugar como aquele. Então, os três indivíduos estavam sobre ela, e ele tinha saído do carro tão rapidamente como tinha podido, com a intenção de lhes romper a cabeça. Tinha medo pela garota e estava furioso com os tipos. E, além disso, uma parte de sua mente estava pensando em quanto se zangaria o pai de Amber se ele permitisse que lhe ocorresse algo. Embora aquela não fosse a razão pela qual queria que ela estivesse segura. Ele era mais honrável que isso. Sua missão era razão suficiente. Sempre tinha sido. Mas, pela primeira vez, lhe ocorreu que se colocou em uma situação bastante acidentada. Caso fracassasse, duvidava que os parentes vampiros de Amber descansassem até que lhe tivessem feito pagar.

Até aquele momento não tinha pensado naquilo, principalmente porque o fracasso era algo que nem sequer tinha tido em conta. Ele nunca tinha fracassado em nenhuma missão. Entretanto, aquela era a primeira missão que aceitava desde que o tinham ferido. Ele não era o mesmo homem de antes.

Quando estava a meio caminho para a garota, ela tinha entrado em ação. Em um segundo, os três assaltantes estavam no chão, e ela se afastava correndo.

Recordou tudo o que tinha visto. A forma segura e confiante com que Amber se defendeu. Era evidente que tinha aprendido artes marciais. Além disso, seu pai havia lhe dito que era mais forte que as outras garotas. Assim, possivelmente, não era a estupidez o que a fazia bisbilhotar em partes perigosas da cidade, a não ser o excesso de confiança.

E aquele excesso de confiança, pensou Will, podia levar a uma pessoa a que a matassem.

O táxi passou a seu lado, e Will colocou a marcha e os seguiu a distância. Aquela garota ia lhe dar mais problemas do que ele tinha acreditado.

    

   — Está bem, está bem. Uma vez mais, admito que tinha razão. — disse Alicia, enquanto Amber e ela caminhavam entre as pessoas pela discoteca — Este lugar está genial! E pensar que estava a duas quadras do hotel...

Amber tinha todos os sentidos em alerta. Sentia... Algo. E sabia que não era a música nem todas as pessoas que dançavam a seu redor o que lhe produzia aquela estranha sensação no estômago.

   — Vamos dançar! — disse Alicia, deixando seu acanhamento de um lado por uma vez. Agarrou a mão de Amber até que encontraram um lugar na pista, entre a multidão, e começaram a dançar.

Amber disse a si mesma que tinha que relaxar-se. Seus pais tinham conseguido afetá-la, apesar de que pensava que estavam loucos. Ela os queria com toda sua alma, mas tinha que lhes demonstrar que já era uma pessoa adulta, segura de si mesma e forte, e perfeitamente capaz de sobreviver uma semana sem eles. Possivelmente quando o tivesse demonstrado, relaxariam um pouco. Sabia que o faziam porque a queriam, mas a estavam oprimindo.

Então, por que demônios estava perdendo a confiança em si mesma e sentindo-se nervosa e sobressaltada a todo momento? Provavelmente também tinha algo a ver com o fato de que, pela primeira vez em sua vida, não estava sob a asa protetora de papai e mamãe. Demônios, devia haver esperado por isso.

Como o homem da suíte ao lado, no hotel. Parecia um tipo completamente normal. Não tinha por que estar tramando nada mau só porque ela não podia ler bem seus pensamentos. Havia pessoas que eram naturalmente mais difíceis de acessar. E eles nem sequer sabiam. E só porque o homem que tinha visto antes no beco se parecesse com ele, não tinha por que ser a mesma pessoa. Lá fora estava escuro, e ele não estava perto de nenhuma luz. Era certo que ela via melhor que nenhum mortal, mas nem a metade do que um vampiro.

E, fora o que fora o que estava sentindo naquele momento, não era a ele. Não era uma ameaça, exatamente, era...

Deixou de dançar e ficou a estudar a multidão de gente que as rodeava. Alicia também se deteve e ficou olhando a Amber.

   — O que ocorre?

   — Há um vampiro na discoteca.

   — Não. — disse Alicia, e olhou também a seu redor — O que está percebendo, Amber?

   — É alguém muito velho. Poderoso. Acredito que é uma mulher.

   — Jesus, Amber, temos que sair daqui.

Amber olhou a sua amiga e viu o medo refletido em seu rosto.

   — Não acredito que tenhamos que nos preocupar muito.

   — Sim. Olhe. Amber, pode ser que você seja meio vampiro, mas eu não. E, nós duas sabemos que nem todos os vampiros são iguais. Alguns são maus. E alguns são... Assassinos. Quantas vezes seu pai disse que não nos aproximemos de um vampiro estranho?

Amber assentiu, suspirando. Uma vez mais, passeou o olhar a seu redor e não viu nenhum vampiro. A mulher devia estar fora de seu campo de visão.

   — Está bem. Voltemos para hotel.

Alicia suspirou também, mas de alívio. As duas se voltaram para ir para a saída, mas se toparam com o peito sólido de um homem alto e moreno, que caminhava com a ajuda de uma bengala.

Amber o olhou à cara e, de repente, soube. Era o mesmo homem que estava na suíte ao lado. Era o mesmo ao que tinha visto de longe no concerto da noite anterior, e era o mesmo que estava na rua em que a tinham atacado aqueles três meninos.

Estava-as seguindo.

Pegou a mão de Alicia, a espremeu, e lhe mandou uma mensagem com o olhar:

“Meus pais tinham razão.”

  

Sarafina não estava segura se o novo lugar que tinha encontrado ia ser melhor que os outros três que já tinha descartado. As luzes piscavam muito e a música estava muito alta. Ah, mas estava cheia de juventude, e aquela parte era perfeita. Possivelmente pudesse entrar nas mentes dos membros da direção, e convencer para que fizessem algumas mudanças...

Naquele momento, seus pensamentos se detiveram abruptamente, ao notar a alguém perto. Levantou a cabeça e olhou para a porta.

Duas garotas. Uma delas não era completamente mortal.

Sarafina entrecerrou os olhos e concentrou todos seus sentidos na garota. Entretanto, os sinais que recebia eram confusos. A garota tinha aroma humano, mas não precisamente. E emanava as vibrações de um vampiro, mas não exatamente. Tinha o antígeno, ou algo muito parecido.

O que era?

Um momento depois, apareceu um homem atrás delas. O proprietário da voz que tinha ouvido em sua cabeça. Willem Stone.

Como demônios a tinha encontrado ali?

Sarafina pegou suas coisas para sair correndo pela porta traseira. Entretanto, deu-se conta de que ele não estava procurando a ela. Não. Sua atenção estava concentrada nas garotas que acabavam de entrar justo antes dele. E, em um momento, chocou-se contra elas quando foram sair, fazendo todos os esforços possíveis para que a colisão parecesse acidental.

O que pretendia?

“Sei que está aqui, vampiro. Necessito que me ajude.”

As palavras soaram com claridade em sua cabeça. E, instintivamente, Sarafina soube que provinham da garota. Seu cabelo era como se o tivessem esclarecido em sangue, para conseguir aquele tom granada.

Sorrindo lentamente, Sarafina se relaxou em seu lugar. Possivelmente a noite resultasse divertida, depois de tudo. “E por que ia ajudar-te, menina?”

Observou o rosto da moça enquanto abria a mente para receber a resposta, caso, é obvio, a garota tivesse habilidade suficiente para ter recebido sua pergunta.

“Este homem está nos seguindo. Acredito que é do DIP.”

Sarafina franziu o cenho. Como era possível que aquela menina tivesse ouvido falar do DIP? Era certo que, embora a organização já não existisse, sim havia sobreviventes, agentes que seguiam levando a cabo seu perverso trabalho. Ela sabia bem. Mas, Willem? Não podia ser.

“E o que eles têm a ver contigo?”

Notou que a garota lutava por decidir se devia contar-lhe tudo ou não. Finalmente, baixou os muros que protegiam seus pensamentos, e Sarafina teve livre acesso a eles. Então, ficou sem fôlego. Deus, aquela era a garota. Sarafina tinha chegado a pensar que se tratava de uma lenda. Meio vampiresa, meio humana. Era o resultado de um experimento que e a DIP tinha levado a cabo muito tempo atrás, e o único exemplar de sua raça.

“Sai daqui, menina. Se ele seguir você, eu seguirei a ele. E, te prometo que não terá que preocupar-se mais por suas intenções.”

Ela sentiu a confirmação da garota, e viu como tomava a mão de sua amiga mortal e ambas saíam do local.

Sarafina observou ao Willem com o coração encolhido. Era possível que ele estivesse trabalhando para os caçadores de vampiros? E, se aquilo era certo, quanto tempo levava trabalhando para eles? Ele não seguiu às garotas. Em vez disso, foi coxeando até a barra, pediu uma taça e esperou a que a pusessem. Sarafina se relaxou. Deus, ela não podia acreditar que aquele homem pudesse querer algo mau, ou queria fazer dano aos de sua raça. Mais que isso, não queria acreditar que tudo o que ele significava para ela fosse uma mentira, algum truque mental que lhe tinham imposto na mente aqueles miseráveis.

Quando lhe serviram a taça, Will a levou aos lábios e a bebeu de um gole. Depois se deu a volta e se dirigiu para a porta. A Sarafina caiu o desgosto como uma laje sobre a alma. Entretanto, sabia o que tinha que fazer.

Cruzou o local e saiu atrás dele.

Will seguiu as duas garotas à distância. Não estava muito preocupado de perder as de vista. Tinha deixado cair à caneta dentro da pequena bolsa de Amber quando tinha fingido que se chocava com elas, assim podia seguir seu rastro com facilidade se o necessitasse. Entretanto, preferia não as perder de vista. Se se adiantavam muito, era possível que ocorresse algo e ele não pudesse chegar a tempo para ajudar.

E aquilo lhe chateava, porque justo durante um segundo, na discoteca, tinha estado seguro de que se se voltasse, veria a Sarafina. Não a tinha visto realmente, nem tinha ouvido sua voz. Mas a havia sentido. E se estava perguntando se aquela sensação só teria sido um desejo nostálgico de sua alma ou se realmente ela estaria sentada ao fundo das mesas, escrevendo em seu diário.

Não importava. Não tinha tempo de descobrí-lo. As garotas estavam uns metros na frente dele, caminhando rapidamente para o hotel. Estavam a umas duas quadras do edifício.

Amber se voltou a olhar, mas muito rápido. Quase parecia que sabia que ele as estava seguindo e que não queria que ele se desse conta.

Que demônios estava ocorrendo?

Sentiu uma carícia na nuca, tão ligeira como a de uma pluma, e ouviu uma voz.

   — Por que tem tanta pressa, Willem?

Ele se sobressaltou, porque não a tinha ouvido aproximar-se, e ele tinha a habilidade suficiente para ouvir qualquer coisa. Entretanto, recordou-se a si mesmo que Sarafina não era qualquer coisa e pensou que, provavelmente, todos os seus anos de treinamento não serviam para nada com ela. Deus, tinha-lhe gostado de ouvir sua voz. Fez com que sentisse uma estranha calidez pelo corpo.

Voltou-se pela metade, para não perder de vista às garotas.

   — Pareceu-me que sentia sua presença na discoteca.

Ela arqueou as sobrancelhas e sorriu.

   — De verdade? E então, por que foi embora?

Ele olhou em direção às garotas, que tinham avançado uma quadra.

   — Pensei que não queria que te incomodasse. — respondeu ele — Voltei várias vezes ao lugar aonde nos vimos... E nunca estava ali. Tenho suposto que não queria que te encontrasse.

   — Agora já me encontrou.

   — Por desgraça, este não é um bom momento.

As garotas estavam cruzando a rua. Logo estariam a salvo em sua suíte. E ele estaria na sua. Só.

   — Estive pensando em ti. — lhe disse ela, aproximando-se e lhe pondo a mão no peito — Queria ver você de novo.

Não podia levá-la a sua suíte. Ela veria a maldita equipe de vigilância, ou o ouviria, ou...

Oh, Deus, não podia apartar o olhar daqueles olhos. Eram negros, e estavam cheios de necessidade. De fome. Não podia lhe tirar a vista de cima. Nem tampouco queria. Deixou cair à bengala à calçada, passou-lhe os braços pela cintura e a grudou a seu corpo. E então, beijou-a.

Foi como se rompesse uma represa. Não tinha estado com nenhuma mulher desde antes que o capturassem, e desde que aquilo tinha ocorrido, tinha dúvidas sobre ele mesmo e se sentia menos homem por suas feridas. Entretanto, quando os lábios de Sarafina se abriram e seu corpo se apertou contra ele, esqueceu tudo aquilo.

Quando rompeu o beijo para tomar fôlego, o coração lhe pulsava desmedidamente no peito. Estava tão excitado que lhe doía. Mas não podia... Aquela noite não. As garotas...

   — Tremem-me os joelhos. — sussurrou ela — Abrace-me. Abrace-me, Willem.

Ele a abraçou com força, e ela apoiou a cabeça em seu ombro, movendo os lábios úmidos contra a pele de seu pescoço. Entrelaçou-lhe os dedos no cabelo e a acariciou.

   — Não posso fazer isto hoje, Sarafina. Deus, não sabe quanto o desejo, mas não posso...

   — Shhh... Não se preocupe. Deixa que Sarafina se ocupe de tudo. —disse ela. Ao falar, seus lábios se moveram e ele sentiu tanto desejo que acreditou que ia derreter-se.

Então, notou seus dentes. Não houve nenhum aviso. Ela se limitou a abrir a boca e mordeu com força. Atravessou-lhe o pescoço. Ele atirou para trás e tentou afastar-se, e era muito forte apesar da ferida de sua perna, mas ela o tinha bem agarrado. Mordeu com mais força e sugou, e ele sentiu que a dor o atravessava. Entretanto, imediatamente se transformou em prazer. Sua boca. Sua língua. Seus dentes cravados na carne.

Deus, era bom... Ela o estava bebendo, e lhe encantava aquela sensação, sussurrava-lhe que tomasse inteiro, que apurasse seu sangue.

E então sentiu que se deprimia. Não notou a calçada quando aterrissou. Não sentiu dor, nem calor, nem frio, nem nenhuma outra coisa exceto prazer.

Um carro apareceu junto à curva. O condutor saiu, aproximou-se dele e o arrastou até o assento traseiro. Sarafina entrou depois e se sentou a seu lado. Depois, o carro ficou em marcha.

Sarafina lhe acariciou a cara e o cabelo.

   — Não podia te matar. Não. A ti não, nem sequer embora... — suspirou e começou de novo — Necessito que me conte tudo o que você está tramando, Willem. E vai me contar isso verdade, carinho? — levou-se um dedo à boca, mordeu-se com uma presa e apertou para que brotassem umas gotas de sangue. Depois apertou o dedo ao Will contra os lábios.

Quando ele sentiu o líquido na língua, percorreu-lhe uma chicotada de calor e um pouco parecido a um orgasmo fez que se estremecesse. Agarrou aquela mão e a sustentou contra sua boca, lambendo todo o fluído, sentindo um prazer indescritível com cada gota.

Então, ela afastou a mão.

   — Sim. — me sussurrou — Vai me contar isso tudo. Vai explicar o que é esta conexão que existe entre os dois, e como me encontrou. E por que estava seguindo a essas duas garotas.

Ele pensou, naquele momento, que certamente faria algo que ela quisesse. E se perguntou por quê. Sarafina tinha rastros de lágrimas pelas bochechas. Então, fechou os olhos e já não sentiu nada durante um momento.

  

   — Oh, Meu Deus. Meu Deus. Meu Deus... Viu isso?

Amber puxou Alicia para afastá-la do cristal da entrada do hotel, mas no segundo seguinte, Alicia havia tornado a observar a cena. Amber a agarrou de novo e puxou com mais força.

   — Acredito que o matou. Meu Deus, matou-o! — disse Alicia. Tinha os olhos cheios de lágrimas.

A Amber lhe tinha secado a garganta. Aproximou-se da janela e olhou para a rua.

   — Não, não o matou. O levou com ela. Se o tivesse matado, o teria deixado aí jogado, não?

   — Não sei.

   — Sim o teria feito. O teria deixado aí. — repetiu Amber. Entretanto, ela tampouco estava muito segura. Nunca tinha visto um vampiro matar a ninguém. Estava tremendo — Sarafina. — disse brandamente.

   — O que?

   — A mulher se chama Sarafina. Não me há isso dito, mas eu o tenho lido claramente. Teremos que recordá-lo. Cabe a possibilidade de que... Dê-nos problemas.

   — Salvou-nos. — disse Alicia — Mas, Amber, por que ia levá-lo se ele estava vivo? Para que ia querê-lo?

   — Não sei. — respondeu Amber. Estava tentando tirar de cima o sentimento de culpabilidade que lhe pesava nos ombros — Não me importa. Ele nos estava seguindo, Alicia. Não podia estar tramando nada bom.

   — E como pode estar tão segura?

Amber apertou os lábios.

   — Está bem. Se quiser estar segura, vamos comprová-lo. — voltou a puxar sua amiga e a levou para o elevador — Vamos.

Quando chegaram a seu andar, em vez de ir a sua suíte, Amber se dirigiu para a suíte do lado. Amber girou o pomo e empurrou com o ombro até que a porta se abriu.

   — Deus, vamos nos meter em uma boa confusão. — sussurrou Alicia.

Amber a arrastou para dentro e fechou a porta atrás delas. Depois começou a procurar entre as coisas do homem. Não tinha muito. Um pouco de roupa no armário, uma pequena calculadora, sua bolsa de asseio e umas pastilhas em um frasco.

Então, viu dois caixas na mesinha de noite. Uma das duas tinha uns auriculares conectados.

   — Vê-o? — perguntou a seu amiga, assinalando. Alicia o olhou e sacudiu a cabeça.

   — Isto são artefatos de espionagem. Certamente pôs microfones em nossa suíte. — lhe explicou Amber. Tomou os auriculares e os pôs nos ouvidos. Ao acender o aparelho, ouviu uma voz masculina em sua própria suíte, e ficou geada.

   — Então, onde demônios estão essas garotas? Não deveriam ter chegado já?

   — Amber, não sei se... — começou a dizer Alicia, mas Amber elevou uma mão para lhe indicar que se calasse. Alicia abriu uns olhos como pratos e se aproximou dela para escutar — O que? O que ocorre? —sussurrou.

Amber lhe deu um dos auriculares e ela o pôs.

   — O chefe diz que as viu no vestíbulo. Estarão aqui em um segundo. Quer ter paciência?

   — Estou-me pondo doente de tanto esperar.

   — E o que outra coisa podemos fazer? Voltar para o quartel sem elas?

   — Estava pensando em lhes colocar um tiro na cabeça, jogar seus corpos à parte traseira da caminhonete, e depois ver quem se acordava e quem não.

   — Maldita seja. Tampouco sabemos com segurança se alguma das duas despertaria.

   — Nem sequer a híbrida?

   — Não se sabe. Por isso Stiles quer apanhá-la. Se deixarmos que nos volte a escapar, cortará nossa cabeça.

   — Não vai muito desencaminhado. Eu estava com o Stiles a primeira vez que teve em braços ao híbrido. Eu era um principiante. O bebê só tinha duas semanas.

   — Sim? E como era? Quero dizer, era... Repugnante?

Amber e Alicia se olharam nos olhos.

   — Não. Era um bebê normal. Nunca teria imaginado que não era humano.

   — Meio humano, acredito.

   — Stiles não pensa isso.

Amber atirou dos auriculares e os pôs na mesinha de noite.

   — Esse tipo que a Sarafina levou deve ser um deles. — disse a sua amiga.

   — Temos que sair daqui, Amber.

Amber apertou a mandíbula.

   — Sabe o que fizeram esses descarados a minha mãe? — sussurrou. Algumas das coisas que havia em cima da mesinha de noite começaram a vibrar, e os quadros das paredes se moveram ligeiramente — Vou matá-los. Vou matar a esses dois, e depois vou encontrar ao outro e o vou matar também, se é que essa vampiresa não o tem feito já.

Alicia tomou pelo braço e lhe disse só três palavras. Entretanto, em sua voz havia tanto medo que atraiu a atenção de Amber, e aquilo deteve a fúria que estava crescendo dentro dela.

   — Por favor, Amber.

Amber fechou os olhos e se controlou. A suíte deixou de vibrar.

   — Amber, eles não estão falando só de ti. Estão falando das duas. E eu não posso lutar contra eles, sabe. Se lhe apanharem, me matarão. Por favor, não o faça. Vamos a algum lugar seguro nos esconder, e chamaremos a seus pais para que venham nos procurar. De acordo?

Amber fechou os olhos e baixou a cabeça. Pela primeira vez em sua vida, sentia-se capaz de matar a alguém. Recordou as coisas que lhe tinha contado seu pai: ela tinha nascido em cativeiro, e depois aqueles homens tinham metido a sua mãe em uma tumba de cimento selada para que morresse, uma vez que tinham conseguido ao bebê que queriam.

   — Está bem. Tem razão. Mas temos que recordar o nome que mencionaram: Stiles. Vou ver-me as com eles. Juro-o...

   — Mas não esta noite. Agora não. Por favor. Amber, podemos ir embora daqui?

Amber olhou a sua amiga. Estava chorando.

   — Está bem, está bem. Vamos.

Pegou-a pela mão e foi com ela para a porta.

   — Mas têm a alguém vigiando no vestíbulo. Eles disseram.

Amber se mordeu o lábio.

   — Sim. Mas não se preocupe. Encontraremos uma maneira de sair daqui, de acordo?

   — De acordo.

Enquanto saíam, Amber tirou o móvel de sua mochila. Entretanto, pensou que, da mesma maneira que tinham intervindo sua habitação, poderiam havê-lo feito com o telefone móvel também. Voltou a colocá-lo na mochila. Teria que encontrar uma cabine para poder chamar a casa. Caminhou tão rápida e silenciosamente como pôde, mantendo a mente aberta para poder receber qualquer sinal de perigo.

Passaram por diante da porta de sua própria suíte, pela porta do elevador, e chegaram até a escada. Uma vez que passaram a porta, puseram-se a correr.

  

Sarafina instalou ao Willem Stone na melhor suíte de sua casa. Depois se sentou a seu lado e esperou que despertasse. Deveria havê-lo matado, mas não tinha podido fazê-lo.

Ela tinha muito pouco contato com os de sua espécie, sobre tudo desde que seu amado Dante a tinha abandonado. Mas inclusive ela conhecia a lenda de Amber Lily Bryant. E ela, mais que muitos outros, sabia que o DIP não tinha sido destruído por completo todos aqueles anos antes, quando os vampiros se rebelaram e tinham queimado o quartel por completo.

Stiles tinha sobrevivido. E depois tinha reconstruído uma rede de caçadores de vampiros. Tinham passado mais de dez anos, possivelmente treze, o qual era uma minúcia na vida de um vampiro, desde que aqueles miseráveis tinham tentado assassinar a Dante. Ela o tinha feito se arrepender então, e eles a perseguiam sem trégua.

E naquele momento, estavam atrás de Amber Lily, a única menina de sua classe.

Sarafina não permitiria que lhe pusessem as mãos em cima.

Entretanto, não podia acreditar que Willem, que estava sobre a cama de sua suíte, trabalhasse para eles. Podia ser certo, entretanto. Aquilo explicaria muitas coisas. Era evidente que tinham conseguido desenhar alguma maneira para meter-se em sua mente, e a tinham enganado para que viesse a Nova York introduzindo aquelas conversações em sua cabeça e aquele sentimento de proximidade com o Will em sua alma. Sabiam que iria para buscá-lo. Provavelmente, ela mesma era seu principal objetivo, e o fato de que Amber Lily tivesse aparecido em cena não tinha sido mais que uma coincidência afortunada para eles. Caso conseguissem dois troféus em vez de um, melhor para eles.

Sorriu lentamente, enquanto observava como Will despertava.

   — Não tem nem a mais mínima idéia de com quem está tratando, mortal. Não tem nem a mais mínima oportunidade de me vencer.

Ele abriu os olhos e piscou ao vê-la.

E, ela se debilitou de novo. Deus, cada vez que a olhava...

Deveria havê-lo matado, mas não podia. Em vez daquilo, tinha-o convertido em um escravo devoto. Quando despertasse por completo, seu único desejo seria serví-la e agradá-la. Ela detestava ter tido que lhe fazer aquilo, mas era muito tarde para voltar atrás. Ele tinha provado seu sangue, e já não tinha nenhuma possibilidade.

Era uma alternativa melhor que a morte.

Ele separou os lábios, e sua voz soou rouca e débil.

   — Sarafina?

   — Sim, carinho? — ela se inclinou para ele, observando-o, e esperando sua súplica. Rogaria-lhe que lhe permitisse servi-la.

   — O que... Que demônios me tem feito?

Ela entrecerrou os olhos.

   — Bebi seu sangue. — lhe disse, lhe acariciando a bochecha com as unhas — E depois te concedi a honra de provar o meu. E você adorou. Agora, o único que deseja é conseguir mais.

Ele se passou uma mão pela cara e fechou os olhos.

   — Estou muito débil.

   — Isso te passará, embora não por completo. Ao menos, até que eu não esteja segura de sua lealdade.

Ele baixou a mão lentamente, e olhou a seu redor. Depois cravou seus olhos nela.

   — Tenho que ir. — disse, e se incorporou na cama.

Sarafina franziu o cenho, pôs-lhe uma mão sobre o peito e o empurrou de novo para o travesseiro.

   — Não irá até que eu o diga. E, não terminei contigo ainda.

   — Então, o melhor será que termine já, Sara, porque tenho um trabalho que fazer. — ele afastou a mão de Sarafina sem contemplações. Não foi a carícia carinhosa e devota de um escravo, a não ser um roçar de impaciência e cólera. Então, voltou a sentar-se e moveu as pernas para o chão.

   — Deve ter muita pressa. — disse ela, e ficou de pé. Ficou frente a ele, enquanto ele apoiava a cabeça entre as mãos, como se, ao levantar-se tão depressa, enjoou-se — Não quererá que essas duas garotas lhe escapem, verdade?

Ele levantou a cabeça lentamente.

   — Não... Não sei do que está falando.

   — Sim, sabe. Sei o que pretende fazer com as duas garotas às que estiveste seguindo. Não acredite que é mais inteligente que eu, nem mais forte. Sugiro que relaxe, que volte a se deitar e que não me obrigue a matar você para terminar com tudo isto.

Ele ficou de pé.

   — Escuta, Sarafina, não sei que demônios pensa que é tudo isto, mas...

Ela o golpeou uma só vez, com o dorso da mão, e ele caiu violentamente sobre a cama.

   — Misty! Edward!

Quase imediatamente, a porta se abriu e seus dois leais serventes apareceram a seu lado.

   — Atem. Depressa.

Então eles o agarraram pelos braços, e ele resistiu e conseguiu atirá-los ao chão de um empurrão. Depois se levantou quase de um salto e pôs-se a correr para a porta.

Entretanto, Sarafina chegou primeiro, movendo-se a velocidade sobrenatural. Fechou a porta e ficou frente a ele. Will a agarrou pelos ombros e tentou apartá-la.

   — Meu Deus, Sara, que demônios está fazendo? Tornaste-te louca?

   — Não me desafie! — disse ela, e voltou a golpeá-lo, com todas as suas forças naquela ocasião.

O corpo de Will voou até o outro extremo da suíte e se golpeou contra a parede. Depois ele caiu ao chão, inconsciente.

Sarafina olhou a seus dois serventes, que estavam se levantando do chão.

   — Tragam as correntes. Quero que esteja encadeado antes que volte a si.

Eles se apressaram a obedecer, e Sarafina se aproximou do mortal.

   — Tem uma vontade de ferro, Willem. — lhe disse — Mas, embora me doa, conseguirei te submeter.

Abriu os olhos levemente e lhe lançou um olhar assassino. Seus lábios formaram uma só palavra. Não emitiu nenhum som, mas ela ouviu a palavra igualmente.

   — Nunca.

  

Amber e Alicia desceram correndo os intermináveis quarenta e seis lances de escadas. Não saíram ao vestíbulo, onde com toda probabilidade havia alguém as esperando, mas sim continuaram descendo até a garagem do porão.

Antes de entrar, deram uma olhada pela porta de cristal. Não havia ninguém à vista, e Amber tampouco sentiu nenhuma presença nem nenhuma ameaça. Abriram a porta e saíram à garagem. À direita havia uma rampa que subia até a rua.

Puseram-se a correr para ela. A entrada da garagem estava detrás de uma curva da entrada principal do hotel, o que era toda uma vantagem. Do vestíbulo, ninguém poderia vê-las sair. Soltaram-se as mãos e correram pela calçada em direção contrária ao hotel. As ruas estavam vazias àquela hora tão sombria do amanhecer, e Amber sabia que aquilo ia contra elas. Seria muito mais difícil localizá-las entre uma multidão.

Só depois de ter posto sete quadras de distância entre elas e o hotel, Alicia se voltou para Amber e lhe perguntou, ofegando:

   — Amber, aonde demônios vamos?

   — A casa de tia Rhi, em Long Island. Não... Espera, não posso pensar... Acredito que tenho sua direção na agenda. — procurou em sua mochila e encontrou o que procurava. Depois seguiram caminhando uns instantes, até que viram aproximar um táxi e o pararam.

   — Olá, bom dia. Queremos ir a esta direção de Long Island. — disse Amber ao taxista, enquanto lhe mostrava a agenda aberta — Pode nos levar?

O taxista arqueou as sobrancelhas.

   — Isso é uma boa carreira, daqui. Podem pagá-lo?

   — Acredito que sim. Aceita cartões de crédito?

   — Sim. E sempre é bem recebida uma gorjeta.

Desgraçado sarcástico, pensou Amber.

   — E quanto acredita que será?

   — Trinta e cinco, mais ou menos. Ela rebuscou sua carteira na mochila.

   — Tenho suficiente.

   — Então, vamos lá. — disse, e pôs o táxi em marcha.

Amber se apoiou no respaldo.

   — Nem sequer sei se a tia Rhiannon e Roland estarão ali. — disse, e olhou ao céu da manhã — E, se estiverem, não estarão acordados.

   — Então, como vamos entrar? — perguntou Alicia.

Amber tirou um envelope amarelo da bolsa e o abriu.

   — Lembra-te do kit de emergência de mamãe? Eu ri quando ela insistiu que o trouxesse. Nele está a direção da casa de minha tia, uma chave de sua casa, um frasco de spray de defesa pessoal...

   — Deu-te um gás?

O taxista as olhou pelo espelho retrovisor.

   — Isso é ilegal.

   — Que me prendam. — disse Amber, enquanto continuava revolvendo o conteúdo do envelope. Havia dinheiro extra, cartões de crédito e passaportes com nomes falsos — Deus Santo, qualquer um acreditaria que vamos escapar dos federais, ou algo assim.

   — É uma pena que não pusessem outro telefone móvel aí dentro.

   — Poderemos chamar da casa de tia Rhiannon. — prometeu Amber a Alicia. Entretanto, já estava desejando que lhe ocorresse um plano melhor que chamar a seu pai.

  

Will tinha um desejo. Uma necessidade vaga que lhe mordia nas vísceras com tanta força que o despertou com muita mais facilidade que a dor do pé.

Abriu os olhos lentamente e deixou que lhe enfocasse a visão. Não estava em sua cama. Sua cama não tinha os lençóis de cetim vermelho. Nem sequer estava em seu próprio apartamento, a não ser em uma luxuosa suíte. As paredes eram de cor marfim, e a carpintaria era de madeira escura. Fechou os olhos e tentou se localizar e pensar em algo além de sua fome insuportável. Sarafina. Sim, recordava-o. Ela era... Uma vampiresa. Incrível, mas certo. E ele a amava, e ela o... Tinha-o mordido. Tinha bebido dele...

Levou-se uma mão ao pescoço para apalpar as feridas, como se quisesse convencer-se de que realmente estavam ali e não eram só uma parte daquela loucura imaginária. Entretanto, a mão se deteve a meio caminho do o pescoço. Tinha o braço preso com um bracelete de metal que puxava de uma corrente. A corrente passava por uma arandela que estava cravada ao poste da cabeceira da cama. E o mesmo ocorria no outro poste. Não podia ver aonde iam às correntes dos postes. Desapareciam sob a cama.

Olhou-se os pulsos durante um momento, com um sentimento de incredulidade que se foi convertendo em outras emoções. Teria rido daquele absurdo se não estivesse tão furioso.

A porta da habitação se abriu lentamente, e ele levantou a cabeça. Por dentro, despertou algo como a impaciência, e sentiu que se excitava sem prévio aviso.

Desejava-a. Desejava-a tanto como sempre, ou possivelmente mais.

Entretanto, não foi ela quem entrou na habitação. Foi uma mulher pálida e desajeitada que levava uma bandeja de comida nas mãos. Depois de entrar, fechou a porta com o pé.

