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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CADEIRA VAZIA / Jeffery Deaver
A CADEIRA VAZIA / Jeffery Deaver

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O mais improvável e inteligente de todos os detetives da história da literatura policial está de volta neste novo thriller do americano Jeffery Deaver. O genial criminalista tetraplégico Lincoln Rhyme, de "O Colecionador de Ossos", retorna para uma caçada humana de resultados surpreendentes pelos desolados pântanos da Carolina do Norte.

Numa trama cheia de intrincados elementos e surpreendentes reviravoltas, o autor acompanha Rhyme em sua nova missão. Num escritório improvisado na delegacia local, o especialista comanda as buscas, com a ajuda de Amélia Sachs, mais que assistente, namorada, braços e pernas de Rhyme, vagando por lugares sinistros e desolados na procura pelo bizarro assassino.

Imortalizado nas telas por Denzel Washington, Rhyme, em A CADEIRA VAZIA, se submete a um tratamento experimental para a lesão de sua coluna. Uma cirurgia delicadíssima que tanto poderia resgatar alguns dos movimentos perdidos quanto matá-lo. Enquanto está no hospital para os exames pré-operatórios, recebe a visita do chefe de polícia da cidadezinha de Tanner""s Corner, que o procura, desesperado, em busca de ajuda. Duas moças foram seqüestradas por um adolescente psicótico, com fixação por insetos, que matou um homem e ameaça a vida de suas vítimas. Rhyme é o único capaz de encontrá-las a tempo de evitar novos assassinatos. Numa trama cheia de intrincados elementos e surpreendentes reviravoltas, o autor acompanha Rhyme em sua nova missão. Num escritório improvisado na delegacia local, o especialista comanda as buscas, com a ajuda de Amélia Sachs, mais que assistente, namorada, braços e pernas de Rhyme. A CADEIRA VAZIA vaga por lugares sinistros e desolados na procura pelo bizarro assassino.

 

 

 

 

Ela veio depositar flores no local onde o rapaz morreu e a mocinha fora seqüestrada.

 

Veio porque era gorda, tinha o rosto marcado de cicatrizes de acne e não tinha muitos amigos.

 

Veio porque esperava-se que fizesse isso.

 

E veio porque quis.

 

Desajeitada, suada, Lydia Johansson, de 26 anos de idade, caminhou pelo acostamento de areia da Estrada 112, onde tinha estacionado o Honda Accord e, em seguida, com todo cuidado, descido pela encosta do morro até a margem lamacenta, onde o Blackwater Canal se encontrava com o escuro rio Paquenoke.

 

Veio porque achava que era a coisa certa a fazer.

 

Embora pouco passasse do amanhecer, esse mês de agosto tinha sido um dos mais quentes na Carolina do Norte, e Lydia já suava dentro do uniforme branco de enfermeira ao dirigir-se para a clareira à margem do rio, cercada de salgueiros, nissas e loureiros. Sem dificuldade, encontrou o local que procurava: a fita amarela estendida pela polícia era visível através da névoa.

 

Sons de começo de manhã. Mergulhões, um animal à procura de comida nas grandes moitas próximas, vento quente varrendo a junça e a relva de charco.

 

Deus do céu, estou com medo, pensou. Vividamente, lembrou-se rápido das cenas mais apavorantes dos romances de Stephen King e Dean Koontz, que lia tarde da noite, juntamente com seu companheiro, um litro de Ben & Jerry's.

 

Mais ruídos nas moitas. Hesitou, olhou em volta. Em seguida, continuou a andar.

 

- Ei - disse uma voz de homem, muito próxima.

 

Lydia arquejou e girou sobre si mesma, quase deixando cair as flores.

 

-Jesse, você me assustou.

 

- Desculpe.

 

Jesse Corn estava atrás de um salgueíro-chorão, perto da clareira isolada pela fita. Lydia notou seus olhos fixos no mesmo local: um esboço branco e claro no chão, onde tinha sido encontrado o corpo. Em volta da linha que indicava a cabeça de Billy, viu uma mancha escura que ela, como enfermeira, reconheceu imediatamente como sangue velho.

 

- Então, foi aqui que aconteceu - murmurou ela.

 

- Isso, aqui mesmo. - Jesse enxugou a testa e rearrumou uma mecha frouxa dos cabelos louros. O uniforme - na cor bege do Gabinete do Xerife do Condado de Paquenoke - estava amassado e empoeirado. Manchas escuras de suor podiam ser vistas nas axilas.

 

Jesse tinha uns 30 anos de idade e parecia um garoto bonitão.

 

- Há quanto tempo você está aqui? - perguntou Lydia.

 

- Não sei. Talvez desde as cinco horas.

 

- Eu vi outro carro - disse ela. - Lá na estrada. De Jím?

 

- Não. De Ed Schaeffer. Ele está no outro lado do rio. -Jesse indicou as flores com um movimento de cabeça. - Bonitas.

 

Após um momento, Lydia olhou para as margaridas nas mãos.

 

- Dois dólares e 49 centavos. Na Food Lion. Comprei as flores na noite passada. Eu não sabia o que poderia estar aberto tão cedo assim. Bem, a Dell's está, mas lá eles não vendem flores. - E se perguntou por que estava falando tanto. Olhou novamente em volta.

 

- Alguma idéia de onde Mary Beth possa estar? Jesse sacudiu a cabeça.

 

- Não tenho a mínima.

 

- Acho que isso significa que ele também não.

 

- Ele também não.

 

Jesse lançou um olhar ao relógio. Do outro lado da água escura, caniços densos e relva escondiam o píer de madeira podre.

 

Lydia não gostou de que um policial municipal, usando uma pistola enorme, parecesse tão nervoso quanto ela. Jesse fez menção de subir a colina gramada em direção à estrada. Parou e olhou para as flores.

 

- Apenas dois dólares e 99 centavos?

 

- Quarenta e nove. No Food Lion.

 

- Foi uma pechincha - disse o jovem policial, fitando com olhos apertados o mar de grama. Olhou novamente para o morro. - Estarei lá em cima, ao lado do carro da radiopatrulha.

 

Lydia Johansson aproximou-se mais da cena do crime. Mentalmente, formou uma imagem de Jesus e de anjos, e rezou durante alguns minutos. Rezou pela alma de Billy Stail, que exatamente na manhã do dia anterior tinha sido libertado de seu corpo sangrento. Rezou pedindo que o sofrimento que estava ali na Tanner's Camer logo depois desaparecesse.

 

E rezou também por si mesma.

 

Mais ruído nas moitas. Galhinhos estalando, som de folhas roçando umas nas outras.

 

Embora mais claro nesse instante, o sol não fazia lá um grande esforço para iluminar o Blackwater Landing. Nesse ponto, o rio era profundo e margeado por salgueiros pretos e grossos troncos de cedro e ciprestes - alguns ainda vivos, outros, não; todos quase sufocados por musgo e lianas. Ao nordeste, não muito distante, estendia-se o Grande Pântano da Desolação. Lydia Johansson, como todas as bandeirantes do passado e do presente no condado de Paquenoke, conhecia todas as lendas sobre aquele lugar: a Dama do Lago, o Ferroviário Sem Cabeça... Mas não eram essas aparições que a incomodavam. O Blackwater Landing tinha seu próprio fantasma... o rapaz que seqüestrara Mary Beth McConnell.

 

Abriu a bolsa e, mãos trêmulas, acendeu um cigarro. Andou vagarosamente pela margem, parou ao lado de uma pequena moita, que se encurvava sob a brisa escaldante.

 

No alto do morro, ouviu o barulho de um motor de carro. Jesse não estava indo embora, estava? Alarmada, olhou para cima. Notou, porém, que o carro continuava no mesmo lugar. Simplesmente pondo o ar-condicionado para funcionar, pensou. Ao olhar novamente para a água, notou que as moitas de junça, tifa e arroz silvestre continuavam ainda encurvadas, balançando, farfalhando. Como se houvesse alguém ali, aproximando-se cada vez mais da fita amarela, movendo-se bem rente ao chão.

 

Mas, não, não, não era nada disso. É apenas o vento, disse a si mesma. E, com toda reverência, depositou as flores na forquilha de um salgueiro preto enodoado, não muito longe do esboço fantasmagórico de um corpo caído no chão, salpicado de sangue tão preto quanto a água do rio. Mais uma vez, voltou a rezar.

 

Na outra margem do rio Paquenoke, de frente para a cena do crime, o policial Ed Schaeffer encostou-se no tronco de um carvalho e ignorou os mosquitos do começo da manhã que adejavam perto de seus braços, que saíam das mangas curtas do uniforme. Agachou-se e passou novamente a vista pelo bosque, à procura de sinais do rapaz.

 

Teve que se apoiar em um ramo, tonto de exaustão. Tal como a maioria dos policiais do gabinete do xerife, estava acordado há quase 24 horas, procurando Mary Beth McConnell e o rapaz que a seqüestrara. Mas enquanto os outros, sem exceção, haviam ido tomar um banho de chuveiro, comer alguma coisa e dormir umas poucas horas, ele continuara na busca. Era o policial mais velho da força e o mais corpulento (55 anos de idade e 130kg de peso, na maior parte inútil), mas o cansaço, a fome e as articulações emperradas não iam impedi-lo de continuar a busca. Examinou novamente o terreno. Apertou o botão de transmissão do rádio. -Jesse, sou eu. Você está aí?

 

- Afirmativo. Continue.

 

Em voz baixa, Ed continuou:

 

- Encontrei pegadas aqui. Frescas, ainda. Deixadas há umahora no máximo.

 

- Acha que são dele?

 

- De quem mais poderia ser? A esta hora da manhã, neste lado do Paquo?

 

- Pelo que parece, você tem razão - comentou Jesse com. - Não acreditei no início, mas você acertou na mosca.

 

A teoria de Ed era que o rapaz voltaria àquele local. Não por causa do clichê - o criminoso volta sempre à cena do crime -, mas porque o Blackwater Landing sempre foi sua zona de caça e, em todas as encrencas em que se meteu ao longo de todos esses anos, ele sempre voltou para aquele local.

 

Olhou em volta, o medo substituindo a exaustão e o desconforto, enquanto examinava o emaranhado infinito de folhas e galhos que o cercavam por todos os lados. Jesus, pensou, o rapaz está em algum lugar por aqui. Voltou a falar no rádio:

 

- As pegadas parecem estar indo em sua direção, mas não posso dizer com certeza. Ele andava principalmente em cima de folhas. Fique alerta. vou ver se descubro de onde ele veio.

 

Joelhos estalando, Ed levantou-se e, tão silencioso quanto um homenzarrão podia ser, seguiu os passos do rapaz, refazendo o caminho por ele tomado - penetrando cada vez mais no bosque, afastando-se do rio.

 

Seguiu os rastros por uns 40 metros e descobriu que levavam a um velho ponto de tocaia - uma choça acinzentada suficientemente grande para abrigar três ou quatro caçadores. As seteiras para as armas destacavam-se escuras nas paredes e o local parecia deserto. Tudo bem, pensou. Tudo bem... Ele, provavelmente, não está lá.

 

Mas, mesmo assim...

 

Respirando forte, fez algo que não fazia há um ano e meio: soltou a arma do coldre. Apertou a mão suada em volta da coronha e começou a andar, os olhos movendo-se para a frente e para trás, entre a choça e o chão, escolhendo o lugar onde pisar, para tornar silenciosa a aproximação.

 

Teria o rapaz uma arma?, pensou, dando-se conta de que estava tão exposto quanto um soldado que desembarca em uma cabeça-de-ponte em território inimigo. Imaginou um cano de fuzil aparecendo em uma das seteiras na parede. Encostou-se na madeira velha da choça e prendeu a respiração, enquanto escutava com toda atenção. Nenhum som ouviu ali dentro, apenas o zumbido baixo de insetos no lado de fora.

 

OK, pensou. Olhou em volta. Rápido.

 

Antes de perder a coragem, levantou-se e espiou por uma das seteiras.

 

Ninguém.

 

Olhou atentamente para o chão. O rosto abriu-se num sorriso com o que viu.

 

- Jesse - disse excitado no rádio.

 

- Fale.

 

- Estou em um ponto de tocaia, talvez a uns 400 metros ao norte do rio. Acho que o garoto passou a noite aqui. Há uns embrulhos vazios de comida e garrafas d'água.

 

E um rolo de fita impermeabilizante, também. E, imagine só o quê? Estou vendo um mapa.

 

- Um mapa?

 

- isso mesmo. Parece ser da área. Talvez nos mostre para onde ele levou Mary Beth. O que é que você acha?

 

Ed SchaefTer jamais ouviu a reação do colega a seu belo trabalho de detetive: um grito de mulher encheu o bosque e o rádio de Jesse Corn ficou em silêncio.

 

Lydia Johansson tropeçou, caindo para trás, e gritou outra vez quando o rapaz saltou de trás da alta moita de junça e prendeu-lhe os braços com os dedos fortes.

 

- Oh, Jesus, Senhor, por favor, não me machuque! - implorou.

 

- Cale a boca - disse ele num murmúrio furioso, olhando em volta, os movimentos sacudidos, maldade nos olhos.

 

Era alto e magro, como a maioria dos rapazes de 16 anos nas pequenas cidades da Carolina, e muito forte, pele vermelha e arranhada - por ter roçado um arbusto venenoso, ao que parecia -, com cabelos à escovinha que pareciam ter sido cortados por ele mesmo.

 

- Eu apenas trouxe flores... só isso. Eu não...

 

- Psiu! - rosnou ele.

 

As unhas compridas e sujas, porém, perfuraram-lhe dolorosamente a pele e Lydia soltou outro grito. Furioso, ele tapou-lhe a boca com a mão. Lydia sentiu-lhe o corpo apertado contra o seu, o cheiro azedo, de sujeira, penetrando-lhe nas narinas. Girou a cabeça para livrar-se da mão.

 

- Você está me machucando - disse num gemido.

 

- Simplesmente, cale essa boca!

 

A voz estalava como ramos cobertos de gelo e gotas de saliva respingaram em seu rosto. O rapaz sacudiu-a furiosamente, como se ela fosse um cão desobediente. Um dos sapatos dele soltou-se na luta, mas ele não deu atenção à perda e novamente fechou-lhe a boca com a mão, até que ela deixou de resistir.

 

Do alto do morro, Jesse Corn gritou:

 

- Lydia? Onde está você?

 

- Psiu - avisou-a novamente o rapaz, olhos esbugalhados e insanos. - Grite e vai ser machucada pra valer. Entendeu? Você entendeu?

 

Enfiou a mão no bolso e sacou um canivete.

 

Lydia inclinou a cabeça, indicando que compreendera.

 

O rapaz puxou-a para o rio.

 

Oh, ali não. Por favor, não, disse para si mesma, pensando no seu anjo de guarda. Não deixe que ele me leve para lá.

 

Ao norte do Poquo...

 

Lydia lançou um olhar para trás e viu Jesse Corn, à beira da estrada, a uns 30 metros de distância, a mão fazendo sombra sobre os olhos, enquanto examinava a paisagem.

 

- Lydia? - gritou ele.

 

O rapaz puxou-a com mais força.

 

- Jesus Cristo, vamos!

 

- Ei! - gritou Jesse, vendo-os finalmente. E começou a descer o morro.

 

Mas eles já se encontravam à beira do rio, onde o rapaz escondera uma pequena canoa sob umas moitas de grama alta. Empurrou-a para o bote e afastou-se da margem, remando com força para o outro lado do rio. Chegou à margem oposta e puxou-a violentamente para fora. Em seguida, rebocou-a para dentro do bosque.

 

- Para onde é que estamos indo? - murmurou ela.

 

- Para ver Mary Beth. Você vai ficar com ela.

 

- Por quê? - perguntou Lydia baixinho. - Por que eu? - Ele, porém, nada mais disse, apenas juntou distraído as unhas com um estalido e continou a rebocá-la.

 

- Ed - disse Jesse Corn, um tom de urgência na voz. - Oh, que confusão. Ele acabou de pegar Lydia. Perdi-os de vista.

 

- Ele o quê?

 

Arquejando com o esforço, Ed Schaeffer parou. Havia começado a correr para o rio quando ouviu o grito.

 

- Lydia Johansson. Ele pegou-a também.

 

- Merda - murmurou o gordo policial, que dizia palavrões tão raramente quanto sacava a arma. - Por que ele fez isso?

 

- Ele é louco - respondeu Jesse. - Foi por isso. Ele está no outro lado do rio e vou atrás dele.

 

- OK. - Ed pensou por um momento. - Ele provavelmente vai voltar aqui para pegar as coisas que deixou na tocaia. vou me esconder e pegá-lo quando ele entrar. Ele tem alguma arma de fogo?

 

- Não deu pra ver. Ed soltou um suspiro.

 

- OK, bem... Venha pra cá logo que puder. Ligue para o Jim, também.

 

Ed soltou o botão vermelho de transmissão e olhou pelas moitas na direção do rio. Nenhum sinal viu do rapaz e da nova vítima. Resfolegando, voltou correndo para a tocaia e chegou aporta. Abriua com um pontapé. A porta girou para trás com um estrondo. Ed entrou rapidamente, agachando-se diante de uma seteira.

 

Estava tenso de medo e excitação, concentrando-se tanto no que iria fazer quando o rapaz chegasse ali, que, no início, não prestou atenção aos dois ou três pequenos pontos, pretos e amarelos, que passaram velozes em frente de seu rosto. Ou a comichão que começou no pescoço e desceu pela espinha.

 

Logo em seguida, porém, a comichão transformou-se em horrível dor nos ombros e, em seguida, ao longo dos braços e nas axilas.

 

- Oh, Deus - gritou, arquejando, saltando para trás e olhando chocado para uma dezena de marimbondos, de uma feia cor preta e amarela, que lhe cobriam a pele. Em pânico, esfregou os braços para espantá-los, um gesto que enfureceu ainda mais os insetos, que lhe picaram os punhos, as palmas das mãos, as pontas dos dedos. Ed soltou um grito. A dor era pior do que qualquer outra que jamais tinha sentido - pior do que perna quebrada, pior do que naquela vez em que pegou uma frigideira de ferro fundido, sem saber que Jean deixara o fogo aceso no fogão.

 

Em seguida, o interior da tocaia tornou-se indistinto, quando uma nuvem de marimbondos escorreu do enorme ninho cinzento no canto - que tinha sido esmagado pela porta que abriu com um pontapé. Nesse momento, era atacado por nada menos que centenas dessas criaturas. Elas penetravam em seus cabelos, pousavam nos braços, ouvidos, rastejavam para dentro da camisa, subiam pela boca da calça, como se soubessem que picar o pano era inútil e quisessem a pele. Ed correu para a porta, arrancando a camisa e viu com horror massas de crescentes lustrosos colados a sua enorme barriga e peito. Desistiu de afastá-los com as mãos e simplesmente correu transtornado para dentro do bosque.

 

- Jesse, Jesse, Jesse! - gritou, compreendendo, no mesmo instante, que a voz se transformara em um sussurro: as picadas no pescoço haviam-lhe fechado a garganta.

 

Corra! disse a si mesmo. Corra para o rio.

 

E correu. Correu mais rápido do que em qualquer outra ocasião na vida, abrindo caminho às cegas pelas moitas da floresta, as pernas subindo e descendo furiosamente.

 

Corra... Continue a correr, ordenou a si mesmo. Não pare. Corra mais do que esses pequenos filhos da puta. Pense em sua mulher, pense nos gêmeos. Corra, corra, corra...

 

Nesse momento era menor o número de marimbondos, embora ainda pudesse ver 30 ou 40 pontos pretos colados a sua pele, as traseiras obscenas encurvando-se para a frente para que pudessem picá-lo mais uma vez.

 

vou chegar ao rio em três minutos. vou me jogar na água. Eles morrerão afogados. vou ficar bem... Corra! Fuja da dor... a dor... Como é que uma coisa tão pequena pode causar tanta dor? Oh, como dói...

 

Correu como um cavalo de corrida, correu como um cervo, passando veloz pela vegetação baixa que era apenas uma mancha indistinta em seus olhos cheios de lágrimas.

 

Mas, espere, espere. O que era que havia de errado? Ed Schaeífer olhou para baixo e deu-se conta de que não estava correndo, absolutamente. Não estava nem mesmo de pé. Estava caído no chão, a apenas uns 10 metros da tocaia, as pernas não correndo, mas sacudindo-se espasmodicamente.

 

Procurou o rádio portátil e mesmo que o polegar tivesse inchado até o dobro do tamanho com o veneno, conseguiu pressionar o botão de transmissão. Mas, nesse momento, as convulsões que haviam começado nas pernas chegaram ao torso e aos braços e ele deixou cair o rádio. Durante um momento, ouviu a voz de Jesse Corn e, quando ela silenciou, só ouviu mesmo o zumbido pulsante dos marimbondos, que se tornou um minúsculo fio de som e, em seguida, caiu o silêncio.

 

Só Deus podia curá-lo. E Deus não estava nem aí.

 

Não que isso importasse, porque Lincoln Rhyme era um homem de ciência, e não de teologia, e por isso mesmo viajara não para Lourdes ou Turim, nem para alguma tenda batista equipada com um curador religioso maníaco, mas para ali, para esse hospital na Carolina do Norte, na esperança de tornar-se, se não um homem inteiro, pelo menos um homem pela metade.

 

Nesse momento, dirigiu a cadeira de rodas motorizada Storm Arrow, tão vermelha como um Corvette, saindo da rampa da van em que ele e sua ajudante, Amélia Sachs, acabavam de fazer uma viagem de 800 quilômetros - desde Manhattan. com os lábios perfeitos em volta do canudo de controle, virou habilmente a cadeira e acelerou, subindo a calçada, na direção da porta principal do Instituto de Pesquisa Neurológica, no Centro Médico da Universidade da Carolina do Norte, em Avery.

 

Thom recolheu a rampa da Chrysler Grand Rollx, preta, lustrosa, uma van com acesso para cadeiras de rodas.

 

- Guarde-a no espaço reservado aos inválidos - disse Rhyme em voz alta e soltou uma risadinha.

 

Amélia Sachs ergueu uma sobrancelha na direção de Thom, que disse:

 

- Ele está de bom humor. Aproveite. Isso não vai durar muito.

 

- Eu ouvi isso - berrou Rhyme.

 

O ajudante afastou-se na van e Sachs emparelhou-se com Rhyme. Nesse momento, ela falava ao telefone celular com uma locadora de carros local. Thom iria passar uma parte bem grande da semana seguinte no quarto de hospital de Rhyme e Amélia queria a liberdade de usar suas horas como lhe aprouvesse, talvez explorando um pouco a região. Além disso, era amante de carros esporte, e não de vans e, por questão de princípio, evitava veículos cuja velocidade máxima não passava de dois dígitos.

 

Depois de cinco minutos esperando que a ligação fosse completada, desligou, cheia de frustração.

 

- Eu não me importaria de esperar, mas essa musiquinha de fundo é insuportável. vou tentar depois. - Olhou para o relógio. – Só 10h30min. Mas este calor é demais. Quero dizer, um pouco demais. Manhattan não era necessariamente o local com o clima mais temperado no mês de agosto, mas fica muito mais ao norte do que a Carolina e, quando deixaram a cidade na véspera, tomando a direção sul pelo túnel Holland, a temperatura andava pela casa dos 22 graus e o ar estava seco como sal.

 

Rhyme não estava dando a mínima bola para o calor. Tinha a mente concentrada em sua missão ali. À frente deles, a porta automática abriu-se obedientemente (esta seria, pensou, o máximo de facilitação da vida de deficientes físicos em cadeira de rodas) e começaram a descer o frio corredor. Enquanto Sachs pedia informações sobre aonde ir, Rhyme olhava em volta pelo piso do corredor. Notou uma meia dúzia de cadeiras de rodas vazias, reunidas em um único local, empoeiradas. O que teria acontecido com seus ocupantes?, pensou. Talvez o tratamento tivesse tido tanto êxito que eles as abandonaram e foram promovidos a pessoas que andavam de muletas.

 

Ou talvez alguns tivessem piorado e estivessem confinados a leitos ou a cadeiras motorizadas. Alguns, quem sabe, teriam morrido.

 

- Por aqui - disse Sachs, inclinando a cabeça na direção do fim do corredor.

 

Thom reuniu-se a eles no elevador (porta dupla ampla, corrimãos, botões a 60 centímetros do piso) e minutos depois chegaram à suíte que procuravam. Rhyme dirigiu a cadeira para a porta, notou o sistema de comunicação interno, que dispensava o uso das mãos, e disse em voz autoritária:

 

- Abre-te, Sésamo - e a porta se abriu de par em par.

 

- Nós ouvimos essas palavras um bocado de vezes - disse em sotaque sulista arrastado a petulante secretária, quando entraram. - O senhor deve ser o Sr. Rhyme. vou dizer à doutora que o senhor chegou.

 

A Dra. Cheryl Weaver era uma mulher esguia, elegante, em meados da casa dos 40 anos. Imediatamente, Rhyme notou-lhe os olhos vivos e, como convinha a uma cirurgiã, possuía mãos que pareciam fortes. Nenhum esmalte nas unhas, cortadas rentes. A médica levantou-se da escrivaninha, sorriu, apertou as mãos de Sachs e Thom e inclinou a cabeça para o paciente.

 

- Doutora...

 

Rhyme observou os títulos dos muitos livros nas prateleiras. Em seguida, passou aos inúmeros certificados e diplomas - todos concedidos por boas escolas e instituições renomadas, embora as credenciais da médica não constituíssem surpresa para ele. Meses de pesquisas haviam-no convencido de que o Centro Médico da Universidade, em Avery, era um dos melhores hospitais do mundo. Seus departamentos de oncologia e imunologia figuravam entre os mais procurados do país e o Instituto de Neurologia da Dra. Weaver estabelecia os padrões de pesquisa e tratamento de lesões na medula espinhal.

 

- É um prazer conhecê-lo, finalmente - disse a médica. Na mão, um envelope de papel pardo de uns 7,5 centímetros de espessura. Sobre minha vida, pensou Rhyme. (E pensou ao mesmo tempo no quê o organizador do arquivo anotara sob o título "Prognósticos": "Animador?" "Medíocre?" "Incurável?") - Lincoln e eu conversamos algumas vezes ao telefone. Mas eu gostaria de passar novamente em revista as informações preliminares. No interesse de nós dois.

 

Rhyme inclinou secamente a cabeça. Estava disposto a tolerar alguma formalidade, mas era pouca sua paciência com pedantismo. E era o que isso estava começando a parecer.

 

- O senhor leu as informações sobre o Instituto. E o senhor sabe que estamos iniciando alguns experimentos com uma nova técnica de regeneração e reconstrução da medula espinhal. Mas tenho que frisar, mais uma vez, que se trata de um procedimento experimental.

 

- Entendo.

 

- A maioria dos tetraplégicos que tratei conhece mais de neurologia do que um clínico geral. E aposto que o senhor não é exceção.

 

- Sei alguma coisa sobre ciência - respondeu indiferente Rhyme.

 

- Sei alguma coisa sobre medicina.

 

E ofereceu-lhe um exemplo de seu dar de ombros patenteado, gesto este que a Dra. Weaver pareceu notar e arquivar para futura referência.

 

A médica continuou:

 

- Bem, desculpe-me se repito o que o senhor já sabe, mas é importante que compreenda o que esta técnica pode ou não fazer.

 

- Por favor - disse Rhyme -, continue.

 

- Nosso método aqui no Instituto é um ataque frontal ao local da lesão. Utilizamos cirurgia tradicional de descompressão para reconstruir a estrutura óssea das próprias vértebras e proteger o local onde ocorreu a lesão. Em seguida, enxertamos duas coisas no local da lesão. A primeira é um pouco de tecido do sistema nervoso periférico do paciente. E, a outra, enxertamos algumas células embrionárias do sistema nervoso central, que...

 

- Ah, o tubarão - comentou Rhyme.

 

- Isso mesmo. O tubarão azul, sim.

 

- Lincoln nos falou a esse respeito - disse Sachs. - Por que tubarão?

 

- Razões imunológicas, compatibilidade com seres humanos. Além disso - acrescentou, sorrindo, a médica -, é um peixe danado de grande, de modo que, de um único deles, podemos retirar um bocado de material embrionário.

 

- Por que embrionário? - perguntou Sachs.

 

- O que não se regenera é o sistema nervoso central adulto - rosnou Lincoln, impaciente com a interrupção. - Obviamente, o sistema nervoso central de um bebê tem que crescer.

 

- Exatamente. Em seguida, além da cirurgia de descompressão e dos microenxertos, fazemos mais uma coisa... que é o motivo pelo qual estamos tão animados. Criamos algumas drogas que acreditamos possam produzir efeito importante sobre o melhoramento da regeneração.

 

- Há riscos? - perguntou Sachs.

 

Rhyme fitou-a, esperando captar-lhe o olhar. Ele sabia quais eram os riscos. Ele havia tomado uma decisão. Não a queria interrompendo a médica. A atenção de Sachs, porém, era toda para a Dra. Weaver. Rhyme reconheceu aquela expressão: era assim que ela examinava uma foto de cena de crime.

 

- Claro que há riscos. Os medicamentos em si não são especialmente perigosos. Mas todo tetraplégico vai sofrer de enfraquecimento pulmonar. Você não depende de respirador, mas, com a anestesia, há possibilidade de falha respiratória. Além disso, o estresse do procedimento cirúrgico poderá provocar disreflexia autônoma, com o resultado de grave aumento da pressão arterial - tenho certeza de que você está a par desses aspectos -, que, por seu lado, poderiam produzir um derrame ou um acidente vascular cerebral. Há ainda o risco de trauma cirúrgico no local de sua lesão inicial. Atualmente, você não tem nenhum cisto nem derivação de circulação, mas a operação e o resultante aumento de fluidos poderão aumentar essa pressão e produzir danos adicionais.

 

- Isso significa que ele poderia piorar - disse Sachs.

 

A Dra. Weaver inclinou a cabeça, num gesto de assentimento, e olhou para a pasta, aparentemente para refrescar a memória, embora não a abrisse. Ergueu a vista.

 

- Você tem movimento em um lombrical, o dedo anular da mão esquerda, e bom controle muscular do ombro e do pescoço. Você poderia perder parte ou tudo isso. E perder sua capacidade de respirar espontaneamente.

 

Sachs permaneceu absolutamente imóvel.

 

- Entendo - disse finalmente, a palavra escapando-lhe num suspiro tenso.

 

Os olhos da médica prenderam-se nos de Rhyme.

 

- O senhor tem que sopesar esses riscos à luz do que espera obter...

 

O senhor não vai voltar a andar, se é isso que está esperando. Procedimentos cirúrgicos desse tipo apresentam algum sucesso limitado em lesões na medula espinhal, nos níveis lombar e torácico - e muito mais baixos e muito menos graves do que sua lesão. Só obteve sucesso marginal com lesões cervicais. Nenhum caso absolutamente com trauma no nível C4.

 

- Eu sou um jogador - disse Rhyme rapidamente. Sachs lançou-lhe um olhar preocupado. Isso porque sabia que Lincoln Rhyme não era absolutamente um jogador. Era um cientista que vivia de acordo com princípios quantificáveis, documentados. Lincoln acrescentou, com simplicidade:

 

- Eu quero fazer a operação.

 

A Dra. Weaver inclinou a cabeça e não pareceu contente nem descontente com a decisão.

 

- O senhor vai precisar fazer vários exames, que devem levar várias horas. A operação está marcada para depois de amanhã. Tenho um grande número de formulários e questionários para o senhor preencher. Volto já com a papelada.

 

Sachs levantou-se e seguiu a médica quando esta deixou a sala. Rhyme ouviu-a, quando ela perguntou:

 

- Doutora, eu tenho uma...

 

A porta foi fechada com um estalido.

 

- Conspiração - murmurou Rhyme para Thom. - Motim nas fileiras.

 

- Ela está preocupada com você.

 

- Preocupada? Essa mulher guia um carro a 240 quilômetros por hora e dá uma de ligeira no gatilho no South Bronx. Quanto a mim, vão injetar células de peixe recém-nascido.

 

- Você sabe do que é que estou falando.

 

Rhyme sacudiu impaciente a cabeça, os olhos desviando-se para um canto do consultório da Dra. Weaver, onde viu uma medula espinhal-presumivelmente, autêntica-descansando sobre umsuporte de metal. E que parecia frágil demais para sustentar a complicada vida humana que, aparentemente, dependera dela.

 

Aberta a porta, Sachs entrou. Alguém a seguia, mas não era a Dra. Weaver. O homem era alto, magro, salvo por uma barriguinha, e usava o uniforme pardo de xerife de cidade do interior. Fisionomia séria, Sachs avisou:

 

- Você tem uma visita.

 

Ao ver Rhyme, o homem tirou o chapéu de cor escura e inclinou a cabeça. Seus olhos saltaram não para o corpo de Rhyme, como acontecia com a maioria das pessoas que o viam pela primeira vez, mas passaram imediatamente para a medula espinhal atrás da mesa da médica. De volta ao criminalista, começou:

 

- Sr. Rhyme, meu nome é Jim Bell. Primo de Roland Bell. Ele me disse que o senhor iria estar aqui na cidade e vim de Tanner's Comer para lhe falar.

 

Roland fazia parte do Departamento de Polícia da Cidade de Nova York (NYPD) e trabalhara com Rhyme em vários casos. Nesse momento, formava dupla com Lon Sellitto, um detetive que conhecia havia anos. Roland lhe dissera os nomes de alguns parentes, para os quais poderia telefonar quando viesse a Carolina do Norte fazer a operação e no caso de querer receber visitas. Jim Bell era um deles, lembrou-se Rhyme. Olhando para a porta atrás do xerife, por onde não tinha passado ainda seu anjo de caridade, a Dra. Weaver, o criminalista respondeu, em tom distraído:

 

- Prazer em conhecê-lo. Bell sorriu, sombrio, e disse:

 

- Na verdade, senhor, não acho que vá ter esse prazer todo por muito tempo.

 

Havia uma certa semelhança entre eles, notou Rhyme, ao concentrar-se mais na visita.

 

O mesmo corpo magro, as mãos longas e os cabelos rareando, o mesmo jeito de pessoa à vontade do primo Roland, de Nova York. Esse Bell parecia mais moreno e mais forte. com certeza, pescava e caçava um bocado. Um chapéu de caubói provavelmente lhe teria caído melhor. Bell pegou uma cadeira ao lado de Thom.

 

- Nós estamos com um problema, Sr. Rhyme.

 

- Pode me chamar de Lincoln. Por favor.

 

- Continue - disse Sachs, dirigindo-se a Bell. - Conte a ele o que me contou.

 

Rhyme fitou-a friamente. Ela conhecera esse homem há três minutos e já eram íntimos.

 

- Eu sou xerife do condado de Paquenoke. Uma cidadezinha a uns 30 quilômetros daqui. Estamos metidos numa situação difícil e andei pensando no que meu primo me disse... Ele não poupa elogios ao senhor, senhor...

 

Rhyme inclinou impaciente a cabeça, fazendo-lhe um sinal para que continuasse. E pensando: onde, diabo, está minha médica? Quantos formulários ela tem que procurar? Será que ela faz parte também da conspiração?

 

- De qualquer modo, esta situação... Pensei em dar um pulo até aqui e perguntar se o senhor poderia nos dedicar um pouco de atenção.

 

Rhyme soltou uma risada, um som em que não havia o menor traço de humor.

 

- Eu vou fazer uma operação logo logo.

 

- Oh, eu sei. Eu não interferiria nisso por nada neste mundo. Eu estava apenas pensando se apenas algumas horas... Não vamos precisar de muita ajuda, espero. Entenda, o primo Rol me contou algumas coisas que o senhor fez em investigações lá para o norte. Nós temos aqui o básico de laboratório de criminalística, embora a maioria dos trabalhos de medicina legal seja feita em Elizabeth City, a delegacia mais próxima da Polícia Estadual, ou em Raleigh. Precisamos esperar semanas para obter uma resposta. E não temos essas semanas para esperar. Temos horas. Na melhor das hipóteses.

 

- Para o quê?

 

- Para encontrar duas moças que foram seqüestradas.

 

- Seqüestro é crime federal - observou Rhyme. - Chame o FBI.

 

- Não consigo nem me lembrar da última vez em que tivemos aqui um agente federal, à parte com ordens de prisão por falsificação de bebida. Quando o FBI chegar aqui e montar acampamento, essas moças já eram.

 

- Conte o que aconteceu - pediu Sachs.

 

Ela usava seu rosto de pessoa interessada, notou cinicamente Rhyme... e com desagrado.

 

- Ontem - continuou Bell - um dos rapazes da escola secundária local foi assassinado e uma estudante da faculdade foi seqüestrada. Esta manhã, o criminoso voltou e seqüestrou outra moça. Rhyme notou que o rosto do policial tornava-se sombrio. - Ele preparou uma armadilha e um de meus agentes ficou seriamente ferido. Ele se encontra agora no centro médico, em estado de coma.

 

Rhyme notou que Sachs tinha parado de enfiar uma unha no cabelo, de coçar o couro cabeludo, e que olhava para Bell com toda atenção. Bem, talvez eles não estivessem mancomunados na consPiração, mas Rhyme sabia muito bem por que ela estava tão interessada em um caso no qual não tinham tempo para participar. E não gostava nem um pouquinho dessa razão.

 

- Amélia... - começou, lançando um olhar frio para o relógio na parede do consultório da Dra. Weaver.

 

- Por que não, Rhyme? No que é que isso pode nos prejudicar E puxou os longos cabelos ruivos de cima dos ombros, onde estavam pousados como uma cachoeira imóvel.

 

Bell olhou mais uma vez para a medula espinhal no canto.

 

- Nós somos uma pequena unidade, senhor. Fizemos o que podíamos... todos os meus agentes e outras pessoas deram batidas durante toda a noite, mas o fato é que não conseguimos encontrá-los nem encontrar Mary Beth. Achamos que Ed - o policial em estado de coma - deu uma olhada em um mapa que mostra para onde o rapaz pode ter ido. Mas os médicos não sabem quando ou se ele vai sair do coma. - Novamente, olhos implorantes pousaram em Rhyme. - Nós ficaríamos sinceramente agradecidos se o senhor pudesse dar uma olhada na prova que encontramos e nos desse alguma idéia sobre o local para onde o rapaz está indo. Neste assunto, não sabemos o que fazer. Eu preciso urgentemente de ajuda.

 

Rhyme, porém, não o compreendeu. O trabalho do criminalista consiste em analisar provas a fim de ajudar investigadores a identificar um suspeito e, em seguida, prestar depoimento no julgamento do acusado.

 

- O senhor sabe quem é o criminoso, sabe onde ele mora. Seu promotor público tem um caso pronto e acabado.

 

Mesmo que eles tivessem bagunçado a busca na cena do crime - da maneira que autoridades policiais de pequenas cidades têm um alto potencial para fazer - sobraria prova suficiente para uma condenação por delito grave.

 

- Não, não... não é com o julgamento que estamos preocupados, Sr. Rhyme. É

 

encontrar, antes que ele mate aquelas moças. Ou, pelo menos, Lydia. Achamos que Mary Beth já pode estar morta. Entenda, quando isso aconteceu, examinei um manual da Polícia Estadual sobre investigações de delitos graves. O livro diz que, em casos de rapto, temos geralmente 24 horas para encontrar a vítima. Depois desse tempo, ela perde sua característica de ser humano aos olhos do seqüestrador e ele nem pensa duas vezes antes de matá-la.

 

- Você disse que ele era um rapaz, o perpetrador. Que idade tem ele?

 

- Dezesseis anos.

 

- Delinqüente juvenil.

 

- Tecnicamente - concordou Bell. - Mas a história dele é pior do que a da maioria dos nossos criadores de casos adultos.

 

- Já checou com a família dele? - perguntou Amélia, como se tivesse certeza de que ela e Rhyme estavam trabalhando no caso.

 

- Os pais dele já morreram. Ele tem pais adotivos. Demos uma busca no quarto dele, na casa dos pais. Não encontramos nenhum alçapão, nem diários, nem coisa nenhuma desse gênero.

 

Nós nunca encontramos, pensou Lincoln Rhyme, desejando, do fundo do coração, que aquele homem se escafedesse de volta para seu condado de nome impronunciável e levasse consigo os problemas.

 

- Acho que deveríamos ajudar, Rhyme - disse Sachs.

 

- Sachs, a cirurgia...

 

- Duas vítimas em dois dias? - comentou ela. - Ele poderia ser um assassino serial.

 

Criminosos seriais são como viciados em drogas. Para satisfazer uma fome psicológica cada vez maior de violência, iniciam uma escalada da freqüência e gravidade de seus atos.

 

Bell inclinou a cabeça, concordando.

 

- Você entendeu isso bem. E há um aspecto que não mencionei. Nos dois últimos anos, houve mais três mortes no condado de Paquenoke e um suicídio muito duvidoso há apenas alguns dias. Nós pensamos que o rapaz esteve envolvido em todos esses casos. Mas, simplesmente, não conseguimos prova suficiente para prendê-lo.

 

Mas também eu não estava trabalhando nesses casos, estava?, pensou Rhyme, antes de refletir que o orgulho era provavelmente o pecado que o levaria à perdição.

 

Relutantemente, sentiu as engrenagens mentais girando, intrigadas com os quebra-cabeças apresentados pelo caso. O que o mantinha em seu juízo perfeito desde o acidente - o que o impedia de descobrir algum Jack Kevorkían que o ajudasse em um suicídio assistido - eram desafios mentais como aquele.

 

- Sua cirurgia só vai acontecer depois de amanhã - pressionou-o Sachs. - E antes disso você vai ter que fazer todos aqueles exames.

 

Ah, seus motivos secretos estão aparecendo, Sachs... Mas ela apresentara um bom argumento. Tinha pela frente, até a hora da operação, um bocado de tempo sem fazer nada. E seria tempo de espera antes de uma cirurgia - o que significava nada de uísque escocês 18 anos. E, afinal de contas, o que um tetraplégico ia fazer em uma pequena cidade da Carolina do Norte? O maior inimigo de Lincoln Rhyme não eram os espasmos, as dores fantasmas ou a disreflexia que atormentam pacientes de lesões na medula espinhal: era o tédio.

 

- Eu lhe dou um dia - disse, finalmente. - Desde que não atrase a operação. Estou na lista de espera dessa operação há 14 meses.

 

- Negócio feito, senhor - concordou Bell, o rosto cansado animando-se.

 

Thom, porém, sacudiu a cabeça.

 

- Escute aqui, Lincoln, nós não viemos aqui para trabalhar. Você está aqui para submeter-se a uma operação e, em seguida, vamos embora. Não tenho nem metade do equipamento de que vou precisar para cuidar de você, se você estiver trabalhando.

 

- Nós estamos em um hospital, Thom. Eu não ficaria surpreso se você encontrasse aqui a maior parte das coisas de que necessita. Vamos conversar com a Dra. Weaver. Tenho certeza de que ela nos ajudará com prazer.

 

O ajudante, resplandecente dentro de uma camisa branca, calças pardas bem passadas e gravata, respondeu:

 

- Para que conste da ata, eu não acho que isso seja uma boa idéia.

 

Mas como acontece com caçadores em toda parte - capazes de andar ou não -, logo que Lincoln Rhyme tomou a decisão de perseguir a presa, nada mais teve importância. A partir desse momento, ignorou Thom e começou a interrogar Jim Bell:

 

- Há quanto tempo ele está em fuga?

 

- Há apenas duas horas - explicou Bell. - O que vou fazer é mandar um policial trazer a prova que reunimos e, talvez, um mapa da área. Eu estava pensando...

 

A voz de Bell morreu, porém, quando Rhyme sacudiu a cabeça e fechou a cara. Sach reprimiu um sorriso. Sabia o que estava para acontecer.

 

- Não - disse firme Rhyme. - Nós iremos ao seu encontro. Você terá que nos acomodar em algum lugar... Qual é o nome da sede do condado?

 

- Ahn, Tanner's Comer.

 

- Arranje um lugar onde possamos trabalhar. vou precisar de um assistente que conheça os procedimentos da polícia técnica... Você tem laboratório na delegacia?

 

- Nós? - perguntou o espantado xerife. - Nem de longe.

 

- Tudo bem. Nós lhe daremos uma lista dos equipamentos de que vamos necessitar. Você pode obtê-los da Polícia Estadual, por empréstimo. - Rhyme olhou para o relógio. - Podemos chegar lá dentro de meia hora. Certo, Thom?

 

-Lincoln...

 

- Certo?

 

- Meia hora - murmurou o resignado assistente. Nesse momento, quem era que estava de mau humor?

 

- Pegue os formulários com a Dra. Weaver. Vamos levá-los conosco. Você pode preenchê-los, enquanto Sachs e eu trabalhamos.

 

-OK.OK.

 

Sachs fazia agora uma lista de equipamentos básicos de polícia técnica. Deu-a a Rhyme para que a lesse. Ele concordou com uma inclinação de cabeça e disse:

 

- Acrescente uma unidade de gradiente de densidade. Fora isso, parece completa.

 

A moça acrescentou o item à lista e passou-a a Bell, que a leu, inclinando a cabeça em dúvida.

 

- vou resolver isso, com certeza. Mas, realmente, não quero que o senhor tenha muito trabalho...

 

- Jim, espero poder falar com franqueza.

 

- Claro.

 

Em voz baixa, o criminalista continuou:

 

- Simplesmente estudar umas poucas provas não vai levar a lugar nenhum. Para que esta coisa funcione, Amélia e eu temos qi estar à frente da investigação. Cem por cento no comando. Agora, seja franco comigo. Isso vai criar problema para alguém?

 

- vou dar um jeito para que não crie.

 

- Ótimo. Agora, é melhor que providencie aquele equipamento. Vamos precisar nos mover.

 

O xerife Bell levantou-se, ficou parado por um momento, inclinou a cabeça, o chapéu numa mão, a lista de Sachs na outra, antes de dirigir-se para a porta. Rhyme pensou que o primo Roland, um homem de muitos modismos sulistas, tinha uma expressão que descrevia bem a expressão que viu no rosto do xerife. Rhyme não tinha absoluta certeza sobre a frase, mas era alguma coisa parecida com prender urso pelo rabo.

 

-Oh, mais uma coisa-disse Sachs, detendo-oquando ele atravessava a porta. O xerife parou e voltou-se. - O perpetrador? Qual é o nome dele?

 

- Garrett Hanlon. Em Tanner's Corner, porém, é conhecido como Menino-Inseto.

 

Paquenoke é um pequeno município na região nordeste da Carolina do Norte. Tanner's Corner, situada aproximadamente no centro do condado, (e sua maior cidade), é cercada por povoados menores, sem definição política, de bolsões residenciais e comerciais, como o Blakwater Landing, à margem do rio Paquenoke - chamado de Paquo pela maioria dos moradores locais -, a alguns quilômetros da sede.

 

Ao sul do rio localiza-se a maior parte das áreas residenciais e comerciais, em uma zona pontilhada por pântanos mansos, florestas, campos e lagos. Quase metade dos moradores reside nessa metade. Ao norte do Paquo, contudo, a terra é traiçoeira. O Grande Pântano da Desolação invadiu e engoliu parques de trailers, casas e as poucas fábricas e moinhos localizados nesse lado do rio. Alagados tortuosos substituíram as lagoas e os campos, ao passo que a floresta, principalmente constituída de árvores antigas, tornou-se impenetrável, a menos que o indivíduo tenha sorte de encontrar uma trilha. Ninguém vive nesse lado do rio, exceto falsificadores de bebidas e produtores de drogas, além de uns poucos moradores loucos. Até mesmo caçadores tendem a evitá-lo, desde um incidente há dois anos, quando javalis selvagens perseguiram Tal Harper que, mesmo abatendo a tiros metade dos animais, não conseguiu evitar que o devorassem, antes da chegada de socorro.

 

Como a maioria das pessoas no município, Lydia Johansson raramente passava para o norte do Paquo e, quando isso acontecia, jamais se aventurava muito longe da civilização. Nesse momento, com um esmagador senso de desespero, deu-se conta de que, ao passar para o outro lado do rio, tinha cruzado uma fronteira e entrado em uma zona de onde talvez nunca mais voltasse - uma fronteira não só meramente geográfica, mas também espiritual.

 

Claro, estava apavorada por ser trazida por essa criatura - apavorada com a maneira como ele lhe olhava o corpo, apavorada com seu toque, apavorada com a possibilidade de morrer de calor - ou de ataque de insolação, se não de uma picada de cobra -, mas o que a apavorava mais era saber que havia deixado para trás o lado sul do rio: a vida frágil, confortável, modesta como fosse, as poucas amigas e colegas enfermeiras do hospital, os médicos com quem flertava sem esperança, as festinhas de pizza, as reapresentações de Seinfeld, seus livros de horror, o sorvete, os filhos da irmã. Lembrou-se até mesmo com saudade das partes difíceis da vida - a luta contra a gordura, a luta para deixar de fumar, as noites solitárias, a longa falta de telefonemas do homem com quem ocasionalmente saía (chamava-o de "meu namorado", embora soubesse que isso era simplesmente um desejo)... até essas recordações pareciam ferozmente dolorosas simplesmente porque eram coisas que conhecia bem.

 

Mas não havia a menor migalha de conforto na situação em que se encontrava agora - o policial Ed Schaeffer caído inconsciente no chão, braços e rosto grotescamente inchados com as picadas dos marimbondos. Garrett murmurara: "Ele não devia ter feito mal a eles. Foi culpa dele." Entrou devagar na choça, os insetos ignorando-o, para apanhar algumas coisas. Prendeu as mãos na frente com 36 fita adesiva e, em seguida, puxou-a para a floresta, através da qual vinham andando por vários quilômetros.

 

O rapaz movia-se de maneira desengonçada, puxando-a em uma direção e, em seguida, em outra. Falava sozinho.

 

Coçava as manchas vermelhas no rosto. Numa ocasião, parou diante de uma grande poça d'água e olhou-a fixamente. Esperou até que algum inseto ou aranha se afastasse da superfície e, em seguida, enfiou o rosto na água, molhando a pele ferida. Olhou para os pés, tirou o sapato que lhe restava e jogou-o longe. E continuaram a andar durante toda a quente manhã. Lydia lançou um olhar ao mapa que se projetava de um bolso do rapaz.

 

- Para onde é que estamos indo? - perguntou.

 

- Cale a boca. OK?

 

Dez minutos depois, obrigou-a a tirar os sapatos e vadearam um regato raso e poluído. Do outro lado, obrigou-a a sentar-se.

 

Sentou-se à frente dela e, enquanto lhe observava as pernas, secou-lhe vagarosamente os pés com um chumaço de Kleenex que puxou do bolso. Sentiu, ao toque dele, o mesmo nojo que a havia invadido na primeira vez em que teve que tirar uma amostra de tecido de um cadáver no necrotério do hospital. Ele calçou-a com os sapatos brancos, apertou com força os cadarços, segurando-lhe por mais tempo a panturrilha do que era necessário. Em seguida, consultou o mapa e levou-a de volta para a floresta.

 

Estalando as unhas, coçando o rosto...

 

Aos poucos, os pântanos tornaram-se mais emaranhados, e mais escura e profunda a água. Lydia achou que estavam indo para o Grande Pântano da Desolação, embora não pudesse imaginar o motivo. Juntamente quando pareceu que não poderiam ir mais longe, por causa dos atoleiros atravancados, Garrett entrou em uma grande floresta de pinheiros que, para alívio de Lydia, era muito mais fresca do que as terras pantanosas batidas pelo sol.

 

Encontrando outra trilha, ele seguiu-a até que chegaram a um morro íngreme. Uma sucessão de pedras levava até o cume.

 

- Eu não posso subir isso - disse ela, fazendo um grande esforço para mostrar-se desafiadora. - Não com as mãos coladas uma na outra. Eu vou escorregar.

 

- Bobagem - murmurou ele, zangado, como se ela fosse uma idiota. - Você está usando seus sapatos de enfermeira. Eles vão sustentá-la muito bem. Olhe pra mim. Estou descalço e vou poder subir. Olhe pra meus pés, olhe! - Mostrou as solas, cheias de calos, amareladas. - Agora, suba. Suba apenas até chegar no topo, e não passe daí. Ouviu o que eu disse? Ei, está escutando?

 

Outro silvo. Um pouco de cuspe tocou-lhe o rosto e Lydia achou que a gosma lhe queimava a pele como se fosse ácido de bateria.

 

Oh, Deus, como odeio você, pensou.

 

Começou a subir. Parou a meio caminho, olhou para trás. Garrett vigiava-a atentamente, estalando as unhas, olhando-lhe as pernas, dentro das meias brancas, a língua entre os dentes. E em seguida, olhando mais para cima, por baixo da saia.

 

Lydia continuou a subir. Ouviu-lhe a respiração silvante quando ele começou a segui-la.

 

No alto do morro havia uma clareira e dela uma única trilha levava a um grupo de pinheiros. Lydia começou a andar pela trilha e entrou na sombra.

 

- Ei! - gritou Garrett. - Não ouviu o que eu disse? Eu lhe disse para não se mexer!

 

- Eu não estou tentando fugir - gritou ela. - Está quente. Quero sair de baixo do sol.

 

Ele apontou para o chão, a uns 7 metros de distância. Havia um grosso lençol de agulhas de pinheiro no meio do caminho.

 

- Você poderia ter caído - disse ele, com a voz áspera. - Podia ter botado tudo a perder.

 

Lydia olhou com atenção para o local. As agulhas de pinheiro cobriam um grande buraco.

 

- O que é que há aí embaixo?

 

- É uma armadilha mortal.

 

- O que é que há aí dentro?

 

- Você sabe... uma surpresa para todos os que estiverem nos perseguindo.

 

Disse isso com orgulho, com um sorriso afetado, como se tivesse sido muito inteligente em pensar nisso.

 

- Mas qualquer um poderia cair aí!

 

- Merda - murmurou ele. - Isto aqui é o norte do Paquo. Só viriam para cá caras que estivessem nos perseguindo. E eles mereceriam o que acontecesse. Vamos andando.

 

Silvando novamente, pegou-a pelo punho e levou-a em voltj do buraco.

 

- Você não tem que me agarrar com tanta força! - protestou Lydia.

 

Garrett lançou-lhe um olhar e relaxou um pouco a empunhadura - embora esse toque mais suave fosse muito mais inquietante: ele passou a acariciar-lhe o pulso com o dedo médio, que lhe pareceu um gordo percevejo hematófago procurando um lugar em sua pele para penetrar.

 

A van Rollx passou por um cemitério, o Tanner's Comer Memorial Gardens. Um funeral estava em andamento. Rhyme, Sachs e Thom lançaram um olhar rápido à triste procissão.

 

- Olhem só para o caixão - disse Sachs.

 

Era pequeno, de criança. Poucos acompanhantes, todos adultos. Vinte e tantas pessoas. Rhyme perguntou a si mesmo por que tão pouca gente presente. Ergueu os olhos acima da cerimônia e examinou as colinas onduladas do cemitério e, mais adiante, os quilômetros de florestas e terras alagadas cobertas de névoa desaparecendo na distância azul. E observou:

 

- Não é um cemitério feio. Eu não me importaria de ser enterrado num lugar como esse.

 

Sachs, que estava observando o enterro com uma expressão de tristeza, virou-se e olhou-o friamente. Ao que parecia, com uma cirurgia na agenda, ela não gostava de conversas sobre morte.

 

Thom fez habilmente uma curva fechada e, seguindo a radiopatrulha de Jim Bell, xerife do condado de Paquenoke, acelerou em uma reta, enquanto o cemitério desaparecia às costas deles.

 

Como disse Bell, Tanner's Corner situava-se a uns 30 quilômetros do centro médico de Avery. O cartaz SEJAM BEM-VINDOS assegurava aos visitantes que a cidadezinha era o lar de 3.018 amas, o que talvez fosse verdade, mas apenas uma pequena percentagem delas era visível na rua principal na quente manhã de agosto. O empoeirado lugar parecia mais uma cidade-fantasma. Viram um casal de idosos sentado em um banco, olhando para a rua vazia. Rhyme notou dois homens que deveriam ser os bêbados da cidade - indivíduos de aparência doentia, muito magros. Um deles estava sentado no meio-fio, com a cabeça cheia de crostas de sujeira nas mãos, provavelmente curtindo uma carraspana. O outro tinha escolhido uma árvore, onde se encostou, também sentado, olhando fixamente para a lustrosa van com olhos que, mesmo de longe, pareciam amarelosde icterícia. Umamulheresqueléticalavava preguiçosamente a vitrine de uma farmácia. E Rhyme não viu mais ninguém.

 

- Tranqüilo - observou Thom.

 

- É uma das maneiras de descrever esta cidade - observou Sachs, que obviamente compartilhava a sensação de inquietação de Rhyme com aquele vazio todo.

 

A rua principal era um trecho de velhos prédios de aparência decrépita e duas pequenas galerias comerciais. Rhyme notou um supermercado, duas farmácias, dois bares, um restaurante, uma butique de roupas femininas, o escritório de uma companhia de seguros e uma combinação de videoteca/loja de balas/salão de jogos virtuais. A concessionária de carros A-OK ficava imprensada entre um banco e uma loja de artigos marítimos. Todo mundo por ali vendia iscas para pesca. Um cartaz informava que havia um McDonald's a 10 quilômetros, seguindo-se a Estrada 17. Outro mostrava em uma paisagem batida pelo sol o Monitor e o Merrimack, navios do tempo da Guerra Civil. "Visite o Museu dos Couraçados." A pessoa teria que viajar 35 quilômetros para conhecer essa atração.

 

Enquanto assimilava esses detalhes da vida de uma pequena cidade, Rhyme deu-se conta subitamente de como um criminalista como ele estava deslocado naquele local. com a maior segurança, podia analisar provas em Nova York, porque ali vivia há muitos anos - havia praticamente dissecado a cidade, percorrido suas ruas, estudado sua história, flora e fauna. Ali em Tanner's Corner e vizinhanças, porém, nada sabia sobre o solo, o ar, a água, nada sobre os hábitos dos moradores, os carros que eles preferiam, as casas onde residiam, as indústrias que os empregavam, as paixões que os impulsionavam.

 

Lembrou-se de seu tempo de novato, quando trabalhou com um detetive veterano no NYPD. O homem deu uma aula a seus subordinados:

 

- Alguém me diga: o que é que significa a expressão "peixe fora d'água"?

 

O jovem policial Rhyme respondeu:

 

- Significa: fora de seu elemento. Confuso.

 

- Muito bem, mas o que é que acontece quando o peixe está fora d'água? - retrucou secamente o grisalho policial, olhando em sua direção. - Ele não fica confuso. Ele morre, mesmo. A maior ameaça isolada ao investigador é a falta de conhecimento do ambiente onde trabalha. Nunca se esqueça disso.

 

Thom estacionou a van e iniciou o ritual de baixar a cadeira de rodas. Rhyme soprou o canudo de controle da Storm Arrow e rolou para a rampa íngreme do prédio da Prefeitura, indubitavelmente acrescentada de má vontade, após entrar em vigor a lei dos deficientes físicos.

 

Três homens - usando uniforme de trabalho e com bainhas para canivete no cinto - afastaram-se da porta lateral da sala do xerife, situada ao lado da rampa. Dirigiram-se para um Chevy Suburban de cor vermelho-escura.

 

O mais magro do grupo cutucou o mais parrudo, um homem enorme, com um rabo-de-cavalo arrumado em trança, barbado, e inclinou a cabeça na direção de Rhyme. Em seguida, os olhos dos três - quase ao mesmo tempo - examinaram o corpo de Sachs. O grandalhão olhou para os cabelos bem-penteados de Thom, sua envergadura modesta, as roupas impecáveis e a argola de ouro na orelha. Sem expressão no rosto, murmurou alguma coisa para o terceiro, um tipo que parecia um homem de negócios sulista conservador, que encolheu os ombros. Perderam interesse pelos visitantes e entraram no Chevy.

 

Peixe fora d'água.

 

Bell, andando ao lado da cadeira de Rhyme, notou-lhe o olhar.

 

- Aquele é Rich Culbeau, o grandalhão. E seus amigos do peito, Sean O'Sarian - o cara magrelo-e Harris Tomei. Culbeau não é nem a metade tão criador de casos como parece. Ele gosta de bancar o valentão, mas, em geral, não incomoda.

 

O'Sarian, no assento do passageiro, voltou a olhá-los - embora, se estava olhando para Thom, Sachs ou para ele próprio, não desse para Rhyme perceber.

 

O xerife tomou a frente na direção do prédio. Teve alguma dificuldade com a porta situada no alto da rampa destinada aos deficientes físicos: uma demão de pintura tinha sido passada por cima da fechadura.

 

- Não há muitos deficientes por aqui - observou Thom. Em seguida, perguntou a Rhyme: - Como é que você está se sentindo?

 

- Estou bem.

 

- Pois não parece. Está pálido. vou tirar sua pressão arterial quando a gente entrar.

 

Entraram. Rhyme calculou que o prédio devia ser de 1950. Pintura interna de cor verde institucional, corredores decorados com quadros pintados por crianças da escola primária, fotografias contando toda a história de Tanner's Corner e meia dúzia de avisos de vagas para empregos.

 

- Esta sala serve? - perguntou Bell, abrindo uma porta. - Nós a usamos para guardar provas, mas estamos reunindo todo esse material e levando-o para o porão.

 

Uma dezena de caixas forrava as paredes. Um policial fazia um bocado de força para tirar dali um grande aparelho de televisão Toshiba. Outro carregava duas caixas de jarras de suco, cheias de um líquido claro. Rhyme lançou-lhes um olhar. Bell soltou uma risada e disse:

 

- Isso aí resume praticamente o laboratório criminalístico de Tanner's Corner: peças eletrônicas de casas assaltadas e destilação clandestina de bebida.

 

- Isso aí é bebida falsificada? - perguntou Sachs.

 

- A própria. E amadurecida em nada menos de 30 dias.

 

- Marca Ocean Spray ? - perguntou ironicamente Rhyme, olhando para as jarras.

 

- O recipiente favorito do destilador clandestino... por causa da boca larga. Você bebe?

 

- Apenas uísque escocês.

 

- Pois fique com ele. - Bell indicou com a cabeça as garrafas que o policial tirava da sala. - Os agentes federais e o Departamento de Receita da Carolina preocupam-se com a perda de renda. Nós nos preocupamos com a perda de nossos cidadãos. Essa partida aí não é das piores. Mas boa parte dela é temperada com formaldeído, solvente de tinta ou fertilizante. Todos os anos, perdemos uns dois cidadãos devido a essas partidas de má qualidade.

 

- Por que isso é chamado de banho-de-lua? - perguntou Thom.

 

- Porque - respondeu Bell - o pessoal costumava destilá-la à noite, ao ar livre, à luz da lua cheia... de modo que não precisavam de lanternas e, compreenda, não atraíam o pessoal da Receita.

 

- Ah... - disse apenas o jovem ajudante, cujo gosto, como Rhyme sabia, inclinava-se para St. Emillions, Pomerols e Borgonhas brancos.

 

Rhyme deu uma olhada em volta da sala.

 

- Vamos precisar de mais energia elétrica - disse, indicando com um gesto de cabeça a única tomada na parede.

 

- Podemos trazer para cá alguns cabos - respondeu Bell. - vou arranjar alguém para fazer isso.

 

Deu ordens a um policial e em seguida explicou que havia telefonado para o laboratório da Polícia Estadual, em Elizabeth City, e feito o pedido de emergência do material de pesquisa criminalística que Rhyme queria. As peças chegariam dentro de uma hora. Rhyme achou que aquilo tinha a velocidade de um relâmpago no que interessava ao condado de Paquenoke e, mais uma vez, sentiu a urgência do caso.

 

Em caso de rapto com propósito sexual, temos geralmente 24 horas para encontrar a vítima. Depois desse período ela se torna desumaniZada aos olhos do raptor e ele não pensa duas vezes antes de matá-la.

 

O policial voltou, trazendo dois grossos cabos elétricos munidos com saídas múltiplas nas extremidades. Prendeu-os com fita adesiva no piso.

 

- Eles servirão - disse Rhyme. Em seguida, perguntou: - Quantas pessoas temos para trabalhar neste caso?

 

- Tenho dois policiais veteranos e oito de trabalho geral. Temos um grupo de comunicações de duas pessoas e uma equipe burocrática de cinco. Geralmente, temos que dividir o trabalho deles com Planejamento e Zoneamento e com o DPW - isso tem sido uma chateação para nós -, mas, por causa do seqüestro, de sua vinda para cá e de tudo mais, teremos a ajuda de todos eles quando precisarmos. O prefeito do condado está nos dando todo apoio. Já conversei com ele.

 

Rhyme olhou para a parede, franzindo as sobrancelhas.

 

- O que é?

 

- Ele vai precisar de um quadro-negro - explicou Thom.

 

- Eu estava pensando num mapa da área. Mas, além disso, quero também um quadro-negro. Grande.

 

- Negócio fechado - respondeu Bell.

 

Rhyme e Sachs trocaram um sorriso. Esta era uma das expressões favoritas de Roland Bell.

 

- Você poderia convidar seu pessoal veterano para vir até aqui? Para uma sessão de instruções?

 

- E ar condicionado - acrescentou Thom. - Isto aqui precisa ficar um pouco mais fresco.

 

- vou ver o que posso fazer - respondeu indiferente Bell, um homem que provavelmente não compreendia a obsessão do Norte por temperaturas moderadas.

 

O ajudante de Rhyme insistiu, firme: - Não é bom para ele ficar num calor desses. - Não se preocupe com isso - disse Rhyme.

 

Thom ergueu uma sobrancelha na direção de Bell e disse, sem se perturbar:

 

- Vamos ter que esfriar a sala. Ou então vou levá-lo de volta para o hotel.

 

- Thom... - avisou Rhyme.

 

- Lamento dizer, mas não temos outra opção - retrucou o ajudante.

 

Um rapaz com cabelos cortados à escovinha, usando uniforme de policial, entrou neste momento.

 

- Este é meu cunhado, Steve Farr.

 

Era o policial mais alto que haviam conhecido até então - passava tranqüilo de 2m - e possuía orelhas redondas que se projetavam comicamente do crânio. Ele pareceu apenas ligeiramente contrafeito ao ver Rhyme pela primera vez e, logo depois, os lábios carnudos transformaram-se em um sorriso cordial, que sugeria tanto confiança quanto competência. Bell deu-lhe a missão de arranjar um aparelho de ar-condicionado para o laboratório.

 

- Vou arranjá-lo agora mesmo, Jim.

 

Deu uma puxada no lobo da orelha, fez meia-volta como se fosse um soldado e desapareceu no corredor.

 

Uma mulher enfiou a cabeça pela fresta da porta.

 

- Jim, Sue McConell, na linha três. Ela está completamente transtornada.

 

- OK. Eu falo com ela. Diga-lhe que atendo logo. - E explicou a Rhyme: - É a mãe de Mary Beth. Pobre mulher... Perdeu o marido para um câncer há apenas um ano e agora acontece isso. Eu lhe digo uma coisa - continuou, sacudindo a cabeça -, tenho dois filhos e posso muito bem imaginar o que ela está...

 

- Jim, será que podemos conseguir aquele mapa? - interrompeu-o Rhyme. - E mandar instalar o quadro-negro?

 

Bell pestanejou em dúvida ao ouvir o tom brusco da voz do criminalista.

 

- Claro que sim, Lincoln. E, ei, se nós nos tornarmos sulistas e lentos demais por aqui, se nos mexermos vagarosos demais para o gosto de vocês ianques, você vai nos apressar, não?

 

- Pode apostar nisso, Jim.

 

Um em três.

 

Um dos três policiais veteranos pareceu satisfeito em conhecer Rhyme e Sachs. Bem, conhecer Sachs, pelo menos. Os outros dois fizeram inclinações formais de cabeça e, obviamente, desejavam que essa estranha dupla jamais tivesse saído da Grande Maçã.

 

O tipo de aparência mais agradável era um policial de uns 40 anos de idade, de olhos vermelhos, chamado Jesse Corn. Ele esteve na Cena do crime mais cedo naquela manhã e, com um doloroso senso de culpa, reconheceu que Garrett tinha fugido levando a outra Vítima, Lydia, bem à sua frente. Ao chegar ao outro lado do rio, encontrou Ed Schaeffer quase agonizante com o ataque dos marimbondos.

 

Um dos policiais que os tratou com frieza, Mason Germain, era um homem de baixa estatura, no início da casa dos 40 anos, olhos escuros, cabelos começando a embranquecer, a postura um pouco perfeita demais para um ser humano. Usava cabelos lustrosos penteados para trás que exibiam marcas retas, como se feitas à regua, dos dentes do pente. Rescendia à loção após-barba de cheiro forte demais, barata, de odor almiscarado. Cumprimentou Rhyme e Sachs com uma inclinação rígida de cabeça. Rhyme pensou que Mason, na verdade, estava satisfeito por ele ser um inválido e não ter que lhe apertar a mão. Sachs, sendo mulher, teve direito apenas a um condescendente "Srta.".

 

Lucy Kerr, a terceira policial, não mostrou estar mais feliz em conhecê-los do que o outro. Era uma mulher alta - apenas um pouco mais baixa do que a esguia e sinuosa Sachs. Tinha porte atlético e rosto comprido e bonito. Em contraste com o uniforme de Mason, amassado e manchado, o de Lucy estava passado a ferro com perfeição. Tinha os cabelos louros presos em uma rígida trança francesa. Facilmente, podia-se imaginá-la como modelo de um anúncio da L.L. Bean ou de Land's End - usando botas, uniforme de brim e colete regulamentar.

 

Rhyme sabia que a recepção fria seria uma reação automática a policiais intrometidos (especialmente, um aleijado e uma mulher - e nortistas, de quebra). Ele, porém, não tinha interesse em lhes conquistar as boas graças. A cada minuto perdido, seria mais difícil encontrar o seqüestrador. E ele tinha um encontro marcado com uma cirurgia, que não ia perder por coisa nenhuma neste mundo. Um homem robusto - o único policial negro visto por Rhyme até o momento - entrou empurrando um grande quadro-negro e desdobrou um mapa do condado de Paquenoke.

 

- Pregue-o lá em cima com uma fita, Trey. Bell apontou para a parede. Rhyme passou um rápido olhar pelo mapa, bom, bem detalhado.

 

Muito bem - começou. - Agora, contem exatamente o que aconteceu. Comecem com a primeira vítima.

 

- Mary Beth McDonnell - disse Bell. - Vinte e três anos de idade. Estudante de graduação na universidade, em Avery.

 

- Continue. O que foi que aconteceu ontem? Mason tomou a palavra:

 

- Bem, aconteceu muito cedo. Mary Beth estava...

 

- Você poderia ser mais específico? - perguntou Rhyme. - Sobre a hora?

 

- Quanto a isso, não sabemos com certeza - respondeu friamente Mason. - Não havia relógios parados, como no filme Titanic, o senhor sabe do que estou falando.

 

- Deve ter acontecido antes das 8 horas da manhã - sugeriu J esse com. - Billy - o garotão que foi assassinado - estava fazendo jogging e a cena do crime fica a meia hora da casa onde ele morava. Ele estava fazendo cursos de verão e tinha que voltar às 8h30min para tomar banho e ir para a aula.

 

Ótimo, pensou Rhyme, inclinando a cabeça.

 

- Continue. Mason voltou a falar:

 

- Mary Beth tinha um projeto escolar, o de procurar velhos artefatos indígenas em Blackwater Landing.

 

- O que é isso, uma cidade? - perguntou Sachs.

 

- Não, apenas uma área não demarcada nas plantas da prefeitura, à margem do rio. Mais ou menos umas três dezenas de casas, uma fábrica. Nenhuma loja e nada desse tipo. Na maior parte, floresta e pântano.

 

Rhyme notou números e letras ao longo das margens do mapa.

 

- Onde? - perguntou. - Mostre-me. Mason tocou o local G-10.

 

- Do modo como vemos a coisa, Garrett apareceu e pegou Mary Beth. Ia estuprá-la quando Billy Stail apareceu correndo, viu-os da estrada, e tentou impedir aquilo.

 

Garrett, porém, pegou uma pá e matou-o. Afundou a cabeça dele com a pá. Depois, levou Mary Beth e desapareceu. - A mandíbula de Mason tornou-se tensa. - Billy era um bom rapaz. Realmente bom. Freqüentava regularmente a igreja. Na última temporada, interceptou um passe nos dois últimos minutos num jogo empatado com a Albemarle High e correu até a linha de...

 

- Acredito que ele tenha sido um excelente rapaz - cortou-o impaciente Rhyme. - Garrett e Mary Beth desapareceram a pé?

 

- Isso mesmo - respondeu Lucy. - Garrett não podia dirigir. Não tem nem carteira de habilitação. Acho que isso acontecia porque seus pais morreram num desastre de carro.

 

- Que prova material vocês encontraram?

 

- Encontramos a arma do crime - respondeu Mason orgulhoso. -A pá. Tivemos todo cuidado ao manuseá-la. Usamos luvas. E organizamos aquele troço de cadeia de custódia, como está descrito nos livros.

 

Rhyme esperou alguns momentos por mais detalhes, que não vieram. Finalmente, perguntou:

 

- O que foi mais que vocês encontraram?

 

- Bem, algumas pegadas. Mason olhou para Jesse, que disse:

 

- Oh, isso mesmo. Tirei fotos delas.

 

- Isso foi tudo? - perguntou Sachs.

 

Lucy inclinou a cabeça, os lábios cerrados em linha, diante dessa crítica implícita de uma nortista.

 

- Deram uma busca na cena do crime? - perguntou Rhyme.

 

- Claro que demos - respondeu Jesse. - Mas, simplesmente não havia mais nada.

 

Não havia mais nada? Em uma cena onde um perpetrador mata uma pessoa e seqüestra outra há prova suficiente para fazer um filme sobre quem fez o quê com quem e, provavelmente, o que cada membro do elenco esteve fazendo nas últimas 24 horas. Aparentemente, eles ali enfrentavam dois criminosos: o Menino-Inseto e a incompetência das forças da lei. Rhyme captou o olhar de Sachs e notou que ela pensava a mesma coisa.

 

- Quem dirigiu a busca? - perguntou.

 

- Eu - respondeu Mason. - Fui o primeiro a chegar. Eu me encontrava próximo quando recebi a chamada.

 

- E quando foi que isso aconteceu?

 

- Nove e meia. Um motorista de caminhão viu da estrada o corpo de Billy e ligou para nove-um-um.

 

E o rapaz foi morto antes das 8 horas. Rhyme não ficou nada satisfeito. Uma hora e meia - pelo menos - era um tempo muito longo para uma cena de crime continuar sem proteção. Um bocado de provas poderiam ser roubadas e outras tantas acrescentadas. O rapaz poderia ter estuprado e assassinado a moça, escondido o corpo e, em seguida, voltado para eliminar peças de provas e deixar outras para confundir os investigadores.

 

- Você fez a busca pessoalmente? - perguntou Rhyme a Mason.

 

- Na primeira vez, sim, tanto quanto possível. Em seguida, chegaram três, quatro outros policiais. E eles passaram um pente fino na área.

 

E só encontraram a arma do crime? Deus Todo-Poderoso... Para nada dizer sobre o dano feito por quatro policiais que desconheciam as técnicas de busca em locais de crime.

 

- Posso perguntar - disse Sachs -, como é que sabem que foi Garrett?

 

- Eu o vi - respondeu Jesse com. - Quando ele pegou Lydia esta manhã.

 

- Isso não significa que ele tenha assassinado Billy e seqüestrado a outra moça.

 

- Oh... - disse Bell. - As impressões digitais... nós as recolhemos na pá.

 

Rhyme inclinou a cabeça e disse, dirigindo-se ao xerife:

 

- E as impressões digitais dele estavam arquivadas, devido àquelas prisões anteriores?

 

- Isso mesmo.

 

- Agora, diga o que aconteceu esta manhã - pediu Rhyme. Jesse tomou a palavra:

 

- Era bem cedo. Pouco depois do amanhecer. Ed Schaeffer e eu estávamos de olho na cena do crime, na expectativa de que Garrett voltasse. Ed ficou ao norte do rio e, eu, ao sul. Lydia apareceu para depositar umas flores. Deixei-a sozinha e voltei para o carro.

 

O que, acho, não devia ter feito. Logo em seguida, ouvia-a gritar e os dois desapareceram do outro lado do Paquo. Desapareceram antes que eu pudesse achar um bote ou qualquer coisa para atravessar. Ed não respondia no rádio. Fiquei preocupado com ele e, quando cheguei ao outro lado, encontrei-o picado quase até a morte. Garrett havia preparado uma armadilha.

 

- Achamos que Ed sabe para onde ele levou Mary Beth. Deu uma olhada naquele mapa que encontrou na tocaia onde Garrett esteve escondido - disse Bell. - Mas foi picado pelos marimbondos, desmaiou antes que pudesse nos dizer o que o mapa mostrava, e Garrett deve tê-lo levado consigo depois de ter seqüestrado Lydia. Não conseguimos achá-lo.

 

- Em que estado se encontra o policial? - perguntou Sachs.

 

- Entrou em coma por causa das picadas. Ninguém sabe se ele vai escapar ou não. Ou se lembrará alguma coisa, caso escape.

 

De modo que temos que depender da prova material, pensou Rhyme. O que era, afinal de contas, sua preferência e, em qualquer ocasião, melhor do que testemunhas.

 

- Eu encontrei isto. - Jesse abriu uma maleta 007 e tirou um sapato de dentro de um saco plástico. -Garrett perdeu-o quando estava agarrando Lydia. Nada mais.

 

Uma pá na cena do crime da véspera, um sapato na de hoje... Nada mais. Sem esperança, Rhyme lançou um olhar ao único pé de sapato.

 

- Simplesmente, coloque-o lá em cima - disse, indicando uma mesa. - Agora me fale dessas outras mortes atribuídas a Garrett.

 

- Todas elas em Blackwater Landing ou nas proximidades - começou Bell. - Duas das vítimas morreram afogadas no canal. A prova indicava que elas caíram e bateram com a cabeça. O legista, pórém, disse que elas podiam ter sido atingidas intencionalmente e empurradas para a água. Antes das mortes, Garrett foi visto rondando as casas das duas vítimas. No ano passado, alguém foi picado até a morte. Marimbondos. Exatamente igual a Ed. Nós temos certeza de que Garrett fez isso.

 

Bell fez menção de continuar, mas foi interrompido por Mason. Em voz baixa, ele disse:

 

- Uma moça, de uns 20 anos... igualzinho a Mary Beth. Menina realmente direita, boa cristã. Estava tirando um cochilo deitada de costas no terraço dos fundos da casa. Garrett jogou lá dentro um ninho de marimbondos. A menina recebeu 137 picadas. Teve um ataque cardíaco.

 

Foi a vez de Lucy Kerr tomar a palavra:

 

- Eu atendi à chamada. Foi uma coisa horrível de ver, o que aconteceu com ela. Ela morreu aos poucos. com muita dor.

 

- Oh, e aquele enterro que vimos quando vínhamos para cá? perguntou Bell. - Foi de Todd Wilkes. De oito anos de idade. Ele se suicidou.

 

- Oh, não - murmurou Sachs. - Por quê?

 

- Bem, ele andava muito doente - explicou Jesse Corn. - Passava mais tempo no hospital do que em casa. Sentia-se muito infeliz com isso. Mas houve mais... Garrett foi visto gritando com Todd há algumas semanas, dizendo-lhe realmente horrores. Nós pensamos que Garrett continuou a atanazá-lo e a assustá-lo, até que ele não agüentou mais.

 

- Motivo? - perguntou Sachs.

 

- Ele é um psicopata, o motivo é esse - disse Mason, como que cuspindo as palavras. - As pessoas fazem troça dele e ele procura vingar-se delas. Tão simples assim.

 

- Esquizofrênico?

 

- Não, de acordo com seus conselheiros na escola. Uma personalidade anti-social, é isso que dizem que ele é. Ele tem um alto QI. Na caderneta escolar, na maioria ele só teve notas máximas... antes de começar a matar as aulas há uns dois anos.

 

- Vocês têm uma foto dele? - perguntou Sachs. O xerife abriu uma pasta.

 

- Esta é a foto que acompanha o registro de ocorrência policial no caso do ataque com marimbondos.

 

A foto mostrava um rapaz magro, cabelos cortados rentes, sobrancelhas ligadas uma a outra, olhos fundos, e uma marca como de erupção cutânea no rosto.

 

- Aqui temos outra.

 

Bell desdobrou um recorte de jornal, mostrando uma família de quatro pessoas em volta de uma mesa de piquenique. A legenda dizia: "Os Hanlons, no Piquenique Anual em Tanner's Comer, uma semana antes do trágico desastre de automóvel na Estrada 112, que ocasionou a morte de Stuart, 39 anos, Sandra, 37, e a filha, Kaye, 10. Na foto aparece também Garrett, 11 anos, que não estava no carro na ocasião do acidente.

 

- Posso ver o relatório sobre a cena do crime de ontem? - perguntou Rhyme.

 

Bell abriu uma pasta. Thom recebeu-a. Rhyme não dispunha ali de um dispositivo de passar páginas e teve que recorrer ao ajudante.

 

- Você não pode segurar mais firme? Thom deixou escapar um suspiro.

 

O criminalista, porém, estava irritado. A cena do crime tinha sido trabalhada de forma muito desleixada. Havia fotos polaróides indicando o número de pegadas, mas nenhuma régua fora posta ao lado das mesmas pegadas para lhes indicar o tamanho. Além disso, nenhuma tinha cartões numerados, indicando que haviam sido deixadas por diferentes indivíduos.

 

Sachs notou também esse detalhe e sacudiu a cabeça, num comentário mudo.

 

Lucy, parecendo adotar uma postura defensiva, perguntou:

 

- Vocês fazem sempre isso? Colocam cartões no chão?

 

- Claro - respondeu Sachs. - E um procedimento padrão. Rhyme continuou a examinar o registro. Encontrou apenas uma descrição superficial do local e da posição do corpo do rapaz. Observou que o esboço da posição do cadáver no chão fora traçado com tinta spray, tristemente famosa por arruinar vestígios e contaminar cenas de crime.

 

Não fora colhida amostra da areia, em busca de traços vestigiais, no local ao lado do cadáver, onde, obviamente, ocorrera luta entre Billy e Mary Beth, de um lado, e Garrett, do outro. Além disso, notou pontas de cigarro no chão - que poderiam fornecer numerosas pistas - mas nenhuma delas foi recolhida.

 

- Seguinte.

 

Thom virou outra página.

 

O relatório sobre as cristas de. atrito - as impressões digitais era apenas um pouco melhor. Na pá foram encontradas quatro impressões completas e 17 parciais, todas elas positivamente identificadas como pertencentes a Garrett e a Billy. A maioria era latente, embora algumas fossem evidentes - facilmente visíveis sem uso de produtos químicos ou fonte alternativa de iluminação de imagem - em uma mancha de barro no cabo da pá. Ainda assim, Mason tinha sido descuidado ao trabalhar a cena - as impressões deixadas o latex das luvas cobria muitas outras do assassino. Rhyme teria demitido um técnico por tal manuseio relaxado da prova, mas, desde que havia tantas outras boas impressões, nesse caso não seria muito grande a diferença.

 

O equipamento chegaria logo. Voltou-se para Bell:

 

- vou precisar de um técnico para me ajudar na análise e no uso do equipamento. Eu preferiria um policial, mas o importante é que ele conheça ciência. E também a área por aqui. Um natural do lugar.

 

O polegar de Mason efetuou uma dança circular sobre o cão serrilhado do revólver que trazia à cinta.

 

- Nós podemos arranjar alguém, mas eu pensava que o senhor era o especialista. Quero dizer, não é por isso que o estamos usando?

 

- Uma das razões por que vocês estão me usando é que sei quando preciso de ajuda. - disse Rhyme e olhou para Bell. - Lembra-se de alguém?

 

Mas quem respondeu foi Lucy Kerr:

 

- O filho de minha irmã - Benny -, estuda ciência na UNC. Pós.

 

- Esperto?

 

- Ele simplesmente... bem, é um pouco caladão.

 

- Eu não o quero para bater papo comigo.

 

- Eu ligo pra ele.

 

- Ótimo - disse Rhyme. E em seguida: - Agora, quero que Amélia dê uma busca nas cenas do crime: no quarto do rapaz e em Black-water.

 

- Mas... - disse Mason, com um gesto na direção do relatório -, nós já fizemos isso. Passamos um pente fino.

 

- Eu gostaria que ela desse outra busca nesses locais - respondeu seco Rhyme. Olhou em seguida para Jesse. - Você conhece a área. Poderia ir com ela?

 

- Claro. Será um prazer.

 

Sachs endereçou-lhe um olhar irônico. Rhyme, porém, conhecia o valor de um flerte. Sachs ia precisar de cooperação... e muita. E não acreditava que Lucy ou Mason fossem nem metade tão prestativos como o já muito interessado Jesse com.

 

- Quero que seja fornecida uma arma portátil a Amélia - disse Rhyme.

 

- Jesse é o nosso especialista em artilharia - disse Bell. - Ele pode lhe arranjar um belo Smith and Wesson.

 

- Pode apostar que posso, mesmo.

 

- Eu queria também um par de algemas - disse Sachs.

 

- Nenhum problema.

 

Bell notou que Mason, parecendo infeliz, olhava fixamente para o mapa.

 

- O que é? - perguntou o xerife.

 

- Quer realmente minha opinião? - perguntou o baixote.

 

- Eu pedi, não pedi?

 

- Faça o que achar que é melhor, Jim - retrucou Mason, a voz tensa -, mas não acho que a gente tenha tempo para mais buscas. Esse território é muito grande. Temos que ir atrás daquele rapaz e pegá-lo logo.

 

Mas quem respondeu foi Lincoln Rhyme. com os olhos no mapa, na Localização G-10, Blackwater Landing, o último lugar onde Lydia Johansson tinha sido vista ainda viva, disse:

 

- Nós não temos tempo suficiente para andar depressa.

 

- Nós queríamos o menino. - O homem falava em voz baixa, cautelosa, como se falar alto demais pudesse conjurar uma feiticeira. Olhou contrafeito para o quintal empoeirado, onde uma caminhonete pickup descansava, sem rodas, sobre blocos de concreto. - Porque havíamos ouvido falar nele e estávamos com pena. Mas, para dizer a verdade, ele foi um problema desde o início. Em nada igual aos outros filhos que tivemos. Fizemos o que podíamos, mas, pode acreditar, acho que ele não entende a coisa dessa maneira. E estamos com medo. Apavorados.

 

Em pé na varanda gasta pelo tempo de sua casa ao norte de Tanner's Comer, ele conversava com Amélia Sachs e J esse Corn. Amélia tinha ido ali, à casa dos pais adotivos de Garrett, com o objetivo exclusivo de dar uma busca no quarto do rapaz, embora, a despeito da urgência, estivesse deixando que Hal Babbage falasse longamente, na esperança de descobrir mais alguma coisa sobre Garrett Hanlon. Ela não concordava inteiramente com a opinião de Rhyme, de que a prova material é a única maneira de pegar criminosos.

 

Mas a única coisa que descobriu foi que os pais adotivos do criminoso estavam, como disse Hal, cheios de medo de que Garrett voltasse para fazer mal a eles e às outras crianças. A esposa, ao lado do marido no terraço, era uma mulher gorda, de cabelos encaracolados ruivos. Usava uma camiseta promocional distribuída por uma estação de rádio de música country.

 

Tal como os olhos do marido, os de Margaret Babbage vasculhavam constantemente o pátio e a floresta em volta, esperando a volta de Garrett, pensou Sachs.

 

- Não é que jamais tivéssemos feito algum mal a ele - continuou o homem. - Nunca dei chicotadas nele - o Estado não permite mais que pais façam isso -, mas era firme com ele, obrigando-o a andar na linha. Coisas como comer nas horas certas. Eu insisto nisso. Apenas, Garrett nunca aparecia a tempo. Eu trancava a comida fora das horas de refeição, de modo que ele passava um bocado de fome. E, às vezes, levava-o para o estudo da Bíblia, e ele odiava isso. Ficava simplesmente sentado ali, sem pronunciar uma única palavra. Ele me deixava embaraçado, pode crer. Eu o agarrava pelo pescoço para que limpasse aquele chiqueiro do quarto dele. - Hesitou, dilacerado entre raiva e medo. - Essas são exatamente as coisas que temos que obrigar crianças a fazer. Mas eu sei que ele me odeia por isso.

 

A esposa prestou seu próprio depoimento:

 

- Nós éramos tolerantes com ele. Mas ele não vai se lembrar disso. Vai lembrar-se das ocasiões em que fomos rigorosos. - A voz dela fraquejou. - E ele está pensando em vingança.

 

- Eu lhe digo uma coisa. Nós vamos nos proteger. - O pai adotivo de Garrett falava nesse momento com Jesse Corn. Indicou com a cabeça um monte de pregos e um martelo enferrujado num canto do terraço. - Vamos fechar com pregos as janelas, mas se ele tentar arrombar a casa... nós vamos nos proteger. As crianças sabem o que fazer.

 

Sabem onde está a espingarda. E eu ensinei a elas como usá-la.

 

Ele as encorajava a atirar em Garrett? Sachs ficou chocada. Tinha visto diversas outras crianças na casa, espiando através das telas de arame. Nenhuma delas parecia ter mais de dez anos de idade.

 

- Ei - disse severamente Jesse Corn, antecipando-se a Sachs -, não se meta a fazer justiça com as próprias mãos. Se avistar Garrett, avise-nos. E não deixe que as crianças toquem em armas de fogo. Ora, ora, você sabe que isso não se faz.

 

- Nós fazemos treinamento - disse Hal em tom de desculpa. Todas as quintas-feiras, depois da ceia. Elas sabem como usar uma arma.

 

Apertou os olhos ao notar alguma coisa no pátio, ficando tenso por um momento.

 

- Eu gostaria de dar uma olhada no quarto dele - disse Sachs. Hal deu de ombros.

 

- Fique à vontade. Mas vai sozinha. Eu não quero entrar lá. Mostre a eles onde fica o quarto, Mags.

 

Pegou o martelo e um punhado de pregos. Sachs notou o cabo de uma arma projetando-se da cintura dele. Hal começou a bater pregos na moldura de uma janela.

 

- Jesse - disse Sachs -, dê uma volta pelos fundos e examine a janela do quarto dele, veja se ele preparou alguma armadilha.

 

- Você não vai poder vê-la - explicou a mãe. - Ele pintou-a de preto.

 

Pintada?

 

Sachs continuou:

 

- Neste caso, cubra simplesmente a aproximação até a janela. Não quero nenhuma surpresa. Mantenha um olho vivo para boas posições de emboscada e não seja um alvo fácil.

 

- Certo. Boas posições de emboscada. Gostei dessa.

 

E inclinou a cabeça de uma forma exagerada, que disse a Amélia que ele não possuía virtualmente experiência tática. O rapaz sumiu pelo pátio lateral.

 

A esposa disse a Sachs:

 

- O quarto dele é por aqui.

 

Sachs seguiu a mãe adotiva de Garrett por um escuro corredor cheio de roupas para lavar, sapatos e pilhas de revistas. Family Circíe, Christian Life, Guns & Arms, Field and Stream, Reader's Digest.

 

Sentiu os pêlos do pescoço se arrepiarem ao passar por cada porta, olhos saltando da esquerda para a direita, enquanto os compridos dedos acariciavam o cabo de carvalho do revólver. Estava fechada a Porta do quarto do rapaz.

 

Garrett jogou lá dentro um ninho de marimbondos. Ela foi picada 137 vezes...

 

- A senhora está realmente com medo que ele volte? Após uma pequena pausa, a mulher respondeu:

 

- Garrett é um menino perturbado. As pessoas não o compreendem e eu gosto mais dele do que Hal. Não sei se ele vai voltar, mas, se voltar, vai haver problema. Garrett não se importa em machucar pessoas. Certa vez, na escola, alguns meninos passaram a arrombar o armário dele e deixar lá bilhetes, cuecas sujas e coisas assim. Nada de terrível, apenas brincadeiras de mau gosto. Garrett, porém, deu um jeito de a porta se abrir de repente, se a pessoa não a abria de maneira certa. E colocou lá dentro uma aranha. Na vez seguinte, a aranha picou um garoto no rosto. E deixou-o quase cego... Sim, estou com medo que ele volte.

 

Pararam em frente à porta do banheiro. Na parede, um aviso, escrito a mão: PERIGO, NÃO ENTRE. Embaixo do aviso, havia sido pregado um desenho malfeito, em caneta e tinta, de um marimbondo mal-encarado.

 

Não havia ar condicionado por ali e Sachs sentiu suor nas palmas das mãos. Enxugou-o nas pernas do jeans.

 

Ligou o rádio Motorola e colocou nos ouvidos os fones que tomara emprestado à Central de Comunicações, da Polícia local. Demorou um momento para sintonizar a freqüência certa, que lhe tinha sido fornecida por Steve Farr. A recepção era uma droga.

 

- Rhyme?

 

- Estou aqui, Sachs. Estive esperando até agora. Onde foi que você esteve?

 

Ela não queria dizer a ele que gastara alguns minutos tentando informar-se mais sobre a psicologia de Garrett Hanlon. Respondeu apenas:

 

- Precisamos de um pouco de tempo para chegar aqui.

 

- Bem, o que foi que descobriu? - perguntou o criminalista.

 

- vou entrar agora mesmo.

 

com um gesto, disse a Margaret para voltar à sala de jantar, deu um pontapé na porta e saltou para trás no corredor, colada à parede. Nenhum som veio do quarto fracamente iluminado.

 

Foi picada 137 vezes...

 

OK, Arma à altura do ombro. Entre, entre, entre! Entrou.

 

-Jesus!

 

Caiu em postura de combate, agachada. com vários quilos de pressão no gatilho da arma, apontou-a, imóvel como uma montanha, para a figura imediatamente do outro lado.

 

- Sachs? - gritou Rhyme. - O que é?

 

- Um minuto... - murmurou ela, acendendo e erguendo alta a lanterna. A mira da arma pousou em cima de um pôster do monstro asqueroso do filme Aliens.

 

com a mão esquerda, abriu a porta do armário. Vazio.

 

- Está seguro, Rhyme. Mas tenho que dizer que não gosto mesmo da maneira como ele faz a decoração de interiores.

 

E foi nesse momento que o mau cheiro a atingiu em cheio. Roupas sujas, cheiros de corpo. E mais alguma coisa...

 

- Uau - murmurou.

 

- Sachs? O que é? Rhyme falava em tom impaciente.

 

- Este lugar fede.

 

- Ótimo. Você conhece minha regra.

 

- Em primeiro lugar, cheire sempre a cena do crime. Eu gostaria de não ter feito isso.

 

- Eu tinha intenção de fazer uma faxina geral aqui. - A senhora Babbage apareceu silenciosamente atrás de Sachs. - Eu devia ter feito isso, antes de vocês chegarem.

 

Mas estava com medo demais de entrar. Além do mais, é difícil trazer para fora um gambá, a menos que a gente tome um banho de suco de tomate. O que Hal pensa que seria um desperdício de dinheiro.

 

Era isso. Coroando o mau cheiro de roupas sujas havia o cheiro de borracha queimada de um gambá. Mãos com dedos enlaçados, parecendo que ia chorar, a mãe adotiva de Garrett murmurou:

 

- Ele vai ficar uma fera porque você arrombou a porta.

 

- Eu vou precisar ficar sozinha aqui por algum tempo - respondeu Sachs. Levou a mulher até a porta e fechou-a, - O tempo está passando, Sachs - disse secamente Rhyme.

 

- Estou trabalhando - respondeu ela.

 

Olhou em volta, enojada com os lençóis acinzentados, manchados, as pilhas de roupas imundas, os pratos colados uns nos outros com comida velha, sacos de Cetio cheios de farelo de batata frita e flocos de milho. Todo aquele lugar deixava-a nervosa. Descobriu que coçava compulsivamente o couro cabeludo. Parou, coçou um pouco mais. E perguntou a si mesma por que estava tão zangada. Talvez porque aquele desmazelo sugeria que os pais adotivos não deram realmente a mínima importância ao rapaz e que esse desinteresse contribuiu para que ele se tornasse um assassino e um seqüestrador.

 

Fez uma revista rápida pelo quarto e notou que havia por ali e no peitoril da janela dezenas de manchas e impressões digitais. Aparentemente, ele usava mais a janela do que a porta da frente da casa e ela especulou se os pais trancavam os filhos à noite.

 

Virou-se para a parede em frente da cama e examinou-a, olhos apertados em fresta. Sentiu um calafrio descer pelo corpo.

 

- Nós temos aqui um colecionador, Rhyme.

 

Olhou para dezenas de grandes jarras - terrários cheios de colônias de insetos bem juntos e água circundante em todos eles. Etiquetas identificavam as espécies:

 

Barqueiro de rio... Aranha Mergulhadora... Viu uma lupa lascada em uma mesa próxima, ao lado de uma velha cadeira de escritório que parecia ter sido tirada por Garrett de um monte de lixo.

 

- Sei agora por que o chamam de Menino-Inseto - disse, e descreveu as jarras para Rhyme.

 

Arrepiou-se de nojo ao ver uma horda de insetos úmidos, minúsculos, movendo-se em massa ao longo do vidro de uma das jarras.

 

- Ah, isso é bom para nós.

 

- Por quê?

 

- Porque é um hobby raro. Se colecionar sapatos de tênis ou moedas desse tesão a ele, teríamos mais dificuldade em ligá-lo a localizações específicas. Agora, comece a trabalhar na cena.

 

Ele falava baixinho, em voz quase alegre. Sachs sabia que ele estava se imaginando percorrendo a grade - como chamava o processo de dar busca em cenas de crime -

 

usando-a como seus olhos e pernas. Como chefe da Investigações e Recursos - a unidade de polícia técnica e levantamento de cenas de crime da NYPD -, Lincoln Rhyme muitas vezes tinha feito pessoalmente esse trabalho, gastando em geral mais horas nisso do que até mesmo policiais novatos.

 

Sachs sabia que percorrer a grade era a parte da vida de Rhyme de que ele sentia mais falta desde o acidente.

 

- Que tal o equipamento de investigação de cena de crime? - perguntou Rhyme.

 

Jesse Corn conseguira arranjar um na delegacia local, para que ela o usasse.

 

Sachs abriu a empoeirada maleta 007 de metal. Não continha nem um décimo do equipamento do kit que usava em Nova York, mas, pelo menos, encontrou os instrumentos básicos: pinças, uma lanterna, sondas, luvas de látex e sacos plásticos para guardar provas.

 

- Fraco o equipamento - disse.

 

- Sachs, neste caso nós somos peixes fora d'água.

 

- Nisso eu concordo com você, Rhyme.

 

Calçou as luvas enquanto examinava o ambiente. O quarto de Garrett era o que é conhecido como cena de crime secundária não o local onde ocorreu o crime, mas o local onde foi planejado, por exemplo, ou para onde os criminosos fogem e se escondem após o crime. Rhyme lhe dissera muito tempo antes que elas, com freqüência, eram mais valiosas do que as cenas primárias, porque os criminosos tendiam a ser mais descuidados em lugares como esses, livrando-se de luvas e roupas e deixando aí armas e outros tipos de provas.

 

Então, iniciou a busca, caminhando em sistema de grade - cobrindo o chão em linhas paralelas bem próximas, da maneira como se apara um gramado, um pé após outro e, em seguida, tomando uma direção perpendicular à anterior e percorrendo mais uma vez o mesmo território.

 

- Fale comigo, Sachs, fale comigo.

 

- É um lugar fantasmagórico, Rhyme.

 

- "Fantasmagórico"? - rosnou ele. - O que diabo significa "fantasmagórico"?

 

Lincoln Rhyme não gostava de observações vagas. Gostava de adjetivos claros - específicos: frio, enlameado, azul, verde, nítido. Queixava-se mesmo quando ela dizia que alguma coisa era "grande" ou "pequena". ("Diga-me quantos centímetros ou milímetros, Sachs, ou não diga coisa alguma." Amélia Sachs examinava cenas de crime armada com uma Glock 10, luvas de látex e uma trena Stanley de operário de construção civil.)

 

Bem, pensou ela, eu me sinto assombrada. Isso não representa nada?

 

- Ele colou pôsteres nas paredes. Dos filmes Alien. E de Starship Troopers... aqueles insetos grandalhões que atacam pessoas. E desenhou também alguns deles. Eles são violentos. O lugar é imundo. Restos de comida, um bocado de livros, roupas, insetos em jarras. Não muita coisa mais.

 

- As roupas estão sujas?

 

- Estão. Ele tem umas de boa qualidade... duas calças tipo passeio muito manchadas. Usou-as um bocado. Deve haver nela uma tonelada de vestígios. E as duas com bainha. Sorte para nós... A maioria dos garotos usajeans.

 

E guardou-as na sacola de provas.

 

- Camisas?

 

- Apenas camisetas - respondeu ela. - Nada que tenha bolsos. -Criminalistas adoram bainhas e bolsos, que guardam todos os tipos de pistas úteis. - Descobri aqui duas cadernetas de nota, Rhyme. Mas Jim Bell e os outros policiais devem tê-las examinado.

 

- Não faça suposições sobre o trabalho de seus colegas na cena do crime - disse secamente Rhyme.

 

- Entendi.

 

Começou a folhear as páginas.

 

- Nada de diário. Nada de mapa. Nada sobre seqüestro... Apenas desenhos de insetos... desenhos dos que ele tem aqui nos terrários.

 

- Desenhos de meninas, de mulheres jovens? Sadomasoquistas? -Não.

 

- Traga-os com você. O que me diz de livros?

 

- Talvez uns cem. Livros escolares, livros sobre animais, insetos... Espere... encontrei alguma coisa... um anuário da Escola Secundária de Tanner's Corner. Velho de seis anos.

 

Rhyme fez uma pergunta a alguém na sala. Voltou à linha: -Jim diz que Lydia tem 26 anos de idade. Estaria fora da escola secundária há oito anos. Mas verifique a página da jovem McConnell.

 

Sachs folheou as páginas Ms.

 

- Isso mesmo. A foto de Mary Beth foi cortada com uma lâmina afiada de algum tipo. Ele certamente se enquadra no perfil clássico do caçador furtivo.

 

- Nós não estamos interessados em perfis. Estamos interessados em provas. Os outros livros... os que estão na estante.... qual era o que ele lia mais?

 

- Como é que eu vou...

 

- Sujo nas páginas - respondeu impaciente Rhyme. - Comece com os que estão mais perto da cama. Traga cinco ou seis deles.

 

Sachs pegou os quatro com as páginas que mostravam maiores sinais de manuseio. The Entomoíogist's Handbook, The Field Guide to Insects of North Carolina, Water Insects of North America, The Miniature World.

 

- Juntei-os, Rhyme. Eles têm um bocado de trechos marcados. E asteriscos ao lado de algumas das marcações.

 

- Ótimo. Traga-os para aqui. Mas tem de haver alguma coisa mais específica no quarto.

 

- Não consigo encontrar coisa nenhuma.

 

- Continue a procurar, Sachs. Ele é um rapaz de 16 anos. Você conhece aqueles casos de delinqüentes juvenis em que trabalhamos. Quartos de adolescentes são os centros de seus universos. Comece a pensar como um adolescente de 16 anos. Onde você esconderia coisas?

 

Sachs olhou embaixo do colchão, dentro e embaixo das gavetas da mesa, no armário e embaixo dos travesseiros encardidos. Em seguida, lançou o feixe da lanterna para o espaço entre a parede e a cama. E disse:

 

- Descobri alguma coisa aqui.

 

- O quê?

 

Encontrou um bolo de Kleenex amassado, um vidro de loção "Cuidado Intensivo, com Vaselina". Examinou um dos lenços de papel. Manchado com o que parecia sêmen seco.

 

- Há dezenas de lenços de papel embaixo da cama. Esse rapaz andou muito ocupado com a mão direita.

 

- Ele tem 16 anos - lembrou Rhyme. - Seria estranho se não tivesse feito isso. Ponha um deles na sacola. Podemos precisar de algum exame de DNA.

 

Sachs encontrou mais coisas sob a cama: um quadro para pregar retratos, barato, onde ele pintara alguns desenhos grosseiros de insetos - formigas, marimbondos e baratas. Encontrou ainda a foto de Mary Beth McConnell, cortada do anuário. E também um álbum com uma dezena de instantâneos da moça. Reveladores. A maioria no que parecia o compus de uma faculdade ou andando pela rua de uma pequena cidade. Havia duas delas, de biquíni, em um lago. Nestes dois, ela estava curvada e a foto focalizava a separação entre os seios. Contou a Rhyme o que encontrara.

 

- A moça de suas fantasias - murmurou Rhyme. - Continue a procurar.

 

- Acho que devo guardar isso e seguir para a cena primária.

 

- Dentro de um ou dois minutos, Sachs. Lembre-se... foi idéia sua, esta de sermos bons samaritanos, não minha.

 

Sachs teve um estremecimento de raiva.

 

- O que é que você quer? - perguntou zangada. - Que ande borrifando pó por aí para levantar impressões digitais? Ou passar um aspirador de pó para recolher fios de cabelo?

 

- Claro que não. Nós não estamos procurando prova de qualidade inatacável para um promotor público usar num julgamento. Tudo que precisamos é de alguma coisa que nos dê uma idéia de onde ele pode ter levado as moças. Ele não vai trazê-las de volta para casa. E tem um lugar que preparou exatamente para elas. E esteve lá antes...

 

para prepará-lo. Ele pode ser jovem e esquisito, mas ainda me parece ser um criminoso organizado. Mesmo que as moças estejam mortas, aposto que ele preparou para elas sepulturas bonitas, confortáveis.

 

A despeito de todo o tempo em que vinham trabalhando juntos, Sachs ainda tinha problema com a insensibilidade de Rhyme. Sabia que isso fazia parte do fato de ele ser um criminalista - o distanciamento que o profissional tem que manter do horror do crime - mas era difícil para ela engolir isso. Talvez porque reconhecesse que possuía em si essa mesma capacidade de frieza, esse distanciamento embotador que os melhores pesquisadores de cena de crime têm que assumir, a mesma frieza com que se liga um comutador de luz, um distanciamento que, as vezes, temia que lhe embotasse para sempre o coração.

 

Sepulturas bonitas, confortáveis...

 

Lincoln Rhyme, cuja voz jamais era mais sedutora do que quando imaginava uma cena de crime, voltou a falar:

 

- Continue, Sachs, entre nele. Torne-se Garrett Hanlon. No que é que você está pensando? Como é seu rosto? O que é que você faz, minuto após minuto, nesse pequeno quarto? Quais são seus pensamentos mais secretos?

 

Os melhores criminalistas, disse-lhe Rhyme certa vez, assemelham-se a romancistas talentosos, que se imaginam como seus personagens - e podem desaparecer dentro do mundo de outra pessoa.

 

Olhos vasculhando novamente o quarto. Tenho 16 anos de idade. Sou um adolescente perturbado, sou órfão, os garotos na escola zombam de mim. Tenho 16 anos, 16 anos, 16...

 

Um pensamento formou-se em sua mente. Agarrou-o, antes que ele sumisse.

 

- Rhyme, sabe o que é muito esquisito?

 

- Fale comigo, Sachs - respondeu ele suavemente, estimulando-a.

 

- Ele é um adolescente, certo? Eu me lembro de Tommy Briscoe... namorei com ele quando eu tinha 16 anos. Sabe o que era que ele tinha pregado em todas as paredes do quarto?

 

- No meu, um baita pôster de Farrah Fawcett.

 

- É exatamente isso. Garrett não tem aqui nenhuma pinup, nenhum pôster da Playboy ou da Penthouse. Nada de carás, nada de Pokémon, nada de brinquedos. Nem Alanis nem Celine. Nenhum pôster de músico de rock... E, veja só isto: nada de aparelho de vídeo, TV, som estéreo, rádio. Nenhum Nintendo. Deus do céu, ele tem 16 anos e não possui nem mesmo um computador.

 

Sua afilhada tinha 12 anos de idade e o quarto dela era virtualmente uma vitrine de produtos eletrônicos.

 

- Droga, Rhyme, se fosse da idade dele e quisesse escutar música, eu construiria um rádio. Nada detém adolescentes. Mas essas não são as coisas que dão tesão a ele.

 

- Excelente, Sachs.

 

Talvez, pensou ela, mas o que era que isso significava? Registrar observações é apenas metade do trabalho do criminalista. A outra metade, muito mais importante, consiste em tirar delas conclusões úteis.

 

- Sachs... -Psiu.

 

Amélia lutou para afastar a pessoa que ela era realmente: a policial do Brooklyn, a amante de veículos "envenenados" da General Motors, a antiga modelo da agência Chantelle na Madison Avenue, a campeã de tiro com pistola, a mulher que usava longos os cabelos ruivos e curtas as unhas, com medo de que o hábito de coçar o couro cabeludo e a pele lhe desfigurasse as carnes, sob outros aspectos perfeitas, com ainda mais estigmas da tensão que a impulsionava na vida.

 

Estava tentando dissolver essa pessoa em fumaça e emergir como um rapazola perturbado, assustado, de 16 anos de idade. Alguém que precisava, ou queria, possuir mulheres à força. Que precisava, ou queria, matar.

 

O que é que estou sentindo?

