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A NOIVA DE LAMMERMOOR / Walter Scott
A NOIVA DE LAMMERMOOR / Walter Scott

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

À MANEIRA DE PREFÁCIO

ONDE SE CONTA A HISTÓRIA DA VERDADEIRA LUCY DE LAMMERMOOR

Foram Charles Kirpatrick Sharpe e um certo "Dicionário de Biografias Nacionais» que nos trouxeram o conhecimento exacto dos factos e das figuras que inspiraram o genial Walter Scott a compor um dos seus melhores romances - esse que oferecemos hoje gostosamente ao bom interesse dos nossos leitores.

De facto, embora Scott confessasse certa vez que se baseara em dados reais para escrever "A Noiva de Lammermoor - ele próprio rodeava as suas declarações de uma notória penumbra de mistério. E difícil se tornava destrinçar se tal "mistério» era apenas um artifício literário para aumentar a emoção do leitor se, pelo contrário, tinha a sua origem em escrupuloso respeito pelos modelos humanos das suas figuras romanescas...

Porém, hoje em dia, com a preciosa ajuda, como dissemos, de Sharpe e do «Dicionário de Biografias Nacionais", o segredo de Walter Scott, relativo à "Noiva de Lammermoor", deixou de ser segredo!

E desde já, até como pormenor sugestivo, podemos acrescentar, sem sombra de dúvida, que tal como a protagonista do romance, também a verdadeira Lucy casou a 24 de Agosto de 1669, morrendo, aproximadamente, uma quinzena depois, a 12 de Setembro...

Simplesmente, ela, na vida real, não se chamava Lucy. Chamava-se Janet. Janet Dalrymple, filha de James Dalrymple, visconde de Stair e o fundador de uma das mais famosas famílias da nobreza escocesa.

Janet Dalrymple... Sua mãe - aquela que Scott imortalizou sob a figura de Lady Ashton - era Margaret Ross Le Balniel e correspondia em absoluto à personagem do romance. Autoritária, orgulhosa, senhora de uma extraordinária fortaleza de ânimo e puritana como só ela o sabia ser, mereceu aos seus contemporâneos a designação de A feiticeira d'Endon. Dizia-se que ela era capaz de assumir os aspectos mais diversos e que uma das suas filhas - irmã, portanto, de Janet - também tinha ligações secretas com o demónio...

Talvez por isso mesmo as lendas e as baladas da velha Escócia cantavam lugubremente que não só os filhos dos Stair mas também os filhos dos seus filhos seriam sempre possuídos do poder diabólico...

É fácil de imaginar, decerto, a influência de tais factos na inspiração de Scott ao escrever este modelar romance.

Janet Dalrymple... Amava um e foi obrigada a casar com outro. História simples e brutal, como muitas vezes acontece! O seu coração pertencia a Lorde Rotherford. Mas o outro - David Dunhar de Baltoon - tinha a seu favor a ambição de Margaret Ross, «a feiticeira d'Endor.

E Janet casou com David. Casou para morrer. Na própria noite a foram encontrar, no seu quarto nupcial, já de razão perdida, vagueando errante nas trevas da loucura e fazendo companhia a um marido ensanguentado e semimorto.

Que se passara nessa noite trágica de núpcias? Nunca ninguém o soube - mas a um romancista como Scott inúmeras versões surgiram imediatamente.

Mais do que nunca, a verdade foi aproveitada como prodígio de imaginação...

Mas sabendo aproveitar as possibilidades emocionais da história verdadeira que lhe serviu de tema, Walter Scott preferiu e muito bem - transladar a acção, de Edimburgo e Glásgua, onde ela se passou realmente, para a pitoresca e fantástica região de Lammermoor, no lado oriental da Escócia.

Aí, na moldura de cenários espantosamente belos e originais, ele pôde desenhar mais à vontade a aventura dramática dos seus personagens.

E locais há que ainda hoje continuam a atrair a atenção de curiosos e estudiosos pelo muito de semelhante que oferecem com os locais do próprio livro. Assim, o Castelo de Fast teria servido de modelo para o célebre "Wolf's Crag», ainda que Scott chegasse a tentar defender muito dèbilmente essa versão...

Quanto ao Castelo de Ravenswood foi copiado de qualquer dos grandes castelos da região - Cockburn, Innerwick ou Douglass. E a própria «Wolf's Hope», onde Caleb comete algumas das suas tropelias, é nem mais nem menos do que Eyemouth, pacata vilória de pescadores...

5 - Caso digno de registo: «A Noiva de Lammermoor" foi um romance ´«não escrito» directamente por Scott e sim ditado por ele aos seus dois secretários, no meio das mais atrozes dores.

Talvez resida neste motivo fundamental a característica de ser uma obra mais auditiva do que visual. E isso explica-se facilmente. Scott não lia o que estava a compor "Ouvia-se" a compor, para que os outros escrevessem.

De qualquer modo, porém, somos dos que consideram este livro uma das obras-primas da literatura mundial. E fazemos nossas as palavras do crítico francês Charles Chassé, quando afirma que indubitavelmente, entre todos os livros de Walter Scott, a posteridade preferirá a "Noiva de Lammermoor".

Porquê? Talvez porque Lucy e Ravenswood possuem em si próprios aquele fluxo eterno que gerou Romeu e Julieta ou Tristão e Isolda... Talvez porque, ao contrário de outras obras do mesmo autor, as personagens respiram humanidade e agem como pessoas de todos os tempos... Talvez porque nos faz (embrar Shakespeare e Sófocles, os antigos e os clássicos ligados num mesmo abraço de pensamento, que, também, é dizer num mesmo sentido de compreensão do homem pelo homem... Talvez porque o próprio prestígio já alcançado pelo volume o impõe ao nosso próprio espírito - e, a propósito, lembremo-nos que o teatro, o cinema e a rádio já o espalharam pelo Mundo, especialmente através da ópera de Donizetti...

E, talvez, porque no fundo da história romanceada havia a história da própria vida. E, digam lá o que disserem, a vida ainda é a fonte onde os escritores de todos os tempos e de todas as escolas podem ir beber a água mais pura e mais saborosa!

 

 

 

 

Assim começa uma história...

 

Ganhai vossa vida com tintas brancas e vermelhas, empregai toda a vossa habilidade para aqueles que o desejam: Eis um ofício bom para mendigos.

Canção antiga

 

O meu pobre amigo e condiscípulo Dick Tinto, filho de um alfaiate de Langdirdum, fora destinado, de início, a continuar o ofício de seu pai. A sua vocação foi mais forte. Mostrou muito gosto para a pintura: fez-se pintor de tabuletas. Mas se conseguiu na sua arte alguma reputação, se obteve, em todo o caso, bom êxito, não conseguiu ganhar nada: e foi quase na miséria que morreu em Londres.

Guardo a maior estima pela sua memória. Recordo-me das conversas que tínhamos frequentemente, as quais se referiam, em geral, aos meus trabalhos. Ele mostrava-se encantado. Pretendia fazer uma edição ilustrada, com iluminuras e vinhetas, todas as maravilhas do seu pincel hábil e patriótico. Chegou mesmo a fazer pousar um velho sargento inválido na personagem de Bothwel, o guarda de corpo de Carlos II, e o sineiro de Gandercleugh no de David Deans. Mas enquanto se propunha reunir os seus dons com os meus, para valorizar os meus contos, não deixava de juntar uma crítica salutar aos elogios que eu, por vezes, lhe inspirava.

As suas personagens, meu caro Pattieson - disse-me certa vez - falam muito. Há páginas inteiras que não passam do diálogo."

- Não costumava dizer um antigo filósofo: "Fala para que te conheça!"? - respondia-lhe eu - Como seria possível a um autor dar a conhecen os seus heróis de um modo mais interessante, mais efectivo, que pelo diálogo onde se manifesta o seu próprio carácter?

- É uma conclusão falsa - retorquiu Tinto - Na prática das belas-artes não é precisa a linguagem para fixar no espírito a realidade e o efeito de uma cena. Uma atitude, um modo de ser, uma situação, bem desenhadas, valorizadas com um colorido apropriado, explicam mais do que a pena, sem ter que recorrer a esses constantes disse ele e disse ela com que costuma preencher as suas páginas.

- Não confunda o trabalho do pincel com o da pena - respondi - A pintura é a arte serena e silenciosa, como a definiu um dos nossos primeiros poetas, e dirige-se necessariamente à vista porque não tem um órgão para falar ao ouvido; enquanto que a poesia, ou o género de composição que se lhe aproxime, é fatalmente forçada a agir ao invés, dirigindo se ao ouvido para provocar um interesse que não teria por intermédio dos olhos.

Este argumento não fez vacilar Dick Tinto.

- Não há nada mais fastidioso - retorquiu ele - do que uma descrição muito longa escrita à maneira de drama. A tradição garante a autenticidade da história. Mas como os factos remontam a mais de cem anos, a exactidão de certos pormenores pode, muito bem, ser posta em dúvida.

Em seguida, Dick Tinto pôs-se a procurar nos seus cartões um esboço com o qual pretendia pintar um quadro de catorze pés de altura por oito de larga. O esboço, executado com muita perfeição, representava um antigo hall decorado e mobilado, como nós chamamos hoje, em estilo Elizabeth. A claridade, que entrava pela parte superior de uma janela alta, iluminava uma rapariga de rara formosura que, numa atitude de mudo terror, parecia aguardar o resultado de uma discussão entre outros dois personagens. Um deles era um rapaz vestido com um desses trajos à Van Dick, que se usavam no reinado de Carlos I. Com indignação e orgulho, cabeça levantada, braço estendido, parecia exigir um direito a uma dama cuja idade e uma certa semelhança de traços indicavam como sendo a mãe da rapariga e que, aparentemente, o ouvia com desagrado e impaciência.

Tinto, ao mostrar-me o seu esboço, tinha um ar de mistério e de triunfo. A expressão do meu entusiasmo não devia ser proporcional ao calor do seu, pois exclamou:

- Tenho pensado sempre, senhor Pattieson, que os seus olhos não vêem bem!

E como eu afirmasse que os meus olhos eram como os de toda a gente, Tinto prosseguiu:

- É preciso que o senhor seja cego para não ter descoberto, à primeira vista, o facto e o significado deste esboço. Não pretendo engrandecer a execução do meu trabalho; mas a concepção, a expressão, as poses, tudo, aqui, fala a quem olha. Que eu acabe o meu quadro sem enfraquecer a primeira ideia, e o nome de Tinto nunca mais será toldado pelo fumo da inveja e da intriga.

Respondi que admirava no mais alto grau o esboço, mas que, para lhe dar todo o mérito, era absolutamente necessário que ele me indicasse o assunto.

- É disso, precisamente, que me queixo - respondeu Tinto - O senhor está tão habituado aos mais pequenos pormenores que já perdeu toda a disposição para aceitar esses clarões súbitos que fazem no espírito a combinação feliz e expressiva das posições, das atitudes, do momento, e não só lhe revela o passado dos personagens postos em cena e a natureza do trabalho que os ocupa, mas ainda levanta o véu do seu futuro e lhe permite antever o seu próximo destino.

- Nesse caso - repliquei - a pintura torna-o superior ao simbólico macaco do famoso Ginés de Passamont, que não se preocupa com o passado nem com o presente; superior à própria Natureza, que lhe dá os assuntos De uma maneira geral, ao ver o ar apaixonado que deu à rapariga, e a perna admirável que teve a intenção de desenhar ao seu cavaleiro, presumo que entre eles existe um caso de amor.

- Atreve-se a fazer tal conjectura? - disse Tinto - E a indignação com que o jovem defende a sua causa? E o abatimento, o desespero passivo da rapariga? E o ar de inflexível resolução da dama, que nos deixa adivinhar que apesar de compreender o erro, nele persiste?...

- Se o olhar dela reflecte tudo isso, meu caro Tinto, o seu pincel rivaliza com a arte de Puff, que, na comédia de Sheridan, "O crítico", adivinha uma ideia complicada no eloquente menear de cabeça de lorde Burleigh.

- Meu bom amigo Pedro - replicou Tinto - considero-o incorrigível. Contudo, tenho dó da sua lentidão de espírito e não lhe quero recusar o prazer de compreender o meu quadro e, ao mesmo tempo, dar-lhe assunto para a sua pena. Fique sabendo, desde já, que, no Verão passado, enquanto ensaiava alguns esboços na costa do Lothian oriental e do Berwickshire, deixei-me seduzir, nas montanhas de Lammermor, pela história que me contaram acerca da existência dalguns vestígios de antiguidades daquela região. Interessara-me imenso pelas ruínas de um velho castelo do qual fazia parte, há muitos anos, este aposento de estilo Elisabeth, como lhe chamou. Hospedei-me dois ou três dias numa herdade vizinha. A minha hospedeira, bondosa mulher de idade avançada, conhecia muito bem a história do castelo e os acontecimentos que ali se tinham desenrolado. Um deles oferecia interesse tão particular que me decidi a desenhar as suas ruínas num quadro de paisagem. Eis os apontamentos que consegui tomar - concluiu o pobre Dick, entregando-me um maço de papéis, onde, no meio de caprichosos rabiscos, uns traçados a lápis, outros à pena, perfis, caricaturas, esboços de torres, de moinhos, de velhos pinheiros, de pombais, disputavam o lugar à escrita.

Consegui, apesar de tudo, extrair menos mal a substância dos apontamentos e fiz a história que vão ler. Conformando-me, em parte, com o conselho do meu amigo Tinto, não deixei, no entanto, de ceder à minha natural propensão e as minhas personagens, como tantas outras neste mundo de faladores, falam, aqui e ali, talvez mais do que se movem.

 

Espadas em vez de orações

 

Pois bem, meus lordes, o nosso triunfo não foi completo. Pusemos o inimigo em debandada, mas ainda podemos considerá-lo temível adversário.

SHAKESPEARE (Segunda parte de Henrique VI)

 

Num desfiladeiro, no coração das férteis planícies do Lothian oriental, existiu, há muito tempo um grande castelo, do qual só restam hoje ruínas.

Foi, na sua origem, propriedade de poderosa e belicosa raça dos barões de Ravenswood. Desde remotos tempos que esta família se aliara sucessivamente, aos Douglass, aos Hume, aos Swinton, aos Hay. A sua história confundia-se com a da própria Escócia. O castelo de Ravenswood dominava a entrada de um desfiladeiro entre o condado de Berwick ou de Merse, como chamavam então à província sudoeste da Escócia, e os Lothians; e daí a sua importância nas épocas de guerra estrangeira ou de discórdia civil. Assediado com ardor, defendido obstinadamente, assegurou aos seus possuidores um papel importante na história. Mas, como todas as coisas deste mundo, a casa de Ravenswood sofreu transformações: perdeu bastante do seu esplendor por meados do século XVII e, na altura da catástrofe que precipitou do trono James II, o último proprietário do castelo de Ravenswood viu-se obrigado a abandonar a antiga residência de sua família para se recolher a uma torre solitária, batida pelas ondas, na desolada costa que vai de Saint Abb's Head à aldeia de Eyemouth, dominando o mar do Norte, fértil em tempestades e pouco frequentado pelos navegadores. Esta torre, sua única riqueza, erguia-se no meio de uma paisagem agreste e selvagem.

Herdeiro daquela família arruinada, lorde Ravenswood estava longe de habituar o seu espírito a essa nova condição de vida. Durante a guerra civil de 1689 serviu a causa perdida; tinha salvo a cabeça e os seus bens, mas despojaram-no do título e se lhe chamavam lorde Ravenswood era por cortesia.

No entanto, mesmo nesta decadência, mantinha o orgulho e a turbulência dos seus antepassados, apesar de privado da fortuna; e odiava profundamente aquele a quem considerava responsável pela decadência da sua casa. Esse homem era o mesmo que tinha adquirido o castelo de Ravenswood e os domínios de que o herdeiro da família se encontrava agora privado. Descendente de uma família muito menos antiga do que a de Ravenswood, adquiriu fortuna e importância política durante as guerras civis e elevou-se a altos cargos. Era daqueles que têm a arte de acumular riquezas num país quase arruinado e que conhecem o valor do dinheiro, o meio de o fazer frutificar, ao mesmo tempo que o empregam para aumentar o seu poder e a sua influência.

Estas habilidades e estes dons faziam dele, para o imprudente e impetuoso Ravenswood, perigoso adversário. Se ele tinha dado ao jovem barão justos motivos de inimizade, era um caso sobre o qual havia várias opiniões. No dizer de alguns, o conflito era motivado pelo espírito rancoroso e invejoso de Ravenswood, incapaz de ver, pacientemente, em mãos alheias, embora por direito de compra normal, o domínio e o castelo dos seus antepassados. Mas a maior parte das pessoas tinham uma opinião menos benevolente. No seu modo de ver, lorde Ashton, Chanceler, cargo aonde se tinha guindado sir William, tivera, pouco antes da compra de Ravenswood, transacções de dinheiro com o proprietário do domínio, insinuando-se que nesses negócios complicados, onde estavam em jogo direitos adversos, o frio legista, o político subtil tinha superioridade sobre o jovem ardente e irreflectido que fora apanhado nas suas malhas financeiras.

A própria época acrescentava a estas suspeitas um elemento de crédito. "Tinham acabado os reis em Israel". (1) Depois de James VI se ter apossado da coroa inglesa, mais poderosa e mais rica, criaram-se na Escócia, entre a aristocracia, dois partidos rivais; e, consoante as suas intrigas prevaleciam na corte de St. James, assim também as delegações do poder soberano oscilavam de um para o outro.

A administração da justiça enfermava da mais monstruosa parcialidade. Os magistrados eram pouco escrupulosos nos seus julgamentos, favorecendo os amigos e abatendo os inimigos. Chegavam a ser enviados sacos com dinheiro ao procurador do rei para influenciar a sua conduta, os magistrados nadavam em dinheiro e não faziam mistério disso.

A um. homem de Estado como sir William Aishton não faltavam meios para se sobrepor a um adversário; menos hábil e menos privilegiado, e se a consciência de sir William Ashton era muito timorata para lhe permitir certas manobras, encontrava estímulo e incitamentos nas exortações de sua mulher.

Lady Ashton era de nascimento mais ilustre do que seu marido e tirava disso partido para aumentar a influência de lorde Ashton sobre os outros e, ao mesmo tempo, tinha grande influência sobre ele. Fora muito formosa e conservava ainda um porte nobre e majestoso. Dotada pela natureza com um carácter enérgico e de paixões violentas, sabia servir-se de um e ocultar as outras; praticava rigorosamente, os preceitos exteriores da religião; recebia com uma magnificência vizinha da ostentação; os seus modos eram graves, dignos e estritamente regulados pelas

 

(1) Versículo da Bíblia

 

leis da etiqueta. A sua reputação nunca tinha dado pasto à calúnia. Contudo, menosprezando semelhantes qualidades, feitas para inspirar o respeito, nunca se falava de lady Ashton com afeição e simpatia. Todos notavam que na graciosidade dos seus cumprimentos lady Ashton nunca perdia de vista o seu objectivo, qual falcão que nos seus voos não tira os olhos da presa. Desta forma, os seus iguais olhavam-na com desconfiança e os inferiores com receio.

A sua união foi consagrada com o nascimento de alguns filhos, dos quais sobreviveram três. O mais velho, um rapaz, andava em viagem; o segundo, uma rapariga de sete anos, e o terceiro, mais novo três anos, viviam com os seus avós, em Edimburgo, durante o período das sessões do Parlamento escocês e do Conselho Privado, e o resto do ano no velho castelo gótico de Ravenswood, onde lorde Ashton tinha mandado fazer importantes melhoramentos.

Lorde Allan Ravenswood, último proprietário do castelo e do domínio contíguo, continuou durante algum tempo, contra o seu sucessor, uma luta vã a propósito de dificuldades que tinham originado as suas transacções anteriores; uma após outra, todas acabaram afinal em favor do rico e poderoso competidor. A morte pôs termo ao litígio, levando Ravenswood à presença do Supremo Magistrado. Seu filho, que lhe assistiu na agonia, ouviu-o amaldiçoar aquele de quem tinha sido vítima mais de uma vez. Foi como se o moribundo tivesse deixado ao filho um legado de vingança. Outras circunstâncias irritaram depois essa paixão que era o vício dominante do carácter escocês.

Numa manhã de Novembro, as portas da velha torre meio arruinada, onde lorde Ravenswood tinha passado os últimos anos da sua vida agitada, abriram-se diante dos seus restos mortais, para que pudesse ir repousar na sua última morada, e a pompa que o defunto esquecera durante muitos anos reapareceu, quando ele desaparecia do mundo.

As bandeiras sucediam-se, levando todos os emblemas e as armas da antiga família e dos seus aliados, cada uma seguida por longo cortejo fúnebre. A nobreza do país estava ali na pessoa dos seus principais representantes. Vestia de luto pesado, formava lenta e extensa cavalgada. As trombetas, cobertas de negro, ritmavam com os seus acordes melancólicos a marcha do cortejo. Enorme multidão, gente de baixa condição, vizinhos e criados, fechavam o préstito.

Contrariamente ao costume, e mesmo à lei em vigor, foi um ministro da Igreja episcopal escocesa quem celebrou os responsos fúnebres, cumprindo uma das últimas vontades de lorde Ravenswood.

O clero da Igreja presbiteriana, considerando a cerimónia como uma injúria que lhe era feita, dirigiu-se à autoridade mais próxima, isto é, ao Chanceler para obter uma ordem de interdição, e no momento em que o padre abria o seu livro de orações, um oficial de justiça, acompanhado de tropa armada, proibiu-o de continuar. Tal afronta indignou toda a assistência e foi sentida principalmente pelo filho único do falecido, um rapaz de vinte anos, chamado Edgar, que, entre o povo, era considerado como senhor de Ravenswood. Levou a mão ao punho da espada e avisou o oficial de justiça que arriscaria a sua vida se continuasse a interromper a cerimónia; depois convidou o padre a dizer as orações. O oficial quis cumprir a sua missão; cem espadas saíram em seguida da bainha e ele teve de se limitar a protestar contra aquele acto de violência. Pondo-se de parte, ficou ali como espectador, assistindo ao desenrolar da cerimónia. E ouviram-no murmurar qualquer coisa como: "Arrepender-vos-eis do dia em que me manietastes".

A cena teria merecido o pincel de um artista. Sob a abóbada da capela, o padre, amedrontado com o espectáculo e receando pela sua pessoa, prosseguiu de má vontade o serviço religioso. Tinha em volta dele os parentes do defunto, mais enraivecidos que tristes, e as espadas nuas que empunhavam formavam, com os seus trajos de luto, contraste bastante violento. Somente o filho não demonstrava ressentimento, mas apenas profunda mágoa por ver o túmulo dos seus antepassados levar-lhe o seu amigo mais querido, para não dizer o seu único amigo. Um dos seus parentes, depois de cumpridos todos os ritos, notou nele uma palidez de morte quando iam descer o esquife para a catacumba onde os sarcófagos se enfileiravam, parecendo aguardar aquele que ia ser seu companheiro de decomposição. Como esse parente lhe oferecesse um apoio, Edgar Ravenswood recusou-o com um gesto, em silêncio. Com firmeza, sem verter uma lágrima, cumpriu o seu último dever. A pedra foi reposta sobre o sepulcro, a porta do subterrâneo voltou a fechar-se e a pesada chave foi-lhe entregue. Enquanto a multidão saía da capela, ele parou num dos degraus.

- Senhores e amigos - disse ele - viestes prestar ao corpo do vosso falecido parente uma homenagem pouco vulgar. Uma cerimónia que, noutros países, é legal para a maior parte dos cristãos, foi-lhe recusada. Os nossos ritos fúnebres foram perturbados pela intervenção de oficiais de justiça e de gente armada e a mágoa que devemos aos nossos mortos cedeu lugar em nós a uma legítima indignação. Não sei de que arco partiu a flecha que me atingiu. Só aquele que cavou esta sepultura podia ter tido a crueldade mesquinha de profanar esta cerimónia. O Céu permita que me aconteça o mesmo se não vingar sobre esse homem, sobre os seus e a sua casa, a ruína e a desonra que ele chamou para os maus e para mim!

Grande parte dos circunstantes aplaudiu estas palavras, que expressavam uma cólera justa; mas os mais calmos, os mais razoáveis, lamentaram-nas. O herdeiro dos Ravenswood, pensavam eles, estava longe de poder sustentar a hostilidade que, infalivelmente, provocaria o seu manifesto ressentimento. Os acontecimentos, porém, não justificaram estas apreensões, pelo menos os acontecimentos imediatos.

Por fim voltaram à Torre. Segundo um uso da Escócia, hoje abolido, devia beber-se copiosamente à memória do morto e encher-se a casa com exclamações alegres. As mesas mancharam-se de vinho, e o vinho produziu os seus efeitos em todos os presentes, à excepção do herdeiro de Ravenswood que, apesar da perda de direitos pronunciada contra seu pai, continuava a usar o título. Enquanto os copos passavam em volta dele sem que este lhes tocasse, ouviam-se milhares de exclamações levantadas contra lorde Ashton, o Chanceler.

Quando a última garrafa se esvaziou, os seus hóspedes renovaram as demonstrações, embora as esquecessem no dia seguinte.

Ravenswood encarou-os com um ar de desprezo; e quando, por fim, viu a sua casa liberta da ruidosa multidão que a obstruía, voltou ao hall deserto. Mas a sua imaginação povoava-o de fantasmas: a sua honra estava marcada com o ferrete do condenado, a sua casa humilhada, as suas esperanças destruídas, enquanto triunfava a família que tinha arruinado a sua. E para um espírito reflectido como o de Edgar de Ravenswood isto dava vasto campo a meditações e as dele foram profundas e sem testemunhas.

O camponês que mostra hoje os últimos vestígios da torre no cimo do rochedo batido pelas ondas, só frequentada pelas gaivotas, afirma que nessa noite fatal o herdeiro de Ravenswood atraiu, com os seus gritos de desespero, algum espírito maligno cuja nefasta influência fez tecer a trama das catástrofes futuras. Haverá demónio mais funesto do que o demónio das nossas paixões quando cedemos à sua violência?

 

Diálogo entre pai e filha

 

Deus não permita - disse o rei - que atires sobre mim.

WILLIAM BEll - Clim ó the Cleugh

 

Na manhã seguinte ao funeral, o oficial de justiça, cuja autoridade não tinha podido suspender a cerimónia, informou lorde Ashton da resistência que encontrara para a execução do seu mandato.

O homem de Estado estava, nesse momento, sentado na sua biblioteca, vasto aposento, outrora salão de banquetes do castelo de Ravenswood. Sobre a mesa de carvalho e sobre a estante amontoavam-se cartas, petições, ofícios, alegria e tormento de sir William Ashton. Sir William tinha esse espírito grave, a nobreza que convém a um homem investido num alto cargo do Estado; porém, tinha o carácter tímido e discreto, resultado da sua prudência e timidez. Mas, reconhecendo a sua influência procurava por todos os meios, por orgulho e por política, ocultá-lo habilidosamente.

Escutou com sangue-frio a narrativa exagerada dos acontecimentos que tinham assinalado o funeral de lorde Ravenswood, do desprezo com que tinham encarado a sua autoridade, não só a do Estado como a da Igreja. Não se mostrou muito impressionado com a descrição textual dos insultos e ameaças proferidas pelo jovem Ravenswood e que, sem dúvida alguma, isavam a sua pessoa, tomando esses insultos e essas ameaças como frases nascidas apenas das libações que se tinham seguido após o regresso do cemitério. No entanto, tomou nota dos acontecimentos e dos nomes das pessoas que podiam ser chamadas como testemunhas e depois despediu o delator.

Quando a porta se fechou, depois da saída do oficial de justiça, sir William mergulhou uns instantes nos seus pensamentos. Em seguida, levantou-se bruscamente e pôs-se a passear no aposento, como um homem que vai tomar uma decisão enérgica.

- O jovem Ravenswood está na minha mão - murmurou - É preciso que se curve ou lute comigo. Não esqueço o desdém com que seu pai me tratou como recusou todas as minhas propostas e procurou atingir a minha reputação. Esse rapaz que deixou após ele, esse Edgar, cabeça ardente e sem miolos, afundou o seu barco antes de ter deixado o porto. Farei tudo para que ele não se aproveite da maré e ponha o barco a navegar! As suas ofensas, expostas convenientemente ao Conselho Privado, só podem ser interpretadas como um acto sedicioso, onde se encontra envolvida a dignidade das autoridades civis e religiosas. Pode ser condenado a pagar pesada multa ou poderei obter uma ordem de prisão em Edimburgo, acusá-lo de traição. Deus não permita, porém, que vá tão longe! Não, não lhe farei nada! Não tocarei na sua vida, é esse o meu dever. Todavia, se ele viver e as circunstâncias mudarem, que me poderá acontecer? Obrigarem-me a uma restituição?... Eu sei que Athol tinha prometido interessar-se pelo velho Ravenswood. E eis que o filho levanta já contra mim a sua miserável influência! Que instrumento será ele nas mãos daqueles que, inimigos blasfemos da nossa administração, aguardam a sua queda!

Assim pensava o astucioso homem de Estado, tentando persuadir-se de que o seu interesse e o interesse do seu partido exigiam a perda do seu inimigo. E, sentando-se à mesa de trabalho, pôs-se a redigir, para o Conselho Privado, uma descrição do escândalo que tinha originado, nos funerais de lorde Ravenswood, a transgressão das suas ordens. Os nomes da maior parte dos personagens acusados soariam odiosamente, ele bem o sabia, aos ouvidos dos seus colegas, e levá-los-ia a dar um exemplo que inspirasse o medo, pelo menos na pessoa do jovem Ravenswood.

Era, contudo, um caso bastante delicado a escolha dos termos próprios a empregar na culpabilidade do rapaz sem que parecessem inspirados por sir William Ashton, antigo adversário do pai. Estava ele absorvido nesse trabalho, procurando encontrar as palavras que denunciariam Edgar Ravenswood como o factor principal do tumulto, sem o acusar formalmente, quando, por acaso, durante uma pausa, viu, de repente, esculpidas num dos florões do tecto abobadado, as armas da família contra o herdeiro da qual ele aguçava as flechas e estendia as malhas da lei. Era uma cabeça de touro, negra, com a divisa: "Espero a minha hora". E as circunstancias que elas invocavam vieram confundir-se por forma impressionante com os pensamentos de sir William Ashton...

... Uma tradição do século XIII dizia que um Ravenswood fora expulso do seu castelo e das suas terras por um usurpador poderoso que, durante algum tempo, tinha desfrutado em paz a sua conquista. Até que, na tarde de faustoso banquete, Ravenswood, que esperava apenas uma oportunidade, entrou no castelo, acompanhado por um pequeno número de amigos. O banquete não fora ainda servido, e o usurpador e os seus convidados manifestavam ruidosamente a sua impaciência. Ravenswood, que envergava o trajo de criado trinchador, bradou com uma voz severa: "Espero a minha hora"; e, no mesmo instante, pôs em cima da mesa uma cabeça de touro, símbolo antigo da morte. Foi o sinal para os conjurados arremeterem contra o usurpador e os seus convivas.

Talvez houvesse nesta história antiga qualquer coisa que falasse bruscamente à consciência de sir William Ashton, porque, afastando a folha onde começara a escrever a acusação, guardou cuidadosamente os apontamentos preparatórios, e saiu, como se quisesse concentrar as ideias e pensar nas consequências do passo que ia dar.

Ao atravessar uma antecâmara gótica, ouviu os acordes do alaúde de sua filha. Uma música cujos executantes não vemos causa-nos um prazer misturado com surpresa e que nos faz lembrar os trinados das aves num bosque. O homem de Estado raramente se impressionava com coisas tão naturais e tão simples, mas era pai. Parou, à escuta. A voz argentina de Lucy Ashton modulava uma ária antiga.

Quando a música cessou, sir William Ashton foi ter com a filha. A melodia que ela tinha escolhido parecia, pelos sentimentos que traduzia, corresponder expressamente ao carácter de Lucy Ashton. As suas feições, de uma beleza encantadora, embora um pouco infantil, exprimiam a paz de espírito e indiferença pelos falsos prazeres do mundo. Os seus cabelos anelados, de um louro invulgar, destacavam-se na testa de uma brancura delicada. Todo o seu exterior reflectia, num grau supremo, gentileza, doçura, e timidez feminina. Fazia lembrar as madonas de Rafael. O seu feitio seria consequência de saúde delicada ou do carácter dos seus pais, mais altivo e mais firme do que o seu.

Mas a sua passividade não significava frieza ou secura de alma. Livre para obedecer aos seus sentimentos e aos seus gostos, Lucy Ashton era particularmente acessível ao romântico. Deliciava-se com os contos lendários; constituíam o seu reino de fantasia, onde construía os seus castelos no ar.

No recolhimento dos seus aposentos ou no recanto preferido do jardim, imaginava-se num torneio, distribuindo prémios, animando os combatentes; ou então errava como Una no deserto ou identificava-se com a nobre Miranda, nas ilhas maravilhosas e encantadas.

Cedia facilmente aos desejos das pessoas que a rodeavam. Fazer a sua vontade ou a dos outros era, em geral, uma alternativa muito indiferente para lhe inspirar o desejo de resistir e gostava de encontrar nos pais o espírito resoluto que lhe faltava.

É vulgar encontrarem-se destes caracteres dóceis, tão incapazes de resistir como uma flor atirada à corrente, que se tornam joguete de vontade alheia e sacrificam a sua sem esforço e sem pesar.

Eis o retrato de Lucy Ashton.

O pai, muito reservado, todo metido na política mundana, tinha por ela uma afeição cuja força o surpreendia por vezes. O irmão mais velho, seguindo uma carreira de ambição em que mostrava ainda mais arrogância do que o pai, dedicava à irmã afeição ainda maior. Soldado e mal acautelado pela idade contra o desregramento das paixões, preferia-a, contudo, aos prazeres e às honrarias. Quanto ao irmão mais novo, espírito ocupado apenas com bagatelas, fazia dela a confidente das suas alegrias e dos seus enfados infantis. Lucy ouvia-o com paciência, prestando-lhe atenção interessada.

Somente lady Asthon não tinha por Lucy a ternura que lhe manifestava o resto da família. Considerava a falta de energia de sua filha como uma prova de que o sangue plebeu do pai lhe predominava nas veias; e, por ironia, costumava chamar-lhe "a sua pastora de Lammermoor". Antipatizar com uma criatura tão amável, tão inofensiva, seria uma coisa impossível; mas à filha, cuja doçura inata lhe parecia ser fraqueza do espírito, lady Ashton preferia o filho mais velho, que tinha, em grande parte, herdado as suas ambições e o seu absolutismo.

- O meu Sholto - dizia ela - perpetuará a honra e dará brilho à casa de sua mãe e elevará a de seu pai. A pobre Lucy não nasceu para os salões da corte, nem para os torneios públicos. Precisa de casar com qualquer fidalgo camponês. No entanto, dessa forma, a nossa casa não poderá adquirir mais brilho nem alcançar mais altas distinções. Uma rapariga, nascida para guardar rebanhos ou encerrar-se num convento, não se torna merecedora do respeito tributado aos fortes. E, visto que o Céu nos recusou outro filho, Lucy terá de casar com um homem enérgico e cuja ambição seja fácil de satisfazer.

Assim raciocinava a mãe, que punha a grandeza da sua casa acima da felicidade da filha.

No entanto, enganava-se e iludia-se sobre o carácter de Lucy. Sob a aparente indiferença e doçura palpitavam germes de paixão, capazes de se desenvolverem numa noite. Os seus sentimentos estavam adormecidos porque ainda não tinham surgido circunstâncias próprias para os despertar. Até ali, a vida de Lucy tinha decorrido calma e feliz, tal como um rio que desliza mansamente, mesmo ao aproximar-se da catarata.

- Que estás a cantar, Lucy? - perguntou o pai - O poeta ensina-te a desprezar o mundo antes de o conheceres ou falas como todas as raparigas que desdenham de tudo até aparecer o garboso cavaleiro que as levará a partilhar a vida com ele?

Lucy corou após a chegada de seu pai e, a pedido deste, que a convidou para dar uma volta pelo parque, guardou o alaúde.

O enorme parque coberto de belas árvores, ou, melhor, um campo de caça, que se estendia por detrás do castelo, situado, como já dissemos, no meio de um desfiladeiro dominando a planície, parecia ter sido feito expressamente para defender a entrada do bosque. Nessa região romântica, pai e filha caminhavam, de braço dado, por uma avenida de ulmeiros. As ramadas entrelaçadas formavam uma abóbada por cima das suas cabeças. Ao longe, erravam bandos de veadosi. Os nossos passeantes avançavam em passo lento, admirando a diversidade da paisagem, quando foram surpreendidos pelo guarda florestal, que percorria o interior do bosque à procura da caça, arma ao ombro, e seguido pelo filho, que trazia um cão preso a uma corda.

- Andas por aqui à procura de caça, Norman? - perguntou sir William, voltando-se para saudar o guarda.

- É certo, Vossa Honra. Gostaríeis de ver matar, um veado?

- Não - respondeu sir William, olhando para a filha, que empalideceu com a ideia de ver abater um veado, embora não deixasse transparecer a sua repugnância, se o pai lhe tivesse manifestado o desejo de acompanhar Norman.

O guarda encolheu os ombros.

- É desanimador - disse ele - que um dos amos nunca venha à caça. Espero que o capitão Sholto volte em breve, quando não, nem sei que fazer. Quanto a mister Harry, passa os dias agarrado aos livros, embora ele preferisse correr pela floresta de manhã à noite. Nunca se fará um homem. Era muito diferente, no tempo de lorde Ravemswood. Sempre que se matava um veado, o castelão e o filho vinham ver; a faca era oferecida ao cavaleiro, que nunca dava menos de um dólar por essa homenagem. Estava lá Edgar Ravenswood, o senhor de Ravenswood, como lhe chamam agora. Nunca vi caçador melhor do que ele, depois de Tristrem.

Este discurso tinha por força de desagradar a sir William Ashton. Mas, em todos os castelos do país, o guarda florestal, homem importante, tirava partido da sua franqueza. Sir William sorriu e contentou-se em responder que tinha, nesse dia, mais que fazer. E, tirando a bolsa, gratificou o guarda com um dólar. Norman aceitou a moeda com o ar de um criado de hotel que aceita de um gentil-homem o dobro da sua justa gratificação, dizendo com um sorriso velado de desdém pela ignorância do doador:

- Vossa Honra é daqueles pagadores mal informados que pagam o trabalho adiantadamente. O que seria de mim se, depois de ter recebido a minha gratificação, deixasse escapar a caça? Não, meu senhor! Quero ser honesto. Que a minha arma e o meu cão cumpram com o seu dever, e garanto-vos uma peça de caça com dois dedos de banha no peito.

E ia afastar-se, quando sir William, chamando-o, lhe perguntou, como por acaso, se Edgar Ravenswood merecia verdadeiramente a fama de homem valente e bom atirador.

- Se é valente! Posso garanti-lo! Encontrava-me no bosque de Tyninghame no dia em que dois jovens fidalgos caçavam com lorde Ravenswood. Um veado soberbo, forte como um touro, fez-nos recuar. Avançou para o velho lorde e, meu Deus, não sei o que aconteceria se o filho não se tivesse atirado para a frente e não lhe tivesse cortado os jarretes com a faca. Que Deus o abençoe! Não tinha, nesse tempo, mais que dezasseis anos.

- E maneja a espingarda tão bem como a faca? - perguntou sir William.

- A oitenta jardas de distância é capaz de acertar num dólar que eu tenha entre os dedos. Que mais se poderá exigir da vista, da mão, do chumbo e da pólvora?

- Certamente, não se pode exigir mais! Mas estamos a fazer-vos perder o tempo, meu bom Norman!

Até à vista.

O guarda afastou-se e, com voz rude, cujos acentos enfraqueciam à medida que a distância aumentava, ouviram-no cantar:

As matinas fazem correr o monge à capela,

Mas o abade fica na cama,

Sou soldado; é a trombeta que me chama

Quando o fundo do céu escurece...

Quando a voz do guarda se desvaneceu ao longe, sir William disse para a filha:

- Este homem, que tanto se interessa pelos Ravenswood, certamente devia ter estado ao serviço deles. Deves sabê-lo, Lucy, pois tens a honra de saber tudo quanto diz respeito aos habitantes do domínio.

- Não sou, meu pai, tão conhecedora como julgas dos factos que se têm passado aqui; contudo, se não estou em erro, Norman serviu nesta casa há muito tempo. Partiu depois para Ledington. Mas, no que diz respeito aos antigos castelões, não vejo ninguém que te possa informar melhor do que a velha Alix.

- Que hei-ide fazer deles, Lucy, e das suas histórias?

- Não sei, meu pai. Falei por causa das perguntas que fizeste ao Norman sobre Ravenswood.

- Isso não quer dizer nada, filha! - respondeu sir William, apressando-se a acrescentar - Quem é essa velha Alix? Tenho a impressão de que conheces todas as velhas da região.

- É certo que conheço as pobres criaturas. Tenho-lhes valido nos seus dias de infortúnio. A velha Alix é verdadeiramente a rainha das velhas e conhece tudo que se trate de lendas. Quantas vezes, diante dela. escondo a cara, pois tenho a impressão de que me viu mudar de cor, apesar das suas pálpebras se terem fechado há mais de vinte anos. Devias ir visitá-la comigo. As suas falas e as suas maneiras parecem as de uma condessa. Vem comigo a casa de Alix. Encontramo-nos apenas a um quarto de milha da sua choupana.

- Tudo isso não responde à minha pergunta - disse sir William - Que relação tem ela com a família do antigo castelão?

- Creio que foi a sua ama; ficou aqui por causa dos dois netos que estão ao teu serviço. Mas penso que vive contrariada, pois lamenta sempre os velhos tempos e os antigos amos.

- Fico-lhe muito grato - retorquiu sir William. Alix e os seus comem o meu pão, bebem a minha cerveja e, apesar disso, não deixam de lamentar-se por não estarem sob a tutela de uma família que nunca fez bem a si mesma nem a qualquer outra pessoa.

- Isso é uma injúria para a pobre Alix - replicou Lucy - Como toda a gente da sua idade, não se esquece do tempo da juventude, mas tenho a certeza, meu pai, que está grata pela protecção que lhe tens dispensado e que teria prazer em falar contigo, mais do que com qualquer outra pessoa. Vem ver a velha Alix.

E com a liberdade de uma criança mimada, levou, sir William Ashton para o ponto a que desejava conduzi-lo...

 

As estranhas palavras da velha Alix

 

Por cima das árvores mais altas avistou um penacho de fumo que subia até às nuvens, indício agradável que naquelas paragens lhe provou que existia ali um ser vivo.

SPENSER

 

Lucy guiava o pai, que, ocupado quase sempre com assuntos políticos e deveres de sociedade, mal conhecia os seus domínios, pois vivia habitualmente em Edimburgo. Lucy, pelo contrário, passava o Verão com sua mãe em Ravenswood e, por desfastio ou à falta de outras distracções, aventurava-se frequentemente naqueles passeios. Não havia atalho, alameda, encruzilhada, vale frondoso, que os seus passos não tivessem percorrido.

Sir William Ashton não era insensível aos encantos da Natureza, que, para ele, tinham ainda mais beleza quando ia de braço dado com a filha e esta lhos indicava.

Acabavam de parar no cimo de um monte que dominava toda a paisagem, quando Lucy anunciou que estavam prestes a chegar à choupana da sua protegida. Efectivamente, um carreiro contornava a colina e não tardou que os dois passeantes descobrissem a humilde morada da velha cega, que se avistava sob um rochedo prestes a desmoronar-se. Era um casebre de pedra e barro, toscamente coberto de colmo. Saía dali um rolo de fumo. Num jardinzinho, cercado por um silvado, sentada junto das colmeias que lhe forneciam alimento, estava a mulher dos outros tempos...

Por muitos reveses que tivesse sofrido, por maior que fosse a sua miséria, por muitos anos que lhe tivessem passado por cima, bastava vê-la para adivinhar que aquela mulher não tinha perdido o ânimo.

Era de estatura elevada, curvada pela doença e pela idade. Tinha sido bastante formosa, decerto dessas belezas altivas e másculas que não sobrevivem à frescura da mocidade. Os seus traços deixavam adivinhar um carácter reflectido, um espírito forte e o sen timento de superioridade sobre a sua raça. Custava a crer que um carácter se revelasse com tanta nitidez num rosto a que faltava a expressão do olhar.

- Pelo rumor que fez ao levantar o fecho da cancela do jardim, Lucy chamou a atenção da velha.

- Alix! disse ela - Está aqui o meu pai, que vem vê-la.

- Que seja bem-vindo, e miss Ashton também - respondeu Alix, voltando-se e inclinando a cabeça na direcção dos visitantes.

- Que linda manhã para as suas abelhas! - disse sir William Ashton, impressionado pela aparência de Alix e curioso por saber se a aparência estava de harmonia com a sua conversação.

- Creio que sim, Milorde - respondeu ela - Hoje, o ar parece-me mais suave do que nos últimos dias.

- Sois vós que tratais dos cortiços? Como conseguis fazer isso?

- Por delegação, como fazem os reis. Tenho um primeiro-ministro. Vem cá, Babie!

Trazia, pendurado ao pescoço, um desses pequenos apitos de prata que se usavam para chamar os criados. Ao som produzido pelo apito, Babie, uma rapariga de quinze anos, saiu da choupana.

- Babie, oferece pão e mel a miss Ashton e a seu pai.

Babie correu para casa, não tardando a aparecer com pão e mel, servidos num prato de barro.

Sir William não saiu do lugar onde, desde que chegara, se tinha sentado: um tronco de árvore. Parecia desejoso de prolongar a entrevista, mas bastante embaraçado por não encontrar assunto. Por fim, quebrou o silêncio:

- Habitais há muito tempo em Ravenswood? - perguntou.

- Há quase sessenta anos que vim para aqui - respondeu Alix num tom respeitoso, mas com visível prudência.

- A julgar pelo vosso sotaque, não sois deste país?

- Sou inglesa de nascimento.

- Contudo, pareceis-me ligada a esta terra como se ela fosse a vossa?

- É aqui que tenho bebido pela taça da alegria e do sofrimento que o Céu me destinou. Aqui, fui, durante mais de vinte anos, a mulher de um homem bom e recto; aqui, fui mãe de seis filhos; foi daqui que Deus mos levou. É aqui que eles descansam, junto da capela em ruínas. Não tive outra pátria, enquanto eles viveram e não terei outra, agora que morreram.

- Mas a vossa casa encontra-se num estado lamentável - notou sir William, olhando para o casebre.

- Meu querido pai - disse Lucy, timidamente - porque não a mandas reparar?

- Esta casa durará tanto tempo como eu, minha querida miss Lucy! - respondeu a cega - Não quero que milorde se incomode por minha causa.

- Mas tivestes uma casa melhor - disse Lucy - Já fostes rica. E agora, com essa idade, quereis viver em semelhante casebre!

- O que tenho chega-me bem, miss Lucy. O meu coração, depois do que tenho sofrido e visto sofrer, não sucumbiu porque é muito resistente; e do meu velho corpo não há o direito de se dizer que seja muito fraco.

- Deveis ter assistido a muitas transformações - observou sir William - Mas a experiência ter-vos-á certamente ensinado a encará-las.

- Ensinou-me a sofrê-las, milorde.

- Sabeis que tudo se transforma com o correr dos anos?

- Sim. Eu sei que o tronco onde estais sentado foi uma grande e majestosa árvore e que, necessariamente, teria de ser abatida um dia pelo machado, ao morrer de velhice. Mas sempre esperei que os meus olhos não vissem cair a árvore que me dava sombra.

- Compreendo. Não vos quero mal por estimardes os vossos amos de outros tempos e respeito essa gratidão. Vou mandar reparar a vossa casa. E espero que viveremos como amigos quando nos conhecermos melhor.

- Na minha idade não nos preocupamos com novas amizades - respondeu a velha Alix - Agradeço-vos a bondade, que parte de um sentimento generoso, mas tenho tudo quanto desejo e nada posso aceitar das mãos de Vossa Honra.

- Deixai-me dizer que vos considero uma mulher cuja inteligência e educação desmentem a humildade exterior. Espero que desejeis continuar a viver nesta propriedade a título gracioso.

- Também o espero - respondeu calmamente a velha - Além disso, creio que é uma das cláusulas especiais da venda que vos fez lorde Ravenswood. Talvez tivesse escapado a Vossa Honra um pormenor tão insignificante...

- Recordo-me, de facto - replicou lorde Ashton, um pouco embaraçado - Verifico que sois muito dedicada aos antigos proprietários para aceitar do seu sucessor qualquer benefício.

- Não, milorde. Fico-vos bastante reconhecida pelos favores que recusei. E o que vos quero dizer, prova melhor o meu reconhecimento.

Sir William olhou-a surpreendido. Ela prosseguiu:

- Medi bem as vossas acções, milorde. Encontrais-vos à beira de um abismo!

- Que dizeis! - exclamou sir William, pensando nas circunstâncias políticas que o país atravessava - Sabeis de alguma coisa: intriga ou conspiração?

- Não, milorde. A minha prevenção é de outra natureza. Levastes muito longe as coisas que dizem respeito aos Ravenswood. É uma família temível e é perigoso tratar com pessoas levadas ao desespero.

- Ora! - respondeu sir William - Nada se fez entre nós que não tivesse sido em nome da lei! Não é da minha maneira de proceder que eles se devem queixar, mas sim da Justiça.

- Eles podem pensar de modo diferente e pretenderem fazer justiça por suas próprias mãos.

- Quer dizer: Ravenswood recorrerá à violência?

- Deus me defenda dessa insinuação! Tudo quanto sei desse rapaz é que é honrado e leal. Que digo eu? Terei de acrescentar: generoso e nobre. Mas é um Ravenswood e pode aguardar a sua hora. Lembrai-vos do caso de sir George Lockhart, morto com um tiro de pistola, em Edimburgo, por um processado a quem recusaram fazer justiça.

Lorde Ashton sentiu um calafrio, lembrando-se daquele drama recente. Entretanto, a velha prosseguiu:

- Chiesley, o assassino, era um parente de lorde Ravenswood. Na sala de Ravenswood, diante de mim e na presença de outras pessoas, declarou que ia praticar esse crime. "O que pretende fazer, disse-lhe eu, "é um acto abominável, do qual terá de prestar contas no dia do Julgamento". Nunca poderei esquecer o modo como me respondeu: "Não serei o único a prestar contas". Tenho, pois, razão para vos dizer: O sangue de Chiesley corre nas veias de Ravenswood e, na situação em que este se encontra, basta uma gota para o inflamar. Repito: tomai cuidado com ele!

Intencionalmente, ou por acaso, a velha Alix reforçava os receios de sir William. O recurso final e trágico do assassínio era familiar aos barões escoceses das eras passadas. Sir William Ashton não ignorava que Ravenswood tinha suportado bastantes iniquidades para ser levado àquele género de vingança, efeitos funestos de uma administração parcial da Justiça. Pretendeu ocultar à velha Alix a natureza das suas apreensões, mas não o conseguiu: qualquer pessoa, mesmo dotada de menor penetração, tê-las-ia adivinhado.

A sua voz mudara de inflexão quando lhe respondeu que Ravenswood era um homem honrado e que o castigo aplicado a Chiesley fora uma lição para o audacioso que pretendesse vingar-se nele por prejuízos imaginários. Disse isto precipitadamente e, levantando-se, afastou-se, sem esperar pela resposta.

 

O inesperado salvador

 

É uma Capuleto? Grata revelação. Devo a vida a uma inimiga.

SHAKESPEARE - Romeu e Julieta

 

Lorde Ashton caminhou quase um quarto de hora em silêncio. Sua filha, de natureza tímida e enlevada nos seus pensamentos, não se atrevia a perturbar-lhe a meditação.

- Porque estás pálida, Lucy? - perguntou por fim o pai, voltando-se para ela.

E não tardou que sir William Ashton compreendesse o motivo da palidez da filha. Um touro, talvez excitado pela cor vermelha da capa de Lucy, ou ainda, cedendo a um acesso de ferocidade como sucede geralmente a esta espécie de animais, separou-se de repente da manada que atravessava a extremidade de uma clareira. Aproximou-se lentamente dos intrusos que violavam a paz da sua pastagem; depois, farejando o chão, pareceu preparar-se para arremeter.

Sir William, que o observava, compreendeu a iminência do perigo. Agarrando a filha por um braço, prosseguiu no seu caminho, correndo, na esperança de que, uma vez fora do alcance da vista do animal, nada teriam que recear. Foi a pior decisão que sir William podia ter tomado, pois o touro, encorajado pelo que tinha o aspecto de uma fuga, se lançou atrás deles a toda a velocidade.

A certa altura, porém, Lucy caiu extenuada e sir William, não vendo outro meio de a defender, voltou-se e cobriu a filha com o corpo. Não tinha armas; a sua idade e a gravidade das suas funções dispensavam-no mesmo de trazer espada, nem ela lhe serviria para deter o touro.

Um desastre parecia inevitável para o pai ou para a filha, ou para ambos, quando um tiro fez estacar o animal. A bala entrara entre a espinha dorsal e o crânio. O touro estrebuchou, soltou um mugido terrível e rolou no chão, a três jardas de sir William, agitando-se nos últimos tremores da agonia.

Lucy estava sem sentidos, ignorante do milagre que acabava de a salvar. Sir William contemplava, em silêncio, o animal terrível, mesmo na suprema imobilidade. Na perturbação dos seus pensamentos, poderia supor que o touro tinha sido fulminado por um raio, se não avistasse entre o arvoredo um homem armado de espingarda.

O sentimento da situação surgiu-lhe nesse mesmo instante. Um olhar lançado para a filha lembrou-lhe a necessidade de auxílio urgente. Chamando pelo caçador, que ele julgava ser um dos seus guardas florestais, pediu-lhe que cuidasse de miss Ashton enquanto, ele ia procurar socorros. O caçador aproximou-se. Sir William viu nele apenas um desconhecido; o seu nervosismo tornara-o incapaz de outras observações. Em poucas palavras, pediu-lhe, visto ser mais novo e mais ligeiro do que ele, para levar a donzela a uma fonte das proximidades, enquanto ele ia pedir socorro a casa da velha Alix.

O desconhecido, que tão oportunamente tinha aparecido, não parecia querer deixar a obra em meio. Levantou Lucy e, com ela nos braços, por veredas que parecia conhecer muito bem, através das clareiras do bosque, só parou depois de a ter deixado junto de uma fonte, donde brotava abundante e Límpida água. Corria noutros tempos dentro de um abrigo decorado com motivos góticos. Mas a abóbada tinha caído; a bacia, em ruínas, tinha sido demolida; a água brotava, a descoberto, das profundezas do chão, serpenteando por entre os restos de esculturas e de pedras musgosas acumuladas em volta da nascente.

A tradição criara uma lenda interessante que se ligava com esta fonte. Uma linda rapariga tinha encontrado ali um dos lordes Ravenswood, que andava a caçar e, como nova Egéria, conseguira cativar o afecto do Numa feudal. Desde então, voltaram a ver-se frequentes vezes e sempre ao pôr do Sol. A ninfa acabou por conquistar com o encanto do seu espírito o que tinha começado com a sua beleza. Aparecia e e desaparecia sempre perto da fonte, o que fazia crer ao apaixonado que existia entre uma e outra uma ligação inexplicável. Os dois amantes só se viam uma vez por semana, à sexta-feira, mas antes ela tinha prevenido Ravenswood que se separariam quando soasse na capela a hora das orações. No segredo da confissão, o barão deu a conhecer ao eremita os seus estranhos amores. O padre Zachary chegou à conclusão evidente que o seu confessado se encontrava preso nas malhas de Satanás. Fez ver ao barão o perigo em que se encontrava, não hesitando em denunciar a sedutora ninfa como um espírito das trevas. O amante ouviu-o com incredulidade, no entanto, consentiu em pôr à prova o carácter e a situação da sua amada. Combinou então com o padre Zachary que, no dia da próxima entrevista, o toque das orações soaria meia hora mais tarde do que o costume. O padre, ao propor o seu projecto, apoiou-se nos textos imputados a Malleus, no "Malificarum", a Sprengerus, a Remigius, e a outros demonologistas, para se certificar se o Mal, enganado na hora, retomaria a sua verdadeira forma. Raymond de Ravenswood concordou com a experiência, não só com curiosidade, mas confiado que ela contrariaria a esperança do ermita.

