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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA DE PETRODAVA / Constantin Virgil Gheorghiu
A CASA DE PETRODAVA / Constantin Virgil Gheorghiu

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Três anos passaram. Aqui estou, pontualmente, senhor Petraky Roca. Venho para desposar a sua filha, Domnitza Roxana. Como tínhamos combinado.

- Primeiro sente-se! - responde o velho Petraky Roca.

Ele encontra-se na sala onde se recebem os hóspedes. Está vestido de branco da cabeça aos pés. Como se vestem ao domingo os camponeses do vale de Bistritza, na vertente oriental dos Cárpatos. Junto dele está o padre Thomas Preot, na sua sotaina arruçada pelos ventos e chuvas desta região alta e agreste.

Todos os domingos, depois da missa, o padre Thomas almoça aqui, na casa de Petrodava, a casa dos Roca. À esquerda do padre estão Elvira Roca e sua filha única, Roxana, que o professor primário pede agora para mulher.

 

Petrodava, nome antigo de Piatra-Neamtz, distrito natal do autor.

 

As pessoas chamam a Roxana Roca "Domnitza" Roxana, a princesa Roxana, porque, desde a sua infância, todas as ciganas que passavam por Petrodava e que liam o futuro nas suas conchas mágicas lhe haviam predito que seria "Domnitza", isto é, que ela casaria com um príncipe.

- Eu sento-me - responde secamente o professor primário-, mas não vejo motivo algum para que se adie a resposta que eu peço.

Contudo, senta-se em frente do velho Roca e prossegue:

 

 

 

 

- Há três anos, no dia de São Jorge, 23 de Abril, pedi-lhe sua filha, Domnitza Roxana, para mulher. Tinha chegado à aldeia alguns meses antes, no Outono precedente. Eu fui o professor primário que pela primeira vez abriu uma escola aqui, em Petrodava, nas cristas das montanhas. Fui enviado pelo rei para iluminar o espírito dos vossos filhos. E também o espírito dos adultos. Para vos ensinar a ler e a escrever... Por conseguinte, eu não esperava uma recusa da sua parte quando pedi a mão da sua filha. E, contudo, a resposta que me deu tinha mais de recusa que de aceitação. Disse-me que me daria Domnitza Roxana para mulher se eu tivesse a paciência de esperar três anos, que a rapariga era muito nova para se casar, que ela tinha só quinze anos. Que esperasse, porque estava persuadido de que, depois de passar três anos nestas altitudes desérticas, mais perto do céu que da terra, eu, pobre professor de vinte anos, perderia a coragem de esperar, que me prenderia a qualquer viúva que me fizesse a comida e tratasse de mim ou que me esqueceria. Mas enganou-se. Não sabia ao que se tinha comprometido. Eu sei que durante todos os dias, e sobretudo todas as noites, destes três anos teve os olhos cravados em mim A fim de me encontrar um defeito, um vício, um pecado, um pretexto enfim para me recusar a mão da sua filha. Nada encontrou. Mandou espiões à minha aldeia da planície, a fim de que eles lhe fornecessem notícias pormenorizadas acerca da vida e dos actos de meus falecidos pais. Em toda a minha família, por mais profundamente que tivesse investigado, não teve a sorte de encontrar nem assassinos, nem bandidos de estrada, nem caça de vulto. Eu sei que o lamenta, mas tem de me dar a rapariga. Não tem nenhum pretexto a invocar para ma recusar. Na vida que eu levo em Petrodava, há mais de três anos, viu coisas que qualquer pessoa pode ver. Recebo dois mil lei por mês à laia de salário, isto é, o preciso para comprar um par de sapatos por ano, mais o alojamento, o vestuário e a alimentação. É o salário que S. M. o Rei paga aos apóstolos da nação que iluminam o espírito dos seus súbditos. Depois, viu que me levanto ao mesmo tempo que as galinhas, isto é, de madrugada, primeiro do que vós, os outros habitantes de Petrodava, porque eu tenho de preparar sozinho, antes de me dirigir para a escola, a mamaliga e as minhas refeições para todo o dia. Às oito horas entro na escola. Ao meio-dia, saio, por uma hora.

Dirijo-me ao meu quarto e aqueço a minha refeição, que tomo sozinho, como um malfeitor na sua cela, na prisão.

 

* Lei, significa "leão". É o nome da moeda romena. Mamaliga, papa espessa de milho, equivalente à polenta italiana, prato nacional e biquotidiano romeno.

 

Deixo os restos em cima da mesa, porque não tenho tempo de a levantar, e volto para a minha aula, com os vossos filhos, e, até às seis horas da tarde, quando já é noite em Petrodava, e as galinhas que se levantaram ao mesmo tempo que eu já estão a dormir, eu afinco-me a abrir as cabeças dos vossos filhos para lá meter a luz!

"Eu instruo-os acerca do nosso glorioso passado nacional, acerca do caminho das estrelas e acerca dos mistérios do universo. Depois de ter fechado a escola, volto para o meu quarto. Lavo as mãos manchadas de tinta e de giz. Lavo os pratos deixados ao meio-dia em cima da mesa. Bebo uma chávena de leite e estendo-me na cama, com um livro na mão, esforçando-me mais para não adormecer do que para compreender o sentido das letras nas páginas. Eis o que descobriu, vigiando, como os espiões, a minha vida de apóstolo em Petrodava. É uma vida idêntica à dos frades nas suas celas e à dos condenados nas suas prisões. Não pode, portanto, recusar-me a mão de Domnitza Roxana."

- Nós não lhe recusamos a mão de Roxana - responde Petraky Roca. -Há três anos, sempre pelo São Jorge, sempre nesta sala e sempre na presença do padre Thomas, respondemos-lhe que lha concederíamos com prazer, mas que lhe pedíamos que esperasse. Não houve nenhum pensamento oculto, nenhuma intenção de recusa. Você esperou, teve bastante paciência. Merece todos os nossos elogios. Tivemos tempo para nos informar acerca da sua pessoa e acerca do mundo donde veio, como é dever de todos os pais antes de aceitarem um genro. Pois bem! Na minha qualidade de pai de Roxana, respondo-lhe, senhor apóstolo Lucian Apostol, que não vejo objecção de qualquer natureza a que Roxana se torne sua mulher. Muito pelo contrário, sentimo-nos honrados com este pedido de casamento. Roxana Roca, nossa filha, ao tornar-se, de uma filha de criadores de cavalos, na mulher de um professor, sobe um degrau na escala social. Por outro lado, para mim, Petraky Roca, visto que não tive a sorte de ter um rapaz para o fazer um criador de cavalos em Petrodava, o qual teria continuado a manter a fama dos nossos cavalos em todas as feiras dos cinco países vizinhos, pois bem, para mim é uma glória e uma compensação ter um genro intelectual, um professor. Porque, continuando a sua missão de apóstolo iluminando o povo, secundar-me-á na criação de cavalos. Você é um homem instruído. Um homem que conhece os livros compreende mais facilmente os cavalos que nenhum outro. Mesmo que não tenha nascido no meio deles. Um intelectual possui um cérebro aberto, curioso. Além disso, tem o auxílio dos livros, onde pode aprender tudo o que não pôde aprender com os seus antepassados. Um genro intelectual é um bom sucessor e levará a fama dos cavalos de Petrodava às feiras de Lwow, Leipzig, Soroca, Yassy, Bratislava e Brassov. E isso é a maior recompensa que espero ao de cimo da terra.

O professor primário Lucian Apostol levanta-se. Está vermelho de alegria.

Para um professor do campo, de vinte e três anos, sem família e sem fortuna pessoal, tornar-se genro de Petraky Roca, de Petrodava, seu sócio e herdeiro das coudelarias Roca, é como ser nomeado inspector-geral do ensino! E, além do mais, há Domnitza Roxana, a mais bonita rapariga dos Cárpatos. O professor diz:

- Prometo-lhes, senhor e senhora Roca, diante do padre Thomas e diante de Roxana, ser um genro, um marido e um colaborador irrepreensível.

- Não vá tão depressa, senhor professor - diz Petraky Roca. - Sente-se. Respondemos afirmativamente à promessa de casamento feita há três anos por nós, os pais de Roxana. Repito-lhe, estamos de acordo. Mas a resposta definitiva, se ela aceita ou não o que entre nós se combinou, é Roxana quem a dá. Só ela pode decidir. Porque se trata da sua pessoa. Da sua vida e do seu futuro.

Os olhares voltam-se para Roxana. Ela encontra-se ao pé da mãe, com os braços cruzados sobre o peito, na atitude dos montanheses em sociedade. Está vestida com uma blusa de seda crua, de gola alta, bordada com sóbrios motivos geométricos. Domnitza Roxana é alta. Como seus pais. Delgada. As suas ancas estão apertadas, como num espartilho, numa saia de folhos, de lã tecida pelas suas mãos e chamada catrintza . Domnitza Roxana é morena, de rosto oval, nariz direito, muito romano, e usa cabelos pretos, como asas de corvo, apartados em duas tranças enroladas em coroa no alto da cabeça. Só tem ossos, tendões e músculos. Como os cavalos de Petrodava. Como todas as pessoas daqui. Uma amazona.

- Os teus pais deram-te a palavra - diz o professor. - Porque não respondes, Domnitza Roxana?

Antes mesmo que ela abra a boca, o professor perde a paciência e diz:

- Responde, Roxana, queres ou não tornar-te minha mulher?

 

* Catrintza: saia tecida à mão, preta com faixas de cor.

 

- Eu não sei o que responder, senhor professor- diz Roxana.

Está calma. Como se não se tratasse dela, nem do seu casamento. Levanta lentamente os olhos para o professor e olha-o exactamente como os montanheses olham para o céu, procurando ler nas nuvens se haverá tempestade no decorrer do dia ou se fará bom tempo.

Os seus olhos examinam, primeiro, a cabeça do professor. Uma cabeça redonda, de traços regulares, de cabelos loiros, a atirar para o castanho. Depois olha para o seu corpo. O professor está vestido como todos os montanheses, de calças brancas justas, itzari, um colete de pele de carneiro recamado de flores, e usa sobre os ombros o suman , casaco de fazenda preta.

Em alguns segundos, Domnitza Roxana acabou de examinar o rosto, a estatura e o vestuário do professor, que já conhecia de cor. Ela olha agora através dele, como se ele fosse transparente, tentando ver, para além dele, a sua alma, o seu futuro, até aos limites da vida que virá.

- Três anos, Roxana, e não tiveste tempo de te decidir? - pergunta o professor.

Está encolerizado.

- Sinto-me extremamente honrada com o seu pedido, senhor professor - diz Roxana. - É impossível que uma rapariga da minha idade e da minha condição se sinta mais honrada. Eu não vejo, para mim, senão vantagens neste casamento. E contudo, eu não sei porquê, não posso dizer sim.

 

* Suman: casaco de fazenda preta, castanha ou branca, com alamares e bordados em passamanaria preta.

 

- Não sejas cruel, Domnitza - diz o professor.

- Há três anos e meio que estou em Petrodava, não vivo senão para ti. Todos os meus pensamentos, os meus olhares e as minhas acções são para ti. Estes três anos de espera impostos pela tua família foram anos de tortura e de inferno. Tu sabe-lo bem. Disse-to tantas vezes. Não sejas injusta.

- Eu sei que me ama, senhor professor.

Ele trata-a por tu. Mas ela por "você" e por "senhor professor". Exactamente como os alunos do professor de Petrodava. Roxana continua:

- Repetiu-me tantas vezes que me amava. Senti-o... Verifiquei-o... É verdade. Eu sei com precisão que sou amada por si. Sou feliz com este amor. Toda a mulher, e não somente toda a mulher, mas toda a criatura viva ao de cimo da terra é feliz quando é amada. E contudo é-me difícil dizer sim.

- Durante estes três anos tu nunca me falaste assim! - diz Lucian. - Todas as vezes que discutimos deste-me a entender que estavas inteiramente de acordo em te tornares minha mulher. Para que fôssemos felizes juntos.

- É verdade - diz Roxana. - Eu esperava que hoje, no momento da decisão, me resolveria a dizer sim. Mas não consigo. Hesito. Veja, senhor professor, eu sou a única rapariga para casar em toda a Petrodava. Sou uma rapariga Roca. Qualquer professor chegado a Petrodava, com vinte anos, sozinho aqui, no meio dos pinheiros, ter-se-ia apaixonado por mim. Não há por onde escolher. Pergunto a mim própria se se trata de um amor sincero. Pergunto a mim própria se me teria pedido em casamento se me tivesse conhecido noutras circunstâncias. Numa cidade, por exemplo. Se me teria escolhido entre outras mulheres.

- Em qualquer parte onde te tivesse encontrado, Domnitza Roxana, teria sido do mesmo modo. Ter-te-ia escolhido e amado entre milhares de mulheres. No coração da maior cidade. Juro-te, aqui diante dos teus pais e diante do padre Thomas.

- Passemos adiante - diz Roxana. - Não é verdade, mas é agradável crer que isso teria podido passar-se assim. Pois, mesmo que eu acreditasse que teria sido de outra forma, a situação permaneceria a mesma. Porque veja, senhor professor Lucian Apostol, se eu não soubesse exactamente qual é, ou qual teria sido, o seu amor por mim, eu sei, por outro lado, realmente, com mágoa, com uma espécie de inquietação, a que ponto eu o amo. Isso sei-o eu muito bem. E sufoca-me.

Roxana fala com o mesmo tom como se contasse que as águas engrossadas da Bistritza tivessem devastado tudo à sua passagem. E acrescenta:

-Não tenho vergonha de dizer estas coisas diante dos meus pais e diante do padre que me baptizou. O meu amor é como uma chama. Não há vergonha ao falar do fogo. É permitido, mesmo às virgens, falar de incêndios. Desde o dia em que apareceu em Petrodava, senhor Lucian, amo-o com um amor que me queima o peito, como um sinete de fogo. Não posso afastá-lo de mim. Vejo-o por toda a parte. Desejo tê-lo ao pé de mim, como o sequioso deseja água. Penso nos nossos esponsais, como o viajante perdido de noite, numa tempestade de neve, deseja atingir um abrigo.

- Agradeço-te, Roxana - diz o professor.

- Não tem de me agradecer - diz Roxana, cortando-lhe a palavra. - Eu não disse sim. Pelo contrário, a minha decisão é antes responder não.

- De que sou eu culpado e o que me censuras?

- pergunta o professor.

- Nada tenho a apontar-lhe. O senhor é um homem irrepreensível. Há já três anos que lemos na sua vida como num livro aberto. Tudo o que sabemos a seu respeito é bom. Mas o senhor, senhor professor, é um homem do País Baixo. É um homem da planície. Não é um montanhês.

- Que importância tem que eu seja um homem da planície? - pergunta o professor. - O homem é o mesmo em toda a parte. Em toda a parte há homens bons e maus, na mesma medida, na montanha, à beira do mar e na planície.

- Pode ser que seja assim - responde Roxana.

- Mas eu, eu sou uma mulher Roca. Eu própria sou uma rocha da montanha. Não posso ser compreendida, amada, apreciada, julgada e condenada senão por um montanhês, um homem que conheça a montanha. Um homem da planície, por melhores que fossem as suas intenções, não saberia o que fazer duma rocha. E o senhor é um homem da planície.

- Roxana, eu nasci no País Baixo, é verdade. Mas os meus pais morreram. Já lá não há ninguém da minha família. Tornando-me teu marido, torno-me filho de teus pais, de Petrodava e das montanhas. Torno-me montanhês. Duvidas disso? O amor fez e fará sempre milagres. O teu pai diz que um homem instruído pode tornar-se um criador de cavalos mesmo que não tenha nascido entre eles. Porque não poderei eu tornar-me um montanhês?

Estou persuadido, aliás, de que já o sou. Tornei-me um homem de Petrodava. Pertenço a esta montanha. Visto-me como o teu pai, como todos os homens daqui, com o soberbo suman preto, no Inverno com o casaco de pele de carneiro branco, bordado, com as mesmas calças justas, brancas. Uso, à laia de bengala, o pequeno machado, o baltag . Como do mesmo modo que vós. Falo como vós. Sofro do frio e da fadiga como vós. Que diferença vês tu entre mim e um homem da montanha? Não inventes pretextos. Todos os teus argumentos são conjecturas. O homem é universal. Internacional. O planeta é a pátria de qualquer homem. Amanhã já não haverá nem fronteiras nem nações. Todos os homens serão iguais entre si.

- Iguais, mas não semelhantes - diz Roxana.

- Todos os homens se assemelham, porque são todos criados à imagem e à semelhança de Deus. Não é verdade, padre Thomas?

- Não é bem assim, meu filho - diz o padre. - Todos os homens se assemelham a Deus, mas entre eles não há semelhança alguma. O planeta é extremamente variado, como a natureza. Deus criou os homens adaptados aos lugares onde vão viver. Exactamente como um construtor de automóveis adapta o mesmo modelo ao deserto de areia, ao deserto de gelo, à montanha ou à planície. É a mesma viatura, criada pelo mesmo engenheiro, no mesmo dia, montada segundo o mesmo modelo, mas que não é eficaz para todas as situações.

 

* Baltag, bengala cujo punho é formado por um machado de gume duplo. Os montanheses nunca se separam dele. O baltag é para eles uma arma, um instrumento de trabalho e uma bengala de passeio.

 

Os homens são diferentes da mesma forma. O que se pode pedir a um, não se pode pedir a outro. Ò que dá prazer a um, constitui uma terrível injustiça para outro. Um dia, os homens serão talvez iguais entre si, mas nunca se assemelharão, e o aferidor para medir a justiça, a riqueza, o sofrimento e a alegria nunca terá o mesmo valor em todos os lados. Todavia, não vejo qualquer motivo para que vocês os dois não se tornem marido e mulher, desde o momento que o vosso amor é recíproco e que jurem fidelidade diante de Deus.

- Eu não posso responder sim - diz Domnitza Roxana. - A hesitação é mais forte do que eu.

- Porquê hesitar, visto que não há motivo para isso? - pergunta o professor. - Há três anos que esperamos este dia, e, quando ele chega, tu dizes que hesitas.

- O senhor não compreende, senhor professor, porque o senhor é um homem da planície. O montanhês hesita todas as vezes que tem de dar um passo e vê onde poisa o pé. Cada passo arrasta uma decisão grave. Porque cada passo pode conduzi-lo ao precipício. À morte. O caminho da montanha é perigoso, desconhecido, e novo a cada palmo.

"Vocês, os homens da planície, não têm necessidade de ver onde poisam os pés. Podem pensar noutra coisa enquanto caminham. E divertirem-se. E cantarem. Porque têm sempre a planície, estrada recta e dura, diante e debaixo dos vossos pés.

"Connosco é o contrário. Nós comprometemos a nossa existência a cada passo. Por causa disso, somos graves, Sóbrios, Severos. A existência na montanha é como que andar sobre uma corda bamba. Não sabemos gracejar.

"Hoje, tenho de dar um dos quatro passos capitais do homem ao de cimo da terra. O casamento, como o nascimento, a morte e o baptismo, é um destes passos essenciais. Como não hesitar diante deste passo tão importante, eu que hesito a cada passo diário?

- Tu tiveste três anos para hesitar e ponderar- diz o professor. - Agora é o momento de decidir. Conhecemo-nos suficientemente!

- É justamente porque o conheço e me conheço que mais hesito - diz Roxana. - Como poderemos viver juntos se somos tão diferentes um do outro? Em primeiro lugar, não conseguirá suportar a minha natureza. Sou toda gravidade. Toda violência. Exactamente como a água duma fonte subterrânea que, no instante em que conseguiu quebrar a rocha que a conservava prisioneira e sair à superfície, parte em linha recta, sem um meandro, sem um olhar para ela própria ou para o que a rodeia. A nascente torna-se torrente. Eu assemelho-me a ela. No instante em que me atire do alto da rocha materna para a vida torno-me torrente. No instante em que eu me resolva a partir, ninguém já me poderá deter. Caio da minha rocha verticalmente, em cascata, para o cumprimento do meu destino, para o meu fim. Despedaço-me, esmago-me e esmago as rochas que estão ao pé de mim. Como a torrente, A espumar, Mas jamais conhecendo outra direcção que não seja a linha recta. Ignoro os meandros que formam as águas da planície. Só conheço uma única felicidade. Nunca duas ao mesmo tempo. Lanço-me para a felicidade, que constitui o meu integral destino, com a decisão de suicida, vertical, da água das torrentes nas cascatas. Só tenho uma vocação, a linha recta. Como me poderá suportar? Porque eu serei como uma torrente que devastará a sua existência. Linear. Violenta. Implacável. Inexorável.

"Para suportar uma tal existência, como a minha, é preciso ser uma rocha. É preciso ser também um homem da montanha. o senhor é um homem da planície. Semelhante às águas da planície. Essas águas que se detêm em todos os meandros, indolentes, sonhadoras, voluptuosas. Desliza lentamente. Pára, amigável, ao pé de todas as árvores, de todas as plantas, nas vinhas, nos prados. Por toda a parte. Antes de mover as rodas dos moinhos, admira o céu, a vegetação. Respira os perfumes de todas as flores. As águas das planícies estabelecem idílios com todas as margens. Elas são acariciantes. Permanentemente quentes e disponíveis. As águas das planícies atingem o seu fim com astúcia, com rodeios, com sedução. Nunca se esquecem de colher no caminho todas as volúpias da viagem, todos os esplendores ribeirinhos, nem de gozar todos os aromas, todas as cores e todos os perfumes. O meu amor, pelo contrário, é árido, implacável, violento. Como a água das torrentes. Como o paraíso das trutas.

Domnitza Roxana, ao pé de sua mãe, levanta-se, alta, flexível, delgada, como se tivesse sido convidada para uma dança. No meio da sala volta-se para o professor com as mãos nas ancas, diz:

- Observe-me bem, senhor professor. Eu sou como meu pai, como minha mãe, como todos os montanheses deste lugar chamado Petrodava. Eu não sou senão músculos e tendões. Nem uma onça de gordura. Nem uma linha curva em todo o meu ser. Sou exactamente como a silhueta dos pinheiros, os pés profundamente plantados na rocha, a cabeça no céu. O alto da minha cabeça atinge o azul dos céus e as estrelas. Nunca nos curvamos, nem de dor, nem de servilismo, nem com o peso dos anos. Quando a tempestade, os sofrimentos, as neves da existência são demasiado pesados, quebramo-nos. Mas não nos dobramos. Quando o sofrimento, semelhante ao gelo cortante, atinge a nossa seiva, rebentamos. Mas sempre verticalmente. Vivemos, sofremos, amamos e morremos verticalmente. Perpendiculares à rocha. Rígidos mas majestosos.

Depois da nossa morte continuamos sempre em linha recta: linhas horizontais à terra. A vida e a morte são, entre nós, simples mudanças de figuras geométricas.

- Tu és bonita quando falas, mas falas em vão - diz o professor. - A minha decisão foi tomada há três anos. Nem mesmo a morte me fará renunciar a ti, Domnitza Roxana. Os teus pais deram o seu consentimento. Diz-me, queres ser minha mulher?

-Quero, mas com uma condição - respondeu Roxana.

- Prometo tudo o que quiseres, mas diz finalmente sim.

- Promete-me fidelidade. É tudo. com a fidelidade conquistaremos o céu e a terra.

- Prometo-o diante de Deus e diante dos homens- diz o professor.

- É extremamente grave prometer fidelidade-diz Domnitza Roxana. - É o mais grave juramento da vida. Os caminhos estão cheios de tentações. De esplendores, de voluptuosidade, que nada custam. Gratuitas. Soberbas. Que se oferecem completamente sós. É terrivelmente grave prometer fidelidade. Mas eu não o obrigo a fazê-lo.

- Não procures esquivar-te sem cessar, como uma truta - diz o professor. - Terás a minha fidelidade até à morte. - Quer beijá-la, mas ela escorrega-lhe entre as mãos.

- O beijo será para o momento em que o padre Thomas nos coroar como marido e mulher, diante do altar.

- O casamento será no dia 21 de Maio, pela festa dos santos imperadores Constantino e Helena - diz o professor.

- De acordo - responde Domnitza Roxana. No momento em que Domnitza disse "de acordo" a chuva rebenta. Como uma rajada de metralhadora. Bate nos vidros a parti-los, como pérolas de gelo. Violentas como balas. A chuva chicoteia as vidraças como chibatas de aço. O padre Thomas e a família Roca olham para a chuva com voluptuosidade.

Dentro de casa está escuro. Não há outra luz senão a da lamparina, debaixo da imagem de São Jorge, na parede do Levante. É demasiado fraca para iluminar os corpos das pessoas. A lamparina apenas ilumina o dragão que a imagem de São Jorge trespassa com a sua lança.

Na cerimónia do casamento, segundo o rito ortodoxo, o marido e a mulher são coroados, pelo padre, com coroas de ouro, como os imperadores.

O professor está pálido e angustiado. Tem medo da montanha quando chove. Sabe que todas as vezes, depois de uma tal chuvada, as águas da torrente, engrossadas, se lançam impetuosamente para a orla da aldeia e quebram em pedaços as rochas, batendo as pedras umas contra as outras e contra as margens, com um barulho infernal, semelhante a tiros de canhão. Nestas noites que sucedem às tempestades, e quando as águas engrossam, o professor tem a sensação de que a aldeia de Petrodava é invadida por ciclopes gigantes que se bombardeiam a tiros de blocos de rocha tão grandes como a igreja. E não consegue fechar os olhos: tem medo.

 

Dúvidas

HÁ quatro anos que somos casados, Domnitza Roxana - grita o professor Lucian Apostol, montado no seu cavalo a galope.

Perto dele, montada num garanhão negro, com os cabelos soltos, vestindo uma saia-calça verde e pequenas botas vermelhas com botões, galopa Roxana. Ela usa sempre uma blusa de seda crua de gola alta e com desenhos geométricos. O seu rosto está exactamente como no dia do casamento, da cor das flores de cerejeira. Nada se modificou.

Os esposos Apostol cavalgam através de uma campina verde e trepam ao longo da torrente em direcção às cristas das montanhas. A pista é suave. É um percurso que fazem juntos, quase todos os dias, para seu prazer e para fortificar os músculos e os tendões dos garanhões novos. Por vezes, atravessam a torrente a nado, "para ensinar aos cavalos a coragem e o perigo". Outras vezes, correm, "para ensinar aos cavalos o hábito de ambição e da competição".

Todos os anos, na Primavera, os esposos Apostol conduzem algumas dezenas de cavalos novos às feiras célebres dos países vizinhos. Este ano têm a intenção de subir em direcção ao norte, pouco mais ou menos até às margens do mar Báltico. Antes de se dirigirem à feira, eles treinam-nos meticulosamente. Ao treinarem os seus animais, os esposos Apostol são felizes, cada cavalgada consolida a sua felicidade.

- Quatro anos que passaram como um relâmpago- grita o professor.

O vento corta as palavras pronunciadas a galope como papéis coloridos e que chegam aos ouvidos de Roxana retalhadas, em pedaços, como papelinhos.

- Tu dizes-me sempre palavras amáveis quando o teu cavalo galopa - diz Roxana. -Fá-lo de propósito, para que eu não as oiça completamente, mas partidas, como um vaso de loiça.

O cavalo de Roxana ultrapassa o do marido. O caminho estreito que sobe agora ao longo da torrente não permite que dois cavaleiros galopem lado a lado.

Roxana sente o vento que lhe penetra no peito. Ela tem uma filha, uma pequerrucha de três anos que se chama Stela. E contudo, o corpo de Domnitza Roxana assemelha-se a um corpo de adolescente. Quando teve Stela, teve medo de não poder amamentá-la. O seu peito era um peito de garota. Mas foi um receio sem fundamento.

Agora, o vento penetra-lhe no seio, com força, através da blusa, e o vento acaricia-lhe o peito. Exactamente como seu marido. De felicidade, Roxana torna-se vermelha como um pimentão. O cavalo sobe a encosta contra a torrente, a galope. A jovem mulher inclina-se para a frente e deixa o vento penetrar com mais força no seu corpete, a fim de lhe acariciar o busto até à cintura.

- Oh meu Deus, como é bom galopar - diz ela.

Roxana sabe que o marido que ficou para trás não a ouve. Neste lugar, o barulho da torrente é muito forte. Mas ela fala para si mesma, em voz alta.

- As mais belas coisas no mundo são, sem dúvida, o voo das aves, o galopar dos cavalos, o amor, nadar numa torrente contra a corrente, como as trutas, e seguramente a morte. Destas cinco coisas, ignoro o voo porque não tenho asas e nunca o conhecerei. Mas voar deve ser exactamente como o galope. Talvez mais vigoroso. E como o amor. E como nadar contra a corrente na torrente. E talvez como a morte. A morte deve ser também voluptuosa. Conhecê-la-ei certamente. Muito mais tarde. Mas conhecê-la-ei com certeza.

O cavalo trepa e os cascos fazem saltar estrelas do sílex do caminho. Faíscas enormes como as estrelas no céu. Roxana pensa na sua felicidade que é completa. Recorda-se, enquanto galopa, das suas hesitações do princípio. Hesitava em desposar Lucian Apostol porque não era um homem da montanha, como se hesita em mergulhar na água duma torrente que não se conhece. Agora, ela é feliz por ter tido esta coragem. Evidentemente se o casamento tivesse falhado, hoje não estaria viva. Estaria morta. Mas Lucian é um marido irrepreensível. Ao alvorecer, ele deixa a sua enorme cama a assobiar. Por sua vez, ela salta da cama. Cada um se esforça por servir o outro. A preparar o café. A abrir os taipais. A acender o lume.

Às oito horas precisas, Lucian está na escola. Antes de entrar na aula, visita todas as cavalariças, examina todos os cavalos... É a primeira operação do dia, no exterior. E efectua-se na companhia de Pantelimon Haidouk, o encarregado das cavalariças. Por vezes, quando uma égua pare, ou um cavalo está doente, ou quando há expedições, Lucian não vai à escola. Fica ao pé dos cavalos. É Domnitza Roxana quem o substitui. Ela só fez a instrução primária, mas em alguns meses, logo após o seu casamento, aprendeu exactamente como um professor o que é preciso ensinar às crianças. Presentemente, ela substitui o marido com a competência de um professor diplomado...

Outras vezes, é Domnitza Roxana quem se ocupa dos cavalos e Lucian dá aulas. Alguns dias, Lucian encarrega-se das aulas e dos cavalos, Roxana fica em casa para se ocupar do governo da casa. Em todas as suas actividades, salvo para a escola, é ajudada pela mãe, Elvira Roca. O pai de Roxana, o velho Petraky Roca, morreu um ano depois do casamento da filha. Morreu como todos os homens de Petrodava: de Inverno, durante os maiores frios. Como os pinheiros cuja seiva gela. Morreu subitamente. Como que fulminado. Sem um suspiro. Sem um sofrimento. De vertical tornou-se horizontal. Uma mudança de posição da linha recta. Foi tudo. A morte em Petrodava é assim: uma operação geométrica.

O enterro realizou-se de trenó. Um trenó puxado por oito cavalos negros, que avançavam, conduzindo o caixão, sobre a neve branca, em direcção ao mosteiro de Neamtz. Ali são enterrados todos os mortos da família Roca. No caminho, o trenó com o caixão preto puxado por cavalos escuros, sobre a neve branca, deslizava entre as duas guardas de honra dos pinheiros verdes, saudando durante a sua última viagem terrestre o famoso criador e apaixonado de cavalos, Petraky Roca, de Petrodava.

Havia centenas de anos que nenhum homem, nenhuma mulher Roca morria noutra estação que não fosse o Inverno. Foram todos enterrados na rocha gelada do cemitério do convento. Numa dupla rocha de pedra e de gelo. São precisos dois dias para cavar a sepultura, tão dura é a rocha.

Depois das exéquias do velho Petraky, o genro tomou à sua inteira responsabilidade a criação dos cavalos. Ele continua a prosperar. É verdade que Lucian Apostol não está só. A seu lado está Domnitza Roxana, que, embora casada, monta o mais terrível dos garanhões, como nem mesmo os cavaleiros de profissão o fazem. Roxana adivinha, de casa, a centenas de metros, os desejos de um cavalo, se ele está mal disposto porque tem sede ou fome ou porque não aprendeu um movimento.

- Há quatro anos que estamos casados, todas as noites passadas ao pé de ti parecem-me demasiado pequenas e todos os dias também - diz Lucian Apostol, reunindo-se a Roxana em pleno galope.

Agora, os cavalos vão a trote, um ao pé do outro. Só o silvo da torrente e o sussurro dos pinheiros são tão belos como o trote dos cavalos num caminho de pedra na montanha.

- Eu gostaria, por vezes, de bater com o baltag à porta do céu - continua Lucian. - Gostaria de bater à porta do céu e dizer: "Senhor, sou feliz.

Agora podes chamar-me quando quiseres. Tive a minha parte do paraíso terrestre."

O cavalo de Lucian fica novamente para trás. O atalho é demasiado estreito para dois. Roxana retoma o galope, à cabeça.

Voltam para casa depois de duas horas de cavalgada, os corpos impregnados de todos os perfumes das montanhas, dos pinheiros e das estrelas.

Domnitza Roxana entra em casa. Antes de largar o chicote, pega ao colo a sua filhinha Stela e beija-a. Mas Stela tapa o rosto com as mãos, furta-se, debate-se. Não gosta dos beijos dos pais. Grita e foge para longe da mãe.

- Tu cheiras muito a floresta - diz Stela a chorar. - Vocês os dois cheiram a montanha, a altitude. Não se aproximem de mim.

No decurso do Inverno seguinte, Domnitza Roxana está doente. Nenhum homem, nenhuma mulher Roca esteve de cama, doente. Desde há séculos só ficam de cama as crianças doentes. Roxana também não se deitou. A sua doença manifesta-se por uma espécie de aborrecimento da vida. De tudo. Foi bruscamente apanhada pela doença. Tem sono. Já não gosta de movimento. Gostaria de ficar ao pé do lume a ler ou a tricotar todo o tempo. Para uma mulher Roca que passava a sua vida a cavalo, a montar os garanhões novos mal domados, a galopar de uma montanha à outra, a atravessar as torrentes a nado, a transpor de um único salto do cavalo os precipícios sem fundo, ou a percorrer os bosques, de baltag na mão, este desejo de ficar sentada, esta repentina sede de repouso, são interpretadas como uma grave enfermidade.

Este Inverno, sobretudo depois do Natal, Roxana está tão doente que renuncia às duas ou três horas de galope diário, que fazia desde que se levantava, de manhã, logo que começou a andar e que pôde montar.

O Inverno é uma estação penosa para os criadores de cavalos. No Inverno, os animais são mais sensíveis, mais nervosos. Um bom cavalo não é feito para estar doente, como Domnitza Roxana. Ele tem necessidade, todos os dias, não de um pequeno passeio, mas de ar livre. De galope. De esforço. Todo o cavalo deve sair, quase diariamente, para uma longa caminhada. Tem de despender a energia dos seus músculos. Distender os tendões de aço. Respirar. Brincar. Sentir o prazer de estar fatigado e livre.

Estes longos passeios dos cavalos, de Inverno, sobre a neve, constituem uma operação delicada. É o dono quem se encarrega disso.

O terreno está gelado, perigoso, e o clima é duro. Os cavalos são imprudentes. Não sabem que estão a suar. É o dono quem deve cobri-los e abrigá-los. A vaca, a galinha e outros animais inferiores abrigam-se assim que chove. O cavalo é um poeta. Os garanhões novos atiram-se para cima do gelo sem a menor prudência. O condutor deve estar atento ao seu menor gesto. Um cavalo de raça cai e parte uma pata tanto mais depressa quanto é de melhor raça. Nos cavalos, a prudência está em relação inversa com a coragem. Exactamente como entre os homens.

Visto que Domnitza Roxana não tem gosto por nada, é o primeiro cocheiro Pantelimon Haidouk e Lucian Apostol que passeiam os cavalos, quer montem, quer atrelem quatro garanhões ao trenó.

Às cinco horas da tarde, quando os cavalos voltam do passeio, Domnitza Roxana desce às cavalariças e regozija-se com a sua fadiga, como se ela própria tivesse galopado sobre a neve. Ela afaga-os, fala-lhes, examina-os.

Todos os dias, Roxana nota que há nas cavalariças vários cavalos mal dispostos.

- Que se passa, Pantelimon? - pergunta Roxana.

- Nada, Domnitza - responde Pantelimon.

- Nada, como? - pergunta a patroa. - Todos os dias, um, dois ou vários cavalos estão tristes. Já não batem o casco quando me vêem. Os cavalos numa cavalariça são como os alunos numa aula, quando entra o professor. Se à minha chegada os cavalos não estremecem, não relincham, não voltam a cabeça e não batem os cascos, isso significa que estão doentes, ou que lhes aconteceu qualquer coisa de grave. Tu sabe-lo tão bem como eu. E quando tu entras nas cavalariças é a mesma coisa. Diz-me, que se passa aqui com os nossos cavalos?

- Prestarei muita atenção e procurarei descobri-lo - diz Pantelimon.

- Tu não reparaste que alguns cavalos estavam tristes nestes últimos tempos?

- Eu não me apercebi disso - responde Pantelimon Haidouk.

Olha para o chão. Mente e não é um mentiroso. A mentira dói-lhe como uma facada em plena carne. E está vermelho de vergonha. Porque sabe muito bem o que acontece com os cavalos. Ele notou-o ao mesmo tempo que Domnitza. Mas nada pode fazer.

- Despacha-te a morrer, Pantelimon, se envelheceste a este ponto - diz Domnitza Roxana. - Tu estás completamente idiota. A tua presença ao de cimo da terra já não faz sentido, se tu não vês a tristeza deste potro. Já não percebes nada. Tornaste-te inútil.

Roxana Apostol acaricia o pescoço brilhante como a antracite de um cavalo novo. E olha-o com melancolia. Ele chama-se Sílex.

- Que te aconteceu, efebo, para teres os olhos cheios de água? - pergunta Roxana. - Porque é que o teu olhar não brilha como compete à tua raça e à tua idade?

- Sílex voltou há uma hora - explica Pantelimon. - Sílex foi passear com o patrão Apostol.

- Voltas de passear, adolescente, e não tremes de alegria? - pergunta Roxana ao cavalo. - Depois de teres acariciado com os teus cascos quarenta quilómetros de neve macia, depois de teres voado, no teu trenó, contra o vento, não estás ébrio de felicidade? Que te aconteceu? Os guizos que usas à volta do pescoço não te divertiram? Tu não te embebedaste com o ar forte, azul, que embriaga como o álcool?

Roxana ordena a Pantelimon:

- Se dentro de dois dias não descobres porque é que os cavalos estão tristes, pegas no teu saco e vais-te embora; já não serves para os servir.

Antes de partir, Roxana diz brutalmente a Pantelimon:

- Porque me olhas assim, com piedade? Eu sei.

Tenho o mesmo olhar que os cavalos que estão tristes. É justo. Mas guarda a tua piedade para os cavalos, não para mim. Tenho o olhar como Sílex. Um olhar igual ao da água imóvel dum tanque. Um olhar sem brilho. Sem faíscas. Eu fico estendida. Mas, para mim, é normal. Sou uma mulher. Sou casada e mãe. Tenho um marido e uma filha. Depois, não esqueças, Pantelimon Haidouk, sou onze vezes mais velha que Sílex. Supões a diferença? Ele tem dois anos, e eu vinte e dois. É natural que eu esteja fatigada. Mas ele não, que é onze vezes mais novo que eu.

Roxana ri. Como se guizos de prata tilintassem na cavalariça limpa, de paredes brancas. Todos os cavalos voltam a cabeça para Domnitza Roxana. As ventas tremem-lhes como as membranas dos aparelhos registadores. Saboreiam o som do riso e o perfume da presença de Roxana entre eles.

Roxana está preocupada com a tristeza dos cavalos. Conhece-os. Melhor que os homens. Existe um elo entre ela e os cavalos, tal como vasos comunicantes. Não quer perguntar ao marido porque é que os cavalos estão melancólicos. A pergunta pode ser interpretada por Lucian Apostol como uma censura. Ele tem as susceptibilidades de todos os neófitos. Depois da morte de Petraky Roca, o professor fez todos os esforços para estar à altura do seu cargo de proprietário de Petrodava. Mas, apesar disso, está longe de se ter integrado neste universo. Na verdade, não bastava toda uma vida humana. São precisos séculos de luta, de amor, de experiência para conseguir uma comunicação total entre o homem e o cavalo. Como para ter a pele branca e delicada dos príncipes não basta tomar banho todos os dias, durante toda uma vida. Para isso é preciso que as gerações anteriores tenham tomado banho. Lucian Apostol sabe que não pode tornar-se criador de cavalos no decorrer de uma só vida. Que é preciso uma parte hereditária de esforço fornecido pelos antepassados. O que lhe falta. Está na situação de inferioridade. Por tal motivo é susceptível e sensível a todas as observações. Roxana elogia-o. Todas as vezes que ela tem ocasião para isso, dirige-lhe cumprimentos. Evita a menor observação, salvo em casos extremos.

Hoje, às cinco horas, quando Lucian Apostol entrou no pátio com o trenó, Roxana, que estava na galeria em frente da casa, vê que os quatro cavalos que o marido levou a passear estão melancólicos. Mais precisamente, sem alegria. Roxana vem para o pé do trenó. Acaricia o pescoço e as ventas de cada cavalo e encosta a sua testa aos olhos deles. Um cavalo que recebe uma festa quando volta de uma caminhada, antes de ser conduzido à cavalariça, fica feliz até ao dia seguinte. Exactamente como uma criança que toda a noite sorri no seu sono, porque a mãe a beijou à noite antes de adormecer.

Roxana não pode suportar a tristeza dos cavalos.

- Estão românticos e melancólicos como as donzelas de pensionato que ficam encerradas no seu internato de pedra e sombra sem nunca verem o Sol - diz Roxana. - Um cavalo nasce desportivo, combatente, guerreiro. Os cavalos que sonham não são cavalos. Que vos aconteceu, meus adolescentes? Nenhum de entre vós cheira a neve, a céu, a montanha, a altitude. Nenhum de vós cheira "muito a altitude", como diz Stela, a minha filhinha.

De repente, Domnitza Roxana compreende: seu marido, o professor Lucian Apostol, o actual proprietário de Petrodava, ofendeu os cavalos. Ele não tem o tacto inato que deve possuir todo o criador de cavalos de raça. Os animais que Lucian Apostol pôde conhecer em sua casa, na sua aldeia da planície, eram cavalos de tracção, cavalos ordinários, como a maioria dos animais e das pessoas nesta terra. É portanto natural que ele não se possa encontrar em estado de sincronismo com os cavalos de raça, nascidos na montanha, aqui em Petrodava, cavalos que vivem mais perto do céu que da terra, como os homens que os rodeiam. Os cavalos de Petrodava são sensíveis como os grandes músicos. O professor ofendeu-os talvez sem querer. Não se pode mesmo imaginar o que basta para humilhar um cavalo de raça. Talvez Lucian, depois de lhes ter indicado a direcção, tivesse insistido. Um cavalo atrelado a um trenó é como um violinista virtuoso. O chefe da orquestra não é senão aquele que a sincroniza. Um auxiliar. Sem dúvida, Lucian teve uma atitude brutal, ofensiva. Procedeu como um chefe de orquestra que obriga os músicos a fazerem escalas para os humilhar. Roxana pede conselho a sua mãe.

- É preciso ser paciente e ter tacto, minha Domnitza- diz a velha Elvira Roca. - Não resmungues com o teu marido. É verdade que o que acontece aos cavalos não pode continuar. Mas não te esqueças que os homens são, ao contrário das mulheres, tão orgulhosos como os cavalos de raça. Não procures a ofensa feita aos cavalos ofendendo teu marido. O pobre Lucian esforça-se para os dirigir como aprendeu com teu pai, Petraky Roca.

Roxana deita-se, pensativa. Do fundo do coração gostaria de seguir o conselho de sua mãe.

No dia seguinte, quando vê a tristeza dos cavalos que voltam do passeio com seu marido, não consegue dominar-se. Entre seu marido e os cavalos não escolhe os cavalos, bem entendido, mas, sem hesitação alguma, a justiça; ora, a justiça está do lado dos cavalos.

- Escuta, Lucian - diz Roxana-, todos os cavalos estão tristes quando os trazes de passear. Olha para aqueles quatro! Dir-se-ia que saíram da brancura dos lençóis do hospital e não das brancuras das neves de Petrodava. Que lhes fazes para que voltem tão tristes para casa?

- Não lhes faço nada - responde Lucian. - Que queres tu que lhes faça? Em primeiro lugar, não estão tristes. Isso são ilusões, ideias tuas.

- Ilusões? - pergunta Roxana.

Ela está furiosa. O marido fala-lhe de ideias, de ilusões. Domnitza Roxana é uma mulher Roca. Nunca tem ilusões. Nem sonhos. É como os pinheiros. Como é que Lucian ousa dizer-lhe que ela sonha, ela que nunca conseguiu ter na sua vida uma ilusão de dois centavos e que nunca teve um sonho? Os homens e todas as mulheres Roca vivem tão alto que por cima das suas cabeças não resta espaço para os sonhos. Têm o céu e as estrelas por tecto. Como os pinheiros. As nuvens passam sempre por debaixo, porque por cima não há lugar. Visto que eles vivem tão alto que nem mesmo as nuvens podem passar por cima das suas cabeças, como deslizariam os sonhos? Eles estão verdadeiramente muito alto para terem sonhos.

- Lucian, eu sei o que digo - continua Roxana. - Desde há séculos, desde os começos da História, eu vivo no meio dos cavalos. com eles. Sei tudo o que eles sabem. Um cavalo, quando está contente, como o devem estar os cavalos que voltam dum passeio sobre a neve, está primeiro que tudo brilhante. Compreendes? A alegria num cavalo salta, como a electricidade, por todos os pêlos e o cavalo brilha, da garupa à crina, como um espelho, como metal polido. Vê-se de longe, reflectindo os raios do sol como se fosse de cristal. O olhar do cavalo brilha, cintilante como a pérola, como o diamante. Os cavalos com que voltas, observa-os, estão tristes, baços. Que lhes fazes? Responde. Eles olham para mim e pedem-me que os liberte desta humilhação, desta ofensa, que os limpe desta vergonha que tu fazes pesar sobre eles.

- Eu não lhes faço nada - responde Lucian.

- Tu humilha-los - diz Roxana. - Disso não há dúvida alguma. Mas, responde-me, como os humilhas? Fá-los tu caminhar muito lentamente, quando os seus tendões de ferro, os seus músculos virgens estão excitados? Bates-lhes com o chicote quando esperam uma carícia? Obriga-los a andar pelo meio da estrada, como os cavalos de tracção? Tu és o meu querido marido, mas tenho de to perguntar. Poderei talvez ajudar-te. Responde.

- Os cavalos não estão tristes - replica, num tom seco, Lucian Apostol.

- Minha mãe - grita Roxana. - Minha mãe.

- Não pode suportar mais a ofensa, a injustiça. Aos gritos da filha, a velha Elvira Roca aparece sobre o ceardac, terraço de madeira coberto por um telheiro de ripas, que ladeia a frente das antigas casas romenas. Elvira Roca segura o baltag de prata na mão. É delgada, alta, direita. Perpendicular à terra. Como um pinheiro coberto com o manto preto. Exactamente a silhueta dos pinheiros.

- Mãe, Maikoutza (*), responde, tu que és justa e que tens horror à mentira como à lepra, responde. Os nossos cavalos estão tristes ou não? Têm eles olhar de doentes ou não? O mesmo olhar que eu depois do Natal? Responde, segundo a justiça, como o fizeste toda a vida.

- Na verdade - diz a velha Elvira Roca. - Os cavalos estão tristes, realmente. Como os doentes. Só o teu marido pode dizer porquê. Ele esteve com eles. Só ele sabe.

O professor Lucian Apostol, de chicote na mão, ouve imóvel, no terraço, entre a sua velha sogra, dum lado, e Roxana e os cavalos do outro. Está aflito. O facto de que o acusam com violência, como de um crime, só os cavalos o conhecem. Os cavalos não podem falar. São testemunhas mudas. Mas estão presentes. E estas duas terríveis mulheres, a sua mulher e a sogra, sabem ler nos seus olhares. Nos olhos das testemunhas mudas. Onde está gravada a imagem do que viram. Lucian Apostol sente uma sensação terrível, e parece-lhe que um dos quatro cavalos, uma das quatro testemunhas e vítimas vai abrir a boca para falar. Esta

 

* Diminutivo terno de mãezinha.

 

ESta hipótese é estúpida. Mas tem medo. Um medo louco que um dos cavalos e os outros três a seguir, que todos quatro, comece a falar, como homens. Aqui, diante da casa de Petrodava. Da parte das testemunhas mudas pode esperar-se sabe-se lá o quê. São as mais terríveis. Mas os cavalos não abrem a boca. Como consta das leis da natureza. Pelo contrário, Domnitza Roxana fala, como se fizesse saltar faíscas duma pedra.

- Lucian, agora está claro. Agora eu sei. Os cavalos não vêm da neve. Em vez de os obrigares a fazer exercício, tu paras em qualquer parte. Num abrigo. No caminho. Em frente duma casa.

Os olhos de Roxana faíscam de cólera, como os picos das montanhas quando há tempestade à noite nos Cárpatos. Os seus olhos lançam faíscas, como os cascos dos cavalos quando roçam no sílex duro da estrada de Petrodava. A sua voz é igual à do raio que cai em cima da montanha e desencadeia as torrentes. As frases são como as grandes águas que quebram as rochas, as fazem rolar e as lançam contra outras rochas, fazendo ressoar todas as montanhas como se as despedaçassem a tiros de canhão.

- Lucian, tu paras com os cavalos em casa duma mulher - diz Roxana. - Os cavalos sabem-no e estão doentes porque assistem ao crime. Ao adultério.

A voz de Roxana torna-se cortante, áspera.

- Como pudeste tu cometer este crime, Lucian? Diante dos cavalos? Humilhares-me a mim, traindo-me, traindo a tua filha e Petrodava e as montanhas e os pinheiros? Humilhares a tal ponto os cavalos? Estes magníficos animais, obrigá-los a assistir a um crime tão odioso? Sabes que se me humilhas, os humilhas, se me enganas, os enganas? Como pudeste aproximar-te deles, de mim, de Stela, tua filha, de Petrodava, da tua casa?

Lucian ouve pálido, como o criminoso preso em flagrante delito. Nunca imaginou que os quatro cavalos, um após outro, ao entrarem no pátio de Petrodava, contassem à sua maneira e aos que sabem ouvi-los os factos a que assistiram. Os cavalos denunciaram-no. Disseram tudo. A Elvira Roca, a Roxana, a Pantelimon. A todos. Porque nesta casa de Petrodava todos sabem, todos compreendem o que dizem os cavalos. Eles denunciaram-no pelo seu pêlo baço, os seus olhares estagnados, a sua respiração pesada. E sobretudo pelo seu silêncio. Porque o silêncio, quando se quer acusar, é mais terrível que a palavra. Se um criminoso quer escapar às torturas do inferno, que se livre de aparecer diante de um tribunal onde todas as testemunhas o acusem pelo seu silêncio. Uma após outra. Diante dos juizes, como os cavalos diante das mulheres de Petrodava. Lucian Apostol nunca imaginou que se encontraria um dia numa situação tão dramática. Os cavalos olham-no hostis como se efectivamente participassem no interrogatório. Elvira Roca mantém-se na galeria. Perpendicular. com o baltag de prata na mão direita. Os cavalos nas cavalariças, em todas as cavalariças, pararam de rilhar a sua aveia e escutam. Pantelimon Haidouk e os outros palafreneiros estão escondidos em qualquer parte da vizinhança e todos escutam e observam em silêncio, como os cavalos.

Só Domnitza Roxana se agita lançando faíscas com os seus olhares como se desejasse lançar fogo à casa. Aperta a chibata, pronta a bater no seu adúltero marido como se bate num cavalo. Lucian sabe agora que a torrente de que Roxana o ameaçou no dia em que ela disse que o tomaria para marido se desencadeou; que rola em direcção a ele como a torrente de Petrodava à noite, quando as águas estão cheias; sabe que, se a tempestade não cessa imediatamente, ele, Lucian Apostol, será esmagado entre as rochas gigantes. Nesta intensa e angustiosa espera, que teria mesmo partido as cordas dos violinos, tal é o seu peso, ouve-se a argentina e fria voz de Elvira Roca, em cima da galeria da casa de Petrodava:

- Eh! Roxana, minha filha. Basta por hoje. Volta para casa. É tarde. E depois, pode ser que os cavalos se tenham enganado. É verdade que estão tristes, os pobres. Mas tu sabes que um cavalo tem imaginação. Estes animais exageram como as crianças e os artistas. Talvez que o teu marido não tenha parado em casa duma mulher. Isto não é senão uma desconfiança da parte dos cavalos. Talvez o tivessem imaginado. Vem. Os cavalos são ciumentos. Nem sempre se deve confiar no seu testemunho. Como não se deve confiar nos testemunhos dos artistas.

Roxana volta-se para o marido e diz:

- Lucian, no dia em que me pediste para mulher, há já quatro anos e alguns meses, no dia de São Jorge, quando em Petrodava a tempestade rebentou com o seu concerto de chuva, de relâmpagos e de trovões, quando a casa escureceu como se fosse meia-noite e só a imagem do dragão trespassado pela lança de São Jorge ficou visível à luz da lamparina; nesse dia, em que te disse que aceitava tornar-me tua mulher porque te amava, pedi-te uma única coisa! Fidelidade! Disse-te que, com fidelidade, poderíamos conquistar o céu e a terra. Tu juraste-ma. Foi a única coisa que te pedi e que me prometeste. Eu sou uma mulher, Roca, de Petrodava. Perpendicular à terra. Eu suporto seja o que for, em competição aberta: mais que qualquer outra mulher ao de cimo da terra. Suporto a fome, a sede, o frio, a pobreza, o exílio. Posso suportar, querido Lucian, que me cortem os dois braços com um machado, sem um gemido e sem pestanejar. Sou mais forte que Cornélia, a mãe dos Gracos. Posso queimar nas chamas, não um braço, mas os dois. Posso queimar todo o meu corpo. Sou mais resistente que as mulheres de Esparta. Mas há uma coisa que não posso suportar: a injustiça. E também a traição. Foi por isso que te pedi fidelidade. A fidelidade é o pão de que vivemos aqui em Petrodava. A fidelidade no céu, na terra, no sangue. É tudo. Se tu me enganas e se quebras o teu juramento, então puno-te. Assim é punido o raio que morre ao mesmo tempo que a rocha que ele quebra. Puno-te como as torrentes que esmagam o adversário e que se despedaçam em espuma e em gritos. Puno-te despedaçando-te, a ti, e a mim contigo, e tudo o que nos rodeia. E não ficará de tudo o que existe senão o fumo do castigo aplicado. E este fumo, o vento levá-lo-á para testemunhar. Entre a justiça e a piedade, já escolhi, desde há centenas de gerações. Não posso trocar a escolha. Sou mais cruel que todas as mulheres de Esparta. Nenhuma indulgência para aqueles que me ofendem no que tenho de mais sagrado sobre a terra, na única coisa sagrada.

Tem cuidado. Muito cuidado, Lucian, meu marido.

- Eu não te ofendi, Roxana - diz o professor-, foi uma ilusão dos cavalos. Uma ilusão tua.

- Uma ilusão, para mim, é possível, mas não para os cavalos. Garanto-te. Os cavalos não se enganam, Lucian. Eles também não suportam a ofensa. Previno-te. São cavalheiros. Foi com os cavalos que os homens aprenderam a cortesia e o código de honra. Só os homens que vivem na sua companhia são cavalheirescos. Nobres. Quando os homens se afastam dos cavalos, tornam-se vulgares e esquecem o código de honra.

- Convencer-te-ás que estás enganada, minha Domnitza - diz Lucian. Está contente por a torrente se ter acalmado. - Os cavalos estão, realmente, tristes, mas não é por minha causa. Nem por causa duma ofensa. É por causa do fohn, este vento vertical que sopra aqui em Petrodava, que sacode as cabeças dos animais e das pessoas, e os torna nervosos. Tristes. Não sou eu. É o fohn. Juro-te.

- Acabemos - diz Roxana. - Nunca mais voltaremos a falar disto. Vamos para casa.

No dia seguinte, os cavalos que Lucian Apostol conduzira a passear voltaram resplandecentes, radiosos.

Quando Domnitza Roxana chegou ao pátio, diante do trenó, para os acariciar, e quando ela poisou a mão nos seus pescoços, dir-se-ia que tocava em radiadores de alegria, de energia, de bem-estar. Roxana beijou-os nas ventas. Estava feliz. Os cavalos batiam com os cascos o sílex do empedrado. Debaixo dos cascos saltavam faíscas, como estrelas do céu perdidas sobre o patamar da casa de Petrodava. Elas brilharam o tempo que dura a vida duma estrela no universo, depois extinguiram-se aos pés dos cavalos e aos pés de Domnitza Roxana Apostol, calçados com botas vermelhas.