 

- Não me interessam prazeres normais, música, TV, computadores. Não me interessa sexo normal - disse ela, meio para si mesma. - Não me interessam relacionamentos pessoais normais. Pessoas são como insetos... coisas que devem ser postas em gaiolas. Na verdade, eu só me interessei por insetos. Eles são minha única fonte de consolo. Minha única distração. - Disse isso enquanto andava de um lado para o outro em frente às jarras. Em seguida, olhou para o chão a seus pés. - Os rastros da cadeira!

 

- O quê?

 

- A cadeira de Garrett... é montada sobre rodinhas. Está de frente para as jarras dos insetos. Tudo que ele faz é rolar a cadeira para a frente e para trás, olhar para eles, e atraí-los. Droga, ele provavelmente conversa também com esses bichos. Toda sua vida se resume nesses bichos.

 

Os rastros da cadeira na madeira do piso, porém, terminavam antes de chegar à jarra ao fim da fileira - a maior delas e colocada ligeiramente mais longe das outras. E que continha marimbondos amarelos. Os minúsculos crescentes pretos e amarelos mexiam-se zangadamente de um lado para o outro, como se estivessem conscientes de sua intrusão.

 

Sachs foi até a jarra, olhou para o fundo com todo cuidado, e disse a Rhyme:

 

- Há aqui uma jarra cheia de marimbondos. Acho que é o cofre dele.

 

- Por quê?

 

- Não está perto das outras jarras. Ele jamais a olha... Sei disso pelos rastros da cadeira. E todas as outras jarras têm água... são insetos aquáticos. Esta é a única que contém insetos voadores. E é uma grande idéia, Rhyme... Quem enfiaria a mão numa coisa como essa? E há mais ou menos uns 30 centímetros de papel picado no fundo. Acho que ele enterrou alguma coisa aí.

 

- Dê uma olhada dentro da jarra e veja o que descobre. Sachs abriu a porta e pediu a Sra. Babbage um par de luvas de couro. Ao trazê-las, ela encontrou Sachs olhando para dentro da jarra de marimbondos.

 

- Você não vai tocar nisso, vai? - perguntou ela num sussurro de desespero.

 

- vou.

 

- Oh, Garrett vai ter um ataque de nervos. Ele grita com todos que sequer tocam na jarra dos marimbondos.

 

- Sra. Babbage, Garrett é um criminoso em fuga. O fato de ele gritar com todo mundo não interessa realmente aqui.

 

- Mas se ele voltar às escondidas e descobrir que você mexeu... quero dizer... Isso poderia fazer com que ele perdesse inteiramente o juízo.

 

Mais uma vez, ameaça de lágrimas.

 

- Nós o encontraremos antes de ele voltar - disse Sachs em voz tranqüilizadora. - Não se preocupe.

 

Calçou as luvas e enrolou o braço nu com uma fronha de travesseiro. Vagarosamente, tirou a tampa de tela e enfiou a mão. Dois marimbondos pousaram na luva mas voaram logo para longe. O resto ignorou a intrusão. Ela teve todo cuidado para não perturbar o ninho.

 

Picada 137 vezes...

 

Escavou apenas alguns centímetros, antes de encontrar a sacola de plástico.

 

- Consegui.

 

Puxou-a para fora. Um marimbondo escapou e desapareceu casa adentro, antes que ela conseguisse recolocar a tampa da tela.

 

Tirando a luva de couro e calçando a de látex, abriu o saco e despejou o conteúdo em cima da cama. Um carretel de linha de pesca. Um pouco de dinheiro - cerca de 100 dólares em notas e quatro dólares de prata com a efígie de Eisenhower. Outra moldura, esta com a foto de jornal dele e sua família, uma semana antes do acidente que acabara com a vida de seus pais e da irmã. Em uma velha corrente, encontrou uma chave velha, amassada... parecendo chave de carro, embora não houvesse logotipo na parte superior, mas apenas um curto número de série. Disse a Rhyme o que havia achado.

 

- Ótimo, Sachs. Excelente. Não sei o que isso significa, mas é um começo. Agora, siga para a cena primária, Blackwater Landing.

 

Sachs ficou parada por um momento e olhou em volta do quarto. O marimbondo fujão tinha voltado e estava tentando entrar na jarra. E ela se perguntou que tipo de mensagem ele estava enviando aos seus colegas insetos.

 

- Eu não posso continuar - disse Lydia a Garrett. - Não posso ir tão rápido assim - arquejou.

 

Suor descia-lhe pelo rosto. O uniforme de enfermeira estava encharcado.

 

- Cale a boca - repreendeu-a ele, furioso. - Preciso escutar. Não posso fazer isso com você se lamentando e se queixando o tempo todo.

 

Consultou o mapa e levou-a por outra trilha. Estavam ainda bem dentro do bosque de pinheiros, mas, ainda que protegidos do sol, Lydia sentia tonteiras e reconheceu os sintomas iniciais de um ataque de insolação.

 

Ele lançou-lhe um olhar, os olhos novamente nos seios da moça.

 

As unhas estalando.

 

O calor insuportável.

 

- Por favor - murmurou ela, chorando. - Eu não posso fazer isso!

 

Por favor!

 

- Cale a boca! E não vou repetir isso.

 

Uma nuvem de marimbondos voou em volta do rosto deles. Ela inalou um ou dois e cuspiu, cheia de nojo, para limpar a boca. Deus, como odiava aquilo ali - a floresta.

 

Lydia Johansson odiava o ar livre. A maioria das pessoas adora bosques, piscinas e quintais. Sua felicidade, porém, era um contentamento moderado que ocorria principalmente entre paredes: o emprego, a conversa com outras moças solteiras tomando margaritas no T.G.I. Os filmes das sextas-feiras, livros de horror e TV, viagens aos shoppings para uma farra de compras, e aquelas noites raras com o namorado.

 

Prazeres internos, todos eles.

 

Atividades ao ar livre lembravam-lhe os piqueniques que amigas casadas ofereciam, lembravam-lhe famílias sentadas em volta de piscinas, enquanto os filhos se divertiam com brinquedos infláveis, mulheres magras usando Speedos e sandálias de correias.

 

O ar livre lembrava-lhe uma vida que queria, mas não tinha. Sua solidão.

 

Ele levou-a por outra trilha, saindo da floresta. De repente, as árvores desapareceram e um buraco imenso abriu-se à frente deles. Era uma velha pedreira, água azul-esverdeada enchendo o fundo. Lembrou-se de que, muitos anos antes, crianças nadavam ali, antes de o pântano começar a invadir a terra ao norte do Paquo e a área tornar-se mais perigosa.

 

- Vamos - disse Garrett, indicando o local com um movimento de cabeça.

 

- Não. Não quero ir. Dá medo.

 

- Eu não dou a mínima merda para o que você quer - respondeu ele brutalmente. - Vamos!

 

Agarrou-lhe as mãos presas com a fita e puxou-a por um caminho inclinado até uma protuberância rochosa. Garrett tirou a camisa, curvou-se e passou água pela pele inchada. Coçou-se, concentrando-se nas marcas deixadas pelos riscos feitos pelas urtigas, e examinou as unhas. Nojento. Olhou para Lydia.

 

- Quer fazer isso também? É gostoso. Pode tirar o vestido, se quiser. E nadar um pouco.

 

Horrorizada com a idéia de ficar nua em frente a ele, Lydia sacudiu teimosamente a cabeça. Em seguida, sentou-se perto na plataforma e jogou água no rosto e nos braços.

 

- Simplesmente, não a beba. Eu tenho isso.

 

Puxou um saco empoeirado de aniagem de trás de uma pedra, onde devia tê-lo guardado recentemente. Tirou uma garrafa d'água e uns pacotinhos de biscoito com sabor de queijo e manteiga de amendoim. Comeu um pacotinho de biscoito e bebeu metade da garrafa. E ofereceu-lhe o resto.

 

Ela sacudiu a cabeça, enojada.

 

- Foda-se. Eu não tenho AIDS ou qualquer outra doença, se é isso o que está pensando. Você tem que beber alguma coisa.

 

Ignorando a garrafa, Lydia baixou a boca para a água da pedreira e bebeu abundantemente. A água tinha gosto salgado e metálico. Revoltante. Engasgou-se e quase vomitou.

 

-Jesus, eu lhe disse - repreendeu-a secamente Garrett. Mais uma vez, ofereceu-lhe água. - Há todos os tipos de merda por aqui. Deixe de ser tão estúpida.

 

Atirou-lhe a garrafa. Lydia relaxou um pouco e perguntou:

 

- Onde está Mary Beth? O que foi que você fez com ela?

 

- Ela está num lugar perto do oceano. Numa velha casa de banqueiro.

 

Lydia sabia o que ele queria dizer com isso. "Banqueiro" para um natural da Carolina significa alguém que vive nos Bancos Externos, a barreira de ilhas ao largo da costa do Atlântico. Então era aí que Mary Beth estava. Nesse momento, compreendeu por que vinham andando na direção leste - para a terra pantanosa, sem casas, e com poucos lugares onde alguém pudesse se esconder. Ele provavelmente tinha um barco escondido para levá-los através do pântano até o Caminho Marítimo Intercosteiro e, em seguida, a Elizabeth City e, através do Canal Albermale, até os Bancos.

 

Garrett continuou a falar:

 

- Eu gosto de lá. É realmente bem bonito. Você gosta do mar? Fez a pergunta de uma maneira esquisita - em tom de conversa - e nesse momento pareceu uma pessoa quase normal. Durante um instante, o medo de Lydia diminuiu. Mas, então, ele ficou imóvel, escutando alguma coisa, levando um dedo ao lábio para lhe ordenar silêncio, fechando zangado a cara, ao voltar para o seu lado, sombrio. Finalmente, sacudiu a cabeça, como se tivesse concluído que o que quer que fosse, não constituía ameaça. Esfregou o rosto com as costas da mão, passando-a por outro risco de urtiga.

 

- Vamos. - Indicou com um movimento de cabeça a trilha estreita à beira da pedreira. - Não fica longe.

 

- Vamos precisar de um dia inteiro para chegar aos Bancos Externos. Mais.

 

- Droga, a gente não vai para lá hoje. - Riu friamente como se ela tivesse feito outro comentário idiota. - Vamos nos esconder num lugar perto daqui e deixar que os imbecis que nos procuram passem por nós. Vamos passar a noite lá.

 

Mas olhava para outro lado quando disse isso.

 

- Passar a noite? - perguntou baixinho, em desespero Lydia. Garrett, porém, nada mais disse. Começou a cutucá-la Para SUbir o caminho íngreme à borda da pedreira, em direção ao bosque de pinheiros do outro lado.

 

Que atração existe em locais onde ocorreram mortes?

 

Percorrendo a grade de dezenas de cenas de crime, Amélia Sachs fez inúmeras vezes a si mesma a pergunta e repetiu-a nesse momento, no acostamento da Estrada 112, em Blackwater Landing, olhando do alto para o rio Paquenoke.

 

Ali o jovem Billy Stail teve morte sangrenta, duas moças foram seqüestradas, a vida de um esforçado policial mudou para sempre e, quem sabe, acabou - devido a picadas de centenas de marimbondos. Mesmo sob o sol a pino, a atmosfera de Blackwater Landing era sombria e provocava calafrios.

 

Examinou atentamente o local. Ali, na cena do crime, um morro íngreme, coberto de lixo, descia do acostamento da Estrada 112 para a margem enlameada do rio. Na parte em que o terreno se tornava plano, reconheceu salgueiros, ciprestes e moitas de relva alta. Um píer velho e podre estendia-se por uns 7 metros rio adentro e, em seguida, mergulhava sob a superfície da água.

 

Não havia casas na área imediata, embora notasse certo número de mansões do tipo colonial moderno a uma distância não muito grande do rio. As casas haviam custado obviamente um bom dinheiro, mas notou que mesmo essa parte residencial de Blackwater Landing, como aliás a própria sede do condado, parecia fantasmagórica e abandonada. E precisou de um momento para compreender o porquê - não viu crianças brincando em quintais, mesmo que a época fosse de férias de verão. O fato lhe lembrou o funeral pelo qual passara horas antes - e o caixão de criança. Obrigou-se a desviar os pensamentos da triste lembrança e voltar ao trabalho.

 

Examinou a cena do crime. Duas áreas cercadas por fita amarela. A situada mais perto da água incluía um salgueiro, em frente ao qual viu vários buquês de flores - o local onde Garrett tinha seqüestrado Lydia. A outra era uma clareira terrosa, cercada por um grupo de árvores, onde, no dia anterior, o rapaz assassinara Billy Stail e levara Mary Beth. No meio da cena, viu certo número de buracos rasos no chão, onde ela estava escavando, à procura de pontas de flecha e outras relíquias indígenas. A uns 7 metros do centro da cena, notou o contorno, pintado a spray, que marcava o local onde tinha sido encontrado o corpo de Billy.

 

Tinta spray?, pensou, aborrecida. Aqueles policiais, obviamente, não estavam acostumados a investigar homicídios.

 

Um carro da delegacia local parou no acostamento. Lucy Kerr desceu. Justamente o que preciso, pensou - mais cozinheiros. A policial cumprimentou-a com uma fria inclinação de cabeça.

 

- Descobriu alguma coisa útil na casa?

 

- Algumas.

 

Sachs nada mais explicou e indicou a encosta da colina com um movimento de cabeça.

 

Nos fones de ouvido, ouviu a voz de Rhyme:

 

- A cena está tão pisoteada como aparece nas fotos?

 

- Como se uma boiada tivesse passado por aqui. Talvez duas dezenas de pegadas.

 

- Merda - murmurou o criminalista.

 

Lucy ouviu o comentário de Sachs, mas ficou calada, continuando simplesmente a olhar para o lugar escuro onde o canal desaguava no rio.

 

- Aquilo ali é o barco que ele usou para fugir? - perguntou, olhando para uma canoa na margem enlameada do rio.

 

- Ali? O próprio - respondeu Jesse Corn. - Não é dele. Roubou-o de alguém rio acima. Quer dar uma busca nele?

 

- Mais tarde. Por onde ele não teria vindo para chegar até aqui? Ontem, quero dizer. Quando matou Billy. : , - Não teria? - Jesse apontou para o leste. - Não há nada naquela direção. Pântano e junco. Não é possível nem mesmo ancorar um barco por lá. De modo que ele ou veio pela Estrada 112 e desceu a encosta aqui ou, por causa do bote, acho que pode ter vindo remando.

 

Sachs abriu a maleta de instrumentos usados em cenas de crime e disse a Jesse:

 

- Eu quero um conhecido da areia daqui.

 

- Conhecido?

 

- Exemplares... amostras, você sabe como é.

 

- Só da areia daqui?

 

- Exato.

 

- Certo - respondeu ele. Em seguida, perguntou: - Por quê?

 

- Porque se encontrarmos amostras de solo que não combinam com o que existe aqui, a areia pode, naturalmente, ser do lugar para onde Garrett levou as moças.

 

- E poderia ser também - interrompeu Lucy -, do jardim de Lydia, do quintal de Mary Beth ou dos sapatos de algum garoto que andou pescando aqui há uns dois dias.

 

- Poderia - respondeu pacientemente Sachs. - Mas temos que fazer isso de qualquer maneira.

 

Entregou a Jesse um saco plástico. Ele se afastou em grandes passadas, satisfeito por ajudar. Sachs começou a descer a colina. Parou, abriu novamente a maleta do instrumental. Nenhum elástico. Notou que Lucy Kerr usava alguns, prendendo as pontas das tranças francesas.

 

- Posso tomar emprestado? - perguntou. - Os elásticos? Após um curto momento, a policial tirou-os dos cabelos. Sachs passou-os em volta dos sapatos que usava e explicou:

 

- Desta maneira, sei quais as pegadas que são minhas. Como se isso vá fazer alguma diferença nessa bagunça toda, pensou.

 

Entrou na cena do crime.

 

- Sachs, o que é que você tem aí? - perguntou Rhyme. '

 

A recepção era ainda pior do que antes.

 

- Não consigo ver o cenário com grande clareza - respondeu ela, examinando atenta o chão. - Pegadas demais. Nas últimas 24 horas, devem ter passado por aqui oito, dez diferentes pessoas, andando em todas as direções. Mas tenho uma idéia do que aconteceu... Mary Beth estava ajoelhada. Ouviu um som de sapatos de homem vindo do oeste... da direção do canal. De Garrett. Lembro-me dos sulcos do solado do sapato encontrado por Jesse. Vejo o lugar onde Mary Beth se levantou e deu um passo para trás. Som de sapatos de um segundo homem, vindo do sul, de Billy. Desce a ribanceira. Move-se rápido... principalmente nas pontas dos pés. Está, portanto, correndo.

 

Garrett vai ao encontro dele. Lutam. Billy recua até um pé de salgueiro. Garrett avança para ele. Mais luta. - Sach estudou o esboço branco do corpo de Billy. -

 

Na primeira vez em que Garrett o atinge com a pá, Billy recebe o golpe na cabeça. Cai. Mas o golpe não o matou. Em seguida, com ele já no chão, Garrett atinge-o no pescoço. Esse golpe acaba com Billy.

 

Jesse soltou uma risada de surpresa, olhando fixamente para o mesmo esboço, como se estivesse diante de uma coisa inteiramente diferente do que ela via.

 

- Como é que você sabe disso? Distraída, Amélia respondeu:

 

- O padrão da distribuição do sangue. Há aqui umas poucas gotas pequenas. - Apontou para o chão. - Compatível com sangue jorrando de uma distância de um metro e oitenta centímetros - isto é, da cabeça de Billy. Mas aquele borrifo grande ali, que teria sido produzido por uma carótida, ou jugular cortada, começa quando ele já estava caído... OK, Rhyme, vou começar a busca.

 

Percorreu a grade, um pé atrás do outro, olhos na areia e na grama, na casca nodosa dos carvalhos e salgueiros, para o alto, para os ramos pendentes. ("Uma cena de crime é tridimensional, Sachs", lembrava-lhe freqüentemente Rhyme.)

 

- As pontas de cigarro ainda estão aí? - perguntou ele.

 

- À vista. - Virou-se para Lucy. - Essas pontas de cigarro... disse, inclinando a cabeça para o chão. - Por que não foram recolhidas?

 

- Ah, as pontas - respondeu Jesse por ela - são apenas as deixadas por Nathan.

 

- Quem?

 

- Nathan Groomer. Um dos nossos. Vem tentando largar o vício, mas simplesmente não consegue.

 

Sachs suspirou, mas conseguiu evitar dizer que policial que fuma em uma cena de crime deve ser suspenso. com todo cuidado, cobriu o terreno, mas em vão. Fibras, pedaços de papel ou outras provas materiais haviam sido removidas ou levadas pelo vento. Dirigiu-se à cena do seqüestro da manhã, passou por baixo da fita e iniciou a pesquisa da grade em volta do salgueiro. Para a frente e para trás, lutando contra a tonteira provocada pelo calor.

 

- Rhyme, não há muito aqui... mas... espere. Descobri uma coisa.

 

Viu o brilho de alguma coisa branca perto da água. Aproximando-se, apanhou com todo cuidado um lenço de papel Kleenex, amassado. Os joelhos protestaram - a artrite que a atormentava há anos. Preferia muito mais correr atrás de um criminoso a fazer flexões de joelho.

 

- Kleenex. Parecido com o que encontrei na casa dele, Rhyme. Apenas este está manchado de sangue. Empapado.

 

- Você acha que Garrett jogou-o fora? - perguntou Lucy. Sachs examinou o lenço.

 

- Não sei. Tudo que posso dizer é que este lenço não passou a noite aqui. O conteúdo de umidade é baixo demais. O orvalho da manhã teria dissolvido metade do lenço.

 

- Excelente, Sachs. Onde foi que você aprendeu isso? Não me lembro de ter jamais mencionado isso.

 

- Não, você mencionou - respondeu ela, distraída. - No seu manual. Capítulo 12. Papel.

 

Foi até o rio e examinou o pequeno bote. Nada. Perguntou:

 

-Jesse, você pode me levar até o outro lado?

 

Na outra margem, encontrou pegadas na lama: dos sapatos de Lydia - os sulcos finos da sola do mocassim de enfermeira. E as pegadas de Garrett - uma de pé descalço e, a outra, de sapato, cujo desenho de solado já conhecia bem. Seguiu-as em direção ao bosque. As pegadas a conduziram até a tocaia onde Ed Scheffer tinha sido picado pelos marimbondos. Parou, desanimada. O que, diabo, havia acontecido ali?

 

- Deus do céu, Rhyme, parece que a cena do crime aqui foi toda varrida.

 

Criminosos usam freqüentemente vassouras ou mesmo espanadores de folhas para destruir ou confundir as provas em cenas de crime.

 

Jesse Corn, porém, tinha outra explicação:

 

- Isso foi feito pelo helicóptero.

 

- Helicóptero? - perguntou Sachs, confusa.

 

- Isso mesmo. Medevac... para levar Ed Schaeffer daqui.

 

- O empuxo para baixo dos rotores, porém, arruinou o local disse Sachs. - O procedimento padrão é levar o ferido para longe da cena do crime, antes de o helicóptero descer.

 

- Procedimento padrão? - perguntou grosseiramente Lucy. - Sinto muito, mas nós estávamos preocupados demais com Ed. Tentando salvar a vida dele, entenda.

 

Sachs sequer respondeu. Entrou vagarosamente na choça, esforçando-se para não perturbar as dezenas de marimbondos que pairavam em volta do ninho destruído. Os mapas ou outras pistas que o policial vira ali dentro, porém, tinham desaparecido e a ventania provocada pelo helicóptero misturara de tal forma a camada superior do solo que era inútil sequer tirar uma amostra da areia.

 

- Vamos voltar ao laboratório - disse ela a Lucy e Jesse.

 

Iam voltando para a margem quando ouviram um barulho às suas costas e um homenzarrão apareceu, dirigindo-se para eles, vindo de um emaranhado de moitas em volta dos salgueiros.

 

Jesse Corn sacou a arma, mas, antes de tirá-la da bainha, Sachs já havia sacado o Smith emprestado, engatilhado e apontado a alça de mira preta para o peito do intruso.

 

Ele parou instantaneamente, ergueu os braços, e pestanejou de espanto.

 

Barbudo, alto e gordo, o homem tinha os cabelos amarrados em um rabo-de-cavalo, usava calça jeans, camiseta cinzenta e colete de brim. Botas. Nele havia alguma coisa conhecida.

 

De onde conhecia aquele homem?

 

Foi preciso que Jesse mencionasse seu nome para que se lembrasse.

 

-Rich.

 

Ele era um da trinca que tinha visto no lado de fora da Prefeitura do condado. Rich Culbeau... Lembrou-se do nome, pouco comum. Lembrou-se de como ele e os amigos haviam lhe olhado, debochados, e para Thom com um ar de desprezo. Manteve a arma apontada para ele por um momento mais do que teria feito normalmente. Devagar, baixou o cano para o chão, desengatilhou e recolocou-a no coldre.

 

- Desculpe - disse Culbeau. - Eu não queria assustar ninguém. Ei, Jesse.

 

- Isto é uma cena de crime - disse Sachs. Nos fones, ouviu a voz de Rhyme:

 

- Quem está aí?

 

Sachs afastou-se, falando baixo ao microfone de garganta:

 

- Um daqueles personagens do filme Amargo pesadelo, que vimos esta manhã.

 

- Nós estamos trabalhando aqui, Rich - disse Lucy. - Não podemos deixar que você atrapalhe.

 

- Eu não pretendo atrapalhar vocês - respondeu ele, voltando os olhos para a floresta. - Mas, como todo mundo, tenho o direito de tentar ganhar aqueles mil dólares.

 

Você não pode me impedir de procurar.

 

- Que mil dólares?

 

- Droga! - Sachs quase cuspiu no microfone. - Há uma recompensa, Rhyme.

 

- Oh, não. A última coisa de que precisamos.

 

Entre os principais fatores que contaminam cenas de crime e dificultam investigações, as recompensas e os caçadores de suvenires figuram entre os piores.

 

- A mãe de Mary Beth está oferecendo a recompensa - explicou Culbeau. - Aquela mulher tem algum dinheiro e aposto que, se até a noite a menina não voltar, ela vai dobrar o prêmio para dois mil. Talvez mais. - Em seguida, olhou para Sachs. - Não vou causar problema nenhum, moça. Você não é daqui, olha pra mim e pensa que eu devo ser lixo... ouvi você falar sobre o filme Amargo pesadelo nesse seu radinho de brinquedo. Por falar nisso, gostei mais do livro do que do filme.

 

leu? Bem, isso não importa. Simplesmente, não dê importância demais a aparências. Jesse, conte a ela quem foi que salvou a menina que desapareceu no ano passado no Grande Pântano da Desolação. Que todo mundo julgava perdida e que todo o condado lamentava.

 

- Rich e Harris Tomei encontraram a moça. Perdida durante três dias no pântano. Ela teria morrido, se não fosse por eles.

 

- Fui eu, principalmente - murmurou Culbeau. - Harris não gosta de sujar as botas.

 

- Foi uma boa ação sua- disse secamente Sachs. - Quero simplesmente ter certeza de que você não vai estragar nossas probabilidades de encontrar aquelas moças.

 

- Isso não vai acontecer. Não há razão para ficar assim toda piçuda comigo.

 

Culbeau deu-lhe as costas e afastou-se em passos pesados.

 

- Piçuda? - perguntou Sachs.

 

- Quer dizer, zangada. Falou com Rhyme e lhe contou o ocorrido.

 

Ele ignorou-o.

 

- Não temos tempo a perder com os nativos, Sachs. Temos que achar a pista. E rápido. Volte aqui com tudo que descobriu.

 

Sentada no bote, de volta a outra margem, Sachs perguntou aos companheiros:

 

- Até que ponto ele pode atrapalhar?

 

- Culbeau? - respondeu Lucy. - Na maior parte do tempo, ele é um preguiçoso. Fuma maconha e bebe demais, mas nunca fez nada pior do que quebrar alguns queixos em público. Nós achamos que ele tem uma destilaria clandestina em algum lugar e, mesmo por mil dólares, não posso imaginar que ele se afaste demais desse local.

 

- O que é que ele e os dois amigos fazem?

 

- Conheceu os outros também? - perguntou Jesse. - Bem, Sean - isto é, o magrelo - e Rich não têm o que se chamaria de um emprego de verdade. Apanham coisas no lixo e fazem uns biscates. Já Harris Tomei estudou em faculdade...

 

uns dois anos, pelo menos.

 

Está sempre tentando comprar um negócio ou fazer alguma transação. Nada dá resultado, pelo que ouvi dizer. Mas todos os três têm dinheiro, o que significa que estão destilando bebida ilegalmente.

 

- Banho-de-lua? Vocês não acabam com essas operações? Após um momento de hesitação, Jesse respondeu:

 

- Às vezes, por aqui, a gente procura barulho. Às vezes, não. Aquilo era um exemplo de filosofia de cumprimento da lei que, Sachs sabia muito bem, dificilmente se limitava apenas ao Sul.

 

Desembarcaram na margem sul do rio, ao lado da cena do crime. Sachs saltou antes que Jesse pudesse lhe oferecer uma mão, o que ele, de qualquer maneira, fez.

 

De repente, uma forma imensa, escura, apareceu diante deles. Uma chata motorizada preta, de uns 15 metros de comprimento, entrou no canal, passou por eles e entrou no rio. No costado da embarcação, Sachs leu: DAVETT INDUSTRIES.

 

- O que é isso? - perguntou. Lucy respondeu:

 

- Uma companhia de fora da cidade. Leva mercadorias para a Intercosteira, passando pelo canal do Pântano Desolado e até Norfolk. Asfalto, papel alcatroado, troços assim.

 

Ouvindo essas palavras no rádio, Rhyme disse:

 

- Vamos verificar se houve uma dessas viagens por volta da hora do assassinato. Consigam os nomes dos tripulantes.

 

Sachs passou o recado a Lucy, que respondeu:

 

- Eu já fiz isso. Foi uma das primeiras coisas que Jim e eu fizemos.

 

- A resposta era seca. - E o resultado foi negativo. Se está interessada, interrogamos também todas as pessoas na cidade que habitualmente usam a Estrada do Canal e a Estrada 112 aqui. Sem resultado.

 

- Foi uma boa idéia fazer isso - disse Sachs.

 

- Apenas procedimento padrão - respondeu friamente Lucy e voltou para o carro, como uma mocinha feia de escola secundária que, finalmente, conseguiu tapar a boca da chefe da torcida.

 

- Eu não vou deixar que ele faça coisa nenhuma, até que vocês consigam instalar aqui um ar-condicionado.

 

- Thom, nós não temos tempo para isso - disse Rhyme secamente.

 

Em seguida, disse aos carregadores onde colocar os instrumentos enviados pela Polícia Estadual.

 

- Steve está tentando conseguir um aparelho - disse Bell. - Mas não é tão simples quanto pensei.

 

- Eu não preciso de nenhum. Thom, pacientemente, explicou:

 

- Estou preocupado com a possibilidade de disreflexia.

 

- Eu não me lembro de ter ouvido dizer que temperatura alta era ruim para pressão arterial, Thom - disse Rhyme. - Você leu isso em algum lugar? Eu não li. Talvez você possa me mostrar onde leu.

 

- Eu dispenso seu sarcasmo, Lincoln.

 

- Oh, eu sou sarcástico, não sou? Pacientemente, o assistente explicou a Bell:

 

- O calor causa inflamação dos tecidos. A inflamação causa aumento de pressão e irritação. E isso pode causar disreflexia. Que pode matá-lo. Precisamos de um condicionador de ar. Só isso.

 

Thom era o único dos assistentes de Rhyme que tinha sobrevivido a mais do que alguns meses a serviço do criminalista. Os outros haviam pedido as contas ou sido sumariamente despedidos.

 

- Ligue isso - ordenou Rhyme a um policial que estava empurrando para um canto da sala, em um carrinho, um velho cromatógrafo a gás.

 

- Não.

 

Thom cruzou os braços e assumiu posição em frente ao fio da extensão, O policial fitou-o e parou, indeciso, não querendo um choque com o teimoso jovem.

 

- Quando tivermos um ar-condicionado instalado e funcionando... aí ligaremos esse aparelho.

 

- Jesus Cristo! - exclamou Rhyme com uma careta.

 

Um dos aspectos mais frustrantes da vida do tetraplégico é a impossibilidade de dar vazão à raiva. Após o acidente, Rhyme compreendeu rapidamente como um ato tão simples quanto andar de um lado para o outro, cerrar os punhos - para não dizer atirar longe um ou dois objetos pesados (passatempo favorito de sua ex-esposa, Elaine)

 

- Dissipa a fúria.

 

- Se eu ficar zangado, poderia começar a ter espasmos ou contrações... - disse secamente.

 

- Nenhum dos quais o mataria... como faria a disreflexia - respondeu Thom com uma alegria de pequena vitória que enfureceu Rhyme ainda mais.

 

Cauteloso para não complicar as coisas, Bell disse:

 

- Me dêem cinco minutos.

 

Saiu da sala e os policiais militares continuaram a trazer equipamento em carrinhos. O cromatógrafo permaneceu desligado.

 

Lincoln Rhyme examinou o material. Especulou sobre o que sentiria ao fechar realmente os dedos em volta de um objeto. com o anular esquerdo, podia tocar e sentir uma leve sensação de pressão. Mas, agarrar com força uma coisa, sentir-lhe a textura, o peso, a temperatura... essas sensações eram inimagináveis.

 

Terry Dobyns, terapeuta do N YPD, o homem que viu à sua cabeceira quando acordou após o acidente na cena de crime que o deixou tetraplégico, lhe explicou todos os lugares-comuns sobre sofrimento. E lhe garantiu que ele os experimentaria - e sobreviveria a todos eles. Mas o que o médico não lhe explicou foi que certos estágios voltavam. Que a pessoa os hospedava como se fossem vírus latentes, que poderiam irromper a qualquer momento.

 

Nos últimos anos, voltara a experimentar desespero e privação.

 

Nesse momento, era consumido pela fúria. Ora, duas moças haviam sido seqüestradas e um assassino estava em fuga. com que ânsia gostaria de examinar rapidamente a cena do crime, percorrer a grade, pegar no chão provas vagas, olhar para elas através das caríssimas lentes de um microscópico múltiplo, dedilhar teclas de computadores e girar botões de instrumentos, andar de um lado para o outro enquanto tirava conclusões.

 

Queria começar a trabalhar sem ter que se preocupar se o maldito calor poderia matá-lo. Pensou novamente nas mãos mágicas da Dra.

 

Weaver, na operação.

 

- Você está calado - disse Thom desconfiado. - O que é que está aprontando?

 

- Não estou aprontando coisa nenhuma. Você poderia, por favor, conectar o cromatógrafo a gás e ligar o aparelho? Ele precisa de tempo para esquentar.

 

Thom hesitou por um momento, foi até a máquina e ligou-a. E arrumou o resto do equipamento em cima de uma mesa de compensado.

 

Steve Farr entrou nesse momento, trazendo um enorme ar-condicionado Carrier. O policial era aparentemente tão forte quanto alto e a única pista para o esforço que fazia era uma tonalidade avermelhada nas orelhas de abano.

 

- Roubei-o de Planejamento e Zoneamento - arquejou. - Nós não gostamos muito daqueles caras.

 

Bell ajudou-o a montar a unidade na janela e, um momento depois, o ar frio começou a encher a sala.

 

Uma figura apareceu na soleira da porta - na verdade, encheu-a. Um homem na casa dos 20 anos. Ombros maciços, testa proeminente. Um metro e 90, quase 150 quilos de peso. Durante um penoso momento, Rhyme pensou que ele talvez fosse um parente de Garrett e que tinha ido ali para ameaçá-los. Em voz aguda e baixa, porém, o recém-chegado disse apenas:

 

-Eu sou o Ben.

 

Os três fitaram-no, enquanto ele olhava constrangido para a cadeira de rodas e as pernas de Rhyme.

 

- Podemos ser úteis em alguma coisa? - perguntou Bell.

 

- Estou procurando o Sr. Bell.

 

- Eu sou o xerife Bell.

 

Ben olhava ainda, desajeitado, para as pernas de Rhyme, mas desviou logo a vista, pigarreou e engoliu em seco.

 

- Eu sou o sobrinho de Lucy Kerr.

 

Ele parecia mais perguntar do que dizer isso.

 

- Ah, meu assistente em trabalhos de criminalística! - exclamou Rhyme. - Excelente! Chegou justamente na hora.

 

Outro olhar às pernas, à cadeira de rodas.

 

- Tia Lucy não disse...

 

O que viria em seguida?, pensou Rhyme.

 

- ... não disse nada sobre criminalística - murmurou ele. - Eu sou apenas estudante de pós-graduação na UNC, em Avery. O que é que o senhor quis dizer com "justamente na hora", senhor?

 

Embora a pergunta fosse feita a Rhyme, Ben olhava para o xerife.

 

- Quero dizer: vá até aquela mesa. vou receber umas amostras a qualquer momento e você vai ter que me ajudar a analisá-las.

 

- Amostras... Tudo bem. Que tipo de peixe? - perguntou ele a Bell.

 

- Peixe? - respondeu Rhyme. - Peixe?

 

- O que quer que seja, senhor - disse baixinho o homenzarrão, ainda olhando para Bell. - Terei todo prazer em ajudar, mas sou obrigado a dizer que minha experiência é muito limitada.

 

- Nós não estamos falando sobre peixes. Estamos falando sobre amostras recolhidas em uma cena de crime. No que era que você estava pensando?

 

- Cena de crime? Eu não sabia - disse Ben ao xerife.

 

- Você pode falar comigo - repreendeu-o severamente Rhyme. Uma cor rosada tingiu repentinamente o rosto do homem e os olhos se arregalaram. A cabeça pareceu tremer quando ele se obrigou a olhar para Rhyme.

 

- Eu estava apenas... quero dizer, ele é o xerife.

 

- Mas o Lincoln aqui é quem está dirigindo o espetáculo - explicou Bell. - Ele é um cientista de Nova York, especializado em criminalística. E está nos dando uma grande ajuda.

 

Rhyme chegou à conclusão de que odiava esse homem, que se comportava como se ele fosse o mais estranho de todos os monstros de circo.

 

E parte dele odiou também Amélia Sachs - por ter inventado toda aquela manobra diversiva, levando-o para longe de suas células de tubarão e das mãos da Dra. Weaver.

 

- Bem, senhor...

 

- Lincoln será suficiente.

 

- A coisa é que estou me especializando em sócio-zoologia marinha.

 

- O que é...? - perguntou impaciente Rhyme, - Basicamente o comportamento de vida animal marinha.

 

Oh, que maravilha, pensou Rhyme. Não só arranjo como assistente um cara que tem fobia a aleijados, mas que é também psiquiatra de peixes.

 

- Isso não importa. O senhor é um cientista. Princípios são princípios. Procedimentos de pesquisa são procedimentos de pesquisa. Já usou um cromatógrafo a gás?

 

- Usei, sim senhor.

 

- E microscópios múltiplos e de comparação?

 

Uma inclinação de cabeça, mas não tão categórica como Rhyme teria desejado.

 

- Mas... - O rapaz olhou para Bell por um momento, antes de voltar obedientemente ao rosto de Rhyme. -... tia Lucy simplesmente me pediu para passar por aqui. Eu não sabia que, com isso, ela estava pensando que eu ia ajudar o senhor num caso... Não tenho realmente certeza... Quero dizer, tenho aulas...

 

- Ben - disse secamente Rhyme -, você vai ter que nos ajudar.

 

O xerife explicou:

 

- Garrett Hanlon.

 

Ben deixou o nome filtrar-se para algum lugar na sua cabeça maciça.

 

- Oh, o garoto envolvido naquele caso em Blackwater Landing.

 

O xerife explicou-lhe os seqüestros e o ataque de marimbondos sofrido por Ed Schaeffer.

 

- Pó, sinto muito por Ed - disse Ben. - Estive com ele uma vez na casa de tia Lucy...

 

- De modo que vamos precisar de você - recomeçou Rhyme, tentando trazer a conversa de volta ao que interessava.

 

- Nós não temos nenhuma pista do lugar para onde ele foi com Lydia - continuou o xerife. - E quase não temos tempo para salvar essas mulheres. E, como você pode ver... o Sr. Rhyme precisa de alguém para ajudá-lo.

 

- Ahn... - Olhar para a frente, mas não para Rhyme. - Acontece apenas que está se aproximando uma prova na faculdade. Estou na escola e tudo mais. É como eu disse.

 

Rhyme voltou a falar, em tom paciente:

 

- Nós não temos, realmente, nenhuma opção aqui, Ben. Garrett tem três horas de vantagem sobre nós e pode matar a qualquer momento uma ou outra das vítimas... se é que já não fez isso.

 

O zoólogo olhou em volta da sala à procura de uma tábua de salvação e não encontrou nenhuma.

 

- Acho que posso ficar aqui por algum tempo, senhor.

 

- Obrigado - disse Rhyme.

 

Soprou no canudo de controle e virou a cadeira para a mesa onde estavam os instrumentos. Parou e examinou-os. Olhou para Ben.

 

- Agora, se você puder simplesmente mudar meu cateter, vamos começar a trabalhar.

 

O grandalhão pareceu chocado. E disse em voz baixa:

 

- O senhor quer que eu...

 

- É uma piada - explicou Thom.

 

Ben, porém, não sorriu. Inclinou apenas contrafeito a cabeça e, com a graça de um bisão, foi até o cromatógrafo a gás e começou a estudar-lhe o painel de controle.

 

Sachs correu para o laboratório improvisado no prédio da Prefeitura, Jesse com ao seu lado, em passos rápidos.

 

Movendo-se mais descansada, Lucy Kerr juntou-se a eles um momento depois. Disse alô ao sobrinho Ben e apresentou o homenzarrão a Sachs e a Jesse. Amélia tinha nas mãos um punhado de sacolas de plástico.

 

- Esta é a prova material que consegui no quarto de Garrett disse, e mostrou outros sacos. - Estas aqui são de Blackwater Landing - a cena primária do crime.

 

Rhyme olhou para os sacos, mas com um pouco de decepção. Não só havia muito pouca prova material, mas estava preocupado com o que já lhe acontecera antes: ter que analisar pistas sem conhecer, de primeira mão, a área circundante. Peixe fora d'água, Ocorreu-lhe um pensamento.

 

- Ben, há quanto tempo você mora aqui? - perguntou. - A vida toda, senhor.

 

- Ótimo. Como é chamada esta área geral do estado?

 

Ben pigarreou:

 

- Acho que Planície Costeira Norte.

 

- Você tem alguns amigos geólogos que se especializem nessa área? Cartógrafos? Naturalistas?

 

- Não. Todos eles são biólogos marinhos.

 

- Rhyme - disse Sachs -, quando estávamos em Blackwater Landing, vi uma chata. Lembra-se, Jesse? Estava levando asfalto e papel alcatroado para uma fábrica perto daqui.

 

- Da companhia Henry Davett - disse Lucy.

 

- Eles teriam um geólogo no quadro de pessoal? - perguntou Sachs.

 

- Isso eu não sei - respondeu por ela Bell -, mas Davett é engenheiro e mora aqui há anos. Provavelmente, conhece a terra tão bem quanto ou melhor.

 

- Dê um telefonema para ele, sim?

 

- Agora mesmo - disse Bell, e saiu da sala. Voltou um momento depois: - Falei com Davett. A firma não tem geólogo, mas ele disse que acha que poderia ajudar. Chega aqui dentro de meia hora.

 

- Em seguida, o xerife perguntou: - Lincoln, como é que você quer dirigir a busca?

 

- Eu ficarei aqui com você e Ben. Vamos examinar a prova.

 

Quero um pequeno grupo de busca em Blackwater Landing, agora - no lugar onde Jesse viu Garrett e Lydia desaparecerem. Eu os orientarei da melhor forma que puder, dependendo do que essa prova revelar.

 

- Quem é que você quer no grupo?

 

- Sachs fica no comando - disse Rhyme. - Lucy vai com ela. Bell inclinou a cabeça. Rhyme notou que Lucy não teve reação às ordens sobre a cadeia de comando.

 

- Eu gostaria de me apresentar como voluntário - ofereceu-se rapidamente Jesse.

 

Bell olhou para Rhyme, que concordou com um aceno de cabeça. Em seguida, disse:

 

- Provavelmente, mais um.

 

- Quatro pessoas? Só isso? - perguntou Bell, franzindo as sobrancelhas. - Droga, eu poderia conseguir dezenas de voluntários.

 

- Não, quanto menos, melhor, num caso como este.

 

- Quem será o quarto? - perguntou Lucy. - Mason Germain? Rhyme olhou para a porta e não viu ninguém no outro lado.

 

Baixou a voz:

 

- Qual é a história de Mason? Ele tem uma história. Eu não gosto de policiais que têm história. Gosto de fichas limpas.

 

Bell deu de ombros.

 

- Esse homem teve uma vida difícil. Cresceu ao norte do Paquo - no lado errado. O pai dele fez o que pôde em uns dois negócios e, em seguida, passou a destilar bebida falsificada. Ao ser agarrado pelo pessoal da Receita, suicidou-se.

 

O próprio Mason subiu a partir do nada. Nós temos por aqui uma expressão que diz "pobre demais para pintar, orgulhoso demais para caiar". Mason é assim. Vive se queixando de ter que enfrentar toda sorte de obstáculos, de não conseguir o que quer na vida. É um homem ambicioso numa cidade que não tem lugar para ambição.

 

- E ele quer pegar Garrett a todo custo - observou Rhyme.

 

- Você está certo.

 

- Por quê?

 

- Mason simplesmente implorou para ser encarregado da investigação naquele caso que lhe falamos - o da moça que foi picada até a morte em Blackwater. Meg Blanchard. Verdade seja dita, eu acho que a vítima tinha alguma ligação com Mason. Talvez estivessem namorando. Talvez houvesse alguma outra coisa. Não sei. Mas ele queria porque queria pegar Garrett. Mas simplesmente não conseguiu reunir provas contra ele. Quando chegou a hora de o velho xerife aposentar-se, o prefeito usou esse fato contra ele. Fui escolhido para o cargo - embora ele seja mais velho do que eu e esteja há mais tempo na força policial. Rhyme sacudiu a cabeça.

 

- Nós não precisamos de cabeças quentes numa operação como esta. Escolha outra pessoa.

 

- Ned Spoto? - sugeriu Lucy.

 

Bell encolheu os ombros.

 

- Ele é um cara bom. Certo. Atira bem, mas não atira a menos que tenha certeza de que tem que fazer isso.

 

- Simplesmente, dê um jeito para que Mason fique longe da busca - disse Rhyme.

 

- Ele não vai gostar.

 

- Isso não importa - retrucou Rhyme. - Descubra alguma outra coisa para ele fazer. Alguma coisa que pareça importante.

 

- vou fazer o melhor que puder - respondeu Bell hesitante. Steve Farr enfiou a cabeça pela porta.

 

- Acabei de ligar para o hospital - disse. - Ed continua em estado grave.

 

- Ele disse alguma coisa? Sobre o mapa que viu?

 

- Nem uma única palavra. Continua em coma. Rhyme virou-se para Sachs:

 

- Muito bem... Mexa-se. Fique no local onde o rastro desapareceu em Blackwater Landing e espere instruções minhas.

 

Lucy olhava em dúvida para os sacos de prova.

 

- O senhor pensa, realmente, que essa é a maneira de descobrir onde estão as moças?

 

- Eu sei que é - respondeu Rhyme secamente.

 

- Isso, para mim - retrucou ela -, parece-se demais com coisa de mágica.

 

Rhyme soltou uma risada.

 

- E é exatamente isso. Mágica com baralhos, tirar coelhos de cartola. Mas, lembre-se de que ilusão baseia-se em... no quê, Ben?

 

O homenzarrão limpou a garganta, ficou vermelho e sacudiu a cabeça.

 

- Não estou entendendo bem o que o senhor está dizendo, senhor.

 

- Ilusão baseia-se em ciência. É isso. - Um olhar para Sachs. Falo com você logo que descobrir alguma coisa.

 

As duas mulheres e Jesse Corn deixaram a sala.

 

E assim, com as preciosas provas espalhadas à sua frente, o equipamento bem conhecido devidamente aquecido, resolvidos os problemas de política interna, Lincoln Rhyme deixou a cabeça cair no descanso da cadeira de rodas e olhou para os sacos entregues por Sachs - desejando, ou coagindo, ou talvez simplesmente deixando que a mente vagueasse por locais onde suas pernas não podiam ir, tocando o que suas mãos não podiam sentir.

 

Os policiais conversavam entre si nesse momento.

 

Mason Germain, braços cruzados sobre o peito, encostado na parede do corredor, ao lado da porta que levava aos cubículos dos agentes da polícia local, ouvia-lhes as vozes abafadas.

 

- Por que é que nós estamos simplesmente sentados aqui, sem fazer nada?

 

- Não, não, não... Você não soube? Jim enviou um grupo de busca.

 

- Foi mesmo? Não, não ouvi nada disso.

 

Droga, pensou Mason, que também nada tinha ouvido.

 

- Lucy, Ned e Jesse. E aquela policial de Washington.

 

- Não, de Nova York. Notou os cabelos dela?

 

- Não dou bola para os cabelos dela. Dou bola, sim, para descobrir onde estão Mary Beth e Lydia.

 

- Eu, também. Eu estava simplesmente dizendo...

 

O estômago de Mason contraiu-se ainda mais. Apenas quatro pessoas para prender o Menino-Inseto? Bell tinha pirado?

 

Subiu furioso o corredor, a caminho da sala do xerife e quase colidiu com o próprio Bell, que nesse momento saía da sala de depósito - onde aquele cara esquisito, o da cadeira de rodas, estava instalado. com um piscar de surpresa, Bell olhou para o veterano policial.

 

- Ei, Mason... eu ia procurar você.

 

Mas não estava procurando demais, ao que parece, pensou Mason.

 

- Eu gostaria que você fosse até a casa de Rich Culbeau.

 

- Culbeau? Pra quê?

 

- Sue McConnell está oferecendo uma recompensa, ou coisa assim, por Mary Beth, e ele quer ganhá-la. Não vamos querer que ele atrapalhe a busca. Quero que você o mantenha de olho. Se ele não estiver lá, espere simplesmente até que ele volte.

 

Mason nem mesmo se incomodou em responder a esse estranho pedido.

 

- Você enviou Lucy na busca de Garrett. E não me disse. Bell correu-o com os olhos de cima a baixo.

 

- Ela e dois outros estão indo para Blackwater Landing para ver se conseguem descobrir a pista de Garrett.

 

- Você deve saber que eu queria fazer parte do grupo de busca.

 

- Eu não posso enviar todo mundo. Culbeau já esteve hoje no Blackwater Landing. Não vou deixar que ele atrapalhe a busca.

 

- Ora, Jim. Não me venha com essa conversa fiada. Bell soltou um suspiro.

 

- Tudo bem. Quer a verdade? Já que você está com tanta tesão para pegar aquele rapaz, Mason, resolvi não mandá-lo. Não quero que sejam cometidos erros. Há vidas em jogo. Temos que pegá-lo, e pegá-lo logo.

 

- O que é minha intenção, Jim. Como você deve saber, ando querendo pegar aquele garoto há três anos. Não posso acreditar que você tenha simplesmente me excluído e entregue o caso àquele monstrengo lá dentro...

 

- Ei, pare com isso.

 

- Ora, vamos. Eu conheço Blackwater melhor do que Lucy. Eu morei lá, lembra-se?

 

Bell baixou o tom da voz:

 

- Você quer agarrá-lo demais, Mason. Isso poderia afetar sua capacidade de julgamento.

 

- Você pensou nisso? Ou foi ele?

 

Mason indicou com a cabeça a sala onde, nesse momento, ouviu o chiado sobrenatural da cadeira de rodas. E que o deixou tenso como se fosse uma broca de dentista. O fato de Bell ter pedido àquele aleijado que os ajudasse poderia causar todos os tipos de problemas, nos quais nem queria pensar.

 

- Ora, vamos, fatos são fatos. O mundo inteiro sabe o que você pensa de Garrett.

 

- E acontece que o mundo inteiro concorda comigo.

 

- O que eu lhe disse está valendo. Você vai ter que aceitar isso. O policial riu amargamente.

 

- De modo que, agora, vou servir de babá a um falsificador de bebida metido a valentão.

 

Bell olhou para um lugar às costas de Mason e chamou com um gesto outro policial.

 

- Ei, Frank...

 

O policial alto, gordo, veio vagarosamente ao encontro dos dois.

 

- Frank, você vai com Mason. Até a casa de Rich Culbeau.

 

- Entregar uma intimação? O que foi que ele fez agora?

 

- Não, nada de papelada. Mason lhe dá os detalhes. Se Culbeau não estiver em casa, simplesmente esperem por ele. E providenciem para que nem ele nem seus amiguinhos cheguem perto daquele grupo de busca. Entendeu isso, Mason?

 

O policial não respondeu. Simplesmente deu uma volta sobre si mesmo e afastou-se do chefe, que gritou:

 

- Isso é o melhor para todos.

 

Eu não penso assim, pensou Mason.

 

- Mason...

 

Mason, porém, nada respondeu e entrou na sala dos policiais. Frank seguiu-o um momento depois. Mason não deu atenção ao grupo de homens uniformizados que conversavam sobre o Menino-Inseto, a bonita Mary Beth e aquele incrível passe de Billy Stail naquele famoso jogo. Foi até seu cubículo e tirou uma chave do bolso. Abriu a gaveta da mesa e tirou um Speedloader extra, que carregou com seis cartuchos .357. Enfiou o Speedloader no coldre de couro e colocou-o ao cinto. Dirigiu-se para a porta do cubículo. Interrompeu a conversa na sala ao fazer um gesto para Nathan Groomer, um policial de cabelos ruivos, de uns 35 anos de idade:

 

- Groomer, vou ter uma conversa com Culbeau. Você vem comigo.

 

- Ora... - começou devagar Frank, segurando o chapéu que tinha ido buscar no seu cubículo -, eu pensei que Jim disse que queria que eu fosse com você.

 

- Eu quero Nathan - respondeu Mason.

 

- Rich Culbeau? - perguntou Nathan. - Ele e eu somos como óleo e água. Eu o prendi três vezes por ferimentos leves e machuqueio um bocado na última vez. Eu levaria Frank.

 

- Isso mesmo - concordou Frank. - O primo de Culbeau trabalha para o pai de minha mulher. Ele acha que sou parente. E vai me dar ouvidos.

 

Mason olhou friamente para Nathan.

 

- Eu quero você. Frank tentou outra vez:

 

-Mas Jim disse...

 

- E quero você agora.

 

- Ora, vamos, Mason - disse Nathan em voz seca -, não há razão para você ser grosseiro comigo.

 

Mason olhava nesse momento para um chamariz refinado na mesa de Nathan - um pato selvagem -, sua mais recente peça de escultura. Esse cara tem talento, pensou. Em seguida, disse:

 

- Está pronto?

 

Nathan suspirou e levantou-se.

 

- Mas o que é que eu vou dizer a Jim? - perguntou Frank.

 

Sem responder, Mason saiu da sala, Nathan a reboque, e dirigiu-se para seu carro-patrulha. Subiram. Mason sentiu o calor em volta, deu partida ao motor, e ligou o rádio ao máximo.

 

Depois de terem colocado os cintos de segurança, como o slogan pintado na lateral do carro instruía todos os cidadãos responsáveis a fazer, começou:

 

- Agora, escute bem. Eu...

 

- Ah, deixe disso, Mason, não fique assim. Eu estava lhe dizendo apenas o que fazia sentido. Quero dizer, no ano passado, Frank e Culbeau...

 

- Simplesmente, cale essa boca e ouça.

 

- Tudo bem, vou ouvir. Mas não pense que pode falar comigo dessa maneira... Muito bem, estou ouvindo. O que foi que Culbeau fez agora?

 

Mason, porém, não respondeu. Perguntou apenas:

 

- Onde está aquele seu Ruger?

 

- Meu rifle de caçar veados? O M77?

 

- Exato.

 

- Na minha caminhonete. Em casa.

 

- Você tem uma mira telescópica de alta tecnologia?

 

- Claro que tenho.

 

- Vamos pegá-lo.

 

Saíram do pátio de estacionamento e, logo que chegaram à rua principal, Mason ligou as luzes sinalizadoras - a luz azul e vermelha giratória na capota do carro. Manteve a sirene desligada. E saiu em alta velocidade da cidade.

 

Nathan pôs na boca um pouco de Red Indian, o que não podia fazer quando Jim estava por perto, mas Mason não se importava.

 

- O Ruger... Ah, então foi por isso que você me chamou. E não, Frank.

 

- Exatamente.

 

Nathan Groomer era o melhor atirador de fuzil do departamento e um dos melhores do condado de Paquenoke. Mason o vira certa vez derrubar um veado a 500 metros.

 

- Então depois de eu pegar o rifle a gente vai para a casa de Culbeau?

 

-Não.

 

- Para onde é que vamos? -Vamos caçar.

 

- Casas bonitas, estas por aqui - disse Amélia Sachs.

 

Ela e Lucy Kerr dirigiam-se para o norte, ao longo da Estrada do Canal, de volta a Blackwater Landing. Jesse com e Ned Spoto, um policial entroncado em fins da casa dos 30 anos, seguiam-nas numa segunda radiopatrulha, Lucy olhou para as casas debruçadas sobre o canal - as elegantes mansões estilo colonial moderno que Sachs tinha visto antes - e continuou calada.

 

Mais uma vez, Amélia ficou impressionada com o estado de abandono das casas e quintais, a ausência de crianças. Exatamente igual às ruas de Tanner's Comer.

 

Crianças, pensou novamente.

 

Em seguida, disse a si mesma: não vamos nos meter nisso. Lucy virou à direita na Estrada 112 e parou em seguida no acostamento - o local onde haviam estado meia hora antes, a crista que dava vista para a cena do crime. O carro de Jesse Corn parou imediatamente atrás. Os quatro desceram a ribanceira até a margem do rio e entraram na canoa. Jesse, assumindo novamente a posição de remador, murmurou:

 

- Irmão, para o norte do Paquo.

 

Disse isso com um tom sinistro que Sachs, no início, pensou que fosse uma piada, mas, em seguida, notou que nem ele nem os outros sorriam. No outro lado do rio, desceram e seguiram as pegadas de Garrett e Lydia até a tocaia de caça, onde Ed Schaeffer tinha sido picado, a uns 15 metros mata adentro, onde elas terminavam.

 

Seguindo instruções de Sachs, espalharam-se em leque, movendo-se em círculos cada vez maiores, procurando sinais da direção tomada por Garrett. Nada encontraram e voltaram ao local onde as pegadas haviam desaparecido.

 

- Você conhece aquela trilha? - perguntou Lucy a Jesse. - A que os falsificadores de bebida tomaram, depois que Frank Sturgis os descobriu aqui, no ano passado.

 

Jesse inclinou a cabeça e disse a Sachs:

 

- Ela fica a uns 35 metros ao norte. Por ali. - Apontou. - Garrett provavelmente a conhece e é a melhor maneira de cruzar a floresta e o pântano por aqui.

 

- Vamos dar uma olhada nela - disse Ned.

 

Sachs perguntou a si mesma qual a melhor maneira de controlar o conflito iminente e chegou à conclusão de que só havia uma: encará-lo de frente. Ser excessivamente delicada não ia funcionar, não com três contra ela (estando Jesse, achava, apenas amorosamente de seu lado).

 

- Temos que ficar aqui até receber instruções de Rhyme. Jesse manteve um leve sorriso nos lábios, provando o que era um pouquinho de lealdade dividida. Lucy sacudiu a cabeça.

 

- Garrett teve que tomar aquela trilha.

 

- Nós não sabemos com certeza - observou Sachs.

 

- A trilha, de fato, fica um pouco coberta por aqui - observou Jesse.

 

- Todo esse mato alto, carrapicho e azevinho - disse Ned. - E um bocado de plantas rasteiras, também. Se não seguirmos por aquela trilha, não há outra maneira de cruzar este terreno e ganhar tempo.

 

- Vamos ter que esperar - respondeu Sachs, pensando em um trecho do livro de criminalística de Rhyme, Pírysical Evidence:

 

A maioria das investigações sobre suspeitos em fuga é arruinada por cedermos ao impulso de agir nos movendo rapidamente e iniciar uma forte perseguição, quando, na verdade, na maioria das vezes, um exame paciente da prova indicará um caminho claro para a porta do suspeito e permitirá que ele seja detido de forma mais eficiente e segura.

 

- Acontece apenas que gente da cidade não entende realmente o que é a floresta. Se ignorar aquela trilha, isso vai reduzir seu tempo pela metade. Ele teve que segui-la - disse Lucy Kerr.

 

- Ele poderia ter refeito o caminho de volta à margem do rio observou Sachs. - Ele, quem sabe, tinha outro bote escondido mais para cima ou para baixo do rio.

 

- Isso é verdade - concordou Jesse, ganhando um olhar sombrio de Lucy.

 

Seguiu-se um longo momento de silêncio, os quatro imóveis enquanto marimbondos os picavam e eles suavam no calor implacável.

 

Por fim, Sachs disse simplesmente:

 

- Nós vamos esperar.

 

Selando a decisão, sentou-se no que era sem a menor dúvida a pedra mais incômoda de toda a floresta e, com fingido interesse, olhou atentamente um pica-pau que perfurava furiosamente o tronco do alto carvalho em frente.

 

- Cena primária em primeiro lugar - disse Rhyme em voz alta, dirigindo-se a Ben. - Blackwater.

 

Indicou com a cabeça o conjunto de provas sobre a mesa de compensado.

 

- Vamos examinar inicialmente o sapato de Garrett. O que ele perdeu quando seqüestrou Lydia.

 

Ben pegou o saco plástico, abriu-o e fez menção de tirar o conteúdo.

 

- Luvas! - ordenou Rhyme. - Use sempre luvas de látex quando manusear provas.

 

-Por causa de impressões digitais? - perguntouozoólogo, calçando-as rapidamente.

 

- Essa é uma das razões. A outra é contaminação. Não queremos confundir lugares onde você esteve com lugares onde o perpetrador esteve.

 

- Claro, certo. - Ben inclinou vivamente a maciça cabeça de cabelos cortados rentes, como se tivesse receio de esquecer a regra. Sacudiu e olhou dentro do sapato.

 

- Parece que há cascalho ou alguma outra coisa no lado de dentro.

 

- Droga, esqueci de dizer a Amélia que pedisse pranchas esterilizadas para exame. - Olhou em volta da sala. - Está vendo aquelas revistas ali? People?

 

Ben pegou a revista. Sacudiu a cabeça.

 

- É um número atrasado de três semanas.

 

- Eu não estou interessado nas matérias correntes sobre o que é a vida amorosa de Leonardo DiCaprio - rosnou Rhyme. - Tire os encartes sobre assinatura que estão dentro da revista... Você não odeia essas coisas? Mas são boas para nós... Saem bonitinhas e esterilizadas das impressoras, de modo que servem como uma miniprancha de exame.

 

Ben fez o que ele mandava e derramou a areia e as pedrinhas em cima do cartão.

 

- Ponha uma amostra no microscópio e deixe-me dar uma olhada. - Levou a cadeira de rodas para perto da mesa, mas a ocular ficava alguns centímetros alta demais para ele. - Droga.

 

Ben analisou o problema.

 

- Talvez eu possa segurar o microscópio, enquanto o senhor olha. Rhyme soltou uma leve risada.

 

- Ele pesa quase 15 quilos. Não, vamos ter que encontrar um... O zoólogo, porém, levantou o instrumento e, com os braços maciços, manteve-o firmemente imóvel. Rhyme, claro, não podia rolar os botões de focalização, mas viu o suficiente para formar uma idéia da prova.

 

- Lascas de calcário e areia. Isso teria vindo de Blackwater Landing?

 

- Hummm... - disse lentamente Ben - duvido muito. Lá existe principalmente lama e coisas assim.

 

- Passe uma amostra pelo cromatógrafo. Quero ver o que mais há aí.

 

Ben montou a amostra no aparelho e apertou o botão de teste.

 

A cromatografia é a ferramenta dos sonhos do criminalista. Inventado pouco depois da passagem do século por um botânico russo, embora pouco usado até a década de 1930, o aparelho analisa compostos, como alimentos, drogas, sangue e elementos vestigiais, e isola os seus componentes. Embora haja uma meia dúzia de variações do processo, o tipo mais comum usado em criminalística é o cromatógrafo a gás, que queima uma amostra da prova. Os vapores resultantes são em seguida separados para indicar as substâncias que compõem a amostra. Em laboratórios da Polícia, o cromatógrafo é em geral ligado a um espectrômetro de massa, que pode identificar especificamente muitas das substâncias.

 

O cromatógrafo a gás só funciona com materiais que podem ser vaporizados - queimados - a temperaturas relativamente baixas. Calcário não pega fogo, claro. Rhyme, porém, não estava interessado na rocha em si, mas, sim, nos materiais vestigiais que haviam aderido à areia e ao cascalho. Essa orientação limitaria de forma mais específica os locais onde Garrett estivera.

 

- Isso vai levar algum tempo - disse Rhyme. - Enquanto esperamos, vamos dar uma olhada nos sulcos do solado do sapato de Garrett. Eu lhe digo uma coisa, Ben, adoro esses sulcos. De solas de sapatos e da banda de rodagem de pneumáticos. Eles são como esponjas. Lembre-se disso.

 

- Sim, senhor. vou me lembrar, senhor.

 

- Tire um pouco da areia e vamos ver se ela vem de um lugar diferente de Blackwater Landing.

 

Bennn raspou a terra em cima de outro cartão de assinatura, que pôs diante dos olhos de Rhyme, que a examinou com todo cuidado. Como criminalista, conhecia bem a importância da areia. Ela se prende a roupas, deixa rastros, como as migalhas de pão de João e Maria, de ida e volta à casa do elemento e liga o criminoso à cena do crime como se estivessem acorrentados um ao outro. Há aproximadamente 1.100 tonalidades de solo e se uma amostra da cena tem cor idêntica à areia do quintal do perpetrador, as probabilidades são boas de que ele tenha estado no local do crime. A semelhança na composição de solos pode reforçar também a conexão. Locard, o grande criminalista francês, formulou um princípio, que lhe tomou o nome, sustentando que, em todos os crimes, há sempre alguma transferência entre o perpetrador e a vítima ou a cena do crime. Rhyme descobriu que, em seguida ao sangue em casos de homicídio ou assalto com intenção dolosa, areia é a substância transferida com maior freqüência.

 

O problema da areia como prova, porém, é que ela é comum demais. A fim de ter algum valor probatório, uma porção de areia cuja origem possa ser a do criminoso precisa ser diferente da areia encontrada comumente na cena do crime.

 

O primeiro passo na análise consiste em examinar o solo existente na cena - tirar uma amostra - e compará-lo com a que o criminalista pensa que veio com o perpetrador.

 

Rhyme explicou esses detalhes a Ben. O homenzarrão pegou um saco de areia, que Sachs marcou como Amostra de solo - Blackwater Landing, juntamente com a data e a hora da coleta. Mas encontrou também uma anotação manuscrita, mas não na letra de Sachs. Coletado pelo policial].Com. Rhyme imaginou o jovem policial correndo para fazer o que ela mandava. Ben verteu um pouco da areia num terceiro cartão e colocou-a ao lado da que havia tirado dos sulcos da sola de sapato de Garrett.

 

- Como é que vamos comparar as duas? - perguntou, olhando para os instrumentos.

 

- Mas...

 

- Simplesmente, olhe para elas. Veja se a cor da amostra desconhecida difere da cor da conhecida.

 

- Como é que eu faço isso?

 

Rhyme obrigou-se a responder em tom calmo:

 

- Você tem que olhar para elas. Ben olhou fixamente para um montinho e, em seguida, para o outro. De volta. Mais uma vez. Vamos, vamos... não é tão difícil assim. Rhyme fazia um grande esforço para conservar a paciência. O que, para ele, era uma das coisas mais difíceis do mundo.

 

- O que é que você está vendo? - perguntou. - Difere a areia das duas cenas?

 

- Não posso dizer, com certeza, senhor. Acho que uma é mais clara.

 

- Coloque-as no microscópio comparador.

 

Ben montou as amostras na placa do microscópio e olhou pelas oculares.

 

- Não tenho certeza. É difícil dizer. Acho... talvez haja uma diferença.

 

- Deixe-me ver.

 

Mais uma vez, os músculos maciços seguraram com firmeza o microscópio, enquanto Rhyme usava as oculares.

 

- Definitivamente diferentes do conhecido - disse. - Cor mais clara. E contém mais cristal. Mais granito e argila e tipos diferentes de vegetação. De modo que ela não veio de Blackwater Landing... Se tivermos sorte, vieram da furna onde ele se esconde.

 

Um leve sorriso aflorou nos lábios de Ben, o primeiro até então visto por Rhyme.

 

- O quê?

 

- Bem, isso é o que chamamos da caverna que uma moréia-comum, um tipo de enguia, escolhe como lar...

 

O sorriso do jovem desapareceu quando o olhar de Rhyme lhe disse que aquele nem era o lugar nem a hora de brincadeiras. O criminalista voltou a falar:

 

- Depois de obter os resultados sobre o calcário no cromatógrafo, passe a areia que tirou dos sulcos das solas.

 

- Sim, senhor.

 

Um momento depois, a tela do computador, acoplada ao cromatógrafo/espectrômetro, iluminou-se e apareceram linhas que lembravam montanhas e vales. Em seguida, uma janela surgiu de repente na tela e o criminalista manobrou a cadeira para mais perto.

 

Chocou-se com a mesa e a Storm Arrow desviou-se com um movimento brusco para a esquerda, sacudindo Rhyme.

 

- Merda - disse ele.

 

Os olhos de Ben esbugalharam-se, alarmados.

 

- O senhor está bem, senhor?

 

- Estou, estou, estou - murmurou Rhyme. - O que é que essa droga de mesa está fazendo aí? Nós não precisamos dela.

 

- Vou tirá-la do caminho - disse apressado Ben, agarrando o pesado móvel com uma única mão, como se fosse feito de cortiça, e empurrando-o para um canto da sala.

 

- Desculpe, eu devia ter pensado nisso antes.

 

Rhyme ignorou o constrangido ato de contrição do zoólogo e examinou a tela.

 

- Grandes volumes de nitratos, fosfatos e amônia.

 

Essa descoberta era sumamente perturbadora, mas Rhyme preferiu nada dizer, por ora. Queria saber que substâncias havia na areia que Ben extraiu do solado do sapato. Logo depois, os resultados apareceram também na tela.

 

Rhyme suspirou e disse:

 

- Mais nitratos, mais amônia... um bocado de ambos. Altas concentrações, mais uma vez. E também mais fosfatos. Detergente, também. E alguma outra coisa... O que diabo é isso?

 

- Onde? - perguntou Ben, inclinando-se para a tela.

 

- No fundo. O banco de dados identificou-o como canfeno. Já ouviu falar nisso?

 

- Não, senhor.

 

- Garrett andou por cima disso, o que quer que seja. - Olhou para o saco da prova. - Agora, o que é que temos mais? Esse lenço de papel branco encontrado por Sachs...

 

Ben pegou o saco e aproximou-o de Rhyme. Havia muito sangue no lenço. Olhou para a outra amostra de lenço - o Kleenex recolhido no quarto de Garrett.

 

- Iguais?

 

- Parecem iguais - disse Ben. - Ambos brancos, do mesmo tamanho.

 

- Entregue-os a Jim Bell. Diga a ele que quero uma análise de DNA. Da variedade comum.

 

- Ah... hum.... o que quer dizer isso, senhor?

 

- O exame de DNA mais comum, a reação de cadeia de polimerase. Não temos tempo para um RFLP - isto é, a versão de um em um bilhão. Quero simplesmente saber se é sangue de Billy Stail ou de alguma outra pessoa. Diga a ele para tirar amostras do cadáver de Billy Stail e de Mary Beth e de Lydia.

 

- Amostras? Do quê?

 

Mais uma vez, Rhyme esforçou-se para continuar paciente.

 

- De material genético. Qualquer tecido do corpo de Billy. No caso das mulheres, obter uma amostra de cabelo seria o mais fácil - desde que o fio conserve o bulbo. Diga a ele para mandar um policial pegar uma escova ou pente nos banheiros de Mary Beth e Lydia e levá-los ao laboratório que fizer o teste com o Kleenex.

 

Ben pegou o saco e deixou a sala. Voltou um momento depois.

 

- Teremos o resultado dentro de uma ou duas horas, senhor. Vão enviá-lo ao centro médico de Avery, e não à Polícia Estadual. O policial Bell, quero dizer, o xerife Bell achou que assim seria mais fácil.

 

- Uma hora? - repetiu Rhyme, fazendo uma careta. - Uma demora grande demais.

 

E não pôde deixar de perguntar a si mesmo se essa demora não poderia ser suficiente para impedir que eles encontrassem o Menino-Inseto, antes que ele matasse Lydia ou Mary Beth.

 

Ben conservava os poderosos braços caídos ao lado do corpo.

 

- Hummm, eu poderia ligar para ele. Dizer como é importante, mas... O senhor quer que eu faça isso?

 

- Tudo OK, Ben. Vamos continuar o trabalho aqui. Thom, hora de nossos gráficos.

 

O ajudante começou a escrever no quadro-negro, enquanto Rhyme ditava.

 

ENCONTRADO NA CENA PRIMÁRIA DO CRIME • BLACKWATER LANDING

 

Kleenex Manchado de Sangue: Poeira de Calcário Nitratos Fosfato Amônia Detergente Canfeno

 

Rhyme olhou para o quadro-negro. Mais perguntas do que respostas...

 

Peixe fora d'água...

 

Os olhos caíram no montinho de terra que Ben tinha raspado dos sapatos do rapaz. Nesse momento, ocorreu-lhe uma idéia:

 

- Jim! - gritou, a voz trovejando e sacudindo Thom e Ben. Jim! Onde, diabo, está ele? Jim!!!

 

- O quê? - O xerife entrou correndo na sala, alarmado. - Algum problema?

 

- Quantas pessoas trabalham aqui no prédio?

 

- Não sei. Talvez umas vinte.

 

- E elas vivem em lugares diferentes do condado?

 

- Mais do que isso. Algumas vêm de Pasquotank, Alberoarle 6 Chowan.

 

- Quero todas elas aqui, agora.

 

- O quê?

 

- Todos os que trabalham aqui no prédio. Quero amostras de solo dos sapatos delas... Espere: e dos tapetes de piso dos carros.

 

- Solo...

 

- Solo! Areia! Lama! Você sabe o que é. E quero isso agora! Bell deixou a sala. Rhyme virou-se para Ben:

 

- Está vendo aquela prateleira? Ali?

 

O zoólogo foi pesadamente até a mesa, sobre a qual havia uma longa prateleira com encaixes para certo número de tubos de ensaio.

 

- Aquilo é um analisador de gradiente de densidade. Dá o perfil da gravidade específica de materiais como areia.

 

Ben inclinou a cabeça.

 

- Ouvi falar nisso. Mas nunca o usei.

 

- É fácil. Esses vidros ali... - Rhyme olhou para dois vidros escuros, um deles rotulado tetra e, o outro, etanol. - Você vai misturar os dois como eu disser e encher os tubos de ensaio até quase a boca.

 

- OK. O que é que isso vai fazer?

 

- Comece a misturar. Eu lhe digo quando terminarmos.

 

Ben misturou os produtos químicos de acordo com as instruções de Rhyme e, em seguida, encheu 20 tubos de ensaio com níveis alternados de diferentes líquidos coloridos - o etanol e o tetrabromoetano.

 

- Ponha um pouco da amostra de solo do sapato de Garrett no tubo à esquerda. O solo vai separar-se e nos dar um perfil. Vamos obter amostras de pessoas que trabalham aqui no prédio e residem em áreas diferentes do condado. Se uma delas combinar com a de Garrett, isso significa que a areia que ele juntou nos pés pode ser de uma área próxima.

 

Bell chegou com o primeiro empregado. Rhyme explicou o que ia fazer. O xerife teve um sorriso de admiração.

 

- Isso é uma idéia e tanto, Lincoln. O primo Roland sabia o que dizia quando lhe fez todos aqueles elogios.

 

A meia hora gasta nesse exercício, porém, foi inútil. Nenhuma das amostras fornecidas por essas pessoas combinava com a areia recolhida nas estrias do sapato de Garrett. Rhyme fechou a cara quando a última amostra de areia se depositou no fundo do tubo.

 

-Droga!

 

- Mas foi uma boa tentativa - observou Bell. Um desperdício de tempo precioso.

 

- Devo jogar fora as amostras? - perguntou Ben.

 

- Não. Jamais jogue amostras no lixo, antes de registrá-las - disse firme, Rhyme. Mas lembrou a si mesmo para não ser áspero demais nas instruções: aquele homenzarrão estava ali apenas graças a laços de família. - Thom, dê uma ajudinha aqui. Sachs pediu emprestada uma câmera Polaroid do Estado. Ela tem que estar em algum lugar por aqui. Descubra-a e tire close-up de todos os tubos de ensaio. Marque cada um deles com o nome do empregado nas costas da foto.

 

O ajudante encontrou a câmera e começou a trabalhar.

 

- Agora, vamos analisar o que Sachs encontrou na casa dos pais adotivos de Garrett. As calças nesse saco... Veja se há alguma coisa nas bainhas.

 

com todo cuidado, Ben abriu os sacos e examinou as calças.

 

- Sim, senhor. Algumas agulhas de pinheiro.

 

- Ótimo. Caíram dos ramos ou foram cortadas?

 

- Cortadas, pelo que parece.

 

- Excelente. Isso significa que ele fez alguma coisa com elas. Cortou-as com uma finalidade. E isso pode ter alguma coisa a ver com o crime. Não sabemos ainda o que é, mas desconfio que seja uma camuflagem.

 

- Sinto cheiro de gambá - disse Ben, cheirando as calças.

 

- Foi isso o que Amélia disse - observou Rhyme. - Mas isso não nos ajuda em nada. Não ainda, de qualquer maneira.

 

- Por que não? - perguntou o zoólogo.

 

- Porque não há maneira de ligar um animal selvagem a uma localização específica. Um gambá estacionário seria útil. Um que se move, não. Vamos procurar vestígios nas roupas. Corte uns dois pedaços das calças e passe-os pelo cromatógrafo.

 

Enquanto esperavam pelos resultados, Rhyme examinou o resto da prova recolhida no quarto do rapaz.

 

- Deixe eu dar uma olhada nessa caderneta de notas, Thom. O ajudante virou as páginas. Continham apenas desenhos toscos de insetos. Sacudiu a cabeça. Nada de útil ali.

 

- Aqueles outros livros?

 

Rhyme confirmou com um gesto de cabeça, indicando os quatro livros de capa dura encontrados no quarto. O primeiro - The Miniature World (O Mundo em Miniatura) tinha sido tão lido e relido que estava caindo aos pedaços. Rhyme notou que trechos eram destacados com círculos, sublinhados ou marcados com asteriscos. Mas nenhuma das passagens forneceu qualquer pista sobre os lugares onde o rapaz poderia ter estado. Pareciam ser coisas triviais sobre insetos. Disse a Thom para guardá-los.

 

Examinou em seguida o que Garrett escondeu na jarra dos marimbondos: dinheiro, fotos de Mary Beth e de sua família. A velha chave. A linha de pesca.

 

O dinheiro era apenas uma pilha amassada de notas de cinco e de dez, e de dólares de prata. Não havia, notou Rhyme, anotações úteis às margens das notas (onde numerosos criminosos escrevem mensagens ou planos. Uma maneira rápida de livrar-se de instruções incriminadoras a companheiros de crime consiste em comprar alguma coisa e desfazer-se da nota). Mandou Ben passar a PoliLight uma fonte alternativa de luz - sobre o dinheiro e descobriu que as notas e os dólares de prata continham uma centena de impressões parciais diferentes, número este grande demais para fornecer pistas úteis. Não havia etiqueta de preço na moldura para pregar foto nem na linha de pesca e, portanto, nenhuma maneira de levá-los às lojas que Garrett poderia ter visitado.

 

- Linha de pesca para agüentar um quilo e meio - comentou Rhyme, olhando para o carretel. - Para peixe pequeno, não, Ben?

 

- Seria difícil pegar uma anchova com isso, senhor.

 

Os resultados dos vestígios encontrados nas calças apareceram na tela. Rhyme leu-os em voz alta:

 

- Querosene, mais amônia, mais nitratos e novamente aquele canfeno. Outra anotação no quadro-negro, se puder fazer o favor, Thom.

 

E ditou:

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • QUARTO DE GARRETT

 

Cheiro de Gambá Agulhas de Pinheiro, Cortadas Desenhos de Insetos ;

 

Fotos de Mary Beth e da Família Livros sobre Insetos Linha de Pesca Dinheiro Chave Desconhecida Querosene Amônia Nitratos Canfeno Olhou para as anotações e, finalmente, disse:

 

- Thom, dê um telefonema. Para Mel Cooper.

 

O ajudante pegou o telefone e discou, de memória.

 

Cooper, que trabalhava no laboratório de criminalística do N YPD, tinha provavelmente metade do peso de Ben. Embora parecesse um tímido funcionário burocrático, era um dos melhores técnicos de laboratório de crimininalística do país.

 

- Pode ligar o microfone, Thom?

 

Um botão foi apertado e, um momento depois, a voz macia de Cooper disse:

 

- Olá, Lincoln. Alguma coisa me diz que você não está no hospital.

 

- Como foi que você descobriu, Mel?

 

- Não foi preciso muito raciocínio dedutivo. A identificação do telefone que chamou diz Prédio Público do Condado de Paquenoke. Está atrasando sua operação?

 

- Não. Apenas ajudando na solução de um caso aqui. Escute, Mel, eu não disponho de muito tempo e preciso de umas informações sobre uma substância chamada canfeno.

 

Já ouviu falar nela?

 

- Não. Mas, espere aí. vou consultar o banco de dados. Rhyme ouviu o som de um tamborilar frenético em teclado de computador. Cooper era também o digitador mais rápido que Rhyme conhecia.

 

- OK, lá vamos nós... Interessante...

 

- Eu não quero esse interessante, Mel. Preciso de fatos.

 

- É um terpeno - carbono e hidrogênio. Derivado de plantas. Antigamente era ingrediente de pesticidas, mas foi proibido em começos da década de 1980. Foi usado principalmente em fins de 1800. Usado como combustível para lampiões. Era o que havia de mais moderno naquela época... substituía o óleo de baleia. Naquele tempo era tão comum como gás natural. Você está tentando descobrir o paradeiro de algum sujeito desconhecido?

 

- Ele não é desconhecido, Mel. É extremamente bem conhecido. Nós simplesmente não conseguimos encontrá-lo. Velhos lampiões? Vestígios de canfeno, portanto, significam provavelmente que ele está escondido em algum lugar construído no século XIX.

 

- É provável. Mas há outra possibilidade. Diz aqui que o único uso atual de canfeno é em fragrâncias.

 

- Que tipo?

 

- Perfumes, loção após barba e cosméticos, principalmente. Rhyme pensou por um momento na informação.

 

- Qual a percentagem de canfeno em uma fragrância pronta e acabada? - perguntou.

 

- Apenas traços. Partes por milheiro.

 

Rhyme sempre disse a suas equipes de especialistas que nunca tivessem medo de fazer deduções ousadas na análise de provas. Ainda assim, estava dolorosamente consciente do curto tempo que as mulheres poderiam ainda ter de vida e achou que tinha apenas os recursos suficientes para seguir uma única dessas pistas potenciais.

 

- Desta vez vamos ter que arriscar - resolveu. - Vamos supor que o canfeno é de velhos lampiões, e não de fragrâncias, e agir nessa conformidade. Agora, escute aqui, Mel, vou lhe enviar também a fotocópia de uma chave. vou precisar que você descubra a origem dela.

 

- Isso é fácil. De carro? - Não sei.

 

- Casa?

 

- Também não sei. -Nova?

 

- Nenhuma pista.

 

Em dúvida, Cooper comentou:

 

- Talvez seja menos fácil do que eu pensei. Mas envie-a e eu vejo o que posso fazer.

 

Ao desligar, Rhyme ordenou a Ben que tirasse uma fotocópia de ambos os lados da chave e a enviasse a Cooper, via fax. Em seguida, tentou falar com Sachs pelo rádio.

 

Não estava funcionando. Chamou-a pelo telefone celular.

 

-Alô?

 

- Sachs, sou eu.

 

- Algum problema com o rádio? - perguntou ela.

 

- Não há recepção.

 

- Aonde devemos ir, Rhyme? Estamos do outro lado do rio, mas perdemos a pista. E, para ser franca - a voz dela desceu para um murmúrio - os nativos aqui estão inquietos.

 

Lucy quer me cozinhar para o jantar.

 

- Já tenho os resultados das análises básicas, mas não sei o que fazer com todos os dados. Estou à espera de um empregado da fábrica de Blackwater Landing, Henry Davett. Ele jdeve chegar a qualquer minuto. Mas, escute, Sachs, há outra coisa que preciso lhe dizer. Encontrei traços significativos de amônia e nitratos nas roupas de Garrett e no pé de sapato que ele perdeu.

 

- Bomba? - perguntou Amélia, o tom surdo da voz revelando desalento.

 

- É o que parece. E aquela linha que você encontrou é fraca demais para uma pesca séria. Acho que ele a está usando como fio para disparar algum dispositivo. Fique de olho em armadilhas. Se vir algum troço que se parece com uma pista, simplesmente se lembre que pode estar ligada a alguma coisa.

 

- Farei isso, Rhyme.

 

- Fique onde está. Envio instruções logo que puder.

 

Garrett e Lydia haviam percorrido mais cinco ou seis quilômetros.

 

Sol alto nesse momento, talvez já meio-dia, ou perto disso, e o dia estava quente como um cano de escape. A água de garrafa que tinha bebido na pedreira já havia sido rapidamente eliminada de seu corpo e ela se sentia tonta de calor e sede.

 

Como se sentisse o que ela pensava, Garrett disse:

 

- Vamos chegar logo lá. É mais frio. E eu tenho mais água. Nesse ponto o terreno era descampado, floresta com clareiras, pântanos, nada de casas ou estradas. Numerosas trilhas se bifurcavam dali em várias direções. Seria quase impossível a quem os estivesse seguindo descobrir que caminho haviam tomado. As trilhas formavam um verdadeiro labirinto.

 

Garrett tomou uma delas, rochas à esquerda e uma queda de uns sete metros à direita. Andaram cerca de 800 metros por esse caminho até que ele parou e olhou para trás. Quando pareceu convencido de que não havia ninguém seguindo-os, entrou nas moitas e voltou com um fio de nylon - parecendo uma linha de pesca - que passou de um lado a outro da trilha, pouco acima do nível do chão. Era quase impossível vê-lo. Amarrou-o a uma vara, que por seu turno mantinha em pé uma garrafa de água de três ou quatro galões, cheia com um líquido leitoso. Havia algum resíduo do material nos lados da garrafa e ela sentiu um leve cheiro - amônia. Ficou horrorizada. Seria uma bomba?, pensou. Como atendente em enfermarias de primeiros socorros, havia tratado de vários adolescentes que se machucaram fabricando explosivos caseiros. Lembrou-se da pele enegrecida dos feridos, rompida pela detonação.

 

- Você não pode fazer isso - disse, baixinho.

 

- Eu não quero ouvir merda nenhuma de você. - Estalou as unhas. - vou terminar aqui e depois vamos pra casa.

 

Pracasa.

 

Lydia olhou, embotada, a grande garrafa enquanto ele a cobria com galhos.

 

Mais uma vez, Garrett puxou-a pela trilha. A despeito do calor cada vez maior, ele se movia nesse momento com maior rapidez e Lydia tinha que fazer um esforço imenso para acompanhá-lo. Garrett parecia ficar mais sujo a cada minuto, coberto de poeira e fragmentos de folhas mortas. Era como se ele, lentamente, estivesse se transformando em um inseto a cada passo que dava para mais longe da civilização. E lembrou-se de uma história que devia ter lido na escola, mas que nunca terminou.

 

- Lá em cima - disse Garrett, indicando um morro com a cabeça.

 

- Lá há um lugar onde vamos ficar. E pela manhã, seguiremos para o mar.

 

O uniforme de Lydia estava empapado de suor. Abertos os dois botões superiores da blusa branca, o sutiã aparecia. O rapaz continuava a olhar para a pele arredondada de seus seios. Mas ela pouco se importava. Naquele momento, só queria sair dali, chegar a uma sombra refrescante, pouco importando para onde ele a estava levando.

 

Quinze minutos depois, saíram da mata e chegaram a uma clareira. À frente, avistaram um velho moinho de cereais, cercado por caniços, junça e erva silvestre alta, ao lado de um riacho, que tinha sido na maior parte engolido pelo pântano. Uma ala do moinho havia sido destruída por um incêndio. Entre os escombros, os restos de uma chaminé calcinada pelo fogo - a ruína geralmente denominada de "Monumento Sherman" - lembravam o general da União que queimou casas e prédios ao longo de parte bem grande de sua marcha para o mar, deixando atrás uma paisagem de chaminés enegrecidas.

 

Garrett levou-a para a parte fronteira do moinho, que não havia sido tocada pelo fogo. Empurrou-a para dentro, fechou a pesada porta de carvalho a aferrolhou-a.

 

Durante um longo momento, ficou à escuta. Quando se convenceu de que ninguém os seguia, entregou-lhe outra garrafa d'água. Lydia lutou com a ânsia de engolir a garrafa inteira. Encheu a boca, deixou a água descansar ali durante um momento, sentindo a picada na boca seca e, em seguida, engoliu-a lentamente.

 

Ao terminar, ele tomou a garrafa, soltou-lhe as mãos na frente e voltou a prendê-las com fita nas costas.

 

- Você tem que fazer isso? - perguntou ela, furiosa.

 

Ele virou os olhos para cima, um comentário mudo à tolice da pergunta. Arriou-a lentamente no chão.

 

- Fique sentada aí e mantenha a boca fechada.

 

Sentou-se encostado na parede oposta e fechou os olhos. Lydia inclinou a cabeça para a janela, à escuta de sons de helicópteros, barcos no pântano ou uivos dos cães de grupos de busca. Mas ouviu apenas o som da respiração de Garrett, que, em seu desespero, achou que era, na realidade, o som do próprio Deus, abandonando-a.

 

Uma figura apareceu à porta, acompanhando Jim Bell.

 

Devia estar na casa dos 50 anos, os cabelos começavam a rarear e tinha um rosto redondo e distinto. Trazia um blazer azul passado sobre um braço e usava camisa branca perfeitamente passada e bem engomada, embora escurecida por marcas de suor sob as axilas. Uma gravata de listras era mantida em posição com um pregador horizontal.

 

Rhyme pensou que poderia ser Henry Davett. Os olhos do criminalista eram o único aspecto de seu corpo físico que sobrevivera intacto ao acidente - tinha visão perfeita - e leu o monograma no pregador de gravata do visitante a uma distância de uns três metros: WWJD.

 

William? Walter? Wayne?

 

Não tinha a menor pista sobre quem poderia ser.

 

O homem fitou-o, apertou os olhos como se o avaliasse e inclinou a cabeça. Jim Bell tomou a palavra:

 

- Henry, eu gostaria de lhe apresentar Lincol Rhyme.

 

Portanto, aquilo não era um monograma. O homem era mesmo Davett. Rhyme respondeu com outra inclinação de cabeça e concluiu que o pregador pertencera provavelmente ao pai dele. William Ward Jonathan Davett.

 

O recém-chegado entrou na sala, e seus olhos rápidos inspecionaram o equipamento ali instalado.

 

- Ah, o senhor conhece cromatógrafos? - perguntou Rhyme, observando-lhe nos olhos um brilho de reconhecimento.

 

- Meu Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento tem uns dois deles. Mas, esse modelo... - sacudiu a cabeça com ar crítico nem é mais fabricado. Por que o está usando?

 

- Questão de orçamento estadual, Henry - explicou Bell.

 

- Eu envio outro para cá.

 

- Não é necessário.

 

- Isso é lixo - respondeu secamente o homem. - Trago um novo para cá dentro de 20 minutos.

 

- Conseguir provas não é problema - disse Rhyme. - O problema está em interpretá-las. É esse o motivo pelo qual posso precisar de sua ajuda. Este moço é Ben Kerr, meu assistente.

 

Os dois trocaram um aperto de mãos. Ben pareceu aliviado por haver outra pessoa fisicamente inteira na sala.

 

- Sente-se, Henry - disse Bell, empurrando para ele uma cadeira de escritório.

 

O homem sentou-se, inclinando-se um pouco para a frente e alisando com cuidado a gravata. O gesto, a postura, as minúsculas pintas dos olhos confiantes consolidaram a impressão de Rhyme, que pensou: encantador, esperto... e um empresário duro como pedra.

 

E, mais uma vez, ficou curioso sobre o monograma WWJD. Não tinha certeza de haver solucionado o enigma.

 

- Este caso é sobre as duas mulheres que foram seqüestradas, não?

 

Bell confirmou com um aceno de cabeça e disse:

 

- Ninguém está realmente tendo coragem de dizer o que, no íntimo, todos pensam... - Olhou para Rhyme e Ben. - ... Estamos pensando que Garrett já pode ter estuprado e assassinado Mary Beth e jogado o corpo em algum lugar. Vinte e quatro horas...

 

O xerife continuou:

 

- - Mas temos ainda uma chance de salvar Lydia, temos essa esperança. E temos que deter Garrett antes que ele pegue mais alguém.

 

Zangado, o empresário disse:

 

- E Billy, que pena! Ouvi dizer que ele estava sendo apenas um bom samaritano, tentando salvar Mary Beth e acabou sendo morto.

 

- Garrett esmagou-lhe a cabeça com uma pá. Coisa muito feia.

 

- De modo que o tempo é muito valioso. O que é que eu posso fazer? - Davett virou-se para Rhyme. - O senhor falou em interpretar alguma coisa?

 

- Temos algumas pistas sobre locais onde Garrett esteve e para onde pode estar indo com Lydia. Tenho a esperança de que o senhor conheça alguma coisa sobre a área por aqui e possa nos ajudar.

 

Davett inclinou a cabeça.

 

- Eu conheço muito bem a configuração do terreno por aqui. Possuo diplomas de geologia e engenharia química. Morei também em Tanner's Comer durante toda minha vida e conheço bem o condado de Paquenoke.

 

Rhyme indicou com a cabeça os gráficos com as provas recolhidas até aquele momento.

 

- O senhor poderia examiná-las e nos dizer o que pensa? Estamos tentando ligar essas pistas a um local específico.

 

E Bell acrescentou:

 

- Será provavelmente algum lugar onde eles poderão chegar andando. Garrett não gosta de carros. E não dirige.

 

Davett pôs os óculos e atirou a cabeça para trás, enquanto lia o quadro-negro.

 

ENCONTRADO NA CENA PRIMÁRIA DO CRIME BLACKWATER LANDING

 

Kleenex manchado de Sangue Poeira de Calcário Nitratos / Fosfatos Amônia Detergente Canfeno V

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • QUARTO DE GARRETT

 

Cheiro de Gambá Agulhas de Pinheiro, Cortadas Desenhos de Insetos Fotos de Mary Beth e da Família Linha de Pesca Dinheiro -

 

Chave Desconhecida Querosene Amônia Nitratos Canfeno

 

Davett leu a lista de alto a baixo, sem pressa, os olhos se estreitando várias vezes. Fez uma pequena carranca.

 

- Nitratos e amônia? O senhor sabe o que isso poderia significar? Rhyme inclinou a cabeça.

 

- Acho que ele deixou pelo caminho artefatos explosivos para deter o grupo de busca. Eu os avisei para tomar cuidado.

 

Fazendo uma careta, Davett voltou a examinar o gráfico.

 

- O canfeno... Acho que era usado em velhos lampiões. Como nos lampiões que queimavam querosene.

 

- Isso mesmo. Por isso mesmo, pensamos que o lugar para onde levou Mary Beth é antigo. Do século XIX.

 

- Deve haver milhares de velhas casas, estábulos e choupanas por aqui... O que mais? Pó de calcário? Esses dados não vão limitar muito as coisas. Um imenso veio de calcário atravessa todo o condado de Paquenoke. Antigamente, era uma grande fonte de renda por aqui. - Levantou-se e passou o dedo diagonalmente pelo mapa, a partir da borda sul do Grande Pântano da Desolação até o sudoeste, do Local L-4 para o C-14- - Podemos encontrar calcário em qualquer lugar ao longo dessa linha.

 

Isso não vai adiantar muito. Mas - deu um passo para trás e cruzou os braços sobre o peito -, a descoberta de fosfato é útil. A Carolina do Norte é grande produtora de fosfato, embora o material não seja extraído por aqui. As minas ficam mais ao sul. Desse modo, combinado com o detergente, eu diria que ele esteve próximo de água poluída.

 

- Droga - disse Jim Bell -, isso significa apenas que ele esteve no Paquenoke.

 

- Não - respondeu Davett -, o Paquo é tão limpo como água de poço. É escuro, mas alimentado pelo Pântano da Desolação e o Lago Drummond.

 

- Oh, a água mágica! - exclamou o xerife.

 

- O que quer dizer isso? - perguntou Rhyme. Davett explicou:

 

- Alguns de nós, velhos moradores, chamam a água do Pântano da Desolação de água mágica. Ela está cheia de ácido tânico, produzido pelo apodrecimento de ciprestes e de pés de junípero. O ácido mata bactérias e a água permanece fresca durante longo tempo... Antes da refrigeração, era usada como água para beber nos navios veleiros.

 

O povo pensava que ela possuía propriedades mágicas.

 

- De modo que - disse Rhyme, que nunca se sentia muito interessado por mitos locais, a menos que pudessem ajudá-lo na solução de casos -, se não é o Paquenoke, onde os fostatos o colocariam?

 

Davett olhou para Bell.

 

- Onde foi que aconteceu o seqüestro mais recente?

 

- No mesmo lugar que o de Mary Beth. Blackwater Landing. Bell tocou o mapa e, em seguida, correu o dedo até a Localização H-9. - Ele cruzou o rio, foi até uma tocaia de caça, mais ou menos aqui, e em seguida andou uns 2,5 quilômetros na direção norte. Nesse ponto, o grupo de busca perdeu a pista. Eles estão à espera de instruções.

 

- Nesse caso, não há dúvida - disse Davett com uma confiança encorajadora. Moveu o dedo na direção leste. - Eles cruzaram o Stone Creek aqui. Está vendo? Nesse lugar, parte das cachoeiras parece espuma em cima de cerveja, portanto há muito detergente e fosfato na água. Elas começam perto da Hobeth Falls ao norte e aí ocorre um enorme espraiamento. Nessa cidade ninguém sabe de nada sobre planejamento e zoneamento.

 

- Ótimo - disse Rhyme. - Agora que ele cruzou o riacho, alguma idéia sobre o caminho que ele seguiria?

 

Davett consultou mais uma vez o mapa.

 

- Se vocês acharam agulhas de pinheiro, acho que ele foi por aqui. - Bateu no mapa nos locais 1-5 e J-8. - Há pinheiros por toda parte na Carolina do Norte, mas, por aqui, o que existe mais são florestas de carvalho, cedro antigo, ciprestes e árvores produtoras de látex. A única grande floresta de pinheiros que conheço fica a nordeste. Aqui. No caminho para o Grande Pântano da Desolação.

 

- Davett olhou durante mais um momento para o mapa e sacudiu a cabeça. - Sinto muito, mas não há muito mais que eu possa dizer. Quantos grupos de busca enviou?

 

- Um - respondeu Rhyme.

 

- O quê? - Davett virou-se para ele, franzindo as sobrancelhas.

 

- Apenas um? O senhor está brincando.

 

- Não - retrucou Bell, parecendo tomar uma atitude defensiva diante do cerrado interrogatório daquele homem.

 

- Bem, quantas pessoas?

 

- Quatro policiais - respondeu Bell. Davett disse, em tom de chacota:

 

- Isso é loucura. - Gesticulou na direção do mapa. - Vocês têm aqui centenas de quilômetros quadrados. Este é território de Garrett Hanlon... o Menino-Inseto. Eles simplesmente mora ao norte do Paquo. E pode manobrar melhor do que vocês a qualquer minuto.

 

O xerife pigarreou.

 

- O Sr. Rhyme pensa que é melhor não usar gente demais.

 

- Não se pode usar gente demais numa situação como esta - disse Davett, dirigindo-se a Rhyme. - O senhor devia convocar 50 homens, equipá-los com fuzis e ordenar que passem um pente fino pela mata até encontrá-lo. O senhor está fazendo tudo errado.

 

Rhyme notou que Ben ouvia com uma expressão mortificada o discurso de Davett. O zoólogo, naturalmente, acharia que pessoas deviam adotar o método de luva de pelica quando discutiam com aleijados. O criminalista, porém, respondeu calmamente:

 

- Uma grande caçada serviria apenas para fazer com que Garrett matasse Lydia e em seguida se escondesse.

 

- Não - retrucou enfático Davett. - Iria assustá-lo o bastante para que ele a soltasse. Neste momento, tenho uns 40 homens trabalhando no turno da fábrica. Bem, uma dúzia de mulheres. Não poderíamos envolvê-las nisso. Mas os homens... Deixem que eu os lance na busca. Arranjaremos armas. Nós os soltaremos por toda parte nas imediações do Stone Creek.

 

Rhyme podia muito bem imaginar o que 30 ou 40 caçadores de recompensas amadores fariam em uma busca desse tipo. Sacudiu a cabeça.

 

- Não, essa não é a maneira de administrar a situação.

 

Os olhos de ambos se encontraram e, durante um momento, houve um pesado silêncio na sala. Davett, finalmente, deu de ombros e foi o primeiro a desviar a vista, embora o movimento não fosse uma concessão de que Rhyme poderia ter razão. Era justamente o contrário: um protesto enfático e declaração de que, ignorando-lhe os conselhos, Rhyme e Bell estavam assumindo toda responsabilidade.

 

- Henry - disse Bell -, eu concordei que o Sr. Rhyme dirigiria o espetáculo. Temos muito que agradecer a ele.

 

Parte do comentário do xerife dirigia-se ao próprio Rhyme - pedindo implicitamente desculpa pela conduta de Davett.

 

Por seu lado, porém, Rhyme estava muito contente por estar na parte passiva da grossura de Davett. Embora fosse um reconhecimento chocante para ele, Rhyme, que não acreditava absolutamente em augúrios, achou que a presença daquele homem, naquele momento, tinha sido um sinal - que a cirurgia correria bem e que traria algum efeito benéfico para seu estado. Achou isso por causa da curta troca de palavras momentos antes - na qual um duro homem de negócios o olhou nos olhos e lhe disse que ele estava redondamente enganado. Davett nem mesmo notou-lhe o estado. Tudo que viu foram seus atos, suas decisões, sua atitude. Aquele corpo machucado nenhuma importância tinha para Davett. As mãos mágicas da Dra. Weaver o levariam um passo mais perto da situação em que a maioria das pessoas o trataria da mesma maneira.

 

- vou rezar por essas moças - disse o empresário. Em seguida, voltando-se para Rhyme: - vou rezar também pelo senhor.

 

O olhar durou um pouco mais do que aconteceria normalmente com palavras de despedida, e Rhyme teve a impressão de que a última promessa tinha sido sincera - literalmente sincera. O empresário dirigiu-se para a porta.

 

- Henry é um pouco teimoso - comentou Bell, quando Davett saiu.

 

- Ele tem interesses aqui, certo? - perguntou Rhyme.

 

- A moça que morreu no ano passado, com as picadas dos marimbondos. Meg Blanchard...

 

Picada. 137 vezes. Rhyme inclinou a cabeça. Bell continuou:

 

- Ela trabalhava para a companhia de Henry. Freqüentava também a mesma igreja a que ele e a família pertencem. Ele não é diferente da maioria das pessoas por aqui., acha que a cidade ficaria melhor sem Garrett Hanlon. Ele simplesmente tende a pensar que sua maneira de resolver as coisas é a melhor.

 

Igreja... oração... De repente, Rhyme compreendeu uma coisa.

 

Disse a Bell:

 

- O pregador de gravata de Davett. Aquele J significa Jesus?

 

Bell soltou uma risada.

 

- Você acertou em cheio. Henry, sem sequer piscar, levaria à falência um concorrente, mas é diácono na igreja. Assiste ao serviço três vezes por semana, ou por aí.

 

Uma das razões por que gostaria de enviar um exército para pegar Garrett é pensar que ele é provavelmente pagão.

 

Rhyme, porém, não conseguia ainda saber o que significava o resto das iniciais.

 

- Desisto. O que é que significam as outras letras WWJD]?

 

- Significam "O Que Faria Jesus?" [What Would Jesus Do]. É isso o que todos esses bons cristãos por aqui perguntam a si mesmos quando têm que tomar uma decisão difícil.

 

Eu mesmo não tenho a menor pista sobre o que Ele faria num caso como este. Mas digo o que vou fazer: vou ligar para Lucy e sua amiga e pô-los na pista de Garrett.

 

- Stone Creek? - repetiu Jesse Corn quando Sachs lhe retransmitiu a mensagem de Rhyme à equipe de busca. O policial apontou:

 

- Uns 800 metros naquela direção.

 

Começou a abrir caminho pelo matagal, seguido por Lucy e Amelia. Ned Spoto fechava a retaguarda, seus olhos claros vasculhando nervosos o terreno em volta.

 

Cinco minutos depois, saíram do emaranhado de vegetação e tomaram uma trilha bem freqüentada. Jesse chamou-os com um gesto, indicando a direção, para a direita - para o leste.

 

- A trilha é essa? - perguntou Sachs a Lucy. - A que você pensou que ele seguiu?

 

- Exato - respondeu Lucy.

 

- Você teve razão - reconheceu tranqüilamente Sachs, mas apenas para si mesma. - Mas nós ainda tínhamos que esperar.

 

- Não, você tinha que mostrar quem manda aqui - retrucou bruscamente Lucy.

 

Ela tem toda razão, pensou Sachs e, em seguida, disse:

 

- Mas agora sabemos que provavelmente há uma bomba na trilha. Nós não sabíamos isso antes.

 

- Eu, de qualquer maneira, estaria de olho vivo em armadilhas. Lucy calou-se e continuou a percorrer a trilha, os olhos fixos no chão, provando que ela, na verdade, teria feito isso antes.

 

Dez minutos depois, chegaram ao Stone Creek, de águas leitosas e espumantes com bolhas de poluentes. Na margem, encontraram dois conjuntos de pegadas - pegadas de mocassins pequenos, mas profundas, provavelmente deixadas por uma mulher gorda. Lydia, sem dúvida. E a marca de pés descalços de homem. Garrett, aparentemente, tinha jogado fora o sapato restante.

 

- Vamos cruzar aqui - disse Jesse. - Conheço o bosque de pinheiros mencionado pelo Sr. Rhyme. Este é o caminho mais curto para chegar lá.

 

Sachs fez menção de entrar na água.

 

- Pare! - gritou bruscamente Jesse.

 

Sachs imobilizou-se, a mão na arma, tomando posição agachada.

 

- O que é que está havendo? - perguntou.

 

Lucy e Ned, sorrindo zombeteiramente da reação dela, estavam sentados nesse momento em cima de pedras, tirando os sapatos e as meias.

 

- Se ficar com as meias molhadas e continuar a andar - disse Lucy -, vai precisar de meia dúzia de ataduras antes de percorrer 100 metros. Calos d'água.

 

- Você não sabe muita coisa sobre excursões a pé, sabe? - perguntou Ned.

 

Jesse Corn endereçou um riso sem graça ao colega.

 

- Isso acontece porque ela mora na cidade grande, Ned. Da mesma maneira que eu não acho que você seja um especialista em metrô e arranha-céus.

 

Sachs ignorou a zombaria e a corajosa defesa, e tirou as botas curtas e as meias pretas, curtas, pelos tornozelos. E enrolou para cima as bocas do jeans.

 

Começaram a cruzar o regato. A água, fria como gelo, produzia uma sensação maravilhosa. Amélia sentiu pena quando terminou a pequena travessia do riacho.

 

Na outra margem, esperaram alguns minutos até que os pés secaram e calçaram em seguida as meias e sapatos. Deram uma busca na margem até reencontrar as pegadas.

 

O grupo seguiu-as até o bosque, mas, à medida que o solo se tornava mais emaranhado com a vegetação rasteira, acabaram por perdê-las.

 

- Os pinheiros ficam naquela direção - disse Jesse, apontando para o nordeste. - Para eles, faria mais sentido cruzar diretamente aquele bosque.

 

Seguindo essa orientação geral, andaram por mais 20 minutos em fila indiana, vasculhando o chão à procura de fios detonadores. Em seguida, os carvalhos, azevinho e junça cederam lugar a juníperos e cicuta. À frente, a uns 400 metros de distância, estendia-se uma comprida linha de pinheiros. Mas não viram mais sinais das pegadas do seqüestrador e da vítima - nenhuma pista sobre o ponto onde eles haviam penetrado na floresta.

 

- Danado de grande o bosque - disse baixinho Lucy. - Como é que vamos encontrar a trilha por lá?

 

- Vamos nos espalhar - sugeriu Ned. Ele, também, parecia desanimado com o emaranhado da vegetação à frente. - Se ele deixou uma bomba por aí vai ser o diabo conseguir enxergá-la.

 

Iam justamente se espalhar em leque quando Sachs ergueu a cabeça.

 

- Esperem. Fiquem aqui - ordenou e começou a andar lentamente pela vegetação rasteira, os olhos no chão, procurando armadilhas. A apenas 15 metros dos policiais, em um grupo de árvores florescentes, agora secas e cercadas por pétalas podres, encontrou as pegadas de Garrett e Lydia na terra seca, apontando para uma trilha clara que mergulhava na floresta.

 

- Eles vieram por aqui - gritou. - Sigam minhas pegadas. Já examinei o chão à procura de armadilhas.

 

Um momento depois, os três policiais estavam a seu lado.

 

- Como foi que as encontrou? - perguntou orgulhoso Jesse Corn.

 

- Que cheiro você está sentindo? - perguntou ela.

 

- De gambá - respondeu Ned.

 

- Garrett tinha cheiro de gambá na calça que encontrei na casa dele - explicou Sachs. - Achei que ele havia passado por aqui antes. Simplesmente segui o cheiro até aqui.

 

Jesse soltou uma risada e disse a Ned:

 

- O que é que você acha disso para uma garota da cidade? Ned rolou os olhos para cima e começaram a seguir juntos a trilha, movendo-se devagar na direção da linha de pinheiros.

 

Várias vezes durante a caminhada passaram por grandes áreas estéreis - de arbustos e árvores mortas. Sachs sentiu-se tensa enquanto cruzavam essa área - uma vez que o grupo de busca estava inteiramente exposto a um possível ataque. A meio caminho através da segunda clareira, e após outro grande susto quando um animal ou ave produziu ruídos nas moitas em volta da terra nua, Sachs ligou o telefone celular.

 

- Rhyme, você está aí?

 

- O que é? Encontrou alguma coisa?

 

- Descobrimos o rastro deles. Mas, diga uma coisa: alguma prova indica que Garrett andou dando tiros?

 

- Não - respondeu ele. - Por quê?

 

- Por aqui na floresta há uns grandes trechos descampados, estéreis... Chuva ácida ou poluição mataram todas as plantas. Temos cobertura zero. É um lugar perfeito para uma emboscada.

