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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NOITE DO LEOPARDO / Wilbur Smith
A NOITE DO LEOPARDO / Wilbur Smith

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Em Nova York, Craig Mellow, um autor de best sellers, passa por uma crise de criatividade. Mas, convocado para executar uma missão perigosa no Zimbábue, ele não hesita ante a chance de rever seu país natal, viver uma aventura excitante e, quem sabe, recuperar sua inspiração.

   Disfarçada pelo pretexto de escrever um livro sobre a África, em colaboração com uma bela fotógrafa, essa missão consiste em investigar um contrabando de marfim, parte de um plano soviético para derrubar o governo do Zimbábue.

   Assim, Craig se envolve num conflito entre os seguidores do poderoso Shona e os partidários do marginalizado Matabele. E,por trás dessa sangrenta guerra tribal, está um fanático capaz de condenar seu povo à escravidão e conduzir o país ao caos.

   A Noite do Leopardo, uma superlativa trama de espionagem e ação, nos incríveis cenários da África Central.

Wilbur Smith nasceu em 9 de janeiro de 1933, em Zâmbia, e passou toda sua vida na África. Daí a precisão com que descreve o cenário de seus romances, todos ambientados nesse continente.

   Apreciador de safáris e de numismática, ele vive atualmente na Cidade do Cabo, na África do Sul. É autor de vinte livros que o transformaram num nome admirado internacionalmente pelos amantes de tramas de espionagem e suspense.

 

 

 

 

   O VENTO viajara por mil quilômetros ou mais, desde os grandes ermos do deserto de Kalahari que os bosquímanos de pele amarelada chamam de "a Grande Secura". Ao chegar às escarpas do vale do Zambeze, fragmentara-se em redemoinhos e pequenas rajadas por entre as colinas e o solo acidentado das bordas.

   O elefante estava logo abaixo da crista de uma das colinas, esperto demais para mostrar a silhueta contra o horizonte. Sua massa escondida atrás das folhas novas das árvores nsasa confundia-se com a rocha cinzenta da encosta         .

   Levantou a tromba e aspirou o ar, dobrando-a em seguida e soprando delicadamente na boca escancarada. Os órgãos olfativos, ali localizados, abriram-se imediatamente como botões de rosa, e farejaram.

   Sentiu o odor da poeira dos desertos longínquos, dos pólens adocicados de centenas de plantas silvestres, do suor quente da manada de búfalos no vale e do lençol d'água, fresco e penetrante, em que estavam bebendo e banhando-se; identificou esses e outros cheiros e avaliou com precisão a distância da fonte de cada um.

   No entanto, não eram o que estava procurando. Buscava pelo odor ofensivo e acre que dominava todos os outros. O de tabaco nativo misturado ao cheiro peculiar dos carnívoros. Suor fétido de lã mal lavada, de parafina, de sabão barato e de couro curtido: o cheiro de homem estava lá, tão forte e próximo quanto estivera desde que a caçada começara.

   Uma vez mais, o velho elefante sentiu a raiva atávica crescer por dentro. Incontáveis gerações de sua espécie tinham sido perseguidas por aquele cheiro. Desde pequeno aprendera a odiá-lo e temê-lo, e quase toda a vida fora acuado por ele.

   Recentemente houvera uma lacuna na perseguição. Por onze anos estabelecera-se uma trégua, um tempo de paz para os animais ao longo do Zambeze. Não podia saber ou compreender a razão disso: uma violenta guerra civil entre seus carrascos transformara essas vastas áreas da margem sul do Zambeze numa zona-tampão indefesa, perigosa demais para os caçadores de marfim ou até mesmo para os guarda-caças, cujos deveres incluíam o abate do excesso de população dos elefantes. As manadas tinham aumentado durante aqueles anos, mas agora a perseguição recomeçara com toda a antiga e implacável ferocidade.

   Cheio de raiva e terror, levantou novamente a tromba e aspirou até os seios nasais o temível odor. Virou-se, então, e cruzou o cume rochoso. Por um instante tornou-se uma vaga mancha acinzentada contra o claro azul do céu africano. Ainda carregando o cheiro, desceu para onde a manada esparramava-se na outra encosta.

   Havia cerca de trezentos elefantes espalhados por entre as árvores. Quase todas as elefantas tinham filhotes, alguns tão pequenos que pareciam porquinhos gordos, pequenos o bastante para caber debaixo da barriga das mães. Passavam as trombas diminutas por cima das cabeças e sugavam as tetas inchadas.

   Os mais crescidos brincavam em torno, estouvados e barulhentos, até que um dos adultos, exasperado, arrancava um galho e, ameaçador, o balançava na tromba. Os jovens importunos dispersavam guinchando numa consternação fingida.

   As fêmeas e os jovens alimentavam-se sem pressa, enfiando a tromba dentro de moitas cerradas e espinhentas para arrancar punhados de frutinhos maduros que colocavam bem no fundo da boca, como alguém engolindo uma aspirina; usavam as presas de marfim para soltar a casca de uma árvore msasa, arrancavam grandes pedaços dela e os enfiavam, satisfeitos, na boca; levantavam todo o corpo nas pernas traseiras, como um cachorro que pede alguma coisa, para alcançar com a tromba esticada as folhinhas novas de uma árvore alta; usavam a testa larga e as quatro toneladas de peso para balançar outra, até que soltasse uma chuva de vagens maduras. Mais abaixo, no declive, dois elefantes tinham juntado forças para derrubar uma de uns doze metros de altura, cujas folhas da copa estavam fora do alcance deles. Quando caiu, com um estrépito de fibras dilaceradas, o líder atravessou o topo da encosta e, de imediato, todos os alegres ruídos cessaram para serem substituídos por um silêncio surpreendente.

   Desceu até eles numa marcha forçada, com as espessas presas de marfim levantadas e um evidente alarme estampado na posição das orelhas desfraldadas. Ainda trazia o cheiro e, quando alcançou o grupo mais próximo de fêmeas, estendeu a tromba e soprou.

   Giraram no mesmo instante, colocando-se instintivamente a favor do vento para sentir o odor dos perseguidores. O resto da manada viu a manobra e colocou-se em formação de marcha. Os filhotes e as mães que amamentavam ao centro, as elefantas já estéreis em torno, os elefantes jovens e os mais velhos à frente com os acompanhantes askaris nos flancos. Partiram a passo acelerado, que podiam manter por um dia, uma noite e mais um dia sem descanso.

   Enquanto fugia, o líder estava confuso. Nunca experimentara uma perseguição tão acirrada. Durava já oito dias, mas os perseguidores nunca tinham se aproximado para entrar em contato com a manada. Estavam ao sul, deixando-o farejar-lhes, mas sempre mantendo-se longe do campo de sua visão enfraquecida. Havia muitos deles, além até dos que encontrara em seus vagares, alinhados como uma rede estendida sobre as estradas do sul.

   Só os vira em uma ocasião. No quinto dia, ao alcançar o limite da resistência, tentara romper através da linha e lá estavam para desviá-lo, aquelas criaturas minúsculas e eretas, tão frágeis e, no entanto, tão mortíferas, saltando do capim amarelo, barrando a fuga para o sul, balançando cobertores e batendo em latas, até que a coragem faltou-lhe e liderou a manada de volta pela descida das escarpas agrestes em direção ao grande rio.

   As encostas eram cortadas por trilhas, usadas há dez mil anos pelos animais, que seguiam as descidas mais fáceis e cruzavam através das muralhas de minério de ferro. Conduziu-os por uma delas. Formaram uma fila indiana através da passagem estreita e, ao ultrapassá-la, tornaram a espalhar-se.

   Continuou a marcha durante toda a noite, apesar de não haver lua. Moviam-se quase que silenciosamente através da floresta. Uma vez, depois da meia-noite, diminuiu a marcha e esperou à beira do caminho que o resto passasse. Dentro em pouco, sentiu novamente o cheiro corrompido de homem no vento, mais fraco e distante - mas ainda lá - e apressou-se a juntar-se ao grupo.

   Ao amanhecer entraram numa área aonde não ia há dez anos. A estreita faixa à beira do rio fora cenário de uma intensa atividade humana durante a guerra prolongada, por isso a evitara até aquele momento, quando fora encurralado.

   A manada deslocava-se agora com menos urgência. Tinha deixado a perseguição para trás, e diminuíra a marcha para que pudessem comer enquanto prosseguiam. A floresta era mais verde e mais viçosa ali, nas terras baixas do vale. Às florestas de msasa, sucediam-se as de mopani e de gigantescos e grossos baobás floridos. Percebeu que havia água à frente e, sedento, sentiu um ronco na barriga. No entanto, o instinto lhe avisava de que havia perigo adiante, assim como atrás. Parava com freqüência, balançando a grande cabeça cinzenta, com as orelhas alertas e os olhos, embora míopes, perscrutavam cautelosamente os arredores antes de continuar.

   Então, abruptamente, algo com um brilho metálico na luz da manhã chamou-lhe a atenção. Recuou alarmado e, por trás dele, a manada parou, contaminada por seu medo. Ficou olhando o ponto luminoso e, aos poucos, o alarme foi diminuindo porque não havia qualquer movimento ou som, a não ser o ondular dos ramos pelo vento e o canto e zumbido dos pássaros e insetos em torno. Mesmo assim, manteve-se imóvel, e, quando a luz mudou, viu que havia outros objetos metálicos formando uma linha; trocou o peso do corpo de uma pata para outra, fazendo um ruído indeciso na garganta.

   O que o alarmara era uma fila de pequenas placas galvanizadas de metal afixadas em postes de ferro que tinham sido martelados na terra há tanto tempo que qualquer odor humano já havia se dissipado. Em cada placa estava pintado um aviso lacônico que, de vermelho, transformara-se num rosa pálido, com a inclemência do sol. Um crânio e duas tíbias estilizados encimavam as palavras: PERIGO. CAMPO MINADO.

   As minas foram colocadas anos atrás pelas forças de segurança do então governo branco da Rodésia, como um "cordão sanitário" ao longo do rio Zambeze, numa tentativa de impedir os guerrilheiros do ZIPRA e do ZANU de entrar no território, vindos das bases que ficavam do outro lado do rio, em Zâmbia. Milhares de minas leves e de tipo Claymore, mais pesadas, formavam um campo ininterrupto tão extenso e profundo que não poderia ser facilmente limpo; o custo disso seria proibitivo para o novo governo negro do país que já estava em sérias dificuldades econômicas.

   Enquanto o líder ainda hesitava, o ar encheu-se com um estrondo selvagem. O som vinha do sul, e o velho elefante virou-se para enfrentá-lo.

   Sobre a floresta, apareceu uma grotesca forma escura, suspensa por um disco prateado. Enchendo os céus de ruídos, abateu-se sobre a manada. Voava tão baixo que o deslocamento das hélices agitava violentamente as copas das árvores e levantava uma nuvem de poeira vermelha.

   Acossado por essa nova ameaça, disparou para além da linha esparsa de placas metálicas, e o grupo aterrorizado precipitou-se atrás dele.

   Percorrera uns cinqüenta metros quando a primeira mina explodiu e seus estilhaços penetraram o couro espesso de uma pata traseira, cortando-a ao meio como uma machadada. Frangalhos de carne vermelha pendiam dela e o osso reluzia, muito branco, enquanto o elefante avançava aos arrancos sobre três pernas. A próxima atingiu-o numa dianteira, transformando-a em uma massa sangrenta. O animal berrou em agonia e pânico e tombou sobre as pernas destroçadas, enquanto, ao redor, a manada de sua procriação corria para dentro do campo minado.

   De início, os estampidos das detonações eram intermitentes, enfileirados na borda do campo, mas logo criaram um ritmo rápido e sincopado como o de um baterista enlouquecido. Ocasionalmente, quatro ou cinco minas explodiam ao mesmo tempo, com uma intensidade inesperada de som que chocava-se contra as colinas da escarpa e fragmentava-se em uma centena de ecos.

   E, sob tudo isso, como o setor de cordas de uma orquestra infernal, havia o ruído sibilante do helicóptero, que, como um cão pastor, ao longo da periferia do campo, voava em ziguezague para bloquear os animais que corriam de volta, mergulhando para impedir a fuga de um esplêndido e jovem elefante que conseguira atravessar incólume o campo e alcançar o terreno seguro da beira do rio, forçando-o a parar e perseguindo-o de volta até que uma mina lhe arrancasse uma pata e caísse, bramindo de dor.

   Agora, o troar das minas era contínuo como em uma batalha naval, e cada explosão levantava uma coluna de pó no ar parado do vale, fazendo com que a nuvem vermelha ocultasse um pouco o horror de tudo aquilo. A poeira redemoinhava até o topo das árvores e transformava os animais em espectros atormentados ao clarão das explosões.

   Uma velha elefanta, sem as quatro patas, caíra de lado e batia a cabeça contra a terra endurecida, tentando levantar-se. Outra arrastava-se nas pernas dianteiras, com a tromba curvada protetoramente sobre o minúsculo filhote a seu lado, até que uma Clay- more lhe estourou sob o peito provocando a irrupção das costelas, destroçando, ao mesmo tempo, a traseira do animalzinho.

   Outros filhotes, separados das mães, corriam por entre as nuvens de poeira, com as orelhas coladas à cabeça, aterrorizados, até que um estalido e um breve clarão os tornavam num monte informe de carne.

   Continuou assim por longo tempo, até que as explosões diminuíram, tornaram-se mais uma vez intermitentes e gradualmente cessaram. O helicóptero aterrissou além da linha de demarcação, o motor parou e as hélices imobilizaram-se. O único som que se ouvia era o dos gritos dos animais destroçados e moribundos que jaziam na área de terra revirada atrás das árvores cobertas de pó. A carlinga do helicóptero abriu-se e um homem pulou agilmente para o chão. Era negro e vestia uma jaqueta de brim desbotado, cujas mangas tinham sido removidas, e um jeans apertado. Na época da guerra da Rodésia, o brim fora o uniforme não-oficial dos guerrilheiros. Usava botas de cowboy, e empurrou para a testa os óculos Polaroid de piloto. Tudo isso, e mais a fileira de esferográficas presas ao bolso da jaqueta, eram como divisas de posto entre os guerrilheiros veteranos. Sob o braço direito, carregava um fuzil automático AK 47. Ficou por uns minutos observando, impassível, a carnificina que jazia lá na floresta, voltando em seguida para junto do helicóptero.

   Por trás do vidro, o piloto estava atento aos seus movimentos, mas o oficial ignorou-o concentrando a atenção na fuselagem do aparelho.

   Todas as insígnias e números de identificação tinham sido cuidadosamente cobertos com adesivo e tinta aerossol preta. Em um local, notou que o adesivo desprendera, mostrando um trecho das letras. Pressionou-o de volta com as mãos, inspecionou o resultado rápida mas criticamente, e foi para a sombra da mais próxima árvore mopani.

   Apoiou o AK 47 contra o tronco, estendeu um lenço na terra para proteger o jeans e sentou-se com as costas apoiadas à casca áspera. Acendeu o cigarro com um isqueiro Dunhill de ouro e tragou profundamente, antes de deixar que a fumaça se soltasse gentilmente por entre os lábios escuros e carnudos.

   Sorriu, então, ao pensar quantos homens e quanto tempo e munição teriam sido necessários para matar trezentos elefantes da maneira convencional.

   O camarada comissário não perdeu nem um pouco da astúcia dos dias de guerrilha. Quem mais teria arquitetado uma coisa dessas?, pensou, balançando a cabeça com admiração e respeito.

   Quando acabou o cigarro, esmigalhou a ponta entre o polegar e o indicador, um hábito adquirido no passado, e fechou os olhos.

   O coro terrível de gemidos e gritos vindos do campo minado não o impediu de adormecer. Foi o som de vozes humanas que o acordou. Levantou-se rápido, instantaneamente alerta, e olhou para o sol: já passava de meio-dia.

   Voltou até o helicóptero e acordou o piloto.

   - Eles estão chegando.

   Retirou o alto-falante preso em cima do aparelho e esperou na trilha desmatada até que o primeiro deles aparecesse entre as árvores, e os olhou com um desprezo divertido.

   - Bando de babuínos! - disse com o desdém do homem culto pelo camponês, e de um africano por outros de tribos diferentes.

   Chegaram formando uma longa fila e seguiram a trilha dos elefantes. Eram duzentos ou trezentos, vestidos com capas de pele de animal e restos esfarrapados de roupas ocidentais, os homens precedendo as mulheres. Muitas tinham os seios nus, e algumas eram jovens de porte ereto e gracioso que, ao andar, provocavam um bamboleio nas nádegas redondas sob as tangas de caudas de animais. Quando o oficial as observou, o desprezo transformou-se em prazer: talvez tivesse tempo para uma delas mais tarde, pensou, e pôs a mão dentro do bolso do jeans a essa idéia. Enfileiraram-se à beira do campo minado, tagarelando e guinchando de alegria, alguns saltando, rindo e apontando os animais feridos.

   Deixou que dessem vazão ao júbilo. Mereciam aquela pausa para se congratularem. Tinham estado por oito dias, quase sem descanso, trabalhando em rodízio como batedores para forçar os elefantes escarpas abaixo. Enquanto esperava que se acalmassem, pensou novamente no magnetismo pessoal e na força de caráter que podia moldar aquela horda de camponeses primitivos e analfabetos em um todo coeso e forte. Um único homem planejara e dirigira toda a operação.

   - É um homem de verdade! - pensou, em voz alta, despertando em seguida da indulgência para com o culto aos heróis; levou o megafone aos lábios.

   - Quietos! Silêncio! - gritou, fazendo-os parar, e começou a distribuir as tarefas que precisavam ser feitas.

   Escolheu as equipes de açougueiros entre os que estavam armados com machados e panga. Colocou as mulheres para preparar os cavaletes de defumar e fazer cestos com a casca de mopani, e ordenou a outros que catassem lenha para as fogueiras. Voltou, então, a sua atenção aos açougueiros.

   Nenhum dos nativos jamais voara e o oficial teve que usar a ponta da bota para persuadir alguns deles a subir a bordo e fazer o curto trajeto sobre o campo minado até a carcaça mais próxima.

   Inclinando-se para fora da cabine, avaliou as espessas presas curvas de marfim, viu que o animal sangrara até a morte durante as horas de espera e fez sinal ao piloto para descer mais, colocando a boca junto à orelha do homem mais velho daquele grupo.

- Não deixe de jeito nenhum que seus pés toquem a terra! - berrou, e o homem concordou, nervoso. - Primeiro as presas, depois a carne.

   O homem tornou a concordar, bateu-lhe, então, no ombro, e o velho saltou na barriga do elefante, já inchado com gases fermentados. Equilibrou-se agilmente e o resto de seu grupo o seguiu, agarrados aos machados.

   Em seguida, o helicóptero levantou e mergulhou como uma libélula até o próximo animal, que mostrava belas presas. Ainda estava vivo e conseguiu sentar-se, levantando a tromba ensangüentada e coberta de pó para tentar capturar o helicóptero que flutuava logo acima.

   Agarrado à carlinga, o guerrilheiro mirou o AK 47, disparou um único tiro na parte de trás do pescoço, bem no limite com o crânio, e a elefanta tombou, imóvel como o corpo do filhote a seu lado. Fez sinal ao chefe da próxima equipe.

   Equilibrando-se nas gigantescas cabeças, atentos para não tocarem o chão, os homens retiravam as presas. Era uma tarefa delicada, porque um corte malfeito diminuía drasticamente o valor do marfim. Tinham visto o oficial de jeans quebrar o queixo de um homem com uma pancada seca e precisa da coronha do rifle só por ter objetado uma ordem. O que não faria com quem estragasse uma presa? Trabalhavam com cuidado e, à medida que ficavam soltas, o helicóptero as guindava e depois transportava a equipe para outra carcaça.

   À noitinha, a maioria dos elefantes morrera dos enormes ferimentos ou a bala, mas os gritos dos que ainda não tinham recebido o tiro de misericórdia misturavam-se ao alarido dos bandos de hienas e chacais para tornar a noite terrível. Os homens com machados e panga trabalhavam à luz de archotes de palha, e ao amanhecer todo o marfim fora recolhido.

   Agora, podiam começar a descarnar e desmembrar os corpos. O calor cada vez maior foi mais rápido que eles. O fedor de carne putrefata misturou-se aos gases das entranhas rompidas e levou os animais necrófagos que rondavam a área a novos paroxismos de gula. O helicóptero transportava cada quarto ou paleta retalhados para solo seguro, além do campo minado. As mulheres cortavam a carne em tiras e as dependuravam nos cavaletes de defumar sobre os braseiros enfumaçados de lenha verde.

   Enquanto supervisionava o trabalho, o oficial calculava os despojos. Era uma pena perder os couros, pois valiam mil dólares cada, mas eram grandes demais e não poderiam ser preservados, a putrefação os tornaria sem valor. Por outro lado, uma certa putrefação daria à carne mais paladar para os africanos - da mesma maneira como os ingleses gostam de sua caça um pouco passada.

   Quinhentas toneladas de carne úmida perderiam a metade do peso no processo de secagem, mas as minas de cobre da vizinha Zâmbia com dezenas de milhares de trabalhadores para alimentar era um mercado ávido de proteínas. Dois dólares por meio quilo de carne era o preço já combinado. Isso significava um milhão de dólares americanos, e havia, naturalmente, o marfim.

   Fora transportado pelo helicóptero para além do acampamento desordenado, até um lugar protegido nas colinas. Lá, uma equipe selecionada começou a remover a gordura branca e cónica da extremidade de cada presa e a limpar o marfim do sangue e do muco que poderiam denunciá-lo ao nariz sensível de algum funcionário oriental de alfândega.

   Havia quatrocentas presas. Algumas, retiradas de animais imaturos, pesavam apenas poucos quilos, mas as do velho líder tinham bem mais que quarenta quilos cada. O atual preço em Hong Kong era de cem dólares por meio quilo, portanto, obteria um total de oitocentos mil dólares pelo lote. O lucro de alguns dias de trabalho chegaria a quase dois milhões de dólares, numa terra onde a renda média anual de um homem adulto era cerca de seiscentos dólares.

   Claro que tivera pequenos custos operacionais. Um dos açougueiros perdera o equilíbrio e caíra de uma carcaça, de nádegas, diretamente em cima de uma mina.

   Filho de um babuíno demente, esse fora o comentário do oficial, ainda irritado com a estupidez do homem que interrompera o trabalho por uma hora até que o corpo fosse recuperado e preparado para o enterro.

   Outro perdera um pé devido a um golpe descuidado de machado e mais de uma dúzia tinha sofrido cortes menores das panga. Outro, ainda, morrera durante a noite com um tiro de AK 47 no estômago quando objetara o que o oficial estava fazendo com sua esposa mais moça nas moitas por trás dos cavaletes de defumar - mas, quando levava-se em consideração o lucro, eram custos realmente pequenos. O camarada comissário ficaria satisfeito.

   Já era a manhã do terceiro dia quando a equipe que trabalhava com o marfim acabou a tarefa de maneira satisfatória para o guerrilheiro. Foram, então, enviados ao vale para ajudar na defumação, deixando o acampamento deserto. Não deveria haver testemunhas que descobrissem a identidade do importante visitante que viria fazer uma inspeção dos despojos.

   Chegou de helicóptero, e o oficial estava em posição de sentido na clareira, ao lado das fileiras de marfim lustroso. O vento das hélices açoitou violentamente a jaqueta e o jeans, mas manteve-se imóvel.

   O aparelho aterrissou e uma figura imponente desceu; um belo homem, ereto e forte, com dentes muito brancos e quadrados, que contrastavam com o tom escuro do rosto, e o crespo e enrolado cabelo africano aparado rente ao crânio bem formado. Usava um terno cinza-pérola caro e de corte italiano, com uma camisa branca e gravata azul-marinho. Os sapatos pretos eram feitos à mão e de pelica fina.

   Estendeu as mãos e imediatamente o homem mais jovem abandonou a posição respeitosa e correu até ele, como faz uma criança com o pai.

   Camarada comissário!

   Não! Não! - repreendeu-o gentilmente, ainda sorrindo.

- Não sou mais o camarada comissário, mas o camarada ministro. Não mais o líder de um bando miserável de guerrilheiros sujos, mas o ministro de Estado de um país soberano - e permitiu-se sorrir, enquanto inspecionava as fileiras das presas recém-capturadas - E o mais bem-sucedido caçador furtivo de marfim de todos os tempos, não é mesmo?

   CRAIG MELLOW fez uma careta quando o táxi sacolejou novamente ao passar por um buraco da Quinta Avenida logo em frente à Berg- dorf Goodman. Como quase todos os táxis de Nova York, sua suspensão era mais adequada a um tanque Sherman.

   Já fiz viagens melhores pela depressão do Mbabwe em um Land- Rover, pensou, e sentiu uma súbita pontada nostálgica ao lembrar-se daquele caminho sulcado e tortuoso através das terras ruins abaixo do rio Chobe, o largo e verde afluente do grande Zambeze.

   Tudo isso fora há muito tempo, e descartou a lembrança, voltando à frustração que sentia por ter que ir de táxi a um almoço com seu editor, e, ainda por cima, pagar a corrida. Já houvera época em que teriam mandado uma limusine com chofer para buscá-lo, e o encontro seria no Four Seasons ou no La Grenouille, e não em alguma cantina italiana no Village. Os editores faziam esse tipo de protesto sutil quando um escritor não entregava há três anos um manuscrito. Passava mais tempo devaneando com seu corretor da Bolsa e divertindo-se no Studio 54 que na máquina de escrever.

   Bem, acho que mereci isso, refletiu, pegando um cigarro, e parou em seguida, lembrando-se de que havia deixado de fumar.

   Passou as mãos no cabelo caído na testa e ficou observando a multidão nas calçadas. Houvera um tempo em que achara excitante todo aquele movimento, depois do silêncio dos campos africanos; até as fachadas frágeis e os letreiros de néon nas ruas apinhadas tinham sido estimulantes. Agora, sentia-se sufocado e claustrofóbico, ansiava pela amplidão do céu, e não por aquela nesga que aparecia entre os topos dos altos prédios.

   O táxi freou bruscamente, interrompendo-lhe os pensamentos, o chofer murmurou: Rua Dezesseis sem olhar para trás, e Craig estendeu-lhe uma nota de dez dólares pela tela blindada que protegia o motorista dos passageiros.

   - Fique com o troco. - Saltou para a calçada, onde localizou imediatamente o restaurante, com toldos típicos e garrafas de chiatiti forradas de palha na janela.

   Ao cruzar a rua, andou com facilidade, sem coxear, e ninguém que o observasse teria adivinhado o defeito. Apesar das desconfianças, o restaurante era fresco e limpo, e o cheiro de comida, apetitoso.

   Ashe Levy levantou-se de um reservado nos fundos do restaurante e fez-lhe um sinal.

   - Craig, meu rapaz! - disse, e abraçou-o dando tapinhas em suas costas. - Você está ótimo, seu velho caçador!

   Ashe cultivava um estilo eclético próprio. O cabelo era cortado à escovinha e usava óculos de aros de ouro. A camisa era listrada com o colarinho branco, abotoaduras e alfinete de gravata de platina, sapatos castanhos adornados com furinhos na extremidade, e casaco de casimira, de lapelas estreitas. Tinha olhos muito claros, um pouco estrábicos, e Craig sabia que fumava apenas os melhores charutos tihuana gold.

   - Que lugar agradável, Ashe. Como o descobriu?

   - Para variar um pouco do velho e aborrecido Seasons - Ashe sorriu com astúcia, satisfeito por seu gesto reprovador ter sido notado. - Craig, quero lhe apresentar uma moça muito talentosa.

   Estava sentada na penumbra ao fundo do reservado, mas, naquele instante, inclinou-se e estendeu a mão, que foi iluminada pelo spot, e essa foi a primeira impressão que teve dela.

   Estreita e de dedos aristocráticos. As unhas, apesar de imaculadas, estavam cortadas rentes e sem esmalte, e a pele, bronzeada, tinha finas veias azuis. A ossatura era delicada, mas havia calosidade na base dos dedos longos. Era a mão de quem estava acostumado a trabalho pesado.

   Craig segurou-a, sentiu a força e a maciez da pele fresca e os pontos ásperos na palma; e olhou seu rosto.

   Tinha sobrancelhas escuras e fartas. Seus olhos, mesmo vistos através da penumbra, eram verdes, com pontinhos cor de mel em torno da pupila, e trocaram um olhar direto e franco.

   - Sally-Anne Jay... este é Craig Mellow - apresentou-os Ashe.

   O nariz era reto, mas um pouco largo, e a boca, muito grande para ser bonita. O farto cabelo escuro estava preso severamente, descobrindo a testa larga; o rosto, tão bronzeado quanto as mãos, tinha pequenas sardas salpicadas nas faces.

Li seu livro - disse, e a voz era firme e clara, com um leve sotaque britânico. Mas só quando ouviu-lhe o timbre, percebeu como era jovem. - E acho que merece tudo o que lhe aconteceu.

É um cumprimento ou uma ironia? - tentou fazer a pergunta soar superficial e despreocupada, mas descobriu-se desejando ardentemente que não fosse uma daquelas pessoas que tentavam exibir padrões literários exigentes, denegrindo cara a cara um escritor popular.

- Aconteceram-lhe coisas excelentes - acentuou ela, e Craig sentiu-se satisfeito, mesmo que com esse comentário ela não tivesse respondido a uma pergunta.

Apertou-lhe a mão e conservou-a na sua pouco além do necessário; ela a retirou, colocando-a com decisão no colo.

Então, não era nem uma demolidora, nem uma fã arrebatada. De qualquer maneira, pensou, já estava farto delas.

- Vamos convencer Ashe a nos pagar um drinque - sugeriu, sentando-se defronte a ela.

Ashe fez o espetáculo habitual com a carta de vinhos, mas acabaram bebendo um Frascati de dez dólares.

- Tem um bom buquê - Ashe observou, rolando-o na língua.

- Está gelado e é líquido - replicou Craig, e Ashe sorriu, enquanto ambos lembravam-se do Corton Charlemagne 70 que haviam bebido da última vez.

- Estamos esperando outra pessoa - disse Ashe ao garçom.

- Faremos o pedido depois - acrescentou, e virou-se para Craig.

- Queria que Sally-Anne tivesse uma chance de mostrar-lhe seu material.

- Mostre-me - convidou Craig, imediatamente voltando à defensiva.

A cidade estava cheia de gente que queria entrar em suas águas territoriais: uns, com manuscritos inéditos atrás de seu patrocínio, outros, com conselhos sobre investimentos para todos aqueles seus lindos royalties. Alguns que iriam permitir que escrevesse a história de suas vidas e dividiriam generosamente os lucros. Queriam contratá-lo para escrever roteiros de cinema por um pequeno adiantamento e uma participação ainda menor no filme, caso fizesse sucesso, enfim, todo o tipo de Hienas agrupando-se para os despojos da matança do leão.

   Sally-Anne pegou uma pasta no assoalho e colocou-a em frente a Craig. Enquanto Ashe ajustava o spot, desatou as fitas que a prendiam, abriu a capa e imobilizou-se, sentindo arrepios.

   Essa era sua reação a qualquer coisa de beleza perfeita. Como o Gauguin do Metropolitan Museum do Central Park; certas passagens da poesia de T.S. Eliot e da prosa de Lawrence Durrell, toda vez que as relia. As primeiras notas da Quinta Sinfonia de Beethoven; aqueles incríveis jetés de Rudolph Nureiev - essas coisas davam-lhe arrepios, exatamente como essa foto à sua frente.

   A fotografia tinha a textura delicada como casca de ovo, o que tornava cada detalhe nítido e as cores claras e verdadeiras.

   A fotografia de um elefante, de um velho elefante. Encarava a câmera na atitude característica de alarme, com as orelhas desfraldadas como bandeiras negras. De alguma forma, retratava toda a vastidão e a intemporalidade de um continente, e, no entanto, estava acuado; parecia sentir que toda sua enorme força era inútil, que estava confuso por coisas além de suas experiências e das memórias ancestrais, e a pique de ser esmagado pela mudança, como a própria África.

   A terra aparecia junto a ele na foto, a terra rica e vermelha levada pelo vento, arruinada pelo sol e pela seca. E, sobre isso tudo, o céu continha uma promessa de socorro: os cúmulos-nimbos prateados eram atravessados por um único raio de luz que caía como uma bênção sobre o animal.

   Ela capturara o significado e o mistério de sua terra natal no centésimo de segundo que uma lente leva para abrir-se e tornar a fechar, enquanto ele labutara por longos meses e nem sequer se aproximara disso e, reconhecendo o próprio fracasso, sentiu medo de tentar novamente. Tomou um gole do vinho insípido, como uma punição por aquela súbita crise de confiança na própria habilidade.

- De onde você é? - perguntou à moça, sem olhá-la.

   - Danver, Colorado. Mas meu pai está na embaixada em Londres há anos e estudei a maior parte do tempo na Inglaterra. - Explicava-se assim o sotaque. - Fui para a África com dezoito anos e me apaixonei por ela - acrescentou, completando com simplicidade a história de sua vida.

   Foi preciso um esforço físico para Craig tocar a fotografia e delicadamente virá-la. Depois dela, havia a de uma jovem sentada numa rocha negra vulcânica ao lado de um poço no deserto. Usava adorno em couro nas orelhas, característico da tribo Ovahimba. O filho estava no colo e mamava no seio nu. A pele da mulher estava lustrosa de gordura e pó ocre, e os olhos eram os de um afresco num túmulo de faraó; era linda.

   Realmente... Denver, Colorado, pensou, ficando surpreso com a própria amargura e a intensidade do súbito ressentimento. Como se atrevia aquela desgraçada garota estrangeira capturar tão exatamente o espírito complexo de um povo no retrato daquela jovem? Vivera com eles e, no entanto, nunca vira tão claramente um africano como via naquele momento.

   Virou a foto com violência contida. A próxima era um close da corola em formato de trombeta da magnífica Kigelia africana, castanha e dourada, sua flor silvestre favorita. Em uma das pétalas aninhava-se um minúsculo besouro, como uma jóia de um verde irisado e brilhante. Era uma composição perfeita de cor e forma e descobriu que a odiava por isso.

   Havia muitas outras. A de um sorridente miliciano com um fuzil AK 47 no ombro e um colar de orelhas humanas embalsamadas no pescoço, uma caricatura da selvageria. A de um enrugado feiticeiro cercado por chifres, contas, crânios e toda parafernália de sua medicina; tinha à sua frente uma paciente estendida na terra em pleno processo primitivo de sangria. Era uma mulher na flor da idade com tatuagens nos seios, faces e testa. Os dentes estavam limados e afilados como os de um tubarão, uma relíquia dos dias de canibalismo, e os olhos, como os de um animal ferido, pareciam cheios do estoicismo e paciência africanos.

   Na seqüência, vinha uma foto de crianças africanas numa sala de aula feita com postes e toscamente coberta de palha. Havia um único livro para cada três crianças, mas tinham as mãos avidamente levantadas para responder às perguntas do jovem professor negro, e os rostos exprimiam o desejo de conhecer.

   Estava tudo lá, um registro completo de esperança e desespero, de pobreza abjeta e grande riqueza, de selvageria e ternura, de elementos implacáveis e frutificação plena, de dor e alegria. Craig virava as páginas devagar, saboreando cada imagem e adiando o momento em que deveria encará-la.

   Parou, de repente, diante de uma composição especialmente tocante. O filme em preto e branco fora usado para aumentar o efeito dramático, e o jardim de ossos reluzia sob o sol africano. Os grandes fémures e tíbias ressecados assemelhavam-se a madeira de destroços marinhos, as enormes costelas a estruturas de clíperes naufragados e os crânios, com buracos escuros no lugar dos olhos, a barris de cerveja. Craig lembrou-se do legendário cemitério de elefantes, o velho mito dos caçadores, o lugar secreto aonde iam morrer.

   - Caçadores furtivos - ela disse. - Duzentas e oitenta e seis carcaças.

   Craig a olhou, assombrado com o número.

   - De uma vez? - perguntou, e ela assentiu.

   - Eles os encurralaram em um dos velhos campos minados.

   Craig estremeceu sem querer e olhou a fotografia novamente. A mão direita, sob a mesa, deslizou ao longo da coxa até sentir a correia apertada que segurava a perna mecânica, e sentiu empatia pelo destino daqueles paquidermes. Lembrava-se do próprio campo minado e sentiu novamente o impacto brutal da explosão no pé.

   - Sinto muito. Eu sei sobre sua perna - ela disse.

   - Fez direitinho o dever da escola - Ashe pilheriou.

   Calem-se! Por que não calam a boca?, pensou Craig, furioso. Detestava qualquer menção à perna. E, se realmente tivesse feito o dever da escola, saberia. Mas não era só o que haviam dito o motivo de sua irritação. Eram os elefantes também. Trabalhara como guarda do departamento de caça. Conhecia-os, aprendera a amá-los e a evidência daquela mortandade o deixara doente e horrorizado, aumentando o ressentimento contra a moça; infligira-lhe essa dor e queria vingar-se. Mas, antes que o fizesse, o convidado atrasado chegou, desviando sua atenção do assunto.

   - Craig, quero que conheça um tipo todo especial. - Todas as apresentações de Ashe tinham um tom comercial. - Este é Henry Pickering, vice-presidente do Banco Mundial. Se prestar atenção vai ouvir bilhões de dólares tilintando na cabeça dele. Henry, este é Craig Mellow, nosso garoto prodígio. E, sem excluir Karen Blixen, é um dos mais importantes escritores sobre a África que já apareceram, é isso aí!

   - Li seu livro - disse Henry. Era muito alto, magro e prematuramente careca; vestia um terno escuro e uma camisa imaculadamente branca, bem ao estilo sóbrio dos executivos; o único toque pessoal no traje era a gravata que combinava com os olhos azuis. - Ao menos uma vez, não está exagerando, Ashe.

Beijou o rosto de Sally-Anne, sentou-se, provou o vinho que Ashe lhe serviu e empurrou o copo ligeiramente à sua frente; Craig admirou seu estilo.

O que acha delas? - perguntou Henry Pickering, olhando o portfolio aberto.

Adorou, Henry - interrompeu Ashe Levy rapidamente.

- Está maluco por elas, gostaria que tivesse visto a cara dele quando deu a primeira olhada, amou-as,cara', simplesmente as adorou!

Muito bem - disse Henry em voz macia, observando a fisionomia de Craig. - Já lhe explicou o projeto?

- Não. Queria esquentá-lo primeiro. Deixar que sentisse um impacto - e virou-se para Craig. - Trata-se de um livro intitulado: "A África de Craig Mellow". Você escreve sobre a África de seus antepassados, sobre como foi e o que se tornou. Volta para lá e faz um levantamento aprofundado. Fala com as pessoas...

- Desculpe - interrompeu-o Henry. - Parece-me que fala uma das duas línguas principais, o sindebele, não é?

- Fluentemente - respondeu Ashe em lugar de Craig. - Como um nativo.

- Isto é ótimo! É verdade que tem muitos amigos... em posições importantes no governo?

- Alguns de seus velhos camaradas são ministros do gabinete do governo de Zimbábue. Não se pode ir mais alto que isso.

Craig olhou a foto do cemitério de elefantes. Não se acostumava com o novo nome, Zimbábue, dado pelos negros. Ainda pensava nela como Rodésia. Era a terra que seus ancestrais haviam forjado da selva com picaretas, machados e metralhadoras Maxim. Com qualquer nome que tivesse, ainda era o seu lar.

- Vai ser uma edição de primeira ordem, Craig, sem poupar despesas. Pode ir aonde quiser, falar com quem quiser, que o Banco Mundial irá endossá-lo - continuou entusiasticamente Ashe, e Craig olhou para Pickering.

- O Banco Mundial agora virou editora? - perguntou sarcasticamente, e, quando Ashe ia novamente responder, Henry Pickering o impediu, colocando-lhe a mão no braço.

- Quero ficar com a bola por algum tempo, Ashe - disse, apaziguador, percebendo o mau humor de Craig, e continuou em tom gentil: - A parte mais importante de nossos negócios são empréstimos a países subdesenvolvidos. Temos quase um bilhão aplicado em Zimbábue e queremos proteger nosso investimento. Pense nisso como uma prospecção, queremos que o mundo conheça esse pequeno Estado africano que gostaríamos de transformar num exemplo de como um governo negro pode ser bem-sucedido.

   - E isso aqui? - perguntou Craig, indicando as fotografias.

   - Queremos que o livro tenha também impacto visual, além do intelectual, e achamos que Sally-Anne pode fazer isso.

   Craig ficou alguns segundos em silêncio enquanto sentia o terror crescer dentro de si como um réptil assustador. Teria que competir com aquelas fotos, escrever um texto que não fosse esmagado por aquelas imagens. Poria sua reputação em jogo enquanto a garota não tinha nada a perder, as chances estavam todas a seu lado. Não seria uma aliada, mas uma adversária, e o ressentimento voltou tão forte que mais parecia ódio.

   Estava inclinada em sua direção, e o spot batia diretamente nos longos cílios que emolduravam-lhe os olhos. A boca, entreaberta, demonstrava a ansiedade que sentia. Mesmo com raiva e medo, Craig imaginou como seria beijá-la.

   - Craig - disse -, sei que posso fazer melhor, ao menos vou tentar, se tiver chance, se você me der esta chance. Por favor!

   - Gosta de elefantes, não é? - ele perguntou. - Pois vou lhe contar uma história sobre eles. Um velho elefante tinha uma pulga vivendo na orelha esquerda e, um dia, ao atravessar uma ponte pouco segura, ela lhe disse: "Puxa, rapaz, nós balançamos aquela ponte pra valer!"

   Os lábios de Sally-Anne fecharam-se lentamente e perderam a cor. As pálpebras estremeceram, e, quando as lágrimas começaram a cair, saiu do foco de luz.

   Houve um silêncio constrangedor, e Craig sentiu-se invadido pelo remorso com a própria crueldade e mesquinharia. Julgara-a uma pessoa forte que lhe retrucaria com uma resposta mordaz, não com lágrimas. Queria consolá-la, explicar-lhe o medo e a insegurança que sentia e que o levaram a ser cruel, mas ela levantou-se e pegou o port-fólio.

   - Há trechos em seu livro tão sensíveis e cheios de compaixão que me fizeram desejar trabalhar com você - disse, com doçura.

- Acho que foi tolice minha acreditar que se pareceria com ele.

- Olhou para Ashe. - Desculpe, Ashe, mas perdi o apetite.

Vamos rachar um táxi - disse Ashe, levantando-se rapidamente e dirigindo-se a Craig: - Belo trabalho, herói. Telefone quando estiver com outro manuscrito pronto - e apressou-se em sair atrás de Sally-Anne.

Ao chegar à porta, o sol desenhou-lhe a silhueta e Craig viu o contorno das pernas sob a transparência da saia: eram longas e bem-feitas.

Henry Pickering brincava com o copo, olhando pensativamente para o vinho.

- É uma espécie de urina de bode italiano pausterizada - disse Craig, percebendo como a voz estava insegura, e, em seguida, encomendou uma garrafa de Mersault ao garçom.

- Melhor assim - disse Henry sombriamente. - Talvez esse livro não fosse uma idéia tão boa, não é? - Olhou o relógio. - É melhor encomendarmos o almoço.

Falaram sobre coisas triviais: o não-pagamento da dívida mexicana, o relatório de Reagan à nação, o preço do ouro. A preferência de Henry pela prata como aplicação a curto prazo. As ações mais cotadas na Bolsa.

- Compre ações da De Beer e as guarde - aconselhou Henry.

Uma jovem e esbelta loura aproximou-se deles quando tomavam café.

- Você é Craig Mellow? - disse em tom adulador. - Vi você na tevê e adorei seu livro. Por favor, me dê um autógrafo.

Enquanto ele assinava o cardápio, ela inclinou-se sobre seu ombro e pressionou-o com os seios pequenos e rijos.

- Trabalho na seção de cosméticos da Saks, na Quinta Avenida - sussurrou. - Pode me encontrar lá a qualquer hora... - O odor de perfume ainda continuou no ar depois que partiu.

- Sempre dá o fora nelas? - perguntou Henry um pouco nostalgicamente.

- Todo homem tem suas falhas - Craig riu, e Henry insistiu em pagar a conta.

- Estou de carro. Posso deixá-lo onde quiser.

- Vou dar uma caminhada, é bom para ajudar a digestão - disse.

   - Sabe, Craig, acho que vai voltar para a África. Vi como olhou esfomeado para aquelas fotos.

   - É possível.

   - Há muitas coisas que não foram ditas ou que Ashe não com preendeu. Você conhece os negros que estão no poder lá, e isso me interessa. As idéias que expressou em seu livro concordam com as nossas. Se decidir voltar, telefone-me. Poderíamos nos fazer um favor mútuo.

   Henry entrou no assento traseiro da limusine negra e, com a porta ainda aberta, disse:

   - Na verdade, achei as fotos dela excelentes - e fechou a porta acenando para o chofer.

   O BAWU estava ancorado entre dois iates recentemente construídos, um Camper e Nicholson de uns quinze metros de comprimento e um Hatteras conversível, e suportava muito bem a comparação, apesar de ter quase cinco anos. Craig colocara cada parafuso com as próprias mãos e parou na entrada da marina para olhá-lo, mas, naquele dia, não sentiu prazer ao contemplar as suas linhas.

   - Houve dois telefonemas para você, Craig - avisou a recepcionista do escritório da marina. - Pode usar este telefone - ofereceu a moça.

   Leu os recados que lhe entregara: um, de seu corretor com a palavra urgente sublinhada, e outro, da editora de um jornal do meio-oeste. Não tivera muitos deste tipo ultimamente.

   Telefonou primeiro ao corretor, que informou ter vendido as ações Mocatta de ouro, compradas por trezentos e vinte dólares a onça, por quinhentos e dois, e disse-lhe que depositasse o dinheiro. Em seguida, para o outro número. Enquanto aguardava, a moça por trás do balcão se movimentava, inclinando-se para olhar os arquivos mais baixos, dando-lhe uma boa visão do que tinha por dentro do bustiê cor-de-rosa.

   Quando conseguiu falar com a editora, ela quis saber quando sairia o próximo livro.

   Que livro?, pensou com amargura, mas disse-lhe:

   - Ainda não tem data certa, mas já está bem encaminhado. Enquanto isso, quer fazer uma entrevista?

- Obrigada, mas vamos esperar até que o livro seja publicado, sr. Mellow.

Vai esperar muito, querida, pensou, e, ao desligar, a recepcionista olhou com vivacidade.

A festa hoje vai ser no Firewater - disse, pois havia uma festa em um dos iates todas as noites do ano. - Você vai?

Tinha um belo corpo, e o mostrava generosamente entre o short e o bustiê. Sem os óculos, ficaria bem bonita. E, que diabo, acabara de ganhar duzentos e cinqüenta mil dólares com as ações do ouro! Precisava comemorar.

- Vou dar uma festa particular no Bawu. Apenas para dois...

O rosto dela iluminou-se e ele viu que dera a resposta certa.

- Saio às cinco.

- Eu sei. Vá direto para lá - respondeu.

Liquide com uma e faça outra feliz. Devia equilibrar um pouco as coisas, pensou.

 

DEITADO DE COSTAS, com as mãos atrás da cabeça, ouvia os pequenos ruídos da noite. O estalar do leme, a batida da adriça contra o mastro e o rumor das pequenas ondas contra o casco. Do outro lado da enseada, a festa no Firewater estava ainda muito animada, ouviu o som distante de risadas ao atirarem alguém no mar.

Ao lado dele, adormecida, a moça ressonava baixinho. Fora ardente e demonstrara grande habilidade, mas absolutamente isso o gratificara. Inquieto, gostaria de subir ao convés, mas temia acordá-la; não tinha mais disposição para fazer amor e seria constrangedor ex- plicar-lhe isso. Forçou-se a ficar deitado, deixando que as imagens das fotos de Sally-Anne lhe desfilassem pela cabeça como em um caleidoscópio. Elas despertaram lembranças há muito adormecidas que voltavam agora nítidas e claras, acompanhadas pelos cheiros, sabores e sons da África, de tal forma que podia ouvir novamente os tambores nativos ao longo do rio Chobe à noite e sentir o cheiro da chuva na terra seca. Foi invadido por tamanha nostalgia que não pôde dormir.

   A MOÇA insistiu em lhe preparar o café da manhã, mas o fez sem a prática que demonstrara ao fazer amor, e, depois que se foi, levou uma hora para arrumar a cabine, só então subiu para o salão.

   Fechou a cortina da escotilha sobre a mesa onde escrevia, para não ser perturbado pelas atividades da marina, e instalou-se para trabalhar. Releu o último trecho de dez páginas e viu que teria sorte se pudesse aproveitar duas. Depois de uma hora, procurou a enciclopédia na estante ao lado, para achar uma palavra alternativa.

   - Deus, até eu sei que as pessoas não usam a palavra pusilânime numa conversa real - murmurou, enquanto pegava o volume, e parou ao ver um envelope cair de entre as páginas.

   Secretamente satisfeito com a desculpa para interromper o trabalho, abriu-o e, com um pequeno choque, descobriu que era a carta de uma jovem chamada Janine - uma moça que repartira com ele a agonia dos ferimentos de guerra, que percorrera com ele o longo e vagaroso caminho da recuperação; estivera a seu lado quando caminhara pela primeira vez, depois de ter perdido a perna, revezara-se com ele no leme quando enfrentaram, no Bawu, a primeira tempestade atlântica. Uma moça que amara e com quem quase casara, e cujo rosto tinha agora dificuldade em lembrar.

   Janine lhe escrevera, de sua casa em Yorkshire, três dias antes de casar-se com o veterinário que era o sócio mais moço no consultório do pai. Releu a carta lentamente, todas as dez páginas, e compreendeu por que a escondera. Janine fora amarga em alguns trechos e cortante em outros:

   ... Você foi um fracassado por tanto tempo que o súbito sucesso virou-lhe a cabeça...

   Fez uma pausa ao ler isso. Que mais havia feito além daquele único livro? Volveu os olhos para o papel e continuou a ler.

   ...Você era tão inocente e gentil, Craig; tão amoroso à sua maneira infantil e desajeitada. Eu poderia conviver com esse homem, mas, depois que deixamos a África, você foi se transformando em um estranho, começou a se tornar duro e cínico...

   ...Lembra-se do primeiro dia em que nos encontramos e de que eu lhe disse: "Você é um garotinho mimado que desiste de tudo o que vale a pena"? Bem, é verdade, Craig, você desistiu de nosso relacionamento. Não me refiro apenas às outras garotas, às falsas literatas, quero me referir ao fato de que desistiu de se importar. Deixe que lhe dê um conselho grátis: não desista da única coisa que consegue fazer bem, não desista de escrever, Craig. Isso seria verdadeiramente um pecado...

Lembrou-se de como desdenhara dessas palavras, quando as lera pela primeira vez. Não pensava assim agora. Como uma profecia estavam ocorrendo exatamente como ela as previa.

   - Eu realmente o amei, Craig, não de repente, mas pouco a pouco. Você teve de se esforçar muito para destruir isso. Já não o amo mais, duvido que ainda venha a amar um outro homem, nem mesmo este com quem vou me casar no sábado. Mas ainda gosto de você, sempre gostarei. Desejo tudo de bom para você; apenas tome cuidado com esse seu inimigo implacável: você mesmo.

Craig dobrou a carta e sentiu vontade de tomar um drinque. Foi ao camarote e serviu-se de um Bacardi. Uma grande dose com suco de lima. Enquanto bebia, releu a carta e, daquela vez, uma frase chamou-lhe a atenção.

... Depois que partimos da África, tudo pareceu secar dentro de você - a compreensão, o talento...

- Sim - murmurou. - Secou. Está tudo ressequido.

Subitamente, sentiu a dor intolerável da saudade. Perdera o caminho, a fonte dentro dele secara e queria que ela voltasse a jorrar.

Rasgou a carta em pedacinhos e os atirou nas águas poluídas da enseada. Em seguida desceu para o cais.

Não queria falar com a recepcionista, por isso usou o telefone público no portão da marina. Foi mais fácil do que imaginara. A telefonista ligou-o com a secretária de Henry Pickering.

- Não sei se o sr. Pickering poderá atender. Quem está falando, por favor?

- Craig Mellow.

Henry Pickering atendeu quase que imediatamente.

- Há um velho ditado matabele que diz: "o homem que bebeu das águas do Zambeze sempre volta para delas beber novamente" - disse-lhe Craig.

- Então, está com sede? - perguntou Pickering.

- Disse-me que lhe telefonasse.

- Venha qualquer hora falar comigo.

- Hoje? - perguntou Craig.

- Puxa, rapaz, você está mesmo com sede! Espere um pouco, deixe-me checar a agenda. Que tal às seis hoje à tarde? É o mais cedo que posso.

 

   O ESCRITÓRIO de Henry ficava no vigésimo sexto andar e de lá avistava-se desde as avenidas e ruas até o espaço verde do Central Park a distância.

   Henry preparou-lhe um uísque com soda e levou o copo até onde estava, na janela. Ficaram olhando o movimento da cidade e bebendo em silêncio, enquanto o disco vermelho do sol projetava sombras estranhas no crepúsculo.

   - Acho que já é hora de abrir o jogo, Henry - disse, afinal, Craig. - Diga-me o que realmente quer de mim.

   - Talvez esteja certo. O livro era camuflagem. Apesar de que, pessoalmente, gostaria de ter visto suas palavras unidas àquelas fotos.

   Craig fez um gesto impaciente, e Henry continuou:

   - Sou o vice-presidente encarregado da divisão africana.

   - Vi isso escrito na sua porta - assentiu Craig.

   - Apesar do que dizem, não somos uma instituição de caridade, e sim, um dos baluartes do capitalismo. A África é um continente de Estados economicamente frágeis. Com a óbvia exceção da África do Sul e dos produtores de petróleo ao norte, são sociedades de subsistência agrícola, sem uma estrutura industrial e com poucos recursos minerais.

   Craig concordou.

   - Alguns dos que conseguiram recentemente tornar-se independentes do velho sistema colonial ainda estão se beneficiando da infra-estrutura construída pelos colonos brancos; enquanto os outros, Zâmbia, Tanzânia e Maputo, por exemplo, se deixaram arrastar para um caos de letargia e fantasias ideológicas. Vai ser duro salvá-los. - Henry balançou a cabeça tristemente, ficando ainda mais parecido com uma cegonha fúnebre. - Mas em outros, como no Zimbábue, Quênia e Malawi, temos uma chance de lutar. O sistema ainda está funcionando, já que nem todas as fazendas foram dizimadas e entregues às hordas camponesas de posseiros, a estrada de ferro funciona, há negócios de troca de minérios como cobre, cromo, outros países, e turismo. Poderemos mantê-los com um pouco de sorte.

   E por que dar-se a esse trabalho? - perguntou Craig.

- Você mesmo disse que não está no negócio de caridade.

   Porque se não os alimentarmos, cedo ou tarde vamos ter de lutar contra eles, é só. Se começarem a morrer de fome, adivinhe em que garras vermelhas vão cair.

   Sim, isso faz sentido - e Craig tomou um gole de uísque.

   Voltando à realidade - continuou Henry -, os países em nossa lista de empréstimos têm uma mercadoria explorável, nada tão concreto como ouro, mas muito mais valiosa. São atraentes para os turistas ocidentais. Se quisermos ver algum retorno dos bilhões que aplicamos lá, temos de nos assegurar que continuem atraentes.

   - E como se faz isso? - disse Craig, voltando-se para ele.

   - Vamos tomar o Quênia como exemplo - sugeriu Henry. - Claro que tem muito sol e praias, mas a Grécia e a Sardenha também têm, e são um bocado mais perto de Paris e Berlim. O que a região mediterrânea não possui é a fauna africana, e é isso que atrairá os turistas. Esta é a nossa parte no acordo. Os dólares do turismo estão nos mantendo no negócio.

   - O raciocínio está correto, mas não vejo onde entro nisso. - Craig franziu as sobrancelhas.

   - Espere que vamos chegar lá - Henry lhe disse. - Deixe-me explicar um pouco o quadro primeiro. O caso é o seguinte: infelizmente, a primeira coisa que o recém-libertado africano vê depois que o homem branco parte é marfim, chifres de rinoceronte e carne abundante. Um rinoceronte ou elefante significa mais dinheiro do que poderia ganhar em dez anos de trabalho honesto. Durante cinqüenta anos, departamentos de caça dirigidos pelos brancos protegeram toda essa maravilhosa riqueza, mas agora os brancos fugiram para a Austrália ou Joanesburgo; um xeique árabe paga vinte e cinco mil dólares por uma adaga de cabo de chifre de rinoceronte e um guerrilheiro vitorioso tem um fuzil AK 47 nas mãos. É tudo muito lógico.

   - Sim, já compreendi - assentiu Craig.

   - Tivemos o mesmo problema no Quênia. A caça furtiva era um ótimo negócio dirigido pela cúpula. Foram precisos quinze anos e a morte de um presidente para terminar com isto. Hoje em dia, o Quênia tem as leis mais severas de caça de toda a África, e estão sendo cumpridas. Tivemos que usar nossa influência e ameaçá-los com a força, mas, hoje em dia, nosso investimento está protegido - e Henry pareceu satisfeito por um instante, mas logo a melancolia retornou. - Agora, vamos ter de trilhar a mesma estrada no Zimbábue. Você viu aquelas fotos da matança no campo minado. Uma outra incursão está sendo organizada, suspeitamos que por alguém do alto comando. Temos que detê-lo.

   - Ainda estou esperando para saber o que isso tem a ver comigo.

   - Preciso de um agente lá. Alguém com experiência, que tenha trabalhado no departamento de caça e proteção à fauna, que fale a língua local, e com uma desculpa autêntica para viajar e fazer perguntas. Um escritor de reputação internacional à procura de material para o novo livro, com amigos nas altas esferas do governo, seria perfeito. Isso abriria mais portas, e, se fosse um defensor dedicado do sistema capitalista e acreditasse de verdade no que estamos fazendo, seria totalmente eficaz.

   - Quer que eu banque o James Bond?

   - Investigador de campo para o Banco Mundial. O pagamento é de quarenta mil dólares por ano, mais despesas, e um bocado de satisfação com o trabalho; sei que não tem nenhum compromisso e o convido para almoçar no La Grenouille com o vinho que escolher.