A partir deste dia, Roxana curou-se da sua fraqueza. Ao mesmo tempo que os cavalos, ela curou-se da sua melancolia. Ela ficou novamente contente e activa. Mas a dúvida persiste-lhe no coração. A desconfiança alojou-se ali como uma serpente venenosa.

- Mesmo que me aconteça uma desgraça, eu não estou só - diz Roxana para si mesma, mas para se consolar. - Tenho Stela, a minha filhinha de quatro anos, que se assemelha a mim e que se assemelha à sua avó e a todas as mulheres Roca, de Petrodava. Tenho os cavalos. Tenho os pinheiros. Tenho Pantelimon Haidouk. (*) Há gerações, os Haidouks vivem junto dos Roca em Petrodava. Tenho as montanhas. Tenho a casa de Petrodava. E tenho acima de tudo minha mãe, a incomparável Elvira Roca.

Mas um dia, Domnitza Roxana perdeu a sua aliada mais importante, Elvira Roca, sua mãe.

Elvira Roca morreu num dia de Abril. Em plena Primavera. Foi um enterro duma tristeza extrema.

 

* Haidouk, bandido justiceiro que rouba os ricos para dar aos pobres. O Haidouk é o herói preferido dos romenos dos Cárpatos e é cantado em toda a literatura popular.

 

Todas as Primaveras, quando do degelo, a natureza está em convalescença. Como se se abrissem todas as enormes janelas dum imenso hospital. A natureza inteira não é mais que um lazareto gigante, uma enfermaria. Existem coisas mortas que persistem ainda, ao lado de coisas novas que estão em vias de nascer, mas que ainda não nasceram. E que morrerão talvez com todos os rebentos gelados, antes de chegarem efectivamente à vida. A Primavera é uma estação indecisa, mórbida. Também o enterro de Elvira Roca não pôde ser mais triste.

Os velhos que morrem de morte natural, isto é, os velhos que morrem felizes porque cumpriram tudo o que tinham a cumprir ao de cimo da terra, morrem sempre no Inverno. Como morreu Petraky Roca, o pai de Roxana. Como morreram todos os homens e todas as mulheres Roca, desde que existem rochas nos Cárpatos.

- Pantelimon Haidouk, meu pobre Haidouk, a morte da minha mãe causa-me bastante pena - diz Domnitza Roxana. - Não é por a minha mãe ter morrido que me aflijo tanto. Não. A morte dos velhos é coisa natural. Mas é terrível que a minha mãe tenha morrido na Primavera. Por ocasião dos primeiros rebentos. Quando, sobre as montanhas e no fundo das ravinas, pendem como lençóis de hospital os farrapos de neve suja, e quando nos bosques se cheira o rebento acabado de nascer, e a putrefacção. Cada coisa sobre a qual se caminha na floresta é incerta, não se sabe se essa coisa morre ou se nasce. É a estação em que morrem as crianças débeis, os jovens enfraquecidos, os doentes, os infelizes e os mal-nascidos. Não é justo que minha mãe morra na Primavera. Minha mãe era uma verdadeira mulher Roca, de Petrodava. As rochas só morrem no Inverno.

- Que conspiras tu com o velho Haidouk? pergunta Lucian Apostol.

Ele chega bastante contente. Agarra no braço de Domnitza Roxana. com ternura. Há alguns dias, ele tenta consolar sua mulher da morte da mãe. E pergunta novamente:

- Que conspiras tu, Domnitza do meu coração, com Haidouk?

- Eu perguntava a mim própria, e a Haidouk, porque é que minha mãe morreu no coração da Primavera. Minha mãe deveria ter morrido no Inverno. Como os rochedos. Como os pinheiros. Como todos os Roca. Ela não estava doente para morrer na Primavera.

Nos olhos de Domnitza aparece uma lágrima, uma lágrima, pequenina como a cabeça dum alfinete. Mas brilha como uma pérola. Roxana Apostol raramente chora. Quase nunca. Os pinheiros de Petrodava também não, não deixam chorar a sua resina senão para curar as suas feridas, quando são golpeados no seu corpo, na casca. Mas a morte de sua mãe faz muito mal a Roxana. De repente, enxuga o olho onde a lágrima de diamante apareceu. O seu olhar torna-se como uma faca apontada sobre Lucian Apostol.

- Escuta, Lucian, minha mãe morreu como os doentes, em Abril - diz ela. com uma voz de acusação. Severa.

As palavras penetram no peito como estilhaços de pedra dilacerando a carne:

- Lucian, desde o momento que minha mãe nunca esteve doente, quer dizer que só a sua alma foi atingida. Era na alma que ela trazia o sofrimento. Não no corpo.

- É possível - diz Lucian-, mas não é preciso exagerar.

- Não exagero, Lucian - diz Domnitza Roxana. - Só uma grande doença espiritual podia matar a minha mãe em plena Primavera, um sofrimento da alma. Diz, Lucian, não serias tu por acaso quem tornou doente a alma da minha mãe?

- Tu divagas, Domnitza Roxana - diz o professor. Mas torna-se duma palidez extrema. Como da vez em que foi julgado sobre o testemunho mudo dos cavalos, em frente da casa.

- Lucian, não sabia por acaso minha mãe o que eu ignoro? Não conhecia ela a ofensa terrível que os próprios cavalos conhecem? Só desta forma se pode explicar a sua morte em Abril, minha mãe era um rochedo. É impossível que morresse na estação em que morrem os tuberculosos. O segredo do teu pecado, do teu crime, que só os cavalos conhecem, minha mãe conhecia-o, provavelmente, também. Foi o que a tornou doente. Visto que ela conhecia o teu crime, era natural que morresse na Primavera. Porque, neste caso, ela morreu doente. com a alma, o sonho, a memória corroídas como que pelo cancro, a tuberculose ou a sífilis, pelo terrível germe da injustiça, da humilhação, do pecado. A tua infidelidade gastou a alma de minha mãe, exactamente como os espiroquetas, como qualquer vírus infernal, e minha mãe morreu como um doente infectado, apodrecido, na estação em que morrem, todos os doentes da terra.

Ela faleceu, morta pelo micróbio do teu pecado. Corroída pelo vírus da tua infidelidade.

Roxana desata a soluçar. Pela primeira vez na sua vida de adulta, Roxana chora verdadeiramente. Exactamente como a sua filhinha Stela. com os punhos cerrados. com as faces púrpuras. Incendiadas de dor, como pelas chamas.

Lucian Apostol poisa a mão, protector, sobre o ombro da mulher. Puxa-a para si.

- Não me toques - grita Roxana. - Se é verdade que foste tu quem enxertou na alma de minha mãe o germe da dor e se ela morreu com o coração apodrecido pelo sofrimento por tua causa, far-te-ei pagar, Lucian, far-te-ei pagar o teu crime. De joelhos. Torturado como um assassino. Se tu mataste minha mãe, serás condenado à morte, a fogo lento, como os grandes assassinos do inferno.

- Isso não são palavras de mulher civilizada, Roxana - diz o professor. - Não fales como os selvagens de África. Como os feiticeiros.

- É a única explicação possível para a morte de minha mãe no mês de Abril - diz Roxana. - Ela morreu em Abril porque tinha a alma doente. Infectada por ti. Corroída pelo micróbio do pecado cometido por ti.

- É absurdo o que dizes - responde Lucian Apostol.

- Por agora não insisto - diz Domnitza Roxana. - Julgo que não seja verdade. Contudo, fica sabendo, Lucian, que, se és culpado da morte tormentosa da minha mãe, porque um Roca nunca sofreu para morrer, então, Lucian, tu pagar-me-ás caro. Eu sabê-lo-ei. Aviso-te, Lucian, se por acaso tu és culpado, desaparece urgentemente. Esconde-te no fundo da terra, para que eu não te encontre. Para que escapes ao meu castigo. Porque se tu és realmente culpado, eu sabê-lo-ei. com certeza. Não estou aqui sozinha. Saberei a verdade. Os cavalos, o céu, o ar, as montanhas, os pinheiros, as pedras, tudo o que existe em Petrodava, debaixo de Petrodava, por cima de Petrodava, tudo é meu aliado. Aliado dos Roca. Tudo e todos me ajudarão a encontrar a verdade. Uma mulher Roca nunca está só nos Cárpatos. Todos estão a seu lado e com ela. As estrelas no céu. E os anjos. Presentemente, acredito-te. Mas previno-te, não brinques com o raio nem com a torrente. Eu sou implacável. Não conheço senão o que é geométrico na vida. Como os pinheiros. É tudo.

 

A condenação do infiel

AGORA, a verdade está à nossa vista - diz Domnitza Roxana Apostol. Ela fala com o primeiro cocheiro, com Pantelimon Haidouk, e explica:

- Falo contigo, Pantelimon, porque o homem tem por vezes necessidade de falar. Não tenho mais ninguém, dos que têm o dom da palavra humana. Nenhum parente pelo sangue. Minha mãe Elvira morreu. Meu pai Petraky Roca morreu. Stela Apostol, a minha filhinha, tem só quatro anos. É muito pequena. Não me resta senão tu, o sucessor dos Haidouks, que desde há séculos são os criados, os amigos, os companheiros das alegrias e dos sofrimentos dos grandes criadores de cavalos Roca, de Petrodava. Os cavalos criados por Roca e Haidouk são famosos em todos os impérios vizinhos.

Roxana tem os olhos cheios de lágrimas. Chora. As suas feridas estão abertas, escancaradas. Ela não é daquelas que põem bálsamo sobre as suas feridas para esquecer a dor. Ela corta a mão, o pé ou tudo o que no seu corpo está doente. Ou então espera, estóica, a cura, com as feridas em carne viva. Explica:

- Quando os cavalos divulgaram o adultério, ele, o infiel, ele, o homem da planície que eu aceitei para marido, gritou, aqui, diante do terraço onde nos encontramos neste momento: "Roxana, minha querida esposa, tu és uma mulher civilizada. Tu não és africana para acreditar nos feiticeiros e na linguagem dos animais. Não podes confiar nos cavalos. Os cavalos não falam.

Roxana bate com o baltag na laje do patamar da porta e diz:

- E eis que os cavalos podem falar. Os cavalos podem denunciar uma vilania cometida por um homem. Os cavalos acusaram. E a sua denúncia não foi uma mentira.

- Domnitza Roxana, talvez que... - diz Pantelimon Haidouk.

- Não há "talvez" - interrompeu-o Domnitza Roxana. - Se tu és um homem desprovido de dignidade e se gostas de ver as porcarias, meter o teu nariz lá dentro, voltá-las e revolvê-las em todos os sentidos, por prazer, como os porcos e os polícias, então monta no selim e vai ver. Eu não sou daquelas que vasculham na podridão. Vai, e verifica. A trinta quilómetros daqui, descendo, há a estalagem de Heim e Rosa Moneda (*). Heim anda sempre em viagem. Como todos os judeus. Por causa dos negócios. Estes homens não têm senão uma pátria sobre a terra, uma pátria redonda e tão pequena que podem metê-la na algibeira, é a moeda. Eles sacrificam tudo pela sua pátria.

 

* Moneda em romeno significa moeda. Como em todos os livros do autor, os nomes dos seus heróis são símbolos e retratos morais (N. do T.)

 

Nós chamamos a esta pátria, a esta moeda, "o olho do diabo". Todas as vezes que o meu marido sai para dar exercício aos cavalos, desce em direcção à estalagem A Moeda de Ouro. Ali, é acolhido por Rosa. O meu Apostol, em vez de passar para diante da estalagem e continuar o seu caminho, como lhe competia, conduz os cavalos para o pátio e abriga-os. E ele vai lançar-se nos braços da estalajadeira. Rosa Moneda é uma mulher de carnes brancas, como o papel de escrever com gordura que lhe arredonda as formas e as articulações com braços brancos e macios como um colchão de penas. Tem o rosto redondo, os olhos pequenos e matreiros, os cabelos vermelhos como chamas. Dir-se-ia uma gata. É uma criatura feita para divertir. Para ser atirada para cima das almofadas. Para a volúpia. É com ela que ele passa o seu tempo. É por causa dele que os cavalos estão tristes. Porque o adultério se passa à sua vista. E eles falaram. Aliás, eu sabia do adultério antes de os cavalos terem falado. Eu estava envenenada. Não sabia donde vinha o veneno que tornou doente o meu sangue, o meu pensamento e as horas da minha vida. Porque o adultério é um veneno. Lento, mas mortal. O marido que o comete envenena a sua companheira. Por causa disso, nas sociedades viris de antigamente, o adultério era punido com a morte, como todo o envenenamento. Eu estava intoxicada a tal ponto que ficava horas inteiras sem me poder mexer. Um dia, adivinhei donde vinha o veneno. As minhas narinas descobriram na roupa, nos fatos e nos cabelos, na pele e nas unhas de Lucian o perfume da mulher ruiva. Senti-o à distância. espalhava-se por toda a casa. Estava tudo impregnado do perfume da mulher com cabelos vermelhos, de rosto redondo, pele branca e olhos matreiros. Eu via-a, antes de saber que ela realmente existia. Ela envenenava-me com as suas formas redondas de boneca de carne branca, os seus dentes de esquilo, dentes feitos para distrair os viandantes e para partir avelãs e rilhar bombons toda a vida. Depois os cavalos falaram. Confirmaram. E minha mãe morreu, morta também pelo mesmo veneno.

- Eu também o sabia, Domnitza Roxana - diz Pantelimon Haidouk. - Soube-o ao mesmo tempo que vós, senão antes. Eu via-vos em perigo de morte, em risco de ser envenenada pelo veneno do pecado que vos transmitia o vosso marido, o meu patrão e o de Petrodava. Mas, dizei-me, Domnitza Roxana, tinha eu o direito de revelar-vos porque é que passáveis os dias em casa e porque é que os cavalos estavam doentes?

- Tu não tinhas esse direito - respondeu Domnitza Roxana. - Fizeste bem em não me falar nisso. Se me tivesses falado, eu ter-te-ia chicoteado.

A partir do dia em que teve a certeza que seu marido a enganava, Domnitza Roxana isolou-se do homem que trouxera o micróbio do pecado para casa, para a sua cama e para a sua carne.

- Naquele dia, ele deixou de existir para mim - diz Domnitza. - Era um morto. Nunca mais pude ter para ele nem sentimentos, nem olhares, nem mesmo rancor. Como odiar qualquer coisa que não existe? Porque ele já não existia, como não existe uma coisa que se tenha queimado. No dia em que eu soube com certeza e em pormenor, nesse dia, peguei em Stela ao colo e retirei-me para o iatac. Bendito seja aquele que inventou o iatac. O quarto reservado exclusivamente para as mulheres em todas as casas. Retirei-me logo para ali, com a minha filha ao colo, como um animal ferido no seu covil. Para suportar a desgraça que o destino me enviava, para chorar e sobretudo para esperar a hora em que seria feita justiça.

- Tivestes coragem, Domnitza Roxana, vós que sois a dona de Petrodava, em renunciar aos cavalos, à casa, a tudo, e retirar-vos para o iatac. Tivestes coragem - diz Pantelimon Haidouk.

-Cedi-lhe a casa e os cavalos e tudo o que existe no universo de Petrodava como se cede a casa, os campos e os bosques ao vento - diz Domnitza Roxana. - Exactamente, como se eu os tivesse abandonado ao vento. Porque eu sei que o vento vem e vai. Ele será o dono um certo tempo, mas desaparecerá como o vento. E eu voltarei.

Neva em Petrodava. O barrete pontiagudo de pêlo de carneiro de Pantelimon Haidouk, o barrete que tem a forma do cimo dos pinheiros, está branco de flocos que caem. Roxana passeia vagarosamente ao lado do cocheiro. com o baltag de prata na mão, que corta como uma navalha. A neve macia e branca sobre a qual caminha lembra-lhe a pele branca de Rosa Moneda. Ela deve encontrar-se agora com seu marido, enterrada nas neves brancas do leito da estalagem. Roxana sabe que o leito de Rosa Moneda tem colchões fofos, almofadas de penas, brancas, com ligeiros bordados, refinados. No chão há tapetes caros e o quarto do pecado tresanda a perfumes do Oriente.

Ela entra em casa para não ver a neve que lhe lembra a pele e a cama branca de Rosa. No iaiac, Roxana acende a lamparina sob a imagem de São Jorge: a torcida, apertada e feita de uma raiz de pinheiro, dá uma chama minúscula que não ilumina senão a parte baixa da imagem de madeira. Domnitza Roxana sai do seu quarto para não ver o dragão. O dragão lembra-lhe o adultério. O pecado.

Em cima da galeria neva a grossos flocos. Os grossos flocos de neve lembram a Roxana as penas de pato com que os Judeus enchem as suas grandes almofadas quadradas. As almofadas brancas, de penas, nas quais neste momento estão enterrados - como nos montões de neve - os corpos de seu marido e de Rosa Moneda. Cada floco que cai do céu em cima do corpo de Domnitza Roxana e à volta dela é uma provocação, porque lhe lembra as penas de que são feitas as almofadas da estalagem A Moeda de Ouro. A silhueta de Roxana Apostol apoiada ao baltag no pátio de Petrodava é como um pinheiro novo açoitado por rajadas brancas da tempestade interior.

- Cai, neve, cai sem fim para cobrires todos os caminhos. Amontoa-te em cima das pontes, para que o infiel não possa voltar para a casa de Petrodava. Céu, faz justiça. Faz com que neve, faz com que as montanhas de neve se elevem atravessando o caminho, tão altas até à abóbada celeste, para que o infiel não as possa transpor. Que ele não se aproxime da casa de Petrodava, que -ele fique longe dela. Que ele não volte mais, com o germe do pecado, a esta casa. Que as paredes da minha casa não sejam mais profanadas. Nem as almofadas, nem os lençóis da minha cama emporcalhados pelo homem em estado de pecado.

A neve cai com abundância. Como se o céu respondesse afirmativamente a Domnitza Roxana. Mas Domnitza está sem esperança.

- É inútil, neve, que tu caias. O céu pode ser generoso. A minha oração pode ser atendida. A neve pode, em algumas horas, cobrir todos os caminhos e novas montanhas erguerem-se em Petrodava e isolá-la como uma cidadela. As montanhas de neve podem erguer-se até ao céu. Os meus cavalos que puxam o trenó do infiel conduzi-lo-ão a casa. Os cavalos Roca nadam na neve cinco vezes mais alta que eles. Os meus cavalos podem nadar nas chamas brancas das tempestades de neve. Nada os detêm no caminho. Os cavalos conduzi-lo-ão. Os meus cavalos podem mesmo trazê-lo do inferno.

Se Roxana fosse duma outra raça - que não de Petrodava - ela livrar-se-ia do marido adúltero. Poderia matá-lo. Envenená-lo. Estas formas de conluio são inimagináveis para uma mulher de Petrodava. Ela não ataca pelas costas. Nem indirectamente. Oh! se ela fosse oriental poderia proceder como a Dalila da Bíblia com Sansão. Mas para Domnitza Roxana não existe, sobre a terra, senão o combate leal onde se faz frente. Somente ela é mulher. Lucian Apostol é um homem, portanto mais forte. A natureza não permite a uma mulher defrontar um homem em combate regular. Resta-lhe a astúcia, a cobardia, o ataque pérfido. Estes meios são-lhe interditos pela sua condição de mulher de Petrodava - vertical - que não conhece senão a linha recta. É sobre esta trajectória que ela espera o marido, heróica e paciente, embora trema por ter de o defrontar. Que ela espera o desencadear do ataque. De o vencer em combate normal. De o forçar a pôr o joelho direito em terra como os vencidos cobardes. De o ver implorar o perdão como os escravos vencidos. E de lhe recusar o perdão. De lhe infligir o castigo que merecem os assassinos, os adúlteros e os traidores.

Roxana passa toda a tarde a mudar de lugar. À noite, sai de casa e vai para junto dos cavalos. O marido ainda não chegou. Agora ele passa a maior parte do tempo na estalagem A Moeda de Ouro. Os cavalos não dormem. Batem com o casco, voltam os seus olhares e relincham quando sentem o passo ligeiro de Domnitza Roxana junto deles.

- Porque finges que dormes, Pantelimon? grita Roxana. O catre de Haidouk está acomodado perto dos cavalos. Há centenas de anos, os Haidouks de Petrodava dormem junto dos cavalos. Mas Roxana sabe que neste momento Pantelimon não dorme. Que finge dormir, por vergonha. Eu sei que nenhum Haidouk conseguiu dormir enquanto todos os seus cavalos não tivessem regressado. E quatro cavalos estão com o teu patrão lá fora, na tempestade. Eu sei que tu não dormes. Tu espera-los.

Na verdade, mesmo que falte um só cavalo, Haidouk não dorme. Não é porque não queira. Não pode fazer de outra maneira. Ele espera de olhos abertos, até ao amanhecer. Toda a noite. Quando os cavalos chegam, Haidouk espera-os à porta. Enxuga-lhes a neve, a transpiração, e agasalha-os para a noite com coberturas, exactamente como a crianças. Porque os cavalos são os filhos de Pantelimon Haidouk. Ele sabe que a sua missão ao de cimo desta terra é ocupar-se dos cavalos. E se na cavalariça há ainda lugares vazios, ele não dorme.

- Eu dormia, Domnitza - diz o cocheiro. Sou velho e o sono ataca-me facilmente.

- Mentes - diz Domnitza. - Tu esperas que Apostol chegue com os cavalos, não é?

- É, Domnitza - responde Pantelimon. - Eu menti ao dizer que dormia. Perdoai-me.

Domnitza Apostol senta-se. Pantelimon está agora de pé. Eles calam-se. No quarto onde dorme Stela e onde arde a lamparina sob a imagem de São Jorge, iluminando o dragão e a lança que o racha de alto a baixo, ela não pode permanecer. No decorrer do dia, Domnitza sobe ao pico gelado que se encontra em frente da casa de Petrodava. Lá em cima, Domnitza sente-se muito bem, porque a tempestade de fora tem a mesma intensidade da tempestade que estrondeia no seu ser. Mas, neste momento, ela fica junto dos cavalos. E junto de Pantelimon. E está melhor que no iatac, no seu quarto, onde Stela dorme como se nada existisse.

- Eu gostaria de vos ajudar na vossa dor, mas eu não sei como fazê-lo, Domnitza - diz Pantelimon Haidouk.

- É inútil tentares ajudar-me, meu pobre Haidouk- diz Roxana. - Tenho necessidade de justiça. E a justiça, não é o homem quem a pode fazer. O homem, embora seja forte, não pode fazer nem vento, nem chuva, nem as estações, nem a justiça. O que assim o determina não é senão um ajuste de contas. Eu estou ávida de justiça. Da verdadeira. Da grande, da autêntica, que só Deus pode dispensar. A minha boca queima-me, o meu peito, toda a minha carne arde ávida de justiça. Eu gostaria que ela chegasse, como destruidora avalancha, e esmagasse o pecado e o pecador. E eu sei que não tenho de esperar muito tempo. Em breve soará a hora.

- Não vertais sangue - diz Pantelimon Haidouk. Ele está apavorado. Olha para o baltag, este machado de gume duplo que Domnitza Roxana tem na mão.

- Imbecil - diz Domnitza Roxana. - Se eu pudesse fazer justiça, julgas que teria esperado até agora? Mas eu sei que não me posso vingar. E eu não desejo vingança. Desejo que haja justiça. Uma paga justa, que o homem não possa atribuir. Mas unicamente Deus. Imbecil Pantelimon, julgas-me capaz de um crime passional? De vingança? Julgas tu que uma mulher de Petrodava pode ser tão baixa? Nós, meu pobre Pantelimon, nós vivemos com todo o nosso corpo por cima das nuvens, próximo do céu, e é-nos impossível cometer uma acção vil, abjecta, como as dos homens que vivem mais perto da terra que do céu. Nós estamos condenadas, aqui em Petrodava, a ser sedentas do absoluto, da eternidade e do infinito e não podemos saciar a nossa sede com água vulgar.

- Perdoai-me, Domnitza Roxana - diz Pantelimon. - Nunca vos julguei capaz duma vilania. Mas via-vos desgostosa. E o sofrimento é mais desastroso para a razão humana que o álcool. Quando o sofrimento é demasiado, o homem não sabe o que faz. Como o homem ébrio. Perdoai-me.

- Repito-te, Pantelimon, esta noite espero que Deus faça justiça. A tempestade de neve e o vento são demasiado implacáveis para que não haja também um tribunal. Talvez o Senhor nos conceda a graça de nos convidar, a mim, a esposa ofendida, os pinheiros, as montanhas, os cavalos, a ti, a todos nós, a assistir ao julgamento. Seria horrível que o culpado fosse julgado e punido algures e não à nossa vista.

- Domnitza tem a intenção de derramar sangue e diz que é o Senhor quem o fará - diz Pantelimon. - Não façais isso; a minha Domnitza não deve ir para a prisão como uma criminosa.

-Vai-te deitar - ordena Roxana. - A luz da justiça é demasiado forte para os olhos dos cobardes. Que o cobarde volte para a sua pocilga e que durma até à hora da justiça. Só aquele que crê na justiça divina tem o direito de ser testemunha do seu cumprimento. Vai dormir, meu pobre Pantelimon. Boa noite.

Roxana sai da cavalariça. Vai ver se Stela dorme. Sai de novo para o pátio. À meia-noite, quando os galos cantam, entra novamente em casa. E agora, diante da imagem, ouvindo a tempestade lá fora e a respiração calma de Stela, espera. Os seus lábios estão endurecidos pela sede da justiça, como os lábios dos perdidos nos desertos de areia escaldante.

É uma hora da manhã. Entre a respiração calma do sono de criança de Stela e o bramido do vento nas chamas brancas de neve ouve-se o trote e o relincho de um cavalo. Através da janela do iatac estreito como uma ameia, Roxana vê dois cavalos que andam à volta da casa e tentam transpor o muro e arrombar a porta para entrar no pátio. Lucian Apostol atrelara quatro cavalos ao seu trenó. Em frente da porta de Petrodava não estão senão os dois cavalos da frente. À luz azul da neve, Domnitza Roxana vê que têm os arreios partidos. Nenhum vestígio do trenó. Faltam dois cavalos. E os que se encontram diante da porta estão de tal modo agitados que é fácil para Roxana compreender que eles trazem uma notícia desagradável.

- Os cavalos, os meus queridos cavalos castigaram-no- diz Roxana. - Não quiseram que fosse eu a matá-lo com o baltag... com as minhas mãos. E que fosse para a prisão. Eles mataram-no porque sabem que nenhum juiz pode condenar cavalos por homicídio.

A neve pára de repente. E o vento. Dir-se-ia a calma terrível que segue, numa sala de tribunal, a leitura do veredicto.

Já não há nuvens no céu, mas uma luz azul. O gelo cobre a neve de um verniz de espelho, como uma placa de vidro. É o regelo mortal para os viajantes surpreendidos no caminho.

Os cavalos dão várias vezes a volta ao pátio. Relincham. Tentam saltar por cima do muro. Eles poderiam entrar normalmente. São treinados para saltar a paliçada do pátio de Petrodava, mas estão terrivelmente agitados. Roxana vê-os, diante da porta, um atrás do outro, como dois assassinos que quisessem entrar no pátio da casa de Petrodava para se protegerem e dizerem tudo como no confessionário. Os cavalos estão agitados porque cometeram um crime. E o crime perturba da mesma maneira o homem e o cavalo de raça. O assassino, homem ou cavalo, não tem sossego. Os cavalos, que não conseguiram transpor a porta, martelam-na agora com as patas traseiras. Batem como os assassinos batem à porta dos cúmplices para a arrombar e poderem refugiar-se lá dentro, no abrigo.

As portas de Petrodava são altas, com um guarda-vento de ripas de madeira, como a casa de madeira. As tábuas que formam a porta são partidas pelos cascos dos cavalos e voam em estilhaços sobre a neve branca. A porta é arrombada e, através da abertura, os cavalos entram no pátio. Dirigem-se directamente para a entrada principal da casa. Roxana vê os dois chegarem, apoiarem a cabeça no rebordo da varanda e esperarem que lhes abram a porta. Mas Domnitza fica imóvel. Os cavalos dão a volta à casa batendo com os cascos como se tocassem tambor, a fim de a acordarem a ela, a dona de Petrodava, e darem-lhe conhecimento, eles, os cavalos, de como castigaram o ofensor e mataram o infiel.

Domnitza Roxana não se mexe. Os cavalos, sobre os quais pendem os arreios partidos, caminham um ao lado do outro, cabeça com cabeça, para reciprocamente se darem coragem e para não sentirem muito duramente a solidão que oprime os justiceiros e os assassinos depois duma execução capital, depois duma condenação à morte. A solidão que segue o crime é igual para o assassino-cavalo como para o assassino-homem.

Parados diante da entrada principal, os cavalos tentam subir os degraus para bater nesta porta como na do pátio. Mas a escada é alta e os degraus estão gelados. A escada é feita exclusivamente para o homem. Os cavalos, mesmo de raça, não podem subir os degraus da escada de Petrodava criada unicamente para o passo humano.

Não podendo aproximar-se da porta, os cavalos começam a relinchar. Roxana não responde. Os cavalos descobrem as janelas. Estendem o pescoço para as janelas escuras e espreitam, mas nada encontram senão escuridão. E novamente relincham. E os cavalos admiram-se que Domnitza Roxana não os ouça e não venha abrir-lhes a porta. Porque se tornaram assassinos. E sentem uma necessidade urgente de se confessar. Querem comunicar a Roxana que mataram Lucian Apostol. Por traição. Por infidelidade. Por adultério. Por crime. Para que seja feita justiça. E sobretudo para evitar que ela, Roxana, o matasse. Eles não podiam deixar uma mulher cumprir esta suja tarefa. São cavalheiros e encarregaram-se disso. Os cavalos olham para dentro da casa de Petrodava através de todas as janelas e não vêem ninguém. E relincham, e batem com os cascos.

- Imbecil Lucian - diz Domnitza Roxana. - Não consigo imaginar como um homem pode deixar-se matar pelos cavalos. Ensinei-o a manter-se num trenó. A manter-se no selim. Todos os segredos aprendidos há gerações. E nada compreendeu. Desde o momento que morreu isso significa que nada compreendeu. Um homem que não sabe saltar dum trenó que se vira ou que se parte, não dá pena a sua morte. é demasiado imbecil para viver.

Roxana está de tal modo escandalizada com a incompetência do marido que esquece o adultério e a morte de Lucian e diz:

- Um homem, um marido que não sabe saltar dum trenó partido que cai numa ravina, enquanto os cavalos puxam, embora atrelados, é um imbecil. Um incompetente.

Roxana afasta-se da janela. Tapa os ouvidos para não ouvir os cavalos que se agitam e a chamam. Não quer responder-lhes. Pelo menos por agora.

- Õ imbecil - continua Roxana. - Lucian Apostol foi sempre um imbecil. Por causa disso não conseguiu salvar-se. E foi por causa disso que vivia em pecado. Só um doido e um imbecil pode viver em estado de pecado. O pecado é uma grosseira falta de cálculo, de apreciação e de raciocínio. Viver em pecado significa sacrificar tudo por um fragmento. Pecar significa dar mais importância a um pormenor do que ao todo. Como ele fez. Ele sacrificou tudo por um pedaço de mulher. Como se sacrificaria toda a abóbada celeste por uma estrela. É isto o pecado. E ele está reservado aos doidos. Só os imbecis são pecadores. Lucian era o chefe da família. Era o meu chefe, o chefe de Stela, dos cavalos, das montanhas, dos bosques, dos criados. Sacrificou tudo por um pedaço de mulher branca, de cabelos ruivos e sardenta. Por muito admirável que fosse, este pedaço de mulher é sempre um fragmento. E do outro lado há o universo. O marido é o chefe. E o chefe é o sol de um pequeno sistema planetário. Ele sacrificou um sistema planetário do qual era o sol por uma boneca de carne cor-de-rosa. Morto, o seu sistema planetário. Porque tudo morre se o sol morre. E nunca mais ressuscitará. Porque todo o sistema planetário é único, sem repetição, e não existe senão em função do seu sol.

Roxana chora, chora por seu marido ter sido tão bruto, tão imbecil, para cometer este grosseiro erro de raciocínio que é o pecado humano.

Neste instante apareceu à porta da casa de Petrodava um pedaço de trenó puxado por um só cavalo. A este fragmento do trenó está preso um homem: Lucian Apostol. Preso como um casaco, como um lenço que pende atrás do trenó, sobre a neve.

A porta continua fechada. O trenó não pode passar pelo buraco feito nas tábuas pelos cavalos. Lucian levanta-se. Trepa, como um réptil escuro, ferido de morte, e tenta atingir a fechadura. Mas os seus esforços são demasiados para a pouca energia que lhe resta. Estende a mão várias vezes para a fechadura, mas não consegue alcançá-la, e volta a cair sobre a neve, com todo o seu corpo, como um fato caído dum armário. E fica enrodilhado sobre a neve, como um casaco caído. Depois recomeça a içar-se para a fechadura, a fim de a abrir.

Os cavalos que estavam já no pátio da casa de Petrodava e que, embora tivessem relinchado, olhado pelas janelas de todas as salas e dado volta à casa batendo com os cascos sem conseguirem acordar Domnitza Roxana, acolhem agora o seu camarada, o terceiro cavalo, ao qual estava preso Lucian Apostol e um fragmento do trenó, por ter conseguido chegar até aqui. Por cima do muro, as ventas dos dois cavalos do pátio encontram as ventas do terceiro que está do lado de fora com Lucian. E as cabeças dos três cavalos, encostadas umas às outras, coladas por cima da porta, nas chamas brancas do gelo, parecem horrivelmente conscientes e angustiadas com a gravidade do acto que cometeram. Os cavalos do pátio, depois de se terem consultado com o que está do lado de fora com o dono, diante da porta, tornam a partir a galope à volta da casa de Petrodava, a relinchar e a dar coices nas tábuas da varanda. Domnitza sente tremer a casa com os coices. Mas não responde. Entretanto, Lucian Apostol conseguiu desaferrolhar a porta. Preso ao trenó onde não resta senão um só cavalo, ele arrasta-se até à galeria. Sobe os degraus trepando como um lagarto. E quando chega diante da porta da entrada estende a mão para a abrir, como abriu a porta do pátio. Mas é difícil. É preciso meter a chave na fechadura. É preciso voltá-la. Mas não consegue. Todos os esforços falham. Cai, a testa ensanguentada, sem chapéu, em cima da neve que cobre o patamar. E apesar de todo o seu orgulho bate à porta. Teria preferido morrer do que bater à porta. Mas ele está exposto a um sofrimento devorador. E o seu orgulho acabou-se. Bate com o punho. E ninguém responde. Cai vencido. Prestes a morrer. Os três cavalos conservam-se atrás de Lucian Apostol. Inclinam para ele, em silêncio, as suas cabeças. Cheiram-no. Para ver se está morto. Esperam. Depois os três começam a saltar e, voltando a garupa para a varanda de pinho, escoicinham-na, fazendo tremer a casa. Lucian retoma forças e bate novamente. Agora grita:

- Domnitza Roxana, Domnitza.

Quer chamar Pantelimon, os outros criados. Mas o sítio onde eles dormem fica muito longe da casa dos patrões de Petrodava. Novamente, chama a mulher. Atrás, os cavalos estão silenciosos e participam na cena. E admiram-se porque Roxana não responde.

Roxana vê os três cavalos, que erguera as orelhas ao ouvir o seu nome.

- Quem está à porta? - pergunta Roxana.

- Sou eu - responde Lucian Apostol.

- Eu, quem?

- Eu. Lucian. O teu marido. Estou ferido, Domnitza.

- Não imite a voz de meu marido, não conseguiria - diz Roxana. - Meu marido não está em casa.

- Sou eu, Roxana - diz o professor.

- Lucian Apostol, meu marido, quando quer entrar na sua própria casa, aqui, onde ele é o dono e o sol, entra. Ele não é um farrapo. Nem um réptil. Ele não vem a rastejar diante da sua própria porta para mendigar e pedir a outros que lha abram. Ele abre-a sozinho. Estranho, siga o seu caminho.

- Eu não sou um estranho. Sou eu, Lucian, gravemente ferido pelos cavalos.

- Imbecil, procure outros truques mais inteligentes - diz Roxana. - Como pode dizer que é Lucian Apostol? Lucian Apostol é genro de Roca e o maior domesticador e criador de cavalos do país moldavo. Informe-se nos impérios e saberá que ele não é homem para ser ferido pelos seus próprios cavalos.

- O trenó está em pedaços - suspira Apostol.

- Um acidente. Suplico-te. Abre. Juro-te que sou eu.

- É impossível que você seja o meu marido - diz Roxana. - Meu marido partiu com os seus cavalos. Criados por ele. No seu trenó, com os seus cavalos, Lucian Apostol, o genro de Roca, está em maior segurança que o peixe dentro de água. Pelo contrário, se ele estiver em perigo, eles salvá-lo-ão. Os cavalos Roca conhecem e gostam do seu dono que os criou e ensinou. Um cavalo Roca atira-se à torrente e morre pelo seu dono. Siga o seu caminho e conte a outros, mas não a mim, que um cavalo de raça feriu o seu próprio dono.

- Não me atormentes, Roxana - diz Lucian Apostol. - Estou exausto de forças.

Roxana, de pé, perpendicular, colada à porta, ouve os gemidos do marido, aniquilado, diante do patamar da porta.

- Pode ser que sejas tu, apesar de tudo? - pergunta Roxana. - Tenho o pressentimento que este acontecimento incrível seja real. És tu realmente?

- Sou eu, Roxana.

- Estás ferido?

- Gravemente - diz Lucian Apostol. - O trenó está no fundo da ravina. Em pedaços. Um cavalo morreu. Eu arrastei-me, agarrado aos cavalos, durante cinco quilómetros para chegar aqui. Diante desta porta. Os cavalos arrastaram-me como um cepo. Podes ver os traços de sangue sobre a neve.

- Pobre réptil desgraçado - diz Roxana com desgosto. - E donde vens? Porque é tarde. Os cavalos deveriam estar a descansar. E o seu dono também. Donde vens a uma hora tão tardia, depois da meia-noite?

- Dir-to-ei, uma vez dentro de casa, Roxana. Abre.

- É verdade que vens da estalagem A Moeda de Ouro?

- É verdade, mas juro-te que não voltarei a fazê-lo. A culpa é minha. Abre.

- É verdade que Heim Moneda anda em viagem?

- É verdade. Mas imploro-te, abre. Juro-te que é a última vez.

- É verdade que Rosa Moneda fechou a estalagem para que não fossem incomodados pelos clientes e que ficaram sozinhos?

- Não me tortures. Abre. Digo-te que estou ferido de morte.

- É verdade que passaste toda a primeira parte da noite com Rosa?

- É verdade, mas isso não voltará a acontecer.

- É verdade que vens dos braços de Rosa?

- É verdade, e peço-te perdão. Abre. Roxana cala-se. De pé. Imóvel.

Do lado de fora, diante da porta, o ferido perde a paciência.

- Roxana, peço-te perdão e peço-te que me abras a porta.

- Eu não sou juiz para condenar ou absolver

- responde Domnitza Roxana.

- Abre, suplico-te.

- Eu não posso acreditar que tu sejas Lucian Apostol, meu marido. Meu marido jurou-me fidelidade. Eu sei que ele cometeu uma falta. A dose de estupidez do homem é grande. Eu sei que ele sacrificou a sua mulher, a sua filha, os cavalos, os criados, tudo, por um pedaço rosado de mulher, e por muito agradável que ele fosse, esse pedaço de mulher branca e rosada não merecia que se lhe sacrificasse todo o universo para uma sensação de alguns instantes como ele fez. Eu acusei a natureza por o ter criado estúpido. Eu passei por cima disso. Mas que ele tenha sacrificado até a sua vida por esse fragmento rosado de mulher não acredito. Isso seria da sua parte uma estupidez demasiado grande para que ele a tenha cometido. Não é verdade. A natureza não criou pessoas tão néscias. Não te acredito. Depois de ter sacrificado tudo, sacrificar a própria vida ainda por cima. E por tão pouco... Não te acredito.

- Roxana, sou eu, o teu marido.

- É impossível que sejas tu...

- Abre. A lei obriga-te a isso. Mesmo que me odeies e que queiras a minha morte. Eu estou ferido. E a lei obriga-te a prestar assistência aos que estão feridos e em perigo de vida. Se não abrires, amanhã serás presa.

- Meu pobre imbecil - diz Roxana. - Meu pobre imbecil. Novamente dás mostras de estupidez. Toda a gente sabe que, desde que vives em pecado e no adultério, eu durmo no quarto do fundo e com a minha filha. Tu sabes que do iatac não se ouve barulho algum. Podes arrombar a porta à machadada, no iatac nada se ouve. Juridicamente, eu não te ouço. Compreendes.

- Eu peço a tua piedade, Roxana. A tua piedade.

- É a única coisa que não podes pedir-me. Eu preveni-te. No dia em que me pediste em casamento, no dia 23 de Abril, pelo São Jorge, eu disse-te que era uma serrana. Eu não conheço senão uma felicidade, uma única linha de conduta, e pedi-te fidelidade. Eu disse-te que era como as torrentes, que eu não conhecia senão a justiça.

Jamais a piedade. Não peças o que eu não posso dar. Tu foste prevenido.

Roxana volta para o quarto do fundo. Aos pés da imagem de São Jorge a lamparina ilumina o dragão aniquilado, debaixo dos cascos do cavalo branco, pela lança do santo. Stela dorme e sorri no seu sono. Roxana estende-se ao lado da filhinha e adormece. Tranquila. O que era preciso fazer-se, Deus o fez. A justiça. Roxana assistiu, na qualidade de vítima e de testemunha. Diante do seu próprio tribunal, ela nada tem a censurar a si própria. Pelo contrário, porque a piedade não é admirável sobre a terra se não se exercer em detrimento da justiça.

No dia seguinte de manhã, Pantelimon Haidouk e os outros criados encontraram diante da porta, na galeria, gelado, o corpo inanimado do professor Lucian Apostol. Um rasto de sangue, sobre a neve branca, ia da casa de Petrodava até ao lugar do acidente, a uma distância de cinco quilómetros, ali onde o trenó se partiu e onde um cavalo morreu. O acidente era demasiado evidente para exigir um inquérito. Aliás, toda a gente sabia que do quarto onde dormia Domnitza Roxana e sua filha não se podia ouvir o que se passava à porta da entrada, mesmo que se dessem machadadas nessa porta.

O professor Lucian Apostol foi enterrado junto dos membros da família Roca, no cemitério do mosteiro de Neamtz, e sobre a cruz de madeira, Domnitza Roxana Apostol, a viúva, ordenou que se escrevesse: ((Aqui repousa, para a eternidade, Lucian Apostol, morto pelos seus próprios cavalos."

 

O primeiro baile e a primeira guerra mundial

É o teu primeiro baile, Stela. Um acontecimento de uma importância extraordinária na vida de uma mulher. A tua primeira saída para o mundo. Pensarás neste baile toda a tua existência. Não o esquecerás. Lembrar-te-ás dele quando fechares os olhos para sempre. Tens de estar muito bonita.

Domnitza Roxana Apostol, a viúva do professor Lucian Apostol, faz a prova do vestido de baile da filha, Stela Apostol. Dentro de três semanas ela aparecerá, acompanhada pela mãe, no baile de Yassy. O baile que se realiza todos os Outonos na capital da Moldávia.

- O teu destino será talvez o mesmo que o destino do século; tu, Stela, tu tens dezasseis anos, a mesma idade que o século...

Efectivamente, é o Outono do ano de 1916. Stela Apostol é uma verdadeira mulher de Petrodava: alta, delgada, direita como um pinheiro. Exactamente como era Elvira Roca, sua avó. Exactamente como Domnitza Roxana, sua mãe. Ela vê-se no enorme espelho do quarto de hóspedes da casa de Petrodava.

- Um vestido branco é um vestido de primeira comunhão, um vestido de noiva ou um vestido de morte - diz Stela. - As virgens são enterradas de branco, elas também, como todas as noivas e as primeiras comungantes. Um vestido branco é como uma folha de papel: pode escrever-se nela seja o que for. Uma declaração de guerra, um poema, uma carta de amor, uma participação de luto ou de casamento. Talvez que neste primeiro baile eu dance com aquele que virá a ser o meu marido. Seria admirável, não é verdade, mãezinha?

-Admirável - responde Domnitza Roxana. Ela está preocupada. Todas as vezes que ela prova este vestido, Stela procura falar-lhe dum assunto que está há muito tempo em suspenso entre a mãe e a filha. Neste momento, Stela volta a ele, e diz:

- Mãezinha, podemos falar agora?

- Que é que já fizeste? Tu não falaste?

A resposta de Domnitza Roxana é seca. Ela é injusta para com Stela. Ela não sabe senão pouco do que a filha lhe quer perguntar. Lucian Apostol, o pai de Stela, morreu quando a pequena tinha quatro anos. Sobre a cruz, no seu túmulo, lê-se: "Lucian Apostol, morto pelos seus próprios cavalos." Stela perguntou várias vezes como é que os cavalos mataram o pai. Em toda a casa de Petrodava não existe uma única fotografia do professor Lucian Apostol. Roxana apagou todos os vestígios que ele tivesse podido deixar. Ela passou a sua viuvez a criar cavalos, à semelhança de todas as gerações precedentes.

- Mãezinha, tu prometeste-me falar de meu pai e da sua morte quando eu tivesse idade para compreender.

- É certo - diz Domnitza Roxana. Ela pica com um alfinete a pele da filha; esta nada diz. Evita toda a provocação. E retoma a conversa:

- Agora que faço a minha entrada no mundo, que vou ao meu primeiro baile, eu sou uma mulher. Eu posso compreender. Tu podes falar-me.

- Que queres tu saber ao certo?

- Como morreu o meu pai - diz Stela.

- Isso interessa-te tanto?

- Tudo o que se relaciona com os autores do meu destino me interessa. Tu sabes, eu não te guardo rancor por nada me teres dito até agora. Pelo contrário, apreciei o facto de que não me tenhas dito mentiras. Tu esperaste que eu chegasse à idade de compreender. Para me poderes dizer realmente a verdade, não foi? Preferi que nada me tivesses dito, em vez de me contares uma mentira como às crianças. Tu és "um carácter", mãezinha. Admiro-te por causa disso. Tu nunca mentes?

- Não - responde Domnitza Roxana.

- Eu quero ouvir a verdade sobre a morte de meu pai - diz Stela Apostol vendo-se ao espelho, no seu vestido branco. Sua mãe está de joelhos e arranja as pregas. Stela continua: - Se tu preferes não falar, agora que posso compreender, eu não te obrigo a contar-me como isso se passou! São talvez coisas constrangedoras para ti. Coisas que tu desejarias que eu, a tua filha, não saiba da tua boca. Da boca da minha mãe. Coisas ofensivas para ti. É-te difícil falar?

- Absolutamente nada - responde Domnitza Roxana. - É de tal forma banal e insípida, esta história de teu pai, que eu quase tenho vergonha de narrar acções tão baixas, tão vulgares. Uma história de tal modo pequena como degradante, sem qualquer importância. Escuta, sobre a estrada que desce de Petrodava, a alguns trinta quilómetros daqui, existia, há doze anos, uma estalagem chamada A Moeda de Ouro. A estalajadeira chamava-se Rosa Moneda. Era uma boneca de carne cor-de-rosa. Pequena, redonda, de cabelos ruivos, olhos matreiros e com bonitos dentes, pequenos dentes de esquilo. Era um brinquedo. Um objecto de divertimento. Uma fêmea "picante". Teu pai enganou-me com ela. É estúpido, baixo. Uma noite, aquecido pela volúpia e pelo álcool, partiu o trenó, que rolou por uma ravina. É muito baixo e muito vulgar, como vês. Ele cometeu um pecadozinho de pequeno senhor e morreu como pequeno senhor. Arrastou-se, agarrado aos cavalos, até à porta. Entrou no pátio. Trepou os degraus, embriagado e apavorado por morrer como um lagarto, como um réptil. Estendeu a mão para abrir a porta. Mas não a atingiu. Ou talvez a sua mão tremesse e ele não conseguisse meter a chave na fechadura. E morreu com a chave da sua casa na mão. Em cima do patamar da casa. Gelado. Os criados encontraram-no morto. Diante da porta. Eis toda a história do teu pai. Não ta contei até agora para não te dar um complexo de inferioridade e de vergonha, porque tu tiveste um pai tão banal, tão "baixo". Para completar a vulgaridade do quadro, o desgraçado tinha com ele, no momento em que os criados o encontraram nos degraus, duas garrafas de vinho ordinário, muito ordinário e de má qualidade. Porque é que ele trazia para a casa de Petrodava vinho mau, que só bebem as pessoas ordinárias? Na nossa adega existem milhares de garrafas de vinhos finos, de vinhos de qualidade. Ele trazia garrafas de bebida vulgar. Foi a estalajadeira, Rosa Moneda, quem devia ter-lhas dado para que ele se aquecesse no caminho. O que mais me espantou foi que ele, a quem eu não servia senão Cotnari, se tenha podido contentar com tão vulgar zurrapa; mas tudo nele era ordinário. Eis toda a história, sem grandeza, de teu pai. A sua morte foi da mesma qualidade que toda a sua existência de homem da planície, desprovido de altura. Terra a terra. Uma existência de pobre réptil. Um insecto dos campos, de terreno liso, e que morreu como um insecto, esmagado pelos seus cavalos.

- É tudo, mãezinha?

- Tudo, e já é bastante. Por vezes pergunto a mim própria como é que o Criador pôde meter tanta baixeza na mesma criatura.

- Tu nunca mentes, mãezinha. Por conseguinte pergunto-te: é verdade o que se diz, que tu deixaste o paizinho morrer sob os teus olhos?

- Tu perguntas-me se, por acaso, eu não sou a assassina de teu pai, não é verdade? - inquire Domnitza Roxana. - Pois bem!, minha filha, julgas que as leis, mesmo as Leis de um pequeno país como a nossa Roménia, deixariam um assassino em liberdade? Julgas que eu teria podido criar-te, ficar ao pé de ti, se eu tivesse matado o teu pai? Como julgas tu que eu teria podido evitar as minas de sal-gema, a prisão com que se punem os assassinos?

- Desculpa a minha pergunta, mãezinha. É o que eu ouvi dizer às pessoas.

- Ouviste alguém dizer que eu matei o teu pai?

- Não - responde Stela. - Não me disseram que tu o mataste. Mas diz-se que tu o deixaste morrer, que ele bateu à porta. Que tu o ouviste. Que uma mulher Roca não pode deixar de ouvir se alguém bate à sua porta. Que tu não lha quiseste abrir. É pois uma maneira de matar alguém deixá-lo morrer.

- Não, Stela. Eu não podia ouvir o teu pai bater à porta, mesmo que eu seja uma mulher Roca, mesmo que eu me chame Domnitza Roxana e que eu seja conhecida nos cinco impérios pela minha coragem e pelos meus cavalos. Não. Eu não ouvi o teu pai, porque não se pode ouvir alguém que não existe. Ora, depois de ele ter cometido o adultério, a traição, a infidelidade e o crime vulgar, eu retirei-me contigo para o quarto do fundo e ele deixou de existir para mim. Compreendes? Ele tornou-se uma coisa consumida nas chamas do pecado. O vento levou as cinzas, as nuvens beberam o fumo e ele já não existia. Ele já não era nada, nem fisicamente, nem moralmente. Como teria eu podido ouvir a voz de alguém que já não existe? Responde, Stela. Como podia eu responder ao apelo duma criatura que não existe? E é o que ele era para mim.

- Desculpa-me, mãezinha. Fiz-te uma pergunta estúpida - diz Stela. - É idiota o que acabo de dizer. Não se pode ouvir a voz de alguém que não existe, isso é verdade. Não é possível para nenhum ouvido humano. E é natural que meu pai se tenha tornado inexistente. O pecado e a traição são mais terríveis que o fogo. Porque a traição destrói não somente a pessoa física de qualquer um, mas também a imagem do traidor na memória daquele que teve a desgraça de o conhecer. O traidor desaparece exterminado na memória e nos tempos. É a primeira vez em que a lei de Lavoisier, ((nada se perde, nada se cria e tudo se transforma", é inaplicável. O traidor é a única coisa que desaparece da natureza sem deixar rasto. Deixa-me que eu te beije, mãezinha. Peço-te que me perdoes. O inexistente não pode ser ouvido, mesmo que bata à porta.

- Tu és uma verdadeira mulher Roca, Stela - diz Domnitza Roxana. - Vem a meus braços.

No mesmo instante, ouve-se bater à porta. Antes que lhe tenham respondido para entrar, Pantelimon Haidouk irrompe pelo quarto de hóspedes onde Stela prova o seu primeiro vestido de baile.

- E is que te precipitas agora sobre nós sem bater à porta e sem esperar licença para entrar? pergunta Roxana.

- Perdoem-me, mas trago uma notícia muito grave, Domnitza Roxana. A guerra foi declarada. A Roménia entrou na guerra mundial. Nas aldeias, lá em baixo, todos os homens foram chamados. Os que se evadem são presos, algemados e enviados para o combate. O exército invadiu, como gafanhotos, os pátios, as casas. Tem ordem de requisitar o trigo, o milho, os bois, os cavalos, o ouro, o mel. Dentro de alguns dias, os militares subirão até Petrodava.

- Stela, vai para o quarto ao lado e tira o vestido branco. Não é altura de pensar no baile. Veste-te para partir para o skit.

O skit é um lugar de retiro para os eremitas, homens ou mulheres, no fundo dos bosques. É ali que se refugiam, sempre que uma invasão os ameaça, os proprietários de Petrodava com todos os seus objectos de valor.

- Pantelimon, os cavalos e minha filha, Stela, partem esta noite mesmo.

- Nós partimos juntas, mãezinha - diz Stela.

- É o costume, desde há centenas de anos. Logo que uma guerra é declarada, deve-se, em primeiro lugar, esconder no fundo dos bosques, no skit, as virgens e os cavalos. São as primeiras vítimas das invasões e das guerras. Depois, partem as pessoas novas, o trigo, os animais com cornos e as mulheres. Em tempo de guerra, a verdade desaparece completamente, deixando o lugar à mentira que desacredita o inimigo. A própria justiça, por sua vez, cede o lugar à força. Escondem-se as virgens e no seu lugar aparecem as meretrizes. Tem de ser tudo mudado. Sem demora. Faz as tuas malas. Em tempo de guerra, só estão em segurança as mulheres velhas, os doentes e os animais que não servem para comer. Uma operação de descrédito do mundo. É a guerra: a degradação da natureza. Poupar o que é mau, destruir o que é bom.

- Exactamente nos meus dezasseis anos e quando eu devia dançar no meu primeiro baile - diz Stela com amargura. -Porque temos de entrar nesta guerra mundial justamente antes do meu primeiro baile?

- A culpa é tua, minha Stela. Tens a mesma idade que o século. Tens de suportar todos os seus sofrimentos. Quando um século tem dezasseis anos, há uma guerra mundial, tal como uma rapariga nova vai ao seu primeiro baile.

Domnitza dirige-se a Pantelimon Haidouk.

- Porque se declarou esta guerra mundial? Os Turcos invadiram-nos de novo?

- Não, Domnitza, já não existem Turcos na Europa, nem Vândalos, nem Hunos.

- Quem é que invadiu a Roménia, para que nos chamem todos ao combate, agora, no começo do Outono?

- Ninguém invadiu a Roménia - responde Pantelimon Haidouk.

- Então contra quem e porquê nos batemos nós, agora que o século e a minha filha têm dezasseis anos?

- Ninguém sabe exactamente quem é o inimigo, mas estamos -em estado de guerra. Os combates já começaram. A Roménia entrou na guerra mundial, que dura há dois anos. De um lado, como se escreve nos jornais, há os Alemães com os seus aliados; do outro, os Franceses com os seus. Nós não temos motivo algum para nos batermos, nem contra os Alemães, nem contra os Franceses. É somente daqui a alguns dias que saberemos exactamente quais são os inimigos. Parece que o Governo tirou à sorte. E foi um número branco que saiu, mas como era necessário que entrássemos também em guerra, porque se trata da primeira guerra mundial, onde se devem bater todas as nações da terra, mesmo as mais pequenas, e é por isso que se chama "mundial", jogou-se a cruzes ou cunhos; atirou-se uma moeda: cruzes, batemo-nos contra a França, embora se trate da nossa irmã latina; cunhos, contra a Alemanha, embora o rei da Roménia seja alemão.