 

- Não vejo quaisquer sinais compatíveis com armas de fogo. Encontramos nitratos, mas se foram tirados de munição, teríamos encontrados grânulos queimados de pólvora, solvente de limpeza, graxa, cordite, fulminato de mercúrio. Não há nada disso. - O que significa apenas que ele não dispara uma arma há algum tempo - observou Amélia.

 

- Certo.

 

Amélia desligou Olhando cautelosos em volta, nervosos, caminharam mais vários quilômetros, envolvidos pelo cheio de terebintina que saturava o ar. Tornados sonolentos pelo calor e o zumbido dos insetos, continuaram a seguir a trilha tomada por Garrett e Lydia, embora não vissem mais as pegadas. Sachs perguntou a si mesma se não haviam perdido...

 

- Parem! - gritou Lucy Kerr, caindo de joelhos.

 

Ned e Jesse ficaram imóveis. Sachs sacou a pistola em uma fração de segundo. Em seguida, viu o que Lucy estava apontando - um brilho prateado de um um lado a outro da trilha.

 

- Poxa - disse Ned -, como foi que você viu isso? Está praticamente invisível.

 

Lucy continuou calada. Rastejou para o lado da trilha, seguindo o fio. Suavemente, afastou as moitas. Folhas quentes, secas, farfaIharam, enquanto as levantava, uma após outra.

 

- Quer que eu chame o esquadrão antibomba, de Elizabeth City? - perguntou Jesse.

 

- Psiu - ordenou Lucy.

 

As mãos cuidadosas da policial afastaram as folhas, um milímetro de cada vez.

 

Durante o tempo todo, Sachs prendia a respiração. Em um caso recente, tinha sido vítima de uma bomba contrapessoal. Não sofreu ferimentos graves, mas lembrava-se de que, em uma fração de segundo, o som ensurdecedor, o calor, a onda de choque e os detritos haviam-na envolvido inteiramente. Não queria que aquilo acontecesse de novo. Sabia também que muitas bombas de fabricação caseira, com uso de canos, eram enchidas com esferas de rolamentos - quando não com moedinhas - que funcionavam como estilhaços mortais. Garrett faria isso também? Lembrou-se da foto dele: os olhos descorados, profundos. Lembrou-se das jarras de insetos. Lembrou-se da morte daquela mulher em Blackwater Landing - picada até morrer. Lembrou-se de Ed Schaeífer, em estado de coma produzido por veneno de marimbondo. Sim, concluiu, Garrett prepararia, sem a menor dúvida, a armadilha mais perversa que pudesse imaginar.

 

Encolheu-se toda, enquanto Lucy tirava a última folha da pilha.

 

A policial soltou um suspiro e sentou-se no chão.

 

- é uma aranha - murmurou.

 

Sachs viu-a, também. Não era uma linha de pesca, afinal de contas, apenas o longo fio de uma teia de aranha. Todos eles se levantaram.

 

- Aranha - disse Ned, rindo. Jesse soltou também uma risadinha.

 

Na voz deles, porém, não havia humor e, como Sachs notou, ao voltar a percorrer a trilha, todos eles levantaram bem altos os pés quando passaram por cima do fio brilhante.

 

Lincoln Rhyme, cabeça recostada, olhava entre frestas das pálpebras para o quadro-negro.

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • QUARTO DE GARRETT

 

Cheiro de Gambá Agulhas de Pinheiro, Cortadas Desenhos de Insetos Fotos de Mary Beth e da Família Livros sobre Insetos .

 

Linha de Pesca Dinheiro Chave Desconhecida Querosene Amônia Nitratos Canfeno

 

Suspirou, zangado. Sentiu-se inteiramente impotente. A prova lhe parecia inexplicável. Focalizou os olhos numa delas: Livros sobre Insetos.

 

Lançou um olhar a Ben.

 

- Você é estudante, não?

 

- Sou, sim, senhor.

 

- Lê muito, acho.

 

- É assim que passo a maior parte do tempo... se não estou fazendo pesquisa de campo.

 

Rhyme olhou para a lombada dos livros trazidos por Amélia do quarto de Garrett. E disse em tom pensativo:

 

- O que é que os livros favoritos de uma pessoa dizem sobre ela? À parte o que é óbvio... que estão interessadas no assunto, quero dizer.

 

- Como assim, senhor?

 

- Se uma pessoa tem principalmente livros de auto-ajuda, esse fato diz uma coisa sobre ela. Se lê principalmente romances, o fato diz outra. Todos esses livros de Garrett são guias, não-ficção. Que conclusão você tira disso?

 

- Eu não saberia responder, senhor. - O homenzarrão olhou mais uma vez para as pernas de Rhyme... involuntariamente, ao que pareceu - e em seguida voltou a vista para o gráfico das provas. E murmurou: - Eu não consigo realmente entender pessoas. Para mim, animais fazem muito mais sentido. Eles são muito mais sociais, mais previsíveis, mais coerentes do que pessoas. E também um bocado mais inteligentes.

 

Mas, nesse momento, percebeu que estava divagando e, com um rubor forte, parou de falar.

 

Rhyme lançou outro olhar aos livros.

 

- Thom, você poderia me trazer o dispositivo de virar páginas?

 

Ligado a uma UCA - unidade de controle ambiental - que podia operar com seu único dedo sadio, o dispositivo usava uma pega de borracha para virar as páginas.

 

- Está na van, não?

 

- Acho que sim.

 

- Tomara que o tenha trazido. Eu lhe disse para trazê-lo.

 

- Eu disse que acho que está - respondeu o assistente, sem perder a calma. - vou ver se está lá.

 

E deixou a sala.

 

E também um bocado mais inteligentes...

 

Thom voltou um momento depois, trazendo o dispositivo.

 

- Ben - disse Rhyme -, pegue aquele livro no alto, sim?

 

- Aquele? - perguntou o homem, olhando para os livros. Era o Field Guide to Insects of North Carolina (Guia dos Insetos da Carolina do Norte).

 

- Ponha-o na armação. - O tom de Rhyme tornou-se mais urgente. - Se puder ter esta bondade.

 

O assistente mostrou a Ben como montar o livro na armação e, em seguida, ligou diferentes conjuntos de fios à UCA sob a mão esquerda de Rhyme.

 

O criminalista leu a primeira página e nada encontrou de útil. Em seguida, ordenou mentalmente ao dedo que se movesse. Um impulso partiu do cérebro, desceu em aspiral através de um minúsculo axônio sobrevivente na medula espinhal, passando por um milhão de companheiros mortos, correu pelo braço de Rhyme e chegou à mão.

 

O dedo mexeu-se uma fração de centímetro.

 

O dedo da própria armação deslizou para um lado. A página foi virada.

 

Seguiram a pista através da floresta, envolvidos pelo cheiro oleoso dos pinheiros e pela fragrância mais adocicada de uma das plantas, que Lucy Kerr reconheceu como uva-de-frango.

 

Enquanto olhava para a trilha em frente, procurando fios detonadores de armadilhas, Lucy lembrou-se de repente de que há muito tempo não viam nenhuma pegada de Garrett ou de Lydia. Deu uma pancada no pescoço para matar algum inseto, mas descobriu que era apenas um fio de suor, descendo e provocando coceira. Sentia-se suja nesse dia. Em outras ocasiões - à noite e em dias de folga -, adorava ficar ao ar livre, no jardim. Logo que voltava para casa ao fim do expediente na delegacia, vestia bermudas desbotadas, camiseta e tênis de corrida azuis e ia trabalhar em um dos três lotes que cercava a casa colonial verde-clara, que Bud, sentindo uma sensação de culpa, prontificara-se a transferir imediatamente para seu nome como parte da divisão da propriedade comum durante o divórcio. Nesse local, cuidava de suas violetas, orquídeas silvestres e enxertadas, lírios-campânula amarelados. Removia a terra, ajudava as plantas a subir as treliças, regava-as e lhes sussurrava palavras de estímulo, como se estivesse falando com os filhos que tivera tanta certeza que um dia teria com Bud.

 

Às vezes, após uma investigação que a levou ao interior da Carolina entregando intimações ou perguntando por que a Honda ou a Toyota escondidas na garagem de alguém pertencia a outra pessoa, Lucy notava uma planta nova e, cumprido seu dever de policial naquele dia, arrancava-a do chão e levava-a para casa, como se fosse um achado precioso. Tinha adotado dessa maneira um selode-salomão. E também um tinhorão. E também um belo arbusto de cor índigo que, cuidado com amor, chegou a um metro e oitenta de altura.

 

Os olhos baixaram nesse momento para o local por onde estava passando na laboriosa busca: um sabugueiro, azevinho-de-montanha, relva-penacho. Passaram por uma bela enotera, cujas pétalas se abrem à noite, algumas tifas e arroz silvestre - mais altas do que qualquer um no grupo e com folhas afiadas como navalhas. E havia também a raiz-índia, uma erva parasita, que Lucy Kerr conhecia também por outro nome: erva-do-câncer. Olhou rapidamente para ela e em seguida voltou a vista para a trilha.

 

O caminho levava a um morro íngreme - uma série de rochas de uns 7 metros de altura. Lucy escalou sem dificuldade a encosta, mas, no alto, parou. Pensando. Não, havia alguma coisa errada ali.

 

Ao seu lado, Amélia Sachs continuou a subir até o platô no cume e parou. Um momento depois, Jesse e Ned apareceram. Jesse respirava com dificuldade. Ned, porém, nadador e amante da vida ao ar livre, estava levando numa boa aquela caminhada toda.

 

- O que é? - perguntou Amélia, notando as sobrancelhas de Lucy contraídas.

 

- Isto não faz nenhum sentido: Garrett ter escolhido este caminho.

 

- Estamos seguindo a trilha, como o Sr. Rhyme disse para fazer - lembrou Jesse. - É o único trecho de pinheiros que há por aqui. As pegadas de Garrett vinham nesta direção.

 

- Vinham. Mas não as vimos mais, já há algum tempo.

 

- Por que é que você acha que ele não veio por este caminho?

 

- perguntou Amélia.

 

- Veja só o que está crescendo por aqui. - Apontou. - Cada vez mais, plantas de pântano. E agora que estamos nesta altura, podemos ver melhor o terreno... Olhe só

 

como está ficando pantanoso.

 

Vamos, pense nisso, Jesse. Aonde este caminho vai levar Garrett? Estamos indo diretamente para a Grande Desolação.

 

- O que é isso? - perguntou Amélia, dirigindo-se a Lucy. - A Grande Desolação?

 

- Um pântano enorme, um dos maiores da Costa Leste - explicou Ned.

 

Lucy continuou:

 

- Não há nenhum meio de alguém se esconder por aqui, nenhuma casa, nenhuma estrada. O melhor que ele poderia fazer seria arrastar-se por aqui até a Virgínia, mas isso levaria dias.

 

- E nesta época do ano - acrescentou Ned Spoto -, as indústrias não fabricam repelente de insetos em quantidade suficiente para evitar que a gente seja comida viva.

 

Para nada dizer das cobras.

 

- Há algum lugar por aqui onde eles poderiam esconder-se? Cavernas? Casas?

 

Sachs olhou em volta.

 

- Nenhuma caverna - disse Ned. - Talvez alguns velhos prédios. Mas o que aconteceu foi que o espelho d'água mudou. O pântano está avançando para aqui e muitas velhas casas e cabanas foram cobertas pelas águas. Lucy tem razão. Se Garrett veio por aqui, ele está indo para um beco sem saída.

 

- Acho que devemos voltar - disse Lucy.

 

Ela pensava que Amélia ia ter um ataque de nervos ao ouvir a sugestão. Ela, porém, simplesmente tirou do cinto o telefone celular e fez uma chamada.

 

- Nós estamos na floresta de pinheiros, Rhyme - disse. - Há uma trilha, mas não conseguimos encontrar sinal nenhum de que Garrett tenha vindo por aqui. Lucy diz que não faz o menor sentido ele ter vindo por estas bandas. E diz ainda que daqui para o nordeste só existe principalmente pântano. Não há lugar aonde ele possa ir.

 

- Acho que ele se dirigiu para o oeste. Ou talvez para o sul, de volta, cruzando o rio - sugeriu Lucy.

 

- Desta maneira - sugeriu Jesse -, ele poderia chegar a Millerton. Lucy inclinou a cabeça, concordando.

 

- Umas duas grandes fábricas que havia por aqui fecharam quando as companhias transferiram seus negócios para o México. Bancos executaram as hipotecas de um bocado de propriedades. Há dezenas de casas abandonadas onde ele poderia esconder-se.

 

- Ou a sudoeste - sugeriu Jesse. - Eu iria nessa direção... seguiria a Estrada 112 ou os trilhos da estrada de ferro. Há também um grande número de velhas casas e estábulos por esse caminho.

 

Amélia comunicou esses dados a Rhyme.

 

Ou como Lucy Kerr pensou (e ficou calada): Que homem estranho é ele, tão horrivelmene aleijado e, ainda assim, tão supremamente confiante.

 

A policial de Nova York ficou à escuta durante algum tempo e, em seguida, desligou.

 

- Lincoln diz que devemos continuar. A prova não sugere absolutamente que ele tenha seguido nas direções que vocês falaram.

 

- Nem é provável que existam pinheiros a oeste e ao sul - disse secamente Lucy.

 

A policial ruiva sacudiu a cabeça e resolveu:

 

- Isso pode ser lógico, mas não é o que a prova mostra. Vamos continuar.

 

Ned e Jesse olharam as duas mulheres. Lucy deu uma espiada no rosto de Jesse e viu aquela paixonite ridícula. Obviamente, não ia receber nenhum apoio dele. Insistiu:

 

- Não. Acho que devemos voltar, ver se podemos descobrir onde ele abandonou a trilha.

 

Amélia baixou a cabeça e fitou Lucy bem dentro dos olhos.

 

- vou lhe dizer o que vamos fazer... Podemos ligar para Jim Bell, se você quiser.

 

Era um lembrete de que Jim dissera que aquele maldito Lincoln Rhyme era quem estava dirigindo a operação e que ek pusera Amélia à frente daquele grupo de busca.

 

Isso era loucura - um homem e uma mulher que provavelmente jamais haviam estado no Estado do Alcatrão antes, dois indivíduos que nada sabiam sobre as pessoas ou a geografia da área, dizendo a velhos residentes como fazer seu trabalho.

 

Lucy Kerr, porém, sabia que havia se comprometido a realizar um trabalho em que, como no Exército, o indivíduo tinha que obedecer à cadeia de comando.

 

- Tudo bem - murmurou furiosa. - Mas, para que conste, sou contra seguir por esse caminho. Isso não faz o menor sentido.

 

Virou-se e começou a seguir a trilha, deixando os outros para trás. Os passos ficaram subitamente inaudíveis quando ela passou a andar sobre o grosso lençol de agulhas de pinheiros que cobriam o caminho.

 

O telefone de Amélia tocou e ela diminuiu o passo, enquanto recebia a chamada.

 

Lucy seguiu rapidamente à frente, por cima do grosso colchão de agulhas, tentando controlar a raiva. Não havia maneira de Garrett Hanlon ter seguido por ali. Era uma perda de tempo. Deviam ter trazido cães. Deviam telefonar para Elizabeth City e pedir ajuda de helicópteros. Deviam...

 

Nesse momento, o mundo se transformou em uma mancha indistinta, começou a tropeçar e cair para a frente, soltando um curto grito, as mãos estendidas para aparar a queda.

 

-Jesus!

 

Lucy caiu como uma pedra sobre a trilha, todo o ar sumiu de seus pulmões e agulhas de pinheiro picaram-lhe as palmas das mãos.

 

- Não se mova - gritou Amélia Sachs, levantando-se após agarrar a policial.

 

- Por que, com todos os diabos, você está fazendo isso? - arquejou Lucy, as mãos queimando com o impacto no chão.

 

- Não se mova. Ned e Jesse, vocês também, não.

 

Ned e Jesse ficaram imóveis, mãos nas armas, olhando em volta, sem saber bem o que estava acontecendo.

 

Amélia, contorcendo-se de dor quando se levantou, afastou-se cautelosamente das agulhas de pinheiro, encontrou um galho comprido caído na floresta e pegou-o. Moveu-se vagarosamente, enfiando o galho no chão.

 

A dois passos de Lucy, no lugar onde ela estivera prestes a pisar, o galho desapareceu em uma pilha de galhos de pinheiro.

 

- É uma armadilha.

 

- Mas não há fio para a gente tropeçar - protestou Lucy. - Eu estava procurando.

 

com todo cuidado, Amélia levantou os galhos e as agulhas, pousados sobre a teia feita de linhas de pesca que cobria um buraco de uns 70 centímetros de profundidade.

 

- A linha de pesca não era um fio detonador - disse Ned. - Era para disfarçar isso - um buraco para alguém cair. Lucy, você quase pisou bem no meio da coisa.

 

- E lá dentro? Há alguma bomba? - perguntou Jesse.

 

- Me empreste a lanterna - respondeu Amélia.

 

Amélia projetou o feixe de luz dentro do buraco e, em seguida, recuou rapidamente.

 

- O que é? - perguntou Lucy.

 

- Não é nenhuma bomba - respondeu Amélia. - Um ninho de marimbondos.

 

Ned deu uma olhada.

 

- Cristo, aquele filho da...

 

com todo cuidado, Amélia levantou o resto dos galhos, pondo à vista o buraco e o ninho, que era mais ou menos do tamanho de uma bola de futebol.

 

- Poxa! - murmurou Ned, fechando os olhos e, sem dúvida, pensando o que seria ver centenas de marimbondos furiosos picando-lhes as coxas e a cintura.

 

Lucy esfregou as mãos - que ardiam com a queda. Levantou-se.

 

- Como foi que você soube?

 

- Eu não soube. Era com Lincoln que eu estava falando ao telefone. Ele estava lendo os livros de Garrett. Encontrou uma passagem sublinhada sobre um inseto chamado formiga-leão. Ela cava um buraco e pica o inimigo até a morte quando ele cai. Garrett havia desenhado um círculo em volta do trecho e a tinta havia sido usada apenas alguns dias antes. Rhyme lembrou-se das agulhas de pinheiro cortadas e da linha de pesca. Concluiu que o rapaz poderia cavar uma armadilha e me disse para procurar camas de galhos de pinheiro ao longo do caminho.

 

- Vamos queimar e acabar com aquele ninho - sugeriu Jesse.

 

- Não - disse Amélia.

 

- Mas ele é perigoso.

 

Lucy concordou com Amélia.

 

- Fogo revelaria nossa posição e Garrett saberia onde estamos.

 

Vamos deixar o buraco descoberto para quem andar por aqui poder vê-lo. Voltaremos aqui depois e cuidaremos disso. De qualquer maneira, quase ninguém anda por estas bandas.

 

Amélia inclinou a cabeça, concordando. Ligou o telefone.

 

-Nóso encontramos, Rhyme. Ninguém se machucou. Não havia bomba... ele pôs no fundo do buraco um ninho de marimbondos... Tudo bem. Vamos tomar cuidado... Continue a ler o livro. Informe, se descobrir alguma outra coisa.

 

Começaram a descer mais uma vez a trilha e cobriram uns bons 400 metros, antes que Lucy encontrasse ânimo para dizer:

 

- Obrigada. Você teve razão em pensar que ele veio por aqui. Eu me enganei. - Hesitou durante outro longo momento e, em seguida, acrescentou: - Jim fez uma boa escolha...

 

trazendo vocês de Nova York para cuidar disto. Eu não estava realmente cheia de entusiasmo no começo, mas não vou contestar os resultados.

 

Amélia franziu as sobrancelhas.

 

- Trouxe-nos para cá? O que é que você quer dizer com isso?

 

- Para ajudar.

 

- Jim não fez nada disso.

 

- O quê? - perguntou Lucy.

 

- Não, não, nós fomos ao centro médico, em Avery. Lincoln vai fazer uma operação. Jim ouviu dizer que vínhamos para cá, e apareceu esta manhã para perguntar se nos importaríamos em examinar algumas provas.

 

Uma longa pausa. Em seguida, Lucy soltou uma risada, ao sentir uma grande sensação de alívio descer-lhe pelo corpo.

 

- Eu pensei que ele tinha arranjado uns cobres do condado para trazer vocês de avião até aqui, depois do seqüestro de ontem.

 

Amélia sacudiu a cabeça.

 

- A operação só será realizada depois de amanhã. Nós tínhamos algum tempo livre. Foi só isso.

 

- Aquele rapaz... Jim. Ele não disse uma única palavra a esse respeito. Às vezes, ele pode ser um bocado caladão.

 

- Vocês estavam preocupados, achando que ele pensava que o pessoal daqui não podia dar conta do caso?

 

- Eu acho que foi exatamente isso o que eu pensei.

 

- O primo de Jim trabalha conosco em Nova York. Ele disse a Jim que íamos passar umas duas semanas por aqui.

 

- Espere aí. Você está falando em Roland? - perguntou Lucy. Claro, eu o conheço. Conheci também a esposa dele, antes de ela falecer. Os filhos dele são uns amores.

 

- Eles foram nossos convidados num churrasco, há pouco tempo - disse Amélia.

 

Lucy riu novamente.

 

- Eu acho que estava sendo meio paranóica... Então vocês estiveram em Avery? No centro médico?

 

- Isso mesmo.

 

- É lá onde Lydia Johansson trabalha. Você sabe, a enfermeira que estamos procurando.

 

- Eu não sabia.

 

Uma dezena de recordações passaram rápidas pela mente de Lucy Kerr, algumas que lhe tocavam o coração, outras que queria evitar, como se fosse o enxame de marimbondos que ela quase atiçara na armadilha. Não tinha certeza se queria ou não dizer algumas dessas coisas a Amélia. O que resolveu dizer foi o seguinte:

 

- Este é o motivo por que quero salvá-la a todo custo. Eu tive uns problemas médicos há alguns anos e Lydia foi uma de minhas enfermeiras. Ela é uma boa pessoa.

 

Das melhores.

 

- Nós vamos salvá-la - prometeu Amélia e disse isso num tom que Lucy, não sempre, mas às vezes, ouvia em sua própria voz. Um tom que não deixava a menor dúvida.

 

Nesse momento eles andavam mais devagar. A armadilha havia-os assustado. E o calor era realmente excruciante.

 

- Essa operação que seu amigo vai fazer? É para... a situação dele? - perguntou Lucy.

 

- É...

 

- Por que essa expressão? - perguntou Lucy, notando uma sombra de tristeza passar pelo rosto de Amélia.

 

- A operação, provavelmente, não vai resolver nada.

 

- Neste caso, por que ele vai fazê-la? Amélia explicou:

 

- Há uma probabilidade de que possa ser útil. Pequena probabilidade.

 

É uma operação experimental. Ninguém com o tipo de lesão que ele tem - com toda aquela gravidade - jamais apresentou qualquer melhora.

 

- E você não quer que ele faça a operação?

 

- Não, não quero.

 

- Por que não?

 

Amélia hesitou por um momento e, finalmente, respondeu:

 

- Porque ele poderia morrer na operação. Ou tornar o caso ainda pior.

 

- Você conversou com ele sobre isso? -Conversei.

 

- Mas não adiantou nada, certo? - insistiu Lucy.

 

- Nem um pouco. Lucy inclinou a cabeça.

 

- Acho que ele é tão teimoso como uma mula.

 

- Isso é dizer pouco - comentou Amélia.

 

Um ruído de quebra de alguma coisa nas moitas e, quando Lucy conseguiu encontrar o cabo da arma, a de Amélia já estava apontada fixamente para um ninho de peru selvagem.

 

Os quatro membros do grupo sorriram, mas o divertimento durou pouco, substituído pelo nervosismo, enquanto a adrenalina circulava pelo coração de cada um.

 

Armas reembainhadas, olhos vasculhando a trilha, eles continuaram a andar e mantiveram a conversa em regime de espera por algum tempo.

 

No que concernia à lesão de Rhyme, as pessoas se dividiam em três categorias.

 

Alguns adotavam o método de levar a coisa na troça. Humor sinistro, tipo guerra sem quartel.

 

Outros, como Henry Davett, ignoravam-lhe inteiramente o estado.

 

A maioria, porém, comportava-se como Ben- esforçava-se para fingir que Rhyme não existia e rezava para escapar da presença dele na primeira oportunidade.

 

E era essa reação a que Rhyme mais odiava - um dos lembretes mais eloqüentes de como ele era diferente. Mas não tinha tempo para pensar na atitude de seu assistente improvisado. Garrett estava levando Lydia para um deserto cada vez mais profundo. E Mary Beth McConnell podia estar agonizante de sufocação, desidratação ou algum ferimento. Jim Bell entrou.

 

- Talvez haja algumas boas notícias do hospital. Ed Schaeffer disse alguma coisa a uma das enfermeiras. Ficou inconsciente logo depois, mas estou considerando isso como um bom sinal.

 

- O que foi que ele disse? - perguntou Rhyme. - Alguma coisa que viu no mapa?

 

- Disse alguma coisa que pareceu "importante". E em seguida, "oliveira". - Bell foi até o mapa e tocou uma localização ao sul de Tanner's Corner. - Há um projeto de desenvolvimento aqui. Deram às estradas o nome de plantas, frutas e coisas assim. Uma delas é Olive Street (Rua das Oliveiras). Mas isso fica muito ao sul de Stone Creek. Você acha que devo dizer a Lucy e a Amélia para verificar esse local? Eu acho que seria bom fazer isso.

 

Ah, o conflito eterno, refletiu Rhyme: confiar em provas ou confiar em testemunhas? Se escolhesse errado, Lydia ou Mary Beth poderiam morrer.

 

- Eles devem ficar onde estão: ao norte do rio.

 

- Tem certeza? - perguntou em dúvida Bell. -Tenho.

 

- OK - concordou Bell.

 

O telefone tocou nesse momento e, com uma pressão firme do anular da mão esquerda, Rhyme atendeu.

 

A voz de Sachs crepitou nos fones de ouvido:

 

- Estamos num beco sem saída, Rhyme. Temos uma bifurcação de quatro ou cinco trilhas, indo em direções diferentes e não temos pista alguma do lugar para onde Garrett seguiu.

 

- Não tenho nada mais para você, Sachs. Estamos tentando identificar mais provas.

 

- Nada mais nos livros?

 

-Nada específico. Mas é fascinante... Eles são leitura muito séria para um jovem de 16 anos. Ele é mais esperto do que pensei. Onde você está, exatamente, Sachs? - Rhyme olhou para a parede. - Ben! Vá até o mapa, por favor.

 

O rapaz moveu o corpo maciço até a parede e tomou posição ao lado do mapa.

 

Sachs consultou alguém no grupo e, em seguida, disse:

 

- Mais ou menos 7 quilômetros a nordeste do local onde cruzamos o Stone Creek, quase em linha reta.

 

Rhyme repetiu a informação para Ben, que pôs a mão sobre uma parte do mapa. Localização J-7.

 

Perto do grosso dedo de Ben, Rhyme notou uma formação em forma de L, não identificada.

 

- Ben, você tem idéia do que é esse retângulo? - Acho que é a velha pedreira.

 

- Oh, Jesus - murmurou Rhyme, sacudindo frustrado a cabeça.

 

- O quê? - perguntou alarmado Ben, pensando que fizera alguma besteira.

 

- Por que, diabo, ninguém me disse que havia uma pedreira nas proximidades?

 

A face redonda de Ben pareceu ainda mais inchada do que antes, aceitando a acusação como dirigida pessoalmente a ele.

 

- Eu, realmente...

 

Rhyme, porém, nem mesmo o escutava. Ninguém tinha culpa por aquele lapso, senão ele mesmo. Alguém tinha lhe falado sobre a pedreira - Henry Davett, quando disse que, no passado, calcário era um grande negócio na área. De que outra maneira empresas poderiam produzir calcário em volume comercial? Ele devia ter feito perguntas sobre pedreiras logo que ouviu falar em calcário. E os nitratos não eram absolutamente originários de bombas feitas com canos, mas de explosivos usados para desmontar rocha - um tipo de resíduo que persistiria no local durante décadas.

 

Falou ao telefone:

 

- Há uma pedreira abandonada, não muito longe de onde vocês estão. A sudoeste.

 

Pausa. Palavras em voz baixa. Sachs voltou a falar:

 

- Jesse sabe onde fica.

 

- Garrett esteve lá. Não sei se ainda está. Portanto, tomem cuidado.

 

E lembre-se de que, se não está deixando bombas, ele está deixando armadilhas. Ligue pra mim quando descobrir alguma coisa.

 

Nesse momento, longe do descampado e não mais doente de calor e exaustão, Lydia deu-se conta de que tinha que enfrentar o espaço fechado. E que estava achando tão apavorante quanto o outro.

 

O seqüestrador andava de um lado para o outro, olhava pela janela, sentava-se no chão, estalava as unhas, murmurava alguma coisa para si mesmo, examinava seu corpo e voltava a andar. Em certa ocasião, olhou para o piso do moinho e apanhou alguma coisa. Enfiou-a na boca e mastigou-a, esfomeado. Lydia ficou pensando se não seria um inseto e, pensando nisso, quase vomitou.

 

Estavam no que parecia ter sido o escritório do moinho. Dali podia ver um corredor, parcialmente destruído pelo incêndio, que conduzia a outra série de salas - provavelmente o depósito de cereal e salas de moagem. A luz brilhante da tarde infiltrava-se pelas paredes enegrecidas pelo fogo e por buracos no telhado do corredor.

 

Alguma coisa de cor alaranjada chamou-lhe a atenção. Apertou os olhos e viu sacos de Doritos. E também de batata frita Cape Cod e manteiga de amendoim. E mais daquelas caixas de bolachas de queijo com manteiga de amendoim que tinha visto na pedreira, garrafas de refrigerante e água mineral Deer Park. Não as havia notado quando entraram no moinho.

 

Por que todos esses alimentos? Quanto tempo iriam ficar ali? Garrett tinha acabado de dizer que iam passar ali apenas a noite, mas ali havia provisões suficientes para um mês. Estaria ele pensando em conservá-la presa por mais tempo do que dissera antes?

 

- Mary Beth está bem? - perguntou. - Você a machucou?

 

- Oh, não, como se eu fosse machucá-la - disse ele, sarcasticamente. - Acho que não.

 

Lydia desviou a vista e examinou os feixes de luz que perfuravam o resto do corredor. Do outro lado chegava um som de chiado - a mó, girando, pensou.

 

Garrett continuou:

 

- A única razão por que a levei foi para ter certeza de que ela ficaria bem. Ela queria ir embora de Tanner's Corner. Ela gosta de praia. Porra, quem é que não gosta? Melhor do que aquela fedorenta Tanner's Corner.

 

Nesse momento estalava as unhas mais rápido, mais alto. Estava agitado, nervoso. As mãos enormes abriram, rasgando, um saco de batatas fritas. Comeu várias mãos cheias de batata, mastigando-as ruidosamente, pedaços caindo da boca. Bebeu de um trago só uma garrafa de Coca-Cola. E comeu mais batatas.

 

- Este lugar aqui pegou fogo há dois anos - disse. - Não sei quem fez isso. Gosta daquele som? Da roda d'água? Bem bacana. A roda gira, gira, sem parar. Igualzinho, eu me lembro, a uma canção que meu pai cantava lá em casa o tempo todo. "A grande roda, a girar, a girar..."

 

- Enfiou mais comida na boca e continuou a falar. Lydia não conseguiu entender durante um momento. Ele engoliu a porção. -... aqui, um bocado de tempo. A gente fica sentado aqui à noite, ouvindo as ciganas e os sapos-bois. Se estou fazendo o caminho todo até o mar - como agora - passo a noite aqui. Você vai gostar daqui à noite.

 

Parou de falar e inclinou-se subitamente para ela. Amedrontada demais para fitá-lo diretamente, Lydia manteve os olhos baixos, mas sentiu que ele a examinava atentamente.

 

Em seguida, de repente, ele saltou e agachou-se a seu lado.

 

Lydia encolheu-se toda ao lhe sentir o cheiro do corpo. Garrett afastou-se e tirou alguma coisa embaixo de uma pedra.

 

- Uma centopéia - disse, sorrindo.

 

A criatura era comprida e de cor amarelo-esverdeada e só em vê-la Lydia sentiu vontade de vomitar.

 

- É gostoso quando elas andam sobre a pele da gente. Gosto delas. - Deixou o bicho subir pela mão e os punhos. - Elas não são insetos - disse em tom de quem dá uma aula. - São primas. Perigosas, se tentar machucá-las. A mordida dói pra valer. Os índios que moravam por aqui moíam as bichinhas e colocavam o veneno nas pontas das flechas. Quando está assustada, a centopéia evacua veneno e foge. O predador rasteja por cima das fezes e morre. Bem bacana, não é?

 

Garrett calou-se e estudou atentamente a centopéia, da mesma maneira como Lydia olharia para a sobrinha e o sobrinho - com afeição, divertimento, quase amor.

 

Sentiu horror crescendo dentro do peito. Sabia que devia permanecer calma, sabia que não devia contrariar Garrett, devia simplesmente fazer o jogo dele. Mas ver aquele bicho nojento rastejar por cima do braço dele, ouvindo o estalido daquelas unhas, observando sua pele manchada, os olhos vermelhos, os restos de comida no queixo, teve uma convulsão de pânico.

 

Enquanto o nojo e o medo ferviam dentro dela, imaginou ouvir uma voz sumida, insistindo com ela: "Sim, sim, sim!" Aquela voz só podia ser de um anjo da guarda.

 

Sim, sim, sim!

 

Rolou sobre as costas. Garrett ergueu a vista, sorrindo com a sensação que o pequeno animal produzia em sua pele, curioso sobre o que ela estava fazendo. Lydia projetou os pés com toda força de que foi capaz. Possuía pernas fortes, usadas para carregar aquele corpo volumoso nos turnos de oito horas no hospital e a pancada jogou-o em cambalhota para trás. com um som surdo, Garrett bateu com a cabeça na parede e rolou para o chão, atordoado. Em seguida, gritou, um grito selvagem e agarrou o braço. A centopéia devia tê-lo mordido.

 

Sim!, pensou triunfante Lydia, rolando para um lado e levantando-se. Lutou para firmar-se sobre os pés e correu cegamente para a sala de moagem no fim do corredor.

 

De acordo com os cálculos de Jesse Corn, já estavam quase chegando à pedreira.

 

- Mais uns cinco minutos à frente - ele disse a Amélia. Em seguida, olhou-a duas vezes e, após algum debate silencioso consigo mesmo, continuou: - Eu ia lhe perguntar...

 

Quando você sacou a arma, quando aquele peru saltou das moitas... E, bem, em Blackwater Landing, também, quando Rich Culbeau nos deu aquele susto... Aquilo foi...

 

bem, foi uma coisa. Parece mesmo que você sabe como pregar um prego.

 

Amélia sabia, por Roland Bell, que aquela expressão significava "atirar".

 

- É um de meus hobbies - disse.

 

- Tá brincando!

 

- Mais fácil do que correr - explicou ela. - Mais barato do que pagar academia de ginástica.

 

- Você participa de competições? Sachs inclinou a cabeça.

 

- Clube de Tiro da Praia Norte, em Long Island.

 

- Ora, vejam só! - disse ele, entusiasmado. - E também competições Tiro-na-Mosca, da NRA [National Rifle Association]?

 

-Também.

 

- Esse é meu esporte, também! Tiro de carabina, claro. Mas minha especialidade são pistola e revólver.

 

A dela, também, mas Amélia achou melhor não descobrir muita coisa em comum com o enfeitiçado Jesse Corn.

 

- Você recarrega sua própria munição? - perguntou ele.

 

- Ahn, ahn. Bem, de calibres .38 e .45. Não cartuchos de percussão lateral, claro. Tirar as bolhas dos projéteis... este é que é o grande problema.

 

- Uau, você não está me dizendo que funde suas próprias balas, está?

 

- Estou - respondeu ela, lembrando-se de que, quando todo mundo em seu prédio de apartamentos cheirava a waffles e bacon nas manhãs de domingo, ela freqüentemente rescendia ao odor característico de chumbo derretido.

 

- Eu não faço isso - reconheceu ele, em tom de desculpa. - compro as pontas em grosso.

 

Durante mais cinco minutos andaram em silêncio, os olhos de todos eles no chão, à procura de armadilhas.

 

- De modo que... - começou Jesse Corn com um sorriso encabulado, afastando o cabelo louro da testa úmida. - Eu vou lhe mostrar meu... - Sachs fitou-o ironicamente e ele continuou: - Quero dizer, qual foi sua melhor pontuação? No circuito de Tiro-na-Mosca? Ao vê-la hesitar, encorajou-a: - Ora, vamos, você pode me dizer. É apenas um esporte... E, olhe só, estou competindo há dez anos. Tenho uma pequena vantagem sobre você.

 

- Dois mil e setecentos - disse Sachs. Jess inclinou a cabeça.

 

- Certo, me refiro a essa prova... a rotação em três posições de tiro de pistola, 900 pontos máximo para cada posição. Qual foi a sua melhor pontuação?

 

- Não é isso. Essa foi a minha pontuação - disse, contraindo-se com uma fisgada do artritismo nas pernas duras. - Dois mil e setecentos.

 

Jesse virou-se para ela, procurando descobrir se ela estava brincando. Ao notar que Amélia não sorriu nem riu, ele mesmo soltou uma pequena risada.

 

- Ora, isso é a pontuação máxima.

 

- Eu não alcanço essa marca em todas as competições. Mas você perguntou qual foi a minha melhor pontuação.

 

- Mas... - Jesse arregalou os olhos. - Eu nunca conheci ninguém que tenha feito 2.00 pontos.

 

- Conheceu, agora - disse Ned, rindo. - E não se sinta mal, Jesse... Afinal, isso é apenas um esporte.

 

- Dois mil e...

 

O jovem policial sacudiu a cabeça, incrédulo.

 

Sachs chegou à conclusão de que deveria ter mentido. com essa informação sobre sua perícia balística, parecia que o amor de Jesse Corn por ela era coisa sedimentada.

 

- Escute, quando isto terminar - sugeriu ele, timidamente -, se tiver um tempinho de folga, talvez você e eu, a gente possa ir até o estande de tiro gastar um pouco de munição.

 

Sachs pensou: É melhor uma caixa de Winchester .38 especiais do que uma taça de Starbucks acompanhada de conversa sobre como é difícil conhecer mulheres em Tanner's Comer.

 

- Vamos ver como as coisas se comportam.

 

- Encontro marcado - disse ele, usando a palavra que ela tivera esperança de que não fosse pronunciada.

 

- Ali - interrompeu-os Lucy. - Olhem.

 

Pararam à margem da floresta e viram a pedreira bem à frente.

 

Sachs, com um movimento, disse que se agachassem. Droga, isso dói. Embora tomasse condroitina e glucosamina todos os dias, com essa umidade e calor da Carolina... era o diabo para suas pobres articulações. Olhou para o enorme buraco - 140 metros de largura e nada menos de 70 de fundura. Os paredões eram amarelos, como ossos velhos, e caíam diretamente para a água verde, salobra, com cheiro azedo. A vegetação em um raio de uns 15 metros em volta havia tido uma morte dolorosa.

 

- Fiquem longe da água - avisou Lucy num sussurro. - É água ruim. Antigamente, crianças vinham nadar aqui. Não muito depois de terem fechado a pedreira. Meu sobrinho veio aqui uma vez... o irmão mais novo <de Ben. Eu mostrei simplesmente a ele a foto tirada pelo legista quando pescaram o corpo de Kevin Dobbs,e-

 

depois de ele ter se afogado e ficado na água durante uma semana. Ele nunca mais voltou para nadar aqui.

 

- Acho que o Dr. Spock recomenda esse método - disse Sachs. Lucy soltou uma risada.

 

Sachs pensou em crianças, novamente.

 

Agora, não, agora, não.

 

O telefone vibrou no cinto. Aproximando-se da presa, ela havia desligado o som de chamada. Atendeu. Ouviu, crepitante, a voz de Rhyme:

 

- Sachs, onde você está?

 

- À borda da pedreira - respondeu ela, baixinho.

 

- Algum sinal dele?

 

- Acabamos de chegar aqui. Nada, ainda. Vamos iniciar a busca. Todos os prédios foram demolidos e não vejo lugar algum onde ele possa estar escondido. Mas há uma dezena de lugares onde ele poderia ter deixado armadilhas.

 

- Sachs.

 

- O que é, Rhyme?

 

O tom solene usado por ele provocou-lhe um calafrio.

 

- Há uma coisa. Tenho que lhe dizer. Acabo de receber do centro médico os resultados dos exames de DNA e sorológico. Daquele Kleenex que você encontrou esta manhã na cena do crime.

 

-E...?

 

- Era, mesmo, sêmen de Garrett. E o sangue... era de Mary Beth.

 

- Ele estuprou-a - disse baixinho Amélia.

 

-Tome cuidado, Sachs, mas mova-se rápido. Não acho que Lydia tenha muito tempo de sobra.

 

Ela estava escondida na escuridão, no depósito imundo que tinha sido usado há muito tempo como depósito de cereal.

 

Mãos presas atrás das costas, ainda tonta com o calor e a desidratação, Lydia correu tropeçando pelo iluminado corredor, afastando-se do local onde Garrett, caído no chão, contorcia-se de dor, e encontrou esse esconderijo no andar abaixo da sala de moagem. Ao entrar e fechar a porta, uma dezena de camundongos correu por cima de seus pés e ela precisou de cada migalha de força de vontade para não gritar.

 

Nesse momento, ouvia as passadas de Garrett abafando o chiado baixo da roda de moer próxima.

 

Sentindo pânico cada vez maior, começou a lamentar sua fuga desafiadora. Mas não havia mais como voltar atrás, pensou. Havia machucado Garrett e ele ia dar o troco, se a encontrasse. Talvez mesmo coisa pior do que isso. Não havia nada a fazer, senão tentar escapar.

 

Não, resolveu, essa não era a maneira certa de pensar. Um de seus livros sobre anjos dizia que não havia essa tal coisa de "tentar fazer". Ou a pessoa fazia ou não fazia. Ela não ia tentar fugir dali. Ia fugir. Precisava simplesmente ter fé.

 

Olhou por uma fresta na porta do depósito e escutou com toda atenção. Ouviu os movimentos dele numa das salas próximas, falando baixo consigo mesmo e abrindo silos e portas fechadas. Teve esperança de que ele pensasse que ela tinha corrido para fora, passando pela parede arruinada no corredor destruído pelas chamas, mas era óbvio pela busca metódica de Garrett que ele sabia que ela continuava no local. Não poderia ficar mais tempo naquele depósito. Ele a encontraria. Olhou novamente pela fresta na porta e, não o vendo, escapou do silo e correu para uma sala contíngua, procurando abafar o som dos mocassins brancos. A única saída dessa sala era uma escada levando ao segundo andar. Subiu-a com dificuldade, arquejando para respirar e, faltando os braços livres para equilibrarse, rebotando das paredes e do corrimão de ferro forjado.

 

Ouviu-lhe a voz ecoando pelo corredor.

 

- Você fez com que ela me mordesse! - gritou ele. - Dói, dói.

 

Eu queria que ela o tivesse mordido nos olhos ou nos colhões, pensou Lydia, lutando para subir a escada. Foda-se, foda-se!

 

Ouviu-o abrindo violentamente portas na sala embaixo. Ouviu-lhe o gemido gutural. E imaginou que podia ouvir o estalido das unhas.

 

Outra vez, aquele calafrio de pânico. A sensação de náusea aumentando.

 

A sala no alto da escada era grande, com várias janelas dando para a parte queimada do moinho. Havia uma porta, nem fechada a chave nem aferrolhada, que ela abriu, entrando na própria área de moagem - duas grandes pedras de mó no centro. O mecanismo de madeira apodrecera. O som que estava ouvindo não era das pedras, mas do monjolo, acionado pelo riacho para ali desviado. Que ainda girava lentamente. Água cor de ferrugem cascateava para um buraco profundo e estreito, parecendo um poço. Não conseguiu ver o fundo. A água devia ser drenada de volta para o riacho em algum lugar abaixo da superfície.

 

- Pare! - gritou Garrett.

 

Lydia saltou de choque ao ouvir o berro furioso. Viu-o em pé à porta, olhos vermelhos e esbugalhados, segurando um braço, onde viu um enorme vergão preto-amarelado.

 

- Você fez ela me morder - murmurou ele, fitando-a cheio de ódio. - Ela está morta. Você me obrigou a matar a bichinha! Eu não queria fazer isso, mas você me obrigou!

 

Agora, leve esse seu rabo lá pra baixo. vou ter que prender também suas pernas com fita.

 

E veio na direção dela.

 

Lydia fitou-lhe o rosto ossudo, as sobrancelhas juntas, as mãos enormes, os olhos furiosos. Em seus pensamentos explodiram imagens: um antigo paciente de câncer, consumindo-se lentamente até a morte. Mary Beth McConnell trancada em algum lugar. Aquele rapaz mastigando batata frita feito um doido. A centopéia rastejando pelo braço dele. As unhas estalando. As longas noites sozinha, à espera - em desespero - por um telefonema do namorado. Levando flores a Blackwater Landing, mesmo que não tivesse realmente desejado fazer isso...

 

Tudo aquilo era demais para ela.

 

- Espere - disse tranqüilamente.

 

Garrett pestanejou. Parou.

 

Ela lhe sorriu - da maneira que sorria para um paciente terminal - e enviou uma prece de despedida ao namorado. Lydia, as mãos ainda presas às costas, mergulhou de cabeça no buraco estreito de água escura.

 

A retícula de fios cruzados da mira telescópica de alta tecnologia fixou-se nos ombros da policial ruiva.

 

Aquilo, sim, era uma cabeleira e tanto, pensou Mason Germain.

 

Ele e Nathan Groomer encontravam-se no alto de uma elevação debruçada sobre a velha pedreira da Anderson Rock Products. A uns 70 metros do grupo de busca.

 

Nathan, finalmente, disse em voz alta a que conclusão chegara meia hora antes:

 

- Isto não tem nada a ver com Rich Culbeau.

 

- Não, não tem. Não, exatamente.

 

- O que é que você quer dizer com isso? "Não exatamente"?

 

- Culbeau está em algum lugar por aí. com Sean O'Sarian...

 

- Aquele rapaz dá mais medo do que dois Culbeaus.

 

- Não vou discutir com você sobre isso - respondeu Mason. E Harris Tomei, também. Mas não é isso o que estamos fazendo.

 

Nathan voltou a olhar para os policiais e para a moça ruiva.

 

- Acho que não. Por que você está apontando para Lucy Kerr com minha arma?

 

Após um momento, Mason devolveu-lhe a Ruger M77 e disse:

 

- Porque eu não trouxe minha merda de binóculo. E não era para Lucy que eu estava olhando.

 

Começaram a andar pela elevação, Mason pensando na ruiva. Pensando na bonita Mary Beth McConnell. E em Lydia. Pensando em como a vida, às vezes, simplesmente não acontece como a gente quer. Mason Germain sabia, por exemplo, que devia ter progredido mais do que ser nesse momento apenas o policial mais antigo. Sabia que devia ter apresentado de maneira diferente seu pedido de promoção. Da mesma maneira que deveria ter feito as coisas de forma diferente quando Kelley o trocou por aquele motorista de caminhão cinco anos antes e, por falar nisso, deu ao casamento de ambos um rumo diferente, antes de abandoná-lo.

 

E que devia ter tratado o primeiro caso de Garrett Hanlon de uma maneira também muito diferente, o caso em que Meg Blanchar acordou do cochilo e descobriu um enxame de marimbondos cobrindo-lhe o rosto, os braços... Cento e trinta e sete picadas e uma morte lenta e horrível.

 

Nesse momento, estava pagando pelas más opções que tinha feito. Sua vida era apenas uma série de dias parados, preocupações, sentado no terraço da casa, bebendo demais, nem mesmo encontrando energia suficiente para pôr o barco na água e ir fisgar aquele peixe. Tentando, em desespero, descobrir como consertar aquilo que talvez não pudesse ser consertado.

 

- Você vai me dizer agora o que é que estamos fazendo? - perguntou Nathan.

 

- Estamos procurando Culbeau.

 

- Mas você acaba de dizer... - A voz de Nathan sumiu. Continuando o colega calado, o policial suspirou alto e disse: - A casa de Culbeau, onde a gente pensa que ele está, fica a 10 ou 12 quilômetros daqui, nós estamos ao norte do Paquo, eu com meu rifle de caçar veado e você calado feito uma porta.

 

- Estou dizendo que, se Jim perguntar, nós estamos aqui à procura de Culbeau - respondeu Mason.

 

- E o que nós estamos realmente fazendo é...?

 

Nathan Groomer podia podar a bala uma árvore a 400 metros de distância com aquele seu Ruger. Podia esculpir um chamariz de caça, que venderia por 500 dólares cada a colecionadores, se algum dia se incomodasse em vender um deles. Mas seus talentos e habilidades não iam muito além disso.

 

- Nós vamos pegar aquele rapaz - disse Mason.

 

- Garrett.

 

- Ele mesmo, Garrett. Quem mais? Eles vão obrigá-lo a sair do esconderijo e colocá-lo à nossa frente. - Indicou com um movimento de cabeça a policial ruiva. - E

 

nós vamos pegá-lo.

 

- O que é que você quer dizer com "pegá-lo"?

 

- Você vai atirar nele, Nathan. E deixá-lo mais morto do que um pau seco.

 

- Atirar nele?

 

- Isso mesmo - disse Mason.

 

- Calma aí. Você não vai bagunçar minha carreira, porque está com gana de pegar aquele rapaz.

 

- Você não tem carreira nenhuma - respondeu brutalmente Mason. - Você tem um emprego. E se quer conservá-lo, faça o que estou dizendo. Escute aqui... Eu conversei com ele. com Garrett. Durante aquelas outras investigações, quando ele matou aquelas pessoas.

 

- Foi mesmo? Acho mesmo que você conversaria com ele, certo.

 

- E sabe o que foi que ele me disse? -

 

- Não. O quê?

 

Mason estava pensando se alguém acreditaria no que ia dizer. Em seguida, lembrando-se da concentração de Nathan, passando hora após hora lixando as costas de um pato feito de madeira de pinheiro, perdido num feliz vazio, o policial mais antigo continuou:

 

- Garrett disse que, se tivesse necessidade de matar, acabaria com qualquer policial que tentasse detê-lo.

 

- Ele disse isso? Aquele rapaz?

 

- Disse. Olhou pra mim bem dentro do olho e disse isso. E disse que estava doido para que isso acontecesse. Tinha esperança de que eu viesse à frente, mas que mataria qualquer um que fosse mais fácil de matar.

 

- O filho da puta. Você contou isso a Jim?

 

- Claro que contei. Você acha que eu não contaria? Mas ele não deu a mínima bola pra isso. Eu gosto de Jim Bell. Você sabe que gosto. Mas a verdade é que ele está mais interessado em manter seu cargo-sinecura do que em fazer o que deve.

 

O outro policial inclinou a cabeça e uma parte de Mason ficou atônita por Nathan ter aceito essa história com tanta facilidade e sequer imaginasse que poderia haver outra razão por que ele estivesse doido para pegar aquele rapaz.

 

O atirador de escol pensou por um momento.

 

- Garrett tem arma de fogo?

 

- Não sei, Nathan. Mas, diga uma coisa: que dificuldade há para conseguir uma arma de fogo na Carolina do Norte? A gente não se lembra logo daquela frase, "fácil como fruta podre caindo de árvore"?

 

- Isso é verdade.

 

- Entenda, Lucy e Jesse - e nem mesmo Jim - não estimam aquele rapaz como eu.

 

- Estima?

 

- Estima o perigo, é isso o que estou querendo dizer - corrigiu Mason.

 

-Oh!

 

- Ele, até agora, já matou três pessoas, e provavelmente também Todd Wilkes, agarrou aquele menino pelo pescoço. Ou, pelo menos, assustou-o tanto que ele se suicidou. O que é assassinato, de qualquer maneira. E aquela moça foi picada... Meg? Viu as fotos do rosto dela, depois que os marimbondos acabaram o trabalho? E pense também em Ed Schaeffer. Nós dois estivemos bebendo com ele na semana passada. Agora, ele está num hospital e talvez nunca mais acorde.

 

- Não é que eu seja um atirador perito ou não seja nada, Mase. Mason Germain, porém, não ia ceder nem um centímetro.

 

- Você sabe o que a Justiça vai fazer. Ele tem 16 anos. Vão dizer: "Pobre rapaz. Pais mortos. Vamos mandá-lo para uma instituição." Em seguida, ele é libertado dentro de seis meses ou um ano e volta a fazer tudo aquilo. Mata algum outro jogador de futebol cheio de futuro ou alguma outra moça que nunca fez mal a uma mosca.

 

- Mas...

 

- Não se preocupe, Nathan. Você estará fazendo um favor a Tanner's Corner.

 

- Não era isso o que eu ia dizer. A coisa é, se a gente acabar com ele, perde qualquer chance de encontrar Mary Beth. Ele é o único que sabe onde ela está.

 

Mason teve um riso amargo.

 

- Mary Beth? Você pensa que ela ainda está viva? De jeito nenhum. Garrett estuprou e matou a moça e enterrou-a por aí numa cova rasa. Podemos deixar de nos preocupar com ela. Nosso trabalho é providenciar para que isso não aconteça com outra pessoa. Você está comigo?

 

Nathan não respondeu, mas o som seco ao introduzir os cartuchos revestidos de cobre no carregador do fuzil foi resposta suficiente. '

 

Do lado de fora da janela havia um grande ninho de marimbondos.

 

Descansando a cabeça no vidro graxento da prisão, a exausta Mary Beth McConnell olhou-o fixamente.

 

Mais do que qualquer coisa nesse lugar horrível, o ninho - cinzento, úmido e nojento - despertava nela uma sensação de desespero.

 

Mais do que as grades que Garrett tinha aparafusado com tanto cuidado no lado de fora da janela, mais do que a grossa porta de carvalho, fechada com três enormes cadeados, mais do que a recordação da terrível jornada desde Blackwater Landing em companhia do Menino-Inseto.

 

O ninho de marimbondos tinha a forma de cone, com a ponta virada para a terra. Repousava sobre um galho em forma de forquilha, que Garrett deixara apoiado perto da janela. O ninho devia ser a casa de centenas dos lustrosos insetos pretos e amarelos que entravam e saíam pelo buraco no fundo.

 

Garrett havia desaparecido quando acordou naquela manhã. Após permanecer deitada na cama durante uma hora - tonta e nauseada com a cruel pancada na cabeça na noite anterior - levantou-se sobre pernas fracas e olhou pela janela. E a primeira coisa que notou foi o ninho do lado de fora da janela dos fundos, perto do banheiro.

 

Os marimbondos não haviam feito ninho ali. O próprio Garrett o pusera do lado de fora da janela. No início, não conseguiu atinar para a razão daquilo. Em seguida, com uma sensação de desespero, compreendeu: o seqüestrador o deixara ali como se fosse uma bandeira de vitória.

 

Mary Beth McConell conhecia História. Sabia de guerras, de exércitos que derrotavam outros exércitos. A razão de bandeiras e galhardetes não era apenas identificar um lado, mas lembrar ao derrotado quem, nesse momento, o controlava.

 

E Garrett tinha vencido.

 

Bem, ele tinha vencido a batalha. O resultado da guerra, porém, ainda não estava decidido.

 

Mary Beth tocou o corte na cabeça. O golpe terrível na têmpora arrancara um pedaço de pele. E perguntou a si mesma se aquele corte não poderia ficar infectado.

 

Encontrou um elástico em sua mochila e prendeu os longos cabelos pretos em um rabo-de-cavalo. Suor escorria-lhe pelo pescoço e sentia uma sede imensa e cruciante. Sentia-se sem fôlego no calor sufocante daqueles quartos fechados e pensou em tirar a grossa camisa de brim. Preocupada com cobras e aranhas, usava sempre mangas compridas quando escavava alguma coisa entre moitas ou relva alta. A despeito do calor nesse momento, porém, resolveu não tirála. Não sabia quando o seqüestrador voltaria. Usava apenas um sutiã de renda cor-de-rosa sob a camisa e Garrett Hanlon certamente não precisava de estímulo algum nesse particular.

 

com um último olhar ao ninho, deixou a janela. Mais uma vez, andou em volta da cabana de três cômodos, procurando em vão uma saída. A cabana era uma construção sólida, muito antiga. Paredes reforçadas - uma combinação de toras trabalhadas a mão e tábuas grossas pregadas umas nas outras. Do lado de fora da janela, estendia-se um grande campo de relva alta até uma fileira de árvores a uns 70 metros de distância. A cabana em si situava-se no meio de outro grupo de grossas árvores. Olhando pela janela dos fundos - a janela de onde via o ninho de marimbondos -, conseguia justamente ver através dos troncos a superfície faiscante da lagoa, que haviam contornado para chegar àquele lugar.

 

Os cômodos em si eram pequenos mas surpreendentemente limpos. Na sala de estar havia um longo sofá marrom e dourado, diversas cadeiras antigas em volta de uma mesa de jantar barata, uma segunda mesa com uma dezena de jarras cobertas com tela e cheias de insetos que ele colecionava. O segundo cômodo continha um colchão e uma penteadeira. O terceiro estava vazio, exceto por várias latas encostadas num canto, cheias pela metade de tinta marrom. Parecia que ele tinha pintado recentemente a parte externa da cabana. A cor era escura e deprimente e não podia compreender por que ele a escolhera - até que notou que era da mesma tonalidade da casca das árvores que cercavam a cabana. Camuflagem. E voltou a lembrar-se do que pensara na véspera - que ele era muito mais esperto, muito mais perigoso, do que desconfiava.

 

Na sala de estar, pilhas de alimentos - jitnk foods e fileiras de latas de frutas e hortaliças -, marca Farmer John. Do rótulo, um respeitável fazendeiro lhe sorria, uma imagem tão fora de moda quanto a Betty Crocker da década de 1950. Deu uma busca desesperada na cabana, procurando água ou refrigerante - qualquer coisa que pudesse beber -, mas em vão. As frutas e hortaliças enlatadas estariam flutuando em líquido, mas não havia ali abridor nem qualquer tipo de ferramenta ou utensílio com que pudesse abri-las. Conservava ainda a mochila, mas tinha deixado em Blackwater Landing todas as suas ferramentas de Arqueologia.

 

Embaixo do piso, uma espécie de adega, com acesso por um alçapão no cômodo principal. Lançou-lhe um único olhar e estremeceu de nojo, sentindo a pele arrepiar-se.

 

Na noite anterior-depois de Garrett ter saído já há algum tempo -, tinha reunido coragem e descido os degraus raquíticos para o porão de teto baixo, procurando uma maneira de escapar da horrível cabana. Mas não havia saída - apenas dezenas de velhas caixas, jarras e sacos.

 

Não o ouviu voltar e, de repente, ele desceu correndo a escada em sua direção. Gritou e tentou fugir, mas a coisa seguinte de que se lembrava era estar deitada no chão de areia, sangue respingando no peito e nos cabelos colados ao crânio, enquanto Garrett, desprendendo um odor de adolescência suja, vindo lentamente em sua direção, envolvendo-a com os braços, os olhos fixos em seus seios. Quando levantou-a do chão, sentiu seu pênis duro, enquanto ele a carregava lentamente para cima, surdo a seus protestos...

 

Não!, disse a si mesma nesse momento. Não pense nisso.

 

Nem na dor. Nem no medo.

 

E onde estaria ele, nesse momento?

 

Como tinha ficado apavorada vendo-o andando pela cabana no dia anterior, sentia-se igualmente apavorada nesse momento no qual ele esquecera a existência dela. Morto, talvez, em um acidente ou baleado por policiais que a procuravam. E ela morreria de sede ali. Lembrou-se de um projeto em que ela e seu conselheiro de graduação haviam trabalhado juntos: a exumação de uma sepultura do século XIX, patrocinada pela Sociedade Histórica da Carolina do Norte, com o objetivo de realizar testes de DNA no corpo que ali fosse encontrado, com vistas a esclarecer se o cadáver era de um descendente de Sir Francis Drake, como alegava uma lenda local. Para seu horror, quando abriram a tampa do caixão, encontrou levantados os braços ósseos do cadáver e marcas de arranhões na parte interna. Aquele homem tinha sido enterrado vivo...

 

Aquela cabana seria seu caixão. E ninguém...

 

O que era aquilo? Olhando pela janela da frente, pensou ter visto movimento pouco além da borda da floresta distante. Através das moitas e folhas, acreditou que poderia ser um homem. Uma vez que as roupas e o chapéu de abas largas que ele usava pareciam escuros e havia um ar confiante em sua postura e modo de andar, pensou: ele parece um missionário em um ermo desabitado.

 

Mas, espere... Haveria realmente alguém ali? Ou era apenas a luz entre as árvores? Não podia ter certeza.

 

- Aqui! - gritou.

 

A janela, porém, fora fechada com pregos e mesmo que estivesse aberta, duvidava de que ele pudesse, daquela distância, ouvir o grito que subiu da sua garganta seca.

 

Pegou a mochila, na esperança de ter ainda o apito que a mãe paranóica lhe comprara para proteção. Rira dessa idéia - um apito como proteção contra estupros im Tanner's Corner! - mas, agora, procurou-o em desespero.

 

O apito, porém, havia desaparecido. Talvez Garrett o tivesse encontrado e tirado dali quando perdera os sentidos sobre o colchão ensagüentado. Bem, de qualquer maneira, iria gritar pedindo socorro - com tanta força quanto pudesse, a despeito da garganta ressecada., Agarrou uma das jarras de insetos, com intenção de quebrar a janela.

 

Levou-a para trás como um lançador de beisebol prestes a soltar a última bola. Mas em seguida baixou a mão. Não! O missionário tinha desaparecido. No lugar onde ele estava viu apenas o tronco escuro de um salgueiro, mato e um loureiro, balançando sob o vento quente.

 

Talvez fosse isso o que tinha visto.

 

Talvez aquele homem não houvesse estado absolutamente ali.

 

Para Mary Beth McConnell - atormentada pelo calor, apavorada, dilacerada pela sede - verdade e ficção se misturavam nesse instante. Era como se todas as lendas que estudara sobre essa fantasmagórica região da Carolina do Norte se tornassem reais. Talvez o missionário fosse apenas outro no elenco de personagens imaginários, como a Dama do Lago Drummond.

 

Ou como os outros fantasmas do Grande Pântano da Desolação.

 

Tal como a Corça Branca da lenda indígena - uma história que estava se tornando assustadoramente parecida com a sua.

 

Cabeça latejando, tonta com o calor, deitou-se no colchão bolorento e fechou os olhos, observando os marimbondos pairarem bem perto e, em seguida, entrarem no ninho cinzento, a bandeira que assinalava a vitória de seu seqüestrador.

 

Lydia sentiu o fundo do riacho sob os pés e, com um arranco a partir do chão, subiu à superfície.

 

Sufocando, cuspindo água, descobriu que estava em uma lagoa pantanosa a uns 15 metros riacho abaixo do moinho. com as mãos ainda presas às costas, escoiceou com força para equilibrar-se, contraindo-se de dor. Havia torcido ou quebrado o tornozelo na pá de madeira da roda d'água, ao mergulhar na comporta. Mas, ali, a água tinha uns dois metros de profundidade e, se não batesse os pés, iria afogar-se.

 

A dor no tornozelo era excruciante, mas, ainda assim, abriu à força caminho para a tona d'água. Descobriu que, enchendo os pulmões e rolando sobre as costas, podia boiar e manter o rosto acima d'água, enquanto batia o pé sadio em direção à margem.

 

Tinha se movido cerca de um metro e meio quando sentiu uma coisa fria escorrendo pela nuca, enrolando-se em volta de sua cabeça e orelhas, aproximando-se de seu rosto. Cobra! - compreendeu, em pânico. Lembrou-se de repente de um caso na sala de primeiros socorros no mês passado - um homem picado por uma cobra mocassim, o braço inchado até o dobro da grossura, histérico de tanta dor. Girou sobre si mesma nesse momento e a musculosa cobra deslizou por sua boca. Gritou. Mas, com os pulmões vazios e sem capacidade de flutuação, mergulhou sob a superfície e começou a sufocar. Perdeu a cobra de vista. Onde está ela, onde?, pensou, furiosa. Uma picada no rosto e ficaria cega. Na jugular ou na carótida, morreria.

 

Onde? Estaria em cima de seu corpo? Pronta para dar o bote?

 

Por favor, por favor, ajude-me, pensou, dirigindo-se ao anjo da guarda.

 

E, quem sabe, o anjo ouviu, porque, quando subiu novamente à superfície, não viu mais sinal da criatura. Finalmente, tocou a lama do fundo do riacho com os pés calçados de meias. Tinha perdido os sapatos no mergulho. Parou, recuperando o fôlego, tentando acalmarse. Devagar, lutou para chegar à margem, subiu uma ribanceira íngreme, de lama, galhos escorregadios e folhas podres, que a empurravam para trás um passo a cada dois que dava para a frente, enquanto cambaleava. Cuidado com o barro da Carolina, lembrou a si mesma. Pode prendê-la como se fosse areia movediça.

 

No momento em que saiu trôpega da água, um som de tiro, muito perto, fendeu o ar.

 

Jesus, Garrett tinha uma arma de fogo! Estava atirando!

 

Jogou-se de costas na água e mergulhou. Ficou ali enquanto pôde agüentar, mas teve finalmente que subir à tona. Arquejando para respirar, rompeu o lençol d'água quando o castor bateu a cauda uma vez mais, produzindo um segundo e alto estalo. O animal desapareceu em direção à sua represa - grande, de uns 70 metros de extensão. Lydia sentiu um riso histérico subir na garganta ao descobrir a razão do falso susto, mas conseguiu controlar a ânsia.

 

Entrou tropeçando num trecho de junça e lama e deitou-se sobre um lado, respirando com dificuldade, cuspindo água. Cinco minutos depois, recuperou o fôlego. Rolou para um lado, conseguiu sentar-se e olhou em volta.

 

Nenhum sinal de Garrett. Levantou-se com dificuldade. Tentou soltar as mãos, mas a fita de vedação estava apertada demais, embora molhada. Dali podia ver a chaminé enegrecida do moinho. Orientou-se e resolveu que direção iria tomar para encontrar a trilha que a levaria de volta ao sul do Paquo e para casa. Não estava longe Já corrente: nadar no riacho não a levara para muito longe do rnoinho.

 

Mas não conseguiu obrigar-se a mover-se. Sentia-se paralisada pelo medo, pela desesperança. Em seguida, pensou em seu programa favorito de TV - O toque fé um anjo - e, lembrando-se dele, ocorreu-lhe outra recordação, da última vez em que o assistiu. Exatamente quando o programa acabou e apareceu na tela um comercial, a porta de sua casa foi aberta de par em par e apareceu o namorado, trazendo um pacote de seis latinhas de cerveja. Ele raramente aparecia em visita de surpresa e ela tinha ficado extática. Haviam passado duas gloriosas horas juntos. E chegou à conclusão de que seu anjo lhe dera essa recordação nesse nromento como um sinal de que havia esperança, quando menos se esperava.

 

Apegando-se firme a esse pensamento, rolou desajeitada para um lado, levantou-se e começou a andar pela junça e erva de pântano. Perto, ouviu um som gutural. Um rosnado baixo. Sabia que havia linces por ali, ao norte do rio. Ursos, também, e porcos selvagens. Mas, mesmo que andasse manquejando dolorosamente, rrvovia-se com tanta confiança em direção à trilha como se estivesse fazendo a ronda no hospital, servindo comprimidos e fofocas e animando os pacientes aos seus cuidados.

 

Foi Jesse Corn quem encontrou o saco.

 

- Ei! Olhem aqui. Achei alguma coisa. Um saco de croco.

 

Sachs começou a descer a ribanceira íngreme ao longo da borda da pedreira, dirigindo-se para o local onde Jesse apontava para alguma coisa em uma laje de calcário, aplainada por uma explosão. Amélia viu os sulcos onde as perfuratrizes haviam mergulhado na pedra para abrir espaço à carga de dinamite. Não era de espantar que Rhyme tivesse encontrado tanto nitrato: aquele lugar era um grande campo de demolição.

 

Aproximou-se de Jesse, em pé, de frente para um velho saco de pano.

 

- Rhyme, está me ouvindo? - perguntou ao telefone.

 

- Fale. Há um bocado de estática, mas dá pra ouvi-la.

 

- Encontramos um saco aqui - disse ela. Em seguida, perguntou a Jesse: - Como é que você chama isso?

 

- Saco de croco. Saco de aniagem para o pessoal daqui. Amélia passou a informação a Rhyme:

 

- É um velho saco de aniagem. Parece que há alguma coisa dentro dele.

 

- Deixado por Garrett? - perguntou Rhyme.

 

Amélia olhou para baixo, para o lugar onde o chão de pedra encontrava-se com o paredão.

 

- Definitivamente, são as pegadas de Garrett e de Lydia, subindo uma ribanceira até a borda da clareira.

 

- Vamos atrás deles - disse Jesse.

 

- Ainda não - retrucou Sachs. - Precisamos examinar o saco.

 

- Descreva-o - ordenou o criminalista.

 

- Aniagem. Velho. De mais ou menos 60 centímetros por 90 centímetros. Não há muita coisa dentro. Fechado. Não amarrado, mas torcido.

 

- Abra-o com cuidado. Lembre-se das armadilhas. Sachs abriu um canto do saco e olhou para dentro.

 

- Tudo normal, Rhyme. Lucy e Ned desceram também a trilha e os quatros se reuniram em volta do saco, como se fosse o corpo de um afogado puxado da pedreira.

 

- O que é que há aí dentro?

 

Sachs calçou as luvas de látex, meio moles por causa do sol. Imediatamente, as mãos começaram a suar e coçar com o calor.

 

- Garrafas de água, vazias. Marca Deer Park. Sem preço de loja ou etiqueta de controle de estoque. Papel de embrulho de dois pacotes de biscoitos de queijo e manteiga de amendoim, marca Planters. Nenhuma identificação do lugar onde foram comprados. Quer os códigos de UPC para descobrir a origem dos produtos?

 

- Se nós tivéssemos uma semana, talvez - murmurou Rhyme. Não, não se incomode com isso. Mais detalhes sobre o saco - ordenou.

 

- Há alguma coisa escrita nele. Mas desbotada demais para ler. Alguém consegue descobrir o que é que isso diz? - perguntou aos outros.

 

Ninguém conseguiu ler as palavras.

 

- Alguma idéia do que havia antes no saco? - perguntou Rhyme. Sachs pegou-o e cheirou-o.

 

- Bolorento. Esteve dentro de alguma coisa durante muito tempo. Não posso saber o que havia nele.

 

Virou o saco pelo avesso e bateu nele com força com a palma da mão. Umas poucas sementes velhas e secas de milho caíram no chão.

 

- Milho, Rhyme.

 

- Alguma fazenda por essa zona? - perguntou Rhyme. Sachs passou a pergunta ao grupo de busca.

 

- De gado leiteiro, de milho, não - respondeu Lucy, olhando para Ned e Jesse, que inclinaram a cabeça, concordando.

 

- Mas vacas comem ração de milho - lembrou Jesse.

 

- Certo - confirmou Ned. - Acho que o saco deve ter vindo de uma loja de rações para animais, de algum lugar assim. Ou de um silo.

 

- Ouviu isso, Rhyme?

 

- Ração para animais. Certo. vou encarregar Ben e Jim de pesquisar isso. Mais alguma coisa, Sachs?

 

Amélia olhou para as mãos. Enegrecidas. Virou o saco.

 

- Parece que há um chamuscado no saco, Rhyme. Não queimou, mas esteve em cima de alguma coisa que queimou.

 

- Alguma idéia do que possa ter sido?

 

- Fragmentos de carvão vegetal, ao que parece. Acho que de lenha.

 

- OK - disse Rhyme. - Esse dado vai para a lista. Amélia olhou para as pegadas de Garrett e de Lydia.

 

- Vamos continuar a caçada - disse, dirigindo-se a Rhyme.

 

- Eu ligo para você quando tiver mais respostas. Amélia voltou-se para o grupo:

 

- De volta ao topo. - Sentindo uma dor lancinante nos joelhos, olhou para a borda da pedreira, murmurando: - Não parecia tão alta assim quando a gente desceu.

 

- Oh, há uma regra... morros são duas vezes mais altos para subir do que para descer - sentenciou Jesse Corn, uma fonte de aforismos, enquanto polidamente deixava que ela a precedesse na estreita trilha.

 

Lincoln Rhyme, ignorando a lustrosa mosca preta-avermelhada que fazia vôos rasantes por ali, olhava para os últimos acréscimos ao gráfico de provas.

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • PEDREIRA

 

Velho Saco de Aniagem - Nome Impossível de Ler Milho - Ração para Animais? Marcas de Chamuscado no Saco Água, Marca Deer Park Biscoitos de Queijo, Marca Planters Quanto mais incomum a prova, melhor. Rhyme nunca se sentia tão feliz numa cena de crime como quando descobria alguma coisa absolutamente impossível de identificar. Porque isso significava que, se conseguisse identificá-la, haveria um número limitado de origens para a mesma, às quais poderia chegar.

 

Esses itens, a prova encontrada por Sachs na pedreira, porém, eram comuns. Se o impresso no saco fosse legível, poderia atribuí-lo a uma única origem. Mas não era. Se a água mineral e os biscoitos 166 tivessem etiquetas de preço que pudessem ser rastreadas até as lojas que os vendiam e a um vendedor que conhecesse Garrett, poderia haver alguma informação sobre o local onde encontrá-lo. Mas não tinham. E madeira chamuscada? Esse dado levava a todo churrasco preparado no condado de Paquenoke. Inútil.

 

O milho poderia ser útil. Jim Bell e Steve Farr falavam ao telefone nesse momento, ligando para vendedores de ração para gado. Rhyme, porém, duvidava que os empregados tivessem mais alguma coisa para dizer, exceto: "Isso mesmo. A gente vende milho. Em velhos sacos de aniagem. Como todo mundo."

 

Droga! Não conhecia absolutamente aquela zona. Precisaria de semanas - meses, talvez - para "sentir" a área.

 

Mas, claro, não dispunham de semanas ou meses.

 

Seus olhos moviam-se de um gráfico a outro, rápidos como a mosca.

 

ENCONTRADO NA CENA PRIMÁRIA DO CRIME • BLACKWATER LANDING

 

Kleenex Manchado de Sangue Pó de Calcário Nitratos Fosfato Amônia Detergente Canfeno Nada mais a deduzir desse gráfico.

 

Melhor voltar aos livros sobre insetos, resolveu.

 

- Ben, aquele livro ali, The Miniature World. Quero dar uma olhada nele.

 

- Sim, senhor - disse o jovem, distraído, os olhos no gráfico. Pegou o livro e colocou-o à altura dos olhos de Rhyme.

 

Passou-se um momento, enquanto o livro pairava no ar, acima do peito do criminalista. Rhyme lançou um olhar irônico a Ben, que o retribuiu e, após um momento, teve um sobressalto e recuou, compreendendo que estava oferecendo uma coisa a um homem que precisaria de intervenção divina para poder pegá-la.

 

- Oh, meu Deus, Sr. Rhyme... - disse, atabalhoado, o rosto redondo em fogo. - Sinto, muito, muito. Eu estava distraído, senhor. Poxa, que estupidez minha. E, realmente...

 

- Ben - disse Rhyme, calmamente -, feche essa merda de boca. O homenzarrão pestanejou, chocado. Engoliu em seco. O livro era minúsculo em suas mãos enormes.

 

- Foi um acidente, senhor. Eu disse que sentia...

 

- Cale a boca. Levante o livro.

 

O que Ben fez, boca fechada, olhando em volta da sala, em busca de ajuda, mas não havia nenhuma no horizonte. Thom, encostado na parede, calado, braços cruzados, não ia tornar-se nenhum pacificador das Nações Unidas.

 

Rhyme continuou, num rosnado baixo:

 

- Você está pisando em ovos e eu estou cansado disso. Acabe com esse negócio de andar rastejando.

 

- Rastejando? Eu estou simplesmente tentando ser bondoso com uma pessoa que é um... quero dizer...

 

-Não, você não está. Você está tentando descobrir uma maneira de cair fora daqui, sem me olhar mais do que é obrigado a fazer e sem perturbar sua minúscula e delicada psique.

 

Os ombros maciços endureceram-se.

 

- Bem, senhor, eu não acho que o que o senhor está dizendo seja inteiramente justo.

 

- Bobagem. Já era tempo de eu tirar as luvas... - Rhyme soltou uma gargalhada cruel. - Gostou dessa metáfora! Eu, tirando as luvas? Uma coisa que não vou poder fazer com grande rapidez, não é?... Que tal essa, como piada de aleijado?

 

Ben queria, em desespero, escapar dali - sair correndo pela porta -, mas as pernas maciças estavam presas no chão, como se fossem troncos de carvalho.

 

- O que eu tenho não é contagioso - continuou, seco, Rhyme. Acha que vai pegar em você? Não funciona dessa maneira. Você está andando por aqui como se fossem tirá-lo daqui numa cadeira de rodas. Droga, você está até com medo de olhar para mim e acabar como eu!

 

- Isso não é verdade!

 

- Não é? Eu acho que é... Por que é que eu o apavoro tanto?

 

- Não apavora! - rosnou Ben. - De jeito nenhum! Rhyme tornou-se furioso:

 

- Apavoro, sim. Você está apavorado por se encontrar na mesma sala comigo. Você é um grandessíssimo covarde.

 

O homenzarrão inclinou-se para a frente, saliva voando-lhe dos lábios, a boca tremendo, e berrou:

 

- Foda-se, Rhyme! - Durante um momento, ficou mudo de raiva. Em seguida, continuou: - Eu vim aqui como um favor à minha tia. Estar aqui esculhamba todos os meus planos e não estou ganhando dinheiro nenhum com isso! E ouço o senhor dar ordens aqui, cheio de arrogância, como se fosse uma merda de prima-dona. Quero dizer, não sei onde, diabo, você vai buscar toda essa...

 

Calou-se e fitou Rhyme, que ria perdidamente.

 

- O quê? - disse secamente Ben. - Do que, diabo, você está rindo?

 

- Viu como foi fácil? - perguntou Rhyme, sorrindo nesse momento.

 

Thom, igualmente, estava tendo problemas para reprimir um sorriso.

 

Respirando forte, espigando-se, Ben enxugou a boca. Zangado, desconfiado. Sacudiu a cabeça.

 

- O que é que o senhor quer dizer com isso? O que é que foi fácil?

 

- Olhar-me no olho e me chamar de filho da puta - continuou placidamente Rhyme. - Ben, eu sou exatamente igual a todo mundo. Eu não gosto quando pessoas me tratam como se eu fosse uma boneca delicada. E sei que elas têm absoluta certeza de que não gostam de preocupar-se, pensando que podem me quebrar.

 

- O senhor me enganou. Disse essas coisas apenas para eu ficar danado.

 

- Digamos: apenas para que você me compreendesse. Rhyme não tinha certeza se Ben jamais se tornaria um Henry Davett - um homem que só se importava com o âmago, o espírito, do ser humano e ignorava a embalagem. Mas tinha conseguido pelo menos empurrar o zoólogo por alguns passos na direção da iluminação.

 

- Eu devia sair por aquela porta e nunca mais voltar.

 

- Um bocado de pessoas faria isso, Ben. Mas eu preciso de você. Você é competente. Você tem jeito para criminalística. Vamos. Quebramos o gelo. Agora, de volta ao trabalho.

 

Ben começou a montar The Miniature World no dispositivo de passar a página. Enquanto fazia isso, olhou de soslaio para Rhyme e perguntou:

 

- Então há um bocado de pessoas que o olham no olho e dizem que o senhor é um filho da puta?

 

Rhyme, olhando para a capa do livro, passou a pergunta a Thom, que respondeu:

 

- Com certeza. Mas, claro, só depois de o conhecerem.

 

Lydia estava ainda a apenas uns 30 metros do moinho.

 

Movia-se com tanta rapidez quanto podia em direção à trilha que a levaria à liberdade, mas o tornozelo latejava de dor e prejudicava muito a caminhada. Além disso, era obrigada a andar devagar, porque mover-se realmente em silêncio pelo mato requer o uso das mãos. Mas, como algumas das vítimas de lesões cerebrais que tratava no hospital, só era capaz de equilíbrio limitado e não podia deixar de cambalear de uma clareira a outra, fazendo muito mais barulho do que queria.

 

Descreveu um grande círculo pela frente do moinho. Parou. Nenhum sinal de Garrett. Nenhum som, absolutamente, exceto o marulhar da água do riacho, desviada para o pântano.

 

Mais um metro e meio, dois metros.

 

Vamos, anjo, pensou. Fique comigo um pouco mais. Ajude-me nesta situação. Por favor... Apenas mais alguns minutos e estaremos em casa e livres.

 

Oh, Deus do céu, como o tornozelo doía. Quem sabe, o osso estava quebrado. O tornozelo estava inchado e sabia que, se fosse uma fratura, andar sem apoio dessa maneira poderia tornar a lesão dez vezes pior. A cor da pele estava escurecendo, também - o que significa vasos sangüíneos rompidos. Septicemia era uma possibilidade. Pensou em gangrena. Amputação. Se isso acontecesse, o que diria seu namorado? Achou que ele a deixaria. O relacionamento de ambos, na melhor das hipóteses, era casual - pelo menos, da parte dele. Além do mais, sabia, por seu trabalho em oncologia, que pessoas desapareciam da vida dos pacientes logo que eles começavam a perder partes do corpo.

 

Parou, escutou, olhou em volta. Teria Garrett fugido? Teria desistido e seguido para os Bancos Externos, onde escondera Mary Beth?

 

Continuou a andar na trilha que levava de volta à pedreira. Em certo momento, achou que tinha que se mover com cuidado ainda maior - por causa da armadilha de amônia.

 

Não se lembrava exatamente do lugar onde ele a deixara.

 

Mais dez metros... e lá estava - o caminho para casa.

 

Parou outra vez, à escuta. Nada. Notou uma cobra de pele escura, tranqüila, aquecendo-se ao sol sobre o toco de um velho cedro. Adeus, e endereçou um pensamento à cobra. Estou indo para casa.

 

Voltou a caminhar.

 

Nesse momento, a mão do Menino-Inseto projetou-se de baixo de um luxuriante loureiro e pegou-a pelo tornozelo sadio. Desequilibrada de qualquer maneira, as mãos inúteis, Lydia nada mais pôde fazer do que tentar contorcer-se para um lado, de modo a aparar com a bunda sólida a força da queda. A cobra acordou com o som de seu grito e desapareceu.

 

Garrett saltou em cima dela, prendendo-a ao chão, o rosto vermelho de raiva. Devia ter permanecido deitado ali nos últimos 15 minutos, silencioso, sem mover-se um centímetro, até que ela ficasse ao alcance do bote. Tal como uma aranha à espera da próxima vítima.

 

- Por favor - murmurou Lydia, sem fôlego com o choque e horrorizada por ter sido traída por seu anjo da guarda. - Não me machuque...

 

- Cale a boca - rugiu ele, olhando em volta. - Minha paciência acabou com você.

 

Puxou-a brutalmente para levantá-la do chão. Ele poderia tê-la segurado pelo braço ou virado-a de costas, levantando-a de uma maneira mais fácil. Mas ele não fez nada disso: pegou-a por trás, as mãos nos seus seios, e ergueu-a do chão. Sentiu-lhe o corpo rígido roçar, provocando-lhe uma sensação de nojo, as costas e nádegas.

 

Finalmente, após o que pareceu durar para sempre, soltou-a, mas e envolveu-lhe o braço com os dedos ossudos e puxou-a em direção ao moinho, indiferente aos seus soluços. Parou uma única vez para examinar uma longa linha de formigas que carregavam ovos minúsculos de um lado a outro do caminho.

 

- Não as machuque - murmurou. E observou cuidadosamente os pés dela para ter certeza de que não as machucaria.

 

com um som que Rhyme sempre achou semelhante ao de um açougueiro amolando o facão, o dispositivo virou outra página do The Miniature World, que era, a julgar pelo aspecto do livro, muito estragado pelo uso, o favorito de Garrett Hanlon.

 

insetos soo espantosamente hábeis em sobreviver. A mariposa da bétula, por exemplo, é naturalmente branca, mas, nas áreas em volta da industrial Manchester, Ingkterra, acorda espécie mudou para preta, afim de confundir-se com a fuligem nos troncos brancos das árvores e tornar-se menos visível para seus inimigos.

 

Rhyme virou mais páginas, o forte dedo anular esquerdo batendo no controlador da UCA, movendo-as, hiss, hiss, lâmina sobre aço. Lendo as passagens marcadas por Garrett.

 

O parágrafo sobre a armadilha da formiga-leão tinha impedido o grupo de busca de cair vítima dos estratagemas do rapaz. Agora, Rhyme tentava extrair do livro mais conclusões. Como lhe dissera o psiquiatra de peixes, Ben Kerr, o comportamento dos animais é muitas vezes um bom modelo para seres humanos - especialmente quando em jogo a sobrevivência.

 

O louva-a-deus esfrega a barriga nas asas, produzindo um rui' do sobrenatural, que desorienta os perseguidores. Esses insetos, por falar nisso, devorarão qualquer criatura menor do que eles mesmos, incluindo aves e mamíferos...

 

Acredita-se que foi o besouro de estéreo que deu ao homem primitivo a idéia da roda...

 

Um naturalista chamado Réaumur observou, no século XVII, que marimbondos fazem rúnhos de papel, usando como material fibra de madeira e saliva. O fato deu-lhe a idéia de fabricar papel com polpa de madeira, e não tecido, como fabricantes vinham fazendo até então...

 

Mas o quê, em tudo isso, esclarecia alguma coisa que interessava ao caso? Haveria aí alguma coisa que o ajudasse a descobrir dois seres humanos em fuga, em algum lugar em centenas de quilômetros quadrados de floresta e terras pantanosas?

 

insetos fazem grande uso do sentido do olfato. Para eles, trata-se de um sentido multidimensional. Eles, na realidade, "sentem" cheiros e os usam para muitos fins.

 

Para educação, para informação, para comunicação. Quando uma formiga descobre alimento, volta para o ninho deixando um rastro odorífero, tocando ocasionalmente o chão com o abdômen. Quando encontram a linha, outras formigas seguem-na até o alimento. Sabem em que direção ir porque o odor é "modelado": a extremidade estreita do odor aponta para o alimento, como se fosse uma seta. Usam ainda odores para avisar os outros da aproximação de inimigos. Uma vez que o inseto pode detectar uma única molécula de odor a quilômetros de distância, eles raramente são surpreendidos por inimigos...

 

O xerife Jim Bell entrou apressado na sala, o rosto preocupado aberto num sorriso.

 

- Acabo de receber notícias de uma enfermeira do hospital. Notícias sobre Ed. Parece que está saindo do coma e disse alguma coisa. O médico dele vai ligar dentro de minutos. Tenho esperança de descobrir o que ele quis dizer com "oliveira" e se ele viu alguma coisa específica naquele mapa na tocaia.

 

A despeito do ceticismo com que encarava depoimentos, Rhyme chegou à conclusão de que, nesse momento, ficaria feliz com a existência de uma testemunha. A impotência, a desorientação do peixe fora d'água, estavam lhe cobrando um alto preço.

 

Bell andou devagar de um lado para outro no laboratório, olhando cheio de esperança para a porta sempre que ouvia passos aproximando-se.

 

Lincoln Rhyme alongou-se novamente, apertando a cabeça contra o descanso de cabeça da cadeira. Olhos no gráfico de provas, olhos no mapa, olhos de volta ao livro.

 

E, durante todo o tempo, o ponto verde e preto de uma mosca voava em volta da sala com um desespero desfocado que parecia equivalente ao seu.

 

Um animal cruzou rápido a trilha e desapareceu.

 

- O que foi aquilo? - perguntou Sachs, inclinando a cabeça para o local. Para ela, a criatura pareceu uma mistura entre um cão e um gato grande.

 

- Raposa cinzenta - respondeu Jesse. - Raramente as vejo. Mas, também, em geral não circulo pelo norte do Paquo.

 

Moveram-se devagar, esforçando-se para seguir as fracas pistas da passagem de Garrett. E, durante todo tempo, mantiveram olhos vigilantes à procura de mais armadilhas ou emboscadas nas árvores e moitas em volta.

 

Mais uma vez, Sachs sentiu o pressentimento que a perseguia desde que haviam passado pelo enterro da criança naquela manhã. Deixaram para trás os pinheiros e entraram em um tipo diferente de floresta, árvores como as que seriam vistas em uma mata tropical. Fazendo perguntas sobre elas, Lucy explicou que eram nissas, produtoras de látex, ciprestes antigos e cedro. Estavam juntas, envolvidas por musgo e lianas que absorviam o som como um cerrado nevoeiro e agravava a sensação de claustrofobia.

 

Por toda parte, via cogumelos, bolor, fungos e o pântano espumante por todos os lados. O cheiro no ar era de coisa podre.

 

Sachs examinou a terra pisoteada e perguntou a Jesse:

 

- Estamos a quilômetros de qualquer cidade. Quem é que faz essas trilhas?

 

O policial deu de ombros.

 

- Principalmente, caloteiros.

 

- Caloteiros? - perguntou Sachs, lembrando-se que Rich Culbeau usara as mesmas palavras.

 

- Gente que não paga suas contas. Principalmente, gente ordinária.

 

Falsificadores de bebidas, tipos que vivem no pântano, cozinheiros de drogas.

 

Ned Spoto tomou um gole d'água e disse:

 

- Às vezes, recebemos chamadas: alguém atirando, alguém gritando, pedidos de socorro, luzes misteriosas fazendo sinais. Coisas desse tipo. Apenas, quando chegamos ao local, nada encontramos... Ninguém, nenhum criminoso, nenhuma pista que leve a algum lugar. Fazemos a diligência - temos que fazer - mas ninguém do departamento jamais vem sozinho a estas bandas.

 

- Nós nos sentimos diferentes quando estamos aqui - disse Jesse. A gente sente que... isso parece esquisito... mas a gente sente que a vida aqui é diferente, tem menos valor. Eu preferia prender uma dupla de garotões armados cheirando coca num minishopping-center a vir aqui a serviço. Pelo menos, lá há regras. A gente sabe mais ou menos o que esperar. Já aqui... - e encolheu os ombros.

 

Lucy, com um gesto de cabeça, confirmou-lhe as palavras.

 

- Isso é verdade. Regras normais não se aplicam a ninguém ao norte do Paquo. A nós ou a eles. A gente pode se ver atirando neles antes de lhes ler seus direitos e isso seria perfeitamente certo. E difícil de explicar.

 

Sachs não gostou daquela conversa nervosa. Se os outros policiais não tivessem se mostrado tão sombrios, e eles mesmos meio cabreiros, ela teria pensado que estavam montando um espetáculo para assustar uma moça de cidade grande.

 

Finalmente, pararam num local em que a trilha se bifurcava em três direções. Seguiram cada uma por uns 15 metros, mas não conseguiram encontrar sinais da que tinha sido tomada por Garrett e Lydia. Voltaram à encruzilhada.

 

Sachs ouviu as palavras de Rhyme ecoando em sua mente. Tenha cuidado, Sachs, mas mova-se rápido. Não acho que tenhamos muito tempo de sobra.

 

Mova-se rápido...

 

Mas não havia indícios que mostrassem para onde deviam estar se movendo e, olhando para as trilhas virgens de sinais, achou que era impossível que alguém, mesmo Lincoln Rhyme, pudesse descobrir para onde a presa tinha fugido.

 

Nesse momento, o telefone celular tocou. Lucy e Jesse fitaram-na, esperançosos, como aconteceu com ela mesma, de que Rhyme tivesse uma nova sugestão sobre o caminho a tomar.

 

Atendeu, escutou as palavras do criminalista e inclinou a cabeça. Desligou. Tomou uma profunda respiração e olhou para os três policiais.

 

- O que foi? - perguntou Jesse Corn.

 

- Lincoln e Jim acabam de receber notícias do hospital, sobre Ed Schaeffer. Parece que ele acordou por tempo suficiente para dizer, "Eu amo meus filhos", e em seguida morreu... Pensaram que ele iria dizer alguma coisa sobre "Olive" Street [Rua das Oliveiras], mas descobriram que ele estava simplesmente dizendo "Eu amo"[I love].

 

- Oh, Jesus - murmurou Ned.

 

Lucy baixou a cabeça, enquanto Jesse lhe envolvia os ombros com um braço.

 

- O que é que vamos fazer agora? - perguntou.

 

Lucy ergueu a vista e Sachs viu lágrimas nos seus olhos.

 

- Vamos pegar aquele rapaz, é isso o que vamos fazer - disse ela com feroz determinação. - Vamos tomar a trilha mais lógica e seguir nessa direção até encontrá-lo.

 

E vamos ter que andar rápido. Tudo bem com você? - perguntou a Sachs, que não teve problema em ceder momentaneamente o comando à policial.

 

- Pode apostar que sim.

 

Lydia tinha visto centenas de vezes aquela expressão nos olhos dos homens.

 

De necessidade. De desejo. De fome.

 

Às vezes, uma ânsia, sem um alvo preciso. Em outras ocasiões, uma manifestação inepta de amor.

 

Essa moça gorda, de cabelos escorridos, rosto pintado de marcas de acne na adolescência e cicatrizes acreditava que pouco tinha para oferecer aos homens. Mas sabia também que eles, pelo menos durante alguns anos ainda, lhe pediriam certa coisa e há muito tempo resolvera que, para levar a vida numa boa neste mundo, teria que explorar os poucos encantos que possuía. E assim, nesse momento, Lydia Johansson pisava em um campo de jogo que conhecia bem.

 

Mais uma vez, estavam no moinho, no escritório escuro, Garrett em pé à sua frente, o couro cabeludo brilhando de suor através dos cabelos rentes, mal cortados. A

 

ereção dele era óbvia por trás da calça frouxa.

 

Os olhos dele desceram para seu peito, onde o uniforme molhado, translúcido, tinha sido rasgado na queda pela comporta (ou isso aconteceu quando ele a pegou na trilha?), a alça do sutiã solta (ou ele a arrancara?).

 

Lydia afastou-se dele, contraindo-se com a dor no tornozelo, encostando-se na parede, sentada, as pernas estiradas, enquanto estudava aquela expressão nos olhos do rapaz. Sentindo uma repugnância fria, pegajosa.

 

Mas, ainda assim, pensou: Devo deixar que ele faça isso?

 

Ele era jovem. Gozaria imediatamente e a coisa acabaria. Talvez, depois, ele caísse no sono e ela pudesse encontrar aquele canivete e cortar a fita que lhe prendia as mãos. Em seguida, deixá-lo sem sentidos com uma pancada e prendê-lo com a fita colante.

 

Mas aquelas mãos ossudas, vermelhas, o rosto lanhado perto do seu, o hálito repugnante e o cheiro de corpo nojento... De que maneira poderia enfrentar uma situação dessas? Fechou os olhos por um momento. Fez uma oração tão vaga como a sombra que usava nos olhos. Sim ou não?

 

Quaisquer anjos que estivessem nas vizinhanças, porém, resolveram ficar calados no que interessava a essa decisão particular.

 

Tudo que teria que fazer seria sorrir e ele estaria dentro dela num minuto. Ou poderia tomá-lo na boca... Isso não significaria coisa alguma.

 

Foda-me e vamos em seguida assistir a um filme... Era uma brincadeira entre ela e o namorado. Recebia-o à porta, usando a camisola curta que tinha comprado na Sears, pelo Correio. Envolvia seus ombros com os braços e lhe sussurrava essas palavras.

 

Faça isso, pensou, e você talvez possa escapar.

 

Mas não posso!

 

Os olhos de Garrett estavam fixos nela, percorrendo-lhe o corpo. O membro dele não poderia violá-la mais do que aqueles olhos vermelhos faziam nesse momento. Jesus, ele não era apenas um inseto... era uma mutação de livros de horror, alguma coisa talvez inventada por Dean Koontz ou Stephen King.

 

Unhas estalando.

 

Ele lhe examinava as pernas nesse momento, roliças e macias seu melhor aspecto, segundo achava.

 

- Por que é que você está chorando? - perguntou secamente Garrett. - A culpa é sua, se você se machucou. Não devia ter fugido. Deixe eu ver.

 

E indicou com a cabeça o tornozelo inchado.

 

- Estou bem - disse rapidamente Lydia, mas, em seguida, quase sem querer, estendeu o pé.

 

- No ano passado - disse ele -, uns sacanas na escola me empurraram ladeira abaixo atrás do posto de gasolina da Mobil. Torci o tornozelo. Parece igual àquilo. Dói pra burro.

 

Acabe logo com isso, disse Lydia a si mesma. com isso, você fica muito mais perto de casa.

 

Foda-me logo.

 

Não!

 

Mas não se esquivou quando Garrett sentou-se a sua frente. Segurou-lhe a perna. Os dedos compridos - Deus, eram imensos - tenteavam em volta da panturrilha e, em seguida, em volta do tornozelo. Ele tremia, olhando para os rasgões na meia-calça branca, nos lugares onde a carne rosada encorpava-se. Garrett examinou-lhe o pé.

 

- Não está cortado. Mas está todo preto. O que é que isso significa?

 

- Pode estar quebrado.

 

Ele não respondeu nem mostrou pena. Era como se a dor dela não fizesse sentido para ele, como se não pudesse compreender que um ser humano poderia estar sofrendo.

 

O interesse dele era apenas um pretexto para tocá-la.

 

Lydia estendeu ainda mais a perna, os músculos tremendo com o esforço para elevá-la. O pé tocou o corpo de Garret perto da virilha.

 

Ele baixou as pálpebras, a respiração acelerada.

 

Lydia engoliu em seco.

 

Ele moveu-lhe o pé, que roçou o pênis através do pano molhado. Estava duro como a pá da roda d'água, com a qual se chocara ao tentar fugir.

 

A mão de Garrett subiu mais pela perna. Sentiu-lhe as unhas puxarem a meia-calça.

 

NãO...

 

Sim...

 

Em seguida, ele ficou rígido.

 

Inclinou a cabeça para trás e as narinas se alargaram. Inalou profundamente. Duas vezes.

 

Lydia farejou também o ar. Um cheiro azedo. Precisou de um momento para identificá-lo. Amônia.

 

- Merda - disse ele, baixinho, os olhos esbugalhados de pavor.

 

- Como foi que eles chegaram aqui tão depressa?

 

- O quê? - perguntou Lydia. Ele levantou-se de um salto.

 

- A armadilha! Eles a desarmaram! Vão chegar aqui dentro de dez minutos! Como, merda, eles conseguiram chegar aqui tão ligeiro?

 

- Abaixou a cabeça, fitou-a no rosto e ela nunca vira tanta raiva e ódio nos olhos de uma pessoa. - Você deixou alguma coisa na trilha? Enviou uma mensagem a eles?

 

Ela se encolheu de medo, certa de que ele ia matá-la. Garrett parecia inteiramente descontrolado.

 

- Não! Juro! Juro que não.

 

Garrett veio em sua direção. Lydia recuou, mas ele passou rapidamente por ela. Estava frenético, rasgando o tecido enquanto tirava a camisa e a calça, a cueca, as meias. Lydia olhou para aquele corpo magro, a grande ereção apenas levemente diminuída. Nu, ele correu para o canto da sala. Havia ali, no chão, algumas roupas, dobradas. Vestiu-as. Calçou-se, também.

 

Lydia ergueu a cabeça e olhou pela janela, através da qual chegava o cheiro químico forte. De modo que a armadilha dele não era uma bomba... tinha usado a amônia como uma arma em si, o líquido descendo como chuva sobre o grupo de busca, cegando-os.

 

Garrett continuou a falar, quase num sussurro:

 

- vou ter que chegar a Mary Beth.

 

- Eu não posso andar - disse Lydia, em soluços. - O que é que você vai fazer comigo?

 

Ele tirou do bolso da calça o canivete. Abriu-o com um alto estalo. Virou-se para ela.

 

- Não, não, por favor...

 

- Você está ferida. Não há jeito de você poder me acompanhar. Lydia olhou para a lâmina. Manchada e dentada. O ar entrava em seus pulmões em pequenos arquejos.

 

Garrett aproximou-se mais. Lydia começou a gritar.

 

Como eles haviam chegado ali tão rápido? perguntou-se Garrett Hanlon outra vez, saindo correndo pela porta do moinho e dirigindo-se para o riacho, o pânico que sentia tantas vezes picando-lhe o coração como a urtiga venenosa fizera com sua pele.

 

Em apenas algumas horas, seus inimigos haviam coberto a distância entre Blackwater Landing e o moinho. Estava atônito. Pensava que eles precisariam de pelo menos um dia, provavelmente dois, para lhe encontrar a pista. Olhou para a trilha que vinha da pedreira. Nenhum sinal deles. Virou-se na direção oposta e começou lentamente a seguir outra trilha - esta para longe da pedreira, riacho abaixo a partir do moinho.

 

Estalando as unhas e perguntando a si mesmo: "Como, como, como?"

 

Relaxe, disse a si mesmo. Havia tempo de sobra. Depois de a garrafa de amônia ter se quebrado nas pedras, a polícia estaria se movendo tão devagar como besouros de bosta em cima da merda, preocupada com a existência de outras armadilhas. Dentro de minutos, ele estaria no pântano e nunca poderiam segui-lo. Mesmo se usassem cães. Dentro de oito horas, estaria com Mary Beth. Ele...

 

Nesse momento, parou.

 

Ao lado da trilha, viu uma garrafa plástica de água, vazia. Parecia que alguém havia justamente a lançado ali. Cheirou o ar, pegou a garrafa, cheirou a parte interna.

 

Amônia!

 

Uma imagem pipocou em sua mente: uma mosca presa em uma teia de aranha. E pensou: Merda! Eles me enganaram!

 

Uma voz de mulher bradou secamente:

 

- Fique aí onde está, Garrett.

 

Uma ruiva bonita, usando jeans e camisa preta saiu das moitas, uma pistola na mão, apontada diretamente para seu peito. Os olhos dela desceram para o canivete que ele tinha na mão e, em seguida, para o rosto.

 

- Ele está aqui - gritou a mulher. - Peguei-o. - A voz baixou de tom e ela fitou-o nos olhos. - Faça o que eu digo e você não vai se machucar. Largue o canivete e deite-se no chão, cara pra baixo.

 

O rapaz, porém, não se deitou.

 

Permaneceu simplesmente imóvel, desengonçado, as unhas dos dedos e do polegar da mão esquerda estalando compulsivamente. Ele parecia inteiramente apavorado e desesperado.

 

Amélia Sachs lançou um olhar para o canivete sujo, que ele conservava firme na mão. E manteve a mira do Smith & Wesson voltada para o peito de Garrett.

 

Os olhos lhe ardiam por efeito da amônia e do suor. Enxugou o rosto com a manga da camisa.

 

- Garrett... - disse ela, em tom calmo. - Deite-se. Ninguém vai machucar você, se você fizer o que estamos mandando.

 

Ouviu um grito distante:

 

- Encontrei Lydia - berrou Ned Spoto. - Ela está bem. Mas Mary Beth não está aqui.

 

Sachs ouviu também a voz de Lucy:

 

- Onde, Amélia?

 

- Na trilha que dá no riacho - gritou ela em resposta. - Jogue o canivete para aqui, Garrett. No chão. Em seguida, deite-se.

 

Ele fitou-a, cauteloso, manchas vermelhas na pele, olhos úmidos.

 

- Vamos, Garrett. Nós somos quatro aqui. Não há maneira de fugir.

 

- Como? - perguntou ele. - Como foi que vocês me encontaram? A voz era de criança, de alguém mais jovem do que a maioria dos rapazes de 16 anos de idade.

 

Ela não lhe disse, claro, que a maneira como haviam descoberto a armadilha e o moinho tinha sido trabalho de Lincoln Rhyme. No exato momento em que tomaram a trilha do centro na encruzilhada, o criminalista tinha ligado para ela. E disse:

 

- Um dos empregados de lojas de forragem com quem Jim Bell conversou disse que ninguém mais por aqui usa milho como ração para gado. Disse que, provavelmente, tinha vindo de um moinho e Jim sabia de um deles, abandonado e que pegou fogo no ano passado. Isso explicaria os chamuscos.

 

Bell tomou o telefone e disse ao grupo de busca como chegar ao moinho. Em seguida, Rhyme voltou ao aparelho e acrescentou:

 

- Eu também pensei numa coisa sobre a amônia.

 

Lendo os livros de Garrett, tinha encontrado um trecho sublinhado, dizendo que insetos usavam cheiros para comunicar avisos de perigo. E chegou à conclusão de que, desde que a amônia não era encontrada em explosivos comerciais, tal como o tipo usado na pedreira, Garrett havia provavelmente preparado uma armadilha com esse produto, que seria acionada por uma linha de pesca deixada de propósito para que alguém nela tropeçasse. Isso tinha sido feito para que, quando os perseguidores acionassem a armadilha, o rapaz sentisse o cheiro e soubesse que eles estavam perto e, portanto, poderia fugir.

 

Depois de encontrada a armadilha, Sachs teve a idéia de encher de amônia uma das garrafas de água de Ned, dar silenciosamente uma volta em torno do moinho e derramar o produto no chão, no lado de fora - para escorraçá-lo dali.

 

E teve êxito.

 

Mas ele continuava a lhe ignorar as instruções. Garrett olhou em volta, examinou-lhe em seguida o rosto, como se tentando chegar a uma conclusão, se ela atiraria mesmo nele ou não.

 

Coçou uma erupção no rosto, enxugou o suor, ajustou a empunhadura no canivete, olhando para a direita e a esquerda, os olhos enchendo-se de desespero e pânico.

 

com receio de sobressaltá-lo e levá-lo a correr - ou atacá-la -, Sachs experimentou usar o tom de uma mãe convencendo o filho a ir dormir:

 

- Garrett, faça o que estou dizendo. Tudo vai correr bem. Simplesmente faça o que estou pedindo. Por favor.

 

- Está em boa posição para atirar? Aproveite-a. Mason Germain falava num sussurro.

 

A uns 70 metros de distância do local onde aquela puta ruiva de Nova York enfrentava o assassino, Mason e Nathan se encontravam na crista de uma colina nua.

 

Mason estava em pé e, Nathan, deitado de bruços no chão quente. Apoiou a Ruger num pequeno monte de pedras e concentrou-se em controlar a respiração, como se espera que caçadores de alces, gansos e seres humanos façam antes de atirar.

 

- Vamos - apressou-o Mason. - Não há vento. Você tem uma vista clara daqui. Atire!

 

- Mason, o garoto não está fazendo coisa nenhuma.

 

Viram Lucy Kerr e Jesse Corn entrar na clareira, juntando-se à ruiva, suas armas também apontadas para o rapaz. Nathan continuou:

 

- Todos eles estão cobrindo-o com suas armas e ele só tem um canivete. Um canivetinho de nada. Parece que ele vai se render.

 

- Ele não vai se entregar - Mason quase que cuspiu as palavras, mudando impaciente o peso de um pé para o outro. - Eu lhe disse... ele está fingindo. Ele vai matar um, logo que baixarem a guarda. Para você não significa nada que Ed Schaeffer esteja morto?

 

Meia hora antes, Steve Farr tinha ligado, contando a triste notícia.

 

- Ora, acabe com isso, Mason. Eu estou tão sentido como qualquer um de nós. Mas isso nada tem a ver com as regras de captura de criminosos. Além do mais, quer dar uma olhada? Lucy e Jesse estão a apenas uns dois metros dele.

 

- Está com medo de atingi-los? Foda-se, você pode acertar numa moeda a essa distância, Nathan. Ninguém atira melhor do que você. Aproveite a oportunidade. Atire.

 

- Eu...

 

Mason observava a curiosa peça que se desenrolava na clareira. A ruiva baixou a arma e deu um passo para a frente. Garrett continuava com o canivete na mão, a cabeça girando para os lados.

 

A mulher deu outro passo.

 

Oh, isso é que eu chamo de ajuda., sua puta.

 

- Ela está em sua linha de fogo?

 

- Não, mas o que quero dizer - continuou Nathan -, é que a gente nem devia estar aqui.

 

- Esse não é o problema - murmurou Mason. - Nós estamos aqui. Eu autorizei ajuda para proteger a equipe de busca e estou lhe ordenando que atire. Soltou a trava de segurança?

 

-Soltei.

 

- Então, atire.

 

Nathan olhou pela mira telescópica.

 

Mason observou o cano da Ruger imobilizar-se, enquanto Nathan se tornava uno com a arma. Mason tinha visto isso antes... quando caçava com amigos que eram esportistas muito melhores do que ele.

 

Era uma coisa sobrenatural, que não compreendia muito bem. A arma torna-se parte da pessoa, pouco antes de disparar quase que por si mesma.

 

Mason esperou o som trovejante do disparo da longa carabina.

 

Nem uma única lufada de vento. Um alvo inteiramente visível. Contra um fundo claro.

 

Atire, atire, atire!, dizia a mensagem silenciosa de Mason.

 

Mas, em vez do estrondo da carabina, ouviu um suspiro. Nathan baixou a cabeça.

 

- Não posso.

 

- Me dê essa merda de arma.

 

- Não, Mason. Deixe disso.

 

A expressão que viu no policial veterano, porém, silenciou o atirador, que entregou a espingarda e rolou para o lado.

 

- Quantas, no carregador? - perguntou secamente Mason.

 

- Eu...

 

- Quantas balas no carregador? - repetiu Mason, deitando-se de bruços e tomando posição idêntica à do colega um momento antes.

 

- Cinco. Nada de pessoal, Mason, mas você não é o melhor atirador do mundo, há três inocentes no campo de tiro e se você...

