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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A IDADE DO FERRO / J. M. Coetzee
A IDADE DO FERRO / J. M. Coetzee

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Na cidade do Cabo, uma mulher, idosa e só, está a morrer de cancro. Durante toda a sua vida, conseguiu distanciar-se dos horrores e da violência próprios do apartheid. No final dos seus dias, porém, é obrigada a confrontar-se com as dramáticas brutalidades forjadas por um regime a que sempre se opôs.

A idade do ferro retrata a situação de muitos sul-africanos que se viram então mergulhados num clima de tensão social a que não estavam habituados e não previam; mas, ao mesmo tempo, é uma perturbante metáfora sobre um regime político que se sustentou pela injustiça até provocar uma irrupção de revolta que a todos atingiu.

 

 

 

 

Há um carreiro ao lado da garagem, talvez te lembres - às vezes ias para lá brincar com os teus amigos. Agora é um lugar morto, sem préstimo, onde se amontoam e apodrecem as folhas arrastadas pelo vento.

Foi ao fundo desse carreiro que ontem dei com uma casa de caixotes de papelão e plásticos, com um homem encolhido lá dentro, um homem que reconheci de o ver pelas ruas: alto, magro, de pele tisnada e dentes compridos, canados, fato cinzento largueirão e um chapéu de abas amassadas. Tinha o chapéu posto, dormia com a aba dobrada por baixo da orelha. É um vagabundo, um dos muitos vagabundos que rondam os parques de estacionamento de Mill Street, pedindo dinheiro aos clientes das lojas, instalando-se a beber debaixo do viaduto, comendo restos apanhados nos contentores do lixo. Um desses sem-abrigo para quem Agosto, mês das chuvas, é o pior mês do ano. A dormir no seu caixote, pernas esticadas como uma marioneta, boca escancarada. Exalava um cheiro desagradável: urina, vinho doce, roupas bafientas, e qualquer coisa mais. Impura.

Fiquei durante algum tempo a olhar para ele, a olhar e a cheirar. Uma visita - e logo havia de escolher este dia para me vir visitar.

Foi o dia em que o Dr. Syfret me deu a notícia. Não era uma boa notícia, mas era minha, só para mim, só minha -- impossível recusá-la. Uma notícia para eu tomar nos meus braços, aconchegar ao peito e levar para casa, sem dizer que não com a cabeça, sem verter lágrimas.

- Obrigada, doutor- disse eu. - Obrigada pela sua franqueza.

- Vamos fazer tudo o que pudermos - disse ele -, vamos enfrentar juntos a doença.

Mas, por trás da fachada de camaradagem, via-se bem que já batia em retirada. Sauve qui peut. O seu compromisso de lealdade era para com os vivos, não para com os moribundos.

O tremor só começou no instante em que saí do carro. Quando acabei de fechar a porta da garagem, tremia da cabeça aos pés: vi-me obrigada a cerrar os dentes, a agarrar com força a carteira, para parar com aquilo. Foi então que vi os caixotes, que o vi a ele.

- O que é que está aqui a fazer? - perguntei, ouvindo a irritação „ da minha própria voz, nada fazendo para dominá-la. - Não pode

aqui ficar, tem que se ir embora.

Ele não se mexeu, deitado no seu abrigo, erguendo os olhos, examinando as minhas meias de Inverno, o casaco azul, a saia que sempre me caíra tão mal, o cabelo grisalho dividido por uma faixa de couro cabeludo, couro cabeludo de velha, rosado, cor de bebé.

Então encolheu as pernas e levantou-se vagarosamente. Sem uma palavra, virou-me as costas, sacudiu o plástico preto, dobrou-o ao meio, em quatro, em oito. Agarrou num saco (onde se lia AIR CANADA) e correu o fecho; eu desviei-me do caminho. Deixando atrás de si os caixotes, uma garrafa vazia e um cheiro a urina, o homem passou por mim. Tinha as calças a cair; puxou-as para cima. Fiquei à espera para me certificar de que ele se ia realmente embora, e ouvi-o enfiar o plástico na sebe, do lado de lá.

Duas coisas, portanto, no espaço de uma hora: a notícia há muito receada, e esta incursão, este outro anúncio. A primeira das aves necrófagas, lesta, certeira. Por quanto tempo conseguirei repeli-las? Os trapeiros da Cidade do Cabo, cujo número nunca diminui. Que andam nus e não sentem frio. Que dormem na rua e não adoecem. Que passam fome e não definham. Com o álcool a aquecê-los por dentro. As infecções e os miasmas do sangue consumidos numa chama líquida. São eles quem faz a limpeza depois do festim. Moscas, de asas secas,. olhos vítreos, impiedosas. Os meus herdeiros.

Com que lentos passos entrei nesta casa vazia, de que todos os ecos se desvaneceram, onde o próprio som das solas no soalho é surdo e abafado! como desejei que aqui estivesses para me abraçar e consolar! Comecei a perceber o verdadeiro sentido do abraço. Abraçamos para sermos abraçados. Abraçamos os nossos filhos para sermos cingidos nos braços do futuro, para passarmos além da morte, para nos sentirmos transportados. Era assim quando eu te abraçava, sempre assim. Geramos filhos para que eles nos sirvam de mães. Verdades nuas e cruas, verdades de mãe: daqui até ao final, não ouvirás da minha boca outra coisa. Portanto: como desejei ter-te aqui! Como desejei poder subir ao teu quarto, sentar-me na tua cama, passar os dedos pelo teu cabelo, segredar-te ao ouvido como costumava fazer nas manhãs de escola «São horas de levantar!» E depois, quando te virasses, corpo morno de sangue, hálito de leite, tomar-te nos braços, naquilo a que chamávamos «dar um grande abraço à Mamã», e cujo sentido secreto, cujo sentido nunca enunciado, era que a Mamã não devia ficar triste, porque em vez de morrer continuaria a viver em ti.

Viver! És a minha vida; amo-te tanto como amo a própria vida. De manhã saio ao jardim, humedeço o meu dedo e exponho-o ao vento. Quando a aragem vem do noroeste, do teu quadrante, fico muito tempo a farejar, a concentrar toda a minha atenção na esperança de que, atravessando dez mil milhas de terra e mar, chegue até mim algum sopro desse perfume leitoso que trazes ainda atrás das orelhas, na dobra do pescoço.

A primeira tarefa que se me impõe, a partir de hoje: resistir à ânsia de partilhar a minha morte. Amar-te, amar a vida, perdoar aos vivos e despedir-me sem azedume. Abraçar a morte como coisa minha, só minha e de mais ninguém.

Para quem isto que escrevo, então? Resposta: para ti mas não para ti; para mim; para ti em mim.

Toda a tarde tentei manter-me ocupada, esvaziando gavetas, escolhendo e deitando fora papelada. Ao lusco-fusco tornei a ir lá fora. Por trás da garagem, o abrigo estava montado como antes, com o plástico preto muito bem esticado por cima. Deitado lá dentro, o homem, pernas encolhidas, tendo a seu lado um cão, que arrebitou as orelhas e abanou o rabo. Um colhe ainda novo, pouco mais que um cachorro, preto, com as extremidades brancas.

- Nada de fogueiras - disse eu. - Percebeu? Não quero fogueiras, não quero lixo.

Ele soergueu-se, friccionando os tornozelos nus, olhando em redor como se não soubesse onde estava. Cara de cavalo, crestada pelo sol e pelo vento, com olheiras inchadas de alcoólico. Uns olhos verdes estranhamente mórbidos.

- Quer comer alguma coisa? - perguntei.

Ele entrou comigo na cozinha, cão no encalço, e ficou à espera enquanto eu lhe fazia uma sanduíche. Deu uma dentada, mas depois pareceu esquecer-se de mastigar, encostado à ombreira da porta, com a boca cheia, a luz a reflectir-se-lhe no vácuo dos olhos verdes, enquanto o cão gania baixinho.

-Tenho que arrumar a cozinha - disse eu impacientemente, e fiz menção de lhe fechar a porta na cara. Ele foi-se embora sem um murmúrio; mas antes de virar a esquina, tenho a certeza de que o vi deitar fora a sanduíche, que o cão se precipitou a apanhar.

No teu tempo não havia tantos destes sem-abrigo. Mas agora fazem parte da vida daqui. Se tenho medo deles? De um modo geral, não. Pequenas esmolas, pequenos roubos; sujidade, barulho, bebedeiras; nada de mais grave. O que me assusta são os bandos errantes, os rapazes mal-encarados, ávidos como tubarões, sobre quem começa a pairar a primeira sombra dos muros da prisão. Crianças que desdenham a infância, o tempo do espanto, o tempo de deixar crescer a alma. As suas almas, os seus órgãos do espanto - atrofiadas, petrificadas. E do outro lado da grande muralha os primos brancos, também de alma atrofiada, enterrando-se mais e mais nos seus casulos sonolentos. Aulas de natação, aulas de equitação, aulas de ballet; críquete no relvado; vidas passadas em jardins cercados de muros e guardados por buldogues; filhos do paraíso, louros, inocentes, radiosos de luz angelical, suaves como putti. A sua morada é o limbo dos nascituros, a sua inocência a inocência das larvas de abelha, gordas e brancas, encharcadas em mel, absorvendo doçura através da pele macia. Almas sonolentas, cheias de beatitude, alheadas.

Porque é que dou de comer a este homem? Pela mesma razão que me faria alimentar o seu cão (roubado, tenho a certeza) se ele me viesse pedir comida. Pela mesma razão que me fez dar-te o peito.

Estarmos repletos ao ponto do podermos dar, e darmos da nossa plenitude: haverá ânsia mais profunda? Dos seus corpos murchos, até os velhos tentam espremer uma última gota. Um desejo obstinado de dar, de nutrir. Certeira foi a pontaria da morte quando escolheu o meu peito para a sua primeira flecha.

Hoje de manhã, quando lhe fui levar café, encontrei-o a urinar na sarjeta, sem dar mostras de ter disso a menor vergonha.

- Quer trabalhar? - perguntei. - Posso-lhe arranjar uma data de coisas para fazer.

Ele não disse nada, mas bebeu o café, segurando a caneca com ambas as mãos.

- Você está a desperdiçar a sua vida- disse eu. -Já não é nenhuma criança. Como é que consegue viver assim? Como é que pode dormir aí pelos cantos e passar o dia inteiro sem fazer nada? Não percebo.

É verdade: não consigo perceber. Alguma coisa em mim se revolta contra a lassidão, o deixar cair os braços, a dissolução consentida.

Ele fez uma coisa que me chocou. Fitando-me nos olhos - era a primeira vez que me olhava de frente - cuspiu um escarro, espesso, amarelo, raiado do castanho do café, para o chão de cimento a meus pés. Depois atirou-me a caneca e afastou-se.

Aquela coisa, pensei, abalada: aquela coisa que se interpusera entre nós. Não cuspiu sobre mim, mas para diante de mim, para um lugar onde eu pudesse ver o escarro, examiná-lo, pensar nele. A sua palavra, uma espécie de palavra, que num ápice lhe saiu da boca, ainda quente. Uma palavra, inegavelmente - palavra de uma linguagem anterior à linguagem. Primeiro o olhar, depois o acto de cuspir. Que olhar fora aquele? Um olhar sem sombra de respeito, de um homem para uma mulher com idade para ser sua mãe. Ora toma: aí tens o teu café.

A noite passada ele não dormiu no carreiro. Os caixotes também se foram. Mas, procurando bem, dei com o saco da Air Canada na casa da lenha, e com uma clareira que ele deve ter aberto para se deitar entre as achas e os gravetos. Por isso sei que tenciona voltar.

 

Seis páginas já, todas elas sobre um homem que nunca viste e nunca verás. Porque é que escrevo acerca dele? Porque ele é e não é eu.

Porque no seu olhar me vejo de uma forma passível de ser escrita. De outro modo que seria esta escrita senão uma espécie de gemido, ora lancinante ora abafado? Ao escrever acerca dele escrevo acerca de mim própria. Ao escrever acerca, do seu cão escrevo acerca de mim própria; ao escrever acerca da casa escrevo acerca de mim própria. Homem, cão, casa: qualquer que seja a palavra, é por meio dela que te estendo a mão. Num mundo diferente não precisaria de palavras. Aparecer-te-ia à porta de casa. Diria: «Vim-te fazer uma visita», e as palavras acabariam aí: abraçar-te-ia e seria abraçada. Mas neste mundo, neste tempo, tenho que tentar alcançar-te pela palavra. Por isso, dia após dia, traduzo-me em palavras e embrulho as palavras na página como bombons: como bombons para a minha filha, para o -seu aniversário, para o dia do seu nascimento. Palavras saídas do meu corpo, confeitos de mim, para ela desembrulhar no seu próprio tempo, para meter na boca, para chupar, para assimilar. Como diz o frasco: confeitos à moda antiga, confeitos feitos pelos velhos, feitos e embrulhados com amor, o amor que não temos alternativa senão sentir por aqueles a quem nos damos, para que nos devorem ou nos deitem fora.

Embora tenha chovido sem parar a tarde inteira, só depois de escurecer ouvi ranger o portão e, momentos depois, o ruído das unhas do cão no pavimento da varanda.

Estava a ver televisão. Um elemento da tribo dos ministers e onder-ministers fazia uma comunicação ao país. Eu estava de pé, como sempre faço quando eles falam, para conservar, na medida do possível, o respeito por mim própria (quem quereria enfrentar sentado um pelotão de fuzilamento?). Ons buig nie voor dreigemente nie, dizia ele: não cedemos a ameaças: um daqueles discursos.

Tinha as cortinas abertas atrás de mim. A dada altura apercebi-me da presença dele, desse homem de quem não sei o nome, a espreitar pelo vidro, por cima do meu ombro. Por isso subi o som, o bastante para que lhe chegassem aos ouvidos, senão as palavras, pelo menos as cadências, os vagarosos e truculentos ritmos do africânder, com as suas sílabas finais surdas, como um martelo a enterrar uma estaca no solo. Martelada após martelada, escutámos juntos. A humilhação da vida que vivemos à sombra deles: abrir um jornal, ligar a televisão – como ajoelhar e ser-se regado de urina. A sombra deles: a sombra dos seus ventres carnudos, das suas bexigas cheias. «Os vossos dias estão contados», murmurava-lhes eu noutros tempos, a eles que afinal me vão sobreviver.                      

 

Preparava-me para ir às compras, acabava de abrir a porta da garagem, quando tive um súbito ataque. Isso mesmo, um ataque: a dor a atirar-se a mim como um cão, a cravar-me os dentes nas costas. Dei um grito, incapaz de me mexer. Então ele, o tal homem, apareceu não sei de onde e ajudou-me a voltar para dentro de casa.

Deitei-me no sofá, sobre o lado esquerdo, na única posição confortável que me resta. Ele ficou à espera.

- Sente-se - disse eu. Ele sentou-se. A dor começou a atenuar-se. - Tenho um cancro - disse eu. - Já chegou aos ossos. Daí as dores.

Não fazia ideia se ele percebia ou não.

Um longo silêncio. E depois:

- Tem uma grande casa - disse ele. - Podia transformá-la numa pensão.

Fiz um gesto de cansaço.

- Podia alugar quartos a estudantes - continuou ele, implacável. Bocejei e, sentindo descair a dentadura, tapei a boca com a mão.

Noutros tempos, teria corado. Agora já não.

- Tenho uma mulher que me ajuda na lida da casa - disse eu. - Vai estar fora até ao fim do mês, de visita à sua gente. Você tem gente sua?

Curiosa expressão: ter gente sua. Eu terei gente minha? Serás tu a minha gente? Acho que não. Talvez só a Florence possa dizer que tem gente sua.

Ele não respondeu. Há no seu ar qualquer coisa que é a negação da infância. Um ar não só de não ter posto crianças neste mundo mas também de não ter infância no passado. Apenas ossos e pele curtida pelas intempéries, o seu rosto. Tal como não se consegue imaginar uma cabeça de cobra que não pareça velha, também se não consegue ver por trás do seu rosto um rosto de criança. Olhos verdes, olhos de animal: como conceber uma criança com uns olhos assim?

- Separei-me do meu marido há muito tempo - disse eu. - Ele já morreu. Tenho uma filha na América. Foi-se embora em 1976 e nunca mais voltou. Casou com um americano. Têm dois filhos.

Uma filha. Carne da minha carne. Tu.

Ele tirou do bolso um maço de cigarros.;

- Não fume dentro de casa, por favor - disse eu.

- Qual é a sua incapacidade? - perguntei. - Disse-me que recebia uma pensão por incapacidade.

Ele estendeu a mão direita. O polegar e o indicador esticados; os outros três dedos encolhidos contra a palma da mão.

- Não os posso mexer - disse ele.

Olhámos ambos para a mão dele, para os três dedos aleijados, de unhas encardidas. Não era propriamente aquilo a que eu chamaria uma mão calejada pelo trabalho.

- Foi um acidente?

Ele acenou com a cabeça; um desses acenos que não comprometem a coisa nenhuma.

- Eu pago-lhe para me cortar a relva - disse eu.

Durante uma hora, usando a tesoura de aparar a sebe, tosquiou desconsoladamente a relva que, em certos sítios, já lhe dava pela altura do joelho. Limpou uma zona com meia dúzia de metros quadrados. Depois desistiu. Disse: «Não é serviço para mim». Paguei-lhe a hora de trabalho. Ao sair, tropeçou no caixote de serradura dos gatos, espalhando lixo pela varanda toda.

Bem vistas as coisas, não vale os sarilhos que causa. Mas não fui eu que o escolhi. Foi ele que me escolheu a mim. Ou talvez tenha apenas escolhido a única casa sem cão. Uma casa de gatos.

Os gatos andam nervosos com estes recém-chegados. Assim que deitam o nariz fora de portas o cão arremete contra eles, desafiando-os para a brincadeira, de modo que tornam logo a esgueirar-se para dentro de casa, mal-humorados. Hoje não quiseram comer. Pensando que rejeitassem a comida por ter estado no frigorífico, misturei um pouco de água quente na pasta malcheirosa (o que será? carne de foca? carne de baleia?). Mesmo assim desdenharam-na, contornando o prato, agitando a ponta da cauda.

- Comam! - disse eu, empurrando o prato para junto deles. O maior levantou melindrosamente a pata para evitar o contacto com a comida. Perante isso, perdi as estribeiras. - Então vão para o diabo! - gritei, atirando desvairada o garfo na sua direcção - Estou mais que farta de vos dar de comer! - Havia na minha voz um laivo inédito de loucura; e exultei ao ouvir-me. Basta de ser boazinha para as pessoas, basta de ser boazinha para os gatos! - Vão para o diabo! - gritei de novo, a plenos pulmões. Na debandada, os gatos rasparam com as unhas no linóleo.

Quero lá saber! Quando fico assim sou capaz de pôr a mão na tábua do pão e de a decepar sem pensar duas vezes no assunto. Quero lá saber deste corpo que me atraiçoou! Olho para a minha mão e apenas vejo um instrumento, um gancho, uma coisa para agarrar outras coisas. E estas pernas, estas andas feias e desajeitadas: porque hei-de ter que as levar comigo para todo o lado? Porque hei-de as levar comigo para a cama, noite após noite, arrumá-las entre os lençóis, arrumar também os braços, mais acima, junto à cara, e ficar ali deitada, sem conseguir conciliar o sono, no colchão atravancado? E também o abdómen, com os seus gorgolejos surdos, e o coração a bater, a bater: porquê? Que têm eles que ver comigo?

Adoecemos antes de morrer para fazermos o desmame do nosso corpo. O leite que nos alimentou faz-se ralo e azedo; virando costas ao seio, começamos a ansiar por uma vida sem ele. Porém, esta primeira vida, esta vida na terra, no corpo da terra - haverá, poderá haver outra melhor? Apesar de todas as crises de melancolia, de desespero e de raiva, não me desfiz do amor que lhe tenho.      

 

Cheia de dores, tomei dois dos comprimidos do Dr. Syfret e deitei-me no sofá. Passadas horas acordei atordoada e com frio, subi a escada aos tropeções, meti-me na cama sem me despir.

A meio da noite dei por uma presença no quarto que só podia ser a dele. Uma presença ou um cheiro. Estava ali, depois foi-se embora.

Ouviu-se no patamar um ranger de dobradiças. Agora está a entrar no escritório, pensei; agora está a acender a luz. Tentei recordar se entre os papéis que deixara em cima da secretária havia alguns que fossem particulares, mas tinha as ideias demasiado confusas. Agora está a ver os livros, prateleira sobre prateleira, e as pilhas de jornais velhos. Agora está a olhar para as imagens na parede: Sophie Schliemann enfeitada com as jóias do tesouro de Agamémnon; a Deméter do Museu Britânico, envolta nas pregas da túnica. Agora abre, sem ruído, as gavetas da secretária. A de cima, cheia de cartas, facturas, selos arrancados dos envelopes, fotografias, não o interessa. Mas na gaveta de baixo há uma caixa de charutos cheia de moedas: dinheiros, dracmas, cêntimos, xelins. A mão dos dedos encurvados mergulha na caixa, tira duas moedas de cinco pesetas, suficientemente grandes para poderem passar por rands, mete-as no bolso.

Não é um anjo, manifestamente. Antes um insecto, saindo de trás dos rodapés quando a casa está às escuras para procurar migalhas.

Ouvi-o no outro extremo do patamar, tentando abrir as duas portas trancadas. É só tralha, quis segredar-lhe - tralha e recordações mortas; mas a névoa na minha cabeça tornou a adensar-se.  

Passei o dia na cama. Sem energia, sem apetite. Li Tolstoi - não a famosa história do cancro, que conheço bem de mais, mas a história do anjo que se instala em casa do sapateiro. Que hipóteses terei, dando um passeio até Mill Street, de encontrar o meu anjo, para o trazer para casa e prestar-lhe socorro? Talvez no campo ainda haja um ou outro, reclinados contra um marco miliário, ao calor do sol, a dormitar, à espera do que lhes trará o acaso. Talvez nos campos ocupados por agricultores sem terra. Mas não em Mill Street, não nos subúrbios. Os subúrbios, abandonados pelos anjos. Quando um desconhecido em farrapos vem bater-nos à porta, é sempre um simples vagabundo, um alcoólico, uma alma perdida. Como desejamos, porém, no mais fundo dos nossos corações, que um cântico angelical faça estremecer as paredes destas nossas casas sonolentas!

A casa está cansada de esperar por esse dia, cansada de se manter de pé. As tábuas do soalho perderam a elasticidade. O isolamento dos fios está ressequido, friável, as canalizações entupidas de areia. Os algerozes cedem nos sítios onde os parafusos se desfizeram em ferrugem ou se soltaram da madeira carcomida. As telhas estão cobertas de uma espessa camada de musgo. Uma casa construída com solidez mas sem amor, agora fria, inerte, pronta para a morte. Cujas paredes o sol, mesmo o sol africano, nunca conseguiu aquecer, como se os próprios tijolos, saídos das mãos dos condenados, irradiassem um invencível desalento.

No Verão passado, quando os operários andaram a substituir os

esgotos, vi-os arrancar os canos velhos. Abriram na terra uma vala de dois metros de fundo, exumando tijolos carcomidos, bocados de metal ferrugento, até uma solitária ferradura. Mas nem um osso. Um lugar sem passado humano, sem sombra de interesse para anjos ou espíritos. Esta carta não é um desnudar do meu coração. É o desnudar de alguma coisa, mas não do meu coração.

 

Como o carro hoje de manhã não queria pegar, tive que lhe pedir a ele, a esse homem, a esse hóspede, para o empurrar. Empurrou-me ao longo do acesso à garagem. «Agora!», gritou, dando uma palmada no tejadilho. O motor pegou. Virei para a estrada, avancei alguns metros, e depois, num repentino impulso, parei.

- Tenho de ir a Fish Hoek - bradei no meio de uma nuvem de fumo. - Quer vir comigo?

E assim partimos, o cão no banco de trás, no Hillman verde da tua infância. Estivemos muito tempo sem trocar uma palavra. Passámos o hospital, passámos a Universidade, passámos Bishopcourt, e o cão encostava-se-me ao ombro para sentir o vento no focinho. Subimos a custo a ladeira de Wynberg Hill. No longo e vertiginoso declive do lado de lá, desliguei o motor e deixei deslizar o carro. Descemos cada vez mais depressa, até o volante estremecer nas minhas mãos e o cão desatar a ganir de nervosismo. Eu sorria, creio; talvez tivesse os olhos

fechados.

No sopé do monte, quando começámos a abrandar, olhei o homem de soslaio. Continuava descontraído, imperturbável, no seu lugar. Ah, valente!, pensei.

- Quando eu era miúda - disse -, costumava fazer estas descidas numa bicicleta que praticamente não tinha travões. A bicicleta era do meu irmão mais velho. Ele desafiava-me. Eu não tinha medo nenhum. As crianças não conseguem imaginar a morte. Nunca lhes passa pela cabeça que possam não ser imortais.

«Eu descia encostas ainda mais íngremes do que esta na bicicleta do meu irmão. Quanto mais depressa deslizava, mais viva me sentia. Latejava de vida, como se estivesse prestes a irromper da minha própria pele. Como deve sentir-se uma borboleta quando nasce ou faz por nascer.

«Nestes carros velhos ainda somos livres de nos deixarmos deslizar. Nos carros modernos, quando se desliga o motor o volante fica bloqueado. Você sabe disso com certeza. Mas as pessoas às vezes enganam-se, ou esquecem-se, e depois não conseguem aguentar o carro na estrada. Às vezes capotam e acabam por cair ao mar.»

Cair ao mar. Lutando contra um volante bloqueado e planando numa bolha de vidro por sobre o mar cintilante de sol. Será mesmo verdade? Haverá muita gente a quem isso aconteça? Se eu me pusesse um sábado à tarde no alto de Chapman's Peak, vê-los-ia, homens e mulheres, pairando no ar como uma espessa nuvem de mosquitos que partisse para o seu derradeiro voo?

- Vou-lhe contar uma história - disse eu. - Quando a minha mãe era criança, nos primeiros anos do século, a família costumava ir passar o Natal na praia. Era ainda no tempo dos carros e bois. Faziam num carro de bois todo o trajecto desde Uniondale, no extremo leste da província do Cabo, até Plettenberg Bay, na foz do rio Piesangs, uma viagem de cem milhas que demorava não sei quantos dias. Ao longo do caminho, acampavam à beira da estrada.

«Um dos locais de paragem ficava no alto de um desfiladeiro. Os meus avós passavam a noite dentro do carro, ao passo que a minha mãe e os outros filhos dormiam debaixo dele. Pois bem (e é aqui que começa a história) estava a minha mãe deitada, no alto do desfiladeiro, no silêncio da noite, muito bem aconchegada nos cobertores, com os irmãos a dormir a seu lado, e olhava as estrelas por entre os raios das rodas. Enquanto olhava, pareceu-lhe a dada altura que as estrelas se moviam: ou as estrelas se moviam, ou eram as rodas do carro que se moviam, devagar, muito devagar. Ela pensou: Que hei-de fazer? E se o carro está a começar a andar? Devo lançar o alarme? E se fico calada e o carro começa a ganhar velocidade e desce a encosta toda com os meus pais lá dentro? Mas... e se isto fôr tudo imaginação minha? «Sufocada de medo, coração aos pulos, deixou-se ficar deitada, a olhar as estrelas, a vê-las moverem-se, a pensar: Devo? Não devo?, à espera de ouvir um chiar de rodas, o primeiro chiar. Finalmente adormeceu, e o seu sono foi cheio de sonhos de morte. Mas de manhã, quando despertou, foi para um mundo de luz e paz. E o carro despertou com ela, e despertaram os pais, e estava tudo bem, tudo como antes.»

Ia sendo tempo de ele dizer alguma coisa, sobre montes, automóveis ou bicicletas, sobre si próprio ou sobre a sua própria infância. Mas guardava um silêncio obstinado.

- Ela não disse a ninguém o que se passara durante a noite - continuei. - Talvez quisesse esperar pela minha chegada. Muitas vezes ouvi da boca dela esta história, contada de muitas maneiras. Iam sempre a caminho do rio Piesangs. Que nome lindo, que nome de ouro! Eu tinha a certeza de que devia ser o mais belo lugar do mundo. Anos depois da morte da minha mãe visitey Plettenberg Bay e vi pela primeira vez o rio Piesangs. Não era rio nenhum, era um fiozinho de água escondido entre juncos, com nuvens de mosquitos ao cair da tarde e um parque de campismo cheio de crianças aos berros e de homens gordos, descalços, de calções, a grelhar salsichas em fogareiros a gás. Era tudo menos o Paraíso. Não era sítio aonde valesse a pena organizar uma viagem, ano após ano, por montanhas e vales. O automóvel esfalfava-se agora a subir Boyes Dnve, esforçado mas velho, como o Rocinante. Apertei com mais força o volante, incitando-o a avançar.

Acima de Muizenberg, na elevação sobranceira à enseada de False Bay, estacionei o carro e desliguei o motor. O cão começou a ganir. Deixámo-lo sair. Farejou os passeios, farejou os arbustos, aliviou a bexiga, enquanto nós o olhávamos num silêncio constrangido. Ele resolveu-se a falar.

- Tem o carro virado ao contrário - disse. - Devia tê-lo deixado virado para a descida.

Dissimulei a minha consternação. Sempre quis que me considerassem uma pessoa capaz. E agora mais que nunca, perante o crescente espectro da incapacidade.

- Você é da Cidade do Cabo? - perguntei.

- Sou.

- E viveu aqui a vida inteira?

Ele agitou-se no assento, incomodado. Duas perguntas: uma pergunta a mais.

Uma vaga, traçando uma recta perfeita, com centenas de metros de comprido, avançava para a costa, precedida por uma única figurinha curvada, deslizando sobre a sua prancha de surf. Do lado de lá da baía desenhavam-se, azuis e nítidas, as montanhas de Hottentots Holland. Fome, pensei: é uma fome dos olhos o que eu sinto, uma fome tão grande que resisto até a pestanejar. Estes mares, estas montanhas: quero gravá-los tão fundo na minha vista que os guarde para sempre diante de mim, onde quer que vá. O amor a este mundo dá-me fome.

Um bando de pardais veio poisar nos arbustos à nossa volta; alisaram as penas com o bico, tornaram a levantar voo. O surfista chegou à praia e começou a caminhar pelo areal. De repente senti lágrimas nos olhos. De não pestanejar, disse para comigo. Mas a verdade é que chorava. Curvada sobre o volante, entreguei-me, primeiro, a um soluçar decente, silencioso, depois a uns longos gemidos inarti-culados, esvaziando os pulmões, esvaziando o coração.

- Peço imensa desculpa - arquejei; e depois, já mais calma: - Peço imensa desculpa, não sei o que me deu.

Escusava de ter pedido desculpa. Ele não parecia ter dado por nada. Enxuguei os olhos, assoei-me.

- Vamos? - perguntei.

Ele abriu a porta, deu um longo assobio. O cão saltou para dentro do carro. Um cão obediente, com certeza roubado a uma boa família. O carro estava de facto virado para onde não devia.

- Arranque em marcha atrás - disse ele.

Baixei o travão de mão, deixei descair ligeiramente o carro, levantei o pé da embraiagem. O motor estremeceu e parou.

- Este carro nunca pegou em marcha-atrás - disse eu.

- Vire para a outra faixa da estrada - ordenou ele, como um marido a dar uma lição de condução.

Deixei descair um pouco mais o carro, depois fiz a inversão de marcha. Com uma buzinadela estridente, um grande Mercedes branco passou rente a nós como uma seta.

- Nem o vi! - arquejei. - Avance! - berrou ele.

Fiquei embasbacada a olhar aquele estranho que gritava comigo. - Avance! - tornou a berrar-me aos ouvidos.

O motor pegou. Fiz o caminho de regresso num silêncio hirto. À esquina de Mill Street, ele pediu para sair do carro.

O cheiro pior é o dos pés e sapatos. Ele precisa de meias. Precisa de sapatos novos. Precisa de um banho. Precisa de tomar banho todos os dias; precisa de roupa interior lavada; precisa de uma cama, precisa de um tecto onde se abrigar, precisa de três refeições diárias, precisa de dinheiro no banco. Demasiadas coisas a dar: demasiadas para alguém que, verdade seja dita, só deseja aninhar-se no regaço da mãe e pedir-lhe consolo.

Ao fim da tarde, ele regressou. Esforçando-me por esquecer o que sucedera, levei-o a dar uma volta pelo jardim, indicando-lhe tarefas

que era preciso fazer.

- Podar, por exemplo - disse eu. - Você sabe podar?

Ele abanou a cabeça. Não, não sabia podar. Ou não queria.

No recanto ao fundo do jardim, onde a vegetação se fizera mais exuberante, espessas trepadeiras tapavam o velho banco de carvalho e a coelheira.

- Isto tem que ser tudo arrancado - disse eu. Ele levantou uma ponta da manta de trepadeiras. No fundo da coelheira havia um amontoado de ossos ressequidos, incluindo o esqueleto perfeito de um coelhinho pequeno, pescoço arqueado para trás numa derradeira contorção.

- Coelhos - expliquei. - Eram do filho da minha empregada. Eu dei-lhe licença para os ter aqui, como animais de estimação. Depois houve uma revolução qualquer na vida dele. Esqueceu-se dos bichos e deixou-os morrer à fome. Eu estava no hospital e não soube de nada. Fiquei transtornadíssima quando voltei e descobri os sinais da agonia ignorada que se dera neste fundo de jardim. Criaturas que não sabem falar, nem sequer gritar sabem.

As goiabas iam caindo, roídas pelos bichos, e formavam um tapete mole e malcheiroso debaixo da árvore.

- Só queria que as árvores parassem de dar fruto - disse eu. - Mas nunca param.

O cão, que nos seguia, farejou distraidamente a coelheira. Mortos há muito mortos, já sem cheiro nenhum.

- Enfim, faça o que puder para controlar a situação - disse eu. - A ver se o jardim não fica uma perfeita selva.

- Porquê? - perguntou ele.

- Porque eu sou assim feita - disse eu. - Porque não quero deixar tudo em desordem.

Ele encolheu os ombros, sorrindo para consigo.

- Se quer receber vai ter que ganhar o seu salário - disse eu. - Não lhe pago para não fazer nada.

Trabalhou todo o resto da tarde, cortando as trepadeiras e a relva, parando de tempos a tempos, de olhos postos no horizonte, fingindo não saber que eu o vigiava do meu quarto. Às cinco da tarde paguei-lhe.

- Bem sei que você não é jardineiro - disse-lhe -, e não quero transformá-lo numa coisa que você não é. Mas não podemos continuar num regime de caridade.

Pegando nas notas, dobrando-as, metendo-as no bolso, desviando os olhos para não ter que me olhar de frente, ele perguntou baixinho:

- Porquê?

-        Porque você não merece.

E ele, a sorrir, guardando para si o seu sorriso:

- Merecer... quem é que merece alguma coisa?

Quem é que merece alguma coisa? Numa súbita fúria, atirei-lhe a carteira.

- Qual é a sua ideia, então? Tirar? Tirar aquilo que quer? Ora vá, tire!

Ele pegou calmamente na carteira, esvaziou-a dos trinta rands e mais alguns trocos que continha, e devolveu-ma. Depois foi-se embora, com o cão a saltitar no seu encalço. Meia hora depois estava de volta; ouvi o tinir das garrafas.

Tinha arranjado algures um colchão, um desses colchões de dobrar que as pessoas levam para a praia. Estava deitado a fumar no seu pequeno ninho entre o pó e o lixo da casa da lenha, com uma vela à cabeceira e o cão a seus pés.

- Quero o meu dinheiro - disse eu.

Ele meteu a mão no bolso e estendeu-me umas quantas notas. Agarrei nelas. Não era o dinheiro todo, mas não importava.

- Se lhe faltar alguma coisa, pode-me pedir - continuei. - Não sou avarenta. E tenha cuidado com essa vela. Não quero aqui incêndios.

Virei costas e afastei-me. Mas passados instantes estava de volta.

- Você disse-me que transformasse esta casa numa pensão para estudantes. Pois bem, podia fazer dela coisas bem melhores. Podia transformá-la num albergue para mendigos. Podia montar uma sopa dos pobres e um dormitório. Mas não o faço. E porquê? Porque o espírito da caridade morreu neste país. Porque os que aceitam a caridade desprezam-na, e os que dão, dão com o coração cheio de desespero. De que vale a caridade quando não vai de coração para coração? O que é que pensa que é a caridade? Sopa? Dinheiro? Caridade: da palavra latina que quer dizer coração. Tão difícil é receber como dar. Exige um esforço igualmente grande. Gostava que aprendesse isto. Gostava que aprendesse alguma coisa, em vez de andar sempre a dormir aí pelos cantos.

Uma mentira: a caridade, caritas, nada tem que ver com o coração. Mas que importa se os meus sermões assentam em falsas etimologias? Ele mal me ouve quando lhe falo. Apesar daqueles olhos de pássaro sempre alerta, talvez esteja mais toldado pela bebida do que parece. Ou, pura e simplesmente, talvez nada o afecte. O afecto: a verdadeira raiz da caridade. Procuro-o em busca de afecto, e ele não mo dá. Porque está para além de todo o afecto. Do afecto que se sente e do afecto que se inspira.

 

Como a vida neste país se assemelha muito à vida a bordo de um navio prestes a afundar-se, um desses paquetes de outros tempos, com a lúgubre figura do comandante bêbedo, a tripulação mal-encarada e os salva-vidas a meter água, tenho sempre à cabeceira o rádio de ondas curtas. A maior parte do tempo só se ouve gente a falar; mas se insistirmos até às horas mais improváveis da noite há estações que cedem e passam música. Ora nítidos, ora indistintos, ouvi ontem à noite - vindos de onde? De Helsínquia? Das ilhas Cook? - hinos de todas as nações, música celestial, música que nos abandonou há anos e que nos chega das estrelas transfigurada, suave, um testemunho de que- tudo o que se vai acaba um dia por voltar. Um universo fechado, redondo como um ovo, que nos encerra.

Deixei-me ficar deitada às escuras, escutando a música das estrelas e os estalidos e zunidos que a acompanhavam como uma poeira de meteoros, a sorrir, com o coração cheio de gratidão por esta boa nova vinda de longe. A única fronteira que não pode ser fechada, pensei: a que separa a África do Sul do império do céu. Para onde eu estou de partida. Para onde não é preciso passaporte.

Ainda sob o efeito da música (era Stockhausen, creio eu), sentei-me esta tarde ao piano e toquei algumas das velhas peças: prelúdios do Cravo Bem Temperado, prelúdios de Chopin, valsas de Brahms, nas transcrições de Novello e Augener, partituras esfarrapadas, sarapintadas, secas como pó. Toquei tão mal como sempre, enganando-me nos mesmos acordes em que me enganava há meio século, repetindo erros de digitação que acabaram por se me infiltrar nos ossos e já não têm emenda possível. (Os ossos a que os arqueólogos dão mais valor são, agora me lembro, os corroídos pela doença ou fendidos por uma ponta de seta: ossos marcados por uma história de um tempo anterior à história.) Quando me cansei da doçura de Brahms fechei os olhos e pus-me a tocar acordes, procurando com os dedos o acorde que reconheceria, quando o encontrasse, como o meu acorde, esse a que dantes chamávamos o acorde perdido, o acorde do coração. (Falo de um tempo antes do teu tempo, em que ao descer a rua por uma tarde quente de sábado, se podia ouvir, vindo de alguma sala de visitas, o som ténue mas insistente da menina da casa a procurar no teclado essa tão almejada e esquiva ressonância. Dias de magia, de tristeza e também de mistério! Dias de inocência!)

«Jerusalém!» , cantei baixinho, tocando acordes que ouvira pela última vez ao colo da minha avó. «And was Jerusalém y-builded here?»

Voltei finalmente a Bach e toquei inabilmente, vezes sem conta, a

primeira fuga do Livro Primeiro. A sonoridade era baça, as linhas melódicas empasteladas mas, de quando em quando, durante alguns compassos, vinha à tona a coisa genuína, a música genuína, a música imorredoura, confiante, serena.

Tocava só para mim. Mas a dada altura rangeu uma tábua ou passou uma sombra atrás do cortinado, e percebi que ele estava lá fora a ouvir.

Por isso toquei Bach para ele, o melhor que soube. Tocado o último compasso, fechei a partitura e fiquei sentada, com as mãos no regaço, a contemplar o retrato oval da capa, com as suas grandes bochechas, o seu sorriso untuoso, as suas olheiras inchadas. Um puro espírito, pensei - mas que estranho templo o abrigava! Onde estará agora esse espírito? Nos ecos da minha execução canhestra, que a pouco e pouco se vão sumindo no éter? No meu coração, onde a música baila ainda? Terá ela alcançado também o coração do homem de calças descaídas que escuta à janela? Terão os nossos dois corações, os nossos órgãos do amor, tido a ligá-los, pelo espaço deste breve instante, um laço de som?

Tocou o telefone: uma moradora dos apartamentos do outro lado da rua a avisar-me de que avistara um vagabundo no meu terreno. - Não é um vagabundo - disse eu. - É um homem que trabalha para mim.

Vou deixar de atender o telefone. Não estou disposta a falar com ninguém senão contigo e com o homem gordo da figura; e não creio que algum dos dois vá telefonar.

O paraíso. Imagino o paraíso como um átrio de hotel de tecto alto, com os altifalantes a transmitir baixinho a Arte da Fuga. Onde nos podemos sentar, imunes à dor, numa poltrona funda de couro. Um átrio de hotel cheio de velhos a dormitar, a ouvir música, enquanto almas passam e tornam a passar à sua frente como nuvens, as almas de todos eles. Um lugar apinhado de almas. Vestidas? Vestidas, sim, imagino; mas de mãos vazias. Um lugar para onde não levamos nada senão uma indumentária abstracta e as recordações que temos dentro de nós, as recordações de que somos feitos. Um lugar sem incidentes. Uma estação de caminho-de-ferro depois da abolição dos comboios. Ouvir a eterna música celestial, à espera de coisa nenhuma, folheando ociosamente o repositório das recordações.

Ser-me-á possível estar sentada nessa poltrona, a ouvir música, sem me afligir com a casa fechada e às escuras, com os gatos a rondar pelo jardim, sem comida, furiosos? Tem que ser possível, senão para que serve o paraíso? Morrer sem sucessão, todavia - perdoa-me por to dizer - é tão contra-natura! Para termos paz de espírito, paz de alma, precisamos de saber quem virá depois de nós, que presença preencherá as salas que um dia habitámos.

Penso nessas casas de quinta abandonadas por onde passei ao volante do automóvel, no Karoo e na costa ocidental, cujos donos partiram há anos para a cidade, deixando portas e janelas entaipadas, portões trancados. Agora a roupa balouça no estendal, sai fumo da chaminé, crianças brincam diante da porta das traseiras, acenando aos automóveis que passam. Uma terra em vias de ser reapropriada, os herdeiros que sub-repticiamente se anunciam. Uma terra tomada pela força, usada, espoliada, despojada, abandonada nos anos estéreis do fim da vida. Também amada, talvez, pelos seus captores, mas amada só na flor da juventude e, por conseguinte, no veredicto da história, não suficientemente amada.

Abrem-nos os dedos depois do grande evento, para ver se não tentamos levar alguma coisa connosco. Um seixo. Uma pena. Uma semente de mostarda debaixo da unha.

E como uma conta, uma conta labiríntica, subtracção atrás de subtracção, divisão atrás de divisão, até nos deixar a cabeça a andar à roda. Todos os dias tento fazê-la de novo, acalentando no coração uma centelha de esperança dè" que neste caso apenas, o meu caso, possa ter havido um erro. E todos os dias me detenho diante da mesma parede branca: a morte, o esquecimento. O Dr. Syfret, no seu gabinete: «Temos que enfrentar a verdade». Isto é: temos que enfrentar a parede. Mas não é ele que tem de a enfrentar: sou eu.

Penso nos prisioneiros alinhados à beira da vala para onde cairão os seus corpos. Dirigem súplicas ao pelotão de fuzilamento, choram, gracejam, oferecem subornos, oferecem tudo o que têm: os anéis que trazem nos dedos, a roupa que trazem no corpo. Os soldados riem. Porque vão, de qualquer maneira, ficar com tudo isso, e ainda com o ouro dos dentes dos presos.

Não há verdade senão a do calafrio de dor que me percorre quando, num instante de fraqueza, me invade uma visão desta casa, vazia, com o sol a entrar pelas janelas e a incidir numa cama vazia, ou de False Bay sob o céu azul, prístina, deserta - quando o mundo onde passei a minha vida me aparece e eu já não lhe pertenço. A minha existência, o meu dia a dia, tornou-se um desviar os olhos, um virar costas. A morte é a única verdade que me resta. A morte é o que eu não suporto pensar. A cada instante, quando penso noutra coisa, estou a não pensar a morte, a não pensar a verdade.