   - Como disse antes, Henry, já não é hora de ser franco comigo? Sei que está ocultando algo, e não gosto de ser enganado.

   - Sua percepção confirma a sabedoria de minha escolha. Está certo, Craig, há mais alguma coisa. Não queria tornar a questão muito complicada até que se enfronhasse melhor nela. Deixe-me servir-lhe um outro drinque.

   Foi até o bar, e, enquanto punha gelo nos copos, continuou:

   - É vital termos uma visão completa do que acontece por baixo da superfície de todos os países onde investimos. Em outras palavras, um sistema de inteligência em funcionamento. Nossa organização em Zimbábue não é tão eficiente como eu desejo. Perdemos um homem-chave recentemente em um acidente de carro, que pode não ter sido acidente. Pouco antes de morrer, deu-nos uma pista: ouvira rumores de um coup d'état apoiado pelos russos.

   - Nós, africanos, não acreditamos mais no voto. As únicas coisas que contam são as lealdades tribais e um braço forte. Coup d'état faz mais sentido do que votos - declarou Craig.

Como é, entra para o time? - quis saber Henry. Por despesas entende-se passagens aéreas de primeira classe? perguntou Craig maldosamente.

- Todo homem tem seu preço. Esse é o seu? - retrucou Henry. - Não me vendo tão barato, mas detesto a idéia de ter um fantoche dos soviéticos dirigindo a terra onde minha perna foi perdida.

Aceito o emprego.

Achei que aceitaria - disse Henry, dando-lhe um aperto de mão surpreendentemente forte. - Vou mandar um mensageiro ao seu iate com uma pasta e um estojo de sobrevivência. Leia o conteúdo da pasta enquanto ele espera, devolva-a e fique com o estojo.

 

   O ESTOJO de sobrevivência de Henry Pickering tinha uma grande variedade de cartões de crédito, um certificado de sócio do Ambassadors Club da TWA, um cartão do Banco Mundial com crédito ilimitado e uma pasta de couro com uma estrela esmaltada gravada com "Asessor de Campo - Banco Mundial", que Craig sopesou.

   - Podia matar a pancadas um leão caçador de homens com isso - brincou. - Não sei para o que mais poderia servir.

   Mas o conteúdo da pasta revelou ser interessante. Ao terminar de lê-lo, compreendeu que a alteração do nome Rodésia para Zimbábue era uma das mudanças menos drásticas que varreram sua terra natal, desde que a deixara há poucos anos.

 

   CRAIG DIRIGIA O Volkswagen alugado, pelas colinas douradas, cobertas de pastagens, pisando com cuidado no acelerador. Conforme a moça matabele no balcão de Avis, no aeroporto de Bulawarjo o prevenira.

   - O tanque está cheio, senhor, mas não sei quando conseguirá enchê-lo de novo. Há muito pouca gasolina em Matabeleland.

   Na própria cidade, vira longas filas de carros nos postos e o proprietário do motel explicara o motivo enquanto assinava o registro e apanhava a chave de um dos bangalôs.

   - Os rebeldes maputo vindos da costa leste atacaram o oleoduto. O chato nisso tudo é que, logo depois da fronteira, os sul-africanos têm gasolina à vontade, mas nossos governantes não querem gasolina politicamente manchada. Então, o país inteiro fica parado. Esses sonhos políticos são uma praga; para existir, temos de comerciar com eles e já é hora de aceitarem isso.

   Por isso, Craig dirigia com cautela; a marcha lenta dava-lhe tempo para rever a paisagem, verificar as mudanças que alguns anos haviam produzido.

   Vinte e cinco quilômetros depois da cidade saiu da estrada asfaltada e pegou uma de terra, em direção ao norte. Rodou dois quilômetros e parou ao chegar à cerca. Verificou que o portão estava torto e escancarado; nunca o vira daquele jeito. Desceu e tentou fechá-lo, mas os gonzos estavam emperrados pela ferrugem. Desistiu do esforço e deixou a estrada para examinar a placa que estava atirada na grama.

   Fora arrancada e os elos que a prendiam, também. Estava de face para cima, e, apesar de desbotada pelo sol, ainda se podia ler:

Fazenda de criação de Afrikander King's Lynn Berço de "Ballantyne's Illustrious I" Campeão dos Campeões Proprietário: Jonathan Ballantyne Craig lembrou-se com nitidez do enorme animal castanho-avermelhado no ringue de exposição, com a roseta azul de campeão presa à testa e de Jonathan Bawu Ballantyne, seu avô materno, cunduzindo-o orgulhosamente pela argola de metal presa nas narinas.

   Voltou ao Volks e dirigiu através de pastagens que um dia tinham sido contínuas, verdes e cheirosas, mas onde agora entrevia-se a terra nua e empoeirada. Ficou desolado com a condição dos pastos. Nunca, nem mesmo na seca de quatro anos da década de cinqüenta, deixaram que a grama de King's Lynn deteriorasse daquela maneira, e não compreendeu a razão até parar novamente ao lado de um grupo de árvores espinhentas.

   - Cabras! - disse em voz alta. - Estão criando cabras em King's Lynn.

O fantasma de Jonathan Bawu Ballantyne devia estar vagando sem sossego. Cabras em sua amada pastagem. Craig foi procurá-las: havia duzentas ou mais, formando um rebanho. Alguns dos animais, ágeis e multicoloridos, haviam subido nas árvores para comer a casca e as vagens, enquanto os outros comiam o capim até as raízes, o que o mataria e deixaria o solo estéril. Ele vira a devastação que esses animais causaram nas reservas tribais.

   Havia dois meninos matabele nus pastoreando o rebanho, que ficaram fascinados quando Craig dirigiu-lhes a palavra em sindebele. Colocaram na boca as balas com que os presenteou e tagarelaram desinibidamente. Havia trinta famílias vivendo em King's Lynn e cada uma tinha um rebanho de cabras; as melhores de Matabeleland, gabaram-se, e debaixo de uma árvore um bode velho e chifrudo montou em uma jovem cabrinha.

   - Veja! - gritaram os pastores. - Eles se cruzam com vontade. Logo vamos ter mais cabras do que as outras famílias.

   - O que aconteceu aos fazendeiros brancos que moravam aqui?

- perguntou Craig.

   - Foram embora! Nossos guerreiros os expulsaram e agora a terra pertence aos filhos da revolução. - Tinham seis anos, mas já eram capazes de se exprimir no jargão revolucionário.

   Cada um possuía uma atiradeira feita de borracha pendurada no pescoço e, em torno da cintura nua, uma fieira de passarinhos mortos: cotovias, tourinegras e nectaríneas. Craig sabia que ao meio-dia os assariam inteiros sobre as brasas deixando as penas torrarem, e devorariam as minúsculas carcaças enegrecidas, com gula. O velho Bawu Ballantyne daria lambadas em qualquer menino pastor que caçasse com atiradeira.

   Seguiram Craig quando voltou até a estrada, pediram mais balas e ficaram dando adeus como a um velho amigo. Apesar das cabras e dos passarinhos, Craig sentiu novamente uma enorme afeição por aquela gente. Era bom estar em casa de novo.

   Parou no topo das colinas e, de lá, olhou as casas de King's Lynn. O gramado morrera por falta de cuidados e as cabras haviam comido os canteiros de flores. Mesmo a distância, pôde ver que a sede estava deserta, as janelas estavam quebradas. As telhas tinham sido tiradas e usadas para construir barracos de posseiros perto dos estábulos.

   Dirigiu até alcançar aquela área, parou perto do tanque de água, que estava seco e cheio de sujeira, e foi até o acampamento. Havia uma meia dúzia de famílias vivendo lá. Afugentou os vira-latas que correram ganindo com pedradas que deu e cumprimentou o velho sentado perto de uma das fogueiras.

   - Eu o saúdo, velho pai.

   Sentiu novamente a satisfação de dominar a língua, sentou-se perto do fogo por uma hora, tagarelando com o velho matabele - as palavras fluíam-se cada vez melhor e o ouvido reajustava-se ao ritmo e às nuances do sindebele. Ficou sabendo de mais coisas do que nos quatro dias desde que regressara a Matabeleland.

   - Eles nos disseram que depois da revolução todo homem teria um belo carro e quinhentas cabeças do melhor gado dos brancos - e o velho cuspiu na fogueira. - Os únicos que têm carros são os ministros do governo. Nos disseram que teríamos a barriga sempre cheia, mas a comida custa cinco vezes mais que no tempo de Smith e os brancos fugiram.

   Durante o regime branco, um rígido sistema de controle cambial e uma forte estrutura interna de controle de preços evitavam ao país os piores efeitos da inflação, mas agora estavam experimentando todas as alegrias de reingressar na comunidade internacional, e a moeda já fora desvalorizada em vinte por cento.

   - Não podemos manter o gado - explicou o velho -, por isso temos que criar cabras. Cabras! - e cuspiu novamente no fogo. - Como os shona comedores de porcaria - acrescentou, e o ódio tribal parecia ferver em seu sangue.

   Craig deixou-o resmungar e a caretear ao lado da fogueira fumarenta e foi até a casa. Enquanto subia para a espaçosa varanda da frente, teve a nítida impressão de que o avô apareceria de repente para saudá-lo com alguma observação mordaz. Pareceu ver novamente o velho, elegante e ereto, com uma espessa cabeleira branca, a pele como couro curtido e os inacreditáveis olhos verdes dos Ballantyne à sua frente.

   Então, Craig, voltou para casa com o rabo entre as pernas?

   Mas a varanda estava deserta, coberta de detritos e dejetos dos pombos selvagens que faziam ninho nos caibros sem serem molestados.

   Andou pela varanda até as portas duplas que davam para a velha biblioteca. Antes duas enormes presas de elefantes emolduravam-nas, eram de um animal que o trisavô de Craig matara em torno de 1860. Sempre haviam montado guarda à entrada de King's Lynn. O avô Bawu tocava-as sempre que passava por ali e havia um ponto lustroso onde os dedos roçavam no marfim amarelado. Agora restavam apenas buracos na parede de onde os ganchos que as prendiam foram arrancados. As únicas relíquias de família que herdara e ainda possuía eram a coleção de diários encadernados em couro, escritos laboriosamente a mão por seus ancestrais desde a vinda do trisavô à África cem anos antes. As presas completariam os velhos diários, e prometeu-se que as procuraria.

   Entrou na casa abandonada. As prateleiras e cômodas embutidas tinham sido arrancadas pelos posseiros do vale para as usarem como lenha; e as vidraças, usadas como alvo pelos garotos com estilingue. Os livros, os retratos, os tapetes e a pesada mobília de teca da Rodésia tinham desaparecido. A casa da sede era como uma casca, mas uma casca resistente. Com a mão espalmada, bateu nas paredes que o triavô Zouga Ballantyne construíra, de pedra lavrada a mão e cimento, e que tinham cem anos de solidez. Seria preciso um pouco de trabalho e um bocado de dinheiro para transformar aquela casca em um lar magnífico outra vez.

   Saiu da casa e subiu a colina até o cemitério da família que ficava à sombra de árvores msasa. O capim crescia por entre as pedras tumulares. Fora negligenciado, mas não vandalizado, como muitos outros monumentos deixados pela era colonial.

   Craig sentou-se à beira do túmulo do avô e disse:

   - Alô, Bawu, estou de volta - e estremeceu, quase como se ouvisse a voz do velho cheia de um pretenso escárnio falar em sua lembrança.

   Sim, toda vez que fica escaldado, volta correndo para cá. O que aconteceu desta vez?

   - Eu sequei, Bawu - respondeu à acusação em voz alta e ficou silencioso em seguida.

   Permaneceu sentado muito tempo e, muito lentamente, sentiu acalmar-se um pouco.

   - Este lugar está uma bagunça horrível, Bawu - disse novamente, e o pequeno lagarto na lápide do velho fugiu com o som. - As presas desapareceram da varanda e eles estão criando cabras no seu melhor pasto.

   Ficou silencioso outra vez, mas agora começara a calcular e a planejar. Ficou lá ainda por uma hora e, enfim, levantou-se.

   - Bawu, que tal se eu tirasse as cabras do seu pasto? - perguntou, antes de voltar para onde tinha deixado o Volkswagen estacionado.

   FALTAVA POUCO para as cinco horas quando chegou à cidade. A agência estatal de leilões públicos defronte ao Banco Standard ainda estava aberta. O cartaz fora repintado em tinta vermelha, e, assim que entrou, reconheceu o leiloeiro corpulento e de cara vermelha vestido com short cáqui, camisa de mangas curtas e gola aberta.

   - Então, você não escapou pela brecha como nós, Jock - disse Craig, cumprimentando Jock Daniels.

   Escapar pela brecha era a expressão de pouco-caso que usavam para a emigração. Dos 250 mil rodesianos brancos, quase 150 mil tinham escapado pela brecha desde o início das hostilidades e a maioria se fora quando a guerra estava perdida e o governo de Robert Mugabe assumira o poder.

   Jock fitou-o.

   - Craig! - explodiu - Craig Mellow! - e apertou-lhe a mão fortemente. - Não, não escapei, mas às vezes fica muito solitário por aqui. Meu Deus, e você, saiu-se bem, hein? Dizem nos jornais que ganhou um milhão com aquele livro. As pessoas daqui mal podiam acreditar. O velho Craig Mellow, disseram, imagine, logo o Craig Mellow.

- É o que disseram? - e o sorriso de Craig desapareceu.

   - Não posso dizer que tenha gostado do livro - e Jock balançou a cabeça. - Você fez aqueles negros parecerem uns malditos heróis, mas é do que gostam por lá, não é? Preto é bonito, é isto que vende livro, não é mesmo?

   - Alguns dos meus críticos me chamaram de racista - murmurou Craig. - Não se pode contentar todo mundo.

   - Outra coisa, Craig, por que você tinha que dizer que o sr. Rhodes era bicha? - disse Jock que não o ouvira.

   Cecil Rhodes, o pai dos emigrantes brancos, já morrera há oitenta anos, mas o pessoal da velha época ainda o chamava de sr. Rhodes.

   - Mostrei as razões disso no livro - tentou acalmá-lo.

   - Era um grande homem, Craig, mas hoje em dia é moda entre os jovens denegrirem a grandeza, são como cães atacando os calcanhares de um leão.

   Viu que Jock estava ficando esquentado e decidiu desviar-lhe a atenção do assunto.

   - Que tal um drinque, Jock? - a pergunta pareceu acalmá-lo. As faces rosadas e o nariz inchado e vermelho não eram só produto do sol africano.

   - Agora, você está dizendo algo que faz sentido - e lambeu os beiços. - Foi um longo dia sedento. Fecho essa joça num instante.

   - Se eu fosse buscar uma garrafa, podíamos beber aqui mesmo e falar em particular.

   - Uma ótima idéia. A loja de bebidas ainda tem algumas garrafas de Dimple Haig; e traga gelo, também. - O último vestígio do antagonismo de Jock evaporou-se.

   Ficaram sentados no cubículo que servia de escritório e beberam do bom uísque em canecas ordinárias e grossas. O humor de Jock Daniels melhorou consideravelmente.

   - Não fui embora, Craig, porque não havia para onde ir. Voltar para a Inglaterra? Cheia de sindicatos e com aquele clima horrível, não, obrigado. Para a África do Sul? Vão pelo mesmo caminho que nós; pelo menos, isso já acabou por aqui. - Serviu-se de outra dose. - Se a gente quer ir embora, só deixam levar duzentos dólares. Duzentos dólares para recomeçar aos sessenta e cinco? Não, muito obrigado.

   - E como vai a vida, Jock?

   - Sabe o que eles chamam por aqui de otimista? - perguntou Jock. - É alguém que acredita que as coisas não podem ficar piores. - Gargalhou e deu uma palmada na coxa. - Estava brincando, não é tão ruim assim. Contanto que não espere ter os velhos padrões e fique longe da política, ainda pode ter uma vida tão boa quanto em qualquer outro lugar do mundo.

   - E os grandes fazendeiros, como estão se saindo?

- São a elite. O governo criou juízo. Botou de lado toda aquela palhaçada sobre nacionalizar a terra. Tinha que alimentar as massas e para tornar isso viável precisava dos fazendeiros brancos. Está orgulhoso deles agora: quando recebe a visita de um oficial comunista chinês ou um ministro líbio, organiza turnês para mostrar como as coisas vão bem.

   - E o preço da terra?

   - No final da guerra, quando os pretos assumiram e ficavam ameaçando tomá-las, ninguém as queria nem de graça. - Jock gargarejou com um gole de uísque. - Tome por exemplo a companhia de sua família, a Rholands Ranching, que incluía todas as três fazendas: King's Lynn, Queen's Lynn e aquele grande pedaço de terra lá no norte perto da Reserva de Caça Chizarira. Seu tio Douglas vendeu toda aquela terra por 250 mil dólares. Antes da guerra, teria pedido dez milhões.

   - Por 250 mil? Ele as deu de presente! - disse Craig chocado. - Esse preço incluiu todo o gado. Os touros Afrikander premiados e as matrizes, tudo - contou Jock com gosto. - Ele tinha que dar o fora. Foi membro do gabinete de Smith desde o começo, sabia que seria um homem marcado quando o governo negro assumisse. Vendeu para um consórcio suíço-alemão e eles o pagaram em Zurique. O velho Dougie pegou a família e foi para a Austrália. Claro que tinha alguns milhões fora do país e pôde comprar uma boa fazenda de gado lá em Queensland. Fomos nós, os pobres mendigos com tudo o que temos amarrado aqui, que tivemos de ficar.

   - Tome mais um - ofereceu Craig, e, em seguida, dirigiu a conversa novamente para a Rholands Ranching. - O que fez o tal consórcio com a Rholands?

   - Que caras espertalhões! - Jock já estava com a língua meio enrolada. - Reuniram o gado, subornaram alguém no governo para conseguir uma licença de exportação, e levaram tudo para a fronteira da África do Sul. Ouvi dizer que o venderam por quase um milhão e meio lá. Era gado de primeira, campeão muito cotado para a renovação de manadas. Assim, ganharam um milhão limpo, repartiram o lucro em ações de ouro e fizeram outro par de milhões.

   - Limparam as fazendas e agora as estão abandonando? - perguntou Craig, e Jock concordou com gravidade.

   - Estão tentando vender a companhia, naturalmente. Estou com ela nas mãos para isso, mas seria preciso muito capital para estocar de novo as fazendas e tocá-las adiante. Ninguém está interessado. Quem quer trazer dinheiro para um país que está à beira do abismo?

   - Qual é o preço que estão pedindo por ela? - perguntou Craig como quem não quer nada e Jock Daniels ficou instantaneamente sóbrio, fitando-o com os olhos espertos de corretor.

   - Você está interessado? - e os olhos ficaram ainda mais estreitos. - Realmente ganhou um milhão de dólares com aquele livro?

- Quanto estão pedindo por ela? - insistiu Craig.

- Dois milhões. Por isso não achei comprador. Muitos dos rapazes daqui adorariam botar as patas naquela pastagem, mas dois milhões... Quem é que tem todo esse dinheiro nesse país?

- Se fossem pagos em Zurique, será que fariam uma diferença no preço?

- Tão certo como o fedor do sovaco de um shona!

- Quanta diferença?

- Podem diminuir para um milhão, em Zurique.

- E um quarto de milhão?

- Não, nunca. Nem em dez mil anos. - E Jock balançou enfaticamente a cabeça.

- Telefone para eles. Diga-lhes que as fazendas estão cheias de posseiros e que causaria um grande problema político tentar tirá-los de lá. Diga-lhes que estão criando cabras nas pastagens e que dentro de um ano elas serão um deserto. Sublinhe o fato de que estarão recebendo o mesmo investimento que fizeram. Diga-lhes que o governo ameaçou confiscar todas as terras de proprietários ausentes e que poderiam perdê-las.

- Tudo isso é verdade - resmungou Jock. - Mas 250 mil dólares! Você está me fazendo perder tempo.

- Telefone para eles.

- E quem paga o telefonema?

- Eu pago. Você não tem nada a perder, Jock.

- Está bem, vou telefonar - suspirou Jock, resignado.

- Quando?

- Hoje é sexta, não adianta ligar antes de segunda.

- Está bem, enquanto isso, pode me arranjar umas latas de gasolina?

- Para que quer gasolina?

- Vou até Chizarira. Não vou lá há dez anos e, se vou comprá- la, gostaria de dar uma olhada.

- Eu não faria isso, Craig. É zona de bandidos.

- O termo polido é dissidentes políticos.

- São bandidos matabele - disse Jock com seriedade. - Vão encher seu traseiro de tiros ou seqüestrá-lo para pedir resgate, ou as duas coisas.

   - Arranje-me gasolina, vou me arriscar. Volto na semana que vem para ver o que disseram os seus amigos de Zurique sobre a oferta.

 

   ERA UMA TERRA maravilhosa, ainda selvagem e intocada: sem cercas, terras cultivadas ou construções. Protegida do afluxo de camponeses, agricultores e criadores de gado pelo cinturão de moscas tsé-tsés que ia do vale do Zambeze até as florestas ao longo das escarpas.

   De um lado, limitava-se com a Reserva da Caça de Chizarira e, do outro, com a Reserva Florestal de Mzolo, ambas as áreas eram verdadeiros santuários de vida silvestre. Durante a depressão dos anos 30, o velho Bawu escolhera a terra com cuidado. Quatro milhões de metros quadrados por duas mil e quinhentas libras.

   - Claro que nunca será uma terra adequada para gado - dissera Craig uma vez, quando acampavam sob as figueiras selvagens à beira de uma piscina natural no rio Chizarira. - O capim é ruim, e as tsé-tsés matariam qualquer animal que tentássemos criar, mas, por esta razão, será sempre uma parte preservada da velha África.

   O velho a usara como campo de caça e repouso. Nunca colocara arame farpado ou construíra sequer uma cabana no terreno, preferindo dormir ao ar livre.

   Bawu caçara ali muito seletivamente. Elefante, leão, rinoceronte e búfalo. Apenas a caça perigosa, mas a protegera ciumentamente de outros caçadores, até mesmo dos próprios filhos e netos.

   - É o meu paraíso particular - dissera a Craig -, e sou egoísta o bastante para mantê-lo assim.

   Craig duvidou que a trilha que levava às piscinas naturais tivesse sido usada desde que ele e o velho haviam estado lá há dez anos. A vegetação tomara conta dela completamente, e os elefantes haviam derrubado árvores moparti que formavam bloqueios em alguns pontos.

   - Dane-se, sr. Avis - disse Craig, e seguiu por ela com o Volks evitando as barreiras das árvores.

   O veículo com tração nas rodas dianteiras era leve e ágil o bastante para enfrentar até o mais difícil leito de rio seco, apesar de ter tido que forrar o fundo arenoso com ramos para vencer a areia final. Perdeu a trilha uma meia dúzia de vezes, e tornou a achá-la; por fim abandonou o carro e fez o restante do percurso a pé. Alcançou as piscinas ao entardecer.

   Enrolou-se no cobertor que surrupiara do motel, e dormiu sem sonhos e sem agitação, para despertar com a magia rosada de um amanhecer africano. Comeu feijão frio e fez café, deixando então as coisas embrulhadas e o cobertor debaixo das figueiras silvestres. Andou pela margem do rio.

   A pé, só poderia cobrir uma diminuta porção dos quatro milhões de metros quadrados, mas o rio Chizarira era o coração, a artéria principal. O que encontrasse ali permitiria julgar que mudanças houvera desde a última visita.

   Imediatamente, percebeu que ainda havia grande quantidade das espécies silvestres mais comuns na floresta; os grandes e fantasmagóricos kudu de chifres espiralados fugiam aos pulos, balançando as caudas fofas e brancas, e pequenos e graciosos impala deslizavam como vultos por entre as árvores. Em seguida, encontrou rastros de animais mais raros. Primeiro, as marcas recentes das patas de um leopardo na argila à beira do rio, onde o felino bebera durante a noite; depois, o rastro alongado em feitio de lágrimas e os dejetos semelhantes a bagos de uvas do magnífico antílope negro.

   A guisa de almoço, comeu pedaços de salsicha e chupou as ácidas e cremosas vagens de baobá. Prosseguiu as andanças e chegou a uma extensa mata de ébano silvestre, enveredou por uma das tortuosas trilhas. Mal havia dado cem passos quando divisou a pequena clareira em meio ao matagal cerrado e teve um momento de júbilo.

   A clareira fedia ainda mais forte que um curral. Reconheceu-a como um monturo, local onde os animais voltavam habitualmente para defecar. Pelo aspecto das fezes, cascas e folhas de árvore, e o modo como estavam esparramadas, soube imediatamente que era um monturo de rinocerontes negros, uma das espécies mais raras e mais ameaçadas de extinção.

   Diferente do rinoceronte branco, um animal letárgico e plácido, o negro é, por natureza, rabugento, estúpido e irritável. Ataca qualquer coisa que o perturbe, inclusive homens, cavalos, caminhões e até mesmo trens.

   Antes da guerra, um rinoceronte que vivera nas escarpas do vale do Zambeze, onde tanto a rodovia como a estrada de ferro começavam a descer em direção às cataratas de Victoria, tinha um escore de dezoito caminhões e ônibus atacados num local da estrada onde eram obrigados a passar em marcha lenta. Agredia-os frontalmente, metendo o chifre no radiador e provocando um jato de vapor. Depois, satisfeito, trotava de volta ao matagal, guinchando, triunfante.

   Um dia, resolveu atacar o expresso de Victoria, e irrompeu pelos trilhos como um cavaleiro medieval em um torneio. A locomotiva estava fazendo uns trinta quilômetros por hora e o rinoceronte, que pesava duas toneladas, também. O encontro foi monumental. O expresso parou, com as rodas girando em falso, embora ileso, mas o rinoceronte chegara ao fim de sua carreira como demolidor de radiadores.

   Craig calculou, satisfeito, que o último depósito de esterco fora feito nas últimas doze horas, e os rastros indicavam um grupo familiar, macho, fêmea e o filhote. Sorrindo, lembrou-se do velho mito matabele que explicava o hábito do rinoceronte espalhar as fezes e o medo que tinha do porco-espinho - o único animal na mata do qual foge em pânico.

   Contavam que, certa vez, o rinoceronte pediu uma farpa emprestada ao porco-espinho para costurar um rasgão no couro espesso e prometeu devolvê-la assim que terminasse. Depois de consertá-lo com cipó, colocou a farpa entre os dentes, e inadvertidamente a engoliu. Está ainda à procura dela e foge para evitar as recriminações do porco-espinho.

   A população mundial de rinocerontes pretos não excedia o total de alguns milhares, e tê-los ainda sobrevivendo ali o alegrava e tornava muito mais viáveis os planos que traçara.

   Continuou a seguir os rastros na esperança de vê-los, mas, ao avançar por trás da cerrada mata que flanqueava a trilha, ouviu gritos agudos e uma nuvem de pássaros marrons apareceu sobre as árvores. Essas aves ruidosas viviam em relação simbiótica com os animais maiores, alimentando-se exclusivamente dos carrapatos e mutucas que os infestavam, e, em recompensa, agiam como sentinelas para avisá-los do perigo.

   Logo após o alarma, ouviu um ensurdecedor resfolegar como o de uma locomotiva; com um estrondo, a mata abriu-se e Craig viu quando o enorme animal irrompeu na trilha a apenas alguns metros de distância. Ainda bufando de irritação, espiou por cima dos chifres longos e lustrosos à procura do que atacar.

   Sabendo que os olhos míopes do animal não podiam distinguir um homem imóvel a certa distância e que o vento estava a seu favor ficou imóvel, mas pronto a atirar-se para o lado caso viesse para cima dele. O rinoceronte balançava o corpo de um lado para o outro com uma agilidade surpreendente, ainda irado. Em sua imaginação, os chifres pareciam a cada segundo maiores e mais afiados. Cautelosamente, pôs a mão no bolso para pegar a faca, mas o animal percebeu o movimento, e trotou um pouco mais à frente, colocando-o dentro do alcance de visão e em sério perigo.

   Num lampejo, atirou a faca, que passou sobre a cabeça do animal em direção a uma árvore, causando estrépito ao atingir um galho.

   No mesmo instante, o rinoceronte girou e com a enorme força arremeteu carga furiosa em direção ao som. A mata fendeu-se como diante de um tanque, o ruído diminuiu à medida que o animal subia correndo a colina e ultrapassava a crista à procura de um adversário. Craig sentou-se pesadamente na trilha, às gargalhadas, onde percebiam-se traços de uma leve histeria.

   Em pouco tempo, encontrou três poças de água estagnada e malcheirosa que esses estranhos animais preferem à água corrente e clara do rio, e decidiu o local dos esconderijos de observação; deles os turistas poderiam vê-los de perto. Colocaria também pedaços de sal ao lado das poças para atraí-los. Assim seriam facilmente admirados e fotografados.

   Sentado em um tronco, passou em revista os planos. Dali, em uma hora de vôo, chegava-se às cataratas de Victoria, uma das sete maravilhas naturais do mundo, que já atraía milhares de turistas todo mês. Um pequeno desvio não aumentaria de forma significativa a passagem aérea. Poucas reservas ou acampamentos poderiam oferecer animais tão raros como aqueles e as matas intocadas que ladeavam Chizarira assegurariam uma fonte permanente de vida silvestre interessante.

   O que tinha em mente era montar um acampamento tipo "caviar e champanhe", na mesma linha das propriedades privadas em torno do Parque Nacional Kruger, na África do Sul. Construiria pequenos alojamentos isolados entre si para dar aos ocupantes a ilusão de terem a selva inteira só para eles. Providenciaria guias carismáticos e afáveis, que levariam os turistas de Land-Rover ou a pé para ver de perto animais raros e potencialmente perigosos, tornando isso uma aventura; e acomodações luxuosas quando retornassem da expedição: ar-condicionado, comida e vinhos finos, jovens e bonitas recepcionistas, filmes e conferências sobre a natureza para instruí-los e entretê-los. E cobraria uma verdadeira fortuna por tudo isso, visando a camada mais alta do comércio turístico.

   Craig voltou capengando ao acampamento rudimentar debaixo das figueiras bravas logo depois do pôr-do-sol, o rosto e os braços vermelhos e queimados, o pescoço inchado e coçando com as mordidas de tsé-tsé, e o coto da perna irritado e dolorido pelo exercício pouco costumeiro. Estava cansado demais para comer. Soltou a perna mecânica, tomou um gole de uísque do cantil de plástico, enrolou-se no cobertor e adormeceu quase que instantaneamente. Acordou durante a noite, e, enquanto urinava, ouviu com prazer os rugidos distantes de um bando de leões, e voltou para o cobertor.

   Foi acordado pelo arrulhar dos pombos nos galhos das figueiras, e descobriu que estava faminto e tão feliz como não se sentia há anos.

   Depois de comer, foi pulando até a beira d'água, levando um número do Farmer's Weekly, a bíblia do fazendeiro africano. Sentou-se no raso, estudando o preço do gado na região, a agradável aspereza da areia branca como açúcar e a água fria causando alívio no coto ainda dolorido.

   Depois de calcular as cifras, seus planos ambiciosos foram rapidamente moderados, compreendeu quanto custaria reaparelhar King's Lynn e Queen's Lynn com gado de raça. O consórcio vendera a manada por um milhão e meio e os preços haviam subido desde então.

   Tinha de começar com reprodutores e matrizes de qualidade, e construir lentamente o pedigree. Mesmo assim, custaria um bocado de dinheiro, os ranchos tinham que ser reconstruídos e equipados e o empreendimento de um acampamento de turistas ali, em Chizarira, custaria também um bocado. Teria que tirar as famílias dos posseiros e as cabras de suas pastagens. A única maneira de fazer isso era oferecer-lhes dinheiro. O velho avô Bawu sempre lhe dizia, "calcule quanto acha que vai custar e, depois, dobre a quantia. Assim, conseguirá chegar perto".

   Craig atirou longe a revista e deitou-se, só com a cabeça fora d'agua, fazendo cálculos.

   Vivia frugalmente a bordo do iate, à diferença de outros autores subitamente bem-sucedidos. O livro estivera nas listas de best-sellers de ambos os lados do Atlântico durante um ano; fora a escolha principal de três clubes-do-livro, traduzido para diversos idiomas, inclusive o hindi e condensado para o Reader's Digest-, transformara-se em uma série para a tevê. Os lucros foram ótimos, mas o imposto de renda ficou com uma quantia substancial deles.

   Com o que lhe restara, passou a especular com ouro e prata, fizera três boas aplicações na Bolsa e, finalmente, transferira a maior parte dos ganhos para francos suíços no momento oportuno. Além disso, podia vender o iate. Há um mês, tivera uma oferta de cento e cinqüenta mil dólares pelo Bawu, mas detestaria ter de perdê-lo. Sem contar com isso, podia tentar uma facada em Ashe Levy para conseguir um bom adiantamento sobre o romance por fazer e vender logo a alma.

   Chegou ao final dos cálculos e decidiu que, se usasse de todos os recursos e possibilidades de crédito, poderia levantar um milhão e meio, o que significava que ainda lhe faltaria outro milhão e meio.

   Henry Pickering, meu banqueiro favorito, prepare-se para uma surpresa, riu, ao pensar em como planejava quebrar a primeira e mais importante regra do investidor prudente e pôr todos os ovos em um só cesto. Caro Henry, você foi sorteado por nosso computador para ser o felizardo escolhido para um empréstimo de um milhão e meio a um escriba perneta. Concluiu que até ter uma resposta do consórcio através de Jock Daniels não deveria preocupar-se; passou a tópicos mais amenos.

   Levou as mãos em concha aos lábios e tomou um gole da água fresca e clara. O Chizarira era um afluente menor do grande Zambeze, portanto, estava bebendo de suas águas novamente, como dissera a Henry Pickering que devia fazer. Chazarira era um nome muito complicado para o turista pronunciar e, mais ainda, para lembrar. Precisava de um nome para seu pequeno paraíso africano.

   - Águas do Zambeze! - exclamou. - Vou chamá-lo de Águas do Zambeze.

   Levou um susto ao ouvir uma voz muito perto dizer claramente em matabele:

   - Deve ser um maluco - a voz era profunda e melodiosa.

- Primeiro, vem para cá sozinho e desarmado; depois, fica sentado no meio dos crocodilos e fala com as árvores!

   Craig girou o torso e deparou com três homens que haviam saído silenciosamente da floresta e estavam agora na margem, a pouca distância, observando-o.

   Todos os três vestiam brim desbotado, o uniforme dos guerrilheiros, e as armas que carregavam com uma casualidade familiar eram fuzis AK 47 com a característica câmara de munição curva e o cabo laminado.

   Brim, AK 47 e matabele, não havia dúvida sobre quem eram. As tropas regulares do Zimbábue usavam atualmente uniformes de selva ou túnicas, a maioria armamento da OTAN e falava a língua shona. Aqueles eram membros do disperso Exército Revolucionário do Povo de Zimbábue. Agora eram rebeldes políticos, que não se sujeitavam a nenhuma lei, nem a qualquer autoridade superior; homens transformados por uma longa guerrilha em seres duros e desapiedados, com a morte estampada nas mãos e nos olhos. Apesar de ter sido advertido, e, na verdade, estivesse quase certo de que os encontraria, o choque, mesmo assim, deixou-o nauseado e de boca seca.

   - Não temos de levá-lo - disse o mais jovem. - Podemos matá-lo aqui mesmo e enterrá-lo secretamente. Isso é a mesma coisa que ter um refém - continuou o rapaz, que Craig calculou não ter nem vinte e cinco anos e que provavelmente já matara pelo menos um homem para cada ano de vida.

   - Os seis reféns que fizemos na estrada das cataratas de Victoria nos deram problemas durante semanas, e, afinal, tivemos de matá-los - concordou o segundo guerrilheiro e ambos olharam para o terceiro homem.

   Era apenas um pouco mais velho que eles, mas sem dúvida o líder. Uma cicatriz fina ia do canto da boca e cruzava o rosto até a têmpora, repuxando a boca num sorriso sardónico e torto.

Craig lembrou-se do incidente de que falavam. Guerrilheiros haviam emboscado o ônibus de turistas na estrada principal para Victoria e seqüestrado seis homens canadenses, americanos e um inglês, e os levado para a selva como reféns para a libertação de presos políticos. Apesar das buscas intensivas da polícia e das unidades regulares do exército, nenhum deles fora encontrado.

   O líder com a cicatriz fitou Craig por algum tempo com os olhos escuros e mortiços e ajustou com o polegar o disparador do rifle na posição automática.

   - Um verdadeiro matabele não mata um irmão de sangue da tribo. - Dizer isso custou a Craig um enorme esforço para manter a voz firme, sem qualquer vestígio de terror, e o sindebele era tão fluente e correto que o líder guerrilheiro olhou-o espantado.

   - Uau! Você fala como um homem. E quem é esse irmão de sangue de quem você se gaba? - disse, com uma expressão surpresa.

   - O camarada ministro Tungata Zebiwe - respondeu, e viu no mesmo instante a expressão nos olhos do homem mudar e a súbita confusão dos outros.

   Conseguira colocá-los fora de guarda e adiara a execução por um momento, mas o rifle do líder ainda estava apontado para ele com o gatilho em automático mirando-lhe a barriga.

   Foi o mais jovem quem rompeu o silêncio, falando alto para encobrir a insegurança:

   - É fácil para um babuíno gritar o nome do leão de juba negra do alto da colina e reclamar a sua proteção, mas será que o leão reconhece o babuíno? Eu digo que é melhor matá-lo e acabar com isso.

   - Mas ele fala como um irmão - retrucou o líder - e o camarada Tungata é um homem duro...

   Craig compreendeu que sua vida ainda corria um tremendo risco, e tudo o que era preciso era um empurrãozinho.

   - Vou provar para vocês - disse, ainda sem o menor tremor na voz. - Deixem que eu pegue minha mochila. - Viu o líder hesitar. - Estou nu, não tenho armas, nem mesmo uma faca, e vocês são três e armados - insistiu.

   - Vá! - concordou o matabele. - Mas cuidado. Há muito tempo não mato um homem e isso está começando a me fazer falta.

   Craig levantou-se cautelosamente da água e notou o interesse com que olhavam para a perna cortada na altura do joelho, e o desenvolvimento muscular que a compensava na outra perna e no resto do corpo. O interesse transformou-se em respeito cauteloso quando viram como se deslocava rápida e agilmente com uma perna só. Chegou à mochila com água escorrendo dos músculos rijos do peito e do abdome. Viera preparado para esse encontro; tirou a carteira do bolso da frente e estendeu ao líder um instantâneo colorido.

   Na foto, dois homens estavam sentados na capota de um Land- Rover, abraçados e sorridentes, com latas de cerveja na mão e brindando o fotógrafo. A amizade e a camaradagem entre eles era evidente.

   O guerrilheiro com a cicatriz estudou-a por algum tempo e, por fim, desarmou o rifle.

   - É o camarada Tungata - disse, e estendeu a foto aos outros.

   - Talvez - concedeu com relutância o mais jovem -, mas há muito tempo. Ainda acho que devíamos dar uns tiros nele. - Estas últimas palavras, contudo, foram ditas num tom menos determinado.

   - O camarada Tungata comeria você inteiro sem mastigar - disse o companheiro em tom definitivo e pendurou o rifle no ombro.

   Craig pegou a perna mecânica e num instante prendeu-a ao coto. Imediatamente os três guerrilheiros ficaram intrigados, deixaram de lado as intenções assassinas e o cercaram para examinar aquele maravilhoso apêndice.

   Conhecendo o amor dos africanos a uma boa piada, bancou o palhaço para eles. Dançou, fez piruetas com a perna, dobrou-se ao meio sem esforço e finalmente agarrou o chapéu do mais jovem, embolou-o, e, com um grito dePelé!', chutou-o em direção aos galhos da figueira com a perna artificial. Os outros dois sapatearam de alegria e riram até as lágrimas escorrerem diante da perda de dignidade do jovem ao ter de escalar a árvore para recuperar o chapéu.

   Avaliando a situação, Craig abriu a mochila e tirou o cantil de uísque e uma caneca, servindo uma dose generosa, e estendeu-a ao líder.

   O guerrilheiro apoiou o fuzil em um tronco, esvaziou-a em um só trago e estalou a língua com satisfação. Foi a vez dos outros dois, que beberam com o mesmo ânimo.

   Quando Craig sentou-se sobre a mochila, colocando o cantil à sua frente, todos deixaram as armas de lado e acocoraram-se em torno.

   - Meu nome é Craig Mellow - disse.

   - Vamos chamar você de Kuphela - disse-lhe o líder - porque sua perna anda sozinha. - Os outros aplaudiram, aprovando, e Craig serviu-os de uísque para celebrar o batismo.

   - Eu sou o camarada Sentinela - disse o líder; a maioria dos guerrilheiros adotava nomes de guerra. - Este é o camarada Pequim. - Uma homenagem aos instrutores chineses, pensou Craig.

E este é o camarada Dólar. - Ao ouvir isso, teve dificuldade em ficar sério diante daquela incongruência ideológica.

- Camarada Sentinela, os kanka marcaram você? - Craig sabia que os africanos gostavam de falar sobre suas cicatrizes de guerra.

- Foi uma baioneta. Acharam que estava morto e me deixaram para as hienas - respondeu, acariciando a cicatriz.

- E sua perna? - interveio Dólar. - Também foi na guerra?

Uma resposta afirmativa lhes revelaria que lutara contra eles. A reação era imprevisível, mas Craig calou-se apenas por um segundo antes de responder;

- Pisei em uma de nossas próprias minas.

- Sua própria mina? - E Sentinela morreu de rir com a piada. - Ele pisou na própria mina! - Os outros também acharam graça, mas não demonstraram qualquer ressentimento.

- Onde? - quis saber Pequim.

- No rio, entre Kazungula e as quedas de Victoria.

- Ah, sim - concordou. - Era um mau lugar, aquele.

- Cruzamos por lá muitas vezes - lembrou-se Sentinela. - Foi onde lutamos com os Batedores.

Uma das unidades de elite das forças de segurança fora a dos Batedores de Ballantyne e Craig lutara nela, nos blindados.

- O dia em que esbarrei com a mina foi quando os Batedores seguiram o seu povo cruzando o rio. Houve uma luta terrível na margem do lado de Zâmbia e todos os batedores foram liquidados.

- Puxa! - exclamaram, surpresos. - Nós estávamos lá. Lutamos ao lado do camarada Tungata nesse dia.

- Que luta, que bela matança quando os encurralamos - lembrou-se Dólar, com um brilho assassino nos olhos.

- E como lutaram! Aqueles eram homens de verdade!

Craig sentiu o estômago embrulhar-se com a lembrança. Seu primo, Rholand Ballantyne, liderara os Batedores na travessia do rio naquele dia fatal. Enquanto jazia despedaçado e sangrando à beira do campo minado, Rholand e todos os homens lutaram até a morte. Os corpos tinham sido mutilados e desrespeitados por aqueles homens e agora discutiam isso como se fosse uma inesquecível partida de futebol.

   Serviu-os de mais uísque. Como odiara a eles e a seus camaradas; costumavam chamá-los deterrs', terroristas. Odiava-os com a abominação que se tem por algo que ameaça a própria existência e a tudo o que se ama. Mas, agora, por sua vez, brindou-os com a caneca e bebeu. Ouvira falar de pilotos da RAF e da Luftwaffe que depois da guerra reuniam-se e trocavam reminiscências, como estavam fazendo, mais como companheiros do que como inimigos mortais.

   - Onde estava quando explodimos os depósitos de reserva e queimamos a gasolina? - perguntaram.

   - Lembra-se quando os Batedores pularam de pára-quedas no nosso acampamento de Molingushi? Mataram oitocentos de nós naquele dia, e eu estava lá. Mas não conseguiram me pegar! - rememorou Pequim com orgulho.

   Naquele momento, Craig descobriu que já não sentia tanto ódio. Debaixo do verniz de crueldade e selvageria que a guerra lhes impusera, eram os verdadeiros matabele que sempre amara; com um irresistível senso de humor, um orgulho profundo de si mesmos e da tribo, e um grande sentimento de honra e lealdade ao seu peculiar código moral. Enquanto conversaram, sua simpatia por eles aumentou e sentiu que o correspondiam.

   - Mas o que faz você aqui, Kuphela? Um homem sensato como você entrando no covil do leopardo sem ao menos uma vara? Deve ter ouvido falar de nós, e mesmo assim, veio até cá?

   - Sim, ouvi falar de vocês. Ouvi dizer que eram homens duros, como os guerreiros do velho Mzilikazi - respondeu, adulando-os. - Vim até aqui para encontrá-los e conversar.

   - Por quê? - perguntou Sentinela.

   - Vou escrever um livro e dizer a verdade sobre vocês, quem são e por que ainda estão lutando.

   - Um livro? - a voz de Pequim soou imediatamente suspeitosa.

   - Que espécie de livro? - ecoou Dólar.

   - E quem é você para escrever um livro? - disse Sentinela, com desdém. - Você é jovem demais. Os escritores são grandes e sábios - continuou, pois, como todo africano quase analfabeto, tinha uma admiração supersticiosa pela palavra escrita e reverência pelos cabelos brancos.

   - Um escritor perneta - zombou Dólar, enquanto Pequim ria e pegava o fuzil, colocando-o no colo, mostrando como a atmosfera mudara mais uma vez. - Se ele está mentindo sobre esse livro, então talvez esteja mentindo sobre a amizade com o camarada Tungata - sugeriu Dólar, com apetite.

   Craig prepara-se para isso também. Pegou um grande envelope na mochila e tirou de dentro uma pilha de recortes de jornais, folheou-os lentamente, deixando que a descrença desdenhosa se transformasse em curiosidade; escolheu um e estendeu-o a Sentinela. O seriado adaptado do livro fora exibido dois anos antes na televisão de Zimbábue, antes que aqueles guerrilheiros voltassem para a floresta, e tivera um enorme sucesso.

   - Uau! É o velho rei, é Mzilikazi! - exclamou Sentinela.

   A fotografia que encabeçava o artigo mostrava Craig no estúdio, com membros da equipe da produção. Os guerrilheiros reconheceram imediatamente o ator negro americano que fizera o papel do velho rei Mzilikazi, vestido com uma pele de leopardo e com penas de garça.

   - Este é você com o rei. - Não tinham ficado tão impressionados nem mesmo com a foto de Tungata.

   Havia outro recorte, uma fotografia tirada na livraria da Doubleday, na Quinta Avenida, com Craig ao lado de uma enorme pirâmide de livros, e um poster seu, com a capa do livro servindo de fundo.

   - Este é você? Você escreveu aquele livro? - perguntaram, parecendo realmente espantados.

   - E agora, acreditam? - perguntou, mas Sentinela examinou as provas cuidadosamente antes de aceitá-las.

   Os lábios moviam-se enquanto lia lentamente o texto dos artigos, e, quando entregou-os a Craig, disse sério:

   - Kuphela, apesar de sua juventude, você é realmente um escritor importante.

   Estavam, agora, pateticamente ansiosos para despejar todas as suas queixas, como requerentes num indaba tribal, onde os casos eram ouvidos e julgados pelos mais velhos das tribos. Enquanto falavam, o sol ascendeu no céu azul e imaculado, alcançou o pináculo e começou a majestosa descida para o crepúsculo.

   O que contaram era a tragédia da África, as barreiras que dividiam aquele continente grandioso e que continham todas as sementes da violência e do desastre, a única doença incurável que infestara a todos - o tribalismo.

   Ali, era matabele contra mashona.

   - Os comedores de coisas imundas - assim os chamava Sentinela - são como os morcegos nas cavernas, os covardes nas colinas fortificadas, os chacais que só mordem quando se está de costas.

   Era o desprezo do guerreiro pelo mercador, do homem de ação direta pelo astuto negociante e político.

   - Desde que o grande Mzilikazi cruzou pela primeira vez o rio Limpopo, os mashona foram os nossos cães, amaholi, escravos e filhos de escravos.

   Essa história de expansão e de domínio de um grupo pelo outro não era limitada ao Zimbábue, mas, através dos séculos, acontecera em todo o continente. Mais para o norte, os dominadores masai atacaram e aterrorizaram os kikuiu que não tinham tradição guerreira; os gigantes watusi, que consideravam qualquer homem com menos de dois metros e dez anão, haviam escravizado os pacíficos hutu.

   Em cada um desses casos, os escravos compensaram a falta de ferocidade pela astúcia política e, assim que a proteção do colonialismo branco foi retirada, massacraram seus algozes, como os hutu tinham feito aos watusi, ou corromperam a doutrina do governo de Westminster ignorando os freios e mecanismos de equilíbrio que tornaram o sistema equilibrado, e usando a superioridade numérica para colocar os antigos senhores em uma posição de jugo político, como os kikuiu fizeram com os masai.

   Exatamente o mesmo processo estava em curso ali no Zimbábue. Os colonos brancos tornaram-se inconseqüentes e delegaram a um segundo plano a guerrilha e os conceitos de integridade e jogo limpo impostos pelos administradores, e todos os funcionários negros foram demitidos por eles.

   - Há cinco mashona comedores de coisas imundas para cada indoda matabele - disse Sentinela amargamente para Craig. - Mas por que isso lhes dá o direito de nos dominar completamente? Cinco escravos devem ditar leis para um rei? Se cinco babuínos guincham, o leão de juba-negra deve tremer?

   - É assim que se faz na Inglaterra e na América - respondeu Craig em tom conciliador. - A vontade da maioria deve predominar.

   - Mijo em cima da vontade da maioria - e Sentinela com um gesto liquidou com a doutrina da democracia. - Essas coisas podem funcionar na Inglaterra e na América, mas isto é a África. Eles não trabalham aqui e eu não vou dobrar-me à vontade de cinco comedores de porcaria. Não, nem à vontade de cem deles ou de mil. Sou um matabele e apenas um homem me comanda: um rei matabele.

   Sim, pensou Craig, isso é a África. A velha África despertando do transe induzido por cem anos de colonialismo e revertendo imediatamente aos velhos costumes.

   Pensou nos milhares de jovens ingleses que por uma recompensa financeira muito pequena tinham vindo passar a vida no Serviço Colonial, batalhando para instilar em seus relutantes tutelados o respeito pela ética protestante de trabalho, pelos ideais de integridade e pelo governo de Westminster. Eles regressaram à Inglaterra prematuramente envelhecidos e com a saúde arruinada para receberem uma pensão miserável e a crença de que tinham dado suas vidas por algo valioso e duradouro. Será, pensou Craig, que jamais chegaram a suspeitar que tudo fora em vão?

   O sistema colonial estabelecera fronteiras claras e ordenadas. Seguiam um rio, a margem de um lago, ou a crista de uma serra e onde eles não existiam um supervisor branco usava um teodolito para traçar uma linha através da selva. Desse lado ficava a África Oriental alemã, e desse, o inglês. Mas não tomaram o menor conhecimento das tribos que estavam dividindo ao meio e fincaram suas cercas.

   - Muitos do nosso povo vivem do outro lado do rio, na África do Sul. Se estivessem conosco, as coisas seriam diferentes. Haveria mais de nós, mas agora estamos divididos - queixou-se Pequim.

   - E os shona são espertos, tão espertos quanto os babuínos que atacam as plantações de milho à noite. Sabem que apenas um de nossos guerreiros mataria cem deles, então, quando nos revoltamos, usaram os soldados do governo de Smith que ficaram aqui...

   Craig lembrou-se da alegria dos amargos soldados brancos que achavam que não tinham sido derrotados, mas traídos, quando o governo de Mugabe os lançara contra a facção matabele rebelde.

   - Os pilotos brancos trouxeram em seus aviões as tropas brancas do Regimento Rodesiano...

   Depois da luta, os pátios de carga da estação de Bulawayo tinham ficado coalhados de caminhões refrigerados, cheios até o teto com cadáveres matabele.

   - Os soldados brancos fizeram o serviço para eles, enquanto Mugabe e seus rapazes corriam de volta para Harare, tremendo e fungando, para se esconderem debaixo da saia das mulheres. E depois que os brancos tiraram nossas armas, vieram pavoneando-se para cima de nós como conquistadores.

   - Desonraram nossos líderes...

   Nkomo, o líder matabele, fora acusado de dar abrigo a rebeldes, de acumular armas e fora levado à desgraça por um isolamento forçado pelo governo dominado pelos mashona.

   - Eles têm prisões secretas na selva para onde levam nossos líderes - continuou Pequim. - Fazem lá coisas com nossos homens que não dá nem para contar.

   - Agora, que estamos sem armas, as unidades especiais ficam correndo as aldeias, batem nos velhos e nas mulheres, estupram as moças e levam os rapazes e nunca mais se houve falar neles.

   Craig vira no jornal uma fotografia de três homens com o antigo uniforme azul e cáqui da polícia britânica da África do Sul, um uniforme que por muito tempo simbolizara a honra e a integridade, fazendo interrogatórios nas aldeias. Na foto, um matabele estava estendido de bruços, nu e com as pernas e braços estendidos. Um dos policiais estava em pé sobre suas mãos abertas para o impedir de mexer-se; os outros dois o espancavam com cacetetes. A legenda dizia:

   A polícia de Zimbábue interroga suspeito tentando descobrir o paradeiro de turistas americanos e ingleses aprisionados como reféns pelos dissidentes matabele.

   Não havia nenhuma foto sobre o que faziam com as moças.

   - Talvez as tropas do governo estivessem procurando pelos reféns que vocês mesmos admitiram ter capturado. Há pouco, vocês estavam bem felizes com a idéia de me matar ou de me transformar em refém também - disse Craig, mordaz.

   - Os shona começaram com isso muito antes de termos capturado nosso primeiro refém - retrucou Sentinela.

   - Mas vocês estão capturando inocentes, matando fazendeiros brancos - insistiu Craig.

   - E o que mais podemos fazer para que o mundo fique sabendo o que está acontecendo com nosso povo? Os nossos poucos líderes, que não foram aprisionados ou silenciados, estão impotentes. Não temos armas a não ser as poucas que conseguimos esconder, nem amigos poderosos, enquanto os shona têm aliados chineses, ingleses e americanos. Não temos dinheiro para continuar a luta; eles têm todo o apoio do país e os milhões de dólares que esses amigos poderosos lhes dão.

   Craig decidiu prudentemente que não era nem a hora nem o lugar para uma conferência sobre moralidade política; em seguida, pensou com ironia: talvez minha moralidade seja antiquada. Havia um novo expediente político nos problemas internacionais que tornara-se aceitável: o direito das minorias impotentes e sem voz ativa chamar violentamente a atenção para a própria desgraça. Dos palestinos e separatistas bascos aos terroristas da Irlanda do Norte, que jogaram bombas em jovens soldados britânicos a cavalo numa rua de Londres, havia uma nova moralidade no mundo, sem dúvida. Com esses exemplos e com a própria experiência em conseguir mudanças políticas pela violência, aqueles jovens eram os frutos dessa nova moralidade.

   Apesar de jamais aceitar esses métodos, nem mesmo se vivesse cem anos, descobriu relutante que sentia simpatia por seus sofrimentos e aspirações. Sempre houvera um laço estranho, às vezes sangrento, entre sua família e os matabele. Uma tradição de respeito e compreensão por aqueles que podiam ser amigos fiéis ou inimigos terríveis; uma raça aristocrática, orgulhosa e guerreira que merecia mais do que recebia atualmente.

   Havia em Craig um traço elitista que odiava ver um Guliver tornado impotente por liliputianos. Odiava a política da inveja e a perversidade do socialismo que, achava, procurava esmagar os heróis e reduzir todo homem excepcional ao nível comum e cinzento da massa, substituir a verdadeira liderança pelos grunhidos imbecis dos sindicalistas, emascular toda a iniciativa com esquemas punitivos de taxação, para depois tanger um rebanho de gente entorpecida e submissa para a prisão do totalitarismo marxista.

   Aqueles homens eram terroristas, Robin Hood também fora, mas, pelo menos, com alguma classe e estilo.

- Vai visitar o camarada Tungata? - perguntaram com uma ansiedade quase tocante.

- Sim. Vou vê-lo em breve.

- Diga-lhe que estamos aqui, prontos e à espera.

- Vou lhe dizer - concordou Craig.

Caminharam de volta com ele até onde deixara o Volks e o camarada Dólar insistiu em carregar a mochila. Quando chegaram ao local onde estava o carro empoeirado e meio amassado, amontoaram-se dentro, com os canos dos AK 47 saindo fora das janelas.

- Vamos com você até a estrada das cataratas de Victoria - explicou Sentinela. - Se encontrar outra de nossas patrulhas sozinho, pode ser dureza para você.

Alcançaram a Grande Estrada do Norte, asfaltada, já bem depois do anoitecer. Craig tirou da mochila tudo o que sobrara de comida e o resto do uísque; juntou a isso os duzentos dólares que tinha na carteira e deu-lhes de presente, aumentando o butim. Em seguida, trocaram apertos de mão.

- Diga ao camarada Tungata que precisamos de armas - disse Dólar.

- Diga-lhe que, mais do que armas, precisamos de um líder. - O camarada Sentinela apertou a mão de Craig com a saudação da palma e polegar reservada aos amigos de confiança. - Vá em paz, Kuphela. Que a perna que caminha sozinha o leve sempre avante - acrescentou.

- Fique em paz, meu amigo - disse Craig.

- Não, Kuphela, deseje-me uma luta sangrenta! - e o rosto desfigurado de Sentinela retorceu-se num sorriso temível à luz dos faróis.

Ao olhar para trás, haviam desaparecido, tão silenciosos como leopardos na escuridão.

 

- NÃO TERIA aceito nenhuma aposta se veria você de novo - saudou-o Jock Daniels quando entrou no escritório de leilões na manhã seguinte. - Conseguiu chegar em Chizarira ou será que o bom senso venceu?

- Ainda estou vivo, não é? - retrucou Craig, fugindo à pergunta.

- Bom, sabe que é uma loucura envolver-se com aqueles shufta matabele, são todos uns bandidos. - Jock balançou a cabeça.

- Teve alguma notícia de Zurique?

- Só mandei o telex hoje às nove horas. Eles estão uma hora atrás de nós, em relação ao fuso horário.

- Posso usar o telefone para fazer umas ligações pessoais?

- Chamada local? Não gostaria que ficasse batendo papo com seus amiguinhos de Nova York às minhas custas.

- Claro que sim.

- Está certo, conquanto que você cuide das coisas por aqui enquanto dou uma saída.