 

A voz de Nathan sumiu. A frase só podia ser concluída de uma maneira e ele não queria acompanhá-la até esse lugar.

 

É verdade, sabia Mason, não era o melhor atirador do mundo. Mas havia abatido uma centena de gamos. E tinha obtido altas pontuações no estande de tiro da Polícia, em Raleigh. Além disso, bom atirador ou não, sabia por que o Menino-Inseto tinha que morrer e morrer naquele instante.

 

Respirou firme, também, dobrou o dedo em volta do gatilho ranhurado. E descobriu que Nathan estava mentindo: não tinha soltado a trava de segurança. Nesse momento, furioso, apertou o botão e recomeçou a controlar a respiração.

 

Para dentro, para fora.

 

Pousou a retícula cruzada da mira no rosto do rapaz.

 

A ruiva aproximou-se mais de Garrett e, durante um momento, seu ombro ficou na linha de fogo.

 

Jesus, meu Senhor, você está dificultando as coisas, moça. Ela saiu do campo de visão. Em seguida, o pescoço dela apareceu no centro da mira. Desviou-se um pouco para a esquerda, mas permaneceu no centro da retícula.

 

Respire, respire.

 

Mason, ignorando o fato de que as mãos lhe tremiam mais do que deviam, concentrou-se no rosto inchado do alvo.

 

Baixou a retícula para o peito de Garrett.

 

A policial ruiva apareceu mais uma vez na linha de fogo. E, em seguida, saiu.

 

Mason sabia que devia puxar suavemente o gatilho. Mas, como acontecia com tanta freqüência em sua vida, a raiva dominou-o e tomou por ele a decisão. com um movimento brusco, puxou a lingüeta de metal.

 

Atrás de Garrett, um monte de areia subiu bruscamente no ar, enquanto ele levava a mão à orelha, onde, tal como Sachs, tinha sentido o zunido da bala.

 

Um momento depois, o som trovejante do tiro encheu a clareira.

 

Sachs girou sobre si mesma. Pela demora entre o zunido da bala e o som do tiro, teve certeza de que o tiro não fora disparado por Lucy ou Jesse, mas de uma distância de uns 70 metros, mais ou menos, às costas deles. Os policiais, igualmente, olhavam para trás, armas no alto, tentando localizar o atirador.

 

Agachando-se, Sachs lançou um olhar ao rosto de Garrett e viulhe os olhos - o terror e a confusão que neles havia. Durante um momento, apenas por um instante, ele não era o assassino que tinha esmagado o crânio de um rapazola ou um estuprador que havia tirado sangue de Mary Beth McConnell e lhe violado o corpo. Era um menininho assustado, choramingando: "Não, não!"

 

- Quem foi? - gritou Lucy Kerr. - Culbeau? Abrigaram-se atrás de algumas moitas.

 

- Abaixe-se, Amélia - gritou Jesse. - Não sabemos em quem eles estão atirando. Pode ser um amigo de Garrett, atirando em nós.

 

Sachs, porém, não pensava assim. A bala tinha um alvo: Garrett. Vasculhou o topo dos morros próximos, procurando sinais do tocaieiro.

 

Outra bala passou por eles, esta muito longe do alvo.

 

- Santa Maria! - exclamou Jesse Corn, engolindo a blasfêmia, aparentemente rara em sua boca. - Olhem lá pra cima... É Mason! E Nathan Groomer. Naquele morro.

 

- Gemiam? - perguntou amargamente Lucy, apertando os olhos. Furiosa, apertou o botão de transmissão do handitalkie e berrou: Mason, o que diabo você está fazendo?

 

Você está aí? Está-me ouvindo?... Central. Atenda, Central. Droga. Não consigo receber nada.

 

Sachs sacou o celular e ligou para Rhyme. Ele respondeu um instante depois. Ouviu-lhe a voz, rouca, no telefone:

 

- Sachs, você conseguiu...?

 

- Nós o pegamos, Rhyme. Mas aquele policial, Mason Germain, está num morro próximo, atirando no rapaz. Não conseguimos falar com ele pelo rádio.

 

- Não, não, não, Sachs! Ele não pode matá-lo! Verifiquei a degradação do sangue naquele lenço de papel... Mary Beth estava viva ontem à noite! Se Garrett morrer, nós nunca vamos achá-la.

 

Sachs gritou essa informação para Lucy, mas a policial continuava sem fazer contato pelo rádio com Mason.

 

Outro tiro. Uma pedra despedaçou-se, cobrindo-os de poeira.

 

- Pare com isso! - soluçou Garrett. - Não, não... Estou com medo. Diga a ele para parar!

 

Sachs voltou a falar com Rhyme:

 

- Pergunte a Bell se Mason tem telefone celular e mande-o ligar, diga a ele para acabar com esses tiros.

 

-OK, Sachs...

 

Rhyme desligou.

 

Se Garrett morrer nós nunca a encontraremos...

 

Amélia Sachs tomou uma rápida decisão, jogou a arma para trás das costas e deu um passo à frente, virada para Garrett, a uns 30 centímetros de distância, colocando-se frontalmente entre a arma de Mason e o rapaz. E pensando: no tempo que levei para fazer isso, Mason pode ter puxado o gatilho, e a bala, precedendo a onda sonora do tiro, pode estar vindo diretamente para minhas costas.

 

Parou de respirar, imaginando que podia sentir o projétil voando para ela.

 

Passou-se um momento. Nenhum tiro mais.

 

- Garrett, você tem que largar esse canivete.

 

- Vocês tentaram me matar! Vocês me enganaram!

 

Sachs ficou em dúvida se ele a esfaquearia ou não - com raiva ou em pânico.

 

- Não. Nós não tivemos nada a ver com isso. Olhe aqui, estou à sua frente. Estou protegendo você. Ele não vai atirar de novo.

 

Garrett, os olhos trêmulos, examinou-lhe atentamente o rosto.

 

Sachs se perguntou se Mason não estaria esperando que ela desse um passo para o lado, apenas o suficiente para que pudesse fazer pontaria em Garrett. Ele, evidentemente, era um mau atirador e imaginou uma bala despedaçando-lhe a espinha.

 

Ah, Rhyme, pensou, você veio aqui para fazer uma operação e ficar mais parecido comigo. Talvez, hoje, eu fique mais parecida com você...

 

Jesse Corn subia correndo nesse momento o morro, sacudindo os braços e gritando:

 

- Mason, pare de atirar! Pare de atirar!

 

Garrett continuou a examinar atentamente Sachs. Em seguida, jogou o canivete para um lado e começou a estalar compulsiva e ininterruptamente as unhas.

 

Enquanto Lucy adiantava-se correndo e algemava Garrett, Sachs virou-se para o morro de onde Mason estava atirando. Viu-o levantar-se e falar ao telefone. Ele olhou-a diretamente, ao que pareceu, enfiou o telefone no bolso e começou a descer o morro.

 

- Em que, diabo, você estava pensando? - gritou Sachs, furiosa, para Mason.

 

Dirigiu-se em linha reta para ele. Ficaram a apenas uns 30 centímetros um do outro e ela era uns 2,5 centímetros mais alta do que ele.

 

- Protegendo seu rabo, moça - respondeu ele grosseiramente. Você não notou que ele tinha uma arma?

 

- Mason - Jesse fez um esforço para amenizar a situação -, tudo que ela estava tentando fazer era acalmar as coisas por aqui. Ela o convenceu a entregar-se.

 

Amélia Sachs, porém, não precisava de um irmão mais velho para defendê-la e disse:

 

- Venho me defendendo sozinha há anos. Ele não ia me atacar. A única ameaça vinha de você. Você podia ter baleado qualquer um de nós.

 

- Bobagem!

 

Mason aproximou-se mais e Amélia sentiu o cheiro da loção pós-barba, de aroma almiscarado, com a qual ele parecia ter tomado um banho.

 

Amélia afastou-se daquela onda de cheiro e disse:

 

- E se você tivesse matado Garrett, Mary Beth provavelmente teria morrido de fome ou sufocado até a morte.

 

- Ela está morta - retrucou secamente Mason. - Aquela moça está enterrada numa cova em algum lugar e nós nunca a acharemos.

 

- Lincoln recebeu um laudo sobre o sangue dela - respondeu Sachs. - Ela ainda estava viva na noite passada.

 

A informação deu a Mason motivos para pensar e murmurar:

 

- Noite passada não é agora.

 

- Ora, vamos, Mason - disse Jesse. - Tudo acabou bem.

 

Mas ele não queria se acalmar. Ergueu os braços e bateu com força nas coxas. Olhou dentro dos olhos de Sachs e disse:

 

- Por falar nisso, não sei por que merda precisamos de vocês aqui.

 

- Mason - disse Lucy -, o caso acabou. Nós não teríamos encontrado Lydia se não fosse pelo Sr. Rhyme e por Amélia. Temos que agradecer a eles. Deixe o assunto morrer.

 

- Ela é que não quer deixar o assunto morrer.

 

- Quando alguém me coloca na linha de fogo, é melhor que haja uma razão muito boa - disse Sachs calma. - E não é absolutamente uma boa razão que esteja querendo matar esse rapaz porque você não conseguiu provas para acusá-lo.

 

- Você não tem nada a ver com a maneira como faço meu trabalho. Eu...

 

- Tudo bem, vamos terminar com isto aqui - interrompeu-os Lucy - e voltar à delegacia. Estamos trabalhando ainda na suposição de que Mary Beth continua viva e temos que encontrá-la.

 

- Ei - disse Jesse Corn -, lá vem o helicóptero.

 

Um helicóptero do centro médico aterrissou numa clareira próxima ao moinho. Os paramédicos retiraram Lydia em uma maca. Ela tinha sofrido um leve ataque cardíaco e o tornozelo estava seriamente deslocado. No início, ela ficara histérica... Garrett havia se aproximado dela com o canivete na mão e, mesmo que depois verificasse que ele o usara simplesmente para cortar a fita veda-juntas para amordaçá-la, Lydia continuava muito abalada. Mas conseguiu acalmar-se o suficiente para dizer que Mary Beth não estava em lugar algum perto do moinho. Garrett a escondera em algum lugar perto do mar, nos Bancos Externos. Ela não sabia exatamente onde. Lucy e Mason tentaram convencer Garrett a falar, mas ele pemanecéu mudo, sentado, mãos algemadas às costas, olhando embotado para o chão.

 

Lucy voltou-se para Mason e disse:

 

- Você, Nathan e Jesse levam Garrett até a estrada para Easedale. vou pedir a Jim que mande um carro para lá. No lugar onde o riacho Possum muda de direção. Amélia quer dar uma busca no moinho. Eu vou dar uma ajuda a ela. Enviem outro carro para a Easedale, dentro de uma meia hora, mais ou menos, para nos buscar.

 

Sachs ficou feliz em sustentar os olhos de Mason por tanto tempo enquanto ele quis participar desse concurso, tipo "quem desvia a vista primeiro". Foi ele que voltou a atenção para Garrett, olhando para o apavorado rapaz de alto a baixo, como um guarda que examina um prisioneiro no corredor da morte. Inclinou a cabeça para Nathan.

 

- Vam'bora. Essas algemas estão seguras, Jesse?

 

- Se estão... - garantiu Jesse.

 

Sachs ficou satisfeita porque, se Jesse fosse com eles, faria com que Mason se comportasse devidamente. Tinha ouvido histórias sobre prisioneiros que "escapuliram"

 

e foram espancados pelos policiais da escolta. Às vezes, acabavam mortos.

 

Mason agarrou Garrett brutalmente pelo braço e levantou-o com um repelão. O rapaz lançou um olhar desesperado a Sachs. Em seguida, Mason puxou-o pela trilha.

 

Sachs virou-se para Jesse Corn:

 

- Fique de olho no Mason. Podemos precisar de toda cooperação de Garrett para encontrar Mary Beth. E se ele ficar apavorado demais ou furioso, não vamos conseguir nada dele.

 

- vou fazer isso mesmo, Amélia. - Um olhar de relance para ela.

 

- Foi preciso coragem pra fazer o que você fez. Ficar na frente dele. Eu não teria feito isso.

 

- Bem... - disse ela, não estando em estado de ânimo de querer mais adoração -, às vezes, a gente simplesmente age e não pensa.

 

Jesse inclinou vivamente a cabeça, como se adicionando essas palavras a seu repertório.

 

- Ah, eu ia perguntar... Você tem algum apelido?

 

- Para dizer a verdade, não.

 

- Ótimo. Gosto de "Amélia" justamente como é.

 

Durante um ridículo momento, ela pensou que ele ia beijá-la para comemorar a captura. Mas ele tomou a direção seguida por Mason, Nathan e Garrett.

 

Meu irmão, pensou Amélia Sachs em desespero, vendo Jesse virar-se para um alegre aceno. Um dos policiais quer atirar em mim e outro vai justamente reservar a igreja e contratar o bufê.

 

Sachs percorreu a grade no interior do moinho... concentrando-se na sala onde Garrett prendera Lydia, andando de um lado para o outro, um passo de cada vez.

 

Tinha certeza de que ali havia alguma pista sobre o local do cativeiro de Mary Beth McConnell. Ainda assim, às vezes, a conexão entre criminoso e local é tão tênue que só existe microscopicamente. Percorrendo a sala, nada encontrou de útil... apenas terra, pedaços de metal e fragmentos chamuscados de madeira das paredes, que haviam desmoronado durante o incêndio, alimentos, água, sacos vazios de alimentos e a fita veda-juntas que Garrett comprara (todas elas sem etiquetas de lojas).

 

Encontrou o mapa no qual o pobre Ed Schaeffer dera uma espiada. Mostrava o caminho seguido por Garrett até o moinho, mas não havia marcas de qualquer destino além desse ponto.

 

Ainda assim, deu duas buscas. E uma terceira. Parte disso era ensinamento de Rhyme e, também, seguir sua própria natureza. (E parte disso, pensou, não seria uma tática de retardamento? Para adiar tanto quanto possível o encontro de Rhyme com a Dra. Weaver?) Nesse momento, Lucy gritou:

 

- Encontrei alguma coisa.

 

Sachs tinha sugerido que a policial desse uma busca na sala de moagem, o local para onde Lydia disse que correu quando tentou fugir de Garrett. Sachs raciocinou que, se houve luta, alguma coisa poderia ter caído dos bolsos de Garrett. Deu à policial um curso rápido sobre pesquisa de grade, e lhe disse o que procurar e como manusear corretamente a prova.

 

- Olhe só - disse entusiasmada Lucy, entregando-lhe uma caixa de papelão. - Encontrei isso escondido atrás da mó. Dentro havia um par de sapatos, uma jaqueta à prova d'água, uma bússola e um mapa da linha costeira da Carolina do Norte. Notou também uma fina camada de areia branca nos sapatos e nas dobras do mapa.

 

Lucy fez menção de abrir o mapa.

 

- Não - interrompeu-a Sachs. - Pode haver mais vestígios aí dentro. Espere até voltarmos para junto de Lincoln.

 

- Mas ele pode ter marcado o lugar para onde a levou.

 

- Pode, sim. Mas ainda vai continuar marcado quando voltarmos ao laboratório. Se perdermos um vestígio agora, vamos perdê-lo para sempre. - Em seguida, disse: -

 

Continue a busca lá dentro. Quero examinar a trilha que ele estava seguindo quando o prendemos. Ela levava para a água. Talvez ele tenha um barco escondido por lá.

 

Pode haver outro mapa ou mais alguma coisa.

 

Deixou o moinho e andou até o riacho. Passando pela elevação de onde Mason atirou, deu uma volta no caminho e descobriu dois homens, fitando-a. Ambos armados com carabinas.

 

Oh, não. Eles, não.

 

- Ora - disse Rich Culbeau.

 

E espantou uma mosca que pousara na testa queimada de sol. Lançou a cabeça para trás e a trança grossa e lustrosa balançou-se como um rabo-de-cavalo.

 

- Obrigado, mesmo, madame - disse o outro, com um leve sarcasmo.

 

Sachs lembrou-se do nome dele: Harris Tomei... o tal que se parecia tanto com um empresário sulista quanto Culbeau se parecia com um membro de uma gangue de motoqueiros.

 

- Nenhuma gratificação para nós - continuou Tomei. - E o dia inteiro debaixo deste sol de rachar.

 

- O rapaz lhe disse onde está Mary Beth? - perguntou Culbeau.

 

- Você vai ter que conversar com o xerife Bell sobre esse assunto - respondeu Sachs.

 

- Eu simplesmente pensei que ele poderia ter dito.

 

Em seguida, ela ficou curiosa: como era que eles haviam descoberto o moinho? Poderiam ter seguido a equipe de busca, mas também ter recebido uma dica... quem sabe, de Mason Germain, na esperança de um pouco de ajuda em sua operação de tocaieiro renegado.

 

- Eu tinha razão - continuou Culbeau.

 

- Como assim? - perguntou Sachs.

 

- Sue McConnell deve ter aumentado a recompensa para dois mil.

 

E deu de ombros.

 

- Tão perto e, ainda assim, tão longe - acrescentou Tomei.

 

- Vocês me desculpem, mas eu tenho trabalho pra fazer. Passou por eles, pensando: E onde está o terceiro dessa gangue?

 

O magrelo...

 

Um ruído súbito às suas costas e, quando deu por si, a pistola estava sendo arrancada do coldre. Girou, agachando-se, enquanto a arma desaparecia na mão do magro e sardento Sean O'Sarian, que se afastou dançando, sorrindo como o palhaço da classe.

 

Culbeau sacudiu a cabeça.

 

- Sean, deixe disso. Sachs estendeu a mão.

 

- Quero minha arma de volta.

 

- Eu estou simplesmente examinando. Bela peça. Harris, aqui, coleciona armas. Esta aqui é bem bacana, não acha, Harris?

 

Tomei nada disse, suspirou apenas e enxugou o suor da testa.

 

- Você está procurando encrenca - avisou-o Sachs.

 

- Devolva a arma, Sean - disse Culbeau. - Está quente demais para suas palhaçadas.

 

Ele fingiu devolvê-la, a coronha em primeiro lugar, mas depois sorriu e puxou a mão para trás.

 

- Ei, doçura, de onde é você, exatamente? De Nova York, ouvi dizer. Como é a coisa por lá? Lugar da pesada, aposto.

 

- Deixe de brincar com essa merda de arma - murmurou Culbeau. - Ficamos sem dinheiro. Vamos simplesmente aceitar esse fato e voltar para a cidade.

 

- Devolva-me a arma, agora - disse baixinho Sachs. O'Sarian, porém, continuava a fazer brincadeiras, apontando a arma para as árvores, como se fosse um menino de dez anos brincando de mocinho e bandido.

 

- Pó, pÔ...

 

- Tudo bem, esqueça. - Sachs encolheu os ombros. De qualquer modo, a arma não é minha. Quando acabar de brincar com ela, devolva-a à delegacia.

 

E virou-se para passar por ele.

 

- Ei - disse O'Sarian, franzindo a testa, desapontado porque ela não queria brincar mais. - Você não...

 

Sachs desviou-se para a direita, abaixou-se e subiu rápida por trás dele, pegando-o em uma chave de pescoço com um braço só. Em meio segundo, o canivete estava fora de seu bolso, a lâmina aberta e a ponta tocando as sardas vermelhas embaixo do pescoço do brincalhão.

 

- Oh, Jesus, o que é que você está fazendo? - berrou ele. Mas logo compreendeu que falar empurrava a garganta contra a ponta do canivete. Calou-se.

 

- Tudo bem, tudo bem - disse Culbeau, levantando as mãos.

 

- Não vamos...

 

- Joguem as armas no chão - disse Sachs. - Todos vocês.

 

- Eu não fiz nada - protestou Culbeau.

 

- Escute aqui, senhorita - disse Tomei, tentando parecer sensato -, a gente não queria fazer nada de mal. Nosso amigo aqui é um...

 

A ponta do canivete picou o queixo com a barba por fazer.

 

- Ei, façam o que ela disse, façam! - disse em desespero O'Sarian, os dentes rilhados. - Joguem no chão essas merdas de armas.

 

Culbeau deixou a espingarda cair. Tomei, também.

 

Enojada com o cheiro de sujeira de O'Sarian, Sachs desceu ao mão pelo braço dele e agarrou a arma. Ele soltou-a. Sachs deu um passo para trás, empurrou-o e manteve a pistola apontada para ele.

 

- Eu estava apenas brincando - disse O'Sarian. - Eu faço isso. Gosto de brincar. Não faço mal a ninguém. Digam a ela que eu faço brincadeiras...

 

- O que é que está acontecendo aqui? - perguntou Lucy Kerr, descendo a trilha, a mão na coronha da arma.

 

Culbeau sacudiu a cabeça.

 

- Sean estava dando uma de imbecil.

 

- O que vai acabar matando-o um dia desses - disse Lucy. Sachs, com uma única mão, fechou o canivete e guardou-o no bolso.

 

- Olhe, fui cortado. Olhe, sangue! O'Sarian mostrou um dedo manchado.

 

- Diabo - disse reverentemente Tomei, embora Sachs não fizesse idéia a respeito do que ele se referia.

 

Lucy olhou para Sachs.

 

- Quer fazer alguma coisa a este respeito? - perguntou.

 

- Tomar um banho - respondeu Amélia. Culbeau soltou uma risada.

 

E Amélia acrescentou:

 

- Nós não temos tempo para perder com eles. A policial inclinou a cabeça na direção do trio.

 

- Isto aqui é uma cena de crime. Vocês, rapazes, perderam a recompensa. - Acenou para as espingardas. - Se querem caçar, vão caçar em outra freguesia.

 

- Ah, como se fosse temporada de caça de alguma coisa? - perguntou O'Sarian, zombando de Lucy pela estupidez de seu comentário. - Quero dizer, droga... ohhh.

 

- Neste caso, voltem pra cidade, antes de complicar a vida de vocês mais do que já fizeram.

 

Os homens apanharam as armas. Culbeau baixou a cabeça para o ouvido de O'Sarian e lhe falou em palavras baixas e furiosas. O'Sarian encolheu os ombros e sorriu.

 

Durante um momento, Sachs pensou que Culbeau ia esbofeteá-lo. Mas, em seguida, o homenzarrão acalmou-se e voltou-se para Lucy com uma pergunta:

 

- Vocês encontraram Mary Beth?

 

- Ainda não. Mas pegamos Garrett e ele vai nos dizer.

 

- Gostaria de ter ganho a recompensa - disse Culbeau -, mas estou contente porque o pegaram. Aquele rapaz é pura encrenca.

 

Quando foram embora, Sachs perguntou:

 

- Encontrou mais alguma coisa no moinho?

 

- Não. Pensei em vir até aqui ajudá-la a procurar o bote. Continuando a descer a trilha, Sachs disse:

 

- Esqueci de uma coisa. Temos que enviar alguém de volta àquela armadilha... o ninho de marimbondos. Matá-los e aterrar o buraco.

 

- Jim enviou para o local Trey Williams, um de nossos policiais, com uma lata de spray contra marimbondos e uma pá. Mas não havia marimbondo nenhum. Era um velho ninho.

 

- Vazio?

 

- Isso mesmo.

 

De modo que, não era uma armadilha, absolutamente, apenas um macete para retardá-los. Sachs pensou também que a garrafa de amônia não tinha sido colocada ali com a intenção de machucar ninguém. Garrett poderia tê-la preparado para derramar sobre os perseguidores, cegando-os. Mas havia-a empoleirado no lado de um pequeno penhasco.

 

Se não houvesse encontrado a linha de pesca e nela tropeçassem, a garrafa teria caído nas rochas a uns 3 metros abaixo, alertando-o com o cheiro do produto, mas sem ferir ninguém.

 

Mais uma vez, viu a imagem dos olhos esbugalhados, apavorados, de Garrett.

 

- Estou com medo. Faça ele parar!

 

Sachs notou nesse momento que Lucy lhe dizia alguma coisa.

 

- Sinto muito.

 

A policial continuou:

 

- Onde foi que você aprendeu a usar aquele seu graveto... o canivete?

 

- Treinamento de sobrevivência.

 

- De sobrevivência? Onde?

 

- Num lugar chamado Brooklyn - respondeu Sachs.

 

Esperando.

 

Mary Beth McConnell, de pé ao lado da janela encardida, estava nervosa e tonta... efeitos do calor sufocante da prisão e da sede que lhe queimava a garganta. Em toda a casa, não encontrara uma única gota de líquido que pudesse beber. Olhando pela janela dos fundos da cabana, para além do ninho de marimbondo, podia ver garrafas vazias de água em um monte de lixo. As garrafas como que zombavam dela e a tornavam ainda mais sedenta. Sabia que não poderia resistir por mais de um ou dois dias nesse calor, sem alguma coisa para beber.

 

Onde está você? Onde? Silenciosamente, falou com o missionário.

 

Se ele tivesse estado ali... e não fosse apenas criação de uma imaginação em desespero, enlouquecida pela sede.

 

Encostou-se na parede quente da cabana. Pensou que ia desmaiar. Tentou engolir, mas não havia uma única gota de umidade na boca. O ar envolvia-lhe o rosto, sufocando-a como se fosse lã quente.

 

Mas depois pensou, furiosa: "Oh, Garrett... Eu sabia que você seria encrenca." Lembrou-se do velho ditado: a justiça de Deus tarda, mas não falha.

 

Eu não devia nunca tê-lo ajudado... Mas como podia não ajudar? Como não tê-lo salvo daqueles alunos da escola? Lembrou-se de ver os quatro, observando Garrett caído no chão, depois de ele ter desmaiado no ano passado na Maple Street. Um deles, um garotão alto, zombeteiro, um amigo de Billy Stail no time de futebol, desceu o zíper da calça jeans, puxou o pênis para fora e ia urinar em cima de Garrett. Ela partiu furiosa contra eles, disse-lhes o diabo e pegou o telefone celular de um deles para chamar uma ambulância e atender Garrett.

 

Eu tive que fazer isso, claro.

 

Mas, logo que o salvei, eu passei a ser sua...

 

No início, após o incidente, Mary Beth achou graça no fato de ele a seguir como uma sombra, como um admirador tímido. De ligar para sua casa e lhe contar coisas que ouvira no noticiário, enviar-lhe presentes (mas que presentes: um lustroso besouro verde em uma-

 

minúscula gaiola, desenhos desajeitados de aranhas e centopéias, uma libélula amarrada a um barbante... viva!).

 

Mas, em seguida, começou a notar que ele estava sempre por perto, com uma freqüência grande demais. Ouvia passos às suas costas quando andava do carro para a casa, tarde da noite. Via uma figura entre as árvores perto de sua casa em Blackwater Landing. Ouvia-lhe a voz aguda, fantasmagórica, murmurando palavras que não conseguia entender, usando seu tempo precioso, tornando-a cada vez mais inquieta. Olhando-a de soslaio - embaraçado e cheio de desejo - para seus seios, pernas e cabelos.

 

Mary Beth, Mary Beth... você sabia que, se uma teia de aranha fosse, digamos, estendida por cima de todo o mundo, ela pesaria menos de uma onça [28 gramas]... Ei, Mary Beth, você sabia que a teia de aranha é uma coisa cinco vezes mais forte do que aço? E mais elástica do que náilon? Algumas teias são realmente o máximo...

 

parecidas com redes de dormir. Moscas deitam-se nelas e nunca mais acordam.

 

(Ela devia ter notado, pensou nesse momento, que grande parte das coisas que ele dizia era sobre aranhas e insetos pegando presas em armadilhas.)

 

E, assim, reorganizou a vida para evitar encontrá-lo por acaso, procurando novas lojas para compras, diferentes caminhos de volta para casa, outras trilhas para usar sua mountain bike.

 

Mas então aconteceu uma coisa que anulou todo esforço para distanciar-se de Garrett Hanlon: ela fez uma descoberta. E isso aconteceu nas margens do rio Paquenoke, bem no centro de Blackwater Landing... um local que o rapaz demarcara como seu feudo particular. Ainda assim, foi uma descoberta tão importante que nem mesmo uma quadrilha de falsificadores de bebidas, quanto mais um garotão magrelo obcecado por insetos, pbderia mantê-la longe daquele lugar.

 

Mary Beth não sabia por que História deixava-a tão fascinada. Mas sempre havia sido assim. Lembrou-se de ter visitado a Williambsburg colonial quando menina. Era um local a apenas duas horas de carro de Tanner's Corner e sua família visitava-o com freqüência. Gravara na memória os marcos das estradas próximos da cidadezinha de modo a saber quando estivesse próxima dodestinodafamília. Em seguida, fechava os olhos e quando o pai estacionava o Buick, ela pedia à mãe para levá-la pela mão até o parque, onde poderia abrir os olhos e fingir que estava realmente de volta à América colonial.

 

Sentiu o mesmo contentamento - apenas cem vezes mais forte - quando estivera andando pelas margens do Paquenoke em Blackwater Landing na semana passada, os olhos no chão, e notou alguma coisa semi-enterrada no solo lamacento.

 

Caiu de joelhos e começou a remover a terra com o cuidado de um cirurgião pondo à vista um coração doente. E, sim, ali estavam elas: velhas relíquias - a prova que a atônita Mary Beth McConnell, de 23 anos de idade, estava procurando desesperadamente. Evidência que poderia provar-lhe a teoria... e que reescreveria a História americana.

 

Como todos os naturais da Carolina do Norte - e a maioria dos estudantes na América - Mary Beth McConnell estudara, na classe de História, a Colônia Perdida de Roanoke.

 

Em fins da década de 1500, um grupo de colonos ingleses desembarcou na ilha Roanoke, situada entre o continente, na Carolina do Norte, e os Bancos Externos. Após alguns contatos, na maior parte amigáveis, com os índios locais, as relações azedaram. Aproximando-se o inverno e faltando alimentos e outras provisões, o Governador John White, fundador da colônia, voltou à Inglaterra para pedir ajuda. Ao voltar a Roanoke, os colonos - mais de cem homens, mulheres e crianças - haviam desaparecido.

 

A única pista para o que acontecera era a palavra "Croatoan", entalhada no tronco de uma árvore próxima da colônia. Esse era o nome que os índios davam a Hatteras, situada a 80 quilômetros ao sul de Roanoke. A maioria dos historiadores acreditava que os colonos haviam morrido no mar a caminho de Hatteras ou que foram mortos quando chegaram, mas não havia registro de jamais terem desembarcado naquele local.

 

Mary Beth tinha visitado várias vezes a ilha Roanoke e viu a história da tragédia reencenada em um pequeno teatro local. Ficou comovida - e amedrontada - com a peça. Mas nunca pensou muito nessa história até anos depois, quando estudava na Universidade da Carolina do Norte, em Avery, onde leu em profundidade o que havia sobre a Colônia Perdida. Um aspecto da história, que provocava perguntas sem resposta sobre o destino dos colonos, envolvia uma moça chamada Virginia Dare e a lenda da Corça Branca.

 

Era uma história que Mary Beth McConnell - filha única, meio renegada, obstinada - podia compreender. Virginia Dare fora a primeira criança inglesa a nascer na América.

 

Neta do Governador White, fora uma dos Colonos Perdidos. Presumivelmente, diziam os livros de História, morrera com eles em Hatteras ou em viagem para esse local.

 

Mas, enquanto continuava a pesquisa, descobriu que, não muito depois do desaparecimento dos colonos, quando mais britânicos começaram a colonizar a Costa Leste, surgiram as primeiras lendas locais sobre a Colônia Perdida.

 

Uma delas dizia que os colonos não foram imediatamente mortos, mas sobreviveram e continuaram a viver entre as tribos locais. Virginia Dare cresceu e tornou-se uma jovem muito bela - loura e de pele clara, voluntariosa e independente. Um pagé apaixonou-se por ela, foi repelido e, pouco tempo depois, ela desapareceu. O pajé disse que não lhe fizera mal, mas, porque ela lhe rejeitara o amor, havia-a transformado em uma corça branca.

 

Ninguém acreditou nele, claro, mas, logo depois, pessoas na área começaram a ver uma bela corça branca, que parecia ser a líder de todos os animais da floresta.

 

A tribo, assustada com os visíveis poderes da corça, organizou uma prova de destreza para capturá-la.

 

Um jovem guerreiro conseguiu seguir-lhe o rastro e fez a tentativa quase impossível de matá-la com uma flecha de ponta de prata. A flecha perfurou-lhe o peito e, caída e agonizando, a corça ergueu para o caçador olhos assustadoramente humanos.

 

O caçador balbuciou:

 

- Quem é você?

 

- Virginia Dare - sussurrou a corça, e morreu.

 

Mary Beth resolveu estudar a sério a história da Corça Branca, passando longos dias e noites nos arquivos da UNC em Chapei Hill e na Universidade de Duke. Lendo velhos diários e livros de assentamentos dos séculos XVI e XVII, descobriu certo número de referência à "corça branca" e a misteriosos "animais brancos" na região nordeste da Carolina do Norte. Mas os avistamentos não tinham ocorrido nem em Roanoke nem em Hatteras. As criaturas haviam sido vistas ao longo "dos bancos de águas negras, onde o rio Serpentine corre para oeste, a partir do Grande Pântano".

 

Mary conhecia o poder das lendas e sabia que, muitas vezes, há verdade até nas histórias mais fantasiosas. Raciocinou que os Colonos Perdidos, temerosos de ataques das tribos locais, haviam deixado a palavra "Croatoan" para confundir os atacantes e que escaparam não para o sul, mas para o oeste, onde se estabeleceram nas margens do, sim, serpenteante rio Paquenoke - perto de Tanner's Corner, no local atualmente chamado de Blackwater Landing. Ali, os colonos aumentaram em número e tornaram-se mais poderosos. Os índios - com medo da ameaça - atacaram-nos e mataram-nos. Virginia Dare, Mary Beth deu-se o luxo de especular isso ao interpretar a lenda da Corça Branca, tinha sido uma das últimas colonas e lutara até a morte.

 

Bem, essa era sua teoria, mas jamais encontrara prova para confirmá-la. Passara dias batendo a região de Blackwater Landing, armada de mapas antigos, tentando descobrir exatamente onde os colonos poderiam ter desembarcado e onde tinha sido estabelecida a colônia. Finalmente, na última semana, andando pelas margens do Paquo, encontrou prova da Colônia Perdida.

 

Lembrou-se do horror da mãe, quando lhe disse que ia fazer um trabalho arqueológico em Blackwater Landing.

 

- Ali, não - disse a balofa mulher, atemorizada, como se ela mesma estivesse em perigo. - É lá que o Menino-Inseto mata gente. Se a encontrar por lá, ele vai machucá-la.

 

- Mamãe - respondeu secamente Mary Beth -, você é igualzinha àqueles escrotos da escola que vivem a azucriná-lo.

 

- Você disse aquela palavra novamente. Eu pedi a você pra não repetir. A palavra que começa com "E".

 

- Mamãe, acabe com isso... Você parece uma batista careta, sentada no banco das preocupadas.

 

Ela se referia ao primeiro banco na igreja, onde se sentavam as paroquianas especialmente preocupadas com sua própria moral ou o que era mais provável - com a moral dos outros.

 

- Até o nome dá medo - murmurou Sue McConnell. - Blackwater [Água Negra}.

 

Mary Beth explicou que havia dezenas de Blackwaters na Carolina do Norte. Todo rio que descia das terras pantanosas era chamado de rio de águas negras, porque tinham as águas enegrecidas por depósitos de vegetação podre. O Paquenoke era formado pelo Grande Pântano da Desolação e pelos alagados em volta.

 

A informação, porém, não aliviou nem um pouquinho as preocupações da mãe.

 

- Por favor, não vá, amor. - Em seguida, ela disparou sua própria flecha de ponta de prata: - Agora que seu pai morreu, se alguma coisa lhe acontecesse, eu não teria ninguém... Eu ficaria sozinha. Não saberia o que fazer. Você não quer isso, quer?

 

Mary Beth, porém, condicionada pela adrenalina que sempre excitava exploradores e cientistas, tinha reunido seus pincéis, jarras, sacos e uma pá de jardineiro e seguido ontem pela manhã, enfrentando o calor úmido, para dar prosseguimento a seu trabalho arqueológico.

 

E o que aconteceu? Foi atacada e seqüestrada pelo Menino-Inseto. A mãe tinha razão.

 

Nesse momento, sentada na cabana quente e nojenta, sentindo dor, doente e meio delirante de sede, pensou na mãe. Tendo perdido o marido para um câncer devastador, a vida dela estava se desfazendo em pedaços. Havia abandonado as amigas, o trabalho voluntário no hospital, toda e qualquer aparência de rotina e normalidade na vida. Quando deu por si, Mary Beth estava assumindo o papel de progenitora, enquando a mãe resvalava para um mundo de programas de TV durante o dia e junkfood. Gorda, fraca do juízo e carente, ela nada mais era do que uma criança patética.

 

Mas uma das coisas que o pai lhe ensinara - não só pela vida que tivera mas também pela morte difícil - fora que a pessoa tem que fazer o que está destinada a fazer e que não deve alterar seu curso para atender a ninguém. Mary Beth não abandonou os estudos, como a mãe implorara, nem arranjou um emprego perto de casa. Equilibrava a necessidade de apoio da mãe com suas próprias necessidades - a necessidade de obter seu diploma de pós-graduação e, quando o ganhou no ano seguinte, arranjar um trabalho de campo sério em antropologia americana. Se isso fosse perto de casa, ótimo. Mas se fosse para fazer escavações de índios americanos em Santa Fé, de esquimós no Alasca, ou de afro-americanos em Manhattan, era para esses lugares que iria. Estaria sempre ao alcance do pedido de ajuda da mãe, mas tinha sua própria vida para cuidar.

 

Exceto que, nesse momento em que devia estar desenterrando e coletando mais provas em Blackwater Landing, conversando com seu conselheiro de pós-graduação e escrevendo relatórios, fazendo testes com as relíquias que tinha encontrado, era prisioneira no ninho amoroso de um adolescente psicótico.

 

Uma onda de desespero percorreu-lhe o corpo.

 

Sentiu as lágrimas brotando.

 

Em seguida, controlou-as.

 

Pare com isso!... Seja forte. Seja a filha de seu pai, lutando contra a doença a cada minuto do dia, jamais se entregando. Não a filha de sua mãe.

 

Seja Virgínia Dare, que levantou o ânimo dos Colonos Perdidos.

 

Seja a Corça Branca, a rainha de todos os animais da floresta.

 

E nesse momento, enquanto pensava em uma ilustração da majestosa corça em um livro sobre as lendas da Carolina do Norte, viu outro relâmpago de movimento à borda da floresta. O missionário saiu da mata, trazendo uma grande mochila passada pelo ombro.

 

Ele era real!

 

Mary Beth pegou uma das jarras de Garrett, contendo um besouro que parecia um dinossauro, e quebrou-a contra a janela. A jarra atravessou o vidro e espatifou-se nas barras de ferro do outro lado.

 

- Ajude-me! - gritou, em uma voz que mal se ouvia por causa da secura da garganta. - Socorro!

 

O homem olhou para trás. E, em seguida, voltou para a floresta.

 

Mary Beth respirou profundamente e tentou gritar outra vez, mas a garganta fechou-se. Começou a sufocar e cuspiu um pouco de sangue.

 

Do outro lado do campo, o missionário continuou a andar de volta à floresta. Um momento depois, desapareceu.

 

Mary Beth sentou-se pesadamente no sofá bolorento e encostou impotente a cabeça na parede. Ergueu de repente a vista. Um movimento qualquer atraiu-lhe a atenção. Próximo... na cabana. O besouro na jarra - o triceratops miniatura - tinha sobrevivido ao trauma da perda do lar. Mary Beth observou-o subir teimosamente até o ponto mais alto da jarra quebrada, abrir um conjunto de asas, estender o segundo par, que vibrou invisível, e ergueu-o do peitoril da janela para a liberdade.

 

- Nós o pegamos - disse Rhyme a Jim Bell e ao cunhado, o policial Steve Farr. - Amélia e eu. Esse foi o nosso trato. Agora, vamos ter que voltar a Avery.

 

- Lincoln - começou Bell, suavemente -, o que acontece é que Garrett não quer falar. Não diz nada sobre o local do cativeiro de Mary Beth.

 

De pé, ao lado dos picos e fossas de cores brilhantes que tomavam a tela do computador, ligado ao cromatógrafo, Ben Kerr aparentemente não sabia o que fazer. Desaparecida a hesitação inicial, ele, nesse momento, parecia lamentar o fim daquele trabalho. Amélia Sachs estava também ali no laboratório. Mason Germain, não, o que era muito bom. Lincoln ficara furioso porque ele pusera em perigo a vida de Sachs com aqueles tiros de tocaia no moinho. Bell ordenara irritado ao policial que, por ora, ficasse fora do caso.

 

- Reconheço isso - respondeu Lincoln como quem encerra o assunto e respondendo ao pedido implícito de mais ajuda, de parte de Bell. - Mas ela não corre perigo imediato.

 

Lydia dissera que Mary Beth estava viva e lhes deu informações gerais sobre o local do cativeiro. com uma busca concentrada nos Bancos Externos, ela provavelmente seria encontrada dentro de alguns dias. E Rhyme, nesse momento, estava pronto para a cirurgia.

 

E apegava-se, entre todas as coisas deste mundo, àquele grotesco amuleto de boa sorte - à recordação da discussão áspera que tivera com Henry Davett, ao olhar de aço temperado daquele homem. A imagem do empresário estimulava-o a voltar para o hospital, terminar os exames e entrar na faca. Lançou um olhar a Ben e ia instruílo sobre como guardar nas caixas o equipamento de criminalística quando Sachs tomou o partido de Bell.

 

- Nós encontramos alguma prova no moinho, Rhyme. Na verdade, foi Lucy quem descobriu. Boa prova.

 

Azedamente, Rhyme retrucou:

 

- Se é boa prova, então outra pessoa pode descobrir para onde ela aponta.

 

- Escute, Lincoln - começou Bell, com todo seu sotaque cantado de carolinano -, não vou pressionar, mas você é o único aqui que tem experiência de crimes graves como este. Nós estaríamos perdidos, por exemplo, tentando descobrir o que aquilo nos diz inclinou a cabeça na direção do cromatógrafo -, ou se este montinho de terra ou esta pegada significam alguma coisa.

 

Esfregando a cabeça no descanso de cabeça da Storm Arrow, Rhyme lançou um olhar ao rosto implorante de Sachs. Suspirando, perguntou finalmente:

 

- Garrett não diz nada?

 

- Ele fala - disse Farr, puxando uma das orelhas de abano. - Mas nega ter assassinado Billy e diz que levou Mary Beth para longe de Blackwater Landing para seu próprio bem. E só isso. Nem uma única palavra sobre o lugar onde ela está.

 

- Neste calor, Rhyme - disse Sachs -, ela pode morrer de sede.

 

- Ou de fome - acrescentou Farr. Oh, pelo amor de Deus...

 

- Thom - disse secamente Rhyme -,' ligue para a Dra. Weaver. Diga a ela que vou ficar aqui um pouco mais. Enfatize as palavras "um pouco".

 

- Isso é tudo que pedimos, Lincoln - disse Bell, o alívio aparecendo no rosto sulcado de rugas. - Uma ou duas horas. Nós ficaríamos imensamente gratos... Nós o faremos cidadão honorário de Tanner's Corner - brincou o xerife. - Entregaremos a você a chave da cidade.

 

Maior ainda a necessidade de agir rápido para abrir a porta e cair fora dali, pensou cinicamente Rhyme. E perguntou a Bell:

 

- Onde está Lydia?

 

- No hospital.

 

- Ela está bem?

 

- Nada de grave. Vão mantê-la lá durante um dia, em observação.

 

- O que foi que ela disse... exatamente! - perguntou Rhyme.

 

- Que Garrett lhe contou que levou Mary Beth para o leste, para perto do mar - esclareceu Sachs. - Para os Bancos Externos. Ele disse também que não a havia realmente seqüestrado. Ela foi com ele por vontade própria. Ele estava justamente procurando-a e ela se sente feliz por estar ali. Ela me disse também que pegamos Garrett inteiramente de surpresa. Ele nunca pensou que íamos chegar tão rápido ao moinho. Quando sentiu o cheiro de amônia, entrou em pânico, mudou a roupa, amordaçou-a e saiu correndo pela porta.

 

- OK... Ben, vamos ter que examinar algumas coisas.

 

O zoólogo inclinou a cabeça, calçou outra vez as luvas de látex - sem que tivesse que lhe dizer para fazer justamente isso, observou o criminalista.

 

Rhyme perguntou pela comida e a água encontrados no moinho. Ben mostrou-os. O criminalista observou:

 

- Nenhuma etiqueta de loja. Como as outras provas. Para nós, não vai adiantar nada. Veja se há alguma coisa colada no lado gomado da fita veda-juntas.

 

Sachs e Ben curvaram-se sobre o rolo de fita e passaram dez minutos examinando-o com ajuda de uma lupa. Sachs extraiu fragmentos de madeira do lado da cola e Ben, mais uma vez, segurou o instrumento no ar enquanto Rhyme examinava as peças na ocular. Sob o microscópio, porém, era claro que eles combinavam com a madeira encontrada no moinho.

 

- Nada - disse ela.

 

Ben, em seguida, pegou o mapa onde aparecia o Condado de Paquenoke, marcado com Xs e setas indicando o caminho tomado por Garrett, de Blackwater Landing até o moinho.

 

Tampouco encontraram no mapa etiqueta de preço. E nenhuma indicação do local para onde o rapaz seguira, depois de deixar o moinho.

 

- Vocês têm um APE? - perguntou Rhyme a Bell, - Um o quê?

 

- Aparelho de Detecção Eletrostática.

 

- Eu nem desconfio do que isso seja.

 

- Revela escrita feita apenas por pressão em papel. Se Garrett escreveu alguma coisa em cima do mapa, um nome de cidade ou endereço, nós poderíamos lê-la.

 

- Não, não temos nada disso. Quer que eu ligue para a Polícia Estadual?

 

- Não. Ben, simplesmente lance o feixe da lanterna sobre o mapa, num ângulo baixo. Veja se há alguma reentrância.

 

Ben fez o que ele mandava e, embora examinassem cada centímetro do mapa, nenhuma prova encontraram de escrita ou outras marcas.

 

Rhyme ordenou-lhe em seguida que examinasse o segundo mapa, encontrado por Lucy no moinho.

 

- Vamos ver se há algum vestígio nas dobras. A coisa é grande demais para usar inserções de assinatura de revistas. Abra-o sobre um jornal. Mais areia escorreu.

 

Imediatamente, Rhyme reconheceu que, de fato, era areia de praia de mar, o tipo que seria encontrado nos Bancos Externos - grãos claros e não opacos, como aconteceria com areia de ilha.

 

- Passe uma amostra pelo cromatógrafo. Vamos ver se há algum outro vestígio útil.

 

Ben ligou a barulhenta máquina.

 

Enquanto esperavam os resultados, abriu o mapa sobre a mesa. Bell, ele e Rhyme examinaram-no com todo cuidado. O mapa mostrava a costa leste dos Estados Unidos, de Norfolk, Virginia, e as rotas marítimas de Hampton Roads, até a Carolina do Sul. Examinaram cada centímetro. Garrett, porém, não tinha feito círculos nem marcado qualquer localização.

 

Claro que não, pensou Rhyme. A coisa nunca é tão fácil assim. Usaram também a lanterna sobre esse mapa. Nenhuma reentrância indicando escrita foi encontrada.

 

Os resultados do cromatógrafo relampejaram na tela. Olhando-os rapidamente, Rhyme observou:

 

- Nenhuma grande ajuda aí. Cloreto de sódio - sal - juntamente com iodo, matéria orgânica... Tudo isso compatível com água salgada. Mas dificilmente qualquer outro vestígio. Não vai ser lá grande coisa para ligar a areia a uma localização específica. - Indicou com um movimento de cabeça os sapatos encontrados na caixa juntamente com o mapa. E perguntou a Ben: - Algum outro vestígio nos sapatos?

 

O jovem examinou-os com todo cuidado, até mesmo tirando os cadarços - o que Rhyme ia pedir que fizesse. Aquele rapaz era um bom criminalista em potencial, pensou Rhyme. Não devia desperdiçar seu talento com peixes neuróticos.

 

- Partículas de folhas secas, ao que parece. Bordo e carvalho, se posso arriscar um palpite.

 

Rhyme inclinou a cabeça.

 

- Mais alguma coisa na caixa? -Nada.

 

Rhyme ergueu a vista para os outros gráficos de provas. Os olhos pousaram na referência ao canfeno.

 

- Sachs, no moinho, você viu por acaso velhos lampiões nas paredes? Ou lamparinas?

 

- Não - respondeu ela. - Nenhum.

 

- Tem certeza - perguntou ele, de mau humor -, ou simplesmente não notou?

 

Sachs cruzou os braços e respondeu, calma:

 

- Os pisos eram de tábuas de castanheiro, de 25 centímetros de largura, as paredes de reboco e ripas. Observei grafites em uma das paredes, riscados com tinta spray azul. Diziam, "Josh and Brittany, luv always", lave escrito como L-U-V. Havia também uma mesa estilo Shaker, rachada ao meio, de cor preta, três garrafas de água Deer Park, um pacote de Manteiga de Amendoim Reese's, cinco sacos de Doritos, dois sacos de batafa frita Cape Cod, seis latas de Pepsi, quatro de Coca, oito pacotes de manteiga de amendoim marca Planters e biscoitos sabor de queijo. O cômodo tinha duas janelas. Uma fechada com tábuas. Na sem tábuas, só uma vidraça inteira -

 

as outras haviam sido quebradas - e tinham sido roubadas todas as maçanetas das portas e ferrolhos das janelas. E também comutadores de eletricidade de tipo antigo, salientes, nas paredes. E, sim, tenho certeza de que não havia por lá lampiões antigos.

 

- Uau, ela o pegou desta vez, Lincoln - comentou Ben, rindo.

 

Sendo nesse momento membro da gangue, Ben foi recompensado com um olhar irado de Rhyme. O criminalista olhou mais uma vez para a prova, sacudiu a cabeça e disse, dirigindo-se a Bell:

 

- Sinto muito, Jim, mas o melhor que posso dizer é que ela está sendo provavelmente mantida em cativeiro numa casa não muito longe do mar, mas - se existem folhas de plantas decíduas perto do lugar - não perto da água. Isso porque bordo e carvalho não crescem em areia. E é uma casa velha... com lampiões que usam canfeno.

 

Do século XIX. Sinto muito, mas isso é o melhor que posso fazer.

 

Bell olhava para o mapa da costa leste, sacudindo a cabeça.

 

- Bem, vou conversar novamente com Garrett e ver se ele quer cooperar. Se não, vou ligar para o promotor público e pedir para ele pensar num acordo: trocar atenuantes por informação. Se o pior acontecer, vou organizar uma busca nos Bancos Externos. Eu lhe digo uma coisa, Lincoln, você é um salva-vidas. Nunca poderei lhe agradecer o suficiente. Vai se demorar por algum tempo por aqui?

 

- Apenas o suficiente para mostrar a Ben como arrumar o equipamento nas caixas.

 

Quando deu por si, Lincoln pensava novamente em sua mascote, Henry Davett. Mas, surpreso, descobriu que a satisfação por estar terminado o trabalho era prejudicada pela frustração: não tinha ainda a resposta final do quebra-cabeça sobre o paradeiro de Mary Beth McConnell. Mas, como a ex-esposa costumava dizer quando ele deixava o apartamento à uma ou duas da manhã para examinar uma cena de crime, ninguém pode salvar o mundo inteiro.

 

- Desejo-lhe toda sorte possível, Jim.

 

- Você se importa se eu for com você? - perguntou Sachs, dirigindo-se a Bell. - Para conversar com Garrett?

 

- À vontade - disse o xerife.

 

Ele pareceu querer acrescentar alguma coisa - talvez que encanto feminino ajudasse a arrancar alguma informação do rapaz. Mas, em seguida, aparentemente, e sabiamente, achou Rhyme, pensou melhor e ficou calado.

 

- Vamos começar a trabalhar, Ben - disse. Impulsionou a cadeira para a mesa onde estavam arrumados os tubos de gradiente de densidade. - Agora, ouça com toda atenção.

 

Os instrumentos de um criminalista são como as armas táticas de um oficial. Eles têm que ser acondicionados e guardados da forma exatamente correta. Temos que tratá-los como se a vida de alguém dependesse deles porque, pode acreditar, vai depender. Está ouvindo, Ben?

 

- Estou.

 

A cadeia de Tanner's Corner era um prédio situado a dois longos quarteirões da delegacia.

 

Sachs e Bell foram a pé pela calçada escaldante até o local. Mais uma vez, ela ficou impressionada com o aspecto de cidade-fantasma de Tanner's Corner. Os bêbados de aparência doentia que tinha visto ao chegar continuavam ainda no centro da cidade, sentados em um banco, calados. Uma mulher magra, cabelos arrumados, estacionou a Mercedes em uma fileira de vagas desocupadas, desceu e entrou num salão de manicure. O carro reluzente parecia inteiramente deslocado na pequena cidade. Não viu ninguém na rua. Notou que uma meia dúzia de lojas tinha fechado as portas. Uma delas era de brinquedos. Na vitrine, havia ainda um manequim de bebê, usando um macacãozinho desbotado pelo sol. Onde, pensou ela outra vez, estavam as crianças? Em seguida, olhou para o outro lado da rua e viu um rosto observando-a da escuridão do bar do Eddie. Fitou-o, olhos apertados.

 

- Aqueles três caras? - perguntou, indicando o local com a cabeça.

 

Bell deu uma olhada.

 

- Culbeau e seus cupinchas?

 

- Ahn, ahn. Eles são criadores de casos. Tomaram minha arma - disse Sachs. - Um deles. O'Sarian.

 

O xerife franziu as sobrancelhas.

 

- O que foi que aconteceu?

 

- Eu a tomei de volta - respondeu ela, sem dar detalhes.

 

- Quer que o prenda?

 

- Não. Apenas achei que você devia saber. Eles estão muito chateados porque perderam a recompensa. Mas, se quer saber minha opinião, acho que foi mais do que isso.

 

Eles querem matar aquele menino.

 

- Eles e o resto da cidade.

 

- Mas o resto da cidade não anda por aí com balas na agulha observou Sachs.

 

Bell soltou uma risada e disse:

 

- Pelo menos, não todos.

 

- Eu queria saber também como foi que eles acabaram chegando ao moinho.

 

O xerife pensou por um momento na pergunta.

 

- Está pensando em Mason?

 

- Estou - confirmou Sachs.

 

- Eu gostaria de que ele tirasse férias esta semana. Mas não há possibilidade de que isso aconteça. Bem, chegamos. Não é lá uma grande cadeia, mas funciona.

 

Entraram no prédio, de um único andar, construído com tijolos de cinzas vulcânicas. Gemendo, o ar condicionado mantinha as salas agradavelmente frias. Bell disse-lhe para deixar a arma na caixa de segurança. Fez o mesmo com a sua e entraram na sala de interrogatório. Bell fechou a porta.

 

Encontraram Garrett Hanlon vestido de macacão azul, cortesia do condado, sentado a uma mesa de compensado de madeira, de frente para Jesse Corn. O policial sorriu para Sachs, que lhe retribuiu com um sorriso mais discreto. Em seguida, olhou para o rapaz e ficou novamente impressionada ao notar como ele parecia triste e desesperado.

 

Estou com medo. Mande ele parar!

 

No rosto e braços, vergões que não haviam estado ali antes. Sachs perguntou:

 

- O que foi que aconteceu com sua pele?

 

O rapaz olhou para os braços e coçou-os, embaraçado.

 

- Urtiga - murmurou.

 

Em voz bondosa, Bell perguntou:

 

- Você ouviu quais são seus direitos, não? O policial Kerr leuos para você?

 

- Leu, sim senhor.

 

- E compreendeu quais são?

 

- Acho que sim.

 

- Há um advogado a caminho daqui. O Sr. Fredericks. Está vindo de uma reunião em Elizabeth City e deve chegar logo. Você não tem que dizer nada, até que ele chegue.

 

Compreende isso?

 

Garrett inclinou a cabeça.

 

Sachs olhou para o espelho unidirecional. Quem estaria do outro lado, operando a câmera de vídeo?

 

- Mas temos esperança de que você converse conosco, Garrett - continuou Bell. - Temos umas coisas muito importantes para lhe perguntar. Primeiro de tudo, é verdade? Mary Beth está viva?

 

- Claro que está.

 

- Você a estuprou?

 

- Que pergunta! Eu nunca faria isso - e a tristeza cedeu lugar momentaneamente à indignação.

 

- Mas seqüestrou-a - disse Bell.

 

- Não, realmente.

 

- Ela, parece, nunca compreendeu que Blackwater Landing é um lugar perigoso.

 

Tive que tirá-la de lá, ou ela correria perigo. Só isso. Eu a salvei. E como se, às vezes, a gente tenha que obrigar uma pessoa a fazer uma coisa que ela não quer. Para o próprio bem dela. Depois, ela compreende.

 

- Ela está perto da praia, em algum-lugar, não? Nos Bancos Externos, certo?

 

Ele pestanejou ao ouvir essas palavras, os olhos vermelhos estreitando-se. Estaria se dando conta de que eles haviam encontrado o mapa e conversado com Lydia? Olhou para a mesa de compensado. E nada mais disse.

 

- Onde está ela, exatamente, Garrett?

 

- Não posso dizer.

 

- Filho, você está metido numa encrenca das brabas. E enfrentando uma acusação de assassinato.

 

- Eu não matei Billy.

 

- Como é que você sabe que estou me referindo a Billy? - perguntou rapidamente Bell.

 

Jesse Corn ergueu uma sobrancelha para Sachs, impressionado com a inteligência do chefe.

 

As unhas de Garrett tamborilaram umas nas outras.

 

- Todo mundo sabe que Billy foi assassinado.

 

Os olhos dele deram a volta pela sala, parando inevitavelmente em Amélia Sachs. Ela conseguiu agüentar por um momento o olhar implorante, mas, em seguida, desviou a vista.

 

- Encontramos suas impressões digitais na pá usada para matá-lo.

 

- A pá? Foi com a pá que ele foi morto?

 

- Isso mesmo.

 

Garrett pareceu fazer um esforço para lembrar-se do que havia acontecido.

 

- Lembro-me de ter visto uma pá no chão. Acho que talvez eu a tenha pegado.

 

- Por quê?

 

- Não sei. Eu não estava pensando direito. Fiquei todo perturbado vendo Billy caído ali, todo coberto de sangue, e tudo mais.

 

- Neste caso, tem alguma idéia de quem possa ter assassinado Billy?

 

- Aquele homem. Mary Beth me disse que estava lá por causa daquele projeto dela, da escola, junto do rio, e que Billy parou para conversar com ela. E então apareceu aquele homem. Ele vinha seguindo Billy, começaram a discutir e a brigar, o cara pegou a pá e matou-o. Depois, eu apareci e ele fugiu correndo.

 

- Você o viu?

 

- Vi, sim senhor.

 

- Sobre o que eles discutiram? - perguntou descrente Bell.

 

- Drogas ou coisa assim, foi o que Mary Beth disse. Parecia que Billy andava vendendo drogas aos garotos do time de futebol. Como aquelas coisas, anabolizantes.

 

- Jesus! - exclamou Jesse Corn, um sorriso amargo nos lábios.

 

- Garrett - disse Bell -, Billy não estava metido com drogas. Eu o conhecia muito bem. E nunca tivemos nenhuma denúncia sobre o uso de esteróides na escola secundária.

 

- Eu sei que Billy atanazava você um bocado - disse Jesse. - Ele e uns dois garotos do time.

 

Sachs achou que aquilo não era certo... dois policiais parrudões pressionando-o simultaneamente.

 

- Faziam troça de você. Chamavam você de Menino-Inseto. Você deu certa vez um murro em Billy, e ele e seus amigos lhe deram uma grande coça.

 

- Não me lembro.

 

- O diretor Gilmore nos contou - disse Bell. - A escola teve que chamar a segurança.

 

- Talvez. Mas eu não matei Billy.

 

- Ed Schaeffer morreu, sabia? Foi picado até a morte por aqueles marimbondos da tocaia.

 

- É pena que isso tenha acontecido. Mas não foi culpa minha. Eu não botei aquele ninho lá.

 

- Não era uma armadilha?

 

- Não, o ninho estava simplesmente lá, na tocaia. Eu ia lá sempre - até dormia lá - e os marimbondos nunca me incomodaram. Os casaco-amarelos só picam quando têm medo de que a gente vá fazer mal à família deles.

 

- Muito bem. Fale sobre o homem que você diz que matou Billy - continuou o xerife. - Já o tinha visto antes por aqui?

 

- Tinha, sim, senhor. Duas ou três vezes nos dois últimos anos. Andando pela mata lá por Blackwater Landing. Uma vez, perto da escola.

 

- Branco, negro?

 

- Branco. E alto. Talvez da idade do Sr. Babbage...

 

- Lá pelos 40 anos?

 

- Acho que sim. Tem cabelo louro. E usava macacão. Marrom. E camisa branca.

 

- Mas na pá só havia as suas impressões digitais e as de Billy observou Bell. - De ninguém mais.

 

- Eu acho que ele estava usando luvas - disse Garrett.

 

- Por que ele usaria luvas nesta época do ano? - perguntou Jesse.

 

- Provavelmente, para não deixar impressões digitais - respondeu prontamente Garrett.

 

Sachs lembrou-se das cristas de atrito das impressões encontradas na pá. Nem ela nem Rhyme haviam examinado pessoalmente as impressões. Às vezes, é possível obter impressões granuladas de luvas de couro. As impressões deixadas por luvas de algodão ou lã são muito menos detectáveis, embora fibras do tecido possam soltar-se e ficar presas em lascas minúsculas de superfícies de madeira, como um cabo de ferramenta.

 

- Bem, o que você diz pode ter acontecido, Garrett - continuou Bell -, mas simplesmente ninguém acredita que seja verdade.

 

- Billy estava morto! Eu simplesmente apanhei a pá no chão e olhei para ela. Não devia ter feito isso. Mas fiz. Isso foi tudo que aconteceu. Eu sabia que Mary Beth estava em perigo e levei-a de lá para um lugar seguro.

 

Ele disse isso dirigindo-se a Sachs, olhos implorantes.

 

- Vamos voltar a Mary Beth - concordou Bell. - Por que ela estava em perigo?

 

- Porque estava em Blackwater Landing. E estalou novamente as unhas...

 

Diferente do meu hábito, pensou Sachs. Eu enfio as unhas na carne, ele estala unha contra unha. Qual o pior? - pensou, em dúvida. O meu, resolveu. É mais destrutivo.

 

O rapaz voltou os olhos úmidos, vermelhos, para Sachs.

 

Pare com isso! Eu não posso agüentar esse olhar! - pensou ela, desviando a vista.

 

- E Todd Wilkes? O garoto que se enforcou? Você o ameaçou? -Não!

 

- O irmão viu você gritando com ele na semana passada.

 

- Ele estava jogando fósforos acesos em formigueiros. Isso é uma sacanagem e uma crueldade e eu disse a ele para parar.

 

- E o que é que você me diz de Lydia? - perguntou Bell. - Por que seqüestrou Lydia?

 

- Eu estava preocupado com ela, também.

 

- Porque ela estava em Blackwater Landing?

 

- Isso mesmo.

 

- Você ia currá-la, não ia?

 

- Não! - Garrett começou a chorar. - Eu não ia machucar Lydia. Nem ninguém! E eu não matei Billy! Todo mundo está tentando me obrigar a dizer que fiz uma coisa que não fiz!

 

Bell tirou um Kleenex do bolso e entregou-o ao rapaz.

 

A porta foi aberta bruscamente nesse instante e Mason Germain entrou. Era ele provavelmente quem estava olhando através do espelho unidirecional e, pela expressão do rosto, tinha perdido a paciência. Sachs sentiu o cheiro enjoativo daquela água-de-colônia. Tinha passado a detestar aquele odor pegajoso.

 

- Mason... - começou Bell.

 

- Escute o que estou dizendo, rapaz, diga onde está a moça, e diga agora! Porque, se não disser, você vai para Lancaster e ficará lá até que botem seu rabo em julgamento...

 

Já ouviu falar em Lancaster, não? Se não ouviu, eu vou dizer...

 

- Isso já basta - berrou uma voz aguda.

 

Um galinho de briga entrou na sala... um homem ainda mais baixo do que Mason, de cabelos cortados a máquina, perfeitamente colados ao crânio, terno cinza, todos os botões nas casas, camisa de cor azul-bebê e gravata de listras. Usava sapatos de saltos de 7,5 centímetros.

 

- Não diga nem uma única palavra mais - ordenou ele a Garrett.

 

- Olá, Cal - disse Bell, em nada contente com a visita.

 

Bell apresentou Sachs a Calvin Fredericks, o advogado de Garrett.

 

- O que diabo vocês estão fazendo, interrogando meu cliente sem minha presença? - Inclinou a cabeça para Mason. - E que droga significa essa conversa sobre Lancaster?

 

Eu devia pedir sua prisão por falar com ele dessa maneira.

 

- Ele sabe onde a moça está, Cal - murmurou Mason. - Mas não quer dizer. Ele tomou conhecimento de seus direitos. Ele...

 

- Um garoto de 16 anos? Estou pensando em pedir que este caso seja encerrado agora mesmo e em ir jantar mais cedo. - Virou-se para Garrett. - Ei, menino, como é que você está se sentindo?

 

- Meu rosto está coçando.

 

- Eles puseram líquido irritante em você?

 

- Não, senhor, isso simplesmente acontece.

 

- Nós cuidaremos disso. Arranje um pouco de creme facial ou coisa assim. Agora, ao que interessa. Eu vou ser seu advogado. Fui nomeado pelo Estado. Você não vai ter que me pagar nada. Eles leram seus direitos? Disseram que você não é obrigado a dizer coisa nenhuma?

 

- Sim, senhor. Mas o xerife Bell queria me fazer umas perguntas. O advogado virou-se para Bell.

 

- Oh, esta é fina, Jim. No que era que você estava pensando? Quatro policiais aqui?

 

- A gente estava pensando em Mary Beth McConnell. Que ele seqüestrou.

 

- Supostamente.

 

- E estuprou - murmurou Mason.

 

- Eu não fiz isso! - gritou Garrett.

 

- Nós encontramos um lenço de papel todo sujo com a porra dele - disse secamente Mason.

 

- Não, não! - protestou o rapaz, o rosto tornando-se assustadoramente vermelho. - A própria Mary Beth se feriu. Foi isso o que aconteceu. Ela bateu com a cabeça e eu enxuguei o sangue com um lenço de papel que tinha no bolso. E quanto à outra coisa... às vezes, eu, o senhor sabe, toco uma punheta... Sei que não devo fazer isso. Sei que é errado. Mas não consigo evitar.

 

- Psiu, Garrett - disse Fredericks -, você não tem que explicar coisa nenhuma a ninguém. - E voltando-se para Bell: - Agora, este interrogatório acabou. Leve-o de volta para a cela.

 

No momento em que Jesse Corn tirava-o dali, Garrett parou de repente e virou-se para Sachs:

 

- Por favor, você tem que fazer uma coisa por mim. Por favor. No meu quarto, lá em casa... eu tenho umas jarras.

 

- Vá em frente, Jesse - ordenou Bell. - Leve-o daqui. Quando deu por si, Sachs estava falando:

 

- Espere. - E para Garrett: - As jarras? com seus insetos? O rapaz confirmou com uma inclinação de cabeça.

 

- Você põe água nas jarras? Ou, pelo menos, solta os bichinhos... para que eles tenham uma chance? O Sr. e a Sra. Babbage, eles não vão fazer nada para mantê-los vivos. Por favor...

 

Sachs hesitou, sentindo todos os olhos ali pregados em sua pessoa. Em seguida, baixou a cabeça.

 

- Faço. Prometo.

 

Garrett endereçou-lhe um leve sorriso.

 

Bell fitou Sachs com um olhar indecifrável e, em seguida, indicou a porta com a cabeça. Jesse saiu com o rapaz. O advogado fez menção de segui-lo. Bell, porém, tocou-lhe o peito com o dedo em riste.

 

- Você não vai a lugar nenhum, Cal. Vamos ficar sentadinhos aqui até que McGuire apareça.

 

- Não toque em mim, Bell - murmurou ele. Mas fez como Bell mandava. -Jesus, Senhor, que absurdo é este, você interrogando um garoto de 16 anos sem...

 

- Feche essa matraca, Cal. Eu não estava tentando obter uma confissão, que ele não fez, e que eu não usaria, se fizesse. Temos mais provas do que precisamos para metê-lo na prisão para sempre. Tudo que me interessa é encontrar Mary Beth. Ela está em algum lugar nos Bancos Externos e esse é um palheiro danado de grande para encontrar alguém sem ajuda.

 

- De jeito nenhum. Ele não vai dizer mais nenhuma palavra.

 

- Ela pode morrer de sede, Cal, ou de fome. Ter um ataque de insolação, adoecer...

 

Permanecendo calado o advogado, o xerife continuou:

 

- Cal, esse rapaz é uma ameaça. Temos um prontuário enorme de denúncias contra ele...

 

- Que minha secretária me leu enquanto eu vinha para aqui. Bolas, as acusações são principalmente por matar aula. Oh, e espiar... quando ele, o que é muito engraçado, não estava nem mesmo na propriedade da parte queixosa, mas simplesmente na calçada.

 

- O ninho de marimbondos, há alguns anos - disse zangado Mason. - Meg Blanchard.

 

- Vocês o soltaram - observou feliz o advogado. - Nem mesmo o acusaram.

 

- Este caso é diferente, Cal - avisou Bell. - Temos testemunhas oculares, temos provas materiais e Ed Schaeffer morreu. Podemos indiciar esse rapaz por praticamente tudo que quisermos.

 

Um homem magro, usando terno listradinho amassado, entrou na sala de interrogatório. Cabelos grisalhos rareando, rosto vincado de rugas de cinqüentão. Olhou para Amélia com uma expressão vaga e para Fredericks com uma expressão mais sombria.

 

- Ouvi o suficiente disso para pensar que este é um dos casos mais fáceis de conseguir condenação por assassinato, seqüestro e estupro que vi em anos.

 

Bell apresentou Sachs a Bryan McGuire, promotor público do Condado de Paquenoke.

 

- Ele tem 16 anos de idade - lembrou Fredericks. Em voz dura, o promotor respondeu:

 

- Neste Estado será fácil submetê-lo a julgamento como adulto e colocá-lo atrás das grades por 200 anos.

 

- Acabe com isso, McGuire - disse impaciente Fredericks. Você quer fazer um acordo. Eu conheço esse tom de voz.

 

McGuire inclinou a cabeça para Bell e Sachs deduziu que, mais cedo, tinha havido uma conversa entre o xerife e o promotor sobre exatamente esse assunto.

 

- Claro que estamos barganhando - continuou Bell. - Há uma boa probabilidade de que a moça esteja viva e queremos encontrá-la antes de ela não estar mais viva.

 

- Temos tantas acusações a fazer neste caso, Cal, que você ficaria espantado ao descobrir como podemos ser flexíveis.

 

- Pois me espante - disse o petulante advogado de defesa.

 

- Eu poderia fazer duas acusações de detenção ilegal de pessoas, uma de ataque de natureza sexual e duas de homicídio doloso - uma relativa a Billy Stail e a outra ao policial que morreu. Sim, senhor, estou disposto a fazer isso. A não ser que a moça seja encontrada ainda viva.

 

- Ed Schaeffer - retrucou o advogado. - Aquilo foi acidental.

 

- Foi uma merda de armadilha preparada por aquele rapaz - interrompeu-o furioso Mason.

 

- Eu retiro, em troca, a acusação de homicídio doloso por Billy sugeriu McGuire - e culposo no caso do policial.

 

Fredericks pensou por um momento na sugestão.

 

- Deixe ver o que eu consigo. Os saltos repicando barulhentamente, o advogado desapareceu na direção das celas, onde ia consultar o cliente. Voltou cinco minutos depois, e nada feliz.

 

- Qual é a história? - perguntou Bell, desapontado com a expressão no rosto do advogado.

 

- Nenhuma sorte.

 

- Recusou-se a cooperar?

 

- Inteiramente.

 

- Se você sabe alguma coisa, Cal, que não está nos dizendo, eu não dou merda nenhuma pelo sigilo da relação advogado-cliente...

 

- Não, não, Jim, estou falando sério. Ele diz que está protegendo a moça. Diz que ela está feliz onde se encontra e que vocês deveriam é estar procurando o cara de macacão marrom e camisa branca.

 

- Ele não tem nem mesmo uma descrição do suspeito para dar e, se nos desse, mudaria amanhã, porque está inventando tudo isso.

 

Mcuire alisou para trás os cabelos já alisados para trás. A defesa, pelo cheiro, usava Aqua Net, notou Sachs. A promotoria, Brylcreem.

 

- Escute aqui, Cal. O problema é seu. Estou lhe oferecendo o que posso oferecer. Você nos fornece o local do cativeiro da moça e, se ela estiver viva, apresento acusações com atenuantes. Você não vai querer, acho, levar o caso a julgamento e apostar no melhor. Aquele rapaz nunca mais vai ver de fora uma prisão. Nós dois sabemos disso.

 

Silêncio durante um momento.

 

- Pensei numa coisa - disse Fredericks.

 

- Ahn, ahn - retrucou o céptico McGuire.

 

- Não, escute... Eu tive um caso em Albemarle, há algum tempo, uma mulher alegou que o filho fugiu de casa, desapareceu. A história, porém, parecia suspeita.

 

- O caso Williams - perguntou McGuire. - Aquela negra?

 

- Exatamente.

 

- Ouvi falar naquele caso. Você foi o advogado dela? - perguntou Bell.

 

- Fui. Ela estava nos contando histórias muito esquisitas e tinha um diagnóstico de problemas mentais. Contratei um psicólogo em Avery, na esperança de que ele me desse um laudo dizendo que ela era louca. Ele fez alguns testes com ela. Durante um deles, ela se abriu e nos contou o que havia acontecido.

 

- Hipnotismo... aquela merda de recuperação de memória? perguntou McGuire.

 

- Não, uma coisa diferente. Ele a chama de terapia da cadeira vazia. Não sei exatamente como a coisa funciona, mas ela começou realmente a falar. Como se tudo que precisasse fosse de um pequeno empurrão. Deixe que eu ligue para esse cara e peça que venha aqui e tenha uma conversa com Garrett. O rapaz poderá ver a luz da razão...

 

Mas - nesse momento, o advogado enfiou um dedo no peito de Bell -, tudo que eles conversarem será informação confidencial e você não vai fazer nada de engraçadinho, a menos que o curador ad liten e eu lhe diga antes.

 

Bell captou o olhar de McGuire e inclinou a cabeça, concordando.

 

- Chame-o - disse o promotor. -OK.

 

Fredericks dirigiu-se ao telefone, num canto da sala de interrogatório.

 

- Queira me perdoar... - disse Sachs. O advogado virou-se para ela.

 

- É sobre aquele caso em que o psicólogo o ajudou. O caso Wilians, Sim?

 

- O que foi que aconteceu com o filho dela? Ele fugiu?

 

- Não. A mãe matou-o. Enrolou-o numa tela de galinheiro, pegou um bloco de concreto e afogou-o numa lagoa atrás da casa. Ei, Jim, como é que eu consigo uma linha?

 

O grito foi tão forte que lhe queimou, como se fosse fogo, a garganta ressecada e, tanto quanto sabia, danificou-lhe permanentemente as cordas vocais.

 

O missionário, andando pela borda do bosque, parou, a mochila sobre um ombro, um cilindro com borrifador de ervas daninhas na mão. Olhou em volta.

 

Por favor, por favor, por favor, pensou Mary Beth. Ignorando a dor, gritou novamente:

 

- Aqui! Socorro!

 

Ele olhou para a cabana... e começou a afastar-se.

 

Ela respirou profundamente, pensou em Garrett Hanlon estalando as unhas, os olhos úmidos, a forte ereção, pensou na morte corajosa do pai, pensou em Virgínia Dare...

 

E soltou o mais alto grito de toda sua vida.

 

Desta vez, o missionário parou, olhou outra vez para a cabana, tirou o chapéu, soltou a mochila e o cilindro no chão e começou a correr em sua direção.

 

Obrigado... Mary Beth começou a chorar. Oh, obrigado!

 

Ele era magro e fortemente bronzeado de sol. Na casa dos 50 anos, mas em boa forma física. Evidentemente, um homem que gostava de vida ao ar livre.

 

- Qual é o problema? - gritou ele, arquejante, a uns 15 metros da cabana, passando a um trote. - Você está bem?

 

- Por favor! - disse ela, a voz seca. A dor na garganta era insuportável. Cuspiu mais sangue.

 

Ele aproximou-se cauteloso da janela quebrada e olhou para os cacos de vidro no chão.

 

- Você precisa de ajuda?

 

- Não posso sair. Eu fui seqüestrada...

 

- Seqüestrada?

 

Mary Beth enxugou o rosto, molhado de lágrimas de alívio e suor.

 

- Por um rapaz de escola secundária, de Tanner's Corner.

 

- Espere... Ouvi falar nisso. Estava no noticiário. Você é a moça que foi seqüestrada?

 

- Sou, sim.

 

- Onde está ele agora?

 

Ela tentou falar, mas a garganta doía demais. Respirou fundo e, finalmente, respondeu:

 

- Não sei. Foi embora na noite passada. Por favor... O senhor tem um pouco d'água?

 

- Um cantil, com as minhas coisas. vou buscar.

 

- E chame a polícia. Tem telefone?

 

- Não, comigo. - Sacudiu a cabeça e fez uma careta. - Estou fazendo serviço sob contrato para o condado. - Indicou com a cabeça a mochila e o cilindro. - Estamos acabando com plantações de maconha, que os garotos plantam por aqui. O condado nos dá aqueles telefones celulares, mas nunca me importei com o meu. Está muito ferida?

 

E examinou-lhe a cabeça, coberta de sangue coagulado.

 

O homem voltou trotando ao bosque e, por um terrível momento, ela teve medo de que ele continuasse a se afastar. Ele, porém, pegou um cantil desbotado cor de oliva e voltou correndo. Ela recebeu-o com mãos trêmulas e obrigou-se a beber devagar. A água estava quente e velha, mas nunca tomara uma bebida tão saborosa como aquela.

 

- vou ver se dou um jeito de tirar você daí - disse ele.

 

Foi até a porta da frente. Um momento depois, ela ouviu uma baixa pancada surda, quando ele tentou abrir a porta com um pontapé ou com o ombro. Outra batida. Mais duas. Ele pegou uma pedra no chão e bateu com força na madeira. Sem nenhum efeito. Voltou à janela.

 

- Ela nem se move. - Enxugou o suor da testa, enquanto examinava as grades na janela. - Pó, ele construiu aqui uma prisão. Uma serra iria levar horas. Tudo bem, vou buscar ajuda. Qual é o seu nome?

 

- Mary Beth McConnell.

 

- vou chamar a Polícia, voltar e tirar você daqui.

 

- Por favor, não demore.

 

- Eu tenho um amigo, não muito longe daqui. vou ligar para nove-um-um da casa dele e volto em seguida. Aquele rapaz... Ele tem arma?

 

- Não sei. Não vi nenhuma. Mas não sei.

 

- Fique calma aí, Mary Beth. Você vai ficar bem. Normalmente, eu não corro, mas vou correr hoje.

 

Virou-se e começou a cruzar a campina.

 

- Moço... obrigada.

 

Ele, porém, não deu sinal de ter ouvido a palavra de gratidão.

 

Correu através da junça e da grama alta e desapareceu no bosque, nem mesmo parando para pegar sua tralha. Mary Beth ficou de pé em frente à janela, ninando o cantil como se fosse um bebê recém-nascido.

 

No outro lado da rua da cadeia, Sachs viu Lucy Kerr sentada em um banco de praça, de frente para uma delicatessen, bebendo chá gelado do Arizona. Atravessou a rua.

 

As duas se cumprimentaram com um aceno de cabeça.

 

Sachs notou um cartaz na frente da loja. CERVEJA GELADA. E perguntou a Lucy:

 

- Vocês têm aqui em Tanner's Corner uma lei sobre recipiente aberto?

 

- Temos - respondeu Lucy. - E que é levada muito a sério. A lei diz que se vamos beber num recipiente, ele tem que estar aberto.

 

Foi preciso apenas um segundo para ela compreender a piada. Sachs riu e perguntou:

 

- Quer alguma coisa mais forte?

 

Lucy indicou com a cabeça o chá gelado.

 

- Isto aqui serve.

 

Sachs voltou um minuto depois com uma cerveja Sam Adams, espuma à vontade, em um copo de plástico. Sentou-se ao lado da policial. Contou a Lucy a conversa entre McGuire e Fredericks sobre o psicólogo.

 

- Tomara que funcione - comentou Lucy. - Jim pensa que há milhares de velhas casas nos Bancos Externos. Temos que limitar um pouco a busca.

 

Durante alguns minutos, as duas ficaram caladas. Um adolescente solitário passou fazendo barulho em cima de um skate. Sachs comentou a falta de crianças na cidade.

 

- É verdade - confirmou Lucy. - Não tinha pensado nisso, mas não há muitas crianças por aqui. Acho que a maioria dos casais jovens mudou-se para lugares mais perto da rodovia interestadual, talvez, ou para cidades maiores. Tanner's Corner não é o tipo de lugar para alguém que quer subir na vida.

 

- Você tem filhos?

 

- Não. Buddy e eu nunca os tivemos. Depois, nós nos separamos e nunca mais conheci ninguém. E minha grande mágoa, tenho que confessar. Não tenho filhos.

 

- Há quanto tempo está divorciada?

 

- Três anos.

 

Sachs ficou surpresa porque ela não voltara a casar. Era uma mulher muito atraente... especialmente, os olhos. Ao tempo em que era modelo profissional em Nova York, antes de resolver seguir a carreira policial do pai, Sachs tinha passado tempo de sobra em companhia de um sem-número de pessoas deslumbrantes. Mas, com muita freqüência, o olhar delas era vazio. Se os olhos não são bonitos, concluíra, a pessoa também não é.

 

Voltou-se para Lucy:

 

- Oh, você vai conhecer alguém, ter filhos.

 

- Eu tenho meu emprego - respondeu logo Lucy. - Não tenho que fazer tudo na vida.

 

Mas alguma coisa deixou de ser dita... alguma coisa que achava que Lucy queria dizer. Sachs ficou em dúvida se devia pressionar ou não. Tentou um método indireto:

 

- Deve haver milhares de homens no Condado de Paquenoke morrendo para namorar com você.

 

Após um momento, Lucy respondeu:

 

- O fato é que não saio muito.

 

- É mesmo?

 

Outra pausa. Sachs olhou para cima e para baixo da rua deserta, empoeirada. O garoto do skate há muito tinha desaparecido. Lucy respirou fundo, como quem ia dizer alguma coisa, mas, em vez disso, optou por um grande gole de chá gelado. Em seguida, cedendo a um impulso, ao que parecia, disse:

 

- Sabe, aquele problema médico de que lhe falei? Sachs inclinou a cabeça.

 

- Câncer do seio. Não estava muito avançado, mas o médico disse que devia ser feito uma ablação dupla radical. E foi isso o que eles fizeram.

 

- Sinto muito - disse Sachs, o rosto tornando-se sério de compaixão. - Você continua a fazer tratamentos?

 

- Continuo. Fiquei careca durante certo tempo. Aparência interessante. - Bebericou mais o chá gelado. - Estou há três anos e meio assintomática. Até agora, tudo bem. - E continuou: - A coisa me jogou realmente em parafuso. Não havia história de câncer em minha família. Minha avó é tão forte como um cavalo. Minha mãe ainda trabalha cinco dias por semana no Mattamuskeet National Wildlife Reserve. Ela e meu pai fazem excursões de bicicleta pelas montanhas Apalaches duas, três vezes por ano.

 

- Você não pode ter filhos por causa da radiação? - perguntou Sachs.

 

- Oh, não. Eles usaram um escudo. Acontece apenas... Acho que não gosto muito de namorar. Você sabe para onde a mão de um homem vai, logo que a gente se beija a sério pela primeira vez...

 

Sachs não podia discutir com isso.

 

- Conheço um cara bacana, tomamos café juntos ou fazemos alguma outra coisa, mas, dez minutos depois, começo a me preocupar sobre o que ele vai pensar quando descobrir.

 

E termino não respondendo aos telefonemas dele.

 

- De modo que você desistiu de ter filhos - disse Sachs.

 

- Talvez, quando for mais velha, eu conheça um viúvo com uns dois filhos crescidos. Isso seria ótimo.

 

Lucy falou em tom casual, mas Sachs ouviu-lhe na voz a indicação de que ela repetia isso para si mesma com grande freqüência. Talvez, todos os dias.

 

Lucy baixou a cabeça e suspirou.

 

- Eu entregaria meu distintivo, sem pensar duas vezes, para ter 230 filhos. Mas, também, a vida nem sempre segue na direção que a gente quer.

 

- E seu ex deixou-a após a operação? Qual é mesmo o nome dele?

 

- Budd. Não imediatamente depois. Oito meses depois. Droga, não posso censurá-lo.

 

- Por que é que você diz isso?

 

- O quê?

 

- Que não pode censurá-lo - respondeu Sachs.

 

- Eu, simplesmente, não consigo. Eu mudei e acabei sendo diferente. Transformei-me em alguma coisa que ele não esperava.

 

Durante um momento, Sachs ficou calada, mas, em seguida, disse:

 

- Lincoln é diferente. Tão diferente quanto alguém possa ser.

 

- De modo que há mais entre vocês dois do que apenas, como é que você diria?, coleguismo?

 

- Isso mesmo - respondeu Sachs.

 

- Eu pensei que poderia ser isso. - Riu. - Ei, você é uma policial de uma cidade grande... O que é que você pensa de filhos?

 

- Eu gostaria de ter alguns. Papa - meu pai - queria netos. Ele também era policial. Gostava da idéia de três gerações na força policial. Pensava que a revista People poderia publicar uma matéria sobre nós, ou coisa assim. Ele adorava a People. .

 

- Tempo passado?

 

- Ele faleceu há alguns anos.

 

- Morto na ronda?

 

- Sachs debateu consigo mesmo, mas, finalmente, respondeu:

 

- Câncer.

 

Lucy ficou calada durante um momento. Olhou para Sachs, de perfil nesse momento, e em seguida para a cadeia.

 

- Ele pode ter filhos? Lincoln?

 

A espuma baixara no copo de cerveja e ela bebeu sofregamente.

 

- Teoricamente, sim.

 

E resolveu não dizer a Lucy que, naquela manhã, quando se encontravam no Instituto de Pesquisas Neurológicas, em Avery, a razão por que saíra da sala com a Dra.

 

Weaver fora a de lhe perguntar se a operação afetaria as possibilidades de Lincoln ter filhos. A médica respondera que não e começara a explicar a intervenção necessária para que ela pudesse engravidar. Mas, justamente nesse momento, Jim Bell aparecera, pedindo ajuda.

 

Nem disse que Rhyme desviava o assunto de filhos em todas as ocasiões em que surgia, deixando-a a especular por que ele relutava tanto em pensar no caso. Isso poderia acontecer por um sem-número de razões, claro: o medo de que filhos pudessem interferir em seu trabalho como criminalista, que ele precisava realizar para manter a sanidade mental. Ou seu conhecimento de que tetraplégicos, pelo menos estatisticamente, vivem menos do que pessoas sadias. Ou, quem sabe, ele poderia querer a liberdade de acordar um dia e resolver que já agüentara o suficiente e que não queria mais viver. Talvez fossem todas essas razões, além da convicção de que ele e Sachs dificilmente seriam os pais mais normais (embora ela tivesse replicado: "E o que, exatamente, é normal nestes dias?") Lucy disse, pensativa:

 

- Eu sempre me perguntei se, caso tivesse filhos, continuaria a trabalhar? E você?

 

- Eu ando armada, mas trabalho principalmente em cenas de crime. Eu evitaria os trabalhos arriscados. Teria que aprender também a dirigir mais devagar. Eu tenho um Camaro em minha garagem no Brooklyn, com uns 360 cavalos. Não consigo ver nele uma cadeirinha de bebê. - Uma risada. - Acho que vou ter que aprender como dirigir uma picape Volvo, com mudança automática de marcha. Talvez eu possa tomar lições.

 

- Eu posso ver você empurrando um carrinho de compras no pátio de estacionamento do Food Lion.

 

O silêncio caiu entre elas, aquele silêncio de estranhos que compartilharam segredos complicados e reconhecem que não podem levá-los mais longe.

 

Lucy consultou o relógio.

 

- Tenho que voltar à delegacia. Para ajudar Jim a dar telefonemas sobre os Bancos Externos. -Jogou a garrafa vazia no latão de lixo. Sacudiu a cabeça. - Eu continuo a pensar em Mary Beth, onde ela está, se está bem, se está com medo.

 

Enquanto ela dizia isso, Amélia Sachs pensava não na moça, mas em Garrett Hanlon. Já que haviam conversado sobre filhos, Sachs se perguntava como se sentiria se ela tivesse um filho acusado de assassinato e seqüestro. Que estava pensando na possibilidade de passar a noite na cadeia. Talvez cem noites, talvez mil. Lucy perguntou:

 

- Vai voltar para lá?

 

- Dentro de um ou dois minutos.

 

- Espero vê-la, antes de você ir embora. E a policial começou a subir a rua.

 

Minutos depois, Mason Germain saiu pela porta do bar. Ela nunca o vira sorrir e ele tampouco sorria nesse momento. Ele olhou em volta da rua, mas não a viu. Andou pela calçada esburacada e desapareceu em um dos prédios - uma loja ou bar - no caminho para a delegacia.

 

Nesse momento, um carro parou no outro lado da rua e dois homens desceram, o advogado de Garrett, Cal Fredericks e, o outro, um homem corpulento na casa dos 40 anos.

 

Usava camisa e gravata o botão superior desabotoado e o nó malfeito da gravata a alguns centímetros abaixo da garganta. Trazia as mangas arregaçadas e um paletó

 

esporte azul passado sobre o braço. A calça parda estava horrivelmente amassada. No rosto, a bondade de um professor de escola primária. Os dois entraram no prédio.

 

Sachs jogou o copo em um barril de óleo, no lado de fora da delicatessen. Cruzou a rua vazia, seguiu-os e entrou também no prédio da cadeia.

 

Cal Fredericks apresentou-a ao Dr. Elliott Penny.

 

- Você trabalha com Lincoln Rhyme? - perguntou o doutor, causando-lhe surpresa.

 

- Trabalho.

 

- Cal me disse que foi principalmente por causa de vocês dois que prenderam Garrett. Ele está aqui? Lincoln?

 

- Neste momento, está no prédio da delegacia. Provavelmente não vai ficar aqui por muito tempo.

 

- Nós temos um amigo comum. Eu gostaria de dizer oi. Passo por lá, se tiver uma oportunidade.

 

- Ele deve permanecer aqui por uma ou duas horas mais - disse achs, e voltou-se para Cal Fredericks: - Posso lhe fazer uma pergunta?

 

- Sim, madame - respondeu cauteloso o advogado de defesa. Sachs, em teoria, trabalhava para o inimigo.

 

- Hoje, mais cedo, Mason Germain andou conversando com Garrett. Ele falou em Lancaster. O que é isso?

 

- O Centro de Detenção de Segurança Máxima (CDSM). Ele vai ser transferido para lá, após o indiciamento. Onde fica até o mlgamento.

 

- Para delinqüentes juvenis? Não, não. Para adultos.

 

- Mas ele só tem 16 anos - observou Sachs.

 

- McGuire vai indiciá-lo como adulto... se não conseguirmos fazer um acordo.

 

- É um lugar muito ruim?

 

O advogado encolheu os magros ombros.

 

- Ele vai ser machucado. Quanto a isso, não há dúvida. Não sei até que ponto. Mas ele vai ser machucado. Um rapaz como ele vai ficar na rabeira da cadeia alimentar no CDSM.

 

- Ele não poderia ser isolado dos demais?

 

- Lá, não. Tudo aquilo por lá é uma única população. Basicamente, apenas uma grande penitenciária. O melhor que podemos esperar é que os guardas o defendam.

 

- O que me diz de fiança? Fredericks soltou uma gargalhada.

 

- Nenhum juiz no mundo iria estabelecer fiança num caso como este. Ele violaria a fiança na primeira oportunidade.

 

- Há alguma coisa que possamos fazer para que ele fique num estabelecimento diferente? Lincoln tem amigos em Nova York.

 

- Nova York? - Fredericks endereçou-lhe um sorriso irônico cavalheiresco, mas sulista. - Não acredito que ele tenha muita influência ao sul da Linha Mason-Dixon.

 

Provavelmente, nem a oeste do Hudson. - Indicou o Dr. Penny com um movimento de cabeça. Não, nossa melhor aposta é conseguir que Garrett coopere e fazer um acordo com a promotoria.

 

- Os pais adotivos não deveriam ser chamados?

 

- Deveriam, sim. Liguei para eles, mas Hal disse que o rapaz tem que se virar sozinho. Não deixou nem mesmo que eu falasse com Maggie... a mãe.

 

- Mas Garrett não pode tomar decisões sozinho - disse Sachs.

 

- Ele é apenas um garoto.

 

- Antes da indiciação ou de um acordo sobre a acusação - explicou Fredericks -, a corte vai nomear um tutor dativo. Não se preocupe, ele vai ser protegido.

 

Sachs virou-se para o psicólogo:

 

- O que é que o senhor vai fazer? Esse teste da cadeira vazia? O Dr. Penny olhou para o advogado, que inclinou a cabeça, concordando em que ele explicasse.

 

- Não é um teste. É um tipo de terapia Gestalt... uma técnica comportamental conhecida por produzir resultados muito rápidos na compreensão de certos tipos de conduta. vou fazer com que Garrett imagine que Mary Beth está sentada em uma cadeira em frente a ele e levá-lo a conversar com ela. Explicar-lhe por que a seqüestrou.

 

Espero conseguir que ele compreenda que ela está nervosa e assustada e que o que ele fez foi errado. Que ela se sentirá melhor se ele nos disser onde ela está.

 

- E vai funcionar?

 

- A técnica não se destina realmente a este tipo de situação, mas acho que pode produzir resultados.

 

O advogado lançou um olhar ao relógio.

 

- Pronto, doutor?

 

O psicólogo inclinou a cabeça.

 

- Vamos.

 

Os dois entraram na sala de interrogatório.

 

Sachs ficou para trás, pegou um copo d'água em um bebedouro. Bebeu-o devagar. Quando o policial na recepção voltou a atenção para o jornal que lia, Sachs rapidamente cruzou a porta para a sala de observação, onde uma câmera de vídeo grava as imagens e a fala de suspeitos. A sala estava vazia. Fechou a porta, sentou-se e olhou para a sala de interrogatório. Viu Garrett sentado em uma cadeira no centro da sala. O psicólogo estava sentado a uma mesa. Carl Fredericks ocupava um canto da sala, os braços cruzados no peito, um tornozelo sobre um joelho, mostrando a altura reforçada dos saltos dos sapatos.

 

E havia uma terceira cadeira, vazia, de frente para Garrett.

 

Garrafas de Coca-Cola na mesa, suadas com a condensação do ar.

 

No alto-falante barato, barulhento, instalado em cima do espelho, Sachs ouviu-lhes as vozes.

 

- Garrett, eu sou o Dr. Penny. Como vai você? Nenhuma resposta.

 

- Está um pouco quente aqui, não?

 

Ainda nenhuma resposta. Garrett olhou para baixo. Estalou as unhas, batendo dedos e polegar. Sachs não conseguiu ouvir esse som. Descobriu que seu próprio polegar estava furando a carne do indicador.

 

Sentiu umidade, viu sangue. Pare com isso, pare com isso, pare com isso, pensou, e obrigou-se a baixar as mãos para os lados do corpo.

 

- Garrett, eu estou aqui para ajudar você. Estou trabalhando com seu advogado, o Sr. Fredericks aqui, e vamos tentar conseguir uma sentença branda pelo que aconteceu.

 

Podemos ajudá-lo, mas precisamos de sua cooperação.

 

Fredericks tomou a palavra:

 

- O doutor aqui vai conversar com você, Garrett. Vamos tentar descobrir algumas coisas. Mas tudo que você disser vai ficar apenas entre nós. Não contaremos nada a pessoa alguma, sem sua permissão. Entendeu isso?

 

Garrett inclinou a cabeça.

 

- Lembre-se, Garrett - disse o doutor -, nós somos os mocinhos do filme. Estamos do seu lado... Agora, quero que você tente fazer uma coisa. Concorda?

 

Sachs tinha os olhos pregados no rosto do rapaz. Ele coçou um vergão no rosto e disse:

 

- Acho que sim.

 

- Está vendo essa cadeira aí?

 

O Dr. Penny indicou-a com um movimento de cabeça e o rapaz olhou-a.

 

- Estou vendo.

 

- Vamos fazer uma espécie de jogo. Você vai fingir que uma pessoa realmente importante está sentada nessa cadeira.

 

- Como o presidente?

 

- Não. Quero dizer, importante para você. Uma pessoa que você conhece na vida real. Você vai fingir que ela está sentada aí, à sua frente. Quero que converse com ela. E que seja realmente honesto com ela. Diga a ela tudo que quiser dizer. Conte seus segredos. Se está zangado com ela, diga isso. Se a ama, diga, também. Se a quer - como um rapaz pode querer uma moça - diga. Lembre-se, tudo bem em dizer qualquer coisa. Ninguém vai ficar nervoso com você.

 

- Conversar simplesmente com uma cadeira? - perguntou Garrett ao psicólogo. - Por quê?

 

- Em primeiro lugar, porque vai ajudar você a se sentir melhor com as coisas ruins que aconteceram hoje.

 

- O senhor quer dizer, como ser preso? Sachs sorriu.

 

O Dr. Penny pareceu reprimir o próprio sorriso e aproximou um pouco mais de Garrett a cadeira vazia.

 

- Agora, imagine que alguém importante está sentado aí. Digamos, Mary Beth McConnell. Que você tem alguma coisa que quer dizer a ela e esta é sua oportunidade. Alguma coisa que nunca disse, porque era difícil demais. Alguma coisa realmente importante. Não apenas alguma bobagem.

 

Garrett olhou nervoso em volta da sala, relanceou a vista para o advogado, que o animou com um movimento de cabeça. O rapaz respirou fundo, soltando o ar lentamente.

 

- OK. Acho que estou pronto.

 

- Ótimo. Agora, imagine Mary Beth sentada na...

 

- Mas eu não quero dizer nada a ela- interrompeu-o Garrett. -Não quer?

 

Ele sacudiu a cabeça.

 

- Eu já disse a ela tudo que queria dizer.

 

- Não há mais nada? Garrett hesitou.

 

- Não sei... Talvez. Apenas... a coisa é que eu imagino outra pessoa na cadeira. A gente poderia fazer isso?

 

- Por ora, vamos ficar com Mary Beth. Você disse que, talvez, houvesse alguma coisa que queria dizer a ela. O quê? Quer dizer que ela o abandonou ou o magoou? Ou que o fez ficar com raiva? E que quer vingar-se dela? Qualquer coisa, Garrett. Você pode dizer qualquer coisa. Tudo bem.

 

Garrett deu de ombros.

 

- Hummm, por que não pode ser outra pessoa?

 

- Por ora, digamos que tem que ser Mary Beth.

 

O rapaz virou-se subitamente para o espelho unidirecional e olhou diretamente para o lugar onde Sachs estava sentada. Involuntariamente, recuou na cadeira, como se ele soubesse que ela estava ali, mas que não pudesse vê-la, absolutamente.

 

- Continue - animou-o o psicólogo.

 

O rapaz voltou-se novamente para o Dr. Penny.

 

- OK. Acho que diria que estou satisfeito porque ela está em segurança.

 

O psicólogo sorriu, radiante.

 

-Ótimo, Garrett. Vamos começar daí. Diga-lhe que a salvou. Diga-lhe por quê.

 

E indicou a cadeira com a cabeça.

 

Garrett olhou contrafeito para a cadeira vazia. Começou:

 

- Ela estava em Blackwater Landing e...

 

- Não, lembre-se de que está conversando com Mary Beth. Finja que ela está sentada aí na cadeira.

 

O rapaz pigarreou.

 

- Você estava em Blackwater Landing. Aquele lugar é, mesmo, muito perigoso. Gente é machucada em Blackwater Landing. E morre, também. Eu estava preocupado com você.

 

Eu não queria que o homem de macacão também a machucasse.

 

- O homem de macacão? - perguntou o psicólogo.

 

- O homem que matou Billy.

 

O doutor olhou para trás de Garrett, na direção do advogado, que sacudia a cabeça. O Dr. Penny perguntou:

 

- Garrett, você sabe, mesmo que tenha de fato salvo Mary Beth, que ela poderia pensar que fez alguma coisa para você ficar furioso com ela.

 

- Furioso? Ela não fez nada para eu ficar furioso.

 

- Bem, você a levou para longe da família dela.

 

- Levei para longe para ter certeza de que ela ficaria em segurança. - Lembrou-se das regras do jogo e voltou a olhar para a cadeira.

 

- Levei você para ter certeza de que você ficaria em segurança.

 

- Não posso deixar de pensar - continuou suavemente o doutor -, que há alguma coisa mais que você quer dizer. Eu senti isso antes... que há uma coisa muito importante para dizer, mas que você não quer dizer.

 

Sachs, também, tinha visto a mesma coisa no rosto do rapaz. Os olhos dele estavam perturbados, mas ele se sentia também intrigado com aquele jogo do psicólogo. O que estaria se passando em sua mente? Havia alguma coisa que ele queria dizer. O quê?

 

Garrett olhou para baixo e para as unhas compridas e sujas.

 

- Talvez haja alguma coisa.

 

- Continue.

 

- Isto é... isto é meio difícil de dizer.

 

Cal Fredericks inclinou-se nesse momento para a frente, a caneta pousada sobre um bloco de notas. O Dr. Penny continuou, mansamente:

 

- Vamos ver a cena... Mary Beth está bem aí. Esperando. Ela quer que você diga o que é.

 

- Ela quer? O senhor acha? - perguntou Garrett.

 

- Acho, mesmo - tranqüilizou-o o doutor. - Você quer dizer a ela alguma coisa sobre o lugar onde ela está agora? O lugar para onde você a levou? Como é o lugar?

 

Talvez, o motivo por que a levou para esse lugar especial.

 

- Não - respondeu Garrett. - Eu não quero dizer nada sobre isso.

 

- Neste caso, o que é que você quer dizer? -Eu...

 

A voz falhou, as unhas estalaram.

 

- Eu sei que é difícil.

 

Sachs, também, inclinou-se para a frente na cadeira. Vamos, descobriu-se pensando, vamos, Garrett. Nós queremos ajudar você. Encontre a gente no meio do caminho.

 

O Dr. Penny prosseguiu, a voz hipnótica:

 

- Continue, Garrett. Mary Beth está bem aí na cadeira. Está esperando. Ela quer saber o que é que você vai dizer. Fale com ela. Empurrou um refrigerante na direção de Garrett, que tomou vários grandes goles, os punhos da camisa batendo na lata, que segurava com ambas as mãos. Após a curta pausa, o doutor continuou: - O que é que você quer mesmo dizer a ela? Essa coisa importante? Estou vendo que você quer dizer. Estou vendo que você precisa dizer. E acho que ela precisa ouvir.

 

O doutor empurrou para mais perto a cadeira vazia.

 

- Aí está ela, Garrett, sentada bem à sua frente, olhando pra você. O que é essa coisa que quis dizer a ela mas que não conseguiu? Sua oportunidade é agora. Diga.

 

Outro gole na Coca. Sachs notou que as mãos do rapaz tremiam. O que era que ia acontecer? - pensou. O que era que ele iria dizer?

 

De repente, surpreendendo os dois homens na sala, Garrett inclinou-se para a frente e disse explosivamente para a cadeira:

 

- Eu, realmente, de verdade, gosto de você, Mary Beth. E... acho que amo você.

 

Garrett respirou fundo de forma contínua, chocalhou as unhas algumas vezes, segurou nervosamente os braços da cadeira e baixou a cabeça, o rosto vermelho como um pôr-do-sol.

 

- Era isso o que você queria dizer? - perguntou o doutor. Garrett inclinou a cabeça, confirmando.

 

- Mais alguma coisa?

 

- Humm, não.

 

Desta vez, foi o doutor quem olhou de relance para o advogado e sacudiu a cabeça.

 

- Senhor... - começou Garrett -, doutor, posso fazer uma pergunta?

 

- Pergunte, Garrett.

 

- OK... Eu tenho um livro que gostaria muito que mandassem buscar em minha casa. O título é The Miniature World. Tudo bem com isso?

 

- Vamos ver se isso pode ser feito - disse o doutor.

 

Olhou de Garrett para Fredericks, às costas do rapaz, que rolou frustrado os olhos para o alto. Os dois se levantaram, vestindo os paletós.

 

- Isso será tudo, por ora, Garrett. O rapaz inclinou a cabeça.

 

Sachs levantou-se rapidamente e deixou o escritório da cadeia. O policial à recepção não notara que ela andara espionando.

 

Fredericks e o psicólogo deixaram a sala e Garrett foi levado de volta à cela.

 

Jim Bell apareceu no corredor. Fredericks apresentou-o ao psicólogo. O xerife perguntou:

 

- Alguma coisa? Fredericks sacudiu a cabeça.

 

- Nada.

 

Sombriamente, Bell disse:

 

- Acabei de falar com o juiz. Vai indiciá-lo às 6 horas e mandar transferi-lo para Lancaster hoje à noite.

 

- Hoje à noite? - perguntou Sachs.

 

- É melhor tirá-lo da cidade. Há umas pessoas por aqui que querem fazer justiça com as próprias mãos.

 

- Eu posso tentar mais tarde - ofereceu-se o Dr. Penny. - Ele está muito agitado neste momento.

 

- Claro que está - murmurou Bell. - Acabou de ser preso por assassinato e seqüestro. Isso também me deixaria agitado. Faça o que quiser em Lancaster, mas McGuire vai formalizar a acusação contra ele e vamos tirá-lo daqui antes de anoitecer. E, por falar nisso, Cal, tenho que lhe dizer, McGuire vai acusar o rapaz de homicídio qualificado.

 

No Prédio da Prefeitura, Amélia Sachs encontrou Rhyme tão intratável quanto pensou que ele estaria.

 

- Vamos, Sachs, ajude o pobre Ben com o equipamento e vamos cair fora daqui. Eu disse a Dra. Weaver que estaria no hospital em alguma ocasião neste ano.

 

Ela, porém, ficou simplesmente à janela, olhando para fora. Finalmente, disse:

 

- Rhyme...

 

O criminalista ergueu a vista, apertou as pálpebras da mesma maneira como estudaria um fragmento de prova vestigial que não conseguia identificar.

 

- Não estou gostando disso, Sachs.

 

- Do quê?

 

- Não estou gostando nem um pouquinho. Ben, não, você tem que tirar o induzido antes de pôr o aparelho na caixa.

 

- Induzido?

 

Ben lutava para fechar a volumosa FAL - fonte alternativa de luz - usada para gerar imagens de substâncias invisíveis a olho nu.

 

- A vareta - explicou Sachs, e começou a acondicionar o aparelho.

 

- Obrigado.

 

Ben começou a enrolar o cabo do computador.

 

- Aquele seu olhar, Sachs. É disso que não estou gostando. De sua expressão e de seu tom de voz.

 

- Ben - pediu ela -, você poderia nos deixar por uns poucos minutos a sós?

 

- Não, não poderia - disse secamente Rhyme. - Nós não temos tempo. Temos que botar tudo isso nas caixas e cair fora daqui.

 

- Cinco minutos - pediu ela.

 

Ben olhou de Rhyme para Sachs e como esta lhe endereçou um olhar implorante, e não zangado, Amélia ganhou a parada e o homenzarrão saiu da sala.

 

Rhyme tentou antecipar-se às razões dela:

 

- Sachs, nós fizemos tudo que podíamos. Salvamos Lydia. Capturamos o criminoso. Ele vai aceitar um acordo para atenuação da acusação e dirá onde fica o cativeiro de Mary Beth.

 

- Ele não vai dizer onde ela está.

 

- Mas isso não é problema nosso. Não há nada mais...

 

- Eu não acredito que ele tenha feito aquilo.

 

- Assassinado Mary Beth? Concordo. O sangue mostra que ela está provavelmente viva, mas...

 

- Quero dizer, que tenha assassinado Billy.

 

Rhyme jogou para trás a cabeça para tirar da testa uma enfurecedora mecha de cabelo.

 

- Você acredita naquela história do homem de macacão marrom, de que falou Jim Bell?

 

- Acredito.

 

- Sachs, ele é um rapaz perturbado e você está com pena dele. Eu também estou, mas...

 

- Isso nada tem a ver com a situação.

 

- Você está certa, não tem - retrucou ele secamente. - A única coisa relevante é a prova. E a prova mostra que nunca houve nenhum homem de macacão e que Garrett é culpado.

 

- A prova sugere que ele é culpado, Rhyme. Não confirma isso. A prova material pode ser interpretada de um grande número de maneiras. Eu mesmo tenho algumas provas próprias.

 

- Como, por exemplo?

 

- Ele me pediu que cuidasse de seus insetos. ,-Edaí?

 

- Não parece um pouco estranho que um frio assassino se preocupe com o que acontece com algumas drogas de insetos?