Tento dormir. Esvazio o espírito: a calma começa a invadir-me. Estou a cair, penso, estou a cair: benvindo, doce sono. Depois, no último limiar do olvido, surge alguma coisa que me puxa para trás, alguma coisa cujo nome só pode ser pavor. Debato-me para me libertar. Estou acordada no meu quarto, na minha cama, está tudo bem. Uma mosca poisa-me na cara. Lava as patas. Inicia as suas explorações. Caminha pelo meu olho, pelo meu olho aberto. Quero pestanejar, quero sacudi-la, mas não consigo. Examino-a com um olho que é e não é meu. Ela lambe-se, se assim pode dizer-se. Não há naqueles órgãos protuberantes nada que se possa identificar como sendo um rosto. Mas está em cima de mim, está aqui: passeia pelo meu corpo, criatura de um outro mundo.

Ou então são duas da tarde. Estou estendida no sofá ou na cama, procurando não me apoiar na anca, onde a dor é mais forte. Tenho uma visão de Esther Williams, de raparigas rechonchudas em fatos de banho às flores, nadando de costas sem esforço, numa formação ordenada, por águas ondulantes, de um azul-celeste, sorrindo e cantando. Soam guitarras invisíveis; as bocas das raparigas, arcos de batom ver-melho-vivo, formam palavras. O que estão a cantar? Poente... Adeus... Taiti. Invade-me uma imensa saudade do velho cinema Savoy, dos bilhetes a um xelim e quatro dinheiros, numa moeda para sempre extinta, há muito derretida, tirando os trocos que tenho guardados na gaveta da secretária - de um lado Jorge VI, o bom rei, o gago, do outro um casal de rouxinóis. Rouxinóis. Nunca ouvi o cantar do rouxinol, e nunca o hei-de ouvir. Abraço a nostalgia, abraço a saudade, abraço o rei, as raparigas a nadar, abraço tudo quanto venha tomar conta de mim.

Ou então levanto-me e ligo a televisão. Num canal, futebol. No outro um homem negro de mãos postas por sobre a Bíblia, a pregar-me numa língua de que nem sei o nome. Esta é a porta que abro para deixar entrar o mundo, e este o mundo que me chega. É como espreitar para dentro de um cano.

Há três anos a casa foi assaltada (talvez te lembres, falei-te disso numa carta). Os ladrões só levaram o que podiam transportar, mas antes de saírem despejaram todas as gavetas, retalharam todos os colchões, partiram loiça, estilhaçaram garrafas, atiraram para o chão todas as provisões da despensa.

- Porque é que eles fazem estas coisas? - perguntei, desconcertada, ao inspector da polícia. - O que é que ganham com isso?

- São assim mesmo - respondeu ele. - Uns perfeitos animais. Depois disso mandei pôr grades em todas as janelas. Foi um indiano gorducho que veio instalá-las. Depois de aparafusar as grades à armação de ferro, encheu de cola as cabeças de todos os parafusos.

- É para não poderem ser desaparafusados - explicou. E à saída disse, dando-me uma palmadinha na mão: - Agora está em segurança.

«Agora está em segurança.» Palavras de um guarda de jardim zoológico, quando ao cair da noite tranca a gaiola de uma ave indefesa, sem asas. Um dodó fêmea: a última da espécie, já muito velha, incapaz de pôr ovos. «Agora está em segurança.» Fechada à chave, enquanto os predadores famintos rondam lá fora. Um dodó fêmea a tremer no ninho, a dormir com um olho fechado, outro aberto, saudando exausto o nascer do dia. Mas em segurança, em segurança na sua gaiola, intactas as grades, intactos os fios: o fio do telefone, pelo qual pode em último caso pedir socorro, o fio da televisão, por onde chega a luz do mundo, o fio do rádio, que convoca a música das estrelas.

A televisão. Porque é que a vejo? Todas as noites, a parada dos políticos: basta-me ver os rostos carnudos, inexpressivos, que tão bem conheço desde criança, para sentir desalento e náusea. Os brutamontes da última fila de carteiras na sala de aulas, rapazes ossudos, desajeitados, agora adultos e promovidos a governantes desta terra. Eles, e os pais e as mães, os tios e as tias, os irmãos e irmãs: uma horda de gafanhotos, uma praga de gafanhotos negros a infestar o país, mastigando sem cessar, devorando vidas. Porque os olho, cheia de horror e aversão? Porque os deixo entrar em minha casa? Porque o império da família dos gafanhotos é a verdade da África do Sul, e é a verdade que me agonia? A legitimidade já não é questão que os preocupe. Votaram a razão ao desprezo. O que os absorve é o poder e o embrutecimento do poder. Comem e falam, devoram vidas, arrotam. Sentados em círculo, debatendo gravemente, ditando sentenças como marteladas: morte, morte, morte. Imunes ao fedor. Pálpebras descaídas, olhinhos de porco, cheios da argúcia de gerações e gerações de camponeses. Conspirando uns contra os outros, também: lentas conspirações de camponeses, dessas que levam séculos a amadurecer. Os novos africanos, homens de ventre rotundo, de bochechas flácidas, sentados nos seus tronos: Cetshwayo, Dmgane, de pele branca. Abafando tudo: um poder que lhes advém do peso. Grandes testículos de touro, abafando as esposas, os filhos, abafando a centelha que os habita. Nos seus próprios corações já não há sequer uma centelha acesa. Corações sonolentos, pesados como coágulos de sangue.

E a sua mensagem estupidamente imutável, estúpida e eternamente idêntica. Ao cabo de anos e anos de meditação etimológica sobre a palavra, cometeram a proeza de conseguir elevar a estupidez à categoria de virtude. Estupefazer: privar de sensibilidade; entorpecer, embotar; aturdir de espanto. Estupor: insensibilidade, apatia, torpor do espírito. Estúpido: que tem as faculdades embotadas, indiferente, destituído de pensamento ou sensibilidade. De stupere, atordoar, aturdir. Um gradiente de estúpido a aturdido a petrificado, transformado em pedra. A mensagem: a de que a mensagem nunca muda. Uma mensagem que transforma as pessoas em pedra.

Olhamo-los como os pássaros olham as serpentes, fascinados por quem se prepara para nos devorar. O fascínio: a homenagem que prestamos à nossa morte. Entre a oitava e a nona hora, reunimo-nos e eles dão-se-nos a ver. Uma manifestação ritual, como a manifestação de bispos encapuçados durante a guerra de Franco. Uma tanatofania: dar-nos a ver a nossa morte. Viva la muerte!, gritam eles, ameaçadores. Morte aos jovens. Morte à vida. Bestas que devoram as crias. A Guerra das Bestas. ( Nota 1 ).

 

( Nota 1 ) - No original: «Boar War» (à letra, a Guerra dos Javalis). Perde-se na tradução o trocadilho, evidente em inglês, entre:boar e Bóer, (N.T.)

 

Digo para comigo que não estou a ver a mentira mas o espaço por trás da mentira onde deveria estar a verdade. Mas será verdade?

Dormitei (é ainda sobre o dia de ontem que estou a escrever), li, dormitei de novo. Fiz chá, pus um disco. Compasso a compasso, as Variações Goldberg foram erigindo no ar o seu edifício. Fui à janela. Era quase noite. O homem estava encostado à parede da garagem, de cócoras, fumando, a ponta do cigarro a luzir. Talvez me tenha visto, talvez não. Ficámos juntos a ouvir.

Neste instante, pensei, sei o que ele sente, sei-o tão bem como se estivéssemos a fazer amor.

Embora a ideia me tivesse ocorrido inopinadamente, embora me fosse em extremo desagradável, enfrentei-a sem estremecer. Ele e eu, peito contra peito, de olhos fechados, percorrendo juntos o velho caminho. Estranhos companheiros de jornada! Como viajar de camioneta na Sicília, rosto e corpo encostados ao corpo e ao rosto de um estranho. Talvez a vida depois da morte seja assim mesmo: não um átrio com poltronas e música mas uma grande camioneta apinhada de gente, viajando de nenhures para parte nenhuma. Só lugares de pé: eternamente em pé, entalada entre estranhos. A atmosfera pesada, viciada, carregada de suspiros e murmúrios: Desculpe, desculpe. Contactos promíscuos. Eternamente sob o olhar dos outros. O fim da vida privada.

E ele de cócoras, no outro extremo do pátio, a fumar, a ouvir. Duas almas, a dele e a minha, entrelaçadas, arrebatadas. Como esses insectos que acasalam cauda com cauda, de costas um para o outro, em tudo imóveis excepto num pulsar do tórax que pode facilmente ser tomado por simples respiração. Imobilidade e êxtase.

Atirou fora o cigarro. Uma explosão de centelhas ao embater na terra, depois a escuridão.

Esta casa, pensei. Este mundo. Esta casa, esta música. Isto.

 

- É a minha filha - disse eu. - A filha de que lhe falei, que vive na América.

E olhei-te, na fotografia, com os olhos dele: uma mulher de feições agradáveis, sorridente, de trinta e poucos anos, no meio de um relvado verde, levando a mão ao cabelo soprado pelo vento. Confiante. O olhar que agora tens é assim: o olhar de uma mulher que se encontrou a si própria.

- Estes são os filhos dela.

Dois rapazinhos de boné, casaco, botas e luvas, perfilados em sentido ao lado de um boneco de neve, à espera do disparo da máquina.

Uma pausa. Estávamos sentados à mesa da cozinha. Eu servira-lhe um chá, e bolachas Maria. Bolachas Maria: comida de velhos, de

gente desdentada.

- Há uma coisa que eu queria que me fizesse, se eu morrer. Tenho uns papéis que quero mandar à minha filha. Mas só depois de morta. Isso é o mais importante. Por isso é que não posso ser eu a mandá-los. Trato de tudo o resto. Meto-os num embrulho, com a conta certa de selos. A única coisa que lhe peço para fazer é entregar a encomenda no balcão do correio. Faz isso por mim?

Ele mexeu-se na cadeira, pouco à vontade.

- Se eu pudesse, não lhe pedia este favor. Mas não há outra maneira.

Já não vou cá estar.

- Não pode pedir a outra pessoa? - perguntou ele.

- Posso. Mas estou-lhe a pedir a si. São papéis particulares, cartas particulares. É a herança da minha filha. É a única coisa que lhe posso dar, a única coisa que ela aceitará, vinda deste país. Não os quero abertos e lidos por mais ninguém.

Papéis particulares. Estes papéis, estas palavras que ou lês agora ou não lerás nunca. Chegar-te-ão às mãos? Chegaram-te às mãos? Duas formas de fazer a mesma pergunta, uma pergunta de que nunca saberei a resposta, nunca. Para mim esta carta será para sempre um recado lançado às ondas: uma mensagem numa garrafa, com selos da África do Sul, e o teu nome.

- Não sei - disse o homem, o mensageiro, brincando com a colher.

Não faz promessas. E, mesmo que prometa, fará por fim o que bem entender. Ultimas instruções, nunca passíveis de serem impostas. Porque os mortos não são pessoas. A lei é assim: todos os contratos prescrevem. Os mortos não podem ser enganados, não podem ser traídos, a menos que os tragamos connosco no coração e aí cometamos o crime.

- Deixe lá - disse eu. - Tinha pensado em pedir-lhe também para vir aqui dar de comer aos gatos. Mas hei-de arranjar outra maneira.

Que outra maneira? No Egipto emparedavam os gatos com os donos mortos. Será isso que eu quero - olhos amarelos a caminhar em silêncio de cá para lá, procurando a saída da escura caverna?

- Vou ter que os mandar abater - disse. - Já são muito velhos para mudarem de casa.

Como água num penedo, as minhas palavras caíram no silêncio dele.

- Tenho que arranjar uma solução para eles - disse. - Não posso deixar cair os braços. No meu lugar você faria o mesmo.

Ele abanou a cabeça. Não era verdade. De facto, não era verdade. Uma noite de Inverno, mais tarde ou mais cedo, quando o fogo artificial nas suas veias já não for suficientemente quente para o alimentar, ele há-de morrer. Morrerá num vão de porta ou num beco, peito aconchegado nos braços; encontrá-lo-ão com este cão ou outro cão qualquer ao lado, a ganir, a lamber-lhe a cara. Levá-lo-ão, o cão ficará na rua, e pronto. Nem disposições testamentárias, nem herança, nem mausoléu.

- Eu ponho a sua encomenda no correio - disse ele.

 

Florence voltou, trazendo consigo não só as duas meninas mas também o filho de quinze anos, Bheki.

- Ele vai cá ficar muito tempo, Florence? - perguntei. - Haverá lugar para ele?

- Se ele não estiver comigo mete-se em sarilhos - respondeu Florence. - A minha irmã já não pode olhar por ele. Aquilo está mau em Guguletu, muito mau.

Portanto agora tenho cinco pessoas no pátio das traseiras. Cinco pessoas, um cão e dois gatos. A velha relha que vivia numa bota. E não sabia que fazer, de tão velhota.

Quando a Florence se foi embora, no princípio do mês, eu garanti-lhe que dava conta do trabalho da casa. Mas é claro que não tratei de nada, e em breve um odor azedo, pegajoso, invadiu o andar de cima, um odor a leite coalhado, lençóis sujos, pó de talco. Agora não tinha outro remédio senão segui-la pela casa, cheia de vergonha, enquanto ela tomava nota da ocorrência. Mãos nas ancas, narinas palpitantes, óculos a luzir, Florence ia registando os indícios da minha inépcia. Depois deitou mãos à obra. Ao fim da tarde a cozinha e a casa de banho brilhavam, o quarto de cama estava limpo e arrumado, pairava no ar um cheiro a cera para móveis.

- Que maravilha, Florence - disse eu, proferindo as frases rituais. - Não sei o que faria sem si.

Mas é claro que sabia. Afundar-me-ia na miséria indiferente da velhice.

Depois de fazer o meu trabalho, Florence tratou de fazer o seu. Pôs o jantar no forno e levou as duas filhitas para a casa de banho. Ao vê-la dar-lhes banho, esfregando-as com força atrás das orelhas, entre as pernas, destra, decidida, insensível aos queixumes de ambas, pensei: que mulher admirável, mas que bom não a ter por mãe!

Fui dar com o rapaz a vaguear pelo jardim. Conheci-o em tempos pelo nome de Digby; agora é Bheki. Alto para a idade, com a mesma beleza severa de Florence. Disse-lhe:

- Até custa a crer que tenhas crescido tanto. - Ele não respondeu. Já não era o rapazinho de olhar franco que, quando vinha de visita, corria primeiro que tudo para a coelheira e pegava na gorda coelha branca para a apertar contra o peito. Contrariado, sem dúvida, por se ver separado dos amigos e escondido com as irmãs pequeninas no pátio das traseiras de uma casa que não era a sua.

- Quando foi que as escolas fecharam? - perguntei a Florence.

- Na semana passada. Todas as escolas de Guguletu, Langa, Nyanga. Os miúdos não têm nada que fazer. Por isso andam pelas ruas e metem-se em sarilhos. O melhor ainda é tê-lo aqui debaixo de olho.

- Vai ficar irrequieto, sem os amigos.

Ela encolheu os ombros, sem um sorriso. Acho que nunca a vi sorrir. Mas talvez sorria para os filhos quando está sozinha com eles.

 

- Quem é este homem? - perguntou Florence.

- Chama-se Mr. Vercueil - disse eu. - Vercueil, Verkuil, Verskuil. Diz ele que se chama assim. Eu nunca ouvi semelhante nome. Deixei--o aqui ficar por uns tempos. E tem um cão. Diga às crianças para não o excitarem muito, se brincarem com ele. Ainda é cachorro, pode morder.

Florence abanou a cabeça.          

- Se o homem arranjar problemas, digo-lhe para sair daqui - continuei. - Mas não o posso mandar embora por coisas que ele não fez.

Um dia fresco, ventoso. Sentei-me na varanda, em roupão. Lá em baixo, no relvado, Vercueil desmontava a máquina de cortar relva, com as rapariguinhas a observá-lo. A mais velha, que se chama Hope, segundo diz Florence (não me quer revelar o nome verdadeiro), estava acocorada a uns metros de distância, fora do campo de visão do homem, mãos enlaçadas entre os joelhos. Trazia sandálias novas, vermelhas. A bebé, Beauty, ( Nota 1 ) também de sandálias vermelhas, cambaleava pelo relvado, dando pontapés no ar, sentando-se bruscamente de quando em quando.

Estava eu a olhar quando a bebé avançou para Vercueil, de braços abertos, punhos cerrados. Ia tropeçar na máquina de cortar relva, mas ele agarrou-a pelo braço rechonchudo e levou-a para mais longe, para onde não corresse perigo. De novo, com as suas perninhas bambas, a menina arremeteu contra ele. De novo ele a agarrou e a levou para longe. Começava a parecer um jogo, uma brincadeira. Mas seria o taciturno Vercueil homem para brincar?

Uma vez mais Beauty correu direita a ele; uma vez mais ele a salvou. E depois, maravilha das maravilhas, arredou para o lado a máquina de cortar relva meio desmontada e, dando uma das mãos à bebé, a outra a Hope, começou a andar à roda, primeiro devagar, depois cada vez mais depressa. Hope, com as suas sandálias vermelhas, via-se obrigada a correr para se ter de pé; a bebé, essa, rodopiava no ar, soltando gritinhos de gozo; enquanto o cão, do lado de lá do portão fechado, pulava e ladrava. Que barulho! Que excitação!

Nesse instante Florence deve ter entrado em cena, porque o rodopiar abrandou e parou. Meia dúzia de palavras ditas em voz baixa, e Hope largou a mão de Vercueil, puxou a irmã para longe, desapareceu do meu campo de visão. O cão, desolado, pôs-se a ganir. Vercueil voltou para junto da máquina de aparar relva. Meia hora depois começou a chover.

O rapaz, Bheki, passa os dias sentado na cama de Florence a folhear velhas revistas, enquanto Hope, a um canto do quarto, o observa como quem adora um deus. Às vezes, quando se cansa de

 

( Nota 1 ) - Hope e Beauty: Esperança e Beleza. Ao longo do livro surgem diversas alusões ao significado dos dois nomes. (N. T.)

 

ler, Bheki diverte-se a atirar uma bola de ténis contra a porta da garagem. O barulho é de enlouquecer. Mesmo com a cabeça escondida debaixo da almofada, os baques impiedosos continuam a chegar-me aos ouvidos.

- Quando é que as escolas reabrem?- pergunto, impaciente.

- Eu peço-lhe para acabar com aquilo - diz Florence. Instantes depois, as pancadas param.

No ano passado, quando começaram os tumultos nas escolas, eu disse a Florence o que pensava sobre o assunto.

- No meu tempo, considerávamos a instrução um privilégio. Os pais poupavam e amealhavam para terem os filhos na escola. Para nós, seria coisa de loucos deitar fogo a uma escola.

-        Hoje em dia é diferente - respondeu Florence.    

- Acha bem que as crianças deitem fogo às escolas?

- Não está na minha mão dizer às crianças o que hão-de fazer - disse Florence. - Hoje em dia está tudo mudado. Já não há mães nem pais.

- Que disparate - disse eu. - Há-de haver sempre pais e mães. Assim terminara a nossa troca de palavras.

Dos tumultos nas escolas a rádio nada diz, a televisão nada diz, os jornais nada dizem. No mundo que projectam, todas as crianças do país estão alegremente sentadas nas suas carteiras, estudando o quadrado da hipotenusa e os papagaios da selva amazónica. Aquilo que sei dos acontecimentos em Guguletu baseia-se apenas no que me conta Florence e no que posso concluir indo à varanda e olhando na direcção do nordeste: ou seja, que Guguletu não está hoje a arder, ou se arde é quase sem chama.

O país arde a fogo lento, mas mesmo com a melhor vontade do mundo só metade de mim consegue atender-lhe. A minha verdadeira atenção está toda virada para dentro, para a coisa, a palavra, o nome da coisa que avança pelo meu corpo dentro. Ocupação ignominiosa, e em tempos como estes também ridícula, do mesmo modo que um banqueiro com as roupas a arder é uma anedota, ao passo que um mendigo em chamas não o é. Mas não posso fazer nada contra isso. «Olha para mim!», apetece-me gritar a Florence: «Também eu estou a arder!»

A maior parte do tempo, tomo o cuidado de manter apartadas as letras da palavra, como as lances duma armadilha. Quando leio, leio a medo, saltando linhas ou até parágrafos inteiros quando avisto pelo rabo do olho a sombra da palavra acoitada, à espreita.

Mas no escuro, na cama, sozinha, a tentação de a olhar torna-se demasiado forte. Sinto-me quase impelida para ela. Vejo-me como uma menina, de vestido branco até aos pés e chapéu de palha, numa grande praia deserta. Voa areia a toda a minha volta. Seguro o chapéu com força, finco os pés no chão, faço frente ao vento. Mas passado algum tempo, neste lugar solitário onde não há quem me veja, o esforço torna-se demasiado grande. Descontraio-me. Como uma mão que se me poisasse nos rins, o vento dá-me um empurrão. É um alívio parar de oferecer resistência. Primeiro a andar, depois a correr, deixo que o vento me leve.

E ele leva-me, noite após noite, ao Mercador de Veneza. «Pois não como, não durmo, não respiro como vós?», grita o judeu Shylock. «Não sangro como vós?» - brandindo o punhal onde traz espetada uma libra de carne sanguinolenta. «Não sangro como vós?» - ecoa a voz do judeu, com as longas barbas e o solidéu a bailar de raiva e angústia pelo palco.

Endereçar-te-ia a ti o meu grito se aqui estivesses. Mas não estás. Terei portanto que o endereçar a Florence. Terá que ser Florence a suportar esses momentos em que uma autêntica explosão de medo irrompe de mim, crestando a folha no ramo. «Pronto, já passou»: eis as palavras que quero ouvir pronunciar. Quero que alguém me aperte contra o peito - a Florence, tu, seja lá quem for - e me diga que já passou.

Deitada na cama ontem à noite, com uma almofada debaixo da anca, braços apertados contra o peito para impedir a dor de mudar de sítio, o relógio a marcar 3.45, pensei com enveja e ternura em Florence, a dormir no seu quarto, rodeada pelos filhos adormecidos, os quatro a respirar aos seus quatro diferentes compassos, em sopros fortes e puros.

Dantes eu tinha tudo, pensei. Agora vocês têm tudo e eu não tenho nada.

As quatro respirações continuaram sem falhas, como o manso tiquetaque do relógio.

Dobrando ao meio uma folha de papel, escrevi um bilhete para Florence. Passei mal a noite. Vou tentar dormir até tarde. Veja se as crianças não fazem barulho, por favor. Obrigada. E. C.» Desci ao rés-do-chão, deixei o papel no meio da mesa da cozinha. Depois, a tremer de frIo, voltei para a cama, tomei os comprimidos das quatro da manhã, fechei os olhos, cruzei os braços, e fiquei à espera do sono que não vinha.

Não posso ter o que quero de Florence. Não posso ter nada do que quero.

No ano passado, quando a mais novinha ainda era um bebé de colo, dei a Florence uma boleia até Brackenfeld, onde o marido trabalha.

Ela esperava com certeza que eu a deixasse lá e me fosse embora. Mas, por curiosidade, quis ver o homem, quis vê-los juntos, e entrei com ela.

Era um sábado ao fim da tarde. Saindo do parque de estacionamento, seguimos por um caminho cheio de pó, passando por dois barracões baixos e compridos, até chegarmos a um terceiro, onde vimos um homem de fato-macaco azul, numa cerca de rede cheia de galinhas - frangos, mais precisamente - a andar em círculos à volta dos seus pés. A miúda, Hope, soltou-se da mão da mãe, desatou a correr e agarrou-se à rede. Entre o homem e Florence perpassou qualquer coisa: um olhar, uma pergunta, um reconhecimento.

Mas não havia tempo para saudações. Ele, William, o marido de Florence, tinha trabalho a fazer, e um trabalho que não podia ser interrompido. O seu trabalho era deitar a mão a um frango, virá-lo de cabeça para baixo, prender o corpo recalcitrante entre os joelhos, atar-lhe as pernas com um arame, e passá-lo a um segundo homem, mais novo, que o pendurava, a cacarejar e a bater as asas, num gancho da ruidosa calha que corria acima das suas cabeças e que o transportava até ao fundo do barracão, onde um terceiro homem, de fato de oleado salpicado de sangue, lhe agarrava a cabeça e lhe puxava o pescoço, cortando-o com uma faca tão pequena que parecia fazer parte da sua mão e arremessando no mesmo gesto a cabeça para um barril cheio de outras cabeças mortas.    

Era este o trabalho de William, e eu vi tudo isto antes de ter tempo ou presença de espírito para me perguntar se queria ver ou não. Seis dias por semana, era isto que ele fazia. Atava patas de frangos. Ou talvez se revezasse com os outros homens e pendurasse também frangos em ganchos ou cortasse cabeças. Por trezentos rands por mês, mais alimentação. Um trabalho que já fazia há quinze anos. De modo que não era inconcebível que alguns dos corpos que eu recheara com pão ralado, gema de ovo e salva e esfregara com azeite e alho se tivessem achado presos, nos derradeiros instantes de vida, entre as pernas daquele homem, pai dos filhos de Florence. Que se levantava às cinco da manhã, enquanto eu dormia ainda, para lavar à mangueirada o fundo das gaiolas, encher os comedouros, varrer os barracões, e depois, a seguir ao pequeno almoço, dar início ao abate, ao depenar e eviscerar, à congelação de milhares de carcaças, à embalagem de milhares de cabeças e patas, quilómetros de intestinos, montanhas de penas.

Devia ter-me ido logo embora, assim que vi como aquilo era. Devia ter-me metido no carro e feito os possíveis por esquecer. Mas em vez disso deixei-me ficar junto à verdação de rede, fascinada, enquanto os três homens davam a morte àquelas aves incapazes de voar. E ao meu lado a criança, dedos agarrados à rede, absorvia também o espectáculo.

Tão difícil e tão fácil, matar, morrer.

Chegaram as cinco da tarde, o fim do dia, e despedi-me. Enquanto eu regressava a esta casa vazia, William levou Florence e as filhas para os seus alojamentos. Tomou um banho; ela fez um jantar de arroz de frango no fogão a parafina e deu de mamar à bebé. Era sábado. Alguns dos outros trabalhadores da herdade tinham saído, indo visitar a família ou divertir-se. De modo que Florence e William puderam deitar as crianças num beliche vazio e dar um passeio a sós, ao calor do crepúsculo.

Caminharam pela beira da estrada. Falaram da semana que chegara ao fim, de como as coisas tinham corrido; falaram das suas vidas.

Quando voltaram as filhas dormiam a sono solto. Para terem um pouco de privacidade, penduraram uma manta ao lado do beliche. Depois ficaram com a noite toda por sua conta, tirando a meia hora em que Florence se levantou sem ruído da cama e, no escuro, deu de mamar à bebé.

Domingo de manhã, William - não é o seu nome verdadeiro, mas sim o nome por que é conhecido no mundo do trabalho - vestiu o seu fato completo, pôs o chapéu e os sapatos melhores. Dirigiu-se com Florence para a paragem da camioneta, ela com a bebé às costas, ele de mão dada a Hope. Apanharam a camioneta para Kuilsrivier, e depois um táxi até à casa da irmã com quem morava o filho, em Guguletu.

Já passava das dez, e começava a estar calor. A missa terminara; a sala estava cheia de visitas, vibrante de conversas. Passado algum tempo os homens saíram; eram horas de Florence ajudar a irmã a fazer o almoço. Hope adormeceu no chão. Entrou um cão que lhe lambeu a cara e foi enxotado; mudaram a menina, que continuava a dormir, para o sofá. Aproveitando um momento em que se acharam a sós, Florence entregou à irmã o dinheiro da mensalidade de Bheki, para pagar a alimentação, os sapatos, os livros escolares; a irmã guardou--o no corpete. Depois Bheki entrou e deu um beijo à mãe. Os homens voltaram de onde quer que tivessem estado, e almoçaram todos juntos: frangos da herdade, ou fábrica, ou aviário, ou lá o que é, arroz, couve, molho. Os amigos de Bheki, lá fora, começaram a chamá-lo: ele acabou de almoçar à pressa e levantou-se da mesa.

Tudo isto aconteceu. Tudo isto deve ter acontecido. Era uma tarde como costumam ser as tardes de África: um calor modorrento, um dia de modorra. Por pouco poder-se-ia dizer: assim deveria ser a vida. Chegou a hora de partir. Foram até à paragem da camioneta, Hope às cavalitas do pai. Veio a camioneta; despediram-se. A camioneta levou Florence e as filhas. Levou-as até Mowbray, onde apanharam um autocarro para St. George's Street, e finalmente um terceiro até Kloof Street. De Kloof Street em diante, foram a pé. Quando chegaram à Schoonder Street, já as sombras começavam a alongar-se. Eram horas de dar de jantar a Hope, rabugenta e cansada, de dar banho à bebé, de passar a ferro a roupa que ficara da véspera.

Pelo menos não é gado que ele abate, disse eu para comigo; pelo menos são só galinhas, com os seus olhos desvairados, galináceos, e a sua mania das grandezas. Mas não conseguia deixar de pensar na herdade, na fábrica, na empresa onde o marido da mulher que vivia comigo trabalhava, onde dia após dia calcorreava o cercado, de um lado para o outro, de trás para diante, dando voltas e mais voltas, no meio do cheiro a sangue e a penas, do clamor dos cacarejos indignados, curvando-se, agarrando, prendendo, atando, pendurando. Pensei em todos os homens que de extremo a extremo da África do Sul, enquanto eu ali estava sentada a olhar pela janela, matavam galinhas, escavavam a terra, vagoneta após vagoneta; em todas as mulheres que escolhiam laranjas, faziam casas de botão. Quem saberia contá-las, a essas pazadas de terra, a essas laranjas, a essas casas, a essas galinhas? Um universo de trabalho, um universo de cômputo: como passar os dias diante do relógio, matando os segundos à nascença, contabilizando o escoar da vida.    

 

Desde que Vercueil deitou a mão ao meu dinheiro, tem bebido muito, não só vinho mas também aguardente. Há dias em que não bebe até ao meio-dia, as horas de abstinência a tornarem mais voluptuosa a entrega. Mais frequente é ir já embriagado quando sai de casa a meio da manhã.

O sol brilhava hoje palidamente quando ele voltou da sua saída. Eu estava na varanda do primeiro andar; ele não me viu ao sentar-se no pátio, encostado à parede, com o cão a seu lado. O filho de Florence já lá estava, com um amigo que eu não conhecia, e Hope a devorar com os olhos cada gesto dos dois rapazes. Tinham o rádio ligado; o chiar e o martelar da música ainda era pior que a bola de ténis.

- Água - pediu Vercueil aos rapazes. - Dêem-me água.

.. O novo rapaz, o amigo de Bheki, atravessou o pátio e agachou-se ao pé dele. Não ouvi o que disseram um ao outro. O rapaz estendeu uma das mãos.

- Dá cá - disse.

Vercueil sacudiu-lhe preguiçosamente a mão.

- Dá-me isso - repetiu o rapaz que, de joelhos, começou a puxar a garrafa para fora do bolso de Vercueil.

Vercueil resistiu, mas sem convicção.

O rapaz desapertou a tampa e despejou a aguardente no chão. Depois atirou fora a garrafa. A garrafa partiu-se. Por pouco não gritei: que estupidez!

Estão a fazer de ti um cão! - disse o rapaz. - Queres ser um cão?

O cão, o cão de Vercueil, ganiu avidamente.

- Vai para o diabo - respondeu Vercueil, de língua entaramelada.

- Cão! - disse o rapaz. - Bêbedo!

Virou as costas a Vercueil e voltou para junto de Bheki, com o seu andar emproado. Que rapazinho tão cheio da sua pessoa, pensei. Se é assim que se portam os novos guardiães do povo, Deus nos livre deles. A rapariguinha cheirou a aguardente e franziu o nariz. - Vai para o diabo, tu também - disse Vercueil, acenando com a mão a mandá-la embora. Ela não se mexeu. Depois, de repente, fugiu a correr para o quarto da mãe.

A música continuava a martelar-me os ouvidos. Vercueil adormeceu, encolhido de lado contra a parede, com a cabeça do cão no regaço. Voltei ao meu livro. Passado algum tempo, o sol escondeu-se atrás das nuvens, e senti frio. Começou a cair uma chuvinha miúda. O cão sacudiu-se e foi para dentro do barracão. Vercueil pôs-se de pé e seguiu-lhe o exemplo. Arrumei as minhas coisas.

Dentro do barracão gerou-se um tumulto. Primeiro saiu a correr o cão, que se virou para a porta e desatou a ladrar; depois saiu Vercueil, às arrecuas; por último os dois rapazes. Ao ver aproximar-se o segundo rapaz, o amigo, Vercueil estendeu o braço e bateu-lhe no pescoço com a palma da mão. O rapaz sorveu o ar com um silvo de surpresa: até da varanda o ouvi. Retribuiu o golpe, atingindo Vercueil, que tropeçou e por pouco não caiu. O cão latia e dançava à volta deles. O rapaz tornou a atingir Vercueil, e Bheki veio dar-lhe uma ajuda. Gritei-lhes: «Parem!» Não me prestaram a menor atenção. Vercueil estava caído no chão; eles davam-lhe pontapés; Bheki tirou o cinto das calças e pôs-se a chicoteá-lo. «Florence!», gritei. «Mande-os parar!» Vercueil tapou o rosto com as mãos para se proteger. O cão atirou-se a Bheki; Bheki repeliu-o e continuou a fustigar Vercueil com o cinto. «Parem os dois com isso!», gritei, agarrando-me à balaustrada. «Parem imediatamente, senão chamo a polícia!»

Então apareceu Florence. Falou-lhes com aspereza, e os rapazes recuaram. Vercueil levantou-se a custo. Eu desci ao rés-do-chão o mais depressa que pude.

- Quem é este rapaz? - perguntei a Florence.

O rapaz parou de falar com Bheki e olhou para mim. Não gostei daquele olhar: arrogante, combativo.

- É um amigo dele, um colega da escola - disse Florence.

- Pois tem que voltar para casa dele - disse eu. - Isto é de mais para mim. Não quero brigas no meu quintal. Não quero estranhos a entrar e a sair de minha casa.

O lábio de Vercueil estava a sangrar. Que estranho ver sangue naquela cara crestada. Como mel sobre cinzas.

- Ele não é um estranho, está de visita - disse Florence.

- É preciso um passe para se entrar aqui? - perguntou Bheki. Bheki e o amigo entreolharam-se. - É preciso um passe, é? - Ficaram à espera de resposta, a desafiar-me. O rádio continuava a tocar: um ruído inumano, exasperante: tive vontade de tapar os ouvidos com as mãos.

- Ninguém falou de passes - disse eu. - Mas que direito tem ele de vir aqui agredir este homem? Este homem vive aqui. É a casa dele.

As narinas de Florence dilataram-se.

- Sim - disse eu, virando-me para ela - ele também vive aqui, é a casa dele.

- Vive aqui - disse Florence - mas é um monte de lixo. Não presta para nada.

- Jou moer! - disse Vercueil. Tirara o chapéu e estava a endireitar a copa; agora erguia a mão, de chapéu em punho, como para lhe bater. - Jou moer!

Bheki arrancou-lhe o chapéu da mão e atirou-o para cima do telhado da garagem. O cão ladrou furiosamente. O chapéu deslizou lentamente pelo declive do telhado.

- Não é um monte de lixo - disse eu, em voz mais baixa, dirigindo-me apenas a Florence. - Ninguém é um monte de lixo. Todos nós somos gente, estamos todos no mesmo barco.

Mas Florence não estava com vontade de ouvir sermões.

- Não presta para nada senão para beber - disse. - Beber, beber, o dia inteiro a beber. Não gosto de o ter aqui.

Um inútil: seria Vercueil realmente um inútil? Sim, talvez: good-for-nothing, inútil: uma boa velha palavra inglesa, já tão pouco usada nos tempos que correm.

- É o meu mensageiro - disse eu. Florence mirou-me com desconfiança.

- Vai levar mensagens minhas - disse eu.

Ela encolheu os ombros. Vercueil afastou-se, arrastando os pés, com o seu chapéu e o seu cão. Ouvi o estalido do ferrolho do portão.

- Diga aos rapazes para o deixarem em paz - insisti. - Ele não faz mal a ninguém.

 

Como um gato velho expulso pelos jovens machos em ascensão, Vercueil escondeu-se para lamber as feridas. Já me vejo a esquadrinhar os parques, a chamar baixinho: «Mr. Vercueil! Mr. Vercueil!» Uma velha à procura do seu bichano.

Florence não disfarça o seu orgulho pelo modo como Bheki se livrou desse inútil, mas prediz que ele voltará assim que começar a chover. Pela minha parte, duvido de que tornemos a vê-lo enquanto os rapazes aqui estiverem. E disse-o a Florence.

- Você está a mostrar a Bheki e aos amigos que podem impunemente levantar a mão contra os mais velhos. É um erro. Sim, porque pense você do homem o que pensar, Vercueil é mais velho que eles!

«Quanto mais você ceder, Florence, mais vergonhosamente os miúdos se hão-de portar. Disse-me que admira a geração do seu filho porque é uma geração que não tem medo de nada. Tome cuidado: eles podem começar por não dar valor às suas próprias vidas e acabar não dando valor à vida dos outros. O que você admira neles não é necessariamente o melhor.

«Não me sai da ideia aquilo que me disse no outro dia: que já não há pais nem mães. Não posso acreditar que estivesse a falar a sério. Os filhos não podem crescer sem pai nem mãe. Os incêndios e as matanças de que ouvimos falar, esta insensibilidade chocante, até esta história do espancamento de Mr. Vercueil - de quem é a culpa, afinal? São com certeza culpados os pais que dizem «Anda, faz o que te apetecer, a partir de agora és senhor de ti próprio, renuncio à minha autoridade sobre ti». Que criança deseja, no mais fundo de si, ouvir semelhante coisa? Ao ouvir isto desviará com certeza os olhos, confusa e perdida, pensando para consigo: «Já não tenho pai, já não tenho mãe: pois que seja a morte o meu pai, que seja a morte a minha mãe.» Vocês lavam as mãos, e eles tornam-se filhos da morte.»

Florence abanou a cabeça e disse convictamente:

- Não.

- Não se lembra do que me disse no ano passado, Florence, quando aconteceram aquelas coisas inqualificáveis nos bairros negros? Disse-me: «Vi uma mulher em chamas, a arder, e quando ela gritava por socorro os miúdos riam e regavam-na com mais gasolina.» Disse-me: «Nunca pensei assistir a uma coisa assim em dias da minha vida.»

- Disse isso, sim senhor, e é verdade. Mas quem os fez tão cruéis? Foram os brancos que os fizeram assim cruéis! Os brancos, sim senhor!

Respirou fundo, num hausto violento. Estávamos na cozinha. Ela passava a ferro. A mão que agarrava o ferro comprimiu-o com força contra a tábua. Olhou fixamente para mim. Toquei-lhe ao de leve na mão. Ela levantou o ferro. O lençol exibia um princípio de queimadura acastanhada.

Sem dó nem piedade, pensei: uma guerra sem dó nem piedade, sem limites. Uma boa guerra para não se viver.

- E quando um dia eles crescerem - continuei em voz baixa -, acha que a crueldade se vai embora? Que espécie de pais darão essas crianças a quem se ensinou que o tempo dos pais chegou ao fim? Poderão criar-se novos pais quando a ideia de pais estiver destruída dentro de nós? Eles pontapeiam e espancam um homem porque bebe. Incendeiam pessoas e riem-se ao vê-las arder até à morte. Como tratarão os filhos que tiverem? De que amor serão capazes? Vemo-los ficar com o coração cada vez mais empedernido, e o que é que você diz? Diz: «Isto não é o meu filho, é o filho do homem branco, é o monstro que o homem branco criou.» É só isso que tem para dizer? Vai culpar os brancos e virar as costas ao que se passa?

- Não - disse Florence. - Não é verdade. Eu não viro as costas aos meus filhos.

Dobrou o lençol ao comprimento e à largura, ao comprimento e à largura, fazendo coincidir os cantos impecavelmente, resolutamente.

- São bons filhos, rijos como ferro, e nós temos orgulho neles.

Estendeu na tábua de passar a primeira fronha. Fiquei à espera do mais que ela tivesse a dizer. Mas não me disse mais nada. Não estava interessada em discutir comigo.

Filhos de ferro, pensei. A própria Florence, também não muito longe da dureza do ferro. A idade do ferro. Após a qual virá a idade do bronze. Quanto tempo, sim, quanto tempo até que o ciclo regresse às idades mais brandas, a idade do barro, a idade da terra? Uma matrona espartana, um coração de ferro, gerando filhos guerreiros para a nação. «Nós temos orgulho neles.» Nós. Regressa a casa empunhando o teu escudo ou deitado no teu escudo.

E eu? Que é feito do meu coração, em tudo isto? A minha filha única está a milhares de quilómetros daqui, em segurança; em breve ficarei reduzida a fumo e cinza; que me importa, portanto, que tenha chegado um tempo em que a infância é desprezada, em que as crianças se ensinam umas às outras a nunca sorrir, nunca chorar, a erguer no ar os punhos como martelos? Será deveras um tempo fora do tempo, vomitado pela terra, bastardo, monstruoso? De onde nasceu, afinal, a idade do ferro senão da idade do granito? Não tivemos os Voortrekkers, gerações e gerações de Voortrekkers, severas e carrancudas crianças africânders, marchando, cantando os seus hinos patrióticos, fazendo continência à bandeira, comprometendo-se a morrer pela pátria? Ons sal leive, ons sal sterwe. Não há ainda hoje zelotas brancos que apregoam o velho regime de disciplina, trabalho, obediência, espírito de sacrifício, um regime de morte, a crianças por vezes tão novinhas que nem apertar os atacadores sabem ainda? Que pesadelo, que perfeito pesadelo! O espírito de Genebra triunfante em África. Calvino, de vestes negras, sangue ralo, eternamente gelado, esfregando as mãos além-túmulo, sorrindo o seu sorriso gélido. Calvino vitorioso, renascido nos dogmáticos e caçadores de bruxas de ambos os exércitos. Que sorte a tua, que deixaste para trás tudo isto!

 

O outro rapaz, o amigo de Bheki, chegou montado numa bicicleta vermelha com grossos pneus azul-celeste. Quando ontem me fui deitar, a bicicleta estava no pátio das traseiras, encharcada, a brilhar à lua. Às sete da manhã, quando espreitei pela janela, ainda lá estava.

Tomei os comprimidos da manhã e dormi mais uma hora. Sonhei que ficava presa no meio de uma multidão. Formas indistintas empurravam-me, batiam-me, praguejavam com palavras que eu não chegava a perceber, imundas, ameaçadoras. Eu ripostava, mas os meus braços eram braços de criança: puf, puf, faziam as minhas pancadas, como

sopros de ar.

Acordei ao som de vozes alteradas - a de Florence e a de outra pessoa. Toquei a campainha uma vez, duas vezes, três vezes, quatro vezes. Finalmente, Florence apareceu.

- Está alguém à porta, Florence?

Florence apanhou a colcha do chão, dobrou-a e pendurou-a nos pés da cama.

- Não é ninguém - disse.        

- O amigo do seu filho passou cá a noite?

- Passou. Não podia andar de bicicleta no escuro, é muito perigoso.

- E onde é que ele dormiu? Florence empertigou-se.

- Na garagem. Ele e o Bheki dormiram na garagem.

- Mas como é que entraram na garagem?

- Abriram a janela.

- E não me podiam pedir licença antes de fazer essas coisas? ;     Um silêncio. Florence pegou na bandeja.

- Esse rapaz também vai cá ficar a viver, na garagem? Eles estão a dormir no meu carro, Florence?

Florence abanou a cabeça.

- Não sei. Tem que lhes perguntar a eles.

Meio-dia, e a bicicleta ainda lá estava. Dos rapazes, em contrapartida, nem sinal. Mas quando fui ao marco do correio vi uma carrinha amarela da polícia estacionada do outro lado da rua, com dois homens fardados lá dentro, um dos quais, o mais próximo de mim, a dormir de cara encostada ao vidro.

Fiz sinal ao homem sentado ao volante. O motor regressou à vida, o que dormia endireitou-se no assento, e a carrinha subiu o passeio, fez uma rápida inversão de marcha e encostou diante de mim.

