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A CIDADE E O SONHO / Guedes de Amorim
A CIDADE E O SONHO / Guedes de Amorim

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Sentado ao canto da porta da velha igreja, Mateus, bocejando, esfregava os olhos. Devia ter dormido duas, três horas talvez, pois a luz dessa tarde já adiantada derramava-se agora lenta, húmida e baça. Levantou a gola do casaco e segurou-a com os dedos. Olhou então, à direita e à esquerda, os extremos daquela antiga rua, por onde raramente deslizava algum transeunte. Precisava sair dali e deitar qualquer coisa ao estômago vazio. Porém, o peso da modorra e, também, uma esquisita indiferença por si mesmo, inibiram-no de mexer um pé sequer. Havia ano e tanto, desde que o seu companheiro Marcos se tinha afastado para esmolar no centro da cidade, que ele se habituara a vir saborear, naquele canto, delicioso sono, complemento sempre indispensável do almoço, como ironicamente costumava dizer para os seus farrapos...

 

 

 

 

A porta do antiquíssimo templo, afastada do passeio por cinco degraus de cantaria, não representava, em verdade, colchão macio para a soneca, mas, à falta de melhor, servia para o efeito. Era também sossegado o sítio: ficava por detrás da cadeia, casas velhas caindo em ruínas dum e doutro lado da rua, um silêncio de morte à volta, apenas quebrado de longe em longe por imprecações e blasfémias que vinham, lá de cima, das grades. De novo o homem reconheceu a necessidade de comer alguma coisa. O frio mordia-lhe os ossos, também. Sentia-se entontecido. Mas, lembrando-se, logo a seguir, da extraordinária data tradicionalista que passava, deixou-se ficar, não que ainda alimentasse quaisquer ilusões sobre a generosidade alheia, mas para ver o que de bom lhe poderia suceder nesse dia em que, havia quase dois milénios, os homens costumavam dizer-se todos irmãos. Torcendo desdenhosamente os beiços gretados, numa cara com barba de mês, olhou de novo para um e outro lado. Ninguém avistou. Como aquela igreja estava sempre fechada, e o trânsito da artéria havia sido desviado para outra mais nova e desafogada, poucas vezes ali surgia algum vulto. Sítio bom para dormir, era péssimo para a colheita,.. Apesar disso, Mateus obstinou-se na sua ideia, desejoso de verificar qual o sinal de fraternidade humana que o destino lhe reservava. O amargo cepticismo que a vida lhe havia entranhado no sangue e na própria alma, ao longo dos seus setenta anos, fê-lo, porém, sorrir-se de si e da sua lembrança. Bah! Era tolo ou voltava a ser menino abraçado a quimeras?

Nada se respondeu. Mas essa inesperada interrogação cruzou-lhe de novo o cérebro, e, numa ânsia irreprimível, lançou-se passado fora, talvez para não achar tão amargo o presente. Revia-se pequenito, à beira do rio, correndo pelo cais, divertindo-se como os da sua pandilha. De volta a casa, quando arranjava alguma moedita por qualquer eventual serviço, levava sempre um bolo ou uma rosa a Beatriz, sua querida e dedicada irmã. Olhos semi-cerrados, prosseguiu na sua viagem pelo tempo distante: voltou a ver-se moço de bordo e, depois, homem de fogo, nas entranhas de grandes cargueiros. Correu os sete mares, visitou quase todos os portos do mundo, curtiu milhentas borracheiras, saboreou aventuras escaldantes e extraordinárias, e, nem uma só vez voltou ao Tejo que não trouxesse no seu activo mais meia dúzia de ruidosas e triunfantes zaragatas.

No regresso duma dessas viagens, Beatriz, a dedicada irmã que havia cuidado dele depois da mãe ter morrido, apresentou-lhe Marcos, com quem tencionava casar dentro de meio ano. Beatriz não podia ter encontrado melhor noivo, realmente. Marcos, sensato e trabalhador, estava empregado numa serração, e, conquanto o seu trabalho não fosse nenhuma acharia, sempre dava para a côdea e para os trapos lavados. Mateus, embora nunca tivesse admitido a ideia de a irmã o deixar só, aplaudiu o noivado. E, ao tornar da próxima viagem, trouxe -lhe de Xangai, onde o seu navio havia ancorado quinze dias, alguns metros de cetim branco, para o vestido de casamento. Mas, a pobre Beatriz já o não podia usar, infelizmente: Marcos havia perdido um braço, certo dia, numa das serras eléctricas, e, sendo despedido por esse motivo, tinha-se visto coagido a estender a mão à caridade pública.

Como consequência desse inopinado e trágico desastre, Beatriz caíra em pungente e profundo desgosto, acabando, volvidas semanas, por fechar para sempre os olhos. Ao conhecer tudo isto, Mateus ficou completamente desnorteado. Voltou ao mar. Trabalhava como louco, enchendo de carvão a insaciável fornalha do navio e desdenhando muitas vezes do descanso que lhe competia, o que feria de assombro o maquinista e o restante pessoal das caldeiras. Saudoso da irmã, não podia esquecê-la. No regresso das suas jornadas marítimas, , Mateus deu mesmo em ficar a bordo, e, embora repetidamente convidado e instado pelos camaradas, não se decidia a deixar o navio. Nada tinha a fazer na cidade. Sua irmã estava no cemitério.., Mas, veio uma noite - já eram passados então vinte e três anos sobre a morte de Beatriz - em que ele teve de obedecer não a um convite, mas a uma ordem: estava esgotado, havia sofrido violentíssima pancada na espinha dorsal, e, por isso, trazia o tronco sempre arqueado. O pior era já não poder trabalhar. Indicaram-lhe, portanto, a escada do portaló. Envelhecido e inutilizado, teve forçosamente que esmolar.

Mateus abanava amargamente a cabeça. Sim, a data era a mais sublime de toda a Cristandade, os homens diziam esquecer nesse dia rancores, invejas e malquerenças; e os ricos e os fartos confessavam amar os pobres e a pobreza, mas ele não contava com nenhum obséquio da sorte. Todavia, aguardava, não sabia o quê, mas esperava fosse o que fosse, apenas para pôr à prova uma vez mais o seu crucial destino.

Subitamente, no extremo da rua surgiu um vulto que caminhava apressadamente, chapéu derrubado, mãos nos bolsos do sobretudo, fugindo do crepúsculo gelado. Mateus, falando consigo mesmo, admitiu que se trataria provavelmente de um bom homem, coração sensível, capaz de confortar a miséria alheia com alguns escudos. Vendo-o aproximar-se, tossiu, pois, repetidamente aquela sua tosse frouxa, em farrapos, que por si só constituía, a um tempo, lamúria e certificado de fome e infortúnio. Porém, o desconhecido, mantendo sempre o mesmo passo largo e decidido, parecia nada ter ouvido e continuar mergulhado em fundas preocupações. Quê!? - pensou o mendigo -. Então o cavalheiro vai passar sem me dar nada? Apoderou-se dele rápida onda de rancor e sarcasmo. E, no momento preciso em que o cavalheiro avançava pela sua frente, lembrando-se de certa máxima chinesa, que havia aprendido nas suas viagens marítimas, adaptou-a à ocasião e atirou-lha:

- Quem dá esmola é um homem, mas aquele que a pede é homem também!

O outro estacou imediatamente, petrificado de surpresa. Durante um minuto, os dois olharam-se, silenciosos e interrogativos. Por fim, o desconhecido, levando rapidamente a mão ao bolso do sobretudo, atirou a Mateus um maço de cigarros meio consumido:

- Tome lá! E, desculpe..,

Já o outro havia desaparecido, Mateus saboreava um cigarro, e, lá para consigo, perguntava-se por que motivo, neste mundo, aqueles que querem auxiliar os pobres lhes dão, frequentemente, em vez de qualquer alimento, vinho ou cigarros. Como a interrogação era baseada na experiência própria, acabou por mexer os ombros, cansado de encontrar uma explicação que, noutras várias vezes, tinha em vão procurado. O cigarro deliciava-o; e, ainda que não pudesse substituir de modo algum a refeição que o estômago lhe reclamava, sempre era uma agradável ilusão. Mentalmente, agradeceu então a inesperada oferta. A seguir, pensando nas últimas palavras do esmoler, perguntou-se por que motivo ele lhe havia pedido desculpa... "Sim, por que motivo? Ou não teria mais nada que me dar?..." Esta hipótese deixou Mateus mergulhado em tristeza. Ainda havia almas generosas à face da terra, tinha que reconhecê-lo.

Por fim, abandonou o portal da igreja. Como a rua ia ficando cada vez mais escura, afogada em sombras, ele, que não era medroso, começava, apesar disso, a sentir-se cercado de inexplicável susto. Lembrou-se do miradouro ajardinado, onde gostava de aparecer todas as noites, para ver o farol da barra e os navios ancorados no porto. Era uma distracção que o penetrava de agradável melancolia e que satisfazia, discretamente, a saudade dos seus recuados tempos de embarcadiço. Outros apaixonados do rio e das luzes que nele cintilavam, apareciam ali, também, deixando passar as horas em muda e deliciosa admiração. Para lá se dirigiu, mas sem pressa, pois queria ver se o destino lhe fazia deparar, durante o curto trajecto, com alguma agradável surpresa. Nada, absolutamente nada veio ao seu encontro... Cruzou apenas com dezenas de pessoas que, ajoujadas de embrulhos e com os rostos banhados de felicidade, seguiam pressurosas para suas casas, pensando no ágape familiar. Orgulhoso, Mateus conservou-se calado durante toda esse tempo, deixando-se acotovelar e empurrar, mas sem pedir esmola uma única vez. Se os outros se diziam sempre amigos dos pobres e da pobreza, nessa santa noite, esperava que espontaneamente se justificassem, vindo ao seu encontro e amparando-o com as suas dádivas.

Chegou desiludido ao miradouro. Felizmente, não havia por ali nenhum dos outros admiradores da paisagem fluvial nocturna. Foi até à grade e, durante minutos, ficou uma vez mais maravilhado com aqueles colares de luzes, que, numa e noutra margem, adornavam o rio. Todos os barcos, de pequena ou grande tonelagem, apresentavam-se profusamente iluminados, pois também em cada um deles tudo se aprestava para festejar a redentora natalidade Cristã. Duas lágrimas vieram então aos olhos do pobre. Sorte ruim, a sua! Ter sido do mar, ter andado anos e anos seguidos no mar, para vir acabar em terra, como rafeiro velho e doente que vivesse de restos!

Sentou-se, amarfanhado, vencido. Precisava encher o estômago, mas faltava-lhe coragem para ir à procura de quem lhe desse de comer. Enganou-se com outro cigarro. Ainda podia iludir-se... E, acabava de riscar um fósforo, cuja débil chama lhe iluminou a cara esquelética, suja pela barba hirsuta, quando escutou voz conhecida mesmo a seu lado:

- V. Exª também gosta do rio e da noite?,..

Era Marcos. Abraçaram-se, demoradamente, comovidamente.

- Agrada-me que tivesses aparecido - confessou Mateus, com alegria e emoção, lembrando-se daquele rifão chinês, que tinha escutado certa noite a um "coolie", numa taberna de Hong Kong: "A amizade adoça a própria água..." Continuou, sinceramente: - Esta noite, sem um amigo sequer, não poderia ser para mim a noite que na realidade é,..

Feitio optimista, a despeito do braço que havia perdido na serração, Marcos apoiou o encontro entre sério e irónico:

- Sim, eu bem sabia que costumavas vir todas as noites até aqui, para sonhar, e, por isso, resolvi procurar-te. Ora bem: passaremos, a noite de Natal juntos, como dois príncipes!...

- Sem um centavo?

- Sim, eu também não tenho dieta.

- Sem pão, sequer?

- Sem pão.

Fez-se silêncio entre os dois mendigos. A noite pareceu tornar-se mais fria. De repente, Marcos soltou estranha gargalhada, acabando por pedir um cigarro. Da avenida marginal subia o ruído dos (autos) e dos "eléctricos" que fugiam apinhados de passageiros. Marcos fumava regalado. Mateus pensava agora no amigo e na gula que sempre o havia acompanhado. Vivia a sonhar com lautas refeições. "Nunca, nunca comi quanto precisava! - costumava Marcos confessar no tempo em que esmolavam juntos. - Em minha casa, sucedia o mesmo com meu pai e minha mãe, muito embora eles nada me dissessem. Fiz-me sóbrio à força! Mas, agora está decidido: antes de morrer, quero ter um dia uma refeição de milionário!" Coitado do Marcos. Querer comer muito e bem era, afinal, o seu único defeito. Talvez não fosse propriamente um defeito, mas um sonho... Realmente, ele também era um grande sonhador e fruía sempre penetrante deleite em adorar, durante largo tempo, o céu estrelado.

Olhos no alto, Marcos admirava justamente as estrelas que espreitavam a terra nessa noite enregelada. Depois, voltando-se para o companheiro, disse-lhe num tom indolente:

- Nem todas as noites se pode cear bem.

Mateus ficou algo intrigado:

- Que queres dizer?

- Comi ontem a minha refeição de milionário!...

- Palavra de honra?

- Palavra...

Marcos falaria verdade ou estaria a desfrutá-lo com uma refinada aldrabice?

- Comi até me fartar de tudo quanto há de melhor! - continuou Marcos.

- Almoço?

- Não.

- Jantar?

- Também não. Foi ceia, uma grande ceia, digna de rei ou de "lord".

Mesmo contra vontade, Mateus principiou a sentir inveja do amigo. O que acabava de ouvir fazia-lhe crescer água na boca e, ao mesmo tempo, aumentava-lhe, como por escárnio e maldade, as ferroadas no estômago. Encheu-se de curiosidade:

- Que comeste tu, afinal?

- Trutas!

- E depois?

- Ovos em conserva.

- E mais?

- Leitão.

- Mesmo leitão?

- Sim. Comi-o com um garfo de oiro. Comi até lhe chegar com um dedo...

- Acabaste?

- Não. Veio, a seguir, um peru e eu mandei-o todo cá para dentro.

- Impossível! - atirou Mateus, num grito, pois sentia-se já meio doido ao ouvir falar de toda aquela fartura.

- Qual impossível! Escuta, que ainda há mais: por fim, atirei para o bucho uma lampreia.

Mateus, aquecido pelo aturdimento, perguntava-se se o amigo não estaria a zombar dele e de si próprio igualmente, com a recordação de ceia tão variada e abundante. Com que fim procederia ele, porém, desse modo? A curiosidade perseguiu-o de novo;

- E vinho? Que vinho bebeste?

- O melhor! Champanhe, bom champanhe, do que os milionários bebem a todas as horas.

Marcos tirou uma fumaça mais e atirou fora a ponta. Por seu turno, Mateus continuava sem saber se acreditar ou não no que tinha ouvido.

- Mas, onde sucedeu esse milagre?

- Num restaurante: o chão era todo de espelho e as paredes de espelho, também. Música que nos dava asas, bonitas mulheres e bons charutos ...

- Mas, quem te convidou?

- Ninguém.

- Então, como foste lá parar?

- Não sei.

- Não sabes? Porém, deves saber como é que tudo isso acabou!

- Também não.

- Ora essa!

- Olha: não posso saber, porque, depois, acordei...

- Ah!

Esta arrastada interjeição de Mateus assinalou o desmoronar duma bonita ilusão. Compreendia, finalmente, o que havia sucedido ao amigo. Desses jantares, também ele, a dormir, havia já tido muitos;

Marcos olhava de novo as estrelas. Mateus lançou também olhos ao firmamento, mas já não achava encanto algum nas alturas... Pôs-se repentinamente de pé; e, como enlouquecido, começou a atirar à noite protestos e ameaças. Marcos, surpreendido por um instante, logo compreendeu o companheiro, porém. E, sentiu as lágrimas...

 

Como de costume, a viúva ocupava a cabeceira da mesa. Em frente sentava-se Augusto e, aos lados, ficavam as filhas, Guiomar e Antonieta, que de quando em quando olhavam furtivamente para o irmão. O almoço ia decorrendo silencioso, cortado apenas pelo ruido dos talheres nos pratos. Adivinhava-se, na atmosfera carregada da velha sala, a ameaça duma tempestade. D. Carolina dava ordens à criada, insistia com os filhos que comessem bem, sacudia as moscas impertinentes que pousavam no pão. De repente, Augusto levantou-se, atirando com o guardanapo, encarou a mãe e...

- Basta! Não suporto mais isto. Vou-me embora desta casa.

- Filho! Augusto, anda cá..,- gemeu a velha senhora, levantando-se também.

Antonieta fitou a irmã:

- Tinha de suceder. O Augusto não podia tolerar esta doentia situação. Eu, também estou cheia!

- Sim, bem sei - respondeu Guiomar, com irónica seriedade. - Estás ansiosa por viver com o Germano, o caixeiro da sapataria ali em frente.

- Que dizes?

- Sei tudo. Tenho"o escondido da mãe, mas sei tudo. Vais com ele ao cinema, tendes comido em gabinetes reservados, já vos viram entrar também numa casa suspeita...

- Mentiras! Calúnias!

- Pois sim, diz-lhe agora que são calúnias.,.

Ouviu-se bater lá dentro uma porta violentamente. D. Carolina, que havia corrido a segurar o filho, reapareceu, chorosa.

- O vosso irmão foi-se embora! Mas, porquê? Porquê? Que mal lhe fiz eu?

- Sabe porque, mãe? - disse Antonieta, dando vazão ao seu cinismo. - Foi por sua causa!

- Por minha causa, menina?

- Sim, senhora.

- Cala-te, não sabes o que dizes - censurou Guiomar, aborrecida com a audácia da irmã.

- Não sei o que digo? Ora essa! - E, apontando o velho chapéu de homem que se via na parede sobre um calendário antigo, ao lado do aparador, lançou, implacável: - Se aquilo ali não estivesse, nada disto sucederia!,..

- Mas, aquilo é o chapéu de teu pai, que Deus lá tem! - murmurou D. Carolina.

- Por isso mesmo!

- Cala-te! - atalhou, ríspida, a irmã.

- Cala-te tu! - ripostou Antonieta. - Também eu estou fatigadíssima de ver sempre, ao almoço e ao jantar, aquele fantasma...

- Filha, que dizes!?...

- Sim, mãe. Aquele chapéu, ali, a falar sempre do pai. foi o que irritou o Augusto; foi que o levou a sair de casa. Há-de levar-me a fazer o mesmo, também.

- Antonieta!

  1. Carolina ficara transida com o que acabava de ouvir. Seria verdade tudo aquilo? Já não chorava, mas tinha o enrugado rosto ainda molhado de lágrimas. Soluçava. Sofria muito, o coração doía-lhe, respirava com dificuldade. Olhava de quando em quando para Guiomar, a pedir-lhe amparo, mas também esta dedicada filha, ferida pelo drama que tão inesperada e rapidamente se havia desenvolvido, tinha a cabeça baixa, atormentada.

- Acabem de almoçar, meninas - recomendou a viúva. - E que Deus me dê paciência.

Antonieta arrastou nervosamente a cadeira, pondo-se de pé:

- Já almocei. Estou satisfeita - farta!

Abandonou a sala.

  1. Carolina sentou-se, amargurada e desfalecida. Guiomar aconselhou:

- Deixe-os lá, mãe. O Augusto e a Antonieta hão-de reconsiderar.

- Parece impossível - gemeu a viúva, depois de limpar os olhos - Por causa do chapéu do pai. Por causa do chapéu do meu querido Anselmo!

- Deixe-os lá. Eles não sabem o que dizem.

- Sim, filha, sim..,

Nessa noite, Augusto não voltou. Antonieta, por seu turno, apareceu só de madrugada. Guiomar esperava-a. Vendo-a chegar olheirenta, cabelo em desalinho, ar desleixado na "toillette", comentou com triste ironia:

- Vê-se que vens duma bonita reunião...

- Venho de onde me apetece. Compreendes? O que eu faço não é da tua conta.

- Parece-me que sou tua irmã...

- Sim, dizem que sim. Quanto a mim, porém, considero-te minha inimiga.

- Endoideceste?

- Não, não endoideci. Tu e a mãe querem-me mal, perseguem-me, atormentam-me a todas as horas e momentos. Tu, com esse olhar de detective; a mãe, com a mania de andar sempre a remexer na memória do pai e, o que é ainda pior, obrigar-nos, ao almoço e ao jantar, a olhar para aquele ensebado chapéu que ele usou...

- Lastimo-te.

- E eu odeio-te! Ouviste bem? Odeio-te!

- Está bem. Já sabia. Dorme, descansa. Até logo.

  1. Carolina perdeu por completo a alegria de viver. Se a morte do marido, dois anos atrás, a havia prostrado, fazendo-a andar a gemer e a soluçar pelos cantos da casa, a resolução do filho, então, acabou por aniquilá-la. Caiu à cama, sofria pesadelos e ataques, esvaía-se em lágrimas e gemidos a todos os momentos. Vendo-a em tão lastimável estado, Guiomar foi à procura de Augusto, animada pela esperança de o trazer consigo. Não conseguiu o seu generoso intento, porém. O irmão, teimoso e renitente no seu capricho, não queria mais voltar a viver com a família. "A mãe tornou-se insuportável com aquela ideia do chapéu do pai, na sala de jantar..." D. Carolina chorava e dizia-se a mãe mais desgraçada do mundo. Não tinha sorte nenhuma com os filhos: Antonieta era leviana, só pensava em luxos, gastava os dias à janela a olhar a sapataria em frente; e Augusto, taciturno e nervoso, gostando de impor sempre a sua vontade, comportava-se mais como estranho do que como pessoa dedicada. Restava-lhe Guiomar, apenas. Trabalhadeira, dedicadíssima à casa e à família, sofrendo em silêncio os desgostos e os caprichos dos outros, era o seu braço direito, o seu amparo, o seu conforto. Era a esta filha, a mais velha, que a viúva, melancolicamente, frequentes vezes declarava: "Não sei a quem é que o Augusto e a Antonieta saem. Não sei. Não me compreendem nem eu os compreendo. Só Deus sabe as mágoas que me causam".

As refeições na velha casa caíram em melancolia. Antonieta comia agora no quarto, aparecendo só de longe em longe na casa de jantar. Guiomar observava-a com atenção e tristeza, mas ciente da inutilidade dos seus conselhos, raras, raríssimas ocasiões lhe dirigia a palavra. D. Carolina foi-se pouco a pouco conformando com a ausência de Augusto. O que ele queria - dizia de si para consigo - era vida independente, gastar como melhor lhe apetecesse o ordenado, dispor de si e do seu tempo sem dar satisfações a ninguém. A seu ver, o chapéu do pai fora, apenas, um infeliz pretexto... Às vezes, chegava mesmo a desculpá-lo; outras, porém, amargurada por aquilo que lhe parecia constituir clamorosa injustiça para com a memória do pai e ingratidão, também, para com os seus muitos sacrifícios de mãe, chamava-lhe mau filho!

Olhando o velho chapéu, D. Carolina tinha a ilusão de ver e, até, de falar com o seu malogrado Anselmo. Era ali, sobre o calendário que ele o costumava dependurar, na volta do escritório. Lá fora, no corredor, estava um cabide de espelho e, no quarto, havia outros também. Anselmo Tavares Pereira, homem de método, gostando de repetir hoje o que tinha feito ontem ou dez anos atrás, preferia, , porém, aquele prego espetado na folha que marcava os dias de cada mês. A princípio, D. Carolina ainda chegara a aborrecer-se um poucochinho, dizendo ao marido que o sítio não era próprio para tal fim. Ele, porém, silencioso e sorridente, não fizera caso nenhum da censura. Voltasse do trabalho mal-humorado ou bem disposto, cavaqueador ou metido consigo, os seus primeiros passos em casa dirigiam-se à sala de jantar, onde colocava o chapéu no mesmo sítio de sempre. Augusto e Antonieta sorriam descaradamente, achando que se tratava de mania duma cabeça desarranjada.

Após a morte do pai, esperaram que o chapéu fosse dali retirado. Augusto, depois, chegou mesmo a aconselhar:

- A mãe podia dar aquele chapéu a um pedinte.

  1. Carolina não aceitou a sugestão, confessando que aquilo era uma das mais apreciáveis lembranças que guardava do querido morto. "Quando olho esse chapéu, vejo o vosso pai...". Encolheram os ombros com indiferença, sem compreenderem a delicada e saudosa intenção que havia nas palavras da mãe.

Ao sentar-se ou levantar-se da mesa, a viúva olhava o chapéu e dirigia-lhe, mentalmente, um cumprimento ou uma palavra carinhosa. Anselmo ouvia-a, tinha a certeza... De tarde e à noite, muitas vezes, vinha também sentar-se ali, permanecendo sempre tempo dilatado, numa espécie de adoração. Guiomar, quando a surpreendia nessa muda contemplação, entristecia e retirava-se em bicos de pés. Antonieta costumava rir-se desapiedadamente de atitude tão singular e desassisada. Augusto, por seu turno, ficava furioso, batia com as portas, dizia que aquilo era ridículo. "Se a mãe quer venerar a alma do pai, - chegara ele a dizer certa ocasião, refreando a sua revolta - porque não vai antes à igreja e ao cemitério?" D. Carolina olhara-o, surpreendida e magoada. "Também vou, também vou à igreja e ao cemitério, meu filho. Mas, aqui, olhando o chapéu que teu pai usou, parece-me vê-lo ainda..."

Era realmente essa funda e absorvente impressão que a viúva sentia. Nenhuma outra das recordações que guardava do querido ausente lhe dava tão completa sugestão da vida. Conservava ainda um dos melhores fatos do marido. Punha-o ao ar de quando em quando por causa da traça, mas não aquecia as mãos nem os olhos nessa fazenda. Também possuía, além do mais, a cigarreira do seu Anselmo, um isqueiro, quatro gravatas e muitos retratos, assinalando diversas épocas da sua vida de casados, mas tudo isso pouco ou nada dizia à sua alma. O chapéu, pelo contrário, como que o ressuscitava, fazendo-o atravessar de novo o corredor e sentar-se à mesa, com ela e os filhos, animando a refeição, falando do que lhe tivesse sucedido durante o dia. Esse chapéu como que guardava a figura, os gostos e a própria alma do falecido,., D. Carolina olhava-o embevecidamente, demoradamente numa doce e enternecedora ilusão. "Parece impossível, parece impossível!-gritava Antonieta, soltando gargalhadas escarninhas. - Só no manicómio se poderia ver coisa parecida!" D. Carolina sofria resignada as audaciosas censuras da filha. Gente nova, não a podia compreender. Os olhos arrasavam-se-lhe de lágrimas, dobava orações, pedia perdão à alma do marido para aquela filha tão atrevidínha.

O nome do filho foi-se apagando pouco a pouco nas conversas. D. Carolina lembrava-o a todos os instantes, lastimava a sua ausência, mas nunca se lhe referia. Também Guiomar nunca o citava, para não fazer sofrer a mãe. Antonieta, porém, é que nunca o esquecia. Parecia mesmo fazer empenho em lembrá-lo a todo o momento: "O Augusto é que teve juízo! Quem pode respirar nesta casa? Quem pode viver nesta atmosfera? Eu, não. Estou fartíssima!" A irmã lançava-lhe olhares severos, mas não conseguia abrandar-lhe as expressões. Antonieta opunha-se-lhe, altiva:

- Não tenho medo, ouviste?

- Nem é preciso. Basta que tenhas um poucochinho de vergonha.

- Olha a parva! Quem julgas tu que és?

  1. Carolina ficava aflita com a discussão, pedia que se calassem:

- Meninas, então? Meninas, tenham termos".

Uma noite, Guiomar foi dar com Antonieta a meter numa maleta um vestido e roupa interior.

- Vais fazer alguma viagem?

- Não tenho satisfações a dar-te.

- Bem sei. Não tas mereço...

- Não me mereces até consideração nenhuma"

- Pois sim. E eu quereria pagar-te na mesma moeda, mas não posso. Sempre és do meu sangue, sempre és minha irmã. Por isso, insisto em saber para onde é que vais.

Antonieta não respondeu. Atirando peças de roupa para dentro da maleta, calcava-as com modos violentos e bufava indignada. Guiomar, observando-a, abanou a cabeça e prosseguiu:

- Mas, talvez nem seja preciso que te incomodes a falar...

- Quê! Que dizes?

- Talvez eu mesma possa dizer-te para onde vais.

- Sim?! Seria curioso, curiosíssimo! Diz lá, então, faz favor.

- Nada mais simples. Vais viver com o Germano. Essa maleta, o teu nervosismo, a tua pressa, tudo, enfim, garante que me não engano.

- Pois, estás enganada, redondamente enganada.

- Mentes!

E, colérica, ameaçadora, Guiomar acrescentou.

- Mas, não será esta noite, ouviste?

Voltou-se, rápida, e, tirando a chave da porta, fechou-a do lado de fora. Chegou-lhe aos ouvidos a ameaça de Antonieta:

- Estupor! Hás-de pagar-mas!

Guiomar foi deitar-se, mas tardou a adormecer. Pegado ao seu quarto, ficava o da mãe. O de Antonieta era na frente da casa, contíguo à sala de visitas. Guiomar pensou demoradamente nessa estouvada irmã, tão insensata nas palavras e nos gestos, que não se importava com a moral para coisa nenhuma. Ainda bem que a mãe, dominada pela surdez que ultimamente a perseguia, nada tinha ouvido da discussão entre ambas. Mas, aquilo havia de repetir-se, certamente, e, então, não seria fácil esconder da boa velha os despropósitos de Antonieta. Não sabia como segurar dentro dos caminhos da moral essa irmã impulsiva, desassisada e voluntariosa. Tampouco sabia como governar a casa no declive que agora iam descendo. Nada se recebia, nenhuma delas trabalhava para fora, consumiam-se pouco a pouco as economias que o pai havia deixado no Montepio. Via-se, por isso, em sérias dificuldades, para conservar o grão de comodidade, abastança e conforto a que estavam acostumadas. Entretanto, e por mais que apertasse, o espectro da miséria ia-se aproximando.

De manhã, foi abrir a porta do quarto da irmã, mas estacou, gelada de surpresa. Antonieta tinha fugido! A janela lá estava aberta, indicando o caminho da fugitiva. Guiomar caiu numa cadeira, desolada com a descoberta. Como informar agora a pobre velha do sucedido? Como dizer-lhe que Antonieta havia fugido, de noite, para ir viver com um homem? Vergou a cabeça, fechou-a entre as mãos e pôs-se a chorar. Passado um momento, sentiu uma mão no ombro. Era a mãe:

- Que tens, Guiomar, que te sucedeu?

Ficou a tremer, assustada. Não sabia que responder. Perdeu por fim o domínio dos nervos atormentados, irrompeu num choro aflitivo, e confessou:

- A Antonieta... A Antonieta fugiu...

  1. Carolina ficou ainda mais branca do que era, como se tivesse perdido a última gota de sangue.

- Mas, por que, por que fez ela isso?

Guiomar enxugou os olhos, mas nem por isso as lágrimas secaram. Não sabia se dizer ou não a verdade. Pareceu-lhe que dando o chapéu do pai por motivo principal, talvez ainda amenisasse a culpa da irmã. A mãe ouvia-a com os olhos parados de espanto. Era inacreditável tudo aquilo. O chapéu do seu querido Anselmo, recordação tão apreciada e estremecida, afugentava de casa os seus filhos. Depois de Augusto, tinha levado o mesmo rumo a Antonieta. Era inacreditável. Muito séria, e a sofrer, perguntou:

- Mas, se o chapéu desaparecer, a Antonieta volta para casa, não volta?

Guiomar ficou estarrecida. Queria dizer toda a verdade à mãe, que Antonieta tinha fugido com o Germano, que nunca mais voltaria, mas faltou-lhe a coragem. Iludiu a santa velha:

- Pois volta, mãe. Se o chapéu desaparecer, a Antonieta volta...

No dia seguinte, a viuva dirigiu-se ao cemitério, levando na mão um embrulhinho, o chapéu do seu inesquecível Anselmo. Pediu ao coveiro:

- Ponha-o na campa do meu defunto. Pertence-lhe. Ao menos, aqui, não há-de dar aborrecimentos a ninguém...

O homem obedeceu de mau modo. Estava acostumado a muitas manias da parte de pessoas da família dos mortos, mas aquela parecia-lhe tocar a raia da originalidade. Não fez qualquer comentário, porém. Despedindo-se, a viúva deixou-lhe na mão alguns escudos.