 

- Isso não é prova, Sachs. Essa é a estratégia dele. E uma guerra psicológica. Ele está tentando romper nossas defesas. O garoto é esperto, lembre-se. Alto QI, excelentes notas na escola. E veja só o que ele lê... Ele aprendeu um bocado de coisas com os insetos. E uma das coisas a respeito deles é que não têm código moral. Tudo que lhes interessa é sobreviver. Essas são as lições que ele aprendeu. Esse foi seu desenvolvimento na infância. Triste, sim, mas não problema nosso.

 

- Lembra-se da armadilha que ele preparou? A armadilha de galhos de pinheiro?

 

Rhyme inclinou a cabeça.

 

- Só tinha 70 centímetros de fundura. E o ninho de marimbondos lá dentro? Vazio. Nenhum marimbondo. E a garrafa de amônia não foi preparada para ferir ninguém. Era só para dar a ele um aviso de quando o grupo de busca chegasse perto do moinho.

 

- Isso não é prova empírica, Sachs. Como o lenço de papel manchado de sangue, por exemplo.

 

- Ele disse que esteve se masturbando. Que Mary Beth feriu a cabeça e que ele enxugou o ferimento com o lenço. De qualquer modo, se ele a estuprou, para que serviria o lenço?

 

- Para se limpar, depois.

 

- Isso não combina com nenhum perfil de estupro que eu conheça.

 

Rhyme citou a si mesmo, do prefácio de seu livro-texto sobre criminalística:

 

- Um perfil é um guia. Prova é...

 

- ...Deus - disse Sachs, completando a citação. - Muito bem, então. Havia pegadas de sobra na cena do crime. Lembre-se, porém, que pisoteadas. Algumas delas podem ter sido do homem de macacão.

 

- Não havia outras impressões digitais na arma do crime.

 

- Ele diz que o homem usava luvas - retrucou ela.

 

- Mas tampouco encontramos granulação de couro.

 

- Podem ter sido luvas de pano. Deixe-me testá-las e...

 

- Podem ter sido, podem ter sido... Ora, Sachs, isso é pura especulação.

 

- Você devia tê-lo ouvido, quando ele falou sobre Mary Beth. Ele estava preocupado com ela.

 

- Ele estava representando. Qual é a minha regra número um?

 

- Você tem um bocado de regras número um- murmurou Amélia. Ele continuou, imperturbável:

 

- Não podemos confiar em testemunhas.

 

- Ele pensa que a ama, que se importa com ela. Ele acredita, mesmo, que a está protegendo.

 

Foram interrompidos por uma voz de homem:

 

- Ele está, de fato, protegendo-a.

 

Sachs e Rhyme olharam para a porta. Era o Dr. Elliott Penny, que acrescentou:

 

- Protegendo-a de si mesmo. Sachs fez as apresentações.

 

- Eu queria conhecê-lo, Lincoln - disse o Dr. Penny. - Sou especialista em psicologia forense. Bert Markham e eu fizemos parte de um grupo de debates da AALEO no ano passado e ele o tem em alta conta.

 

- Bert é um bom amigo - disse Rhyme. - Acaba de ser nomeado Chefe do Departamento de Criminalística, da Polícia de Chicago.

 

O Dr. Penny inclinou a cabeça na direção do corredor.

 

- O advogado de Garrett está neste momento lá dentro, conversando com o promotor público e não acho que o resultado vá ser muito bom para o rapaz.

 

- O que foi que o senhor quis dizer há pouco, quando disse que ele a está protegendo contra si mesmo? -'perguntou cinicamente Sachs. - Algum tipo de bobageira sobre personalidade múltipla?

 

- Não - respondeu o psicólogo, em nada perturbado pelo ceticismo abrasivo de Sachs. - Há evidentemente algum distúrbio mental ou emocional neste caso, mas nada tão exótico quanto personalidades múltiplas. Garrett sabe exatamente o que fez com Mary Beth e Billy Stail. Tenho quase certeza de que ele a escondeu em algum lugar para mantê-la longe de Blackwater Landing, onde ele provavelmente matou de fato essas outras pessoas nos dois últimos anos. E apavorou - como era o nome dele - o menino Wilkes o suficiente para que ele se suicidasse. Acho que ele estava planejando estuprar Mary Beth na mesma ocasião em que matou Billy, mas aquela parte dele que, cito, ama-a, não o deixou fazer isso. Ele a levou de Blackwater Landing com toda rapidez que pôde para evitar machucá-la. Acho que ele de fato estuprou-a, embora, para ele, não tenha sido estupro, apenas a consumação do que considera, cito, o relaciona' mento de ambos. Tão normal para ele quanto marido e mulher numa lua-de-mel. Mas ele ainda sentia ânsia de matá-la, de modo que voltou a Blackwater Landing no dia seguinte e conseguiu uma vítima substituta, Lydia Johansson. Ele, sem a menor dúvida, ia assassiná-la no lugar de Mary Beth.

 

- Tenho esperança de que não esteja apresentando essa fatura à defesa - disse acerbadamente Sachs -, se esse é que vai ser o seu depoimento, todo favorável a ele.

 

O Dr. Penny sacudiu a cabeça.

 

- Baseado na prova de que ouvi falar, esse rapaz vai para a cadeia com ou sem depoimentos de especialistas.

 

- Eu não acho que ele tenha assassinado o rapaz. E penso também que o seqüestro não foi tão preto-e-branco como o senhor quer fazer parecer.

 

O Dr. Penny deu de ombros.

 

- Minha opinião profissional é que ele fez isso. Obviamente, não fiz todos os exames, mas ele exibe um claro comportamento anti-social e sociopático... e estou pensando em todos os três grandes sistemas de diagnóstico: a Classificação Internacional de Doenças, o DSM-ÍV e a Lista Revisada de Classificação de Psicopatias. Seria preciso que eu esgotasse toda a bateria de exames? Claro. Mas ele exibe evidentemente uma personalidade anti-social, destituída de emoção/criminosa. Ele tem um alto QI, exibe padrões de pensamento estratégico e comportamento organizado de infrator, considera vingança como atitude aceitável, não demonstra remorso... Ele é uma pessoa sumamente perigosa.

 

- Sachs - perguntou Rhyme -, o que é que isso significa? Este não é mais o nosso jogo.

 

Ela ignorou os olhos penetrantes dele.

 

- Mas doutor... O psicólogo ergueu uma mão.

 

- Posso lhe fazer uma pergunta? -O quê?

 

- A senhora tem filhos?

 

Hesitação.

 

- Não - respondeu Sachs. - Por quê?

 

- Você, compreensivelmente, sente pena dele - acho que todos nós sentimos - mas pode estar confundindo isso com algum senso maternal latente.

 

- O que é que isso quer dizer? O psicólogo continuou:

 

- Quer dizer que, se sente desejo de ter filhos, talvez não possa adotar uma opinião objetiva sobre a inocência ou culpa de um garoto de 16 anos. Especialmente, um garoto órfão que tem levado uma vida difícil.

 

- Eu posso adotar uma postura inteiramente objetiva - retrucou ela secamente. - Mas há simplesmente coisas demais que não fazem sentido. Os motivos de Garrett não fazem sentido, ele...

 

- Motivos são a perna fraca do banco das provas, Sachs, você sabe disso.

 

- Eu não preciso de mais provérbios, Rhyme - respondeu ela, brusca e asperamente.

 

O criminalista suspirou, frustrado, e lançou um olhar ao relógio. O Dr. Penny continuou:

 

- Ouvi dizer que você fez perguntas a Cal Fredericks sobre Lancaster, sobre o que ia acontecer com o rapaz.

 

Sachs ergueu uma sobrancelha, surpresa.

 

- Eu acho que você pode ajudá-lo - prosseguiu o psicólogo. - A melhor coisa que pode fazer é passar algum tempo com ele. O condado nomeará um assistente social para fazer o trabalho de ligação com o tutor nomeado pelo juiz, e terá que obter o apoio dos dois, mas tenho certeza de que isso pode ser arranjado. Ele poderá mesmo se abrir com você sobre Mary Beth.

 

Enquanto Amélia pensava nessa possibilidade, Thom apareceu à porta:

 

- A van está lá fora, Lincoln.

 

Rhyme olhou para o mapa pela última vez e, em seguida, virou-se para a porta.

 

- Mais uma vez na luta, queridos amigos...

 

Jim Bell entrou na sala e pousou uma mão no braço insensível de Rhyme.

 

- Estamos organizando uma busca nos Bancos Externos. com um pouco de sorte, chegaremos a ela dentro de alguns dias. Lincoln, eu não posso lhe agradecer o suficiente.

 

com um movimento de cabeça, Rhyme ignorou as manifestações de gratidão e desejou boa sorte ao xerife.

 

- Eu vou visitá-lo no hospital, Lincoln - disse Ben. - vou lhe levar um pouco de uísque escocês. Quando é que vão deixar que você volte a tomar umas e outras?

 

- Não tão cedo quanto eu gostaria.

 

- Eu ajudo Ben a terminar a arrumação aqui - disse Sachs. Bell voltou-se para ela:

 

- Nós providenciaremos um carro para levá-la a Avery. Sachs agradeceu com uma inclinação de cabeça.

 

- Obrigada. Eu logo estarei lá, Rhyme.

 

Mas, ao que parecia, o criminalista já havia partido, mental, ainda que não fisicamente, de Tanner's Corner, e nada respondeu. Sachs ouviu apenas um chiado cada vez mais baixo, enquanto a Storm Arrow descia o corredor.

 

Quinze minutos depois, a maior parte do equipamento de criminalística estava guardado nas caixas. Sachs dispensou Ben Kerr, agradecendo-lhe o trabalho voluntário.

 

Logo que ele saiu, Jesse Corn entrou. Sachs perguntou a si mesma se ele não tinha ficado fazendo hora no corredor, esperando uma oportunidade de ficar a sós com ela.

 

- Ele é um cara e tanto, não é? - perguntou Jesse. - O Sr. Rhyme. O policial começou a empilhar caixas que não precisavam ser empilhadas.

 

- Isso ele é - respondeu Sachs, sem se comprometer.

 

- Aquela operação de que ele vem falando... Vai dar um jeito nele?

 

Vai matá-lo. Vai agravar-lhe o estado. Vai transformá-lo num vegetal.

 

-Não.

 

Ela pensou que Jesse ia perguntar: neste caso, por que ele vai fazer a operação? O policial, porém, saiu-se com outro de seus ditados: - "Às vezes, a gente sente simplesmente necessidade de fazer alguma coisa. Pouco importa se ela parece inútil."

 

Sachs encolheu os ombros, pensando: isso mesmo, às vezes a gente simplesmente faz.

 

Fechou o cadeado da caixa do microscópio e enrolou os últimos cabos. Notou uma pilha de livros na mesa, os que encontrara no quarto de Garrett, na casa dos pais adotivos. Pegou The Miniature World, o livro que ele pedira ao Dr. Penny. Abriu, folheou-o e leu uma passagem:

 

Há 4.500 espécies conhecidas de mamíferos no mundo, contra 980.000 espécies conhecidas de insetos e uns estimados dois ou três milhões mais ainda não descobertos.

 

A diversidade e a espantosa capacidade de resistência dessas criaturas desperta mais do que simples admiração. Lembramo-nos do biólogo e entomologista de Harvard, E. O. Wilson, que cunhou o termo "biofilia", significando a afiliação emocional que seres humanos sentem com outros organismos vivos. Há certamente uma oportunidade tão grande dessa conexão com insetos quanto há com o cachorrinho de estimação, os cavalos de corrida campeões ou, na verdade, outros seres humanos.

 

Sachs olhou para o corredor, onde Cal Fredericks e Bryan McGuire continuavam empenhados em uma complicada prova de esgrima verbal. O advogado de Garrett estava obviamente perdendo a parada.

 

Fechou o livro com um estalo, ouvindo ressoar na mente as palavras do psicólogo.

 

A melhor coisa que você pode fazer é passar algum tempo com ele.

 

- Escute - disse Jesse -, ir ao estande de tiro de pistola pode ser um pouco cansativo demais, mas, você gostaria de tomar um café?

 

Sachs riu para si mesma. De modo que tinha acabado recebendo o convite.

 

- Eu provavelmente não deveria. vou ter que levar este livro à cadeia. Depois, ir para o hospital em Avery. Que tal a gente adiar isso:

 

- Negócio fechado.

 

No bar Eddie's, a um quarteirão da cadeia, Rich Culbeau-disse, severamente:

 

- Isto não é nenhuma brincadeira.

 

- Eu não acho que seja - desculpou-se Sean O'Sarian. - Eu apenas ri. Quero dizer, merda, foi apenas uma risada. Eu estava olhando para aquele comercial ali. - com a cabeça, indicou a tela engordurada da TV, acima da prateleira da Beer Nuts. - Ali, esse cara tentando chegar ao aeroporto e o carro dele...

 

- Você faz isso demais. Palhaçadas. Não presta atenção ao que se diz.

 

- Tudo bem. Estou ouvindo. Nós entramos pelos fundos. A porta vai estar aberta.

 

- Era isso que eu ia perguntar - interrompeu-os Harris Tomei.

 

- A porta dos fundos da cadeia nunca está aberta. Está sempre fechada a chave e, como vocês sabem, com uma tranca de ferro pelo lado de dentro.

 

- A barra não vai estar lá e a porta estará aberta. OK?

 

- Se é o que você diz - respondeu um descrente Tomei.

 

- Vai estar aberta - continuou Culbeau. - Nós entramos. A chave da cela dele estará em cima da mesa, naquela mesa pequena, de metal. Sabe qual é?

 

Claro que eles conheciam a mesa. Todos que passaram uma noite na cadeia de Tanner's Corner devem ter batido com a canela naquela droga de mesa aparafusada no chão, perto da porta, especialmente se estavam bêbados.

 

- Continue - disse O'Sarian, nesse momento todo atenção.

 

- A gente abre a cela e entra. vou atacar o garoto com um spray de pimenta. Pôr um saco na cabeça dele... Tenho um saco de croco, igual ao que uso para afogar gatinhes na lagoa. vou passar o saco pela cabeça dele e tirá-lo de lá pela porta dos fundos. Ele pode gritar, se quiser, mas ninguém vai ouvir nada. Harris, você fica esperando com a picape. Fique bem perto da porta. E mantenha a picape engrenada.

 

- Aonde é que a gente vai levar ele? - perguntou O'Sarian.

 

- Para nenhum de nossos lugares - respondeu Culbeau, perguntando a si mesmo se O'Sarian estava pensando que eles iam levar o preso seqüestrado para alguma das casas onde moravam. Porque, se pensava isso, significava que aquele cara magrelo ainda era mais burro do que ele pensava. - Para a velha garagem, perto dos trilhos do trem.

 

- Ótimo - aprovou O'Sarian.

 

- A gente leva ele pra lá. Eu trouxe meu maçarico de propano. E começamos com ele. Só vamos precisar de cinco minutos, acho, e ele diz onde está escondendo Mary Beth.

 

- E depois, a gente... - a voz de O'Sarian sumiu.

 

- O quê? - perguntou secamente Culbeau. - Em seguida, em voz baixa: - Vai dizer alguma coisa que talvez não queira dizer em público?

 

O'Sarian respondeu, também num sussurro:

 

- Você estava falando em usar um maçarico no garoto. Acho que não é nada pior do que estou lhe perguntando... sobre o que é que vamos fazer depois.

 

com o que Culbeau teve que concordar, embora, naturalmente, não dissesse a O'Sarian que ele poderia ter um bom argumento. Em vez disso, respondeu apenas:

 

- Acidentes acontecem.

 

- Acontecem, mesmo - concordou Tomei.

 

O'Sarian brincou com uma tampinha de cerveja e com ela extraiu um pouco de sujeira das unhas. Ficou pensativo.

 

- O que é? - perguntou Culbeau.

 

- Isso 'tá ficando arriscado. Seria mais fácil pegar o garoto no mato. No moinho.

 

- Mas ele não está mais no moinho - lembrou Tomei. O'Sarian deu de ombros.

 

- Eu estava apenas pensando se o dinheiro vale isso.

 

- Quer cair fora? - Culbeau coçou a barba, achando que o calor era tanto que precisava raspá-la, mas, se fizesse isso, a papada ia aparecer. - Eu prefiro mais dividir o dinheiro por dois do que por três.

 

- Não, você sabe que não quero cair fora. 'Tá tudo bem.

 

Os olhos voltaram para a TV, onde ficaram. Um filme lhe chamou a atenção, sacudiu a cabeça, olhos bem abertos, observando uma das atrizes.

 

- Calma, aí - disse Tomei, olhando pela janela. - Dêem uma olhada.

 

E com a cabeça indicou a rua.

 

Aquela policial ruiva de Nova York, aquela danada de ligeira com o canivete, vinha subindo a rua, um livro na mão.

 

- Bonita, aquela garota. Eu bem que poderia usar um pouco daquilo.

 

Culbeau, porém, lembrou-se dos olhos frios da policial e da ponta do canivete, firme embaixo do queixo de O'Sarian. E disse:

 

- O suco não vale a espremida.

 

A ruiva entrou na cadeia.

 

O'Sarian olhava também.

 

- Isso complica um bocado as coisas. Lentamente, Culbeau respondeu:

 

- Não, não complica. Harris, leve a picape pra lá. E deixe o motor funcionando.

 

- Mas, e ela! - perguntou Tomei.

 

- Eu tenho um bocado de spray de pimenta.

 

Na cadeia, o policial Nathan Groomer inclinou para trás a cadeira raquítica e fez um gesto de cabeça para Sachs.

 

A paixonite de Jesse Corn tinha se tornado tediosa. O sorriso formal de Nathan foi um alívio.

 

- Oi, moça.

 

- Você é o Nathan, certo? -Certo.

 

- Aquilo é que eu chamo de um .chamariz - disse Sachs, olhando para a mesa do policial.

 

- Essa coisinha velha? - perguntou o humilde Nathan.

 

- O que é?

 

- Um pato, fêmea. De um ano de idade, mais ou menos. O pato. Não o chamariz.

 

- Você mesmo faz isso?

 

- É meu hobby. Tenho uns dois outros em minha mesa, na delegacia. Pode dar uma olhada neles, se quiser. Eu pensava que você estava indo embora.

 

- Estamos, logo. Como é que ele está indo?

 

- Ele, quem? O xerife Bell?

 

- Não. Quero dizer, Garrett.

 

- Nem desconfio. Mason voltou aqui pra falar com ele. corversaram. Tentou fazer com que ele dissesse onde está a moça. Mas ele não disse.

 

- Mason está lá dentro agora?

 

- Não, foi embora.

 

- E o xerife Bell e Lucy?

 

- Também, não. Voltaram pra delegacia. posso ajudar em alguma coisa?

 

- Garrett pediu este livro. - Mostrou-o. - Tudo bem se eu o entregar a ele?

 

- O que é, uma Bíblia?

 

- Não. É um livro sobre insetos.

 

Nathan pegou o livro e fez uma revista cuidadosa... à procura de armas, pensou Sachs. Em seguida, devolveu-o - Esquisitão, esse garoto. Um cara saído de um filme de horror. O que você devia dar a ele era uma Bíblia.

 

- Eu acho que isto é tudo em que ele está interessado.

 

- Quanto a isso, acho que você tem razão. Ponha sua arma na caixa de segurança ali e eu deixo você entrar.

 

Sachs pôs o Smith & Wesson na caixa e parou à porta. Nathan, porém, fitou-a, como quem estava à espera de outra coisa.

 

- Moça, eu sei que você tem também um canivete.

 

- Tenho, mesmo. Esqueci.

 

- Regras são regras, você sabe.

 

Sachs entregou-lhe o canivete, que ele botou ao lado da arma.

 

- Quer também as algemas? - perguntou Sachs, tocando a bainha.

 

- Não. Não se pode fazer muita encrenca com elas. Claro, tivemos um reverendo que fez isso, certa vez. Mas apenas porque a mulher dele chegou cedo em casa e o encontrou algemado na cabeceira da cama, e Sally Anne Carlson em cima dele. Claro, vou deixar você entrar.

 

Rich Culbeau, tendo ao lado o nervoso Sean O'Sarian, tomou posição junto a uma moita moribunda de lilazes, nos fundos da cadeia.

 

A porta dos fundos dava para um campo de grandes dimensões, atulhado de mato, lixo e peças de carros e eletrodomésticos velhos.' E também mais do que umas poucas camisinhas.

 

Harris Tomei trouxe o lustroso Ford F-250 até o meio-fio e, em seguida, passou uma ré. Culbeau pensou que ele deveria ter vindo pelo outro lado, porque o que ele tinha feito dava muito na vista, mas não havia ninguém na rua e, além do mais, depois de fechada a barraca de bolinhos, não havia motivo para alguém aparecer por ali. Pelo menos a picape era nova e tinha um bom silenciador. Não fazia barulho.

 

- Quem é que está na sala da frente? - perguntou O'Sarian.

 

- Nathan Groomer.

 

- Aquela policial está com ele?

 

- Não sei. Como, diabo, eu poderia saber? Mas, se estiver, o revólver e aquele canivete que ela usou para tatuar você estarão na caixa de segurança.

 

- Nathan não vai ouvir, se a moça gritar? Lembrando-se mais uma vez dos olhos da ruiva e do brilho da lâmina do canivete, Culbeau respondeu:

 

- É muito mais provável que o garoto grite do que ela.

 

- Mas, e se ele gritar?

 

- A gente passa rápido o saco por cima da cabeça dele. Tome aqui.

 

- Culbeau entregou a O'Sarian o cilindro vermelho e branco do spray de pimenta. - Aponte pra baixo, porque pessoas se baixam.

 

- Baixam?... Quero dizer, vai pegar em nós, também? O sprayl - Não, se você não virar a merda da coisa pra merda da sua cara. É um jato. Nada de parecido com uma nuvem.

 

- Em qual deles devo jogar?

 

- No rapaz.

 

- E se a moça estiver perto de mim?

 

- Eu cuido dela - murmurou Culbeau.

 

- Mas...

 

- Eu cuido dela.

 

- Tudo bem - concordou O'Sarian.

 

Baixaram a cabeça ao passar por uma janela encardida nos fundos da cadeia e pararam em frente à porta de metal. Culbeau notou que ela estava aberta numa pequena fresta.

 

- Está vendo, nada de fechada a chave - disse baixinho, achando que havia marcado uma espécie de ponto contra O'Sarian. Em seguida, perguntou a si mesmo por que achou que precisava fazer isso.

 

- Agora, quando eu inclinar a cabeça, entramos rapidamente, usamos o spray nos dois... e não economize essa merda. - Entregou a O'Sarian um saco de pano grosso.

 

- Em seguida, passe o saco por cima da cabeça dele.

 

O'Sarian segurou com firmeza o tubo de spray e inclinou a cabeça para o saco na mão de Culbeau.

 

- De modo que vamos levar também a moça. Em desespero, Culbeau suspirou.

 

- Isso mesmo, Sean. Vamos levar.

 

- Tudo bem, tudo bem, eu só queria saber.

 

- Quando os dois caírem, simplesmente puxe-os para fora, rápido. Não pare por coisa nenhuma.

 

- Tudo bem... Eu só queria dizer, eu trouxe meu Colt. -O quê? ... . .

 

- Eu trouxe meu .38. Trouxe. .

 

E indicou o bolso com um movimento da cabeça. Culbeau ficou calado por um momento. Em seguida, disse:

 

- Ótimo. E fechou a mão enorme em torno da maçaneta da porta.

 

Seria esta a última paisagem que veria?, perguntou ele a si mesmo.

 

Da cama no hospital, Lincoln Rhyme podia ver um parque, nos terrenos do Centro Médico da Universidade, em Avery: árvores viçosas, calçada serpenteando por um gramado verde, bem conservado, fonte de pedra que uma enfermeira lhe dissera que era cópia de uma famosa fonte no campus da UNO, em Chapei Hill.

 

Do quarto da casa em Central Park West, dava para ver o céu e alguns prédios ao longo da Quinta Avenida. Mas as janelas eram muito altas e não conseguia ver o próprio Central Park, a menos que a cama fosse empurrada para a vidraça. Dali podia ver relva e algumas árvores.

 

Talvez porque o hospital tivesse sido construído tendo em mente o Instituto e pacientes com problemas neurológicos, as janelas eram mais baixas. Até mesmo a paisagem era acessível daquele ponto, pensou, ironicamente.

 

E em seguida especulou se a operação teria ou não sucesso. Se até mesmo sobreviveria.

 

Sabia que a incapacidade de fazer coisas simples era o que mais o frustrava.

 

Viajar de Nova York para a Carolina do Norte, por exemplo, tinha sido um projeto de tal magnitude, tão esperado, tão cuidadosamente planejado, que as dificuldades da viagem em nada o haviam perturbado. Sentia mais o fardo esmagador da lesão, porém, quando o problema era fazer coisas banais, que pessoas sadias faziam sem sequer pensar: aliviar uma coceira na têmpora, escovar os dentes, secar os lábios, abrir uma garrafa de refrigerante, sentar numa cadeira para olhar pela janela e observar pardais se divertindo na terra de um jardim...

 

E se perguntou novamente em até que ponto estava sendo imbecil.

 

Havia consultado os melhores neurologistas do país e ele mesmo era um cientista. Tinha lido e assimilado a literatura alusiva à quase impossibilidade de melhora de um paciente com lesão C4 na medula espinhal. Ainda assim, estava resolvido a ir em frente com a técnica cirúrgica inventada por Cheryl Weaver - a despeito da possibilidade de que esse ambiente bucólico do outro lado da janela, nesse estranho hospital, numa cidade estranha, pudesse ser a última imagem da natureza que veria na vida.

 

Claro que há riscos.

 

Neste caso, por que estava se submetendo a eles?

 

Havia uma razão muito boa.

 

Ainda assim, era uma razão que o criminalista frio que era tinha dificuldade em aceitar e que jamais ousaria dizer em voz alta. Porque nada tinha a ver com a capacidade de andar em passos leves por uma cena de crime à procura de provas. Nada a ver com a capacidade de escovar os dentes ou sentar-se na cama. Não, não, devia-se, exclusivamente, a Amélia Sachs.

 

Finalmente, admitia a verdade: o pavor de perdê-la. Pensava muitas vezes que ela poderia conhecer outro Nick - o agente clandestino bonitão que tinha sido seu amante anos antes. Isso era inevitável, pensava, enquanto continuasse tão inválido como estava. Ela queria filhos. Queria uma vida normal. Por isso, estava disposto a arriscar-se a morrer, a arriscar-se ao agravamento de seu estado, na esperança de melhorar.

 

Sabia, claro, que a operação não lhe permitiria descer a Quinta Avenida de braços dados com Sachs. Tinha simplesmente a esperança de uma melhora insignificante - que o trouxesse para um pouco mais perto de uma vida normal. Ligeiramente mais perto dela.

 

Usando sua espantosa imaginação, porém, podia ver-se segurando-lhe a mão na sua, apertando-a e lhe sentindo a leve pressão da pele.

 

Coisa banal para qualquer pessoa no mundo. Para ele, porém, seria um milagre.

 

Thom entrou no quarto. Após um momento de silêncio, disse:

 

- Uma observação.

 

- Não quero nenhuma. Onde está Amélia?

 

- vou dizer, queira ou não queira. Você não tomou um drinque em cinco dias.

 

- Eu sei. E estou puto por isso.

 

- Entrando em forma para a operação?

 

- Ordens da médica - respondeu seco Rhyme.

 

- Quando foi que ordens significaram alguma coisa pra você? Lincoln deu de ombros.

 

- Vão me encher só Deus sabe de que tipo de merda. Não acho que seja uma boa idéia acrescentar bebida ao coquetel que vai haver em minha corrente sangüínea.

 

- Não teria sido. Você tem razão. Mas deu atenção ao que a médica disse. Estou orgulhoso de você.

 

- Orgulhoso... Isso é o que eu chamo de uma emoção que ajuda. Thom, porém, era uma cachoeira em comparação com a chuva de Rhyme. E continuou:

 

- Mas eu quero dizer uma coisa.

 

- E vai dizer, de qualquer maneira, queira eu ou não.

 

- Eu li um bocado sobre isso, Lincoln. O procedimento cirúrgico.

 

- Leu? No seu tempo de folga, espero.

 

- Eu queria simplesmente dizer que, se não der certo desta vez, nós voltaremos. No próximo ano. Nos próximos dois anos. Nos próximos cinco anos. Vai funcionar, então.

 

Embora tivesse os sentimentos tão mortos quanto sua medula espinhal, Rhyme conseguiu dizer:

 

- Obrigado, Thom. Agora, onde, diabo, está aquela médica? Andei trabalhando pra burro, capturando seqüestradores psicóticos para a polícia local. Acho que eles estariam me tratando um pouco melhor do que aqui.

 

- Ela só está dez minutos atrasada, Lincoln - lembrou Thom. E nós mudamos a hora da consulta duas vezes hoje.

 

- Está mais perto de 20 minutos. Ah, ela chegou. Aberta a porta do quarto, Rhyme ergueu a vista, esperando ver a Dra. Weaver. Mas não foi a cirurgiã quem entrou.

 

O xerife Jim Bell, o rosto porejado de suor, entrou, deixando no corredor o cunhado, Steve Farr, ambos claramente transtornados.

 

Inicialmente, o criminalista pensou que haviam encontrado o corpo de Mary Beth. Que o rapaz havia, no fim das contas, assassinado a moça. O pensamento seguinte foi que Sachs reagiria mal à notícia, tendo abalada sua fé no rapaz.

 

Bell, porém, tinha outras notícias:

 

- Sinto muito ter que lhe dizer isto, Lincoln.

 

Rhyme teve certeza de que a mensagem era sobre alguma coisa que o interessava mais pessoalmente do que apenas Garrett Hanlon e Mary Beth McConnell.

 

- Eu ia telefonar - continuou o xerife. - Mas, depois, achei que você devia ouvi-la de alguém, em pessoa. De modo que vim até aqui.

 

- O que é, Jim? - perguntou Rhyme.

 

- É sobre Amélia.

 

- O quê? - exclamou Thom.

 

- O que foi que houve com ela. - Rhyme, claro, não podia sentir o coração disparando no peito, mas podia sentir o aumento da circulação do sangue no queixo e nas têmporas. - O que foi? Diga!

 

- Rich Culbeau e aqueles amigos dele passaram pela cadeia. Não sei o que eles tinham em mente exatamente - provavelmente nada de bom - mas, de qualquer maneira, o que eles encontraram foi meu policial, Nathan, algemado na recepção. E a cela estava vazia.

 

- Cela?

 

- A cela de Garrett - continuou Bell, como se isso explicasse tudo. Lincoln não compreendia ainda a significação do fato.

 

-O quê...?

 

Em voz sombria, o xerife disse:

 

- Nathan disse que sua Amélia atacou-o de arma em punho, arrombou e tirou Garrett da cela. Ajuda à evasão de criminoso. Eles desapareceram, armados, e ninguém tem pista sobre o lugar onde estão.

 

Correndo.

 

Tanto quanto podia. As pernas lhe doíam enquanto ondas de dor do artritismo lhe percorriam o corpo. Ensopada de suor, já estava tonta com o calor e a desidratação.

 

E ainda em estado de choque, lembrando-se do que tinha feito.

 

Ao seu lado, Garrett trotava em silêncio através da floresta em volta de Tanner's Corner.

 

Isso foi mais do que estúpido, moça...

 

Ao entrar na cela para entregar a Garrett The Miniature World, notara a expressão de felicidade no rosto do rapaz ao receber o livro. Um ou dois momentos depois, quase como se alguma pessoa estivesse forçando-a a fazer isso, estendeu as mãos pelas grades e segurou-o pelos ombros. Ruborizado, ele desviou a vista.

 

- Não, olhe pra mim - disse ela. - Olhe.

 

Ele, finalmente, olhou. Amélia estudou-lhe o rosto inchado, a boca contorcendo-se, os poços fundos dos olhos, as grossas sobrancelhas.

 

- Garrett, eu preciso saber a verdade. Isto é apenas entre nós dois. Diga uma coisa: você matou Billy Stail?

 

- Eu juro que não matei. Eu juro! Foi aquele homem... o homem de macacão marrom. Ele matou Billy. A verdade é essa!

 

- Mas não é isso o que os fatos mostram, Garrett.

 

- Pessoas, porém, podem ver a mesma coisa de maneira diferente - respondeu ele, a voz calma. - Da mesma maneira que podemos olhar para a mesma coisa que uma mosca vê, mas ela não parece a mesma.

 

- O que é que você quer dizer com isso?

 

- Nós vemos alguma coisa se movendo... apenas uma mancha apagada quando a mão de alguém tenta matar a mosca. Mas já a mosca vê uma mão parando uma centena de vezes no meio do ar, enquanto desce. Como um bocado de imagens paradas. É a mesma mão, o mesmo movimento... Olhamos para uma coisa que para nós é simplesmente vermelha chapada, mas alguns insetos vêem uma dezena de diferentes tons de vermelho.

 

A evidência sugere que ele é culpado, Rhyme. Mas não prova isso. Prova pode ser interpretada de um bocado de maneiras diferentes.

 

- E Lydia - insistiu Sachs, segurando o rapaz com mais força ainda -, por que foi que a seqüestrou?

 

- Eu disse a todo mundo por quê... Porque ela estava também em perigo. Blackwater Landing... é um lugar perigoso. Pessoas morrem ali. Pessoas desaparecem. Eu estava simplesmente protegendo ela.

 

Claro que é um lugar perigoso, pensou Sachs. Mas não será perigoso por sua causa? Mas o que disse foi:

 

- Ela disse que você ia estuprá-la.

 

- Não, não, não... Ela saltou na água e o uniforme dela ficou molhado e rasgado. Eu a vi, você sabe, de cima. Os seios dela. Eu fiquei um pouco... tesudo. Mas só

 

foi isso.

 

- E Mary Beth. Você a machucou, estuprou-a?

 

- Não, não, não! Eu lhe disse. Ela bateu com a cabeça e eu enxuguei o sangue com um lenço de papel. Eu nunca faria isso, não com Mary Beth.

 

Sachs fitou-o por mais um momento. Blackwater Landing... é um lugar perigoso... Finalmente, perguntou:

 

- Se eu o tirar daqui, você me leva até onde está Mary Beth? Garrett franziu as sobrancelhas.

 

- Se eu fizer isso, você a traz de volta a làlffierè Corner e ela pode se machucar.

 

- É a única maneira, Garrett. Eu tiro você daqui, se me levar a ela. Podemos dar um jeito para que ela fique em segurança, Lincoln Rhyme e eu.

 

- Vocês podem fazer isso?

 

- Podemos. Mas, se não concordar, você vai ficar na cadeia por muito tempo. E se Mary Beth morrer por sua causa, isso será assassinato, a mesma coisa como se tivesse atirado nela. E nunca mais sairá da cadeia.

 

Ele olhou pela janela. A impressão foi que, com os olhos, seguia o vôo de algum inseto, que Sachs não conseguia ver. -Tudo bem.

 

- A que distância ela está?

 

- A pé, vai levar oito, dez horas. Dependendo... - Do quê?

 

- De quantos vão mandar à nossa procura e do cuidado com que a gente andar.

 

Garrett disse rápido essas palavras, num tom confiante que a perturbou... era como se ele estivesse esperando que alguém o tirasse dali, tivesse fugido e já pensasse numa maneira de enganar os perseguidores.

 

- Espere - disse.

 

Voltou ao escritório da cadeia. Enfiou a mão na caixa de segurança, retirou a arma e o canivete e, contrariando todo seu treinamento e bom senso, apontou o Smith & Wesson para Nathan Groomer.

 

- Sinto muito fazer isso - disse ela, em voz baixa. - Preciso da chave da cela do rapaz e, em seguida, que você se vire de costas, com as mãos para trás.

 

Olhos esbugalhados, Nathan hesitou, talvez pensando se devia ou não sacar sua própria arma. Ou - compreendeu ela nesse instante -, provavelmente nem mesmo pensando.

 

Instinto, reflexo ou apenas simples raiva poderiam tê-lo levado a sacar a arma do próprio coldre.

 

- Isso é uma grandíssíssima estupidez, moça - disse. -A chave.

 

Ele abriu a gaveta e jogou a chave em cima da mesa. Pôs as mãos às costas. Ela algemou-o com as próprias algemas dele e arrancou da parede o fio do telefone.

 

Em seguida, libertou Garrett, algemando-o, também. A porta dos fundos da cadeia parecia estar aberta. Pensou, porém, que ouvia som de passos e de um motor de carro.

 

Optou pela porta da frente. Fizeram uma fuga sem problemas, sem serem notados.

 

Agora, a uns dois quilômetros do centro da cidade, cercados por moitas e árvores, o rapaz orientou-a por uma trilha que mal se podia ver. As correntes das algemas tilintaram quando ele apontou na direção que deviam seguir.

 

Nesse momento, Sachs pensava: mas, Rhyme, não havia outra coisa que eu pudesse fazer! Entendeu? Eu não tinha opção. Se o centro de detenção em Lancaster fosse o que ela pensava, ele seria currado e espancado no primeiro dia ali e, talvez, morto antes do fim de semana. Tinha certeza também que esta era a única maneira de encontrar Mary Beth. Rhyme esgotara as possibilidades com as provas e o desafio nos olhos de Garrett dizia-lhe que ele jamais cooperaria. (Não, não estou confundindo ser maternal com estar preocupada, Dr. Penny. Tudo que sei é que se Lincoln e eu tivéssemos um filho, ele seria tão coerente e obstinado como nós, e que, se alguma coisa nos acontecesse, eu rezaria para que alguém cuidasse dele como estou cuidando de Garrett...)

 

Moviam-se rapidamente. Sachs ficou surpresa com a elegância com que o rapaz se esgueirava pela mata, a despeito das mãos algemadas. Ele parecia saber exatamente onde pôr os pés, através de que plantas poderia passar facilmente e quais ofereceriam resistência. Onde o solo era macio para pisar.

 

- Não pise aí - disse ele severamente. - Isso aí é barro de atoleiro da Carolina. Prende você como se fosse cola.

 

Andaram por uma meia hora até que o chão começou a ficar lamacento e o ar se encheu de cheiros de metano e de coisas podres. O caminho tornou-se finalmente intransponível - terminava em um grande atoleiro. Daí Garrett e ela seguiram até uma estrada asfaltada de duas pistas. Começaram a andar através das moitas ao lado do acostamento.

 

Vários carros passaram sem pressa, motoristas sem dar a menor indicação de que estivessem passando por criminosos.

 

Sachs olhou-os, invejosamente. Em fuga por apenas 20 minutos, pensou, e já sentia uma pontada no coração, ao notar a normalidade da vida de todas aquelas pessoas - e o desvio escuro que a dela tinha tomado.

 

Isso é uma grandissíssima estupidez, moça. -,..-

 

- Ei, você aí!.:. Mary Beth acordou com um arranco.

 

com o calor e atmosfera opressiva da cabana, caíra no sono em cima do colchão malcheiroso.

 

A voz próxima chamou novamente:

 

- Ei, moça, você está bem? Olá? Mary Beth?

 

Ela saltou da cama e dirigiu-se rapidamente para a janela quebrada. Sentia-se tonta, teve que baixar a cabeça por um minuto, firmarse com a mão na parede. A têmpora latejava de dor implacável. E pensou: foda-se Garrett.

 

A dor diminuiu, a visão clareou. Continuou a andar até a janela.

 

Era o missionário. Ele e o amigo, um homem alto, calvo, usando calça cinza e camisa de trabalho. O missionário trazia um machado.

 

- Obrigada, obrigada! - murmurou ela.

 

- Moça, você está bem?

 

- Estou. Ele não voltou.

 

A voz continuava horrivelmente rouca. O homem lhe passou outro cantil e ela bebeu toda a água.

 

- Eu liguei para a polícia da cidade - disse ele. - Eles estão vindo pra cá. Chegam dentro de 15, 20 minutos. Mas nós não vamos esperar por eles. Vamos tirar você

 

daí agora mesmo, nós dois.

 

- Eu nunca poderei agradecer a vocês o suficiente.

 

- Recue um pouco. Venho cortando lenha a vida toda e aquela porta vai ser um monte de lenha dentro de um minuto. Este aqui é tom. Ele trabalha também para o condado.

 

- Oi, tom.

 

- Oi. Sua cabeça, tudo bem com ela? - perguntou ele, franzindo as sobrancelhas.

 

- Parece pior do que está - disse ela, tocando o machucado. Thunk, thunk.

 

O machado mordeu a porta. Da janela, ela podia ver a lâmina quando ele a erguia alta no ar e captava a luz do sol. O gume do machado brilhava, significando que era muito afiado. Mary Beth, muito tempo antes, ajudava o pai a cortar lenha para a lareira. Lembrou-se de como adorava vê-lo amolar o machado no esmeril, ao fim do trabalho... as fagulhas cor de laranja que voavam no ar como se fossem fogos de artifício no 4 de Julho.

 

- Quem é esse rapaz que seqüestrou você? - perguntou tom. Algum tipo de pervertido?

 

Thunk... thunk.

 

- Um garoto da escola secundária, de Tanner's Comer. Ele dá medo. Olhe pra isso.

 

E indicou com a mãos os insetos nos jarros.

 

- Poxa - comentou tom, aproximando-se da janela e olhando para dentro.

 

Thunk.

 

Uma fenda, quando o missionário arrancou uma grande lasca da porta.

 

Thunk.

 

Mary Beth olhou para a porta. Garrett devia tê-la reforçado, talvez pregando juntas duas portas. E disse a tom:

 

- Eu me sinto como se fosse também um desses insetos. Ele... Mary Beth viu uma mancha no ar quando o braço esquerdo de tom passou pela janela e agarrou-lhe a gola da camisa. A mão direita dele fechou-se em torno de seus seios. Ele puxou-a para a frente, contra as grades, e colou a boca úmida, fedendo a cerveja e a cigarro em seus lábios. Projetou a língua e passou-a com força pelos dentes da moça.

 

Tenteou-lhe o busto, procurando os bicos dos seios através da camisa, enquanto ela torcia a cabeça, afastando-se dele, cuspindo e gritando.

 

-O que, diabo, você está fazendo? - berrouomissionário, deixando cair o machado. Correu para a janela.

 

Mas, antes que ele pudesse puxar tom para longe, Mary Beth agarrou a mão que lhe apalpava o peito e puxou-a para baixo, com toda força. Passou a mão de tom por um espigão de vidro que se projetava da moldura da janela. Ele gritou de dor e choque e soltou-se, cambaleando para trás.

 

Limpando a boca, Mary Beth correu da janela para o meio do quarto.

 

O missionário gritou com tom:

 

- Por que, diabo, você fez isso?

 

Bata nele!, pensou Mary Beth. Bata nele com o machado. Ele está louco. Entregue-o também à Polícia.

 

tom, porém, não o ouviu. Apertava o braço ensangüentado, examinando o corte.

 

- Jesus, Jesus, Jesus...

 

O missionário murmurou:

 

- Eu lhe disse para ter paciência. A gente a teria em cinco minutos, de pernas abertas, em sua casa, dentro de meia hora. Agora, estamos metidos numa encrenca.

 

De pernas abertas...

 

O comentário tomou forma nos pensamentos de Mary Beth um instante antes do respectivo corolário: que ele não tinha chamado a Polícia, que ninguém viria em seu socorro.

 

- Homem, olhe só pra isso. Olhe!

 

tom ergueu o punho cortado, de onde o sangue descia em cascata pelo braço.

 

- Porra! - murmurou o missionário. - Vamos ter de mandar dar uns pontos nesse corte. Seu merda estúpido. Por que não esperou? Vamos, vamos cuidar disso.

 

Mary Beth observou tom dirigir-se cambaleante para o campo. Parou a uns 3 metros da janela.

 

- Sua puta ordinária! Prepare-se! Nós vamos voltar.

 

Ele olhou para baixo e agachou-se, saindo de vista por um momento. Levantou-se outra vez, segurando na mão boa uma pedra do tamanho de uma laranja. Lançou-a através das grades. Mary Beth tropeçou para trás, enquanto a pedra penetrava no quarto, errando-a por uns escassos 30 centímetros. E ela caiu sobre o sofá, soluçando.

 

- Prepare-se!

 

ouviu tom gritar novamente.

 

Eles se encontravam nesse momento na casa de Harris Tomei, uma construção colonial bonita de cinco quartos, situada em um terreno gramado de bom tamanho, no qual aquele homem nunca tinha aparado uma folha de grama. A idéia de decoração de gramado de Tomei era estacionar a F-250 no pátio da frente e a Suburban no quintal dos fundos.

 

Fazia isso porque, sendo o tipo de cara com educação superior, embora incompleta, daquele trio, e possuindo mais suéteres do que camisas axadrezadas, tinha que se esforçar um pouco mais para parecer um casca-grossa. Claro, havia cumprido pena numa penitenciária federal, mas por uma pequena safadeza com títulos e ações de companhias, cujo único problema era que não existiam. Podia atirar como qualquer bom tocaieiro, mas Culbeau nunca o vira bater sozinho em alguém, corpo a corpo, pelo menos em ninguém que não estivesse caindo de bêbado. Tomei, além disso, pensava demais nas coisas, passava tempo demais preocupado com roupas, pedia bebida importada, mesmo no Eddie's.

 

Assim, ao contrário de Culbeau, que trabalhava duro para manter habitável sua casa de meia-água, e diferente de O'Sarian, que trabalhava duro para escolher garçonetes que lhe mantivessem arrumado o trailer, Harris Tomei simplesmente deixava a casa e a área em volta como eram. Na esperança, supunha Culbeau, de produzir a impressão de que ele era também um cara ordinário.

 

Mas isso era problema de Tomei, e os três não estavam na casa dele, com seu quintal nojento e ornamentos de gramado tipo Detroit, para discutir paisagismo. Estavam ali por uma única razão. Porque Tomei tinha herdado uma coleção de armas, para humilhar todas as coleções de armas, quando seu pai foi pescar no gelo do Spivy Pond na véspera do Ano-Novo, há alguns anos, e só apareceu perto do último dia para apresentar a declaração de imposto de renda.

 

Encontravam-se nesse momento no gabinete apainelado, examinando as caixas de armas, da mesma maneira que Culbeau e O'Sarian

 

haviam ficado em frente à prateleira de balas na Peterson's Drug, na Maple Street, vinte anos antes, decidindo o que roubar.

 

O'Sarían pegou o Colt AR-15 preto, a versão civil do M-16, porque vivia sempre falando no Vietnã e assistindo a todos os filmes de guerra que podia descobrir.

 

Tomei pegou a bela escopeta Browning com gravação na coronha, que Culbeau cobiçava tanto quanto qualquer mulher no país, mesmo que ele fosse um afeiçoado de fuzis e preferisse abrir o buraco no coração de um gamo a 200 metros de distância do que transformar um pato em poeira de penas. Nesse dia, para uso, escolheu o bonito Winchester .30-06, com uma mira telescópica do tamanho do Texas.

 

Pegaram grande quantidade de munição, água, comida e o telefone celular de Culbeau. E bebida falsificada, claro.

 

Sacos de dormir, também, embora nenhum deles esperasse que a caçada durasse muito tempo.

 

Um sombrio Lincoln Rhyme acionou a cadeira de rodas e entrou no desmontado laboratório de criminalística, do prédio da Prefeitura do Condado de Paquenoke.

 

Encontrou Lucy Kerr e Mason Germain ao lado da mesa de compensado onde tinham sido montados antes os microscópios. Ambos de braços cruzados no peito. Quando Thom e Rhyme entraram, olharam-nos com uma mistura de desprezo e desconfiança.

 

- Como, diabo, ela pôde fazer isso? - perguntou Mason. - Em que merda ela estava pensando?

 

Essas, porém, eram duas das muitas perguntas sobre Amélia Sachs e sobre o que ela tinha feito que não podiam ser respondidas, não ainda. Em vista disso, Rhyme limitou-se a perguntar:

 

- Alguém machucado?

 

- Não - respondeu Lucy. - Nathan, porém, ficou muito abalado, olhando para o cano daquele Smith & Wesson. Que nós fomos loucos o bastante para emprestar a ela.

 

Rhyme fez um esforço para parecer calmo. Ainda assim, tinha o coração trespassado de medo por Sachs. Confiava acima de tudo na prova material, que mostrava claramente que Carrett Hanlon era um seqüestrador e um assassino. Sachs, iludida pela fachada estudada que ele apresentou, corria tanto risco quanto Mary Beth e Lydia.

 

Jim Bell entrou na sala nesse momento.

 

- Ela levou um carro? - perguntou Rhyme.

 

- Acho que não - retrucou Bell. - Andei pergutando por aí. Não há nenhuma comunicação ainda de veículo desaparecido.

 

Rhyme olhou para o mapa, ainda pregado na parede.

 

- Não é fácil deixar essa área sem ser visto. Um bocado de terras pantanosas, poucas estradas. Eu...

 

- Arranje alguns cães, Jim - sugeriu Lucy, interrompendo-o. Irv Wanner tem uns cães farejadores, que são usados pela Polícia Estadual. Ligue para o Capitão Dexter, em Elizabeth City, e peça o numero de Irv. Ele descobrirá os fugitivos.

 

- Boa idéia - aprovou Bell. - Nós...

 

- Eu quero fazer uma proposta - cortou-o Rhyme. Mason soltou uma risada, fria.

 

- O que é? - perguntou Bell.

 

- Eu faço um trato com você.

 

- Nada de trato - respondeu Bell. - Ela está dando fuga a um criminoso. E armada, de quebra.

 

Rhyme continuou:

 

- Amélia está convencida de que não há outra maneira de encontrar Mary Beth. Foi esse o motivo por que agiu assim. Eles estão indo para o lugar onde Mary Beth está detida.

 

- Isso não importa - disse Bell. - Ninguém pode andar tirando assassinos da cadeia.

 

- Dê-me 24 horas, antes de você chamar a Polícia Estadual Eu os encontrarei para você. Mas se milicianos e cães entrarem na jogada tudo que sabemos é que vão agir de acordo com as regras e isso significa que há uma boa probabilidade de que alguém fique machucado.

 

- Esse é um trato difícil de aceitar, Lincoln - disse Bell. - Sua amiga arranca nosso preso da cadeia...

 

- Ele não seria seu preso se não fosse por mim. Sozinho, você jamais o teria encontrado.

 

- De jeito nenhum - protestou Mason. - Estamos perdendo tempo e eles indo mais longe a cada minuto que desperdiçamos conversando. O que estou pensando é em lançar na busca, agora, todos os homens da cidade. Nomeá-los temporariamente agentes policiais. Fazer o que Henry Davett sugeriu. Distribuir fuzis e... Bell cortou-o, dirigindo-se a Rhyme:

 

- Se nós lhe dermos essas 24 horas, o que haverá nisso para nós?

 

- Eu ficarei aqui e o ajudarei a encontrar Mary Beth. Por quanto tempo for necessário.

 

Foi a vez de Thom falar:

 

- A operação, Lincoln...

 

- Esqueça a operação - murmurou ele, sentindo desespero ao dizer isso.

 

Sabia que a agenda da Dra. Weaver era tão rígida que, se perdesse a data marcada na mesa de operação, teria que voltar à lista de espera. Mas ocorreu-lhe o pensamento de que uma das razões por que Sachs fizera isso tinha sido evitar que ele fizesse a cirurgia. Para ganhar mais alguns dias e lhe dar oportunidade de mudar de idéia.

 

Afastou, porém, esse pensamento, furioso consigo mesmo: encontre-a, salve-a, antes que Garrett a acrescente à sua lista de vítimas.

 

Picada 137 vezes.

 

- Nós estamos tendo aqui - disse Lucy -, um bocado do que seria, como é que eu vou dizer, lealdade dividida, não é?

 

- Isso mesmo - concordou Mason. - Como poderemos ter certeza de que você não vai dar uma de Robin Hood e deixar que ela fuja?

 

- Porque - disse pacientemente Rhyme - Amélia está errada. Garrett é um assassino e simplesmente usou-a para fugir da cadeia. Quando não precisar mais dela, ele a matará.

 

Bell andou de um lado para o outro durante um momento, olhando para o mapa.

 

- Tudo bem, vamos fazer isso, Lincoln. Você tem 24 horas. Mason exalou um suspiro.

 

- E como, com todos os diabos, você vai descobri-la nesse deserto? - Fez um movimento na direção do mapa. - Vai simplesmente ligar para ela e perguntar onde ela está?

 

- É exatamente isso o que vou fazer. Thom, vamos instalar novamente o equipamento. E alguém dê um jeito de trazer Ben Kerr de volta para cá!

 

No escritório adjacente à sala de guerra, Lucy Kerr falava ao telefone.

 

- Polícia Estadual da Carolina do Norte, Elizabeth City - respondeu a seca voz de uma mulher. - Posso lhe ser útil em alguma coisa?

 

- Detetive Gregg.

 

- Aguarde na linha, por favor.

 

- Alô? - disse uma voz de homem após um momento.

 

- Pete, Lucy Kerr, aqui em Tanner's Comer.

 

- Oi, Lucy, como é que estão indo as coisas? Quais são as últimas sobre aquelas moças desaparecidas?

 

- Tudo sob controle - respondeu Lucy, com voz calma, embora estivesse furiosa por ter Bell insistido que repetisse as palavras que Lincoln Rhyme lhe ditara. - Mas nós temos outro pequeno problema.

 

Pequeno problema...

 

- Do que é que você precisa? De um ou dois milicianos?

 

- Não, apenas grampear um telefone celular.

 

- Tem ordem judicial?

 

- O secretário do juiz está enviando a ordem por fax neste exato momento.

 

- Número do telefone e números de série do aparelho. Lucy passou a informação solicitada.

 

- Qual é o código da área, dois-um-dois?

 

- E um número de Nova York. A pessoa em causa está ao largo agora.

 

- Nenhum problema - respondeu Gregg. - Quer uma fita gravada da conversa?

 

- Apenas a localização.

 

E uma linha de pontaria clara até o alvo...

 

- Quando... espere aí. Está chegando o fax... - Uma pausa, enquanto ele o lia. - Oh, apenas uma pessoa desaparecida.

 

- Isso mesmo - confirmou ela, relutante.

 

- Você sabe que isso é caro. Vamos ter que cobrar a despesa.

 

- Eu sei.

 

- OK, espere na linha. vou ligar pra meu pessoal técnico. Seguiu-se um baixo clique.

 

Lucy sentou-se à escrivaninha, os ombros arriados, flexionando a mão esquerda, olhando para dedos vermelhos de anos de jardinagem, uma velha cicatriz produzida por uma alça de metal de um balde de palha para proteção de uma muda recém-plantada, a marca deixada por uma aliança usada durante cinco anos. Flexione, estire.

 

Olhando para as veias e músculos sob a pele, Lucy Kerr deu-se conta de uma coisa: que o crime de Amélia Sachs tinha despeitado nela uma raiva mais forte do que qualquer coisa que já experimentara antes.

 

Quando lhe removeram parte do corpo, sentiu-se envergonhada e, em seguida, abandonada. Quando o marido a deixou, sentiuse culpada e resignada. E quando finalmente se enfureceu com esses fatos, enfureceu-se de uma maneira que sugeria brasas - uma raiva que irradiava um calor imenso mas que jamais irrompia em chamas.

 

Mas, por uma razão que não conseguia compreender, essa policial de Nova York tinha feito com que a fúria, que queimava em fogo baixo, explodisse em seu coração - tal como os marimbondos que saíram daquele ninho e mataram Ed Schaeffer de forma tão horrível.

 

Sentia muita raiva pela traição, ela, que nunca causara intencionalmente dor a ninguém, uma mulher que adorava plantas, que tinha sido boa esposa para seu marido, boa filha para os pais, boa irmã, boa policial, uma mulher que queria apenas os prazeres inocentes que a vida distribuía gratuitamente a todos, mas que parecia resolvida a lhe negar.

 

Nada mais de vergonha, culpa, resignação ou mágoa. Simplesmente, fúria... com as traições de que fora vítima. A traição do corpo, do marido, de Deus. E nesse momento, de Amélia Sachs.

 

- Alô, Lucy ? - perguntou Pete, falando de Elizabeth City. - Você está aí?

 

- Estou.

 

- E você... você está bem? Sua voz está esquisita. Lucy pigarreou.

 

- Estou ótima. Arranjou a coisa?

 

- Tudo bem. Quando é que o sujeito vai dar um telefonema?

 

Lucy olhou para a outra sala e perguntou: -Pronto? -

 

Rhyme inclinou a cabeça. -

 

No telefone, ela avisou:

 

- A qualquer momento agora.

 

- Fique na linha - disse Gregg. - Faço a ligação.

 

Por favor, Deus, faça com que isso funcione, pensou. Por favor... Em seguida, acrescentou à oração uma nota de rodapé: Deus querido, me ajude num tiro certeiro em minha judas.

 

Thom colocou os fones de ouvido em Rhyme. Em seguida, pressionou um número.

 

Se o telefone de Sachs estivesse desligado, tocaria apenas três vezes e, em seguida, ele começaria a ouvir a voz cantada e gravada da companhia telefônica.

 

Um toque... dois...

 

-Alô?

 

Rhyme não acreditou que pudesse sentir tal alívio ao lhe ouvir a voz.

 

- Sachs, você está bem? Uma pausa.

 

- Estou.

 

Na outra sala, ele viu Lucy Kerr, rosto fechado, inclinar a cabeça.

 

- Escute, Sachs, escute bem o que vou dizer. Eu sei por que você fez o que fez, mas você tem que se entregar. Você.... ainda está na linha?

 

- Estou, Rhyme.

 

- Eu sei o que você está fazendo. Garrett concordou em levá-la até o cativeiro de Mary Beth.

 

- Isso mesmo.

 

- Você não pode confiar nele - continuou Rhyme. (E pensando em desespero: em mim, também não. Viu Lucy movendo o dedo em um círculo, significando: conserve-a na linha.) - Eu fiz um trato com Jim. Se você trouxer Garrett de volta, eles darão um jeito nas acusações contra você. O Estado não foi informado ainda. E eu ficarei aqui enquanto for necessário, até encontrarmos Mary Beth. Eu adiei a operação.

 

Fechou os olhos por um momento, lacerado pela culpa. Mas não tinha opção. Visualizou o que tinha sido a morte daquela mulher em Blackwater Landing, a morte do policial Ed Schaeffer... Imaginou os marimbondos cobrindo todo o corpo de Amélia. Tinha que traíla para salvá-la.

 

- Garrett é inocente, Rhyme. Eu sei que é. Eu não poderia deixar que ele fosse para aquele centro de detenção. Iriam matá-lo lá.

 

- Neste caso, vamos dar um jeito para que ele seja mantido em algum outro lugar. E voltaremos a examinar aquelas provas. Encontraremos mais provas. Nós dois faremos isso. Você e eu. E isso o que sempre dizemos, não, Sachs, você e eu?... Sempre, você e eu. Não há nada que não possamos descobrir.

 

Seguiu-se uma pausa.

 

- Não há ninguém no lado de Garrett. Ele está sozinho, Rhyme.

 

- Nós poderemos protegê-lo.

 

- Você não pode proteger uma pessoa contra uma cidade inteira, Lincoln.

 

- Nada de primeiros nomes - disse Rhyme. - Isso dá azar, lembra-se?

 

- Toda esta coisa tem sido azarada.

 

- Por favor, Sachs... Amélia respondeu:

 

- Às vezes, a gente tem simplesmente que seguir nossa fé.

 

- Agora, quem é que está dizendo provérbios? - Rhyme obrigou-se a rir, em parte para tranqüilizá-la. E até certo ponto, para tranqüilizar-se.

 

Leve estática.

 

Volte pra casa, Sachs, pensava ele nesse momento. Por favor! Podemos salvar ainda alguma coisa desta situação. Sua vida está em estado tão precário quanto o fio de nervo em meu pescoço... a minúscula fibra que ainda funciona.

 

E que é igualmente tão preciosa para mim.

 

- Garrett me disse - explicou Sachs - que podemos chegar a Mary Beth hoje à noite ou amanhã pela manhã. Eu ligo para você quando chegar a ela.

 

- Sachs, não desligue ainda. Uma coisa. Deixe que eu diga mais uma coisa.

 

- O quê?

 

- O que quer que pense sobre Garrett, não confie nele. Você pensa que ele é inocente. Simplesmente, aceite o fato de que ele talvez não seja. Você sabe como nós iniciamos o trabalho em cenas de crime.

 

- com uma mente aberta - disse Sachs, recitando a regra. - Nada de idéias preconcebidas. Acreditando que tudo é possível.

 

- Certo. Prometa que vai lembrar-se disso.

 

- Ele está algemado, Rhyme.

 

- Conserve-o assim. E não o deixe aproximar-se de sua arma.

 

- Não vou deixar. Eu ligo pra você quando tivermos Mary Beth.

 

- Sachs...

 

A linha ficou muda.

 

- Droga - disse baixinho o criminalista.

 

Fechou os olhos. Enfurecido, tentou tirar com uma sacudidela os fones de ouvido. Thom aproximou-se e retirou o aparelho. com um movimento rápido da mão, arrumou os cabelos de Rhyme.

 

Lucy desligou o telefone na outra sala e voltou. Pela expressão dela, Rhyme teve certeza de que o grampo não tinha funcionado.

 

- Pete disse que eles estão a uns 4,5km do centro de Tanner's Corner.

 

- Eles não conseguem fazer nada melhor do que isso? - perguntou Mason, num murmúrio.

 

- Se ela tivesse ficado na linha mais alguns minutos, poderiam tê-la localizado com uma margem de 5 metros.

 

Bell examinava o mapa.

 

- OK, 4,5 quilômetros de distância do centro da cidade.

 

- Ele voltaria a Blackwater Landing? - perguntou Rhyme.

 

- Não - respondeu Bell. - Nós sabemos que eles estão se dirigindo para os Bancos Externos, e Blackwater Landing fica na direção oposta.

 

- Qual é a melhor maneira de chegar aos Bancos? - perguntou o criminalista.

 

- Eles não podem fazer isso a pé - explicou Bell, dirigindo-se para o mapa. - Terão que tomar um carro ou um carro e um barco. Há duas 280 maneiras de chegar lá. Poderiam seguir a Estrada 112 na direção sul até a Estrada 17. Dessa maneira, chegarão a Elizabeth City, conseguirão um barco ou continuarão na 17 o caminho todo até a 158 e de lá irão de carro até as praias. Ou poderiam tomar a Harper Road... Mason, chame Frank Sturgis e Trey, e sigam até a 112. Monte uma barreira de estrada em Belmont.

 

Rhyme notou que esta era a localização M-10 no mapa.

 

O xerife continuou:

 

- Lucy, você e Jesse tomem a Harper até a Millerton Road. E fiquem de prontidão lá.

 

Esta era a localização H-14.

 

Bell chamou o cunhado à sala.

 

- Steve, coordene as comunicações e forneça a todos telefones celulares, se já não os têm.

 

- Já está feito, Jim.

 

Bell virou-se para Lucy e Mason.

 

- Diga a todo mundo que Garrett está usando um de nossos uniformes de prisão. Azul. O que é que sua moça está usando? Não me lembro.

 

- Ela não é minha moça - retrucou Rhyme.

 

- Desculpe.

 

- Jeans, camiseta preta - disse Rhyme. -Chapéu?

 

- Não.

 

Lucy e Mason dirigiram-se para a porta.

 

Um momento depois, a sala ficou vazia, com exceção de Bell, Rhyme e Thom.

 

O xerife ligou para a Polícia Estadual e pediu ao detetive que os ajudara com o localizador móvel para manter alguém nessa freqüência, uma vez que a pessoa desaparecida poderia ligar mais tarde.

 

Rhyme notou que Bell ficou em silêncio. Lançando um olhar a Rhyme ele voltou ao telefone:

 

- Estou muito grato pelo oferecimento, Pete. Mas, até agora, trata-se apenas de uma pessoa desaparecida. Nada de grave.

 

Desligou, murmurando:

 

- Nada de grave. Jesus, nosso Senhor...

 

Quinze minutos depois, Ben Kerr entrou na sala. Na verdade, parecia contente em estar de volta, embora visivelmente preocupado com a notícia que lhe tornara necessária a presença ali.

 

Juntos, ele e Thom acabaram de desencaixotar o equipamento de criminalística, enquanto Rhyme olhava para o mapa e os gráficas de prova na parede.

 

ENCONTRADO NA CENA PRIMÁRIA DO CRIME • BLACKWATER LANDING

 

Kleenex Manchado de Sangue Pó de Calcário Nitratos Fosfato Amônia Detergente • Canfeno

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • QUARTO DE GARRETT

 

Cheiro de Gambá Agulhas de Pinheiro, Cortadas Desenhos de Insetos Fotos de Mary Beth e da Família Linha de Pesca Dinheiro Chave Desconhecida Querosene Amônia Nitratos Canfeno 282

 

ENCONTRADO EM CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • PEDREIRA

 

: Velho Saco de Aniagem - Nome Ilegível no Material Milho - Ração e Cereal? Marcas de Chamuscado no Saco Água Deer Park Biscoitos Planters Cheese

 

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • MOINHO

 

Mapa dos Bancos Externos Areia de Praia Oceânica Resíduos de Folhas de Carvalho/Bordo

 

Olhando para o último gráfico, deu-se conta de que haviam sido poucas as provas encontradas por Sachs no moinho. Isso é sempre um problema quando são procuradas pistas óbvias em cenas de crime - tal como o mapa e a areia. Por razões psicológicas, a atenção diminui e a busca é feita com menos diligência. Nesse momento, desejou ter mais provas colhidas no local.

 

Então, lembrou-se de uma coisa. Lydia disse que Garrett tinha mudado de roupa no moinho quando o grupo de busca se aproximou. Por quê? A única razão era que sabia que as roupas escondidas ali poderiam revelar o local onde escondera Mary Beth. Lançou um olhar a Bell.

 

- Você disse que Garrett estava usando uniforme de prisão?

 

- Isso mesmo.

 

- Você tem a roupa que ele usava quando foi preso?

 

- Deve estar lá na cadeia.

 

- Você poderia pedir que alguém a trouxesse para mim?

 

- As roupas? Agora mesmo.

 

- Diga para pô-las num saco de papel - ordenou. - E que não seja desdobrada.

 

O xerife ligou para a cadeia e deu as ordens. Pela conversa, ouvida só do lado de Bell, Rhyme deduziu que o policial estava mais do que feliz em ajudar a encontrar a mulher que o algemara e envergonhara.

 

Rhyme olhou para o mapa das praias ao leste. Poderiam limitar a busca a casas velhas - devido aos lampiões que queimavam canfeno - e que ficassem a uma certa distância da própria praia - dados os vestígios de bordo e de carvalho. Mas o próprio tamanho do local era um enorme desafio. Centenas de quilômetros.

 

O telefone tocou. Bell atendeu, falou por um minuto e desligou. Foi até o mapa.

 

- Eles montaram as barreiras nas estradas. Garrett e Amélia podem desviar-se para dentro, aqui, a fim de dar uma volta em torno delas - tocou na localização M-10 -, mas do lugar onde Mason e Frank estão eles têm uma boa vista do campo e os dois seriam vistos.

 

- O que é que você me diz da linha de estrada de ferro ao sul da cidade? - perguntou Rhyme.

 

- Não é usada para tráfego de passageiros. É uma linha de carga, sem horários fixos para os trens. Mas eles poderiam pegar uma carona. Foi por isso que mandei montar uma barreira em Belmont. Minha aposta é que vão seguir por esse caminho. Estou pensando também que Garrett pode esconder-se durante algum tempo na Reserva Ecológica de Manitou Falls - dado o interesse dele por insetos, natureza e coisas assim. Ele, provavelmente, passa muito tempo nesse lugar. - E bateu no ponto T-10.

 

- E o que é que você acha desse aeroporto? - perguntou Farr. Bell olhou para Rhyme.

 

- Ela pode fazer ligação direta num avião?

 

- Não, ela não sabe pilotar.

 

Rhyme notou nesse momento uma referência no mapa e perguntou:

 

- Que base militar é essa?

 

- Foi usada como arsenal nas décadas de 1960 e 1970. Está desativada há anos. Mas nesse lugar há túneis e casamatas por toda parte. Nós precisaríamos de umas duas dezenas de pessoas para dar uma busca e ele, mesmo assim, poderia encontrar um canto para esconder-se.

 

- O local é patrulhado? < -Não mais.

 

- O que é essa área quadrada aí? Nos pontos E-5 e E-6?

 

- Essa? Provavelmente, aquele velho parque de diversões - respondeu Bell, olhando para Farr e Ben.

 

- Exato - confirmou Ben. - Meu irmão e eu íamos lá antigamente, quando éramos crianças. Era chamado de... o quê? Indian Ridge ou alguma coisa assim.

 

Bell confirmou com um aceno de cabeça.

 

- Era uma recriação de aldeia indígena. Faliu há alguns anos... ninguém ia lá. Williamsburg e Six Flags eram muito mais populares. bom lugar para esconder-se, mas na direção oposta aos Bancos Externos. Garrett não iria para lá.

 

Bell tocou o ponto H-14-

 

- Lucy está aqui. E Garrett e Amélia teriam que ficar perto da Harper Road nesses lugares. Saem da estrada e o terreno em volta é pântano, com argila. Levariam dias para cruzar a área... se sobrevivessem, o que provavelmente não aconteceria. De modo que... acho que temos simplesmente que esperar e ver o que acontece.

 

Distraído, Rhyme inclinou a cabeça, os olhos movendo-se como sua amiga - a mosca buliçosa, nesse momento desaparecida - de um marco topográfico do Condado de Paquenoke para outro.

 

Garrett Hanlon levou Amélia por uma larga estrada asfaltada. Andavam mais devagar do que antes, exaustos com o esforço e o calor.

 

Reconhecendo a área, Amélia identificou a estrada como a Canal Road - a que haviam tomado a partir do Prédio da Prefeitura do Condado naquela manhã, a caminho da cena do crime, em Blackwater Landing. À frente, via as pequenas ondulações escuras das águas do rio Paquenoke. Do outro lado do canal, estendiam-se aquelas grandes e belas casas que comentara antes com Lucy.

 

Olhou em volta.

 

- Não estou entendendo. Esta é a estrada principal para a cidade. Por que não há barreiras na estrada?

 

- Eles pensam que tomamos um caminho diferente. Montaram as barreiras ao sul e a leste daqui.

 

- Como é que você sabe disso?

 

- Eles pensam que eu estou pirado. Pensam que sou burro. Quando somos diferentes, é isso o que as pessoas pensam. Mas eu não sou.

 

- Mas nós estamos indo ao encontro de Mary Beth, não estamos?

 

- Claro que estamos. Apenas, não pelo caminho que eles pensam. Mais uma vez, a confiança e a esperteza de Garrett perturbou-a.

 

Sua atenção, porém, voltou à estrada e eles continuaram a andar 286 em silêncio. Vinte minutos depois, estavam a uns 800 metros do cruzamento onde a Canal Road terminava na Estrada 112 - o local onde Billy Stail tinha sido morto.

 

- Escute! - sussurrou ele, agarrando-lhe o braço com as mãos algemadas.

 

Amélia inclinou a cabeça, mas nada ouviu.

 

- Para as moitas.

 

Saíram da estrada e entraram entre um grupo de azevinhas mirradas.

 

- O quê? - perguntou ela.

 

-Psiu.

 

Um momento depois, um grande caminhão descoberto apareceu às costas deles.

 

- Da fábrica - murmurou ele. - Que fica lá à frente.

 

A placa nos lados do caminhão era da Davett Industries. Amélia reconheceu o nome do homem que os havia ajudado na interpretação da prova. Quando o caminhão passou, os dois voltaram à estrada.

 

- Como foi que você conseguiu ouvi-lo?

 

- A gente tem que ter cuidado o tempo todo. Como mariposas.

 

- Mariposas? O que é que você quer dizer com isso?

 

- Mariposas são muito bacanas. Parece que sentem ondas de ultra-som. Têm aquelas coisas de detecção de radar. Quando um morcego lança contra elas um feixe de som para encontrá-las, as mariposas fecham as asas, caem no chão e se escondem. Campos magnéticos e eletrônicos, também... Insetos podem senti-los. Coisas que a gente nem nota. Sabe que podemos dirigir alguns insetos de um lado para o outro com ondas de rádio? Ou fazer com que vão embora, dependendo da freqüência? - Caiu em silêncio, a cabeça virada, imóvel nessa posição. Depois, voltou a olhar para Amélia. - A gente tem que ficar à escuta o tempo todo. De outra maneira, eles vêm em silêncio por trás e pegam a gente de surpresa.

 

- Quem? - perguntou ela, em dúvida.

 

- Você sabe, qualquer um. - Indicou com a cabeça a estrada, na direção de Blackwater Landing e do Paquenoke. - Dez minutos e a gente fica em segurança. Eles nunca vão nos encontrar.

 

Ela se perguntava, realisticamente, o que aconteceria a Garrett quando encontrassem Mary Beth e voltassem a Tanner's Corner. Haveria ainda acusações contra ele. Mas se Mary Beth confirmasse a história sobre o verdadeiro assassino-o homem vestido de macacão marrom -, o promotor público poderia aceitar que Garrett a tivesse seqüestrado tendo em vista a própria segurança da moça. E, provavelmente, arquivaria as acusações.

 

E quem era aquele homem de macacão? Por que estaria ele rondando as florestas de Blackwater Landing? Teria sido o assassino de outras pessoas no passado e estaria tentando pôr em Garrett a culpa dessas mortes? Teria ek assustado o jovem Todd Wilkes e o levado a cometer suicídio? Haveria uma quadrilha de traficantes de drogas, com a qual Billy Stail esteve envolvido? Ela sabia que o problema das drogas em cidades pequenas era tão grave quanto nas grandes.

 

Mas nesse momento ocorreu-lhe um pensamento: que Garrett poderia identificar o verdadeiro assassino de Billy Stail - o homem de macacão, que por essa hora poderia ter ouvido falar em sua fuga e estaria à espreita do rapaz, e dela, também. Para silenciá-los. Talvez eles devessem...

 

De repente, Garrett ficou absolutamente imóvel, uma expressão de alarme no rosto. Girou sobre si mesmo.

 

- O que foi? - murmurou ela.

 

- Carro, em grande velocidade. -Onde?

 

- Psiu.

 

Um relâmpago às costas dele captou-lhes a atenção. A gente tem que estar à escuta o tempo todo- De outra maneira, eles vêm. devagar por trás e pegam a gente de surpresa.

 

- Não! - exclamou Garrett cheio de desalento e puxou-a para dentro de uma moita de junça.

 

Dois carros de polícia do Condado de Paquenoke vinham a toda pela Canal Road. Sachs não pôde reconhecer quem dirigia o primeiro. O policial que vinha ao seu lado no assento do passageiro - o policial negro que tinha montado o quadro-negro para Rhyme - examinava com olhos apertados a floresta à margem da estrada. Trazia uma escopeta. Lucy Kerr guiava o segundo carro, com Jesse Corn ao lado.

 

Garrett e Sachs deitaram-se rentes ao chão, protegidos por uma moita de giesta-de-vassoura.

 

Mariposas fecham as asas e caem no chão...

 

Os carros passaram velozes e pararam com os pneus travados no ponto onde a Canal Road se encontrava com a Estrada 112. Estacionaram perpendiculares à estrada, bloqueando ambas as pistas. Os policiais desceram, armas na mão.

 

- Barreira de estrada - murmurou ela. - Droga.

 

- Não, não, não - murmurou, confuso, Garrett. - Eles deviam ter pensado que havíamos ido pelo outro lado... para leste. Eles tinham que pensar isso.

 

Um carro de passeio passou por eles, diminuindo a marcha ao fim da estrada. Lucy fez sinal ao carro para que parasse e interrogou o motorista. Em seguida, obrigou-o a descer e a abrir a mala, que os policiais examinaram com todo cuidado.

 

Garrett afundou-se mais no ninho de grama.

 

- Como, diabo, eles descobriram que estávamos vindo por aqui? - murmurou. - Como?

 

Porque eles têm ajuda de Lincoln Rhyme, respondeu em silêncio Sachs.

 

- Eles não viram ainda coisa nenhuma, Lincoln - disse-lhe Jim Bell.

 

- Amélia e Garrett não vão andar pelo centro da Canal Road - respondeu secamente Rhyme. - Andarão pelas moitas. Mantendo um perfil baixo.

 

- Foram montadas barreiras nas estradas e estamos passando em revista a todos os carros - acrescentou Jim Bell. - Mesmo que os motoristas sejam conhecidos.

 

Rhyme examinou mais uma vez o mapa na parede.

 

- Há outra maneira de eles seguirem para o oeste, a partir de Tanner's Corner.

 

- Partindo da cadeia, a única maneira através dos pântanos é a Canal Road até a Estrada 112. - Bell, no entanto, parecia em dúvida. - Tenho que dizer, porém, que este é um grande risco, Lincoln... enviar todo o pessoal para Blackwater Landing. Se eles vão realmente para leste, para os Bancos Externos, por esta hora já passaram por nós e nunca os encontraremos. Essa idéia sua é, bem, um pouco forçada.

 

Rhyme, porém, acreditava que tinha razão. Enquanto olhou para o mapa, cerca de 20 minutos antes, acompanhando a rota tomada pelo rapaz quando levou Lydia - que conduzia ao Grande Pântano da Desolação e muito pouco para qualquer outro lugar - começou a especular sobre o seqüestro de Lydia. Lembrou-se do que Sachs lhe dissera, quando estavam, naquela manhã, perseguindo Garrett.

 

Lucy diz que não faz o menor sentido para ele seguir por este caminho.

 

E esse fato o levara a fazer uma pergunta que ninguém até então respondera satisfatoriamente. Por que, exatamente, Garrett tinha seqüestrado Lydia Johansson? Segundo o Dr. Penny, para matá-la, como vítima substituta. Mas, como se viu, ele não a havia matado, mesmo que tendo tempo de sobra para isso. Nem estuprado. Nem havia qualquer motivo para seqüestrá-la. Eram estranhos, ela nunca o havia atanazado, ele não parecia sentir nenhuma obsessão por ela, ela não tinha sido testemunha do assassinato de Billy. Qual poderia ter sido o motivo dele para fazer aquilo?

 

Em seguida, lembrou-se de que Garrett dissera espontaneamente a Lydia que Mary Beth estava sendo mantida nos Bancos Externos - que estava feliz, que não precisava ser salva. Por que teria ele dado voluntariamente essa informação? E a prova no moinho - a areia de praia oceânica, o mapa dos Bancos Externos... De acordo com Sachs, Lucy a achara facilmente. Facilmente demais. A cena, concluiu Rhyme, tinha sido montada, como criminalistas denominam prova deixada para confundir os investigadores.

 

E ele, Rhyme, gritara amargamente:

 

- Nós fomos enrolados - O que é que você quer dizer com isso, Rhyme? - perguntara Ben.

 

- Ele nos enganou - disse o criminalista.

 

Um garoto de 16 anos tinha passado a perna em todos eles. Desde o início, Rhyme explicou que Garrett tinha chutado intencionalmente um sapato na cena do crime, quando seqüestrou Lydia.

 

Enchera-o com pó de calcário, que levaria qualquer pessoa com conhecimento da área - Davett, por exemplo - a pensar na pedreira, onde ele havia deixado outras provas, o saco chamuscado e o milho - que por seu turno levavam ao moinho.

 

Ele esperava que os perseguidores encontrassem Lydia, juntamente com o resto da prova deixada ali intencionalmente - para convencê-los de que Mary Beth estava sendo mantida em uma casa nos Bancos Externos.

 

O que significava, claro, que o cativeiro dela ficava na direção oposta - a oeste de Tanner's Corner.

 

O plano de Garrett era brilhante, mas ele tinha cometido um erro - supor que o grupo de busca precisaria de vários dias para encontrar Lydia (o que fora o motivo por que lhe deixara tanta comida). Por essa altura, estaria em companhia de Mary Beth no verdadeiro local do cativeiro, enquanto os perseguidores estariam passando um pente fino nos Bancos Externos.

 

E por isso perguntou a Bell qual o melhor caminho para oeste a partir de Tanner's Corner. "Blackwater Landing", respondeu o xerife, "Estrada 112". E Rhyme ordenou que Lucy e os outros polícias se dirigissem ao local com pressa máxima.

 

Havia a possibilidade de que Garrett e Sachs, já tendo passado pelo cruzamento, estivessem a caminho do oeste. Ele, porém, tinha calculado distâncias e não acreditava que, andando a pé - e evitando ser vistos - pudessem ter ido tão longe em tão pouco tempo.

 

Lucy ligou nesse momento da barreira na estrada. Thom transferiu a chamada para os fones de ouvido. A policial, indubitavelmente ainda desconfiada e se perguntando de que lado estava realmente Rhyme, disse em tom descrente:

 

- Não vimos nenhum sinal deles por aqui e examinamos todos os carros que passaram. Tem certeza a este respeito?

 

- Tenho - respondeu ele. - Absoluta.

 

E o que quer que tenha resolvido pensar sobre a resposta arrogante, ela nada disse, senão:

 

- Tomara que o senhor tenha razão. Nesta situação há possibilidade de grandes sofrimentos. E desligou.

 

Um momento depois, tocou o telefone de Bell. Escutando, ele olhou para Rhyme.

 

- Três outros policiais acabam de chegar a Canal Road, a uns 1.600 metros ao sul da 112. Vão fazer uma varredura a pé na direção de Lucy e os outros e cercar Garrett e Sachs. - Escutou por um momento mais. Olhou para Rhyme, desviou a vista e continuou, ao telefone: - Isso mesmo, ela está armada... E, sim, ouvi dizer que atira muito bem.

 

Agachados atrás das moitas, Sachs e Garrett observaram o carro de passageiros esperando para passar pela barreira.

 

Em seguida, atrás deles, outro som que, mesmo sem o sensível aparelho auditivo das mariposas, Sachs pôde detectar: sirenes. Viram um segundo conjunto de luzes piscantes - vindo da outra extremidade - sul - da Canal Road. Outra radiopatrulha parou e três policiais desceram, armados também com escopetas. Começaram a andar lentamente entre as moitas, vindo na direção de Garrett e Sachs. Dentro de dez minutos, passariam pelo ninho de junça onde eles estavam escondidos.

 

Garrett olhou esperançoso para ela.

 

-O quê? - perguntou Sachs.

 

Ele olhou para a arma.

 

- Você não vai usar isso? Ela fitou-o, chocada.

 

- Não. Claro que não.

 

Garrett indicou com a cabeça a barreira na estrada.

 

- Eles vão.

 

- Ninguém vai dar tiros por aqui - murmurou ela ferozmente, horrorizada por ele ter sequer pensado nisso. Olhou para a floresta às suas costas, pantanosa e impossível de atravessar sem ser vista ou ouvida. À frente, uma cerca de argolas, delimitando o terreno da Davett Industries. Através das malhas, Sachs viu carros no pátio de estacionamento.

 

Amélia Sachs tinha trabalhado em crimes de rua durante um ano. Essa experiência, combinada com o que sabia sobre carros, dizia-lhe que podia invadir aquele local e fazer uma ligação direta num carro dentro de 30 segundos.

 

Mas, mesmo que conseguissem um carro, como poderiam sair do terreno da fábrica? Havia uma entrada de entregas e despacho ali, mas que também dava na Canal Road.

 

Eles teriam ainda que passar pela barreira na estrada. Poderiam roubar uma picape com tração nas quatro rodas e arrombar a cerca, sem que ninguém os visse, sair em seguida dessa estrada e ir por fora até a Estrada 112? Havia colinas íngremes e precipícios a pino caindo para os pântanos por toda parte em volta de Blackwater Landing. Poderiam escapar de outra maneira, sem capotar com a picape e morrer na tentativa?

 

Os policiais que vinham a pé estavam nesse momento a apenas uns 70 metros de distância.

 

O que quer que eles fossem fazer, a hora era essa. Sachs chegou à conclusão de que não tinham alternativa.

 

- Vamos, Garrett. Temos que passar por cima daquela cerca.

 

Agachados, moveram-se na direção do pátio de estacionamento.

 

- Você está pensando num carro? - perguntou ele, notando para onde estavam se dirigindo.

 

Sachs olhou para trás. Os policiais estavam a uns 70 metros de distância.

 

Garrett continuou a falar:

 

- Eu não gosto de carros. Eles me dão medo.

 

Sachs, porem, não estava lhe dando atenção. Continuava a ouvir-lhe as palavras ditas antes, circulando em seus pensamentos. Mariposas dobram as asas e caem no chão.

 

- Onde é que eles estão agora? - perguntou Rhyme. - Os policiais que estão fazendo a varredura?

 

Bell retransmitiu a pergunta ao telefone, escutou e em seguida tocou um ponto no mapa, a meio caminho do retângulo G-10.

 

- Estão perto daqui. Essa é a entrada para a companhia de Davett. A uns 50, 60 metros, movendo-se para o norte.

 

- Amélia e Garrett podem dar uma volta em torno da fábrica e seguir para leste?

 

- Não. A propriedade de Davett é toda cercada. Além dela, fica um pântano perigoso. Se fossem para oeste, teriam que nadar pelo canal e provavelmente não conseguiriam subir pelas margens. De qualquer modo, não há cobertura nessa área. Lucy e Trey os veriam com certeza.

 

Esperar era difícil demais. Rhyme sabia que Sachs coçaria e furaria a carne numa tentativa de aliviar a ansiedade que era um corolário de sua energia e talento.

 

Hábitos destrutivos, sim, mas como os invejava. Antes do acidente, descarregava a tensão andando de um lado para o outro ou fazendo caminhadas. Nesse momento, nada podia fazer senão olhar fixamente para um mapa, obcecado pelo pensamento sobre o risco que ela corria.

 

Uma secretária enfiou a cabeça pela porta.

 

- Xerife Bell, Polícia Estadual na linha dois.

 

Jim Bell entrou no escritório no outro lado do corredor e atendeu a chamada. Falou durante alguns minutos e voltou em passos rápidos para o laboratório, dizendo, agitado:

 

- Nós os pegamos! Eles localizaram o sinal do telefone celular dela. Ela está se movendo, indo para oeste, na Estrada 112. Passaram pela barreira.

 

- Como? - perguntou Rhyme.

 

- Parece que entraram furtivamente no pátio de estacionamento da Davett, roubaram um caminhão ou uma picape 4X4, saíram da estrada durante algum tempo e voltaram para ela. Cara, foi preciso saber guiar para fazer isso.

 

Essa é a minha Amélia, pensou Sachs. Essa mulher pode subir até em parede com um carro... Bell continuou:

 

- Ela vai abandonar o carro e pegar outro.

 

- Como é que você sabe?

 

- Ela está falando ao telefone com uma companhia de aluguel de carros em Hobeth Falls. Lucy e os outros estão no encalço dela, em perseguição silenciosa. Estamos falando com o pessoal da Davett para saber quem deu por falta de um veículo no pátio. Mas não vamos precisar de uma descrição, se ela simplesmente ficar um pouco mais de tempo na linha. Mais alguns minutos, e o pessoal técnico terá a localização exata.

 

Lincoln Rhyme olhou para o mapa... embora, a esta altura, ele estivesse impresso em sua mente. Após um momento, suspirou e murmurou:

 

- Boa sorte.

 

Mas se o desejo era dirigido ao predador ou à presa, nem ele poderia ter dito.

 

Lucy Kerr acelerou o Crown Victoria e chegou a 150 quilômetros por hora.

 

Você dirige rápido, Amélia?

 

Eu, também.

 

Ela corria em alta velocidade pela Estrada 112, as luzes de sinalização vermelha, branca e azul na capota girando loucamente. Sirene desligada. Ao seu lado, Jesse Corn, em contato telefônico com Pete Gregg, na sede da Polícia Estadual, em Elizabeth City. Na radiopatrulha imediatamente atrás deles vinham Trey Williams e Ned Spoto. Mason Germain e Frank Sturgis - homem tranqüilo e avô recente - ocupavam o terceiro carro.

 

- Onde é que eles estão agora? - perguntou Lucy.

 

Jesse transmitiu a pergunta à Polícia Estadual e inclinou a cabeça, ao receber a resposta. Respondeu:

 

- A apenas 8 quilômetros à frente. Saíram da estrada de rodagem e se dirigem para o sul.

 

Por favor, rezou mais uma vez Lucy, por favor, fique ao telefone por mais um único minuto.

 

Apertou o acelerador até quase a tábua. Você dirige rápido, Amélia. Eu, também. Você atira bem.

 

Mas eu também atiro bem. Não dou espetáculo disso, como você, com toda aquela teatralidade de saque rápido, mas conheço armas desde que me entendo por gente.

 

Lembrou-se de que, quando Buddy a abandonou, pegou todos os cartuchos de munição que tinha em casa e jogou-os nas águas escuras do Blackwater Canal, com medo de acordar uma noite, olhar para o lado vazio da cama, fechar os lábios em volta do cano oleoso do revólver de serviço e jogar-se num lugar em que o marido e a natureza pareciam querer que ela estivesse.

 

Andou durante três ou quatro meses com a arma descarregada, prendendo falsificadores de bebida, arruaceiros de vários tipos, e adolescentes grandalhões num "barato" produzido por butano. E fez tudo isso apenas na base do blefe.

 

Certa manhã, acordou e, como se uma febre tivesse passado, foi a Hakey's Hardware, na Maple Street, e comprou uma caixa de cartuchos Winchester .357. ("Pó, Lucy, o condado deve 'tá pior do que pensei, se você tem que comprar sua própria munição.") Voltou para casa, carregou a arma e a manteve assim desde então.

 

Aquele fato tinha sido importante para ela. A arma recarregada tornou-se um símbolo de sobrevivência.

 

Amélia, eu lhe contei meus momentos mais tristes. Eu lhe falei da cirurgia... que é o buraco negro de minha vida. Falei de minha timidez com homens. Sobre meu amor por crianças. Ajudei-a quando Sean O'Sarian tomou sua arma. Pedi desculpas quando você estava certa e, eu, errada. Eu confiei em você. Eu...

 

Uma mão tocou-lhe o ombro. Olhou para Jesse Corn, que lhe endereçava um de seus sorrisos mais gentis.

 

- A estrada faz uma curva bem à frente - disse ele. - Tomara que a gente também consiga fazê-la.

 

Lucy soltou lentamente a respiração, recostou-se no assento, deixou cair os ombros e aliviou o pé no acelerador.

 

Ainda assim, quando fizeram a curva mencionada por Jesse, onde o limite máximo de velocidade era 65 quilômetros por hora, ela estava a mais de 100.

 

- A uns 30 metros à frente na estrada - murmurou Jesse Corn. Fora dos carros, os policiais formaram um círculo em volta de Mason Germain e Lucy Kerr.

 

A Polícia Estadual tinha perdido finalmente o sinal do telefone celular de Amélia, mas apenas depois de o som ter estacionado por uns cinco minutos no local para onde eles olhavam nesse momento: um estábulo a uns 15 metros de uma casa no bosque - a quilômetro e meio da Estrada 112. A casa, notou Lucy, ficava a oeste de Tanner's Corner. Exatamente como previra Lincoln Rhyme.

 

- Você não acredita que Mary Beth esteja aí, acredita? - perguntou Frank Sturgis, passando a mão pelo bigode amarelado de fumo.

 

- Quero dizer, fica a apenas 10 quilômetros do centro. Eu me sentiria muito tolo, se ele estivesse mantendo a moça ali, tão perto da cidade.

 

- Não, estão apenas esperando que a gente passe por eles - respondeu Mason. - Em seguida, vão seguir para Hobeth Falls e pegar o carro de aluguel.

 

- De qualquer modo - observou Jesse -, alguém mora aí. - Ele havia telefonado, dando o endereço da casa. - Pete Hallburton. Alguém sabe quem é?

 

- Acho que sei - disse Trey Williams. - Casado. Nenhum parentesco com Garrett que eu saiba.

 

-Filhos?

 

Trey encolheu os ombros.

 

- Acho que podem ter. Acho que me lembro de um jogo de futebol no ano passado...

 

- Estamos no verão. Os meninos podem estar na casa - murmurou Frank. - Garrett pode tê-los feitos reféns lá dentro.

 

- Talvez - concordou Lucy -, mas a triangulação do sinal do telefone de Amélia colocava-os no estábulo, não na casa. Eles poderiam ter entrado, mas não sei... Não posso imaginá-los fazendo reféns. Mason tem razão, acho. Estão simplesmente escondidos ali, até que pensem que é seguro chegar a Hobeth e pegar o carro de aluguel.

 

- O que é que nós vamos fazer? - perguntou Frank. - Bloquear a entrada com nossos carros?

 

- A gente vem de carro, pára e eles nos ouvem - lembrou Jesse.

 

Lucy concordou com uma inclinação de cabeça.

 

- Acho que devemos ir a pé até o estábulo rápido, partindo de duas direções.

 

- Eu trouxe gás CS - disse Mason.

 

O CS-38, um gás lacrimogênio militar muito potente, era mantido trancado a sete chaves na delegacia de policia local. Bell não distribuíra nenhuma unidade e Lucy perguntou a si mesma como Mason tinha posto as mãos em um tubo.

 

- Não, não - protestou Jesse. - Isso poderia fazer com que eles entrassem em pânico.

 

Lucy achou que isso não era absolutamente problema dele. Apostava que Jesse não queria que sua nova namorada sofresse os efeitos do gás. Ainda assim, concordou, achando que, se os policiais não estavam munidos de máscaras, o gás poderia funcionar contra eles.

 

- Nada de gás - disse. - Eu entro pela frente. Trey, você vai...

 

- Não - discordou tranqüilamente Mason. - Eu entro pela frente. Lucy hesitou por um momento e, em seguida, concordou:

 

- OK, eu entro pela porta lateral. Trey e Frank, vocês ficam nos fundos e no outro lado. - Olhou para Jesse. - Eu quero que você e Ned fiquem de olho nas portas da frente e dos fundos da casa. Ali.

 

- Entendi - disse Jesse.

 

- E nas janelas - lembrou sério Mason, dirigindo-se a Ned. - Não quero ninguém atirando do alto em nossas costas.

 

- Se eles saírem no carro - disse Lucy -, atirem simplesmente nos pneus ou, se tiverem um Magnum, como Frank aqui, no bloco do motor. Não atirem em Garrett ou Amélia, a menos que sejam obrigados. Vocês todos conhecem as regras de engajamento.

 

Olhava para Mason enquanto falava, pensando no ataque de tocaia feito por ele no moinho. O policial, porém, aparentemente não a ouvia. Lucy usou o handítalkie e disse a Jim Bell que iam invadir o estábulo.

 

- Eu tenho uma ambulância de prontidão - respondeu o xerife.

 

- Esta não é uma operação da SWAT - disse Jesse, que entreouvira a transmissão. - Temos que ter o máximo de cuidado com qualquer tiro.

 

Lucy desligou o rádio. Indicou o prédio com a cabeça.

 

- Vamos em frente.

 

Correram agachados, usando carvalhos e pinheiros como cobertura, os olhos de Lucy fixos nas janelas escuras do estábulo. Duas vezes, achou que via movimento lá dentro.

 

Poderia ter sido reflexo das árvores e nuvens, pensou, enquanto corria, mas não podia ter certeza. Enquanto se aproximavam, parou, passou a arma para a mão esquerda, enxugou a palma da mão direita, e voltou a segurá-la com a mão que usava para atirar.

 

Os policiais se reuniram nos fundos, sem janelas, do estábulo. Lucy pensou que jamais tinha feito uma coisa como essa.

 

Esta não é uma operação da SWAT...

 

Você está errado, Jesse... é exatamente isso.

 

Querido Deus, dê-me um tiro certo no meu judas.

 

Uma gorda libélula mergulhou em sua direção. Afastou-a com a mão esquerda. O inseto voltou e ficou pairando agourentamente por perto, como se Garrett tivesse enviado a criatura para distrair-lhe a atenção.

 

Que pensamento mais idiota, pensou. E novamente fez um movimento furioso para matar o bicho.

 

O Menino-inseto...

 

Vocês vão se dar mal, pensou Lucy... a mensagem era endereçada aos dois fugitivos.

 

- Eu não vou dizer nada - resolveu Mason. - vou simplesmente entrar. Quando ouvir meu pontapé na porta, Lucy, entre pelo lado.

 

Lucy inclinou a cabeça. E preocupada com a gana excessiva de Mason, tão desejoso de pegar Amélia Sachs, continuava feliz por dividir com outra pessoa a dureza daquele trabalho.

 

- Deixe eu ter certeza de que a porta lateral está aberta - murmurou.

 

Os policiais dispersaram-se, correndo para tomar posição. Lucy agachou-se sob uma das janelas e correu para a porta lateral. Não estava fechada a chave e havia mesmo uma fresta. Inclinou a cabeça para Mason, que num canto da construção observava-a. Ele, por sua vez, inclinou a cabeça e ergueu os dez dedos no ar, querendo dizerlhe com isso, pensou Lucy, para contar segundos, até ele arrombar a porta, e, em seguida, desapareceu de vista.

 

Dez, nove, oito...

 

Lucy virou-se para a porta, sentindo o cheiro da madeira bolorenta misturado com o aroma adocicado de gasolina e óleo que fluía de dentro do estábulo. Escutou com toda atenção. Ouviu um estalo - ruído do motor do carro ou caminhão roubado por Amélia.

 

Cinco, quatro, três...

 

Tomou uma respiração profunda para acalmar-se. Outra. Pronta, disse a si mesma.

 

Ouviu em seguida um som alto na frente do prédio, quando Mason abriu a porta com um pontapé.

 

- Polícia! - gritou ele. - Ninguém se mexa!

 

Agora!, pensou Lucy.

 

com um pontapé, abriu a porta lateral. Mas ela se moveu apenas uns poucos centímetros e parou - batendo em um grande aparador de grama colocado imediatamente do outro lado. E que não cedeu ao empurrão. Lançou duas vezes um ombro contra a porta, sem resultado.

 

- Merda - disse baixinho e correu para a frente do prédio. Mas, antes de percorrer metade do caminho, ouviu a exclamação de Mason:

 

- Oh, Jesus.

 

E, em seguida, o som do tiro.

 

Seguido por outro um momento depois.

 

- O que é que está acontecendo? - perguntou Rhyme.

 

- Tudo bem - disse em dúvida Bell, segurando o telefone.

 

Havia na postura de Bell alguma coisa que alarmou Rhyme: o xerife tinha o fone colado à orelha e o outro punho cerrado, afastado do corpo. Inclinou a cabeça ao continuar a ouvir e olhou para Rhyme.

 

- Ouvi tiros.

 

- Tiros?

 

- Mason e Lucy entraram no estábulo. Jesse disse que foram disparados dois tiros. - Ergueu a vista e gritou para a outra sala. - Mande a ambulância para a propriedade Hallburton. Badger Hollow Road, saindo da Estrada 112.

 

Steve Farr gritou em seguida:

 

- Ambulância já a caminho.

 

Rhyme encostou com força a cabeça no descanso da cadeira ! Lançou um olhar a Thom, que permaneceu calado.

 

Quem era que estava atirando? Quem tinha sido ferido?

 

Oh, Sachs...

 

Em voz áspera, Bell ordenou:

 

- Ora, descubra isso, Jesse! Alguém foi atingido? O que diabo está acontecendo?

 

- Amélia está bem? - berrou Rhyme.

 

- Vamos saber em um minuto - respondeu Bell. Mas a demora pareceu consumir dias.

 

Finalmente, Bell endureceu-se todo quando ouviu a voz de Jesse Corn, ou de alguma outra pessoa, ao telefone. Inclinou a cabeça.

 

- Jesus, ele fez o quê? - Escutou por mais um momento e, em seguida, olhou para o rosto alarmado de Rhyme. - Está tudo bem. Ninguém foi ferido. Mason abriu com um pontapé a porta do estábulo e viu um macacão pendurado na parede. com um ciscador, uma pá ou alguma coisa na frente. Estava muito escuro. Pensou que era Garrett com uma arma. Atirou duas vezes. Só isso.

 

- Amélia está bem?

 

- Eles nem estavam lá. Dentro, apenas a picape que roubaram. Garrett e Amélia devem ter estado na casa, mas, provavelmente, ouviram os tiros e correram para a floresta.

 

Mas não podem ir longe demais. Eu conheço a propriedade - cercada de pântanos por todos os lados.

 

Irritado, Rhyme disse:

 

- Eu quero Mason fora deste caso. Aquilo não foi um engano... Ele atirou de propósito. Eu lhe disse que ele era esquentado demais.

 

Bell obviamente concordava com isso. Ao telefone, falou:

 

- Jesse, ponha Mason na linha... - Seguiu-se uma curta pausa. Mason, o que, diabo, significa tudo isso?... Por que foi que você atirou?... E se fosse Pete Hallburton que estivesse ali? Ou a mulher dele? Ou uma das crianças?... Não me interessa. Volte pra cá, agora. E isto é uma ordem... Tudo bem, eles que dêem uma busca na casa. Pegue seu carro e volte... E não vou repetir isso. Eu... Merda!

 

Bell desligou. Um momento depois, o telefone voltou a tocar.

 

- Lucy, o que é que está acontecendo?... - O xerife escutou, fechando a cara, olhos no chão. Andou de um lado para o outro. Oh, Jesus... Tem certeza? - Inclinou a cabeça e disse: - Tudo bem, fique aí. Volto a ligar pra você.

 

E desligou.

 

- O que foi que aconteceu?

 

Bell sacudiu a cabeça.

 

- Eu não acredito nisso. Nós fomos enrolados. Ela pregou uma peça em nós, sua amiga.

 

- O quê? Bell continou:

 

- Pete Hallburton estava lá. Estava em casa... na casa dele. Lucy e Jesse acabam de falar com ele. A esposa trabalha no turno de 3 às 7 horas na companhia de Davett, esqueceu a ceia, deixou o trabalho há meia hora e veio de carro para casa.

 

- Ela veio de. carro para casa? com Amélia e Garrett escondidos na mala?

 

Bell soltou um suspiro de nojo.

 

- Ela tem uma picape. Nenhum lugar para alguém se esconder. Não eles, de qualquer maneira. Mas havia lugar de sobra para o telefone celular dela. Atrás de um freezer que há nos fundos da casa.

 

Rhyme, nesse momento, soltou uma risada cínica.

 

- Ela ligou para a companhia de aluguel de carros, foi posta em regime de espera, e deixou o telefone na picape.

 

- Você entendeu tudo - murmurou Bell. Thom entrou na conversa:

 

- Lembre-se, Lincoln, de que ela ligou para aquela companhia, esta manhã. Ficou furiosa porque foi posta em regime de espera.

 

- Ela sabia que tentaríamos localizar o telefone - comentou Bell.

 

- Eles esperaram até que Lucy e os carros deixassem a Estrada do Canal e, em seguida, continuaram em seu alegre caminho. - Olhou para o mapa. - Eles têm uma dianteira de 40 minutos sobre nós. Podem estar em qualquer lugar.

 

Logo que os policiais desmontaram as barreiras de carros e se dirigiram para oeste pela Estrada 112, Garrett e Sachs correram até o fim da Estrada do Canal e cruzaram a rodovia.

 

Contornaram as cenas dos crimes em Blackwater Landing e, em seguida, viraram para leste, andando rápidos através de moitas e de uma floresta de carvalhos, seguindo o curso do rio Paquenoke.

 

A uns 800 metros floresta adentro, chegaram a um afluente do Paquo. Era impossível contornar o local e Sachs não tinha vontade de cruzar a nado a água escura, cheia de insetos, lodo e lixo.

 

Garrett, porém, tinha feito outros arranjos. com as mãos algemadas, apontou para um lugar na margem.

 

- O bote.

 

-Bote? Onde?

 

-Ali, ali.

 

E apontou novamente.

 

Amélia apertou os olhos e conseguiu ver, com dificuldade, a forma de um pequeno barco. Coberto de ramos e folhas. Garrett foi até o local e, trabalhando como podia com as mãos algemadas, começou a tirar a folhagem que o escondia. Sachs ajudou-o.

 

- Camuflagem - disse ele, orgulhoso. - Aprendi isso com os insetos. Há na França um pequeno grilo - o truxalis. Legal, mesmo...

 

muda de cor três vezes no verão para combinar com o verde diferente da relva durante a estação. Predadores dificilmente podem vê-lo. Bem, ela, também, tinha usado um pouco dos conhecimentos esotéricos do rapaz sobre insetos. Quando Garrett comentou sobre as mariposas - a capacidade de detectar sinais eletrônicos e de rádio -, teve certeza de que Rhyme havia providenciado para lhe localizar o telefone celular. Lembrou-se de que tinha sido mantida à espera durante longo tempo, naquela manhã, pela Piedmont-Carolina Car Rental. Em seguida, esgueirou-se para o pátio de estacionamento da Davett Industries, ligou para a companhia e colocou furtivamente o telefone, que recebia música de fundo interminável, na caçamba vazia da picape, cujo motor estava em funcionamento, parado em frente à entrada dos empregados no prédio.

 

O macete, aparentemente, tinha dado certo. Os policiais partiram à procura da picape quando o veículo deixara o pátio.

 

Enquanto tiravam a camuflagem do barco, perguntou a Garrett:

 

- E a amônia? E o buraco com o ninho de marimbondos? Você aprendeu isso também com insetos?

 

- Aprendi - respondeu ele.

 

- Você não ia machucar ninguém, ia?

 

- Não, não, o buraco da formiga-leão era apenas para assustar vocês, retardar. Deixei ali, de propósito, um ninho vazio. A amônia era para me avisar, se vocês chegassem perto. É isso o que insetos fazem. E como se cheiros fossem para eles um sistema de alarme antecipado, ou coisa assim. - Os olhos vermelhos, úmidos, brilharam com um curioso senso de admiração. - Foi muito legal o que vocês fizeram, me descobrindo no moinho. Eu nunca pensei que chegassem lá tão ligeiro.

 

- E você deixou aquela prova falsa no moinho - o mapa e a areia - para nos enganar.

 

- Isso mesmo, eu lhe disse... insetos são sabidos. Eles têm que ser.

 

Acabaram de descobrir o barco, muito estragado, pintado de cinza escuro, de uns três metros de comprimento e com um pequeno motor de popa. Dentro do barco havia uma dezena de garrafas de galão de água de fonte e uma geladeira de isopor. Sachs abriu uma das garrafas e tomou uma dezena de goles. Estendeu a garrafa a Garrett, que bebeu também. Em seguida, ele abriu a geladeira, de onde tirou caixas de biscoito e batata frita. Examinou-as com todo cuidado, para ter certeza de que tudo estava ali e que ninguém tinha tocado em nada. Inclinou a cabeça e entrou no barco.

 

Sachs seguiu-o, sentou-se de costas para a proa, de frente para ele. Ele lhe endereçou um sorriso de quem sabe das coisas, como se reconhecesse que ela não confiava nele o suficiente para lhe dar as costas, e puxou a corda de partida. O motor gaguejou e pegou. Empurrou o barco da margem e, como Hucks Finns modernos, começaram a descer o rio.

 

Sachs refletiu: "Este é um tempo de pancadas." Era uma frase usada pelo pai. Alto e magro, começando a ficar calvo, policial de ronda no Brooklyn e Manhattan durante a maior parte da vida, ele teve uma conversa séria com a filha, quando ela lhe disse que queria desistir da profissão de modelo e ser policial. Embora a apoiasse cem por cento na decisão, ele falou, falando sobre a profissão:

 

- Amie, você tem que compreender bem o seguinte: às vezes, trabalho de polícia é um corre-corre, às vezes, se não fosse você, coisas trágicas aconteceriam, às vezes é maçante. E, algumas vezes, não muitas vezes, graças a Deus, é tempo de pancada. Punhos contra punhos. Você está sozinha, sem ninguém para ajudá-la. E não quero dizer apenas contra criminosos. Às vezes, é você contra seu chefe. Outras vezes, contra os chefes deles. E você pode ficar também contra seus colegas. Se vai ser policial, tem que estar pronta para se virar sozinha. Não há maneira de evitar isso.

 

- Eu posso dar conta, pai.

 

- Assim é que se fala. Vamos dar uma volta de carro, amor. Sentada naquele barco raquítico, pilotado por um rapaz neurótico, Sachs nunca se sentira mais solitária na vida.

 

Tempo de pancada... punhos contra punhos.

 

- Olhe ali - disse rápido Garrett, apontando para algum tipo de inseto. - Entre todos, é o meu favorito. O barqueiro d'água. Ele voa por baixo da água. -O rosto iluminou-se com um entusiasmo infantil. - Voa, de verdade! Ei, isso é muito bacana, não é? Voar embaixo d'água? Eu gosto de água. Acho água gostosa na pele. - O sorriso desapareceu e ele coçou o braço. - Esta droga de carvalho venenoso... Vive me pegando o tempo todo. Às vezes, coça pra valer.

 

Começaram a navegar através de pequenas passagens, dar volta em ilhotas, raízes e troncos de árvore meio submersos, sempre voltando a um curso na direção oeste, na direção do sol que baixava no horizonte.

 

Ocorreu-lhe um pensamento, um eco de alguma coisa que lhe acontecera antes, na cela do rapaz, pouco antes de tirá-lo de lá. Ao esconder um barco cheio de provisões, abastecido de gasolina, Garrett tinha previsto que, de alguma maneira, escaparia da prisão. E que seu papel nessa jornada era parte de um plano detalhado, premeditado.

 

O que quer que pense sobre Garrett, não confie nele. Você pensa que ele é inocente. Mas simplesmente aceite o fato de que ele talvez não seja. Você sabe como abordamos cenas de crime, Sachs.