Craig instalou-se na escrivaninha de Jock e consultou as anotações em código que tirara do dossiê de Henry Pickering.

A primeira chamada foi para a Embaixada Americana em Harare, a capital, que ficava a quase seiscentos quilômetros a nordeste de Bulawayo.

- Por favor, gostaria de falar com o sr. Morgan Oxford, o adido cultural - disse à telefonista.

- Oxford falando - disse em seguida uma voz com nítido sotaque bostoniano.

- Aqui é Craig Mellow. Um amigo comum pediu-me que ligasse para transmitir-lhe seus cumprimentos.

- Sim, estava aguardando seu telefonema. Não quer aparecer por aqui uma hora dessas para dizer alô?

- Será um prazer - disse Craig, e desligou.

Henry Pickering tinha palavra. Qualquer mensagem transmitida a Oxford seguiria pela mala diplomática e estaria em sua escrivaninha doze horas mais tarde.

A chamada seguinte foi para o escritório do ministro de Turismo e Informação, e conseguiu finalmente falar com a secretária, cuja atitude mudou quando dirigiu-se a ela em sindebele.

- O camarada ministro está aqui em Harare para a reunião do Parlamento - e deu-lhe o número particular que usava no Congresso.

Craig conseguiu falar com uma secretária parlamentar depois de quatro tentativas, notando que o sistema de telefones estava começando lentamente a deteriorar. A praga de todos os países em desenvolvimento era a falta de mão-de-obra qualificada; antes da independência, todos os mecânicos eram brancos e, a partir daí, a maioria fora embora.

   A secretária era mashona e insistiu em falar inglês, para provar sua sofisticação.

   - Por favor, qual é o assunto que tem a tratar com o ministro? - perguntou, obviamente lendo em um formulário impresso.

   - É um assunto de natureza pessoal. Conheço pessoalmente o camarada ministro.

   - Ah, sim. P-e-z-o-a-1 - soletrou cuidadosamente a secretária enquanto tomava nota.

   - Não, p-e-s-s-o-a-1 - corrigiu-a pacientemente Craig que estava se reacostumando ao ritmo dos africanos.

   - Vou consultar a agenda do camarada ministro. O senhor terá que telefonar novamente.

   Craig consultou sua lista. O telefonema seguinte foi para o Registro Governamental de Companhias e daquela vez teve sorte. Foi atendido por um funcionário eficiente e solícito que tomou nota do requerimento.

   - O registro das ações, artigos e memorandos da Companhia Comercial Rholands LTDA., antes registrada como Companhia Rodesiana de Terras e Mineração LTDA. - e, ao ouvi-lo, Craig percebeu a desaprovação do funcionário à palavra rodesiana, que soava como um palavrão naqueles dias, tomando a decisão mental de mudar o nome da companhia, se conseguisse algum dia poder para isso; Zimlands soaria muito melhor aos ouvidos africanos. - Sim, terei cópias xerocadas para o senhor às quatro horas - continuou o funcionário. - A taxa de pesquisa é de quinze dólares.

   A próxima chamada foi para o escritório do superintendente geral, onde tornou a encomendar cópias de documentos, dessa vez dos títulos das propriedades da companhia, os ranchos King's Lynn, Queen's Lynn e das terras de Chizarira.

   Havia ainda quatorze nomes na lista, todos de fazendeiros de Matabeleland que estavam lá quando partira, amigos chegados e vizinhos da família, gente em quem o avô Bawu confiara e de quem gostara.

   Dos quatorze, conseguiu localizar apenas quatro; os outros tinham vendido tudo e tomado a longa estrada para o sul. As famílias que haviam restado pareciam sinceramente satisfeitas em ter notícias dele.

   - Seja bem-vindo, Craig. Todos nós lemos o livro e vimos o seriado na televisão. - Mas fechavam-se, mal começava a fazer perguntas. - Este telefone está mais vazado que uma peneira. Venha jantar aqui no rancho e passe a noite conosco. Há sempre um quarto à sua disposição, Craig. Deus sabe que já não há muita gente dos velhos tempos por aqui - disse um deles.

   Jock Daniels voltou no meio da tarde, de cara vermelha e suarento.

   - Ainda gastando meu dinheiro em telefonemas? - resmungou. - Será que a loja ainda tem outra garrafa daquele Dimple Haig?

   Craig correspondeu a essa sutileza atravessando a rua e trazendo uma garrafa num saco de papel.

   - Esqueci que a gente tem de ter um fígado de ferro nesta terra - disse, enquanto a abria e jogava o envoltório metálico na cesta de papel.

   Às cinco, ligou novamente para o escritório parlamentar do ministro.

   - O camarada ministro Tungata Zebiwe consentiu em recebê-lo às dez horas da manhã de sexta-feira. Pode dispor de vinte minutos.

   - Por favor, transmita ao ministro meus sinceros agradecimentos.

Isso dava-lhe três dias ainda pela frente e significava que teria de dirigir os mais de quinhentos quilômetros até Harare.

   - Nenhuma resposta de Zurique? - perguntou e encheu novamente o copo de Jock.

   - Se tivesse me feito uma oferta dessas, eu também não me daria ao trabalho de responder - grunhiu Jock, tirando-lhe a garrafa das mãos e enchendo mais o copo.

   Nos dias que se seguiram, Craig atendeu aos convites para visitar os velhos amigos de Bawu e quase foi sufocado pela velha hospitalidade rodesiana.

   - Claro que não se tem mais todos aqueles luxos, as geléias Crosse e Blackwell ou os sabonetes Bronnley - explicou-lhe uma das anfitriãs enchendo-lhe o prato de comida saborosa -, mas, de alguma maneira, é divertido arranjar substitutos - concluiu, fazendo um sinal ao empregado de túnica branca para reabastecer a travessa de prata com mais batatas-doces assadas.

   Passou os dias com homens bronzeados e de fala mansa, com chapéus de feltro de abas largas e shorts cáqui, examinando o gado luzidio e gordo, sentado em um Land-Rover sem capota.

   - A carne de Matabeleland ainda não tem rival - disseram-lhe com orgulho. - Essas são as melhores pastagens do mundo. Claro que temos que exportá-la através da África do Sul, mas os preços são ótimos. Estou contente por ter ficado. Tive notícias do velho Dereck Sanders na Nova Zelândia, está trabalhando como empregado em uma fazenda de carneiros e levando uma vida muito dura. Não há matabele por lá para fazer o trabalho pesado. - Olhou para os vaqueiros negros com afeição paternal. - Ainda são os mesmos, apesar de toda essa conversa mole política. São o sal da terra, meu rapaz. São a minha gente, sinto que são parte da família, e estou contente por não ter desertado.

   - Claro que há problemas - disse-lhe um dos anfitriões. - A importação é um problema e tanto, é difícil conseguir peças de trator e medicamentos para o gado, mas o governo de Mugabe está começando-a acordar para o fato. Como produtores de alimento, estamos recebendo prioridade nas licenças para importar produtos essenciais. Os telefones só funcionam quando bem entendem e os trens já não andam no horário. A inflação é grande, mas os preços da carne a acompanham. Eles reabriram as escolas, mas mandamos nossos garotos para o sul, para o outro lado da fronteira, para que tenham uma educação decente.

   - E a política?

   - Isso é entre os negros, os matabele e os mashona. Graças a Deus que os brancos estão fora disso. Deixe que os filhos da mãe se arranquem pedaços uns dos outros, se é o que querem. Não meto o nariz nisso e não é uma vida ruim; claro que não é mais como nos velhos tempos, mas nunca é, não é mesmo?

   - Você compraria mais terras?

   - Não tenho dinheiro para isso, meu rapaz.

   - E se tivesse?

   - Talvez se possa fazer disso um dia uma mina de ouro, se o país seguir um bom caminho, com o preço atual das terras; ou se poderia perder tudo, se o país enveredar por outro - disse o fazendeiro pensativamente, esfregando o nariz.

   - Pode-se dizer a mesma coisa do mercado de ações, mas, nesse meio tempo, é uma vida boa?

- É uma vida boa; e, que diabo, fui amamentado com as águas do Zambeze. Não acho que seria feliz respirando o smog de Londres ou espantando moscas no interior da Austrália.

Na manhã de quinta, Craig dirigiu de volta ao motel, apanhou a roupa limpa, tornou a arrumar a mochila e pagou a conta, indo a seguir até o escritório de Jock.

- Alguma notícia de Zurique?

- Chegou um telex há uma hora - e estendeu-lhe o papel que Craig leu avidamente.

Daremos a seu cliente uma opção de trinta dias para adquirir todas as ações da Companhia Rholands por meio milhão de dólares a serem pagos em Zurique por ocasião da assinatura de venda. Nenhuma outra oferta será aceita.

Não podiam ser mais definitivos. Bawu dissera para sempre dobrar suas estimativas, e, até ali, estava certo.

- O dobro de sua oferta original - disse Jock, que o estava observando. - Pode arranjar meio milhão?

- Vou ter de falar com meu tio rico - brincou Craig. - E, de qualquer maneira, tenho trinta dias. Vou estar de volta antes disso.

- Onde é que eu posso me comunicar com você? - perguntou Jock.

- Eu me comunico com você.

Pediu mais gasolina do estoque particular de Jock, foi com o Volkswagen para a estrada em direção ao nordeste, para Mashonaland e Harare, e encontrou o primeiro bloqueio de estrada a uns dezesseis quilômetros fora da cidade.

Quase como nos velhos tempos, pensou, enquanto parava no acostamento. Dois soldados negros vestidos em uniformes de camuflagem revistaram o Volks à procura de armas com cuidadosa determinação enquanto um tenente com a boina da Terceira Brigada, que fora treinada na Coréia, examinava seu passaporte.

Mais uma vez, Craig rejubilou-se com o fato de que todas as mulheres grávidas da família, tanto do lado dos Mellow como dos Ballantyne, eram enviadas à Inglaterra para o parto. O caderninho azul, com o leão e o unicórnio dourados e a divisa Honi Soit Qui Mal y Pense gravados na capa, ainda exigia uma certa deferência mesmo de um bloqueio de estrada.

Já era quase final da tarde quando chegou ao topo das colinas e olhou lá embaixo o pequeno amontoado de arranha-céus que levantavam-se tão incongruentemente do campo africano como pedras fundamentais da crença na imortalidade do império britânico.

   A cidade, que teve um dia o nome de Lord Salisbury, o secretário do Exterior que negociou a Carta Real da Companhia Britânica da África do Sul, voltara a ter o nome de Harare em homenagem ao chefe tribal shona cujo povoado de cabanas de barro e palha havia sido encontrado pelos pioneiros brancos naquele local, em setembro de 1890, ao completarem a longa expedição vinda do sul. As ruas também haviam mudado de nome, dos que comemoravam os pioneiros brancos e o império de Victoria para os dos filhos da revolução negra e seus aliados, a mesma rua com qualquer outro nome, resignou-se Craig.

   Ao entrar na cidade, descobriu que reinava nela uma atmosfera de cidade em boom. As calçadas estavam apinhadas com uma multidão negra e barulhenta e no saguão do moderno prédio de dezesseis andares do Hotel Monomatapa ressoavam dezenas de línguas e dialetos diferentes, em meio aos turistas que se acotovelavam com os banqueiros e homens de negócio em visita, dignatários estrangeiros, funcionários civis e conselheiros militares.

   Não havia vaga para Craig até conseguir falar com um subgerente que assistira o seriado de televisão e lera o livro. Foi levado, afinal, a um quarto no décimo quinto andar com vista para o parque. Enquanto tomava banho, uma procissão de garçons entrou, trazendo flores, cestos de frutas e uma garrafa, ofertada pelo hotel, de champanhe sul-africano. Trabalhou até depois da meia-noite no relatório para Henry Pickering, e estava no prédio do Parlamento em Causeway às nove e meia da manhã seguinte.

   A secretária do ministro deixou-o esperando por quarenta e cinco minutos antes de introduzi-lo no escritório onde o camarada ministro Tungata Zebiwe levantou-se da escrivaninha para cumprimentá-lo.

   Craig esquecera como era poderosa a presença daquele homem ou talvez sua estatura tivesse aumentado desde o último encontro. Ao lembrar-se de que um dia Tungata fora seu criado, o rapaz que carregava sua espingarda na época em que era um patrulheiro do Departamento de Preservação Animal, pareceu-lhe que isso acontecera em outra existência. Naqueles dias, seu nome era Samson Kumalo, o nome da dinastia real dos reis matabele dos quais era descendente direto. Bazo, o bisavô, fora o líder da rebelião matabele de 1896 e morreu enforcado pelos colonos por sua participação nela. O trisavô Gandang fora meio-irmão de Lobengula, o último rei matabele, que sofrera morte ignóbil nas mãos dos soldados de Rhodes e ficara sem sepultura nas selvas do norte, depois que esses haviam destruído sua capital, Bulawayo, o local da matança.

   Seu sangue era real e o porte ainda era o de um rei. Mais alto que Craig, com bem mais de um metro e oitenta, e esbelto, sem qualquer traço de corpulência, o que era com freqüência uma característica dos matabele, o físico de ombros largos e estômago chato estava realçado à perfeição pelo corte do terno italiano de seda. Fora um dos mais bem-sucedidos guerrilheiros durante a guerra e ainda era um guerreiro, quanto a isso não havia dúvidas. Craig sentiu um prazer em vê-lo novamente.

   - Eu o saúdo, camarada ministro - disse em sindebele, evitando ter de escolher entre o velho e familiar Sam e o nome de guerra que usava agora, Tungata Zebiwe, que significava "O que procura a justiça".

   - Eu o mandei embora uma vez. Desfiz todas as dívidas que haviam entre nós, e o mandei embora - respondeu Tungata na mesma língua. Não havia um brilho recíproco de prazer nos olhos escuros e mortiços, o queixo quadrado tinha uma expressão dura.

   - Sou grato pelo que fez - e Craig manteve o semblante sério, para ocultar o prazer que sentia.

   Fora Tungata quem assinara uma ordem ministerial especial permitindo que levasse para o exterior o iate que ele mesmo construíra, o Bawu. Diante do rigor das leis de exportação, que proibiam a retirada até de uma geladeira ou de uma cama de metal, na época, o iate era a única coisa que Craig possuía e ainda restava, com a explosão da mina, confinado a uma cadeira de rodas.

   - Não quero sua gratidão - disse Tungata, mas havia algo por trás dos olhos cor de canela que Craig não conseguia adivinhar.

   - E nem a amizade que ainda lhe ofereço? - perguntou gentilmente.

   - Tudo isso morreu no campo de batalha - respondeu Tungata. - Foi arrastado pela torrente de sangue. Você escolheu partir e, agora, por que voltou?

   - Porque esta é a minha terra.

   - Sua terra? Fala como um colono branco. Como um dos soldados assassinos de Rhodes. - Viu o branco dos olhos de Tungata tingir-se do avermelhado da cólera.

   - Não quis dizer isso nesse sentido.

   - Sua gente conquistou a terra com os fuzis apontados e foi diante de fuzis apontados que se renderam. Nunca mais fale que esta terra lhe pertence.

   - Você odeia quase tão bem quanto lutou - disse-lhe Craig, começando a sentir a própria raiva comichar-lhe nos olhos -, mas não voltei para odiar. Voltei porque meu coração me trouxe de volta, porque senti que podia ajudar a reconstruir o que foi destruído.

   Tungata sentou-se atrás da escrivaninha e colocou as mãos sobre o mata-borrão branco. Eram muito escuras e poderosas e contemplou-as em um silêncio que se estendeu por alguns segundos.

   - Você esteve em King's Lynn - disse Tungata, quebrando afinal o silêncio, e Craig estremeceu. - E depois foi para o norte até Chizariia.

   - Seus olhos são vivos - anuiu Craig. - Vêem tudo.

   - Você pediu cópias dos títulos de propriedade dessas terras. - E, de novo, ficou surpreso, mas manteve-se em silêncio. - Até você deve saber que precisa da aprovação do governo para comprar terras em Zimbábue. Precisa declarar o uso que pretende fazer dela e o capital de que dispõe para geri-la.

   - Sim, até eu sei disso - concordou Craig.

   - E, assim, vem me procurar para protestar sua amizade - e Tungata olhou-o. - Então, como um velho amigo, pede-me outro favor, não é?

   Craig fez com as mãos um gesto resignado.

   - Um fazendeiro branco numa terra que poderia sustentar cinqüenta famílias matabele. Um fazendeiro branco ficando gordo e rico enquanto os criados vestem trapos e comem os restos que ele lhes atira - Tungata concluiu com zombaria, e Craig retrucou imediatamente:

   - Um fazendeiro branco trazendo milhões em capital para um país que está faminto por ele; um fazendeiro branco empregando dezenas de matabele, alimentando-os, vestindo-os e educando seus filhos; um fazendeiro branco produzindo alimento bastante para dez mil matabele, e não apenas uns meros cinqüenta. Um fazendeiro branco que ama sua terra, a protege das cabras e da seca, para que seja produtiva por quinhentos anos e não cinco. - Craig deixou que a raiva se manifestasse, encarando Tungata também, de pé, apoiado na escrivaninha.

   - Você está acabado por aqui - rosnou Tungata. - O kraal está fechado para você. Volte para o seu barco, sua fama e suas mulheres bajuladoras. E fique contente por termos tirado só uma perna de você; antes que arranquemos sua cabeça também. - Olhou para o relógio de pulso de ouro. - Nada mais tenho a lhe dizer - concluiu, levantando-se, mas por trás do olhar hostil e duro, Craig percebeu que aquela coisa indefinível ainda estava lá e tentou sondá-la; uma desesperança, um pesar profundo, talvez mesmo um sentimento de culpa ou uma mistura de tudo isso.

   - Então, antes de ir, tenho de lhe dizer mais uma coisa - e Craig aproximou-se da escrivaninha, abaixando o tom de voz. - Sabe que estive em Chizarira. Encontrei lá três homens chamados Sentinela, Pequim e Dólar que me pediram que lhe transmitisse um recado...

   E não pôde mais prosseguir porque a raiva de Tungata transformou-se numa fúria cega. Começou a tremer, o olhar ficou vidrado e os músculos do queixo, retesados.

   - Silêncio - sibilou em voz baixa, num esforço hercúleo para controlar-se. - Você está se metendo em assuntos que não compreende, e que não lhe dizem respeito. Deixe esta terra antes que seja esmagado por eles.

   - Vou embora - disse Craig -, mas só depois que minha solicitação para comprar terras for oficialmente negada.

   - Então, vai partir logo - replicou Tungata. - É uma promessa que faço a você.

   No estacionamento, o Volks cozinhava ao sol da manhã. Craig abriu as portas, e, enquanto esperava que o interior refrescasse, descobriu que estava tremendo, numa reação retardada ao confronto com Tungata Zebiwe. No departamento de caça, depois de abater um leão devorador de gente ou um elefante depredador de plantações, tinha a mesma reação de queda da adrenalina. Sentou-se ao volante, e, enquanto recuperava o controle, tentou ordenar as impressões que tivera do encontro e ver o que apreendera delas.

   Obviamente, estivera sob vigilância de uma das agências de inteligência do governo desde que chegara em Matabeleland. Talvez estivessem lhe dispensando toda essa atenção por ser um escritor famoso. Provavelmente, cada movimento seu fora relatado a Tungata.

   Entretanto, não conseguia perceber as verdadeiras razões para a violenta oposição de Tungata aos seus planos. As que dera eram mesquinhas e desprezíveis, e Samson Kumalo nunca fora mesquinho ou desprezível. Estava certo de haver percebido um estranho conflito de emoções por trás da recepção hostil, e que havia correntezas profundas nas águas em que começara a navegar.

   Lembrou-se da reação de Tungata à menção sobre os três homens que encontrara na mata de Chizarira. Tungata havia reconhecido os nomes e a reprimenda fora muito violenta para ter vindo de uma consciência tranqüila. Havia muita coisa ainda que Craig gostaria de saber, e muita que Henry Pickering acharia interessante.

   Deu partida no carro e dirigiu devagar de volta ao Monomatapa pelas avenidas tão amplas que permitiriam a um carro atrelado a uma junta de seis bois dar meia-volta sem problemas.

   Era meio-dia quando entrou no quarto do hotel. Abriu o bar e pegou a garrafa de gim, recolocou-a em seguida no lugar, sem abri-la, e telefonou para a copa, pedindo café. O hábito de beber de dia tinha-o acompanhado de Nova York e sabia que contribuíra muito para a sua falta de propósitos; ia mudar isso.

   Sentou-se na escrivaninha perto da janela e ficou contemplando os grandes jacarandás do parque enquanto ordenava os pensamentos e, em seguida, pegou a caneta para atualizar o relatório que iria enviar para Henry Pickering. Anotou inclusive suas impressões sobre o envolvimento de Tungata com os dissidentes de Matabeleland e sua oposição irada à solicitação para a compra de terras.

   Isso levou-o a acrescentar um pedido de financiamento e os dados, os cálculos de despesa, a opinião que tinha sobre o potencial da Rholands e os planos sobre Chizarira. Procurou passar a idéia da forma mais favorável possível. Jogando com o interesse declarado de Henry Pickering pelo turismo em Zimbábue, estendeu-se longamente sobre o projeto Águas do Zambeze como atração turística.

   Colocou os papéis em dois envelopes diferentes, lacrou-os e foi dirigindo até a embaixada americana. Sobreviveu ao exame do fuzileiro, de guarda dentro de uma cabine de segurança, e ficou esperando que Morgan Oxford viesse identificá-lo.

   O adido cultural foi uma surpresa para Craig. Tinha uns trinta e poucos anos, como ele, mas o físico de um atleta universitário, de cabelos aparados, olhos de um azul penetrante e um aperto de mão firme, que sugeria muito mais força do que demonstrava.

   Conduziu-o até um pequeno escritório nos fundos e recebeu os dois envelopes sem comentários.

   - Pediram-me que o apresentasse a algumas pessoas - disse. - Esta noite, vai haver uma recepção e um coquetel na casa do embaixador francês. É um bom lugar para se começar. Das seis às sete, está bem?

   - Ótimo.

   - Está no Mono ou no Meikles?

   - No Monomatapa.

   - Pego você às quinze para as seis.

   Craig notou a maneira militar com que se expressava, e pensou com ironia - adido cultural, hein?

 

   MESMO SOB O regime socialista de Mitterrand, os franceses conseguiam dar uma mostra característica de élan. A recepção estava ocorrendo nos jardins da residência do embaixador, com a bandeira francesa ondulando alegremente na leve brisa do entardecer e o perfume das flores de frangipani criava uma sensação refrescante depois do calor intenso do dia. Os criados vestiam kanza brancos até os tornozelos com um fez e cintos vermelho-carmesim, serviam champanhe Bollinger e foie gra as acompanhado de biscoitos, ambos do Périgord. A banda da polícia tocava operetas italianas com uma exuberante batida africana, debaixo das árvores spathodea, e apenas os multicoloridos convidados diferenciavam a reunião de um garden party do governador-geral da Rodésia a que Craig assistira seis anos antes.

   Os chineses e os coreanos eram os mais numerosos e os que mais atenção chamavam, comprazendo-se com sua posição especial perante o governo. Tinham sido a ajuda mais constante e o maior apoio material às forças shona durante a longa guerrilha, enquanto os soviéticos tinham cometido um raro erro de julgamento ao cortejarem a facção matabele, fato que o governo de Mugabe não esqueceu e os fazia expiar por isso.

   Cada grupo parecia incluir ao menos uma figura oriental trajando pijama amarrotado, que sorriam e balançavam os longos e lisos cabelos, como caricaturas dos antigos mandarins, enquanto os russos formavam apenas um pequeno grupo próprio e os que usavam uniformes eram oficiais de divisas baixas - não havia sequer um coronel entre eles, notou Craig.

   Morgan Oxford apresentou-o ao casal anfitrião. A embaixatriz era pelo menos trinta anos mais moça que o marido, e usava um vestido estampado Pucci com verdadeira elegância parisiense.

   - Enchanté, madame - disse Craig beijando-lhe a mão e, quando endireitou-se, ela lançou-lhe um olhar lento e especulativo antes de saudar o próximo convidado da fila.

   - Pickering me preveniu de que você é meio conquistador - repreendeu-o gentilmente Morgan -, mas não vamos provocar um incidente diplomático.

   - Está certo, fico com uma taça de champanhe.

   Com as taças nas mãos, ficaram observando o gramado. As senhoras das repúblicas centrais africanas estavam com as roupas tradicionais de seus países, uma barafunda maravilhosa de cores como uma nuvem de borboletas da floresta. Os homens traziam nas mãos bengalas profusamente esculpidas ou espanta-moscas feitos com caudas de animais, e os muçulmanos traziam à cabeça um fez bordado e com borlas que mostravam que eram hadji, pois tinham feito a peregrinação à Meca.

   Descanse em paz, Bawu, pensou Craig lembrando-se do avô, o arquicolonialista. É melhor que não esteja vivo para ver isso.

   - É melhor apresentá-lo aos ingleses, já que são seus compatriotas - sugeriu Morgan, e apresentou-o à mulher do Alto Comissário Britânico, uma senhora com um queixo que parecia de ferro e o cabelo cheio de laquê cortado à maneira de Margareth Thatcher.

   - Não posso dizer que tenha gostado de toda aquela violência em seu livro - disse-lhe severamente. - Acha que era realmente necessária?

   - A África é uma terra violenta. Nenhum verdadeiro contador de histórias poderia esconder isso - respondeu, tentando manter a voz sem qualquer vestígio de ironia.

   Não estava com humor para aturar críticos literários amadores e olhou por cima do ombro dela, tentando distrair-se.

   O que descobriu fez com que seu coração batesse descompassadamente. Do outro lado do gramado, ela o observava com os olhos verdes semicerrados. Vestia uma ampla saia de algodão que deixava ós tornozelos à mostra, sandálias presas por tiras enroladas nas pernas e uma camiseta simples. O cabelo escuro e farto estava atado com uma tira de couro, ainda molhado do banho. Apesar de não usar maquilagem, a pele bronzeada tinha um brilho saudável e os lábios estavam coloridos pelo sangue. Trazia dependurada no ombro uma Nikon FM com motor.

   Estivera observando-o, mas, no momento em que Craig olhou-a diretamente, levantou o queixo num gesto de desdém e virou a cabeça apressadamente para o homem a seu lado, ouvindo com atenção o que dizia, mostrando os dentes brancos numa risada discreta. O homem era africano e quase certamente um shona, já que usava o uniforme engomado do exército regular de Zimbábue e as divisas e estrelas de um general-brigadeiro. Era tão bonito quanto o jovem Harry Belafonte.

   - Alguns costumam ter olho clínico para mulheres - disse Morgan com suavidade. - Vamos, então, deixe que eu o apresente.

   Antes que Craig pudesse protestar, começou a atravessar o gramado e teve que segui-lo.

   - General Peter Fungabera, este é Craig Mellow. O sr. Mellow é um famoso romancista.

   - Como vai, sr. Mellow? Peço desculpas por não ter lido seus livros. Tenho muito pouco tempo para me dedicar ao lazer. - O inglês era excelente, a escolha das palavras, precisa, mas tinha um sotaque acentuado.

   - O general Fungabera é o ministro de Segurança Interna, Craig - explicou Morgan.

   - Uma pasta difícil, general - disse Craig apertando-lhe a mão e viu que, apesar dos olhos penetrantes e cruéis como os de um falcão, havia um traço bem-humorado no sorriso e sentiu simpatia por ele; um homem duro, mas um homem de verdade, pensou.

   - Mas nada que valha a pena fazer é fácil, nem mesmo escrever livros, não concorda, sr. Mellow? - continuou o general, depois de ter assentido.

   Era rápido e Craig gostou ainda mais dele, mas o coração ainda estava disparado e a boca, seca, e não conseguia fixar sua atenção no general.

   - E esta é a srta. Sally-Anne Jay - disse Morgan e Craig virou-se para olhá-la; há quanto tempo não a via, um mês? Mas constatou que lembrava-se de cada pontinho dourado das pupilas e de cada sarda do rosto.

   - O sr. Mellow e eu já nos conhecemos, apesar de duvidar que ele se lembre - virou-se para Morgan, dando-lhe o braço num gesto amigável e familiar. - Sinto tanto não tê-lo visto desde que cheguei dos Estados Unidos, Morgan. Não sei como lhe agradecer por arranjar a exposição para mim. Recebi tantas cartas...

   - Oh, nós obtivemos respostas também - disse Morgan. - Todas excelentes. Será que podemos almoçar juntos na semana que vem? Vou mostrá-las a você. - E virou-se para explicar. - Mandamos uma exposição de fotografias de Sally-Anne para uma turnê em todos os nossos escritórios consulares africanos. São maravilhosas, Craig, devia ver o seu trabalho.

   - Ah, mas ele já viu - e Sally-Anne sorriu sem calor. - Infelizmente, o sr. Mellow não tem o seu entusiasmo por meus humildes esforços. - Sem dar-lhe chance para retrucar, dirigiu-se a Morgan. - Imagine que o general Fungabera prometeu acompanhar-me numa visita a um dos centros de reabilitação e vai me dar permissão para fazer uma série de fotos. Não é maravilhoso? - E, com uma sutil inclinação do corpo, excluiu Craig da conversa, deixando-o à margem, desajeitado e mudo.

   Com um toque em seu braço o general salvou-o do constrangimento em que se encontrava e levou-o mais para longe para assegurar-se de que não seriam ouvidos.

   - O senhor parece ter talento para arranjar inimigos, sr. Mellow.

   - Tivemos um mal-entendido em Nova York - disse Craig, olhando para Sally-Anne.

   - Apesar de ter sentido um certo vento glacial soprando de lá, não estava me referindo à encantadora e jovem fotógrafa, mas a outros mais altamente colocados e numa posição melhor para lhe fazerem um desserviço - conseguiu atrair de imediato toda a atenção de Craig e continuou com suavidade. - Seu encontro desta manhã com um colega meu de ministério foi... vamos dizer, infrutífero?

   - Infrutífero é bem a palavra - concordou Craig.

   - Uma grande pena, sr. Mellow. Se pretendemos nos tornar auto-suficientes no setor de alimentos e não dependermos mais dos nossos vizinhos racistas do sul, precisamos de fazendeiros com capital e determinação em terras que agora estão sendo maltratadas.

   - O senhor é bem-informado e enxerga longe, general - e ficou imaginando quem mais no país já sabia de todos os seus passos.

   - Obrigado, sr. Mellow. Talvez, quando estiver pronto para fazer seu requerimento para a compra de terras, me dê a honra de tornarmos a conversar? Digamos que teria um amigo na corte, não é essa a expressão usada? Meu cunhado é ministro da Agricultura. - Peter Fungabera deu um sorriso irresistível. - E agora, sr. Mellow, como acabou de ouvir, vou acompanhar a srta. Jay numa visita a certas áreas fechadas. A imprensa internacional tem feito um bocado de barulho sobre elas. Buchenwald, acho que foi o que um deles escreveu, ou será que foi Belsen? Ocorreu-me a idéia de que um homem de sua reputação poderia ajudar-nos a colocar os fatos em seu devido lugar, um favor por um favor. E, se viajar junto com a srta. Jay, isso talvez lhe dê a oportunidade de acabar com esse mal-entendido, não é?

 

   ESTAVA AINDA escuro e frio quando Craig estacionou o Volkswagen por trás de um dos hangares da base aérea de New Sarum e, pegando a mochila, abaixou-se para entrar pela porta lateral baixa que dava para o interior cavernoso.

   Peter Fungabera já estava lá, falando com dois oficiais não-co-missionados, mas, no momento em que o viu, despediu-os com uma continência casual e veio ao seu encontro, sorridente.

   Usava um uniforme de campanha camuflado, boina vermelha e o distintivo prateado da Terceira Brigada em forma de cabeça de leopardo. Além de uma pistola no coldre, carregava apenas um bastão forrado de couro.

   - Bom dia, sr. Mellow. Admiro a pontualidade - e deu uma olhada para a mochila. - E a sabedoria de viajar com pouca bagagem.

   Emparelhou-se com Craig e ambos cruzaram as grandes portas de correr para a pista.

   Havia dois velhos bombardeiros Canberra parados lá, que eram naquele momento o orgulho da Força Aérea de Zimbábue, e tinham sido duramente atingidos em certa época pelos guerrilheiros da outra margem do Zambeze. Atrás deles, estava um elegante Cessna 210, pequeno e todo azul e prateado; Peter Fungabera dirigiu-se para lá, exatamente quando Sally-Anne surgiu de debaixo da asa, concentrada nas verificações que estava fazendo, e Craig compreendeu que ela seria o piloto, ao invés de irem de helicóptero e com um militar pilotando.

   Vestia um poncho da Patagônia, calça jeans e botas de couro macio, com o cabelo coberto por um lenço de seda. Parecia profissional e competente enquanto fazia um exame visual do nível de combustível nos tanques das asas e, em seguida, pulou para o solo.

   - Bom dia, general. Gostaria de viajar no assento dianteiro?

   - Vamos colocar o sr. Mellow na frente? Já vi tudo isso antes.

   - Como quiser - e acenou friamente para Craig. - Sr. Mellow - chamou, e subiram a bordo. Falou com a torre de controle, taxiou para o ponto indicado, puxou o freio de mão e murmurou: - Um excesso de carne de porco faz mal a uma boa educação hebraica.

   Aquela frase, como início para uma conversa, dava o que pensar. Craig ficou perplexo, mas ela o ignorou e só quando suas mãos começaram a mexer os controles, checando as chaves, o combustível e acelerando à toda, foi que compreendeu que aquele era o seu acróstico pessoal para antes da decolagem, e as desconfianças que sentira sobre ter uma mulher como piloto começaram a diminuir.

   Depois da decolagem, virou o nariz do avião na direção noroeste, ligou o piloto automático, abriu um mapa em larga escala no colo e concentrou-se na rota. Boa técnica de vôo, admitiu Craig, mas não havia muito assunto para uma conversa amena.

   - Uma bela máquina - tentou. - É sua?

   - Um empréstimo permanente do World Wildlife Trust - respondeu, atenta ao céu diretamente em frente.

   - Qual é nossa velocidade de cruzeiro?

   - Há um velocímetro bem em frente ao senhor, sr. Mellow - respondeu, cortando a conversa sem esforço.

   Foi Peter Fungabera quem inclinou-se atrás de Craig e rompeu o silêncio:

   - É o grande Dique - e apontou para a abrupta formação geológica abaixo. Uma área rica em minérios como ouro, platina e cromo. - Além do dique, as terras cultiváveis iam rareando rapidamente, e logo voavam sobre uma vasta área de colinas ásperas e florestas de um verde esmaecido e pobre porque estendiam-se indefinidamente até o horizonte leitoso. - Vamos aterrissar em um pequeno aeroporto, deste lado das Colinas Pongola. Há uma missão lá e um pequeno acampamento, mas é uma área muito remota. Temos transporte à nossa espera, são mais duas horas de viagem até o campo - explicou o general.

   - Importa-se se eu voar um pouco mais baixo, general? - perguntou Sally-Anne, e ele deu uma risada.

   - Não é preciso nem perguntar por quê. Sally-Anne está me fazendo um curso sobre a importância dos animais selvagens e sua preservação.

   Sally-Anne diminuiu a velocidade e desceu. O calor aumentou e o avião muito leve começou a pular e a oscilar com as correntes quentes que ascendiam das colinas rochosas. A área abaixo era completamente desprovida de habitações ou de qualquer cultivo.

   - Um lugar abandonado por Deus - murmurou o general. - Não há água perene, a pastagem não presta e é cheio de moscas.

   Sally-Anne, contudo, avistou um rebanho de grandes antílopes africanos com corcovas e pelagem creme em um dos víeis abertos ao lado do leito seco de um rio, e vinte milhas adiante, um elefante solitário.

   Desceu até quase o nível das copas das árvores, acionou os flaps e deu uma série de voltas lentas em torno do elefante, espantando-o da floresta e mantendo-o em terreno aberto até que forçou-o a encarar o avião com as orelhas e a tromba estendidas.

   - Ele é magnífico - gritou, e mal ouviam suas palavras por causa do vento que entrava pela janela aberta. - Deve ter uns quarenta quilos de marfim em cada presa. - Começou a filmar com uma só mão pela janela aberta, ligando o motor da Nikon que zumbia à medida que o filme passava pela câmera.

   Voavam tão baixo que parecia que o elefante poderia agarrar a ponta de uma asa com a tromba, e Craig pôde ver claramente a secreção úmida dos olhos, percebendo que estava agarrado aos braços da cadeira.

   Finalmente, Sally-Anne o deixou para trás, nivelou as asas e subiu. Craig relaxou, aliviado.

   - Assustado, sr. Mellow?

   Sua cadela, pensou Craig. Esse foi um golpe baixo, mas ela já se dirigia a Peter Fungabera por cima do ombro:

   - Aquele animal, morto, vale dez mil dólares. Mas vivo, vale dez vezes mais e pode gerar cem machos para substituí-lo.

   - Sally-Anne está convencida de que há uma organização em larga escala neste país de caçadores furtivos. Mostrou-me umas fotografias impressionantes, e devo dizer que estou começando a ficar preocupado também.

   - Temos de descobri-los e acabar com eles, general - ela insistiu.

   - Descubra-os para mim, Sally-Anne, e eu acabo com eles. Já tem a minha palavra.

   Não havia como não perceber o entendimento entre eles, e Fungabera era um homem bastante atraente. Esse pensamento fez Craig sentir ciúme. Olhou de esguelha para Peter Fungabera que o observava atento e com ar especulativo, um olhar que disfarçou num instante com um sorriso.

   - O que acha deste problema, sr. Mellow? - perguntou e subitamente Craig viu-se contando para ele os planos do Águas do Zambeze em Chizarira.

   Contou-lhes sobre o rinoceronte negro e a área silvestre protegida à volta, como era facilmente acessível às cataratas de Victoria e Sally-Anne o ouvia tão atentamente quanto o general. Ao terminar, ficaram ambos silenciosos por algum tempo até que Fungabera disse:

   - O senhor, agora, sr. Mellow, está falando com bom senso. É dessa espécie de projeto que este país precisa desesperadamente, e o potencial lucrativo pode ser compreendido até pelos mais retrógrados e menos sofisticados membros do meu povo.

   - Não seria melhor chamar-me de Craig, general?

   - Obrigado, Craig. Meus amigos me chamam de Peter.

   Meia hora depois, avistaram um telhado galvanizado brilhando ao sol diretamente à frente, e Sally-Anne anunciou:

   - A estação missionária de Tuti - e começou a preparar-se para aterrissar. Passou em rasante sobre a igreja e Craig viu figuras diminutas em torno das cabanas que abanavam para eles.

   A pista era estreita, curta e acidentada e o vento estava de través, mas Sally-Anne acelerou e mantendo a asa de bombordo baixa com uma manobra do manche derivou, um momento antes de tocarem o solo. Craig compreendeu, então, que era excelente piloto.

   Havia um Land-Rover cor de areia, do exército, à espera, sob uma enorme árvore marula a um lado da pista, e os três soldados prestaram continência a Peter Fungabera com um bater de calcanhares que levantou poeira. Enquanto Craig ajudava Sally-Anne a amarrar o avião, carregaram a pouca bagagem para o Land-Rover.

   Quando o carro passou em frente à escola da missão, ao lado da igreja, Sally-Anne perguntou:

   - Será que tem uma toalete para mulheres aqui?

   Peter bateu no ombro do chofer com o bastão, fazendo-o parar.

   Negrinhos de olhos arregalados encheram a varanda e a professora saiu para cumprimentar Sally-Anne enquanto subia os degraus, fazendo-lhe uma pequena mesura de boas-vindas. Tinha a mesma idade que ela, com pernas longas e esbeltas sob a saia simples de algodão. A roupa estava impecavelmente limpa e engomada, e os tênis, sem uma mancha. A pele tinha um brilho aveludado e o rosto o característico formato de lua cheia, dentes brilhantes e olhos de gazela das moças Ngumi, mas havia nela uma postura tão graciosa, uma expressão tão alerta e inteligente e uma perfeição de feições que a tornavam realmente bonita.

   Sally-Anne e ela conversaram por alguns instantes e, em seguida, fez a moça branca entrar.

   - Acho que nós dois deveríamos nos entender, Craig - disse Peter, olhando as duas entrarem. - Tenho visto você observando Sally-Anne e eu. E deixe que lhe diga, admiro as qualidades de Sally-Anne, sua inteligência e iniciativa; mas, à diferença de muitos dos meus compatriotas, a miscigenação não tem nenhum atrativo para mim. Acho a maioria das mulheres européias masculinizadas e mandonas, e a carne branca insípida. Pode me perdoar por falar tão francamente?

   - Estou aliviado por ouvir isso - sorriu Craig.

   - Por outro lado, acho aquela professorinha... você que é mestre das palavras, arranje-me uma para descrevê-la.

   - Ainda núbil? Muito boa? - Craig provocou-o.

   - Melhor ainda - riu-se Peter. - Preciso achar tempo para ler o seu livro. - E, ficando sério novamente, continuou: - Chama-se Sarah, fez quatro cursos com louvor e obteve um diploma de professora de ginásio; tem qualificações como enfermeira; é bonita, recatada, respeitosa e obediente às velhas e boas maneiras tradicionais. Viu como não olhou diretamente para nós, homens? Isso teria sido muito avançado - e Peter balançou a cabeça em aprovação. - Uma mulher moderna com virtudes antigas. E, no entanto, o pai dela é um feiticeiro que se veste de peles, faz adivinhações jogando ossos e só se lava uma vez por ano. África - acrescentou -, minha maravilhosa, fascinante e sempre mutável e nunca mudada África.

   As duas jovens voltaram das casas por trás da escola e conversavam animadamente, enquanto Sally-Anne acionava a câmera, capturando imagens das crianças com a professora que não parecia muito mais velha que elas, e os dois homens observavam, parados junto ao Land-Rover.

   - Você me parece um homem de ação, Peter, e não posso acreditar que não tenha o dote da noiva - disse Craig. - O que está esperando?

   - Ela é matabele e eu mashona. Romeu e Julieta - explicou Peter com simplicidade. - E é tudo.

   As crianças, lideradas por Sarah, cantaram uma canção de boas-vindas na varanda e, depois, a pedido de Sally-Anne, recitaram o alfabeto e a tabuada de multiplicar, enquanto ela fotografava suas expressões atentas. Quando subiu de volta ao Land-Rover, gritaram adeus e acenaram até que a nuvem de poeira os escondeu.

   A trilha era ruim e o carro pulava ao passar sobre os sulcos profundos formados pela chuva e ressequidos como concreto. Pelas aberturas na floresta, viam, volta e meia, as colinas azuis no horizonte ao norte, perpendiculares, desoladas e nada convidativas.

   - As colinas Pongola - disse-lhe Peter. - Zona ruim - e, quando já se aproximavam de seu destino, começou a lhes contar o que deviam esperar quando chegassem, afinal. - Estes centros de reabilitação não são campos de concentração, mas, sim, como o nome mostra, centros de reeducação e adaptação ao mundo normal - e olhou para Craig. - Você, como nós, sabe que vivemos uma terrível guerra civil. Onze anos de inferno, que brutalizou toda uma geração de jovens. Desde a adolescência, não conheceram outra vida que não fosse a de fuzil automático nas mãos, só lhes ensinaram a destruir e nada aprenderam a não ser que os desejos de um homem podem ser satisfeitos simplesmente matando quem quer que se atravesse em seu caminho.

   Peter Fungabera ficou silencioso por alguns instantes e Craig viu que estava revivendo a parte que tivera aqueles anos terríveis. Deu um pequeno suspiro e continuou:

   - Os pobres sujeitos foram iludidos por alguns de seus líderes. Para que suportassem a dureza e as privações da guerrilha, fizeram-lhes promessas que nunca poderiam ser cumpridas. Prometeram terras ricas para plantar, centenas de cabeças de gado de primeira, dinheiro, carros e muitas esposas - e fez um gesto zangado. - Deram-lhes grandes esperanças e, quando as promessas não puderam ser cumpridas, viraram-se contra os que as tinham feito. Cada um deles estava armado, era um soldado treinado que já matara e não hesitaria em matar de novo. O que podíamos fazer? - Peter interrompeu-se, olhando o relógio de pulso. - Já é hora do almoço e de dar uma esticada nas pernas - sugeriu.

   O chofer parou num local onde a trilha cruzava com uma estrada elevada e uma ponte de madeira sobre o leito de um rio cujas águas limosas e frescas redemoinhavam por sobre os bancos de areia ondulados, e grandes caniços balançavam nas duas margens. A escolta fez uma fogueira, assou espigas de milho e preparou chá Malawi, enquanto o general passeava com os convidados pela estrada e continuava a falar-lhes:

   - Nós, africanos, tínhamos uma tradição antiga. Quando um de nossos jovens tornava-se intratável e rompia com as leis tribais, era mandado para um acampamento na mata onde os mais velhos o surravam até recuperar o juízo. O centro de reabilitação é uma versão modernizada desse campo tradicional. Não vou tentar esconder nada de vocês. O que vamos visitar não é nenhuma colônia de férias. Os homens que estão lá são duros e só um tratamento duro pode funcionar com eles. Por outro lado, não são campos de extermínio; digamos que são o equivalente dos campos de detenção do exército britânico - e Craig não pôde deixar de sentir-se impressionado pela honestidade de Fungabera. - São livres para falar com qualquer detento, mas devo pedir-lhes que não saiam caminhando pela mata sozinhos. Isso se aplica especialmente a você, Sally-Anne - e Peter sorriu-lhe. - É um lugar muito isolado e selvagem. Animais como hienas e leopardos são atraídos pelos detritos e pelo esgoto, perdem o medo e tornam-se ousados. Quando quiserem sair do acampamento, falem comigo e providenciarei uma escolta.

   Comeram o almoço frugal, debulhando o milho assado com os dedos e engolindo a massa dos grãos com goles de chá forte, escuro e muito açucarado.

   - Se estão prontos, podemos continuar - e levou-os de volta ao Land-Rover, que chegou uma hora mais tarde ao Centro de Reabilitação de Tuti.

   Durante a guerrilha, fora uma das aldeias protegidas pelo governo de Smith numa tentativa de resguardar os camponeses negros das intimidações dos guerrilheiros. Havia um kopje rochoso central, despido de qualquer vegetação, e uma pilha de pedras de granito cinzento em cima da qual fora construído um pequeno fortim com sacos de areia, frinchas para metralhadoras, plataformas de tiro, trincheiras de comunicação e abrigos. Abaixo, ficava o acampamento, com fileiras ordenadas de cabanas de barro e palha, muitas com meias-paredes para assegurar a circulação de ar, construídas ao redor de um espaço aberto tão grande que podia ser usado como um campo de futebol, já que tinha balizas de gol rudimentares fincadas nas extremidades.

   Inesperadamente, depararam com uma grossa parede branca do lado mais próximo ao forte. Havia uma cerca dupla de arame farpado, circundando o fosso profundo, em torno de todo o acampamento. Tinha mais de três metros de altura e o arame era densamente trançado. O fundo do fosso estava todo fincado de estacas pontiagudas de madeira e havia torres de vigia nos cantos do acampamento. Os guardas do único portão fizeram continência para o Land-Rover, que rolou vagarosamente pelo caminho que beirava o terreno aberto.

   Ao sol, cerca de trezentos jovens negros, vestindo apenas short cáqui, faziam uma ginástica vigorosa que era ritmada pelos gritos dos instrutores. Nas cabanas abertas, com tetos de palha, centenas de outros, sentados em fileiras no chão de terra batida, recitavam juntos a lição no quadro-negro.

   - Daremos uma volta mais tarde - disse-lhes o general. - Primeiro, é melhor se instalarem.

   Deram a Craig um dos abrigos no forte. O chão de terra tinha sido recentemente varrido e salpicado de água para refrescá-lo e fazer assentar a poeira. As únicas peças de mobiliário eram uma esteira de palha trançada e uma estopa que cobria o umbral. Na esteira, havia uma caixa de fósforos e um pacote de velas, e Craig achou que eram luxos reservados apenas a visitas importantes.

   Sally-Anne foi alojada no abrigo do outro lado da trincheira em frente. Não mostrou qualquer desconsolo diante das acomodações primitivas e, quando espiou pela cortina, viu-a sentada na esteira, limpando as lentes da câmera e recarregando-a com filme.

   Peter Fungabera pediu licença e subiu pela trincheira até o posto de comando no alto da colina. Alguns minutos mais tarde, Craig ouviu-o falando no rádio em shona, mas muito rápido para que pudesse acompanhar, e dali a meia hora, desceu novamente.

   - Daqui a uma hora já vai escurecer. Vamos ver os prisioneiros receberem a refeição da noite.

   Os homens alinhavam-se, em completo silêncio, na fila, para pegar a comida. Não havia sorrisos ou brincadeiras. Nem mesmo demonstravam a menor curiosidade pelos visitantes brancos e pelo general.

   - Comida simples - explicou Peter. - Mingau de milho e verduras. - Cada homem recebia uma porção do mingau endurecido e outra de legumes cozidos em sua tigela. - Carne e tabaco uma vez por semana. Mas ambos podem ser cortados por mau comportamento.

   Peter dizia exatamente a verdade: os homens eram magros, com as costelas aparecendo por baixo dos músculos trabalhados pela ginástica, sem qualquer vestígio de adiposidade. Devoravam a comida e raspavam a tigela com os dedos. Magros, mas não emaciados ou fracos, achou Craig, mas logo em seguida seus olhos estreitaram-se.

   - Aquele homem está machucado. - Via-se a marca roxa mesmo por debaixo da pele escurecida pelo sol.

   - Pode falar com ele - convidou Peter e, quando Craig interrogou-o em sindebele, o homem respondeu imediatamente.

   - O que aconteceu com suas costas?

   - Me bateram.

   - Por quê?

   - Briguei com outro homem.

   Peter chamou um dos guardas, falou em voz baixa com ele em shona e explicou:

   - Ele feriu outro prisioneiro com um pedaço de arame farpado afiado. Foi privado de carne e de tabaco por dois meses e recebeu quinze bastonadas. Esse é exatamente o tipo de comportamento anti-social que estamos tentando impedir. - Enquanto caminhava de volta, ao longo da parede caiada de branco, acrescentou: - Amanhã, terão o acampamento à disposição de vocês. Vamos partir cedo na manhã seguinte.

   Comeram com os oficiais shona no refeitório a mesma alimentação servida aos prisioneiros, acrescida de um ensopado de carne fibrosa de origem indeterminada e frescor duvidoso. Logo após a refeição, Peter Fungabera desculpou-se e saiu com os oficiais do abrigo, deixando Sally-Anne e Craig sozinhos.

   Antes que pudesse dizer uma só palavra, ela levantou-se silenciosa e saiu do abrigo. Craig, que já atingira o limite da paciência, ficou zangado, e imediatamente a seguiu. Foi encontrá-la sentada na amurada de sacos de areia da trincheira principal, abraçando os joelhos e contemplando o acampamento. A lua estava cheia e brilhava no horizonte, sobre as colinas. Encarou-o ao chegar junto dela, e a raiva de Craig evaporou-se na mesma hora.

   - Eu me comportei muito mal com você - foi dizendo sem preâmbulos.

   Ela abraçou os joelhos com mais força e não disse nada.

   - Quando nos encontramos pela primeira vez, estava atravessando um mau pedaço - continuou com obstinação. - Não vou aborrecê-la com detalhes, mas estava completamente bloqueado e não conseguia escrever, senti-me sem rumo, e descontei em cima de você.

   Ainda não dava sinais de tê-lo ouvido. Na floresta por trás da cerca dupla, houve de repente um súbito e medonho alarido em vários pontos do perímetro do acampamento. Gargalhadas estridentes e sem a menor alegria, que aumentavam e diminuíam, terminadas, por fim, numa série de risadas guturais, grunhidos e soluços agoniados.

   - Hienas - disse Craig, e Sally-Anne estremeceu e endireitou-se, como se fosse levantar. - Por favor! Só mais um minuto. Tenho procurado uma chance para me desculpar. - Craig percebeu o desespero que transparecia na própria voz.

- Não é preciso - ela disse. - Foi muita presunção da minha parte achar que você gostaria do meu trabalho. - O tom de voz não era nada conciliatório. - Acho que mereci tudo que disse.

   - Mas seu trabalho... suas fotos... - e por um momento ficou sem voz - me assustaram. Por isso tive uma reação tão rancorosa, tão infantil.

Ela voltou-se para encará-lo e o luar incidiu em seu rosto.

- Assustaram você? - perguntou, perplexa.

- Deixaram-me aterrado. Sabe, eu não conseguia trabalhar e começava a acreditar que o livro não tinha passado de um acaso feliz, e que não tinha talento para continuar a escrever. Eu ficava tentando e toda vez que o fazia havia apenas o vazio. - Ela o fitava agora com os lábios entreabertos e os olhos como duas taças cheias de escuridão. - Foi quando você apareceu com aquelas malditas fotografias me desafiando a fazer algo à altura delas.

Ela balançou lentamente a cabeça em negativa.

- Pode ser que não fosse a sua intenção, mas era exatamente isso. Um desafio que não tive coragem de aceitar. Estava com medo, agredi você e, desde então, lamentei tudo isto profundamente.

- Gostou delas? - ela perguntou.

- Foi como um tremor de terra para o meu mundinho. Mostraram-me a África sob um novo ângulo, e encheram-me de nostalgia. Quando as vi, pude compreender o que estava faltando em mim. Fiquei com a saudade que tem de casa um menino em sua primeira noite solitária no internato. - Ao dizer isso sentiu um nó na garganta, mas não ficou envergonhado. - Foram as suas fotografias que me fizeram voltar para cá.

- Eu não podia saber... - ela disse, e ambos calaram-se; Craig sabia que, se falasse de novo, seria em soluços, porque sentia os olhos cheios de lágrimas de autopiedade.

Alguém começou a cantar no acampamento abaixo deles. Era uma agradável voz de tenor que se ouvia distante, mas clara, no alto da colina, e Craig conseguiu distinguir as palavras. Era uma antiga música matabele sobre os feitos guerreiros de um regimento; cantada, porém, como um lamento, parecia traduzir todo o sofrimento e a tragédia do continente; nem mesmo as hienas se atreveram a gritar enquanto a voz cantava:

As toupeiras estão debaixo da terra.

Estão mortas?, perguntaram as filhas de Mashobane.

Atenção, lindas jovens, não ouvem alguém mover-se na escuridão?

   A voz do cantor cessou afinal e Craig imaginou todas as centenas de rapazes velando em silêncio nas esteiras, obcecados e entristecidos como ele.

   - Obrigada por me contar - disse, então, Sally-Anne. - Sei que não deve ter sido fácil para você. - Tocou-lhe o braço nu com as pontas dos dedos, o que fez um arrepio percorrê-lo e o coração dar um pulo.

   Ela destrançou as pernas, saltou do parapeito, desceu pela trincheira de comunicação; ele ouviu o deslizar da estopa ao vedar a abertura do abrigo e o riscar do fósforo enquanto acendia uma vela.

   Desceu para o seu abrigo, acendeu uma das velas que colocou em um nicho na parede e tirou da mochila o caderno de notas e a caneta. As palavras ferviam em seu cérebro. Colocou a caneta sobre a folha branca, as palavras jorravam desordenadas pelo papel, como em um delicioso e prolongado orgasmo. Parou apenas para acender mais velas nos tocos gotejantes.

   De manhã, os olhos estavam vermelhos e ardendo com o esforço. Sentia-se fraco e trêmulo como se tivesse corrido muito e rápido demais, mas o caderno estava quase cheio e sentia-se estranhamente jubiloso.

   O júbilo durou toda a manhã, quente e luminosa, aumentado pela mudança de atitude de Sally-Anne. Ainda estava reservada e quieta, mas ao menos ouvia quando falava e respondia, pensativa e séria. Uma ou duas vezes, chegou a sorrir, a boca muito grande e o nariz entraram finalmente em harmonia com o resto das feições. Craig estava achando difícil concentrar-se no infortúnio dos homens que tinham vindo estudar, até que percebeu a compaixão de Sally-Anne e ouviu-a exprimi-la livremente pela primeira vez.

   - Seria tão fácil colocá-los de lado como criminosos embrutecidos - murmurou, observando os rostos inexpressivos e olhos cautelosos -, até que se compreende como foram privados de qualquer influência humanizadora. A maioria deles foi arrancada das salas de aula na adolescência e levada para campos de treinamento guerrilheiro. Não têm nada, nunca tiveram nada que fosse só deles, exceto um fuzil AK 47. Como podemos esperar que respeitem a pessoa ou a propriedade dos outros? Craig, pergunte àquele ali quantos anos tem.

   - Ele não sabe - traduziu Craig. - Não sabe quando nasceu ou onde estão os pais.

   - Ele não teve nem mesmo o direito de saber quando nasceu observou Sally-Anne, e Craig lembrou-se de repente com que grosseria rejeitava um vinho que não lhe agradasse ou como, sem ao menos se dar ao trabalho de pensar, encomendava roupas novas ou entrava na primeira classe de um avião, enquanto aqueles homens vestiam apenas farrapos, sem ter um par de sapatos ou um cobertor para agasalhá-los. - O abismo existente entre os que têm e os que nada têm neste mundo vai nos levar para a destruição - disse Sally- Anne, enquanto registrava com a Nikon aquela resignação animal que existe por trás do desespero. - Pergunte, por favor, àquele ali como o tratam - insistiu e, quando Craig dirigiu-lhe a palavra, o homem olhou-o sem compreender, como se fosse uma pergunta sem sentido, e sua sensação de bem-estar evaporou-se como a névoa da manhã.

   Nas cabanas abertas, as aulas eram sobre orientação política e o papel do cidadão responsável no estado socialista. Eram copiadas nos quadros-negros numa letra primária e semi-analfabeta pelos instrutores entediados e recitadas pelos prisioneiros como papagaios. A evidente falta de compreensão de todos deprimiu Craig ainda mais.

   Quando subiam a colina de volta aos alojamentos, algo ocorreu a Craig que virou-se para falar com Peter Fungabera.

   - Todos aqui são matabele, não é?

   - É verdade. Mantemos as tribos segregadas; isso diminui os atritos - disse Peter.

   - Existem prisioneiros shona? - insistiu Craig.