Chegada a casa, D. Carolina, muito triste, mas visivelmente ansiosa, disse à filha:

- Olha, manda dizer à Antonieta que pode voltar...

- Quê, mãe?

- Dize-lhe que pode voltar. O chapéu do pai já cá não está. Levei-o para o cemitério...

Guiomar disse que sim, enquanto os olhos se lhe arrasavam de lágrimas. Pobre mãe! Não sabia qual o triste motivo que levara Antonieta a fugir de casa...

 

Em baixo, na porta da rua, soaram cinco pancadas. Estremecendo, Maria deixou imediatamente a máquina, e, coração a bater alvoroçado, correu à janela. Era o Silvestre, carteiro, não se tinha enganado. O infeliz, mordido pelo reumatismo, usava agora desse extraordinário processo para distribuir correspondência pela sua área, economizando assim as pernas e os restos da saúde. Rapidamente desceu a escada e recebeu das mãos do velho um postal ilustrado. Ali mesmo, encostada à umbreira, saboreou aquela meia dúzia de palavras do namorado. Januário, que acabava de regressar de uma nova viagem a Moçambique, pedia-lhe para aparecer, no dia seguinte, no arraial da Praça da Figueira. "Vou, não vou?" Hesitava, sem saber que responder-se. O caixeiro da padaria, em frente, que a observava com interesse e ironia, dirigiu-se-lhe: "Maria Gracinda, desce das nuvens e anda ouvir um segredo..." Então, como violentamente acordada, a rapariga assustou-se e galgou os degraus.

A mãe veio da cozinha, abespinhada, com um tacho na mão:

- Notícias do marinheiro tunante, não é verdade?

Maria apertava o postal contra o peito, não podia negar... Curvou a cabeça, confundida. Indignada, a mãe ameaçou:

- Quebro-te a cara, se sei que continuas a dar treta a esse bandido!

Enrubescida e magoada, a rapariga voltou à máquina de costura. Tinha de acabar uma blusa para a Alice, a divorciada, do terceiro andar, e, no dia seguinte, precisava de fazer ainda um avental para a Sofia, sua vizinha também, que tinha um lugar de hortaliça na Praça da Figueira.

Durante muito tempo ainda a mãe, de roda das panelas, continuou a vociferar contra a filha e Januário. Não consentia de modo nenhum naquele namoro. Nada tinha a dizer contra o rapaz, mas só porque ele era marinheiro, odiava-o deveras. Maria" interessada no trabalho e com o barulho da máquina, não a escutava, felizmente. De quando em quando interrogava-se: "Vou, não vou?" O arraial de Santo António interessava-lhe muito, realmente. Todavia, sentia-se perseguida por determinado receio...

Pouco depois do sino de S. Vicente deitar as badaladas do meio dia, a mãe veio dizer-lhe com maus modos:

- Chame o seu irmão e venham almoçar.

A rapariga dirigiu-se ao quarto de Orlando:

- Vamos comer, seu preguiçoso?

O pequenino, deitado, folheava um jornal infantil, deliciando-se com as gravuras. Olhou tristemente a irmã. Apanhado por uma tuberculose, tinha dias em que o cansaço o amarfanhava todo. Numa voz lenta e difícil, murmurou:

- Não, Gracinda, não me levanto.

- Queres que te traga o almoço?

Orlando sorriu. Como estava pálido! A irmã acrescentou:

- Bem, está bem. Eu vou buscar a comida e almoçaremos aqui os dois...

A mãe rosnou contra aquele luxo de comer na cama. Depois do pequeno ter adoecido, parecia, mesmo, trazê-lo de ponta. E Maria, que havia muito não podia suportar os desaforos e as descomposturas da velha, sentia-se, por isso, mais solidária com a sorte do doentinho.

- Vamos comer, então, meu amor, - disse a rapariga, sentando-se no leito e colocando na frente do irmão um prato de açorda.

- Não tenho fome, Gracinda...

- Deixa-te de tolices. Tens que comer, para ganhares saúde e para que eu te possa chamar Orlando, bonito...

- Ora, não me apetece.

- Não me aborreças, Orlandinho.

- Não posso...

- Anda, meu querido. Come, que eu levo-te amanhã ao arraial da Praça da Figueira. Sim?

- Palavra?

- Sim, palavra de honra.

Com grande esforço, o pequeno comeu tudo. Quando chegou ao fim, estava exausto. Maria Gracinda sorria, satisfeita. Mas, logo a seguir, o doente sofreu um acesso de tosse e uma golfada de sangue tingiu o lençol. A rapariga assustou-se e desatou a gritar. A mãe, na cozinha, embora ouvisse a gritaria, não apareceu a saber de que se tratava. Farta de situações iguais àquele estava ela até à raiz dos cabelos. Indignada com a sua miséria, andava indignada também, e há muito, com os filhos e o próprio mundo.

Deixando por fim o pequeno meio adormecido, Maria retomou a costura. Fazia um calor asfixiante. Todavia, a doença do irmão pesava-lhe muito mais no peito que aquela temperatura. Era ele, quem a prendia, ainda, à casa. A mãe, pelo contrário, parecia desejar que ela desaparecesse da sua vista para sempre. Estava na verdade muito diferente do que tinha sido noutros tempos. Não havia paciência que resistisse às suas censuras e constantes impertinências. "Vou, não vou?" Pensava em Januário, via nele o seu futuro e a sua libertação...

Acabou a blusa ao começo da noite. Orlando, fatigado pela doença, que progredia assustadoramente, continuava deitado. Maria foi jantar a seu lado. Distraíu-o tanto quanto lhe foi possível, fazendo projectos de se divertirem ambos, no arraial:

- Verás, até havemos de dançar..,

Fatigada, o corpo a pedir-lhe repouso, foi ainda à janela, admirar o rio, antes de se deitar. Do céu, lantejoulado de estrelas, escorria uma luz prateada que atapetava a extensa massa líquida e envolvia o casario numa fosforescente poeira de sonho. A noite de Junho era cálida, abafava, embora de longe em longe passasse uma brisa refrigerante. Abrangia-se dali grande parte do bairro de Alfama. Maria correu com os olhos algumas das janelas iluminadas, de onde saíam vozes confusas e trechos musicais. Como era monótona a sua vida! De novo pensou no marinheiro e no seu convite. Que mal haveria em aceder? Olhando o rio, recordou aquela noite, meses atrás, em que Januário a arrastara para um passeio até à Outra Banda. Ouviam-se guitarras gemer, como agora... Sorriu, com ternura e ironia. Nessa ocasião, ele beijara-a, sofregamente, doidamente, numa explosão de instinto descomandado... Se ela acedesse no dia seguinte, que iria suceder, portanto? Não sabia. E, por isso, o receio e a tentação desenvolviam-lhe, dentro do peito, um jogo cínico, dramático, agradável e cruel...

Dormiu horas seguidas, profundamente. Mas, péla madrugada, debateu-se com um terrível pesadelo. Entontecida por música estranha e vibrante de metais, via-se à entrada de uma floresta de chamas, arrastada por Januário, que a queria levar para o meio do braseiro,.. Atrás, chorando e suplicando, vinha seu pai, com o mesmo ar triste do seu último dia de vida: "Maria Gracinda, volta. Maria Gracinda!..." Acordou, assustada. Que queria significar esse sonho? Lavou-se demoradamente, refrescando o rosto e o tronco. A imagem do pai, viva ainda na sua memória, acabou por dispô-la agradavelmente. Começou a cantarolar. Saltando da cama, a mãe protestou contra aquela manifestação de alegria. Maria mexeu os ombros, indiferente. Estava alegre por ter tido a impressão de ouvir seu pai, chamar-lhe, do além, Maria Gracinda, bonita. Era assim que ele a tratava, em pequena, sentando-a nos joelhos e afagando-a, ternamente, carinhosamente.

Ainda a cantarolar, entrou no quarto do irmãozito. Logo recuou, porém, assustada. Seria verdade? Era verdade, realmente: Orlando tinha morrido durante a noite! Os gritos da rapariga atraíram a mãe e a vizinhança. "Meu querido irmão! Que vai ser agora de mim sem ti?..." Desolada, desfazia-se em pranto.

Mas, era impossível ficar o dia todo, parada e a chorar, diante do cadáver. Alice veio ajudar Maria Gracinda a lavar e a vestir o pequeno. Finalmente vencida de sofrimento, a mãe aninhou-se a um canto, gemendo e chorando incessantemente. Embora o não dissesse nem à filha nem a ninguém, só ela sabia quanto profundo amor consagrava àquele seu menino sem ventura!

Pela noite, Alice e mais duas vizinhas vieram rezar em torno do caixão. Maria, como entontecida, acompanhava-as mentalmente. E, próximo da meia-noite, ficou deveras espantada ao ver chegar Januário, boné na mão, visivelmente contristado. Na rua, o marinheiro tinham-no informado da morte do pequenito. Em voz baixa, disse à namorada:

- Não te podia abandonar, nesta situação...

Agradecida, Maria Gracinda dirigiu-lhe um sorriso enternecido.

 

João Rodrigo subia lentamente a Avenida, surpreendido com o movimento de automóveis. Trinta anos atrás, lembrava-se perfeitamente, quando por ali passeara nas vésperas da partida para África, contavam-se ainda pelos dedos os "taxis". Também o aspecto geral estava muito modificado. Caminhava lentamente, olhando à direita e à esquerda, e pensava, com uma pontinha de tristeza, na irredutível marcha do tempo. Com quarenta e nove apenas, já se sentia velho. Havia trabalhado muito, e, na medida do possível, tinha vencido. Lá estavam os seus grandes armazéns, em Luanda, e as largas plantações, em diversos pontos de Angola, como confirmação do triunfo alcançado. Todavia, não se dava por satisfeito. Para alcançar a riqueza, havia consumido a mocidade e os melhores anos de vida. Não teria perdido mais do que havia lucrado? Pensava, muitas vezes, que sim. Estava disposto, porém, a recuperar o tempo perdido através da maior soma de prazeres. No dia seguinte, partiria para Vila Flor, de visita aos velhos, mas com demora de uma semana somente ; e, depois, seguiria por essa Europa, disposto a comprar a alegria de viver fosse por que preço fosse.

Na Rotunda, deu volta demorada ao monumento, admirando atentamente a soberba figura do Marquês e os vultos simbólicos. Aquilo impressionava-o. Recordou o tempo em que, na sua aldeia transmontana, lia de noite, à lareira, para toda a família, o romance em fascículos das extraordinárias façanhas dos "Capotes Brancos", nas velhas ruas do Bairro Alto. Tudo isso ia já muito longe, era certo, mas vinha agora do fundo do passado, exacto de nitidez. Então, uma vez mais reconheceu que o passado só morre quando queremos que ele morra...

Estava decidido a levar ainda mais longe o passeio, para admirar a parte nova de Lisboa, nas proximidades do Parque Eduardo VII. Porém, de repente, começou a chuviscar. Nuvens escuras amontoavam-se, lá em baixo, para os lados da barra. Ficou contrariado. E, levantando a gola da gabardina, resolveu regressar ao hotel. Perdia assim boa parte dessa tarde de novembro, mas por-se-ia ao abrigo de alguma gripe ou resfriado. Tinha que defender a saúde. E, pela primeira vez desde a chegada, teve sincera saudade de África, e em especial do clima, que só em curtíssima época pedia agasalhos.

Quando ia a passar por um cinema, ocorreu-lhe gastar o resto da tarde na "matinée. Sempre passaria o tempo mais agradavelmente. Entrou na "bicha", que vinha lá de dentro até ao extremo do passeio. Era a primeira ocasião que precisava tomar lugar numa parede, à espera de vez. Sorria para si mesmo. Tinha um fundo alegre e comunicativo que gostava de manifestar-se e, por isso, sentia-se sempre bem quando em meio de numerosas pessoas. Enquanto os mais inquietos ou desesperados com a chuva lançavam comentários aborrecidos e diziam, também, que o bilheteiro não se movia, João Rodrigo, continuando a sorrir Intimamente, esperava com calma a sua ocasião. Não tinha pressa nenhuma, e, além disso, sabia dominar completamente os nervos quando era preciso. Na parede fronteira do cinema, grandes e berrantes cartazes, enfolados pela humidade, anunciavam o breve título do filme sobre uma cena sugestiva, em que se via Rita Hayworth, provocadora, fumando e sorrindo como o próprio pecado.

A "bicha" ia caminhando, caminhando, mas nem assim perdia extensão, pois atrás de umas chegavam outras pessoas. Quando o africanista estava já próximo da bilheteira, uma rapariga, bem bonita e bem pintada, tocou-lhe de leve no braço e pediu: "Pode fazer o favor de me comprar duas plateias?" Estendeulhe uma nota de cinquenta escudos e, depois, como a desculpar-se, apontou a rua com um gesto triste e fatigado. Lá fora, realmente, desabava agora uma bátega fortíssima. João Rodrigo ficou tão surpreendido quanto impressionado. A primeira coisa que lhe ocorreu foi que aquele pedido representava o começo de uma interessante aventura,., E, porque não? Imediatamente, quis devolver-lhe o dinheiro: "Faça favor, depois paga,.." A formosa rapariga, porém, rejeitou a oferta, e, afagando a cabeça de um pequenito que estava a seu lado, tomou mesmo um leve ar de ofendida. "Não, não, senhor. Por quem é.,. Não posso aceitar,.,"

Decidido, contudo, a aproveitar o imprevisto da situação, João Rodrigo comprou os dois bilhetes junto ao seu. Ninguém lhe poderia chamar inconveniente por assim proceder...

Durante a primeira parte do espectáculo, e a despeito de duas ou três tentativas esboçadas com perfeita naturalidade, não conseguiu, todavia, que a rapariga lhe respondesse. Mas, no intervalo, saiu e voltou com dois pacotinhos de chocolate: "Para si e para o seu irmão,.." Ela deitou-lhe um olhar de surpresa, todavia aceitou o presentinho, dividindo-o com o pequenito.

Na segunda parte, enquanto no "écran" a actriz vivia os mundanos tormentos de "Gilda", trocaram repetidos olhares na penumbra da sala. E, quando a "matinée" terminou, como o pequeno começasse a dizer que tinha fome, o africanista convidou:

- Se quisesse tomar alguma coisa com o seu irmãozinho na minha companhia, eu teria muito prazer.

Ela corou e sorriu; depois, tornou-se grave:

- Não, não é meu irmão...

- Ah!

- Também não é meu filho, como certamente o senhor está a pensar... Tenho pena dele, apenas.

- Ah!

Só então João Rodrigo notou que havia boa distância entre o estado da indumentária da bela rapariga e do pequenito: apresentava-se ela, dentro de um impermeável azul claro, transparente, que deixava perceber um moderno vestido aos quadrados ; e o pequeno, com um sobretudinho algo puído, cobria-se com um boné que, evidentemente, tinha deixado de ser novo havia muito. João Rodrigo, um pouco confuso, sorriu por sua vez, para ficar, depois, sério também. Pediu desculpa de ter-se enganado. Ela, risonha novamente, pôs-se a falar da situação do menino.

Quando entraram numa pastelaria do Rossio, já o africanista sabia que o pequenito, filho de uma pobre viúva, era dedicadamente protegido pela bela rapariga. "Sou dactilógrafa, mas trabalho só por encomenda... E vivo para esta criança como se fosse na realidade meu filho..." Estas palavras saíram-lhe dos lábios sangrentos com acento melancólico. E, por isso, João Rodrigo, que lhe admirava a frescura e a beleza, passou a admirar-lhe também o bom coração...

Desfez-se em amabilidades. O pequeno satisfazia o estômago com chocolate e bolos. A bela rapariga tomava aos poucos um "cock-tail", como se beijasse repetidamente o rebordo da taça; e, por entre silêncios e sorrisos, falava da sua vida. Vivia só e não acreditava nos homens... O africanista, que mentalmente e sucessivamente a considerava, além de formosa, uma infeliz digna de ser auxiliada, contrapôs argumentos repletos de bom senso e galantaria. Para si mesmo chegou a dizer: vale uma paixão, vale tudo... Contou, por seu turno, o seu regresso e o propósito em que se encontrava de fazer uma viagem pela Europa. Ousou até convidá-la: "Gostaria que viesse comigo... " Apanhada de surpresa, ela corou. Daí para diante, tornou-se, porém, mais amável. João Rodrigo verificava, contente, que a sua aventura, afinal, seguia rápida evolução. Falaram ainda da vida dum e doutro, até que a bela rapariga declarou:

- Vai-se fazendo tarde. Tenho que me ir embora...

- E, quando a voltarei a ver?..,

Ela encarou-o, risonha e enigmática. Depois:

- Bem, não quero que me chame ingrata. Esta noite...

- Aonde?

- Aqui, às dez...

Radiante, o africanista acompanhou-a até à porta. E, quando se voltou, para pagar a conta, descobriu a um canto Tomé Santos, empregado de Alfândega, em Luanda, seu velho amigo. A braçaram-se. João Rodrigo perguntou:

- Quando chegaste?

- Há dois meses, com meio ano de licença.

- Não digo isso. Quando chegaste aqui?... Não te tinha visto, confesso,

- Mas, vi-te eu logo que entraste... e bem acompanhado, por sinal!..,

Tomé Santos mostrava ar teimoso de ironia. João Rodrigo, intrigado, quis saber:

- Conheces aquela rapariga?

- Conheço, como muita gente..,

- Que dizes?

- A verdade.

- Mas...

- Olha, João Rodrigo, acautela-te...

- Mas, porquê?

- Ora, porquê! Porque essa rapariguinha ambiciosa, para melhor conseguir os seus fins, faz-se acompanhar por crianças alugadas...

- Crianças alugadas?

- Justamente, para poder dizer que tem boa alma e prender o coração e a algibeira dos papalvos.,.

- Ah!

João Rodrigo, surpreendido e vexado, estava vermelho. Caiu numa cadeira; e, tirando o chapéu, chamou o criado e pediu qualquer coisa fresca, gelada...

 

Antes de subir a escada, respirou fundo, para ganhar forças e coragem. Setenta e quatro degraus, até ao quinto andar, representavam sempre, a essa hora, para o seu martirizado corpo, enorme suplício. Mas, lá foi subindo, com grande esforço, as pernas e as cruzes a doerem-lhe desesperadamente. Era terrível o seu calvário. Levantar-se às quatro, correr à Baixa, varrer, esfregar e limpar, com mais duas colegas, as dezoito salas e gabinetes da Companhia Congo; e, no regresso, subir ainda aquela altíssima escada, parecia-lhe diabólica perseguição do destino. Que fazer, porém? Tinha que viver encostada à irmã, pois o que ganhava não era suficiente para comer e alugar um quarto.

No segundo, estacou um instante a falar com a criada do advogado, que andava a esfregar o patamar:

- Bom dia, menina Tereza. Então, no servicinho, não é verdade?

- Não há outro remédio, mas olhe que não é por virtude nem gosto, senhora Amália.

- Pois não, não. Também eu digo o mesmo. Mas, que se há-de fazer?

Sorrindo, a moça opinou, irónica:

- O que me convinha era arranjar um homem rico!...

- Olha, olha. A sorte grande não sai aos pobres.

- Raio de vida! - E a rapariga soltou gargalhada nervosa.

Amália continuou a subir, segurando o saco das compras. Pensava, agora, em Salvador, o único homem que, em toda a sua vida, tinha conhecido, contínuo na Alfândega, que andava sempre asfixiado de dificuldades, e, por isso, não podia arranjar uma casa para viverem juntos. Amava o apaixonadamente, não via mais ninguém no mundo, esperando, resignada, que ele fosse aumentado, para poderem então ter o seu ninho.

No lanço do quarto andar, rosnou censuras contra os inquilinos do esquerdo e do direito, que viviam em permanente despique de piadas, censuras e insultos, deixando a parte da escada a seu cargo transformada num verdadeiro monturo. Aquilo era intolerável. Não tinham respeito pelos outros moradores nem pela própria senhoria.

Logo que abriu a porta, a irmã perguntou-lhe se trazia a carne para a "Flor".

- Não encontrei coisa que servisse.

- Claro, passaste pelo talho demasiado tarde! - rosnou Micaela, contrariada.

- Não, não. Estive lá até bem cedo. Mas, hoje é que não havia nada que prestasse.

- Cantigas. Bem te conheço. Tu é que não gostas da cadela, mas olha que quem não gosta dela também não gosta de mim.

- Não digas isso, Micaela, não digas isso.

- Deixa-te de palavriado. E despacha-te, que há muito que fazer.

Amália despejou o saco das compras sobre a mesa. Depois, aqueceu o café para dejejuar. Estava maçada e triste. Aquela sua irmã tinha um génio dos demónios, descompunha-a por tudo e por nada, fazia-lhe até sentir, a todo o momento, que a tinha ali por esmola. Vieram-lhe lágrimas aos olhos. Se o seu Salvador não arranjasse depressa uma casa, não sabia como aquela sua difícil e deprimente situação iria acabar.

- Aqueça o leite para a "Flor", vamos, que a bicha não pode morrer à fome.

Amália obedeceu, assustada. Quando a irmã, após qualquer discussão, começava a tratá-la por você, não queria apenas dizer através dessa maneira cerimoniosa que estava zangada, mas que magicava também alguma vingança. Era o costume. Vezes sem conta lhe havia sofrido insultos e desprezos. Micaela, que era rica e gostava de ver-se sempre obedecida, não suportava qualquer contrariedade, por mais leve e insignificante que fosse. Ouvindo-a rosnar e praguejar, agora, na "marquise", a pobre sentia o coração doer-lhe, assustado. Que iria suceder? Mastigava o pão e bebia golos de café, vigiando ao mesmo tempo o lume para verificar se o leite já fervia. Depois, tirando a vazilha para fora, quando a fervura chegou ao rebordo, sobreveio-lhe surdo e violento rancor contra a cadela. Micaela adorava a "Flor" como se fosse um filho. Talvez por nunca ter sido mãe é que se devotava tão apaixonadamente ao animal... Mas, era muito vaidosa também, com a cabeça tonta pela riqueza, espesinhando quantos dela precisavam. A vizinhança não lhe suportava a prosápia nem as maneiras pretensiosas. E, entristecida, Amália recordou a manhã em que a irmã, ainda fedelha, havia seguido para Lisboa, onde andara anos e anos, por diversas casas, a servir. Depois, partira para África, com um casal que ia fixar-se em Lourenço Marques. Tivera sorte, enriquecera, casando com um africanista que podia ser seu pai. E, ao regressar, já viúva, pretendendo talvez mostrar-se generosa para com a família, a quem havia esquecido havia muito, mandara vir Amália para a sua companhia. Em vez de tratá-la como irmã, tratava-a, porém, como se fosse uma estranha, exigindo-lhe trabalho de besta em troca das sopas e do quarto, um mísero cubículo na trapeira.

Micaela veio perguntar com maus modos:

- Esse leite, está pronto?

- Está.

- Veja se já amornou...

- Já o tirei há bocadinho.

- Deixe ver.

Micaela deitou o leite num tacho fundo, juntou-lhe pedaços de pão, e, a seguir, subiu a escada para ir levar, ao terraço, o almoço à cadela.

- Olá, "Flor"! Aqui tens leitinho... Aquela parva não te trouxe hoje carne, mas deixa lá que eu lhe tratarei da saúde.

Ansiosa e esfaimada, a cadela, puxando a corrente que a prendia à casinhota, deitou a língua de fora, sacudiu a cauda, agitando se desesperadamente.

- Juízo, juizinho, "Flor". Vamos, toma lá, vê se te agrada...

A cadela meteu o focinho no tacho e começou a comer e a beber sofregamente, ruidosamente. Micaela, que se demorou um instante a observá-la, aproximou-se, a seguir, da grade, olhando o grande panorama da cidade que dali se alcançava. A manhã descia neblinada, mergulhando o casario num véu brumoso, que mal deixava adivinhar os montes e as casas da Outra Banda. O tempo ia mudar, o outono não tardaria semanas, a chuva e o frio apareceriam depois com todo o seu impiedoso cortejo de calamidades. Micaela, lembrando-se dos bons tempos passados em Moçambique, suspirou por esse belo e forte clima. Logo, porém, se voltou mal humorada. A cadela, já satisfeita, havia regressado à casota, para gozar prolongada soneca. A patroa faloulhe, enternecida e irónica:

- Que tal, soube-te bem? Quero ver-te sempre muito gorda... E vais mudar de casa. Vou até já tratar disso.

Desceu à cozinha. Olhando para a irmã, fixamente, declaroulhe:

- A "Flor" começará desde hoje a dormir, também, no seu quarto. Percebeu?

Amália havia percebido muito bem, mas, tão gelada de surpresa se sentia, que lhe faltava coragem para articular uma palavra sequer.

- Percebeu? - insistiu Micaela. - Não quero que a minha bichinha fique lá fora ao frio...

- Mas, a casota tem porta, podia fechar-se à noite, como de costume... - opôs Amália timidamente.

- Quê? Aqui, quem dá ordens sou eu. Não consinto protestos nem discussões. E, quem não estiver a seu contento, pode sair por onde entrou, percebeu?

Ofendida e humilhada, a pobre não soltou palavra. Também nada adiantaria, sabia-o perfeitamente. Enfurecida por lhe não ter trazido carne para a cadela, a irmã vingava-se daquela impiedosa maneira. Era inacreditável, todavia, que levasse tão longe o seu procedimento. Queria mostrar-lhe que não lhe dedicava mais consideração que ao animal. Talvez nem a estimasse tanto. Frequentes vezes lho tinha demonstrado, de resto. Atormentada, limpou as lágrimas que lhe vieram aos olhos. Suspirou pela sua aldeia, pelo casebre onde tinha vindo ao mundo, pelos dedicados membros de família que ainda lhe restavam. Aquela Micaela, cruel e deshumana, nem parecia ser do seu sangue. E, por um instante, pensou em ajuntar os seus trapos e desandar para sempre. Depois, conteve-se. Embora a ameaçasse por tudo e por nada, às vezes Micaela arrependia-se ou simplesmente se esquecia de levar até ao fim os seos propósitos vingativos. Podia muito bem suceder agora outro tanto,

- Trate da cozinha, - insistiu Micaela - que eu não sou escrava de ninguém!

- Bem sei. Mas, sou eu.,.

- Que é lá isso?

Amália emudeceu. Não tinha coragem para defenderse nem com uma simples resposta. Tudo a assustava. Malfadada vida a sua! O arrependimento de ter vindo para a cidade amarfanhava-lhe o coração. Antes tivesse quebrado as pernas no dia em que acedera ao convite da irmã. Agora, era tarde. Mas, nem tudo estava perdido. O seu Salvador, logo que fosse aumentado, alugaria casa para viverem, e, então, talvez a sua vida de inferno passasse, como tanto desejava, a ser vida feliz.

Escolheu as couves e descascou as batatas, para fazer o almoço. Deixando as panelas ao lume, foi arrumar os quartos, que a irmã, queixando-se com verdade ou sem ela, de constantes e fortes dores nos rins, não podia nunca mexer uma palha. Após o almoço, Micaela foi gozar a sesta. Também Amália costumava proceder do mesmo modo, para compensar-se da esfalfante madrugada. Todavia, a irmã, que continuava abespinhada, ordenou:

- Arranje um caixote para fazer a cama da "Flor"; arranje também um cobertor velho; e leve tudo para o seu quarto. Quando me levantar, teremos muito mais coisas a fazer.

Furtando-lhe aquelas duas horas de repouso, Micaela queria, sobretudo, espesinhá-la autoritariamente. As humanas obrigações da irmã cediam lugar às impertinências da patroa exigente. Que fosse tudo em desconto dos seus pecados. Vida mais infeliz do que a sua parecia-lhe que não podia haver. Fazendo o que ela lhe tinha ordenado, sentia-se esgotada de fadiga, os olhos fechavam-se-lhe com sono, pensava constantemente na cama. Quando deu por concluído o serviço, como que se sentiu levantada por súbito impulso de orgulho indignado. Pensou em ir espancar a "Flor", para tirar violenta desforra das afrontas recebidas nessa manhã. Conteve-se, porém. O animal nenhuma culpa tinha dos despóticos abusos de Micaela. E, então, outra ideia lhe ocorreu: desandar daquela casa antes que a irmã terminasse a sesta, libertar-se, enfim, desse jugo pesado, asfixiante e insuportável.

Cautelosamente, para não despertar a víbora subiu à trapeira e juntou as suas coisas. Tudo quanto possuía formava uma pequena trouxa, que meteu debaixo do braço. Iria ter com Salvador, contar-lhe-ia o sucedido, ele havia de resolvera sua situação de qualquer forma. E, à noite, a irmã que levasse a cadela para o seu quarto...

Desceu a escada na ponta dos pés. Quando acordasse, Micaela certamente havia de ficar fula por não a encontrar. Nada lhe importava, agora. Desprezo e ódio era tudo quanto a velhaca lhe merecia.

Porém, quando já abria a porta da escada, ou- viu a voz áspera e escarniquenta de Nicaela atrás de si:

- Supunhas que eu estava a dormir? Enganaste-te, minha querida. Onde vais?

- Ia à rua.., fazer... visitar... - tartamudeou Amália, assustada.

- Sim, bem te percebo. Mas, olha que, se saires agora, nunca mais voltarás a pôr aqui os pés!

A pobre tremeu dos pés à cabeça. Estoiravam-lhe copiosas lágrimas. Então, submissa e sem uma palavra, voltou para trás.

 

Bateu cedo à porta de Leonor, com o jornal na mão:

- Já viste esta notícia?

Dedo espetado, apontou uma notícia na segunda página. Leonor olhou primeiro o rosto chupado de Miquelina. Parecia sorrir, com perversidade. Ou estaria enganada? Ansiosa, leu aquela centena de linhas que relatavam um grande desfalque na Companhia Sorraia, onde o seu filho estava empregado. E, quando terminou a leitura, deixou cair os braços, arrazada de surpresa e angústia. Então, Miquelina perguntou:

- O teu José não ficou esta noite em casa, pois não?

Era verdade. Quis mentir, dizer que o rapaz havia entrado tarde, mas nem sequer mexeu a língua. Como que entontecida, respirava dolorosamente. A alvissareira, levantando o jornal, resolveu comentar:

- Filhos, minha querida! Só desgostos é que eles nos sabem dar...

Subiu depois a escada, ligeira e misteriosa, com a mesma perversa expressão.

Fechando a porta, Leonor levou as mãos ao peito, reprimindo a dor violenta que a avassalava. Estaria o seu rapaz implicado naquilo? "Não, não pode ser!" - gritou para si mesma. Mas, então, por que motivo não teria ele vindo dormir? Era a primeira vez que tal sucedia. E, não sabendo que se responder, dirigiu-se ao quarto do rapaz, soluçando desesperadamente, e traduzindo a sua pavorosa angústia em choro aflito e prolongado.

Assim se manteve por largo tempo. Quando estancou as lágrimas, ouviu cantar no andar de cima. Era Miquelina que dava largas à sua estranha e cruel satisfação... Amargurada, abanou a cabeça com tristeza e pena. Miquelina tinha uma alma ruim, gostava de ver os outros mordidos pela desgraça, parecia que lhe dava imenso prazer assistir a espectáculos de miséria e infortúnio. Sempre que acontecia alguma fatalidade a um vizinho, cantava horas e horas seguidas. Foi o que sucedeu quando morreu o Valentim, electricista. Cantou o dia inteiro. À saída do enterro, foi preciso o Fortunato, polícia, que morava no rés-do-chão, mandá-la calar: "Tenha vergonha nessa cara, mulher!"

Leonor acabou por convencer-se de que aquela cantoria lhe era especialmente dirigida. E, de repente, o amor próprio manifestou-se-lhe num assomo de coragem. Iria procurar o filho, saber o que havia acontecido. Enfiou o casaco e desceu rapidamente a escada. O seu José era talvez um bocadito leviano, bastante amigo de diversões, mas era também rapaz honesto, muito dado ao trabalho e incapaz de roubar fosse o que fosse. Levava, apesar disso, no coração, um susto teimoso, pungente, que lhe dificultava a respiração e, ao mesmo tempo, a empurrava para a frente.

Acabavam de abrir os escritórios da Sorraia. Leonor perguntou pelo filho ao porteiro. "Entrou há bocadinho" - respondeu o homem fardado. Teria ouvido bem? Nervosa e alvoroçada, correu para a sala de expediente. José, meigo e sorridente, veio falar-lhe. A notícia do grande desfalque era verdadeira e, na noite anterior, os empregados da Sorraia tinham sido detidos e interrogados, no Torel. Pela madrugada, o tesoureiro tinha-se confessado, porém, autor da façanha, e, então, todos os outros haviam sido postos em liberdade.