 

com uma mente aberta. Sem idéias preconcebidas. Acreditando que tudo é possível.

 

Mas, nesse momento, voltou a olhar para o rapaz. Viu olhos brilhantes saltando felizes de um cenário para outro, enquanto guiava o barco através de canais, em nada parecendo um criminoso em fuga, mas em tudo como um adolescente entusiástico numa excursão, contente e emocionado com o que poderia encontrar na curva seguinte do rio.

 

- Ela é competente, Lincoln - disse Bell, referindo-se ao macete do telefone celular.

 

Ela é competente, pensou o criminalista. E acrescentou para si mesmo: tão competente quanto eu. Embora, reconhecesse sombriamente - e apenas para si mesmo - que, desta vez, ela tinha sido mais competente do que ele.

 

E estava furioso consigo mesmo por não ter previsto a jogada de Sachs, Mas isto não é um jogo, pensou, nem um exercício - da maneira como a desafiara às vezes, quando ela percorria a grade ou quando analisavam prova no seu laboratório em Nova York. A vida dela estava em perigo. Sachs só dispunha de algumas horas, antes que Garrett a atacasse sexualmente ou a matasse. Ele não poderia dar-se ao luxo de outro descuido.

 

Um policial apareceu à porta, trazendo uma sacola de compras do Food Lion. Continha as roupas de Garrett, que ele tirara quando obrigado a trocá-las pelo uniforme de prisão.

 

- Ótimo! - disse. - Alguém, preparem um gráfico. Thom, Ben.... Montem um gráfico. "Encontrado na Cena Secundária do Crime - o Moinho". Ben, escreva.

 

- Mas nós já temos um - respondeu Ben, apontando para o quadro-negro.

 

- Não, não, não - respondeu seco Rhyme. - Apague isso. Estas pistas são falsas. Garrett plantou-as para nos enrolar. Exatamente como o calcário no sapato que deixou para trás quando seqüestrou Lydia. Se pudermos encontrar alguma prova nas roupas - e indicou o saco com um movimento de cabeça - ela nos dirá onde Mary Beth está realmente.

 

- Se tivermos essa sorte - observou Bell.

 

Não, pensou Rhyme, se formos competentes. E voltou-se para Ben:

 

- Corte um pedaço da calça - perto da boca - e passe-o no cromatógrafo.

 

Bell deixou a sala para falar com Steve Farr sobre freqüências prioritárias nos rádios, sem dar dicas à Polícia Estadual sobre o que estava acontecendo, o que Rhyme tinha insistido com ele para que fizesse.

 

Nesse momento, o criminalista e Ben esperavam os resultados do cromatógrafo. Enquanto isso, Rhyme perguntou:

 

- O que mais temos aí?

 

E, com um movimento de cabeça, indicou as roupas.

 

- Manchas marrons de tinta na calça - disse Ben, depois de examiná-la. - Marrom escuro. Parecem recentes.

 

- Marrom - repetiu Rhyme, examinando-as. - Qual é a cor da casa dos pais de Garrett?

 

- Eu não sei... - começou Benn.

 

- Eu não esperava que você fosse um arquivo das trivialidades de Tanner's Corner - rosnou Rhyme. - Quero dizer: telefone para eles.

 

- Oh!

 

Ben encontrou o número na pasta sobre o caso, ligou, falou com alguém durante um momento e desligou em seguida.

 

- Aquele filho da puta não quer mesmo colaborar... O pai adotivo de Garrett. De qualquer modo, a casa é branca e nada há pintado de marrom escuro na propriedade.

 

- Neste caso, provavelmente é a cor do lugar onde ele a escondeu.

 

O homenzarrão perguntou:

 

- Há em algum lugar um banco de dados com que comparar a cor?

 

- Boa idéia - aprovou Rhyme. - Mas a resposta é não. Tenho um, em Nova York, mas não vai nos adiantar em nada aqui. E o do FBI é sobre cores de automóveis. Mas, continue a trabalhar. O que é que há nos bolsos? Alguma coisa? Calce...

 

Ben, porém, já estava calçando as luvas de látex.

 

- Era isso o que o senhor ia dizer?

 

- Era... - murmurou Rhyme.

 

- Ele odeia quando alguém prevê o que vai dizer - observou Thom.

 

- Neste caso, vou tentar fazer mais do que isso - retrucou Ben.

 

- Ah, aqui há alguma coisa.

 

Rhyme fitou, olhos em fresta, vários pequenos objetos brancos tirados dos bolsos de Garrett. -O que é que isso? Ben cheirou-os.

 

- Queijo e pão.

 

- Mais comida. Como os biscoitos e...

 

Ben ria nesse momento.

 

Rhyme fechou a cara para ele.

 

- Qual é a graça?

 

- A comida... mas não para Garrett.

 

- O que é que você quer dizer com isso?

 

- Você nunca pescou? - perguntou Ben.

 

- Não, nunca pesquei - rosnou Rhyme. - Se a gente quer peixe, compra, prepara e come. Mas o quê, diabo, peixe tem a ver com sanduíche de queijo?

 

- Esses fragmentos não são de sanduíche - explicou Ben. - São bolas de cheiro. Isca para pesca. A gente molha pão e queijo e deixa que fiquem azedos. Peixe de água funda adora isso. Especialmente o bagre. Quanto mais fedorenta, melhor. Rhyme ergueu uma sobrancelha.

 

- Ah, bem, isso é útil.

 

Ben examinou as bainhas. com um pincel, pôs uma pequena quantidade num cartão de assinatura da revista Peopk e, em seguida, examinou-a com o microscópio.

 

- Nada muito característico - disse. - Exceto pequenos pontos de alguma coisa. Brancos.

 

- Deixe eu olhar - disse o criminalista.

 

O zoólogo levou o grande microscópio Baush &. Lomb para Rhyme, que examinou os espécimes através das oculares.

 

- Tudo bem, ótimo. São fibras de papel.

 

- São? - perguntou Ben.

 

- É óbvio que se trata de papel. O que mais poderia ser? Papel absorvente, também. Mas não tenho pista sobre qual seja a origem. Agora, esse sujo aí é interessante.

 

Pode conseguir um pouco mais? Das bainhas?

 

- Vou tentar.

 

Ben cortou os pontos de costura que prendiam a bainha e desdobrou-a. Usou novamente o pincel para pôr mais sujeira no cartão.

 

- Veja no microscópio - ordenou Rhyme.

 

O zoólogo preparou uma lâmina e introduziu-a no suporte do microscópio composto, que mais uma vez segurou, firme como uma rocha, para o exame de Rhyme.

 

- Há um bocado de argila. Quero dizer, um bocado. Rocha de feldspato, provavelmente, granito. E... o que é isso? Oh, musgo de turfa.

 

Impressionado, Ben perguntou:

 

- Como é que o senhor conhece tudo isso?

 

- Eu simplesmente conheço.

 

Rhyme não tinha tempo para explicar que um criminalista precisava saber tanto sobre o mundo físico quanto sobre crime. E perguntou:

 

- O que mais havia nas bainhas? O que é isso? - indicando com um movimento de cabeça alguma coisa em cima do cartão de assinatura. - Essa coisinha branca-esverdeada?

 

- É de uma planta - respondeu Ben. - Mas esta não é minha especialidade. Estudei botânica marinha, mas não era minha matéria favorita. Interesso-me mais por formas de vida que têm uma chance de fugir quando a gente as está coletando. Acho isso mais esportivo.

 

- Descreva-a - ordenou Rhyme.

 

Ben examinou o espécime com uma lupa.

 

- Um talo avermelhado e uma gota de líquido na ponta. Parece viscoso. Há uma flor branca, em forma de campânula, presa ao... Se eu pudesse dar um palpite...

 

- Você pode - respondeu seco Rhyme. - E logo.

 

- Tenho quase certeza de que é de uma sundeui [orvalhinha].

 

- O que, diabo, é isso? Parece mais sabão pra lavar prato.

 

- É parecido com a dionéia. Dionéias comem insetos. São fascinantes. Quando eu era menino, eu ficava sentado olhando pra elas durante horas. A maneira como elas comem os...

 

- Fascinante - repetiu sarcástico Rhyme. - Eu não estou interessado nos hábitos alimentares delas. Onde é que elas são encontradas. Isso é o que seria fascinante para mim.

 

- Em toda parte por aqui. Rhyme fechou a cara.

 

- Inútil. Merda. Tudo bem, passe uma amostra da areia no cromatógrafo, depois de analisada a amostra do tecido. - Em seguida, olhou para a camiseta de Garrett, desdobrada sobre a mesa. - Que manchas são essas?

 

Na camiseta havia várias manchas avermelhadas. Ben examinou-as atentamente, deu de ombros, sacudiu a cabeça.

 

Os lábios finos do criminalista encurvaram-se em um sorriso irônico.

 

- Tem coragem de lambê-las?

 

Sem hesitar, Ben levantou a camiseta e lambeu uma pequena parte da mancha.

 

- Menino bacana - disse Rhyme. Ben ergueu uma sobrancelha.

 

- Eu pensei que isso fosse procedimento padrão.

 

- Eu, por nada neste mundo teria feito isso - respondeu Rhyme. -Não acredito nisso, de maneira nenhuma- retrucou Ben. Lambeu novamente a mancha. - Suco de fruta, acho. Mas não posso dizer que sabor.

 

- OK. Acrescente isso à lista, Thom. - Indicou o cromatógrafo com a cabeça. - Vamos ver os resultados dos pedaços do tecido da calça. Em seguida, passe a areia tirada das bainhas.

 

Pouco tempo depois, a máquina informou que substâncias vestigiais estavam impregnadas nas roupas de Garrett e quais na areia existente nas bainhas. Foi encontrado o seguinte: açúcar, mais canfeno, álcool, querosene e levedura. Era grande o conteúdo de querosene. Thom acrescentou essas informações à lista, que eles voltaram a examinar.

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • MOINHO

 

Tinta Marrom na Calça Planta Orvalhinha Argila Musgo de Turfa Fibras de Papel Açúcar Canfeno Álcool Querosene Levedura O que tudo isso significava?, perguntou-se Rhyme. Havia pistas demais. Mas não conseguia ver quaisquer relação entre elas. Seria o açúcar do suco de fruta ou de um local separado onde o rapaz esteve? Ele tinha comprado o querosene ou simplesmente se escondido em um posto de gasolina ou estábulo onde os donos o guardavam? Álcool é encontrado em mais de três mil artigos comuns, usados no lar e em produtos industriais - de solventes à loção pós-barba. A levedura tinha sido evidentemente absorvida no moinho, onde cereais eram moídos e transformados em farinha.

 

Após alguns minutos, os olhos de Lincoln Rhyme saltaram para

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • QUARTO DE GARRETT

 

Cheiro de Gambá Agulhas de Pinheiro, Cortadas Desenhos de Insetos Fotos de Mary Beth e da Família Livros sobre Insetos Linha-de-Pesca Dinheiro Chave Desconhecida Querosene Amônia Nitratos Canfeno Lembrou-se de uma coisa que Sachs contou quando deu busca no quarto do rapaz.

 

- Ben, você poderia abrir essa caderneta de notas aí. A de Garrett? Quero dar outra olhada nela.

 

- Quer que a coloque no suporte de leitura?

 

- Não, simplesmente passe as páginas com o dedo - disse Rhyme.

 

Os desenhos desengonçados do rapaz passaram, página após página: um barqueiro d'água, uma aranha mergulhadora, um inseto que andava sobre água.

 

Rhyme lembrou-se de que Sachs lhe dissera que, com exceção da jarra de marimbondos - o cofre de Garrett -, todos os outros insetos se encontravam em jarras que continham água.

 

- Todos eles são aquáticos.

 

- Parecem ser - disse Ben, inclinando a cabeça.

 

- Ele é atraído por água - disse pensativo Rhyme. Olhou para Ben. - E essa isca? Você disse que é usada para peixe de fundo.

 

- Bolas de cheiro? Certo.

 

- De água salgada ou doce?

 

- Doce. Claro.

 

- E o querosene... barcos usam querosene como combustível, certo?

 

- Gasolina branca - confirmou Ben. - Motores de popa pequenos usam.

 

- O que você acha disso? Ele está indo de barco para oeste pelo rio Paquenoke?

 

- Faz sentido, Lincoln - disse Ben. - E aposto que há tanto querosene porque ele andou se reabastecendo um bocado... indo e voltando do lugar onde escondeu Mary Beth. Preparando-o para ela.

 

- Boas conclusões. Peça a Jim Bell para vir até aqui, sim? Minutos depois, Bell voltou à sala e Rhyme explicou-lhe sua teoria.

 

- Insetos d'água lhe deram essa idéia, ahn? - disse Bell. Rhyme confirmou com um aceno.

 

- Se conhecemos insetos, conhecemos Garrett Hanlon.

 

- Isso não é mais louco do que nada que já ouvi hoje - disse Bell.

 

- Você tem barco para diligências? - perguntou Rhyme.

 

- Não. Mas um barco não nos serviria para nada. Você não conhece o Paquo. Pelo mapa, parece igual a qualquer rio... com margens e tudo mais. Mas ele tem milhares de passagens e cursos secundários que entram e saem dos pântanos. Se Garrett está no rio, ele não vai ficar no canal principal. Isso eu lhe garanto. Seria impossível encontrá-lo.

 

Os olhos de Rhyme seguiram o Paquenoke na direção oeste.

 

- Se ele esteve levando suprimentos para o local onde escondeu Mary Beth, isso significa que o lugar provavelmente não fica muito longe do rio. A que distância para o oeste ele teria que ir para encontrar uma área habitável?

 

- Tem que ser um lugar longe. Está vendo esta área, aqui em cima? - Bell tocou um local em volta da Localização G-7. - Isso aí fica ao norte do Paquo. Ninguém mora lá. O sul do rio é uma zona bem habitada. Ele seria visto, com certeza.

 

- De modo que, pelo menos 15 quilômetros mais ou menos, para o oeste?

 

- Você calculou certo - disse Bell.

 

- E essa ponte?

 

Rhyme indicou o mapa com a cabeça, olhando para o ponto E-8. -AHobethBridge?

 

- Como são as vias de acesso a ela? Estrada de rodagem?

 

- Apenas aterros. Mas um bocado de aterros. A ponte tem uns 15 metros de altura, de modo que as rampas que levam a ela são muito longas. Oh, espere... Você está pensando que Garrett vai ter que voltar ao canal principal para passar sob a ponte?

 

- Exatamente. Isso porque os engenheiros teriam aterrado os canais menores de cada lado quando construíram as vias de aproximação.

 

Bell inclinou várias vezes a cabeça.

 

- Isso mesmo. Faz sentido para mim.

 

- Mande Lucy e os outros para lá, agora. Para a ponte. E, Ben, ligue para aquele cara... Henry Davett. Diga ele que sentimos muito, mas que precisamos novamente de sua ajuda.

 

WWJD....

 

Pensando no vãmente em Davett, Rhyme fez uma oração... embora não dirigida a qualquer divindade. Dirigida a Amélia Sachs: Oh, Sachs, tenha cuidado. E apenas uma questão de tempo, antes que Garrett dê uma desculpa para que você lhe tire as algemas. E em seguida a levará para algum lugar deserto. Lá, ele vai dar um jeito de tomar-lhe a arma... Não deixe que as horas que estão passando a embotem e a façam confiar nele. Não baixe a guarda. Ele tem a paciência de um louva-a-deus.

 

Garrett conhecia o curso d'água como se fosse um piloto fluvial perito e dirigia o barco subindo o que pareciam becos sem saída, mas sempre conseguia encontrar riachos, finos como fios de teia de aranha, mas que o levavam ininterruptamente para oeste através do labirinto.

 

Mostrou a Sachs lontras, ratos do banhado e castores - vistas que poderiam ter emocionado naturalistas amadores, mas que a deixavam indiferente. Em matéria de vida silvestre, só conhecia os ratos, pombos e esquilos da cidade - e apenas na medida em que eram úteis para ajudá-la e a Rhyme no trabalho.

 

- Olhe para ali! - exclamou ele.

 

- O quê?

 

Ele apontava para alguma coisa que ela não conseguiu ver. Olhava fixamente para um ponto perto da margem, fascinado por qualquer minúsculo drama que estava sendo representado na superfície. Tudo que Sachs pôde ver foi algum inseto raspando a superfície.

 

- Besouro saltador - explicou ele, e se recostou, depois de passarem sem dificuldade pelo local. O rosto ficou sério. - Insetos são muito mais importantes do que nós. Quero dizer, pra manter o planeta funcionando. Entenda - eu li isso em algum lugar -, se todas os caras aqui na terra sumissem amanhã, o mundo continuaria numa boa. Mas se os insetos dessem no pé, a vida acabaria aqui muito ligeiro... vamos dizer, em uma geração. As plantas morreriam, os animais iriam para o beleléu em seguida, e a terra voltaria a ser uma grande pedra.

 

A despeito do vernáculo de adolescente, Garrett falava com a autoridade de um professor e o entusiasmo de um fanático religioso. E continuou:

 

- Isso mesmo, há uns insetos por aí que são um saco. Mas só alguns deles, assim como um ou dois por cento. - O rosto animou-se e ele disse, cheio de orgulho. - Quanto aos que comem plantações e troços assim, eu tenho uma idéia. Bem legal. Quero criar um tipo especial de plenipene-dourado para controlar os mauzinhos, em vez de aplicar venenos... de modo que os bons insetos e outros animais não morram. O plenipene seria o melhor. Ninguém ainda fez isso.

 

- E você acha que pode fazer, Garrett?

 

- Eu não sei bem ainda como. Mas vou aprender.

 

Sachs lembrou-se de que tinha lido, naquele livro de Garrett, o termo cunhado por E.O. Wilson, biofilia - a afeição do homem por outros tipos de vida no planeta. Enquanto o escutava dizer banalidades - tudo prova de amor pela natureza e pelo conhecimento -, em seus pensamentos o mais importante era o seguinte: um indivíduo capaz de sentir-se tão fascinado por criaturas vivas e, à sua maneira estranha, amá-las, não poderia, de maneira alguma, ser estuprador e assassino.

 

Agarrou-se a esse pensamento, que a sustentou enquanto desciam o Paquenoke, fugindo de Lucy Kerr, do homem misterioso de macacão marrom e da cidadezinha simples e perturbada de Tanner's Corner.

 

E fugindo também de Lincoln Rhyme, da operação iminente e das conseqüências terríveis que a cirurgia poderia ter para ambos.

 

O estreito barco passava facilmente pelos afluentes, não mais água preta, mas dourada, camuflada - refletindo o sol baixo no horizonte -, exatamente como o grilo francês de que falara Garrett. Finalmente, o rapaz saiu das correntes secundárias e entrou no canal principal do rio, colando-se à margem. Sachs olhou para trás, para o leste, à procura de barcos de polícia, perseguindo-os. Nada viu, exceto uma das grandes chatas da Davett Industries, subindo o rio - para longe deles. Garrett reduziu a velocidade do motor e entrou em uma pequena enseada. Olhou pelos ramos altos dos salgueiros, na direção de uma ponte que cruzava o Paquenoke.

 

- Vamos ter que passar por baixo - disse ele. - Não podemos dar a volta em torno dela. - Estudou o vão da ponte. - Está vendo alguém?

 

Sachs olhou. Viu alguns relâmpagos de luz.

 

- Talvez. Não dá pra saber com certeza. Ofuscamento grande demais.

 

- E lá que aqueles escrotos devem estar nos esperando - disse ele, nervoso. - Eu sempre me preocupo com a ponte. Pessoas à procura da gente.

 

Sempre?

 

Garrett embicou para a margem e desligou o motor. Desceu e soltou o mecanismo que prendia o motor à popa do barco, e esondeu-o na grama, juntamente com o tanque de gasolina.

 

- O que é que você está fazendo? - perguntou Amélia.

 

- Não podemos nos arriscar a ser vistos.

 

Tirou da geladeira de isopor as garrafas d'água e prendeu os remos aos assentos com dois pedaços de corda suja de graxa. Esvaziou uma meia dúzia de garrafas, voltou a fechá-las e colocou-as de lado. Inclinou a cabeça para as garrafas.

 

- É uma pena jogar fora a água. Mary Beth não tem água nenhuma. Vai precisar de um pouco. Mas posso arranjar um pouco para ela numa lagoa perto da cabana. - Em seguida, entrou no rio e segurou o barco pelo lado. - Ajude aqui - disse. - Temos que emborcar o barco.

 

- Vai afundá-lo?

 

- Não. Apenas virá-lo de cabeça pra baixo. A gente coloca as garrafas embaixo. O barco vai flutuar que é uma beleza.

 

- De cabeça pra baixo?

 

- Isso mesmo.

 

Sachs compreendeu o que Garrett pretendia fazer. Ficariam em baixo do bote e passariam flutuando por baixo da ponte. Da ponte, seria quase impossível ver o casco escuro, abaixo na água. Uma vez do outro lado, poderiam desvirá-lo e remar o resto do caminho até o local do cativeiro de Mary Beth.

 

Garrett abriu a geladeira e tirou um saco plástico.

 

- A gente pode botar aí dentro as coisas que não queremos que se molhem. - E pôs no saco o livro The Miniature World. Sachs, por sua vez, enfiou no saco a carteira de dinheiro e a arma. Puxou a camiseta para dentro da cintura da jeans e pôs o saco em cima do estômago.

 

- Você pode tirar minhas algemas? - perguntou Garrett.

 

E estendeu as mãos.

 

Sachs hesitou.

 

- Eu não quero me afogar - disse ele, olhos implorantes. Estou com medo. Mande ele parar!

 

- Eu não faço nenhuma ruindade, prometo. Relutante, ela tirou a chave do bolso e abriu as algemas.

 

Os índios Weapemeoc, nativos da região que hoje é a Carolina do Norte, faziam lingüisticamente parte da nação Algonquin e eram aparentados das tribos Powhatans, Chowans e Pamlico, que habitavam a parte média da costa atlântica dos Estados Unidos.

 

Excelentes agricultures, eram também invejados por seus irmãos de raça pela habilidade como pescadores. Pacíficos ao extremo, pouco interesse sentiam por armas. Há 300 anos, o cientista britânico Thomas Harriot escreveu: "As armas que possam ter são apenas arcos feitos de aveleira e flechas de caniços. Não têm qualquer coisa com que se defenderem, exceto escudos feitos de casca de árvore e algumas armaduras feitas de varetas costuradas juntas."

 

Coube aos colonos britânicos torná-los belicosos, o que fizeram com grande eficiência, ameaçando-os simultaneamente com a ira de Deus, se não se convertessem imediatamente ao Cristianismo, dizimando a população com a gripe e a varíola que trouxeram, exigindo alimento e moradia que eram preguiçosos demais para providenciar por si mesmos e assassinando um dos chefes favoritos da tribo, Wingina, que os colonos estavam convencidos, erroneamente, como se viu depois, que planejava um ataque às colônias britânicas.

 

Para surpresa indignada dos colonos, os índios, em vez de aceitar o Senhor Jesus Cristo no coração, declararam fidelidade às suas próprias divindades - espíritos denominados Manitous - e, em seguida, guerra contra os britânicos, cujo ataque inicial (segundo a História, da forma escrita pela jovem Mary Beth McConnell) foi lançado contra os Colonos Perdidos, na ilha de Roanoke.

 

Após a fuga dos colonos, a tribo - prevendo a chegada de reforços britânicos - deu uma nova olhada às armas e começou a usar em sua fabricação o cobre, que antes servia apenas como enfeites. Pontas de flecha de metal eram muito mais agudas do que as de pederneira e mais fáceis de fazer. Contudo, ao contrário do que aparece nos filmes, a flecha disparada por um arco comum não penetra muito fundo na pele e raramente é fatal. Para acabar com o adversário ferido, o guerreiro Weapemeoc aplicava o golpe de misericórdia - uma pancada na cabeça com uma clava chamada, apropriadamente, "pau de misericóridia", em cuja fabricação a tribo se tornou muito talentosa.

 

O "pau de misericórdia" nada mais é do que uma pedra grande, redonda, encaixada na forquilha de uma vara e amarrada com uma correia de couro. E uma arma muito eficiente, e a que Mary Beth McConnell estava nesse momento fabricando, baseada em seus conhecimentos da arqueologia dos americanos nativos, era certamente tão mortal como as outras que - segundo sua teoria - haviam esmagado o crânio e quebrado a espinha dos colonos de Roanoke, quando travaram sua última batalha nas margens do Paquenoke, no local hoje chamado de Blackwater Landing.

 

Fizera a sua dos pés curvos da velha mesa de jantar da cabana. A pedra era a que tom, o amigo do missionário, tinha jogado nela. Montou-a entre os dois pés e amarrou-a com longas tiras de brim, arrancado da fralda da camisa. A arma era pesada - 3 a 3,5 quilos - mas não muito para ela, que costumeiramente levantava pedras de 15

 

a 20 quilos em suas escavações arqueológicas.

 

Ergueu-se da cama e girou a arma várias vezes sobre a cabeça, satisfeita com o poder que a clava lhe dava. Ouviu um som esquisito - os insetos nas jarras. O som fê-la pensar no hábito revoltante de Garrett de bater as unhas, umas nas outras. Tremeu de raiva e ergueu o "pau de misericórdia" para descê-lo sobre a jarra mais próxima.

 

Mas em seguida parou. Odiava os insetos, certo, mas a raiva não se dirigia realmente contra eles. Estava furiosa com Garrett. Deixou as jarras onde estavam e foi até a porta, batendo nela várias vezes com a clava - perto da fechadura. A porta nem se mexeu. Bem, também não esperava que se mexesse. O importante era que tinha prendido com grande firmeza a pedra à cabeça da clava. Ela não escorregara.

 

Claro, se o missionário e tom voltassem com uma arma de fogo, a clava não valeria muito contra eles. Mas resolveu que, se eles entrassem, manteria a clava escondida às costas e o primeiro que a tocasse teria a cabeça rachada. O outro poderia matá-la, mas levaria um deles consigo. (Imaginava que foi assim que Virginia Dare morrera.)

 

Sentou-se e olhou pela janela, para o sol baixo sobre a linha de árvores onde vira pela primeira vez o missionário.

 

Qual era o sentimento que lhe percorria o corpo? Medo, pensou.

 

Mas, depois, chegou à conclusão de que não era medo, absolutamente. Era impaciência. Queria que os inimigos voltassem. Levantou o "pau de misericórdia" e colocou-o no colo. Prepare-se, disse tom. Bem, ela estava preparada.

 

- Lá está um bote.

 

Lucy inclinou-se para a frente através das folhas de um loureiro de cheiro amargo, na praia perto da Hobeth Bridge, a mão na coronha da arma.

 

- Onde? - perguntou a Jesse Corn.

 

- Ali - respondeu ele, apontando, rio acima.

 

Lucy conseguiu distinguir vagamente uma leve escuridão na água, a uns 800 metros de distância. Movendo-se com a corrente.

 

- O que é que você quer dizer com um bote? - perguntou. - Não estou vendo...

 

- Não, olhe. Está emborcado.

 

- Eu mal consigo ver - disse ela. - Seus olhos são muito bons.

 

- Eles? - perguntou Trey.

 

- O que foi que aconteceu? O barco capotou?

 

- Não, estão embaixo do bote - explicou Jesse Corn. Lucy apertou os olhos.

 

- Como é que você sabe?

 

- Intuição, simplesmente - disse Jesse.

 

- Há ar suficiente ali embaixo? - perguntou Trey.

 

- Claro que há - retrucou Jesse. - O barco fica suficientemente alto na água. A gente fazia isso com canoas no lago Bambert. Quando a gente era criança. A gente brincava de submarino.

 

- O que é que nós vamos fazer? - perguntou Lucy. - Precisaremos de um bote ou de alguma outra coisa para chegar até eles.

 

E olhou em volta.

 

Ned tirou o cinto de utilidades e entregou-o a Jesse Corn.

 

- Eu vou simplesmente nadar até lá e chutar o barco para a margem.

 

- Você é capaz de nadar tanto assim? - perguntou Lucy.

 

Ned tirou as botas.

 

- Eu nadei nesse rio um milhão de vezes.

 

- Nós lhe daremos cobertura - disse Lucy.

 

- Eles estão embaixo d'água - lembrou Jesse. - Eu não me preocuparia muito com a possibilidade de eles atirarem.

 

Trey, porém, observou:

 

- Basta um pouco de graxa nos cartuchos e eles resistem durante semanas embaixo d'água.

 

- Amélia não vai atirar - protestou Jesse, o defensor da judas.

 

- Mas nós não vamos nos arriscar - resolveu Lucy. E, virando-se para Ned: - Não desvire a canoa. Simplesmente vá nadando até lá e empurre-a para aqui. Trey, vá para ali, para junto do salgueiro, com a escopeta. Jesse e eu ficaremos aqui na margem. Nós os poremos em fogo cruzado, se alguma coisa acontecer.

 

Ned, descalço e nu da cintura para cima, andou com cuidado sobre o aterro rochoso até a margem enlameada. Olhava em volta com todo cuidado - à procura de cobras, pensou Lucy - e em seguida entrou de mansinho na água. Foi em nado de peito até o barco, movendo-se suavemente, mantendo a cabeça acima da água. Lucy sacou da bainha o Smith & Wesson, puxou para trás o cão da arma e relanceou a vista para Jesse Corn, que olhou inquieto para a arma. Atrás da árvore, Trey segurava a escopeta, a boca para cima. Notou que Lucy havia engatilhado e acionou a alavanca, pondo um cartucho na câmara da Remington.

 

O barco estava a uns 10 metros deles, perto do centro da corrente.

 

Nadador forte, Ned cobria rapidamente a distância. Estaria ali em...

 

O tiro foi alto e perto. Lucy saltou quando um jato d'água subiu no ar, a poucos metros de Ned.

 

- Oh, não! - exclamou Lucy, levantando a própria arma, procurando o atirador.

 

- Onde, onde? - perguntou Trey, agachando-se e ajustando a empunhadura na escopeta.

 

Ned mergulhou sob a superfície.

 

Outro tiro. Mais água subiu no ar. Trey baixou a escopeta e começou a atirar no barco. Fogo de pânico. A escopeta calibre .12 não possui cano raiado e estava carregada com sete cartuchos. O policial esvaziou a arma em segundos, atingindo o bote a cada tiro, espalhando lascas de madeira e água por todos os lados.

 

- Não! - gritou Jesse. - Há gente embaixo do barco!

 

- De onde é que estão atirando? - perguntou gritando Lucy. - De baixo do bote? Do outro lado? Não consigo saber. Onde estão eles?

 

- Onde está Ned? - perguntou Trey. - Foi ferido? Onde está Ned?

 

- Não sei - gritou Lucy, a voz rouca de pânico. - Não consigo vê-lo.

 

Trey recarregou e apontou novamente para o barco.

 

- Não! - ordenou Lucy. - Não atire. Me dê cobertura! Correu pelo aterro e entrou na água. De repente, perto da margem, ouviu um arquejo sufocado quando a cabeça de Ned apareceu.

 

- Socorro!

 

Ele estava apavorado, olhando para trás, saindo atabalhoado da água.

 

Jesse e Trey apontaram as armas para a outra margem e desceram devagar a ribanceira para o rio. Os olhos desalentados de Jesse estavam fixos no bote esburacado - nos buracos horríveis no casco.

 

Entrando na água, Lucy guardou a arma, pegou o braço de Ned e puxou-o para a margem. Ele havia ficado submerso por tanto tempo quanto pudera e estava pálido e fraco com a falta de oxigênio.

 

- Onde estão eles? - perguntou, sufocando, lutando para falar. -Não sei-respondeu Lucy, puxando-o para atrás de umas moitas. Ned arriou-se no chão, cuspindo e tossindo. Lucy examinou-o com todo cuidado. Ele não tinha sido atingido por nenhum tiro.

 

Trey e Jesse chegaram nesse momento, ambos agachados, olhos voltados para o outro lado do rio, procurando os atacantes.

 

Ned continuava com dificuldade para respirar.

 

- Água nojenta. Tem gosto de merda.

 

O barco vinha lentamente na direção deles, nesse momento meio submerso.

 

- Eles estão mortos - murmurou Jesse com, olhando para o barco. - Têm que estar.

 

O barco aproximou-se mais, flutuando. Jesse tirou o cinto de utilidade e começou a dirigir-se para a beira d'água.

 

- Não - disse Lucy, os olhos presos na margem oposta. - Deixe que ele chegue até aqui.

 

O bote virado flutuou até um pé de cedro desenraizado, tombado em parte no rio, e parou.

 

Os policiais esperaram alguns momentos. Nenhum outro movimento que não o balanço do bote despedaçado. Água avermelhada, mas Lucy não podia saber se a cor era devida a sangue ou a um reflexo do ígneo pôr-do-sol.

 

O pálido e agitado Jesse Corn lançou um olhar a Lucy, que baixou a cabeça. Os três outros policiais mantiveram as armas apontadas, enquanto Jesse ia andando pela água e desvirava o barco.

 

Os restos de várias garrafas d'água subiram à tona e flutuaram vagarosamente com a corrente. Ninguém ali embaixo.

 

- O que foi que aconteceu? - perguntou Jesse. - Não estou entendendo nada.

 

- Droga - murmurou amargamente - Ned. - Eles nos armaram uma tocaia. Foi uma droga de emboscada.

 

Lucy não acreditava que sua raiva pudesse ficar ainda mais feroz. Nesse momento, porém, atacou-a como se fosse uma corrente elétrica. Ned tinha razão. Amélia tinha usado o bote como um chamariz, daqueles feitos por Nathan Groomer, e os emboscara da outra margem do rio.

 

- Não - protestou Jesse. - Ela não faria uma coisa dessas. Se atirou foi apenas para nos assustar. Amélia é perita em armas. Se quisesse, poderia ter acertado em Ned.

 

- Droga, Jesse, abra os olhos, 'tá bem? - disse furiosa Lucy. - Atirar de uma emboscada fechada como aquela? Pouco importa se o cara atira bem. Ela ainda poderia ter errado. E na água? Poderia ter havido um ricochete. Ou então Ned poderia ter entrado em pânico e nadado para a trajetória de uma bala.

 

Jesse Corn não tinha resposta para isso. Esfregou o rosto com as palmas das mãos e olhou para a outra margem.

 

- Muito bem. O que vamos fazer é o seguinte - disse Lucy, em voz baixa. - Está ficando tarde. Vamos até onde der, enquanto houver luz. Em seguida, pedimos a Jim que nos traga alguns suprimentos para a noite. Vamos acampar por aqui. Vamos supor que querem nos matar e agir pensando nisso. Agora, vamos cruzar a ponte e procurar a pista deles. Todo mundo pronto?

 

Ned e Trey responderam que sim. Jesse Corn olhou por um momento para o barco destruido e, lentamente, inclinou a cabeça.

 

- Então, vamos.

 

Os quatro policiais começaram a percorrer os 15 metros da ponte desprotegida - mas não andando juntos. Formaram uma longa fila, de modo que, se Amélia Sachs atirasse novamente, não poderia atingir mais do que um deles, antes que os outros se protegessem e pudessem responder ao fogo. A formação era uma idéia de Trey, que a tirara de um filme sobre a Segunda Guerra Mundial e, porque pensara nela, achou que devia ir à frente. Mas essa era a posição que Lucy Kerr insistiu em ocupar.

 

- Droga, você quase acertou nele.

 

- De jeito nenhum - disse Harris Tomei. Culbeau, porém, insistiu:

 

- Eu disse, assuste. Se você tivesse acertado em Ned, sabe em que tipo de merda nós estaríamos metidos?

 

- Eu sei o que estou fazendo, Rich. Me dê um pouco de crédito, 'tá bem?

 

Menininho de escola sacana, pensou Culbeau.

 

Na verdade, embora estivesse furioso porque Tomei havia atirado perto demais do policial que nadava para o bote, Culbeau tinha certeza de que a emboscada dera certo. Lucy e os outros policiais iam ficar nervosos como ovelhas e só se moveriam bem devagar e com todo cuidado.

 

Os tiros haviam produzido ainda outro efeito benéfico... Sean O'Sarian ficara com medo e, para variar, calara aquela merda de boca.

 

Andaram durante uns 10 minutos. Em seguida, Tomei perguntou a Culbeau:

 

- Tem certeza de que o rapaz está seguindo nessa direção?

 

- Tenho.

 

- Mas você não tem a menor idéia do lugar onde ele quer chegar.

 

- Claro que não - respondeu Culbeau. - Se soubesse, a gente poderia ir direto para lá, não é?

 

Ora vamos, estudantinho. Use essa merda de cabeça.

 

- Mas...

 

- Não se preocupe. A gente vai dar com ele.

 

- Posso beber um pouco d'água? - perguntou finalmente O'Sarian.

 

- Água? Você quer água? Tranqüilamente, O'Sarian respondeu:

 

- Quero. E isso que gostaria de beber.

 

Culbeau fitou-o, desconfiado, e passou-lhe uma garrafa. Nunca tinha visto aquele magrelo beber outra coisa que não cerveja, uísque ou bebida falsificada. O'Sarian emborcou a garrafa, enxugou a boca cercada de sardas e jogou-a para um lado.

 

Culbeau soltou um suspiro e disse, sarcástico:

 

- Terá aí, Sean, você tem certeza de que quer deixar na trilha alguma coisa com suas impressões digitais?

 

- Ei, você tem razão. - O magrelo correu para a moita e pegou a garrafa. - Sinto muito.

 

Sente muito? Sean O'Sarian pedindo desculpas? Culbeau fitou-o incrédulo por um momento e, em seguida, com um movimento de cabeça, disse aos dois para continuar a andar.

 

Chegaram a uma curva no rio e, estando nesse momento em terreno alto, podiam ver em volta por quilômetros.

 

- Ei, olhe pra lá - disse Tomei. - Uma casa. Aposto que o rapaz e a ruiva estão indo pra lá.

 

Culbeau olhou pela mira telescópica do fuzil de caçar gamos. Mais ou menos a 3 quilômetros vale abaixo, viu uma casa de veraneio, praticamente colada ao rio. Seria um esconderijo lógico para o rapaz e a policial se esconderem. Inclinou a cabeça, concordando.

 

- Aposto que estão. Vamos.

 

Rio abaixo a partir da Hobeth Bridge, o rio Paquenoke faz uma curva fechada na direção norte.

 

É raso nessa parte, perto da margem, e os baixios se enchem até o alto de lascas de madeira flutuante, vegetação e lixo.

 

Como barcos à deriva, duas formas humanas boiando perderam a curva e foram levadas pela corrente para o monte de lixo.

 

Amélia Sachs soltou a garrafa plástica de água - sua improvisada bóia - e estendeu uma mão engelhada pelo frio para agarrar um galho. Mas logo compreendeu que isso não tinha sido prudente, porque os bolsos estavam cheios de pedras, que usara como lastro, e se sentiu puxada para baixo na água escura. Firmou as pernas, porém, tocou o fundo do rio a apenas um metro e vinte centímetros abaixo da superfície. Endireitou-se, insegura, e avançou cambaleante. Garrett apareceu a seu lado um momento depois e ajudou-a a sair da água e passar para o terreno enlameado.

 

Rastejaram, subindo uma leve inclinação, através de um emaranhado de moitas, e caíram cansados numa clareira relvada, onde ficaram por alguns momentos, recuperando o fôlego. Sachs puxou de dentro da blusa o saco plástico. Vazava ligeiramente, mas a água não tinha causado um grande dano. Entregou a Garrett o livro sobre insetos, abriu o tambor da arma, examinou-o, e, em seguida, deitou-se em uma cama de relva quebradiça, amarelada, para secar-se.

 

Havia se enganado sobre o que Garrett tinha planejado. Ele colocara garrafas vazias de água sob o barco emborcado para lhe dar flutuação, mas, em seguida, empurrou-o para o meio da corrente, sem usá-lo como cobertura. Disse a ela para encher os bolsos com pedra. Ele fez o mesmo e adiantaram-se na corrente, deixando o barco para trás. Uns 15 metros adiante, entraram na água, usando como bóia uma garrafa meio cheia. Garrett ensinou-lhe como manter a cabeça para trás. com as pedras servindo de lastro, só o rosto ficava acima d'água. E boiaram corrente abaixo, à frente do barco.

 

- A aranha d'água faz isso - explicou ele. - Como um mergulhador equipado com cilindro de ar. Ela leva o ar de que vai precisar.

 

Ele tinha feito várias vezes isso no passado para "fugir", embora - da mesma maneira que antes - não dissesse por que tinha fugido, e de quem. Garrett explicou que, se a polícia não estivesse na ponte, eles nadariam para o barco, iam levá-lo para a margem, retirariam a água e continuariam a viagem, usando remos. Se estivessem na ponte, a atenção dos policiais estaria no bote e não poderiam notálos boiando à frente. Uma vez passada a ponte, nadariam para a margem e continuariam a jornada a pé.

 

Bem, ele tinha razão sobre essa parte: haviam passado por baixo da ponte sem serem vistos. Mas ela continuava ainda chocada com o que acontecera em seguida - sem provocação, os policiais haviam atirado repetidamente no barco virado.

 

Garrett, igualmente, ficou muito abalado com os tiros.

 

- Eles pensaram que nós estávamos embaixo do barco - disse baixinho. - Os safados tentaram nos matar.

 

Sachs ficou calada. E Garrett acrescentou:

 

- Eu fiz algumas coisas ruins... mas eu não sou nenhum phymata.

 

- Um o quê?

 

- Um inseto tocaieiro. Fica na moita e mata. Era isso o que iam fazer com a gente. Exatamente, atirar na gente. Sem dar à gente nenhuma chance.

 

Oh, Lincoln, pensou ela, em que bagunça eu me meti. Por que fiz isso? Eu devia simplesmente me entregar agora. Esperar aqui pelos policiais, render-me. Voltar a Tanner's Comer e tentar consertar a burrice que fiz.

 

Olhou, porém, para Garrett, abraçando o próprio corpo, tremendo de medo. E teve certeza de que não poderia voltar, não nesse momento. Teria que continuar, levar até o fim essa jogada maluca.

 

Tempo de pancada...

 

- Para onde vamos agora?

 

- Está vendo aquela casa ali?

 

Uma casa de madeira, de luxo.

 

- Mary Beth está lá?

 

- Não, mas eles têm lá um pequeno barco, que podemos tomar emprestado. E podemos secar a roupa e comer alguma coisa.

 

Bem, o que uma acusação de arrombamento e invasão de domicílio significaria, depois das ações criminosas que tinha praticado naquele dia?

 

De repente, Garrett pegou-lhe a arma. Sachs endureceu-se, observando o revólver preto-azulado nas mãos do rapaz. com ar conhecedor, ele soltou o tambor e verificou que estava carregado com seis balas. Encaixou-o em posição com um estalido e equilibrou a arma na mão com um conhecimento de causa que a deixou amedrontada.

 

O que quer que você pense de Garrett, não confie nele...

 

Ele lançou-lhe um olhar e sorriu alegremente. Em seguida, devolveu-lhe a arma, pela coronha.

 

- Vamos por aqui - disse, indicando o caminho com um gesto de cabeça.

 

Sachs recolocou a arma no coldre, sentindo o coração ainda acelerado pelo medo.

 

Caminharam na direção da casa.

 

- Está vazia? - perguntou Sachs, gesticulando com a cabeça para a casa.

 

- Não há ninguém aí agora. - Garrett parou e olhou para trás. Apôs um momento, murmurou: - Eles estão furiosos agora, os tiras. E estão querendo nos pegar. com todas aquelas armas e tudo mais.

 

- Virou-se e levou-a por uma trilha até a casa. Permaneceu calado durante alguns minutos. - Quer saber de uma coisa, Amélia?

 

- O quê?

 

- Eu estava pensando naquela mariposa... a grande mariposaimperatriz.

 

- O que é que tem ela? - perguntou distraída Sachs, ouvindo ainda os tiros ensurdecedores e apavorantes da escopeta, dirigidos contra ela e aquele rapaz. Lucy Kerr, tentando matá-la. Os ecos dos tiros obscureciam tudo mais em sua mente.

 

- A coloração das asas - disse Garrett. - Quando estão abertas, parecem exatamente os olhos de um animal. Quero dizer, é uma coisa bastante legal... há mesmo um ponto branco num canto, como um reflexo de luz na pupila. Aves vêem isso e pensam que é uma raposa ou um gato, ficam com medo e fogem.

 

- As aves não podem farejar e saber que é uma mariposa, e não um animal? - perguntou ela, sem dar muita atenção à conversa.

 

Ele fitou-a por um momento, para ver se ela estava brincando. E disse:

 

- Aves não podem cheirar - como se ela tivesse perguntando se o mundo era plano. Olhou para trás, rio acima novamente. - Temos que retardá-los. A que distância você acha que eles estão?

 

- Muito perto - respondeu ela. com todos aquelas armas e tudo mais.

 

- São eles.

 

Rich Culbeau examinou as pegadas na lama da margem.

 

- A trilha tem apenas dez, 15 minutos.

 

- E eles estão se dirigindo para aquela casa - disse Tomei. Subiram cautelosos a trilha.

 

O'Sarian continuava a se comportar de um modo que nada tinha de esquisito. O que, no caso dele, era esquisito. E assustador. Ele não estava tomando nenhuma bicada de banho-de-lua, nem fazendo palhaçada, nem mesmo falando - e Sean O'Sarian era a língua motorizada número um de Tanner's Corner. Nesse momento, cruzando o bosque, ele virava a boca do fuzil militar rapidamente para cada som que ouvia nas moitas.

 

- Você viu aquele crioulo atirar? - perguntou, finalmente. Deve ter metido dez balas no bote em menos de um minuto.

 

- Pelotas de chumbo - corrigiu-o Harris Tomei.

 

Em vez de desmenti-lo e tentar impressioná-lo com o que sabia sobre armas (e comportar-se como o panaca completo que era), O'Sarian simplesmente disse:

 

- Chumbo grosso. Certo. Eu devia ter pensado nisso.

 

E inclinou a cabeça como um menino de escola que acaba de aprender uma coisa nova e interessante.

 

Aproximaram-se mais da casa. Parecia um bom lugar, pensou Culbeau. Uma casa de veraneio, provavelmente, talvez de algum advogado ou médico de Raleigh ou de Winston-Salem. Uma boa cabana de caça, bar cheio, belos quartos, umfreezer para guardar carne de veado.

 

- Ei, Harris - disse O'Sarian.

 

Culbeau jamais ouvira aquele rapaz usar um primeiro nome.

 

- O quê?

 

- Esta coisa aqui atira alto ou baixo? - perguntou, mostrando o Colt.

 

Tomei lançou um olhar a Culbeau, provavelmente tentando descobrir que fim levara aquela parte esquisita de O'Sarian.

 

- O primeiro tiro vai pró espaço. O cano sobe mais do que você está acostumado. Abaixe o cano nos tiros seguintes.

 

- Por que a coronha é de plástico - perguntou O'Sarian -, e portanto é mais leve do que madeira?

 

- Isso mesmo.

 

O'Sarian inclinou a cabeça, o rosto ainda mais sério do que antes.

 

- Obrigado. Obrigado.

 

O bosque acabou e eles viram uma grande clareira em volta da casa... uns 40 metros em todas direções, sem sequer uma arvorezinha para lhes dar cobertura. A aproximação seria difícil.

 

- Você acha que eles estão lá dentro? - perguntou Tomei, alisando a maravilhosa escopeta.

 

-Não sei... Espere, abaixem-se! Os três abaixaram-se rapidamente.

 

- Acho que vi alguma coisa no térreo. Por aquela janela, à esquerda. - Culbeau olhou pela mira telescópica do fuzil de caçar veado. - Há alguém se movendo por lá.

 

No térreo. Não estou vendo muito bem, com as cortinas. Mas, definitivamente, há alguém lá.

 

- Vasculhou as outras janelas. - Merda!

 

Um sussurro de pânico. Deixou-se cair no chão.

 

- O que foi? - perguntou O'Sarian, alarmado, agarrando com força a arma e girando sobre si mesmo.

 

- Deite-se! Um deles tem um fuzil com mira telescópica. Estão apontando diretamente para nós. Da janela do primeiro andar. Droga.

 

- Tem que ser a moça - disse Tomei. - Aquele rapaz é bicha demais para saber de que lado sai a bala.

 

- O diabo leve aquela puta - murmurou Culbeau. O'Sarian estava se escondendo atrás de uma árvore, com o fuzil do Vietnã colado ao rosto.

 

- Dali ela cobre todo o campo - disse Culbeau.

 

- A gente espera até anoitecer? - perguntou Tomei.

 

- com aquela policial de peito capado vindo por trás de nós? Acho que isso não vai funcionar, Harris, ou vai?

 

- Você não pode atingi-la daqui?

 

Tomei levantou a cabeça na direção da janela.

 

- Provavelmente - respondeu Culbeau, com um suspiro.

 

Ia dar uma bronca em Tomei quando O'Sarian, com uma voz estranhamente normal, disse:

 

- Mas se Rich atirar, Lucy e os outros ouvirão o tiro. Acho que a gente deveria flanquear a casa. Chegar por um lado e tentar entrar. Lá dentro um tiro seria muito menos percebido.

 

O que era exatamente o que Culbeau ia dizer.

 

- Isso vai levar uma meia hora - protestou secamente Tomei, provavelmente zangado porque O'Sarian tinha se revelado mais esperto do que ele.

 

Que permaneceu no auge de sua forma absolutamente sensata. O jovem soltou a trava de segurança da arma, fitou com olhos apertados a casa, e disse:

 

- Eu diria que a gente tem que fazer isso em menos de meia hora. O que é que você pensa, Rich?

 

Mais uma vez, Steve Farr introduziu Henry Davett no laboratório. O empresário agradeceu a Farr, que se retirou, e inclinou a cabeça na direção de Rhyme.

 

- Henry - disse Rhyme -, obrigado por ter vindo.

 

Como antes, o empresário nenhuma atenção deu à condição de Rhyme. Desta vez, contudo, Rhyme nenhum consolo achou nessa atitude. A preocupação com Sachs consumia-o. Continuava a ouvir a voz de Jim Bell.

 

Temos em geral 24 horas para encontrar a vítima. Depois disso, ela se torna desumanizada aos olhos do seqüestrador e ele não pensa duas vezes antes de matá-la.

 

Esta regra, que se referira a Lydia e Mary Beth, estendia-se nesse momento ao destino de Amélia Sachs. A diferença era, acreditava Rhyme, que Sachs poderia ter muito menos de 24 horas.

 

- Eu pensava que você havia capturado aquele rapaz. Foi isso o que ouvi dizer.

 

- Ele fugiu da cadeia - esclareceu Ben.

 

- Não!

 

Davett fechou a cara.

 

- Fugiu, mesmo - continuou Ben. - Fuga no velho estilo. Rhyme:

 

- Eu tenho mais algumas provas, mas não sei como interpretálas. E tenho esperança de que você possa nos ajudar novamente.

 

O empresário sentou-se.

 

- Eu farei tudo que puder.

 

Um olhar ao prendedor de gravata, com o monograma WWJD. Rhyme indicou o gráfico com um movimento de cabeça.

 

- Você podia dar uma olhada naquilo? Na lista à direita.

 

- O moinho... foi lá que ele esteve? No velho moinho a nordeste da cidade?

 

- Isso mesmo.

 

- Eu conhecia aquele lugar. - Davett, zangado, fez uma careta. Eu devia ter pensado nisso.

 

Criminalistas não podem permitir que as palavras como "devia ter" se insinuem em seu vocabulário. Rhyme respondeu apenas:

 

- É impossível pensar em tudo neste trabalho. Mas dê uma olhada no gráfico. Tudo que está aí lhe parece conhecido?

 

Com todo cuidado, Davett leu o gráfico.

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • MOINHO

 

Tinta Marrom na Calça Planta Orvalhinha Argila .

 

Musgo de Turfa Suco de Fruta Fibras de Papel Isca Fedorenta Açúcar Canfeno Querosene Levedura Enquanto olhava para a lista, Davett murmurou, distraído:

 

- Parece um quebra-cabeça.

 

- Essa é a natureza de meu trabalho - disse Rhyme.

 

- O quanto posso especular? - perguntou o empresário.

 

- Tanto quanto quiser - retrucou Rhyme.

 

- Muito bem - disse Davett. Pensou por um momento, e continuou: - Um bavou da Carolina.

 

- O que é isso? - perguntou Rhyme. - Uma cor de cavalo? Davett olhou para Rhyme para ver se ele estava brincando. Em seguida, continuou:

 

- Não, é uma estrutura geológica existente na plataforma continental leste. A maior parte, contudo, é encontrada nas Carolinas, do Norte e do Sul. São basicamente lagoas ovais, de 90 centímetros a um metro de profundidade, água potável. Podem ter meio hectare de área ou uns duzentos. O fundo delas é formado principalmente por argila e turfa. Exatamente o que está aí no gráfico.

 

- Mas argila e turfa... elas são muito comuns por aqui - lembrou Ben.

 

- De fato - concordou Davett. - Se vocês tivessem encontrado apenas essas duas coisas, eu não teria uma pista sobre o lugar de onde vieram. Mas vocês descobriram outra coisa. Notem, uma das coisas mais interessantes sobre os bavous das Carolinas é que, em volta delas, crescem plantas que matam insetos. Encontramos centenas de dionéias, orvalhinhas e plantas insetívoras em volta dos bavous principalmente porque as lagoas são bons criadouros de insetos. Se vocês encontraram uma orvalhinha juntamente com argila e turfa não há dúvida de que o rapaz passou algum tempo em um bavou da Carolina.

 

- Ótimo - disse Rhyme. Em seguida, olhando para o mapa, perguntou: - O que é que "bavou" significa? Um fio de água estreito?

 

- Não. Refere-se a loureiros [bay tree]. Eles crescem em volta das lagoas. Há todos os tipos de mitos sobre elas. Colonos pensavam que foram esculpidas na terra por monstros marinhos ou por feiticeiras que lançavam encantamentos. Durante anos, meteoritos foram uma teoria para explicá-las. Mas elas são realmente depressões produzidas pelo vento e correntes d'água.

 

- E são característicos de uma determinada área por aqui? - perguntou Rhyme, na esperança de que pudessem estreitar a busca.

 

- Até certo ponto. - Davett levantou-se e foi até o mapa. com um dedo, traçou um círculo em volta de uma grande área a oeste de Tanner's Corner. Da Localização B-2 a E-2 e da F-13 a B-12. Nós os encontraremos principalmente aqui, pouco antes de chegar às colinas.

 

Rhyme sentiu-se desanimado. A área demarcada por Davett devia cobrir de 150 ou 200 quilômetros quadrados.

 

Davett notou-lhe a reação e disse:

 

- Eu gostaria de poder ajudar mais.

 

- Não, não, foi uma boa contribuição. Ela será útil. Precisamos apenas reduzir mais o número de pistas.

 

O empresário leu: "Açúcar, suco de fruta, querosene...". Sacudiu a cabeça, o rosto sério.

 

- O senhor tem um trabalho difícil a fazer, Sr. Rhyme.

 

- Assim são os casos difíceis - explicou Rhyme. - Quando não temos pistas, temos liberdade para especular. Quando temos um bocado de pistas, podemos em geral obter uma resposta com grande rapidez. Mas ter apenas algumas, como neste caso... - E a voz sumiu.

 

- Estamos amarrados pelos fatos - murmurou Ben. Rhyme virou-se para ele.

 

- Exatamente, Ben. Exatamente.

 

- Eu preciso voltar pra casa - disse Davett. - Minha família está me esperando. - Escreveu um número de telefone em um cartão comercial. - Pode me ligar a qualquer hora.

 

Rhyme agradeceu novamente e voltou a olhar para o gráfico de provas.

 

Amarrados pelos fatos...

 

Rich Culbeau sugou o sangue do braço, onde o espinheiro cortara fundo. Cuspiu-o em cima de uma árvore.

 

Precisaram de 20 minutos, arrastando-se pelas moitas, para chegar ao terraço lateral da casa de veraneiro de madeira, sem ser vistos por aquela puta armada de fuzil. Até mesmo Harris Tomei, que geralmente parecia que tinha acabado de sair do pátio de um clube de campo, estava manchado de sangue e imundo.

 

O novo Sean O'Sarían, calado e pensativo, bem, mentalmente normal, estava à espera no fim da trilha, deitado no chão, com o fuzil preto em posição, como um pracinha de infantaria em Khe Sahn, pronto para retardar Lucy e outros vietcongues com alguns tiros acima da cabeça deles, no caso de virem subindo a trilha em direção à casa.

 

- Pronto? - perguntou Culbeau a Tomei, que respondeu com uma inclinação de cabeça.

 

Culbeau torceu suavemente a maçaneta da porta da saída de lixeira da casa, empurrou-a para dentro, a arma erguida e pronta para atirar. Tomei seguiu-o imediatamente.

 

Moviam-se tão cautelosos como gatos, sabendo que a policial ruiva com o fuzil de caçar veados, que certamente sabia como usá-lo, poderia estar à espera deles em qualquer lugar da casa.

 

- Está ouvindo alguma coisa? - sussurrou Culbeau.

 

- Só música.

 

Era um tipo de rock suave... o tipo que ele gostava de ouvir, porque odiava música country.

 

Os dois desceram devagar o corredor fracamente iluminado, armas altas no ar, engatilhadas. Diminuíram a marcha. À frente deles, a cozinha, onde ele tinha visto alguém - provavelmente, o rapaz -, quando examinou a casa com a mira telescópica do fuzil. Indicou o cômodo com a cabeça.

 

- Acho que eles não nos ouviram - disse Tomei. A música era muito alta.

 

- Vamos entrar juntos. Atire nas pernas ou nos joelhos deles. Não o mate... Ainda temos que obrigar aquele safado a dizer onde Mary Beth está.

 

- A mulher, também?

 

Culbeau pensou por um momento.

 

- Também, por que não? Talvez a gente tenha que a manter viva por algum tempo. Você sabe para quê. Tomei inclinou a cabeça.

 

- Um, dois... três.

 

Empurraram a porta, entraram rápidos na cozinha e descobriram que estavam quase atirando num meteorologista que falava numa TV de tela panorâmica. Agacharam-se e giraram sobre si mêsmos, procurando o rapaz e a mulher. Nada. Em seguida, Culbeau olhou para o receptor. Deu-se conta de que aquela peça não pertencia ao lugar. Alguém a trouxera rolando da sala de estar e a colocara na frente do fogão, de frente para as janelas. Olhou para fora através das venezianas.

 

- Merda. Colocaram o aparelho aqui, para que a gente o visse do outro lado do campo, da trilha. E para que a gente pensasse que havia alguém na casa.

 

Subiu as escadas, dois degraus de cada vez.

 

- Espere - gritou Tomei. - Ela está lá em cima. Armada. Mas, claro, a ruiva não estava lá, absolutamente. Culbeau abriu com um pontapé o quarto onde tinha visto o cano do fuzil e uma mira telescópica apontada para eles e, nesse momento, encontrou quase que exatamente o que esperava: um pedaço de cano fino, em cima do qual estava montado o fundo de uma garrafa de Corona. Enojado, disse:

 

- Essa aí é a arma e a mira telescópica. Jesus Cristo. Arrumaram isso para nos pegar. E nos custou uma merda de meia hora de trabalho. E aqueles policiais safados estão provavelmente a cinco minutos daqui. Vamos ter que cair fora.

 

Passou feito um pé-de-vento por Tomei, que começou a dizer:

 

- Bem esperto da parte dela...

 

Mas vendo aquele fogo nos olhos de Culbeau, ele chegou à conclusão que era melhor não terminar a frase.

 

A bateria acabou e o minúsculo motor de aparador de grama ficou silencioso.

 

A estreita canoa que haviam roubado da casa de veraneio seguia com a corrente do Paquenoke através do nevoeiro que cobria o rio. Já era noite. A água não era mais dourada, mas de um cinza triste.

 

Garrett Hanlon pegou um remo no fundo do barco e dirigiu-se para a terra.

 

- Temos que parar em algum lugar - disse. - Antes de ser noite fechada.

 

Amélia Sachs notou uma mudança na paisagem. Árvores mais raras e grandes extensões de águas pantanosas que desembocavam no rio. O garoto tinha razão: uma volta errada e acabariam no fundo do beco de algum atoleiro intransponível.

 

- Ei, qual é o problema? - perguntou ele, notando-lhe a expressão perturbada.

 

- Eu estou longe pra burro do Brooklyn.

 

- Isso fica em Nova York, não é?

 

- Certo - confirmou ela.

 

Ele bateu as unhas.

 

- E você fica chateada porque não está lá.

 

- Pode apostar que fico.

 

Levando o barco para a margem, ele voltou a falar:

 

- É isso que mais dá medo a insetos.

 

- O que foi que você disse?

 

- É esquisito. Eles não se importam em trabalhar nem em brigar. Mas se cagam todo em um lugar que não conhecem. Mesmo que seja seguro. Odeiam-no, não sabem o que fazer.

 

OK, pensou Sachs, acho que sou um inseto de carteirinha. Mas preferia a maneira como Lincoln descrevia essa situação: peixe fora d'água.

 

- A gente pode sempre saber quando insetos estão realmente nervosos. Eles limpam as antenas, esfregando uma na outra, sem parar. As antenas mostram o estado de espírito deles. Como nosso rosto. Apenas, a coisa é - acrescentou em tom misterioso - que eles não fingem. Como nós.

 

Riu de uma maneira estranha... um som que ela não tinha ouvido antes.

 

Hanlon passou por um lado do barco, entrou na água e puxouo para terra. Sachs saltou. Ele tomou à frente pelo bosque e parecia saber exatamente para aonde estava indo, a despeito da escuridão e da ausência de qualquer trilha que ela pudesse ver.

 

- Como é que você sabe para onde ir? - perguntou.

 

- Acho que sou como as monarcas - respondeu Garrett. - Eu simplesmente conheço muito bem direções.

 

- Monarcas?

 

- Você sabe, borboletas. Elas fazem migrações de milhares de quilômetros e sabem exatamente para onde estão indo. É realmente, realmente, legal... elas navegam pelo sol e mudam de curso automaticamente, dependendo de onde o sol está no horizonte. Quando o céu está encoberto ou escuro elas usam outro sentido que têm... podem sentir os campos magnéticos da terra.

 

Quando um morcego dispara um feixe de som para descobri'las, as mariposas fecham as asas, caem no chão e se escondem.

 

Sachs sorria ainda com essa aula entusiástica quando parou de repente e agachou-se.

 

- Cuidado - disse baixinho. - Ali! Ali há uma luz! Iluminação fraca, refletindo-se da lagoa escura. Uma luz amarela sobrenatural, parecendo uma lanterna com defeito. Garrett, porém, soltou uma risada.

 

- É apenas um fantasma, - O quê? - perguntou ela.

 

- É a Dama do Pântano, a donzela índia que morreu na noite anterior ao casamento. O fantasma dela ainda paira sobre o Pântano da Desolação, procurando o cara com quem ia casar. Não estamos no Grande Desolação, mas ele fica perto. - Inclinou a cabeça na direção do brilho. - Mas aquilo é realmente apenas fogo-podre... fogo-fátuo, luz fosforescente de madeira apodrecida.

 

Sachs não gostou da luz. Lembrou-lhe o nervosismo que tinha sentido ao entrar de carro em Tanner's Corner naquela manhã, vendo o pequeno caixão no enterro.

 

- Eu não gosto de pântanos, com ou sem fantasmas - disse.

 

- Não? - comentou Garrett. - Talvez você venha a gostar. Algum dia.

 

Levou-a por uma estrada e, após dez minutos, virou para uma passagem de automóvel, curta, coberta pelo mato. Sachs viu um velho trailer parado numa clareira. Na escuridão, não podia observar com clareza, mas aquilo parecia um veículo abandonado, inclinado sobre um lado, enferrujado, pneus furados, coberto de trepadeiras e musgo.

 

- Isso aí é seu?

 

- Bem, ninguém mora aí há anos, de modo que acho que é meu. Tenho uma chave, mas ela está em casa, Não tive oportunidade de ir pegá-la.

 

Dirigiu-se para um lado do trailer, deu um jeito de abrir uma janela e alçou-se para dentro. Um momento depois, a porta se abriu.

 

Sachs entrou. Encontrou Garrett mexendo em um pequeno armário na minúscula cozinha. Achou fósforos e acendeu um lampião de propano, que emitia um brilho amarelo, quente. Abriu outro armário e examinou-o.

 

- Eu tinha aqui uns Doritos, mas os ratos acabaram com eles. Puxou para fora um saco de Tupperware e examinou-o. - Roeram até atravessar. Merda. Mas tenho macarrão Farmer John. É bom. Como isso o tempo todo. E feijão, também.

 

Começou a abrir latas, enquanto Sachs olhava em volta do trailer. Umas poucas cadeiras, uma mesa. No quarto, viu um sofá bolorento. Na saleta de estar, uma esteira e um travesseiro. O trailer em si irradiava pobreza: portas e instalações quebradas, buracos de bala nas paredes, janelas quebradas, tapete manchado que nenhuma lavanderia conseguiria limpar. Em seus dias de policial de ronda na NYPD, tinha visto muitos lugares tristes como esse... mas sempre de fora. Nesse momento, um deles era seu lar temporário.

 

Lembrou-se das palavras de Lucy naquela manhã.

 

Regras normais não se aplicam a ninguém ao norte do Paquo. Ou nós ou eles. A gente se vê atirando antes de ler ao cara seus direitos e isso é perfeitamente certo.

 

Lembrou-se do som ensurdecedor do tiro de escopeta, dirigido contra ela e Garrett.

 

O rapaz pendurou pedaços de pano seboso nas janelas, para evitar que alguém de fora visse luz ali dentro. Ele saiu por algum tempo e voltou depois com uma concha enferrujada, presumivelmente com água de chuva. Ofereceu-a. Sachs sacudiu a cabeça.

 

- Eu me sinto como se tivesse bebido metade do Paquenoke.

 

- Isto é melhor.

 

- Tenho certeza de que é. Mas ainda passo.

 

Ele bebeu toda a água da concha e, em seguida, mexeu a comida, esquentando no pequeno fogão de propano. Em voz suave, ele cantou repetidas vezes uma musiquinha que parecia sobrenatural: "Farmer John, Farmer John. Saboreie, ela vem fresquinha de Farmer John..." Aquilo nada mais era do que um jingíe comercial, mas o canto incomodava e Sachs ficou contente quando ele parou.

 

Ia recusar também a comida, mas se deu conta de repente de que estava faminta. Garrett derramou o conteúdo em duas tigelas e lhe deu uma colher. Sachs cuspiu na colher e enxugou-a na camisa. Comeram em silêncio, durante alguns minutos.

 

Sachs ouviu um som no lado de fora, áspero, agudo.

 

- O que é isso? - perguntou. - Cigarras?

 

- Isso mesmo - confirmou ele. - Só o macho faz esse barulho. Só os machos. Fazem todo esse ruído usando apenas aquelas pequenas placas no corpo. - Apertou os olhos e ficou pensativo por um momento. - Elas levam uma vida estranhíssima... As ninfas, ou larvas, enterram-se no chão e ficam aí durante, digamos, 20 anos, até que ovulam. Em seguida, saem e sobem numa árvore. A pele dela parte-se ao longo das costas e o adulto rasteja para fora. Todos esses anos no chão, simplesmente se escondendo, antes de saírem e se tornarem adultas.

 

- Por que é que você gosta tanto de insetos, Garrett? - perguntou Sachs.

 

Ele hesitou.

 

- Não sei. Simplesmente, gosto.

 

- Você nunca se perguntou qual o motivo disso?

 

Ele parou de comer, coçou um dos vergões produzidos pelo arbusto carvalho venenoso.

 

- Acho que fiquei interessado neles depois que meus pais morreram. Depois que isso aconteceu, eu me senti muito infeliz. Sentia-me um bocado esquisito na cabeça.

 

Confuso e, não sei, simplesmente diferente. Os conselheiros na escola disseram que isso acontecia porque minha mãe... meu pai e minha mãe morreram e disseram que eu devia me esforçar muito para superar isso. Mas não consegui. Eu achava simplesmente que não era uma pessoa de verdade. Eu não me interessava por coisa nenhuma. Tudo que fazia era ficar na cama, entrar no pântano ou na floresta, e ler. Durante um ano, isso foi tudo que fiz. Quase não via ninguém. Simplesmente passava de um lar adotivo para outro... Mas depois li umas coisas legais. Naquele livro ali.

 

Folheando The Miniature World, encontrou a página que procurava. Mostrou-a a Sachs, apontando para uma passagem encerrada dentro de um círculo e intitulada "Características de Criaturas Vivas Sadias". Sachs passou rapidamente a vista pelo trecho e leu várias da lista, de oito ou nove entradas.

 

- Uma criatura sadia esforça-se para crescer e desenvolver-se.

 

- Uma criatura sadia esforça-se para sobreviver.

 

- Uma criatura sadia esforça-se para adaptar-se a seu ambiente.

 

- Eu li isso e foi - disse Garrett -, foi, uau, foi como se eu pudesse ser assim. Eu poderia ser sadio e normal outra vez. Tentei com toda sinceridade seguir o que as regras diziam. E isso me fez sentir melhor. De modo que, acho, me senti mais próximo deles... dos insetos, quero dizer.

 

Um mosquito pousou no braço de Sachs. Ela riu.

 

- Mas eles bebem o sangue da gente. - Deu-lhe uma palmada.

 

- Peguei-o.

 

- Ela! - corrigiu-a Garrett. - Só as fêmeas é que bebem sangue.

 

Os machos bebem néctar.

 

- É mesmo?

 

Ele inclinou a cabeça, confirmando, e em seguida ficou calado por um momento. Olhou para o ponto sangüíneo no braço de Sachs.

 

- Insetos nunca vão embora.

 

- O que é que você quer dizer com isso?

 

Garrett localizou outro trecho no livro e leu em voz alta:

 

- "Se uma criatura pode ser chamada de imortal ela é o inseto, que habitava a terra milhões de anos antes do aparecimento dos mamíferos e que estarão aqui muito tempo depois de desaparecida a vida inteligente."- Pôs o livro de lado e ergueu a vista para ela.

 

- Entenda, se matar um, há sempre mais. Se minha mãe, pai e irmã tivessem sido insetos e morressem haveria outros iguaizinhos a eles e eu não me sentiria sozinho.

 

- Você não tem nenhum amigo? Garrett deu de ombros.

 

- Mary Beth. Ela é mais ou menos a única.

 

- Você gosta realmente dela, não?

 

- Só gosto. Ela me salvou de uns garotos que iam fazer uma sujeira comigo. E, o que quero dizer é... ela conversa comigo... -

 

Pensou por um momento. - Acho que é isso que gosto nela. Conversa. Eu estive pensando que, talvez, em alguns anos, quando eu for mais velho, ela poderia querer namorar comigo. A gente poderia fazer coisas que as outras pessoas fazem. Você sabe, ir ao cinema. Ou ir a piqueniques. Uma vez, eu a vi num piquenique. Ela estava com a mãe e uns amigos. Eles estavam se divertindo. Fiquei olhando para ela durante horas. Fiquei simplesmente embaixo de uma moita de azevinho, com um pouco d'água, Doritos, e fingi que estava com eles. Já foi a um piquenique?

 

- Fui, claro.

 

- Eu ia muito, com minha família. Quero dizer, com minha família verdadeira. Eu gostava. Mamãe e Kaye botavam a mesa e preparavam coisas em uma pequena grelha comprada numa Kmart. Papai e eu, a gente tirava os sapatos e meias e ficava em pé na água, pescando. Eu me lembro da sensação da lama embaixo e da água fria.

 

Sachs pensou se era por isso que ele gostava de água e tanto de insetos aquáticos.

 

- E pensou que você e Mary Beth poderiam ir juntos a piqueniques?

 

- Não sei. Talvez tenha pensado. - Em seguida, sacudiu a cabeça e sorriu, triste. - Acho que não. Mary Beth é bonita, inteligente e muito mais velha do que eu. Vai acabar com um cara bonitão e inteligente. Mas talvez a gente pudesse ser amigos, ela e eu. Mas mesmo que não, tudo que me interessa é que ela esteja bem. Ela vai ficar comigo até que seja seguro. Ou você e seu amigo, aquele homem na cadeira de rodas, sobre o qual todos estavam falando, poderiam ajudá-la a ir para um lugar onde ela ficaria em segurança.

 

Olhou pela janela e caiu em silêncio.

 

- Em segurança contra o homem do macacão? - perguntou Sachs. Ele permaneceu calado por um momento e, em seguida, inclinou a cabeça.

 

- Isso mesmo. Exatamente.

 

- Eu vou pegar um pouco daquela água - disse Sachs.

 

- Espere - disse ele.

 

Arrancou algumas folhas secas de um pequeno galho que estava sobre o balcão da cozinha, disse-lhe para esfregá-las nos braços, pescoço e rosto. As folhas tinham um forte odor de erva.

 

- Citronela, uma planta - explicou ele. - Espanta os mosquitos. Você não vai ter mais que matá-los.

 

Sachs pegou a concha. Saiu e olhou para o barril de água da chuva. Coberto com uma tela fina. Levantou-a, encheu a concha e bebeu. A água parecia potável. Escutou os silvos e zumbidos dos insetos.

 

Ou você e seu amigo, aquele, homem na cadeira de rodas, sobre o qual todos estavam falando, poderiam ajudá-la a ir para um lugar onde ela ficaria em segurança.

 

A frase ecoou em sua mente: O homem na cadeira de rodas, o homem na cadeira de rodas.

 

Voltou ao trailer. Pôs a concha em cima do balcão. Olhou em volta da pequena sala de estar.

 

- Garrett, você me faria um favor?

 

- Acho que faria.

 

- Você confia em mim?

 

- Acho que confio.

 

- Sente-se ali.

 

Ele fitou-a por um momento, levantou-se e dirigiu-se para a velha poltrona que ela indicou com a cabeça. Sachs cruzou a pequena sala e pegou num canto uma das cadeiras de junco. Levou-a para o lugar onde o rapaz estava sentado e colocou-a de frente para ele.

 

- Garrett, lembra-se do que o Dr. Penny lhe disse na prisão? Sobre a cadeira vazia?

 

- Conversar com a cadeira? - perguntou ele, olhando relutante para o móvel. Inclinou a cabeça. - Aquele jogo.

 

- Isso mesmo. Eu queria que você fizesse aquilo novamente. Você faz?

 

Ele hesitou, enxugou a mãos nas pernas da calça. Olhou fixamente para a cadeira por um momento. Em seguida, disse:

 

- Acho que sim.

 

Amélia Sachs pensou no que tinha acontecido na sala de interrogatório e na sessão com o psicólogo.

 

De uma posição privilegiada, observara atentamente Garrett através do espelho unidirecional. Lembrou-se que o psicólogo tentara fazer com que ele imaginasse Mary Beth sentada na cadeira, mas que, conquanto nada quisesse lhe dizer, o rapaz queria, de fato, conversar com alguém. Notara no rosto dele uma expressão, um anelo, desapontamento - e raiva, também, achava -, quando o psicólogo desviou-o da direção para onde ele queria ir.

 

Oh, Rhyme, entendo que você goste de frias provas materiais. E também que não podemos depender de coisas suaves - de palavras e frases, de lágrimas e expressão nos olhos de alguém, enquanto, sentados de frente para ele, lhe ouvimos as histórias... Mas isso não significa que elas sejam sempre falsas. Acredito que há mais em Garrett Hanlon do que a prova mostra.

 

- Olhe para a cadeira - disse. - Quem você quer imaginar sentado aí?

 

O rapaz sacudiu a cabeça.

 

- Não sei.

 

Amélia aproximou mais a cadeira. Sorriu para encorajá-lo.

 

- Diga. Está tudo bem. Uma moça? Alguém da escola?

 

Ele sacudiu mais uma vez a cabeça.

 

- Diga.

 

- Eu não sei. Talvez... - Após uma pausa, disse impetuosamente:

 

- Talvez, meu pai.

 

Sachs lembrou-se, com irritação, dos olhos frios e maneiras grosseiras de Hal Babbage. Achou que Garrett teria muita coisa para lhe dizer.

 

- Só seu pai? Ou ele e a sra. Babbage?

 

- Não, não, ele, não. Quero dizer, meu verdadeiro pai.

 

- Seu verdadeiro pai?

 

Garrett confirmou com uma inclinação de cabeça. Estava agitado, nervoso, batendo repetidamente com as unhas.

 

As antenas dos insetos mostram como eks se sentem...

 

Olhando para o rosto perturbado do rapaz, deu-se conta, preocupada, que não tinha a menor idéia do que estava fazendo. Psicólogos tentavam, de fato, todo tipo de coisas para conseguir que os pacientes se abrissem, para orientá-los, protegê-los, quando usavam qualquer tipo de terapia. Haveria alguma possibilidade de que ela tornasse Garrett uma pessoa ainda pior? Empurrá-lo através de uma linha-limite, de tal maneira que ele realmente fizesse alguma coisa violenta, se machucasse ou machucasse alguma outra pessoa. Ainda assim, ia tentar. No Departamento de Polícia da Cidade de Nova York seu apelido era F.P. - significando "filha portátil" -, a filha de um policial de ronda - e ela, definitivamente, tinha puxado ao pai: o amor dele por carros, pelo trabalho policial, a impaciência com bobagens e, especialmente, talento na aplicação da psicologia do patrulheiro. Lincoln Rhyme fazia pouco dela, considerando-a uma "policial de quem o povo gosta" e advertira que esta seria a causa de sua queda. Elogiava-lhe o talento como criminalista e, embora ela fosse talentosa nesse particular, no fundo do coração era igualzinha ao pai. Para Amélia Sachs, o melhor tipo de prova era a encontrada no coração humano.

 

Os olhos de Garrett desviaram-se para a janela, onde insetos chocavam-se, como se quisessem suicidar-se, contra a tela enferrujada.

 

- Como era o nome dele? - perguntou.

 

-Stuart - Como era que você o chamava?

 

- "Papai", na maior parte do tempo. "Senhor", algumas vezes. Garrett sorriu triste. - Se eu tinha feito alguma coisa errada e achava que, bem, devia ser posto de castigo.

 

- Vocês dois se davam bem?

 

- Melhor do que a maioria de meus amigos e seus pais. Eles eram surrados algumas vezes e os pais estavam sempre gritando com eles. Você sabe como é? "Por que foi que você perdeu aquele gol?", "Por que seu quarto é aquela bagunça toda?", "Por que não fez os deveres de casa"? Papai, porém, era sempre legal comigo... Até que...

 

- A voz sumiu.

 

-Continue.

 

-Não sei.

 

Outro encolher de ombros.

 

Sachs insistiu:

 

- Até que o quê, Garrett? Silêncio.

 

- Diga.

 

- Não quero dizer. É uma coisa estúpida.

 

- Neste caso, não me diga. Diga a ele, a seu pai. - Inclinou a cabeça na direção da cadeira. - Seu pai está aí, sentado bem na sua frente. Imagine isso. - O rapaz adiantou-se um pouco, olhando para a cadeira, quase chorando. - Stu Hanlon está sentado aí. Fale com ele.

 

Após uma pausa, o rapaz disse:

 

- Ele era alto e muito magro. Tinha cabelos pretos que ficavam em pé quando cortados. Ele tinha que botar aquela coisa que tem bom cheiro para manter o cabelo baixo durante uns dois dias. Usava sempre roupas muito bacanas. Não tinha nem uma única calça jeans, acho. E sempre usava camisa, você sabe, com colarinho. E calça com bainha. - Sachs lembrou-se de que, quando deu uma busca no quarto dele, não tinha encontrado jeans, mas apenas calças com bainha. Um leve sorriso apareceu nos lábios de Garrett. - Ele deixava cair uma moeda de 25 centavos por um lado da calça e tentava pegá-la com a bainha e, se conseguisse, minha irmã ou eu podíamos ficar com a moeda. Era uma brincadeira que a gente fazia, um jogo.

 

No Natal, ele trazia dólares de prata para nós e deixava que rolassem pela calça, até que a gente os ganhava.

 

Os dólares de prata na jarra de marimbondos, lembrou-se Sachs.

 

- Ele tinha algum hobby? Esportes?

 

- Ele gostava de ler. E levava a gente, muitas vezes, às livrarias e lia para nós. Um bocado de História e livros de viagem. E troços sobre a natureza. Oh, e ele pescava. Quase todos os fins de semana.

 

- Bem, imagine que ele está sentado aí nessa cadeira vazia, usando uma calça bonita e camisa com colarinho. E lendo um livro. OK?

 

- Acho que sim.

 

- Ele põe o livro de lado...

 

- bom, ele, em primeiro lugar, marcava a página que estava lendo. Tinha uma tonelada de marcadores de livros. Parecia até que os colecionava. No Natal antes do acidente, ele nos deu uns marcadores, a mim e a minha irmã.

 

- OK, ele marca a página e põe o livro de lado. Está olhando pra você. Agora, você tem oportunidade de dizer alguma coisa a ele. O que é que vai dizer?

 

Garrett encolheu os ombros, sacudiu a cabeça e olhou nervoso em volta do trailer.

 

Sachs, porém, não ia desistir. Tempo de pancada...

 

- Vamos pensar em uma coisa específica sobre a qual você gostaria de falar com ele - sugeriu. - Sobre um incidente. Sobre alguma coisa que o deixou infeliz. Houve alguma coisa assim?

 

Papai era bacana comigo. Até que...

 

O rapaz segurava uma mão com a outra, esfregava-as, batia com as unhas.

 

- Diga a ele, Garrett.

 

- OK, eu acho que houve uma coisa. -O quê?

 

- Naquela noite... na noite em que eles morreram.

 

Sachs sentiu um ligeiro estremecimento. Tinha certeza de que ambos estavam pisando em lugares muito perigosos com esse exercício. Pensou um momento em recuar. Mas não era de sua natureza fazer isso, e não recuou nesse momento.

 

- O que foi que aconteceu naquela noite? Você quer conversar com seu pai sobre alguma coisa que aconteceu?

 

Garrett inclinou a cabeça.

 

- Entenda, eles estavam no carro e iam jantar fora. Era uma quarta-feira. Todas as quartas-feiras a gente ia ao Bennigan's. Eu gosto de palitos de frango. Eu ia comer palitos de frango, batatas fritas e tomar uma Coca. E Kaye, minha irmã, ia pedir rodelas de cebola, a gente dividia as batatas e as rodelas e, às vezes, a gente fazia desenhos em um prato vazio com a garrafa de ketchup.

 

O rosto de Garrett estava pálido e tenso. Havia tanta dor em seus olhos, pensou Sachs. Reprimiu suas próprias emoções.

 

- Do que é que você se lembra daquela noite?

 

- Isso aconteceu fora de casa. Na entrada de automóveis. Eles estavam no carro, papai, mamãe e minha irmã. Eles iam jantar fora. E...

 

- ele engoliu em seco - e a coisa era que eles iam sair sem me levar.

 

- Iam?

 

Ele confirmou, inclinando a cabeça.

 

- Era tarde. Eu tinha estado na floresta, em Blackwater Landing. E perdi a conta do tempo. Corri uns 800 metros, ou por aí. Meu pai, porém, não me deixou entrar no carro. Devia estar danado de raiva porque eu me atrasei. Eu queria tanto ir. Lembro que estava tremendo de frio e, eles, também. Lembro que as janelas estavam cobertas de geada. Mas eles não me deixaram entrar no carro.

 

- Talvez seu pai não o tenha visto. Por causa da geada.

 

- Não, ele me viu. Eu estava bem do lado dele no carro. Bati na janela, ele me viu, mas não abriu a porta. Continuou simplesmente de cara feia, gritando comigo. E eu continuava pensando: ele está danado comigo, estou com frio, e não vou comer palitos de frango e batatas fritas. Não vou jantar com minha família.

 

Lágrimas escorreram pelo rosto de Garrett. Sachs teve vontade de envolver-lhe os ombros com o braço, mas ficou onde estava.

 

- Continue. - Indicou a cadeira com a cabeça. - Converse com seu pai. O que é que você quer dizer a ele?

 

Ele fitou-a. Sachs, porém, simplesmente indicou a cadeira. Garrett, finalmente, olhou nessa direção.

 

- Fazia tanto frio! - continuou, arquejante. - Fazia frio e eu queria entrar no carro. Por que ele não deixava?

 

- Agora, diga a ele. Imagine que ele está sentado aí.

 

Sachs pensou: era exatamente assim que Rhyme insistia com ela para que se imaginasse, em cenas de crime, como o criminoso. Era uma coisa profundamente angustiante e, nesse momento, sentiu com absoluta clareza o medo do rapaz. Ainda assim, manteve a pressão:

 

- Diga a ele... diga a seu pai.

 

Garrett olhou apreensivo para a cadeira. Inclinou-se para afrente.

 

- Eu...

 

Baixinho, Sachs encorajou-o:

 

- Continue, Garrett. Está tudo bem. Eu não vou deixar que coisa alguma lhe aconteça. Diga a ele.

 

- Eu simplesmente queria ir com você ao Bennigan's - disse ele, soluçando. - Só isso. Tipo só jantar, nós todos. Eu simplesmente queria ir com vocês. Por que você não deixou que eu entrasse no carro? Você viu quando eu estava chegando e fechou a porta. Eu não estava tão atrasado assim! - Em seguida, ficou zangado. - Você não deixou eu entrar no carro! Você estava danado comigo e aquilo não foi justo. O que eu fiz, chegando atrasado... não foi nada de tão ruim. Eu devo ter feito outra coisa para você ficar zangado. O quê? Por que você não queria que eu fosse com você? Diga o que foi que eu fiz.

 

- Sufocou. - Volte e me diga. Volte! Eu quero saber! O que foi que eu fiz? Diga, diga, diga!

 

Soluçando, levantou-se de um salto e chutou a cadeira vazia. Que voou pela sala e caiu no outro lado. Garrett agarrou-a, gritando enfurecido, e quebrou-a no chão do trailer. Sachs recuou, chocada com a fúria que tinha desencadeado. Ele bateu com a cadeira uma dezena de vezes, até que nada mais restou do que uma massa informe de madeira e vime. Finalmente, Garrett desmoronou no chão, abraçando o corpo com os braços. Sachs levantou-se e envolveu-o com os braços, enquanto ele soluçava e tremia.

 

Após cinco minutos, ele deixou de chorar. Levantou-se e enxugou o rosto na manga da camisa.

 

- Garrett... - começou ela num sussurro.

 

Ele, porém, sacudiu a cabeça.

 

- Eu vou sair - disse.

 

Levantou-se e empurrou a porta.

 

Sachs permaneceu sentada por um momento, sem saber o que fazer. Embora inteiramente exausta, não se deitou na esteira, que ele tinha deixado ali para ela dormir.

 

Apagou o lampião, tirou o pano da janela e sentou-se na poltrona bolorenta. Inclinou-se para a frente, sentindo o cheiro pungente da citronela, e observou a silhueta encurvada do rapaz, sentado no lado de fora num toco de carvalho, olhando fixo para as constelações de insetos luminosos que enchiam a floresta em volta.

 

Baixinho, Lincoln Rhyme disse:

 

- Eu não acredito nisso.

 

Tinha acabado de falar com uma furiosa Lucy Kerr e fora informado de que Sachs disparara vários tiros contra os policiais, sob a ponte Hobeth.

 

- Eu não acredito nisso - repetiu para Thom, num sussurro.

 

O assistente era um mestre em lidar com corpos quebrados, e espíritos quebrados, por causa de corpos quebrados. Este, porém, era um assunto diferente, muito pior, e o melhor que pôde fazer foi dizer:

 

- Isso é uma grande confusão. Tem que ser. Amélia não faria uma coisa dessas.

 

- Ela não faria isso - murmurou Rhyme, desta vez desmentindo os fatos para Ben. - De maneira nenhuma. Nem mesmo para assustá-los.

 

Disse a si mesmo que ela jamais atiraria em um colega, mesmo que apenas para assustá-lo. Ainda assim, pensou também no que pessoas em desespero fazem. Os perigos loucos que correm. (Oh, Sachs, por que você tem que ser tão impulsiva e teimosa? Por que você tem que ser tão parecida comigo?)

 

Bell, nesse momento, estava no escritório, do outro lado do corredor. Rhyme ouviu-o dizer palavras carinhosas ao telefone. Achou

 

que a esposa e os filhos do xerife não estavam acostumados a ausências do marido e pai tão tarde assim da noite. A manutenção da lei e da ordem em uma cidade como Tanner's Corner não exigia provavelmente tantas horas quanto o caso de Garrett Hanlon estava consumindo.

 

Ben Kerr, sentado ao lado de um dos microscópios, tinha os braços enormes cruzados sobre o peito. Olhava para o mapa. Ao contrário do xerife, não dera nenhum telefonema para casa. Rhyme especulou consigo mesmo se ele tinha esposa ou namorada, ou se a vida daquele homem tímido era inteiramente dedicada à ciência e aos mistérios do mar.

 

O xerife desligou. Voltou ao laboratório.

 

- Teve mais alguma idéia, Rhyme?

 

Rhyme indicou com a cabeça o gráfico de provas. -

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • MOINHO

 

Tinta Marrom na Calça Planta Orvalhinha Argila Musgo de Turfa Suco de Fruta Fibras de Papel Isca Fedorenta Açúcar Canfeno Álcool Querosene Levedura E repetiu o que sabiam sobre a casa onde Mary Beth era mantida em cativeiro:

 

- Há um bavou da Carolina no caminho para a casa, ou perto. Metade das passagens marcadas nos livros de Garrett sobre insetos dizem respeito a camuflagem, e a tinta marrom na calça é da cor de casca de árvore, de modo que o local fica numa floresta, ou próximo. Os lampiões de canfeno são da década de 1800, o que indica local antigo, provavelmente da era victoriana. Mas o resto da prova vestígial pouco ajuda. A levedura pode ter vindo do moinho. As fibras de papel, de qualquer lugar. O suco de fruta e o açúcar? De alimentos ou bebidas que Garrett levava. Eu, simplesmente... O telefone tocou.

 

O dedo anular esquerdo de Rhyme acionou a UCA e ele atendeu.

 

- Alô? - disse ao microfone. -Lincoln.

 

Rhyme reconheceu a voz baixa, cansada, de Mel Cooper.

 

- O que foi que você descobriu, Mel? Eu preciso de uma boa notícia.

 

- Tomara que seja boa. Sabe, aquela chave que vocês acharam? Estivemos examinando fontes e bancos de dados à noite. Finalmente, descobrimos do que é.

 

- Do quê?

 

- De um trailer fabricado pela McPherson Deluxe Mobile Home Company. Os trailers foram fabricados de 1946 até princípios da década de 1970. A companhia fechou, mas, de acordo com o guia, o número de série na chave que que vocês acharam combina com um trailer fabricado em 1969.

 

- Alguma descrição?

 

- Nenhuma foto no guia.

 

- Droga! Alguém mora numa dessas coisas, em um pátio de trailers? Ou as dirige por aí, como se fosse um Winnebago?

 

- Mora, acho. Elas medem dois metros e quarenta centímetros por uns seis metros. Não é o tipo de coisa que a gente usaria para passear. De qualquer modo, não é motorizada. Tem que ser rebocada.

 

- Obrigado, Mel. Vá dormir um pouco. Rhyme desligou.

 

- O que é que você pensa, Jim? Algum pátio de trailers por aqui? O xerife pareceu em dúvida.

 

- Há uns dois à margem das Estradas 17 e 158. Mas não ficam nem perto do lugar para onde Garrett e Amélia estavam indo. E vivem cheios. Difícil esconder-se num lugar desses. Quer que eu mande alguém investigar?

 

- Que distância?

 

- Cento e quinze, cento e vinte quilômetros.

 

- Não. Garrett, provavelmente, encontrou um trailer abandonado em algum lugar na floresta e apossou-se dele.

 

Rhyme olhou para o mapa, pensando: o trailer está provavelmente estacionado em centenas de quilômetros quadrados de floresta.

 

E pensando também: o rapaz livrou-se das algemas? Está com a arma de Sachs? Estaria ela caindo de sono nesse exato momento, de guarda baixa, enquanto Garrett espera o momento em que ela adormecerá? Ele se levantaria, rastejaria para junto dela, com uma pedra ou um ninho de marimbondos na mão...

 

Angustiado, estendeu a cabeça para trás, ouviu o estalido de um osso. Endureceu-se, preocupado com as contrações excruciantes que ocasionalmente torturavam músculos ainda ligados aos nervos sobreviventes. Parecia inteiramente injusto que o mesmo trauma que lhe tornara insensível a maior parte do corpo submetesse também a parte sadia a tremores insuportáveis.

 

Dessa vez, não houve dor. Thom, porém, notou medo no rosto do patrão.

 

E disse:

 

- Lincoln, já basta... vou tomar sua pressão e você vai pra cama. E não adianta discutir.

 

- Tudo bem, Thom, tudo bem. Apenas, temos que dar antes um telefonema.

 

- Veja só que horas são... Quem é que está acordado a estas horas?

 

- Não é uma questão de quem está acordado agora - respondeu cansadamente Rhyme. - Mas uma questão sobre quem vai acordar.

 

Meia-noite no pântano.

 

Sons de insetos. Primeiras sombras de morcegos. Uma ou duas corujas. A luz gelada da lua.

 

Lucy e os outros policiais percorreram a pé 6,5 quilômetros pela Estrada 30 até o local onde um trailer os esperava. Bell tinha ma-

 

nobrado os pauzinhos e "requisitou" o veículo a Fred Fisher Winnebagos. Steve dirigira o trailer até ali para encontrar-se com os membros do grupo de busca e lhes indicar um lugar para passar a noite.

 

Os policiais entraram no espaço apertado. Jesse, Trey e Ned devoraram os sanduíches de rosbife trazidos por Farr. Lucy ignorou a comida e bebeu apenas uma garrafa d'água. Farr e Bell - que Deus os abençoasse - haviam providenciado também uniformes limpos para o grupo.

 

Lucy ligou para Jim Bell e informou que haviam seguido a dupla até uma casa de veraneio de luxo, de madeira, que eles haviam arrombado.

 

- Parece que eles assistiram TV. Você pode imaginar uma coisa dessas?

 

Mas já estava escuro demais para seguir os rastros e haviam resolvido esperar até o amanhecer para reiniciar a busca.

 

Lucy pegou as roupas limpas e entrou no banheiro. No minúsculo chuveiro, deixou o fraco chuvisco escorrer pelo corpo. Como sempre, começou pelos cabelos, rosto e pescoço e, em seguida, lavou cuidadosamente o peito chato, sentindo as cristas da cicatriz. As mãos tornaram-se mais confiantes ao descer para o ventre e as coxas.

 

E, mais uma vez, pensou por que tinha tal aversão a silicone e a cirurgia reparadora que, segundo explicação do médico, retirava gordura das coxas ou das nádegas para refazer os seios. Até os bicos poderiam ser reconstituídos... ou tatuados na carne.

 

Porque, disse a si mesmo, era uma cópia fraudulenta. Porque não era a coisa autêntica.

 

Sendo assim, por que incomodar-se?

 

Mas, pensou em seguida, veja só aquele Lincoln Rhyme. Ele só era em parte um homem. As pernas e os braços eram cópias fraudulentas - uma cadeira de rodas e um assistente. Pensar nele, porém, lembroulhe Amélia e a raiva voltou com toda força. Afastou esses pensamentos, enxugou-se e vestiu uma camiseta, pensando distraída na gaveta de sutiãs da cômoda, no quarto de hóspedes de sua casa - e lembrou-se de que há dois anos tinha pensado em jogá-los no lixo.

 

Mas, por alguma razão, jamais fez isso. Em seguida, vestiu a blusa do uniforme e a calça. Saiu do banheiro e encontrou Jesse desligando o telefone.

 

- Alguma coisa?

 

- Não - respondeu ele. - Eles continuam trabalhando nas provas. Jim e o Sr. Rhyme.

 

Lucy recusou com um movimento de cabeça o alimento oferecido por Jesse e, em seguida, sentou-se à mesa e puxou do coldre o revólver de serviço.

 

- Steve? - disse, dirigindo-se a Farr.

 

O rapaz, cabelos cortados rentes, levantou a vista do jornal que lia no momento, e ergueu uma sobrancelha.

 

- Você trouxe o que pedi?

 

- Trouxe, sim.

 

Enfiou a mão no porta-luva e lhe entregou uma caixa amarelaverde de cartuchos Remington. Lucy tirou da arma e dos carregadores rápidos os cartuchos de ponta redonda e remuniciou-a com as novas balas - de pontas ocas, que possuem maior poder de impacto e causam muito mais estragos em tecido mole quando atingem um ser humano.

 

Jesse Corn observou-a atento, mas passou-se um momento antes de falar, como ela sabia que ele faria:

 

- Amélia não é perigosa - disse ele em voz baixa, as palavras dirigidas apenas para ela.

 

Lucy pôs a arma em cima da mesa e fitou-o dentro dos olhos.

 

- Jesse, todo mundo disse que Mary Beth estava no mar, mas acabamos descobrindo que ela se encontra na direção oposta. Todo mundo disse que Garrett era simplesmente um menino burro, mas ele é tão manhoso como uma serpente e nos enrolou uma dezena de vezes. Não temos certeza de mais nada. Talvez Garrett tenha um arsenal em algum lugar e algum plano para nos liquidar, quando cairmos na armadilha que preparou.

 

- Mas Amélia está com ele. Ela não deixaria que isso acontecesse.

 

- Amélia é uma traidora ordinária e não podemos confiar nela em nada. Escute, Jesse, eu vi aquela expressão em seu rosto quando você descobriu que ela não estava embaixo do bote. Você ficou aliviado. Sei que você pensa que gosta dela e tem esperança de que ela goste de você... Não, deixe eu terminar. Mas ela deu fuga a um assassino. E se você tivesse na água, em lugar de Ned, Amélia teria atirado em você do mesmo jeito.

 

Ele fez menção de protestar, mas o gelo nos olhos de Lucy manteve-o calado.

 

- É fácil ter uma paixonite por uma pessoa como ela - continuou Lucy. - Ela é bonita, é de outro lugar, de um lugar exótico... Mas ela não pesca nada da vida por aqui. E não compreende Garrett. Você o conhece... um menino doente e é apenas por sorte que ele não está cumprindo agora uma pena de prisão perpétua.

 

- Eu sei que Garrett é perigoso. Não discuto isso. Estou pensando é em Amélia.

 

- E é em nós que eu estou pensando e em todo mundo mais em Blackwater Landing, que aquele rapaz pode estar planejando matar amanhã, na próxima semana ou no próximo ano, se escapar de nós. O que bem pode fazer, graças a ela. Agora, eu preciso saber se posso contar com você. Se não posso, você pode voltar pra casa e eu peço a Jim que mande alguém em seu lugar.

 

Jesse lançou um olhar à caixa de cartuchos. E em seguida para ela.

 

- Você pode, Lucy. Pode contar comigo.

 

- Ótimo. É melhor que você esteja falando sério. Porque, à primeira luz do dia, vou segui-los e trazer os dois. Espero que vivos, mas, tenho que dizer, isso se tornou opcional.

 

Sentada na cabana, exausta, Mary Beth McConnell tinha medo de cair no sono.

 

Escutando ruídos em toda parte.

 

Tinha desistido do colchão. Temia que, caso ficasse ali, acabaria se estirando e cairia no sono, para acordar vendo o missionário e tom olhando-a pela janela, prestes a arrombar a cabana. Por isso, empoleirou-se numa cadeira da sala de jantar, tão confortável como um tijolo.

 

Ruídos...

 

No telhado, no terraço, na floresta.

 

Não sabia as horas. Tinha até medo de apertar o botão de luz no relógio de pulso para dar uma olhada rápida... dado o medo malu-, co de que o brilho, de alguma maneira, chamasse os atacantes.

 

Exausta. Cansada demais para perguntar-se, mais uma vez, por que isso tinha lhe acontecido, o que poderia ter feito para evitar aquilo.

 

Nenhuma má ação escapa do castigo...

 

Olhou para o campo em frente à cabana, em completa escuridão. A janela era como uma moldura em volta de seu destino: quem mostraria, aproximando-se pelo campo? Seus assassinos ou seus salvadores?

 

Escutou.

 

O que era aquele som: um galho roçando a casca do tronco de uma árvore? Ou o riscar de um fósforo?

 

O que era aquele ponto de luz na mata? Um vagalume ou uma fogueira de acampamento?

 

Aquele movimento: um gamo posto em fuga pelo cheiro de um lince ou o Missionário e o amigo acomodando-se em volta da fogueira para beber cerveja e comer e, em seguida, virem pela floresta a seu encontro, a fim de satisfazer o corpo de outras maneiras?

 

Mary Beth McConnell não tinha como saber. Naquela noite, como em muita coisa em sua vida, só via ambigüidade.

 

Você encontra relíquias de colonos há muito tempo mortos, mas se pergunta se a teoria, afinal de contas, não está inteiramente errada.

 

Seu pai morre de câncer - uma morte longa e dolorosa, que os médicos sentenciaram como inevitável, mas você pensou: talvez não fosse.

 

Dois homens na floresta, pensando em estuprá-la e matá-la.

 

Mas, talvez não.

 

Talvez eles tenham desistido. Talvez eles tenham perdido os sentidos de tanta bebida falsificada. Ou ficaram assustados ao pensar nas conseqüências e resolveram que suas gordas esposas de mãos calejadas são mais seguras, ou mais fáceis, do que aquilo que planejavam fazer com ela.

 

De pernas abertas em sua casa...

 

Um estalo seco encheu a noite. Ela saltou ao ouvir o som. Um tiro. Parecia vir do lugar onde ela tinha visto luz de fogo. Um segundo depois, outro tiro. Mais perto.

 

Mary Beth respirava com dificuldade, tanto era o medo, segurando com força o "pau de misericórdia", incapaz de olhar pela janela escura, incapaz de não olhar, apavorada em pensar que veria o rosto balofo de tom aparecer na moldura, sorrindo alegremente. Nós voltaremos.

 

Pensou ouvir a risada de um homem, mas o som logo se perdeu no vento, tal como o grito de um dos espíritos Manitous dos Weapemocs.

 

Pensou que ouvia um homem gritando:

 

- Prepare-se, prepare-se... Mas, talvez não.

 

- Ouviu tiros? - perguntou Rich Culbeau a Harris Tomei.

 

Estavam sentados em volta de um moribundo fogo de acampamento, nervosos e não tão bêbados como teria acontecido, se isso fosse uma saída normal para caçar, não tão bêbados quanto queriam estar. A bebida falsificada simplesmente não estava fazendo efeito.

 

- Pistola - respondeu Tomei. - Grosso calibre. Dez milímetros ou uma 44, 45. Automática.

 

- Bobagem - disse Culbeau. - Você não pode saber se é uma automática ou não.

 

- Posso - respondeu Tomei em tom professoral. - O tiro de revólver é mais alto... devido ao espaço entre o tambor e o cano. Lógico.

 

- Bobagem! - repetiu Culbeau. Em seguida, perguntou: - A que distância?

 

- Ar úmido. Noite... Eu diria, 6,5 ou 8 quilômetros. - Suspirou.

 

- Eu queria que este troço acabasse logo. Estou com o saco cheio disso.

 

- Ouvi - disse Culbeau. - Era mais fácil em Tanner's Comer. Está ficando complicado agora.

 

- Droga de insetos - reclamou Tomei, matando um mosquito.

 

- No que é que você pensa que alguém está atirando a esta hora da noite? Já é quase uma hora.

 

- Guaxinim no lixo, urso preto numa tenda, um cara trepando com a mulher de outro.

 

Culbeau inclinou a cabeça, concordando.

 

- Escute aqui... Sean está dormindo. Esse cara dorme a qualquer hora, em qualquer lugar.

 

Espalhou os carvões com os pés para apagá-los.

 

- Ele está tomando umas merdas de remédio.

 

- Está? Eu não sabia.

 

- É por isso que ele dorme a qualquer hora, em qualquer lugar. Ele está esquisito, não acha? - perguntou Tomei, olhando para o magrelo como se ele fosse uma cobra adormecida.

 

- Eu gostava mais dele quando a gente não sabia que besteira ele ia fazer. Agora, anda sério demais e me cago todo de medo disso. Segurando aquela arma como se fosse um caralho, e tudo mais.

 

- Você tem razão sobre isso - murmurou Tomei e, em seguida, olhou durante vários minutos para a floresta escura. Suspirou e disse:

 

- Ei, você tem aquele repelente? Estou sendo comido vivo aqui. E me passe aquela garrafa enquanto faz isso.

 

Amélia Sachs abriu os olhos ao ouvir o som do tiro de pistola.

 

Olhou para o quarto do trailer, onde Garrett dormia deitado no colchão. Ele nada tinha ouvido.

 

Outro tiro.

 

Por que alguém andaria dando tiros tão tarde da noite?, pensou.

 

Os tiros lembraram-lhe o incidente no rio... Lucy e os outros atirando no bote, por baixo do qual supunham que ela e Garrett estivessem escondidos. Lembrou-se dos gêiseres de água, subindo no ar com os tiros ensurdecedores da escopeta.

 

Apurou os ouvidos, mas nada mais ouviu. Nada, senão o vento. E as cigarras, claro.

 

Elas levam uma vida esquisitíssima... As ninfas se enterram no chão e ficam lá, tipo 12 anos, antes de ovular... Todos esses anos enterradas, apenas se escondendo, antes de saírem e se tornarem adultas.

 

Mas, logo depois, ocupou a mente novamente com o que vinha pensando, antes de ser interrompida pêlos tiros.

 

Estava pensando numa cadeira vazia.

 

Não na técnica de terapia do Dr. Penny. Ou no que Garrett tinha lhe dito sobre o pai e aquela noite terrível, cinco anos antes. Não, estava pensando em uma cadeira diferente... na cadeira de rodas Storm Arrow, de Lincoln Rhyme.

 

Afinal de contas, era por isso que se encontravam ali, na Carolina do Norte. Rhyme estava arriscando tudo, a vida, o que lhe restava de saúde, a vida dele e dela juntos, de modo a poder chegar mais perto de deixar aquela cadeira.

 

Deixá-la para trás, vazia.

 

Deitada ali no trailer imundo, ela, uma criminosa, sozinha em seu tempo de pancadas. Finalmente, reconheceu para si mesma o que a preocupava tanto na insistência de Rhyme na operação. Claro, preocupava-se com a possibilidade de que ele morresse na mesa. Ou que a operação lhe agravasse o estado. Ou que nenhum resultado tivesse e ele mergulhasse em depressão.

 

Mas esses não eram seus principais medos. Não eram esses os motivos por que fizera tudo para impedir que ele se submetesse à operação. Não, não... o que a amedrontava mais era que a operação tivesse sucesso.

 

Oh, Rhyme, você não compreende? Eu não quero que você mude. Eu o amo da maneira como você é. Se você fosse igual a todo mundo mais, o que aconteceria conosco?

 

- Você diz: "Será sempre você e eu, Sachs." Mas o você-e-eu baseia-se no que nós somos agora. Eu e minhas drogas de unhas, e essa ânsia de me mover, mover, mover... Você e seu corpo machucado e mente elegante, que se move mais rápida e vai mais longe do que jamais pude ir em meu Camaro envenenado.

 

- Essa sua mente me prende mais fortemente do que qualquer amante apaixonado jamais poderia fazer.

 

- E se você se tornar normal outra vez? Quando você for suas próprias pernas e braços novamente, Rhyme, por que me quereria? Por que precisaria de mim? Eu me tornaria apenas outra portátil, uma policial de ronda com algum talento para criminalística. Você conhecerá outras das mulheres traiçoeiras que lhe descarrilaram a vida no passado - outra esposa egoísta, outra amante casada - e desaparecerá de minha vida, como o marido de Lucy Kerr deixou-a após a cirurgia.

 

- Eu o quero da maneira como você é...

 

E estremeceu ao mesmo tempo que reconhecia como eram cruamente egoístas esses pensamentos. Ainda assim, não podia repudiá-los.

 

Pique em sua cadeira, Rhyme! Eu não a quero vazia... Eu quero uma vida com você, uma vida como sempre foi. Quero filhos com você, filhos que crescerão para conhecê-lo exatamente como você é. Quando deu por si, estava olhando para o teto escuro. Fechou os olhos. Mas passou-se uma hora antes que o som do vento e das cigarras, suas placas torácicas cantando como violinos monótonos, finalmente a seduzissem para dormir.

 

Sachs acordou pouco depois do amanhecer com o som de um zumbido... que no seu sonho eram plácidos gafanhotos, mas que descobriu ser o alarme do seu relógio de pulso Casio. Desligou-o.

 

O corpo lhe doía horrivelmente numa reação artrítica a ter dormido sobre uma esteira fina, em cima de um piso de metal rebitado.

 

Mas se sentia estranhamente animada. Raios baixos de sol infiltravam-se pelas janelas do trailer e considerou isso como um bom sinal. Naquele dia, encontrariam Mary Beth McConnell e voltariam com ela para Tanner's Comer. Confirmaria a história de Garrett e o xerife Bell e Lucy Kerr poderiam começar a procurar o verdadeiro assassino.