   - Ah, sim. Os acampamentos para eles ficam nas montanhas do leste, exatamente nas mesmas condições... - assegurou-lhe Peter.

   Ao cair do sol, o gerador para ativar o rádio foi ligado e, vinte minutos mais tarde, Peter Fungabera descia até o abrigo onde Craig estava relendo e corrigindo o que escrevera na noite anterior.

   - Há uma mensagem para você, Craig, de Morgan Oxford, da embaixada americana.

   Levantou-se ansioso. Morgan conseguira que a resposta de Henry Pickering lhe fosse transmitida assim que chegasse. Pegou a folha onde Peter anotara a transmissão de rádio e leu:

   Para Mellow. Ponto. Meu entusiasmo pessoal seu projeto não compartilhado por outros. Ponto. Ashe Levy não dá adiantamento ou garantia. Ponto. Comitê Empréstimos exige garantia adicional substancial antes financiamento. Ponto. Sinto muito. Ponto. Melhores votos. Henry.

   Leu a mensagem rapidamente da primeira vez e, depois, releu-a lentamente.

   - Não é da minha conta - murmurou Peter Fungabera -, mas presumo que isso diz respeito a seus planos para o que chama de Águas do Zambeze?

   - É isso mesmo, mas receio que seja o fim deles - Craig disse amargamente.

   - Quem é Henry?

   - Um amigo. É banqueiro, acho que esperei demais dele.

   - É. Parece que sim, não é? - disse Peter Fungabera pensativamente.

   Apesar de não haver dormido na noite anterior, não conseguiu fechar os olhos. A esteira era dura como pedra e o coro das hienas na floresta parecia ecoar seu estado de espírito sombrio.

   Na longa viagem de volta à pista da Missão Tuti, sentou-se ao lado do chofer e não participou da conversa de Peter e Sally-Anne no banco traseiro. Só agora via o quanto desejara comprar a Rholands; estava zangado com Ashe Levy que lhe recusara apoio, com Henry Pickering por não haver feito mais empenho junto a seu maldito Comitê de Empréstimos.

   Sally-Anne insistiu em parar novamente na escola da missão para rever Sarah, a professora matabele, que daquela vez estava preparada para recebê-los e ofereceu-lhes chá. Sem disposição para amenidades, Craig sentou-se na varanda, distante dos outros, e começou a planejar sem qualquer otimismo como poderia contornar a situação.

   Sarah aproximou-se discretamente, trazendo-lhe uma caneca de chá em uma bandeja de madeira entalhada à mão, e, ao oferecê-la, estava de costas para Peter Fungabera.

   - Quando o crocodilo devorador de gente sabe que o caçador está à sua procura, esconde-se no fundo da lama do lago mais profundo - falou baixinho em sindebele - e, quando o leopardo caça, caça na escuridão.

   Surpreso, Craig olhou-a. Os olhos já não estavam abaixados e havia um lampejo forte e raivoso em suas profundezas escuras.

   - Os bichinhos de Fungabera devem ter feito muito barulho continuou ela baixinho. - Não podiam alimentar-se enquanto vocês estavam lá, e deviam estar com fome. Você os escutou, Kuphela? - perguntou, e Craig estremeceu com a surpresa; Sarah usara o nome que o camarada Sentinela lhe dera. Como podia conhecê-lo? O que queria dizer com os bichinhos de Fungabera?

   Antes que Craig pudesse responder, Peter Fungabera levantou os olhos e viu a expressão de seu rosto. Levantou-se sem alarde, mas rapidamente, e atravessou a varanda até junto de Sarah. Imediatamente, a moça abaixou os olhos, fez uma pequena mesura e saiu com a bandeja vazia.

   - Não deixe que seu desapontamento o deprima tanto, Craig. Venha juntar-se a nós - e inclinou-se, colocando-lhe a mão no ombro num gesto amigo.

   No curto trajeto da missão até a pista de vôo, Sally-Anne dirigiu-lhe de repente a palavra:

   - Estive pensando, Craig. Este lugar que você chama de Águas do Zambeze deve ficar a apenas uma meia hora de vôo daqui. Descobri o rio Chizarira no mapa. Podíamos fazer um pequeno desvio e voar até lá a caminho de casa.

   - Não há sentido nisso.

   - Por que não? - perguntou, e passou-lhe o papel com a mensagem de Pickering. - Oh, sinto muito. - Craig viu que estava sendo sincera e sua preocupação reconfortou-o um pouco.

   - Gostaria de ver o local - interrompeu de repente Fungabera e, quando meneou a cabeça em negativa, sua voz tornou-se imperiosa: - Vamos até lá - disse com determinação, e Craig limitou-se a dar de ombros, indiferente.

   - As piscinas naturais devem ficar aqui, onde este afluente se liga ao rio principal - disse Sally-Anne, depois de consultarem o mapa. E trabalhou rapidamente com os compassos e o defletor computadorizado de vento. - OK - disse. - Vinte e dois minutos de vôo com este vento.

   Enquanto voavam, e Sally-Anne estudava o terreno comparando-o com o mapa, Craig refletia sobre as palavras da moça matabele. "Os bichinhos de Fungabera." De alguma forma, isso soava ameaçador e o fato de usar o nome Kuphela o perturbava ainda mais. Só havia uma explicação: estava em contato e era provavelmente um membro da guerrilha dissidente. O que queria dizer com a alegoria do crocodilo e do leopardo e com os animais de Fungabera? E, se fosse simpatizante da guerrilha, poderia confiar nela?

   - Lá está o rio - disse Sally-Anne, fechando o manípulo da gasolina e começando uma curva descendente em direção ao brilho das águas.

   Voou muito baixo pela margem do rio e, apesar da vegetação espessa, avistou bandos de animais de caça e até mesmo, uma vez, com um grito de alegria, o grande vulto escuro de um rinoceronte negro nas moitas de ébano. De repente, apontou para a frente.

   - Olhem só isso! - exclamou.

   Numa curva do rio, havia uma faixa estreita de terreno aberto, cercado de árvores ribeirinhas, onde a pastagem fora cortada como um gramado pelos rebanhos de zebras que saíram galopando em pânico e levantando poeira com a aproximação do avião.

   - Aposto que poderia aterrissar ali - disse Sally-Anne, e puxou os flaps, diminuindo a velocidade do Cessna e abaixando o nariz para ter uma melhor visão frontal. Por fim desceu o trem de aterrissagem.

   Fez voltas lentas sobre o terreno aberto, cada uma mais baixa que a outra, até que as rodas estivessem a apenas um metro do solo e pudessem distinguir as pegadas das zebras na terra avermelhada.

   - Firme e claro - ela disse, tocando o solo na passagem seguinte e imediatamente puxando ao máximo o freio de segurança que parou o avião poucos metros depois.

   - Mulher-pássaro - gracejou Craig e ela sorriu com o cumprimento.

   Saltaram do avião e cruzaram a planície em direção à floresta, atravessaram-na por uma trilha de caça, saindo num promontório rochoso sobre o rio.

   Era o perfeito cenário africano. Bancos de areia branca e rochas polidas pelas águas rebrilhando como escamas de répteis, galhos arrastados pela água limosa, árvores altas com raízes como serpentes brancas subindo pelos rochedos - e, além, a floresta cerrada.

   - É lindo - disse Sally-Anne, e saiu perambulando com a câmara.

   - Essa seria uma boa localização para um de seus alojamentos. - Peter Fungabera apontou-lhe as pilhas de fezes de elefante na areia branca abaixo.

   - Um bom ponto de observação - concordou.

- Sim, teria sido, sem dúvida - concordou Peter. - Parece bom demais para não se aproveitar ainda mais por esse preço. Deve garantir um lucro de milhões.

- Para um bom socialista africano, você fala como um capitalista sujo - disse-lhe Craig vagarosamente.

- Dizem que o socialismo é a filosofia ideal... enquanto se tem capitalistas para pagar por ele.

Craig deu-lhe um olhar penetrante e, pela primeira vez, viu o brilho da velha e boa avareza ocidental nos olhos de Peter Fungabera. Ficaram ambos silenciosos, observando Sally-Anne na margem do rio enquanto enquadrava árvores, rochedos e céu para uma foto.

- Craig - disse Peter, que obviamente chegara a uma decisão. - Se eu conseguisse a garantia colateral que o Banco Mundial exige, receberia uma comissão sobre os lucros da Rholands, não é?

- Teria direito a isso. - Craig sentiu as esperanças renascerem.

Naquele instante, Sally-Anne gritou:

- Está ficando tarde e temos ainda duas horas e meia de vôo até Harare.

De volta à base aérea de New Sarum, Peter Fungabera despediu-se de ambos.

- Espero que as fotos fiquem boas - disse a Sally-Anne, e virando-se para Craig perguntou: - Você vai ficar no Monomatapa? Entro em contato com você lá nos próximos três dias.

Tomou o jipe militar que esperava por ele e saudou-os com um gesto do bastão enquanto se afastava.

- Você está de carro? - Ela balançou a cabeça negativamente. - Não posso lhe prometer dirigir tão bem quanto você pilota; quer arriscar?

Morava num prédio, do velho quarteirão da avenida, que ficava defronte ao Palácio do Governo e Craig a deixou na entrada.

- Gostaria de jantar comigo? - perguntou.

- Tenho muito trabalho a fazer, Craig.

- Será um jantar rápido, prometo. Uma oferenda de paz. Trarei você de volta às dez - levantou a mão como em juramento e ela cedeu.

- Está bem, às sete aqui - concordou, e ele ficou observando a maneira como subia as escadas com passos decididos e ágeis, antes de dar partida no carro.

Sally-Anne sugeriu uma steakhouse onde foi tratada, pelo enorme e barbudo proprietário, como um membro da realeza. A carne era a melhor que Craig já provara, espessa, suculenta e macia. Beberam um Eabernet do cabo da Boa Esperança e, depois de um começo hesitante, a conversa começou a fluir.

- Foi tudo ótimo enquanto eu era uma mera assistente técnica da Kodak, mas, quando comecei a ser convidada para expedições como fotógrafa oficial e, depois, a fazer minhas próprias exposições, ele simplesmente não agüentou mais - contou-lhe. - O primeiro homem que vi ter ciúme de uma Nikon.

- Quanto tempo estiveram casados?

- Dois anos.

- Filhos?

- Nenhum, graças a Deus.

Comia como andava, rápida, precisa, mas com um traço de prazer sensual. Quando terminaram, olhou para o Rolex de ouro.

- Você prometeu que me levaria de volta às dez. - Apesar dos protestos dele, fez questão de pagar a metade da conta.

Quando pararam em frente ao edifício, ela olhou-o com seriedade por um momento antes de perguntar:

- Quer um pouco de café?

- Com o maior prazer - e começou a abrir a porta, quando ela o interrompeu:

- Vamos deixar logo de saída as coisas bem claras. O café é instantâneo, e é tudo o que estou oferecendo, certo?

- Certo - ele concordou.

- Vamos.

O apartamento estava mobiliado com almofadões de lona, um gravador portátil e uma cama de campanha com uma sacola de dormir, aos pés, bem enrolada. O assoalho estava nu, mas polido, e as paredes, forradas com fotografias. Ele ficou olhando as fotos enquanto ela ia para a cozinha da quitinete preparar o café.

- Se quiser usar o banheiro, fica ali - ela disse -, mas tome cuidado.

Era mais uma câmara escura que um banheiro. Com uma tenda de náilon preto, fechada por zíper, sobre o box do chuveiro, vidros de produtos químicos e pacotes de papel fotográfico no lugar dos usuais cosméticos femininos.

Sentaram-se nos almofadões, beberam o café, ouviram a Quinta de Beethoven no gravador, e falaram sobre a África. Por uma ou duas vezes, ela mencionou de passagem o livro dele, mostrando que o lera com atenção.

- Tenho de acordar cedo amanhã - disse, finalmente, pegando a caneca vazia da mão dele. - Boa noite, Craig.

- Quando posso vê-la de novo?

- Não estou bem certa. Vou voar amanhã cedo para as montanhas e não sei quanto tempo vou passar lá. - A expressão do rosto suavizou-se. - Telefono para você no Mono quando voltar, está bem?

- Claro que está. Eu...

Pressentindo o que ele iria dizer, interrompeu-o.

- Craig, estou começando a gostar de você, mas como um amigo, não estou à procura de romance. Ainda não me recuperei completamente, por favor, compreenda.

Despediram-se com um aperto de mãos na porta do apartamento.

Apesar da recusa, Craig sentiu-se feliz enquanto dirigia de volta ao Monomatapa. Naquelas alturas, não queria analisar profundamente seus sentimentos por ela, nem definir suas intenções. Era uma agradável mudança não ter uma mulher colecionadora de celebridades tentando adicionar seu nome à lista de amantes. A atração física que sentia tornava-se mais forte com sua relutância; respeitava-lhe o talento, as realizações e tinha uma completa simpatia por seu amor à África e sua compaixão pelas pessoas.

Isso me basta por enquanto, pensou, enquanto estacionava o Volks.

O subgerente veio ao seu encontro no saguão do hotel, torcendo as mãos angustiado, e levou-o até o escritório.

- Sr. Mellow, recebi uma visita do esquadrão especial de polícia enquanto estava ausente. Tive de abrir seu cofre para eles e deixá-los examinar seu quarto.

- Mas, que diabos, eles têm autoridade para isso? - Craig sentiu-se ultrajado.

- O senhor não compreende, podem fazer o que quiserem aqui - apressou-se em dizer o outro. - Não tiraram nada do cofre, sr. Mellow, eu lhe garanto.

- Mesmo assim, quero examiná-lo - disse Craig, sombriamente.

Contou os traveller's check e conferiam. A passagem aérea de volta estava intacta, assim como o passaporte, mas haviam examinado a caixa que Henry Pickering lhe dera: a placa de identificação esmaltada de assessor de campo estava solta dentro do estojo de couro.

- Quem pode ter ordenado uma busca dessas? - perguntou ao subgerente enquanto tornavam a trancar o cofre.

- Só alguém altamente colocado.

Tungata Zebiwe, pensou com amargor. Seu maldito filho da mãe metido, como você deve ter mudado.

 

CRAIG FOI levar o relatório para Henry Pickering sobre a visita ao Centro de Reabilitação Tuti à embaixada, e Morgan Oxford recebeu-o e ofereceu-lhe café.

- Acho que vou ficar aqui mais tempo do que pensava - disse-lhe Craig - e não consigo trabalhar num quarto de hotel.

- Achar um apartamento aqui é um inferno, mas vou ver o que posso fazer - disse Morgan. E telefonou-lhe no dia seguinte:

- Craig, uma de nossas moças vai passar um mês de férias em casa. É uma fã sua e poderia sublocar o apartamento por seiscentos dólares. Ela viaja amanhã.

O apartamento era um conjugado confortável e arejado. Havia uma mesa larga que serviria perfeitamente de escrivaninha, colocou uma pilha de papel no centro, com um tijolo por cima servindo de peso, o dicionário Concise Oxford do lado e disse em voz alta:

- De volta aos negócios.

Quase esquecera como as horas passavam depressa naquele universo, e na pura alegria de ver os papéis manuscritos empilharem-se na extremidade da mesa.

Morgan Oxford telefonou-lhe duas vezes durante os dias seguintes para convidá-lo a comparecer a festas diplomáticas, e, nas duas vezes, Craig recusou, acabando por desligar o telefone. Quando o religou no quarto dia, o telefone tocou quase que imediatamente.

- Sr. Mellow? - era uma voz africana. - Tivemos muita dificuldade em achá-lo. Um instante, por favor, o general Fungabera quer falar com o senhor.

- Craig, é Peter - o mesmo sotaque acentuado e o mesmo charme. - Podemos nos encontrar hoje à tarde? Às três? Vou mandar um chofer apanhá-lo.

A residência particular de Peter Fungabera ficava a uns oito quilómetros fora da cidade, nas colinas que dominavam o lago Macillwane. A casa fora originalmente construída na década de vinte para o filho mais moço de um industrial de aviação inglês. Era cercada por grandes varandas, beirais brancos em relevo e uns 20 000 metros quadrados de gramados e árvores floridas.

   Uma guarda de soldados da Terceira Brigada, em uniforme completo, revistou Craig e o chofer no portão antes de permitir o acesso à casa principal. Quando subiu os degraus da frente, Peter Fungabera estava à sua espera no alto. Vestia calças de algodão branco e uma camisa de seda vermelha de mangas curtas, que contrastava com a pele negra. Com o braço passado amigavelmente em torno dos ombros de Craig, levou-o pela varanda até onde sentava-se um pequeno grupo de pessoas.

   - Craig, apresento-lhe o sr. Musharewa, o presidente do Banco Territorial de Zimbábue. Este é o sr. Kapwepwe, seu assistente, e este é o sr. Cohen, meu advogado. Senhores, este é o sr. Craig Mellow, o famoso escritor.

   Depois de trocarem apertos de mão, Peter perguntou-lhe:

   - Um drinque, Craig? Estamos bebendo Bloody Marys.

   - Gostaria de um, também, obrigado.

   Um criado com um amplo kanza branco, remanescente dos dias coloniais, trouxe-lhe o drinque e, quando saiu, Peter Fungabera disse com simplicidade:

   - O Banco Territorial de Zimbábue concordou em lhe dar uma garantia pessoal para um empréstimo de cinco milhões de dólares do Banco Mundial ou de seu associado em Nova York.

   Craig olhou-o, boquiaberto.

   - Sua ligação com o Banco Mundial não é um segredo tão bem-guardado assim, sabe. Henry Pickering é também muito conhecido aqui. - Peter sorriu, prosseguindo rapidamente: - Claro que há certas condições e cláusulas, mas não acho que sejam proibitivas. - Virou-se para o advogado branco. - Está com os documentos, Izzy? Ótimo, dê uma cópia ao sr. Mellow e, depois, leia-os para nós, por favor.

   Isadore Cohen ajeitou os óculos, endireitou a grossa pilha de papéis à sua frente e começou:

   - Em primeiro lugar, esta é a permissão para compra de terras - e leu: - "Autorização para Craig Mellow, súdito britânico e cidadão de Zimbábue, comprar o controle do interesse da companhia privada de terras conhecida como Rholands (Pr.) Ltda. Esta permissão está assinada pelo presidente do Estado e pelo ministro da Agricultura".

   Craig lembrou-se da promessa de Tungata Zebiwe de impedi-la a todo custo e, em seguida, que o ministro era cunhado de Peter Fungabera. Olhou para o general, mas este ouvia atentamente as palavras do advogado.

   Quando começava a ler cada documento da pilha, Isadore Cohen fazia-o sem omitir sequer o preâmbulo, e dava uma pausa ao fim de cada parágrafo para perguntas e explicações.

   Craig estava tão excitado que mal conseguia controlar-se e ficar quieto, sentado, mantendo a postura e expressão compatíveis com um homem de negócios. O pânico momentâneo que sentira com a súbita menção de Peter ao Banco Mundial fora esquecido e tinha ímpetos de pular e dançar pela varanda: Rholands era sua, King's Lynn era sua, Queen's Lynn e Águas do Zambeze também.

   Mesmo com toda a excitação, houve um parágrafo que soou estranho quando Isadore Cohen o leu.

   - Mas que diabos significa "inimigo do Estado e do povo de Zimbábue"? - perguntou.

   - É uma cláusula-padrão em todos os nossos documentos - acalmou-o Isadore Cohen -, uma mera expressão de sentimento patriótico. Se o beneficiário se engajasse em atividades de traição ao Estado e fosse declarado um inimigo do Estado e do povo, o Banco Territorial seria obrigado a repudiar todas as obrigações contraídas com o culpado.

   - Isso é legal? - Craig estava em dúvida e, quando o advogado o tranqüilizou, continuou: - Acha que o banco que vai fazer o empréstimo aceitará esta cláusula?

   - Já fizeram isso em outros contratos de segurança - disse-lhe o presidente do banco. - Como disse o sr. Cohen, é uma cláusula-padrão.

   - Afinal, Craig - sorriu Peter Fungabera -, você não tem a intenção de liderar uma revolução armada para derrubar nosso governo, não é?

   - Bem, se o banco americano aceitar, suponho que seja legal - e devolveu-lhe o sorriso, hesitante.

   A leitura levou quase uma hora e, em seguida, o presidente Musharewa assinou todas as cópias, assim como seu assistente e Peter Fungabera. Foi, então, a vez de Craig assinar, seguido pelas testemunhas e, finalmente, Isadore Cohen lacrou cada documento com o selo de Comissário Juramentado.

- É isso, cavalheiros. Assinado, lacrado e entregue.

- Ah, será que esqueci de mencionar? - Peter Fungabera sorriu maliciosamente. - O sr. Kapwepwe falou com Pickering ontem à tarde, às 10 horas de Nova York. O dinheiro estará à sua disposição logo que a garantia chegue em suas mãos - fez um sinal para o criado. - Pode trazer o champanhe agora.

Brindaram-se uns aos outros, ao Banco Mundial, ao Territorial e à Companhia Rholands e, só quando a segunda garrafa estava vazia, os dois banqueiros negros despediram-se com relutância.

Enquanto a limusine se afastava, Peter Fungabera pegou o braço de Craig.

- Agora, podemos discutir a minha comissão. O sr. Cohen tem os papéis.

Craig os leu e sentiu que empalidecia.

- Dez por cento - arquejou. - Dez por cento das ações ao portador da Rholands.

- Precisamos mudar esse nome - disse Fungabera, franzindo a testa. - Como vê, o sr. Cohen ficará com as ações como meu preposto. Isso evitará embaraços no futuro.

Craig fingiu que relia o contrato, enquanto tentava formular um protesto e os dois homens o observavam em silêncio. Dez por cento era roubo, mas o que mais podia fazer?

Isadora Cohen destampou lentamente a caneta e estendeu-a a Craig.

- Acho que vai achar um ministro de gabinete e comandante militar sócios muito convenientes neste negócio - disse, e Craig pegou a caneta.

- Há uma única cópia - Peter ainda sorria - e vou ficar com ela. - Craig assentiu.

Não haveria qualquer prova da transação, com as ações em mãos de um preposto, e nenhuma documentação, exceto as de Peter Fungabera. Numa disputa, seria a sua palavra contra a de um ministro - mas queria a Rholands mais que qualquer outra coisa na vida.

Assinou o contrato, e, do outro lado da mesa, os dois homens relaxaram visivelmente e Peter Fungabera mandou buscar outra garrafa de champanhe.

ATÉ ALI, Craig dispusera de tempo, e fez uso dele da maneira que lhe convinha melhor. Não tinha preocupações a não ser com uma caneta e uma pilha de papéis. De repente, confrontava-se com a enorme possibilidade de gerir as propriedades e o tempo de que dispunha. Havia tanta coisa a fazer e tão pouco tempo que sentia-se paralisado pela indecisão, assustado pela própria audácia e em dúvida sobre sua capacidade de organização.

Queria sentir-se encorajado e reconfortado, e pensou em Sally- Anne. Foi até o apartamento, mas as janelas estavam fechadas, a caixa, cheia de correspondência e ninguém respondeu às suas batidas. Voltou para o conjugado, sentou-se à mesa, pegou uma folha de papel e escreveu: "Trabalho a ser feito" e ficou olhando para ela.

Lembrou-se do que Janine lhe havia dito certa vez: "Você só faz bem uma única coisa na vida..." E escrever um livro era muito diferente do que recuperar uma companhia de vários milhões de dólares. Sentiu que ia entrar em pânico, mas conseguiu combatê-lo. Vinha de uma família de fazendeiros, fora criado com o cheiro de amoníaco das fezes de vaca e aprendera a avaliar gado em pé quando ainda era pequeno o bastante para dependurar-se no arção da sela de Bawu como um pardal num poste.

- Posso fazer isso - disse a si mesmo com decisão, e começou a preparar uma lista:

1) Telefonar para Jock Daniels e aceitar a oferta para a compra da Rholands.

2) Voar para Nova York:

  1. a) Reunião no Banco Mundial.
  2. b) Abrir conta e depositar fundos.
  3. c) Vender o Bawu.

3) Voar para Zurique:

  1. a) Assinar a compra das ações.
  2. b) Providenciar o pagamento aos vendedores.

Pegou o telefone e ligou para a British Airways que tinha passagem no vôo de sexta-feira para Londres e, de lá, para Nova York. Ligou em seguida para o escritório de Jock Daniels.

- Mas onde diabos você se meteu? - Percebeu que Jock já começara antes da hora com os drinques noturnos.

- Jock, meus parabéns, acaba de ganhar uma comissão de vinte e cinco mil dólares - disse, e ficou gozando o silêncio do outro lado do fio.

A lista começou a expandir-se e cobriu uma dúzia de páginas:

39) Descobrir se Okky van Rensburg ainda está no país.

Okky fora o mecânico de King's Lynn por vinte anos e o avô gabava-se que ele podia desmontar e montar novamente um trator John Deere e fazer um Cadillac e um Rolls-Royce Silver Clouds das peças que sobravam; precisava dele.

Soltou a caneta e sorriu ao lembrar-se do avô:

- Estamos chegando em casa, Bawu - disse em voz alta; olhou o relógio, viu que já eram dez horas, mas sabia que não conseguiria dormir.

Vestiu um suéter leve, saindo para caminhar nas ruas escuras, e, uma hora depois, estava em frente ao apartamento de Sally-Anne. Parecia que os pés haviam seguido automaticamente esse rumo.

Sentiu uma ligeira excitação ao ver que a janela estava aberta e a luz acesa.

- Quem é? - ela perguntou com voz abafada.

- Sou eu, Craig - e houve um longo silêncio.

- É quase meia-noite.

- São só onze horas. Tenho uma coisa para lhe contar.

- Oh, está bem, a porta está aberta.

Estava na câmara escura e ele podia ouvir o ruído dos produtos químicos sendo manipulados.

- Só mais cinco minutos - ela disse. - Sabe fazer café?

Quando saiu, vestia uma malha até os joelhos com os cabelos soltos até os ombros; nunca a vira assim e arregalou os olhos.

- É melhor que seja importante - disse, com as mãos nas cadeiras.

- Consegui a Rholands - essa foi a vez dela arregalar os olhos.

- Quem ou o que é Rholands?

- A companhia que é dona do Águas do Zambeze. Consegui. É minha, agora. Isso é suficiente?

Começou a andar em sua direção, ele fez o mesmo, mas ela se dominou parando em seguida, forçando-o a imitá-la. Só dois passos os separavam.

- São notícias maravilhosas, Craig. Estou tão feliz por você. Como foi que aconteceu? Pensei que já estava tudo terminado.

   - Peter Fungabera arranjou uma garantia para um empréstimo de cinco milhões de dólares.

   - Meu Deus, cinco milhões. Você está pedindo emprestado cinco milhões? Quanto são os juros sobre cinco milhões?

   Ele não queria pensar sobre isso, o que ficou evidente em seu rosto e ela imediatamente arrependeu-se.

   - Sinto muito. Isso foi uma indiscrição minha. Estou muito contente por você. Precisamos celebrar - foi rapidamente até a cozinha.

   Achou no armário uma garrafa de uísque Glenlivet com dois dedos no fundo e acrescentou-o ao café quente.

   - Ao sucesso do Águas do Zambeze - brindou, erguendo a caneca. - Antes de mais nada, conte-me tudo o que aconteceu. Depois, também tenho "notícias a dar.

   Craig contou-lhe os planos: o desenvolvimento das duas fazendas ao sul, a reconstrução da sede, a formação do novo rebanho com gado de raça, descreveu-lhe em detalhes o que planejava para o Águas do Zambeze e sua vida silvestre, sabendo que era um assunto mais interessante para ela. Passava de meia-noite quando terminou.

   - Estava pensando... Vou precisar de um toque feminino no planejamento e na instalação dos acampamentos, mas não de qualquer mulher. Ela tem de ter gosto artístico e é necessário que conheça e goste da África... - Que tal você?

   - Craig, você esqueceu que tenho uma bolsa do World Wild- life Trust em tempo integral?

   - Não vai lhe tomar muito tempo - ele protestou -, apenas vai agir como consultora. Voaria para lá por um dia ou dois sempre que conseguisse encaixar seu tempo. E, naturalmente, quando os acampamentos já estiverem em funcionamento, gostaria que fizesse uma série de conferências e exibições de filmes e fotos para os hóspedes. - Viu que abordara o assunto pelo lado certo: como todo artista, adorava uma oportunidade para mostrar seus trabalhos.

   - Não vou lhe fazer nenhuma promessa - disse-lhe severamente, mas ambos sabiam que o faria, e Craig sentiu a carga de responsabilidades aliviar-se muito.

   - Disse que tinha novidades para me contar - lembrou-a afinal, grato pela chance de poder esticar mais a noite, mas estranhou o fato de vê-la subitamente tão séria.

   - Sim, tenho novidades - e fez uma pausa, procurando controlar-se, para continuar -, achei a pista do caçador-mor.

   - Meu Deus! O desgraçado que matou todas aquelas manadas de elefantes? Isso é o que chamo de notícia. Onde? Como?

   Sabe que tenho estado nas montanhas do leste nos últimos dez dias. O que não lhe contei é que estou orientando um estudo sobre os leopardos para o Wildlife Trust. Tenho pessoas trabalhando para mim na maioria das áreas da floresta onde existem leopardos. Estamos contando e mapeando o território deles, registrando os saques e as mortes, tentando avaliar o efeito do novo influxo humano sobre eles. O que leva a um de meus trabalhadores. É um caçador shangane malcheiroso que deve andar pela casa dos oitenta anos, sua mulher mais moça tem dezessete e o presenteou com gêmeos na semana passada. É um tremendo malandro, mas com grande senso de humor e uma queda por uísque escocês; bastam dois tragos de Glenlivet e desanda a falar. Estávamos os dois sozinhos, acampados nas montanhas Vumba e, depois do segundo trago, deixou escapar que tinham lhe oferecido duzentos dólares por uma pele de leopardo. Queriam todas as que pudesse conseguir e lhe dariam as armadilhas de mola de aço. Dei-lhe outro gole e consegui descobrir que a oferta fora feita por um preto jovem e bem-vestido, dirigindo um jipe do governo. O velho shangane disse que tinha medo de ser preso, mas o homem assegurou-lhe que não correria perigo, que estaria sob a proteção de um dos grandes chefes de Harare, um camarada ministro que fora um guerrilheiro famoso e ainda comandava um exército particular.

   Havia uma pasta de papelão, sobre a cama de campanha, que Sally-Anne pegou e entregou a Craig. Dentro, na primeira folha, havia uma lista completa do ministério de Zimbábue, com vinte e seis nomes, cada qual com um dossiê correspondente.

   - Podemos reduzir a lista de imediato, poucos dos membros do Gabinete lutaram realmente - disse Sally-Anne. - A maioria passou a guerra em uma suíte no Ritz de Londres ou numa dacha à beira do mar Cáspio.

   Sentou-se nas almofadas ao lado de Craig e passou para a segunda página.

   - Seis nomes. Seis comandantes - apontou.

   - Ainda assim, nomes demais - murmurou Craig, que viu o nome de Peter Fungabera liderando a lista.

   - Podemos ir mais longe - ela discordou. - Um exército particular, dissidentes, o que significa que são todos matabele. Seu líder teria de ser da mesma tribo - e virou para a página seguinte. - Um dos comandantes mais bem-sucedidos é matabele e ministro do Turismo e do Departamento de Proteção à Vida Silvestre. É um velho ditado, mas aqueles que montam guarda a um tesouro são com freqüência quem os pilha. Tudo se encaixa.

   Craig leu o nome: Tungata Zebiwe, e descobriu que não gostaria que aquilo fosse verdade.

   - Mas ele trabalhou comigo no Departamento de Caça, era meu patrulheiro.

   - Como eu disse, os guardiães têm mais oportunidade para o botim que qualquer outro.

   - Mas o que Sam faria com o dinheiro? O caçador-mor deve estar amealhando milhões de dólares e Sam leva uma vida muito frugal, todo mundo sabe disso, nada de grandes casas ou carros caros, nada de presentes para mulheres ou terras compradas. Nenhum hábito dispendioso.

   - Exceto, talvez, o mais dispendioso de todos - disse calmamente Sally-Anne. - Poder. - E, diante dos protestos de Craig, tornou a afirmar: - Poder. Você não vê, Craig? Manter um exército particular de dissidentes custa dinheiro, muito, muito dinheiro.

   Craig teve de admitir que as peças se encaixavam. Henry Pickering o alertara para um golpe próximo financiado pelos soviéticos. Os russos tinham apoiado a facção matabele ZIPRA durante a guerra e seu candidato seria quase que certamente um deles.

   Mas ainda resistia a essa idéia, apegando-se à lembrança do homem que fora seu amigo, provavelmente o melhor amigo que já tivera. Lembrava-se da extrema decência do homem que conhecera como Samson Kumalo, o cristão educado por missionários, pessoa de integridade e princípios, que pedira demissão junto com ele do Departamento de Caça quando desconfiaram que seu superior imediato estava envolvido numa quadrilha de caça clandestina. Seria ele agora o caçador-mor em pessoa? O homem que o ajudara, quando estava em uma cadeira de rodas e sem dinheiro, a recuperar sua única posse, o iate, antes de deixar a África? Seria agora um conspirador ambicioso?

   - Ele é meu amigo - disse Craig.

   - Era seu amigo. Está muito mudado. Quando o viu pela última vez, declarou-se seu inimigo - frisou Sally-Anne. - Você mesmo me contou isso.

Craig concordou, e lembrou-se de repente da busca feita no cofre do hotel por ordens superiores. Tungata devia ter suspeitado que era um agente do Banco Mundial e chegado à conclusão de que fora designado para recolher informações sobre a caça furtiva e o golpe político. Só isso poderia explicar a oposição violenta e veemente a seus planos.

- Detesto isso - murmurou Craig. - Odeio esta idéia, mas acho que você pode estar certa.

- Estou segura disto.

- E o que vai fazer?

- Vou levar a Peter Fungabera as provas que tenho.

- Ele vai esmagar Sam - disse Craig, e ela retrucou:

- Tungata é mau, Craig, é um predador!

- É meu amigo.

- Era seu amigo - contradisse veemente Sally-Anne. - Você não sabe no que ele se transformou, o que lhe aconteceu na guerrilha. A guerra e o poder mudam qualquer ser humano.

- Oh, Deus, eu odeio isso.

- Vamos juntos ver Peter Fungabera. Fique junto comigo quando eu expuser o caso contra Tungata Zebiwe. - Sally-Anne segurou-lhe a mão, num gesto afetuoso que Craig não cometeu o erro de retribuir.

- Sinto muito, Craig - acrescentou. - Muito mesmo - e soltou-lhe a mão.

 

PETER FUNGABERA podia recebê-los de manhã cedo e foram os dois juntos de carro até a casa das colinas Macillwane.

Um criado levou-os ao escritório do general, uma enorme sala pouco mobiliada com vista para o lago, que fora um dia a sala de bilhar. Uma parede estava coberta por um mapa em blow-up de todo o território, espetado com bandeirinhas multicores. Sob as janelas, havia uma grande mesa coberta de relatórios, despachos e papéis parlamentares, e uma escrivaninha de teca vermelha africana ocupava o centro do assoalho de pedra sem tapetes.

Peter Fungabera levantou-se para cumprimentá-los. Estava descalço e vestido com um simples pano de algodão branco amarrado nos quadris. A pele nua do peito estirada sobre os músculos desenvolvidos brilhava como se tivesse sido recém-untada. Via-se claramente que Peter mantinha-se no auge da forma de um guerreiro.

   - Desculpem-me os trajes - disse, sorridente, ao saudá-los. - Mas sinto-me mais à vontade quando posso ser completamente africano.

   Diante da escrivaninha, havia banquetas de ébano caprichosamente lavradas.

   - Vou mandar buscar cadeiras - ofereceu. - Recebo poucos brancos aqui.

   - Não, não - respondeu Sally-Anne, ajeitando-se comodamente em uma das banquetas.

   - Sabem que tenho sempre o maior prazer em vê-los, mas devo estar no Congresso às dez horas - apressou-os Fungabera.

   - Vou direto ao assunto - concordou Sally-Anne. - Acho que sabemos quem é o caçador-mor.

   Peter estava a pique de sentar-se, e inclinou-se bruscamente para a frente com os punhos apoiados na escrivaninha, o olhar penetrante e interrogador.

   - Disse-me que bastava que eu lhe desse o nome e o esmagaria - lembrou-o Sally-Anne, e Peter aquiesceu.

   - Diga-me o nome - ordenou, mas antes Sally-Anne contou sobre as fontes de informação e as deduções que fizera, assim como narrara a Craig; Peter Fungabera ouviu-a em silêncio, franzindo as sobrancelhas ou balançando a cabeça pensativamente enquanto acompanhava o raciocínio, até que chegasse ao último nome da lista.

   - Camarada ministro Tungata Zebiwe - repetiu Peter, baixinho, e finalmente acomodou-se na cadeira e pegou o bastão sobre a escrivaninha, batendo-o na palma rosada da mão esquerda e olhando por sobre a cabeça de Sally-Anne para a parede coberta pelo mapa.

   O silêncio prolongou-se até que Sally-Anne perguntasse:

   - E então?

   - Escolheu a brasa mais quente da fogueira para que eu a tirasse com as mãos nuas - disse Fungabera, olhando-a. - Está segura de não ter sido influenciada pelo tratamento dispensado pelo camarada Tungata Zebiwe ao senhor Craig Mellow?

   - Isso não é justo - respondeu Sally-Anne, baixinho.

   - suponho que não seja - e Peter Fungabera olhou para Craig. - O que acha?

   Era meu amigo e foi muito bondoso comigo.

   Isso foi em outros tempos - apontou-lhe Fungabera.

- Agora, declarou-se seu inimigo.

   Eu ainda gosto dele e o admiro.

   E no entanto...? - sondou Peter.

   E, no entanto, acho que Sally-Anne talvez esteja na pista certa - concedeu Craig com ar infeliz.

   Fungabera levantou-se e atravessou a sala silenciosamente até o grande mapa.

   - O país inteiro é um estopim - começou, olhando as bbandeirinhas coloridas. - Os matabele estão à beira de uma rebelião aqui, aqui e aqui! Suas guerrilhas estão se reunindo na mata - e bateu no mapa. - Fomos forçados a cortar a conspiração de seus líderes irresponsáveis que preparavam a luta armada. Nkomo está em confinamento forçado, dois membros matabele do Gabinete foram presos e acusados de alta traição. Tungata Zebiwe é o último matabele no governo. É extremamente respeitado, mesmo fora de sua tribo, enquanto os matabele o consideram o seu último líder. Se o tocássemos...

   - Vai deixá-lo escapar impune! - Sally-Anne desapontou-se. - Vai conseguir escapar. Mas que belo paraíso socialista este. Uma lei para o povo e outra para os governantes.

   - Cale-se, mulher - ordenou Fungabera, e ela obedeceu. - Estava explicando a vocês as conseqüências de uma ação precipitada - continuou, voltando para a escrivaninha. - Prender Tungata Zebiwe poderia mergulhar o país todo em uma sangrenta guerra civil. Não disse que não ia agir, mas certamente não faria nada sem provas positivas e o testemunho de pessoas independentes e de imparcialidade impecável para apoiar-me. - Fixava ainda o mapa na parede. - O mundo já nos acusa de planejar um genocídio tribal contra os matabele enquanto tudo o que fazemos é manter a lei e procurar uma fórmula de acomodação com essa tribo guerreira e intratável. No momento, Tungata Zebiwe é nosso único contato razoável e conciliatório com os matabele, não podemos arcar com o preço de sua destruição - e fez uma pausa, aproveitada por Sally-Anne:

   - Uma coisa que não mencionei, mas que Craig e eu discutimos, é o fato de que, se Tungata Zebiwe é o caçador-mor, está usando os lucros para algum fim especial. Não mostra sinais visíveis de extravagância, mas sabemos que há uma ligação entre ele e os dissidentes.

   - Se for Zebiwe, eu o agarro - prometeu mais para si mesmo Peter, com uma expressão dura e um olhar terrível. - Mas, quando o fizer, terei provas para que o mundo veja; ele não me escapará.

   - Então, é melhor que se apresse - avisou-o sem rodeios Sally- Anne.

   - ESCOLHEU UMA BOA época para vender. - O corretor de barcos estava na cabine do Bawu e tinha uma aparência náutica com o blazer de lapelas duplas e o boné com a âncora dourada.

   O bronzeado era perfeito, e adquirido com lâmpada ultravioleta. Havia uma fina rede de rugas em torno dos penetrantes olhos azuis. Craig estava seguro que não era de tanto franzi-los espiando no sextante ou devido ao sol tropical, mas de tanto examinar etiquetas de preço e algarismos de talões de cheque.

   - Os juros estão caindo, e as pessoas voltaram a comprar iates novamente.

   Era como discutir os termos de um divórcio com um advogado ou os arranjos com um agente funerário. O Bawu fora parte integrante de sua vida por muito tempo.

   - Está em boa forma, todo certinho, e o preço é razoável. Vou trazer umas pessoas para vê-lo amanhã.

   ASHE LEVY também parecia um agente funerário quando Craig lhe telefonou. Contudo, mandou um mensageiro até a marina para buscar os três primeiros capítulos que completara na África e, depois, Craig foi almoçar com Henry Pickering.

   - É ótimo ver você. - Esquecera como se afeiçoara a esse homem em apenas dois breves encontros.

   - Vamos pedir um vinho primeiro - sugeriu Henry, e decidiu-se por um Grands Echézéaux.

   - Sujeito corajoso - sorriu Craig. - Sinto sempre medo de pronunciar esse nome e as pessoas acharem que estou tendo uma crise de espirros.

A maioria tem o mesmo receio. Talvez seja por isso que é o menos conhecido entre os grandes vinhos do mundo, o que faz o preço ficar baixo, graças a Deus.

Sentiram o buquê do vinho e, em seguida, provaram-no seguindo o ritual que um bom vinho merece.

Agora, conte-me o que acha do general Peter Fungabera - pediu Henry.

Está tudo em meus relatórios. Não os leu?

- Li, sim, mas quero que me conte, de qualquer maneira. Às vezes, em uma conversa, aparece um detalhe que escapou no relatório.

- Peter Fungabera é um homem culto. Seu inglês é excelente tanto na escolha das palavras quanto na forma como se expressa, mas tem um pronunciado sotaque africano. De uniforme, parece um general do Exército Britânico e em trajes civis, uma estrela de seriado de televisão; mas, com um pano na cintura, parece o que realmente é, um africano. É o que todos nós tendemos a esquecer. Todo mundo conhece a impenetrabilidade chinesa e a fleugma britânica, mas raramente achamos que o africano negro tenha uma natureza especial.

- Aí está! - exclamou Pickering, satisfeito. - Isso não estava nos seus relatórios, Craig. Continue.

- Pelos nossos padrões os consideramos lentos, não compreendemos que não é a indolência que os faz assim, mas uma profunda ponderação diante de qualquer assunto antes de agir. Nós os achamos diretos e simples, quando na realidade são pessoas muito reservadas e cheias de meandros, mais ligadas ao clã que os escoceses. Podem manter uma briga de sangue por cem anos, como os sicilianos.

Henry Pickering ouvia atentamente, e aproveitava as pausas para fazer-lhe perguntas. Em uma das vezes, disse:

- Há algo que ainda acho confuso, Craig, a diferença sutil entre os termos matabele, ndebele e sindebele. Pode me explicar?

- Um francês chama a si mesmo de "français", mas nós os chamamos de francês. Um matabele chama-se de ndebele e nós, de matabele.

- Sim - concordou Henry -, e a língua falada é o sindebele, não é?

- É isso mesmo. Na verdade, hoje em dia a palavra matabele parece ter adquirido conotações coloniais desde a independência...

A conversa fluía fácil e descontraída, por isso foi com surpresa que Craig viu que eram praticamente os últimos fregueses do restaurante e que o garçom os rondava com a conta.

- O que estava tentando dizer - concluiu Craig - é que o colonialismo deixou a África com uma série de valores impostos. A África os rejeitará e voltará aos seus próprios valores, se tiver oportunidade.

- E provavelmente será mais feliz assim - terminou por ele Henry Pickering. - Bem, Craig, você fez jus a seu dinheiro. Estou muito contente que esteja de volta. Posso prever que, em breve, você será nosso agente mais produtivo lá. Quando pretende voltar?

- Só vim a Nova York pegar um cheque.

A risada peculiar e agradável de Henry foi acompanhada de um comentário.

- Voeê sugere com a sutileza de um martelo. Fico até arrepiado com a perspectiva de um pedido direto seu. - Pagou a conta e levantou-se. - Nosso advogado está à nossa espera. Primeiro, vai ter que vender a alma e o corpo a nós, e só depois entrego o crédito para cinco milhões de dólares.

O interior da limusine estava silencioso e fresco e a suspensão do carro anulava a trepidação causada pelo asfalto malconservado das ruas de Nova York.

- Agora, fale mais sobre as conclusões de Sally-Anne Jay sobre o cabeça da quadrilha de caçadores furtivos - incitou-o Henry.

- Neste estágio, não vejo outra possibilidade alternativa para o caçador-mor, nem mesmo para o líder dos dissidentes.

Henry ficou silencioso por algum tempo.

- O que acha da relutância do general Fungabera em agir?

- É um homem prudente e um africano. Não vai apressar-se. Vai pensar muito nisso, colocar a rede com cuidado, mas, quando resolver-se a agir, acho que ficaremos todos surpresos com a rapidez devastadora e decisiva com que o fará.

- Gostaria que desse ao general toda a assistência que puder. Cooperação total, Craig.

- Sabe que Tungata foi meu amigo.

- Está com a lealdade dividida?

- Não, acho que não, não se for culpado.

- Ótimo! Minha diretoria está muito satisfeita com os resultados até agora. Estou autorizado a aumentar sua remuneração para sessenta mil dólares por ano.

Lindo - sorriu Craig. - Será de grande ajuda para pagar os juros de cinco milhões de dólares.

Ainda estava claro quando o táxi o deixou nos portões da marina. O smog de Manhattan estava transfigurado pelo sol quase posto em uma linda névoa púrpura que suavizava as silhuetas agressivas das grandes torres de concreto.

Ao descer a prancha e passar para o barco, o iate balançou levemente e alertou a pessoa que estava na cabine.

- Ashe! - Craig estava espantado. - Ashe Levy, a fada-madrinha dos pobres escritores!

- Oi, garoto! - e Ashe desceu para o convés com as passadas incertas de um homem de terra firme. - Não pude esperar, tive de vir vê-lo imediatamente.

- Estou sensibilizado. - O tom de Craig era ácido. - Sempre que não preciso de ajuda, você aparece a todo galope.

Ashe Levy ignorou a observação e colocou as mãos nos ombros dele.

- Eu li, reli e... tranquei os originais no cofre. - E abaixou a voz: - É lindo.

Craig engoliu a próxima ironia e tentou ver se havia sinais de insinceridade no rosto de Ashe, mas por trás dos óculos de aro de ouro os olhos estavam brilhando com as lágrimas represadas.

- É a melhor coisa que você já fez, Craig.

- São apenas três capítulos.

- Foi como um direto no estômago.

- Precisa de revisão.

- Duvido, Craig. Admito que estava começando a acreditar que você era incapaz de escrever outro livro, mas isto... foi demais para mim. Estive sentado aqui algumas horas pensando nele e acho que posso até recitar uns trechos de cor.

Craig estudou-o cuidadosamente: as lágrimas podiam ser um reflexo do crepúsculo nas águas. Ashe tirou os óculos e assoou o nariz ruidosamente. As lágrimas eram autênticas, mas mal podia acreditar e só havia um teste positivo.

- Pode me dar um adiantamento, Ashe?

   Agora que não precisava mais de dinheiro, precisava ainda de uma última certeza.

   - De quanto precisa, Craig? Duzentos mil?

   - Então quer dizer que você gostou de verdade? - Craig suspirou, afastando a eterna incerteza dos escritores por algum tempo. - Vamos tomar um drinque, Ashe.

   - Vamos fazer melhor do que isso, vamos tomar um porre.

   Craig estava sentado na popa, com os pés apoiados no leme, observando o gelo formar pequenos diamantes no corpo e já não prestava mais atenção aos entusiasmos de Ashe sobre o livro. Deixou que os pensamentos tomassem outros rumos e começou a refletir se não teria sido melhor sua sorte ter vindo em parcelas, para que pudesse saboreá-la aos poucos. Poder vivenciar cada momento isoladamente.

   Pensou em King's Lynn, e as narinas palpitaram com a lembrança do odor das ricas pastagens de Matabeleland. Pensou no Águas do Zambeze e ouviu novamente o ruído de um grande corpo entre as moitas arrancadas, pensou nos vinte capítulos que sucederiam os três iniciais e sentiu-se cheio de expectativa. Seria possível que fosse o homem mais feliz do mundo naquele momento?

   Não, não era. Compreendeu de repente que o gozo completo da felicidade só poderia ser atingido se o compartilhasse com outro ser humano. Descobriu em si um espaço vazio, uma lacuna, ao lembrar dos olhos com estranhos pontinhos amarelos e da boca jovem e firme de Sally-Anne. Queria contar-lhe tudo, ler para ela aqueles três capítulos e, de repente, desejou com todas as forças estar de volta à África.

   CRAIG ACHOU um Land-Rover de segunda mão no pátio de carros usados de Jock Daniels que ficava ao lado do escritório de leilões. Não deu ouvidos à conversa de vendedor dele e, em vez disso, ficou escutando o motor. Estava desregulado, mas não havia ruídos estranhos ou "grilos". A transmissão dianteira engatava perfeitamente e a embreagem resistia aos freios, quando foi testá-lo num terreno acidentado nos arredores da cidade. O silenciador caiu, mas o resto agüentou. Houve época em que era capaz de desmontar um Land-Rover e remontá-lo em uma semana. Sabia que poderia aproveitar bem aquele. Conseguiu baixar o preço em mil dólares e, mesmo assim, Jock recebeu um pagamento excessivo, mas estava com pressa.

   Empilhou no jipe tudo o que sobrara da venda do iate: uma mala de roupas, alguns livros favoritos e um baú contendo os diários de família.

   Esses diários eram toda a sua herança, tudo o que Bawu lhe deixara. O restante das propriedades, inclusive as ações da Rholands, ficou para o filho mais velho, seu tio Douglas, que vendera tudo e fora para a Austrália. No entanto, aqueles velhos diários com textos manuscritos representavam a melhor parte da herança. Eles forneceram o arcabouço para escrever o livro que lhe trouxera tudo: realização, fama, fortuna, e até a própria Rholands viera ter às suas mãos através daqueles documentos.

   Ficou pensando quantas milhares de vezes dirigira em direção a King's Lynn - mas nunca antes como naquele momento, nunca como o patrão. Parou no portão principal para que pudesse tocar com os pés a própria terra pela primeira vez.

   Pisou-a e olhou em torno a pastagem dourada, as moitas de acácias, a silhueta das colinas azul-acinzentadas a distância, a cúpula azul do céu, e ajoelhou-se como em oração. Era o único momento em que a perna o incomodava. Apanhou um punhado da terra entre as mãos, quase tão rica e vermelha como a carne que nela crescia. Dividiu-a em duas partes e deixou que uma pequena porção escorresse de volta ao solo.

   - Eis os seus dez por cento, Petèr Fungabera - sussurrou. - Mas esta aqui é minha, e juro ampará-la por toda a vida, protegê-la e amá-la com a ajuda de Deus.

   Sentindo-se um pouco tolo com toda essa encenação, deixou a terra cair, esfregou as mãos nas calças e voltou para o Land-Rover.

   Na planície que antecedia a sede, encontrou um homem alto e magro que vinha pela estrada com um cobertor gorduroso e sujo às costas, um pedaço de pano entre as pernas e, sobre o ombro, um par de porretes. Os pés estavam calçados com sandálias feitas de pneu velho e os brincos eram tampas de garrafas de ácido embelezadas com contas coloridas, que tornavam os lóbulos das orelhas três vezes maiores que o normal. Tocava à frente um pequeno rebanho de cabras.

   - Eu o saúdo, irmão mais velho - cumprimentou-o, e o ancião mostrou a falha dos dentes amarelados ao sorrir diante da cortesia do cumprimento e, também, ao reconhecê-lo.

   - Eu o saúdo, Nkosi. - Era o mesmo velho que encontrara agachado em frente aos alojamentos de King's Lynn.

   - Quando será que vai chover? - perguntou-lhe Craig, estendendo um maço de cigarros que comprara especialmente para esse encontro.

   Começaram a conversar à maneira despreocupada que precede na África qualquer discussão séria.

   - Qual é o seu nome, velho? - Um termo respeitoso e não uma acusação de senilidade.

   - Meu nome é Shadrach.

   - Diga-me, Shadrach, suas cabras estão à venda? - pôde, enfim, perguntar sem ser grosseiro, e a esperteza brilhou instantaneamente nos olhos do velho.

   - São lindas cabras - disse. - Separar-me delas seria como me separar de meus filhos.

   Shadrach era o porta-voz e o líder da pequena comunidade de posseiros que fixara residência em King's Lynn e, através dele, Craig descobriu que podia negociar com todos, o que foi um alívio. Pouparia muito tempo e um bocado de desgaste emocional.

   Mas não iria privar Shadrach da oportunidade de mostrar sua habilidade em barganhar, nem insultá-lo tentando apressar as negociações que, assim, estenderam-se pelos dois dias seguintes, enquanto Craig refazia o teto do velho bangalô de hóspedes com uma lona pesada, recolocava a bomba com motor para tirar água do poço e acomodava a nova cama de campanha no quarto vazio.

   No terceiro dia, o preço de venda foi acertado e tornou-se o proprietário de quase duas mil cabras. Pagou-as em dinheiro vivo, entregando cada nota e moeda pessoalmente a cada um para evitar brigas e, em seguida, amontoou suas ruidosas aquisições em quatro caminhões alugados e mandou-as para os abatedouros de Bulawayo, saturando o mercado e fazendo cair o preço em cinqüenta por cento. Teve uma perda líquida de dez mil dólares na transação toda.

   - Mas que grande estréia no mundo dos negócios. - Sorriu, e mandou chamar Shadrach.

   - Diga-me, velho, o que conhece sobre gado? - O que era como perguntar a um polinésio o que sabia sobre peixe ou a um suíço se algum dia vira neve.

   Quando era desta altura - respondeu Shadrach, indignado, abaixando-se e mostrando o meio de sua perna -, esguichava leite quente da teta da vaca na minha boca. Desta altura - deslocando a mão um pouco mais para cima -, tinha duzentas cabeças sob a minha guarda. Ajudava os bezerros a nascerem quando ficavam presos no ventre da mãe; carregava-os nestes ombros quando o pasto ficava alagado. E desta altura - colocando a mão pouco acima do joelho -, matei uma leoa, com minha lança assegai, quando atacou meu rebanho...

   Craig ouviu a história pacientemente, até chegar pouco a pouco à altura dos ombros, e Shadrach finalizou:

   - E ainda ousa me perguntar se conheço gado!

   - Breve, neste pasto, vou criar vacas tão magníficas e bonitas que, só de olhá-las, seus olhos vão ficar rasos d'água. Terei touros cujos pêlos vão brilhar como a água ao sol, suas corcovas serão como grandes montanhas nas costas e as papadas pesadas e gordas vão se arrastar sobre a terra quando caminharem.

   - Uau! - exclamou Shadrach, de puro assombro, impressionado tanto pelo lirismo de Craig como pelo fato em si.

   - Preciso de um homem que saiba lidar com o gado, e com homens.

   Shadrach achou-os para ele. Escolheu vinte, entre as famílias de posseiros, todos fortes e com boa vontade, nem jovens demais para serem tolos e levianos, e nem velhos demais para serem frágeis.

   - Os outros - disse com desprezo - são o produto do casamento de babuínos com mashona ladrões de gado. Eu ordenei que saíssem de nossa terra.

   Craig sorriu diante daquele possessivo plural, mas ficou impressionado com o fato de que, quando ele ordenava, os homens obedeciam.

   Shadrach reuniu os recrutados defronte ao bangalô rusticamente consertado e fez-lhes um tradicional giya, o discurso e pantomima inflados com que os velhos induna matabele levantavam o moral dos guerreiros na véspera da batalha.

   - Vocês me conhecem! - berrou. - Sabem que minha trisavô era filha do velho rei Lobengula, o que corre como o vento.

   - Êh-êh! - Começavam a entrar no espírito da coisa.

   - Sabem que eu sou um príncipe de sangue real, e, num mundo justo, seria de direito um induna com mil homens, com penas de pássaro no cabelo e caudas de boi penduradas no meu escudo de guerra - e balançou no ar os porretes de luta.

   - Êh-êh! - Observando-lhes a expressão, Craig viu o verdadeiro respeito que tinham pelo velho e ficou encantado com sua escolha.

   - E agora! - continuou Shadrach em tom de cantilena. - Por causa da sabedoria e da visão do jovem Nkosi, tornei-me um induna. Sou o induna de King's Lynn - nome que pronunciava "Kingi Lingi" - e vocês são os meus amadoda, os meus guerreiros escolhidos - proclamou.

   - Êh-êh! - concordaram em coro e bateram os pés nus na terra com estrondo.

   - Olhem para este homem branco. Podem achar que é jovem e imberbe, mas saibam que é o neto de Bawu e o bisneto de Taka Taka.

   - Uau! - exclamaram surpresos os guerreiros de Shadrach porque eram nomes famosos. Tinham conhecido Bawu em carne e osso e Sir Ralph Ballantyne apenas como uma lenda. Taka Taka era o nome onomatopaico que recebera dos matabele devido ao som da metralhadora Maxim que usara com tanta eficácia durante sua revolta, e olharam para Craig com novo respeito.

   - Sim - incitou-os Shadrach -, olhem para ele. É um guerreiro que tem cicatrizes terríveis da guerrilha. Matou centenas de mashona covardes e estupradores de mulheres. - Craig pestanejou ao ver com que licença poética recontava sua história. - Matou até bravos lutadores matabele de coração de leão do ZIPRA e agora vocês o conhecem como ele é: um homem, e não um menino.

   - Êh-êh! - aclamaram, sem mostrar qualquer rancor com a suposta morte de seus irmãos.

   - Saibam também que veio para transformar vocês de mulheres guardadoras de cabras que ficam coçando pulgas ao sol em orgulhosos vaqueiros de novo, porque - e Shadrach fez uma pausa dramática - breve, neste pasto, vão pastar vacas tão magníficas e bonitas que só de olhar para elas vão ficar com os olhos rasos d'água.