   — Onde está ela? — perguntou-lhe Will.

A mulher voltou a cabeça instantaneamente, com uma mescla de surpresa e medo no olhar. Tinha os olhos azuis, e umas profundas olheiras. Levava o cabelo loiro recolhido em um coque perfeito, e se vestia com um kaftán de cores brilhantes que intensificavam a palidez de seu rosto.

   — A senhora está dormindo. Não se levantará até o entardecer.

   — Então, suponho que pode me tirar estas correntes você mesma.

Ela se aproximou do Will com a bandeja, observando-o atentamente.

   — Não posso fazer isso, mas te trouxe sua comida. — disse, e deixou a comida sobre a mesinha de cabeceira.

Will a olhou com atenção. A expressão de seu rosto era vazia, e tinha um tom de voz estranhamente monótono. Estaria drogada?

   — E como vou comer, se estou preso desta forma?

   — Posso alargar as correntes. — respondeu ela.

Ficou de joelhos e começou a manipular algo que havia debaixo da cama. Houve um som, como se fosse o de um motor, e depois as correntes que lhe sujeitavam os braços à cama se alargaram.

Will puxou-as. Aquilo tinha sido um movimento estúpido por parte da mulher, pensou. Sentou-se na cama. Pôs-lhe a bandeja no colo.

   — Pode te mover livremente pela suíte. O banheiro está naquela porta. — lhe explicou — Pode tomar banho, se quiser. A senhora te deixou roupa limpa e cosméticos.

   — Oh, isso foi todo um detalhe por sua parte.

Ela sorriu fracamente.

   — Ela sempre tem detalhes. É amável e generosa. Eu a amo. — disse, e então fixou seu olhar no Will, e seu sorriso se desvaneceu — Com o tempo, você também a amará.

Ele sentiu que lhe encolhia o estômago, mas não lhe emprestou atenção.

   — Isso é interessante. Por que ia amar a alguém que me mantém encerrado contra minha vontade? Mmm? Por que você a ama?

Ela piscou, confusa.

   — Acredita que ela também te ama? É isso?

   — É obvio que sim.

Ele assentiu e deixou a bandeja a um lado. Levantou-se e se deu conta de que estava completamente nu. Que demônios, ele não era tímido.

   — Se tanto te ama, por que te disse que podia afrouxar as cadeias, sabendo que poderia te matar?

A mulher não se assustou, nem retrocedeu.

   — Sabe que morreria por ela se tivesse que fazê-lo e alegremente. Mas se me matas, prometo-te que se zangará muito quando despertar.

Ele ficou surpreso por aquela reação, por sua falta de medo. Embora lhe doesse intensamente o pé, aproximou-se dela e lhe rodeou o pescoço com as mãos.

   — Não te matarei. Não o farei se obedecer. Traz a chave e tire-me as algemas.

Ela o olhou aos olhos.

   — Não tenho a chave. — disse, no mesmo tom monótono.

   — Quem tem?

   — A senhora.

Ele apertou a mandíbula e tentou controlar-se.

   — Então, poderá tirar-lhe enquanto dorme.

   — Não. Não posso.

   — Eu sim posso te romper o pescoço. Você vai conseguir essa chave.

   — Não. Rompa-me o pescoço, se quiser. Para mim será igual. Não posso desobedecer à senhora.

   — Por quê? — perguntou-lhe ele, entrecerrando os olhos enquanto a olhava — Que classe de poder tem sobre você?

   — Não sei a que te refere. Eu amo a senhora. Servi-la é minha vida. E também será a tua. Já o verá.

Ela escapou brandamente de suas mãos, deu-se a volta, saiu da suíte e a fechou com chave por fora.

A fúria que Will sentia aflorou. Tomou um vaso de rosas que havia sobre a cômoda e o lançou para uma parede. Fez-se mil pedaços e a água esguichou e se estendeu por toda parte. As rosas caíram ao chão entre cristais.

   — Maldita seja, Sarafina! — gritou — Que espécie de jogo doentio está jogando? — entretanto, sabia que ela não poderia ouvi-lo. Puxou as correntes.

Prometendo-se que ia encarregar-se dela assim que a tivesse em sua frente. Proferiu maldições e insultos e jogou tudo que tinha as mãos contra as paredes, incluindo a comida. Não queria comer nada que lhe tivesse enviado. Provavelmente estava cheio da droga que tinha dado a seus serventes zumbis para mantê-los a raia.

Uma hora depois se sentou no centro da cama. A habitação estava destroçada. Tinha que acalmar-se. Ficou de pé de novo e examinou as cadeias que o amarravam. Ambas se afundavam em um buraco que havia debaixo da cama, e parecia que de ali podiam alargar-se ou cortar-se. Devia haver um motor no piso de abaixo. Não entendia como a faxineira podia dirigi-lo da suíte, certamente haveria alguém do outro lado.

As cadeias estavam bem soldadas, e o pequeno buraco era seguro. Não podia aumentá-lo, nem puxar mais as correntes. E tampouco podia tirá-las dos pulsos.

Ficou a explorar o resto da suíte, mas não lhe serviu de nada. Não alcançava as janelas nem a porta. Procurou possíveis defeitos para aproveitá-los e pensar em uma fuga. Olhou a seu redor para procurar algo que pudesse usar como arma, ou como ferramenta para liberar-se.

Não havia nada. Estava apanhado como um rato.

Entretanto, já tinha estado prisioneiro antes, e o tinham capturado homens peritos naquilo. Não se tinha escapado daquela situação só para permitir que uma mulher doente mental pudesse encantar sua alma e escravizá-lo. Conseguiria fugir.

Tinha a esperança que as duas meninas às que se supunha que tinha que proteger estivessem vivas quando o conseguisse.

Sarafina se levantou ao anoitecer e foi à habitação que estava justo debaixo da de seu cativo. Nela estavam os controles. Havia um torno hidráulico que podia enrolar as correntes e um monitor de vídeo para vigiá-lo. Também havia um botão escondido sob a cama, que podia apertar ou alargar as correntes.

Ela já tinha tido prisioneiros antes. Estava preparada para os serventes problemáticos. Entretanto, aquela era a primeira vez que tinha tido que usar os mecanismos de segurança que tinha idealizado no caso de alguma vez punha as mãos em cima ao Stiles ou a algum de seus companheiros do DIP.

Nunca tinha acreditado que Will seria uma pessoa perversa que merecia morrer. Ao menos, não até que Amber lhe tinha contado a verdade com respeito a ele.

Willem a tinha enganado. Tinha jogado com sua mente. Tinha conseguido ganhar seu carinho metendo-se em seu coração e em sua alma antes de aproximar-se dela pela primeira vez. E pior ainda, tinha conseguido que ela o quisesse.

Entretanto, só tinha estado utilizando-a, trabalhando para aqueles animais que queriam destruir a todos os vampiros.

Deveria havê-lo matado diretamente, mas não tinha podido fazê-lo. Possivelmente ele tinha estado usando a capacidade de manipular sua mente para conseguir que continuasse sentindo ternura por ele. Inclusive sabendo a verdade. Devia ser aquilo. Ele estava jogando com sua mente. E ela odiava a debilidade de sua alma que tinha permitido aquilo.

Ele estava passeando-se pela habitação, nu, procurando algum modo de escapar. Olhou-o durante um momento, desfrutando da visão de seus músculos fortes e de seu poder. Era um homem firme e duro. Um homem belo, apesar de sua claudicação e de todas as cicatrizes que lhe cobriam o peito e os braços. Tinha um peito e um estômago magníficos, e os ombros...

Ela apartou os olhos do monitor e apertou o botão do torno. O motor começou a trabalhar a ritmo lento, e ela voltou a olhar ao monitor. Viu que Willem se balançava e que resistia à força das correntes. Entretanto, não pôde evitar que se fossem apertando e rebocando-o até que caiu na cama e seus braços foram arrastados até os postes da cabeceira de novo. Ficou ali convexo, com a fúria refletida no semblante e os olhos cintilantes.

Queria matá-la, e ela sabia.

Chamou a Misty e ao Edward e foi com eles para a suíte. Ele continuava ali convexo e nu. Dirigiu-lhe um olhar assassino.

   — Olá, Willem. Sinto pelas correntes. Poderemos tirar isso muito em breve, prometo-lhe isso.

   — Ah, me alegro. — respondeu ele — Porque vou matar você no momento em que o faça.

Inclusive então, tão furioso como estava com ela, suas palavras não soaram sinceras. Sarafina se perguntou, por um momento, se ele seria tão incapaz de fazer dano a ela como ela era de fazer a ele. E se o era, seria real, ou seria devido ao efeito que seu próprio sangue tinha na cabeça de Willem?

   — Não. Não o fará. — lhe disse — Nós dois sabemos que não o fará.

Sarafina se aproximou da cama, mas não falou com ele, a não ser com seus serventes.

   — Você foi uma garota muito boa hoje, Misty. Vou-te recompensar agora.

   — Se você quer. — sussurrou Misty, mas tinha os olhos úmidos e famintos, e se lambeu os lábios com impaciência.

Sarafina se fez um corte no dedo indicador e se apertou um pouco. Quando brotou o sangue, o ofereceu a Misty, que se meteu o dedo na boca e sugou. Sara só lhe permitiu tomar umas quantas gotas, mas manteve o olhar cravado no Willem durante todo o tempo, e se deu conta de que ele também sentia a fome, o anseio. Via-o. Ele não podia apartar o olhar da boca de Misty, e Sarafina se deu conta de que lhe acelerava a respiração, só um pouco.

Retirou o dedo a Misty e o ofereceu ao Edward. Ele também sugou de seu dedo. Involuntariamente, Willem se umedeceu os lábios. Sarafina passeou o olhar por seu corpo, e viu que seu membro se endurecia de excitação.

Voltou a atirar do dedo.

Misty caiu de joelhos e começou a beijar os pés de Sarafina.

   — Obrigado, senhora. Como a quero.

Edward se limitou a inclinar-se. Pegou Misty pela mãe e puxou-a para sair da suíte.

Sarafina deixou que partissem e se sentou na borda da cama. Tirou-se uma tirinha do bolso e a pôs. Do contrário, a pequena ferida estaria sangrando durante toda a noite.

   — Assim é o sangue, verdade? — perguntou ele. Ela o olhou com as sobrancelhas arqueadas.

   — Acreditava que os tinha drogado, ou que lhes tinha lavado o cérebro de alguma forma. Mas não é uma droga, nem nenhuma técnica de controle mental. São viciados em seu sangue. Seu sangue os converte em serventes descerebrados, sem vontade própria. Meu Deus, e eu que pensava que te conhecia.

   — Não finja que você mesmo não está morrendo por prová-lo, Willem. Eu me dou conta.

   — Está usando a essas pessoas como se fossem animais.

   — São animais. Misty era uma prostituta e uma drogada, que maltratava a sua filha. Quando as encontrei, a menina estava quase morta. Ia vender a filha para conseguir mais droga.

   — E Edward?

   — Edward espancava a sua mulher. A última vez lhe deu uma surra tão grande que quase a matou. Ela queria deixá-lo, mas sabia que ele a mataria se tentasse. — disse Sarafina, e encolheu os ombros — Necessitava um novo chofer, assim...

   — O que lhe ocorreu ao anterior?

   — Era um pederasta, e já não agüentava o ter perto. Disse-lhe que se jogasse ao tráfico de uma estrada, uma noite, e o fez.

Ele assentiu enquanto a estudava com atenção. A expressão de sua cara era diferente. Queria saber mais.

   — Assim só faz escravos a aquelas pessoas que pensa que o merece. Possivelmente tenha algum tipo de moralidade deformada ainda.

Ela encolheu os ombros novamente.

   — Eu os converto em escravos... Ou em comida, a aquele que gosta. Sou uma vampiresa. Eles são mortais. É o ciclo natural. A moralidade ou a falta de moralidade não tem nada a ver com isso. É como quando um leão devora a uma gazela no Serengueti.

   — Tolices. O fato de que você te sirva de criminosos não é mais que um julgamento moral, Sarafina, embora um julgamento pervertido.

   — Parece-me mais entretido desta forma. É uma forma poética de justiça.

   — E você é o juiz e o jurado ao mesmo tempo.

   — E o verdugo, em ocasiões. Estou por cima deles. Sou como uma deusa entre os mortais, assim faço o que quero. Esta discussão tem algum objetivo?

Olhou-o aos olhos, e lhe sustentou o olhar. Ela notou que se encolhia por dentro. Por que ele sempre conseguia que se sentisse daquela maneira com apenas olhá-la?

   — Estava-me perguntando que crime cometi, Sarafina. Por que mereço isto?

Ela apartou a vista.

   — Você vai dizer que não tem feito nada para te merecer a prisão?

   — Nada que te pareça mau. A maioria das pessoas me considera um herói.

   — Eu não sou a maioria das pessoas, Willem. E você estava seguindo a duas garotas quando o encontrei.

Obviamente assombrado por aquela frase, ele a olhou.

   — Não sabia que as conhecia.

   — Não as conheço. Mas, inclusive eu protegeria a um de minha raça. Ao menos, em uma situação como esta.

   — O problema é que você não tem nem idéia de qual é a situação.

   — Não?

   — Contrataram-me para protegê-las, Sarafina. — disse ele, com um grande suspiro.

   — Quem?

   — Um vampiro como você. O pai de uma das garotas.

   — Um vampiro que contratou a um mortal para proteger a sua filha? De verdade, Willem. Estou segura de que pode inventar algo melhor.

   — Sarafina, estou dizendo a verdade. Olhe-me. Deus, você me conhece. Temos uma conexão... Ou a tínhamos.

Sarafina se obrigou a ficar de pé para separar-se dele. Não queria escutar suas mentiras. Havia uma parte dela que queria acreditar, e sabia muito bem aonde podia conduzi-la aquilo.

   — Você gostaria que acreditasse isso, verdade? Quer que pense que o que senti por ti era real, e que os laços entre nós são algo mais que um truque mental. Assim poderia me fazer todo o mal que quisesse. Poderia me seduzir, me convencer, ganhar minha confiança e usar toda essa vantagem para destruir a essas garotas. Ou pior ainda, para me destruir. Isso, tentaram homens mais fortes que você, Willem Stone. — disse, enquanto passava pela suíte — Infelizmente para ti, vivi o suficiente para saber que qualquer um que diz que te quer tem uma faca escondida às costas, e só está esperando para lhe cravar isso Eu confiei em ti, ingenuamente, porque pensei que era um espírito. Meu anjo do guarda. —fechou os olhos e sorriu com amargura — Deveria ter tido mais senso comum.

   — Só porque eu seja um homem e não um espírito, não tenho por que ser um mentiroso, Sara. O que nós tivemos foi real.

Ela se voltou para ocultar as lágrimas que lhe enchiam os olhos.

   — Onde aprendeu este jogo que estava jogando comigo? É um truque mental? Aprendeu-o de seus captores naquelas terras do deserto?

   — Não.

   — Então, onde?

   — Não é um truque, Sarafina. Não sei por que conectamos assim. Mas você... Você estava ali aonde eu ia quando a tortura era muita para que eu a suportasse. Você foi meu refúgio.

   — Cale-se!

   — Quando a dor era insuportável, fechava os olhos e buscava você. E sempre te encontrava ali. Olhava em teus olhos e estava com você. Dentro de ti. De alguma forma, mas também fora. Sentia tudo o que você sentia e podia ouvir seus pensamentos. Entretanto, também podia ver você.

   — Mentiras. Tudo são mentiras.

   — Quando me escapei, não pude voltar a te encontrar de novo. Tentei tudo, mas só o consegui quando me desesperei para ver você de novo e estava a ponto de me voltar louco. Tombei-me na cama e me dei um golpe no pé ferido com a bengala. Funcionou. A dor foi suficiente. Encontrei-te de novo.

   — Cale-se!

Ele ficou silencioso, mas só durante um instante.

   — É certo. Queria encontrar àquela garota cigana da qual tinha me apaixonado. Queria saber o que tinha sido dela.

Ela tragou saliva para tentar desfazer o nó que tinha na garganta. Doía-lhe a alma.

   — Foi a única coisa que me manteve com vida durante aqueles meses nos que estive naquela caverna, sofrendo torturas. Diga-me que essa garota inocente ainda vive em você. Diga-me que não se converteu em um monstro sem alma nem consciência.

Ela se voltou para olhá-lo.

   — Se acredita que esses homens das cavernas do deserto lhe torturaram, Willem, será melhor que pense novamente. — disse ela. Pegou-o pelos ombros e lhe levantou a parte superior do corpo — Eu conseguirei que aquela dor empalideça!

Então se inclinou para ele e lhe afundou as presas no pescoço. Quando o provou, Sarafina se perdeu em sua mente.

Willem puxou as correntes que o aprisionavam, mas não estava seguro se queria empurrá-la para tirar-lhe de cima ou queria abraçá-la para grudá-la a seu corpo. Ao sentir sua boca no pescoço, e aquela sucção suave, sem poder evitá-lo, Will arqueou o pescoço para ela. Deixou que bebesse dele. Não lhe importava, se com isso se aproximasse mais a ele.

Como se lhe estivesse lendo o pensamento, ela deslizou seu corpo sobre o de Will e se deitou em cima dele. Inexplicavelmente, liberou sua garganta e o beijou. Ele deixou que sua boca e sua língua fizessem o que suas mãos não podiam fazer. Fez-lhe amor com a boca, e sentiu que tremia dos pés a cabeça ao fazê-lo. Provou suas lágrimas, e soube que suas ameaças eram só uma atuação, um mecanismo de defesa que se havia posto em marcha por causa da dor e das traições do passado.

Ela ficou esparramada sobre ele e com uma mão se retirou as saias para trás, ao redor dos quadris. Ele não podia vê-la, mas sentia sua carne nua contra o corpo. Quando desceu sobre ele, Will gemeu e arqueou os quadris. Eram o céu e a terra mesclados e confundidos em sua mente. Desejava-a e a amava, tanto como sempre a tinha querido.

Ela se levantava e baixava sobre ele com tanta força que o fazia dano, mas o prazer era tão intenso que não se importava. O êxtase e a dor se voltaram imprecisos em uma sensação alucinante, muito potente para poder identificá-la.

O orgasmo o sacudiu até o último pedaço do corpo. E quando as ondas se desvaneceram, deu-se conta de que lhe tinha metido o dedo indicador na boca, e de que ele estava sugando como um viciado na nicotina sugando de um charuto.

Ele afastou a cabeça e tirou o dedo da boca. Só quando Sarafina afastou a mão, olhou-a à cara. Ela não estava olhando a ele, mas sim tinha o olhar perdido. Estava ensimesmada, como se alguém lhe tivesse dado um forte golpe na cabeça e estivesse vendo as estrelas. Esperava que fosse assim como se sentia, porque era como se sentia ele mesmo, e não queria estar ali sozinho.

   — Sarafina. — lhe sussurrou — Senti tudo o que você sentiu. — lhe disse, e voltou a arquear-se contra ela, ainda em seu interior, lhe causando uma deliciosa fricção que fez com que ela fechasse os olhos e se estremecesse de satisfação — Deus, ainda sinto. — disse Will.

   — Shhh.

   — Mas, Sara...

Apertou-lhe o índice sobre os lábios para sossegá-lo. Ali ficou uma gota escarlate, e ele não pôde evitar lambê-la.

— Dorme, Willem. Durma e deixa que o elixir de meu sangue faça seu trabalho. Uma vez que o tenha feito... — a ela caiu uma lágrima pela bochecha — Uma vez que o tenha feito, não voltará a mentir para mim.

Ele estava cansado, como se lhe tivessem colocado um peso em cima, apesar de que ela havia se levantado.

   — Não funcionará, Sarafina. Comigo não. Eu nunca me converterei em um dos descerebrados que tem aí, te obedecendo sem questionar nada. Comigo vai ser diferente.

   — Silêncio. — disse ela, enquanto se colocava a saia. Depois, inclinou-se para ele para beijá-lo de novo.

Quando se incorporou, lhe disse:

   — Já é diferente comigo. Você te está afundando em mim tanto como eu em você, verdade?

   — Durma. — lhe ordenou ela, enquanto se voltava para a porta.

Entretanto, Will viu que estava chorando. As lágrimas lhe corriam pelas bochechas como rios. E, quando se afastou dele, um soluço lhe retumbou no peito.

  

Rhiannon gostava muito dos adiantamentos modernos, ao contrário do Roland. Gostava de viajar de avião, sempre que encontravam um vôo noturno que não os expusesse à luz do sol. Gostava dos carros rápidos, embora Roland tivesse fobia. Gostava das peles, as jóias, a roupa, e a música e a arte. E as viagens.

Roland tinha poucas paixões. Uma delas era, é obvio, Rhiannon. E outra era seu querido Jameson. Era como um filho para ele, embora Rhiannon pensasse que o jovem merecesse uma boa surra em mais de uma ocasião desde que o tinham conhecido. E aquela era uma dessas ocasiões.

   — Sinto muito que Amber Lily não esteja aqui para ver vocês. — disse Jameson enquanto abraçava ao Roland, lhe dando tapinhas nas costas.

   — Não importa. O certo é que não advertimos vocês que passaríamos por aqui de visita. Estamos a caminho de casa de volta do Havaí. Cruzamos o país de noite, em um dos malditos carros de minha querida Rhiannon. É obvio, não íamos passar por aqui e não saudar vocês.

Rhiannon escutou como Roland explicava ao Jameson os detalhes de seu cruzeiro. Entretanto, tinha os olhos fixos na doce Angélica durante todo o tempo. Esperou que Roland fizesse uma pausa na conversa, e perguntou:

   — O que significa que Amber Lily não esteja aqui?

Angélica suspirou e afastou o olhar.

   — Eu fui contra, Rhiannon.

   — Tenho que dizer que este lugar que vocês encontraram é maravilhoso. — disse Roland, como sempre tentando apaziguar as coisas.

   — É uma mansão escura, isolada e antiga na costa nebulosa e úmida do lago Michigan. — apontou Rhiannon — É obvio que você gosta. E agora, se não se importarem, podem dizer onde está minha preciosa sobrinha?

   — Alicia e ela estão celebrando o fim da escola. — explicou Jameson — Foram passar uma semana em Nova York.

Ela piscou lentamente. Apertou os punhos tanto que quase se cravou as unhas nas palmas.

   — Sozinhas?

   — Rhiannon, eu sou seu pai. Conheço-a. E confia em mim se te digo que, se não tivéssemos deixado que fosse, teria escapado.

   — E, ao menos, não poderia ter esperado que eu estivesse em casa para vigiá-la?

   — Rhiannon, estou seguro de que Bryant e Angélica sabem o que é melhor para sua filha. —disse Roland, embora ela sabia que tinha suas dúvidas.

   — Angélica já deixou claro que ela não estava de acordo com a idéia. —replicou Rhiannon — É evidente que ainda não aprendeu ser firme.

   — Ou, possivelmente, é que confio no bom julgamento de meu marido. — lhe soltou Angélica, enquanto saía da sala.

   — Que bom julgamento? — disse Rhiannon, disposta a segui-la.

Jameson se interpôs em seu caminho antes que Rhiannon pudesse ir atrás de sua esposa.

   — Tranqüila, princesa. — disse a Rhiannon — Não sou tão parvo como acredita. Ao fim e ao cabo, os vampiros me criaram. Conceda-me um pouco de confiança quando te digo que Alicia e Amber estão seguras. Contratei alguém para que as vigiasse.

Rhiannon arqueou as sobrancelhas.

   — Quem?

Angélica voltou a entrar na sala com uma revista na mão, e a lançou a Rhiannon.

   — Ele.

Rhiannon olhou a capa da Time. A cara enrugada de um homem, com o fundo de uma bandeira americana, devolvia-lhe o olhar. Ela a olhou com atenção e depois voltou a olhá-los.

   — Um mortal? Vocês deixaram a segurança de minha sobrinha nas mãos de um mortal comum? Por acaso a chuva constante deste lugar abrandou seu cérebro, Jameson?

   — Este homem não é um mortal comum, Rhiannon. Leia o artigo.

   — Como se tivesse tempo de ler, agora que minha preciosa Amber Lily está sozinha em Nova York. Stiles e seus capangas estiveram perseguindo-a durante toda a vida.

   — Não sabem como ela é. Além disso, ela nos chama todas as noites por telefone.

   — E chamou hoje?

Jameson olhou a Angélica, que olhou o relógio.

   — Chamem. — disse Rhiannon.

Quando soou o telefone móvel em sua mochila, Amber Lily se assustou tanto que deu um salto.

Alicia e ela tinham passado o dia metidas na casa de sua tia Rhiannon, em Long Island. Naquele lugar tinha de tudo. Uma sauna, um salão especial com cinema em casa, Internet a toda velocidade e todo tipo de filmes e de discos.

Estavam provando alguns vestidos de Rhiannon, justos e compridos até o chão, com decotes pronunciados e altas aberturas nas saias, quando soou o telefone.

As duas garotas ficaram imóveis, em silêncio, e se olharam nos olhos.

Soou de novo, e Amber correu para a mochila, abriu-a e começou a procurar. Tirou o telefone e olhou a tela.

   — É de casa.

Alicia suspirou aliviada.

   — Deve ser sua mãe. Ainda não a chamamos.

   — Mas, não porque não o tenhamos tentado. — replicou Amber — Não é culpa minha que meus pais durmam durante o dia, e que sua mãe foi a algum lugar. E este não é exatamente o tipo de notícia que se possa deixar na secretária eletrônica.

   — Não vai responder a chamada? —perguntou Alicia, enquanto o telefone seguia soando.

   — Não. Já pensamos que é possível que tenham grampeado o telefone, ou possivelmente tenham alguma forma de localizar a chamada. Vamos ligar do telefone de tia Rhiannon.

   — Bem pensado.

Amber pendurou o móvel e as duas foram para o telefone do salão. Dali, Amber marcou o número de sua casa.

   — Amber? — respondeu sua mãe, nervosa.

   — Sim, mamãe, sou eu. Perdoa que não tenhamos respondido antes. A cobertura neste lugar vai e vem, sabe?

Alicia franziu o cenho, olhando-a, e Amber tampou o auricular com a mão e lhe sussurrou:

   — Não há nenhum motivo para assustá-los sem necessidade.

Alicia sacudiu a cabeça e suspirou. Depois se apoiou no respaldo de sua poltrona.

   — Me alegro muito de ouvir sua voz e de saber que está bem. E... —ouviram-se vozes ao outro lado da linha, e depois — Oh, por Deus, está bem! Amber... Sua tia Rhiannon está aqui. Quer falar contigo.

Amber olhou a Alicia.

   — Tia Rhiannon está aí?

   — Sim, um minuto. Agora, espere.

   — Amber? Onde está, carinho? Está bem? Amber se umedeceu os lábios.

   — Estou bem, no momento. Escuta, não diga nada que possa assustar a mamãe, de acordo?

Houve uma pausa. Amber imaginou a cara de sua tia com toda claridade. Imaginou preocupada, mas dissimulando-o com facilidade. Era tão preparada... Deus, de todas as mulheres que conhecia, vampiresas ou mortais, ela era a que mais admirava. Era possível que, depois de tudo, não tivesse que lhe confessar a seu pai o que tinha ocorrido.

   — É óbvio, meu amor. Por favor, me conte todas suas aventuras.

   — Estamos bem, de verdade. — disse Amber, contente de poder contar a alguém o que estava ocorrendo, além de seus pais, que reagiriam exageradamente. Sempre faziam isso. — Mas alguém entrou em nossa suíte do hotel, e acreditamos que puseram microfones.

   — Sim, estou de acordo. O Metropolitan Museum é espetacular. E o que fizeram depois?

   — Acreditamos que estavam nos seguindo. Então nos encontramos com uma vampiresa e, embora saiba que não devo me misturar com aqueles vampiros que não conheço, ela nos ajudou, tia Rhiannon. De fato, recordava-me um pouco você.

   — Seu nome?

   — Sarafina.

   — Ouvi falar dessa atriz. É uma ermitã. Uma solitária. Dizem que tem um temperamento muito forte.

   — Possivelmente, mas nos tirou de cima ao tipo que nos estava seguindo. Não queríamos voltar para o hotel, assim viemos para sua casa. Estamos aqui, agora.

   — Ah, uma boa escolha. Estão cômodas aí?

   — Cômodas e seguras. Ninguém sabe onde estamos.

   — Bom, me alegro de ouvi-lo. Acredito que deveriam continuar com esse plano.

   — Quer dizer que fiquemos aqui?

   — Exatamente, carinho. Roland e eu chegaremos no primeiro vôo, e iremos ver vocês assim que estejamos aí.

   — Obrigado, tia Rhi. Prometo a senhora que não sairemos daqui até você chegar.

   — Muito bem, carinho.

Rhiannon estendeu o auricular a Angélica para que pudesse falar com sua filha, e se voltou, perguntando-se se devia trair a sua querida Amber ou partir rapidamente para Nova York. Observou ao Jameson e a Angélica, enquanto juntavam as cabeças para aproximar-se do auricular para falar com sua filha, sorrindo, tranqüilizados pelo que lhes estivesse contando Amber. Deus, Amber Lily conhecia muito bem a sua mãe. Jameson era igualmente duro que qualquer vampiro que tivesse dez vezes sua idade, mas Angélica era frágil. Como Rhiannon, tinha estado presa, e durante aquele fechamento, os agentes do DIP a tinham usado como rato de laboratório, fazia muito tempo. Entretanto, ao contrário dela, Angélica tinha saído daquela experiência danificada e rota, com feridas que nunca curariam.

Amber Lily tinha razão ao querer proteger a sua mãe não lhe dizendo a verdade. Possivelmente Rhiannon devesse apressar-se em voltar para casa e escoltar pessoalmente a Amber e a Alicia quando voltassem para sua mansão à beira do lago.

Depois, ocuparia-se do que as tinha assustado.

Rhiannon estava segura de que era o melhor que podia fazer. Angélica não precisava sofrer um medo horrível por sua filha. Já tinha sofrido suficiente. Aquela tenra vampiresa não sobreviveria de novo a uma tortura como aquela.

  

   — Não posso acreditar que você não disse a sua mãe o que está ocorrendo. — disse Alicia, com seu tom mais irado, depois que Amber terminasse de falar com Angélica — E nem sequer me perguntou se eu queria falar com a minha!

Amber se sentia um pouco culpada por aquilo.

   — Ela não estava. Mamãe e papai lhe deram de presente um fim de semana em um balneário enquanto nós não estávamos. Por isso não respondia hoje ao telefone.

   — Mas, talvez tivessem podido te dar algum número de telefone onde localizá-la. E você nem sequer perguntou!

   — Olhe, Alicia, se falasse com ela, terminaria contando-lhe tudo. Sabe que o faria. E então, todos eles viriam nos resgatar como se fossem a cavalaria vampira, com sua mãe e a minha assustadíssimas sem que realmente houvesse motivo.

   — Que não há motivo? O que você está dizendo? Temos um problema bem grande, Amber. Ou é que você não percebeu? — perguntou-lhe Alicia, caminhando pela suíte, enquanto passava a mão pela juba platinada.

Amber ficou onde estava, confortavelmente sentada em uma poltrona de pele.

   — Não temos problemas. Estamos seguras. Rhiannon e Roland estão a caminho, e eles nos mandarão para casa a salvo.

   — Bem. Você se deu conta de que horas são? Rhiannon e Roland não chegarão aqui antes do amanhecer, e estaremos sozinhas durante outro dia inteiro.

Amber suspirou.

   — Alicia, não se preocupe. Estamos a salvo. Ninguém sabe que estamos aqui, exceto Rhiannon, e ela não vai dizer nada. Ficaremos aqui durante o dia, e não acontecerá nada.

Alicia se deixou cair no sofá.

   — Entretanto, sigo acreditando que deveríamos haver dito a verdade a seus pais. No caso de...

   — No caso de que? De que estejamos em perigo de verdade?

Alicia a olhou muito seriamente, assentindo.

   — É que não entende, Alicia? — perguntou-lhe Amber — Se estivermos em perigo de verdade, então é inclusive pior que nossas mães se inteirem. É melhor que fiquem em casa, a salvo, tão longe desta confusão como é possível. Não quero que ocorra nada a minha mãe, Alicia. Já passou coisas suficientes por mim.

Alicia suspirou, e não seguiu discutindo. As duas sabiam que ela tampouco queria que ocorresse nada a sua mãe. Amber se levantou da poltrona e se sentou a seu lado. Deslizou-lhe um braço pelos ombros e a atraiu para si, para que Alicia apoiasse a cabeça em seu ombro.

   — Antes que passe outra noite, estaremos em casa a salvo, dormindo em nossas camas, Alicia. Prometo-lhe isso. Vamos, vamos dormir um pouco. Nós duas necessitamos.