Julgava que fossem sair do carro. Mas não, deixaram-se ficar ali sentados, sem uma palavra, à espera que eu me decidisse a falar. Soprava um vento forte, de noroeste. Aconcheguei a gola do roupão à garganta. Ouviu-se crepitar o rádio da carrinha. «Vier-drie-agt», disse uma voz de mulher. Eles ignoraram-na. Dois jovens de farda azul.

- Posso ajudá-los nalguma coisa? - perguntei. - Estão à espera de alguém?

- Se nos pode ajudar? Não sei, senhora. Diga-nos lá a senhora se nos pode ajudar.

No meu tempo, pensei, os polícias falavam respeitosamente às senhoras. No meu tempo as crianças não deitavam fogo às escolas. No meu tempo: uma expressão que nos tempos que correm já só aparece na rubrica das cartas ao director. Velhos e velhas, a tremer de justa indignação, que pegam na caneta, arma de último recurso. No meu tempo, que agora chega ao fim; na minha vida, que agora pertence ao passado.

- Se andam à procura daqueles rapazes, quero que saibam que eu lhes dei licença para aqui estarem.

- Que rapazes, senhora?

- Os rapazes que aqui estão de visita. Os rapazes de Guguletu.

Os miúdos da escola.

Do rádio veio uma explosão de ruído.

- Não, senhora, não sei nada desses tais rapazes de Guguletu. Quer que a gente fique de olho neles, é?

Perpassou entre eles um olhar de relance, um olhar de chacota. Agarrei-me às grades do portão. O roupão abriu-se, senti o vento gelado na garganta, no peito.

- No meu tempo - disse eu, enunciando distintamente cada uma dessas velhas, desacreditadas e ridículas palavras - um polícia não falava assim a uma senhora.

E virei-lhes as costas.

O rádio, atrás de mim, desatou a grasnar como um papagaio; ou talvez tenham sido eles a fazer com que o rádio emitisse aquele som - eram bem capazes disso. Passada uma hora a carrinha amarela continuava diante do portão.

- Sinceramente, acho que você devia mandar para casa este outro rapaz - disse eu a Florence. - Ele vai meter o seu filho em trabalhos.

Não o posso mandar para casa - disse Florence. - Se ele for, o Bheki vai com ele. São assim. - Ergueu a mão no ar, com dois dedos enlaçados. - Aqui sempre estão mais seguros. Em Guguletu está sempre a haver tumultos, e depois a polícia vem e desata aos tiros.

Tiros em Guguletu: o que quer que Florence saiba do assunto, o que quer que tu saibas, a dez mil milhas daqui, não o sei eu. Nas notícias que me chegam não se fala de tumultos nem de tiros. O país que me mostram é um país de vizinhos sorridentes.

- Se eles estão aqui para fugirem dos confrontos, porque é que a polícia anda atrás deles?

Florence respirou fundo. Desde que a bebé nasceu, anda sempre com um ar de raiva mal contida.

- Não me pergunte a mim, minha senhora - declarou - porque é que a polícia anda atrás das crianças, porque é que as persegue, as corre a tiro e as mete na cadeia. Não é a mim que deve fazer essa pergunta.

- Muito bem - disse eu - não torno a cometer esse erro. Mas também não posso transformar a minha casa num refúgio para todas as crianças que fogem dos bairros negros.

- E porque não? - perguntou Florence, inclinando-se para mim. - Porque não?

Pus a correr um banho quente, despi-me, e enfiei-me a custo na banheira. Porque não? Deixei pender a cabeça; as pontas do meu cabelo, caindo-me para a cara, tocaram na água; vi as minhas pernas, sarapintadas, raiadas de veias azuis, espetadas para diante como dois paus de vassoura. Uma velha, feia e doente, agarrada com todas as forças ao pouco que lhe resta. Os vivos, a quem as mortes demoradas impacientam; os moribundos, cheios de inveja dos vivos. Um espectáculo desagradável: oxalá termine depressa.

Não há campainha na casa de banho. Pigarreei e chamei: «Florence!» Os canos nus e as paredes brancas devolveram-me um eco cavo. Era absurdo pensar que Florence me ouviria. E, mesmo que ouvisse, porque havia de vir?

Minha querida mãezinha, pensei, olha para mim, dá-me a tua mão!

Sucessivos arrepios percorreram-me da cabeça aos pés. De olhos fechados, vi a minha mãe como a vejo sempre quando penso nela: com roupas pardacentas, de velha, e a cara escondida.

- Vem ter comigo! - murmurei.

Mas ela não vinha. Abrindo os braços como um falcão a planar, a minha mãe começou a elevar-se no céu. Subia, subia cada vez mais. Alcançou o tecto de nuvens, atravessou-o, continuou a sua ascensão. A cada milha que subia tornava-se mais nova. O cabelo tornou a escurecer, a pele recobrou a frescura. As velhas roupas caíram-lhe do corpo como folhas secas, revelando o vestido azul com uma pena na botoeira que enverga na recordação mais antiga que guardo dela, do tempo em que o mundo era jovem e tudo era possível.

Continuou a subir, na eterna perfeição da juventude, imutável, sorridente, feliz, esquecida de tudo, até ao limite da esfera celestial.

- Mãe, olha para mim! - segredei na nudez da casa de banho.

 

As chuvas começaram cedo este ano. É já o quarto mês de chuva. Quando os dedos tocam na parede, deixam nela marcas de humidade. Em certos sítios, o estuque empola e esboroa-se. A minha roupa tem um cheiro acre, bolorento. Como gostava de vestir, só mais uma vez, roupa interior bem seca e a cheirar a sol! Que me seja concedida só mais uma tarde de Verão e um passeio pela Avenida, entre os corpos morenos, cor de castanha, das crianças de regresso a casa, depois da escola, as raparigas cada ano mais bonitas, plus belles. E se assim não for, subsista ainda assim, até ao derradeiro instante, a gratidão, uma gratidão sentida, sem limites, por me ter sido concedida uma temporada neste mundo de maravilhas.

Escrevo estas palavras sentada na cama, joelhos encolhidos para fazer frente ao frio de Agosto. Gratidão: escrevo a palavra e leio-a de trás para diante. O que significa? A palavra torna-se, ante os meus olhos, densa, obscura, misteriosa. Depois acontece uma coisa. Lentamente, como uma romã, o meu coração estala de gratidão; como um fruto que ao fender-se revela as sementes do amor. Gratidão, romã: palavras gémeas.

 

Às cinco da manhã acordei com uma forte chuvada. A chuva caía em catadupas, transbordava das goteiras entupidas, gotejava através das telhas rachadas. Desci ao rés-do-chão e, embrulhada num cobertor, sentei -me a examinar as contas do mês.

Ouvi ranger o trinco do portão, e um som de passos no acesso à garagem. Uma silhueta, encolhida debaixo de um saco de plástico preto, passou a correr debaixo da janela.

Fui até ao alpendre. «Mr. Vercueil!», gritei para a chuva diluviana. Não veio resposta. De ombros curvados, embrulhando-me bem no roupão, saí de casa. As minhas pantufas, com os seus absurdos debruns de lã de cordeiro, ficaram logo ensopadas. Atravessei o pátio a patinhar por entre riachos de água. À entrada do barracão, no escuro, esbarrei em alguém: Vercueil, de costas voltadas. Ele soltou uma praga.

- Venha para dentro! - gritei, para me fazer ouvir sobre a zoada da chuva. - Venha para dentro de casa! Não pode dormir aí!

Trazendo ainda o saco de plástico por cima da cabeça, a fazer de capuz, seguiu-me até à cozinha iluminada.

- Deixe essa coisa molhada lá fora - disse eu. Depois, com um sobressalto, vi que alguém entrara com ele. Era uma mulher, baixinha - dar-me-ia pelo ombro, no máximo -, mas velha, ou pelo menos nada nova, de cara desconfiada, tumefacta, e pele lívida.

- Quem é ela? - perguntei.

Vercueil fitou-me, de olhos amarelos, com ar de desafio. Grande cão!, pensei.

- Podem esperar dentro de casa até parar de chover, depois quero-os daqui para fora - disse eu friamente, virando costas aos dois.

Mudei de roupa, fechei-me à chave no quarto e tentei ler. Mas as palavras passavam por mim como folhas de árvore levadas pelo vento. Com uma vaga sensação de surpresa, senti descair as pálpebras, ouvi escapar-se-me o livro por entre as mãos.

Quando acordei, a minha única ideia era pô-los fora de casa.

Da mulher não havia sinal; mas Vercueil dormia na sala de estar, encolhido no sofá, mãos entre os joelhos, ainda de chapéu na cabeça. Abanei-o. Ele mexeu-se, humedeceu os lábios, soltou um resmungo sonolento e contrariado. Era o mesmo som - lembrei-me imediatamente - que tu fazias quando eu te acordava para ires à escola. «São horas de levantar!», dizia eu, abrindo as cortinas; e, virando costas à claridade, tu resmungavas exactamente assim. «Vamos, minha querida, são horas de levantar!», segredava-te eu ao ouvido, ainda sem grande insistência, concedendo-me o tempo de me sentar a teu lado a afagar-te o cabelo, afago atrás de afago, as pontas dos meus dedos palpitantes de amor, enquanto tu te agarravas até ao último instante ao corpo do sono. Possa assim ser para sempre!, pensava eu, mão na tua cabeça, atravessada pela corrente do amor.

E agora o teu murmúrio sonolento, aconchegado, a ressuscitar na garganta daquele homem! Havia de sentar-me também junto dele, tirar-lhe o chapéu, afagar-lhe o cabelo gorduroso? Percorreu-me um estremecimento de nojo. Que fácil é amar uma criança, que difícil amar aquilo em que uma criança se transforma! Há muito, muito tempo, punhos rente às orelhas e olhos cerrados, num êxtase, também este ser vogou num útero de mulher, bebeu do seu sangue, ventre contra ventre. Também ele transpôs as portas ósseas para alcançar a claridade do exterior, também a ele foi dado conhecer o amor de mãe, amor matris. Depois, com o passar do tempo, viu-se privado desse amor, desamparado, e começou a ficar seco, mirrado, retorcido. Uma vida de solidão, de privação, como todas as vidas; mas no seu caso seguramente mais subalimentada que a maioria. Um homem de meia-idade que continuava a mamar pela garrafa, saudoso da beatitude original, tentando alcançá-la na inconsciência da embriaguez.

Enquanto me demorava a olhá-lo, a mulher entrou na sala. Ignorando-me, voltou aos tropeções para o ninho de almofadas que fizera no chão. Atrás dela vinha Florence, furiosa.

- Não me peça explicações, Florence - disse eu. - Deixe-os estar, estão a cozer a bebedeira.

Os óculos de Florence lançaram chispas; preparava-se para dizer alguma coisa, mas eu antecipei-me.

- Por favor! Eles não estão aqui para ficar.

Puxei várias vezes o autoclismo, mas mesmo assim persistia um cheiro enjoativo, simultaneamente adocicado e azedo. Pus o capacho no quintal, à chuva.            

Mais tarde, já as crianças estavam na cozinha, com Florence, a tomar o pequeno-almoço, tornei a descer. Sem preâmbulo, dirigi-me a Bheki.

- Ouvi dizer que tu e o teu amigo têm dormido no meu automóvel. Porque é que não me pediste licença?

Fez-se silencio. Bheki não ergueu os olhos. Florence continuou a partir fatias de pão.                                                

- Porque é que não me pediste licença? Responde!          

A rapariguinha parou de mastigar, olhou-me fixamente.

Porque é que eu me estava a portar desta maneira ridícula? Porque estava irritada. Porque estava farta de ser usada. Porque era no meu carro que eles dormiam. O meu carro, a minha casa: meus; eu ainda não estava morta.

Então, felizmente, apareceu Vercueil, e a tensão dissipou-se. Atravessou a cozinha, sem olhar para a esquerda nem para a direita, e saiu para o alpendre. Eu segui-o. O cão atirava-se-lhe, dava pulos e cabriolas, cheio de alegria. Atirou-se também a mim, sujando-me a saia com as patas molhadas. O ar de tontas com que as pessoas ficam quando enxotam um cão!

- Faça-me o favor de tirar a sua amiga daqui para fora - disse eu.

Erguendo os olhos para o céu carregado de nuvens, Vercueil não respondeu.

- Tire-a daqui para fora imediatamente, senão tiro-a eu! - gritei, furiosa.

Ele ignorou-me.

- Dê-me uma ajuda - ordenei a Florence.

A mulher estava deitada de borco na sua cama de almofadas, uma poça de saliva ao canto da boca. Florence puxou-a pelo braço. Ela levantou-se, cambaleante. Meio a guiá-la, meio a empurrá-la, Florence impeliu-a para fora de casa. Quando chegámos ao carreiro do jardim Vercueil veio juntar-se a nós.

- Isto é demais! - explodi.

Os dois rapazes já estavam na rua com a bicicleta. Fingindo não dar pela nossa disputa, começaram a subir a Schoonder Street, Bheki encolhido no quadro, o amigo a pedalar.

Em voz rouca, num jorro de palavrões sem nexo, a mulher desatou a insultar Florence. Florence deitou-me um olhar malicioso.

- Monte de lixo - disse, afastando-se a passo decidido.

- Não quero tornar a pôr a vista em cima desta mulher - disse eu a Vercueil.

A bicicleta, com os dois rapazes, tornou a surgir na lomba de Schoonder Street e avançou para nós a grande velocidade, com o amigo de Bheki a pedalar vigorosamente. No seu encalço vinha a carrinha da polícia de ontem.

Uma camioneta estava estacionada junto ao passeio, com a caixa cheia de canos, barras metálicas, material de canalizador. Havia espaço suficiente para a bicicleta passar. Mas, quando a carrinha amarela alcançou os rapazes, a porta do lado direito abriu-se de repente, projectando-os para o lado. A bicicleta vacilou e despistou-se. Ainda vi Bheki a escorregar para o chão, braços acima da cabeça, e o outro rapaz empoleirado nos pedais, desviando a cara, estendendo a mão num gesto de defesa. Acima do ruído do trânsito de Mill Street, ouvi distintamente o baque surdo de um corpo lançado em pleno voo, um bafo de ar expirado num sonoro «Ah!» de surpresa, o estrondo da bicicleta a chocar com a camioneta do canalizador. «Meu Deus!», exclamei numa voz estridente que, suspensa no ar, não reconheci como minha. Senti que o tempo parava e depois recomeçava a correr, deixando um hiato: a dado instante o rapaz estendera a mão para se proteger, no instante seguinte fazia parte de uma massa confusa caída na sarjeta. Depois o eco do meu grito dissipou-se e a cena reconstituiu-se em toda a sua familiaridade: Schoonder Street numa tranquila manhã de semana, com uma carrinha amarelo-canário a virar agora mesmo a esquina.

Um cão amarelo, um retriever, aproximou-se, a saltitar, para ver o que se passava. O cão de Vercueil farejou o retriever, enquanto o retriever, ignorando-o, se pôs a cheirar o asfalto, e depois a lambê-lo. Quis mexer-me e não pude. Havia em mim uma espécie de frialdade, sentia os membros muito distantes, e veio-me à ideia a palavra desmaiar, embora nunca na vida tenha desmaiado. Este país!, pensei. E depois: Ainda bem que ela cá não está!

Abriu-se um portão e apareceu um homem de fato-macaco azul. Fez menção de correr a pontapé o retriever, que fugiu a correr, espantado e ofendido. «Jesus!», disse o homem. Inclinou-se e começou a fazer passar braços e pernas pela armação da bicicleta.

Eu aproximei-me, a tremer. Chamei: «Florence!» Mas não havia sinal de Florence.

Com um pé de cada lado dos dois corpos, o homem ergueu e arredou a bicicleta. Bheki estava debaixo do outro rapaz. Franzia o rosto num grande esgar; humedeceu por várias vezes os lábios com a língua; tinha os olhos fechados. O cão de Vercueil tentou lambê-lo. «Vai-te embora!», murmurei, empurrando-o com o pé. Ele abanou a cauda.

Apareceu uma mulher ao meu lado, a enxugar as mãos a uma toalha.

- São ardinas? - perguntou. - Sabe-me dizer se são ardinas? - Eu abanei a cabeça.

Com ar hesitante, o homem de azul tornou a passar a perna por cima dos corpos. O que deveria fazer era levantar o peso morto do outro rapaz, que jazia de bruços, atravessado por cima de Bheki. Mas não quis fazê-lo, nem eu queria que ele o fizesse. Havia alguma coisa errada, alguma coisa anormal no modo como o rapaz jazia.

- Vou telefonar a pedir uma ambulância - disse a mulher. Eu inclinei-me e peguei no braço inerte do rapaz.

- Espere! - disse o homem. - Vamos fazer isto com cuidado. Ao endireitar-me, senti uma tal tontura que tive de fechar os olhos. Agarrando-o pelas axilas, o homem arrastou o rapaz, tirando-o de cima de Bheki, e estendeu-o no passeio. Bheki abriu os olhos.

- Bheki - disse eu. Bheki olhou-me com ar calmo, indiferente. - Está tudo bem - disse eu. Ele continou a fitar-me com uns olhos cheios de paz, aceitando a mentira, deixando-a passar. - Vem aí a ambulância - disse eu.

Mas já ali estava Florence, ajoelhada junto ao filho, falando-lhe com insistência, afagando-lhe o cabelo. Ele começou a responder: palavras lentas, entarameladas. A mão de Florence deteve-se enquanto ela ouvia.

- Eles chocaram contra a traseira desta camioneta - expliquei.

- A camioneta é minha - disse o homem de azul.

- Foram os polícias que os empurraram - disse eu. - É horrível, horrível. Foram os mesmos dois polícias que aqui estavam ontem, tenho a certeza.

Florence enfiou a mão por baixo da cabeça de Bheki. Lentamente, ele sentou-se. Perdera um sapato; tinha uma perna das calças rasgada e húmida de sangue. Afastou cautelosamente o tecido rasgado o examinou a ferida. Tinha as palmas das mãos em carne viva, a pele pendurada, às tiras.

- Vem aí a ambulância - disse eu.

- Não precisamos de ambulância nenhuma - disse Florence. Estava enganada. O outro rapaz estava agora esparramado, estendido de costas. O canalizador tentava, com o blusão, estancar o sangue que lhe corria pela cara. Mas o fluxo não parava. Levantou o blusão acolchoado e vi, por um segundo, antes que o sangue tornasse a escurecê-la, a carne aberta, formando uma aba solta a toda a largura da testa, como que golpeada por uma faca de talhante. O sangue corria, numa toalha líquida, para os olhos do rapaz, e fazia brilhar o seu cabelo; pingava para o passeio; inundava tudo. Eu não sabia que o sangue podia ser tão escuro, tão espesso, tão abundante. O coração que ele não deve ter, pensei, para bombear todo aquele sangue e continuar bombeando!

- A ambulância já aí vem? - perguntou o canalizador. - É que eu não consigo estancar isto.

O homem suava; mudou de posição e o seu sapato, ensopado de sangue, chiou.

Tinhas onze anos, ainda me lembro, quando cortaste o dedo na máquina do pão. Corri contigo para as urgências de Groote Schuur. Sentámo-nos num banco à espera da nossa vez, tu com o dedo embrulhado numa compressa, que apertavas para estancar a hemorragia. «O que é que me vão fazer?», perguntaste, num murmúrio. «Dão-te uma injecção e depois cosem-te», respondi no mesmo tom de voz. «São só dois ou três pontos, duas ou três picaditas.»

Era um fim de tarde de sábado, mas começavam já a aparecer feridos, pingando sangue. Um homem de sapatos brancos e fato preto amarrotado cuspia constantemente sangue para uma bacia. Um rapaz numa maca, nu até à cintura, cinto desapertado, apertava contra a barriga um chumaço de pano ensopado de sangue. Sangue no chão, sangue nos bancos. Que importância tinha o nosso tímido dedalzinho de sangue ao lado desta torrente de sangue negro? A pequena Branca--de-Neve perdida na caverna do sangue, e a mãe perdida com ela. Um país pródigo de sangue. O marido de Florence, com a sua capa de oleado amarelo e as suas botas, a chafurdar no sangue. Vacas a cair redondas, degoladas, projectando no ar o seu derradeiro jacto, como baleias. A terra seca a sorver o sangue das suas criaturas. Uma terra que bebe rios de sangue e nunca fica saciada.

- Deixe-me tentar - disse eu ao canalizador. Ele desviou-se. Ajoelhando, pus de parte o blusão azul ensopado. O sangue corria pela cara do rapaz num lençol uniforme, ininterrupto. Com os polegares e os indicadores, segurei o melhor que pude o bordo aberto da ferida. O cão de Vercueil tornou a aparecer, abrindo caminho por entre os circunstantes. - Tire-me daqui esse cão - exigi secamente. O canalizador deu-lhe um pontapé. O animal ganiu e afastou-se. Onde estaria Vercueil? Seria verdade, seria mesmo verdade que era um inútil?

- Vá telefonar outra vez - ordenei ao canalizador. Apertando com força os bordos da ferida, conseguia estancar a maior parte do fluxo. Mas assim que abrandava a pressão o sangue começava de novo a correr ininterruptamente. Era sangue, nada mais, sangue como o teu e o meu. Mas eu nunca vira nada tão escarlate e tão negro. Talvez fosse efeito da pele, jovem, fresca, escura e aveludada, sobre a qual corria; mas até nas minhas mãos o líquido parecia mais escuro e mais brilhante do que costuma ser o sangue. Eu mirava--o, fascinada, assustada, num pasmo que me impedia de desviar os olhos. E no entanto era-me impossível, no mais fundo do meu ser, entregar-me a esse pasmo, desistir e não fazer nada para estancar o fluxo. Porquê?, pergunto-me agora. E respondo: porque o sangue é precioso, mais precioso que o ouro e os diamantes. Porque o sangue é uno: um lago de sangue repartido por nós, pelas nossas vidas separadas, mas a que por natureza cabe estar junto: emprestado e não dado; possuído em comum, entregue à nossa tutela para que o estimemos: parecendo viver em nós, mas parecendo apenas, pois na verdade somos nós que vivemos nele.

Um mar de sangue, de novo reunido: será assim o fim dos tempos? O sangue de todos: um lago Baical, vermelho-negro, sob céus siberianos de um azul gelado, as margens brancas de neve banhadas de sangue, viscoso, lento. O sangue da humanidade, a si mesmo devolvido. Um corpo de sangue. Da humanidade inteira? Não: num lugar à parte, numa albufeira lamacenta do Karoo, cercada de arame farpado, sob um sol escaldante, o sangue dos africânders e dos seus vassalos, parado, estagnado.

Sangue, sangue sagrado, abominado. E tu, carne da minha carne, sangue do meu sangue, sangrando todos os meses em terra estrangeira.

Faz vinte anos que não sangro. A doença que hoje me devora é seca, exangue, lenta e fria, enviada por Saturno. Há nela qualquer coisa que não sofre ser pensada. Ter ficado grávida destes tumores, destes frios, obscenos inchaços; ter trazido no seio anos a fio esta progénie, para lá do termo natural de todas as gravidezes, sem poder pari-la, sem poder saciar-lhe a fome: filhos dentro de mim que a cada dia comem mais, que não crescem, incham, eriçados de dentes e garras, para sempre gelados e vorazes. Seca, seca: senti-los remexer-se à noite no meu corpo seco, não espreguiçando-se e esperneando como faria uma criança humana mas escolhendo outro ângulo de ataque, um novo sítio para roer. Como os ovos que o insecto pôs no corpo de um hospedeiro, agora tornados larvas, devorando implacavelmente o ser que os abriga. Os meus ovos, nascidos dentro de mim. Mim, meus: palavras que escrevo com um estremecimento, embora verdadeiras. As minhas filhas morte, tuas irmãs, minha filha vida. Que coisa terrível, chegar a maternidade ao ponto de se parodiar a si própria! Uma velha curvada sobre um rapaz, as mãos pegajosas do sangue dele: repugnante imagem, agora que nela penso. Vivi demasiado tempo. A morte pelo fogo é a única morte decente que me resta. Caminhar fogueira adentro, arder como a estopa, sentir estes secretos convivas encolherem-se e clamarem também, no último instante, com as suas vozinhas ásperas, jamais ouvidas; arder e dissipar-me, libertar-me, deixar limpo o mundo. Monstruosos tumores, abortos: um sinal de que já excedemos o nosso tempo. E este país também: é chegado o tempo do fogo, o tempo do fim, o tempo de deixar nascer o fruto que nasce das cinzas.

Quando chegou a ambulância eu estava tão hirta que só consegui levantar-me com ajuda. Ao tirar da ferida os dedos pegajosos, o golpe tornou a abrir-se.

- Ele perdeu muito sangue - disse eu.

- Não é grave - disse secamente o maqueiro. Levantou a pálpebra do rapaz. - Traumatismo craniano - acrescentou. - Como é que ele fez isto?

Bheki estava sentado na cama, sem calças, as mãos metidas numa bacia de água; e Florence ajoelhada diante dele, a ligar-lhe a perna.

- Porque é que me deixou sozinha a tomar conta dele? Porque é que não ficou a ajudar-me?

Disse isto em voz zangada, sem dúvida - mas, por uma vez, não tinha a razão do meu lado?

- Não quero nada com a polícia - disse Florence.

- A questão não é essa. Você deixa-me ali sozinha a tratar do amigo do seu filho. Porque é que hei-de ser eu a tratar dele? Ele não me é nada.

- Onde é que ele está? - perguntou Bheki.

- Levaram-no para o Hospital Woodstock. Tem um traumatismo craniano.

- O que é que isso quer dizer, traumatismo craniano?

- Está inconsciente. Bateu com a cabeça. Sabes porque é que vocês tiveram o acidente?

- Eles empurraram-nos - disse Bheki.

-        Empurraram, sim senhor. Eu vi. Têm os dois muita sorte em estarem vivos. Eu vou apresentar queixa.  

Bheki e a mãe entreolharam-se de relance.

- Nós não queremos nada com a polícia.

Um novo olhar de relance, como para ver se o filho a aprovava.

- Se ninguém apresentar queixa eles vão continuar a fazer o que bem lhes apetece. Mesmo que não ganhemos nada com isso, temos que lhes fazer frente. Não falo só da polícia. Falo dos homens que estão no poder. Eles precisam de ver que as pessoas não têm medo. É um assunto muito sério. Podiam ter-te matado, Bheki. O que é que eles têm contra ti, afinal? O que é que tu e o teu amigo andaram a tramar?

Florence deu um nó na ligadura e segredou qualquer coisa ao filho. Ele tirou as mãos da bacia. Pairava no ar um cheiro a antisséptico.

- Isso está muito mau? - perguntei.

Ele estendeu as mãos, com as palmas viradas para cima. A carne esfolada continuava a sangrar. Ferimentos honrosos? Poderiam estas feridas incluir-se no rol dos ferimentos honrosos, dos ferimentos de guerra? Olhámos ambos para as mãos ensanguentadas. Tive a impressão de que ele se esforçava por conter as lágrimas. Uma criança, apenas uma criança a brincar com a bicicleta.

- E o teu amigo - disse eu. - Não devíamos avisar os pais?

- Eu posso telefonar - disse Florence.

Florence telefonou. Uma conversa demorada, em voz muito alta. Ouvi-a dizer: «Hospital Woodstock.»

- Horas depois atendi uma chamada de um telefone público, uma mulher a pedir para falar com Florence.

- Ele não está no hospital - comunicou-me Florence.

- Era a mãe dele? - perguntei.

- A avó.

Telefonei para o Hospital Woodstock.

- Não devem ter o nome dele, estava inconsciente quando o levaram - expliquei.        

- Não deu entrada nenhum doente que corresponda a essa descrição - disse o homem.              

- Ele tinha um golpe enorme na testa.

- Não deu entrada - repetiu ele. Desisti.

- Eles estão feitos com a polícia - disse Bheki. - É tudo a mesma coisa, ambulâncias, médicos, polícias.

- Isso é um disparate - disse eu.

- Já ninguém confia nas ambulâncias. Estão sempre em comunicação por rádio com a polícia.

- Disparate.

Ele sorriu, um sorriso não desprovido de encanto, saboreando esta oportunidade de me instruir, de me abrir os olhos para a vida real. Eu, a velha que vivia numa bota, não tinha filhos e não sabia que fazer, de tão velhota.

- É verdade - insistiu. - Informe-se, toda a gente lhe há-de dizer o mesmo.

- Porque é que a polícia anda atrás de ti?

- Não anda atrás de mim. Anda atrás de toda a gente. Eu não fiz nada. Mas se vêem alguém com cara de quem devia estar na escola, tentam logo agarrá-lo. Nós não fazemos nada, só dizemos que não vamos à escola. E agora eles usam este terror contra nós. São terroristas.

- Porque é que não queres ir à escola?

- Para que é que serve a escola? Para nos encaixar no sistema do apartheid.

Abanando a cabeça, virei-me para Florence. Os seus lábios fechados esboçavam um sorrisinho que ela não se deu ao trabalho de esconder. O filho estava a ganhar sem dificuldade alguma. Deixá-lo ganhar.

- Estou velha de mais para isto - disse-lhe a ela. - Não acredito que queira ver o seu filho a matar o tempo pelas ruas até que o apartheid chegue ao fim. O apartheid não vai morrer amanhã, nem depois de amanhã. Ele está a dar cabo do futuro.

- O que é que é mais importante, destruir o apartheid ou ir à escola? - perguntou Bheki, desafiando-me, sentindo já o cheiro da vitória.

- A escolha não é essa - respondi em voz cansada. Mas teria razão? Se não era essa a escolha, qual seria?

- Eu levo-os ao Woodstock - propus. - Mas temos que sair já. Quando Florence viu Vercueil à espera, empertigou-se. Mas eu teimei.

- Ele tem que vir, para o caso de haver algum problema com o carro - disse.

De modo que os levei ao Woodstock - Vercueil ao meu lado, cheirando pior que nunca, um cheiro a que se misturava o indefinível odor do desânimo; Florence e Bheki, calados, no banco de trás. O carro galgou a custo a subida suave do hospital; por uma vez, tive a presença de espírito de o estacionar inclinado para baixo.

- Já lhe disse que não temos cá essa pessoa - disse o homem da recepção. - Se não acredita, vá ver nas enfermarias.

Apesar do cansaço, percorri as enfermarias de homens atrás de Florence e Bheki. Era a hora da sesta; os pombos arrulhavam baixinho nas árvores, lá fora. Não vimos nenhum rapaz negro de cabeça ligada, só velhos brancos de pijama, a fitar o tecto com olhos vazios, enquanto o rádio tocava uma música calmante. Meus secretos irmãos, pensei: o meu lugar é aqui.

- Se não o trouxeram para aqui, para onde é que o terão levado? perguntei na recepção.    

- Tente o Groote Schuur.

O parque de estacionamento do Groote Schuur estava cheio. Passámos meia hora diante do portão com o motor a trabalhar, Florence e o filho a conversar baixinho, Vercueil de olhar ausente, eu a bocejar. Como um sonolento fim-de-semana sul-africano, pensei; como levar a família a dar um passeio. Podíamos ter feito um jogo de palavras para passar o tempo, mas era muito duvidoso que conseguisse convencer aqueles três. Jogos de palavras, de um passado que só eu podia evocar com nostalgia, de quando nós, os da classe média, da classe abastada, passávamos os domingos a deambular pelo campo, de recanto pitoresco em recanto pitoresco, e terminávamos a tarde tomando chá, scones, compota de morango e leite numa sala de chá com uma bonita vista, de preferência voltada a oeste, sobre o mar.

Saiu um carro, entrámos nós. : - Eu fico aqui - disse Vercueil.

- Para onde terá sido levado um doente com um traumatismo craniano? - perguntei ao funcionário.

Percorremos, em busca da enfermaria C-5, longos corredores apinhados de gente. Enfiámo-nos a custo num elevador com quatro mulheres muçulmanas de véu, levando nas mãos pratos de comida. Bheki, não querendo que reparassem nas suas mãos ligadas, andava com elas atrás das costas. Atravessámos a enfermaria C-5, a C-6, e nem sombra do rapaz. Florence abordou uma enfermeira, que sugeriu:

- Tente a ala nova.               Exausta, abanei a cabeça.  

- Não posso andar mais - expliquei. - Vá lá você com o Bheki; encontramo-nos no automóvel.

Era verdade: estava cansada, doía-me a anca, tinha o coração a palpitar desordenadamente e um gosto desagradável na boca. Mas não era só isso. Começava a ver demasiadas pessoas velhas e doentes, e de forma demasiado brusca. Deprimiam-me, deprimiam-me e intimidavam-me. Brancos e negros, homens e mulheres, arrastavam os pés pelos corredores, entreolhando-se avidamente, mirando-me quando passava por eles, farejando inequivocamente em mim o odor da morte. «Impostora!», pareciam murmurar, prontos a puxar-me pelo braço, a reter-me ali. «Julgas que podes entrar e sair a teu bel-prazer? Não conheces a regra? Esta é a casa da sombra e do sofrimento por onde se tem que passar a caminho da morte. A sentença é igual para todos: uma pena de cadeia antes da execução.» Velhos cães de fila a patrulhar os corredores, tratando de impedir que os condenados fujam para o ar livre, para a luz, para o generoso mundo lá de cima. Este lugar é o Hades, e eu uma sombra evadida. Estremeci ao transpor a porta.

Esperámos no carro em silêncio, Vercueil e eu, como marido e mulher casados há muitos anos, já sem nada para dizerem um ao outro, rabugentos. Até ao cheiro começo a estar habituada, pensei. Talvez seja o mesmo que sinto pela África do Sul: não a amo, mas já me habituei ao mau cheiro. O casamento é o destino. Transformamo-nos naquilo que desposamos. Nós, que desposamos a África do Sul, tornamo-nos sul-africanos: feios, carrancudos, sonolentos, por único sinal de vida um brusco arreganhar de dentes quando nos zangamos. África do Sul: um velho cão de fila irritadiço a dormitar no capacho, morrendo aos poucos, sem pressas. E que nome tão pouco inspirado para um país! Esperemos que o mudem quando recomeçarem do nada.

Passou um grupo de enfermeiras, risonhas, alegres, terminado o seu turno de trabalho. É aos cuidados delas que eu tenho estado a fugir, pensei. Que alívio não seria entregar-me agora a esses cuidados! Lençóis lavados, mãos dextras sobre o meu corpo, um corpo liberto de dor, reduzido à impotência - o que será que me impede de ceder? Senti um nó na garganta, um nó de lágrimas, e desviei o rosto. Disse para comigo: é uma bátega passageira - chuvinha inglesa. Mas a verdade é que choro cada vez mais facilmente, cada vez com menos vergonha. Conheci em tempos uma mulher (incomoda-te que a tua mãe fale destas coisas?) que chegava com grande facilidade ao prazer, ao orgasmo. Os orgasmos passavam por ela, dizia, como breves arrepios, uns atrás dos outros, encrespando-lhe o corpo como as águas de um lago. Costumava perguntar a mim própria como seria viver num corpo assim. Desfazer-se em água: será isso a bem-aventurança? Agora tenho uma espécie de resposta nestes aguaceiros de lágrimas, nestes meus delíquios. Lágrimas, não de dor, mas de tristeza. Uma tristeza leve, fugaz: melancolia, mas não uma melancolia carregada: a pálida melancolia dos céus distantes, dos dias limpos de Inverno. Um assunto íntimo, uma agitação do lago da alma, que cada vez menos me dou ao trabalho de ocultar.

Enxuguei os olhos, assoei-me.

- Não fique constrangido - disse a Vercueil. - Eu choro sem saber porquê. Obrigada por ter vindo.

- Não sei para que é que precisa de mim - disse ele.

- Custa muito estar sempre sozinha. Só isso. Eu não o escolhi, mas você é a pessoa que aqui está, por isso terá que servir. Você chegou. É como ter um filho. Não se pode escolher o filho. Ele chega, e pronto.

Desviando os olhos, ele esboçou um sorriso lento, malicioso.

- Além disso - continuei -, você empurra o carro. Se eu não pudesse guiar o carro ficava presa em casa.

- Basta-lhe comprar uma bateria nova.

- Eu não quero uma bateria nova. Você não percebe, pois não? Será preciso explicar? Este carro é velho, pertence a um mundo que já quase não existe, mas trabalha. É ao que resta desse mundo, ao que ainda trabalha, que eu me tento agarrar. Pouco importa saber se gosto desse mundo ou se o detesto. O facto é que lhe pertenço, como não pertenço, graças a Deus, àquilo em que ele se tornou. É um mundo onde não se pode esperar que os carros peguem sempre que nós queremos. No meu mundo, tenta-se o arranque automático. Se não resultar, tenta-se a manivela. Se não resultar, pede-se a alguém que empurre. E se mesmo assim o carro não pegar, pega-se na bicicleta ou fica-se em casa. É assim que as coisas são no mundo a que eu pertenço. Sinto-me bem nele, é um mundo que eu entendo. Não vejo porque é que hei-de mudar.

Vercueil não disse nada.

- E se você acha que eu sou um fóssil do passado - acrescentei -, vai sendo tempo de se ver ao espelho. Já viu o que os miúdos de hoje pensam da bebida, do dormir pelos cantos e da leeglo-pery. Fica avisado. Na África do Sul do futuro, toda a gente terá que trabalhar, até você. Talvez não lhe agrade a perspectiva, mas o melhor é ir-se preparando.

O crepúsculo descia sobre o parque de estacionamento. Onde estava Florence? A dor nas costas esgotava-me. Já passava da hora dos meus comprimidos. Pensei na casa vazia, na longa noite escancarada à minha frente. Vieram de novo as lágrimas, lágrimas fáceis.  

Pus-me a falar:

- Já lhe falei da minha filha, que vive na América. A minha filha é tudo para mim. Só não lhe disse a verdade, a verdade toda, sobre o meu estado. Ela sabe que eu estive doente, sabe que fui operada; mas pensa que a operação correu bem e que eu estou a melhorar. À noite, estendida na cama, quando olho de frente para o buraco negro onde estou a cair, a única coisa que me impede de enlouquecer é a ideia de que ela existe. Digo para comigo: trouxe uma filha ao mundo, criei-a até à idade adulta, pu-la sã e salva no caminho de uma vida nova: pelo menos isso fiz, isso ninguém me pode tirar. Esta ideia é o pilar a que me agarro quando a tempestade me fustiga.

«Há um pequeno ritual que às vezes cumpro e que me ajuda a manter a calma. Digo para comigo: se são duas da manhã aqui, deste lado do mundo, são seis da tarde lá, do lado dela. Imagino: seis da tarde. Depois imagino o resto. Imagino tudo. Ela acaba de chegar do trabalho. Pendura o casaco no cabide. Abre o frigorífico e tira um pacote de ervilhas congeladas. Deita as ervilhas numa tigela. Pega em duas cebolas e começa a descascá-las. Imagino as ervilhas, imagino as cebolas. Imagino o mundo onde ela faz estas coisas, um mundo com os cheiros e os sons que lhe são próprios. Imagino uma tarde de Verão na América do Norte, com mosquitos a esvoaçar diante da porta de rede, gritos de crianças ao fundo da rua. Imagino a minha filha na sua casa, na sua vida, com uma cebola na mão, numa terra onde viverá e morrerá em paz. As horas passam ao mesmo ritmo nessa terra, nesta terra e em todo o resto do mundo. Imagino-as a passar. Passam: aqui o céu clareia, lá escurece. Ela vai-se deitar; estende-se sonolenta junto ao corpo do marido, na sua cama de casal, no seu país pacífico. Penso no corpo dela, imóvel, sólido, vivo, em paz, evadido. Anseio por abraçá-la. Apetece-me dizer, comovida: «Sinto-me tão grata!» Apetece-me dizer também, mas nunca digo: «Salva-me!»

«Compreende o que eu digo? Compreende?»

A porta do carro estava aberta. Vercueil virava-me as costas, cabeça apoiada na ombreira, um pé no chão. Deu um grande suspiro; bem ouvi. Desejando sem dúvida que Florence viesse salvá-lo. Como eram enfadonhas estas confissões, estas súplicas, estas exigências!

- Porque se há coisa que nunca se deve pedir a um filho - continuei -, é que nos abrace, nos console, nos salve. Os afagos, o amor, devem correr para diante e não para trás. É uma regra, mais uma regra de ouro. Quando um velho começa a pedir amor tudo se torna sórdido. Como um pai ou uma mãe a querer enfiar-se na cama com o filho: uma coisa contranatura.

«Mas que difícil que é ver-se privado desse contacto vivo, de todos os contactos que nos ligam aos vivos! Como um vapor que se afasta do cais, amarras a retesar-se, a romper-se, a quebrar-se. Partindo para uma derradeira viagem. Os entes queridos que se foram. É tudo tão triste, tão triste! Quando aquelas enfermeiras há pouco passaram por nós, estive quase a sair do carro e a desistir, a entregar-me de novo ao hospital, a deixar que as mãos delas me despissem, me metessem na cama e me tratassem. Dou por mim a ansiar, acima de tudo, por essas mãos. O contacto das mãos. Pois não é por isso que as contratamos, a essas raparigas, a essas crianças - para tocarem, afagarem, com os seus gestos eficientes, corpos que se tornaram velhos e indignos de amor? Porque é que lhes damos candeeiros e lhes chamamos anjos? Porque vêm a meio da noite dizer-nos que são horas de partir? Talvez. Mas também porque nos estendem a mão para renovar um contacto que se quebrou.»

- Conte isso à sua filha - disse calmamente Vercueil. - Ela há-de vir.

- Não.

- Conte-lhe já. Telefone-lhe para a América. Diga-lhe que precisa dela aqui.

- Não.

- Então não lhe conte depois, quando for demasiado tarde. Ela não lhe vai perdoar.

A recriminação foi como uma palmada na cara.

- Há coisas que você não percebe - disse eu. - Não faço tenções de chamar a minha filha. Posso ter saudades dela, mas não a quero aqui. É por isso mesmo que a saudade se chama saudade. Saúda as pessoas que estão longe. A saudade vai até ao fim do mundo.

Honra lhe seja feita, Vercueil não deixou que este disparate o demovesse.

- A escolha é sua - disse,

- Ou lhe diz, ou não lhe diz.

- Não lho vou dizer, pode ter a certeza - respondi (como sou mentirosa!). Alguma coisa subia na minha voz, um tom que eu não conseguia controlar. - Deixe-me lembrar-lhe que não vivemos num país normal. As pessoas não podem entrar e sair quando lhes apetece.

Ele não me deu a menor ajuda.

- A minha filha não volta enquanto as coisas aqui não mudarem. Ela fez uma jura. Não volta para esta África do Sul que você e ela e eu tão bem conhecemos. E não vai com certeza pedir a... como é que hei-de lhes chamar? ... a essa gente autorização para entrar no país. Diz que há-de voltar quando os pendurarem todos de cabeça para baixo nos candeeiros. Há-de voltar então para lhes apedrejar os cadáveres e para dançar nas ruas.

Vercueil exibiu os dentes num largo sorriso. Dentes amarelos, de cavalo. Um cavalo velho.

- Você não acredita - disse eu -, mas talvez um dia a conheça, e há-de ver. Ela é de ferro. Não lhe vou pedir que volte atrás no que prometeu.

- Você também é de ferro - disse-me ele.

Fez-se silêncio entre nós. Alguma coisa se quebrou dentro de mim.

- Alguma coisa se quebrou dentro de mim quando você disse isso - disse eu, as palavras a saírem-me de improviso. Se eu fosse de ferro, não quebrava tão facilmente, com certeza.

As quatro mulheres que tínhamos encontrado no elevador atravessaram o parque de estacionamento, seguidas por um homenzinho de fato azul e solidéu branco. O homem abriu-lhes a porta do carro e levou-as dali.

- A sua filha fez alguma coisa que a obrigasse a sair do país? - perguntou Vercueil.

- Não, não fez nada. Fartou-se, só isso. Foi-se embora e não voltou. Refez a vida. Casou, constituiu família. Era o melhor que tinha a fazer, o mais sensato.

- Mas não esqueceu.

- Não, não esqueceu. E, pensando bem, quem sou eu para estar a dizer isto? Talvez uma pessoa vá esquecendo, a pouco e pouco. Não consigo imaginar, mas talvez aconteça. Ela diz: «Nasci em África, na África do Sul». Já a ouvi dizer isto em conversa. Soa-me aos ouvidos como a primeira metade de uma frase. Devia haver uma segunda metade, mas essa segunda metade nunca vem. Por isso a frase fica no ar, como um gémeo perdido. «Nasci na África do Sul e nunca mais hei-de ver o meu país.» «Nasci na África do Sul e hei-de lá voltar um dia.» Qual é o gémeo perdido? - Então é uma exilada?