Os amantes encontraram-se à hora combinada. A sua entrevista prolongou-se até quase à hora em que eles costumavam separar-se, tendo o ermita retardado meia-hora o toque de acender as luzes. Nenhuma transformação se produziu no aspecto habitual da ninfa; mas quando o cair da noite lhe indicou que tinha passado a hora das ave-marias, arrancou-se com um grito de desespero aos braços do amante, dizendo-lhe um adeus para sempre e desapareceu, mergulhando nas águas da fonte. As bolhas que apareceram à superfície tingiram-se de sangue; e o barão, louco de dor, amaldiçoou a curiosidade que tinha causado a morte da enigmática criatura. Além dos remorsos, as recordações que lhe deixaram os encantos da sua amante transformaram a sua vida num tormento, vida que perdeu, pouco depois, na batalha de Flodden. Mas, entretanto, mandou decorar a fonte que ela frequentara; e, para proteger as águas contra a profanação, construiu ainda naquele local o pequeno edifício abobadado do qual ainda restavam em volta alguns vestígios.

Tal era a lenda admitida pelo vulgo. No entanto, pessoas que se julgavam mais esclarecidas interpretavam-na como alusão ao destino da formosa rapariga, do povo que fora amante daquele barão Raymond, morta por ele numa crise de ciúmes e cujo sangue se tinha misturado com as águas da fonte. No entanto, todos consideravam a fonte fatal à família Ravenswood. Se algum deles bebesse daquela água ou se aproximasse da nascente seria, fatalmente, vítima de funesto acontecimento.

Foi neste triste local que Lucy Ashton recuperou os sentidos após prolongada síncope. Bela e pálida como a ninfa lendária agarrada ao seu amante, apoiava-se na parede em ruínas, e a capa, toda embebida da água com que o seu protector a tinha salpicado para que ela voltasse a si, moldava-lhe as formas delicadas e harmoniosas.

Ao recuperar os sentidos teve a noção do perigo porque devia ter passado. Lembrou-se do pai, procurou-o com o olhar sem o ver.

- Meu pai! Meu pai!

Foram as únicas palavras que teve forças para articular.

- Sir William encontra-se salvo - disse-lhe uma voz desconhecida - Estará aqui, dentro de alguns instantes...

- Estais certo? - perguntou ela - O touro estava tão perto de nós! Quero procurar meu pai...

Tentou levantar-se, mas o estado de abatimento em que se encontrava fê-la vacilar e iria ferir-se, certamente, na pedra a que estivera encostada, se o desconhecido não estivesse perto dela. Levantou-a nos braços, mas com uma espécie de repugnância, bastante extraordinária num homem quando se interpõe entre a beleza e o perigo. Embora Lucy fosse leve e ele jovem e forte, dir-se-ia que o desconhecido tinha nos braços um peso insuportável, pois não tardou a deixá-la sobre a pedra e, afastando-se alguns passos: repetiu:

- Sir William Ashton está salvo e estará aqui dentro de alguns instantes. Não vos inquieteis com ele. Quanto a vós, não penseis em andar sozinha.

Lucy olhou para o desconhecido com mais atenção. O trajo de caçador e a sua capa davam-lhe a aparência de homem de boa condição social. Trazia, puxado para a frente, um chapéu com plumas negras que lhe encobria um pouco as feições; no entanto, podia ver-se que eram regulares, cheias de majestade, mas ensombradas por uma expressão de tristeza. Algum desgosto íntimo ou a melancolia de uma paixão contrariada tinham amortecido a natural vivacidade daquele rosto para o qual não podia olhar-se sem experimentar um sentimento misto de compaixão, receio e curiosidade.

Esta impressão, teve-a também Lucy ao primeiro relance. Mas, baixando o olhar, por acanhamento e por modéstia, agradeceu-lhe com voz trémula, dizendo ter a certeza de que, depois de Deus, tinha sido ele. por milagrosa intervenção, o seu salvador e o de seu pai.

Ele, porém, furtou-se a essas expressões de gratidão:

- Vou deixar-vos à protecção daquele de quem tendes sido talvez o anjo da guarda.

Surpreendida com linguagem tão ambígua, Lucy perguntou, com o sentimento de uma gratidão sem artifício:

- Porque não esperais por meu pai? Porque não permitis que ele vos apresente os seus agradecimentos pessoais e que vos pergunte o vosso nome?

- O meu nome não interessa saber. Vosso pai não terá muito prazer em o conhecer.

- Estais enganado! - replicou Lucy - O meu pai ficar-vos-á bastante grato, tanto por mim como por ele. Não o conheceis, decerto, ou, então, fazeis-me supor que ele tenha sido vítima do enfurecido animal.

Dominada por esta ideia, levantou-se, num sobressalto, e tentou alcançar o local onde se dera o drama. Entretanto, o desconhecido, manifestamente vacilante entre o desejo de a ajudar - e o de a deixar, viu-se humanamente forçado a agarrá-la. E juntando a acção à palavra, protestou:

- Pela minha fé de gentil-homem, juro-vos que disse a verdade! Não vos inquieteis. Correríeis novo perigo se voltásseis ao sítio onde passou a manada selvagem. Se quereis voltar...

Contudo, dominada pelo mesmo pensamento, Lucy prosseguiu o seu caminho, não obstante a oposição do cavaleiro.

- Se quereis ir lá, aceitai o meu braço, embora eu seja a pessoa menos qualificada para o oferecer.

Sem dar conta das reticências, Lucy tomou-lhe o braço.

- Se sois gentil-homem, se sois fidalgo, ajudai-me a encontrar meu pai! Não me deixeis sozinha.

Nesse instante chegou sir William Ashton, acompanhado pela rapariga que servia a velha Alix e por dois lenhadores que tinham sido desviados do seu trabalho. A sua alegria, ao voltar a ver a filha, foi bem expressiva, suplantando a surpresa que pudesse sentir, noutra ocasião, ao vê-la agarrada ao braço de um desconhecido com tanta familiaridade como se ele fosse o pai.

- Minha querida Lucy, como te sentes? Não estás ferida?

Foram as primeiras palavras que lhe dirigiu, apertando-a contra o peito, num transporte de alegria.

- Não, pai, graças a Deus, não me aconteceu mal algum. Mas este senhor... - e, dizendo isto, retirou o braço do desconhecido e afastou-se dele - Que irá pensar de mim?

Uma onda de sangue subiu-lhe ao rosto, mostrando eloquentemente o seu embaraço por ter pedido e mesmo exigido a sua companhia.

- Esse senhor - respondeu sir William Ashton - não se arrependerá, assim o espero, do transtorno que acabamos de lhe causar, quando lhe tiver manifestado o meu reconhecimento pelo maior serviço que um homem pode prestar a outro. Salvando a vida de minha filha, foi a minha própria vida que salvou com a sua bravura e o seu sangue-frio. Permitir-nos-á, estou certo, que lhe pergunte...

- Não me pergunte nada, a mim, milorde - atalhou o desconhecido num tom enérgico - Eu sou o herdeiro de Ravenswood.

Seguiu-se um silêncio de morte. Ravenswood envolveu-se na capa, inclinou-se diante de Lucy com um ar altivo e murmurando algumas palavras de cortesia quase imperceptíveis, como se as tivesse dito contra vontade, voltou-se e desapareceu entre o arvoredo.

- O senhor de Ravenswood! - exclamou sir William Ashton, quando saiu do seu espanto - Corram atrás dele! Detenham-no! Peçam-lhe de minha parte uns momentos de atenção!

Os dois lenhadores foram no encalço de Ravenswood, mas não tardaram a voltar; e adivinhou-se nas suas caras que ele se recusara a segui-los. Sir William Ashton chamou um dos seus homens de parte e perguntou-lhe o que tinha dito Ravenswood.

- Simplesmente que não voltaria - respondeu o homem.

- Ele disse mais alguma coisa - insistiu sir William - e é essa alguma coisa que desejo saber.

- Pois bem, milorde - cedeu o homem, baixando a cabeça - é verdade... Mas Vossa Honra não terá prazer algum, em saber o que ele disse.

- Isso é comigo. Repete, palavra por palavra, a sua resposta.

- Seja! - replicou o homem - Foi o seguinte: "Avisa sir William que no dia em que nos tornarmos a ver alegrar-se-á muito menos com "o nosso encontro do que com a nossa separação".

- Muito bem! Com certeza fez alusão a uma dívida que existe entre nós. Um assunto sem consequências...

E, calmamente, aguardou que a filha retomasse forças para regressar, a pé, ao castelo; mas o efeito causado pela terrível cena no espírito impressionável de Lucy foi mais duradoiro do que o abalo experimentado pelos nervos.

De noite, o seu sono era povoado por pesadelos medonhos e de dia caía frequentes vezes em profundos devaneios. Tão depressa via o toiro furioso correndo sobre ela, como recordava as feições severas e o vulto elegante do senhor de Ravenswood que a tinha salvo da morte inevitável. Para uma rapariga, é sempre perigoso pensar continuamente no mesmo homem, mas, na situação de Lucy, o perigo tornava-se ainda maior.

Nunca tinha encontrado fidalgo com aspecto tão nobre como Ravenswood, mas embora conhecesse muitos, ele teria sobre os outros grandes vantagens, pois a seu favor falavam o reconhecimento, o espanto e a curiosidade.

Além disso, ignorava quase por completo as dissenções que separavam as duas famílias, nem o seu carácter meigo perfilharia sentimentos de ódio e de vingança.

Sabia apenas que Ravenswood pertencia a família ilustre, mas pobre, e supunha adivinhar e compreender as susceptibilidades de um espírito orgulhoso e altivo que se recusava a aceitar as expressões de agradecimento dos actuais proprietários dos domínios que haviam pertencido aos seus maiores.

Teria sido diferente se, em vez de sir William, tivesse sido ela a agradecer com essas palavras que todas as mulheres tão bem sabem encontrar para acalmarem as paixões masculinas?

Interrogações perigosas, problemas vagos, muito perigosos também, para corações jovens e sinceros como o de Lucy.

Se depois do incidente tivesse mudado de ambiente, encontrasse distracções ou frequentasse a sociedade, talvez tudo esquecesse pouco a pouco. Mas o isolamento em que vivia criava atmosfera propícia a estes devaneios. Lady Ashton ausentara-se para Edimburgo, as visitas de lorde Ashton eram de carácter político, pessoas respeitáveis, de certa idade que, por forma alguma, poderiam ofuscar o ideal cavalheiresco que Lucy formara do senhor Ravenswood.

Visitava frequentes vezes a velha Alix, na esperança de a levar a falar na pessoa que lhe ocupava o pensamento, mas a cega, se falava muito e com entusiasmo na família de Ravenswood em geral, nunca se referia ao seu único representante em particular e, quando o fazia, apresentava-o como um carácter duro, inflexível, incapaz de perdoar injúrias.

Lucy ficava alarmada, mas logo reflectia que o cavaleiro, salvando-lhes a vida, contradizia estas afirmações. Para se vingar, teria bastado suspender o gesto salvador e o seu inimigo teria morrido sem agressão directa da sua parte. Convencia-se de que a pobre Alix, amargurada pela desdita, fazia do senhor de Ravenswood um retrato injusto e pouco em harmonia com a generosidade do seu procedimento.

Por seu lado, lorde Ashton também recordava o acontecimento.

Logo que chegou a casa, mandou chamar o médico para examinar a filha. Já tranquilo sobre as consequências do desagradável incidente, fechou-se no seu gabinete para reler os apontamentos tomados sobre os factos ocorridos no funeral do falecido lorde de Ravenswood. Depois escreveu novo relatório, muito mais conciliador do que o primeiro. Chegou até a censurar o oficial da justiça, acusando-o de provocar o tumulto com a sua imprudência e acabava por pedir que fechassem os olhos sobre o caso.

Depois escreveu a lady Ashton e, contrariamente ao seu costume, limitou-se a relatar-lhe o incidente, sem entrar em pormenores.

 

Planos que não se realizam

 

Estes guerreiros vieram aqui para ouvir histórias ridículas? O nosso braço, habituado a batalhar, deixar-se-á enfraquecer pelas lágrimas?

Anónimo

 

Na noite do mesmo dia em que sir William Ashton e a sua filha foram salvos de um grande perigo, dois desconhecidos encontravam-se sentados no aposento mais afastado de pequena estalagem ou, antes, de uma taberna chamada "A Toca da Raposa", situada aproximadamente a quatro milhas entre o castelo de Ravenswood e a arruinada torre de Wolf's Crag.

Desses desconhecidos, um parecia ter quarenta anos. Era alto, magro, nariz aquilino, olhos negros e penetrantes, de aspecto sinistro. O outro, mais novo uns quinze anos, era baixo, vigoroso, vermelho, cabelo ruivo, olhos de um cinzento claro, francos, resolutos e alegres. Um jarro com vinho estava em cima da mesa e cada um dos dois bebedores tinha uma caneca diante de si. Mas não parecia reinar entre eles muita alegria comunicativa. De braços cruzados, olhavam-se em silêncio.

O mais novo saiu por fim do seu mutismo:

- Com os demónios! Porque hesita Ravenswood? E porque me dissuadiste de o acompanhar?

- Um homem - respondeu o outro - não precisa de ninguém para vingar as injúrias que lhe fizeram.

É a nossa vida que viemos arriscar aqui ao seu serviço.

- Não passas de um poltrão, Craigengelt; e não é só agora que muita gente pensa isso de ti.

- Mas ainda não houve ninguém que se atrevesse a dizer-mo! - retorquiu Craigengelt, levando a mão ao punho da espada - Se fosse a fazer mais caso de um parvo que de um louco, eu...

E esperou a resposta do seu companheiro.

- Que fazias? E porque não o fazes já? Craigengelt desembainhou um ou dois dedos de espada; em seguida, embainhou-a com violência.

- Esta lâmina tem mais que fazer que tirar a vida a vinte cérebros esturrados como o teu!

- Dou-te razão por me incluíres no número dos cérebros esturrados. Sem todas essas confiscações de que tenho sido vítima, sem a última multa que terei de pagar ao velho idiota Turntippet, e que deve ser pronunciada neste momento, eu não seria mais do que um pobre doido, por ter acreditado nas vossas lindas promessas de me conseguirem uma patente na brigada irlandesa. Que poderei eu fazer nessa brigada? Sou um escocês puro, como o meu pai foi antes de mim; e a minha tia-avó, lady Girnington, não pode viver eternamente.

- Tens razão, Bucklaw; mas pode viver ainda muitos anos; e, quanto a teu pai, esse tem terras e rendimentos, não tem de recorrer a hipotecas ou usurários, paga o que deve e vive do seu capital.

- A quem devo culpar de não haver seguido o seu exemplo? A quem, senão ao diabo, a vós todos?! E agora, com certeza, vou passar os dias como um vagabundo, à procura de um tecto, como vocês, de um lado para outro; a viver uma semana sob as falsas informações da corte de Saint-Germain, uma outra sob a notícia de uma sublevação dos Highlands; a mendigar o meu almoço e o meu copo de Xerês em casa de velhos jacobitas (1); a ser padrinho num duelo,

 

(1) - Partidários dos Stuart, em Inglaterra.

 

acompanhar o meu amigo ao campo da luta e vê-lo voltar para trás, com o pretexto de que um político, da sua influência não se pode expor assim à morte. Eis, numa palavra, o que terei de fazer para ganhar o meu pão!

- Julgas que fizeste um lindo discurso - replicou Craigengelt - Será preciso morrer de fome ou ser pendurado com a corda no pescoço, lá porque o rei não está actualmente em condições de sustentar honestamente os seus emissários?

- Morrer de fome é mais honesto, Craigengelt, e a forca será talvez o fim de tudo isto. Ignoro o que pensas desse pobre Ravenswood. Ele não tem mais dinheiro do que eu. Que esperas ganhar, metendo-te nos seus assuntos?

- Fica sabendo que não procedo ao acaso, Bucklaw. Além do seu nome, os serviços prestados em 1689 por seu pai soarão bem, tanto em Versalhes como em Saint-Gtermain. Ravenswood é um rapaz de categoria diferente da tua. É instruído, corajoso e inteligente, sabe fazer mais alguma coisa do que andar a cavalo ou caçar.

- E, apesar de tudo, Craigengelt, deixa-se prender pela tua malícia. Vá, não te zangues! Bem sabes que me recuso a bater-te: deixa a tua espada sossegada e diz-me, sem enfado, como conseguiste ganhar a sua confiança?

- Aprovando os seus desejos de vingança, Bucklaw. Ele deve ter, neste momento, como disse e como certamente pensou, uma explicação violenta com sir William Ashton. Se eles se encontraram, de facto, e se lorde Ashton procura defender-se, Ravenswood matá-lo-á, não tenhas dúvidas. Pelo menos, tratá-lo-á de tal maneira que isso constituirá uma agressão contra um conselheiro de Estado, da qual resultará o rompimento completo entre ele e o governo da Escócia. A terra escocesa queimar-lhe-á os pés; a França abrir-lhe-á os braços e nós embarcaremos imediatamente no brigue francês "L'Espoir", que nos espera em Eyemouth.

- Muito bem! - disse Bucklaw - Nada me prende na Escócia; se a companhia de Ravenswood nos faz ser melhor recebidos em França, Deus seja louvado! Espero que ele meta uma bala na cabeça do Chanceler. Seria bom que um ou dois desses malfeitores políticos fossem abatidos todos os anos para ensinar os outros a conduzirem-se como devem.

- tens razão - respondeu Craigengelt - mas, penso que já é tempo de ir ver se os nossos cavalos comeram bem e se estão em condições de partir. Se tudo estiver liquidado, não poderemos perder tempo.

Craigengelt caminhou para a porta, mas parou no limiar, voltou-se e, numa entoação grave, observou:

- Aconteça o que acontecer, é preciso que ninguém saiba que fomos cúmplices em qualquer acto da violência que Ravenswood possa praticar.

- Não, não, nem uma palavra sequer que descubra cumplicidade. Sabes muito bem o perigo que representam essas duas terríveis classificações de instigador e cúmplice.

E como se falasse consigo próprio, recitou:

Sobre o mundo mostrador, o ponteiro de metal

Marca conscientemente a hora ao golpe fatal.

- Que estás tu a cantar? - perguntou Craigengelt, aproximando-se de Bucklaw com um ar inquieto.

- Nada. Dois versos que ouvi no teatro.

- Tenho pensado algumas vezes que devias fazer-te actor, Bucklaw. Não te falta espírito subtil e um humor fantástico.

- Já pensei o mesmo. Talvez fosse mais feliz e seria menos perigoso do que representar um papel nesta fatal conspiração. Entretanto, vai desempenhar o teu, tratando dos nossos cavalos.

Quando Bucklaw viu sair o seu companheiro, murmurou:

- Um actor! Um homem de teatro!... Merecia que o matasse se não o considerasse um poltrão. No entanto, não me desagradava a profissão. Talvez pudesse estrear-me no "Alexandre":

Eis-me aqui. Sacudi o pó do túmulo. Para salvar o meu amor, todos, rápidos como a pólvora. Sigam-me, espada em punho, para combates legítimos: A glória e o amor esperam-me lá em baixo!

Com voz forte, a mão sobre a espada, Bucklaw declarava a tirada do infeliz Lee, quando Craigengelt entrou com ar inquieto.

- Estamos perdidos, Bucklaw! O cavalo de Ravenswood prendeu-se no arreio e manca de uma perna! O cavalo em que monta é péssimo e depressa se cansará se o obrigarmos a correr. Não pode fugir.

- Que importa! Iremos mais devagar - disse Bucklaw, secamente - Para o caso, podias ceder o teu cavalo a Ravenswood.

- Para que me prendessem? Obrigado pela proposta!

- Se acontecer alguma desgraça a sir William Ashton, o que não acredito, visto Ravenswood não ser homem para matar um velho desarmado, se, enfim, houver algum incidente no castelo, não estás lá e nada tens que recear.

- É certo, é certo - respondeu Craigengelt - mas lembra-te do mandato que recebi de Saint-Germain.,..

- Se não cederes o teu cavalo, o diabo me leve se eu não lhe der o meu!

- O teu?

- Sim o meu! Não se dirá que depois de ter prometido auxiliar alguém o deixei em embaraços e me recusei a livrá-lo do perigo.

- Dás o teu cavalo? Já pensaste no prejuízo que poderás ter?

- Prejuízo! É certo que "Grey Gilbert" me custou vinte jacobus (1); mas o seu "Blak Moor" vale duas

 

(1) - Antiga moeda de ouro de Inglaterra.

 

vezes mais, embora esteja manco... mas eu sei como curá-lo.

- Seja, Bucklaw; mas antes que o cavalo esteja curado, serás tu preso e enforcado. Não deixarão de perseguir Ravenswood. Lamento que não tenhamos escolhido para o nosso encontro um sítio mais perto da costa.

- Então, o melhor seria partir já, deixando-lhe o meu cavalo. Mas espera! Ei-lo que chega. Vem aí um cavaleiro galopando...

- Tens a certeza de que é só um? Talvez venham atrás dele. Parece-me ouvir mais do que um cavalo...

- É o martelar dos socos da criada que vai buscar água ao poço. Ravenswood vem aí, sozinho e triste como uma noite de Novembro.

Ravenswood apareceu, envolto na capa e com um ar triste e cansado. Tirou-a e deixou-se cair numa cadeira, num abatimento profundo.

- Que aconteceu? - perguntaram-lhe ao mesmo tempo Craigengelt e Bucklaw.

- Nada - respondeu ele, com ar sombrio.

- Nada? - repetiu Bucklaw - Deixastes-nos decidido a dar uma lição a essa velha raposa, a vingar as injúrias recebidas. Não o viste?

- Vi - respondeu Ravenswood.

- Se o vistes - continuou Bucklaw - porque voltastes sem teres exigido o ajustes de contas tão antigas? Não era isso o que eu esperava de um Ravenswood.

- Pouco importa o que poderíeis ter esperado de mim. Não é a vós que tenho de justificar a minha conduta.

- Paciência, Bucklaw - disse Craigengelt, detendo o amigo, que parecia prestes a responder com arrebatamento - Aconteceu qualquer coisa que contrariou as intenções do senhor de Ravenswood; ele desculpará a curiosidade ansiosa de dois amigos tão devotados como nós à sua causa.

Ravenswood olhou-o com altivez:

- Dois amigos, capitão Craigengelt! Desconheço o motivo que vos autoriza essa familiaridade de linguagem. A nossa amizade, creio eu, reduz-se a uma combinação que fizemos para sair da Escócia, logo que tivesse visitado a casa dos meus antepassados e que tivesse falado com o seu actual possuidor, não digo o seu proprietário.

- Exactamente - respondeu Bucklaw - E como julgámos que se tratava de uma aventura que poria a vossa vida em perigo, Craigie e eu estivemos de acordo em vos esperar, embora nos arriscássemos também. Para Craigie, isso não significa grande coisa: visto estar destinado à forca desde que nasceu; quanto a mim, não queria, por causa alheia, manchar a honra da minha família.

- Senhores! - disse Ravenswood - Lamento ter-vos dado tanto trabalho; porém, reclamo o direito de ser eu o único juiz das minhas acções no que respeita aos meus interesses e de não dar satisfações a ninguém. Mudei de ideias; não penso, por agora, em deixar a Escócia.

- Não sair da Escócia! - exclamou Craigengelt - Depois de tantas lutas, de tantas despesas que fiz! Depois de me arriscar mesmo a ser descoberto!

- Senhores! - replicou Ravenswood - Quando pensei sair do país sem demora, aceitei a vossa grata oferta de me procurar meio de transporte. Mas não me recordo de me ter comprometido a partir se, por acaso, mudasse de ideias. Lamento os aborrecimentos que tivestes por minha causa e agradeço-vos. Quanto às despesas - acrescentou ele, metendo a mão no bolso - necessitam de compensação mais sólida. Preço da passagem, indemnização pela demora, nada disso me interessa, capitão Craigengelt; tomai a minha bolsa e pagai-vos conscientemente.

Dizendo isto, estendeu ao suposto capitão uma bolsa com ouro.

Mas Bucklaw interveio:

- Os teus dedos, Craigie, parecem muito apressados em agarrar essa pequena bolsa de seda verde. Juro que, se lhe tocam, os cortarei com a minha espada.

-Lá porque milorde mudou de ideias, não vamos, creio eu, ficar aqui muito tempo; mas, agora, peço licença para lhe dizer...

- Diz-lhe o que quiseres - respondeu Craigengelt

- Mas, antes, espera que eu lhe mostre os inconvenientes a que se vai expor, privando-se da nossa companhia e que lhe recorde também os obstáculos que o esperam se ficar aqui, as dificuldades que encontrará na sua apresentação em Versalhes e em Saint-Germain, sem o apoio daqueles que estabeleceram as necessárias ligações...

- Além disso, há o facto de perder, pelo menos, a amizade de um homem de coração e de honra.

- Senhores! - respondeu Ravenswood - Deixai-me dizer-vos, uma vez mais, que atribuís à nossa combinação uma importância que nunca pensei dar-lhe; quando eu tencionar entrar nas cortes estrangeiras, não precisarei de ser apresentado por um aventureiro intrigante, nem de me valer da amizade de um fanfarrão!

Após estas palavras, saiu sem esperar resposta, montou a cavalo e afastou-se.

- Lá se foi a nossa esperança... - exclamou Craigengelt.

- Sim, capitão! - disse Bucklaw - O peixe fugiu-nos das mãos com o anzol e a linha. Vou-lhe no encalço, porque não posso perdoar-lhe tanta insolência.

Craigengelt ofereceu-se para o acompanhar; Bucklaw deteve-o.

- Não, capitão! Fica à lareira. É bom dormir quando cai granizo.

Junto à lareira, a velha encarquilhada. Não sente lá fora a tempestade desfeita.

E afastou-se, cantarolando.

 

Ravenswood protege um inimigo!

 

Agora, Bally Rewick anima-te e vem conversar comigo. Mas se és homem de coragem, como tenho a certeza que és, passa para este lado e vem bater-te comigo.

Balada antiga

 

Vendo o acidente de que o seu cavalo fora vítima Ravenswood montou outra vez naquele que o trouxera e, a passo, regressava à sua velha torre de Wolf's Crag, quando ouviu atrás de si o galope de um cavalo. Voltou-se e viu que era perseguido pelo jovem Bucklaw.

- Alto, Monsenhor! - gritou ele - Eu não sou um agente político, um qualquer capitão Craigengelt para o qual a vida é muito cara para que a arrisque na defesa da sua honra. Eu sou Frank Hayston de Bucklaw, e não há ninguém que me insulte com palavras, acções, gestos ou olhares, sem que tenha de me responder.

- Tudo isso está muito bem, mister Hayston de Bucklaw - respondeu Ravenswood, num tom de absoluta indiferença - mas não tive nenhuma questão convosco nem desejo tê-la. Os nossos caminhos são diferentes para voltar a casa, assim como diferentes são as nossas vidas. Não temos motivo algum para que nos atravessemos no caminho um do outro.

- Pelos Céus! - disse impetuosamente Bucklaw.

Eu tenho opinião diferente. Não nos chamastes intrigantes e aventureiros?

- Fazei um esforço e vede se vos recordais, mister Háyston: foi apenas o vosso companheiro que eu tratei assim e sabeis que não me engano.

- E depois? Ele é, acidentalmente, meu companheiro, e ninguém tem o direito de o insultar, com razão ou sem razão.

- Nesse caso, mister Hayston - prosseguiu Ravenswood sem perder a calma - devíeis escolher melhor companhia, pois, caso contrário, tereis muito que fazer como campeão de tão estranhos amigos. Voltai para casa e amanhã concordareis que tenho razão.

- Não, milorde, não me conheceis bem. Os grandes gestos e as linhas máximas não bastam para me contentar. Além disso, dissestes que eu era um fanfarrão. Não nos separaremos enquanto não retirardes essa palavra.

- Francamente, não o farei, enquanto não me derdes motivos para mudar de opinião.

- Pois bem, embora me custe falar assim com um homem da vossa qualidade, tenho o dever, se não justificardes o epíteto incivil, de Vos exigir que o retireis ou que me fixeis um sítio de encontro para vos dar o justo castigo.

- Fiz o que pude para evitar esta questão. Se falais a sério, este sítio é tão bom como qualquer outro.

- Nesse caso, desmontai e puxai pela espada - disse Bucklaw, juntando o gesto à palavra - Tenho sempre pensado e dito que sois um homem de honra e ficaria aborrecido se tivesse de me contradizer.

- Não vos darei motivo para isso -. respondeu Ravenswood.

E, descendo do cavalo, pôs-se em guarda.

Cruzaram-se as espadas, travou-se o combate, fogoso da parte de Bucklaw, habituado a estas situações, e que manejava a espada com extraordinária destreza. Ravenswood, não menos hábil, mas muito mais calmo, procurava, de preferência, a defensiva, sem se aproveitar dos lances que, por duas ou três vezes, puseram o adversário à sua mercê. Finalmente, após uma estocada a fundo e uma tentativa de corpo-a-corpo, Bucklaw escorregou na relva e caiu.

- Concedo-vos a vida, senhor! - disse-lhe Ravenswood - Poupai-a, se puderes.

- Agradeço-vos por me terdes concedido a vida, milorde. Não vos quero mal pela minha infelicidade e pela vossa superioridade em manejar a espada.

Ravenswood olhou-o com firmeza e estendeu-lhe a mão:

- Bucklaw, sois um valente. Peço-vos que me perdoeis as palavras com que vos feri; estou convencido que fui injusto.

- Deveras, milorde? - perguntou Bucklaw, retomando o seu ar prazenteiro - Não podia esperar tanto de vós, pois sei que não costumais mudar de opinião com tanta facilidade.

Enquanto Bucklaw falava, um rapaz avançou montado num jumento, a todo o galope.

- Senhores! Senhores! Fugi! A dona da estalagem manda dizer que chegou gente para prender o capitão Craigengelt e que procuram o senhor Bucklaw. Ele deve fugir!

- Por minha fé, tens razão, meu rapaz! - disse Bucklaw - Aqui tens esta moeda como recompensa do teu aviso. E darei o dobro a quem me indicar o melhor caminho que devo seguir.

- Isso fica a meu cuidado, Bucklaw - sossegou Ravenswood - Vinde comigo a Wolf's Crag. Na minha velha torre tenho mais de um esconderijo onde podereis escapar às buscas de mil homens!

- Isso vai comprometer-vos, milorde! Salvo se não estais, como eu, nas redes dos jacobitas.

- Ficai tranquilo; nada tenho a recear.

- Então, irei com todo o prazer. Se prenderam Craigie, tenho a certeza de que revelará tudo a meu respeito e mentirá vinte vezes sobre vós para conseguir salvar-se.

Montaram a cavalo e partiram, evitando a estrada principal e seguindo por atalhos pouco frequentados.

Caminharam em silêncio durante algum tempo, o mais rápido que permitia o estado do cavalo de Ravenswood. Pouco a pouco, o dia foi declinando em volta deles. Abrandaram a marcha, por causa da dificuldade que tinham em reconhecer o caminho e também na esperança de terem despistado os seus perseguidores.

- Desejava fazer-vos uma pergunta, milorde - disse Bucklaw.

- Estou pronto para vos ouvir, mas desculpai se não puder responder-vos.

- A minha pergunta é apenas esta: como pudestes aliar-vos com um ladrão como Craigengelt e um inconsciente como Bucklaw?

- Todo o homem de boa fé que se entrega ao desespero procura desesperados como ele.

- E porque renunciastes tão bruscamente à nossa companhia?

- Porque mudei de ideias e renunciei, pelo menos por agora, à minha empresa. Respondi com toda a franqueza às vossas perguntas; dizei-me agora: porque vos associastes a esse Craigengelt, que não se vos pode comparar em nascimento nem em coragem?

- Porque sou um louco, porque perdi ao jogo todos os meus bens. Foi no jogo que eu conheci Craigie. Ele viu a minha situação; e como esiá sempre à espreita de ocasiões, disse-me cinquenta mentiras sobre as cartas de crédito que possui em Versalhes sobre o favor de que desfruta em Saint-Germain; prometeu obter para mim, em Paris, uma patente de capitão e eu tive a fraqueza de cair nas suas garras. Não receio exagerar muito se disser que nesta mesma ocasião está ele contando ao governador uma boa dúzia de histórias onde se fala no vinho, nas mulheres, nos dados, nos combates de galos, nos cães e nos cavalos.

- Tendes, Bucklaw, alimentado serpentes cuja mordedura vos tem embriagado.

- É certo, mas permiti que vos diga que também criastes uma, ainda maior, que devotou as outras todas.

- Que entendeis por essa paixão monstruosa que me acusais de alimentar?

- O espírito da vingança, milorde, o espírito da vingança, que é um pecado contra a vida, um pecado pouco cristão e muito sanguinário. É preferível saltar um muro para agarrar um veado ou uma rapariga do que disparar sobre um velho.

- Nunca pensei proceder assim! - protestou Ravenswood - Isso nunca fez parte das minhas intenções. Pretendi encontrar-me frente a frente com o meu agressor antes de deixar a minha terra natal. Propunha-me censurar-lhe a sua tirania e as suas consequências. A sua crueldade trouxe-me a ruína e a morte, pois foi ele quem destruiu a nossa antiga casa, quem matou o meu pai com o desgosto. Por Deus! Antigamente, na nossa Escócia, um homem que vivesse tranquilamente após tantas injustiças não teria sido julgado digno de valer a um amigo num duelo, nem de se medir com um inimigo!

- Por minha fé, estou contente por ver que a malícia do diabo se diverte tanto com os outros como comigo. Todas as vezes que vou cometer uma loucura, ele convence-me de que é a coisa mais necessária, mais galante e mais nobre do mundo; e atolo-me na lama antes de me aperceber que o terreno se afunda sob os meus pés. Vós milorde, podeis cometer um assas... um homicídio, por puro respeito à memória de vosso pai!

- Na vossa maneira de falar, Bucklaw, há mais bom senso do que seria de esperar da vossa conduta. É mais natural que os nossos vícios se insinuem com as formas sedutoras desses demónios que a superstição nos apresenta como imagens da raça humana e cuja disformidade natural só se descobre no momento em que as apertamos nos braços.

- Podemos afastá-las para longe de nós; e é o que penso fazer em breve, quando a minha tia-avó, a velha tody Girnington, passar desta vida para outra melhor!

- Conheceis este pensamento da teologia inglesa: "O inferno está cheio de boas intenções"? O que significa que é mais fácil concebê-las do que executá-las.

- Pois bem! - respondeu Bucklaw - Para começar, estou resolvido a beber esta noite só uma garrafa de vinho, a não ser que me apareça um "bordeaux" de qualidade excepcional.

- Em Wolf's Crag não encontrareis nada que vos possa tentar. Não vos posso oferecer mais do que o abrigo do meu tecto. Tudo quanto tinha de vinhas e de víveres foi largamente consumido durante a refeição que se seguiu aos funerais de meu pai.

- Não devíeis esvaziar a última garrafa numa refeição dessa natureza, porque isso traz infelicidade.

- Infelicidade! Encontro-a em toda a parte... Mas, chegamos a Wolf's Crag. Tudo quanto lá estiver, encontra-se ao vosso dispor.

O marulhar das águas tinha já anunciado, havia momentos, a aproximação dos rochedos, no cimo dos quais os antepassados de Ravenswood haviam construído o seu ninho de águias. A lua, até ali encoberta pelas nuvens, surgiu bruscamente; e viram erguer-se, num rochedo que dominava o Mar do Norte, a torre nua e solitária, qual fantasma de um gigante de granito. Três faces do rochedo eram cortadas a pique. A quarta, voltada para a terra, dava acesso à torre por uma ponte levadiça lançada sobre o fosso artificial. A torre erguia-se ao fundo do pátio e seria difícil imaginar moradia mais triste e pesada. O lúgubre e lento marulhar das vagas, que quebravam uma após outra de encontro aos rochedos, era para o ouvido o que a paisagem era para os olhos: um símbolo de invariável e monótona melancolia na qual se misturava o terror.

Apenas brilhava uma luzinha naquela massa de granito.

- Ali, é o quarto do último criado que guarda a casa de Ravenswood! Se não fosse ele, não teríamos nem luz nem fogo. Segui-me com cuidado; o atalho é apertado, e por aqui não pode passar mais do que um cavalo.

O caminho, bastante estreito, estendia-se numa espécie de istmo até ao extremo da península que suportava a torre.

Conformando-se com as prudentes recomendações do castelão, Bucklaw chegou sem perigo ao pátio, mas decorreram alguns minutos antes que Ravenswood conseguisse fazer-se ouvir, embora batesse violentamente à porta e chamasse Caleb com toda a força dos seus pulmões.

- O velho morreu ou está doente! - comentou - com tanto barulho teria já acordado se estivesse a dormir.

Por fim, ouviu-se uma voz tímida:

- Sois vós, senhor de Ravenswood?

- Sim, sou eu, Caleb. Abre depressa!

- Mas sois vós em carne e osso? Preferia ver diante de mim mil diabos do que o fantasma ou o espírito do meu amo!

- Sou eu, já te disse, velho louco! Sob uma forma corporal e viva, mas quase morto de frio!

A luz desapareceu na janela mais alta para reaparecer, lenta e sucessivamente, de fresta em fresta. A lentidão da sua descida arrancava a Ravenswood exclamações de impaciência e pragas ao seu companheiro, ainda mais impaciente. Caleb fez nova paragem antes de correr os ferrolhos; e, mais uma vez, perguntou se eram realmente dois homens que se encontravam ali.

- Se estivesse mais perto de ti, velho falador, provava-te suficientemente a minha condição corporal - protestou Bucklaw.

- Abre, Caleb! - ordenou Ravenswood com uma voz mais persuasiva.

Com mão trémula, Caleb levantou as trancas, abriu o bastante e ficou ali, parado. A cabeça quase calva, fracamente coroada de cabelos grisalhos, o rosto esguio, mostraram-se à luz vacilante da candeia que segurava na mão, enquanto a outra protegia a chama.

- Sois vós, meu querido senhor? Sim, sois vós! - exclamou o velho criado - Lamento ter-vos deixado tanto tempo à porta, acompanhado por um...

E pôs-se a gritar para dentro.

- Mysie! Mysie! Minha querida! Acende a lareira! Queima aquele escabelo de três pés ou qualquer outro objecto que te vá à mão! - e virando-se para Ravenswood, prosseguiu - Não o esperávamos tão cedo, milorde, por isso não nos aprovisionámos como desejaríamos, para vos receber com todas as honras. Contudo...

- Contudo, Caleb, é preciso que nos acomodes, a nós e aos cavalos, o melhor que puder ser. Espero que não estejas zangado por me veres mais cedo do que supunhas?

- Milorde!... Zangado, por voltar a ver o senhor de Ravenswood num dos seus castelos!

E, chamando de novo a companheira, invisível por trás da porta:

- -Mysie! Mata a galinha choca e vai pô-la a assar...

E, voltando-se para Bucklaw:

- Verdadeiramente, não é aqui a nossa residência preferida, mas é tudo quanto resta a lorde de Ravenswood para poder fugir até que... não é bem para fugir, mas para ter um refúgio que lhe permita viver mais retirado de qualquer perigo. Além disso, muita gente diz que Wolf's Crag é, devido à sua antiguidade, um bom motivo de estudo.

- E tu decidiste que devíamos estar muito tempo a admirá-lo? - disse Ravenswood.

- Meu amigo - observou Bucklaw - não é o exterior da casa que nos interessa. Deixa-nos ver o interior e faz com que os nossos cavalos conheçam a cavalariça.

- É muito justo, Monsenhor! Milorde e um dos seus dignos companheiros...

- E os nossos cavalos, meu velho amigo, os nossos cavalos! - exclamou Bucklaw - É perigoso retê-los aqui, ao frio, depois da corrida que acabam de fazer!

- Sim, os vossos cavalos... Vou chamar os rapazes da cavalariça.

E Caleb gritou:

- John William! Saunders! Os patifes saíram ou adormeceram! - acrescentou ele, depois de ter esperado por uma resposta que sabia não poder ouvir - Tudo corre mal quando o amo cá não está. Terei eu que levar os cavalos.

- É o melhor que tens a fazer, pois, de outra maneira, os animais arriscam-se a não ser tratados.

- Silêncio, milorde! Silêncio! Por amor de Deus! - exclamou Caleb; e chamando o amo à parte - Vai ser difícil sair airosamente deste embaraço. É tudo quanto vos posso dizer, meu amo!

- Bom, bom, não te apoquentes. Vai à cavalariça. Espero que haja feno e aveia?

- Há muito trigo e aveia! - afirmou Caleb atrevidamente, em voz alta. E depois, mais baixo - Não nos resta mais que meia medida de aveia e alguns molhos de palha.

- Muito bem! - disse Ravenswood, tirando a candeia das mãos do seu criado - Indicarei o caminho ao meu hóspede.

- Eu voltarei dentro de cinco minutos, ou dez, ou mesmo um quarto de hora -afirmou Caleb -E enquanto trato dos cavalos, podeis admirar o soberbo espectáculo que apresenta a paisagem, ao luar. Depois, levá-los-ei lá acima. Fechei à chave os candelabros de prata...

- Esta candeia serve para agora. Passas muito bem sem luz na cavalariça, pois, se a memória não me falha, abateu metade do seu tecto.

- É verdade, milorde - respondeu o fiel servidor. E apressou-se a acrescentar - Esses vilões dos pedreiros nunca mais se decidem a vir repará-lo!

- Se eu tivesse disposição para rir das calamidades que flagelam a minha casa - comentou Ravenwood, iluminando a escada diante do seu hóspede - esse pobre velho Caleb dar-me-ia mil motivos. A sua preocupação consiste em apresentar as coisas do nosso miserável lar, não como elas são, mas como, na sua opinião, elas deviam ser. Mas, embora a torre não seja muito grande, sem o seu auxílio teria grande dificuldade em encontrar o aposento onde terá de acender-se o lume.

Falando assim, abriu a porta da sala.

A sala oferecia um aspecto lamentável. Sobre a grande mesa de carvalho via-se uma infinidade de objectos que tinham sido usados no banquete, após os funerais de Allan Ravenswood, e tudo se encontrava numa desordem absoluta. Os panos negros, que tinham substituído as velhas tapeçarias, estavam em parte despregados e pendiam das paredes em festões irrergulares. As cadeiras, tombadas ou sem assentos, mostravam a confusão que se tinha seguido ao banquete fúnebre.

- Nesta sala - observou Ravenswood, levantando a luz - ecoaram exclamações de orgia quando deviam ser de tristeza: é um castigo justo que ela esteja agora triste, quando deveria estar alegre.

Saindo dali, subiram a escada, onde Ravenswood, depois de ter tentado abrir inutilmente uma ou duas portas, levou o seu hóspede a pequena antecâmara. Uma esteira cobria o chão. Com grande alegria, os dois recém-chegados encontraram ali uma boa lareira, que Mysie, graças a qualquer expediente sugerido por Caleb, tinha alimentado razoavelmente com lenha. Bucklaw esfregou as mãos diante do lume, ouvindo, entretanto, as desculpas que lhe apresentava Ravenswood.

- Há muito tempo que deixou de haver conforto entre estas paredes; mas o que vos posso garantir é que estamos aqui com toda a segurança.

- São duas coisas preciosas, Monsenhor! - respondeu Bucklaw - Um naco de pão e um copo de vinho, é positivamente o que eu mais desejo esta noite.

- Receio que a ceia seja muito triste. Espero que a questão se resolva entre Caleb e Mysie. O meu pobre Caleb, entre outras características, é bastante surdo. E muitas vezes deixa ouvir aos outros coisas que desejaria ocultar e julga dizer só para si. Oiçamo-lo...

E ouviram a voz do velho criado, falando com Mysie, na cozinha:

- Não deixes de fazer o melhor que possas. É fácil dar às coisas uma boa aparência.

- E a galinha? É mais rija do que as cordas do arco e dura como um bocado de sola!

- Dize que o engano foi teu, Mysie. Não deves maltratar a honra da família!

- Mas a galinha choca acocorou-se em qualquer canto da sala, e tenho medo de lá entrar por causa do fantasma. E se não vejo o fantasma, posso também não ver a galinha. Está tão escuro como um forno, e não há outra luz que não seja a da candea que milorde tem. E, além disso, mesmo que se encontne a galinha, é preciso matá-la, depená-la, cozinhá-la; e como o poderei fazer, se eles estão sentados diante do único fogo da casa?

- Vamos, vamos, Mysie, um pouco de paciência! Vou ver se trago a candeia.

Caleb Balderstone entrou na antecâmara onde se encontravam Ravenswood e o seu hóspede, sem poder adivinhar que a sua conversa com Mysie tenha sido ouvida.

- Caleb, meu velho amigo, que nos dás para cear? - perguntou Ravenswood.

- Temos muita criação para cozer ou grelhar. O frango, Mysie! - gritou ele, como se existisse semelhante coisa.

- Tudo isso é escusado - sossegou Bucklaw, julgando que era dever seu, por cortesia, aliviar o sofrimento do infeliz criado - Bastava um bocado da carne fria ou um naco de pão...

Caleb respirou fundo.

- Os melhores bolos de farinha! - exclamou ele -, Quanto a carnes frias, tudo quanto temos é bastante frio...

- Vamos, Caleb, não percamos tempo! - atalhou Ravenswood - Este senhor é o jovem lorde de Bucklaw. Precisa de se esconder, o que significa...

- Ele estará aqui como Vossa Honra. Fica ao meu cuidado - disse Caleb com um sinal de inteligência - Lamento as contrariedades deste fidalgo, mas sinto-me satisfeito por ele não ter que censurar esta casa, visto que as suas dificuldades rivalizam com as nossas. Não é que estejamos embaraçados, mas, evidentemente, estamos longe do que fomos ou do que deveríamos ser. Voltando à ceia, de que serviria mentir-lhe? Temos ainda guisado de carneiro, um bocado de queijo e excelente manteiga. E depois... é só isto.

Com uma vivacidade notável, Caleb trouxe as poucas provisões, colocando-as, conforme todas as regras da etiqueta, numa mesinha, entre os dois gentis-homens, servindo-os com muito zelo.

Decorridos instantes, Bucklaw pediu cerveja. Caleb apressou-se a dizer:

- Não tenho a presunção de enaltecer a nossa cerveja. O malte é medíocre, e tivemos grandes tempestades na semana passada; mas, em compensação, posso-vos garantir que nunca bebestes água como a da torre e por isso vo-la recomendo.

- Se a vossa cerveja é má, podeis trazer-nos vinho

- disse Bucklaw, fazendo uma careta, só por pensar no nome do único elemento que Caleb lhe recomendara com tanta eloquência.

- Vinho? - respondeu Caleb com gravidade - Vinho? Ainda não há muito tempo... e permita Deus que não se repita um acontecimento tão triste... bebeu-se tanto vinho, nesta casa, que chegava para pôr a flutuar um barco à vela. Nunca faltou vinho em Wolf's Crag!

- Em vez de falares tanto, é melhor que o vás buscar! - ordenou Ravenswood.

Caleb saiu apressadamente.

Foi à adega, experimentou todas as pipas, desesperadamente e, apesar de tantos esforços, não conseguiu recolher no jarro mais do que uns escassos decilitros de vinho, tão mau que o próprio Bucklaw não teve coragem de beber o segundo copo e contentou-se com um copo de água.

Após a modestíssima ceia, Caleb preparou o alojamento a Bucklaw, pedindo-lhe que desculpasse a insuficiência da mobília. E como tivessem escolhido para ele o quarto secreto, encontrou boa desculpa para as faltas.

- Quem poderia pensar que precisávamos dele? Desde a conspiração de Gowrie, nunca mais serviu e eu não me atrevi a revelar o segredo a uma mulher para vir limpá-lo, pois não seria por muito tempo um quarto secreto.

 

As descobertas de Caleb

 

Tudo era escuro e frio naquela sala. Sobre a mesa não havia flores, comida ou vinho. Não se via uma cama onde o corpo repousasse. Triste acolhimento teremos aqui - disse o herdeiro de Linne.

Balada antiga

 

Os sentimentos do pródigo herdeiro de Linne, tais como os exprime tão bem o velho poema, quando, após ter gasto toda a sua fortuna, se viu abandonado de todos na "sala solitária", tinham, sem dúvida, qualquer analogia com os do senhor de Ravenswood na sua casa deserta de Wolf's Crag. As privações e um título, que dependia da cortesia ou da descortesia daqueles com quem falava, eram a única herança que recebera dos seus antepassados.

Talvez este pensamento, melancólico, mas consolador, cruzasse o espírito do infeliz rapaz. A manhã, como as Musas, é propícia à meditação; dissipadas as sombras da noite, logo se acalmaram os pensamentos desordenados que tinham agitado, na véspera, Ravenswood, tornando-o, assim, bem capaz de analisar os diversos estados de espírito porque passara e mais resolvido a dominá-los. O dia tinha amanhecido calmo e brilhante. E um dia assim pode influir no coração de um homem e levá-lo a acções sublimes.

O primeiro desejo de Ravenswood, depois de se ter abandonado a um exame de consciência excepcionalmente severo, foi ir ter com Bucklaw ao quarto que lhe tinha destinado.

- Como vos encontrais esta manhã? - perguntou ele, à maneira de saudação - Que vos parece a cama onde dormiu outrora, no seu exílio, o conde de Angus, constantemente perseguido pela ira real?

- Que dizeis! - respondeu Bucklaw - Não estaria bem eu lamentar-me do alojamento que satisfez, antes de mim, tão grande senhor; digo apenas que o colchão é muito duro, a abóbada bastante húmida, os ratos muito desinquietos...

- Verdadeiramente - concordou o castelão, relanceando a vista pelo aposento - é muito desconfortável; mas, se vos levantardes, Caleb procurará confeccionar-vos um almoço melhor do que o jantar de ontem à noite.

- Peço-vos que não vos incomodeis por minha causa - protestou Bucklaw - Não deve ser melhor se quereis que eu persista nos meus projectos de reforma. A recordação do vinho apresentado por Caleb é mais eficaz para me corrigir do que a vossa amabilidade. Assim, tento matar as víboras que viviam alojadas no meu peito. Já tentastes fazer o mesmo?

- Já - afirmou Ravenswood - e em sonhos vi um anjo que descia do Céu para me auxiliar.

- Infelizmente, não posso dizer o mesmo.

E, levantando-se, começou a vestir-se. Deixando a companhia do seu hóspede, Ravenswood foi à procura de Caleb. Acabou por o encontrar numa espécie de cela tenebrosa que tinha sido, havia muito tempo, a dispensa do castelo. O velho entregava-se com ardor ao trabalho de polir um tacho de estanho até que o pusesse brilhante como prata.

- Toma isto - disse-lhe Ravenswood - e compra o que for preciso.

E entregou ao criado a bolsa que tinha escapado das garras de Craigengelt.

O velho agitou os poucos cabelos prateados; e, olhando para Ravenswood com a expressão da mais afectuosa inquietação, perguntou, ao mesmo tempo que aceitava aquele pequeno tesouro:

- É tudo quanto nos resta?

- Sim, tudo quanto nos resta por agora - respondeu Ravenswood, mostrando uma alegria que, certamente, estava longe de sentir - "A bolsa verde com muito pouco dinheiro", como diz a canção. Aguardemos que venham melhores dias.

- Guardai a vossa bolsa. Estou certo de que não haverá ninguém que nos recuse o crédito.

- Mas, Caleb, eu tenciono sair o mais depressa possível daqui! Quero deixar reputação de homem honrado, e nada de dívidas!

- Podereis partir sem que os credores vos apoquentem, visto que o velho Caleb tomará à sua resfponsabilidade as contas da casa. Tanto se me faz estar na prisão como em liberdade e o crédito da família continuará intacto e forte.

As palavras de Ravenswood, expondo-lhe a desnecessidade de contrair dívidas, não demoveram o velho criado.

- Temos a Eppie Smallstrash - prosseguiu Caleb que nos fiará a cerveja. Talvez nos fie também o brandy. Quanto a vinho, não sei; é uma mulher só, e compra apenas de cada vez um barril. De qualquer maneira, verei se lhe apanho algumas garrafas. Para criação, temos a capoeira, embora a senhora Chirnside afirme que pagou a kain (1) a dobrar. Por Vossa Honra far-se-á o que for preciso. Não desanimeis. A vossa casa manterá o seu crédito.

As refeições que Caleb conseguiu oferecer, durante dois ou três dias, à custa de variados esforços, ao senhor de Ravenswood e ao seu convidado, não foram, evidentemente, magníficas; mas as inquietações, as desculpas, os subterfúgios e os estratagemas do velho divertiram-nos, aumentando uma espécie de interesse à irregularidade do serviço e à pouca quantidade de,

 

(1) - Certa quantidade de frangos que os rendeiros pagavam aos amos.

 

comida. Tudo lhes serviu de distracção e animou as horas que, sem isso, seriam bastante pesadas.

Pela necessidade de se conservar no castelo, privando-se dos seus exercícios habituais e das suas libações, Bucklaw transformou-se num companheiro pouco interessante e sem alegria. Quando o senhor de Ravenswood se recusava a jogar, depois de ir ele próprio limpar e pentear o seu cavalo, depois de o ver comer a ração e deitar-se sossegadamente junto da manjedoura, Bucklaw não podia deixar de invejar, a resignação do animal a uma vida tão monótona.

- Que estúpido animal! - pensava ele - Amarrado a este palheiro, debaixo de um tecto em ruínas, ei-lo tão feliz, tão ao seu gosto como se nunca tivesse conhecido outros lugares! E eu, que tenho apenas a liberdade de um prisioneiro fugitivo para errar de uma torre para a outra, neste miserável castelo, ora assobiando, ora dormindo, a fazer tempo até à hora do jantar!

Com estes pensamentos desoladores, contemplava do parapeito ameado tudo que aparecia ao longe, na planície inculta, ou atirava pedras, bocados de caliça, aos alcatrazes que tinham a imprudência de se aproximar.

Ravenswood, de carácter muito mais reflectido e profundo, tinha, também, motivos para estar triste. A imagem de Lucy Ashton impressionava-o agora mais do que a própria pessoa. À medida que abrandava a violência desse furor de vingança que o tinha levado a procurar uma explicação com o pai, reconhecia como indigna e rude a sua conduta para com uma mulher igualmente distinta pelo nascimento e pela beleza.

Debatiam-se nele duas paixões opostas: o desejo de vingar a morte de seu pai e uma admiração extraordinàriamente dulcificante pela filha do seu inimigo. Lutou contra a primeira dessas paixões até que lhe pareceu quase subjugada; e não opôs resistência alguma à segunda. Se a sua intenção era sair da Escócia, não se mostrava, porém, muito apressado em abandonar Wolf's Crag. Na verdade, escrevera a um ou dois dos seus parentes, especialmente ao marquês de Athol, dando-lhe parte do seu projecto. Instado por Bucklaw, alegou a necessidade de esperar, antes de tomar uma medida tão decisiva, que os seus correspondentes, e principalmente o marquês, respondessem às suas cartas.

O marquês era rico e poderoso e, embora se lhe adivinhassem sentimentos de desagrado para com o governo estabelecido pela Revolução, nem por isso deixava de dirigir, no Conselho Privado da Escócia, um partido em relações com a facção inglesa da Alta Igreja, e era bastante forte para ameaçar com uma provável subversão o partido a que aderira sir William Asthon, Consultar uma pessoa desta importância era pretexto plausível que Ravenswood usava contra si próprio, para prolongar a sua estadia em Wolf's Crag; ao mesmo tempo, começava a correr rumor de uma mudança ministerial e de modificações na administração escocesa. Esse rumor, energicamente confirmado por certos amigos, não menos desmentido por outros, consoante lhes ditavam os seus interesses ou os seus desejos, chegava até à miserável torre de Wolf's Crag; encontrara bom introdutor na pessoa de Caleb, que, entre outras qualidades, tinha a de ser um fervoroso político e que nunca ia à aldeia vizinha de Wolf's Crag sem trazer de lá as novidades.