   — Está bem.

As duas se levantaram e foram ao armário de tia Rhiannon. Voltaram a deixar os vestidos em seus lugares e colocaram o pijama. Depois se aconchegaram na enorme cama de sua tia.

Estavam profundamente adormecidas quando, horas depois, algo chocou contra a porta principal.

    

Fechou os olhos e se jurou que, ao amanhecer, deixaria-o livre. Ele não era como outros escravos. Não era como nenhum outro homem ao que ela tivesse conhecido. Willem Stone não podia ser submetido. Embora, antes daquilo, teria que localizar à garota e a seu amiga mortal e, se era necessário, as acompanhar a sua casa pessoalmente. E depois, deixaria-o livre.

Porque a única alternativa que tinha era matá-lo, e Sarafina sabia que era incapaz de fazê-lo. Não importava o mal que ele tivesse realizado, nem o que queria realizar. Ela não podia matá-lo.

Por quê? Sarafina se fazia uma e outra vez a mesma pergunta. Como era possível que se deixasse levar por aquela onda de paixão que lhe tinha provocado? Quanto tempo fazia que não permitia a nenhum outro homem que a beijasse? Desde Bartrone. E nem sequer com ele havia sentido a fúria explosiva que tinha sentido com o Willem.

Fez algo mais que beijar ao Willem. Tinha-lhe feito amor, tinha alcançado o clímax com ele, e quando tinha descido da cama, nem sequer sabia se as pernas a sustentariam. Deveria ter tido mais senso comum. Em sua raça, a paixão combinada com a luxúria do sangue se completava uma à outra.

Poderia havê-lo matado.

E naquele momento, enquanto recordava tudo em sua suíte sob a casa, ainda estava chorando. Jurou-se que nunca permitiria a nenhum ser vivo que a fizesse chorar de novo. E, entretanto, não tinha cumprido sua promessa.

Tinha cometido um grave engano ao levá-lo ali. Ele tinha um poder incompreensível sobre ela, e Sarafina o temia.

    

Will sabia exatamente o que tinha que fazer. Depois de que Sarafina se fosse, as correntes se afrouxaram de novo. Apareceu Misty com roupa e uma bandeja de comida, e ele a saudou agradavelmente. Depois se vestiu e comeu.

Não havia razão para não fazê-lo. A comida não continha droga. Era o sangue de Sarafina o que drogava a seus prisioneiros, e ele já o entendia. O que desejava com tanta profundidade era a ela. Era como um buraco em suas vísceras, que só ela poderia encher. Entretanto, nunca lhe permitiria que possuísse sua alma como possuía a de Misty e a de Edward. Ele não se submeteria.

Estava seguro de que Misty tinha recebido ordens de observá-lo para logo lhe dar um relatório a sua ama, assim comeu aquele delicioso café da manhã com rapidez, com uma expressão de atordoamento na cara. De vez em quando, sorria fracamente para lhe agradecer à mulher a comida.

Quando terminou, ela recolheu a bandeja. Já não estava assustada de aproximar-se dele.

   — Me alegro de ver que te encontra melhor, Willem. Disse a você que tudo iria bem. Nossa senhora nos quer. E a você, mais que a nenhum outro, acredito.

   — Por que pensa isso?

Ela encolheu os ombros.

   — Estava chorando quando saiu e foi dormir. Nunca tinha visto a senhora chorar. Ao princípio pensei que você lhe tinha feito mal de algum jeito, mas quando o perguntei, esteve a ponto de me cortar a cabeça. Disse-me que se Edward ou eu lhe machucasse, embora só fosse um cabelo da cabeça, passaríamos o resto de nossas vidas lamentando-o.

Ele assimilou tudo aquilo, sabendo que era uma loucura por sua parte pensar que Sarafina podia seguir tendo algo da garota que tinha sido. A moça pela que apaixonou quando só era uma voz em sua mente.

Fechou os olhos enquanto recordava o que tinha passado entre eles aquela noite. Ela se tinha alimentado dele como se fora uma presa que tinha caçado. Depois o tinha tratado como se fosse um brinquedo sexual que tinha comprado para se satisfazer.

Entretanto, quando o tinha beijado... Tudo tinha mudado.

Seus movimentos ficaram lânguidos, tenros. Will sentia tudo o que ela estava experimentando, e acreditava que ela também sentia o que ele experimentava. Deu-se conta pela forma em que ela o tinha tomado com mais profundidade quando ele necessitava mais profundidade, e pela forma em que ela se moveu mais e mais rápido quando se aproximava do êxtase. E quando ele tinha explorado dentro de seu corpo, ela o tinha seguido. Will havia sentido seu clímax estremecedor com tanta força como tinha sentido o seu. E ela seguia beijando-o.

Amando-o.

Ele o havia sentido.

Ou, possivelmente fosse o poder de seu sangue, lhe infundindo sua magia escura na alma?

Nunca tinha experimentado um sexo tão intenso. Nunca.

E, apesar de tudo o que tivesse ocorrido, desejava-a de novo.

Misty o deixou sozinho, mas voltou algo mais tarde com alguns livros para ele. O dia passou lentamente.

Quando chegou a noite, ele sentiu que Sarafina se aproximava. Não a ouviu, mas notou que estava indo a ele.

Possivelmente fosse certo que seu sangue realmente tinha efeitos sobre sua anatomia.

      As correntes não se apertaram para aproximá-lo da cama. Parecia que os serventes tinham informado a Sarafina de sua mudança positiva de atitude.

A porta se abriu, e ela apareceu vestida com uma bata vermelha de cetim. Nem sequer se tinha arrumado ainda. Ele esteve a ponto de sorrir, pensando que possivelmente ela queria repetir a noite anterior. Entretanto, imediatamente se forçou a manter uma expressão abobada e, simplesmente, ficou olhando, fingindo que a adorava sem pensar, tal e como faziam seus mascotes.

   — Minha preciosa senhora. — disse, com a voz suave — Estive muito só sem você.

   Ela piscou, assombrada, embora lhe parecesse que via a sombra da suspeita em seu semblante. Era bela. Deus, ele nunca tinha visto uma mulher tão bela. Entretanto, não tinha conseguido convencê-la.

   — Assim quer que acredite que agora é meu servente.

   — Seu devoto servente.

   — E o que sente por mim?

   — Adoro-te, Sarafina. Quero-te com todas as minhas forças. — lhe disse ele. Fez-lhe um nó no estômago ao pronunciar aquelas palavras, mas tinha que fazer caso omisso.

Ela começou a caminhar a seu redor, enquanto se dava suaves golpezinhos no queixo com o dedo indicador, pensativamente.

   — E como poderia comprová-lo? — ela se deteve atrás dele, e Will sentiu seus olhos cravados nas costas. Esperou, sabendo que tinha que conseguir que aquilo resultasse convincente. Tinha que obedecê-la sem dúvidas.

   — Sua senhora tem fome, Will.

Will fechou os olhos. Deus, aquilo não. Outra vez não. O fazia perder o sentido de desejo, e lhe deixava débil e quase sem poder mover-se.

De todas as formas, abriu-se a camisa e voltou a cara para ela.

   — Então, bebe. — lhe disse.

Ela se aproximou, observando atentamente sua cara, esperando que ele se estremecesse ou se encolhesse, ou desse o mais mínimo sinal de resistência. Entretanto, ele não o fez. De fato, quando ela baixou a cabeça para seu peito, lhe entrelaçou os dedos no cabelo e lhe atraiu a cabeça. Ela tocou sua pele com os lábios frios e úmidos e ele teve um calafrio. Não entendia como era possível que uma mulher a que deveria odiar o excitasse tanto. Ela abriu a boca em seu peito, e ele sussurrou:

   — Faça. Bebe de mim, Sarafina.

Atravessou-lhe a pele justo abaixo da clavícula, mas não muito profundamente. Depois retirou as presas e lhe lambeu o sangue. Ele se estremeceu de desejo, de pés a cabeça.

   — E agora é sua vez. — ela se afastou dele, mas só um pouco. Will tinha a mandíbula tensa, enquanto lutava contra todas aquelas sensações que aquela mulher era capaz de lhe produzir. Tentou não tremer visivelmente, e lutou contra o impulso de tendê-la na cama e tomá-la, obrigá-la a deixar o papel de ama dominadora e a que admitisse que estiva louca por ele, como ele por ela. Que admitisse que o queria.

Sarafina se tirou uma diminuta lamina e se fez um corte na palma da mão, que fez brotar uma infinidade de gotas vermelhas sobre a pele.

   — Ponha-te de joelhos. — lhe disse — Ao fim e ao cabo, esta é uma comprovação de sua obediência.

Não titubeou e ficou de joelhos. A torpe aterrissagem lhe fez mal no pé ferido, e ele fez um gesto de dor e viu que ela o notava. Sarafina lhe ofereceu a palma e ele tomou com as mãos encadeadas e a levou a boca. disse-se que tinha que fingir que não sentia repugnância, mas em realidade, não a sentia. Lambeu o sangue, beijou-lhe a mão repetidamente e depois voltou a lamber um pouco mais.

A respiração dela se acelerou. Bem. Era bom que aquilo lhe afetasse. Demônios, cada gota que lambia lhe enviava ondas de sensações pelo corpo inteiro.

Will queria devorá-la, mas ainda tinha tudo sob controle. Recordou o que lhe tinha contado Jameson Bryant, que um vampiro podia sangrar-se e morrer tão somente por uma pequena ferida, assim afastou a cara lentamente, tirou-se a camisa e a rasgou. Com um dos farrapos, enfaixou- a mão a Sarafina com ternura, fez-lhe um nó e o selou com um beijo.

   — Deveria ter mais cuidado, Sarafina. Cortaste-te muito profundamente.

Tremendo, lhe passou uma mão pelo cabelo.

   — E te importaria se eu morresse antes que saísse o sol?

Lentamente, ele ficou de pé e lhe passou um braço pela cintura.

   — Eu também morreria se você morresse.

Sarafina não se separou dele. Olhou-o nos olhos enquanto ele aproximava a cara dela. Beijou-a profundamente, com ternura. Não a pressionou nem exigiu nada, como lhe ordenavam todas as células de seu corpo. Beijou-a como um escravo devoto, pedindo, rogando. E, quando finalmente levantou a cabeça, afundou-se em seus enormes olhos negros e lhe sussurrou:

   — Quero-te.

Sarafina se liberou de seus braços de um puxão e lhe deu as costas.

   — Nunca mais volte a dizer isso!

“Por quê?”

Will se aproximou dela e a tomou pelos ombros.

   — Irritei-te. Perdoe-me. Se não gosta de escutar essas palavras, nunca voltarei a repeti-las.

   — Isso espero.

Ele baixou a cabeça para lhe beijar o pescoço.

   — Deixa que te agrade. Posso derramar um bálsamo sobre sua alma, para acalmá-la como nenhuma outra coisa poderia fazê-lo. Permite-me isso?

Ela não disse nada. Não se moveu do lugar onde estava. Tão somente se deslizou as mangas da bata pelos ombros, e deixou que o objeto caísse a seu redor. Não levava nada mais.

Will desenhou a curva de sua espinha dorsal com os dedos, e depois com os lábios. Oh, sim. Ela acreditava que tinha o controle de tudo, verdade? Acreditava que o tinha convertido em um servente descerebrado, como esses outros dois zumbis que pululavam por aquele mausoléu. Entretanto, estava equivocada. Ele ficou de joelhos. Ao fim e ao cabo, lhe gostava que estivesse de joelhos, não? Beijou-lhe as nádegas, algo que, sem dúvida, era o que ela tinha em mente, embora possivelmente não de forma tão literal. Depois tomou pelos quadris e a girou para ele.

Enredou os dedos em seu pêlo e a abriu com os polegares para alimentar-se dela de uma forma diferente. Sarafina deixou que sua cabeça caísse para trás, e se agarrou aos ombros de Will enquanto ele conseguia que tremesse e se estremecesse. Ele continuou alimentando-se e empurrando-a para trás, até que a parte de atrás de suas pernas topou com a cama e Sarafina caiu de costas sobre ela. Abriu-lhe mais as pernas e se enterrou mais, seguiu empurrando-a, desejando devorá-la até que não ficasse nada dela. Em sua mente não ficou nada mais que ela, seu sabor, sua essência, os sons que estava fazendo enquanto ele a empurrava até os limites da resistência. E quando ela gritou seu nome, lhe apertando tanto a cara contra seu corpo que ele logo que podia respirar, nem lhe importava, lambeu-lhe obedientemente todos os líquidos. Depois, de repente, ela o empurrou com tanta força que ele escorregou pelo chão até que as correntes detiveram seu trajeto.

Sarafina se levantou da cama e caminhou para ele com o olhar de um predador.

   — Tire as calças. — sussurrou.

E ele o fez rapidamente, o qual foi um pouco acertado, porque ela o montou imediatamente. E enquanto se movia, seus peitos subiam e baixavam frente à cara de Will. Tomou um com a boca e sugou. Gostou-lhe de senti-lo, e ele continuou fazendo-o até que ela voltou a gritar seu nome enquanto sentia espasmos ao redor dele, e ele se derramou dentro de seu corpo.

Ela caiu para diante e lhe afundou as presas na garganta, e bebeu, e seguiu bebendo.

Deus, até onde ia chegar?

Will se estava enjoando. Estava muito débil. Mataria-o naquela ocasião? Ele moveu as mãos sobre seu peito para apartá-la, mas se conteve. Aquilo danificaria seu álibi. Tinha que seguir jogando aquela partida até o final, levar o farol até suas últimas conseqüências.

   — Toma-o tudo, Sarafina. Morrerei satisfeito em seus braços esta noite.

Funcionou. A sucção em seu pescoço cessou, e Sarafina levantou a cabeça. Ele a olhou, e viu que o pânico se refletia na cara e em seus enormes olhos. Apertou-lhe a mão contra as feridas do pescoço e soltou uma maldição entre dentes.

Ele deixou que a cabeça lhe caísse para um lado e fechou os olhos. Poderia havê-los mantido abertos com esforço, mas queria fechá-los, e aquilo não podia danificar a situação.

   — Will. — sussurrou ela — Deus, o que tenho feito?

Ela se levantou de um salto e pôs rapidamente a bata. Depois foi para a porta e a abriu de par em par.

   — Edward, Misty!

Os dois chegaram rapidamente. Will ouviu suas pegadas, embora lhe parecesse mais longínquas do que teriam devido.

   — O que lhe ocorreu, senhora? — perguntou Misty.

   — Isso não é teu assunto. — respondeu Sarafina. E depois, em um tom mais suave, disse — Eu não queria... Coloquem na cama e lhe tirem as cadeias. Tomem a chave. Vigiem toda a noite. Vai necessitar muito soro. Se morrer, pagarão-o caro.

   — Sim, senhora. — respondeu Edward — Não se preocupe, ocuparemo-nos de tudo.

A porta da suíte se fechou atrás de Sarafina quando partiu.

Will esteve a ponto de sorrir. Magnífico. O farol tinha funcionado. Notou como o deitavam e lhe tiravam as correntes, e como Misty lhe punha algo suave e úmido nas feridas do pescoço.

   — Está muito pálido. — sussurrou.

   — Deve ter desagradado à senhora. — replicou Edward — Não cabe dúvida de que o merecia.

   — Se não a tivesse agradado, ela não quereria que lhe tirássemos as correntes. — disse ela.

Will começou a pensar em seu plano de fuga. Aquilo ia ser fácil. O fato de ter conseguido escapar daquela caverna do deserto fazia que aquele pequeno desafio parecesse um jogo de crianças. Sarafina não era tão boa como ela acreditava. E ele ia vencê-la em seu próprio jogo.

Assim que conseguisse voltar a si.

  

Tinha sido impossível conseguir bilhetes para um vôo que chegasse a Nova York antes do amanhecer. E teria sido ainda mais difícil partir a toda pressa sem alarmar ao Jameson e a Angélica, que teriam estado dispostos a cozerem-se vivos ao sol com pressa de chegar junto a sua filha se se inteirassem da verdade. Por isso, Rhiannon tinha um plano.

Tinha comprado quatro bilhetes para um vôo que saía de Michigan uma hora depois do anoitecer, e duvidava que nem sequer o sonho do dia pudesse liberá-la da preocupação que sentia. Entretanto, finalmente caiu adormecida, como sempre.

Ao anoitecer seguinte, já se tinha levantado, tomado banho e arrumado quando Roland despertou. Olhou-a com uma sobrancelha arqueada.

   — Vai me contar o que está ocorrendo, ou vai me manter na escuridão, por dizê-lo assim?

   — Esse foi um trocadilho muito mau, meu amor. E você é também muito mau na hora de guardar seus pensamentos de seu querido amigo Jameson.

   — Assim há algo que não quer que ele saiba.

   — Se houver algo que ele precisa saber, inteirará-se a tempo. — disse Rhiannon. Tinha tomado a decisão que lhe parecia melhor para solucionar aquilo. Conseguiria que Jameson e Angélica chegassem junto a sua filha a tempo e economizaria a Angélica toda a preocupação desnecessária. Se pudesse.

Alguém bateu na porta. Imediatamente, abriu-se, e Angélica apareceu vestida com uns jeans e um pulôver.

   — Deveríamos sair esta noite. — disse — Ir ao cinema, ou algo assim.

   — Sempre e quando for em Nova York. — respondeu Rhiannon, sorrindo alegremente — Reservei um vôo para todos que sai dentro de duas horas.

   Vocês virão durante uns dias.

Angélica arqueou as sobrancelhas. Atrás dela, Jameson apareceu e disse:

   — Olhe, prometemos a Amber que não a espiaríamos, e acredito que é importante que guardemos a promessa.

   — Ora. Não irão espiá-la, só vão passar uns dias em minha casa. Amber Lily me conhece suficientemente bem para saber que eu não aceito um não como resposta.

   — Mas... Avisou-nos com tão pouco tempo... — disse Angélica.

   — Um momento. — disse Jameson — Aqui ocorre algo.

Rhiannon lhe deu as costas, mas ele se aproximou dela, tomou-a pelo braço e fez com que se voltasse.

   — Me diga o que está passando, Rhiannon.

Ela cravou-lhe o olhar nos olhos, sem amedrontar-se.

   — Quem sou?

   — Temos tempo para conversar?

   — Quem sou?

Ele suspirou e pôs os olhos em branco.

   — Você teve muitos nomes. Ao princípio foi Rianikki, a primeira filha do Faraó, princesa do Nilo, blábláblá...

   — Exato. Sou uma vampiresa de mais de dois mil anos de idade, Jameson Bryant. Não sou uma mulher frívola que faça pedidos frívolos.

   — Pedidos? Você não faz pedidos absolutamente. Você se limita a dar ordens.

   — E espero que se cumpram. — disse ela, e olhou por cima do ombro do Jameson, para a Angélica — Recolhe suas coisas. Saímos em vinte minutos.

Angélica a olhou fixamente.

   — É pela Amber, verdade? Ocorreu-lhe algo.

   — Amber está esperando em minha casa quando chegarmos. — lhe disse Rhiannon enquanto se aproximava dela— Prometo-te que, que eu saiba, Amber está perfeitamente bem. E agora vai e faz a bolsa para que possa vê-la você mesma.

Angélica saiu correndo, e Jameson se voltou para o Roland.

   — O que acontece?

   — Não sei, Jamey. Ela não me disse nada que não tenha dito a vocês.

Ele se voltou para a Rhiannon de novo.

   — Tem algum problema?

Ela apareceu pela porta, mas Angélica já se tinha ido.

   — É possível, mas estava bem quando falei com ela. A salvo. Não há nenhuma necessidade de fazer com que a sua mulher tenha um ataque de ansiedade e de preocupação até que saibamos com segurança, e não saberemos até chegarmos ali.

   — Está bem. Mas se me está ocultando algo...

   — É que tem que ser do contra em todas as ocasiões, Jameson? Estou cansada disso, mais do que imagina. Se não fosse o pai de Amber Lily, já teria estrangulado você faz tempo.

   — Claro, princesa. Você segue pensando-o.

Mostrou-lhe as presas, e ele saiu da suíte.

Roland se voltou para ela.

   — Tem razões para estar preocupada?

Ela assentiu.

   — O suficiente para ir diretamente pra casa assim que aterrissemos. Pandora terá que esperar umas quantas horas mais que a recolhamos da casa da babá.

Às duas horas, os quatro estavam no avião para Nova York. Durante todo o vôo, Angélica esteve pálida e concentrada. Rhiannon supôs que estava tentando receber algum sinal de sua filha. Ela sempre tinha tido uma forte conexão com sua filha, mas se debilitava com as distâncias grandes. Possivelmente enquanto se aproximavam de Nova York pudesse sentir que Amber estava bem e se recuperasse um pouco. Porque, apesar de todos os esforços de Rhiannon para economizar dor a Angélica, estava quase doente de preocupação.

Quando as rodas do avião tocaram a pista de aterrissagem do aeroporto de La Guardia, de repente, Angélica se apertou as mãos no peito e começou a ofegar para tomar ar. Afogava-se.

Jameson a abraçou brandamente para tentar acalmá-la.

   — O que ocorre? Angélica, o que acontece?

   — Raptaram-na, Jamey. Levaram nossa filha. — disse ela.

  

Amber Lily havia sentido algo justo antes de ouvir o som. Instintivamente, empurrou a Alicia para que rodasse pela cama e ambas caíram ao chão justo quando ouviram a explosão da porta de entrada e depois, pisadas apressadas.

Enquanto ouviam três homens aproximar-se do banheiro, Amber empurrou a sua amiga para que se arrastasse em silêncio, às escuras, centímetro a centímetro, sob a cama. Ela ficou escondida sem mover-se. Os homens entraram na suíte, e do outro extremo da cama, Amber viu que levavam armas que pareciam antigas. Um deles abriu o armário e olhou com cautela no interior. Outro estava no banheiro da suíte.

Entretanto, o que realmente a assustou foi o que ficou à entrada do dormitório. Tinha a cara rosa e cheia de manchas e cicatrizes. Levava uma peruca mal feita. Tinha a boca normal por um lado, mas pelo outro estava deformada. E estava ali quieto como se estivesse escutando, ou possivelmente cheirando o ar.

   — Sei que está aqui, Amber Lily. Não tem sentido que te esconda. Encontramos uma nota de sua mamãe no bolso traseiro de uns jeans que tinha deixado na suíte do hotel. Tinha este endereço escrito.

Ele estava olhando para a cama. Amber se amaldiçoou por haver-se esquecido da nota de sua mãe. Como podia ter sido tão descuidada?

   — O armário está vazio. — lhe disse um dos homens ao homem disforme.

   — O banheiro também. — disse o outro, aproximando-se.

   — E o resto da casa? — perguntou em voz alta, voltando a cara para fora da suíte.

De algum lugar do salão, uma voz de homem respondeu:

   — Vazia, senhor!

   — Bom, pois então só fica a cama. — disse ele com a voz cantarina, como se estivesse recitando uma poesia infantil — Está escondida sob a cama, Amber Lily?

Alicia tomou ar, provavelmente, assombrada de que ele soubesse o nome de sua amiga. Com uma espécie de sorriso, o homem deformado se aproximou da cama. Quando estava a ponto de levantar a colcha, Amber Lily saiu do outro lado.

   — Estou aqui. — disse.

Ele arqueou as sobrancelhas.

   — É você a híbrida de vampiro ou é sua fiel acompanhante? —perguntou ele.

   — Sou Amber Lily Bryant. — respondeu ela — A garota que desejará não ter ouvido falar em pouco tempo. — continuou, com a voz tremente, embora esperasse que ele não se desse conta.

   — Eu sou Frank Stiles. — lhe disse ele, sem emprestar atenção a sua ameaça — Pode me chamar senhor. Onde está sua amiga, a garota que estava contigo? — perguntou-lhe Stiles.

   — Não há ninguém mais aqui. Enviei-a pra casa quando soube que tínhamos problemas.

   — E onde está sua casa?

Ela fez um gesto negativo com a cabeça, lentamente.

   — Por que não foi com ela?

Amber encolheu os ombros. Então, ele sorriu como se soubesse a razão.

   — Ah... Pela luz do dia, verdade?

   — Senhor, nós a vimos na rua, à plena luz.

   — E você já esteve errado, verdade?

O homem o olhou com a expressão vazia, e não disse nada. Stiles se voltou de novo para o Amber.

   — Agora é pleno dia. Vamos comprovar se a afeta a luz.

Os dois homens a agarraram com força pelos braços. Ela pensou que podia haver-se liberado deles com facilidade, mas não o tentou. Tinha que deixar que a levassem dali sem protestar, para afastá-los o máximo possível de Alicia. Depois se encarregaria deles.

Aproximaram-na da janela e um deles abriu as cortinas de veludo negro.

O sol brilhante entrou em ondas, e a cegou. Ela puxou um braço para proteger os olhos enquanto tentava arrastar-se para trás.

   — Já está bem! Afaste ela daí! — gritou Stiles.

Os homens a separaram da janela e voltaram a fechar a cortina.

   — Eu gostaria de conservá-la viva, no caso de que não o tenha deixado o suficientemente claro. — continuou Stiles.

Eles se desculparam e a tiraram fora da habitação. No salão havia outros dois homens e uma mulher. Os dois homens estavam postados junto às janelas, e a mulher bloqueava a porta.

   — Aonde vão me levar?

Stiles sorriu e olhou a outro dos homens enquanto respondia:

   — Ah, a um velho lugar, no Byram, Connecticut. Leva anos pertencendo à família. — os dois sorriram amplamente, como se estivessem compartilhando uma brincadeira particular.

   — A sua família?

   — Não. À tua. — disse, e soltou uma gargalhada. Entretanto, o som terminou convertendo-se em uma tosse que fez com que se dobrasse durante uns instantes. Então, entre os seis a envolveram em uma manta negra e uma mulher lhe pôs uma injeção no braço. Imediatamente, perdeu a consciência.

Quando despertou de novo, Amber estava em um dormitório que poderia ter estado em uma casa normal, embora muito antiga. A porta, entretanto, tinha sido substituída por uma de barras de ferro. Também as janelas tinham as mesmas barras. Olhou por uma delas e viu que a casa estava sobre um escarpado muito alto, que dava diretamente ao mar. Ou possivelmente não, porque podia ver a outra borda ao longe, embora a única luz que iluminava a paisagem era a da lua cheia brilhando sobre a água. Era um lago? Onde demônios estava? Deus, devia ter estado inconsciente durante horas.

Havia homens, soldados, justo debaixo da janela da habitação. O imóvel tinha uma grade muito alta, de ferro forjado e pontas agudas na parte superior das barras.

Recordou, então, as coisas que lhe tinha contado seu pai sobre aquela gente. Era possível que o Departamento de Investigações Paranormais tivesse sido destruído pela rebelião dos vampiros no mesmo ano de seu nascimento, mas alguns de seus membros tinham sobrevivido. Seu pai lhe tinha contado como capturavam e como torturavam. Os experimentos cruéis que levavam a cabo com os vampiros. E o muito que tinham desejado tê-la quando era um bebê, para usá-la como porquinho da Índia.

E a tinham. Deus, o que iam fazer-lhe?

O medo lhe encolheu o coração, e lhe escapou um soluço doloroso. Fechou os olhos, mas as lágrimas lhe caíram de todas as formas. Secou-as com irritação, abriu a janela e puxou as barras com força.

Não se moveram nem um milímetro.

Tentou-o na outra janela, uma e outra vez. E também com a porta. Puxou até que lhe doeram as mãos, mas não serviu de nada.

Estava presa. Era uma prisioneira do DIP. Exatamente igual a sua mãe, quando a tinham encerrado em uma caixa de cimento e a tinham deixado ali para que morresse.

Amber se deixou cair no chão, abraçou-se os joelhos e chorou desconsoladamente.

  

Sarafina saiu correndo de casa, no meio da noite. Só estava vestida com a bata vermelha e ia descalça. Estava chorando enquanto corria. Fugia de algo, embora não sabia de que. Não era de Willem. Ele já não podia lhe fazer mais dano.

Durante um instante pareceu que havia voltado no tempo, a sua juventude, quando era uma moça nova, inocente e frágil. Tinha corrido pelo bosque, de noite, depois que Bartrone a tivesse convertido, tendo feito senti-lo tudo mil vezes mais, a dor, a fome, o anseio...

Ela tinha negado tudo o que lhe tinha contado, e havia voltado correndo a seu acampamento, com sua família. Descalça, quase nua, tinha corrido na escuridão.

E ali os tinha encontrado, ao redor de um menino pequeno que estava convexo no chão, muito pálido, imóvel.

   — Tentei cobrir a minha irmã tanto tempo como pude. — disse Katerina com suavidade — Mas já não posso fazê-lo mais. Está aliada com um demônio. Vi por mim mesma como matava a este menino inocente, igual matou a Belinda. E a outros muitos.

Todos emitiram exclamações de dor, de medo e de ódio. Katerina olhou através do fogo aos olhos de André.

   — É certo. — disse ele — Eu também vi. Katerina e eu queríamos salvá-la do demônio, mas já a tem entre suas garras. Eu a queria, mas já não é ela mesma.

   — Devemos deixá-la. — disse Katerina — Rompe-me o coração dizer estas coisas de minha própria irmã. — continuou. Depois cobriu a cara com ambas as mãos e chorou em voz alta. André também se esfregou os olhos.

Os outros assentiram solenemente.

   — Embora seja triste, temos que fazê-lo. — conveio Gervaise — Vamos, peguem suas coisas e as queimem. Depois deveríamos matá-la, embora em realidade já esteja morta para nós. É a única maneira.

Todos começaram a mover-se, assentindo. Todos exceto Katerina, porque o prometido de Sarafina tomou pela cintura quando todos se foram e a levou entre as árvores. Ali a olhou intensamente nos olhos.

   — Você escondeu tudo aquilo de valor?

   — É obvio. Sarafina tinha ouro e prata dos pagamentos de suas predições. E também tenho sua bola de cristal e suas jóias. Escondi-o tudo em um lugar seguro, não se preocupe.

Ele sorriu e a abraçou com força.

   — E ela?

   — Já deve estar morta. Deixei-a ali, para que o demônio se alimentasse dela.

   — Então, poderemos estar juntos finalmente. — murmurou ele, e a beijou apaixonadamente — Sua irmã já não se interporá no caminho de nossa felicidade.

Sarafina sentiu seu coração romper quando viu com claridade o que lhe tinham feito. Sua própria irmã e seu próprio amado. Tinham conspirado contra ela, tinham-na acusado de ter entendimentos com o demônio, tinham tentado assassiná-la e depois tinham voltado todo o seu clã contra ela. E o menino. Teriam sido capazes de sacrificar a um menino inocente para dar mais credibilidade a suas mentiras?

Olhou o corpo do pequeno e soube, por instinto, que não tinha sido um vampiro quem o tinha matado.

Então saiu dentre as sombras ao pequeno claro onde eles se estavam abraçando.

   — Não se equivoquem, meus queridos. Eu sempre me interporei no caminho de sua felicidade!

Aterrorizados, eles dois se retiraram para trás, olhando-a com os olhos muito abertos.

   — Disse-me que ela estava morta! — vaiou André a Katerina.

Alguns dos outros, que tinham ouvido o grito de Sarafina, aproximaram-se.

   — Olhem! — gritou Katerina — Olhem seus olhos, e o quanto está pálida. — então, tirou-se um pequeno espelho do bolso e o sustentou frente ao rosto de Sarafina — Não tem reflexo!

   — Não seja tola! — respondeu Sarafina, e tirou a sua irmã o espelho das mãos. Então se deu conta de que realmente não se podia ver no espelho. Passou-se a língua pelas presas e as notou afiadas e mais compridas que antes.

Bartrone lhe havia dito a verdade!

   — Vai embora! — gritou Katerina — Antes que enviemos a nossos homens a te caçar como o animal que é.

   — Pode ser que eu seja um animal, mas sigo sendo uma Shuvani!

Sarafina elevou as mãos e fez o sinal da maldição mais antiga que conhecia.

   — Você, meu amado André, morrerá jovem por sua traição. Não verá outra década. E perante você, Katerina, declaro que um de seus descendentes compartilhará esta maldição que eu sofro, porque sou sua irmã, e meu sangue é seu sangue. O que vive em mim vive em você, assim um de seus descendentes será um vampiro. E você viverá para vê-lo.

   — Não! — Katerina fez um sinal de proteção, mas Sarafina soube que já era tarde. Tinha notado como sua maldição saía dela com toda sua força, e supôs que tudo o que havia dito ocorreria.

Depois se voltou e correu para o mais profundo do bosque. Correu para o demônio, que era o único em quem poderia confiar. Com o tempo, aprendeu a amar a Bartrone. Entretanto, como outros, também a tinha traído e a tinha deixado sozinha.