- Não, não é uma exilada. Exilada sou eu.              

Ele começava a aprender a conversar comigo. Começava a aprender a levar-me. Senti vontade de interromper, de dizer: «É um prazer tão grande!» Depois do longo silêncio, é um prazer tão grande: vêm-me as lágrimas aos olhos.

- Não sei se você tem filhos. Nem sequer sei se para um homem é a mesma coisa. Mas quando trazemos um filho no corpo, damos a nossa vida a esse filho. Principalmente ao primeiro filho, ao primogénito. A nossa vida deixa de nos pertencer, deixa de ser nossa, passa a ser do filho. É por isso que não chegamos realmente a morrer: transmitimos apenas a nossa vida, a vida que durante algum tempo esteve em nós, e ficamos para trás. Sou uma simples concha, como vê, a concha que a minha filha deixou para trás. O meu destino não tem importância. O destino dos velhos não tem importância. Mesmo assim - digo estas palavras e não posso esperar que você compreenda, mas não faz mal - é assustador estar à beira da partida. Mesmo que já só as pontas dos nossos dedos toquem nas pontas de outros dedos, não queremos perder esse contacto.

Florence e o filho vinham agora a atravessar o parque de estacionamento, caminhando rapidamente ao nosso encontro.

- Devia ter ido viver com ela - disse Vercueil.

Eu sorri.

- Não me posso dar ao luxo de morrer na América - respondi. - Ninguém pode, a não ser os americanos.

Florence sentou-se com violência no banco de trás; o carro estremeceu quando ela se instalou.

- Encontraram-no? - perguntei.

- Encontrámos - respondeu ela. Tinha o cenho carregado como um céu de tempestade. Bheki sentou-se a seu lado.

- E então ? - quis eu saber.

- Encontrámo-lo, sim, está neste hospital - disse Florence.

- E está bem?

- Está bem, sim.

- Óptimo - explodi. - Obrigada pela informação.

Arrancámos em silêncio. Só quando chegámos a casa é que Florence disse o que tinha a dizer:

- Lá no hospital puseram-no ao pé dos velhos. É horrível. Há um que é doido, passa o tempo a berrar e a dizer palavrões, até as enfermeiras têm medo de passar por perto. Não deviam pôr uma criança num sítio assim. Aquilo não é um hospital, é uma sala de espera para o enterro.

Uma sala de espera para o enterro: as palavras não me saíam da cabeça. Tentei comer, mas não tinha apetite.

Fui encontrar Vercueil na casa da lenha a consertar um sapato à luz da vela.

- Vou outra vez ao hospital - disse eu. - Quer vir comigo?

A enfermaria que Florence descrevera ficava no extremo mais distante do velho edifício, aonde se chegava descendo à cave, passando pelas cozinhas e tornando a subir.

Era verdade. Um homem de crânio rapado, magro como um espeto, estava sentado na sua cama, a dar palmadas nas coxas e a cantar muito alto. Uma correia larga, preta, prendia-o à cama pela cintura. O que estaria ele a cantar? As palavras não pertenciam a nenhuma língua que eu conhecesse. Fiquei à porta, sem coragem para entrar, receando que a qualquer instante ele me olhasse fixamente, parasse de cantar, erguesse um daqueles braços esqueléticos e apontasse para mim.

- Deliriam tremens - disse Vercueil. - Ele tem delirium tremens.

- Não, é coisa ainda pior - murmurei eu.

Vercueil agarrou-me pelo cotovelo. Eu deixei que ele me guiasse.

No meio da enfermaria havia uma mesa comprida, juncada de bandejas em desordem. Alguém tossia, uma tosse molhada, como se tivesse os pulmões cheios de leite.

- Ali no canto - disse Vercueil.

Nem ele sabia quem nós éramos, nem eu reconheci facilmente o rapaz cujo sangue se me colara aos dedos. Tinha a cabeça ligada, o rosto tumefacto, o braço esquerdo ao peito. Vestia um pijama azul-claro do hospital.

- Não fales - disse eu. - Viemos só ver se estavas bem. Ele entreabriu os lábios inchados e tornou a fechá-los.

- Lembras-te de mim? A mãe do Bheki trabalha em minha casa. Hoje de manhã estava a olhar para a rua, e vi tudo. Tens que te pôr bom depressa. Trouxe-te fruta.

Poisei a fruta na mesa de cabeceira: uma maçã, uma pêra.  

A expressão do rosto dele não mudou.

Eu não gostava dele. Eu não gosto dele. Sondo o meu coração e não encontro a menor sombra de afeição por ele. Tal como há pessoas que despertam em nós um calor espontâneo, há outras com quem, desde o primeiro instante, nos mostramos frios. E é tudo. Este rapaz não é como o Bheki. Não tem encanto. Há nele um não sei quê de estúpido, deliberadamente estúpido, refractário, intratável. É um desses rapazes cuja voz engrossa demasiado cedo, que aos doze anos já deixaram para trás a infância, já se tornaram brutais e astutos. Uma pessoa simplificada, simplificada em todos os aspectos: mais rápida, mais ágil, mais incansável que as pessoas de verdade, sem dúvidas nem escrúpulos, implacável, inocente. Quando o vi estendido na rua, quando o julguei moribundo, fiz por ele o que pude. Mas, para ser franca, preferia ter gasto o meu tempo com outra pessoa.

Lembro-me de um gato que um dia tratei, um velho gato amarelo que um abcesso impedia de abrir a boca. Trouxe-o para casa quando estava demasiado fraco para oferecer resistência, dei-lhe leite a beber por um tubo, pu-lo a antibiótico. Quando recobrou as forças, soltei--o, mas continuei a deixar-lhe comida no quintal. Durante um ano, continuei a vê-lo, de tempos a tempos, pelas redondezas; durante um ano a comida desapareceu. Depois o bicho sumiu-se de vez. Ao longo de todo esse tempo, tratou-me, sem compromissos, como inimiga. Mesmo quando estava mais fraco, o seu corpo punha-se muito hirto, tenso, renitente, ao contacto da minha mão. Eu sentia agora, em redor deste rapaz, a mesma muralha de resistência. Embora de olhos abertos, não via nada; não dava ouvidos ao que eu lhe dizia.

Virei-me para Vercueil.

- Vamos embora? - perguntei.

E, num repentino impulso - não, mais do que isso, num esforço para não travar a força do impulso - toquei a mão sã do rapaz.

Não lha apertei, nem lha toquei demoradamente; limitei-me a aflorá-la muito ao de leve, a passar ao de leve as pontas dos dedos pelas costas da sua mão. Mas senti-o encolher-se, senti uma raivosa contracção eléctrica.

Pela tua mãe, que aqui não está, disse para comigo. Em voz alta, disse:

- Não tenhas pressa em julgar.

Não tenhas pressa em julgar: o que queria eu dizer com isto? Se eu própria não sabia, como podia esperar que mais alguém soubesse?

De certeza que ele não sabia. Mal me saíam da boca, as minhas palavras passavam por ele como folhas mortas. Palavras de mulher, portanto desprezíveis; de uma mulher velha, portanto duplamente desprezíveis; mas, acima de tudo, palavras de uma branca.

Eu, uma branca. Quando penso nos brancos, o que é que vejo? Uma horda de carneiros (não um rebanho: uma horda) a andar em círculo na planície poeirenta, sob um sol escaldante. Ouço um tropel de cascos, uma confusão de sons que desemboca, à medida que o ouvido se lhe acostuma, nas mil inflexões diferentes de um único balido: «Eu!» «Eu!» «Eu!» E, correndo pelo meio deles, arredando-os do caminho com os seus flancos hirsutos, pesadões, de dentes arreganhados e olhos raiados de sangue, os velhos javalis, as velhas bestas, selvagens, impenitentes, a grunhir: «Morte!» «Morte!» Embora não me valha de muito, também eu fujo, como ele, ao contacto dos brancos; fugiria até ao contacto da velha branca que lhe afaga a mão, se não fosse eu essa velha.

Tentei de novo.

- Antes de me reformar - disse-lhe - eu era professora. Dava aulas na universidade.

Vercueil, do outro lado da cama, fitou-me com interesse. Mas não

era a ele que eu me dirigia.

- Se tivesses assistido às minhas aulas sobre Tucídides - continuei -, talvez tivesses aprendido alguma coisa sobre o que pode suceder à nossa humanidade em tempo de guerra. A nossa humanidade, a humanidade com que nascemos, para a qual nascemos.

Os olhos do rapaz pareciam velados por uma cortina de fumo: o branco do olho sem brilho, as pupilas baças, escuras, como tinta de tipografia. Talvez lhe tivessem dado um sedativo, mas sabia que eu ali estava, sabia quem eu era, sabia que eu estava a falar com ele. Sabia e não escutava, como nunca escutara nenhum dos seus professores: imóvel como uma pedra na sala de aula, impermeável às palavras, à espera do toque da campainha, à espera da sua hora.

- Tucídides escreveu sobre homens que fizeram regras e que as cumpriram. Seguindo a regra, mataram, sem abrir excepções, categorias inteiras de inimigos. A maioria dos que morreram sentiu, com certeza, que estava a ser vítima de um erro terrível, que a regra, fosse ela qual fosse, não se lhes aplicava a eles. Quando lhes cortavam a garganta, a última palavra que diziam era «Eu!». Uma palavra de protesto: eu, a excepção.

«Seriam excepções? A verdade é que, se nos derem tempo para falar, todos nós diremos ser excepções. Cada um de nós tem a sua defesa. Todos merecemos o benefício da dúvida.

«Mas há tempos em que não há tempo para tanto exame minucioso, para tanta excepção, para tanta misericórdia. Não há tempo, de modo que cumprimos a regra. E é pena, é uma grande pena. Era isso que podias ter aprendido com Tucídides. É uma grande pena chegarmos a tempos como esses. Deveríamos enfrentá-los com o coração apertado. Não são tempos que se acolham de braços abertos.

Num gesto deliberado, o rapaz escondeu a mão válida debaixo do lençol, não fosse eu lembrar-me de lhe tocar outra vez.

- Boa noite - disse eu. - Espero que durmas bem e te sintas melhor amanhã.

O velho parara de cantarolar. As mãos batiam frouxamente nas coxas, como peixes moribundos. Tinha os olhos revirados e fios de baba a escorrer pelo queixo.

O carro não pegou, e Vercueil teve que o empurrar.

- Este rapaz é diferente do Bheki, muito diferente - disse eu, desatando a falar pelos cotovelos, meio descontrolada. - Bem tento disfarçar, mas a verdade é que ele me põe nervosa. Acho uma pena que ele tenha tanta inlluência sobre o Bheki. Mas imagino que haja centenas de milhares de outros como ele. Muitos mais do que os há como o Bheki. A nova geração.

Chegámos a casa. Sem ser convidado, Vercueil entrou comigo.

- Tenho que ir dormir, estou exausta - disse eu; e depois, como ele não fazia menção de sair:

- Quer comer alguma coisa?

Pus a comida diante dele, tomei os meus comprimidos, fiquei à espera.

Pegando no pão com a mão aleijada, partiu uma fatia, barrou-a abundantemente de manteiga, cortou um bocado de queijo. As unhas imundas. Sabe-se lá em que outras coisas teria andado a mexer. E é a esta criatura que digo o que sinto, que confio as minhas últimas vontades. Porquê esta estrada sinuosa até ti?

O meu espírito como um lago, onde o dedo dele mergulha, agitando as águas. Sem esse dedo, a imobilidade, a estagnação.

Um caminho ínvio. Pelo caminho ínvio encontro a via de saída. Uma marcha de caranguejo.

A unha imunda a mergulhar em mim.

- Você está com má cara - disse ele.

- Estou cansada.

Pôs-se a mastigar, mostrando os dentes compridos.

Ele observa mas não julga. Sempre envolto numa vaga névoa de álcool. O álcool que abranda, que conserva. Mollificans. Que nos ajuda a perdoar. Ele bebe e dá o desconto. Uma vida toda feita de descontos. Ele, Mr. V, com quem eu falo. Falo e depois escrevo. Falo para poder escrever. Ao passo que com a nova geração, que não bebe, não consigo falar - só pregar. Têm as mãos limpas, as unhas limpas. Os novos puritanos, cumprindo a regra, impondo a regra. Abominam o álcool que suaviza a regra, dissolve o ferro. Desconfiam de tudo quanto seja ocioso, maleável, indirecto. Desconfiam de discursos ínvios como este.

- E também agoniada - disse eu. - Agoniada e cansada, cansada e agoniada. Tenho dentro de mim um filho que não posso dar à luz. Não posso porque ele se recusa a nascer. Porque não pode viver fora de mim. De modo que é meu prisioneiro, ou eu sou prisioneira dele. Dá murros no portão, mas não pode sair. É isso que constantemente se passa. A criança cá dentro dá murros no portão. A minha filha é a primeira da minha prole. É a minha vida. Esta é a segunda, a placenta expulsa depois do parto, a indesejável. Quer ver televisão?

- Julguei que queria ir dormir.

- Não, prefiro não ficar sozinha agora. Além disso este aqui já não está a esmurrar com tanta força. Já tomou o comprimido, está ensonado. A dose são sempre dois comprimidos, já reparou?: um para mim, um para ele.

Sentámo-nos lado a lado no sofá. Estavam a entrevistar um homem de rosto rubicundo. Ficámos a saber que era dono de uma coutada e que alugava leões e elefantes a empresas cinematográficas.

«Não nos quer falar das personalidades estrangeiras que teve oportunidade de conhecer?», pedia o entrevistador.

- Vou fazer chá - disse eu, levantando-me do sofá.

- Há mais alguma bebida cá em casa? - perguntou Vercueil.

- Xerez. Quando voltei com a garrafa de xerez ele estava de pé, virado para a estante.

- O que é que está a ver? - perguntei.

Ele exibiu um dos pesados volumes in-quarto.

- Deve achar esse livro interessante - disse eu. - A mulher que o escreveu viajou pela Palestina e pela Síria disfarçada de homem. No século passado. Uma dessas inglesas intrépidas. Mas não foi ela que fez os desenhos. Foi um ilustrador profissional.

Folheámos juntos o livro. Graças a não sei que efeito de perspectiva, o ilustrador dera aos acampamentos ao luar, às fragas desertas, aos templos em ruínas, um ar de grandeza e mistério. Ninguém fez o mesmo pela África do Sul: transformá-la numa terra de mistério. Agora é tarde de mais. Está gravada na memória como um país de luz rasa, crua, sem sombras, sem espessura.

- Leia o que lhe apetecer - disse eu. - Há muitos mais livros lá em cima. Gosta de ler?

Vercueil poisou o livro e disse:   - Agora vou-me deitar.

De novo um instante de hesitação e embaraço. Porquê? Porque, para ser franca, não gosto do cheiro dele. Porque prefiro nem pensar num Vercueil em roupa interior. e, pior que tudo, os pés: as unhas córneas, encortiçadas.

- Posso-lhe fazer uma pergunta? - disse eu. - Onde é que você vivia antes? Porque é que se fez vagabundo?

- Andava no mar - disse Vercueil. - Já lhe contei.

- Mas ninguém vive no mar. Ninguém nasce no mar. Você não andou no mar a vida inteira.

- Andava nas traineiras.

Ele abanou a cabeça.

- Pergunto por perguntar - disse eu. - Sempre gostamos de saber alguma coisa sobre as pessoas que nos são próximas. É natural.

Ele esboçou aquele seu sorriso oblíquo em que revela de repente um dos caninos, comprido e amarelo. Estás a querer esconder alguma coisa, pensei, mas o quê? Um amor trágico? Uma sentença de prisão? E pus-me também a sorrir.

E assim ficámos ambos sorridentes, cada qual com a sua razão particular para sorrir.

- Se preferir - disse eu -, pode dormir outra vez no sofá. Ele não pareceu muito entusiasmado. - O cão está habituado a dormir comigo.

- Não tinha o cão consigo ontem à noite. - Se eu não for lá ele põe-se a fazer escarcéu.

Não ouvi o cão fazer escarcéu nenhum ontem à noite. Contanto que Vercueil lhe dê de comer, duvido que o cão se importe com o sítio onde ele dorme. Desconfio que ele usa a ficção do cão inquieto como outros homens usam a ficção da esposa inquieta. Em contrapartida, talvez seja por causa do cão que confio nele. Os cães, que farejam o bom e o mau; patrulhadores das fronteiras; sentinelas.

O cão não se afeiçoou a mim. Demasiado cheiro a gato. Mulher--gata: Circe. E ele que, tendo corrido os mares numa traineira, aportou aqui.

- Como queira - disse eu, abrindo-lhe a porta, fingindo não reparar que levava consigo a garrafa de xerez.

Que pena, pensei (foi o meu último pensamento antes de sucumbir ao efeito dos comprimidos): podíamos juntar os dois os trapinhos, à nossa maneira, eu no primeiro andar, ele no rés-do-chão, para esta última e breve etapa do caminho. Assim teria alguém à mão durante a noite. Porque é isso, no fundo, que uma pessoa quer quando o fim se aproxima: alguém que esteja presente, que se possa chamar no escuro. A mãe, ou quem esteja disposto a substituí-la.    

Tendo anunciado a Florence que o faria, dirigi-me à esquadra de Caledon Square e tentei apresentar queixa contra os dois polícias. Mas, pelos vistos, só podem apresentar queixa os «indivíduos directamente afectados».

- Se nos fornecer os dados todos, nós investigamos o caso - disse o polícia ao balcão. - Como se chamam os dois rapazes?

- Não lhe posso dar os nomes deles sem lhes pedir autorização. Ele poisou a caneta. Um rapaz novo, muito aprumado e correcto,

um espécime da nova raça de polícias. Cuja instrução termina com um estágio na Cidade do Cabo, para fortalecerem o autodomínio perante as atitudes liberais-humamstas.

- Não sei se o senhor guarda tem orgulho nessa farda - disse eu -, mas os seus colegas que andam aí pelas ruas estão a degradá-la. E degradam-me também a mim. Sinto uma grande vergonha. Não por eles: por mim própria. O senhor não me autoriza a apresentar queixa porque diz que eu não fui afectada. Mas fui afectada, sim, e muito directamente. Percebe o que eu estou a dizer?

Ele não respondeu, deixou-se estar muito direito e hirto, atento, pronto para o que desse e viesse. Atrás dele, outro homem, debruçado sobre os seus papéis, fingia não ouvir. Mas não havia razão para receios. Eu não tinha mais nada a dizer ou, pelo menos, não tive presença de espírito para pensar em mais nada.

Vercueil esperava-me no carro em Buitenkant Street.

- Fiz uma triste figura - disse eu, de novo à beira das lágrimas. - Disse-lhes: «Vocês são a minha vergonha». Ainda se devem estar a rir de mim. Die ou kruppel dame met die kaffertjies. Mas como pode uma pessoa sentir outra coisa senão vergonha? Talvez eu devesse simplesmente resignar-me a que a vida, doravante, seja assim mesmo: em estado de vergonha. Talvez a vergonha seja apenas o nome do que eu sinto constantemente. O nome do que sentem as pessoas que prefeririam estar mortas.

Vergonha. Mortificação. Morte em vida.

Fez-se um longo silêncio.

- Posso-lhe pedir emprestados dez rands? - disse Vercueil. - Na quinta-feira recebo a pensão de invalidez, e dou-lhe o dinheiro.

 

Ontem, a altas horas na noite, atendi um telefonema. Uma mulher, esbaforida, com a respiração ofegante dos gordos.

- Queria falar com a Florence.

- Ela está a dormir. Está toda a gente a dormir.    

- Sim, mas pode chamá-la.

Chovia, embora não muito. Bati à porta de Florence. Ela abriu imediatamente, como se ali estivesse à espera de ser chamada. Do fundo do quarto veio um gemido sonolento de criança.

- Telefone - disse eu.

Cinco minutos depois, Florence subiu ao meu quarto. Sem óculos, de cabeça descoberta e camisa de noite branca até aos pés, parecia muito mais nova.

- Há sarilho - disse.

- É o Bheki?

- É, tenho que ir.

- Onde é que ele está?

- Primeiro tenho que ir a Guguletu, e depois, acho eu, à Zona C.

- Não faço ideia onde seja a Zona C.

Ela fitou-me com ar perplexo.

- Quero dizer: se me souber indicar o caminho, levo-a lá de carro - expliquei.

- Pois sim - disse ela, ainda hesitante. - Mas não posso deixar as meninas sozinhas.

- Então traga-as também.

- Sim - disse ela. Não me lembrava de alguma vez a ter visto tão indecisa.

- E Mr. Vercueil - disse eu. - Também tem que vir, para ajudar com o carro.

Ele abanou a cabeça.

- Tem que vir, sim - insisti.

O cão deitara-se junto de Vercueil. Bateu com a cauda no chão ao ver-me entrar, mas não se levantou.

- Mr. Vercueil! - chamei em voz alta. Ele abriu os olhos; desviei a lanterna. Ele soltou gases. - Tenho que levar a Florence a Guguletu. É urgente, temos que sair já. Não quer vir connosco?

Ele não respondeu; virou-se de lado e enroscou-se mais. O cão ajeitou-se à sua nova posição.

- Mr Vercueil! - disse eu, apontando-lhe a lanterna à cara.

- Vá-se lixar - resmungou ele.

- Não o consigo acordar - comuniquei a Florence. - Preciso de alguém que me empurre o carro.

- Empurro eu - disse ela.

Com as duas meninas no banco de trás, bem agasalhadas, Florence empurrou. Arrancámos. Espreitando pelo vidro que o nosso bafo embaciava, subi vagarosamente o De Waal Drive, andei durante algum tempo perdida nas ruas de Claremont, até dar com a Lansdowne Road. Começavam a circular os primeiros autocarros do dia, fortemente iluminados e vazios. Ainda não eram cinco horas.

Passámos as últimas casas, os últimos candeeiros de iluminação pública. Avançámos debaixo de uma chuva cerrada, de noroeste, seguindo o vago clarão amarelo dos faróis.

- Se alguém lhe fizer sinal para parar, ou se vir alguma coisa na estrada, não pare, siga em frente - disse Florence.

- Isso é que não sigo - disse eu. - Devia-me ter prevenido mais cedo. Que fique bem claro, Florence: ao primeiro sinal de distúrbios, volto para trás.

- Não digo que vá acontecer alguma coisa: estou só a avisá-la. Cheia de apreensão, continuei a guiar no escuro. Mas ninguém se

nos atravessou no caminho, ninguém fez sinal, não havia obstáculos a impedir a estrada. Os distúrbios, pelos vistos, ainda estavam na cama; os distúrbios recobravam forças para o próximo embate. A berma da estrada, que a esta hora deveria, em circunstâncias normais, ser palmilhada por milhares de homens a caminho do trabalho, estava deserta. Turbilhões de névoa vogavam na nossa direcção, envolviam o carro, vogavam para longe. Aparições, espíritos. Aorno, este lugar: sem aves. Estremeci; o meu olhar cruzou-se com o de Florence.

- Ainda falta muito? - perguntei.

- Já falta pouco.

- O que é que lhe disseram ao telefone?

- Ontem houve outra vez tiroteio. Distribuíram armas aos witdoeke, e os witdoeke andaram aos tiros.

- Há tiroteio em Guguletu?

- Não, não é em Guguletu, é no mato.

- Ao mais pequeno sinal de distúrbios volto para trás, Florence. Vamos buscar o Bheki, mais nada, e depois voltamos para casa. Você nunca o devia ter deixado vir.

- Pois sim, mas tem que virar aqui, à sua esquerda.

Virei. Cem metros mais adiante havia uma barreira na estrada, com holofotes, carros parados nas bermas, polícias armados. Parei; um polícia abordou-me.

- O que é que vem aqui fazer? - perguntou.

- Vou levar a minha empregada a casa - disse eu, espantada com a calma com que mentia.

Ele espreitou para as crianças que dormiam no banco de trás.

- Onde é que ela mora?

'- No cinquenta e sete - disse Florence.

- Pode deixá-la aqui, pode ir a pé, não é longe.

- Está a chover, ela tem filhas pequenas, não a deixo ir sozinha a pé - respondi com firmeza.

Ele hesitou, depois fez-me sinal com a lanterna para avançar. No tejadilho de um dos carros estava empoleirado um jovem de camuflado, arma em riste, sondando a escuridão.

Havia agora no ar um cheiro a queimado, a cinza molhada, a borracha em chamas. Descemos lentamente uma rua larga, de terra batida, ladeada de casas com feitio de caixas de fósforos. Passou por nós uma carrinha da polícia blindada a chapa metálica.

- Vire aqui à direita - disse Florence. - Outra vez à direita. Pare aqui.

Com a bebé ao colo e a pequenita, ainda mal desperta, a tropeçar no seu encalço, subiu, chapinhando, o acesso ao nº 219, bateu à porta, entrou. Hope e Beauty, Esperança e Beleza. Era como viver numa alegoria. Com o motor a trabalhar, fiquei à espera.

A carrinha da polícia que passara por nós encostou ao meu lado. Uma luz bateu-me em cheio na cara. Ergui a mão para resguardar os olhos. A carrinha afastou-se.

Florence reapareceu, trazendo sobre a cabeça um impermeável de plástico com que se abrigava a si e à bebé, e sentou-se no banco de trás. Atrás dela, correndo para fugir à chuva, não vinha Bheki, mas sim um homem de trinta e tal ou quarenta anos, franzino, ágil, de bigode. Sentou-se ao meu lado.

- É Mr. Thabane, meu primo - disse Florence. - Vai-nos indicar o caminho.

- Onde está a Hope? - perguntei.       - Deixei-a com a minha irmã.      

- E o Bheki?      

- Não sei bem - disse o homem. Tinha uma voz surpreendentemente suave. - Apareceu ontem de manhã, poisou as coisas e tornou a sair. Não veio dormir a casa. Mas eu sei onde moram os amigos. Podemos começar por procurá-lo lá.

- É o que você quer, Florence? - perguntei.

- Temos que o procurar - disse Florence. - Não podemos fazer mais nada.

- Se preferir que vá eu a guiar, eu guio - disse o homem. - Talvez seja melhor, aliás.

Saí do carro e sentei-me atrás, ao lado de Florence. A chuva era agora mais intensa; o carro chapinhava nas poças da estrada esburacada, íamos virando à esquerda e à direita, à luz alaranjada e mortiça dos candeeiros de rua; depois parámos.

- Cuidado, não desligue o motor - disse eu ao primo, Mr. Thabane. Ele saiu e bateu a uma janela. Seguiu-se uma longa conversa com

alguém que eu não via. Quando ele voltou, vinha encharcado e cheio de frio.. Com dedos entorpecidos, puxou um maço de cigarros e tentou acender um.

- Aqui no carro não, por favor - disse eu.

Ele trocou com Florence um olhar exasperado. Ficámos sentados em silêncio. - De que é que estamos à espera? - perguntei. - Eles vão mandar uma pessoa para nos mostrar o caminho.

Saiu da casa a correr um rapazinho, trazendo na cabeça um gorro de lã que lhe ficava demasiado grande. Com o mais perfeito à-vontade, saudando-nos a todos com um sorriso, entrou no carro e começou a dar indicações. Dez anos, no máximo. Um filho dos tempos, aclimatado a esta paisagem de violência. Quando penso na minha própria infância, só me vêm à memória as longas tardes soalheiras, o cheiro a pó das alamedas, à sombra dos eucaliptos, o brando rumor da água nas valas à beira da estrada, o arrulhar dos pombos. Uma infância de sono, prelúdio de uma vida que se antevia sem percalços e de uma suave passagem para o Nirvana. Ser-nos-á concedido ao menos o nosso Nirvana, a nós, filhos desses tempos de outrora? Duvido. Se houver justiça, ficaremos retidos no primeiro limiar do além. Brancos como larvas, envoltos nas nossas faixas, despachar-nos-ão para junto dessas almas recém-nascidas cujo eterno vagido Eneias tomou por choro. Branca é a nossa cor, a cor do limbo: brancas areias, brancas rochas, uma luz branca a inundar-nos por todos os lados. Como uma eternidade passada na praia, um interminável domingo entre milhares de seres iguais a nós, amodorrados, a dormitar, ouvindo ao longe o doce marulhar das ondas. In limine primo : o limiar da morte, o limiar da vida. Criaturas vomitadas pelo mar, esparsas na areia, indecisas, indefinidas, nem quentes nem frias, nem carne nem peixe.

Tínhamos passado as últimas casas e avançávamos, à luz mortiça das primeiras horas da manhã, por uma paisagem de terra crestada, de árvores enegrecidas. Fomos ultrapassados por uma camioneta de caixa aberta, com três homens na traseira, abrigados debaixo de um oleado. Na barreira seguinte tornámos a alcançá-los. Fitaram-nos com olhos inexpressivos, cara a cara, enquanto esperávamos que inspeccionassem o nosso carro. Um polícia mandou-os passar, mandou-nos passar a nós também.

Virámos para norte, virando costas às montanhas, e depois saímos da estrada, tomando um caminho de terra que em breve deu lugar à areia. .Mr. Thabane parou.

- Não podemos ir mais longe com o carro, é muito perigoso - disse. - Tem aqui um problema no alternador - acrescentou, apontando para a luz vermelha que se acendera no painel.

- Vou deixar andar, até que se avarie de vez - disse eu. Não me apetecia estar com explicações.

Ele desligou o motor. Ficámos durante algum tempo a ouvir a chuva tamborilar no tejadilho. Depois saíram Florence e o rapaz. Às costas da mãe, a bebé dormia sossegadamente.

- É melhor trancar as portas - disse-me Mr. Thabane.

- Quanto tempo demoram?

- Não lhe sei dizer, mas vamos tentar despachar-nos.

Abanei a cabeça e disse:

- Aqui não fico.

Não tinha chapéu, nem guarda-chuva. A chuva bateu-me na cara, colou-me o cabelo à pele do crânio, escorreu-me pelo pescoço. Numa excursão assim, pensei, pode-se apanhar uma constipação que nos leve desta para melhor. O rapaz, o nosso guia, já se nos adiantara, desatando a correr.

- Cubra a cabeça com isto - disse Mr. Thabane, oferecendo-me a gabardina de plástico.                                                            

- Disparate - disse eu -, não me importo de apanhar um bocadinho de chuva.                                                

- Mesmo assim, cubra-se com isto - insistiu ele. Aceitei.

- Venha daí - disse ele. Segui no seu encalço.

À nossa volta, a paisagem era um ermo de dunas pardacentas e salgueiros de Port Jackson, a tresandar a lixo e a cinzas. Bocados de plástico, ferro-velho, vidros, ossos de animais, juncavam ambos os lados do caminho. Eu já estava a tremer de frio, mas quando tentei andar mais depressa o meu coração desatou a martelar desagradavelmente. Começava a ficar para trás. Iria Florence esperar por mim? Não: amor matris, uma força que nada fazia deter.

No sítio onde o caminho se bifurcava, Mr. Thabane estava à minha espera.

- Obrigada - arquejei - é muito amável. Desculpe tê-lo feito ficar para trás. Tenho um problema na anca.

- Apoie-se no meu braço - disse ele.

Fomos ultrapassados por vários homens, negros, carrancudos, de barbas, armados de paus, caminhando apressadamente em fila indiana. Mr. Thabane desviou-se do caminho. Agarrei-me com mais força ao braço dele.

O caminho alargou-se, indo desembocar num grande charco pouco profundo. Do lado de lá do lago começavam as barracas, e o aglomerado que se situava a um nível mais baixo estava cercado de água, inundado. Umas solidamente construídas de madeira e ferro, outras meras tendas de plástico sobre armações de ramos, espraiavam-se para norte, pelas dunas, até onde a minha vista alcançava.

À beira do charco, hesitei.

- Venha - disse Mr. Thabane. Agarrando-me a ele, avancei, e atravessámos a vau, com água pelos tornozelos. Um dos meus sapatos ficou preso na lama. - Cuidado com os cacos de vidro - avisou ele. Recuperei o sapato.

Tirando uma velha de boca aberta, parada à porta de casa, não se via ninguém. Mas à medida que avançávamos, o barulho que vínhamos ouvindo, e que a princípio poderia confundir-se com o som do vento e da chuva, começou a cindir-se em gritos, berros, chamamentos, sobre um baixo-contínuo a que só posso dar o nome de suspiro: um suspiro fundo, repetido vezes sem conta, como se fosse o próprio vasto mundo a suspirar.

Entretanto o rapazinho, o nosso guia, estava novamente connosco, puxando a manga de Mr. Thabane, falando alvoroçadamente. Afastaram-se os dois; eu esforcei-me por subir atrás deles o declive da duna.

Estávamos na retaguarda de uma multidão de centenas de pessoas, que contemplava um cenário de devastação: barracas queimadas, a fumegar, barracas ainda em chamas, soltando fumo negro. Debaixo da chuva torrencial amontoavam-se móveis, roupas de cama, utensílios caseiros. Brigadas de homens afadigavam-se tentando salvar o recheio das barracas em chamas, correndo de uma para outra, apagando os fogos; ou assim me pareceu, até que percebi, chocada, que eles não eram bombeiros, mas incendiários, que o seu combate não era travado contra as chamas, mas contra a chuva.

Era da boca das pessoas aglomeradas na orla deste anfiteatro de dunas que brotavam os suspiros. Como acompanhantes enlutados de um enterro, deixavam-se estar à chuva, homens, mulheres e crianças, encharcados, mal se dando ao trabalho de se protegerem, contemplando a destruição.

Um homem de casacão preto brandia um machado. Uma janela quebrou-se com estrondo. O homem atacou a porta, que cedeu ao terceiro golpe. Como se a libertassem de uma jaula, uma mulher com um bebé nos braços fugiu da casa, seguida por três crianças descalças. Ele deixou-os passar. Depois começou a golpear a ombreira da porta. Toda a estrutura rangeu.

Um dos seus companheiros entrou na casa, empunhando um bidão de gasolina. A mulher precipitou-se atrás dele, saindo com os braços cheios de roupa de cama. Mas quando tentou fazer uma segunda incursão, impediram-na à força.

Um novo suspiro brotou dos lábios da multidão. Baforadas de fumo começaram a elevar-se do interior da barraca. A mulher pôs-se de pé, precipitou-se para dentro da casa, foi de novo repelida.

Alguém, no meio da multidão, arremessou uma pedra que caiu com estrondo no telhado da barraca em chamas. Outra atingiu a parede, uma terceira aterrou aos pés do homem do machado. Este soltou um grito ameaçador. Ele e mais meia dúzia de companheiros interromperam o que estavam a fazer e, brandindo paus e barras de ferro, avançaram para a multidão. Aos gritos, as pessoas deram meia volta, preparando-se para fugir, e eu entre elas. Mas, na areia mole, mal conseguia levantar os pés. O meu coração batia descompassado, dores lancinantes trespassavam-me o peito. Parei, vergada ao meio, ofegante. Será possível que isto me esteja a acontecer?, pensei. Que faço eu aqui? Tive uma visão do carrinho verde que me esperava sossegadamente na berma da estrada. O que eu mais desejava no mundo era meter-me no carro e fechar a porta atrás de mim, isolar-me deste mundo ameaçador de raiva e violência.

Uma rapariga, uma adolescente gordíssima, arredou-me do caminho com um encontrão. «Raios a partam!», protestei, ofegante, ao cair de bruços. «Raios te partam a ti!», retorquiu ela, fitando-me com a mais nua animosidade. «Sai da frente! Sai da frente!» E subiu a custo o declive da duna, traseiro enorme a abanar.

Mais um safanão destes, pensei, caída de borco na areia, e é o meu fim. Esta gente aguenta muitos safanões, mas eu - eu sou frágil como uma borboleta.

Pés passavam por mim, esmagando a areia. Vi de relance uma bota castanha, gáspea descolada, sola atada com um cordel. O safanão que eu esperava não chegou a atingir-me.

Levantei-me. A minha esquerda travava-se uma luta confusa; todas as pessoas que havia um minuto tinham fugido em direcção ao mato voltavam agora para trás, de forma não menos repentina. Uma mulher gritou, um grito sonoro e estridente. Como havia eu de sair deste lugar terrível? Onde estava o charco que eu tinha atravessado, onde estava o caminho que levava ao carro? Por toda a parte havia charcos, poças, lagos, toalhas de água; por toda a parte havia caminhos, mas onde levariam?

Ouvi nitidamente um estampido de tiros, um, dois, três disparos, não muito perto, mas também não muito longe.

- Venha - disse uma voz, e Mr. Thabane ultrapassou-me, caminhando a passos largos.

- Sim! - arquejei, esforçando-me, cheia de gratidão, por acompanhá-lo. Mas não consegui. - Mais devagar, por favor - pedi. Ele esperou por mim; juntos, tornámos a atravessar o charco, e chegámos ao caminho.

Um jovem alcançou-nos, olhos injectados de sangue.

- Aonde vão? - perguntou. Uma pergunta dura, uma voz dura.

- Vou sair daqui, vou-me embora, isto não é lugar para mim - respondi.

- Vamos buscar o carro - disse Mr. Thabane.

- Nós precisamos desse carro - disse o jovem.

- Não empresto o meu carro a ninguém - disse eu.

- Ele é amigo do Bheki - disse Mr. Thabane.

O jovem - afinal muito longe ainda de ser um homem: apenas um rapaz vestido de homem, tomando atitudes de homem - fez um estranho gesto: erguendo uma das mãos à altura da cabeça, percutiu-a com a outra, palma contra palma, num golpe de raspão. Que significava aquilo? Significaria alguma coisa?

A caminhada deixara-me as costas terrivelmente doridas. Abrandei o passo e parei.

- Tenho que ir depressa para casa - disse. Era um apelo; reparei na pouca firmeza da minha voz.

- Já viu que chegasse? - disse Mr. Thabane, mostrando-se mais distante que até aí.

- Sim, já vi que chegasse. Não vim aqui para ver as vistas. Vim buscar o Bheki.

- E quer ir para casa?

- Quero ir para casa, sim. Estou cheia de dores, estou exausta.

Ele virou-me costas e seguiu em frente. Eu segui-o, a coxear. Então ele tornou a parar.

- Quer ir para casa - disse. - E as pessoas que aqui vivem? Quando querem ir para casa, é para aqui que têm de vir. O que é que me diz a isto?

Estávamos parados à chuva, no meio do caminho, frente a frente. Os transeuntes paravam também, olhando-me com curiosidade, fazendo dos meus assuntos assunto seu, assunto de toda a gente.

- Não tenho resposta para isso - disse eu. - É terrível.

- Não é só terrível - disse ele -, é um crime. Quando vê cometer um crime à sua frente, o que é que diz? Diz: «Já vi que chegasse, não vim aqui para ver as vistas, quero ir para casa»?

Eu abanei a cabeça, numa grande angústia.

- Pois não, não diz - continuou ele. - Muito bem. Então o que é que diz? Que crime é esse que está a ver? Que nome lhe dá?

É professor, pensei. Por isso fala tão bem. O que está a fazer comigo, já o treinou muitas vezes nas aulas. É o expediente que usamos para fazer com que a nossa própria resposta pareça vir da boca do aluno. A arte do ventríloquo, herança de Sócrates, tão opressiva em África como o foi em Atenas.

Olhei de soslaio o círculo de espectadores. Seriam hostis? Não detectei sinais de hostilidade. Esperavam apenas que eu recitasse o meu papel.

- Há com certeza muitas coisas que eu lhe poderia dizer, Mr. Thabane - respondi. - Mas teriam que vir realmente de mim. Quando se fala sob coacção, como o senhor deve com certeza saber, raramente

se fala verdade.  

Ele ia reagir, mas eu impedi-o.

- Espere. Dê-me um minuto. Não estou a fugir à sua pergunta. Estão a acontecer aqui coisas terríveis. Mas o que penso delas, tenho que o dizer à minha maneira.

- Pois então diga o que tem a dizer! Estamos a ouvi-la! Estamos à espera! - Ergueu as mãos, pedindo silêncio. Da multidão veio um murmúrio aprovador.

- São imagens terríveis - repeti, gaguejando. - E temos que as condenar. Mas não posso denunciá-las com palavras alheias. Tenho que procurar as minhas próprias palavras, vindas de dentro de mim. De outro modo, não serão verdadeiras. É tudo o que posso dizer por agora.

- É só treta, a conversa desta mulher - disse um homem no meio da multidão. - Treta - repetiu. Ninguém o contradisse. Alguns começavam já a afastar-se.

- Sim - disse eu, interpelando-o directamente. - Tem razão, é verdade o que está a dizer.

Ele olhou-me como se eu fosse louca.

- Mas o que é que quer? - continuei. - Para falar disto - e fiz um gesto com a mão, abarcando o mato, o fumo, o lixo que juncava o caminho - , seria precisa a língua de um deus.

- Treta - repetiu ele, desafiando-me.

Mr. Thabane deu meia volta e afastou-se dali. Eu segui atrás dele. A multidão dispersou-se. Instantes depois o rapaz passou por mim a correr. Depois avistei o carro.

- O seu carro é um Hillman, não é? - perguntou Mr. Thabane. - Já não deve haver muitos em circulação.

Fiquei espantada. Depois do que se passara, pensei que se tivesse aberto entre nós um fosso. Mas ele não parecia guardar rancor.

- Dos tempos do «É Britânico, é do Melhor» - respondi. - Desculpe se estou a dizer disparates.

Ele ignorou o meu pedido de desculpas.

- E alguma vez britânico foi sinónimo de melhor? - perguntou.

- Não, claro que não. Era só uma frase publicitária do pós-guerra. Você não se pode lembrar, é muito novo.        

- Nasci em 1943 - disse ele. - Tenho quarenta e três anos. Acredita? - Virou-se para mim, exibindo a sua bela aparência. Vaidoso; mas uma vaidade simpática.

Liguei o motor. A bateria não dava sinal. Mr. Thabane e o rapaz saíram do carro para empurrar, fincando a custo os pés na areia. Finalmente o motor pegou.

- Siga a direito - disse o rapaz. Obedeci.

- É professor? - perguntei a Mr. Thabane.

- Fui professor. Mas abandonei temporariamente a profissão. À espera de melhores dias. Neste momento vendo sapatos.

- E tu? - perguntei ao rapaz.          

Ele murmurou qualquer coisa que eu não ouvi.  

- Ele é um jovem desempregado - disse Mr. Thabane. - Não é verdade?

O rapaz sorriu, embaraçado.

- Vire aqui, logo a seguir às lojas - disse.

No meio do ermo erguiam-se, em fila, três pequenas lojas isoladas, destruídas, chamuscadas. BHAWOODIEN CASH STORE, dizia o único letreiro ainda legível.

- Foi há muito tempo - disse Mr. Thabane. - No ano passado. Metemos por uma estrada de terra castanha. À nossa esquerda

erguia-se um aglomerado de casas, casas dignas desse nome, com paredes de tijolo, telhados de amianto e chaminés. Entre elas, à volta delas, estendendo-se pela planície a perder de vista, um sem-número de barracas clandestinas.

- E aquele edifício - disse o rapaz, apontando em frente.

Era um edifício baixo e comprido, talvez um salão de festas ou uma escola, cercado por uma vedação de rede. Mas grandes troços da vedação tinham sido arrancados, e do edifício em si já só estavam de pé as paredes enegrecidas de fumo. Diante da porta aglomerara-se uma multidão. Os rostos voltaram-se para observar a chegada do Hillman.

- Desligo o motor? - perguntei.

- Pode desligar, não tenha medo - disse Mr. Thabane.

- Não tenho medo - disse eu. Seria verdade? Em certo sentido, sim; ou pelo menos, depois do episódio no mato, importava-me menos com o que pudesse acontecer-me.

- Seja como for, não há razão para ter medo - prosseguiu ele tranquilamente. - Estão ali os seus rapazes para a proteger.

E apontou.

Foi então que os vi, na estrada, um pouco mais adiante: três carros de transporte de tropas, de cor caqui, quase a confundir-se com as árvores e, recortando-se contra o céu, cabeças metidas em capacetes.

- Para que não pense - concluiu -, que isto são só querelas de negros, confrontos entre facções. Olhe: lá está a minha irmã.

Chamava-lhe minha irmã e não Florence. Talvez seja eu a única pessoa no mundo a tratá-la por Florence. Um pseudónimo. Agora estava num lugar onde as pessoas revelavam os seus verdadeiros nomes.

Ela estava de pé, encostada à parede para se abrigar da chuva: uma mulher discreta, respeitável, de sobretudo cor de vinho e gorro branco de malha. Atravessámos a multidão para ir ao seu encontro. Embora não me tivesse feito qualquer sinal, eu tinha a certeza de que ela me vira. Chamei:

- Florence! ergueu os olhos baços.

- Encontrou-o?  