- Por isso, não fui dormir, mas tencionava logo contar-lhe tudo...

Leonor chorava de contentamento. Voltou a casa, ligeira, alegre e feliz. Na porta da rua, esbarrou com Julieta, a filha de Miquelina, com um embrulho debaixo do braço. Pretendeu gritar-lhe: Vai dizer à tua mãe que o meu filho está em liberdade e nada teve com o desfalque! Porém, a rapariga, visivelmente agastada, passou por ela como um raio, murmurando rancorosa: "Não posso aturar aquela mulher! Não posso mais..."

Leonor sorriu intimamente. Se aqui se faziam, também cá se pagavam,.. Conhecendo bem, como os moradores de todo o prédio, as constantes desavenças de Miquelina com a filha, deduziu que certamente se teria desenrolado entre ambas alguma tormentosa cena. Por conseguinte, sentiu-se como que vingada da perversidade de Miquelina, poucas horas antes, quando fora mostrar-lhe a notícia do jornal, na suposição de que José estivesse implicado também no desfalque...

Mas, estava vingada em parte somente. A sua vingança seria completada com o próprio José, quando este viesse almoçar,.. Mandá-lo-ia então, lá acima, para que a víbora da Miquelina o visse e se retorcesse de espanto, vergonha e desilusão!

Na cozinha, quando acendia o lume, surpreendeu-se, contudo, ao ouvir Miquelina gemer e chorar. Não era costume a perversa mostrar-se assim ferida e chorosa após as discussões com a filha. Muitas vezes, até cantava, regalada, "Que teria havido?.,." Curiosa, veio à porta da escada, para ver se descobria alguma coisa. Vagarosamente, vinha a descer a Leocádia, viúva do electricista Vicente. Interrogou-a. Mas, a velha, que correspondia ao antigo ódio de Miquelina com firme desprezo, declarou, fria, que não dava nunca importância aos gritos nem às lágrimas de gente sem alma...

Miquelina colhia os resultados do seu terrível génio e da sua constante maldade. Quase todos os vizinhos estavam zangados com ela; e os que ainda lhe falavam, faziam-no mais por comiseração que por amizade sincera. Voltando à cozinha, agora, Leonor lastimava-a. "Que teria havido entre ela e Julieta?" Embora não a estimasse, tinha pena dela e daquele seu terrível feitio. Talvez o destino fosse o Verdadeiro culpado desse temperamento azedo; perverso e velhaco. Tinham enviuvado as duas no mesmo ano ; mas, enquanto Leonor, resignada, enfrentara silenciosa e enérgica a vida, para criar é educar o filho, Miquelina, indignada com a sua sorte, caluniava e agredia com insultos toda a gente. Desprezavam-na, por isso mesmo. Ninguém se preocupava agora com o sucedido, ninguém ia lá oferecer-lhe uma palavra sequer de consolação. Abanando a cabeça, entristecida, Leonor acabou por deitar para trás das costas despeitos e desejos de desforra completa, Subiu então a dois e dois os degraus. Encontrou Miquelina caída, gemendo e chorando desesperadamente. Levantou-a, com delicadeza e ternura. Miquelina gemia;

- Ela tem um homem.., Não volta. A minha Julieta não volta...

Leonor, compungida, procurou consolá-la:

- Tem paciência. Os filhos só nos dão desgostos..,

Um pesado silêncio tombou na pequena e escura sala. Miquelina suspendeu os soluços e às lágrimas, parecendo meditar nas palavras que acabava de ouvir, Eram pouco mais ou menos as mesmas que ela própria havia proferido, quando fora mostrar o jornal à Leonor, mas tinham sido pronunciadas sem veneno nem maldade. Suspirou magoadamente. Humanizada, por fim, como se a sua alma tivesse sido lavada de todas as ruindades, puxou a mão que lhe afagava a cabeça, e, agradecida, beijou-a demoradamente.

 

Cantando em surdina uma moda da sua terra, Francisca substitui a cortina da janela do seu cubículo. Foi ela mesma quem a fez, com lacinhos vermelhos nas pontas. Está satisfeita. Por um instante, fica envaidecida a olhar a sua obra. Depois" estende a cabeça para ver quem vem a descer a escada. O inquilino do terceiro estaca a seu lado, saúda-a com bons dias prazenteiros, e, depois" misterioso, interroga:

- Entregou a carta?

- Não entreguei, sr. Barros. A D. Ana Maria não passou por aqui até à meia noite..,

Na cara de Maurício Barros perpassa sorriso velhaco. Porém, a porteira combate-o imediatamente:

- Não é o que pensa, sr. Barros. A D. Ana Maria é muito ajuizada, passa os dias a trabalhar no escritório onde está empregada. Deve ter tido alguma festa particular, foi o que foi. É muito ajuizada, garanto-lhe. Que se ela quisesse...

- Bem, bem, srª Francisca. Então, não se esqueça... - E abrindo o porta-moedas, estende-lhe cinco escudos: - Tome lá.

- Muito obrigada.

Maurício, a caminho da sua casa de antiguidades, vai pensando num rosto moreno, nuns olhos tentadores, que não o deixam dormir...

Francisca sorri intimamente. Já ganhou para o almoço. Vai à mercearia comprar açúcar e café. Quando volta, a criada do quarto andar acaba de deixar cair, à porta da rua, o caixote do lixo.

- Adormeceu hoje, menina?

- Deixe-me cá, srª Francisca. Os filhos do meu patrão são piores, do que gatos bravos. Acordaram embirrentos e ainda lá estão na mesma. Mas, o camião já passou?

- Não deve tardar.

A moça fica a queixar-se da lida e dos patrões. São ingleses, estão sempre a falar numa língua de que ela não entende patavina, vive contrariada. Suspira, desolada. Tem até por vezes a impressão de que fazem troça dela e do seu serviço.

- Estou farta, srª Francisca. Se souber de alguma boa casa por aí, faça o favor de me avisar.

- Está bem. Fique descansada.

Mexe os ombros e vai para o fundo do cubículo onde tem a cama e a cozinha. Nos trinta anos que leva de porteira, ouviu vezes sem conta queixas semelhantes a dezenas de criadas. Não faz caso, porém. O que elas querem é encher a barriga e passear, bem as conhece.

Vem tomar o café para a porta da gaiola. A vida sabe-lhe a açúcar, como as sopas que vái fazendo na tigela... Lembra-se do marido, um rebuçado por saias, que a trocou por outra e foi acabar ao hospital. Mas sente-se muito bem sozinha, sem ninguém que a aborreça. Almoça regaladamente. Alimenta-se apenas com grandes tigelas de café e pão três vezes ao dia, amealhando parte do ordenado no fundo da caixa, para qualquer doença. As moças e as senhoras do prédio, às vezes, trazem-lhe bons bocados, restos do dia anterior, que lhe dão agrado e proveito.

Chega da rua D. Alda, que mora no quinto, com uma filhinha de quatro anos.

- É servida, minha senhora? - convida a porteira. - Olhe que está docinho...

- Obrigada, Francisca. Hoje, almocei muito cedo. Tive que ir à estação despedir-me de uma minha prima, que partiu para férias.

Descansando a malga no regaço, a porteira diz que o tempo já está na verdade muito quente, concordando que só na aldeia é que se passa bem. D. Alda, testa enrugada, sacode a cabeça e confessa que também gostaria de ir passar um mês ao campo. Anda tão estafada! Faltam-lhe posses, contudo, Divorciada, a pensão que recebe do homem mal lhe chega para sustentar-se mais à filha, O que ainda lhe vale são os bordados que faz para as lojas, conseguindo assim equilibrar a sua atribulada existência.

- E a Nandinha, está bem? - pergunta Francisca.

- Está bem, obrigada. Deixei-a a dormir, abraçada à boneca que a D. Ana Maria lhe deu na semana passada. Vou-me lá, que já deve ter acordado. Até logo.

- Até logo, minha senhora.

Francisca acaba de comer, e, depois, vai cuidar dos seus arranjos. Olha para a roupa suja, que tem a um canto, com fadiga e amargura. Nada lhe é mais custoso que não ter ali espaço desafogado para lavar e estender a roupa à sua vontade, Bons tempos aqueles em que andou a servir em casas ricas que tinham lavadeira certa. Resignada, atira-se ao serviço, pois não vê outro remédio.

Trabalha com alma. E, ao estender a última peça de roupa, no cordel que vai de parede a parede, sobre a cozinhita, ouve chamar pelo seu nome.

- Desculpe, srª Francisca - diz o Soares, padeiro, mostrando cara de caso. - Sabe dizer-me se a gente do segundo está em casa?

- Olha que pergunta! Estão com toda a certeza o senhor e a senhora; e a criada; e também a D. Ana Maria, pois ainda não dei sinal que tivesse saído. Mas que tem o sr. Soares? Que cara é essa?

O homem, em mangas de camisa, esbraceja e mostra na ponta dos dedos um papel.

- Estou farto, srª Francisca.

- De quê, posso saber?

- Pois não adivinha? Devem-me já três semanas de pão, e, quanto a pagamento, mandam-me dizer pela criada que tenha paciência e espere. Lérias! Eu não pago a farinha com palavras, não é verdade?

- Claro que é verdade. Mas, o D. Raimundo é um fidalgo, pessoa muito séria, que nunca ficou a dever nada a ninguém.

- Olha a fidalguia! - E o padeiro solta gargalhada nervosa e irritante. - Pergunte ao merceeiro; e ao carvoeiro, pergunte.

A porteira sabe que aquilo é verdade. D. Raimundo de Montalegre, primeiro oficial, reformado, do Ministério da Instrução, gosta de ter boa mesa, gosta de saborear iguarias e fumar bons charutos, O que recebe da reforma chega para pouco mais do que para pagar a renda da casa. Ana Maria dá o ordenado quase todo para auxiliar, mas ainda não é o suficiente. Sabendo disto e de muito mais pela criada Madalena, a porteira decide-se a opor considerações suasórias, mas o Soares não a deixa falar.

- Tenho que receber hoje o meu dinheirinho! - exclama, congestionado de indignação. - E se não receber, a fita vai ser falada!

Correu escada acima, galgando a dois e dois os degraus. Bate à porta de rijo, e repetidamente, pouco se lhe dando que o considerem malcriado. Madalena aparece, assustada. Exigente, o padeiro grita:

- Vá dizer ao patrão, à patroa ou lá a quem quiser, que exija o meu dinheiro.

- Credo, seu Soares! Faz uma barulheira que até parece que está alguém a morrer.

- Não está, mas pode estar daqui a pouco.."

A criada empalidece, envergonhada. D. Luiza vem a correr e pergunta o que sucedeu. Soares apresenta-lhe a conta, acrescentando que, se não lhe pagarem, irá fazer queixa à polícia. A velha senhora, triste e vexada, suplica-lhe que espere mais um ou dois dias.

- Não espero! - grita o padeiro. - Não espero nem um minuto!

  1. Luiza, enrubescida, pensa nos vizinhos, que devem estar certamente a gozar o escândalo. Desesperada, tem depois súbita lembrança, e, pedindo ao homem que aguarde um momento, dirige-se ao quarto da filha.

Ana Maria está a dormir. Regressou a casa de madrugada, fatigada por uma noite de dança e amor. O quarto encontra-se às escuras. A mãe avança, cautelosamente. Nervosa e aflita, chama: "Meli! Meli!" A rapariga continua a dormir. Então, D. Luiza, tateando no escuro, vai descendo a mão até encontrar o braço da filha: "Meli! Meli, escuta..." Finalmente, Ana Maria acorda; e, presa ainda nas malhas do sonho, solta palavras ansiosas: "Pedro... amo-te... para sempre... Querido. D. Luiza, sem nada compreender, insiste:

- Meli, ouve, por favor.

- Que é? Que aconteceu?

Com voz chorosa, D. Luiza conta as exigências do padeiro. Ouve-se, lá fora, a gritaria do homem. Ana Maria, aborrecida por ter sido acordada, diz à mãe que vá à sua saca, que está sobre o toucador, e tire o dinheiro de que precisa; mas, receosa de que ela veja tudo quanto lá tem, corrige imediatamente: "Deixa ver, que eu tiro..." A mãe entreabre a janela. Ana Maria vasculha, à procura de notas miúdas. Contrafeita, acaba por dar mil escudos: "Toma lá, depois trás o troco."

  1. Luiza paga a conta; sossega e respira aliviada. Porém, o receio de que os vizinhos tenham dado conta de tudo ainda lhe magoa o coração. E, só quando vai levar o troco, é que se lembra, intrigada, que Ana Maria ganha precisamente mil escudos por mês, na companhia onde é secretária da Direcção. Entrega-lhe sempre oitocentos escudos, para ajuda da casa. Por conseguinte, onde arranjou ela aquele dinheiro, se se está justamente no dia quinze? Nada lhe pergunta, porém. Ana Maria não gosta de falar no que fez ou tenciona fazer. Voluntariosa e cheia de personalidade, deixou cinco anos atrás, a Faculdade de Letras, onde já ia no segundo ano, para trabalhar e ganhar a vida, vencendo a oposição dos pais com argumentos irrespondíveis: "Uma licenciatura não dá sequer para se comer uma vez por dia..." Ciente de que se basta a si mesma, mostra-se geralmente autoritária, dando de ombros aos conselhos da mãe e às reprimendas do pai.

Salta da cama, ainda ensonada.

- Mãe, diz à Madalena que me arranje um banho.

- Está bem, filha.

- E, vocês, podem almoçar. Hoje, não vou ao escritório. Tenho um convite para almoçar fora...

- Está bem.

Ouvindo depois passos e ralhos no corredor, sacode a cabeça e troca um olhar com a mãe. Aquela mania que o pai adquiriu, após a reforma, de levantar-se cedo e andar no corredor, cá e lá, agarrado a uma bengala, insultando sombras e fantasmas, aborrece-a e desespera-a sempre. Abre a saca e entrega dois charutos à mãe:

- Leva-lhe isso, para ver se ele me deixa em paz até eu sair...

  1. Luiza obedece, em silêncio. Depois, vai para o seu quarto, senta-se na cama e começa a chorar.

 

Dobrava e colocava peças de roupa ligeira) na mala de viagem. Sentia-se muito cansada. Por vezes, dorida dos rins, levantava os olhos tristes para a gaiola, onde o canário havia escolhido o canto mais escuro, talvez por estar mais quente, e, então, suspirava dolorosamente. Berta, que tinha ido à rua fazer a última tentativa para arranjar dinheiro para o comboio, não consentia que se levasse o passarito. Todavia, antes de sair, recomendara: "Mãe, não se esqueça do meu roupão. Olhe que por lá deve fazer muito frio..," D. Sofia tinha que obedecer-lhe, pois era ela quem mandava e tudo dispunha desde que o pai se ausentara por motivo da desgraça que arrastara Maria da Soledade à cadeia.

Se a filha não teimasse em levar o roupão, dentro da mala pelo menos, D. Sofia poderia ainda meter lá as suas velhas pantufas e aquele retrato, colorido, de Soledade, que tinha no quarto. Como não via outra solução, resignou-se. E, quando mais uma vez olhava para o passarinho, atormentada com " pensamento de que ele ia atravessar semanas de grande perigo, no cubículo da porteira, que tinha gatos famintos e traiçoeiros, curvou-se rapidamente sobre a mala, ao ouvir passos na porta de entrada. Não queria que Berta a visse a chorar, pois isso poderia trazer mais discussão e novas arrelias. Os passos avançaram ainda um pouco, mas, depois, suspenderam-se. Logo a seguir, a velha senhora ficou assustada, ao sentir que alguém, lançando-lhe os braços sobre a cabeça, lhe tapava os olhos com as mãos: "Uh! Uh! Uh ",.. Quem está aqui?" Estremeceu da cabeça aos pés, mas emocionada, pois essa voz, mil anos que vivesse, jamais a poderia esquecer. Fez um esforço, e. ao voltar-se, ficou de frente para Maria da Soledade:

- Filha, quando saíste?!

- Esta manhã. Beneficiei da amnistia do Natal...

Batidas de surpresa e alegria, as duas tremiam. D. Sofia observou rapidamente a filha infeliz: com vestido descuidado, estava pálida, mas parecia ter engordado. Porém, os olhos embaciados não lhe permitiram levar mais longe a observação. Caíram nos braços uma da outra e beijaram-se demoradamente. Por fim, Maria da Soledade, sorrindo com esforço, ao mesmo tempo que enxugava os olhos com o lencinho, apontou a mala:

- Viagem?

- Sim, eu e a Berta tencionamos partir esta tarde. Falta-nos, porém, dinheiro para os bilhetes..,

- Dinheiro?! - perguntou Soledade com amável e curioso sorriso, abrindo imediatamente a antiquada saca de mão. - Está aqui..,

Espantadíssima, D. Sofia viu a filha ir tirando da saca notas de cem escudos, que deitava para cima da mesa: uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete! Quando chegou ao fim, Soledade esperava ver sorrir a mãe, porém, notou, e com tristeza, que mostrava rosto carregado e inquieto. Em que estaria ela pensando? Como se o adivinhasse, Soledade informou, então, calmamente:

- Ganhei-o na prisão. Lá, trabalha-se, também. Eu fazia coisinhas de lã para crianças.

- Tu!?

- Eu mesma, pois claro. Fiz durante este ano e meio, dezenas de casaquinhos de malha. E, como as outras, também eu tinha uma percentagem...

Aproximou-se da mãe e abraçou-a novamente:

- Já vê que não esqueci tudo quanto me ensinou em pequena...

- Ainda bem, minha filha.

- E, que tal me acha?

- Mais gorda, sim, mais gorda.

- Então, já vê, aquilo não é mau de todo...

- Ó Soledade, não fales assim!

A filha sorria, nervosa; e, depois, para evitar que a mãe recomeçasse a chorar, beijou-a com ternura ; por fim, interrogou-a, curiosa:

- Mas poderá dizer-me, afinal, para onde é a viagem?

- Vamos visitar teu pai...

- Como!? Mas, para onde foi o pai? Que lhe sucedeu?

Cabeça tombada e olhos baixos, D. Sofia, como se não tivesse escutado as perguntas, torcia agora as mãos, desesperada. Soledade, mais ansiosa, continuou:

- E, foi por minha causa? Foi por causa do que me sucedeu que ele partiu?

Enquanto as lágrimas lhe caíam nas mãos, D. Sofia abanava afirmativamente a cabeça.

- Então, o pai deixou o emprego?

- Deixou.

O pai era porteiro na casa de modas onde Maria da Soledade fora empregada...

De repente, onvindo passos, D. Sofia ficou a tremer:

- Deve ser a tua irmã! Esconde-te. Olha: esconde-te na cozinha, depressa...

- Mas, porquê? Eu também quero ir ver o pai.

- Pois sim, filha, Porém, deixa-me falar primeiro com a Berta...

Maria da Soledade, também um pouco medrosa daquela irmã austera e inflexível, que nunca a tinha ido ver às Mónicas, desapareceu na cozinha, de onde poderia ouvir tudo...

Berta voltava da rua, desolada:

- Não arranjei nada. Todos lastimam que o pai tenha adoecido, mas dizem que não têm disponibilidades, nesta altura. O Gomes, o compadre da serralharia, confessou-me que, nesta ocasião, não pode dispor nem de um escudo, sequer. Os outros, na mesma.

Suspirou dolorosamente, comentando com amargura: "Quem nos viu e quem nos vê!" O desgraçado pai havia conseguido empregar-se como contínuo, numa fábrica da Covilhã, mas a doença tinha-o levado ao hospital. Berta sentia-se esmagada de sofrimento. Passou a mão pela testa, e, ao desviar os olhos para o lado, descobriu, surpreendi-díssima, o dinheiro em cima da mesa:

- Que é isto?! Quem se lembrou de nós?

- Tua irmã.

- A Soledade? Mas, como?... Mandou-o por alguém?

- Saiu hoje em liberdade. ,Perdoaram-lhe o resto do tempo,.. Foi ela mesma que...

- Esteve aqui!? Quando?

- Há pouco. Quer ir também connosco.

Ao ouvir estas palavras, Berta levantou-se, como impelida por uma mola:

- Não! Não irá! Não quero!

- Não podes impedi-la,..

- Posso, - E, encarando a mãe estupefacta e assustada, ordenou: - A mãe deite esse dinheiro fora, senão atiro-o eu!

- Isso, não. Acalma-te.

- Esse dinheiro veio de mãos sem honra!

- Enganas-te. A Soledade ganhou-o a trabalhar, na prisão.

- A trabalhar!? - E Berta soltou irritante gargalhada. - Ganhou-o certamente do mesmo modo que ganhava os casacos de peles, os vestidos e as jóias, quando esteve empregada na casa de modas...

- Cala-te! A tua irmã foi sempre boa rapariga, honesta, amiga de todos nós...

- Mas, roubou!

Ferida, a mãe retorquiu, colérica:

- Não, não roubou! Foi apenas conivente no roubo do guarda-livros. Namoravam-se, bem sabes...- E, suplicou - Deíxa-a ir connosco. A Soledade voltou arrependida, quer pedir perdão ao pai...

- Não! O que essa velhaca pretende é matá-lo!

- Credo, filha! Não digas uma coisa dessas. Olha que é tua irmã!

- Não é minha irmã. Foi!...

  1. Sofia opôs, com energia:

- Pois, hoje como sempre, considero-a tão minha filha como a ti. E vou já provar-to...

Abriu nervosamente a porta da cozinha e chamou: "Soledade! Maria da Soledade!" Não recebeu resposta, porém, A outra porta, a da escada das trazeiras, apresentava-se aberta. "Soledade!" Ninguém respondeu. A filha infeliz não tivera coragem para enfrentar os rancores da irmã. Então, deduzindo tudo quanto se devia ter passado, a mãe voltou-se para Berta e, friamente, declarou-lhe:

- Também tu não irás visitar teu pai. Não! Não quero que te aproveites do dinheiro ganho por quem tem mais dignidade do que tu!...

 

Tinha na sua frente apenas vinte e cinco minutos para vestir-se e chegar ao escritório, o que não era tempo em demasia. Deixou-se ficar, contudo. Seria do frio ou dos anos, aquela preguiça era com certeza disso e de muito mais, também. Doía-lhe a alma. Seria bom ficar o dia inteiro na cama, viajando no passado, mesmo que fosse à custa de profundo sofrimento. Mas, para quê recordações e remorsos? Não tinha vivido e amado? O que importava agora era o quente, o abraço dos cobertores, no quarto às escuras, longe do frio que corria lá fora. Fez um esforço para não pensar em nada, mas não o conseguiu. Mesmo de olhos fechados, via aquele grande e feio calendário que estava na parede do seu gabinete: "Almeida & Lopes Fogaça. Máquinas e acessórios". Era um calendário de muito mau gosto, uma roda dentada sobre algarismos gordos, que o torturava durante o trabalho e que, mesmo longe do escritório, ainda o perseguia ímplacàvelmente. Como deveriam rir-se à sua custa os seus antigos condiscípulos e companheiros, bem instalados na vida, com família constituída, quando falassem do emprego em que ele havia por fim caído, para garantir o almoço e o jantar de cada dia!

Deu nova volta na cama. Era preciso levantar-se, era preciso ir meter-se à canga, como costumava frequentemente dizer para si mesmo, num esforço secreto, amargo e inútil. Puxou então por si e saltou para o tapete. O frio que vinha por debaixo da porta fê-lo bater o dente, assustado. "Safa! No Marão não deve estar pior!"

Vestiu o roupão, e, antes mesmo de abrir a janela, meteu à boca o frasco de aguardente. "Sem isto, o carro não arranca.,.", respondia invariavelmente Paiva de Sousa quando D. Ema, a senhoria, lhe dizia que dava cabo de si com tanto álcool.

- Está pronta a aguinha para a barba -informou a velha senhora, quando viu passar o hóspede para a casa de banho.

- Então, faça o favor de a trazer, D. Ema. Já estou atrazado...

Em boa verdade, nada lhe importava estar atrazado. Achava, porém, que devia fazer essa pequena concessão aos hábitos burgueses, para que lhe não chamassem inimigo da obediência e da disciplina. Arranjou-se à pressa, mais para livrar-se da friagem do que por qualquer outro motivo. Os patrões, o gerente e o horário, que fosse tudo para o inferno. Não tinha por eles nem uma polegada mais da consideração do que dava às suas necessidades de estômago. E, não vivia para comer, porém poucos o sabiam. Por isso muitos lhe chamavam depreciativamente poeta, quando era esse tratamento, afinal, o que mais lhe agradava e o que se lhe aplicava com mais justiça.

Arranjado, entrou na sala de jantar a esfregar as mãos. D. Ema veio imediatamente com a cafeteira e o cestinho do pão:

- Hoje, não tem manteiga, sr. Paiva. A rapariga esqueceu-se de ir à mercearia. Desculpe...

Paiva de Sousa teve breve sorriso irónico, Aquilo sucedia frequentes vezes. Quando D. Ema tinha que falar-lhe de qualquer coisa, que, a seu ver, julgava poder agradar-lhe ou pelo menos interessar-lhe, começava por dizer que a criadita se havia esquecido de comprar manteiga. Que iria ela dizer-lhe, portanto? Sorrindo também, a senhoria meteu-lhe então debaixo dos óculos o jornal: "Já viu isto?..." E, dedo espetado, apontou-lhe, na segunda página, um artigo, acompanhado da gravura de Paiva de Sousa, em que se fazia o elogio da obra completa do poeta, recentemente aparecida. Paiva, mastigando, deitou um olhar vagamente curioso ao jornal. Envaidecida de ter em sua casa hóspede que merecia tantos louvores públicos, D. Ema resolveu felicitá-lo: "Os meus parabéns, sr. Paiva!" Levantando-se, o poeta, respondeu com ironia: "Não os mereço por tão pouco..."

Passava das dez e meia quando chegou ao escritório. O porteiro, abrindo o livro de ponto, perguntou-lhe: "Já viu o jornal de hoje, sr. Paiva de Sousa?" Depois de traçar o seu nome, Paiva respondeu com enfado: "Sim, sim, já vi essas tretas..." Apreciava que o lessem, porém não suportava que o elogiassem directamente, porque isso o deixava sempre confundido e perturbado. Outras vezes, chegava mesmo a ficar enojado com o exagero ou a enfatuada autoridade dos que verbalmente o exaltavam. Mas, olhando para o enrugado rosto de Sebastião, nele viu tanto respeito e tanta seriedade, que agradeceu: "Obrigado pelo cuidado, Sebastião. Mas, não faça caso disso, que não dá pão a ninguém..." Sebastião opôs: "Mas, dá glória e admirações! Olhe, a propósito, sr. Paiva de Sousa, queria pedir-lhe até um favor... - E, perante a surpresa do poeta, abriu a gaveta e tirou um livro, artisticamente eticadernado. - "É da minha neta, que anda no liceu. Comprou-o ontem. Conhece muitos versos do sr. Paiva de Sousa. Admira-o muito, está sempre a falar do senhor. Pediu-me se lhe arranjava o seu autógrafo. Por isso, se fizesse o obséquio..." Paiva de Sousa tinha ficado enternecido. Não, não era a primeira vez que lhe haviam trazido livros seus para autografar, mas, nessa ocasião, fosse por ainda há pouco, na cama, ter pensado amargamente na sua solidão, ou por qualquer outro motivo que escapava à sua penetração, recebia aquele pedido como um testemunho de ternura muito sincera. Verdadeiramente encantado e satisfeito, autografou imediatamente o volume. Estava profundamente enternecido, sentia-o bem. Curioso, perguntou ainda que idade tinha a pequena e em que ano andava. "Tem quinze e já vai no sexto. É muito inteligente, sr. Paiva de Sousa, a minha Fidélia. Ela, às vezes, vem esperar-me. O senhor deve já tê-la visto algumas vezes aqui. Não se lembra?" Não se lembrava. Para comprazer o velhote, porém, abanou afirmativamente a cabeça, e, despedindo-se, subiu ao primeira andar.

Atravessou a sala grande, à pressa, para evitar cumprimentos demorados dos colegas, Farto de louvores andava ele. No gabinete, hesitou em tirar a gabardina, mas, como tinha apanhado humidade durante o trajecto, achou que era mais prudente despi-la. Depois, também o Tavares Pinto, gerente, não gostava que se trabalhasse com os agasalhos, pois, dizia ele, autoritário, que isso embaraçava os movimentos e diminuía o rendimento...

Quando se sentava, a campainha da gerência chamou-o. "Começa o fado..." Tavares Pinto recebeu-o de má catadura: "Senhor Paiva, a hora de entrada é às dez, e, nem seria preciso lembrar-lho, mas o senhor perde demasiado tempo com as musas..." Paiva de Sousa sentiu-se ferido com a admoestação. Tavares Pinto tinha o jornal dobrado, sobre a secretária ; devia ter lido também o artigo... Retorquiu, empertigado: "Senhor Pinto, quem está na sua frente é o tradutor de inglês e, portanto, o poeta não ouviu o que o senhor disse... " O gerente não gostou da resposta, porém nada contrapôs. Limitou-se a passar-lhe para as mãos algumas folhas de papel: "São os rascunhos das cartas que é preciso enviar hoje para Londres. Veja se faz tudo agora, da parte da manhã, pois, de tarde, teremos muito mais que fazer.

Paiva de Sousa obedeceu contrafeito. Se nos seus tempos de Coimbra ou durante os anos em que andara pelo mundo, amando e consumindo a herança dos pais, aquele figurão lhe falasse de tal modo, atirar-lhe-ia a papelada à cara: Tome lá, seu palerma, seu bêbado de algarismos! Mas, os tempos haviam rodado, a miséria tinha-o perseguido, era preciso ganhar o pão de cada dia, abdicando quase sempre da sua personalidade criadora. E, ainda havia quem o invejasse! Tolos. Não sabiam que, em muitas ocasiões, ele daria toda a sua celebridade por um morno ambiente familiar, com uma mulher dedicada e um garotito traquina...

Lançou-se ao trabalho com afinco. Era esse o seu processo para deixar de olhar para dentro de si mesmo: forçar e concentrar a atenção num trabalho que não lhe custasse uma ponta de emoção, sequer. Ao cabo de uma hora, tinha já traduzido e dactilografado as cartas a enviar para os fornecedores ingleses. Meteu à boca o frasco de aguardente, que nunca o deixava, dia e noite; a seguir, acendeu o terceiro cigarro dessa manhã.

Foi até à janela que dava para a rua: o nevoeiro estava baixo e, agora, chovia abundantemente. Os automóveis corriam a grande velocidade, homens entravam na taberna, a mulher das castanhas, à esquina, havia retirado com a sua tralha para um portal. Paiva de Sousa voltou-se e premiu o botão da campainha. Acorreu sem demora o contínuo Heitor, manquejando da perna direita. "Leve estes papéis ao sr. Tavares Pinto". Porém, antes de obedecer, Heitor puxou do bolso o jornal e, com o rosto iluminado de felicidade, entregou-o ao poeta: "Vem aí uma coisa que deve interessar-lhe..." Paiva de Sousa bem sabia aquilo a que o contínuo queria aludir, Heitor, como o Sebastião porteiro, como outros humildes empregados daquela casa, admiravam-no sinceramente. Para esses e outros, apesar do materialismo que dominava por toda a parte, a poesia era ainda uma fiel e benéfica companheira, pois dela recebiam o que nem o momento nem a própria vida podiam dar-lhes.

Picado enfim de curiosidade, resolveu ler o artigo do matutino. Sempre queria ver como aquele crítico, que dizia conhecer perfeitamente toda a sua poesia, julgava a sua obra, que englobava os primeiros versos, escritos durante anos universitários, e, sucessivamente, todos os outros que, dentro e fora da pátria havia publicado. Não foi além de meio do artigo, porém. Aquilo indignava-o, O crítico, que começava por guindá-lo aos píncaros da glória, afirmando ter ele trazido nova seiva e novos ritmos à poesia, citava, depois, alguns nomes franceses que, iniludivelmente, haviam influído na sua personalidade. Paiva de Sousa amarfanhou o jornal, e, depois, quebrou o gesto com que gostaria de atirar aquilo à cara do crítico. Os críticos, que estúpidos! Poucos o compreendiam. A maior parte era como aquele: falava de influências, semelhanças, e, por tudo e nada, fazia comparações, "Idiotas chapados I" Ele sabia bem que a sua poesia era só sua, tanto pela ânsia de evasão, em que condensava seus impulsos de permanente liberdade, como também pela canseira e pela fadiga com que viajava por dentro de si mesmo à procura de sentido eterno. "Idiotas chapados I" Não havia maneira de o compreenderem. Em Coimbra, sim, tivera um colega, o Torres Brandão, finíssimo e penetrante espírito crítico, que muitas vezes o havia julgado com argúcia e acerto. Mas, o Torres Brandão, depois da licenciatura, tinha-se escondido, na província, num notariado rendoso, e havia mandado às urtigas a crítica, vivendo para a mulher e os filhos.