Até Dante. Com Dante, Sarafina se tinha permitido amar de novo. E ele tinha sido o último a feri-la. Tinha escolhido a outra para amar.

Aquela noite, Sarafina correu até que se deixou cair no chão, sem forças, e seguiu chorando.

Fazia muito tempo que um homem não a tinha acariciado tão profundamente como o tinha feito Willem Stone. Tinha-lhe dado um intenso prazer, tinha-a beijado com paixão, tinha-lhe sussurrado palavras de amor...

Deus, havia-lhe dito que a queria.

Entretanto, só tinha feito aquilo porque ela o tinha convertido em um escravo sem cérebro, como Misty e Edward. Só porque ansiava as gotas de sangue que lhe dava. Eles também diziam que a queriam, e acreditavam que era certo.

Entretanto, sua declaração tinha sido diferente. Mais intensa e mais real. Ou possivelmente tivesse sido que uma parte ingênua e frágil dela queria acreditá-lo. Aterrorizava-lhe que seu coração tivesse respondido com tanta presteza e tanta necessidade a aquelas palavras. Parecia que o amor era uma droga a que ela tinha vício. Seria o amor, algo sem o que ela não podia viver?

Inclusive quando não era mais que uma ilusão.

Quando olhava ao Willem, não via um homem cuja vontade tivesse sido submetida até que só ficasse o desejo de agradá-la. Via o homem que era antes. Era aquele homem, o de sua mente, que lhe fazia amor. Aquele homem que havia dito que a queria que morreria por ela, e lhe tinha feito acreditar que era certo.

Mas não o era. Não podia ser certo.

E por isso chorava. Era do desejo de que fosse verdade do que fugia.

  

Quando os quatro chegaram à vizinhança de Rhiannon, Angélica mal podia manter-se em pé. Rhiannon sabia que não devia duvidar do sexto sentido daquela mulher, e temia que tivesse acontecido algo terrível.

Antes que tivessem saído do táxi, Rhiannon viu os restos da porta principal de sua casa. Parecia que a tinham derrubado com um aríete. Angélica também o viu, e gritou. Pela primeira vez desde que tinham descido do avião, Jameson deixou de abraçá-la e saiu correndo para a casa, chamando a Amber Lily. Sem seu apoio, Angélica caiu ao chão, chorando e sacudindo a cabeça.

   — Não, não está aqui. — disse — Não está aqui.

Rhiannon laçou a Roland um olhar e uma mensagem. Roland respondeu com o olhar. Ele cuidaria dela. E enquanto seu marido se agachava para abraçar a Angélica e ajudá-la a levantar-se, Rhiannon entrou correndo na casa.

Não a tinham destroçado, mas tinham desordenado tudo. As coisas estavam atiradas, como se tivessem estado registrando as habitações. Entrou no dormitório e abriu os sentidos, tentando sentir o mais mínimo sinal de alguma presença. E sentiu uma. Olhou ao Jamey aos olhos e soube que ele também o sentia.

Ela ficou de joelhos e olhou sob a cama.

Alicia gritou e se encolheu ainda mais, tampando a cara com as mãos.

   — Sai, menina, não ocorre nada. Ninguém vai fazer mal a você. Sai.

Tremendo, Alicia se tirou as mãos da cara.

   — Tia Rhiannon? — perguntou.

   — Sim, sou eu. Roland também está aqui, e Jameson e Angélica. Está a salvo. E tem que sair.

   — Angélica veio? — perguntou ela, com os olhos e as bochechas cheias de lágrimas.

   — Minha filha, estou um pouco cansada de manter esta conversação com a cabeça rente ao chão. Ao contrário das crenças populares, eu não me dobro como um morcego. Sai da cama antes que eu te tire de um puxão.

Alicia assentiu e saiu arrastando-se. Assim que o fez, Jameson a pegou pelas mãos e a ajudou a ficar de pé.

   — O que ocorreu? Onde está Amber? — perguntou-lhe.

   — Não sei. Vieram uns homens, e ela me empurrou para que me colocasse sob a cama. Levaram-na. Onde está minha mãe?

   — Não demorará a chegar. — respondeu Jameson — A chamamos por telefone e contamos tudo. Diga-me o que passou com a Amber, Alicia.

Alicia seguiu falando entre soluços.

   — Amber só foi com eles para me proteger. Ela poderia ter lutado, mas eles seguiriam procurando, e teriam me encontrado.

   — Onde a levaram? Onde, demônios? — Jameson tinha agarrado à moça pelos ombros, e estava a ponto de começar a agitá-la.

Rhiannon pegou-o pelos ombros também, e fez com que se desse a volta.

   — A garota está traumatizada.

Roland entrou com Angélica, e Alicia se jogou aos braços da vampiresa.

   — Não é tua culpa, Alicia. — lhe disse brandamente Angélica — Não pense que lhe culpamos por isso. Também me prenderem uma vez. Sei que não poderia havê-lo impedido.

   — Deveria havê-lo tentado. — disse Alicia, lhe sussurrando ao ouvido — Deveria havê-lo tentado embora tivessem me matado. Mas não podia. Estava tão assustada que não podia me mover.

Rhiannon pensava freqüentemente que Alicia se parecia muito mais a Angélica que Amber, embora se impediu de dizê-lo.

   — Vamos à cozinha. Acredito que a criada tem chá em um armário. Uma infusão será muito bom para você, Alicia. E depois tem que nos contar tudo.

   — Mas é muito tarde. — disse ela, entre soluços.

   — Tolices. São onze da noite, o que nos dá suficiente tempo para encontrar a esses miseráveis e conseguir que desejem não ter nascido nunca.

Ela assentiu. Rhiannon entrou a toda pressa na cozinha, pôs o bule no fogo e tirou a caixa de chá de um armário. Angélica acompanhou Alicia à cozinha, e as duas entraram arrastando-se lentamente, como se tivessem levado uma surra. Rhiannon teve que conter-se para não lhes gritar que se apressassem. Tomaram um par de cadeiras e se sentaram.

   — O tempo é muito importante. — disse Roland, com muita delicadeza. Rhiannon soube que ele havia se dado conta de sua impaciência — Por favor, nos conte o que ocorreu.

   — Bom... Nós víamos muito a esse homem. Várias vezes, quando saímos, parecia que estava nos seguindo. Estava na suíte ao lado da nossa, no hotel. Acredito que era um agente da DIP, um desses agentes dos que ouvi vocês falarem algumas vezes. Então, encontramos a aquela vampiresa na discoteca e...

   — Que discoteca? — perguntou Jameson.

Alicia olhou para cima, com a culpa desenhada no semblante, enquanto procurava uma resposta.

   — Não acredito que isso seja importante agora. — interveio Rhiannon.

Ele a olhou com cara de poucos amigos, mas assentiu.

   — E o que passou com esse homem? Como era?

Ela baixou a cabeça.

   — Parecia... Duro, forte. Era alto, com o cabelo negro... E usava bengala. Mancava.

Jameson fechou os olhos, como se aquilo lhe tivesse doído.

   — Esse era Willem Stone, o homem que contratei para que lhes protegesse.

Alicia se tampou a boca com uma mão enquanto começavam a cair mais lágrimas dos olhos.

   — Oh, Meu deus! Não sabíamos...

   — Já nos demos conta. — disse Rhiannon — Segue, filha.

   — Eu não acreditava que devêssemos nos aproximar da vampiresa, mas Amber disse que a mulher era de confiança. Assim que lhe contou sobre o homem que estava nos seguindo.

   — E o que fez ela?

Alicia soluçou.

   — A princípio nada, mas depois, quando se deu conta de quem era Amber, ela disse que nos ajudaria. Disse-nos que voltássemos para o hotel, que ela se encarregaria de tudo. Ao menos, isso é o que Amber me disse. Elas não falaram em voz alta.

O bule começou a assobiar. Rhiannon começou a levantar-se, mas Roland lhe pôs uma mão no ombro.

   — Eu o trarei. — disse, e depois se voltou para a Alicia — Continua.

   — Nós... Partimo-nos da discoteca. E ele nos seguiu como tinha estado fazendo. Mas ela também o seguiu. Oh, Deus, eu não sabia que ele só tentava nos proteger.

   — O que ela fez a ele, Alicia? — perguntou Jameson. Ele estava ao lado de sua cadeira, com os punhos apertados.

   — Ela... Nós vimos que... Ela se alimentou dele.

   — Matou-o? — perguntou Rhiannon.

   — Não sei! Amber acreditava que não. A senhora o jogou no assento de atrás de uma limusine e o levou. Nós pensamos que nossos problemas haviam terminado, e voltamos para o hotel. Amber queria revistar a suíte do homem para tentar averiguar o que era que ele pretendia. Assim que o fizemos, e encontramos uns fones de ouvido. Quando escutamos por eles, ouvimos vozes. Eram as vozes de uns homens. Vinham de nossa suíte, que estava justo ao lado. — disse Alicia, e então, tomou ar entre soluços — Estavam esperando por nós!

Roland lhe deu o chá, e ela tomou um sorvo.

   — Pensamos que o homem trabalhava para eles. — seguiu dizendo a moça, com as bochechas cobertas de lágrimas.

   — Mas puderam escapar deles. — lhe disse Rhiannon, para animá-la a que seguisse.

   — Descemos correndo pelas escadas e saímos pela porta da garagem. Depois tomamos um táxi e viemos diretamente para cá. Mas eles encontraram uma nota no bolso traseiro de uma de suas calças jeans, e tinha este endereço escrito. Eles jogaram a porta abaixo e levaram a Amber.

   — Quanto tempo faz disto? — perguntou Jameson.

— Foi no meio da amanhã. Tínhamo-nos deitado tarde, e ainda estávamos dormindo... Deviam ser... Não sei exatamente, umas dez da manhã.

Angélica fez um gesto de dor ao olhar o relógio da cozinha.

   — Isso não significa nada. — lhe disse Roland — Sabe tão bem como eu que querem ter a Amber viva.

   — E você sabe perfeitamente para que a querem viva! — Angélica se levantou de um salto e agarrou ao Jameson pelas lapelas da camisa — Temos que encontrá-la.

   — Vamos encontrá-la. — disse ele. Tomou as mãos e lhe beijou os nódulos — Prometo que vamos encontrá-la.

   — Alicia, quero que tente se lembrar de tudo o que ouviu a partir do momento em que chegaram esses homens até que levaram a Amber. Disseram algo, algo, a respeito de aonde iriam levar a Amber?

   — Não. Nada. — respondeu a garota, com os olhos fechados — Espere. Houve algo... A respeito de um lugar muito antigo... Era como uma brincadeira entre dois deles, a respeito dos antepassados de Amber, não dos deles, disseram. Depois riram.

Jameson franziu o cenho.

   — Connecticut! — disse Alicia — Brian, ou Byron, ou...

   — Byram. — disse Jameson.

   — Meu Deus, a velha casa de Eric. — disse Roland.

   — Então, sabem? Sabem onde levaram a Amber?

Angélica olhou ao Jameson nos olhos, com a mesma pergunta no olhar. Jameson assentiu.

   — Sim.

   — Vamos agora mesmo. — disse Rhiannon, ficando de pé rapidamente.

   — Antes temos que pensar em certas coisas. — interveio Roland — Temos que pôr Alicia a salvo. E também teremos que conseguir algum refúgio em Bryam, no caso de não conseguimos resgatar a Amber antes que se faça de dia. E acredito que deveríamos encontrar a essa vampiresa estranha, e averiguar o que fez com esse Stone.

Rhiannon pensou que ela o passaria bem enfrentando a estúpida que tinha atacado ao guarda-costas das garotas e que as tinha deixado indefesas contra os caçadores de vampiros. Então, trocou de opinião. Amber Lily não era precisamente indefesa.

   — Alicia, recorda o nome dessa mulher?

Alicia levantou a cabeça.

   — A mulher da que Amber te falou por telefone? Sarafina.

Rhiannon entrecerrou os olhos.

   — Conhece-a? — perguntou-lhe Angélica.

   — Ouvi falar dela. Informo-me dos outros imortais que habitam na zona onde vivo.

   — É possível que não o tenha matado, depois de tudo. — disse Jameson — Acredito que têm... Uma história. E que mais sabe sobre ela, Rhiannon? — perguntou-lhe.

   — É uma ermitã. Vive encerrada em um imóvel palaciano, ao norte da cidade.

   — Não temos tempo para procurá-la neste momento, nem sequer pelo Willem Stone. — disse Angélica — Deus sabe o que estarão fazendo a minha filha. Temos que encontrá-la agora mesmo.

Rhiannon olhou a Alicia.

   — Carinho, está segura de que eles não sabiam que estava escondida sob a cama enquanto eles falavam?

Alicia assentiu.

   — Amber lhes disse que eu tinha ido para casa. Perguntaram-lhe por que não foi comigo, mas pensaram que fosse pela luz do dia. E ela não os corrigiu.

Rhiannon enviou ao Roland uma mensagem com o olhar.

“Está muito fácil. Há algo que não encaixa.”

Ele ouviu seus pensamentos com tanta claridade como se ela os tivesse expressado em voz alta, e pelo gesto de preocupação de seu semblante, Rhiannon soube que estava de acordo. Mas também sabia, como ele, que tinham que ir. Não tinham escolha.

   — Por Deus, o que ocorreu? — perguntou a voz de uma mulher na sala ao lado. Alicia ficou em pé.

   — Mamãe?

Susan entrou correndo na cozinha. Alicia a abraçou chorando.

   — Recebi sua mensagem no balneário e tomei o primeiro vôo. O que passou?

   — Explicaremos isso no carro. Tem algum carro aqui, verdade, Rhiannon? — perguntou Jameson.

   — Vários. Estão na garagem de trás. — disse ela. Saiu da cozinha e voltou pouco depois com vários chaveiros. Não voltou a falar de novo até que estivessem na garagem. Só se podia acessar a coleção privada de Rhiannon com uma combinação de números que tinha que digitar em um teclado numérico de segurança. Uma vez dentro da garagem, continuou — Sugiro que vocês dois levem a Ferrari. — disse a Susan, lhe lançando as chaves — Irá mais depressa que qualquer outro carro que encontrem pela estrada. Vão para a casa de Eric e Tâmara, na Virginia. Lembram-se de onde fica?

Susan assentiu e se voltou para abrir o Ferrari. Alicia deu um abraço a Angélica.

   — Sinto-o muitíssimo.

   — Sei, carinho. Não é tua culpa.

Alicia se limpou as lágrimas e olhou a Rhiannon.

   — Tragam Amber para casa.

   — Não o duvide, Alicia. Traremos.

    

Quando Willem despertou, sentia-se como se tivesse a ressaca de uma bebedeira de três dias. Quando tentou levantar-se, voltou a cair sobre a cama. Deus, não tinha equilíbrio, e o pé lhe doía insuportavelmente. Não tinha tomado os analgésicos desde antes de entrar naquela casa.

Tinham-no vestido, e possivelmente também o tinham banhado, mas não queria pensar nisso. Estava descalço e não via os sapatos por nenhum lugar, nem tampouco sua bengala. Mas ele não estava preso, e sabia de sobra que se não escapasse naquele momento era possível que nunca o fizesse. Não estava seguro de quantas vezes mais poderia fingir que era um zumbi doente de amor de uma maneira convincente.

Tolices. Tinha sido muito fácil. Possivelmente muito fácil.

Ao fim e ao cabo, ele era um homem com sangue nas veias, caso que ainda ficasse algo, e ela era uma mulher bela e desejável. Embora fosse uma vampiresa, ele teria que ter estado mais morto que ela para não desejá-la. Aquilo não significava que estivesse voltando-se viciado nela, só era uma atração física normal. Poderosa, sim. Demônios, ele tinha estado apaixonado por aquela mulher, tinha-a amado inclusive antes de conhecê-la. Mas já não a queria, depois do que tinha tentado lhe fazer.

Não. Aquilo era uma mentira, e ele sabia. Havia algo que comia as suas vísceras e que não queria examinar com atenção. Possivelmente fosse o vício que lhe tinha causado o sangue de Sarafina. Seria uma versão debilitada do feitiço que tinha lançado a seus zumbis. Embora não estava seguro de por que não lhe tinha afetado como a eles; possivelmente sua vontade fosse muito forte para dobrá-la. Entretanto, qualquer laço emocional que sentisse com aquela mulher não podia ser outra coisa que uma maldição. Tinha-o aprisionado naquela casa contra sua vontade, por Deus, e tinha tentado convertê-lo em seu escravo.

Sem pensá-lo mais, coxeou até a porta e abriu a porta com cautela. Esperou um pouco e não viu ninguém, assim saiu e percorreu tão silenciosamente como pôde o corredor até que chegou a escadinha que descia ao vestíbulo. Agarrou-se ao corrimão de madeira maciça e desceu rapidamente.

No vestíbulo, parou-se para escutar, e percebeu um murmúrio de vozes que chegavam da esquerda.

Edward e Misty estavam falando em voz baixa na cozinha, assim tinha o campo livre para sair. Quando chegou à porta e girou o pomo, viu que estava aberta.

Pareceu-lhe muito estranho que Sarafina deixasse a porta de sua casa sem fechar. E aquela idéia deu passo a outra: onde demônios estava ela naquele momento? Notou um calafrio pelas costas e olhou para trás. Ninguém. Estava-se pondo muito nervoso, aquilo era tudo. Abriu a porta e olhou para fora.

A lua iluminava o jardim. Havia um caminho de cascalho que conduzia dos degraus de pedra da entrada principal da casa à porta da entrada do imóvel. Aquela porta lhe preocupou. Era alta, de ferro forjado, e estava entre dois pilares de pedra. Desceu os degraus e começou a caminhar para a porta. O caminho de cascalho estava margeado por uma sebe cuidadosamente podada.

Quando chegou à porta, deixou de preocupar-se. Aquelas sebes, de dois metros de altura naquela zona, formavam ângulos retos à altura da porta e seguiam em ambas as direções como um muro. Não havia cerca. Will se deteve e se voltou a observar a casa durante um segundo. Parecia que o magnífico edifício olhava a ele também e lhe estava dizendo adeus e boa viagem.

Tirou aquele estranho sentimento da cabeça e empurrou a sebe para atravessá-la e sair do imóvel. Então descobriu por que Sarafina pensava que não necessitava de cerca: a sebe era de espinheiros. Pequenas adagas lhe atravessaram a pele, mas já tinha chegado longe o suficiente para voltar atrás. Assim seguiu empurrando.

Os espinhos lhe rasgavam a pele. Uma se cravou no pé bom e lhe obrigou a seguir avançando com o ferido. Então, notou um espasmo de dor que lhe atravessou de baixo para cima.

E com aquela dor lhe chegou uma imagem, muito breve, mas clara como a água. Sarafina, sentada em meio a um vasto jardim, com fontes e estátuas a seu redor. Banhada na luz da lua, estava apoiada na base de uma imagem de pedra, com a cabeça sobre os braços dobrados, a cara escondida. E estava chorando.

Então voltou para a realidade de novo, quando saiu da sebe e caiu ao chão de fora do imóvel, que estava a um nível inferior. O impacto fez com que estivesse a ponto de perder a consciência, e também lhe arrebatou aquela visão. Durante um momento, sentiu o insensato desejo de ir procurá-la e obrigá-la a explicar-se. Quem era ela, na realidade? A bebedora de sangue manipuladora e controladora ou a garota vulnerável e de bom coração que ele tinha conhecido em um princípio? Ainda via às vezes àquela garota, quando Sarafina baixava a guarda. Havia-a sentido quando tinham feito amor. E queria que voltasse.

Não importava. Embora lhe doesse o coração e todas suas emoções lhe diziam que voltasse para ela, sua cabeça e seu instinto de preservação lhe dizia que seguisse movendo-se para afastar-se daquele lugar o mais rápido que pudesse. Durante um instante não soube o que fazer, mas finalmente, seu sentido de dever se impôs. Fez a promessa de proteger a duas garotas jovens do perigo. Sua prioridade devia ser aquela: encontrar a Amber Lily e a Alicia e assegurar-se de que estavam a salvo.

Levantou-se e continuou caminhando até que chegou a uma estrada. Então, ficou no meio da pista para obrigar a parar ao primeiro carro que passasse, inclusive embora esteve a ponto de ser atropelado. Quando conseguiu convencer ao condutor de que não era nem um assaltante nem um criminoso, pediu-lhe que o levasse até o lugar mais próximo que tivesse telefone. O homem lhe sugeriu que seria melhor levá-lo ao hospital, e Will, ao dar-se conta de que queria ajudá-lo, pediu-lhe que o levasse a sua casa. Queria ir diretamente ao hotel para comprovar como estavam as garotas, mas não tinha a chave, nem a carteira, que estavam em algum lugar da casa de Sarafina, e estava completamente seguro de que não poderia convencer a ninguém de que o deixasse entrar em sua suíte naquele estado.

Quando chegaram a sua casa, chamou à portaria, e o porteiro respondeu ao interfone com voz sonolenta. Finalmente abriu e Will subiu até sua casa.

   — Stone? Que demônios lhe ocorreu? Atracaram-no?

   — Sim, algo assim. Tiraram-me as chaves, senhor Ramírez, assim não posso entrar. Poderia me dar a cópia?

O senhor Ramírez sacudiu a cabeça.

   — Quer que chame à polícia? — perguntou-lhe o homem, e depois franziu o cenho e o olhou dos pés a cabeça — Ou melhor, a uma ambulância?

   — Não, obrigado, só quero entrar em meu apartamento.

   — Muito bem, muito bem. Um minuto. — o homem partiu pelo corredor e voltou com um molho de chaves — Tome a sua. — lhe disse — Por favor, meta-a por baixo da minha porta quando tiver terminado com ela, de acordo?

   — Claro. Muito obrigado.

   — De nada. — disse o porteiro, e antes de fechar a porta, fez uma pausa — Está seguro de que não necessita de um médico, Stone?

   — Parece pior do que é.

   — Está bem. Amanhã pela manhã chamarei o chaveiro para que lhe troque a fechadura, de acordo?

   — Obrigado.

Will foi para o elevador e subiu para sua casa. Quando entrou, foi diretamente ao banheiro para tomar os analgésicos. Depois se olhou ao espelho. Estava assombrosamente pálido, e os arranhões vermelhos que tinha pela cara intensificavam a palidez. Suspirando, abriu a torneira e começou a lavar-se. Quando terminou, vestiu-se com roupa limpa, pegou as chaves do carro, um pouco de dinheiro e uma bebida energética da geladeira, que bebeu enquanto descia a entrada pelo elevador.

Quando chegou ao hotel, pensava que se encontrava bem melhor, embora seguisse muito pálido. Na recepção lhe deram uma chave extra e subiu para sua suíte, ansioso para ver as meninas dormindo a salvo em suas camas.

Entretanto, quando chegou ali e forçou a fechadura de sua suíte, não havia nem rastro delas. De fato, parecia que tinham revistado sua suíte completamente.

Saiu correndo para sua própria suíte. Embora notasse que tinha entrado alguém, não a tinham revistado. Simplesmente, as coisas não estavam no lugar onde ele as tinha deixado. Entretanto, ti que ter em conta que ele não estava cem por cem em sua capacidade. Podia ser que estivesse equivocado.

Abriu uma das gavetas do armário e procurou o pequeno artefato de rastreamento entre as coisas. Entretanto, quando o ligou, não aconteceu nada.

Ou a outra peça que tinha colocado na bolsa de Amber Lily não funcionava, ou estava fora de cobertura. Demônios, não sabia o que fazer. Além disso, não acreditava que pudesse permanecer acordado durante muito mais tempo. A perda de sangue o tinha debilitado, por não falar das relações sexuais.

Durante um momento, voltou-lhe a mente o momento que tinha explorado a boca e o corpo de Sarafina. Ela tinha sido deliciosa, ansiosa e algo mais... Vulnerável, de uma forma que o tinha surpreendido. Como se ele tivesse o poder de destruí-la com suas carícias, seus beijos, suas febris declarações de amor.

Mas aquilo era estúpido. Não lhe importava nada o que ele sentisse nem o que dissesse. A única coisa que queria era controlá-lo como se fosse uma marionete. Durante os momentos de paixão que tinham compartilhado, ele não havia sentido aquilo, mas sabia que era a verdade. Ela tinha feito todo o possível por que assim fosse.

Tirou Sarafina da cabeça e se deu conta de que tinha que chamar ao Jameson Bryant. Ia ter que lhe contar que tinha perdido a pista de sua preciosa filha, que tinha estragado o trabalho e que não tinha nem idéia de onde estava.

Mas, embora deixasse soar o telefone uma e outra vez, não obteve resposta.

Will se tombou na cama só um momento, apenas o necessário para esclarecer a cabeça, para pensar em qual seria o movimento mais inteligente que podia fazer a seguir. Entretanto, àquelas horas da madrugada, acabou dormindo.

E sonhou com Sarafina.

  

Amber percorreu durante muito tempo a cela de um lado a outro. Finalmente, o homem do rosto deformado apareceu ao outro lado da porta de barras e a saudou.

   — Olá, Amber. Sinto-o pelo alojamento. — disse, e lhe lançou a mochila entre as barras – Trouxemos-lhe suas coisas. Menos o telefone, claro. Temos que tomar cuidado com sua família.

   — Mais vale que tome cuidado. — disse ela. Procurou com o olhar algum objeto para lançar. Pegou um quadro da parede e o atirou de lado para que passasse entre as barras e lhe golpeasse a cabeça. Entretanto, ele teve os reflexos suficientes para proteger a cara com os braços. Pela forma de amaldiçoá-la, Amber soube que de todas as formas lhe tinha doído. Bom.

   — Vai me deixar sair daqui, senhor, ou vai lamentar.

   — Não. Você vai cooperar conosco, querida, ou será você quem o lamentará. E agora, ponha o braço entre as barras. Precisamos tirar outra amostra de seu sangue.

Amber lhe lançou um insulto que teria feito com que sua mãe se encolhesse ao ouvi-lo. Depois concentrou toda sua energia na parte do teto que havia justo em cima do homem, e fez com que um pedaço de gesso caísse e se fizesse pedacinhos. Stiles só teve tempo de saltar para afastar-se. Amber se deu conta de que lhe tinham feito algo enquanto tinha estado inconsciente, não sabia o que, mas se sentia mal. Pulsava-lhe o coração com muita força, doíam-lhe os músculos e notava uma opressão no peito.

   — Vou colocar esse lugar abaixo! — gritou, e as coisas começaram a voar a seu redor e a estampar-se contra as barras. Os abajures, as cortinas, a mesinha de cabeceira...

Stiles se retirou dali durante um instante, mas de repente apareceu outro homem com uma arma nas mãos. Apontou para ela e disparou.

O dardo entrou na parte baixa das costas, e a droga que continha começou a lhe fazer efeito quase instantaneamente.

   — Maldita seja! — disse Stiles — A última dose fez com que lhe baixasse tanto a pressão arterial que não sabemos se os experimentos deram certo. Disse-te que não se repetisse. Precisamos conservá-la viva e em um estado normal para aprender algo de utilidade.

   — Desta vez foi metade de uma dose. — disse o outro homem — O que vamos fazer, deixar que jogue a casa abaixo?

Amber caiu ao chão, em pânico. Não poderia controlar o que lhe fariam enquanto estivesse inconsciente. Quando tinha acordado a última vez, tinha algumas faixas no corpo, e hematomas nos braços e nas pernas. Não estava segura, mas acreditava que lhe tinham cortado o cabelo, também. E aquilo só seria uma parte. Estava segura de que havia mais coisas. Nunca havia se sentido tão mal em toda sua vida.

Tentou manter-se consciente enquanto eles abriam a porta e entravam. Stiles se agachou para levantá-la. Ela tentou fazer voar mais coisas com a mente, mas o único que conseguia era que os objetos caíssem ao chão. Tentou golpeá-lo, mas seus golpes eram tão frágeis como teriam sido os de Alicia.

Ele a pôs na cama e se voltou para seu acompanhante.

   — Traz a equipe. Temos que terminar com isto antes que o efeito do tranqüilizador passe.

Ela abriu muito os olhos.

   — Não, por favor. — sussurrou.

Stiles sorriu.

   — Agora pede “por favor”? Acreditava que eu iria lamentar.

O som das rodas de um carrinho sanitário atraiu sua atenção. A mulher que tinha visto na casa de sua tia Rhiannon entrou empurrando-o. A bandeja superior estava carregada de instrumentos, incluindo uma caixa eletrônica com cabos e almofadinhas das que usavam para dar choques elétricos aos pacientes com parada cardíaca. Stiles pôs um par de luvas de látex e tomou um pequeno bisturi.

Amber se concentrou na lâmina. O medo lhe deu forças para fazer uma última tentativa. A lâmina saltou da mão do homem, girou e lhe cravou na palma, atravessando-a.

Uivou de dor.

   — Lamenta agora? — perguntou-lhe com esforço, enquanto outros se aproximavam dele.

   — O que vamos fazer com ela, Stiles? — perguntou-lhe a mulher — Alguns dos exames requerem que esteja consciente e se mostre cooperativa ao mesmo tempo.

Entre dentes, ele respondeu.

   — Não se preocupe. Teremos toda a sua cooperação em pouco tempo. Seus pais chegarão a qualquer momento.

E então, a droga fez todo seu efeito e a arrastou à escuridão.

  

Rhiannon conduzia sua Mercedes com o Roland a seu lado, sentado rigidamente, olhando sem cessar de um lado a outro, vigilante. Até aquele dia, ainda não se acostara com os veículos em movimento. Sofria-os quando era necessário, ou só por fazê-la feliz. Mas nunca desfrutava deles.

Rhiannon adorava os carros, quase tanto como adorava a seu velho gato. Sentiu uma pequena pontada de nostalgia quando passaram junto à cidade em que estava Pandora, mas não tinham tempo de parar para recolher sua mascote. Não, quando sua preciosa Amber estava nas mãos daqueles miseráveis.

Enquanto se aproximava, jogou um olhar a Angélica, que ia no assento de atrás, junto ao Jameson. No momento, a mulher não havia sentido a proximidade de sua filha. Aquilo tinha deixado Rhiannon muito preocupada.

Finalmente, atravessando o campo de Connecticut, chegaram até a estrada que os conduziria até a antiga casa de Eric Marquand, o melhor amigo de Roland e de Jameson. Eric e sua noiva Tâmara tinham tido que abandonar aquele castelo junto ao mar, uma vez que os agentes do DIP tinham averiguado sua existência. Os vampiros que tinham a desgraça de atrair a atenção daquela banda de assassinos nunca podiam permanecer durante muito tempo no mesmo lugar. Rhiannon tinha tido a esperança de que aquilo terminasse uma vez que o DIP tivesse sido destruído, mas evidentemente, suas esperanças não se cumpriram.

Ao cabo de uns minutos, tirou o carro da estrada e o estacionou entre uns muito altos pinheiros. Os quatro desceram e começaram a caminhar a borda da estrada estofada de agulhas verdes. A essência das árvores perfumava o ar. Em uns poucos instantes, a casa apareceu ante seus olhos.

Ela olhou os três blocos de pedra cinza que compunham a construção. Tinha janelas arqueadas. Rhiannon olhou ao Jameson e viu que ele estava observando com o rosto muito sério aquele lugar.

   — Está bem, Jamey? — perguntou Roland, deixando-se levar uma vez mais pelo hábito de chamá-lo por seu nome de menino.

Jameson tragou saliva.

   — Traz-me lembranças. E não são todas boas.

   — Não tinha mais de onze anos quando enfrentou àquele assassino e me salvou a vida nesta mesma casa.

   — E uns dias depois, você me devolveu o favor. — disse Jameson.

Os dois homens trocaram um longo olhar. Tinham uma relação tão próxima como a de um pai e um filho, Rhiannon sabia. E embora o jovem algumas vezes a deixasse por sua impulsividade e sua impaciência, ela o queria igualmente.

Na parte superior da grade que rodeava a casa havia pontas agudas, e pela parte de trás, o terreno caía por um escarpado até a borda rochosa do mar. Não era, entretanto, muito difícil para os vampiros.

Ela se agachou e saltou. Superou a grade com facilidade. Os outros a seguiram e depois, todos percorreram o atalho empedrado que se estendia ante a casa, entre os arbustos que cresciam em ambos os lados. Fazia anos que não voltavam ali.

   — Não sinto a Amber. — sussurrou Angélica.

   — Possivelmente esteja dormindo. — disse Jameson. “Ou inconsciente”, pensou, mas não teve tempo de bloquear sua consciência, e os outros perceberam a idéia com clareza.

   — Ou possivelmente nem sequer esteja aqui. — disse Rhiannon rapidamente, ao ver a expressão do rosto de Angélica.

Ela se deteve antes de chegar à porta do castelo, e os outros ficaram imóveis ao seu lado.

   — O que... — e então, soube de repente. A ameaça do perigo lhe invadiu a mente — É uma armadilha! — gritou. Então, todos os matagais que os rodeavam tomaram vida.