Mas se Bucklaw se se admirava com a demora de Ravenswood em sair da Escócia, não se impacientava menos com a inacção a que se via forçado; e só o ascendente que o seu companheiro tinha tomado sobre ele o fazia suportar um modo de vida tão contrário aos seus gostos e hábitos.

- Até aqui, milorde - afirmava frequentemente - supunha-vos um homem cheio de actividade, porém, preferistes escolher a vida de um rato no seu buraco, com a simples diferença que o rato, mais ajuizado, escolhe um refúgio onde possa pelo menos encontrar o alimento. Pelo que me diz respeito, as desculpas de Caleb tornaram-se prolixas, o seu regime é cada vez mais frugal.

- O destino vela por nós. Os nossos interesses estão em jogo na revolução iminente, que alarma desde já muitos corações.

- Que destino é esse? Qual é a revolução de que me falais? - perguntou Bucklaw.

Ravenswood deu-lhe uma carta.

- Bem - comentou Bucklaw - O meu sonho está explicado! Bem me quis parecer ter ouvido esta manhã Caleb teimar com um pobre diabo para que aceitasse um copo de água fria, afirmando que, para o estômago, essa água lhe fazia melhor do que a cerveja ou o brandy...

- Esse pobre diabo era o correio de lorde Athol. Lede e vereis as notícias que me dão.

- Vou ler o mais depressa que possa, mas não sou grande letrado e Sua Senhoria não me parece que seja o melhor dos escribas.

A carta dizia o seguinte:

"Nosso muito digrno primo

"Depois de vos ter apresentado os nossos afectuosos cumprimentos, vimos, com a presente, afirmar o interesse que nos prende ao vosso bem estar e ao ressurgimento da vossa fortuna. Se, na nossa qualidade de parente, não temos manifestado mais vezes a nossa amizade deveis atribuí-lo à falta de ocasiões favoráveis e não à indiferença. Não vos quero encorajar neste momento na vossa resolução de ir ao estrangeiro: era natural que muita gente mal intencionada se apressasse, como habitualmente, a atribuir a vossa partida a motivos tão afastados do vosso pensamento como do nosso; mas as suas palavras podiam levantar suspeitas que vos seriam bastante prejudiciais.

"É esta a nossa opinião sobre o vosso projecto de sair da Escócia. Poderíamos ainda acrescentar razões de peso, materialmente vantajosas para vós e para a casa de vosso pai e que vos convenceriam a ficar em Wolf's Crag até à próxima colheita. Mas conheceis o provérbio: "Verbum sapienti..." Vale mais uma frase para um ajuizado que um sermão para um doido. E, embora tracemos por nossa própria mão estas pobres linhas, o nosso mensageiro nos mereça, confiança e conheçamos a sua fidelidade, convencidos como estamos que um terreno resvaladiço exige uma marcha cuidadosa, não nos arriscamos a confiar ao papel o que desejaríamos dizer-vos de viva voz. Tencionávamos convidar-vos a vir à nossa árida região montanhosa matar um veado e tratar connosco de questões sobre as quais mal tocamos agora, mas como a altura não é propícia, adiamos o convite para melhor ocasião.

Vosso afectuoso primo A..."

O endereço dizia:

"Ao nosso muito digno e nobre parente o Senhor de Ravenswood, para lhe ser entregue o mais depressa possível".

- Que pensais desta carta, Bucklaw?

- Por minha fé, acho-a tão difícil de compreender como de ler. O marquês necessita de um "Manual de Oráculos" ou de um "Secretário Perfeito". No vosso lugar, enviar-lhe-ia pelo seu próprio mensageiro um exemplar das duas obras. Aconselha-vos com muita amabilidade que continueis a perder o vosso tempo e o vosso dinheiro neste estúpido e vil país de opressão, mas não vos oferece o seu apoio nem um asilo na sua casa. Se não estou em erro, acarinha algum projecto para o qual sup5e que podereis servir-lha e deseja ter-vos à mão para vos aproveitar no momento oportuno, reservando-se o direito de vos abandonar se a conspiração falhar.

- Conspiração? Supondes tratar-se de traição?

- Há muito tempo se desconfia que o marquês tem os olhos voltados para Saint-Germain.

- Não conseguirá meter-me em semelhante aventura. Francamente, quando penso na história dos dois Charles e na de James II. não vejo motivo, tanto como homem como patriota, para desembainhar a minha espada a íavor dos seus descendentes.

- Vamos! - exclamou Bucklaw - Iríeis tomar luto por esses cães puritannos que tão justamente foram desorelhados pelo valente Claver?

- Começaram por dizer que esses cães estavam danados antes de os enforcarem. Espero que chegue o dia em que Whigs e Tories se apresentem igualmente diante da Justiça!

- Ainda não é hoje que veremos isso, milorde. O ferro entrou profundamente nos peitos e nas almas.

- Não impede que chegue o dia em que esses nomes ridículos já não consigam fazer agitar as pessoas como um toque de trombeta. A vida social será melhor protegida. Segundo depreendi da carta do marquês, refere-se a uma revolução no Conselho Privado da Escócia e não no seio da Inglaterra.

- Eis a confusão dos vossos jogos políticos! - exclamou Bucklaw - As frias manobras que os velhos senhores executam como se jogassem num tabuleiro de xadrês, mudando um tesoureiro ou um lorde comissário como se fossem uma torre ou um pião. Para mim, a péla como passatempo e a batalha nas horas graves! A minha raqueta para instrumento de jogo e a minha espada para ganhar o pão! Vós, milorde, sois reflectido, pouco susceptível de agir impensadamente, até que o sangue vos suba à cabeça mais depressa do que convinha, na disposição que mostrais de moralizar as verdades políticas. Sois daqueles que encaram tudo com calma até que a cólera ferva, i e então... infeliz daquele que vos lembrar as vossas prudentes máximas!

- Talvez - concordou Ravenswood - tivésseis lido melhor em mim do que eu próprio. Mas pensar com calma será o primeiro passo para proceder também com calma. Mas aí está Caleb a tocar a sineta para o jantar! Vamos ver o ar cerimonioso, o excesso d solenidade com que nos apresentará o único prato!

- Em nome do Céu, Caleb, destapa esse prato! - ordenou Bucklaw, com impaciência, ao velho criado, que, sem lhe responder, continuou a procurar o sítio onde colocar o prato, até que, finalmente, o poisou no centro da mesa.

- Que trazes aí, Caleb? - perguntou Ravenswood.

- Valha-me Deus, Monsenhor! - murmurou Caleb, demonstrando certo receio ao destapar o prato.

- Mas o que é, em nome do Céu! Creio que não nos apresentas um par de esporas reluzentes, como era costume antigamente nas nossas fronteiras?

- Vossa Honra quer divertir-se!... Para o jantar de hoje, pensei que, na véspera de Santa Madalena, festa de uma rainha que governou dignamente a Escócia, Vossas Honras achariam conveniente, não jejuar de facto, mas comerem ligeiramente, por exemplo, arenques salgados ou qualquer coisa parecida.

E, destapando o prato, Caleb apresentou quatro dos saborosos peixes que acabava de mencionar, acrescentando que não se tratava de simples arenques, visto terem sido preparados com um sabor extraordinário pela governanta (pobre Mysie!) ao gosto de Sua Honra.

- Acaba com as desculpas! - ordenou Ravenswood

- Deixa-nos comer os arenques, já que não tens coisa melhor para nos dar. Começo a acreditar que teremos de mudar de terra, a despeito dos conselhos do marquês.

 

O cavaleiro desconhecido

 

Quando os caçadores fazem soar a trompa e o animal, assustado sai do covil, qual será o homem que, se nas veias lhe corre o sangue ardenfe, ficaria deitado, como um corpo sem vida, sem gozar o espectáculo deslumbrante que a natureza lhe oferece?

JOANNA BAILLIE - Etherald, acto I - cena I

 

Na manhã seguinte, Bucklaw entrou de rompante no quarto do seu hospedeiro, soltando gritos de acordar um morto.

- Pelo Céu, levantai-vos, levantai-vos! Os caçadores batem a planície. É a primeira caçada que vejo há mais de um mês! E ficais aí, milorde, deitado numa cama que não tem outro mérito senão o de ser um pouco menos dura do que o lajedo da cripta onde dormem os vossos antepassados!

- Lamento, mister Hayston - replicou Ravenswood, levantando a cabeça com ar desdenhoso - que não me tenhais dispensado desse divertimento. Não me agrada muito o ter que renunciar ao breve repouso que acabo de ter, após uma noite em claro, meditando num destino mais duro do que a minha cama.

- Levantai-vos, levantai-vos! Os cães estão soltos e os cavalos selados. Levantai-vos, milorde! Começou

a caçada.

E Bucklaw saiu a correr.

Ravenswood levantou-se sem pressa, murmurando:

- Pois afirmo não haver nada que menos me interesse. De quem serão os cães?

- Do nobre lorde Bittlebrains - respondeu Caleb, que tinha acompanhado o impaciente Bucklaw ao quarto do seu amo - Mas não sei verdadeiramente o motivo que o trouxe aqui, desprezando os vossos direitos e privilégios, nas terras de Vossa Senhoria...

- Só vejo um motivo, Caleb: tendo ele comprado as terras e privilégios florestais, julga-se autorizado a exercer direitos adquiridos legalmente.

- É provável que assim seja, milorde. Mas não é próprio de uma pessoa educada vir exercer aqui tais direitos quando Vossa Honra habita no seu castelo de Wolf's Crag. Lorde Bittlebrains deveria lembrar-se do que foi a vossa família.

- E nós do que somos hoje - atalhou Ravenswood, de mau humor - Dá-me a minha capa, Caleb. Vou dar uma vista de olhos a essa caçada. Seria egoísmo sacrificar ao meu gosto o gosto do meu convidado.

- Sacrificar! - repetiu Caleb, num tom que parecia conter o absurdo de uma concessão feita a quem não fosse o seu amo - É um sacrifício, na verdade!... Mas, que Vossa Honra me perdoe! Qual é o fato que desejais levar?

- Escolhe tu, Caleb. O meu guarda-roupa não deve estar muito bem fornecido...

- Não está bem fornecido? Tem ainda o fato cinzento e prata com que Vossa Senhoria vestia Hew Hildebrand, o vosso picador. E o fato de veludo francês que levava o vosso pai, de grata memória? E o antigo guarda-roupa destinado aos amigos pobres da família? E o fato de lã de Berry...

- Que eu te ofereci, Caleb, e que é, certamente, o único que conseguimos salvar, sem falar naquele que eu trazia ontem e que te paço para ires buscar, sem mais palavras vãs.

- Se Vossa Honra o prefere... vou escová-lo muito bem, porque também vieram senhoras...

- Senhoras! - exclamou Ravenswood - Quem são?

- Como quer Vossa Senhoria que eu saiba? Ao olhar pela fresta da torre, vi-as passar a galope, rédeas soltas, pluma ao vento, como se viessem da corte de Eilfland.

- Está bem, está bem, Caleb! Ajuda-me a pôr a capa e dá-me o meu cinturão. Mas que barulho é este que oiço no pátio?

- São os passos dos cavalos que lorde de Bucklaw foi buscar - respondeu Caleb, depois de olhar pela janela - Como se faltasse gente no castelo para os trazer!

- Boa vontade não falta, Caleb.

- Espero que Vossa Honra não se ressinta muito do estado das coisas. Dentro das medidas do possível, eu pretendo apenas salvar a honra da família. Mas mister Bucklaw tem umas maneiras tão bruscas, tão impacientes! Ei-lo que chega com o cavalo de Vossa Honra, sem, ter coberto a sela com a sua manta bordada, que eu escovaria num minuto!

- Está muito bem assim - respondeu Ravenswood, dirigindo-se à escada estreita e em caracol que ia dar ao pátio.

- Pode ser que esteja muito bem - replicou Caleb, num tom de censura - mas se Vossa Honra não tivesse tanta pressa, dir-lhe-ia porque não acho muito bem...

- Então, porquê? Fala! - ordenou Ravenswood, parando, apesar da sua impaciência.

- É que, se Vossa Honra pensasse em convidar alguém para o jantar, eu não poderia desculpar-me com o dia da festa da Rainha Margarida, como no caso de mister Bucklaw... E se Vossa Honra encontrasse meio de ser convidado para jantar com lorde Bittlebrains, em casa dele ou na hospedaria, onde se recusaria a pagar a sua parte, dizendo que se tinha esquecido da bolsa ou...

- Ou qualquer outra mentira. Até logo, Caleb. Acredita que aprecio imenso o teu zelo pela honra da família.

E, montando a cavalo, Ravenswood seguiu Bucklaw, que, mal pusera o pé no estribo, partira a galope pelo carreiro em declive.

Caleb Balderstone acompanhou-os com um olhar inquieto. Abanou a cabeça grisalha.

- Deus os proteja de uma desgraça! Finalmente, ei-los na planície. Não se poderá dizer que os seus cavalos precisem de coragem e de ardor!

Animado pelo calor do seu temperamento e fogosidade natural, Bucklaw precipitava-se às cegas, como o vento.

Os acordes repetidos da trompa francesa, então em uso para excitar e dirigir os cães, os latidos profundos, embora distantes, da matilha, os gritos dos caçadores, vultos que mal se viam, ora surgindo das abertas que interrompiam as moitas, ora perscrutando o exterior, ora procurando o seu caminho por entre os charcos que lhes serviam de obstáculo, e, acima de tudo, o seu próprio entusiasmo, arrancavam, pelo menos naquele momento, Ravenswood às tristes recordações que o assaltavam. Mas breve voltou à sua tristeza, ao verificar que, apesar do seu perfeito conhecimento da região e das vantagens que daí resultavam para o seu cavalo, este não podia suportar a marcha da caça. Puxou a rédea, pensando com amargura que a sua pobreza o afastava daquilo que tinha sido a distracção favorita de seus pais ou, para melhor dizer, a sua única ocupação no tempo de paz, quando foi abordado por um cavaleiro muito bem montado que, sem que ele o tivesse apercebido, o seguia de perto desde a sua chegada ao pátio.

- O vosso cavalo está exausto - disse-lhe o desconhecido, com uma atenção que não era corrente numa caçada - Permitis-me que vos ofereça o meu?

- O vosso! - exclamou Ravenswood, mais surpreendido do que encantado com o oferecimento, - Não sei verdadeiramente porque possa merecer semelhante favor de um desconhecido.

- Não procureis sabê-lo - interrompeu Bucklaw, que, bastante contrariado, até ali tinha refreado o cavalo para não se afastar do seu hospedeiro – Como disse o ilustre Dryden, aceitai os favores que vos enviam os deuses; ou melhor, emprestai-me esse cavalo, meu amigo. Ele tem o diabo no corpo e eu encarrego-me de o fazer sossegar. Agora, milorde, tomai o meu; levar-vos-á voando, como uma águia!

Entregando as rédeas do seu cavalo a Ravenswood e montando o outro que lhe cedera o desconhecido, partiu a todo o galope.

- Já se viu semelhante insensato! - comentou Ravenswood - Como pudestes confiar-lhe o vosso cavalo?

- Aquele cavalo - respondeu o homem - pertence a uma pessoa que terá sempre muito prazer em o confiar a Vossa Honra ou a um dos vossos amigos.

- E como se chama essa pessoa?

- Que Vossa Honra me perdoe, mas sabê-lo-eis por ela própria. Tomai, por favor, o cavalo do vosso amigo e dai-me o vosso; ver-nos-emos de novo, dentro de alguns momentos, pois conheço pelo toque das trombetas que descobriram o veado.

- Creio, meu amigo, que será a única maneira de tornardes a ver o vosso cavalo.

Em seguida, Ravenswood montou o cavalo da Bucklaw, dirigindo-se com ele para o local onde as trombetas anunciavam o próximo fim do veado. Aqueles sons alegres misturavam-se com os gritos dos caçadores "A ti, Talbot, (1) a ti, Teviot! Vamos, meus valentes, vamos!" e os latidos impacientes dos cães, chegados ao termo da sua perseguição.

Os cavaleiros dispersos começaram a reunir-se no local da acção; acorriam de toda a parte, como se se dirigissem para o mesmo centro.

Bucklaw foi o primeiro a chegar. O veado, impossibilitado de fugir, voltara-se contra os cães: segundo a expressão consagrada, estava filado. Com a nobre cabeça estendida para a frente, as ancas brancas de espuma, os olhos brilhantes de raiva e de terror, inspirava respeito aos seus perseguidores. Os caçadores

 

(1) - Talbot e Teviot são nomes de cães de caça.

 

aproximaram-se um a um, procurando uma ocasião para atacar com vantagem, o que exige alguma prudência. Os cães tinham-se afastado um pouco, ladrando com força, desesperados e receosos. Cada um dos circunstantes parecia esperar que um companheiro se arriscasse na perigosa empresa de atacar o animal e feri-lo. O terreno não se prestava para que se aproximassem do veado sem serem vistos por ele. De súbito, ouviu-se um grito de triunfo quando Bucklaw, com o desembaraço próprio de um cavaleiro perfeito, atacou inopinadamente e, com pequena faca de caça, abateu o veado, ferindo-o numa das patas traseiras. A matilha, lançando-se sobre o inimigo, reduziu-o imediatamente à impotência, pondo termo ao seu sofrimento e festejando a sua queda com grande alarido, ao mesmo tempo que as vozes dos caçadores e o som das trombetas anunciavam o acontecimento.

O chefe da caçada fez então voltar a presa abatida, e, de joelho em terra, mostrou a sua faca a uma mulher loura, montada num cavalo branco, que o terror ou talvez a compaixão tinham conservado a distância. Trazia uma máscara de seda negra, que era moda naquela época, nas damas, quando montavam a cavalo, e que servia para resguardar o rosto do sol e da chuva, correspondendo a uma certa ideia de decência, segundo a qual uma dama não podia apresentar-se de cara descoberta num divertimento ruidoso.

Contudo, a riqueza do trajo, a beleza do cavalo e a saudação que lhe dirigia o chefe da caçada indicaram a Bucklaw que essa mulher devia ser a personagem mais notável da reunião. Não foi sem um sentimento de piedade, onde havia talvez um pouco de desdém, que o entusiasmado caçador a viu recusar a faca que lhe tinha sido apresentada para que ela fizesse a primeira incisão no peito do veado e mostrasse a qualidade da caça.

Esteve quase resolvido a prestar-lhe as suas homenagens; infelizmente, os seus hábitos de vida não o tinham familiarizado com as altas esferas da sociedade feminina; e, apesar da sua audácia, sentia-se tímido e receoso quando lhe era preciso dirigir-se a uma dama nobre.

Por fim, tomando coragem, decidiu-se a saudar a formosa caçadora, dizendo-lhe que esperava que o divertimento correspondesse à sua expectativa. Ela respondeu-lhe com um misto de cortesia e de modéstia, testemunhando algum reconhecimento ao valoroso cavaleiro que, tão habilmente, tinha abatido a caça, enquanto os caçadores e os cães se mostravam um pouco hesitantes.

Esta observação levou Bucklaw para um campo familiar.

- Não vejo, milady, que haja dificuldade ou valor em fazer com uma faca de caça o que fiz, logo que não corra o perigo de ser atingido pelas hastes do animal. A faca deve ter os gumes bem afiados, para que se abata logo a presa e se evite qualquer ferimento produzido pelas hastes do veado, perigoso por poder originar uma infecção.

- Creio bem - respondeu ela - que não há remédio algum para um caso desses.

- Este senhor disse coisas acertadas - declarou um velho caçador, que ouvira religiosamente o discurso de Bucklaw - Eu já tinha ouvido contar ao meu pai, guarda florestal em Cabrach, que a ferida feita pelas presas do javali não se infecta tanto como a que é feita pelas hastes de um veado. é também o que diz a lenda florestal:

Ferida de chavelha poderá matar, Ferida de presa pode curar-se.

Bucklaw, que se encontrava no seu elemento, desejava ardentemente dirigir todas as operações.

- Os cães estão esfalfados - prosseguiu ele - e, para os recompensar, aconselho que se lhe dê de comer, abrindo as entranhas do veado; e, se me permitem dar a minha opinião, o caçador que abrir o veado deverá esvaziar à saúde da senhora uma boa caneca de cerveja ou um dedo de brandy, pois, se ele o abrir sem beber, a carne não se conservará.

As palavras do orador foram acolhidas o melhor possível pelo chefe da caçada, que ofereceu a faca a Bucklaw; e a dama aprovou, dizendo:

- Estou certa de que meu pai, depois do prazer que deu a lorde Bittlebrains, fazendo sair hoje os seus cães, ficará satisfeito por entregar esse trabalho a um homem com a vossa experiência.

E, inclinando-se no seu cavalo, saudou Bucklaw e, seguida por um ou dois criados, afastou-se, sem que Bucklaw se tivesse apercebido da retirada, tão distraído estava com a oportunidade de poder mostrar a sua habilidade. Tirou a capa, arregaçou as mangas, e, de braços nus, mergulhou-os até ao cotovelo no sangue e na gordura, cortando, rasgando, separando tudo, dissertando com conhecimento sobre todas as coisas cuja denominação técnica deve estar actualmente em desuso.

Quando Ravenswood, que tinha acompanhado o seu amigo de perto, viu que o veado fora abatido, o seu ardor momentâneo pela caça cedeu ao sentimento de repugnância que experimentava todas as vezes que encontrava fixos sobre ele os olhares de iguais ou inferiores. Fez voltear o cavalo para subir o pequeno monte, donde observou a cena de animada alegria que se desenrolava lá em baixo. Os gritos dos caçadores chegavam-lhe confundidos com os latidos dos cães e o relinchar dos cavalos. Mas este rumor de festa soava-lhe tristemente aos ouvidos. Recordava-lhe a sua ruína. A caça, com tudo quanto tinha de excitante, fora, desde os tempos do feudalismo, considerada como um privilégio quase exclusivo na nobreza, da qual constituía a principal ocupação em tempo de paz. A ideia de se ver banido, pela sua situação, de um exercício que o nascimento lhe indicava como prerrogativa, tornava-o melancólico e pensativo. Contudo, o orgulho não tardou a vencer aquele abatimento. A impaciência sucedeu ao desânimo, vendo que o seu frívolo amigo Bucklaw não se apressava a montar o cavalo emprestado, que ele, Ravenswood, queria restituir ao seu amável proprietário. Dispunha-se a juntar-se aos outros caçadores quando foi abordado por um cavaleiro que, como ele, se afastara durante o estripamento do veado.

O cavaleiro parecia ser de idade avançada. Trazia uma capa abotoada à altura do queixo e um chapéu desabado, certamente para se defender da frescura do ar. O seu cavalo, verdadeiro cavalo de sela, convinha a um homem que se propusera assistir como espectador à reunião do dia e não para tomar parte activa na caçada. Era seguido por um criado. Tudo nele revelava distinção e elegância. Aproximou-se de Ravenswood com extrema delicadeza, mas um pouco embaraçado.

- Tendes o aspecto de corajoso e, contudo, pareceis indiferente a este nobre exercício, como se tivésseis sobre as costas o peso da minha idade.

- Entreguei-me com bastante ardor a este divertimento noutras épocas - replicou Ravenswood - mas certos acontecimentos que se deram depois na minha família servem-me, hoje, de desculpa; além disso., estava mal montado no começo da caçada.

- Creio que um dos meus criados teve a boa ideia de emprestar um cavalo ao vosso amigo - volveu o desconhecido.

- Sei que ele ficou muito satisfeito com a vossa atenção e desde já vos agradeço em nome dele. O meu amigo chama-se Hayston de Bucklaw e, certamente, o encontrareis entre os caçadores. Ele vai restituir o cavalo do vosso criado, montar o meu e juntar aos meus os seus melhores agradecimentos pela obrigação de que vos somos devedores.

Em seguida, Ravenswood, como homem que fez as suas despedidas, voltou o cavalo na direcção por onde viera. Porém, o desconhecido, imitando-lhe os movimentos, cavalgou no mesmo sentido, tão perto de Ravenswood que este não podia evitar a sua compa-nhia, a não ser que lhe passasse à frente, o que não permitia a etiqueta, nem o respeito devido à sua idade e o interesse que o desconhecido acabava de mostrar em lhe fazer companhia.

O silêncio não durou muito.

- Eis o velho castelo de Wolf's Crag, bem conhecido nos anais da Escócia! -observou o desconhecido.

E, enquanto falava, olhava a velha torre, ensombrada naquele momento por uma nuvem de trovoada que lhe servia de pano de fund.

Ravenswood respondeu apenas com um gesto vago à observação do velho, que, sem se desconcertar, proseguiu:

- É, segundo ouvi dizer, uma das propriedades mais antigas da venerável família de Ravenswood.

- A mais antiga - respondeu Ravenswood - e provavelmente a última.

Eu... eu... eu desejaria que assim não fosse - continuou o velho, tossindo duas ou três vezes para aclarar a voz - A Escócia sabe o que deve a essa antiga família. Não duvido de que, ss apresentassem devidamente a Sua Majestade o estado deplorável, o estado de miséria em que se encontra uma família tão nobre e de tão remota origem ...

- Dispenso-vos, milorde, o incómodo de ir mais longe nesse assunto - interveio Ravenswood com altivez - Eu sou o herdeiro dessa infeliz casa... sou Ravenswood. E vós, milorde, que me pareceis ter um espírito elevado, alma bem formada, compreendereis que depois da miséria não há pior mortificação que o inspirar a compaixão quando não a reclamamos.

- Perdoai-me... eu não sabia... estava bem longe de supor...

- Não tendes de que me pedir desculpas... É aqui que os nossos caminhos se separam. E, quanto a mim, garanto-vos que não vos guardo rancor.

Após estas palavras, Ravenswood puxou a rédea para conduzir o cavalo pelo caminho que ia dar a Wolf's Crag. Mas antes que ele pudesse afastar-se do seu companheiro, a jovem com quem já travámos conhecimento apareceu seguida pelos criados e juntou-se ao velho.

- Minha filha - disse-lhe ele - apresento-te o senhor de Ravenswood.

É natural que Ravenswood tivesse correspondido àquela apresentação; mas a graça e a modéstia daquela aparição feminina causaram-lhe tal impressão que não perguntou quem o apresentara, nem quem era a apresentada. Entretanto, a nuvem que pairava sobre as alturas onde se elevava Wolf's Crag avançava, espalhando-se, ao mesmo tempo, sobre a terra e sobre o mar, cada vez mais escura e carregada, ocultando os objectos distantes, escurecendo Os mais próximos, dando ao mar uma tonalidade de chumbo. Dois ou três trovões anunciaram a trovoada, e dois raios seguidos iluminaram as torres cinzentas de Wolf's Crag.

O cavalo da jovem começou a dar sinais de excitação. Ravenswood não podia, sem faltar ao seu dever de homem e de fidalgo, ficar sossegado com a intervenção de um pai idoso ou dos criados. Sentiu-se imediatamente obrigado a ajudar a amazona a dominar a montada.

Entretanto, o velho fez ver que a tempestade parecia aumentar, que estavam longe da casa de lorde Bittlebrains, onde sua filha e ele eram presentemente hóspedes, e que ficaria imensamente grato a Ravenswood se ele lhe indicasse o abrigo mais próximo. Ao mesmo tempo, lançou um olhar furtivo, mas significativo, na direcção da torre de Wolf's Crag.

- A torre de Wolf's Crag nada mais pode oferecer do que o abrigo do seu tecto - ofereceu Ravenswood - Mas, se neste momento precisais de vos recolher ali...

E calou-se, como se o resto do convite se lhe tivesse abafado na garganta. Porém, o velho fidalgo que lhe tinha imposto a sua companhia não lhe permitiu fazer convite mais implícito e formal.

- A tempestade - disse ele - dispensa, com certeza, qualquer falta de cerimónia.

E acrescentou que a filha estava adoentada; tinha sofrido ultimamente um grande susto; e ele dava mais valor à saúde da filha do que à etiqueta.

Assim, Ravenswood compreendeu que não podia voltar com a palavra atrás. Pôs-se a caminho, segurando sempre as rédeas do cavalo da jovem -, com receio de que o animal se espantasse com a brusca explosão da trovoada.

No momento em que pararam defronte da antiga fortaleza, Ravenswood sentiu-se desagradàvelmente embaraçado. Quando entrou no pátio, chamou Caleb, que não tardou a aparecer. E nem a palidez da formosa donzela, no princípio da trovoada, nem a palidez de qualquer pessoa noutra circunstância, se podiam igualar à do pobre criado quando viu o castelo invadido pelos novos hóspedes e pensou que se aproximava a hora do jantar.

- Endoideceu? - disse ele, baixinho - É preciso que tenha perdido a cabeça para trazer aqui lordes e grandes damas e, atrás deles, uma multidão de lacaios, quando soou o meio-dia!

Em seguida, abeirando-se do amo, pediu-lhe desculpa de ter consentido que os outros criados tivessem ido assistir à caçada, fazendo notar que o regresso de Sua Honra não era esperado antes da noite escura, e receava que eles viessem muito tarde.

- Silêncio, Caleb! - impôs Ravenswood com voz severa -A tua idiotice passa os limites!

E voltando-se para os seus hóspedes, acrescentou:

- Este velho e uma rapariga são os únicos servidores desta casa. Os meios de subsistência que podemos oferecer-vos são mais escassos do que poderíeis imaginar pelo estado lastimável do pessoal e do alojamento; mas. seja como for, está tudo às vossas ordens.

O desconhecido, impressionado com o aspecto selvagem e ruidoso da torre, acentuado pela tristeza de um céu escuro, talvez comovido pela firmeza de carácter manifestada na voz de Ravenswood, olhou em volta de si, num olhar inquieto, como arrependido de ter aceitado tão prontamente a hospitalidade que lhe era oferecida. Mas não podia recuar numa situação que ele próprio tinha criado.

Quanto a Caleb, pasmado pela maneira inesperada como Ravenswood acabava de dar a conhecer a sua miséria, pôs-se a coçar o queixo, onde a navalha de barbear não passava havia mais de oito dias.

- É doido, completamente doido! - murmurou ele. E lembrando-se das suas faculdades de invenção, acrescentou - Que o diabo leve a Caleb Balderstone se consentir que a família perca o seu crédito; fosse ele mais louco do que os Sete Sábios!

Depois, avançou corajosamente; e, sem se deixar intimidar pelo enrugado da testa e a impaciência do seu amo, perguntou se ele queria que servisse uma refeição leve à jovem ou um copo de "Tokay", ou de vinho velho da Espanha, ou...

- Acaba com essas invenções inúteis! - disse Ravenswood com firmeza.

Naquele momento, acima do barulho que fazia a aproximação de uma cavalgada juntamente com um concerto de trombetas, a voz de Bucklaw indicou que se aproximava a torre, precedendo a maior parte do cortejo da caça.

- Maldito seja eu se eles levarem a melhor! - disse Caleb, retomando ânimo, ante aquela nova invasão de Filisteus - O endiabrado rapaz nunca mais se atreverá a outra! Trazer uma tropa destas, que espera encontrar aqui mais brandy do que água do poço! Ele bem sabe a situação em que nos encontramos! Mas, espera ... se pudesse, pelo menos, impedir que esses lacaios entrassem no pátio atrás dos seus amos... Como não há nenhum homem que não deseje vencer na vida... Sim, poderei ainda avisiar a todos.

 

Os hóspedes de "Wolf's Crag"

 

Com a garganta e a boca seca ouviram--no chamar. Esboçaram um sorriso de agradecimento e calaram-se, como se estivessem a beber.

COLERIDGE - Poema “O velho marinheiro”

Hayston de Bucklaw era um desses homens sem juízo que nunca vacilam entre um amigo e um prazer. Ao saberem que as pessoas mais notáveis da caçada tinham tomado o caminho de Wolf's Crag, os caçadores assentaram que, por uma questão de delicadeza, se levasse o veado, no que Bucklaw se apressou a concordar. Pensava na atrapalhação do velho Caleb Balderstone quando visse chegar toda aquela gente; e não esquecia também o embaraço em que ia colocar Ravenswood. Contudo, tinha no velho Caleb um adversário esperto, pronto a arranjar, em todas as circunstâncias imprevistas, as desculpas e subtilezas que julgasse convenientes à dignidade da família.

- Louvado seja Deus! - disse Caleb - Um dos batentes do portão fechou-se com o vento e creio que conseguirei fechar o outro.

Mas, como governador prudente, tinha de desimpedir primeiramente a praça do inimigo interno. Evitaria em seguida a entrada dos que chegavam, cujas exclamações alegres anunciavam a sua aproximação. Esperou ansiosamente que o amo tivesse conduzido os seus dois novos convidados para a torre, começando então as suas operações.

- No meu entender - disse ele aos criados do desconhecido - visto que eles trazem o veado com grande pompa para o castelo, nós deveríamos ir receber os caçadores à entrada.

Obedecendo a esta hábil sugestão, os criados, sem desconfiarem de coisa alguma, mal tinham tido tempo de sair, quando Caleb se apressou a fechar o segundo batente, com um barulho tal que se ouviu em toda a torre. Quando a entrada ficou assim condenada, ele dispôs-se a parlamentar com os caçadores transidos de frio. Por uma janelinha, onde, antigamente, os guardas costumavam ver as pessoas que pretendiam entrar, Caleb deu-lhes a entender, em termos concisos, que a porta do castelo nunca se abria, fosse por que motivo fosse, durante as horas das refeições; que Sua Honra o senhor de Ravenswood tinha hóspedes de categoria e que acabavam de se sentar à mesa; que havia um excelente brandy na estalagem de Wolf's Hope, e que ouvira dizer, embora vagamente, que as despesas seriam por conta do amo; mas isto foi dito de um modo ambíguo e sibilino; pois, assim como Luís XIV, Caleb evitava levar a esperteza até à falsidade: contentava-se em enganar sem recorrer à mentira.

As suas palavras foram acolhidas com espanto por uns, com bom humor por outros, com tristeza para os criados, enganados, que pretendiam ser admitidos de novo pela indiscutível necessidade de servirem os seus amos. Mas Caleb não estava disposto a atendê-los nem a consentir distinções. Bucklaw, que acabava de chegar, pediu num tom irritado que o deixasse entrar. Caleb ouviu-o sem se comover.

- Nem que fosse o rei que viesse bater à porta, os meus dedos não desobedeceriam a um hábito estabelecido na família de Ravenswood.

A ira de Bucklaw chegou ao máximo. Praguejou em termos que não podemos reproduzir e, classificando o procedimento como indigno, pediu para falar com o senhor de Ravenswood. Porém, Caleb fingiu não o ouvir.

«Ele que diga o que quiser - pensou, referindo-se a Bucklaw - mas vá eu para o diabo se ele falar com o meu amo antes de uma noite de repouso! Amanhã, ao acordar, terá o espírito mais desanuviado. Trazer consigo um bando de caçadores sequiosos, quando ele bem sabe que não temos aqui com que lhes matar a sede!"

E fechou a janela.

Esta cena tinha sido presenciada por uma testemunha silenciosa, que ninguém notara, no auge da discussão. Era o criado principal do desconhecido, um homem da sua confiança, o mesmo que, durante a caçada, tinha emprestado o seu cavalo a Bucklaw. Encontrava-se na cavalariça no momento em que Caleb pensara expulsar os lacaios. Compreendeu a manobra de Caleb e, sabedor das intenções do seu anão no que dizia respeito à família de Ravenswood, depressa traçou uma linha de conduta. Sem que Caleb o visse, tomou o lugar que este acabava de deixar junto da janela e comunicou aos criados, que se encontravam reunidos, que lorde Bittlebrains desejava que se dirigissem à estalagem vizinha, pois ele se encarregaria de pagar as despesas.

O buliçoso bando deixou a inospitaleira porta de Wolf's Crag, clamando imprecações contra o castelo e os seus habitantes: Bucklaw acamaradava com as injúrias que se ouviam de todos os lados contra Ravenswood; lembrava-se dos dias monótonos que tinha passado na torre de Wolf's Crag e comparava-os à alegria da sua vida habitual, indignando-se com a exclusão que encarava como um insulto; e, em consequência destas reflexões, tomou a resolução de cortar relações com Ravenswood.

Ao chegar à estalagem Wolf's Hope, encontrou-se inesperadamente com um velho conhecido: o respeitável capitão Craigengelt. O capitão desmontou e correu a apertar a mão de Bucklaw.

- Por muitos anos e bons, Bucklaw! - exclamou Craigengelt - Os homens sérios ainda têm o seu lugar neste mundo perverso!

- Como vos aventurastes a vir aqui, nobre capitão? - perguntou Bucklaw.

- Eu? Sou livre como o vento de S. Martinho! Tudo se explicou, tudo se conseguiu com os velhos palradores de Edimburgo. Puf! Não se atreveram a conservar-me preso uma semana. Um homem como eu tem sempre bons amigos, prontos para tudo.

- Está bem! - respondeu Hayston, que conhecia muito bem Craigengelt e não acreditava nas suas fanfarronices - Dizei-me sinceramente se estais em liberdade.

- Livre e sem temer coisa alguma! Vim para vos dizer que não precisais já de vos esconder.

- Suponho que continuais a ser meu amigo, capitão Craigengelt?

- Vosso amigo? Eu sou o vosso fiel Achate, como tenho ouvido dizer aos sábios. Sou para vós o que a luva é para a mão, a casca para a árvore; vosso para a vida e para a morte!

- Vou pôr-vos à prova. A vossa bolsa nunca está vazia. Emprestai-me duas moedas de ouro para eu ajudar esta gente a tirar a poeira da garganta, e então...

- Duas moedas? Mas, meu rapaz, tenho vinte ao vosso dispor! E mais outras vinte, se for preciso.

- Deveras? fez Bucklaw, desconfiado com aquele excesso de generosidade - Craigengelt, ou sois um rapaz bom, e sério, o que me custa a crer, ou sois mais habilidoso do que eu esperava.

- Uma coisa não prejudica a outra, como dizem os Franceses - respondeu Craigengelt - Aqui tendes. É oiro de lei.

E pôs uma porção de moedas de ouro na mão de Bucklaw, que, sem as ver nem contar, as meteu no bolso, desculpando-se apenas com as circunstâncias, que o obrigavam a aceitar o dinheiro, mesmo que ele viesse do diabo.

E, voltando-se para os caçadores, Bucklaw exclamou:

- Vinde, meus filhos, sou eu quem vos convida!

- Viva Bucklaw! - disseram em coro.

- Desprezemos todo aquele que toma parte numa caçada e deixa os caçadores mais secos que uma pele de tambor! - acrescentou um deles.

- A casa de Ravenswood foi, outrora, uma boa e honrada casa - acrescentou um velho - mas já perdeu o seu crédito, e o actual senhor acaba de proceder como um avarento!

Após esta conclusão, aprovada por unanimidade por quantos ali estavam, todos se dirigiram para a estalagem. O carácter jovial de Bucklaw encontrou motivo para expandir a sua alegria, fazendo as honras da festa, como se os seus companheiros fossem filhos de príncipes. Craigengelt sabia que podia tirar partido da boa disposição do seu aliado e não tardou em compartilhar da alegria comum.

Entretanto, na torre de Wolf's Crag desenrolava-se uma cena diferente. Quando Ravenswood abandonou o pátio, bastante preocupado com os seus pensamentos para prestar atenção aos manejos de Caleb, conduziu os seus hóspedes ao salão.

O infatigável Caleb que, por gosto ou por hábito, trabalhava desde o amanhecer até à noite, tinha retirado tudo que ainda restava do banquete fúnebre, dando certa arrumação à casa. Mas, por muito habilidoso e esforçado que fosse no arranjo dos últimos móveis do salão, nada podia fazer contra o triste aspecto daquelas velhas e desguarnecidas paredes. As janelas estreitas, enquadradas profundamente na muralha, pareciam feitas mais para deter a claridade do que para lhe permitir a entrada e as trevas de um céu de trovoada mais aumentavam a escuridão.

Enquanto Ravenswood, com a graciosidade de um galã daquela época, mas não sem uma certa inflexibilidade e ar tristonho, dava a mão à donzela, conduzindo-a para uma das extremidades do salão, o pai parava perto da porta, para tirar a capa e o chapéu.

Foi então que, no pátio, ressoou o estrondo do portão. O desconhecido, sobressaltado, aproximou-se da janela; e vendo que o portão estava fechado, que os seus criados tinham sido postos fora, lançou a Ravenswood um olhar que traiu a sua inquietação.

- Nada tendes a recear, milorde! - sossegou gravemente Ravenswood - Este tecto não só abriga os seus hóspedes, como lhes assegura um acolhimento digno. Mas talvez já seja tempo que eu saiba a quem esta casa em ruína deve a honra de uma visita.

A jovem ficou calada e o pai pareceu embaraçado. A impaciência de Ravenswood aumentou, à medida que o desconhecido se mantinha no silêncio. Mas, por fim, a impaciência de Ravenswood foi mais forte.

- Vejo que sir William Ashton não tem coragem para se dar a conhecer no castelo de Wolf's Crag - disse Ravenswood.

- Julguei que não seria necessária a minha apresentação - respondeu sir William Ashton, quebrando o silêncio - e estou-vos grato, senhor de Ravenswood, por me terdes evitado uma apresentação que se me tornava bastante delicada.

- Devo considerar como puramente acidental a honra da vossa visita?

- Distingamos um pouco - volveu sir William Ashton, simulando um à-vontade que não devia sentir

- Há muito tempo que era meu desejo fazer-vos uma visita, mas nunca pensei fazê-la sem a ajuda desta tempestade. Tanto eu como minha filha nos felicitamos por poder agradecer ao homem corajoso a quem devemos a vida.

E, aproximando-se da filha, desatou os laços da sua máscara, dizendo:

- Lucy, minha querida, vai, de cara descoberta, expressar a milorde a nossa gratidão!

- Se ele condescender em aceitá-la...

Foi tudo quanto Lucy disse; mas a sua voz tinha uma modulação tão suave, parecia reconhecer e perdoar ao mesmo tempo a gélida recepção a que fora exposta, que, partindo de uma criatura tão ingénua e tão formosa, as palavras abriram o coração de Ravenswood, fazendo-lhe sentir a sua crueldade. Murmurou palavras indecisas, falou da sua surpresa, da sua confusão, exprimindo num tom caloroso a satisfação de poder oferecer a miss Ashton um abrigo na sua casa, saudando-a, por fim, conforme os preceitos da etiqueta. As suas mãos apertaram-se e um clarão rasgou as trevas. A airosa figura meio inclinada de Lucy, a silhueta insinuante e bem proporcionada de Ravenswood, as armas e os escudos antigos suspensos das paredes, tudo apareceu a sir William Ashton no rápido instante da fulguração. Seguiu-se um trovão. Foi tão brusco e tão forte que a torre tremeu e os seus ocupantes julgaram que um raio tivesse caído sobre eles. Da chaminé desprendeu-se uma porção de caliça enegrecida, espalhando por toda a sala uma nuvem de poeira. Fosse o efeito do raio ao atingir o edifício, fosse a deslocação do ar que tivessem originado o desprendimento, algumas pedras soltas das ameias rolaram para o mar, como se o antepassado, que mandara construir o castelo, se insurgisse violentamente contra a reconciliação do seu descendente com o inimigo da família...

Sir William Ashton e Ravenswood esforçaram-se por evitar que Lucy desmaiasse.

Os cuidados que ambos foram obrigados a prestar à jovem levaram-nos a quebrar a barreira que os separava. Seria impossível falar com aspereza a um velho cuja filha - e que filha! - tremia de medo bem justificado. E quando, por fim, Lucy estendeu as mãos que ambos tomaram e lhes agradeceu, Edgar compreendeu que os seus sentimentos de hostilidade contra sir William tinham desaparecido.

O temporal, o estado de abatimento - de Lucy Ashton e a ausência dos seus criados impediam-na de regressar ao castelo de lorde Bittlebrains, situado a mais de cinco milhas de Wolf's Crag; e a mais banal delicadeza forçava Ravenswood a reter junto dele os seus hóspedes durante o resto do dia e a noite. Porém, entristeceu-se ao pensar nos poucos recursos de que dispunha e como a sua recepção seria insuficiente.

- Não vos preocupeis! - pediu sir William Ashton, apressando-se a intervir, supondo que ele tivesse voltado ao motivo que o entristecia - Evidentemente que a vossa casa não estava preparada para receber visitas, atendendo mesmo a que vos encontrais em preparativos de viagem, conforme dissestes. Mas, para nós, não será melhor ficar aqui, do que sermos forçados a ir procurar asilo na aldeia?

Ravenswood ia para responder; a porta abriu-se, e Caleb Balderstone entrou no salão precipitadamente.

 

Caleb faz das suas...

 

Dá-lhes de comer em abundância, mulher! Metade de uma galinha e também algumas sardinhas secas. Esfrega-as com azeite para parecerem frescas; juntando-lhe cebolas mascararás o mau gosto.

'Les pérélinages de l'amour,

 

Se o trovão tinha surpreendido todos aqueles que o ouviram, em Caleb não fez mais do que despertar a sua atrevida subtileza.

- Louvado seja o Céu! - exclamou ele - Este trovão veio como rolha numa garrafa!

E, fechando à chave a porta da cozinha, na cara do criado de lorde Ashton, perguntou a si próprio:

- Como diabo teria ele entrado? Não interessa. Mysie, porque estás tu a tremer e a choramingar ao canto da chaminé? Vem cá. Ou melhor, não, fica aí onde estás e grita... grita o mais alto que possas... grita, já te disse... grita, mulher... com mais força, ainda mais! É preciso que te oiçam do salão1... E agora, segue-se a loiça...

E, estremecendo o armário, fez cair alguns utensílios de estanho e de barro. Ao barulho da queda juntou tais exclamações que Mysie, distraindo-se do medo que lhe causava a trovoada, receou que o seu velho companheiro tivesse perdido o juízo.

- Mas para que partiu ele a loiça?... Como havemos de tomar o leite?... E o amo, como vai ele comer?... Valha-nos Deus! O pobre homem perdeu a cabeça... A trovoada pôs-lhe o juízo a arder!

- Cala a boca, velha pega! - ordenou Caleb, entusiasmado com o êxito da sua descoberta - Tudo se há-de arranjar, o jantar e o resto. O trovão encarregou-se de tudo!

- Delira! - comentou Mysie, olhando para Caleb com um misto de pena e de receio - Receio que não volte a recuperar o juízo.

- Escuta um pouco, minha velha estúpida - retorquiu Caleb - Não deixes entrar na cozinha esse criado desconhecido. Jura que o raio caiu na chaminé e que estragou o melhor jantar que tinhas feito até hoje: vaca, cabrito, lebre, caça... que sei eu?... Não te importes com a despesa. Eu vou ao salão... mas não deixes entrar o criado!

Depois de dar estas instruções à sua cúmplice, dirigiu-se para o salão. Mas deteve-se para espreitar por uma fenda que o tempo, amigo e auxiliar da criadagem, tinha feito na porta. Notou o medo que se tinha apoderado de miss Ashton e teve o bom-senso de não se mexer, não só para não aumentar o pavor como para que ouvissem com mais atenção o que lhes queria dizer sobre o desastre causado pelo raio.

Logo que julgou o momento oportuno, entrou no salão da forma como dissemos e exclamou:

- Que dia! Que dia terrível! Que fatalidade para a casa de Ravenswood!

- Aconteceu mais alguma coisa, Caleb? - perguntou Ravenswood, um tanto inquieto com aquela comoção - Abateu alguma parte da torre?

- Cair uma parte da torre? Não. Caiu uma porção de entulho na cozinha; o raio atravessou a chaminé; ficou tudo partido como os domínios de lorde Hotchpotch. E isto, quando nos dispúnhamos a servir tão nobres hóspedes... - e curvou-se diante de sir William Ashton e de sua filha - ... de modo que não ficou coisa alguma nem para o almoço nem para o jantar...

- Acredito, Caleb respondeu, secamente, Ravenswood.

Caleb lançou ao amo um olhar onde se confundiam a censura e a prece.

- Não havia grande coisa além do trivial: uma sopa simples, três cobertas e fruta.

- Sempre as mesmas intoleráveis bagatelas, velho doido! - ralhou Ravenswood, enfadado com a mentirola oficiosa, e procurando evitar que a cena se torrnasse mais ridícula.

Neste momento, entrou no salão o criado de sir William Ashton; e Caleb, aproveitando aquela oportunidade, disse algumas palavras ao ouvido de Ravenswood:

- Em nome do Céu, calai-vos, Monsenhor! - pediu

- Eu só pretendo salvar a honra da família. Deixai o caso por minha conta. Organizarei um jantar simples, mas, se tentais contradizer-me, então, demónios me levem se não servirei um banquete digno da mesa de um duque.

Ravenswood considerou que seria melhor entregar tudo ao zelo do criado. E Caleb prosseguiu, contando pelos dedos:

- Primeira coberta: frango com molho branco, cabrito assado, carne de porco, com licença de Vossa Honra. Segunda: lebre assada, vitela à Florentina. Uma torta, um pudim de flan, e é tudo - apressou-se ele a concluir ante o nervosismo de Ravenswood -... isto tudo com maçãs e pêras.

Miss Ashton tinha, pouco a pouco, recobrado suficientemente a sua presença de espírito para prestar atenção ao que se passava. Não deixou de notar a impaciência de Ravenswood e o contraste que ela apresentava com o desembaraço de Caleb, mencionando a ementa do seu banquete imaginário. Tudo aquilo lhe pareceu tão grotesco que não pôde deixar de soltar uma risada. O pai imitou-a, mas de modo menos ruidoso e, finalmente, Ravenswood também acabou por rir, embora soubesse que se riam à custa dele. Entretanto, Caleb, embora irritado, mantinha um ar desdenhoso que provocava o riso dos espectadores.

- Se Vossas Honras tivessem o estômago tão vazio como o de Caleb Balderstone, não riam tanto de um caso tão sério! -comentou.

Esta saída do velho criado fez reavivar as gargalhadas.

- E não poderia salvar-se algum desses manjares? - perguntou miss Ashton, fazendo um esforço enorme para não rir mais.

- Que poderia salvar-se desse amontoado de cinzas? Vinde ver à cozinha com os vossos próprios olhos. A cozinheira teve um ataque de nervos, os pratos giraram de um lado para o outro, a vaca, os frangos com molho branco, o pudim, o porco, com licença de Vossa Honra, os doces, a fruta ?.. Eu disse "vinde ver", mas, não, a cozinheira já deitou tudo fora, e foi o melhor que ela fez. Aquele senhor (e indicou o criado de sir William Ashton) bem ouviu o estilhaçar dos pratos, das porcelanas, das pratas...

O criado de sir William Ashton, como se as funções junto de um ministro o tivessem ensinado a dominar-se em todas as circunstâncias, mostrou-se um pouco indeciso, respondendo com uma inclinação de cabeça.

Lorde Ashton teve receio que esta cena acabasse por aborrecer Ravenswood.

- Eu creio, senhor mordomo - observou, voltando-se para Caleb - que seria melhor aconselhar-vos com o meu criado Lockhart... ele viajou bastante e está acostumado aos acidentes e surpresas de toda a espécie: os dois poderiam encontrar qualquer forma de remediar o prejuízo.

- Saiba Vossa Honra - protestou Caleb - que não preciso de conselheiro quando está em causa a honra da família!

- Eu seria injusto se dissesse o contrário, Caleb interveio Ravenswood - mas a tua arte consiste principalmente em encontrar desculpas e nós não podemos contar com o teu jantar fulminado pelo raio. Talvez a habilidade do senhor Lockhart consiga acrescentar qualquer coisa ao que já não existe e, provavelmente, nunca existiu...

- Vossa Honra graceja! - respondeu Caleb - Tenho a certeza de que, se fosse à aldeia de Wolf's Hope, encontraria com que fazer um jantar para quarenta pessoas.

- Ide combinar os dois e em seguida dirijam-se à aldeia e façam o que vos for possível. Toma a minha bolsa, Caleb, pois creio que ela será a tua melhor auxiliar.

- A vossa bolsa? Para quê?! - recusou Caleb, dirigindo-se para a porta - Lembrai-vos de que estamos nos nossos domínios e não precisamos de pagar aquilo que nos pertence!

Os dois criados retiraram-se. Logo que a porta se fechou, sir William Ashton procurou desculpar-se do seu riso; por sua vez, Lucy disse que não tivera a intenção de magoar o bom velho.

- Eu e Caleb - explicou Ravenswood pausadamente

- aprendemos a suportar com bom humor, ou pelo menos com paciência, o ridículo que se junta à pobreza.

Lorde Ashton interveio:

- Creio conhecer melhor os vossos assuntos do que podeis supor e espero que vos possa demonstrar todo o meu interesse e que... Numa palavra, abrem-se-vos na frente perspectivas felizes...

Receando ofender a susceptibilidade do castelão ou despertar o seu orgulho, lorde Ashton fez estas alusões com uma espécie de timidez e de retraimento.

Ravenswood desculpou-se perante os seus hóspedes e saiu a fim de tomar todas as disposições referentes ao alojamento de sir William Ashton e de sua filha.

Ficou assente que os aposentos do castelão seriam cedidos a miss Ashton, e Mysie servir-lhe-ia de criada de quarto.

Seguidamente, Ravenswood procurou informar-se sobre o paradeiro de Bucklaw. Ao ter conhecimento de que ele se encontrava na estalagem de Wolf's Hope com os caçadores e alguns companheiros, encarregou Caleb de o procurar, de lhe dar a conhecer as dificuldades em que se encontrava em Wolf's Crag, fazendo-lhe notar que seria conveniente dormir essa noite na aldeia, visto não poder deixar de oferecer, a sir William Ashton o quarto secreto, o único que estava em condições de o receber. Por sua vez, Ravenswood: não se importava de passar a noite no salão, junto da braseira, envolto na sua capa. Quanto aos criados, bastava-lhes uma enxerga de palha no celeiro.

Lockhard recebera ordem do seu amo para ir à estalagem buscar uma porção de caça; Caleb tinha que contar com a sua perspicácia para salvar a honra da família. Ravenswood ofereceu-lhe novamente a bolsa com o dinheiro; mas, na presença de Lockhard, Caleb viu-se obrigado a recusar uma coisa que os seus dedos desejavam agarrar.

- O meu amo podia ter-me dado, a bolsa às escondidas! - murmurou.

Entretanto, Mysie, conforme um hábito comum nas regiões isoladas da Escócia, oferecia os produtos da sua pequena leitaria. E, conforme um outro uso ainda não posto de parte, Ravenswood levou sir William Ashton ao cimo da torre para lhe mostrar, a imensidade da paisagem e ajudá-lo a tornar mais curta a espera para o jantar.

 

Uma viagem bastante proveitosa

 

Pois minha senhora - disse ele - digo-vos francamente, tivesse eu apenas o ligado de um capão, um bocadinho de pão branco e cabeça de porco assada (mas não desejo que matem os animais por minha causa) e não me importava de passar o resto da vida nesta humilde casa.

CHAUCER - Conto de Verão

 

Não foi sem íntimas apreensões que Caleb empreendeu a sua viagem de exploração. Sentia-se cruelmente embaraçado. Não se atrevia a dizer ao amo como se tinha livrado de Bucklaw, nessa manhã, por honra da família; e não se atrevia a reconhecer que tinha sido muito apressado a recusar o dinheiro; e receava um encontro com Bucklaw, que devia estar exasperado pela afronta recebida e com a cabeça esquentada pela aguardente.

Façamos justiça a Caleb: quando se tratava da honra da família dos Ravenswood, era corajoso como um leão. mas uma coragem reflectida, que não se arriscava inutilmente. O essencial era mascarar a triste situação económica do castelo, sem a ajuda de Lockhard e sem o dinheiro do seu amo. Isso constituía para ele um ponto de honra.

A gente da aldeia onde ia com o companheiro já lhe valera bastantes vezes; mas nos últimos tempos as coisas tinham mudado.