Paiva de Sousa levantou-se, pensativo. A recordação do colega forçava-o, mesmo contra vontade, a olhar para o passado e a perguntar-se se não teria metido, ao longo desses sessenta anos, por um caminho errado... Enquanto quase todos os outros, como aquele Torres Brandão, haviam concluído o curso, constituído família e eram felizes, ele, louco pela filha de um ilusionista inglês que tinha passado por Coimbra, deixara em meio a formatura de Direito e seguira-a, mundo fora, amando, sonhando e consumindo, perdulàriamente, a herança dos velhos. Mas, não, não podia aceitar que o caminho percorrido houvesse sido errado! Katherine também o tinha amado loucamente. E, naquela manhã, trágica e inesquecível, em que ela tinha sofrido uma congestão mortal, quando ambos tomavam banho numa praia do Bósforo, ele começara a sentir o frio duma solidão sem lenitivo, que a miséria, depois, havia ainda aumentado incomensurável" mente.

Próximo da uma hora, Heitor veio perguntar-lhe, como de costume:

- Posso ir buscar o almocinho?

- Pois sim, Heitor.

Os almoços vinham-lhe da taberna que se via da janela do seu gabinete. Amável e solícito, Heitor tratava-lhe de tudo. À noite, tomava em qualquer parte uma sopa, pois o ordenado não dava para mais. Não se queixava, porém, embora por vezes a alma lhe doesse. "Não tinha vivido e amado?" Podiam ser ainda piores, os seus últimos dias.

Heitor veio com o tabuleiro do almoço: "Polvo cozido, sr. Paiva de Sousa; e a sopa é de feijão,. cheira que regala..."

O poeta puxou os papéis que tinha sobre a mesa, para o lado. O contínuo estendeu o guardanapo e colocou os pratos. E, quando Paiva de Sousa começou a comer, comentou:

- O senhor, um grande poeta, comer no dia de hoje um almoço de taberna!

Embora surpreendido, Paiva respondeu com amarga filosofia:

- Oxalá, Heitor, que eu e todos os poetas possamos ainda comer, amanhã, um almoço de taberna.

- Mas, não é justo!

A voz de Heitor saíra com tristeza e revolta. Suspendendo o garfo, Paiva de Sousa observou-o. Apresentava os olhos magoados.

- Você chorou, Heitor? Que sucedeu?

- Não chorei, sr. Paiva de Sousa. Deve ser algum pingo de chuva que apanhei, há pouco, na rua.

- Não minta, Heitor. Sabe bem que sou seu amigo. Você chorou. Que sucedeu?

Como torneira que se abre, Heitor contou então, dum jacto, o motivo que deveras o angustiava: Perpétua, a sua mulher, andava muito fraca, o médico tinha-lhe recomendado repouso. Uma irmã de Perpétua, que vivia lá para o Alto Minho, próximo de Melgaço, estava pronta a recebê-la e auxiliá-la na medida das suas possibilidades.

- E, então, porque é que ela não parte?

- Porque não há dinheiro para o comboio.

Heitor tinha agora os olhos razos de lágrimas.

Paiva de Sousa estava gelado de espanto. Perguntou-lhe por que não pedia ele um adiantamento aos patrões. Heitor mexeu os ombros, com fadiga e descrença. Já havia falado com Lopes Fogaça, que era quem punha e dispunha em questões de dinheiro, mas, fora-lhe respondido que, estando ele ao serviço por um grande favor da gerência, pois depois de se ter aleijado demorava-se muito a fazer qualquer recado, não podia beneficiar de adiantamentos, pois que isso era concessão que só se fazia a empregados superiores. Tratava se de um artifício, Paiva sabia-o bem. E, enquanto escutava as lástimas do contínuo, olhava aquele horrível calendário que a gerência tinha mandado colocar em todas as secções, para atrair a atenção dos visitantes: "Almeida & Lopes Fogaça. Máquinas e Acessórios". Mexia-lhe com os nervos. Odiava-o. Entretanto, perguntava-se como poderia ele safar Heitor da tormentosa situação em que se encontrava. E, de repente, lembrou-se de se dirigir ao editor que, espontaneamente, o havia procurado para editar-lhe a obra completa.

- Vamos ver o que se arranja, Heitor... - Levantou o auscultador e fez a ligação para a editorial. Morais, o editor, ao ouvir que o poeta lhe pedia um adiantamento sobre os seus direitos, respondeu que isso não lhe era possível... "Estamos ainda no primeiro mês de venda, sr. Paiva de Sousa... Não se deve ter vendido sequer uma centena de exemplares... Compreende, os tempos vão prosaicos, o público foge de livros de versos. O sr. bem sabe..."

O poeta, conhecendo bem a ganância do editor, decidiu vencê-lo com uma proposta tentadora:

- Tínhamos combinado dez por cento sobre o preço de capa do meu livro, que me seriam pagos em três semestres seguidos, três meses após o aparecimento da obra, não é verdade? Pois bem, Morais, faça-me um adiantamento de quinhentos escudos apenas, que eu reduzirei os meus direitos para sete por cento sobre a capa... Aceita?,..

Morais tardou um minuto a responder. Porém, depois de o ter ouvido, Paiva de Sousa, sorridente, pousou o auscultador: "Está tudo arranjado, Heitor..,"

 

O criado entrou suavemente no gabinete:

- Meu senhor, está ali a velha do costume...

- Quem?

- A mãe da bailarina.

André Lucena suspendeu a corrida da caneta sobre o papel. E, deitando ao velho Inácio um olhar de espanto e enfado, ordenou:

- Dá-lhe a esmola.

O velho obedeceu. Por um instante, o dramaturgo manteve a cabeça alta, olhando a chuva que caía lá fora e meditando nas surpresas do destino e nas misérias do mundo. Amargurava-o, sobretudo, que a falta de carácter fosse cada vez mais acentuada à face da terra. O caso daquela mulher, por exemplo, era bem triste e edificante a tal respeito. Mãe de uma bailarina de revista, que durante sucessivas épocas havia alcançado enorme êxito num teatro popular, vivia agora de abjectas explorações da memória da filha. Velhaca e hipócrita, visitava frequentemente os antigos admiradores da rapariga, e, chorando e gemendo, confidenciava, mentindo, as últimas súplicas e as derradeiras palavras da morta: "A Erondina amava-o verdadeiramente, apaixonadamente. Morreu a pronunciar o seu nome..." André Lucena costumava receber a visita da sanguessuga duas, três vezes por semana. Depois, enojado com aquela lacrimosa hipocrisia, negara-se a recebê-la, mas enviava-lhe sempre pelo criado boa esmola.

Desceu os olhos o dramaturgo para o papel, retomando o trabalho, - o terceiro acto de um drama que estava concluindo - quando Inácio reapareceu:

- Meu senhor, ela não quer ir embora.

- Quê?

- Teima em ser recebida por V. Exª.

- Não! Isso, não! - E, indignado, o dramaturgo descarregou um murro sobre a secretária. - Já te disse que não quero voltar a ver essa mulher.

- Ela teima, meu senhor...

- Não tem que teimar. Põe-a na rua!

- Impossível.

- Impossível! Que dizes?

- Está a chorar; e ameaça fazer um escândalo, se o senhor a não receber,..

- Estúpida! - E, depois de abanar a cabeça, indignado, André Lucena anuiu: - Pois está bem. Que entre. Mas, será a última vez!

Nervoso e aborrecido, o dramaturgo rogou mentalmente violentíssima praga àquela mulher sem escrúpulos. O servo voltou com o mostrengo:

- Dá-me licença? Posso entrar?...

- Faça favor - disse secamente Lucena, levantando-se, como a indicar que dispunha de escassos minutos para suportar semelhante impertinência.

A velha sentou-se, propositadamente alheia ao frio acolhimento. Vestia de preto, um chapéu desbotado na cabeça, preso com um elástico ao pescoço. Olhou Lucena furtivamente, e, tirando um lenço sujo da malinha, levou-o aos olhos, desatando a chorar.

- Sou uma desgraçada, senhor, e não tenho senão um amigo que...

Lucena, nervos reprimidos, observavam, contrafeito. A hipócrita repetia os seus velhos processos... Bem a conhecia. No camarim, quando ele ia visitar Erondina ao teatro, a sanguessuga, aproveitando a permanência da filha em cena, também chorava e se lastimava: "Sou uma infeliz, senhor. Vivo abandonada..." Mas, certa vez, a bailarina, interrogada sobre a situação da mãe, confessara, desgostosa: "Sustento-a e amparo-a, como é meu dever, mas não há dinheiro que lhe chegue. Bebe e fuma desalmadamente..."

- Eu não queria maçá-lo, senhor, mas só em si posso confiar, pois minha filha amava-o doidamente...

O dramaturgo teve um rápido esgar de nojo. Estava informado de que ela dizia o mesmo a outros seus amigos, admiradores incondicionais também da bailarina, a quem extorquia, por esses lastimosos processos, as quantias que podia.

- O senhor foi o único grande amor de Erondina - gemeu a velhaca, sempre com o lenço nos olhos. - Não conheceu outro homem, posso garantir-lho.

André Lucena, desesperado com tanta desfaçatez, esteve prestes a gritar-lhe que fosse vomitar as suas refinadas mentiras para as profundas do inferno. As relações que ele havia mantido com Erondina tinham sido sempre brancas de amizade. Ela, fatigada do teatro ligeiro, queria entrar para a declamação. Lucena prometera-lhe protecção e, com os seus bons conselhos, alguma coisa, mais dia, menos dia, lhe conseguiria com toda a certeza. Porém, a pobre rapariga, minada por profundos desgostos, deixara subitamente de existir...

Apoquentado com tanta vileza e lamúria, Lucena afastou-se para a janela. A velha, então, levantou-se, animada de maior atrevimento:

- Desculpe..., mas eu considero-o como se fosse meu genro, senhor André Lucena. Recorro ao seu bom coração. A esmola que me mandou pelo criado não me chega. Tenho o quarto e a pensão a pagar... Tenho também outros compromissos,..

Voltando-se rapidamente, André Lucena encarou-a enraivecido. A hipócrita assustou-se, murmurando:

- Minha querida filha. Como ela o amava! E foi-lhe sempre, sempre fiel!...

- Mente! - gritou o dramaturgo, fora de si.- Mente!

Lívida de susto, a velha ainda insistiu na mesma toada. Porém, sem a ouvir, Lucena correu à secretária, abriu nervosamente uma gaveta, e, arrancando de lá uma carta, veio colocá-la diante dos olhos da sanguessuga:

- Conhece esta letra? Veja bem... Conhece ou não esta letra?

Tremendo de pavor, a velha respondeu a custo:

- Sim, parece a letra da minha querida morta...

- Então, ouça!

E, com voz alterada, André Lucena leu a carta de Erondina, a última que havia escrito. Eram curtas palavras, despedindo-se do bom amigo e da própria vida. Fatigada e desiludida, a bailarina queixava-se da mãe, que só vergonhas lhe dava, e do único homem que havia conhecido, um músico de orquestra, no teatro onde trabalhava, que a tinha trocado por outra...

- Não, não, senhor, essa carta não pode ser da minha filha!

- Tenha vergonha!-atirou Lucena, com voz rouca. - Você e o outro é que a levaram à morte!

Desmascarada, a sanguessuga recorreu de novo às lágrimas e lamúrias. André Lucena, saturado com tanta baixeza, premiu o botão da campainha. E, logo que o criado apareceu, apontou-lhe o mostrengo:

- Leva esta mulher!

 

Do fundo do escritório, partiu a voz fanhosa e irritante de Jacinto:

- Já sabe italiano?

Foi o rastilho: estoiraram gargalhadas em todas as secretárias. Leonardo, enrubescido, vergou mais a cabeça sobre o livro, mas durante um instante não viu os números. Era insuportável aquela mania, que os colegas haviam adquirido, após o seu casamento, de lhe dirigirem sucessivas e estúpidas piadas.

Um breve silêncio inundou a sala, quebrado apenas pelo monótono teclar da dactilógrafa. Congestionado de surdo rancor, Leonardo respondia, com insultos mentais aos galhofeiros: "Velhacos! Cães! Sabujos...”. Mas, com a volta do chefe, que tinha sido chamado à gerência, os brincalhões voltaram a mostrar seriedade à flor do rosto. Leonardo respirou fundo, embora a raiva não se lhe varresse de todo do peito. Precisava de dar uma ensinadela àqueles perversos, olá se precisava. Que tinham eles, de resto, com a sua vida? Coisa nenhuma.

Quando o relógio marcou meio-dia e meia hora, saiu para almoçar. Procurou, porém, ser o último, para furtar-se a qualqer impertinente companhia. Passou pela florista, e como de costume, comprou uma rosa. A empregada, matrona sabida, embora já o conhecesse, sorria a atendê-lo e, ao entregar-lhe o troco, insinuou:

- V. Exª sabe falar às mulheres. Com flores, elas cedem sempre...

Leonardo nada retorquiu, pois achara o comentário algo disparatado. Sentimentos confusos o dominavam, no entanto. Levava a flor levantada pela haste, gozando, discretamente, a surpresa e admiração daqueles com quem cruzava. Na outra mão. empunhava as luvas. Com os braços assim, meio levantados, semelhava manequim ou figurante de procissão, pelo que dava nas vistas e causava risos. Leonardo, porém, julgava-se admirado, Como de tantas outras vezes, parecia-lhe mesmo que as mulheres, que passavam junto dele, pretendiam dizer-lhe qualquer coisa.

No restaurante, encontrou Regina já sentada. Parecia contrafeita. O homem sacudiu a cabeça, cumprimentando os comensais conhecidos, Inclinou-se, depois, para beijar a esposa, que recebeu a meiguice friamente. Eutregou-lhe, por fim, a rosa, uma linda rosa-chá que rescendia a primavera, vida e amor. Visivelmente contrariada, Regina pô-la de lado, ao contrário do que costumava fazer, que era prendê-la ao peito, sobre o lado do coração. Nas outras mesas, em torno, aqueles que notaram o gesto displicente, trocaram olhares e sorrisos irónicos.

- Sentes-te mal? - perguntou o marido em voz baixa e a medo.

- Vamos comer, que depois saberás tudo...

Leonardo ficou mordido de curiosidade. Que teria sucedido? Alguma questiúncula com as vizinhas, aquelas solteironas do terceiro, que levavam dia e noite a zombar dos outros inquilinos? O criado veio com a ementa, porém a mulher torceu o nariz aos pratos do dia. O marido interrogou:

- Não há nada que te agrade?

- Não. Estou arreliada, E quando estou assim, só mariscos é que me sabem bem...

Era a primeira vez que Leonardo ouvia à mulher semelhantes palavras. Tinham casado oito meses atrás, somente. Não havia mariscos na lista. Resignado, o homem chamou o moço e pediu que lhes trouxesse peixe e dobrada.

- Para dois?

- Sim, para os dois.

- Não. Para mim quero uma omeleta, com fiambre. Pode ser?

- Sim, minha senhora.

Pelas outras mesas, e à socancra, iam agora novos sorrisos, acompanhados de cochichos. Os frequentadores daquele restaurante económico, funcionários e empregados de magros vencimentos, conheciam a subserviência em que Leonardo se colocava sempre diante da esposa. Amava-a doidamente, loucamente, era verdade, mas parecia temê-la, também.

Leonardo principiou a comer, mas o peixe embrulhava-se-lhe na boca e não havia maneira de passar para baixo. Bebeu um copo de vinho, ansioso por vencer tão aborrecida hesitação. A seu lado, Regina mexia-se na cadeira, desassossegada. E, quando o criado lhe colocou na frente a omeleta, ela atacou-a com gestos rápidos e nervosos, como se atacasse um inimigo,.. Aquilo não era só apetite, Leonardo bem o percebia. Era revolta, zanga furiosa contra alguém.

Profundamente intrigado, o homem, enquanto se esforçava por ir mastigando, pensava no que teria sucedido à esposa. Fazia conjecturas: discussão com a senhoria? aborrecimento com algum dos alunos particulares, a quem ensinava italiano? ou teria ela recebido más notícias da mãe, que havia deixado em S. Paulo, ia para dois anos, quando viera a Portugal fazer uma cura de ares no Caramulo? Nenhuma destas suposições satisfazia Leonardo, Devia tratar-se de outra coisa, com toda a certeza. O que seria, então? Nervos, provavelmente. Regina tinha realmente uns nervos medonhos e explosivos. Na casa que habitavam, ocupando dois quartos com serventia de cozinha, quando a falta de espaço lhe embaraçava os movimentos, sofria crises violentas, gritava que as privações a asfixiavam e suspirava pelo Brasil, onde, dizia ter vivido em casa própria e farta de tudo. Leonardo, mudo de vergonha, suportava-lhe as censuras e os disparates. D. Tomásia, a senhoria, mulherzinha de pêlo na venta, começava já a achar o berreiro enfadonho, não se coibindo de dizer que, quem não estivesse ali a seu contento, fosse para o hotel... Teria sucedido entre ambas alguma questão antes de Regina haver saído para dar as aulas da manhã? Era bem possível... O criado veio perguntar:

- Fruta?

- Quero laranjas - disse Regina.

- Eu também.

Servindo-os, o moço apontou as duas laranjas, que se viam no cestito:

- São da Baía, posso garantir.

- Ora, da Baía! - comentou a mulher, com desprezo. - Nem no cheiro.,.

Estava irritada, não o podia esconder, Gostava de ouvir sempe aludir ou citar produtos brasileiros, o que agora não sucedia, certamente, por aquela fruta ter todo o aspecto de refugo.

Leonardo, cada vez mais intrigado, ensaiou um convite amável:

- Come queijo, se preferes.

- Não quero porcarias. Não quero nada!

Confuso, o homem temia trovoada... Ainda se ele tivesse a carteira farta, para poder satisfazer a mulher de mariscos e tudo o mais que desejasse, num restaurante decente! Mas não tinha. Vinham ali ambos almoçar e jantar, porque Regina não queria sujar as mãos na cozinha, a não ser para tratar do primeiro almoço. O restaurante era barato, estavam lá afreguesados ao mês, como outros casais. Depois, o ordenado de Leonardo não dava para larguezas. Se pudesse meter um vale, coisa pouca, para não desfalcar o ordenado no fim do mês, iriam jantar a outro sítio, nesse dia. Mas, isso sim! Vieira Loureiro, o director-gerente, era irredutível nesse aspecto: "Não faço adiantamento seja a quem for, já sabem ["

Olhando para a mulher, no fim da sobremesa, perguntou-lhe, ansioso, com os olhos, que notícia tinha para lhe dar. Sacudidamente, ela levantou-se, declarando que falaria do assunto na rua. Então, a curiosidade de Leonardo transformou-se em desespero. Foram caminhando até ao miradouro, onde ela costumava demorar-se momentos, por vezes, para ver, dizia, os navios que chegavam do Brasil...

- Podes dizer-me, agora, qual é a novidade?

Por resposta, Regina tirou da saca uma carta:

- Toma. A novidade está aí...

Leonardo observou a mulher, francamente contrariada. Depois, viu a estampilha da carta: era brasileira.

- É de tua mãe, não é verdade?

Regina respondeu prontamente, agastada:

- Essa mulher não é minha mãe!

- Que dizes? Estás a brincar, claro, pois disseste-me sempre que...

- Menti-te. Hoje, saberás tudo, porém. Entretanto, lê...

Leonardo correu os olhos, sofregamente pela carta. Regina tinha-a recebido três semanas antes, mas só nesse dia se decidira a mostrá-la ao marido. D. Balbina, queixando-se da sua solidão, em S. Paulo, declarava ter vendido tudo e resolvida embarcar para Portugal.

- Que enorme aborrecimento! - confessou Regina sinceramente.

- Não te compreendo, confesso.

- Mas vais compreender e... surpreendente. Escuta: essa mulher chega hoje, esta tarde mesmo... Vê aí, na carta, o nome do barco em que ela diz tencionava embarcar. Já fui à agência informar-me: o barco chega hoje!

- Mas, ainda bem.

- Estás doido?

- Mas...

- É o que te digo. Não há pessoa mais orgulhosa e insuportável em todo o mundo. Não posso com as suas vaidades e impertinências. Não posso!

- Deves acalmar. No fim de contas, trata-se de tua mãe...

- Não é minha mãe, já te disse!

Perante o assombro do marido, contou então tudo quanto lhe havia escondido... até essa altura. Seu pai, emigrante português, não era rico fabricante, como lhe tinha dito, quando se conheceram, mas um pobre viajante, que corria o interior de S. Paulo vendendo artigos de diversas firmas. Sua mãe, também portuguesa, natural da Guarda, lavava roupa para pensões e hotéis...

- Morreu, tinha eu cinco anos - confessou Regina, enquanto as lágrimas lhe assomavam aos olhos.

Leonardo ouvia-a surpreso e entristecido. Chorosa, a mulher continuou a desfiar a verdadeira meada da sua existência na capital bandeirantes. O pai passara a viver com ela na pensão de D. Bal-bina, que tinha partido do Minho, quando rapariga, e era danada para o negócio e para exibicionismos.

- Meu pai casou com ela. Durou só mais dois anos, o infeliz. Fiquei só, posso afirmar-te, pois embora continuasse a viver na companhia dessa mulher, que me chamava a todo o momento sua filha, eu sentia sobre estes fracos ombros o peso frio e esmagador dos sem família. Horrível! Nem o posso recordar.,.

Parou um instante, a tomar fôlego, suspirando magoadamente. Leonardo sentia-se tão aflito como ela. Durante o breve período de namoro, Regina tinha-lhe contado uma história bem diferente da que agora escutava. Morto o pai, a mãe, muito sua amiga, que ficava com bons rendimentos, mandara educá-la num colégio interno; e, cuidando do seu futuro, pretendera mesmo casá-la com um célebre advogado paulistano ; mas, ao entrar-lhe a ameaça de tuberculose nos pulmões, mandara-a para Portugal, para se curar... Tudo isto e muito mais, afinal, havia sido construído por Regina. Leonardo reconhecia-o finalmente, com íntima tristeza. Ouvindo a contar a verdade verdadeira do seu passado, recordava também a noite em que, numa tabacaria, se encontraram pela primeira vez: ele comprava tabaco, ela perguntava por revistas brasileiras. Trocaram as primeiras palavras, a propósito do tempo. Chovia. Leonardo, vencendo a sua natural timidez e os complexos de um celibatarismo prolongado, pois ia já nos quarenta e dois, e, até essa altura, nenhuma mulher tinha encontrado, que o prendesse, acompanhou-a à pensão onde ela estava hospedada. Combinaram um encontro para o dia seguinte. Regina, de volta do Caramulo, mostrava-se ainda doente, voz débil, evitando caminhadas e humidade. Repetiram os encontros, fizeram-se as primeiras confidências e, uma noite, depois do cinema, como ela se lastimasse de que a mãe não lhe escrevia nem lhe mandava dinheiro, motivo por que teria de regressar a S. Paulo, ele, decidido, declarou-se-lhe. Três semanas volvidas, estavam casados.

- Essa mulher é terrível, uma hipócrita como nunca vi! - continuou Regina. - Quando eu voltava do colégio, apontava-me aos hóspedes, que estavam presentes, prodigalizava-me festas, dizendo que fazia todos os sacrifícios para que eu tivesse um curso. Eu via sempre nela a que tinha substituído minha mãe... Hipócrita! Servia-se de mim para conquistar simpatias e para que dissessem que tinha generoso coração...

- Mas, particularmente, a sós contigo, procedia de maneira diferente?

- Não. Era a mesma velhaca e falsaria de sempre. Não me deixava sair sem ver se eu ia bem arranjada e, à noite, não ia deitar-se sem que fosse primeiro ao meu quarto e me desse um beijo e as boas-noites.

- Francamente, menina, não te compreendo - confessou Leonardo, já aborrecido com tanta confusão.

- Não me compreendes porque não queres!

- Eu?

- Sim, pois claro. Essa mulher arranjou um amante, percebes agora?... Era um engenheiro falhado, mas apresentável e bem falante. Os dois entendiam-se, eu bem o sabia. Algumas vezes até os surpreendi... Cresci, tornei-me mulher diante desses espectáculos. A velhaca, que gosava de boa reputação, não queria perdê-la, evidentemente. Por isso me fazia festas, me dava quanto eu precisava, declarando a todo o momento que só pensava no meu futuro, para que eu não desse, está claro, com a língua nos dentes... Odiava-a. Ela não devia fazer aquilo à memória de meu pai! Viu-me partir para Portugal com lágrimas nos olhos, mas lá por dentro ficou-se a rir, tenho a certeza. Meio ano depois de eu aqui estar, deixou de enviar-me as mensalidades. Vendi as minhas jóias, para ir vivendo, fica-o sabendo. E à carta em que lhe anunciei o meu casamento contigo - esta é que é a verdade e não o que eu, então, te contei... - limitou-se a responder-me que fosse muito feliz,..

- Estranho!

- Quê! Daquela víbora, eu nada acho estranho. Agora, regressa, talvez com o secreto propósito de apodrecer na sua aldeia minhota a comer os cruzeiros que ganhou. Mas, primeiro, quer ver-me para gosar a minha miséria.

- A tua miséria? - interrogou o homem, ofendido.

- Ou queres que diga a nossa riqueza, queres?

Leonardo vergou a cabeça. Tudo aquilo o magoava. Viu depois as horas: tinha apenas dez minutos para chegar ao escritório. Sugeriu:

- Bem, está bem. Não se fala mais nessa mulher, não é verdade?

- Temos que falar ainda... Ela chega hoje e eu irei esperá-la!

- Tu?

- Eu mesma, sim; e tu, também.

Novamente Leonardo se sentia tonto de surpresa. Sua mulher era um enigma permanente. Inacreditável tudo quanto havia escutado. Regina, agarrada à sua ideia, e espelhando agora ódio no rosto moreno, explicou:

- Temos que oferecer-lhe, hoje, à sua chegada, um grande jantar num restaurante chique. Entendes? Só para a esmagar... Não quero que ela conheça as nossas privações... Entendes? Depois, que vá para um hotel ou para o inferno I Não quero que ela se ria da minha miséria...

- Ó filha, mas eu não tenho dinheiro para isso!

- Vais arranjá-lo!

- Mas, onde? No escritório, não aceitam vales ; entre os meus colegas e amigos, também não conheço quem possa...

- Já disse! Arranja-te lá como quiseres...

Leonardo viu novamente o relógio: não tinha tempo a perder. Azoinado, despediu-se, A mulher gritou-lhe:

- Às seis e meia, espero"te na Rocha do Conde de Óbidos...

Leonardo chegou esbaforido ao escritório. Jacinto jogou-lhe a bisca:

- A lição de italiano parece que durou hoje muito!...

- Vá à fava! - gritou Leonardo.

Os outros sorriram, mas não levaram mais longe a chacota. Leonardo mostrava-se nervoso e irritadíssimo. Em torno, trocaram-se olhares de surpresa e ironia.

Trabalhava, mas, contra o costume, estava a usar a todo o instante da borracha e da raspadeira, Nunca se tinha enganado tanto como nessa tarde. Subia-lhe do peito enorme ódio e na cabeça fervilhavam-lhe pensamentos vesgos contra aquela mulherzinha que chegaria, dentro de horas, para lhe estragar a vida e a da esposa. Onde arranjar, agora, o dinheiro? Regina era esquisita e vaidosa, queria levar por diante aquela ideia de oferecer opíparo jantar à madrasta... Desesperado, bufava, firmando bem a caneta, cuidando em desenhar como devia os algarismos. Continuava a trabalhar, de quando em quando, com a raspadeira... Sobreveio-lhe, depois, inesperada antipatia contra Regina. "Darei lições de italiano, e, com o que tu ganhas, viveremos muito bem...", tinha-lhe ela dito antes de se casarem. Lérias! Lérias e mentiras! Tarde perdoaria a enorme soma de mentiras que ela lhe havia pregado, até esse dia.

Vendo o Vieira Loureiro atravessar o escritório para o seu gabinete, com uma cara de poucos amigos, como era seu costume, pensou que não teria coragem para ir pedir-lhe um adiantamento. Sabia bem qual a resposta que ele costumava dar.., Mas, depois, que diria Regina? Ficou assustado. Sua mulher tinha um geniozinho dos demónios, nunca se sabia para onde estava virada ; já certa vez chegara a dizer-lhe que, um dia, voltaria ao Brasil, mesmo sozinha... Não queria contrariá-la, mas também não sabia como arranjar o dinheiro de que precisava.

E a tarde fugia, aumentando-lhe a angústia. Censurava mentalmente a mulher e a madrasta. Para que se odiavam? E, no fim de tudo, que culpa tinha ele de semelhante ódio? Então, lastimou sinceramente ter dado o nó com Regina. Não seria bem melhor a sua situação de celibatário, sem exigências a que atender nem contrariedades a solucionar? Agora, porém, era tarde para voltar atrás.

Já se aproximava a hora de saída, quando lhe ocorreu lembrança redentora: Figueiredo, o chefe dos contínuos, costumava emprestar dinheiro a prazo, com um jurozinho... Falou-lhe. Foi atendido, prontamente. Então, respirou fundo, como se lhe tivessem retirado dos ombros montanha asfixiante.

Correu para o cais. Do vapor acostado havia pouco, já saíam os primeiros passageiros. Regina, nervosa, com uma cara de pau, recalcava, com orgulho, todo o ódio que votava à madrasta. Sorridente, Leonardo disse-lhe, em voz baixa, que sempre tinha arranjado o dinheiro. Nada lhe retorquiu. Olhava, teimosa, os viajantes que desciam a escada. E, de repente, soltou prolongada interjeição. "Ah!!!". O marido supôs que ela tivesse descoberto finalmente a madrasta entre aqueles desconhecidos. Nervosa, Regina informou: "Não! É o engenheiro Pompeu, o amante da víbora..." O homem descia, com uma "valise", olhando para um e outro lado, à procura de alguém. Rápida, Regina foi ao seu encontro:

- Olá, engenheiro, veio só?

- Olá, Regina. Vim só, minha filha. A pobre Balbina sofreu uma congestão, dois dias antes do barco partir. Deixou-lhe toda a sua fortuna. Venho buscar você, para tomar posse da herança...

Leonardo, boca aberta, não queria acreditar nas palavras do engenheiro. A mulher, dominando a surpresa que a avassalava, apresentou-o. E, enquanto os dois homens apertavam fortemente as mãos, Regina sorria e chorava sem descobrir, todavia, o singular segredo do seu coração...

 

Zangada com a manhã de inverno, entrou a correr na "Pérola da Esquina" ; e furando por entre o magote de fregueses, chegou ao balcão:

- Necessito falar ao telefone, seu Vicente.

- Faça o favor de utilizar-se, D. Josefina"

- Ai, mas eu não me entendo com esta geritonça...

- Tem o número?

- Sim, senhor.

Arquejando penosamente, Josefina tirou da manga do casaco um papelito e passou-o aos dedos polpudos do merceeiro. As outras mulheres que ali se encontravam, à espera de serem servidas, rosnaram contra a demora: "Olhe a manteiga, seu Vicente, que o meu patrão tem de ir para o Banco...". - "Seu Vicente, dê-me o café, preciso mandar as crianças à escola... - "Arre, que demora! Quer que eu fique aqui a manhã inteira?...". Abelhas egoístas, zumbiam todas suas pressas, exigências e protestos. Gordo e calmo, o homem procedia, porém, à ligação sem cuidar das impacientes. Então, a Josefina, mais para dar a conhecer o motivo que ali a trouxera do que para desculpar o merceeiro, contou, de um jacto, que o Horácio Madeira, seu hóspede, estava de cama, a arder com febre; havia levado a noite toda a tossir e a espirrar, e, agora, encontrava-se com um terrível aspecto; e, francamente o confessava, ela não gostava de doentes em casa, mas também não podia escorraçar o desgraçado, que vivia naquele quarto ia já para mais de quinze anos...

- Pronto, estão a responder, D. Josefina.

- Então, faça o favor de dizer que desculpem, mas o sr. Madeira não pode ir hoje ao escritório.