Os quatro se deram a volta e correram para a grade. De repente, acenderam-se uns potentes focos que os cegaram com luzes que provinham de todas as direções, e das sombras emergiram uns homens que disparavam armas automáticas.

Quando chegou à grade, Rhiannon a saltou e caiu de qualquer jeito do outro lado. Seguiu correndo para o carro, e quando chegou se deu conta de que estava sozinha.

“Roland!”, gritou ela mentalmente.

Sua resposta lhe chegou fraca, mas claramente.

“É muito tarde, meu amor. Apanharam-nos. Vá! Vai, consegue ajuda e volta.”

“Não demorarei!”

“Por favor, se cuide.”

Rhiannon entrou no carro, colocou-o em marcha e pisou no acelerador até o fundo para perder-se na noite que quase terminava.

Roland lhe havia dito que conseguisse ajuda. Onde? Eric e Tâmara estavam muito longe, e o único vampiro que poderia servir de ajuda era a mesma a que teria que culpar por aquela situação: Sarafina.

Possivelmente o mortal, Willem Stone, pudesse resultar útil se ainda estivesse vivo. Parecia que Jameson confiava nas habilidades daquele homem. Entretanto, não poderia localizá-lo sem recorrer a vampiresa.

Assim supôs que devia ir vê-la.

Pôs o carro em seus limites, mas antes de chegar à cidade, o sol começou a sair pelo horizonte, e seus raios atravessaram o pára-brisa escuro e começaram a queimar Rhiannon nos olhos e na cara. A delicada pele de suas clavículas começou a encher-se de bolhas. Já não havia tempo para continuar. Girou o volante e saiu da estrada. Então se deu conta de que estava justo na estrada que levava ao rancho onde estava Pandora.

O calor, a luz e a dor se combinaram para conseguir que apertasse os dentes. O volante estava tão quente que quase não podia agarrá-lo. Sua visão tinha um filtro vermelho. Chegou a uma clareira entre as árvores e desceu do carro. Suas forças estavam acabando. O sonho diurno estava começando a vencê-la, mas se se detinha sob a luz do sol, morreria. Seguiu caminhando até que chegou a um charco de água verde e se meteu dentro.

A água fresca, cheia de algas e limo, envolveu-a e lhe acalmou a dor. Enquanto seu corpo se afundava no barro suave e frio, o lodo verde se fechou sobre ela, bloqueando os raios do sol.

  

Sarafina ficou nos jardins, afastada de todos, até que passou aquela tormenta emocional. Não queria ver o Willem. Não queria ver ninguém. Sentia... Algo que era desconcertante para ela: arrependimento por ter conquistado o espírito de Willem Stone. Nunca tinha experimentado o menor remorso por ter convertido em escravos a Misty e ao Edward. Mas, com o Willem, tudo tinha sido diferente. Embora ele tivesse estado perseguindo àquelas duas garotas, ainda havia algo especial. Algo único entre os homens mortais. E ela o tinha roubado. Tinha-lhe despojado de sua vontade de ferro e lhe tinha feito ser menos do que era antes. Menos que o homem ao que tinha amado.

Arrependia-se com todas as suas forças de haver feito. Teria sido melhor matá-lo diretamente que lhe fazer viver assim. E embora não fosse muito tarde para remediá-lo, para liberar seu espírito lhe tirando a vida, Sarafina sabia que não poderia fazê-lo. Enfurecia-lhe sentir-se dirigida por seus ridículos sentimentos por um homem. E mortal, além disso!

Lutar com aquelas estranhas emoções a tinha deixado exausta. Caminhou para a casa e entrou pela porta traseira, com a esperança de não encontrar-se com ninguém de caminho a sua suíte. Estava a ponto de amanhecer. Possivelmente o sonho diurno lhe devolvesse seu ser, a mulher com o coração coberto de gelo impenetrável. A mulher que tinha sido antes de Willem Stone.

Entretanto, seu trajeto se viu interrompido por Edward e Misty. De algum lugar da casa, chegaram-lhe as vozes nervosas de seus serventes, e soube que algo ia mal. Alterou seu caminho e os encontrou no corredor do andar superior.

   — O que ocorre? — perguntou-lhes.

Misty se deu a volta com os olhos úmidos.

   — Oh, senhora, tem que nos perdoar! Enganou-nos, como certamente também enganou a você! — disse, e caiu de joelhos ante Sarafina.

   — Do que está falando?

Misty não pôde deixar de soluçar, assim Sarafina olhou ao Edward, que estava frente a ela, vacilante.

   — Escapou-se, senhora. Tiramos as correntes e deixamos a porta aberta, como você nos disse. Supusemos que fosse leal, como nós. Mas nos enganou. Partiu-se.

   — Partiu-se... — sussurrou Sarafina, enquanto olhava além do Edward, para a porta aberta da suíte em que tinha estado Willem. Perguntou-se brevemente por que não estava cheia de raiva por seu engano. Em vez disso, sentia um estranho alívio. Ele só tinha estado fingindo. Fechou os olhos e lhe caíram as lágrimas de gratidão.

E suas declarações de amor? Seus beijos? Tudo aquilo tinha sido parte de uma atuação. Não eram mais autênticos do que teriam sido se ela tivesse tido êxito na hora de conquistar sua mente. Mas, verdadeiramente, estava contente de não havê-lo conseguido. Não queria ver submetido ao Willem Stone. Entretanto, sim o queria, apesar de seu negro coração.

   — Não importa. — disse a seus serventes — Não era bom o bastante para ficar conosco.

Notou que o amanhecer lhe afetava mais que o usual, naquele estado de esgotamento mental.

   — Sua carteira e o resto de suas coisas estão na gaveta do escritório, na biblioteca. Aí encontrarão seu número de telefone e sua direção. Enviem tudo hoje. Eu vou descansar. Não pensem mais em Willem Stone.

  

   — Bom dia, Amber Lily. — disse a mulher, tingida de loiro. Amber não tinha dormido. Estava sentada na cama, observando como saía o sol por cima do oceano, e nem sequer se voltou para a caçadora de vampiros.

Sentia-se muito mal, e não sabia por que. A última vez que despertou tinha o cabelo úmido e lhe ardia a garganta.

   — Trouxemos dois cafés da manhã diferentes, para que escolha. Um grande copo de A-positivo, recém extraído. Inclusive ainda está quente. E um prato de bacon e ovos. O que prefere?

Amber se voltou e lançou à mulher um olhar assassino.

   — Seu coração em um prato. Ligeiramente assado.

A mulher não captou o sarcasmo. Abriu muito os olhos e deu a bandeja ao homem que tinha a seu lado. Depois tirou um caderno do bolso e escreveu umas quantas coisas.

Amber pôs os olhos em branco.

   — Sim, escreve, doutora Einstein. A paciente tem tendências canibais. Mas será melhor que me traga depressa o fígado de alguém, ou me tornarei invisível. — disse, e assinalou ao homem com um gesto da cabeça — O dele vai servir. Pode usar esta faca de manteiga. Eu gosto com muita cebola. Vamos, depressa.

Por fim, fez-se a luz no cérebro da mulher. Deixou de escrever e a olhou.

   — Está com seus joguinhos de novo.

   — Você acredita?

A mulher riscou com irritação o que tinha escrito.

   — Quero que me responda a verdade nesta ocasião, Amber Lily. Qual destes pratos está dentro de sua dieta normal? Alimenta-te de sangue, como seus pais?

Amber olhou o copo e concentrou nele toda sua ira.

Então o copo explodiu, lançando sangue e dardos de cristal ao peito e a cara da mulher, a seus braços e a suas mãos. Ela gritou e deu uns passos para trás, protegendo o rosto como pôde.

   — Kelsey! — o homem deixou cair a bandeja da comida ao chão e se aproximou dela — Deus, está bem?

Ela se voltou e correu a procurar uma toalha, com seu atento ajudante seguindo seu rastro. Stiles se aproximou pelo corredor, aplaudindo lentamente.

   — Muito bem feito, menina. Muito bem feito. Mas, temo que tenha acabado a nossa paciência com você e com suas manhas de criança.

   — Suponho que então o melhor será que me deixem partir, porque de todas as formas as coisas não vão mudar.

   — Oh, é claro que sim, que sim. — ficou imóvel em frente às barras da porta, com um sorriso de confiança na parte da cara que não tinha deformada — Você vai colaborar daqui em diante. Você vai responder a todas as nossas perguntas e se submeterá a todos os exames que nós lhe façamos.

   — De verdade? E como vai conseguir?

   — Nelson, traga! – disse Stiles a alguém, sem tirar os olhos de cima de Amber.

Então apareceu um homem e se aproximou com algo que parecia um corpo nos braços. Estava envolto dos pés a cabeça em uma manta negra. O coração de Amber deu um tombo.

   — Feche a cortina. — lhe ordenou Stiles — Não quero que peguem raios de sol. Já sabemos que sobre ti, entretanto, não têm nenhum efeito, ao contrário do que nos fez acreditar no princípio.

Amber se apressou a correr as cortinas de tecido gordo. Então, Stiles se aproximou do homem e abriu a manta. Amber tomou ar com brutalidade e se aproximou da porta.

   — Mamãe! — disse. Passou os braços por entre as barras e acariciou a cara de sua mãe.

Através dos laços mentais que as uniam, sentiu que estava viva. Não a tinham matado. Acariciou-lhe o cabelo enquanto as lágrimas lhe corriam pelas bochechas.

   — Por favor. — sussurrou — Por favor, não lhe façam mal. Farei o que quiser, mas não lhe façam mal.

Stiles assentiu.

   — Era isso que eu esperava de você. E, agora vamos ter um pequeno bate-papo. Você vai me contar tudo sobre ti. O que come, quando dorme, como lhe afeta a luz do sol, e tudo o que eu precise saber. Entendido?

Ela assentiu. Enquanto Nelson voltou a pôr a manta sobre a cara de Angélica e a levou pelo corredor.

   — Aonde a leva? Onde?

   — Oh, não só a ela, filha. Também pegamos seu pai. E seu querido amigo Roland.

Ela fechou os olhos, chorando.

   — Colaborarei, eu prometo. Mas, por favor, preciso saber onde os colocará.

   — Em uma cela, em um nível que há sob o porão da casa. Conforme tenho entendido, foi um vampiro que a criou. Era sua guarida. É irônico, verdade?

Amber tragou saliva.

   — É... Pequeno?

Stiles franziu o cenho.

   — O lugar onde estão? É do tamanho desta cela, mais ou menos. Por que pergunta?

Ela teve que fazer um esforço para não deixar escapar um suspiro de alívio ao saber que sua mãe não estava confinada em um espaço minúsculo nem asfixiante.

   — Queria saber se estariam cômodos. Sempre e quando souber que estão bem, cooperarei em tudo o que quiser. Prometo-o.

   — Parece-me justo. — disse ele.

Amber assentiu e se deixou cair na cama, na cela às escuras.

   — E o que é que quer saber?

  

Sarafina se levantou ao anoitecer com um sentimento de vazio no peito. Seguia sentindo as caricias dos lábios de Willem na carne cada vez que abria os olhos, e disse a si mesma que não devia permitir-se semelhantes frivolidades. Aquilo não era próprio dela absolutamente.

Tomou um banho quente e se vestiu. Depois desceu à cozinha para falar com Edward e Misty sobre os planos para aquela noite. Uma parte dela estava desejando ir procurar ao Willem, embora só fosse para convencer-se de que estava bem, e de que seus esforços por controlá-lo não o tinham afetado. Também deveria comprovar se as garotas estavam bem, embora no fundo soubesse que Willem não era nenhuma ameaça para elas. Entretanto, antes que tivesse começado a falar com seus serventes, algo explodiu na porta principal.

Durante um instante de loucura, Sarafina pensou que poderia ser Willem que havia voltado, e o coração deu um salto. Aquela vez, teria retornado por vontade própria.

Entretanto, logo sentiu uma nova presença em sua casa, e soube que não era Willem.

Era outro vampiro, um que vibrava de fúria. Tanto, que poderia converter-se em um assassino.

Sarafina olhou a suas mascotes.

   — Partam. Saiam pela porta de trás, rapidamente, e se escondam no bosque. Não voltem até que lhes chame.

   — Mas, senhora...

   — Agora! — ordenou-lhes.

Eles dois saíram obedientemente pela porta da cozinha e se dirigiram à porta de trás. Sarafina os observou até que os perdeu de vista, e depois foi ao salão.

Havia uma mulher aos pés da escada. Tinha ervas verdes penduradas no cabelo e estava completamente molhada e cheia de barro. O vestido de veludo negro gotejava, e estava formando um pequeno atoleiro a seu redor. Seu cabelo negro e liso recordou a Sarafina o de sua irmã Katerina, e de repente sentiu ódio.

Ao lado da mulher havia uma pantera, sentada sobre os flancos traseiros. A vampiresa lhe estava acariciando entre as orelhas.

   — Você deve ser Sarafina. Eu sou Rhiannon.

   — Não me importa quem é. Entretanto, estou muito interessada em saber como se atreve a destroçar a entrada de minha casa e a entrar sem meu consentimento. E, além disso, a sujar o chão.

   — Assim que você é a que está surpreendida, apesar de que tem muitas coisas às que responder.

   — Quer dizer que tenho que responder a ti?

   — Exato.

Sarafina riu, jogando a cabeça para trás. Então, Rhiannon cruzou a habitação como um raio, agarrou-a pela nuca e se inclinou para ela, sussurrando:

   — Você atacou e seqüestrou ao guarda-costas de Amber Lily Bryant, a pessoa que mais aprecio neste mundo, e a única moça que nasceu meio vampiresa.

Sarafina controlou sua fúria, mas estava fervendo perigosamente ao mesmo nível a superfície.

   — Conhece os fatos. Sim, eu levei a um homem, porque Amber me pediu isso.

   — E por essa razão, os caçadores de vampiros apanharam a Amber.

   — Solte-me o pescoço.

   — Diga-me onde está o homem. — lhe ordenou Rhiannon.

   — Não sei onde está, e embora soubesse, não lhe diria isso.

   — Mentirosa!

Sarafina apertou as Palmas das mãos contra o peito da mulher e a empurrou com força. Rhiannon voou até o outro lado da habitação e se golpeou contra a parede, com tanta força que fez um buraco nos tijolos. Os quadros caíram ao chão. Rhiannon se recuperou imediatamente e se lançou contra Sarafina. Golpeou-a como a bala de um canhão, e as duas rolaram pelo chão.

Entre murros selvagens e arranhões, Sarafina deu uma olhada à pantera, temendo-se que saltasse sobre ela para fazê-la em pedaços. Entretanto, o animal se limitava a passear inquieta de um lado a outro, agitado.

Sarafina seguiu lutando por sua vida, tentando esquivar dos poderosos golpes de Rhiannon. Caíram sobre a mesa e a fizeram pedacinhos, e naquele momento, no chão, Sarafina se deu conta de que seus serventes estavam na habitação ao lado, observando horrorizados a luta de uma esquina.

Ela lhes havia dito que partissem. Por Deus, tinham desobedecido as suas ordens! Tirou-se ao Rhiannon de cima e os viu inclinados sobre um pequeno moedeiro negro. Era a carteira de Willem. Que demônios pensavam que estavam fazendo, e por que a tinham conservado quando ela lhes havia dito que a enviassem?

Então sentiu um tremendo golpe nas costas. Rhiannon tinham destroçado uma cadeira contra sua espinha dorsal, conseguindo que caísse de joelhos.

   — Vão se matar! — disse Misty, enquanto Sarafina se revolvia e lançava Rhiannon contra a parede em frente — Aqui está o número. Vamos, Edward, temos que chamá-lo!

  

Will despertou ao meio-dia, tirou o carro da garagem do hotel e conduziu sem destino, com a esperança de que o pequeno artefato de rastreamento lhe desse uma pista de onde estavam as garotas. Parou duas vezes para comer, e as duas vezes tomou todas as proteínas que pôde. Quando anoiteceu de novo, já se sentia bem melhor.

Tinha tentado entrar em contato com Bryant várias vezes, embora soubesse que o homem não estaria acordado durante o dia. Imaginava que teria uma criada, ou alguém que pudesse responder a suas chamadas. Entretanto, não foi assim, e tampouco teve sorte quando caiu a noite. Estava começando a perguntar-se se o homem que o tinha contratado e suas protegidas não teriam se esfumado da face da terra.

Então, o celular começou a soar brandamente.

   — Diga? — perguntou. Por alguma estúpida razão, quase tinha a esperança de que fora Sarafina que o estivesse chamando.

   — Willem! Tem que vir rapidamente!

Ele franziu o cenho, porque aquela voz lhe soou vagamente familiar. De repente, reconheceu-a.

   — Edward?

   — Sim. Veio uma mulher. Uma como a senhora. Estão brigando.

O estômago de Will se encolheu, mas não quis lhe emprestar atenção a aquele detalhe.

   — Claro. Isso é algum truque para que eu volte, verdade? Onde está Sarafina? Deixe-me falar com ela.

   — Vão se matar, Willem. Não sabemos a quem chamar!

Ouviu que alguém lhe tirava o telefone, e então lhe chegou a voz de Misty.

   — Por favor, Willem, tem que vir! — gritou-lhe.

Willem percebeu ruídos que provinham do fundo.

Golpes violentos, cristais quebrados e estrondo. Houve um grunhido de dor, um ofego e um grito afogado. Depois ouviu imprecações. Reconheceu a voz de Sarafina, e ouviu também a de outra mulher. Então, o estômago sim lhe deu um tombo de verdade.

   — Deus.

   — Por favor, venha pressa! A estranha perguntou por você. É você que quer! Está matando a nossa senhora por sua culpa... Por favor...

   — Está bem, está bem. Estou indo agora mesmo. — disse, e girou o volante por completo enquanto o dizia.

O sentido comum lhe gritava que era idiota, e que era uma loucura voltar para aquele lugar. Entretanto, o resto de sua cabeça lhe estava pedindo que fosse para lá o mais rápido possível, e não só porque aquela mulher que perguntava por ele pudesse lhe dar alguma pista sobre o paradeiro das moças. Também porque Sarafina estava em perigo, estava sofrendo, possivelmente defendendo sua própria vida, e ele não podia suportar pensar aquilo. Todas as células de seu corpo queriam estar ali para ajudá-la e protegê-la.

Claro. Aquilo era exatamente como querer proteger a um lobo faminto.

Ela não necessitava de seu amparo. E Will não sabia o que ia fazer quando chegasse ali. Uma mulher como a senhora, havia dito Edward. Aquilo significava que a visitante também era uma vampiresa? Que demônios ia fazer ele com duas mulheres daquela raça?

Moveu-se entre os carros tocando a buzina, pedindo passagem, até que finalmente chegou a uma estrada vazia e pisou no acelerador. Quando chegou a casa de Sarafina, tirou sua pistola do porta-luvas e a meteu na parte traseira da cintura das calças.

A porta da grade estava aberta, mas não importava, porque uma Mercedes já havia derrubado a sebe. Entrou correndo pelo caminho de cascalho e ao chegar à casa se deu conta de que a porta principal parecia lascas. Então tirou a arma da cintura e diminuiu o passo, no caso do que lhe estava esperando era uma armadilha.

Quando chegou ao salão, encontrou tudo destroçado. Os móveis e os vasos estavam quebrados, e não parecia que tivesse havido uma briga, estava mais para um furacão.

Sarafina estava sentada ao pé das escadas, junto a uma parte de corrimão quebrado. Tinha a cabeça pendurada para frente, com os cachos pendurados pela cara. Tinha a blusa rasgada e os braços cheios de hematomas. Ele deu um passo para ela, quando de repente, viu o enorme gato.

   — Deus Santo! — virou-se para a esquerda e apontou a pistola para a enorme pantera. O animal estava junto ao corpo de outra mulher, sentada contra a parede.

   — Baixa a arma, mortal. — lhe disse a estranha mulher com a voz débil. Tinha o cabelo negro como o de Sarafina, mas completamente liso, úmido e sujo — Não vai fazer mal a você... A menos que eu o diga. — levantou uma mão e acariciou a cabeça do felino.

Ele baixou a pistola, mas só um pouco, e começou a andar para Sarafina com um olho posto no animal.

   — Se der um só passo para mim, senhora, seu mascote será história.

   — Willem? — ao ouvir sua voz, Sarafina levantou a cabeça lentamente. Tinha um horroroso hematoma em um lado da cara.

   — Demônios, o que ocorreu aqui? — meteu-se a pistola nas calças e se esqueceu da pantera. Deus, por que lhe tinha encolhido a alma ao vê-la assim? Por que queria abraçá-la e acalmar a sua dor com beijos, e depois destruir à pessoa que lhe tivesse feito aquilo? Ela era sua inimiga!

Não. Ela era parte dele, e Will sabia. Era uma estupidez seguir negando o que sentia por aquela mulher.

Ajoelhou-se a seu lado e a abraçou para lhe ajudar a levantar-se. Afastou-lhe o cabelo da cara com uma carícia.

   — Está bem?

   — Acredito que sim. — Sarafina se apoiou nele e o olhou, como se não acreditasse por completo no que estava vendo— Você voltou...

   — Tinha que voltar...

Ela esteve a ponto de sorrir, mas se conteve. Ergueu-se e olhou ao outro lado da sala. A outra mulher também estava se levantando.

   — Disse a você que não o tinha matado.

A outra arqueou uma sobrancelha. Ela também estava muito golpeada e tinha hematomas, embora fosse difícil distinguir, porque estava muito suja.

   — Tem sorte de que eu não tenha te matado.

   — Se você realmente quisesse que eu morresse, teria deixado o gato me devorar.

A outra olhou à pantera.

   — Pandora está ficando velha. Já não lhe deixo lutar. Só que se alimente com os restos quando termino.

Will fez um gesto de repugnância e deixou escapar um juramento em voz baixa.

   — É Willem Stone, suponho. — lhe disse a estranha.

Ele assentiu.

   — E você é...

   — E sou Rhiannon. — disse ela, como se estivesse anunciando que era a rainha do universo.

   — E, isso tem que significar alguma coisa para mim? — encolheu os ombros, olhando Sarafina, e depois de novo à estranha — Eu sinto muito, mas não conheço os vampiros.

Rhiannon o olhou com cara de poucos amigos, mas depois continuou.

   — A garota que tinha que proteger é muito querida para mim, e graças a vocês dois, agora está em mãos de uns homens miseráveis.

   — Levaram a Amber Lily?

   — Sim. E também a seus pais e a meu marido, quando íamos resgatá-la. — disse, e baixou a cabeça ao pronunciar aquelas palavras.

Ela era uma mulher dura, pensou Will, mas estava assustada por aqueles que amava, e ao mesmo tempo queria dissimulá-lo.

   — E Alicia? — perguntou ele.

   — Está a salvo. Amber a escondeu deles para protegê-la. Enviamos a ela e a sua mãe para um lugar seguro.

   — E tem alguma idéia de onde estão os outros?

   — Não. Esses homens não são tolos. Deixaram pistas que conduziram a uma pequena cidade de Connecticut, diretamente a sua armadilha. Eu deveria ter sabido. É mais que possível que os tenham transladado de lugar... Isso se não os mataram.

Sarafina falou brandamente.

   — Exceto à garota. Eles não a matarão.

   — Nem sequer a teriam, se não fosse por sua interferência.

   — Já te disse que só estava tentando protegê-la.

   — De mim. — interveio Will.

Olhou Sarafina nos olhos, perguntando-se por que não teria se limitado a matá-lo se realmente pensava que ele era capaz de fazer dano a uma menina inocente. Entretanto, já sabia por que. Havia algo entre eles, uma conexão que vibrava de energia, inclusive naquele momento. Possivelmente naquele momento mais que nunca. Ela não poderia lhe fazer dano, assim como ele não poderia fazer a ela. E embora tivesse querido pensar que era pelo sangue, sabia que havia muito mais.

   — Poderia me levar lá? — perguntou Will.

Rhiannon o observou com os olhos entrecerrados.

   — Você vai ajudar-me, então?

   — Me contrataram para proteger essas garotas. Eu nunca fracassei em uma missão, ainda. E tenho a intenção de terminar esta com êxito, como as demais.

Sarafina se plantou frente a ele e lhe pôs as mãos sobre os ombros.

   — Will, esses homens são poderosos. Podem matar você.

   — Como no resto de minhas missões. É parte de meu trabalho, Sara. Sempre foi.

Olhou a perna e a bengala.

   — Não pense que isto é uma grande desvantagem. — lhe disse ele — Não me impediu de vencer você, verdade?

Sarafina afastou o olhar.

   — Seu talento para a mentira é assombroso.

Ela estava irada por suas mentiras, por sua atuação. Aquilo era um bom sinal.

   — Temos que ir. Passou outro dia inteiro, e não estou segura de como vamos encontrá-los se os transladaram.

Sarafina a olhou.

   — Você vai querer trocar de roupa. Eu também vou trocar, antes de ir.

   — Ir? Acredita que quero sua ajuda, depois do que fez?

   — Não. — disse Sarafina — É muito obstinada e arrogante para querer minha ajuda. Mas a necessita, porque do contrário não teria vindo até aqui. Sobe. Só será um momento.

As duas se dirigiram, movendo-se com dificuldade, para a escada.

   — Vigie meu gato. — disse Rhiannon, voltando-se para Will.

A seu lado, algo quente e enorme lhe deu um golpe suave na perna. Olhou para baixo, assombrado, e viu a pantera esfregando o flanco carinhosamente contra sua coxa. Fechou os olhos e sacudiu a cabeça. Tinha entrado em um mundo nebuloso, e não acreditava que fosse sair logo.

Deu uns golpezinhos na cabeça da pantera. O animal empurrou para cima, e ele acreditou seriamente que estava ronronando.

   — E o que há entre você e o mortal? — perguntou Rhiannon a Sarafina, enquanto secava o cabelo com uma toalha, depois de tomar uma ducha rápida.

   — Do que você está falando?

Rhiannon se voltou e pegou um dos vestidos que Sarafina tinha deixado sobre a cama.

   — Ele não é um dos nossos. E, tampouco é um dos Escolhidos.

   — Não sou nem tola nem cega. Já tinha me dado conta.

   — Então, que demônios está fazendo com ele? — seguiu pressionando Rhiannon.

   — Não sei. Isso não é assunto seu, Rhiannon. — Sarafina soltou a resposta muito rapidamente, tentando fingir que não acontecia nada. Entretanto, sabia que Rhiannon havia se dado conta da primeira resposta.

   — Envelhecerá. — disse Rhiannon — Morrerá. E você não.

   — Eu poderia morrer. Nunca se sabe. — disse ela, enquanto fechava a saia. Depois, ficou um par de sapatos cômodos.

   — Se eu o devorar quando terminar tudo isto, vou te economizar um montão de problemas. — disse Rhiannon.

Sarafina se deu a volta como um raio.

   — Se atrever-se a tocá-lo...

   — Sabia! Está apaixonada por um mortal! Pelos deuses, tem idéia do sofrimento a que está se arriscando?

   — Eu não estou apaixonada por ninguém. — disse Sarafina, e se encaminhou para a porta.

   — Demônios, é possível que não tenha que destroçar você quando tudo isto terminar. — murmurou Rhiannon, seguindo-a — Você mesma se fá muito mais dano que eu.

Aquela miserável arrogante tinha razão. Era exatamente a razão pela qual tinha jurado que nunca voltaria a amar a ninguém. Entretanto, ela não tinha quebrado aquela promessa. Ao menos, naquilo a vampiresa estava equivocada. Ela não amava Willem Stone.

Não.

  

   — Juro-lhe que estou dizendo a verdade. — disse Amber Lily Bryant.

Não estava choramingando. Stiles não tinha ouvido a garota choramingar até o momento. Ela era a classe de pessoa a que ele teria admirado, em outras circunstâncias. Mas estava no lado errado de tudo aquilo. Se seus experimentos tivessem êxito, entretanto, logo teria a arma anti-vampiros mais eficiente conhecida pelo homem.

— E como é possível que não saiba se é imortal ou não?

Ela encolheu os ombros.

   — Eu cresço. Os vampiros não mudam a partir do momento em que são transformados. Se eu envelheço, é lógico pensar que ao final morrerei.

   — Uma coisa não tem que significar necessariamente a outra.

   — Não?

Ele sacudiu a cabeça.

   — Sara tão rápido como outros vampiros? Em um dia?

   — Nunca tive nenhuma ferida grave em toda minha vida. Embora, se quer saber isso, vocês me têm feito suficientes para comprová-lo por si mesmos.

Ele franziu o cenho e observou as tirinhas e ataduras que a garota tinha nos braços e no peito, onde sua equipe tinha tomado pequenas amostras de pele.

   — Diz que nunca teve uma ferida. Entretanto, está claro que sua pele não é impenetrável.

   — Não. É porque meus pais sempre foram muito protetores comigo.

   — Ahh, assim nunca sofreu nenhum acidente. E teve alguma doença? Resfriados, gripe?

   — Não sei.

   — Alguma vez esteve doente?

   — Não, que eu recorde.

   — Pois isso não é compatível com o fato de ser mortal. — disse ele. Ela encolheu os ombros — Sabe? É possível que ao final você mesma esteja contente desta investigação. Deve querer saber mais sobre sua própria natureza. Sobre tudo se for algo tão importante como saber se vai morrer ou não.

   — Tudo o que vive pode morrer, senhor Stiles.

   — Doutor Stiles. — corrigiu ele.

Ela apertou os lábios, duvidando em silêncio daquele título.

Stiles pensou que era muito esperta. Era verdade que ele não tinha nenhum título. Era um autodidata. Tinha uma experiência com os vampiros que tinha guardado durante toda a vida e que valia mais que tudo o que um homem tivesse podido aprender na universidade. E todos os anos de investigação no DIP. Tinha trabalhado com grandes cientistas de seu tempo. Ele deveria ser doutor, embora não fosse.

   — Já comprovamos que tem capacidade telecinética. Não necessito demonstrações. Mas, pode ler o pensamento dos outros?

   — Só a outros vampiros, e quando não estão bloqueando sua mente. Assim é como sei que minha família está bem, no porão abaixo.

   — E eles podem ler os seus?

   — Sim. São as mesmas regras. Embora eles também possam ler as dos mortais, quase de todos, dependendo de quão forte seja a vontade de uma pessoa.

   — E você não pode?

   — Não.

   — Já. — disse ele — Deixe-me ver uma dessas pequenas feridas, de acordo?

Ela estirou o braço, e ele tirou uma das tirinhas. Deu-se conta de que ela nem sequer piscava. Possivelmente porque não doía. Stiles franziu o cenho enquanto olhava de perto a marca em sua carne.

   — Já está quase curado. É possível que você não sare em um dia, como fazem seus parentes, mas realmente se cura em muito menos tempo que qualquer mortal. E também é fisicamente mais forte.

   — Olhe, cooperei. Tirou-me suficiente sangue e tomou suficientes amostras de mim para construir um novo modelo, e respondi a as todas suas perguntas. Não tem já tudo o que necessita? Não pode deixar que partamos?

Ele fez caso omisso de sua petição. Pôs a tirinha em seu lugar.

   — E como são seus ciclos menstruais? Normais?

Ela não disse nada.

   — Bom, suponho que isso não tem importância neste momento. — disse. Tinha a intenção de mantê-la com vida tempo suficiente para averiguá-lo — Agora pode descansar. Depois veremos quanto peso é capaz de levantar. Estou seguro de que sempre se perguntou isso, verdade?

   — Não.

Ele suspirou. Ainda não estava seguro de se lhe havia dito a verdade a respeito de seu vegetarianismo ou tinha sido um intento de sarcasmo. Entretanto, de as todas as formas havia dito a Kelsey que lhe levasse comida vegetariana.

   — Você foi uma boa garota esta manhã. Seguiremos mais tarde com o resto.

Pegou a arma com o dardo tranqüilizador e o manteve apontado para ela enquanto chamava Nelson para que lhe abrisse a porta de barras. Nunca entrava na cela com as chaves. Aquilo poderia lhe causar problemas.

Sim, tinha decidido que prenderia Amber durante um período comprido. Seria seu objeto de estudo pessoal para o resto da vida dela, ou da sua, o que ocorresse primeiro. Era possível que inclusive a fizesse reproduzir-se, para ver que tipo de monstro produzia.

Aos outros, é obvio, teria que matá-los. Não gostava dos vampiros, e não pensava que houvesse muito mais que aprender sobre eles. O DIP tinha esgotado todas as vias de estudo, e embora ele tivesse temido que a maioria daquela informação se perdesse durante o incêndio do quartel general, mais de uma década atrás, durante o ataque dos vampiros, uma das relíquias que tinha resgatado dentre as cinzas tinha resultado ser o disco rígido de um dos computadores centrais da organização.

Tudo o que tinham aprendido estava ali.