Wolf's Hayen, ou a baía do Lobo, constava de um casario encoberto no extremo da pequena baía, à beira de um riacho que ia desaguar ao mar. Os seus habitantes viviam precariamente da pesca do arenque, durante uma parte do ano, e do contrabando do gin e do brandy, durante os meses de Inverno. Mantinham por lorde de Ravenswood uma espécie de respeito hereditário; porém, aproveitando as dificuldades surgidas na família, tinham pago, por uma anuidade irrisória, os direitos de propriedade que sobrecarregavam os seus pequenos haveres, os seus casebres e as suas hortas, emancipando-se assim da dependência feudal.

Caleb, habituado a exercer sobre eles, no tempo das contribuições, a autoridade decisiva que os fornecedores reais exerciam na Inglaterra, lamentava o desaparecimento dessa autoridade, que imitava, em escala reduzida, as exigências praticadas pela soberania feudal.

Os habitantes de Wolf's Hope começaram por murmurar e acabaram por se recusar às exigências do Caleb Balderstone. Em vão ele recordou que o décimo-primeiro lorde de Ravenswood, conhecido por Marinheiro, por causa do seu acentuado gosto pelas coisas do mar, tinha favorecido o comércio do porto, mandando construir a muralha (um dique de pedras toscamente montadas) que protegia os barcos de pesca, ficando assente, a partir desse momento, que ele receberia uma porção de manteiga todas as vezes que uma vaca tivesse uma cria e o primeiro ovo, chamado o ovo de segunda-feira, posto por cada galinha em todas as segundas-feiras do ano.

Os rendeiros ouviram, coçaram a cabeça, tossiram, bocejaram e, forçados a responder, declararam que não podiam dizer nada - o recurso universal do aldeão escocês ante uma reclamação que a sua consciência ou talvez os seus sentimentos julgam legítima e que o seu interesse leva a rejeitar.

Contudo, Caleb apresentou aos habitantes de Wolf's Hope um título de requisição, no qual os convidava a fornecerem-lhe manteiga e ovos como pagamento de rendas de que eram devedores ou da contribuição amigável combinada entre eles; e sugeriu-lhes que também aceitaria qualquer outro género de mercadoria e que lhes dava liberdade para combinarem entre eles a maneira de pagamento que mais lhes conviesse. Porém, contrariando as suas esperanças, eles reuniram-se apenas com o propósito de lhe fazer partida. Foi nessa ocasião que um tanoeiro, pessoa importante numa estação de pesca, e um dos Padres Conscritos na aldeia, fez observar que as suas galinhas tinham cacarejado bastante para os lordes de Ravenswood e que já era tempo que elas cacarejassem para aqueles que lhe davam casa e milho. Uma gargalhada unânime assinalou a aprovação da assembleia. E, prosseguindo, o orador disse ainda: "Se quiserdes, irei num pé a Dune falar com Davie Dingwall, o procurador que veio do Norte para viver connosco e que porá tudo em boa ordem".

Depois, realizou-se uma reunião em Wolf's Hope para se tratar do caso das requisições e Caleb foi convidado a assistir.

Chegou de mãos abertas e o estômago vazio, na esperança de as encher por conta do seu amo e por sua própria conta, à custa dos rendeiros de Wolf's Hope. Mas, vãs esperanças! Como tivesse entrado na aldeia pelo Oriente, viu desenhar-se, no lado oposto, a silhueta terrível de Davie Dingwall, que chegava com o seu cavalo a trote. Procurador rural, homem seco e rude, Davie Dingwall tinha já processado a família de Ravenswood como principal agente de sir William Ashton.

- Senhor Balderstone - disse-lhe ele - recebi todas as instruções e todos os poderes para pagar ou receber, compor ou compensar e, finalmente, proceder de acordo com os direitos mútuos que se referem, de uma parte, a Edgar Ravenswood, mais conhecido por senhor de Ravenswood...

- O muito digno lorde Edgar de Ravenswood! - corrigiu Caleb com veemência.

Já que tinha consciência da sua desvantagem no conflito que ia dar-se, Caleb estava resolvido a nSo ceder fosse o que fosse na questão da honra.

- Lorde Ravenswood, seja! - prosseguiu o homem da lei - Não discuto os títulos de cortesia... Lorde Ravenswood ou senhor de Ravenswood, proprietário das terras e baronia de Wolf's Crag; e, da outra parte, a John Whitefish e outros, rendeiros em Wolf's Hope, domínio da súbdita baronia.

Caleb sabia, por ter feito a triste experiência, que um debate com aquele campeão de empréstimos seria muito pior do que se fosse com os rendeiros em pessoa; estes talvez se comovessem com as suas recordações, os seus afectos de outrora, pela sua maneira de ser, pelos seus raciocínios, aos quais o seu delegado ficaria completamente insensível. O local da discussão justificava as suas apreensões. Foi em vão que ele fez um esforço de eloquência e de habilidade, mas não conseguiu demover o homem da lei.

Voltou ao castelo, ficando uma boa meia hora invisível, inacessível mesmo para Mysie, metido no seu quarto, onde passou o tempo a polir um prato de estanho e a assobiar "Maggie Lunder". sem interrupção, seis horas seguidas.

Aquela infeliz requisição tinha tirado a Caleb todos os recursos que podia obter de WOLF'S Hope e dos seus arredores, que eram para ele o Eldorado ou o Peru, aos quais já tinha recorrido bastantes vezes em muitas horas críticas. E jurou pelo diabo que nunca mais lá poria os pés; e até ali tinha mantido a sua palavra.

E, vendo-se na necessidade de voltar a Wolf's Hope, Caleb compreendeu que a sua missão era bastante ingrata.

Ansioso por se ver livre do seu companheiro, apressou-se a mandá-lo à estalagem da mãe Smallsrtrash.

- É ali... onde se vê aquela luz e se ouve cantar. Podeis tratar da requisição que vos ordenou o vosso amo. Da minha parte, tratarei de me avistar com o senhor Bucklaw quando voltar com os restantes víveres.

Não é - acrescentou Caleb, detendo o seu colega por um botão do casaco - não é que seja verdadeiramente precisa a carne para o jantar; trata-se apenas de uma atenção para com os caçadores; e se vos oferecerem, senhor Lockhard, uma caneca de cerveja ou um copo de vinho, não recuseis.

Logo que se separou de Lockhard, Caleb prosseguiu no seu caminho pela acidentada rua, perguntando a si próprio por onde havia de começar o ataque. Impunha-se encontrar alguém mais vulnerável às recordações do passado do que à grandeza presente.

De repente, lembrou-se de Gibbie Girder, o tanoeiro que tinha chefiado a revolta no caso da manteiga e dos ovos.

"É certo - pensou ele - que Girder foi um pouco severo para a família de Ravenswood; no entanto,, como casou com Jean Lightbody, a filha do velho Lightbody, o caseiro, que casou com Marion, que, durante quarenta anos, foi criada de Milady, é possível que demova esse imbecil...

Caleb dirigiu-se vagarosamente para casa do tanoeiro, levantou o trinco da porta e entrou num compartimento situado entre a porta e a cozinha, donde podia ver o interior da casa sem que o vissem.

Ardia o fogo na chaminé. A um canto, a mulher do tanoeiro dava os últimos retoques na sua toilette, mirando-se num bocado de espelho que, por comodidade, tinha posto numa das prateleiras do armário da louça. Sua mãe, a maior linguareira que havia naquelas vinte milhas em redor, estava sentada junto da chaminé, preparando a comida. Sobre o lume fervia uma panela. Perto do lume, dois aprendizes do tanoeiro davam voltas ao espeto onde se assavam dois patos bravos e um quarto de carneiro.

Apesar de ver aquela abundância, Caleb não desmaiou. Desviou os olhos, durante uns instantes, para observar o "ben" ou saleta, que ocupava a extremidade da casa. Ali, um quadro não menos impressionante se apresentou ao seu olhar: uma grande mesa redonda com dez ou doze talheres, coberta com uma toalha branca como a neve, conforme gostava de dizer; dois jarros grandes de estanho, juntamente com uma ou duas taças de prata, que continham certamente alguma bebida digna do brilho exterior.

- Eu não me chame Caleb Balderstone se alguns destes acepipes não seguir esta tarde o caminho de Wolf's Crag!

Tomada que foi esta resolução, Caleb entrou na cozinha e, com a maior cortesia, saudou a mãe e a filha. As duas mulheres agarraram-se ao pescoço do velho Caleb, demonstrando-lhe o seu contentamento.

- Não há dúvida que é o senhor Balderstone! Mas que prazer!... Sentai-vos. O meu marido vai ficar encantado com a vossa visita. Baptiza-se hoje o nosso primeiro filho. Ficareis para assistir ao baptizado. Matámos um carneiro e os rapazes estão a assá-lo no espeto. Também temos pato bravo...

- Não, não posso assistir à cerimónia - recusou, Caleb - Vim apresentar os meus parabéns. Queria falar com o vosso marido, mas...

E fez menção de se retirar.

- Não vos deixo sair - protestou a mais velha.

- Estou com muita pressa - desculpou-se Caleb.

E vendo que a dona da casa punha um talher para ele, prosseguiu - Quanto a comer... lá em casa andamos sempre a mastigar, de dia e de noite. Não nos faltam pudins ingleses e...

- Pf! Deixai os pudins ingleses e provai dos nossos, mister Balderstone. Tendes aqui do branco e do escuro. Qual preferis?

- Ambos são bons... não pode haver melhor. Mas basta-me o cheiro, visto que comi há pouco... Contudo, minha boa senhora, não vos quero fazer desfeita. Se me dais licença, embrulho-os no meu guardanapo e comê-los-ei esta noite, à ceia.

- Que há de novo no castelo? - perguntou a velha, enquanto Caleb metia os pudins num guardanapo que trouxera.

- Que há de novo? A coisa mais encantadora de que jamais ouvistes falar. Sir William Ashton encontra-se no castelo, com o nosso milorde, e está pronto a dar-lhe a filha se este estender a mão para a aceitar.

- E o senhor de Ravenswood gosta dela? De que cor são os seus cabelos? E como veste?

Um dilúvio de perguntas choveu sobre Caleb.

- Ta, ta. ta! Precisava de um dia para vos responder, e só tenho um minuto! Onde está o dono da casa?

- Em Mosshead - respondeu mistress Girder - Foi avistar-se com o padre Bidebent. O homem sofre de reumatismo, por causa das noites que dormiu ao relento, na montanha, nos tempos das perseguições.

- Quê! Um whig (1) e um montanhês, não é assim?

- replicou Caleb, não podendo ocultar o seu mau humor.

- É certo - concordou a senhora Lightbody - mas que se há-de fazer? É preciso que Jean cante os seus salmos e se penteie ao gosto do marido. Ele é o chefe da casa.

- E aperta os cordões da bolsa? - perguntou Caleb, que para os seus projectos augurava mal da tirania masculina.

- Até ao último penny. Mas a Jean não tem que se lamentar. Trata-a como uma rainha!

Caleb, embora um pouco desanimado, não se deu por vencido.

- Cada qual procede como entende. Tenho que me retirar. Queria falar com Girder, porque me lembrei que Peter Puncheon, tanoeiro dos armazéns da rainha, na Bolsa de Leith, tinha morrido; e pensei que uma palavra de milorde a sir William Ashton poderia ser útil a Gilbert. Mas, visto que ele não está presente....

- Porque não esperais que ela venha? Eu sempre tenho dito a meu genro que mister Caleb é amigo dele.

- Esperarei o tempo que me for possível.

- Miss Ashton deve ter simpatizado com o senhor de Ravenswood - disse a mulher de Girder - Na verdade, ele tem bonita figura e monta bem a cavalo.

 

(1) - Liberal.

 

Sempre que passa por aqui, nunca deixa de olhar para a minha janela.

- Eu sei muito bem. Ele disse-me, um dia, que a mulher do tanoeiro tinha os olhos mais negros da baronia. "Meu Deus, milorde! - respondi eu - Isso não me admira nada, porque a mãe também tinha os olhos assim". Hein, Marion? Ah! ah! ah! que belos tempos!

- Calai-vos, velho malicioso! - ordenou mistress Lightbody - Vamos, Jean... não houves chorar o bebé?

Mãe e avó correram para um ponto afastado da casa onde se encontrava deitado o "herói da tarde. Caleb, logo que viu o campo livre, tirou a tabaqueira e suspirou profundamente. Em seguida, dirigiu-se ao mais velho dos dois rapazes que voltavam o espeto, um garoto de onze anos, e meteu-lhe um penny na mão:

- Vais à loja de mistress Smallstrash comprar-me um pouco de tabaco, enquanto eu fico a girar o espeto.

O garoto abalou a correr e Caleb olhou de soslaio para o outro que estava às voltas com o espeto. Depois, tirou do lume o assado que ficara ao seu cuidado, pôs o chapéu na cabeça e, num passo rápido, saiu com o espeto. Só parou à porta da estalagem, para mandar dizer que mister Hayston de Bucklaw não podia contar, nessa noite, com cama no castelo.

Na boca da criada que transmitiu o recado de Caleb havia um ar de injúria. Com os aplausos de todos os assistentes, o capitão Craigengelt propôs que dessem caça ao velho Caleb antes que ele alcançasse a sua toca e que se rissem à sua custa. Mas Lockhard fez ver aos criados de seu amo e aos de lorde Bittlebrains que qualquer agravo ao criado de lorde Ravenswood seria considerado, aos olhos de sir William Ashton, como a mais grave das ofensas. Tendo dado a entender que não deviam tentar a mínima agressão, saiu da estalagem acompanhado pelos criados incumbidos de levar as provisões que tinham podido encontrar. E encontrou Caleb à saída da aldeia.

 

A grande surpresa de Girder

 

Terei de aceitar qualquer coisa de vossa mão? É verdade que vos pedi e, o que é pior, extorqui a vossa oferta. E muito pior ainda, perdi-me na casa.

A cara do garoto que fora única testemunha do delito de Caleb daria excelente motivo de pintura. Ficou parado, como se tivesse visto um desses fantasmas que aparecem aos vigilantes das noites de inverno; e esqueceu-se da sua obrigação, a ponto de deixar queimar o quarto de carneiro. Acordou do seu espanto com forte sopapo que lhe deu mistress Lightbody, que, não obstante o sentido de ligeireza que a etimologia ligava ao seu nome, era pessoa violenta e expedita no uso das mãos, como o tinha provado o seu defunto marido.

- Porque deixaste queimar a carne, meu maroto?

- Não sei - disse o rapaz.

- Para onde foi o sacripanta do Giles?

- Não... sei... - gaguejou o pequeno, embaraçado.

- E onde está mister Balderstone? E os patos assados?

Nesta altura entrou mistress Girder. Fazendo coro com as exclamações de sua mãe, puxou por uma orelha do garoto, enquanto a velha puxava pela outra, mas sem que conseguissem arrancar-lhe uma palavra. Só quando voltou o mais velho dos dois rapazes é que a verdade começou a entrar nos seus espíritos.

- Quem diria que mister Caleb Balderstone havia de fazer uma partida destas a duas velhas amigas?

- O vilão do homem! - exclamou mistress Girder - Que vou eu dizer agora ao meu marido? Ele mata-me!

- Cala-te! - sossegou a mãe - Se quiser matar-te, terá de me matar primeiro e eu já me defrontei com outros mais fortes. Deixa o caso comigo.

Passos de cavalo anunciaram a chegada do tanoeiro e do Pastor. Os dois homens não tardaram a entrar na cozinha. Tinham pressa de se aquecer, visto a trovoada ter refrescado a temperatura. A mulher seguia atrás e, usando os seus atractivos como arma, lançou-se ao ataque, enquanto sua mãe, como a antiga legião romana, se mantinha na retaguarda para lhe valer se fosse preciso. Ambas procuraram retardar a descoberta do que tinha acontecido: a mãe, Interpondo a sua agitada pessoa entre Girder e a chaminé, enquanto a filha se apressava a receber o Pastor e o seu marido, expressando-lhe o desejo ardente de que não tivessem sentido frio.

- Frio? - repetiu Girder num tom mal humorado - Estou convencido de que apanhamos um resfriamento se continuas a barrar-nos o caminho da lareira!

Dizendo isto, abriu passagem entre as duas linhas defensivas. E, notando a falta do espeto e do seu saboroso fardo, perguntou:

- Que diabo quer isto dizer mulher?...

- Credo! - exclamaram em coro mãe e filha - Blasfemar diante do reverendo Bidebent!

- Não foi por mal - protestou o tanoeiro - mas...

- Falar no nome do pior inimigo das nossas almas... - começou por dizer o padre Bidebent.

- Não foi por mal! - repetiu Girder.

- ...é expor-nos à tentação! - prosseguiu o piedoso moralista.

- Muito bem, padre Bidebent! - replicou o tanoeiro - Eu só quero saber porque é que estas mulheres tiraram os patos do lume...

- Não os tirámos, Gilbert - respondeu a mulher - foi... foi um desastre...

- Um desastre? Não me faças irritar!

A senhora Girder não se atreveu a responder; mas a mãe veio em seu auxílio, mãos nas ilhargas.

- Dei os patos a uma pessoa das nossas relações - disse ela - E que tem isso?

O seu excesso de confiança fechou por momentos a boca a Girder.

- A senhora deu os patos? - perguntou ele - Oferecer o que tínhamos de melhor para o jantar do baptizado e a uma pessoa das suas relações, velha bruxa! E quem é essa pessoa?

- O senhor Caleb Balderstone, de Wolf's Crag - respondeu Marion, pronta para a luta.

Girder não pôde conter-se, espumando de raiva. O que mais o enraivecia era saber que o beneficiado por aquele presente fora o velho Caleb, contra quem, por motivos que não se ignoram, alimentava certo rancor. Levantou a bengala para a sogra; mas, sem se intimidar, Marion, por sua vez, brandiu o espeto que acabava de servir para assar o quarto de carneiro. Ante a vantagem que ela tinha no armamento e no desembaraço com que o manejava, Gilbert julgou prudente voltar-se contra sua mulher.

- E você, sua imbecil, estava muito descansada enquanto dispunham do que era meu em favor de um vadio, um bêbedo, um reles criado! Vais saber como...

Aqui, o reverendo interveio com a fala e com o gesto, ao mesmo tempo que mistress Lightbody se punha à frente da filha, manejando o ferro.

- Não posso castigar a minha mulher? - gritou o tanoeiro no cúmulo da indignação.

- Castigue-a como entender, mas o que lhe garanto é que não toca na minha filha, nem com um dedo!

- Que loucura, mister Girder! - censurou o reverendo - Dar largas a tamanho mau génio contra uma criatura que vos é tão chegada, precisamente num dia destes em que fostes chamado a cumprir o dever mais solene de um pai cristão! E porquê? Por causa de bens materiais tão desprezíveis como inúteis!

O tanoeiro protestou:

- Desprezíveis? Os mais belos exemplares...

- Mas vede, meu amigo, vede o que resta ainda no espeto! Houve um dia em que dez daqueles biscoitos que estão no bufete teriam parecido os melhores manjares aos homens que morriam de fome na montanha, nas cavernas, por causa do Evangelho!

- O que mais me desespera - protestou o tanoeiro, ansioso por encontrar motivo para a sua cólera, que, apesar de tudo, não deixava de ter razão - é essa velha ter dado os patos a um miserável tory (1), a um criminoso, um ladrão, um opressor, que combateu em Bothwell Brigg contra os santos nas fileiras da milícia, sob as ordens do velho tirano Allan Ravenswood! Dar a semelhante criatura o melhor prato do banquete!

- Não vedes nisso, Gilbert, o sinal de uma vontade divina? Pensai nesse filho de um poderoso opressor levado a sustentar a sua casa com o supérfluo da vossa própria mesa!

- Não se trata de um presente feito a lorde Ravenswood - declarou mistress Girder - mas, sim, de um serviço que lhe prestámos para que ele pudesse obsequiar sir William Ashton, que se encontra neste momento em Wolf's Crag.

- Sir William Ashton está em Wolf's Crag?! - exclamou o tanoeiro, com espanto.

- Sim - afirmou a senhora Lightbody - está com lorde Ravenswood como a luva com a mão.

- Idiotas! Talvez me queiram fazer acreditar que a Lua é um queijo fresco?... Sir William Ashton e Ravenswood são como o cão e o gato, a lebre e o perdigueiro!

- Já disse que eles estão lá e muito mais amigos do que alguns que eu conheço! - replicou a sogra - Além disso, acontece que Peter Puncheon, o tanoeiro

 

(1) - Membro do partido conservador da Inglaterra.

 

dos armazéns da rainha, morreu, que o seu lugar está vago e que...

- Divina bondade! - disse Girder - Ainda não acabastes de falar?

- Mistress Lightbody não disse nada que não seja verdade, mestre! - interveio o primeiro oficial de Girder, que aparecera durante a discussão - Eu vi a criadagem de sir William Ashton beber e rir lá em baixo, em casa da mãe Smallstrash.

- E o patrão está em Wolf's Crag? - perguntou Girder.

- Está.

- Em boas relações com Ravenswood?

- Pelo que consta, está como seu hóspede.

- E Peter Puncheon morreu?

- Até que enfim, esse miserável do Puncheon nos deixou em paz! E quanto brandy lhe teria escorregado pelas goelas?... Quanto aos patos bravos no espeto, ainda não desaparelhei o cavalo e, se o mestre quer, vou buscá-los... O velho Caleb talvez não tenha saído da aldeia.

- Muito bem, Will. Mas, antes, vem comigo, para te dizer o que terás de fazer quando o encontrares.

E, afastando as duas mulheres, Girder foi falar em segredo com Will.

- Tiveste uma boa ideia! - observou mistress Lightbody, quando o tanoeiro voltou - Mandar um garoto atrás de um homem armado com espada e punhal!

- Gostaria que tivésseis pensado melhor antes de levantar uma questão violenta! - acrescentou o padre.

- Com as mulheres e com os padres não se pode fazer nada! Eu sei como hei-de amassar o meu pão. Serve o jantar, Joana, e não se fala mais no assunto!

Entretanto, o enviado de Gilbert, montado no jumento e com ordens especiais, foi em busca de Caleb. Este, como devem supor, não perdia o seu tempo no caminho. Disse a Lockhard que tinha mandado assar os patos à mulher do tanoeiro, visto que Mysie, a quem a trovoada assustara bastante, não pudera acender um bom fogo na sua cozinha. Ao mesmo tempo, alegando a necessidade que tinha de chegar depressa a Wolf's Crag, caminhava com tal vivacidade que os seus companheiros tinham dificuldade em segui-lo. Quando já começava a descrer que fossem no seu encalço, pois tinha atingido o cimo do monte que separava Wolf's Crag da aldeia, ouviu ao longe um galopar de cavalo e uma voz que chamava de espaço a espaço:

- Senhor Caleb! Olá, senhor Caleb! Espere um pouco!

Caleb, como é de crer, não se apressou a responder àquele convite. Simulou não ter ouvido coisa alguma e declarou na cara dos seus companheiros que tudo aquilo não passava do eco do vento, e que não valia a pena parar; até que, quisesse ou não, parou no momento em que o vulto do cavaleiro apareceu entre as sombras da tarde, disposto a defender a sua presa, numa atitude de dignidade, estendendo o espeto, que, na sua mão e pesado como estava, parecia mais um escudo que uma lança.

Qual não foi o seu espanto quando o operário tanoeiro, dirigindo-se-lhe num tom respeitoso, lhe disse que o seu mestre lamentava não o ter encontrado em sua casa para o receber e convidar para o jantar do baptizado; sabendo que o castelo tinha hóspedes, tomava a liberdade de lhe enviar um barril com vinho de Espanha e um pipo de brandy!

A surpresa do homem que, certo dia, sendo atacado por um urso, levantou o pau para se defender e viu o animal erguer-se nas patas traseiras e, em vez de o atacar, começar a dançar, não foi, por certo, menor do que a de Caleb.

Só recuperou toda a sua presença de espírito e a habitual atitude digna quando viu o mensageiro curvar-se sobre o cavalo onde iam amarrados dois barris e este lhe disse ao ouvido:

- Se a sucessão de Peter Puncheon puder ser dirigida pelo senhor de Ravenswood, o meu patrão não deixará de lhe testemunhar devidamente a sua gratidão. Ele terá muito prazer em falar com mister Balderstone sobre o assunto, ficando desde já ao seu dispor.

Caleb ouviu tudo isto, limitando-se a responder como Luís XIV: "Veremos". Acrescentando, em voz alta, para que Lockhard pudesse ouvir:

- Não me esquecerei de contar ao senhor de Ravenswood a gentileza do vosso patrão. Ide ao castelo, meu amigo; e, se não aparecer nenhum criado, o que é natural, visto que fazem da noite dia, deixai a vossa carga no cubículo do porteiro, à direita do portão.

Com as ordens de Caleb, o tanoeiro prosseguiu a jornada, deixou os barris no local indicado, e voltou sem que ninguém lhe tivesse aparecido. Ao passar de novo por Caleb e os seus companheiros, cumprida a sua missão, tirou-lhes o boné e prosseguiu o seu caminho, para tomar parte na festa do baptizado.

 

Os pensamentos de Ravenswood

 

Tal como as folhas secas rodopiam com o vento do Outono ou como a palha é arrebatada pela brisa, assim a vontade do homem de nada vale quando a voz de Deus falou.

Deixámos Caleb triunfante com o êxito dos seus cometimentos em honra da casa de Ravenswood. Dispostos em boa ordem, os pratos de toda a espécie ofereciam um espectáculo de uma abundância real, tal como Wolf's Crag nunca mais tinha visto desde os funerais do falecido lorde.

Nessa noite, Lockhard foi mimoseado por Caleb com uma história mais ou menos verdadeira que se referia à antiga grandeza de Wolf's Crag e à autoridade dos seus barões sobre toda a região em volta.

- Embora a nossa época - afirmava Caleb - não se assemelhe ao bom tempo em que a minha autoridade mantinha os seus direitos. Na verdade, como mais ou menos devíeis ter notado, nós, os da casa de Ravenswood, esforçamo-nos por manter, por um justo e leal exercício da nossa autoridade baronal, a ligação, tão legítima como conveniente, entre o superior e os seus vassalos, ameaçada de cair em desuso pela excessiva liberdade da nossa infeliz época.

- Mas - objectou Lockhard - Gostava de saber, mister Balderstone, se os aldeões são pacíficos. É que, devo dizer-vos, no castelo de Ravenswood, hoje propriedade de sir William Ashton, meu amo, notei que não eram muito ordeiros...

- Reparai, mister Lockhard, que o domínio mudou de mãos. Aquilo que o antigo lorde tinha o direito de exigir deles, já não será fácil para aquele que lhe sucedeu. Os rendeiros de Ravenswood foram sempre rabugentos e intratáveis e há-de ser difícil conviver com eles, enquanto não conhecerem o amo; e se o vosso não lhes cair no agrado, não há nada que os possa deter.

- Pois bem! - observou Lockhard - Eu creio que a melhor solução para todos nós seria um casamento entre o jovem lorde e a nossa encantadora miss.

Caleb meneou a cabeça.

- Queira Deus que se realize essa união, mister Lockhard! Mas sobre a casa de Ravenswood pairam velhas profecias que eu lamentaria bastante viessem a realizar-se. E, olhe, eu já tenho visto bastantes desgraças.

- Ora! Não vos apoquenteis! - replicou Lockhard - Se eles gostarem um do outro, farão um bonito par. Mas nisto, como em tudo, é preciso, aqui para nós, contar com lady Ashton. Bebamos à sua saúde, e darei à Mysie um copo de vinho de Espanha, presente de Girder.

Enquanto na cozinha se divertiam desta maneira, no salão não havia menos alegria. Logo que Ravenswood decidiu oferecer hospitalidade a sir William Ashton, viu-se na obrigação de lhe mostrar um ar alegre e a atenção que se deve ter para com um hóspede agradável. Ao cabo de uma ou duas horas, Ravenswood, com grande surpresa sua, encontrou-se na situação de um homem que se multiplica francamente para agradar a visitas que estima e de quem se honra. Resta saber se essa transformação era devida à simplicidade de miss Ashton, à facilidade com que ela resolvia todos os inconvenientes da situação ou à amabilidade e delicadeza do Chanceler.

Sir William Ashton era um político da velha guarda. Tinha conhecimento profundo de todos os ministérios, seguira de perto, nas suas variações, o movimento dos negócios públicos, tão movimentados durante os últimos anos do século XVII. Podia invocar os acontecimentos e os homens, de tal maneira que nunca deixava de ser ouvido. Sem proferir uma só palavra que o prendesse pessoalmente, tinha a arte de convencer o auditório. Ravenswood, não obstante as suas prevenções e o fundamento do seu ressentimento, sentia-se interessado e distraído ao escutá-lo.

Miss Ashton falava pouco, mas sorria; e o pouco que ela dizia tinha um cunho de gentileza e desejo de agradar. O que, para um homem altivo como Ravenswood, tinha mais atractivos do que todos os reflexos do espírito de seu pai. Ravenswood não podia deixar de verificar que, fosse por reconhecimento ou qualquer outro motivo, os seus hóspedes demonstravam-lhe, naquele salão vazio, a mesma consideração com que o tratariam se ele estivesse rodeado de todo o conforto hospitaleiro que convinha à sua elevada nobreza.

Soou a hora do repouso. Sir William Ashton e sua filha retiraram-se para os seus aposentos, melhor mobilados do que poderiam esperar, pois, no seu arranjo, Mysie tivera a auxiliá-la uma mulher da aldeia que ardia em curiosidade por conhecer os hóspedes de Ravenswood.

Conforme o costume da época, Ravenswood acompanhou sir William Ashton ao seu quarto, seguido por Caleb, que colocou sobre a mesa, com todo o cerimonial, duas candeias rústicas, de unto, como as que utilizavam os camponeses. O criado desapareceu pouco depois, para reaparecer em seguida com duas garrafas, uma contendo vinho das Canárias e a outra brandy. E declarou, sem recuar ante os perigos da sua impostura, que o vinho das Canárias envelhecia há mais de vinte anos na adega do Castelo de Wolf's Crag; quanto ao brandy, era reputadíssimo, doce como o mel e forte como Sansão; encontrava-se na casa desde a memorável festa em que Jamie de Jenklebrae tinha morto, junto da escadaria, o velho Meicklestob para vingar a honra da venerável lady Muirend, que era uma aliada da família. Portanto...

- Para abreviar, mister Caleb - pediu sir William Ashton - podíeis trazer-me um jarro com água?

- Queira Deus que Vossa Honra não beba só água nesta casa! Seria uma humilhação para uma honrada família!

- Se é um capricho de Sua Honra, Caleb - observou Ravenswood, a rir - deves satisfazê-lo.

- Já que Vossa Honra fala de capricho...

E, voltando com um jarro de água, Caleb concluiu:

- Dificilmente Vossa Honra encontrará água semelhante à que se tira do poço de Wolf's Crag. Portanto...

- Portanto - atalhou Ravenswood - devemos deixar sir William Ashton descansar neste pobre quarto.

Caleb curvou-se profundamente e, dirigindo-se para a porta, aguardou que o amo saísse para o acompanhar ao seu quarto.

Porém, sir William Ashton, prevendo a retirada do seu hospedeiro, disse-lhe:

- Queria dizer uma palavra, uma apenas, ao senhor de Ravenswood, mister Caleb; creio que ele o dispensará de o acompanhar.

Após segunda reverência mais profunda que a primeira, Caleb retirou-se. Ravenswood íicou parado, um tanto embaraçado, perguntando a si próprio como acabaria esse dia tão cheio de acontecimentos imprevistos.

- Senhor de Ravenswood - começou sir William Ashton com um certo embaraço - deveis conhecer bem a lei cristã... e, por certo, não permitireis que o sol se esconda sem esquecer a vossa cólera.

Ravenswood corou e respondeu que não tinha tido, nessa noite, ocasião de pôr em prática o dever que lhe impunha a sua fé de cristão.

Sir William Ashton prosseguiu:

- Penso o contrário, se recordar os motivos da discórdia, mais frequentes do que se poderia desejar, surgidos entre mim e vosso pai.

- E eu, milorde - respondeu Ravenswood, dominado por uma comoção mal contida - preferia que qualquer alusão a esse facto fosse feita fora dos tectos da casa de meu pai!

- É um sentimento que eu poderia atender noutra ocasião; mas, neste momento, devo falar. Quantos desgostos, eu e o vosso pai poderíamos ter evitado!

- Ouvi dizer a meu pai que Vossa Honra propusera uma entrevista...

- Propor! Sim, propus, mas deveria ter pedido, suplicado, instado! Queria desfazer o véu que pessoas interessadas tinham estendido entre nós e mostrar-me tal qual era, pronto para um sacrifício enorme sobre os meus direitos legais para acalmar os seus ressentimentos. No que me diz respeito, meu jovem amigo, pois é o nome que vos quero dar, se eu e o vosso pai tivéssemos tido algum dia o encontro que a sorte quis que tivéssemos agora, esta região teria certamente ainda um dos representantes mais respeitáveis da sua antiga nobreza; e eu não teria sofrido o desgosto de tratar como inimigo um homem a quem sempre admirei e honrei o carácter!

Sir William levou o lenço aos olhos. A comoção, tinha-se apossado de Ravenswood, que esperou em silêncio a continuação das extraordinárias declarações. Sir William Ashton prosseguiu:

- É preciso que tomeis conhecimento destas coisas: entre nós, embora eu tenha querido fazer reconhecer a extensão exacta dos meus direitos com um embargo judicial, nunca pretendi ultrapassar os limites da Justiça.

- Milorde! É difícil falar mais no assunto. Podeis gozar ou gozareis aquilo que a lei vos deu ou o que ela vos dará, mas, pelo que respeita a meu pai, não aceitarei nada a título de favor.

- De favor? Não, não me entendeis bem, não sois legista. Um direito pode ser real e bem estabelecido aos olhos da lei, sem que um homem honrado tire proveito dele.

- Lamento-o, milorde.

- Não, não; falais como um jovem exaltado que põe o coração à frente do raciocínio. Entre nós há muitas coisas para resolver. Eu sou um velho que deseja apenas paz e sossego. Encontro-me no castelo de um homem que salvou a vida de minha filha e a minha. Podeis censurar-me o desejo, um desejo ardente, que tudo se regularize entre nós sobre os mais vastos princípios?

Falando assim, o velho apertava na sua a mão de Ravenswood; depois despediram-se.

Ravenswood voltou ao salão, onde se pôs a passear agitadamente. Abrigava sob o seu tecto um inimigo mortal e os sentimentos que nutria por ele não eram de um verdadeiro cristão. Não se sentia capaz do perdão nem da vingança. Maldizia-se a si próprio, enquanto ia e vinha, em passos largos, na sala iluminada pelo luar e os reflexos vermelhos de lume quase apagado. Abriu e fechou com força as janelas gradeadas, como se tão depressa sentisse a necessidade de respirar ar fresco como de se eximir ao frio. Por fim, deixou-se cair numa cadeira e murmurou:

- Se, na realidade, esse homem não quer que se invoque a lei, se ele não quer mais que um ajustamento dos direitos que lhe são reconhecidos, por que razão se queixou o meu pai e por que motivo me queixo eu também? Aqueles a quem arrancámos à força o seu antigo domínio caíram sob a espada dos meus antepassados, abandonando aos seus conquistadores as suas terras e os meios de existência; hoje sucumbimos nós sob a força da lei, mais poderosa do que a cavalaria da Escócia. Parlamentemos com o vencedor do dia, como se, sitiados na nossa fortaleza, não tivéssemos nenhuma esperança de ser socorridos. Este homem pode ser diferente do que eu pensava e a filha... a filha... Mas resolvi nunca mais pensar nela!

Enrolou-se na capa, adormeceu e sonhou com Lucy Ashton até ao momento em que o novo dia surgiu por entre as grades das janelas.

 

A dúvida de "sir" William Ashton

 

Nós outros, homens da sociedade, quando vemos amigos e parentes na miséria, não lhes estendemos a mão para os socorrer. Pelo contrário, procuramos enterrá-los mais, tal como fiz convosco. Mas agora, que estais no caminho de vos levantardes, posso e quero socorrer-vos.

SHAKESPEARE

 

Novos métodos de pagar as dívidas

Sir William Ashton teve os mesmos pensamentos de ambição e as mesmas perplexidades como se estivesse deitado numa das camas mais macias. Junto aos seus dons, a timidez do seu carácter dera-lhe a docilidade, a inconstância desse velho conde de Northampton, que justificava a sua habilidade em se manter no seu lugar através de todas as mudanças de regime, desde o reinado de Henrique VIII até ao de Isabel. Sir William Ashton estava alerta com todas as mudanças desenhadas no horizonte político, negociando, antes da luta aberta, com o partido que parecia mais seguro da vitória.

O marquês de Athol usara de toda a sua influência para provocar uma mudança no gabinete escocês. Os seus projectos tinham sido tão habilmente urdidos que pareciam dever alcançar os melhores resultados. Para isso, teria de atrair todos aqueles que pudessem servi-lo. A ligação com sir William Ashton parecia-lhe muito importante.

Mandou um agente seu ao castelo de Ravenswood, dissimulando o seu verdadeiro desejo com o pretexto de simples visita, e verificou que, nessa ocasião, o que prevalecia no espírito de sir William Ashton era o receio que lhe inspirava Ravenswood. As palavras da feiticeira cega, a velha Alix, a presença inesperada de Ravenswood nos seus domínios, a terrível arrogância com que este o tinha acolhido, tudo o impressionara profundamente.

O agente político do marquês perguntou a sir William Ashton se o complicado litígio com a família Ravenswood se mantinha sem possibilidade de recurso. Sir William Ashton respondeu que sim; mas o seu interlocutor estava muito bem informado e demonstrou-lhe com argumentos sem réplica que alguns dos pontos mais importantes, apresentados em favor de sir William Ashton contra a casa de Ravenswood,. ficavam sujeitos a revisão perante a Câmara dos Pares de Inglaterra, jurisdição imparcial que substituía a do antigo Parlamento da Escócia, e que sir William Ashton receava por instinto.

O Chanceler, depois de ter discutido durante uns instantes a legalidade do processo, acabou por se curvar, confiante, porém, nas poucas probabilidades que o jovem Ravenswood teria de poder encontrar amigos no Parlamento que o auxiliassem naquele caso.

- Não deveis confiar muito na vossa falsa esperança - aconselhou o astucioso amigo - É muito possível que na próxima sessão do Parlamento Ravenswood encontre mais amigos e crédito que Vossa Senhoria.

- Gostaria de ver isso - replicou sir William Ashton, um tanto desdenhoso.

- Há muitas coisas que se viram e que se vêem ainda. Há pessoas que se encontram, actualmente, à frente dos negócios do Estado e que ainda não há muitos anos se ocultavam para salvar a vida; alguns há que comem agora com talheres de prata, e que nem sequer tinham uma escudela de madeira para deitar as suas papas de aveia; e quantos andam de cabeça levantada e a baixarão dentro de pouco tempo!

Sir William Ashton respondeu que semelhantes vicissitudes não eram novas na Escócia.

- Podeis ter a certeza, meu estimado amigo - respondeu-lhe o visitante - que nem os enormes serviços que prestastes ao Estado, nem os vossos vastos conhecimentos jurídicos vos salvarão ou manterão no lugar que desfrutais, se o marquês de Athol e o seu partido ascenderem ao parlamento britânico. Sabeis que o falecido lorde Ravenswood foi o seu maior aliado, que lady Ravenswood era prima em quinto grau do cavaleiro de Tillibardine; eu sei também, por conhecimento de causa, que ele dará a mão a Ravenswood e que, como parente, será o seu protector e o seu guia. Porque não? É activo, corajoso e valente. Se as vossas contendas com Ravenswood forem invocadas perante a Câmara dos Pares, é com o marquês que tereis de vos haver.

- Triste remuneração para os meus serviços e respeito que sempre tive pelo marquês e pela sua honrada família!

- Sim, mas para que recordar os serviços passados, milorde? Uma pessoa como o marquês só se interessa pelos serviços que lhe prestem agora.

Sir William Ashton compreendeu onde queria chegar o raciocínio do seu amigo; mas era bastante prudente para dar uma resposta positiva.

- Eu não sei - respondeu - que serviços o marquês pode esperar da minha modesta inteligência, que eu não lhe tenha prestado já, sob a reserva dos meus deveres perante o rei e a nação.

Não tendo dito nada com o ar de quem tinha dito tudo, a sua reserva não tinha outro objectivo senão o de encobrir de momento o que julgava conveniente. O visitante partiu sem ter conseguido, para futuro, a mais insignificante promessa, um juramento relativo a uma linha de conduta, mas com a certeza de que, tendo tocado o ponto mais sensível dos seus receios, tinha lançado as bases de um acordo futuro.

Quando deu conta ao marquês dos seus passos, os dois combinaram não deixar sir William Ashton libertar-se dos seus receios, antes pelo contrário, mais os agravar, principalmente durante a ausência de sua mulher. O marquês sabia que o espírito orgulhoso, vingativo e dominador de lady Ashton daria ao marido a coragem que lhe faltava, que estava irrevogàvelmente ligada ao partido que governava ainda, que mantinha com esse partido uma correspondência e uma aliança muito íntima e que odiava a família Ravenswood.

Era preciso agir energicamente sobre o marido, antes que ela regressasse de Londres, para onde fora após demorada ausência em Edimburgo, com o intuito de desfazer as intrigas do marquês, no que era favorecida pela célebre Sarah, duquesa de Marlborough. Foi, assim, à maneira de preâmbulo, que o marquês escreveu a Ravenswood a carta que já apresentámos noutro capítulo, carta escrita com precaução, deixando ao seu autor a faculdade de manifestar ao seu parente verdadeiro interesse ou um interesse superficial, conforme lhe conviesse. Diremos, no entanto, que o seu desejo de ser útil a Ravenswood era sincero.

O portador dessa carta devia passar pelo castelo de sir William Ashton e recomendou-lhe que, na povoação perto do parque, o seu cavalo perdesse uma ferradura, que se dirigisse ao ferreiro da localidade, e, enquanto este ferrasse o cavalo, se lamentasse pela demora que lhe causava esse trabalho e que, na sua impaciência, desse a entender que levava ao senhor de Ravenswood uma mensagem do marquês de Athol sobre assunto de vida ou de morte.

A notícia, espalhando-se rapidamente, chegou por diversas vias ao conhecimento de sir William Ashton, que, bastante impressionado, ordenou, secretamente, a Lockhard que surpreendesse o mensageiro no caminho, o levasse à aldeia, o fizesse beber e usasse de todos os meios, bons ou maus, para tomar conhecimento do conteúdo da carta de que era portador. Porém, como suspeitasse da maquinação, o mensageiro meteu por caminho diferente, livrando-se da emboscada.

Após vã e demorada espectativa, Dingwall foi encarregado de um inquérito especial junto dos fregueses de Wolf's Hope para saber se o criado do marquês de Athol tinha ou não chegado à torre de Wolf's Crag. Apenas lhe puderam dizer que Caleb estivera na aldeia, de manhã, cerca das cinco horas, pedindo duas canadas de cerveja, e salmão fumado para restabelecer o mensageiro; e o pobre rapaz estivera doente durante vinte e quatro horas em casa da mãe Smallstrash, por ter comido salmão salgado e bebido cerveja azeda.

A inquietação de sir William Ashton tornou-se muito séria. O seu temor natural aconselhou-o ao compromisso e à reconciliação. O caso do touro pareceu-lhe de natureza a facilitar um encontro pessoal e uma reconciliação com Ravenswood. Trataria então de saber as suas ideias sobre a extensão dos seus direitos e os meios que possuía para assegurar o triunfo. Uma reconciliação dar-lhe-ia verdadeiramente oportunidade de desmascarar as intrigas do marquês de Athol.

"Enfim, será um acto de generosidade valer ao herdeiro desta infeliz casa; e, se o novo governo o apoia com calorosa eficácia, quem sabe se não encontrarei a minha recompensa?"

Assim pensava sir William Ashton. E a sua imaginação foi mais longe. Pensou que se Ravenswood obtivesse do governo um posto de confiança, e se a união encarada se tornasse um facto, Lucy faria um bom casamento, porque o arresto que privava o castelão do seu título podia ser revogado. O título dos Ravenswood era antigo; uma aliança com o seu herdeiro legitimaria tudo; o facto de sir William Ashton possuir a maior parte dos bens de que ele tinha sido espoliado tornaria menos lamentável a restituição do restante.

Preocupado com estes múltiplos projectos, sir William Ashton lembrou-se dos convites que lhe tinha feito muitas vezes lorde Bittlebrains, cuja residência não ficava muito distante de Wolf's Crag. Chegou, ali na ausência do dono da casa, mas foi recebido por lady Bittlebrains, que aguardava incessantemente o regresso do marido. Pareceu encantada por ver miss Ashton e falou em organizar uma caçada para distrair sir William Ashton. Este aceitou imediatamente a proposta e lembrou-se de fazer um reconhecimento em volta de Wolf's Crag; assim talvez pudesse encontrar o proprietário se a caçada o fizesse sair do seu triste domicílio. Lockhard, por seu lado, estava encarregado de entrar em acordo com qualquer dos habitantes do castelo e vimos como ele desempenhou o seu papel.

A inesperada tempestade serviu melhor esses interesses do que todas as combinações de sir William Ashton. Não foi, porém, sem íntimo terror e sem que o coração lhe batesse com força, que se viu fechado na desolada torre de Wolf's Crag, tão apropriada, pela sua resistência e isolamento, a uma cena de vingança. Lembrou-se do acolhimento severo feito por Ravenswood, do embaraço que tinha sentido ao declinar o seu nome e o da filha ao nobre ofendido; e quando o portão da torre bateu com grande ruído, julgou ouvir as palavras da velha Alix, que o repreendiam por ter levado muito longe as coisas com uma gente tão orgulhosa como a de Ravenswood, que aguardava apenas a hora da vingança.

A franqueza testemunhada pelo hospedeiro à medida que o conhecimento se tornou mais íntimo desfez as apreensões despertadas por tais recordações, mas não deixou de notar que a beleza de Lucy tinha influído muito na mudança.

O lampadário de ferro, o aposento desguarnecido de móveis, davam mais ideia de uma prisão do que de um quarto de dormir, o quebrar constante das vagas no sopé do rochedo onde se erguia a torre entristeceram-no e perturbaram-no. O bom êxito das suas maquinações tinha originado em grande parte a ruína dos Ravenswood; porém, não era, por natureza, nem ardiloso nem cruel. O espectáculo dessa desolação, da qual se sentia responsável, penalizou-o tanto como uma dona de casa se pode apiedar com a execução dos cordeiros e da criação que ela própria mandou matar. Mas, ao mesmo tempo, colocado ante a alternativa de restituir aos Ravenswood grande parte dos bens que lhes tinha tirado ou de se dar por aliado do herdeiro daquela casa empobrecida, sir William Ashton sentia o que pode sentir uma aranha quando uma vergastada lhe destrói a teia que tinha tecido com tanto trabalho. E, seguidamente, renovou a pergunta que o atormentava por ter agido a seu modo, e a si próprio fizera por diversas vezes sem encontrar uma resposta satisfatória: "O que irá pensar minha mulher? Que dirá lady Ashton?"

Por fim, tomou a resolução que serve muitas vezes de refúgio aos espíritos fracos: decidiu aguardar os acontecimentos. Tranquilizado com esta ideia, acabou por adormecer.

 

Craigengelt fracassa na sua missão

 

Tenho aqui um bilhete que, com a vossa licença, vou entregar-vos. É um dever que a nossa amizade me impõe. Não quero ofender-vos, mas desejo que justiça seja feita.

O rei que não é rei - (Comédia)

 

Quando, no dia seguinte de manhã, Ravenswood se encontrou na presença de sir William Ashton, estava de novo sombrio. Passara a noite a pensar mais do que a dormir. Os sentimentos que alimentava por Lucy lutavam com os que professava pelo pai havia muitos anos. Apertar amigavelmente a mão do inimigo da sua casa, dar-lhe asilo sob o seu tecto, trocar com ele as provas de cortesia e de boa disposição exigidas pela familiaridade doméstica, era uma humilhação para o seu orgulho.

Porém, sir William Ashton estava decidido, uma vez quebrado o gelo, a não consentir que ele se formasse de novo. Planeava aturdir Ravenswood, fazendo-lhe uma exposição técnica, sabiamente complicada, dos acontecimentos que tinham opostos as duas famílias uma contra a outra durante anos e anos. Pensava, com razão, que um rapaz da idade de Ravenswood seguiria mal um velho conhecedor da lei em assuntos de somas, fusão de contas, adjudicações, confiscações e vendas de terreno, de significação de termos legais, etc... "Assim, na sua frente - pensou sir William Ashton - tomarei ares de absoluta franqueza, sem que ele compreenda o que lhe quero dizer". Levou então Ravenswood para junto de uma janela e, retomando o seu discurso da véspera, exprimiu a esperança de que o seu amigo estivesse disposto a escutar com atenção as explicações pormenorizadas sobre as deploráveis circunstâncias do seu desacordo com o falecido lorde Ravenswood. O castelão corou, mas não respondeu; e sir William Ashton, apesar de pouco satisfeito com semelhante sintoma, iniciou a história de um empréstimo de vinte mil libras feito por seu pai ao pai de Allan, lorde Ravenswood. Quando entrou nos pormenores do procedimento executivo em que essa avultada soma se tornara um "debitum fundi", Ravenswood interrompeu-o:

- Não é aqui - disse ele - o lugar próprio para ouvir Sir William Ashton expor assuntos dessa ordem. Não é neste castelo, onde meu pai morreu de mágoa, que eu posso informar-me, com todo o sangue-frio, sobre as causas da sua infelicidade. Podia lembrar-me de que era seu filho e esquecer os deveres da hospitalidade. Virá o momento em que as coisas serão discutidas no seu lugar e na presença de pessoas ante as quais teremos a mesma liberdade de falar e entendermo-nos.

Sir William Ashton respondeu que todos os momentos e todos os lugares se equivaliam para que se fizesse justiça. Entretanto, parecia-lhe ter algum direito a ser imediatamente esclarecido sobre os motivos que Ravenswood se propunha invocar para atacar os processos legais sobre os quais tinham deliberado conscienciosamente os únicos tribunais competentes.

- Sir William Ashton - ripostou Ravenswood com ardor - as terras que hoje ocupais foram concedidas a um dos meus antepassados pelos serviços prestados, em combate contra o invasor inglês. Como conseguiram tirá-las das nossas mãos por meio de processos que não constam, segundo me parece, nem de venda, nem de hipoteca, nem da liquidação pela autoridade, de justiça, mas parecem formar uma mistura, uma barafunda inextricável?... Sabeis isso melhor do que eu. Pela vossa franqueza, quero convencer-me de que me enganei a vosso respeito, mas é aos Pares de Inglaterra que devemos apresentar as nossas explicações. Se eles derem razão à cupidez do credor, à usura que devora uma terra como a traça de um vestuário, isso terá piores consequências para eles e para os seus descendentes do que para Edgar Ravenswood: restar-me-á sempre a minha espada e a minha capa e poderei seguir a carreira das armas em toda a parte onde soar a trombeta de guerra.

Dizendo isto, num tom firme, embora triste, o seu olhar cruzou com o de Lucy Ashton. Aparecendo no decorrer deste diálogo, observava os dois interlocutores com uma expressão de entusiasmado interesse e de admiração, que lhe fez esquecer momentaneamente o receio de ser descoberta.

Quando os seus olhares se cruzaram, ambos coraram, conscientes da profunda comoção que os subjugou, e, a partir desse instante, evitaram olhar um para o outro.

A sir William Ashton não passou despercebida aquela troca de olhares.

"Afinal de contas, nada há a recear - pensou nem no Parlamento, nem da apelação. Tenho um meio eficaz de me reconciliar com este exaltado rapaz. O essencial, neste momento, é não me comprometer. O peixe mordeu a isca, não o tiremos ainda do anzol..."

Caleb apareceu neste momento, a anunciar que o almoço estava na mesa. Depois, dirigindo-se a Ravenswood, informou:

- Desde esta manhã que se encontra um homem ao portão. Vossa Honra quererá recebê-lo?

- Quer falar comigo, Caleb?

- Nada de pressas. Deveis ir espreitar pela rótula antes de o mandar entrar. Este castelo não se abre ao primeiro que apareça.

- Que pensas? Virão prender-me por dívidas?

- Prender Vossa Honra por dívidas? E no vosso castelo de Wolf's Crag? Vossa Honra está a gracejar comigo!

Pouco depois, quando seguia o amo, Caleb disse-lhe ao ouvido:

- Eu não queria que Vossa Honra desconfiasse de um homem honrado; no entanto, gostaria que o observasse bem, antes de o deixar entrar.

O homem não era nenhum oficial de Justiça, mas simplesmente o capitão Craigengelt. Trazia o nariz vermelho; o chapéu agaloado pendia para o lado, sobre a cabeleira negra; uma espada à cinta, duas pistolas nos coldres da sela, um trajo de cavaleiro bordado com galões desbotados completavam o seu equipamento. Era o retrato de um homem que nos enfrenta para dizer "A bolsa ou a vida!"

Quando Ravenswood o reconheceu, ordenou que lhe abrissem a porta.

- Suponho, Craigengelt - disse - que não existe entre nós assunto tão importante que não possa ser tratado aqui mesmo. Tenho, neste momento, visitas no castelo; e, nas circunstâncias em que nos separámos recentemente, desculpar-me-eis se vos pedir para dizerdes depressa o motivo que vos traz aqui.

Embora a sua impudência atingisse quase a perfeição, Craigengelt não deixou de ficar desconcertado com recepção tão pouco calorosa. "Não tinha, de forma alguma, a intenção de se impor à hospitalidade de Ravenswood - respondeu - Vinha cumprir uma missão honrosa de que fora encarregado por um amigo, e o senhor de Ravenswood não tinha que o censurar pela visita indiscreta".

- Sede breve, pois será a melhor maneira de vos desculpar. Qual foi o gentleman que teve a sorte de vos ter por mensageiro?

- O meu amigo Hayston de Bucklaw - respondeu Craigengelt, compenetrado da sua importância e animado pela confiança que lhe inspirava a coragem bem conhecida do amigo - Julga-se tratado sem a consideração a que tem direito e resolveu pedir-vos explicações. Eis o que ele vos manda...

E Craigengelt tirou um papel do bolso.

-... o comprimento exacto da sua espada. Exige um encontro, acompanhado por um amigo e munido de armas iguais, no local que vos aprouver, e uma milha deste castelo, onde eu próprio estarei como árbitro ou como segundo.

- Explicações! Armas iguais! - exclamou Ravenswood, que, se os nossos leitores estão lembrados, não tinha nenhum motivo para supor que tivesse ofendido Bucklaw - Sob a minha palavra, capitão Craigengelt, ou inventastes a mentira mais inverosímil que jamais cruzou o espírito de um homem da vossa espécie ou bebestes demasiado esta manhã. Qual foi o motivo que levou Bucklaw a enviar-me semelhante mensagem?

- Quanto a isso, milorde, ele deu-me instruções para vos lembrar a maneira, que eu classificarei de inospitaleira, como vos conduzistes, escorraçando da vossa casa o meu amigo.

- O vosso amigo - replicou Ravenswood - não é tão louco que tome por insulto uma necessidade bastante real. Custa-me a crer que ele tivesse escolhido para uma missão desta ordem um indivíduo de tão pouca importância e consideração. Eu não encontraria, com certeza, um homem honrado que pudesse confiar na vossa arbitragem.

Craigengelt levantou a voz:

- Um indivíduo de tão pouca importância... de tão pouca consideração! - exclamou, e levando a mão à espada, prosseguiu - Se o caso do meu amigo não exigisse a prioridade, mostrar-vos-ia...

- Nada mais tenho que vos dizer, capitão Craigengelt.

- É essa a vossa resposta a uma mensagem honrosa? - perguntou o valentão.

- Dizei a mister Bucklaw, se acaso fostes enviado por ele, que, quando se servir de um enviado digno de si, e de mim, então lhe darei todas as satisfações.

- Pelo menos, milorde, entregai-me tudo quanto Hayston deixou em vossa casa e que lhe pertence...