Vicente deu o recado, e com visível satisfação, pois considerava lá para consigo que falar para a Sociedade Ribatejana, a mais importante fábrica de cimentos do País, era incumbência deveras honrosa. Atendeu-o a menina do P. B. X., porém o merceeiro sentia-se tão enfatuado como se falasse com a própria Direcção, E, já no final, depois da pequena lhe dizer que mandava para o Madeira sinceros desejos de melhoras, ouviu-a ainda pedir que esperasse um poucochinho... Apareceu então a voz fanhosa de Tibúrcio, colega do doente no escritório, informando que, nessa mesma tarde, após o trabalho, iria visitá-lo.

- Muito obrigada por tudo, seu Vicente - confessou a mulher, depois de saber dos desejos da telefonista e do Tibúrcio, - E, agora, vou à farmácia ...

Foi então que a velha Belmira, actriz gasta e esquecida, que aguardava o momento de comprar cinquenta gramas de chá para fazer o almocinho, se lembrou de perguntar, com evidente ironia, se o "Faustino" também havia adoecido... Esta pergunta fez rebentar gargalhadas, enquanto que Josefina, enrubescida, recalcava raiva medonha.

"Faustino" era um macaquinho, quase microscópico, que o Leonel, seu afilhado, dispenseiro num vapor das carreiras de África, lhe havia trazido meio ano atrás. Josefina votava-lhe dedicadíssimos carinhos. Porém, o bichinho, saturado de meiguices ou saudoso da liberdade, tinha decidido safar-se da corrente, saltar para o telhado e fazer uma excursão pelas redondezas. Acontecera isto, justamente, no dia anterior, ao anoitecer. Aflita, a mulher desatara aos berros, pedindo que agarrassem e lhe trouxessem o "Faustino". Dois ou três vizinhos, que, surpreendidos, assomaram às janelas, sorriram de semelhante berrata e mofaram de tão desassisado pedido. Mas, vindo do emprego, chegou pouco depois o Madeira. E, atormentada, enlouquecida, Josefina suplicou-lhe então que corresse atrás do "Faustino". Obediente, o homem atirou-se imediatamente para o telhado, sem mesmo pensar nos perigos que corria. Entretanto, a noite descia e o macaquito, achando saboroso o passeio, começou a dar saltos e a fugir para mais longe. A certa altura, para cúmulo da infelicidade de Horácio Madeira, desatou a chover a cântaros. Chuva e frio castigavam o infeliz perseguidor. Das janelas das trazeiras e até da rua havia numerosos basbaques que seguiam aquela caça difícil e original. Chegavam aos ouvidos do Madeira, com os gritinhos descarados do sagui, os comentários e as gargalhadas dos mirones. Encharcado até aos ossos, o pobre desesperava-se, assustado, agarrando-se às telhas, chamando o bicho vadio e receando uma queda mortal... Apanhou-o só passado duas dilatadas horas, quando já na boca lhe haviam acabado todas as pragas contra o "Faustino", a patroa e aquela noite terrível

Josefina sabia bem onde aquela velha pintada queria agora chegar com a pergunta. Enfurecida, retorquiu:

- Ora cuide de si, que a sua saúde também não deve ser muita...

Sem mais, desandou. Nas suas costas, repetiram-se gargalhadas. Vicente, enquanto pesava duzentas e cinquenta de manteiga, sorria com prazer, embora discretamente. Belmira, para vingar-se dizia, agora, que aquela flgurona se julgava a verdadeira mãe do macaquito...

Voltando a casa, Josefina foi direita ao quarto do doente:

- Prepare-se, que vou deitar-lhe sinapismos no peito e nas pernas.

- Sinapismos? Mas, isso arde muito, minha senhora.

- Tolice. Faz bem, é o que é. Deixe-se de ser piegas...

Resignado, submeteu-se. No quarto obscurecido, por cuja única janela se descobria uma nesga do telhado fronteiro, pesara atmosfera asfixiante. Horácio queria dormir, mas o sono não vinha. Felizmente, a tosse havia desaparecido. Fechou os olhos para fugir de si próprio, do seu estado mórbido, mas logo a seguir os abriu, pois a mostarda começava a surtir efeito. Aquele calor, no peito e na barriga das pernas, à medida que aumentava, ardia-lhe desesperadamente. Atormentado, Madeira acabou por arrancar os sinapismos e deitá-los fora.

Uma hora decorrida, quando lhe levou uma chávena de leite, a patroa descobriu as folhas de mostarda e as ligaduras caídas no tapete; e, enfurecida, abriu-se em demorados protestos. Teimoso, Horácio Madeira não cedeu, porém. Achava que a constipação que havia apanhado não pedia tantos cuidados nem suportava tamanho sacrifício. Limitou-se, por isso, a engolir um comprimido, para ver se a febre descia. Josefina voltou à cozinha, exigindo que a chamasse, se tivesse necessidade de alguma coisa:

- Quero que se sinta como em família, bem sabe.

- Obrigado, D. Josefina.

Rijo de corpo e sempre com excelente saúde, a despeito dos seus cinquenta e quatro, Madeira não estava acostumado a adoecer. Certamente por isso, sentia-se agora muito triste, também. Fechava os olhos, desejoso de dormir. Por fim, sempre cerrou os olhos, banhado em suores, até ao fim da tarde. Foi Tibúrcio quem o acordou:

- Então, um feriadozinho, sem ninguém saber?,..

Numa voz lastimosa, o doente contou a fuga do sagui, a molha que apanhara para agarrá-lo, a tosse e a febre que, depois, o tinham perseguido e arrazado.

Tibúrcio, velhaquete, sorriu e comentou:

- Percebo: deitaste a mão ao macaco para não perderes a dona...

- Não, não, Tibúrcio, não é o que julgas - opôs Madeira, em voz cautelosa e rápida. - Ela tem homem, um das Alfândegas, que vem aí aos sábados...

- Bolas! Então, a tua tolice não merece desculpa nenhuma!...

Horácio Madeira sorriu magoadamente. Perguntou o que havia dito a gerência. Não tinha dito nada, apenas que se curasse o mais rapidamente possível. Falaram, a seguir, do serviço e dos colegas. Tibúrcio, de génio faceto, muito comunicativo, com a mania de, por tudo e por nada, contar uma anedota, divertiu Madeira com os seus comentários. Josefina veio, a certa altura, cortar o diálogo:

- Quer alguma coisa, sr. Madeira? Um caldinho?

- Não, muito obrigado.

- Olhe que eu estou às suas ordens, para tudo quanto precisar.

- Obrigado.

Depois da mulher sair, Tibúrcio piscou o olho e, a propósito, contou a anedota do estrangeiro que estudava a moral das cidades a mudar de quartos para quartos que senhoras sós alugavam...

Quando se despediu, ganhou ar sério:

- Agora, Horaciozinho, vou falar-te com juízo;. queres que chame o médico ou traga alguma coisa?

- Não, Tibúrcio, obrigado. Isto não tem importância. Espero que, amanhã, irei trabalhar...

Enganou-se. Piorou. D. Josefina chamou o médico. Resignado, Horácio Madeira deixou-se auscultar. Quando passava a receita, o clínico recomendou que o doente fosse cercado de todos os cuidados, pois estava ameaçado de bronco-pneumonia. Josefina verteu duas lágrimas, impressionada com a notícia. E Horácio, vendo-a chorar, comoveu-se. Era muito sua amiga, reconhecia-o uma vez mais. Estava ali hospedado desde que tinha enviuvado e, muito embora não pudesse nem devesse considerá-la como sua segunda mulher, podia e devia por gratidão, principalmente, considerá-la sua segunda mãe.

Tibúrcio reapareceu ao anoitecer, contou duas anedotas, para aligeirar o ambiente, e, coração franco e amigo, obstinou-se em saber de que é que o colega precisava.

- Não preciso de nada. Ou quer dizer... Olha: preciso que a gerência me aceite um vale..., uns quinhentos escudos, somente. Necessito de tirar a telefonia, que está empenhada, compreendes? Como o doutor disse que eu terei de continuar de molho ainda mais alguns dias, assim a música sempre me fará companhia.

Tibúrcio compreendeu muito bem. O pior, a seu ver, era que a gerência, por método e tradição, não aceitava nunca vales a nenhum dos seus numerosos empregados. Todavia, pediu a cédula de penhor. No dia seguinte, apareceu-lhe com o aparelho. O doente emergiu a cabeça da montanha dos cobertores, ansioso, e, quando o quarto ficou inundado de música, pareceu, por rápido instante, que tinha recobrado saúde. Tibúrcio comoveu-se com tão evidente satisfação. E, para o não contrariar ou entristecer, escondeu-lhe a verdade: a gerência, como esperava, havia recusado o adiantamento, mas ele tinha-lhe emprestado o dinheiro das suas economias...

No dia seguinte, Madeira sentiu algumas melhoras, a cabeça mais leve e o peito menos oprimido, o que o levou a admitir, bem satisfeito, que a pneumonia se houvesse, afinal, afastado. Estava iludido... Durante a noite, a tosse voltou, teimosa e impertinente. O médico, chamado logo de manhã, procedeu a novo e demorado exame e, ao cabo, fez um sinal a Josefina e disse-lhe que era preciso mandar analisar imediatamente a expectoração do doente:

- Mas, de que desconfia o sr. doutor?

- A análise o dirá...

Dois dias demorou a análise. Horácio Madeira sentia agora a cabeça tonta, uma moinha dolorosa no peito e, de quando em quando, aquela tosse que lhe deixava a garganta a arder e os pulmões arrasados. Apesar disso, a cama aborrecia-o, mas tinha que suportá-la mesmo contra vontade. Tibúrcio, que vinha sempre após o trabalho, distraía-o com seus ditos e chistes, dizendo-lhe, quando o via mais apreensivo, que a Sociedade Ribatejana não faria favor absolutamente nenhum se pagasse o ordenado por inteiro a um empregado como ele, com vinte e nove anos de casa, enquanto estivesse doente. Madeira, esperançado em melhorar muito brevemente, preenchia os seus dias com música. Dia e noite, tinha o aparelho aberto; e, quando não podia sintonizar postos nacionais, ligava aos estrangeiros. Josefina achava que isso representava vício reprovável em vez de compreensível melomania. E, por isso ou por outro qualquer motivo, que trazia bem escondido no toutiço, começou a gastar o mais escasso número de palavras possível com o enfermo e a olhá-lo, furtivamente, com evidente nojo e misteriosa intenção.

Quando a análise chegou, depois de o clínico a ler, abanou a cabeça:

- Era o que eu desconfiava! Uma tuberculose aguda I...

- Quê, sr. doutor?

- O doente está em perigo e o seu estado ameaça todos os desta casa!

Apavorada, ao saber que os pulmões de Horácio Madeira vinham abaixo, com uma tísica galopante, Josefina encheu-se de pavor e logo pensou em ver-se livre do doente. Tivesse ele santa paciência, mas que fosse para o hospital ou lá para onde quisesse - e quanto antes. Pouco ou nada importava à sua consciência que ele ali estivesse hospedado havia mais de quinze anos e com as contas sempre em dia; assim como nada preocupava os seus obrigatórios sentimentos de gratidão que o pobre tivesse chegado àquela perigosa situação por ter apanhado uma pavorosa molha na noite em que andara em perseguição do "Faustino"...

Tibúrcio ficou perturbado e entristecido, quando Josefina lhe contou o melindroso estado em que o amigo se encontrava. Os escarros, raiados de sangue, que depois o viu expectorar, aumentaram-lhe os receios. Horácio Madeira, cada vez mais magro, olhos encovados, voz fraca e baça, parecia desaparecer de dia para dia. Contudo, a música, que recebia do aparelho quando o sono e a fadiga o não prostravam, parecia manter-lhe as esperanças em melhorar dentro de dias. Entretanto, o médico, reconhecendo que a tísica prosseguia nos seus inevitáveis estragos, instava com Josefina, para que transferisse o doente para um sanatório ou, pelo menos, para um dos hospitais da cidade.

No fim do mês, Tibúrcio trouxe ao colega, com o ordenado, uma carta da gerência, na qual era comunicado a Horácio Madeira que, se não pudesse retomar imediatamente o serviço, seria substituído. O doente tresvariou com a notícia ; e, como trágica consequência, piorou assustadoramente.

Josefina, mostrando, embora, cara de compungida, tinha ouvido tudo e tomado a sua resolução. Depois de ter arrebanhado o dinheiro que Madeira havia recebido das mãos do amigo, chamou este de parte e, muito cínica, lastimando a sorte do enfermo, pediu que lho levasse dali sem demora.

- Não quero que ninguém morra em minha casa, não quero! - declarava, rouca de susto, - O meu primeiro marido morreu nos Açores e o segundo foi acabar ao hospital. Não quero cadáveres cá em casa...

Com muito custo e vencendo obstáculos e dificuldades, Tibúrcio lá conseguiu internar o desgraçado em "S. José". Tinham já desaparecido de todo, contudo, as esperanças de se poder salvá-lo. Segundo o primeiro médico e os outros que, depois, o observaram, aquilo já não encontrava remédio. Horácio Madeira, tanto por hereditariedade, como por uma descuidada sub-alimentação de muitos anos, era um predisposto para a tuberculose. Aquela constipação medonha, que ameaçara degenerar em bronco-pneumonia, tinha-lhe, pois, acordado e desenvolvido a terrível e fatal enfermidade.

Quatro dias depois de ter conduzido num "taxi" o amigo ao hospital, Tibúrcio voltou a casa de D. Josefina. Encontrou-a, muito sorridente, com o macaquinho sobre o ombro, ao qual fazia festas e chamava "meu menino, meu filhinho...". Arrasado, Tibúrcio informou-a de que o infeliz Madeira havia sido levado, nessa manhã, ao cemitério da Ajuda. No rosto redondo da mulher apareceu imediatamente o ar de tristeza que a circunstância exigia. Mas, logo a seguir, enrubesceu, escandalizada, ao ouvir Tibúrcio dizer que vinha pela telefonia. Havia sido ele quem a desempenhara, com o seu próprio dinheiro, para que o pobre do amigo saboreasse ao menos música enquanto estava doente e, por isso, muito honestamente, achava que o aparelho lhe pertencia. Para mais, Horácio Madeira não contava qualquer parente com direito a herdar o seu magro espólio.

- Não tem parentes, mas deixou dívidas - opôs energicamente Josefina. - Quem há-de pagar o doutor e os remédios? Por isso, tudo quanto ele deixou me pertence.

Tibúrcio contrapôs suas razões: gostaria de ficar com uma lembrança do dedicado Madeira ; e, como havia sido com o dinheiro das suas fracas economias que a telefonia tinha deixado a prisão do penhorista, considerava, e com justiça, a seu ver, que ela lhe pertencia. Josefina, porém, não queria sequer ouvir falar em tal. E, encolerizada, rematou:

- O senhor foi amigo dele, não foi? Pois eu tratei-o como pessoa de família; fui para ele uma segunda mãe! Vejo que o senhor não acredita, mas isso não importa. Serei eu, portanto, a sua herdeira!...

Sem mais, desandou, rápida, batendo violentamente com a porta.

 

Havia já mais de três horas que se dilatava aquele tormentoso e asfixiante diálogo. Almerindo, afogado num "maple", olhos semicerrados, torcia as mãos desesperadamente. Era estranho, todavia, que, em vez de meditar no que tinha ouvido até essa altura, pensasse justamente no movimento da cidade. Tinha chegado quando o sol, quase a meio da tarde, esbanjava oiro sobre as ruas. Agora, começava já a anoitecer, via-o bem através dos vidros da janela que tinha na sua frente. Como lhe apetecia dar um largo passeio e respirar à sua vontade! Gabriel, que o estivera observando atentamente, deitou:

- Exijo a tua última palavra!...

- Quê?! - perguntou Almerindo, arregalando os olhos, como se acordasse.

- Ou assinas esta declaração - impôs Gabriel, frio e austero - ou entregarei o teu caso à polícia.

- Chantagem pura!...

- Não uso os teus processos. Quero salvar-te a vida e o futuro, apenas. Sou generoso, portanto.

- Sim, bem sei. E, por essa falsa generosidade, queres a minha perpétua desonra.

- Não uses de artifícios... Somos diferentes, apesar dos outros dizerem que somos irmãos. E a culpa não é minha, bem sabes...

- Nem minha!

- Mas, foi de tua mãe...

- Velhaco! - gritou Almerindo, esboçando um movimento para se levantar.

- Deixa-te de asneiras e continua sentado.

Gabriel tomou a faca de cortar papel, olhou sorridente e cinicamente para a folha de papel dactilografada, que tinha sobre a secretária, prosseguindo com lentidão estudada:

- Meu pai falou-me da sua aventura antes de morrer e pediu-me que te auxiliasse. Ele cumpriu o seu dever, eu cumpri o meu, Bem sabes que, não estando tu perfilhado, nada me obrigaria a dar-te a mão. Fui generoso, ninguém o poderá negar.

- Fizeste de mim teu empregado, nada mais.

- Bem. Fiz de ti meu empregado, mas dei-te confiança e poderes, o que agora sinceramente lastimo.

- Já me disseste isso mesmo uma dúzia de vezes desde que aqui entrei.

- E parece-te demasiado?

- Insuportável! Insuportável, repito-to - disse Almerindo, elevando a voz.

- Está bem. Nesse caso, assina esta declaração, pela qual reconheces que abandonaste, sem qualquer justificação, tua mulher durante anos, e poderás sair tranquilo imediatamente.

- Não! Não assinarei!

- Nesse caso, a polícia tomará conhecimento dos teus abusos e desfalques.

- Queres desonrar-me!

- Eu? Mas, que ideia! Tu, sim, tu é que pareces empenhado em trilhar esse caminho sem esperança.

Fatigado, Almerindo vergou a cabeça. Aquela atmosfera e as palavras que escutava entonteciam-no. Tinha a impressão de que ia desmaiar. Fez um violento esforço, chamou pelos restos da sua vontade, e gritou:

- E, onde é que ela está? Por que me foge? Por que não veio ela própria apresentar-me essa bonita proposta?

Mostrava-se tão encolerizado, que, por um segundo, Gabriel chegou a receá-lo. Desceu então frio e breve silêncio sobre os dois homens. Depois, Almerindo, como enlouquecido, saltou do "maple" e, arrastado por cego e furioso impulso, atirou-se para a porta da direita, que, sabia-o perfeitamente, dava para um quarto provisório, mas ricamente mobilado, onde Gabriel costumava passar tempo com as suas amantes. Entrou e, desvairado, fez uma rápida busca por todos os lados. Voltou, exausto e deprimido. Gabriel, a cara iluminada por sorriso mau, comentou com desprezo;

- Causas-me pena e nojo!

- Cala-te! - gritou Almerindo, novamente ameaçador.

- Aqui, quem dá ordens sou eu. Pergunto-te, pois, uma vez mais: qual é a tua última palavra?

Pálido e sacudindo amargamente a cabeça, Almerindo pediu:

- Um minuto, ainda... Se eu assinar essa declaração e a Beatriz se divorciar, casarás tu com ela?

- Isso não é de tua conta.

- Talvez. Mas, neste momento, ainda é da minha conta e dever dizer-te, na cara, que toda a gente afirma que és de há muito seu amante!...

- Não tenho que dar-te satisfações.

Almerindo empalideceu. Fervia-lhe, no peito, ódio medonho. Meteu a mão ao bolso do casaco,., Perguntou, desvairado:

- Queres que te deixe a mulher em troca do dinheiro que dizes que te roubei, não é verdade?

- Já disse o que tinha a dizer. Agora, espero apenas a tua última palavra.

- Aí a tens!...

Tudo foi rápido: Almerindo puxou da pistola e uma bala partiu, certeira...

 

Calçou as luvas e, depois de beijar pela segunda vez a colega, pegou na maleta:

- Vou-me chegando. O comboio parte daqui a meia hora. Adeus, Fernandina.

- Adeus, Matilde. Boa viagem. E, boas festas!

Fernandina ficou por detrás da parede de vidro da "marquise" e acenou, quando a outra, lá adiante, próximo do portão, se voltou ainda para uma última despedida. Invejava-lhe a viagem e a família; inve-java-lhe também aquela agradável certeza de ter no mundo com quem dividir os seus afectos. Todavia, concorrera e influira, até, na sua situação de enfermeira mais antiga, para que o director a dispensasse durante uma semana.

Entristecida, olhava agora o jardim revolto e castigado pelo inverno; e, preocupada, fixou por fim a atenção nas duas palmeiras, junto ao muro, com as velhas folhas tombadas, oscilando miserávelmente.

Aquelas palmeiras atiravam-lhe o pensamento para a índia. Seu irmão José, quando andava nos dezoito, fora mordido pelo gosto da aventura e partira, inesperadamente, para Goa. Mais nova do que ele dois anos, Fernandina continuara a viver em casa da madrinha. Substituindo uma criada, ajudava em tudo, encarregando-se também do quarto e da roupa do hóspede. Tudo isso ia já muito longe! Saudosa desse tempo, o peito dilatou-se-lhe debaixo da bata e um suspiro muito fino, como fio de água distante, voou-lhe dos lábios. O hóspede era um estudante de medicina, Adolfo Barreto. Fora ele quem insistira com a madrinha para que a mandasse aprender enfermagem. Devia-lhe o curso. Sorriu. Devia-lhe também um bonito e prolongado sonho... "O sabor de um beijo pode durar vinte e cinco anos? Pode?" Estas perguntas perseguiam-na desde o momento em que, diante do espelho, descobrira o primeiro cabelo branco. Agora, já contava muitos! Guardava bem fechado, porém, o seu grande e saboroso segredo. Nem ele sabia, não, que ela o conservava com tanto carinho... "Mas, afinal, para quê?" Os olhos embaciaram-se-lhe, numa ameaça de pranto.

- Bom dia, Fernandina-

Sobressaltada, voltou-se. O dr. Adolfo Barreto, risonho como de costume, estava na sua frente. Retribuiu, nervosa:

- Bom dia, senhor doutor.

- Faz um bonito dia para estar doente, não lhe parece?

Lá fora desabava bátega desabrida.

Confundida, a enfermeira baixou os olhos. Sempre lhe havia escondido os seus pensamentos. Nessa ocasião, porém, talvez por se encontrar inquieta e atormentada, parecia-lhe que ele lhe havia devassada cérebro e alma. E sentiu mesmo ligeiro estremecimento ao ouvi-lo rematar:

- Mas quanto a mim, acho preferível tratar dos outros...

Acompanhou-o na visita da manhã. Excepcionalmente, encontrava-se muito reduzida a frequência da casa de saúde: dois doentes de apendicite, apenas. Um juiz, aposentado, e uma dama da alta roda, divorciada, tinham ali dado entrada havia oito dias. Operados com êxito, deviam sair dentro de uma semana.

O dr. Barreto, com a sua alegre e habitual expressão, entrou primeiro no quarto da "madame":

- Trago-lhe, minha senhora, um bom dia e desejos de feliz Natal!

A doente perguntou, irónica:

- O doutor costuma esquecer-se sempre de ser amável e verdadeiro?

- Eu? Não, nunca dei por isso...

- Então, repare que está a chover e que eu estou aqui, recentemente operada, prisioneira...

- Mas, isso que tem? Poderia ter perdida uma perna ou encontrar-se, naufragada, numa ilha deserta! Diga: não seria muito pior?

- Que ideia!

Ria, mostrando os belos dentes e entornando os olhos numa deliciosa censura. O dr, Barreto, en- quanto verificava a cicatrização, ria também. Atrás, Fernandina seguia os rápidos movimentos do médico com irreprimível ponta de ciúme. Aborrecia-a. "Madame", recompondo-se, soergueu o busto, para luzir os bordados do robe. Com gestos nervosos, a enfermeira deu-lhe um arranjo ao "edredon". Então, a doente confessou:

- Gostaria que jantasse hoje comigo, Fernandina.

- Não sei se me será possível, "madame" - retorquiu prontamente a enfermeira, intimamente satisfeita de ter obedecido ao rancor que começava a nutrir pela divorciada.

- Ah! Não diga isso. Doutor, auxilie-me... Eu não posso passar aqui o Natal abandonada, pois não?

- Evidentemente! - e a voz do doutor tinha adquirido "súbito tom autoritário: - A Fernandina não tem família, não tem ninguém, e, por isso, até há-de gostar de passar o Natal em tão honrosa companhia. Não é verdade?

Enrubescida, a enfermeira sentía-se vexada. Ausente o irmão, não tinha mais ninguém, realmente. "Pode-se guardar o sabor de um beijo vinte e cinco anos? Pode?" Como havia esquecido completamente o passado, o dr. Barreto não sabia que estava a feri-la impiedosamente. Tinha que resignar-se. Constrangida, respondeu:

- Sim, eu, confesso... tinha um projecto. Mas, claro, "madame", agora terei muito prazer..,

- Obrigada. Olhe: abra-me a telefonia.

O doutor seguiu para o quarto do juiz. Acompanhando-o, Fernandina revia a chegada dele. um ano atrás, para tomar conta do cargo de cirurgião da casa de saúde. Nessa altura, estivera inclinada a demitír-se, com receio de que ele, recordando o que lá ia, a torturasse com uma ou outra alusão. Mas, depois, sossegara, ao verificar que o dr. Barreto se comportava como se nunca a tivesse conhecido. Magoada embora, agradeceu-lhe, mentalmente, o esquecimento. Ainda que gostasse de repetir de si para consigo aquelas enternecedoras perguntas, achava que o médico procedia com acerto. Tinha casado e já a filha mais velha, por seu turno, havia casado também.

No corredor, terminadas as visitas, o dr. Barreto disse-lhe:

- Não virei de tarde. Telefone, se precisarem de mim.

Deu alguns passos para o gabinete da Direcção. Do quarto da divorciada saía uma romântica canção argentina. Fernandina pensava na tremenda estopada que o destino lhe tinha preparado para essa noite,.. Lembrou-se de Matilde, com inveja. "Madame", impertinente como poucas, chamava-a por tudo e por nada e gostava que lhe falasse sempre de vidas alheias. Parecia atormentada por mórbida e insuportável curiosidade. De repente, o doutor voltou-se, transbordante de felicidade:

- Sabe, Fernandina? Já sou avô! A minha filha teve ontem um rapaz todo pimpão. Como o tempo passou, heim!?

Fernandina, reprimindo um grito de espanto, sentiu o coração ferido. "Como o tempo passou, heim!?..." Com que então, ele recordava-se ainda de tudo?... Quis odiá-lo, mas não sabia odiar. Usando de toda a força de vontade, sorria com esforço. Aceitou e retribuiu-lhe, aparentemente calma, os votos de boas-festas! Sozinha, dirigiu-se, depois, à "marquise". Apetecia-lhe chorar durante horas prolongadas. Lançou novo olhar ao jardim: nem uma flor, como na sua existência,.. Nem uma flor! Olhou também as palmeiras. Seu irmão estaria vivo ou morto? Dominava-a e amarfanhava-a pungente desespero. Para que tinha sonhado tanto, para quê?

 

Telefonou-lhe para o Banco: "Preciso muito de falar contigo. Espero-te na Avenida, acima do "Tivoli"... Do lado de lá do fio. Artur quis saber se havia sucedido alguma coisa com a madrasta. "Sim..., não...", respondeu-lhe à pressa, enervada com as pessoas que estavam em torno da cabine e queriam utilizar também o telefone.

Sentia o peito oprimido, doía-lhe a cabeça, um sono bom e prolongado havia de libertá-la de tudo,.. Olhou o rio, ali próximo, semeado de navios negros e monstruosos em que espreitavam luzes de diversas cores. Uma hora antes, à beira do paredão, estivera fortemente decidida a lançar-se à água, ansiosa de afogar a sua tormentosa vida no sono eterno. Agora, agarrava-se a uma esperança: Artur. Namoravam-se havia meio ano, e, por causa dele, sofria Palmira constantemente escárnio, desprezo e enxovalhos da madrasta.

Diante duma montra, levantou o relógio-pul-seira próximo dos olhos: ainda tinha hora e meia na sua frente. Artur terminava o serão no Banco só à meia-noite. Foi andando sem pressa, reprimindo a ansiedade que começava a devorá-la. Que iria ele dizer-lhe quando soubesse de tudo? Havia de compreendê-la, evidentemente. Não era a primeira vez que aquilo sucedia, mas, nessa noite, havia atingido uma situação insustentável. Não, nunca mais voltaria a casa". E, com mágoa e tristeza, revia o pai, mudo e acobardado, a assistir à tempestuosa cena desenrolada entre ela e a madrasta. Pobre pai. Triste e vexado, apenas soubera dizer: "Calem-se, os vizinhos podem ouvir...." Infeliz! Era o seu silêncio repleto de resignação o culpado de que tudo houvesse chegado tão longe. Devia estar ainda no quarto, debruçado talvez sobre os livros e a chorar. Para lá tinha fugido, mudo e apavorado, quando a madrasta pusera a questão com toda a audácia neste dilema: "João, escolhe: ou eu ou esta rapariga!..."

Meteu pela rua do Ouro, inundada de luz. Vendo-se observada insistentemente pelos homens com quem cruzava, começou a ficar envergonhada, como se eles pudessem adivinhar a sua situação. Cortou para uma das ruas laterais. O silêncio e a obscuridade aliviaram-lhe grande parte do peso que lhe magoava o peito. Próximo da esquina, saiu uma voz lacrimosa: "Uma esmolinha, senhora, para o meu menino..." Não parou, pois não levava na bolsa um centavo sequer. Tinha deixado a casa sem bagagem nem dinheiro. Aquela lamúria, agora, repetia-se-lhe constantemente aos ouvidos, como se a perseguisse. Então, lembrou-se da mãe, morta havia muito, quando ela andava apenas nos seis anos. Certa tarde, na volta do escritório, o pai chegara com a outra: "Beija-a e chama-lhe mãe..." Palmira tinha-a beijado, mas nunca, nunca, nunca lhe dera esse tratamento. Por isso, ela não lhe perdoava, tratando-a com maus modos, perseguindo-a, insultando-a a todo o momento.

Quando se sentou no banco, acima do cinema, sentia-se exausta. Parecía-lhe ter dado já uma grande volta à cidade, quando, afinal, não tinha vindo senão de Alcântara até ali. Queria chorar. Queria levar mesmo o resto da noite banhada em pranto, para livrar-se de todas as dores e tormentos que a magoavam. Artur não podia tardar muito. Subitamente, uma voz entrou-lhe pelos ouvidos, fazendo-a estremecer, apavorada: "Não incomodo, pois não?..." Era um desconhecido. Quis gritar, mas, dominando-se, lá se levantou e deu alguns passos, rápidos, Avenida abaixo. Talvez houvesse feito mal em marcar o encontro para aquele ponto, mas, como Artur morava ali próximo, com a mãe, provavelmente que tudo, por esse motivo, se facilitaria o máximo possível.

Do "Tivoli" começaram a sair os espectadores. Subiu de novo, porém sem afastar-se da linha dos carros. E estava, justamente, a ver um "eléctrico" de Benfica, repleto de passageiros, quando Artur a prendeu por um braço:

- Então, que aconteceu?

No primeiro momento, Palmira ficou muda e sem pinta de sangue. Mas, recobrando imediatamente coragem, pediu-lhe que fossem sentar-se, mais acima, num banco afogado na penumbra. Artur anuiu, a contra-gosto. Palpitava-lhe o verdadeiro motivo que havia arrastado a noiva até ali, e, na medida dos sseus preconceitos, achava condenável tal procedimento. Uma rapariga honesta, a seu ver, não tinha nunca motivo que a autorizasse suficientemente a andar de noite sem a companhia de uma pessoa de família.

Logo que se sentaram e Palmira, por entre desesperadas lágrimas, começou a contar a dramática cena que, poucas horas antes, havia tido com a madrasta, principiou Artur a tossir. Era o que ele esperava. Por fim, a rapariga concluiu:

- Olha que ela é tão má, e tanto se empenha em diminuir-me, que me fez até gravíssimas acusações!..,

Artur tossiu significativamente, declarando, depois:

- Devias ter esperado para amanhã para me contar tudo...

- Mas, sabes o que ela me disse?

- Não, não sei. Não me importa mesmo sabê-lo. O que me preocupa é que acabas de dar uma tremenda cabeçada, que te prejudica e me envergonha!...

- Quê?! Também tu ousas dizer uma coisa dessas? Não sabes como são puras as nossas relações?