- É a primeira guerra mundial que rebenta sobre a terra, mãezinha? - pergunta Stela.

- A primeira - responde Domnitza Roxana. Ela está desgostosa. Pelo contrário, Stela está alegre e diz:

- Desculpe-me, mas eu prefiro fazer a minha entrada no mundo por uma guerra do que por um baile. É menos banal e mais interessante. Sobretudo quando se trata da primeira guerra mundial do planeta, da primeira guerra do século e, bem entendido, da "minha" primeira guerra mundial. Tenho dezasseis anos, como o século. É um acontecimento.

- As virgens retiram-se do mundo quando há uma guerra. Não ficam nas cidades e nas aldeias, durante os combates, senão as velhas e as meretrizes. Vai-te vestir para a viagem. Enquanto a guerra durar, não verás senão os pinheiros, os ursos e o céu por cima da tua cabeça no fundo dos bosques. Este é o mundo para o qual vais entrar. E o teu primeiro baile, tê-lo-ás quando a guerra terminar. Porque houve guerras que duraram trinta anos e mesmo uma que durou cem. Apressa-te a partir. E não penses em voltar.

 

A dupla coroação

A casa de Petrodava foi requisitada - diz Pantelimon Haidouk. - Os gendarmes vieram tomar posse dela. É o comandante do Exército russo na Moldávia quem vai habitar na nossa casa.

Instalada no seu refúgio, no coração das montanhas, com os cavalos, com Stela, com os criados e com tudo o que era transportável, Domnitza Roxana ouve a informação de Haidouk. Ele chega de Petrodava. Lá em cima, na casa, não resta quase nada. Salvo o telhado, as paredes, as árvores, as portas e os pinheiros. O povo romeno, que, desde que existe sobre a terra, não conhece senão invasões, refúgios e regressos às aldeias, onde encontra tudo queimado pelos invasores, adaptou-se à situação geográfica e à fatalidade histórica. Nenhuma casa, nenhuma cidade é construída de granito, de calcário ou de outras pedras. Cada geração conheceu pelo menos uma ou duas invasões, senão várias. as pessoas refugiam-se, como agora Domnitza Roxana, no fundo dos bosques. As casas são construídas expressamente para serem abandonadas ao invasor, para serem pilhadas e seguidamente incendiadas. Todos os móveis são fabricados tendo em vista os transportes. Em vez de armários, o povo romeno fabrica cofres, que são transportáveis. Não existem construções de materiais que durem séculos. Porque ninguém gosta de construir qualquer coisa que, fatalmente, será incendiada dentro de dez ou quinze anos. As imagens, as pinturas, os desenhos não se encontram mesmo nas paredes porque as paredes serão queimadas. É tudo estofado, bordado ou tecido. Os estofos podem ser enrolados, fechados em malas, as malas colocadas sobre um cavalo, e toma tudo o caminho dos refúgios. Assim tudo pode ser salvo. Porque a obra de arte é criada com a sede de enfrentar o tempo. Tudo o que é belo, tudo o que era precioso na casa de Petrodava encontra-se agora aqui, no refúgio do skit. Pelo que os proprietários de Petrodava não sofrem muito por ver os Russos instalados na casa.

- Portanto, agora é certo - diz Domnitza Roxana. - Escolhemos os Alemães como inimigos. Somos aliados dos Franceses e dos Russos. É duro para o pobre rei da Roménia, que não conhece quase o romeno, bater-se contra os da sua raça, contra os Alemães. Mas visto que a sorte o quis assim, desde o momento em que ele escolheu o seu inimigo a cruzes ou cunhos, agora tem de aguentar. Aliás, se não tínhamos motivo algum para declarar guerra aos Alemães, também não o tínhamos para a declarar aos Franceses. Os Franceses e os Alemães são-nos igualmente estranhos e amigos. Mas se somos forçados a bater-nos com um deles, devemo-nos submeter às decisões da sorte. Parece que os Americanos, que têm a mania de emancipar todos os povos, convidaram, segundo as leis da democracia, todas as nações a baterem-se, como se convida, igualmente, todas as pessoas a dançar numa roda pública. Aquele que não entra na guerra mundial é tão ridículo como um homem que não sabe dançar e fica a um canto enquanto os outros se divertem e se metralham!

Roxana suspira. Ela mandou Stela para a escola de Yassy, onde aprendeu cerca de duzentas palavras francesas, a solfejar, a cantar algumas romanzas e a ler uma dúzia de romances de amor que ela por sua vez narrou a sua mãe e a Pantelimon. Estes ficaram impressionados com isso.

Depois do seu primeiro baile, neste Outono do ano de 1916, Stela devia voltar ao colégio para completar a sua educação sobre os assuntos superficiais que dão um ar de feminilidade a qualquer rapariga e para nele aprender outros nadas e coisas inúteis até se casar. Mas o adiamento do primeiro baile e a declaração da primeira guerra mundial transtornaram todos os planos para o futuro. Contudo, Stela sente-se à vontade no skit.

O céu, as montanhas, os cavalos e os objectos são os mesmos que em Petrodava. Na parede de Levante arde a mesma lamparina aos pés da mesma imagem de São Jorge que trespassa o seu dragão. Em cima das mesas as mesmas toalhas. No chão os mesmos tapetes. A única diferença entre Petrodava e o skit é que não existe nenhum caminho e nenhum estranho jamais por aqui passa. Os ursos, os lobos, as lebres e as raposas vêm até à soleira da porta porque não aprenderam a ter medo do homem, aqui onde o homem só raramente põe o pé.

Stela anda todos os dias a cavalo e espera o futuro com um optimismo que não encontra eco em sua mãe. Stela está convencida que a sua estrela será mais brilhante que a das outras mulheres de Petrodava, porque ela nasceu ao mesmo tempo que o século XX, do qual se diz que jamais será ultrapassado por um outro século, em domínio algum, nem em bem, nem em mal.

- Domnitza Roxana - continua Pantelimon Haidouk-, eu vi o general russo que se instalou na nossa casa de Petrodava.

- Um general estrangeiro iguala um outro general estrangeiro, meu bravo Pantelimon - responde Roxana. - Um general será realmente diferente dos outros, russos ou alemães, quer seja amigo ou inimigo, se não lançar fogo à casa ao deixar Petrodava, como está nos hábitos dos generais quando se vão embora, vitoriosos ou vencidos. Todas as vezes, para que ela não caia nas mãos do inimigo!

- O general instalado em Petrodava nada destruiu nem pilhou; e se visse os bonitos móveis que ele mandou vir para a nossa casa nem acreditaria nos seus próprios olhos. Em cada divisão ele pôs canapés fofos, cobertos de veludo e de seda, pôs pesados cortinados de tafetá, luzes fortes que brilham toda a noite. Os prisioneiros alemães capturados pelos Russos traçaram uma estrada empedrada de cascalho fino até à frente da nossa casa. Cortaram as sebes e pintaram as persianas. A casa de Petrodava tornou-se um palácio.

- Porque é que não contaste estas coisas desde o princípio? - pergunta Domnitza Roxana. – Era por essa notícia que tu devias começar. Não era preciso deixá-la para o fim.

- Há outras pelas quais eu devia ter começado. - diz Pantelimon-, mas não tive coragem para isso.

- Diz-me, há alguma coisa mais importante? Um general que restaura e embeleza a casa onde se aloja, na frente, em tempo de guerra, foi coisa que não se viu desde que existem guerras sobre a terra. É talvez um hábito próprio das guerras mundiais. Assim, visto que os generais, em vez de se matarem uns aos outros, constróem e restauram as casas, roguemos ao Senhor que nos dê o mais possível de guerras mundiais!

- Eu vi o general russo que vive na casa de Petrodava- diz Pantelimon Haidouk, com um ar misterioso. - Embora general, ele tem, quando muito, trinta anos. Domnitza Roxana, ele é de tal modo bonito, o russo... eu nunca vi um homem igual sobre a terra. Dir-se-ia um anjo caído do céu. É loiro, pálido como uma rapariga, com mãos compridas, dedos finos e, todas as vezes que sai, calça luvas brancas. Todos os seus uniformes são de seda e de veludo. Tem esporas de oiro e botas de polimento. E dezenas de ordenanças. Qual o segredo deste luxo? É que o general instalado na nossa casa de Petrodava é um príncipe. Chama-se Igor Illiyuskin e é um parente do czar da Rússia. Mas tudo o que vos contei não é nada... O que o príncipe-general Igor Illiyuskin tem de mais belo não são os fatos, nem o título, nem os modos, mas os seus olhos. Nunca houve no mundo olhos azuis mais bonitos, Domnitza Roxana. O príncipe tem olhos azuis como as violetas de metal, como o céu por cima das montanhas, se o céu fosse de veludo, e como o fundo dos lagos, se ele fosse de esmalte. Não nos fartamos de olhar esses olhos azuis no conjunto loiro-branco do seu rosto. Exactamente como se, do cimo duma montanha, vós olhásseis para o fundo de um lago.

"E além do mais, ele é um homem da sociedade. Ele disse-me, a mim, "Monsieur Pantelimon", porque ele fala com mais frequência francês que russo. Todas as noites há música e baile na nossa casa de Petrodava. E vão ali viaturas estofadas de veludo vermelho bordado a ouro e prata. Em todas as viaturas há brazões com a águia de ouro do czar.

Stela Apostol ouve atentamente. Tem lágrimas nos olhos, tanto a perturba a descrição destas belezas.

- Há ainda outra coisa mais extraordinária que tudo o que acabo de contar - diz Pantelimon Haidouk.

- Vamos, diz tudo e que isso acabe - ordena Domnitza Roxana. - Que é que há?

- Domnitza Roxana, o príncipe-general pede-vos que lhe deis a honra de ir, bem como Domnitza Stela, tomar chá com ele à casa de Petrodava.

- Fora daqui - ordena Domnitza Roxana. - Desaparece da minha vista, servo vil e infiel. Como te atreves a apresentar um tal convite à tua patroa que te dá um tecto e o teu pão? Se não fosses útil aos cavalos em tempo de guerra, chicotear-te-ia até fazer sangue, depois pôr-te-ia fora, longe da minha casa. Sai, que eu não te volte a ver. Alma suja de criado!

- Domnitza Roxana, eu peço-vos...

- Sai, miserável - ordena Roxana. - Não há "mas". As mulheres que vão aos bailes dos militares em tempo de guerra são as meretrizes. Sem excepção. A mulher que se deixa olhar pelos militares aliados ou inimigos em tempo de guerra está em vias de se tornar uma desavergonhada. As raparigas e as mulheres honestas "vão para o fundo" em tempo de guerra e escondem-se como as pedras no fundo da torrente. Só as meretrizes e as imundas flutuam nestes tempos à superfície do mundo. Como as porcarias flutuam à superfície da água. Sai, miserável. Sai daqui, ou eu te bato com o baltag.

Pantelimon Haidouk sai, envergonhado.

Stela Apostol esconde-se no seu quarto e chora.

Domnitza Roxana Apostol não se acalma. É furor o que sente em relação ao criado que lhe veio fazer um convite tão desonesto. Pensa em despedir Pantelimon, embora assim prive os cavalos de um fiel servidor. Mas ele acaba de fazer uma coisa que não se perdoa.

- Seja bem-vindo ao skit, padre Thomas - diz Domnitza Roxana acolhendo o padre no limiar da porta da sua casa, no fundo das montanhas.

Uma semana decorreu desde que Pantelimon convidou Domnitza Roxana e sua filha para o baile do general russo. A cólera de Domnitza aumenta de dia para dia. Pantelimon não tem autorização de se aproximar dos limites da casa. Ele fica escondido na cavalariça. Roxana está contente com a vinda do padre. Muito contente. Terá a quem se queixar da torpeza de Pantelimon.

- Meu padre, foi Deus quem o enviou. Dirá orações, a fim de purificar esta casa. Aspergirá as paredes, o patamar e as portas com água-benta. Pantelimon, o meu criado, que perdeu o juízo também, como toda a gente em tempo de guerra, atreveu-se a fazer-nos um convite, a mim e à minha filha, para que fôssemos a casa de um militar russo. A mim. E à minha filha. Desde então, tudo aqui me parece sujo. E infecto. Aspergirá tudo de água-benta, o próprio ar foi profanado pelas palavras do imundo criado.

- O militar que a convidou, Domnitza Roxana, é um príncipe. Eu conheço-o. É um parente do czar - diz o padre.

- Príncipe ou não, a ofensa é a mesma - diz Domnitza Roxana, furiosa. - Se puser ao lume, num caldeirão, água, sal e farinha de milho está certo de obter a mamaliga. Se juntar madeira e brasas e se assoprar tem chamas. Se juntar guerra, mulheres e soldados é uma orgia que terá. Existem coisas que, postas juntas, dão sempre o mesmo resultado. Em todos os lugares e em todos os tempos. O que me espanta, meu padre, é o facto de Pantelimon Haidouk, filho de Haidouk, neto de Haidouk, bisneto de Haidouk, descendente dos Haidouks que desde há séculos aqui foram alimentados, na casa de Petrodava, na qualidade de palafreneiros, em vez de se transformar em espada de fogo para nos defender, a nós, duas mulheres sós, em tempo de guerra, ter vindo, como um abjecto intermediário, convidar-nos para casa dos oficiais, na frente, como mulheres das ruas! Eu, uma Roca, e minha filha. Foi a primeira vez que tive vontade de erguer o baltag para bater num ser humano e esmagá-lo como uma serpente, como um réptil. Tive dificuldade em segurar o meu baltag e impedi-lo de bater na cabeça de Pantelimon.

Domnitza Roxana está vermelha. Os olhos estão húmidos pelas lágrimas. Ela diz ao padre:

- Foi unicamente por causa dos cavalos que eu consenti a Pantelimon circular à minha volta. Mas a distância. Os cavalos não podem viver se não têm um dono macho. Pantelimon é o único homem aqui que os comanda. E se os cavalos se regozijam com a minha companhia e a de Stela, sentem-se humilhados se não são comandados por um homem. Tornam-se nervosos. Assim, sou obrigada a mantê-lo. Isto não é todavia senão uma prorrogação. Porque mandá-lo-ei embora, em qualquer altura, como o mais abjecto dos criados.

- Domnitza Roxana - diz o padre -, sabe que os nobres russos são muito piedosos?

- Não me fale da piedade dos Russos, padre Thomas - diz Domnitza Roxana. - Nós conhecemo-los. A sua piedade é o exagero. Qual piedade? Bebem toda a noite com o diabo, com os ciganos, ao som da harmónica, ou da balalaica, e ao amanhecer vão à igreja e vertem, diante da imagem de Santa Olga ou de Santo Vladimiro, saindo dos mesmos olhos, as mesmas lágrimas que correram sobre os seios nus das ciganas depravadas. Nós, os Roca, conhecemos os Russos por os termos visto nas feiras onde vendemos os nossos cavalos. Eles gostam igualmente de Deus e do diabo. Eles vão às casas de prostituição e saem de lá para ir à igreja, e saem da igreja para irem às casas de prostituição. E no dia em que estão completamente esgotados e impotentes brincam aos visionários, aos profetas e aos ascetas.

- O príncipe Igor Illiyuskin, o general de Petrodava, vai todas as manhãs à nossa igreja e eu celebro para ele, todos os dias às sete horas, missa cantada. Toda a liturgia, Domnitza.

-Às sete horas da manhã ele vai à igreja para dissipar os vapores do champanhe nos fumos do incenso! Puf! - diz Domnitza Roxana.

- Quando a vir, não reconhecerá a nossa igrejinha de Petrodava - diz o padre. - O príncipe Igor Illiyuskin restaurou-a, mandou vir lustres de bronze, imagens de ouro e castiçais de prata. No chão pôs tapetes persas e todos os frescos da igreja foram restaurados por pintores vindos de Moscovo.

- O dispêndio é também uma espécie de deboche. Uma depravação. Esse género de existência não me interessa. Aliás, está ele em guerra ou veio aqui para restaurar as casas e dotar as igrejas?

- o general de Petrodava é o comandante da retaguarda. Não é um combatente.

-Venha dizer as suas orações aqui, a fim de apagar a mácula do convite feito por Pantelimon Haidouk, a mim e à minha filha, para nos dirigirmos ao bairro dos oficiais, para lhes fazer companhia e lhes servir de distracção. Venha, meu padre. Só a água-benta e o fumo do incenso poderão purificar o ar de uma tal mácula. Venha. Porque do resto, expulsar e punir o criado imundo, me encarregarei eu quando o momento chegar.

- Também eu, Domnitza Roxana, lhe trago, como Pantelimon Haidouk, um convite para ir tomar uma chávena de chá com o general e príncipe russo Igor Illiyuskin na casa de Petrodava - diz o padre. - Aliás, eu estarei presente.

- Eu não posso ordenar a um padre que saia. mas sou eu quem sai - diz Roxana.

Atira com a porta. Deixa o padre sozinho e grita:

- Eu sabia que o inferno estava cheio de curas, de bispos, de papas e de metropolitas. Mas que o padre Thomas de Petrodava iria encontrá-los um dia no inferno, porque fez de intermediário em tempo de guerra e de angariador de carne virgem para proveito dos generais, nunca o imaginei! Nunca. Nunca.

O padre Thomas é obrigado a bater em retirada e a deixar o skit. Domnitza Roxana não quis mais dirigir-lhe a palavra. A tempestade foi desencadeada.

- O excesso de justiça também não é bom, Domnitza Roxana - diz o padre Thomas. - Há quatro semanas, quando vim ao skit para lhe transmitir a si e à sua filha, Stela Apostol, um convite da parte do príncipe-general Igor Illiyuskin, pôs-me fora e, ao dizer-me que eu seria devorado pelas chamas, gritou tão alto que as montanhas ressoaram. Viu depois que eu não era um intermediário à procura de virgens para os generais russos na frente. Nem um enviado do diabo.

- O que se passa é todavia anormal - diz Domnitza Roxana.

Ela está em casa do padre de Petrodava. Na companhia de Stela. Em frente delas, chávenas de chá. Quatro chávenas de chá. O general russo, o príncipe Igor Illiyuskin, deve chegar de um momento para o outro. Domnitza Roxana e sua filha acabaram por aceitar finalmente tomar chá com o general, mas não na sua casa de Petrodava, onde ele vive, nem no skit, onde o general se ofereceu para vir, porque elas não queriam dar a conhecer o lugar do seu retiro nas montanhas. E elas escolheram a casa do padre. É a quarta vez que as duas mulheres vêm, a cavalo, para corresponder ao convite do príncipe.

- No início, Domnitza Roxana, eu também não acreditava que fosse natural - diz o padre. - Mas com os russos nunca se saberá o que é normal e o que não é. São pessoas à parte. O Senhor fez as suas criaturas bastante variadas. Depois de cada ofício, isto é, todas as manhãs, o príncipe Igor detinha-se no pronaos e ficava admirado diante das pinturas representando os fundadores e os doadores da igreja de Petrodava. Os frescos mais recentes, que datam de há dois anos, 1914, são os retratos das três fundadoras, Elvira Roca, Roxana Apostol e Stela Apostol. As três proprietárias de Petrodava. O príncipe olhava para estas três figuras e não se fartava! Perguntou-me: "Quem são?" Respondi: "São as proprietárias de Petrodava, que restauraram a igreja em 1914 e 1915. É costume pintar no pronaos os retratos dos fundadores e doadores segurando nas suas mãos a igreja em miniatura". O príncipe não disse nada. Mas perguntou-me pormenores acerca das fundadoras. Mostrei-lhe as suas fotografias, Domnitza Roxana, e as de Stela. E as de Elvira Roca. Disse-lhe que Elvira Roca morrera, de modo suspeito, durante uma Primavera, provavelmente de desgosto, por causa de uma traição na família. Não lhe contei exactamente porquê. Depois falámos de si. E um belo dia, o russo disse-me que desejava conhecê-las. Expliquei-lhe que ele pedia uma coisa impossível. Que mesmo que encarregasse o exército inteiro de as procurar e de as capturar para as trazer à sua presença, ele não poderia vê-las vivas. Porque antes de serem capturadas matar-se-iam. Porque tal é o costume deste lado das montanhas. As mulheres "vão para o fundo", escondem-se em retiros, sobretudo as mães e as suas filhas, todas as vezes que há invasões, guerras ou recenseamentos. Então o russo suplicou-me que fosse procurá-las. Disse-me que tinha intenções sérias. Que se fossem na realidade como nas fotografias e nos frescos, ia pedir ao czar e à mãe autorização para desposar Stela. Foi então unicamente que ousei comunicar-lhes o seu convite. Mas pôs-me fora! Foi preciso que eu voltasse e insistisse, e agora que aqui está pela quinta vez e que se encontrará diante do príncipe Igor Illiyuskin, eis-vos convencida, penso eu, que eu sou um padre, e não um intermediário para os generais em tempo de guerra!

Diante da casa pára o carro do príncipe, puxado por dois cavalos brancos. A casa de Petrodava fica a alguns metros do presbitério, mas o príncipe é tão frágil que vem de carro. Aliás, a etiqueta não lhe permite que se desloque a pé.

Entra na sala, com as dragonas de ouro, com o peito coberto de condecorações em forma de cruz, brancas, azuis, de ouro, de rubis e de diamantes, o príncipe Igor Illiyuskin. Não olha para o padre, nem para Domnitza Roxana. Só olha para Stela. Ela traz uma blusa de seda crua de gola alta, com desenhos geométricos, e a catrintza, que lhe aperta as ancas. Ela é alta como um pinheiro novo, delgada, de rosto oval. Quando Stela se Levanta e estende a mão ao príncipe, o padre Thomas julga rever Domnitza Roxana no dia em que o professor Lucian Apostol a pediu em casamento. No dia em que fez uma tempestade terrível.

O príncipe é mais bonito, mais frágil e mais delicado do que o descrevera Pantelimon Haidouk e o padre Thomas. Para ver a beleza de um homem é preciso ter os olhos de uma mulher.

Atrás do príncipe encontra-se o oficial às ordens e intérprete. Sem se voltar para o intérprete, de pé, pálido, com um rosto de opalina, o príncipe diz, olhando Stela Apostol nos olhos, com os seus olhos azuis como esmalte azul:

- Minha mãe escreveu-me que o czar autoriza a casar-me aqui, na conservatória e na igreja de Petrodava. E que imediatamente partamos para Kishinev, onde teremos à nossa disposição o palácio do governador-geral da Bessarábia.

O príncipe faz sinal ao intérprete para que apresente o papel azul com as coroas e os selos de lacre. É a carta da princesa Olga Illiyuskin, a mãe do príncipe. O intérprete lê:

"Querido Igor, podes casar-te e trazer a tua querida mulher. O nosso muito nobre czar dá-te autorização para isso. O czar diz que tu és de tão alta nobreza que podes desposar a mulher que te agradar. Que a tua nobreza é de tal qualidade que ela enobrece qualquer pessoa; só as de pequena nobreza são obrigadas, para se manterem, a casar com raparigas nobres."

Domnitza Roxana, Stela Apostol e o padre estão perturbados. Quase não se atrevem a acreditar. Nem no que vêem, nem no que ouvem.

-Casar-nos-emos no mais curto espaço de tempo - diz o príncipe. - Daqui a alguns dias minha mãe enviar-me-á o diadema das princesas Illyuskin e um vestido de noiva, que usareis na cerimónia. Ela apreciou bastante a firmeza com que exigistes, primeiro, o nosso casamento e, somente em seguida, a nossa partida para a Rússia. Minha mãe diz que vós sois mulheres de carácter.

- Não deve levar a mal a nossa teimosia, nobre príncipe - diz Domnitza Roxana. O intérprete traduz para russo as suas palavras, lentamente, ao mesmo tempo que ela as pronuncia. - Nós somos criadores de cavalos. Serranos. Conhecemos os russos. Vós sois príncipe. Mas russo. E um russo é extravagante. Tudo se pode esperar da parte de um russo. Não é que não tenhamos confiança em vós, no czar e na família Illiyuskin. Mas nada há tão frágil como um casamento de guerra. E nada de mais precário. Nós temos por lei recusar a extravagância, no bem como no mal. Quando ela vem de um russo. Agora, visto que se trata de um casamento legal, civil e religioso, minha filha pode acompanhá-lo seja para onde for. Sem o casamento, isso não teria sido possível.

Stela está maravilhada com a brancura e a delicadeza da tez do seu príncipe. Ela pensa sem cessar nas dezenas de gerações que tomaram banho todos os dias; de outra forma, ele não teria podido possuir uma pele tão limpa!

- Padre Thomas, da minha parte e da parte da minha família, peço-lhe que aceite este presente- diz o príncipe. Abre um guarda-jóias e tira uma grande cruz de ouro com uma corrente também de ouro. - Notei, desde o princípio, que o senhor não trazia nenhuma cruz ao pescoço. No meu país, mesmo o padre mais pobre possui uma cruz.

O padre Thomas pega na cruz de ouro.

- Nós somos ortodoxos, como os Russos, é verdade. Mas no meu país os padres não usam cruz. Nem de ouro, nem de prata, nem de metal. Por humildade. Só os bispos a usam. Mas, visto que me oferecestes uma, permito-me oferecê-la por minha vez à imagem da Virgem-Mãe da igreja de Petrodava. Pô-la-ei ao pescoço da Virgem Santa. Ela só tem uma cruz pintada a ouro. Este será o único objecto de ouro maciço na igreja de Petrodava. Porque tudo o que possuímos feito de ouro, aqui, nos Cárpatos, é só a cor dourada da mamaliga, a papa de milho. O nosso único ouro. Agora a Virgem de Petrodava terá uma cruz de ouro verdadeiro. E as pessoas de Petrodava, ao olharem para a Mãe do Senhor, saberão a que se assemelha o ouro verdadeiro.

- O príncipe Igor Illiyuskin é bonito como um anjo descido das imagens - diz Stela. - O seu olhar de esmalte azul, a sua tez de opala, as suas mãos de mandarim, a sua pele igual à flor das cerejeiras, é tão fina que não nos atrevemos a tocá-la. Ele é proprietário de milhares de herdades, propriedades três vezes maiores que toda a superfície da Roménia. Estas herdades são já propriedade minha. Eu sou a única princesa Illiyuskin.

Igor possui tantos castelos e palácios na Rússia que, mesmo que eu vivesse só um ano em cada um deles, não teria tempo para os habitar todos no decurso de toda a minha vida. E dezenas de milhares de pessoas, que lhe pertencem, como os palácios e as propriedades, os bosques e os rios. Eu não sonho, mãezinha. O rei da Roménia é pobre em relação a mim, princesa Stela Illiyuskin. Quando tu me provavas o vestido de baile, para o meu primeiro baile, e Pantelimon Haidouk chegou para nos anunciar a nossa entrada na primeira guerra mundial, eu regozijei-me com isso. Eu sabia que uma guerra mundial é mais importante, mais grandiosa para uma rapariga de dezasseis anos que um baile. Que esta guerra mundial me daria a felicidade que o primeiro baile nunca me teria podido dar. Agora, mãezinha, sou princesa. Toda a tua vida, as ciganas que passaram por Petrodava predisseram-te que serias Domnitza, isto é, princesa. A mim, nunca me predisseram nada. Ê eu tornei-me princesa. O casamento. Amanhã serei coroada como esposa e como princesa. Dupla coroação. Tu não conseguiste tornar-te princesa. Mas tornaste-te a mãe da mais rica e da mais famosa das princesas russas: Stela Illiyuskin. Pena é que este nome seja tão difícil de pronunciar. Nunca conseguirei pronunciar correctamente o meu próprio nome. Mas sou feliz. Feliz, como só uma rapariga de dezasseis anos pode ser. Porque todas as raparigas de dezasseis anos, quando têm de fazer a sua entrada no mundo, no seu primeiro baile, sonham em dançar com um príncipe. Eu tornei-me princesa. Não no meu primeiro baile, mas na primeira guerra mundial.

- E se isto acaba mal? - pergunta Domnitza Roxana. - Neste momento de felicidade, é preciso pensar nos desastres. A fim de que eles não te surpreendam quando chegarem.

- Acabar mal? - pergunta Stela. - Tiveste tu um bom fim, com o teu casamento, mãezinha? Se me acontecer uma desgraça, pelo menos serão desgraças de princesa. Se tenho de sofrer mais tarde, saberei que o príncipe veio até mim e que eu tinha os olhos fechados. E desposei-o com os olhos fechados. Tal como o meu destino, isto é, a guerra mundial, mo enviou. E o século cuja idade eu tenho. E sei que quando abri os olhos, eu vi-o mais bonito que todos os sonhos. Nunca fizeste nada com os olhos fechados, mãezinha. Tomaste todas as precauções e tudo fizeste logicamente. Tu viste para que serve a lógica. Ela é como a lama. Só serve para fazer escorregar as pessoas. Tu foste lógica. E acabaste por assassinar o teu marido.

- Não fui eu quem o assassinou, mas os cavalos- diz Domnitza Roxana. - Ele foi morto pelos cavalos, por ordem da justiça. Não transformes os factos.

- Em todo o caso, a tua lógica e a tua prudência saldaram-se com um drama. com um crime. com um assassínio. Eu, nada calculei. Fechei os olhos e tornei-me princesa. No primeiro baile mundial.

- Fiz tudo o que me ditou a razão e o bom senso para consolidar a tua felicidade - diz Domnitza Roxana. - Um príncipe, em plena guerra, auto-intoxica-se aqui, na crista das montanhas, da tua imagem vista numa parede de igreja. Era natural. Por toda a parte, à volta dele, só havia raparigas feias, miséria, a guerra e. tu, tu resplandecias como o Sol. No fresco da igreja e na tua vida. O seu amor é verdadeiro. Como são verdadeiras todas as auto-sugestões e todas as auto-intoxicações. Deixei que te tornasses sua mulher. Embora todos os casamentos de guerra sejam falsos. Como as notas falsas do banco, porque saem de uma máquina de falsificar. Mas eu não te deixarei partir com um militar, mesmo que ele seja príncipe, amoroso e belo como um anjo, senão amanhã ao meio-dia, em pleno dia, quando a luz é mais forte e, perante todo o povo da região, na igreja de Petrodava, tu tiveres sido coroada, ao lado do príncipe, como esposa e como princesa. Se o destino quer destruir o que fez e arrancar-te as duas coroas, deverá cortar-te a cabeça. Quanto à tua felicidade de mulher, é preferível sofrer as desgraças causadas por um príncipe do que por um homem que o não é. Aliás, tu és uma mulher. E a natureza fez a mulher mais dura que o aço, que o granito, que tudo o que existe sobre a terra quando se trata de suportar o sofrimento.

- Amanhã, é a minha dupla coroação e tu falas-me de desgraça- - diz Stela.

- É natural, eu também, no teu lugar, seria a mais feliz das mulheres - diz Domnitza Roxana. --Qualquer mulher no mundo seria a mais feliz das mortais se lhe acontecesse o que te acontece. Se te falo de desgraça, é para te mostrar que tudo o que te pode acontecer não poderá destruir o conto de fadas por que estás a passar. Por uma vez, pela primeira vez, uma proprietária de Petrodava subirá mais alto que Petrodava, em altitude. Tornar-se-á uma estrela. Tu és e chamas-te estrela.

Só o céu é mais alto do que tu. E se te falei também de nuvens, é porque não há nuvens sobre a terra. Mas unicamente no céu. A minha estrela. O céu. Mais alto do que eu e que Petrodava.

"Da parte de um russo pode esperar-se seja o que for, tanto bem como mal)), diz para si Domnitza Roxana Apostol. Lágrimas de felicidade correm-lhe pelas faces. Pela primeira vez, chora como uma mulher. Ela está na pequena igreja de madeira de Petrodava, e o padre Thomas, rodeado por dois padres russos, um à sua direita, outro à sua esquerda, coloca a coroa de esposa na cabeça de Stela Apostol, por cima da coroa de pérolas que ela usa como princesa Illiyuskin.

A pequena igreja, construída pela família Roca há séculos e restaurada com piedade pelas sucessivas gerações de proprietários de Petrodava, está cheia de oficiais superiores russos, oficiais do estado-maior romeno e aliados. Há ingleses e franceses e a multidão dos camponeses de Petrodava, de calças brancas justas, camisa branca bordada, barrete de pele, bicudo como o cimo dos pinheiros, e sobre os ombros, atirados com elegância, os sumans pretos usados como dólmanes. As raparigas vestem blusas de seda crua e catrintza, a saia de folhos que aperta as ancas. São altas, delgadas, como se as tivessem feito passar por um anel. Direitas como pinheiros. Majestosas.

Domnitza Roxana, a mãe da noiva das duas coroas, chora e não vê senão as coroas da filha ao lado do general louro de olhos azuis, de rosto branco, vestido de ouro e de veludo no seu uniforme de grande general.

- Da parte dos Russos podes esperar tudo - precisa Domnitza Roxana. - O príncipe veio aqui, a Petrodava, e transformou a vida das mulheres num conto de fadas. É exactamente a maneira eslava de agir. Estes homens, os Russos, não vivem como toda a gente. Tudo o que fazem é exagerado e além dos limites da realidade que nós observamos tão bem, nós os Latinos. Os Russos são alquimistas. Não acreditam na vida. Procuram na vida a felicidade segundo a receita que se encontra nos sonhos e nos contos de fadas. Querem transformar a vida num conto de fadas. É isto a sua alquimia. Como a alquimia do Ocidente procura transformar tudo em ouro. Eles querem a todo o custo mudar a vida num conto de fadas. E aqui, o príncipe conseguiu-o. Transformou a minha vida, a de minha filha e a de Petrodava numa história real.

Ao pé da escada espera um carro estofado de veludo vermelho. No banco está Pantelimon Haidouk, no seu fato de festa, no trajo de Petrodava. À sua direita e à sua esquerda estão dois criados do príncipe com uniformes dourados, mas as rédeas, é Pantelimon quem as segura. É ele quem conduzirá os cavalos do carro para onde subirão Domnitza Stela Illiyuskin e o seu príncipe. Porque os quatro cavalos são os melhores de Petrodava. Não existem melhores cavalos no mundo. E para o cortejo da dupla coroação escolheu-se o que há de melhor nos Cárpatos.

Pantelimon Haidouk é o único de Petrodava que parte para este, para o palácio de Kishinev, onde o príncipe Igor e Stela passarão as duas semanas da sua lua-de-mel, e dali para mais longe, para a Crimeia, para o palácio de Inverno dos príncipes Illiyuskin. Domnitza Roxana, a mãe de Stela, irá ao encontro de sua filha em Kishinev, no palácio para o qual se dirigirão imediatamente depois do casamento.

Domnitza Roxana pensa que neste momento sua filha Stela se vai. Dentro de duas semanas, ela, Roxana Apostol, a última mulher Roca, partirá também. Definitivamente. com todos os cavalos. Para a Rússia. Para um dos palácios de Stela. A fim de se reanimar para o resto da sua vida com a felicidade de sua filha. Deixará Petrodava. Não venderá a casa. Mas uma casa sem homens Roca e sem cavalos desaparecerá. Os Cárpatos serão abandonados. E os Roca ir-se-ão embora. As duas últimas mulheres, as proprietárias de Petrodava, viverão longe. Stela não conhece senão algumas dúzias de palavras francesas, que pronuncia mal, e nem uma palavra de russo. Sua mãe inquieta-se com a ideia de que Stela não possa entender-se com o marido. Mas Stela responde:

- com os cavalos, nós entendemo-nos, há centenas de anos, sem palavras, visto que os cavalos não falam romeno e nós não falamos a linguagem dos cavalos. E contudo os cavalos são felizes com os Roca e os Roca com eles. E entendem-se muito bem há centenas de anos. Sem palavras. Visto que uma Roca se pode entender com os cavalos, porque não poderá ela entender-se com um russo que ama e que é príncipe e mais castiço que um cavalo de raça? Deixa as palavras. Elas são inúteis. Como a lógica. Mãezinha, põe ainda uma gota de sonho na vida, como os Russos. E os contos de fadas descem à terra. Ao alcance de toda a gente...

Assim falava Stela. Agora, Domnitza Roxana lembra-se disso. E chora ao olhar para a filha de vestido branco, para o genro de uniforme de general. E toda esta brilhante assistência. Maravilhada. Como todas as assistências dos contos de fadas.

O momento mais solene para a multidão que não conseguiu entrar na igreja e que espera no pátio, no cemitério, com os pés em cima das campas- porque o cemitério é no terreiro da igreja -, é aquele em que surgem os noivos. Esta multidão, composta de soldados, de camponeses, de oficiais, olha para Stela e para Igor, ela de vestido branco, delgada e direita, semelhante a um pinheiro novo coberto de geada e de neve, e a seu lado o príncipe, todo de ouro e seda. Na verdade, ele é bonito como um anjo. Descido das neves do Norte, louro, de olhos azuis, delgado e delicado.

Pantelimon Haidouk faz estalar o chicote. É o sinal combinado para que os canhões russos atirem salvas de honra. Todo o exército russo de Petrodava dispara tiros para o ar. Os camponeses, instalados com os seus bucium (*) em todos os picos das montanhas à volta de Petrodava, começam a tocar. E o som do bucium é multiplicado até ao infinito por todos os ecos dos vales e das cristas.

 

* Bucium, trombeta dos Alpes. Os camponeses romenos chamam-se, de uma vertente para outra das montanhas, com o bucium. Tem a forma de uma cornucópia muito alongada, ou antes, de um cachimbo com o comprimento aproximado de dois metros que é muito leve, porque é de madeira, incluindo o bocal (N. do T.)

 

Como uma imagem em milhares de espelhos. Os Cárpatos estremecem de música e de gritos, de hurras e de detonações. Antes de subir para o carro que os deve conduzir a duzentos quilómetros dali, o príncipe detém-se:

- Stela, meu amor, vem vestir o teu fato de viagem- diz ele.

- Eu dispo sozinha o meu vestido de noiva?

- Para a viagem, querida - diz o príncipe.

- Imbecil - diz Stela. - O vestido de noiva, nunca é a noiva que o despe sozinha. É o marido quem o despe, que lhe tira o vestido branco. Aliás, para que o despir demore bastante tempo, o vestido é cosido à combinação, depois à camisa, depois às meias e à cinta. Compreendes? A tradição proíbe outra pessoa de se encarregar disso, que compete ao marido.

- Eu inclino-me diante da tradição - diz o príncipe.

- Queres despir-me o vestido de noiva e depois vestir-me imediatamente para que possamos partir? Que tolo! Isso seria um sacrilégio. Já alguma vez se viu uma noiva despir-se para se vestir a toda a pressa e obrigá-la a partir? Não te preocupes com coisas que ignoras. Os antepassados pensaram para nós e fizeram leis. Submete-te.

- Tu não podes viajar durante duzentos quilómetros, até ao nosso palácio de Kishinev, de vestido de noiva, com uma coroa na cabeça. Isso não é trajo...

- Sobe para o carro, príncipe, e não fales mais - ordena Stela. - Os oficiais viajam de uniforme, os cocheiros fardados de cocheiros, os criados fardados de criados e as noivas viajam de vestido de noiva. Eu sou uma noiva. Viajo com o meu uniforme.

Os cavalos batem os cascos. Os soldados russos e aliados disparam tiros de espingarda e de revólver. Os camponeses tocam a trombeta. As crianças gritam. Roxana aproxima-se.

- Minha verdadeira Domnitza. Tu realizaste o meu sonho, o de todas as mulheres do mundo. Tu realizaste sem reflexão o que eu não consegui com prudência. Sou austera, minha filha. Eu sou como os pinheiros. Como todas as pessoas daqui. Eu nunca sonhei senão com a estrela que está por cima da minha cabeça. Como os pinheiros. Tu tens um pai da planície. Tu ousaste sonhar em todas as dimensões. Sê feliz e deixa rever-me, para o resto dos meus dias, na tua felicidade, no País Baixo, com as mãos e o meu corpo e a minha alma austera e severa. Dentro de duas semanas irei para o pé de ti, para o teu castelo, com os cavalos. com todos os cavalos.

O carro parte numa nuvem de alegria, de aplausos.

- Príncipe, beijo-te pela primeira vez, com toda a minha paixão de esposa, de mulher, de amante e de princesa. Obrigada por me teres feito tua princesa, por estas duas coroas. Tornar-te-ei feliz. com a mesma seriedade com que fizeste de mim tua esposa e tua princesa.

- Não fales moldávio. Eu não compreendo uma única palavra... - diz o príncipe.

- Não tens necessidade de compreender. Mas de constatar. Meu belo príncipe. o mais bonito príncipe da terra. E do céu.

O carro desce de Petrodava Como se descesse do céu. Porque Petrodava está mais perto do céu que da terra. É o Inverno do ano de 1917. Mas a felicidade pode começar em todas as estações. Tudo pode começar em todas as estações.

 

A revolução

A caleche do príncipe Igor Illiyuskin e de sua jovem mulher avança em direcção do Prut. O Prut é a fronteira entre a Roménia e a Rússia. O posto de fronteira onde se atravessa o Prut encontra-se em Ungheni. Depois de terem abandonado Yassy, que se encontra a meio caminho, o príncipe Igor poisou a sua cabeça loura, sem quépi, nos joelhos de Stela e adormeceu. Stela não pode dormir. Ela repete para si as palavras do príncipe: "O governador da Bessarábia, um dos meus primos, pôs à nossa disposição o palácio de Verão para que ali passássemos duas semanas da nossa lua-de-mel. É um palácio maravilhoso. Cento e vinte divisões. Situado numa colina, nas margens de Kishinev. Num parque extraordinário. com várias dúzias de criados de libré e bem ensinados."

Kishinev e o palácio estão perto. A extraordinária história começará assim que tiverem transposto o Prut e posto os pés na terra da Santa Rússia. Depois do palácio de Kishinev, haverá o palácio sobre o Dnieper. Depois o palácio sobre o litoral do mar Negro, na Crimeia. Depois o palácio do Cáucaso. E o de Moscovo. E o de Petrogrado.

Um rosário de palácios com milhares de criados que aguardam Stela e que se prostrarão na sua frente e dirão: "Muito nobre princesa, sede bem-vinda." E ela baixará suavemente a cabeça e sorrirá. Depois haverá bailes e a visita ao czar de todas as Rússias. A existência desenrolar-se-á de palácio em palácio, de baile em baile, de viagem em viagem, exactamente como um sonho. Mais belo que um conto de fadas de Petrodava. Porque na Rússia as realidades são mais resplandecentes que os contos de fadas sonhados pelos homens dos Cárpatos. Quanto mais se aproxima de Prut, mais maravilhada está Stela. As surpresas que a esperam, as centenas de milhares de hectares semeados de trigo, e outros milhares de hectares de florestas, de rios, com aldeias, moinhos, com milho e girassóis, lhe pertencem, a ela. E esperam-na. Ela, a dona e a princesa. Tudo quer ver, com os olhos bem abertos, para nada perder, nenhum pormenor da realidade, exactamente como as crianças não querem deixar escapar nenhuma palavra da história que ouvem, embora os olhos se lhes fechem de sono. Stela Apostol, de Petrodava, princesa Illiyuskin, quer ver - com os olhos desmedidamente abertos - e apalpar todas as maravilhas a fim de saber com precisão que tudo o que se passa não é um sonho mas a realidade. Foi por isso que ela mandou fazer a certidão do casamento em três exemplares, em russo e em romeno, todas com as assinaturas do conservador do registo civil de Petrodava, do padre, das testemunhas e dos generais russos, franceses e ingleses. Ela meteu um exemplar no seu corpete. Ela tinha-o na igreja. Para poder apalpá-lo com a sua mão. E convencer-se que era verdade. Que não era um sonho.

Stela olha para a cabeça loura que repousa nos seus joelhos. O príncipe Igor, seu marido, tem perto de trinta anos! Tem quase o dobro da idade de Stela. E contudo a sua cabeça loura é uma cabeça de criança que ela tem nos seus braços. Stela acaricia-o suavemente, o mais suavemente possível, para não o acordar. Em cima do vestido de noiva que cobre os joelhos de Stela, o sono do príncipe é leve e delicado. O príncipe Igor dorme exactamente como se fiasse um pedacinho de seda, ténue, tão ténue. A nuca do príncipe está coberta duma penugem amarela, dourada, como a penugem dos pintainhos quando saem da casca. Imaterial. Uma penugem feita de luz e da clara de ovo onde estavam prisioneiros.

Stela inclina-se, pudica, embora ninguém a possa ver, aqui no carro estofado que galopa com os seus quatro cavalos em direcção a Prut, e pousa os seus lábios vermelhos, cor de cereja madura, como um selo no pescoço do príncipe, na penugem de luz e de ouro pulverizado... Todo o ser de Igor é feito dos mesmos materiais delicados, irreais como a penugem dourada da sua nuca. Todo o ser de Igor é feito de seda crua. Ela acaricia-o, mal lhe tocando com a ponta dos dedos. Esforçando-se por ser leve. Mas com a consciência que é em vão. Stela de Petrodava é bela, apaixonada, hábil, mas ela não tem um cêntimo de imaterialidade. É viva. Consistente.

- Meu príncipe de dentes de leite - diz maternalmente. Como se cantasse uma cantiga para embalar uma boneca adormecida nos seus joelhos. - Kleine Ding! (*) Nippsache . Eu não sei o que conseguirão fazer os meus dedos. Eles fazem saltar faíscas quando se tocam, como os cascos dos cavalos quando batem no granito. Como acariciarão eles o teu corpo frágil e macio? Tu és igual ao botão de rosa ou da flor de cerejeira. Tu és uma obra de arte. Um raro objecto de arte. Para conseguirem criar-te, exactamente como estás neste instante, adormecido nos meus joelhos, gerações de apaixonados tiveram de se deitar unicamente em lençóis de seda e almofadas de penas perfumadas. Um objecto tão frágil, que os próprios raios de luz podem ferir, não pode sair senão de leitos brancos como a neve e perfumados como a Primavera. Gerações inteiras de apaixonados se sucederam, alimentados unicamente de pratos subtis e delicados, de música suave de valsas e de balalaicas; acompanhados de champanhe em taças de cristal; banhados em leite, mel e água perfumada; vestidos com camisas finas como teia de aranha, e fatos de veludo, para chegar a ti, tal como és: um ser imaterial feito de tecidos guardados para a fabricação dos anjos e dos serafins. Gerações inteiras, durante centenas de anos, prepararam a tua criação, tal como te apresentas aos meus olhos. Casais amaram-se para criar os teus avós e os teus pais como frutos perfumados. Mergulharam em banheiras de mármore e de prata duas vezes por dia, durante séculos. Milhões de escravos trabalharam noite e dia para conservarem nos colchões de penas dos palácios, isolados como o pinto na casca, todos os teus príncipes antepassados. Tu és um objecto de luxo. E estás agora nas minhas mãos.

 

* Em alemão: coisa pequena, objecto de arte.

 

Tu não és um sonho, embora sejas mais irreal que o sonho. Tu és tecido de sonho. Não és uma lenda, meu principezinho, mas és uma matéria mais frágil que o mais débil sonho da terra. Não te comparo aos meus sonhos, porque eles são fortes como a resina do pinheiro. Os meus sonhos podem embriagar, com o seu perfume, os próprios ursos da floresta, quando eu sonho ao pé deles. E as aves, no cimo dos pinheiros, caem como que atordoadas pelo éter, quando eu passo sonhando debaixo das árvores. Ô meu sonho é forte. Como o sonho dos homens do povo. E a nossa realidade funde à incandescência dos nossos sonhos, que são mais fortes que a matéria de que sois feito. Tu és um soneto. Um madrigal, meu principezinho. Tu és um homem para se trazer no seio ou nos cavalos como uma flor, como um botão de rosa. O teu corpo é mais diáfano que a brisa do zéfiro, o vento fraco, leve, de Petrodava, que mal faz estremecer as folhas das nogueiras e as rendas dos saiotes. É assim que tu és. Meu príncipe. Meu zéfiro.

- Domnitza Stela, Domnitza Stela - grita Pantelimon Haidouk no seu assento.

- Fala mais devagar, Haidouk, para não acordares o meu príncipe, para não perturbares o meu zéfiro e não quebrares o fio do sonho de seda: o meu príncipe dorme. E o meu príncipe é delicado como a onda, como o zéfiro, como o fio de seda. A onda repousa.

- É grave, Domnitza - grita Pantelimon.

- O príncipe dorme - diz Domnitza Stela. - O que seria grave era perturbar o seu sono. Devagar.

- Domnitza, não é brincadeira, ouvis-me?

Pantelimon segura os cavalos. Desce do assento. Vem à porta da caleche estofada de veludo e seda, que cheira a perfume, onde o príncipe dorme com a cabeça no regaço de sua mulher de vestido nupcial.

- Que é que há? - pergunta Stela. - Fala devagar.

Os cossacos da escolta cercam Pantelimon. Um dos palafreneiros russos que sabe romeno ouve as palavras de Pantelimon e tradu-las aos companheiros.

- Os cavalos não querem avançar mais, Domnitza Stela - diz Pantelimon Haidouk. - Há mais de cinco quilómetros que os nossos cavalos me convidam a voltar depressa. A voltar para a nossa terra. Para casa.

Ao ouvirem as frases pronunciadas por Pantelimon Haidouk com gravidade, os cossacos que estão montados e os que estão junto do carro, à volta dos cavalos, desatam a rir. Levam as mãos à boca e batem com os pés. Repetem as palavras e riem cada vez mais. Alguns mais expansivos agarram-se à cintura. Dizem que é a primeira vez, desde que existem homens e cavalos ao de cimo da terra, que um cocheiro é conduzido pelos seus cavalos. Que na Roménia é o cavalo que conduz o cavaleiro e não o cavaleiro que conduz o cavalo!

- Moscais (*) imbecis e cossacos idiotas - grita Pantelimon Haidouk com voz de tragédia. - Imbecis. Vocês são, foram e serão sempre moços de cavalariça.

 

* Moscais é o nome pelo qual se designam os russos na Roménia.

 

Cossacos brutos e estúpidos, vocês nascem a cavalo, vivem a cavalo e morrem a cavalo desde que existem sobre a crosta da terra e contudo ignoram tudo acerca de cavalos. Vocês submetem-nos aos vossos caprichos. Como vocês se submetem aos vossos amos. Vocês tratam os vossos cavalos como escravos. Como vocês são tratados pelos vossos amos. Eu sou um moldavo de Petrodava. Eu sou um homem livre. Os meus cavalos são cavalos livres. Como eu. Quando eu tomo o caminho, os meus cavalos experimentam a mesma alegria que eu ao fazer a viagem. Porque o caminho dos cavalos é também o meu. Eu, o cavaleiro, escolhi sempre o meu caminho de acordo com o meu cavalo. Porque nós somos, ele um cavalo livre e eu um homem livre. Nos grandes caminhos vamos sempre de acordo. Nós ajudamo-nos mutuamente. Pois bem!, eu sei o que os meus cavalos querem. E transmito à nossa ama os seus desejos.

- E que te dizem os cavalos, meu bravo moldavo? - pergunta o russo que conhece romeno. Que novidades te dão eles?

Os russos riem com tanta vontade que estão prestes a rolar pelo chão.

- Os cavalos não querem avançar mais - diz Pantelimon Haidouk. - Querem voltar para donde partiram.

- Não tens chicote? - pergunta o intérprete russo.

- Para que é que eu precisava dum chicote? pergunta Pantelimon Haidouk. - Eu também não quero ir para onde os cavalos não se querem dirigir.

- Nesse caso, cocheiro, o amo terá um chicote para ti.

- Na Rússia, não na nossa terra - diz Pantelimon Haidouk. - Os nossos amos, e verão que Domnitza concorda comigo, os patrões na nossa terra, digo eu, não vão para onde os criados e os cavalos não querem ir. Nós nunca fazemos um caminho contra a vontade dos cavalos. Nunca.

- E que dizem os teus cavalos? - interroga o russo. - Porque é que eles não querem avançar?

- Se avançarmos estaremos em perigo de morte - diz Pantelimon Haidouk. - Os cavalos pressentem uma catástrofe. Eles preveniram-me. Porque o homem não sente o que sente o cavalo. É por isso que o homem tem o dever de se deixar guiar pelo sentido do cavalo quando os sentidos humanos não bastam.

Todos os cossacos puseram os pés em terra. Ouvem Pantelimon e riem às gargalhadas.

- Haverá uma grande catástrofe - explica Haidouk. - A terra abrir-se-á diante dos nossos pés, se avançarmos. Temos de voltar urgentemente! Os cavalos estão certos do que pressentem. O Sol extinguir-se-á. A abóbada celeste escurecerá. Teremos trevas em pleno dia e veremos estrelas por cima das nossas cabeças ao meio-dia. Voltemos com urgência. Não nos deixemos apanhar de repente. Eu digo-vos. Uma única vez vi os cavalos recusarem-se a avançar. Uma única vez, em toda a minha vida. Eles estacaram no caminho como agora. Duas horas volvidas, a aldeia aonde íamos foi submersa por uma torrente. Foi por isso que os cavalos não queriam lá ir. De repente, as águas engrossaram; arrancaram as margens, arrancaram as casas, a igreja, o cemitério com as campas e as cruzes e começaram a fazê-las rolar para o mar. Nós, da margem, víamos como a torrente, depois de ter arrancado os alicerces das casas, com as árvores, com os animais, as entrechocavam e as quebravam como brinquedos de criança.

"A igreja e o moinho, que resistiram às vagas pardacentas da torrente, chocaram com uma tão terrível força que saltaram faíscas da água. Depois, a igreja e o moinho foram projectados separadamente contra as enormes margens de granito. As torres da igreja quebraram-se como caixas de fósforos. E afundaram-se na água escura. Depois foram arrancadas as campas. As vagas tiraram os mortos dos seus caixões partidos e eles flutuaram nas vagas. E no meio dos esqueletos havia vacas, porcos, cavalos que se afogavam. E homens que se agarravam em vão aos telhados das casas e aos cadáveres dos animais que boiavam como balões e que em seguida se esvaziavam e se afundavam a pique. Isto foi mais terrível que Sodoma e Gomorra. Porque é menos terrível despejar enxofre e chamas sobre uma aglomeração humana e queimá-la que desenraizá-la com as suas casas, com tudo, e despedaçá-la nas vagas duma torrente, depois de a ter martirizado no pavor. Antes de irem para o fundo, as pessoas enlouqueceram. E os animais também enlouqueceram. E os galos. Subiram para os telhados das casas e cantavam cocorocó antes de serem esmagados.

Pantelimon persigna-se. Está pálido. De repente, os russos ficaram impressionados.

- Hoje vai acontecer qualquer coisa semelhante? - pergunta o intérprete russo. - Vamos morrer?

- Agora, será mau - explica Pantelimon. - Vejam: os quatro cavalos empinam-se nas patas traseiras. E querem voltar depressa, depressa. Desta vez haverá verdadeiro cataclismo como nunca mais se viu depois do dilúvio de Noé. Desta vez é terrível o que vai acontecer. Olhem para os cavalos. São bússolas prontas a saírem das suas caixas magnéticas. Eles sabem que temos de fugir a toda a pressa para Petrodava.

"Talvez nas montanhas encontremos a nossa salvação, como Noé. Porque, depois disso, o branco será preto e o dia será noite e a noite será dia; e semearemos e ceifaremos à luz das estrelas e dormiremos quando o Sol nascer. Para os que escaparem, tudo se processará ao contrário. Pelo que será talvez melhor morrer.

Os russos olham para os cavalos, que se debatem nos arreios, que querem voltar. os quatro perderam a paciência.

- Vejam, cossacos imbecis, vejam - grita Pantelimon. - Os cavalos vêem e sentem mover-se as forças aprisionadas nas entranhas do planeta. Estas forças sairão das suas prisões destruídas como as águas das torrentes saltam das suas prisões de rochas e se lançam para o mar destruindo tudo. Olhem. Os cavalos sabem que o cataclismo se desencadeará dentro de alguns instantes. Olhem para os cavalos!

- Pantelimon, aproxima-te - ordena Domnitza Stela Illiyuskin.

- Domnitza, voltemos enquanto é tempo - diz Pantelimon. - Voltemos, enquanto temos tempo. Não percais um segundo. Eu estou às vossas ordens.

- Pantelimon, ainda é longe daqui a Prut?

- Não sei - diz Pantelimon. - Uma hora de trote? Mas, segundo o pressentimento dos cavalos, nunca ali chegaremos, nem a trote, nem a galope, nem a voar. Porque talvez já não haja Prut. Tudo estará submerso. As águas, as montanhas e as estrelas. - E acrescentou: Não deve ser mais de uma hora até Prut. Mas temos de voltar. O Prut, certamente que está perto. Sente-se o ar da estepe. Pesado. Como se estivesse misturado de areia. O ar que vem da Santa Rússia. Já não é o ar que vem de Petrodava, forte como o álcool e que sentimos nos pulmões como aguardente. Mas nós nunca atingiremos a Santa Rússia. A Santa Rússia será tragada com as suas águas e as suas estepes e com tudo o que ela possui.