- O que deixou aqui ser-lhe-á entregue pelo meu criado.

- Muito bem! - exclamou o capitão - A maneira como me recebestes esta manhã merece toda a minha censura. Um castelo! - prosseguiu, olhando em volta - Isto é pior do que uma espelunca onde se recebem os viandantes para os roubar!

- Insolente! - bradou Ravenswood, levantando uma das mãos, enquanto que, com a outra mão, segurava as rédeas do cavalo - Se vos oiço dizer mais uma palavra e se vos não retirais imediatamente, espatifo-vos!

Ante esta ameaça, o fanfarrão deu uma volta tão rápida que quase ia caindo do cavalo, não tardando em partir à desfilada na direcção da aldeia.

Ravenswood dispunha-se a voltar ao pátio quando verificou que sir William Ashton tinha descido do salão e que, à distância prescrita pela etiqueta, fora testemunha do encontro com Craigengelt.

- Esse homem, não me é desconhecido. Chama-se Crai... Crai... qualquer coisa parecida, não é verdade?

- Craigengelt...

- Crai-in-guilt - disse Caleb, sublinhando ao mesmo tempo a palavra escocesa craig, que significa "pescoço", e a palavra inglesa gelt, que significa "crime" - O patife tem a forca escrita na cara!

- Sabeis ler nas fisionomias, meu bom Caleb - interveio sir William Ashton, num sorriso - Posso afirmar-vos que esse cavalheiro esteve muito perto da forca. Recordo-me agora que, durante uma viagem que fiz a Edimburgo, há uns quinze dias, vi Craigengelt ser interrogado severamente perante o Conselho Privado.

- Por que motivo? - perguntou Ravenswood, com certo interesse.

Sir William Ashton deu o braço a Ravenswood e entraram ambos no salão:

- Embora se trate de um assunto ridículo, a resposta só poderá ser ouvida por vós.

E de novo levou Ravenswood para um recanto da janela, onde, desta vez, não seriam importunados por miss Ashton.

 

Quando a astúcia dá resultado...

 

Eis um pai que está disposto a sacrificar a filha ao vil interesse. Servir-se-á da sua beleza para apaziguar antigos rancores ou lançá-la-á ao mar, como aconteceu a Janus, para acalmar a fúria das éguas.

Anónimo

 

Sir William Ashton começou a falar com ar desprendido, mas sem deixar de observar o efeito que as suas palavras produziam em Ravenswood.

- Sabeis, meu querido amigo, que a desconfiança é o vício natural de uma época incerta como a nossa. Se eu usasse das manhas políticas que julgastes ver em mim, vós, o herdeiro de Ravenswood, em vez de continuardes a dispor de plena liberdade e de poder agir contra mim à vossa vontade para defender o que julgais ser os vossos direitos, estaríeis hoje numa masmorra do castelo de Edimburgo ou em qualquer outra prisão do Estado.

- Milorde! Creio que não estais disposto a brincar; e, contudo, parece-me impossível que faleis seriamente.

- A inocência é confiante e, por vezes, chega a ser presunção.

- Não vejo em que o sentimento da inocência possa passar por presunçoso.

- É imprudente agirmos apenas ao sabor da nossa consciência. Eu vi um criminoso defender-se melhor do que um inocente, em idênticas circunstâncias. Recordo-me do caso de sir Coolie Condiddle, de Condiddle, que foi julgado por abuso de confiança. Toda a gente sabia que ele era culpado. E nem por isso deixou de ser absolvido por pessoas mais sérias do que ele.

- Tende a bondade de voltar ao assunto. Segundo depreendo, fui objecto de suspeitas.

- De suspeitas? Sim, realmente. E posso apresentar provas... Lockhard!

O criado entrou.

- Vai buscar a carteira que te recomendei. Sabes o que quero dizer?

- Sei, milorde.

Lockhard saiu. E sir William Ashton prosseguiu, como se falasse com ele próprio:

- Devo ter lá esses papéis, pois é natural que, vindo a esta região, os trouxesse comigo.

Lockhard, que voltou pouco depois, entregou a carteira de couro a seu amo. Sir William Ashton tirou os papéis que continham a informação apresentada perante o Conselho Privado sobre o tumulto, conforme o termo judiciário, que se tinha produzido durante os funerais de Allan Ravenswood e a influência empregada por sir William Ashton para que o processo ficasse sem efeito. Esses documentos foram escolhidos lentamente, com o intuito de provocar a curiosidade de Ravenswood sem a satisfazer; provavam que, naquela situação crítica, sir William Ashton se tinha arvorado em advogado e pacificador entre Ravenswood e a autoridade. Deixando os papéis nas mãos do seu hospedeiro, a fim de que ele os examinasse, sir William Ashton foi sentar-se à mesa do almoço, onde provocou uma conversa alegre, tanto com Caleb, cujas prevenções contra o usurpador do castelo de Ravenswood começavam a fraquejar desde que o conhecia melhor, como com sua filha.

Ravenswood, depois de ter lido os papéis, ficou uns dois minutos com a testa apoiada na mão e mergulhado em profunda meditação. Em seguida, voltou a ler, como se desejasse descobrir qualquer pensamento reservado, qualquer indicação mentirosa que lhe pudesse ter escapado na primeira leitura. Este novo exame confirmou, certamente, a opinião que se lhe impusera já, visto que, levantando-se do banco de pedra onde estivera sentado, foi direito a sir William Ashton e, apertando-lhe a mão com força, pediu-lhe perdão por ter julgado tão mal dele, quando, afinal, o reconhecia como protector da sua pessoa e defensor da sua honra.

O homem de Estado recebeu aquelas provas de reconhecimento, primeiramente com simulada surpresa, depois com afectada cordialidade. As lágrimas soltaram-se dos olhos azuis de Lucy ante aquela cena que tinha tanto de imprevista como de emocionante.

- Enxuga as lágrimas, Lucy! - pediu o pai - Acaso será motivo de choro reconhecerem no teu pai um homem justo, um homem leal, um homem honrado? Mas, querido amigo - acrescentou, dirigindo-se a Ravenswood - nada tendes que me agradecer! "Suum cuique tribuito", é o princípio da justiça romana, conforme aprendi com Justiciano. Não me pagastes mais de mil vezes, salvando a vida da minha querida filha?

- O pequeno serviço que vos prestei foi um acto de puro instinto, enquanto que a maneira como defendestes a minha causa, embora soubésseis o mal que pensava de vós e como estava disposto a tratar-vos como inimigo, foi uma acção nobre, reflectida, generosa e justa!

- Cada um de nós procedeu como devia: vós, como soldado valente; eu, como juiz íntegro. Evidentemente, não poderíamos trocar os nossos papéis: eu teria sido péssimo guerreiro e vós, por muito boa que fosse a vossa causa, tê-la-eis, talvez, defendido pior do que eu perante o Conselho.

- Meu generoso amigo! - exclamou Ravenswood. E, com estas palavras, pronunciadas pela primeira vez, Ravenswood provou ao seu antigo inimigo toda a confiança de que era susceptível um coração orgulhoso, mas digno. Os encantos reais de Lucy, juntamente com os supostos serviços do pai, apagaram na sua memória o juramento de vingança que tinha proferido na tarde dos funerais de lorde Ravenswood.

Mas o destino tinha ouvido e registado esse juramento.

Caleb encontrava-se presente nessa cena extraordinária. Não via outro motivo para tão estranha amizade senão um projecto de aliança entre as duas casas e a restituição do castelo de Ravenswood como dote de Lucy.

Lucy sorria por entre as lágrimas, manifestando a sua alegria pela inesperada reconciliação.

O próprio homem de Estado ficou admirado com a espontaneidade, ardente, absoluta, sem reserva, com a qual Ravenswood renunciava à sua inimizade hereditária e não hesitava em lhe pedir perdão. Os seus olhos brilharam ao contemplar o jovem par. A filha não parecia talhada para ser feliz junto de um esposo da têmpera de Ravenswood? E a finura, a delicadeza, a própria fragilidade de Lucy Ashton não exigiam o apoio que lhe oferecia o vigor físico e o carácter recto do castelão?

Após um silêncio de alguns instantes, sir William Ashton prosseguiu:

- Qual a vossa opinião sobre esse Craigengelt, meu caro amigo?

- As relações que mantive com esse impostor foram curtas. Que disse ele de mim?

- Disse o bastante para provocar o terror nalguns dos nossos conselheiros, sempre prontos a proceder de acordo com as suspeitas ou com a fé de testemunhas mercenárias. Referiu-se a não sei que estranhas ofertas de serviços que teríeis feito à França ou ao Pretendente; porém, o marquês de Athol, que é um dos nossos melhores amigos, e outra pessoa que alguns dizem ser um dos vossos inimigos mais encarniçados, não puderam acreditar. Craigengelt falou também em Hayston de Bucklaw, e tenho receio de que esse rapaz se deixe guiar por um companheiro tão indesejável. Já tem idade para se conduzir sòzinho.

- É possível.

- Tínhamos uma denúncia contra ele... O interrogatório de Craigengelt teria tido consequências de uma denúncia formal se não tivéssemos visto a qualidade da testemunha.

- Hayston de Bucklaw é, creio eu, um homem honrado, incapaz de uma acção humilhante.

- Mas muito capaz de uma loucura, milorde! A morte não tardará a dar-lhe posse de boas terras. A velha lady Girnington, uma excelente pessoa, mas que o seu mau génio tornou insuportável há algum tempo, deve estar morta a esta hora. As sucessivas mortes de seis co-herdeiros contribuíram para o seu belo rendimento. Conheço as suas terras, que confinam com as minhas.

- Estou contente - afirmou Ravenswood - e mais contente estarei quando tiver a certeza de que Bucklaw mudou de companheiro e de hábitos. Mas a vinda aqui de Craigengelt na qualidade de emissário do seu amigo não me pressagia nada de bom.

- Esse Craigengelt é uma ave de mau agoiro, que anuncia a prisão e a forca. Porém, estou a ver a impaciência de Caleb: já é tempo de voltarmos para a mesa.

 

A estranha profecia de Caleb

 

Fique na sua casa, meu senhor. Siga os conselhos de um velho e não procure o lar de um estranho. A nossa lareira dá mais calor do que a deles, a nossa comida, embora mais grosseira, é mais sã. Os seus manjares delicados contêm veneno.

A cortesã francesa

 

Ravenswood, acedendo a um convite dos seus hóspedes, decidiu acompanhá-los ao castelo de Ravenswood e demorar-se ali um ou dois dias.

- Que o Céu o não permita! - exclamou o velho criado, quando o amo lhe participou a decisão de acompanhar sir William Ashton e Lucy.

- Porque dizes isso, Caleb? Porque me impediria o Céu de retribuir a visita de sir William Ashton?

- Milorde! Sou vosso servidor e fica-me mal falar. Mas tenho envelhecido nesta casa, servi vosso pai e vossa avó, recordo-me de ter visto na minha infância lorde Randal, vosso bisavô...

- E depois, Caleb? Que tem isso de comum com uma simples visita de cortesia a um vizinho?

- Milorde... milorde!... A vossa consciência não vos diz que o filho de vosso pai não deve fazer uma tal visita... que não honra a família? Se um dia chegásseis a um acordo, se ele vos restituísse o que vos pertenceu, se désseis o vosso nome a essa encantadora criatura...

- Tu levas as coisas mais longe do que eu - respondeu Ravenswood, comovido, tentando sorrir - Desejas unir-me a uma família à qual não queres que visite: como consegues fazer isso? Porque estás tão pálido?

- Riríeis de mim se vos dissesse o motivo. Thomas, o Poeta, cuja língua não mente, profetizou o destino da nossa casa, se um dia visitásseis o castelo de Ravenswood.

- O que profetizou ele? -perguntou Ravenswood, apressando-se a tranquilizar o criado.

Caleb respondeu que nunca repetira a um mortal os versos que lhe tinha dito venerável padre, confessor do pai de lorde Allan, nos tempos em que a família era católica, mas que muitas vezes os repetia, sem pensar que pudessem cumprir-se.

- Dize-me depressa esses versos que te perturbam o cérebro.

Com voz trémula, Caleb balbuciou então:

No dia em que Ravenswood entrar no castelo

que ainda usa o seu nome

A sua terna noiva encontrará a morte;

Levará o seu cavalo direito ao Kelpy,

E então a sua raça desaparecerá para sempre.

- Conheço bem o Kelpy - comentou Ravenswood - se é, pelo menos, como suponho, região das areias movediças que fica à beira-mar, entre a torre e Wolf's Hope. Mas qual será o homem de bom senso que levará o seu cavalo para lá?

- Quanto a isso, não procureis explicações, milorde! Ficai aqui, deixai os outros voltar sozinhos a Ravenswood. Já fizemos bastante por eles.

- Agradeço o teu conselho, Caleb; mas, como não vou a Ravenswood procurar noiva, morta ou viva, espero encontrar para o meu cavalo um abrigo mais agradável do que o Kelpy, tanto mais que esse sítio me inspira certo receio desde que, há dez anos, se perdeu ali uma patrulha de dragões. Eu e o meu pai vimos, do cimo da torre, esses infelizes debaterem-se contra a maré-cheia. Submergiram-se, sem que houvesse tempo para os socorrer.

- E foi muito bem feito para esses velhacos dos Ingleses! Quem os mandou andar pelas nossas costas a impedir que gente honrada trouxesse para terra um pouco de brandy?

A lembrança dos abusos cometidos pela soldadesca inglesa e pelos agentes do fisco apossou-se de tal modo do cérebro de Caleb que o amo não teve a menor dificuldade em se esquivar para se reunir aos seus hóspedes. Entretanto, estava tudo pronto para a partida. Um dos criados de sir William Ashton, depois de selar o cavalo de Ravenswood, levou-o para o pátio.

À custa de grandes esforços, Caleb tinha aberto os dois batentes do portão exterior. Ele próprio, mostrando um ar respeitoso e importante, fazia o possível por substituir, sozinho, os porteiros, os lacaios e as sentinelas.

Sir William Ashton respondeu com uma saudação cordial à profunda vénia de Caleb; e, debruçando-se do cavalo, deu-lhe a gratificação que, naquela época, um convidado nunca deixava de oferecer aos criados da casa que o tinha hospedado; Lucy sorriu-lhe com a sua ternura habitual e entregou-lhe a sua dádiva com uma gentileza que teria conquistado o velho, se a profecia de Thomas, o Poeta, não o pusesse na defensiva, ao dizer-lhe adeus.

Ravenswood, segurando as rédeas do cavalo de miss Ashton, a tímida amazona, guiava prudentemente a sua montada pelo caminho íngreme e rochoso.

De súbito, atrás dele, um dos criados anunciou que Caleb chamava pelo amo.

Ravenswood reprovou o zelo impertinente do seu criado e teve de delegar em Lockhard a agradável função para voltar ao portão da torre. Chegado ali, mal humorado, interrogou Caleb sobre os motivos daquela gritaria.

- Acalmai-vos, milorde, acalmai-vos! - observou Caleb - Deixai-me explicar. Era só uma palavra que pretendia dizer-vos, mas não o podia fazer diante de tanta gente. Olhai... - e, metendo na mão de Ravenswood o dinheiro que acabava de receber, prosseguiu - Três lindas moedas. Necessitareis delas lá em baixo. Mas reparai! - continuou, vendo que o amo não estava disposto a aceitar o dinheiro - Trocai-as na primeira cidade que encontrardes no caminho.

- Esqueceste, Caleb - retorquiu Ravenswood, esforçando-se por devolver o dinheiro ao criado - esqueceste que ainda tenho algumas moedas de ouro. Guarda estas para ti, meu bom amigo. Adeus.

- Pois bem, elas vos servirão para outra vez. Mas tendes a certeza de que vos chega o dinheiro que levais? É preciso, evidentemente, para honra da família presentear os criados, e poder mostrar qualquer coisa quando vos disserem: "Milorde, aposto tanto"; então, puxareis pela bolsa e direis: "Está apostado".

- Isto é intolerável, Caleb! - exclamou Ravenswood, fazendo menção de partir.

- Então, sempre ides? - insistiu Caleb - Sempre estais disposto a ir, depois do que vos disse da profecia, da noiva morta, das areias movediças do Kelpy? Fazei o que quiserdes. Como convencer um teimoso? Mas, pelo menos, poupai a vossa vida. Evitai beber água da fonte da Sereia.

Durante algum tempo, o velho mordomo seguiu seu amo com o olhar.

- Ei-lo que desce, rápido como uma flecha, atrás da donzela! - murmurou - O chefe da família dos Ravenswood perdeu a cabeça!

E, com o coração cheio de funestos presságios, voltou às suas ocupações quotidianas de Wolf's Crag.

Entretanto, os cavaleiros seguiram alegremente o seu caminho e Ravenswood entregou-se ao prazer de acompanhar miss Ashton.

A recepção em casa de lorde Bittlebrain, onde jantariam e descansariam um pouco, foi calorosa. Ravenswood foi alvo das maiores atenções e essas atenções mais aumentaram a sua importância aos olhos do Chanceler.

"Muito gostava que lady Ashton visse isto - pensava - Lisonjeiam Ravenswood como o cão de um mendigo acaricia um cozinheiro.

Terminada a refeição, os nossos viajantes, que tinham ainda de percorrer grande distância, montaram a cavalo e prosseguiram na sua marcha.

Era noite quando entraram na avenida do castelo de Ravenswood, marginada por enormes ulmeiros, que gemiam com o vento nocturno, como se lastimassem o seu antigo proprietário, agora de volta às suas sombras na companhia do novo dono. Idênticos sentimentos oprimiam o coração de Ravenswood. Invocava o dia em que, àquela mesma hora, tinha acompanhado seu pai, no momento em que esse homem tão nobre deixara para sempre a morada donde lhe vinham o nome e o título. A vasta fachada do antigo castelo estava, então, negra como um vestido de luto. Agora resplandecia de luzes, umas projectando a distância um clarão fixo, enquanto outras, correndo de janela em janela, revelavam os preparativos que se faziam para a chegada de sir William Asthon, previamente anunciada por um correio. O contraste impunha-se duramente ao coração de Ravenswood, despertando-lhe alguns dos sentimentos rancorosos que sempre alimentara contra o novo senhor do domínio paterno. Foi com ar triste que desmontou do cavalo e entrou, por entre numerosos criados, num hall que já não era seu.

No momento de lhe desejar as boas-vindas com a cordialidade que parecia autorizada pelas suas últimas palavras, sir William Ashton notou a transição operada em Ravenswood e limitou-se a profunda saudação para lhe provar que compreendia e partilhava os seus sentimentos.

Dois criados, levando, cada um, um par de belos candelabros de prata, conduziram o grupo a um salão cujo embelezamento demonstrou aos olhos de Ravenswood a riqueza dos novos proprietários. As poeirentas tapeçarias, em farrapos, que no tempo de seu pai cobriam as paredes, tinham sido substituídas por painéis de madeira onde se desenhavam flores e pássaros. Diversos retratos dos heróis da casa de Ravenswood, uma ou duas armaduras completas, algumas armas de combate tinham cedido o lugar às efígies do rei Guilherme, da rainha Maria, de sir Thomas Hope e de lorde Stair, dois ilustres jurisconsultos escoceses. Viam-se também os retratos do pai de sir William Ashton e de sua mãe.

"E foi para dar lugar a estes espantalhos - pensou Ravenswood - que arrancaram os meus antepassados das paredes que eles levantaram!"

E, ao vê-los, a imagem de Lucy, que não o tinha desamparado, apagou-se-lhe da memória.

Também se encontravam ali duas ou três fantasias holandesas, como se chamavam então as pinturas de Van Ostade e de Téniers, e um belo quadro da escola italiana. Um retrato de sir William Ashton, de pé, envergando o trajo do seu cargo, emparceirava com o de lady Ashton, beleza altiva, vestida de seda e de arminho, em cujo olhar transparecia todo o orgulho da casa de Douglas, donde descendia.

O chão da bela sala desaparecia sob ricos tapetes; nos dois fogões ardiam belas fogueiras; a luz do dia não podia ser mais intensa do que a projectada pelos dez candelabros de prata, munidos de reflectores.

- Desejais um refresco, milorde? - perguntou sir William Ashton, ansioso por quebrar o silêncio desagradável.

Não obteve resposta. Distraído com as transformações da sala, Ravenswood mal percebera que sir William Ashton lhe dirigira a palavra. Depois do Chanceler ter insistido no seu oferecimento, acrescentando que a ceia não tardaria a ser servida, Ravenswood retomou consciência de si próprio e compreendeu que acabava de desempenhar um papel pouco brilhante, quase ridículo, entregando-se ao domínio das circunstâncias. Obrigou-se então a conversar com sir William Ashton com o maior desprendimento.

- Não vos deveis admirar, sir William, que me interessem as transformações e os melhoramentos que fizestes aqui. Nos tempos de meu pai, depois das nossas infelicidades nos terem obrigado a viver retirados, este salão só servia para mim, para as minhas distracções de criança, quando o mau tempo me impedia de brincar lá fora. Ali, naquele canto, guardava eu as minhas canas de pesca, os meus arcos e as flechas.

- Tenho um filho com os mesmos gostos - afirmou sir William Ashton, procurando dar outro rumo à conversa - Admira-me que ele não esteja ainda aqui. Lockard, manda procurar o meu filho Henry. Deve encontrar-se, como de costume, junto de Lucy. Esta minha filha faz tudo quanto quer da família.

Esta alusão a Lucy, embora feita de propósito, não desviou Ravenswood dos seus pensamentos.

- Fomos obrigados a deixar aqui alguns trofeus de armas, alguns retratos de família. Posso saber o que foi feito deles?

- Este salão - respondeu sir William Ashton, um pouco hesitante - foi modificado durante a nossa ausência e... "cedant arma togae", é, bem o sabeis, a máxima dos magistrados. Creio... que os objectos que acabais de citar estão em lugar seguro. Recordo-me de ter dado ordens nesse sentido. Espero que, logo que os mande procurar, me dareis a honra de os aceitar como expiação da sua retirada involuntária...

Ravenswood inclinou-se e, cruzando os braços, prosseguiu na sua inspecção.

Henry, um rapaz de quinze anos, apareceu de súbito e correu para o pai.

- Que pensas de Lucy, papá? Voltou tão zangada, tão pouco amável, que não quer ir ver, à cavalariça, o novo potro que Bob Wilson me trouxe de Galloway.

- Não deves censurá-la.

- Também estás como ela? Quando a mamã vier, ela vos dirá!

- Silêncio! És muito impertinente. Onde está o teu preceptor?

- Foi a Dunbar, assistir a um casamento.

- Hei-de agradecer a mister Cordery o seu cuidado - prometeu sir William Ashton - E quem tomou conta de ti durante a minha ausência?

- Norman e Bob Wilson... e eu próprio.

- Um tratador de cavalos, um guarda campestre e tu, meu pateta! Boa escola para um futuro advogado! Tu só conheces, em matéria de jurisprudência, as leis da caça ao veado, a pesca ao salmão e...

- A propósito de caça - atalhou o rapaz, interrompendo o pai sem hesitação nem respeito - Norman matou um veado. Mostrei as hastes a Lucy e ela notou que só têm oito pontas. Afirmou também que tinhas morto, com a matilha de lorde Bittlebrains, um veado com hastes de dez pontas. É verdade?

- Que eu saiba, dez pontas ou vinte é tudo uma haste. Mas fala com este senhor, que ele te poderá explicar. Vai falar com ele, Henry: é lorde Ravenswood.

Enquanto conversavam, pai e filho encontravam-se perto do fogão. Ravenswood, chegando à extremidade do salão, tinha parado, a examinar uma pintura, de costas voltadas para eles. O rapaz dirigiu-se-lhe e, com a liberdade de um garoto cuja educação deixava muito a desejar, puxou-lhe por uma das mangas.

- Responda, se faz favor...

Quando Ravenswood se voltou, Henry olhou-o com espanto e recuou um passo ou dois, tornando a olhar para ele, com ar de espanto e de medo.

- Vem cá, meu rapaz - convidou Ravenswood - vou explicar-te o que pretendes saber sobre a caça.

- Vai, Henry - ordenou sir William Ashton - Não é costume seres tão tímido.

Mas, nem o convite, nem a intimação conseguiram demover o rapaz. Antes pelo contrário; caminhando com o mesmo cuidado como se fosse a pisar ovos, foi colocar-se atrás do pai.

Para evitar qualquer admoestação do pai ao filho,

Ravenswood pensou que o melhor seria não fazer caso do que se passava entre eles; e voltou a admirar as pinturas.

- Porque não falaste a lorde Ravenswood, meu pateta? - ralhou sir William Ashton.

- Tenho medo dele! - respondeu o rapaz, em voz baixa.

- Medo! - repetiu o pai, sacudindo-o levemente pelo pescoço - Porque tens medo?

- É tão parecido com o retrato de sir Malise Ravenswood! - suspirou o rapaz.

- Qual retrato? Tinha-te na conta de estouvado, mas começo a crer que és idiota!

- Parece-se com o retrato do velho Malise Ravenswood! É tão parecido como se tivesse saído da moldura. Conheço muito bem o retrato que está na sala onde as criadas lavam a roupa. Sir Malise tem uma armadura e não veste como aquele senhor; usa barba e uma coisa diferente em volta do pescoço,

- E porque não há-de aquele senhor parecer-se com os seus antepassados?

- Sim; mas ele vem para nos escorraçar do castelo, acompanhado de vinte homens mascarados... E dirá com voz forte: Aguardo a minha hora... e matar-te-á em cima da pedra do fogão como Malise matou o outro homem cujo sangue ainda se pode ver.

- Basta de tolices! - exclamou sir William Ashton

- Meu amigo, Lockhard está lá fora, anunciando que a ceia vai para a mesa.

Lucy entrou nessa altura por outra porta. Tinha mudado de vestido. A graciosidade das suas maneiras e o seu sorriso dissiparam, com uma prontidão que ao próprio Ravenswood causou espanto, as nuvens que lhe ensombravam o espírito. Ao contemplar Lucy Ashton julgou ver um anjo que descera à terra e não uma simples mortal descendendo doutros mortais com quem se dignava viver. Tão grande é o poder da beleza sobre um cérebro apaixonado e entusiasta.

 

O Amor contra o ódio!

 

Faço mal nisto e devia saber que as queixas de um pai chamem sobre a cabeça do filho desobediente as maldições do céu. No entanto, a razão diz-nos que os pais são cegos quando pretendem prender a afeição do filho e contrariar um amor que o céu inspirou.

O porco que perdeu a pérola

 

A refeição servida no castelo de Ravenswood foi tão notável pela sua abundância como o tinha sido a de Wolf's Crag pela mal disfarçada penúria. Sir William Ashton podia sentir-se intimamente orgulhoso do contraste, mas tinha tacto bastante para não o deixar transparecer.

- Nós não fazemos mais do que imitar os outros; - disse ele - meu pai fez de mim um homem modesto, e deu-me uma mesa frugal. Sentir-me-ia feliz se minha mulher e a minha família consentissem que eu voltasse às minhas papas de aveia e às pernas de carneiro.

Havia ali certo exagero. Ravenswood contentou-se em responder:

- Às diferentes situações, quero dizer, aos diferentes graus de riqueza correspondem diferentes modos de viver.

Esta observação seca fez desviar totalmente a conversa. Pouco importa o que se disse em seguida. Uma cordialidade franca animou o serão. Henry tinha sacudido tão bem de si as suas primeiras impressões que chegou a combinar uma caçada com o representante e vivo retrato do cruel sir Malise Ravenswood, chamado o Vingador. Combinou-se a hora para o dia seguinte. Os caçadores estavam entusiasmados e a caçada foi das melhores. A festa foi coroada com um banquete. Convidado a ficar mais um dia, Ravenswood aceitou, embora intimamente decidisse que seria o último; mas lembrou-se de que não tinha ido visitar a antiga e dedicada servidora de sua família, a velha Alix, e considerou um dever da sua parte dedicar-lhe a manhã.

Lucy serviu-lhe de guia. É certo que Henry os acompanhou; mas, na realidade, surgiram tantos incidentes que impediram o rapaz de prestar a mínima atenção ao que se passava entre os seus companheiros. Aqui, um corvo pendurado numa árvore ao alcance da sua espingarda; além, uma lebre atravessando o caminho, que ele perseguia com o seu cão; uma conversa entabulada com o guarda florestal, que o detinha uns momentos, ou então, mais longe, a toca de qualquer animal que lhe chamava a atenção.

Entretanto, a conversa entre Ravenswood e Lucy tomava aspecto interessante e quase íntimo. Ela não pôde deixar de lhe dizer como compreendia o seu desgosto ao rever, sob aspecto diferente, os lugares que lhe eram tão conhecidos; e a expressão da sua simpatia foi tão sincera que Ravenswood encontrou nela compensação para todas as suas desditas. Não pôde deixar de revelar o que sentia e Lucy ficou mais confusa que desagradada ao escutá-lo.

Por fim, chegaram ao domicílio da velha Alix, restaurado de pouco, e que apresentava aspecto talvez menos pitoresco que anteriormente, mas mais decente. Sentada no seu lugar habitual, debaixo do salgueiro, a cega aquecia-se aos raios do sol do fim do Outono. Pressentindo a chegada dos visitantes, voltou a cabeça para eles.

- Reconheço os vossos passos, miss Ashton - observou - mas quem vos acompanha não é o vosso pai.

- Como conseguistes sabê-lo, Alix? - perguntou Lucy.

- A cegueira, miss, apurou-me o ouvido e posso apreender certos sons muito leves para os quais dantes ficava tão surda como vós agora. A necessidade é uma escola severa, mas excelente; e quando se perde a vista, deve procurar-se educar os outros sentidos.

- Que possais reconhecer os passos de um homem, vá, estou de acordo, Alix, mas como podeis dizer que esses passos não são os de meu pai?

- Com a idade, meu amor, o passo torna-se mais lento e discreto; o pé levanta-se do chão lentamente e assenta com hesitação. O que ouvi há pouco foram os passos firmes e decididos de um homem novo; diria mesmo, se pudesse admitir facto tão estranho, que eram os passos de um Ravenswood.

- Eis uma sensibilidade de ouvido na qual eu não acreditaria se não tivesse a prova! - exclamou Ravenswood - Sou eu, de facto, Alix, o filho do vosso antigo amo.

- Vós! - proferiu a velha, numa exclamação de surpresa - Vós, lorde Ravenswood... aqui... e em semelhante companhia? Como hei-de acreditar? Deixai-me passar a mão pelo vosso rosto, para que o tacto garanta o testemunho do ouvido.

Ravenswood sentou-se ao lado de Alix, no banco de pedra, e deixou passar sobre a sua cara a mão trémula da cega.

- Sim! - disse ela - São os traços de Ravenswood, a sua voz, as linhas reveladoras de orgulho, a voz imperiosa e altiva! Mas, o que fazeis aqui, lorde Ravenswood? Que fazeis nas terras do vosso inimigo e na companhia de sua filha?

Enquanto falava, Alix ruborizou-se como teria acontecido, certamente, nos tempos feudais, a qualquer vassalo que julgasse ver no seu jovem senhor indícios de fraqueza que desonrassem a memória dos seus antepassados.

- Lorde Ravenswood está de visita em casa de meu pai - informou Lucy, que não gostou daquele tom de censura e desejava abreviar o encontro.

- Isso é verdade? - insistiu Alix, pasmada.

- Eu sabia que vos daria prazer trazê-lo aqui - prosseguiu Lucy.

- Esperava ter um acolhimento mais cordial, Alix! - observou Ravenswood.

- Que coisa tão estranha! - murmurou a velha, como se falasse consigo - Os caminhos da Providência não são os nossos e nós não podemos profundar as suas intenções. Escutai-me - prosseguiu em voz alta

- Os vossos antepassados eram implacáveis na inimizade, prezavam a honra, e não usavam a máscara da hostilidade para arruinar o adversário. O que fazeis junto de Lucy Ashton? Porque seguem os vossos passos o mesmo caminho? Porque é que a vossa voz faz coro com a voz da filha de sir William Ashton? Milorde, aquele que procura vingar-se por meios desonestos...

- Silêncio, mulher! - ordenou Ravenswood severamente - É o demónio que vos faz falar? Ficai sabendo que esta donzela não tem sobre a terra amigo que Vá mais longe do que eu para a defender de uma injúria ou ultraje.

- Então, que Deus vos proteja! - murmurou a cega, mudando de voz, mas cheia de tristeza.

- Amen! - acrescentou Lucy, compreendendo mal o sentido das últimas palavras de Alix - E que Ele vos devolva o vosso bom humor. Se em vez de acolher bem os vossos amigos os repelis com essa linguagem misteriosa, eles pensarão de vós o que os outros pensam.

- E que pensam os outros? - perguntou Ravenswood, que também notara a incoerência das palavras de Alix.

- O que eles pensam? - interveio Henry Ashton, que chegara nesse instante; e, aproximando-se de Ravenswood, disse-lhe ao ouvido:

- Pensam que é uma feiticeira e que devia ser queimada como as outras que morreram em Haddington.

- Quem falou aí? - perguntou Alix, voltando para o rapaz o seu rosto vermelho de raiva - Uma feiticeira? Que deveria ter sido supliciada como essas infelizes assassinadas em Haddington?... Se o usurário, o opressor, esse que pisa a face do pobre, que arranca os antigos marcos, que destrói as casas antigas, estivesse amarrado comigo a uma pilha de madeira, então poderia dizer: "Lançai fogo, em nome do Céu!"

- É terrível! - exclamou Lucy - Nunca vi esta infeliz tão desvairada como agora. Não a apoquentes, Henry, deixa-a; ela deseja ficar sozinha com lord Ravenswood. Vamos descansar na fonte da Sereia.

Quando Lucy e Henry se retiraram, Alix perguntou, a Ravenswood:

- Estais também zangado comigo pela estima que vos dedico, milorde?

- Não estou zangado, Alix; estou apenas admirado com as vossas suspeitas tão ofensivas como injustificadas.

- Ofensivas? Sim, a verdade ofende sempre!

- As vossas suspeitas não têm fundamento.

- Quer dizer: o mundo voltou-se ao contrário. Ravenswood mudou de carácter e o entendimento da velha Alix é mais cego que os seus olhos. Quando se viu um Ravenswood entrar em casa de um inimigo, sem o intuito de se vingar? E vós viestes aqui, Edgar Ravenswood, conduzido por um ressentimento fatal ou por um amor ainda mais fatal?

- Nem por uma coisa nem por outra... juro por minha honra... posso garantir!

Alix não pôde ver Ravenswood corar, mas, pelas suas palavras, compreendeu a hesitação que o dominava.

- Mas viestes com ela e ela ficou de vos esperar na fonte da Sereia! Essa fonte é funesta para os Ravenswood!

- Sois mais supersticiosa do que o meu velho Caleb.

Sois tão má cristã que desejais que eu faça guerra à família Ashton, conforme o costume sanguinário dos tempos passados? Julgais-me tão insensato, ao ponto de não poder passear com uma donzela sem ficar apaixonado?

- Se os meus olhos mortais deixaram de ver, os olhos do espírito vêem bem o futuro. Estais disposto a tomar o último lugar à mesa que pertenceu a vosso pai, como amigo do seu orgulhoso sucessor? Podeis falar como fala sir William Ashton, pensar como ele pensa, tratar por respeitável sogro e venerado protector o assassino de vosso pai? Senhor de Ravenswood, eu sou a mais antiga servidora da vossa casa e gostaria mais de saber que tínheis sido amortalhado e metido no caixão.

Dominado por uma confusão de pensamentos, Ravenswood pôs-se a andar de um lado para outro. Alix fizera vibrar uma corda que se esforçara por esquecer. Por fim, de repente, parou diante dela e exclamou:

- Mulher! Estás à beira da campa e incitas-me à vingança e ao assassínio?

- Deus me defenda! - respondeu Alix em tom solene - Falo porque desejo ver-vos longe desta casa funesta, onde o vosso amor, tanto como o vosso ódio, só poderão provocar desgraças e desonra. Se estivesse em meu poder, preveniria os Ashton contra vós e vós contra eles, defendê-los-ia das vossas próprias paixões. Não tendes nem deveis ter nada de comum com eles. Fugi e se Deus fulminar a casa do vosso inimigo não sejais o seu instrumento.

- Pensarei em tudo que me dissestes, Alix - respondeu Ravenswood, mais calmo - Acredito na vossa boa fé, mas não leveis tão longe a liberdade de uma antiga serva. Adeus! Se a fortuna me sorrir, não me esquecerei de melhorar a vossa situação.

Quis meter-lhe na mão uma moeda de ouro, mas ela recusou; e como ele teimasse em dar-lha à força, a moeda rolou para o chão.

- Deixai-a uns instantes no chão - aconselhou ela, quando Ravenswood se baixou para apanhar a moeda - Acreditai-me: essa moeda é um símbolo da pessoa que amais. Lucy não tem menos valor, mas é preciso que vos baixeis muito para a conseguir. Quanto a mim, tanto me interessa o dinheiro como as paixões terrestres; e o maior prazer que o mundo pode dar-me é saber que Edgar Ravenswood se encontra a cem milhas do castelo dos seus antepassados, resolvido a nunca mais voltar.

Ravenswood começou a crer que a gravidade da cega tinha motivo oculto.

- Alix... dizei-me francamente... onde se encontra o perigo que me ameaça? Sois muito fiel e perspicaz para vos assustardes com sombras.

Alix baixou os olhos e ficou um momento mergulhada em profunda meditação. Por fim, levantando a cabeça, declarou:

- Direi a verdade, embora não saiba as consequências, boas ou más, que ela possa ter. Vou dizer-vos, lorde Ravenswood, donde nascem as minhas apreensões: Lucy Ashton ama-vos!

- É impossível! - protestou Ravenswood.

- Desde que a salvastes, ninguém mais do que vós prende os seus pensamentos. A minha experiência não me engana. Bastou-me ouvi-la falar, para me convencer. E agora que já o sabeis, se sois um gentil-homem, e filho de vosso pai, bastar-vos-á este motivo para vos afastar dela. Então, o seu amor extinguir-se-á como a lâmpada sem alimento. Mas, se continuardes aqui, a vossa perda, e a dela ao mesmo tempo que a vossa, será infalível. Parti, lorde Ravenswood, agora que conheceis o meu segredo. Se vos demorais aqui mais uma hora sem tenção de casar com a filha de sir William Ashton, desconheceis as leis da honra. E se projectais casar com ela, sois um insensato que trabalha para a sua própria perda.

Após estas palavras, a velha cega levantou-se, amparada ao seu bordão, encaminhou-se num passo incerto para o seu casebre, entrou e, fechando a porta, deixou Ravenswood entregue aos seus pensamentos.

 

O outro destino de Ravenswood

 

Mais bela do que uma náiade junto do nascente, ou que a dama de Merle, assim estava ela sentada junto da fonte romântica.

WORDSWORTH

 

Os pensamentos de Ravenswood eram bastante complexos: o prazer que sentia junto de Lucy era quase fascinação e, contudo, não tinha conseguido vencer a repugnância que sentia em desposar a filha do inimigo de seu pai. Perdoando mesmo a sir Wiiliam Ashton as injustiças que tinha praticado contra a sua família, acreditando mesmo nas boas intenções que professava o pai de Lucy, não podia resolver-se a encarar como possível uma aliança entre as duas casas. Reconhecia, portanto, que a velha Alix tinha razão e que a dignidade lhe ordenava que abandonasse o castelo de Ravenswood ou se tornasse noivo oficial de Lucy.

- Amo-a - pensou ele - e por amor dela perdoo a seu pai os males que causou à minha família; mas nunca mais a verei, nunca mais!

Foi com o coração oprimido que tomou esta resolução no momento em que chegava ao cruzamento de dois caminhos: um, ia ter à Fonte da Sereia, onde ele sabia que era esperado por Lucy; o outro, a Wolf's Crag. Parou antes de se meter por este último, ao ver correr para ele, ofegante, o jovem Henry.

- Milorde! Peço-vos que ajudeis Lucy a voltar ao castelo, pois eu não posso acompanhá-la. Norman está à minha espera e eu preciso de ir ter com ele. Lucy tem medo de voltar sozinha, embora tenham morto todos os touros bravos. Não vos demoreis!

O peso de uma pena quebrou o equilíbrio entre dois pratos de balança, carregados de igual modo.

- Não posso deixar uma donzela sozinha na floresta - pensou Ravenswood - depois de tantos encontros, vê-la mais uma vez não deve ter grandes consequências. E, por cortesia, devo anunciar-lhe a minha intenção de partir.

Convencido de que obedecia não só às leis da delicadeza, mas a um dever imperioso, seguiu na direcção da fonte fatal.

Henry, mal viu que Ravenswood se punha a caminho para ir ter com a irmã, partiu, rápido como um raio, numa direcção diferente, para partilhar com o guarda florestal as alegrias da caçada. Ravenswood, não querendo pensar mais na sua própria conduta, dirigiu-se para a fonte, junto da qual encontrou Lucy, sentada numa das pedras soltas do antigo monumento, parecia seguir com o olhar o curso da água, que, à luz do dia, brotava alegre, viva, brilhante, das sombras da abóbada onde a piedade, ou talvez o remorso, lhe tinham erigido uma arcada. Ao ver Lucy, Ashton envolta no plaid escocês com cabelos caídos sobre o pescoço delicado, um espírito supersticioso teria facilmente evocado a infeliz ninfa da Fonte. Para Ravenswood não era mais do que uma mulher de estranha beleza, que se tornava ainda mais bela pelo afecto que lhe inspirava. Ao vê-la, todas as suas resoluções se desvaneceram como a neve ao sol. Ao vê-lo, Lucy saudou-o sem se levantar da pedra em que estava sentada.

- O meu estouvado irmão deixou-me aqui - disse - mas deve voltar depressa.

Ravenswood não teve coragem para lhe dizer que o irmão pretendia realizar uma excursão venatória e não voltaria tão cedo. Sentou-se ao lado dela. Seguiu-se breve silêncio,

- Gosto deste recanto - declarou, por fim, Lucy - O correr da água, o rumorejar das árvores, a exuberância da relva e das flores silvestres que crescem por entre estas ruínas, tudo empresta um ar romântico a este sítio. Prende-se a esta fonte, além disso, se não estou em erro, uma das nossas lendas mais interessantes.

- Foi sempre considerada funesta para a minha família; e tenho alguma razão para o acreditar, visto ser aqui que vos vi pela primeira vez, miss Ashton, e ser aqui que devo separar-me de vós para sempre.

- Ides separar-vos de nós? - perguntou Lucy, sentindo o sangue fugir-lhe das faces - Que aconteceu para que tenhais tanta pressa de partir? Eu sei que Alix, detesta o meu pai, mas sei também, que ele vos está imensamente grato pelo que fizestes por nós. Quem podia esperar que, depois de termos alcançado a vossa amizade, ficássemos tão depressa privados dela?

- Perder a minha amizade, miss Ashton? Não! É forçoso partir, antes que outras desgraças se juntem à minha.

- Não me deixeis, milorde!

E, com a simplicidade de uma alma terna, Lucy poisou a mão no braço de Ravenswood.

- Não vos afasteis de nós. Meu pai é poderoso e tem amigos ainda mais poderosos. Não vos afasteis antes dele vos demonstrar a sua gratidão. Acreditai-me, ele trabalha já em vosso favor junto do Conselho Privado.

- É possível - replicou Ravenswood com altivez - mas não é o vosso pai, miss Ashton, é aos meus próprios méritos que tenho de agradecer os êxitos que possa conseguir na minha carreira. Os meus preparativos estão feitos: uma espada, uma capa, um coração, animoso e um braço firme.

Lucy levou ambas as mãos aos olhos, e as lágrimas correram-lhe por entre os dedos.

- Perdoai-me! - pediu Ravenswood, apertando-lhe a mão direita, que ela lhe abandonou após leve resistência, sem baixar a outra que encobria metade do rosto - Fui bastante rude, bastante cruel para uma pessoa tão terna, tão amável. Esquecei a sombra pesada e triste que atravessou o vosso caminho; deixai-me prosseguir o meu; e, ficai certa, não haverá para mim maior desventura do que ser obrigado a separar-me de vós.

Lucy continuou a chorar, mas as suas lágrimas eram menos amargas. Todas as tentativas de Ravenswood para justificar a partida mais evidenciavam o seu desejo de ficar. Por fim, em vez de lhe dizer adeus, jurou-lhe o seu amor e ela correspondeu com o seu. Tudo se passou tão rapidamente que, antes que ele pudesse reflectir sobre as consequências do seu acto, a união d!o.s seus corações, como a dos seus lábios, tinha selado o juramento solene.

- Agora, devo falar a vosso pai - decidiu ele, após uns momentos de reflexão - Quero que sir William Ashton conheça o nosso amor. Ravenswood não pode ficar em sua casa, amando clandestinamente a filha.

- Ides falar a meu pai? - perguntou Lucy, hesitante

- Não, não! Esperai que os vossos projectos e a vossa situação na vida estejam fixados. Estou certa que ele vos dará o seu consentimento; mas, minha mãe...

- Vossa mãe, Lucy? Não pertence à casa de Douglas, que contraiu tantas uniões com a minha na época em que ela estava no apogeu da glória e do poderio? Que poderia ela opor ao nosso enlace?

- Não quero dizer que faça objecções, mas é muito zelosa pelos seus direitos e pode evocar a sua qualidade de mãe para ser consultada imediatamente.

- Seja! - respondeu Ravenswood - Londres está longe, mas escreverei uma carta e poderemos, dentro de quinze dias, obter a resposta. Não forçarei sir William Ashton a dar-me resposta imediata.

- Mas, não seria melhor aguardar... aguardar algumas semanas? - perguntou Lucy com timidez - Minha mãe, quando vos conhecer, certamente consentirá. Não vos conhece pessoalmente e a hostilidade hereditária entre as nossas famílias...

Ravenswood fixou-a com olhar penetrante e atento, como se quisesse profundar-lhe a alma.

- Lucy, sacrifiquei por vossa causa todos os meus projectos de vingança. Na tarde do dia em que se realizaram os funerais de meu pai, cortei uma madeixa dos meus cabelos, atirei-a ao fogo e jurei que a minha vingança perseguiria os seus inimigos até os ver aniquilados e dispersos como as cinzas dos meus cabelos.

- Foi um pecado mortal fazer semelhante juramento! - exclamou Lucy, empalidecendo.

- Concordo, e pior seria se o tivesse cumprido. Porém, por vossa causa, renunciei aos meus projectos de vingança.

- Para que invocar sentimentos tão tenebrosos, tão pouco compatíveis com esses outros que me dedicais, com esses que há pouco vos confessei?

- Porque vos quero dar a noção do preço que me custou o vosso amor e o direito que adquiri à vossa constância. Eu não disse que tinha comprometido a honra da minha casa. Mas, se o não disse, se não o pensei, a sociedade pode pensá-lo e dizê-lo.

- Nesse caso, jogastes comigo um jogo cruel. Mas não é tarde para renunciar. Desligo-vos da promessa que não podíeis fazer-me sem ferir a vossa dignidade. Que seja como se nada se tivesse passado. Esquecei-me e eu procurarei esquecer também.

Ravenswood defendeu-se do que considerava uma injustiça, desculpou-se e ajoelhou-lhe aos pés; e ela depressa esqueceu a ofensa causada pelas suas palavras. A querela terminou com uma dessas trocas de prendas cuja forma solene não desapareceu ainda por completo na Escócia, entre a gente do povo. Partiram e dividiram a pequena moeda de ouro que Alix não tinha aceitado de Ravenswood.

- Ficará sempre aqui, sobre o meu coração - afirmou Lucy, prendendo a metade da moeda a uma fita que trazia ao pescoço - salvo se a pedirdes, Edgar Ravenswood. E, enquanto a trouxer comigo, nunca esse coração conhecerá outro amor que não seja o vosso.

Respondendo-lhe com os mesmos protestos apaixonados, Ravenswood colocou sobre o peito a outra metade da moeda. Nesse momento, repararam que o tempo tinha voado durante o encontro e que a sua ausência, se a notassem, causaria inquietações no castelo. Quando se levantaram para deixar a fonte que tinha sido testemunha dos seus juramentos, uma flecha, silvando no ar, fez cair um corvo que se encontrava no galho seco do velho carvalho, próximo do local que eles acabavam de ocupar. A ave esvoaçou durante uns instantes e foi cair aos pés de Lucy, cujo vestido ficou salpicado de sangue.

Miss Ashton não conseguiu reprimir um gesto de terror. Ravenswood, surpreendido e irritado, procurou com o olhar o atirador que acabava de dar uma prova de destreza tão imprevista como desagradável. Este não tardou a mostrar-se. Era Henry Ashton, que apareceu, a correr com o arco em punho.

- Parecíeis tão entretidos - disse ele - que, por pouco, o corvo não vos cai em cima. O que te dizia milorde, Lucy?

- Eu estava dizendo à vossa irmã - respondeu Ravenswood, procurando ocultar o embaraço de Lucy - que é preciso que sejais um rapaz pouco ajuizado para vos terdes demorado tanto tempo.

- Mas para que esperastes por mim? Eu pedi-vos que acompanhásseis Lucy ao castelo, enquanto ia fazer uma batida com Norman, no matagal de Hayberry, e bem devíeis calcular que não podia demorar menos de uma hora. Andámos atrás de um veado, enquanto estivestes aqui, junto de Lucy, sem fazerdes nada.

- Está bem, está bem, Henry! Mas podereis dizer-me para que mataste o corvo? Não sabeis que os corvos estão sob a protecção de lorde Ravenswood e que matar um na sua presença é presságio de morte trágica?

- Foi o que me disse Norman. Ele acompanhou-me até à distância de um tiro de flecha do sítio onde vos encontráveis e afirmou nunca ter visto um corvo tão perto das pessoas, pois são muito desconfiados e ariscos. Não tenho boa pontaria?

- Com a prática, deveis dar um bom atirador.

- É essa a opinião de Norman. Mas garanto-vos que, se não pratico mais, o culpado não sou eu. Se me dessem liberdade, não fazia outra coisa. O meu pai e o meu preceptor zangam-se às vezes comigo; e Lucy dá-se ares de vigiar o que eu faço, contanto que possa passar todo o dia sentada junto da fonte, palrando com um jovem. Se me quereis acreditar, já a surpreendi mais de vinte vezes.

Falando assim, o rapaz olhou para a irmã. E, apesar da sua pouca idade, adivinhou o desgosto causado pelas suas palavras, embora estivesse longe de saber o motivo.

- Então, Lucy, não te zangues. Se disse alguma coisa que te magoasse, estou pronto a desdizer-me. Que importa ao senhor de Ravenswood que tenhas cem namorados?

Ravenswood ficou aborrecido com as palavras de Henry, conquanto a razão lhe dissesse que não passava de um atrevimento de um rapaz mal educado...

Quando chegaram ao castelo, dirigiram-se imediatamente ao salão onde sir William Ashton os esperava, inquieto com a demora do passeio.

Lucy começou por se desculpar; mas a consciência perturbada obrigou-a a calar-se às primeiras palavras, Quando Ravenswood procurou completar as explicaçoes também se atrapalhou. Ninguém suponha que o embaraço dos dois namorados iludiu a sagacidade do homem da lei, que tinha adquirido, com a profissão, o hábito de conhecer a natureza humana. No entanto estava nos seus planos não o dar a perceber. Pretendia prender Ravenswood, mas ficar livre. Não calculou que a filha partilhasse os sentimentos que inspirara e, se tal acontecesse e lady Asthon se opusesse categoricamente, pensava que uma viagem, um presente e novas homenagens bastariam para a fazer esquecer o seu apaixonado.

Sir William Ashton tinha recebido, nessa mesma manhã, após a saída dos dois namorados, uma carta de que deu conhecimento a Ravenswood. Com esta carta, viera uma outra, dirigida expressamente a sir William Ashton. Fora-lhe enviada por aquele amigo de quem já falamos e que se dispunha a estabelecer um partido de patriotas dirigido pelo homem mais temido pelo Chanceler, o activo e ambicioso marquês de Athol. Sondado por este amigo, sir William Ashton tinha-o ouvido pacientemente. Como consequência, o marquês, devidamente informado, respondera com o velho provérbio francês: Castelo que parlamenta e mulher que escuta, um e outro estão prestes a render-se. Um homem de Estado que ouvia falar numa mudança de política e não protestava, encontrava-se, na maneira de pensar do marquês, na situação da fortaleza que parlamenta e da mulher que escuta. Assim, resolveu apertar o cerco.

A segunda carta era do próprio marquês. Expunha a sir William Ashton a intenção de o visitar sem cerimónia. Atravessava o país, em direcção ao Sul; as estradas eram más, as estalagens péssimas; sir William Aston era amigo íntimo de um dos seus correspondentes; e, sem o conhecer muito, o marquês conhecia-o suficientemente para que a visita parecesse bastante natural e tapasse a boca a quem a atribuísse a fins políticos. Sir William Ashton respondeu que receberia com prazer a visita do marquês, reservando-se o direito de concordar ou não com as propostas do visitante, conforme conviesse aos seus interesses.

Duas circunstâncias, especialmente, causavam-lhe grande prazer; a presença de Ravenswood e a ausência de sua mulher, a primeira porque poderia contribuir para melhor entendimento entre ele e o marquês, a segunda porque o carácter orgulhoso e implacável de lady Ashton poderia transtornar-lhes os planos.

Ravenswood acedeu sem dificuldade aos pedidos que lhe foram feitos para ficar no castelo e receber o seu parente. Lucy e Lockhard receberam ordens para se ocupar, cada qual no que lhe competia, dos preparativos necessários para receber o marquês com todas as pompas e brilho.

 

O novo lorde e o seu fiel escudeiro

 

Moral: Meu senhor, o honrado homem acaba de chegar.

Overreach: Que entre imediatamenfe e procede como te ordenei. Os músicos que mandei vir estão prontos para o receber?

 

Sir William Ashton era um homem de bom senso, um magistrado competente; no entanto, certos traços do seu carácter revelavam a sua timidez inata e o espírito ardiloso que lhe tinham permitido elevar-se na vida mais do que o seu nascimento lhe permitia. Além disso, tinha pronunciada tendência para a avareza. Não lhe escapava o pormenor mais insignificante e Lucy muitas vezes corou ao notar o sorriso de desdém de Ravenswood ao ouvir seu pai discutir gravemente com Lockhard, e mesmo com a velha governanta, assuntos a que pessoas de certa categoria não davam atenção por competirem aos criados.

- Nesta ocasião desculparia a sir William Ashton certa agitação - observou Ravenswood, uma noite, a Lucy, quando vinham a sair do salão - A visita do marquês é uma honra e convém que a recepção seja perfeita; mas desespero-me quando o vejo descer a essas miseráveis minúcias da casa, da copa, da capoeira. Esgotam-me a paciência e prefiro a pobreza de Wolf's Crag à riqueza deste castelo.

- Contudo - protestou Lucy, - foi por prestar atenção a essas minúcias que o meu pai conseguiu obter o domínio...

- Que os meus antepassados venderam, justamente por as esquecerem. Tendes razão. Um homem não pode carregar com um peso superior às suas forças, embora esse peso seja a riqueza.

Lucy suspirou.

Os dois namorados não tardaram a descobrir que as suas opiniões divergiam sobre outros assuntos de não menor importância. A religião, mãe da paz, era, naqueles dias de discórdia, tão mal interpretada, tão mal compreendida, que as suas formas e as suas regras se prestavam às mais desencontradas opiniões. Sir William Ashton, sendo um whig, era, evidentemente, um presbiteriano e tinha, em diversas épocas, manifestado pela Igreja a que pertencia mais zelo do que, certamente, sentia. A sua família seguia os mesmos princípios. Ravenswood pertencia, já o sabemos, à Alta Igreja ou Igreja episcopal e muitas vezes censurava Lucy pelo fanatismo dos da sua religião.