Palmira estava varada de espanto. Artur tossiu de novo. Falou irritantemente:

- Sei, sei muito bem que as nossas relações são brancas e respeitosas. Por isso mesmo...

A rapariga nada opôs, O noivo continuou:

- Que dirá minha mãe quando souber de tudo? Conheces bem as suas ideias sobre honestidade...

- Perdão!- gritou Palmira. - Eu sou a mesma de sempre!

Enfadado, Artur levantou-se e aconselhou:

- Tens que serenar. Anda, vou levar-te a casa.

- Não!

- Não queres?

- Não!

- Mas, afinal, quais são os teus projectos?

Palmira ficou calada. "Os meus projectos: gostaria que me levasses para tua casa e me confiasses à guarda da tua mãe; eu ajudaria em tudo; e, depois, um dia nos casaríamos..." Nada confessou, porém. Aquele homem, pelo que acabava de dizer-lhe, havia-se comportado como um desconhecido sem entranhas. Levantou-se também, dominada por negra decisão.

- Para onde vais, agora? - perguntou Artur.

- Não sei.

Tinha mentido,.. Acabava de pensar no rio e no sono sem fim.

- Para onde vais, agora? - teimou Artur. - Anda, responde.

Palmira não respondeu. Enérgica, desceu a Avenida, direita ao rio...

 

Acompanhou o pequeno à porta, beijou-o amorosamente, aconselhando: "Vai depressinha, meu filho. Olha que o sr. Valdês recomendou que estivesses lá antes das nove. E tem cuidado com os carros..." Tremente e enlevada, ficou, depois, a vê-lo afastar-se, pensando tristemente: "Ainda ontem o trazia ao peito e já hoje ele vai ganhar o pão..."

Dionísio caminhava ligeiro. Queria seguir vagarosamente, com o desejo de mostrar-se àqueles com quem cruzava, mas uma forte ânsia lhe aquecia o peito e um impertinente formigueiro lhe perseguia as pernas. Pôs-se a assobiar, radiante; logo, porém, fechou a boca, contrafeito, porque um garotelho da mesma idade o encarou: "Quanto queres pela flauta, ó tu?". Enrubescido, deitou-lhe olhar desprezível.

Bonita, fresca e saborosa essa manhã. Pares de namorados dirigiam-se aos empregos, sorridentes, braços dados, cochichando segredos. Dionísio, recuperando a alegria, sorria para dentro. Ia trabalhar, começar a ser homem, ganhar dinheiro para a mãe. O pior era que a fotografia do sr. Valdês ficava longe, num bairro afastado, à beira do rio. Porém, em breve teria dinheiro para os carros. Passou por dois pequenos estudantes, pastas dos livros suspensas da mão, trocando impressões sobre as lições. Curioso, deu atenção ao que eles diziam, mas logo deliberadamente se afastou, sentindo-se escarnecido... "Hás-de ser doutor...", tinha-lhe dito muitas vezes a mãe, beijando-o com ternura e admiração. Sucedia isto ainda um ano atrás, quando vinham de Benguela cartas do tio Carlos, com cheques. Havia então fartura e alegria em casa; e o futuro prometia-lhes todas as felicidades. Mas, um dia, na volta do colégio, a mãe abraçou-se a ele, a chorar desesperadamente... Acabava de saber pelo jornal, através do noticiário de África, que o Carlos, caído numa falência fraudulenta, havia metido uma bala na cabeça. Pensando no tio, que nunca tinha conhecido, pois ele embarcara uma semana depois da irmã ter casado, Dionísio lastimava apenas o seu trágico fim, sem importar-se para nada com a falta de dinheiro que, tão inesperadamente, viera alterar a sua existência. Mais grave era o sofrimento da mãe, que trabalhava agora para fora, deixando a cama muito cedo e deitando-se altas horas da noite. Pobre mãe! Mas, ele havia de ganhar muito dinheiro, para tornar a mãe feliz, com bonitos sorrisos, como noutros tempos.

Animado de coragem, seguia apressado. Os eléctricos fugiam apinhados, lançando no ar matinal avisos sonoros de campainhas. O movimento das ruas aumentava. Na porta de uma leitaria um rapaz mostrava uma fotografia a uma rapariga, que parecia muito nervosa e impressionada. Dionísio pensou que, um dia, também ele tiraria retratos a namorados, assim como aqueles... Este pensamento inflou-lhe o peito de vaidade. Voltou a assobiar, festejando o seu próprio contentamento.

Valdês recebeu-o muito sério, abanando a cabeça, e, depois de acertar os óculos, observou-o -como se o medisse dos pés à cabeça:

- Quantos anos tens?

- Vou fazer dez...

- Estás baixote, para a tua idade. - Pigarreou, ordenando a seguir - Vamos lá a ver o que posso fazer de ti. Olha: toma a vassoura e vai varrer o salão...

Dionísio obedeceu, silencioso. Estava triste. Esperava outro acolhimento e melhor serviço. Valdês era conterrâneo de seu pai, e, quando este morreu, levado pelo tifo, havia três anos, tinha ido lá a casa, para acompanhar o funeral. A mãe dissera-lhe que ele ia tratá-lo como se fosse da família. Agora, varrendo, varrendo, sentia-se magoado e contrafeito. O salão, onde o Valdês mandava sentar os clientes, à frente de paisagens artificiais, para lhes tirar o retrato, era espaçoso e estranho. Duma grande parede de vidro fosco, que dava para as trapeiras, vinha uma luz baça e doce, que emprestava confuso aspecto a tudo aquilo. Do tecto, cortado por duas barras de aço, pendiam cortinas cinzentas, puxadas ao lado ; a um canto, os cenários uns sobre os outros; e, ao centro, a grande máquina, sobre um tripé de sólidas pernas. Dionísio, varrendo e suando, olhava em torno com mágoa e melancolia. Julgava tudo aquilo bem diferente ; julgava aquilo alegre e movimentado. Tinha-se iludido. E a desilusão magoava-lhe mais o peito do que lhe fatigavam os braços os sucessivos movimentos que era forçado a dar à vassoura.

Quando terminou, Valdês trouxe-lhe um pano:

- Limpa agora a máquina, as cadeiras e tudo isso.

Aquilo era violento. lá nada lhe restava da alegre ansiedade com que tinha chegado. O seu orgulho protestava contra tão deprimente ocupação. Queria ser fotógrafo, queria ser artista. Subíram-lhe lágrimas aos olhos. O Valdês que arranjasse uma mulher a dias...

Concluiu a limpeza já passava do meio-dia. O patrão, que ia almoçar, disse-lhe que fosse para o escritório:

- Se vier algum freguês, que espere um pouco.

Achou o gabinete atraente. Próximo da janela, uma secretária; e, pelas paredes, grandes e pequenos retratos, ricamente emoldurados. De princípio, admitiu que aqueles quadros representassem membros da família do Valdês, mas logo corrigiu esta impressão, concluindo que se tratava de retratos de Clientes. O patrão, sem filhos, vivia com a mulher, ocupando o andar superior do estabelecimento. Sozinho, olhava para tudo aquilo sem qualquer constrangimento. Sentia-se moído, o estômago reclamava-lhe alimento, pois tinha saído de casa apenas com a chávena de café e meia carcassa, mas a admiração fazia-o arregalar os olhos em torno. Adiantou-se até à sala de espera, onde os fregueses eram recebidos. Retratos, por todos os lados; e pelo corredor fora, até à porta da entrada, também" A antipatia que, ainda há pouco votava ao Valdês, por ele o ter mandado fazer serviço de mulher de limpeza, achava-se já substituída por elevado e assombroso apreço. O que ele sabia I Parecia-lhe até impossível que um homem assim franzino, acorcovado e a mexer sempre nos óculos, soubesse fazer aquelas maravilhas.

Voltou ao escritório, que considerava o compartimento mais acolhedor da fotografia. Seduzido pelo ambiente, sentou-se à secretária, gozanda a ilusão de ser o próprio Valdês. Aturdido e emocionado, olhava os diversos retratos, fixando-se de preferência naqueles que eram coloridos. Mas logo se levantou, assustado, ao ouvir bater à porta. Era o patrão, que vinha ainda a palitar os dentes:

- Agora, vai tu almoçar. Mas, anda ligeiro..,

A mulher do Valdês mandou-o sentar à mesa e pôs-lhe na frente um prato de sopa:

- Come tudo, pois quero que engordes...

  1. Joaquina falava lentamente, docemente, parecendo que mastigava as palavras com muita saliva, antes de as pronunciar. O rapaz tributou-lhe espontânea simpatia. Notando, depois, que ela manquejava, quando a viu ir à cozinha buscar o resto do almoço, lastimou-a. Postando-se na sua frente, com as mãos debaixo do avental, D. Joaquina via-o agora comer regaladamente.

- Tens mais irmãos?

- Não tenho, minha senhora.

Dionísio engolia com ansiedade. O patrão estava lá em baixo, à sua espera. A mulher fez nova pergunta:

- Tua mãe que faz?

- Não faz nada.,. - respondeu o rapaz, confundido, pondo-se rapidamente vermelho.

- Então, não trabalha?

- Sim, faz camisas...

- Para as lojas?

- Sim, minha senhora.

Acabando de almoçar, o rapaz continuava rubro e visivelmente embaraçado. D. Joaquina adivinhou, então, que ele se envergonhava por a mãe trabalhar para fora. Sorriu e abanou a cabeça, compreensiva. Para o consolar, disse:

- Trabalha, trabalha muito, que ainda um dia podes ser rico!

Impressionado agradavelmente, Dionísio desceu, rápido, a escada.

Encontrou o patrão a falar com uma senhora muito gorda, que segurava pela mão um menino. Valdês dizia à cliente que meia dúzia de retratos, como ela pretendia, com o filho, não podia ser por menos nem um centavo do que ele já lhe tinha dito.

"Está bem, - concordou a senhora - mas quero que fiquem muito bem, que é para mandar para o meu marido, que está em Benguela." O fotógrafo mudou imediatamente de expressão: levantou o busto, o desenho da corcunda como que se apagou, e, no rosto magro e chupado perpassou um ar de ofendido: "Perdão, minha senhora, os trabalhos da fotografia "Espelho da Arte" desafiam sempre toda e qualquer concorrência, tanto em preço como em qualidade. Quanto a isso, portanto..." A senhora sorriu, concordante: "Está bem, eu confio." Valdês, satisfeito, convidou então:

- Queira v. Exª passar com o menino ao "atelier".

Dionísio estava nervoso e embasbacado. Aquela senhora tinha o marido em Benguela, o qual, pensava, devia certamente ter conhecido seu tio. E se lhe perguntasse por ele? Subia-lhe do fundo do peito, num transporte de gratidão, delicada saudade por esse homem, que nunca tinha visto, era verdade, mas a quem ficara a dever preciosos auxílios económicos e os maiores desejos de ventura, que só o cutelo do destino, afinal, havia decepado.

Valdês foi à câmara escura buscar o "chassis" carregado. Quando voltou, disse ao rapaz que permanecesse no escritório e a qualquer cliente que chegasse, pedisse para esperar um bocadinho.

- Sim, senhor.

Dionísio ficou entristecido. Dominava-o até a impressão de ter sido roubado, pois queria ver como se tiravam retratos. Não estava ali para aprender a ser fotógrafo? Pois então... Valdês tinha que convencer-se de que ele não queria passar a vida a varrer o salão e a limpar os móveis. Contrariado, olhava à sua volta, mas agora já nenhuma atracção lhe vinha daqueles retratos todos. Julgava que essas caras estavam mesmo a rir-se dele, dos seus sonhos e dos seus projectos. Indignado, tomou do pesa-papéis e chegou a esboçar o gesto de arremessá-lo contra os quadros. Porém, o medo às consequências fê-lo abater o braço e repor o objecto no mesmo ponto de onde o havia tirado. Passou um momento, cabeça entre as mãos, aborrecido. De súbito, estremeceu ao ouvir a voz do patrão:

- Anda cá, depressa.

Dionísio aproximou-se, a custo, receando que o Valdês lhe tivesse descoberto os pensamentos e o gesto frustrado de ainda há pouco.

- Vai lá acima à senhora pedir um copo de água.

Foi e voltou imediatamente. A cliente pegou no copo e aproximou-o dos lábios do menino, comentando:

- Sempre é muito embirrento, este meu filho.

- Crianças, V. Exª sabe... -desculpou o Valdês. - E, depois, quando estão com sede não sabem esperar.

- Então, não bebe mais? - insistia a senhora.

- Não quero,

Satisfeito apenas com uma gota, o pequenito ficou a sorrir ironicamente, como se houvesse pregado uma boa partida à mãe. Valdês continuou os seus preparativos de encenação para a fotografia. Voltou um dos cenários que estavam ao fundo, encostados à parede. Mandou, depois, a cliente sentar-se e o filho, Encantado com tudo quanto via, Dionísio, que ali havia ficado, com o copo na mão, admirava as ordens e os passos miúdos e ligeiros do patrão. A senhora, observando o cenário, que representava as ameias de um castelo, perguntou: "Isto, depois, aparecerá na fotografia?" Valdês respondeu-lhe afirmativamente. "Então, não quero - declarou a cliente, enojada. - Não gosto destas velharias e o meu marido também não". Valdês mexeu os ombros com paciente indiferença; e, em silêncio, começou a voltar cenários: fontes, vistas de mar, frontispícios de palácios e trechos de jardim, tudo levemente esfumado em tela cinzenta. Por fim, a freguesa decidiu-se por um aspecto de parque, confessando: "O meu Alberto sempre gostou de arvoredo... Vai ficar contente, tenho a certeza".

Sentando-se, a obesa mulher, impante de vaidade, tomou a expressão que o fotógrafo lhe sugeriu. O menino, em pé, pôs a mão sobre o ombro da mãe e traçou a perna, obedecendo também às recomendações do Valdês. Todavia, não manteve mais que um segundo a posição recomendada. Exigente, o fotógrafo, que já tinha metido a cabeça debaixo do pano preto, para focar, veio recompor o desobediente. Dionísio assistia, agradavelmente surpreendido, a tudo aquilo. E, já o velho graduava, de novo, a objectiva, quando o pequenito acudiu com gana a súbita comichão numa perna, desmanchando a pose. "Vê se tens juízo!" - recomendou a mãe. Valdês, paciente, uma vez mais fez o menino ensaiar a atitude com que devia aparecer na fotografia. "Esteja quietinho, - aconselhou - que vai ver o passarinho..." Deram resultado estas palavras, pois o desinquieto manteve-se sossegado, Ao lado, olhos arregalados, Dionísio acompanhava tudo com ansiedade e emoção. Concluídos os preparativos, o patrão colocou-se à frente da máquina e pegou na borracha que estava ligada por um fio ao obturador: "Agora, muito quietos. Sorria mais, minha senhora. ., E, o menino olhe para aqui... Vai aparecer o passarinho..." Foi um instante. "Pronto, minha senhora". O menino perguntou: "E o passarinho?" Valdês fez-lhe uma festa na cara: "Para outra vez aparecerá..." Dionísio, compreendendo finalmente a artimanha do patrão, desandou, lépido, para o escritório. Parecía-lhe ter penetrado um grande segredo que só o patrão conhecia... A cliente, curiosa, quis saber quando podia ver as provas.

- Daqui a quatro dias, na sexta-feira.

- Mas, quero pagar já.

- Pois sim.

No escritório, Dionísio, fingindo que arrumava as revistas que estavam sobre uma mesa redonda, acompanhava os gestos da cliente, sentindo desejos de pedir-lhe que colhesse, por intermédio do marido, notícias do tio Carlos. Seria uma boa novidade para dar à mãe, quando voltasse a casa. Havia certamente de ficar contente quando ele lhe falasse naquilo.

Gastou parte da tarde em serviços miúdos, na câmara escura, arrumando caixas e caixinhas umas sobre as outras, conforme o patrão lhe tinha ordenado. A pequena quadra, negra como um poço, apesar de iluminada por duas lâmpadas vermelhas, lembrou-lhe livros de aventuras e bandidos que tinha lido, causando-lhe nervosismo e emoção. Mas, estava já bem satisfeito com o emprego. Por fim, Valdês mandou-o retomar o seu posto de vigilante, no escritório, enquanto ele ia para a câmara escura fazer revelações. Convencia-se de que, afinal, não podia ter arranjado melhor nem mais agradável colocação.

Dois clientes, ao anoitecer, vieram perguntar por provas de retratos que haviam tirado na semana anterior. Valdês mostrou lhas, gozando o entusiasmo com que eles as admiravam. Os fregueses terminaram por fazer as encomendas respeitantes a cada prova, dizendo que viriam por elas dentro de breves dias. O patrão, logo que eles saíram, pôs-se a esfregar as mãos, radiante. E, como se corroborasse se" melhante satisfação, também o rapaz começou a sorrir, satisfeito:

- Que foi? De que estás a sorrir? - interrogou Valdês, entre irónico e amável.

Dionísio nada respondeu. Mas o patrão, como se lhe tivesse descoberto o alcance do sorriso, comentou:

- Foram excelentes, as encomendas! E fica sabendo que é sempre bom haver trabalho. Percebeste! É bom para mim e para ti.

Daí a pouco, mandou-o pôr os taipais. Valdês estava realmente satisfeito, pois o dia, muito embora não tivesse sido uma maravilha, tinha-lhe dado para as sopas. Ajudou o rapaz no serviço, explicando-lhe como devia proceder. Quando tudo ficou concluído, disse-lhe que podia ir embora:

- Diz à tua mãe que, por agora, ficas a ganhar almoço e dois escudos por dia.

Dionísio, agradecido, pegou no boné, e ia já dar boas noites, quando o patrão aduziu:

- Como moras longe, acho que deve convir-te receber todos os dias, por causa do carro. - Meteu os dedos ao bolso do colete, entregando as moedas ao rapaz: - Aí tens o teu primeiro salário.

- Muito obrigado. Até amanhã, sr. Valdês.

- Adeus. Aparece antes das nove, já sabes.

Dionísio estava ansiosíssimo por chegar a casa

e contar tudo quanto lhe havia sucedido na fotografia, durante esse primeiro dia de trabalho. E, no eléctrico, ainda o revisor estava distante, a atender outros passageiros, levantou um escudo, pedindo sucessivamente: "Um de nove...! A seu lado, sorriram-se de tamanha ansiedade. Ele não se importou, porém. Vinha de trabalhar, aquele dinheiro era seu, tinha sido ganho com o seu próprio esforço. Impante de orgulho e vaidade, apetecía-lhe mesmo gritar: "Também trabalho e ganho dinheiro!"

Na esquina da rua onde morava, estacou um instante diante da montra da leitaria, a namorar os bolos e os chocolates. E, se entrasse e comprasse um, para premiar o seu primeiro dia de trabalho? Lembrou-se da mãe, debruçada sobre a máquina de costura, pálida e moída de tanto trabalho. Mas decidiu-se a comprar um bolo de nata...

Entrou em casa a cantar. A mãe, parando de pedalar a máquina, levantou para ele o rosto magro, molhado de lágrimas.

- Que aconteceu, mãe?

- Nada, meu filho...

Vencendo a inquietante surpresa dos primeiros momentos, Dionísio contou as últimas palavras do Valdês, acabando por tirar do bolso o pastel que havia comprado:

- Isto, mãe, é para a nossa sobremesa...

A mãe abriu-se então num choro prolongado.

O rapaz assustou-se:

- Mãe, que sucedeu? Soube mais alguma coisa do tio? Porque chora?

Lembrando-se da cliente da fotografia, que tinha o marido em Benguela, ia já a dizer que talvez por ela pudessem saber mais alguma coisa, porém a mãe entregou-lhe uma carta que tirou do bolso do avental. Era do senhorio, reclamava o aluguer, que já estava atrasado mais de quinze dias.

- Ora, por isto não vale a pena afligir-se, mãe. Eu, amanhã, não gasto o dinheiro no carro nem em bolos. Havemos de pagar... Mas não chore mais, mãezinha...

 

Olhos no céu azul da manhã, Alberta acompanhava o voo sobre a baía de Vigo, de um quadrimotor que se dirigia para o sul. E, a seu lado, na varanda do hotel, Maria Emília observava-o. Percebia perfeitamente que já começavam a torturá-lo as saudades dos caminhos do céu... Casados havia quinze dias, amavam-se perdidamente. Tinham saboreado essas duas semanas de deliciosa lua de mel, ao longo da ridente província do Minho, colhendo deliciosas e inolvidáveis surpresas perante uma paisagem sempre verdejante, entremeada de soberbos edifícios e monumentos carregados de história e tradições. Fora ela quem tivera a ideia de tão agradável viagem. Seus pais, que já lá estavam, eram de Viana do Castelo, de onde tinham partido para Lisboa. Alberto abraçara imediatamente a sugestão. Amando e sonhando de olhos abertos, assistiram às festas da Agonia, as mais concorridas da terra minhota, maravilhando-se, sucessivamente, com a alegre garridice do povo, as solenidades religiosas, o feérico e deslumbrante arraial, cujas inumeráveis luzes multicolores se reflectiam, semelhando grandes e belas flores, no espelho das águas do Lima. Por fim, tinham dado ainda um salto até àquela cidade galega. Passar também a lua de mel no estrangeiro, mesmo que fosse a curta distância da fronteira e por rápido espaço de tempo, dava tom e podia servir, mais tarde, para entreter e surpreender visitas e amigos.

- Temos que regressar hoje - disse Alberto, passando gentilmente o braço em volta da cintura da esposa. Àchava-a encantadora, como sempre. E acrescentou: - Depois de amanhã, terei que regressar ao serviço.

Ela, meiga, sorriu, oferecendo-lhe a boca num beijo demorado.

Tomaram o primeiro comboio da tarde. Alberto ainda manifestou a intenção de desviar o regresso para a Cidade dos Arcebispos, com o propósito de abraçar Borges Batalha, seu antigo camarada de sonhos aeronáuticos, que dirigia a instrução de pilotos no Aero Club de Braga. Todavia, o tempo já escasseava. E, para mais, Maria Emília tinha muito empenho e gosto de visitar ainda, no Porto, a tia Ernestina, único ramo que lhe restava da parte da família da mãe, e a Madalena Paiva, sua dedicada condiscípula nos bons tempos do colégio de Santa Isabel e que ali exercia suas funções de médica. Alberto acedeu, comprazido. Se deveras ansiava por de novo voar, muito lhe agradava igualmente deixar-se conduzir pela sua linda mulherzinha, num enleio doce e prolongado.

Encontraram no Porto atmosfera ansiosa e festiva. Madalena informou-os de que se realizava, no Palácio de Cristal, a festa anual das costureiras, que profundamente interessava à alma popular da cidade. Amável, convidou-os para o monumental espectáculo dessa noite, durante o qual seria premiado o mais interessante vestido de chita e eleita a "rainha". Maria Emília, agradecida embora, teimou em consumir as curtas horas que ali podia permanecer, junto da tia e da amiga. Naturalmente, o marido apoiou a resolução.

Jantaram todos em casa da médica. Tia Ernestina, comovida e maravilhada, repetiu louvores à beleza da sobrinha e, lacrimejando, afirmava que ela tinha os mesmos olhos retintos e bonitos da mãe. Madalena, que já havia surpreendido a amiga com a sua casinha moderna e bem mobilada, elogiava-lhe o desempenado marido que tinha arranjado.

- E tu, quando casas? - interrogou Maria Emília.

- Eu, nunca.

- Alguma desilusão? - perguntou Alberto.

- Não, não. Dedico-me apenas à medicina. Vivo para os meus doentes...

Madalena estava um pouco perturbada. Parecia esconder algum segredo. A amiga lembrou:

- No colégio, pensavas doutra maneira. Lembras-te?

- Sim, e tudo passou.

- Tudo?

- Bem. Tudo, não. Olha: não passou aquele motivo pelo qual nós todas te chamávamos, então, Maria Feiticeira. Continuas a merecer a mesma classificação.

Maria Emília enrubesceu. O marido fitou-a, curioso e sorridente. Voltando-se para ele, Madalena quis saber:

- Ela nunca lhe tinha dito que lhe chamávamos, no colégio, Maria Feiticeira?

- Não, nunca - respondeu Alberto, ameaçando a mulher com o dedo, sorridentemente. - Ora, mas também não seria preciso...

- Claro. Era de adivinhar... - opinou a velha senhora.

- Sim, senhora.- declarou o marido, encantado. - A tia Ernestina tem razão. Era de adivinhar, justamente. Mas, daqui para diante, chamar-lhe-ei sempre Maria Feiticeira.

Todos riram, satisfeitos. No fim do jantar, acompanharam a velhinha a casa, um terceiro andar nas Fontaínhas, onde ela vivia, decente e cautelosamente, da pensão que lhe tinha ficado do marido. Despedindo-se, disse a Maria Emília.

- Olha que eu quero ainda ver um menino...

- Ó tia, há muito tempo!

- E eu quero ser a madrinha, sabes? - declarou Madalena.

- Fica combinado - retorquiu Alberto, orgulhoso. - A doutora Madalena Paiva será nossa comadre...

No rápido da manhã regressou o casalinho a Lisboa. E, no dia imediato, Alberto foi retomar o seu cargo de piloto da T. A. P. Esperava que lhe confiassem de novo um aparelho das carreiras imperiais. Desejava quanto antes cruzar o céu, numa bela viagem a Luanda ou a Lourenço Marques. Contava diversos amigos nessas duas cidades africanas. Mandaram-no, porém, pilotar o avião de Paris. Ficou ainda mais satisfeito. Paris seduzia-o. Tinha lá estado, dois anos atrás, quando recebera o "brevet", com outros colegas de curso. Jamais esquecera o coração cosmopolita da França e do mundo. Entusiasmado, comunicou a grande nova à esposa.

Maria Emília ficou subitamente aborrecida. E, sincera, confessou:

- Tenho medo, amor.

- Medo, mas de quê?

- Das parisienses. São tão elegantes, tão bonitas...

- Ora, mas tu és ainda mais. Pois, não és a Maria Feiticeira?

Ia e vinha de Paris com a alma a cantar de alegria. De todas as viagens trazia sempre uma prendinha à mulher. Vivia feliz. Maria, porém, sentia-se ferida de ciúmes, mas evitava o mais possível revelar o seu sofrimento. Era tolice, talvez, contudo não estava mais na sua mão. E, quando via o marido sair, fardado e bem disposto, tinha a asfixiante sensação de que ele jamais voltaria. Passava horas tormentosas. Depois, quando ele regressava, gentil e amoroso, ela respirava fundo, sossegando, radiante e venturosa.

Apagava-se-lhe depressa a alegria, porém. Rigoroso cumpridor do serviço, Alberto estava mais tempo ausente do que em casa. Maria chorava, sem poder vencer os terríveis pavores que lhe atormentavam a imaginação. Os ciúmes que alimentava não tinham origem nem fundamento, mas devoravam-na. Aquilo parecia até herança materna... Na verdade, sua mãe tinha sido muito ciumenta. Alberto, no regresso, encontrava-a muitas vezes com olhos magoados de chorar; não lhe passava, porém, pela cabeça que fosse ele mesmo, ainda que involuntariamente, o culpado. Fazia-lhe mesuras, beijava-a, pedia-lhe mesmo que se distraísse, pois, felizmente, ele tinha bom ordenado.

Não se divertia. Também não saía de casa. Ficava longas horas à janela, olhando o Tejo e as gaivotas. Sofria imenso. Queria libertar-se de tão absorvente desespero. Todavia, não sabia como. Não sabia mesmo se duvidar ou acreditar no marido. Então, arrastada pelos seus obstinados receios, procurou uma amiga, casada com um radiotelegrafista da T. A. P., que fazia também serviço nas carreiras de Espanha e França. Cautelosamente, desejava saber como passava Alberto o tempo que, entre a chegada e o regresso, tinha de permanecer em Paris. Porém, a outra nada podia dizer-lhe a tal respeito. Indiferente, limitou-se a declarar:

- Homens! E são novos... Hão-de divertir-se, evidentemente.

O tempo ia correndo. Ia-se desenvolvendo também aquela maldita doença de Maria Feiticeira. Mas, um dia chegou em que ela admitiu que, daí para diante, Alberto seria mais seu do que nunca... Ia ser mãe! Verificava, ainda, apenas os primeiros sintomas da maternidade, mas era já enorme a confiança que a robustecia, varrendo-lhe aquela angústia que tanto a perseguia. Alberto, expansivo, ao receber a notícia, abraçou-a, beijou-a, e, levantando-a ao ar, anunciou-lhe:

- Hei-de levar-te um dia a Paris!

- Quando?

- Em breve.

Passado um mês ela lembrou-lhe a promessa. Alberto deu evidentes sinais de contrariedade. Estaria arrependido? Passado outro mês, a mulher falou-lhe novamente na viagem.

- Agora, não, Feiticeira. Mais tarde.

Deu suas razões, salientando o melindroso estado em que ela se encontrava, com o ventre cada vez mais abaulado, o que poderia trazer-lhe graves consequências. Maria deixou-se convencer. Deixou-se convencer, só na aparência. E, voltando à mesma mórbida ideia que já tanto a havia perseguido, visionou o marido, em Paris, durante as breves horas que lá passava, a divertir-se com outras mulheres. Aquilo tomava aspectos de mania incurável. Escreveu a Madalena Paiva, dando-lhe notícia do estado em que se encontrava e dos ciúmes que a martirizavam. Confiava cegamente na amiga, esperava a sua resposta. Aguardou durante dias seguidos. Apareceu-lhe Madalena em pessoa. Convidada a tomar parte num congresso de neurologia, que ia realizar-se em Paris, aproveitara a sua passagem por Lisboa para visitar a amiga. Louca de ciúmes, Maria desfez-se em pranto e pormenorizou-lhe até os seus pavorosos temores. Não queria nem podia perder o seu Alberto. Madalena, lastimando-a como amiga e observando-a como médica, verificou serem exagerados tantos sustos e tamanho sofrimento. Generosa e humana, procurou acalmá-la. E, como ia justamente para Paris, ofereceu-se para averiguar, se possível fosse, do verdadeiro destino que, na imensa metrópole, Alberto dava aos seus passos.

Cumpriu a promessa. Pouco mais de uma semana volvida, recebeu Maria preciosas informações. Madalena dizia ter feito investigações, cautelosas e persistentes, na peugada de Alberto. A seu ver, não havia motivo para quaisquer receios. Bem pelo contrário. Alberto não tinha companhias estranhas nem fazia visitas suspeitas... Limitava-se apenas a visitar um armazém, onde tinha encomendado rico enxoval para o filho que estava para chegar. Maria exultou, transbordante de felicidade e alegria. Ainda bem que estava enganada. Os ciúmes desapareceram. E quando ele voltou a casa, ela, febril e amorosa, conseguiu surpreendê-lo com os numerosos beijos repassados de alvoroço e paixão.

 

Enquanto comia o ensopado, ouvia sorridente a Eugénia, na cozinha, rosnar indignada contra a falta de luz. Porém, achava que a corrente não devia tardar muito tempo. A cidade festejava um novo centenário da nação, milhares de forasteiros e turistas haviam aumentado a população flutuante, era indispensável a electricidade para várias exposições e diversos espectáculos...

Terminado o jantar, puxou do tabaco e enrolou um cigarro, Depois, levantando-se, perguntou à dona da casa se podia levar a vela para o seu quarto.

- Não, sr. Augusto. Desculpe.,. Não tenho mais nenhuma em casa e preciso lavar a louça,..

João Augusto atravessou o corredor, pensando na mesquinhez de Eugénia. Muito avarenta, dobava os dias a protestar contra a carestia da vida e a dizer que o dinheiro não lhe chegava para nada. Vitorino, o marido, temperamento de humorista, recomendava-lhe muitas vezes, parodiando uma velha máxima: "Gasta os anéis, mas não comas os dedos, mulher!" Abespinhada, Eugénia retorquia com pragas e impropérios. O homem ria, satisfeito. João Augusto, quando presenceava a cena, ria também. Vitorino encarava a vida sem receios, queixas ou protestos. "A única coisa que eu temo neste mundo - confessava ele, às vezes - é atropelar alguém..." Acompanhava-o sempre este temor, na verdade. Felizmente, nos vinte e dois anos que levava na profissão de motorista de praça, nem um arranhão sequer havia causado alguma vez a qualquer transeunte. João admirava-o e invejava-o. Oxalá ele pudesse dizer o mesmo. Mas não podia, desgraçadamente.