O príncipe Igor Illiyuskin continua a dormir. A sua cabeça é como um globo de ouro, emoldurado no colarinho bordado a ouro do seu uniforme de general e pelas dragonas guarnecidas de brilhantes e de pedras preciosas. O queixo apoia-se-lhe no peito coberto por uma quantidade de cruzes e condecorações de pedrarias. Ele repousa nos joelhos de Stela.

- Princesa Stela, ordenai o que vos agradar. Eu preveni-vos. Porque a hora do juízo final e da punição está próxima. Ordenai. Os cavalos e eu cumprimos o nosso dever de cocheiro e de cavalos. A minha opinião é não perder um só instante. Voltemos para Yassy. Amanhã, quando o cataclismo tiver passado, poderemos continuar o nosso caminho. Se ainda estivermos vivos.

Stela Apostol, princesa Illiyuskin, está aterrorizada. Ela pensa depressa e com precisão, como se calculasse.

Durante séculos, os homens e as mulheres Roca de Petrodava completaram a sua inteligência humana pela intuição dos cavalos. Se os proprietários de Petrodava não tivessem utilizado o instinto das aves, dos cavalos, dos porcos, dos bichos-da-seda e doutros seres vivos e se se tivessem fiado unicamente na sua inteligência e nos seus sentidos de homens, há milhares de anos que os da sua raça teriam deixado de existir. Porque os Moldavos tiveram uma existência terrível. A vida de um moldavo é uma luta de todos os instantes. dos Milhares de invasores bárbaros que se sucederam durante dois mil anos na Europa nenhum evitou a estrada que passa pela Moldávia. Todos a atravessaram, queimaram tudo o que podia ser queimado, mataram tudo o que vivia e pilharam tudo o que podia ser pilhado. Depois continuaram a sua rota para o Ocidente. O moldavo, só, com a sua inteligência de homem e as suas forças de homem, não teria podido sobreviver, nem mesmo um século. A inteligência, a vontade, a ciência e a razão humanas não podiam, sozinhas, opor-se à história. Então o moldavo aliou-se com o céu e a terra e com tudo o que vive no céu e na terra. E saiu, senão vitorioso, pelo menos com vida e livre. No momento em que o homem se liberta dos seus aliados e parte sozinho, é esmagado. Stela não pode quebrar o pacto com os cavalos, isto é, com a terra e com a natureza e com o céu desconhecido que por vezes fala pela boca dos cavalos e pelo chilrear das aves.

- Pantelimon, meu amigo, dá-me a tua mão. Pantelimon, se eu fosse ainda Stela Apostol, a proprietária de Petrodava, ordenar-te-ia sem hesitar: "Pantelimon, voltemos para a nossa terra urgentemente.

Os nossos cavalos não mentem. Se antes de nós eles vêem o dilúvio, isso quer dizer que é verdade". E faríamos meia volta.

- Assim, não me ordenais que regresse?

- Não - responde a princesa Stela. - Já não sou a proprietária de Petrodava. Já não sou Stela Apostol. Sou a princesa Stela Illiyuskin. Parente do czar de todas as Rússias. Eu sou a proprietária de centenas de castelos e de milhões de metros quadrados de propriedades. Já não me posso guiar segundo as intuições dos cavalos. Hoje, tenho de seguir os comunicados do estado-maior do exército czarista, os boletins do instituto meteorológico do czar, as informações do serviço secreto, da polícia. Os comunicados disseram-nos que continuássemos o caminho para Kishinev, onde nos espera o palácio do governador, com os seus cento e vinte quartos, as suas banheiras de mármore cheias de água-de-rosas quente, com os seus criados de libré de ouro e as suas mesas cobertas do que há de melhor na terra.

- Vamos morrer, minha Domnitza - diz Pantelimon Haidouk. - Morrer.

- Morreremos - responde Stela. - Desde o momento em que eu sou princesa, já não tenho o direito de escutar os cavalos. O instituto cosmográfico e os sábios do czar melindrar-se-iam se eu os não ouvisse, a eles, mas aos cavalos. Eu ofenderia a polícia e os serviços secretos do czar. E o próprio czar. Os espiões, os sábios e os cosmógrafos nada nos disseram acerca do cataclismo de que os cavalos de Petrodava nos preveniram. É a eles que temos de escutar, mesmo que os cavalos sejam áfonos e tenham razão. Temos de avançar. Eu sou princesa.

Continua, Pantelimon. Trata de convencer os cavalos a obedecerem-te. Mesmo que tenhamos de morrer. Teremos o mesmo túmulo que os cavalos de Petrodava. Ao lado do meu querido príncipe que não duvida de nada e que dorme nos meus braços, com as suas dragonas douradas. Morreremos nesta caleche com as armas de ouro do czar e do príncipe Illiyuskin. Uma morte como nos contos de fadas. Morreremos felizes. Juntos. Em pleno sonho. Avança, Pantelimon. Mesmo que à nossa frente esteja a morte. A morte é também um destino. E esta é por vezes preferível a outras que nos foram fixadas. Avança com coragem. É em tais ocasiões que se conhecem os homens corajosos. Pantelimon Haidouk está pálido. Dá meia volta, como no exército. Sobe para o assento. Sem uma palavra. Os russos estão novamente a cavalo. Todos sentem agora a tragédia, mais terrivelmente que os cavalos. Já ninguém fala. A carruagem põe-se em marcha. Os cavalos, que até agora se afadigavam a partir tudo, sentem a mão de Pantelimon e acalmam-se. Eles ouviram a ordem de Pantelimon para continuar o caminho. E os cavalos submetem-se. Têm confiança no homem. Eles sabem com certeza que, neste momento, começaram o seu trote para a morte. Mas vão com prazer. Visto que o homem os conduz para a catástrofe, sabem que há um motivo poderoso e razoável para lá ir, um motivo razoável que lhes escapa, a eles, cavalos, porque são privados de razão. Os cavalos confiam na razão humana como todos os homens de Petrodava confiam no instinto dos cavalos. Agora o seu trote tornou-se regular. Um trote pelo qual cada um dos quatro garanhões atrelados à carruagem de núpcias do príncipe sente prazer. Deixam-se guiar pelo homem. Os que se deixam guiar não têm inquietação alguma. Vão como se dormissem ou como se brincassem. Porque o homem e o animal não são eles próprios. Livres, são-no somente no sono e na brincadeira.

- Domnitza Stela - diz Pantelimon, inclinando-se todo para trás-, Domnitza Stela, ordenastes que continuássemos o nosso caminho, embora nos dirijamos para a morte, porque já não sois a dona de Petrodava, mas princesa. Eu pergunto-vos: ser princesa é mais que ser mulher de Petrodava?

- Menos. Pantelimon. Ser dona de Petrodava é uma realidade. Ser princesa é um sonho. O sonho é sempre menos. Mas é mais bonito. Avança sem receio. A minha decisão é boa. Avança.

Enquanto Pantelimon falhava na sua última tentativa razoável de regresso, o carro parou bruscamente. Os quatro cavalos empinaram-se novamente nas patas traseiras. Dir-se-ia centauros.

O príncipe Illiyuskin acorda de repente e levanta a cabeça nua que repousava nos joelhos da noiva.

- Que é que se passa? - pergunta o príncipe.

- Que é?

Maquinalmente leva a mão ao revólver. O estojo bordado a ouro e prata com as armas do czar está vazio. É um estojo de gala. Confeccionado expressamente para o uniforme de casamento. Não encontrando a pistola, o príncipe leva a mão à espada. É uma espada de ouro. Também para o uniforme de gala. Ela não corta mais que uma espada de cartão. O revólver e a espada do príncipe são fictícios. Simples elementos decorativos.

Ineficazes. PÕe o quépi. com frequência, os galões substituem a espada ou o revólver.

- Que é que se passa? - pergunta novamente o príncipe despertado do seu sono. Está prestes a saltar do carro, bruscamente parado.

- Não te assustes, meu querido príncipe - diz Stela. Afaga-lhe o ombro, onde se vêem grandes dragonas de ouro e pedras finas. - Não te assustes, meu principezinho. Tu foste acordado bruscamente. A culpa foi do cocheiro. Castigá-lo-ei por isso. Ele travou brutalmente, quebrou o sono de ouro e turvou as ondas de pérolas nas quais o meu príncipe vogava. Pousa novamente a tua cabeça no meu regaço e dorme. Dorme, meu principezinho.

Stela tirou o quépi, ornado como uma coroa de imperador ou a tiara dum papa, e coloca a pequena cabeça loura do príncipe nos seus joelhos.

- Instala-te bem e dorme, meu amor e meu sonho. Tu fizeste de mim uma princesa. E eu proteger-te-ei e tornar-te-ei feliz. Como tua mãe me pediu.

No momento em que o príncipe, submisso, repousa a cabeça na almofada de ouro e seda, em cima dos joelhos da noiva, o carro é cercado por um bando de indivíduos armados até aos dentes. Têm todos o rosto sujo, por barbear, e os olhos turvados pela bebida. Há cerca de uma dúzia de cabeças redondas, balofas, com os capacetes ao contrário, sem dragonas. Todos cambaleiam e estão terrivelmente embriagados. Mal se aguentam nas pernas, alguns empunham as suas armas pelo cano, outros pela coronha. E falam todos à toa, como os bêbados, com os soldados de guarda, à volta do carro.

Stela lança um olhar para fora. Os bandidos vestem uniformes militares, mas os uniformes estão sujos, como se tivessem dormido uma semana, todos vestidos, na lama do caminho. Os bandidos ameaçam os cossacos da escolta, depois riem com eles. Alguns de entre eles usam braçadeiras vermelhas, outros braçadeiras tricolores, uns têm no quépi uma estrela vermelha, outros têm estrelas vermelhas no peito. São ameaçadores como todos os bandos de brutos avinhados e excitados.

Um cheiro desagradável, a álcool, tabaco, suor e cavalariça, penetra no cofre estofado de veludo e perfumado com todas as -essências que o príncipe usa de manhã para a lavagem do seu corpo e para o seu penteado.

Uma cabeça de bandido, uma cabeça como uma meda de palha devastada, introduziu-se no interior da caleche. É uma cabeça sem corpo. Uma cabeça de assassino guilhotinado. A barba hirsuta, vermelha. Os dentes amarelos, sujos. O nariz achatado. Os olhos injectados de sangue fixam-se como lesmas na pele de Stela. Ela sente no seu corpo, no seu rosto, estes olhos semelhantes a moluscos húmidos. Sente desejo de gritar. Nunca ninguém olhou para Stela com estes olhos de sátiro bêbado que quer violá-la. É a primeira vez. Ela conhece os olhares dos homens que a cumprimentavam quando era proprietária de Petrodava, os olhos dos cavalos, dos cães, dos lobos e dos ursos. Olhares que são totalmente diferentes dos olhares de um bandido bêbedo e sujo que aprecia antes de violar. Os olhares ternos e cruéis são-lhe conhecidos. Os olhares amedrontados também. Mas não os olhares selvagens. Isso não existe em Petrodava.

Nem existem coisas ordinárias, nem poeira... As nuvens passam como panos húmidos por cima das casas, por cima das pessoas, por cima dos animais e das ruas e limpam-nas de cinco em cinco minutos. Agora, ela está em frente da fera. Diante de uma cabeça guilhotinada de bruto que a olha. Entrada pela janela da sua caleche de núpcias. A fera está segura de que dentro dalguns minutos possuirá esta rapariga de vestido branco de noiva. Dentro dalguns minutos tê-la-á. O homem está calmo. Nada diz. Ele ignora o príncipe. Só lhe interessa a carne da mulher que ele observa, na qualidade de mulher. Nada mais. O príncipe Igor Illiyuskin pôs o seu quépi de general. Procurou - instintivamente - a sua espada. É fictícia. E novamente procurou o revólver. Fictício também. Fictício como a nobreza e o poder na história. Pura aparência. Sem qualquer dose de realidade.

O príncipe está pálido.

Inclina-se como num baile e murmura ao ouvido de Stela, desdenhoso e galante:

- É um bando de desertores, querida - diz em francês. - Toma cuidado. Em caso algum, não deves descer do carro. Nós conseguiremos dispersá-los e abatê-los. Prudência.

- Como tu sabes comandar e tranquilizar! diz Stela. - Meu querido general. Farei tudo o que me ordenares.

A caleche está completamente cercada. Mas não se vê o que se passa. As duas janelas são pequenas e por elas duas cabeças entraram no carro. As duas sem pescoço, sem braços e sem corpo. Suspensas no interior, ameaçadoras. Horrivelmente malcheirosas, empestando a álcool e a porcaria.

- Tu, quem és? - pergunta a segunda cabeça de bandido. A primeira não diz nada.

O bandido devora Stela com o olhar.

- Tu, quem és? - repete. Olhara para o príncipe Igor com indiferença. Como para dizer: "Dentro de alguns minutos serás massacrado. Não vale a pena responderes..."

A palavra tu foi a coisa mais terrível que deve ter acontecido até agora ao príncipe Igor. Tu entra-lhe no peito como uma navalha. Nunca ninguém, nem os seus colegas da escola de oficiais, nem os seus superiores do exército, ninguém, em toda a sua vida, com excepção de seu pai e de sua mãe, o trataram por tu. Ele foi exclusivamente "Alteza", "Monsenhor", "Príncipe", "Vossa Alteza", "Vossa Honra". Vosso Todo-Poderoso. Nunca tu. E agora, esta palavra fere-o mortalmente. Sobretudo pronunciada na presença de Stela.

A cabeça que acaba de dizer "tu" cospe cascas de semente de girassol para as botas envernizadas com esporas de ouro do príncipe.

- Meu querido príncipe, se eles querem dinheiro, é preciso dar-lho. Tudo o que eles desejarem. Que nos deixem em paz - diz Stela. - Dai-lhes dinheiro para que eles partam. - Ela não pronuncia senão algumas palavras em francês. O resto, em romeno. O príncipe não compreende. Mas compreende a segunda cabeça do bandido que se introduziu no carro.

- É uma questão de dinheiro, é verdade - diz o bandido em russo. - Uma questão de dinheiro. Mas o dinheiro já o temos. Como tudo o que se encontra na Rússia. Tudo. Quem sois vós?

- A senhora é a princesa Stela Illiyuskin, minha mulher, e eu, eu sou o príncipe Igor Illiyuskin, comandante das forças da retaguarda nos Cárpatos. - É a primeira vez, e a última, que o príncipe Igor Illiyuskin apresenta sua mulher, a princesa Stela Illiyuskin, na sociedade. Agora. Aqui. Aos bandidos que os cercaram e que querem matá-los.

- Niet príncipe - diz com indolência a primeira cabeça. - Não há príncipe. Absolutamente nenhum. Em parte nenhuma. - Cospe calmamente as cascas de pevides de girassol, sempre para cima das botas envernizadas e do tapete vermelho do carro. O bandido tem a boca cheia de pevides, parte-as e atira as cascas, à medida que come as sementes, uma após outra. com uma destreza extraordinária. - Niet - repete, cuspindo outras cascas. - Nem príncipes. Nem generais. Todos iguais e todos soldados. Tira as tuas dragonas.

- Desçam do carro e continuem o vosso caminho, à nossa frente, sem se voltarem - diz o segundo bandido. O que compreendeu as palavras romenas de Stela. É uma cabeça com manchas de sardas. De cabelos ruivos. De nariz semita. Vendo o príncipe imóvel, diz: - Ordeno-te, Igor Illiyuskin, que arranques as tuas dragonas, desças com tua mulher e continues o caminho a pé, sem olhar para trás.

Ele abre a porta. O príncipe fecha-a e aferrolha-a pela parte de dentro. Fica fechada.

- Eu recuso - diz o príncipe. A sua voz é cristalina, digna, precisa. Stela pega no braço do marido. Está muito orgulhosa da coragem do seu pequeno príncipe e general.

- O comité bolchevista dos soldados tomou o comando na Rússia. A guerra terminou. A classe dos nobres e dos burgueses foi destronada. Tira as tuas dragonas de boa vontade, se não queres que tas arranque, juntamente com os ombros.

Mal o bolchevista da direita acabara de falar, já o da esquerda havia introduzido a manápula no carro e arrancado, como se arrancariam as asas multicores duma ave exótica, as dragonas de ouro com galões de pedras preciosas do príncipe-general. A mão do bolchevista agarra como aves vivas as duas dragonas e esmaga-as. Ri. E cospe novamente para cima das botas do príncipe. Olha para Stela, com as dragonas do príncipe na mão e diz:

- Agora, és tu quem te vai depenar, princesa. Até à pele. De todas as tuas sedas.

Isto foi o máximo suportável, como martírio, para o príncipe Igor Illiyuskin. Tornou-se vermelho. Atira-se, arrombando a porta do carro, sobre o bolchevista que lhe arrancou as dragonas e que ameaça Stela. O bolchevista gigante cai, estendido de costas. O príncipe está em cima dele e bate-lhe com os seus punhos pequenos e brancos, com os anéis de ouro e brilhantes, na enorme cabeça, ruiva e dura como madeira. O bolchevista é um colosso. Ele não caiu por causa do príncipe. Mas por causa da surpresa. Não esperava ver o príncipe atirar-se sobre ele. O gigante teve um gesto instintivo de recuo. Escorregou no estribo e estatelou-se de costas. Os socos com que o príncipe lhe martela a cara não o incomodam mais que os socos de uma criança. É menos que uma brincadeira... A cabeça do bolchevista é grande como uma panela. Parece mais dura que o betão. Seria preciso uma dúzia de príncipes, com machados, para a partir! Uma cabeça extraordinária.

Enquanto o gigante bêbado, com as dragonas na mão, tenta levantar-se com muita dificuldade, o príncipe, de pé, dá ordens, comanda. Ouvem-se tiros do outro lado do carro. Em cima do assento, Pantelimon e os outros cocheiros russos passam a vias de facto. Os guardas cossacos fazem meia volta e partem ao encontro do carro das bagagens, acompanhados pela maioria dos bolchevistas a galope. Há uma mistura à volta do carro. Uns tentam desatrelar os cavalos, outros pilham, outros batem-se, outros gritam, estendidos no chão. Os bolchevistas feridos caídos por terra e que se queixam não foram abatidos pelos guardas. Os cossacos estão longe. Foram espezinhados pelos cavalos. Os bolchevistas quiseram desatrelá-los. E porque eram muito bons, os cavalos, não podiam permitir que o inimigo se atirasse sobre eles e simultaneamente sobre a jovem mulher, ainda dentro do carro. Os cavalos de Petrodava nunca suportaram ser tocados por mão estranha. Mesmo ao de leve. Eles têm o mesmo pudor e a mesma intransigência que as suas donas, as proprietárias de Petrodava. Todos os bolchevistas que se aproximaram dos cavalos para os desatrelar foram mordidos e espezinhados. Um após outro. Assim que se aproximavam caíam. Atirados ao chão com um coice. Como se atira um pedaço de papel.

Stela está a alguns metros do carro, estendida, de cara contra o chão. Ela levanta-se com receio. Não sabe quando nem como foi arrancada das almofadas de veludo do carro. O coche está voltado. Foram os cavalos que o voltaram nos seus assaltos contra os bolchevistas que queriam desatrelá-los. Stela descobre o seu príncipe, encoscorado no chão. Arqueado pelo sofrimento. Sujo de lama e de sangue. Sem dragonas. Sem quépi. A camisa rasgada. A cabeça ensanguentada. Os cavalos empinam-se, debatem-se, lutam para não os desatrelarem. É sempre Pantelimon quem segura as rédeas, mas ele está, como uma bola, atrás do broquel, como atrás de um parapeito. Os bolchevistas têm as armas na mão. Todos rodeiam os cavalos. Uns deitados, outros de pé. Stela precipita-se para o príncipe Igor e segura-o nos braços, sem olhar à sua volta. É a primeira vez que aperta contra o peito o seu príncipe e o seu marido. Ela esquece onde se encontra. Por um instante. E vive com intensidade, ardentemente, o contacto do seu corpo contra o corpo daquele que aceitou para marido. Ela nota que o príncipe é leve como uma criança. Ela aperta-o ainda com mais força contra o seu coração. É uma brincadeira transportar uma tal carga. Dirige-se para o carro, o único lugar confortável e digno do seu príncipe. Pantelimon vê-os e endireita o carro, atirando, com a voz e com as rédeas, os cavalos contra os assaltantes. Stela instala o príncipe nas almofadas de veludo vermelho e tenta estendê-lo, mas cai com ele no chão. O carro inclina-se, estala, prestes a desmanchar-se. As balas atravessam a carroçaria envernizada com as armas douradas do czar e da família Illiyuskin. Stela aperta o príncipe nos braços. Está pronta a morrer assim. Mas não quer que o seu corpo frágil seja tocado por uma bala se essa bala não atravessar primeiro o seu corpo, a fim de amortecer o choque e causar menos mal ao príncipe. Ela beija-o com paixão, aperta-o contra ela e cobre-o com o seu corpo como se fosse um escudo em brasa. O carro está a desmantelar-se - Estala. Os tiros multiplicam-se. Gritos. Gemidos. Os cavalos empinam-se e relincham. Como para uma carga de cavalaria, sob o fogo das metralhadoras, Pantelimon Haidouk, em cima do seu assento, sem armas, somente com as rédeas na mão e com os quatro cavalos por aliados, lança-se com os seus animais, como um tanque vivo, como um centauro, e passa por cima dos homens com os cavalos, com as rodas do carro e esmaga-os. Os cavalos conduzem um combate de dançarinos. De esmagadores. Num espaço reduzido. O carro oscila, prestes a partir-se. Todo o bolchevista que atira sobre o carro é visado por Pantelimon com uma rapidez fulminante, como se visa alguém que se quer abater, mas, em vez de atirar, Pantelimon, que não tem arma, lança, depois de ter visado bem, os quatro cavalos e o carro sobre o inimigo - O inimigo cai. com alguns gritos. com alguns estalidos de ossos esmagados sob os cascos. E o carro, com os seus quatro cavalos e o cocheiro de Petrodava, atira-se sobre um outro inimigo. Um após outro. Restam aproximadamente cinco ou sete. Os outros fugiram a galope, a fim de pilharem o carro que transporta as bagagens do príncipe. Depois de um breve combate, sobre algumas centenas de metros, os cavalos conseguiram, sob a orientação de Pantelimon, aniquilar mais de metade do grupo. Os outros procuram abrigar-se para continuar a atirar contra o carro. Pantelimon destrói-os nos seus abrigos donde atiram, como se esmagasse, debaixo dos cascos dos cavalos, serpentes espalhadas pelo chão. Depois, com uma brusca viragem, o carro parte para oeste.

Toda a traseira do carro se solta e cai com o canapé de veludo. As portas também, uma após outra. Stela aperta contra ela o seu príncipe que respira, mas não dá outro sinal de vida. Ela está encoroscada no chão do carro. Fazendo uma muralha com o seu corpo. A fuzilaria cessa de repente. Stela ouve o barulho dos cavalos que carregam e correm a todo o galope. As balas assobiam ao longe. E erram o alvo. Mas os perseguidores aproximam-se.

- Os nossos cavalos de Petrodava não podem ser apanhados pelos perseguidores, mesmo que eles sejam em grande número - diz Stela para consigo. Mas ela pressente que o carro principesco não resistirá à corrida. O carro foi feito para outras espécies de viagens. Não para o combate. É bonito mas não é sólido. Stela sente que dum momento para o outro toda a metade traseira do carro se desprenderá e cairá. Ela tenta ver onde se encontra o eixo do carro. O carro não tem eixo. A murro, Stela arromba a madeira polida da caixa que, debaixo do assento, contém as ferramentas. Ela consegue tirar um lado da caixa e desliza para este espaço bastante vasto, tão largo como o carro. Puxa o príncipe para junto dela. - Agora estás fora de perigo. Se a parte de trás do carro cai, as duas rodas cairão também. Estaremos em segurança debaixo das rodas da frente. Até que elas se desloquem também. Depois, se elas se partirem, subiremos para o timão. Entre os cavalos. E se o timão cede, içar-nos-emos para cima dos cavalos. Agora estamos atrás deles. Estamos em segurança. Em parte alguma me sinto assim tão em segurança. E agora posso proteger-te. Se eu pudesse segurar-te nos meus braços, para tentar trepar para o timão e dali para um cavalo, eu cortaria as rédeas, abandonaria o carro e tu chegarias mais depressa ao hospital. E escaparias aos bolchevistas que nos perseguem a galope para te matar.

Stela aperta-o com todas as suas forças.

- Domnitza Stela - grita Pantelimon. Ele arrombou também o chão do assento por cima do qual se encontra a caixa da ferramenta e vê as cabeças de Stela e do príncipe. Pantelimon deixa os cavalos prosseguirem o caminho a galope e olha para Stela. Ele não vê senão uma cabeça vermelha. E, nos braços de Stela, o príncipe, coberto de sangue.

- Ele vive?

- Vive - responde Stela. - Nos meus braços não pode morrer.

- Estais ferida?

- Não - responde Stela.

As rodas estalam a partir-se, Pantelimon analisa a situação. Os cavalos vão a todo o galope. Como centauros. Pantelimon volta-se novamente para Stela. E diz:

- Domnitza. Eu fiz o que pude. Mas agora não posso mais. Estou ferido. O perigo está longe. Mas somos perseguidos. Pegai nas rédeas. Eu retiro-me para morrer.

Stela solta o braço esquerdo que segura o príncipe. Pega nas rédeas e sobe para a boleia. O carro perdeu tudo o que o tornava um carro. Nada mais resta dele que o esqueleto. As rodas, os eixos e as molas. Nada mais. Como se dum corpo humano se desprendessem a pele, a carne, o fato, e só ficassem os ossos, prontos também para se deslocarem e espalharem-se. A única coisa que resiste é o assento alto sob o qual se encontram agora três pessoas: Pantelimon, dobrado no lugar de Stela e segurando o príncipe, e Stela, que sobe ao lugar do cocheiro para conduzir os cavalos.

A mudança efectua-se lentamente, com dor e sofrimento, porque Pantelimon está ferido com várias balas.

- Sentes-te capaz de segurar o príncipe? - pergunta Stela.

- Mesmo que eu morra, segurá-lo-ei ainda com todas as minhas forças. A morte não pode senão fazer-me apertar mais os braços. Não tenhais receio. Apressai-vos, Domnitza.

Pantelimon tomou o lugar de Stela. Passa o seu braço direito por cima do corpo do príncipe e por cima do eixo que é a alma do carro. Agora está solidamente agarrado. Respira. Abandona-se ao sofrimento. À frente, Stela conduz à rédea solta. Voltam para Yassy. Para oeste. Stela olha para trás. Os bolchevistas a cavalo estão longe. A fuzilaria diminui. Depois cessa. Sem dúvida, os cavaleiros encontraram o carro com as bagagens, que Stela não viu, mas que devia estar caído em qualquer parte, na estrada. Agora ela encoraja os cavalos com a voz, como na estrada de Petrodava quando ela subia a encosta abrupta que ladeia a torrente. Os cavalos estão cobertos de espuma. Galopam para oeste.

A revolução não pôde matar o seu príncipe. Ela feriu-o. Mas Stela salvou-o. E com a ajuda de Deus, dos médicos e da sua ternura, o príncipe curar-se-á.

Ela galopa para Yassy. Avista-se a cidade com as cúpulas das suas centenas de igrejas cujas cruzes apontam o céu por cima da Moldávia. Para os homens que não sabem que direcção tomar, as cruzes de todas as igrejas são as indicadoras do céu. Tanto de dia como de noite, a toda a hora, o céu permanece como o destino de todos, dos homens e dos cavalos, dos felizes e dos ricos, dos príncipes e dos criadores de cavalos.

Os tiros cessaram. A perseguição também. A revolução ficou para trás, sem ter conseguido exterminar os fugitivos. Nesta tarde de Outubro, o coche, reduzido a um esqueleto, com os dois homens feridos e encostados um ao outro para não caírem e conduzido por uma mulher de vestido branco, faz a sua entrada nas ruas de Yassy e dirige-se, rápido, para o hospital. As pessoas param admiradas e não compreendem. Stela pode enfim respirar. Ela vê se Pantelimon Haidouk e o príncipe continuam no seu lugar.

- Ele ainda vive? - pergunta Stela.

- Respira, Domnitza - diz Pantelimon Haidouk. Foram as suas últimas palavras. Stela ignora que, depois de as proferir, o cocheiro perdeu os sentidos. Mas as suas mãos, como laços, seguram solidamente o príncipe, como tinha prometido.

Debaixo do lenço que lhe cobre a cabeça, Stela tacteia o seu diadema. Ele está no seu lugar. Na sua testa. Os bolchevistas não lhe tiraram a coroa. Nem mesmo a morte poderia tirar-lha. No seu corpete, no seu peito, ela tem a sua certidão de dupla coroação, como princesa e como esposa. Mas ela continua com o seu vestido de noiva. Porque só o noivo lho pode tirar. E o seu noivo está ferido, mas vivo. Quando ele estiver curado, ela tornará a vestir este vestido e será ele quem lho despirá. Ela não voltará a vesti-lo senão para isso.

No hospital militar, os médicos franceses, russos e ingleses transportam o príncipe e o cocheiro para a sala de operações. Toda a gente sabe que a princesa Stela Illiyuskin lutou com os bolchevistas, que ela os venceu e que arrancou das mãos da revolução o corpo ferido do príncipe, seu esposo. Heróica, como nunca uma mulher o foi. O estado-maior russo envia-lhe telegramas de felicitações. No corredor do hospital, Stela, direita, envolvida numa romeira preta, que a torna igual a um pinheiro enlutado, aguarda o resultado da operação. E reza. Quando não há mais nenhuma saída, o homem olha para o céu, onde existe sempre uma esperança.

- Se eu tivesse ouvido os cavalos, que adivinharam a revolução russa e me preveniram deste cataclismo mais terrível para o planeta que o dilúvio de Noé, se eu tivesse escutado os meus cavalos, o príncipe não teria sido ferido - diz Stela para consigo. - Mas eu sou princesa. E uma princesa não tem o direito de ter em conta o que dizem os cavalos. Ó meu príncipe de ouro e seda, para que serve teres feito de mim uma princesa, se já não tenho o direito de escutar os cavalos?

 

O golpe de misericórdia

HÁ oito horas que a princesa Stela Illiyuskin espera no quarto branco do hospital. O seu príncipe de ouro e de penugem continua na sala de operações. De vez em quando, Stela interroga as enfermeiras:

- O príncipe ainda vive?

-Ainda, Alteza - respondem, respeitosas, as enfermeiras, fazendo uma vénia.

Para Stela. é a sua segunda saída para o mundo como princesa: da primeira vez encontrou o bando de bolchevistas; da segunda, agora, encontra-se diante das enfermeiras, dos médicos e diante das pessoas que vêm ao hospital das forças aliadas de Yassy. Logo após a chegada de Stela à capital moldava, os telegramas de felicitações pela sua coragem afluíram, assim como as homenagens oficiais, as ordens do dia, as condecorações e os artigos nos jornais.

- Todos estes elogios e todas estas honras certamente me dão prazer - diz Stela. - O contrário seria anormal. Mas neste instante a minha única preocupação é a saúde do meu príncipe. A vida do meu príncipe.

Destinam-lhe um quarto branco que dá para o corredor do serviço de cirurgia do hospital militar. Está sentada na borda da cama e espera, toda vestida. Como numa sala de espera. Sem um olhar para os presentes, para os telegramas, para as flores. Ela é a heroína do dia. A mulher que venceu os bolchevistas e que salvou o príncipe Illiyuskin depois de um combate sangrento e de uma cavalgada de Far-West. Ela é como todos os de Petrodava, como todas as mulheres de Petrodava: ela não tem na sua vida senão um único pensamento, à semelhança do pinheiro que, brotando da sua rocha, não tem senão uma única direcção: vertical, para cima. Ou a torrente que acaba de rebentar e que não conhece também senão uma direcção: o mar, para o qual se apressa, espumando, em linha recta, sem meandros e sem um olhar para as margens. Ela é semelhante aos pinheiros e às torrentes. Não conhece senão uma coisa, a vida do seu príncipe. Ela arrancou-o aos bolchevistas. Mas não pode arrancá-lo à morte. A morte é um adversário mais poderoso que os bolchevistas. E Stela não pode olhar senão para o tecto, procurando adivinhar em que lugar do céu se encontra uma janela pela qual ela pudesse falar aos anjos e pedir-lhes que salvassem este anjo terreno, o príncipe Igor. Enquanto ela olha para o tecto, entra um oficial. Ele tem a patente e usa os galões verdes dos veterinários.

- Que Vossa Alteza desculpe a minha pressa. Bati à porta mas Vossa Alteza estava preocupada.

- Deseja falar-me dos cavalos?

- Exactamente, princesa.

- Como estão os cavalos?

- Dois estão doentes, Alteza. Acabamos de extrair quatro balas de um e três do outro. Os dois restantes também foram feridos, mas estão fora de perigo. Poderemos salvá-los.

- Quais são os que correm o perigo de ficar doentes?

- Dois deles - responde o veterinário. - Os quatro são pretos. Têm todos a mesma idade. Eu não sei como os descrever para os diferençar dos outros.

Stela entristece. Atrelaram ao carro os melhores garanhões: Roca, Granito, Sílex e Piatra. Ela quer saber quais são os mutilados. Levanta-se. Sai com o oficial. Sobe para um carro e atravessa Yassy sem ver nada. Quase à saída da cidade encontra os seus cavalos. Os quatro cobertos de ligaduras. Dois deles, Roca e Sílex, têm as patas partidas. As patas da frente.

- Tivemos de cortar os tendões, os músculos, os ossos - explica o médico.

Stela aproxima-se dos cavalos. Beija Sílex na testeira. Os olhos do cavalo, cheios de lágrimas, porque os cavalos também choram quando os operam, iluminam-se. As ventas respiram nos cabelos de Stela. Sílex treme, parece-lhe respirar nos cabelos da dona as montanhas, o ar de Petrodava. O cavalo escava a terra com os seus cascos doentes. Stela abraça-o. O cavalo relincha de felicidade. Dir-se-ia um moribundo feliz. Stela rebenta em soluços.

Dirige-se para o segundo cavalo, para Roca. É a mesma cena.

- Leve-os para o pátio e execute-os - ordena Stela. - Que não sofram mais. É a única manifestação de amizade que lhes posso dar. Mas quero que eles sejam mortos segundo as minhas instruções. Uma bala na cabeça. Em plena testa.

Ela mostra o lugar na testa, que os Romenos designam com uma palavra eslava: "mir", que significa "paz". Se alguém recebe uma pancada ou uma bala neste ponto preciso, tem paz: "mir", para a eternidade.

Os dois cavalos, Sílex e Roca, são conduzidos para o pátio. Stela não se aproxima mais deles. Ela saúda-os de longe, com a mão, quase em sentido. Como entre camaradas de combate. E ordena:

- Agora.

Volta as costas. Ouve as duas detonações. Dois corpos caem... Sabe que a execução se cumpriu conforme as suas ordens. As balas - duas unicamente- acertaram no "mir". Os dois cavalos, Roca e Sílex, tinham uma estrela branca na testa. Stela enxuga os olhos e volta para o quarto branco do hospital. O doutor vem ao seu encontro.

- O príncipe ainda vive?

- Sim, Alteza. Estamos na terceira intervenção. Ele está gravemente ferido. Gravemente, mas salvá-lo-emos. Por agora, trata-se doutra coisa.

- Fale, doutor.

- Temos de amputar a perna do cocheiro, por cima do joelho. De outro modo, ele corre perigo de morte. Aliás, ele não poderia nunca mais servir-se desta perna. Está morta. Os ossos estão completamente esmagados.

- Que se ampute - ordena Stela. - Pantelimon tem medo?

- Nenhum - diz o médico. - É estóico como um espartano. Recusa mesmo a anestesia. Mas recusa também deixar-se amputar sem o vosso consentimento.

- O meu consentimento para amputar a perna direita?

- Exactamente - diz o médico. - Recusa a operação sem a autorização da sua patroa. Sem a vossa autorização, Alteza.

No quarto onde Stela vai encontrá-lo, Pantelimon está duma palidez extrema. Sofre. A sua cabeça, em cima das almofadas brancas, está amarela como um limão. Ele tenta sorrir.

- Domnitza, que é feito dos cavalos? - pergunta o cocheiro.

-Roca e Sílex foram abatidos. Estavam inválidos. As patas da frente. Eu não podia deixá-los assim. Isso não seria justo. Para tão nobres animais como Roca e Sílex teria sido um sofrimento terrível viver coxos. O seu sofrimento teria sido mais mortal que a morte. Eu não podia deixá-los sofrer. Portanto mandei-os abater. Uma bala em pleno "mir". Eu estava presente.

- Fizestes o que era preciso fazer, Domnitza. Pantelimon Haidouk tira para fora a mão direita, cheia de ligaduras, e faz o sinal da cruz dizendo com uma voz rouca:

- Que a terra seja leve aos meus queridos cavalos que acabam de morrer.

Persigna-se novamente. E deixa errar um sorriso crispado nos lábios que querem chorar.

- Domnitza, eu também tenho de perder uma perna - diz Pantelimon. - Eu peço que me deis também o golpe de misericórdia. Em plena testa. No "mir". Como para Roca e Sílex. Eu também não posso viver mutilado.

- Imbecil - grita Stela. - Um cavalo tem toda a sua grandeza nas pernas, um cavalo sem pernas é um cavalo morto. É preciso executá-lo. Mas tu, tu não és um cavalo. Tu és um homem. A tua grandeza não reside nas tuas pernas. Que importa que te falte uma perna ou mesmo as duas? A tua grandeza está no teu cérebro e no teu coração. Tu és um homem. Podes viver honradamente sem braços e sem pernas. Imbecil. Não tens razão para pedir o golpe de misericórdia. Não és um cavalo. Não deves afundar-te no desespero por causa duma perna. És um farrapo ou um homem?

- Dai-me a vossa mão, Domnitza - diz Pantelimon, a chorar. - Eu vou imediatamente mandar cortar a perna direita. - Chora. Beija a mão de Stela. - O príncipe? - pergunta Pantelimon.

- Vive.

- Que Deus o proteja e o conserve vivo - diz Pantelimon. Ele segura a mão de Stela. - Foi um duro combate. E até agora dois companheiros morreram, Sílex e Roca. Domnitza, o verdadeiro combate travámo-lo os sete, mas fostes vós e os cavalos que melhor se bateram. O príncipe e eu fomos postos fora de combate imediatamente. Bravo. Bravo, Domnitza.

Ele tira debaixo da almofada uma condecoração, depois uma outra e ainda uma outra... Um rosário de condecorações cintilantes.

- Fui condecorado pelo comando das forças russas, pelo comando das forças aliadas. Pelo primeiro combate vitorioso contra os bolchevistas. Estou muito contente. Sou um herói das forças anti-revolucionárias.

- Eu não sabia que tu eras anti-revolucionário

- diz Stela. - É a primeira vez que me falas disso.

Que tens tu contra a revolução?

- Eu, nada! - diz Pantelimon Haidouk. - Mas foi um duro combate. Heróico. E vitorioso. É por causa da vitória que eu estou contente. Depois, porque fui condecorado em nome do czar da Santa Rússia.

- O czar da Rússia morreu, Pantelimon - diz Stela. - Não é de bom agoiro ser condecorado pelos mortos.

- Isso nada muda ao caso, Domnitza. A coragem, a luta, o heroísmo são os mesmos, quer seja pelo czar ou contra ele. Nós travámos um combate justo. Heróico. Combatemos com coragem. Nós fomos vitoriosos. E fomos condecorados. Se os bolchevistas fossem justos, condecorar-nos-iam também, porque nos batemos heroicamente. Eles sabem-no bem, porque sofreram da nossa coragem e do nosso heroísmo. E os nossos cavalos de Petrodava? Que dizeis deles? Eles pressentiram a revolução russa. Como uma catástrofe mundial. Planetária. Eles anunciaram a revolução.

- Princesa, uma terrível notícia... - diz o médico-chefe ao entrar. - O príncipe Igor Illiyuskin, vosso ilustre esposo, morreu. Há um minuto. Todo o vosso heroísmo para arrancar às garras dos bolchevistas e todo o mal que lhe fizemos durante nove horas não serviram para nada. Ele morreu como um herói.

Stela está imóvel. Direita.

Persigna-se. Depois volta-se para Pantelimon e diz:

- Depois do funeral do príncipe parto para Petrodava. Tu ficarás no hospital até à tua cura. Adeus, Pantelimon.

- Não me deixeis aqui. Levai-me, Domnitza.

- Entendido. Manda cortar a perna depressa e partiremos. E não chores por uma perna. A grandeza de um homem não reside numa perna como nos cavalos. Mas na cabeça e no espírito. Tu podes viver nobremente como um homem. Mesmo sem uma perna. Coragem.

Ela apertou-lhe a mão, depois saiu, para a sala de operações, a fim de beijar o marido morto, na testa de cabelos de ouro.

- Vós sois forte diante da morte - diz o doutor, admirado. - Vós sois muito forte, Alteza.

- Oh! - responde Stela. - A morte é um dos mais suaves acidentes que pode acontecer aos homens na terra. Eu não choro o príncipe porque morreu. Mas por não ter morrido a tempo. Ele morreu antes de cumprir a sua tarefa terrestre.

Corre com insistência a notícia que o czar e toda a sua família teriam sido massacrados. Toda a Rússia estaria nas mãos dos bolchevistas. É um cataclismo terrível. É nesta atmosfera que as exéquias do príncipe Igor Illiyuskin se efectuam em Yassy, na catedral dos Três Doutores . (*)

 

* A catedral Trei lerarhi, os Três Doutores, dedicada aos três padres da Igreja: Basílio, bispo de Ccsária; Gregório de Nazianze e João Crisóstomo (N. do T.)

 

É uma sepultura provisória. Os Russos esperam que os bolchevistas sejam esmagados. E que o corpo do príncipe louro encerrado num caixão de vidro contido num caixão de chumbo seja trasladado para o convento russo onde são enterrados todos os czares e todos os príncipes Illiyuskin.

Após as exéquias, Stela visita todos os dias os cavalos, os dois que ainda estão vivos. Ela espera que estejam curados e que Haidouk esteja em condições de ser transportado. Depois regressarão a Petrodava. As condecorações, as ordens do dia, os artigos com a sua fotografia publicados nos jornais do mundo inteiro e que a descrevem como uma heroína sem igual da luta contra os bolchevistas, interessam-lhe pouco. Na véspera da sua partida foi convidada para o chá das damas da Cruz Vermelha. Não havia ali senão grandes damas russas, romenas, americanas, francesas, belgas. Durante o chá, todas as mulheres a contemplavam, admiradas.

- Não teve medo da morte enquanto arrancava o seu marido das garras dos bolchevistas? - pergunta uma dama.

- Eu pensava em salvá-lo - responde Stela. - Eu não tinha tempo de pensar nem na minha vida, nem na minha morte.

-- Heróica. Extraordinária! - exclama a assistência.

- Exageram - diz Stela. - Eu sou uma mulher semelhante às outras mulheres dos Cárpatos orientais. Nem melhor, nem pior. com a mesma atitude em frente da morte, em frente da vida, em frente do drama e do universo.

Stela coloca a chávena de chá um pouco mais longe e mostra o pires às senhoras que a rodeiam:

- A Roménia é exactamente como este prato voltado. A Roménia tem a forma dum disco. Absolutamente como este pires. Ali vivem vinte milhões de homens. Nas bordas do prato há planícies. No centro, o fundo do prato, há o planalto dos Cárpatos. Assemelha-se a uma cidadela. Nesta cidadela natural das montanhas encontra-se a minha aldeia, Petrodava. É um nome dácio. Há milhares de anos, ali onde se encontra agora a Roménia, vivia um povo que se chamava o povo dácio. Estes dácios puseram a eles próprios um nome: "o povo dos imortais", porque julgavam que nunca morreriam. Eles consideravam a morte como uma simples mudança da terra para o céu. A mudança de um domicílio miserável para um outro melhor. Todos estes dácios ou imortais se apressavam a morrer para se instalar nos domínios celestes, que, no dizer do seu deus Zamolxis, eram extraordinários. A melhor ocasião para morrer era, então como agora, a guerra. O povo dos imortais era profundamente feliz cada vez que uma guerra rebentava. Era uma ocasião para morrer. Os Romanos, que naquela época eram os maiores destruidores de nações do universo, encetaram uma guerra para destruir o povo dos imortais. O combate durou trezentos anos. E foi sempre favorável aos imortais, que ficaram independentes até ao século II depois de Jesus Cristo. Naquele momento, eles tiveram a pouca sorte de perder a guerra. Os Romanos entraram na cidadela das montanhas, o fundo do prato. Para que a sua espada não caísse nas mãos dos inimigos, Decebale, o rei dos Dácios, partiu-a ao meio com este troço de espada suicidou-se, cravando-o no coração. Ele também não queria cair vivo nas mãos dos Romanos, seus inimigos. Todos os generais se suicidaram, um após outro, pela ordem de patente. Mataram-se com as suas espadas partidas, junto do corpo do seu rei. Entretanto, a fim de terminar a operação o mais depressa possível, os homens, do mais novo ao mais velho, encheram um caldeirão de veneno, do qual beberam um gole cada um. Caíram mortos. Assim morreram os homens do povo dos imortais. As mulheres também quiseram morrer, porque a vida debaixo duma ocupação estrangeira já não tinha sentido. Mas antes da sua morte o rei dissera que as mulheres não tinham o direito de se suicidar, porque elas possuíam os frutos da sua carne, os filhos, que tinham de criar. É por isso que em Petrodava, que em língua dácia significa "cidade de pedra", somente existem mulheres imortais. Ao fim de um certo tempo, os Romanos foram-se embora. Depois a Dácia foi invadida pelos bárbaros. Após a morte dos seus maridos, as mulheres continuaram a viver nos Cárpatos com os frutos da sua carne. Nas montanhas, sem recear a morte. Permanecem na terra unicamente para cumprir a sua missão de mulheres. Como eu. Agora que o meu príncipe morreu, e que está no céu, continuarei a minha vida em Petrodava. Ali, visto que sou viúva do meu príncipe, meu marido, o general Igor Illiyuskin, viverei na casa de Petrodava como uma princesa entre os outros príncipes que são os meus cavalos.

- Contudo, tem orgulho em ser princesa?

- Certamente que sim, mas em Petrodava todas as mulheres são princesas. Elas são como eu, delgadas, perpendiculares à terra, com os pés na rocha e a cabeça no céu, como os pinheiros. Todas as noites, os pinheiros e tudo o que é perpendicular à terra, isto é, os homens de Petrodava, sentem que uma estrela pousa, como uma coroa, na sua cabeça, como se fossem príncipes. Lá em cima, nós somos, imortais e príncipes, coroados de estrelas todas as noites.

"Agora volto para Petrodava. Para o meu paraíso absoluto. Ali onde a vida é dura como uma rocha, o ar forte como o álcool. Onde a vida é directa, implacável e perpendicular como as torrentes que caem em cascata dos cumes das montanhas. Os homens vivem ali verticais sobre a terra. Perpendiculares como os pinheiros. E a morte não é senão uma mudança de posição geométrica. Se forem um dia à Roménia, vão a Petrodava. Ao meu paraíso frio. A princesa Stela Illiyuskin receber-vos-á ao lado de sua mãe, Domnitza Roxana, no limiar da porta de sua casa. É fácil encontrar Petrodava. Quando se dirijam para oeste, vindo da Rússia, vejam quais são as montanhas mais altas. Avancem para estas montanhas que emergem no meio das outras. Subam até às suas cristas. Quando não puderem trepar mais até aos cimos, porque já não têm mais atalhos, nem caminhos para ir mais acima, parem. A partir dali, já não é possível ao homem subir, mas unicamente aos anjos que têm asas e não precisam de caminhos nem de escadas para subir. Parem. Chegaram ao destino. Estão em Petrodava. Rodina mala, a minha terra natal, ou melhor, a minha rocha natal. É o paraíso frio das trutas. com todos os seus habitantes verticais como os pinheiros. Lá em cima, se ouvirem alguém chorar à noite, saberão que é, ou uma fonte, ou eu, Stela, princesa Illiyuskin, que chora a partida, antes de tempo, do meu príncipe, para o céu. Amanhã volto para Petrodava. Adeus, minhas senhoras.

Ela deixa o salão para ir chorar, sozinha, no seu quarto do hospital militar.

 

Itinerário de uma estrela errante

A princesa Stela Illiyuskin acaba de fazer dezanove anos. Há dois anos e meio que está viúva e vive retirada em Petrodava. com sua mãe, uma outra viúva. Domnitza Roxana deixou morrer o marido e assistiu à sua morte. Stela, sua filha, fez tudo o que era humanamente possível para salvar o seu. Lutou contra os bolchevistas e cavalgou, para o salvar, com mais heroísmo que nas histórias de cow-boys do Far-West. Contudo, a viuvez da mãe e da filha assemelham-se.

Agora, a guerra mundial acabou. A Roménia foi declarada "Grande Roménia" e tornou-se um reino independente e autocéfalo, isto é, que se dirige "pela sua própria cabeça". Na realidade, o reino da Roménia não é nem maior nem mais independente que outrora. Antes da conferência de Versalhes, que foi uma espécie de baile de encerramento da primeira guerra mundial, o presidente dos Estados Unidos, Wilson, mandou à Roménia prospectores comerciais para fazerem um inventário. Ele disse aos Romenos:

- Nós declaramo-vos autocéfalos, nós concedemos à Roménia o título de Grande Roménia e inscrevemo-la na lista dos povos civilizados se nos cederem, em exclusividade e para sempre, o petróleo, o trigo, a madeira, o carvão, o sal, os animais e o peixe. Nada do que possuem ao de cimo da terra, debaixo da terra e nos ares, será vendido a outros senão a nós e conforme o preço que fixarmos. Até ao fim dos séculos e esgotamento da história. Além disso, têm de assinar um tratado pelo qual nos cedem, por novecentos e noventa e nove anos, as estradas transitáveis e as que o serão um dia, os caminhos de ferro, o telefone, o telégrafo, os correios, a marinha, a electricidade, as fábricas siderúrgicas, as refinarias, e tudo o que esteja compreendido sob a denominação "indústria". Nunca, sob pena de serem riscados da lista das nações civilizadas, comprarão nada, nem armas, nem máquinas, nem mesmo um alfinete, nem ferramentas de qualquer espécie, a outros senão aos Americanos ou às firmas controladas pelos Americanos e aos preços estabelecidos por eles. Só comprarão o que os Americanos têm em demasia e abster-se-ão de desejar outras coisas senão o que lhes quisermos vender, porque não necessitamos delas ou porque as possuamos em grandes reservas. Em troca, permitir-vos-emos eleger, no sufrágio universal inventado pelos nossos primos ingleses, os vossos próprios governos. com uma só condição: os partidos que se apresentarem às eleições por sufrágio universal deverão ser compostos unicamente pelos administradores das nossas sociedades. A Roménia fica obrigada a interdizer e a declarar ilegal em toda a extensão do seu território todo o partido ou formação política constituída e dirigida por outras pessoas que não sejam os administradores e os representantes do comércio, da indústria e dos bancos americanos. Toda a derrogação a este compromisso de honra tomado em Versalhes será sancionado pela supressão da Grande Roménia na lista das nações civilizadas e a sua inscrição na lista das nações bárbaras, ao lado da Alemanha.

A representação da Roménia em Versalhes já estava formada. Unicamente faziam parte dela os administradores do comércio American Abroaà. Contudo, eles aceitaram com aplausos. Não só aceitaram, como, além disso, declararam que o presidente Wilson teria a sua fotografia em todos os abecedários, a sua estátua em todas as cidades romenas e que todas as ruas cujo passeio tivesse mais de um metro de largura se chamariam "Rua do Presidente Wilson".

Em Petrodava a vida é exactamente como no tempo dos Dácios. Heróica, dura e invariável. Nada mudou depois da guerra mundial. Mas, de tempos a tempos, Stela coloca na cabeça o seu diadema de pedras preciosas de princesa Illiyuskin e vê-se demoradamente ao espelho. A sua felicidade não durou muito tempo. Nem chegou mesmo a passar um dia com o marido. Apenas algumas horas. A duração da viagem, com o vestido de noiva, de Petrodava a Prut. Contudo, essa felicidade foi uma realidade. Foi extremamente curta, é verdade. Porque será que os homens pedem sempre às realidades que durem mais tempo que os sonhos quando as realidades são tão belas? E a sua realidade foi mais bela que qualquer sonho. Por vezes, Stela chega a duvidar que se trate duma realidade. Mas ela tem as provas materiais disso. Há a sua certidão de casamento civil. Há o seu certificado de casamento religioso. Há o seu diadema de princesa. E também a cruz azul enviada pelo comando supremo dos exércitos russos da primeira guerra mundial e toda a colecção de condecorações concedidas por todas as missões militares das nações aliadas que combateram na frente leste. Stela, princesa Illiyuskin, foi condecorada pelo seu heroísmo no campo de batalha em frente do inimigo, onde ela ((salvou", como dizem as ordens do dia, "sozinha, com perigo da sua vida, o príncipe-general Igor Illiyuskin, caído nas mãos dos bolchevistas, gravemente ferido, conduzindo-o, ao mesmo tempo que o corpo ferido do cocheiro Pantelimon Haidouk, ao hospital militar de Yassy".

Stela folheia os jornais e as revistas onde está o seu retrato. De tempos a tempos, encontra nos seus arquivos cartas de papel-do-japão com a coroa em filigrana. São cartas dos seus primos, os príncipes russos.

A própria casa de Petrodava testemunha a realidade deste sonho. Nesta casa há os lustres, os móveis, os cortinados instalados pelo príncipe-general. Em frente da casa há a escadaria, as áleas e as árvores plantadas por ordem do príncipe. Depois, há o testemunho vivo de Pantelimon Haidouk. O cocheiro já não tem a perna direita. Ele explica a todo o momento e a cada homem que encontra o desenrolar do combate contra os inúmeros bolchevistas, como esmagou o inimigo passando-lhe por cima com os cavalos, como Stela desceu do carro para apanhar o corpo do marido ferido, segurando-o nos seus braços como uma criança. Conta também a viagem de regresso quando, ferido por sua vez e incapaz de conduzir os cavalos, ele segurara o príncipe nos seus braços, enquanto Stela conduzia a caleche, conseguindo escapar aos cossacos bolchevistas que os perseguiam a galope.

Domnitza Roxana, a mãe de Stela, nunca fala deste casamento. Considera-o um sonho. Ela sabe que Stela tem agora dezanove anos. Que é uma rapariga nova. E que tem de voltar a casar-se. Toda esta história com o príncipe Igor Illiyuskin é considerada por Roxana como um sonho que sua filha teve. Mas um sonho de casamento sonhado por uma rapariga nova não deve impedi-la de se casar realmente e fundar uma família real.

Stela revolta-se contra sua mãe e diz:

- Tu tens razão, mãezinha, eu sou uma viúva, como tu. Mesmo que eu seja uma rapariga nova. Além disso, sou uma viúva de guerra. Sou uma princesa e heroína da primeira guerra mundial. Nos livros de estudo encontram-se poemas acerca do meu heroísmo e da minha coragem no campo de batalha. Tenho o meu retrato nos livros de História. O facto de não ter então senão dezasseis anos e meio mais aumenta a minha glória.

- É tempo para ti de te escolher um marido, de te casar verdadeiramente e de esquecer todos os sonhos de guerra. Tudo o que se passa no decorrer duma guerra é falso. Não é válido em tempo de paz. Toda essa história se passou durante a guerra. Por conseguinte, é falsa.

- É-me impossível esquecer - diz Stela. - Tenho vontade de chorar de desespero. Mas considero o meu encontro com o príncipe Igor e o meu casamento como uma espécie de colisão que me atirou para fora da órbita do meu sistema planetário. Toda a família é um pequeno sistema planetário.

Eu fui arrancada ao de Petrodava. Agora, sou uma estrela errante no universo, no cosmos. Eu não penetrei no sistema planetário dos príncipes russos. Ele foi aniquilado na catástrofe mundial provocada pelos bolchevistas. Eu fui arrancada a Petrodava como uma estrela à sua órbita. E não pude incorporar-me na órbita do novo sol, visto que o sol da Rússia morreu. Extinguiu-se. Agora, erro no meio das existências dos outros. E já não tenho órbita. As estrelas errantes, as estrelas cadentes, não têm outra órbita senão a do acaso.

Mas o acaso interveio. É natural, quando se trata duma estrela errante que não tem trajectória precisa como as outras estrelas. Numa manhã da Primavera de 1920 Stela recebeu uma carta de papel-do-japão com a coroa em filigrana e as suas armas, as armas dos príncipes Illiyuskin.