Os pais da garota, e seu tio Roland, eram dispensáveis. Entretanto, não poderia desfazer-se deles até que a garota lhe proporcionasse por sua própria vontade toda a informação que necessitava. Desceu as escadas para uma sala que tinha sido o laboratório de Eric Marquand, embora Stiles não entendesse para que um vampiro necessitava um laboratório. Na atualidade, a estadia tinha recuperado sua função. Fechou a porta com chave atrás dele e se assegurou de que estava sozinho. Depois abriu um armário, tomou umas quantas notas em uns livros que eram só para seu uso, e voltou a guardá-los e fechar o armário. Então, foi a um pequeno refrigerador e tirou uma ampola com glóbulos brancos de Amber. Tinha-os separado do resto do sangue para assegurar-se de que não haveria incompatibilidade com a sua. Depois inseriu a ampola em uma seringa de injeção e se buscou a artéria. Cravou-se a agulha, apertou a seringa de injeção e fechou os olhos.

    

   — Dois carros serão melhor que um. — disse Will — Necessitaremos todas as ferramentas que estejam a nossa disposição.

Rhiannon assentiu. Ela e seu gato se meteram na Mercedes.

   — Sigam-me de perto. — disse a Sarafina e Will — Não me percam de vista.

   — Estaremos justo detrás de você. — prometeu Will, enquanto caminhava para a lateral de seu carro. Abriu a porta para Sarafina, e pareceu que lhe surpreendia aquele gesto. Depois, ele correu para seu lado e se sentou atrás do volante.

Pôs em marcha o motor e se afastou em marcha ré do caminho. Deteve-se um instante para que Rhiannon saísse diante dele, e depois a seguiu.

   — Dói tanto como sinto que dói? — perguntou a Sarafina.

   — O que significa isso? — disse-lhe ela, confusa.

   — Tenho muitas dores que não tinha antes. Parece como se fosse eu o que tem um galo na cabeça, um hematoma na bochecha e o tornozelo torcido, entre outras coisas.

   — Você sente minha dor?

   — Imaginei-me que é por causa do sangue. Misty e Edward não...?

   — Não.

   — Está segura? — jogou um olhar de soslaio, sem apartar a vista da estrada — Pareceu que também sentiam quando me chamaram por telefone.

Ela sacudiu a cabeça.

   — Eles têm ânsia por mim, como se fosse uma droga. Acreditam que me querem, mas o que querem é meu sangue. Não vivem dentro de mim da mesma maneira que...

   — Da mesma maneira que eu. — terminou ele.

Ela voltou a cara e fixou o olhar no vidro.

   — Eu estava furiosa com eles por me desobedecer, e eles sabiam. Correram para o bosque um instante depois de chamar você, que era o que lhes havia dito que fizessem desde o começo.

   — Então, não lhe desobedeceram. Simplesmente, obedeceram-lhe um pouco mais tarde.

Ela o olhou fixamente, arqueando as sobrancelhas.

Will sentiu sua dor como se fosse ele quem tivesse se movido. Doía-lhe a cabeça e tinha o pescoço rígido.

   — O que estou sentindo é real, verdade? Dói muito.

   — Os vampiros sentem as coisas em um grau muito mais intenso que os mortais. A dor e o prazer são mil vezes mais fortes em minha raça. Todos os sentidos são. Assim é certo que os golpes e as feridas estão causando desconforto. Se tiver algum dano grave, de todas as formas, vai se curar durante o sono diurno.

   — Mas tem que suportá-lo durante metade da noite que temos pela frente. — disse ele, sacudindo a cabeça — Realmente, ela deu uma boa surra em você.

Ela lançou um olhar assassino.

   — Não quero incomodar você. Simplesmente, é que estou assombrado de que tenha vencido você. Depois de tudo, você também me deu uma boa surra.

   — Por que está fazendo isto?

   — Fazendo o que?

   — Conversando comigo. Como se... Como se não me odiasse com todas as suas forças.

Ele exalou um suspiro e ficou calado durante um instante.

   — Suponho que é porque não odeie.

Ela o olhou com os olhos entrecerrados, como se não acreditasse.

   — Provavelmente deveria odiar, tendo em conta o que tentou me fazer. Deus sabe que o tentei. Mas não odeio. Em realidade, quase te respeito por ter tentado proteger a essas duas garotas às que não conhecia. E, além disso, contra um homem com o qual sente certa conexão. Possivelmente, quando se importa um pouco. Ou estou equivocado?

Ela não disse nada. Só afastou o olhar e voltou a fixá-lo no vidro do carro.

   — Tenho suposto que por isso não me matou diretamente. Por... Os laços que existem entre os dois.

   — Eu não matei você porque nunca tinha conhecido a um homem com uma vontade tão forte como a tua. Submetê-la era um desafio ao que não pude resistir.

   — E isso é tudo?

   — Isso é tudo.

   — Sinto muito, Sarafina, mas acredito em você. Não pôde fazê-lo, e, além disso, ainda está comigo. E se o desafio de submeter minha vontade era tudo o que queria, ainda estaria tentando-o. Deus sabe que é o suficientemente forte para te enfrentar umas quantas vezes mais a mim.

Sarafina se voltou para ele lentamente.

   — No caso de que não tenha se dado conta, Willem, temos coisas muito mais importantes com que nos ocupar agora. Eu interpretei mal a situação e pus em perigo à Menina da Promessa. Tenho que arrumar esta situação. E quando terminar, se os dois estiverem vivos ainda, possivelmente reconsidere o de voltar a tentar o que quero conseguir com você.

Ele sorriu, um pouco perversamente.

   — Não. Não o fará.

   — E por que está tão seguro?

   — Porque é possível que você conseguisse me submeter. E então, nunca teria a satisfação de saber se desejo tanto e estou tão apaixonado por você por seu controle ou simplesmente por mim mesmo.

Ela o olhou, como se lhe tivesse golpeado entre os olhos com uma maça.

   — É certo. Você sabe. — disse ele.

Sarafina sacudiu a cabeça.

   — Está jogando de novo com minha mente.

   — Eu nunca joguei com sua mente. E nada do que fiz nessa casa era um jogo. Desejava até o último pedacinho de seu corpo, e mais ainda. E não posso lhe jogar a culpa ao sangue, porque já estava ansioso por te ter antes que nos encontrássemos em pessoa. E acredito que sabe, porque você também ansiava estar comigo.

   — Não.

   — Sim. E quer saber por que. Que demônios significa. E nunca o averiguará se me liquida o cérebro, como a esses dois escravos zumbis que tem.

   — Não pode estar mais confuso, Willem Stone.

   — Você quer que eu esteja confuso, mas nós dois sabemos que não o estou. Ao menos, eu sou honesto e o admito, Sara. Desfrutei durante todo o tempo que estive acorrentado a essa cama, obrigado a me submeter a sua vontade. E você também desfrutará, quando eu devolver o favor uma destas noites.

Ela o olhou com os olhos muito abertos, e Will viu algo que nunca tinha visto antes.

   — Deus, tem-me medo.

Sarafina apertou os lábios e se cruzou os braços.

   — Não seja idiota. Posso esmagar você como a um pardal, mortal.

   — Exatamente. Então, o que há em mim que a assusta tanto?

   — Eu não me assusto. — lhe disse ela — Sou uma vampiresa. Sobrevivi durante séculos. A monstros, a ataques de todas as classes, a caçadores de vampiros... Não há nada que me assuste.

   — Claro.

Will se concentrou na condução. Entretanto, tinha a sensação de que havia se aproximado de algo. Tinha a sensação de que se aproximou da chave do entendimento daquela mulher que o fascinava. E, por alguma razão, entender a Sarafina era o mais importante que tivesse necessitado conseguir em sua vida. Mais importante que escapar de seus captores, que sobreviver em suas missões, que manter-se com vida.

Sarafina não gostou de saber que ele acreditava que a assustava. Só queria que aquela missão terminasse para poder afastar-se de Willem Stone o mais rapidamente possível. Não queria admitir que tinha sentido remorsos ao acreditar que tinha conseguido submeter sua vontade. Admitir aquilo teria sido como admitir debilidade e falta de confiança em seu próprio senso comum.

Nem tampouco estava disposta a admitir como suas mentiras a respeito de que a desejava e a queria, apesar do que ela era e lhe tinha feito, tinham aceso fogo em seu ventre e tinham causado nostalgia em seu coração.

Ela se tinha dado de corpo e alma a outros, a seu prometido, a seu senhor vampírico, a seu irmão de sangue... E, todos a tinham traído, todos a tinham abandonado ao final, destroçando-a.

Com o Willem, as coisas seriam iguais. Inclusive, por algum capricho do destino, ele não tinha intenção de abandoná-la, finalmente a deixaria igual. Já que era mortal, e ela não.

Não havia futuro com ele. Nenhum.

Um assobio suave, curto e repetitivo, tirou-a de seus pensamentos. Olhou ao Willem.

   — O que é isso?

Ele girou o volante para um lado da estrada e freou o carro. Depois piscou os faróis para avisar a Rhiannon. Ao vê-lo, a outra vampiresa parou também e saiu do carro. Enquanto se aproximava deles, Willem estava rebuscando algo no porta-luvas do carro, e finalmente tirou o artefato que estava apitando. Era como uma caneta, mas tinha uma pequena tela e uma luzinha verde que reluzia ao mesmo tempo que o assobio.

   — Por que você parou? — perguntou Rhiannon, inclinando-se para o vidro do carro.

   — Isto. — disse Will, mostrando a pequena caneta as duas — É um mecanismo de rastreamento. Pus um igual na mochila de Amber Lily. Envia um sinal a esta outra parte e me diz onde está.

Rhiannon olhou o aparelho.

   — Diz onde está sua mochila.

   — Bom... Sim, isso é certo. Mas se a tiver com ela...

   — Sim, já me dou conta de que poderia ser útil. Poderia detectá-la se estiver em uma mansão a uns quarenta quilômetros daqui?

   — Sim.

   — Então, está ali. Não a trocaram de lugar. Ainda está na casa de Byram. Ou ao menos, sua mochila.

   — Isto nos dirá onde está. Inclusive nos dirá em que cela está, quando nos aproximarmos o suficiente.

   — Será muito útil. — disse Rhiannon. Olhou a Sarafina e continuou — Deveríamos nos alimentar. Nenhuma das duas está em boa forma depois de nosso pequeno... Desacordo. — disse, e olhou ao Willem.

   — Não, enquanto eu viver. — disse Sarafina.

Rhiannon encolheu os ombros.

   — Por Deus, só tomaria um pouco. O suficiente para acalmar a dor do meu braço. Acredito que você tenha quebrado-o.

   — Terá que me matar primeiro, Rhiannon.

Ela suspirou.

   — Não me importaria em fazê-lo, se não precisasse de você para arrumar tudo isto.

   — Caça um coelho. Remói a seu maldito gato, se precisa tanto comer.

   — Por favor... — disse ela, com um gesto de repugnância – Limitarei-me a me beber o sangue do primeiro homem de Stiles que veja. — olhou ao Willem e lhe deu uma piscadela — Você não sabe o que perde, querido.

Depois se voltou. Caminhou até seu carro, entrou e ficou em marcha de novo.

Will o seguiu, mas enquanto conduzia, jogou um olhar a Sara.

   — Por que não me disse isso?

   — O que?

   — Que a dor se acalmaria... Né... Já sabe.

   — Você também necessitará de todas as suas forças, Willem. Se beber de você, debilitarei-te.

   — Toma só um pouco. Estive tomando bebidas protéicas durante todo o dia.

   — De que sabor? Se eram de chocolate, está perdido.

Ele a olhou confuso, e depois surpreso.

   — Não posso acreditá-lo. Fez uma brincadeira?

Ela apartou o olhar e voltou a cabeça.

   — Vêem aqui. — disse ele, e lhe passou o braço pela cintura para atraí-la para si. Depois fez com que inclinasse a cabeça e a apoiasse em seu ombro, com a cara frente a seu pescoço — Adiante.

Sarafina observou seu pescoço forte, lambendo-se. Já conhecia seu sabor, e o desejava.

   — Quando bebo de ti, Willem... Bom, tenho dificuldades para saber quando devo parar.

   — Sim, e eu tenho problemas para querer que pare. — disse ele, e lhe aproximou a cara à garganta. Sua pele lhe tocou os lábios, e ela passou a língua pela carne, saboreando o sal, sentindo o pulso que pulsava debaixo.

Ele se estremeceu.

   — Faça-o.

   — Possivelmente... Em algum outro lugar que não resulte tão perigoso para você. — disse Sarafina, e se deslizou para baixo, lhe roçando com a cabeça o peito e o estômago, até que chegou a suas coxas.

   — Oh, sim. — sussurrou ele.

Com uma unha, Sarafina lhe rasgou o tecido das calças um pouco, o justo para dar acesso a sua boca, e lhe cravou os dentes brandamente na coxa.

Ele tomou ar e sentiu que lhe esticavam os músculos. Depois lhe relaxou o corpo inteiro, enquanto ela sugava pelas duas minúsculas feridas que lhe tinha feito. Acariciou-lhe a cabeça, lhe entrelaçando os dedos no cabelo, lhe roçando a nuca para animá-la. Sarafina sentiu sua excitação sob os jeans, lhe apertando a bochecha.

Poder. Seu poder, intensificado pelo de Sarafina quando ela tinha provado seu sangue, percorreu-lhe as veias e o corpo. A dor se mitigou. Assimilou a essência de Willem Stone, sentiu os batimentos do coração dele unindo-se com os dela mesma.

E então, o fluxo do sangue diminuiu. Tinha-lhe perfurado muito pouco a carne, e longe de qualquer veia importante. Sugou a pele até que não ficou mais substância e depois afastou a cabeça.

Ele a atraiu para si, e ela deixou descansar a cabeça em seu ombro durante vários minutos enquanto Will seguia conduzindo.

   — Encontra-se melhor? — perguntou-lhe por fim, com a voz um pouco rouca, mas controlada — Eu já não sinto tanto a dor como antes.

   — Sim, muito melhor. — respondeu Sarafina, e levantou a cabeça — E você? Tomei muito?

   — Não, demônios. Mas a próxima vez, será melhor parar o carro primeiro.

Ela tinha estado muito relaxada contra ele, quase aconchegada, como se fossem um casal de apaixonados. Mas naquele momento ficou rígida e se afastou. Arrumou-se o cabelo e pôs uma distância fria entre eles.

   — Não... Não haverá próxima vez.

   — Ã-ham. Uma ova que não.

Ela o olhou fixamente, e Will afastou a vista.

   — Olhe. — lhe disse ele — Antes há dito algo em que tinha razão. Agora temos coisas muito mais importantes das que nos ocupar. Mas quando tudo isto termine...

Sarafina lhe pôs um dedo sobre os lábios.

   — Não diga nada.

Beijou-lhe o dedo e assentiu.

   — Está bem. Não direi nada. No momento.

Sarafina fechou os olhos e apoiou a cabeça no respaldo. Possivelmente tivesse sentido alívio muito rápido. Possivelmente seus esforços por fazê-lo seu, para que obedecesse a suas ordens, tivessem funcionado depois de tudo. Ela detestava aquela idéia. Entretanto, do contrário, por que Willem Stone estava comportando daquela forma?

  

Angélica estava sentada no chão do porão, acordada, mas débil. Stiles tinha se assegurado de mantê-los no limite de suas forças. Tinham-lhes proporcionado alimento, mas como sabiam que estava drogado, não o tinham tomado. Roland o tinha atirado ao chão, para assegurar-se de que ninguém tomaria em caso de que a fome conseguisse impor-se ao senso comum.

   — Quando isto era parte do refúgio de Eric, era muito mais agradável. Havia abajures, móveis, música... — disse Roland, brandamente.

Angélica olhou a seu redor, recordando como tinha sido aquela estadia no passado. Todas as saídas haviam sido seladas, incluída a que dava a um passadiço subterrâneo para o exterior. E todos eles estavam muito fracos para conseguir romper algum dos selos. Tinham-lhes disparado com balas impregnadas de um tranqüilizador que tinha inventado, fazia décadas, o DIP. Embora o sonho diurno sanasse suas feridas, só o sangue poderia lhes devolver a força. E ali não podiam alimentar-se.

E sua filha, sua preciosa Amber Lily, estava naquela casa. Angélica a sentia. Estava assustada e sozinha, embora no momento, não a tinham submetido à tortura. Angélica não acreditava que Amber tivesse conseguido aperfeiçoar a habilidade de bloquear seus pensamentos até o ponto de poder lhe ocultar uma dor intensa a sua mãe. Amber lhe tinha sussurrado, uma e outra vez, que estava bem, e que não lhe tinham feito mal. E Angélica lhe tinha mandado a mesma mensagem sobre eles.

Entretanto, naquele momento manteve seus pensamentos cuidadosamente fechados para sua filha.

“Jameson.”, sussurrou com a mente. “Há um caminho.”

Ele estava caminhando pelo porão, completamente arrasado por estar ali e não poder resgatar a sua filha, e amaldiçoando-se por lhe haver permitido fazer aquela viagem, em primeiro lugar. Deteve-se ante a porta de saída, agarrou-se as barras, e disse laconicamente:

   — Não.

“Tem que ser você. Eu nem sequer seria o suficientemente forte, em condições normais, para vencê-los a todos. Mas se beber de mim, estará forte de novo, tanto como para romper essas barras e salvar Amber Lily.”

   — Não seja absurda, Angélica! — interveio Roland, ficando de pé — Está muito fraca. Isso a mataria.

Ela olhou Roland nos olhos.

   — Sou sua mãe. Se isso for o que precisar fazer para salvá-la, não me importa.

   — Não vou fazer. — disse Jameson, lançando aos dois um olhar furioso — Nem sequer o sugira, porque tampouco farei contigo. — disse ao Roland.

Roland franziu o cenho.

      “Jameson, se com isso a salvas deles...”

   — Conheço minha filha. — soltou ele, de má maneira. Depois se controlou e falou através da mente, com suavidade.

“Ela nunca poderia viver tranqüila sabendo que um de vocês dois morreu para salvá-la. Não poderia, e eu não vou pedir que o faça.”

   — Mas temos que fazer algo. — sussurrou Angélica — Não podemos ficar de braços cruzados, esperando que eles decidam nosso futuro, e o seu.

   — Esperem! — exclamou Roland. Elevou uma mão e ficou imóvel — Escutem.

Todos abriram mais ainda suas mentes.

“Estou aqui fora.”, sussurrou Rhiannon, e todos a perceberam com claridade. “Acompanham-me a vampiresa, Sarafina, e o mortal, Willem Stone. Onde estão?”

“No velho refúgio de Eric, no porão.”, respondeu Roland.

“E o passadiço?”

“Está murado. Amber Lily está em alguma cela na casa.”

“Sim, sabemos. Acreditamos que está no segundo andar, em uma das janelas da parte traseira.”

Roland não lhe perguntou como o tinham averiguado. Não precisava sabê-lo, eles mal tinham tempo. Faltava pouco para o amanhecer.

“Tirem a ela primeiro.”, disse Roland a sua mulher. “Salvem a ela, e depois voltem por nós.”

“Assim que a salvemos, não terão nenhum motivo para respeitar suas vidas. Sabe disso.”

“Sua vida é mais importante, meu amor. E você também sabe.”

Angélica pôs uma mão no braço de Roland.

“Rhiannon, eles reforçam a guarda justo ao anoitecer. Sabem que nós só podemos atacar de noite, assim durante o dia não estão tão alertas.”

“Bem.”. Houve uma pausa. “O sol está começando a sair. Angélica, antes de dormir, diga a sua filha que nos faça algum tipo de sinal pela janela, para nos dizer em que cela está. Possivelmente este guarda-costas mortal resulte útil, depois de tudo.”

“Farei-o.”

Roland falou de novo.

“Agora têm que encontrar um refúgio. Têm que descansar até o anoitecer.”

“Quero-te, Roland. Sobrevive, ou todo mundo pagará.”

Roland sorriu e lhe respondeu que ele também a queria. Angélica se apoiou em Jameson, e ele a abraçou.

   — Espero que esse homem seja tão bom como você acredita que é. — sussurrou.

   — Ele é. Sei que é. — Jameson fechou os olhos — Deus, espero que seja.

    

Tinham reconhecido o lugar, com cautela, silenciosamente. Mas, em efeito, a guarda era muito forte. Para quando Rhiannon tinha terminado a conversa com aqueles aos que amava, o céu começava a empalidecer.

   — Vamos por aqui. — disse ao Will e a Sarafina, enquanto caminhava para um bosquezinho que havia junto à casa, com a pantera a seu lado — Há um abrigo. Acredito que antes se usava para fazer xarope com sabor de bordo²[2]. — enquanto seguiam caminhando, explicou-lhes — Têm ao Roland, Jameson e a Angélica em uma cela no porão. Antes havia uma enorme estante para vinhos que em realidade ocultava a porta de um passadiço secreto. Agora, essa entrada está murada. Possivelmente, o túnel esteja murado em ambos os extremos.

   — Possivelmente devêssemos dar uma olhada para comprovar se podemos derrubar o muro da saída.

Rhiannon assentiu.

   — Terá tempo para fazê-lo, enquanto nós descansamos.

Ele olhou a Sarafina e tragou saliva.

   — Não me sinto muito tranqüilo, lhes deixando a sós e sabendo que estão indefesas e adormecidas.

   — Não há outra opção. — lhe disse Rhiannon — Angélica me disse que a segurança não é tão rígida durante o dia. Certamente, não esperam que um mortal possa atacá-los. Se houver alguma maneira de entrar na casa e tirar Amber Lily durante o dia, faça.

Sarafina sacudiu a cabeça.

   — Mas assim que descubram que a garota escapou, matarão aos outros.

   — Provavelmente. Por isso será melhor esperar até antes do anoitecer para fazê-lo. Um pouco mais tarde, os guardas já teriam tomado suas posições.

Will não gostou daquele plano.

   — Ela colocará algo na janela para te indicar qual é a sua cela. —continuou Rhiannon — Aí está o abrigo.

Subiram uma colina e chegaram a uma pequena cabana de madeira. Will a examinou e franziu o cenho.

   — O sol entrará pelas frestas da madeira.

   — Há um espaço debaixo. —disse Sarafina, enquanto caminhava olhando para o chão, ao redor da cabana — Aqui há uma entrada. Podemos nos arrastar. — tirou uma tábua de madeira e olhou dentro do oco que havia sob o chão do abrigo, na terra úmida. Não tinha mais de cinqüenta centímetros de altura, e Deus sabia que criaturas o habitariam.

Sarafina ficou rígida. Rhiannon ficou de joelhos e depois se deitou no chão e entrou. A pantera entrou atrás dela.

   — Sara... — disse Will.

Ela o olhou nos olhos.

   — Não morra enquanto eu durmo. — respondeu ela, e depois desceu – Isso é uma estupidez. Não posso dizer a você que não morra. É seu fim inevitável, porque é mortal.

   — E você não. — disse Will. Pensou que possivelmente estivesse começando a ver-se a através dos olhos de Sarafina — Não vou morrer, Sara. Hoje não. Nem durante muito tempo.

   — Como se estivesse em seu poder me prometer algo assim.

   — Tem razão. Não posso prometer isso. Mas, é razão para viver cada momento de minha existência da forma em que quero vivê-lo. – disse, e lhe rodeou a cintura com os braços. Grudou-a a seu corpo com força e a beijou. Tremeram-lhe os lábios, mas quando os separou, entrelaçou-lhe os dedos no cabelo e lhe devolveu o beijo, com fome, com paixão.

Will notou o sol na pele e rompeu o beijo. Quando se olharam, Sarafina tinha as bochechas cobertas de lágrimas.

   — Se morrer hoje — lhe disse ele —, não o lamentarei.

   — Ah, mas eu sim. — sussurrou Sarafina. Depois se voltou e entrou no refúgio.

Will ficou ali durante um momento. Tinha-o entendido. Ela tinha amado e tinha perdido, uma e outra vez. Se se permitisse o fato de estar com ele, de querê-lo, estava garantindo-se de novo aquela dor da perda. Porque, ao final, ele também a deixaria. Envelheceria, debilitaria-se e morreria.

Inclinou-se e pôs a tábua em seu lugar de novo para bloquear a luz do sol. Depois ficou ali durante vários minutos, perguntando-se como se sentiria se fosse ele quem iria ficar sozinho.

Finalmente, desceu de novo até a casa através do bosque. Quando divisou entre as árvores a enorme casa e o caminho estreito e sem pavimentar que conduzia até a entrada, deteve-se para observar.

A grama dianteira estava cheia de matagais e de ervas. Agachou-se, enquanto o sol subia no céu, e observou como toda aquela massa vegetal tomava vida. Dos matagais emergiram homens vestidos de camuflagem que levavam rifles. Will contou até vinte, e tomou nota, mentalmente, da forma em que estavam situados, cada um a dois metros do anterior. Estavam repartidos pela frente da casa e nas laterais. Certamente, haveria mais na parte traseira.

A informação de Rhiannon tinha sido certa. Não estavam muito preocupados com um ataque durante o dia. Enquanto ele observava, reuniram-se perto da porta da entrada. Então, viu quatro mais, que vinham da parte traseira a unir-se com seus camaradas.

Poucos minutos depois chegou um caminhão e se deteve junto à porta. Os homens, com aspecto de cansaço, subiram pela parte de atrás. Uns quantos homens descansados desceram, e por sua vez, tomaram suas posições. Dois diante da casa, e outros dois atrás. Depois, o caminhão começou a manobrar para partir de novo.

Enquanto olhava para trás, em direção para onde tinha deixado às duas mulheres, Will tomou uma decisão que esperava não ter que lamentar. Depois se pôs em caminho para o lugar onde eles tinham deixado os carros, não tão rápido como teria desejado, devido ao pé ferido. Quando chegou aos carros, a dor era muito intensa, mas ao menos poderia alcançar o caminhão, que se movia lentamente pela estrada.

Meteu-se em seu carro e o pôs em marcha. Não tinha que deixar-se ver, alcançaria o veículo quando chegasse à auto-estrada principal, a uns treze quilômetros de distância.

Uma vez que o fez, não tinha nem idéia de quanto se afastaria o caminhão, e não queria arriscar-se a deixar às mulheres sozinhas durante muito tempo. Entretanto, teve uma idéia. Seguiu a auto-estrada até que chegou à cidade mais próxima, e encontrou uma loja de ferragens. Ali comprou uma serra mecânica, gasolina e azeite. Depois voltou para junto da casa e escondeu de novo o carro, o suficientemente longe para que os soldados de guarda não ouvissem o ruído que estava a ponto de fazer.

   — Agora estamos jogando a minha maneira. — disse brandamente, enquanto saía do carro para começar a trabalhar — E, vivo ou morto, ninguém ganha em meu jogo.

Quando terminou, abriu o porta-malas de seu carro e viu a bolsa que tinha deixado sob o pneu step. As coisas que lhe tinha vendido o bom Mike. Perfeito.

Tirou a bolsa e, com a ajuda de um ramo que tirou do chão, percorreu os três quilômetros que o separavam do que tinha começado a considerar como sua base de operações. Depois se dirigiu para o passadiço que Rhiannon tinha mencionado.

    

Sarafina despertou e ficou imóvel no diminuto oco, escutando, sentindo as vibrações que havia a seu redor. Esperou até que esteve segura de que não havia ninguém perto antes de mover-se.

   — Está acordada? — perguntou-lhe Rhiannon.

   — Sim. Acredito que podemos sair. — disse.

Arrastou-se para a tábua, mas no momento em que começou a movê-lo para sair, alguém a tirou por fora. Esteve a ponto de suspirar de alívio quando viu que Willem tinha sobrevivido ao dia. Então, saiu do buraco e imediatamente, viu dois homens inconscientes no chão. Um vestia um traje militar, e o outro estava em de cuecas. Willem levava o traje de camuflagem do homem, e seu rifle.

   — O que é isto? — perguntou, assombrada — Willem, o que você fez? Onde está Amber?

Rhiannon saiu também, sacudindo o barro do vestido com impaciência, e sua pantera a seguiu. Ela também viu os soldados.

   — Não entendeu, Sarafina? Seu homem nos trouxe o café da manhã.

Sacudiu as mãos, levantou um deles com um só braço e lhe cravou os dentes. Bebeu com avidez, e depois o deixou cair.

   — Come. — disse a Sarafina — Necessitamos força.

Will estava olhando ao homem que ela tinha deixado cair com cara de choque.

   — Está...

   — Somos vampiros, mortal. Estes homens são assassinos desumanos. Se o tivesse deixado seco, o mereceria. Entretanto, não o tenho feito. Viver com o Roland tem suas desvantagens, e uma delas é que acaba se impregnando de sua moralidade. Eu não mato, a menos que não tenha outra escolha. — lhe disse ela, e assinalou com a cabeça aos dois homens — Acredita que se darão conta de que faltam?

   — Não, ao menos durante um momento. Estes dois disseram a outros que iam percorrer o perímetro da casa. Não tinham planejado partir na mudança de turno.

Sarafina se aproximou do outro homem, ajoelhou-se a seu lado e se inclinou para sua garganta.

   — Não pôde resgatar Amber Lily? — perguntou-lhe Rhiannon.

   — Não o tentei. Não vi a necessidade de deixar que matem aos outros e de arriscar suas vidas, também. Vamos tirá-la agora.

   — Esse não era o plano. — grunhiu Rhiannon.

   — Fiz um novo plano. Escute, me dedico a isto. Sou bom nisso. Confie em mim. E agora, vamos. Temos que nos apressar, antes que se dêem conta de que está ocorrendo algo.

Conduziu-as pelo bosque até a estrada, e de ali, percorreram os limites da propriedade até a parte de atrás da casa, onde a grade terminava no escarpado.

Ali escondidos, Willem começou a lhes explicar:

   — Sob a janela de Amber, ali — disse, assinalando-a —, há dois guardas do turno de dia. Tinham razão, a garota pendurou uma blusa nas barras. Vêem-na? Dentro de pouco, haverá uma dúzia de guardas mais, mas esses dois deixarão seus postos quando chegar o caminhão com a equipe noturna. Então será quando nos moveremos.

Sarafina franziu o cenho.

   — Mas, supostamente, mudam de turno antes que anoiteça, não depois.

Ele deu-lhe uma piscadela.

   — Hoje se atrasaram. Parece que caíram várias árvores à estrada e bloquearam o passo. Não lhes levará muito tirá-las, mas sim o suficiente.

Ficaram ali agachados durante um bom momento, até que por fim ouviram que se aproximava o caminhão. Os guardas do pátio traseiro penduraram os rifles nos ombros e rodearam a casa, ansiosos por serem embora. Eram quase dez da noite. Já tinham estado ali uma hora mais do que lhes correspondia. Sarafina amaldiçoou as noites curtas de verão.

   — Vamos.

Will foi por volta de onde o terreno caía bruscamente por volta do mar. Sarafina soube que queria saltar a grade por ali. Deteve-o, agarrando-o pela cintura por trás, e Rhiannon pôs os olhos em branco e murmurou “mortais.”. Disse a sua pantera que se sentasse ali e esperasse. Depois, as duas mulheres dobraram os joelhos e saltaram.

Sarafina superou o muro com facilidade, levando Will com ela. Aterrissaram com dureza no outro lado, mas ela as arrumou para absorver toda a força do impacto. Mesmo assim, ele se estremeceu de dor, e Sarafina se preocupou com seu pé. Mas não tinham tempo de deter-se. Correram para frente e saltaram de novo, aterrissando, naquela ocasião, no balcão da habitação de Amber. Sarafina e Rhiannon tomaram uma barra cada uma e as dobraram para separará-las. Eles entraram na cela justo quando os guardas chegavam para cobrir o turno.

Amber Lily se sentou na cama, sobressaltada. Em um segundo voou para eles e abraçou Rhiannon, soluçando.

Rhiannon a abraçou também, brevemente, e depois a separou de si.

   — Shh. Cale a boca.

   Ouviram-se passos que se aproximavam pelo corredor. Sarafina correu as cortinas para esconder as barras e rezou para que os homens de baixo não olhassem para cima e notassem que estavam deformadas.

Então, Will puxou-a para a esquina que havia junto à porta.

   — Quantos há aqui dentro? — perguntou a Amber em um sussurro.

   — Quatro homens e uma mulher, além de Stiles.

O pulso de Sarafina se acelerou ao ouvir aquele nome.

   — Stiles?

— Conhece-o? — perguntou-lhe Will.

Ela entrecerrou os olhos, e seu rosto tomou uma expressão ameaçadora. Assentiu uma só vez, e depois se levou um dedo aos lábios.

Amber voltou para a cama e se sentou em silêncio. Concentrou-se, e Sarafina ficou assombrada de quão boa era sua habilidade mental para transmitir os pensamentos. Sarafina percebia claramente o que a garota estava vendo através das barras da porta. Estava-se aproximando uma mulher com um carrinho no qual havia uma bandeja de comida, acompanhada por um homem que levava uma arma.