Ela apontou com o queixo para o interior devastado do edifício, e virou-me as costas, sem me cumprimentar. Mr. Thabane furou o ajuntamento que se formara à entrada. Constrangida, fiquei à espera. As pessoas iam e vinham, desviando-se de mim como se eu fosse uma ave de mau agoiro.

Uma menina de uniforme de colégio verde-maçã avançou para mim com a mão no ar, como se fosse dar-me uma palmada. Encolhi-me, mas era só a brincar. Ou talvez devesse antes dizer: ela coibiu-se de me bater realmente.

- Acho que também devia ir ver - disse Mr. Thabane quando tornou a aparecer, respirando descompassadamente. Foi ter com Florence e abraçou-a. Tirando os óculos, ela encostou a cabeça ao ombro dele e desatou a chorar.

O interior do edifício era um amontoado de entulho e vigas calcinadas. Junto à parede do fundo, abrigados do grosso da chuva, jaziam cinco cadáveres impecavelmente alinhados. O cadáver do meio era o de Bheki, o Bheki da Florence. Ainda trazia as calças de flanela cinzenta, a camisa branca e o pulóver castanho do uniforme da escola, mas estava descalço. Tinha os olhos abertos e arregalados, a boca também aberta. Havia horas que a chuva caía sobre ele e sobre os seus companheiros, não só ali mas no lugar onde se achavam quando a morte os levara; as roupas e até os cabelos estavam espalmados, sem vida. Bheki tinha areia nos cantos dos olhos. Tinha areia na boca.

Alguém estava a puxar-me pelo braço. Atordoada, olhei para baixo e vi uma rapariguinha de olhos muito abertos e solenes. Disse-me:

- Irmã... irmã... - mas não soube como continuar.

- Está a perguntar se a senhora é uma irmã - explicou uma mulher, sorrindo com benevolência.

Eu não queria que me desviassem a atenção, logo naquela altura. Abanei a cabeça.

- Quer dizer, se é uma irmã da Igreja Católica - disse a mulher. - Não - prosseguiu, dirigindo-se à menina em inglês -, não é uma irmã. - E soltou brandamente a minha manga da mão dela.

Florence estava rodeada por um mar de gente.

- E eles precisam de ficar ali à chuva? - perguntei a Mr. Thabane.

- Precisam de ali ficar, sim. Para toda a gente ver.

- Mas quem foi?

Eu tremia: sentia arrepios a subir-me e a descer-me pelo corpo, as mãos a tremer. Pensei nos olhos abertos do rapaz. Pensei: qual terá sido a última imagem que ele viu neste mundo? pensei: é a coisa mais horrível que presenciei em toda a minha vida. E pensei: agora tenho os olhos abertos e nunca mais vou poder tornar a fechá-los.

- Quem foi? - disse Mr. Thabane. - Se quiser ir extrair-lhes as balas dos corpos, faça favor. Mas digo-lhe antecipadamente o que vai encontrar. «Fabricado na África do Sul. Conforme às normas sul-africanas. Aprovado pelas entidades competentes.» É isso que vai encontrar.

- Ouça-me, por favor - disse eu. - Eu não sou indiferente a esta... a esta guerra. Como poderia ser-lhe indiferente? Não há grades, por muito fortes que sejam, capazes de nos resguardarem dela.

Senti vontade de chorar; mas ali, ao lado de Florence, que direito tinha de o fazer?

- Ela vive dentro de mim, e eu vivo dentro dela - murmurei.

Mr. Thabane encolheu os ombros, impaciente. As suas feições pareciam agora mais feias. Também eu vou ficando com certeza mais feia a cada dia que passa. A metamorfose que nos entaramela a língua, nos embota os sentimentos, nos transforma em bestas. Onde crescerá, nestas plagas, a erva que dela nos preserve?

Conto-te a história desta manhã ciente de que a narradora da história toma, por dever de ofício, o lugar da razão. É através dos meus olhos que tu vês; a voz que fala na tua cabeça é a minha. É através de mim e de mim só que te achas aqui, nesta planície desolada, cheiras o fumo no ar, vês os corpos dos mortos, ouves os prantos, tremes à chuva. São os meus pensamentos que tu pensas, é o meu desespero que sentes, e também os primeiros sinais de boas-vindas a quanto venha pôr fim ao pensamento: o sono, a morte. É para mim que fluem as tuas simpatias; o teu coração bate em uníssono com o meu.

Agora, minha filha, carne da minha carne, melhor parte de mim, peço-te que te afastes. Não te conto esta história para te compadeceres de mim mas para que saibas como as coisas são. Seria mais fácil para ti, bem sei, se a história saísse de outra boca, se a voz que te soa aos ouvidos fosse a de um estranho. Mas a verdade é que não há mais ninguém. Sou eu a única. Sou eu quem escreve: eu, eu. Por isso te peço: atende ao que está escrito, e não a mim. Procura as mentiras, os rogos e as desculpas que porventura se insinuem entre as palavras. Não as passes em claro, não as perdoes facilmente. Lê tudo, atê mesmo esta súplica, com olhos frios.

Alguém arremessara um pedregulho contra o pára-brisas. Do tamanho de uma cabeça de criança, jazia em silêncio no assento, entre estilhaços de vidro, como se o carro fosse agora pertença sua. O meu primeiro pensamento foi: onde vou arranjar um pára-brisas para um Hillman} E depois: que sorte estar tudo a acabar-se ao mesmo tempo!

Fiz rolar a pedra do assento para o chão e comecei a arrancar os cacos soltos do pára-brisas. Agora que tinha alguma coisa para fazer, sentia-me mais calma. Mas estava mais calma também porque já não temia pela minha vida. O que pudesse vir a acontecer-me já não tinha importância. Pensei: a minha vida não vale mais que um monte de lixo. Matamos esta gente como se fosse lixo, mas afinal são as nossas vidas que não merecem ser vividas.

Revi os cinco cadáveres, a sua presença sólida, maciça, no edifício calcinado. Os fantasmas deles não partiram, pensei, nem partirão. Os fantasmas deles não arredam pé, tomaram posse deste lugar.

Se alguém me tivesse cavado ali mesmo uma sepultura na areia e ma tivesse apontado, eu ter-me-ia metido nela sem uma palavra, ter-me-ia deitado ao comprido, cruzando os braços sobre o peito. E quando a areia começasse a cair-me na boca e nos cantos dos olhos, não teria levantado um dedo para a sacudir.

Não leias em simpatia comigo. Não deixes que o teu coração bata em uníssono com o meu.

Ofereci uma moeda pela janela aberta. Acorreu um magote de interessados. As crianças empurraram o carro, o motor pegou. Esvaziei a carteira nas mãos estendidas.

Estacionadas entre os arbustos, no ponto onde a estrada se reduzia a um simples trilho, estavam as viaturas militares que eu tinha visto, não três, como eu pensava, mas cinco. Sob o olhar de um rapaz de capa de oleado cor de azeitona, saí do carro, tão cheia de frio, nas minhas roupas encharcadas, que era como se estivesse nua.

Tivera esperança de que as palavras que me faltavam me viessem espontaneamente aos lábios, mas não vieram. Estou destituída, diziam as minhas mãos, destituída de fala. Vim para falar mas não tenho nada a dizer.

- Wag in die motor, ek sal die polisie skakel - gritou-me ele. Um rapazinho cheio de borbulhas, a brincar aos senhores importantes e aos assassinos. - Espere no carro, vou chamar a polícia. - Abanei a cabeça, continuei a abanar a cabeça. Ele falava com alguém ao meu lado, alguém que eu não via. E sorria. Estavam sem dúvida a assistir à cena desde o início, tinham uma opinião formada sobre mim. Uma velha samaritana louca apanhada pela chuva, encharcada como um pinto. Teriam razão ? Serei eu uma boa samaritana? Não, não fiz nenhuma boa acção de que me lembre. Serei louca? Sim, sou louca. Mas eles também são loucos. Andamos todos loucos, possuídos por demónios. Quando a loucura sobe ao trono, quem no reino escapará ao contágio?

- Não chame a polícia, eu sei tomar conta de mim - gritei. Mas os murmúrios, os olhares enviesados, continuaram. Talvez já tivessem conseguido a ligação por rádio.

- O que é que julga que está a fazer? - gritei ao rapaz. O sorriso gelou-lhe nos lábios. - O que é que julga que está a fazer? - berrei, a voz já um tanto esganiçada. Ele fitou-me, aturdido. Aturdido por ver uma mulher branca a gritar com ele, uma mulher com idade para ser sua avó.

Um homem de camuflado saiu da segunda viatura da fila. Olhou a direito para mim.

- Wat is die moeilikheid? - perguntou ao rapaz do carro de transporte de tropas.

- Nee, niks moeilikheid nie. - Não há problema. - Net hierdie dame wat wil weet wat aangaan.

- Este sítio é perigoso, senhora - disse o homem, virando-se para mim. Um oficial, evidentemente. - Aqui tudo pode acontecer. Vou pedir uma escolta para a conduzir de volta até à estrada.

Abanei a cabeça. Eu não perdera o autodomínio, não estava sequer à beira das lágrimas, embora corresse o risco de me ir abaixo a qualquer momento.

O que é que eu queria? O que é que a velhota queria? O que ela queria era revelar-lhes alguma coisa, se alguma coisa podia ser revelada naquele tempo e lugar. O que ela queria, antes que a pusessem a andar, era mostrar-lhes uma cicatriz, uma chaga, forçá-los a olhar, obrigá-los a vê-la com os seus próprios olhos: uma cicatriz, qualquer cicatriz, a cicatriz de todo este sofrimento, mas em última análise a minha cicatriz, já que as nossas próprias cicatrizes são as únicas que trazemos connosco. Cheguei a levar a mão aos botões do vestido. Mas tinha os dedos azuis, gelados.

- Já esteve dentro daquele edifício? - perguntei, na minha voz trémula. As lágrimas vinham agora a caminho.

O oficial atirou fora o cigarro, apagou-o com o pé na areia molhada.

- Esta unidade não dispara um único tiro há vinte e quatro horas - disse calmamente. - Deixe-me dar-lhe uma sugestão: não se exalte antes de saber do que está a falar. Essas pessoas que ali estão não foram as únicas vítimas. Está constantemente a haver mortes. Aqueles são só os corpos que recolheram ontem. Os confrontos acalmaram, por agora, mas assim que parar de chover vão estalar de novo. Não sei como é que a senhora aqui chegou, a estrada devia estar cortada, mas olhe que o sítio não é famoso, não devia aqui estar. Vamos contactar a polícia, eles escoltam-na até sair do bairro.

- Ek het reeds geskakel - disse o rapaz do carro de transporte de tropas.

- Porque é que não largam as armas e não vão todos para casa? - disse eu. - Nada pode ser pior do que o que estão aqui a fazer. Pior para as vossas almas, quero eu dizer.

- Não - disse ele. Eu esperava incompreensão da sua parte, mas não, ele percebera exactamente o que eu queria dizer. - Agora vamos até ao fim.

Eu tremia da cabeça aos pés. Os meus dedos, dobrados contra as palmas das mãos, não queriam endireitar-se. O vento colava-me à pele a roupa encharcada.

- Eu conhecia um dos rapazes que morreram - disse eu. - Conhecia-o desde os cinco anos. A mãe trabalha para mim. Vocês são todos novos de mais para isto. Fico agoniada. Só isso.

Meti-me no carro, voltei para junto do edifício destruído e esperei, sentada ao volante. Estavam agora a retirar os corpos. Senti correr até mim, da multidão ali reunida, uma vaga não sei bem de que emoção: ressentimento, animosidade. Pior ainda: ódio. Seria diferente se não me tivessem visto falar com os soldados? Não. Mr. Thabane veio ver o que eu queria.

- Desculpe, mas não sei se dou com o caminho de regresso - disse eu.

- Vá até à estrada alcatroada, vire à direita, siga as setas – disse ele secamente.

- Pois sim, mas que setas?

- As setas que apontam para a civilização. - E virou-me as costas.

Avancei devagar, em parte por causa do vento que me batia na cara, em parte porque sentia o corpo e a alma dormentes. Perdi-me num subúrbio de que nunca ouvira falar e passei vinte minutos às voltas, por ruas indiscerníveis umas das outras, à procura de uma saída. Finalmente fui dar a Voortrekker Road. Aí, pela primeira vez, as pessoas olharam enbasbacadas para o pára-brisas partido do automóvel. Os olhares embasbacados acompanharam-me ao longo de todo o trajecto até casa.

A casa pareceu-me fria e estranha. Disse para comigo: toma um banho quente, descansa. Mas invadiu-me um letargo gelado. Só a muito custo consegui arrastar-me até ao quarto, despir a roupa molhada, embrulhar-me num roupão, enfiar-me na cama. A areia, a areia cinzenta dos Cape Flats, acumulara-se-me entre os dedos dos pés. Nunca mais me hei-de sentir quente, pensei. Vercueil tem um cão a que se encostar. Mas a mim, a mim e a esse rapaz enregelado que em breve descerá à terra, não há cão que nos valha. A areia já a meter-se-lhe na boca, insinuando-se, chamando-o a si.

Faz dezasseis anos que não partilho a cama com homem nem rapaz. Dezasseis anos sozinha. Achas estranho?

Escrevi. Escrevo. Sigo a caneta, indo para onde ela leva. Que mais me resta agora?

Acordei exausta. Era outra vez noite. Onde se metera o dia?

A luz da casa de banho estava acesa. Sentado na retrete, calças descidas até aos joelhos, chapéu na cabeça, dormindo a sono solto, estava Vercueil. Fiquei pasmada a olhar.

Ele não acordou, pelo contrário: de cabeça pendente e boca escancarada, dormia o sono tranquilo de uma criança. Não tinha um único pêlo nas coxas magras e compridas.

A porta da cozinha estava aberta, o caixote do lixo caído e o lixo espalhado pelo chão. O cão entretinha-se a roer um velho papel de embrulho. Quando me viu baixou as orelhas com ar aflito e abanou a cauda.    

- É de mais - murmurei. - De mais!O cão esgueirou-se para a rua.

Sentei-me à mesa e sucumbi às lágrimas. Não chorava por causa da confusão que reinava na minha cabeça, nem pela desordem em que tinha a casa, mas pelo rapaz, por Bheki. Para onde quer que me virasse, via-o à minha frente, de olhos abertos, com aquele olhar de perplexidade infantil com que encarara a morte. Cabeça apoiada nos braços, solucei, derramando lágrimas por ele, pelo que lhe fora roubado, pelo que me fora roubado a mim. Que bela coisa, a vida! Que ideia maravilhosa Deus tivera! A melhor ideia do mundo. Uma dádiva, a mais generosa de todas as dádivas, renovando-se eternamente de geração em geração. E agora Bheki, privado dessa dádiva, morto, desaparecido! «Quero ir para casa!», choramingara eu, para minha vergonha, diante de Mr. Thabane, o vendedor de sapatos. Na garganta de uma velha, uma voz de criança. Para casa, para a minha casa segura, para a minha cama de sono infantil. Alguma vez terei estado bem desperta? O mesmo seria perguntar: sabem os mortos que estão mortos? Não: aos mortos não é dado saber coisa nenhuma. Mas no nosso sono de pedra podemos ao menos ser visitados por sinais. Tenho sinais mais antigos que qualquer recordação, sinais inabaláveis, de que um dia . vivi. Vivi e depois fui roubada à vida. O roubo deu-se no berço: levaram a criança e deixaram em seu lugar uma boneca para cuidar e criar - e é a essa boneca que dou o nome de eu.

Uma boneca? Uma vida de boneca? Foi essa a vida que eu vivi? Será dado a uma boneca conceber tal ideia? Ou andará a ideia no ar como mais um sinal, um relâmpago, a névoa trespassada pela lança de uma inteligência de anjo? Poderá uma boneca reconhecer uma boneca? Poderá uma boneca conhecer a morte? Não: as bonecas crescem, aprendem a falar e a andar, correm mundo; envelhecem, definham, perecem; são consumidas pelo fogo ou sepultas na terra; mas não morrem. Vivem para sempre esse instante petrificado de espanto, anterior a todas as recordações, em que uma vida foi roubada, uma vida que não é delas, mas em cujo lugar são deixadas como lembrança. O seu saber é um saber sem substância, sem o peso das coisas deste mundo, como a própria cabeça de uma boneca, oca, cheia de ar. Como elas próprias não são bebés mas ideias de bebés, mais redondas, mais róseas, mais pasmadas e com olhos mais azuis do que qualquer bebé de verdade, vivendo não a vida mas uma ideia da vida, imortal, eterna, como todas as ideias. Hades, Inferno: o domínio das ideias. Porque se terá sentido a necessidade de fazer do Inferno um lugar à parte, nos gelos da Antárctida ou no fundo de um vulcão? Porque não há-de ficar o Inferno na ponta da África, e porque não hão-de as criaturas infernais andar entre os vivos?

«Pai, não vês que estou a arder?», implorava a criança, à cabeceira do pai. Mas o pai, continuando a dormir, a sonhar, não via.

É por esta razão - revelo-a agora para que entendas - que me agarro tanto à memória da minha mãe. Porque se ela não me deu vida, ninguém ma deu. Não é só à memória que me agarro, é a ela, ao seu corpo, ao meu nascimento desse corpo para o mundo. Em sangue e leite lhe bebi o corpo, e vim à vida. E depois fui roubada, e perdi-me de mim para sempre.

Há uma fotografia minha que tu já viste mas de que provavelmente não te lembras. Foi tirada em 1918, ainda eu não tinha dois anos. Eu estou de pé; pareço querer deitar a mão à máquina fotográfica; a minha mãe, de joelhos atrás de mim, tem-me presa por uma espécie de rédea que me passa pelos ombros. Ao meu lado, fazendo por me ignorar, está o meu irmão, Paul, boné à banda.

Tenho a testa enrugada, os olhos postos na máquina. Estarei apenas a franzir a cara por causa do sol, ou terei, como os selvagens de Bornéu, a vaga noção de que a máquina fotográfica Vai roubar-me a alma? Pior ainda: segurar-me-á a minha mãe para me impedir de derrubar a máquina, sabendo eu, com o meu ar de boneca, que o aparelho verá o que os olhos não vêem: que eu não estou ali? Saberá disso a minha mãe porque também ela não está ali?

Paul, morto, a quem me levou a caneta. Agarrei-lhe na mão quando ele estava a morrer. Segredei-lhe: «Vais ver a mamã, vão ser os dois tão felizes!» Ele estava pálido; até os olhos tinham a cor desbotada do céu ao longe. Fitou-me com um olhar cansado, vazio, como se dissesse: não percebes nada! Terá Paul chegado realmente a viver? Minha irmã vida, chamou-me certa vez numa carta, usando palavras de empréstimo. Terá entendido, no último instante, que cometera um erro? Terão aqueles olhos tranlúcidos sabido decifrar-me?

Fomos fotografados, nesse dia, num jardim. Atrás de nós vêem-se flores que parecem malva-rosas; à nossa esquerda, um talhão de melões. Reconheço o sítio. É Uniondale, a casa de Church Street que o meu avô comprou nos tempos áureos da exportação de penas de avestruz. Ano após anos, frutos, flores e legumes cresciam naquele jardim, lançando à terra as suas sementes, morrendo, ressuscitando, abençoando-nos com a sua profusa presença. Mas tratados pelo amor de que mãos? Quem podava as malva-rosas? Quem deitava as sementes de melão na sua cama morna e húmida? Seria o meu avô que se levantava, enregelado, às quatro da manhã, para abrir o .canal de rega e trazer água ao jardim? Se não era ele, a quem pertencia por direito aquele jardim? Quem são os fantasmas e quem as presenças? Quem, fora do retrato, apoiado no ancinho, apoiado na pá, esperando o momento de voltar ao trabalho, apoia também o seu peso sobre os limites do rectângulo, deformando-o, tentando invadi-lo?

Dies irae, dies illa em que os ausentes estarão presentes e os presentes ausentes. A imagem já não mostra quem estava esse dia no enquadramento do jardim, mas quem lá não estava. Guardados todos estes anos a bom recato, pelo país inteiro, em álbuns, gavetas de secretárias, este retrato e outros mil como ele foram amadurecendo subtilmente, metamorfosearam-se. O fixador não pegou, ou a revelação foi mais longe do que alguém poderia imaginar - quem sabe o que terá acontecido? - mas o certo é que voltaram a ser negativos, uma nova espécie de negativo em que começamos a ver o que antes estava fora do enquadramento, o que antes era ocultado.

Será por isso que tenho a testa franzida, por isso que me esforço por alcançar a máquina - por saber, obscuramente, que a máquina fotográfica é o inimigo, que a máquina não mente acerca de nós, antes revela o que realmente somos: um povo de bonecas? Tentarei soltar-me das rédeas para tirar a máquina das mãos de quem a empunha, antes que seja demasiado tarde? E quem empunhará a máquina? Que sombra informe é essa que se projecta para a minha mãe e para os seus dois filhos, por sobre o talhão lavrado?

Uma dor para além das lágrimas. Sou oca, sou uma casca. A cada um de nós o destino envia a doença certa. A minha é uma doença que me rói por dentro. Se me abrissem ver-me-iam oca como uma boneca, uma boneca com um caranguejo dentro, a lamber os beiços, ofuscado pelo jorro de luz.

Seria esse caranguejo que eu com tanta presciência vi aos dois anos, a espreitar pelo buraco da caixa negra? Não estaria eu a tentar salvar-nos a todos do caranguejo? Mas agarraram-me, carregaram no botão, e o caranguejo saltou e entrou em mim.

Rói-me os ossos, agora que a carne se foi. Rói-me a articulação da anca, rói-me a espinha, começa a roer-me os ossos. Os gatos, para dizer a verdade, nunca me amaram de verdade. Só este ser é fiel até ao fim. Meu animal de estimação, minha dor.

Subi ao primeiro andar e abri a porta da casa de banho. Vercueil ainda lá estava, mergulhado no seu sono profundo. Sacudi-o. Chamei: «Mr. Vercueil!» Ele abriu um olho. «Venha-se deitar.»

Mas ele não veio. Primeiro ouvi-o na escada, descendo degrau a degrau, como um velho. Depois ouvi fechar-se a porta das traseiras.

 

Um dia lindo, um desses dias tranquilos de Inverno em que a luz parece provir uniformemente de todos os quadrantes do céu. Vercueil, ao volante do carro, desceu a Breda Street e entrou na Orange Street. Diante da Government Avenue, pedi-lhe para estacionar.

- Lembrei-me de meter o carro pela Avenida e descer até lá ao fundo - disse eu. - Depois de passar a corrente, não vejo mais nenhum obstáculo. Mas acha que há espaço para se passar?

(Talvez te lembres dos dois frades de ferro fundido, ligados por uma corrente, que fecham o cimo da Avenida.)

- Há, pode-se passar ao lado - disse ele.

- Depois era só uma questão de não sair do caminho.

- Você vai mesmo fazer isso? - perguntou ele. Os seus olhos de galináceo luziam com um brilho cruel.

- Se arranjar coragem.

- Mas porquê? Para quê?

Perante aquele olhar era difícil dar uma resposta inflamada. Fechei os olhos e tentei agarrar-me à minha visão do carro a avançar suficientemente depressa para as chamas se projectarem para trás, a descer a avenida calcetada, por entre turistas, vagabundos e namorados, passando o museu, a galeria de arte, o jardim botânico, para finalmente abrandar e parar diante da casa da vergonha, consumido e derretido pelo fogo.

- Podemos voltar, agora - disse eu. - Só queria ter a certeza de que era possível.

Ele entrou em casa, e eu servi-lhe uma chávena de chá. O cão deitou-se a seus pés, fitando-nos alternadamente, de orelhas arrebitadas, consoante era eu ou ele quem falava. Um cão simpático: uma presença radiosa, nascida com luz própria, como certas pessoas. Expliquei-me então:

- Respondendo à sua pergunta de há bocado, «Para quê?»: é uma ideia que tem a ver com a minha vida. Com uma vida que já não vale grande coisa. Ando a ver se descubro o que é que posso obter em troca dela.

Vercueil passava sossegadamente a mão pelo pêlo do cão, para trás e para diante. O cão pestanejou, fechou os olhos. Amor, pensei: por inverosímil que pareça, é amor o que aqui presencio. Fiz uma nova tentativa.

- Há um romance famoso em que uma mulher é julgada por adultério (antigamente o adultério era um crime) e condenada a andar em público com a letra A bordada no vestido. Usa durante tantos anos a letra A que as pessoas esquecem o que ela significa. Esquecem até que significa alguma coisa. Passa a ser apenas uma coisa que ela usa, como um anel ou um broche. Pode ser até que tenha sido ela a lançar a moda de trazer coisas escritas na roupa. Mas isto já não vem no livro.

«Estas exibições públicas, estas manifestações (e é isso que a história tenta demonstrar) - nunca podemos saber ao certo o que significam. Uma velha imola-se pelo fogo, por exemplo. Porquê? Porque enlouqueceu? Porque está desesperada? Porque tem um cancro? Lembrei-me de pintar uma letra no carro, para explicar. Mas qual? Um A ? Um B ? Um C ? Qual é a letra certa para o meu caso? E, afinal de contas, para quê dar explicações, se o assunto só a mim diz respeito?»

Podia ter continuado a falar, mas nesse instante o trinco do portão abriu-se com um estalido, e o cão pôs-se a rosnar. Duas mulheres, numa das quais reconheci a irmã de Florence, vinham a subir o carreiro, trazendo nas mãos malas de viagem.

- Boa tarde - disse a irmã. Mostrou-me uma chave. - Viemos buscar as coisas da minha irmã. As coisas da Florence.

- Está bem - disse eu.

Abriram a porta do quarto de Florence. Passado algum tempo, fui ter com elas.    

- A Florence está bem? - perguntei.

A irmã, ocupada a esvaziar uma gaveta, endireitou-se, ofegante. Ficou manifestamente a gozar a minha pergunta tola.

- Não, não posso dizer que esteja bem - disse. - Bem não está, não senhora. Como é que havia de estar bem?

A outra mulher, fazendo orelhas moucas, continuava a dobrar roupa de bebé. Havia no quarto muito mais coisas do que elas poderiam levar em duas malas.

- Não era isso que eu queria dizer - respondi -, mas não importa. Posso-lhe pedir para levar uma coisa a Florence da minha parte?

- Posso, sim, se não for muito grande. Passei um cheque.

- Diga à Florence que eu lamento muito. Diga-lhe que lamento mais do que sei dizer. Estou sempre a pensar no Bheki.

- Que lamenta muito.

- Sim.

Mais um dia de céu limpo. Vercueil num estranho estado de excitação.

- Então, é hoje o grande dia? - perguntou.

- É, sim - respondi eu, crispando-me contra a sua obscena pressa, por pouco não acrescentando: «Mas o que tem você a ver com isso?»

Sim, disse eu: é hoje o grande dia. Mas o dia de hoje passou e eu não cumpri o prometido. Porque enquanto o rasto de palavras continuar, tu sabes de ciência certa que eu não o cumpri: uma regra, mais uma regra. A morte talvez seja, de facto, o último grande inimigo da escrita, mas a escrita também é inimiga da morte. Escrevendo, portanto, mantendo a morte à distância, deixa-me dizer-te que quis cumprir o prometido, comecei a cumpri-lo, acabei por não o cumprir. Deixa-me dizer-te mais. Deixa-me dizer-te que me vesti. Deixa-me dizer-te que ao preparar o meu corpo o senti recobrar um vago fulgor de orgulho. Entre esperar na cama que os pulmões parem de respirar e sermos autores do nosso próprio fim, que diferença!

Quis cumprir o prometido: será verdade? Sim. Não. Sim-não. A palavra existe, mas nunca deu entrada nos dicionários. Sim-não: toda a mulher sabe o que isto quer dizer, e quando o diz não há homem que não saia derrotado. «Sempre vai por diante?», perguntou Vercueil, um brilhozinho nos seus olhos de homem. «Sim-não», devia eu ter respondido. Vesti-me de azul e branco: um saia-casaco azul-claro, uma blusa branca com um laço no pescoço. Maquilhei cuidadosamente a cara, arranjei o cabelo. Um leve tremor percorreu-me da cabeça aos pés durante todo o tempo que passei diante do espelho. Não tinha dores. O caranguejo parara de mastigar.

Irradiando curiosidade, Vercueil seguiu-me até a cozinha, andando de um lado para o outro enquanto eu tomava o pequeno-almoço. Por fim, irritada, nervosa, explodi:

- Quer fazer o favor de me deixar em paz!

Perante isto, ele virou-me as costas com um tal ar de criança ofendida que me desculpei, puxando-o pela manga:

- Não me leve a mal. Mas sente-se, por favor: está-me a pôr nervosa quando eu preciso de calma. Sinto uma hesitação tão grande! Num instante penso: vou mas é acabar depressa com isto, com esta vida inútil. No instante seguinte penso: mas porque é que hei-de ser eu o bode expiatório? Porque é que hei-de ter que me elevar acima do meu tempo? Será por minha culpa que o meu tempo é tão vergonhoso? Porque há-de me competir a mim, velha, doente e cheia de dores, sair sem ajuda deste poço de ignomínia?

«Quero clamar contra os homens que criaram estes tempos. Quero acusá-los de estragarem a minha vida como uma ratazana ou uma barata estragam a comida sem sequer a comerem, pelo simples facto de passarem por cima dela, de a farejarem e satisfazerem nela as suas necessidades. É pueril, bem sei, apontar a dedo e culpar os outros. Mas porque é que hei-de aceitar a ideia de que a minha vida teria sido sempre inútil, fosse quem fosse que detivesse o poder neste país? Afinal de contas, o poder é o poder. O poder invade. Está na sua natureza. Invade a vida das pessoas.

«Você quer saber o que se passa comigo, e eu estou a tentar explicar-lhe. Quero vender-me, quero redimir-me, mas sinto-me muito confusa quanto à maneira de o fazer. Se calhar faz tudo parte do desvario que se apoderou de mim. Não se admire. Você conhece este país. A loucura, aqui, anda no ar.»

Ao longo de todo este discurso Vercueil conservara a mesma expressão fechada, enigmática. Agora dizia uma coisa estranha:

- Não quer ir dar uma volta de carro?

- Não podemos ir dar uma volta de carro, Mr. Vercueil. Há mil razões para não irmos.

- Podemos ir ver as vistas; ao meio-dia já estamos outra vez em casa.

- Não podemos ir ver a paisagem num carro com um buraco no pára-brisas. É ridículo.

- Eu tiro o resto do pára-brisas. É só um vidro, não faz falta nenhuma.

Porque terei cedido? Talvez o que me conquistou tenha sido, afinal, a nova atenção que ele me prestava. Parecia um rapazinho excitado, sexualmente excitado, e eu o objecto da sua excitação. Senti-me lisonjeada; divertida, até, apesar de tudo, como se assistisse de longe à cena. Talvez tenha sentido também uma obscura repugnância, como perante a excitação de um cão que esgaravatasse a terra, farejando um cadáver mal sepulto. Mas não estava em condições de traçar fronteiras. O que é que eu queria, afinal? Queria uma suspensão. Ficar em suspenso, sem pensamento, sem dores, sem dúvidas, sem apreensões, até ser meio-dia. Até que o canhão do meio-dia ribombasse em Signal Hill e eu, com um garrafão de gasolina no assento ao meu lado, transpusesse ou não transpusesse a corrente e descesse ou não descesse a Avenida. Mas, até lá, não pensar; ouvir cantar os pássaros, sentir o vento na pele, ver o céu. Viver.

Por isso cedi. Vercueil embrulhou a mão numa toalha e partiu mais um bocado do vidro, fazendo um buraco maior, por onde poderia passar uma criança. Dei-lhe a chave. Um empurrão, e arrancámos.

Como namorados revisitando os locais das suas primeiras declarações, seguimos pela estrada de montanha sobranceira a Muizenberg. (Namorados? Que tinha eu declarado a Vercueil? Que devia parar de beber. Que me tinha ele declarado a mim? Nada: talvez nem sequer o seu verdadeiro nome.) Estacionámos no mesmo sítio que da última vez. Agora: saboreia pela última vez este panorama, disse para comigo, espraiando a vista para os lados de False Bay, a baía da falsa esperança, e para sul, por sobre as águas sombrias do mais desprezado dos oceanos.

- Se tivéssemos um barco você podia sair comigo ao mar - murmurei.

Rumo ao sul: eu e Vercueil, sozinhos, navegando até alcançarmos as latitudes onde voam os albatrozes. Onde ele poderia amarrar-me a uma barrica ou a uma tábua, tanto fazia, e deixar-me a balouçar nas ondas sob as grandes asas brancas.

Vercueil voltou à estrada, metendo a marcha atrás. Era impressão minha, ou o motor palpitava mais suavemente nas mãos dele que nas minhas?

- Desculpe-me se não digo coisa com coisa - recomecei. - Estou a fazer os possíveis por não perder o rumo. Esforço-me o mais que posso por conservar uma sensação de urgência. Uma sensação de urgência que está sempre a fugir-me. Aqui sentada, no meio de toda esta beleza, ou mesmo sentada em casa no meio das minhas coisas, custa-me a crer que esteja cercada por uma zona de massacre e degradação. Parece um pesadelo. Alguma coisa dentro de mim faz pressão, procura ganhar terreno. Tento não lhe ligar, mas a coisa insiste. Cedo uma polegada; a pressão aumenta. Cedo com alívio, e a vida volta de repente à normalidade. Entrego-me de novo com alívio à normalidade. Mergulho nela de cabeça. Perco a vergonha, fico desavergonhada como uma criança. A vergonha dessa desvergonha: eis o que não posso esquecer, eis o que depois tanto me custa suportar. É por isso que tenho de me dominar, de me virar de frente para a descida. Se não o fizer, perco-me de vez. Percebe o que eu estou a dizer? Vercueil debruçava-se sobre o volante, como se visse mal. Ele, o dos olhos de águia. Que me importava que ele não percebesse?

- É como tentar deixar o álcool - insisti. - Tentamos, tornamos a tentar, tentamos sempre, mas sabemos na carne, desde o início, que a recaída é inevitável. Há nessa certeza interior uma vergonha tão quente, tão íntima, tão reconfortante, que traz consigo uma avalancha ainda maior de vergonha. Dir-se-ia que não tem limites a vergonha que um ser humano pode sentir.

Mas que difícil que é matarmo-nos! Estamos tão agarrados à vida! Parece-me que tem de entrar em jogo, no último instante, outra coisa que não a vontade, uma força exterior, uma força impensada, capaz de nos empurrar para o abismo. Temos que passar a ser outra pessoa, alguém diferente de nós próprios. Mas quem? Quem está à espera de ver-me vestir a sua sombra? Onde posso encontrar esse alguém? Eram dez e vinte, pelo meu relógio.

- Temos que voltar - disse eu. Vercueil abrandou.

- Se é isso que você quer, eu levo-a para casa - disse ele. - Ou então, se preferir, continuamos o passeio. Podemos dar a volta à península. Está um dia bonito.                                      

Eu devia ter respondido logo: não, leve-me já para casa. Mas hesitei, e nesse instante de hesitação as palavras morreram-me na garganta.

- Pare aqui - pedi então.

Vercueil saiu da estrada e estacionou o carro.

- Tenho a pedir-lhe um favor - continuei. - Peço-lhe que não se ria de mim.

- É esse o favor?  

- E. Nem agora, nem no futuro,

Ele encolheu os ombros

- No outro lado da estrada estava um homem andrajoso, ao lado de

um monte de lenha para vender. Pôs-se a observar-nos, desviou os

olhos.

O tempo ia passando.

- Contei-lhe uma vez uma história sobre a minha mãe - disse eu por fim, tentando falar mais de mansinho. - A história da noite em que ela, ainda criança, ficou deitada no escuro, sem saber o que se movia por cima da sua cabeça, se as rodas do carro, se as estrelas.

«Toda a minha vida me agarrei a essa história. Se cada um de nós tem uma história que conta a si próprio sobre a sua identidade e as suas origens, a minha é essa. É a história que eu escolho, ou a que me escolheu a mim. É daí que eu venho, é aí que eu começo.

«Pergunta-me se eu quero continuar o passeio. Se fosse exequível, sugeria-lhe que fôssemos até à costa leste do Cabo, às montanhas de Outeniqua, a esse local de pernoita no alto da ravina de Prince Albert. Diria até: deixe os mapas, siga para nordeste guiando-se pelo sol, que eu reconheço o sítio quando lá chegar: o local de pernoita, o ponto de partida, o sítio do umbigo, o lugar onde me ligo ao mundo. Deixe-me lá ficar, no alto da ravina, e venha-se embora, enquanto eu espero que anoiteça e passe por cima de mim o carro fantasma.

«Mas a verdade é que, com ou sem mapas, já não sou capaz de encontrar o sítio. Porquê? Porque um certo desejo me abandonou. Há um ano, ou há um mês, teria sido diferente. Um desejo, talvez o desejo mais fundo de que sou capaz, teria jorrado de dentro de mim para esse ponto da terra, e ter-me-ia guiado. Eis a minha mãe, diria eu, ajoelhando nesse lugar. Eis o que me dá vida. Chão sagrado, não como é sagrada uma sepultura mas como o é um lugar de ressurreição: ressurreição eterna, a patir da terra.

«Agora esse desejo, a que bem podemos chamar amor, abandonou-me. Já não amo mais esta terra. É tão simples quanto isso. Sou como um homem que tivesse sido castrado. Castrado na idade adulta. Tento imaginar como será a vida de um homem nesse estado. Imagino-o vendo as coisas que antes amava, sabendo de memória que devia continuar a amá-las, mas incapaz de ressuscitar esse amor. Amor? Que era isso? - a si mesmo pergunta, revolvendo a memória em busca da antiga emoção. Mas tudo se fizera insípido, imóvel, tranquilo. Houve uma coisa que eu outrora tive e que foi traída, pensa ele, e concentra-se, tentando sentir bem nítida essa traição. Mas nada era nítido. A nitidez era o que agora faltava a todas as coisas. Em vez dela, sente um resvalar, ténue mas constante, para a apatia, para o alheamento. Apático, diz para consigo, pronunciando a palavra cortante, e estende a mão para tocar o seu gume afiado. Mas também aqui os contornos se embotaram, se esfumaram. Tudo se afasta, pensa ele; dentro de uma semana, dentro de um mês, terei esquecido tudo, estarei entre os devoradores de lótus, isolado, à deriva. Tenta uma derradeira vez sentir a dor dessa separação, mas não consegue evocar senão uma vaga tristeza.

«Não sei se estou a ser suficientemente clara, Mr. Vercueil. Estou a falar de uma decisão, de como tento agarrar-me à minha decisão e não consigo. Confesso que estou a afogar-me. Estou aqui sentada a seu lado, a afogar-me.»

Vercueil reclinou-se contra a porta. O cão ganiu baixinho. Patas apoiadas nas costas do banco, olhava em frente, desejoso de que nos puséssemos novamente em marcha. Passou um minuto.

Então ele tirou do bolso do casaco uma caixa de fósforos e estendeu-ma.          

- Resolva agora o assunto - disse.  

- Qual assunto?

- O que você sabe.

- É isso que você quer?

- Resolva o assunto agora. Eu saio do carro. Resolva-o agora, aqui mesmo.

No canto da boca dele, uma bolha de cuspo bailava para cima e para baixo. Deixá-lo ser louco, pensei. Para que seja possível chamar-lhe isso mesmo: criatura cruel, louco, cão raivoso.

Sacudiu-me diante da cara a caixa de fósforos.

- É ele que a preocupa? - Apontou para o homem da lenha. - Ele não se mete.

- Aqui não - disse eu.

- Podemos ir até Chapman's Peak. Pode atirar-se do alto da escarpa, se é isso que quer.

Era como estar fechada num automóvel com um homem que nos tenta seduzir e se zanga quando não cedemos. Era sentir-me recuar até aos piores tempos da adolescência.

- Podemos ir para casa? - perguntei.

- Julguei que queria resolver o assunto.

- Você não percebe.

- Julguei que queria um empurrão para ir em frente. Eu estou-lhe a dar o empurrão.

Diante do hotel de Hout Bay, tornou a parar o carro.       -       .

- Tem algum dinheiro que me dê? - pediu. Dei-lhe uma nota de dez rands.

Ele entrou na loja de bebidas e voltou com uma garrafa num saco de papel pardo.

- Tome uma bebida - disse ele, abrindo a tampa da garrafa. (   -- Não, obrigada. Não gosto de aguardente.

- Não é aguardente, é um medicamento.

Sorvi um pequeno trago, tentei engolir, engasguei-me e tossi; por pouco não me caía a dentadura.

- Aguente a bebida na boca - disse ele.

Sorvi mais um trago e aguentei-o na boca. Senti as gengivas e o céu da boca a arder; depois, pouco a pouco, foram licando insensíveis. Engoli e fechei os olhos. Alguma coisa começou a subir dentro de mim: um reposteiro, uma nuvem. Então é isto?, pensei. Só isto? É assim que Vercueil faz para indicar o caminho?

Ele inverteu a marcha, tornou a subir a encosta e estacionou no alto do monte, num parque de merendas sobranceiro à baía. Bebeu e estendeu-me a garrafa. O véu pardacento que antes cobria tudo tornou-se visivelmente mais ténue. Incrédula, espantada, pensei: será assim tão simples? Será que não se trata, afinal, de uma questão de vida ou de morte?                                                                        

- Deixe-me dizer-lhe o mais importante - recomecei. - A razão disto tudo não foi o meu estado, a minha doença, mas uma coisa completamente diferente.

O cão ganiu baixinho. Vercueil estendeu languidamente a mão; o bicho lambeu-lhe os dedos.

- O filho da Florence foi morto na terça-feira.

- Eu vi o corpo - continuei, bebendo mais um sorvo, pensando: será que agora se me vai desatar a língua? Deus me livre! E, desatando-se-me a língua, desatar-se-á também a língua de Vercueil? Eu e ele, ali no carrinho, o efeito da bebida a desatar-nos a língua?

- Fiquei abalada - disse eu. - Não digo que o meu coração ficou de luto porque não tenho direito a usar a palavra, só a gente dele tem esse direito. Mas ainda hoje me sinto... transtornada. É uma coisa que tem que ver com o peso inerte, com o peso morto de Bheki. É como se a morte o tivesse tornado pesadíssimo, mais pesado que o chumbo ou que esse lodo espesso, sem a menor bolha de ar, que se acumula no fundo das albufeiras. Como se no acto de morrer tivesse exalado o último suspiro e com ele tivesse perdido toda a leveza. Agora jaz em cima de mim com todo esse peso. Não faz por me esmagar, jaz apenas.

«Aconteceu a mesma coisa quando o amigo dele ficou no meio da rua a esvair-se em sangue. O peso era o mesmo. Um sangue pesado. Eu tentava impedi-lo de correr para a sarjeta. Tanto sangue! Se o recolhesse todo, não conseguiria erguer o balde. Seria como tentar erguer um balde de chumbo.

«Nunca tinha visto um negro perante a morte, Mr. Vercueil. Todos os dias morrem negros, bem sei, mas sempre longe de mim. As pessoas que vi morrer eram brancas e morreram na cama, tornando-se a pouco e pouco leves e secas, como o papel, como o ar. Arderam bem, tenho a certeza, deixando uma quantidade ínfima de cinzas para varrer e recolher. Quer saber porque é que pensei em me imolar pelo fogo? Porque pensei que arderia bem.

«Ao passo que eles, Bheki e os outros mortos, não ardem. Seria como tentar queimar figuras de ferro fundido ou de chumbo. Talvez perdessem a nitidez dos contornos, mas quando as chamas se apagassem ainda lá estariam, tão pesados como antes. Deixá-los estar o tempo suficiente, e talvez se afundassem, milímetro a milímetro, até a terra se fechar sobre eles. Mas depois não se afundariam mais. Ficariam ali, mesmo à flor da pele. Bastaria esgaravatar ao de leve com o pé para os desenterrar: as caras, os olhos mortos, abertos, cheios de areia.»

- Beba - disse Vercueil, estendendo-me a garrafa. Tinha a cara mudada, os lábios mais cheios, saturados, húmidos, os olhos castanhos cada vez mais vagos. Como a mulher que levara lá para casa. Peguei na garrafa e limpei o gargalo à manga.

- Quero que perceba que esta perturbação de que lhe estou a falar não é uma coisa pessoal - continuei. - É tudo menos pessoal, acredite. Eu gostava do Bheki, claro, quando ele era pequeno, mas não me agradava nada aquilo em que ele se tornou. Esperava outra coisa. Ele e os companheiros dizem que deixaram para trás a infância. Pois bem, talvez tenham deixado de ser crianças, mas para quê? Para se tornarem uns puritanozinhos azedos, cheios de desprezo pelo riso, pelo prazer de brincar.