   Craig notou que Shadrach podia repetir perfeitamente suas próprias palavras, mostrando a admirável memória dos iletrados. Quando terminou, dando um pulo no ar como uma grande cegonha e uma batida dos porretes, aplaudiram-no com entusiasmo e olharam para Craig em expectativa.

   Vai ser difícil me sair tão bem quanto ele, pensou Craig, ao levantar-se para falar em um sindebele baixo e musical.

   - O gado logo estará aqui, e há muito trabalho a ser feito antes que chegue. Vocês sabem qual é o salário que o governo fixou para os trabalhadores do campo. Vou pagá-lo a cada um e também darei rações de comida para vocês e suas famílias - o que foi recebido sem qualquer mostra de entusiasmo. - Além disso - e fez uma pausa -, para cada ano de serviço que completarem, receberão uma vaca jovem de boa qualidade e terão o direito de fazê-la pastar em Kingi Lingi, e o direito, também, de cruzá-la com meus grandes touros para que tenha lindas crias.

   - Êh-êh! - gritaram e bateram com os pés de alegria, até que Craig estendeu as mãos.

   - Pode ser que alguns de vocês fiquem tentados em tirar o que me pertence ou achem alguma sombra de árvore para passar o dia em vez de estender o arame farpado ou cuidar do gado - e olhou-os severamente, fazendo-os se encolherem. - Este sábio governo proíbe que um homem dê um chute no outro, mas estejam bem prevenidos, posso chutá-los sem usar meus próprios pés. - E abaixou-se, tirando a perna com um movimento rápido e ficou diante deles segurando-a nas mãos, deixando-os atônitos. - Vejam bem, não é o meu pé! - Os rostos começaram a ficar assustados como diante de uma terrível feitiçaria, começaram a mexer-se nervosamente e a olhar em torno para fugir. - E assim - gritou Craig - posso chutar quem eu quero sem quebrar a lei. - Em dois saltos, usou o impulso para bater com a bota da perna mecânica no traseiro do mais próximo guerreiro.

   Por um momento, o silêncio atônito continuou, mas em seguida foram dominados pelo próprio senso de ridículo. Riram às bandeiras despregadas, girando em círculos e batendo com as mãos, abraçando-se e arfando com as risadas. Cercaram o infeliz alvo da brincadeira de Craig, troçando, cutucando-o e morrendo de rir. Shadrach, deixando de lado a dignidade de príncipe, caiu no chão às gargalhadas.

   Craig olhava-os afetuosamente. Já eram a sua gente, a sua responsabilidade. Claro que haveria maus elementos entre eles e teria de fazer uma seleção. E claro que mesmo os melhores testariam deliberadamente a sua vigilância e resolução, como era o costume africano, mas com o tempo acabariam por formar uma família unida e sabia que aprenderia a amá-los.

 

As CERCAS eram a primeira tarefa, pois estavam em péssimo estado: faltavam quilômetros de fios, certamente roubados, e, quando tentou substituí-los, compreendeu por quê. Não havia nenhum arame à venda em Matabeleland, nem qualquer licença de importação.

- Seja bem-vindo à grande alegria de ser fazendeiro no Zimbábue negro - disse-lhe o gerente da Sociedade Cooperativa de Fazendeiros de Bulawayo. - Alguém arranjou uma licença de um milhão de dólares para importar balas e chocolate, mas não existe nenhuma para arame farpado.

- Pelo amor de Deus - Craig estava desesperado. - Tenho de fazer uma cerca. Como posso criar gado sem isso? Quando vai receber um carregamento?

- Isso depende de algum funcionário do Departamento de Comércio em Harare - e o gerente deu de ombros, fazendo com que Craig se encaminhasse para a saída, quando de repente teve uma idéia e voltou.

- Posso usar seu telefone? - perguntou.

Discou o número particular que Peter Fungabera lhe dera, e, depois de identificar-se, uma secretária completou a ligação imediatamente.

- Peter, temos um grande problema.

- Em que posso ajudá-lo?

Craig lhe explicou, e Peter ficou murmurando, enquanto tomava nota.

- De quanto precisa?

- Pelo menos uns mil e duzentos rolos.

- Mais alguma coisa?

- Por enquanto, não. Ah, sim, desculpe incomodá-lo, Peter, mas não consigo falar com Sally-Anne. Não responde nem aos telefonemas nem aos telegramas.

- Telefone-me daqui a dez minutos - ordenou Peter Fungabera e, quando Craig tornou a ligar, disse-lhe: - Sally-Anne está fora do país. Aparentemente, voou até Quênia no Cessna. Está num lugar chamado Kitchwua Tembu, em Masai Mara.

   - Sabe quando vai voltar?

   Não, mas, logo que volte, aviso você.

   Craig ficou impressionado com o alcance dos braços de Peter Fungabera para que pudesse saber o paradeiro de alguém mesmo fora de Zimbábue. Obviamente, Sally-Anne estava em alguma lista especial, e teve a súbita idéia de que o mesmo devia ocorrer com ele.

   Claro que sabia por que Sally-Anne estava em Kitchwua Tembu. Dois anos antes, visitara o maravilhoso acampamento de safári nas planícies de Mara a convite dos proprietários, Geoff e Jory Kent. Essa era a época em que enormes manadas de búfalos em torno do acampamento começariam a dar crias e as batalhas entre as fêmeas protetoras e os predadores ansiosos por devorar os recém-nascidos eram um dos grandes espetáculos do veld africano. Sally-Anne certamente estaria lá com sua Nikon.

   De volta a King's Lynn, parou no correio e mandou-lhe um telegrama através do escritório de Abercrombie e Kent, em Nairobi:

   Traga-me algumas sugestões para o Águas do Zambeze.

   Ponto. A caçada ainda continua.

   Interrogação. Abraços Craig.

   Três dias mais tarde, um comboio de caminhões subiu as colinas de King's Lynn e um esquadrão da Terceira Brigada descarregou mil e duzentos rolos de arame farpado, armazenando-os nos galpões destelhados dos tratores.

   - Há algum recibo a ser pago? - perguntou Craig ao sargento encarregado. - Ou algum papel para assinar?

   - Não sei - foi a resposta. - Tudo o que sei é que me mandaram trazer isso, e cumpri as ordens.

   Craig ficou olhando os caminhões vazios afastarem-se colina abaixo e sentiu um nó no estômago. Suspeitava que nunca haveria um recibo. Sabia também que isso era a África e não gostava nem de pensar nas conseqüências de um desentendimento com Fungabera.

   Por cinco dias, trabalhou com as equipes matabele nas cercas, nu até a cintura, com pesadas luvas de couro para proteger as mãos; fazia força nas máquinas de esticar os fios, cantando canções de trabalho junto com os homens, mas sentia um peso na consciência até que não pôde agüentar mais.

   Ainda não havia telefone na fazenda e foi até Bulawayo, para falar com Peter no Parlamento.

   - Meu caro Craig, está criando um caso à toa. O intendente ainda não debitou o arame. Mas, se isso faz com que se sinta melhor, mande-me um cheque e resolvo o assunto imediatamente. Ah, Craig, - faça o cheque nominal, está bem?

 

   NAS SEMANAS seguintes, Craig descobriu que podia sobreviver com muito menos horas de sono do que imaginara possível. Levantava-se toda manhã às quatro e meia e ia buscar as equipes matabele nas cabanas. Emergiam de lá sonolentos, ainda embrulhados em cobertores e tremendo com o frio da madrugada, tossindo por causa da fumaça das fogueiras e resmungando sem qualquer raiva.

   Ao meio-dia, deitava-se à sombra de uma acácia e dormia a sesta como todos. Reanimado, trabalhava a tarde toda até que ouvissem o som do gongo de estrada de ferro dependurado em um jacarandá perto da sede; o grito de Shayle!, "bateu a hora!", era passado adiante de equipe a equipe, e todos voltavam, subindo as colinas.

   Craig lavava o suor e a poeira no reservatório de concreto por trás do bangalô, fazia uma refeição apressada e, quando ficava escuro, sentava-se numa mesinha barata de jogo, à luz esbranquiçada e sibilante de um lampião a gás, com uma pilha de papéis à frente e uma caneta, transportado a outro mundo imaginário. Algumas noites, escrevia até bem depois de meia-noite, e às quatro e trinta já estava de pé, no sereno da madrugada ainda indefinida, sentindo-se alerta e vigoroso.

   O sol escureceu-lhe a pele e clareou os cabelos que lhe caíam na testa; o duro trabalho físico desenvolveu-lhe os músculos e enrijeceu o coto amputado, o que lhe permitiu andar pelas cercas o dia inteiro sem desconforto. Havia tão pouco tempo a desperdiçar que a comida que fazia era a mais simples possível e a garrafa de uísque ficara fechada na mochila - o que o tornou esbelto e com o rosto anguloso de um falcão.

   Uma noite, ao parar o Land-Rover debaixo dos jacarandás e começar a subir em direção ao bangalô, o aroma de rosbife e batatas atingiu-lhe em cheio as narinas. Ficou com a boca cheia d'água e recomeçou a subida, repentinamente esfomeado.

   Na minúscula cozinha improvisada, havia uma figura muito magra ao lado do fogo. O cabelo era macio e branco como algodão e levantou os olhos para Craig com uma expressão acusadora.

   - Por que não mandou me buscar? - perguntou em sindebele. Só eu cozinho aqui em Kingi Lingi.

   - Joseph! - gritou Craig, e abraçou-o impetuosamente.

   O velho fora o cozinheiro de Bawu por trinta anos. Podia servir um banquete formal para cinqüenta convidados ou preparar uma caçarola de carnes de caça em plena mata. Já havia pão assando em um forno improvisado e preparara um prato de salada que conseguira catar na horta abandonada.

   Joseph libertou-se do abraço, um pouco chocado com aquela quebra de etiqueta.

   - Nkosana - ainda usava o diminutivo -, suas roupas estavam sujas e sua cama por fazer - repreendeu-o severamente. - Trabalhamos o dia todo para endireitar a bagunça que fez.

   Só então Craig reparou no outro homem na cozinha.

   - Kapa-lala - riu alegremente, e o criado sorriu e balançou a cabeça prazerosamente.

   Estava passando roupa com o ferro pesado e preto cheio de brasas. Todas as suas roupas, e as de cama, tinham sido lavadas e estavam sendo passadas de maneira impecável. As paredes do bangalô tinham sido lavadas, também, e o assoalho, muito bem polido. Até as torneiras da pia brilhavam como os botões de um uniforme de fuzileiro.

   - Fiz uma lista das coisas que precisamos - disse Joseph. - Por enquanto servem, mas não é adequado que viva assim nesta choupana. Seu avô Nkosi Bawu teria desaprovado isso. - Joseph, o cozinheiro, tinha idéias definidas sobre estilo. - Assim, mandei um recado ao tio de minha mulher mais velha que é um mestre em empalhar telhados, e disse-lhe que trouxesse também o filho mais velho que é pedreiro, e o sobrinho, que é um ótimo marceneiro. Amanhã chegam aqui para consertar os estragos que estes cães fizeram na casa-grande. Quanto aos jardins, conheço um homem - e contava nos dedos o que achava necessário para restabelecer um pouco de ordem em King's Lynn. - E estaremos prontos para convidar trinta pessoas para a ceia de Natal como fazíamos nos velhos tempos. E agora, Nkosana, vá tomar banho. O jantar vai ser servido daqui a quinze minutos.

   Com os pastos bem cercados e o trabalho de restauração dos prédios e da sede encaminhados, Craig podia finalmente começar o passo vital de recomprar gado. Chamou Shadrach e Joseph, entregou King's Lynn aos cuidados dos dois durante sua ausência, e ambos aceitaram a responsabilidade com ar grave. Foi até o aeroporto, deixou o Land-Rover no estacionamento e tomou um dos vôos comerciais para o sul.

   Por três semanas, viajou por todos os grandes ranchos de criação do Transvaal do Norte, a província da África do Sul cujo clima e condições mais se pareciam aos de Matabeleland. A compra de gado de raça não era uma transação que pudesse ser apressada. Cada uma era precedida por dias de discussão com o vendedor e com o exame dos animais, enquanto gozava da tradicional hospitalidade campestre dos sul-africanos brancos, os africânderes. Seus anfitriões eram homens cujos antepassados tinham trilhado o cabo da Boa Esperança na direção norte em carros de boi, e a vida inteira criaram esses animais. Enquanto fazia as transações, aproveitava para acumular informações sobre as técnicas de manejo e as experiências feitas com raças diferentes para melhorar os rebanhos. Tudo o que aprendeu reforçou-lhe o desejo de continuar as bem-sucedidas experiências de Bawu com as cruzas da raça indígena Afrikander, conhecida pela resistência às doenças e à seca, com a Santa Gertrudes, que procriava mais rapidamente.

   Comprou novilhas que já estavam prenhes através de inseminação artificial, touros de bom pedigree com ascendentes famosos, e ocupou-se da documentação, inspeção, vacinação, quarentena e seguro que eram necessários antes que fosse permitido cruzar uma fronteira internacional com o gado. Enquanto isso, providenciou o envio por estrada até King's Lynn, ao norte, com um pessoal especializado em transporte de gado de alta qualidade.

   Gastou quase dois milhões dos dólares emprestados antes de voltar a King's Lynn e fazer os preparativos finais para a chegada do rebanho. A entrega dos animais de raça tinha de ser escalonada ao longo de meses, para que cada lote fosse recebido adequadamente e pudesse aclimatar-se antes que chegasse a próxima remessa.

   Os primeiros a chegar foram quatro jovens touros, prontos para assumir a função de reprodutores. Craig pagara quinze mil dólares cada. Peter Fungabera estava decidido a transformar essa chegada em uma grande ocasião. Convenceu dois colegas de ministério a comparecer à cerimônia de boas-vindas, apesar de nem o primeiro-ministro nem o de Turismo, Tungata Zebiwe, estarem livres naquele dia.

   Craig alugou um toldo, e Joseph, cheio de felicidade e importância, preparou um de seus legendários banquetes ao ar livre. E Craig, que ainda estava preocupado com o fato de ter gasto dois milhões, resolveu economizar no champanhe, encomendando a imitação feita no cabo da Boa Esperança, em vez do artigo genuíno.

   A comitiva ministerial chegou em uma flotilha de Mercedes negras, acompanhada por uma guarda fortemente armada, todos usando óculos escuros do tipo predileto dos pilotos. As senhoras estavam vestidas com longos estampados nas cores mais improváveis e berrantes. O champanhe barato e doce foi consumido como se houvessem tirado a rolha de uma banheira cheia, e todas, dali a pouco, estavam dando risadinhas e pipilando como um bando de pardais vistosos. A mulher mais velha do ministro da Educação desabotoou a blusa, mostrando seios opulentos e negros, e tratou de dar ao bebê preso às cadeiras um almoço precoce, enquanto continuava a tomar uma copiosa quantidade de champanhe.

   - Reabastecimento em pleno vôo - observou, rindo, um dos vizinhos brancos de Craig, ex-piloto de bombardeiro da RAF.

   Peter Fungabera foi o último a chegar, em uniforme completo; seu motorista era um jovem ajudante-de-ordens, capitão da Terceira Brigada, que Craig já notara em outras ocasiões e, dessa vez, Peter apresentou-o:

   - Capitão Timon Nbebi.

   Era tão magro a ponto de parecer frágil, os olhos por trás dos óculos de aro de aço, vulneráveis demais para um soldado e o aperto de mão, rápido e nervoso. Craig teria gostado de conversar com ele, mas, nesse momento, o transporte que trazia os touros já subia as colinas.

   Dirigiu-se em uma nuvem de fina poeira vermelha até o curral preparado para os animais. A prancha foi abaixada e, antes de abrirem-se as portinholas, Peter Fungabera subiu em um dos estrados e dirigiu-se aos convidados.

   - O sr. Craig Mellow é um homem que poderia ter escolhido qualquer país do mundo para viver e, como um escritor de fama internacional, teria sido bem-vindo. Preferiu voltar ao Zimbábue e, com isso, deixou claro ao mundo que esta é uma terra onde homens de qualquer cor, de qualquer tribo, pretos ou brancos, mashona ou matabele, são livres para viver e trabalhar, sem medo e sem serem molestados, a salvo sob o governo de leis justas. - Depois do comercial político, permitiu-se uma piadinha. - Vamos agora saudar esses novos imigrantes, com o conhecimento seguro de que serão os pais de muitos filhos e filhas admiráveis, contribuindo para a prosperidade de nosso Zimbábue.

   Peter Fungabera iniciou os aplausos quando Craig levantou as portinholas e o primeiro imigrante emergiu, aturdido pela luz do sol. Era um enorme animal, com mais de uma tonelada de músculos salientes sob o couro castanho-avermelhado e lustroso. Suportara dezesseis horas aos trancos, preso em um contêiner barulhento. O efeito dos tranqüilizantes que lhe haviam dado acabara, deixando-o com uma ressaca enorme e um ressentimento amargo contra o mundo em geral. Olhou para o ajuntamento que batia palmas, para as cores esvoaçantes dos vestidos tradicionais femininos, e achou finalmente um alvo para a irritação e a frustração. Soltou um mugido feroz e, arrastando os manobreiros que o seguravam, atirou-se como uma avalanche prancha abaixo.

   Os homens o soltaram e a barreira de proteção explodiu diante da carga do animal, assim como o grupo ministerial. Espalharam-se como sardinhas fugindo do ataque de uma barracuda faminta. Funcionários graduados ultrapassaram as esposas na corrida para a proteção oferecida pelos jacarandás e as crianças amarradas às costas das mães berravam tanto quanto elas.

   O touro foi a toda velocidade para a tenda onde seria servido o almoço; atingindo de raspão as cordas que a prendiam, fê-la desabar por cima de uma horda de celebrantes em pânico. Irrompeu do lado oposto no momento exato em que uma das mais jovens esposas ministeriais corria, gritando de terror e cruzando seu caminho. Tentou chifrá-la com um dos longos cornos mas a ponta atingiu somente a beira do vestido. Ao levantar a cabeça, o pano colorido desenrolou-se do corpo da jovem que fez uma pirueta involuntária, conseguiu equilibrar-se e, completamente nua, subiu correndo a colina com as longas pernas e os seios abundantes balançando.

   - Aposto dois contra um como a potranca ganha por uma teta - berrou extasiado o ex-piloto da RAF, que também bebera um bocado do champanhe barato.

   O pano vistoso enrolara-se na cabeça do animal e conseguiu levá- lo da simples raiva ao ódio mortal. Balançou a grande cabeça onde o vestido tremulava, como um estandarte de batalha. Acabou libertando um de seus olhos e pousou-o no honrado ministro da Educação, o menos dotado dos corredores, que ainda subia penosamente a encosta.

O ministro ostentava o excesso de peso que convém a um homem de tal importância. A enorme barriga protuberante oscilava sob o fraque, o rosto estava cor de cinza e gritava em falsete, aterrorizado e exausto:

- Atirem nele! Atirem neste diabo!

Seus guarda-costas ignoraram as ordens. Estavam cinqüenta passos à sua frente e aumentando a distância.

Craig olhava, impotente, do alto do caminhão, quando o touro abaixou a cabeça e subiu o declive atrás do ministro. Voava poeira dos cascos e tornou a mugir. O estrondo, que soou às costas do ministro, pareceu impulsioná-lo. Revelando ser melhor alpinista que corredor, subiu pelo tronco do primeiro jacarandá à frente e pendurou-se precariamente nos ramos.

O touro tornou a mugir em frustração assassina, olhando para a figura apavorada, escavou a terra com os cascos e golpeou o ar com os chifres.

- Façam alguma coisa - berrou o ministro. - Tirem-no daqui!

Os guarda-costas olharam para trás e, vendo o impasse, recuperaram a coragem. Pararam, tiraram as armas e começaram a se aproximar cautelosamente do touro e de sua vítima.

- Não! - berrou Craig ao ouvir o ruído de carregar das armas automáticas. - Não atirem!

Estava certo de que o seguro não cobriria "disparos deliberados de rifle", e, muito acima dessa consideração, uma rajada ricochetearia por trás do touro, inclusive no estrado e em seus ocupantes, um bando de mulheres e crianças, e no próprio Craig.

Um dos guarda-costas uniformizados levantou o rifle e fez pontaria, mas os recentes acontecimentos e o terror não permitiam que a mão ficasse firme: o cano da arma descrevia círculos no ar.

- Não! - berrou Craig outra vez e atirou-se no chão do trailer.

Naquele momento, uma figura alta e magra interpôs-se entre o rifle e o touro.

- Shadrach - suspirou Craig aliviado, e o velho empurrou imperiosamente o cano do fuzil e virou-se para o animal.

- Eu o saúdo, Nkunzi Kakhulu! Grande touro! - cumprimentou-o cortesmente.

   O touro virou a cabeça ao som da voz, viu claramente Shadrach e bufou ameaçadoramente.

   - Oh, senhor do gado, como és belo! - Shadrach avançou um passo em direção aos chifres afiados.

   O touro bateu com os cascos na terra e ensaiou uma corrida, mas Shadrach não se mexeu e o touro parou.

   - Que cabeça nobre! - continuou. - Teus olhos são como duas luas negras.

O touro apontou os chifres para ele, mas o movimento foi menos violento e Shadrach deu outro passo adiante. Os gritos de terror das mulheres e crianças cessaram e até mesmo os mais medrosos pararam de correr e olharam para trás, para o velho e o animal enfurecido.

   - Teus chifres são afiados como a lança assegai do grande Mzilikazi.

   Shadrach continuou a caminhar e o touro piscou, incerto, e olhou-o com os olhos avermelhados.

   - Como são gloriosos os teus testículos - murmurou Shadrach docemente. - São como bolas de granito e dez mil vacas vão sentir o seu peso e majestade.

   O touro esboçou um passo e fez um pequeno movimento com a cabeça.

   - Teu sopro é como o vento norte, meu incomparável rei dos touros - Shadrach estendeu a mão lentamente e todos observavam sem respirar.

   - Meu querido - e tocou o pêlo lustroso, molhado e cor de chocolate; o touro recuou, nervoso, e voltou cautelosamente para cheirar-lhe os dedos. - Meu doce querido, pai de grandes touros... - Gentilmente, Shadrach passou o indicador pelo pesado anel de bronze do nariz e segurou a cabeça do animal. Inclinou-se, colocando a boca nas narinas rosadas e dilatadas e soprou dentro delas.

   O touro estremeceu, e Craig pôde ver claramente os músculos do pescoço relaxarem. Shadrach endireitou-se e, com o dedo ainda passado pelo anel do nariz, foi-se afastando e o touro seguiu-o placidamente, balançando a papada. A audiência começou uma pequena ovação de alívio e pasmo, e silenciou, quando Shadrach lançou-lhes um olhar gelado cheio de desprezo.

   - Nkosi! - exclamou para Craig. - Tire estes macacos mashona barulhentos da nossa terra. Estão perturbando o meu querido e Craig fez votos ardentes para que nenhum dos ilustres convidados soubesse sindebele.

   E maravilhou-se novamente com o elo quase místico que existia entre o povo Ngusi e o gado. Desde a época, há muito obscurecida pelas névoas do tempo, em que os primeiros rebanhos tinham sido tangidos do Egito para iniciar, durante séculos, migrações para o sul, o destino do homem negro e do animal ficara inexoravelmente ligado. Aquela raça de corcova originara-se na Índia, da espécie Bos indicus, diferente da Bos taurus européia, mas com o tempo tornara-se tão africana quanto as tribos que a estimavam e repartiam com ela as vidas. Era estranho, ponderou, mas as tribos de gado pareciam sempre mais dominantes a aguerridas, como os Masai, os Bechuana e os Zulu, que sempre dominaram os agricultores da terra. Talvez fosse a constante necessidade de buscar pastagens, defendê- las contra os outros e proteger o gado dos predadores, tanto humanos como animais, que os tornava tão belicosos.

   Naquele momento, observando Shadrach conduzir o enorme touro, não havia como enganar-se com aquela arrogância senhoril; mestre e animal eram nobres em sua aliança. O que não era o caso do ministro da Educação, ainda agarrado como um gato ao galho do jacarandá: Craig foi reforçar os encorajamentos dos guarda-costas para que descesse de lá.

   Peter Fungabera foi o último convidado a se retirar e acompanhou Craig numa turnê pela casa, saboreando o cheiro doce da palha dourada que já cobria metade do telhado.

   - Meu avô substituiu a palha original por telhas de cimento amianto durante a guerra - explicou Craig. - Seus foguetes RPG7 eram verdadeiras brasas.

   - Sim - concordou Peter em voz neutra. - Começamos um bocado de fogueiras com eles.

   - Para dizer a verdade, sinto-me grato pela chance de restaurar o prédio. A palha é mais fresca e pitoresca, e tanto a fiação como o encanamento precisam de reparos.

   - Preciso cumprimentá-lo pelo que conseguiu em tão pouco tempo. Logo estará vivendo à maneira grandiosa que seus ancestrais acostumaram-se a ter desde que tomaram esta terra.

   Craig olhou-o vivamente, esperando ver sinais de malevolência, mas o sorriso de Peter era tão encantador e natural como sempre.

   - Todas essas melhorias contribuem enormemente para o valor da propriedade - frisou Craig -, e você tem uma boa porcentagem dela.

- Naturalmente. - Peter colocou a mão num gesto apaziguador no braço dele. - E ainda há muito trabalho a fazer. Quando vai começar o projeto do Águas do Zambeze?

- Estou quase pronto para isso; logo que chegar o resto do gado e tenha Sally-Anne para me ajudar com os detalhes.

- Ah - disse Peter -, então, pode começar imediatamente. Sally-Anne já chegou a Harare ontem de manhã. - Craig sentiu uma onda de prazer e antecipação com essas palavras.

- Vou até a cidade esta noite para lhe telefonar.

Peter Fungabera soltou uma exclamação de aborrecimento.

- Como, ainda não instalaram seu telefone? Vou providenciar isso amanhã. Nesse meio tempo, pode usar o meu rádio.

O mecânico da companhia telefônica apareceu antes do meio-dia do dia seguinte e o Cessna de Sally-Anne chegou zumbindo uma hora mais tarde, vindo do leste. Craig colocara um pote cheio de trapos embebidos em óleo Diesel queimando para assinalar a antiga pista de pouso e dar-lhe a direção do vento; o avião aterrissou e taxiou até onde ele parara o Land-Rover.

Quando ela saltou da cabine, viu que esquecera a maneira alerta e viva com que se movimentava e a forma das pernas dentro dos jeans justos. O sorriso era de verdadeira alegria e o aperto de mão, firme e quente. Não estava usando nada por baixo da blusa de algodão e notou o olhar guloso que ele lhe lançou de alto a baixo, mas não demonstrou qualquer ressentimento.

- Que belo rancho, lá de cima - disse.

- Deixe-me mostrá-lo - convidou-a, e ela colocou a bolsa no assento traseiro do Land-Rover, passando a perna sobre a porta como um garoto.

Já entardecia quando voltaram à sede.

- Kapa-lala preparou-lhe um quarto e Joseph cozinhou o seu jantar especial. O gerador está finalmente, funcionando e temos luz elétrica, a caldeira funcionou o dia inteiro e podemos lhe oferecer um banho quente, ou será que quer ir para um motel na cidade?

- Vamos economizar gasolina - aceitou com um sorriso.

Veio para a varanda com os cabelos molhados enrolados numa toalha, e deixou-se cair na cadeira ao lado dele, colocando os pés na mureta.

   - Meu Deus, foi ótimo. - Cheirava a sabonete e ainda estava com a pele rosada do banho.

   - Como gosta do uísque?

   - Com muito gelo.

   Tomou um gole com um suspiro, e ficaram admirando o crepúsculo. O céu estava esplendorosamente matizado em tons de vermelho. Aquele espetáculo deixou-os cativos; seria blasfêmia falar enquanto durasse. Viram o sol se pôr em silêncio, e só então Craig inclinou-se e entregou-lhe um maço fino de papéis.

   - O que é? - perguntou, curiosamente.

   - Um pagamento parcial pelos seus serviços como consultora e conferencista visitante no Águas de Zambeze. - E Craig ligou a lâmpada ao lado de sua cadeira.

   Ela leu lentamente, relendo três ou quatro vezes cada folha, e, finalmente, ficou sentada depois de colocar as folhas protetoramente no regaço, contemplando a noite.

   - É apenas um esboço das primeiras páginas. Sugeri também quais as fotografias que deveriam ser colocadas na outra folha em cada página - Craig quebrou desajeitadamente o silêncio. - Claro que só vi algumas. Tenho certeza de que tem centenas de outras. Pensei que podíamos fazer umas duzentas e cinqüenta páginas, com o mesmo número de fotos. - Todas em cores, naturalmente.

   - Estava assustado? - Ela virou lentamente a cabeça para olhá-lo. - Mas que droga, Craig Mellow, quem está assustada agora sou eu.

   Viu que havia novamente lágrimas em seus olhos.

   - Isto é tão... - procurou uma palavra e desistiu. - Se colocar minhas fotos ao lado disso, elas vão parecer insignificantes e desmerecedoras do amor profundo que você expressa tão eloqüentemente por esta terra.

   Ele balançou a cabeça negativamente e ela tornou a pegar as folhas para ler.

   - Está mesmo seguro, Craig, de que quer fazer este livro comigo?

   - Sim, sem dúvida alguma.

   - Obrigada - ela disse com simplicidade, e naquele momento Craig soube afinal que seriam amantes; não naquele instante, nem naquela noite, era ainda muito cedo. Mas um dia possuiriam um ao outro.

   Percebeu que ela também sabia, porque, apesar de falarem muito pouco depois disso, suas faces, sob o bronzeado, tingiam-se com um sangue jovem e tímido e baixava os olhos sempre que a olhava, incapaz de encará-lo.

   Depois do jantar, Joseph serviu o café na varanda e, quando saiu, Craig apagou as luzes; ficaram na escuridão, vendo a lua nascer sobre as árvores msasa nas colinas do outro lado do vale.

   Quando ela levantou-se para recolher-se, ficaram de pé, frente a frente, e disse-lhe, mais uma vez, suavemente:

   - Obrigada. - Inclinou a cabeça para trás, e ficou na ponta dos pés, roçando-lhe o rosto com os lábios delicados; sabia, no entanto, que não estava pronta e não fez qualquer esforço para detê-la.

 

   QUANDO CHEGOU O último carregamento de gado, a segunda sede em Queen's Lynn estava pronta e o novo capataz branco contratado por Craig mudou-se para lá com a família. Era um homem corpulento e de fala lenta que, apesar do sangue africânder, nascera e se criara no país. Falava sindebele tão bem quanto ele, compreendia e respeitava os pretos que, por sua vez, gostavam dele e o compreendiam. Mas o melhor era que conhecia e amava gado, como um verdadeiro africano.

   Com Hans Groenewald na propriedade, Craig pôde concentrar-se no projeto de turismo para o Águas do Zambeze. Escolheu um jovem arquiteto que projetara as cabanas de alguns dos mais luxuosos ranchos de caça particulares na África do Sul e trouxe-o de Joanesburgo.

   Os três, Craig, Sally-Anne e o arquiteto, acamparam por uma semana no Águas do Zambeze, percorrendo ambas as margens do rio Chizarira, examinando cada centímetro do terreno, escolhendo a localização dos cinco alojamentos de hóspedes e o complexo serviço que os atenderia. Por ordens de Peter Fungabera, eram protegidos por um destacamento da Terceira Brigada sob o comando do capitão Timon Nbebi.

   A primeira impressão de Craig a respeito desse oficial foi confirmada ao conhecê-lo melhor. Era um jovem sério e culto que passava todo o tempo livre estudando economia política por correspondência na Universidade de Londres. Falava inglês e sindebele, além da língua materna, o mashona, e ele, Craig e Sally-Anne mantinham longas conversas à noite, junto à fogueira, tentando chegar a alguma solução para a inimizade tribal que assolava o país. O ponto de vista de Timon Nbebi era surpreendentemente moderado para um oficial da brigada de elite shona, e parecia ter um desejo sincero para que houvesse uma acomodação entre as tribos.

   - Sr. Mellow - dizia -, podemos nos permitir viver em uma terra dividida pelo ódio? Quando me lembro da Irlanda do Norte ou do Líbano e penso nos frutos dos desentendimentos tribais, sinto medo.

   - Mas você é um shona, Timon - acentuou Craig com delicadeza. - Sua lealdade certamente está com sua tribo.

   - Sim - concordou. - Mas antes de tudo sou um patriota. Não posso assegurar a paz para meus filhos com um fuzil AK 47. Não posso tornar-me um shona com orgulho se matar todos os matabele.

   Essas discussões não levavam a nenhum lugar, mas ficavam mais pungentes pela própria necessidade de se ter uma guarda armada mesmo naquela área remota. A presença constante dos homens armados começava a irritar tanto Craig quanto Sally-Anne e, uma noite, já perto do final da estadia em Águas do Zambeze, conseguiram escapar dos guardas.

   Ambos sentiam-se finalmente à vontade um com o outro, capazes de repartir um silêncio amigável, ou falar horas a fio. Tinham começado a tocar-se em contatos breves e aparentemente casuais que os deixavam, contudo, intensamente alertas. Ela colocava a mão sobre a sua para enfatizar algum detalhe da conversa ou roçava nele quando examinavam juntos os esboços dos alojamentos feitos pelo arquiteto, e, apesar de ser mais ágil que ele, Craig segurava-lhe o braço para ajudá-la a atravessar alguma piscina natural no rio ou inclinava-se sobre ela para apontar-lhe algum ninho de pica-pau ou uma colméia silvestre no topo de uma árvore.

   Naquele dia, finalmente a sós, descobriram um formigueiro que elevava-se acima dos arbustos de ébano à volta e ficava perto de um monturo de rinocerontes. Era um bom ponto de observação e também para fotografar; sentados nele, esperaram pela aparição de algum daqueles grotescos monstros pré-históricos. Falavam aos sussurros, com as cabeças juntas, mas sem se tocarem.

De repente, Craig olhou para a mata espessa abaixo deles e ficou imóvel.

- Não se mexa - sussurrou. - Fique absolutamente imóvel!

Ela virou lentamente a cabeça para olhar na mesma direção e soltou uma exclamação abafada.

- Quem são eles? - murmurou, mas Craig não respondeu.

Havia dois deles que pudesse ver, porque só os olhos, praticamente, eram visíveis. Tinham-se aproximado silenciosos como leopardos, fundindo-se no mato com a perícia de homens que viviam escondidos a vida inteira.

- E então, Kuphela - disse um deles, afinal. - Trouxe aqueles cães mashona assassinos com você para nos perseguir?

- Não é verdade, camarada Sentinela - respondeu Craig, sussurrando. - Foram mandados pelo governo para me proteger.

- Você era nosso amigo; não precisava de proteção contra nós.

- O governo não sabe disso. - Craig tentou ser persuasivo. - Ninguém sabe que nos encontramos. Ninguém sabe que estão aqui. Juro por minha vida.

- E pode custar sua vida, sem dúvida - atalhou o camarada Sentinela. - Diga-me depressa o que veio fazer aqui, já que afirma que não é para nos trair.

- Comprei esta terra. O outro homem branco que está conosco é um construtor. Pretendo fazer aqui uma reserva para turistas, como o Parque Wankie.

Aceitaram o que dizia afinal: o famoso Parque Nacional Wankie ficava também em Matabeleland e, por alguns instantes, os dois guerrilheiros trocaram sussurros e dirigiram-se, depois, novamente a Craig.

- O que vai acontecer conosco - perguntou o camarada Sentinela - quando tiver construído suas casas?

- Somos amigos - lembrou-lhe Craig. - Há espaço para todos. Ajudarei vocês com comida e dinheiro e, em troca, vocês protegerão os animais e os meus prédios. Vigiarão secretamente os visitantes que vierem aqui e não farão mais reféns. Concordam com isso?

- Quanto vale a sua amizade, Kuphela?

- Quinhentos dólares por mês.

- Mil - regateou o camarada Sentinela.

- Bons amigos não deviam discutir sobre dinheiro - concordou Craig. - Tenho só seiscentos dólares aqui comigo, mas deixo o resto enterrado ao lado das figueiras bravas onde acampamos.

   - Nós o acharemos - assegurou-lhe Sentinela. - E todo mês nos encontraremos ou aqui ou lá - e apontou para os dois locais, duas colinas bem distantes do rio, cujos cimos eram apenas silhuetas azuladas no horizonte. - O sinal de encontro será uma pequena fogueira de folhas verdes ou três tiros espaçados de rifle.

   - Está certo.

   - E agora, Kuphela, deixe o dinheiro nesse buraco de tamanduá a seus pés e leve sua mulher de volta para o acampamento.

   Sally-Anne ficou bem junto dele na volta, segurando-lhe o braço e, a cada cinqüenta metros, olhando medrosamente para trás.

   - Meu Deus, Craig, eram shufta de verdade, eram mesmo guerrilheiros. Por que nos deixaram ir embora?

   - Pela melhor razão do mundo: dinheiro. - A risada de Craig soou, até para seus ouvidos, um pouco áspera e sufocada, e a adrenalina ainda circulava no sangue. - Por uns míseros mil dólares por mês acabo de contratar o mais duro bando de guarda-costas e guarda-caças da praça. Uma boa barganha.

   - Você vai tratar com eles? - perguntou Sally-Anne. - Isso não é perigoso? É traição, não é?

   - Provavelmente. Temos de ter certeza de que ninguém descubra nada a respeito, não é mesmo?

 

   O ARQUITETO mostrou ser muito competente: seus projetos eram soberbos; os alojamentos seriam construídos em pedra, madeira nativa do local e palha. Iriam fundir-se harmoniosamente com os locais escolhidos à beira do rio, e Sally-Anne trabalhou com ele na decoração dos interiores e no mobiliário, acrescentando pequenos toques charmosos.

   Durante os meses que se seguiram, o trabalho de Sally-Anne com o World. Wildlife Trust obrigou-a a afastar-se por períodos prolongados, mas, durante as viagens, contratou a equipe de que precisariam no Águas do Zambeze.

   Primeiro, conseguiu seduzir um cozinheiro-chefe com treinamento na Suíça, convencendo-o a deixar uma grande cadeia de hotéis; em seguida, escolheu cinco jovens guias de safári, todos africanos, com um profundo conhecimento e amor pela vida silvestre e pela terra e, mais importante, com habilidade para transmitir esse conhecimento e amor a outros.

   Voltou a atenção, depois, para a feitura dos panfletos de propaganda, usando as próprias fotos e o texto de Craig.

   - Uma espécie de ensaio para o nosso livro - acentuara ao ligar de Joanesburgo, e Craig compreendera pela primeira vez o que ganhara ao concordar em trabalhar com ela: era uma perfeccionista; ou estava tudo certo ou não, e, para isso, não poupava esforços e o obrigava, e aos impressores também, a fazer o mesmo.

O resultado foi uma pequena obra-prima onde a cor era cuidadosamente coordenada e até o layout da impressão gráfica equilibrava-se com as ilustrações. Enviou cópias a todos os agentes de viagem especializados em África, de Tóquio a Copenhague.

   - Temos de marcar uma data para a inauguração - disse a Craig -, e garantir que nossos primeiros hóspedes sejam notícia. Acho que vai ter de oferecer-lhes uma estadia grátis.

   - Você não está pensando em convidar alguma estrela do rock, está? - ele brincou, e ela estremeceu à idéia.

   - Telefonei a meu pai na embaixada de Londres e ele talvez possa conseguir o príncipe Andrew, embora tenha de admitir que é apenas um "talvez". Henry Pickering conhece a Jane Fonda.

   - Nossa, nunca pensei que a senhorita circulasse nessas altas esferas.

   - E, enquanto estamos nesse assunto, acho que posso conseguir a vinda de um romancista best-seller que faz piadas sem graça e vai, provavelmente, beber muito mais uísque do que vale!

   Quando estava pronto para começar a construção do Águas do Zambeze, queixou-se a Peter Fungabera da dificuldade em conseguir trabalhadores na área.

   - Não se preocupe - foi a resposta. - Vou dar um jeito nisso. - E cinco dias mais tarde chegava um comboio de caminhões militares transportando duzentos presos dos centros de reabilitação.

   - Trabalho escravo - disse Sally-Anne, repugnada.

   No entanto, a estrada de acesso ao rio Chizarira ficou pronta em apenas dez dias e pôde ligar para ela em Harare.

   - Acho que podemos marcar tranqüilamente a data para 10 de julho.

   - Que maravilha, Craig.

- Quando pode vir para cá de novo? Eu não a vejo há quase um mês.

- São apenas três semanas - corrigiu-o.

- Fiz mais vinte páginas do nosso livro - acrescentou como isca. - Precisamos revisá-las logo.

- Mande-as para mim.

- Venha buscá-las.

- Está bem - capitulou. - Estarei aí na próxima semana, na quarta-feira. Onde você vai estar? Em King's Lynn ou no Águas do Zambeze?

- Aqui, no Águas do Zambeze. Os eletricistas e encanadores estão terminando e quero checar tudo.

- Vou voar até aí.

Aterrissou no campo aberto ao lado do rio onde as equipes de trabalho tinham preparado uma pista de cascalho para descidas em qualquer tempo e tinham, até, colocado uma biruta para sua chegada.

No momento em que saltou do avião, Craig viu que estava furiosa.

- Você perdeu dois rinocerontes - e encaminhou-se para ele. - Vi as carcaças do ar.

- Onde? - Craig ficou tão zangado quanto ela.

- Na mata por trás da garganta. Foram certamente caçadores furtivos. As carcaças estão a uns poucos metros uma da outra. Fiz alguns vôos rasantes e vi que tiraram os chifres.

- Acha que são o Charlie e a Lady Di?

Craig e Sally-Anne tinham feito uma contagem aérea dos rinocerontes e identificado vinte e sete animais na propriedade, inclusive quatro filhotes e nove casais já maduros para a procriação, a quem tinham dado nomes. Charlie e Lady Di eram um jovem casal que provavelmente mal havia se juntado. A pé, conseguiram chegar perto deles, na mata que era seu território. Ambos tinham belos chifres, sendo que os do macho eram maiores e mais pesados. O frontal, com cerca de cinqüenta centímetros de comprimento e pesando uns dez quilos, valeria pelo menos uns dez mil dólares para um caçador furtivo. A fêmea, Lady Di, era um animal menor, com um par de chifres também menores e lindamente curvados e estava grávida quando a viram pela última vez.

- Sim, são eles. Estou absolutamente segura de que são os dois.

   - É uma viagem dura até aquele lado da garganta - resmungou Craig. - Só conseguiremos chegar lá ao anoitecer.

   - Com o Land-Rover - concordou Sally-Anne -, mas acho que encontrei um lugar onde se pode aterrissar. Fica a menos de dois quilômetros do local da matança.

   Craig tirou o rifle do Land-Rover e verificou a munição.

   - Podemos ir.

   Os CORPOS estavam na parte mais afastada da propriedade, quase à beira da parede escarpada do vale que mergulhava em direção ao grande rio. O local para aterrissagem que Sally-Anne vira era uma clareira natural na cabeceira da garganta do rio e teve de fazer duas tentativas para baixar, conseguindo pousar na segunda.

   Deixaram o Cessna na clareira e foram em direção à garganta. Craig ia à frente, com o rifle engatilhado: os caçadores ainda podiam estar lá.

   No último trecho, foram guiados pelos abutres pousados em todas as árvores em torno da matança como grotescas frutas negras. A área à volta das carcaças fora aberta por eles e estava cheia de penas. Ao se aproximarem, meia dúzia de hienas fugiu. Mesmo aqueles dentes terríveis e afiados não tinham conseguido penetrar completamente no duro couro dos rinocerontes, se bem que os caçadores tivessem aberto o ventre das vítimas para facilitar o acesso dos predadores.

   Estavam mortos há pelo menos uma semana e o cheiro da putrefação ainda era piorado pelo das fezes dos abutres, que cercavam os restos. Os olhos do macho tinham sido arrancados, e as orelhas e o focinho, devorados. Como Sally-Anne vira do ar, os chifres tinham desaparecido e as marcas de um machado ainda eram claramente visíveis, contemplando aquela cabeça destruída e podre, Craig descobriu que estava tremendo de raiva e com a boca seca.

   - Se pudesse encontrá-los, eu os mataria - disse. A seu lado, Sally-Anne estava pálida e séria.

   - Os desgraçados - ela sussurrou.

   Andaram até o corpo da fêmea que também tivera os chifres arrancados e a barriga aberta. As hienas tinham arrancado o feto do ventre e devorado a maior parte.

Sally-Anne ajoelhou-se ao lado daqueles restos patéticos.

- Príncipe Billy - murmurou. - Pobre bichinho.

- Não há nada que se possa fazer. - Craig pegou-a pelo braço e a fez levantar. - Vamos embora.

E ela deixou-se arrastar por ele.

Do ALTO DA colina onde Craig combinara o encontro com o camarada Sentinela, podiam ver a terra castanha que se espraiava até onde o rio serpenteava luxuriante por entre a floresta mais densa, já quase fora do campo de visão.

Craig acendera a fogueira de folhas verdes logo depois do meio-dia, e ficara mantendo-a desde então. O céu já estava escurecendo e o silêncio e o frio noturnos caíram sobre eles, fazendo Sally-Anne estremecer.

- Está com frio? - perguntou Craig.

- E triste.

Ficou tensa, quando ele colocou o braço em torno de seus ombros, mas não se afastou; lentamente foi relaxando e aconchegando-se ao calor de seu corpo. A escuridão engoliu o horizonte e foi avançando para eles.

- Eu o saúdo, Kuphela. - A voz falou tão perto que os surpreendeu e Sally-Anne afastou-se de Craig quase culposamente. - O senhor me chamou? - E o camarada Sentinela parou fora da claridade fraca do fogo.

- Onde estava quando alguém matou dois dos meus bejane e roubou os chifres? - Craig acusou-o asperamente. - Onde estava você, que prometeu montar guarda para mim?

Houve um silêncio prolongado na escuridão.

- Onde aconteceu isso?

E Craig lhe disse.

- Isso é muito longe daqui e longe, também, do acampamento. Nós não sabíamos. - O tom era de desculpas; obviamente o camarada Sentinela achava que falhara no trato. - Descobriremos quem fez isso. Vamos segui-los e encontrá-los.

- Quando fizer isso, é importante que descubram o nome da pessoa que comprou os chifres deles.

- Vou dar o nome desta pessoa a você - prometeu o camarada Sentinela. - Aguarde o nosso sinal nesta colina.

Doze dias mais tarde, Craig viu-o através dos binóculos, uma pequena espiral de fumaça na colina distante. Foi sozinho ao encontro pois Sally-Anne tinha partido três dias antes, apesar de querer desesperadamente ficar, mas um dos diretores da Wildlife Trust ia chegar em Harare e tinha de estar lá para recebê-lo.

- Acho que minha bolsa para o ano que vem depende disso - disse a Craig enquanto subia no Cessna -, mas me telefone no mesmo instante que tiver notícias de seus bandidos amansados.

Craig subiu ansiosamente a colina; ao atingir o topo respirava normalmente e sentia as pernas firmes e fortes. Ficara em forma naqueles últimos meses e ainda estava muito zangado ao parar ao lado dos restos enfumaçados do sinal.

Passaram-se vinte minutos antes que o camarada Sentinela aparecesse à beira da floresta, ainda em guarda e com o fuzil nos braços.

- Não foi seguido? - perguntou a Craig, que negou, tranqüilizando-o. - Precisamos sempre ter o maior cuidado, Kuphela.

- Encontrou os homens?

- Trouxe nosso dinheiro?

- Sim. - Craig tirou o envelope grosso do bolso da jaqueta. - E então?

- Cigarros - brincou Sentinela. - Trouxe cigarros também?

Craig atirou-lhe um pacote e ele tirou um cigarro, acendeu-o e tragou profundamente.

- Ah, isto é ótimo!

- Diga-me - insistiu Craig.

- Eram três homens. Descobrimos os seus rastros desde o local da matança, apesar de já terem dez dias e de eles terem tentado apagá-los. - Sentinela tornou a tragar fundo, fazendo voar agulhas da brasa incandecida. - A aldeia deles fica na escarpa do vale, a três dias aqui. Eram uns macacos batonka, uma tribo de caça primitiva que vive no vale do Zambeze, e ainda estavam com os chifres dos rinocerontes. Levamos os três para a mata e conversamos um bocado de tempo. - Craig sentiu um arrepio ao imaginar aquela longa conversa, sentiu a raiva diminuir e ser substituída por um sentimento de culpa. Devia ter dito a Sentinela que moderasse os seus métodos.

- O que eles contaram?

- Disseram-me que é um homem da cidade que dirige um carro e se veste como um branco. Compra chifres de rinoceronte, peles de leopardo, presas de marfim e paga mais dinheiro do que jamais viram na vida.

- Onde e quando encontram com ele?

- Vem em toda a lua cheia, dirigindo pela estrada da Missão Tuti até o rio Shangani, e eles esperam sua vinda na estrada à noite.

Craig acocorou-se perto do fogo, pensou algum tempo e olhou de novo para Sentinela.

- Diga a esses homens que esperem pela chegada do homem na estrada, na próxima lua cheia, com os chifres.

- Não vai ser possível - interrompeu Sentinela.

- Por quê?

- Estão mortos.

- Todos os três? - perguntou Craig, desolado.

- Todos os três - confirmou Sentinela, com um olhar frio, inexpressivo e desapiedado.

- Mas...

E Craig não conseguiu completar a pergunta. Ele botara os guerrilheiros atrás dos caçadores. Devia ter sido como soltar uma matilha de cães de caça em cima de um hamster domesticado. Mesmo que não tivesse sido essa a sua intenção, era o responsável e sentiu-se envergonhado e culpado.

- Não se preocupe, Kuphela - animou-o Sentinela em tom bondoso. - Trouxemos os chifres dos bejane para você, e afinal aqueles homens não passavam de sujos macacos batonka.

Carregando ao ombro a bolsa tecida com casca de árvore onde estavam os chifres, Craig desceu em direção ao Land-Rover, sentindo -se doente, cansado e com a perna doendo, mas as alças da sacola que se enterravam nas mãos não o machucavam tanto quanto a consciência.

   Os CHIFRES estavam colocados em fila sobre a escrivaninha de Peter Fungabera. Eram quatro - os grandes frontais e os menores da parte anterior.

   - Afrodisíaco - murmurou Peter, tocando um deles com os dedos longos.

   - Isso é mito - disse Craig. - As análises químicas mostram que não contêm qualquer substância de efeitos afrodisíacos.

   - São apenas um tipo de massa capilar aglutinada - explicou Sally-Anne. - O efeito que um chinês impotente procura neles ao esmagá-los, reduzi-los a pó e tomá-los com água de rosa não passa de uma mera simpatia.

   - De qualquer forma, os árabes do petróleo pagam mais para terem cabos de punhal do que os chineses velhos por suas "espadas" - acentuou Craig.

   - Não importa qual seja o destino final dos chifres, o fato é que há dois rinocerontes a menos no Águas do Zambeze do que um mês atrás e quantos mais serão mortos no próximo?

   Peter Fungabera levantou-se da escrivaninha e veio até eles de pés descalços, com o pano enrolado nos quadris recém-lavado e engomado, postando-se diante deles.

   - Estive fazendo minhas próprias investigações - disse em tom sério. - E todas parecem apontar as mesmas conclusões de Sally- Anne. Parece absolutamente certo de que há uma quadrilha altamente organizada operando em todo o país. Os nativos das áreas ricas em caça estão sendo engodados e levados à caça furtiva e à coleta dos produtos animais valiosos. O botim é acumulado e fica a salvo em diversos esconderijos em lugares remotos até que atinja um valor que permita uma única entrega ser enviada para fora do país. - Fungabera começou a andar de um lado para o outro. - A encomenda é geralmente exportada em um vôo comercial da Air Zimbabwe para Dar-es-Salaam, na costa da Tanzânia. Não temos certeza do que acontece lá, mas provavelmente é colocada num cargueiro soviético ou chinês.

   - Os soviéticos não têm escrúpulos com o problema de preservação da vida silvestre - concordou Sally-Anne. - Ganham boas divisas com a exportação de peles de marta e com a pesca da baleia.

   - A Air Zimbabwe está sujeita a que ministério? - perguntou de repente Craig.

   - Ao ministro do Turismo, o honrado Tungata Zebiwe - respondeu Peter calmamente, e todos ficaram silenciosos por um momento antes que ele continuasse. - Quando chega a ocasião de uma entrega, os produtos são trazidos até Harare, tudo no mesmo dia ou na mesma noite. Não são estocados, vão diretamente para o aeroporto em rigorosas condições de segurança e embarcados quase imediatamente.

   - E com que freqüência isto acontece? - perguntou Craig, e Peter Fungabera olhou interrogativamente para o ajudante que estava discretamente ao fundo da sala.

   - Depende - respondeu o capitão Timon Nbebi. - Na estação de chuvas, o mato é alto e as condições na floresta, ruins. Há pouca atividade de caça, mas durante os meses da seca os caçadores podem trabalhar com mais eficiência. Mas ficamos sabendo através de nosso informante que está prestes a acontecer outro embarque a ser feito nas próximas duas semanas.

   - Obrigado, capitão - interrompeu-o Fungabera com um ar meio aborrecido; obviamente, ele mesmo gostaria de ter dado essa última informação. - O que soubemos também é que o cabeça da organização toma, muitas vezes, parte ativa nela. Por exemplo, aquele massacre de elefantes no campo de minas abandonado - e olhou para Sally-Anne -, o que você fotografou com tanto realismo, bem, soubemos que um ministro do governo, não sabemos com certeza qual, foi até o local em um helicóptero e também que, em duas outras ocasiões, um alto funcionário do governo, supostamente de nível ministerial, estava presente quando os carregamentos foram trazidos até o aeroporto para embarque.

   - Provavelmente não confia na honestidade dos próprios homens - murmurou Craig.

   - Com os bandidos que trabalham para ele, não é de admirar. - A voz de Sally-Anne estava rouca, mas Peter Fungabera permanecia impassível.

   - Acreditamos que seremos informados antes do próximo carregamento. Como já devem saber, infiltramos um homem na organização. Vamos vigiar os movimentos de nosso suspeito enquanto a data se aproxima e, com sorte, poderemos pegá-lo em flagrante. Se não, confiscaremos o carregamento no aeroporto e prenderemos todos que estiverem lá. Estou certo de que conseguiremos convencer um deles a testemunhar.

   Observando-lhe o rosto, Craig reconheceu aquela mesma expressão fria e desapiedada do camarada Sentinela quando lhe contara a morte dos três caçadores. Foi apenas um breve relance por trás da fachada polida e, em seguida, Peter Fungabera voltou a sentar-se na escrivaninha.

   - Por razões que já expliquei, preciso de testemunhas independentes e confiáveis para efetuar qualquer prisão que tenhamos a sorte de fazer. Quero vocês dois lá. Assim, ficaria grato se ficassem prontos para isso tão logo os avise e se pudessem informar ao capitão Nbebi onde podem ser contactados a qualquer momento nas próximas duas ou três semanas.

   Ao levantarem-se para sair, Craig perguntou de repente:

   - Qual é a pena máxima para caça clandestina? - E Peter levantou os olhos dos papéis que estava arrumando na escrivaninha.

   - Com a lei atual, uma pena máxima de dezoito meses de trabalhos forçados para qualquer infração dessa natureza.

   - Não é o bastante. - Craig tinha diante dos olhos a imagem das carcaças apodrecidas de seus animais.

   - Não - concordou Peter. - Não é o bastante. Há dois dias atrás, apresentei uma emenda a ela, em moção, como membro do Parlamento. Será lida pela terceira vez na quinta-feira, e asseguro a vocês que tem o apoio integral do partido. Vai tornar-se lei nesse dia.

   - E quais são as novas penalidades? - perguntou Sally-Anne.

   - Para o comércio clandestino de troféus de determinados animais de caça, à diferença da simples caçada clandestina, para comprar, revender e exportar, a pena máxima será de doze anos de trabalhos forçados e uma multa que não exceda cem mil dólares.

   Pensaram nisso por um momento e Craig acabou concordando:

   - Doze anos... Sim, doze anos é o bastante.

 

   A CONVOCAÇÃO de Peter Fungabera chegou de manhã cedo, quando Craig e Hans Groenewald, o capataz, tinham acabado de voltar à sede da fazenda depois da inspeção matinal às pastagens. Craig estava em meio a um dos pantagruélicos cafés da manhã de Joseph, saboreando ainda as salsichas de fabricação caseira, quando o telefone tocou.

   - Sr. Mellow, aqui é o capitão Nbebi. O general deseja vê-lo o mais breve possível no seu quartel-general, a casa de Macillwane. Esperamos que nosso homem entre em ação esta noite. Quando pode chegar lá?

   - São seis horas de carro - observou Craig.

- A senhorita Jay já está a caminho do aeroporto. Deve estar aí em King's Lynn para apanhá-lo em duas horas.

   Sally-Anne chegou nas duas horas previstas e Craig a aguardava na pista. Voaram diretamente para o aeroporto de Harare e Sally- Anne foi dirigindo de lá até a casa nas colinas de Macillwane.

   Ao cruzarem os portões, perceberam imediatamente uma atividade incomum nos jardins. No gramado da frente havia um helicóptero Super Frelon, e piloto e mecânico fumavam e conversavam. Ambos os olharam em expectativa, mas logo se desinteressaram. Quatro caminhões militares pintados de cor de areia estavam por trás da casa, com soldados da Terceira Brigada em uniforme completo de batalha agrupados em torno. Craig percebeu sua excitação, como cachorros açulados para a caça.

   O escritório de Fungabera fora transformado em quartel-general das operações. Duas mesas de campanha tinham sido armadas diante do enorme mapa em relevo na parede, com três tenentes sentados em torno de uma delas. Na outra, havia um aparelho de rádio, e Timon Nbebi estava inclinado sobre o operador, falando baixinho ao microfone em shona que Craig não conseguiu acompanhar, interrompendo-se abruptamente para dar uma ordem ao sargento negro encarregado do mapa, que imediatamente movimentou um dos marcadores coloridos para uma nova posição.