 

Observou Garrett acordar no quarto, rolar para um lado e sentar-se no colchão mole. com os dedos compridos, penteou os cabelos emaranhados. Pela manhã, ele parece exatamente igual a todos os adolescentes, pensou. Desengonçado, bonitão e sonolento. Prestes a vestir-se, prestes a tomar o ônibus para a escola e reencontrar os amigos, aprender coisas nas aulas, flertar com as garotas, jogar bola. Observando-o olhar em volta, tonto de sono, à procura da camisa, notou-lhe o corpo magrelo e pensou em lhe dar boa comida - cereal, frutas, leite - e lhe lavar as roupas e ter certeza de que ele tinha tomado um banho de chuveiro. Isso é o que seria, pensou, ter filhos. E não tomá-los emprestados das amigas por algumas horas - tal como sua afilhada, filha de Amy. Mas estar lá todos os dias quando eles acordavam em seus quartos bagunçados, agüentar-lhes as difíceis atitudes de adolescentes, preparar-lhe refeições, comprar-lhes roupas, discutir com eles, cuidar deles. Ser o centro de suas vidas.

 

- bom dia - disse, sorrindo. Ele retribuiu o sorriso.

 

- Vamos ter que nos mandar - disse. - Chegar a Mary Beth. Estou longe por um tempo longo demais. Ela deve estar morrendo de medo e de sede.

 

Sachs levantou-se insegura sobre os pés. Ele olhou para o peito, para os vergões deixados pelo carvalho venenoso, e pareceu embaraçado. Rápido, vestiu a camisa.

 

- vou sair. A gente tem que, você sabe, cuidar das coisas. E vou deixar por aqui uns dois ninhos vazios de marimbondos. Isso poderá retardar eles um pouco... se vierem por este caminho.

 

Garrett saiu mas voltou um momento depois. Pôs a concha de água sobre a mesa, ao lado dela. Sachs disse, acanhada:

 

- Obrigada.

 

Ele saiu mais uma vez.

 

Ela bebeu toda a água, doida por uma escova de dente e um banho de chuveiro. Talvez, quando chegassem a...

 

- E elel - disse uma voz de homem, num sussurro.

 

Sachs imobilizou-se e, em seguida, olhou pela janela. Nada viu. Mas de um grupo de altas árvores perto do trailer, o sussurro baixo continuou:

 

- Ele está na minha mira. Posso dar um tiro limpo.

 

A voz era conhecida e ela chegou à conclusão de que se parecia com a daquele amigo de Culbeau, Sean O'Sarian. O magrelo. A trinca de arruaceiros... Iam matar o rapaz ou torturá-lo para dizer onde se encontrava Mary Beth e, assim, ganhar a recompensa.

 

Agarrou o Smith & Wesson e saiu rápida do trailer. Agachou-se, gesticulando em desespero para Garrett. Que não a viu.

 

Os passos nas moitas aproximaram-se.

 

- Garrett - chamou ela, baixinho.

 

Ele se virou, viu Sachs chamando-o com um sinal. Franziu as sobrancelhas, notando-lhe a urgência nos olhos. Olhou para a esquerda, para as moitas, e Sach viu terror cobrir-lhe o rosto. Estendeu as mãos para a frente, num gesto de defesa e gritou:

 

- Não me machuquem, não me machuquem, não me machuquem!

 

Sachs caiu em agachamento, pôs o dedo no gatilho, puxou para trás o cão da arma e apontou para as moitas. A coisa toda aconteceu rapidamente... Garrett caindo de bruços no chão, gritando:

 

- Não, não!

 

Amélia erguendo a pistola, em postura de combate, com as duas mãos segurando-a, pressão no gatilho, esperando que o alvo aparecesse...

 

O homem saindo bruscamente das moitas, a arma erguida apontada para Garrett...

 

Exatamente nesse momento, o policial Ned Spoto apareceu no canto do trailer, bem ao lado de Sachs, pestanejou de espanto e saltou na direção dela, os braços abertos. Surpresa, Sachs recuou, tropeçando. A arma disparou, dando um coice violento em sua mão.

 

E a dez metros de distância - do outro lado da transparente nuvem de fumaça que escapava da boca da arma - ela viu a bala de sua arma atingir a testa do homem que estivera escondido nas moitas... não Sean O'Sarian, absolutamente, mas Jesse Corn. Um ponto preto apareceu em cima do olho do jovem policial, enquanto a cabeça era jogada para trás e uma horrível nuvem vermelha se formava às suas costas. Sem um som, ele desmoronou no chão.

 

Sachs arquejou, olhando para o corpo, que se contorceu uma vez mais e ficou em seguida absolutamente imóvel. Perdeu a respiração. Caiu de joelhos, a arma escorrendo-lhe da mão para o solo.

 

- Oh, Jesus! - murmurou Ned Spoto, olhando também, em estado de choque, para o cadáver. Mas, antes que o policial pudesse recuperar-se e sacar a arma, Garrett atacou-o. Pegou o revólver de Sachs no chão, apontou-o para a cabeça de Ned, tomou-lhe a arma e jogou-a no mato.

 

- Deite-se! - ordenou furioso Garrett. - De cara no chão!

 

- Você o matou, você o matou! - murmurou Ned.

 

- Agora!

 

Ned obedeceu, lágrimas escorrendo pelo rosto bronzeado de sol.

 

- Jesse! - chamou a voz de Lucy Kerr, de algum lugar próximo.

 

- Onde está você? Quem é que está atirando?

 

- Não, não, não... - gemeu Sachs, observando uma quantidade enorme de sangue escorrer do crânio despedaçado do policial morto.

 

Garrett Hanlon lançou um olhar para o corpo de Jesse. Em seguida, para algum lugar mais além... para o som de passos que se aproximavam. Pôs o braço em volta de Sachs.

 

- Temos que nos mandar daqui.

 

Ela ficou calada, apenas olhando, esbugalhada, inteiramente embotada, para a cena do crime à frente - para o fim da vida daquele policial, para o fim de sua própria vida e Garrett ajudou-a a levantar-se, segurou-lhe a mão, puxou as suas costas. E desapareceram na mata.

 

O que estaria acontecendo nesse momento? - perguntou a si mesmo um frenético Lincoln Rhyme.

 

Uma hora antes, às cinco e trinta da manhã, tinha conseguido finalmente um telefonema de resposta de um burocrata muito irritado, da Divisão de Propriedades Imobiliárias, do Departamento de Receita da Carolina do Norte. O tal indivíduo foi acordado à uma e meia da manhã e mandado rastrear pessoas em débito com a Receita, no tocante a qualquer terra na qual a residência alegada era um trailer McPherson. Inicialmente, Rhyme mandou verificar se os pais de Garrett teriam possuído um veículo desses e - quando soube que não -, raciocinou que, se o rapaz estava usando o lugar como esconderijo, o trailer tinha sido abandonado. E, se tinha sido abandonado, o proprietário devia impostos.

 

O diretor-assistente disse-lhe que havia registro, no Estado, de duas propriedades nessas condições. No primeiro caso, nas proximidades de Blue Ridge, a oeste, o trailer e a propriedade tinham sido vendidos, para pagamento dos impostos, a um casal que atualmente residia no local. O outro, em meio hectare do Condado de Paquenoke, não justificava o trabalho ou o tempo necessário para levá-lo à leilão judicial. Ele deu a Rhyme o endereço, uma rota RFD a cerca de 800 metros do rio Paquenoke, Localização C-6 no mapa.

 

Rhyme ligou para Lucy e os outros e os enviou ao local. Iam aproximar-se à primeira luz do dia e, se Garrett e Amélia estivessem no trailer, cercá-los e convencê-los a se renderem.

 

A última notícia foi que haviam descoberto o trailer e que se aproximavam lentamente.

 

Aborrecido porque o patrão virtualmente não tinha pregado olho durante a noite, Thom pediu a Ben que saísse da sala e iniciou com todo cuidado o ritual matutino: aliviar a bexiga, evacuar os intestinos, escovar os dentes e tomar a pressão arterial de Rhyme.

 

- Ela está alta, Lincoln - murmurou Thom, guardando o aparelho de pressão.

 

Pressão alta demais em um tetraplégico poderia provocar um ataque de disreflexia, que, por seu lado, poderia gerar um acidente vascular cerebral. Rhyme, porém, nenhuma atenção lhe prestou. Estava funcionando na base de pura energia. Queria, em desespero, encontrar Amélia. Queria...

 

Ergueu a vista. Jim Bell, com uma expressão de alarme no rosto, entrou nesse momento. Ben Kerr, igualmente nervoso, vinha imediatamente atrás dele.

 

- O que foi que aconteceu? - perguntou Rhyme. - Ela está bem? Amélia está...

 

- Ela matou Jesse - disse Bell em uma voz que mal se ouvia. Atirou na cabeça dele.

 

Thom endureceu-se onde estava. Lançou um rápido olhar a Rhyme. O xerife continuou:

 

- Ele estava prestes a prender Garrett. Ela atirou nele. E os dois fugiram.

 

- Não, isso é impossível - murmurou Rhyme. - Há um engano. Alguém fez isso.

 

Bell, porém, sacudiu a cabeça.

 

- Não. Ned Spoto estava lá. Ele viu tudo... Não estou dizendo que ela fez isso de propósito... Ned saltou para agarrá-la e a arma dela disparou, mas isso continua a ser assassinato.

 

Oh, meu Deus...

 

Amélia... policial de segunda geração, a Filha Portátil. E, naquele momento, tinha assassinado um colega. O pior crime que um policial poderia cometer.

 

- O caso escapa agora de nossas mãos, Rhyme. vou ter que comunicar o fato às autoridades estaduais.

 

- Espere, Jim - pediu Rhyme, em tom de urgência. - Por favor... Ela está em desespero agora, está amedrontada. O mesmo acontece com Garrett. Você chama os milicianos e muito mais gente vai ficar machucada. Eles vão querer passar fogo nos dois.

 

- Bem, aparentemente, eles devem querer passar fogo nos dois.

 

- Bell teve uma expressão de nojo. - E parece que devem, pelo que aconteceu.

 

- Eu encontrarei os dois para você. Estou perto.

 

Rhyme inclinou a cabeça para o gráfico de provas e o mapa.

 

- Eu lhe dei uma chance e veja só o que aconteceu.

 

- Eu os encontrarei e eu a convencerei a se entregar. Sei que posso fazer isso. Eu...

 

De repente, Bell foi empurrado para um lado e um homem entrou furioso na sala. Mason Germain.

 

- Seu grandissíssimo filho da puta! - gritou e partiu para cima de Rhyme.

 

Thom tomou-lhe a frente mas o policial jogou também para o lado o magro assistente, que rolou pelo chão. Mason agarrou Rhyme pela camisa.

 

- Seu aleijado ordinário! Veio aqui e fez seu joguinho...

 

- Mason!

 

Bell aproximou-se e Mason empurrou-o também para um lado.

 

- ...e fez seu joguinho com as provas... seus pequenos quebracabeças. E agora um homem decente está morto por sua causa!

 

Rhyme sentiu o cheiro da forte loção pós-barba no momento em que o policial levou o braço para trás, preparando-se para atingi-lo com um soco. O criminalista contraiu-se e virou o rosto.

 

- Eu vou matá-lo. Eu vou matá-lo...

 

A voz de Mason foi estrangulada quando um braço imenso fechou-se em volta de seu peito e ergueu-o do chão. Ben Kerr afastou Rhyme do policial.

 

- Kerr, diabos o levem, solte-me! - arquejou Mason. - Seu escroto! Você está preso!

 

Acalme-se, moço - disse lentamente o homenzarrão.

 

Mason tentou pegar a arma, mas a outra mão de Ben fechou-se com força em volta de seu pulso. Ben olhou para Bell, que hesitou por um momento e em seguida inclinou a cabeça. Ben soltou o policial, que recuou, com fúria nos olhos. E disse a Bell:

 

- Eu vou pra lá, vou encontrar aquela mulher e vou...

 

- Você não vai, Mason - disse Bell. - Se quer continuar a trabalhar aqui, faça o que estou dizendo. Vamos resolver esse caso à minha maneira. Você vai ficar aqui na delegacia. Entendeu?

 

- Filho da puta, Jim. Ela...

 

- Entendeu o que eu disse?

 

- Entendi, entendi muito bem a merda que você disse. E saiu feito uma fera da sala.

 

Bell virou-se para Rhyme:

 

- Você está bem?

 

Rhyme respondeu afirmativamente, com um aceno de cabeça.

 

- E você? - perguntou, lançando um olhar a Thom.

 

- Estou ótimo.

 

O assistente endireitou a camisa de Rhyme. A despeito dos protestos do criminalista, tirou-lhe novamente a pressão.

 

- A mesma. Alta demais, mas não em estado crítico. O xerife sacudiu a cabeça.

 

- vou ter que ligar para os pais de Jesse. Deus, eu não quero fazer isso. - Foi até a janela e olhou para fora. - Primeiro, Ed, agora, Jesse. Que pesadelo esta coisa tem sido.

 

- Por favor, Jim - disse Rhyme. - Deixe quê eu os encontre e me dê uma oportunidade de falar com ela. Se você não fizer isso, a situação vai piorar. Você sabe disso. Vamos acabar com mais gente morta.

 

Bell suspirou. Lançou um olhar ao mapa.

 

- Eles têm uma dianteira de 20 minutos. Você acha que pode encontrá-los?

 

- Posso - respondeu Rhyme. - Posso encontrá-los.

 

- Naquela direção - disse Sean O'Sarian. - Tenho certeza. Rich Culbeau, nesse momento, olhava para oeste, para onde o jovem apontava... para o local onde haviam ouvido o tiro e os gritos quinze minutos antes. ...

 

Culbeau acabou de urinar num pinheiro e perguntou:

 

- O que é que há nessa direção?

 

- Pântano, umas casas velhas - respondeu Harris Tomei, que provavelmente havia caçado em cada centímetro quadrado do Condado de Paquenoke. - Não muita coisa mais.

 

Há um mês, vi por lá um lobo cinzento.

 

Supostamente extintos, os lobos estavam de volta.

 

- Tá brincando - disse Culbeau. Nunca tinha visto um lobo e morria de vontade de ver um.

 

- Atirou nele? - perguntou O'Sarian.

 

- É proibido atirar neles - disse Tomei. E Culbeau acrescentou:

 

- São animais protegidos. Espécie em extinção.

 

- E daí?

 

Culbeau deu-se conta de que não tinha uma resposta para a pergunta.

 

Esperaram por mais alguns minutos, mas não ouviram mais tiros nem gritos.

 

- Acho que podemos continuar - disse Culbeau, apontando para a direção de onde vieram os tiros.

 

- Podemos, mesmo - concordou O'Sarian, tomando um gole de água.

 

- Quente hoje, novamente - disse Tomei, olhando para o disco ainda baixo do sol radiante no horizonte.

 

- Faz calor todos os dias - murmurou Culbeau.

 

Pegou a arma e começou a seguir a trilha, acompanhado por seu exército de duas pessoas.

 

Thunk.

 

Os olhos de Mary Beth se abriram de chofre, tirando-a de um sono profundo e indesejado. Thunk.

 

- Ei, Mary Beth - chamou alegremente uma voz de homem.

 

Como um adulto falando com uma criança. Tonta como estava, pensou: É meu pai! O que é que ele está fazendo aqui, de volta do hospital? Ele não está em condições Espere!

 

Endireitou-se, tonta, acabeçalatejando. Caíra no sono na cadeira da sala de jantar. Thunk.

 

- Mareeeeee Bayeth...

 

Ela saltou ao ver o rosto debochado olhando pela janela. De tom. Outra batida na porta, quando o machado do missionário atingiu a madeira.

 

tom inclinou-se para dentro, apertando os olhos para ver melhor na escuridão.

 

- Onde é que está você? Ela fitou-o, paralisada. tom continuou:

 

- Oh, lá está você. Pó, você é mais bonitinha do que eu pensava. - Ergueu o punho e mostrou-lhe as grossas ataduras. - Perdi um litro de sangue, por sua causa. Acho que é apenas justo receber um pouco de volta.

 

Thunk.

 

- Tenho que lhe dizer, doçura - continuou ele -, caí no sono na noite passada, pensando em pegar nos seus peitínhos. Muito obrigado por esse agradável pensamento.

 

Thunk.

 

com esse golpe, o machado atravessou a porta. tom desapareceu da janela e reuniu-se ao amigo.

 

- Continue, rapaz - disse, estimulando-o em voz alta. - Falta pouco pra você conseguir.

 

Thunk.

 

A preocupação dele era que ela ia se machucar.

 

Desde que a conheceu, Lincoln Rhyme lhe observava as mãos desaparecerem no couro cabeludo e saírem sangrando. Viu-a, quando preocupada, usar a boca para roer as unhas e as unhas para lacerar a pele. Viu-a acelerar a dirigir um carro a 240 quilômetros por hora. Não sabia exatamente o que a incomodava, mas sabia que era alguma coisa que a fazia viver no fio de uma navalha.

 

No momento em que aquilo acontecera, no momento em que ela havia assassinado uma pessoa, a ansiedade poderia levá-la a transpor o limite. Após o acidente que o deixou inválido, Terry Dobyns, o psicólogo da NYPD, explicou que ele, sim, sentiria vontade de suicidar-se. Mas não seria a depressão que o motivaria. Depressão esgota a energia. A principal causa dos suicídios era uma fusão mortal de desesperança, angústia e pânico.

 

O que seria exatamente o que Amélia Sachs - caçada, traída por sua própria natureza - estaria sentindo nesse exato momento.

 

Descubra onde ela está! - era seu único pensamento. Encontre-a, logo.

 

Mas onde estava ela? A resposta à pergunta ainda lhe fugia.

 

Olhou novamente para o gráfico. Não havia prova recolhida no trailer. Lucy e os outros policiais haviam passado uma rápida revista no local... rápida demais, claro. Estavam sob o feitiço da febre da caçada - até mesmo o imobilizado Rhyme sentia isso - e em desespero para seguir o rastro do inimigo que tinha lhe matado o amigo. As únicas pistas que tinha do local do cativeiro de Mary Beth - para onde se dirigiam nesse momento Garrett e Sachs - estavam bem à sua frente. Mas eram tão enigmáticas quanto os conjuntos mais enigmáticos de provas que jamais analisara.

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • MOINHO

 

Tinta Marrom na Calça Planta Orvalhinha Argila Musgo de Turfa Suco de Fruta - Fibras de Papel Isca Fedorenta Açúcar Canfeno Álcool Querosene Levedura Precisamos de mais provas!, disse ele furioso a si mesmo.

 

Mas não temos mais nenhuma droga de prova.

 

Quando estava mergulhado no negror da fase de negação da dor, após o acidente, tentou mobilizar uma força de vontade sobre-humana para obrigar o corpo a mover-se.

 

Lembrou-se de histórias de pessoas que levantaram carros que esmagavam crianças ou que correram a uma velocidade impossível para buscar socorro em emergências. Mas, no fim, acabou por aceitar que despertar em si mesmo esse tipo de força não lhe era mais possível.

 

Mas dispunha ainda de um tipo de força - força mental.

 

Pense! Tudo que você tem é sua mente e a prova à sua frente. A prova não vai mudar.

 

Então, mude sua maneira de pensar.

 

Muito bem. Vamos recomeçar. Mais uma vez, leu o gráfico. A chave do trailer tinha sido identificada. A levedura seria do moinho. O açúcar, de alimento ou do suco.

 

O canfeno, de velhos lampiões. A tinta, da casa onde ela estava sendo mantida em cativeiro. O querosene, do barco. O álcool podia ter qualquer origem. A areia na bainha das bocas da calça do rapaz? Não exibia quaisquer características incomuns e era...

 

Espere... a areia.

 

Lembrou-se de que ele e Ben haviam feito, na manhã do dia anterior, o teste de gradiente de densidade da areia tirada dos sapatos e dos tapetes de piso dos carros dos funcionários do condado. Ordenara a Thom que fotografasse cada tubo de ensaio e anotasse nas costas da foto polaróide o nome dos empregados que haviam fornecido a amostra.

 

-Ben?

 

- O quê?

 

- Passe na unidade de gradiente de densidade a terra que tirou das bainhas da calça de Garrett encontrada no moinho.

 

Depois de ver a terra depositada no tubo, o rapaz avisou:

 

- Consegui os resultados.

 

- Compare-a com as fotos das amostras que você examinou ontem.

 

- Ótimo, ótimo. - O jovem zoólogo inclinou a cabeça, impressionado com a idéia. Folheou as fotos e parou de repente: - Encontrei uma correspondência! - exclamou.

 

- Quase idêntica.

 

O zoólogo não hesitava mais em dar opiniões, notou satisfeito Rhyme.

 

- Veio dos sapatos de quem? Ben examinou a anotação nas costas da foto.

 

- Frank Heller. Ele trabalha no Departamento de Obras Públicas.

 

- Ele ainda está no prédio?

 

- Vou verificar.

 

Ben desapareceu pela porta. Voltou alguns minutos depois, acompanhado por um homem corpulento, usando camisa branca de mangas curtas. Ele fitou Rhyme hesitantemente.

 

- O senhor é o mesmo cara de ontem. Que nos obrigou a limpar nossos sapatos.

 

Riu, mas o som foi contrafeito.

 

-Frank, vamos precisar novamente de sua ajuda-explicouRhyme.

 

- Um pouco da areia encontrada em seus sapatos combina com a areia que encontramos na roupa do suspeito.

 

- O rapaz que seqüestrou aquelas moças? - perguntou Frank em voz baixa, rosto vermelho e parecendo inteiramente culpado.

 

- Exatamente. O que significa que ele poderia - este é um tiro no escuro, mas ele poderia - manter a moça a talvez 3 ou 4 quilômetros do lugar onde você mora. Você poderia mostrar no mapa exatamente onde fica esse lugar?

 

- Não é que eu seja suspeito, ou alguma outra coisa, é?

 

- Não, Frank. Em absoluto.

 

- Porque tenho pessoas que jurariam por mim. Fico com minha mulher todas as noites. Assistimos, na TV, Jeopardy! e Wheel o/Fortune. Sem faltar um só dia. E também WWF. Às vezes, o irmão dela aparece. Quero dizer, ele me deve dinheiro, mas confirmaria tudo que eu disse, mesmo se não devesse.

 

- Tudo bem - tranqüilizou-o Rhyme. - Nós precisamos apenas saber onde você mora. Naquele mapa ali.

 

- O lugar seria aquele.

 

Aproximou-se do mapa e tocou um ponto. Localização D-3. Ficava ao norte do Paquo... ao norte do trailer onde Jesse tinha sido morto. Na área estavam marcadas algumas pequenas estradas, mas nenhum provoado.

 

- Como é a área em volta do lugar onde você mora?

 

- Florestas e campos, principalmente.

 

- Você conhece algum lugar onde alguém poderia esconder uma vítima de seqüestro?

 

Frank pareceu pensar seriamente na pergunta. -Não, não sei.

 

- Posso lhe fazer uma pergunta? - disse Rhyme, - Além das que já fez? -Isso mesmo.

 

- Acho que pode.

 

- Você conhece os bavous da Carolina?

 

- Claro. Todo mundo conhece. Feitos por meteoros. Há muito tempo. Quando os próprios dinossauros foram mortos.

 

- Há alguns perto do lugar onde você mora? -Só há.

 

O que era o que Rhyme esperava que aquele homem dissessf. Frank continuou:

 

- Devem ser uns cem.

 

O que era o que esperava que ele não dissesse.

 

Cabeça para trás, olhos fechados, passando mentalmente em revista os gráficos de provas.

 

Jim Bell e Mason Germain estavam de volta à sala das provas, juntamente com Thom e Ben, mas Lincoln Rhyme nenhuma atenção lhes dava. Encontrava-se em seu próprio mundo, um local organizado de ciência, provas e lógica, um local onde não precisava de mobilidade, um local onde seus sentimentos por Amélia e sobre o que ela fizera estavam piedosamente proibidos de entrar. Veria as provas na mente com tanta clareza como se estivesse olhando as anotações no quadro-negro. Na verdade, conseguia vê-las melhor com os olhos fechados.

 

Tinta açúcar levedura areia canfeno tinta areia açúcar... kvedura... levedura...

 

Um pensamento lhe aflorou à mente, desapareceu. Volte, volte, volte...

 

Isso mesmo! Agarrou-o.

 

Abriu subitamente os olhos. Voltou-se para o canto vazio da sala. Bell seguiu-lhe o olhar.

 

- O que é, Lincoln?

 

- Você tem aqui uma máquina de fazer café?

 

- Café? - Thom não estava gostando. - Nada de cafeína. Não com sua pressão arterial em...

 

- Não, eu não quero droga nenhuma de café! Quero um filtro de café.

 

- Filtro? vou arranjar um.

 

Bell saiu da sala e voltou um momento depois.

 

- Entregue-o a Ben - ordenou Rhyme. Em seguida, disse ao zoólogo: - Veja se as fibras do filtro combinam com as encontradas nas roupas de Garrett no moinho.

 

Ben retirou algumas fibras do filtro e colocou-as na placa. Examinou-as através da ocular do microscópio de comparação, ajustou o foco e passou às fases seguintes, de modo que as amostras ficassem lado a lado na tela dividida da ocular.

 

- As cores são um pouco diferentes, Lincoln, mas a estrutura e o tamanho das fibras são praticamente iguais.

 

- Ótimo - disse Rhyme, os olhos na camiseta e na mancha que nela havia.

 

Voltou-se para Ben:

 

- O suco, o suco na camiseta. Prove-o, outra vez. Um pouco amargo? Azedo?

 

- Talvez, um pouco - respondeu Ben. - E difícil dizer.

 

Os olhos de Rhyme voltaram ao mapa, e imaginou Lucy e os outros fechando o cerco sobre Sachs, em algum lugar naquele ermo verde, coçando-se para atirar. Ou que Garrett tinha na mão a arma de Sachs e estava apontando para ela.

 

Ou que ela apontava a arma para a cabeça, apertando o gatilho.

 

- Jim - disse -, preciso que você me consiga uma coisa. Uma amostra de controle.

 

- Tudo bem. Onde? L Tirou o chaveiro do bolso.

 

- Não, você não vai precisar de um carro para isso.

 

Um sem-número de imagens revolviam nos pensamentos de Lucy Kerr: Jesse Corn, no seu primeiro dia de trabalho como policial, sapatos regulamentares perfeitamente engraxados. Entretanto, meias de cores diferentes. Ele tinha se vestido antes do amanhecer, para ter certeza de que não chegaria atrasado.

 

Jesse Corn, encurvado sobre o volante de uma radiopatrulha, os ombros tocando os seus, enquanto Barton Snell - a mente em fogo por causa de tanto PCP - atirava nos policiais. E foi a conversa fácil de Jesse que conseguiu que aquele homenzarrão baixasse a Winchester.

 

Jesse com, dirigindo todo orgulhoso sua nova picape vermelhacereja até a delegacia e, em seu dia de folga, dando a algumas crianças uma carona na caçamba, subindo e descendo o pátio do estacionamento. Elas gritavam "Uau" em uníssono quando ele passava por cima dos quebra-molas.

 

Esses pensamentos - e dezenas de outros - ocorriam-lhe e persistiam, enquanto ela, Ned e Trey abriam caminho através da grande floresta de carvalho. Jim Bell lhes dissera que esperassem no trailer e que enviaria Steve Farr, Frank e Mason para substituí-los na busca. Mas eles nem mesmo se deram ao trabalho de votar sobre o assunto. com tanta reverência quanto possível, levaram o corpo de Jesse para dentro do trailer e cobriram-no com um lençol. Em seguida, ela disse a Jim que iam atrás dos fugitivos e que nada neste mundo de Deus ia detê-los.

 

Garrett e Amélia estavam fugindo rápido e nenhum esforço fazendo para apagar os rastros. Moviam-se ao longo de uma trilha que margeava terra pantanosa. O terreno mole conservava-lhes perfeitamente as pegadas. Lucy lembrou-se de uma coisa que Amélia tinha dito a Lincoln Rhyme sobre a cena do crime em Blackwater Landing, quando a ruiva examinou as pegadas no local: o peso de Billy Stail estava sobre os dedos dos pés, o que significava que ele estava correndo para Garrett, querendo salvar Mary Beth. Notou a mesma coisa nas pegadas dos dois fugitivos. Eles estavam correndo. E por isso disse aos companheiros: -Vamos correr.

 

A despeito do calor e da exaustão, correram juntos. Continuaram assim durante um quilômetro e meio, até que o solo tornou-se mais seco e não puderam ver mais as pegadas. Em seguida, a trilha acabou em uma grande clareira gramada e ficaram sem saber para onde eles haviam ido.

 

- Droga - murmurou Lucy, arquejando para respirar e furiosa Porque haviam perdido a pista. - Droga!

 

Dispersaram-se em volta da clareira, estudando cada centímetro do chão, mas não conseguiram encontrar a trilha ou qualquer outra Pista que indicasse o caminho tomado por Garrett e Sachs. que é que nós vamos fazer? - perguntou Ned.

 

- Ligar para a delegacia e esperar.

 

Encostou-se numa árvore, pegou no ar a garrafa d'água que lnef lhe lançou e tomou-a até a última gota.

 

Recordando:

 

Jesse Corn, timidamente exibindo uma reluzente pistola que pensava em usar nas provas de tiro da NRA, Jesse Corn acompanhando os pais à Primeira Igreja Batista, na Locust Street.

 

As imagens continuavam a revolver em sua mente, dolorosas para formar e que lhe alimentavam a fúria. Mas não fez força nenhuma para expulsá-las: quando encontrasse Amélia Sachs, queria que sua fúria fosse implacável.

 

Com um rangido, a porta da cabana cedeu por alguns centímetros.

 

- Mary Beth - cantarolou tom -, venha pra cá agora, venha e brinque com a gente.

 

Ele e o missionário conversaram baixinho. Em seguida, tom voltou a falar:

 

- Venha, venha, doçura. Torne a coisa fácil pra você. Nós não vamos machucá-la. Estávamos apenas brincando ontem com você.

 

Mary Beth permaneceu de pé, encostada na parede, atrás da porta da frente. Não disse uma única palavra. Segurou o "pau de misericórdia" com ambas as mãos.

 

A porta foi aberta um pouco mais, as dobradiças soltando outro rangido. Uma sombra caiu sobre o chão.

 

tom entrou, cauteloso.

 

- Onde está ela? - perguntou do terraço o missionário.

 

- Aqui há um porão - respondeu tom. - Aposto que ela está lá.

 

- Vamos, agarre-a e vamos em frente. Não gosto das coisas por aqui.

 

tom deu outro passo dentro da cabana. Tinha na mão uma longa faca de esfolar animais.

 

Mary Bedi conhecia a filosofia das guerras dos índios, e uma das regras era que, se conversas de paz fracassavam e a guerra era inevitável, ninguém provocava nem ameaçava: atacava com todas as forças. O objetivo de uma batalha não é, com palavras, convencer o inimigo a render-se ou explicar e censurar, mas aniquilá-lo.

 

E assim, saiu calmamente de trás da porta, gritou como um espírito Manitou e desceu a clava com ambas as mãos, no momento em que tom girava sobre si mesmo, os olhos esbugalhados de pavor. O missionário gritou:

 

- Cuidado!

 

tom, porém, não teve a menor chance. O "pau de misericórdia" atingiu-o com toda força à frente da orelha, quebrando-lhe o maxilar e lhe fechando metade da garganta.

 

Ele soltou a faca, agarrou o pescoço, caindo de joelhos, sufocando. Rastejou como pôde para fora.

 

- Ela... ela me atacou - arquejou.

 

Mas não havia ajuda a caminho - o missionário simplesmente estendeu a mão e puxou-o do terraço pela gola, soltando-o no chão, com as mãos no rosto esmagado, enquanto Mary Bedi observava-os da janela.

 

- Seu babaca - murmurou o missionário para o amigo e sacou uma pistola do bolso traseiro da calça.

 

Mary Beth empurrou a porta para fechá-la, voltou a tomar seu lugar atrás dela, enxugando as mãos suadas e conseguindo melhor empunhadura da clava. Ouviu o clique duplo de uma arma sendo engatilhada.

 

- Mary Beth, eu tenho uma arma e você provavelmente já pensou que, nas circunstâncias, eu não vou ter problema para usá-la. Simplesmente, saia daí. Se não sair, vou atirar aí dentro e, provavelmente, acertar em você.

 

Mas ele não atirou. Era um truque. Deu um forte pontapé na porta, que girou, batendo nela, atordoando-a por um instante, derrubando-a. Mas, quando ele começou a entrar, ela chutou a porta com tanta força como ele a abrira. A pesada porta pegou-o no ombro, fazendo-o perder o equilíbrio. Mary Beth avançou para ele, desceu o "pau de misericórdia" sobre o único alvo que podia atingir - o cotovelo dele. Mas ele deixou-se cair no chão no exato momento em que a pedra o teria atingido e ela errou o golpe. A força do feroz impulso arrancou-lhe a clava das mãos suadas e ela deslizou pelo chão.

 

Não havia tempo de recuperá-la. Simplesmente, corra! Mary Beth saltou por cima do missionário antes que ele tivesse tempo de virar-se e atirar, e saiu correndo pela porta.

 

Finalmente!

 

Livre daquele buraco infernal, finalmente!

 

Correu para a esquerda, dirigindo-se para a trilha por onde seu seqüestrador a trouxera dois dias antes, a que levava para atrás de um grande bavou da Carolina.

 

Na esquina da cabana, virou-se para a lagoa.

 

E correu diretamente para os braços de Garrett Hanlon. - Não! - gritou ela. - Não!

 

Olhos alucinados, arma na mão, ele gritou:

 

- Como foi que você conseguiu sair? Como? Agarrou-a pelo punho.

 

- Largue!

 

Tentou soltar-se, mas a empunhadura dele era como aço.

 

Viu o rosto sombrio de uma mulher com ele, bonita, com longos cabelos ruivos. As roupas dela, como as de Garrett, estavam imundas. A mulher permaneceu calada, os olhos sem brilho. Não parecia nem um pouco surpresa com o aparecimento da moça. Parecia drogada.

 

- Merda! - gritou o missionário. - Sua puta nojenta!

 

Virou a esquina e descobriu Garrett apontando uma arma para seu rosto. O rapaz perguntou, com um grito:

 

- Quem é você? O que é que faz em minha casa? O que foi que você fez com Mary Beth?

 

- Ela nos atacou! Olhe pra meu amigo. Olhe pra ele...

 

-Jogue isso fora - disse enfurecido Garrett, indicando com a cabeça a arma na mão do homem. - Jogue-a pra longe ou mato você! Mato. Arranco sua merda de cabeça com uma bala!

 

O missionário olhou para a arma e o rosto do rapaz. Garrett engatilhou a arma. -Jesus... E deixou a arma cair na grama.

 

- Agora, caia fora daqui! Ande.

 

O missionário recuou, ajudou tom a levantar-se e os dois afastaram-se cambaleando para as árvores.

 

Garrett foi até a porta da frente da cabana, puxando Mary Beth.

 

- Entre! Temos que entrar. Eles estão nos perseguindo. Não podemos deixar que nos vejam. Vamos nos esconder no porão. Olhe só o que eles fizeram com as fechaduras!

 

Arrombaram minha porta!

 

- Não, Garrett! - disse Mary Beth em voz rouca. - Eu não vou voltar para lá.

 

Ele, porém, nada disse e simplesmente puxou-a para dentro da cabana. A ruiva silenciosa entrou também em passos trôpegos. Garrett empurrou e fechou a porta, olhando para a madeira despedaçada, as fechaduras destruídas, desolação no rosto.

 

- Não! - gritou, vendo cacos de vidro no chão... da jarra onde estava o besouro-dinossauro.

 

Mary Beth, horrorizada ao ver que o rapaz parecia mais transtornado porque um de seus insetos havia fugido, aproximou-se de Garrett e esbofeteou-o. Ele pestanejou de surpresa e tropeçou para trás.

 

- Seu canalha! - gritou ela. - Eles poderiam ter me matado. O garoto ficou vermelho.

 

- Sinto muito! - A voz fraquejou. - Eu não sabia nada deles. Pensava que não havia ninguém por aqui. Eu não queria deixar você sozinha por tanto tempo. Eu fui preso.

 

Empurrou lascas de madeira por baixo da porta, para mantê-la fechada.

 

- Preso? - perguntou Mary Beth. - Neste caso, o que é que você está fazendo aqui?

 

A ruiva, finalmente, falou, murmurando:

 

- Eu o tirei da cadeia. Para que a gente pudesse encontrar você e levá-la de volta. E para que você pudesse confirmar a história dele sobre o homem do macacão.

 

- Que homem? - perguntou Mary Beth, confusa.

 

- Em Blackwater Landing. O homem de macacão marrom, o homem que matou Billy Stail.

 

- Mas... - Mary Beth sacudiu a cabeça. - Garrett matou Billy. com uma pá. Eu vi quando ele fez isso. Aconteceu bem na minha frente. Depois, ele me seqüestrou.

 

Mary Beth jamais tinha visto uma expressão como aquela em outro ser humano. Choque e desalento completos. A ruiva começou a virar-se para Garrett, mas, nesse momento, alguma coisa captou-lhe a vista: as fileiras de frutas e verduras enlatadas Farmer John. Dirigiu-se para a mesa, como se fosse uma sonâmbula, e pegou uma das latas. Olhou para o desenho no rótulo - um alegre fazendeiro louro, usando macacão marrom e camisa branca.

 

- Você inventou tudo? - murmurou, dirigindo-se a Garrett, mostrando a lata. - Não houve homem nenhum. Você mentiu.

 

Garrett deu um passo para a frente, rápido como um gafanhoto e tirou-lhe as algemas do cinto. E passou-as pelos punhos de Amélia.

 

- Sinto muito, Amélia - disse. - Mas, se eu tivesse lhe contado a verdade, você nunca teria me tirado da cadeia. Era a única maneira. Eu tinha que voltar para cá. Eu tinha que voltar para Mary Beth.

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • MOINHO

 

Tinta Marrom na Calça Planta Orvalhinha Argila Musgo de Turfa Suco de Fruta Fibras de Papel Isca Fedorenta Açúcar Canfeno Álcool Querosene Levedura Como que obcecado, Lincoln Rhyme escaneava o gráfico de provas. De cima para baixo, de baixo para cima.

 

E mais uma vez.

 

Por que, com todos os diabos, a droga do cromatôgrafo estava demorando tanto?, pensou.

 

Sentados próximos, Jim Bell e Mason Germain guardavam silêncio. Lucy tinha telefonado minutos antes, dizendo que haviam perdido a pista e que esperavam ao norte do trailer - na Localização C-5.

 

O cromatógrafo ronronou e todos ali permaneceram imóveis, esperando os resultados.

 

Silêncio durante longos minutos, finalmente quebrado pela voz de Ben Kerr.

 

Em tom baixo, ele disse a Rhyme:

 

- O pessoal me chamava, você sabe o quê. O que você está provavelmente pensando.

 

Rhyme fitou-o.

 

- "Big Ben." Como aquele relógio da Inglaterra. Você, provavelmente, estava pensando nisso.

 

- Não estava. Você quer dizer, na escola? Inclinação de cabeça.

 

- Escola secundária. Eu tinha um metro e noventa e dois de altura e pesava 115 quilos aos 16 anos. A turma fazia um bocado de troça de mim. "Big Ben." Outros nomes, também. De modo que nunca me senti muito bem com minha aparência. Acho que foi por isso que me comportei de maneira esquisita, quando o conheci.

 

- Os garotos encarnavam em você, não? - perguntou Rhyme, tanto aceitando quanto recusando o pedido de desculpa.

 

- Se encarnavam! Até que comecei a praticar luta livre na universidade, vency Darryl Tennison em 3.2 segundos e ele precisou de muito mais tempo do que isso para recuperar o fôlego.

 

- Eu também faltei um bocado de aulas de educação física - consolou-o Rhyme. - Eu falsificava desculpas de meu médico, de meus pais... falsificações muito boas, tenho que dizer - e fugia para o laboratório de ciência.

 

- Era mesmo?

 

- Duas vezes por semana, pelo menos.

 

- E realizava experimentos?

 

- Lia um bocado, mexia no equipamento... Às vezes tirava um sarro com Sonja Metzger.

 

Thom e Ben soltaram uma risada.

 

Sonja, a primeira namorada, porém, levou-o a pensar em Amélia Sachs e ele não gostou da direção que esses pensamentos tomavam.

 

- OK - disse Ben. - Lá vamos nós.

 

A tela do computador tornou-se subitamente viva com os resultados da amostra de controle que Rhyme tinha pedido a Jim Bell. O homenzarrão inclinou a cabeça.

 

- O que achamos foi o seguinte: solução de 55% de álcool. Água, muitos minerais.

 

- Água de poço - concluiu Rhyme.

 

- com toda probabilidade. - O zoólogo continuou: - E há traços de formaldeildo, fenol, frutose, destrose, celulose.

 

- Isso para mim é suficiente - anunciou Rhyme, pensando: o peixe pode continuar fora d'água, mas acaba de criar pulmões. E disse a Bell e Mason: - Eu cometi um erro.

 

Um grande erro. Vi a levedura e achei que tinha vindo do moinho, e não do local do cativeiro de Mary Beth. Por que um moinho teria suprimento de levedura? Ela só é encontrada em padarias... Ou - ergueu uma sobrancelha para Bell -, em algum lugar que a usa.

 

Indicou com um gesto de cabeça uma garrafa em cima da mesa. O líquido era justamente o que Rhyme tinha pedido que Bell fosse buscar no porão da delegacia. Era de bebida falsificada com teor alcoólico de 55% - de uma das garrafas que ele viu um policial levar dali, quando requisitou a sala de provas e a transformou em laboratório.

 

E era isso o que Ben acabava justamente de encontrar na amostra passada no cromatógrafo.

 

- Açúcar e levedura - continuou o criminalista. - São ingredientes de bebidas destiladas. E a celulose naquela partida de bebida falsificada - continuou, olhando para a tela do computador - é provavelmente de filtros de papel... Acho que, quando é falsificada, a bebida tem que ser filtrada.

 

- Isso mesmo - confirmou Bell. - E a maioria dos falsificadores usa filtros de papel de café, comprados em qualquer supermercado.

 

- Exatamente igual à que encontramos nas roupas de Garrett. E a destrose e frutose... são açúcares complexos existentes em frutas. Esse é do suco de fruta deixado no jarro. Ben disse que era amargo... parecendo suco de uva-do-monte. E você me disse, Jim, que esse é o vasilhame mais usado para bebida falsificada. Certo?

 

- Ocean Spray.

 

- De modo que - sumariou Rhyme - Garrett está mantendo Mary Beth presa em uma cabana de falsificador de bebida... presumivelmente uma que foi abandonada desde uma batida policial.

 

- Que batida? - perguntou Mason.

 

- Bem, uma coisa parecida com o que aconteceu com o trailer - respondeu secamente Rhyme, odiando, como sempre, ter que explicar o óbvio. - Se Garrett está usando esse lugar para esconder Mary Beth, tem que ser um local abandonado. E qual é a única razão para alguém abandonar um alambique em boas condições?

 

- O Departamento de Receita estadual dá batidas - disse Bell.

 

- Certo - concordou Rhyme. - Pegue o telefone e descubra a localização de quaisquer alambiques estourados nos dois últimos anos. Deve ser um prédio do século XIX, em um bosque, e de cor marrom - embora talvez não tenha sido dessa cor quando da batida. Está a 6,5 ou 8 quilômetros do lugar onde mora Frank Heller, contíguo a um bavou da Carolina, ou que precisa ser contornado a partir do Paquo.

 

Bell deixou a sala para ligar para o Departamento de Receita.

 

- Essa foi muito boa, Lincoln - cumprimentou-o Ben. Até mesmo Mason Germain pareceu impressionado. Um momento depois, Bell voltou à sala.

 

- Consegui! - Consultou uma folha de papel e começou a traçar direções no mapa, terminando na Localização B-4. Desenhou um círculo em volta de um ponto. - Aqui mesmo. O chefe de operações da Receita disse que foi uma grande operação. Deram a batida há um ano e destruíram o alambique. Um dos agentes examinou o local há dois, três meses, e descobriu que alguém o havia pintado de marrom, de modo que investigou, para verificar se estava sendo novamente usado. Mas disse que o encontrou vazio, e esqueceu o assunto. E fica a uns 15 metros de um bavou de bom tamanho.

 

- Há uma maneira de ir de carro até lá? - perguntou Rhyme.

 

- Tem que haver - respondeu Bell. - Todos alambiques ficam perto de estradas... para trazer suprimentos e despachar a bebida pronta.

 

Rhyme inclinou a cabeça e disse, firme:

 

- Eu vou precisar de uma hora sozinho com ela... para convencêla. Eu sei que posso fazer isso.

 

- É arriscado, Lincoln.

 

- Eu quero essa hora - insistiu Rhyme, sustentando o olhar de Bell.

 

Finalmente, o xerife concordou:

 

- OK. Mas se Garrett fugir desta vez, vai haver urna caçada humana de bom tamanho.

 

- Entendido. Você acha que minha van pode ir até lá?

 

- As estradas não são lá grande coisa - observou Bell -, mas...

 

- Eu levo você lá - garantiu firme Thom. - O que quer que aconteça, eu levo você lá.

 

Cinco minutos depois de Rhyme deixar a delegacia, Mason Germain observou que Jim Bell voltava à sua sala. Esperou um momento e, certificando-se de que ninguém o observava, tornou o corredor e dirigiu-se para a porta principal do prédio.

 

No prédio da Prefeitura do Condado havia dezenas de telefones que ele poderia ter usado, mas, em vez disso, enfrentou aquele calor todo e dirigiu-se rápido, a pé, até uma fileira de telefones públicos na calçada. Enfiou a mão no bolso e tirou algumas moedas. Olhou em volta e, convencendo-se de que estava sozinho, inseriu as moedas, olhou para um número em um pedaço de papel e discou.

 

Farmerjohn, Farmerjohn. Saboreie-o, fresquinho, vindo de Farmer John... Farmerjohn, Farmerjohn. Saboreie-o, fresquinho, vindo de Farmerjohn...

 

Olhando fixamente para a fileira de latas à frente, para uma dezena de fazendeiros vestidos de macacão, fitando-a com sorrisos de mofa, a mente de Amélia Sachs era totalmente ocupada por esse jingle sem sentido, o hino à sua imbecilidade.

 

Que tinha custado a vida de Jesse com. E arruinado também a sua.

 

Só vagamente tomava conhecimento da cabana, onde era agora uma cativa, prisioneira do rapaz pelo qual arriscara sua vida para salvar. E da furiosa troca de palavras que ocorria nesse momento entre Garrett e Mary Beth.

 

Não, tudo que conseguia ver era o minúsculo ponto preto aparecendo na testa de Jesse.

 

E tudo que conseguia ouvir era ojingle cantarolado, Farmer John, Farmer John...

 

Subitamente, compreendeu uma coisa. Às vezes, Lincoln Rhyme mudava-se mentalmente para outro lugar. Podia conversar, mas as palavras eram superficiais, podia sorrir, mas era uma contrafação de sorriso, podia parecer escutar, mas nenhuma palavra ouvia. Em momentos como esse, sabia, ele pensava em morrer. Pensava em encontrar alguém pertencente a um grupo de suicídio assistido, como a Lethe Society, para ajudá-lo. Ou mesmo, como pessoas seriamente inválidas fazem, contratar um pistoleiro. (Rhyme, que tinha contribuído para que fosse metido na prisão grande número de membros do CO - crime organizado, quadrilheiros -obviamente tinha conexões nesse mundo. Na verdade, haveria provavelmente alguns que fariam isso sem nada cobrar.)

 

Mas, até esse momento - com sua própria vida tão despedaçada como a de Rhyme, não, mais despedaçada - sempre havia pensado que ele errava em pensar assim. Nesse momento, porém, compreendeu como ele se sentia.

 

- Não! - gritou Garrett, levantando-se de um salto e inclinando a orelha para a janela.

 

A gente tem que ficar à escuta o tempo todo. Se não fizer isso, eles podem nos pegar de surpresa.

 

E Sachs ouviu, também. Um carro aproximava-se vagarosamente.

 

- Eles nos encontraram! - exclamou o rapaz, segurando com força o revólver. Correu para a janela, olhou para fora. Pareceu confuso. - O que é isso? - perguntou baixinho.

 

Uma porta bateu. Seguiu-se uma longa pausa. Em seguida, ela ouviu as palavras:

 

- Sachs. Sou eu. Um fraco sorriso apareceu nos lábios de Amélia. Ninguém mais no universo poderia ter encontrado aquele lugar, só Lincoln Rhyme.

 

- Sachs, você está aí?

 

- Não! - sussurrou Garrett. - Não diga nada.

 

Ignorando-o, Sachs levantou-se e foi até uma janela quebrada. Ali, em frente à cabana, parada meio inclinada na terra da entrada de automóveis, viu a van Rollx preta. Rhyme, na cadeira de rodas, tinha manobrado para chegar perto da cabana - tanto quanto podia, até que um montículo de areia perto do terraço o deteve. Thom, ao seu lado.

 

- Olá, Rhyme - disse ela.

 

- Calada! - sussurrou asperamente o rapaz.

 

- Posso falar com você? - perguntou o criminalista.

 

O que era que isso adiantava?, pensou ela. Ainda assim, respondeu: -Pode. Foi até a porta e disse a Garrett:

 

- Abra. vou sair.

 

- Não, é uma cilada - respondeu o rapaz. - Eles atacarão...

 

- Abra a porta, Garrett - ordenou ela com firmeza, os olhos perfurando os dele.

 

Garrett olhou em volta da sala. Em seguida, curvou-se e puxou as cunhas no batente da porta. Sachs abriu-a, as algemas ainda nos pulsos, tilintando como campainhas de trenó.

 

- Ele fez aquilo, Rhyme - reconheceu ela, sentando-se nos degraus do terraço, de frente para ele. - Ele matou Billy... Entendi tudo errado. Tudo errado.

 

O criminalista fechou os olhos. Que horror ela não devia estar sentindo, pensou. Examinou-a com toda atenção, o rosto pálido, os olhos pétreos. Perguntou:

 

- Mary Beth está bem?

 

- Está. Assustada, mas bem.

 

- Ela o viu fazer aquilo?

 

Sachs inclinou a cabeça, confirmando.

 

- Não havia homem nenhum vestido de macacão? - perguntou ele.

 

- Não. Garrett inventou aquilo. E por isso eu o tirei da cadeia. Ele planejou tudo, desde o começo. Levando-nos a pensar nos Bancos Externos. Ele tinha um bote escondido, suprimentos. Planejou o que faria se a polícia chegasse perto. Tinha mesmo uma casa segura - o trailer que você descobriu. A chave, certo? A que eu encontrei na jarra dos marimbondos? Foi assim que você nos descobriu.

 

- Foi mesmo a chave - confirmou Rhyme.

 

- Eu devia ter pensado nisso. Nós devíamos ter ficado em outro lugar.

 

Rhyme notou que ela estava algemada e viu Garrett à janela, olhando furioso para fora, uma arma na mão. Nesse momento havia uma situação de seqüestro e refém. Garrett não ia sair dali voluntariamente. Era tempo de chamar o FBI. Rhyme tinha um amigo, Arthur Potter, agora aposentado, mas ainda o melhor negociador que o Bureau jamais tivera. Ele residia em Washington, D.C., mas poderia chegar ali em questão de horas.

 

Rhyme olhou para Sachs, e perguntou:

 

- EJesse Corn? Amélia sacudiu a cabeça.

 

- Eu não sabia que era ele, Rhyme. Pensei que era um dos amigos de Culbeau. Um policial saltou sobre mim e a arma disparou. Mas foi culpa minha - visei um alvo não identificado, com uma arma destravada. Quebrei a regra número um.

 

- Eu vou conseguir o melhor advogado do país para você.

 

- Isso não tem importância.

 

- Tem, Sachs. Tem. Nós vamos bolar alguma coisa. Ela voltou a sacudir a cabeça.

 

- Não há nada para bolar, Rhyme. Foi assassinato doloso. Caso aberto e encerrado. -.Nesse momento, olhou para alguma coisa atrás dele. Fechando a cara. Levantando-se.

 

-Oque é...?

 

De repente, uma voz de mulher gritou:

 

- Fique onde está! Amélia, você está presa.

 

Rhyme tentou virar-se, mas não conseguiu girar a cabeça o suficiente. Soprou no controle e recuou num semicírculo. Viu Lucy e dois outros policiais, agachados, enquanto saíam correndo de dentro da mata, armas nas mãos e olhos fixos nas janelas da cabana. Os dois homens usavam as árvores como cobertura. Lucy, porém, vinha andando destemida na direção de Rhyme, Thom e Sachs, o revólver apontado para o peito de Amélia.

 

De que maneira o grupo de busca havia encontrado a cabana? Tinha ouvido o som da van? Teria Lucy redescoberto a pista de Garrett?

 

Ou teria Bell renegado o trato feito e lhes passado a informação?

 

Lucy veio em linha reta até Sachs e, sem um momento de pausa, esbofeteou-a violentamente, o punho atingindo-a no queixo. Sachs soltou um pequeno grito de dor e recuou um passo. Mas nada disse.

 

- Não! - gritou Rhyme.

 

Thom deu um passo à frente. Lucy, porém, já agarrava Sachs pelo braço.

 

- Mary Beth está aí dentro?

 

- Está.

 

Escorria sangue do queixo de Amélia.

 

- Ela está bem?

 

Uma inclinação de cabeça.

 

Olhos na janela da cabana, Lucy perguntou:

 

- Ele está com sua arma?

 

- Está.

 

- Jesus. - Lucy chamou os outros policiais. - Ned, Trey, ele está lá dentro. E armado. - Em seguida, disse secamente a Rhyme: - Eu sugeriria que procurasse se proteger.

 

E puxou violentamente Sachs para trás da van, no lado oposto à cabana.

 

Rhyme seguiu-as, Thom segurando a cadeira para lhe manter a estabilidade, enquanto cruzavam o terreno irregular.

 

Lucy virou-se para Sachs, segurou-a pelos braços e disse:

 

- Ele fez aquilo, não fez? Mary Beth lhe contou, não contou? Garrett matou Billy.

 

Sachs olhou para o chão. Finalmente, respondeu:

 

- Sinto muito. Eu...

 

- Sentir muito não significa merda nenhuma para mim nem para ninguém mais. E ainda menos é para Jesse Corn... Garrett tem alguma outra arma aí dentro?

 

- Não sei. Não vi nenhuma.

 

Lucy virou-se para a cabana e gritou:

 

- Garrett, você está me ouvindo? Sou eu, Lucy Kerr. Quero que solte a arma e saia com as mãos acima da cabeça. Faça isso agora, 'tá bem?

 

A única resposta foi a porta sendo fechada com estrondo. Batidas baixas encheram a clareira, enquanto Garrett martelava ou enfiava cunhas no batente para fechar a porta. Lucy puxou o telefone celular e iniciou uma chamada.

 

- Ei, policial - interrompeu-a uma voz -, vai precisar de alguma ajuda?

 

Lucy virou-se.

 

- Oh, não - murmurou.

 

Rhyme, também, virou-se para a voz. Um homem alto, de cabelo amarrado em rabo-de-cavalo, trazendo um fuzil de caça, veio correndo pela grama na direção deles.

 

- Culbeau - disse ela secamente -, eu tenho um problema aqui e não tenho tempo pra você. Simplesmente, vá embora, caia fora daqui.

 

Seus olhos notaram outra coisa no campo: outro homem andava vagarosamente na direção da cabana. Trazia um fuzil preto do Exército e apertava, pensativo, os olhos enquanto examinava o campo e a cabana.

 

- É Sean? - perguntou.

 

- É... - respondeu Culbeau -, e Harris Tomei está ali. Tomei vinha se aproximando do alto policial afro-americano.

 

Conversaram casualmente, como se fossem conhecidos. Culbeau insistiu:

 

- Se o rapaz está na cabana, você vai precisar de alguma ajuda para expulsá-lo de lá. O que é que nós podemos fazer?

 

- Este é um assunto de polícia, Rich. Vocês três, caiam fora daqui. Agora, Trey! - gritou ela para o policial negro. - Expulse-os daqui.

 

O terceiro policial, Ned, aproximou-se de Lucy e Culbeau.

 

- Rich - disse ele -, não há mais recompensa. Esqueça isso e... O tiro do poderoso fuzil de Culbeau abriu um buraco na frente do peito de Ned e o impacto lançou-o alguns metros para trás. Trey olhou para Harris Tomei, a apenas 3 metros de distância. Os dois se entreolharam, um tão chocado quanto o outro, e nenhum dos dois se moveu por um momento.

 

Em seguida, um grito, como de uma hiena, de Sean O'Sarian, que ergueu o fuzil militar e atirou três vezes nas costas de Trey. Soltando uma casquinada, ele desapareceu no campo.

 

- Não! - gritou Lucy e ergueu a arma para Culbeau, mas, quando atirou, ele já tinha se escondido na grama alta que cercava a cabana.

 

Rhyme sentiu a ânsia instintiva de deixar-se cair no chão, mas, claro, permaneceu erecto na Storm Arrow. Mais balas atingiram a van, onde Sachs e Lucy, nesse momento de cara na grama, haviam estado de pé um momento antes. Thom, de joelhos, tentava tirar a pesada cadeira do buraco na terra mole, onde ela tinha ficado presa.

 

- Lincoln! - gritou Sachs.

 

- Eu estou bem. Mexa-se! Passe para o outro lado da van. Proteja-se.

 

- Mas Garrett pode nos atingir de lá - disse Lucy. Secamente, Sachs respondeu:

 

- Mas não é ele quem está dando essas merdas de tiros! Outro tiro de escopeta não os acertou por uns 30 centímetros e chumbo pipocou no terraço. Thom pôs a cadeira em ponto morto e, na base do músculo, empurrou-a para o lado da van que dava para a cabana.

 

- Abaixe-se - disse Rhyme ao assistente, que ignorou um tiro que passou zunindo por eles e espatifou uma janela do veículo.

 

Lucy e Sachs seguiram-nos para a área escura entre a cabana e a van.

 

- Por que, diabo, estão fazendo isso? - gritou Lucy. Disparou vários tiros, obrigando O'Sarian e Tomei a correr em busca de cobertura. Embora não pudesse ver Culbeau, Rhyme sabia que o homenzarrão estava em algum lugar, diretamente à frente deles. O fuzil que trazia era de alta potência e equipado com uma grande mira telescópica.

 

- Tire minhas algemas e me dê a arma - berrou Sachs.

 

- Dê a arma a ela - disse Rhyme. - Ela atira melhor do que você.

 

- De jeito nenhum!

 

A policial sacudiu a cabeça, no rosto uma expressão de espanto com a sugestão de Rhyme. Mais balas atingiram o metal da van e arrancaram pedaços de madeira do terraço.

 

- Eles têm fuzis poderosos! - disse Sachs, furiosa. - Você não é páreo para eles. Me dê a arma!

 

Lucy descansou a cabeça no lado da van e olhou, em estado de choque, para os dois policiais mortos, estendidos na grama.

 

- O que é que está acontecendo? - murmurou, chorando. - O que é que está acontecendo?

 

A proteção deles - a van - não ia durar muito. Protegia-os de Culbeau e do fuzil que ele usava, mas os dois outros estavam flanqueando-os. Dentro de minutos, estabeleceriam fogo cruzado.

 

Lucy atirou mais duas vezes - na grama onde um tiro da escopeta havia sido disparado um momento antes.

 

- Não desperdice munição - ordenou Sachs. - Espere até ter um alvo claro. De outra maneira...

 

- Cale essa maldita boca - respondeu furiosa Lucy. Bateu nos bolsos. - Perdi a droga do telefone.

 

- Lincoln - disse Thom -, vou tirar você da cadeira. Você está exposto demais.

 

Rhyme inclinou a cabeça. O assistente soltou as correias, passou os braços em volta do peito de Rhyme, puxou-o para fora da cadeira e deitou-o no chão. Rhyme tentou levantar a cabeça para ver o que estava acontecendo, mas uma contratura - uma câimbra impiedosa - apertou-lhe a musculatura do pescoço e ele teve que baixar a cabeça para a grama até a dor passar. Nunca se sentira tão apunhalado por sua impotência como nesse momento.

 

Mais tiros. Mais perto. E mais do riso insano de O'Sarian.

 

- Ei, mocinha do canivete, onde está você?

 

- Eles estão quase em posição - murmurou Lucy.

 

- Munição? - perguntou Sachs.

 

- Tenho três no tambor e um carregador rápido.

 

- Carregado com seis cartuchos?

 

- Carregado.

 

Uma bala atingiu a parte traseira da Storm Arrow e a cadeira tombou para um lado.

 

Lucy atirou contra O'Sarian, mas a risada dele e a saraivada de tiros do Colt, em resposta, disseram-lhe que ela havia errado.

 

O fuzil lhes disse também que, dentro de apenas um minuto ou dois, eles seriam inteiramente flanqueados.

 

Iriam morrer ali, crivados de balas, presos nesse estreito vale entre a van e a cabana. Rhyme ficou pensando no que sentiria quando as balas lhe rasgassem o corpo. Nenhuma dor, claro, nem mesmo qualquer pressão na carne insensível. Olhou para Sachs, que o fitava com uma expressão de impotência no rosto.

 

Você e eu, Sachs...

 

Nesse momento, ele lançou um olhar para a frente da cabana.

 

- Olhe - gritou.

 

Lucy e Sachs seguiram-lhe os olhos. Garrett havia aberto a porta da frente.

 

- Vamos entrar - disse Sachs.

 

- Você está louca? - gritou Lucy. - Garrett está com eles. Eles todos estão juntos nisso.

 

- Não - disse Rhyme. - Ele teve chance de atirar em nós pela janela. E não atirou.

 

Mais dois tiros, muito perto. Moitas farfalharam. Lucy ergueu a arma.

 

- Não gaste munição! - gritou Sachs.

 

Lucy, porém, levantou-se e deu dois tiros rápidos para o local de onde tinha vindo o som. A pedra que um deles jogara para sacudir as moitas, enganá-la e fazê-la apresentar um alvo claro, ficou visível. Lucy saltou para um lado, no exato momento em que a carga da escopeta de Tomei, disparada contra suas costas, passou como um raio, perfurando o lado da van.

 

- Merda - gritou a policial, ejetando os cartuchos disparados e recarregando a arma com o SpeedLoader.

 

- Para dentro - disse Rhyme. - Agora. Lucy inclinou a cabeça.

 

- OK - disse.

 

- Transporte de bombeiro - disse Rhyme.

 

Esta era uma má posição para transportar um tetraplégico... pois aplicava pressão nas partes do corpo não acostumadas a isso, mas era a mais rápida, e Thom só ficaria exposto aos tiros durante o menor período possível de tempo. E pensou também que seu corpo protegeria Thom.

 

- Não - respondeu Thom.

 

- Faça isso, Thom. Sem discussão.

 

- Eu cubro vocês - disse Lucy. - Os três, juntos. Prontos? Sachs inclinou a cabeça. Thom o levantou, aninhando-o em seus fortes braços, como se estivesse carregando um bebê.

 

- Thom... - protestou Rhyme.

 

- Cale a boca, Rhyme - disse secamente o assistente. - Vamos fazer isso à minha maneira.

 

- Agora - disse Lucy.

 

Rhyme ficou momentaneamente ensurdecido com vários tiros estrondosos. Tudo se tornou indistinto quando subiram correndo os poucos degraus e entraram na casa.

 

Mais balas atingiram a madeira da cabana quando entraram. Um momento depois, Lucy rolou para dentro da sala e fechou a porta com um pontapé. Thom punha Rhyme suavemente em um sofá.

 

Rhyme teve um vislumbre de uma jovem apavorada, sentada numa cadeira, olhando-o fixamente. Mary Beth McConnell.

 

Garrett Hanlon, o rosto inchado e os olhos esbugalhados de medo, estava sentado como um doente mental, estalando as unhas de uma mão e segurando desajeitadamente a arma com a outra, no momento em que Lucy apontou a arma para seu rosto.

 

- Me dê essa arma! - gritou ela. - Agora, agora!

 

Ele pestanejou e, imediatamente, entregou-lhe a arma. Ela guardou-a no cinto e gritou alguma coisa, Rhyme não entendeu o quê. Olhava para os olhos confusos e assustados do rapaz, os olhos de uma criança. E pensou: Eu entendo por que você fez isso, Sachs. Por que acreditou nele. Por que teve que salvá-lo.

 

Eu compreendo...

 

E perguntou:

 

- Todo mundo está bem?

 

- Eu estou ótima - respondeu Sachs. Lucy inclinou a cabeça.

 

- Na verdade - disse Thom, quase em tom de desculpa -, não, realmente.

 

Tirou a mão de cima da cintura estreita, revelando um sangrento ferimento. Em seguida, caiu de joelhos, com força, abrindo a calça que havia passado a ferro com tanto cuidado naquela manhã.

 

Examine o ferimento à procura de hemorragia grave, detenha o sangramento. Se possível, examine o paciente à procura de sinais de choque.

 

Amélia Sachs, com curso de primeiros socorros da NYPD para patrulheiros, curvou-se sobre Thom, examinando o ferimento.

 

O assistente, caído de costas, estava pálido, mas consciente. Sachs fechou uma mão sobre o ferimento.

 

- Tire estas algemas! - berrou. - Não posso cuidar dele desta maneira.

 

- Não - respondeu Lucy.

 

-Jesus - murmurou Sachs e, algemada, examinou o melhor que pôde o estômago de Thom.

 

- Como está se sentindo, Thom? - perguntou bruscamente Rhyme. - Fale com a gente.

 

- Dormente... Estou me sentindo... É esquisito...

 

Os olhos rolaram para cima sob as pálpebras e ele perdeu os sentidos.

 

Um forte barulho acima deles. Uma bala atravessou a parede. Seguida pelo som abafado do disparo da escopeta contra a porta. Garrett entregou a Sachs um maço de guardanapos.

 

Sachs pressionou-os contra o corte no ventre de Thom. Bateu suavemente no rosto dele. Nenhuma resposta.

 

- Ele está vivo? - perguntou Rhyme em tom de desespero.

 

- Está respirando. Lentamente. Mas está respirando. O ferimento não é muito grave, mas não sei que tipo de estrago foi feito dentro do corpo.

 

Lucy olhou pela janela rapidamente e abaixou-se.

 

- Por que é que eles estão fazendo isso?

 

- Jim disse que eles estavam metidos em falsificação de bebida. Talvez estivessem de olho neste lugar e não queriam que fosse encontrado. Ou talvez haja um laboratório de preparo de drogas por aqui.

 

- Antes, apareceram aqui dois homens... tentaram arrombar a cabana - contou Mary Beth. - Disseram que estavam destruindo plantações de maconha, mas acho que estavam mesmo plantando. Eles poderiam estar trabalhando juntos.

 

- Onde está Bell? - perguntou Lucy. - E Mason?

 

- Ele estará aqui dentro de meia hora - respondeu Rhyme. Lucy sacudiu a cabeça de desânimo ao ouvir a informação. Olhou novamente pela janela. Endureceu-se como se tivesse avistado um alvo. Ergueu o revólver e fez pontaria rápida. Rápida demais.

 

- Não, deixe que eu faça isso - gritou Sachs.

 

Lucy, porém, disparou duas vezes. A careta que fez disse-lhes que errara o alvo. Apertou os olhos.

 

- Sean acabou de encontrar uma lata. Uma lata vermelha. O que é que há nela, Garrett? Gás? - O rapaz abraçava o corpo, deitado no chão, duro de pânico. - Garrett!

 

Fale comigo!

 

Ele virou-se para Lucy.

 

- A lata vermelha. O que é que há nela?

 

- Querosene. Para o barco.

 

- Eles vão obrigar a gente, com fogo, a sair daqui - murmurou Lucy.

 

- Merda! - gritou Garrett.

 

Rolou pelo chão e se pôs de joelhos, olhando para Lucy, pânico nos olhos.

 

Sachs era a única ali, ao que parecia, que sabia o que ia acontecer.

 

- Não, Garrett, não faça isso...

 

O rapaz ignorou-a, abriu a porta com um repelão e, meio correndo meio rastejando, moveu-se pelo terraço. Balas crepitaram na madeira, seguindo-o. Sachs não fazia idéia se ele tinha sido atingido.

 

Em seguida, silêncio. Os atacantes aproximaram-se mais da cabana, trazendo o querosene.

 

Sachs olhou em volta da sala, cheia da poeira levantada pelo impacto das balas. E viu:

 

Mary Beth abraçando o próprio corpo, chorando.

 

Lucy, os olhos cheios do ódio demoníaco, examinando o revólver.

 

Thom, sangrando lentamente para a morte.

 

Lincoln Rhyme, deitado de costas, respirando com dificuldade.

 

Você e eu...

 

Em voz firme, disse a Lucy:

 

- Temos que sair daqui. Temos que detê-los. Nós duas.

 

- Eles são três e têm fuzis.

 

- Eles vão tocar fogo neste lugar. E nos queimar vivos ou atirar em nós quando sairmos correndo. Não temos outras opções. Tire as algemas - e estendeu os punhos. - Você tem que fazer isso.

 

- Como é que eu posso confiar em você? - perguntou baixinho Lucy. - Você nos emboscou no rio.

 

- Emboscou? - repetiu Sachs. - Do que é que você está falando? Lucy fechou a cara.

 

- Do que é que estou falando? Você usou o barco como chamariz e atirou em Ned quando ele entrou na água para puxá-lo para a margem.

 

- Bobagem! Vocês pensaram que nós estávamos embaixo do barco e atiraram em nós.

 

- Só depois que você...

 

Nesse momento, a voz de Lucy sumiu e ela baixou a cabeça, compreendendo.

 

- Foram eks - disse Sachs à policial. - Culbeau e os outros. Um deles atirou primeiro. Para assustar e retardar vocês, provavelmente.

 

- E nós pensamos que eram vocês. Sachs estendeu os punhos.

 

- Nós não temos opção.

 

A policial olhou atentamente para Sachs e, em seguida, enfiou a mão no bolso e tirou sua chave de algemas. Soltou os anéis de aço-cromo. Sachs esfregou os punhos.

 

- Qual é a situação da munição?

 

- Tenho ainda quatro balas no revólver.

 

- Eu tenho cinco no meu - disse Sachs, pegando o Smith & Wesson de cano longo, que Lucy lhe estendeu, e examinando o tambor.

 

Olhou para Thom. Mary Beth deu um passo para a frente.

 

- Eu cuido dele.

 

- Uma coisa - disse Sachs. - Ele é gay. Foi submetido a exame, mas...

 

- Isso não tem importância - respondeu a moça. - vou tomar cuidado. Faça o que tem que fazer.

 

- Sachs... - começou Rhyme -, eu...

 

- Mais tarde, Rhyme. Não há tempo para isso agora. Dirigiu-se em passos leves para a porta, olhou rápido para fora, os olhos assimilando a topografia do campo, procurando o que serviria como boa cobertura e posições de tiro. Livres as mãos novamente, empunhando a pesada arma, sentia-se mais uma vez confiante. Este era o seu mundo: armas e velocidade. Não podia pensar em Lincoln Rhyme e na operação, na morte de Jesse Corn, na traição de Garrett Hanlon, no que a esperava, se conseguissem sair dessa terrível situação.

 

Quando você se move eles não podem pegá'la...

 

Disse a Lucy:

 

- Vamos sair pela porta. Você vai para a esquerda, por trás da van, mas não pare, aconteça o que acontecer. Continue a correr até chegar à grama. Eu vou para a direita... para aquelas árvores ali. Chegamos à relva alta e ficamos abaixadas, móvemo-nos para a frente, para a floresta, e vamos flanqueá-los.

 

- Eles vão nos ver quando passarmos pela porta.

 

- Eles têm que nos ver. Quero que eles saibam que há duas de nós em algum lugar na relva. Isso vai deixá-los nervosos e olhando por cima dos ombros. Não atire, a menos que tenha um alvo claro, que não possa errar. Entendeu isso?... Entendeu?

 

-Entendi.

 

Sachs agarrou a maçaneta da porta com a mão esquerda. Seus olhos encontraram os de Lucy.

 

Um deles - O'Sarian, com Tomei ao lado - carregava nesse momento o querosene para a cabana, sem dar atenção à porta da frente. Por isso mesmo, quando as duas mulheres apareceram de repente, separaram-se e correram em busca de proteção, nenhum dos dois pôde pegar a arma a tempo de dar um tiro certeiro.

 

Culbeau - um pouco recuado para poder cobrir a frente e os lados da cabana - tampouco devia estar esperando que alguém irrompesse dali correndo, porque quando seu fuzil de caçar veados trovejou, Sachs e Lucy já estavam rolando na relva alta que cercava a cabana.

 

O'Sarian e Tomei desapareceram também na relva, enquanto Culbeau gritava:

 

- Vocês deixaram que elas saíssem. Que merda é essa que estão fazendo?

 

Disparou mais um tiro na direção de Sachs - que se colou à terra - e quando ela olhou novamente, Culbeau, também, havia se escondido na relva.

 

Três serpentes mortais ali fora, em frente a elas. E nenhuma pista sobre o lugar onde elas poderiam estar.

 

Culbeau gritou nesse momento:

 

- Vá pela direita.

 

Um deles respondeu:

 

-Onde?

 

Sachs pensou que era a voz de Tomei.

 

- Eu acho que... Espere. Silêncio em seguida.

 

Sachs rastejou para o lugar onde tinha visto Tomei e O'Sarian um momento antes. Conseguiu apenas distinguir alguma coisa vermelha e tomou aquela direção. A brisa quente afastou a relva e ela reconheceu a lata de querosene. Aproximou-se mais um pouco e, quando o vento voltou a cooperar, apontou baixo e disparou um tiro oem no fundo da lata, que se sacudiu com o impacto e começou a vazar o líquido claro.

 

- Merda - gritou um deles e ela ouviu um farfalhar na grama quando, pensou ela, ele fugia para longe da lata, embora ela não pegasse fogo.

 

Mais som de folhas roçando, passos.

 

Mas vindos de onde?

 

Nesse momento, viu um relâmpago de luz a uns 15 metros campo adentro, perto do lugar onde Culbeau estava e compreendeu que aquilo seria a mira telescópica ou a coronha da grande arma. Levantou com cuidado a cabeça, captou o olhar de Lucy, apontou para si mesma e, em seguida, para o brilho. A policial inclinou a cabeça e fez um gesto para o lado, indicando que ia flanquear a posição. Sachs concordou com um aceno de cabeça.

 

Mas, quando Lucy começou a correr agachada na grama do lado esquerdo da cabana, O'Sarian levantou-se e, rindo mais uma vez como um louco, começou a disparar o Colt. Estalos secos encheram o campo. Durante um momento, Lucy foi um alvo claro e só porque O'Sarian era um atirador impaciente foi que errou. A policial caiu de bruços, areia subindo no ar a seu lado. Em seguida, levantou-se e atirou nele, quase acertando. O homenzinho abaixou-se para se proteger e soltou um grito, dizendo alto:

 

- Boa tentativa, babyl Sachs voltou a rastejar, dirigindo-se para o esconderijo de Culbeau. Ouviu vários outros tiros. Os tiros isolados, surdos, do revólver, em seguida as rajadas do fuzil automático, e finalmente o trovão da escopeta.

 

Ficou preocupada com receio de que tivesse atingido Lucy, mas, um momento depois, ouviu-lhe a voz:

 

- Amélia, ele está indo em sua direção.

 

Som de passos na grama. Pausa. Roçar de folhas.

 

Quem? E de onde? Sentiu pânico e olhou estonteada em volta.

 

Silêncio. Uma voz de homem, dizendo alguma coisa que não conseguiu compreender.

 

Os passos recuaram.

 

O vento separou novamente a relva e Sachs viu o brilho da mira telescópica de Culbeau. Ele estava quase a sua frente, a uns 16 metros de distância, em uma pequena elevação - um bom lugar para atirar.

 

Ele podia saltar da relva com aquela arma poderosa e cobrir todo o-campo. Sachs rastejou mais rápido, convencida de que ele estava apontando para Lucy através da poderosa mira - ou para a cabana, para Rhyme e Mary Beth através da janela.

 

Mais rápido, mais rápido!

 

Levantou-se e começou a correr agachada. Culbeau estava ainda a 10 metros de distância.

 

Mas, descobriu, Sean O'Sarian estava muito mais perto do que isso - como viu quando correu para a clareira e tropeçou nele. Arquejou ao rolar para além dele e caiu de costas. Sentiu cheiro de bebida e de suor.

 

Os olhos dele eram de um maníaco e ele parecia tão desligado como um esquizofrênico.

 

Ocorreu um momento imensurável quando Sachs ergueu o revólver e ele virou o Colt em sua direção. Ela saltou para trás na grama e os dois atiraram ao mesmo tempo.

 

Sachs sentiu a força da explosão na boca da arma quando ele disparou três tiros, esvaziando o carregador, e todos os tiros erraram. O único tiro que ela deu errou também. Quando rolou para um lado e procurou um alvo, ele estava saltando pela grama, uivando.

 

Não perca a oportunidade, disse ela a si mesma. Arriscando-se a um tiro de Culbeau, levantou-se da relva e apontou para O'Sarian. Mas, antes de poder atirar, Lucy Kerr levantou-se e atirou nele uma vez, enquanto ele corria diretamente em sua direção. O homem levantou a cabeça e tocou o peito. Outra risada. Em seguida, desmoronou na relva.

 

A expressão no rosto de Lucy era de choque e Sachs se perguntou se esta era a primeira vez que ela matava no cumprimento do dever. Em seguida, recaiu na relva. Um momento depois, vários tiros de escopeta mastigaram a vegetação no local onde ela estava de pé um momento antes.

 

Sachs continuou em direção a Culbeau, movendo-se muito rápido nesse momento. Era provável que ele soubesse onde estava Lucy e, quando ela se levantasse novamente, pudesse dar-lhe um tiro direto.

 

Sete metros, três.

 

O brilho da mira telescópica relampejou mais forte e Sachs abaixou-se. Contraiu-se toda, esperando o tiro. Mas, aparentemente, o grandalhão não a vira. Nenhum tiro ouviu e continuou de bruços, rastejando para a direita, a fim de flanqueá-lo, suando, a artrite dando-lhe fortes fisgadas nos joelhos.

 

Um metro e meio.

 

Pronta.

 

Era uma má situação para atirar. Uma vez que ele se encontrava no alto de uma elevação, para ter um alvo claro ela teria que rolar para a clareira, a direita de Culbeau, e levantar-se. Não teria nenhuma cobertura. Se não o atingisse no primeiro tiro, ele teria um campo livre para atirar nela. E, mesmo que acertasse nele, Tomei teria vários longos segundos para pegá-la com a escopeta.

 

Mas não havia nada mais a fazer.

 

Quando você se move...

 

Smittie alto no ar, pressão no gatilho.

 

Respiração profunda...

 

.. .eles não podem pegá'la.

 

Agora!

 

Saltou para a frente e entrou na clareira rolando pelo chão. Levantou-se sobre um joelho, apontando a arma.

 

E soltou um arquejo de desalento.

 

O "fuzil" de Culbeau era o cano de um velho alambique e, a mira telescópica, parte de uma garrafa. Exatamente o mesmo macete que ela e Garrett haviam usado na casa de veraneio no Paquenoke.

 

Enganada...

 

A relva farfalhou, próxima a ela. Uma passada. Amélia Sachs caiu no chão como se fosse uma mariposa.

 

Os passos aproximaram-se mais da cabana, passos fortes, inicialmente na relva e em seguida na terra, depois nos degraus de madeira que levavam à porta da cabana.

 

Movendo-se devagar. Para Rhyme, eles pareceram mais indolentes do que cautelosos. O que significavam que eles também estavam confiantes. E, por conseguinte, eram perigosos.

 

Lincoln Rhyme fez um esforço para levantar a cabeça do sofá, mas não conseguiu ver quem estava se aproximando.

 

Um estalo nas tábuas do chão e Rich Culbeau, com um longo fuzil na mão, olhou para dentro.

 

Rhyme sentiu outra pontada de pânico. Sachs estaria bem? Um daquela dezena de tiros que tinha ouvido teria acertado nela? Estaria ela, ferida, caída em algum lugar no campo seco? Ou morta?

 

Culbeau olhou para Rhyme e Thom e chegou à conclusão de que eles não constituíam perigo. Ainda de pé na porta, perguntou a Rhyme:

 

- Onde está Mary Beth?

 

Rhyme sustentou-lhe o olhar e respondeu:

 

- Não sei. Ela saiu correndo daqui para buscar ajuda. Há cinco minutos.

 

Culbeau olhou em volta da sala e, em seguida, pousou os olhos na tampa no assoalho que levava ao porão.

 

- Por que você está fazendo isso? - perguntou Rhyme. - Você está à procura do quê?

 

- Correu para fora, foi? Eu não vi ninguém fazer isso. - Deu mais um passo dentro da cabana, os olhos na tampa do porão. Em seguida, inclinou a cabeça para trás, para o campo. - Elas não deviam tê-lo deixado aqui. Esse foi o erro delas. - Examinou o corpo de Rhyme.

 

- O que foi que lhe aconteceu?

 

- Fui ferido num acidente.

 

- Você é aquele cara de Nova York, sobre o qual todo mundo estava falando. Foi você que descobriu que ela estava aqui. Você não pode mesmo se mover?

 

-Não.

 

Culbeau soltou uma leve risada, parecendo curioso, como se tivesse fisgado um peixe que jamais soube que existia.

 

Os olhos de Rhyme moveram-se para a tampa do porão e, em seguida, voltaram a Culbeau.

 

- Você se meteu realmente numa grande encrenca aqui - disse o homenzarrão. - Pior do que esperava.

 

Rhyme nada disse em resposta. Culbeau, finalmente, começou a andar, apontando a arma, com uma mão só, para a tampa do porão.

 

- Mary Bedi saiu daqui, não?

 

- Ela saiu correndo. Onde é que você vai? - perguntou Rhyme.

 

- Ela está lá embaixo, não está? - perguntou Culbeau.

 

Abriu a tampa e atirou, acionou o ferrolho da arma, atirou novamente. Mais três vezes. Em seguida, olhou para dentro da escuridão cheia de fumaça, recarregando a arma.

 

E foi nesse momento que Mary Beth McConnell, brandindo a clava primitiva, saiu de trás da porta da frente da cabana, onde estava à espera. Apertando os olhos de determinação, desceu a arma com toda força, atingindo um lado da cabeça de Culbeau e rasgando-lhe parte da orelha. O fuzil caiu-lhe das mãos e rolou escada abaixo para a escuridão do porão. Mas ele não estava gravemente ferido e lançou o punho enorme contra Mary Beth, atingindo-a no peito. Ela arquejou e caiu, a respiração cortada pelo golpe. E ficou caída de lado, ganindo de dor.

 

Culbeau tocou a orelha e examinou a mão ensagüentada. Em seguida, olhou para a jovem. De uma bainha na cintura, sacou um canivete e abriu-o com um estalido. Segurou-lhe os cabelos pretos, puxou-os para cima, expondo a garganta branca.

 

Ela segurou-lhe o punho e lutou para empurrá-lo para trás. Os braços dele, porém, eram imensos e a lâmina escura aproximou-se firmemente de sua pele.

 

- Pare - gritou uma voz à porta.

 

Garrett Hanlon entrara na cabana. Trazia na mão uma grande pedra. Aproximou-se mais de Culbeau. - Solte-a e vá se foder longe daqui.

 

Culbeau soltou os cabelos de Mary Beth, que bateu com a cabeça no chão. O homenzarrão deu um passo para trás. Tocou novamente a orelha e contraiu-se de dor.

 

- Ei, rapaz, quem é você pra gritar comigo?

 

- Vamos, caia fora daqui. Culbeau riu, friamente.

 

- Por que foi que você voltou? Eu peso mais cem quilos do que você. E tenho um canivete afiado. Tudo que você tem é essa pedra. Bem, venha pra cá. Vamos resolver isso de uma vez por todas.

 

Garrett estalou duas vezes as unhas. Agachou-se como um lutador de vale-tudo e aproximou-se devagar, no rosto uma determinação sobrenatural. Várias vezes, fingiu lançar a pedra, obrigando Culbeau a esquivar-se, a recuar. Em seguida, o grandalhão soltou uma risada, avaliando o adversário e, provavelmente, concluindo que aquele garoto não era lá uma grande ameaça. Saltou para a frente e baixou a lâmina do canivete na direção do ventre estreito de Garrett. O rapaz saltou rápido para trás e a lâmina passou longe. Ele, porém, julgara mal a distância e bateu com força na parede. Caiu de joelhos, atordoado.

 

Culbeau enxugou as mãos na calça, apertou displicentemente a mão em torno do cabo do canivete, examinando Garrett sem nenhuma emoção, como se estivesse prestes a esfolar um gamo. Deu um passo na direção do rapaz.

 

Nesse momento, um movimento indistinto no chão. Mary Beth, ainda caída, descarregou a clava no tornozelo de Culbeau. Ele gritou ao ser atingido e virou-se para ela, erguendo o canivete. Garrett, porém, mergulhou para frente e empurrou-lhe violentamente o ombro. Culbeau perdeu o equilíbrio e desceu de joelhos pela escada do porão. Segurou-se a meio caminho.

 

- Seu merdinha - rosnou.

 

Rhyme ouviu Culbeau tentear à procura do fuzil no porão escuro.

 

- Garrett! Ele está procurando a arma!

 

O rapaz simplesmente foi devagar até a tampa do porão e ergueu alto a pedra. Mas não a jogou. O que estaria ele fazendo? - pensou Rhyme. Observou Garrett puxar um chumaço de pano de um buraco na ponta da pedra. O rapaz olhou para Culbeau e disse:

 

- Não é uma pedra.

 

E quando os primeiros marimbondos sairam voando do buraco, ele jogou o ninho no rosto de Culbeau e fechou a tampa do porão. Passou o ferrolho e deu um passo para trás.

 

Duas balas furaram a madeira da porta do porão e desapareceram no teto.

 

Mas não houve mais tiros. Rhyme pensou que Culbeau havia atirado mais do que apenas duas vezes.

 

Mas, em seguida, pensou também que os gritos que subiam do porão durariam mais do que duraram.

 

Harris Tomei sabia que da tempo de cair fora dali, rápido, e voltar a Tanner's Comer.

 

O'Sarian estava morto - tudo bem, nenhuma grande perda com isso - e Culbeau tinha ido para a cabana acabar com o resto deles. Portanto era seu o trabalho de encontrar Lucy. Ainda estava cheio com a vergonha que sentiu quando encontrou Trey Williams e foi aquele psicopata do O'Sarian que lhe salvou a vida.

 

Bem, ele não ia ficar paralisado novamente.

 

Nesse momento, atrás de uma árvore a alguma distância, viu um relâmpago amarronzado. Olhou de novo. Isso mesmo, ali - através de uma curva no tronco da árvore - reconheceu a blusa marrom do uniforme de Lucy.

 

Erguendo a escopeta de dois mil dólares, aproximou-se um pouco mais. Não seria um bom tiro... não havia muito alvo à vista. Apenas, parte do peito dela, visível através da curva no tronco da árvore. Tiro difícil com um fuzil. Mas possível com uma escopeta. Colocou na boca da arma o dispositivo que faria o chumbo dispersar-se mais e com isso ter uma melhor chance de atingi-la.

 

Levantou-se rápido, colocou a alça de mira bem em cima do peito da blusa e apertou o gatilho.

 

Um coice violento. Em seguida, apertou os olhos para ver se havia atingido o alvo.

 

Oh, Cristo... Não, de novo! A blusa flutuava no ar... arremessada no alto pelo impacto das pelotas. Ela a pendurara na árvore para atraí-lo e forçá-lo a revelar sua posição.

 

- Fique aí onde está, Harris - disse a voz de Lucy, de um lugar às costas dele. - A brincadeira acabou.

 

- Essa foi boa - disse ele. - Você me enganou.

 

Virou-se para ela, mantendo a Browning ao nível da cintura, escondida na relva, a escopeta apontada na direção de Lucy. Ela usava uma camiseta branca.

 

- Largue a arma - ordenou Lucy.

 

-Já larguei - disse ele.

 

E não se moveu.

 

- Levante as mãos. Para o alto. Agora, Harris. Ultimo aviso.

 

- Escute, Lucy...

 

A relva tinha um pouco mais de um metro de altura. Ele se agacharia e atiraria para atingir-lhe os joelhos. E acabaria com ela de mais perto. Seria arriscado, porém. Ela ainda poderia disparar um ou dois tiros.

 

Nesse momento, ele notou uma coisa, uma expressão nos olhos dela. Uma expressão de incerteza. E ele achou que ela segurava a arma de uma maneira ameaçadora demais.

 

Ela estava blefando.

 

- Você está sem munição - disse Tomei, sorrindo. Seguiu-se uma pausa e a expressão no rosto dela confirmou-lhe a suspeita. Levantou a escopeta com as duas mãos e apontou-a para ela. Lucy olhou desesperada para trás.

 

- Mas eu não estou - disse uma voz próxima.

 

A ruiva! Olhou-a, de alto a baixo e o instinto lhe disse: ela é uma mulher. Ela vai hesitar. Posso pegá-la primeiro. Girou para ela.

 

A pistola nas mãos de Sachs deu um coice e a última coisa que Tomei sentiu foi uma leve batida num lado da cabeça.

 

Lucy Kerr viu Mary Beth sair cambaleando para o terraço e gritar que Culbeau estava morto e que Rhyme e Garrett estavam bem.

 

Amélia Sachs inclinou a cabeça, dizendo que tinha ouvido, e dirigiu-se para o corpo de Sean O'Sarian. Lucy voltou a atenção para o cadáver de Harris Tomei. Abaixou-se e fechou as mãos trêmulas em volta da escopeta Brown. Pensou que, embora devesse sentir-se horrorizada por arrancar aquela elegante arma das mãos de um morto, na verdade tudo em que pensou foi na própria arma. E perguntou a si mesma se ela ainda estava carregada.

 

Resolveu a dúvida movimentando o ferrolho... perdendo um cartucho mas certificando-se de que havia outro na câmara.

 

A 15 metros de distância, Sachs, curvada sobre o corpo de O'Sarian, passava-lhe uma revista, mantendo o revólver apontado para o cadáver. Lucy se perguntou por que ela estava se dando aquele trabalho e, em seguida, ironicamente, achou que aquilo devia ser procedimento padrão.

 

Encontrou a blusa, rasgada pelo chumbo, vestiu-a, mas sentiu embaraço por causa de seu corpo, usando apenas camiseta. De pé ao lado da árvore, respirando forte, observava as costas de Sachs.

 

Simples fúria... com as traições que sofrera na vida. A traição do corpo, do marido, de Deus.

 

E nesse momento, de Amélia Sachs.

 

Olhou para trás, para o corpo caído de Harris Tomei. Para as costas de Sachs era uma linha de pontaria reta. O cenário ali era plausível: Tomei estava escondido na relva. Levantou-se, atirou nas costas de Sachs com a escopeta. Lucy pegou a arma de Sachs e o matou. Ninguém conheceria outra versão dos fatos... exceto ela mesma e, talvez, a alma de Jesse Corn.

 

Ergueu a escopeta, que lhe pareceu leve como uma flor. Encostou ao rosto a coronha macia, de madeira cheirosa, lembrando-se da maneira como tinha encostado o rosto na guarda de aço inoxidável da cama do hospital, após a mastectomia. Apontou o cano liso para a camiseta preta da mulher, pondo a mira na espinha. Ela morreria sem dor. E rápido.

 

Tão rápido quanto Jesse Corn.

 

Aquilo era simplesmente trocar uma vida culpada por uma vida inocente.

 

Deus querido, me dê um tiro limpo em meu judas...

 

Olhou em volta. Nenhuma testemunha.

 

O dedo fechado em torno do gatilho endureceu-se.

 

Apertou os olhos, manteve a ponta da alça de mira firme como uma rocha, graças a braços fortalecidos por anos de jardinagem, anos de cuidar de uma casa - e de uma vida - a sua. Apontando para o centro exato das costas de Amélia Sachs.

 

A brisa quente assoviou na grama em volta. Pensou em Buddy, no médico que a operara, em sua casa, no jardim.

 

Baixou a arma.

 

Movimentou o ferrolho até descarregá-la e, com a coronha alcochoada encostada no quadril, levou-a para a van parada na frente da cabana. Depositou-a no chão, achou o telefone celular e chamou a Polícia Estadual.

 

O helicóptero de socorro foi o primeiro a chegar. Os paramédicos enfeixaram rapidamente Thom e levaram-no para o centro médico. Um deles ficou no local para cuidar de Lincoln Rhyme, cuja pressão arterial se aproximava do nível crítico.

 

Quando os milicianos chegaram finalmente no segundo helicóptero, Amélia Sachs foi a primeira que prenderam, mãos algemadas às costas, deitada na areia quente do lado de fora da cabana, enquanto entravam para prender Garrett Hanlon e ler seus direitos.

 

Thom escaparia.

 

O médico, no Departamento de Medicina de Emergência, do Centro Médico Universitário, em Avery, explicou laconicamente:

 

- A bala? Entrou e saiu. Não tocou em nenhum órgão importante.

 

Ben Kerr tinha se oferecido voluntariamente para matar aulas e ficar mais alguns dias em Tanner's Corner, ajudando Rhyme. E murmurou:

 

- Você não merece realmente minha ajuda, Lincoln. Quero dizer, droga, você nem mesmo se cuida.

 

Ainda assim, não inteiramente confortável com piadas sobre aleijados, lançou um rápido olhar a Rhyme para ver se esse tipo de jocosidade era aceitável. A careta azeda do criminalista foi uma afirmação contrária do que era aceitável. Mas Rhyme aproveitou para acrescentar que, por mais que apreciasse o oferecimento, o cuidado e a alimentação de um tetraplégico eram trabalhos complicados e em tempo integral. E, na verdade, sem nenhum reconhecimento... se o paciente é Lincoln Rhyme. E por isso a Dra. Cheryl Weaver estava providenciando a vinda de um enfermeiro do Centro Médico para ajudá-lo.

 

- Mas fique por aqui, Ben - disse. - Eu ainda posso precisar de você. A maioria dos assistentes não dura mais de dois dias.

 

A acusação contra Amélia Sachs era grave. Testes balísticos haviam provado que a bala que matara Jesse Corn tinha sido disparada por sua arma e, embora Ned Spoto estivesse morto, Lucy prestara depoimento, descrevendo o que Ned lhe disse após o incidente. Bryan McGuire já tinha anunciado que ia pedir a pena de morte para ela. O bem-humorado Jesse Corn era uma figura popular na pequena cidade e, desde que morrera tentando prender o Menino-Inseto, era grande o clamor público pela penalidade máxima.

 

Jim Bell e a Polícia Estadual haviam investigado o motivo por que Culbeau e seus amigos tinham atacado Rhyme e os policiais. Um investigador vindo de Raleigh encontrou, escondidos nas casas deles, dezenas de milhares de dólares em dinheiro vivo.

 

- Muito mais do que dinheiro só de falsificação de bebidas - dissera o detetive. E em seguida, ele repetiu o pensamento de Mary Beth: - A cabana deve ter sido a sede de uma fazenda de plantação de maconha. Aqueles três estavam provavelmente trabalhando com os homens que atacaram Mary Beth. Garrett deve ter atrapalhado os negócios deles.

 

Um dia após os terríveis acontecimentos ocorridos na cabana, Rhyme estava sentado na Storm Arrow - manobrável ainda, a despeito do estigma de um buraco de bala -, no laboratório improvisado, esperando pela chegada de seu novo assistente. Taciturno, pensava no destino de Sachs quando uma sombra apareceu à porta.

 

Erguendo a vista, reconheceu Mary Beth McConnell, entrando na sala.

 

- Sr. Rhyme.

 

Ele notou como ela era bonita, a confiança que havia naqueles olhos, o sorriso fácil. E compreendeu por que Garrett tinha se deixado enfeitiçar por ela.

 

- Como está a cabeça? - perguntou ele, indicando com um movimento a bandagem na têmpora.

 

- vou ficar com uma cicatriz espetacular. Não vou usar muito para trás os cabelos, acho. Mas nenhuma lesão séria.

 

Como todo mundo, Rhyme tinha ficado aliviado ao saber que, na verdade, Garrett não a estuprara. Dissera a verdade sobre o lenço de papel ensangüentado: havia-a assustado no porão da cabana e, quando ela se levantou bruscamente, bateu com a cabeça em uma viga baixa. Ele tinha ficado visivelmente excitado, é verdade, mas isso se devia apenas a hormônios de um jovem de 16 anos, e não a tocou outra vez, a não ser para levá-la com todo cuidado para cima, limpar o ferimento e pôr uma atadura. Pediu muitas desculpas e ficou feliz porque ela não tinha se ferido muito. Ela disse a Rhyme:

 

- Eu quis simplesmente vir lhe agradecer. Não sei o que eu teria feito, se não fosse pelo senhor. Estou muito sentida por causa de sua amiga, aquela policial. Mas, se não fosse por ela, eu estaria morta agora. Tenho certeza disso. Aqueles homens iam... bem, o senhor pode imaginar o quê. Agradeça a ela em meu nome.

 

- Eu faço isso - prometeu Rhyme. - Você se importaria em responder a uma pergunta?

 

- O quê?

 

- Sei que prestou depoimento a Jim Bell, mas só sei pelas provas o que aconteceu em Blackwater Landing. E uma parte delas não está clara. Você poderia me dizer o que foi que aconteceu?

 

- Claro... Eu estava ao lado do rio, removendo a terra de algumas relíquias que havia descoberto, levantei a vista, e lá estava Garrett. Fiquei aborrecida. Não queria ser incomodada. Sempre que me via, ele se aproximava e começava a falar, como se fôssemos os melhores amigos.

 

- Naquela manhã, ele estava agitado. Dizia coisas como "Você não devia vir aqui sozinha, é perigoso, pessoas morrem em Blackwater Landing". Esse tipo de coisa. Ele estava me assustando muito. Eu disse a ele para me deixar em paz. Tinha trabalho para fazer. Ele agarrou minha mão e tentou me tirar dali. Nesse momento, Billy Stail saiu da mata e disse "Seu filho da puta" ou alguma coisa assim e começou a bater em Garrett com uma pá, mas ele a tomou de Billy e matou-o. Em seguida, agarrou-me, me fez entrar num bote e me trouxe para a cabana.

 

- Por quanto tempo Garrett vinha seguindo-a sorrateiramente? Mary Bedi riu.

 

- Seguindo sorrateiramente? Não, não. O senhor deve ter conversado com minha mãe, aposto. Há uns seis meses, no centro da cidade, vi que alguns garotos da escola estavam encarnando nele. Isso me tornou namorada dele, acho. Ele me seguia um bocado, mas isso era tudo. Admirava-me de longe, esse tipo de coisa. Eu tinha Certeza de que ele era inofensivo. - O sorriso desapareceu. - Até aquele outro dia. - Mary Beth olhou para o relógio de pulso. - vou ter que ir. Mas eu queria lhe perguntar - a outra razão por que vim aqui -, se o senhor não precisar mais deles como prova, se eu poderia levar o resto dos ossos?

 

Rhyme, que olhava nesse momento pela janela, enquanto os pensamentos em Amélia Sachs lhe voltavam à mente, virou-se lentamente para ela.

 

- Que ossos? - perguntou.

 

- Em Blackwater Landing? Onde Garrett me seqüestrou. Rhyme sacudiu a cabeça.

 

- O que é que você quer dizer com isso?

 

O rosto de Mary Beth encheu-se de rugas de preocupação.

 

- Os ossos... as relíquias que encontrei. Eu estava desenterrando o resto quando Garrett me seqüestrou. Eles são muito importantes. O senhor não está me dizendo que eles desapareceram, está?

 

- Ninguém recuperou osso algum na cena do crime - retrucou Rhyme. - Não constavam do registro da ocorrência.

 

Ela sacudiu por sua vez a cabeça.

 

- Não, não... Eles não podem ter desaparecido!

 

- Que tipos de ossos?

 

- Encontrei restos mortais dos antigos colonos de Roanoke. De fins da década de 1500.

 

O conhecimento de história de Rhyme limitava-se principalmente à cidade de Nova York.

 

- Eu não conheço bem esse assunto.

 

Ainda assim, quando ela falou sobre os colonos da ilha de Roanoke e seu desaparecimento, ele inclinou a cabeça.

 

- Eu, de fato, lembro-me de ter aprendido alguma coisa sobre isso, na escola. Por que você acha que eram os restos deles?

 

- Os ossos eram realmente antigos, apodrecidos, e não estavam num cemitério Algonquin ou num cemitério colonial. Foram simplesmente jogados no chão, sem nenhuma marca. Isso era típico do que os guerreiros faziam com cadáveres de inimigos. Aqui... - Abriu a mochila que trazia às costas. - Eu já havia reunido alguns, antes que Garrett tivesse me tirado de lá.

 

Tirou da mochila vários deles, embrulhados em celofane, escurecidos e com sinais de decomposição. Rhyme reconheu um rádio, uma parte de escapula, um osso ilíaco e vários centímetros de um fêmur.

 

- Havia uma dezena mais deles - continuou Mary Beth. - Esta é uma das maiores descobertas da história arqueológica americana. Eles são muito valiosos. Eu tenho que encontrá-los.

 

Rhyme olhou para o rádio... um dos dois ossos do antebraço. Após um momento, ergueu a vista.

 

- Você poderia ir até à Delegacia? Procurar por Lucy Kerr e pedir a ela para vir aqui por um minuto?

 

- Sobre os ossos? - perguntou ela.

 

- Poderia ser.

 

Aquela era uma expressão muito usada por seu pai: "Quando você se move, eles não podem agarrá-la."

 

A expressão significava muitas coisas, mas, acima de tudo, era uma formulação da filosofia compartilhada por pai e filha. Ambos eram admiradores de carros rápidos, amantes do trabalho policial nas ruas, temerosos de espaços e vidas fechadas que não iam a lugar nenhum.

 

Nesse momento, porém, eles a haviam agarrado.

 

Agarrado para sempre.

 

E seus preciosos carros, sua preciosa vida como policial, sua vida com Lincoln Rhyme, seu futuro com filhos... tudo isso tinha sido destruído.

 

Na cela na cadeia, foi posta em regime de ostracismo. Os policiais que lhe traziam comida nada diziam, limitavam-se a olhá-la friamente. Rhyme estava trazendo de avião um advogado de Nova York, mas, tal como a maioria dos policiais, ela conhecia tanto de lei criminal como a maioria dos advogados. Sabia que, quaisquer que fossem os acordos entre o poderoso advogado de Manhattan e o promotor público do Condado de Paquenoke, a vida que levava até então estava acabada para sempre. Seu coração estava tão morto quanto o corpo de Rhyme.

 

No chão, um inseto de algum tipo fez uma diligente jornada de uma parede a outra. Qual a sua missão? Comer, acasalar, encontrar abrigo?

 

Se todas as pessoas na terra desaparecessem amanhã, o mundo continuaria a funcionar perfeitamente. Mas se todos os insetos desapare' cessem, a vida acabaria muito rápido... tipo uma geração. As plantas morreriam, em seguida, os animais e a terra se transformariam novamente em uma grande pedra.

 

A porta que dava para a sala principal foi aberta nesse momento. Um policial que não reconheceu apareceu e disse:

 

- Telefone para você.

 

Abriu a porta da cela, algemou-a e levou-a até uma pequena mesa de metal, com um telefone. Seria a sua mãe, pensou. Rhyme ligaria para ela e lhe daria a triste notícia. Ou talvez fosse sua melhor amiga em Nova York, Amy.

 

Mas, quando levantou o aparelho, as grossas correntes tilintando, ouviu a voz de Rhyme:

 

- Como é a coisa aí, Sachs? Legal?

 

- Tudo bem - murmurou ela.

 

- Aquele advogado chega hoje à noite. Ele é competente. Trabalha em casos criminais há 20 anos. Conseguiu soltar um suspeito de arrombamento que eu havia acusado. Você sabe, quem consegue fazer isso tem que ser competente.

 

- Ora, vamos, Rhyme. Por que se preocupar com isso? Eu sou uma estranha que tirou um assassino da cadeia e matou um dos policiais locais. A coisa não pode ficar pior do que já está.

 

- Nós conversaremos mais tarde sobre seu caso. Eu quero lhe perguntar outra coisa. Você passou uns dois dias com Garrett. Vocês conversaram sobre tudo?

 

- Claro que conversamos. -Sobre o quê?

 

- Não sei. Insetos. A floresta, o pântano. - Por que ele estaria perguntando essas coisas? - Não me lembro.

 

- Eu preciso que você se lembre. Preciso que me conte tudo que ele lhe disse.

 

- Por que se incomodar com isso, Rhyme.

 

- Vamos, Sachs. Faça a vontade de um velho aleijado, sim.

 

Sozinho no laboratório improvisado, Lincoln Rhyme olhava para os gráficos de provas.

 

ENCONTRADO NA CENA PRIMÁRIA DO CRIME • BLACKWATER LANDING

 

Kleenex Manchado de Sangue Pó de Calcário Nitratos Fosfato Amônia Detergente Canfeno

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • QUARTO DE GARRETT

 

Cheiro de Gambá Agulhas de Pinheiro, Cortadas Desenhos de Insetos Fotos de Mary Beth e da Família Livros sobre Insetos Linha de Pesca Dinheiro Chave Desconhecida Querosene Amônia Nitratos Canfeno

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • PEDREIRA

 

Velho Saco de Aniagem - Nome Ilegível no Mesmo Milho - Ração e Cereal?

 

Marcas de Chamuscado no Saco Água Marca Deer Park Biscoitos Planters Cheese

 

ENCONTRADO NA CENA SECUNDÁRIA DO CRIME • MOINHO

 

Tinta Marrom na Calça Planta Orvalhinha Musgo de Turfa Suco de Fruta Fibras de Papel Açúcar Canfeno Álcool Querosene Levedura

 

Em seguida, estudou o mapa, traçando com os olhos o curso do rio Paquenoke desde que saía do Grande Pântano da Desolação, passava por Blackwater Landing e serpenteava na direção oeste.

 

Havia uma saliência no papel duro do mapa - uma ruga que dava na gente uma coceira para alisar.

 

Esta tem sido minha vida nos últimos anos, pensou Rhyme: coceiras que não podem ser coçadas. Talvez, antes de muito tempo, eu possa fazer isso. Depois que a Dra. Weaver me cortar, costurar e me encher com suas poções mágicas e jovens tubarões... talvez eu possa passar as mãos por mapas como esse e alisar pequenas rugas.

 

Um gesto desnecessário, sem propósito, realmente. Mas que vitória não seria para ele!

 

Som de passos. Botas, deduziu ele do som. com saltos duros de couro. Pelo intervalo entre as passadas, tinha que ser de um homem alto. Teve esperança de que fosse Jim Bell, e era.

 

Respirando com todo cuidado no controlador suga-sopra, Rhyme afastou-se da parede.

 

- Lincoln? - perguntou o xerife. - O que é que há? Nathan disse que era urgente.

 

- Entre. Feche a porta. Mas, em primeiro lugar... há alguém no corredor?

 

Bell deu um pequeno sorriso com esse mistério todo e foi olhar.

 

- Vazio.

 

Rhyme refletiu que o primo de Jim, Roland, teria se saído com um ditado sulista de algum tipo. "Vazio como igreja em dia de pagamento de salário!", era um que tinha ouvido muitas vezes Bell dizer.

 

O xerife fechou a porta, dirigiu-se a mesa, encostou-se nela, e cruzou os braços. Rhyme virou-se ligeiramente e continuou a estudar o mapa da área.

 

- Nosso mapa não vai suficientemente ao norte e leste para mostrar o Grande Pântano da Desolação, vai?

 

- O canal? Não, não vai?

 

- Você sabe muita coisa sobre essa área? - perguntou Rhyme.

 

- Na verdade, não - disse Bell, em tom respeitoso. Conhecia Rhyme apenas há pouco tempo, mas devia saber quando dizer a verdade.

 

- Eu fiz algumas pesquisas - disse Rhyme, inclinando a cabeça para o telefone. - O Grande Pântano da Desolação faz parte da Rota Marítima Intracosteira. Você sabia que podemos tomar um barco e viajar o caminho todo, de Norfolk, Virginia, até Miami, sem ter que ganhar mar aberto?

 

- Claro. Todo mundo na Carolina conhece a Intracosteira. Eu mesmo nunca estive nela. Não sou muito de barcos. Fiquei enjoado até vendo o filme Titamc.

 

- O canal precisou de doze anos de trabalho para ser construído. Tem 35 quilômetros de extensão. Escavado inteiramente a mão. Espantoso, não acha?... Relaxe, Jim. com isso nós vamos chegar a uma conclusão. Eu lhe prometo. Olhe para essa linha aí em cima, a que corre entre Tanner's Corner e o rio Paquenoke. G-11 para G-10 no mapa.

 

- Você quer dizer, nosso canal. O Canal de Blackwater?

 

- Certo. Bem, um bote poderia subir esse canal até o Paquo, em seguida seguir para o Grande Pântano e...

 

Os passos que se aproximavam não eram nem metade tão barulhentos quando os de Bell, e foi pouco o aviso antes de a porta ser aberta. Rhyme calou-se.

 

Mason Germain apareceu à porta. Lançou um olhar a Rhyme, outro ao chefe e disse em seguida:

 

- Eu estava à sua procura, Jim. Temos que ligar para Elizabeth City. O Capitão Dexter tem algumas perguntas sobre o que aconteceu na cabana dos falsificadores de bebida.

 

- Estou simplesmente batendo um papo com Lincoln. Nós estávamos falando sobre...

 

Rhyme, porém, cortou-o, rápido:

 

- Escute, Mason, será que você poderia nos dar alguns minutos a sós?