«Porque é que o choro, então? A resposta é: porque lhe vi a cara. Quando morreu, era outra vez uma criança. De puro espanto infantil, deve ter deixado cair a máscara, ao perceber, nesse derradeiro instante, que atirar pedras e dar tiros, afinal, não eram uma brincadeira; que o gigante que o perseguia, com a manápula cheia de areia para lhe tapar a boca, não se deixava intimidar pelos cânticos nem pelas palavras de ordem; que ao fundo do longo túnel onde se engasgou e sufocou, sem conseguir respirar, não havia luz nenhuma.

«Agora a criança está enterrada, e caminhamos por cima dela. Digo-lhe que quando caminho por esta terra, por esta África do Sul, tenho cada vez mais a impressão de caminhar por cima de rostos negros. Estão mortos, mas o espírito que os animava não os abandonou. Jazem na terra, pesados e empedernidos, à espera de que passem os meus pés, à espera de que eu me vá, à espera do dia em que tornarão a erguer-se. Milhões de figuras de ferro fundido, a vogar debaixo da pele da terra. A idade do ferro que se prepara para voltar.

«Você acha que eu estou transtornada, mas que me vai passar. Lágrimas fáceis, pensa você, lágrimas piegas, hoje presentes, amanhã já secas. Pois bem, é verdade, já me aconteceu estar transtornada, imaginar que não podia haver no mundo nada pior, e depois o pior aconteceu, como infalivelmente acontece, e eu sobrevivi, pelo menos em aparência. Mas o problema é esse! Para não ficar paralisada de vergonha, tive que passar a vida a sobreviver ao pior. E é a esta sobrevivência que já não sobrevivo. Se sobreviver desta vez, não terei outra oportunidade de não sobreviver. Para bem da minha própria ressurreição, não posso sobreviver desta vez.»

Vercueil estendeu-me a garrafa. O nível do líquido já descera umas' boas quatro polegadas. Empurrei-lhe a mão, dizendo:

- Não quero beber mais.    

- Vá lá - disse ele. - Embebede-se, para variar.

- Não! - exclamei. Acendeu-se-me no peito um furor meio ébrio contra a sua crueza, a sua indiferença. Que estava eu ali a fazer? No automóvel exausto, devíamos parecer tal e qual um par de refugiados retardatários da platteland da Grande Depressão. Só nos faltava, a esteira de fibra de coco e o galinheiro amarrado ao tejadilho. Tirei-lhe a garrafa da mão; mas enquanto descia o vidro para a deitar fora, ele arrancou-ma.

- Saia do meu carro! - explodi.

Levando consigo a chave da ignição, Vercueil saiu. O cão precipitou-se atrás dele. Mesmo à minha frente, atirou a chave para o meio dos arbustos, deu meia volta e, de garrafa em punho, pôs-se a descer o monte em direcção a Hout Bay.

A ferver de raiva, fiquei à espera, mas ele não voltou para trás.

Os minutos foram passando. Um carro saiu da estrada e estacionou ao lado do meu. Do seu interior vinha uma torrente de música, estridente e metálica. No meio daquele clamor, um casal olhava o mar. As diversões da África do Sul. Saí do carro e bati-lhes à janela. O homem olhou-me com ar alheado, mastigando qualquer coisa.

- Importa-se de baixar o som? - pedi.

Ele mexeu ou fingiu mexer não sei em quê, mas o volume de som não mudou. Tornei a bater a janela. Através do vidro, o homem vociferou palavras ininteligíveis; depois meteu a marcha atrás e, levantando uma nuvem de pó, foi estacionar no outro extremo do parque.

Procurei nos arbustos para onde Vercueil atirara a chave, mas sem êxito.

Quando por fim o outro carro se foi embora, a mulher virou-se para me deitar um olhar furibundo. Um rosto não sem atractivos, mas feio: fechado, enfronhado, como se receasse que a luz, o ar, a própria vida, se unissem para o atacar. Não um rosto mas uma expressão, porém usada há tanto tempo que passara a ser a expressão dela, passara a ser ela. Um espessamento da membrana entre o mundo e o eu lá dentro, um espessamento que se fizera espessura. Evolução, mas uma evolução ao contrário. Os peixes das profundezas primitivas (certamente que o sabes) desenvolveram zonas de pele sensíveis aos tenteios da luz, zonas que com o tempo se tornaram olhos. Agora, na África do Sul, vejo olhos que tornam a toldar-se, a cobrir-se de grossas escamas, num tempo em que os exploradores da terra, os colonos, se preparam para regressar às profundezas.

Deveria ter ido quando me convidaste? Nos meus momentos de maior fraqueza, muitas vezes desejei colocar-me à tua mercê. Que sorte, tanto para mim como para ti, ter eu resistido à tentação! Passas bem melhor sem teres que carregar às costas um albatroz do velho mundo; e eu, pela minha parte, conseguiria realmente fugir à África do Sul correndo para junto de ti? Como hei-de saber se as escamas não começam já a adensar-se também sobre os meus olhos? Aquela mulher: quem sabe se quando o carro se afastou não terá dito ao seu companheiro: «Que criatura mais azeda! Que cara fechada!»

E depois, que honra há em se escapulir nestes tempos em que o navio roído pelo caruncho está tão visivelmente a afundar-se, escapulir-se em companhia de jogadores de ténis, correctores desonestos e generais com os bolsos cheios de diamantes que correm a refugiar-se, por esse mundo fora, nas mais tranquilas águas represadas? O general G., o ministro M., nas suas fazendas do Paraguai, grelhando bifes na brasa sob céus meridionais, bebendo cerveja com os seus comparsas, cantando canções do país longínquo, esperando finar-se em pleno sono, numa idade provecta, com os netos e os peões de chapéu na mão aos pés da cama: os africânders do Paraguai, ligados aos afri-cânders da Patagónia na sua sombria diáspora: homens rubicundos, pançudos, com as suas gordas mulheres, as suas colecções de armas nas paredes da sala de estar, os seus cofres-fortes em Rosário, retribuindo as visitas de domingo à tarde de Barbies e Eichmanns: brutamontes, bandidos, torcionários, assassinos - que companhia!

Além disso, estou demasiado cansada. Um cansaço maior que todas as razões para estar cansada, um cansaço como blindagem contra estes tempos, uma ânsia de fechar os olhos, de dormir. Que é a morte, afinal, senão uma ascensão às mais remotas alturas do cansaço?

Lembro-me do teu último telefonema. «Como é que te tens sentido?», perguntaste. «Cansada, mas de resto bastante bem», respondi eu. «Tento levar as coisas com calma. A Florence é um pilar de energia, como sempre, e agora tenho mais um homem para me dar uma ajuda no jardim.» «Ainda bem», disseste tu na cadência apressada da tua voz americana. «Tens que ver se descansas o mais que puderes, se te concentras em recuperar as forças.»

Mãe e filha ao telefone. Aí meio-dia, aqui fim de tarde. Aí Verão, aqui Inverno. A linha tão límpida, porém, como se estivesses na porta ao lado. As nossas palavras desmembradas, arremessadas através dos céus, reconstituídas sem falha. Não é já o velho cabo submarino que nos une, mas uma ligação aérea eficiente e abstracta: a ideia de ti ligada à ideia de mim; não são palavras, não é um sopro vivo que passa entre nós, mas sim ideias de palavras, a ideia desse sopro, codificada, tras-mitida, descodificada. No fim disseste «Boa noite, Mãe», e eu «Boa noite, minha querida, obrigada pelo telefonema», demorando a voz na palavra querida (que autocomplacência!) com todo o peso do meu amor, rezando para que o fantasma desse amor sobrevivesse aos frios trilhos do espaço e chegasse até ti.

Pelo telefone, o amor mas não a verdade. Nesta carta de longe (uma tão longa carta!) a verdade e o amor enfim reunidos. A cada tu que escrevo o amor palpita e estremece como um fogo de Santelmo; estás comigo não como hoje és aí na América, não como eras quando partiste, mas sob uma forma mais profunda, imutável: a da amada, a da que não morre. É à tua alma que me dirijo, como será a minha alma que ficará contigo quando esta carta chegar ao fim. Como a borboleta ao sair do casulo, batendo as asas: assim espero que entreve-jas a minha alma, aprontando-se para mais altos voos. Uma borboleta branca, um fantasma a sair da boca da figura estendida no leito de morte. Este combate com a doença, o desalento e a repugnância por mim mesma que nestes dias tenho sentido, a hesitação, os próprios desvarios (pouco mais há a dizer sobre o episódio de Hout Bay - Vercueil voltou bêbedo e mal-humorado, encontrou a chave, trouxe-me a casa, e o assunto ficou por aí; para dizer a verdade, não sei se não terá sido o cão a trazê-lo de volta) - tudo isto faz parte da metamorfose, deste libertar-me do meu invólucro moribundo.

E depois disso, depois da morte? Não tenhas medo, não vou assombrar-te. Não vais precisar de fechar as janelas nem de vedar a chaminé para impedir a borboleta branca de entrar durante a noite para poisar na tua testa ou na testa de um dos teus filhos. A borboleta é simplesmente a asa que te roçará ao de leve a face quando virares a última página desta carta, antes de partir, esvoaçando, para a sua próxima viagem. Não será a minha alma que ficará contigo, mas sim o espírito da minha alma, o sopro, a vibração do ar em redor destas palavras, a imperceptível turbulência deixada no ar pela passagem espectral da minha caneta sobre o papel que os teus dedos agora seguram.

Desprender-me de mim, desprender-me de ti, desprender-me de uma casa ainda palpitante de recordações: uma dura tarefa, mas vou aprendendo. Da música, também. Mas à música, pelo menos, levá-la-ei comigo, pois está-me entretecida na alma. Os ariosos da Paixão Segundo S. Mateus, entretecidos e amarrados com mil nós, que nada nem ninguém poderá desatar.

Se Vercueil não te mandar estas páginas, nunca as lerás. Não saberás sequer que existiram. Um certo corpo de verdade nunca ganhará carne; a minha verdade; como vivi neste tempo, neste lugar.

Que aposta é esta, então, que fiz com Verceuil, em Vercueil?

É uma aposta na confiança. É tão pouca coisa o que eu peço: levar um embrulho ao correio e passá-lo para o lado de lá do balcão. Tão pouco que não chega a ser quase nada. Entre pegar e não pegar no embrulho, a diferença é leve como uma pena. Se quando eu partir ainda restar a mais leve sombra de confiança, de gratidão, de lealdade, ele levá-lo-á com certeza.

E se assim não for?

Se assim não for, é porque não há confiança, e não merecemos outra coisa, todos nós, senão sumirmo-nos de vez num buraco qualquer.

Porque Vercueil não é digno da minha confiança, tenho que confiar nele.

Estou a tentar manter viva uma alma em tempos pouco hospitaleiros para a alma.

É fácil dar esmolas aos órfãos, aos desvalidos, aos famintos. Já é mais difícil dar esmolas às almas rancorosas (estou a pensar em Florence). Mas as esmolas que dou a Vercueil são de todas as mais difíceis. Ele não me perdoa o dar-lhe o que lhe dou. Não há nele caridade, nem perdão. (Caridade?, diz Vercueil. Perdão?) Sem o seu perdão eu dou sem caridade, auxilio sem amor. Chuva a cair num solo estéril.

Se fosse mais nova, talvez me tivesse dado carnalmente a Vercueil. Seria - teria sido - bem capaz de fazer semelhante coisa, por grande que pudesse ser o erro. Agora, em vez disso, ponho a minha vida nas mãos dele. É isto a minha vida, estas palavras, este rasto dos movimentos de uns dedos trémulos sobre a página. Estas palavras, à medida que as leres, se as chegares a ler, entrarão em ti e ganharão novo alento. São, se quiseres, a minha forma de continuar viva. Houve um tempo em que viveste em mim, como houve um tempo em que eu vivi na minha mãe; possa eu viver em ti como ela vive ainda em mim, à medida que dela me aproximo.

Dou a minha vida a Vercueil para que a transmita. Confio em Vercueil porque não confio em Vercueil. Amo-o porque não o amo. Por ele ser o elo mais fraco é que o escolhi para amparo.

Talvez te pareça que eu entendo o que estou a dizer, mas não entendo, acredita. Desde o começo, quando dei com ele atrás da garagem, a dormir, à espera, na sua cabana de cartão, que não entendo nada. Tenteio o meu caminho, avançando por um túnel cada vez mais escuro. Tenteio o meu caminho em direcção a ti; cada palavra é um tenteio.

 

Há dias apanhei uma constipação, que agora se me instalou no peito, transformando-se numa tosse seca, martelada, que se prolonga durante minutos e me deixa ofegante, exausta.

Enquanto o fardo é apenas um fardo de dor, consigo suportá-lo mantendo-o à distância. Não sou eu que tenho dores, digo para comigo: quem tem dores é uma outra pessoa, um outro corpo que partilha esta cama comigo. Assim, valendo-me deste truque, vou-a rechaçando para longe. E quando o truque não resulta, quando a dor teima em tomar conta de mim, continuo ainda assim a suportá-la.

(Quando as vagas se altearem, não tenho dúvidas de que os meus truques serão varridos como os diques da Zelândia.)

Mas agora, durante estas crises de tosse, não consigo manter-me à distância de mim própria. Não há espírito, não há corpo, mas apenas este eu, esta criatura que se debate, a quem falta o ar, que se afoga. O terror, e a ignomínia do terror! Mais um vale a transpor no caminho para a morte. Como é possível que isto me esteja a acontecer a mim?, penso no auge do acesso de tosse. Será justo? A ignomínia da ingenuidade. Um cão de espinha partida, estendido à beira da estrada no último estertor da agonia, jamais se lembraria de pensar: Será justo?

Dizia Marco Aurélio que a vida requer de nós a perícia do lutador, não a do bailarino. O importante é aguentar-se de pé; os bonitos passos são perfeitamente escusados.

Ontem, com a despensa vazia, tive que ir às compras. No regresso, caminhando a custo com os sacos nas mãos, tive um grande ataque de tosse. Três miúdos da escola, que iam a passar, pararam embasbacados a ver a velha encostada a um candeeiro, com as compras espalhadas pelo chão. Entre os roncos da tosse, tentei fazer-lhes sinal para se irem embora. Nem quero imaginar como seria o meu aspecto. Uma mulher, ao volante do seu carro, abrandou ao passar por mim.

- Está-se a sentir mal? - perguntou.

- Fui às compras - expliquei, esbaforida.

- O quê? - perguntou ela, franzindo a testa, de orelha à escuta.

- Nada! - disse eu, ofegante.                                                

Ela foi-se embora.

Que feios estamos a ficar, à força de não conseguirmos estar de bem connosco mesmos! Até as rainhas dos concursos de beleza têm um ar irascível. Que é a fealdade, afinal, senão a alma a transparecer através da carne?

Depois, a noite passada, aconteceu o pior. A confusão do meu desagradável sono medicamentoso foi atravessada pelo ladrar do cão. Ladrava e tornava a ladrar, insistente, implacável, mecânico. Porque seria que Vercueil não acabava com aquilo?

Não quis arriscar-me a descer a escada. De roupão e chinelos, saí à varanda. Estava frio e chovia, uma chuvinha miúda.

- Mr. Vercueil! - grasnei. - Porque é que o cão está a ladrar? Mr. Vercueil!

Os ladridos pararam, para logo recomeçarem. Vercueil não apareceu.

Voltei para a cama e deixei-me estar deitada, sem conseguir dormir, os ladridos a ecoarem-me nos ouvidos como marteladas.

É assim que as velhotas caem e partem o colo do fémur, pensei, avisando-me a mim própria: é assim que se lhes arma o laço, e é assim , que elas se deixam apanhar.

Agarrando-me ao corrimão com ambas as mãos, desci cautelosamente a escada.

Estava alguém na cozinha, e não era Vercueil. Fosse quem fosse, não tentou esconder-se. Meu Deus, pensei: Bheki! Um calafrio percorreu-me da cabeça aos pés.

À luz espectral que o frigorífico aberto derramava, ele encarou-me, a testa ferida a tiro envolta numa ligadura branca. - O que é que queres? - murmurei. - Queres comer?

Ele perguntou:

- Onde está o Bheki?

A voz era mais grave, mais grossa que a de Bheki. Quem seria, então? Confusa, procurei um nome.

Ele fechou a porta do frigorífico. Ficámos às escuras.

- Mr. Vercueil? - grasnei. O cão ladrava ininterruptamente. - Os vizinhos acabam por cá vir - murmurei.

Ao passar por mim, roçou com o ombro no meu. Estremecendo, senti-lhe o cheiro, e percebi quem era.

Aproximou-se da porta. Os ladridos tornaram-se frenéticos.

- A Florence já cá não está - disse eu, acendendo a luz.

As roupas que trazia não eram dele. Ou talvez seja uma nova moda. O casaco parecia pertencer a um homem adulto, e as calças eram demasiado compridas. Uma manga do casaco,estava vazia

- Como é que está o teu braço? - perguntei.

- Não o posso mexer - disse ele.

- Afasta-te da porta - disse eu.            

Abri uma nesga de porta. O cão desatou aos pulos, excitadíssimo. Dei-lhe uma palmada no focinho.

- Pára já com isso! - ordenei-lhe. Ele ganiu baixinho.

- Onde está o teu dono?

Ele arrebitou as orelhas. Fechei a porta.

- O que é que queres aqui de casa? - perguntei ao rapaz,

- Que é do Bheki?

- O Bheki morreu. Mataram-no a semana passada, enquanto estiveste no hospital. Deram-lhe um tiro. Teve morte imediata. No dia seguinte ao daquela história da bicicleta.

Ele passou a língua pelos lábios. Tinha um ar encurralado, indeciso.

- Queres comer alguma coisa? Ele abanou a cabeça.

- Dinheiro. Não tenho dinhero - disse ele. - Para o autocarro.

- Eu dou-te dinheiro. Mas para onde queres ir?

- Tenho que ir para casa.

- Não faças isso, peço-te. Eu sei o que estou a dizer, fui aos Flats e vi o que se está a passar. Não apareças por lá enquanto as coisas não voltarem ao normal.

- As coisas nunca hão-de voltar ao normal.

- Por favor! Já conheço o discurso, não tenho tempo nem interesse em ouvi-lo outra vez. Deixa-te aqui ficar até as coisas acalmarem.

Deixa-te ficar até estares melhor. Porque é que saíste do hospital? Deram-te alta?              

- Deram-me alta, sim.          

- De quem são essas roupas que trazes vestidas?

- São minhas.

- Não são tuas, não senhor. Onde é que as arranjaste? - São minhas. Um amigo levou-mas.

Estava a mentir. Não mentia melhor do que qualquer outro miúdo de quinze anos.

- Senta-te. Vou-te arranjar alguma coisa para comeres, e depois vais dormir um bocado. Espera até amanhã para resolveres o que hás-de fazer depois.

Fiz um chá. Ele sentou-se, sem me prestar a mínima atenção. Não o envergonhava que eu não acreditasse na sua história. Pouco lhe importava saber em que é que eu acreditava. Que pensava ele de mim? Pensaria alguma coisa? Seria uma criatura pensante? Não' comparado com Bheki era destituído de pensamento, de raciocínio, de imaginação. Mas estava vivo, e Bheki estava morto. Os espertos vão-se embora, os lerdos sobrevivem. Bheki, para seu mal demasiado inteligente. Nunca tive medo de Bheki; deste aqui já não tenho tanta certeza.

Pus-lhe à frente uma sanduíche e uma chávena de chá, dizendo:

- Vá, come, bebe.

Ele não se mexeu. Cabeça apoiada no braço, olhos revirados, dormia a sono solto. Dei-lhe duas ou três palmadinhas na face.

- Acorda!

Ele despertou sobressaltado, endireitou-se, deu uma dentada no pão e pôs-se a mastigar muito depressa. Depois a mastigação tornou-se mais lenta. De boca cheia, ficou para ali sentado, embrutecido de tão exausto. Tirei-lhe a sanduíche da mão, pensando: quando se vêem aflitos vêm ter com uma mulher. Ele vem ter com Florence, só que já não há Florence. Não terá mãe?

No quarto de Florence, voltou a si por breves instantes.

- A bicicleta - murmurou.

- Não há problema, tenho-a guardada. Precisa de um conserto só isso. Hei-de pedir a Mr. Vercueil para lhe dar uma vista de olhos.

É assim que esta casa que outrora foi o meu e o teu lar se vai tornando um lugar de refúgio, um lugar de passagem.

Minha querida filha, sinto-me vogar na névoa do equívoco. A noite já vai alta, e não sei como hei-de salvar-me. Na medida em que sou capaz de confessar-me, a ti me confesso. Que equívoco é esse, perguntas? Se pudesse metê-lo num frasco, como a uma aranha, e mandar-to para o examinares, não hesitaria em fazê-lo. Mas é como uma névoa, está em toda a parte e em parte nenhuma. Não posso tocar-lhe, capturá-lo, dar-lhe um nome. Lentamente, com relutância, deixa-me que diga, porém, a primeira palavra. Eu não amo esta criança, a criança que dorme na cama de Florence. Amo-te a ti mas não o amo a ele. Não há em mim a mais ínfima ânsia que dele me aproxime.

Pois é, respondes-me, ele não inspira amor. Mas não terás contribuído também tu para o tornares tão pouco amável?

Não o nego. Mas, ao mesmo tempo, também não acredito que seja verdade. O meu coração não o aceita como meu: é tão simples quanto isso. No mais fundo de mim, quero que ele se vá embora e me deixe em paz.

Esta a minha primeira palavra, a minha primeira confissão. Não quero morrer no estado em que me vejo, neste estado de fealdade. Quero salvar-me. E como hei-de me salvar? Fazendo aquilo que não quero fazer. E o primeiro passo, bem o sei. Tenho que amar, por exemplo, esta criança. Não o pequeno Bheki, tão vivo e esperto, mas este aqui. Se ele aqui está, por alguma razão é. Faz parte da minha salvação. Tenho que o amar. Mas não o amo. Nem desejo o bastante amá-lo para chegar a amá-lo contra vontade.

E é por não desejar de todo o coração ser diferente do que sou que continuo a vogar neste nevoeiro.

Por mais que faça, não consigo obrigar o meu coração a amar, a querer amar, a querer que eu queira amar.

Morro porque no mais fundo do meu coração não quero viver. Morro porque quero morrer.

Deixa-me, pois, pronunciar a minha segunda palavra, carregada de dúvida. Não querendo amá-lo, como posso dizer verdadeiro o meu amor por ti? Porque o amor não é como a fome. O amor nunca fica saciado, nunca sossega. Quando se ama, ama-se cada vez mais. Quanto mais te amo, mais deveria amá-lo. Quanto menos o amo, menos te amarei talvez a ti.

Uma lógica cruciforme, que me leva para onde não quero ir! Mas deixar-me-ia eu pregar nessa cruz se verdadeiramente o não quisesse?

Pensei, quando comecei esta carta, que o seu ímpeto seria tão forte como a da maré, que por baixo das ondas desencontradas da superfície haveria uma atracção tão constante como a da lua, puxando-me para ti e puxando-te a ti para mim: a atracção do sangue entre mãe e filha, entre mulher e mulher. Mas a cada dia que lhe acrescento mais uma página, dir-se-ia que a carta se torna mais abstracta, mais alheada, uma carta digna de ser escrita do firmamento, do vácuo mais distante, desencarnada, cristalina, exangue. A tal destino estará votado o meu amor?

Quando o rapaz foi ferido, lembro-me da abundância, da crueza do seu esvair-se em sangue. Como é ténue, por comparação com o dele, o meu sangrar para este papel. A hemorragia de um coração atrofiado.

Já atrás escrevi acerca do sangue, bem sei. Já escrevi acerca de tudo, escrevi o que tinha a escrever, estou seca de tanto sangrar, e mesmo assim continuo. Esta carta tornou-se um labirinto, e eu um cão no labirinto, a correr para trás e para diante por túneis e encruzilhadas, raspando com as unhas e ganindo sempre nos mesmos velhos sítios, extenuante, extenuado. Porque é que não peço a alguém que me socorra, porque é que não peço socorro a Deus? Porque Deus não pode ajudar-me. Deus anda à minha procura, mas não me pode chegar. Deus é outro cão preso noutro labirinto. Farejo Deus, e deus fareja-me a mim. Sou a cadela no cio, e Deus o macho. Deus fareja-me, não pensa senão em encontrar-me para me possuir. Experimenta os vários caminhos divergentes, esgadanha a cerca de rede. Mas está tão perdido como eu estou perdida.

Eu sonho, mas não creio que seja com Deus que sonho. Assim que adormeço começa atrás das minhas pálpebras um movimento agitado de sombras, sombras sem corpo nem forma, envoltas em névoa, cinzentas ou castanhas, sulfurosas. Borodino é a palavra que durante o sono me vem à cabeça: uma quente tarde de Verão na estepe russa, uma enorme nuvem de fumo, a erva seca a arder, dois exércitos que, perdida toda a coesão, se arrastam sem rumo, homens esbraseados, temendo pela vida. Centenas de milhar de homens, sem rosto, sem voz, ressequidos como ossos, encurralados num campo de matança, repetindo noite após noite os seus avanços e recuos através da estepe crestada, no meio do fedor a enxofre e a sangue: o inferno onde mergulho assim que fecho os olhos.

Estou praticamente convencida de que são os comprimidos vermelhos, o Diconal, que convocam dentro de mim estes exércitos. Mas sem os comprimidos vermelhos já não consigo dormir.

Borodino, Diconal: examino atentamente as duas palavras. Serão anagramas? Parecem anagramas. Mas de quê, e em que língua?

Acordo do sono de Borodino a gritar, a chorar ou a tossir sons que me vêm do fundo do peito. Depois sossego e fico deitada a olhar em redor. O meu quarto, a minha casa, a minha vida: a reprodução é demasiado fiel para ser uma imitação: é a realidade: estou de volta: vezes sem conta estou de volta, cuspida do ventre da baleia. E de cada vez é um milagre - um milagre que ninguém reconhece, ninguém celebra, ninguém aplaude. Todas as manhãs sou cuspida, arremessada à praia, é-me dada mais uma oportunidade. E que faço eu com ela? Deixo-me ficar quieta na areia à espera do regresso da maré nocturna, que me cerque e me arraste de novo para o ventre das trevas. O nascimento fica incompleto: criatura liminar, incapaz de respirar dentro de água, mas sem coragem para virar costas ao mar, fixando-se em terra.

No aeroporto, no dia em que partiste, agarraste-me pelos ombros e fitaste-me nos olhos. «Não me peças para voltar, Mãe», disseste então, «porque eu não volto.» Depois sacudiste dos sapatos a terra deste país. Tinhas razão. Apesar disso, há uma parte de mim que está sempre alerta, sempre virada para noroeste, ansiosa por te acolher, por te abraçar, se porventura cederes e, seja sob que forma for, vieres fazer-me uma visita. Há qualquer coisa tão terrível como admirável nessa tua força de vontade, nas cartas que me escreves e onde - se queres que seja franca - não há amor suficiente, ou pelo menos falta essa entrega de quem ama que dá vida ao amor. Afectuosas, amáveis, recheadas de confidências, cheias de inquietação por mim, são todavia cartas de alguém que se tornou uma estranha, uma estrangeira.

É uma acusação que te laço? Não, mas é uma censura sentida. E esta longa carta - só agora o digo - é um grito lançado à noite, para as bandas do noroeste, a pedir-te que voltes para mim. Volta e deita a cabeça no meu regaço como fazem as crianças, como tu fazias, nariz a procurar, furando como uma toupeira, o lugar de onde vieste. Volta, diz esta carta: não cortes os laços que nos unem. A minha terceira palavra.

Se tu te dissesses saída de dentro de mim, eu não precisaria de me dizer saída do ventre da baleia.

Não posso viver sem filhos. Não posso morrer sem filhos.

É dor o que eu gero na tua ausência. Produzo dor. Tu és a minha dor.

É uma acusação que te faço? Sim. J'accuse. Acuso-te de me abandonares. Arremesso-te esta acusação, arremesso-a para nordeste, contra o vento. Arremesso-te a minha dor.

Borodino é um anagrama de Volta - só não sei em que língua. Diconal: chamo por ti.

Palavras cuspidas do ventre da baleia, disformes, misteriosas. Filha.

 

A meio da noite telefonei para a Linha Vida.

- Entregas ao domicílio? - disse a mulher. -Já não sei de ninguém que faça entregas ao domicílio senão o Stuttafords. Porque é que não experimenta um desses restaurantes que levam refeições a casa?

- O meu problema não é cozinhar - expliquei. - Sou perfeitamente capaz de preparar as refeições. Quero é que me tragam as compras a casa. Custa-me carregar os sacos.

- Dê-me o seu número, e eu peço para uma assistente social lhe telefonar amanhã de manhã - disse ela.

Poisei o auscultador.

O fim chega a galope. Não me lembrei de que à medida que avançamos declive abaixo corremos cada vez mais depressa. Pensei que podia descer a estrada inteira a passo. Enganei-me, enganei-me redondamente.

Há qualquer coisa de degradante no modo com tudo isto acaba - degradante não apenas para nós mas para a ideia que temos de nós próprios, do género humano. Pessoas deitadas em quartos escuros, jazendo impotentes no meio da sua própria imundície. Pessoas deitadas debaixo de sebes, a chuva. Não vais conseguir entender isto, por enquanto. Vercueil entenderá.

Vercueil tornou a desaparecer, deixando ficar o cão. Que pena Vercueil ser assim. Nem Odisseu nem Hermes, nem sequer talvez um mensageiro. Um- ser errante. Um ser inquieto, apesar da sua aparência empedernida.

E eu? Se Vercueil fracassou na sua prova, que prova era a minha? Seria ver se tinha coragem para me imolar diante da Casa das Mentiras ? Mil vezes imaginei esse instante, o instante em que acendo o fósforo, as chamas a fustigar-me ao de leve as orelhas e eu muito quieta, espantada e até satisfeita, no meio da fogueira, ilesa, as minhas roupas a arder sem se queimarem, as chamas de um azul gelado. Tão fácil dar sentido a existência, penso com surpresa, penso muito depressa, no último instante, antes que se me incendeiem as pestanas, e as sobrancelhas, antes que deixe de ver. E depois disso mais nenhum pensamento, apenas a dor (pois tudo tem o seu preço).

Seria essa dor pior que uma dor de dentes? Pior que as dores do parto? Pior que esta minha anca? Pior que um parto multiplicado por dois? Quantos comprimidos de Diconal para a abafar? As regras do jogo permitiriam engolir o frasco inteiro de Diconal antes de avançar com o carro pela Government Avenue, contornando a corrente? Seria preciso morrer com perfeito conhecimento de causa, com plena consciência? Seria preciso dar à luz a morte sem anestesia?

A verdade é que sempre houve um não sei quê de falso nesse impulso, profundamente falso, apesar da raiva ou do desespero a que respondia. Se ir morrendo na cama ao longo de semanas e meses, num purgatório de dor e de vergonha, não pode salvar-me a alma, porque havia eu de me salvar morrendo em dois minutos numa coluna de chamas? Cessariam as mentiras só porque uma velha resolveu matar-se? Que vidas mudariam com isso, e de que maneira? Torno a pensar em Florence, como é meu costume. Se Florence fosse a passar, com Hope a seu lado e Beauty às costas, o espectáculo ímpressioná-la-ia? Demorar-se-ia sequer a contemplá-lo? Algum malabarista, algum palhaço, algum artista de circo, pensaria Florence: gente séria não era com certeza. E seguiria em frente.

Aos olhos de Florence, o que seria uma morte séria? Que morte mereceria a sua aprovação? Resposta: uma morte que coroasse uma vida de trabalho honesto; ou então uma morte espontânea, irresistível, uma dessas mortes que chegam sem se fazerem anunciar, como uma trovoada, como um tiro na testa.

Florence é o juiz. Atrás dos óculos, os seus olhos imóveis tudo medem e avaliam. Uma imobilidade que ela já transmitiu às filhas. O tribunal pertence a Florence; o objecto da revista sou eu. Se a vida que vivo é uma vida examinada, é porque durante dez anos estive sujeita ao exame do tribunal de Florence.

- Tem cá em casa DettoP.

Estava sentada na cozinha a escrever quando a voz dele me sobressaltou. Dele, do rapaz.

- Vai lá acima. Procura na casa de banho, é a porta à direita. Vê no armário por baixo do lavatório.

Ouvi água a correr; depois ele tornou a descer a escada. Tirara a ligadura; reparei com surpresa que ainda tinha os pontos todos.   - Então não te tiraram os pontos? Ele abanou a cabeça.

- Mas quando é que saíste do hospital?

- Ontem. Anteontem.

Porquê aquela necessidade de mentir? - Porque é que não ficaste lá até estares curado? Não tive resposta.

- Tens que tornar a tapar esse golpe, senão infecta e ficas com uma cicatriz.

Uma marca, como uma chicotada na testa, para o resto da vida. Uma recordação.

Para que hei-de atormentá-lo, se ele não me é nada? Porém comprimi com os dedos a sua carne ferida, estanquei o fluxo do seu sangue. Que persistente é o impulso maternal! Como uma galinha que perde os pintos adopta um pequeno pato, ignorando a penugem amarela, o bico achatado, ensinando-o a tomar banhos de areia, a apanhar minhocas.

Tirei da mesa a toalha vermelha e comecei a cortá-la.

- Não tenho ligaduras em casa - expliquei -, mas a toalha está perfeitamente limpa, se não te importares por ser vermelha.

Dei-lhe duas voltas à cabeça com a tira de pano e amarrei-lha na nuca.

- Tens que ir rapidamente ao médico, ou a uma clínica, para te tirarem os pontos. Não podem aí ficar.

O seu pescoço, hirto como um pau de vassoura. E o cheiro que lhe emanava do corpo, certamente o mesmo que alertara o cão: um cheiro a nervosismo, um cheiro a medo.

- A cabeça não me dói - disse ele, pigarreando -, mas o braço... - aqui moveu cautelosamente o ombro - tenho que descansar o braço.

- Diz-me lá, andas a fugir de alguém? Ele não disse nada.

- Quero-te falar muito a sério - disse eu. - És demasiado novo para estas coisas. Disse o mesmo ao Bheki, e agora digo-to a ti. Tens que me dar ouvidos. Já sou velha, sei o que digo. Vocês ainda são umas crianças. Estão a dar cabo das vossas vidas antes de saberem o que a vida pode ser. Que idade tens... quinze anos? Aos quinze anos é muito cedo para se morrer. Aos dezoito ainda é muito cedo. Aos vinte e um ainda é muito cedo.

Ele levantou-se, aflorando com as pontas dos dedos a ligadura vermelha. Um penhor. Na era da cavalaria os homens chacinavam-se com os penhores das damas a tremular nos elmos. Era uma perda de tempo aconselhar prudência a este rapaz. O instinto do combate era nele demasiado forte, impelia-o a avançar. O combate: a forma que a natureza tem de liquidar os fracos e acasalar os fortes. Regressa coberto de glória, e satisfarás os teus desejos. Sangue e glória, morte e sexo. E eu, uma velha, uma megera moribunda, a atar-lhe um penhor à volta da cabeça!

- Onde está o Bheki? - perguntou ele.

Sondei-lhe o rosto. Não teria percebido o que eu lhe dissera? Ter-se-ia esquecido?

Ele sentou-se.

Eu debrucei-me sobre o tampo da mesa.

- O Bheki está enterrado - continuei. - Está metido num caixão, no fundo de uma cova, com um monte de terra por cima. Nunca mais vai sair dessa cova. Nunca, nunca, nunca mais. Vê se entendes: isto não é um jogo como o futebol, em que a pessoa cai e torna logo a levantar-se para continuar a partida. Os homens contra quem estás a jogar não dizem uns aos outros: «Aquele ainda é uma criança, vamos lá disparar uma bala de criança, uma bala a fingir.» Nem sequer vêem em ti uma criança. Vêem o inimigo, e odeiam-te tanto como tu os odeias a eles. Não terão o menor escrúpulo em te matar; pelo contrário, sorrirão satisfeitos quando caíres, e gravarão mais uma marca na coronha da espingarda.

Ele fitou-me como se eu estivesse a esbofeteá-lo, palmada atrás de palmada. Mas, de queixo espetado, lábios cerrados, recusava-se a pestanejar sequer. Uma névoa opaca a toldar-lhe os olhos.

- Vocês acham que eles são pouco disciplinados - disse eu. - Mas enganam-se. Eles são disciplinadíssimos. O que os impede de exterminar os rapazes todos, de vos exterminar a todos até aô último, não é nem a compaixão nem a camaradagem. É a disciplina e nada mais: ordens superiores, que podem mudar a qualquer momento. A compaixão foi atirada pela janela fora. Isto é uma guerra. Vê se me dás ouvidos! Eu sei o que estou a dizer. Pensas que eu estou a tentar convencer-te a abandonar a luta. Pois bem, é verdade. É isso mesmo. O que eu digo é: espera, ainda és muito novo.

Ele agitou-se na cadeira. Conversa, conversa! A força de conversa fora esmagada a geração dos seus pais, a geração dos seus avós. Mentiras, promessas, lisonjas, ameaças: caminhavam curvados sob o peso de tanta conversa. Ele não. Ele rejeitava a conversa. Morte à conversa! - Dizes que é tempo de lutar - continuei. - Dizes que é tempo de ganhar ou perder. Deixa-me que te diga uma coisa sobre esse ganhar ou perder. Deixa-me que te diga uma coisa sobre esse ou. Escuta. «Sabes que estou doente. Sabes o que é que eu tenho? Tenho um cancro. Tenho um cancro, do acumular da vergonha que sofri durante a vida inteira. É assim que nasce o cancro: de tanto nos detestarmos, o corpo torna-se maligno e desata a devorar-se a si próprio.

«Dir-me-ás: De que serve consumir-se de ódio e de vergonha? Não quero ouvir a história dos seus sentimentos, é apenas mais uma história, porque é que não trata antes de fazer alguma coisa? E se me disseres tudo isto, responderei: «Sim» «Sim» «Sim»    

Não posso responder senão «sim» a estas perguntas. Mas deixa-me que te diga como me sinto ao pronunciar esse 'sim'. É como ser julgada pela minha vida inteira e só ter direito a usar duas palavras, sim e não. Sempre que abrimos a boca para responder, os juizes avisam: "Sim ou não»: nada de discursos'. «Sim», dizemos nós. E entretanto sentimos agitarem-se dentro de nós mil outras palavras, como uma vida que trouxéssemos no ventre. Não ainda como o espernear de uma criança, mas como o mais obscuro começo, como o frémito de certeza que a mulher sente dentro de si quando está grávida.

«Não trago dentro de mim apenas a morte. Trago também a vida. A morte está cheia de força, a vida é fraca. Mas a minha obrigação é para com a vida. Tenho que a manter viva. Não posso fazer outra coisa.

«Tu não acreditas nas palavras. Pensas que só a luta é autêntica, a luta e os tiros. Mas escuta: não ouves que são autênticas as palavras que te digo? Escuta! Podem ser apenas ar, mas vêm de dentro do meu coração, do meu ventre. Não são 'sim' nem 'não'. O que vive dentro de mim é outra coisa, outra palavra. E eu luto por ela, à minha maneira, luto para que não seja sufocada. Sou como essas mães chinesas que sabem que lhes tirarão o seu bebé para o matar, se for menina, porque o que faz falta à família, o que faz falta à aldeia, são rapazes de braços robustos. Sabem que depois do parto alguém entrará no quarto, alguém que trará o rosto coberto, que tirará a criança dos braços da parteira e, se o seu sexo não for o pretendido, lhes virara as costas, por delicadeza, para a asfixiar ali mesmo, apertando-lhe o pequeno nariz, tapando-lhe a boca. Um minuto e já está.

«Chora se quiseres, dizem depois à mãe: o choro é a coisa mais natural do mundo. Mas não perguntes: Que coisa é essa a que se chama um filho? Que coisa é essa a que chamamos filha, e por que razão há-de ter que morrer?

«Não me interpretes mal. Tu és rapaz, o filho de alguém. Não tenho nada contra os filhos rapazes. Mas já alguma vez olhaste para um recém-nascido? Garanto-te que terias dificuldade em apontar a diferença entre um rapaz uma rapariga. Todos os bebés têm entre as pernas o mesmo refego carnudo. O rebento, a gavinha que se diz distinguir o rapaz é, vendo bem, uma coisa insignificante. Pequenina demais para assinalar a diferença entre a vida e a morte. Porém tudo o mais, toda essa matéria indefinida, que cede quando a apertamos, é condenada sem chegar sequer a ser ouvida. E eu quero tomar a defesa dessa matéria muda.

«Estás farto de dar ouvidos a gente velha, bem vejo. Anseias por ser um homem e realizar feitos de homem. Estás farto de te preparares para a vida. É tempo de a viver de uma vez por todas, pensas tu. Mas que engano o teu! A vida não é seguir um bastão, uma vara, um pau de bandeira, uma arma, a ver onde ele nos conduz. A vida não fica ao virar da esquina. Tu já estás no meio dela.» Tocou o telefone.

- Não te aflijas, não vou atender - disse eu.        

Esperámos em silêncio que parasse de tocar.

- Não sei o teu nome - disse eu.        

- John.                                                                        

- John : era óbvio que se tratava de um nom de guerre.    

- Quais são os teus planos?

Ele olhou para mim, sem perceber.

- O que é que pensas fazer? Queres aqui ficar?

- Tenho que ir para casa.

- Onde é a tua casa?

Ele fitou-me com o seu ar obstinado, demasiado exausto para inventar mais uma mentira.

- Pobre criança - murmurei.

 

Não era minha intenção espiá-lo. Mas trazia calçados uns chinelos, a porta do quarto de Florence estava aberta, ele estava de costas para mim. Sentara-se na cama, de olhos postos num objecto que tinha na mão. Quando me ouviu sobressaltou-se e escondeu-o debaixo dos cobertores.

- O que é que tens aí? - perguntei.

- Não é nada - disse ele, fitando-me com aquela sua expressão impenetrável.

Eu não teria insistido se não tivesse visto no chão um pedaço de rodapé arrancado, revelando uns quantos tijolos sem reboco.

- O que é que estás a fazer? - perguntei. - Para que é que estás a dar cabo do quarto?

Ele não disse nada.

- Mostra-me o que tens aí escondido. Ele abanou a cabeça.

Espreitei para a parede. Havia na parede de tijolo um buraco, de quando fora instalado o aparelho de ventilação; pelo buraco cabia um braço, permitindo alcançar o vão por baixo do soalho.  

- Estás a esconder coisas debaixo do soalho?

- Não estou a fazer nada.

Marquei o número que Florence me deixara. Atendeu uma criança.

- Queria falar com Mrs. Mkubukeli - disse eu. Silêncio. - Mrs. Mkubukeli. Florence.

Murmúrios, e depois uma voz de mulher:

- Com quem deseja falar?

- Com Mrs. Mkubukeli. Florence.

- Ela não está.

- Daqui fala Mrs. Curren - disse eu. - Mrs. Mkubukeli trabalhava para mim. Estou a telefonar por causa do amigo do filho dela, um rapaz que diz chamar-se John, não sei o nome verdadeiro dele. É muito importante. Se a Florence não está, posso falar com Mr. Thabane?

De novo um longo silêncio. Depois uma voz de homem:

- Sim, daqui Mr. Thabane.

- Daqui Mrs. Curren. Conhecemo-nos há dias, não sei se se lembra. Estou a telefonar por causa do amigo e colega de escola do Bheki. Talvez o senhor não saiba, mas ele esteve no hospital.

- Sei, sim.

- Pois agora saiu do hospital, saiu ou fugiu, e veio para aqui. Tenho razões para pensar que tem uma arma qualquer, não sei ao certo de que tipo, que ele e o Bheki devem ter escondido no quarto da Florence. Acho que foi por isso que ele aqui voltou.

- Sim - disse Mr. Thabane numa voz neutra.

- Mr. Thabane, não lhe vou pedir para exercer a sua autoridade sobre o rapaz. Mas ele não está bem. Ficou ferido com bastante gravidade. E acho que está emocionalmente perturbado. Não sei como hei-de entrar em contacto com a família dele; nem sequer sei se ele tem família na Cidade do Cabo. Ele não me quis dizer. Só peço que alguém venha falar com ele, alguém em quem ele confie, e o leve daqui antes que lhe aconteça alguma coisa.

- Diz-me que ele está emocionalmente perturbado. O que quer dizer com isso?

- Quero dizer que precisa de assistência. Quero dizer que talvez não seja responsável pelos seus actos. Quero dizer que deu uma pancada com a cabeça. Quero dizer que não posso cuidar dele, não tenho forças para tanto. Tem que mandar cá alguém.