   Peter Fungabera cumprimentou-os rapidamente e acenou para que se sentassem em banquetas, continuando a falar ao telefone. Ao desligar, explicou-lhes:

   - Conhecemos a localização de três dos esconderijos. Um é uma shamba nas montanhas Chimanimani e tem peles de leopardo e algum marfim. O segundo fica em um posto de trocas perto de Chiredzi, no sul; o despojo em sua maioria é marfim. E o terceiro carregamento está vindo do norte. Acreditamos que esteja retido na Missão Tu ti. É o maior e mais valioso, com marfim e chifres de rinoceronte.

   Interrompeu-se quando o capitão Nbebi estendeu-lhe um bilhete que leu rapidamente, dizendo-lhe em seguida:

   - Ótimo, desloque dois pelotões pela estrada do norte até Karoi - e virou-se para Craig. - A operação tem o nome código de bada que é a palavra shona para leopardo. Vamos nos referir ao nosso suspeito como Bada em toda a operação. - Craig concordou. - Acabamos de saber que Bada partiu de Harare. Está em seu Mercedes oficial com um chofer e dois seguranças - todos matabele, naturalmente.

   - Em que direção? - perguntou na mesma hora Sally-Anne.

   - Nessas alturas parece estar se dirigindo para o norte, mas ainda é muito cedo para se ter certeza.

   - Para encontrar o grande carregamento... - Havia um brilho combativo nos olhos de Sally-Anne e Craig podia sentir a própria excitação.

   - Devemos acreditar que isso é correto - concordou Peter. - Agora, deixe explicar-lhes nosso plano se Bada for para o norte. Os carregamentos de Chimanimani e de Chiredzi vão passar sem problemas até o aeroporto. Serão apreendidos assim que chegarem lá, e os choferes, junto com o comitê de recepção, presos para serem usados como testemunhas mais tarde. Naturalmente, estes trajetos serão vigiados desde o momento em que os caminhões sejam carregados. Os proprietários dos dois depósitos serão presos assim que os caminhões partirem e se afastarem da área.

   Tanto Craig quanto Sally-Anne ouviam atentamente, e Peter continuou.

   - Se Bada for para o leste ou para o sul, mudaremos o foco das operações para lá. Entretanto, prevemos que, como o carregamento mais importante estava no norte, é para lá que irá. Parece que estávamos certos. Logo que tivermos certeza, iremos também.

   - Como está planejando capturá-lo? - perguntou Sally-Anne.

   - Dependerá muito da oportunidade que tivermos, e isso depende necessariamente do comportamento de Bada. Temos que tentar fazer uma ligação material entre ele e a carga. Vamos vigiar tanto o Mercedes como o caminhão com o contrabando e, logo que se encontrarem, pulamos sobre eles... - E Peter Fungabera enfatizou a ação com uma pancada do bastão forrado de couro na palma da mão, provocando um ruído como o disparo de uma pistola e fazendo com que Craig, já muito tenso, se sobressaltasse e olhasse depois com um sorriso meio envergonhado para Sally-Anne.

   O rádio estalou, em seguida ouviu-se um zumbido, uma voz falou em shona, recebendo uma resposta curta do capitão Nbebi que, em seguida, olhou para Peter.

   - Está confirmado, senhor. Bada está indo rapidamente em direção norte na estrada de Karoi.

   - Está bem, capitão, vamos dar partida ao movimento três - ordenou Peter, afivelando o coldre. - Já tem alguma notícia dos grupos de vigilância na estrada de Tu ti?

   - Negativo até agora, general.

   - Ainda é muito cedo. - Colocou a boina vermelha em um ângulo atrevido e o emblema do leopardo brilhou sobre o olho direito. - Mas podemos começar a tomar uma posição mais avançada agora. - E adiantou-se à frente deles, passando pelas portas-janelas francesas para o terraço.

   Quando a tripulação do helicóptero o viu, deixou cair os cigarros rapidamente, apagou-os e subiu na carlinga. Peter Fungabera entrou, o motor começou a funcionar e as hélices a girar.

   Depois de se acomodarem nos assentos e prenderem os cintos de segurança, Craig fez, impulsivamente, a pergunta que o estivera incomodando, mas em tom baixo para não ser ouvido pelos outros sobre o ronco cada vez maior do motor.

   - Peter, essa é uma operação militar em larga escala. Por que não deixar esse assunto a cargo da polícia?

   - Desde que despediram os oficiais brancos, a polícia tornou-se um bando de trapalhões... E, a essa altura - sorriu com ar malandro -, meu velho, são meus rinocerontes também.

   O helicóptero subiu, deslizando numa curva, o nariz girou para o norte, voando baixo, acompanhando o relevo, e a violência do deslocamento do ar através da cabine aberta tornou qualquer conversa impossível.

   Mantiveram-se a oeste da estrada principal para o norte para não arriscar serem vistos pelos ocupantes do Mercedes. Uma hora mais tarde, quando o helicóptero sobrevoou e começou a descer no pequeno aeroporto militar de Karoi, Craig olhou para o relógio: já eram quatro horas.

   Peter Fungabera viu o gesto e assentiu.

   - Parece que vai ser uma operação noturna.

   A aldeia de Karoi foi um dia o centro dos ranchos brancos da área, mas era agora uma única rua com velhas lojas de comércio, um posto de gasolina, um posto de correio e uma pequena delegacia de polícia. A base militar ficava um pouco atrás dela, ainda fortificada devido à época das guerrilhas com uma cerca de arame farpado e montes de sacos da areia empilhados com seis metros de espessura.

   O comandante local, um jovem segundo-tenente negro, estava claramente deslumbrado com a importância do visitante, e fazia continências teatrais toda vez que Peter Fungabera falava.

   - Tire este idiota da minha frente - rosnou para o capitão Nbebi, ao assumir o posto de comando. - E traga-me o último relatório sobre a posição de Bada.

   - Bada passou por Sinoia há vinte minutos - disse o capitão, tirando os olhos do rádio.

   - Certo. Temos uma boa descrição do veículo?

   - É um Mercedes 280 SE azul-marinho com uma bandeirinha ministerial no pára-lama dianteiro. A placa é PL 674. Não tem escolta de motociclistas ou de qualquer outro veículo. São quatro ocupantes.

   - Certifique-se de que todas as unidades tenham esta descrição - e repita mais uma vez que não deve haver nenhum disparo. Bada tem de ser capturado vivo e inteiro. Se lhe causarem algum mal, poderíamos ter outra rebelião matabele nas mãos. Ninguém deve atirar nele ou no veículo, mesmo que seja para salvar a própria vida. Torne isso bem claro. Qualquer homem que me desobedecer terá pessoalmente de responder por isso a mim.

   Nbebi chamou cada unidade, repetiu as ordens e esperou até que fossem repetidas. Em seguida, ficaram esperando com impaciência, bebendo chá em canecas de esmalte desbeiçadas e prestando atenção ao rádio, que estalou de repente, fazendo Timon Nbebi correr até lá.

   - Localizamos o caminhão - traduziu triunfalmente. - É um Ford verde de cinco toneladas coberto com uma lona. Além do motorista, há um passageiro. Vai muito carregado, com a suspensão bem arriada e engrenando a primeira nos declives. Passou pelo vau do rio Sanyati há dez minutos, vindo da Missão Tuti em direção à confluência da estrada, a uns trinta e oito quilômetros daqui.

   - Então Bada e o caminhão vão se interceptar - disse Fungabera, com um brilho de caçador nos olhos.

   NAQUELE MOMENTO, O rádio concentrava a atenção geral; cada vez que começava a transmitir, todos os olhos convergiam para ele.

   Os relatórios eram feitos regularmente, traçando o rápido percurso do Mercedes para o norte, em direção a eles, e o do pesado caminhão, arrastando-se lentamente pela empoeirada estrada secundária cheia de sulcos, na direção oposta. Nos intervalos entre cada relatório, ficavam sentados, em silêncio, bebendo o chá forte e açucarado, mastigando sanduíches de pão preto rústico e carne enlatada.

   Peter Fungabera quase não comeu. Inclinara a cadeira para trás e tinha os pés em cima da escrivaninha do comandante. Batia com o bastão nas botas de combate de solado de borracha com um ritmo monótono que começou a irritar Craig. Sentiu de repente uma grande vontade de fumar pela primeira vez em meses e levantou-se, andando de um lado para o outro.

   Timon Nbebi recebeu outra mensagem pelo rádio; quando recolocou o microfone, traduziu:

   - O Mercedes chegou à aldeia. Pararam para abastecer no posto.

   Tungata Zebiwe estava a poucos metros deles e Craig achou isso desconcertante. Até ali, fora mais como um jogo intelectual do que uma caçada de vida ou morte. Parara de pensar em Tungata como um homem, transformara-se meramente em Bada, a presa a ser enganada e forçada a cair na armadilha. Lembrou-se dele subitamente como um homem, um amigo, um ser humano extraordinário, e ficou novamente dividido entre um resto de lealdade e o desejo de ver um criminoso punido.

   O posto de comando tornou-se subitamente claustrofóbico e saiu para o pequeno pátio cercado pelas muralhas de sacos de areia. O sol já se pusera, o breve crepúsculo africano banhava o céu em púrpura, e ficou contemplando-o. Ouviu sons de passos e olhou para o lado.

   - Não fique tão infeliz assim - pediu Sally-Anne suavemente, e ele sentiu-se tocado com sua preocupação. - Você não tem de ir - continuou ela. - Poderia ficar aqui.

   - Quero ver com meus próprios olhos - e balançou a cabeça. - Mas não vou odiar menos tudo isso.

   - Eu sei. E o respeito por isto.

   Olhou-a e viu que desejava que a beijasse. O momento por que esperara tanto e tão pacientemente tinha chegado. Estava pronta, finalmente, e seu desejo era tão grande quanto o dele.

   Tocou-lhe o rosto delicadamente com os dedos, e suas pálpebras estremeceram. Ela aproximou-se e ele compreendeu que a amava. Isso tirou-lhe o fôlego por um momento e sentiu um êxtase quase religioso.

   - Sally-Anne - sussurrou. A porta do posto abriu-se com violência nesse momento e Peter Fungabera saiu para o pátio.

   - Vamos partir - disse bruscamente, e eles se separaram. Craig viu-a estremecer como se acordasse de um sonho e o olhar readquirir foco.

   Lado a lado, seguiram Peter e Timon até o Land-Rover sem capota no portão do fortim.

 

   A NOITE estava gelada em comparação com o calor do dia e o vento os açoitava, porque o pára-brisa fora abaixado.

   Timon Nbebi dirigia, com Peter Fungabera ao lado. Craig e Sally-Anne dividiam o banco traseiro com o operador de rádio. Timon dirigia cautelosamente com os faróis baixos e os dois caminhões militares abarrotados de soldados em uniforme completo de combate os seguia logo atrás.

   O Mercedes estava um quilômetro à frente, ocasionalmente podiam ver o brilho das lanternas traseiras quando subia a estrada por uma das colinas de matas cerradas.

   - Já andamos uns trinta e cinco quilômetros - disse Fungabera, checando o odômetro. - O cruzamento para Sanyati e Tuti fica apenas a uns três quilômetros. - Bateu no ombro de Timon com o bastão. - Pare e chame a unidade que está no cruzamento.

   Craig descobriu que tremia tanto de excitação como de frio. Com o motor ainda ligado, Timon chamou pelo rádio o grupo avançado de observação que estava escondido lá.

   - Ah! Então é isso! - Timon não escondeu a satisfação que sentia. - Bada saiu da estrada principal, general; o caminhão parou e está estacionado a quase quatro quilômetros do cruzamento. Tem de ser um encontro previamente combinado, senhor.

   - Continue - ordenou Fungabera. - Siga-os!

   Timon passou a dirigir velozmente, usando os faróis baixos para ver a beira da estrada.

   Lá está o cruzamento! - disse Peter bruscamente, quando a estrada inacabada surgiu da escuridão, uma faixa pálida e deserta.

   Timon diminuiu a marcha e dobrou nela. Um sargento da Terceira Brigada saiu da escuridão da mata, pulou no estribo e conseguiu fazer uma continência com a mão livre.

   - Passaram por aqui há um minuto, general - disse, apressado. - O caminhão está logo à frente. Fizemos um bloqueio de estrada por trás e vamos bloqueá-la aqui assim que o senhor passar. Nós os encurralamos.

   - Adiante, sargento. - Peter acenou com a cabeça e virou-se para Timon. - A estrada é toda em declive daqui até o vau do rio. Ordene aos caminhões para desligarem os motores assim que continuarmos. Vamos descer com o motor desligado.

   O silêncio era fantasmagórico depois do rugido dos pesados motores. Os únicos sons eram o rangido da suspensão do Land-Rover, o ruído dos pneus sobre o cascalho e o do vento nos ouvidos.

   As curvas na trilha acidentada surgiam da noite com uma velocidade assustadora, e Timon Nbebi agarrava-se ao volante enquanto serpenteavam pela primeira descida da grande escarpa. Os dois caminhões guiavam-se pelas luzes traseiras. Eram formas negras agigantando-se na escuridão por detrás. Sally-Anne pegou a mão de Craig enquanto eram atirados juntos nas curvas e segurou-a por todo o caminho até embaixo.

   - Lá estão eles! - exclamou abruptamente Peter Fungabera, com a voz rouca e excitada.

   Viram as luzes do Mercedes tremulando por entre as árvores. Estavam aproximando-se rapidamente e por alguns segundos os faróis sumiram em outra curva e reapareceram - dois longos fachos iluminando a superfície pálida da estrada, respondidos de repente por outro par de faróis vindo da direção oposta. Os faróis do caminhão piscaram três vezes, obviamente um sinal de reconhecimento, e imediatamente o Mercedes diminuiu a marcha.

   - Nós os pegamos - exultou Peter Fungabera e desligou as luzes.

   Abaixo deles, um caminhão coberto moveu-se lentamente do acostamento onde estivera estacionado para o meio da estrada. Dois homens desceram do Mercedes e foram até a cabine do caminhão, um deles com um fuzil na mão, e falaram com o chofer pela janela aberta.

   O Land-Rover seguiu em direção à cena que se desenrolava. Sally-Anne apertava com força a mão de Craig.

   Na estrada, um dos homens começou a andar para a traseira do caminhão parado; de súbito olhou para o caminho escuro na direção de onde vinha o Land-Rover. Estavam tão perto naquele momento que, mesmo com o barulho dos motores do Mercedes e do caminhão, devia ter ouvido o som dos pneus.

   Peter Fungabera ligou as luzes do Land-Rover que resplandeceram, ofuscantes, ao mesmo tempo em que levava aos lábios um megafone.

   - Não se mexam! - A voz amplificada ressoou na noite e reverberou nas colinas em torno. - Não tentem fugir!

   Os dois homens giraram e correram de volta ao Mercedes. Timon Nbeli ligou o motor, que deu um rugido, e o Land-Rover avançou aos arrancos.

   - Fiquem onde estão! Soltem as armas!

   Os homens hesitaram primeiro, depois, o que trazia o fuzil deixou-o cair e ambos levantaram as mãos sobre a cabeça, piscando ofuscados.

   Timon Nbebi colocou o Land-Rover na frente do Mercedes, bloqueando-o, saltou e correu até a janela aberta apontando a sub- metralhadora Uzi para o interior.

   - Para fora! - gritou. - Todos para fora!

   Por trás deles, os dois caminhões frearam, levantando nuvens de poeira sob as duplas rodas traseiras. Bandos de soldados armados pularam deles, correndo e derrubando com uma coronhada os dois homens desarmados. Cercaram o Mercedes, escancararam as portas e arrastaram para fora o chofer e o homem sentado no banco de trás.

   A figura alta e de ombros largos era inconfundível. Os faróis jorravam luz nas feições ásperas e escuras e exageravam a força pétrea do queixo. Tungata Zebiwe arrancou-se das mãos dos captores e lançou um olhar fulminante em torno, fazendo-os recuar.

- Para trás, bando de hienas! Como se atrevem a me tocar?

   Estava vestido com calça escura e camisa branca, e o cabelo aparado era redondo e negro.

   Sabem quem sou eu? - inquiriu-os. - Vão arrepender-se por isso.

   A segurança arrogante com que falava fê-los recuar mais um passo e olharam para trás, para o Land-Rover. Peter Fungabera saiu da escuridão por trás dos faróis e Tungata Zebiwe reconheceu-o instantaneamente.

   - Você! - gritou. - Claro, o carniceiro-mor.

   - Abram o caminhão - ordenou Fungabera, sem tirar os olhos do outro homem. Encaravam-se com tamanho ódio que tornava tudo o mais insignificante à volta deles. Era um confronto primitivo, parecendo incorporar toda a selvageria do continente, dois homens poderosos sem qualquer vestígio de barreiras civilizadas, e com um antagonismo tão forte que mal o podiam suportar.

   Craig saltara do Land-Rover e começara a avançar, mas estacara, estupefato. Não esperava algo nem sequer remotamente parecido com aquilo. Aquele ódio quase tangível não era fruto daquele momento, parecia que os dois iam engalfinhar-se como animais em batalha, estraçalhando-se as gargantas com as mãos nuas. Era um sentimento profundamente enraizado, uma cólera mútua brotada das monumentais raízes de uma antiga hostilidade.

   Os soldados retiravam de dentro da traseira do caminhão caixotes e fardos. Um dos caixotes abriu-se ao bater no solo e longas presas de marfim cintilaram como âmbar à luz dos faróis. Um dos soldados rasgou um fardo e puxou pedaços de peles preciosas, a dourada e mosqueada do leopardo e a pelagem espessa e vermelha do lince.

   - É isso mesmo! - A voz de Peter Fungabera estava sufocada pelo triunfo, o ódio e o prazer da vingança. - Prendam este cão matabele!

   - Seja lá o que estiver acontecendo aqui, isso vai recair sobre sua cabeça, filho de uma prostituta shona! - ameaçou Tungata.

   Nesse meio tempo, Sally-Anne saltou do Land-Rover e começou a caminhar em direção ao tesouro de peles e marfim que jazia na estrada. Por um segundo, interpôs-se entre Tungata Zebiwe e os captores, e ele moveu-se com incrível velocidade, como o bote de uma serpente, rápido demais para os olhos.

   Agarrou Sally-Anne pelo braço, torceu-o e levantou-a do chão como um escudo enquanto abaixava-se para pegar o fuzil que estava a seus pés. Escolhera o momento perfeito. Os soldados estavam tão amontoados que não poderiam disparar sem ferir algum companheiro.

   As costas de Tungata estavam protegidas pelo Land-Rover e a frente, pelo corpo de Sally-Anne.

   - Não atirem! - berrou aos homens Peter Fungabera. - Quero este canalha matabele para mim.

   Tungata enfiou o cano do fuzil por baixo do braço de Sally-Anne, segurando-o com uma só mão e mirando-o em Fungabera, enquanto ia recuando para o Land-Rover, com o motor ainda ligado, arrastando-a com ele.

   - Você não vai conseguir escapar - exultou Peter Fungabera. - A estrada está bloqueada e tenho cem homens. Finalmente peguei você.

   Tungata armou o seletor de tiro com o polegar e mirou a barriga de Fungabera. Craig, que estava parado diagonalmente por trás dele, viu a ligeira deflexão do cano no momento em que Tungata disparou, e compreendeu que mirara deliberadamente perto do quadril de Peter. O estrondo da arma automática era ensurdecedor e o grupo de homens dispersou-se à procura de abrigo. Peter Fungabera atirou-se para o lado e rolou até o caminhão conseguindo enfiar-se por baixo das rodas.

   Tungata continuava disparando e as balas acertaram o caminhão estacionado deixando buracos escuros pela carroceria, cercados por um halo de metal reluzente.

   Fumaça e poeira obscureciam as luzes dos faróis e os soldados espalhados bloqueavam o campo de tiro uns dos outros; no meio daquele caos, Tungata levantou Sally-Anne e atirou-a para dentro do Land-Rover. No mesmo instante, subiu à direção, engrenou, e o motor deu um rugido, quando o carro arrancou.

   - Não atirem! - berrou Peter Fungabera novamente e havia uma urgência desesperada em sua voz. - Eu o quero vivo!

   Um soldado saltou para a frente do Land-Rover, numa tentativa inútil de detê-lo. O impacto soou como um pedaço de massa sendo sovado quando o pára-choque o atingiu em cheio e ele caiu, arrastado aos solavancos sob o chassi até rolar para a estrada e o Land- Rover seguir colina acima.

   Sem pensar, Craig escancarou a porta do Mercedes ministerial e sentou-se ao volante. Virou-o em 180 graus e saiu cantando os pneus. A traseira do carro oscilou, bateu no barranco, e derrapou.

Tirou o pé do acelerador, controlou a derrapagem, endireitou o volante e pisou fundo. O Mercedes arrancou velozmente e pela janela aberta ouviu Peter Fungabera gritar:

   - Craig! Espere!

   Ignorou o grito, e concentrou-se na primeira curva fechada da estrada. A direção do Mercedes era enganadoramente leve e quase virou-a demais, chegando a bater com os pneus na beira do barranco. Ao ultrapassar a curva, viu, à frente, as luzes traseiras do Land- Rover, quase ocultas por uma nuvem de poeira.

   Craig reduziu a transmissão automática, o motor roncou, estridente, a agulha do conta-giros pulou para o setor vermelho acima de 5 000, e o carro subiu como uma flecha colina acima, diminuindo rapidamente a distância do Land-Rover.

   O carro à frente foi engolido pela próxima curva e a poeira cegou-o de tal forma que foi forçado a tirar o pé do acelerador e dirigir às cegas; quando pôde ver novamente, deparou com uma curva que quase não conseguiu fazer e as rodas traseiras roçaram a beira do precipício, a centímetros de um desastre, antes que conseguisse ultrapassá-la.

   Estava começando a se acostumar com o carro e, trezentos metros à frente, teve uma breve visão do Land-Rover por entre a poeira. Os faróis iluminaram Sally-Anne, meio curvada sobre a porta, tentando jogar-se para fora do carro, mas Tungata pegou-a pelo ombro, atirou-a para trás forçando-a a sentar-se.

   O lenço voou-lhe da cabeça, flutuando como um pássaro noturno até desaparecer na escuridão, e a farta cabeleira solta emaranhou-se no rosto. A poeira tornou a esconder o Land-Rover - Craig sentiu-se invadido por um ódio sufocante. Naquele momento, odiou Tungata Zebiwe como nunca odiara outro ser humano na vida. Fez a tomada correta na curva seguinte, ultrapassou-a e tornou a desenvolver velocidade máxima.

   O Land-Rover estava duzentos metros à frente, e a distância diminuía com o avanço do Mercedes; teve de frear em outra curva e, quando a ultrapassou, o outro carro estava mais próximo. Sally- Anne olhava para trás, com o rosto muito branco, quase luminoso à luz dos faróis, os cabelos parecendo que iam sufocá-la, até desaparecer por um momento. Craig seguiu-os, freando ao sentir a traseira do carro derrapar no cascalho solto da estrada, quando viu o bloqueio da estrada à frente.

   Um caminhão do exército de três toneladas estava atravessado na pista e os intervalos até as margens, bloqueados com árvores espinhentas recém-cortadas e cujos troncos estavam acorrentados uns aos outros. Craig podia ver o brilho dos elos metálicos: aquela barreira pararia um buldôzer.

   Cinco soldados estavam postados diante do bloqueio, abanando os rifles num comando urgente para que o Land-Rover parasse. O fato de não terem aberto fogo deu a Craig a esperança de que Peter Fungabera tivesse se comunicado com eles pelo rádio mas, mesmo assim, sentiu-se nauseado e ansioso ao ver como Sally-Anne estava vulnerável no carro sem capota. Imaginou um disparo dos fuzis automáticos cortando-lhe o corpo.

   - Por favor, não atirem - murmurou, e pisou no acelerador tão fundo que a perna artificial pressionou dolorosamente o coto. A frente do Mercedes estava a duzentos metros da traseira do Land- Rover e ganhando terreno.

   A cem metros da barreira, havia um local baixo à direita do barranco. Tungata desviou-se para lá e o carro feioso de frente achatada voou sobre ele com as quatro rodas no ar, avançando como uma ceifadora pelo alto capim amarelado que se estendia depois.

   Craig sabia que não poderia segui-lo. A suspensão baixa do Mercedes se arrebentaria no barranco. Passou pelo lugar e pisou no freio quando a barreira agigantou-se no pára-brisa. O Mercedes parou, e Craig abriu a porta, saindo aos tropeções do carro.

   Conseguiu equilibrar-se, escalou o barranco, e pôde ver o Land- Rover. Estava a vinte metros de distância, trepidando no terreno acidentado, sulcando o espesso capim, cujos talos tinham a grossura de um dedo mínimo e a altura de um homem, ziguezagueando entre as árvores da floresta, reduzido à pouca velocidade que o terreno impunha. Viu que Tungata iá- conseguir ultrapassar a barreira e correu para alcançá-los. O medo e a raiva que sentia por causa de Sally-Anne pareciam guiar seus pés e tropeçou apenas uma vez no solo acidentado.

   Tungata Zebiwe viu-o e levantou o fuzil com uma única mão, fazendo pontaria sobre o capô do Land-Rover que corcoveava, mas Sally-Anne atirou-se sobre a arma, agarrando-a com as duas mãos e forçando o cano para baixo, e Tungata não podia tirar a outra do volante. Haviam já ultrapassado a barreira e Craig perdia terreno; compreendeu com um baque no peito que não poderia alcançá-los, arrastava-se atrás do veículo.

   Sally-Anne e Tungata ainda lutavam, até que o negro robusto conseguiu soltar o braço e, usando a mão com perícia, atirou-a brutalmente no chão do carro. Ela bateu com o rosto no painel e Tungata fez o carro desviar-se, dando a Craig uma vantagem preciosa de alguns metros; o carro parou um instante à beira do barranco alto por trás da barreira antes de projetar-se e cair na estrada com um clangor de metais e um chiar dos pneus.

   Craig usou as últimas forças e determinação para correr até o barranco em que o Land-Rover desaparecera. Três metros abaixo, o carro encontrava-se miraculosamente intacto, e Tungata, machucado e com a boca sangrando de uma pancada no volante, lutava para controlá-lo.

   Craig não hesitou, atirou-se do barranco e a queda cortou-lhe a respiração. O carro estava acelerando e agarrou-se precariamente à traseira. Sentiu as costelas estalarem, e a visão foi toldada por instantes - conseguiu agarrar o aparelho de rádio e com um esforço tremendo segurou-se. Ficou pendurado na traseira, com os pés balançando.

   Percebeu que a velocidade aumentava e ouviu Sally-Anne chorando. Aquele som deu-lhe coragem e a visão clareou no mesmo momento.

   Atrás, o caminhão militar manobrava junto à barreira, pronto para iniciar a perseguição e, à frente, surgia velozmente o cruzamento da entrada principal enquanto o Land-Rover atingia o máximo de sua velocidade.

   Craig preparou-se para a curva, mesmo assim, ao chegarem lá, seus braços quase foram arrancados dos ombros quando Tungata virou à esquerda sobre duas rodas, tomando a direção norte. A fronteira do Zambeze ficava cento e cinqüenta quilômetros adiante. A estrada descia pela grande escarpa, e não havia naquele trecho deserto, infestado de moscas tsé-tsé e castigado pelo calor, qualquer vestígio de ocupação humana antes do posto de fronteira e da ponte sobre o rio em Chirundu. Com um refém, havia possibilidade de cruzá-los. Tungata poderia conseguir, ou matar a todos na tentativa.

   Centímetro a centímetro, foi arrastando-se para dentro do Land- Rover. Sally-Anne estava agachada no fundo do carro; a cabeça balançava de um lado para o outro ao sabor das oscilações e batidas e Tungata parecia alto e espadaúdo a seu lado. Soltou uma das mãos, segurou no banco e tentou içar-se para dentro. Imediatamente, o Land-Rover oscilou violentamente e Craig viu o olhar de Tungata pelo espelho retrovisor. Estivera aguardando a oportunidade, para desequilibrá-lo e jogá-lo no chão.

   A força centrífuga jogou Craig para o lado do carro. Estava seguro apenas com a mão esquerda e os músculos e tendões pareciam romper-se com o esforço de agüentar todo o peso do corpo. Gemeu quando a dor estendeu-se do braço para o peito, mas não soltou-se.

   Tungata fez o carro oscilar novamente, passando com as rodas no acostamento da estrada, e Craig viu o barranco aproximar-se perigosamente. Estava tentando arrancá-lo de lá, fazê-lo em pedaços comprimindo-o entre as rochas e o metal. Craig gritou agoniado com o esforço de dobrar as pernas; houve um ruído de metal e pedra quando o carro roçou novamente pelo barranco, uma onda de dor invadiu-o até os quadris, e sentiu as correias de couro rebentarem quando a perna foi arrancada. Se fosse de carne e osso, teria sido mortalmente ferido. Em vez disso, usou o impulso que lhe deu o Land-Rover ao retomar a estrada, e rolou para o assento traseiro, passando o braço livre em torno do pescoço de Tungata.

Começou a estrangulá-lo. Sentiu a laringe de Tungata ceder sob a pressão e o estalar das vértebras, como um galho seco a ponto de partir-se. Queria matá-lo, arrancar-lhe a cabeça, mas não tinha forças para a pressão necessária.

   Tungata tirou as mãos do volante, segurando o pulso e o cotovelo de Craig, fazendo um som cavo e gutural. O carro desgovernou-se, saiu fora da estrada e despencou encosta abaixo, em meio ao ruído do metal sendo dilacerado.

   Craig soltou-se e foi atirado longe. Caiu no solo arenoso e duro, girou, e lá ficou estatelado, com os ouvidos zumbindo e o corpo machucado e indefeso, até reunir forças e ajoelhar-se.

   O Land-Rover jazia de rodas para o ar, com os faróis ainda acesos, e em seu foco, a trinta passos barranco abaixo, estava Sally- Anne. Parecia uma garotinha adormecida, com os olhos fechados e a boca relaxada, os lábios muito vermelhos em contraste com a extrema palidez; mas um filete escuro de sangue escorria-lhe pela testa.

   Começou a arrastar-se para lá, quando outro vulto apareceu de repente vindo da escuridão, um vulto grande, escuro e corpulento. Tungata vinha tropeçando, visivelmente estonteado, e segurando a garganta pisada. Ao avistar Craig, ficou louco de ódio e dor, arremessou-se sobre ele. Mesmo tonto, jogou-o ao chão.

   Haviam lutado muitas vezes, como amigos, em outra época, mas esquecera a força brutal de Tungata. Os músculos eram tão rijos, elásticos e negros como os pneus de um caminhão.

   Ao cair, Craig agarrou-o e, apesar da própria força, Tungata não conseguiu livrar-se. Tombaram ambos e Craig usou o coto de perna, durante a queda, para atingi-lo no baixo-ventre.

   Tungata soltou um grito e perdeu as forças. Aproveitando a situação, Craig rolou para o lado, apoiou-se nos ombros e braços e golpeou-o novamente, agora com a perna sã. Atingiu Tungata bem no meio do peito, em cima do coração.

   Tungata tombou de costas, imóvel. Craig arrastou-se até ele e agarrou a garganta desprotegida. Sentiu o feixe de músculos que cercava a cartilagem rija da tiróide e apoiou os polegares, mas, quando sentiu a vida que pulsava em suas mãos, a raiva desapareceu - descobriu que não podia matá-lo. Soltou-o e afastou-se, tremendo e arfando.

   Deixou Tungata caído na terra rochosa e arrastou-se até onde estava Sally-Anne. Sentou-se, colocou-a no colo e ficou acariciando-lhe a cabeça, desolado com o aspecto inerte e sem vida do corpo, limpando o filete de sangue antes que chegasse aos olhos.

   Acima deles, na estrada, um caminhão parou com uma freada estridente e homens armados desceram em bandos pelo declive, gritando como uma matilha de cães de caça. Sally-Anne, aninhada em seus braços como uma criança, mexeu-se e murmurou algo.

   Estava viva, ainda vivia, e ele sussurrou-lhe:

   - Querida, oh, minha querida, como eu amo você!

 

   SALLY-ANNE tinha quatro costelas fraturadas, o tornozelo direito com uma séria entorse e o pescoço inchado e roxo da pancada que levara. Mas o corte no couro cabeludo era superficial e as radiografias não mostravam qualquer lesão no crânio. Apesar disso, foi mantida em observação no quarto particular que Peter Fungabera lhe conseguira no superlotado hospital público.

   Foi ali que Abel Khori, o promotor designado para o caso de Tungata Zebiwe, foi entrevistá-los. O sr. Khori era um shona de aspecto distinto que trabalhara no foro de Londres e ainda exibia as roupas de bom-tom em Lincoln's Inn Fields assim como uma queda por eruditas, se bem que irrelevantes, citações latinas.

   - Estou aqui em caráter pessoal para esclarecer certos detalhes da declaração que já fizeram à polícia, pois seria extremamente impróprio se eu quisesse influenciar de alguma maneira o testemunho que vão prestar - explicou-lhes.

   Mostrou a Craig e Sally-Anne relatórios sobre as manifestações espontâneas matabele pela libertação de Tungata que tinham sido prontamente debeladas pela polícia e por unidades da Terceira Brigada, e relegadas pelo redator shona do Herald para as páginas do meio.

   - Precisamos ter em mente que este homem é, ipso jure, acusado de um ato criminoso e não devemos permitir que se transforme em um mártir tribal. Creio que compreendem o perigo. Quanto mais cedo resolvermos esse problema mutatis mutandi, melhor para todos.

   Craig e Sally-Anne ficaram, primeiro, atônitos e, depois, pouco à vontade com o despacho que fixava a data na qual Tungata Zebiwe iria a julgamento. Apesar de haver processos acumulados por sete meses, o caso iria à Corte Suprema em dez dias.

   - Não podemos nudis verbis manter um homem desta envergadura na prisão por sete meses - explicou o promotor. - Estabelecer-lhe uma fiança e permitir que fique livre para insuflar seus seguidores seria uma loucura suicida.

   Além do julgamento, havia outros problemas menores a preocupá-los. O Cessna devia ir para a checagem de mil horas de vôo e a renovação do "certificado de segurança". Não havia condições para fazer isso em Zimbábue e tiveram de providenciar um piloto para levar o aparelho até Joanesburgo.

   - Vou me sentir como um pássaro de asas cortadas - ela queixou-se.

   - Conheço essa sensação. - Craig sorriu, malicioso, e bateu com a muleta no chão.

   - Meu Deus, sinto muito, Craig.

   - Ora, não fique assim. Já não me importo de falar sobre isso, não com você, pelo menos.

   - E quando vai chegar de volta?

   - Morgan Oxford mandou-a pela mala diplomática e Henry Pickering prometeu apressar os técnicos do Hospital Ortopédico de Hopkins. Acho que vou tê-la de volta para o julgamento.

   O julgamento. Tudo parecia refluir para ele, e até mesmo a administração de King's Lynn e os preparativos finais para a inauguração dos alojamentos do Águas do Zambeze não conseguiam arrancar Craig do lado de Sally-Anne e das providências para o inquérito. Era um homem de sorte por ter Hans Groenewald em King's Lynn; e Peter Younghusband, o jovem gerente e guia que Sally- Anne escolhera, havia chegado para assumir a administração do Águas do Zambeze. Apesar de comunicar-se diariamente com eles por telefone ou pelo rádio, Craig ficou em Harare perto de Sally- Anne.

   A perna chegou um dia antes da alta do hospital, e ele puxou a bainha da calça para mostrá-la.

   - Consertada, lubrificada e completamente recondicionada - gabou-se. - E a sua cabeça, como vai?

   - Da mesma maneira que sua perna - ela riu. - Embora o médico tenha me recomendado tirar as próximas semanas de folga e prevenido para voltar gradualmente às atividades normais.

   Ela usava uma bengala por causa do tornozelo e o tórax ainda estava enfaixado quando carregou sua maleta até o Land-Rover na manhã seguinte.

   - As costelas ainda doem? - Ele a vira fazer uma careta ao entrar no carro.

   - Se ninguém as espremer, acho que agüento.

   - Nada de espremê-las, é essa a regra?

   - Acho... - e fez uma pausa para olhá-lo por um momento, antes de abaixar as pálpebras e murmurar recatadamente - que as regras são para os tolos e servem de guia aos sábios.

   E Craig sentiu-se reconfortado ante aquela observação.

 

   O SEGUNDO Tribunal da Divisão de Mashonaland da Suprema Corte da República do Zimbábue mantinha ainda todas as parafernálias da justiça britânica.

   O estrado elevado, com o escudo de armas de Zimbábue sobre a cadeira do juiz, dominava a sala; diante dele ficavam as fileiras de bancos de carvalho, com os estrados das testemunhas e do acusado de cada lado. Os promotores, assessores e advogados encarregados da defesa vestiam longas túnicas negras, enquanto a do juiz era de um esplêndido escarlate. Mudara apenas a cor dos rostos, com a negritude acentuada pelos cachos imaculadamente brancos das perucas e dos colarinhos em ponta engomados.

   O tribunal estava repleto e, quando os assentos dos espectadores ficaram lotados, os meirinhos fecharam as portas, deixando uma multidão do lado de fora, nos corredores, disciplinada e séria. Quase todos matabele que haviam feito a longa viagem de ônibus de Matabeleland, cruzando o país, e muitos com as insígnias do partido ZAPU. Apenas quando o acusado foi trazido à tribuna houve uma certa agitação e murmúrios; no fundo do tribunal uma negra vestida com as cores do ZAPU gritou teatralmente: "Bayete, Nkosi Nkulu!", e fez a saudação do punho cerrado.

   Os guardas a retiraram imediatamente do recinto e Tungata zebiwe ficou de pé, observando impassível, diminuindo com a simples presença qualquer outra pessoa na sala. Até o juiz Domashawa, um mashona alto e emaciado, com um delicado e pouco característico nariz egípcio e olhos pequenos e brilhantes como os de um pássaro, apesar de ataviado com toda a autoridade das vestes escarlates, parecia comum em comparação. Entretanto, tinha uma reputação temível e o promotor rejubilara-se com a escolha ao falar com Craig e Sally-Anne.

   - Ah, ele é realmente persona grata e agora é in grêmio legis; não temam, pois a justiça será feita.

   Quando o país ainda chamava-se Rodésia, o sistema britânico de jurados fora abandonado. O juiz dava o veredito com a assistência de dois assessores em túnicas negras que o ladeavam no estrado. Mas esses assessores, no caso, eram shona: um era especialista na preservação de vida silvestre, e o outro, magistrado qualificado. O juiz se valeria de suas opiniões especializadas se assim o desejasse, mas o veredito final era exclusivamente seu.

   Ajeitou a túnica como faz uma avestruz com as plumas ao ajeitar-se no ninho e olhou para Tungata Zebiwe, enquanto o funcionário da corte lia o texto da acusação em inglês.

   Havia oito acusações principais: comerciar e exportar produtos de animais silvestres protegidos por lei, seqüestro e prisão de um refém, agressão a mão armada, agressão com intenção de provocar graves danos corporais, tentativa de assassinato, resistência à prisão, roubo de um veículo e danos deliberados à propriedade do Estado. Havia também doze acusações secundárias.

- Meu Deus - sussurrou Craig para Sally-Anne. - Estão fazendo uma bateria cerrada contra ele.

- Munição da pesada - ela concordou. - Bravos para eles, gostaria de ver este canalha pendurado numa corda.

- Sinto muito, querida, mas nenhuma dessas acusações recebem pena capital.

E, no entanto, em todo o decorrer do discurso de abertura da acusação, Craig sentia-se esmagado por um sentimento quase de tragédia, como se uma figura heróica estivesse sendo cercada e degradada por homens menores e menos dignos.

Apesar desses sentimentos, Craig achava que Abel Khori estava saindo-se bem da tarefa de colocar o caso no discurso de abertura, e até não se excedendo nas citações latinas. O primeiro de uma longa lista de testemunhas de acusação era o general Peter Fungabera. Resplandecente dentro do uniforme completo, prestou juramento e permaneceu ereto e marcial com o bastão em uma das mãos. Seu depoimento foi dado sem equívocos, tão direto e impressionante que o juiz volta e meia balançava a cabeça em aprovação e tomava notas.

O Comitê Central do partido ZAPU contratara um advogado de Londres para a defesa, mas mesmo o dr. Joseph Petal, QC, não conseguiu abalar o general, compreendendo logo a futilidade do esforço e retirando-se para aguardar presas mais fáceis.

A testemunha seguinte era o chofer do caminhão que transportara o contrabando, um ex-guerrilheiro do ZIPRA, recentemente libertado de um dos centros de reabilitação. O depoimento foi feito em dialeto e traduzido para o inglês pelo intérprete do tribunal.

- Conhecia o acusado antes da noite em que foi preso? - perguntou Abel Khori, depois de estabelecer sua identidade.

- Sim. Estive com ele em combate.

- Encontrou-se com ele em alguma ocasião depois da guerra?

- Sim.

- Queira dizer à corte quando isso aconteceu.

- Foi no ano passado, durante a estação da seca.

- Antes de ser mandado para o centro de reabilitação?

- Sim, antes disso.

- Onde encontrou-se com o ministro Tungata Zebiwe?

- No vale perto do grande rio.

- Pode contar à corte como transcorreu aquele encontro?

- Estávamos caçando elefantes para tirar o marfim.

- Como os caçavam?

- Usávamos uma tribo, os Batonka, e também um helicóptero, para encurralá-los em um velho campo minado.

- Faço objeção a essa maneira de interrogar, meritíssimo - disse o dr. Petal, QC. - Isto nada tem a ver com as acusações.

- Refere-se à primeira delas - insistiu Abel Khori.

- Objeção indeferida, dr. Petal. Por favor, continue, senhor promotor.

- Quantos elefantes mataram?

- Muitos elefantes.

- Pode nos dizer quantos?

- Talvez uns duzentos, não tenho certeza.

- E declara que o ministro Tungata estava lá?

- Ele chegou depois da matança. Veio contar o marfim e levá- lo de helicóptero.

- Que helicóptero?

- Um helicóptero do governo.

- Faço objeção, meritíssimo, essa informação é irrelevante.

- Objeção negada, dr. Petal. Por favor, prossiga.

Quando chegou sua vez de interrogar, o dr. Joseph Petal partiu imediatamente para o ataque.

- Afirmo que o senhor nunca foi um membro das guerrilhas do ministro Tungata Zebiwe. E que nunca, na verdade, viu o ministro até aquela noite na estrada de Karoi.

- Faço objeção, meritíssimo senhor juiz - gritou Abel Khori, indignado. - A defesa está tentando desacreditar a testemunha já que sabe que não existem registros dos soldados e que ela não pode, portanto, provar sua brava participação na guerra.

- Objeção aceita. Dr. Petal, limite-se a perguntar sobre a presente questão e não amedronte a testemunha.

- Muito bem, meritíssimo. - O dr. Petal corou de frustração ao recomeçar o interrogatório. - Queira dizer à corte quando foi solto do centro de reabilitação.

- Esqueci, não consigo me lembrar.

Foi há muito tempo ou pouco tempo antes de sua prisão?

Há pouco tempo - respondeu a testemunha de má vontade, olhando as mãos sobre o regaço.

Não é verdade que foi solto do campo de prisioneiros com a condição de que guiasse aquele caminhão naquela noite e que concordaria em prestar um depoimento contrário?

Meritíssimo! - protestou Abel Khori, e a voz do juiz ao responder era também irritada.

Dr. Petal, está proibido de referir-se aos centros de reabilitação como campos de prisioneiros.

- Como quiser, meritíssimo. - E o dr. Petal continuou: - Fizeram-lhe alguma promessa quando foi libertado do centro de reabilitação?

- Não. - A testemunha olhou à volta com ar infeliz.

- Recebeu no campo a visita do capitão Timon Nbebi, da Terceira Brigada, três dias antes de ser libertado?

- Não.

- Recebeu alguma visita no campo?

- Não, não!

- Nenhuma visita, está seguro disto?

- A testemunha já respondeu a essa pergunta - interveio o juiz, e o dr. Petal suspirou teatralmente, levantando as mãos num gesto de desânimo.

- Não tenho mais perguntas, meritíssimo.

- Pretende chamar mais alguma testemunha, dr. Khori?

Craig sabia que a testemunha seguinte deveria ser o capitão Timon Nbebi, mas Abel Khori, surpreendentemente, ignorou-o e chamou o soldado que fora derrubado pelo Land-Rover. Sentiu um certo mal-estar e dúvida com a mudança de tática da acusação. O promotor queria proteger Nbebi do interrogatório da defesa e evitar que o dr. Petal prosseguisse com a questão de uma visita ao centro de reabilitação? Se era assim, as implicações eram inimagináveis, e forçou-se a colocar as dúvidas de lado.

A necessidade de traduzir todas as perguntas e respostas tornava o processo arrastado e monótono, e foi só no terceiro dia que Craig foi chamado a testemunhar.

   DEPOIS DE TER prestado juramento, e antes que Abel Khori começasse a interrogá-lo, olhou em direção ao estrado do acusado. Tungata Zebiwe observava-o atentamente e, quando os olhares se cruzaram, fez-lhe um sinal com a mão direita.

   Nos velhos tempos, quando trabalhavam como guarda-caças, Craig e Tungata tinham desenvolvido um sistema de sinais. Durante a perigosa tarefa de aproximar-se de uma manada para selecionar e matar os animais que superpovoavam as reservas ou quando cercavam um bando de leões matadores de gado, comunicavam-se silenciosa e rapidamente com essa linguagem privada.

   E agora, Tungata fazia-lhe o sinal do punho fechado, com os dedos poderosos sobre a palma rosada da mão que significava: "Cuidado! Perigo extremo".

   A última vez em que Tungata lhe fizera aquele sinal, tivera apenas uns poucos segundos para virar-se e enfrentar uma leoa ferida que saíra do esconderijo na mata, sangrando, e atirou-se sobre ele com tanto ímpeto que, apesar de ter-lhe acertado o coração com uma bala do Magnum 458, o impulso o jogara ao chão.

   E, naquele momento, o sinal deixou-o nervoso com a lembrança do perigo passado e presente. Seria uma ameaça ou um aviso, imaginou Craig, olhando-o. Não podia ter certeza, pois Tungata estava novamente impassível e imóvel. Fez-lhe o sinal para "Dúvida. Não compreendo", mas o outro o ignorou e ele viu de repente que não escutara a primeira pergunta de Khori.

   - Desculpe, pode repetir, por favor?

   E Abel Khori foi rapidamente conduzindo o interrogatório.

   - Viu se o chofer do caminhão fez algum sinal quando o Mercedes se aproximou?

   - Sim, acendeu e apagou os faróis.

   - E qual foi a resposta?

   - O Mercedes parou e dois homens saltaram e foram falar com ele.

   - Em sua opinião, era um encontro previamente marcado?

   - Objeção, meritíssimo. A testemunha não pode responder a isso.

   - Objeção aceita. A testemunha não deve levar a pergunta em consideração.

   - Chegamos agora à questão de seu valente resgate da srta. Jav das garras perversas do acusado.

Objeção à palavra perversa.

Recomendo ao promotor que não empregue o adjetivo em questão.

Como quiser, meritíssimo.

Depois daquele sinal e durante o depoimento de Craig, Tungata Zebiwe ficou sentado, o queixo apoiado no peito, impassível como uma figura esculpida em granito, mas os olhos não se despregavam dele.

Quando o dr. Petal levantou-se para interrogá-lo, moveu-se pela primeira vez, inclinando-se para murmurar-lhe algumas palavras tensas e o advogado pareceu protestar, mas Tungata fez-lhe um gesto imperioso.

Não há perguntas, senhor juiz - disse o dr. Petal e sentou-se, liberando Craig do embaraço.

Sally-Anne foi a última testemunha de acusação e, depois de Peter Fungabera, talvez a mais acusatória.

Ainda mancava por causa da entorse no tornozelo e Abel Khori apressou-se em ajudá-la a subir no estrado das testemunhas. A mancha escura no pescoço era o único ferimento visível e prestou depoimento sem hesitação, numa voz clara e agradável.

- Quando o acusado a seqüestrou, qual foi a sua reação?

- Temi pela minha vida.

- A senhora declarou que o acusado lhe bateu. Onde foi atingida?

- Aqui no pescoço. Pode ver a marca.

- Diga à corte por favor que outros ferimentos sofreu.

- Fiquei com quatro costelas fraturadas e torci o tornozelo.

Abel Khori tirou o maior partido de uma testemunha tão simpática, e, sabiamente, o dr. Petal não lhe fez qualquer pergunta. A promotoria encerrou o seu caso na noite do terceiro dia, deixando Craig perturbado e deprimido.

Ele e Sally-Anne foram comer na sua steakhouse favorita, mas nem a garrafa de bom vinho do Cabo conseguiu animá-lo.

- Aquela história sobre o chofer nunca ter visto Tungata antes na vida, e ser libertado com a promessa de dirigir o caminhão...

- Você não acreditou nisso, não é? - traçou Sally-Anne. - Até o juiz não fez segredo de como achava isso completamente improvável.

Depois de levá-la até o apartamento, Craig foi caminhar sozinho pelas ruas desertas, sentindo-se solitário e traído, apesar de não encontrar uma razão lógica para isso.

 

O DR. JOSEPH PETAL, QC, abriu a defesa chamando para depor o chofer de Tungata.

Era um matabele corpulento apesar de jovem, já mais para gordo, com uma cara redonda que deveria ser jovial e sorridente, mas estava naquele momento carrancuda e preocupada. A cabeça fora raspada recentemente e nunca olhou para Tungata durante o depoimento.

- Na noite em que foi preso, que ordens recebeu do ministro Tungata?

- Nenhuma. Não recebi nenhuma ordem.

O dr. Petal ficou realmente intrigado e consultou as anotações.

- Não lhe disse para onde iam? Não sabia para onde estavam indo?

- Ele dizia, "Vá direto em frente", "dobre à esquerda aqui", "vire à direita lá" - murmurou o chofer.

Era óbvio que o dr. Petal não esperava uma resposta dessas.

- O ministro Tungata não lhe deu ordens de dirigir-se para a missão Tuti?

- Objeção, meritíssimo.

- Não conduza a testemunha, dr. Petal.

O advogado estava visivelmente perplexo. Mexeu nos papéis, olhou para Tungata Zebiwe, que estava completamente impassível, e resolveu mudar a orientação das perguntas.

- Desde a noite em que foi preso, onde esteve?

- Na prisão.

- Foi visitado por alguém lá?

- Por minha mulher.

- Mais ninguém?

- Não. - O chofer abanou a cabeça em defensiva.

- Que marcas são essas em sua cabeça? O senhor foi espancado?

Pela primeira vez, Craig notou os calombos escuros na cabeça raspada.

Meritíssimo, preciso fazer objeção a isso - gritou Abel Khori em tom lamentoso.

j)r Petal, qual é o objetivo destas perguntas? - perguntou o juiz Domashawa em tom ameaçador.

Estou tentando descobrir por que o depoimento da testemunha contradiz o depoimento que fez à polícia, meritíssimo.

O dr. Petal lutou para obter uma resposta clara da testemunha hostil e nada cooperativa, e finalmente desistiu com um gesto resignado.

Não tenho mais perguntas. - E Abel Khori levantou-se para interrogá-lo.

- O caminhão piscou as luzes para vocês?

- Sim.

- E o que aconteceu?

- Não compreendo.

- Alguém no Mercedes disse ou fez algo quando viram o caminhão?

- Objeção... - começou o dr. Petal.

- Acho que a pergunta é válida. A testemunha deve responder - interrompeu-o o juiz.

O chofer franziu as sobrancelhas no esforço de lembrar-se e resmungou:

- O camarada ministro Zebiwe disse: "Lá está ele, vá para perto dele e pare".

- Aí está! - E Abel Khori repetiu lenta e claramente: - "Vá para perto dele e pare". Foi isto que o acusado disse ao ver o caminhão, não é exato?

- Sim, foi o que ele disse.

- Não tenho mais perguntas, meritíssimo.

- CHAMEM Sarah Tandiwe Nyoni.

O dr. Petal introduziu sua testemunha-surpresa e Abel Khori ficou com uma expressão preocupada, conferenciando agitadamente com os dois assistentes. Um deles levantou-se, fez uma mesura para o estrado do juiz e retirou-se apressado.

Sarah Tandiwe Nyoni subiu ao estrado das testemunhas e prestou juramento em um inglês perfeito. A voz era melodiosa e doce, os modos, tão recatados e tímidos quanto no dia em que Craig e Sally-Anne a viram pela primeira vez na Missão. Vestia um traje de algodão verde-lima com gola branca e sapatos brancos de salto baixo. O cabelo estava trançado à maneira tradicional e, no instante em que acabou de prestar juramento, olhou para Tungata Zebiwe no estrado. Tungata não sorriu ou mudou de expressão, mas a mão direita sobre a grade moveu-se ligeiramente e Craig viu que estava usando a linguagem secreta de sinais com a moça.

"Coragem!", dizia ele, "estou com você", e a moça encheu-se visivelmente de força e confiança. Levantou o queixo e enfrentou o dr. Petal.

- Diga o seu nome, por favor.

- Sou Sarah Tandiwe Nyoni - respondeu.

- Tandiwe Nyoni é um nome matabele e quer dizer "Amado Pássaro" - explicou Craig, baixinho, para Sally-Anne.

- É perfeito para ela - sussurrou-lhe em resposta.

- Qual é a sua profissão?

- Sou diretora da escola primária do Estado de Tu ti.

- Queira dizer à corte suas qualificações.

Joseph Petal estabeleceu rapidamente que era uma jovem educada e responsável, e depois continuou:

- Conhece o acusado, Tungata Zebiwe?

Olhou para Tungata antes de responder e o rosto pareceu iluminar-se.

- Conheço, sim, eu o conheço - disse em voz rouca.

- Por favor, fale mais alto.

- Eu o conheço.

- Alguma vez ele a visitou na Missão Tuti?

- Sim.

- Quantas vezes?

- O camarada ministro é um homem importante e muito ocupado, e eu sou uma professora...

Tungata fez-lhe um pequeno gesto de negação com a mão direita, ela viu e deu um pequeno sorriso com os lábios de linhas perfeitas.

- Vinha ver-me sempre que podia, mas não tantas vezes quanto eu gostaria.

- Esperava-o na noite em questão?

- Sim.

- Por quê?

Falamos por telefone de manhã, e ele me prometeu que viria.

Disse que ia de carro e chegaria antes da meia-noite. - O sorriso desapareceu-lhe dos lábios e os olhos ficaram grandes e desolados. Eu o esperei até o amanhecer, mas não chegou.

Ao que sabe, ele tinha alguma razão particular para visitá-la naquele fim de semana?

Sim. - E as faces de Sarah escureceram, para fascínio de Sally-Anne que nunca vira uma jovem negra corar antes. - Sim, ele disse que desejava falar com meu pai e eu providenciei o encontro.

- Obrigado, senhorita - disse Joseph Petal gentilmente.

Durante a inquirição, o assistente voltara à sala e passara a Abel Khori algumas anotações, e ele as segurava ao levantar-se para o interrogatório.

- Senhorita Nyoni, pode dizer à corte o que significa a palavra sindebele isifebi?

Tungata Zebiwe resmungou e começou a levantar-se, mas o policial colocou-lhe a mão no ombro para forçá-lo a sentar-se.

- Significa uma prostituta - respondeu Sarah em voz baixa.

- Não significa também uma mulher solteira que vive com um homem?

- Meritíssimo! - O protesto de Joseph Petal era um pouco tardio, mas ultrajado, e o juiz Domashawa o aceitou.

- Senhorita Nyoni - tentou Abel Khori de novo -, está apaixonada pelo acusado? Por favor, fale mais alto. Não conseguimos ouvi-la.

Daquela vez, a voz de Sarah era firme, quase desafiadora.

- Sim.

- Faria qualquer coisa por ele?

- Sim.

- Mentiria para salvá-lo?

- Objeção, meritíssimo. - E Joseph Petal levantou-se de um salto.

- Eu retiro a pergunta. - Abel Khori antecipou-se à intervenção do juiz. - Deixe-me colocar a questão de outra maneira, senhorita Nyoni; o acusado lhe pedira que providenciasse um esconderijo em sua escola para estocar marfim e peles de leopardo ilegais!

- Não - disse Sarah. - Ele nunca faria isso.

- E lhe pedira para supervisionar o carregamento destas presas em um caminhão para ser despachado.

- Não! Não! - ela gritou.

- Quando falou com ele por telefone, não ordenou-lhe que preparasse um carregamento?

- Não! Ele é um homem bom - soluçou Sarah. - Um grande homem. Nunca teria feito uma coisa dessas.

- Não tenho mais perguntas, meritíssimo. - Parecendo muito satisfeito consigo mesmo, Abel Khori sentou e o assistente inclinou-se para sussurrar-lhe parabéns.

- Chamo o acusado, ministro Tungata Zebiwe, para depor.

Era uma manobra arriscada do dr. Petal. Mesmo como leigo, Craig podia ver que Abel Khori mostrara ser um osso duro de roer.

Joseph Petal começou por esclarecer a posição de Tungata na comunidade, os serviços que prestara à revolução e o estilo de vida frugal que levava.

- Possui alguma propriedade?

- Tenho uma casa em Harare.

- Diga à corte quanto pagou por ela.

- Quatorze mil dólares.

- Isso não é muito para se pagar por uma casa, é?

- Não é uma grande casa. - A resposta de Tungata foi incisiva, e até o juiz sorriu.

- Tem um carro?

- Tenho um carro do ministério à minha disposição.

- Possui contas bancárias no exterior?

- Não.

- Esposas?

- Não - e deu uma olhada na direção de Sarah Nyoni sentada na platéia, completando -, ainda.

- Concubinas? Outras mulheres?

- Minha velha tia mora comigo. Toma conta de minha casa.

- Chegando agora à noite em questão. Pode dizer à corte por que estava na estrada de Karoi?

- Estava a caminho da Missão Tuti.

- Por qual razão?

- Para visitar a senhorita Nyoni, e falar com o pai dela sobre um assunto particular.

- Essa visita fora combinada?

Sim, através de um telefonema para a senhorita Nyoni.

já a visitara antes, em mais de uma ocasião?

Precisamente.

Que acomodações usava nestas ocasiões?

Havia um idlu com teto de palha colocado à minha disposição.