Assim, embora o afecto mútuo de Ravenswood e de Lucy parecesse aumentar à medida que se conheciam melhor, alguns elementos menos agradáveis emparceiravam, num e noutro, com os seus sentimentos. Lucy, quando estava junto de Ravenswood, não podia eximir-se a certo constrangimento. O rapaz tinha um espírito mais elevado, mais orgulhoso do que a maior parte das pessoas que ela conhecera até ali e não ocultava o seu desdém por muitas das opiniões que Lucy se habituara a venerar.

Ravenswood, por seu lado, via em Lucy uma criatura branda, submissa, susceptível de ceder às opiniões daqueles que a cercavam. Sentia que o seu próprio temperamento exigia a sociedade de um espírito mais independente, capaz de embarcar com ele para a travessia da vida, e não menos indiferente que ele à calma ou à tempestade.

Se eles se tivessem conhecido e julgado melhor um ao outro antes do eclodir de uma paixão que os tinha unido solenemente, talvez Lucy tivesse fugido ao amor de Ravenswood e este interpretasse a docilidade, a falta de energia de Lucy como uma fraqueza que a tornasse indigna da sua atenção. Mas tinham trocado as suas promessas e o único receio de Lucy era que Ravenswood se arrependesse um dia por orgulho; por seu lado, Ravenswood temia que o espírito frágil de Lucy viesse um dia a arrepender-se, sob pressão de dificuldades ou influência de quem a cercava, da palavra que lhe tinha dado.

- Não deveis ter esse receio - protestou Lucy, um dia em que o seu apaixonado lhe confessou os seus temores - os espelhos que reflectem sucessivamente todos os objectos são feitos de matéria dura, vidro ou aço; mas as substâncias mais macias guardam eternamente as impressões que recebem.

- O que dizeis é poesia; e toda a poesia não é mais do que ficção! - respondeu Ravenswood.

- Acreditai-me quando vos repito em prosa que, certamente, nunca casaria sem o consentimento de meus pais, mas, nem pela força nem pela persuasão disporiam da minha mão antes de vós terdes renunciado ao direito que vos dei.

Não lhes faltava tempo para conversarem. Henry acompanhava-os de longe em longe, fosse porque tivesse de estudar com o seu professor, fosse porque preferisse a companhia do guarda florestal e dos moços da cavalariça. Quanto a sir William Ashton, passava a manhã no seu gabinete, ocupado com a correspondência e a pesar no seu espírito ansioso as informações que recebia de toda a parte sobre a reviravolta prevista na política escocesa e a força provável dos partidos que iam disputar o poder. Nas outras horas, ocupava-se em dar ordens e contra-ordens sobre os preparativos que julgava necessários para a recepção do marquês de Athol, cuja chegada fora adiada por duas vezes.

No meio destas ocupações variadas, tanto domésticas como políticas, não parecia ver a que ponto sua filha e Ravenswood se tornavam inseparáveis. Muitos dos seus vizinhos, como acontece geralmente com toda a vizinhança em todas as regiões, censuravam-no por consentir tal intimidade entre os dois.

Entre aqueles que censuravam sir William Ashton pela demorada estadia de Ravenswood em sua casa e a assiduidade junto de miss Ashton, um dos mais severos era o novo lorde de Girnington e o seu fiel escudeiro, um e outro já nossos conhecidos como Hayston de Bucklaw e capitão Craigengelt. O primeiro tinha, finalmente, herdado os bens da tia-avó. Resgatara as terras de seu pai, contrariando a opinião de Craigengelt, que lhe propusera um negócio mais vantajoso em França, onde florescia o sistema de Law, e lhe oferecera os seus préstimos para empreender imediatamente a viagem a Paris. Porém, a adversidade fizera de Bucklaw um homem ajuizado. Não quis dar ouvidos a conselhos que pudessem pôr em perigo a sua independência.

- Aquele que bebeu vinho azedo e dormiu no quarto secreto de Wolf's Crag deve tomar todas as precauções para não ter de recorrer de novo a semelhante hospitalidade.

Craigengelt ficou desiludido na primeira das suas esperanças. Mesmo assim, ainda alcançou algumas vantagens.

Bucklaw nunca tivera escrúpulo na escolha dos seus companheiros e, portanto, apreciava Craigengelt, com quem, consoante o seu humor, se divertia, esvaziando uma garrafa de vinho. Nestas condições, Craigengelt era hóspede assíduo no castelo de Girnington.

Craigengelt, por seu lado, nunca tinha perdoado a Ravenswood a maneira ultrajante como este lhe arrancara a máscara de honra e de coragem; e para esse poltrão, perverso e pérfido, o melhor meio de exercer a sua vingança era agravar o ressentimento de Bucklaw contra Ravenswood.

Recordava sempre que podia e sob qualquer pretexto, a história do duelo que Ravenswood tinha recusado aceitar; esforçava-se, por meio de todas as insinuações possíveis, por convencer Bucklaw que a sua honra exigia que o assunto fosse resolvido. Mas Bucklaw acabou por lhe impor silêncio de uma vez para sempre.

- Ravenswood não tinha o direito de me mandar aquela resposta quando lhe pedia explicações pela afronta recebida. Mas estive uma vez à sua mercê e ele concedeu-me a vida. Estamos quites. Se me insultar outra vez, saberei desafrontar-me.

- Estou certo, Bucklaw, que lhe atravessaríeis o corpo com a vossa espada, logo ao terceiro passo.

- Bem se vê que nunca vistes Ravenswood manejar uma espada! - ripostou Bucklaw.

- Tem graça! Nunca vi Ravenswood manejar uma espada, é certo. Em compensação, estive na escola de Sagon, primeiro mestre de esgrima de Paris e nas de Poço de Florença e de Durchstossen, de Viena, e vi-os esgrimir, conheço os seus botes secretos.

- Não sei se os vistes; mas... e depois?

- E, depois, nunca vi franceses, italianos ou holandeses esgrimirem tão bem como vós, Bucklaw!

- Penso que essas palavras não são a expressão da verdade, Craigie. Contudo, orgulho-me de não temer ninguém, seja à espada, ao sabre, ao punhal ou à cimitarra: tudo quanto um gentil-homem precisa de saber neste capítulo.

- E é o dobro do que sabem noventa e nove por cento dos gentis-homens. Em aprendendo a trocar algumas estocadas, ei-los, por minha fé, supondo possuir a fundo a nobre arte da esgrima. Em Ruão, quando ali estive em 1695, fui à ópera com o cavaleiro de Chapon. Encontrámos três valentões ingleses...

- É muito comprida a história que ides contar? - perguntou Bucklaw, cortando-lhe a palavra sem cerimónia.

- Comprida ou curta, deve agradar-vos, visto que lhe demos um desfecho rápido.

- Sede breve! É um história triste ou alegre?

- Diabòlicamente triste! Tanto eu como o cavaleiro...

- Não me Interessa a vossa história. Enchei-me um copo de vinho da minha velha tia e, como diz o "highlander", "não troques o beber por uma história.

- Era o que dizia sempre o velho sir Evan Dhu, no tempo em que eu andava na guerra com esses bravos rapazes, em 1689. "Craigengelt, manejas a espada como ninguém, mas tens um defeito..."

- Se ele vos tivesse conhecido tão bem como eu, ter-vos-ia encontrado mais outros vinte defeitos. Mas acabemos com histórias compridas e vamos fazer uma saúde.

Craigengelt levantou-se, foi nas pontas dos pés até à porta, espreitou para fora, fechou-a, puxou a aba do chapéu para um dos lados da cabeça, empunhou o copo e, com a outra mão, segurou o punho da espada e exclamou:

- Pelo rei do outro lado do mar!

- Capitão Craigengelt - retorquiu Bucklaw - respeito bastante a memória da minha venerável tia Girnington para expor os seus domínios às consequências de uma traição contra o poder estabelecido. Trazei-me a Edimburgo o rei James, com trinta mil homens, e sabereis o que penso dos seus direitos; mas, quanto a passar o pescoço num nó corredio e atrair sobre os meus bens as sanções da lei, não espereis de mim essa loucura.

- Fazei então a saúde que quiserdes - retorquiu Craigengelt.

- Farei uma das mais dignas de louvor. Que dizeis, meu rapaz, de miss Ashton?

- Em boa hora! - respondeu Craigengelt - É a mais linda rapariga de Lothian! Que lástima que o seu velho e ardiloso pai a meta à cara desse mendigo orgulhoso, chamado Ravenswood!

- Ainda não há provas - protestou Bucklaw num tom que afectava indiferença, mas que não excitou menos a curiosidade do companheiro.

- Eu creio - afirmou Craigengelt após uma pausa - que é assunto arrumado. Têm-nos visto continuamente juntos e não se fala de outra coisa"

- Digam o que quiserem - replicou Bucklaw – eu sei o que devo acreditar. Proponho-vos de novo que bebamos à saúde de miss Ashton.

- Beberia ajoelhado se soubesse que ela intrujava esse malvado mata-mouros!

- Peço-vos que não empregueis esse termo, falando de miss Ashton.

- Eu disse intrujar? Por Júpiter! Era correr que eu queria dizer. Correr. Espero que ela o afaste como uma carta sem valor, e que ceda o lugar ao rei de copas. Entretanto...

- Entretanto?

- Eu sei directamente que passam horas seguidas no campo e na floresta.

- A culpa é do idiota do pai. Mas se entrou alguma ideia tola no cérebro da rapariga, depressa a fará sair. Empunhai de novo o vosso copo, capitão, vou dar-vos uma alegria, vou confiar-vos um segredo... uma intriga... uma intriga onde entra um nó corredio... mas simplesmente simbólico...

- Um projecto de casamento? - perguntou o capitão, cujo semblante se anuviou, prevendo que, sendo o amigo casado, não poderia continuar a viver em Girnington.

- Sim, meu rapaz, um casamento! - respondeu Bucklaw - Mas, pareceis perturbado? Porque empalidecestes? A mesa de Girnington terá sempre um recanto e nesse recanto haverá um talher para vós.

- Assim têm falado muitos dos meus amigos. O diabo é que as mulheres nunca simpatizaram comigo. Trataram sempre de me afastar antes de acabar a lua-de-mel. Lorde Castle Cuddy e eu éramos os melhores amigos do mundo: a luva e a mão; emprestei-lhe dinheiro e pedi-o emprestado para ele; montei os seus cavalos, dirigi os seus falcões, ensinei-o a apostar; e quando teve a fantasia de querer casar, fiz com que conhecesse Katie Glegg, que eu julgava tão segura como o meu amigo. Pois bem! Logo na primeira quinzena, ela obrigou-me a sair da casa sem tambor nem trombeta!

- Não creio que haja alguma coisa de comum entre mim e lorde Castle Cuddy, nem entre Lucy e Katie Glegg. Mas o casamento há de realizar-se, quer vos agrade ou não. A única pergunta que se impõe é esta: quereis ajudar-me?

- Ajudar-vos? Por vós, meu rapaz, iria descalço ao fim do mundo! Dizei-me a hora, o local, os meios, as circunstâncias, e vereis se não vos serei útil em todas as ocorrências.

- Tereis de percorrer duzentas milhas.

- Um milhar de milhas não seria para mim mais do que um salto de pulga. Vou dar ordens para que selem imediatamente o meu cavalo.

- Esperai, antes, que vos diga onde deveis ir e o que deveis fazer. Sabeis que tenho em Northumberland uma prima, lady Blenkensop, que fez tudo para não me conhecer no tempo do meu infortúnio, e me restituiu a sua amizade logo que se ergueu para mim o sol da prosperidade.

- São o diabo essas miseráveis de duas caras! - exclamou Craigengelt - Eu fui sempre amigo do meu amigo, tanto na pobreza como na riqueza; e vós bem o sabeis, Bucklaw.

- Não esqueço a vossa fidelidade. Recordo-me de que, no momento em que atravessei as piores dificuldades, vos lembrastes de me recrutar para o serviço do rei de França ou do Pretendente e que, depois disso, me emprestastes vinte moedas de ouro quando soubestes que a velha lady Girnington acabava de morrer com uma paralisia. Mas não tomeis esse ar desconfiado, John. Acredito que sejais meu amigo, à vossa maneira. Voltando a lady Blenkensop, sabei que é a favorita da duquesa Sarah...

- De Sarah Jennings?

- Esta minha prima de Northumberland tornou-se amiga íntima de lady Ashton. Ao regressar de Londres, lady Ashton foi visitar lady Blenkensop e encontra-se actualmente em casa dela, na sua antiga residência nos arredores de Wansbeck. Lady Blenkensop e lady Ashton planearam um casamento entre Lucy Ashton e a minha nobre pessoa. Calculai o meu espanto quando tive conhecimento dessa combinação; para a qual nem sequer fui consultado.

- E qual foi a vossa resposta?

- O meu primeiro pensamento foi mandar a combinação para o diabo e com ela as duas velhas; o segundo foi dar uma gargalhada; o terceiro foi reconhecer que era uma coisa razoável e que me convinha bastante.

- Creio que só vistes a rapariga uma vez... a cavalo1 e com o rosto velado.

- Sim. Mas acheia muito a meu gosto. A maneira indigna como Ravenswood se comportou comigo, fechando-me a porta para me mandar jantar com os criados, porque tinha, como hóspedes, no seu castelo de miséria, sir William Ashton e a sua filha... Deus me castigue, Craigengelt, se eu lhe perdoar alguma vez a a acção que me fez!

- Não lha deveis perdoar - afirmou Craigengelt, vendo que o caso tomava uma feição que lhe agradava - Roubando-lhe a namorada, quebrar-lhe-eis o coração.

- Não. O seu coração está revestido de bom-senso e de filosofia, duas coisas que eu e vós, Craigie, não conhecemos, graças a Deus. Pelo menos, quebrarei o seu orgulho e é isso que eu pretendo atingir.

- Pensai o que quiserdes, mas eu sei porque ele vos recebeu tão asperamente na sua velha e miserável torre. Vergonha da vossa companhia?... Não, não, por Deus! Teve medo de que a rapariga vos preferisse.

- Acreditais nisso verdadeiramente, Craigengelt? Não, Ravenswood é muito mais belo do que eu!

- Ele? É negro como um corvo. E quanto à figura... é alto, bem sei... mas falai-me de um homem de estatura média, ágil, vigoroso...

- O diabo vos leve! E ainda quereis que vos dê ouvidos! Dir-me-íeis a mesma coisa se eu fosse corcunda... Quanto a Ravenswood, se lhe puder tirar a namorada, tirar-lha-ei.

- Tirar-lha? Por Deus! Haveis de a ganhar!

- As coisas chegaram a este ponto: aceitei as propostas da minha prima. Chegámos a um acordo sobre o domínio e a importância do dote. O negócio concluir-se-á no regresso de lady Ashton, visto que é ela unicamente quem administra os interesses da filha e do filho. Pediram-me para que enviasse hoje alguns papéis por um amigo de confiança.

- Juro por este excelente vinho que, por vós, irei até ao fim do mundo!

- Sim, acredito que sejais capaz de fazer qualquer coisa por mim, e muito mais por vós. De resto, não importa quem possa levar os papéis, mas é preciso que façais mais alguma coisa. Na presença de lady Ashton, com ar indiferente, sem ligar muita importância, dizei algumas palavras a propósito da estada de Ravenswood no castelo e das suas relações com miss Ashton. Podeis dizer que falam em toda a região de uma visita que o marquês de Athol deve fazer ao castelo e que é voz corrente tratar-se de um projecto de casamento entre Ravenswood e Lucy. Gostaria de saber o que diz lady Ashton. Não receio disputar a Ravenswood o prémio da corrida, mesmo que ele vá à frente e as apostas sejam contra mim.

- A pequena tem juízo. É por isso que bebo à sua saúde pela terceira vez. E a quem não me der razão, ponho-lhe as tripas ao sol.

- Escutai-me, Craigengelt. Ides falar com damas de elevada categoria. Junto delas deveis evitar essa linguagem. A não ser que eu escreva a dizer que sois um rapaz sem educação, que diz abertamente tudo quanto pensa.

- Sim, sim, que sou um soldado sério, simples, rude...

- Nem muito sério, nem muito soldado. Mas o destino quer que precise de vós para espertar lady Ashton.

- Picá-la-ei de tal maneira que chegará aqui a galope, como uma vaca perseguida por um bando de moscardos.

- Atendei-me ainda, Craigie. As vossas botas e o vosso gibão não estão muito próprios para uma mesa de chá. Peço-vos que arranjeis um trajo melhor. Aqui tendes para as vossas despesas.

- Se quereis impor-me essa nova dívida, não tenho mais que submeter-me - respondeu Craigengelt, metendo o dinheiro no bolso.

- Vamos! Tornai-vos apresentável e não vos demoreis. Podeis dispor do meu cavalo preto.

- Bebo pelo êxito da minha missão! - respondeu o improvisado embaixador, erguendo o copo.

- Obrigado, Craigie. Volto a recomendar-vos que não irriteis lady Ashton com o vosso fraseado jacobita.

- Sim, realmente... Não devemos esquecer que lady Ashton é whig e amiga da velha Sarah Marlborough... Graças à minha boa estrela, sei arvorar qualquer cor. Combati com tanta firmeza sob as ordens de John Churchill como sob as de Dundee ou do duque de Berwick.

- Confio em vós, sinceramente, Craigie; mas, se quiserdes, ide buscar à adega uma garrafa de Borgonha 1678, quarta prateleira à direita. Não, Craigie, enquanto estais aqui, trazei-nos uma dúzia de garrafas, e já teremos de beber para toda a noite.

 

Aquela que chegou inesperadamente

 

E logo viram quatro lacaios de libré verde, escoltando uma carruagem puxada a quatro cavalos.

Anónimo

 

Craigengelt não demorou muito tempo na viagem e cumpriu a sua missão com habilidade. Enviado especial de Hayston de Bucklaw, foi extremamente bem acolhido pelas duas damas. Apesar de habituadas à boa sociedade, consideraram o amigo de Bucklaw como homem agradável. É certo que Craigengelt vestia com elegância e o facto tinha certa importância; a sua impudência verbal foi interpretada como franqueza honesta, como convinha à sua suposta profissão de soldado; as suas fanfarronices passaram por coragem, e as suas insolências por espírito.

A sua missão foi bem sucedida. Lady Ashton reconheceu que Bucklaw, depois de se emendar das suas prodigalidades, era bem o marido que desejava para a sua pastora de Lammermoor; e logo que desse à filha um marido rico e respeitável, não podia desejar melhor do que Bucklaw adquirisse, com os seus bens recentes, certa importância política numa região vizinha, onde, desde imemorável data, a família Douglas possuía vastas terras. Uma das mais ambiciosas esperanças de lady Ashton era que o filho mais velho, Sholto, representasse o condado no Parlamento Britânico e o casamento da filha com Bucklaw parecia-lhe bastante propício à satisfação desse desejo.

Quando o capitão Craigengelt reconheceu a boa disposição de lady Ashton, tratou de revelar, de maneira mais ou menos velada, a visita de sir William Ashton e de Lucy a Wolf's Crag e a forma como Ravenswood tinha sido, depois, recebido no castelo de Ravenswood, insinuando que sir William Ashton pretendia ocultar de lady Ashton aqueles factos. Tal procedimento do marido desesperou a orgulhosa dama. Considerou-o, não só uma traição, como um acto positivo de rebelião contra a autoridade conjugal e jurou, intimamente, castigar o marido, como um príncipe pode punir um vassalo por ter concebido ideias de revolta. A sua indignação foi ainda maior por se ver forçada a contê-la diante de lady Blenkensop, prima de Bucklaw, e de Craigengelt, seu emissário. A sua imaginação mostrava-lhe o marido capaz de dar a preferência a Ravenswood, por política ou por timidez.

O capitão Craigengelt tinha bastante experiência para reconhecer que o fogo pegara ao rastilho. E não lhe causou admiração, no decorrer da tarde, que lady Ashton comunicasse a resolução de abreviar a sua visita a lady Blenkensop e de partir na manhã do dia seguinte para a Escócia, com toda a pressa que lhe permitissem os caminhos e os meios de transporte.

Infeliz sir William Ashton! Estava longe de pensar que uma tempestade avançava para ele vertiginosamente, transportada num velho coche puxado a seis cavalos! Como D. Gayferos, esquecera a sua formosa e leal esposa; os seus pensamentos concentravam-se todos na visita do marquês de Athol. Por comunicação do próprio marquês, a sua chegada devia dar-se pouco depois da hora normal do almoço.

No castelo estava tudo a postos. Sir William Ashton vigiava tudo, aconselhava-se com o despenseiro na adega, aventurava-se mesmo a entrar na cozinha com risco de discutir com o cozinheiro, bastante atrevido para desprezar até as admoestações de lady Ashton. Quando, por fim, verificou que estava tudo em ordem, convidou Ravenswood e Lucy a subir ao terraço, para descobrir, ao longe, a chegada de Sua Senhoria.

Do terraço, o olhar abraçava linda e imensa paisagem, vendo-se daí dois caminhos: um vinha de Leste, o outro do Oeste, e ambos, atravessando ângulos diferentes do monte, ficavam defronte da elevação onde se erguia o castelo. Iam-se aproximando um do outro, acabando por se juntar quase no gradeamento da avenida.

A espectativa não foi grande. No caminho que vinha do Oeste apareceram dois corredores a pé, vestidos de branco, usando o boné preto dos postilhões e empunhando varas compridas. Abriam o cortejo. Era tal a sua agilidade que mantinham, sem dificuldade, sobre a carruagem e os cavaleiros, o avanço que a etiqueta requeria das suas funções. Atrás destes brilhantes meteoros, que corriam como se fossem perseguidos pelo Anjo da Vingança, via-se uma nuvem de poeira, levantada pelos cavaleiros que escoltavam ou acompanhavam o coche de gala do marquês.

Sir William Ashton estava tão absorvido com o que via que mal ouviu seu filho Henry perguntar-lhe:

- Papá! Outra carruagem puxada por seis cavalos desce pela estrada de Leste. Pertence também ao marquês de Athol?

E foi preciso que o rapaz puxasse pela manga do casaco do pai para que este fixasse a sua atenção nessa outra carruagem.

De facto, outra carruagem, puxada, como a primeira, a seis cavalos, flanqueada por quatro picadores a cavalo, descia a ladeira de Leste com tal velocidade que seria difícil calcular qual das duas, vindas de dois pontos opostos, chegaria primeiro ao gradeamento do castelo. Uma das carruagens era verde, a outra azul: e a disputa dos verdes e dos azuis nos circos de Roma ou de Bizâncio não causaria mais agitação entre os cidadãos do que a excitação que suscitou no espírito de sir William Ashton aquela dupla aparição. Dominou-o estranho pressentimento. "Deve ser lady Ashton!" disse-lhe a sua consciência. E, coração oprimido adivinhou o motivo do inesperado regresso. A presença de Ravenswood devia ser pouco agradável para sua mulher. Uma coisa o tranquilizava. Sua mulher, prezando acima de tudo o decoro e dignidade, não faria escândalo. Mesmo assim, a sua preocupação foi tão grande que esqueceu o cerimonial. E não foi ele o único a afligir-se.

- É a minha mãe, é a minha mãe! - exclamou Lucy, pálida como um cadáver, contorcendo as mãos e olhando para Ravenswood.

- Acaso vos assusta a chegada de vossa mãe? - perguntou-lhe o namorado em voz baixa - O regresso de uma mãe para junto dos seus, após tão longa ausência, deveria causar outros sentimentos que não fossem temor e tristeza.

- Não conheceis minha mãe! - retorquiu Lucy, numa voz quase sufocada pelo terror - Que dirá ela quando vos vir aqui?

- A minha presença vai desgostá-la tanto? - observou Ravenswood com certa altivez. E, mesmo assim, tentou animá-la - Minha querida Lucy, lady Ashton, vossa mãe, é uma senhora de nascimento elevado, uma dama nobre, uma pessoa com a experiência da sociedade, que sabe o que deve a seu marido é aos convidados de seu marido.

Lucy abanou a cabeça. Como se sua mãe, que se encontrava ainda a meia milha de distância, tivesse o poder de a ver e seguir os seus movimentos, afastou-se de Ravenswood e, pegando no braço de seu irmão Henry, levou-o para um outro lado do terraço. Sir William Ashton, sem convidar Ravenswood a acompanhá-lo, desceu até junto do portão do gradeamento, de maneira que este ficou sozinho no terraço, abandonado, por assim dizer, por todos os moradlores do castelo.

Aquele abandono não convinha ao carácter de um homem cujo orgulho estava na proporção da pobreza e que, sacrificando os seus rancores a ponto de se encontrar como convidado de sir William Ashton, julgava conferir uma honra e não recebê-la.

"Posso perdoar a Lucy - pensou - É nova, tímida e tem a consciência de se ter comprometido sem o consentimento de sua mãe. Quanto a sir William Ashton, o bom-senso, a energia, tudo perdeu no momento em que viu aparecer a carruagem de Lady Ashton. Sempre quero ver como isto acaba. Logo que tenha o mais insignificante motivo para me julgar importuno, abreviarei a minha visita.

Saindo por sua vez do terraço, Ravenswood dirigiu-se às cavalariças, onde deu ordens para que, no caso de ter de partir inopinadamente, tivessem o cavalo pronto para se pôr a caminho.

Entretanto, os cocheiros das duas carruagens cuja aproximação tinha alvoroçado todo o castelo, avistaram-se um ao outro e verificaram que avançavam, por caminhos diferentes, para um ponto comum; à entrada da avenida, lady Ashton ordenou ao seu postilhão que andasse mais depressa, se possível fosse: desejava, de facto, encontrar-se com o marido antes dele receber os convidados, fossem eles quem fossem. Do outro lado, o cocheiro do marquês, zeloso pela sua dignidade e pela do seu amo, ao ver a carruagem rival forçar o andamento, resolveu impor o seu, direito de presença. O facto veio aumentar a confusão que reinava no cérebro de sir William Ashton. O despique dos dois cocheiros tornou ainda mais curto o pouco tempo que lhe restava para reflectir. Olhando-se num desafio e fustigando os cavalos, entraram ambos simultaneamente, com a velocidade de raio, numa descida, onde os cavaleiros, para não ficarem distanciados, tiveram que meter a galope.

A sir William Ashton só restava a esperança de que uma das carruagens se voltasse e sua mulher ou o marquês quebrassem a cabeça. No entanto, essa esperança desapareceu, visto que lady Ashton, mais sensível ao medo, sentiu o ridículo de disputar a palma da corrida a um visitante que chegava com ela. Quando se aproximavam da avenida, ordenou ao seu cocheiro que abrandasse o andamento e cedesse o lugar à outra carruagem. O cocheiro obedeceu com agrado. A ordem chegava precisamente na altura em que podia salvar o seu prestígio, porque os cavalos do marquês eram melhores ou, pelo menos, mais fogosos. Deixou entrar na avenida a carruagem verde e todo o seu séquito, que passaram como um turbilhão. O cocheiro do marquês não moderou a marcha. E foi assim, com todo o seu cortejo, que a carruagem avançou sob a misteriosa arcada de ulmeiros, enquanto, mais atrás e mais lenta, seguia a carruagem de lady Ashton.

Defronte do castelo, sob o portão abobadado por onde se entrava para o pátio interior, sir William Ashton aguardava, com o espírito consumido de inquietação. Lucy e Henry estavam a seu lado. Atrás, enfileirava-se a criadagem.

Um homem como sir William Ashton tinha bastante domínio sobre si próprio para não ficar muito tempo desnorteado pelo concurso das circunstâncias mais adversas. Recebeu o marquês com os cumprimentos usuais.

- Creio que a viagem vos terá sido agradável - disse-lhe ao entrar no salão.

O marquês era de estatura elevada, esbelto, ar inteligente e pensativo. No seu olhar, o fogo da ambição tinha, havia alguns anos, substituído a vivacidade da juventude. O sentimento habitual de prudência e do desejo de alcançar popularidade que um chefe de partido tem necessariamente de sentir, corrigia a expressão orgulhosa e insolente do rosto. Respondeu com cortesia às perguntas corteses que lhe dirigiu sir William Ashton. Este, ao apresentar-lhe sua filha, involuntariamente, revelou-lhe a maior preocupação do seu espírito.

- Minha mulher, lady Ashton - disse ele.

Lucy corou. O marquês pareceu surpreendido com a juvenil aparência da dona da casa. E sir William Ashton viu-se em embaraços de linguagem para encontrar palavras que o desculpassem pela falta cometida.

- Queria dizer: minha filha, milorde; mas o caso é que vi entrar na avenida a carruagem de lady Ashton, pouco depois da de Vossa Senhoria, e...

- Não vos desculpeis, milorde - respondeu o marquês - Permiti-me que vos incite a ir esperar lady Ashton, enquanto eu fico conversando com miss Ashton. Estou envergonhado por causa dos meus criados se terem adiantado à nossa hospedeira na sua própria porta; mas, como Vossa Honra sabe, eu supunha que lady Ashton estivesse ainda no Sul. Peço-vos de novo que não façais cerimónia comigo e ide depressa ao seu encontro.

Sir William Ashton apressou-se a aproveitar a autorização que lhe concedera o marquês. Receber lady Ashton em particular, suportar a primeira explosão do seu descontentamento, tudo isso ele estava disposto a admitir, contanto que a pusesse em condições de acolher com decoro os seus hóspedes importunos. Quando a carruagem parou, o braço atencioso de sir William Ashton avançou para ajudar a esposa a descer. Ela fingiu que não o tinha visto e aceitou o do capitão Craigengelt, que se encontrava à portinhola. Depois de se ter apoiado no braço dessa respeitável personagem, passou por sir William Ashton sem lhe dirigir a palavra. No salão nobre, o marquês encontrava-se em grande conversa com o senhor de Ravenswood. Lucy aproveitara a primeira oportunidade para se retirar. Lia-se em todos os rostos uma expressão de embaraço, excepto no do marquês.

Depois de ter aguardado uns instantes que sir William Ashton o apresentasse a sua mulher, o marquês tomou o partido de se apresentar a si próprio:

- Sir William Ashton - disse ele, inclinando-se diante de lady Ashton - apresentou-me há pouco a filha como se fosse a esposa; podia também apresentar-me lady Ashton como se fosse sua filha - e, saudando-a de novo, prosseguiu - Venho como pacificador, lady Ashton; e tomo a liberdade de vos apresentar o meu jovem primo, o senhor... de Ravenswood e de o recomendar ao vosso bom acolhimento.

Lady Ashton não pôde deixar de fazer uma reverência a Ravenswood; mas fê-lo com um ar tão altivo que mais parecia insultante desdém. Ravenswood, por sua vez, não pôde deixar de se inclinar, mas fê-lo por forma que o desprezo respondia ao desprezo.

- Permiti-me - tornou lady Ashton, dirigindo-se ao marquês - que apresente a Vossa Honra um dos meus amigos...

Craigengelt, com a ligeireza que costumam ter as pessoas da sua espécie, avançou um pé, descreveu com o chapéu um círculo no ar e inclinou-se diante do marquês.

Depois, lady Ashton voltou-se para o marido:

- Quer um quer outro, sir William - continuou, acentuando as primeiras palavras que lhe dirigia - travámos novas relações, após a nossa separação. Permiti que vos apresente a minha: o capitão Craigengelt.

Outra reverência, outro círculo de chapéu agaloado de ouro, em homenagem a sir William Ashton.

- Capitão Craigengelt, permiti que vos apresente o senhor de Ravenswood - disse sir William Ashton, com o seu espírito amável de político.

Porém, Ravenswood empertigou-se, e, sem honrar sequer com um olhar aquele que lhe tinha sido apresentado, afirmou, num tom significativo:

- Eu e o capitão Craigengelt conhecemo-nos muito bem.

- Muito bem... muito bem - concordou o capitão com uma voz abafada, repetindo a saudação.

Lockhard entrou, seguido por três criados, com os vinhos e os refrescos que era uso oferecer como aperitivo antes do jantar. Lady Ashton pediu licença para se retirar uns instantes com o marido. Craigengelt, tendo esvaziado de um trago o seu segundo copo de vinho das Canárias, apressou-se a sair, pois não lhe agradava a perspectiva de ficar só com o marquês de Athol e Ravenswood: a presença do primeiro incomodava-o, a do segundo amedrontava-o.

Serviu-lhe de pretexto o cuidado em que estava com o seu cavalo. O marquês e Ravenswood ficaram frente a frente para trocar as suas impressões sobre o acolhimento que acabavam de ter, enquanto lady Ashton se dirigia aos seus aposentos, acompanhada pelo marido.

Logo que entraram, lady Ashton deu largas à violência do seu carácter, que dificilmente contivera até ali, apenas por respeito às aparências. Fechou a porta à chave, fixou no marido um olhar altivo, um olhar onde havia resolução e raiva; e ele ouviu-a com inquietação falar nestes termos:

- Não me surpreendem, milorde, as relações que arranjastes durante a minha ausência; elas estão de acordo com o vosso nascimento e a vossa educação. Esperava outra coisa, mas reconheço o meu erro e confesso ter merecido este desapontamento.

- Minha querida lady Ashton... minha querida Eleonor, sede razoável e convencer-vos-ei que procedi com todo o respeito devido à dignidade e aos interesses da minha família.

- Para servir os interesses da vossa família julgo-vos capaz de tudo! - replicou ela com indignação - Mas como a minha está ligada inseparavelmente à vossa, tereis de me deixar proceder sozinha.

- Que quereis dizer, lady Ashton? O que vos desgosta? Porque vos desesperais dessa maneira, ao regressar de tão longa ausência?

- Perguntai à vossa consciência, sir William, o que vos levou a renegar o vosso partido e as vossas opiniões políticas, o que fez com que planeásseis casar a vossa única filha com um mísero jacobita e, ainda mais, com o maior inimigo da vossa família!

- Mas, em nome do bom-senso e da mais banal civilidade, que queríeis que eu fizesse, senhora? Ser-me-ia possível escorraçar um homem que salvou a vida da vossa filha e a minha?

- Salvar a vossa vida? Contaram-me essa história. Sir William Ashton deixou-se atacar por uma vaca castanha e tomou por outro Guy de Warwick o rapaz que a matou. Qualquer carniceiro de Haddington teria conseguido um direito igual à vossa hospitalidade.

- Isso é intolerável, lady Ashton... Enfim, que quereis de mim?

- Ide falar com os vossos hóspedes, dizei a Ravenswood que vos desculpe de não poderdes, dada a chegada do capitão Craigengelt e de alguns amigos, alojá-lo no castelo. Dizei-lhe que espero o jovem Hayston de Bucklaw.

- Meu Deus, senhora! Ravenswood ceder o lugar a um jogador profissional, a um agente secreto! Não sei como me contive ao vê-lo na minha casa e não o pus fora!

- Convencer-vos-eis de que pertence à melhor sociedade. Quanto a Ravenswood, será tratado como ele próprio tratou um dos meus amigos que teve a infelicidade de ser seu hóspede. Não vos demoreis. Se Ravenswood não sair desta casa, serei eu quem sairei!

No cúmulo da agitação, sir William Ashton percorreu o aposento de extremo a extremo. O medo, a humilhação, o desespero lutavam no seu espírito. Por fim, como é hábiito dos tímidos em semelhante conjectura, adoptou o meio termo.

- Não posso nem devo infligir a Ravenswood a afronta que me aconselhais, nem tão-pouco ele a merece de mim. Se quereis ter o pouco senso de insultar sob o vosso tecto um homem nobre, não vos posso impedir, mas não serei o executor de procedimento tão monstruoso!

- É a vossa última palavra?

- É, por Deus, senhora!

- É a mim, então, a quem compete o encargo de manter a honra da família!

Lady Ashton sentou-se e, rapidamente, escreveu algumas linhas. Como abrisse a porta para chamar o criado de quarto, sir William Ashton tentou impedi-la de dar o passo decisivo.

- Medi o alcance do vosso acto, lady Ashton. Ides ferir mortalmente um homem que deve ter meios de nos prejudicar.

- Já vistes alguma vez um Douglas temer um inimigo? - perguntou ela com desprezo.

- Ele é orgulhoso e vingativo como uma centena de Douglas animados por cem diabos! Pensai até amanhã.

- Não pensarei um instante sequer. Patullo! Entregue este bilhete ao jovem Ravenswood.

- Ao senhor de Ravenswood?

- Sim, se é assim que lhe chamam.

- Lavo daí as minhas mãos - protestou sir William Ashton - vou ao pomar para ver colher a fruta.

Ela olhou-o com um ar desdenhoso.

- Ide. E agradecei a Deus por estar aqui alguém que se interessa pela honra da familia tanto como vos interessam as maçãs e as pêras!

Sir William Ashton demorou-se no pomar o tempo preciso para que se desse a explosão. Quando voltou ao salão, encontrou o marquês de Athol a dar ordens aos seus criados. O marquês mostrava-se indisposto e atalhou as desculpas que lhe apresentou sir Wiliam Ashton por tê-lo deixado sozinho.

- Creio que não sois estranho ao bilhete que recebi e que se refere ao meu parente de Ravenswood...

O marquês sublinhou a palavra meu. E prosseguiu: -... e foi escrito por vossa esposa. Vou apresentar-vos as minhas despedidas. O meu parente já foi prevenido. Ele julga inútil dizer-vos que todas as atenções anteriores desapareceram ante uma afronta como esta!

- Eu não tenho a culpa de terem escrito essas linhas! - afirmou sir William Ashton - Minha mulher tem um génio irascível. Lamento sinceramente a ofensa que ela acaba de vos fazer. Mas Vossa Honra deverá concordar que uma mulher da sua categoria...

-... devia proceder como uma pessoa de bom nascimento! - respondeu o marquês, acabando a frase.

- É certo - concordou o infortunado marido - Contudo, lady Ashton é, acima de tudo, uma mulher...

-... que devia conhecer os seus deveres! - atalhou o marquês - Quero saber da sua própria boca os motivos da afronta dirigida ao meu parente, tanto mais que eu e ele somos seus hóspedes.

Lady Ashton entrou nesse momento. A sua discussão com sir William Ashton e um encontro com a filha não tinham evitado que cuidasse da toilette. Vestira um trajo de gala e via-se que tinha nascido para o usar.

O marquês saudou-a; ela respondeu-lhe com altivez. Ele tirou das mãos inertes de sir William Ashton o papel que lhe tinha dado e aproximou-se da castelã, para lhe falar; mas esta antecipou-se-lhe, dizendo:

- Lamento que este incidente venha perturbar o acolhimento respeitoso devido a Vossa Honra. Mas não o podia evitar. Abusando da hospitalidade que lhe concedeu esta família e da fraqueza de espírito de sir William Ashton, Edgar Ravenswood pretendeu apoderar-se do coração de uma donzela e levá-la a tomar compromissos que não agradavam a seus pais.

- O meu primo é incapaz de... - protestou o marquês, enquanto sir William Ashton atalhou por sua vez:

- Tenho a certeza de que a minha filha era incapaz...

Mas lady Ashton interveio para responder a um e a outro:

- O vosso primo, milorde, se Ravenswood se pode orgulhar de o ser, pretendeu cativar secretamente o amor de minha inocente filha e ela teve a fraqueza de o animar mais do que devia.

- Se nada mais tendes a dizer-nos, melhor será que esse segredo de família fique entre nós! - interveio sir William Ashton.

- Perdoai-me, sir William - respondeu sua mulher, com calma - mas o marquês tem o direito de saber a razão que me levou a proceder como procedi contra um homem que se diz seu primo.

- Tudo isso constitui uma novidade para mim - afirmou o marquês - Não queria sair desta casa sem que me fossem dadas algumas explicações. Falemos, pois, com serenidade. Visto abordarmos o assunto tão delicado, devo dizer que o nascimento de meu primo lhe dá direito a ser acolhido ou recusado com atenções.

- Este castelo - respondeu lady Ashton - encontra-se à disposição do marquês durante todo o tempo que ele nos queira honrar com a sua presença. Quanto a voltar a falar num caso tão desagradável...

- Perdoai-me, senhora - concordou o marquês - não quero expor o prazer de renovar o meu conhecimento convosco aos dissabores de uma discussão desagradável, pelo menos por agora.

Lady Ashton sorriu, fez uma reverência e estendeu a mão ao marquês. Pouco depois, passaram à sala de jantar, juntando-se ali a Bucklaw, a Craigengelt e a alguns vizinhos que sir William Ashton convidaria para receberem o marquês de Athol. Ligeira indisposição serviu de pretexto para justificar a ausência de miss Ashton, cujo lugar ficou vazio. A refeição prolongou-se até muito tarde.

 

As três bruxas da aldeia...

 

Tal foi o destino do nosso primeiro pai depois do pecado; a sua sorte, porém, foi mais invejável do que a minha, porque a sua companheira acompanhou-o no exílio; eu fui expulso do paraíso sozinho.

WALLER

 

Abstenho-me de descrever quais os sentimentos de indignação e de desespero que dominavam a alma de Ravenswood ao abandonar a antiga residência dos seus antepassados. O marquês, que tinha tido a sua parte na afronta, não desistira ainda de estabelecer a concórdia. Também não se opusera a que o seu primo partisse sozinho. No entanto, pedira-lhe que o esperasse na pequena estalagem conhecida por "A Toca da Raposa", e que estava, se os nossos leitores se recordam, situada a meio caminho do castelo de Ravenswood e de Wolf's Crag, aproximadamente a cinco milhas. O marquês dispunha-se a ir encontrar-se com Ravenswood nessa noite ou na manhã do dia seguinte.

Quando Ravenswood saiu do castelo, meteu o cavalo a galope por uma das avenidas do parque, como se, com a velocidade da corrida, pudesse acalmar o tumulto das suas emoções. Depois, quando as torres do castelo desapareceram entre o arvoredo, abrandou a marcha, para se entregar aos tristes pensamentos que, em vão, tentava afastar. O caminho por onde seguia ia dar à fonte da Sereia e à cabana de Alix; e Ravenswood recordou a influência maligna que a superstição atribuía à primeira e os vaticínios que a segunda lhe tinha feito.

- Os antigos adágios falavam verdade - pensou ele - e a fonte da Sereia foi realmente testemunha da insensatez cometida pelo herdeiro de Ravenswood. Alix tinha razão!

Somos obrigados a contar a história tal como a ouvimos e temos de concordar que não seria uma história escocesa se não falasse de superstições.

Conta-se que, quando Ravenswood se aproximava da fonte, o seu cavalo, que caminhava a passo, relinchou ruidosamente, empinou-se e, apesar de esporeado, recusou-se a andar, como se tivesse visto de repente qualquer coisa pavorosa. Ao olhar para a fonte, Ravenswood viu uma mulher vestida de branco, ou melhor, envolta numa capa cinzenta, sentada no mesmo sítio onde Lucy o tinha ouvido fazer a fatal declaração de amor. A sua primeira impressão foi de que Lucy, sabendo o caminho que ele seguiria através do parque, o tinha vindo esperar nesse lugar tão conhecido e tão oculto dos seus encontros, para desabafar com ele a sua tristeza e conceder-lhe a última entrevista. Com essa esperança, saltou do cavalo, correu para a fonte e chamou, a meia voz:

- Miss Ashton! Lucy!

Ouvindo estas palavras, a mulher voltou-se e Ravenswood ficou surpreendido ao ver Alix, a velha cega, em vez de Lucy. Ao aproximar-se dela, Alix levantou-se lentamente, estendeu-lhe uma das descarnadas mãos, moveu os lábios, mas sem que saísse deles o menor som. Ravenswood parou uns instantes, fez menção de avançar para ela; sem se voltar, Alix ou seu fantasma, recuou e desapareceu na espessura do arvoredo. Gelado pela sensação aterradora de que a criatura que acabava de ver não era deste mundo, Ravenswood ficou parado no sítio onde a tinha descoberto. Por fim, retomando coragem, avançou até ao local onde lhe parecia tê-la visto sentada. Mas nem uma erva pisada nem qualquer outro indício lhe fizeram crer que fosse um corpo real, um ser humano que tivesse estado ali. Assaltado por estranhos pensamentos, essas apreensões confusas que nascem no espírito quando julgamos ter sido testemunhas de uma aparição sobrenatural, Ravenswood montou de novo a cavalo, não sem que tivesse olhado algumas vezes para trás, inquieto, como se esperasse ver de novo a aparição.

- Os meus olhos ter-me-iam enganado? - pensou momentos depois de ter recomeçado a andar.

Nesta incerteza, dirigiu-se para a cancela do jardim de Alix. O lugar que ela costumava ocupar estava vazio embora o sol já fosse alto. Aproximou-se da choupana e ouviu lá dentro os gemidos e os soluços de uma mulher. Bateu, mas não obteve resposta. Por fim, após breve pausa, levantou o trinco e entrou. Era um aposento solitário e triste. Sobre o catre miserável jazia o corpo daquela que tinha sido a última serva de Ravenswood e cuja existência findava nos seus domínios hereditários. A rapariga que a tinha tratado durante os últimos dias contorcia as mãos e soluçava sobre o corpo da velha Alix.

Ravenswood teve alguma dificuldade em sossegar a pobre pequena; e as primeiras palavras que ela lhe pôde dizer foram que havia chegado muito tarde. Como lhe perguntasse o que tinha acontecido, a criadita contou-lhe que, ao aproximar-se o fim, a moribunda tinha enviado um camponês ao castelo para pedir a visita do senhor de Ravenswood, mostrando grande impaciência por não ver voltar o mensageiro. Mas os mensageiros do pobre não se apressam muito. O de Alix, como se soube mais tarde, só chegou ao castelo depois de Ravenswood ter saído; e distraiu-se com os outros criados, em vez de voltar imediatamente a casa de Alix. Entretanto, a dor moral da infeliz criatura aumentou com a ânsia da agonia e, segundo a frase, de Babie, a sua única assistente, pediu a Deus, com todas as suas forças, para tornar a ver pela última vez o seu amo e fazer-lhe de novo os seus vaticínios.

Morreu precisamente no momento em que o relógio da torre da aldeia distante deu a badalada da uma hora.

Aterrado, Ravenswood recordou-se de que tinha ouvido bater uma hora antes de ver a aparição.

Por respeito pela morta e também por mero sentimento de humanidade para com a apavorada rapariga. Ravenswood resolveu encarregar-se do enterro da cega a fim de tornar menos penosa a sua situação. Soube que a defunta tinha mostrado o desejo de ser sepultada num cemitério isolado, próximo da estalagem "A Toca da Raposa". Neste local, que chamavam a "Ermida", repousavam alguns dos Ravenswood e muitos dos seus servidores. Ravenswood considerou ser seu dever satisfazer um desejo tão comum entre os camponeses da Escócia e mandou Babie à aldeia para pedir o auxílio de algumas mulheres, prometendo, ficar a velar o cadáver.

Apesar da sua coragem, sentia-se impressionado pelo conjunto das estranhas circunstâncias. "Morreu, desejando ardentemente ver-me e pode ser que um desejo assim concebido na hora da agonia sobreviva à morte, transcenda os limites naturais e o espírito vá até junto daquele que foi alvo desse desejo".

Assim pensando, cobriu com um lençol o corpo sem vida, cuja presença lhe era bastante insuportável, e sentou-se depois em velha cadeira de carvalho, lavrado com o brasão das suas próprias armas, que Alix tinha conseguido subtrair à pilhagem dos credores, oficiais de justiça, criados e mandatários da lei no dia em que seu pai tinha deixado definitivamente o castelo de Ravenswood.

Não tardou que fosse substituído na vela fúnebre por três mulheres idosas que chegaram da aldeia para velar a morta. Em qualquer outra ocasião, essas respeitáveis mulheres não se teriam apressado tanto, visto que a primeira era mais que octogenária, a segunda paralítica e a terceira manca por desastre. Mas os deveres a prestar aos mortos são, para os aldeões escoceses de ambos os sexos, uma obra de caridade.

As três velhas saudaram Ravenswood com um sorriso macabro. Ravenswood deu-lhes algum dinheiro e encarregou-as de tomarem conta do corpo da defunta e de procederem às habituais formalidades. Renovando as suas recomendações, tratou de saber como podia encontrar o sacristão da Ermida, para ele se preparar para receber a velha Alix no local que tinha escolhido para sua última morada.

- Não tereis dificuldade em encontrar Johnie Mortsheugh - informou a mais idosa - Vive perto da "Toca da Raposa", uma das casas onde ele passa horas alegres, visto que a morte e a mesa são vizinhas uma da outra.

- Isso é bem verdade, comadre! - aprovou a manca, apoiando-se na muleta onde amparava a perna mais curta - Recordo-me do dia em que o pai do senhor de Ravenswood, aqui presente, matou o jovem Blackhall por palavras ditas sob a acção do vinho, da aguardente ou não sei de quê. Pobre rapaz! Entrou alegre como um pássaro e saiu com os pés para a frente. Eu ajudei a vestir o morto; e quando se lhe lavou o sangue, o seu corpo era o mais belo que tenho visto.

Não custa a crer que esta história intempestiva estimulasse o desejo de Ravenswood de abandonar aquela companhia sinistra e repelente.

Ao dirigir-se para a árvore onde tinha atado o cavalo e enquanto apertava as correias da sela, não pôde deixar de ouvir, para lá da vedação do pequeno jardim, uma conversa entre a octogenária e a coxa. Ambas procuravam colher algumas plantas para deitarem sobre o cadáver e queimar no quarto mortuário. A paralítica, fatigada pela viagem, tinha ficado a guardá-lo.

O diálogo que se seguiu, mais grasnado do que falado, chegou aos ouvidos do castelão.

- Aqui está um bom ramo de cicuta, Annie Winmie... As feiticeiras doutrora não poderiam desejar melhor; para montarem e percorrerem a floresta ao luar. Que me dizeis do senhor de Ravenswood? Com o dinheiro que nos deu, poderemos comprar pão, cerveja, tabaco, um pouco de aguardente para queimar e um pouco de açúcar; e passaremos uma noite divertida.

Aqui, as maxilas da bruxa deixaram sair uma risada horrível, semelhante ao da coruja.

- Milorde é um homem franco e generoso - observou Annie Winnie - e um belo rapaz, largo das costas, estreito dos rins. Será um lindo cadáver. Gostaria de o amortalhar.

- Ele tem escrito na fronte, Annie Winnie - respondeu a octogenária - que nenhum homem ou mulher tocará no seu cadáver; acreditai no que vos digo.

- Estará destinado a morrer no campo de batalha, Ailsie Gourlay, como morreram muitos dos seus antepassados?

- Não terá essa honra.

- Eu sei que sabeis mais do que outros, Alsie Gourlay. Quem foi que vos disse?

- Não vos interessa, Annie Winnie. Soube-o de boa fonte, de alguém que predisse o seu destino antes de lhe terem vestido a primeira camisa.

- Despachai-vos, comadres! - gritou de dentro a paralítica - Se nos demoramos a vestir a morta, fica hirta, e não é de bom agoiro.

Ravenswood não pôde ouvir mais nada. Desprezava em geral os presságios do vulgo sobre a bruxaria, presságios esses a que se dava tanto crédito, no seu país e na sua época, que o único facto de duvidar parecia um crime comparável à impiedade dos Judeus e dos Sarracenos. Porém, a visão da manhã real ou imaginária, levou-o a aceitar essas ideias supersticiosas de que procurava em Vão libertar-se. O assunto que o levara à "Toca da Raposa", onde não tardou a chegar, não era de natureza a encorajá-lo. Tinha toda a urgência em encontrar Mortsheugh, o coveiro do antigo cemitério, para tratar do enterro de Alix e como Mortsheugh não morava muito longe do casebre onde a cega tinha morrido, dirigiu-se para o local onde Alix devia ser sepultada. Ficava no recanto formado pelo leito sinuoso de um regato que descia da colina próxima. Ao lado erguia-se um rochedo cujo interior, grosseiramente talhado em forma de cruz, tinha, nos tempos antigos, servido de refúgio a qualquer santo saxão e dado o seu nome ao local. A rica abadia de Coldinghame fora construída mais tarde junto de uma capela da vizinhança, da qual não restavam vestígios, embora o cemitério que a cercava fosse ainda, como, por exemplo, no caso actual, utilizado para sepulturas particulares. Tinham-se demolido os monumentos e perdido os nomes dos guerreiros e brasões ali sepultados. Restavam apenas, como sinais fúnebres, as pedras rasas dos sepulcros mais modestos. A casa do coveiro apoiava-se no muro em ruínas e era tão baixa que o seu tecto de palha quase roçava o chão e a espessa camada de relva e de musgo que a revestia dava-lhe aspecto sombrio. Ravenswood soube que o homem a quem procurava estava ausente: fora a um casamento, pois era ao mesmo tempo sacristão e coveiro daquela região. Regressou à estalagem, deixando dito que voltaria na manhã do dia seguinte para falar com o homem que tinha a dupla profissão de assistir aos enterros e às festas.

Um correio do marquês chegou pouco depois à "Toca da Raposa". O marquês informava Ravenswood de que iria ter com ele na manhã do dia seguinte. Assim, Ravenswood, que tencionava partir para Wolf's Crag, ficou na estalagem à espera do seu nobre parente.

 

As opiniões do velho "Johnie"

 

Hamlet - Aquele maroto não tem consciência do que faz? Cante enquanto abre a cova?

Horácio - O hábito tornou-o indiferente à tarefa.

Hamlet - A mão que trabalha pouco tem o sentido do tacto mais delicado.

SHAKESPEARE - Hamlet

 

O sono de Ravenswood foi interrompido por visões lúgubres e febris e os seus intervalos de vigília perturbados por melancólicos pensamentos e dolorosos pressentimentos. No entanto, no dia seguinte levantou-se cedo, com a esperança de que o ar fresco da manhã lhe restituísse a calma e a energia que a noite lhe tinha recusado. Dirigiu-se para o cemitério, situado a meia milha da estalagem.

O fumo que se elevava da cabana do coveiro, única distinção entre a casa do vivo e as casas dos mortos, provou-lhe que o homem já estava levantado. Ao entrar no pátio do cemitério viu-o abrindo uma cova.

- O destino - pensou Ravenswood - parece comprazer-se em mostrar-me cenas de desgraça e de morte!

O velho, ao ver Ravenswood aproximar-se, apoiou-se no cabo da enxada, como a aguardar as suas ordens; mas, como este não começasse logo a falar, foi ele quem deu início à conversa:

-Vindes por causa de um casamento?

- Porque mo perguntais, meu amigo?

- Eu vivo de dois instrumentos: do violino e da enxada. Povoo o mundo e despovoo; e trinta anos de prática ensinaram-me a reconhecer num relance o género de cliente que me procura.

- Desta vez enganaste-vos - declarou Ravenswood.

- Sim? - replicou o velho, olhando-o com mais atenção - É possível: na vossa fronte larga tanto se vêem indícios de morte como de casamento. Bem, bem! E enxada e a pá estão ao vosso dispor, assim como o violino e o arco.

- Desejo que trateis de enterrar decentemente uma pobre mulher que se chamou Alix Gray e vivia em Craig-foot, no parque de Ravenswood.

- Alix Gray! A cega! Morreu? Mais um aviso para me ir preparando também. Ainda me lembro quando Habbie Gray a trouxe para esta terra. Era então uma linda rapariga que nos olhava de alto a baixo. Abateu depois o seu orgulho. Dissestes que morreu?

- Morreu ontem e mostrou o desejo de ser sepultada junto do marido. Sabeis onde repousa?

- Se sei onde ele repousa? - perguntou o coveiro, com aquela aversão própria do escocês para a resposta directa - Sei sempre onde um corpo repousa quando repousa aqui. Mas falastes numa sepultura para ela? Valha-nos Deus! Não é de uma sepultura vulgar que precisa, se há alguma verdade em tudo quanto tem dito nestes últimos anos. Seis pés de profundidade, nem menos um dedo, eis o que é preciso para uma cova de feiticeira. Mas, sejam seis pés ou três, quem pagará o meu trabalho?

- Pagarei eu, meu amigo, assim como todas as outras despesas razoáveis.

- Despesas razoáveis? Há o preço do terreno... a sineta... o caixão... e o meu dia de trabalho... e uma pequena gratificação... e um pouco de aguardente e de cerveja para a reunião fúnebre. Creio que não gastareis menos de dezasseis libras escocesas para fazer as coisas com decência.

- Ei-las, meu amigo, com mais alguma coisa. E tratai de reconhecer a sepultura do marido.