- Vou ver o que se pode arranjar.

- Não, isso não chega. Quero um compromisso.    

- Eu peço a alguém para o ir buscar. Mas não lhe posso dizer ao certo quando.

- Hoje?

- Não posso garantir que seja hoje. Talvez hoje, talvez amanhã. Veremos.

- Mr. Thabane, quero deixar bem clara uma coisa. Eu não quero «aconselhar nem este rapaz nem ninguém sobre o que há-de fazer da sua vida. Já tem idade e iniciativa suficiente para fazer dela o que bem entender. Mas esta chacina, este derramamento de sangue em nome da camaradagem, é uma coisa que eu abomino do mais fundo do meu coração e da minha alma. Não há nada mais bárbaro. Era isto que eu queria dizer.

- A ligação não está famosa, Mrs. Curren. Oiço a sua voz muito fraca, muito fraca e muito ao longe. Espero que me esteja a ouvir.

- Estou a ouvir, sim.

- Óptimo. Então permita-me que lhe diga, Mrs. Curren, que em minha opinião a senhora não percebe grande coisa de camaradagem.

- Percebo o suficiente, muito obrigada.

- Não percebe, não - disse ele, absolutamente seguro do que dizia. - Quando se está de corpo e alma no combate, como o estão estes jovens, quando todos se dispõem sem hesitar a dar a vida uns pelos outros, nasce um laço mais forte do que qualquer outro laço que possamos criar na vida. A camaradagem é isso mesmo. Todos os dias a vejo com os meus próprios olhos. A minha geração não tem nada que se lhe compare. É por isso que temos de abrir alas e dar passagem a essa juventude. Damos lhes passagem mas estamos com eles. É isso que a senhora não pode entender, porque está demasiado longe.

- Estou longe, é verdade - disse eu - longe e fraca. Mesmo assim, julgo conhecer até demasiado bem a camaradagem. Os alemães cultivavam a camaradagem, como os japoneses e os espartanos. Os guerreiros de Shaka também, com toda a certeza. A camaradagem não é senão uma mística da morte, do matar e morrer, sob a capa disso a que chama um laço (um laço de quê? De amor? Duvido muito). Não tenho a menor simpatia por essa camaradagem. Você - você e Florence e toda a gente - caem no erro de se deixarem seduzir por essa ideia, e, pior ainda, de a estimularem nas crianças. Mais uma dessas construções masculinas, geladas, exclusivistas, viradas para a morte. É esta a minha opinião. Dissemos ainda mais coisas, mas não vou aqui reproduzi-las. Trocámos impressões. Concordámos em discordar.

A tarde foi passando. Ninguém veio buscar o rapaz. Eu estava na cama, zonza do efeito dos medicamentos, uma almofada debaixo das costas, tentando aliviar a dor à força de pequenas mudanças de posição, com vontade de dormir mas também com medo do sonho de Borodino. A atmosfera fez-se mais pesada, começou a chover. O algeroz entupido pingava ininterruptamente. Do tapete do patamar da escada veio um bafo de cheiro a urina de gato. Um túmulo, pensei: um túmulo burguês tardio. Virei a cabeça para um lado e para o outro. Cabelo grisalho na almofada, por lavar, escorrido. E, no quarto de Florence, na escuridão cada vez mais densa, o rapaz, deitado de costas, tendo na mão a bomba, ou lá o que era, e os olhos bem abertos, já não velados mas límpidos: ocupado a pensar, ou melhor, a imaginar. A imaginar o momento de glória em que se agigantará, pela primeira vez plenamente ele próprio, erecto, possante, transfigurado. Em que a flor de fogo desabrochará, em que subirá no ar a coluna de fumo. A bomba sobre o peito com um talismã: como Cristóvão Colombo no escuro do seu camarote, apertando contra o peito a sua bússola, o místico instrumento que o guiaria até às índias, às Ilhas dos Bem-Aventurados. Bandos de donzelas de seios nus a cantar para ele, de braços abertos, ao vê-lo aproximar-se atravessando a vau as águas rasas, levando na mão estendida a agulha que nunca hesita, que eternamente aponta a mesma direcção, a do futuro.

Pobre criança! Pobre criança! Vindas não sei de onde, as lágrimas brotaram e toldaram-me os olhos. Pobre John, que noutros tempos teria por destino ser ajudante de jardineiro, receber pela porta das traseiras o seu almoço de pão com compota, beber água por uma lata, lutando agora por todos os insultados e ofendidos, pelos espezinhados, pelos ridicularizados, por todos os ajudantes de jardineiro da África do Sul!

 

No frio das primeiras horas da manhã ouvi experimentar o fecho do portão. Vercueil, pensei: Vercueil está de volta. Então tocou a cam-Painha, uma vez, duas vezes, toques longos, peremptórios, impacientes, e tive a certeza de que não era Vercueil.

Nos últimos tempos, levo vários minutos a descer a escada, especialmente se estou atordoada pelos comprimidos. Enquanto eu descia, na semiobscuridade, continuaram a tocar a campainha, a dar murros na porta.

- Vou já! - gritei o mais alto que consegui. Mas fui demasiado lenta. Ouvi abrir-se o portão do quintal. Uma chuva de pancadas na Porta da cozinha, e vozes a falar africânder. Depois, prosaico e banal como o som de uma pedra a bater noutra pedra, veio o som de um tiro.

Fez-se um silêncio em que ouvi claramente um tinir de vidro quebrado.

- Esperem! - gritei, e corri, corri de facto... não pensava ter forças para tanto... até à porta da cozinha.

- Esperem! - gritei, batendo no vidro, atrapalhando-me com os ferrolhos e as correntes. - Não façam nada!

Estava alguém na varanda, de sobretudo azul e costas voltadas para mim. Embora devesse ter-me ouvido, não se virou.

Abri o último ferrolho, abri a porta de repelão, surgi diante deles.

Esquecera-me do roupão, vinha descalça, e ali especada, em camisa de noite branca, devia parecer um autêntico cadáver ressuscitado.

- Esperem! - repeti. - Não façam nada por enquanto, ele é só Uma criança!

Eles eram três. Dois estavam fardados. O terceiro, vestindo um Pulóver com renas a correr numa barra à altura do peito, tinha na mão uma pistola virada para baixo.

- Deixem-me tentar falar com ele - pedi, atravessando a chapinhar as poças dessa noite. Eles olharam-me estarrecidos mas não tentaram deter-me.

A janela do quarto de Florence estava estilhaçada. O quarto, esse, estava às escuras; mas, espreitando pelo buraco, distingui uma silhueta acocorada junto à cama, no outro extremo da divisão.

- Abre a porta, meu rapaz - pedi. - Eu não deixo que te façam mal, prometo.

Era mentira. Ele estava perdido, e eu não tinha poder para o salvar. Porém alguma coisa passou de mim para ele. Ansiei por abraçá-lo, por protegê-lo.

Um dos polícias apareceu junto a mim, encostado à parede.

- Diga-lhe para sair do quarto - pediu. Eu virei-me para ele, num acesso de fúria:

- Vá-se embora! - gritei, e tive um ataque de tosse. O sol nascia, róseo, num céu cheio de nuvens à deriva.

- John! - gritei no meio da tosse. - Sai daí! Eu não deixo que eles te façam mal.

Agora tinha a meu lado o homem do pulóver.

- Peça-lhe para entregar as armas - disse em voz baixa.

- Que armas?

- Tem uma pistola, e não sei se mais alguma coisa. Peça-lhe para passar tudo cá para fora.

- Prometa-me primeiro que não lhe fazem mal.

Os dedos dele apertaram-se em redor do meu braço. Resisti, mas ele era demasiado forte.

- Ainda apanha uma pneumonia se continua aqui fora - disse. Deitaram-me pelas costas uma peça de roupa: um casaco, um sobretudo, o sobretudo de um dos polícias.

- Neem baar binne - murmurou ele. Os outros levaram-me para a cozinha e tornaram a sair, fechando a porta.

Sentei-me, voltei a levantar-me. O sobretudo tresandava a fumo de cigarro. Larguei-o no chão e abri a porta. Tinha os pés azuis de frio. Chamei:

- John!

Os três homens estavam debruçados sobre um aparelho de rádio. O que me dera o sobretudo voltou-se com ar exasperado.

- Minha senhora, é perigoso estar aqui fora - explodiu. Empurrou -me outra vez para dentro, mas não encontrou a chave para trancar a porta.

- Ele ainda é uma criança - disse eu.

- Deixe-nos fazer o nosso trabalho - respondeu ele.

- Eu fico de olho em vocês - teimei. - Fico de olho em tudo o que vocês fizerem. Estou-lhe a dizer que ele ainda é uma criança!

Ele encheu o peito de ar, como para ripostar, mas depois exalou o ar num suspiro e ficou à espera que eu despejasse o saco. Um jovem robusto, ossudo. Filho de alguém, primo de muita gente. Muitos primos, muitos tios e tias, tios-avós e tias-avós, em redor dele, atrás dele, acima dele, como um grupo coral, orientando-o, admoestando-o.

Que podia eu dizer? Que tínhamos nós em comum que tornasse possível o diálogo, além do facto de ele estar ali para me defender, para defender, num sentido mais lato, os meus interesses?

- Ek staan nie aan jou kant nie - disse eu. - Ek staan aan die teenkant. - Não estou convosco, estou pelo outro lado. E também na outra margem, na outra margem do rio. Na margem de lá, a olhar para trás.

Ele virou-me as costas, examinou o fogão, o lava-loiça, as prateleiras, entretendo die ou dame enquanto os amigos, lá fora, faziam o que tinham a fazer. Um dia de trabalho como qualquer outro.

- Pronto - disse eu -, já acabei. Não era consigo que eu estava a falar, aliás.

Com quem, então? Contigo, sempre contigo. Como vivo, como vivi: a minha história.

Tocaram à campainha. Mais homens, homens de botas, boné e camuflado, a passear pela casa. Agruparam-se à janela da cozinha.

- Hy sit daar in die buitekamer - explicou o polícia, apontando para o quarto de Florence. - Daar's net die een deur en die een venster.

- Nee, dan het ons bom - disse um dos recém-chegados.

- Previno-os de que estou de olho em tudo o que vocês fizerem - disse eu.

Ele virou-se para mim.

- Conhece o rapaz? - perguntou.

- Conheço-o, sim.

- Sabia que ele estava armado?

Encolhi os ombros.

- Nos tempos que correm, infeliz de quem anda desarmado. Entrou mais uma pessoa, uma jovem fardada, toda ela frescura e aprumo.

- Is dit die dame dié? - perguntou; e depois, dirigindo-me a palavra: - Vamos evacuar a casa por uns minutos, até o assunto estar resolvido. Deseja ir para algum sítio em especial, para casa de algum amigo, de alguém de família?

- Eu não saio daqui. A casa é minha.

A amabilidade, a solicitude da jovem não vacilaram.

- Bem sei - disse ela -, mas é perigoso ficar aqui. Temos de lhe pedir que saia, só por uns minutos.

Os homens à janela tinham parado de conversar: estavam impacientes, com pressa de me ver sair.

- Bei die ambulans - disse um deles.

- Ag, sy kan sommer by die stasie wag - disse a mulher. Virou -se para mim. - Venha, Mrs. ... - Ficou à espera de que eu dissesse o meu nome. Não o fiz. - Um chazinho bem quente - propôs-me então.

- Eu não vou.

Prestaram tanta atenção às minhas palavras como a que prestariam aos protestos de uma criança.

- Gaan haal 'n kombers - disse o homem -, sy's amper blou van die koue.

A mulher subiu ao primeiro andar e voltou trazendo a colcha da minha cama. Embrulhou-me nela, deu-me um abraço, e depois ajudou-me a calçar os chinelos. Não deu mostras de repugnância ante as minhas pernas, os meus pés. Uma boa rapariga, educada para vir a ser uma boa esposa.

- Tem alguns comprimidos ou medicamentos ou alguma outra coisa que queira levar consigo? - perguntou.

- Eu não saio daqui - repeti, agarrando-me à cadeira.

Uma breve conversa murmurada entre a rapariga e os homens. De repente, sem qualquer espécie de aviso, alguém me agarrou por trás, levantando-me em peso pelas axilas. A mulher pegou-me nas pernas. Carregaram-me como se eu fosse um tapete até à porta da rua. Senti nas costas uma dor dilacerante.

- Larguem-me! - gritei.

- Só mais um minuto - disse a mulher em tom conciliador.

- Eu tenho um cancro! - berrei. - Larguem-me!

, Cancro! Que prazer atirar-lhes a palavra à cara! Estacaram logo, como se eu lhes tivesse apontado uma faca.

- Sit haar neer, dalk kom haar iets oor - disse o homem que me agarrara. - Ek het mos gesê jy moet die ambulans bei.

E poisaram-me com todo o cuidado no sofá.

- Onde é a dor? - perguntou a mulher, franzindo a testa.

- No coração - disse eu. Ela ficou desconcertada. - Tenho um cancro no coração. - Só então ela percebeu; abanou a cabeça como se sacudisse uma mosca.            

- Tem dores quando a transportamos?

- Tenho dores constantes - disse eu.

O seu olhar cruzou-se com o do homem que estava atrás de mim; alguma coisa na expressão dele divertiu-a tanto que não conseguiu conter um sorriso.

- Apanhei a doença por beber da taça da amargura - continuei, mergulhando de cabeça no delírio. Queria lá saber que me achassem doida! - É muito provável que você também acabe por apanhá-la. Quase ninguém escapa.

Ouviu-se um estrondo de vidros partidos. Precipitaram-se ambos para fora da sala; eu levantei-me e segui-os, a coxear.

Para além da segunda vidraça estilhaçada, nada mudara. O quintal estava deserto; os polícias, agora em número de seis, estavam agachados no alpendre, armas em riste.

- Weg! - berrou um deles, furioso. - Kry haar weg!

A mulher arrastou-me para dentro. No instante em que fechou a porta ouviu-se uma breve explosão, uma saraivada de tiros, a que se seguiu um longo silêncio atordoado, depois uma conversa em voz baixa e, vindo não sei de onde, o som dos latidos do cão de Vercueil.

Tentei abrir a porta, mas a mulher agarrou-me com força.

- Se lhe fizeram mal, nunca mais vos perdoo - disse eu.

- Está tudo bem, vou chamar outra vez a ambulância - disse ela, tentando acalmar-me.

Mas a ambulância já lá estava, estacionada junto ao passeio. Dezenas de pessoas acorriam, em grande alvoroço, vindas de todas as direcções: vizinhos, transeuntes, novos e velhos, negros e brancos; havia gente debruçada, a olhar, das varandas dos apartamentos. Quando eu e a mulher-polícia saímos pela porta da frente já iam a descer o acesso da garagem com o corpo, tapado por um cobertor, numa maca de rodas, para o meterem na ambulância.

Fiz menção de entrar com ele na ambulância; um dos maqueiros chegou até a agarrar-me o braço para me ajudar; mas um polícia interveio.

- Espere, já chamamos outra ambulância para ela - disse.

- Não quero outra ambulância - disse eu. Ele arvorou uma expressão amável e perplexa. - Quero ir com ele - disse eu, fazendo uma nova tentativa para entrar na ambulância. A colcha caiu-me aos pés.

Ele abanou a cabeça. - Não - disse. Fez um gesto, e o maqueiro fechou as portas.

- Deus nos perdoe! - murmurei. Embrulhada na manta, comecei a descer a Schoonder Street, afastando-me da multidão. Já quase chegara à esquina quando a mulher-polícia veio a correr atrás de mim.

- Agora tem que ir para casa! - ordenou-me.

- Isso já não é a minha casa - respondi num acesso de fúria, e continuei a andar. Ela agarrou-me o braço; eu sacudi-a.

- Sy's van haar kop af- comentou ela, sem se dirigir a ninguém em particular, e desistiu.

Na Buitenkant Street, debaixo do viaduto, sentei-me a descansar. Os automóveis passavam numa corrente contínua, em direcção ao centro da cidade. Ninguém olhava para mim. Com o meu cabelo desgrenhado e a minha colcha cor-de-rosa, talvez na Schoonder Street fosse um espectáculo digno de se ver; aqui, no meio do entulho e do lixo, limitava-me a fazer parte do país de sombras da cidade.

Um homem e uma mulher passaram a pé no outro lado da rua. Pareceu-me reconhecer a mulher. Seria a mesma que Vercueil levara lá a casa, ou teriam todas as mulheres que vagueavam nas imediações do Hotel Avalon e da loja de bebidas de Solly Kramer umas pernas assim, mirradas, fininhas como patas de aranha? O homem, que levava ao ombro um saco de plástico atado com vários nós, não era Vercueil.

Embrulhei-me melhor na colcha e deitei-me no chão. Sentia nos ossos o roncar do trânsito no viaduto. Os comprimidos estavam em casa, a casa noutras mãos que não as minhas. Conseguiria eu sobreviver sem os comprimidos? Não. Mas quereria sobreviver? Começava a sentir a tranquila indiferença de um velho animal que, sentindo avizinhar-se a sua hora, se arrasta, gelado e apático, para a cova na terra onde tudo se reduzirá ao lento pulsar de um coração. Atrás de um pilar de cimento armado, num sítio onde havia trinta anos não chegava um raio de sol, deitei-me, encolhida, sobre o meu lado são, escutando o latejar da dor, que se confundia com o latejar do meu pulso.

Devo ter adormecido. Deve ter passado algum tempo. Quando abri os olhos estava uma criança ajoelhada ao pé de mim, a procurar qualquer coisa por baixo das dobras da colcha. Passou a mão pelo meu corpo. «Não tenho nada para ti», tentei dizer, mas a minha dentadura estava solta. Dez anos, no máximo, o crânio rapado, pé descalço e um olhar implacável. Atrás dele, dois companheiros ainda mais novos. Tirei a dentadura e disse:

- Deixem-me em paz. Estou doente, vou-vos pegar a doença.

Bateram lentamente em retirada e, como um bando de corvos, ficaram à espera.

Precisava de esvaziar a bexiga. Desistindo de oferecer resistência, urinei mesmo onde estava. Graças a Deus pelo frio, pensei, graças a Deus por este torpor: tudo contribui para facilitar o parto.

Os rapazes tornaram a aproximar-se. Esperei pelo contacto das suas mãos indiscretas, já sem me importar. O rugido dos automóveis embalava-me; qual larva numa colmeia, deixei-me embeber no zunido do mundo fervilhante à minha volta. O ar denso de burburinho. Milhares de asas a passar para cá e para lá, sem se tocarem. Como é que havia espaço para todas? Como é que há espaço nos céus para as almas dos defuntos? É porque elas se dissolvem umas nas outras, diz Marco Aurélio: ardem e dissolvem-se, sendo assim devolvidas ao grande ciclo.              

A morte depois da morte. Cinza de abelha.

Puxaram a ponta da colcha que me tapava a cabeça. Senti a luz a bater-me nas pálpebras, e um friozinho nas faces por onde tinham corrido as lágrimas. Meteram-me à força uma coisa na boca, entre as gengivas. Engasguei-me e desviei a cara. Os três miúdos estavam agora debruçados sobre mim, naquele recanto sombrio; talvez não fossem só três, talvez houvesse outros atrás deles. Que estavam a fazer? Tentei empurrar aquela mão, mas senti-a carregar ainda com mais força. Saiu-me da garganta um som desagradável, como um ranger de madeira rachada. A mão retirou-se. Comecei a dizer «Não...», mas tinha a garganta dorida, não conseguia articular as palavras.

Que queria eu dizer? Não façam isso! Não vêem que eu não tenho nada? Não têm piedade? Que absurdo. Porque havia de existir piedade neste mundo? Pensei nos besouros, nesses grandes besouros pretos, de dorso corcovado, moribundos, a espernear debilmente, e nas formigas que os submergem, roendo as partes moles, as articulações, os olhos, arrancando a carne do besouro.

Fora apenas um pau, um pauzinho com duas ou três polegadas de comprido, que ele me enfiara na boca. Senti o gosto dos grãos de terra que o pau me deixara na língua.

Com a ponta do pau, levantou-me o lábio superior. Desviei a cara e tentei cuspir. Ele levantou-se, impassível. Deu um pontapé na terra com o pé descalço, e uma pequena chuva de pó e de saibro atingiu-me no rosto.

Passou um carro, desenhando com os faróis a silhueta dos miúdos. Iam já a descer a Buitenkant Street. Tornou a ficar escuro.

Estas coisas aconteceram realmente? Aconteceram, sim. Não há mais nada a dizer sobre o assunto. Aconteceram mesmo ao pé de Breda Street e de Schoonder Street e de Vrede Street, onde há um século os patrícios da Cidade do Cabo mandaram erigir espaçosas casas para si próprios e para a sua descendência até ao fim dos tempos, longe de antever o dia em que as galinhas viriam procurar abrigo nessas casas.

Invadira-me a cabeça uma névoa, uma confusão pardacenta. Tremia de frio; dei por mim a bocejar vezes sem conta, num verdadeiro paroxismo. Durante algum tempo, não estive em parte nenhuma.

Depois senti uma criatura a cheirar-me a cara: um cão. Tentei enxotá-lo, mas o nariz do bicho abriu caminho por entre os meus dedos. Por isso cedi, pensando: há coisas piores que o focinho molhado de um cão, que o seu bafo ansioso. Deixei-o lamber-me a cara, lamber-me os lábios, lamber o sal das minhas lágrimas. Uma espécie de beijos, se quisesse vê-los dessa forma.

Alguém acompanhava o cão. Terei reconhecido o cheiro? Seria Vercueil, ou cheirariam todos os vagabundos a folhas carcomidas, a roupa interior meia podre, apanhada numa lixeira? «Mr Vercueil?», grasnei, e o cão latiu, excitadíssimo, espirrando-me em cheio na cara.

Ouvi riscar um fósforo. Sim, era Vercueil, com o seu chapéu e tudo o mais.

- Quem é que a trouxe para aqui? - perguntou.

- Fui eu - respondi, a língua a tocar no céu da boca ferido. A chama do fósforo apagou-se. Vieram de novo as lágrimas, que o cão sorveu avidamente.

Com as suas omoplatas salientes e o seu peito magro, de gaivota, nunca teria pensado que Vercueil fosse tão forte. Mas pegou em mim, sem se importar com a mancha de urina, e carregou comigo ao colo. Pensei: há quarenta anos que um homem não me pega ao colo. Azares de uma mulher alta. Será assim que termina a história - uns braços fortes a transportar-me através do areal, rebentação adentro, para além das vagas, até aos negros abismos?

Estávamos cada vez mais longe do viaduto, num silêncio abençoado. Como tudo se tornava de repente mais suportável! Que era feito das dores? O bom humor tê-las-ia também contagiado?

- Não volte para a Schoonder Street - ordenei-lhe. Passámos sob a luz de um candeeiro. Vi-lhe os músculos do pescoço contraídos, a respiração descompassada.

- Poise-me agora um minuto - disse eu. Ele poisou-me no chão e descansou. Faltaria muito para lhe cair dos ombros o casaco, para lhe nascer nas costas um grande par de asas?

Subiu comigo ao colo a Buitenkant Street, atravessou a Vrede Street, a rua da paz, e, caminhando mais devagar, tenteando a cada passo o chão que pisava, meteu, no escuro, por um terreno arborizado. Avistei as estrelas por entre os ramos.

Tornou então a poisar-me.

- Que bom voltar a vê-lo - disse eu, com palavras que me vinham direitas do coração, palavras sentidas. E depois: - Fui atacada por uns miúdos antes de você chegar. Atacada ou violada ou explorada, não sei bem. Por isso é que me exprimo de uma forma tão estranha. Meteram-me um pau na boca, ainda agora não percebo porquê. Que prazer teriam em me fazer aquilo?

- Queriam os seus dentes de ouro - disse ele. - Dão-lhes dinheiro pelo ouro nas lojas de penhores.

- Dentes de ouro? Que estranho. Não tenho dentes de ouro nenhuns. Até tirei a dentadura. Tenho-a aqui.

Apanhou algures, no escuro, um bocado de cartão, um caixote de papelão achatado. Desdobrou-o e ajudou-me a deitar-me. Depois, sem pressas, sem cerimónias, deitou-se também, virando-me as costas.

O cão instalou-se entre as nossas pernas.

- Quer um bocado da colcha? - perguntei.

- Estou bem assim. O tempo foi passando.

- Peço desculpa, mas estou com uma sede terrível - murmurei. - Não há água por aqui?

Ele levantou-se e voltou com uma garrafa. Cheirei-a: vinho doce, a garrafa cheia até meio.

- Não tenho mais nada - disse ele.

Bebi tudo. A sede não se atenuou, mas as estrelas, no céu, puseram-se a dançar. Tudo se fez distante: o cheiro da terra húmida, o homem a meu lado, o meu próprio corpo. Como um caranguejo exausto, recolhendo as tenazes após um longo dia de trabalho, até a dor adormeceu. Tornei a mergulhar nas trevas.

Quando acordei, já ele se tinha virado, passando-me um braço por cima do pescoço. Eu podia ter-me soltado, mas preferi não o incomodar. E assim, enquanto a pouco e pouco despertava o novo dia, deixei-me estar virada para ele, cara a cara, sem me mexer. Os olhos dele abriram-se de repente, olhos alerta, como os de um animal.

- Ainda aqui estou - murmurei. Os olhos tornaram a fechar-se. Pensei: de todas as criaturas da terra, qual é a que neste instante

melhor conheço? Ele. Cada pêlo da sua barba, cada ruga da sua testa me são familiares. Ele e não tu. Porque ele está aqui, a meu lado, agora.

Desculpa-me. O tempo urge, tenho que fazer fé no meu coração e dizer a verdade. Cega, ignorante, sigo a verdade até onde ela me levar.

- Está acordado? - perguntei, num murmúrio.

- Estou.

- Agora estão os dois mortos, os rapazes - disse eu. - Mataram-nos aos dois. Já sabia?          

- Sabia.        

- Sabe do que aconteceu lá em casa?

- Sei.                                                                                

- Se eu falar incomodo-o?

- Fale.

- Vou-lhe contar: conheci o irmão da Florence no dia em que o Bheki morreu - irmão, ou primo, ou coisa que o valha. Um homem instruído. Disse-lhe que só queria que o Bheki não se tivesse metido na... que nome hei-de dar-lhe? Na luta. «Ainda é uma criança», disse eu. «Não está preparado. Se não fosse aquele amigo dele, nunca se teria deixado envolver.»

«Depois falei com ele pelo telefone. Disse-lhe honestamente o que pensava da camaradagem pela qual esses dois miúdos agora morreram. Chamei-lhe mística da morte. Censurei as pessoas como ele e a Florence, que nada faziam para os desencorajar.

«Ele ouviu-me educadamente. Que sim senhor, que tinha direito a ter as minhas opiniões. Não o fiz mudar de ideias.

«Mas agora pergunto a mim própria: que direito tenho eu de opinar sobre a camaradagem ou sobre o que quer que seja? Que direito tenho eu de desejar que Bheki e o amigo não se tivessem metido em sarilhos? Acho que ter opiniões no vácuo, opiniões que não afectam ninguém, é o mesmo que coisa nenhuma. As opiniões têm que ser ouvidas pelos outros, ouvidas e ponderadas, e não apenas escutadas por cortesia. E para serem ponderadas têm que ter peso. Mr. Thabane não pondera o que eu digo. Para ele o que eu digo não pesa. A Florence nem sequer me ouve. O que se passa na minha cabeça é-lhe absolutamente indiferente, bem sei.»

Vercueil levantou-se, foi urinar atrás de uma árvore. Depois, para minha surpresa, veio deitar-se outra vez. O cão aninhou-se contra ele, focinho entre as suas pernas. Toquei com a língua o sítio ferido no céu da boca, provando o sangue.

- Não mudei de ideias continuei. - Continuo a detestar esses apelos ao sacrifício que deixam rapazes a esvair-se em sangue na lama até à morte. A guerra nunca é o que afirma ser. Quando raspamos o verniz encontramos invariavelmente velhos que enviam jovens para a morte em nome desta ou daquela abstracção. Diga Mr. Thabane o que disser (não o estou a censurar, o futuro chega embuçado, se chegasse nu ficaríamos petrificados com o que nos espera), não deixa de ser uma guerra em que os velhos comandam os novos. Liberdade ou morte!, gritam Bheki e os seus amigos. De quem são essas palavras? Deles não são. Tenho a certeza de que as duas rapariguitas também já ensaiam em sonhos o seu «Liberdade ou morte!» E sinto ganas de dizer: Não! Salvem as vossas vidas!

«Qual é a verdadeira voz da sabedoria, Mr. Vercueil? Julgo que é a minha. Mas quem sou eu, quem sou eu para ter voz? Como posso honestamente incitá-los a virar costas a esse chamamento? Que direito tenho eu de fazer outra coisa senão sentar-me a um canto, de boca fechada? Não tenho voz; perdi-a há muito tempo; talvez nunca tenha sequer chegado a tê-la. Não tenho voz, acabou-se. O resto deveria ser silêncio. Mas com este não sei quê, esta voz que não é uma voz, continuo a falar. Não me calo.»

Estaria Vercueil a sorrir? Tinha a cara escondida. Num murmúrio empastelado de sibilantes, continuei a falar.

- Há muito tempo, foi cometido um crime. Há quanto tempo? Não sei. Mas tenho a certeza de que foi antes de 1916. Há tanto tempo que já se dera quando eu nasci. Faz parte da minha herança. Faz parte de mim, eu faço parte dele.

«Como todos os crimes, teve o seu preço. Pensava eu que esse preço teria de ser pago em vergonha: numa vida de vergonha e numa morte vergonhosa, a um canto obscuro, uma morte que ninguém lamentaria. E aceitei que assim fosse. Não tentei incluir-me numa categoria à parte. Embora eu não tivesse pedido a ninguém para cometer esse crime, era um crime cometido em meu nome. Enfureci-me às vezes contra os homens que faziam o trabalho sujo - como você viu, um furor tão estúpido como o gesto que me enfurecia - mas, ao mesmo tempo, aceitei o facto de que eles viviam, em certo sentido, dentro de mim. Por isso quando, nas minhas fúrias, lhes desejava a morte, era também a minha própria morte que desejava. Em nome da honra. De uma ideia honrosa da honra. Honesta mors.

«Não faço ideia do que seja a liberdade, Mr. Vercueil. Tenho a certeza de que o Bheki e o amigo também não faziam ideia. Talvez a liberdade seja sempre e só o inimaginável. Em contrapartida, reconhecemos à primeira vista a íliberdade, não é? Bheki não era livre, e sabia que o não era. Você não é livre, pelo menos neste mundo, e eu também não. Nasci escrava e vou com toda a certeza morrer escrava. Uma vida agrilhoada, uma morte agrilhoada: ambas as coisas fazem parte do preço que temos de pagar sem regateios nem lamúrias.

«O que eu não sabia, sim, o que eu não sabia - escute agora com atenção! - era que o preço é ainda mais alto. Fiz mal os meus cálculos. E onde foi que errei? O erro tinha que ver com a honra, com essa ideia a que sempre me agarrei, para o melhor e para o pior, essa ideia que a minha educação e as minhas leituras me transmitiram, e segundo a qual a alma do homem honrado é inviolável. Sempre me bati pela honra, por uma honra pessoal, tomando por guia a vergonha. Enquanto sentisse vergonha, sabia que não me perdera nos caminhos da desonra. Era essa a utilidade da vergonha: uma pedra de toque, algo que estaria sempre presente, algo a que poderia voltar, que poderia tocar, como os cegos, para saber onde estava. A maior parte do tempo, guardava as devidas distâncias em relação à minha vergonha. Não me rebolava nela. A vergonha nunca se tornou um prazer vergonhoso; nunca deixou de me atormentar. Não tinha orgulho nela, tinha vergonha. A minha vergonha, uma vergonha só minha. A boca cheia de cinzas, dia após dia após dia, cinzas que nunca deixaram de me saber a cinzas.

«É uma confissão que hoje estou aqui a fazer, Mr. Vercueil - continuei -, a confissão mais completa de que sou capaz. Não guardo segredos. Confesso sem rebuço que sempre fui boa pessoa. Ainda hoje o sou. Que tempos estes, em que ser boa pessoa já não basta! «O que eu não calculei foi que viesse a ser-me exigido mais do que ser boa. Porque este país está cheio de boas pessoas. Somos mais que muitos, nós, os bons e os quase bons. O que o nosso tempo exige é uma coisa bem diferente da bondade. Exige heroísmo. Uma palavra que os meus lábios pronunciam como se fosse estrangeira. Duvido de que alguma vez a tenha usado, mesmo nas aulas. Porquê? Talvez por respeito. Talvez por vergonha. Como baixamos os olhos na presença de um homem nu. Penso que numa aula teria preferido falar de condição heróica. O herói e a sua condição heróica. O herói, essa figura nua da Antiguidade.»

Da garganta de Vercueil escapou-se um sonoro gemido. Estiquei o pescoço, mas só consegui ver-lhe o queixo com a barba por fazer e uma orelha peluda. Murmurei:

- Mr. Vercueil!

Ele não se mexeu. Dormia? Fingia dormir? A partir de que ponto deixara de me ouvir? Teria ouvido o que eu dissera sobre a bondade e o heroísmo? Sobre a honra e a vergonha? Poderá ser verdadeira uma confissão verdadeira que ninguém ouve? E tu, estás a ouvir-me ou também te adormeci?

Fui urinar atrás de uma moita. A toda a minha volta cantavam pássaros. Quem havia de imaginar que existisse tamanha profusão de aves nos subúrbios! Era como a Arcádia. Não admirava que Vercueil e os seus amigos vivessem ao relento. Para que serve um tecto senão para nos resguardar da chuva? Vercueil e os seus camaradas.

Deitei-me outra vez a seu lado, os pés gelados e cobertos de lama. Era já dia claro. Quem quer que passasse poderia ver-nos ali estendidos, naquele baldio, em cima de um caixote de papelão desmantelado. Assim devemos ser aos olhos dos anjos: gente a viver em casas de vidro, gente nua em cada gesto que faz. Nus também os nossos corações, pulsando em peitos de vidro. O canto das aves era como uma chuva que sobre nós se derramasse.

- Hoje sinto-me incomparavelmente melhor - disse eu. - Mas talvez devêssemos voltar para casa. Quando me sinto melhor, geralmente, é sinal de que vou piorar.

Vercueil soergueu-se, tirou o chapéu, coçou a cabeça com as unhas compridas e sujas. O cão apareceu não sei de onde, a saltitar, e pôs-se a pular à nossa volta. Vercueil dobrou o cartão e escondeu-o no meio dos arbustos.

- Sabe que me tiraram um peito? - disse eu sem mais nem menos. Ele mexeu-se nervosamente, pouco à vontade.

- Agora tenho pena, é claro. Pena de estar marcada. É como tentar vender um móvel com um arranhão ou uma queimadela. A cadeira ainda está em óptimo estado, dizemos nós, mas as pessoas não se interessam por ela. As pessoas não gostam de objectos marcados. Estou a falar da minha vida. Poderá não ser excelente, mas ainda é uma vida e não uma semi-vida. Pensei que podia vendê-la ou gastá-la para salvar a minha honra. Mas quem é que ma aceita no estado em que está? É como tentar gastar um dracma. Uma moeda absolutamente válida noutro lugar, mas não aqui. As marcas que traz são suspeitas.

«Mas ainda não desisti por completo. Ainda ando a ver o que hei-de fazer com ela. Tem alguma sugestão a fazer?»

Vercueil pôs o chapéu, enterrando-o na cabeça com um puxão à frente e atrás.

- Adorava comprar-lhe um chapéu novo - disse eu.

Ele sorriu. Dei-lhe o braço; metemos devagar pela Vrede Street.

- Deixe-me contar-lhe o sonho que tive - disse eu. - O homem do sonho não tinha chapéu, mas acho que era você. Tinha um cabelo comprido, oleoso, todo penteado para trás. - Comprido e oleoso; e também sujo, caindo atrás em feias farripas; mas isto não lho disse a ele.

- Estávamos na praia. Ele ensinava-me a nadar. Segurava-me as mãos e puxava-me mar adentro, enquanto eu, toda esticada, batia os pés. Eu trazia um fato de malha, do género dos que se usavam antigamente, azul-marinho. Ainda era criança. Mas também nos sonhos somos sempre crianças.

«Ele puxava-me para fora, recuando mar adentro, fixando-me com

os olhos. Tinha uns olhos como os seus. Não havia ondas, só uma

ondulaçãozinha que se aproximava, faiscante de luz. De facto, a água também era oleosa. Onde o corpo dele emergia da superfície, o óleo agarrava-se-lhe à pele, com o brilho espesso que o óleo tem. Pensei para comigo: óleo de sardinhas; eu sou a sardinha pequenina: ele está-me a levar para dentro do óleo. Quis dizer Volte para trás, mas não me atrevia a abrir a boca, com receio de que o óleo entrasse e me inundasse os pulmões. Afogar-me em óleo: não tinha coragem para tanto.»      

Calei-me para lhe dar ensejo de dizer alguma coisa, mas ele ficou calado. Dobrámos a esquina e entrámos na Schoonder Street.

- Claro que não lhe estou a contar este sonho inocentemente - disse eu. - Quando narramos um sonho queremos sempre alguma coisa. A questão está em saber o quê. Aquele primeiro dia em que o vi atrás da garagem foi o dia em que recebi a má notícia a meu respeito, a respeito do meu caso. Perguntei a mim própria se você não seria, desculpe-me a palavra, um anjo vindo para me indicar o caminho. Claro que não era, não é, não pode ser - bem vejo que não. Mas isto é só metade da história, não é? Metade do que sentimos é percepção, a outra metade é criação nossa.

«Por isso continuei a contar a mim própria histórias em que você me serve de guia. E se você nada diz, digo a mim própria que é porque o anjo é mudo. O anjo vai à frente, a mulher atrás. Ele tem os olhos abertos, vê tudo; os dela estão fechados, vai mergulhada ainda no sono deste mundo. É por isso que constantemente me viro para si em busca de orientação, de auxílio.»

A porta da frente estava fechada, mas o portão do quintal abriu-se ao primeiro empurrão. Não tinham apanhado os vidros partidos, a porta do quarto de Florence estava pendurada de esguelha. Baixei os olhos, avançando pé ante pé, ainda incapaz de olhar para dentro do quarto, ainda sem forças.

A porta da cozinha não estava trancada. Não tinham encontrado a chave.

- Entre - disse eu a Vercueil.

A casa estava e não estava como antes. As coisas, na cozinha, estavam fora do seu lugar. Vi o meu guarda-chuva pendurado num sítio onde nunca o pendurara. Tinham arrastado o sofá, revelando, no tapete, uma nódoa antiga. E, a pairar sobre tudo isto, um estranho cheiro: não só a fumo de cigarro e a suor, mas a qualquer coisa acre e penetrante que não consegui situar. Deixaram a sua marca em tudo, pensei: trabalhadores eficientes. Lembrei-me então da pasta em cima da minha secretária, da carta, de todas as páginas já escritas. Até isso! Pensei: até isso eles devem ter examinado! Dedos impuros a virar as páginas, olhos sem amor a percorrer as palavras nuas.

- Ajude-me a ir lá a cima - pedi a Vercueil.

A pasta, que eu deixara aberta da última vez que escrevi, estava fechada. A fechadura do ficheiro fora arrombada. Havia hiatos nas estantes.

Forçadas também as fechaduras das duas divisões desocupadas.

Tinham revistado o roupeiro, as gavetas da cómoda.

Nada ficara intocado. Como na última visita dos assaltantes. A busca como mero pretexto. O verdadeiro propósito: tocar, manipular. Tocar com malevolência. Como o estupro: uma forma de conspurcar uma mulher.

Virei-me para Vercueil, sem palavras, agoniada.

- Está alguém lá em baixo - disse ele. Do patamar da escada, ouvimos alguém falar ao telefone.

A voz calou-se. Um jovem fardado apareceu no corredor e cumprimentou-nos com um aceno de cabeça.

- O que é que está a fazer na minha casa? - perguntei lá de cima.

- Estou só a inspeccionar - respondeu ele alegremente. - Não queremos que entrem aqui estranhos. - Pegou num boné, num casaco, numa espingarda. Teria sido o cheiro da espingarda que eu sentira? - Os detectives ficaram de passar por cá às oito horas - disse. - Eu espero lá fora. - E sorriu; parecia convencido de que me fizera um favor; parecia esperar que eu lhe agradecesse.

- Tenho que tomar um banho - disse eu a Vercueil.

Mas não tomei banho. Fechei a porta do quarto, tomei dois comprimidos vermelhos e deitei-me, a tremer dos pés à cabeça. O tremor agravou-se, sacudindo-me como uma folha seca em plena tempestade. Sentia frio, mas o tremor não era do frio.

Um minuto de cada vez, disse para comigo: não te vás agora abaixo; pensa só no minuto que vem. O tremor começou a abrandar.

O homem, pensei: a única criatura cuja existência se situa em parte no desconhecido, no futuro, como uma sombra projectada para diante. Tentando constantemente apanhar essa sombra movediça, habitar a imagem da sua esperança. Mas eu - eu não posso dar-me ao luxo de ser humana. Tenho que ser uma coisa mais pequena, mais cega, mais rente ao chão.

Bateram à porta e Vercueil entrou, seguido do polícia que ontem trazia a camisola das renas e agora vinha de fato e gravata. O tremor recomeçou. O polícia fez sinal a Vercueil para sair do quarto. Sentei-me na cama.

-- Não se vá embora, Mr. Vercueil - disse eu; e, para o polícia: - Que direito tem o senhor de entrar em minha casa?

- Estávamos preocupados consigo. - Não me pareceu nada preocupado. - Onde é que passou a noite? - E depois, ao ver que eu não respondia: - Tem a certeza de que fica bem aqui sozinha, Mrs. Curren?

Cerrei os punhos, mas o tremor agravou-se até me deixar convulsa. Gritei-lhe:

- Eu não estou sozinha! O senhor é que está sozinho!

Ele não se desconcertou. Pelo contrário, parecia encorajar-me a continuar.

Vê se te controlas!, pensei. Ainda te internam, dão-te como louca e levam-te para o hospital!

- O que é que o senhor pretende? - perguntei, já mais calma.

- Só lhe quero fazer umas perguntas. Como é que conheceu este rapaz, este Johannes?

Johannes: seria o nome verdadeiro dele? Certamente que não.

- Era amigo do filho da minha empregada. Colega da escola. ;   O polícia tirou do bolso um pequeno gravador e poisou-o na cama, ao meu lado.

- E onde está o filho da sua empregada?

- Está morto e enterrado. O senhor sabe disso com certeza.

- O que é que lhe aconteceu?

- Foi morto a tiro nos Flats.

- E além destes dois rapazes, conhece mais alguns?

- Mais alguns quê?

- Mais alguns amigos.

- São milhares. Milhões. Tantos que não se podem contar.

- Quero dizer, mais elementos da mesma célula. Mais alguém se serviu da sua casa?

- Não.            

- E sabe como é que as armas lhes foram parar às mãos?

- Que armas?

- Uma pistola. Três detonadores.

- Dos detonadores não sei nada. Nem sei o que é um detonador. A pistola era minha.

- Eles tiraram-lha?

- Fui eu que lhes emprestei a pistola. Lhes, não. Emprestei-a a este rapaz, ao John.

- Emprestou-lhe a pistola? E a pistola era sua?

- Era.                  

- Porque é que lha emprestou?         - Para ele se defender.  

- Para se defender de quem, Mrs. Curren?

- Para se defender de quem o atacasse.

- E que tipo de pistola era, Mrs. Curren? Pode-me mostrar a licença?

- Não percebo nada de tipos de pistolas. Já a tenho há imenso tempo, muito antes desta mania das licenças já eu a tinha.

- Tem a certeza de que lha deu? Não sei se sabe, mas estamos a falar de um crime passível de a levar a tribunal.

Os comprimidos começavam a fazer efeito. A dor nas costas tornou-se mais distante, relaxaram-se-me os braços e as pernas, o horizonte começou de novo a dilatar-se.

- Quer mesmo continuar com este interrogatório absurdo? - perguntei. Recostei-me na almofada e fechei os olhos. Tinha a cabeça a andar à roda. - Estamos a falar de pessoas mortas. Já não há mais nada que lhes possam fazer. Estão a salvo. Já os executaram. Um julgamento, agora, para quê? Porque é que não dão o caso por encerrado?

Ele pegou no gravador, mexeu em vários botões, tornou a poisá-lo na almofada.

- Estava só a verificar - explicou.