“Dardos com tranqüilizador.”, pensou Amber para elas.

Sua carcereira abriu a porta e entregou o molho de chaves ao homem. Amber ficou de pé quando a mulher empurrou o carrinho para dentro.

   — Mmm, isso tem boa pinta. — disse, aproximando-se dela — Tenho muita fome.

Esticou o braço como se fosse pegar uma das madalenas que havia em um prato, mas em vez disso, pegou-a pelo braço e puxou para dentro, enquanto dava um chute no carrinho para jogá-lo fora.

O homem levantou a arma, mas Amber segurou à mulher diante dela, como escudo. Pôs-lhe uma mão sobre os olhos para que não pudesse ver os outros.

O homem lhe fez um gesto desde fora.

   — Vamos, garota, deixa-a tranqüila ou dispararei um dardo em você.

   — Você a quer? Entre por ela.

O homem soltou um grunhido e deu dois passos para dentro. Então, Rhiannon ficou atrás dele e lhe rompeu o pescoço de um só movimento. Sarafina lhe tirou a arma das mãos antes que caísse. Apontou à mulher, que estava lutando com a Amber.

   — Muito ruído. — disse Will. Com facilidade, tirou o dardo da arma e cravou à mulher no braço.

Ela ficou muito rígida, e imediatamente desmaiou.

Ele arqueou as sobrancelhas.

   — Uma substância de efeitos poderosos.

Rhiannon tirou o molho de chaves do homem, enquanto Amber olhava a Willem com os olhos cheios de lágrimas.

   — Minha mãe me disse... Sinto muito o que lhe fiz. Eu... Acreditava que era um deles.

   — Sei. Não passa nada.

A garota olhou a Sarafina.

   — Tinha medo de que o tivesse matado.

   — Não foi culpa sua. — lhe disse Sarafina.

   — Agora não importa tudo isso. — disse Rhiannon — Que tal está, Amber? O que lhe têm feito, minha menina?

   — Tiraram-me muito sangue, e me têm feito milhares de perguntas. E... Não sei mais o quê.

   — O que significa que não sabe que mais?

Ela desviou o olhar.

   — Estava drogada durante a maior parte do tempo. — disse, e mudou de tema rapidamente — Têm a meu pai e a minha mãe. E ao Roland.

   — Sei. Tranqüilize-te. O mortal tem um plano. — lhe disse Rhiannon, e se voltou para entregar as chaves ao Will — Guarde-as no bolso. Uma delas abre a cela lá embaixo, onde estão os outros. Embora agora estejamos aqui dentro, não tenho nem idéia de como pensa nos tirar. Deve haver uns vinte guardas armados ao redor da casa, neste momento.

   — Vinte e quatro. — disse ele — Os contei na mudança de guarda.

Sarafina fechou os olhos.

   — Stiles esteve muito ocupado para poder organizar uma operação como esta. A última vez que me cruzei com ele, só tinha um punhado de homens trabalhando para ele.

   — Os guardas parecem mercenários. — disse Will — É possível que nem sequer saibam o que está ocorrendo aqui.

   — O que sabem ou não, não importa, Willem. Não podemos enfrentar a vinte e quatro homens armados, embora não sejam mais que mortais.

   — Vamos tratar cada coisa a seu tempo, de acordo? — respondeu Will — Pode ser que lá fora haja vinte e quatro, mas só há quatro aqui dentro.

   — Um para cada um. — disse Amber, com uma cólera fria refletida nos olhos, e os punhos apertados — Estou morta de impaciência.

  

   — Rhiannon deveria partir com a menina. — disse Sarafina, pegando Will pelo braço para tentar lhe transmitir, com o olhar, quão convencida estava daquele ponto.

Rhiannon e a moça estavam abaixadas em um canto, falando em voz baixa, rapidamente e ao mesmo tempo. Sarafina se deu conta do quanto estavam unidas. Rhiannon não podia deixar de lhe acariciar os braços, o cabelo e a cara de Amber. Aquela mulher queria à menina com ferocidade. Era evidente, e era comovedor. Não deveria ser tão comovedor para ela, entretanto. Sarafina fazia um de seus princípios de vida o fato de não deixar-se comover por nada nem por ninguém. Não deveria notar aquela pressão na garganta ao ver Rhiannon com sua preciosa Amber, e não deveriam lhe arder os olhos, e não deveria sentir um vazio no peito.

Will a olhou de novo, e ela teve a sensação de que estava lendo seus pensamentos com tanta facilidade como o faria qualquer outro vampiro.

   — Não é tão fria como pretende demonstrar, Sarafina. Já é hora de que deixe de fingir.

   — Isso não tem nada a ver com esta situação. O importante é a menina. E é culpa minha que esteja aqui. Rhiannon e ela deveriam partir agora mesmo.

   — Isso é um sentimento muito bondoso por sua parte, Sarafina. Mas não acredito que pudessem sair embora quisessem, com todos esses homens aí fora.

   — Podemos fazer algo para desviar sua atenção.

   — Correr diante deles para lhes servir de alvo, para que nos persigam? Algo assim?

   — Pode ser que funcione. — disse ela, encolhendo os ombros.

   — Pode. Mas eu tenho outra idéia. — olhou ao outro extremo da cela, para Rhiannon e Amber Lily — O marido de Rhiannon é um dos prisioneiros. Ela não partirá sem ele.

   — É possível que o faça, se com isso salva a Amber.

Amber levantou então a cabeça e olhou a Sarafina nos olhos do outro extremo da cela.

“Ele tem razão. Embora Rhiannon decidisse partir, eu não o faria. Meus pais também estão aí embaixo.”

Sarafina sustentou o olhar da garota durante um momento, e finalmente assentiu. Depois olhou Will de novo.

   — Esquece. Ela não quer partir.

   — Rhiannon?

   — Amber.

   — Oh.

Sarafina se mordeu o lábio inferior.

   — Qual é seu plano?

   — Ficaremos aqui escondidos, esperando. Haverá uma distração, mas mais tarde. Assim ficaremos aqui, na casa, sem que nos detectem. Iremos caçando-os um por um. — disse, e olhou para as barras, e mais à frente, para o corredor— Não há ninguém à vista.

Então, segurou mão de Sarafina e a sustentou na sua, como se fora grande e forte, e a de Sarafina pequena e débil. Era algo como a promessa de que a protegeria. Uma promessa silenciosa, mas cheia de significado.

E completamente absurda.

Cruzaram a cela até Rhiannon e Amber, e Will começou a dar instruções, como se fosse um general e elas fossem suas tropas.

   — Amber, quero que te comporte como se não tivesse ocorrido nada. Fique aqui, na cela, e finge que ainda está a sua mercê.

   — E eles? — perguntou, olhando aos dois corpos que havia no chão. O homem estava morto, e a mulher inconsciente.

   — Vamos escondê-los.

   — E se for preciso sair daqui rapidamente?

Will se tirou o molho de chaves do bolso, retirou a chave da porta de barras e deu a ela.

   — Esconde-a em algum lugar da cela.

   — Há uma tábua solta ao lado da porta. — disse ela — Seguro que poderiam alcançá-la de fora da cela, se o precisassem.

   — Sabe se alguém mais tem a chave?

   — Acredito que Stiles. Possivelmente os outros também. Todos entram e saem quando querem. Eu não sei se estão pegando a chave de um e de outro, ou se cada um tem a sua.

Não pareceu que lhe gostasse muito daquilo, mas guardou os pensamentos para si mesmo e se voltou para Sarafina e Rhiannon.

   — Nós três temos que nos mover pela casa como fantasmas. Temos que ter paciência, e quando encontrarmos a um deles sozinho, temos de tirá-lo de circulação de forma limpa, rápida e silenciosa. Depois terá que esconder o corpo para não alertar a ninguém sobre nossa presença. Se o fizermos bem, teremos a casa apenas para nós antes que alguém se dê conta. De acordo?

Rhiannon arqueou as sobrancelhas, mas assentiu. Estava impressionada, apesar de si mesma, e Sarafina sentiu um orgulho que não tinha por que sentir.

   — Agora, vamos tirar estes corpos do meio. Terá que ser fora desta cela. Não quero que joguem a culpa em Amber se alguém os encontrar aqui.

Rhiannon pegou-os pela roupa e os sustentou como se fossem um par de malas.

   — Onde os colocamos?

   — Estará bem? — perguntou Sarafina a Amber.

   — Sim. Eu estarei bem. E, vocês se assegurem de que meus pais e Roland também estejam.

Sara assentiu, e então, Will e Sarafina saíram da cela. Percorreram o corredor, escutando depois das portas e as abrindo silenciosamente. Por fim, Will encontrou uma sala que parecia sem uso. Devia ser um depósito, e havia caixas, móveis velhos e livros por toda parte.

Sarafina fez um gesto a Rhiannon, que ainda estava na porta da cela de Amber, e então ela levou os dois corpos pelo corredor e a moça fechou a porta da cela depois da vampiresa. Rhiannon deixou cair os dois corpos no chão do depósito e olhou à mulher inconsciente.

   — Quanto tempo acredita que ainda ficará desacordada?

Sarafina encolheu os ombros.

   — Se esse tranqüilizador for o mesmo que usavam no passado, possivelmente muito tempo.

   — Pois muito melhor.

   — No caso de que não seja, tomemos precauções. — disse Will. Pegou um lençol que cobria uma velha escrivaninha e o rasgou. Fez uma bola com uma das partes de tecido e a meteu na boca da mulher. Depois lhe atou as mãos e os pés com o cordão de uma cortina e a envolveu no resto do tecido. Os três saíram da habitação e fecharam a porta.

De baixo chegavam sons de vozes, e Will lhes fez um gesto para que o seguissem pelas escadas em silêncio. Will tinha deixado a bengala fora do imóvel quando tinham saltado o muro, e Sarafina sabia que não podia ser fácil caminhar com tanta rapidez. Certamente, doía-lhe muito. Mas ele tinha a dor controlada com aquela vontade de ferro dele, e não ia permitir que danificasse o plano.

Sarafina pensou que nunca tinha conhecido a ninguém como ele.

Ao final das escadas havia um grande vestíbulo de que partiam dois corredores: um para a direita, e o outro para a esquerda. Rhiannon pegou o da esquerda. Sarafina olhou a Will.

   — Vá pela direita. — lhe disse ele — Eu vou procurar o porão.

Ela assentiu, e lhe segurou o queixo com uma mão para lhe dar um beijo.

   — Tome cuidado.

   — O mortal aqui é você. — Will assentiu.

   — Não vai deixar que me esqueça nem por um momento, verdade?

   — Este não é momento de brincar. — replicou ela — Não deixe que lhe matem.

   — Farei o que puder.

Assentindo, Sarafina o olhou fixamente nos olhos. Depois se voltou e deslizou silenciosamente para o corredor da direita. Não se virou.

Poucos minutos depois, enquanto seguia avançando pela casa meio às escuras, ouviu umas vozes que provinham de uma das salas. Em uma biblioteca havia dois homens sentados em uma mesa, com um caderno aberto frente a eles. Sarafina ficou junto à porta com as costas pega à parede. Havia um espelho pendurado à esquerda de um dos dois, e via seus reflexos nele. Entretanto, os dois homens não podiam vê-la. Escutou com atenção para ver se revelavam alguma informação útil.

   — Que isto fique entre nós, de acordo? — disse um deles, e o outro assentiu — Estou seguro de que Stiles nos esconde algo. Olhe estas notas. — o que falava era o mais jovem dos dois, um homem pálido, baixo e robusto, com o cabelo muito curto.

O outro era maior, mais seguro de si mesmo, um homem arrogante e fanfarrão, pensou Sarafina, dissecando sua personalidade facilmente.

   — O que ocorre com essas notas?

   — Oh, vamos. Não me diga que não o vê. — o arrogante sacudiu a cabeça — Stiles esteve horas e horas interrogando à garota. — disse o jovem — E o que lhe esteve dizendo ela? Estou seguro de que nem tudo está aqui. Esta informação a teria obtido só em meia hora de interrogatório.

   — É que está cego? Não viu à garota, ou o que? — perguntou-lhe o major, encolhendo os ombros.

   — Não sei...

   — Ele passou horas ali e se não tem feito nada mais que interrogá-la, é que não é mais humano que ela.

   — Refere-te a que...? Acredita que esteve...?

   — Você não o teria feito?

   — Deus, isso é asqueroso, Joe. Ela é um animal. Isso seria como fazê-lo com um cão. E não me importa o quanto seja bonita, é um demônio.

   — Sim. — disse Joe — Um pequeno demônio selvagem. E eu vou desfrutar dela assim que o chefe se dê a volta.

   — A garota te matará.

O outro tirou um dardo do bolso da jaqueta.

   — Não. Vou sedá-la. Mas não por completo. Vou deixar que esteja acordada, o suficiente para que se dê conta do que está acontecendo. Possivelmente o suficiente para que lute um pouco, e fazer as coisas mais interessantes. — disse, sorrindo — A propósito, onde o chefe está agora?

   — Está trancado no laboratório, outra vez. Não o veremos durante um momento.

   — E Mercer e Caine?

   — Estão no porão, vigiando aos prisioneiros.

   — Perfeito. Então, suponho que chegou minha oportunidade. Quer vir comigo? Pode aproveitar enquanto eu descanso.

   — É um doente.

O outro encolheu os ombros e se levantou. Sarafina olhou ao seu redor, mas não havia nenhum lugar onde esconder-se. Colou-se ainda mais à parede e fechou os olhos, rezando para que ele não a sentisse.

O homem passou a seu lado e nem sequer se voltou. Ela abriu os olhos e quase deixou escapar um suspiro de alívio. Assim que o som dos passos do tipo se desvaneceram, Sarafina pensou em Rhiannon e sentiu as vibrações de sua mente.

“Rhiannon, onde está? Como vai seu progresso?”

“Ainda não encontrei ninguém. Sinto dois embaixo, e a outro neste andar, mas escondido em alguma parte.”

“Eu tinha a dois aqui, a meu lado. Mencionaram a outros dois, chamados Mercer e Caine. Esses dois devem ser os que estão no porão. Eles disseram também que Stiles está trancado em alguma parte. Isso significa que há cinco, no mínimo.”

“Está bem. Podemos com eles.”

“Um dos que estavam aqui vai para a cela de Amber. Tem a intenção de drogá-la e estuprá-la.”

“Oh, de verdade?”

Rhiannon não disse nada mais. Sarafina soube que aquele homem estava morto. Entretanto, ela estava preocupada. Se havia dois homens no porão, Will poderia com eles?

“Deixe de se preocupar.”, disse Rhiannon com irritação. “Eu irei ao porão assim que me encarregue do desgraçado da cela de Amber. Você se ocupe de Stiles e do que fica aí ao lado.”

Sarafina assentiu. Deus, se remoia por dentro o fato de preocupar-se tanto com Will. E, entretanto, notou que sem poder evitá-lo, enfurecia-se ao pensar que um daqueles homens pudesse lhe fazer dano. Faria pedacinhos deles, se aquilo ocorresse.

Entretanto, naquele momento tinha que se ocupar do homem da biblioteca. Deslizou-se dentro e, antes que o homem pudesse voltar-se para ela, rompeu-lhe o pescoço como se fosse de papel. Depois escondeu o corpo em um dos armários da sala. Pegou o caderno que tinha estado lendo e o guardou. Poderia ser interessante para Amber saber o que Stiles tinha escrito ali. E nunca era demais tirá-lo das mãos de seus guardiões. Se a teoria daquele infeliz era certa, aquela informação não era nem a metade da história.

   — Ficam quatro. Três, se Rhiannon e Joe já se encontraram. —murmurou para si.

Seguiu caminhado pela casa, em busca do laboratório onde Stiles estava trancado.

Frank Stiles e ela se conheciam fazia muito tempo. E ele lhe devia.

    

Amber reconheceu o homem que estava na porta da cela. Era um dos que a tinham levado ali. Não havia voltado a vê-lo depois. A mulher, Kelsey, era a que sempre lhe levava a comida, acompanhada pelo enorme loiro chamado Nelson.

O olhar do homem enquanto colocava a chave na fechadura disse a Amber que Stiles tinha razão em adotar aquela política. Aquele homem era escorregadio e viscoso, e ela soube o que queria inclusive antes que abrisse as barras, entrasse e lhe dissesse:

   — Se se comportar bem, deixarei você sair, de acordo?

   — Oh, de acordo. — respondeu Amber. Aproximou-se dele, perguntando-se por que ninguém lhe tinha advertido de que ela era o suficientemente forte para lhe arrancar os braços e lhe golpear com eles até matá-lo.

Deslizou-lhe as mãos pela cintura até que lhe agarrou as nádegas, e ela levantou as suas para tomar o pescoço e romper-lhe. Entretanto, naquele momento sentiu uma terrível espetada, e soube que o miserável tinha ido preparado.

Dobraram-lhe os joelhos e sentiu que a cabeça lhe dava voltas. Afundou-se, mas ele pegou-a em seus braços e a deixou cair na cama. Depois ficou esparramado sobre ela e começou a lhe desabotoar as calças.

Deixou-se a porta aberta, o muito idiota.

Rhiannon apareceu na soleira. Embora Amber visse sua silhueta imprecisa, soube que era ela. E, Deus, estava zangada.

Entrou na cela, pegou ao homem pelo cabelo e o levantou de cima de Amber.

   — O que... Quem...?

Rhiannon não lhe deu a oportunidade de continuar perguntando. Pôs-lhe as mãos de ambos os lados da cara e lhe retorceu a cabeça com tanta violência que, quando o corpo caiu ao chão, ficou com ela entre as mãos. Uma parte da espinha dorsal sanguinolenta ficou conectando as duas partes, enquanto o sangue fluía como uma cascata.

   — Oh, vá, parece que perdeu a cabeça. — disse Amber, rindo-se de sua própria brincadeira — Vá, tia Rhi, que sujeira. — disse, arrastando as palavras como se estivesse bêbada.

   — Abotoe sua calça e me passe a manta.

Amber olhou as calças, mas as mãos não queriam obedecê-la. Tentou movê-las, mas só pôde levantá-las. No segundo seguinte, voltaram a cair sobre a cama, o que lhe pareceu tremendamente gracioso, uma vez que a ameaça já não existia.

   — Demônios. — sussurrou Rhiannon. Deixou a cabeça junto ao corpo e se inclinou sobre a cama. Fez rodar a Amber para um lado e tirou a manta.

   — Tem uma expressão muito graciosa. — disse Amber, assinalando a cara do homem, que tinha a boca aberta e o olhar de surpresa — Parece como se quisesse perguntar onde está seu corpo.

Rhiannon pôs os olhos em branco enquanto se agachava para envolver a cabeça e o corpo e tentar minimizar aquele desastre. Entretanto, já havia um bom atoleiro de sangue no chão, e ia demorar muito para limpá-lo. Deu-lhe um par de chutes ao corpo e à cabeça para colocá-los sob a cama e jogou a manta ao chão para tampar o atoleiro. Depois olhou a Amber.

   — Terei que levar você comigo. Não pode ficar aqui neste estado. Se algum deles vem atrás de você, estará indefesa.

   — Sim, mas tenho que dizer a você, tia Rhi, que já não me dói a cabeça. E, aposto o que quiser que a dele tampouco. — disse, assinalando para a cama.

   — Shhh!

Amber se levou um dedo aos lábios, fazendo exagerados gestos de silêncio.

Rhiannon tentou arrumar a roupa de cama para que parecesse que havia alguém dormindo, embora não confiasse muito naquele truque. Depois fechou as calças de Amber, tirou-a da habitação e fechou a porta atrás delas.

   — Aonde me leva? — perguntou-lhe a garota.

   — Ao porão. Mas só se estiver muito calada.

Amber assentiu, e se mordeu o lábio inferior para não rir.

  

Will encontrou a entrada do porão em seguida. Estava ansioso para tirar os prisioneiros dali. O fato de estar cativo nas vísceras da terra era algo muito familiar para ele, e sentia o estômago contraído de angústia. E, pelo que Rhiannon lhe tinha contado sobre o DIP e seus homens, estava seguro de que os vampiros teriam sofrido com o calor e falta comida, e possivelmente, outras formas mais ativas de tortura.

Sentiu-se doente ao pensá-lo. Ele também tinha passado por aquilo. Era muito real, muito recente, e formava parte de sua alma.

Abriu várias portas enquanto percorria a casa, até que, depois de uma delas, descobriu umas escadas que desciam para a escuridão.

Com toda probabilidade, haveria um guarda ali abaixo. Desceu o primeiro degrau e fechou a porta atrás dele, fazendo a escuridão completa. Doía-lhe tremendamente o pé. Deveria ter levado os malditos analgésicos, mas não sabia que a viagem se estenderia tanto. Levou-lhe um esforço concentrar-se para descer caminhando lenta e silenciosamente, apesar da dor que o atravessava cada vez que apoiava o peso do corpo no pé ferido.

Um dos degraus rangeu, embora ligeiramente.

Willem ficou imóvel, esperando.

Quando não ouviu nenhum som, deu outro passo para baixo. Não podia ver onde terminavam as escadas e começava o chão, e não podia fazer outra coisa que seguir posando os pés com supremo cuidado e medir. Havia muitas mais escadas do que tinha pensado. Aquele porão estava muito profundo.

A visão começou a ajustar-se à escuridão. Já distinguia as sombras quando chegou, por fim, ao chão. Avançou movendo os braços pela frente dele. Naquela direção, supostamente, havia uma entrada a outra parte do porão.

Só sentiu um muro de pedra.

Apalpando-o, continuou avançando sem separar-se daquela parede. De repente, viu uma pequena luz que se acendeu a um par de metros dele. Então se deu conta de que era a luz de um isqueiro. Viu como a chama se aproximava de um cigarro e como se acendia a ponta. Se tivesse continuado movendo-se, teria se topado com o fumante em menos de cinco segundos. Graças a Deus pelo vício à nicotina.

Sacudiu-se o susto de cima e começou a mover-se de novo. Seu pé se deu contra algo; uma pedra, ou algo que havia no chão. A luz do charuto se voltou em sua direção.

   — Ei, guardas! — a voz chegou do outro extremo da estadia. Will se deu conta de que o homem havia dito guardas, e não guarda.

Demônios, havia mais de um.

O fumante se voltou para a voz. Will não a tinha reconhecido.

   — Que demônios quer, chupasangue?

   — O que quero é tirar seu coração e comê-lo. Mas não te chamei por isso.

Will sorriu. O vampiro sabia que ele estava ali. Certamente, tinha ouvido o golpe com a pedra com tanta clareza quanto o guarda, ou mais ainda. Sarafina tinha contado que seus sentidos eram mil vezes mais sensíveis que os de um humano. Supôs que o dono daquela voz devia ser Roland, o marido de Rhiannon.

   — É Angélica. — continuou o vampiro — Acredito que está morta.

   — Claro.

   — Comprove você mesmo!

   — Acredita que sou idiota? Se me aproximar das barras, apanhará-me. Eu não sou sua comida.

Will tentou fixar o olhar na escuridão, para poder ver o que estava ocorrendo.

   — Separarei-me das barras. Vê-o?

O homem não o via, porque acendeu de novo o isqueiro e o sustentou frente a sua cara. Will o viu então, iluminado pela fraca chama. Também viu a silhueta do outro homem, que estava muito perto dele mesmo. Rezou para que não houvesse mais de dois.

   — Mercer, sobe para avisar ao chefe. Pergunte-lhe o que devemos fazer.

O segundo homem acendeu uma lanterna e Will teve tempo para divisar um dos pilares do porão, a dois passos dele, e esconder-se detrás. Ouviu como o homem subia as escadas e abria e fechava a porta de saída do porão.

O primeiro se aproximou um pouco mais das barras, segurando o isqueiro frente a ele. Tinha muito cuidado de não aproximar-se muito. Estava dando as costas a Will. Ele aproveitou a vantagem para mover-se para ele, rápida e silenciosamente. Tampou-lhe a boca com uma mão e com a outra lhe agarrou a nuca.

   — Não o mate. — disse a voz de uma mulher. Will franziu o cenho, sem entender nada, mas não fez perguntas. Simplesmente, deixou-o inconsciente asfixiando-o e depois o deixou cair ao chão. Agachou-se para revistá-lo, mas antes que pudesse lhe abrir a jaqueta, sentiu que o arrastavam e o grudavam nas barras.

Will não teve nem idéia do que ocorria até que ouviu os sons da sucção. Tentou o melhor que pôde não emprestar atenção ao ruído e à posição do guarda e lhe revistou os bolsos. Era evidente que os vampiros estavam puxando os braços do homem para dentro das barras.

Encontrou um molho de chaves e apalpou todas as barras de ferro até que encontrou a porta. Depois começou à provar todas até que conseguiu abrir.

   — Me alegro em ver você, Stone.

Aquela era a voz de Bryant. O pai de Amber, o homem que tinha contratado.

   — Oxalá eu pudesse dizer o mesmo. — respondeu ele, piscando na escuridão — Obrigado por distrair ao guarda. Menos mal que me ouviram golpear a pedra com o pé.

O outro vampiro, Roland, pigarreou.

   — Ouvimos você abrir a porta e lhe vimos descer pelas escadas. O sigilo não é precisamente seu ponto forte, Stone.

   — Possivelmente não para vocês. Mas o guarda não me ouviu.

   — Onde está minha filha? — perguntou a mulher, Angélica.

Will olhou para a direção de onde provinha a voz.

   — Pensei que podiam se comunicar. Já sabe, astralmente, ou seja lá como for.

   — Mentalmente. Mas ela ficou em silêncio. Ocorreu algo.

Will se aproximou o braço à cara e acendeu a luz do relógio. A cara se iluminou ligeiramente, de cor verde.

   — Vamos subir. Não resta muito tempo.

   — Para que? — perguntou Jameson, que já tinha começado a subir os degraus.

Roland pegou Will pelo braço para guiá-lo para as escadas. Will o agradeceu. Haveria levado o dobro de tempo as encontrar.

   — Para que comece o pequeno show que preparei. Caso funcione.

Antes que chegassem acima, a porta se abriu, deixando que entrasse uma luz tênue. Rhiannon estava ali, na soleira, com Amber nos braços. O corpo da moça estava lânguido, e o coração de Will se encolheu.

Angélica deu um grito e imediatamente estava junto a Rhiannon, tomando a sua filha nos braços.

   — Só está inconsciente. Um deles a drogou de novo.

   — Que tal vão vocês duas?

   — Sarafina matou um. Vi-o através de seus olhos. Eu matei a outro, embora tema que não tão eficientemente como você nos ordenou. E você?

   — Um morto, aqui embaixo. O outro subiu para falar com o Stiles. Não o viu?

   — Não.

Já tinham saído do porão, e Roland fechou a porta com suavidade. Depois se voltou para Rhiannon, tomou-a em seus braços e a beijou calorosamente.

   — Então, — disse Will, pensativamente — na casa só ficam Stiles e o guarda que subiu para falar com ele.

Jameson assentiu.

   — E onde demônios estão?

Will franziu o cenho.

   — E o mais importante, onde demônios está Sarafina?

  

Sarafina abriu sua mente enquanto procurava pela casa. Sabia que Rhiannon estava com Amber e que o homem que havia tentando estuprá-la estava morto. Sabia que Willem tinha descido ao porão para resgatar os vampiros que estavam ali embaixo, e que Rhiannon tinha ido ajudar.

E também sabia, pela conversa que tinha escutado, que Stiles estava em um laboratório que havia em algum lugar da casa. Concentrou-se profundamente na imagem de Stiles tal e como o recordava, com a metade esquerda da cara de cor rosa, cheia de cicatrizes e enrugada, e sem corte na metade esquerda do couro cabeludo. Estava dentro do quartel geral do DIP quando os vampiros o tinham reduzido a cinzas, muitos anos atrás, e não tinha escapado ileso.

Sarafina desejou fervorosamente que não tivesse escapado vivo. Por si só e de modo clandestino, tinha recriado aquele departamento secreto do governo dedicado à caça e destruição dos vampiros. Não sabia por que seguia usando aquele nome, mas sim sabia que o que tinha recriado estava apoiado no mesmo ódio. Parecia a Sarafina que aquela nova organização era inclusive mais desprezível que a governamental. Mas acabaria uma vez que ele desaparecesse. E tinha intenção de fazê-lo desaparecer logo.

Devia isso àquele homem.

O instinto a guiou pela casa, até que encontrou um corredor com portas fechadas em ambos os lados. Avançou por ele, pondo as mãos em cada uma delas para sentir vibrações dentro. Todas as habitações estavam vazias. Entretanto, alguém a ajudou de uma forma inesperada.

Uns quantos metros para diante, um homem que não era Stiles elevou a mão para chamar em uma porta fechada. Aproximou-se dele como um relâmpago e pegou sua mão antes que pudesse fazer contato com a madeira. Tampou-lhe a boca para que não gritasse e segurou o nariz com o polegar e o indicador para que não pudesse respirar. Era a forma mais silenciosa que lhe ocorria para eliminá-lo, mas teve que pôr a prova sua paciência até que o coração do homem, sem oxigênio, deixou de pulsar.

Arrastou-o e o escondeu atrás de uma esquina. Depois voltou para a porta, pôs a mão na superfície e soube que Stiles estava dentro da sala.

Tentou girar a maçaneta, mas estava fechada. Deu dois passos para trás e deu um forte chute. A porta estalou e saiu das dobradiças.

Stiles se deu a volta e ficou olhando-a com os olhos muito abertos. Estava no extremo oposto da sala, tenuamente iluminada. Ela tomou nota mental dos computadores, das estantes cheias de garrafas e potes, e de mais instrumentos sofisticados de laboratório. Também havia filas intermináveis de livros e de cadernos como o que os dois gorilas tinham estado lendo na biblioteca. Stiles tinha um na mesa, totalmente aberto. Tinha uma agulha cravada no braço, e a seringa de injeção estava vazia.

   — Que gracioso. — disse Sarafina — Não sabia que era um viciado.

Tirou-se a agulha do braço, lançou-a ao chão e, sem apressar-se, desenrolou-se a manga e se atou o botão da camisa no punho.

   — E eu não sabia que fosse uma idiota. Sarafina, verdade?

Ela assentiu uma só vez.

   — Então, recorda-me.

   — Eu nunca esqueço a um inimigo. Isto vai ser um prazer supremo. É óbvio, dá-te conta de que está completamente rodeada. Apanhada.

   — Pelos soldados que estão fora, de guarda? Não me impediram de entrar, Stiles. E duvido que me dêem muitos problemas para sair. Nem que você esteja vivo para vê-lo.

   — Acredito que sim. — disse, e se deu a volta para um mostrador. Ali pegou um pequeno transmissor, mas ela saiu disparada para ele e tomou a mão até que o artefato se fez pedaços. Enquanto ela apertava, a cara de Stiles se contorceu de dor.

Então, ele gritou.

   — Nelson, Joe, venham!

Soltou-lhe a mão e se esfregou a seu contrário a calça, como se queria limpar-se um pouco muito sujo.

   — Nelson. Era o loiro alto? Tem o pescoço quebrado. E acredito que Joe tampouco teve melhor sorte. De fato, estou segura de que o resto de seus serventes se tomou a noite livre.

   — Matou-os, miserável assassina. — enquanto falava, dirigia-se para a parede da sala. Ali havia numerosos instrumentos sobre outro mostrador, e um pequeno refrigerador ao lado.

   — Eu não sou que raptou a uma adolescente, Stiles. — disse Sarafina, enquanto avançava para ele. Pegou o caderno da mesa enquanto o seguia.

   — Doutor Stiles.

Não lhe deu atenção e leu algumas das frases que havia naquela página.

“Décima injeção... Incremento de força e de resistência... Até o momento, não se observou aversão à luz do sol nem à comida sólida...”

Ela franziu o cenho e o olhou.

   — O que é isto? O que era que estava injetando em seu patético corpo quando cheguei?

Ele sorriu lentamente.

   — Não viverá o suficiente para averiguá-lo. — balbuciou.

Sarafina atirou o caderno a um lado, e em um só movimento estava a seu lado, agarrando-o pela garganta para lhe tirar as respostas à força. Stiles lhe deu um murro no estômago com uma força impressionante, e lhe falhou a mão com que o agarrava. Caiu para trás, sem ar, e quebrou a mesa em duas com as costas. Ficou estirada no chão, entre a madeira estilhaçada, assombrada. Não podia ser tão forte. Ele não...

   — O que tem feito? — sussurrou Sarafina.

Ele começou a caminhar para ela, e Sarafina ficou de pé de um salto, à defensiva. Então, Stiles tirou uma pistola da jaqueta e lhe disparou. O som foi ensurdecedor para os sensíveis ouvidos de Sarafina, como a chama azul do disparo. Notou um ferro candente no estômago, e a dor a atravessou. O sangue começou a derramar-se pelas pernas até o chão.