Uma cabana? Com uma esteira e uma fogueira?

- Sim.

Não achava estas acomodações pouco adequadas para o senhor?

Ao contrário, gosto da oportunidade de voltar aos hábitos tradicionais do meu povo.

- Alguém repartia com o senhor estas acomodações?

- Meu chofer e os seguranças.

- A senhorita Nyoni visitava-o lá?

- Isso teria sido contrário aos nossos costumes e nossa lei tribal.

- O promotor usou a palavra isifebi, o que acha que quis dizer com isso?

- Poderia aplicá-la apropriadamente a mulheres de seu conhecimento. Quanto a mim, não conheço nenhuma a que se aplique.

O juiz sorriu novamente e o assistente do promotor cutucou-o, brincalhão.

- Agora, senhor ministro, alguém mais sabia de sua intenção em visitar a Missão Tuti?

- Não fiz segredo nenhum sobre isso. Eu o escrevi na minha agenda.

- Tem esta agenda com o senhor?

- Não. Pedi à minha secretária que a entregasse à defesa, mas ela desapareceu de minha escrivaninha.

- Compreendo. Quando ordenou ao chofer para que preparasse o carro, disse-lhe para onde ia?

- Sim.

- Ele declara que não.

- Então, sua memória está falhando... ou foi afetada. - Tungata deu de ombros.

- Muito bem. Agora, na noite em que estavam viajando entre Karoi e a Missão Tuti, encontraram algum outro carro?

- Sim. Havia um caminhão parado fora da estrada, no escuro, voltado para nós.

- Queira descrever à corte o que aconteceu.

- O chofer do caminhão piscou as luzes três vezes e, ao mesmo tempo, voltou para a estrada.

- De maneira a obrigá-los a parar?

- Sim.

- O que fez então?

- Disse ao meu chofer: "Pare, mas seja cauteloso. Isto pode ser uma emboscada".

- Não esperava encontrar o caminhão?

- Não.

- Disse-lhe: "Lá está ele! Pare"?

- Não disse tal coisa.

- O que quis dizer com as palavras: "Isso pode ser uma emboscada"?

- Recentemente, muitos veículos foram atacados por bandidos armados, por shufta, especialmente em estradas desertas à noite.

- O que achou que seria?

- Esperava problemas.

- E o que aconteceu então?

- Dois dos meus seguranças saltaram do carro e foram falar com o chofer do caminhão.

- De onde estava, no Mercedes, podia vê-lo?

- Sim. Era um completo estranho para mim. Nunca o vira antes na vida.

- Qual a sua reação a tudo isso?

- Estava muito alerta.

- E o que aconteceu?

- De repente, apareceram outros faróis, na estrada por trás de nós. Uma voz falando com um megafone ordenou a meus homens que se rendessem e soltassem as armas. Meu Mercedes estava cercado de homens armados e fui arrastado à força para fora.

- Reconheceu algum desses homens?

- Sim. Quando me arrancaram do carro, reconheci o general Fungabera.

- Isso afastou suas suspeitas?

- Ao contrário, fiquei convencido de que corria um perigo mortal.

- Por quê, senhor ministro?

O general Fungabera comanda uma brigada notória pelos atos de violência cometidos contra matabele influentes.

Objeção, meritíssimo, a Terceira Brigada é uma unidade regular do Exército, e o general Fungabera é um oficial conhecido e respeitado! - gritou Abel Khori.

A promotoria tem razão em sua objeção. - O juiz estava de repente tremendo de raiva. - Não posso permitir que o acusado use esta corte para atacar um soldado proeminente e os seus bravos homens. Não posso permitir que o acusado esteja diante de mim para disseminar ódios e preconceitos tribais. Esteja prevenido de que não hesitarei em acusá-lo de desrespeito grosseiro à corte se persistir nisso.

Joseph Petal deixou passarem trinta segundos para que a testemunha se recuperasse dessa invectiva.

- Declarou que achava que sua vida corria perigo?

- Sim - disse Tungata em voz calma.

- Estava sob grande tensão?

- Sim.

- Qual foi sua reação?

- Achei que iriam, de alguma forma, não sabia bem como, tentar incriminar-me e que isso seria usado como pretexto para me matar.

- Objeção, meritíssimo - aparteou Abel Khori.

- Não vou mais prevenir o réu - prometeu ameaçadoramente o juiz Domashawa.

- O que aconteceu então?

- A senhorita Jay saiu do carro onde estava e aproximou-se de mim. Os soldados estavam distraídos e eu a agarrei para impedir que atirassem em mim e tentei escapar com um Land-Rover.

- Muito obrigado, senhor ministro. - O dr. Joseph Petal virou-se para o juiz. - Meritíssimo, meu cliente teve um interrogatório cansativo. Posso sugerir que a corte entre em recesso até amanhã de manhã para permitir-lhe descansar um pouco?

Abel Khori levantou-se imediatamente, louco por um pouco de sangue.

- Ainda não é nem meio-dia, o acusado prestou depoimento por menos de trinta minutos, e seu advogado tratou-o recte et suaviter. Para um soldado treinado e resistente, isso de per se não passa de uma bagatela. - Abel Khori, excitado, recaíra no latinório.

- Vamos continuar, dr. Petal - determinou o juiz e Joseph Petal encolheu os ombros. - Sua testemunha, dr. Khori.

Abel Khori estava em seu elemento, tornando-se lírico e poético.

- O senhor declarou que temia por sua vida, mas eu afirmo que estava dominado pela culpa, que tinha um terror mortal do castigo, que estava aterrado pela perspectiva de enfrentar a punição dada por esta corte do povo, de enfrentar a ira daquela figura douta e justa em vestes escarlates que está à sua frente.

- Não.

- Que foi apenas a consciência culpada que o levou a uma série de ações hediondas e brutais.

- Não, não é verdade.

- Quando se apoderou da linda senhorita Jay, não usou de força bruta para agredir seu jovem e delicado corpo? Não deu-lhe uma saraivada de pancadas brutais?

- Dei-lhe uma única pancada para evitar que se jogasse do carro a toda velocidade e se ferisse gravemente.

- Não apontou uma arma, isto é, um fuzil militar de combate, que sabia estar carregada, para o general Fungabera?

- Eu o ameacei com o fuzil. É verdade.

- E, em seguida, disparou deliberadamente na parte inferior do corpo, isto é, no abdômen?

- Não atirei em Fungabera. Mirei a arma de modo a não acertá-lo.

- Eu o acuso de tentar matar o general que foi salvo apenas por seus magníficos reflexos.

- Se tivesse tentado matá-lo - disse Tungata com suavidade -, ele estaria morto.

- Quando roubou o Land-Rover, estava consciente de que era uma propriedade do Estado? Apontou o rifle para o sr. Craig Mellow, e só não o assassinou devido à brava intervenção da senhorita Jay? ...

Por uma hora, Abel Khori vituperou a figura impassível no estrado, extraindo-lhe uma série de admissões prejudiciais, e sentou-se finalmente, com ar de galo de rinha vitorioso. Craig achou que o dr. Joseph Petal pagara um alto preço pela pequena vantagem que poderia ter tido colocando o cliente no banco de testemunhas.

Apesar disso, o discurso final do advogado foi habilmente desenvolvido para suscitar simpatia, e explicar e justificar as ações de Tungata Zebiwe naquela noite, sem ferir com isso a suscetibilidade patriótica ou tribal do juiz.

   Q veredito será dado amanhã - anunciou o juiz Domashawa e a corte levantou-se, enquanto os espectadores faziam um zum-zum excitado ao deixarem a sala.

   No jantar, Sally-Anne admitiu:

   Pela primeira vez em toda esta história, senti pena quando Sarah prestou depoimento. É uma criança tão doce.

   Criança? Acho que é um ou dois anos mais velha que você

sorriu Craig -, o que a faz um bebezinho.

   - Ela acredita tão obviamente nele que por alguns momentos até eu comecei a duvidar dos fatos, mas, felizmente, Abel Khori trouxe-me de volta à razão - continuou ela, em tom sério e ignorando a frivolidade.

 

   O JUIZ Domashawa leu a sentença na sua voz de solteirona velha, cujo tom não se adequava à gravidade do assunto. Primeiro, discorreu sobre os acontecimentos que eram objeto da questão entre a promotoria e a defesa, para em seguida continuar:

   - A defesa baseou-se em dois pontos principais. O primeiro é o testemunho da senhorita Sarah Nyoni de que o acusado estava a caminho do que, por falta de melhor qualificativo, somos levados a acreditar que fosse um encontro amoroso e que o encontro com o caminhão tenha sido uma coincidência ou planejado de maneira inexplicada por pessoas desconhecidas. A senhorita Nyoni pareceu a esta corte uma jovem ingênua e de pouca experiência, e que, por sua própria admissão, está completamente sob a influência do acusado. A corte teve, forçosamente, de considerar a postulação da promotoria de que a senhorita Nyoni poderia ter sido, de fato, tão influenciada pelo acusado a ponto de consentir em agir como cúmplice na consignação do contrabando. Em vista do exposto, a corte rejeita o testemunho da senhorita Nyoni como potencialmente prejudicado e não merecedor de confiança. O segundo ponto principal da defesa é a premissa de que a vida do acusado estava ameaçada ou de que ele acreditava que estivesse, pelos oficiais que o prendiam, e, nessa crença, empreendeu uma série de atos desatinados em defesa própria. O general Fungabera é um oficial de reputação impecável, um oficial de alta patente do Estado. A Terceira Brigada é uma unidade de elite das Forças Armadas regulares do país, e seus membros, apesar de serem veteranos endurecidos pelas batalhas, são soldados disciplinados e treinados. A corte, portanto, rejeita a alegação do acusado de que tanto o general Fungabera quanto seus homens pudessem, mesmo remotamente, ter constituído uma ameaça à sua segurança, e muito menos à sua vida. A corte também rejeita a alegação de que o acusado acreditasse ser esse o caso. Assim, chegamos à primeira acusação. Isto é, a de comerciar ou traficar com produtos de animais selvagens protegidos por lei. A corte declara o acusado culpado e o sentencia a doze anos de trabalhos forçados. Da segunda acusação, seqüestrar e manter à força um refém, a corte considera o acusado culpado e o sentencia a dez anos de trabalhos forçados. Agressão com intenção de graves danos corporais: seis anos de trabalhos forçados. Tentativa de assassinato: seis anos de trabalhos forçados. Roubo e danos deliberados à propriedade do Estado: seis anos de trabalhos forçados. Ordeno que essas sentenças sejam cumpridas consecutivamente e que nenhuma delas seja suspensa.

   Até Abel Khori ficou surpreso e levantou abruptamente a cabeça. As penas totalizavam quarenta anos e mesmo com uma redução por bom comportamento, Tungata ainda assim cumpriria trinta, o resto de sua vida útil.

   No fundo da sala, uma negra gritou em sindebele: "Baba! Nosso pai! Estão tirando nosso pai!", e outros começaram a gritar: "Pai do povo! Nosso pai morreu para nós!"

   Um homem começou a cantar alto com voz de barítono:

Por que choram, viúvas de Shangane...

Por que choram, filhinhos das Toupeiras,

Se seus pais cumpriram a vontade do rei?

   Era uma das antigas canções guerreiras dos impis do rei Lobengula, e o cantor era um homem no apogeu da maturidade, com um rosto forte e inteligente e uma barba pontiaguda, salpicada aqui e ali por fios brancos. Enquanto cantava, as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Em outra época, poderia ter sido um induna dos impis reais Os homens à volta começaram a acompanhá-lo e o juiz Domashawa levantou-se furioso.

   Se não fizerem imediatamente silêncio, mando evacuar a sala e serão presos por desrespeito ao tribunal - gritou, tentando se fazer ouvir, mas foram precisos mais cinco minutos até que os guardas restaurassem a ordem.

   Em meio a tudo isso, Tungata Zebiwe estava silencioso, com um leve sorriso irônico nos lábios. Quando por fim tudo acabou, e antes que os guardas o levassem, olhou diretamente para Craig Mellow, do outro lado do tribunal, e fez-lhe um último sinal, antes só usado de brincadeira, talvez depois de uma luta ou competição amigável. Agora, Tungata o usava a sério: "Estamos quites: o escore empatou", e Craig compreendeu-o plenamente. Perdera a perna e Tungata a liberdade. Estavam quites.

   Quis dizer ao homem um dia seu amigo que era uma triste barganha aquela, que não escolhera isso, mas Tungata já lhe dera as costas. Os guardas tentavam tirá-lo do estrado, e ele se debatia, procurando alguém na corte lotada de gente.

   Sarah Nyoni subiu em um banco e estendeu as duas mãos para ele, por cima da multidão, e Tungata fez-lhe um último sinal, claramente compreendido por Craig. "Esconda-se! Você está em perigo."

   Pela expressão alterada do rosto, viu que a moça também compreendera, e logo os guardas já arrastavam Tungata para baixo, pela escada que levava às celas subterrâneas de prisioneiros.

   Craig abriu caminho por entre a multidão matabele que lotava a Suprema Corte e atrapalhava o trânsito da hora do almoço na grande rua defronte. Pegou a mão de Sally-Anne e abriu caminho bruscamente entre os fotógrafos que tentavam bloqueá-los.

   No estacionamento, ajudou Sally-Anne a entrar no Land-Rover, correndo para o volante e ameaçando com o punho o último e mais persistente deles. Foi diretamente para o apartamento dela, e parou sem desligar o motor.

   - E agora? - perguntou Sally-Anne.

   - Não entendi a pergunta - respondeu, mal-humorado.

   - Ei! Sou sua amiga, lembra-se?

   Desculpe. - Deixou-se cair sobre o volante. - Estou me sentindo horrível, simplesmente horrível.

   Ela não respondeu, mas os olhos estavam cheios de compaixão por ele.

- Quarenta anos - sussurrou Craig -, nunca esperei uma coisa dessas. Se ao menos pudesse ter adivinhado...

- Não havia nada que pudesse fazer, nem antes e nem agora, também.

- O pobre filho da mãe... Quarenta anos! - E deu um soco no volante.

- Você vai subir? - ela perguntou suavemente, mas Craig balançou a cabeça.

- Tenho de voltar a King's Lynn. Abandonei tudo por causa desta maldita história.

- Você vai agora? - Ela estava surpresa.

- Sim.

- Sozinho? - perguntou.

- Quero ficar sozinho.

- Para que possa se torturar à vontade? - E a voz dela ficou mais firme. - Pode desistir, se acha que vou aceitar isso. Vou com você. Espere um minuto! Vou só pegar umas coisas; não precisa nem desligar o motor. Já volto.

Demorou cinco minutos e desceu as escadas carregando a mochila e o estojo da câmera que colocou no banco de trás.

- Podemos ir.

Quase não falaram durante a longa viagem, mas Craig logo sentiu-se grato por tê-la ao lado, grato pelo sorriso quando a olhava, pelo toque da mão na sua quando percebia que começava a ficar sombrio novamente, e pelo silêncio cúmplice.

Subiram as colinas de King's Lynn ao anoitecer. Joseph, que gostara de Sally-Anne no momento em que a conhecera e que já a tratava por "minha pequena senhora", não podia evitar o sorriso de boas-vindas que contrastava com a solene dignidade, ao dar ordens aos criados para levarem a pouca bagagem.

- Preparo banho para senhora, muito quente.

- Isso seria ótimo, Joseph.

Depois do banho, foi para a varanda e Craig preparou os drinques, um uísque puro como ela gostava e uma dose reforçada com pouca soda para ele.

- Um brinde ao juiz Domashawa - e levantou o copo ironicamente -, e à justiça mashona. A todos os quarenta anos dela.

Sally-Anne recusou tomar vinho ao jantar, apesar dos protestos.

- O barão Rothschild ficaria muito ofendido. Imagine, seu mais fino produto e contrabandeado pessoalmente por mim. - A alegria de Craig era forçada.

Depois do jantar, pegou a garrafa de conhaque e, quando já ia servir-se, ela disse:

Craig, por favor, não se embriague.

Ele ficou parado com a garrafa na mão e examinou-lhe o rosto.

Não - disse Sally-Anne. - Não estou sendo mandona, e sim, muito egoísta. Queria você sóbrio hoje à noite.

Ele botou a garrafa de volta sobre a mesa, levantou e dirigiu-se para ela, que também ficou em pé.

- Querida, esperei tanto tempo.

- Eu sei - ela sussurrou. - Eu também.

Tomou-a cuidadosamente nos braços, como algo precioso e frágil e sentiu-a transformar-se lentamente. Parecia suavizar-se e o corpo tornou-se maleável, amoldando-se ao seu; podia senti-la inteira contra ele, dos joelhos aos seios jovens e firmes, e o calor que começava a emanar das roupas leves.

Inclinou a cabeça e suas bocas se encontraram. Os lábios dela imediatamente abriram-se, úmidos e doces como um fruto recém-colhido aquecido pelo sol, oferecendo seu sumo maduro.

Olhou-a nos olhos enquanto a beijava, maravilhando-se com o colorido e as formas aureoladas em torno das pupilas verdes pontilhadas de dourado, as pálpebras que fremiam e as longas e curvadas pestanas que se cerraram. Também fechou os olhos, e a terra pareceu oscilar, mas permaneceu firme, com ela entre os braços, sem tentar explorar-lhe o corpo, feliz com a sensação maravilhosa daquela boca contra a sua.

Joseph abriu a porta da cozinha com a bandeja de café nas mãos, ficou sorrindo satisfeito por um momento e tornou a fechá-la. Nenhum dos dois o viu. Quando ela separou-se, Craig sentiu-se roubado e tentou beijar-lhe a boca de novo, mas ela colocou um dedo em seus lábios e o sussurro foi tão rouco que teve de clarear a voz.

- Vamos para o seu quarto, querido.

Houve um momento constrangedor quando sentou-se nu na cama para retirar a perna mecânica, mas ela ajoelhou-se rapidamente, nua também, e desafivelou-a. Inclinou a cabeça e beijou o coto endurecido abaixo do joelho.

- Obrigado - ele disse. - Estou contente porque pôde fazer isso.

- Isso é você - respondeu -, é parte de você. - E tornou a tocá-lo com a boca, deslizando os lábios gentilmente pela coxa acima.

 

ACORDOU ANTES DELA, e ficou de olhos fechados, surpreso com o sentimento deslumbrado que sentia, sem saber por quê, até que lembrou-se, e cheio de alegria virou a cabeça, aterrado pela possibilidade de que não estivesse lá... mas estava.

Atirara o travesseiro no chão e os lençóis para o lado. Estava encolhida como um bebê, com os joelhos quase tocando o queixo, e a luz que filtrava-se pelas cortinas fazia reflexos nacarados na pele e delineava-lhe o corpo. Os cabelos cobriam-lhe o rosto e ondulavam ao ritmo da respiração ligeira.

Ficou imóvel para não acordá-la e contemplou-a com ardor, querendo tocá-la, mas contendo-se, para tornar o desejo ainda mais pungente até que se tornasse insuportável. Ela devia ter pressentido que era observada porque mexeu-se e estendeu as pernas, virou de bruços e arqueou-se num lento e voluptuoso espreguiçar.

Ele inclinou-se, e, com um dedo, tirou-lhe o cabelo do rosto; ela olhou-o ainda meio sonolenta, para logo fixá-lo com uma surpresa cômica e sorrir, franzindo o nariz.

- Oi, moço - sussurrou. - Você é um bocado especial. Estou arrependida por ter esperado tanto.

E estendeu-lhe os braços. Craig, porém, não compartilhava de seu arrependimento. Sabia que fora o prazo exato. Até mesmo um dia antes teria sido cedo demais, e mais tarde disse-lhe isso, quando ainda estavam enlaçados e meio colados pelo próprio suor.

- Aprendemos a gostar um do outro primeiro. Foi assim que eu quis que acontecesse.

- Você está certo - ela disse, afastando-se um pouco para olhá- lo, e os seios fizeram um delicioso ruído ao se despregarem do peito dele. - Eu gosto de você, gosto de verdade.

- E eu - começou ele, mas ela tapou-lhe a boca rapidamente.

- Ainda não, querido - pediu. - Não quero ouvir isso, não ainda.

- Quando, então?

- Acho que breve... - E, em seguida, com mais firmeza: - Sim, em breve eu também vou poder dizer isso a você.

   A GRANDE propriedade de King's Lynn também parecia ter esperado como eles. Muitos anos antes, fora talhada na selva e o amor de outro casal foi a principal inspiração para construí-la; através dos tempos, desde então, o amor de outros homens e mulheres que os sucederam fora necessário para mantê-la e tratá-la com carinho. Eles e as gerações que os seguiram estavam agora no cemitério murado, na colina por trás da sede, mas, enquanto viveram, King's Lynn florescera, assim como adoecera ao cair em mãos de forasteiros indiferentes vindos de uma terra distante. Fora desnudada, dessacralizada e privada do vital ingrediente do amor.

   Mesmo quando Craig reconstruiu a casa e restaurou os rebanhos, aquele elemento vital faltava ainda. E agora, finalmente, o amor desabrochava em King's Lynn, e sua alegria parecia irradiar-se da casa à colina e por toda a propriedade, respirando vida e a promessa fecunda de mais vida ainda na terra.

   Os matabele reconheceram isso imediatamente. Quando Craig e Sally-Anne cruzavam com o maltratado Land-Rover pelas estradas cheias de poeira vermelha que ligavam as enormes pastagens, as mulheres levantavam-se dos pilões de madeira onde estavam socando milho ou viravam-se, com os pescoços eretos que sustentavam as grandes pilhas de lenha equilibradas na cabeça, para saudá-los e examiná-los com um olhar afetuoso e conhecedor. O velho Joseph nada disse, mas arrumou a cama de Craig com quatro travesseiros, colocava flores na mesinha-de-cabeceira do lado que Sally-Anne escolhera e quatro dos seus biscoitos especiais na bandeja de chá que lhes trazia todo amanhecer.

   Por três dias, Sally-Anne conteve-se, mas uma manhã, sentada na cama tomando chá, disse a Craig:

   - Essas cortinas dariam uns ótimos panos de prato. - E apontou com o biscoito meio mordido para o algodão cru barato pregado nas janelas.

   - Será que consegue fazer melhor do que isso? - Craig perguntou, disfarçando a esperteza, e ela caiu na armadilha.

   Ao envolver-se com a escolha de cortinas, acabou envolvida com tudo mais. Desde desenhar mobília, para o marceneiro parente de Joseph construir, a mandar fazer uma nova horta e replantar moitas de roseiras que tinham morrido por falta de cuidados.

   Joseph também juntou-se à conspiração perguntando-lhe sobre os menus do jantar.

- Devo fazer rosbife hoje à noite, Nkosazana, ou galinha ao caril?

- Nkosi Craig gosta de dobradinha. - Sally-Anne fizera essa descoberta casualmente. - Sabe fazer dobradinha com cebolas?

- O velho governador-geral antes da guerra, sempre que vem a Kingi Lingi, eu faz dobradinha com cebolas, Nkosazana. E ele diz: "Muito bom, Joseph, melhores do mundo!"

- Ótimo, Joseph, hoje à noite vamos comer a "melhor dobradinha do mundo" - riu-se ela, e, só quando Joseph entregou-lhe formalmente as chaves da despensa, compreendeu que decisão importante tomara.

Estava lá à meia-noite quando o primeiro bezerro nasceu em King's Lynn, um parto difícil, com o traseiro do animal virado para frente, obrigando Craig a enfiar o braço dentro da vaca e desvirá-lo, enquanto Shadrach e Hans Groenewald agarravam-na e Sally-Anne segurava a lanterna.

Era uma novilha de cor creme clara e com longas pernas vacilantes. Assim que começou a mamar no úbere da mãe, deixaram-na aos cuidados de Shadrach e foram para casa deitar-se.

- Esta foi uma das experiências mais maravilhosas da minha vida, querido. Quem lhe ensinou isso?

- Bawu, meu avô. - Ele a abraçou na escuridão do quarto. - Não sentiu-se mal?

- Eu adorei, o nascimento sempre me fascinou.

- Como Henrique VIII, prefiro isso no abstrato - riu-se ele.

- Menino levado - sussurrou. - Mas não está muito cansado?

- Você está?

- Não - admitiu. - Não posso dizer que esteja. - E fez uma ou duas tentativas fracas para libertar-se do abraço.

- Recebi um telegrama hoje sobre o Cessna; o certificado de vôo está pronto e tenho que ir a Joanesburgo pegá-lo.

- Se puder esperar duas ou três semanas, vou com você. Estão com uma seca terrível no sul e o preço do gado está muito baixo. Podíamos voar até os grandes ranchos e arranjar umas boas barganhas.

E assim, deixou que o tempo passasse, e os dias pareciam devorar-se, cheios de amor e trabalho. Trabalho no livro ilustrado, no novo romance, na coleta de material de campo para o Wildlife Trust nos preparativos finais para a inauguração do Águas do Zambeze e na rotina diária de King's Lynn.

A cada semana que passava, sua resistência à magia que Craig e King's Lynn teciam à sua volta enfraquecia, e as exigências de sua vida anterior diluíam-se, até que um dia surpreendeu-se chamando a sede sobre a colina de "casa" e sentiu-se apenas um pouquinho chocada consigo mesma.

Uma semana mais tarde, recebeu uma carta registrada reenviada de Harare para aquele endereço. Era o contrato formal de renovação de sua pesquisa para o Wildlife Trust. Em vez de preenchê-lo e despachá-lo imediatamente de volta, enfiou-o no estojo da camera.

Amanhã eu preencho - disse consigo mesma, mas bem no fundo compreendeu que chegara a uma encruzilhada. A perspectiva de voar sozinha pela África, com apenas uma muda de roupas e uma câmera, dormindo e tomando banho onde e como pudesse já não era tão atraente como antes.

Àquela noite, ao jantar, olhou em torno da sala enorme e quase vazia, cujas cortinas novas eram o único toque esplêndido, tocou a mesa de teca rodesiana que o parente de Joseph tinha feito sob sua orientação. Ficou imaginando o brilho que iria ganhar no futuro com o uso e os cuidados. Olhou para o homem sentado à sua frente e ficou assustada e estranhamente exaltada. Sabia que tomara a decisão.

Tomaram café na varanda, escutando o canto das cigarras nos jacarandás e os guinchos dos morcegos caçando sob a lua amarela.

Pousou a cabeça em seu ombro e disse:

- Craig, querido, já é hora de lhe dizer, eu amo muito você.

Craig queria sair correndo para Bulawayo e acordar o juiz, mas ela o reteve, rindo.

- Meu Deus, seu maluco, não é tão simples assim. Não se pode fazer as coisas dessa maneira.

- Por que não? Uma porção de gente faz isso.

- Eu não - ela disse firmemente. - Quero que seja feito da maneira apropriada. - Contou nos dedos e no calendário da agenda e decidiu. - Será no dia 16 de fevereiro.

- Mas isso é daqui a quatro meses - gemeu Craig, porém os protestos foram desapiedadamente afastados.

Joseph, por outro lado, estava de pleno acordo com os projetos de Sally-Anne para um casamento formal.

   - Casa em Kingi Lingi, Nkosikazi. - Era mais uma declaração do que uma pergunta e o sindebele de Sally-Anne já era suficiente para entender que tinha sido promovida de "pequena" a "grande senhora". - Quantas pessoas? Duzentas? Trezentas?

   - Duvido que se consiga tanta gente - objetou Sally-Anne.

   - Quando Nkoazana Roly casou Kingi Lingi, temos quatrocentas, até Nkosi Smithy vem!

   - Joseph - ralhou com ele -, você é realmente um esnobe!

 

   PARA CRAIG, a infelicidade difusa que sentira com a condenação de Tungata dissipou-se lentamente, engolida pela excitação e atividade em King's Lynn. Em poucos meses, quase a esquecera, e apenas em momentos esporádicos e inesperados a memória do antigo amigo o aferroava. Para o resto do mundo, era como se Tungata Zebiwe nunca tivesse existido. Depois da extravagante cobertura do julgamento, parecia que tinham feito uma cortina de silêncio em torno dele.

   E então, abruptamente, mais uma vez o nome de Tungata apareceu em todas as televisões e manchetes do continente.

   Craig e Sally-Anne estavam em frente à tevê, consternados e incrédulos com as primeiras notícias. Quando terminaram, e o programa começou a dar um boletim meteorológico, Craig levantou-se, desligou o aparelho e tornou a sentar-se como alguém em estado de choque depois de um terrível acidente.

   Ficaram os dois em silêncio na sala obscurecida, até que Sally- Anne pegou-lhe a mão e estremeceu violentamente, sem querer.

   - Aquelas pobres menininhas... tão pequenas. Pode imaginar o terror que sentiram?

- Eu conhecia os Goodwin. Eram ótimas pessoas e sempre trataram o seu pessoal negro bem - murmurou Craig.

   - Isto prova, mais do que qualquer outra coisa, que estavam certos ao trancá-lo como um animal perigoso. - O horror que sentia estava transformando-se em raiva.

   - Não consigo imaginar o que acham que iam ganhar com uma coisa destas... - Craig ainda balançava a cabeça, incrédulo, e Sally-Anne explodiu.

   - O país inteiro, o mundo inteiro precisa saber que tipo de gente é essa, sanguinária, desumana... - A voz falhou e virou um soluço. Aquelas pobres crianças. Oh, Deus do céu, como odeio. Gostaria que estivesse morto.

   - Usaram o nome dele, o que não significa que Tungata tenha dado ordens para isso, aprovado uma coisa dessas ou mesmo soubesse disso. - Craig tentou parecer convincente.

   Eu o odeio - ela sussurrou. - Eu o odeio por isso.

   pura loucura. Tudo o que vão conseguir com isso é fazer com que as tropas shona arrasem Matabeleland como a ira dos deuses.

   A menor tinha só cinco anos. - Com o ultraje e a dor que sentia, Sally-Anne estava se repetindo.

   Nigel Goodwin era um bom homem; eu o conhecia bastante bem. Estivemos na mesma divisão da polícia especial durante a guerra. Eu gostava dele. - Craig foi até o bar e serviu dois uísques. - Deus, por favor, não deixe que comece tudo de novo. Toda a crueldade e o horror. Por favor, meu Deus, poupe-nos disso.

   Apesar de Nigel Goodwin ter quase quarenta anos de idade, tinha uma dessas caras bochechudas e rosadas, imunes ao sol africano, que o fazia parecer um garoto. A mulher, Helen, era magra, de cabelos escuros, com um temperamento doce e olhos castanhos brilhantes que faziam esquecer a aparência comum.

   As duas meninas ficavam internadas durante a semana no convento em Bulawayo. Com oito anos, Alice Goodwin tinha cabelos e sardas avermelhadas e era gorducha e rosada como o pai. Stephanie, a menor, tinha cinco, e era, na realidade, muito pequena ainda para freqüentar a escola, mas, já que a mais velha o fazia, a Reverenda Madre fizera uma exceção em seu caso. Era a mais bonita das duas, pequena, morena e viva como um passarinho, com os olhos brilhantes da mãe.

   Toda sexta de manhã, Nigel e Helen Goodwin dirigiam pelos quase quarenta quilômetros do rancho até a cidade. À uma hora, pegavam as meninas na escola, almoçavam no Hotel Selborne, dividindo uma garrafa de vinho, e passavam a tarde fazendo compras. Helen reabastecia-se de gêneros, escolhia tecidos para ela e as meninas e, enquanto assistiam a uma sessão de cinema, ia ao cabeleireiro, a única extravagância de sua existência simples.

   Nigel fazia parte do comitê da União dos Fazendeiros de Matabele e passava geralmente uma ou duas horas lá em conversas despreocupadas com o secretário e os outros membros que estivessem na cidade. Depois, passeava pelas ruas largas e quentes, com chapéu atirado para a nuca, mãos no bolso, cachimbo na boca, cumprimentando amigos e conhecidos, tanto brancos quanto negros, parando de vez em quando para uma conversa.

Naquele dia, ao voltar para onde havia deixado o caminhão Toyota, diante da cooperativa, o capataz matabele, Josiah, e dois outros trabalhadores estavam à sua espera. Colocaram no carro material que havia comprado e, ao terminarem, Helen e as meninas chegaram para a viagem de volta.

- Desculpe, senhorita, será que não viu minha mulher por aí?

- Era a sua piadinha semanal, e Helen riu, alegre, alisando o novo penteado, reclamando, porém, quando ele deu às meninas um saco de balas.

- Isso é tão ruim para os dentes delas, querido. - Nigel piscou para as filhas e concordou:

- Eu sei, mas é só desta vez e isso não dá para matá-las.

Stephanie, por ser muito pequena, ia na cabine do caminhão entre os pais, e Alice, com Josiah e outros matabele na carroceria.

- Agasalhe-se bem, querida, só vamos chegar em casa de noite - recomendou-lhe Helen.

Os primeiros trinta quilômetros ficavam na estrada principal e, quando viraram para a secundária que dava na fazenda, Josiah saltou para abrir o portão de arame.

- Em casa de novo - disse Nigel, contente, enquanto dirigia por sua própria terra. Sempre dizia isso, e Helen sorriu e tocou-lhe a mão.

- É tão bom voltar para casa, querido - concordou.

A brusca noite africana caiu sobre eles e Nigel acendeu os faróis, que brilharam em pontinhos luminosos nos olhos do gado, animais gordos e tranqüilos que enchiam a noite fresca com o cheiro penetrante de estrume.

- Está ficando muito seco - resmungou Nigel. - Precisamos de um pouco de chuva.

- É, querido. - Helen colocou a pequena Stephanie no colo e a criança aninhou-se, sonolenta.

- Aqui estamos - murmurou Nigel. - A cozinheira acendeu as lâmpadas.

Há dez anos que se prometera um gerador elétrico, mas sempre aparecia algo mais importante, por isso usavam ainda querosene e As luzes da casa tremulavam em boas-vindas por entre os troncos das acácias.

Parou o caminhão junto à varanda de trás, e Helen subiu, carregando Stephanie que dormia com um dedo na boca e as pernas nuas e frágeis dependuradas.

Nigel foi até a parte de trás do caminhão e ajudou Alice a descer.

   longile, Josiah, podem ir agora. Descarregamos o caminhão amanhã de manhã - disse aos homens. - Durmam bem!

   Com Alice pela mão, subiu atrás da mulher para a varanda, mas, antes que a alcançassem, um facho de luz violento acendeu-se e cegou-os.

   Quem está aí? - perguntou Nigel, irritado, protegendo os olhos com a mão e segurando Alice com a outra.

   A visão ajustou-se à claridade, pôde ver por trás da lanterna elétrica, e subitamente sentiu-se doente de medo pela mulher e as filhas. Eram três homens negros vestidos em calças e jaquetas jeans, todos com fuzis AK 47, apontados para a família. Nigel olhou rapidamente para trás. Havia mais estranhos, não sabia quantos. Tinham surgido da escuridão da noite e Josiah e os dois outros encolhiam-se de medo sob a mira das armas.

   Pensou no revólver guardado no escritório, na extremidade da varanda, mas lembrou-se de que estava vazio. Ao terminar a guerra, um dos primeiros atos do novo governo negro fora forçar os fazendeiros brancos a entregar todas as armas, e além do mais não ia adiantar de nada, nunca conseguiria chegar até o cofre.

- Quem são eles, papai? - perguntou Alice, com a vozinha cheia de medo. Claro que sabia, era grande o bastante para lembrar-se da guerra.

   - Tenham coragem, queridas - disse Nigel a todas, e Helen chegou mais perto dele, ainda com Stephanie nos braços.

   Enfiaram o cano de um fuzil nas costas dele, botaram-lhe as mãos para tras e amarraram-lhe os pulsos com arame galvanizado. Tiraram Stephanie dos braços da mãe e a colocaram no chão. As pernas estavam bambas de sono e piscava como uma corujinha à luz da lanterna, ainda chupando o dedo. Amarraram também Helen com as mãos para trás e ela soltou um gemido quando o arame a cortou, mas mordeu os lábios e ficou em silêncio. Dois deles dirigiram-se com o arame em direção às crianças.

- São apenas crianças pequenas, por favor não as amarre, não as machuquem - disse Nigel em sindebele.

- Silêncio, chacal branco - respondeu um deles na mesma língua e ajoelhou-se diante de Stephanie.

- Está doendo, papai - e começou a chorar -, ele está me machucando. Peça para ele parar.

- Tem de ser corajosa - repetiu Nigel, estúpida e inadequadamente, odiando-se. - Você já é uma moça.

O outro dirigiu-se para Alice.

- Não vou chorar, papai - ela prometeu. - Vou ser corajosa.

- Isso é que é uma boa menina - respondeu, enquanto o homem a amarrava.

- Caminhem! - comandou o da lanterna, claramente o líder do grupo, e cutucou as crianças escada acima até a varanda da cozinha com o cano do fuzil automático.

Stephanie tropeçou e esparramou-se no chão. Com as mãos atadas às costas, não conseguia levantar-se e contorcia-se desamparada.

- Malditos - sussurrou Nigel. - Seus malditos sujos.

Um deles pegou-a pelos cabelos, colocando-a de pé, e ela foi cambaleando e chorando histericamente até onde estava a irmã, encostada à parede.

- Não se comporte como um bebê, Stephie - disse Alice.

- É só uma brincadeira. - Mas a voz tremia de terror e os olhos estavam enormes e rasos d'água.

Alinharam Nigel e Helen junto às meninas, e a lanterna ficou focando-os um de cada vez, e cegando-os para que não vissem o que acontecia no pátio.

- Por que estão fazendo isso? - perguntou Nigel. - A guerra acabou e não fizemos mal nenhum a vocês.

Não houve resposta, apenas o foco de luz brilhante movendo-se nos rostos pálidos e o som dos soluços de Stephanie, um choro sincopado e contristador. Ouviu-se, então, o murmúrio de outras vozes no escuro, muitas vozes assustadas e baixas de homens, mulheres e meninos.

- Trouxeram o nosso pessoal para ver - disse Helen baixinho.

- É exatamente como na guerra. Vamos ser executados. - Falou de modo a não ser ouvido pelas crianças e Nigel não conseguia dizer nada. Sabia que ela tinha razão.

- Gostaria de ter dito mais vezes o quanto a amo - disse.

   Está tudo bem - ela sussurrou. - Eu sempre soube.

Podiam distinguir agora um grupo de matabele da aldeia da fazenda uma massa escura por trás da lanterna, e a voz do líder que começou a falar com eles.

- Estes são os chacais brancos que se alimentam da nossa terra. São o lixo branco que se uniu aos assassinos mashona, os comedores de coisas imundas de Harare, os inimigos jurados dos filhos de orador estava induzindo-se a um estado de frenesi assassino e Nigel já podia ver os outros homens que os guardavam balançando-se e zumbindo de boca fechada, perdendo-se naquela paixão furiosa onde a razão não existia. Os matabele chamavam a isso "a loucura divina" e, quando o velho Mzilikazi era rei, um milhão de seres humanos morreram por causa dela.

Esses brancos lambedores de fezes mashona são os traidores que entregaram Tungata Zebiwe, o pai de nosso povo, aos campos da morte dos mashona.

- Eu amo vocês, minhas queridas - sussurrou Nigel.

Helen nunca o ouvira dizer algo com tanta ternura antes e foi isso, e não o medo, o que a fez começar a chorar. Tentou reter as lágrimas, mas começaram a lhe deslizar pelo rosto.

- O que devemos fazer com eles? - berrou o líder.

- Matar! - gritou um de seus homens, mas os matabele da fazenda ficaram silenciosos na escuridão.

- O que devemos fazer com eles? - A pergunta foi repetida.

E o líder pulou da varanda para gritar nos rostos do pessoal que continuava silencioso.

- O que devemos fazer com eles? - Daquela vez, houve o som de pancadas com o cano dos fuzis contra carne negra, acompanhando a pergunta.

- O que devemos fazer com eles? - Repetiu pela quarta vez.

   Matar! - Uma resposta incerta e aterrorizada e mais pancadas.

   Matar! - Começavam a fazer eco. - Matar!

   Abantwana kamina! - Nigel reconheceu na voz feminina a velha e gorda Marta, babá das meninas. "Minhas crianças", gritara, mas a voz perdeu-se no coro crescente de "matar! matar!" à medida que "a divina loucura" se espalhava.

Dois homens vestidos de jeans apareceram à luz da lanterna, pegaram Nigel pelos braços e viraram-no de cara para a parede ant de obrigá-lo a ficar de joelhos.

   O líder entregou a lanterna a um dos homens, pegou a pistola e armou-a, colocando uma bala no pente com um estalido. Colocou o cano na cabeça de Nigel e disparou um só tiro. Os miolos espirraram na parede branca e começaram a escorrer como geléia para o chão.

   Os pés dele ainda estavam se debatendo quando forçaram Helen a ficar de joelhos ao lado do corpo do marido.

   - Mamãe! - berrou Alice quando o tiro explodiu, saindo pela testa, e o cérebro desabou. A pequena e patética demonstração de coragem de Alice acabou; as pernas cederam, caiu inerte no assoalho da varanda, e os intestinos esvaziaram-se involuntariamente.

   O líder foi até ela. A testa quase tocava o assoalho e os cachos ruivos esparramados deixavam ver a nuca. Estendeu o braço e encostou o cano da pistola na delicada carne branca. O braço saltou com o coice da arma e o tiro soou abafado. Espirais de fumaça azulada subiam pelo foco da lanterna.

   A pequena Stephanie foi a única que se debateu, até que o líder deu-lhe uma coronhada, mesmo assim continuou a debater-se e a dar pontapés, atirada no chão da varanda, na poça de sangue da irmã. O homem colocou o pé por entre seus ombros para imobilizá-la. A bala saiu na têmpora direita, em frente à orelha, e fez um buraco do tamanho de uma moeda no concreto do chão, que encheu-se rapidamente com o sangue da criança.

   O líder abaixou-se, molhou o dedo no sangue escuro e escreveu na parede branca em grandes letras tortas, "TUNGATA ZEBIWE ESTÁ VIVO".

   Pulou de lá como um leopardo e foi-se silenciosamente, perdendo-se na escuridão da noite, seguido por seus homens que trotavam rapidamente em fila indiana.

 

   - DOU-LHES MINHA palavra de honra - disse o primeiro-ministro - que esses chamados dissidentes serão destruídos, completamente destruídos.

   Os olhos por trás das lentes dos óculos eram duros e metálicos. A má qualidade da transmissão de televisão criava fantasmas em torno da cabeça, mas não diminuía a cólera que parecia extravasar do apa'relho e inundar a sala de estar de King's Lynn.

- Nunca o vi assim antes - disse Craig.

   É um homem tão frio habitualmente - concordou Sally.

- Dei ordens ao Exército e às forças policiais para perseguir e capturar os autores desse terrível ultraje. Nós os encontraremos, e aos que os apoiam, e vão sentir a força da ira do povo. Não toleraremos esses dissidentes.

Bravos!   concordou Sally-Anne. - Não posso dizer que gostasse muito dele... até agora.

Querida, não fique tão feliz assim - advertiu-a Craig.

- Lembre-se de que isso é a África, não a América ou a Grã-Bretanha. Esta terra tem outro temperamento. As palavras têm um significado diferente aqui. Palavras como capturar ou perseguir.

Craig, sei que sua simpatia está com os matabele, mas desta vez eles foram longe demais.

- Está certa. - Levantou a mão, concordando. - Eu admito isso. Os matabele são especiais, minha família sempre viveu com eles, nós os espancamos e os exploramos, lutamos com eles e os matamos, e fomos mortos também. Mas os estimamos e honramos, aprendemos a conhecê-los e a amá-los. Não conheço os mashona. São fechados e frios, espertos e astutos. Não falo a língua deles e não confio neles. É por isso que escolhi viver em Matabeleland.

- O que está dizendo é que são uns santos, e incapazes de cometer uma atrocidade dessas? - Estava ficando irritada, falando em tom mais agressivo, e tentou aplacá-la.

- Meu Deus, não! São tão cruéis quanto qualquer outra tribo da África e muito mais aguerridos que a maioria. Em outros tempos, quando atacavam uma tribo estranha, costumavam atirar os bebês no ar e apará-los na ponta das lanças assegai, jogar velhas nas fogueiras e rir ao vê-las queimar. A crueldade tem um valor diferente na África. Se a pessoa vive aqui, tem de compreender isso desde o início. - Fez uma pausa e sorriu.

   Uma vez, estava discutindo filosofia política com um matabele, um ex-guerrilheiro, e expliquei-lhe o conceito de democracia. A resposta dele foi: "Isso pode funcionar em seu país, mas não funciona aqui". Não compreende? Isso é o cerne do problema. A África faz e mantém suas próprias regras e eu aposto um milhão de dólares contra uma pitada de estrume de elefante de que vamos ver algumas coisas nas semanas que vêm por aí que você não veria em Pensilvânia ou Dorset! Quando Mugabe diz "destrua", não quer dizer "tome sob sua custódia e processe-o de maneira legal". Ele é um africano e quer dizer exatamente isso: destruir!

   Isso aconteceu na quarta-feira, e sexta era dia de compras para King's Lynn, e de ir a Bulawayo também para um pouco de vida em sociedade. Craig e Sally-Anne partiram de manhã cedo e o novo caminhão de cinco toneladas os seguia, cheio de matabele do rancho, aproveitando a carona para a cidade. Estavam vestidos com as melhores roupas e cantavam, excitados.

   Chegaram ao bloqueio na estrada pouco antes de alcançarem o cruzamento em Thabas Indunas. O tráfego estava paralisado por uns cem metros e Craig viu que a maioria dos veículos estava sendo obrigada a voltar.

   - Espere um pouco! - disse a Sally-Anne, deixando-a no Land- Rover e correndo até o começo do engarrafamento.

   O bloqueio não era casual. Havia metralhadoras pesadas sobre sacos de areia colocados em ambos os lados da estrada, e metralhadoras leves atrás para interceptar qualquer tentativa de furá-lo.

   A barricada era feita de tambores cheios de concreto e placas de metal com pontas aguçadas para furar pneus; os guardas eram da Terceira Brigada com as inconfundíveis boinas vermelhas e distintivos prateados. As jaquetas camufladas davam-lhes o ar de gatos selvagens.

   - O que está acontecendo, sargento? - perguntou Craig a um deles.

   - A estrada está fechada, mambo - respondeu o homem com polidez. - Só vai quem tiver um passe militar.

   - Tenho de ir à cidade.

   - Hoje não. - O soldado balançou a cabeça. - Bulawayo não é um bom lugar para se ir.

   Como a confirmar isso, ouviu-se um pipocar distante em direção à cidade, que soava como o estalar de lenha verde no fogo, e Craig instintivamente arrepiou-se. Aquele som, que conhecia muito bem, trouxe-lhe lembranças do pesadelo dos dias da guerra. Era o som distante de fuzis automáticos.

   - Volte para casa, mambo - disse o sargento, amigavelmente. - Isso não é mais a sua indaba.

)e repente, Craig ficou ansioso para levar o caminhão cheio de gente de volta a King's Lynn.

Correu de volta ao Land-Rover e tirou-o do engarrafamento com uma volta de cento e oitenta graus.   O que está havendo, Craig?

Acho que já começou - disse, carrancudo, e pisou fundo o acelerador.

Encontraram o caminhão de King's Lynn que vinha alegremente ao seu encontro, com as mulheres cantando e batendo palmas e os vestidos ondulando festivos ao vento. Craig os fez parar e correu até lá. Shadrach, no velho terno cinzento que o patrão lhe dera, estava sentado no lugar de honra, ao lado do chofer.

Dêem a volta - ordenou Craig. - Voltem para Kingi Lingi.

Está havendo uma grande encrenca. Ninguém deve sair de lá até tudo se acalmar.

- São os soldados mashona?

- Sim. A Terceira Brigada.

- Chacais e filhos de chacais comedores de coisas imundas - disse Shadrach, cuspindo pela janela.

AFIRMAR QUE milhares de pessoas inocentes foram mortas pelas forças de segurança do Estado é um contra-senso...

O ministro da Justiça de Zimbabué parecia mais um corretor da Bolsa bem-sucedido, no terno escuro e gravata branca. Sorria afavelmente na tela de televisão com o rosto lustroso de suor por causa da forte iluminação que enfatizava a cor da pele.

- Um ou dois civis foram mortos no fogo cruzado entre as forças de segurança e os bandidos dissidentes matabele, mas milhares? Ha, ha, ha! - riu com jovialidade. - Se milhares foram mortos, queria que alguém me mostrasse os cadáveres; nada sei sobre isso.

   Bem - disse Craig, desligando o aparelho. - É só o que vai se conseguir saber de Harare. - Olhou o relógio de pulso. - Quase oito horas, vamos ver o que diz a BBC.

Durante o regime de Smith, de censura draconiana, todo homem de bom senso na África Central tinha um rádio de ondas curtas e esta era ainda uma boa regra a seguir. Craig possuía um Yaesu Musen que sintoniza a BBC em 2.171 quilohertz.

   - O governo de Zimbábue expulsou todos os jornalistas estrangeiros de Matabeleland. O Alto Comissário britânico falou com o primeiro-ministro de Zimbábue para expressar a profunda preocupação do governo de Sua Majestade com as notícias de atrocidades cometidas pelas forças de segurança.

   Craig sintonizou a rádio África do Sul e ouviram claramente:

   - ... a chegada de centenas de refugiados ilegais através da fronteira norte vindos de Zimbabué. Os refugiados são todos membros da tribo matabele. Um porta-voz do grupo descreveu o massacre de aldeãos e civis que presenciou: "Estão matando todo mundo", disse. "Mulheres e crianças e até mesmo as galinhas e cabras". Outro refugiado disse: "Não nos mandem de volta. Os soldados vão nos matar".

   Craig sintonizou a Voz da América:

   - O líder do partido ZAPU, a facção matabele de Zimbábue, sr. Joshua Nkomo, chegou ao Estado vizinho de Botsuana, depois de fugir do país. "Mataram meu motorista a tiros", disse ao nosso repórter regional. "Mungabe quer me ver morto. Está disposto a tudo para me pegar." Com a recente detenção de todos os outros membros proeminentes do partido ZAPU, a partida do sr. Nkomo de Zimbábue deixa o povo sem um líder ou um porta-voz. Enquanto isso, o governo do sr. Robert Mugabe impôs uma censura total à parte oeste do país, todos os jornalistas estrangeiros foram expulsos e um pedido da Cruz Vermelha Internacional para mandar observadores foi rejeitado.

   - É tudo tão familiar - resmungou Craig. - Tenho até mesmo aquela sensação horrível na boca do estômago.

 

   SEGUNDA-FEIRA ERA O aniversário de Sally-Anne. Depois do café da manhã, foram juntos até Queen's Lynn para buscar seu presente. Craig o deixara aos cuidados da sra. Groenewald, a mulher do capataz, para guardar segredo.

   - Oh, Craig, ele é lindo.

- Agora você tem dois para tomar conta em King's Lynn.

   Sally-Anne levantou com as duas mãos o cachorrinho, beijou o focinho úmido e ele deu-lhe uma lambida.

É um cachorro-leão da Rodésia ou suponho que agora seja do Zimbábue.

A pele do cachorrinho era grande demais para ele. Caía em dobras sobre a testa e dava-lhe um ar preocupado. As costas eram encimadas pela crista de pêlos característica da raça.

Olhe para as patas dele! - gritou Sally-Anne. - Vai ser um monstro de grande. Que nome dou a ele?

Craig decretou feriado para celebrar o aniversário. Levaram o cachorrinho para um piquenique na represa principal abaixo da sede onde ficaram estendidos sob as árvores, à beira d'água, tentando achar um nome para ele. Sally-Anne vetou a proposta de Craig de chamá-lo simplesmente de "Cachorro".

Os pássaros tecelãos de cabeça negra sobrevoavam, gritando e pendurando-se de cabeça para baixo nos ninhos em forma de cestos, e Joseph colocara uma garrafa de vinho branco gelado entre as coisas do piquenique. O cachorrinho ficou caçando grilos até cair exausto ao lado de Sally-Anne. Beberam o vinho e, quando fizeram amor, ela sussurrou a sério:

- Psiu! Não acorde o bichinho!

Ao voltar para casa, Sally-Anne disse de repente:

- Não falamos sobre as agitações o dia inteiro.

- Não vamos estragar este recorde.

- Vou chamá-lo de Buster.

- Por quê?

- Chamei assim o primeiro cachorrinho que ganhei.

Deram comida a Buster, fizeram-lhe uma cama em um caixote vazio que colocaram ao lado do fogão. Ambos estavam cansados e contentes e deixaram de lado naquela noite o livro e as fotografias e foram para a cama depois do jantar.

CRAIG ACORDOU com o barulho de tiros. Os reflexos do tempo da guerra arrancaram-no da cama antes que estivesse completamente acordado. Notou instintivamente que eram disparos de fuzil automático, rajadas curtas e muito próximas e isso significava atiradores bem-treinados. Ao avaliar a distância, viu que deviam estar na aldeia ou na oficina.

Apanhou a perna e prendeu-a, já completamente desperto, e o primeiro pensamento foi para Sally-Anne. Agachado abaixo do parapeito das janelas, rolou pelo assoalho até a cama e a arrastou para lá.

   Estava nua e tonta de sono.

   - O que é?

   - Tome. - E puxou a camisola dos pés da cama. - Vista-se, mas fique abaixada.

   Enquanto ela se enfiava na roupa, tentou coordenar os pensamentos. Não havia armas na casa, exceto os facões de cozinha e uma machadinha de lenha na varanda de trás. Não havia sacos de areia ou perímetro defensivo de fogo e de luzes, e nem transmissor de rádio - nenhuma das defesas mais elementares que havia em toda fazenda antes.

   Outra rajada de tiros e alguém gritou, uma mulher, mas o grito logo foi abafado.

   - O que está acontecendo? Quem são eles? - A voz de Sally- Anne estava firme, bem desperta e sem medo, e sentiu um certo orgulho dela. - São dissidentes?

   - Não sei, mas não vamos ficar esperando para descobrir - disse com expressão séria.

   Olhou para o teto novo de palha altamente inflamável. A melhor chance era escaparem da casa para o mato e, para isso, precisavam de um diversionismo.

   - Fique aqui - ordenou. - Calce sapatos e fique pronta para correr. Volto num minuto.

   Rolou até debaixo da janela e ficou de pé. A porta do quarto estava destrancada e correu para o corredor. Perdeu dez segundos junto ao telefone, sabia que teriam cortado os fios, o que foi logo confirmado pela mudez total do aparelho. Desligou-o e correu para a cozinha.

   Só havia um modo de distrair a atenção dos atacantes: a luz. Acionou o controle remoto do gerador diesel, ouviu o ruído distante do motor do outro lado do pátio e as lâmpadas de lá acenderam-se. Abriu a caixa de fusíveis sobre o painel de controle, cortou as luzes dentro da casa e acionou as da varanda e as do jardim da frente, deixando os fundos às escuras. Decidiu que fugiriam por ali e teria de ser rápido. Os atacantes ainda não haviam se aproximado da casa, mas deviam estar a segundos dela.

   Saiu correndo da cozinha, parou na porta traseira da saleta para checar as luzes do jardim e da varanda. Os gramados apresentavam um verde particularmente luxuriante à luz artificial, e os jacarandás os recobriam como o teto de uma catedral. Os disparos tinham cessado, mas perto da aldeia dos trabalhadores uma mulher lamentava-se naquele tom pungente do luto africano, o que o deixou todo arrepiado.

   Craig sabia que já estavam subindo a colina e, ao virar-se para correr até Sally-Anne, percebeu um ligeiro movimento na borda da luz. Tentou identificar, saber quem estava atacando, isso lhe daria uma pequena vantagem, mas estava desperdiçando um tempo precioso.

   Era um homem nu, um negro, que corria subindo em direção à casa. Não, não estava nu, usava um pano entre as pernas e não corria, cambaleava e gesticulava como se estivesse bêbado. Nas luzes da varanda, o corpo rebrilhava, parecendo untado, mas em seguida Craig percebeu que estava banhado em sangue, que escorria caindo em gotas.

   Com um tremendo choque, viu que era o velho Shadrach e, sem pensar, foi em seu socorro. Deu um pontapé nas portas-janelas da saleta e correu para a varanda, pulando o parapeito baixo. Agarrou Shadrach antes que caísse e o levantou no colo, surpreendido com o pouco peso do velho. Deu um salto de volta para a varanda, levando-o nos braços, e agachou-se com ele por trás da mureta.

   Shadrach fora atingido no braço, logo acima do cotovelo, o osso estava estilhaçado e o braço, que ele segurava contra o peito como se fosse um bebê, pendia por um fiapo de carne.

   - Eles estão vindo - arquejou. - Vocês têm de fugir. Estão matando nossa gente e vão matar vocês também.

   Era um verdadeiro milagre que o velho pudesse falar e mais ainda correr com um ferimento daqueles. Agachado atrás da mureta, rasgou um pedaço de pano da roupa com os dentes e começou a atá-lo no braço. Craig afastou-lhe a mão e fez o nó.

   - O senhor precisa fugir, patrãozinho - e, antes que pudesse impedi-lo, o velho ficou em pé e desapareceu na escuridão além dos holofotes.

   - Arriscou a vida para me avisar. - Craig olhou-o por um segundo, agachou-se e correu para dentro de casa.

   Sally-Anne estava onde a havia deixado, agachada debaixo da janela, um quadrado iluminado, e viu que amarrara o cabelo atrás e vestira uma camiseta, shorts e estava calçando tênis.

   - Boa menina - disse, ajoelhando-se a seu lado. - Vamos embora.

   - Buster - ela retrucou. - Meu cachorrinho!

   - Pelo amor de Deus!

   - Não podemos deixá-lo aqui! - Tinha aquele ar teimoso que já conhecia tão bem.

   - Eu a carrego à força se tiver que fazer isso - avisou-a furioso e, levantando-se rapidamente, arriscou um último olhar pela janela.

   Os gramados e o jardim ainda estavam brilhantemente iluminados. Podia distinguir a silhueta escura de homens subindo do vale, homens armados e em fileiras disciplinadas. Por um momento, não pôde acreditar no que via e deixou-se cair no chão, respirando aliviado.

   - Oh, obrigado, meu Deus! - sussurrou. Viu que a reação a tudo aquilo já começava, sentia-se fraco e trêmulo, olhou Sally- Anne e a abraçou.

   - Está tudo bem agora - disse-lhe. - Tudo vai ficar bem.