É a mãe do príncipe Igor, o seu marido morto, que lhe escreve de Lausana:

Minha querida filha. Após anos de sofrimento e de aventuras, conseguimos, graças ao auxílio dos nossos reais primos - reis e príncipes de todos os países do mundo civilizado (tu sabes que não existe na terra um país civilizado cujo rei e coroa não sejam parentes chegados do rei de Inglaterra e por conseguinte dos príncipes Illiyuskin) -, conseguimos deixar a Santa Rússia, caída nas mãos dos bandos de bolchevistas, e estabelecer-nos na Europa. Eu não tiro glória do facto de havermos podido sair da nossa santa pátria ocupada pelos bandidos, mas sobretudo de termos chamado a atenção dos nossos confrades monarcas e príncipes, reis e imperadores, para o facto de que, nestas horas de cataclismo mundial, de catástrofe universal (porque para mim a vitória dos bolchevistas na Rússia não é outra coisa), nós, os donos do mundo, temos de nos unir e conduzir a luta pela nossa classe, exactamente como os bandidos. Nós inscrevemos em todos os brasões: "Monarcas do mundo inteiro, uni-vos." A nossa classe, para utilizar a linguagem bolchevista, está ameaçada. Ela tem de se defender. É por isso que o sindicato mundial dos monarcas (desculpa a linguagem bolchevista, mas eles fizeram-nos sofrer tanto que acabo por falar como eles), o sindicato mundial dos monarcas, digo, reis e imperadores, príncipes e grãos-duques, enviou uma esquadra de guerra para o mar Negro e salvou-nos. Eu parti com toda a parentela, com toda a corte, os criados, os médicos, os protegidos, os generais, os ajudantes de campo, com tudo o que compõe a corte dum grande príncipe. Trouxe comigo os pássaros dos trópicos, com as suas gaiolas, os cavalos de corrida, os cães e os gatos, as imagens e os confessores da minha corte. Agora, estamos em Lausana, onde comprámos alguns imóveis nas margens do lago, e estamos aqui provisoriamente instalados. A pouco e pouco, cedê-los-emos às pessoas da minha corte para que ali vivam. A nossa fortuna, isto é, as terras cultiváveis, os bosques, os rios, as minas, os poços de petróleo, assim como algumas dezenas de milhares dos nossos fiéis súbditos que nos serviam desde há séculos, tudo foi, bem entendido, abandonado às hordas bolchevistas, assim como a quantidade de palácios que possuíamos, desde o oceano Glacial até às portas da China e às fronteiras do Japão e da Europa. Tudo isto lá ficou, abandonado por nós, os donos.

"Depois da morte de meu filho, esposo de Tua Alteza, tu és a única pessoa que usa, comigo, o nome célebre de princesa Illiyuskin. Além deste nome glorioso, tu, Alteza minha filha, tu salvaste o meu filho das mãos dos bolchevistas com perigo da tua vida, num combate lendário, e conduziste-o vivo ao hospital. A sorte não quis conservá-lo vivo. Tu perdeste o teu esposo e eu perdi o meu filho. O teu acto heróico e o amor de que deste provas nessa ocasião incitaram-me a escrever-te, no dia da minha chegada à Europa, a minha primeira carta.

Alteza, minha filha querida, chamo-te para o pé de mim, a fim de protegermos juntas os que nos são fiéis, como é dever das princesas sobre a terra. Porque tu usas o nome de princesa Illiyuskin, porque tu foste a eleita pelo coração de meu filho e a sua salvadora, tu terás na minha corte principesca e errante a mesma categoria que eu. Tu reinarás sobre tudo o que possuímos e quando da minha morte serás a minha única herdeira. Espero-te, a fim de cumprirmos sobre a terra a nossa missão de princesas. Deus Todo-Poderoso criou as princesas e deu-lhes a mesma missão e as mesmas qualidades que aos anjos e às estrelas cadentes: ser admiradas, belas e consoladoras. Vem, tu minha estrela, que amanhã serás a única pessoa no universo a usar o nome dos príncipes Illiyuskin."

Domnitza Roxana lê a carta em voz alta, diante da filha e do padre Thomas. Depois os três calam-se.

- Dentro de três dias partirei - diz Stela. - Creio que não me são precisos mais de três dias para fazer as minhas malas; além disso, nada pode retardar a minha partida. Não é, mãezinha?

Domnitza Roxana olha para o padre em silêncio. O padre olha para a imagem que está na parede. Debaixo da imagem arde a lamparina. E a lamparina, desde que existe nesta casa, não ilumina senão o dragão e a ponta da lança de São Jorge.

-Nunca se vê nesta imagem, Domnitza Roxana, o menor fragmento do santo. Nem mesmo um pé, nem uma sandália sequer. Se o cristão olha para a imagem, em vez de contemplar um santo, os seus olhos encontram um dragão espezinhado pelos cascos dum cavalo branco e atravessado por uma lança.

- Qual é a sua opinião, padre Thomas, acerca da partida de Stela para junto da sogra? - pergunta Domnitza Roxana. - A princesa escreveu que lhe assegura um rendimento em relação com o seu título. Ela deve partir ou não?

- Eu gostaria de procurar o auxílio de São Jorge, o padroeiro da vossa casa. Estou certo que o santo me teria inspirado o bom conselho. Mas posso eu pedir auxílio e inspiração a um dragão ferido, a uma lança ou a três cascos de cavalo? Não têm imagem, nesta casa. Nem Deus. E o vosso cristianismo é esta imagem: um fragmento que representa a intransigência, e o excesso de justiça é um pecado tão grande como a injustiça. Certamente, Domnitza Stela pode dirigir-se sem inquietação para junto da sogra exilada, visto que ela está sob a salvaguarda de Deus. Porquê tantas perguntas, Roxana? Ali sua filha será princesa com todo o direito, princesa em função. Aqui, em Petrodava, ela não conseguiu reintegrar-se, depois da aventura matrimonial que acaba de viver. Deixe-a partir. Toda a rapariga deve deixar a casa da mãe e procurar uma outra casa. Se ela não a encontra, será infeliz como uma estrela que erra sozinha no cosmos. Sem outra órbita que o acaso. com a ajuda de Deus, com a sua beleza, as suas qualidades físicas e morais, com o seu título de princesa e com os seus rendimentos, acabará por encontrar a -sua vida. Porque nenhum homem e sobretudo nenhuma mulher deve viajar solitária no universo, mas sempre num minúsculo sistema planetário idêntico aos sistemas solares. Da mesma maneira que ninguém pode atravessar o mar sem barco. Deixe-a partir. Partindo, ela encontrará a sua órbita.

- Da parte dos príncipes, não pode esperar neste mundo senão extravagância, paradoxos ou terror.

- Não fale assim - diz o padre. - Qualquer pessoa tem o direito de falar contra os príncipes e contra a sua inutilidade no universo. Mas vós, Domnitza Roxana, vós não tendes esse direito. A senhora cria cavalos de raça. Cavalos que praticamente não servem para nada se não considera a reprodução como um fim, e eu não a considero assim. O cavalo de raça é um luxo. Ele não serve para qualquer actividade lucrativa. Não é criado senão pela sua beleza. E ele é mil vezes mais caprichoso que o cavalo de trabalho. Os príncipes são assim: vivem para ser belos, para se exprimirem com elegância, para meterem medo e cometerem extravagâncias. Tal qual como os seus cavalos de raça. Não fale contra os príncipes porque, implicitamente, fala contra os cavalos de raça. Ora, a senhora faz criação deles!

- Existem coisas terrestres com as quais não deve misturar o céu. Exactamente como existem manjares nos quais não pode pôr mel. Mesmo que goste de mel por cima de tudo - diz Roxana.

Ela deixa a sala. A sua inquietação vem do facto de não saber o que está bem e o que está mal. E é demasiado honesta e demasiado justa para ado-ptar uma atitude em relação a qualquer coisa sem ter uma certeza...

- Domnitza Roxana, quando num problema como este, partida ou não da sua filha, há muitas incógnitas, não é bom atormentar-se assim. O desconhecido está na mão de Deus. Deixe-o a Ele com confiança e piedade. A sua inteligência, mesmo excepcional, não encontrará uma solução justa. Ajoelhe-se e reze. É o nosso destino na terra. É o que devemos fazer nas questões mais importantes. Nas mais vitais e nas mais urgentes.

Pantelimon Haidouk entra na sala. Ele andava à volta das portas espreitando. Agora, ele não pôde dominar-se.

- É uma carta da nossa casa?

- Desde quando a família do czar e dos príncipes Illiyuskin se tornou a tua família?

- Vede as minhas condecorações - diz Pantelimon Haidouk. - Eu sou um herói da Santa Rússia czarista e um mutilado da batalha heróica contra os bolchevistas. Eu pertenço ao czar ao mesmo título que Domnitza Stela. Eu misturei o meu sangue com o do príncipe, quando o tive nos meus braços e quando Domnitza Stela nos conduzia ao hospital. Não é isto parentesco? Todos os primos do príncipe Igor me chamam ((nosso homem". Portanto, é natural que eu tenha curiosidade em saber se há notícias da nossa casa. Da família Illiyuskin.

- Eu parto dentro de três dias - diz Stela. - ? Tu vais dar uma ajuda, vais ajudar-me a fazer as malas. A mãe de Igor está na Europa. Chama-me para junto dela. E deu-me um rendimento. Eu serei a sua herdeira.

Pantelimon abre muito os olhos. Está espantado, como se estivesse prestes a morrer porque alguém lhe tivesse cravado um punhal no coração.

- E eu não vos acompanho? - pergunta Pantelimon. - Levastes-me convosco na vossa viagem de núpcias e de sangue, para a viagem de ida e volta da morte. Agora, na glória, esqueceis-me, a mim que derramei o meu sangue pelo sangue do príncipe!

- É impossível - diz Stela, - Eu pagar-te-ei uma pensão. Mas tu ficarás aqui. Tu és indispensável aos cavalos. E a minha mãe. E à casa de Petrodava. Se te levasse comigo, assassinaria os cavalos com as minhas mãos. Assassinaria a minha mãe. Cometeria um acto insensato, qualquer coisa como se deitasse fogo a Petrodava. Podes imaginar a casa de Petrodava sem Haidouk? Vocês estão aqui desde há séculos, como as rochas. Eu não posso cometer este crime para com minha mãe que me deu a vida, para com os cavalos, para com a casa de Petrodava. Se eu te levasse comigo, matá-los-ia. Não é verdade?

- É verdade - diz Pantelimon Haidouk. Sente-se feliz, como não se sentia desde há muito tempo. Feliz porque é indispensável a Petrodava e aos cavalos. Como o Sol. Desde que está doente, Pantelimon perdeu a confiança em si próprio. Aborrece-se. Agora, a recusa de Stela de o levar satisfá-lo e restitui-lhe a confiança que tinha perdido. Uma confiança de homem indispensável e tão insubstituível como o Sol. Todo o homem tem necessidade de se persuadir de que é um sol, sem o qual nada existe. É o que importa na vida dum homem. O resto não conta. Sem esta confiança, o homem torna-se realmente um ser desprezado. A sua vida é inútil. Como um astro morto e extraviado e que ninguém conhece. Desde que lhe acabam de confirmar que tudo o que existe à sua volta morreria se ele ali não estivesse, Pantelimon Haidouk está contente. Vive como um homem. Privadas desta afirmação, as outras existências não são existências de homens.

Ele aproxima-se, beija a mão de Stela e diz:

- Domnitza, no momento em que vos ouvi, pareceu-me que a minha perna acabava de renascer. Eu sou um homem completo. Obrigado.

Um ano acaba de decorrer desde que Stela Apostol partiu de Petrodava. Um ano com um Inverno longo, duro, que parecia nunca mais acabar. A casa de Petrodava saiu mutilada deste Inverno. As quedas de neve foram excepcionalmente abundantes. Pesaram em cima do telhado excessivamente. Quando o sol tímido da Primavera apareceu e as neves, derretidas, deslizaram pelos telheiros, o telhado da casa de Petrodava apareceu estalado como a terra depois de um sismo. É um telhado de ripas. A varanda enorme arqueou. A vedação de madeira está cansada. Dir-se-ia que procura apoiar-se a qualquer coisa. Como os doentes que saem para o pátio do hospital, depois de uma operação, e que passeiam encostados às paredes. As vigotas, o telheiro têm um ar envergonhado. A casa está velha. Só os pinheiros que rodeiam a casa e Domnitza Roxana saíram deste Inverno tão direitos, tão verticais como nele entraram.

Roxana inspecciona as cavalariças e os seus telhados desolados. Ela tem na mão o baltag de prata. Usa botinas vermelhas com botões, uma saia-calça e sobre os ombros um suman curto chamado mintean.

- Que olhas tu com tanto desgosto, Pantelimon? - pergunta Domnitza Roxana.

- Eu olho para a casa, Domnitza - diz Pantelimon Haidouk. - Ela precisa de reparações.

- Na minha idade? - pergunta Domnitza Apostol. - Que eu repare a casa? Meu pobre Pantelimon, tu envelheceste. Tu já não sabes o que dizes. É preciso ser novo, no limiar da vida, para construir ou para restaurar uma casa. Os velhos constróem jazigos, não casas. A casa, meu pobre Pantelimon, é como um fato. Cada um fá-la à sua medida, para nela viver comodamente e bem. Exactamente como o calçado, os capotes, as calças e os casacos. Uma casa é feita para vestir a vida dum homem. A vida duma geração. A casa de Petrodava foi construída para mim. Ela envelheceu. Eu também. A geração seguinte construirá uma casa à sua medida. Só ela o poderá fazer. Eu não posso construir senão uma casa antiquada, como eu. À minha medida, que já não está em curso. Uma casa construída por um velho é triste. Só os novos podem construir casas alegres.

Pantelimon e Roxana pensam simultaneamente em Stela. É ela quem deve arranjar de novo a casa. Ela é a herdeira e a nova proprietária de Petrodava.

Em Petrodava, as casas, os muros, os telhados são construídos unicamente de madeira e vivem tanto tempo como o homem. Petrodava é como a natureza. Como um jardim. As construções de Petrodava vivem em harmonia com as estações da vida humana. As casas morrem ao mesmo tempo que os que as construíram e renascem - no mesmo lugar e novas - para os que sucedem. Diferentes, adaptando-se aos novos proprietários. Se quiserem saber a idade dum homem de Petrodava, basta olhar para a casa onde ele vive. É uma espécie de retrato do proprietário. As paredes que arqueiam, o telhado que se inclina, dizem-lhe que o proprietário está também com as costas arqueadas e o gorro de pele sobre os olhos, procurando um apoio. Mas a maior parte das casas são alegres porque são novas. Riem por todas as suas janelas abertas para o céu, com as suas paredes brancas. Dir-se-ia jovens noivas. Os tectos de ripas dum cinzento-prateado são pontiagudos como os cimos dos pinheiros e os barretes dos seus jovens proprietários. Os telheiros das casas novas estão ornados de flores esculpidas na madeira como as mulheres que se adornam com colares de pérolas. As portas têm pilares de carvalho esculpido.

Não somente as casas, mas também os cemitérios morrem nos Cárpatos. Uma tumba, com a sua cruz de madeira, dura uma geração. Quando a geração dos filhos que erigiram esta cruz se extingue, as tumbas dos pais já desapareceram debaixo da vegetação. Outras tumbas aparecem nas imediações, tumbas novas que devem ser veneradas e floridas. Cada geração tem nas campas os seus próprios pais e avós. Os que ela conheceu. É tudo. Os antepassados, os mortos desconhecidos, são devorados pelo tempo. Eles desaparecem completamente com as suas cruzes de madeira, consumidos pela nova vegetação do cemitério. Todas as campas surgem, envelhecem e morrem, desaparecem discretamente. É assim que as coisas se passam em Petrodava. Ninguém tem tempo para se ocupar de várias gerações. Do mesmo modo que as árvores não se ocupam das colheitas dos anos precedentes. Por causa disso, nunca nada é construído de pedra, nem as casas, nem as campas, nem os sarcófagos, nem as cruzes. Só de madeira. Em Petrodava a pedra é magnífica e abundante. Mas a pedra não é "elástica" e não se submete às estações da vida humana. A pedra faz com que uma campa ou uma casa durem mais do que é natural. O que dura muito tempo torna-se museu. Ou prisão. Isso torna-se uma carga. Um obstáculo. Isso impede a vida nova de crescer.

- Quando Domnitza Stela voltar, reconstruirá a casa de Petrodava - diz Pantelimon Haidouk. - É a sua vez. E é justo.

- Como sabes que Stela voltará para Petrodava?

- pergunta Domnitza Roxana. - Ela casar-se-á com um outro príncipe. E viverá em algum castelo, em qualquer parte na Europa Ocidental. Que faria ela em Petrodava?

Os restos de neve em cima dos telhados derretem-se suavemente e deslizam para os telheiros, donde escorrem, lentamente, com um ruído que parece uma queixa resignada. Dir-se-ia lágrimas das cornijas e dos telhados, ameaçados de já não poderem ser reconstruídos.

Entretanto, a silhueta rígida do padre Thomas apareceu no vão da porta. Ele está perpendicular mas branco. Como os cumes das montanhas que se ergueram para além das estações e do tempo. O padre Thomas tem botas grossas cardadas. A sua sotaina é o fato mais limpo de todos os cárpatos: permanentemente lavado por todas as chuvas, por todas as neves, limpo a seco por todos os gelos de Inverno e todas as horas escaldantes de Verão, depois passado nas correntes de ar perfumado, seco, de todos os ventos. O padre Thomas e os pinheiros estão sempre fora, no caminho das chuvas, dos ventos e das neves. Igualmente a folhagem dos pinheiros vista de longe tem a mesma cor azul-esverdeado que a sotaina do padre. Ele acaba de ver um doente e traz ao ombro uma traista, o saco feito do mesmo tecido que a catrintza, a saia de folhos das camponesas. Ele detém-se. Vê que qualquer coisa não corre bem na casa de Petrodava. Ninguém está doente, nem Domnitza Roxana, nem Pantelimon, nem os cavalos, nem os criados. Contudo, dir-se-ia que qualquer coisa pede auxílio, que há um pedido de assistência, exactamente como pedem auxílio e assistência os pilares, os telhados e a vedação, esmagados sob o peso da neve demasiado abundante do último Inverno.

- Entre, meu padre, entre - diz Domnitza Roxana.

- Não passe em frente da casa sem fazer uma paragem. Nós não somos pagãos.

O padre entra, sobe os degraus de madeira com as suas botas grossas que têm ferraduras como os cascos dos cavalos e pregos como avelãs. A sotaina do padre cheira a basilisco e a incenso. A casa de Petrodava tresanda a marmelo e a meliloto.

Roxana Apostol serve compotas. Pergunta ao padre que fruta deseja. Como todas as moldavas, Domnitza Roxana tem em cima das prateleiras da sua despensa dezenas de boiões de compota de todas as frutas, de todas as flores, de todos os aromas. Há boiões de compota de cerejas brancas, de cerejas pretas, de amoras, de rosas, de flores de acácia, de ameixas verdes, de marmelos. Todos estes boiões esperavam as visitas.

Enquanto Domnitza serve as compotas e água gelada trazida naquele mesmo instante da fonte, o padre examina a casa. Os vestígios da estada do príncipe-general Igor Illiyuskin na casa de Petrodava ainda persistem. Ele habitou aqui cinco meses, enquanto as proprietárias se refugiaram no skit. Mas no decorrer destes meses mudou tudo. E tudo, aqui, fala do príncipe de seda de Domnitza Stela: os tectos, os sofás, os lustres. Tudo é estranho. Do melhor gosto, sem qualquer dúvida, mas estranho. Coisas que não são daqui e que incomodam o olhar como um corpo insólito implantado na vista.

- Há um ano que Stela partiu - diz Domnitza Roxana, que se instala em frente do padre. - Não estou contente com esta ausência. Não estou nada contente. Eu devia ter agido doutra maneira. Eu não deveria tê-la deixado partir. Foi por sua causa, se aceitei a sua partida. Lembra-se? Não?

- Stela está em casa da sogra - diz o padre. - É um lugar conveniente para uma mulher nova e viúva.

- Ainda me fala de viuvez? - exclama Domnitza Roxana. - A minha filha não é viúva. É uma verdadeira menina solteira. Alguma vez se viu uma virgem viúva?

- Os registos testemunham que Stela é casada. Não está escrito em parte alguma que um casamento deve durar para ser efectivo. Basta que seja celebrado. De facto, porque está descontente, Domnitza Roxana? A sogra gosta de Stela como se fosse sua filha. É uma pessoa distinta, nobre e rica.

- É por ela ser rica - diz Domnitza Roxana. - Uma riqueza maior que o normal. Tudo o que é demasiado é anormal. Agora, quando vejo, segundo as cartas de Stela, que fortuna possuem os nobres russos, apesar do seu exílio, já não me admiro que tenha havido a revolução bolchevista. Por toda a parte aonde chega, a princesa-mãe compra uma casa. Ela quer ir a Monte Carlo passar um mês ao sol, manda primeiro o seu administrador para que compre uma casa à beira-mar. É preciso comprar móveis, contratar criados. Ela chega a Monte Carlo, permanece ali um mês e parte. Vai para a montanha. Compra ali uma casa. Uma outra. com outros móveis e outros criados. Depois, vai a Paris. Ali também tem uma casa. com móveis e criados. Em Berlim, mais uma casa. Em Londres, uma outra. E em Baden-Baden. E em Karlsbad. Stela, que vive com ela, descreve-me há um ano cada casa, como ela está mobiliada, onde está situada, e diz-me o nome dos criados. Diga, meu padre, não acha que é uma loucura?

- Loucura porquê? - pergunta o padre. - Estes homens, os príncipes, saíram da sua órbita, do seu país, e andam à procura dum lugar para viver. Por toda a parte aonde chegam julgam ter encontrado o lugar desejado. Fazem tudo como se fosse definitivo. Compram. Mobilam. E no mesmo instante inteiram-se de que não é o que desejavam. E partem para outro lado. E novamente pensam ter chegado aonde desejavam. Mas eles nunca encontram o local sonhado e desejado, porque este local está onde eles já não estão.

- Loucura, padre Thomas. Um homem tem o direito de ter uma só casa, como ele tem uma só vida e uma só campa. O que é demais, é anormal. Ter várias casas, é como ter várias campas ou várias cabeças.

- Não seja rabugenta - diz o padre. - Essas pessoas tratam Stela como sua filha. Eles consentem todos os seus desejos e fazem tudo o que lhe pode dar prazer. Ela é vestida como uma princesa. Viaja, instrui-se, diverte-se, aprende línguas estrangeiras. Ela diz-me que já compreende o alemão, o francês e o russo. Vive num círculo distinto, onde poucos mortais têm ocasião de viver. Há um ano que anda por toda a parte. Admiram-na. É bonita. É feliz. Uma mãe deve sentir-se feliz com a felicidade de sua filha. Não é verdade, Domnitza

Roxana?

- Não - responde Roxana Apostol. - Vós, meu padre, vós sois um santo homem. Concordo, mas não compreende grande coisa acerca da vida terrena.

Fala todo o tempo de Deus. Mistura Deus com todos os assuntos.

- É um erro?

- É. Inegavelmente - responde Domnitza Roxana. - Deus é uma solução quando se renuncia à vida, meu padre. Quando um homem renuncia à vida e a oferece a Deus. Como os frades. Como vós. Nesse caso, é perfeito. De outro modo, a religião é ineficaz, como todos os paliativos. Não, a religião, Deus, são assuntos graves, radicais. Se o senhor não se oferece completamente, definitivamente, é inútil. Deus não o aceita à hora, ao quilo, aos pedaços, ao lado dEle em certos momentos e de tempos a tempos. Não. Ele pede ou isto, ou aquilo, entwederoder. Minha filha Stela está viva. Na vida. Eu também. Nós não podemos recorrer à solução religiosa senão depois de termos renunciado à vida. Até que a solução esteja no século. Na história. No contemporâneo. Eu volto portanto à situação actual. Minha filha tem mais do que lhe é preciso. É uma verdadeira princesa. Leva uma vida de princesa.

- Não tem de que se queixar, porque ela tem tudo em abundância.

- Eu queixo-me porque ela paga o preço desta abundância pelo abandono da sua órbita. Aqui, em Petrodava, tudo lhe é conhecido, tudo lhe é tão familiar como o seu próprio corpo. Aqui, ela sabe o que é uma alegria, de maneira autêntica, e o mesmo acontece com o sofrimento. Lá, segundo o que eu vejo pelas suas cartas, nenhuma alegria a diverte e nenhuma dor a faz sofrer. As dores e as alegrias do mundo onde ela vive há um ano são diferentes das alegrias e dos sofrimentos que ela conheceu. Tudo falhou para ela. Pode ser que as penas e as alegrias do universo principesco onde ela se move sejam melhores. Superiores. Mas não se assemelham às alegrias, às penas, aos prazeres que ela conheceu. Eu li-lhe a carta dela do Rio de Janeiro. Ela descreve-me as frutas do Brasil: os ananases, as laranjas, as bananas. Tudo isto não é senão mel e perfume. Depois, acrescenta que tem desejo de frutas. Para ela, veja, estas maravilhas dos trópicos não são frutas. São perfeitas. Mas para ela a fruta é a maçã ácida dos Cárpatos na qual mordeu pela primeira vez. É a amora. É a cereja e a ginja ácida que embota os dentes. E ela morre de nostalgia pelas frutas, ao lado dos cestos de perfumes dos trópicos. Estes frutos são extraordinários, mas para ela não são frutos. Todo o homem, meu padre, não conhece senão uma alegria na sua vida. Um único fruto. Isto nos agrada. O segundo fruto, a segunda alegria, não é necessária. Minha filha Stela não tem senão a segunda alegria, o segundo fruto, e falta-lhe o primeiro. Só o primeiro é autêntico. Necessário. E ela é infeliz, embora não o diga. Ela deixou a órbita de Petrodava como uma estrela. Ela não entrou noutra. E erra como um meteoro. Estranha. Fora de todas as constelações existentes. Como se ela não passasse senão diante das casas com as portas e as janelas fechadas.

- Chame-a se julga que ela é infeliz - diz o padre.

- Eu gostaria que Stela se casasse - continua Domnitza Roxana. - Mas agora para bem. Não como da primeira vez. Viver no exílio como o faz minha filha é a vida mais infernal. Ela tem tudo, mas tudo lhe falta porque tudo o que ela tem não o deseja ter e falta-lhe tudo o que deseja. Ela tem necessidade de coisas insignificantes, que não existem ali, e possui coisas de valor com as quais não sabe o que fazer porque lhe são estranhas e supérfluas. O homem de quem ela gostar assemelhar-se-á com os homens de Petrodava como as frutas de que ela necessita são unicamente as frutas dos Cárpatos. Mas tais homens não existem nos salões, nos casinos, nos hotéis de luxo que ela frequenta.

- Qual é "exactamente a sua situação? - pergunta o padre.

- A sogra fê-la sua única herdeira. Adora-a. Ela leva-a para toda a parte. Satisfaz-lhe todos os caprichos. E gostaria que Stela fosse feliz. É tudo.

- E quando Domnitza Stela se abre consigo, como só se abre à própria mãe, que lhe escreve ela?

- Que me escreve ela? Ela diz-me que é uma estrela fora da sua constelação. "Mãezinha, eu brilho e erro no Ocidente como um cometa, como uma estrela cadente. Eu sou tão feliz e tão infeliz como uma estrela cadente. Isto é, da parte de fora da felicidade e da infelicidade, suspensa no éter, solitária. Sozinha. Busco uma trajectória que possa seguir. Não penso que a encontrarei. Um dia cairei em Petrodava como um cometa. Extinta ou resplandecente. Isto só o acaso o sabe, ele que é a única lei das estrelas cadentes." Eis o que me escreveu minha filha Stela, a minha estrela. E não são palavras de uma rapariga de vinte anos.

- Todos os jovens são assim, Domnitza Roxana - diz o padre. - A partir do momento em que deixa a órbita da sua própria família e até que tenha criado por sua vez uma família, cada jovem é uma estrela errante, sem trajectória. Esta existência de estrela errante, vagueando solitária e procurando uma trajectória, está conforme com a natureza. Mas Deus nunca deixa nem as estrelas nem os homens cair no nada. Fazem todos parte da grande constelação do Criador. E esta é como um relógio. Todo o homem, toda a estrela tem a sua órbita fixada antecipadamente. Aliás, não é o homem quem dirige os grandes maquinismos da sua existência: as pancadas do seu coração, a circulação, o destino. Eles estão confiados à grande central

celeste.

- Minha senhora, uma carta de Domnitza

Stela - grita uma criada.

O padre e Domnitza Roxana calam-se de repente. Roxana abre a carta de sua filha e lê em voz alta:

"Querida mãezinha, desculpa-me escrever-te duma maneira diferente das minhas outras cartas. Estou apaixonada. Todo o universo desapareceu. Nada existe, à excepção do homem por quem estou apaixonada como uma louca. Não sei o seu nome. Nunca ouvi a sua voz. Não o vi senão três vezes, de longe, mas sei que lhe pertenço para a eternidade. Que sem ele já não há vida para mim. Ignoro a sua idade e não sei qual é a sua profissão. Mas desde que o vi, sei que gosto dele. Segui-lo-ei para toda a parte. Como esposa, como amante, como escrava. Ele poderá fazer de mim o que quiser. Escrever-te-ei, se ele mo consentir. A partir de hoje não disponho mais de mim. Já não me pertenço. Pertenço-lhe. Segui-lo-ei e dir-lho-ei.

De joelhos, se for preciso. Não te preocupes comigo. Por toda a parte onde eu estiver, serei feliz ao pé dele. A tua estrela."

-Vê, Domnitza Roxana, que cada um encontra a sua via - declara o padre. - O destino fixa a trajectória de cada homem, de cada existência.

- O senhor acha que é uma via? - pergunta Domnitza Roxana. - É um caos. Não uma via. Atingir um tal grau de cegueira que se apaixone por um desconhecido de quem nada sabe e escrever à mãe que já não pertence a si própria? Vê-se bem que seu pai era um homem da planície e que ela fez a sua entrada no mundo ao mesmo tempo que o caos da primeira guerra mundial. As estrelas cadentes não surgem senão do caos. E este caos aumenta cada vez mais. Vê onde isto a conduziu? Quem é este indivíduo? Um guitarrista, um tenor italiano? Só eles podem transformar as mulheres sem miolos em escravas. Stela já não é minha filha. Nenhuma Roca pode descer tão baixo. Uma mulher Roca ignora o caos e, por conseguinte, as paixões. Ela é grandiosa, meu padre. Uma mulher Roca é a ordem. É uma existência vertical, geométrica. Ela tem a geometria dos pinheiros e a vontade das torrentes. Uma mulher de Petrodava é uma existência linear entre o zénite e a terra, um traço de união entre a superfície e a estrela que brilha por cima da sua cabeça. Os nossos prazeres são puros. Limpos. A minha filha é a filha dum homem da planície. Ela deixa-se arrastar pela corrente como os destroços e os cadáveres. Ela experimenta talvez prazeres maiores. Mas para a dignidade é inconcebível. Uma mulher de Petrodava é a dona da casa, é semelhante ao sol e gira tudo à volta dela. De sol, Stela tornou-se satélite, quem sabe de que guitarrista ou de que tenor? Se ela tivesse sido filha dum homem da montanha, não teria tido senão as alegrias da truta, que não se sente à vontade senão a nadar contra a corrente e que morre no instante em que já não a pode vencer. E não é senão morta que ela se deixa arrastar pela corrente. A minha filha é a filha dum homem da planície. Se ela tivesse sido filha dum homem de Petrodava, teria sido como eu. Como todas as mulheres daqui, que não encontram o prazer senão na grandeza. Nos prazeres supremos. Frios talvez. Como os prazeres das trutas. Podemos tornar-nos freiras, criadoras de cavalos, santas. Mas nunca escravas e satélites de qualquer um como se tornou minha filha. A filha de Roxana Apostol tornar-se uma escrava! uma escrava! Roxana chama Pantelimon:

- Selem-me um cavalo. vou dar uma volta. Estou muito transtornada para poder encontrar a minha calma de outro modo que não seja no galope do meu cavalo. Vá, depressa!

Ela diz ao padre:

- A minha filha está completamente perdida. Também existem anjos perdidos que se tornaram demónios. Não há apenas raparigas perdidas. Há também estrelas que caíram e se tornaram pedras na terra. Se Stela não está completamente perdida, o homem de quem ela gosta é um verdadeiro Deus descido à terra. Julga que Deus poderia vir à terra neste ano de 1921?

- Não é de excluir- - diz o padre. – Esperamos Deus permanentemente. Mas eu não creio que qualquer pessoa deva ser Deus para tornar uma mulher escrava. É uma coisa natural.

- Se ela é minha filha, não pode sentir uma tal paixão senão no caso de Deus ter descido à terra e que ela o tenha encontrado. Uma mulher de Petrodava não é uma mulher qualquer. Ou então a minha filha não é minha filha.

-Se não renuncia ao orgulho, arderá nas chamas do inferno - diz o padre.

- Eu sou justa, não sou orgulhosa. Eu sou vertical para me assemelhar a Deus, meu criador. E se nós, os de Petrodava, onde as nuvens passam debaixo dos nossos pés, se nós, que vivemos com o corpo por cima das nuvens, nós não somos fiéis à imagem divina e aos anjos, quem o será? Nós estamos em Petrodava, meu padre, geogràficamente mais perto do céu que da terra. Nós somos os vizinhos mais próximos do céu, de Deus. É natural que sejamos mais anjos, santos e deuses que os homens de argila, como os da planície. Ou Stela é um meteoro extinto e caído na planície, portanto perdido para a constelação de Petrodava que se encontra no céu, ou então o homem que ela ama é mesmo Deus. Adeus, o meu cavalo está pronto. Vou-me embora.

 

O chá com Deus

STELA Illiyuskin vive num apartamento do Hotel Imperial, de Viena. Chama o mandarete e entrega-lhe uma carta para sua mãe, Domnitza Roxana. É a carta pela qual lhe anuncia que está apaixonada. Stela veste-se. Pela primeira vez, quer estar bonita para seduzir. Põe jóias finas. O vestido de que mais gosta.

Ela viu o seu apaixonado ideal três vezes, na Central Buchhandlung, (*) e nunca conseguiu fazê-lo voltar os olhos para o seu lado. Ela detesta os vestidos, as jóias e os penteados que usava nessas três vezes, porque nada pôde incitar esse homem a olhá-la. Mas hoje está decidida a conquistá-lo. Veste um fato saia e casaco vienense bastante desportivo, sapatos de salto baixo, na mão um saco de coiro de aspecto severo. É assim que se vestem as mulheres da "alta sociedade" de Viena quando se esquecem da moda de Paris e seguem a voz germânica do sangue vienense.

A Livraria Central tem as portas completamente abertas. É uma maravilhosa tarde de Outono. Os perfumes das vinhas, dos campos, das montanhas e do Danúbio flutuam no ar. Dentro da livraria, todos os vendedores aguardam para servir Stela.

 

* Em alemão: Livraria Central.

 

Ela dirige-se para a secção onde pela primeira vez encontrou o homem por quem está apaixonada. É a secção das obras de filosofia. Ele aparece. Alto, vestido com um fato de flanela cinzento-ferro. Um fato rigoroso. Muito elegante. Calça sapatos pretos. Tem o pé pequeno. Como os cavalos de raça. Stela nota que ele deve ter, exactamente como os cavalos de raça, o tornozelo extremamente delgado. Stela não ousa erguer os olhos para ele. Ele veste uma camisa branca. Duma brancura extraordinária. Como as neves de Petrodava. Tem uma gravata de lã, quase do mesmo tom do fato. O pescoço é frágil. Os cabelos pretos, dum preto azulado, puxados para trás. Sobrancelhas espessas. Um rosto cuja tez lembra o pergaminho. Um rosto cuja pele tem a cor do marfim um pouco amarelado. e olhos grandes, iguais a dois frascos de tinta destapados. Nos seus olhos, tudo se reflete, como dentro de dois poços de águas negras. Em compensação, as mãos são enormes. Verdadeiros martelos. Os dedos são compridos, com ossos sólidos, como as bengalas para os turistas que se vendem nas estações da montanha. Ele dirige-se à secção das obras filosóficas e folheia um livro. Observa o livro exactamente da mesma maneira que as crianças, maravilhado e atento como se o universo inteiro tivesse passado através das páginas. Dir-se-ia que segue uma acção num écran. De tempos a tempos lê, autoritário, crítico. Não como os juizes, porque aos juizes falta-lhes grandeza. Um juiz é alguém que regula contas. Nunca uma cabeça de juiz inspirou artistas ou fotógrafos. Contudo, ele é um juiz, mas à maneira dos profetas do Novo Testamento: ele observa severamente, mas com a intenção de assinalar o erro e perdoá-lo. Ele não tem um, olhar para Stela, que se aproxima dele o mais possível. Ela não vê o título do livro. Está decidida a encomendá-lo também, para saborear as páginas que os seus olhos atravessaram, maravilhando-se com isso. Mas Stela não tem sorte. O homem extraordinário leva o livro e entrega-o ao vendedor. Discute um pouco o preço. Diz que não traz dinheiro consigo e pede que lhe enviem o livro para uma direcção que ele dá ao vendedor e que este escreve com a maior atenção. O homem deixa a livraria. Stela tira ao acaso um livro duma prateleira e dirige-se à caixa.

- Quem é este senhor que acaba de sair? - pergunta ela.

- Um momento - diz o vendedor. e lê: - Professor Ante Stepinater, da Universidade de Viena. Ele pediu que se entregue o livro no porteiro da Universidade, que pagará. É um cliente. Mas não o conhecemos. Ele só vem regularmente aqui há algumas semanas. Não creio que seja de cá.

Stela sai. Todo o seu ser está cheio dum nome, como um vaso está cheio de vinho ou de perfume. Ante é o diminutivo de Anton. Um nome croata. Os Croatas são um dos mais admiráveis povos da terra. Stela obteve esta informação da sua sogra. Homens que são como os irmãos gémeos dos homens de Petrodava, avalia Stela. Ela volta para casa e escreve numa folha branca com as armas e a coroa dos príncipes Illiyuskin:

"Senhor

Quer dar-me a honra de vir tomar uma chávena de chá a minha casa, na segunda-feira, 2 de Novembro?"

Ela assina: "Stela, princesa Illiyuskin". Endereça-a: Professor Ante Stepinater, Universidade de Viena.

- Leve isto com urgência - ordena Stela.

O mandarete parte a galope, levando a carta.

Stela dirige-se a casa da sogra; esta, instalada no seu salão, lê com avidez um romance. Está no cúmulo da emoção. Ela põe em tudo o que faz uma paixão desmedida, mesmo quando lê um romance. Dir-se-ia que está num campo de batalha. Todo o seu ser está excitado.

- Mãe, venho falar-lhe duma coisa muito grave. vou deixá-la dentro de pouco tempo - diz Stela.

- Voltas para Petrodava para o pé da tua mãe. Um pouco de Heimweh? Nostalgia?

- Não - responde Stela. - Ignoro para onde vou. A partir deste instante não farei senão o que me ordenarem que faça. Estou apaixonada. E a minha pessoa desapareceu, para se submeter sem queixume àquele que é, a partir de hoje, o meu imperador, o meu rei, o meu senhor. Já não sou mais que uma sombra, um satélite que gira em torno dele, como em torno do sol.

A princesa Illiyuskin desfaz-se em lágrimas. Estende os braços e aperta Stela junto ao peito, com desespero, com paixão.

- Eu não queria vê-la desgostosa - diz Stela. - Há um ano que faço tudo o que desejava. Gosto de si. Pensava nunca mais a deixar. Estou-lhe reconhecida por tudo o que fez por mim. Mas agora já não me pertenço. Peço-lhe perdão.

- Perdão? - pergunta a princesa. - Perdão porquê? É a coisa mais maravilhosa que pode acontecer a uma mulher na terra. Encontrar um homem que substitua o sol! Magnífico! Um homem que eclipse o universo! Magnífico! E que ela deseje servir. Quem é ele? Porque não me falaste dele? É magnífico! Magnífico! Quem é ele?

- Só sei o seu nome há meia hora - diz Stela.

- Ama-lo sem saber o seu nome? - pergunta a princesa.

Ela chora ainda com mais força, como um aguaceiro! E diz:

- É mais bonito que em Puchkin. Mais bonito que em Lermontov e em Turguenief! Tu amas como uma russa. Diz-me, quem é ele?

- Nada sei dele - responde Stela. - É um homem que vi hoje pela quarta vez na minha vida. Sempre no mesmo sítio, na Livraria Central. Aqui, ao pé do hotel.

- E como é que o conheceste? - pergunta a princesa.

- Eu não o conheci - responde Stela. - Nem mesmo ouvi a sua voz. Não sei a sua idade. Nem a sua profissão. Hoje encomendou um livro e deu o seu nome, professor Ante Stepinater, Universidade de Viena, no porteiro. É tudo o que sei. Mesmo fisicamente, não posso descrever-lho. O que eu sei é que o convidei a tomar uma chávena de chá com a mesma emoção que se tivesse convidado Deus a tomar chá comigo. Dir-lhe-ei que o amo. Que ele é o dono da minha existência. Que não farei senão o que ele me ordenar. Se ele me pedir que cometa um crime, cometê-lo-ei. Se ele quiser fazer de mim a sua serva, a sua amante, a sua mulher, a sua escrava, aceito-o. Aceito tudo o que vier dele. Se ele me pedir que me atire da janela, atiro-me. A partir deste instante, para mim ele é Deus. E Deus virá tomar uma chávena de chá comigo. Aqui, no hotel. Amanhã às cinco horas.

A velha princesa não ouve. Repete que é mais belo que em Lermontov. E recorda-se dos amores da sua juventude.

- Escrevi a minha mãe para Petrodava - diz Stela. - Tive de vos dizer também. E peço-vos que me perdoeis.

- Por conseguinte, tu convidaste-o a tomar chá?

- pergunta a princesa.

- É verdade - diz Stela. - Se ele não vier, serei eu quem irá a casa dele.

- É correcto o que acabas de fazer? - diz a princesa. - E se é um homem casado? Depois, tu não o conheces. Evidentemente para uma princesa Illiyuskin não é necessário que um homem lhe seja apresentado para que o convide a visitá-la em sua casa. Estamos acima de tudo isso. Mas se ele é casado? Se bem que uma princesa Illiyuskin...

- Pouco importa - diz Stela. - A trajectória da minha vida está fixada. Eu sou a sombra deste homem. Pouco importa o que ele é e o que ele faz. Eu não lhe peço nada senão que me deixe segui-lo. Como se fosse Deus.

- Não blasfemes - diz a princesa. - Um homem é um homem e Deus é Deus.

- Eu disse: obedecer-lhe-ei mais que a Deus. É ele o meu Deus.

Stela levanta-se e sai.

Ela reflectiu profundamente. É como sua mãe.

- Eu sou uma rapariga de Petrodava. Nós, os serranos que vivemos agarrados aos cimos, por cima dos abismos, nós calculamos cada passo que temos de dar porque nós arriscamos a nossa existência a cada passo. Para um homem de Petrodava um passo pode ser o último se ele não reflectiu bem. Pois bem!, eu reflecti e fi-lo deliberadamente. Não é preciso voltar atrás. Quando ele apareceu na minha frente, foi como de manhã, quando o Sol nasce e todas as luzes da cidade se extinguem. Nenhuma luz, mesmo a mais forte, tem importância quando o Sol nasce. E na minha existência todas as luzes, isto é, todas as preocupações, acabam de se extinguir. Não resta senão ele na minha vida. É tudo. Ele é o meu único Deus.

A velha princesa chora, não talvez por causa do amor de Stela mas por as suas palavras terem despertado a recordação dos seus amores. Ninguém pode sair da sua própria existência, exactamente como o urso não pode sair da jaula dos animais exóticos. O que acontece a qualquer pessoa é-nos estranho. E quando tomamos interesse pelas preocupações dos outros, interessamo-nos na realidade pelas nossas próprias preocupações.

Cinco horas. No salão da princesa Illiyuskin, no Hotel Imperial, acabam de pôr uma pequena mesa para o chá.

- Criado, avise a direcção que eu espero a visita eventual do professor Ante Stepinater. Não sei se ele virá. Mas se ele vier que o mandem subir - ordena Stela.

O telefone toca:

- O senhor Ante Stepinater deseja ser anunciado à princesa Stela Illiyuskin.

- Que suba! - exclama Stela. Sente-se feliz. Ela nem podia imaginar que pudesse estar tão senhora de si. Em cima da mesa, no centro, estão seis rosas brancas. Stela sabe que não tem motivo para estar comovida. Ela vai dizer a este homem exactamente o que disse a sua mãe, exactamente o que disse à princesa, e exactamente o que acontece. Stela não sabe mentir. Se ele é casado e se tem filhos, ela nada lhe pedirá. Ele é Deus. E Deus, nós o aceitamos tal como ele é, sem lhe pedir que modifique os seus projectos consoante os nossos gostos. Ela pedir-lhe-á o favor de o seguir como a sombra segue o corpo. Como uma estrela gira à volta do Sol. Seguramente, preferiria que ele não seja casado e esteja apaixonado por ela. Que case com ela. Mas isto seriam alegrias demasiado grandes. Ela está feliz por o ver, por o ouvir. Ela nada mais pede.

No mesmo instante a porta abre-se. O rapaz do elevador, com os seus galões dourados, semelhante a um pajem celeste, entra no salão. Atrás dele, na moldura da porta de ouro do salão atapetado de seda dourada, apareceu, como descido do céu, Ante Stepinater. Está vestido de preto. De sotaina. Ante Stepinater é padre.

Stela não vê mais nada. Tudo se apaga em frente dos seus olhos. Ela não esperava um tal golpe do destino. Mas o destino tem tais meios para nos bater, para nos punir, para nos humilhar quando se é uma pobre mulher ou um pobre homem mortal, que ninguém pode rivalizar com ele em matéria de tortura.

- O senhor é padre? - pergunta Stela. Ela nota que Ante Stepinater avança e cumprimenta-a.

Se eu o tivesse sabido, oh!, se eu o tivesse sabido", pensa Stela. "Imaginei tudo menos isto. Se ele tivesse pertencido a uma mulher, a uma família, a um país, eu teria podido arrancá-lo. Mas como arrancá-lo das mãos de Deus? Como poderei eu lutar com Deus para o prender e o tornar meu?"

- Queira sentar-se - diz a princesa.

- Sinto-me muito honrado com o seu convite - diz Ante Stepinater.

Stela está à beira das lágrimas. Agora ela sabe: "O homem que eu amo, pelo qual eu disse a minha mãe e à princesa que deixaria tudo, que me tornaria uma criminosa, que me mataria se ele o exigisse, pelo qual eu faria fosse o que fosse, se ele mo tivesse pedido, esse homem é um padre. Um padre: portanto, um homem comprometido, que pertence a Deus."

O padre fala:

- Agradeço-lhe a honra que me concedeu. Eu sei que é uma heroína da guerra mundial e uma das estrelas do firmamento europeu, que é... É portanto uma grande honra...

Stela não pode mais suportar as ironias do destino. Depois de o destino a ter enganado, trazendo-o de sotaina, agora ele troça dela com todas as delicadezas, os convencionalismos, as fórmulas mundanas. Rebenta em soluços. A cabeça em cima da mesa, a testa poisada em cima da toalha branca bordada. Ao lado das chávenas de chá. E chora.

Quando Stela levanta a cabeça, o padre Ante Stepinater está calmo, sentado numa cadeira. Um vapor perfumado eleva-se das duas pequenas chávenas de porcelana Rosenthal cheias de chá. O padre é belo. Como nunca Domnitza Stela o imaginara.

E só agora, agora que os seus olhos foram lavados pelas lágrimas e que ele se encontra na sua frente, é que ela o vê verdadeiramente, de perto, pela primeira vez. A sua cabeça, de cabelos pretos, de sobrancelhas espessas, de nariz direito, romano, de olhos que se assemelham aos lagos sem fundo que dormem nos cimos, é uma obra perfeita da criação. Além disso, esta cabeça parece iluminada interiormente por uma luz deslumbrante de milhõ es de quilovátios. E toda a cabeça parece incandescente, cintilante.

"Eu não me enganei quando disse que deixaria tudo, inclusivamente a minha vida, por este homem", pensa Stela. "Eu não me enganei, quando escrevi a minha mãe que o seguiria como se ele fosse Deus. Ele é o apaixonado absoluto. Deus na terra..."

- Porque chora, princesa? - pergunta o padre.

Ele fala francês porque Stela se explica dificilmente em alemão. O padre notou-o e dirige-se a ela em francês. Para uma romena, o francês está muito mais perto do seu espírito que o alemão. Sempre é uma língua latina. O padre comete muitos erros. A pronúncia é desagradável ao ouvido. Faz pensar nos profetas do Antigo Testamento que falavam e escreviam como se esmagassem pedras.

- Porque choro? - pergunta Stela. - Se eu não tivesse motivo para chorar, meu padre, então já ninguém deveria chorar na terra.

- Desculpe a minha pergunta - diz ele.

- É por causa de si que eu choro. E por causa do destino. E de Deus, que se riram de mim. Sabe porque o convidei, meu padre? Porque eu não imaginava que fosse padre. Eu vi-o na livraria. Três vezes. Ontem foi a quarta. Apaixonei-me por si. É a primeira vez na minha vida. Verdadeiramente apaixonada. Eu sabia que ia sofrer, que tinha de lutar. com a vida, a família, com uma mulher, com tudo. Mas estava pronta a bater-me. A arrancá-lo a tudo. Mas contra Deus não posso... Contudo, houve homens que venceram os deuses. Prometeu foi mais forte que o céu. Eu não abandonarei a luta senão quando for esmagada, morta. Mas em combate. E arrancá-lo-ei mesmo a Deus. Ou, pelo menos, tentarei. Em todo o caso, cairei a combater, em frente do adversário...

- Deus tem orgulho de si - diz o padre.

- Deus tem orgulho de mim? Porque o quero combater e fazer de si, seu padre, meu amante?

- Não é isso que quer, princesa - diz o padre com calma. - Imagina-o. Mas comete um erro. Está apaixonada por Deus, não por mim.

- Nada de jesuitismo - diz Stela.

- Eu não existo, princesa - diz o padre. E mesmo que existisse, não me prestaria atenção. Como não prestou atenção, e isto toda a gente o sabe, a nenhum entre as centenas de homens célebres que giram à sua volta. Repito-lhe. Não se pode ter apaixonado por mim. Não me pôde convidar. Eu não existo. Foi Deus a quem convidou a tomar chá.

O padre Ante Stepinater conta a Stela que nasceu perto de Zagreb, "por cima de Zagreb", num país alto, "não tão alto como a vossa Petrodava, mas ainda bastante..." Foi educado pela Igreja. Foi uma criança abandonada pelos camponeses. Esteve no seminário.

- Desde os doze anos que alimento o sonho de me tornar um santo, princesa. É um caminho mais longo que aquele que conduz às estrelas. Mas eu persisto. E sigo o exemplo dos Santos Padres da Igreja. Durmo três ou quatro horas por noite. Trabalho física e intelectualmente.

Na verdade, a sua cabeça brilha como a cabeça dos santos, dos grandes artistas, dos criadores. Tem as mãos duras de um trabalhador. Diz:

- Só como o preciso para ter vida. Todos os meus sentidos são mortos pelas mortificações. Todos os dias procuro eliminar do meu ser tudo o que é supérfluo, tudo o que é humano, para dar lugar à santidade. Se atirou o seu olhar sobre mim, princesa, foi porque aí viu Deus, em quantidade ínfima, certamente, tal como eu pude guardar um pouco na minha pessoa. Se um dia a luz divina que eu trago em mim se espalhar e desaparecer, como a água foge duma jarra que se quebra, já não serei mais que um homem que cai na estrada como um farrapo. Um pobre enfermo, bom para internar num hospital, por esgotamento físico. Eu alimento-me de luz, como o filósofo grego que se alimentava do odor do pão porque era demasiado idoso para o comer. Eu alimento-me também do perfume das flores. Foi o que a atingiu. E é por causa disso que se apaixonou. Está ávida de Deus. De absoluto e de eternidade. Tem sede de altitude. Nasceu em Petrodava. A sua pátria é o céu. Deus é o seu vizinho. O seu mais próximo vizinho. Encontrou-o em mim. Foi Deus que se reflectia no meu pensamento e no meu olhar. Se se tivesse apaixonado por mim, na qualidade de homem, teria sabido de que cor são os meus olhos, que idade tenho, que altura, que voz... Mas nada, nada disto lhe interessou. Estava disposta a tudo abandonar porque eu trago Deus comigo - como padre, como asceta, como um frade mortificado e no caminho da santidade. Viu Deus e apaixonou-se por Ele. Por Ele, não pelo homem que traz Deus porque é padre... Aliás, nem mesmo sou um homem. Eu estou demasiado mortificado para ter sentidos e instintos. Nunca comi carne. Pergunte às mulheres que são peritas em assuntos de amantes se eu sou um homem. Se eu tirar a minha sotaina, verá os meus ossos, sobre os quais a minha pele está estendida como um casaco. Não é por mim que está apaixonada. Mas pelo absoluto. Pela eternidade. Por Deus. Por todas as luzes que um asceta, um padre e um filósofo cristão traz com ele sobre a estrada do céu...

Stela não ouve mais. Depois de um certo tempo, ela vê Deus que se levanta e se vai embora. E fica só.

Nessa noite, Stela escreve a Domnitza Roxana, para Petrodava.

"O homem de quem eu gostava já está comprometido. Pertence a Deus. Não Lho posso tirar. Tê-lo-ia arrancado a uma mulher. Não posso arrancá-lo a Deus. No instante em que de deixe de pertencer a Deus, deixará de existir. Se Deus o abandona, ele cai e parte-se. Ele não existe senão na medida em que está nas mãos e na glória de Deus. Como os pirilampos que não brilham senão à noite e na humidade, mas que, desde que os prendamos nas mãos e os conduzamos à luz, não são senão vermes feios, mesmo mais feios que os outros vermes. Eu poderia arrancá-lo a Deus, mas então o que eu possuiria, na sua pessoa privada de Deus, não teria valor algum. Deixo-o portanto a Deus. Lastima-me. Talvez seja por Deus que estou apaixonada. Como me disse Ante. Eu só posso casar com Deus se deixar o mundo. Ora eu amo a vida. É pena que tu me tenhas feito nascer tão alto. Esforçar-me-ei por amar como as outras mulheres; melhor dizendo, não se deve amar a Deus como a um tenor, nem amar um tenor como a Deus!..."

O pequeno pajem que transmitiu a mensagem volta. Entra no apartamento de Stela e diz, assustado, como no teatro:

- A princesa-mãe Illiyuskin morreu. Rogamos-lhe que venha ao seu apartamento. Ela morreu subitamente.

 

Sobre a estrada de Petrodava

A princesa Olga Illiyuskin morreu subitamente. Crise cardíaca. Antes que Stela lhe tivesse vindo contar o epílogo do seu romance de amor. A princesa Olga desejava que Stela permanecesse fiel ao seu filho morto. Não teria sido lógico pedir-lho. Ela não teria talvez podido suportar ver Stela viver com um outro homem e despojar-se do nome de Illiyuskin. Ela que tanto desejava ver perpetuado este nome. E porque não havia outra solução - morreu. O seu coração já velho ajudou-a a morrer. Antes de ver desaparecer o nome Illiyuskin do livro do mundo. Apagado, como um nome inscrito sobre nada. Sem deixar vestígio.

O corpo da princesa foi embalsamado. Exactamente como o corpo de seu filho em Yassy. Enterraram-na provisoriamente em Cannes. Ali onde há uma igreja ortodoxa. Perto do mar.

As colónias russas de toda a Europa enviaram delegações. As cerimónias e os preparativos do transporte do corpo da princesa-mãe Olga Illiyuskin duraram várias semanas. Todas as pessoas dos arredores choraram e lamentaram-se com um desgosto que nunca mais acabava. Depois de ela ter sido conduzida a Cannes no seu caixão de vidro encerrado num caixão de chumbo, e depois de ter sido sepultada provisoriamente - esperando, não a ressurreição da carne e o juízo final, mas a transferência dos seus restos mortais para a Rússia-, procedeu-se à abertura do testamento. A surpresa foi total. A princesa-mãe Illiyuskin, que tinha no exílio dúzias de imóveis, centenas de assalariados e uma corte principesca, não possuía nada. Absolutamente nada. Todas as pessoas esperavam uma herança que as poria ao abrigo das dificuldades e preocupações da vida no exílio. Em vez de fortuna, a princesa Olga deixou uma palavra amável a cada um no seu testamento. Foi tudo. Stela escreveu a sua mãe a este respeito:

"Estou profundamente reconhecida à velha princesa, a mãe de Igor. Durante um ano ela levou-me a toda a parte, vestiu-me e satisfez todos os meus caprichos. Como uma milionária. Toda a gente foi tratada da mesma maneira enquanto ela viveu. E manteve dezenas, centenas de pessoas. Ela não lhes pagava apenas a pensão, a alimentação, o alojamento, as viagens, o vestuário, mas também as perdas ao jogo, as amantes e as festas, que duravam em geral três dias e três noites e terminavam sempre com vidros partidos, o que apavorava os hoteleiros. A princesa pagou sempre tudo. Agora, os exilados admiram-se de que ela não lhes doasse pensões póstumas! Quanto a mim, acho que eles exageram. É certo que a princesa morreu exactamente no momento em que o seu depósito de ouro nos bancos estava esgotado. Pessoalmente, com os presentes que ela me deu em jóias, em dinheiro, em acções, em valores de todas as espécies, eu posso viver até ao fim dos meus dias. E sou eu quem lhe fica devedora. A minha pensão de princesa é dez vezes unaior que o orçamento de toda a Petrodava para a duração duma geração, pelo menos.