Com o braço entorpecido, empurrei o gravador para fora da cama. O polícia agarrou-o antes que caísse no chão.

- Andaram a mexer nos meus papéis particulares - disse eu. - Levaram livros que me pertencem. Quero-os de volta. Quero tudo de volta. As minhas coisas todas. Não é nada que vos diga respeito.

- Nós não lhe vamos comer os livros, Mrs. Curren. Havemos de lhe devolver tudo, a seu tempo.

- Não quero que me devolvam as minhas coisas a seu tempo. Quero-as agora. São minhas. São particulares.

Ele abanou a cabeça.

- Isto não é um assunto particular, Mrs. Curren. A senhora bem sabe que não é. Nos tempos que correm, já nada é particular.

O torpor estava agora a chegar-me à língua.

- Vá-se embora - pedi-lhe em voz empastelada.

- Só mais umas perguntas. Onde é que esteve ontem à noite?

- Com Mr. Vercueil.

- Mr. Vercueil é este homem?

Abrir os olhos exigia um esforço demasiado grande.

- É - murmurei.

- Quem é Mr. Vercueil? - E depois, num tom já muito diferente: - Wie is jy?

- Mr. Vercueil cuida de mim. Mr. Vercueil é o meu braço direito. Chegue aqui, Mr. Vercueil.

Estendi a mão e encontrei uma perna das calças de Vercueil, depois a mão dele, a mão doente, a dos dedos encolhidos. Apertei-lha com força, como fazem os velhos, a minha mão dormente feita garra.

- In Godsnaam - disse o polícia algures, lá muito ao longe. Santo Deus: simples pasmo, ou uma maldição lançada sobre nós dois? A garra afrouxou a sua pressão; senti-me deslizar para longe.

Surgiu-me diante dos olhos uma palavra: Thabanchu, Thaba Nchu. Tentei concentrar-me. Nove letras, um anagrama de quê? Com grande esforço, coloquei o b no princípio. Depois sucumbi ao sono.

Acordei com sede, atordoada, cheia de dores. Tinha à minha frente o mostrador do relógio, mas não consegui decifrar a posição dos ponteiros. A casa estava em silêncio, o silêncio das casas abandonadas.

Thabanchu: banch? banho? Com as mãos embrutecidas, libertei-me do lençol. Preciso de tomar um banho?

Mas os pés não me levaram à casa de banho. Agarrando-me ao corrimão, toda curvada, a gemer com dores, desci ao rés-do-chão e marquei o número de Guguletu. O telefone chamou e tornou a chamar. Depois, finalmente, alguém atendeu, uma criança, uma rapariga.

- Mr. Thabane está? - Não.

- Nesse caso, posso falar com Mrs. Mkubuleki... não, não é Mrs. Mkubuleki, é Mrs. Mkubukeli.

- Mrs. Mkubukeli não mora aqui;

- Mas conheces Mrs. Mkubukeli, não conheces?

- Conheço-a, sim.

- Mrs. Mkubukeli?

- Sim.            

- Tu quem és?

- Sou a Lily.

- Não está mais ninguém em casa?  

Só a minha irmã.

- Que idade tem a tua irmã?      

- Seis anos.  

- E tu, que idade tens?

- Tenho dez.

- Podes dar um recado a Mrs. Mkubukeli, Lily ?

- Posso.

- É sobre o irmão dela, Mr. Thabane. Ela que diga a Mr. Thabane para ter cuidado. Diz-lhe que é muito importante. Mr. Thabane tem que tomar cuidado. O meu nome é Mrs. Curren. Importas-te de tomar nota? E este é o meu número de telefone. Ditei-lhe o número de telefone, soletrei o meu nome. Mrs. Curren: nove letras, anagrama de quê?    

 

Vercueil bateu à porta e entrou, perguntando:

- Quer comer alguma coisa?

- Não tenho fome. Mas sirva-se à vontade do que encontrar. Queria que me deixassem em paz. Mas ele demorou-se no quarto,

mirando-me com curiosidade. Eu estava sentada na cama, luvas calçadas, o caderno nos joelhos. Havia meia hora que estava sentada com a folha em branco à minha frente.

- Estou só à espera de sentir as mãos quentes - expliquei.

Mas não eram os dedos enregelados que me impediam de escrever. Eram os comprimidos, que agora tomo em maior número, e com mais frequência. São como granadas de fumo. Engulo-os, e eles libertam dentro de mim uma névoa que tudo extingue. Não posso tomar os comprimidos e continuar a escrever. Portanto sem dor, não há escrita: uma nova e terrível regra. Quando tomo os comprimidos, porém, já nada é terrível, todas as coisas se tornam indiferentes, iguais umas às outras.

Apesar de tudo, vou escrevendo. A altas horas da noite, enquanto Vercueil dorme lá em baixo, retomo esta carta para te dizer mais uma coisa acerca desse «John», desse rapaz taciturno a quem nunca me afeiçoei. Quero dizer-te que, apesar da aversão que lhe tinha, ele está comigo mais claramente, mais intensamente do que o Bheki alguma vez conseguiu estar. Está comigo ou eu estou com ele: com ele ou com a sua sombra. É noite escura, mas é também o dealbar cinzento da derradeira manhã da sua vida. Estou aqui na minha cama, mas estou também no quarto de Florence, com a sua janela única, a sua única porta e nenhuma outra saída. Atrás da porta, emboscados como caçadores, estão homens à espera de brindarem o rapaz com a sua morte. Ele tem no regaço a pistola que, por enquanto, impede os caçadores de avançarem, que era o seu grande segredo, seu e do Bheki, que ia torná-los homens; e eu estou de pé a seu lado, ou pairo no ar junto dele. Tem o cano da pistola entre os joelhos, e afaga-o com os dedos, para cima e para baixo. Escuta o murmúrio das vozes lá fora, e eu escuto com ele. Prepara-se para o fumo que lhe invadirá os pulmões, para o pontapé que arrombará a porta, para a torrente de fogo que o levará. Prepara-se para erguer nesse instante a pistola e para disparar o único tiro que terá tempo de disparar, direito ao coração da luz.

Não pestaneja sequer, de olhos postos na porta por onde vai deixar este mundo. Tem a boca seca, mas não sente medo. O coração bate compassadamente no seu peito, como um punho que alternada-mente se fechasse e se abrisse.

Tem os olhos abertos, e eu, embora esteja a escrever, tenho os meus fechados. Tenho os olhos fechados para conseguir ver.

Neste intervalo não há tempo, embora o coração dele esconda o tempo. Estou aqui no meu quarto, em plena noite, mas estou também com ele, constantemente, como estou contigo além-mar, pairando no espaço.

Um tempo que paira, mas não a eternidade. Um por agora, uma suspensão, antes do regresso do tempo em que a porta se abre de rompante e enfrentamos ambos, primeiro ele, depois eu, o grande clarão branco.

 

Tive um sonho com Florence, um sonho ou uma visão. No sonho vejo-a descer de novo a Government Avenue, de mão dada a Hope e com Beauty às costas. Vêm as três de cara mascarada. Eu também lá estou, no meio de um magote de gente de toda a espécie e condição. A atmosfera é festiva. Vou dar início ao meu espectáculo.

Mas Florence não pára para ver. Sem sequer desviar os olhos, passa como se atravessasse uma congregação de fantasmas.

Os olhos da sua máscara são como os olhos das pinturas do Mediterrâneo antigo: grandes, ovais, com a pupila ao centro: os olhos amendoados de uma deusa.

Estou no meio da Avenida, diante do edifício do Parlamento, rodeada de gente, fazendo as minhas habilidades com o fogo. Grandes carvalhos estendem os ramos por sobre a minha cabeça. Mas não consigo concentrar-me nas minhas habilidades. Estou atenta a Florence. O seu casaco escuro, o seu vestido baço desapareceram. De túnica branca enfunada pelo vento, pés descalços, cabeça descoberta, seio direito a descoberto, passa de largo, com uma das filhas, mascarada, nua, a saltitar a seu lado, a outra de braço estendido por sobre o seu ombro, apontando.

Quem é esta deusa.que aparece numa visão, fendendo o ar com o seio desnudado? É Afrodite, mas não a Afrodite sorridente, padroeira dos prazeres: uma figura mais velha, uma figura de angústia, de gritos no escuro, breves e estridentes, de sangue e terra, surgindo por um instante, dando-se a ver, passando.

A deusa não chama, não faz um sinal. Tem os olhos abertos e vazios. Vê e não vê.

E eu, ali a arder, fazendo o meu número, fico paralisada. As chamas que brotam de mim são azuis como o gelo. Não sinto dores.

E uma visão do tempo de sonho de ontem à noite, mas também de um tempo fora do tempo. Eternamente passa a deusa; eternamente, petrificada numa atitude de surpresa e pesar, eu não a sigo. Por mais que eu perscrute o vórtice de onde brotam as visões, o trilho da deusa e das deusas suas filhas permanece deserto, não vejo nele a mulher que deveria segui-las, a mulher com serpentes de chamas nos cabelos, que agita os braços e grita e dança.

Contei o sonho a Vercueil.

- É uma história real? - perguntou ele.

- Real? Claro que não. Nem sequer é autêntica. A Florence não tem nada que ver com a Grécia. As figuras dos sonhos têm outro tipo de relevância. São sinais, sinais de outras coisas.

- Mas eram reais? Ela era real? - repetiu ele, interrompendo-me, sem se deixar demover. - Que mais coisas viu?

- Que mais? Há mais alguma coisa? Você sabe? - disse eu mais brandamente, esforçando-me por seguir o curso dos seus pensamentos.

Ele abanou a cabeça, confuso.

- Desde que você me conhece - continuei --, estou na margem do rio à espera da minha vez. Estou à espera de alguém que me mostre como se atravessa. Passam os minutos, passam os dias, e eu aqui à espera. O mais que vejo é isto. Você também vê?

Ele não respondeu.

- A razão por que resisto a voltar para o hospital é que no hospital vão pôr-me a dormir. É o que por misericórdia se faz aos animais, mas a expressão também deveria aplicar-se aos seres humanos. Vão pôr-me a dormir um sono sem sonhos. Vão dar-me a comer man-drágora até que, sonolenta, eu caia ao rio, me afogue e seja arrastada pelas águas. Recuso-me a fazer assim a travessia. Não posso permitir que isso aconteça. Percorri um caminho demasiado longo. Não posso deixar que me fechem os olhos.

- O que é que quer ver? - perguntou Vercueil.        

- Quero vê-lo a si como realmente é. Ele encolheu os ombros, desconfiado.

- Quem sou eu?

- Apenas um homem. Um homem que veio sem ser convidado. Mais do que isso ainda não sei dizer. E você?

Ele abanou a cabeça.

- Também não.

 

- Se quer fazer alguma coisa por mim - pedi -, arranje-me a antena do rádio.

- Não quer que traga antes a televisão cá para cima?

- Não tenho estômago para ver televisão. Fico doente.

- A televisão não a pode pôr doente. São só imagens.

- Não há imagens que sejam «só imagens». Há homens por trás das imagens. Difundem as suas imagens para porem as pessoas doentes. Você sabe muito bem do que eu estou a falar.

- As imagens não podem pôr ninguém doente.

Às vezes ele tem destas coisas: contradiz-me, provoca-me, implica, fica à espera de ver-me dar mostras de irritação. É a sua forma de brincar comigo, tão canhestra, tão desprovida de encanto, que acabo por ficar cheia de pena dele.

- Conserte-me a antena, por favor, não lhe peço mais nada. Ele desceu ao rés-do-chão. Minutos depois tornou a subir, num

grande fragor de passos, com a televisão ao colo. Instalou-a mesmo em frente da cama, acendeu-a, mexeu na antena, desviou-se para o lado. A tarde ia a meio. Contra o céu azul tremulava uma bandeira. Uma banda tocava o hino da República.

- Desligue-me isso - disse eu.

Ele aumentou o som.

- Desligue! - gritei.

Ele virou-se para mim, tomou nota do meu olhar furibundo. Então, para meu grande espanto, começou a dar uns passinhos de dança. Meneando as ancas, estendendo os braços, estalando os dedos, dançou - dançou, sim, indubitavelmente - ao som de uma música que nunca imaginei que pudesse ser dançada. Murmurava também, entredentes, as palavras da letra. Mas que letra vinha a ser aquela? A letra que eu conhecia não era, com toda a certeza.

- Desligue! - tornei a gritar.  

Uma velha, desdentada, furibunda: a minha figura devia meter medo. Ele baixou o som.

- Desligue já isso!

Ele desligou a televisão.

- Vá lá, não se irrite - murmurou.

- Então não seja tonto, Vercueil. E não se ria à minha custa. Não me amesquinhe.

- Mesmo assim, não percebo porque é que se pôs nesse estado.

- Porque tenho medo de ir parar ao inferno e passar a eternidade inteira a ouvir o Die stem.

Ele abanou a cabeça e disse:

- Não se aflija, tudo isto há-de acabar um dia. Tenha paciência.

- Não tenho tempo para ter paciência. Você talvez tenha tempo, mas eu não tenho.

Ele tornou a abanar a cabeça.

- Talvez você também tenha tempo - murmurou, arvorando o seu sorriso eriçado de dentes.

Por um breve instante, foi como se os céus se abrissem, derramando uma torrente de luz. Faminta de boas notícias, ao cabo de uma vida inteira de notícias más, não me contive que não retribuísse o sorriso.

- Acha que sim? - perguntei. Ele acenou com a cabeça. Ficámos ali como dois tontos, a sorrir um para o outro. Ele estalou sugestivamente os dedos; como um mergulhão desajeitado, só penas e osso, repetiu um passo da sua dança. Depois saiu de casa, encostou a escada de mão à parede, uniu as duas pontas do fio partido, e fiquei novamente com o rádio a funcionar.

Mas que havia para ouvir? As ondas de rádio estão hoje tão saturadas dos pregões com que as nações fazem por impingir-nos as suas mercadorias que pouco falta para a música ser banida. Adormeci ao som de Um Americano em Paris e acordei com um tamborilar insistente de morse. De onde viria? De um navio no alto mar? De um velho navio a vapor, fendendo as ondas entre Walvis Bay e a ilha da Ascensão? Os pontos e os traços prosseguiam, sem pressa o sem falhas, num fluxo que prometia continuar até as galinhas terem dentes. Qual seria a mensagem? O que importava isso? Aquele tamborilar, como o da chuva, uma chuva de sentido, reconfortou-me, tornou a noite mais suportável, enquanto eu esperava pela hora de me virar na cama e tomar mais um comprimido.

Digo que não quero que me ponham a dormir. A verdade é que sem sono não resisto. Traga o que mais trouxer, o Diconal traz-me pelo menos o sono ou um simulacro de sono. À medida que a dor recua, que o tempo se apressa, que o horizonte se levanta, a minha atenção, concentrada na dor como uma lente de fogo, pode abrandar por um minuto; posso respirar fundo, abrir as mãos enoveladas, esticar as pernas. Dá graças por esta mercê que te é feita, digo a mim própria: pelo corpo doente atordoado, pela alma sonolenta, meio fora do seu invólucro, começando a flutuar.

Mas a trégua nunca dura muito. Aglomeram-se nuvens, as ideias começam a reunir-se, a ganhar vida, a vida densa e raivosa de 'um enxame de moscas. Abano a cabeça, tentando enxotá-las. Digo: isto é a minha mão, e abro bem os olhos, fitando as veias das costas da minha mão; isto é a colcha. Depois, veloz como o raio, alguma coisa me atinge. Há um instante em que me vou e outro instante em que regresso e vejo que tenho ainda os olhos postos na minha mão. Entre esses dois instantes pode ter passado uma hora ou o tempo de um piscar de olhos, durante o qual estive ausente, longe, lutando contra uma coisa espessa, com consistência de borracha, que me invade a boca e me agarra a língua pela raiz, uma coisa que vem dos abismos do mar. Venho à tona sacudindo a cabeça como um nadador. Tenho na garganta um sabor a fel, a enxofre. Loucura! Digo para mim: é este o sabor da loucura!

Uma vez voltei a mim virada para a parede. Tinha na mão um lápis de bico partido. A parede estava coberta de caracteres esparramados, deslizantes, sem sentido, vindos de mim ou de alguém dentro de mim.

Telefonei ao Dr. Syfret.

- Acho que a minha reacção ao Diconal se está a agravar -   disse eu, e tentei descrevê-la. - Queria saber se não haverá um medicamento alternativo que me possa receitar.

- Não sabia que ainda se considerava minha doente - respondeu o Dr. Syfret. - Devia estar era no hospital, para ser convenientemente tratada. Não posso dar consultas pelo telefone.

- O que eu lhe peço é tão pouca coisa - disse eu. - O Diconal provoca-me alucinações. Não há mais nada que eu possa tomar?

- E eu digo-lhe que não posso tratá-la sem a ver. Não é assim que eu trabalho, nem é assim que trabalha nenhum dos meus colegas.

Fiquei tanto tempo calada que ele deve ter pensado que a ligação se interrompera. A verdade é que me sentia vacilar. Não percebes? Apetecia-me dizer: estou cansada, um cansaço de morte. In manus tuas: entrego-me nas tuas mãos, cuida de mim, ou se não puderes, faz o que for melhor.

- Deixe-me fazer-lhe uma última pergunta - acabei por dizer. - As reacções que eu estou a ter... há mais pessoas a reagir assim?

- Os doentes reagem de maneiras muito diferentes. Mas é possível, sim, que as suas reacções se devam ao Diconal.

- Nesse caso, se porventura mudar de opinião - disse eu -, peço-lhe que telefone para a Farmácia Avalon, na Mill Street, a receitar um medicamento novo. Eu não tenho ilusões quanto ao meu estado, doutor. Não é de tratamento que eu preciso; só preciso de ajuda para combater a dor.

- E se a senhora mudar de opinião e quiser que eu vá vê-la, a qualquer hora do dia ou da noite, Mrs. Curren, basta pegar no telefone.

Uma hora depois tocaram à porta. Era o paquete da farmácia que vinha entregar um fornecimento para duas semanas do novo medicamento.

Telefonei ao farmacêutico, a perguntar:

- Tylox... é a droga mais forte de todas?

- Não estou a perceber.

- Quero dizer, é a última que os médicos receitam?

- As coisas não funcionam assim, Mrs. Curren. Não há primeiras nem últimas drogas.

Tomei dois dos novos comprimidos. Uma vez mais o milagre da dor que se esvai, a euforia, a sensação de regresso à vida. Tomei um banho, tornei a meter-me na cama, tentei ler, mergulhei num sono confuso. Ao fim de uma hora estava de novo acordada. A dor avançava pé ante pé, trazendo consigo a náusea e os primeiros contornos da sombra familiar da depressão.

A vitória da droga sobre a dor: um foco de luz, mas a seguir uma escuridão redobrada.

Vercueil entrou.

- Tomei os comprimidos novos - disse eu. - Não são muito melhores que os outros. Talvez ligeiramente mais fortes; de resto não sinto diferença.

- Tome outro - disse Vercueil. - Ninguém a obriga a esperar quatro horas.

Um conselho de bêbedo.

- É o que vou fazer - disse eu. - Mas se sou livre de os tomar quando me apetece, porque não tomá-los todos de uma vez?

Fez-se um silêncio entre nós.

- Porque foi que me escolheu a mim? - perguntei.

- Eu não a escolhi.

- Porque é que veio para aqui, para esta casa?

- Você não tinha cão.

- E além disso?

- Achei que você não ia dar problemas.

- E dei problemas?

Ele aproximou-se. Tinha a cara inchada, e um bafo a álcool que me chegou às narinas.

- Se quiser que eu a ajude, eu ajudo-a - disse ele. Inclinou-se e agarrou-me pela garganta, os polegares apoiados ao de leve na minha laringe, os três dedos doentes encolhidos atrás da minha orelha.

- Não - murmurei, empurrando-lhe as mãos. Tinha os olhos marejados de lágrimas. Tomei as mãos dele nas minhas e bati com elas no meu peito, num gesto de lamentação que eu própria não conhecia.

Ao fim de algum tempo, parei. Ele continuava inclinado para mim, deixando-me usar livremente as suas mãos. O cão espreitou para cima da cama, farejou-nos.

Importa-se que o seu cão durma comigo? - Para quê?

- Para me sentir mais quente.

- Ele não fica consigo. Dorme sempre onde eu durmo.

- Então durma também aqui.

Uma longa espera, enquanto ele descia ao rés-do-chão. Tomei outro comprimido. Depois a luz do patamar apagou-se. Ouvi-o descalçar os sapatos.

- Tire também o chapéu, para variar - disse eu.

Ele deitou-se contra as minhas costas, por cima da colcha. Chegou-me às narinas o cheiro dos seus pés sujos. Assobiou baixinho; o cão pulou para cima da cama, descreveu vários círculos, na sua dança de sempre, instalou-se entre as pernas dele e as minhas. Como a espada de Tristão, guardando a nossa virtude.

O comprimido operou as suas maravilhas. Durante meia hora, enquanto ele e o cão dormiam, deixei-me ficar imóvel, sem dores, a alma bem viva e desperta. Perpassou-me diante dos olhos a visão da pequena Beauty, avançando para mim às costas da mãe, balouçando ao ritmo dos seus passos, fitando imperiosamente o horizonte. Depois a visão dissipou-se e nuvens de poeira, a poeira de Borodino, toldaram-me a vista, correndo como as rodas do carro da morte. Acendi a luz. Era meia-noite.

Em breve correrei um véu sobre tudo isto. A minha carta nunca pretendeu ser a história de um corpo, mas da alma que o corpo alberga. Não te darei a ver o intolerável: uma mulher numa casa em chamas, correndo de janela em janela, pedindo socorro através das grades.

Vercueil e o seu cão, dormindo tão sossegadamente ao lado destas torrentes de angústia. Cumprindo o seu papel, esperando que a alma venha à tona. A alma, neófita, molhada, cega, ignorante.

 

Sei agora como foi que ele aleijou os dedos. Foi num acidente no mar. Tiveram que abandonar o barco. Na debandada, ficou com a mão presa numa roldana, que lha esmagou. Passou a noite inteira à deriva numa jangada, com mais sete homens e um rapaz, num sofrimento atroz. No dia seguinte foram recolhidos por uma traineira russa, e trataram-lhe a mão. Mas já era demasiado tarde.

- Aprendeu alguma coisa de russo? - perguntei. Disse que só se lembrava de uma palavra, xorosho.

- Ninguém lhe falou de Borodino?

- Não me lembro de nenhum Borodino.

- Não lhe passou pela cabeça ficar com os russos?

Ele fitou-me com estranheza.

Nunca mais foi ao mar desde então.      

- Não tem saudades do mar? - perguntei.

- Nunca mais torno a pôr os pés num barco - respondeu, ele resolutamente.

- Porquê?

- Porque para a próxima não vou ter tanta sorte.

- Como é que sabe? Se tivesse fé em si próprio até podia caminhar sobre as águas. Não acredita nos prodígios da fé?

Ele ficou calado.

- Ou então podia vir um furacão que o arrebatasse das águas e o trouxesse para terra firme. E há sempre os golfinhos. Os golfinhos socorrem os marinheiros, não é? Já agora diga-me, porque é que se fez marinheiro?

- Uma pessoa nem sempre pensa no futuro. Nem sempre se pode adivinhar.

Belisquei-lhe ao de leve o anular.

- Sente alguma coisa?

- Não. Os nervos estão mortos.

Eu sempre soube que ele tinha uma história para contar, e começa agora a contá-la, começando pelos dedos da mão. Uma história de marinheiro. Acredito ou não que as coisas se tenham passado assim? Para ser franca, é-me indiferente. Não há mentira que não tenha lá no fundo uma parcela de verdade. Basta saber ouvir.

Vercueil também trabalhou nas docas, transportando coisas, carregando coisas. Contou-me que um dia, ao descarregarem um caixote, sentiram um cheiro a podre, resolveram abri-lo e encontraram o corpo de um homem, de um clandestino que morrera à fome no seu esconderijo.

- De onde é que ele vinha? - perguntei.

- Da China. Uma longa viagem.

E também trabalhou para a Protectora dos Animais, nos canis.

- Foi lá que começou a gostar de cães?

- Sempre me entendi bem com os cães.

- Teve algum cão em criança?

- Mm - disse ele, uma resposta que nada quer dizer. Percebeu desde o começo que podia esquivar-se escolhendo, de entre perguntas que eu lhe fazia, as que queria e as que não queria ouvir.

Ainda assim, retalho a retalho, fui reconstituindo a história de uma vida tão obscura como qualquer outra. Pergunto-me o que lhe estará reservado a seguir, quando terminar o episódio da velhota e do casarão. A mão aleijada, incapaz de cumprir todas as suas tarefas. Perdida para sempre a ciência dos nós de marinheiro. Não lhe resta nem destreza, nem decoro. Já na meia-idade, e sem uma esposa que o acompanhe. Só: stoksielallen: uma estaca num campo deserto, uma alma só, isolada. Quem olhará por ele?

- O que é que vai fazer da sua vida quando eu já cá não estiver? - Sigo o meu caminho.

- Não duvido; mas quem vai ter a seu lado?

Ele sorriu dissimuladamente.

- E preciso de alguém a meu lado?

Não era uma simples réplica, mas uma pergunta genuína. Ele não sabe. Pergunta-mo a mim, este homem rudimentar.

- Precisa. Eu diria que precisa de uma esposa, se é que não acha a ideia demasiado excêntrica. Nem que seja aquela mulher que trouxe aqui a casa, desde que sinta alguma coisa por ela.

Ele abanou a cabeça.

- Deixe lá. Não é de casamento que eu falo, é de outra coisa. Eu comprometia-me a olhar por si, se soubesse ao certo que me era possível fazê-lo depois de morta. Talvez não seja permitido olhar por ninguém, ou só muito raramente. Esses sítios têm todos as suas regras e, por muito que queiramos, talvez não seja possível contorná-las. Talvez nem sequer seja permitido ter segredos, espreitar em segredo. Talvez não haja meio de guardar no coração um lugar especial para si, ou para quem quer que seja. Talvez tudo se apague. Tudo. É uma ideia terrível. Suficiente para nos levar à revolta, para nos fazer dizer: se asssim é, desisto: aqui têm o meu bilhete, quero devolvê-lo. Mas duvido muito de que nos permitam devolver o bilhete, seja qual for o motivo que invoquemos.

«Por isso é que você não devia estar tão só. Porque talvez me obriguem a partir de vez.»

Ele estava sentado na cama, de costas para mim, curvado, afagando a cabeça do cão, que tinha presa entre os joelhos.

- Percebe o que eu estou a dizer?

- Mm. - Aquele mm que poderia querer dizer sim, mas na realidade não queira dizer coisa nenhuma.

- Não percebe, não. Está muito longe de perceber. Não é a perspectiva da sua solidão que me aflige, é a perspectiva da minha própria solidão.

Todos os dias ele vai às compras. Ao fim da tarde faz o jantar, e depois fica a vigiar-me, a ver se eu como. Nunca tenho fome, mas não tenho coragem para lho dizer.

- Custa-me comer consigo a olhar - digo-lhe o mais delicadamente possível; depois escondo a comida e dou-a ao cão.

O seu cozinhado preferido é pão branco frito em ovo com atum por cima e molho de tomate em cima do atum. Só queria ter tido a previdência de lhe dar lições de culinária.

Embora tenha a casa inteira para se espraiar, a bem dizer vive comigo no meu quarto. Deixa espalhados pelo chão papéis velhos, embalagens vazias, que rodopiam como fanstasmas ao sabor das correntes de ar.

- Leve o lixo daqui para fora - peço eu.

Ele promete levá-lo, e às vezes cumpre, mas a seguir traz mais lixo.

Partilhamos a mesma cama, encolhidos um contra o outro como uma folha dobrada ao meio, como um par de asas dobradas: velhos compinchas, companheiros de camarata, conjugados, conjugais. Lectus genialis, lectus adversus. As unhas dos pés dele, quando tira os sapatos, são amarelas, quase castanhas, cor de chifre. Pés que se recusa a meter na água, com medo de cair: cair num abismo onde não possa respirar. Uma criatura seca, aérea, como as fadas-gafanhotos de Shakespeare, com os seus chicotes de fio de teia de aranha e cabo de osso de grilo. Gigantescos enxames delas, que o vento arrasta para o mar até perderem de vista a terra firme, exaustas, poisando umas sobre as outras, tão numerosas que decidem cobrir o Atlântico. E engolidas pelas águas, todas elas, sem excepção. Frágeis asas no fundo do mar, suspirando como uma floresta de folhas; olhos mortos aos milhões; e no meio de tudo isto os caranguejos, fincando as tenazes, rilhando os restos.

Ele ressona.

É estendida ao lado do seu marido-sombra que a tua mãe te escreve. Perdoa-me se a imagem te choca. Temos que amar o que está mais perto. Temos que amar o que está à mão, como fazem os cães. - Mrs. V.

Vinte e três de Setembro, o equinócio. Chuva ininterrupta a cair de um céu fechado em redor das montanhas, tão baixo que se conseguiria tocar-lhe com o cabo de uma vassoura. Um som calmante, aconchegante, como uma enorme mão, uma mão feita de água, a envolver a casa; o tamborilar nas telhas, o marulhar nas goteiras a deixar de ser ruído para se converter num adensamento, numa liquefacção do ar.

- O que é isto? - perguntou Vercueil.

Tinha na mão uma pequena moldura articulada de pau-rosa. Aberta e virada para a luz, a um determinado ângulo, revela um jovem de longa cabeleira, vestido à moda antiga. Mudando o ângulo, a imagem decompõe-se numa série de riscos prateados por baixo da superfície do vidro.

- É uma fotografia de outros tempos. Da época em que ainda não havia fotografias.

- Quem é?                  

- Não sei ao certo. Talvez um dos irmãos do meu avô.

- A sua casa parece um museu.

(Tem andado a bisbilhotar nas divisões que a polícia arrombou.)

- Num museu as coisas têm letreiros. Este é um museu em que os letreiros se perderam. Um museu em decomposição. Um museu que devia estar num museu.

- Você devia vender estas velharias, se não as quer.

-Venda-as você, se lhe apetecer. Venda-me a mim também.

- Vendê-la a si para quê?

- Podiam-me aproveitar os ossos. Os cabelos. Já agora, venda também os dentes. A menos que ache que eu não valho nada. É pena não termos um desses carrinhos que as crianças dantes usavam para passear o Guy". Senão podia-me empurrar pela Government Avcnuc abaixo, com um letreiro pregado ao peito. E depois podia-me deitar fogo. Ou então levar-me para um sítio mais escondido, a lixeira, por exemplo, para aí se desfazer de mim.

Dantes ele ia para a varanda quando queria fumar. Agora fuma no patamar da escada e o fumo entra-me pelo quarto adentro. Não suporto o cheiro. Mas já vai sendo tempo de me habituar às coisas que não suporto.

Veio dar comigo a lavar roupa interior no lavatório. A posição curvada agravou-me as dores: devia estar com uma cara horrível.

- Eu faço-lhe isso - ofereceu-se ele. Recusei. Mas depois não consegui chegar à corda da roupa, de modo que teve de ser ele a estender-ma: roupa interior de velha, pardacenta e deslavada.

Quando a dor morde com mais força, deixando-me trémula, pálida e coberta de suores frios, ele pega-me às vezes na mão. Agarrada a ele, torço-me como um peixe na ponta do anzol; dou-me conta da feia expressão do meu rosto, a mesma expressão que acompanha o êxtase do amor: brutal, predatória. Ele não gosta de me ver assim; desvia os olhos. Pela minha parte, penso: ele que veja, ele que aprenda como é!

Vercueil anda com uma faca no bolso. Não uma navalha mas uma lâmina ameaçadora, com a ponta aguçada cravada numa rolha. Quando se deita poisa-a no chão a seu lado, juntamente com o dinheiro.

De modo que estou bem guardada. A morte pensaria duas vezes antes de passar por este cão, por este homem.

O que é o latim?, perguntou ele.

 

Nota - Efígie de Guy Fawkes, cabecilha da abortada «Conspiração da Pólvora», pela qual foi executado em 1606. Subsistiu na Grã-Bretanha e nos países do Commonwealth a tradição de queimar todos os anos, a 5 de Novembro, efígies do conspirador, designadas por «Guys». (N. T.)

 

Uma língua morta, respondi, uma língua falada pelos mortos.

- A sério? - disse ele. A ideia pareceu diverti-lo.

- A sério, sim - disse eu. - Hoje em dia já só se fala nos enterros, e num ou noutro casamento.

- E você sabe falar latim?

Recitei uma passagem de Virgílio, sobre os mortos sem repouso:

nec ripas datur horrendas et rauca fluenta transportare prius quam sedibus ossa quierunt.

centum errant annos volitantque haec litora circum;   , tum demum admissi stagna exoptata revisunt.

- O que é que isso quer dizer? - perguntou ele.

- Quer dizer que se você não puser no correio a carta para a minha filha terá por castigo cem anos de infelicidade.

- Não quer nada dizer isso.

- Quer, sim senhor. A palavra ossa significa «diário». O lugar onde se vão inscrevendo os dias da nossa vida.

Vercueil voltou a entrar no quarto passado algum tempo, e pediu:

- Diga lá outra vez aquela coisa em latim.

Recitei os versos e fiquei a vê-lo mover os lábios enquanto escutava. Está a decorar, pensei. Mas não era isso. Era o dáctilo a palpitar dentro dele, esse ritmo que faz pulsar as veias e a garganta.

- Era isso que você ensinava? Era esse o seu trabalho?

- Era o meu trabalho, sim. Vivia disso. De dar voz aos mortos. , - E quem é que lhe pagava?

- Os contribuintes. Os cidadãos da África do Sul, grandes e pequenos.

- Podia-me ensinar a mim?

- Podia ter-lhe ensinado. Podia ter-lhe ensinado quase tudo o que diz respeito aos Romanos. Quanto aos Gregos, já não tenho tanta certeza. Ainda era capaz de lhe ensinar, mas o tempo já não daria para tudo.

Ele ficou lisonjeado, bem se via.

- Você não devia achar difícil o latim - continuei. - Havia de lhe fazer lembrar muita coisa.

Mais um repto lançado, mais uma insinuação de que eu sei. Sou como essas mulheres cujo marido se encontra com a amante às escondidas, e que lhe ralham, tentando convencê-lo a pôr tudo em pratos limpos. Mas as minhas alusões passam-lhe ao lado. Ele não esconde nada. A sua ignorância é autêntica. A sua ignorância, a sua inocência.

- Há aí qualquer coisa que não quer sair, não é verdade? - perguntei. - Porque é que não vai falando, a ver aonde as palavras o levam?

Mas havia um limiar que ele não conseguia transpor. Ficou parado onde estava, mudo, obstinado, escondido atrás do fumo do cigarro, semicerrando os olhos para não me deixar devassá-los.

O cão pôs-se a andar à volta dele, veio ter comigo, tornou a afastar-se, irrequieto.

Será possível que o enviado seja o cão e não ele?

O mais provável é que nunca chegues a vê-lo. Gostava de te mandar uma fotografia, mas levaram-me a máquina no último assalto. De qualquer maneira, ele não é uma pessoa fotogénica. Um destes dias vi-lhe o retrato do bilhete de identidade. Parece um preso arrancado à escuridão da cela, empurrado para uma sala cheia de luzes ofus-cantes, arremessado contra a parede, intimado a estar quieto. Para lhe roubarem a imagem, para lha arrancarem à força. Ele é como uma dessas criaturas míticas que surgem nas fotografias como meros borrões, formas vagas a sumir-se na vegetação rasteira, que tanto poderiam ser homem como animal ou simplesmente um defeito da revelação: seres cuja existência não fica provada nem atestada. Ou então sumindo-se para lá do limite da fotografia, deixando atrás de si, na mira da objectiva, um braço, uma perna ou uma nuca.

- Gostava de ir à América? - perguntei-lhe.

- Para quê?

- Para levar a minha carta. Em vez de a pôr no correio, podia entregá-la pessoalmente: ia de avião, voltava de avião. Uma autêntica aventura. Melhor que andar de barco. A minha filha ia esperá-lo e recebia-o em casa dela. Eu comprava-lhe o bilhete antecipadamente. Gostava de ir?

Ele sorriu corajosamente. Mas eu sei que alguns dos meus gracejos o atingem num ponto sensível.

- Estou a falar a sério - disse eu.

Mas a verdade é que semelhante sugestão não pode ser séria. Vercueil de cabelo aparado, roupas novas, caminhando de cá para lá no teu quarto de hóspedes, desesperado por tomar uma bebida, com vergonha de ta pedir; e tu no quarto ao lado, os teus filhos a dormir, o teu marido a dormir, lendo atentamente esta carta, esta confissão, esta loucura - é uma cena impensável. Isto era perfeitamente escusado, dizes para contigo, cerrando os dentes. Porque é que tudo isto me persegue, se foi para lhe fugir que vim para tão longe?

Sem saber o que fazer do meu tempo, dediquei-me a passar em revista as fotografias que me foste enviando da América ao longo destes anos, examinando os cenários, procurando identificar todas as coisas que voluntária ou involuntariamente enquadraste ao carregar no botão. Na fotografia em que os dois rapazes aparecem na sua canoa, por exemplo, o meu olhar desliza dos rostos deles para as ondulações do lago e para o verde carregado dos abetos, para voltar depois aos coletes de salvação cor-de-laranja que eles trazem postos, em vez das antigas bóias de borracha. O vago brilho mate da superfície desses coletes hipnotiza-me. Borracha ou plástico ou outro material que não é bem uma coisa nem outra: uma substância rija e áspera ao tacto. Esse material que me é estranho, que talvez seja estranho à humanidade, talhado, selado, insuflado, atado ao corpo dos teus filhos - por que razão representará para mim tão intensamente o mundo em que agora vives, e por que razão me deixará tão deprimida? Não faço ideia. Mas uma vez que esta carta já me levou repetidamente de onde não faço ideia até onde começo a fazer uma ideia, permite-me que diga, com mil hesitações, que talvez me deprima que os teus filhos não corram o risco de se afogar. Todos esses lagos, toda essa água: uma terra de lagos e rios: porém, se por azar virarem a canoa, ficarão sem perigo a flutuar à tona de água, sustidos pelas luminosas bóias cor-de-laranja, até que um barco a motor venha buscá-los, recolhê-los e tudo acabe bem.

Dizes no verso da fotografia que é uma zona de recreio. O lago domesticado, a floresta domesticada, rebaptizada.

Dizes que não vais ter mais filhos. A linhagem esgota-se, portanto, nesses dois rapazes, semente plantada nas neves americanas, que nunca se afogarão, que têm uma esperança de vida de setenta e cinco anos, com tendência para aumentar. Se eu, que vivo nestas praias onde o mar engole homens feitos, onde a esperança de vida declina a cada dia que passa, não consigo uma morte iluminada, que esperanças podem ter esses dois pobres meninos desvalidos, a remar nas águas da sua zona de recreio? Morrerão aos setenta e cinco ou aos oitenta e cinco anos, tão estúpidos como nasceram.

Então desejo ver mortos os meus próprios netos? Não estarás neste preciso instante a arremessar para longe a página, revoltada com o que acabas de ler? Não estarás a gritar «Velha louca!» ?

Eles não são meus netos. Estão demasiado distantes para poderem descender de mim. Não deixo uma família numerosa. Uma filha. Um cônjuge e o seu cão.

Nem por sombras lhes desejo a morte. Os dois rapazes cujas vidas afloraram a minha já estão mortos, para todos os efeitos. Não, desejo longa vida aos teus filhos. Mas as bóias que lhes amarraste ao corpo não lhes garantem a vida. A vida é pó entre os dedos dos pés. A vida é pó entre os dentes. A vida é morder o pó.

Ou então: a vida é afogar-se. Cair a prumo atrayês da água, até tocar no fundo.

Está quase a chegar o tempo em que precisarei de auxílio para as coisas mais íntimas. Vai pois sendo tempo de pôr fim a esta triste história. Não que duvide do auxílio de Vercueil. No que toca às derradeiras coisas, já não tenho a menor dúvida a seu respeito. Ele sempre teve por mim uma certa solicitude protectora, embora intermitente, uma solicitude que ele não sabe bem como há-de exprimir. Eu caí, e ele amparou-me na queda. Percebo agora que nem ele ficou entregue aos meus cuidados quando chegou, nem eu fiquei entregue aos seus: ficámos entregues um ao outro, e desde então temos tropeçado e tornado a levantar-nos ao sabor dos altos e baixos dessa escolha recíproca.

E, no entanto, não consigo imaginar criatura mais diferente de uma ama ou enfermeira, da nourrice que dá alimento. É um homem seco.

Não bebe água mas fogo. Talvez soja por isso que não consigo imaginar um filho seu: porque o seu sémen deve ser seco, seco e acastanhado, como o pólen ou como o pó deste país.

Preciso da sua presença, do seu consolo, da sua ajuda, mas ele também precisa de ajuda. Precisa da ajuda que só uma mulher pode dar a um homem. Não uma sedução, mas uma indução. Ele não sabe amar. Não falo dos movimentos da alma, mas de algo mais simples. Ele não sabe amar, como um rapazinho não sabe amar. Não sabe que fechos, que botões e colchetes vai encontrar pela frente. Não sabe onde há-de pôr o quê. Não sabe como fazer o que lhe compete fazer.

Quanto mais se aproxima o fim, mais fiel ele se torna. Porém continuo a ter que lhe guiar a mão.

Lembro-me do dia em que ficámos os dois sentados no carro e ele me estendeu os fósforos, instando-me a resolver o assunto. Fiquei indignada. Mas terei sido justa para com ele? Parece-me agora que ele tem da morte uma ideia tão vaga como a que uma virgem tem do sexo. E a mesma curiosidade. A curiosidade de um cão que nos cheira entre pernas, abanando a cauda, a língua pendurada, vermelha e estúpida como um pénis.

Ontem, enquanto ele me ajudava a meter-me na banheira, abriu-se-me o roupão e apanhei-o a olhar para mim, embasbacado. Como aqueles miúdos de Mill Street: sem o mínimo pudor. Pudor: o inexplicável: o fundamento de toda a ética. As coisas que não fazemos. Não ficamos a olhar quando a alma abandona o corpo - velamos os olhos de lágrimas ou cobrimo-los com as mãos. Não nos pomos a olhar para as cicatrizes, que são os lugares por onde a alma tentou escapulir-se e foi obrigada a voltar para trás, aprisionada por baixo da pele recosida.

Perguntei-lhe se continuava a dar de comer aos gatos.

- Continuo - disse ele, mentindo. Porque os gatos desapareceram, escorraçados. E eu importo-me? Não, agora já não. Depois de pensar em ti, de pensar nele, sobra muito pouco espaço no meu coração. Tanto pior para o resto, como costuma dizer-se.

Ontem à noite, sentindo nos ossos um frio terrível, tentei convocar-te para me despedir. Mas tu nunca mais vinhas. Murmurei o teu , nome. «Minha filha, minha menina», murmurei no escuro; mas o que se me desenhou diante dos olhos foi apenas uma fotografia: não tu, mas uma imagem de ti. Cortada, pensei: também essa amarra foi cortada. Já não há nada que me prenda.

Mas adormeci, e acordei, e ainda aqui estava, e hoje de manhã sinto-me cheia de força. Por isso talvez haja mais alguém a chamar além de mim. Talvez, quando me sinto arrefecer, seja porque alguém me chama, sem eu saber, do outro lado do mar, arrebatando-me para fora do meu corpo.

Como vês, ainda acredito no teu amor.

Vou libertar-te muito em breve desta corda de palavras. Escusas de ter pena de mim. Mas reserva um pensamento para este homem que aqui fica, que não sabe nadar e ainda não aprendeu a voar.

 

Dormi e acordei gelada: gelados o ventre, o coração, os próprios ossos. A porta da varanda estava aberta, as cortinas adejavam ao sabor do vento.

Vercueil estava na varanda, a olhar para um mar de folhas roçagantes. Toquei-lhe no braço, nos ombros altos e salientes, na crista ossuda da espinha. Com o queixo a tremer, perguntei:

- Está a olhar para onde?

Ele não respondeu. Aproximei-me mais. Um mar de sombras aos nossos pés, e o tapete de folhas movediças, roçagantes, como escamas cobrindo as trevas.

- É agora? - perguntei.

Tornei a enfiar-me na cama, no túnel entre os lençóis gelados. Apartaram-se as cortinas; ele deitou-se a meu lado. Pela primeira vez, não senti nenhum cheiro. Ele abraçou-me e apertou-me com toda a força, para me expulsar de uma vez só todo o ar dos pulmões. Não havia calor a esperar de um abraço assim.

 

 

                                                                  J. M. Coetzee

 

 

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