   - O que aconteceu?

   - As forças de segurança chegaram. - Reconhecera as boinas vermelhas e os distintivos prateados dos homens que cruzavam o gramado. - A Terceira Brigada está aqui; tudo vai ficar bem agora.

   Foram até a varanda da frente para saudar os salvadores, Sally- Anne com o cachorrinho amarelo nos braços e Craig com o braço em torno de seus ombros.

   - Estou muito contente em ver o senhor e seus homens, sargento. - Craig saudou o suboficial que estava à frente da linha de soldados.

   - Queiram entrar. - O sargento fez um gesto imperativo e quase ameaçador com o fuzil.

   Era um homem alto, de pernas longas e musculosas, com uma expressão fria e neutra, e Craig sentiu o alívio evaporar-se. Algo estava errado. Os soldados cercaram a casa, enquanto avançavam aos pares em ordem de combate, dando-se cobertura mútua, na tática clássica de luta de rua, e entraram rapidamente para dentro, pelas janelas e portas laterais, vasculhando o interior. Ouviu-se um barulho de vidros quebrados nos fundos. Era uma busca destrutiva.

   - O que está acontecendo, sargento? - A raiva de Craig reapareceu e daquela vez o gesto do sargento alto foi inequivocamente hostil.

   Craig e Sally-Anne foram obrigados a ir para a sala de jantar, e ficaram de pé, abraçados, ao lado da mesa de teca, encarando o fuzil ameaçador.

   Dois soldados entraram pela porta da frente e fizeram um relatório ao sargento em uma algaravia de shona que Craig não compreendeu. O suboficial deu-lhes uma ordem. Colaram-se obedientemente à parede com as armas apontadas para o casal no centro da sala.

   - Onde se ligam as luzes? - perguntou o sargento e, depois que Craig indicou-lhe, acendeu o comutador e a sala ficou toda iluminada.

   - O que está acontecendo, sargento? - repetiu Craig, zangado, inseguro e começando a temer novamente por Sally-Anne.

   O homem tornou a ignorar a pergunta e foi até a porta. Chamou um dos soldados que estavam no gramado que veio correndo. Carregava um radiotransmissor portátil nas costas, com a antena sobressaindo do ombro como uma cauda de escorpião. O sargento falou baixinho no aparelho e voltou para a sala.

   Ficaram imóveis, esperando. Para Craig, parecia que já se passara uma hora em completo silêncio, mas decorreram apenas cinco minutos até que o sargento levantasse a cabeça, escutando. Ouviu-se um ruído de motor, diferente do gerador, que foi se avolumando e Craig reconheceu o de um Land-Rover.

   Vinha subindo a rampa, e logo os faróis varreram as janelas, e ouviu-se um ranger de freios. O motor foi desligado, portas foram batidas e escutou-se o rumor de passos de um grupo de homens cruzando a varanda.

   O general Peter Fungabera entrou à frente de seus homens pelas portas-janelas. A boina estava inclinada sobre um olho e usava um lenço de seda da mesma cor no pescoço. Exceto pela pistola na cintura, estava armado apenas com o bastão forrado de couro.

   Atrás dele, o capitão Timon Nbebi, alto e de ombros arredondados, tinha uma expressão inescrutável por trás dos óculos de aros de aço. Carregava uma pasta de mapas e tinha ao ombro um coldre com pistola.

- Peter! - O alívio de Craig era temperado pela cautela. Tudo estava muito controlado e ameaçador. - Mataram vários empregados meus. Meu induna está em algum lugar por aí, gravemente ferido.

- Houve muitas baixas entre o inimigo - concordou Peter Fungabera.

- Inimigo? - Craig estava intrigado.

- Dissidentes - reafirmou Peter. - Dissidentes matabele.

- Dissidentes? - Craig encarou-o. - Shadrach, um dissidente? Isso é uma loucura, ele é um simples vaqueiro, um homem simples e sem instrução, não tem nada a ver com política.

- As coisas muitas vezes não são como parecem. - Peter Fungabera puxou a cadeira da cabeceira da mesa, colocou o pé em cima e apoiou o cotovelo no joelho. Timon Nbebi pôs a pasta de mapas na mesa à sua frente e deu um passo atrás, em posição de guarda, com a pistola automática na mão.

- Será que pode, por favor, me dizer que diabos está acontecendo aqui, Peter? - Craig estava exasperado e nervoso. - Alguém atacou minha aldeia e mataram vários do meu pessoal, só Deus sabe quantos. Por que não vai atrás deles?

- O tiroteio acabou - disse Peter Fungabera. - Limpamos o ninho de serpentes traidoras que você estava criando nesta sua propriedade colonialista.

- Mas de que diabos está falando? - Craig estava completamente confuso. - Não pode estar falando sério!

- Sério? - Peter sorriu largamente, endireitando-se, botando os dois pés no chão e caminhando até ele. - Um cachorrinho - continuou, ainda sorrindo. - Que lindo.

Tirou Buster dos braços de Sally-Anne antes que esta compreendesse sua intenção. Voltou à cabeceira da mesa, acariciando-o e coçando-o por trás da orelha. O bichinho estava meio adormecido e fez um ruído deleitado, esfregando-se contra ele e procurando instintivamente a teta materna.

- Sério? - repetiu. - Quero que vejam o quanto é sério.

Atirou o cachorrinho no assoalho de pedra, onde caiu de costas, estonteado. Colocou a bota no peito do animalzinho, comprimiu com toda a força e o bicho soltou um único grito ao ter o peito esmigalhado.

   - Isso é para mostrar o quanto estou sendo sério. - Já não sorria mais. - Suas vidas valem tanto para mim quanto a deste animal.

   Sally-Anne deu um pequeno gemido e virou-se, enterrando o rosto no peito de Craig, nauseada e tentando controlar-se. Peter Fungabera jogou com um pontapé o corpo do cãozinho na lareira e sentou-se.

   - Sr. Mellow, é um agente provocador a soldo da notória CIA americana.

   - Isto é uma mentira suja! - gritou Craig, e Peter ignorou o protesto.

   - Seu contato local era o agente americano Morgan Oxford, da embaixada dos Estados Unidos, e o financiador, um certo Henry Pickering, que usa como fachada o cargo de diretor do Banco Mundial em Nova York. Recrutou você e a srta. Jay.

   - Não é verdade!

   - Sua remuneração era de sessenta mil dólares por ano, e sua missão, organizar um centro de subversão em Matabeleland, financiado com dinheiro da CIA que chegou às suas mãos sob a forma de um empréstimo de uma subsidiária do Banco Mundial controlada pela CIA. A soma para isso foi de cinco milhões de dólares.

   - Meu Deus, Peter, isso é uma tolice, e sabe disso.

   - Durante o resto deste interrogatório, vai se dirigir a mim como "senhor" ou "general Fungabera", está claro?

   Virou-se para ouvir a súbita atividade lá fora. Chegava um comboio de caminhões leves, de onde desembarcaram mais tropas, com ordens dadas em shona. Pelas portas de vidro, Craig viu uma dúzia de soldados carregando pesados caixotes até a varanda.

   Peter Fungabera olhou inquisitivamente para Timon Nbebi, que acenou, confirmando a interrogação muda.

   - Certo! - Voltou-se para encarar Craig. - Podemos continuar. Entabulou negociações com conhecidos traidores matabele, usando o seu conhecimento fluente da língua e o temperamento desta gente intratável.

   - Não pode citar nenhum, porque não existem.

   Peter Fungabera fez um sinal a Timon que gritou uma ordem. Os soldados trouxeram até a sala um homem descalço, vestido só com short, e emaciado ao ponto de parecer ter a cabeça grotescamente grande. O crânio estava raspado e coberto de calombos e crostas recentes, as costelas cortadas por chicotadas, provavelmente com as chibatas chamadas sjambocks, feitas de couro de hipopótamo.

- Conhece este homem branco? - perguntou-lhe Fungabera, e o homem olhou para Craig. Os olhos estavam opacos.

- Nunca o vi antes - Craig ia começar a protestar, mas interrompeu-se ao reconhecê-lo. Era o camarada Dólar, o mais jovem e o mais truculento dos homens do Águas do Zambeze.

- Sim? - incitou-o Fungabera, sorrindo. - O que o senhor ia dizer, sr. Mellow?

- Quero ver alguém do Alto Comissariado Britânico e a srta. Jay quer telefonar para a embaixada americana.

- Naturalmente - assentiu Fungabera. - Tudo no devido tempo, mas primeiro precisamos completar o que começamos. - Voltou-se para o camarada Dólar. - Conhece o homem branco?

- Ele nos deu dinheiro - confirmou Dólar.

- Podem levá-lo - ordenou Fungabera. - Cuidem bem dele e lhe dêem alguma coisa para comer. E agora, sr. Mellow, ainda nega qualquer contato com os subversivos? - Não esperou por uma resposta, mas continuou suavemente. - Construiu aqui um arsenal para ser usado contra o governo eleito pelo povo em um golpe de Estado que colocaria um ditador pró-americano no governo.

- Não tenho armas aqui.

- Suas negativas são inúteis - suspirou Fungabera. - E cansativas. - E dirigindo-se ao alto sargento mashona: - Leve os dois para lá.

Foi, seguido pelos outros, até a larga varanda onde seus homens tinham colocado os caixotes.

- Abra-os - comandou, e os soldados levantaram as tampas.

Craig reconheceu os armamentos estocados lá dentro. Eram fuzis automáticos americanos do tipo Armalite 5.56 mm AR 18. Seis em cada caixote, e novos em folha, ainda com a graxa da fábrica.

- Não tenho nada a ver com isso - Craig finalmente pôde afirmar com veemência.

   - Está abusando de minha paciência. - E Peter Fungabera voltou-se para Timon Nbebi. - Traga o outro homem branco.

   Hans Groenewald, o capataz, foi arrastado de um dos caminhões e levado à varanda. Tinha as mãos amarradas às costas e estava aterrorizado. A cara larga parecia ter desabado em rugas pesadas e dobras de pele como a de um cachorro doente, e o bronzeado empalidecera e ficara cor de café-com-leite. Os olhos estavam injetados e lacrimosos como os de um bêbado.

   - Guardou essas armas nos barracões de tratores desta fazenda? - perguntou Fungabera, e a resposta de Groenewald foi ininteligível.

   - Fale alto, homem.

   - Sim, eu os guardei, senhor.

   - Por ordem de quem?

   Groenewald olhou contristado para Craig que de repente ficou gelado e começou a suar.

   - Por ordem de quem? - repetiu pacientemente Fungabera.

   - Ordens do sr. Mellow, senhor.

   - Podem levá-lo.

   Enquanto os guardas o levavam de volta, Groenewald virou a cabeça para olhá-lo, com uma expressão atormentada, e gritou de repente:

   - Sinto muito, sr. Mellow, mas tenho mulher e filhos.

   Um dos soldados acertou-o com a coronha do fuzil no estômago, logo abaixo das costelas. Groenewald ficou sem fôlego e dobrou-se em dois. Ia caindo, mas o agarraram pelos braços e o enfiaram no caminhão. O chofer ligou o motor e desceram barulhentos a colina.

   Peter Fungabera levou-os de volta para a sala de jantar e sentou-se novamente à cabeceira da mesa. Enquanto arrumava e estudava os papéis da pasta, ignorou completamente Craig e Sally-Anne que foram forçados a ficar em pé, na parede oposta, com um soldado de cada lado, e o silêncio prolongou-se. Mesmo sabendo que aquele silêncio era deliberado, Craig queria interrompê-lo para gritar sua inocência, protestar contra a teia de mentiras, meias verdades e distorções que estavam sendo lentamente armadas.

   Ao lado dele, Sally-Anne estava ereta, segurando as mãos para não deixar que tremessem. O rosto estava esverdeado e suado, e ficava a todo momento olhando a lareira onde o corpo do cachorrinho jazia como um brinquedo jogado fora.

   Por fim, Peter Fungabera empurrou os papéis e recostou-se na cadeira, batendo ritmadamente com o bastão em cima da mesa.

   - É um caso de enforcamento - disse -, uma ofensa capital para você e a srta. Jay.

   - Ela não tem nada a ver com isso - e Craig colocou um braço protetor em seus ombros.

   - Os órgãos da região inferior feminina são menos capazes de suportar o choque da queda no enforcamento - observou Fungabera. - O efeito pode ser bastante bizarro, ou pelo menos é o que me disseram. - O que fez Craig sentir-se doente, nauseado e incapaz de falar. - Por sorte, não precisamos chegar a este ponto. A escolha será de vocês.

   Peter ficou rolando o bastão entre os dedos e Craig descobriu que os olhava fixamente. As palmas e a parte interna dos dedos longos e fortes eram de um rosado delicado.

   - Acredito que tenham sido vítimas de seus mestres imperialistas e capitalistas. - E sorriu novamente. - Vou deixar que partam.

   Ambos levantaram a cabeça e o olharam.

   - Sim, parece que não estão acreditando, mas é essa a minha intenção. Pessoalmente, aprendi a gostar dos dois. Enforcar vocês não me daria qualquer prazer. Ambos têm talentos artísticos e isso seria um desperdício; e, de agora em diante, não vão mais poder causar qualquer problema.

   Continuaram silenciosos, começando a ter um pouco de esperança, e sentindo que tudo aquilo era parte de um cruel jogo de gato e rato.

   - Estou pronto a fazer a vocês uma oferta. Se aceitarem fazer uma confissão completa, mando escoltá-los até a fronteira, com todos os seus documentos e quaisquer possessões e objetos de valor facilmente transportáveis que escolherem. Vou libertá-los para que se vão e não criem mais problemas para mim e para meu povo.

   Esperou, sorridente, batendo ritmadamente com o bastão na mesa, como uma torneira pingando, o que distraía Craig, incapaz de pensar naquele momento. Tudo acontecera rápido demais. Peter Fungabera o pegara de surpresa mudando de tática. Precisava de tempo para se recompor e começar a pensar clara e logicamente outra vez.

   - Uma confissão? - deixou escapar. - Que espécie de confissão?

Mais uma de suas exibições diante de uma corte? Uma humilhação pública?

- Não, acho que não precisamos chegar a isso - assegurou-lhe Fungabera. - Preciso apenas de uma declaração por escrito sua, um relatório de seus crimes e das maquinações de seus patrões. A confissão será testemunhada, e, depois, podem ser escoltados até a fronteira e colocados em liberdade. Tudo muito direto, simples e, posso dizer, muito civilizado e humano.

- Você, naturalmente, vai prepará-la para mim? - perguntou Craig com amargura, e Peter Fungabera riu.

- Como é esperto. - Selecionou um dos documentos à sua frente. - Aqui está. Basta apenas datar e assinar.

Até Craig surpreendeu-se com aquilo.

- Você já mandou batê-la à máquina?

Ninguém respondeu, e o capitão Nbebi levou o documento para ele.

- Por favor, leia, sr. Mellow.

Eram três folhas datilografadas, cheias de denúncias sobre seus "patrões imperialistas" e escritas no jargão histérico da extrema esquerda. Mas naquela mixórdia, como passas em um bolo, estavam todos os fatos de que era acusado.

Leu tudo lentamente, tentando fazer com que o cérebro embotado funcionasse com clareza, mas tudo era irreal e fantástico, parecendo que não o afetava pessoalmente. Até que leu as palavras que lhe restituíram a consciência. Eram tão familiares e tão bem lembradas que queimavam como ácido.

"Admito que por minhas ações provei ser um inimigo do Estado e do povo de Zimbábue."

Eram as mesmas palavras de outro documento que assinara, e subitamente compreendeu qual era a intenção daquilo tudo.

- King's Lynn - sussurrou, e olhou para Fungabera. - Então é disso que se trata. Você está atrás de King's Lynn.

Fez-se silêncio, exceto pelo tamborilar do bastão sobre a mesa. Peter Fungabera não perdia um compasso e continuava a sorrir.

- Você planejou tudo desde o princípio. O seguro para o meu empréstimo; foi você mesmo que incluiu esta cláusula.

A letargia evaporou-se e Craig começou a sentir muita raiva de novo, atirando a confissão no chão. O capitão Nbebi pegou-a e ficou segurando-a, desajeitado. Craig tremia de raiva e deu um passo em direção à elegante figura sentada diante dele, estendendo instintivamente as mãos, mas o sargento shona barrou-lhe o caminho, encostando-lhe o fuzil no peito.

- Seu porco sujo! - sibilou Craig que chegou a salivar de raiva. - Quero a polícia, quero a proteção da lei.

- Sr. Mellow - disse Fungabera calmamente -, eu sou a lei em Matabeleland. O que estou oferecendo é a minha proteção.

- Não vou fazer isso. Não assino esta porcaria. Prefiro ir para o inferno.

- Isso pode ser arranjado - disse Fungabera em voz suave, e continuou em tom persuasivo. - Peço-lhe que deixe de lado todo este teatro e resigne-se ao inevitável. Assine o papel e podemos acabar com toda esta sordidez.

Palavras cruas afloraram aos lábios de Craig e foi com esforço que não as usou, não querendo se degradar diante deles.

- Não - disse ao invés. - Nunca vou assinar esta coisa. Terá de me matar primeiro.

- Dou-lhe uma última chance para mudar de idéia.

- Não. Nunca!

Peter Fungabera virou-se para o sargento.

- Dou esta mulher para você - disse. - Primeiro você e depois seus homens, um de cada vez até que todos o façam. Aqui, nesta sala e sobre esta mesa.

- Meu Deus, você é um monstro - gritou Craig e tentou segurar Sally-Anne, mas os soldados o agarraram e o atiraram na parede. Um deles colocou a baioneta em sua garganta.

O outro torceu o pulso de Sally-Anne, forçando-a a ficar de frente para o sargento. Ela começou a debater-se loucamente, mas o soldado torceu-lhe violentamente o braço, quase levantando-a do assoalho e seu rosto contorceu-se de dor.

O sargento tinha uma expressão neutra, sem qualquer sinal de lubricidade ou gestos obscenos. Agarrou a camiseta de Sally-Anne com as duas mãos e rasgou-a de alto a baixo. Os seios pularam fora, muito brancos e delicados, com os bicos rosados sensíveis e vulneráveis.

- Tenho cento e cinqüenta homens - observou Fungabera. - Vai levar algum tempo para terminar.

O sargento enfiou os polegares na cintura do short e puxou-o para baixo, deixando-o cair, enrolado, nos tornozelos dela. Craig tentou mover-se, mas a ponta da baioneta cortou-lhe a pele da garganta, fazendo escorrer sangue na camisa. Sally-Anne tentou cobrir o triângulo escuro de pêlos com a mão livre num gesto patético e inútil.

Sei como a idéia de carne preta penetrando em sua mulher é terrivelmente desagradável até para um suposto liberal branco como você. - O tom de Fungabera era quase de conversa. - Vai ser interessante ver quantas vezes vai permitir isso.

O sargento e o soldado levantaram Sally-Anne e a colocaram de costas sobre a mesa. O sargento arrancou o short fora, deixando-a calçada e com os frangalhos da camiseta na parte superior do corpo.

Com grande prática, dobraram-lhe os joelhos contra o peito, pressionando-os para baixo e enfiando-os nas axilas. Deviam ter feito isso muitas vezes antes. Estava desamparada, exposta e completamente indefesa. Todos os homens na sala fitavam-lhe as partes secretas do corpo, e o sargento começou a desafivelar o cinto com a mão livre.

- Craig! - ela gritou, e ele encolheu-se involuntariamente como se tivesse levado uma chicotada.

- Eu assino - sussurrou. - Deixe-a em paz e eu assino.

Fungabera deu uma ordem em shona e imediatamente a libertaram. O soldado recuou e o sargento ajudou-a a recompor-se e levantar. Polidamente, devolveu-lhe o short que ela vestiu soluçando e tremendo.

Correu, então, até Craig e abraçou-o. Não conseguiu falar, engasgou na tentativa de conter as lágrimas. O corpo sacudia com os soluços e Craig abraçou-a.

- Quanto mais cedo assinar, mais depressa poderão ir embora.

Craig foi até a mesa, ainda segurando Sally-Anne.

O capitão Nbebi estendeu-lhe uma caneta, ele botou as iniciais nas duas primeiras páginas e assinou a última por extenso. Fungabera e o capitão serviram de testemunhas e Peter disse ao final: Uma última formalidade. Quero que você e a srta. Jay sejam examinados pelo médico do regimento para quaisquer sinais de maus-tratos ou coerção.

Vá para o inferno, será que ela já não suportou o bastante? Por favor, meu caro, faça o que eu desejo.

O médico devia estar esperando em um dos caminhões lá fora.

Era um shona pequeno e elegante, de maneiras enérgicas e profissionais.

- Pode examinar a mulher no quarto, doutor. Verifique particularmente se foi penetrada à força - instruiu-o Fungabera e, quando deixaram a sala, virou-se para Craig. - Neste meio tempo, pode abrir o cofre, tirar seu passaporte e qualquer outro documento que precise para a viagem.

Dois soldados o escoltaram até o escritório no final da varanda, e ficaram vigiando enquanto o abria. Tirou o passaporte, a carteira com os cartões de crédito e o distintivo do Banco Mundial, três talões de travellerscheck e o manuscrito do novo romance. Enfiou tudo numa sacola e voltou para a sala de jantar.

Sally-Anne e o médico saíram do quarto. Colocara um suéter de cashmere azul, uma camisa e jeans. Conseguira controlar a histeria, soltando apenas um soluço ocasional, apesar de tremer ainda. Pegou a sacola da câmera, colocou debaixo do braço o álbum de fotografias e o texto do livro deles.

- Sua vez - convidou Fungabera. Quando ele voltou, Sally- Anne já estava sentada no banco de trás do Land-Rover parado em frente à varanda, tendo o capitão Nbebi ao lado. Havia dois soldados armados na traseira do carro e o assento ao lado do chofer estava reservado para Craig.

Peter Fungabera estava de pé na varanda.

- Adeus, Craig - disse, e Craig olhou-o, tentando mostrar todo o ódio que sentia. - Você realmente não acreditou que eu permitiria que reconstruísse o império de sua família, não é? - perguntou Peter sem rancor. - Lutamos muito duro para destruir aquele mundo.

Enquanto o Land-Rover descia a colina, Craig virou-se para olhar. Peter Fungabera ainda estava na varanda iluminada e de alguma forma sua figura alta parecia diferente. Era como se pertencesse àquilo, como um conquistador tomando posse, o dono da grande propriedade. Craig ficou olhando até as árvores esconderem-no, e só então deixou que o fermento do ódio o invadisse.

As luzes do Land-Rover iluminaram a tabuleta:

CRIAÇÃO DE GADO AFRIKANDER KING'S LYNN PROPRIETÁRIO: CRAIG MELLOW parecia troçar dele; ultrapassaram-na e cruzaram a cerca metálica. Deixaram o solo de King's Lynn e os sonhos de Craig para trás e viraram para o oeste. Os pneus começaram a zumbir monotonamente ao atingirem o asfalto da estrada principal e ninguém dissera ainda uma única palavra.

O capitão Nbebi abriu a pasta que trazia nos joelhos e tirou uma garrafa da forte aguardente local, oferecendo-a a Craig no banco da frente que a recusou bruscamente, mas Nbebi insistiu e Craig segurou-a de má vontade. Tirou a tampa e tomou um gole que encheu-lhe os olhos d'água, mas a bola de fogo no estômago dissolveu-se, confortando-o. Tomou outro gole e passou-a a Sally-Anne que balançou a cabeça.

- Beba - ordenou Craig, e ela obedeceu. Parara de chorar, mas o tremor ainda persistia. O álcool engasgou-a, mas conseguiu engoli-lo e a tremedeira cessou.

- Obrigada - disse, devolvendo a garrafa a Timon Nbebi, e a polidez de uma mulher degradada e humilhada por eles foi embaraçosa para todos.

Alcançaram a primeira barreira da estrada nos subúrbios da cidade de Bulawayo e Craig olhou para o relógio. Faltavam sete minutos para as três da manhã. Não havia outros veículos e os dois soldados de guarda vieram ladear o Land-Rover. Timon Nbebi baixou o vidro da janela e falou com um deles, entregando-lhe um passe. O soldado examinou-o rapidamente à luz da lanterna e devolveu-o, fazendo continência. A barreira foi levantada e eles passaram.

Bulawayo estava silenciosa e sem qualquer sinal de vida; apenas umas poucas janelas ainda estavam iluminadas. Uma luz de trânsito ficou vermelha e o motorista parou, apesar de as ruas estarem desertas. Acima do motor ligado, ouviu-se então o som de fuzis disparando, distante e fraco.

Craig observava o rosto de Timon Nbebi pelo espelho traseiro e viu-o contrair a fisionomia ao som dos disparos. O sinal ficou verde e continuaram, tomando a estrada do sul através dos subúrbios. Nos limites da cidade, havia mais duas barreiras e depois a estrada estava desimpedida.

Viajaram noite adentro em direção ao sul, com os pneus cantando e o vento batendo nos rostos. As luzes do painel davam um reflexo esverdeado às caras, e uma ou duas vezes o rádio na traseira estalou e transmitiu em shona. Numa delas, Craig reconheceu a voz de Fungabera, mas devia estar chamando outra unidade, pois Timon Nbebi não fez qualquer menção de responder e continuaram silenciosos a viagem. O ruído monótono do motor e o calor dentro do carro começaram a entorpecer Craig que, numa reação à tensão, acabou cochilando.

Acordou de repente quando Timon Nbebi respondeu a uma chamada e o som do motor mudou de ritmo. Já estava amanhecendo. Podia ver a silhueta das árvores contra o pálido céu. O Land-Rover diminuiu a marcha e saiu da estrada asfaltada para uma suja estrada lateral.

- Onde estamos? Por que deixamos a estrada? - perguntou Craig.

Timon Nbebi falou ao chofer que parou à beira do caminho.

- Queiram sair, por favor - ordenou, e quando Craig obedeceu, Timon, que aparentemente saltara para ajudá-lo a descer, pegou-lhe rapidamente o braço e, antes que pudesse reagir ao toque frio do metal na pele, algemou-o. Fora tão inesperado e feito com tanta agilidade que por segundos Craig ficou olhando as mãos, espantado, até que gritou:

- Meu Deus, o que é isso?

Mas então Nbebi algemara rápida e eficientemente Sally-Anne, ignorando os protestos, e falava ao chofer e aos dois soldados. Falava rápido e Craig não pôde entender quase nada, mas conseguiu distinguir as palavras shona "matar" e "esconder". Um dos soldados pareceu protestar e Timon, inclinando-se pela porta aberta do carro, pegou o microfone do rádio. Repetiu três vezes uma chamada e, depois de uma curta espera, Fungabera atendeu. Craig reconheceu a voz, apesar da distorção radiofônica. Houve um breve diálogo e Nbebi desligou; o soldado não ousou protestar mais. Claramente, suas ordens tinham sido endossadas.

- Vamos continuar - disse Timon em inglês, e Craig foi bruscamente jogado no banco da frente. A mudança de tratamento era de mau agouro.

O chofer embrenhava-se cada vez mais com o carro na mata espinhenta, e a luz da manhã foi aumentando. O coro de pássaros estava no auge. Craig reconheceu o dueto de um par de capitães-do-mato numa acácia ao lado da estrada. Uma lebre marrom apareceu, correndo e balançando as orelhas compridas e rosadas, o céu começou a arder com as cores estupendas do amanhecer africano e o chofer desligou os faróis.

- Craig, querido, eles vão nos matar, não vão? - perguntou em tom calmo Sally-Anne. A voz estava clara e firme, vencera a histeria e estava de novo controlada. Falou como se estivessem a sós.

- Sinto muito - disse Craig. - Eu devia saber que Peter Fungabera nunca nos deixaria ir.

- Não há nada que pudesse ter feito. Mesmo se tivesse sabido.

- Vão nos enterrar em algum lugar remoto e atribuir nosso desaparecimento aos dissidentes matabele - disse Craig, e Timon Nbebi continuou silencioso e impassível, sem admitir ou negar a acusação.

A estrada bifurcou-se, e mal se via a que ficava à esquerda; Nbebi a indicou, o chofer diminuiu a marcha e seguiram aos trancos pela estrada ruim por mais uns vinte minutos. Já era dia claro e o Sol incendiava o topo das acácias.

Nbebi deu outra ordem e o motorista saiu da trilha, dirigindo cegamente pelo capim alto, beirando um barranco de granito cinzento, até ficarem completamente ocultos mesmo da trilha rudimentar que haviam seguido. Outra ordem breve e o motorista parou, desligando o motor.

O silêncio envolveu-os, aumentando o sentimento de isolamento e distância.

- Nunca ninguém nos achará aqui - disse Sally-Anne em tom calmo e Craig não achou palavras para confortá-la.

- Fiquem onde estão - ordenou Timon Nbebi.

- Não sente coisa alguma pelo que está fazendo? - perguntou-lhe Sally-Anne, e ele virou-se para olhá-la.

Por trás dos óculos de aros metálicos, os olhos talvez estivessem velados pela angústia e pelo arrependimento, mas a boca estava firme. Não respondeu à pergunta e, depois de alguns instantes, saltou do carro. Deu ordens em shona, e os soldados largaram as armas no banco de trás, enquanto o motorista subia na capota para apanhar três pás.

Timon Nbebi enfiou a mão pela janela e tirou as chaves da ignição, levando em seguida os homens a curta distância, onde marcou com a bota dois retângulos na terra acinzentada. Os três shonas tiraram os casacos e começaram a cavar as sepulturas no solo arenoso. Timon Nbebi ficou de lado, observando-os. Acendeu um cigarro e a fumaça cinzenta espiralou-se no ar.

- Vou tentar pegar um dos fuzis - sussurrou Craig.

As armas estavam na parte de trás do carro. Teria de arrastar-se por cima de dois assentos e alcançar as que estavam enfileiradas em pé. Teria que abrir a arma, colocar munição, mudar o seletor de tiro e fazer pontaria pela janela traseira; tudo isso com as mãos algemadas.

- Não vai conseguir - sussurrou Sally-Anne.

- Provavelmente não - disse, taciturno -, mas consegue pensar em outra coisa? Quando eu disser "já", atire-se no assoalho do carro.

Craig torceu-se no assento, mas a perna prendeu-se na barra do freio. Conseguiu soltá-la com um pontapé, respirou fundo e olhou pela janela traseira para o pequeno grupo de coveiros.

- Escute - disse-lhe em tom urgente -, eu a amo. Nunca amei ninguém como amo você.

- Eu também o amo, querido - sussurrou de volta.

- Seja corajosa! - ele disse.

- Boa sorte! - Ela já estava agachada e ele quase conseguiu fazer a manobra, mas, naquele momento, Timon Nbebi virou-se em direção ao carro. Viu Craig virado no assento e Sally-Anne agachada. Franziu as sobrancelhas e voltou ao carro em passadas rápidas e largas. Parou junto à janela aberta e falou baixinho em inglês:

- Não faça isso, sr. Mellow. Estamos todos em perigo mortal. A única chance que resta a vocês é ficarem quietos e não interferirem. Não façam nada inesperado. - Tirou as chaves do carro do bolso e, com a outra mão, abriu o coldre da pistola na cintura. Continuou a falar em tom baixo. - Consegui desarmar os meus homens e estão com a atenção voltada para o trabalho. Quando eu entrar no Land-Rover, não me atrapalhem ou tentem me atacar. Estou correndo um perigo tão grande quanto vocês. Devem confiar em mim. Compreendem?

- Sim - disse Craig. - E pensou: como se eu tivesse escolha!

Timon abriu a porta do lado do chofer e sentou-se à direção.

Olhou uma vez em direção aos soldados que já estavam pela cintura dentro das covas, meteu a chave na ignição e virou-a.

O motor começou a funcionar, barulhento, e os três soldados levantaram as cabeças, surpresos. Na mesma hora, engasgou e morreu. Um dos soldados gritou e pulou de dentro da cova, com o peito nu coberto de suor e terra. Começou a caminhar em direção ao Land-Rover e Timon Nbebi calcou o pé no acelerador, tentando fazer o carro pegar. Tinha um ar desesperado e aterrorizado no rosto.

- Assim vai afogá-lo - disse Craig. - Tire o pé do acelerador!

O soldado começou a correr em direção a eles. Gritava perguntas zangadas e o motor continuava sem pegar, com Timon paralisado ao volante.

O soldado que corria já estava quase chegando e os outros dois, mais lentos, começaram a segui-lo. Gritavam, também, e um deles balançava ameaçadoramente a pá.

- Tranque a porta! - gritou Craig, e Timon abaixou o trinco justamente quando o soldado atirava-se para ela. Tentou abrir o trinco externo com todas as forças e pulou para a porta de trás, antes que Sally-Anne pudesse trancá-la, e abriu-a de um repelão. Inclinou-se e agarrou-a pelo braço, tentando arrastá-la para fora.

Craig ainda estava virado no assento dianteiro; levantou as duas mãos algemadas bem alto e deu-lhe uma pancada na cabeça raspada. A beira aguçada das algemas cortou até o osso e o homem caiu, meio para fora do carro.

Craig o atingiu novamente, bem no meio da testa, e teve uma rápida visão do osso branco no fundo da ferida antes que fosse obscurecido pelo sangue. Os outros soldados estavam a uns poucos passos de distância, como cães de caça em perseguição à presa e armados com as pás.

Naquele momento, o motor pegou afinal. Timon Nbebi engatou a marcha e o Land-Rover disparou. Craig foi atirado por sobre o assento em cima de Sally-Anne e as pernas do soldado ferido prenderam-se numa moita, arrancando-o da porta traseira.

O carro derrapava e pulava sobre o terreno acidentado, com os dois soldados negros correndo e gritando atrás, e a porta abria e fechava com violência. Timon Nbebi corrigiu a direção e mudou de marcha. O Land-Rover acelerou, arrancando por entre rochas e galhos caídos, e os soldados ficaram para trás. Um deles atirou a pá no carro, quebrando a janela traseira e enchendo-o de cacos de vidro.

Timon Nbebi tornou pelas mesmas trilhas de antes, através do capim alto, e começaram a desenvolver uma velocidade impossível de ser acompanhada, fazendo os dois soldados desistirem e ficarem, arquejantes, parados à beira do caminho. Os gritos de raiva e recriminação foram diminuindo e desapareceram. Timon alcançou a trilha de mato no mesmo ponto em que a haviam deixado e virou, aumentando a velocidade.

- Dê-me suas mãos - ordenou, e Craig estendeu-as, ficando livre das algemas. - Tome! Abra as da srta. Jay.

- Meu Deus, Craig, pensei realmente que era o fim da linha - disse Sally-Anne esfregando os pulsos.

- Foi por um fio - concordou Timon, com toda a atenção voltada para o caminho. - Acho que foi Napoleão quem disse isso.

- E, antes que Craig pudesse corrigi-lo, acrescentou: - Por favor, pegue um destes fuzis, sr. Mellow, e coloque um outro a meu lado.

Sally-Anne passou as armas de cano curto para o assento da frente. A Terceira Brigada era a única unidade regular do Exército que ainda tinha fuzis AK 47, uma herança dos instrutores norte-coreanos.

- Sabe usá-lo, sr. Mellow? - perguntou Nbebi.

- Fui dos blindados na Polícia Rodesiana.

- Claro, que tolice a minha.

Craig checou rapidamente o pente curvo em feitio de banana e recarregou-o. Era uma arma nova e bem-cuidada. Só o peso dela na mão mudou completamente sua personalidade. Minutos antes, sentia-se como que à deriva, arrastado por acontecimentos incontroláveis, confuso, incerto e com medo. Agora podia revidar, proteger a si mesmo e à mulher, moldar os acontecimentos e não ser moldado por eles. Era o instinto atávico do homem primitivo, estava armado e Craig rejubilou-se com isso. Virou-se para trás e segurou a mão de Sally-Anne, apertando-a, gesto que ela retribuiu com fervor.

- Agora, ao menos, temos chance de lutar.

O novo tom de voz foi compreendido por ela que animou-se um pouco e sorriu pela primeira vez depois dos acontecimentos daquela noite. Craig soltou-lhe a mão, pegou a garrafa de aguardente e passou-a. Depois que ela bebeu, estendeu-a a Timon Nbebi.

- E então, capitão, que diabos está acontecendo?

Timon engasgou-se com a bebida forte e a voz estava enrouquecida ao responder:

- Estava absolutamente certo, sr. Mellow. Minhas ordens, dadas pelo general Fungabera, eram para levá-lo, e à srta. Jay, para um lugar deserto e matá-los. E também acertou ao dizer que o desaparecimento seria atribuído aos dissidentes matabele.

- E por que não obedeceu às ordens?

Antes de responder, Timon entregou-lhe a garrafa de volta e olhou por cima dos ombros para Sally-Anne.

- Sinto muito que tenha tido que fazer todos os preparativos para a sua execução, sem poder tranqüilizá-los, mas meus homens falam inglês. Tinha que fazer parecer autêntico. Aquilo foi terrível para mim, porque não queria submetê-los a novas provações, depois de tudo o que passaram.

- Capitão Nbebi, perdôo-lhe tudo e o amo por estar fazendo isto, mas por que, em nome de Deus, o está fazendo? - perguntou Sally-Anne.

- O que vou lhes contar, nunca contei antes a ninguém. Sabem, minha mãe era matabele. Morreu quando eu era muito pequeno, mas lembro-me bem dela e honro sua memória. - Não olhou para eles, mas concentrou-se na estrada à frente.

- Fui criado como um shona por meu pai, mas nunca esqueci de meu sangue matabele. São o meu povo e não suporto mais o que está sendo feito a eles. Estou certo de que o general Fungabera percebeu meus sentimentos, apesar de duvidar que saiba a respeito de minha mãe, mas sabe que cheguei ao fim de minha utilidade para ele. Tenho visto uma série de sinais sobre isso. Vivi perto demais do leopardo devorador de homens, e tempo demais para não reconhecer seus humores. Depois que tivesse enterrado vocês, haveria algo para mim: um túmulo anônimo ou talvez os bichinhos de Fungabera.

Timon usou a expressão sindebele, amawundhla ka Fungabera, e Craig ficou surpreendido. Sarah Nyoni, a professora da Missão Tu ti, usara a mesma frase.

- Já ouvi esta expressão antes, mas não a compreendo.

- Hienas - explicou Nbebi. - Os que morrem ou são executados nos centros de reabilitação são levados para o mato e expostos às hienas. Não deixam traços, nem um pedaço de osso ou um tufo de cabelos.

- Oh, meu Deus - disse Sally-Anne, quase sem voz. - Estivemos em Tu ti e ouvimos aquelas feras, mas não compreendemos. Com quantos isso aconteceu?

- Só posso fazer uma especulação: muitos milhares.

- Mal posso acreditar numa coisa dessas.

- O ódio do general Fungabera pelos matabele é uma espécie de loucura, uma obsessão. Planeja acabar com todos eles. Primeiro, foram os líderes, acusados de traição, falsamente acusados, como Tungata Zebiwe.

- Oh, não! - disse Sally-Anne. - Não posso suportar isso. Zebiwe era inocente?

- Sinto muito, srta. Jay - confirmou Timon Nbebi. - Fungabera tinha de ser muito cuidadoso quando mexesse com Zebiwe. Sabia que, se o prendesse por suas atividades políticas, teria toda a tribo matabele em revolta. A senhorita e o sr. Mellow forneceram-lhe uma oportunidade perfeita. Um crime não-político, um crime de cobiça.

- Estou sendo estúpida - disse Sally-Anne. - Mas se Zebiwe não é o caçador-mor, será que realmente existe um? E, se existe, quem é?

- O próprio general Fungabera - disse Nbebi com simplicidade.

- Tem certeza disso? - perguntou incrédulo.

- Fui encarregado pessoalmente de muitos carregamentos de contrabando de animais para fora do país.

- Mas e aquela noite na estrada de Karoi?

- Isso foi muito fácil de organizar. O general sabia que, mais cedo ou mais tarde, Zebiwe iria até a Missão Tuti. A secretária dele nos informou a hora e a data exatas. Conseguimos um caminhão carregado de contrabando, dirigido por um prisioneiro matabele que subornamos para esperá-lo na estrada. Claro que não tínhamos previsto a reação violenta de Tungata Zebiwe, embora isso tenha sido uma sorte para nós.

Timon dirigia à velocidade máxima, enquanto Sally-Anne e Craig estavam jogados nos assentos, com a alegria da fuga sendo rapidamente substituída pela fadiga e pelo choque.

- Para onde está indo? - perguntou Craig.

- Para a fronteira de Botsuana.

Era o país interior que fazia fronteira ao sul-e ao oeste e tornara-se ponto obrigatório para fugitivos políticos dos países vizinhos.

- A caminho de lá, espero que tenham a chance de ver o que realmente está acontecendo com meu povo. Ninguém mais quer testemunhar o fato. O general fechou todo o sudoeste de Matabeleland. Não permite a ida de jornalistas, religiosos ou da Cruz Vermelha. ..

Diminuiu a marcha numa zona esburacada por tamanduás à procura de formigueiros e tornou a acelerar após atravessá-la.

- O passe que tenho nos levará só até um pouco mais adiante, mas não até a fronteira. Vamos ter de passar por pequenas estradas laterais até acharmos um local seguro para atravessar a fronteira. O general Fungabera logo descobrirá minha deserção e seremos caçados por toda a Terceira Brigada. Temos que colocar a maior distância possível entre nós e eles antes que isso aconteça.

Chegaram à encruzilhada principal da estrada e Timon parou, mas continuou com o motor ligado. Pegou um mapa de larga escala na pasta e estudou-o atentamente.

- Estamos logo ao sul da estrada de ferro. Este é o caminho para a estação da Missão Empandeni. Se pudermos passar por lá antes que seja dado o alarme, tentaremos a fronteira entre Madaba e Matsumi. A polícia de Botsuana tem uma patrulha regular ao longo da cerca.

- Vamos em frente. - Craig estava impaciente e temeroso, e o conforto que lhe dera a arma que trazia no colo diminuía. Timon dobrou o mapa e continuou.

- Posso lhe fazer mais algumas perguntas? - perguntou Sally- Anne depois de alguns minutos.

- Vou tentar responder - concordou Timon.

- Os assassinatos dos Goodwin e de outras famílias brancas de Matabeleland - foram atrocidades ordenadas por Tungata Zebiwe? É ele o responsável por aqueles assassinatos terríveis?

- Não, não, srta. Jay. Zebiwe tem tentado desesperadamente controlar aqueles assassinos. Acredito que estava a caminho da Missão Tuti por esta razão: encontrar-se com os radicais matabele e tentar argumentar com eles.

- E a inscrição em sangue "Tungata Zebiwe Está Vivo"?

Timon Nbebi ficou silencioso, com o rosto contraído como se travasse uma luta interna, e ficaram esperando que falasse. Por fim, soltou um suspiro fundo e a voz alterou-se.

- Srta. Jay, por favor, tente compreender minha posição, antes de julgar-me pelo que vou contar. O general Fungabera é um homem persuasivo. Fui embalado por suas promessas de glórias e recompensas. E, de repente, vi que tinha ido muito longe e não poderia voltar atrás. Acho que a expressão correta é "cavalgar um tigre". Era arrastado de uma má ação para outra pior ainda. - Fez uma pausa e disse, apressadamente: - Recrutei pessoalmente os matadores da família Goodwin no centro de reabilitação. Disse-lhes aonde ir, o que fazer e o que escrever naquela parede. Dei-lhes armas e providenciei para que fossem até lá em transporte da Terceira Brigada.

Fez-se silêncio novamente, quebrado apenas pelo ruído do motor do Land-Rover, e Timon Nbebi teve que interrompê-lo, como se isso o aliviasse da culpa.

- Eram veteranos matabele, guerreiros endurecidos, homens que fariam qualquer coisa para ficarem de novo em liberdade, com chance de tornar a carregar armas, e não hesitaram um minuto.

- E Fungabera deu ordens para isso?

- Claro. Era a desculpa para começar o expurgo dos matabele. Talvez agora entendam por que estou fugindo com vocês. Não podia mais continuar nesse caminho.

- As outras mortes, o assassinato do senador Savage e da família? - perguntou Sally-Anne.

- O general Fungabera não teve que dar ordens para isso. - Timon balançou a cabeça. - Foi um rastilho de pólvora. A floresta ainda está cheia de homens selvagens do tempo da guerra. Escondem as armas e vão para as cidades, alguns até têm empregos regulares; no fim de semana ou em algum feriado, voltam para lá, desencavam os fuzis e vão pilhar. Não são dissidentes políticos, são bandidos armados e as famílias brancas são os alvos mais apetitosos, ricos e, sem armas devido à proibição do governo de Mugabe, incapazes de defender-se.

- É tudo como sopa no mel para Peter Fungabera. Qualquer bandido é classificado como dissidente político, qualquer roubo é violento, uma desculpa para continuar o expurgo, que ele mostra ao mundo como prova da selvageria e intratabilidade da tribo matabele - continuou Craig por ele.

- Exato, sr. Mellow.

- E já assassinou Tungata Zebiwe... - Craig sentiu-se velho e cansado, cheio de remorso e culpa por causa do velho companheiro. - Podem estar certos disso!

- Não, sr. Mellow. - Timon balançou a cabeça. - Não acredito que Zebiwe esteja morto. Acho que o general o quer vivo. Tem alguns planos para ele.

Que planos? - perguntou Craig.

Não sei ao certo, mas acredito que Peter Fungabera esteja tratando com os russos.

- Os russos? - Craig olhou-o, sem acreditar.

- Tinha encontros secretos com um estrangeiro, um homem que creio ser membro importante da inteligência russa.

- Está certo disso, Timon?

- Vi o homem com meus próprios olhos.

Craig pensou sobre isso por alguns instantes e voltou à pergunta original:

- Certo, vamos deixar os russos de lado por enquanto. Onde está Tungata Zebiwe? Onde Fungabera o mantém preso?

- Não sei. Sinto muito, sr. Mellow.

- Se está vivo, que Deus tenha piedade de sua alma - sussurrou Craig.

Podia imaginar o que Tungata estava sofrendo. Ficou silencioso durante algum tempo e mudou o teor das perguntas.

- O general Fungabera desapropriou meus bens em benefício próprio e não do Estado, não é? Estou certo?

- O general cobiçava muito aquelas terras. Falou sobre isso muitas vezes.

- Mas como? Quero dizer, mesmo que seja semilegal, como vai conseguir isso?

- É muito simples - explicou Timon. - O senhor é um inimigo confesso do Estado. Sua propriedade será confiscada por ele. O Banco Mundial vai repudiar a cláusula de segurança de seu empréstimo, a que assinou. O encarregado oficial de propriedade inimiga colocará suas ações da Companhia Rholands à venda a particulares. A oferta do general será aceita, o cunhado dele é o encarregado oficial, e o preço será muito vantajoso.

- Aposto que sim - disse Craig, com amargura.

- Mas por que ele chegaria a tal ponto? - perguntou Sally- Anne. - Deve estar multimilionário. Será que já não tem o bastante?

- Srta. Jay, para certos homens não existe o bastante.

- Ele não pode achar que vai sair-se bem dessa, não é?

- E quem vai impedi-lo, senhorita? - Como ela não respondeu, Timon continuou: - A África está retornando ao ponto em que estava antes da intrusão do homem branco. Só existe um único critério aqui para um governante, e esse critério é o poder. Nós, africanos, não confiamos em nada mais. Fungabera é poderoso, como Tungata Zebiwe foi um dia. - Olhou no relógio de pulso. - Precisamos comer alguma coisa. Acho que vamos ter um longo dia pela frente.

Saiu fora da estrada com o Land-Rover e parou em um trecho protegido pela vegetação. Subiu na capota e cobriu o carro com galhos de árvore para escondê-lo de uma busca aérea. Abriu a caixa de rações de emergência guardada embaixo dos assentos e tirou água do depósito por baixo do assoalho.

Craig encheu uma vasilha de metal com areia e molhou-a com gasolina do tanque de reserva, fazendo um fogareiro sem fumaça para preparar chá. Comeram as pouco apetitosas rações frias quase sem conversar.

Uma vez, Timon ligou o rádio, ouvindo a transmissão, mas balançou a cabeça.

- Não há nada a nosso respeito. - E foi acocorar-se perto de Craig.

- A que distância será que estamos da fronteira? - perguntou a Timon, com a boca cheia de carne em conserva fria e grudenta.

- Cerca de uns setenta quilômetros ou pouco mais.

O rádio tornou a chiar, e Timon pulou, abaixando-se atentamente para ouvir.

- Há uma unidade da Terceira Brigada a alguns quilômetros à nossa frente - disse-lhes. - Estão na estação da Missão Empandeni. Houve uma luta com dissidentes, mas já cuidaram deles e estão avançando, talvez nesta direção. Temos de ser cautelosos.

- Vou verificar se podem nos ver da estrada. - Craig levantou-se. - Sally-Anne, apague o fogo! Capitão, cubra-me!

Pegou o AK 47 e correu de volta à trilha. Examinou a vegetação que encobria o Land-Rover e apagou os próprios rastros e os do carro com um ramo, endireitando cuidadosamente o capim achatado pelo veículo ao deixarem a estrada. Não era perfeito, mas agüentaria um exame superficial de um carro em velocidade. Foi quando ouviu uma ligeira vibração no ar parado. Prestou atenção e viu que era o som de motores de caminhão se aproximando. Correu de volta ao Land-Rover e subiu no assento da frente, ao lado de Timon.

Coloque o fuzil novamente aí atrás - disse o capitão e, ao ver Craig hesitar, continuou: - Por favor, faça o que eu digo, sr. Mellow. Se nos encontrarem, será inútil tentar resistir. Vou tentar falar com eles e convencê-los a nos deixar partir. Que explicação poderia dar se estiver armado?

Relutantemente, Craig passou a arma a Sally-Anne que a recolocou no lugar, deixando-o nu e vulnerável, e obrigando-o a cerrar os punhos. O som dos motores cresceu rapidamente; apesar da tensão, Craig arrepiou-se com a beleza peculiar das vozes africanas que cantavam.

- É a Terceira Brigada - disse Timon. - A "Canção dos Ventos de Chuva", a canção do regimento.

Nenhum dos dois respondeu e Timon começou a cantar baixinho. Tinha uma voz surpreendentemente bonita.

"Quando a nação arde, os ventos de chuva trazem alívio.

Quando o gado sofre com a seca, os ventos de chuva o levanta.

Quando as crianças choram com sede, os ventos de chuva as saciam.

Somos os ventos que trazem a chuva.

Os bons ventos da nação."

Timon traduziu-a do shona, e Craig podia ver a poeira cinzenta dos caminhões acima da vegetação e ouvir o canto claro e nítido.

Houve um reflexo metálico à luz do Sol e, pela folhagem, entreviu rapidamente o comboio que passava. Eram três caminhões, pintados de cor de areia, com as traseiras carregadas de soldados em uniforme camuflado de combate e as armas em posição de alerta. No último caminhão, ia um oficial, o único a usar a boina vermelha e o distintivo prateado, que olhou diretamente em direção a Craig. Pareceu tão próximo e a folhagem, tão esparsa, que encolheu-se no banco.

Felizmente, o comboio passou, o som dos motores e do canto foi sumindo e a poeira assentou.

Timon Nbebi soltou um suspiro fundo.

- Vamos topar com outros - avisou e, com os dedos na ignição, esperou que se fizesse silêncio completo. Deu a partida e voltou para a estrada.

Viraram em direção contrária ao comboio e correram por cima das marcas de pneus impressas na terra arenosa. Andaram por mais vinte minutos antes que Timon, subitamente, se erguesse a meio do assento para espiar o céu pelo pára-brisas.

- Fumaça - disse. - Empandeni está logo à frente. Será que pode preparar sua câmera, srta. Jay? Acho que a Terceira Brigada deixou alguma coisa para a senhora.

Chegaram às plantações de milho que circundavam a aldeia da missão. As hastes haviam secado e as espigas amarelas começavam a pender, pesadas e prontas para a colheita. Corpos de mulheres, que tinham estado trabalhando, estavam espalhados pelo campo. Uma delas caíra junto à estrada. Tinha levado um tiro nas costas enquanto corria e a bala saíra entre os seios. O bebê que carregava às costas fora espetado com baioneta várias vezes. As moscas que zumbiam em torno subiram em uma nuvem azulada, ao passarem, e tornaram a pousar.

Ninguém dizia uma palavra. Sally-Anne pegou a câmera e preparou a Nikon, sua pele estava acinzentada sob as sardas.

Outras mulheres jaziam mais adiante, depois da estrada, meras trouxas de roupas coloridas sujas de sangue. Havia, talvez, umas cinqüenta cabanas na aldeia e todas ardiam, com os telhados de palha como tochas contra o céu claro e azul da manhã. A maioria dos cadáveres fora atirada nas cabanas incendiadas, deixando poças escuras onde haviam tombado e marcas dos corpos arrastados pelo chão. O cheiro de carne queimada era muito forte e invadia-lhes as narinas. O estômago de Craig embrulhou-se e ele cobriu a boca e o nariz com a mão.

- São esses os dissidentes? - murmurou Sally-Anne, com os lábios gelados e brancos. O motor da Nikon zumbia enquanto fotografava pela janela aberta.

Tinham matado as galinhas, também, e as penas flutuavam na brisa, como o recheio de um travesseiro rasgado.

- Pare! - ordenou Sally-Anne.

- É perigoso ficar aqui - disse Timon.

- Pare - repetiu.

Deixou a porta do carro aberta e caminhou por entre as cabanas. Trabalhando rápido, mudava rolo após rolo de filme, enquanto os lábios tremiam e os olhos que focavam as lentes estavam cheios de horror.

Temos de ir embora - disse Timon.

Espere. - Sally-Anne moveu-se rapidamente para a frente, fazendo o trabalho como a profissional que era, e foi para trás de um grupo de cabanas.

O cheiro de carne queimada nauseava Craig e o calor do fogo chegava até eles como rajadas de fornalha na brisa.

Sally-Anne gritou e os dois homens saltaram correndo do Land- Rover, apontando os fuzis e dando-se cobertura de fogo. Craig descobriu que o velho treinamento retorna instintivamente, e dobrou ao lado de uma cabana.

Sally-Anne estava em um trecho descoberto, incapaz de continuar a usar a câmera, com uma negra a seus pés. A parte superior do corpo era o de uma jovem e bela mulher, mas abaixo do umbigo estava transformada em uma monstruosidade. Arrastara-se para fora do fogo onde a haviam atirado. Havia lugares onde as queimaduras não eram profundas, mas, em outros, os ossos estavam expostos; a bacia, torrada como um carvão, emergia dos quadris, o estômago fora destruído pelas chamas e as entranhas derramavam-se para fora. Miraculosamente, ainda estava viva. Os dedos arranhavam o chão em movimentos mecânicos e repetitivos, a boca abria-se e fechava-se convulsivamente, sem um som, e os olhos estavam abertos, alertas e cheios de sofrimento.

- Volte para o carro, por favor, srta. Jay. Não há nada que possa fazer para ajudá-la - disse Timon Nbebi.

Sally-Anne ficou parada, incapaz de mover-se; Craig passou o braço em torno de seus ombros e foi levando-a de volta para o Land-Rover.

Ao dobrarem ao lado da cabana, olhou para trás. Timon Nbebi estava de pé, junto à mulher ferida, com o AK 47 apoiado nos quadris, pronto para disparar, com toda a atenção focada e o rosto quase tão devastado pelo sofrimento quanto o dela.

Foram em direção ao carro e ouviram um único tiro, abafado pelo estalido das chamas em toda a volta. Sally-Anne cambaleou e conseguiu equilibrar-se. Ao chegarem, apoiou-se na capota e dobrou-se para vomitar, endireitando-se depois e limpando a boca com o dorso da mão.

Craig pegou a garrafa de aguardente e viu que ainda restava um dedo no fundo. Deu-a a Sally-Anne que a bebeu como se fosse água. Craig pegou a garrafa vazia e atirou-a em direção à cabana em chamas.

Timon Nbebi saiu de trás da palhoça, e sem dizer palavra sentou-se ao volante, enquanto Craig ajudava Sally-Anne a entrar no assento traseiro. Rodaram lentamente pelo resto da aldeia, desviando os rostos a cada novo horror que surgia.

Quando passavam pela igrejinha de tijolos vermelhos, o teto desabou e a cruz de madeira da torre foi engolida por uma golfada de faíscas, chamas e fumaça azulada. À luz do Sol, as chamas eram quase invisíveis.

 

 

                                                                CONTINUA

 

 

TIMON Nbebi manipulava o rádio como se fosse um sonar em busca de um canal de águas rasas.

Os bloqueios e grupos emboscados da Terceira Brigada faziam relatórios pela rede VHF aos quartéis-generais de suas áreas, dando as posições como parte do procedimento rotineiro, e Timon os assinalava no mapa.

Por duas vezes, evitaram bloqueios enveredando por estradas laterais e trilhas de gado, avançando cautelosamente pela floresta de acácias. Seguindo por esses caminhos alcançaram pequenas aldeias, meros pousos de gado, e lar de duas ou três famílias matabele. A Terceira Brigada os havia precedido, e a presença dos urubus e abutres denunciava a carnificina; banqueteavam-se nos corpos queimados que jaziam nas cinzas das cabanas incendiadas.

 

 

 

 

Continuaram na direção oeste, sempre que os caminhos permitiam. Em cada subida com uma visão mais geral, Timon estacionava e escondia o carro, enquanto Craig incumbia-se de verificar o que havia à frente. Em todas as direções, podia ver as colunas de fumaça das aldeias incendiadas. Seguiam ainda em direção oeste e o terreno mudou abruptamente quando atingiram os limites do deserto de Kalahari. Havia cada vez menos marcos na paisagem. A terra foi se transformando em uma planície monótona e cinzenta, ardendo infindavelmente sob o sol alto e implacável. As poucas árvores existentes eram raquíticas e seus ramos tortos assemelhavam-se a membros aleijados. Era um território hostil que daria sustento apenas às mais rudimentares necessidades humanas. Era apenas o começo do grande deserto, mas mesmo assim prosseguiram.

O Sol começou a declinar e haviam percorrido só uns sessenta quilômetros desde o amanhecer. Craig calculou pelo mapa que restavam, pelo menos, outros quarenta quilômetros até a fronteira, e estavam os três exaustos com a tensão contínua e...

 

 

                                                                 

 

 

                                                   

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