Nesta carta, Stela anuncia a sua mãe o seu regresso a Petrodava:

Eu poderia viver no Ocidente e continuar a vida começada com a velha princesa. Aprendi algumas línguas estrangeiras. Tenho conhecimentos. Admiradores. Prestígio. Admiram-me. Mas volto para Petrodava. Aqui sou uma estrangeira. Não existe ao de cimo da terra punição mais dura que aquela que nos condena a ser uma estrangeira. Uma gringa, como dizem os Sul-Americanos. Cada palavra que pronuncio ou que me é dirigida é sempre, para os meus ouvidos de estrangeira, uma palavra sem qualquer cor, sem qualquer perfume. A linguagem duma estrangeira ignora as sete cores do arco-íris e os milhares e milhares de matizes resultantes das sete cores. A língua materna de qualquer pessoa é a única língua perfumada e colorida. Por muito pobre que ela seja, na língua materna cada palavra pode significar uma imensidade de coisas, e pode conter luz, cor, perfume. E cada vez que ela é pronunciada pode tornar-se uma nova palavra. Uma língua estranha isola-nos, como se ela nos mantivesse prisioneira numa cave sem sol e sem luz. Quando pronunciamos uma frase na nossa língua materna, cada palavra abre recordações, como se abrisse gavetas perfumadas e todos os rostos e todas as imagens do passado surgissem. A nossa vida reaparece em cada palavra. Nas frases duma estrangeira não existe qualquer recordação. Cada palavra é semelhante a um quarto vazio, branco ou preto, com uma afirmação ou uma negação e com uma única função utilitária. Por causa da língua, as relações duma estrangeira com as pessoas que a rodeiam são mais reduzidas que as relações entre os animais, privados da palavra. Mas não se trata unicamente da língua. Tudo na vida duma estrangeira é, como o falar, desprovido de encanto. Como as palavras do dicionário. Nunca sei porque é que as pessoas à minha volta se divertem quando as vejo alegres, e não sei também porque é que estão tristes. As causas das suas alegrias nunca são causas de alegria para mim e as suas tristezas não são tristezas para mim. Minha mãe, eu volto, a toda a pressa...

"Sou uma estrela do pequeno sistema planetário de Petrodava. Como os pinheiros, como a torrente, como os cimos das montanhas, os cavalos, ou a neve. Como as palavras. Como tudo. Saí da minha órbita. Erro como uma estrela cadente. Agora, volto para nossa casa. A vida de um homem é composta de crenças, de superstições, de tradições, de hábitos, de preconceitos. Para viver aqui, como os que me rodeiam, deveria habituar-me a tudo, ao bem e ao mal. Assimilar e adaptar-me ao que neles é bom ou mau. Eles possuem o mal sem o ter escolhido nem aprendido. Eu não posso escolher. Por conseguinte, permaneço estranha. Não se pode aprender tudo aos vinte e um anos. Há coisas que se herdam. Apesar de todos os meus esforços, permanecerei sempre uma estranha. Para que uma vida mereça ser vivida, é preciso que ela tenha sido vivida pelos seus algumas gerações antes de si. "Eu volto, portanto, com a maior pressa, para Petrodava. Já começo a respirar o ar que vem do Ceahlau. Sinto o perfume das montanhas. Paro um instante a minha carta para fechar a janela deste palácio de Cannes à beira do mar. A fim de não deixar entrar o perfume das mimosas e do Mediterrâneo, o perfume do leite, do açúcar e da água morna. Eu aspiro em recordação o perfume dos nossos pinheiros. Eu sinto a água da torrente de Bistritza, que corre à velocidade do meu sangue nas minhas veias. À velocidade do meu passo. Espera-me. Viverei junto de ti. E se um dia me casar, o homem que me amar dir-me-á talvez coisas menos grandiosas que um estrangeiro cultivado, mas dir-me-á exactamente as palavras de que o meu coração está sequioso. Palavras que só um dos nossos pode dizer porque elas foram ditas, durante milhares de anos, por todas as mulheres e todos os homens de Petrodava. Aqui, as palavras mesmo grandiosas são estranhas. Cada ser humano é feito dum punhado de terra, duma pequena taça de sangue e dum círculo de céu. E para que eu seja feliz, tenho de viver na terra onde fui construída, ao lado de pessoas no corpo das quais corre o mesmo sangue e que têm o mesmo céu na alma e nos olhos. O mesmo céu que nos iluminou, nos crestou e sob o qual crescemos. O resto dos homens são bons como vizinhos. É tudo! Não são da mesma massa que eu: terra, sangue e céu."

Stela, corada de felicidade, termina a sua carta. O mandarete do hotel aparece.

- Às suas ordens, princesa - diz ele.

- Uma carta extremamente urgente - diz Stela. - Uma carta para Petrodava.

- Petrodava, princesa? - diz o mandarete. É um nome bonito. Soa bem. É um domínio pertencente a Vossa Alteza? Tem um castelo em Petrodava?

- Petrodava é o país das maravilhas, pequeno pajem.

- Mas, Alteza, não é a Cote d Azur o país das maravilhas? Nice, Cannes e Monte Carlo? Toda a gente o diz.

- Meu pajenzinho - responde Stela-, o país das maravilhas é o local onde um homem nasceu. Não se trata duma cidade, duma aldeia ou de um país. Não é uma pátria no sentido dos livros de história e geografia. Os Russos chamam ao país das maravilhas Rodina maia, que significa: a terra em que eu nasci. Mas não existe só terra e céu em Rodina maia: há também a luz, a seiva que sobe da terra, as estrelas que estão no céu e o vento que corre. Tudo isto e muitas outras coisas ainda coexistem, formam Rodina e é isto o país das maravilhas. Esta carta parte para o meu país das maravilhas. Rodina maia chama-se Petrodava. Uma cidade criada pelos Dácios, o povo que se considerava imortal, e que significa "a cidade de pedra".

- Alteza, tem um belo castelo em Petrodava?

- No país das maravilhas não é preciso castelo para se ser soberana. Em Rodina maia toda a rapariga é princesa. Todas as pessoas são príncipes na sua terra natal. Que queres tu que eu faça de um castelo em Petrodava? Ali cada pinheiro é uma torre de castelo. Cada onda da torrente é um diadema de princesa. Cada neve que cai é um baile principesco com papelinhos. Cada Primavera é uma parada. Na sua própria pátria cada homem é um príncipe. Cada um usa na cabeça, todas as noites, a estrela do seu nascimento.

"Todos são proletários quando já não estão na sua pátria, mesmo os príncipes e os reis. Os proletários não são as pessoas que trabalham nas fábricas, mas unicamente as que vivem fora da sua pátria. Os exilados. Esses nem mesmo têm palavras para rir ou para chorar. Os exilados são os mais pobres. As suas lágrimas são como uma moeda que já não corre porque as suas palavras já não correm onde vivem.

- Porque veio para Cannes se este não é o país das maravilhas?

- Oh! foi por um capricho feminino - diz Stela. - Eu casei-me com um príncipe. Um estrangeiro. Para ter uma coroa a mais. Embora nenhuma cabeça possa usar mais de uma coroa. Aquela com que se nasce. Válida unicamente onde se nasceu. Toda a dupla coroa não é mais uma coroa. Uma alegria, como diz um poeta suíço, é uma coisa extraordinariamente grande e importante. Duas alegrias significam: não ter alegria completa. Agora volto para a minha casa. É a única viagem importante, a única válida na minha vida. Porque o homem não pode fazer, só com os seus pés, senão uma única viagem importante na terra: a viagem para casa, para a Rodina. Para o país natal. As outras viagens são supérfluas, vãs, são desvios. Felizes os que podem fazer a única verdadeira viagem: até à pátria.

 

A velocidade do passo humano

STELA APOSTOL, princesa Illiyuskin, está de regresso à Roménia. Ela desce no cais da gare de Bucareste. Traz um enorme ramo de mimosas no braço. O cais está branco. Faz um frio seco. Neva. Sobre um enorme painel lê-se: "Em virtude da abundância das quedas de neve, todos os comboios em direcção à Moldávia foram suprimidos." Stela instala-se no hotel. Aguarda a clemência do tempo. O degelo. Que a tormenta pare. Na primeira noite no hotel, ela está indecisa: não sabe se fez bem em voltar. As praias soalheiras do Mediterrâneo, o clima e a civilização da Europa Ocidental, o nível de vida acentuam a sua nostalgia do mundo onde ela foi infeliz porque era uma estrangeira.

O telefone toca. É a menina Arthemise Fanariotti, uma rapariga com quem Stela viajou de Viena para Bucareste. É filha de um general romeno.

- Querida princesa - diz a filha do general-, o paizinho e a mãezinha, satisfeitos com o meu regresso, oferecem esta noite uma recepção em casa. Venha, se isso a distrai. A nossa casa 206

encontra-se ao lado do Ministério da Guerra. É tão grande como o ministério. Venha. Nós esperamo-la.

Stela aceita. Por tédio. Por causa da sua solidão. Por causa do frio.

A casa do general Fanariotti é enorme. Uma verdadeira cidadela. Ao lado do jardim Cismigiu. No salão há oficiais em grande número. Belas mulheres com vestidos deslumbrantes. Num salão dança-se. Noutro ceia-se. Na biblioteca joga-se às cartas. Tudo se passa ao mesmo tempo. Uma orquestra cigana está instalada no vestíbulo. Em frente da porta há sentinelas. Duas divisões estão reservadas para o bufete. O general Fanariotti dá o braço a Stela e apresenta-a, como se se tratasse dum cartaz, unicamente em termos exagerados. Detém-se e indica um homem novo com fato de civil, dizendo:

-Vê aquele rapaz, princesa? - pergunta o general, que segura Stela pelo braço. - É Michel Basarab. O nosso melhor oficial de cavalaria. Ele deixa o exército. É a maior perda sofrida pela cavalaria romena depois da guerra. Um oficial extraordinário. Empreguei todos os meios para o convencer a não cometer um tal disparate. Impossível, Alteza. Impossível.

Stela olha para o rapaz de cabelos pretos com reflexos azulados e de tez mate, cor de marfim ou de pergaminho.

"A cabeça do padre Ante Stepinater", pensa Stela observando o tenente Michel Basarab. Mas ela censura-se. Nem a menor semelhança entre a cabeça do santo padre e a cabeça deste oficial. Nenhuma. E contudo eles assemelham-se. Mas como os homens que vivem no mesmo espaço geográfico. Stela nota, depois de ter estado no estrangeiro, que os homens que vivem na mesma região não têm somente os mesmos cabelos, as mesmas caras e o mesmo andar, mas também a mesma maneira de olhar, de sentir e de pensar. Ela achou sempre que os homens de Conisberga, Oslo, Haia, Dublim, se assemelhavam entre eles. Da mesma forma que os homens de Nápoles, de Marselha, de Valência, de Cádis se assemelham. Como se assemelham os homens de Zagreb, de Viena, de Budapeste e de Bucareste. São grandes famílias.

À parte esta semelhança, outra coisa atraía a atenção de Stela sobre o oficial que queria deixar o exército. Ele usava um fato civil. Sóbrio. Ele tinha no seu porte civil o mesmo à-vontade que os militares no seu uniforme. Mas tinha também uma melancolia que pesava no olhar como o sono. "Ele tem uma melancolia que conserva a grandeza de espírito", diz Stela para si. Mas ela apercebe-se que se enganava novamente. A melancolia do tenente Michel Basarab não provinha duma grandeza de espírito. Ela vinha-lhe dum sofrimento físico.

- Vê-o, princesa? - pergunta o general. - É um excelente rapaz. Como todos os nossos oficiais de cavalaria. Mas a sorte reservou-lhe uma experiência. Uma dura experiência. Durante as manobras de Outono ele adormeceu, assim como é normal um oficial dormir, em cima da terra nua e húmida, em pleno campo. Chovia. É natural que chova no mês de Novembro. As manobras de Outono efectuam-se em Novembro. Um oficial deve poder dormir debaixo de chuva, ao ar livre.

Debaixo do fogo da artilharia. Um oficial é especialmente preparado para isso. É a sua missão na terra. O tenente Michel Basarab recebeu, sob este ponto de vista, uma perfeita educação. Ele podia dormir na terra húmida, debaixo de chuva, a céu aberto. Era o oficial de cavalaria melhor treinado. Mas teve um acidente. Ignora-se como o tenente pôde dormir, para se tornar vítima deste estúpido acidente. Procedemos a um inquérito. Talvez tenha dormido muito tempo de costas, ou de barriga, ou mesmo de lado. Não se consegue explicar de que maneira ele pôde dormir. E o acidente provém desta causa desconhecida: o oficial apanhou frio. À noite teve febre. Depois declarou-se uma pneumonia. A pneumonia transformou-se em tísica galopante, O tenente teve de ir para o sanatório. Quem teria podido imaginar que um acidente estúpido obrigaria o tenente a permanecer dois anos num sanatório? Dois anos, princesa. Um sanatório situado numa região magnífica. Eu conheço-a. Uma das mais belas do mundo. O sanatório está construído no meio dos pinheiros. Reservado unicamente aos oficiais tuberculosos ou convalescentes. Todo o conforto! Dois anos de cama é muito para um oficial. Um oficial está preparado para levar uma vida activa, não para permanecer no leito.

- E agora ele está completamente curado? pergunta Stela, para interromper o discurso do general.

- Completamente - responde o general. - Os médicos militares de todos os países do mundo são os melhores. Não se comparam com os médicos civis. Em matéria de ciência, princesa, é preciso disciplina. Ora, um médico civil não pode ter disciplina. Os médicos militares são extraordinários. Se lhes entregar um morto, pode estar certa que vinte e quatro horas depois eles o ressuscitam. Simplesmente para obedecer à ordem do seu superior. Eis aqui a prova. Veja o tenente Michel Basarab. Ele sente-se melhor que eu. Mas o drama é que as leis militares, que são mais exactas que as matemáticas e os logaritmos, eliminam tudo o que não seja certeza infinitesimal. As leis militares não têm em conta a disciplina militar em matéria de ressurreição dos mortos. Para deixar a exclusividade a Lázaro. Para não ofender a Igreja. O legislador, que é generoso, dá ao oficial, vítima duma grave doença contraída em serviço e por causa dele, o direito de solicitar uma licença ilimitada com o salário por inteiro. Não se encontra uma tal generosidade, uma tal grandeza, senão no quadro da instituição militar. O tenente Michel Basarab contraiu a constipação inicial, donde resultaram outras complicações, durante as manobras de Outono. Ele tem direito a pedir uma licença ilimitada e receber o salário por inteiro. E se não quer voltar para o exército, pode passar toda a sua vida de licença. De cinco em cinco anos, tem de se apresentar perante a comissão, que não pode senão anotar o que já se sabia: "Durante as manobras do Outono, o oficial, tendo dormido, numa posição não regulamentar, debaixo de chuva, ao ar livre, contraiu uma constipação." Ele diz que não deseja mais voltar para o exército. Mas eu duvido disso. É impossível que um oficial encontre o seu equilíbrio e a sua alegria de viver longe dos muros da caserna, do odor dos borzeguins, do espectáculo dos recrutas melancólicos. Não. Houve no seu caso um drama que eu não compreendo. Eu esforço-me por me explicar. Durante estes dois anos em que o oficial permaneceu deitado de costas, no seu quarto do hospital, ele teve ocasião de deixar trotar na sua cabeça, sem disciplina e sem exame dos seus superiores, todas as espécies de ideias. Normalmente, o exército nunca deixa em repouso os oficiais nem os soldados, isto a fim de evitar aos militares todo o contacto com as ideias. As ideias são, pela sua própria origem, portadoras de desordem e de indisciplina, exactamente como as águas poluídas que transportam os germes de doenças infecciosas. Nós, no exército, vigiamos a higiene sob todos os aspectos. O cérebro do oficial não deve entrar em contacto com as ideias. com nenhuma ideia. Pois bem, por causa deste acidente estúpido, a constipação apanhada durante as manobras, o tenente Michel Basarab teve de entrar num sanatório e nele passar dois anos, sozinho, deitado de costas. Ele escapou assim ao exame dos seus chefes hierárquicos. Durante dois anos deixou as ideias passarem-lhe pela cabeça! Todas as espécies de ideias. E outras coisas semelhantes: o que é absolutamente contrário à higiene e à disciplina militar. O tenente Michel Basarab saiu do hospital completamente mudado, o que prova que é prejudicial deixar as ideias vogar no cérebro humano. Interrogado para se saber se desejava uma licença ilimitada, em vez de responder que não podia viver longe da caserna e que, morto ou vivo, queria retomar o serviço, respondeu que desejava uma licença. Imagine a nossa consternação, o pesar dos seus chefes. Em vez de uma actividade brilhante, porque ele é dos nossos mais distintos oficiais, prefere a licença. Eu chamei-o e disse-lhe, abertamente, conforme o meu hábito:

Basarab, meu rapaz, tu não podes viver longe da caserna. Nenhum oficial pode viver longe da caserna. Volta para tua casa, apanha uma bebedeira monstra, dorme durante três dias, depois volta a ocupar o teu posto. Nada há como uma boa bebedeira para afastar o cheiro do hospital. É melhor que um duche ou um banho de vapor! Além disso, todas as ideias se volatilizarão! Não existe meio de purificação interior e exterior que supere a bebedeira militar.

"-Não - respondeu-me ele.

- Imagine: um oficial que responde não" a um superior. E que acrescenta:

-Eu não quero voltar mais à caserna. Nunca mais. Eu não quero já ser oficial. ((-E porquê, se fazes favor?

- Eu julgava que ele gracejava. Se ele me tivesse dito este "não" no campo de batalha, tê-lo-ia abatido imediatamente, em conformidade com as leis.

"-Eu tenho medo da morte...

- Foi a primeira vez na história militar que um oficial afirma diante do seu chefe que tem medo da morte - declara o general dirigindo-se a Stela.

"- Eu tenho medo da morte e da guerra - continua Basarab. - Eu já não quero ser oficial. Já não quero matar. Nem ser morto. Nem ensinar os outros a matar.

- Depois, persiste na sua decisão doentia. Poderá ouvi-lo, princesa. Se realmente ele se vai embora é uma grande perda para a cavalaria. Depois da guerra mundial, a cavalaria romena nunca sofreu uma tal perda. Este rapaz é major por promoção. É um oficial feito para se tornar general. Marechal. Tornar-se-ia um herói nos campos de batalha. Teria dirigido uma carga contra o inimigo e teria podido morrer à cabeça dos seus homens e dos seus cavalos. Tal era o seu destino. E eis que volta as costas ao destino.

O general chama o tenente. Este aproxima-se e detém-se, em sentido, diante de Stela e do general.

- Tenente Michel Basarab, expus o teu caso à princesa Stela Illiyuskin. Como heroína de guerra, ela pode compreender-te e aconselhar.

O tenente cora. Está comovido como um adolescente. Embora o general tenha dito que ele tem vinte e sete anos.

- Porque coras tu, meu rapaz? - pergunta o general. - O que te acontece não é senão um acidente. Um caso. A culpa não é tua. É uma doença. Um fenómeno. Porque corar? Como se corasses porque tu caminhaste na lama. É aliás o teu caso. Tu caminhaste num charco de água suja. Um oficial que diz ter medo da morte e odiar a guerra, que não quer matar nem ser morto, é um fenómeno mais raro que um tremor de terra. É uma doença provocada pelas ideias que se alojaram na tua cabeça enquanto estiveste no hospital, longe dos cavalos e dos soldados. É verdade ou não? Responde sinceramente.

- É verdade, meu general - diz o tenente.

- Que é que é verdade, tenente?

- É verdade que eu tenho medo da morte e que não quero mais ser oficial, para não ensinar aos outros a matar e a morrer.

- Vê, princesa? - diz o general. - Eu nada exagero. É verdade.

O general volta-se furioso para o tenente e pergunta:

- E que queres tu fazer, meu rapaz, se não queres ser oficial? Um oficial que já não é oficial não é nada. Um oficial é um homem que se prepara para fazer a guerra. Se ele não se prepara para fazer a guerra, já não tem lugar debaixo do sol. Já não é nada. Ele já não pode ser nada. Que imaginas tu poder fazer na vida? Responde.

- Desejo levar uma vida pacífica de gentleman-farmer (*) - responde o oficial-, pensando na paz. Não na guerra. Pensando na vida, não na morte. Pensando no amor. Não no ódio. Eis o que eu desejo, meu general.

- Ouve, princesa? Vossa Alteza, que lutou sozinha contra todo o exército bolchevista em Prut e que arrancou das garras do inimigo, no campo de batalha, o corpo do príncipe-general, seu marido, pode compreender estas palavras vindas de um oficial? Não o creio. Este tenente foi a esperança da cavalaria. Foi sempre o primeiro na escola militar. Major por promoção. E ele imagina que um major por promoção pode viver sem chegar às seis horas da manhã à caserna. Sem ouvir o clarim, sem respirar o odor dos borzeguins novos e da sopa de feijão. Ele julga que a vida é suportável para um oficial sem estes elementos essenciais?

 

* Em inglês: fazendeiro-proprietário.

 

Pois bem, não existe oficial que possa viver sem caserna. Julgas que tu o poderás?

- Poderei, meu general - diz o tenente. - E creio que serei feliz.

-Julgas tu, que experimentaste a vida militar, que poderás viver uma vida estática, estagnado como um pântano de água morta e apodrecida, em qualquer parte da terra, para fazer filhos, vigiar as vacas a parir, os ovos das galinhas, as chuvas e as estações?

- Exactamente, meu general - diz o tenente.

-Verás que isso não é possível - diz o general. - Cometes um grande disparate, meu rapaz. Tu voltarás. Quem foi militar, e perfeito militar, com qualidades inatas, não pode viver com vacas, nem com galinhas, nem com os filhos. Tem de viver entre soldados, no meio dos camaradas, na caserna, na pândega e no campo de batalha. Não de pantufas. Um oficial morre se não ouve tinir as suas esporas a cada passo que dá.

O tenente escuta calmamente. Ouviu estes discursos milhares de vezes. No decurso da discussão, não olhou para Stela. Agora, olha-a fixamente, porque o general diz:

- Devias ter vergonha, tenente, de ter pronunciado tais palavras diante da princesa Stela Illiyuskin, nossa heroína nacional. Aos dezasseis anos combateu sozinha, tendo como unidade um cocheiro e quatro cavalos contra uma unidade bolchevista. Era uma unidade mista. Nós reconstituímos a verdade histórica na escola militar. Havia uma unidade de cossacos montados e uma unidade de infantaria. Os bolchevistas estavam armados até aos dentes. Possuíam todo o armamento moderno roubado nos arsenais czaristas. Pois bem, a princesa, que não tinha sob o seu comando senão o cocheiro Pantelimon Haidouk e quatro cavalos (os guardas do príncipe haviam desertado logo no princípio), venceu-os sozinha. E continuou a luta, depois que o único homem, o cocheiro, foi ferido. Depois de ter recuperado no campo de batalha o corpo do príncipe-general, seu marido, dirigiu a retirada até Yassy, tendo sob o seu comando unicamente quatro cavalos, dos quais dois gravemente feridos. Esta foi a cena mais heróica. Heroísmo puro. Verdadeira coragem. Ela foi condecorada com todas as ordens militares. É a única herdeira da coroa dos príncipes Illiyuskin. Uma coroa de diamantes tão célebre como a coroa dos czares. No dia em que os bolchevistas forem corridos da Rússia, e esse dia virá logo que eles deixem de ser armados pelos países ocidentais e pelos Estados Unidos, pois bem, nesse dia, a princesa Stela, que tens na tua frente, possuirá propriedades mais vastas que toda a Roménia. Isso graças ao seu heroísmo e à sua coragem. Segue o exemplo da princesa, tenente, faz como os alunos das escolas. Ela encarna o heroísmo individual feminino. E se a princesa que prestou tantos serviços à nação e ao mundo livre quisesse prestar também um serviço ao exército, e mais especialmente à cavalaria, ela que gosta tanto de cavalos, deveria convencer-te a voltares para o exército, meu rapaz.

-A minha admiração pela princesa é tão grande como a de qualquer oficial - declara o tenente. Basarab olha para Stela timidamente e acrescenta:

- Contudo, não creio que exista alguém que não a admire e respeite. Mesmo os bolchevistas. E, no entanto, derrotou-os.

- Não me chame princesa, tenente - diz Stela.

- Na realidade, eu sou Stela Apostol, a proprietária de Petrodava. Sou uma rapariga dos Cárpatos. Uma criadora de garanhões. Foi por isso que renunciei a tudo o que me oferecia o mundo e regressei. Voltarei para Petrodava. Estou aqui simplesmente porque os comboios não circulam na Moldávia por causa da neve. Mas volto para me reencontrar. Autêntica. Stela Apostol, a descendente das mulheres Roca. O resto, o heroísmo, a coroa, são acidentes nos quais eu não sou eu. Ninguém é autêntico nos acidentes sofridos. Nem mesmo Deus, que é autêntico em tudo o que Ele criou, em cada haste de erva, não o é em Lúcifer. Lúcifer foi um acidente. O céu é autêntico com todas as estrelas da sua abóbada, mas não o é nos meteoros extintos que caem como pedras amorfas na Terra ou no espaço. Porque o Sol e as estrelas não são autênticos nos meteoros. Os meteoros são acidentes. E perdem-se. Eu própria, não sou autêntica no heroísmo, na bravura, na coroa. Eu sou autêntica no que me vem de Petrodava: no que se encontra em harmonia com o céu, a terra e o sangue dos homens de Petrodava. O resto não são senão acidentes.

- Contudo, princesa, vós sois uma heroína única no mundo.

- Isso é falso - diz Stela. - Eu sou uma montanhesa. A minha existência é como as maçãs ácidas e selvagens. Como as amoras. Como as torrentes. Os meus diamantes e a minha coroa são os gelos do Inverno e as estrelas do céu. As minhas verdadeiras vestes são as neves e o casaco verde dos pinheiros. E também o cojoc, (*) o suman e a catrintza. O meu ceptro é o baltag.

O general Fanariotti não compreende nada. Não vê aonde a princesa quer chegar. Cala-se. O tenente Michel Basarab está entusiasmado. Ele compreendeu. Como se fosse o seu coração que houvesse falado.

- Eu compreendo-a, princesa - diz o tenente.

- Só aquele que experimentou a dormideira dos mortos e que viveu com os mortos, no seu leito, que comeu com eles nas fronteiras da vida, só esse pode compreender o que é uma existência autêntica. O resto do mundo vive por automatismo. Em virtude da velocidade adquirida, do princípio da inércia, como as rodas dos carros que rolam mesmo sem ninguém as empurrar. Aquele que recebeu o beijo da morte na testa sabe o que é uma existência autêntica. Geralmente, porém, esse homem não volta mais à vida. Eu voltei. E não quero viver senão de uma maneira autêntica. Não quero mais viver como se eu usasse os sapatos de outra pessoa. Sempre muito grandes ou muito pequenos. Quero retirar-me para o campo como gentleman-farmer. Para viver em conformidade comigo. Autêntico. Honesto em relação a mim e em relação à natureza. Honesto em relação às estações, ao céu e à terra. Eu quero uma existência com a velocidade do passo humano. É tudo!

- Magnífico!, tenente, "viver com a velocidade do passo humano". Soberbo. Agora sei o que quero.

 

* Cojoc: casaco de pele de carneiro, com o pêlo no interior e a pele muito branca e acetinada para fora, muitas vezes ornado de bordados multicores com motivos de flores.

 

Uma vida com a velocidade do passo humano. Venha, vamos tomar uma chávena de chá. Eu creio que as neves que impedem os comboios de circular me reterão em Bucareste vários dias. Entender-nos-emos às mil maravilhas. Discutiremos com a velocidade do passo humano. com a cadência do movimento do sangue nas têmporas e das pancadas do coração. Entretanto, a neve derreter-se-á e libertará as estradas. E eu poderei voltar para Petrodava.

- Petrodava é o nome de um dos vossos castelos, princesa?

- É mais do que um castelo - diz Stela. - Petrodava é um "lugar elevado". Tanto no sentido próprio como no figurado. Geogràficamente está mais perto do céu que da terra porque está situado muito alto, em altitude, nos Cárpatos. Depois, é um lugar elevado porque é a minha rocha natal. Rodina maia, como dizem os Russos. É um paraíso gelado. Como o paraíso das trutas.

No dia seguinte, às cinco horas, o tenente Michel Basarab toma chá em casa de Stela. Volta no terceiro dia. No quarto. Depois vem ao meio-dia e à noite. Agora, a princesa Stela e o tenente são inseparáveis. Todo o dia andam de mãos dadas, sob a neve que cai em flocos enormes nas ruas de Bucareste.

- Nós caminhamos com a velocidade do passo humano sobre a neve - diz Stela a rir. - Dir-se-ia os guizos de prata dos trenós de Petrodava que maravilhosa definição da felicidade tu deste, Michel.

- A mais bela coisa acerca de nós, Domnitza Stela - diz o tenente-, foste tu quem a disse: "Michel Basarab, circulámos durante anos, tu e eu, como duas estrelas cadentes, como duas estrelas perdidas, sobre trajectórias e constelações que não nos pertenciam. Agora reencontrámo-nos no cosmos de flocos de neve, exactamente como duas estrelas perdidas, para formarem juntas uma nova constelação. Duas estrelas, uma nova constelação que se moverá no cosmos com a velocidade do passo humano."

Michel Basarab e Stela Illiyuskin entram na estação dos correios da Calea Victoriei. Stela telegrafa à mãe:

"Interrompi viagem por causa da neve. Voltarei, com os dias bonitos, na companhia do tenente Michel Basarab, meu noivo. Para casar em Petrodava antes de a neve se derreter. Quero que toda a Petrodava esteja de vestido branco de noiva. Depois do casamento ficaremos lá em cima, ao pé de ti, mãezinha, ao pé do céu, dos pinheiros, das rochas e dos cavalos. Para viver no sistema planetário de Petrodava com a velocidade do passo humano."

 

Segundo prólogo matrimonial

AnTES de deixar Bucareste com a noiva, para se dirigir a Petrodava, o tenente Michel Basarab conferenciou com o médico militar, o coronel Isaia Klang, no seu consultório.

É um consultório ultramoderno, na Calea Victoriei, no centro da capital.

- Meu coronel, vou-me casar - diz o tenente Michel Basarab. Está profundamente comovido. Continua sem olhar para o médico militar, que veste uma bata branca, de seda, sobre o seu uniforme de coronel, com dragonas de ouro. - Meu coronel, decidi casar-me. Levar uma vida pacífica de gentleman-farmer em Petrodava. É a antiga capital da Moldávia do Norte. Uma aldeia de altitude. Como diz minha noiva, "pode encontrar-se Petrodava no mapa da Roménia, nos Cárpatos Orientais. Mas pode encontrar-se mais facilmente no mapa do céu, porque geogràficamente Petrodava está mais perto do céu que da terra".

O tenente sorri para se encorajar. Continua:

- A rapariga que eu desejo desposar assemelha-se-me como uma irmã. Toda a Roménia a conhece. É a princesa Stela Illiyuskin, que combateu sozinha contra os bolchevistas em Prut. Meu coronel, eu desejaria saber se estou de perfeita saúde. Depois das provações por que acabo de passar é natural que sinta aflição no limiar do casamento. Porque, fora de outras considerações, o casamento é também um estado reservado aos que possuem uma saúde perfeita. Estou eu completamente curado ou não? Até agora, só eu estava em causa. Amanhã estarão em causa a minha mulher e os meus filhos. É uma questão extremamente grave.

- Tu trataste-te desde o princípio, meu rapaz - diz o coronel Isaia Klang. - Tu atravessaste os mais duros momentos que um homem pode atravessar no decurso da sua vida. Houve um tempo em que estava persuadido de que te tinha perdido como paciente e como camarada de armas. Tu voltaste de entre os mortos. Agora estás completamente curado. Tu és tão saudável e normal como os que não passaram, como tu, pelo hospital.

- Doutor, acontece-me por vezes ter medo. Um medo terrível. Tanto da vida como da morte. De tudo. Nestes momentos, todo o universo desaparece para mim e não resta à minha volta senão perigo, como uma torrente prestes a engolir-me. Contra a qual eu não posso lutar. Eu tenho então um só pensamento: esconder-me. Eu noto que em parte alguma posso encontrar um esconderijo seguro. E então penso no suicídio. Não é senão pelo suicídio que posso escapar ao perigo. Não é senão pelo suicídio que posso ser salvo de tudo o que me ameaça. Um outro esconderijo que não seja a morte parece-me impossível.

O coronel Klang coloca a mão protectora no ombro de Michel Basarab. O coronel-médico Isaia Klang é famoso em toda a Roménia. Antes da guerra mundial, no início do movimento anti-semita nas universidades, ele respondeu, como estudante judeu, de maneira diferente dos seus correligionários, que se tornaram bolchevistas-socialistas ou membros de diferentes organizações antinacionalistas.

Isaia Klang formou uma equipa de especialistas. Mediu todos os judeus da Roménia. Mediu o seu crânio, a sua largura de peito, a sua cintura e anotou todas as mensurações antropológicas. Publicou os resultados e começou uma campanha tumultuosa em todo o país e demonstrou tanto aos semitas como aos anti-semitas que era aberrante, estúpido e idiota da parte dos anti-semitas atacar os israelitas da Roménia; noventa e cinco por cento dos judeus da Roménia não são semitas, mas da mais pura raça nórdica e ariana, da mesma família que os Irlandeses. É verdade que estes arianos loiros, gigantes, de cabelos ruivos, com manchas de sardas e avaros como nenhum outro povo do mundo, são de religião moisaica. Não seria necessário então combatê-los por razões raciais, mas por razões religiosas, como adeptos do moiseísmo. Eles não têm qualquer ligação com a raça semítica, que é absolutamente oposta à sua raça nórdica. Ao princípio, a campanha de Isaia Klang pareceu pecar por séria, mas ela foi a tal ponto motivada cientificamente que provocou a dúvida e por conseguinte a falta de entusiasmo dos grupos anti-semitas. Porque é estúpido perseguir um homem que é o contrário dum semita sob pretexto que se atacam os semitas.

Depois desta campanha, o estudante de Medicina Isaia Klang entrou no exército. Agora é um médico afamado e depois das suas horas de serviço trabalha no consultório que acaba de abrir no centro de Bucareste.

Nunca alguém ousou dizer-lhe que ele é semita.

O coronel diz a Michel Basarab:

- Essa angústia passará, meu rapaz, É natural num rapaz que lutou contra a morte durante dois anos. Tu estiveste frente a frente com a morte. Isso deixa traços. Traços que podes suportar agora. Passarão. A vida é como a erva: cresce e cobre tudo. A erva rebenta mesmo sobre as campas. Coragem. Deixa-te viver. Como uma água que corre. É fácil. Serás feliz. Terás uma mulher excepcional. Não existe na Roménia uma segunda Stela Apostol, princesa Illiyuskin. Terás a ajuda do ar de Petrodava. Terás filhos. Demais, a princesa é rica. Ela herdou dos príncipes Illiyuskin e possui a melhor criação de cavalos de raça do país. Estarás livre de todas as inquietações que envenenam a vida dos outros homens. Coragem!

- A fortuna da princesa não me interessa - diz o tenente Basarab. - Ela é rica, é verdade. Mas o meu soldo de tenente será suficiente para os dois em Petrodava. Poderemos viver ali sem nada nos faltar. Além disso, eu possuo uma pequena herança de meus pais.

-Visto que ela também tem bens, vocês poderão aumentar os prazeres da vida - diz o coronel.

- Poderão viver, com os vossos filhos, na opulência, No luxo e na felicidade.

- Doutor, há ainda uma coisa - diz o tenente.

- Sabe que eu tive uma infecção do sangue. Sofri um tratamento. Era então alferes. Nunca se soube se se tratava duma infecção hereditária ou contraída acidentalmente. Lembra-se?

- O sangue dum homem, meu rapaz, é como o cristal: quando contém uma impureza nota-se. O sangue do homem é mais puro que uma lágrima. Tu vês imediatamente se ele tem um elemento estranho. Tu tens o sangue puro. Nós não te teríamos mantido como oficial se o teu sangue estivesse envenenado. Esses receios fazem parte das tuas aflições. Coragem. E não penses mais no teu sangue, nem noutros perigos. Se tu queres ficar tranquilo, vai duas vezes por ano a um laboratório da cidade mais próxima e pede uma análise. Isso nunca é negado a alguém. É como se tu tirasses a tua temperatura. Se te constrange fazê-lo na província, pede que te tirem o sangue e que no-lo enviem. Para aqui, para o Instituto Médico-Militar. Em meu nome. E não se pensa mais nisso.

O tenente Michel Basarab recupera a coragem. Chegara ao consultório do coronel-médico cheio de receio. Agora -está cheio de confiança. Aperta a mão do seu médico e superior e volta para o hotel, onde Stela o espera com todas as malas prontas.

Na mesma noite, na estação do Norte, os noivos sobem para o comboio, pronto a largar para a Moldávia.

- Desceremos em Pascani - explica Stela. Tu não conheces Pascani. É uma pequena estação no vale do Sereth. Uma estação onde não desce quase ninguém. Seremos os únicos. Como se esta estação tivesse sido feita unicamente para nós. Para que nós ali fôssemos. Atrás da estação encontraremos Pantelimon Haidouk com o trenó atrelado a quatro cavalos. Tu não conheces Haidouk. Ele tem a perna direita cortada. Tem uma perna de pau. Ele acompanhou-me em todas as minhas viagens. Os Haidouks, que são os salteadores dos Cárpatos, mas salteadores justiceiros que tiram aos ricos para dar aos pobres, vivem há séculos junto da minha família em Petrodava. Eles são como as rochas. Fazem parte integrante de Petrodava. Pantelimon Haidouk é um fragmento móvel de Petrodava. Ele virá de cojoc novo com bordados floridos e com o seu gorro de pêlo preto, pontiagudo como o cimo dos pinheiros. E quando eu descer do comboio afastar-me-ei de ti e beijarei os cavalos na testeira, aos quatro, um após outro, e os cavalos baterão a terra com os seus cascos como as pessoas batem as palmas num espectáculo. Eles sabem que eu sou a dona de Petrodava e nada regozija tanto um cavalo como a presença da dona. Oh, Michel, eu gostaria que fôssemos felizes, felizes. Foi só agora que me apercebi a que ponto desejo ardentemente ver os meus cavalos, os seus grandes olhos ardentes como chávenas de chá fumegante...

Stela encosta a cabeça no ombro de Michel Basarab. Chora de alegria. O comboio avança sobre a planície e sobe em direcção à Moldávia. Em direcção ao Norte. Em direcção a Petrodava.

- Nós criaremos em Petrodava, os dois, como duas estrelas cadentes, um sistema planetário, apertados um contra o outro, tu o sol e eu a tua sombra, e viveremos com a velocidade do passo humano lá em cima, na fronteira entre o céu e a terra. Não se encontra nos Cárpatos nenhuma localidade mais alta que Petrodava. Eu sou a dona da mais alta aglomeração humana dos Cárpatos.

E agora entrego-te as chaves, o chicote e as rédeas desta aldeia do céu.

Michel Basarab acaricia os cabelos de Stela. É o princípio do mês de Março. Stela sonha que sob a neve as campainhas-brancas, as flores mais brancas que a neve, estão já a desabrochar.

- As mais frágeis flores da terra, Michel, rebentam debaixo da neve, porque debaixo da neve faz calor. Eu também tenho um coração terno como as campainhas-brancas. Sob a minha carapaça de austeridade fria como a neve o meu coração é ardente, sabes, Michel? Tu verás. Quando a neve se tiver derretido, tu descobrirás as campainhas-brancas. São flores semeadas pelos anjos, no Inverno, quando as noites estão estreladas.

 

A ameaça de morte

FAZ hoje exactamente catorze meses que nos casámos na igreja de Petrodava - diz Stela.

- Há quase ano e meio que chegaste a Petrodava e que te tornaste meu senhor, o dono da casa, dos cavalos, de tudo o que existe. Não falo hoje contigo como uma mulher fala ao seu marido quando tem qualquer coisa de grave a comunicar-lhe. Convidei o padre Thomas, minha mãe e Pantelimon Haidouk. Eles também vão assistir ao que te vou dizer e ao que tu vais responder-me. Não faças um olhar severo por eu ter convidado Pantelimon Haidouk. Ele faz parte da casa de Petrodava; mesmo que seja apenas um cocheiro e um criado, ele não tem, por esse motivo, senão um pequeno papel. Um papel de servo. Até as pequeninas estrelas fazem parte do sistema solar. Eu quero que o máximo possível de ouvidos ouçam as perguntas e as respostas. Para não cair no erro. A minha exigência é o meu recurso.

O tenente Basarab, vestido com uma camisola encarnada, de gola enrolada, e umas calcas de montar, escuta, irónico e indulgente, as palavras da mulher.

Pelo contrário, o padre, Haidouk e Domnitza Roxana, a mãe de Stela, estão muito sérios. Tão sérios como Stela.

- Michel, ouve bem o que te vou dizer: pessoalmente, desde que sou tua mulher, vivi os mais belos dias e as mais belas noites da minha existência. Agradeço-te e fico-te devedora. A minha vida junto de ti, que és terno, nobre, enérgico e sabedor, não foi senão uma alegria sem fim. Junto de ti, Michel, sou tão feliz como quando nado contra a corrente, ou quando subo a montanha a galope no meu cavalo, ou quando desço de esquis as encostas do Ceahlau numa noite estrelada. Vivi plenamente durante um ano e meio. Como se come à boca cheia, quando se tem fome com volúpia. Nós vivemos lado a lado. Em parte alguma uma mulher se sente mais na sua pátria, abrigada, , do que nos braços do homem que ama. Ao pé de ti sou forte. Sinto-me mulher, com todos os meus direitos, plenos e completos.

- Stela, tu incomodas-me - diz o tenente. - Para quê esse palavreado, todo esse discurso em público? Agradeço-te o que acabas de dizer. Mas evitemos o resto, por discrição,

- Não evito nada - diz Stela. - A verdade é como um animal vivo, tu não podes comprá-lo ao quilo, aos bocados, é preciso comprá-lo inteiro. Mesmo que alguns bocados te desagradem. Escuta. Tu sabes como nos conhecemos. Como toda a gente: por acaso. Porque nevava. porQue a neve era muito alta e porque os comboios para a Moldávia não circulavam. E porque uma noite eu me aborrecia tanto que aceitei um convite estúpido. Em casa do general Fanariotti. Vi que tínhamos aspirações comuns. Trajectórias paralelas. Gostos semelhantes. Estudámo-nos com paixão, mas também com razão. Ficámos noivos. Viemos para Petrodava e casámo-nos. A primeira ofensa é de mim que vem. Peço-te perdão. Porque se minha mãe te ofendeu à tua chegada aqui foi por minha culpa.

- Eu não ofendi ninguém - diz Domnitza Roxana. Ela veste uma blusa de seda crua, sobre os ombros um mintean florido. O rosto é belo, o olhar penetrante. Roxana continua:

- Eu fiquei desiludida com Michel. Foi tudo. E a minha decepção era natural. Stela escreveu-me que estava noiva do mais valoroso dos tenentes da cavalaria romena. Contava os minutos à espera dele. Como genro e sobretudo como oficial de cavalaria. Estava certa de que os nossos cavalos, os cavalos Roca, teriam doravante por dono um conhecedor. Os cavalos sofrem se são dirigidos só por mulheres. Eu estava certa de que se voltaria a falar da fama dos cavalos de Petrodava em todas as feiras, do mar Báltico até ao Reno e até ao Danúbio. Fiquei transtornada de surpresa, de decepção, quando Michel me disse: "Eu nunca mais montarei. E nunca irei ver os cavalos. Eles recordam-me o exército. O exército recorda-me a guerra e a morte. Desde a minha estada no hospital tenho medo da morte. Um medo terrível."

Domnitza Roxana prossegue:

- Que querias tu que eu fizesse, Stela, perante uma tal declaração? Que eu dançasse de alegria? Era uma coisa que não podias exigir de mim. Entristeci e tornei-me negra de decepção. Fiquei surpreendida por ouvir um oficial de cavalaria de vinte e sete anos, atlético, belo, dizer que tem medo da morte e da guerra e que não quer olhar para os cavalos porque eles lhe lembram o exército, a instituição que ensina a arte de matar. Eu não pensava ouvir tais palavras na minha vida. E contudo, ouvi-as da boca do meu genro. Teu marido, Stela. Tive de as suportar. Mas sofri com isso e ainda sofro.

- Não se contentou em sofrer, Domnitza Roxana - diz o padre. - Tornou-se hostil para com Michel.

-Tornei-me hostil no instante em que vi que não somente ele traía o seu sexo temendo a morte, mas que cometia a infâmia de comprar colmeias. Isso era demasiado para mim. Para a proprietária de Petrodava. Para uma mulher Roca. Ver o meu genro, um homem, criar moscas e evitar os cavalos? Eu não podia sofrer em silêncio. Para mim, as abelhas são moscas. Mesmo que elas façam mel. E um homem que cria moscas não é um homem. É uma ocupação de doente. De impotente. De mal nascido. Os homens que conheci eram criadores de garanhões, de cavalos selvagens. Não eram criadores de moscas. Apresento-lhe as minhas desculpas. Mas eu não podia impedir-me de gritar de indignação.

Domnitza Roxana continua: - com o tempo, compreendi o drama de Michel. Durante dois anos, deitado no seu leito de hospital, sofreu ao contemplar a morte. Compreendi porque é que ele se tornou um criador de moscas, de moscas de mel, de abelhas. Tem excesso de sensibilidade. Uma grande dose de delicadeza. Ele sofreu um pouco mais do que o que podem suportar as forças humanas em matéria de dor. Já paguei a minha culpa. Já pedi perdão a Michel. E hoje gosto dele, apesar da sua criação de moscas. Gosto mais dele do que se ele tivesse sido domador de cavalos selvagens. Ele desperta em mim um sentimento maternal de protecção. Quanto aos cavalos, tenho Stela, que é mais rija que o seu avô, meu pai, Petraky Roca. Tenho uma torrente: Stela. Duas torrentes teria sido demais, mesmo para Petrodava. Sobretudo quando estas duas torrentes transbordassem e se nivelassem. Não, Deus sabia o que fazia. E é melhor assim.

- Mãezinha, deixa as generalidades - diz Stela.

- Eu queria dizer qualquer coisa a Michel. Tenho de lhe agradecer por estes catorze meses de felicidade.

- O que começou, vai continuar - diz o tenente. Está pálido, embora tisnado pelo sol. Ele é belo como um ícone bizantino e muito jovem. Os seus enormes olhos pretos são quentes e calmos como os olhos dos cavalos. Mas como os olhos dos cavalos fatigados por uma caminhada muito longa.

- Michel, tu reconstruíste comigo a casa de Petrodava. Nada se reconhece. Começando por esta sala onde estamos. A sala onde se recebem as visitas, onde sempre se discutiram os assuntos graves, os pedidos de casamento, e aos quais o padre Thomas assistia sempre. Demolimos as paredes e colocámos janelas grandes a fim de fazer entrar as montanhas na casa, a fim de as termos ao pé de nós, de manhã à noite, com o horizonte, o céu e todas as aves. Aumentámos um metro aos tectos. Alargámos as portas. Instalámos aquecimento central, electricidade, água corrente. Temos casas de banho, lavatórios. Temos rádio, uma biblioteca, discos, tudo o que é importante em matéria de música. Nunca um dos meus antepassados possuiu tanto em Petrodava como nós, Michel. Se apagamos a luz, o Ceahlau entra no nosso quarto pelas janelas amplas como montras. E dormimos com o Ceahlau e todos os Cárpatos ao pé de nós. Eu que amo tanto as montanhas, tenho-as ao pé de mim, no meu leito, e parece-me que as aperto nos meus braços com todos os seus pinheiros e todas as suas neves, e quando, meio adormecida, abro os olhos, julgo vê-las muito encostadas a mim, na minha almofada.

((As clareiras e as florestas estão ao nosso lado, na casa de jantar, na casa de banho, no quarto de dormir. Estamos em ligação com o resto do mundo pela rádio, pelos livros, as revistas e tudo o que se inventou de importante no mundo. Para o que se refere às nossas relações, elas começaram com a velocidade dos passos de um convalescente. Tu e eu, Michel, éramos seres arrancados às nossas constelações, e sós, quando nos conhecemos.

"Tu, Michel, tu foste arrancado ao exército no qual não querias integrar-te, mas não tinhas outra constelação. Eu, fora arrancada à minha família e não possuía outra. Juntos, criámos um novo universo, unicamente para nós os dois. Um universo sem caos. Sem cometas. Sem meteoros que nos perturbem. Um universo de equilíbrio, de conforto e de precaução. Nós introduzimos nele tudo o que tu gostas e tudo o que eu gosto. Os cavalos e as abelhas fazem igualmente parte dele.

Existe contudo uma pergunta, Michel, que me rói como um cancro. Há uma pergunta à qual não posso responder. Ela tortura-me como uma ferida viva. Como um bacilo que macera o meu sangue, sorrateiramente. Fiz-te esta pergunta várias vezes. Supliquei-te que me respondesses. Não o quiseste... Agora peço-te em público. A fim de se poder julgar com toda a equidade a pergunta. Como a resposta. E a fim de que não haja mais dúvida nem desconfiança. Nem receio, nem mistério. Michel, peço-te, ouve a minha pergunta: que me escondes tu?

- Eu não te escondo nada, Stela - responde o tenente.

- Michel, nós teremos talvez um filho em breve. Será certamente um rapaz. É por causa disso que te peço que me respondas urgentemente. Antes que seja demasiado tarde.

- Pergunta, minha Domnitza. Pergunta e responder-te-ei de coração aberto como sempre - diz o oficial.

- Michel, é verdade que tens um segredo em relação a mim?

- Não tenho segredo algum, Stela - responde o tenente.

A sua voz é bela, sonora, como o timbre viril do violoncelo.

- Mentes, Michel - diz Stela. - E visto que mentes, para que serve discutir? Eu cumpri o meu dever e disse-te, no primeiro dia em que nos conhecemos, que era dona de Petrodava. Que Petrodava é uma casa de intolerância. Que somos pessoas perpendiculares sobre a crosta terrestre e nunca nos dobramos. A nossa vida é em altitude, física e moral. Tudo é alto, interiormente e exteriormente. O ozónio em nós é um anti-séptico e um cautério. Na nossa casa, mesmo que se derrame sangue, fazemo-lo unicamente por motivos de justiça. Por higiene. Em nós o crime não é senão uma cauterização. Não é um crime, mas um método anti-séptico.

- Conheço essas frases - diz o tenente. - Passa ao assunto. Eu sei que vocês são exigentes como os pinheiros. Como as torrentes. Que em vós, a vida e a morte são simples mudanças de posição geométrica. Da vertical em horizontal. Disseste-me todas estas coisas para me informar, me ameaçar, me avisar. Tomei conhecimento delas. Tomei-as em consideração. Isso não me incomoda. Pelo contrário. Respeito-te pela tua sede de absoluto e de perfeição. À insinuação de ainda há pouco repito-te: eu não tenho qualquer segredo em relação a ti e não te escondo nada. Nada.

- Michel - diz Stela-, tu enganas-me. A palavra cai como um meteoro. Stela está vermelha. Todo o seu sangue lhe subiu às faces que escaldam como as rosas ao sol. O padre Thomas, Pantelimon Haidouk e Domnitza Roxana estão imóveis. Como as rochas no momento das grandes chuvadas. Mesmo mais imóveis. Como para resistir à torrente.

- Tu enganas-me, Michel - diz Stela.

- Não é verdade - responde o tenente.

Está calmo. Mais calmo que todos os outros. Ele mostra agilidade. Elasticidade. E a sua calma é perfeita. Sem rigidez alguma. Ele acrescenta, com a mesma voz de violoncelo:

- A tua afirmação é injusta, estúpida e mórbida. Mas é natural que a razão humana se engane. Pessoalmente, tenho a consciência tranquila, porque nunca te forneci ocasião para suspeitares da minha infidelidade, nem de fazer afirmações injuriosas, falsas e mórbidas. Eis a minha resposta!

- Desde o momento que afirmas que não me enganas, acredito-te - responde Stela. - Sinto-me muito feliz por te acreditar. Faço-te todavia uma segunda pergunta: existe uma mulher no teu passado? Quero dizer, uma mulher em relação à qual tenhas obrigações neste momento?

- Não - responde o tenente. - Não há mulher no meu passado. Tu és o meu verdadeiro primeiro amor. E tornaste-te minha mulher. Calcula, se quiseres, e verás que não tive tempo para isso: aos onze anos entrei no colégio militar, aos dezanove deixei o colégio pela escola militar. Aos vinte e dois anos saí da escola e parti como oficial para uma aldeia de cinquenta fogos. Depois fui enviado para um grupo de pequenas guarnições. Aos vinte e cinco anos tornei-me tenente e entrei para o hospital, onde estive dois anos. Quando da minha saída do hospital, encontrei-te e tornei-me teu marido. Como teria eu tido tempo para uma outra mulher? Sê razoável!

- Acredito em ti, visto que o afirmas e sinto-me feliz porque não tenha havido outra mulher no passado em relação à qual tivesses obrigações. Sinto-me feliz por ser o teu primeiro amor. Faço-te agora a terceira pergunta: talvez tenhas um filho?

- Não - responde o tenente. - Mas se eu mantenho ainda a minha calma, arrisco-me a perdê-la. Tu vais de aberração em aberração.

- Acredito-te e desculpa-me por te ter feito tais perguntas - diz Stela. - Mas há a última: Michel, meu querido, que me escondes tu? Responde honestamente, se tu não tens nenhuma obrigação em relação a uma mulher qualquer, se tu não tens de sustentar um filho, que me escondes tu?

- Nada - diz o tenente. - E com esta resposta mudemos de conversa. É absurdo estar aqui para responder a calúnias fantasistas. Julgava-te mais razoável. É a minha paciência que se torna disparatada se continuo a escutar-te. A minha indulgência torna-se estupidez. Ponhamos ponto final.

- É impossível pôr ponto final, Michel- diz Stela. - Tu escondes-me qualquer coisa. Uma coisa grave. Não há mulher no mundo que aceite que o seu marido tenha uma vida paralela.

- Eu levo uma vida paralela, eu? O tenente perde a calma.

- Tu deixaste-me desconfiar - diz Stela.

-Vai descansar, Stela - diz ele. Michel levanta-se. Ela agarra-o pela mão e obriga-o a sentar-se e pergunta:

- Durante estes catorze meses, desde que és meu dono e de Petrodava, desapareceste três vezes de casa escondendo-te de nós, escondendo-nos o sítio para onde ias. A primeira vez partiste dizendo que ias a Pascani. Propus acompanhar-te. Recusaste. Propus que Pantelimon Haidouk te acompanhasse para se ocupar dos cavalos. Adivinhei que se tratava de qualquer coisa de suspeito. Tu não gostas de partir com os cavalos. Detesta-los. E contudo, partiste. Ordenei a Pantelimon que te seguisse no carro, de longe. É feio o que fiz. Mas é feminino. É humano. E é justo. Tudo o que é puro, é justo e bom. Em Pascani deixaste o carro e os cavalos na estalagem e apanhaste o comboio de Yassy. Voltaste no comboio seguinte. Alguns meses mais tarde voltaste a partir. A mesma história. A terceira vez, há uma semana, ordenei a Pantelimon que subisse para o mesmo comboio em que viajasses e te seguisse até Yassy. Executou as minhas ordens. Seguiu-te e deu-me conhecimento disso. No teu regresso, perguntei-te se tinhas ido a Yassy. E negaste. Tu mentiste.

- Donde deduziste, Stela, que eu tenho uma vida escondida, uma vida de infâmia e que te engano?