 

Mason olhou de um para o outro, inclinou devagar a cabeça.

 

- Ele quer falar logo com você, Jim.

 

E saiu antes que Bell pudesse responder.

 

- Ele foi embora? - perguntou Rhyme.

 

Mais uma vez, Bell lançou um olhar ao corredor e respondeu com um aceno de cabeça.

 

- Você poderia checar a janela? Ter certeza de que Mason foi embora? E... eu gostaria que fechasse novamente essa porta.

 

Bell fechou-a, foi até a janela e olhou para fora.

 

- Foi. Ele está subindo a rua. Por que todo este...?

 

E completou o pensamento erguendo as mãos para o alto.

 

- Até que ponto você conhece Mason?

 

- Tanto quanto conheço quase todos meus policiais. Por quê?

 

- Porque ele assassinou a família de Garrett Hanlon.

 

- O quê? - Bell deu um sorriso, mas a expressão desapareceu logo. - Mason?

 

- Mason - confirmou Rhyme.

 

- Por quê, em nome de Deus?

 

- Porque Henry Davett pagou a ele para fazer isso.

 

- Pare aí - disse Bell. - Você está uns dois passos à minha frente.

 

- Eu não posso provar isso, ainda. Mas tenho certeza.

 

- Henry? Qual o envolvimento dele nisso?

 

- Tudo isso tem a ver com o Canal Blackwater - disse Rhyme. Caiu em seu modo professoral, os olhos presos no mapa. - Bem, a razão de escavar o canal no século XIX foi obter transporte confiável, porque as estradas eram ruins demais. Mas, quando as estradas de rodagem e de ferro melhoraram, os armadores deixaram de usar os canais.

 

- Onde foi que você descobriu tudo isso?

 

- Na Sociedade Histórica, em Raleigh. Conversei com uma senhora encantadora, Julie DeVere. De acordo com ela, o Canal Blackwater foi fechado logo depois da Guerra Civil. Ficou sem uso durante 130 anos. Até que Henry Davett voltou a usá-lo com suas chatas.

 

Bell inclinou a cabeça.

 

- Isso aconteceu há cinco anos. Rhyme continuou:

 

- Eu quero lhe perguntar uma coisa... Você pensou algum dia no motivo por que Henry Davett começou a usá-lo?

 

O xerife sacudiu a cabeça.

 

- Lembro-me de que alguns de nós ficamos um pouco preocupados, pensando que crianças poderiam tentar nadar até uma chata, ficarem machucadas e se afogarem, mas isso nunca aconteceu e nunca mais pensamos no caso. Mas, agora que você falou nisso, não sei por que ele usa o canal. Ele tem caminhões entrando e saindo o tempo todo. Não há problema nenhum para chegar de caminhão a Norfolk.

 

Rhyme inclinou a cabeça para o gráfico das provas.

 

- A resposta está bem ali. Aquele vestígio para o qual nunca encontrei uma origem: o canfeno.

 

- O material usado em lampiões? Rhyme sacudiu a cabeça e fez uma careta.

 

- Não. Cometi um erro aí. E verdade, o canfeno foi usado em lampiões. Mas é também usado em outra coisa. Pode ser processado para obter toxafeno.

 

- O que é isso?

 

- Um dos pesticidas mais perigosos que se conhece. Foi usado principalmente no Sul... até ser proibido na década de 1980 pela Agência de Proteção Ambiental (APA)

 

na maioria dos usos.-Balançou zangado a cabeça. - Eu supus que, como o toxafeno era ilegal, não havia propósito em pensar em pesticidas como origem do canfeno e que tinha que ser de velhos lampiões. Exceto que nunca encontramos nenhum velho lampião. Minha mente entrou num sulco e não quis sair. Nenhum lampião? Neste caso, eu deveria descer a lista e começar a procurar inseticida. E quando fiz isso - esta manhã -, descobri a origem do canfeno.

 

Bell inclinou a cabeça, fascinado.

 

- E de que lugar vinha?

 

- De toda, parte - respondeu Rhyme. - Pedi a Lucy que tirasse amostras da areia e água em volta de Tanner's Corner. Há toxafeno em toda parte... na água, na terra.

 

Eu devia ter prestado atenção ao que Sachs me disse naquele dia, quando estava procurando Garrett. Ela viu trechos enormes de terra estéril. Pensou que fosse causada por chuva ácida, mas não era isso. Foi o toxafeno que fez isso. As concentrações mais altas são encontradas em uns 3 quilômetros em volta da fábrica de Davett...

 

em Blackwater Landing e no canal. Ele vem fabricando asfalto e papel alcatroado como disfarce para a fabricação de toxafeno.

 

- Mas esse produto é proibido. Acho que você disse isso.

 

- Eu liguei para um amigo meu no FBI e ele ligou para a APA. Não foi inteiramente proibido... fazendeiros podem usá-lo, em emergências. Mas não é assim que Davett está ganhando milhões. Esse agente da APA explicou uma coisa chamada de "círculo do veneno".

 

- Eu não gosto do som disso.

 

- Nem deve. O toxafenofoi proibido aqui, mas, nos Estados Unidos, a proibição se refere apenas ao uso. Pode ser fabricado aqui e vendido a países estrangeiros.

 

- E eles podem usá-lo?

 

- É um produto permitido no Terceiro Mundo e nos países da América Latina. O ciclo é o seguinte: esses países borrifam alimentos com pesticidas e os exportam para os Estados Unidos. A FDA só inspeciona uma pequena percentagem das frutas e hortaliças importadas, de modo que há muita gente nos Estados Unidos que ainda é envenenada, mesmo que o produto seja proibido.

 

Bell soltou uma risada cínica.

 

- E Davett não pode despachá-lo por estradas por causa dos condados e cidades que não permitem que passem por eles mercadorias tóxicas. E os manifestos das cargas mostrariam o que ela é. Para nada dizer do problema de relações públicas, se fosse divulgado o que ele andava fazendo.

 

- Exatamente - concordou Rhyme. - De modo que ele reabriu o canal para enviar o toxafeno através da Via Intracosteira até Norfolk, onde a carga é embarcada em navios estrangeiros. Havia, porém, um problema: quando o canal foi fechado no século XVIII, as propriedades ao longo de suas margens foram vendidas a particulares. Indivíduos cujas casas ficavam próximas ao canal tinham o direito de controlar quem o usava.

 

- De modo que Davett pagou a eles para arrendar suas partes do canal - disse Bell. Inclinou a cabeça, compreendendo subitamente a situação. - E ele deve ter gasto um bocado de dinheiro nisso. As casas em Blackwater Landing são enormes. E pense naquelas belas picapes, Mercedes e Lexus que as pessoas usam por aqui. Mas que história é essa sobre Mason e a família Garrett?

 

- As terras do pai de Garrett ficavam à margem do canal. Mas ele não queria vender seus direitos de uso. Em vista disso, Davett, ou alguém em sua empresa, contratou Mason para convencê-lo a vender e, quando ele se recusou, Mason arranjou alguns mau elementos locais para ajudá-lo a matar a família - Culbeau, Tomei e O'Sarian. Em seguida, acho que Davett subornou o testamenteiro para que lhe vendesse a propriedade.

 

- Mas a família de Garrett morreu num acidente. Um acidente de automóvel. Eu mesmo vi o registro da ocorrência.

 

- Foi Mason o policial que cuidou da investigação?

 

- Não me lembro, mas pode ter sido - reconheceu Bell. Olhou para Rhyme com um sorriso de admiração. - Como, em nome de Deus, você descobriu tudo isso?

 

- Foi fácil... porque não há geada em julho. Pelo menos não na Carolina do Norte.

 

- Geada?

 

- Eu conversei com Amélia. Garrett disse a ela que na noite em que a família morreu, o carro estava coberto de geada e que os pais e a irmã estavam tremendo de frio. O acidente, porém, aconteceu em julho. Lembro-me de ter visto a notícia na pasta... a foto de Garrett e família. Ele usava uma camiseta, e a foto foi tirada numa festa no 4 de julho. A matéria no jornal informava que a foto tinha sido tirada uma semana antes da morte dos pais.

 

- Então foi isso o que o rapaz falou? Geada, gente tremendo?

 

- Mason e Culbeau usaram um pouco do toxafeno de Davett para matar a família. Conversei com minha cirurgiã no centro médico. Ela me disse que em casos extremos de envenenamento neurotóxico, o corpo entra em espasmos. Aquilo foi o tremor que Garrett viu. A geada foi provavelmente o vapor ou resíduos de produtos químicos no carro.

 

- Se ele viu isso, por que não falou a ninguém?

 

- Eu descrevi o rapaz a minha médica. Ela disse que parece que ele, também, foi envenenado naquela noite. Apenas o suficiente para lhe dar SQM - sensibilidade química múltipla. Perda de memória, lesões no cérebro, reação forte a outros produtos químicos no ar e na água. Lembra-se dos vergões na pele dele?

 

- Claro.

 

- Garrett pensa que são causados por carvalho venenoso, mas não é isso. A médica me disse que erupções na pele são sintomas clássicos de SQM. Que irrompem quando o indivíduo é exposto a volumes vestigiais de substâncias que não afetariam qualquer outra pessoa. Até mesmo sabonete e perfume fariam com que aparecesse a erupção na pele.

 

- Faz sentido - reconheceu Bell. Em seguida, fechando a cara, acrescentou: - Mas se você não tem qualquer prova substancial disso, então tudo que temos é uma especulação.

 

- Ah, esqueci de dizer - Rhyme não pôde evitar um leve sorriso. A modéstia jamais fora uma qualidade que lhe caísse bem. - Eu tenho algumas provas sólidas. Descobri os corpos da família de Garrett.

 

No Albemarle Manor Hotel, situado a um quarteirão da cadeia de Paquenoke, Mason ignorou o elevador. Subiu a escada, coberta por uma surrada passadeira.

 

Localizou o quarto 201 e bateu.

 

- Está aberta - disse uma voz.

 

Mason abriu devagar a porta para uma sala cor-de-rosa, banhada pela luz alaranjada do sol de fins da tarde. Insuportavelmente quente ali. Não conseguia imaginar que o ocupante do quarto gostasse desse calor todo e, por isso, pensou que o homem sentado à mesa ou era preguiçoso demais para levantar-se e ligar o condicionador de ar, ou burro demais para descobrir como aquilo funcionava. O que o tornou ainda mais desconfiado da tal pessoa.

 

O afro-americano, magro e de pele estranhamente escura, usando um terno preto amassado, parecia inteiramente deslocado em Tanner's Comer. Você quer chamar a atenção, não? - pensou desdenhosamente. Malcom Droga X.

 

- Você é o Germain? - perguntou o tal homem. -Sou.

 

O homem tinha os pés em cima da cadeira em frente e, quando tirou a mão de baixo de um exemplar do Charlotte Observer, seus longos dedos seguravam uma pistola automática.

 

- Isso responde a uma de minhas perguntas - disse Mason. - Se você tem arma ou não.

 

- Qual é a outra? - indagou o homem de terno.

 

- Se sabe como usá-la.

 

O homem nada respondeu, mas, com todo cuidado, com um cotoco de lápis, marcou o lugar onde estava na leitura de uma notícia. Ele parecia um aluno do terceiro grau primário lutando com o alfabeto.

 

Mason voltou a examiná-lo, sem pronunciar palavra e, em seguida, sentiu uma enfurecedora gota de suor descer-lhe pelo rosto. Sem perguntar se podia fazer isso, foi até o banheiro, pegou uma toalha, enxugou o rosto e jogou-a no chão.

 

O homem soltou uma risada, tão enfurecedora quanto a gota de suor, e disse:

 

- Estou ficando com a clara impressão de que você não gosta de minha raça.

 

- Não, acho que não gosto - respondeu Mason. - Mas, se você sabe o que faz, o que eu gosto ou desgosto não têm importância.

 

- Você tem inteira razão nisso - retrucou friamente o homem.

 

- Portanto, fale. Não quero ficar por mais tempo aqui do que for obrigado.

 

- A coisa deve acontecer da seguinte maneira: Rhyme está conversando com Jim Bell neste momento, no prédio da Prefeitura. E quanto àquela Amélia Sachs, ela está na cadeia, rua acima.

 

- Aonde é que devemos ir primeiro? Sem hesitar, Mason respondeu:

 

- A mulher. - Neste caso, é isso o que vamos fazer - disse o homem, como se aquilo fosse idéia sua.

 

Guardou a arma, pôs o jornal em cima da penteadeira e, com uma polidez que Mason acreditou ser mais zombaria do que qualquer outra coisa, disse:

 

- Tenha a bondade.

 

E fez um gesto na direção da porta.

 

- Os cadáveres dos Hanlons? - perguntou Jim Bell. - Onde estão?

 

- Ali - respondeu Rhyme, inclinando a cabeça para os ossos que Mary Beth tinha trazido na mochila. - Esses aí são os que Mary Bedi encontrou em Blackwater Landing - continuou o criminalista. Pensou que eram ossos dos sobreviventes da Colônia Perdida. Mas tive de dizer a ela que não são tão antigos assim. Parecem estragados, mas isso apenas porque foram parcialmente queimados. Eu fiz muito trabalho em antropologia criminalística e notei imediatamente que eles ficaram enterrados por apenas cinco anos, mais ou menos - que é exatamente o tempo transcorrido desde que os pais e irmã de Garrett foram assassinados. São ossos de um homem em fins da casa dos 30 anos, de uma mulher de cerca da mesma idade que havia tido filhos e de uma menina de uns dez anos. Esses dados descrevem perfeitamente a família de Garrett.

 

Bell olhou para os ossos.

 

- Não estou entendendo.

 

- A propriedade da família de Garrett ficava bem em frente à Estrada 112, dando para o rio em Blackwater Landing. Mason e Culbeau envenenaram a famíia e, em seguida, queimaram, enterraram os cadáveres e empurraram o carro deles para a água. Davett subornou o legista para falsificar um atestado de óbito e comprou todo mundo na funerária para fingir que haviam cremado os restos mortais. As sepulturas estão vazias, garanto. Mary Beth deve ter dito a alguém que encontrou os ossos e essa informação chegou a Mason. Ele pagou a Billy Stail para ir a Blackwater Landing matá-la e roubar a prova... os ossos.

 

- O quê? Billy?

 

- Acontece que, por acaso, Garrett estava lá, de olho em Mary Beth. Ele tinha razão, note: Blackwater Landing é um lugar perigoso. Pessoas, de fato, morreram ali... aqueles outros casos nestes últimos anos. Apenas, não foi Garrett quem as matou. Foram Mason e Culbeau. Foram mortas porque adoeceram com o toxafeno e começaram a se perguntar por quê. Todos na cidade tinham ouvido falar no Menino-Inseto, de modo que Mason, ou Culbeau, mataram aquela moça - Meg Blanchard - com um ninho de marimbondos, para dar a impressão de que tinha sido ele o matador. Quanto aos outros, foram golpeados na cabeça e lançados no canal para morrerem afogados. Quanto às pessoas que não se perguntaram por que motivo adoeceram - como o pai de Mary Beth e Lucy Kerr -, eles não se preocuparam com elas.

 

- Mas as impressões digitais de Garrett estavam na pá... a arma do crime.

 

- Ah, a pá - disse pensativo Rhyme. - Há uma coisa muito interessante naquela pá. Eu cometi outro equívoco... Só havia dois conjuntos de impressões digitais na pá.

 

- Exato, as de Billy e de Garrett.

 

- Mas onde estavam as de Mary Beth? - perguntou Rhyme. Os olhos de Bell se estreitaram. Inclinou a cabeça, concordando.

 

- Exatamente. Não havia nenhuma impressão digital dela.

 

- Porque não era a pá que ela usava. Mason deu-a a Billy para que a levasse a Blackwater Landing... depois de apagar suas próprias impressões digitais, claro. Fiz perguntas a Mary Beth a esse respeito. Ela disse que Billy saiu do mato com a pá na mão. Mason achava que seria a arma perfeita para o crime... porque, como arqueóloga, Mary Beth usaria provavelmente uma pá. Quando chegou a Blackwater Landing, porém, Billy viu Garrett em companhia de Mary Beth. E achou que devia matar também o Menino-Inseto. Garrett, porém, tomou-lhe a pá e atacou-o com ela. Pensou que o havia matado. Mas não matou.

 

- Garrett não matou Billy?

 

- Não, não, não... Ele só bateu em Billy uma ou duas vezes. Deixou-o sem sentidos, mas não o feriu gravemente. Em seguida, Garrett levou Mary Beth para a cabana dos falsificadores de bebida. Mason foi o primeiro a chegar à cena do crime. Ele reconheceu isso.

 

- E verdade. Ele recebeu a chamada..

 

- Coincidência estranha que ele estivesse próximo, não? - perguntou Rhyme.

 

- Acho que sim. Não pensei nisso naquela ocasião.

 

- Mason encontrou Billy. Pegou a pá - usando luvas de látex para coleta de provas - e bateu no rapaz até ele morrer.

 

- Como é que você sabe disso?

 

- Por causa da posição das impressões deixadas pelo látex. Pedi a Ben que examinasse o cabo da pá, uma hora depois, com uma fonte alternativa de luz. Mason segurou a pá como se fosse um bastão de beisebol. Não é dessa maneira que alguém coletaria provas numa cena de crime. E ajustou várias vezes a empunhadura para conseguir mais força. Ao examinar a cena do crime, Sachs disse que a configuração do sangue espalhado mostrava que Billy foi atingido primeiro na cabeça e caiu. Mas ele estava ainda vivo. Até que Mason o atingiu no pescoço com a pá.

 

Rosto sem expressão, Bell olhou pela janela.

 

- Por que Mason mataria Billy?

 

- Ele provavelmente pensou que Billy entraria em pânico e contaria a verdade. Ou, talvez, o rapaz estivesse consciente quando Mason chegou e dissesse que estava cheio daquilo e que queria cair fora.

 

- Então, foi por isso que você quis que Mason fosse embora... há alguns minutos. Eu fiquei curioso sobre o motivo. Mas, como é que você vai provar tudo isso, Rhyme?

 

- Eu tenho as impressões do látex na pá. Tenho os ossos, que acusarão altas concentrações de toxafeno. Quero um mergulhador para procurar o carro dos Hanlons no Paquenoke. Alguma prova sobreviveu... mesmo depois de cinco anos. Em seguida, temos que dar uma busca na casa de Billy e verificar se há dinheiro que possa ser rastreado até Mason. E dar também uma busca na casa de Mason. - Rhyme sorriu levemente. - Eu sou bom nisso, Jim. Posso fazer isso. - Em seguida, o sorriso desapareceu. - Mas se Mason não fornecer provas à promotoria para acusar Henry Davett, vai ser difícil fazer uma acusação contra ele. Tudo que tenho é isso.

 

Rhyme inclinou a cabeça na direção de um jarro de amostra, contendo cerca de uns 225 mililitros de um líquido claro.

 

- O que é isso?

 

- Toxafeno puro. Lucy conseguiu há uma meia hora uma amostra no depósito de Davett. Segundo ela, deve haver uns dez mil galões desse material estocado no local. Se pudermos provar identidade de composição entre o produto químico que matou a família de Garrett e o que está no jarro, poderemos convencer o promotor público a formular uma acusação contra Davett.

 

- Mas Davett nos ajudou a encontrar Garrett.

 

- Claro que ajudou. A ele interessava que o rapaz - e Mary Beth - fossem encontrados, e tão rápido quanto possível. Era Davett que, mais do que qualquer outra pessoa, queria Mary Beth morta.

 

- Mason... murmurou Bell, sacudindo a cabeça. - Conheço-o há anos... Você acha que ele desconfia de alguma coisa?

 

- Você é o único com quem falei. Eu não disse nem a Lucy... pedi-lhe apenas que fizesse uns trabalhos para mim. Eu estava com medo que alguém ouvisse alguma coisa e informasse Mason ou Davett. Esta cidade, Jim, é um ninho de marimbondos. Eu não sei em quem confiar.

 

Bell exalou um suspiro.

 

- Como é que você pode ter tanta certeza de que foi Mason?

 

- Porque Culbeau e seus comparsas apareceram na cabana dos falsificadores logo depois de descobrirmos onde Mary Beth estava. E Mason era o único que sabia disso...

 

à parte eu, você e Ben. Ele deve ter telefonado para Culbeau e lhe dito onde ficava a cabana. De modo que... vamos ligar para a Polícia Estadual, pedir que mandem para aqui alguns mergulhadores e dêem uma batida em Blackwater Landing. E precisamos obter aqueles mandados de busca e apreensão para ir às casas de Billy, e de Mason, também.

 

Rhyme observou Bell inclinar a cabeça, concordando. Mas, em vez de ir ao telefone, ele foi até a janela e fechou-a. Em seguida, dirigiu-se à porta, abriu-a, olhou para fora e voltou a fechá-la.

 

E passou o trinco.

 

- Jim, o que é que você está fazendo?

 

Bell hesitou por um momento e deu um longo passo na direção de Rhyme.

 

O criminalista ergueu a vista uma única vez para os olhos do xerife e cerrou rapidamente os dentes em volta do aparelho suga-sopra de controle. Soprou e a cadeira correu para a frente. Bell, porém, saltou para trás dele e arrancou o cabo da bateria. A Storm Arrow rodou mais alguns centímetros e parou.

 

- Jim - murmurou Rhyme. - Não, você também?

 

- Você acertou.

 

Rhyme fechou os olhos.

 

- Não, não - sussurrou.

 

Deixou cair a cabeça, mas apenas por alguns milímetros. Como acontecia com a maioria dos grandes homens, os gestos de derrota de Lincoln Rhyme eram muito sutis.

 

Mason Germain e o negro mal-encarado percorreram lentamente o beco dos fundos da cadeia de Tanner's County. O negro suava. Irritado, bateu num mosquito. Murmurou alguma coisa e passou a mão comprida pelo cabelo encarapinhado curto.

 

Mason sentiu uma forte vontade de provocá-lo, mas resistiu.

 

O homem era alto e, levantando-se nas pontas dos pés, podia olhar pela janela da cadeia. Mason notou que ele usava botas pretas curtas - de verniz brilhante - que, por alguma razão, lhe aumentaram o desprezo por aquele estranho. E perguntou a si mesmo quantas pessoas ele já havia assassinado.

 

- Ela está aí dentro - disse ele. - Sozinha.

 

- Nós estamos mantendo Garrett no outro lado.

 

- Você entra pela frente. Alguém pode sair pelos fundos?

 

- Eu sou policial, lembra-se? Tenho chave. Posso abri-la - disse em tom escarninho, perguntando-se novamente se esse cara tinha sequer uma inteligência mediana.

 

E recebeu de volta um sorriso também escarninho.

 

- Eu estava apenas perguntando se há uma porta nos fundos. O que não sei, nunca tendo estado antes neste atoleiro de cidade.

 

- Há, sim, há uma porta.

 

- Neste caso, vamos em frente.

 

Sachs, sentada em um banco na cela, parecia hipnotizada pelos movimentos de uma mosca.

 

De que tipo seria ela? - pensou. Garrett saberia, imediatamente. Ele era uma biblioteca de conhecimentos. Ocorreu-lhe um pensamento: há um momento em que aquilo que uma criança sabe sobre um assunto ultrapassa o conhecimento dos pais. Deve ser uma coisa milagrosa, emocionante, saber que gerou essa criação que os supera.

 

E que os torna também mais humildes.

 

Uma experiência que, sabia nesse momento, jamais teria.

 

Pensou mais uma vez no pai. Ele tirava o pavio do crime. Jamais disparou uma arma em todos seus anos de serviço. Orgulhoso como se sentia da filha, preocupava-se também com o fascínio dela por armas.

 

- Seja a última a atirar - lembrava-lhe ele freqüentemente.

 

Oh, Jesse... O que é que eu posso lhe dizer?

 

Nada, claro. Não posso lhe dizer uma única palavra. Você morreu.

 

Pensou que via uma sombra no outro lado da janela da cadeia. Ignorou-a, porém, e seus pensamentos voltaram a Rhyme.

 

Você e eu, pensou. Você e eu.

 

Lembrou-se de uma ocasião, meses atrás, os dois deitados na luxuosa cama Clinitron de Rhyme, em Manhattan, assistindo à elegante recriação de Romeu ejulieta, uma versão moderna da história, passada em Miami. No caso de Rhyme, a sombra da morte sempre pairava por perto e, olhando as cenas finais do filme, compreendeu que, tal como os personagens de Shakespeare, ela e ele eram, de certa maneira, amantes desencontrados, também. E outro pensamento também lhe ocorreu de súbito: que os dois morreriam também juntos.

 

Não ousou contar esse pensamento ao racional Lincoln Rhyme, que não possuía no cérebro uma única célula sentimental. Mas, uma vez surgida, a idéia fincara raízes definitivamente em sua psique e, por alguma razão, dava-lhe um grande consolo.

 

Nesse momento, porém, nem mesmo esse estranho pensamento lhe trazia alívio. Não, naquele momento - por culpa sua - viveriam separados e morreriam separados. Eles...

 

A porta da prisão foi aberta e entrou um jovem policial. Reconheceu-o. Era Steve Farr, cunhado de Jim.

 

- Ei, você aí - disse ele.

 

Sachs inclinou a cabeça. Em seguida, notou duas coisas. A primeira, que ele usava um relógio Rolex, que devia ter custado metade do salário anual de um policial na Carolina do Norte.

 

A segunda, que trazia a arma ao cinto e que o coldre estava aberto.

 

Isso a despeito do aviso do lado de fora das celas:

 

COLOQUE TODAS AS ARMAS NA CAIXA DE SEGURANÇA, ANTES DE ENTRAR NA ÁREA DAS CELAS.

 

- Como vai você? - perguntou ele. Ela fitou-o e continuou calada.

 

- Está dando uma de muda hoje, não? Bem, moça, tenho boas notícias para você. Você está livre para ir embora.

 

E puxou uma das grandes orelhas.

 

- Livre? Para sair daqui? Ele tirou as chaves do bolso.

 

- Isso mesmo. Eles chegaram à conclusão de que o tiro foi acidental. Você pode simplesmente ir embora.

 

Ela examinou-lhe cuidadosamente o rosto. Ele não a fitava.

 

- E o alvará judicial?

 

- O que é isso? - perguntou Farr.

 

- Ninguém acusado de crime pode ser solto de custódia sem um alvará judicial, que anula as acusações, e é assinado pelo promotor.

 

Farr abriu a cela e recuou um passo, a mão perto da coronha da arma.

 

- Talvez seja assim que vocês fazem as coisas em cidades grandes. Mas aqui a gente é muito mais simples. Você sabe, dizem que aqui no Sul nós fazemos as coisas muito devagar, mas isso não é verdade. De jeito nenhum. Para dizer a verdade, somos mais eficientes.

 

Sachs permaneceu sentada.

 

- Posso saber por que você está usando arma dentro da cadeia?

 

- Oh, isto? - Ele deu uma palmadinha na arma. - A gente não tem regras inquebráveis sobre esse tipo de coisa. Agora, vamos. Você está livre para ir embora. A maioria das pessoas estaria dando pulos de alegria com essa notícia.

 

Indicou os fundos da cadeia com um movimento da cabeça.

 

- Pela porta dos fundos? -Claro.

 

- Você não pode atirar nas costas de um prisioneiro em fuga. Isso seria assassinato.

 

Ele inclinou lentamente a cabeça.

 

De que maneira aquilo havia sido tramado? - pensou Sachs. Haveria alguém do lado de fora da porta, encarregado de passar fogo nela? Provavelmente. Farr bateria com a própria cabeça e gritaria pedindo socorro. Daria um tiro no teto. Do lado de fora, alguém - talvez um cidadão "interessado" - atiraria nela.

 

E não se moveu.

 

- Agora, levante-se daí e mexa esse rabo. Farr sacou o revólver. „ Lentamente, Sachs levantou-se.

 

- Você chegou muito perto, Lincoln - disse Jim Bell. Após um momento, acrescentou:

 

- Noventa por cento certo. Minha experiência em trabalho policial me diz que essa é uma boa percentagem. É uma pena para você que eu seja os dez por cento que você errou.

 

Bell desligou o ar-condicionado. com as janelas fechadas, a sala ficou imediatamente quente. Rhyme sentiu a testa cobrir-se de suor. A respiração tornou-se difícil, O xerife continuou:

 

- Duas famílias ao longo do canal recusaram-se a conceder ao Sr. Davett licença para usar as chatas.

 

Um respeitoso senhor Davett, notou Rhyme.

 

- De modo que o chefe de segurança cpntratou alguns de nós para resolver esse problema. Tivemos uma longa conversa com os Conklins e eles resolveram conceder a licença. O pai de Garrett, porém, não quis concordar, de maneira nenhuma. A gente ia fazer com que a coisa parecesse um acidente de automóvel e conseguimos uma lata daquela merda ali - inclinou a cabeça na direção do jarro para acabar com eles. Nós sabíamos que a família saía para jantar fora nas quartas-feiras. Derramamos o veneno dentro do carro e nos escondemos no bosque. Eles entraram e o pai de Garrett ligou o arcondicionado. Aquele troço borrifou-os inteiramente. Mas nós usamos veneno demais...

 

Lançou um novo olhar ao jarro.

 

- Ali há o suficiente para matar duas vezes um camarada - continuou, fechando a cara ao lembrar-se. - A família começou a se contorcer e entrar em convulsão... Foi uma coisa feia de ver. Garrett não estava no carro, mas veio correndo e viu o que acontecia. Tentou entrar, mas não pôde. Cheirou um bocado da coisa, porém, e foi assim que se tornou esse zumbi que é. Simplesmente correu tropeçando para a mata, antes que pudéssemos pegá-lo. E quando voltou uma ou duas semanas depois - não se lembrava do que tinha acontecido. Foi aquela SQM de que você falou, acho. De modo que a gente simplesmente o deixou em paz por algum tempo... Daria motivo demais para suspeita se ele morresse imediatamente depois da família.

 

- Depois, fizemos exatamente o que você descobriu. Tocamos fogo nos corpos e os enterramos em Blackwater Landing. Empurramos o carro para um riacho, ao lado da Estrada do Canal. Pagamos ao legista cem mil dólares para nos dar um laudo apropriado. Sempre que a gente ouvia dizer que alguém pegava uma forma curiosa de câncer e estava perguntando por quê, Culbeau e os outros acabavam com ele.

 

- O funeral que vimos quando chegamos à cidade. Vocês mataram aquele menino, não?

 

- Todd Wilkes? - perguntou Bell. - Não. Ele se suicidou.

 

- Mas porque estava doente com os efeitos do toxafeno, certo? O que era que ele tinha? Câncer? Lesão no fígado? Lesão cerebral?

 

- Talvez. Eu não sei.

 

O rosto do xerife, porém, dizia que ele sabia bem demais.

 

- De modo que Garrett não teve nada a ver com isso, teve? -Não.

 

- E o que aconteceu com aqueles homens na cabana dos falsificadores de bebida? Os que atacaram Mary Beth?

 

Bell inclinou outra vez, sombrio, a cabeça.

 

- tom Boston e Lott Cooper. Eles faziam também parte do esquema... eles se encarregavam de testar um bocado das toxinas de Davett lá nas montanhas, em lugares menos habitados. Eles sabiam que a gente andava à procura de Mary Beth, mas, quando a encontraram, acho que Lott resolveu não me contar, até que tivessem se divertido um pouco com ela. E, sim, contratamos Billy Stail para matá-la, mas Garrett se meteu no caminho, antes que ele pudesse fazer o seviço.

 

- E você precisava de mim para ajudá-lo a encontrá-la. Não para salvá-la... de modo que pudesse matá-la e destruir qualquer outra prova que ela pudesse ter encontrado.

 

- Depois que você descobriu onde estava Garrett e quando nós o trouxemos do moinho, eu deixei a porta da cadeia aberta, para que Culbeau pudesse, digamos, conversar Garrett e obrigá-lo a dizer onde Mary Beth estava. Sua amiga, porém, entrou e tirou-o de lá, antes que nós pudéssemos seqüestrá-lo.

 

- E quando eu descobri a cabana - disse Rhyme -, você ligou para Culbeau e os outros. E enviou-os para nos matar.

 

- Sinto muito... aquilo tudo havia se tornado um pesadelo. Eu não queria fazer isso, mas... Bem, foi isso.

 

- Um ninho de marimbondos...

 

- De fato, esta cidade tem alguns marimbondos. Rhyme sacudiu a cabeça.

 

- Diga uma coisa, todos esses carros de luxo, casas luxuosas e todo o dinheiro valem a destruição de uma cidade inteira? Olhe em volta, Bell. Naquele outro dia, foi o enterro de uma criança, mas não havia crianças no cemitério. Amélia disse que praticamente não havia crianças na cidade. Você sabe por quê? As pessoas se tornaram estéreis.

 

- É arriscado quando a gente faz negócio com o demônio - respondeu seco Bell. - Mas, no que me interessa, a vida é simplesmente um grande toma lá-dá-cá.

 

Olhou para Rhyme durante um longo momento, foi até a mesa, calçou luvas de látex e pegou um jarro de toxafeno. Deu um passo na direção de Rhyme e, lentamente, começou a desatarraxar a tampa.

 

Steve Farr empurrou Amélia Sachs até a porta dos fundos da prisão, a arma firme em suas costas.

 

Mas cometia o erro clássico de manter a boca da arma colada ao corpo da vítima. E isso deu a Sachs uma posição de vantagem quando saiu pela porta, sabia exatamente onde estava a arma e podia lançar contra ela o cotovelo. com um pouco de sorte, Farr poderia deixar cair a arma e ela sairia correndo com toda rapidez que pudesse. Se pudesse chegar a Main Street, haveria testemunhas e, quem sabe, ele talvez hesitasse em atirar.

 

Farr abriu a porta dos fundos.

 

Um feixe quente de luz do sol inundou a empoeirada cadeia. Ela pestanejou. Uma mosca zumbiu em volta de sua cabeça.

 

Enquanto Farr permanecesse colado a ela, apertando a arma contra seu corpo, ela teria uma chance...

 

- O quê, agora? - perguntou ela.

 

- Livre para ir - disse ele alegremente, dando de ombros. Ela ficou tensa, pronta para atacá-lo, planejando cada movimento. Mas nesse momento, ele deu um passo rápido para trás, empurrando-a para o terreno cheio de lixo atrás da cadeia, e permaneceu no lado de dentro, fora de seu alcance.

 

De um lugar próximo, atrás de uma alta moita, ouviu outro som. O clique de uma pistola sendo engatilhada.

 

- Vá - disse Farr. - Caia fora daqui.

 

Ela, mais uma vez, pensou no Romeu e Julieta.

 

E no belo cemitério na colina que dava para Tanner's Comer, pelo qual tinham passado há uma eternidade, ao que parecia.

 

Oh, Rhyme...

 

A mosca passou zumbindo por seu rosto. Instintivamente, espantou-a com a mão e começou a andar para a relva baixa.

 

Rhyme voltou-se para Bell:

 

- Você não acha que alguém pode ficar curioso se eu morrer desta maneira? Eu dificilmente poderia abrir um jarro.

 

- Você bateu na mesa - disse o xerife. - A tampa não estava apertada. Derramou líquido em cima de você. Fui ajudá-lo, mas não conseguimos salvá-lo a tempo.

 

- Amélia não vai deixar as coisas assim. Nem Lucy.

 

- Sua namorada não vai ser problema por muito tempo. E, Lucy? Ela pode simplesmente ficar doente outra vez... e desta vez talvez não haja nada para amputar e salvá-la.

 

Bell hesitou por apenas um momento, aproximou-se mais e derramou o líquido em cima da boca e nariz de Rhyme. E espalhou o resto pelo peito da camisa.

 

A cabeça de Rhyme saltou para trás, os lábios se entreabriram involuntariamente e um pouco do líquido entrou em sua boca. Ele começou a sufocar.

 

Bell tirou as luvas e enfiou-as na calça. Esperou por um momento, observando calmamente Rhyme, e, em seguida, dirigiu-se devagar para a porta, destrancou-a, abriu-a e gritou:

 

- Houve um acidente! Alguém aqui, preciso de ajuda! - Entrou no corredor. - Eu preciso de...

 

E entrou diretamente na linha de fogo de Lucy Kerr, a pistola apontada firme para seu peito.

 

- Jesus, Lucy!

 

- Agora chega, Jim. Simplesmente, fique onde está.

 

O xerife deu um passo para trás. Nathan, o perito atirador, entrou na sala, por trás de Bell, e tirou-lhe a arma do coldre. Outro homem entrou... um homenzarrão usando terno marrom e camisa branca.

 

Ben correu também para dentro, ignorou todos ali e dirigiu-se rápido para Rhyme, secando-lhe o rosto com uma toalha de papel.

 

O xerife olhou fixamente para Lucy e para os outros.

 

- Não! Vocês não compreendem! Houve um acidente! Aquele veneno derramou. Vocês têm que...

 

Rhyme cuspiu no chão e espirrou com o líquido e os vapores adstringentes. E perguntou a Ben:

 

- Você poderia me secar mais alto no pescoço? Tenho medo de que isso entre em meus olhos. Obrigado.

 

- Por nada, Lincoln. Bell insistia:

 

- Eu ia pedir ajuda! Aquele troço derramou! Eu...

 

O homem vestido de terno tirou as algemas do cinto e passou os anéis em volta dos punhos do xerife. E disse:

 

- James Bell, eu sou o detetive Hugo Branch, da Polícia Estadual da Carolina do Norte. Você está preso. - Olhou azedamente para Rhyme. - Eu lhe disse que ele iria derramar isso em sua camisa. Nós devíamos ter instalado a unidade em algum outro lugar.

 

- Mas gravou o suficiente na fita?

 

- Oh, de sobra. Mas não é esse o problema. O problema é que esses transmissores custam dinheiro.

 

- Debite a despesa na minha conta - respondeu Rhyme asperamente quando Branch abriu-lhe a camisa e descolou o microfone e o transmissor presos com fita.

 

- Foi uma armação - disse baixinho Bell. Você entendeu bem.

 

- Mas o veneno...

 

- Ah, não é toxafeno - respondeu Rhyme. - Apenas um pouco de bebida falsificada. Daqueles jarros que submetemos a teste. Por falar nisso, Ben, se sobrou alguma, eu gostaria de um gole agora. E, Cristo, alguém poderia pôr esse ar-condicionado para funcionar?

 

Tensione-se, desvie-se para a esquerda e corra como o próprio demônio. vou levar um tiro, mas, se tiver sorte, o tiro não vai me deter.

 

Quando você se move rápido, eles não podem agarrá-la...

 

Amélia deu três passos para a relva.

 

Pronta...

 

Prepare-se...

 

Ouviu nesse momento uma voz de homem às costas deles, dentro da cadeia:

 

- Fique onde está, Steve! Largue a arma no chão. Agora? Não vou repetir isso!

 

Sachs virou-se e viu Mason Germain, a arma apontada para o chocado policial de cabelos cortados rentes, as orelhas de abano tornadas escarlate. Farr agachou-se e deixou cair a arma. Mason correu para ele e algemou-o.

 

Passos vindo de fora, folhas roçando umas nas outras. Tonta com o calor e a descarga de adrenalina, Sachs virou-se para o campo e viu um negro magro saindo das moitas, pondo no coldre uma grande pistola automática Browning.

 

- Fred! - gritou ela.

 

Fred Dellray, agente do FBI, suando em bicas no terno preto, foi até ela, enxugando petulantemente o suor na manga do paletó.

 

- Oi, Amélia. Poxa, está quente demais, demais, demais aqui. Não gosto nem um pouquinho desta cidade. E olhe só pra este terno. Está todo, vejam só, empoeirado ou coisa pior. Que merda é esta, pólen? Nós não temos este troço em Manhattan. Olhem só para esta manga!

 

- O que era que você estava fazendo ali! - perguntou ela, confusa.

 

- O que é que você acha? Lincoln não tinha certeza em quem podia ou não confiar, de modo que me trouxe de avião e me pediu e ao policial Germain para manter você de olho. Achou que precisava de alguma ajuda, compreendendo que não podia confiar em Jim Bell e nos cupinchas dele.

 

- Bell? - murmurou ela.

 

- Lincoln pensa que ele armou tudo isso. Está descobrindo com certeza agora mesmo. Mas parece que ele tinha razão, sendo esse aí o cunhado dele.

 

Dellray indicou Steve Farr com a cabeça.

 

- Ele quase me pegou - disse Sachs. O magro agente soltou uma risadinha.

 

- Você não corria, mesmo, nenhum perigo, de jeito nenhum. Eu tinha a mira bem em cima desse cara aí, entre essas orelhonas, logo que a porta foi aberta. Bastava ter apontado a arma para você, e ele já era.

 

Dellray notou que Mason o observava desconfiado. O agente riu e disse a Sachs:

 

- Nosso amigo na força policial não gosta muito de minha raça. Ele mesmo me disse isso.

 

- Espere aí - protestou Mason -, eu apenas quis dizer...

 

- Aposto que queria dizer agentes federais - disse Dellray. O policial sacudiu a cabeça e rosnou, mal-humorado:

 

- Eu queria dizer nortistas.

 

- É verdade - confirmou Sachs -, ele não gosta.

 

Sachs e Dellray riram. Mason, porém, permaneceu solene. Mas não eram diferenças culturais que o deixavam sombrio. Virou-se para Sachs:

 

- Lamento muito, mas vou ter que levá-la de volta para a cela. Você continua presa.

 

O sorriso de Sachs desapareceu e ela olhou uma vez mais para o sol, dançando em cima da grama amarelada suja. Tomou uma grande lufada do ar escaldante do lado de fora, e mais outra. Finalmente, girou sobre si mesma e voltou para a escura prisão.

 

- Você matou Billy, não foi? - perguntou Rhyme a Bell. O xerife, porém, permaneceu calado.

 

O criminalista continuou:

 

- A cena do crime ficou sem proteção durante uma hora e meia. E, certo, Mason foi o primeiro policial. Mas você chegou lá antes dele. Não recebeu nenhum telefonema de Billy dizendo que Mary Beth estava morta, ficou preocupado e foi de carro até Blackwater Landing, onde descobriu que ela havia desaparecido e que Billy estava ferido. Billy lhe contou que Garrett tinha fugido levando a moça. Você calçou as luvas de látex, pegou a pá e matou-o.

 

Finalmente, a raiva do xerife irrompeu através da fachada de calma:

 

- Por que você desconfiou de mim?

 

- Inicialmente, eu, de fato, pensei que fosse Mason... só nós três e Ben sabíamos da existência da cabana dos falsificadores. Pensei que ele tinha ligado para Culbeau e o enviado para lá. Mas perguntei a Lucy e descobri que Mason ligou para ela. e a enviou para a cabana... exatamente para ter certeza de que Amélia e Garrett não fugiriam novamente. Em seguida, comecei a pensar e me lembrei que, no moinho, Mason tentou matar Garrett. Quem quer que fizesse parte da trama iria querer mantê-lo vivo - como você fez - para que ele pudesse levá-lo ao lugar onde Mary Beth estava. Fiz um levantamento das finanças de Mason e descobri que ele tem uma casa barata e está pendurado no MasterCard e no Visa. Ninguém estava pagando a ele para fechar os olhos. Ao contrário de você e seu cunhado, Bell. Você tem uma casa de quatrocentos mil dólares e dinheiro à vontade no banco. E Steve Farr tem uma casa que vale duzentos e noventa e sete mil e um barco que custou cento e oitenta mil. Estamos pedindo autorização judicial para quebrar seu sigilo bancário e dar uma olhada em seus cofres de aluguel. Quanto será que vamos encontrar dentro deles? Rhyme continuou:

 

- Eu fiquei um pouco curioso sobre o motivo por que Mason estava com tanta gana de pegar Garrett, mas ele tinha uma boa razão para isso. Ele me disse que ficou muito chateado quando você obteve o cargo de xerife... e não pôde entender por quê, desde que a folha de serviço dele era melhor e era mais antigo na força. Ele achava que, se pudesse prender o Menino-Inseto, o prefeito o nomearia xerife quando acabasse seu mandato no cargo.

 

- E toda essa sua maldita representação teatral... - murmurou Bell. - Eu achava que você só acreditava em provas materiais...

 

Rhyme raramente esgrimia verbalmente com uma presa. Zombarias eram inúteis, exceto como bálsamo para a alma, e ele, até esse momento, não descobrira qualquer prova material sobre o paradeiro ou a natureza da alma. Ainda assim, disse a Bell:

 

- Eu teria preferido prova. Mas, às vezes, a gente tem que improvisar. Eu não sou realmente a prima-dona que todos pensam.

 

A Storm Arrow emperrou à porta estreita da cela de Amélia Sachs.

 

- Não é acessível a aleijados? - resmungou Rhyme. - Isso é uma violação da lei sobre deficientes físicos.

 

Sachs achou que a fanfarronada de Rhyme era feita para animála, deixando que ela visse de novo aqueles estados de espírito que conhecia tão bem. Mas ficou calada.

 

Devido ao problema com a cadeira de rodas, Mason Germain sugeriu que usassem a sala de interrogatório. Sachs entrou em passos lentos, usando as algemas e os grilhões; o policial insistiu (ela, afinal de contas, já tinha conseguido fugir dali).

 

O advogado de Nova York, o grisalho Solomon Geberth, tinha chegado. Membro das Ordens de Advogados de Nova York, Massachusetts e Washington, D.C., foi aceito pró hac vice na jurisdição da Carolina do Norte - para atuar exclusivamente no caso O Estado x Sachs. Curiosamente, com seu rosto bonitão, liso e maneirismos ainda mais suaves, ele parecia mais um aristocrático advogado sulista saído de um romance de John Grisham do que um causídico carnede-pescoço de Manhattan. Os cabelos bem cortados brilhavam com spray e o terno italiano resistia bravamente às rugas, mesmo na espantosa umidade de Tanner's Corner.

 

Lincoln Rhyme sentou-se entre ele e Sachs. Ela pôs a mão no descanso de braço da cadeira furada de bala...

 

- Eles trouxeram de Raleigh um promotor especial - explicou Geberth. - com o xerife e o legista presos, não acho que possam confiar muito em McGuire. De qualquer modo, ele examinou a prova e resolveu pedir o arquivamento das acusações contra Garrett.

 

Sachs animou-se ao ouvir isso:

 

- Ele fez isso? Geberth continuou:

 

- Garrett confessou ter batido no rapaz, Billy, e disse que pensou que o havia matado. Mas Lincoln tinha razão. Foi Bell quem o matou. E mesmo que o levassem à justiça por acusação de agressão, Garrett agiu evidentemente em legítima defesa. Aquele outro policial, Ed Schaeffer? A morte dele foi considerada acidental.

 

- E sobre o seqüestro de Lydia Johansson?

 

- Quando compreendeu que Garrett nunca teve intenção de machucá-la, ela resolveu retirar as acusações. Mary Beth fez a mesma coisa. A mãe queria que ela fosse em frente com a queixa, mas você devia ter ouvido a moça falar com aquela mulher. Um bocado de couro voou durante aquela, conversa, pode crer.

 

- Então ele está livre, Garrett? - perguntou Sachs, os olhos pregados no chão.

 

- Vão soltá-lo dentro de minutos - garantiu-lhe Geberth. E em seguida: - Agora, a parte chata, Amélia: a posição da promotoria é que, mesmo que tenha se descoberto que Garrett não era um criminoso, você ajudou na fuga de um indivíduo que havia sido detido na base de causa provável e matou um policial durante a perpetração desse crime. O promotor vai acusá-la de homicídio de primeiro grau e desconsiderar os crimes de menor gravidade: acusações de homicídio simples - tanto voluntário quanto involuntário - além de homicídio culposo e homicídio por negligência criminosa.

 

- Homicídio do primeiro grau? - perguntou secamente Rhyme.

 

- A morte não foi premeditada, foi um acidente! Pelo amor de Deus!

 

- É o que eu vou tentar demonstrar no julgamento - disse Gelberth. - Que o outro policial, aquele que a agarrou, foi causa parcial próxima do tiro. Mas posso garantir que eles vão conseguir uma condenação por homicídio culposo. À vista dos fatos, não há dúvida a esse respeito.

 

- Quais as probabilidades de absolvição? - perguntou Rhyme.

 

- Más. Dez, quinze por cento, na melhor das hipóteses. Lamento muito, mas tenho que recomendar que você reconheça a culpa.

 

Sachs recebeu essas palavras como um golpe no peito. Fechou os olhos e, quando exalou, foi como se a alma lhe tivesse abandonado o corpo.

 

- Jesus - murmurou Rhyme.

 

Sachs pensava nesse momento em Nick, seu antigo namorado. Ao ser preso por assalto e recebimento de suborno, recusou-se a confessar a culpa e assumiu o risco de julgamento por júri. E lhe disse: "É igualzinho ao que seu velho lhe disse, Amélia... quando você se move rápido, eles não podem pegá-lo. É tudo ou nada."

 

O júri precisou de apenas 18 minutos para condená-lo. Ele continua em uma penitenciária em Nova York.

 

Sachs olhou para o rosto liso de Geberth. E perguntou:

 

- O que é que o promotor oferece pelo reconhecimento de culpa?

 

- Nada, ainda. Mas ele provavelmente aceitará homicídio culposo... desde que você cumpra uma pena dura. Acho que oito, dez anos. Mas tenho que lhe dizer que, na Carolina do Norte, vai ser um tempo duro. Nada de country dub por aqui.

 

- Contra 15% de probabilidade de absolvição - rosnou Rhyme.

 

- Exatamente - confirmou o advogado, que, em seguida, acrescentou:

 

- Você tem que compreender, Amélia, que aqui não vai acontecer nenhum milagre. Se formos a julgamento, o promotor vai provar que você é uma policial e campeã

 

de tiro, e o júri vai ter problema para aceitar a idéia de que o tiro foi acidental.

 

Regras normais não se aplicam ao norte ao Paquo. Ou nós ou eles. A gente pode se ver atirando antes de ler os direitos do cara e isso é perfeitamente certo.

 

O advogado continuou:

 

- Se isso acontecer, o júri poderá condená-la por assassinato de primeiro grau e você pegará 25 anos.

 

- Ou a pena de morte - disse baixinho Sachs.

 

- Exato, essa é uma possibilidade. Não posso dizer que não é. Por alguma razão, a imagem que se formou na mente de Amélia foi a dos falcões peregrinos que faziam ninho no lado de fora da janela de Lincoln Rhyme, em sua casa em Manhattan: o macho, a fêmea e o bebê falcão. E disse:

 

- Se eu confessar homicídio involuntário, quando tempo cumprirei de pena?

 

- Provavelmente, seis, sete anos. Mas sem direito a livramento condicional.

 

Você e eu, Rhyme.

 

Amélia tomou uma profunda respiração.

 

- Eu confessarei...

 

- Sachs... - começou Rhyme. Ela, porém, respondeu a Geberth:

 

- Vou me declarar culpada.

 

O advogado levantou-se. Inclinou a cabeça:

 

- vou ligar para o promotor agora mesmo, verificar se ele aceita isso. Eu aviso você logo que souber alguma coisa.

 

com um gesto de cabeça na direção de Rhyme, deixou a sala. Mason lançou um olhar ao rosto de Sachs. Levantou-se e dirigiu-se para a porta, as botas batendo alto no chão.

 

- vou deixar vocês dois aqui por alguns minutos. Não preciso passar revista em você, preciso, Rhyme?

 

Rhyme sorriu tristemente.

 

- Não tenho arma nenhuma, Mason.

 

Ele fechou a porta.

 

- Que encrenca, Lincoln - disse ela.

 

- Ahn, ahn, Sachs. Nada de primeiros nomes.

 

- Por que não? - perguntou ela, cinicamente, quase num sussurro. - Dá azar?

 

- Talvez.

 

- Você não é supersticioso. Ou pelo menos foi isso que sempre me disse.

 

- Não, de modo geral. Mas este é um lugar mal-assombrado. Tanner's Comer... A cidade sem crianças.

 

- Eu devia ter escutado você - disse Rhyme. - Você teve razão sobre Garrett. Eu errei. Examinei a prova e formei uma idéia errônea.

 

- Mas eu não sabia que estava certa. Eu não sabia de nada. Eu simplesmente tive um palpite e agi nessa base.

 

- O que quer que aconteça, Sachs - disse Rhyme -, eu não vou pra lugar nenhum. - Inclinou a cabeça na direção da Storm Arrow e riu. - Eu não poderia ir muito longe, mesmo que quisesse. Você cumpre um tempo de pena e eu estarei à espera, quando você sair.

 

- Palavras, Rhyme - disse ela. - Apenas palavras... Meu pai também disse que não ia a lugar nenhum. Isso uma semana antes que o câncer acabasse com ele.

 

- Eu sou intratável demais para morrer.

 

Mas não é intratável demais para melhorar, pensou ela, para conhecer outra pessoa. Continuar sua vida e me deixar para trás.

 

A porta da sala de interrogatório foi aberta nesse instante. Garrett apareceu, Mason às suas costas. As mãos do rapaz, não mais algemadas, estavam juntas em forma de concha em frente ao corpo.

 

- Ei - disse ele, num cumprimento. - Veja só o que descobri. Estava na minha cela. - Abriu as mãos e um pequeno inseto voou.

 

- É uma mariposa-esfinge. Elas gostam de comer folhas de valeriana. A gente não as encontra muito em lugares fechados. Bem legal.

 

Sachs sorriu levemente, sentindo prazer em ver-lhe os olhos entusiasmados.

 

- Garrett, há uma coisa que quero que você saiba. Ele aproximou-se mais e olhou-a.

 

- Você se lembra do que disse no trailer? Quando falou com seu pai na cadeira vazia?

 

Ele inclinou indeciso a cabeça.

 

- Você contou como se sentiu mal porque ele não o deixou entrar no carro naquela noite.

 

- Eu me lembro.

 

- Mas sabe por que ele não quis que você entrasse? Estava tentando salvar sua vida. Ele sabia que havia veneno no carro e que eles iam morrer. Se você entrasse no carro, morreria, também. E ele não queria que isso acontecesse.

 

- Eu acho que sabia disso - respondeu Garrett.

 

A voz dele era hesitante e Amélia pensou que reescrever a própria história era trabalho penoso.

 

- Continue a lembrar-se disso.

 

- vou continuar.

 

Sachs olhou para a minúscula mariposa bege, que voava em volta da sala de interrogatório.

 

- Você deixou alguma coisa na cela para mim? Para me fazer companhia?

 

- Deixei, sim. Deixei duas joaninhas - o nome verdadeiro delas é besouros-joaninha. E dois insetos foliformes e uma mosca sirfo. É legal a maneira como elas voam.

 

Você pode ficar observando-as durante horas. - Fez uma pausa. - Tipo lamento muito ter mentido pra você. A coisa é, se não tivesse mentido, nunca poderia ter fugido e ajudado Mary Beth.

 

- Está tudo bem, Garrett.

 

O rapaz virou-se para Mason:

 

- Posso ir embora agora? -Pode.

 

Ele dirigiu-se à porta, virou-se e disse a Sachs:

 

- Eu venho aqui e... tipo faço companhia a você. Se for OK.

 

- Eu gostaria disso.

 

Saiu e, através da porta aberta, Sachs viu-o dirigir-se até um 4 X 4.0 carro de Lucy Kerr. Viu-a descer e manter a porta aberta para ele - como uma mãe que vai buscar o filho depois de um treino de futebol. A porta da cadeia foi fechada e terminou essa cena doméstica.

 

- Sachs - começou Rhyme.

 

Ela, porém, sacudiu a cabeça e começou a arrastar os grilhões na direção da cadeia. Queria ficar longe do criminalista, longe do Menino-Inseto, longe da cidade sem crianças. Queria estar nas trevas da solidão.

 

E logo depois estava.

 

Nos arredores de Tanner's Corner, na Estrada 112, na parte onde ela tem ainda duas pistas, há uma curva, perto do rio Paquenoke. Pouco além do acostamento estende-se um campo luxuriante de capim-penacho, junça, e aquilégias altas, azuis, exibindo suas flores vermelhas características como se fossem bandeiras.

 

A vegetação cria um nicho muito popular como pátio de estacionamento para os policiais do Condado de Paquenoke, que bebem chá gelado e escutam rádio, enquanto esperam que seus detectores de radar acusem velocidades de 85 quilômetros por hora ou mais. Em seguida, partem em alta velocidade pela estrada em perseguição ao motorista irresponsável e acrescentam mais uns cento e tantos dólares ao Tesouro do condado.

 

Naquele dia, domingo, quando um Lexus SUV preto passou nesse ponto da estrada, o detector de radar no painel de instrumentos de Lucy Kerr registrou seguros 70 quilômetros por hora. Ela, porém, engrenou a radiopatrulha, apertou o botão que ligava as luzes giratórias na capota e partiu atrás do veículo, com tração nas quatro rodas.

 

Aproximou-se com facilidade e examinou-o cuidadosamente. Tinha aprendido há muito tempo examinar o espelho retrovisor dos carros que mandava parar. Olhando para os olhos do motorista, pode-se ter idéia muito boa de outros crimes que ele possa estar cometendo, se isso acontece, além de excesso de velocidade ou luz de sinalização traseira pifada. Drogas, armas roubadas, bebida. E sente até que ponto será perigosa aquela detenção do suspeito. Naqele momento, viu os olhos do homem saltar para o espelho e fitá-la, sem nenhuma culpa ou preocupação.

 

Olhos invulneráveis.

 

E que fizeram com que sua raiva se tornasse ainda mais feroz. Teve que respirar fundo para controlá-la.

 

Jefferv. Deaver O carrão parou lentamente no acostamento de terra e Lucy parou atrás. O regulamento dizia que devia examinar o selo da placa, o pagamento da taxa de licença do veículo e checar a carteira de habilitação do motorista, mas não se incomodou com isso. Nada havia nesses documentos que a pudessem interessar. com mãos trêmulas, abriu a porta do carro e desceu.

 

Os olhos do motorista viraram nesse momento para o espelho lateral e continuaram a examiná-la clinicamente. E registraram certa surpresa, notando, pensou, que ela não usava uniforme - simplesmente jeans e camisa esporte - embora trouxesse a arma à cintura. O que estaria fazendo uma policial de folga, mandando parar um motorista que não vinha ultrapassando o limite de velocidade?

 

Henry Davett baixou o vidro da janela.

 

Lucy Kerr olhou para dentro, passando por Davett. No assento do passageiro viu uma mulher, no princípio da casa dos 50 anos, com uma secura nos cabelos tingidos de louro que sugeriam lavagens freqüentes no salão de beleza. Usava diamantes nos punhos, orelhas e colo. Uma adolescente ocupava o assento traseiro, examinando caixas de CDs, curtindo mentalmente as músicas que o pai não lhe permitia escutar no domingo.

 

- Policial Kerr - disse Davett -, qual é o problema?

 

Mas ela viu naqueles olhos, não mais como reflexo no espelho, que ele sabia exatamente qual era o problema.

 

E ainda assim permanecia tão inocente de culpa e no controle da situação como no momento em que notou o giro das luzes na capota de seu Crown Victoria.

 

A raiva forçou os controles e ela respondeu secamente:

 

- Desça do carro, Davett.

 

- Amor, o que foi que você fez?

 

- Policial, o que é que significa isso? - perguntou Davett, soltando um suspiro.

 

- Desça. Agora.

 

Lucy enfiou a mão pela janela e soltou a trava da porta.

 

- Ela pode fazer isso, amor? Ela pode...

 

- Cale a boca, Edna.

 

- Tudo bem. Desculpe.

 

Lucy abriu a porta com um repelão. Davett soltou o cinto de segurança e desceu para o acostamento.

 

Uma jamanta passou por eles rápida e envolveu-os em uma nuvem de poeira. Davett olhou aborrecido para a argila cinza da Carolina depositar-se em seu blazer azul.

 

- Minha família e eu estamos atrasados para a igreja e eu não acho...

 

Ela tomou-lhe o braço e puxou-o do acostamento, levando-o para a sombra de moitas de arroz silvestre e tifas. Um pequeno riacho, afluente do Paquenoke, corria ao lado da estrada.

 

Exasperado, ele repetiu:

 

- Qual é o problema?

 

- Eu sei de tudo.

 

- Sabe, policial Kerr? Sabe de tudo? O que seria isso?

 

- O envenenamento, os assassinatos, o canal... Suavemente, Davett respondeu:

 

- Eu nunca tive o menor contato direto com Jim Bell ou com qualquer outra pessoa em Tanner's Comer. Se houve em minha folha de pagamento algum imbecil que contratou outros imbecis loucos para praticar atos ilegais, isso não foi culpa minha. E se isso aconteceu, eu cooperarei cem por cento com as autoridades.

 

Sem se impressionar com a resposta, ela rosnou:

 

- Você vai pagar pelo que fez, juntamente com Bell e o cunhado dele.

 

- Claro que não vou. Nada me liga a qualquer crime. Não há testemunhas. Nem contas bancárias, nem transferência de dinheiro, nenhuma prova de qualquer ato ilegal.

 

Eu sou um fabricante de produtos petroquímicos... certos tipos de detergente, asfalto e alguns pesticidas.

 

- Pesticidas ilegais.

 

- Errado - respondeu ele secamente. - A APA permite ainda que o toxafeno seja usado em alguns casos, nos Estados Unidos. E não é ilegal na maioria dos países do Terceiro Mundo. Leia um pouco, policial. Sem pesticidas, a malária, a encefalite e a fome matariam centenas de milhares de pessoas todos os anos e...

 

-... provocaria câncer, defeitos congênitos, lesões no fígado nas pessoas expostas e...

 

Davett encolheu os ombros.

 

- Mostre-me os estudos, policial Kerr. Mostre-me a pesquisa que prova isso.

 

- Se o produto é tão inofensivo assim, por que você deixou de transportá-lo em caminhões? Por que começou a usar chatas?

 

- Eu não poderia levá-lo ao porto de qualquer outra maneira... porque alguns condados e cidades administradas por imbecis proibiram o transporte de algumas substâncias sobre as quais desconhecem os fatos. E eu não tinha tempo de contratar lobistas para mudar as leis.

 

- Eu aposto que a APA ficaria interessada no que você está fazendo aqui.

 

- Oh, por favor - escarneceu ele. - A APA? Chame-a. Eu lhe dou o número do telefone dela. Se a agência um dia mandar alguém aqui para visitar a fábrica, vai descobrir níveis permisisíveis de toxafeno em toda parte em volta de Tanner's Corner.

 

- Talvez o que haja somente na água esteja no nível permissível, talvez o que esteja apenas no ar, talvez apenas na produção agrícola local... Mas o que é que você me diz da combinação deles? O que é que você me diz de crianças que bebem um copo d'água tirada do poço da casa dos pais, depois brincam na grama, em seguida comem uma maçã do pomar local e depois...

 

Ele deu de ombros.

 

- As leis são claras, policial Kerr. Se não gosta delas, escreva para seu deputado.

 

Ela agarrou-o pela lapela. E disse furiosa:

 

- Você não compreende. Você vai pra cadeia. Ele se soltou e disse, baixinho e ferozmente:

 

- Não, você não compreende, policial. Você aqui está fora de sua praia. Eu sou competente, muito competente no que faço. Eu não cometo erros. - Lançou um olhar ao relógio. - vou ter que ir agora.

 

Voltou ao SUV, alisando os cabelos, que rareavam na cabeça. O suor havia escurecido e colado os fios no couro cabeludo.

 

Subiu para o carro e fechou a porta com um estrondo.

 

Lucy foi até o lado do motorista no momento em que ele dava partida ao motor.

 

- Espere - disse. Davett lançou- lhe um olhar. A policial, porém, ignorou-o. Olhava para as outras ocupantes do carro.

 

- Eu gostaria que vocês vissem o que Henry fez.

 

As mãos fortes rasgaram a camisa. As mulheres no carro arque jaram ao ver as cicatrizes cor-de-rosa nos lugares antes ocupados pelos seios.

 

- Oh, pelo amor de Deus - murmurou Davett, desviando a vista.

 

- Papai... - murmurou a mocinha, chocada.

 

A mãe olhou fixamente para o peito de Lucy, incapaz de falar.

 

- Você disse que não comete erros, Davett? - perguntou Lucy.

 

- Errado. Você cometeu este.

 

Davett passou a marcha, ligou a sinaleira, olhou para trás pelo retrovisor e entrou lentamente na estrada.

 

Lucy permaneceu ali durante um longo tempo, observando o Lexus afastar-se. Enfiou a mão no bolso e fechou a blusa com vários alfinetes de segurança. Encostou-se no carro durante mais um longo momento, controlando as lágrimas, olhou para baixo e notou uma flor pequena, avermelhada, ao lado da estrada. Apertou os olhos para vê-la melhor. Era uma flor mocassim cor-de-rosa, um tipo de orquídea. As flores pareciam minúsculos sapatos sem cadarços. A planta era rara no Condado de Paquenoke e ela nunca vira uma tão bela assim. Em cinco minutos, usando o raspador de gelo do limpador do pára-brisa, tirou a plantinha do solo e colocou-a com todo cuidado em um copo alto de 7-Eleven, a cerveja sacrificada pela beleza do jardim de Lucy Kerr.

 

Uma placa na parede do prédio da Corte de Justiça explicava que o nome do Estado derivava da palavra latina Carolus, que significa Charles. O Rei Charles I foi o soberano que concedeu a cartapatente de criação da colônia.

 

Carolina...

 

Amélia Sachs pensava que o Estado tinha recebido o nome em homenagem a Caroline, alguma rainha ou princesa. Nascida e criada no Brooklyn, era pouco o que sentia ou sabia sobre realeza.

 

Estava sentada nesse momento, imóvel, algemada, entre dois guardas, no banco dos réus. O prédio de tijolos vermelhos era antigo, com painelamento de mogno e piso de mármore. Homens de aparência severa, usando ternos escuros, juizes ou governadores, supôs, fitavam-na de retratos a óleo nas paredes, como se soubessem que ela era culpada. Não parecia haver ar condicionado ali, mas brisas e escuridão refrescavam o local, graças às eficientes técnicas de engenharia do século XVIII.

 

Fred Dellray aproximou-se lentamente dela.

 

- Ei, você aí... quer um café ou alguma outra coisa?

 

O guarda da esquerda chegou a dizer "Não é permitido...", antes que um documento de identificação do Departamento de Justiça cortasse a frase.

 

- Não, Fred. Onde está Lincoln? Eram quase nove e meia.

 

- Nem desconfio. Você conhece aquele homem... às vezes, ele simplesmente aparece. Para um homem que não anda, ele se move mais do que qualquer pessoa que conheço.

 

Lucy e Garrett tampouco estavam à vista.

 

Sol Geberth, usando um terno cinza que parecia ter custado uma nota preta, aproximou-se. O guarda à direita levantou-se e deixou o advogado sentar-se ao lado da ré.

 

- Alô, Fred - cumprimentou-o o advogado.

 

Dellray inclinou a cabeça, embora friamente. Sachs deduziu que, como acontecia com Rhyme, o advogado de defesa tinha conseguido absolvições de suspeitos que haviam sido "encanados" pelo agente.

 

- Acordo feito - disse Geberth a Sachs. - O promotor concordou com a acusação de homicídio culposo... desistindo das demais acusações. Cinco anos. Sem direito a livramento condicional.

 

Cinco anos...

 

O advogado continuou:

 

- Mas há um aspecto neste caso que não pensei ontem.

 

- Qual? - perguntou ela, tentando avaliar pela expressão dele a gravidade do novo problema.

 

- O problema é que você é uma policial.

 

- O que é que isso tem a ver com qualquer coisa? Antes que ele pudesse responder, Dellray disse:

 

- Você é uma encarregada do cumprimento da lei. Uma pessoa especial.

 

Notando que ela ainda não tinha compreendido, o agente continuou:

 

- Prisão especial. Você vai ter que ficar isolada. Ou não duraria uma semana. Isso vai ser difícil, Amélia. Difícil pra burro.

 

- Mas ninguém sabe que sou policial. Dellray riu, de leve.

 

- Eles saberão tudo que houver para saber a seu respeito quando você receber seu uniforme de prisão e as roupas de cama.

 

- Eu não prendi ninguém por aqui. Por que eles se importariam com o fato de eu ser policial?

 

- Não faz a mínima diferença de onde você é - disse Dellray, olhando para Geberth, que inclinou a cabeça, concordando. - De maneira nenhuma vão deixá-la fazer parte da população geral da penitenciária.

 

- De modo que será basicamente cinco anos em solitária.

 

- Receio que sim - confirmou Geberth.

 

Amélia fechou os olhos e sentiu uma náusea tomar-lhe todo o corpo.

 

Cinco anos sem se mover, de claustrofobia, de pesadelos...

 

E, como ex-presidiária, como poderia pensar em tornar-se mãe? Sufocou de desespero.

 

- E daí? - perguntou o advogado. - O que é que vai ser? Sachs abriu os olhos.

 

- Vou me confessar culpada.

 

A sala estava cheia. Sachs viu Mason Germain e alguns outros policiais. Um casal de aparência sombria, olhos vermelhos, provavelmente os pais de Jesse Corn, ocupava lugares na primeira fila. Queria muito dizer alguma coisa a eles. O olhar desdenhoso que lhe dirigiram, porém, manteve-a calada. Só viu dois rostos que a fitavam bondosamente: Mary Beth McConnell e uma senhora corpulenta, presumivelmente a mãe dela. Nenhum sinal de Lucy Kerr. Nem de Lincoln Rhyme. Achou que ele não agüentaria vê-la ser levada dali acorrentada. Tudo bem, ela, também, não queria vê-lo nessas circunstâncias.

 

Um oficial de justiça levou-a até a mesa do advogado de defesa. Deixou-a algemada. Sol Geberth sentou-se a seu lado.

 

Todos se levantaram no momento em que o juiz entrou. O magro cavalheiro, usando toga preta, sentou-se na cadeira do presidente dos trabalhos. Passou alguns minutos lendo documentos e conversando com o escrivão. Finalmente, inclinou a cabeça e o escrivão proclamou em voz alta:

 

- Julgamento da ação do Estado da Carolina do Norte contra Amélia Sachs.

 

O juiz inclinou a cabeça na direção do promotor público, de Raleigh, um homem alto, de cabelos brancos.

 

- Meritíssimo, a ré e o Estado fizeram um acordo, pelo qual a ré concorda em confessar-se culpada de homicídio culposo na morte do policial Jesse Randolph Corn. O Estado desiste das demais acusações e recomenda uma sentença de cinco anos de prisão, a ser cumprida sem possibilidade de livramento condicional ou redução de pena.

 

- Srta. Sachs, a senhorita discutiu esse acordo com seu advogado?

 

- Discuti, Meritíssimo.

 

- E ele lhe disse que a senhorita tem o direito de rejeitá-lo e de querer ser julgada?

 

- Sim, senhor.

 

- E a senhorita compreende que, ao aceitar esse acordo, está confessando sua culpa num crime de homicídio?

 

- Compreendo, sim, senhor.

 

- E a senhorita está tomando essa decisão de livre e espontânea vontade?

 

Amélia pensou no pai, em Nick. E em Lincoln Rhyme.

 

- Estou, sim, senhor.

 

- Muito bem. De que maneira responde à acusação de homicídio culposo que lhe é feita?

 

- Culpada, Meritíssimo.

 

- À vista da recomendação da promotoria, a confissão é aceita e, em conseqüência, condeno-a a...

 

As portas forradas de couro vermelho que levavam ao corredor foram empurradas para dentro e, com um chiado alto, Lincoln Rhyme entrou em sua cadeira de rodas. Um oficial de justiça tentou abrir as portas para a Storm Arrow, mas Lincoln Rhyme parecia ter pressa e simplesmente empurrou-as. Uma das portas bateu na parede. Lucy Kerr vinha às costas dele.

 

O juiz ergueu a vista, pronto para repreender o intruso. Mas, quando viu a cadeira, ele - como a maioria das pessoas - fez o que era politicamente correto, um tipo de conduta que Rhyme desprezava, e nada disse. Voltou-se mais uma vez para Sachs:

 

- E, em conseqüência, condeno-a a cinco anos...

 

- Queira me perdoar, Meritíssimo. Preciso falar com a ré e seu advogado durante um minuto.

 

- Bem - resmungou o juiz -, estamos no meio de um procedimento judicial. O senhor poderá falar com ela em algum momento mais tarde.

 

- com o devido respeito, Meritíssimo - respondeu Rhyme -, eu preciso falar com ela agora.

 

Embora fosse apenas um murmúrio, a voz de Rhyme soou mais alta do que a do juiz.

 

Exatamente igual aos velhos dias, estar em uma Corte de Justiça.

 

A maioria das pessoas pensa que o único trabalho do criminalista consiste em descobrir e analisar provas. Quando esteve à frente do Instituto de Criminalística, da Polícia da Cidade de Nova York, porém, Lincoln Rhyme passara tanto tempo depondo quanto no laboratório. Ele era uma boa testemunha especializada. (Elaine, sua ex-esposa, dizia freqüentemente que ele preferia representar em frente a pessoas - dela, inclusive - do que interagir com elas.)

 

Rhyme, com todo cuidado, dirigiu a cadeira para o corrimão que separava as mesas dos advogados do espaço reservado ao público, na Corte de Justiça do Condado de Paquenoke. Lançou um olhar a Amélia e o que viu quase lhe partiu o coração. Nos três dias que passou na cadeia, ela havia perdido muito peso e tinha uma cor doentia no rosto. Os cabelos, sujos, estavam amarrados em um apertado coque - da maneira como os usava em cenas de crime, para evitar que fios tocassem em provas. Este coque, porém, tornava-lhe sério e tenso o rosto bonito.

 

Geberth aproximou-se e agachou-se ao lado da cadeira. O criminalista lhe falou durante alguns minutos. Finalmente, Geberth inclinou a cabeça e endireitou-se.

 

- Meritíssimo, estou consciente de que esta sessão diz respeito a um acordo entre as partes, concernente a uma confissão de culpa. Mas tenho uma proposta incomum a fazer. Algumas novas provas vieram à luz...

 

- Que o senhor poderá apresentar num julgamento - disse seco o juiz - se sua cliente resolver rejeitar o acordo referente à confissão de culpa.

 

- Eu não estou sugerindo que vou apresentar qualquer coisa a esta colenda corte. Mas gostaria de tornar a promotoria ciente dessa prova e verificar se meu nobre colega concordará em examiná-la.

 

- Para que fim?

 

- Possivelmente, para modificar as acusações contra minha cliente - disse astutamente. - O que poderá fazer com que o trabalho de Vossa Excelência se torne menos cansativo.

 

O juiz rolou os olhos para o alto, para mostrar que a manha nortista não valia nada nessa parte do país. Ainda assim, lançou um olhar ao promotor e perguntou:

 

- Bem?

 

O promotor voltou-se para Geberth:

 

- Que tipo de prova? Uma nova testemunha? Rhyme não conseguiu controlar-se mais:

 

- Não - disse. - Prova material.

 

- O senhor é o Lincoln Rhyme de quem tenho ouvido falar? perguntou o juiz.

 

- Sou, sim, senhor.

 

- Que prova será essa? - perguntou o promotor.

 

- Ela está sob minha custódia, na Delegacia de Polícia do Condado de Paquenoke - disse Lucy Kerr.

 

O juiz dirigiu-se a Rhyme:

 

- O senhor aceita depor, sob juramento?

 

- Certamente.

 

- Tudo bem com a promotoria, senhor? - perguntou o juiz ao promotor.

 

- Sim, Meritíssimo, mas se isto for apenas uma tática ou for verificado que a prova seja sem sentido, eu apresentarei queixa de obstrução da justiça por parte do Sr. Rhyme.

 

O juiz pensou por um momento e em seguida decidiu:

 

- Para que conste em ata, esta decisão não faz parte de qualquer procedimento judicial. A corte está simplesmente cedendo espaço as partes para uma tomada de depoimento, antes de uma decisão. O interrogatório será feito de acordo com as Regras de Procedimentos Criminais, da Carolina do Norte. Escrivão, tome o juramento da testemunha.

 

Rhyme estacionou a cadeira em frente ao banco das testemunhas. O escrivão, trazendo uma Bíblia, aproximou-se hesitante.

 

- Não - disse Rhyme. - Não consigo erguer a mão direita. - E recitou: -Juro que o depoimento que vou prestar é a verdade, o que juro solenemente.

 

Tentou captar o olhar de Sachs, mas ela olhava nesse momento para um desbotado ladrilho do piso da sala. Geberth dirigiu-se para a frente da sala.

 

- Sr. Rhyme, o senhor poderia nos dizer seu nome, endereço, e profissão?

 

- Lincoln Rhyme, Central Park West, Cidade de Nova York. Sou criminalista.

 

- Isso significa cientista forense, certo?

 

- Algo mais do que isso, embora a ciência forense constitua a maior parte do que faço.

 

- Até que ponto conhece a ré, Amélia Sachs?

 

- Ela foi minha assistente e colega em certo número de investigações criminais.

 

- E como aconteceu sua vinda a Tanner's Corner?

 

- Nós estávamos ajudando o xerife James Bell e a Delegacia de Polícia do Condado de Paquenoke. Investigando o assassinato de Billy Stail e os seqüestros de Lydia Johansson e Mary Beth McConnell.

 

- Sr. Rhyme - continuou Geberth -, o senhor disse que tem novas provas que interessam a este caso?

 

- Disse, sim, senhor.

 

- Que prova é essa?

 

- Depois que descobrimos que Billy Stail foi a Blackwater Landing com o objetivo de matar Mary Beth McConnell, comecei a especular sobre o motivo por que ele tinha feito isso. E conclui que ele foi pago para matá-la. Ele...

 

- Por que o senhor pensa que ele foi pago?

 

- O motivo é óbvio - resmungou Rhyme.

 

Era pouca sua impaciência com questões irrelevantes e Geberth estava se desviando do roteiro.

 

- Conte-nos, se puder ter esta bondade.

 

- Billy não tinha nenhum relacionamento romântico, de qualquer tipo, com Mary Beth. Não esteve envolvido no assassinato da família de Garrett Hanlon. Ele nem mesmo a conhecia. De modo que não tinha outra motivação para matá-la, salvo proveito financeiro.

 

-Continue.

 

Rhyme voltou a falar:

 

- Quem quer que o tenha contratado não ia pagar em cheque, claro, mas em dinheiro vivo. A policial Kerr foi à casa dos pais de Billy Stail e obteve permissão de dar uma busca em seu quarto. Descobriu dez mil dólares escondidos sob o colchão da cama.

 

- O que era que havia nisso...

 

- Por que não deixa que eu termine de falar? - perguntou Rhyme ao advogado.

 

O juiz interveio:

 

- Boa idéia, Sr. Rhyme. Acho que o advogado de defesa já realizou trabalho preliminar suficiente.

 

- Com ajuda da policial Kerr, fiz uma análise de cristas de atrito - isto é, um exame de impressões digitais - das primeiras e últimas notas das pilhas do dinheiro. Encontrei um total de 61 impressões digitais. À parte as impressões digitais de Billy, comprovou-se que duas delas eram de uma pessoa envolvida neste caso. A policial Kerr obteve outra ordem judicial para dar uma busca na casa desse indivíduo.

 

- O senhor a revistou também? - perguntou o juiz. Rhyme respondeu com uma paciência forçada:

 

- Não, eu não dei busca. Não me era possível fazer isso. Mas dirigi-a, e ela foi realizada pela policial Kerr. Na casa, ela encontrou um recibo de compra de uma pá idêntica à arma do crime, 83.000 dólares em dinheiro, dentro de envoltórios idênticos aos encontrados nas duas pilhas de dinheiro na casa de Billy Stail.

 

Dramático como sempre, Rhyme reservou o melhor para o fim:

 

- A policial Kerr encontrou também fragmentos de ossos na churrasqueira atrás da casa. Esses fragmentos são idênticos aos ossos da família de Garrett Hanlon.

 

- De quem era a casa?

 

- Do policial Jesse Corn.

 

Essas palavras provocaram altos murmúrios de pessoas sentadas na platéia. O promotor permaneceu impassível, mas endireitou-se na cadeira, os pés raspando o chão de mosaico, e conversou em voz baixa com os colegas, enquanto examinavam as implicações da revelação. Na platéia, os pais de Jesse trocaram olhares, choque em seus olhos. A mãe sacudiu a cabeça e começou a chorar.

 

- Aonde, exatamente, o senhor quer chegar, Sr. Ryme? - perguntou o juiz.

 

Rhyme resistiu a dizer ao juiz que o lugar aonde queria chegar era óbvio. Respondeu, apenas:

 

- Meritíssimo, Jesse com foi uma das pessoas que conspiraram com Jim Bell e Steve Farr para matar a família de Garrett Hanlon há cinco anos e, em seguida, matar Mary Beth McConnell naquele dia.

 

Oh, sim. Está cidade tem alguns marimbondos. O juiz recostou-se na cadeira.

 

- Isso nada tem a ver com os procedimentos judiciais aqui iniciados. Os senhores - e com um movimento de cabeça indicou Geberth e o promotor - que resolvam isso. Têm cinco minutos e, em seguida, ela aceita o acordo em troca da confissão de culpa ou eu estabelecerei a fiança e marcarei a data do julgamento.

 

O promotor voltou-se para Geberth:

 

- Isso não significa que ela não tenha assassinado Jesse. Mesmo que Corn fosse membro da conspiração, ele foi ainda assim vítima de homicídio.

 

Nesse momento, o nortista rolou seus olhos para cima.

 

- Ora, vamos - disse Geberth, como se o promotor fosse um aluno de fraco entendimento. - O que isso significa é que Corn estava agindo fora de sua jurisdição legal como encarregado do cumprimento da lei, e que, quando enfrentou Garrett, era um criminoso, armado e perigoso. Jim Bell confessou que estavam planejando torturar o rapaz para encontrar o paradeiro de Mary Beth. Logo que a tivessem encontrado, Corn estaria lá com Culbeau e os outros para matar Lucy Kerr e os outros policiais.

 

Os olhos do juiz moveram-se lentamente da esquerda para a direita, enquanto observava essa partida de tênis sem precedentes.

 

- Eu só posso me concentrar no crime em pauta - disse o promotor. - Não importa se Jesse Corn ia ou não matar alguém.

 

Geberth sacudiu lentamente a cabeça e disse a um escrivão:

 

- Vamos suspender o depoimento. Isto não é para constar em ata.

 

- E em seguida ao promotor: - De que adianta continuar? Corn era um assassino.

 

Rhyme fez coro com ele, dirigindo-se ao promotor:

 

- Leve esses fatos a julgamento e o que é que o senhor acha que o júri vai pensar, quando provarmos que a vítima era um policial desonesto, que planejava torturar um rapaz inocente, para encontrar uma jovem mulher, e matá-la em seguida?

 

E Geberth continuou:

 

- O senhor não vai querer essa marca na coronha de sua arma. O senhor tem Bell, o senhor tem o cunhado dele, o legista...

 

Antes que o promotor pudesse voltar a protestar, Rhyme fitouo e disse, em voz baixa:

 

- Eu o ajudarei.

 

- O quê? - perguntou o promotor.

 

- O senhor sabe quem está por trás de tudo isso, não? O senhor sabe quem está matando metade dos moradores de Tanner's Corner?

 

- Henry Davett - disse o promotor. - Eu li os autos e os depoimentos.

 

- E que tal uma acusação contra ele?

 

- Nada bom. Não há provas. Não há ligação entre ele, Bell ou qualquer outra pessoa na cidade. Ele usou intermediários e todos eles estão mudos ou fora de nossa jurisdição.

 

- Mas o senhor não quer pegá-lo - perguntou Rhyme - antes que mais pessoas morram de câncer? Antes que mais crianças adoeçam e se suicidem? Antes que mais bebês nasçam com defeitos congênitos?

 

- Claro que eu quero.

 

- Neste caso, o senhor vai precisar de mim. O senhor não vai encontrar em todo o Estado um criminalista que possa derrotar Davett. Eu posso.

 

Lançou um olhar a Sachs. Viu lágrimas naqueles olhos. Sabia que o único pensamento dela naquele momento era que, fosse para a prisão ou não, ela não tinha matado um homem inocente.

 

O promotor exalou um profundo suspiro. Em seguida, inclinou a cabeça. Rapidamente, como se pudesse mudar de idéia, disse:

 

- De acordo. - E olhou para o juiz. - Meritíssimo, no caso de O Estado Contra Sachs, o Estado retira todas as acusações.

 

- Caso concluído - disse o entediado juiz. - A ré está livre. Caso seguinte.

 

E nem mesmo se importou em bater com o martelo na mesa.

 

- Eu não tinha certeza se você iria aparecer ou não - disse Lincoln Rhyme.

 

Estava, de fato, surpreso.

 

- Eu também não tinha certeza se viria - respondeu Sachs. Os dois estavam no quarto do hospital, no centro médico, em Avery.

 

- Eu acabo de voltar de uma visita a Thom, no quinto andar. É curioso... eu tenho maior capacidade de movimento do que ele.

 

- Como vai ele?

 

- Está ótimo. Deve ter alta dentro de um ou dois dias. Eu lhe disse que ele vai encarar agora a fisioterapia de um ângulo inteiramente diferente. Ele não achou graça.

 

Uma guatemalteca simpática - a assistente temporária de Rhyme -, sentada em um canto do quarto, tricotava um chale amarelo e vermelho. Ela parecia estar agüentando bem as crises de mau humor de Rhyme, embora ele acreditasse que isso acontecia porque ela não conhecia inglês o suficiente para lhe compreender os sarcasmos e insultos.

 

- Sabe de uma coisa, Sachs - observou ele -, quando eu soube que você havia tirado Garrett da cadeia, cheguei a pensar que você tinha feito isso para me dar uma oportunidade de repensar a operação.

 

Um sorriso encurvou-lhe os lábios de Julia Roberts.

 

- Talvez houvesse um pouco disso.

 

- De modo que você está aqui para me convencer a desistir? Amélia levantou-se da cadeira e foi até a janela.

 

- Paisagem bonita.

 

- Tranqüila, não? Fonte, jardim. Plantas. Não sei que tipo.

 

- Lucy lhe diz. Ela conhece plantas como Garrett conhece esses percevejos. Perdão, insetos. O percevejo é apenas um dos tipos de inseto... Não, Rhyme, não estou aqui para convencê-lo a desistir. Estou aqui para ficar com você e ficar com você na sala de recuperação quando você acordar.

 

- Mudou de idéia? Ela virou-se para ele:

 

-Quando Garrett e eu estávamos em fuga, ele me disse uma coisa que leu naquele livro dele, The Miniature World.

 

- Eu sinto um novo respeito por baratas de bosta, depois de têlo lido - disse Rhyme.

 

- Ele me mostrou uma coisa, um trecho do livro. Era uma característica das criaturas vivas. Uma delas dizia que criaturas sadias crescem e se adaptam ao meio ambiente. Compreendi então que isso é uma coisa que você tem que fazer, Rhyme... submeter-se a essa operação. Eu não posso interferir nisso.

 

Após um momento, ele voltou a falar:

 

- Eu sei que a operação não vai me curar, Sachs. Mas qual é a natureza de nosso trabalho? Pequenas vitórias! Encontramos uma fibra aqui, uma crista de atrito parcial ali, uns poucos grãos de areia que poderão nos levar à casa do assassino. O que procuro aqui é isso... uma pequena melhora. Não vou me levantar desta cadeira, sei disso. Mas preciso de uma pequena vitória.

 

Talvez a oportunidade de segurar sua mão, de verdade.

 

Ela curvou-se, beijou-o com força e em seguida sentou-se na cama.

 

- Que expressão é essa, Sachs? Você parece um pouco acanhada.

 

- Aquele trecho no livro de Garrett?

 

- Exato.

 

- Há outra característica das criaturas vivas que quero mencionar.

 

-Qual?

 

- Todas as criaturas vivas esforçam-se para dar continuidade à espécie.

 

- Será que estou percebendo outro pedido de acordo, em troca de alguma coisa? Um contrato de algum tipo? - resmungou Rhyme.

 

- Talvez a gente possa falar sobre algumas coisas, quando voltarmos para Nova York.

 

Uma enfermeira apareceu à porta.

 

- Preciso levá-lo para o pré-operatório, Sr. Rhyme. Pronto para um pequeno passeio?

 

- Só estou... - Virou-se novamente para Sachs: - Certamente, vamos conversar.

 

As duas estavam sentadas sob um forte feixe de luz solar.

 

Tinham à frente, sobre uma mesa de cor alaranjada, coberta com marcas de queimaduras marrons, dos dias em que o fumo era permitido em hospitais, duas xícaras de café muito ruim, tirado de uma máquina de venda automática.

 

Amélia Sachs lançou um olhar a Lucy Kerr, sentada inclinada para a frente, mãos juntas, controlada.

 

- O que é que há? - perguntou Sachs. - Você está bem? A policial hesitou e finalmente disse:

 

- Oncologia fica na ala seguinte, do outro lado. Passei meses lá. Antes e depois da operação. - Sacudiu a cabeça. - Eu jamais contei isso a ninguém, mas no Dia de Ação de Graças, depois que Buddy me deixou, eu vim aqui. Simplesmente, de visita. Tomei café e comi sanduíches de atum com as enfermeiras. Isso não foi estranho? Eu podia ter ido visitar meus pais e primos em Raleigh, comer peru e boas sobremesas. Ou minha irmã e o marido, em Martinsville... os pais de Ben. Mas eu queria estar num lugar onde eu me sentisse em casa. Que, certamente, não era minha casa.

 

- Quando meu pai estava morrendo - respondeu Sachs -, minha mãe e eu passamos três feriados no hospital. Dia de Ação de Graças, Natal e Ano-Novo. Papai fez piada. Disse que tínhamos que fazer logo nossas reservas para a Páscoa. Mas ele não viveu até lá.

 

- Sua mãe ainda vive?

 

- Vive, sim. E se mexe melhor do que eu. Eu herdei a artrite de meu pai. Uma pá cheia.

 

E quase disse uma piada sobre o motivo por que era uma atiradora tão competente... para não ter que correr atrás de criminosos. Mas, em seguida, o pensamento em Jesse Corn passou ao ponto preto da bala na testa dele, e ficou calada.

 

- Ele vai ficar bem, você sabe, Lincoln.

 

- Não, eu não sei - respondeu Amélia.

 

- Eu tenho uma intuição. Quando uma pessoa passou por tanta coisa como eu - em hospitais, quero dizer -, a gente desenvolve certa intuição. -

 

- Eu estou grata - disse Sachs.

 

- Quanto tempo você pensa que a operação vai demorar? - Para sempre...

 

- Quatro horas, foi o que a Dra. Weaver disse.

 

À distância, ouviram um diálogo banal, forçado, de uma novela. Um pager distante chamando um médico. Um carrilhão. Uma risada. Uma pessoa que passou ali nesse momento parou.

 

- Ei, moças.

 

- Lydia - reconheceu-a, sorrindo, Lucy. - Como é que vai você?

 

Lydia Johansson. Sachs não a reconheceu logo porque ela usava uniforme e gorro verde. Lembrou-se de que Lydia era enfermeira nesse hospital.

 

- Ouviu dizer? - perguntou Lucy. - Que Jim e Steve foram presos? Quem teria pensado numa coisa dessas!

 

- Nunca em um milhão de anos - concordou Lydia. - A cidade inteira só fala nisso. - Em seguida, perguntou a Lucy: - Tem consulta marcada em onco?

 

- Não. O Sr. Rhyme vai ser operado hoje. Na coluna. Nós somos as chefes de torcida dele.

 

- Desejo a ele todo o sucesso possível - disse Lydia, dirigindo-se a Sachs.

 

- Obrigada.

 

A moça gorda continuou a descer o corredor, acenou para elas e cruzou uma porta.

 

- Moça boazinha - disse Sachs.

 

- Já imaginou esse trabalho, ser enfermeira em oncologia? Quando eu estava sendo operada, ela vinha à enfermaria todos os dias. Tão alegre quanto podia. Mais coragem do que eu tenho.

 

Lydia, porém, já estava longe dos pensamentos de Sachs. Olhou para o relógio. Onze da manhã. A operação começaria a qualquer minuto.

 

Ele esforçou-se para demonstrar bom comportamento.

 

A enfermeira lhe explicava coisas, Lincoln Rhyme inclinava a cabeça, mas já haviam lhe dado um Valium e não estava prestando atenção.

 

Queria dizer àquela mulher que calasse a boca e simplesmente continuasse a fazer o que devia, mas achava também que devia ser muito delicado com pessoas que estão prestes a lhe abrir o pescoço.

 

- É mesmo? - perguntou, quando ela fez uma pausa. - Isso é interessante.

 

Sem ter a menor pista do que ela tinha acabado de dizer.

 

Nesse momento, um atendente apareceu e levou-o numa maca do pré-operatório para a sala de operações.

 

Duas enfermeiras encarregaram-se da transferência, da maca para a mesa. Uma delas foi até o fundo da sala e começou a tirar instrumentos de uma autoclave.

 

A sala de operações era mais informal do que imaginava. Viu os elementos do clichê: mosaico verde, equipamento de aço inoxidável, instrumentos, tubos. Mas também um bocado de caixas de papelão. E também uma caixa de alto-falante. Ia perguntar que tipo de música iriam ouvir, quando se lembrou de que estaria inteiramente inconsciente e que não poderia dar a mínima para a trilha sonora.

 

- Isso é engraçado - murmurou ele, tonto, para a enfermeira que se encontrava mais perto.

 

Ela se virou. Do rosto dela, só podia ver os olhos acima da máscara.

 

- O quê? - perguntou ela.

 

- Vão operar o único lugar em que preciso de anestesia. Se fossem tirar meu apêndice, poderiam fazer isso sem gás.

 

- Isso é mesmo muito engraçado, Sr. Rhyme.

 

Ele riu por um momento, pensando: de modo que ela me conhece.

 

Indolentemente, pensativamente, olhou para o teto. Lincoln Rhyme dividia pessoas em duas categorias: as que estavam viajando e as que haviam chegado. Algumas gostavam mais da viagem do que do destino. Ele, por natureza, era o tipo de chegada - descobrir respostas para perguntas sobre criminalística era seu obj etivo e gostava mais de obter soluções do que do processo de procurá-las. Nesse momento, porém, deitado de costas, olhando para a cobertura de aço inoxidável da lâmpada cirúrgica, sentiu o oposto. Preferia existir neste estado de esperança - saborear a sensação agradável da prelibação.

 

A anestesista, uma indiana, entrou e perfurou-lhe o braço com uma agulha, preparou uma injeção, e ligou-a ao tubo conectado com a agulha. Possuía mãos muito hábeis.

 

- Está pronto para tirar um cochilo? - perguntou ela com um leve e cantado sotaque.

 

- Como jamais estarei - murmurou.

 

- Quando injetar isto, vou lhe pedir para que conte regressivamente a partir de 100. E vai dormir quando menos esperar.

 

- Qual é o recorde? - perguntou brincando Rhyme.

 

- Na contagem regressiva? Um paciente, muito mais alto e parrudo do que você, chegou a 79 antes de adormecer.

 

- Vou ver se chego a 75.

 

- Se conseguir isso, vamos dar seu nome a esta sala de operação - respondeu ela, rosto impassível.

 

Rhyme observou-a esvaziar um tubo de líquido claro no aparelho de aplicação intravenosa. Virou-se para olhar o monitor. Rhyme começou a contar:

 

- Cem, noventa e nove, noventa e oito, novente e sete...

 

A outra enfermeira, que o chamara pelo nome, abaixou-se. Em voz baixa, disse:

 

- Oi, você aí. Um tom estranho na voz.

 

Ele fitou-a.

 

A enfermeira continuou:

 

- Eu sou Lydia Johansson. Lembra-se de mim? - Antes de poder dizer que, claro, lembrava-se, ela acrescentou em um sussurro agourento: - Jim Bell me pediu para lhe dizer adeus.

 

- Não! - murmurou ele.

 

A anestesista, olhos no monitor, disse:

 

- Está tudo bem. Simplesmente, relaxe. Está tudo bem. A boca a centímetros de seu ouvido, Lydia sussurrou:

 

- Você não ficou curioso em saber como Jim e Steve Farr descobriram aquilo sobre os pacientes de câncer?

 

- Não! Parem!

 

- Eu dei a Jim os nomes deles, de modo que Culbeau providenciasse para que eles tivessem acidentes. Jim Bell é meu namorado. Estamos tendo um caso há anos. Foi ele quem me enviou a Blackwater Landing, depois que Mary Beth foi seqüestrada. Naquela manhã, fui depositar flores e ficar por ali para ver se Garrett aparecia. Eu ia conversar com ele e dar a Jesse e Ed Schaeffer uma chance de prendê-lo... Ed estava conosco, também. Em seguida, eles iam obrigá-lo a dizer onde estava Mary Beth.

 

Mas ninguém pensou que ele me seqüestraria.

 

Oh, sim, esta cidade tem alguns marimbondos...

 

- Parem! - gritou Rhyme, mas a voz saiu como um murmúrio. A anestesista comentou:

 

-Já passaram quinze segundos. Talvez, afinal de contas, você vá quebrar aquele recorde. Está contando? Não estou ouvindo você contar.

 

- Eu estarei bem aqui - disse Lydia, acariciando a testa de Rhyme.

 

- Um bocado de coisas podem sair erradas em operações, sabia? Defeitos no tubo de oxigênio, administração dos medicamentos errados. Quem sabe? Poderiam matá-lo, colocá-lo em coma. Mas você de jeito nenhum vai prestar depoimento.

 

- Espere - arquejou Rhyme -, espere!

 

- Ah! - disse a anestesista, rindo, os olhos ainda no monitor. Vinte segundos. Acho que você vai vencer, Sr. Rhyme.

 

- Não, não acho que você vá... - murmurou Lydia e lentamente espigou-se, no mesmo instante em que Rhyme via a sala de operações em cinza e, em seguida, em preto.

 

Este era realmente um dos lugares mais bonitos do mundo, pensou Amélia Sachs Para um cemitério.

 

O Tanner's Corner Memorial Gardens, no alto de uma colina suave, debruçava-se sobre o rio Paquenoke, que corria a alguns quilômetros de distância. A vista era ainda mais linda dali, do próprio cemitério, do que da estrada, quando o vira pela primeira vez na viagem desde Avery.

 

Apertando os olhos contra o sol, notou a fita brilhante do Blackwater Canal entrando no rio. Dali, até a água escura, contaminada, que tinha trazido tantos sofrimentos a tantas pessoas, parecia salubre e pitoresca.

 

Ela fazia parte do pequeno grupo de pessoas em volta da sepultura aberta. Uma urna de crematório era descida à terra nesse momento por um dos empregados da funerária.

 

Amélia Sachs estava ao lado de Lucy Kerr e de Garrett Hanlon. No outro lado da sepultura, Mason Germain e Thom, este apoiado em uma bengala, usando calça e camisa imaculadas. Exibia uma gravata espalhafatosa, de estamparia vermelha, mas que parecia apropriada, a despeito do triste momento.

 

Usando terno preto, ali estava também Fred Dellray, isolado, pensativo - como se recordando um trecho dos livros de filosofia de que gostava de ler. Teria parecido um sacerdote da Nação do Islã se estivesse usando uma camisa branca em vez daquela, cor verdelimão com pintinhas amarelas.

 

Não havia pastor para encomendar as cinzas, mesmo que este fosse um país de brandidores da Bíblia e provavelmente houvesse uma dezena de clérigos de sobreaviso para atender a funerais. O diretor da funerária olhou para as pessoas ali reunidas e perguntou se alguém queria dizer algumas palavras. Enquanto todos olhavam em volta, perguntando a si mesmos quem se apresentaria, Garrett extraiu da calça frouxona um livro muito estragado, The Miniature World.

 

Em voz trêmula, o rapaz leu:

 

- "Há aqueles que dizem que não existe uma força divina, mas o nosso cinismo é submetido a severo teste quando estudamos o mundo dos insetos, que foram brindados com tantas características espantosas: asas tão finas que dificilmente parecem feitas de qualquer material vivo, corpos sem um único miligrama de excesso de peso, detectores de velocidade do vento precisos até uma fração de quilômetro por hora, uma passada tão eficiente que engenheiros mecânicos usam-na como modelo de robôs e, mais importante que tudo, a espantosa capacidade de sobreviver contra a oposição implacável do homem, de predadores, dos elementos. Em momentos de desespero, podemos nos inspirar na engenhosidade e persistência dessas criaturas milagrosas e encontrar consolo e restauração da fé perdida."

 

Garrett ergueu a vista, fechou o livro, bateu nervoso as unhas, olhou para Sachs e perguntou:

 

- Você... tipo quer dizer alguma coisa?

 

Ela, simplesmente, sacudiu a cabeça num gesto negativo.

 

Ninguém mais falou e, após alguns minutos, todos ali viraram as costas à sepultura e subiram a colina por uma trilha serpenteante. Antes de chegarem ao cume, que levava a uma pequena área de piquenique, os coveiros já haviam começado a encher a cova com um ciscador. Sachs respirava com dificuldade ao chegar à crista da colina arborizada, situada perto do pátio de estacionamento.

 

Lembrou-se da voz de Lincoln Rhyme:

 

Esse aí não é um cemitério dos piores. Eu não me importaria em ser enterrado em um lugar como esse...

 

Parou para enxugar o suor do rosto e recuperar o fôlego. O calor da Carolina do Norte continuava implacável. Garrett, porém, não parecia notar a alta temperatura.

 

Passou correndo por ela e começou a tirar sacolas de comida da mala do Bronco de Lucy.

 

Esta não era exatamente a hora e o lugar para um piquenique, mas, pensou ela, salada de frango e melancia eram uma maneira tão boa de lembrar os mortos quanto qualquer outra.

 

Uísque escocês também, claro. Sachs examinou várias sacolas e finalmente encontrou a garrafa de Macallan, de 18 anos. com um pequeno estampido tirou a rolha de cortiça.

 

- Ah, meu som favorito - disse Lincoln Rhyme.

 

Ele vinha na cadeira de rodas a seu lado, dirigindo-a cuidadosamente pela grama cheia de altos e baixos. A encosta que descia para a sepultura era íngreme demais para a Storm Arrow e ele foi obrigado a esperar ali em cima, no pátio de estacionamento. Observou tudo do alto da colina, enquanto eram enterradas as cinzas dos ossos que Mary Beth tinha encontrado em Blackwater Landing os restos mortais da família de Garrett.

 

Sachs serviu uísque no copo de Rhyme, equipado com um longo canudo, e um pouco no seu. Todo os outros ali bebiam cerveja.

 

- A bebida falsificada é realmente vil, Sachs - disse ele. - Evite-a, a todo custo. Isto é muito melhor.

 

Sachs olhou em volta.

 

- Onde está a mulher do hospital? A assistente?

 

- A Sra. Ruiz? - murmurou Rhyme. - Não teve jeito. Pediu demissão. Deixou-me ao relento.

 

- Pediu demissão? - repetiu Thom. - Você a deixou louca. Você pode muito bem tê-la mandado embora.

 

- Eu fui um santo - retrucou secamente o criminalista.

 

- Como está sua temperatura? - perguntou Thom.

 

- Está ótima - resmungou ele. - Como está a sua?

 

- Provavelmente, um pouco alta, mas eu. não tenho problema de pressão arterial.

 

- Não, você tem um buraco de bala no corpo.

 

O assistente, porém, insistiu:

 

- Você deveria...

 

- Eu disse que estou ótimo.

 

- ... passar um pouco mais para a sombra.

 

Rhyme resmungou, queixou-se do chão irregular, mas finalmente conseguiu entrar um pouco mais na área sombreada.

 

Garrett, com todo cuidado, arrumava a comida, as bebidas e os guardanapos em um banco sob uma árvore.

 

- Como é que você está se sentindo? - perguntou Sachs num sussurro a Rhyme. - E antes de rosnar também comigo... eu não estou falando do calor.

 

Rhyme deu de ombros... um rosnado silencioso, com o qual queria dizer: estou bem.

 

Mas não estava. Um estimulador do nervo frênico bombeava corrente elétrica em seu corpo para ajudar os pulmões a inalar e exalar. Ele odiava aquele aparelho - havia se desmamado dele anos antes -, mas não havia dúvida de que precisava dele agora. Dois dias antes, na mesa de operação, Lydia Johansson tinha chegado muito perto de interromper-lhe a respiração para sempre.

 

Na sala de espera do hospital, após ter se despedido dela e de Lucy, Sachs notou que a enfermeira tinha desaparecido através da porta marcada NEUROCIRURGIA. E perguntou a Lucy:

 

- Você não disse que ela trabalha em oncologia?

 

- Trabalha.

 

- Neste caso, o que é que ela está fazendo ali?

 

- Talvez, dizendo alô a Rhyme - sugeriu Lucy.

 

Sachs, porém, não achava que enfermeiras fizessem visitas sociais a pacientes que iam ser operados.

 

Em seguida, pensou: Lydia conheceria novos diagnósticos de câncer de moradores de Tanner's Corner. Lembrou-se em seguida de que alguém tinha dado a Bell informações sobre pacientes de câncer... as três pessoas em Blackwater Landing assassinadas por Culbeau e seus amigos. Quem, melhor do que uma enfermeira da ala de oncologia?

 

Era um um jogo no escuro, mas falou nisso a Lucy, que puxou o telefone celular do bolso e deu uma chamada de emergência para a companhia telefônica, cujo departamento de segurança fez uma pesquisa rápida nas chamadas telefônicas para Jim Bell. E encontrou centenas de e para Lydia.

 

- Ela vai matá-lo! - gritara Sachs.

 

As duas mulheres, uma delas de arma na mão, invadiram a sala de operações - como em uma cena tirada de um episódio melodramático de Plantão médico - no momento em que a Dra. Weaver ia fazer a incisão inicial.

 

Lydia entrou em pânico e, tentando fugir ou fazer o que Bell tinha mandado, arrancou o tubo de oxigênio da garganta de Rhyme, antes que as duas mulheres a dominassem.

 

Devido a esse trauma e ao anestésico, os pulmões de Rhyme entraram em colapso. A Dra. Weaver aplicou técnicas de ressuscitação, mas, em seguida, a respiração ficou aquém do normal e ele teve que voltar ao estimulador.

 

O que já tinha sido muito ruim. Mas pior ainda, para raiva e revolta de Rhyme, a Dra. Weaver recusou-se a operá-lo por, pelo menos, seis meses - até que as funções respiratórias estivessem inteiramente normalizadas. Ele tentou insistir, mas a cirurgiã mostrou-se tão obstinada como ele.

 

Sachs bebericou um pouco mais de uísque.

 

- Você contou a Roland Bell sobre o primo? - perguntou Rhyme. Sachs disse que sim com uma inclinação de cabeça.

 

- Para ele, foi um grande golpe. Disse que Jim era a ovelha negra, mas que nunca pensou que ele fizesse uma coisa dessas. Ficou muito abalado com a notícia. - Olhou para o lado nordeste. - Veja - disse - lá embaixo. Sabe o que é aquilo?

 

Esforçando-se para seguir-lhe os olhos, Rhyme perguntou:

 

- Para o que é que você está olhando? Para o horizonte? Uma nuvem? Um avião? Esclareça-me, Sachs.

 

- O Grande Pântano da Desolação. O lugar onde fica o Lago Drummond.

 

- Fascinante - disse ele, sarcasticamente.

 

- É um lugar cheio de assombrações - disse ela, como se fosse uma guia de turismo.

 

Lucy aproximou-se e serviu-se de um pouco de uísque em um copo de papel. Provou-o. E fez uma careta.

 

- Horrível. Tem gosto de sabão.

 

E abriu uma Heineken.

 

- Custa 80 dólares a garrafa - disse Rhyme. - Sabão caro, então.

 

Sachs observou Garrett, enquanto ele enchia a boca de flocos de milho e, em seguida, corria para a relva. E perguntou a Lucy:

 

- Alguma palavra do condado?

 

- Sobre eu ser aceita como mãe adotiva? - perguntou Lucy. Sacudiu a cabeça. - Fui rejeitada. Ser solteira não é problema. Mas o meu trabalho é. Policial. Longas horas de trabalho.

 

- O que é que eles sabem a esse respeito? - disse Rhyme, fechando a cara.

 

- Não tem importância o que eles sabem - retrucou ela. - O importante é o que eles fazem. Garrett está sendo entregue a uma família em Hobeth. Gente boa. Eu fiz um exame completo dela.

 

Sachs não tinha dúvida de que ela tinha feito exatamente isso.

 

- Mas nós vamos fazer um passeio juntos no próximo fim de semana.

 

Perto dali, Garrett andava pela grama, seguindo sorrateiramente um espécime.

 

Ao se virar, Sachs notou que Rhyme a observava, enquanto ela olhava para o rapaz.

 

- O quê? - perguntou ela, olhando para a expressão de timidez afetada dele.

 

- Se você fosse dizer alguma coisa à cadeira vazia, Sachs, o que seria?

 

Ela hesitou durante um momento.

 

- Acho que, por ora, vou guardar isso para mim, Rhyme.

 

De repente, Garrett soltou uma alta risada e começou a correr pela grama. Estava caçando um inseto que, no ar seco, ignorava o perseguidor. O rapaz emparelhou-se com ele, estendeu a mão para agarrá-lo, e caiu. Um momento depois, levantou-se, olhando para a mão em concha. E voltou em passos lentos para os bancos do piquenique.

 

- Adivinhe só o que foi que eu achei - gritou ele.

 

- Mostre à gente - convidou-o Amélia Sachs. - Eu quero ver.

 

 

                                                                                                    Jeffery Deaver

 

 

 

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