Sarafina olhou para baixo, segurando o ventre com as mãos, e viu que a vida escapava entre os seus dedos.

   — Morrerá por isso...

   — Não é provável. Você sim, entretanto. Garanto-lhe isso.

Inclusive antes que ela perdesse a consciência, ele a agarrou e a jogou ao ombro como se não pesasse nem um grama. A tão pouca distância, Sarafina o cheirou com mais cuidado que antes. Sua essência era... Algo familiar... Algo que não deveria estar ali. E então, soube. Era o aroma de Amber Lily!

Ele a levou para a parede. Não para a porta, a não ser para a parede.

  

Willem ouviu o disparo. Todos o ouviram, e correram para a parte da casa de onde provinha o som. Tinha ocorrido algo com Sarafina. Ele o sentiu nas vísceras. Queimavam-lhe.

Correram pelo corredor. Os outros abriam as portas, mas Will não precisou fazê-lo. Sentia-se miserável e seguiu àquela sensação, correndo inclusive com o pé ferido, sem lembrar da intensa dor. Esteve a ponto de tropeçar em um homem morto que havia em uma esquina. Saltou sobre o corpo e seguiu avançando até que chegou a uma sala cuja porta estava aberta. Feita lascas, mas aberta. Era um laboratório.

   — Aqui! — gritou, e os outros chegaram correndo.

Olharam a seu redor em silêncio, observando os aparelhos, a mesa quebrada e o pequeno atoleiro de sangue que havia no chão. Amber, que já havia se recuperado dos efeitos da pequena dose de droga que lhe tinham administrado, agachou-se para pegar o caderno do chão.

   — Este sangue é de Sarafina. — disse Rhiannon brandamente— A levou a alguma parte.

   — Mas, onde? — Will olhou freneticamente a seu redor, com o coração em um punho e a cabeça em um caos. Entretanto, obrigou-se a acalmar-se. Pôs em funcionamento sua força de vontade e de controle, e ficou imóvel com os olhos fechados, permitindo que toda sua experiência fluísse.

   — Roland, vá à parte dianteira da casa, e olhe pelas janelas se os soldados de guarda ouviram o disparo.

   — Duvido-o, tendo em conta a espessura dos muros.

   — Verifique. E que não lhe vejam.

Roland assentiu e saiu do laboratório.

Will olhou ao Jameson.

   — Há uma mulher viva no piso de cima, no depósito. Desçam-na.

Jameson assentiu e saiu também.

Angélica disse:

   — Sabemos que não a tirou por onde nós viemos, ou nós teríamos encontrado isso. Comprovarei o outro caminho que sai deste corredor, e verei se houver mais saídas.

   — Busca também rastros de sangue no chão. — lhe disse Will. E, enquanto ela saía, ele estava olhando ao chão com os olhos entrecerrados. Havia gotas de sangue entre o atoleiro e a parede da direita. E em nenhum outro lugar.

Sacudiu a cabeça.

   — Isto não tem sentido.

   — Meu Deus. — sussurrou Amber. Rhiannon e Willem se voltaram para ela. Estava junto à porta, lendo rapidamente as páginas do caderno. Elevou a vista e os olhou.

   — Esteve-se injetando meu sangue... Meu sangue.

   — O que? — exclamou Rhiannon.

Tirou-lhe o caderno para poder lê-lo por si mesma. Will o entendeu.

   — Diz que são animais, demônios, e que quer eliminar a todos. Vale-se de toda essa retórica para atrair aos homens para sua causa. Mas o que realmente quer é o que vocês têm.

Rhiannon olhou para cima.

   — Quer ser um vampiro?

   — Quer ser imortal. — disse ele.

   — Mas, por que pensa que meu sangue lhe daria isso? — perguntou Amber.

Will tomou o caderno das mãos de Rhiannon e procurou entre as páginas, até que encontrou algo que fez com que se detivesse. O que leu fez com que lhe revolvesse o estômago. Tinham estado tentando assassinar à preciosa adolescente desde que a tinham levado ali. Tinham-lhe dado comida com veneno, descargas elétricas enquanto estava sedada, e inclusive tinham tentado afogá-la. E todas as vezes, ela tinha revivido.

   — O que? — perguntou Amber — O que é, Will?

Ele sacudiu a cabeça.

   — Falaremos disso mais tarde.

Jameson entrou no laboratório com a mulher, que ainda estava inconsciente, nos braços. Tinha-a desamarrado.

   — Não estou seguro de que possamos despertá-la. — disse.

   — Sim, podem. Há um antídoto para o tranqüilizador. Usaram-no comigo um par de vezes, quando precisavam me despertar. — disse Amber.

Rhiannon buscou entre as estantes, e depois no pequeno refrigerador, atirando as garrafas e os potes ao chão pela pressa.

   — Aqui. — disse, mostrando uma seringa de injeção com uma etiqueta — Deve ser isso.

Aproximou-se da mulher e a injetou. Então, Jameson a pôs no chão.

Roland voltou naquele momento.

   — Os guardas de fora nem sequer se moveram. Não acredito que tenham ouvido nada.

   — Bom. — Will deixou o caderno em um dos mostradores e se agachou junto à mulher. Deu-lhe uns golpezinhos nas bochechas — Acorde. Vamos.

Ela gemeu brandamente, moveu a cabeça de lado a lado e finalmente, abriu os olhos. Depois os abriu muito mais, ao vê-los todos sobre ela.

   — Se quer seguir com vida, vai me dizer tudo o que quero saber. — lhe disse Will.

Ela olhou freneticamente a seu redor.

   — Ninguém pode te ajudar. Os outros estão mortos e Stiles escapou, e os guardas de fora não sabem que estamos aqui. Agora, olhe: estamos no laboratório.

Ela assentiu.

   — Stiles escapou daqui, mas não através de nenhuma das saídas que conhecemos. Como ele fez?

Ela piscou, enjoada, assustada.

   — Não posso... Não posso...

   — Oh, por Deus, vamos comê-la isso e acabemos com tudo isto. — disse Rhiannon, enquanto se ajoelhava junto a ela.

Tomou-a pelo cabelo e lhe jogou a cabeça para trás, com os olhos cintilantes e a boca junto a seu pescoço.

   — Não! — gritou a mulher.

   — Fale ou morrerá, mortal. Para mim não tem nenhuma importância.

Will teve que admitir que a vampiresa era boa. Era possível que inclusive lhe tivesse feito falar com ele. Ora, não.

A mulher assentiu rapidamente.

   — Há uma passagem oculta na parede. — disse, e levantou uma mão, fazendo um gesto débil para a parede a que conduzia o rastro de sangue. Se... Abre-se com o interruptor da luz.

Will se aproximou e apertou o interruptor. Então, o painel da parede se deslizou dentro de uma ranhura e deixou ver uma escada que descia.

   — Isto não estava aí antes. — disse Roland.

   — Stiles fez com que o construíssem. — explicou a mulher.

De repente, ouviu-se um ruído à distância, e o chão vibrou sob seus pés.

   — Que demônios...? — perguntou Roland.

Willem olhou seu relógio de pulso.

   — Demônios, é a distração que tinha preparado. Pus alguns explosivos e um temporizador no outro extremo do túnel que Eric usava como saída de emergência do porão. Não o suficiente para abri-lo, porque não tinha muitos explosivos, e...

Sua explicação se viu interrompida por uma voz que saiu de uma pequena caixa, montada justo ao lado da saída.

   — Stiles? Produziu-se uma explosão perto. O que quer que façamos?

Will olhou à mulher.

   — Explique-me isso. Rápido.

   — São interfones. — disse ela — Estão por toda a casa, para poder comunicar-se com os soldados.

Will se aproximou do interfone e apertou o botão.

   — Alguém explodiu o túnel que estava fechado. Os prisioneiros estão escapando. Leve a todos os homens para ali.

   — Mas, a casa, senhor...

   — Aqui estamos em seis, e todos armados. Somos suficientes para controlar a uma garota. Tem suas ordens, soldado. Adiante.

   — Sim, senhor!

Roland sacudiu a cabeça.

   — Incrível. Sua voz não se parece em nada a de Stiles.

   — Para ti não, possivelmente. — respondeu Will — Mas para um mortal normal e comum, a maioria das vozes masculinas e graves são muito parecidas através de um interfone barato. Além disso, mercenários ou não, um soldado com treinamento não pensa muito quando recebe uma ordem direta. Simplesmente, obedece.

De repente, um golpe seco chamou sua atenção. Voltou-se e viu a Amber, pálida, junto ao caderno que acabava de cair das mãos. Enquanto eles tinham estado falando com a mulher e resolvendo o problema dos soldados, ela tinha estado lendo as coisas que Stiles e seus monstros lhe tinham feito.

   — Não... Não o entendo. — disse, com lágrimas nos olhos — Tentaram me matar?

Angélica exalou de angústia e abraçou a sua filha. Jameson perguntou:

   — O que diz nesse caderno?

   — Leve isso com você. — disse Will — Agora não temos tempo. A esses soldados não vai custar muito tempo descobrir que o túnel ainda está fechado. Saiam da casa, todos. Vão procurar os carros. Fechem a porta quando saírem, e não se darão conta do que ocorreu.

   — E você? — perguntou Amber. Jameson acariciou o cabelo de sua filha.

   — Ele vai procurar Sarafina.

   — Mas não vai sozinho. — disse Rhiannon, e jogou um olhar a seu marido. Roland assentiu.

   — Não temos tempo para discutir. — disse Will.

   — Então, não discuta. — replicou Rhiannon — Angélica, Jameson, levem Amber. Peguem o carro e tirem ela daqui. Veremo-nos todos na casa de Eric e Tâmara quando terminarmos. Partam.

   — Não. — naquela ocasião, foi Amber quem falou — Estamos perdendo tempo. Sarafina ajudou a salvar minha vida, e eu não vou daqui tranqüilamente enquanto ela enfrenta Stiles sozinha. — disse, e saiu do abraço de sua mãe.

Pegou Will pela mão e puxou-o para a passagem secreta.

   — Pequena obstinada... — balbuciou Rhiannon. Depois, agachou-se sobre a mulher do chão — Vocês continuem. Eu esconderei esta em algum lugar e lhes seguirei.

   — Ande depressa, Rhiannon. — lhe disse Jameson, enquanto Angélica entrava também na passagem, onde Will ainda estava tentando dissuadir a Amber.

Roland sacudiu a cabeça.

   — Não se preocupe, Jamey. Eu ficarei com ela. Continuem. Têm que ajudar Willem a salvar sua mulher.

Rhiannon se voltou para a mulher.

   — Umas quantas perguntas mais, e lhes seguiremos.

Os outros partiram pelo túnel, e Roland apertou o interruptor que havia junto à entrada.

  

   — Aonde leva este túnel? — perguntou Rhiannon à mulher enquanto a metia em um armário.

   — Ao mar. Stiles tem um bote pequeno ali, no caso de precisar escapar a toda pressa.

   — Um bote. Só um bote? — Rhiannon sacudiu a cabeça — Com lugar suficiente para vocês sete?

A mulher franziu o cenho, como se nunca houvesse parado para pensar naquele detalhe.

   — Idiota. — resmungou Rhiannon. Fechou a porta do armário e pôs uma cadeira sob a fechadura.

   — Vão ficar apanhados aí fora. — disse Rhiannon — Os soldados chamarão por radio a casa, e quando não responder ninguém, entrarão. A idiota lhes contará tudo e lhes dirá sobre a passagem, se é que já não sabem.

Roland correu através da casa à velocidade da luz e olhou pela janela da parte dianteira.

   — Vejo-os. Estão voltando para a casa. Temos que sair daqui antes que tomem posições de novo. Vamos, o melhor é que saiamos pela parte de atrás.

Pegou Rhiannon pela mão e juntos correram pela casa e saíram à parte de atrás. Chegaram à cerca justo quando os homens estavam ocupando seus postos de novo. Se lhes ocorria olhar para trás, veriam-nos...

Roland e Rhiannon saltaram a grade e correram para esconder-se. Os soldados ouviram o impacto de sua aterrissagem e olharam para o lugar de que provinha o som. Então, com o cenho franzido, alguns se aproximaram.

Rhiannon e Roland ficaram imóveis, escondidos entre os matagais, enquanto um par de soldados se aproximava e percorria a grade com lanternas, procurando.

Umas pegadas suaves se aproximaram por trás, para Rhiannon, e ela se voltou. Pandora chegou silenciosamente até ela, e Rhiannon a abraçou e lhe acariciou a cabeça e a cara.

Depois de uns instantes, os soldados voltaram para seus postos.

Rhiannon se levantou, cautelosamente.

   — Vamos. Temos que encontrar uma lancha.

Caminharam até o lugar onde Will tinha escondido a Mercedes e subiram. Pandora se deitou no assento de trás, e Roland conduziu enquanto Rhiannon se concentrava e seguia mentalmente a linha da costa. Pouco tempo depois encontraram um pequeno porto esportivo onde havia alguns iates.

Pararam o carro e saíram. Caminharam para o embarcadouro, que àquelas horas estava virtualmente vazio. Faltava pouco para que amanhecesse.

   — Não sei nada de iates. — lhe disse Roland.

   — Então, teremos que levar um piloto conosco. —disse ela. Adiantou-o e se dirigiu por volta do segundo embarcadouro, onde havia um moço que estava desamarrando seu pequeno iate. Não havia ninguém mais em um quilômetro.

   — Desculpe-me, mas vou necessitar que me leve. — lhe disse Rhiannon.

O moço percorreu seu corpo com o olhar, e depois sua vista se pousou na pantera e abriu os olhos como pratos.

   — Né... Olhe, senhora, não sei do que trata isto, mas...

   — É uma emergência. Um assunto de vida ou morte.

   — De vida ou morte?

— Sim. Da tua. E agora, sobe ao iate se não quiser ser o aperitivo de um felino.

Ao ouvi-la, Pandora lhe mostrou os dentes e emitiu um perigoso rugido.

   — Está bem, está bem. — disse o moço. Levantou as mãos, saltou ao navio e arrancou o motor. Rhiannon saltou dentro e Pandora a seguiu. Roland desatou o cabo e saltou depois delas.

   — De verdade, Rhiannon, a atuação... — disse-lhe — Não tinha por que assustar tanto ao pobre menino.

   — Não ia cooperar. Não tinha tempo para convencê-lo.

O menino levou o iate na direção que Rhiannon assinalou, enquanto ela observava como dirigia os comandos. Quando se aproximaram de seu destino, lhe disse:

   — Poderá nadar até a costa daqui?

O menino olhou para trás e pestanejou.

   — Oh, vamos. Não me vão roubar o navio. Por favor...

   — Jovem. — lhe disse Roland — Tem muitos soldados muito perto daqui. São mercenários. Se nos virem, dispararão, assim, a menos que queira ver-se em meio de uma rajada de balas...

Ele olhou para a costa enquanto reduzia a velocidade do iate. Quando se deteve por completo, disse:

   — Eu não vejo nenhum...

   — Oh, pelo amor de Deus. — lhe interrompeu Rhiannon, e estalou os dedos.

Pandora se aproximou do menino, rugindo, e lhe pôs as duas patas sobre o peito. O moço caiu à água do empurrão e se afundou. Quando voltou a emergir, Pandora estava aparecendo pela amurada, e lhe lançou um par de tapas, mas com as garras retraídas.

Rhiannon sacudiu a cabeça e se sentou no assento do piloto. Tinha estado observando cuidadosamente ao moço enquanto conduzia, e tinha aprendido a acelerar e a desacelerar, a deter-se e a virar. Embora esperasse não ter que fazer tantos movimentos. Deu-se a volta e se despediu do menino.

   — Agora nade para a costa. Tentarei te devolver o iate.

O menino lançou um olhar de súplica ao Roland, mas Roland encolheu os ombros enquanto Rhiannon punha o iate em marcha de novo. Só tinham percorrido vinte metros quando começaram a soar os primeiros disparos. Aproximaram-se da costa, que naquele lugar era de escarpados rochosos, e as balas que lhes disparavam de cima se afundavam na água, ao redor da lancha. Rhiannon se aproximou mais quando divisou a velha casa de Eric sobre o escarpado.

Diminuiu a velocidade para aproximar-se das rochas. Os soldados acima correram para a borda do escarpado para seguir disparando-os. Era evidente que por fim tinham descoberto o que tinha acontecido na casa.

   — Ali! — exclamou Roland. Rhiannon viu uma abertura entre as rochas e se dirigiu para ela. Então viu Angélica e Jameson, com a Amber. Onde estava àquele mortal obstinado, Willem Stone?

Eles três saltaram da boca da passagem, que estava a uns cinco metros de altura, e nadaram para o iate. Roland os ajudou a subir, começando pela Amber.

   — Onde está Will? — perguntou.

   — Havia um bote de remos a uns vinte e cinco metros daqui. — disse Jameson, enquanto subia por si mesmo ao iate — Quando chegamos aqui, vimos Stiles em uma lancha barco a motor. Então, Will se atirou à água e nadou até o bote para perseguir o Stiles. Parece que ia para aquela ilha. — explicou, e assinalou para uma mancha escura de rocha, ao longe.

   — Temos que ir atrás dele. — disse Rhiannon.

Amber olhou ao céu, e depois a seus pais.

   — Logo vai amanhecer. Não quero que fiquem presos naquela ilha de rocha, sem uma só árvore, quando sair o sol.

   — Fica uma hora mais, pelo menos. — disse Jameson — Podemos fazê-lo.

   — Pois façamos depressa. — disse Rhiannon.

Pôs o iate em marcha e acelerou tudo o que pôde, entre as ondas, para a ilha rochosa, a distância.

    

Sarafina lutou por manter-se consciente enquanto o louco, aquele louco sobrenaturalmente forte, levava-a sobre o ombro para cima, escalando pela face mais levantada da ilha rochosa, mais e mais alto. Cansou-se de que o sangue de Sarafina lhe corresse pelo ombro e lhe empapasse a roupa enquanto avançava com ela pela passagem, e a tinha amaldiçoado por isso, embora ela lhe tinha recordado que ele mesmo a tinha disparado.

Quando ele a lançou da saída da caverna ao mar, a água salgada lhe causou uma dor insuportável na ferida de bala. Entretanto, ela o agüentou, porque era uma vampiresa, e ainda não tinha perdido a última gota de sangue.

A água a engoliu e depois a devolveu à superfície. Quando sua cabeça saiu à superfície, viu-o descendo por uma corda até uma pequena amurada que estava na areia de uma baía, atada a uma árvore. Arrastou-a até a água, sem desatá-la, e depois caminhou até que alcançou a Sarafina.

Ela estava sofrendo muito para que a dor lhe permitisse afastar-se. A dor, em sua raça, via-se mil vezes intensificada, e se perguntou quanto tempo teria que esperar para que a morte a libertasse. Tinha estado errada em seu medo de amar ao Willem, verdade? Não ia ser ela quem ficasse atrás de luto, cheia de tristeza. Seria ele.

Stiles a agarrou pelo cabelo e a arrastou para a borda como se fosse uma massa de algas. Arrastou-a também pela praia, até que se deteve e se ajoelhou ante ela.

Colocou os dedos pelo buraco que lhe tinha feito a bala no vestido e o rasgou de acima o pescoço. Ela estava ali, estendida na areia, na escuridão, perguntando-se se acaso ele pensava que assim pioraria mais as coisas para ela. Mas não. Aquele não era seu objetivo. Tomou areia molhada e a colocou, sem piedade, pela ferida de bala, para lhe cortar a hemorragia. Ela gritou sem poder se conter, de agonia, e lhe caíram lágrimas pelas bochechas, contra sua vontade.

E ele riu. Riu da dor que lhe estava causando.

Depois lhe deu a volta e colocou mais areia pelo orifício de saída da bala, nas costas. Ela perdeu a visão, estremecendo-se.

Depois, Stiles a agarrou e a jogou na amurada. Ele mesmo subiu também, e depois arrancou o motor e ficou de caminho para a ilha. Quando chegou, jogou-a de novo ao ombro e tomou também uma corda enrolada. O sangue já não lhe incomodaria mais enquanto subia pelo pendente até o ponto mais alto da formação rochosa.

Finalmente, quando chegou em cima, inclinou-se e a deixou cair ao chão de rocha. O impacto tirou o fôlego de Sarafina, e se golpeou tão fortemente na cabeça que notou como se fazia um corte e o sangue começava a brotar também sob seu cabelo.

Stiles se ajoelhou e lhe amarrou os pulsos. Depois pegou a corda e a amarrou ao redor de uma rocha. Tirou uma navalha do bolso e cortou o restante de corda para lhe atar também os tornozelos a outra rocha mais afastada. Puxou o cabo sem piedade, fazendo com que o corpo de Sarafina se esticasse grosseiramente.

   — Logo virá um monstro por ti, Sarafina.

Ela já não podia saber se estava morta ou viva. A cabeça lhe dava voltas, e recordou o momento em que também sua própria irmã a tinha preso em uma cova escura para que outra criatura se alimentasse dela.

   — Eu o chamo sol. Vai elevar se no céu, e você estará aqui indefesa, enquanto te carboniza a pele. Começará a te queimar brandamente, até que esteja bem em cima. Sairá por aquele lado da rocha, além de sua cabeça, assim não te queimará de repente. Você vai sofrer lentamente, antes de estalar em chamas.

   — Sobre meu cadáver, Stiles!

Sarafina levantou fracamente a cabeça. Will estava atrás de Stiles, completamente molhado. Estava sem fôlego, e a dor do pé o estava matando. Como era possível que tivesse podido subir até aquele lugar com aquele pé?, perguntou-se Sarafina, mas soube em seguida.

Por sua vontade. Sua férrea força de vontade. Então, os dois homens se jogaram um sobre o outro, giraram e caíram ao chão.

   — Will, tome cuidado! É mais forte do que o normal!

   — Fez algo... — gritou ela, embora tivesse que fazer o maior esforço de sua vida para dizê-lo o suficientemente alto para que ele o ouvisse.

Enquanto o dizia, Will recebeu um golpe na mandíbula que o fez voar e cair de costas junto a borda do escarpado.

   — Vamos terminar de uma vez. — disse Stiles, avançando para ele com a navalha na mão.

Will tinha ficado aturdido pelo golpe. Estava no chão, pestanejando para tentar esclarecer a visão.

   — Willem! — gritou Sarafina, enquanto puxava as cordas com todas as suas forças. Entretanto, a dor e a perda de sangue a tinham debilitado por completo.

Stiles estava sobre o Will com a navalha levantada.

De repente, Will moveu as pernas e as dobrou ao redor dos tornozelos de Stiles, enquanto se sentava para agarrá-lo pelo pulso e puxava-o para frente. Enquanto Stiles se desabava, Will rodou para um lado e lhe deu um empurrão mais forte, o suficientemente forte para que caísse pela borda do precipício. Seu grito de horror cessou de repente ao fundo. Will apareceu para olhar para baixo.

   — Shhh. Esborrachou-se. Que lástima.

Com um gesto de dor, levantou-se lentamente e se aproximou de Sarafina. Ajoelhou-se a seu lado.

   — Logo vai amanhecer. — lhe disse brandamente — Você se curará da ferida da bala?

Ela assentiu. Will se inclinou sobre ela e a beijou nos lábios.

   — Mas poderia ter sido diferente. Possivelmente eu não tivesse podido chegar a tempo. Poderia haver perdido você. Entende-o, verdade?

   — Will, por favor... Solte-me.

   — Estou a ponto de fazê-lo. — disse, mas apertou os lábios pensativamente — Se não estivesse cheia de buracos e o sol não estivesse a ponto de sair, não o faria durante horas. Parece-me que me deve isso.

Ela tentou esboçar um sorriso, mas lhe doía muito para consegui-lo.

Ele se aproximou de seus tornozelos e os desatou. Depois os esfregou.

   — Poderia te haver perdido. Ainda poderia perder você, em qualquer momento, sem aviso prévio. Não é imortal. Não envelhece e não morrerá de causas naturais, mas isso não é a imortalidade. Pode morrer, igual a mim.

Deslizou-lhe as mãos pelos tornozelos, pelas pernas, pelos quadris, e se deteve, olhando o buraco do ventre, cheio de areia.

   — Você limpou a ferida?

   — Não. A areia impedirá que eu sangre até morrer.

Will assentiu. Depois lhe desatou os braços. Enquanto o fazia, disse-lhe:

   — Quero-te, Sarafina. Sabe disso, verdade? Nunca foi uma mentira, nem um jogo. Nunca foi uma atuação. Quero-te.

Ela fechou os olhos.

   — Willem...

   — Um ano de amor é melhor que uma vida sozinho. Estou disposto a me arriscar a sofrer a dor de te perder, de envelhecer e ver como você permanece jovem e vital. Estou disposto a arriscar tudo, Sarafina, pela alegria de estar contigo, de te amar, pelo tempo que o universo queira me conceder. Está disposta a correr o mesmo risco por mim?

A corda se desatou por completo. Ela baixou as mãos e ele as agarrou e as levou a boca para lhe beijar a pele onde o cabo lhe tinha queimado.

   — Não acredito que tenha escolha, Willem. Tentei-o. Disse a mim mesma que não temos futuro juntos, e que o fato de te amar será uma garantia de mais sofrimento. Mas isso não conseguiu que deixasse de te querer.

   — Graças a Deus. — sussurrou ele. Tomou-a em braços e a levantou, apertando-a brandamente contra seu peito.

   — Tenho muitas coisas que lamentar, Willem. Coisas que não posso mudar. Você me tem feito ver o quanto eu estava equivocada.

   — Com respeito a que?

   — Durante anos odiei a meu precioso Dante por escolher a Morgan ao invés de mim. Mas agora... Agora o entendo. Eu tenho feito o mesmo por ti.

Ele assentiu.

   — Então, não é tarde para arrumar as coisas.

   — Mas há muito mais. Coisas que não posso arrumar tão facilmente. Misty e Edward, por exemplo.

Acariciou-lhe o cabelo.

   — Você mesma me disse que eram criminosos.

   — Mas eu lhes privei de sua vontade. Não me dava conta de que fosse tão valioso até que vi a tua em ação, Willem.

   — Acredita que há alguma forma de reparar isso?

Ela suspirou.

   — É possível. Nesse laboratório da casa havia cadernos e cadernos de notas. Viu-os? E os computadores, e todos esses discos rígidos... Stiles deve ter salvado grande parte da informação que o DIP acumulou. E não tenho dúvida de que terá acrescentado muito mais. Possivelmente, em algum momento, averiguaram como liberar uma mente escravizada por um vampiro.

   — Possivelmente.

Ela assentiu e se apertou contra ele.

   — Sinto o que fiz a você, Willem. Não tenho desculpa.

   — Tem a desculpa perfeita. Queria-me. Tinha medo de me dar a oportunidade de te ferir, como fizeram as demais pessoas às que quis. Felizmente, eu não tenho intenção de te fazer dano.

Na distância, soou o ruído de um motor.

Will ficou em estado de alerta, tenso, e rapidamente a deixou, com cuidado, no chão. Desabotoou-se a camisa e a tirou.

   — Coloque-a.

Parecia que ele estava mais preocupado por sua nudez que ela mesma. Sarafina tentou sentar-se, mas não pôde.

   — Will, não posso. Não posso...

Ele se voltou, com a cara cheia de amor, e lhe ajudou a tirar o que ficava do vestido pelos ombros. Depois lhe pôs com cuidado a camisa e a abotoou.

   — São Rhiannon e outros. — disse ela.

Will olhou ao céu.

   — Bem a tempo.

Ele voltou a tomá-la em braços e seguiu descendo pela colina.

   — O pé está te matando. — lhe disse ela, sentindo sua dor.

   — E o buraco da bala, a você. Mas temos que descer ao iate, de todas as formas.

Quando, por fim, chegaram ao nível do mar, os outros se aproximaram correndo, com Rhiannon à frente.

Olhou a ferida de Sarafina antes de encontrar-se com seus olhos de novo.

   — Você vai sobreviver?

   — Acredito que sim.

   — Bom. — disse Rhiannon, assentindo.

Sarafina arqueou as sobrancelhas enquanto Will a levava para o bote. A princesa caminhava a seu lado.

   — Bom?

   — Sim. É a primeira vampiresa que conheci que teve a coragem de me desafiar, e muito menos o poder de representar um verdadeiro desafio. Não uma ameaça, é obvio, mas sim um desafio.

   — Quando medimos forças, eu estava... Incapacitada, como se diz.

   — Estava ferida?

   — Abatida.

   — Ah. Assim, possivelmente, a próxima vez, inclusive me lance golpes de verdade. Nunca se sabe. — disse ela. Não sorriu com os lábios, mas sim com os olhos. E ajudou ao Will a subir ao iate com Sarafina.

Jameson ocupou o assento do piloto. Angélica se meteu entre o Roland e ele. Will se sentou na parte de atrás com Sarafina entre seus braços, e Rhiannon a seu lado. A pantera se acomodou no pequeno espaço que havia atrás dos assentos.

Amber ficou na rocha.

   — Amber? Vai amanhecer dentro de muito pouco. Temos que ir.

Ela olhou ao céu, e depois, a seu redor.

   — Mas... Onde está? Onde está Stiles?

Sara levantou a cabeça fracamente.

   — Willem o atirou do alto do escarpado. Estatelou-se contra as rochas abaixo, Amber. Não terá que preocupar-se nunca mais com ele.

   — Onde? — perguntou ela —. Quero que tenha morrido. Quero ver por mim mesma que morreu.

   — Amber...

Jameson pôs uma mão sobre o ombro de sua mulher, e Angélica ficou em silêncio. Ele olhou ao Will e assentiu.

   — Acompanha-a, Will. Precisa vê-lo por si mesma.

Will tragou saliva, mas fez o que lhe pedia. Deixou Sarafina no chão do iate, deitada, e saiu para acompanhar Amber.

Os dois estavam sobre as rochas onde tinha caído Stiles. Havia sangue. Inclusive partes de carne e cabelo. Mas não havia nem rastro dele.

— Seu bote ainda está ali, a uns quantos metros, atado a uma rocha — disse Amber — Mas não o bote de remos em que você veio. Atou-o do outro lado, Will?

Ele a olhou nos olhos, pensando se deveria lhe mentir ou não.

   — Não. Deixei-o ali. — disse, assinalando um pouco mais à frente.

   — Ele sabe mais a respeito de mim que eu mesma.

   — Tem suas notas. — lhe disse Will — Pode saber tudo o que ele averiguou...

   — Matando-me uma e outra vez. — terminou Amber, e abaixou o olhar — E possivelmente agora, tampouco possa matar a ele. Possivelmente represente um perigo muito maior para nós.

   — Ou possivelmente as ondas o tenham levado ao mar. — disse ele, brandamente — Ou também pode ser que me esqueci de atar o bote, com a ansiedade que sentia por chegar junto à Sarafina.

Amber suspirou.

   — Não sei o que sou, Will.

Pôs-lhe um braço sobre os ombros e fez com que se voltasse. Começaram a andar juntos para o bote onde os outros esperavam.

   — E você acredita que tem problemas? Eu estou apaixonado por uma vampiresa.

Aquilo fez com que Amber soltasse uma suave gargalhada. Ele se alegrou de ouvi-la. Amber apoiou a cabeça em seu ombro.

   — Sinto muito que, por minha culpa, tenham estado a ponto de matar você.

   — Estiveram a ponto de me matar muitas vezes, menina. Não se preocupe.

Quando chegaram ao iate, Will a ajudou a subir. Depois ele saltou dentro e se sentou no chão, junto à Sarafina.

Sara o olhou nos olhos, lhe perguntando com o olhar. Ele negou com a cabeça, ligeiramente.

Então, Rhiannon guiou com seus olhos o olhar de Will para um pequeno ponto no horizonte. Ele entrecerrou os olhos. Parecia... Um homem em um bote.

Rhiannon o olhou de novo. Tinha o cenho franzido, e Will soube o que ela estava pensando.

Sarafina olhou primeiro a um, e depois ao outro.

   — Não o encontraste? — perguntou — Não encontraste o Stiles?

   — Não. — respondeu Will brandamente.

   — Mas... Isso significa que é possível que tenha sobrevivido à queda. Isso significa que...

   — Isso significa que não encontramos o corpo. — disse Will — E isso é tudo, Sara.

Mas, em seus olhos, Will viu que ela pensava que significava muitas coisas mais. E nem sequer ele mesmo pôde deixar de perguntar-se se seria certo.

 

 

                                                                                                    Maggie Shayne

 

 

 

¹ Nota da revisora: palavra cigana para designar aquele que não é ciganos.

² Nota da revisora: bordo é uma árvore, que é usada para fazer geléias, xaropes e acompanhamentos.

 

 

 

 

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