- É lógico. Visto que escondes essa vida secreta, deve ser uma vida de infâmia. De adultério.

- Stela, tu referiste-me outrora uma frase ouvida aos teus pais: "A dialéctica é como a lama - só serve para fazer cair as pessoas." A dialéctica é boa nas matérias mortas. Não na vida. Tu não tens razão. A tua conclusão é lógica mas falsa.

- Porque é que tu me escondeste por três vezes a tua viagem a Yassy, se não tens vida paralela? Se tu não tens vida secreta e se não cometes acção inconfessável, portanto, culpável?

- Stela, previno-te, não insistas. Se é humano enganarmo-nos, perseverar no erro é diabólico. Respondi-te da maneira mais sincera, que te sou fiel e que não tenho segredo. Podes estar tranquila.

- Então porque não me dizes aonde foste? Porque escondes a viagem a Yassy? Porque mentes?

- Stela, fui a Yassy por uma coisa insignificante, sem importância para ti. Que não vale mesmo a pena falar nela.

- Se é de tal modo anódina, porque escondê-la?

- Stela, são coisas muito íntimas para serem ditas. Coisas que fazem parte da fronteira da nossa pele. Coisas muito individuais. Digo-te: trata-se duma coisa que não merece ser dita aos outros.

- Michel, somos casados - diz Stela. - O casamento é uma osmose. Pelo casamento dois seres tornam-se num. O que pertence a um pertence ao outro. Tu não podes ter nem a tua própria intimidade, nem os teus próprios segredos. O que é teu é meu.

Ela volta-se para o padre e pergunta:

- Meu padre, pelo sacramento do casamento dois seres, um homem e uma mulher, tornam-se um só e mesmo corpo. Tornam-se uma só pessoa, um todo indivisível. É assim, não é verdade?

- Não é isso, Domnitza Stela - responde o padre. - Pelo sacramento do casamento um homem e uma mulher tornam-se um só ser em duas pessoas. Como Deus é formado de três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Ele é um, e eles são três. No casamento é a mesma coisa. Vocês são um indivisível, mas em duas pessoas. E se Michel Basarab diz que se trata dum assunto absolutamente pessoal é preciso acreditar nele.

- Tudo o que lhe acontece, acontece-me a mim também - diz Stela. - Nós somos um. Ele não pode ter segredos.

- Domnitza Stela, tu enganas-te. O erro é um pecado grave. Toda a pessoa casada, homem ou mulher, tem segredos que não deve comunicar senão a Deus. O sacramento do casamento não exige dos esposos que comuniquem um ao outro as coisas que só devem dizer a Deus. Eu ouço em confissão os segredos que os homens não confessam senão a Deus e eu não lhes peço que se confessem ao outro esposo. Deus não confiou ao esposo os direitos que só a Deus pertencem. Não usurpes os direitos divinos. Mesmo como esposa, eles não te pertencem. Perguntaste-lhe se te engana, se ele tem uma vida secreta. Estás no teu direito de o fazer. Ele respondeu-te negativamente. Tu acreditaste nele. O que ele te esconde, está no seu direito de to esconder. Ele é talvez obrigado a não o dizer senão só a Deus. Não insistas.

- Michel, eu não posso viver ao pé de ti se tu me escondes qualquer coisa. E tu escondes qualquer coisa. Pantelimon seguiu-te passo a passo. Logo à tua chegada a Yassy, dirigiste-te directamente para a Rua Louis Pasteur. Entraste no número um. Pantelimon viu-te. É um edifício de cinco andares. Ele não sabe a que casa foste. Voltaste a sair uma hora depois e encaminhaste-te para a estação. Tu não encontraste talvez uma mulher. Mas passa-se qualquer coisa de misterioso, de secreto. Diz-me de que se trata? Mesmo que se trate de qualquer coisa de grave, lutarei ao pé de ti. Venceremos juntos. Não me deixes na ignorância porque me matas. Que segredo me escondes?

- Uma coisa que não te diz respeito nem como mulher nem como amiga. Porque essa coisa é de tal modo íntima que não se refere senão a mim, pessoalmente. Uma coisa de tal modo individual e íntima que eu posso calá-la mesmo em confissão. Não sou obrigado a dizê-la nem a Deus nem ao confessor. É tudo.

- Michel, creio em ti, mas promete-me que não voltarás mais a Yassy - diz Stela.

- Eu não te prometo nada do que não devo prometer-te - diz Michel Basarab.

Ele levanta-se e deixa a sala. Calmo, mas firme.

- Stela, minha Domnitza, eu chamo a tua atenção para o facto de o excesso de justiça ser um pecado tão grande como o pecado da injustiça - diz o padre. - Não te tornes culpada. Todos os pecados se expiam.

- Se voltas a partir mais uma vez, Michel, não voltes mais - grita Stela. - Proíbo-te que voltes para Petrodava. Contei-te como minha mãe proibiu meu pai de voltar depois de ele ter escolhido o pecado. Nós somos inflexíveis. Quando se trata de justiça e de honra nada nos amedronta. Só o amor à justiça nos mantém com vida. A nossa exigência é o nosso recurso.

Michel Basarab não ouviu a ameaça de morte. Mas volta a cabeça como se a pressentisse. É realmente de morte que Stela ameaça o marido. Seu pai, o mestre-escola Lucian Apostol, ouviu a mesma ameaça...

O padre olha para o ícone de São Jorge na parede. As janelas são grandes. Todas as montanhas, o Ceahlau, o céu, o horizonte, podem entrar na casa de Petrodava. Mas São Jorge está colocado de tal forma no canto do Levante que a imagem não beneficia da modernização da casa e, como antigamente, não se vê à luz da lamparina senão o dragão espezinhado pelos cascos do cavalo e a lança do santo que o trespassa. O santo não se vê.

- É preciso, apesar de tudo, que se tornem cristãos- aconselha o padre. - Domnitza, colocai esta imagem de tal maneira que se possa ver o santo. Não apenas o dragão atravessado por uma lança. É um dragão, evidentemente, a lança pode ser santa, mas não é uma imagem cristã. É preciso que tudo o seja. Não somente a punição e o sangue. Vocês são pagãos se rezam unicamente em frente da lança e dos cascos de cavalo que esmagam um pobre animal.

- Eu vou galopar - diz Stela-, estou demasiado enervada para ficar fechada em casa.

Ela sai como uma tempestade.

O padre e Pantelimon saem também. Domnitza Roxana, que fica sozinha, vê pela janela grande sua filha galopar em direcção à torrente. Stela monta Roca, a mais bonita égua da criação.

A torrente rola vagas de espuma. Domnitza Roxana olha para a filha com admiração. Stela chega a todo o galope à margem, ao local chamado Toance e onde a água borbota como num caldeirão posto ao lume. A espuma branca salta da torrente. Fora alguns homens da família Roca - o pai de Roxana, o avô de Stela-, nunca alguém ousou atravessar a torrente a cavalo, no Toance. A égua de Stela pára bruscamente à beira da margem e não tem coragem para se atirar nesta água que borbulha, coberta de espuma branca, e cujas ondas são tão rápidas como o voo duma flecha.

Stela encoleriza-se. Ela está de pé nos estribos. Força a égua a correr uma outra vez contra a torrente e leva-a ao mesmo lugar. Na sua janela, Roxana está prestes a aplaudir. A égua de Stela entra na torrente, como a dona lhe ordenara. Esta está de pé nos estribos, tem os cabelos em desalinho e grita como para uma carga de cavalaria. No espaço de um instante, a égua e a mulher desaparecem na espuma branca. A torrente foi mais forte que a amazona e a sua montada; no seu furor, esta velocidade branca arrancou-as para as atirar alguns metros mais abaixo. Stela e a cabeça da égua reaparecem ao de cimo da água. Mas, coisa incrível, Stela não dirige a égua para a margem oposta. Ela quer que o animal volte a subir e que atravesse a torrente ali onde caiu a primeira vez e onde a torrente é mais forte. A égua faz esforços terríveis, mas a torrente é mais forte do que ela. Por fim, a torrente foi vencida. Se não pela força, pelo menos pela coragem. Molhada até aos ossos, Stela trepa, com a égua branca de espuma, pela outra margem. Ela também está branca, como se brotasse da neve. Mas num instante a espuma transforma-se em água. Stela desce da égua. Veste uma blusa de seda crua. Desde que voltou a Petrodava, gosta de se vestir como as mulheres do país. Sacode-se para se desembaraçar da água que lhe faz pesar o corpete e a saia-calça. As botas estão cheias de água. Mas ela não se incomoda com isso. Beija a égua e encosta-lhe as ventas ao seio. Da janela do seu quarto, como de um camarote, Roxana vê neste momento uma coisa incrível. Roca recusa a carícia e o beijo de Stela. Um cavalo é ávido de ternura, mas não da ternura de qualquer pessoa. O cavalo recusa as carícias dos estranhos. Todavia, nunca um cavalo recusou a carícia, e sobretudo o abraço do cavaleiro, depois de uma prova como a travessia da torrente há pouco. E contudo, Roca, a égua que atravessou a torrente com Stela, recusa o abraço. Ela olha algures. O seu olhar não quer encontrar o olhar de Stela. Sente-o hostil.

- Entre todos os seres que vivem ao de cimo da terra não há nenhum mais feliz do que um cavalo que executou uma proeza - diz Roxana para si, à sua janela. - Roca está triste e furiosa.

Se eu a visse de repente atirar-se à minha filha como um centauro e esmagá-la debaixo dos cascos, isso não me espantaria de modo algum. Porque é que Roca está encolerizada? É sempre necessário defender-se da cólera de um cavalo. Stela ter-lhe-ia pedido demasiado? Mais do que se exige a um cavalo?

Roxana vê Stela que se inclina e observa o joelho esquerdo de Roca. Ela esfrega-o com o seu lenço molhado. O lenço está vermelho de sangue. Roca feriu-se numa ponta do rochedo. Stela ajoelha-se e faz-lhe uma ligadura com o lenço. Depois, segurando nas rédeas, entra novamente na torrente conduzindo a égua atrás de si.

- É uma loucura, uma loucura - grita Domnitza Roxana vendo a filha entrar a pé na torrente com a profundidade de dois metros, no local onde a água brota e rola à velocidade duma flecha em pleno voo e onde as pontas do rochedo atravessam as ondas como punhais.

- Stela, minha pequena Stela!

Roxana mal teve tempo de abandonar a cadeira em frente da janela quando Stela mergulhara e nadava puxando a égua. O animal não se opôs. Roca compreendeu que Stela lhe queria mostrar que não lhe pedira nada de excepcional. Ela pediu-lhe que atravessasse a torrente. E para lhe mostrar que a prova era possível, ela, uma mulher, atravessa a ribeira a nado. Sem o auxílio da égua. Sozinha. Pelos seus próprios meios. Se Roca está ferida, a culpa foi do destino. Foi um acidente e a égua não tem o direito de guardar rancor a Stela por causa de um acidente. Roca compreende o fair play. (*) É um animal novo que nunca viu um homem ou um cavalo atravessar a torrente no Toance. Ela segue Stela a nado, muito orgulhosa. Vê-se aparecer a cabeça de Stela. A cabeça de Roca. Mas como nas brincadeiras dos golfinhos, de tempos a tempos, e uma atrás da outra, na torrente vertiginosa que ulula num burburinho de espuma branca como leite.

De repente deixa de se ver a égua. Ela é levada pela corrente. Stela atinge a margem. Corre em direcção à torrente. Vê o animal atordoado pela água. Está de lado, de cascos para o ar. Um cavalo é ingénuo. Abre os olhos e vê a água. Mas a corrente é tão rápida que causa vertigem quando se a fixa. Foi o que aconteceu a Roca. Olhou para a água, ficou atordoada e rolou nas vagas. Sem hesitar um segundo, Stela atira-se novamente à água. Nada para o animal. Apanha as rédeas e com todas as suas forças puxa Roca para a margem. Ela nada em viés. Aparece. Está extenuada, mas consegue salvar Roca. Liberta-a e estende-se no chão, de costas. Fica um instante imóvel, como que crucificada na margem. Desta vez, é a égua que se inclina para a dona. Stela sente na face o beijo de Roca. Aquele que não viu um cavalo salvo da morte beijar o dono, como Roca o faz neste momento a Stela, não conhece nada da camaradagem terrestre. Stela comove-se, levanta-se e por sua vez beija a égua. Depois volta a montar. O animal fica imóvel. Stela encoraja-o. Depois chicoteia-o. Roca não se mexe. Depois, forçada, dá um passo. Mas este primeiro passo é a coxear. Stela salta da sela.

 

* Em inglês: jogo limpo, honesto.

 

Ela observa. Não tem necessidade de observar muito tempo. O osso da perna direita está completamente partido e sai da pele, branco como açúcar. A perna está condenada sem remissão. Stela beija-lhe a ferida e começa a chorar. Depois, sem olhar para trás, para não a ver coxear, entra no pátio relvado, plantado de flores, arrastando o animal doente atrás dela. Stela está esgotada pelo esforço e pelo desgosto. Desejava atirar-se para o chão. Chorar. Dormir. Mas não pode abandonar o animal, o seu camarada que sofre e que está só. Ela dessela-o e deixa-o livre, no pátio. Roca fica imóvel numa álea, no meio das rosas, em cima da relva. A perna direita perde sangue abundantemente. A perna esquerda, se bem que o osso seja visível, não sangra. Roca treme de dor. Se não se mexe, não é por causa do sofrimento, mas por orgulho, para não ter a confirmação da sua enfermidade.

Stela volta e desce a escada rapidamente. Segura um revólver. Verifica o carregador. É um revólver novo. Aproxima-se do animal ferido. Encosta o cano à testa de Roca, em cima, entre as orelhas. Ali onde sabe que se encontra o "mir", "a paz", para os homens e para os animais. Descarrega. Uma bala. Duas. À terceira bala, a égua que não se tinha mexido, embora não estivesse amarrada, cai. Ela sabia-se talvez condenada à morte. Ela sabia talvez que, para ela, não havia outra saída senão a execução. Ou talvez ela tivesse uma grande confiança em Stela, sua dona, e não imaginasse que Stela a salvara da torrente, com perigo da própria vida, unicamente para a matar. Mesmo depois da segunda bala, Roca não acreditava que seria morta.

E não se mexeu. Então Stela continuou a atirar, mas desta vez fechando os olhos. E ela atirou ainda quatro balas. O animal cai por terra. Stela sente o sangue escaldante que jorra como duma torneira, como dum duche, que lhe borrifa o rosto, o peito, todo o corpo. Mas ela tem uma missão a cumprir. Não pode abandonar o seu camarada enfermo. Para o animal, nada mais há do que a morte. O génio, o sentido da sua vida de cavalo, são as pernas. E se as pernas estão partidas, não vale a pena viver. Para Stela é a mesma coisa: a honra e a justiça são o eixo da sua vida. Se a honra e a justiça estão destruídas, ela não tem razão para viver.

-Criminosa! - grita uma voz rouca. É o tenente Michel Basarab. Ele ouviu os tiros. Saiu para o pátio onde encontrou a mulher, Stela, com um revólver na mão, em vias de abater um cavalo. Stela está coberta de sangue, irreconhecível. Um poço artesiano, vermelho e escaldante, acaba de jorrar e inunda Stela.

- Criminosa! - grita Michel Basarab. E atira-se para agarrar a arma, mas Stela empurra-o com um soco. Michel escorrega na erva ensanguentada e cai. Stela descarrega o revólver até à última bala. Continua a atirar para a cabeça do animal morto, estendido num charco formado pelo sangue que continua a jorrar do corpo imenso. Stela atira o revólver ainda quente para o chão e parte. Sem se aperceber dos gritos do marido, que diz:

- Criminosa, criminosa, não quero voltar a ver-te. Nunca mais!

- Que fizeste, minha filha? Minha Stela, que fizeste? - perguntou Domnitza Roxana, barrando-lhe o caminho.

- Roca estava ferida - explica Stela. - Eu não podia deixá-la viver assim. Um cavalo nobre não é como um cocheiro, como Pantelimon Haidouk, capaz de viver a coxear. Um cocheiro, um homem, pode muito bem viver com uma só perna. Um cavalo não pode. Tem de ser abatido.

- Que fizeste ao teu marido? - pergunta Domnitza Roxana. - Michel desmaiou. Tu sabes que ele não suporta ver sangue. Que tem medo da morte. Porque é que mataste o animal diante dele? Porquê, Stela?

- Roca devia ser executada porque estava doente. Era meu dever fazê-la desaparecer. Um cavalo não pode suicidar-se, o homem tem de o ajudar, é o seu dever.

- Mas tu acabas de matar também Michel, teu marido. Quando te viu atirar sobre o cavalo, perdeu os sentidos. Está quase morto de pavor.

- Mãezinha, deixa-me em paz com o desfalecimento de Michel. Mesmo que seja o meu marido. Mesmo que esteja morto de medo. Eu cumpri um acto de justiça e de honra em relação ao meu cavalo e camarada. Se um homem, mesmo que seja meu marido, não pode suportar o espectáculo de um acto de justiça, não tem o direito de viver. Deveria eu deixar o meu mais nobre cavalo arrastar-se como um inválido, na minha frente e na frente das pessoas, porque um homem tem medo da justiça? Que se vá embora se não a pode suportar. Não há lugar para ele em Petrodava. Que agarre nas suas moscas e que se vá embora. Imediatamente com as suas moscas, o seu medo da morte. Urgentemente.

Mas o tenente Michel Basarab não partiu. Pantelimon e dois criados transportaram-no sem sentidos para o quarto. E voltou a si para gritar novamente:

- Criminosa, criminosa! Não quero voltar a vê-la!

Michel mandou embora Pantelimon e os criados. Fechou as persianas, aferrolhou as portas e barricou-se como se estivesse à espera de um ataque da parte de Stela, a criminosa. Gritou por muito tempo, pela noite fora. Depois a paz desceu sobre a casa de Petrodava. Toda a gente adormeceu, inclusivamente Stela. Ela dorme com a consciência tranquila, com o sentimento do dever cumprido. Dorme com um sono calmo, sereno. Um homem está ligado à vida, quer pelo amor, quer pela honra. Stela, é a honra que a liga à vida. Ela cumpriu um acto de honra. O que faz com que esteja profundamente satisfeita com a vida e consigo mesma.

 

O refúgio na loucura

No dia seguinte à cena da morte de Roca, a égua ferida na torrente, o tenente Michel Basarab levantou-se como de costume. Abriu as persianas, desaferrolhou a porta e retirou a barricada que havia instalado para a noite. Não resta vestígio do bloqueio da noite. O rosto do tenente não contém marcas de combate nem de medo. Na véspera, quando ele se fechou no quarto a proferir palavras de ódio, de medo e de terror contra Stela, sua mulher, que acabava de assassinar um cavalo, a cabeça do tenente assemelhava-se a uma máscara de pavor, amarela, com estrias negras. Agora tem um rosto calmo, barbeado há pouco. Desce à casa de jantar para o pequeno almoço. Está calmo, continua a ter a elegância felina que Stela tanto admirava. Michel Basarab beija a sogra e Stela, sua mulher. Como se nada tivesse havido. Como se nada se tivesse passado na véspera. Dá os bons-dias a Pantelimon Haidouk com amizade.

Depois do pequeno almoço tomado em silêncio, porque na casa de Petrodava nunca se é tagarela, Michel Basarab pega num livro e instala-se no cadeirão. Ali fica toda a manhã, lê calmamente, fuma e olha para o céu por cima das montanhas cobertas de neve. Nada mudou na atitude de Michel Basarab. Tudo estava como dantes. Mas para um pequeno observador era fácil de entender que Michel Basarab não vivia presentemente senão pela força do hábito. Estava completamente desligado do quotidiano, de tudo o que o rodeia e de todos. Ele fechou-se dentro de si como um caracol dentro da casca.

- Tenho a impressão que o teu marido esqueceu completamente a cena do fuzilamento - diz Roxana. - Nem uma só alusão ao que se passou. Tu cometeste um grande erro em matar o cavalo na presença dum homem que tem um tal medo da morte e um tal medo do sangue. Isso podia ter tido consequências graves. Quando ele te viu ontem debaixo do duche de sangue que jorrava da cabeça do animal enquanto tu continuavas a descarregar o teu revólver, ele perdeu os sentidos. Quando o vi barricar-se no quarto e gritar criminosa, mulher vampiro...", julguei que tudo estava acabado entre vós. É possível que ele tenha esquecido tudo no espaço de uma noite?

- Os epítetos de criminosa e de vampiro, ele não tem o direito de os esquecer - diz Stela. - E mesmo que os tenha esquecido, lembrar-lhos-ei. Ele tem de me pedir perdão por me ter tratado por criminosa. Abater um cavalo nobre porque ele está inválido não é um crime. É um acto nobre. É um golpe de misericórdia. Mas só um cavaleiro o pode compreender. Um verdadeiro homem. Um homem que cria cavalos. Não um criador de moscas, como Michel. Se ele tivesse sido um homem de honra, o seu primeiro gesto esta manhã teria sido um gesto de desculpa.

- Mostrar que não se lembra das cenas penosas de ontem é uma maneira bem mais elegante de apresentar desculpas - diz Domnitza Roxana. - Mais elegante e mais cavalheiresca. Mas isso, tu não o podes compreender. Tu és uma criadora de cavalos. A dura proprietária de Petrodava.

- Mesmo que Michel tenha esquecido tudo, espero que ele se recordará da morte de Roca e da fonte artesiana de sangue, ele que não pode suportar a presença da morte violenta e do sangue. Espero que ele se recordará no momento em que tiver novamente desejo de se dirigir a Yassy, Rua Louis Pasteur, número um. E tenho direito a acreditar que ele não voltará mais.

Às refeições dos dias e das semanas que se seguiram, o tenente Michel Basarab mostrou-se impecável. À mesa, comia sem grande apetite. Aliás, ele nunca fora um grande comilão. Após a refeição, pede um cálice de licor, depois pensa. Parece mais pensativo e mais fatigado que antigamente. Mas mesmo estas cambiantes imperceptíveis não podem ser consideradas como mudanças na sua existência. A única verdadeira mudança nos seus hábitos verifica-se no facto de, a partir do dia da morte de Roca, a égua inválida, assim que se levanta da mesa, Michel Basarab ir directamente para o seu quarto e deitar-se. Antes, ele nunca dormia a sesta. Agora, despe-se, veste o pijama e dorme durante duas ou três horas. E isto todas as tardes.

- Ele finge que dorme para não passar as tardes na nossa companhia - diz Domnitza Roxana.

- Deita-se para nos evitar. Mas finge dormir.

- Eu entrei no quarto dele e observei-o - diz Stela. - Ele não finge dormir. Todas as tardes, ele adormece imediatamente, como se voltasse duma longa viagem. Um sono profundo, pesado. Nunca o vi dormir assim.

Uma vez acordado, por volta das quatro ou cinco horas, Michel Basarab entra na casa de banho e lava-se, durante quase uma hora, debaixo do duche. É um hábito novo aparecido com a sesta e o sono pesado, depois da morte de Roca.

- Não é natural que um homem se lave duas vezes por dia, de manhã e à tarde. Como se ele quisesse mudar a cor da pele - diz Domnitza Roxana. - Mas não podemos censurá-lo só porque ele sente necessidade de se lavar.

A terceira mudança que sobreveio na vida de Michel Basarab é a lentidão. Toda a sua vida quotidiana, depois daquela cena sangrenta, perdeu a sua rapidez e desenrola-se lentamente. Nada de pressa, em nada. Cada gesto de Michel é cumprido com a máxima lentidão. Habitualmente ele levantava-se, arranjava-se e vestia-se num quarto de hora. Militarmente. Agora nunca mais acaba de dar o nó na gravata e atacar os sapatos. Dir-se-ia que acaba de descobrir uma nova volúpia nos gestos lentos. Ele é como um relógio cujos ponteiros levam três horas para efectuar no mostrador um movimento de rotação que não necessita mais duma hora. Uma mola partiu-se nele. As duas mulheres não podem contudo repreender esta lentidão em Michel Basarab. Ninguém lhe pode repreender nada.

É um homem impecável. Nas semanas, nos meses que se seguiram, ele não foi uma única vez a Yassy.

Seis meses passaram desde que a égua foi abatida e Michel nunca deixou Petrodava. Nunca se afastou da casa.

Uma tarde, por volta das cinco horas e meia, saiu do quarto, depois de se ter lavado, vestido com o seu camisolão vermelho de gola alta e com umas calças de veludo. Dirigiu-se para o roseiral, para o jardim das flores onde instalara o seu colmeal. Era a sua ocupação diária. Ele ficava até à noite com as suas abelhas, com as suas moscas de mel. Como um verdadeiro "criador de moscas". Menos de um quarto de hora depois da sua partida para as colmeias, Michel apareceu a gritar em frente da casa, exactamente no local onde Stela abatera a égua inválida. Ele estava envolvido numa nuvem de abelhas que lhe cobriam a cabeça, os ouvidos, o nariz, as mãos. Todo o corpo de Michel Basarab está coberto por uma armadura viva composta de milhares de abelhas que nele se aferravam e em cada milímetro de pele um ferrão estava enterrado. O rosto está coberto por três, quatro camadas de abelhas que o picam ou querem picar. Que querem exterminá-lo. O tenente está de pé, horrorizado, gritando por auxílio, tentando desembaraçar-se desta nuvem negra e dourada que o rodeia, que o persegue, que quere isolá-lo da vida e matá-lo. Leva as mãos aos olhos, ao nariz, à cara, aos ouvidos, onde lhe dói mais. Mas os seus dedos, as palmas das mãos, os braços, estão cobertos de abelhas aglutinadas, apertadas umas contra as outras e que o picam. Quando toca o seu rosto com a mão, esta não é a sua própria mão, mas uma luva viva de abelhas.

Os gritos de dor de Michel Basarab fizeram estremecer a casa de Petrodava. São longos gritos, como os dos cães raivosos, que uivam à noite em plena Lua, e que parecem nunca mais terminar. Pantelimon Haidouk, Domnitza Roxana e Stela, todos os criados, rodeiam Michel Basarab, mas ninguém consegue ver a menor parcela do seu rosto. Está completamente coberto pelos corpos das moscas de mel. Ele grita:

- Fui atacado pelas abelhas! Fui atacado pelas abelhas!

O tenente tenta desembaraçar-se delas. Mas a armadura viva de abelhas cola mais que o alcatrão e cada insecto enterrou profundamente na pele do homem o seu ferrão mortífero. Uma nuvem densa de abelhas ataca, uma outra está prestes a revezar-se e outras nuvens sobrevêm. Stela desata a soluçar. Uma mulher, mesmo que deteste o seu marido, não pode suportar vê-lo ser devorado pelas abelhas com os seus próprios olhos.

Duas criadas jovens, Tinka e Ileana, chegam com os vaporizadores de Fly-Tox, de que se servem habitualmente para matar as moscas nos quartos. Aspergem de insecticida o tenente, mas as moscas de mel não se desprendem. Mesmo mortas, ficam presas junto à pele onde enterraram os ferrões. Outras chegam e logo que um milímetro de pele é visível poisam nele. Para as retirar, as criadas utilizam agora vassouras. Stela e Roxana servem-se de toalhas.

Presentemente, Michel Basarab está calmo. Abandona-se à nuvem de abelhas que o cobre. Já não luta. Fica imóvel como uma estátua. Dir-se-ia mesmo que ele já não sente a dor.

- Fecha os olhos, meu pobre Michel - grita Stela. - Fecha os olhos.

Ela dirige o pulverizador para o rosto de Michel e carrega com todas as suas forças. Ela não sabe se Michel tem os olhos abertos ou fechados porque as órbitas estão cheias de abelhas. Têm de se arrancar uma a uma depois de as terem matado com o insecticida. Para proteger o tenente dos assaltos das abelhas que surgem de todos os lados, como nuvens mortíferas, fazem-no entrar em casa. Servindo-se de vassouras, de pulverizadores e das mãos, acabam por desembaraçá-lo das abelhas que atiram para o soalho e que esmagam com os pés, exactamente como os cascos do cavalo de São Jorge esmagam o dragão na imagem.

Os insectos são por fim vencidos. O corpo do tenente está desembaraçado destes dragões de mel. Mas ninguém pode olhar para ele. Mesmo os criados não têm coragem. A cabeça do tenente triplicou de volume. Tudo está inchado, deformado, como visto à lupa. Não se lhe vêem as orelhas. Nem os olhos. Nem o nariz. Ele está coberto de intumescências. As faces e o pescoço são os mais inchados, de modo que o resto da cabeça é quase secundário. Além disso, a cor da pele é medonha. Todos os matizes de violeta, berinjela, cereja madura, misturados de vermelho, de amarelo, estão ali reunidos.

- Não se morre das picadas das abelhas - diz calmamente o tenente.

As suas palavras são monstruosas porque os lábios, tumefactos, enormes, as deformam e parecem pronunciadas do fundo de um redemoinho de algodão sanguinolento.

Domnitza Roxana, calma mas assustada, acaba de lhe fazer um penso na cabeça. Envolvida em ligaduras de gaze, a cabeça de Basarab é ainda mais horrível. É enorme. Monstruosa.

Pantelimon partiu de carro à procura de um médico.

- O médico não vai demorar - diz Roxana. Ela quer consolar o tenente. Michel tenta sorrir. Mas com uma tal cabeça, uma cabeça de monstro, como nunca um pintor de monstros pôde imaginar, não se sabe se se trata de sorriso, de troça, de soluço ou de uma careta de terror.

- Michel, tu nunca foste picado por abelhas?

- pergunta Roxana.

- Nunca - responde o tenente.

- Tu fizeste-lhes alguma coisa? - continua Domnitza Roxana.

- Nada - responde Michel.

- Porque é que elas se atiraram de repente sobre ti? - pergunta Roxana. - Deves ter-lhes feito alguma coisa. Elas queriam matar-te.

- Nada lhes fiz - responde ele. - Primeiro, vieram quatro abelhas girar à volta da minha cabeça, várias vezes, como quatro satélites. Elas estavam a explorar. Eram quatro ou cinco. Não eram provocantes. Vieram em missão de informação. Depois vieram outras. Um grupo de dez, aproximadamente. Voaram à volta da minha cabeça, mas duma maneira mais indiscreta. As suas asas entraram-me quase nos olhos. Eram impertinentes. Um pouco agressivas. Insolentes. Não lhes liguei importância. Depois, houve um terceiro destacamento. Mais importante. Sempre em missão de exploração. Estas giraram durante muito tempo à volta da minha cabeça. Cinicamente à volta da minha cabeça. Desta vez eram provocadoras. Interrogadoras. Investigadoras. Depois desapareceram. Partiram para dar o alerta a todas as outras colmeias. Como para uma mobilização geral, os enxames surgiram por vagas. Saindo de todas as colmeias. Atacaram-me por todos os lados. Progressivamente primeiro. Simultaneamente a seguir. Puseram-me fora das suas muralhas. Obrigaram-me a refugiar-me no pátio. Outros reforços chegaram. Desta vez as abelhas desencadearam o ataque de exterminação. Foi nessa altura que vocês chegaram. Vocês salvaram-me. Muito obrigado. Os últimos enxames, verdadeiros comandos punitivos, comandos da morte, foram os mais terríveis. Terríveis.

O médico chegou uma hora mais tarde. Deu uma injecção calmante a Michel, depois uma outra contra a infecção. Prometeu voltar no dia seguinte.

Michel Basarab adormeceu. Estendido de costas. Tem a figura de um monstro. Uma figura onde se encontram todos os matizes de violeta e de amarelo, as cores do inferno. Os olhos, o nariz, os lábios são de um monstro. Uma cabeça de quadro surrealista. Todas as cores de ferida, de bubão, de furúnculo, estão neste rosto.

Quando Michel Basarab adormeceu, Domnitza Roxana e Stela comentam os factos.

- É estranho que as abelhas o tenham atacado - diz Domnitza Roxana. - As abelhas nunca atacam ninguém sem um motivo sério.

-Que motivo podiam elas ter para tentarem matá-lo assim? Esta expedição punitiva era verdadeiramente uma missão de exterminação contra o pobre Michel - diz Stela. Mostra-se agora tão enternecida que diz: - Pobre Michel. Acabo de descobrir que nobre coração ele tem. Viste com que estoicismo ele suportou tudo? Além dos gritos de socorro, gritos que se assemelhavam aos silvos das sereias, aos latidos dos cães loucos pelas noites de lua, ou aos pedidos de socorro de um barco que se afunda, ele não proferiu uma única queixa. Desde que chegámos ele suportou as picadas como se não se tratasse da sua carne e do seu corpo. Nem um gemido. Nem um grito de angústia ou de dor. Nada. Mas como elas o desfiguraram! Como elas o desfiguraram, esses dragões ferozes chamados abelhas!

- As abelhas nunca atacam um homem asseado - diz Domnitza Roxana.

- Tu picas e és cruel como elas, mãezinha - diz Stela. - Que queres tu insinuar?

- Eu não insinuo nada - diz Domnitza Roxana.

- Afirmo um facto, as abelhas nunca atacam um homem que esteja limpo. É tudo. Se estiveres suja quando te aproximares delas, as abelhas exterminar-te-ão.

- Mãezinha, Michel acabou de tomar banho quando se dirigiu para o pé das colmeias. Ele esteve mais de uma hora debaixo do duche. Como de costume. Michel peca por excesso de asseio.

- Se ele não estivesse sujo, as abelhas não o teriam atacado - continua Roxana.

- Mãezinha! - diz Stela encolerizada. - Sabes que hoje Michel esteve no banho mais tempo do que o costume? Nestes últimos tempos ele fazia-nos medo com esta mania de se lavar.

- Isso prova que ele se sabia portador de uma sujidade da qual desejava desembaraçar-se. E que provocou o desejo de morte nas abelhas - diz Roxana. - Porque é que o teu marido ficava duas horas no banho se ele não estivesse mortificado por uma impureza de que se desejava limpar? Se ele não estivesse sujo, acabaria de se arranjar num quarto de hora. Mas, para Michel, duas horas não bastam. Uma hora de manhã, outra à tarde. E continua sujo. A prova? O ataque das abelhas. As abelhas não se agarram ao homem senão por motivos de sujidade. De mau cheiro. De pecado. As abelhas não suportam contacto senão com seres puros. Tanto por fora como por dentro. Teu marido não conseguiu limpar-se. Agora tem a cabeça de um monstro.

Stela chora.

- Tu és dura, mãezinha. Tu és dura, Domnitza Roxana. Lamento ser tua filha.

- Sou justa, minha Stela. Não sou dura. Aquele que é justo não pode ser misericordioso. Dou-te conhecimento de uma verdade. Um dia constatarás que o que acabo de te dizer era justo. Verificá-lo-ás. Uma realidade é o que é, não o que nós queremos...

Michel Basarab não parece surpreendido com a sua cabeça de monstro. Vê-se com indiferença no espelho que Stela lhe estende. O acontecimento não o aflige. Logo no dia seguinte parece ter esquecido a agressão das abelhas. com a cabeça envolvida de ligaduras, ficou de cama durante dois dias. Na manhã do terceiro dia, quando as criadas Tinka e Ileana subiram para lhe levar o pequeno almoço, encontraram a cama vazia.

Mãezinha, Michel, o meu querido Michel, desapareceu - grita Stela. - Michel abandonou-me e fugiu.

Stela está realmente desesperada. Torce as mãos. Chora. Corre de quarto para quarto. Procura. Dá ordens. Pelo contrário, Domnitza Roxana, de baltag na mão, está direita como um pinheiro. Inspecciona todos os quartos e dependências da casa de Petrodava.

- É doloroso para a pobre Stela ser abandonada pelo marido - diz Domnitza Roxana, depois de ter constatado com os seus próprios olhos o desaparecimento de Michel Basarab.

Chama Pantelimon. O cocheiro está aflito. Como Stela. Aliás, em Petrodava toda a gente perdeu a cabeça.

- Porque te afliges, meu pobre Pantelimon? - pergunta Domnitza Roxana.

- Se mesmo desta vez não há de que me afligir, Domnitza, então não sei quando um homem terá

o direito de perder o sangue-frio. Desde a batalha contra os bolchevistas em Prut nunca mais vivi tão trágicos momentos. Para onde teria ido o nosso pobre senhor? Porque é que ele desapareceu?

- Pantelimon, é verdade que as abelhas quiseram matar o tenente e que o correram para longe delas?

- Pois claro que é verdade - responde Pantelimon. - Fomos todos testemunhas disso.

- As abelhas não atacam e não tentam matar um homem limpo, Pantelimon. Ele devia ter uma sujidade nele ou com ele. Uma sujidade que só ele conhecia, mas que as abelhas não puderam suportar. Foi por causa dessa impureza, dessa infecção, que as abelhas o quiseram assassinar. Agora, meu pobre Pantelimon, pergunto-te: julgas que uma mulher seja menos que uma abelha? Julgas que Stela não teria descoberto com o andar do tempo a impureza, o abcesso, o foco de infecção que as abelhas acabam de descobrir? Stela acabaria por saber o que sabem as abelhas. E teria corrido O "senhor tenente", teria tentado matá-lo se as abelhas não o tivessem feito. É melhor que ele tenha desaparecido. Ele era culpado e sabia-o.

- Não atirai pedras, Domnitza - diz o pobre Pantelimon Haidouk.

- O tenente era suspeito desde o princípio - diz Roxana. - Desde que preferiu as moscas de mel aos cavalos. Tolerei-o porque era o marido da minha filha, mas nunca deixei de suspeitar dele. Um homem que nunca deseja montar um cavalo e que tem medo da morte é criminoso. Preferindo as abelhas aos cavalos, ele comportou-se como os inválidos, os impotentes e os "mal nascidos". As abelhas viram o que eu pressenti e quiseram assassiná-lo. Elas quiseram limpar Petrodava duma impureza.

O baltag de prata de Domnitza Roxana bate no soalho.

- Procurem-no por toda a parte - ordena Domnitza Roxana. - É obrigatório. A sorte de Petrodava seria não encontrá-lo. Partam. Que todos os criados cumpram o seu dever. Que o procurem em todas as cavernas, em todos os buracos. Um homem que as abelhas correram e quiseram matar não pode encontrar refúgio senão num buraco. Como as toupeiras e os arganazes. Como os invertebrados.

As pesquisas empreendidas para encontrar o tenente Michel Basarab duraram toda a manhã. Sem resultado. Pantelimon, que dirigia as operações, apresentou a sua informação:

- Ele só podia ter partido a pé, Domnitza. Se o senhor tenente partiu a pé, não pode estar longe. Mesmo que tenha partido antes da meia-noite, não deve estar longe. com a velocidade do passo humano ele deve encontrar-se num raio de vinte a trinta quilómetros. Mas não está. Não há neste raio nem tenente Basarab, nem o menor rasto dele. Nem um. Em parte alguma.

- Que objectos levou ele quando partiu? - pergunta Domnitza Roxana às duas criadas. Elas deviam fazer o inventário de tudo o que pertencia ao tenente para ver se não faltava nada.

- Ele não levou senão o fato que tinha com ele - respondeu uma criada. - Todos os outros objectos, até os mais pequenos, estão no seu lugar.

- Se ele partiu sem nada, isso significa que se matou - diz Domnitza Roxana. - Só os candidatos ao suicídio partem sem bagagem. Que o procurem à volta da casa. Como de costume, os que desejam destruir-se escolhem um local nas visinhanças. Nunca se afastam muito do seu domicílio.

- Domnitza Roxana - diz Pantelimon-, esta manhã destes ordem para efectuar todas as pesquisas com a máxima discrição. Que não houvesse senão nós, os servidores e os criados da casa de Petrodava. Tentámos, mas não foi possível. À hora actual todas as pessoas de Petrodava sabem que o tenente Basarab desapareceu. Não são só os camponeses de Petrodava que participam nas pesquisas, mas também os das aldeias vizinhas.

- Nesse caso, visto que já não existe segredo, visto que o facto se tornou público, vamos mandar um rapaz prevenir oficialmente os gendarmes do vale. A fim de fazer as coisas legalmente. O escândalo é muito grande para que o possamos manter em segredo. Pobre Michel Basarab. Resta-lhe uma única oportunidade para recuperar o meu respeito: o suicídio. Esta seria da sua parte a única acção viril desde que o conheço. Mas não o julgo capaz de uma acção viril. Nunca as abelhas teriam atacado um homem que estivesse prestes a cumprir um acto de vontade suprema como é o suicídio.

Os camponeses de Petrodava, que são unicamente lenhadores ou que navegam na torrente, gostam de Michel Basarab. Eles lastimaram o tenente quando da sua chegada a Petrodava. Eles sabiam-no encerrado entre duas mulheres perfeitas. Duma perfeição no mais alto grau. Duma perfeição de tal modo "concentrada" que era impossível a um homem vindo de fora resistir a ela. Mesmo os cavalos, se eles não são da mais pura raça, não podem resistir às mulheres da casa de Petrodava. Os cavalos que têm uma tara ou que são bastardos estoiram ao primeiro galope dado com uma das donas de Petrodava. Só um homem da sua raça, da raça das rochas, poderia suportar e dominar uma mulher de Petrodava. Michel Basarab não era desta raça dura. Era duma natureza mais delicada. As mulheres de Petrodava não podem ser dominadas senão por um cavalo ou um homem mais perfeito do que elas. Elas não podem ser vencidas senão em competição. Quando se consegue vencê-las em competição, as mulheres de Petrodava tornam-se meigas como as pombas. Como cordeiros. Diante do homem ou do cavalo que lhes é superior arrastam-se de joelhos, submissas como verdadeiras escravas. Mas escravas, não o são senão diante da perfeição absoluta, sem falha.

- O tenente Michel Basarab? Vamos encontrá-lo enforcado - diz Pantelimon Haidouk. - Não era homem para ter a coragem de se atirar à torrente. E além da corda ao pescoço e do mergulho na torrente, não há outro meio de se suprimir em Petrodava. É uma aldeia pobre. Mesmo em matéria de suicídio as pessoas não têm grande escolha!

Os gendarmes chegam acompanhados por alguns soldados e caçadores alpinos. No início das pesquisas pensava-se que o tenente Michel Basarab tinha fugido. No decorrer da tarde não se falava senão de um possível suicídio. Os camponeses, os gendarmes, as mulheres, detêm-se debaixo de cada pinheiro, olham para cima para ver se o corpo inanimado de Michel Basarab, o marido de Domnitza Stela, de Petrodava, não está enforcado em qualquer ramo. A convicção de que o tenente se enforcou está de tal modo enraizada nos espíritos que se abandonam as outras pesquisas.

Pela noite, a notícia espalha-se com a rapidez de um relâmpago: o tenente não se enforcou. Encontraram-no vivo. Está no cimo de um pinheiro, não longe da casa de Petrodava. As pessoas acorrem para ver. O tenente está realmente no cimo de um dos mais altos pinheiros. Está empoleirado lá em cima, como um corvo. No último ramo. Em alguns minutos centenas de pessoas juntaram-se à volta da árvore. Olham para o tenente e falam-lhe. Michel Basarab está atento e assustado. Em baixo, a alguns metros debaixo dos ramos, a torrente rola as suas águas espumosas. À direita encontra-se um abismo com a profundidade de centenas de metros. Todos os camponeses se espantam e perguntam entre si como é que o tenente, que não foi aqui criado e que não tem o conhecimento do terreno como os nativos destes lugares, conseguiu trepar por entre as rochas até junto do pinheiro e içar-se lá para cima, ali onde só as aves se podem empoleirar.

Mas as maiores dificuldades não começam senão depois da descoberta do oficial. O tenente Michel Basarab recusa-se a descer da árvore.

- Só aqui estou em segurança - diz ele. - As águas da torrente engrossam. Dentro de alguns segundos vão submergir tudo. Tenho medo de descer. Tive sempre medo da morte.

Michel Basarab olha para as águas da torrente, que se lançam rápidas como flechas. Elas borbulham, redemoinham, despedaçam-se nas revessas de espuma, com urros de animais. O tenente observa-as, horrorizado.

- Isto será mais terrível que no tempo de Noé - diz. - Mais terrível que o dilúvio. A torrente engolirá tudo. O planeta inteiro rolará nas suas águas como um enorme calhau. Para obrigarem o tenente a descer da árvore teve de se trabalhar toda a noite. Depois de algumas horas de tentativas, o capitão dos gendarmes, comandante da região, tomou a direcção das operações. À menor violência, à menor imperícia da parte dos salvadores, o tenente poderia cair na torrente. Logo que algum queria subir ou desejava estender-lhe uma escada, Michel içava-se o mais alto possível, no último ramo do pinheiro, e o cimo vergava ao peso do desesperado como um ramo suporta o fruto demasiado pesado. Debaixo do pinheiro há o abismo e a torrente...

- Pedimos para falar a Domnitza Roxana e a Domnitza Stela - diz o capitão dos gendarmes que dirige as operações.

- Não podemos salvá-lo, Domnitza - diz o capitão, que perde o sangue-frio diante destas mulheres mais direitas que os generais na parada.

Está para além das nossas forças. Nós corremos o risco de o fazer cair. Na ravina ou na torrente. Não podemos insistir mais. Devíamos pedir o auxílio dos bombeiros de Yassy. Eles têm os aparelhos necessários. Mas é-nos preciso o vosso consentimento. Haverá despesas de deslocação. Os bombeiros não se deslocam senão em caso de incêndio. Ora, aqui não há fogo! Além disso, não é a sua região.

- Faça tudo o que é humanamente possível, capitão - diz Domnitza Roxana. - Qualquer ; esforço, qualquer sacrifício não deve ser evitado.

Salve-o.

Todo o departamento está em movimento. De madrugada chegam os bombeiros de Yassy, que viajaram toda a noite para chegar aqui onde acabam as estradas terrestres e onde só as nuvens podem caminhar. Os bombeiros trazem escadas enormes e redes. Logo que o tenente foi descoberto, Domnitza Roxana e Stela chegaram debaixo do pinheiro. Elas insistiram, falaram-lhe. Tentaram persuadi-lo de que tinha de descer...

- Se eu desço, sou levado e aniquilado pela torrente - responde o tenente. - Só aqui estou em segurança.

As duas mulheres, a esposa e a sogra, esgotaram todos os argumentos. Quando as autoridades, os gendarmes, os soldados e a população das outras aldeias chegaram, elas retiraram-se envergonhadas para a sua casa de Petrodava. As duas sentem-se terrivelmente humilhadas. Nunca uma mulher, uma proprietária de Petrodava sofreu uma tal vergonha e uma tal humilhação. Domnitza Roxana e Stela fecharam-se à chave no salão com a luz acesa. Não pronunciaram uma palavra. Nem a filha nem a mãe. Ficaram assim toda a noite. As mãos cruzadas no peito. Imóveis nas suas poltronas, esperam.

Às dez horas da manhã os bombeiros e os gendarmes apareceram no pátio. Traziam o tenente Basarab numa maca de campanha, envolvido como uma criança e amarrado com cordas porque se tinha tornado violento.

O pátio da casa de Petrodava está cheio de gente. Está o prefeito do departamento, o comandante militar da região, as autoridades civis. Só as duas mulheres estão ausentes. Continuam no salão. Silenciosas. Imóveis. As luzes continuam acesas. Para elas, os pormenores não têm importância e, em comparação com o drama, o dia ou a noite não são senão pormenores sem importância.

O médico-chefe do distrito tenta alimentar o tenente Michel Basarab, que nada comeu desde há um dia e duas noites. Ele começa hoje o seu terceiro dia de jejum forçado. Mas logo que foi desamarrado, o tenente torna-se violento. Ele protesta por o terem feito descer do único lugar onde estava ao abrigo da torrente universal. Quer fugir e trepar para o primeiro pinheiro que encontra.

- Ele está completamente demente - diz o médico do distrito. - A minha incompetência proíbe-me de tentar seja o que for. Temos de o confiar a um especialista.

- Desejávamos falar às duas senhoras - diz o capitão dos gendarmes.

Roxana e Stela recebem-no no salão. O corpo amarrado de Michel Basarab é conduzido pelos bombeiros -e depositado em cima do tapete como um fardo, aos pés das duas mulheres. O rosto está irreconhecível. Todas as luzes dos seus olhos, da sua cara e da sua testa estão apagadas. O tenente desapareceu nas trevas. Está perdido. Doido. Apesar disso, Stela inclina-se sobre ele e beija-o. Também se beijam os mortos! Mas ele não se apercebe que a mulher o beijou! Ele nem mesmo sabe que esta mulher que se aproxima dele é a sua mulher nem que se encontra na casa de Petrodava. Todas as luzes se extinguiram à volta dele, em todo o universo, e, para ele, só existe uma torrente que o ameaça com as suas águas espumosas e um pinheiro para o qual tem de trepar. O resto desapareceu.

- Ninguém nos pode pedir, nem a nossa própria consciência, nem a lei, nem o afecto, nem os nossos semelhantes, ninguém nos pode pedir que sejamos mais fortes que Deus. Não se pode pedir, a nós, duas mulheres, o que não se pediu nem mesmo a Deus. Nós deixaremos perecer o pobre Michel. Levem-no. Temos consciência de que a sua queda nas trevas é, também, um acto natural, desde o momento que ela se passe, como o nascimento e a morte, na terra dos homens. Abandonar às trevas alguém que caiu nas trevas também é um acto natural. É doloroso, seguramente. Amámo-lo. Continuaremos a amá-lo na nossa memória. Era o nosso chefe. O nosso sol... O esposo é o senhor. E o senhor é o sol de um pequeno sistema planetário que é a família. Se ele se vai embora, afundando-se nas trevas, o sol do nosso sistema planetário abandona-nos. E ficamos às escuras. Eu não sei qual de nós se encontra na maior obscuridade: ele, que se extinguiu, ou nós, que ficamos privadas da sua luz. Leve-o, coronel. Nós consentimos neste acto do arrebatamento do nosso sol, mas a nossa dor é a de Deus, quando Ele deixa cair do firmamento as suas estrelas mais deslumbrantes, os cometas que se extinguem. Extintas, elas já não têm lugar na abóbada celeste. Devem cair e tornar-se pedras e cinzas.

Domnitza Roxana inclina-se e poisa um beijo na testa de Michel. Ela diz:

- Adeus, meu pobre Michel. Boa noite, na tua noite.

Stela chora, soluçando profundamente. Não quer aproximar-se do marido. Michel olha-a com indiferença. Não a reconhece. Não se recorda de a ter visto. Apesar disso, Stela Basarab salta como um animal ferido e beija-lhe a testa. E quando aproxima os seus lábios da testa de Michel vê que a sua testa está vermelha, azul, violeta, tem a cor das feridas e das carnes apodrecidas, a cor das cicatrizes.

São os traços deixados pelas mordeduras das abelhas. As duas mulheres evitam olhar para Michel Basarab no momento em que quatro bombeiros o levantam como um fardo amorfo e o levam do salão. Elas cumprimentam o coronel dos bombeiros e o capitão dos gendarmes, assim como todas as outras pessoas, e Domnitza diz-lhes, soberana:

- Senhores, agradecemos a vossa ajuda pronta, sábia e eficaz.

Roxana está calma. Stela Basarab chora. Lágrimas grossas semelhantes a diamantes rolam em dupla ribeira pelas suas faces. A desgraça que sobreveio a seu marido dilacera-a. O espírito que abandona uma cabeça humana e se extingue é o sol que desaparece no universo. Após a morte do espírito, o corpo do homem já não pode ser considerado como um corpo vivo. Para Stela, é um falecimento. O espírito é como o sol, como a luz do dia sobre a terra. Tudo morre na terra privada de sol. Tudo está morto na pessoa de Michel. Os seus cabelos estão mortos. Os poros da sua testa e do seu rosto estão mortos. Como se lá dentro todas as lâmpadas se tivessem extinguido, não deixando ver nada para fora do nada das trevas. O seu sol interior, o seu espírito, esta coisa realmente viva no ser humano, está extinta. É uma morte. E Stela chora exactamente como se fora por qualquer outra

morte.

- Domnitza Roxana, estamos desolados por ter de lhe comunicar esta notícia, mas a lei obriga-nos a proceder assim. Domnitza Stela, nós levamos-lhe o seu marido para o conduzir a um asilo. E a si, Domnitza Roxana, levamos-lhe o seu genro. É a lei.

Michel Basarab jaz deitado sobre uma maca de campanha, em cima do soalho, enrolado e amarrado. Está ausente. Nas trevas. Procurando com o olhar um pinheiro. Já não é nem marido nem genro. Já não é nada. Foi. Mas as autoridades são sempre desajeitadas.

- Não se desculpe, coronel - diz Domnitza Roxana. - A minha filha e eu somos mulheres, mas temos uma existência perpendicular na crosta terrestre. Neste momento, os acontecimentos exigem que sejamos mais verticais, mais direitas que o costume. A dureza dos factos obriga-nos a ser mais direitas que a linha geométrica. Não tem que nos apresentar desculpas. Não o impedimos de o levar daqui, onde já não tem o seu lugar. Conduza esse desgraçado para onde ele possa ter um lugar. O ser mais querido, coronel, deve ser abandonado se cai nas trevas, no pecado, no inferno. Nós somos homens. E não podemos fazer mais que Deus. Quando os anjos mais resplandecentes, mais belos, mais inteligentes e mais amados, com Lúcifer à cabeça, caíram e se tornaram negros de dourados que eram, Deus deixou-os ir para o fundo. Ali onde era o seu lugar. No inferno. Nas trevas.

Depois da partida dos bombeiros, dos gendarmes, dos estranhos, e depois de os criados terem fechado todas as portas, quando as duas mulheres se encontraram sozinhas - ninguém mais do que elas, as donas de Petrodava -, Roxana disse a Stela:

- Tu disseste-me que eu fui dura. Compreendes agora porque é que as abelhas expulsaram Michel do seu reino e quiseram matá-lo. As abelhas não suportam a impureza, a infecção, a sujidade. O cérebro de Michel estava infestado de trevas.

Doente. Ele estava doido. As abelhas não podiam suportar um tal cérebro. A loucura é o contrário da claridade, portanto, da limpeza! As abelhas têm horror do que não é limpo. Tu não dormiste de noite, minha filha. Vem, vamos descansar. Vem, minha Stela. Minha muito querida filha.

 

As condenações

Eu sou Stela Basarab, de Petrodava. Venho visitar meu marido, o tenente Michel Basarab, que foi internado neste asilo de alienados há um mês.

Stela veio a Yassy de carro, acompanhada por Pantelimon Haidouk. É a segunda vez que visita Yassy. A primeira vez ela conduzira ali o marido, o príncipe Igor Illiyuskin, ferido pelos bolchevistas em Prut. O seu desgosto era tão grande que Stela nada viu da cidade. Hoje encontra-se diante de um outro hospital. Pelo seu segundo marido. Está em frente da porta do hospício de Socola. O porteiro partiu a anunciá-la. Diante da porta negra, Stela contempla o edifício. O hospício é uma fortaleza a alguns quilómetros de Yassy. Esta construção serviu outrora de cidadela, no tempo em que Yassy era a capital do país moldávio. Depois, Socola tornou-se uma prisão. Ela foi sucessivamente lugar de alojamento para os escravos dos Turcos, convento, caserna. Agora, Socola é um asilo de loucos. O único asilo de alienados de toda a Moldávia. Neste país, onde os camponeses são de tal maneira pobres que não conhecem, no que diz respeito a ouro, senão a cor da sua papa de milho, chamada mamaliga, a pelagra faz estragos. Os doentes de pelagra tornam-se loucos. Encerram-nos aqui. Enlouqueceram todos por causa da subalimentação. Por causa do esgotamento físico. É a doença dos camponeses romenos.

- Entre, minha senhora - diz o porteiro. É um gigante. Um verdadeiro porteiro de prisão. Uma besta. Um gladiador. Stela avança pelos corredores de pedra. Socola é uma sobreposição de caves de pedra. Nestas caves sobrepostas, que formam os andares subterrâneos, estão encerrados os homens enlouquecidos pela fome. Não se encontra aqui senão médicos de branco, enfermeiras e guardiões altos como gladiadores. Não se vêem os doentes. Estes estão encerrados. Os doentes estão nas suas celas de pedra, atrás de grades, como feras. Não os tiram de lá senão muito raramente, exactamente como as feras, para os mostrarem às suas famílias ou aos inspectores. Aqui não se ocupam senão do lado exterior da instituição. Exactamente como para os cemitérios onde ninguém se ocupa do que se encontra nas campas, mas somente do que se encontra ao de cimo. Os doentes do hospício de Socola são mortos sociais. As leis apagaram-nos dos registos e ignoram-nos. Não se pede a estes homens que paguem impostos. Nem para fazer o seu serviço militar. Se um de entre eles se torna assassino, não

o julgam.