Embora fatigado, debruçou-se à janela, meditando na vida. Essa noite de Junho asfixiava. Quantas peripécias, contrariedades e aborrecimentos havia ele conhecido nos seus quatro anos de motorista! Quase não tinham conta. Saudoso, lembrou a mulher e as filhas, na aldeia distante, A seguir, por um misterioso e obstinado apego às próprias fatalidades que o destino lhe tinha feito tragar, reviu a sua chegada a Lisboa, no correio do Norte, certa noite de frio e chuva,.. Atrás de si, ficava num montão de fracassos, a autoritária exigência da esposa e, além da filha legítima, uma outra, ilegítima, que era, afinal, o expoente do seu profundo e verdadeiro amor. No bolso, trazia apenas magros escudos, que nada mais lhe permitiram que pagar uma cama numa pensão de terceira ordem. Feliz-mente, logo no segundo dia arranjou, por anúncio, o lugar de "chauffeur" particular da esposa de um grande industrial. E tudo lhe correu bem, durante uma semana. Depois, uma tarde, na curva duma rua estreita, guiou precipitadamente e atirou o carro contra um candeeiro. No dia seguinte, viu-se despedido. Passou então meses de crescente miséria. Muitas vezes, esmagado de privações, não queria mesmo acreditar que tivesse nascido rico e assim continuasse durante muitos anos... "Voltas do destino", dizia frequentemente para si mesmo, à guisa de inútil explicação. Voltas e reviravoltas sucessivas teve ele de sofrer, na realidade. Aconselhado que o serviço de praça era, além de rendoso, muito mais independente que o particular, ofereceu-se a diversas empresas de "taxis", conseguindo por fim empregar-se. De novo o destino lhe mostrou pálido sorriso, mas por bem pouco tempo. Certo dia, em plena Avenida, atropelou um ciclista. Foi preso. Foi-lhe dito, também, que aquilo devia representar o fim da sua carreira de motorista... Felizmente, tal não sucedeu. Com o depoimento de testemunhas oculares, conseguiu João Augusto provar que o homem da bicicleta, por se encontrar embriagado, saíra da sua mão e se lançara contra o automóvel. Depois disso, ainda outros azares sofreu, como se a má sorte andasse sempre a perseguí-lo. Porém, ia trabalhando e economizando quanto podia. Alguns colegas, cínicos e impertinentes, chamavam-lhe "o azarento". Aborrecia-se e indignava-se. Vitorino, com sua filosófica ironia, dizia-lhe que não fizesse caso dos chocarreiros, pois eles, estúpidos que eram, não sabiam que estavam a falar do seu semelhante...

De novo o pensamento lhe voou para a aldeia. Que estariam nesse momento a fazer suas filhas? Uma enorme ansiedade de as ver e abraçar lhe atravessou o cérebro e o coração. Atirou os olhos para longe, numa fuga impossível e ao mesmo tempo deliciosa. Parte da cidade continuava às escuras, mas, a distância, viam-se alguns bairros iluminados. Limpou com o lenço o suor, na testa e no pescoço, acabando por soltar um suspiro, profundo. Tinha mulher e filhas, mas a verdade era não ver família à sua volta. Vitorino, bom colega e amigo, queria que ele ali se sentisse não como hóspede mas como filho ou irmão; e a própria Eugénia, apesar da sua avareza e obstinada resmunguice, também o tratava com dedicação e ternura, principalmente quando a doença o retinha na cama. Fechou os olhos, comovido. Logo, porém, os abriu, intrigado, ouvindo, lá dentro, alegre exclamação da dona da casa e palmas na casa fronteira. A luz tinha voltado, finalmente!

Foi voltar o comutador. E, picado por estranha curiosidade, olhou com tristeza e amargura o seu pequeno quarto, tão pobremente mobilado. Ali dormia havia largos meses, pois completaria muito em breve dois anos como hóspede de Vitorino. Parecia-lhe, porém, estar a ver tudo pela primeira vez. Novamente o penetrou e dominou a saudade das filhas. Como estaria a Cesária? E, sua mulher continuaria a tratar bem a Manuela?... Na impossibilidade de abraçar imediatamente as suas pequenas, decidiu então escrever-lhes. Era verdade que, ainda dois dias antes, lhes tinha mandado uma carta, à qual, por absoluta escassez de tempo, não havia recebido resposta. Mas isso não podia tolher a sua decisão. Bem pelo contrário. Animava-o, até, o profundo desejo de mostrar-se a todo o momento pai dedicado, terno e afectuoso, a despeito de tudo. Abriu mais o peito da camisa, para receber a aragem que vinha do rio. E, fazendo correr a caneta sobre o papel, deu largas à sua enorme e reprimida ternura. Parou um instante e, entusiasmado por repentino pensamento, continuou a escrever com mais ligeireza. Pedia à mulher e às filhas que visitassem Lisboa dentro do mais breve espaço de tempo. E que se não importassem com as despesas, pois ele pagaria tudo... Porém, logo suspendeu a carta. Parecia-lhe ter escrito o que, em boa verdade, não devia escrever. Fechou os olhos, como costumava fazer sempre que, coagido por qualquer motivo ou circunstância, tinha que pensar na pobreza que o cercava. Realmente, pareciam-lhe bastante imprudentes aquelas palavras que acabara de traçar.,. Para que, em sua casa, não soubessem que profissão ele exercia, tinha dito para lá, havia muito, que negociava em automóveis e que as coisas, umas vezes, melhor, outras, pior, lhe corriam menos mal. Nas datas tradicionais, Páscoa e Natal em especial, mandava presentes às filhas, explicando, todavia, a sua ausência por absorventes exigências dos negócios. Não conhecia completamente o efeito que tal artifício havia conseguido obter, mas pelas cartas das filhas, pois da mulher não tinha recebido nunca uma linha sequer, admitia que acreditassem no que lhes dizia. Lisboa ficava de resto muito longe de Fontelas, pequena povoação do concelho da Régua. O seu segredo estava bem guardado, por conseguinte. Evitava, além disso, encontrar-se com os poucos conterrâneos seus que, de longe em longe, apareciam pela Capital. O único que conhecia a sua verdadeira situação era o Lauriano, seu contemporâneo do tempo da caça aos ninhos, motorista de praça também, mas esse era muito discreto e, portanto, merecia inteira confiança.

Entusiasmado com os seus próprios raciocínios, João Augusto concluiu rapidamente a carta. Queria ver Cesária e Manuela quanto antes. Elas que viessem, acompanhadas da mãe ou sozinhas, pois já estavam umas senhoras e, evidentemente, nenhum medo deviam ter à viagem.

Só depois de ter ido deitar a carta ao correio, desejoso de que ela seguisse no comboio da manhã, é que se atirou para a cama. A ideia de que iria ver as pequenas dentro em breve, empolgava-o, mas também o assustava um pouco. Raquel, sua mulher, muito estranha e orgulhosa, era bem capaz de reagir negativamente ao receber esse convite. Talvez até nem deixasse que as pequenas o aceitassem. "Mas, por que motivo havia ela de fazer uma coisa dessas?" João Augusto sabia bem que Raquel se obstinava em agarrar-se a razões muito especiais. Além disso, costumava impor sempre a sua vontade sem permitir quaisquer objecções. Quando a mãe de Manuela, aquela bonita camponesa de Moura Morta, a quem muito tinha amado, fechou os olhos, João quis imediatamente trazer a filha ilegítima para o seu lado, mas Raquel opôs-se a tal pretensão. Bateu o pé, gritou e barafustou, dizendo que não podia pactuar com poucas vergonhas.,. Decorridos meses, lá acedeu; mas acedeu com a condição de ele dar, especialmente, todos os meses, uma mensalidade para sustento e vestuário da filha natural. João Augusto concordou, pois não via outra solução, a não ser o divórcio, para que Manuela viesse para a sua companhia. Era uma imposição impertinente, bem sabia, mas não podia escapar-lhe. O pior era o ar pesado, frio e irritante com que Raquel tratava a "intrusa", como por tudo e por nada a designava, impondo-lhe vexames mais ou menos evidentes. João Augusto sofria, em silêncio, tudo quanto era feito à sua estremecida filha. E, a sós com ela, prodigalizava-lhe carinhos e atenções, compensando-a daquela gelada atmosfera; Felizmente, Cesária, a legítima, era muito amiga de Manuela, Nisso pensava agora o pai, enquanto aguardava o sono. O quarto estava ainda saturado de calor. "A mãe deixá-las-ia vir sozinhas?" Raquel era teimosa, terrível! E, voltando ao passado, João reviu-a, uma semana depois-dele ter queimado toda a herança paterna num negócio monstruoso e desgraçado de curtumes, a dizer-lhe, cruel e implacável: "Agora, só resta o que herdei dos meus. Por isso, fica sabendo que não estou disposta a sustentar-te a ti e à intrusa!..." Era o divórcio que Raquel desejava. Padre Teixeira, pároco deFontelas, conseguiu, porém, demovê-la do seu intento. Mas, vencida embora, exigia que o homem fosse ganhar a vida, para não pesar na economia da casa. João, no escuro do quarto, sorria tristemente. E, pela segunda vez, em curtas horas, recordou aquela noite, fria e chuvosa, em que tinha chegado à cidade, para arranjar ocupação. Levantou-se cedo, como habitualmente, Encontrou na escada Vitorino, que trabalhava de noite e que acabava de deixar o carro na garagem. Durante o dia todo, João trouxe continuamente na cabeça o seu bonito convite e a imagem das filhas. Mais velha um ano que Cesária, a Manuela devia completar em breve dezoito. E devia estar bem bonita! À noite, contou tudo à srª Eugénia, pedindo-lhe a sua opinião. Recebeu apoio caloroso, que o deixou comovido. Que contasse com ela, até, para o que fosse preciso. Tinha ainda um quarto que podia dispensar, nas traseiras, e onde se podiam pôr duas camas. João agradeceu, mas, mentalmente, recusou a oferta. Outro era o seu projecto... Queria que as visitantes, durante o tempo que permanecessem na cidade, ficassem instaladas num hotel. Felizmente tinha nas mãos de Vitorino economias, umas centenas de escudos, destinadas à compra de um automóvel que os dois queriam explorar, de sociedade, no serviço de praça. O homem de Eugénia felicitou-o pela decisão tomada: "Fazes muito bem, Augusto. O dinheiro é teu, dispõe dele como entenderes. E por agora, não poderias aplicá-lo melhor..."

Viveu então João Augusto horas de grande ansiedade. De Fontelas, não havia meio de chegar resposta. Tão prolongado silêncio fazia-o desesperar. "Que se teria passado?" Raquel não aceitaria o convite e nem deixaria que as pequenas o aceitassem também? Ou estaria alguma delas doente?" Estas e outras perguntas torturavam-lhe incessantemente o espírito. De dia, no trabalho sem descanso, com o carro para aqui e para ali, pois a Capital estava pletórica de gente de fora, curiosa dos festejos do oitavo centenário, ainda ele se distraía um pouco. Mas, à noite, no seu quarto, empreendia e matutava naquele dilatado silêncio, sem encontrar explicação que o satisfizesse.

Procurou Lauriano, interessado em saber se ele tinha recebido ultimamente da terra quaisquer informações referentes a Raquel e às raparigas. Sorrindo de modo misterioso, o conterrâneo declarou-lhe nada saber a tal respeito. João Augusto continuou abraçado às suas preocupações. "Que teria havido por lá?..," Mandou um telegrama, pedindo explicações imediatas. E, enquanto aguardava a resposta, imaginou-se a passear com as rilhas por Lisboa. Havia certamente o perigo de que elas descobrissem qual a verdadeira profissão que ele exercia, pela velhaca inconfidência dos seus colegas, mas João confiava em que um bocadinho de sorte viesse colaborar com o seu segredo...

Quando recebeu resposta, também por telegrama, João Augusto saltou de contente. Aquele pedaço de papel dizia apenas: "Espere comboio noite - Manuela". Enfim, era verdade que ia ver a sua família!

Nervoso, mudou de fato e correu à chegada do comboio. E, já mais de metade dos passageiros havia saído, quando Manuela, impressionada com tão grande movimento, lhe caiu nos braços.

- Estás uma senhora, minha filha!

Depois, surpreendido, perguntou por Raquel e Cesária.

- Não quiseram vir - informou a pequena, baixando os olhos, confundida: - Sabem tudo...

- Tudo o quê, filha?

- Que o pai é "chauffeur" de praça... Foi o Lauriano quem o mandou dizer...

João teve um sorriso amargo. Manuela, depois de o beijar novamente, declarou:

- Mas, agora, eu quero ficar com o pai para sempre...

 

Observava o jardim, através da janela daquele quarto para onde tinha entrado havia já mais de meio ano. Sentia-se muito, muito melhor. Duas semanas atrás, tinham-lhe dado alta ; contudo, Estêvão Barroso não se decidira ainda a deixar a casa de saúde. Estava realmente curado, mas só do físico, pois do espírito continuava doente, muito doente mesmo. Então, ocorreu-lhe um pensamento pueril e completamente impossível de realizar: meter-se num avião, que o levasse a Lourenço Marques num ápice, mas, sem que tivesse de falar ou ver pessoa alguma até lá... Acabou por sorrir-se de si mesmo e de tão grande infantilidade. Seria realmente engraçado chegar dentro de minutos à capital de Moçambique, sentar-se à sua secretária, chamar o gerente e os empregados e dizer-lhes, sorridentemente, cordialmente: "Como vêem, desta escapei eu. Estou satisfeito e quero que todos se sintam também satisfeitos, nesta véspera de Natal. Pode cada um de vocês contar com a gratificação de dois meses de ordenado... Amigos, boas-festas!" A coisa, assim, seria realmente bonita, cómoda e rápida, acima de tudo, lá isso seria, porém a verdade era não passar de um sonho de criança. Sorriu novamente, zombando da sua imaginação inconsequente, Sentindo uma palmada amigável nas costas, voltou-se. Era o dr. Sarmento que chegava para a visita matinal.

- Então, Barroso, como se sente hoje?

- Mais triste do que ontem, doutor.

- Você é teimoso. Porque não enfia o sobretudo, pega no chapéu e vai esticar as pernas por essas ruas? - E o médico abriu e agitou os braços, num protesto simulado.

- Falta-me coragem.

- Bem, bem. O que me parece é que você quer ficar aqui para sempre, somente para me envergonhar a mim e aos meus colegas.

- Não, dr. Sarmento. O caso é outro e bem mais complicado.

- Então?

Olharam-se demoradamente. Estêvão Barroso sabia poder confiar no clínico. Durante os meses de permanência naquela casa de saúde, tinham-se afeiçoado um ao outro, provavelmente aproximados pelos dramas que ambos haviam sofrido com mulheres: o médico era viuvo e o africanista encontrava-se separado da esposa.

- Então, em que está você a pensar? - teimou Sarmento. Barroso trouxe o coração à boca:

- Não tenho para onde ir, meu caro doutor. Depois, sentir-me-ia envergonhado em andar a passear por essa cidade, sozinho, em dia como este, como forasteiro desconhecido de toda a gente... - Durante um instante, o dr. Sarmento observou-o, procurando descer-lhe ao fundo da alma. Compreendeu-o, por fim. Então, com uma expressão alegre, convidou:

- Afinal) o que eu desejaria é que você jantasse hoje na minha companhia. Jantaríamos isolados, em qualquer parte. Aceita, Barroso?

Barroso aceitou, intimamente reconhecido.

- Virei buscá-lo às sete. Até logo.

- Até logo, doutor.

Sozinho, releu as cartas que tinha recebido na véspera, por avião. O gerente e dois dos empregados de maior categoria desejavam-lhe boas-festas. Dois amigos dedicados, convencidos de que cumpriam suas obrigações de informadores espontâneos, diziam-lhe que os seus negócios prosperavam, mas que fosse pensando em voltar, pois a fidelidade dos empregados não era coisa em que pudesse confiar-se eternamente... Enojado, Estêvão Barroso lançou as cartas para a mesa. Sabia bem, e há muito, o valor de tais insinuações. Acendeu um cigarro e voltou à janela. O nevoeiro estava baixo e as árvores e os arbustos semelhavam desenhos irreais. A tristeza do jardim abandonado fê-lo sentir-se mais só. Fazia-lhe profunda, dolorosa falta a família. "Mas, que família?" Recordou as últimas frases da carta que, uma hora antes, tinha recebido da sogra: "O Pedrinho veio há oito dias do colégio. Está muito alto e muito forte! Se o meu genro não se decidir a consoar connosco, diga-me se deseja que lho leve aí para o beijar..." Gostaria, na verdade, ver o filho, abraçá-lo muito, muito demoradamente, mas havia o orgulho, o seu grande orgulho, muralha em que se havia encerrado. Ferido por súbita curiosidade, releu também a carta da sogra. D. Miquelina tinha bom fundo, sofria com o sucedido, queria a todo o custo reconciliar a filha e o genro. Aquela delicada sugestão de trazer-lhe Pedrinho encobria certamente o propósito de vir acompanhada, também, de Maria Fernanda. Estêvão Barroso semicerrou os olhos, representando-se mentalmente esse possível encontro com a esposa e o pequeno. Impossível, impossível, acabou ele por murmurar para si mesmo. Custava-lhe deveras perder o ensejo de ver e abraçar o filho, mas devia evitar uma armadilha, amável e generosa embora, que o colocasse frente a frente com a mulher que mais grave e profunda ofensa lhe havia infligido durante toda a sua vida. E, como para afastar tão grave perigo, dobrou a carta e fechou-a numa gaveta.

Ficou atormentado, todavia. Comparando a sua fria solidão e a penetrante e fraternal atmosfera do dia que passava, sentia-se forasteiro não apenas na cidade, mas no mundo. Assaltou-o, então, o agradável anseio de ser bom para todos quantos o cercavam, principalmente para aqueles que a roda do destino havia colocado muito abaixo, em situação material, pelo menos... Decidido, sentou-se à pequena secretária e começou a assinar folhas do livro de cheques, cada uma de mil escudos. Sorriu, intimamente satisfeito, ao chegar ao fim, com esta pergunta a bailar-lhe nos lábios: "Serei realmente um homem sem delicadeza de temperamento?... Maria Fernanda, mesmo se soubesse o que ele estava a fazer, continuaria, certamente, a ter essa mesma afrontosa opinião... Mexeu os ombros, com triste indiferença. Premiu o botão da campainha. E, quando a enfermeira Gisela apareceu, pediu: "Faça-me o favor de chamar a chefe..." Sorridente, a chefe apareceu sem demora: "Bom dia, sr. Barroso! E muito boas-festas!..." Barroso, contra, o seu costume, apertou-lhe a mão: "Muito obrigado, minha senhora. Foi para desejar-lhe também boas-festas que a chamei. Tome estes cheques... Um é para a senhora e os restantes distribua-os por Gisela e pelas outras enfermeiras, com os meus cumprimentos..."

Pouco depois, chamaram-no para almoçar. Estava alegre; entrou, sorridente, na sala destinada às refeições dos médicos, onde, por amabilidade do director da casa de saúde, tomava, havia um mês, as refeições. Estranhou ver apenas sentada, lá ao fundo, a drª Carlota Amaral. "Se não se importa - convidou a médica - faça-me companhia, sr. Barroso. Os outros fizeram hoje gazeta. O próprio dr. Sarmento foi comprar brinquedos para os sobrinhos, disse-mo há pouco..." Agradeceu e sentou-se, mas confundido. A drª Amaral era muito bonita, dizia-se que alimentava secreta paixão pelo dr. Sarmento, empenhada em chamá-lo de novo aos caminhos do matrimónio.

No fim do almoço, Estêvão Barroso ficou um bocadinho surpreendido com o convite da médica:

- Quer vir até a Baixa? Como tenho duas horas livres, vou ver as montras. Quer vir? Levo-o no meu carro. Tenho que comprar qualquer coisa para o filho da minha porteira.,.".

Dominado por preconceitos e estranhas inibições, embora gostasse e se envaidecesse, até, de acompanhar a encantadora médica Carlota Amaral, agradeceu e rejeitou o convite. No seu quarto, sofreu, depois, a dolorosa impressão de ser, apesar de tudo, um homem encarcerado e escarnecido pela sorte. Embora rico, muito rico mesmo, não podia deixar de sentir-se, amorosamente, pobre. Atormentado, andou cá e lá durante uma, duas horas, a contas com interrogações dolorosas. Acabou por enfiar o sobretudo e decidir-se a esticar as pernas, como, de manhã, o dr. Sarmento lhe havia recomendado.

No corredor, informou Gisela: "Vou dar um passeio, mas estarei cá antes das sete, para jantar com o dr. Sarmento".

Desceu a pé para o centro da cidade. Parecia-lhe vir de um mundo afastado. Ninguém o conhecia, não encontrava um só rosto conhecido. Logo, porém, que chegou às ruas concorridas, o grande movimento de automóveis e pessoas não só o atemorizou como também o cercou de mal-estar. Pensou, então, em entrar num "taxi". Queria fugir, sem saber bem de quê. Todavia, deixou-se levar pela multidão ansiosa, achando encanto e graça, sobretudo, à alegria e aos apetites que se liam nos olhos das crianças.

Quando passava junto de um cinema, sentiu-se de repente agarrado pelo braço: "Pai, paizinho!" O filho, transbordante de feliz surpresa, saltava-lhe aos braços, alegre e alvoroçado. "A mãe está ali, a comprar bilhetes... Venha também à "matinée". Barroso, lágrimas nos olhos, sentia-se tonto de felicidade. Estaria a sonhar? Não estava. O seu filho, o seu querido filho, estava ali,..

Terminada a "matinée", Pedrinho, radiante, pediu: "Jante connosco, paizinho". Maria Fernanda, fitando, com enternecedor e bonito sorriso, Estêvão, insistiu por sua vez: "O pequeno parece ter a missão de reatar o que o destino desatou..." Habilidosa, ela assacava a essa misteriosa força a culpa daquilo de que só o seu péssimo carácter era o verdadeiro responsável. Mas, ainda entontecido de felicidade, Estêvão Barroso agradeceu, galantemente, com uma vénia, como o teria feito se fosse ainda, apenas, namorado de Maria Fernanda.

Esquecido do compromisso tomado com o dr. Sarmento, deixou-se arrastar, como num sonho. Atravessaram ruas congestionadas de movimento. Observando os pequenitos que puxavam as mães para dentro dos bazares, Estêvão perguntou ao filho o "Que queres que te ofereça?". Pedrinho enrubesceu, contente. A mãe falou por ele: "Quer um relógio... Desde que chegou do colégio, não me tem pedido outra coisa". Entraram numa ourivesaria. O pequeno, ao ver-se com um relógio de pulso, de ouro, ficou inchado de vaidade. Depois, Estêvão mandou o empregado embrulhar um crisântemo de platina e pedras preciosas, que valia uma fortuna. Entregou-o a Maria Fernanda: "É uma lembrança de Natal, apenas..." Ela corou e sorriu, agradecida. Estêvão era assim mesmo, um mãos-largas, como não havia outro. Durante os doze anos em que haviam vivido juntos, tinha-lhe ele dado verdadeiras riquezas em prendas de toda a ordem.

Admiraram ainda outras montras. Depois, como Pedrinho estava ansioso por mostrar o relógio à avó, Maria Fernanda sugeriu que tomassem um carro. Sentindo-se feliz, Estêvão Barroso obedeceu. Por causa do filho, apenas por causa do filho, não queria pensar no passado.,.

Chegaram a casa: Pedrinho galgou rapidamente a escada: "Avó, avózinha! Olhe o que o pai me ofereceu..." Estêvão Barroso sentiu que lágrimas de ternura correrem-lhe pelos olhos. Meses atrás, havia descido aquela escada com lágrimas também, mas de revolta e rancor...

Durante o jantar, D. Miquelina, sem esconder a enorme satisfação que sentia em ver ali, novamente, o genro, não aludiu nem por simples palavra ao sucedido entre ele e Maria Fernanda. Estimava verdadeiramente Barroso, queria-lhe como se ele fosse seu filho. Pedrinho, com a sua tagarelice, desejando saber tudo, criou, porém, a certa altura, uma atmosfera de desassossego e asfixia, quando se voltou para o pai: "Porque é que o pai e a mãe estavam zangados?". Assustada, D. Miquelina estremeceu. Que iria sair daquela pergunta?... Também o pai, sem levantar os olhos do prato, se sentiu triste e atormentado. Porém, Maria Fernanda salvou a situação, respondendo calmamente: "Estás enganado, Pedrinho. Nós não estávamos zangados... O pai é que tinha negócios muito importantes que o traziam por longe..." D. Miquelina respirou, desoprimida. Também Barroso ficou aliviado. Porém, o pequeno é que ainda não estava satisfeito: "E que doença teve o pai?..." Pedrinho sabia que ele havia estado na casa de saúde, justamente por o ter ouvido dizer, muitas vezes, à avó e à mãe. Estêvão Barroso achou que, resumindo embora, não podia ficar calado: "Tive que sofrer uma operação, meu filho. Uma operação muito grave..." Pedrinho ficou a olhar para o pai, muito surpreendido. A avó, então, recomendou: "Anda, Pedrinho, acaba de comer o doce..."

Terminaram, porém, o jantar em meio da maior alegria, pois o pequeno, com a sua tagarelice, agora, a todos distraía e divertia. D. Miquelina era quem se sentia mais feliz. Observava cautelosamente Estêvão e Maria Fernanda, vendo que ambos se comportavam polidamente, mas ela esforçando-se por se tornar amável, talvez com a secreta intenção de fazer-se perdoar...

Pensando que eles gostariam certamente de ficar sós, para se explicarem, D. Miquelina lembrou ao neto que já eram boas horas de ir para a cama. Pedrinho voltou-se para o pai: "Amanhã, leva-me ao circo, paizinho?" Estêvão, enternecido, prometeu. E, quando ficaram sós, Maria Fernanda confessou:

- O pequeno está quase um homem, não está?

- Cresceu muito, realmente, nestes últimos meses. Será preciso pensar no curso que lhe convém...

- Isso é contigo.

- Comigo?

Barroso estava perplexo. Voluntariosa, a mulher dissera-lhe, muitas vezes, que seria ela quem orientaria a educação do filho. Por isso mesmo, tinham discutido e acabado por separar-se.

- Sim, Estêvão, hoje, reconheço que é a ti que compete orientar a educação do Pedrinho. Ninguém o poderá fazer melhor.,. - e, estendendo o braço, apertou-lhe carinhosamente, apaixonadamente, a mão.

Fícou-se a olhá-lo, Estêvão queria esquecer, queria perdoar, mas do passado vinham, cínicas e nítidas, palavras terríveis: "Casei contigo porque minha família vivia mal! Detesto as tuas maneiras e a tua falta de sensibilidade. Odeio-te! Não quero que o meu filho seja um bruto como tu. Eu cuidarei da sua educação..." Depois desta cena, Estêvão tinha-se instalado num hotel, disposto a regressar, sozinho, a Lourenço Marques. Uma noite, porém, esmagado de sofrimento, tentara suicidar-se. Agora, Maria Fernanda, arrependida de tão graves insultos, pedia-lhe perdão:

- Estou arrependidíssima, acredita. Estêvão, tu és o homem mais digno e generoso do mundo. Juro que estou arrependida. Fica connosco...

Estêvão levantou-se. Que fazer? Que responder? Lá fora, desabava temporal violento, Maria Fernanda levantou-se também, abraçando o marido e aproximando-lhe os lábios:

- Chove muito, não ouves? Fica, fica, meu amor...

Passou o Natal. Janeiro aproximava-se do fim. Pedrinho havia já regressado ao colégio. D. Miquelina, chamada por Laura Rosa, a irmã divorciada, que residia em Barcelos, muito doente, tinha partido para o Minho. Na estação, depois de abraçar a filha e o genro, pedira: "Logo que cheguem a África, escrevam. Não se esqueçam,.."

Maria Fernanda acompanharia o marido no regresso a Lourenço Marques. Tencionavam partir, de avião, dentro de duas semanas. Como a mãe tinha levado consigo a criada, mudaram-se para um hotel. Fora mesmo Maria Fernanda a da ideia, pois sempre lhe agradavam ambientes elegantes e cosmopolitas. Diante do espelho, penteava-se, nesse momento, quando bateram à porta: "Entre!". Entrou uma criada com o correio. Leu apenas os envelopes de duas cartas, reconhecendo a letra da mãe e do filho. Abriu, porém, com certo alvoroço, a terceira, que vinha de Lourenço Marques, Cristina Couceiro, sua amiga e antiga condiscípula, começava por confessar-lhe: "Espero-te, ansiosíssima, para te abraçar, mas também não deixarei de lastimar que venhas de novo afogar-te neste poço de intrigas e preconceitos!..." E, com ironia e azedume, mas explicando-se, justificando-se, falava dos seus projectos de tornar-se hospedeira de uma das carreiras aéreas que passavam por Lourenço Marques. "Sabes lá, querida, a batalha que eu tenho travado! - continuava Cristina Couceiro. - O meu pai já me deu o seu consentimento, mas, a minha mãe, apesar de muito mais nova, opõe-se tenazmente! E, nesta luta, querida Fernanda, vou eu perdendo a mocidade..."

Maria Fernanda sorriu de si para consigo. Cristina, embora tivesse razão para revoltar-se como se revoltava, já não era assim tão nova como supunha. Devia ter uns vinte e oito anos, com certeza. Porém, apesar disto não se recusava a negar-lhe razão nos seus projectos e acusações. Deixou o espelho, para vestir-se. Estêvão havia saído, para resolver uns assuntos com o seu agente. Realmente, Cristina Couceiro devia sofrer imenso nessa luta que sustentava entre o pai e a mãe. Lastimou-a. Por si mesma, sabia Fernanda como era difícil e doloroso sofrer situação semelhante, pois, enquanto o pai (o pai que já lá estava...) vivendo da sua reforma de delegado, em Lourenço Marques, a deixara fazer também tudo quanto queria, não influindo absolutamente nada para que ela casasse com Estêvão Barroso, a mãe, sabendo embora que a contrariava, impusera, quase a intimara, a contrair matrimónio com o rico negociante, uma das mais importantes fortunas da colónia,..

Já vestida, apertava justamente os brincos, quando o marido voltou. Efusiva e espectaculosa„ beijou-o ruidosamente.

- Tenho fome - confessou Estêvão, sorridente. - Mas não apenas de beijos... - E, naturalmente, acrescentou: - Vamos almoçar, amorzinho?

Maria Fernanda, sem aludir sequer às cartas da mãe e do filho, informou: "A Cristina Couceiro escreveu..." E, desejando lá por intenções muito suas, que o marido lesse a carta da amiga" estendeu-lha na ponta dos dedos. Sem grande curiosidade, Estêvão leu rapidamente... Quando chegou ao fim, devolveu-lha, desdenhoso:

- Está cada vez mais doida!...

- Enganas-te! - ripostou prontamente Maria Fernanda, agastada. - A Cristina é inteligente, tem personalidade, quere, afinal - e é legítimo, julgo eu - guiar a sua própria vida.

- Se ela tivesse outro pai!... - considerou vagamente Estêvão, reapertando o nó da gravata" diante do espelho.

- Que queres tu dizer com isso?

- Quero dizer que um pai com pulso rijo faz sempre muita falta... para orientar os filhos...

- Ah! Pretendes ofender-me?

- Ofender-te, a ti? Não percebo,

- Sim, sim. Tu bem sabes que o meu falecido pai nunca apoiou o nosso casamento...

Barroso estava surpreendidíssimo com o rumo que o diálogo havia tomado, Todavia, respondeu:

- O passado, agora, minha querida, talvez não nos deva importar.

- Enganas-te! - E, abanando a cabeça com cinismo, continuou: - Eu soube sempre obedecer tanto a meu pai como a minha mãe!

- Tu?!

Estêvão sorriu. E, diante do sorriso incrédulo do esposo, Maria Fernanda estoirou:

- Queres que te dê uma prova, uma grande prova?

- Bem, filha, se tens realmente nisso muito empenho...

- Então, lá vai: eu, se te pedi para ficares, e esqueceres o passado e me perdoares, há um mês, naquela noite, foi apenas - apenas! - para fazer a vontade a minha mãe!... Não foi o meu amor de mulher, mas o meu amor de filha que me levou a isso...

- Quê?! - interrogou Estêvão, num grito. - Que dizes?

- A verdade! - E, perante a lívida surpresa do esposo, aduziu, repleta de velhacaria. - Já vês que também soube obedecer a minha mãe...

Estêvão Barroso tremia da cabeça aos pés. Olhava a mulher, mas sem a ver, tanta a perturbação que o dominava. Refreando, porém, os nervos, acusou:

- Cínica! Cínica! O que tu precisavas era que te descarregasse a pistola no peito. Não mereces, porém, que me torne um assassino. Não mereces tanto...