- Deveis ser um dos seus parentes ingleses. Ouvi dizer que tinha casado abaixo da sua condição - disse o velho guarda das caveiras - e é justo que queirais dar-lhe sepultura condigna... - e acrescentou - Falastes-me há pouco na sepultura de Alberto Gray: é ali, naquele terceiro montículo, para lá da pedra rasa que cobre um dos Ravenswood. Encontram-se aqui muitos dessa família e da sua criadagem. O diabo seja com eles!

- Parece-me que não simpatizais com a família dos Ravenswood...

- Não sei quem possa simpatizar com eles - respondeu o coveiro - Quando eram ricos e poderosos, tratavam mal uns e outros. Agora andam de cabeça baixa e poucos são os que desejam que eles tornem a levantá-la.

- Não compreendo porque essa família tivesse merecido a antipatia de toda a gente. Julguei que tivesse boa reputação...

- Boa reputação? Veja, milorde, no tempo do velho lorde, eu vivia nas suas terras. Era então um rapaz turbulento e gostava de andar sempre a tocar trombeta, pois tinha muito fôlego.

- Mas que tem isso a ver com o velho lorde de Ravenswood? - perguntou Ravenswood, no intuito, bastante natural, de conduzir o músico ao primeiro assunto.

- A relação de tudo isto, milorde, é eu ter perdido o fôlego ao seu serviço. Fui o trombeta do castelo e tocava desde o amanhecer ao anoitecer, sempre que apetecia a milorde. Mas quando lhe apeteceu levantar a sua milícia para ir guerrear, em Bothwell Brigg, contra esses malditos whigs que devastavam as nossas terras, tive de o acompanhar, a bem ou a mal.

- Tudo isso tem justificação: éreis seu servidor e seu vassalo.

- Seu servidor? Sim. Mas para avisar, ao som da trombeta, que o jantar estava na mesa ou então, no pior dos casos, para tocar nas horas fúnebres, e não para lançar os nossos homens para uma colina sangrenta onde os corvos não faltavam. Mas, paciência! Ides ver o que se passou e se não tenho razão para me queixar dos Ravenswood. Partimos numa linda manhã de Verão, a 24 de Junho de 1679. O tambor rufava, as armas cintilavam, os cavalos empinavam-se. Hascktou de Rathillet defendia a ponte com um bando armado de mosquetes, carabinas, sabres, paus e roçadeiras; os nossos cavaleiros receberam ordem de caminhar até mais acima e passar a ribeira a vau. À nossa frente, o velho Ravenswood brandia a espada, gritando-nos para que avançássemos como se fôssemos para o mercado. Caleb Balderstone, que ainda é vivo, jurava por Gog e Magog que atravessaria com a sua espada as costas de quem pretendesse fugir. O jovem Allan Ravenswood, que era então o castelão, apontou-me a pistola e exclamou: "Toca, toca, vilão, ou faço-te saltar os miolos!". Eu tocava, mas os cacarejos duma galinha podiam considerar-se música divinal, comparada com a minha.

- Abreviai - ordenou Ravenswood.

- Abreviar ainda mais? Pouco faltou para a minha vida ser também abreviada, ceifado na flor da idade, como diz a Escritura. É justamente por isso que eu me lamento. Eis-nos dentro de água, pernas por cima da cabeça, um cavalo guiando o outro, conforme o hábito dos animais, e os cavaleiros prestes a perder o norte. As moitas da margem oposta pareciam como incendiadas pelos clarões que lançavam as espingardas dos whigs. O meu cavalo acabava de encontrar pé quando um velho patife de rosto tisnado... Cem anos que vivesse, nunca me esqueceria aquela cara: um olhar de falcão selvagem, uma barba mais comprida que uma pá... Eis que, de repente, apontou a sua arma à minha orelha! Por graça da Divina misericórdia, o meu cavalo escorregou; atirei-me para um lado, enquanto a bala silvava do outro; e o velho lorde, que era robusto, assentou no whig tal espadeirada que lhe abriu a cabeça em duas. E o brutamontes caiu pesadamente em cima de mim.

- Devíeis estar grato ao velho lorde.

- Eu?! Depois de me ter exposto a semelhante perigo? Por ter feito cair sobre mim um homem tão pesado é que eu perdi o fôlego!

- De forma que perdestes o vosso emprego de trombeta?

- Nunca mais consegui soprar nem uma palha! No entanto, continuei no castelo e não tive outra ocupação que não fosse tocar violino para os amos. E, se não fosse Allan, o último dos lordes Ravenswood, que era ainda pior que o pai...

- O quê, meu pai?... Quero dizer, o filho do outro, do último lorde Ravenswood... privou-vos disso a que chamais a bondade de seu pai?

- Sim, precisamente, pois atirou todos os seus bens pela janela fora! Deixou-nos sob a tutela de sir William Ashton; e foi este que me escorraçou do castelo, com outras pobres criaturas que, como eu, sempre teriam um bocado de pão para comer e um cantinho para descansar, como nos bons tempos do passado!

- Se lorde Ravenswood protegeu essa gente quando tinha meios, creio, meu amigo, que deviam respeitar-lhe a memória.

- Pensai o que quiserdes, milorde, mas nunca me convencereis de que ele tivesse cumprido o seu dever, nem com ele próprio, nem com os pobres que dependiam dele. Podia ter-nos dado uma casinha para viver e terras para amanhar. Será justo que na minha idade e cheio de reumatismo tenha de viver numa mísera cabana mais feita para mortos do que para vivos, enquanto John Smith habita a minha linda casa com vidraças na janela? E tudo isto porque Ravenswood administrou os seus bens como um louco?

- Não é bem assim - respondeu Ravenswood - O mal vem mais de trás.

- O jovem Edgar ainda podia reparar o mal que me causou a sua família...

- Porque dizeis isso?

- Consta que vai casar com a filha de lady Ashton. Mas, se ele mete um dia a cabeça debaixo do braço dessa dama, vereis como ela lhe torce o pescoço. Diabos me levem se queria estar no seu lugar. Ser genro de uma mulher que está sempre a ferver como uma caldeira! O pior que eu posso desejar a esse rapaz é que se alie aos inimigos de seu pai, usurpadores dos seus vastos domínios e do meu gracioso pomar.

Ravenswood deu de novo ordens para os funerais de Alix e retirou-se sob a desagradável impressão de que, grandes e pequenos, todos pensariam do seu casamento com Lucy como pensava aquele aldeão ignorante e egoísta.

- Desci até ao mais ínfimo grau da miséria! É preciso, Lucy, que a tua fé seja tão leal, tão perfeita, como o diamante, para compensar a desonra que a justiça dos homens e a conduta de tua mãe fazem pesar sobre o herdeiro de Ravenswood!

E, erguendo o olhar, viu o marquês de Athol, que acabava de entrar na "Toca da Raposa".

Após uma troca de cumprimentos, o marquês desculpou-se por não o ter procurado na véspera.

- Tencionava vir ontem - disse - mas deram-se certos factos que me obrigaram a adiar este encontro. Tive conhecimento de que andava no ar uma intriga amorosa; e vejo-me forçado a censurar-vos por não terdes sido franco para comigo, visto que sou, até certo ponto, o chefe da vossa família...

- Perdoe-me Vossa Honra - atalhou Ravenswood - Reconheço perfeitamente o interesse que fazeis o favor de ter por mim... mas o chefe da nossa família, sou eu.

- Eu sei, eu sei! Sois incontestavelmente o chefe, no sentido rigorosamente heráldico e genealógico. O que vos queria djizer é que estando, dentro de um certo limite, sob a minha tutela...

- Tomo a liberdade de vos fazer observar, milorde...

E o tom em que Ravenswood respondeu ao marquês não deixava prever que a paz fosse muito duradoira entre os dois parentes. Porém, nesse mesmo instante, interveio o coveiro, que, todo ofegante, perguntou se Suas Honras desejariam ouvir um pouco de música, na taverna, para compensar a péssima comida.

- Não precisamos de ouvir música - respondeu Ravenswood secamente.

- Vossa Honra não sabe quanto perde - insistiu o músico de aldeia, com a impertinência atrevida da gente da sua profissão - Sei tocar "E voltareis" e "O velho está para morrer" seis vezes melhor do que Battie Birnie tem tocado.

- Retirai-vos - ordenou o marquês.

O homem insistiu:

- E se Vossa Honra é um fidalgo do Norte, como eu iria jurar, posso tocar também "Liggeram Cosh", "Mullin Dhu", e "As Feiticeiras de Athol".

- Retirai-vos, meu amigo, já vos disse. Estais a interromper a nossa conversa.

- Ou, pela graça de Vossas Honras, se sois dessas pessoas a que se chamam virtuosas, também sei tocar - e, falando em voz baixa e confidencial, o

importuno acrescentou - "Killiecrankie", e "O Rei Triunfará" e "Os nossos velhos Stuart estão de volta"... A taberneira é uma mulher pacata. Não sabe a quem se fazem as saúdes. É surda para tudo, menos para o tilintar do dinheiro.

O marquês não pôde deixar de rir. Deu um dólar ao homem, pedindo-lhe que o deixasse em paz e fosse, se quisesse, dar um concerto aos seus criados.

- Perfeitamente, milorde - replicou o músico - Desejo um bom dia a Vossas Honras. Eu felicito-me pelo dólar, mas ides lamentar a falta de música. Retiro-me. Vou acabar o meu trabalho no cemitério, guardar a ferramenta, procurar outro trabalho para ganhar a vida e ver se os vossos criados têm melhores ouvidos do que os seus amos.

 

"Wolf's Crag" em chamas

 

Amante fiel, se és fiel tens triste papel a desempenhar. Pela fortuna, pela moda, pelo capricho e por ti próprio, terás muito que lutar.

Sei, pela história de muitos amigos e melhor ainda pelo meu próprio coração, o que o tempo e o capricho conseguem fazer para destruir os laços do verdadeiro amor.

HENDERSON

 

- Agora que nos livrámos daquele importuno - começou o marquês - quero dizer-vos, meu bom primo, que tentei falar com sir William Ashton sobre o delicado assunto que vos prende à sua filha. Vi hoje pela primeira vez essa donzela, apenas durante alguns minutos. Nada sei dos seus méritos pessoais. É-me, pois, permitido declarar, com a devida vénia e sem ofensa para ela, que poderíeis ter feito melhor escolha.

- Milorde! - respondeu Ravenswood - Estou-vos imensamente grato pelo interesse que manifestais por mim. Não tencionava importunar-vos, fosse de que maneira fosse, a popósito de miss Ashton. Mas, desde que o meu afecto para com ela chegou ao conhecimento de Vossa Honra, só tenho uma coisa a dizer: deveis, supor certamente que eu conhecia as objecções que levantariam à minha entrada na família de seu pai, e me sentia absolutamente certo da força dos argumentos que as contrabalançavam, visto ter ido tão longe neste assunto.

- Ouvindo-me até ao fim, milorde, não teríeis o trabalho de fazer essa observação. Convencido de que teríeis razão de peso para afastar qualquer obstáculo, eu próprio tentei, por todos os meios, pôr os Ashton de acordo com os vossos pontos de vista.

- Agradeço a Vossa Honra uma intervenção que não solicitei e que, estou certo, não passou dos limites que eu tinha pessoalmente traçado.

- Podeis estar certo disso. Reconheci ser assunto bastante delicado para colocar um homem que está estreitamente ligado à minha família em situação humilhante ou equívoca perante os Ashton. Apresentei-lhes todas as vantagens que eles encontrariam unindo a sua filha a uma casa tão digna e ligada de perto às primeiras casas da Escócia; expus-lhes o grau exacto do vosso parentesco connosco; dei-lhes mesmo a entender o caminho que ia tomar a política e quais as listas que seriam apresentadas ao Parlamento. Por fim, disse-lhes que vos olhava como um filho... ou um sobrinho... mais do que como primo afastado, e que considerava o vosso caso como assunto pessoal.

- E qual foi o resultado de todas essas explicações?

- Sir William Ashton seria fácil de convencer; é pouco agradável ter de abandonar um lugar que, em caso de mudança política, não poderá conservar. Muito sinceramente, mostrou-se inclinado para o vosso lado e reconheceu as vantagens que lhe traria esse casamento. Mas sua mulher...

- Não receeis contar-me o que disse lady Ashton e como acabou essa extraordinária conferência. Preciso de saber tudo.

- Envergonhar-me-ia se vos repetisse metade do que me disse essa dama. Não posso compreender quais são os seus projectos. Ela não poderá encontrar certamente partido mais honroso para a família. Quanto ao dinheiro e às terras, não é ela que vê a questão , é o marido. Creio que vos detesta por causa da jerarquia a que pertenceis por nascimento e à qual não pertence o seu marido e pela fortuna que vos falta e a ele sobeja. Mas não podia deixar de vos magoar se vos dissesse mais alguma coisa. Estamos quase a chegar à nossa hospedaria.

Ravenswood parou na soleira.

- Milorde! - afirmou - O acaso deu-vos a conhecer um segredo que, se dependesse de mim, não teria deixado de o ser, mesmo para vós, pelo menos por algum tempo. Mas desde que esse segredo deixou de existir entre mim e a única pessoa interessada como eu, não me arrependo que possa chegar aos ouvidos de Vossa Honra, visto conhecer a nobreza do vosso carácter e a amizade que me tendes.

- Podeis confiar na minha discrição, Ravenswood; mas gostaria que renunciásseis a um casamento a que não podereis aspirar sem humilhação.

- Eu próprio decidirei, milorde. É unicamente com miss Ashton que eu tenho compromissos. Se ela continua a preferir-me, por muito pobre que eu seja, aos pretendentes mais ricos que os seus amigos lhe aconselham, devo sacrificar tudo à sinceridade da sua afeição, devo fazer capitular diante dela as vantagens menos tangíveis, menos palpáveis do nascimento e enraizados preconceitos de um ódio de família. Se, pelo contrário, miss Ashton mudar de ideias a meu respeito, quero acreditar que os meus amigos guardarão silêncio sobre a minha humilhação e saberei obrigar os meus inimigos a guardá-lo.

- Estimo-vos bastante para desejar que as coisas vão mais longe. Sir William Ashton é, desde há vinte anos, uma espécie de advogado chicaneiro. Entre as lutas da banca e a direcção de reuniões no Parlamento, tem feito o seu caminho. O caso de Darien ajudou-o a levantar-se. Mas está liquidado. Nenhum governo o toma pelo valor que ele se atribui ou, melhor, pelo valor que lhe concede sua mulher. De miss Ashton, não digo nada; mas uma aliança com seu pai não vos traria nenhum benefício nem era elegante. Quanto à parte dos despojos do vosso pai que ele podia ser Levado a restituir-vos por meio de doação, recobrá-la-eis com mais vantagens se defenderdes a questão na Câmara dos Pares. E serei eu, meu primo, o homem que dará caça à velha raposa, que o fará arrepender-se amargamente e chorar o dia em que recusou a proposta bastante honrosa que eu lhe fiz em vosso nome!

Ravenswood pressentia que o nobre marquês tinha outros motivos para se ofender pela forma como a sua intervenção havia sido recebida. Mas não podia prová-lo. Limitou-se, portanto, a repetir que não queria dever coisa alguma à influência de sir William.

Não tardou muito tempo que o marquês tivesse outros motivos de conversa mais interessantes e mais agradáveis. Um correio que, depois de ter partido de Edimburgo para o castelo de Ravenswood, o tinha encontrado na "Toca da Raposa", entregou-lhe um maço de boas notícias. Os cálculos políticos do marquês verificavam-se em Londres e em Edimburgo. Via aproximar-se o predomínio que ambicionava.

A refeição preparada pelos seus criados foi excelente e um epicurista teria rido do contraste entre a delicadeza dos manjares e o ambiente miserável onde eram servidos. A refeição prolongou-se e o marquês partiria com duas horas de atraso.

- Que importa, meu jovem amigo! - disse o marquês - o vosso castelo de Wolf's Crag não fica a mais de cinco ou seis milhas de distância; serei ali tão bem recebido como o foi sir William Ashton.

- Sir William Ashton tomou a minha torre à força - respondeu Ravenswood - e, como todos os vencedores, não tem que se regozijar pela sua conquista.

A dignidade do marquês cedeu um pouco ao vinho que tinha bebido.

- Bem, bem! - replicou ele - Creio que é preciso empregar a manha para vos convencer... Bebamos à saúde da donzela que dormiu há pouco em Wolf's Crag. Estou resolvido a ocupar o seu quarto esta noite, e com curiosidade de saber até que ponto o amor pode amaciar uma cama.

- Vossa Honra pode escolher a penitência que desejar, mas afirmo-vos que o meu velho criado é homem para se enforcar ou precipitar da torre se vos vê chegar de improviso. Estamos desprovidos de tudo.

Esta declaração não encontrou na nobre personagem mais do que uma indiferença absoluta pelas condições de alojamento e uma vontade firme de conhecer a torre de Wolf's Crag. O seu pai, disse ele, festejara ali a sua partida, com lorde Ravenswood, para a funesta batalha de Flodden, onde morreram os dois.

Ravenswood ofereceu-se para partir à frente a fim de ordenar os preparativos compatíveis com a hora e as circunstâncias. O marquês, porém, quis que ele o acompanhasse e consentiu apenas que se enviasse um correio que levaria a Caleb Balderstone a inesperada notícia daquela nova invasão.

Ravenswood acedeu pouco depois a subir para a carruagem com o marquês. À medida que, durante o trajecto, se iam conhecendo melhor, o marquês expôs as generosas intenções que alimentava para o futuro do primo, no caso dos seus planos políticos serem coroados de êxito. Essas intenções tinham por objectivo uma missão secreta de tão transcendente importância que só podia ser confiada a um homem de elevada classe social, inteligente e que, oferecendo as qualidades exigidas, seria para ele tão digna como vantajosa. É inútil ir mais longe sobre a natureza desta missão: ao leitor basta saber que era das mais aceitáveis para o senhor de Ravenswood.

Foi com alegria que Ravenswood concebeu a esperança de mudar a presente situação de pobreza e de inacção por uma independência onde a honra se combinaria com a actividade.

Enquanto escutava com entusiasmo os pormenores que o marquês lhe dava, voltou o mensageiro enviado a Wolf's Crag, trazendo, com os mais humildes cumprimentos de Caleb Balderstone, a certeza de que ia meter mãos à obra para que Suas Honras fossem recebidos convenientemente.

Ravenswood estava muito habituado aos modos e ao vocabulário do seu velho servidor para esperar dele tantas garantias de bom alojamento e achou conveniente deixar antever ao marquês que as boas palavras de Caleb não os deviam defender de uma recepção bastante medíocre.

- Creio que pretendeis fazer-me uma surpresa agradável - disse o marquês - Vejo, desta janela, grande clarão para os lados de Wolf's Crag; e, a julgar pela claridade que se vê em volta, os preparativos que fazem para nos receber devem ser extraordinários. Tenho ideia de que vosso pai me enganou da mesma forma, há vinte anos, quando estive alguns dias na torre, numa partida de caça.

- Vossa Honra está muito longe de supor o que vai ser a recepção do actual proprietário. As janelas da torre são um pouco estreitas e o muro do pátio encobre-as cá de baixo. Não sei que espécie de iluminação possa produzir tal esplendor.

O mistério não tardou a ter explicação. A carruagem parou quase instantaneamente e a voz de Caleb soou junto da portinhola:

- Ai, senhores! Ai, meus bons senhores! Voltai à direita! Wolf's Crag está a arder! As labaredas consomem todas as riquezas interiores e exteriores, as suas admiráveis decorações, os seus quadros, as suas tapeçarias, os seus estofos, os seus rendilhados! Tudo arde como se fosse palha! Voltai à direita, senhores, peço-vos. Em casa da mãe Smallstrash, em Wolf's Hope, não faltam provisões. Que terrível noite!

De momento, Ravenswood ficou surpreendido com a notícia daquela calamidade suplementar; mas, reflectindo, saiu da carruagem e, desejando uma boa noite a seu primo, correu para a torre. O incêndio projectava no céu uma coluna de luz vermelha, cujos reflexos salpicavam ao longe as vagas do oceano.

- Montai num cavalo, Ravenswood! - gritou-lhe o marquês, vivamente impressionado com o infortúnio que tão inesperadamente tinha caído sobre o seu jovem protegido - Dêem-me o meu cavalo de sela! E, vós outros, correi a salvar os móveis e a apagar o fogo! A cavalo e a galope!

Os criados apressaram-se a cumprir as ordens do marquês. Prestes a porem-se em marcha, chamaram por Caleb, para este lhe indicar o caminho. Mas a voz do prudente mordomo dominou o tumulto:

- Parai, senhores, parai! Não acrescenteis perdas de vidas humanas à perda de tantos tesouros! Trinta barricas de pólvora, desembarcadas há muitos anos de um barco de Dunquerque, estão armazenadas nas caves da torre. O fogo deve andar perto. Voltem à direita, rapazes, por amor de Deus! Afastem-se!

- Pólvora! - exclamou Ravenswood, segurando Caleb por um braço - Como pode haver pólvora na torre sem meu conhecimento? Eu não sabia...

- Por Deus! - exclamou o marquês - Eu sei. Mas não discutam!

- Vossa Honra - disse Caleb - pode ouvir o testemunho de Sua Senhoria. Sua Senhoria recorda-se do ano em que morreu aquele a quem chamavam o rei Guilherme...

- Calai-vos, calai-vos, meu bom amigo! - pediu o marquês - Eu explicarei tudo ao vosso amo.

- E não veio ninguém de Wolf's Hope acudir ao incêndio? - perguntou Ravenswood.

- De facto, vieram bastantes, mas não me convinha que eles entrassem na torre, onde há tanta prata e objectos raros.

- Que o céu te confunda, mentiroso! - exclamou Ravenswood - Não havia nem uma onça de...

- Além disso - atalhou Caleb, elevando desrespeitosamente a voz, de maneira que não se ouvisse a do amo - o incêndio alastrou rapidamente em virtude do grande número de tapeçarias que ornamentavam o salão dos banquetes e os patifes fugiram como lebres quando ouviram falar na pólvora.

- Nem mais uma palavra sobre o assunto - pediu o marquês a Ravenswood.

- Só mais uma, milorde. Que foi feito da pobre

Mysie?

- Mysie? Tinha mais que fazer do que me preocupar com ela. Encontra-se com certeza na torre...

- Por Deus! Vou lá acima ver o que se passa.

- Mysie encontra-se sã e salva. Vi-a fora do castelo antes de eu sair. Julgastes que me esquecia dela?

- Então, porque me disseste há pouco o contrário?

- Eu disse o contrário? Sonhei ou foi esta noite terrível que me transtornou a cabeça. Mas repito que Mysie está sã e salva e não se encontra ninguém no castelo. Felizmente. Caso contrário, ficavam todos assados.

Ante esta solene garantia e não obstante o enorme desejo de assistir à explosão que devia destruir até aos alicerces a residência de seus pais, Ravenswood deixou-se levar para a aldeia de Wolf's Hope, onde, não só a estalagem da localidade, mas também a casa do tanoeiro, estavam prontas a recebê-lo, assim como ao seu nobre parente, com uma liberalidade que exige explicação.

Não dissemos ainda que, depois de Lockhard ter descoberto a verdade sobre os meios empregados por Caleb para aprovisionar o seu banquete, sir William Ashton, divertido com a história e desejoso de agradar a Ravenswood, tinha recomendado o tanoeiro de Wolf's Hope para o emprego oficial cuja esperança o tinha reconciliado com a perda dos patos.

A nomeação de Girder deu aso a agradável surpresa para Caleb. Alguns dias depois da partida do amo, um assunto que não podia confiar a ninguém chamou-o com urgência ao lugarejo dos pescadores. Ao passar defronte da casa do tanoeiro, coseu-se às paredes como uma sombra, com medo de que o chamassem para lhe pedir contas do pedido de que se tinha encarregado ou para o censurar por ter alimentado falsas esperanças, quando o saudaram afectuosamente três vozes de tons diferentes, que eram o falsete da senhora Girder, o contralto da senhora sua mãe e o baixo do dono da casa. - Senhor Caleb!

- Senhor Caleb!

- Senhor Caleb!

- Senhor Caleb Balderstone! Espero que não passeis pela nossa porta sem molhar as goelas! Devemo-vos tantas obrigações!

Tanto podia ser ironia como a sério. Caleb pensou o pior. Fez-se surdo e prosseguiu obstinadamente o seu caminho, olhos postos no chão, como se quisesse contar as pedras que formavam o desigual pavimento da calçada; mas viu-se surpreendido no estreito de Gibraltar pelos galeões de Argel.

- É Deus que vos envia, senhor Balderstone! - exclamou a senhora Girder.

- Um velho e bom amigo! -acrescentou a mãe.

- Não ides zangar-vos por apresentarmos os nossos agradecimentos! - observou o próprio tanoeiro - Espero que não tivessem espalhado a discórdia entre nós, senhor Balderstone. Se alguém vos disse que eu não vos estava grato por me terdes feito nomear tanoeiro da rainha, dizei-me o nome do intrigante e eu o ensinarei!

- Meus bons amigos... meus queridos amigos... - balbuciou Caleb, ainda desconfiado da sinceridade daquelas demonstrações - Não têm que me agradecer. Não estou habituado a agradecimentos.

- Não soubestes da carta que nomeia John, tanoeiro da rainha? - perguntou a sogra de Girder.

Caleb compreendeu por fim o que se passava.

- Perguntais-me se eu sei? - volveu ele com um ar desdenhoso - Ora essa! Foi isso que me trouxe aqui para vos abraçar, minha comadre, e a vós, Girder, para vos desejar mil venturas pela vossa nova situação. Estou convencido de que não sabíeis quem eram os vossos amigos, aqueles que vos têm ajudado, que ainda vos podem ajudar. Fingi não saber o que se passava, só para ver o que fazíeis, meu rapaz. Vejo que sois leais!

Dizendo isto, Caleb tomou ares de grande senhor para beijar as duas mulheres; e depois, com uma serenidade protectora, abandonou a sua mão à palma calejada e cordial de Girder. É de supor que Caleb aceitasse com a maior satisfação o convite para uma festa solene onde não faltaram os mais notáveis vultos da aldeia, inclusivamente, o seu antigo rival Dingwall. Caleb foi, bem entendido, o convidado mais homenageado. Interessou todos os convivas por verificarem quanto ele podia sobre o amo, o amo sobre sir William Ashton, sir William Ashton sobre o Conselho Privado e o Conselho Privado sobre o rei; e, assim, antes de se terem separado, altas horas da noite, cada um desses vultos mais notáveis da aldeia via-se já ascendendo a qualquer situação ideal pela escada de corda oferecida por Caleb à sua imaginação. De facto, o astucioso mordomo havia, nessa ocasião, recuperado não somente toda a influência que tivera sobre os aldeãos, no tempo em que os barões de Ravenswood, seus amos, brilhavam com o mais vivo clarão, mas conseguira também maior importância. O próprio procurador, tão grande é a sede de grandeza, sentiu-se atraído para Caleb; e, escolhendo ocasião favorável para o levar para um canto, falou-lhe, com muito afecto, do mau estado de saúde em que se encontrava o substituto de sherif.

- Um bom homem e um homem de muito valor, senhor Caleb; mas, que vos hei-de dizer? Somos uns pobres corpos sem resistência, hoje aqui e amanhã na sepultura. E este de quem falei tem de ser substituído. Se o meu amigo quisesse, talvez conseguisse que eu fosse nomeado, e então... uma luva cheia de moedas de ouro... E, depois, todos os camponeses de Wolf's Hope muito gratos para lorde de Ravenswood.. que Deus o abençoe!

Um sorriso e caloroso aperto de mãos responderam a estas palavras, e Caleb apressou-se a sair para evitar comprometer-se.

- Que Deus me proteja! - monologou quando se encontrava sozinho - Nunca vi imbecis como estes! Se eu fosse o lorde Grande Comissário dos Estados do Parlamento não me fariam tantas macaquices! E o procurador?... Ah! ah! ah!... Substituto do sherif... Tenho umas contas a ajustar com ele... e as esperanças de obter o lugar vão custar-lhe tanto como se o obtivesse de facto, o que muito duvido.

 

Caleb conta uma história...

 

Porque está aquele monte em chamas? Porque sobem para o ar tantas faúlhas, como estrelas caídas do céu? E uma chuva de fogo, caindo do alto da torre e que ilumina a noite como um farol.

CAMPBELL

 

Os acontecimentos que descrevemos no capítulo anterior explicam o caloroso acolhimento dispensado, na aldeia de Wolf's Hope, ao marquês de Athol e ao senhor de Ravenswood. Logo que Caleb deu o alarme do incêndio, toda a população se levantou para o combater. Porém, ao terem conhecimento de que se encontravam barricas com pólvora nas caves do castelo, o seu zelo tomou outro rumo. Nunca Wolf's Crag assistiu a semelhante massacre de frangos e de caça, nunca se viu tantos presuntos fumados e nunca se fizeram tantos bolos de amêndoa, biscoitos de Selkirk, pastelaria diversa, pouco conhecida da geração presente. Nunca houve na aldeia tantos tonéis abertos, tantas garrafas de vinho velho desrolhadas.

Todas as reverências que devem ser dispensadas a pessoas de elevada classe social saudaram a Vinda de tão nobres hóspedes.

Caleb Balderstone reservou para o tanoeiro, sua mulher e sogra, a honra de hospedarem os dois altos personagens. E todos eles bailaram de alegria quando souberam a preferência de que tinham sido alvo.

A sogra de Girder, que tinha servido outrora no castelo de Ravenswood e se gabava de conhecer os costumes da nobreza, não se embaraçou com os arranjos, tanto quanto lhe permitiam as circunstâncias, conforme a etiqueta da época. A casa do tanoeiro era tão espaçosa que cada um dos hóspedes teve o seu quarto separado, para onde foi acompanhado com todo o cerimonial requerido, enquanto suculenta ceia era posta na mesa.

Logo que ficou sozinho, Ravenswood saiu do quarto, da casa, da aldeia e tomou apressadamente o caminho da colina que lhe encobria a vista da torre. Queria chegar a tempo de ver ruir definitivamente a casa de seus pais. Alguns aldeões mais curiosos, que tinham sido dos primeiros a assistir à chegada da carruagem, e da escolta, dirigiram-se, também para a colina. Como lhe passassem à frente um a um, chamando-se uns aos outros, para irem ver saltar a velha torre, Ravenswood não pôde conter um gesto de indignação.

- São estes os filhos dos vassalos dos meus pais, dos homens que a lei e a gratidão obrigavam a seguir-nos para a guerra através do fogo e da água! E o incêndio que destrói a casa do senhor feudal é hoje para eles um espectáculo alegre!

Entregava-se às suas mal humoradas reflexões quando sentiu que lhe puxavam bruscamente a capa.

- Que me quereis, cão?

- Cão, sim, sou um cão, um cão velho - respondeu Caleb - que se atreveu a usar desta liberdade para com o seu amo e vai, certamente, ser tratado como um cão; mas receio tanto isso como uma pitada de rapé, visto que sou muito velho para dar mais voltas e para seguir novo dono.

Enquanto Caleb falava, Ravenswood observava a encosta da colina donde se avistava Wolf's Crag. Ficou surpreendido ao ver que as labaredas tinham desaparecido; apenas persistia um clarão vermelho escuro sobre a torre: provavelmente, o reflexo do braseiro deixado pelo pavoroso incêndio.

- A torre não deve ter ruído - observou Ravenswood

- Teríamos ouvido a explosão. Se lá estivesse a quarta parte da pólvora de que me falaste, ter-se-ia ouvido a vinte milhas.

- É muito provável - respondeu Caleb com a maior calma.

- O fogo não entraria nas caves?

- Não chegou lá, certamente - respondeu Caleb com a mesma impenetrável gravidade.

- Abusas um pouco da minha paciência, Caleb! Vou ver o que se passou em Wolf's Crag.

- Isso é que Vossa Honra não vai - protestou Caleb com firmeza.

- Porquê? Quem mo impede?

- Eu! - respondeu Caleb.

- Tu?

- Eu posso informar-vos do que se passou no castelo. O que vos peço é calma.

- Fala, velho louco! Que sabes tu?

- A torre está de pé, intacta, forte e vazia como a deixastes.

- E o fogo?

- O fogo não passou de uma porção de turfa queimada e talvez algumas fagulhas do cachimbo de Mysie.

- E as labaredas? - insistiu Ravenswood – Esse enorme braseiro que podia ver-se a dez milhas de distância? Donde provinha?

- Ora! De um pouco de erva seca e palha que pus a arder no pátio, depois de ter recambiado o vosso correio; e, para ser franco, a próxima vez que enviardes ou trouxerdes aqui alguém, que seja só um fidalgo e que não venha acompanhado por um Lockhard, para farejar por toda a parte, para descobrir todos os pontos fracos de uma casa, para descrédito da família e obrigar-me a perder a alma, dizendo mentiras sobre mentiras. Prefiro lançar fogo à torre e arder com ela, a ver o vosso nome desonrado dessa forma.

- Palavra que te fico infinitamente grato pela declaração que acabas de fazer - respondeu o castelão, esforçando-se por conter o riso, apesar do desespero que sentia -E a pólvora? Há pólvora na torre? O marquês deu a entender que o sabia...

- A pólvora. Ah! ah! ah!... O marquês... ah! ah! ah! Vossa Honra deveria matar-me por eu estar a rir! O marquês! A pólvora! Perguntastes se havia pólvora! Sim, havia. E dissestes que o marquês sabia? Com certeza e é o melhor da história. Quando eu vi que não podia deter Vossa Honra, apesar de tudo quando vos disse, atrevi-me a pronunciar a palavra pólvora para que o marquês me ajudasse.

- Mas tu não respondeste à minha pergunta - terminou Ravenswood, impaciente - Por que razão havia pólvora em Wolf's Crag e quem a trouxe?

- Ides sabê-lo - respondeu Caleb, com um ar de mistério - Naquela época preparava-se uma revolução. O marquês conspirava com todos os grandes senhores do Norte. Além da pólvora, trouxeram de Dunquerque grande quantidade de armas. Tivemos bastante trabalho nessa noite para armazenar tudo na torre. Mas, se quiserdes voltar para casa de Girder, contar-vos-ei tudo pelo caminho.

- E aqueles pobres basbaques, vais deixá-los toda a noite à espera da explosão de uma torre que nem sequer ardeu?

- Certamente que não, se Vossa Honra assim o desejar. Mas não seria mau que eles continuassem à espera; dormiriam melhor amanhã de manhã.

E, com ar majestoso, dirigiu-se aos homens, declarando que Suas Honras, o senhor de Ravenswood e o marquês de Athol, tinham dado ordem para que a torre saltasse só no dia seguinte ao meio-dia.

- Ainda não me disseste, Caleb, quem foi que trouxe as armas e a pólvora...

- A respeito das armas, é como diz a canção infantil:

Algumas foram para o Este, Outras foram para o Oeste, E outras para o ninho da gralha.

- Quanto à pólvora, tenho procurado todas as oportunidades para falar com os capitães dos lugres holandeses e dos barcos franceses, a fim de a trocar por gin e brandy. Mas tenho uma porção arrecadada para quando desejardes caçar. E agora que vos passou a ira, meu senhor, não foi melhor fazer o que eu fiz e não estais melhor na aldeia do que na vossa torre em ruínas?

- Talvez tenhas razão, Caleb. Mas, antes de incendiar o meu castelo, com verdade ou com mentira, parece-me que eu tinha o direito de conhecer o segredo.

- Que Vossa Honra me perdoe, mas um vilão como eu tem direito de mentir para honra da família! Este incêndio, que não foi bem um incêndio, vai servir-me de pretexto para pedir tudo o que me falta; este incêndio aplanará dignamente, para crédito da família, as dificuldades que me obrigam a mentir vinte vezes por dia e sem que me acreditem!

- É triste, de facto, Caleb, mas não compreendo como o incêndio faça com que te acreditem...

- Que me acreditem? "Onde estão os retratos dos antepassados?" perguntará um curioso. "Arderam no incêndio de Wolf's Crag", responderei. "E as pratas?" perguntará um outro. "O incêndio", responderei. Quem pensa em pratas quando a vida está em perigo? E o guarda-roupa, as tapeçarias e a mobília?... O incêdio, o incêndio, o incêndio... Magnífico, o incêndio! Servir-nos-á para o que deveríamos ter e não temos. Um bom pretexto vale mais do que as coisas que ele substitui, visto que essas coisas podem deteriorar-se, extinguir-se com o tempo, e uma boa desculpa, prudente e hábil, pode servir, Deus sabe quantos anos, ao crédito de uma família!

Ravenswood conhecia suficientemente a teimosia do seu criado. Deixando Caleb triunfar do êxito que tinha tido a sua mentira, voltou à aldeia. Encontrou o marquês com o tanoeiro e as duas mulheres da casa um pouco inquietos; o primeiro por causa da sua ausência, os outros com receio de que se estragasse a comida. Todos sossegaram quando souberam que o incêndio do castelo se extinguira por si mesmo sem atingir os subterrâneos. Foi a única informação que Ravenswood julgou dever dar sobre o acontecimento forjado pelo seu criado.

Tiveram excelente jantar. Não houve palavras que pudessem convencer o casal Girder a sentar-se na sua própria casa, à sua própria mesa, com convidados de tão elevada categoria. Ficaram de pé, como servidores respeitosos e atentos. A sogra do tanoeiro, confiando na sua idade e nas antigas relações com a família de Ravenswood, mostrou-se menos cerimoniosa. Desempenhou papel intermédio entre a hospedeira de estalagem e a dona de casa que recebe convidados de classe superior. Insistia para que se servissem dos melhores bocados, lamentava-se por o marquês comer pouco e ao ver Ravenswood esburgar um osso com pouca carne.

Tendo-se desembaraçado do que ela supunha ser um mau passo, a senhora do "Salto-do-Dique" encarregou-se, durante o serão, e sem ser muito ajudada pelos seus hóspedes, de alimentar a conversa. Por fim, o marquês e Ravenswood pediram licença para se retirar para os seus quartos.

De manhã cedo, o marquês de Athol e o primo dispuseram-se a prosseguir a viagem. Antes de partirem, foi-lhes servida uma refeição, onde os donos da casa manifestaram o mesmo desejo de honrar os seus hóspedes, como na véspera, à noite. Fizeram-se comentários, apertaram-se mãos, selaram-se cavalos, atrelaram-se os da carruagem, distribuíram-se gratificações. O marquês deu, como gratificação para os criados do tanoeiro, uma moeda de ouro de grande valor, que este achou por bem guardar para si.

Enquanto se faziam os últimos preparativos para a partida, Ravenswood alegrou o coração do seu mordomo informando-o, embora com prudência, pois sabia, como a imaginação de Caleb se inflamava rapidamente, da provável mudança que ia operar na sua situação. Ao mesmo tempo, entregou-lhe o pouco dinheiro que lhe restava, pedindo-lhe que renunciasse a todas as manobras contra os habitantes de Wolf's Hope, contra seus celeiros e capoeiras e, de uma maneira geral, contra todas as suas provisões.

À despedida, as duas mulheres da casa, a velha e a nova, tendo recebido dos seus nobres hóspedes um beijo cada uma, à maneira de amável adeus, ficaram na soleira da porta, com caras afectadas, até que a carruagem, num rumor de travões e seguida por alguns cavaleiros, saísse da aldeia. John Girder estava ao lado delas, ora olhando para a sua mão direita, que fora apertada pelas mãos de um marquês e de um lorde, ora olhando para o interior da casa, onde se via toda a desordem do festim recente; parecia contrabalançar a distinção de que acabava de ser alvo com as despesas da festa.

Por fim, abriu a sua boca de oráculo:

- Que cada um, homens e mulheres, retome o seu trabalho como se não houvesse no mundo marquês e castelão, duque ou duquesa! Limpem a casa, ponham de parte a comida que sobrou; e, se há alguma coisa que não possa comer-se, dêem-na aos pobres. E vós, minha sogra e minha mulher, peço-lhes uma coisa: nunca mais me falem nem para bem nem para mal no que se passou aqui. Guardai a linguarice para as vossas comadres!

Como a autoridade de John Girder era quase absoluta, cada qual entregou-se aos seus afazeres, deixando que ele construísse à vontade castelos em Espanha, pelo pequeno favor que tão bem pago tinha sido.

 

Resposta a quatro cartas

 

Muito bem! Agora agarrei a fortuna pelos cabelos e se a deixar fugir a culpa será minha. Aquele que já foi sacudido pela adversidade sabe, melhor do que ninguém, dirigir o seu barco a favor do vento favorável.

Comédia antiga

 

Os nossos viajantes chegaram a Edimburgo sem mais aventuras e, como fora combinado, Ravenswood instalou-se em casa do marquês.

Entretanto, dera-se a crise política que já fora prevista; o partido Tory obtivera nos conselheiros da rainha Ana, tanto escoceses como ingleses, um ascendente que devia ser de pouca duração e do qual não vamos descrever aqui as causas e as consequências. Bastar-nos-á dizer que o acontecimento afectava os diversos partidos, cada qual segundo a natureza dos seus princípios. Na Inglaterra, muitos dos sustentáculos da Alta Igreja, tendo à frente Harley, mais tarde conde de Oxford, separaram-se com ostentação dos Jacobitas, o que lhes valeu o epíteto de Whimsicals (1). Pelo contrário, os partidários da Alta Igreja Escocesa, "os Cavaleiros", como eles próprios se intitulavam, foram, se não prudentes, pelo menos mais razoáveis na sua conduta: consideraram todas as mudanças de então como pressagiando a subida ao trono do Cavaleiro

 

(1) - Caprichoso.

 

de São Jorge, após a morte da rainha sua irmã. Aqueles que tinham estado ao seu serviço alimentavam as mais insensatas esperanças, não só de indemnização em prejuízo dos seus adversários, mas, principalmente, da vingança sobre eles; enquanto as famílias que tinham ligado a sua sorte aos êxitos dos Whigs, só viam, num futuro próximo, a renovação das dificuldades que tinham atravessado nos reinados de Carlos II e de seu irmão, e as confiscações em represália daquelas que tinham sido feitas aos Jacobitas no reinado de Guilherme.

Mas aqueles que se inquietavam verdadeiramente com a mudança de regime, eram as pessoas prudentes que se encontravam mais ou menos em grande número sob todos os governos e que abundavam numa administração provincial como a da Escócia, naquela época. Cromwell chamava-lhes os Walters upon Providence (1), aqueles que aderiam sempre ao partido que estava no Poder. Muitos deles apressaram-se a entregar uma renúncia nas mãos do marquês de Athol; e, vendo o grande interesse que tomava pelos assuntos de seu primo, foram os primeiros a sugerir medidas para o restabelecimento, mais ou menos parcial, dos bens de Ravenswood, dando-lhe o título que a decadência de seu pai lhe fizera perder. O velho lorde Turntippet apresentava-se como um dos mais fervorosos entre aqueles que desejavam o êxito dessas medidas.

- Aflijo-me bastante - afirmava - quando vejo numa situação difícil um jovem gentil-homem tão dgno, pertencente a antiga e autêntica família nobre e, nesse caso, parente próximo do marquês de Athol.

Quanto a ele, para contribuir de qualquer forma para a reabilitação da antiga casa, enviou três retratos de família sem moldura e seis cadeiras de espaldar, com as armas de Ravenswood, não exigindo um penny a mais do que lhe tinham custado aqueles objectos quando os comprara, dezasseis anos antes, numa

 

(1) - Servidores da Providência.

 

venda de móveis de lorde Ravenswood, na sua casa de Canongate.

O marquês recebeu secamente a lembrança, dizendo que, para ser agradável a Ravenswood e aos seus amigos, a restituição de lorde Turntippet deveria englobar grande herdade, penhor de um empréstimo hipotecário muito inferior ao seu valor real e da qual, devido à desordem em que se encontravam os assuntos da família, ele tinha, por processos bem conhecidos dos legistas, conseguido apoderar-se.

O velho lorde, sempre complacente com os caprichos da época, franziu energicamente as sobrancelhas ante aquele pedido. Protestou perante Deus que não havia razão para o jovem Ravenswood retomar posse da propriedade, visto que, sem dúvida alguma, ele ia reaver das mãos de sir William Ashton a maior parte dos seus domínios, facto para o qual ele, lorde Turntippet, estava pronto a contribuir dentro da medida do possível, da dignidade e da lógica. Finalmente, declarou que, após a sua morte, a propriedade voltaria para Ravenswood.

De nada lhe serviram, porém, tais evasivas: teve de restituir a propriedade pela importância em que fora hipotecada.

Outras pessoas, que tinham lucrado com a ruína de Ravenswood, tiveram de suportar medidas idênticas. Sir William Ashton, em particular, foi ameaçado, por recurso do Parlamento, com a revisão das decisões da justiça que lhe tinham atribuído o castelo e a baronia de Ravenswood. Contudo, para esse, Ravenswood, mais em atenção a Lucy do que por consideração pela hospitalidade que tinha recebido do pai, quis proceder com sinceridade. Escreveu ao antigo Chanceler, visto sir William Ashton ter resignado o cargo, e, sem rodeios, deu-lhe a conhecer o juramento que o prendia a miss Ashton, pedindo-lhe o seu consentimento para casar com ela, afirmando-lhe estar disposto a solucionar todas as divergências entre eles pela forma que o próprio sir Ashton julgasse mais conveniente.

Com esta carta, Ravenswood mandou outra dirigida a lady Ashton. Deplorava as causas, fossem elas quais fossem, das contrariedades que poderia ter ocasionado a essa senhora; e referia-se ao juramento recíproco que o prendia a miss Ashton; suplicava-lhe para se mostrar uma verdadeira Douglas, esquecer todas as antigas desinteligências e acreditar, enfim, que a família tinha conquistado um amigo, um humilde e respeitoso servidor, na pessoa daquele que assinava: Edgar Ravenswood.

Terceira carta, endereçada a Lucy, acompanhava as outras duas. Recomendou ao portador que procurasse meio de a fazer chegar, sem risco, às mãos da própria Lucy. Ravenswood referia-se ao seu constante afecto, falava da mudança que ia dar-se na sua fortuna, mudança vantajosa, pois afastaria os obstáculos que se opunham ao seu casamento. Citava as tentativas que fizera para vencer as prevenções de sir William Ashton e, mais ainda, de lady Ashton; manifestava a esperança de que elas seriam eficazes, e, em todo o caso, se não o fossem, a importante e honrosa missão que ia desempenhar no estrangeiro, afastando-o da Escócia, daria tempo para desfazer os últimos obstáculos.

Vieram três respostas a essas três cartas, cada uma em estilo diferente, que chegaram à mão de Ravenswood por vias diversas.

Lady Ashton expedira a sua pelo mesmo portador que lhe tinha levado a de Ravenswood e a quem não foi permitido demorar-se no castelo mais do que os minutos precisos para ela traçar as seguintes linhas:

Senhor, que eu não conheço

Recebi uma carta assinada por Edgar de Ravenstuood. Pergunto a mim própria quem possa ser o autor, visto que a família com este nome foi, por crime de alta traição, destituída dos seus direitos e títulos na pessoa de Allan, falecido lorde de Ravenswood.

Se, por acaso, sois a pessoa que assina com esse título, digo-vos, por consideração a miss Ashton, que já dispus irrevogàvelmente da sita mão em favor de um homem digmo dela. Desejaria que, para vosso interesse, vos compenetrásseis destas verdades e peço-vos que ignoreis para o futuro aquela que deseja ficar vossa servidora desconhecida.

Margarida Douglas que também assina Ashton

Dois dias depois de ter recebido esta desagradável carta, Ravenswood, passando na rua de Edimburgo, foi detido por um homem em quem, no momento que ele lhe tirava o chapéu para o saudar, reconheceu Lockhard, o criado de confiança de sir William Ashton. Lockhard inclinou-se, meteu-lhe um sobrescrito na mão e afastou-se, não tardando a desaparecer. O sobrescrito continha quatro folhas in-fólio cobertas com uma caligrafia bastante compacta, como acontece por vezes com os escritos dos grandes legistas.

Sir William Ashton referia-se à sua grande estima pelo seu jovem e querido amigo, o senhor de Ravenswood, assim como à sua muita simpatia pelo seu muito caro e velho amigo, marquês de Athol; esperava que em todas as medidas que eles pudessem adoptar, no que lhe dizia respeito, tivessem consideração pela santidade dos decretos e dos julgamentos conseguidos In foro contencioso; protestava, perante os homens e perante Deus, que, se a lei da Escócia, tal como a proclamavam as jurisdições supremas do país, devesse ser anulada pela Câmara Inglesa dos Lordes, os males públicos que resultariam de tal resolução fariam no seu coração uma ferida pior do que todas as perdas que iria sofrer com as consequências de procedimentos irregulares. Referia-se, com toda a espécie de floreados, à generosidade, ao perdão mútuo das injúrias e tocava, de uma maneira discreta, na instabilidade das coisas humanas. Lamentava em termos patéticos e censurava calmamente a pressa com que lhe tinham retirado o cargo de Chanceler, que a sua experiência habilitava a exercer com alguma vantagem para o público, sem sequer o convidarem a explicar-se sobre os seus pontos de vista em matéria de política geral e sobre as diferenças essenciais que poderiam existir entre elas e as do novo governo. Do juramento, pelo qual se tinham ligado Ravenswood e sua filha, falava com moderação. Lamentava um passo tão prematuro entre duas pessoas tão novas. Um acto tão precipitado produzira os piores efeitos em lady Ashton e não lhe era possível, de momento, prever o futuro. Seu filho, o coronel Douglas Ashton, partilhava as opiniões da mãe. Sir William não podia, sem criar na família divergências fatais e irreparáveis, seguir uma linha de conduta que fosse contra o sentimento dos dois. Esperava que o tempo, o grande médico, remediaria tudo. Em pós-escrito, indicava mais claramente que, se a lei da Escócia devia, por seu intermédio, receber golpe rude no caso da baronia de Ravenswood, pela anulação da sentença dos supremos tribunais, ele consentiria em fazer, extra-judicialmente, enormes sacrifícios.

De Lucy Ashton, não se sabe de que maneira, recebeu Ravenswood o seguinte bilhete:

Recebi a vossa carta, arriscando-me a grande perigo. Evitai escrever-me enquanto não vierem melhores dias. Torturam-me; mas respeitarei a minha palavra enquanto não enlouquecer. É para mim uma consolação saber que estais a caminho da fortuna: a minha situação nada mais exige. - L. A.

Estas poucas linhas causaram em Ravenswood a maior inquietação. Apesar do pedido de Lucy, procurou escrever-lhe algumas vezes e obter mesmo um encontro; mas todas as suas tentativas se frustraram. A sua dor tornou-se mais intensa por ter de sair da Escócia, a fim de cumprir a importante missão que lhe fora confiada. Antes de partir, enviou a carta de sir William Ashton ao marquês de Athol. Foi com grande dificuldade que conseguiu arrancar-lhe a promessa de transigir sobre as questões submetidas ao Parlamento, com a condição de sir William Ashton consentir no seu casamento com Lucy.

- Dificilmente consentiria - disse o marquês - em sacrificar assim os vossos direitos de nascimento, se não estivesse absolutamente convencido de que lady Ashton, ou lady Douglas, como lhe queiram chamar, não desiste da sua resolução e que seu marido não se atreverá a contrariá-la.

- Posso crer, portanto, que Vossa Honra considerará a minha promessa como sagrada? - perguntou Ravenswood.

- Dou-vos a minha palavra de honra! Serei vosso amigo até nas vossas loucuras!

Ravenswood não pôde deixar de agradecer ao seu generoso benfeitor e deu-lhe carta branca para tratar dos assuntos que lhe diziam respeito. Partiu da Escócia para o Continente, onde calculava que a sua missão o demoraria alguns meses.

 

Bucklaw jura vingança!

 

Já se viu alguma vez uma mulher cortejada dessa maneira? Já se viu uma mulher tão subjugada? Pois hei-de desposá-la.

SHAKESPEARE - Ricardo III

 

Um ano tinha decorrido após a partida de Ravenswood para o Continente. Embora tivessem contado mais cedo com o seu regresso, os assuntos da sua missão ou, segundo voz corrente, assuntos de carácter mais particular, retinham-no ainda no estrangeiro. Entretanto, tinham surgido muitas alterações nos assuntos da família de sir William Ashton. Poderão saber-se pela seguinte conversa, que teve lugar nessa época entre Bucklaw e o seu confidente, o capitão Craigengelt.

Encontravam-se ambos sentados, cada qual a um canto da enorme chaminé, no salão de Girnington. Um fogo de lenha ardia vivamente; na mesa de carvalho, disposta entre eles, havia um jarro de excelente vinho de Bordéus, dois copos grandes e alguns pratos apetitosos. Apesar de tudo isto, o dono da casa parecia inquieto, enquanto Craigengelt tentava intervir no que ele julgava ser um ataque de hipocondria. Após prolongado silêncio, apenas interrompido pelo tamborilar que a bota de Bucklaw fazia na chaminé, Craigengelt acabou por se aventurar a falar.

- O diabo me leve se já vi um homem ter uma cara que se parecesse menos com a de noivo! Pareceis mais um condenado à morte!

- Obrigado pela comparação! - retorquiu Bucklaw - Penso que ao falardes de um condenado à morte vos quereis referir ao que vos espera um dia. Pergunto a Vossa Mercê, capitão Craigengelt, porque me havia de mostrar alegre quando estou triste, diabòlicamente triste?

- Não posso compreender - tornou Craigengelt - Ides fazer o melhor casamento da região, desejastes ardentemente esse casamento e, no momento em que ele vai realizar-se, mostrai-vos pesaroso como uma ursa que perdeu os filhos!

- Esse casamento não se realizaria se não tivesse avançado tanto para poder recuar agora!

- Recuar! - exclamou Craigengelt com simulada surpresa - Isso seria jogar o "ganha-perde". Recuar? E o dote da rapariga?...

- Agradeço que não a trateis por rapariga.

- Bem, bem, não quis ofender! Mas encontraríeis em todo o Lothian um dote comparável ao de miss Ashton?

- Não. Mas o seu dote é o que menos me preocupa. Eu também sou rico.

- E sua mãe, que vos quer como se fôsseis um dos seus filhos!

- Mais do que a alguns deles, estou convencido; mas isso não interessa.

- E o coronel Sholto Douglas Ashton, que tanto deseja este casamento!

- De facto, ele conta com a sua eleição como deputado do condado, com o auxílio do meu crédito.

- E o pai, mais impaciente por ver realizar-se esse casamento do que nunca o esteve por ganhar uma partida de dados!

- Sim - disse Bucklaw, com o mesmo ar de desprezo - Sir William tem o maior interesse em garantir à filha um bom partido, visto não ter conseguido dá-la a Ravenswood em troca do domínio que o Parlamento se prepara para lhe tirar.

- Em conclusão, que tendes a dizer propriamente de Lucy? A mais linda rapariga da Escócia! Andastes apaixonado quando ela não queria este casamento e agora, quando ela está disposta a casar, eis que vos mostrais enjoado! É preciso que tenhais o diabo no corpo! Nunca soubestes o que queríeis nem o que vos faz falta!

Bucklaw levantou-se e começou a passear na sala, de um lado para outro.

- Em duas palavras, vou revelar-vos o meu pensamento. O que levaria miss Ashton a mudar tão repentinamente?

- E que vos importa, desde que essa mudança vos seja favorável?

- Vou dizer. Embora não conheça este género de mulheres, sei que são caprichosas como o diabo; mas a mudança de miss Ashton tem qualquer coisa de inesperado, de muito grave! Tenho a impressão de que Ravenswood se atravessou no meu caminho.

- É possível. Acreditais na palavra do coronel Douglas Ashton? Pois bem! Ele ouviu dizer ao marquês de Athol, numa reunião pública, que o seu jovem parente tinha feito um negócio mais vantajoso do que o abandono do domínio paterno em troca do casamento com a filha de um fanático reduzido ao nada, e que Bucklaw aparecera em boa ocasião para calçar as botas usadas de Ravenswood.