Stela vem procurar o seu marido entre estes defuntos. Ela está direita. É muito corajosa. Mas, por vezes, o seu passo hesita. Como se procurasse o marido num cemitério. Na sala de pedra, sem um móvel, à parte os bancos, também de pedra, a fim de que os loucos não possam levantá-los, Stela vê surgir o tenente Michel Basarab, entre dois gigantes, seus guardas. Veste o uniforme dos loucos. Uma túnica e umas calças de corte militar, cor de terra. É uma cor escolhida propositadamente. Não se pode distinguir nelas as nódoas de sopa, de excrementos e de sangue.

O uniforme não comporta botões. Os loucos engolem os botões. As calças não têm cinto. Poderiam enforcar-se com ele ou engoli-lo. As calças têm um único botão, muito pequeno, como se vê em alguns vestidos de mulher. Ele é do tamanho de um grão de pimenta. Um louco pode engoli-lo em quantidade sem perigo. Estes botões não têm qualquer efeito na digestão. Mas também não seguram as calças. Por causa disso, o tenente Michel Basarab avança segurando as calças com a mão.

Stela aproxima-se dele. E quer beijá-lo. Mas ela pára de repente. Michel Basarab tornou-se a tal ponto estranho, que ela não se atreve a tocá-lo. Beijá-lo seria exactamente como se ela beijasse um poste telegráfico ou um candeeiro de rua. Também não lhe estende a mão. Não se estende a mão a um candeeiro nem à barra de uma grade, mesmo que a amemos acima de tudo. Stela examina o rosto que não está barbeado, porque rapam os doentes ao tosquiador, não os barbeiam.

A cabeça de Michel, este homem que foi seu marido, é como uma lâmpada extinta. A boca, os olhos, a cabeça, não têm qualquer expressão. Dir-se-ia que são de argila. Amorfas.

- Ele está completamente insensível - explica o médico. - Se o picar com um alfinete, se o queimar com um cigarro, ele não sente. Não deve, por conseguinte, ter qualquer complexo. Ele não a reconhece. Não reconhece nada, nem ninguém. Se lhe colocarmos um espelho na frente, não sabe que a cabeça que vê reflectida é a dele. Não se lembra de si próprio! E julga que vai lembrar-se dos outros?

- Meu pobre Michel, meu pobre Michel! Em que estado estás! - diz Stela.

Ela esconde os olhos com as mãos. O marido, que os guardas seguram pelos braços, acaba de se deter. Está indiferente. Não a reconhece. O seu olhar é aquoso. Neutro. Cinzento.

- Desejas alguma coisa, meu pobre Michel? pergunta Stela.

Ela poisa a palma da mão na face de Michel Basarab e acaricia-o. Stela estremece. Já não é a pele do marido. Se o espírito de um homem se extingue, a pele morre também. É pois tão importante o espírito de um homem, que se encontra mesmo nos poros da pele? Porque, numa palavra, esta pele está morta. Stela experimenta a mesma sensação como se acariciasse o coiro dos borzeguins ou das botas. Uma pele morta. E nas faces, na testa do doente, a pele tem a cor do vestuário que ele usa.

- Não desejas nada? - pergunta Stela.

- Não - responde ele.

- Não me reconheces? - pergunta ela. - Sou Stela, a tua mulher.

Ele cala-se.

- Não me reconheces?

- Não - responde Michel.

- É melhor ir-me embora - diz ela.

E, pela primeira vez desde que se encontra no mundo, Stela Basarab, dona de Petrodava, deixa o marido, curvando a cabeça. O corpo dobrado. Não muito, mas mesmo assim dobrado. Desde há centenas de anos nenhuma mulher de Petrodava baixou a cabeça. Stela dirige-se para a porta. E já não está direita como um pinheiro.

- Nós temos ainda um assunto a debater, Domnitza Stela - diz o médico que a acompanhou.

É o médico-chefe.

- Que é que ainda há mais, doutor? - pergunta Stela. - Que não lhe falte nada. É tudo. E envie-me a sua conta de honorários. Eu regularizá-la-ei. Creio que nada mais temos a discutir. Está tudo em ordem. Se não houvesse hipocrisia social vestir-me-ia de luto. Porque não existe uma morte mais terrível que a que acabo de presenciar. É mais mortal que a morte do corpo. Mas sei que o mundo consideraria o meu luto como uma extravagância. Esta sociedade materialista em que vivemos imagina que a morte da carne é a única verdadeira. A verdadeira morte é a do espírito. Doutor, vi homens mortos em Petrodava. Estavam soberbos nos seus caixões de pinho. Eram mortos que conservavam todas as linhas do seu espírito. Eram mortos resignados ou em paz com o destino. As cabeças dos mortos que eu vi eram cabeças vivas porque só a sua carne estava morta. Enquanto a cabeça do pobre Michel, meu marido, é a única cabeça de verdadeiro morto que vejo. Embora a sua carne esteja viva. O único morto que vejo é um vivo. Senhor!

- Entremos no meu gabinete, Domnitza Stela. Temos uma coisa importante a discutir.

- Importante, doutor? - pergunta Stela. Nada pode ser mais importante depois de um tremor de terra que tudo devastou! Noutras circunstâncias tornar-me-ia atenta, curiosa, ao ouvir a palavra "importante". Depois de um cataclismo, um terramoto do planeta, não. Nada mais existe de importante. Tudo o que houve, o sismo o aniquilou.

- Todavia - diz o doutor-, depois de um tremor de terra existe qualquer coisa de mais importante que o cataclismo: são os sismos futuros, quando são anunciados.

- Os sismos futuros? - pergunta Stela. Ela não esperava isto.

- Um sismo, Domnitza, é tanto mais terrível quanto pode ser seguido por outros. Só as alegrias humanas aparecem isoladamente. As grandes desgraças vêem em cadeia.

Stela entra no gabinete do médico-chefe. Está novamente direita. Vertical.

- O seu marido enlouqueceu para sempre - diz o médico. - Não existe uma só esperança de cura. Nem uma. Só por milagre.

- Que posso eu fazer senão suportar esta terrível desgraça? - pergunta Stela.

- Nada - responde o doutor. - Talvez pudesse tê-la evitado.

- Eu não sou o bom Deus para dispensar aos homens a saúde ou a doença, a felicidade ou a desgraça. Isto não são prerrogativas humanas.

- Sem a sua pressão, Domnitza Stela, o seu marido não teria agora enlouquecido. Noutra altura é possível. Ou talvez nunca.

- Acusa-me? - pergunta Stela. - Precipitar um homem na loucura é mais grave que precipitá-lo no abismo ou na torrente. Intimo-o a explicar-se, doutor.

- Não é uma acusação, Domnitza- diz o doutor com calma. - É uma constatação. Uma constatação científica. Sou obrigado a dar-lhe conhecimento dela. Porque está escrita na ficha do paciente. Eu não teria tido a crueldade de lhe falar nela se não me tivesse provocado.

- Provocado?

- Exactamente - diz o médico. - Disse que a prerrogativa de oferecer aos homens a doença ou a saúde, a felicidade ou a desgraça, não era uma prerrogativa humana, mas divina. Que não era responsável por nada. Ora, justamente, o autor desta terrível loucura sois vós.

- O-senhor é médico de loucos ou é louco? pergunta Stela. Ela levanta-se.

- A intransigência não tem lugar neste momento. Sente-se e escute. Cada louco pode ter, por motivos que nos são desconhecidos, momentos ou mesmo horas de lucidez. Por exemplo, depois de onze anos de absoluta escuridão, Friedrich Nietzche perguntou à sua irmã Isabelle: "Isabelle, é verdade que eu escrevi livros?" Antes de obter a resposta, ele penetrou novamente nas trevas. O tenente Michel Basarab, seu marido, teve e pode ter ainda destas "clareiras no seu espírito. Eu registei uma conversa que tive com ele. Dir-me-á se o que ele conta é verdade ou não.

O médico coloca a fita. Ouve-se a voz do médico que interroga:

- Como se chama?

- Não sei - responde uma voz amortecida, amorfa. É a voz de Michel Basarab. A mesma voz que dissera a Stela que a amava. Agora a voz tem o aspecto do uniforme cor de terra, privado de botões. A voz tem a cor dos uniformes dos loucos. Quando o espírito de um homem morre, o esplendor das suas palavras, o brilho das suas frases morre também. E todas as palavras são cor de terra. Como os fatos que ele veste no hospício.

- Chama-se Michel Basarab e é oficial de cavalaria - diz o médico. - Lembra-se de que se chama Michel Basarab?

- Não - responde o doente.

A fita roda. Depois ouve-se novamente a voz de Basarab. Ele exprime-se com lentidão. Como se abrisse os olhos de manhã, mas antes que as cortinas tivessem sido corridas.

-Oh! lembro-me, certamente, lembro-me. Chamo-me Michel Basarab. Tenho uma enxaqueca terrível e por causa dela esqueci-me de que me chamo Michel Basarab.

- Do que se lembra ainda, da sua vida, além do facto de que é Michel Basarab?

- De nada - responde o tenente.

- Faça um esforço e lembre-se de qualquer coisa.

- Eu não posso fazer esforço - responde ele.

- Que é que vê na sua frente?

- Nada - responde o doente. O médico explica a Stela:

- Todos os esforços para o obrigar a falar, para o obrigar a recordar-se de qualquer coisa, são inúteis.

A fita gira, reproduzindo unicamente a voz do médico e as suas perguntas. De repente, ouve-se a voz de Michel Basarab. Diz:

- A única felicidade da minha vida, uma felicidade total, foi o meu encontro com Domnitza Stela Illiyuskin. Foi por ocasião de uma recepção, de uma festa. Durante um Inverno com neve. Depois do meu casamento parti para o céu, para Petrodava. Era feliz como um anjo. Stela é bela. As montanhas são belas. É pena que tudo tenha acabado.

- Sabe porque é que acabou?

- Eu não sei - diz o doente. - Mas tudo acabou.

- Que é que sabe?

-Nada.

- Que é que vê à sua frente?

- Stela - diz o tenente. - Stela disse-me que desejava ter um filho. Um rapaz. E nós estamos os dois na casa de Petrodava. Eu também desejava um filho. Quando Stela disse que desejava um filho, eu, que tenho um medo terrível de tudo, disse que não poderia ser um bom pai porque eu não tenho o sangue completamente puro. Eu tive, não há muito, uma pequena infecção. Estava ainda na escola militar. Haveria provavelmente também uma certa parte de hereditariedade. Mas isso regularizou-se. Antes do meu casamento tive medo que o meu sangue não estivesse puro. Disse-o ao coronel Isaia Klang. Ele disse que eu estava mais são do que ele. Mas se eu quisesse mandar analisar o meu sangue uma ou duas vezes por ano isso não faria mal a ninguém. Depois de ter estado doente tornei-me medroso. Então, depois do meu casamento, não esperei seis meses e fui a um laboratório chamado Forella, Rua Louis Pasteur, número um, em Yassy. Pedi que me tirassem sangue e que o mandassem para uma análise ao coronel-médico Isaia Klang, em Bucareste. À sua residência pessoal.

- Deu o seu nome no laboratório? - pergunta o médico.

- Não - responde o tenente. - Eu não podia dizer: Eu sou o marido de Stela, de Petrodava. Toda a gente a conhece. Eu disse que me chamava lonesco. E que voltaria dentro de um mês para saber o resultado.

-Voltou a procurar o resultado. Qual foi?

- Não havia resultado. O coronel-médico Isaia Klang morreu num acidente de automóvel. O meu sangue foi perdido.

- Que é que fez então?

- Enviei ao Instituto Médico-Militar uma nova colheita de sangue.

- Em que nome?

- Sempre lonesco - diz o tenente.

- Porque é que não mandou fazer a sua análise em Yassy?

- O medo. Eu preferi o anonimato. Tive sempre medo. Fosse do que fosse. Do escândalo. De tudo. Alguns meses mais tarde fui a Yassy pela terceira vez. Estava casado havia catorze meses. O resultado tinha chegado.

- Que resultado?

- O Instituto Médico-Militar de Bucareste pedia urgentemente uma recolha do líquido craniano, creio. Não sei o termo exacto. Disseram-me que, em alguns casos, a análise de sangue não dá um resultado suficientemente preciso. Deixei-os portanto fazerem-me uma punção. Depois voltei para casa. A recolha é extremamente dolorosa. Hoje ainda sinto a dor no cérebro. Nas costas. No sítio onde a coluna vertebral se une ao cérebro.

- E qual foi o resultado da análise do líquido céfalo-raquidiano?

- Não sei.

- Porque é que não sabe?

- Eu não voltei mais ao laboratório da Rua Louis Pasteur, em Yassy.

- Porque é que não voltou?

- Quando regressei a casa, em Petrodava, Stela mandou chamar a mãe, Pantelimon Haidouk e o padre Thomas ao salão. Ela disse que havia muito tempo que me mandava seguir. Perguntou-me porque é que eu ia a Yassy e a casa de quem. Era-me doloroso dizer-lhe que ia ali por uma análise de sangue. Tive medo de dizer a verdade. É confrangedor afirmar que se suspeita do nosso próprio sangue. Era, além disso, uma questão pessoal. E não julguei necessário dizer-lho. Recusei. Mas assegurei-lhe que não lhe era infiel. Que eu não fazia nada de mal. Stela encolerizou-se. Atravessou a torrente a nado com a égua. Ela estava de tal modo enervada que fez cair o animal. Partiu-lhe as duas patas na queda. Uma ferida, a outra fracturada. Depois, quando voltou para o pátio, matou a égua com cinco balas de revólver na cabeça. Era uma verdadeira inundação de sangue. Stela estava coberta de sangue. O pátio, a casa, o corpo de Stela estavam vermelhos. Dir-se-ia uma torrente de sangue. Então fui tomado de medo. Um medo terrível. Depois daquele dia não voltei a Yassy. Não fui mais a parte alguma. Tinha medo que Stela me matasse... Porque ela dissera: "Os doentes devem ser abatidos. É um dever abater os doentes". À noite sonhei que recebia de Yassy o resultado da análise, que estava doente. E que Stela me matava com uma bala na cabeça. Como a égua. É tudo. Eu não tinha senão um desejo, um só: esconder-me. Para que Stela não passasse por cima de mim como uma torrente.

- Lembra-se das abelhas que queriam matá-lo?

- Não.

- Do que é que se lembra ainda?

- De nada.

- Sabe como se chama?

- Não.

- Chama-se Michel Basarab. Esqueceu-se?

- Não.

-Como se chama?

- Não sei.

O doutor interrompe a gravação.

- A conversa gravada é formada por fragmentos reunidos e recolhidos durante dias e dias - diz o médico. Pergunta a Stela: -É verdade tudo o que ele acaba de contar?

- A questão da égua, sim - responde Stela. - As outras ignoro-o. Mas é verdade que o mandei seguir em Yassy. É natural. Qualquer outra mulher faria o mesmo.

- O resultado do líquido céfalo-raquidiano chegou, Domnitza.

- Ah! - diz Stela. - Não era senão uma fobia de Michel, não é verdade? Ele está são.

- Pelo contrário - diz o médico. - O tenente está doente. O seu sangue está completamente infectado. Por causa disso é demasiado tarde para que possamos curá-lo. Um ano ou seis meses mais cedo a coisa teria sido possível. Mas há seis meses, para o impedir de voltar a partir, a senhora matou diante dele um animal! Diante de um homem que tinha um medo terrível da morte e do sangue. È a senhora enraizou nele o medo de voltar a partir. E ele não voltou a partir. E agora aqui estamos!

- A minha intenção era impedi-lo de me ser infiel - diz Stela.

- Se tivesse sido outra, não lhe teria falado como acabo de o fazer - diz o médico.

- Penso que me disse tudo o que tinha para me dizer? - pergunta Stela. Ela levanta-se e continua:

- O senhor afirma que eu precipitei um homem na loucura. Involuntariamente mas mesmo assim precipitei-o. Está bem à vista.

- É certo, Domnitza Stela, que o tenente teria acabado por enlouquecer. Mas, no presente caso, foi a senhora quem carregou no botão que desencadeou esta queda.

- Muito obrigada pela informação. Terei com que mobilar a minha consciência nas horas de aborrecimento - diz Stela. - Queira enviar-me a conta dos seus honorários, assim como a lista dos objectos necessários a meu marido. Adeus, doutor.

- Domnitza, há ainda qualquer coisa - diz o médico. - A senhora também está contaminada.

- Eu?

- A sua doença é transmissível, Domnitza. Mas no seu caso a questão é mais simples. Do ponto de vista médico é mais fácil. Uma série de injecções e acabou.

- Primeiro acusou-me de ter provocado a morte da inteligência, a morte social, a morte do espírito de meu marido. Eu sou a assassina da sua luz. Eu sou aquela que assassinou a sua razão. Provou-mo. Agora informa-me que ele me transmitiu o seu mal. Involuntariamente. Como eu, quando o empurrei para a loucura! Portanto estamos quites. Quando eu redigir o acto de acusação com o qual me apresentarei diante do meu próprio tribunal, terei em consideração este facto. Agradeço-lhe o pormenor. Estou contente por ele me ter transmitido a sua doença. Sabendo-me envenenada por ele, suportarei mais facilmente o crime que cometi contra a luz da sua vida. Posso partir agora?

- Não, Domnitza - diz o doutor. - Temos de começar o tratamento imediatamente. As leis sociais obrigam-nos a isso. Se o desejar, poderemos começar a partir de amanhã.

- Amanhã - diz Stela. Ela calça as luvas.

- Foi uma grande felicidade, Domnitza, que não tenha tido um filho - diz o médico. - O drama teria tomado proporções de tragédia antiga. Porque a criança que tivesse tido seria um idiota ou um monstro. Horroroso. A sua sorte foi não ter tido um filho. Uma grande sorte.

- Eu não tive um filho - diz Stela. - Mas vou ter. Doutor, estou grávida de quatro meses...

- Não é verdade! - diz o doutor. Ele está apavorado. Levanta-se.

- A pura verdade - diz Stela. - Estou grávida de quatro meses.

- É preciso fazer parar isso - ordena o doutor. Ele está imensamente aflito. - É preciso pôr termo a isso. Imediatamente. Absolutamente. Não se pode permitir o nascimento de um monstro, de um idiota. É preciso fazê-lo desaparecer urgentemente. Aos quatro meses já é tarde. É necessário extirpá-lo...

-Sim, doutor - diz Stela. - É necessário extirpá-lo. ..

- Então está de acordo? O mais depressa possível, o mais depressa...

- Estou de acordo - diz Stela. Ela acaba de calçar as luvas.

- Amanhã procederemos a essa interrupção de gravidez sem demora. Então amanhã, não é?

- Eu preferiria dentro de três dias, doutor - diz Stela.

- Não demore.

- Que importância tem um dia ou três num caso deste género? Sou obrigada a voltar primeiro a Petrodava. Tenho de me preparar.

- De acordo. Mas volte aqui dentro de três dias. Legalmente, eu não devia deixá-la partir. Legalmente, deveríamos intervir imediatamente. Trata-se de uma coisa grave.

- É muito tarde se o matar dentro de três dias?

- Não se trata de matar - diz o médico. - É uma simples extirpação. É tudo.

- Dentro de três dias estarei de volta - diz Stela.

- Terá os melhores médicos-parteiros - diz o médico. - Tudo se passará como se ele não tivesse existido. Isso depende dos parteiros.

- Parteiros, não é o termo exacto. Algoz é melhor. Ou, se o preferir, "carrasco". Porque no fundo trata-se de uma execução - diz Stela.

- Execução? Pena capital, aos quatro meses? Não exagere. É uma simples extracção. Esteja aqui dentro de três dias. Não lhe desejo coragem. Ninguém tem mais coragem que a heroína de Prut. Agora trava uma batalha tão importante como a de Prut. Sairá vitoriosa. Aquele que foi um herói sê-lo-á sempre. Domnitza, os meus cumprimentos. Stela sai. O céu está cinzento. Como em todas as grandes cidades. Na cidade as pessoas são pálidas e caminham de cabeça baixa. Stela é vertical. Dir-se-ia que ela transporta orgulhosamente todo o céu aos ombros. É realmente uma mulher que nada pode quebrar. Que suporta o raio. Ela, a dona de Petrodava, é semelhante a Prometeu.

 

O adeus a Petrodava

STELA BASARAB, proprietária de Petrodava, volta de Eassy a cavalo. Monta uma égua chamada Forella. Volta a trote. Junto dela está Pantelimon Haidouk. A proprietária de Petrodava olha para as montanhas que se erguem na sua frente com os cumes brancos e cala-se.

- Daqui em diante será talvez melhor apanhar o comboio - diz Pantelimon Haidouk. Ele não pode suportar o silêncio. Ele gostaria de ouvir falar a patroa. Há horas que ela está calada.

-O comboio? - pergunta Stela. - Desde que em criança eu via os comboios do alto da montanha, tive sempre a impressão de que cada carruagem era um caixão preto. O comboio, para mim, é uma fila de caixões pretos. O mais sinistro cortejo de caixões. Um cortejo fúnebre. Sobretudo agora, que o meu marido está no asilo de loucos, não sinto coragem de entrar num caixão, numa carruagem, para viajar. Só os mortos são transportados em caixões. E também os cidadãos. Os vivos vão a cavalo. Nós viajaremos sempre a cavalo. A ti falta-te uma perna e contudo vais a cavalo. Porque tu estás vivo. Porquê viajar num caixão se estás vivo, Pantelimon?

Stela calça botas pretas abotoadas, veste uma saia-calça de veludo, uma jaqueta lindamente ornada de alamares e um toucado que lembra o boné dos jóqueis.

A partir de Pascani a estrada sobe. Se não houvesse à volta dela as montanhas misturadas com as nuvens, Stela poderia julgar que deixou a terra e que se encontra no céu. Mas as montanhas são coisas terrestres. Stela pensa: "No céu ou no inferno, o tempo pesar-me-á como montanhas." Para ela, as montanhas são as montanhas de Petrodava. Montanhas de calcário. Mas de um calcário mais duro que o granito. Como a carne dos homens destes lugares que é mais dura que a madeira e o ferro. Aqui, os homens e os pinheiros tiram a sua seiva deste calcário duro. De tempos a tempos, uma nuvem branca, húmida como uma esponja, passa por cima dos dois cavalos e dos seus cavaleiros, enxugando o suor do peitoral dos cavalos e o suor e a poeira da testa dos cavaleiros: Domnitza Stela e Pantelimon Haidouk.

Eles avançam entre as nuvens e as montanhas.

Na casa de Petrodava, Domnitza Roxana não fechou os olhos durante a ausência da filha. Ela acolhe-a no patamar da porta. Beija-a na testa, sem a abraçar. É o seu costume. E ordena:

- Entra, Stela, e senta-te.

Domnitza Roxana segura na mão o seu baltag de prata. Stela sabe que a mãe anda com o baltag dentro de casa todas as vezes que tem de fazer face a uma situação difícil. Ela nunca o larga nos momentos difíceis. Como se ela estivesse cercada pelos lobos. Pronta a defender-se. Ela segura o pequeno machado.

- Mãezinha, o combate está perdido - diz Stela. Ela tem os ombros um pouco descaídos, como as cornijas das casas de Inverno, quando cai muita neve em cima dos telhados. Mas não está dobrada. Ela continua:

- O médico foi categórico. O pobre Michel não tem cura. Nenhuma ilusão a esse respeito. Salvo um milagre. Ele tem o sangue completamente envenenado. Estragado. Ele está condenado a ficar no asilo até ao fim da sua vida.

Um silêncio. Ouve-se o tiquetaque do relógio. E as pancadas do coração das duas mulheres. Da mãe e da filha.

- É uma derrota para nós, Stela, minha filha - diz Domnitza Roxana.

A sua mão aperta o baltag.

- É mesmo uma derrota terrível. Mas desde que a terra existe nenhum homem deixou a vida vitorioso. Todos sucumbiram e sucumbirão. Por conseguinte, todos serão vencidos. É o nosso destino, o dos homens, serem vencidos. De irem de derrota em derrota.

- Trata-se de uma coisa mais grave que a morte, mãezinha - diz Stela. - O pobre Michel não teve a sorte de morrer completamente. E nós não tivemos a sorte de o perder inteiramente. A sua morte é fragmentada. O seu espírito está morto e a sua carne continua a viver. É a suprema miséria humana. Mais terrível do que a morte. Aquele que morre com o seu corpo espera a ressurreição da carne. Mas aquele cujo espírito morre não tem a menor esperança. E uma carne que sobrevive ao espírito é infernal. Horrível. Odiosa.

- É terrível - diz Domnitza Roxana. Como se dissesse "uma terrível tempestade" ou "uma terrível avalancha".

- Eu lastimo não te poder trazer uma só boa notícia - diz Stela.

- Só os imbecis passam a sua vida à espera de boas notícias, minha filha - diz Domnitza Roxana.

- As notícias terríveis são naturais. Nunca existiu um homem que esperasse ter uma vida isenta de desgraças.

Domnitza Roxana levanta-se. Aproxima-se da filha para sentir a sua respiração perfumada. Olha-a nos olhos, nos seus grandes olhos claros. E diz-lhe com uma violência meiga, como se triturasse a pedra que misturaria ao mel:

- Stela, nenhuma mulher ao de cimo da terra é e foi tão corajosa como tu em tão pouco tempo. O heroísmo é a tua vocação. É o teu destino na terra. Permanece heróica. Permanece tu própria.

- Eu não te disse tudo, mãezinha - diz Stela. - Eu também estou doente. O pobre Michel transmitiu-me o seu veneno. O veneno do seu sangue com os seus beijos amorosos.

- É verdade? - pergunta Domnitza Roxana. -Verdade - diz Stela. - Tenho o seu veneno

no meu sangue. É incontestável.

- Tu tens o veneno no sangue. É horrível. Mas o que conta um inimigo a mais? Mesmo um inimigo infiltrado no teu próprio sangue, que pode contar para um combatente da tua classe, Stela? Tu és heróica. E serás vitoriosa. Pouco importa que tenhas um inimigo a mais ou a menos. Lembra-te das páginas escritas a teu respeito nos livros de estudo. Tu és assim! Tu és a honra de Petrodava. Embora, desde há séculos, nós, todos os donos de Petrodava, tenhamos sido sempre extremamente ricos em inimigos. Em adversários. Fomos milionários em desgraças e em inimigos. O oiro, só o conhecemos na cor das papas de milho, a mamaliga. Mas fomos milionários em inimigos. Tu tens um adversário a mais. Tu estás na linha de todos os proprietários de Petrodava. Rica em inimigos. Tu estás doente. És portanto mais rica do que eu. Tens um inimigo a mais do que eu. Tens portanto uma frente a mais para combater. E uma ocasião a mais para obter uma vitória.

- Pode-se pleitear com quem quer que seja - diz Stela. - Em princípio, o que tu dizes é justo. Sou da tua opinião. Mas não é tudo.

- A luta nunca termina, minha Stela - diz Domnitza Roxana. - É natural dizer "isto não é tudo". Tu és uma proprietária de Petrodava. Tu estás, pelo teu nascimento, condenada a combater. Uma combatente perpétua. Tu estás condenada a ser heróica até ao fim dos teus dias. Nunca esgotarás a desgraça ou o heroísmo.

- Que haja um ou que haja dez a mais, isso não tem importância, bem entendido - diz Stela, -Visto que estamos condenadas a permanecer combatentes toda a vida, o que importa o número dos adversários? Mas existe uma outra dificuldade que não se pode combater. Podemos fazer frente aos inimigos que estão na nossa frente, atrás de nós, por cima, e mesmo aos que estão no nosso próprio sangue, mãezinha. E vencê-los-emos, sem qualquer dúvida. Heroicamente. Mas há um combate que eu não posso conduzir.

-Um adversário que uma dona de Petrodava não possa defrontar? - pergunta Domnitza Roxana.

- Isso não existe, minha Stela. O dragão que os nossos pés não poderão esmagar ainda não nasceu. Não! !

- Minha mãe, eu trago no meu ventre um filho. Tem quatro meses. Eu sinto-o mexer-se. Eu amo-o. Porque ele é a alma da minha alma e a carne da minha carne. É o fruto do meu amor. Esta criança, meu filho, nascerá idiota ou louco, ou será um monstro com duas cabeças, com três pernas. No instante em que foi concebido, já estava condenado. Por causa do veneno que transportava o sangue dos pais.

- Mandar vir ao mundo um monstro é um crime. E este crime tem de ser evitado - diz Domnitza Roxana. O punho treme-lhe no baltag.

- É justo, minha mãe - diz Stela. - Matarei esta criança no meu ventre, está visto. Dentro de três dias tenho um encontro com o médico para que o mate. Para que ele não cresça. Para que ele não nasça. Eu não sou uma criadora de monstros ou de idiotas.

- É um duro combate, Stela - diz Domnitza Roxana. - Mais duro do que eu podia imaginar. Mais duro do que eu, como mulher, podia imaginar. Sê heróica. E conta com a minha completa ajuda. Podes contar mesmo com a minha vida.

- Este combate é meu, exclusivamente, minha mãe - diz Stela. - Fui eu que concebi esta criança. Sou eu quem o matará. Porque ao mesmo tempo que a vida, dei-lhe também o veneno. Não seria leal insistir por uma ajuda.

- Faz como melhor te parecer - diz Domnitza Roxana.

- Fui eu quem o criou. Sou eu quem o matará.

Eu não concederei licença de o fazer a qualquer outra pessoa, nem mesmo ao médico.

- Tu és muito dura, Stela - diz Domnitza Roxana.

- Não, minha mãe. Eu fi-lo, eu mato-o. Mas embora morto por mim, ele permanecerá meu filho eternamente. Ele permanecerá o fruto da minha carne. Ele permanecerá a criação do meu sonho e do meu amor. Meu filho. É o que ele é acima de todas as coisas. Ele é o meu filho e eu sou a sua mãe. Por conseguinte, construir-lhe-ei o mais magnífico túmulo ao de cimo da terra. Ele não é somente meu filho, ele é também a minha vítima. Ele tem direito às maiores honras que uma criança pode ter da parte de sua mãe. Nada igualará em esplendor o seu mausoléu. Ele merece um túmulo extraordinário, não é verdade, minha mãe?

- Certamente - diz Domnitza Roxana-, certamente, construir-lhe-emos um túmulo magnífico. Não há problema.

- É difícil encontrar um lugar no cemitério para uma criança assassinada aos quatro meses no ventre da mãe - diz Stela.

- É justo - diz Domnitza Roxana.

- Aliás, não existe cemitério bastante bom para ele. Nenhum mausoléu seria digno do meu filho. Nem mesmo as pirâmides dos faraós. Ele merece mais e eu oferecer-lhe-ei mais. Ele terá, à maneira de mausoléu, o mais bonito caixão que uma criança assassinada aos quatro meses pode ter neste mundo: ele será enterrado no corpo da mãe. Eu, a carne da sua mãe, servir-lhe-ei de túmulo até ao juízo final. O meu ventre que o concebeu será o seu caixão. Está decidido.

- Sai! - ordena Domnitza Roxana. Bate no soalho com o baltag. Violentamente, desvairadamente, repete:

- Sai!

- Não estás de acordo? - pergunta Stela.

- Ordenei-te que saísses - grita Domnitza Roxana.

- Responde, estás de acordo ou não?

- Sai! -grita Domnitza Roxana. - Sai! Desaparece da minha vista. És muito dura. Muito dura.

- Eu não parto sem ter a tua resposta - diz Stela. - Todos os homens fazem filhos. É a actividade mais fácil do universo. Mas o que eu vou fazer não é dado senão a uma proprietária de Petrodava. Eu não esperava ser expulsa daqui. O destino interveio para envenenar as minhas entranhas. A fim de não dar ao mundo um monstro eu mato-o. E ofereço lhe, à laia de cripta e de mausoléu, o meu ventre de mãe. E tu expulsas-me? Não é um procedimento digno de uma mulher de Petrodava? Não sou eu uma Roca?

- És, mas vai-te embora - ordena Domnitza Roxana.

- Não me beijas antes da minha partida? Domnitza Roxana aproxima-se da filha. Stela ajoelha-se. As duas mulheres, mãe e filha, retêm as lágrimas. Calam-se. Estão encostadas uma à outra, imóveis, coladas como duas rochas, como dois cumes de montanha. Como dois pinheiros. E mesmo os pinheiros choram, por vezes, com grossas lágrimas de resina. Elas não. Quando os pinheiros choram por todas as suas feridas abertas e a resina das suas lágrimas embriaga de dor a floresta e todos os vales, mesmo os anjos do céu, por cima das montanhas, têm os olhos húmidos quando o perfume das lágrimas dos pinheiros penetra neles. A mãe e a filha, as proprietárias de Petrodava, são mais fortes que os pinheiros! Elas não choram.

- Agora vai-te embora - diz Domnitza Roxana.

- Estou cansada. Vai-te embora. - Os lábios de Domnitza Roxana beijam a testa de Stela, sua filha.

- Esta noite, ou amanhã, quando deixares a casa, não faças barulho! - ordena Domnitza Roxana. - Eu não quero ouvir-te partir. Adeus, minha filha. Sê corajosa e heróica. Como sempre o foste! Adeus!

Stela levanta-se, beija a mão da mãe e sai, deixando Roxana na divisão iluminada apenas pela luz da lamparina sob a imagem de São Jorge. Mas a lamparina não ilumina senão o dragão esmagado pelos cascos do cavalo e traspassado pela lança do santo.

Sozinha, Domnitza Roxana Roca começa a chorar. É a primeira vez na sua vida. Mas está consolada no seu orgulho porque, mesmo Jesus, que no entanto é Deus, chorou uma vez. Uma única, é verdade. Não se pode censurar, ela que é uma mulher, por ter chorado uma vez na sua vida, visto que isso foi consentido mesmo a Deus.

 

A informação da manhã

DOMNITZA ROXANA AposTOL espera que alguém bata à porta. Espera que alguém a venha informar... As horas passam... É dia há mais de uma hora. E nenhum correio aparece, estafado, à porta da casa de Petrodava, para dizer a chorar: "Domnitza Stela morreu". Roxana sabe que o correio virá, mesmo que venha atrasado. Ela espera calmamente. Mas depois do nascer do Sol ouvem-se passos. É Pantelimon Haidouk. Domnitza Roxana recebe-o no terraço. Pantelimon chora. A proprietária de Petrodava sabe que qualquer correio viria a chorar. Ela diz:

-Tu envelheces, meu pobre Pantelimon; fala em vez de te lamentares.

- Não posso, Domnitza. Preferia morrer do que trazer uma tal notícia. Domnitza Stela afogou-se na torrente. Esta manhã. Antes de amanhecer, precisamente de madrugada!

Domnitza Roxana escuta de pé, o baltag na mão. Imóvel. Só o rosto está duma palidez violácea. Ela não dormiu um só instante. Pantelimon termina as suas frases a chorar. Domnitza Roxana Apostol, a proprietária de Petrodava, olha para as montanhas. Em breve será Inverno. No vale, na planície, a terra tenta conservar o calor do Verão. Exactamente como os moribundos que se agarram ao calor da vida, ao calor dos seus leitos de doentes. Mas aqui, no alto país de Petrodava, tudo optou pelo Inverno. Aqui faz frio. O Inverno começa de repente, à imagem dos homens que não se demoram de manhã na sua cama morna, mas saltam para o meio do quarto, desafiando o gelo. Enquanto Pantelimon Haidouk soluça, Domnitza Roxana conserva a calma. Ela sente que dentro de um dia ou dois as brumas vão descer sobre o país. Brumas espessas, que virão com as primeiras neves. As folhas serão arrancadas, dispersas pelo vento e calcadas aos pés. As folhas foram belas durante o Verão. É natural que caiam no Outono e que sejam espezinhadas uma vez mortas.

Domnitza está feliz porque o Inverno chega. O Inverno é uma estação precisa. O Inverno não tem equívocos. É uniforme. Sem divertimentos. Só os pinheiros lhe resistem. Só os pinheiros permanecem verdes. Qualquer outra verdura sucumbe e é calcada aos pés. Domnitza Roxana é igual aos pinheiros. Domina o Inverno. Um pouco de branco nas têmporas e no alto da cabeça. Exactamente como os pinheiros. O resto, é ela tal como sempre foi. Ela segura na mão o baltag de prata, de dois gumes, e que corta como uma navalha. Bate no soalho brilhante, como um contra-regra de teatro que espera o levantar do pano para apresentar ao público o último acto do drama.

Pantelimon Haidouk lamenta-se diante da patroa. Ele não consegue juntar as palavras. Está sucumbido pelo sofrimento.

- Uma notícia tão triste! Em vez de factos, tu, meu velho Pantelimon, tu trazes-me lágrimas. Tenho ou não o direito, como patroa e mãe, de escutar a relação dos factos respeitantes à morte de Domnitza Stela?

-A minha dor é muito grande, perdoai-me - murmura Pantelimon.

- É preciso despachares-te a morrer, Pantelimon. Já não serves para nada. Mesmo num assunto tão grave como este eu não posso já contar contigo. Estás corroído por dentro, como todos os impotentes, pelo verme fêmea da piedade. Tu já não és um homem. Tu mudaste em fêmea como os velhos impotentes. Eu vou proibir-te de te aproximares dos cavalos. Não quero que tu lhes transmitas a tua cobardia, o teu medo, a tua piedade e a tua fraqueza.

- Eu não posso falar - diz Pantelimon. Põe-se de joelhos e diz: - Podeis matar-me! - Poisa a testa no soalho. Indica com o dedo para a porta e acrescenta:

- Teofan estava presente... que fale, eu, eu não posso!

- Entra, rapaz - grita Domnitza Roxana.

Ela vê surgir um adolescente atrás da porta. É um pastor. Um efebo. Chama-se Teofan. Enquanto Teofan se aproxima do terraço, Domnitza olha para o horizonte ao longe, a fim de conservar a calma. Ela pensa que daqui a alguns dias será Inverno em Petrodava. Petrodava é um teatro ideal: as mudanças de cenário efectuam-se rapidamente! Sem a menor evasiva. De verde, o cenário torna-se branco. com um intermédio de sangue muito curto, quase insignificante: o sangue das folhas mortas que caem assassinadas pelo Inverno.

- Fala! - ordena Domnitza Roxana. - Conta o que viste.

Teofan usa calças brancas justas e opinke (*) novos. Veste o mintean, a camisa aberta que se ajusta ao pescoço, e gorro de pele pontiagudo como o cimo dos pinheiros. As faces estão cobertas da penugem, impalpável como a seda, a barba de adolescente. Mas ele terá de esperar ainda algumas estações antes de ter uma verdadeira barba. Por agora não tem senão uma penugem de seda crua.

- Que viste tu, meu rapaz? - pergunta Domnitza Roxana. - Diz o que viste.

- Eu vi como Domnitza Stela se afogou na torrente- diz o adolescente. A frase fica-lhe na garganta como um osso. Não pode continuar.

- Descobre-te, rapaz - ordena Domnitza Roxana. - Tira o teu gorro, porque estás na minha frente, sou uma mulher idosa e a dona de Petrodava. E porque falas de um morto que ainda não está frio. Respeita-nos. Agora fala!

Em vez de baixar a cabeça perante a investida, Teofan recupera a coragem. É o que desejava Domnitza Roxana. Ela sabe que um velho a quem se dirige uma censura se curva. Verga como um arco usado. Para um jovem, a censura é uma provocação. Ele reagiu, como um arco também, mas para disparar, atacar. Sem a menor dificuldade. Como Teofan neste momento. Diz:

- Eu estava com os carneiros à beira da torrente. Era exactamente no instante em que o dia começa a raiar. Vi aparecer Domnitza Stela a galope.

 

* Opinke, calçado de coiro semelhante às alpergatas atadas à perna. A parte de cima e a sola são de uma só peça. São macias, leves e confortáveis.

 

Montava Forella. Reconheci-as ao longe, a Domnitza e à égua. É o vosso mais belo animal. Adiantei-me para as ver. Todos os jovens gostam de ver Forella a galope. É um animal como um dragão alado. E Domnitza! Como ela monta! Ela chegou a galope, à beira da água. De um pulo saltou para terra, em vez de transpor a torrente. Tirou o chapéu e arremessou-o. Desamarrou os cabelos. Tirou a blusa. Depois as botas. Depois a saia. E a camisa. Eu peço-vos perdão. Mas eu não podia ir-me embora. Eu não sabia que ela se ia despir. Não é a época dos banhos. E tudo se passou tão depressa. Num segundo... Domnitza Stela estava nua. Branca como uma mulher de neve. Delgada como uma bétula. Direita sobre o prado verde. Perto da égua negra, que também deixou de viver, exactamente como eu. Forella olhava-a com os seus grandes olhos de égua, olhava para o corpo branco, nu, delgado, maravilhoso, da dona. Nunca um cavalo, nem Forella, nem qualquer outro, e jamais algum mortal, pôde ver como Domnitza Stela era branca, direita e bela. Eu esfreguei os olhos porque julgava sonhar. Mas eu não sonhava. Era verdade. Eu vi-a juntar a roupa e fazer uma trouxa, que atou ao pé da égua. Depois deu-lhe uma palmada no pescoço para a obrigar a partir. Forella afastou-se, como a dona lhe havia ordenado, e partiu a galope para casa. Domnitza içou-se sobre o rochedo. Estendeu os braços. Como se quisesse respirar fundo. Era agora uma cruz branca em cima do rochedo alto que pendia sobre a torrente.

Nunca nenhuma cruz foi mais bela que esta, branca, viva, plantada por cima da torrente, em cima da rocha. Nem mesmo as cruzes que vêem os santos. E parece que alguns santos viram cruzes de fogo. Domnitza permaneceu assim um segundo. Como se dissesse bom dia ao sol, às montanhas, ao Outono, à torrente. Como se ela me desse os bons-dias a mim. Embora não me visse. Como se ela desse os bons-dias a tudo. Depois, persignou-se e atirou-se à torrente, ali onde a água é branca de espuma como leite, ou como o vinho que espuma. Exactamente no local chamado Toance. Ali onde a água da torrente borboteja. Corri para ver se ela se aguentava. Quando cheguei ao rochedo, em cima, a pedra ainda estava quente no lugar onde Domnitza poisara os pés. Vi Domnitza na torrente. Forella voltara também. Estava atrás de mim, prestes a mergulhar. Como eu. Para ir em socorro da dona em caso de necessidade. O corpo branco de Domnitza nadava contra a corrente, como uma truta. Dir-se-ia que ela queria fazer uma aposta. Por vezes, a torrente era mais forte e arrancava-a, procurando conduzi-la para baixo, à sua vontade. Mas outras vezes os braços brancos de Domnitza e o seu corpo branco, misturados com a espuma branca da torrente, dominavam a corrente e pareciam avançar contra ela, para montante. A torrente espumosa e o corpo branco de Domnitza lutavam com forças iguais. O seu corpo ficou imóvel no meio da torrente, nadando contra ela, exactamente como o corpo das trutas. Num dado momento, a égua começou a bater na rocha com os cascos. À minha direita, ela observava o corpo de Domnitza dentro de água. Quis quebrar a pedra. Voltei a cabeça para ela. E no mesmo instante, espantada, os olhos escancarados, Forella desceu ao longo da margem a todo o galope. Corria na mesma direcção que a torrente, procurando um local para mergulhar. Olhei Domnitza Stela para ver qual das duas seria mais forte, ela ou a torrente? Mas ela já lá não estava. O seu corpo desaparecera. Ela lutara contra o rio, e durante alguns instantes estiveram em igualdade. Mas em seguida afundou-se. Desapareceu. Quando o animal viu o corpo de Domnitza arrastado pela torrente, começou a correr, seguiu-a a galope. Depois desapareceu também. Perdi-a de vista. Talvez tenha mergulhado na água para salvar a sua dona. Aqui está, é tudo. Vim para contar a Pantelimon o que vi. Ele trouxe-me aqui..."

Teofan começa a chorar. Não se lhe pode arrancar mais uma única palavra.

Domnitza Roxana está orgulhosa de uma frase: "A mais bela cruz que jamais uns olhos humanos tenham podido ver é o corpo de Domnitza Stela nu e branco à beira da água. Uma cruz tão bela, o corpo nu e branco, que teria bastado para converter todo o universo."

Roxana está orgulhosa. Ela sabe que é verdade.

- Eu esperava que se tratasse de outra pessoa, que não fosse Domnitza Stela - murmura Teofan.

- Era ela, não te enganaste - diz Roxana. - E não sonhaste. A cruz branca, a mais bela cruz que os olhos de um mortal jamais tenham podido ver ao de cima da terra, a cruz viva, a cruz com seios, que se atirou à torrente, que lutou com ela de igual para igual, foi a minha filha. Podes partir, meu rapaz.

- Partir, Domnitza? - pergunta Teofan.

-Vai-te embora, meu rapaz - ordena Roxana.

- Para ir aonde, Domnitza? A pergunta de Teofan é desesperante. Não tem resposta. Para onde poderia ele ir, depois de ter visto o que viu? Depois de uma tal revelação, Teofan já não pode ser pastor. Já não pode voltar para o seu rebanho. Já não pode voltar à vida que tinha traçado. Ele não encontrará em parte alguma, nem em Petrodava, nem em qualquer outro local sobre a terra, uma rapariga cujo corpo nu se assemelhe ao de Domnitza Stela, a cruz de carne branca na margem da torrente. Que rapariga pode ter um corpo como uma cruz de neve e de leite e de espuma da torrente? E visto que é inútil procurar uma tal rapariga, para quê partir? Depois, um corpo de mulher que fez frente à mais terrível torrente dos Cárpatos que nem as próprias trutas se atrevem a enfrentar e luta com ela com forças iguais, um tal corpo já não existe! E desde o momento que já não existe, Teofan nada mais tem a procurar na vida. Ele não pode já voltar ao que existia antes da revelação da cruz ardente formada pelo corpo de uma mulher. Ele está na situação dos grandes místicos aos quais Deus apareceu e que em seguida não mais encontraram lugar entre os homens, mas passaram o resto da sua vida à procura do Deus de que tiveram uma única revelação e que não voltou mais.

- Eu disse-te que podias partir, Teofan - repete Domnitza Roxana com doçura.

- Para onde posso ir? -Vai dizer o que viste.

- A quem o posso dizer, Domnitza?

- Aos que to perguntarem - diz Domnitza. - Di-lo aos gendarmes. A toda a gente. És obrigado a dizer as coisas exactamente como elas se passaram. Vai, meu filho.

Depois da partida de Teofan, Roxana avista Pantelimon.

Tu ainda aí estás, como um farrapo caído aos meus pés? - pergunta Domnitza.

Pantelimon Haidouk levanta-se.

Preciso de ti, Pantelimon - diz Roxana. - É preciso que me encontres Forella. Onde julgas tu que pode estar esse belo animal com a roupa de Domnitza Stela?

- Forella também se atirou à torrente - diz Pantelimon. - É inútil procurá-la. Ela mergulhou para salvar a sua dona.

- Nunca um cavalo mergulhou na torrente para salvar o seu dono - diz Roxana. - Os cães atiram-se à água. Os cavalos não. Isso não é o feitio de um cavalo. Procura Forella urgentemente.

- Ela atirou-se à água para salvar Domnitza Stela. Embora fosse um cavalo. Porque nunca um cavalo teve uma dona como Domnitza Stela. E para uma dona diferente das outras, os cavalos fazem também coisas diferentes dos outros. Forella morreu para salvar a sua dona, a dona de Petrodava. É inútil procurá-la. Ela morreu.

Pantelimon rebenta em soluços. Diz:

- Porque é que eu não me encontrava lá, para morrer com os dois, com Domnitza Stela e com Forella. Que não houvesse dois mortos, mas três.

- Já há três mortos - diz Domnitza Roxana. - Porquê, imbecil, julgas tu que a minha filha se deixou vencer pela torrente? Julgas tu que ela o fez porque o marido adoeceu? Imbecil! É o que tu julgas?

- Como? - pergunta Pantelimon.

- Domnitza Stela esperava um filho. Estava grávida de quatro meses, Pantelimon. Os médicos disseram que essa criança devia ser morta, porque se nascesse seria um monstro. Ela matou-o. Mas ela deu-lhe uma sepultura. Um mausoléu digno do amor de uma mãe. Foi o seu corpo que Stela ofereceu ao filho à maneira de túmulo e de caixão. Eis porque te digo que há três mortos: Stela, o seu filho e Forella. Compreendes dificilmente, Pantelimon. Tu estás amolecido!

- E vós sabíei-lo? - balbuciou o cocheiro.

- Imbecil - diz Domnitza Roxana. - Eu, que sei se um cavalo tem dor de dentes, ou se uma égua está doente, ou se um potro tem sede, eu, que não durmo com tudo isto, como ignoraria o que acontecia a minha filha, à minha filha e ao meu neto? Eu, que morro de desgosto por um dos meus cavalos? Porque desta vez é da carne da minha carne que se trata. De Stela. E do fruto desta carne, da minha carne. Isto é, do filho de Stela. Duas vezes minha carne. Certamente que o sabia. E esperava que tu mo viesses dizer. Contar-me como aconteceu. Numa informação precisa e breve. Factos, não lágrimas.

As nuvens anunciam a neve. Domnitza Roxana detém-se e olha para o céu. O Inverno está próximo. Roxana é a última mulher Roca. E todos os Roca de Petrodava morrem no Inverno. Dentro de alguns dias o Inverno chegará. Virá com certeza. Aqui, as estações chegam directamente e sem equívocos. Como os comboios numa estação. Aqui as estações não hesitam. Aqui a vida não tem distracções. É precisa. Implacável. Tanto para a natureza como para os homens.

 

Final

Os gendarmes acabam de chegar ao pátio. Pedem-vos que os receba - diz a criada.

- Que entrem - ordena Domnitza Roxana. Está sentada na sua poltrona e tem o baltag na mão. Está imóvel, no salão da casa de Petrodava. Pelas janelas grandes como montras ela olha para as montanhas e para as nuvens que trarão a neve. O Inverno descerá de repente. Roxana espera que com o Inverno virá também a morte. Ela espera-os, aos dois, com confiança.

A criada introduz no salão, modernizado por Stela e pelo tenente Michel Basarab, os três gendarmes, que levaram três horas para subir do seu posto, no vale, até à casa de Petrodava. Alinham-se, põem-se em sentido e cumprimentam militarmente Domnitza Roxana. Depois tiram os seus quépis, mas permanecem sempre em sentido.

- É duro para si estar só, Domnitza - diz o primeiro gendarme.

-Só? - pergunta Roxana. - Que é que o faz pensar que estou só? Os cavalos, as montanhas, os pinheiros desapareceram para que me julgue só?

Roxana está direita na sua poltrona. Aperta o baltag na mão. Fixa os gendarmes nos olhos.

- Nós trazemos-lhe uma triste notícia - diz o segundo gendarme. - Não é culpa nossa. Mas não tivemos sorte. Não encontrámos o corpo de sua filha. A investigação continua. Já todos os postos foram alertados. Explorou-se as margens do rio até ao Danúbio. Nem o menor vestígio do corpo de Domnitza Stela. Nada. Lastimamos trazer-lhe esta triste notícia.

- Julga que é uma triste notícia? Porquê? pergunta Domnitza Roxana. - Quando as estrelas cadentes se extinguem, o seu rasto perde-se nos ares. Não caem na terra. Não se encontram os seus corpos. A poeira de estrelas dispersa-se no cosmos. A minha Stela teve um enterro ideal. Misturada às cinzas das estrelas, ela perdeu-se no universo...

- Se tivermos notícias, informá-la-emos - diz o terceiro gendarme. - Mas devemos trazer ao seu conhecimento que não encontrámos a égua. Ela não está em parte alguma. Uma égua é mais fácil de encontrar. Nós esforçámo-nos por lhe ser úteis neste triste caso de suicídio.

- Um suicídio? - pergunta Domnitza Roxana.

- Porque julgam que há suicídio? Minha filha não se suicidou. Quem lhes meteu na cabeça tal aberração?

- Desculpe-nos, Domnitza - diz o primeiro gendarme. - Mas não dispomos dum outro termo. Domnitza Stela Basarab atirou-se à água e morreu. É um facto bem estabelecido. Incontestado. Na linguagem corrente isto chama-se suicídio. E legalmente também. Se se atirar à água e se morrer é um suicídio. Desculpe-me o termo mas não há outro.

-E a declaração da única testemunha? - pergunta Domnitza Roxana.

Antes de redigir o seu auto um gendarme lê as declarações das testemunhas. A testemunha ocular, o pastor Teofan, declarou:

"Domnitza Stela despiu-se. Ela mergulhou na ribeira e começou a nadar contra a corrente. Nadava como uma truta. Era no local chamado Toance, onde a água fervilha como numa caldeira. O corpo branco de Domnitza era mais branco que o branco da espuma. Domnitza e a torrente lutavam com forças iguais. Nenhuma das duas era superior à outra. Eram iguais..."

- É a narração de Teofan, a testemunha ocular - diz Domnitza. - Minha filha lutou contra a torrente. Uma luta obstinada como nem homem nem animal jamais travaram. Isso não é um suicídio. O suicídio é quando um homem se atira à água e vai ao fundo sem resistir. Minha filha morreu a combater contra a torrente. Num combate leal e justo. Depois de um certo tempo foi vencida com o tempo, a torrente foi mais forte. Mas Stela foi vencida num combate. E a morte, num combate leal, não é um suicídio. Minha filha morreu, com os olhos abertos, em frente do adversário. A lutar até ao esgotamento das suas forças.

- É verdade - diz o primeiro gendarme. - Domnitza Stela morreu a combater. Uma tal morte não é um suicídio. Apresentamos-lhe as nossas desculpas. Nós rectificaremos o auto.

- Rectifiquem-no e será feita justiça - diz Domnitza Roxana. - Minha filha não é uma suicida. Stela lutou a primeira vez contra os bolchevistas a fim de não perder o marido, o príncipe Igor Illiyuskin. Lutou heroicamente. Mas os bolchevistas eram duzentos milhões e ela estava só com os cavalos e o cocheiro. Ela foi vencida pelos bolchevistas. Quis ter outro marido. Um homem que ela adorava como a Deus. Mas este homem, o único amor da sua vida, pertencia a Deus. E minha filha não podia vencer Deus em combate regular. Ela resignou-se e aceitou um casamento "com a medida do passo humano". Tornou-se a mulher de Michel Basarab, o belo tenente de cavalaria. Este afundou-se nas trevas. Enlouqueceu. Stela não podia lutar com as suas forças de mulher contra as trevas. Ela não podia conduzir a luz nesta razão obscurecida. Ao mesmo tempo soubera que a criança que trazia consigo seria um monstro se ela chegasse a nascer. Um idiota. Ela não podia aperfeiçoar a criança que trazia no seu ventre. A doença era mais forte. Tão forte como os bolchevistas, os seus primeiros adversários. Tão forte como Deus, o segundo adversário, e que as trevas, o terceiro adversário. Ela não podia vencer o quarto inimigo, a doença que a obrigava a dar à luz um monstro. E ela não podia também aceitar um monstro na sua carne. Quando ela viu que já não havia outra saída, que todos os adversários que encontrou eram mais poderosos, ela preferiu morrer a lutar contra um inimigo leal, implacável, e escolheu a torrente. Ela tentou vencê-la. E morreu a lutar heroicamente. Depois de ter dominado e mantido o adversário à sua mercê durante perto de um quarto de hora, só com as suas forças de mulher. Ninguém jamais o conseguiu. Nem mesmo as trutas. Quem pode, neste caso, falar de suicídio?

Ela morreu em combate leal. Como no ringue. Entre duas torrentes.

- É lógico - diz o primeiro gendarme. - Apagaremos a palavra "suicídio no nosso relatório. É lógico.

- Não, cabo - diz Domnitza Roxana. - O que minha filha fez não é um suicídio, mas também não é lógico. A lógica é como a lama: só serve para fazer escorregar as pessoas. A lógica nada tem a ver com a morte da minha filha. O que Stela fez foi heroísmo. É tudo. Heroísmo em estado puro. O herói é um honesto homem que, não encontrando outra saída digna de um homem, atira num combate leal o último capital que possui: ele atira como um punhado de moedas os últimos anos que lhe restam para viver. E bate-se por ele com todas as suas forças. Implacável. Embora saiba que o seu combate está perdido antecipadamente. Foi o que fez Stela. Ela morreu fazendo frente ao adversário, em pleno combate. E se Stela de Petrodava não venceu a torrente, uma torrente é mais forte que uma mulher, ela venceu a natureza, cabo. Ela proibiu-a de fazer do seu filho um monstro. E não obstante a natureza e todo o universo, ofereceu a essa criança o mais soberbo mausoléu que uma mãe jamais tenha oferecido ao seu filho: ela deu-lhe a carne viva do seu corpo. A fim de que lhe sirva de caixão e de mausoléu para a eternidade.

"Petrodava está orgulhosa do acto da minha filha. Agora, senhores, podem descer. Bom regresso."

 

 

                                                                  Constantin Virgil Gheorghiu

 

 

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