Quinze dias volvidos, o dr. Sarmento acompanhou Estêvão Barroso ao aeroporto. Na hora da abalada, depois de um abraço apertado, Estêvão Barroso confessou:

- Obrigado, doutor, por tudo. Agora, vou recomeçar a viver...

O médico felicitou-o, jovial:

- Eis o que importa, amigo. Recomeçar, apesar de tudo, recomeçar sempre, até ao fim!...

 

Chegou junto da porteira e perguntou-lhe por Leonor.

- Está em casa, minha senhora.

  1. Antónia queria perguntar algo mais, porém escasseou-lhe a coragem. Havia já mais de um ano que vinha ali frequentemente saber notícias da protegida. Doroteia dizia-lhe tudo quanto sabia. Por vezes, atardava, porém, as novidades, muito avarenta, com evidente desejo de fornecê-las por bom preço. A velha senhora, que ansiava sempre por saber pormenorizadamente tudo quanto dizia respeito à rapariga, lá abria por fim a malinha, passando para as mãos rapaces da porteira uma moeda ou uma nota.

- E, ele também está?

- O sr. Albano? Os passarões não gostam de gaiola...

- Saiu?

Doroteia pôs-se a assobiar, fazendo gestos estranhos e sucessivos. Era esse o seu costume quando queria fazer render a informaçãozinha.

  1. Antónia, míope, batendo as pálpebras, sentiu dor penetrante no coração. Que quereria ela significar com aquelas sibilinas palavras? Esperou, resignada. A porteira, manhosa, esperou também. Essa velha sentimental, a quem de si para consigo chamava, muitas vezes, maluca e impertinente, tinha que esportular maquia que se enxergasse para ver a sua curiosidade satisfeita. Não se arrependia, portanto, de estar a remoé-la. Se assim não procedesse, teria perdido aquela bonita nota de cem, quando lhe fornecera, muito arrastadamente, a notícia de Leonor ter dado à luz uma menina.

- Sucedeu alguma coisa? - interrogou D. Antónia, assustada.

- Ora, ora, a felicidade de certas mulheres é como o sol de inverno: chega e parte sem demora...

- Mas, que aconteceu? Fale, pelo amor de Deus, fale...

Teimando na sua velhacaria, Doroteia continuou a assobiar. D. Antónia, aflita, entregava-se a conjecturas tormentosas. Havia quinze dias que, amarfanhada por uma gripe absorvente, tinha deixado de vir ali colher novidades. "Que teria acontecido durante esse tempo? Leonor e Albano estariam zangados?", A porteira parecia não ouvir as suas súplicas e perguntas. Terminou por lhe estender uma cédula de cinquenta escudos.

Doroteia, finalmente humanizada, foi dizendo:

- A senhora tinha muita razão: ele não é boa rez. Arranjou outra...

- Zangou-se, então, com a Leonor?

- Zangou-se e abandonou-a!

- Que diz?

- Digo a verdade, minha senhora.

- E, quando foi que isso sucedeu?

- Dois dias depois da sua última visita, minha senhora.

  1. Antónia estava perplexa. Esperava que um dia, cedo ou tarde, Leonor viesse a arrepender-se de se ter unido àquele meliante do Albano, todavia não contava que isso acontecesse tão cedo.

- Vou falar-lhe! - declarou subitamente D. Antónia.

- A senhora? Mas, a senhora nunca ousou subir esta escada!...

- Sim, é verdade. Porém, a ocasião chegou.

Subiu lenta e penosamente os degraus. Tinha que vencer muitos até o quarto andar. Agarrada à bengalinha, que a acompanhava havia já muitos anos, ia pensando, com uma ponta de receio, na forma como Leonor a receberia. Bater -lhe-ia com a porta na cara, como já o tinha feito uma vez, quando fora procurá-la à pensão, para onde tinha fugido com o Albano? Não podia presumir a recepção que a antiga protegida lhe ia dispensar. Porém, nada conseguiria embargar-lhe o passo. Achava que, apesar de tudo, dos desgostos e vexames sofridos, devia ir oferecer-lhe os seus préstimos, e, por conseguinte, levaria por diante o propósito que a animava, mesmo que tivesse de receber pesados insultos.

Surpreendida, a porteira ficou a ver a senhora subir a escada. Mexendo por fim os ombros, voltou ao seu serviço, entrando no cubículo. Acendeu a máquina de petróleo, para fazer o almocinho. Podia comer, nesse dia, um bom bife de vitela. Havia muito que não se regalava com tão agradável pitéu. O dinheiro recebido da "maluca" dava para isso e muito mais. Resolveu, porém, deixar o bifinho para domingo. Gostava sempre de relembrar a sua aldeia, meia dúzia de casas nas faldas da serra de Avões, com um almoço dominical mais abundante. Contentar-se-ia, pois, com um caldo de cebola e batata. Pôs uma panela ao lume. Nesse momento, ouviu de D. Feliciana, que habitava também no quarto andar, direito:

- Senhora Doroteia, chegue aqui...

A porteira, limpando as mãos ao avental, acorreu imediatamente. D. Feliciana, baixando a voz, perguntou:

- Sabe quem eu vi agora?

- Não faço ideia, minha senhora.

- Foi aquela senhora de idade, que costuma vir aqui falar com vossemecê...

- Ah! Bem sei. Foi visitar a cantora.

- Mas, não estavam zangadas?

- Estavam. Ou quer dizer; a Leonor é que não lhe queria falar.

- Sim? Pois olhe, vi com os meus próprios olhos apenas isto: a cantora, ao abrir a porta, cair nos braços da velha, banhada em lágrimas.

- Sim?

- Sim, senhora.

A porteira estava espantadíssima. Por seu turno, D. Feliciana fervia de impaciência, desejosa de bisbilhotar. Perguntou:

- Não se viam há muito, então?

- Há mais de um ano.

Muito tagarela, e, agora, sem a pretenção de traduzir informações em dinheiro, informou que Leonor, apaixonada por Albano, havia abalado de casa. Tinham-se conhecido numa estação de rádio, onde ele tocava as músicas que ela cantava. Gostavam perdidamente um do outro. Eram felizes. Com o nascimento do primeiro filho, pareciam mesmo doidinhos de ventura.

- O figurão acabou por tirar a máscara, porém. Deixou a pobre rapariga com o bebé...

- Tenho pena dela, acredite, - confessou D. Feliciana, olhando o reloginho de pulso, pois tinha horas marcadas ao cabeleireiro. A porteira declarou:

- Também lastimo a velha. Criou-a e edu-cou-a de pequenina. E, como não teve filhos, dedicou-se-lhe sinceramente.

- Boa paga recebeu, não resta dúvida.

- Mas, a senhora D. Feliciana vai ver que tudo lhe perdoa...

  1. Feliciana abanou a cabeça, concordante. Revia, nítida, a recepção que Leonor tinha feito a D. Antónia. Muito mexida e apressada, despediu-se.

Lá de cima, veio, pouco depois, a voz de Leonor:

- Senhora Doroteia, chegue aqui...

Lá foi, ofegante e picada de curiosidade. Encontrou a cantora de chapéu na cabeça e com o menino nos braços.

- Tome conta da casa e fique com a chave. Eu, depois, mandarei buscar tudo...

- Mas, a senhora D. Leonor vai-se embora?

Foi D. Antónia, agora com expressão de muito satisfeita, quem respondeu:

- Volta para a minha companhia...

 

Via fugir os dias sem que o mandassem pilotar um avião das carreiras de África. Dez, vinte, trinta vezes tinha ele já pedido um comando, pois não queria apodrecer em terra. Ora, até parecia que o não levavam a sério.., O engenheiro Faria de Matos, director do tráfego geral, dizia-lhe sempre que esperasse, tranquilo, pois a sua vez havia de chegar. "Quando? - perguntava-se Edmundo, passeando, cá e lá, no seu acanhado quarto de solteiro. - Sim, quando?..." Outros pilotos, admitidos depois dele, só por terem estado ao serviço de companhias estrangeiras, tinham feito já viagens a Luanda e a Lourenço Marques. Quando chegaria, portanto, a sua vez? O engenheiro Matos, para o acalmar, tinha-o mandado comandar, por duas vezes, o bimotor da carreira do Porto. Todavia, isso não chegava para satisfazer a sua ardente ambição. Queria mais ; queria pilotar o avião da África Ocidental, não apenas para mostrar a sua firmeza e perícia num voo de largo percurso, mas para encontrar-se também com a noiva...

Quando dezembro chegou, Edmundo reconheceu que as probabilidades de ser enviado a África aumentavam de dia para dia, pois o movimento aeronáutico, com a aproximação do Natal, desenvolvia-se sempre extraordinariamente. Porém, nem assim andava satisfeito. José Pimenta, seu colega, de cujo casamento havia sido padrinho um ano atrás, bem se esforçava por comunicar-lhe optimismo e confiança, na ida e na volta dos seus serviços: "Eles vão desdobrar a carreira... Por isso, hás-de bater asas em breve, tenho a certeza!" Edmundo sorria sem vontade. Assistia à descolagem dos aparelhos para as grandes jornadas, seguia-os durante um momento com o olhar sombrio e fatigado, e, depois, cabeça baixa, voltava açodadamente ao quarto.

Curioso, perguntava à senhoria se tinha chegado correio. Infelizmente, não havia nunca aquilo por que mais ansiava... Da mãe, vinha todas as semanas uma carta, repleta de saudades, que ele atirava geralmente para o lado sem sequer a abrir. Sabia de cor o que a velha lhe dizia repetidamente: estava no fim, a morte podia chegar de um instante para o outro, queria vê-lo, despedir-se... Edmundo, entontecido pelas suas ambições, mexia os ombros com indiferença. Não tinha tempo senão para pensar em Maria Zita...

Nervoso e arreliado, pouco comia, fumando cigarro atrás de cigarro e levando grande parte da noite a procurar as razões do inesperado silêncio da noiva. Não as encontrava, porém. Maria Zita, atraída por remuneração excelente, havia deixado de ser manicure numa barbearia do Chiado, para desempenhar a mesma profissão num hotel de Luanda. Estava satisfeita, ganhava bem; as suas cartas vinham, no princípio, por avião, e com regularidade, quentes de amor e cheias de bonitos projectos. Edmundo sonhava, também. Na primeira viagem que fizesse a Luanda, procuraria contacto com os pilotos angolanos, e esperava arranjar um bom lugar numa ou noutra companhia. Então, logo que isso conseguisse, uniria para sempre o seu destino à loira e linda Zita.

Amavam-se doidamente. De volta do aeroporto, Edmundo, passava agora, propositadamente, por restaurantes, cinemas e "dancings", onde ambos tinham saboreado horas deliciosas. Mas esse tempo, tão próximo e já tão distante, parecia ter sido subitamente esquecido por Maria Zita. O seu inopinado silêncio dilatava-se já assustadoramente. Tendo começado de certa altura para diante por espaçar as suas cartas, entregara-se, por fim, a um mutismo injustificado, misterioso e inquietante. "Estaria doente? Haveria outro homem na sua vida?..." Edmundo não atinava com uma explicação que o sossegasse. E, vendo que as missivas e até os rádios que lhe dirigia ficavam sem resposta, decidiu pedir, desesperadamente, a José Pimenta, que, na sua próxima viagem a Luanda, procurasse saber o que se passava com a rapariga. Aguardou, ansiosamente, a volta do camarada. Felizmente, Zita gosava perfeita saúde e franca alegria. "Mas, então por que me não escreve?" Sorrindo de modo estranho, Pimenta bateu-lhe significativamente no ombro: "Não sabes o que são mulheres? Enigmas, desenganos...

Orgulhoso, Edmundo reagiu durante algum tempo, mas, depois, mergulhou em completo desânimo. Convencido, mesmo sem provas, de que Zita o havia trocado por outro, adoeceu de ciúmes. Desanimado, deixou de pedinchar um avião de África ao director do tráfego geral, e, vencido e envergonhado, deixou igualmente de comparecer no aeródromo, à partida e à chegada dos aparelhos. Nada já lhe interessava. Ciente de que o amor lhe tinha fugido, deixava fugir também os dias, deitado, olhos nos vidros enevoados da janela, rejeitando todas as solicitudes da dona da casa. Queimava as horas com aguardente e cigarros. Mas, desiludido, pensava ainda nas desmedidas ambições de Maria Zita. Se ele fosse rico, ela, certamente, não o teria abandonado. ..

Outras vezes, olhos parados no tecto, pensava em vingar-se. Achava de seu dever tirar desforra estrondosa de tão grande logro. Mas, como? A Companhia continuava a desprezar os seus serviços. Como poderia, pois, encontrar-se com Zita, frente a frente, para lançar-lhe no rosto todo o seu desprezo? Sonhava mais do que nunca com uma viagem à capital de Angola. "Daria por isso metade da minha vida!", dizia para consigo. Mas, entretanto, dentro de si, os dias passavam, iguais, cinzentos e tristes, reproduzindo o tempo lá de fora, nevoento, frio e desgrenhado de aguaceiros.

Semanalmente, chegava sempre a carta da mãe. Edmundo não a abria. Para quê? A aldeia estava longe e a amorosa gratidão que devia àquela que o havia trazido no ventre como que se ia apagando, apagando, numa espécie de sono e esquecimento. Apesar disso, reconhecia, de quando em quando, que lhe faria bem ir encostar o coração ferido ao peito materno, mas nem por isso se decidia a subir até à aldeia. Havia já doze anos, desde que tinha vindo para o liceu, que não dormia debaixo de telha familiar. Entregava-se agora à sua doença sentimental, julgando que o caminho da existência lhe estava para sempre fechado...

Vendo-o cada vez mais desiludido, a senhoria animou-se a dizer-lhe:

- Puxe pela coragem e vença o seu desgosto" para não passar o Natal na cama...

Faltavam já apenas quatro dias para as festas da Natividade. Nessa noite, tentou fortemente afastar-se do amargo desengano que o havia atingido. Não o conseguia, porém. A voz de Zita, a voz e o rosto, os olhos e o riso da noiva ocupavam-lhe totalmente o coração e o cérebro. Só pela madrugada conseguiu adormecer. Mas, dormia ainda havia pouco mais de duas horas, quando a patroa o acordou:

- Senhor Magalhães, chegou uma ordem da Companhia...

Finalmente, a roda mudava para o seu lado! Mandavam-no apresentar sem demora, para pilotar o avião do desdobramento da carreira de Luanda. Saltou da cama, doido de alegria. Ia, enfim, encontrar-se com Zita, falar-lhe, e, talvez os receios que o minavam não tivessem fundamento. Talvez chegasse ainda a tempo!..

Fardou-se num ai e tomou a maleta. Chegou ao passeio com um assobio de esperança e entusiasmo nos lábios. Encontrou um boletineiro, nariz no ar, tentando descobrir o número desbotado da porta.

- Quem procura?

- Edmundo Magalhães... Um telegrama...

- Sou eu... Deixe ver.

Era de sua mãe. Pedia-lhe, pela alma do pai, que fosse passar com ela esse Natal. Estava de cama, muito doente... Seria o último Natal que festejariam juntos...

Pela cabeça de Edmundo, como que subitamente iluminada, passou então rápida pergunta: "Para que teimas em correr atrás dum amor que já te esqueceu?..." Sorriu, tristemente. Que fazer? Sentiu um nó na garganta e, depois, subjugado pela firme impressão de que se rasgava na sua frente um belo caminho esquecido, sentiu-se inundado de ternura. Voltou-se, imprimindo aos seus passos rumo diferente daquele que, ainda minutos antes, tencionava dar-lhes: a estação ficava perto e o comboio do Norte não tardaria a partir. Na manhã seguinte, chegaria à sua aldeia e voltaria a encontrar os braços dedicados...

 

Entram pela janela a noite e a barulheira do saguão. Tomé, irritado, atira o garfo sobre a mesa e vai fechar a vidraça. Adelaide, que acaba de pôr no fogareiro uma cafeteira com água, ficou indiferente à atitude mal-humorada do homem. O pensamento, amargurado, diríge-se-lhe para sua irmã Palmira. "Leviana!". Vivia amancebada com o professor Ortigueira, ia já para quatro anos, mas tinha-lhe fugido nessa manhã.. Adelaide recebera a notícia, na praça, da boca de uma conhecida: "O professor, porém, parece não se ter preocupado muito. Quando o soube, limitou-se a mexer os ombros - e foi tratar dos canários". Adelaide ficou envergonhada com a informação. Mulher de trabalho, honesta, nunca havia dado apoio à leviandade da irmã. Durante muito tempo, não deixou mesmo que ela voltasse a entrar-lhe em casa. Depois, sabendo que o homem com quem Palmira vivia era pessoa de posição, respeitado e admirado por toda a gente, consentiu em fazer as pazes.

Tomé, porém, obstinado em questões de honra, ainda fincou os pés, protestou, mas por fim lá cedeu também.

O homem, de novo sentado à mesa, vai atirando à boca garfadas atrás de garfadas, Um dia na fábrica, a soprar e a modelar vidro, é trabalho dos demónios, dá-lhe sempre muita fome. No fim do jantar, se ainda encontra algum bocado que não faça falta para o dia seguinte, lança-o sempre também ao bucho, para ficar mais aconchegado. Na frente de Tomé, comendo avidamente, o filho vai tagarelando, alheio às inquietações dos pais. Dentro de quinze dias, - diz inesperadamente o rapaz - farei exame. Preciso de sapatos..." Nem a mãe nem o pai lhe respondem. Como a mulher, também Tomé está a pensar na cunhada, aquela sem-vergonha que sabe só enxovalhar a família. Alberto insiste, porém, na necessidade de calçado. Trabalha igualmente na fábrica, como moço, e ajuda a casa, entregando todos os sábados a féria à mãe, sem lhe faltar sequer um centavo. "Preciso de sapatos", teima o rapaz. Então, Adelaide resolve dizer que se há-de ver se é possível: "Vamos a ver, filho...". Mas o pai, dando vazão à sua recalcada revolta, corta imediatamente: "Tencionas fazer exame com os pés? Vai descalço!". Alberto, amuado, deixa de comer e começa a ferir o oleado da mesa, com os dentes do garfo. Compadecida, a mãe afaga-lhe a cabeça, mas o rapaz levanta-se de repelão e corre para o quarto. Lá de fora, do poço negro do saguão, chega agora amortecida a balbúrdia dos outros inquilinos.

Adelaide, depois de levar para a banca a loiça já servida, despeja no alguidar a cafeteira que minutos antes pôs no lume. Pensa de novo na irmã: "Para onde terá ido aquela desgraçada?...". Nesse momento, o filho volta do quarto, os livros debaixo do braço, boné enterrado na cabeça e olhos no chão.

- Não acabas de comer, Alberto?

- Não me apetece mais...

- Então, senta-te, espera por teu pai.

Tomé opõe imediatamente, sem levantar os olhos do prato:

- Pode girar. Eu não sei se irei hoje.

O rapaz desandou, rápido. Debruçada para a banca, a mulher, apreensiva e desgostosa, principia a lavar a loiça. "Onde estará aquela desgraçada?". A sorte da irmã preocupava-a deveras. Boa rapariga, embora bastante impulsiva também, Josefina não deixava nunca de ter delicada e expansiva alma, franca e abertamente manifestada a todo o momento.

Tomé bebe o último copo de vinho, cuspindo para o lado, enojado. "Que potreia!" A mulher, volta-se, supondo que ele vai dizer alguma coisa mais, talvez falar da nova cabeçada da Palmira, mas Tomé fica calado, tamborilando com os dedos na mesa. Pergunta-lhe:

- Não vais à escola?

- Que é? - diz o homem, zangado.

- Não vais?

- Hum... Claro que vou.

Tomé Barros ficou arreliadíssimo com a pergunta, mas não o quer dar a conhecer. Cospe de novo no soalho, visivelmente enfurecido. E, para que a mulher não descubra ou adivinhe sequer o que lhe vai na alma, põe-se a falar do Rodriguez, da carvoaria, galego cínico e ganancioso, que parece deitar até carvão no vinho. Adelaide, fatigada, nada responde. Lavando pratos, tigelas e garfos, vai-os pondo, encostados ao rebordo, a escorrer. Vindo do saguão, atravessa, agora, os vidros da janela um grito medonho: "Ladrão! Queres que seja eu sozinha a sustentar os filhos?..." Adelaide comovida, suspende por um instante o esfregão, espremendo-o, vagarosamente, dolorosamente. Aquela que gritou, assim, anda abraçada também a pesada cruz, como todas as mulheres desse velho prédio. O silêncio volta a dominar a pequena cozinha. Aproveitando o fundo do maço de tabaco, o homem enrolou um cigarro, que vai chupando seguida e teimosamente. Adelaide pergunta de novo:

- Então, não vais à escola?

Tomé retruca, sacudidamente:

- Tens alguma coisa com isso?

Submissa, a mulher acha que nada tem com o que ele faz, mas permite-se perguntar, mentalmente, que motivos o prendem, agora, à mesa. Quando, na volta do trabalho, ouviu a notícia da fuga de Palmira, Tomé ficou um momento surpreendido, mas logo comentou com nojo e desdém: "Claro, dessa figurona não havia a esperar outro procedimento!" Não deve ser a cabeçada da rapariga que o preocupa, portanto. Porém, o homem pensa justamente o contrário. E, de si para consigo, interroga-se: "Irei ou não irei?". Frequenta, como o filho e outros operários do bairro, a escola nocturna do Ortigueira. Mas, com que cara irá apresentar-se, nessa noite, diante do professor? Receia que o velho lhe fale da amante, censurando a por o ter abandonado depois de tantos sacrifícios que por ela fez e censurando, talvez, a família, que não soube dar-lhe honestos conselhos como devia. "Não, não tenho culpa nenhuma do sucedido. .. Ninguém aqui tem culpa do passo dessa desavergonhada!". Mas, estes raciocínios não o satisfazem e muito menos, ainda, o acalmam interiormente. "Irei ou não?", Permanece sentado, olhos baixos, chupando o cigarrito e deixando correr os minutos.

Adelaide, desejosa de fugir das suas preocupações morais, fala agora do pedido do filho, apoiando-o com várias razões. Furioso, o homem deita-lhe olhar medonho, refreando a vontade de atirar-lhe também um palavrão. Finalmente, puxa por si, pega na boina e desce a escada.

Na rua, hesita ainda por um momento, porém vai arrastando os pés. Pensa na situação do Ortigueira, mas, acima de tudo pensa, em si mesmo, dirigindo-se recriminação após recriminação. Se não tivesse sido em pequeno um traquinas dos diabos, amigo da gandaia e inimigo dos livros, não precisaria agora de ir à escola, como o filho e outros rapazes. Bem lhe custou, de princípio, semelhante sacrifício. Mas, na fábrica, tinham-lhe prometido o lugar de contra-mestre, se ele soubesse ler... Nos primeiros tempos, envergonhava-se ao ver-se no meio do rapazio escolar, mas, depois, lá se foi acostumando, amparado pela convivência com outros alunos da sua idade, homens feitos, alguns já com cabelos brancos também a despontar. Procurava de preferência a sua companhia, afez-se ao meio, lá ia aprendendo as primeiras letras. E o professor Ortigueira, sem que o distinguisse com mais atenção ou gastasse com ele mais tempo do que com os outros discípulos, parecia, mesmo assim, talvez por o saber cunhado de Palmira, interessar-se de modo especial pelo seu aproveitamento.

Ainda o persegue a mesma interrogação: "Irei ou não?". Mas, ao dobrar a esquina, encontra-se com o Vilaça, seu camarada de fábrica e de escola. Fica contente e mais sereno, sem que, todavia, o manifeste.

- Também vens hoje atrazado!.., - comenta o Vilaça.

O marido de Adelaide abana simplesmente a cabeça. Loquaz, satisfeito da vida, o camarada põe-se então a dizer que deixou a mesa com esforço e pena. "Meu sogro fez hoje anos, tivemos um jantar de arromba, até meteu doce e espumoso...". Como Tomé Barros continua silencioso, o outro fala, depois, das loucuras da mocidade, anos de tempo perdido, que era preciso recuperar agora apressadamente.

- Mas, daqui a um ano, ou talvez menos, já seremos capazes de ler e escrever, como um doutor, não te parece?

Tomé vai confessar que não tem a mesma esperança, quando se recorda que não trouxe os livros. Declara, então, intimamente satisfeito, que não pode acompanhar o amigo. Este, porém, uma vez informado de tudo, puxa Tomé pelo braço:

- Ora, mas não faz mal. Tens aqui os meus. Como tu dás sempre lição primeiro do que eu...

Tomé deixa-se arrastar. Parece que as circunstâncias se empenham e conjugam para que ele enfrente, essa noite, o professor Ortigueira. "Terá sofrido muito com a fuga daquela marafona? E que medirá?...".

- O professor - declara Vilaça, irónico e sorridente - vai certamente receber-nos carrancudo...

- Porquê?

Sobressaltado, Tomé Barros espera que o colega se explique, "Saberá este também da fuga de Palmira?...". A explicação não demora:

- Mas, se não estiver triste por causa dos pássaros, talvez até nem chegue a notar o nosso atrazo...

Acompanha as últimas palavras com tronitroante gargalhada. O professor Ortigueira, velho-maníaco, na opinião de vizinhos e alunos, e de quem os mais novos fazem demoníaca chacota, sempre que o apanham de costas, alimenta profunda e invulgar paixão pelos canários. Tem três gaiolas e em cada uma delas um casal, lá no último andar onde reside. Chama cada um pelos nomes de célebres apaixonados: Romeu e Julieta, Paulo e Virgínia, D. Quixote e Dulcineia. Ele lá sabe por que assim classifica os casais de canários, mas isso não obsta a que o considerem maluco.

- Sim, o Ortigueira é bom homem, - prossegue Vilaça - mas tem a rosca moída..,

- Um sentimental... - diz, só por dizer, o pai de Alberto.

- Ora! Excentricidades! Quem tem uma mulher formosa como ele, não deve perder tempo a falar a pássaros!,..

Tomé respira fundo, aliviado. Ficou satisfeito com o que acabara de ouvir ao amigo! Isso lhe veio provar que Vilaça não sabe da leviandade da cunhada.

- Chegámos.

Completamente sereno, Tomé sobe a escada atrás do companheiro. Os degraus rangem e abanam. Na casa onde reside, sucede o mesmo também. Entristece, durante rápidos segundos. Quando atingem o segundo andar, onde a escola está instalada, encontram a mulher da limpeza:

- O professsor parece que enlouqueceu...

- Então? - interroga Vilaça, trocista.

- Que lhe sucedeu?...- pergunta Toméf por seu turno, receando, cauteloso, ouvir resposta que o envergonhe ou lhe desagrade, pelo menos.

- Não sei, Tem um embrulho sobre a mesa e não faz outra coisa que desembrulhar e embrulhar... Parece até que já chorou. E ainda não começou a aula...

Vilaça sorri, intencionalmente, para Tomé.

Seguem corredor fora, olhando à esquerda, onde estão instalados os escritórios do sindicato dos alfaiates. Um empregado escreve à máquina sem entusiasmo nem proficiência, e o ruído do teclado parece inundar a casa. Tomé sente-se atormentado. "Perdeu a cabeça, certamente. E vai falar-me, com certeza, no caso...".

Chegado à porta do fundo, Vilaça acotovela o camarada e murmura ; "Que é isto? Que teria sucedido?..." Tomé olha o professor, curvado sobre a secretária, a cabeça entre as mãos, como a debater-se com dor avassaladora. Lastimado, recriminando ao mesmo tempo a cunhada... Vilaça toma a dianteira e ele segue-o até os bancos do fundo, onde se sentam os adultos. Repara que os rapazes trocam ditos de carteira para carteira, alguns jogam bolinhas de papel daqui para ali, enquanto outros têm a mão sobre a cara, abafando o riso que ameaça explodir. A atmosfera é estranha e pesada. Tomé sente-se enervado e arrependido de ter vindo. A luz que desce das três lâmpadas, espaçadas no tecto, parece mais baça; e parece também que as nódoas que a humidade deixou nas paredes, entre os mapas, estão agora mais acentuadas.

- Que é que ele tem? - pergunta Vilaça.

Contrafeito, Tomé encolhe os ombros, com olhos surpreendidos e um susto teimoso a magoar-lhe o peito.

A estranha e enervante atmosfera mantém-se. Ortigueira, que não notou a entrada dos dois alunos adultos, continua a afogar a cabeça nas mãos.

Lá da frente, irrompe agora algazarra infernal: um miúdo, para vingar-se do camarada, atira-lhe à cara um bocado de giz embrulhado num papelito. Ouvem-se gritos e gargalhadas. O alvejado chora, de cabeça baixa, raivoso e indignado. Então, o professor Ortigueira, emergindo do seu sofrimento, levanta a cabeça. Mostra o rosto cavado de tormentos. Vilaça, sorrindo intimamente, supõe que ele, pelo costume, vá gritar aos fedelhos que a escola não é chiqueiro nem praça de peixe. Assustados, os miúdos aquietam-se, bico calado, arfando com dificuldade. Porém, nada sucede do que todos esperam. O velho levanta-se, passa as mãos pelos olhos, como se enxugasse lágrimas, e, numa voz lenta e torturada, - voz que, grandes e pequenos lhe desconhecem, - fala para a turma da primeira fila:

- Saia a quarta classe!

Os rapazes ficam espantadíssimos. Não querem acreditar no que ouviram. O professor repete as mesmas palavras, acrescentando:

- Hoje, não dou aula...

O professor mostra-se nervoso. Passado o espanto do primeiro momento, os rapazes arrebanham sacas e livros, e, radiantes com o feriado, deixam a "ala, em tropel. Alberto sai também ligeiro como os outros, sem sequer olhar para o pai. Que se passará na cabeça do velho? Tomé, entretanto, diz para si mesmo: "Como ele sofre! Foi aquela malvada que o deixou em semelhante estado!...". Mas, já o Ortigueira ordena novamente:

- Sai agora a terceira classe. Não há aula!

Um miúdo, velhaquete, pergunta então:

- E amanhã, senhor professor?

- Não sei. Veremos.

Tomé ouve, irritado, a ruideira do rapazio, que deixa a sala, contente.

Exausto, como se tivesse feito enorme esforço para falar, Ortigueira senta-se. O seu aspecto mostra bem que lhe passa pelo coração violenta tempestade. Quando os rapazes vão já na escada, dirige-se aos adultos:

- Podem sair, também.

A sala vai ficando vazia. Dominado pela sua desgraça, o professor verga a cabeça e aperta-a novamente com as mãos, numa visível expressão de desespero. Vilaça toca o braço do camarada: "Então, não vens? - E, em voz baixa: - Queres ficar a suportar-lhe a loucura?...".

Quando todos os companheiros acabam de sair, comentando cada um a seu modo a inesperada resolução do professor, Tomé levanta-se e sobe ao estrado. Quer dirigir duas palavras de conforto ao desgraçado velho, sente mesmo que é sua obrigação dizer-lhe alguma coisa que o console. Repara, comovido, que o infeliz chora. Então, pondo-lhe as mãos nas costas, amigável e carinhosamente, vai murmurando:

- Deixe lá, senhor professor.,. A Palmira, não merecia o seu amor nem era digna de um homem da sua posição. Não era...

O velho levanta a cabeça. Correm-lhe pela cara enrugada abundantes lágrimas. Tomé, penalizado, continua:

- Não era digna do senhor, não. Eu e minha mulher ficámos também muito aborrecidos com a acção dessa desavergonhada. Mas não se apoquente, senhor professor. Mulheres, não faltam!...

Ortigueira está mergulhado no seu profundo sofrimento, mas, ao escutar as derradeiras palavras de Tomé, abre o embrulho, confessando:

- Isto é que me atormenta...

Aquilo são dois canários mortos. Confessa:

- Morreram esta manhã. "D. Quixote" e a "Dulcineia" morreram... - E, assaltado por nova vaga de dor, o velho cai sobre a secretária a soluçar aflitivamente.

Tomé, perplexo e interdito, fica um instante a olhar o professor. "Terá falado verdade? O seu sofrimento será apenas por causa dos pássaros? ou terá endoidecido?"... A mulher da limpeza, na porta ao lado, faz lhe cómicos e expressivos sinais. Tomé não sabe que fazer. Por fim, surpreso e comovido ainda, deixa a sala na ponta de pés...

 

                                                                               Guedes de Amorim 

 

 

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