- Por Deus! Ele disse isso? - exclamou Bucklaw, num acesso de raiva - Se o tivesse ouvido, ter-lhe-ia arrancado a língua diante dos seus partidários, desses vaidosos e fanfarrões dos Higlands! E o coronel não lhe atravessou o corpo com a espada?

- Era o que ele merecia. Mas é um homem de idade, um ministro de Estado, e, se o fizesse, o coronel teria menos honra do que perigo.

- Havemos de nos encontrar um dia - afirmou Bucklaw - Entretanto, zelarei pela dignidade de miss Ashton, para que não sofra faltas de respeito! Vamos, Craigengelt, bebamos à saúde da minha noiva.

 

Lucy à beira do abismo

 

Era o assunto de todas as nossas conversas. Não dormia, não comia porque eu lhe fazia constantemente as mesmas censuras. Quando estávamos sozinhos não falávamos doutra coisa e mesmo na presença de outros muitas vezes aludíamos ao assunto.

SHAKESPEARE - Equívocos

 

Na manhã do dia seguinte, Bucklaw e o capitão Craigengelt foram cortêsmente recebidos por sir William Ashton e sua mulher, assim como pelo filho e herdeiro, o coronel Ashton. Depois de ter gaguejado muito e corado bastantes vezes, pois que, apesar do seu atrevimento, tinha a timidez daqueles que têm frequentado pouco a sociedade, Bucklaw acabou por expressar o seu desejo de uma conversa com miss Ashton, por causa do seu próximo casamento. Sir William Ashton e seu filho consultaram lady Ashton com o olhar, e ela respondeu com muita calma que ia imediatamente buscar a filha. E acrescentou, com um sorriso: "Lucy é muito nova e deixou-se prender recentemente numa armadilha que hoje despreza sinceramente; espero que me desculpeis se eu assistir também à entrevista".

- Na verdade, minha querida senhora, é esse o meu desejo. Estou tão pouco habituado a isso que chamam galanteio, que recearia cometer qualquer erro se não tivesse a felicidade de vos ter como intérprete.

Sir William Ashton e o coronel saíram, juntamente com o capitão Craigengelt; e lady Ashton não tardou a reaparecer, acompanhada pela filha. Lucy mostrava-se tal qual Bucklaw a vira das outras vezes, mais calma que agitada; mas um juiz mais subtil teria descoberto sem custo que essa calma era a do desespero e não a da indiferença. Bucklaw estava bastante comovido para poder descobrir os sentimentos da noiva. Falou atabalhoadamente, abordando vários assuntos sem pés nem cabeça, não chegando nunca a uma conclusão precisa. Miss Ashton ouviu-o ou parecia ouvi-lo, mas não respondeu uma palavra e continuou de olhos postos num pequeno trabalho de renda que tinha entre as mãos. Sentada a curta distância, lady Ashton encontrava-se quase encoberta pela janela onde tinha colocado a cadeira. Foi dali que, numa voz suave, embora tivesse o tom de uma ordem, observou:

- Minha querida Lucy, em que pensas? Não ouviste o que disse o senhor Bucklaw?

A infeliz rapariga parecia ter esquecido a presença da sua mãe. A tremer, agulha entre os dedos, respondeu:

- Sim... não, milady... peço-vos desculpa, não tinha ouvido.

- Não deves corar, minha filha, nem tão-pouco empalidecer. Sabemos bem que uma menina não pode escutar com complacência os discursos dos rapazes. Mas o senhor Bucklaw fala-te de um casamento que tanto eu como teu pai desejaríamos ver realizado em breve.

A filha voltou-se na cadeira, relanceando a vista pela sala, num olhar que denotava medo e espanto. Bucklaw, que passeava de um lado para o outro, como para recobrar a presença de espírito, deteve-se, de repente, a pequena distância da cadeira de Lucy, dizendo-lhe:

- Creio bem, miss Ashton, que o meu comportamento é o de um perfeito imbecil. Tenho procurado falar-vos como as raparigas gostam que se lhes fale. Receio que não tivésseis compreendido coisa alguma do que vos disse e não me admiro, pois o diabo me leve se eu próprio o percebi! Mas eis o que vos vou dizer em bom escocês e de uma vez para sempre: o vosso pai e a vossa mãe estão ambos de acordo com o pedido que vos fiz. Se quiserdes para marido um rapaz que nunca vos contrariará seja no que for, sereis senhora da melhor herdade que existe nos três Lothian; tereis, também, à vossa disposição a casa que pertenceu a lady Girnington, em Edimburgo, no Canongate. Ireis aonde vos apetecer, fareis o que quiserdes. Só vos peço que reserveis um canto debaixo da mesa para um amigo meu, um companheiro de jogo. Espero que não recusareis isto a Craigie.

- Pois claro, Bucklaw! - interveio de novo lady Ashton - Porque havia minha filha de rejeitar a companhia de uma criatura tão digna e tão boa, como é o capitão Craigengelt?

- É verdade, milady, que a dignidade e a bondade são apanágio de Craigie. Tive a coragem de apresentar a miss Ashton uma exposição bastante clara: ficarei satisfeito se ela responder claramente e pela sua própria boca.

- Meu caro Bucklaw - atalhou lady Ashton - espero que desculpareis a timidez de Lucy. Digo-vos na frente de minha filha que ela já consentiu em deixar-se guiar, neste assunto, pelos conselhos de seu pai e pelos meus. Lucy, meu amor! - acrescentou, com um misto de ternura e de energia - Lucy, dize se o que afirmei não é a expressão da verdade?

- Sim - respondeu a vítima, com voz abafada e trémula - prometi obedecer-vos... mas com uma condição...

- Ela quer dizer - atalhou lady Ashton, voltando-se para Bucklaw - que, tendo-se deixado levar pelos artifícios de um homem, a uma promessa imprudente, aguarda de Viena, de Ratisbona ou de Paris, pois não sei onde ele se encontra, a resposta ao pedido que lhe fez para a desligar dessa promessa. Não deveis levar a mal, meu caro amigo, que Lucy trate este assunto, com bastante delicadeza. Interessa-nos a todos.

- É justo, muito justo - protestou Bucklaw, meio falando, meio trauteando o estribilho da antiga canção:

É melhor afastar um amor antigo

Antes que apareça outro novo.

E prosseguiu:

- Parece-me que poderíeis receber de Ravenswood seis respostas em vez de uma. O diabo me leve se eu não me encarrego de ir procurá-lo, no caso de miss Ashton me honrar com a sua incumbência...

- Não - retorquiu lady Ashton - Já tivemos grande trabalho para impedir Douglas de fazer essa tentativa imprudente. Todos nós pensamos e Lucy também deve pensar da mesma maneira, que o silêncio desse homem deve ser considerado, neste e noutros casos, como um consentimento, e que um contrato pode ser desfeito quando o interessado deixe de reclamar a sua execução. Portanto, minha querida Lucy...

- Milady! - interveio Lucy, com uma energia que não lhe era habitual -J á vos disse que, no caso de ficar desligada dessa infeliz promessa, podereis dispor de mim à vossa vontade; caso contrário, seria um pecado grave aos olhos de Deus e dos homens!

- Mas, meu amor, se essa criatura teima no silêncio...

- Não teimará. Enviei-lhe, há seis semanas, uma cópia da minha primeira carta.

- Não o devias ter feito, não devias ter feito isso! - exclamou lady Ashton, desmentindo subitamente pela violência do tom a ternura que mantivera até ali, mas que se esforçou por retomar para dizer numa voz branda:

- Minha querida Lucy, mas que ideia foi essa?

- Pouco importa - atalhou Bucklaw - Respeito os sentimentos de miss Ashton e lamento apenas não ter sido eu o portador dessa carta.

- Teremos de esperar, então, que volte o Pacolet, o teu mensageiro encantado, visto que os nossos humildes correios não te inspiram confiança? - perguntou lady Ashton a Lucy, num tom irónico.

- Tenho contado as semanas, os dias e os minutos - volveu Lucy - Mais uma semana e terei a resposta, a não ser que ele tenha morrido. Agradecia-vos - prosseguiu ela, dirigindo-se a Bucklaw - que pedísseis a minha mãe para que, daqui até lá, evite falar neste assunto.

- Mais uma vez, sobre a minha honra, respeito os vossos sentimentos, miss Ashton! - respondeu Bucklaw - Estou ansioso pela resolução deste assunto; contudo, como gentil-homem que sou, estou pronto a renunciar à minha pretensão, se vos importunarem.

- Não creio que Hayston possa duvidar das palavras de uma mãe que zela pela felicidade de sua filha - replicou lady Ashton, pálida de raiva - Em que termos foi redigida a tua última carta, Lucy?

- Nos termos que me havíeis ditado a última vez.

- Espero, minha querida filha, que, passados os oito dias que pediste, acabes com esta incerteza.

Bucklaw interveio com a sua franqueza rude:

- Não deveis insistir com miss Ashton. Os mensageiros estão sujeitos a ser detidos ou retardados. A perda de uma ferradura fez-me perder um dia de viagem. Permiti que consulte a minha agenda. O vigésimo dia a contar de hoje é o de São Judas e, na véspera, devo encontrar-me em Caverton Edge, para assistir à corrida entre a égua preta de lorde Kittlegirth e o potro de quatro anos de Johnston, o negociante de farinha. Nesse dia poderei vir aqui ou mandar Craigengelt para saber o que se passa. Como, entretanto, não importunarei miss Ashton, espero que vós, milady, sir William Ashton e o coronel Douglas, tereis a bondade de a deixar escolher o que lhe convier.

- Sois generoso, milorde - murmurou miss Ashton. Bucklaw saudou Lucy e tomou a liberdade de se despedir. Ao acompanhá-lo, lady Ashton garantiu-lhe que sua filha prestava plena justiça à sinceridade do afecto que ele lhe testemunhava e convidou-o a falar com sir William antes de partir, porque - declarou ela, lançando um último olhar a Lucy - devemos estar preparados para assinar o contrato de casamento no dia de São Judas.

- Assinar o contrato! - repetiu Lucy, em voz baixa, no momento em que fechavam a porta da sala - Assinar... a minha pena de morte.

E, apertando as mãos uma na outra, deixou-se cair, na cadeira, quase sem sentidos.

Depressa voltou a si com a chegada de seu irmão Henry, que, em altos gritos, lhe vinha lembrar a promessa que lhe tinha feito de lhe dar uma fita vermelha para fazer ligas. Com resignada paciência, Lucy levantou-se, abriu uma caixinha de marfim e procurou a fita que o irmão lhe pedia.

- Não feches a caixa - pediu Henry - pois preciso de um pouco de fio de prata para prender os guizos do meu novo falcão, embora ele não os mereça, pois não passa de um rapinante, de um destruidor. Só sabe cravar as unhas na perdiz e deixá-la fugir depois. E o mais que pode acontecer à pobre vítima é ir morrer entre o primeiro silvado.

- Tens razão, Henry, muita razão! - comentou Lucy tristemente - Mas há no mundo muitos outros rapinantes, sem serem o teu falcão, e muitas outras aves feridas que só pedem para morrer em paz sem encontrarem relva ou silvados para se esconderem!

- Bonito - exclamou o rapaz - Isso é falar como nos romances; por isso Sholto diz que eles te transtornaram a cabeça... Mas estou a ouvir o Norman assobiar ao falcão e preciso pôr-lhe os guizos.

E saiu, com a alegre irreflexão da sua idade, deixando Lucy entregue à tristeza dos seus pensamentos.

- Está escrito no livro do destino que serei abandonada por aqueles de quem tinha direito a esperar ternura e amor e que ficarei à mercê daqueles que me perseguem. É justo, pois sozinha me arrisquei. Sozinha e sem auxílio terei de me livrar delas ou morrer.

 

Nem sempre o coração pode resistir

O que se seguiu? Uma tristeza profunda, o cruel desespero, arrastando atrás de si todos os meies que afligem a humanidade.

SHAKESPEARE - Equívocos

 

Para compreender a facilidade com que Bucklaw se prestava cegamente aos manejos de lady Ashton, quando cortejava a filha, convém lembrar a disciplina familiar a que estavam submetidas, naqueles tempos, as raparigas escocesas.

As raparigas da classe alta pouco apareciam na sociedade antes do casamento; a lei e o hábito mantinham-nas sob a apertada tutela dos pais. O pretendente tinha que se inclinar à vontade da família da noiva; e, como eram raras as ocasiões que se apresentavam para poder conhecê-la com mais intimidade, combinavam as coisas por eles, como os amantes no Mercador de Veneza; ficavam à mercê da lotaria em que se arriscavam.

Não é, pois, para admirar que, dadas as circunstâncias da época, Hayston de Bucklaw, que os seus hábitos de dissipação tinham afastado da boa sociedade, não se preocupasse por encontrar na noiva uma atitude à qual muitos homens mais reflectidos e razoáveis não teriam ficado indiferentes.

O procedimento do marquês de Athol, após a partida de Ravenswood, parecia quase propositada para tornar impossível o casamento de Seu primo com Lucy Ashton. O marquês era amigo sincero de Ravenswood, mas pouco judicioso.

Graças ao crédito que lhe dava a sua qualidade de ministro, levou por diante na Câmara Inglesa dos Lordes o apelo contra as decisões da Justiça que tinham concedido a sir William Ashton os bens hereditários de Ravenswood. Como esta medida, reforçada pela autoridade do Poder, era nova nos anais judiciários da época, os legistas do partido oposto classificaram-na ruidosamente como uma usurpação sem exemplo, arbitrária e tirânica, sobre os poderes dos magistrados nacionais. Pelo efeito produzido entre as pessoas que apenas se ligavam aos Ashton por laços políticos, pode imaginar-se o que disseram e pensaram os próprios Ashton de um facto tão grave. Sir William Ashton ficou desesperado com a perda que o ameaçava. O orgulho do filho atingiu os limites da raiva com a ideia de perder aquilo que considerava como seu património. Quanto a lady Ashton, o seu carácter vingativo apresentou-lhe o procedimento de Ravenswood, ou melhor, do seu protector, como um ultrage que clamava vingança. A pacífica e confiada Lucy, influenciada pelas opiniões que ouvia em sua volta, não pôde, por seu lado, deixar de considerar o comportamento de Ravenswood como precipitado, verdadeiramente cruel.

"E o meu pai - pensava, suspirando - que o recebeu nesta casa, que o encorajou ou, pelo menos, autorizou a intimidade entre nós! Eu teria renunciado por ele a bens duas vezes mais importantes que essas terras cuja posse ele reclama com tanto ardor! Esqueceu, com certeza, que eu estava metida no assunto".

Em consequência da pretendida injustiça que se tramava contra sir William Ashton, usaram-se de todos os meios ou invocaram-se todos os argumentos para levar miss Ashton a quebrar o juramento feito a Ravenswood, classificando-o de humilhante, escandaloso e criminoso, aliança feita com o mortal inimigo da família e pensada para tornar mais amarga a infelicidade de seus pais.

Contudo, a coragem de Lucy manteve-se firme e teria suportado com resignação as acusações que dirigiam a Ravenswood, teria suportado tudo, menos as perseguições constantes da implacável lady Ashton.

A propriedade de seu pai tornou-se para ela como um castelo encantado que um feiticeiro tivesse encerrado num círculo invisível que não podia atravessar livremente, nem para entrar nem para sair. Todas as cartas em que Ravenswood expunha a Lucy os motivos imperiosos que o retinham no estrangeiro e mais de um bilhete que a infeliz lhe enviou por vias que ela julgava seguras, caíram nas mãos de sua mãe.

Vindo do Continente, espalhou-se um boato que se fundava em circunstâncias plausíveis, mas destituídas de base real: Ravenswood estava - dizia-se prestes a casar com uma jovem rica e distinta. A notícia foi avidamente acolhida pelos dois partidos que disputavam o poder e o favor popular.

O marquês de Athol expressou bem alto, em público, a sua opinião, não, certamente, nos termos grosseiros que lhe atribuiu o capitão Craigengelt, mas de uma maneira bastante ofensiva para os Ashton.

Considerava a notícia mais ou menos verdadeira e desejava de todo o coração que se confirmasse. Um tal casamento convinha bastante e honrava mais um valoroso rapaz que o casamento com a filha de um velho legista whig, cujas subtilezas tinham arruinado seu pai.

O partido contrário, esquecendo a resistência que Ravenswood encontrava na família Ashton, condenava ruidosamente a sua inconstância, a sua perfídia, como se, depois de se apossar do coração da jovem para lhe arrancar um juramento, a tivesse, sem motivo, abandonado.

A notícia chegou aos ouvidos de Lucy, por diversos lados, pois lady Ashton sabia bem que, dessa forma, lhe daria mais aparência de verdade. Uns consideravam-na como boato, outros como coisa certa.

Fizeram mesmo de Henry um instrumento de tortura para sua irmã. Certa manhã, o rapaz entrou precipitadamente no quarto de Lucy, levando na mão um ramo de salgueiros:

- Este ramo, símbolo do celibato forçado das raparigas, acaba de chegar da Alemanha, expressamente para ti - declarou.

Sabe-se que Lucy gostava ternamente de seu irmão mais novo; aquela brincadeira inocente e cruel pareceu-lhe, de momento, mais injuriosa que os estudados insultos de seu irmão mais velho. Contudo, na sua tristeza não houve sombra de ressentimento.

- Meu pobre Henry - disse-lhe com uma voz enfraquecida e passando-lhe os braços em volta do pescoço

- não fazes mais do que repetir o que te ensinam!

E começou a chorar.

Apesar da frivolidade dos seus poucos anos e do seu carácter, o rapaz comoveu-se.

- O diabo me leve se eu me encarrego mais alguma vez destas mensagens que te magoam! - afirmou. E acrescentou, beijando a irmã - Gosto mais de ti do que dos outros. Vou emprestar-te o meu potro cinzento e podes, se quiseres, fazê-lo ir a galope, sim... e levá-lo para lá da aldeia.

- Quem te disse que eu não podia ir onde quisesse?

- É segredo. Mas já deves ter notado que, sempre que te afastas da aldeia, o teu cavalo perde uma ferradura, coxeia, toca a sineta do castelo ou acontece qualquer coisa que te obrigue a voltar. Se eu falasse mais, o Douglas não me daria a faixa de seda que me prometeu. Bom dia.

O diálogo aumentou o desânimo de Lucy. Provava-lhe claramente que se encontrava como prisioneira na casa de seu pai.

Sentiu que era alvo de suspeitas, de desprezo, da aversão, talvez do ódio, da sua própria família; viu-se abandonada pelo causador da inimizade dos seus, A infidelidade de Ravenswood tornava-se, dia a dia, mais evidente.

Entretanto, chegou do Continente, por acaso, um soldado chamado Westenho, antigo camarada de Craigengelt. O digno capitão, sem prévio acordo com lady Ashton, esforçava-se por agir sempre em conformidade com ela. E conseguiu, facilmente, que o seu amigo, exagerando os factos verdadeiros, sem prejuízo daqueles que inventava, desse uma autoridade formal aos boatos que se relacionavam com o próximo casamento de Ravenswood.

Assediada por todos os lados, Lucy cedeu sob a pressão contínua. Tornou-se triste e indiferente. Por vezes, saindo do seu natural e dos seus hábitos, voltava-se contra aqueles que a atormentavam sem piedade. A sua saúde começou a alterar-se. As faces ardentes, os olhos turvados, indicavam os sintomas do que se chama uma febre nervosa. Tais sintomas teriam apiedado a maioria das mães; mas lady Ashton via decair as forças e a razão da filha sem a menor comoção. Talvez considerasse os arrebatamentos de Lucy como indícios de uma resolução prestes a expirar. Para abreviar o desfecho, serviu-se de um expediente que estava no seu carácter e na crueldade da época, mas que o leitor deve considerar verdadeiramente odioso e diabólico.

 

O sortilégio da "Sábia de Bowden"

 

Vivia ali uma feiticeira coberta de farrapos nojentos. Renunciando voluntariamente a tudo, indiferente às mais urgentes necessidades, vivia isolada, longe de todos, para ocultar os seus manejos diabólicos e infernais e poder, na sombra, ferir aqueles a quem odiava.

SpENCER - A rainha das fadas

 

A saúde de Lucy Ashton exigiu dentro em pouco a assistência de uma pessoa com mais qualidades de enfermeira do que todas as criadas da casa. Ailsie Gourlay, a quem chamavam a "Sábia de Bowden", foi a pessoa que lady Ashton encarregou, por fortes razões, de velar pela filha.

Esta mulher tinha adquirido, junto dos ignorantes, grande fama pelas pretendidas curas que fazia. Os seus remédios consistiam, por um lado, em ervas colhidas sob a influência de qualquer planeta; por outro lado, em fórmulas e magias que, por vezes, exerciam favorável influência na imaginação dos pacientes. Pode calcular-se que esta profissão de Ailsie Gourlay não era vista com bons olhos, não só pela população da vizinhança, mas também pelo clero do distrito. A isua magia não era inofensiva. Predizia o futuro, interpretava os sonhos, compunha filtros, fazia e desfazia casamentos, com tal êxito que, como diziam na região, parecia ter a ajudá-la o próprio Belzebu. O pior é que os adeptos destas ciências eram geralmente indivíduos que, odiando a humanidade, praticavam acções que justificavam a repulsa pública.

Tal era Ailsie Gourlay, que, para subjugar completamente o espírito de Lucy Ashton, sua mãe tinha julgado bom colocar junto dela. Uma pessoa de baixo nascimento não se teria atrevido a empregar tal expediente, mas, pela sua categoria e orgulho, lady Ashton considerava-se acima de todas as censuras.

A velha feiticeira compreendeu que Lucy estremecia só de vê-la; e procurou insinuar-se pela bondade e interesse a que Lucy não estava habituada nos últimos tempos. As suas atenções e os cuidados que lhe prodigalizava com tanto zelo como habilidade fizeram-lhe ganhar a confiança de Lucy; e com o pretexto de alegrar o isolamento de um quarto de doente, não tardou a prender-lhe a atenção com descrições lendárias que a doente escutava, enquanto bordava. Essas narrativas de mistress Gourlay foram ao princípio de um interesse banal:

As sílfides descansam, à noite, ao Luar;

Os amantes exilados choram o seu infortúnio:

Os feiticeiros do mal, ao fundo de um castelo sombrio,

Torturam uma escrava prisioneira...

Pouco a pouco, as lendas tomaram um aspecto mais misterioso e mais soturno e a tal ponto que, contadas no quarto fracamente iluminado, agravadas pelo tremor da voz e dos lábios lívidos, o gesto do dedo ossudo levantado, do abanar da cabeça onde brilhavam os olhos azuis da velha, teriam aterrorizado um cérebro mais forte, num século menos inclinado à credulidade. Mistress Gourlay compreendeu o seu êxito; progressivamente, foi apertando o círculo mágico em volta da vítima abandonada às suas manobras hipócritas. Começou a contar-lhe lendas relativas à família de Ravenswood, que, pela antiga grandeza e imenso poder, era alvo de tantas crenças supersticiosas.

Contou, de seguida, com pavorosos pormenores da sua invenção, a história da fonte fatal. A predição citada por Caleb sobre a morte que devia ter o último dos Ravenswood foi alvo de comentários enigmáticos; finalmente, a visão que o senhor de Ravenswood tivera na floresta e que revelara em parte pelas interrogações feitas por ele no casebre de Alix, serviu de tema a muitos exageros.

Lucy podia não ter dado nenhum valor a estas histórias se elas se referissem a outra família ou se o seu espírito não estivesse tão abalado; mas, nas circunstâncias em que se encontrava, predominavam pressentimentos de desgraça; e as sombras da superstição toldaram-lhe o cérebro. Algumas histórias que lhe foram contadas apresentavam tantos pontos de contacto com a sua que acabou, insensivelmente, por conversar com a velha sobre o assunto que a atormentava, chegando a conceder-lhe certa confiança.

A velha Gourlay soube tirar partido dessa confiança. Tirou conclusões dos presságios, interpretou os sonhos, fez mil sortilégios. É consolador saber-se que Ailsie Gourlay foi, mais tarde, sujeita a julgamento, condenada e queimada em North Berwick, por decisão da comissão do Conselho Privado. Entre os crimes que serviram de base à condenação figurava o de ter, com a ajuda e por processos ilusórios de Satanás, mostrado num espelho, a uma jovem, o homem de quem estava noiva, viajando no estrangeiro, e que lhe apareceu beijando a mão a outra mulher. Se verdadeiramente Ailsie Gourlay fora capaz de praticar esses actos de charlatanismo, é de calcular que os seus conhecimentos não podiam chegar para tanto e que devia ter cúmplices que a ajudassem. O certo é que o diabólico trabalho produziu desastrosos efeitos no espírito de miss Ashton. A sua saúde foi-se extinguindo pouco a pouco. O pai, adivinhando em parte a causa daquela mudança, praticou pela primeira vez um gesto de autoridade e expulsou mistress Gourlay do castelo. Mas o golpe fora vibrado, atingindo o coração da vítima.

Foi pouco depois da saída dessa mulher que Lucy Ashton, instada pelos pais, lhes disse que o céu, o inferno e eles próprios se tinham conjurado contra o seu casamento com Ravenswood.

- Provai-me - acrescentou ela - que Ravenswood me restitui a palavra e podeis dispor de mim como entenderdes!

O tom resoluto com que falou, o seu olhar iluminado por um fulgor estranho, os punhos fechados obstavam a qualquer réplica. Tudo quanto pôde conseguir a arte de lady Ashton foi ditar a carta pela qual Lucy perguntava a Ravenswood se ele pretendia continuar fiel à palavra dada ou se desistia daquilo a que chamava "o seu juramento infeliz". Mesmo assim, lady Ashton impediu que a carta seguisse o seu destino, na esperança de que Lucy condenaria Ravenswood pelo seu silêncio.

Há muito que expirara o prazo para a resposta que se esperava do Continente. Estava quase a extinguir-se o último raio de esperança que brilhava no espírito de Lucy. Mas ainda pensou que a carta tivesse sido expedida. Nova maquinação de sua mãe permitiu-lhe verificar o que desejava saber.

O agente feminino do inferno que tinha saído do castelo foi substituído por um agente de carácter muito diferente. Tratava-se de Bidebent, o eclesiástico de quem já falámos, presbítero da mais severa obediência, da mais rigorosa ortodoxia. Lady Ashton solicitou o seu auxílio conforme o princípio que enuncia certo tirano de tragédia:

Um padre lhe dirá que é pura loucura

Acreditar que vos prenda semelhante promessa

E que é pecado querer respeitar um juramento

Desde que ele não tenha o meu consentimento.

Todavia, mais uma vez se enganou. No decorrer de uma entrevista com miss Ashton, o padre Bidebent ficou profundamente comovido com o sofrimento da jovem e achou que era de toda a justiça o pedido que ela lhe fez para tratar directamente com Ravenswood do assunto que se ligava ao seu juramento solene. E quando lhe expôs a dúvida em que estava de não terem entregue a sua carta a Ravenswood, o velho, passeando no quarto, abanou a cabeça grisalha, parou uns instantes, apoiado na sua bengala com castão de marfim e, após leve hesitação, reconheceu que a dúvida de Lucy era razoável e dispôs-se a esclarecê-la.

- A minha opinião, miss Ashton - declarou - é que vossa digna mãe mostra neste caso um zelo que, certamente, provém do carinho que vos tem e do cuidado pelos vossos interesses, visto que o homem em quem pensais pertence a uma raça violenta; ele próprio é violento, e um desses realistas, desses ímpios, maus e impiedosos. No entanto, temos de prestar justiça a todos e cumprir as nossas obrigações, tanto para o estranho como para o nosso irmão. Eis a razão por que me encarrego de fazer chegar eu próprio, sim, eu próprio, a vossa carta a esse Edgar Ravenswood, na firme convicção de que resultará para vós a quebra dos laços com que ele, culposamente, vos prendeu.

Lucy aceitou com nervosismo o expediente que lhe foi apresentado e escreveu a carta nos termos da primeira, que o padre Bidebent entregou aos cuidados de Saunders Moonshire, um velho da igreja presbiteriana, tão zeloso pela sua fé em terra como corajoso quando estava a bordo do brigue contrabandista, correndo ao vento entre Campvere e a costa oriental da Escócia. Com a recomendação do seu Pastor, Saunders encarregou-se de fazer chegar a carta a Ravenswood, que se encontrava nessa ocasião junto de uma corte estrangeira.

Este retrocesso impunha-se ao leitor para explicar a conferência entre miss Ashton, sua mãe e Bucklaw, que descrevemos no capítulo anterior.

Entretanto, Lucy encontrou-se na situação de um marinheiro naufragado que, flutuando à deriva sobre o mar revolto, se agarra a pequena tábua; as suas forças diminuem de momento a momento e apenas os raios que, de longe em longe, rasgam as trevas, lhe mostram a crista branca das vagas que não tardarão a engoli-lo.

As semanas sucederam-se às semanas, os dias aos dias. E o dia de São Judas - termo derradeiro fixado por Lucy - chegou sem que ela recebesse carta ou notícias de Ravenswood.

 

Naquele minuto derradeiro!...

 

Como estes nomes estão bem escritos!

Como são diferentes dos rabiscos de meu livro!

No nome traçado pelo noivo, as letras aprumam-se como pinheiros na floresta, enquanto o nome da noiva aparece em letras leves e esguias como jasmins num canteiro.

CABRÉE

 

Como dissemos, ao chegar o dia de São Judas, Lucy continuava sem ter notícias de Ravenswood. Em compensação, Bucklaw e o seu fiel acó lito Craigengelt haviam chegado na manhã em que iam ter lugar as últimas formalidades a efectuar para o casamento e assinatura do contrato.

Os aposentos tinham sido preparados sob as vistas de sir William Ashton, e a saúde de miss Ashton serviu de pretexto para que a cerimónia da assinatura só tivesse como testemunhas as partes directamente interessadas, ficando assente que a celebração do casamento se efectuasse quatro dias depois de assinado o contrato: com esta medida, adoptada por sua iniciativa, lady Ashton pretendia dar o mínimo tempo a Lucy para retroceder ou para recair na sua obstinação. Mas ela não parecia disposta a fazer uma coisa ou outra. Ao acordo que lhe tinham proposto, Lucy respondera com calma indiferença, ou melhor, com a apatia do desespero. Aos olhos pouco penetrantes de Bucklaw aquela atitude não era mais do que a reserva própria da rapariga, embora a noiva não escondesse que cedia por submissão aos pais.

Após os cumprimentos do costume, dirigidos pelo noivo, Lucy consentiu que a vestissem ao gosto das damas que a serviam e que a prepararam magnificamente. O seu vestido era de seda branca com rendas de Bruxelas; dispuseram-lhe no cabelo uma profusão de jóias cujo brilho contrastava extraordinariamente com a sua palidez e o embaciado dos olhos.

A toilette terminou logo que Henry apareceu. Vinha buscar a passiva noiva para a acompanhar ao salão nobre.

- Estou contente, minha irmã, por teres preferido Bucklaw a Ravenswood, que parecia um grande de Espanha pronto para cortar-nos o pescoço e pisar-nos a pés. Ainda não pude esquecer o susto que tive no dia em que o vi pela primeira vez. Tive a impressão de que o retrato de sir Malise tinha saído da sua moldura. E tu, não estás contente?

- Não me faças perguntas, meu querido Henry. De futuro, poucas coisas haverá neste mundo que possam alegrar-me ou entristecer-me.

- Tem coragem, Lucy! Dentro de um ano falarás doutro modo. Eu serei o primeiro pajem do cortejo. Irei a cavalo, a caminho da igreja, e todos os nossos parentes, amigos e aliados, e os de Bucklaw irão também a cavalo em filas cerradas; levarei fato vermelho, chapéu com plumas, banda com dois galões dourados e adaga em vez de espada. Preferia uma espada, mas o pai não quer ouvir falar nisso. Todas estas coisas e outras mais vêm esta noite de Edimburgo, Traz-mas o velho Gilbert no dorso das mulas. Depois tas mostrarei.

A linguarice do rapaz foi interrompida por lady Ashton, que apareceu naquele momento, inquieta com a demora de sua filha. Com ternos sorrisos, meteu no seu o braço de Lucy e conduziu-a ao salão, onde era esperada.

Apenas se encontravam ali sir William Ashton, seu filho, o coronel Douglas, de grande uniforme, Bucklaw, com trajo de noivo, Craigengelt, vestido de novo dos pés à cabeça pela generosidade do seu amigo, e o reverendo Bidebent, visto ser obrigação, entre as famílias presbiterianas, a presença de um sacerdote nas cerimónias solenes.

Os vinhos e os refrescos estavam sobre a mesa, onde se via igualmente o contrato, pronto para a assinatura.

O reverendo Bidebent, a um sinal de sir William Ashton, convidou os assistentes a acompanhá-lo numa oração que ia improvisar para implorar a bênção do Céu. Com palavras simples, pediu cura para o coração ferido da noiva, como recompensa da sua submissão aos seus dignos pais. Depois, fez preces para que o futuro esposo se afastasse das loucuras que perturbam a mocidade. Uma oração, dita em honra de sir William Ashton, de lady Ashton e de sua família, concluiu o piedoso discurso, que não esqueceu nenhuma das pessoas ali reunidas, com excepção de Craigengelt, porque, certamente, o sacerdote o considerava perdido para a graça divina.

A reunião seguiu então o seu curso. Sir William Ashton assinou o contrato com a solenidade que exigia um acto legal; seu filho, com a indolência militar; e Bucklaw, assinando à medida que Craigengelt lhe virava as folhas, acabou por limpar a pena à gravata nova do seu ajudante.

Chegou a vez de Lucy assinar. A vigilante mãe acompanhou-a à mesa. À primeira tentativa, Lucy começou por se servir de uma pena sem tinta. Ante a observação que lhe fez lady Ashton, mostrou-se, por diversas vezes, incapaz de a molhar no maciço tinteiro de prata colocado diante dela; e lady Ashton teve de intervir.

Viu com os olhos o contrato fatal. O nome de Lucy Ashton está claramente escrito em cada página; parece apenas que a mão tinha tremido levemente. Mas a última assinatura está incompleta, deformada, desconjuntada.

É que, no momento em que a traçava, ouviu-se o galopar de um cavalo e pouco depois o ressoar de uma voz imperiosa dominando a oposição dos criados. A pena caiu dos dedos de Lucy e um grito escapou-se-lhe dos lábios.

- É ele! Ele voltou! Ele voltou!...

 

A trágica entrevista

 

Pela sua maneira de falar deve ser um Montaigu. Vão buscar a minha espada. Pela sagrada honra da minha casa não creio ser crime matá-lo.

SHAKESPEARE - Romeu e Julieta

 

Quase nesse mesmo instante, abriu-se a porta do salão e entrou Ravenswood.

Lockhard e outro criado, que em vão tinham tentado impedir-lhe a passagem pela galeria do vestíbulo, ficaram atrás, no limiar, imobilizados por uma surpresa que se comunicou a todas as pessoas que se encontravam reunidas no salão.

Ravenswood postou-se no meio do salão, defronte da mesa junto da qual estava sentada Lucy. E, como se ela estivesse sozinha, envolveu-a num olhar onde se lia profunda tristeza e indignação reflectida. A capa espanhola, caída dos ombros, envolvia-o em dobras escuras. Quem o visse, coberto de poeira, adivinharia a extensão e a fadiga da correria. Um chapéu desabado ensombrava-lhe ainda mais as feições, onde havia qualquer coisa de feroz e mesmo de selvagem. Trazia uma espada ao lado e duas pistolas à cinta. Os cabelos, que saíam em desordem por debaixo do chapéu, o olhar fixo e a imobilidade das feições assemelhavam-no a uma estátua de mármore. Não disse uma palavra. Decorreram mais de dois minutos naquele silêncio.

O silêncio foi quebrado por lady Ashton, que, nesse curto espaço de tempo, recobrara a audácia. Perguntou a causa de tão insólita entrada.

- É uma pergunta que eu, melhor do que ninguém, tenho o direito de fazer, milady! - atalhou o filho; e acrescentou - Convido o senhor de Ravenswood a acompanhar-me a qualquer sítio onde me possa responder à vontade.

Bucklaw interveio:

- Não consentirei que outra pessoa me usurpe o direito de exigir uma explicação. Craigengelt - acrescentou ele a meia voz - Que diabo vos faz aferir tanto os olhos como se tivésseis visto uma alma do outro mundo? Ide buscar uma espada à galeria!

- Sou eu - retorquiu o coronel Ashton - que não cederei seja a quem for o direito de exigir explicações ao homem que acaba de afrontar a minha família!

- Paciência, meus senhores - pediu Ravenswood, voltando-se para eles e fazendo um gesto com a mão para que se acalmassem - Se estivésseis, como eu, tão cansados de viver, encontraria tempo e sítio para arriscar a minha vida contra as vossas. Mas falta-me tempo para discutir com estouvados!

- Estouvados! - repetiu o coronel, desembainhando metade da espada, enquanto Bucklaw empunhava a arma que Craigengelt acabava de lhe trazer.

Sir William Ashton, tremendo pela vida de seu filho, colocou-se entre Ravenswood e os dois jovens.

- Meu filho! - exclamou - Ordeno-te, e a vós, Bucklaw, peço-vos a paz, em nome da Rainha e da Lei!

- Em nome da lei divina - acrescentou Bidebent, avançando também, de braços levantados, entre Bucklaw, o coronel e o homem que os desafiava - Em nome de Aquele que trouxe a paz à terra e pregou o amor entre os homens, peço-vos, suplico-vos que evitem a violência! Deus detesta o homem que se exalta. Quem mata com a espada, morrerá pela espada!

- Monsenhor! - respondeu-lhe o coronel Ashton, voltando-se para ele com ar furioso - Tomais-me por um cão, para que me julgueis capaz de suportar semelhante ultraje na casa de meu pai? Deixai-me passar, Bucklaw! Ele me dará razão ou, por Deus, matá-lo-ei aqui mesmo!

- Não lhe tocareis - protestou Bucklaw - Concedeu-me um dia a vida; e fosse ele o diabo, vindo para levar a casa e toda a família, não seria atacado sem lhe dar tempo a defender-se.

- Silêncio! - impôs Ravenswood - Aquele que desejar bater-se comigo escolha, quando for tempo, a hora que lhe convier. A minha missão aqui será depressa cumprida. Esta carta foi escrita por vós, miss Ashton? - acrescentou num tom mais brando, mostrando a Lucy a sua última carta.

Um sim balbuciante saiu, como involuntariamente, dos lábios de Lucy.

- E esta assinatura é vossa? - prosseguiu, mostrando-lhe desta vez a promessa que os ligava.

Lucy não respondeu. O terror, juntamente com os mais desordenados pensamentos, perturbavam-lhe o espírito ao ponto de não poder compreender a pergunta que lhe era dirigida.

- Se julgais encontrar nesse papel um direito legal - interveio Sir William Ashton - não espereis, milorde, resposta a uma pergunta extra-judicial.

- Sir Ashton - replicou Ravenswood - peço-vos, e a vós outros que me estais ouvindo, que não vos equivoqueis sobre as minhas intenções. Eu quero que miss Ashton me diga, pela sua própria boca, se deseja ou não a anulação do nosso juramento; e sairei daqui logo que obtenha essa confirmação. Se pensais matar-me, lembrai-vos de que estou bem armado e desesperado e não morrerei sem me vingar. É esta a minha resolução; encarai-a como quiserdes. Saberei da boca de miss Ashton a decisão que tomou; sabê-la-ei sem testemunhas e somente da sua boca.

Após estas palavras, empunhou a espada na mão direita, enquanto que com a esquerda aperrava uma pistola; e baixando as duas armas, prosseguiu:

- E, agora, escolhei: ou ver este salão tinto de sangue, ou aceitar a entrevista que peço à minha noiva, e que a lei de Deus e da Escócia me permitem exigir!

Ao som daquela voz e ante aquele gesto firme que traduzia resolução assente, todos recuaram. O padre Bidebent foi o primeiro a falar:

- Em nome do céu, aceitai a paz que vos oferece o mais humilde dos seus servos! O pedido de lorde Ravenswood, embora seja um pouco violento, não deixa de ter alguma razão. Deixai-o ouvir dos próprios lábios de miss Ashton a declaração de que acede respeitosamente à vontade de seus pais e manifestar o seu desgosto por lhe ter comprometido a sua palavra. Quando ele obtiver a certeza, cairá calmamente em si. Espero que Vossa Honra estará de acordo...

- Isso, nunca! - respondeu lady Ashton, cuja ira tinha suplantado a primeira surpresa e o espanto - Esse homem nunca poderá encontrar-se a sós com minha filha, noiva de outro! Não receio a sua violência nem as suas armas, embora outros que usam o meu nome - terminou ela, lançando um olhar ao coronel Ashton - pareçam intimidados.

- Em nome de Deus, milady! - interveio o digno sacerdote - Não alimenteis o fogo! Lorde Ravenswood não pode, estou certo, dado o estado de saúde de miss Ashton e o vosso dever maternal, recusar a vossa presença. Eu também devo estar presente. Talvez os meus cabelos brancos vos acalmem a ira.

- Aceito de bom grado a vossa presença, Monsenhor - concordou Ravenswood - e igualmente a de lady Ashton, se ela o julgar conveniente; mas saiam todos os outros.

- Ravenswood! - bradou o coronel Ashton, ao passar diante dele para sair - Prestareis contas disto antes que seja tarde.

- Quando quiserdes - respondeu Ravenswood.

- Eu tenho o direito de prioridade, e de longa data!

- afirmou por sua vez Bucklaw, num meio sorriso.

- Combinai entre vós - respondeu Ravenswood - Quero apenas que me deixem hoje em paz, amanhã nada mais desejarei do que dar-vos todas as satisfações exigidas.

O coronel e Bucklaw saíram. Craigengelt fez o mesmo. Sir William não se apressou a imitá-los.

- Ravenswood - disse num tom conciliador - creio que não vos fiz nada que merecesse este escândalo em minha casa e que ultrajásseis a minha família. Se quereis embainhar a vossa espada e acompanhar-me ao meu escritório, provar-vos-ei, com os argumentos mais categóricos, a irregularidade e inutilidade do vosso procedimento.

- Amanhã, milorde, amanhã, estarei pronto a atender-vos - afirmou Ravenswood - Hoje, trata-se de um assunto particular, indispensável e sagrado.

E indicou a porta a sir William, que não pôde deixar de sair.

Ravenswood meteu a espada na bainha, desarmou a pistola e pô-la no cinto; seguidamente, foi correr o fecho da porta, voltou para junto da mesa, tirou o chapéu e fixou Lucy:

- Reconheceis-me, miss Ashton? - perguntou - Sou sempre o mesmo Edgar Ravenswood.

A infeliz não respondeu. E ele prosseguiu, com crescente veemência:

- Sou sempre esse Edgar Ravenswood que, por amor a vós, renunciou à vingança das injúrias feitas à sua honra, vingança que considerava como sagrado dever. Sou esse Edgar Ravenswood que, por vós, perdoou, que digo eu?... que apertou amigavelmente as mãos do opressor, do espoliador da sua casa, do homem que difamou e matou seu pai.

Lady Ashton interrompeu-o:

- Minha filha não pensa em discutir a vossa identidade. Uma linguagem tão venenosa bastaria para ela reconhecer que fala com o inimigo mortal de seu pai.

- Um pouco de paciência, milady - retorquiu Ravenswood - A resposta que exijo deve ser dada propriamente por vossa filha. Mais uma vez, miss Ashton, eu sou aquele Edgar Ravenswood ante o qual fizestes um juramento solene que hoje desejais desdizer e trair!

Os lábios esmaecidos de Lucy só puderam balbuciar:

- Foi minha mãe...

- Ela diz a verdade - atalhou lady Ashton - Fui eu quem, apoiando-me na lei de Deus e na lei dos homens, lhe dei o conselho, que ela seguiu, de quebrar um juramento tão infeliz como irreflectido, um juramento anulado pela autoridade da Igreja.

- Da Igreja! - repetiu Ravenswood com desprezo.

Lady Ashton apelou para o sacerdote:

- Lede-lhe o texto em que declarastes sem efeito o juramento ao qual este homem, se agarra com tanta violência.

O Pastor tirou a Bíblia do bolso e leu o seguinte versículo:

"Se uma mulher, na sua infância, quando vive na casa de seu pai, faz uma promessa ante o Senhor e se prende por um juramento, e se seu pai tem conhecimento dessa promessa e desse juramento pelo qual ela está presa, e se seu pai se cala perante ele, então todas as promessas que ela tiver feito serão válidas, e tombem todos os juramentos pelos quais ela se terá ligado".

- Não é precisamente o caso... - interrompeu Ravenswood.

- Dominai a vossa impaciência! - respondeu o sacerdote - Escutai o que se segue no texto sagrado: "Mas, se seu pai as desaprova no dia em que tiver conhecimento, nenhuma das promessas ou dessas juras terão validade; e o Senhor lhe perdoará porque seu pai as reprovou".

- E não será este o nosso caso? - perguntou lady Ashton, com ar triunfante - Poderá este homem negar que, logo que soubemos da promessa ou da jura pela qual se prendia nossa filha, a reprovámos nos termos mais expressivos e a levámos a escrever, informando-o da nossa determinação?

- E é tudo? - perguntou Ravenswood, fixando Lucy - Ides trocar a fé jurada, um compromisso tomado por livre vontade, os sentimentos de um afecto natural, contra esses miseráveis sofismas da hipocrisia?

- Estais ouvindo, estais ouvindo o blasfemo? - perguntou lady Ashton ao sacerdote.

- Que Deus lhe perdoe - respondeu Bidebent - e ilumine a sua ignorância!

- Antes de aprovar o que foi feito em vosso nome - continuou Ravenswood, com os olhos sempre fitos em Lucy - sabeis o que tenho sacrificado por vós? A honra de uma antiga família, os conselhos dos meus melhores amigos, coisa alguma fez vergar a minha resolução. Nem os argumentos da razão, nem os presságios da superstição quebraram a minha fidelidade. Os próprios mortos saíram dos túmulos para me avisar, mas desdenhei tudo! Estais pronta a castigar a minha constância, atravessando-me o coração com a lâmina que a minha confiança vos tinha entregado?

- Senhor de Ravenswood! - interveio lady Ashton - Interrogastes minha filha à vossa vontade. Vedes a sua absoluta incapacidade para vos responder. Mas eu vou responder por ela e de uma maneira que prevê qualquer réplica. Desejais saber se é bem da sua livre vontade que Lucy Ashton deseja quebrar o juramento a que se deixou prender. Tendes, escrita pelo seu próprio punho, a carta que ela vos enviou; e, se for preciso, eis uma prova mais forte, eis o contrato que ela assinou há pouco, na presença deste sacerdote e de Hayston de Bucklaw.

- E não se serviram de uma fraude e de uma imposição para conseguirem que miss Ashton assinasse esse pergaminho? - perguntou Ravenswood, olhando para o reverendo padre.

- Não, atesta-o o meu nome.

- Reconheço, milady, que é uma prova irrecusável - concordou Ravenswood - Da minha parte teria tanto de humilhante como de inútil gastar mais palavras com censuras. Eis, miss Ashton - prosseguiu, pondo diante de Lucy o manuscrito que a ligava a ele e a metade da moeda de oiro que tinha repartido - eis as provas do vosso primeiro juramento: permita Deus que sejais mais fiel àquele que acabais de tomar! Espero a restituição dos laços correspondentes à minha mal empregada confiança, ou melhor, à minha estranha loucura!

Lucy correspondeu ao olhar de desdém que lhe lançou o seu apaixonado fixando nele dois olhos dilatados de onde parecia ter desaparecido o conhecimento. Pareceu, no entanto, compreender em parte o que lhe pedira, levantou as mãos como para desatar uma fita azul que trazia ao pescoço. Vendo-a incapaz de executar o seu intento, lady Ashton cortou-a em duas e tirou a meia-moeda de ouro que a filha tinha quase oculta entre o seio. Com um gesto arrogante, entregou tudo a Ravenswood.

- É possível que ela a trouxesse ao peito? - perguntou ele a si próprio - Perto do coração?!... Até ao momento em que... Mas, de que me servirão as lamentações?

Enxugando uma lágrima rebelde, retomou a fria e severa atitude, aproximou-se da chaminé, atirou para o fogo a dupla promessa, com as duas metades da moeda de ouro e, para assegurar a sua destruição, calcou as brasas com o tacão da bota.

- Nada mais tenho a dizer-vos, lady Ashton! - declarou - Espero que tenham terminado aqui as vossas maquinações contra a dignidade de vossa filha. Quanto a vós, miss Ashton, só me resta uma coisa para vos dizer: deveis pedir a Deus para que não vos castigue pelo vosso voluntário e deliberado perjúrio!

Dizendo isto, saiu do salão.

Sir William Ashton conseguira deter, com os seus pedidos e autoridade, seu filho e Bucklaw num recanto isolado do castelo, a fim de evitar novo encontro com Ravenswood. Mas no momento em que este descia a grande escadaria, Lockhard entregou-lhe um bilhete de Sholto Douglas Ashton. O coronel perguntava onde podia dentro de quatro ou cinco horas encontrar o senhor de Ravenswood, a fim de ajustar com ele um assunto da mais alta importância.

- Dizei ao coronel Ashton - declarou Ravenswood - que poderá procurar-me em Wolf's Crag, quando muito bem lhe parecer.

Como Ravenswood descesse em seguida a escada do terraço, foi abordado por Craigengelt. Em nome do lorde Bucklaw, o capitão mostrou-se esperançado de que Ravenswood não sairia da Escócia antes de dez dias, pois queria testemunhar-lhe a sua gratidão pelas antigas e recentes atenções que tinha recebido dele.

- Dizei ao vosso amo - respondeu-lhe Ravenswood com altivez - que não tem mais do que escolher o dia e a hora. Encontrar-me-á em Wolf's Crag, se alguém não tiver adiado e destruído os seus planos.

- Meu amo? - replicou Craigengelt, encorajado com a presença do coronel Ashton e de Bucklaw. parados em baixo, no terraço - Ficai sabendo que não consinto que me falem nesse tom e que não conheço nenhum amo neste mundo!

- Então, ide procurá-lo ao inferno! - exclamou Ravenswood.

E, dando liberdade à ira que contivera até ali, empurrou Craigengelt com tal violência que o fez rolar pelos degraus e estatelar-se lá em baixo, sem sentidos.

- Louco! Sou um louco, por me ter encolerizado deste modo!

Montou no seu cavalo, que tinha deixado preso a uma balaustrada, defronte do castelo, passou, vagarosamente, diante de Bucklaw e do coronel Ashton. olhou-os de frente e saudou-os, saudação a que eles corresponderam. Por fim, transposto o gradeamento, e depois de ter olhado fixamente para o castelo, partiu a todo o galope.

 

Núpcias de sangue e de morte...

 

Quem é aquele que sai do quarto nupcial? É Asrael, o anjo da morte.

SouTHEY - Thalaba

 

Depois da cena terrível de que o castelo de Ravenswood foi teatro, levaram Lucy para o quarto, onde permaneceu algum tempo num estado de absoluta inconsciência. Contudo, no dia seguinte, pareceu recobrar não só os sentidos e o ânimo, mas, também uma espécie de caprichosa frivolidade, tão pouco conforme com a sua situação e o seu carácter, e por vezes entrecortada por períodos de silêncio, de melancolia e de irritabilidade, que lady Ashton consultou o médico da família. O pulso estava normal, e este concluiu que só o espírito estava doente, prescrevendo um pouco do exercício, juntamente com alguma distracção.

Miss Ashton nunca mais fez alusão ao que se tinha passado durante a assinatura do contrato. Parecia até ter esquecido tudo, visto terem notado que levava as mãos ao pescoço, como a procurar a fita desaparecida, e que, não conseguindo encontrá-la, murmurava, surpreendida e descontente:

- Era o fio que me prendia à vida!

Apesar daqueles flagrantes sintomas, lady Ashton estava muito comprometida para adiar o casamento de sua filha, mesmo alegando o seu estado de saúde. Bem sabia que, se Bucklaw notasse na noiva a menor repugnância, renunciaria ao enlace, o que seria para ela, lady Ashton, um ultraje e uma humilhação. Decidiu que o casamento se celebrasse no dia primitivamente fixado, calculando que a mudança de situação e ambiente restituiriam a saúde a Lucy melhor do que todos os remédios.

Bucklaw não teria permitido que se precipitassem as coisas se conhecesse o estado de saúde de miss Ashton ou, antes, o seu estado de espirito. Mas os costumes de então não permitiam entre futuros esposos mais do que, raras e espaçadas relações e lady Ashton soube tão bem aproveitar as circunstâncias que o noivo não adivinhou coisa alguma.

Na véspera do casamento, Lucy pareceu ter um desses acessos de frivolidade: seguiu com interesse infantil os preparativos que faziam para o noivado. A manhã seguinte raiou clara e alegre. Os convidados tinham vindo de longe em grupos numerosos. Aos parentes de sir William Ashton tinham-se reunido os de sua mulher, sem falar de inúmeros primos e amigos de Bucklaw, todos montados em lindos cavalos, ricamente ajaezados.

Esplêndido almoço aguardava os convidados à sua chegada. Logo que terminou, todos montaram a cavalo. A noiva ia entre seu irmão Henry e sua mãe. A sua alegria da véspera tinha dado lugar a uma tristeza que não condizia com o momento solene. Enquanto a cavalgada se formava, sir William Ashton repreendeu seu filho Henry por trazer à cinta enorme espada pertencente a seu irmão, o coronel Douglas. Muito preocupado com o trajo e a espada, Henry não prestava atenção ao resto. Mas, mais tarde, recordar-se-ia até à hora da morte que, quando tocou na mão da irmã, a sentiu hirta e gelada como a de um cadáver.

Passando por montes e vales, o cortejo chegou por fim à igreja paroquial, que ficou quase cheia, visto que, entre criados e convidados, eram mais de cem. A cerimónia do casamento efectuou-se conforme os preceitos da igreja presbiteriana.

À porta da igreja foi distribuído um bodo aos pobres das paróquias vizinhas, sob a direcção de Johnny Mortsheugh, que tinha trocado ultimamente as funções de coveiro no lúgubre cemitério da Ermida pelo mister, mais vantajoso, de sacristão da igreja paroquial de Ravenswood. Ailsie Gourlay, entre duas das suas companheiras, as mesmas que tinham acompanhado a velha Alix no seu leito de morte, estava sentada numa pedra tumular, e as três comparavam, com inveja, as partes recebidas pelos outros com as que lhes tinham cabido na distribuição de víveres.

- Sois a mais velha de nós três, Ailsie Gourlay - observou Annie Winnie - Já viste um casamento mais lindo?

- Não afirmo ter visto outro, mas creio que não tardarei a ver também uns lindos funerais.

- Tanto melhor - volveu Anni Winnie - Nos enterros o bodo é mais farto e não nos obrigam a rir nem a dizer graças a esta nobreza doida que nos despreza como se fôssemos bichos peçonhentos.

- Tendes razão - concordou a paralítica - Que Deus nos dê um Natal feliz e um cemitério bem recheado!

- Gostava de saber - perguntou a outra velha - qual dessas pessoas morrerá primeiro.

- Estais vendo, além, aquela rapariga rebrilhante de ouro e de jóias, que ajudam a montar no cavalo branco e tem junto de si aquele rapaz estouvado, vestido de vermelho e com grande espada à cinta? - perguntou Ailsie.

- A noiva! - exclamou Annie Winnie, com o coração oprimido por leve compaixão - É a noiva em pessoa! Tão nova, tão linda e tão amável! E a sua hora está tão próxima!

- Eu digo-vos, e acreditem-me - respondeu a bruxa - a mortalha que deve cobri-la já lhe sobe até ao pescoço. As árvores começam a deixar cair as folhas, e ela não as verá nunca mais rodopiar como numa ronda de fadas, sopradas pelo vento de São Martinho.

- Estivestes a tratá-la durante três meses – comentou a paralítica - e, se não me engano, ganhastes com isso duas moedas de ouro.

- Sim, sim! - retorquiu Ailsie com amargo sorriso - E sir William Ashton prometeu-me também uma bela fogueira, uma corrente e um tonel de alcatrão, minha filha! Que me dizeis do presente? Tudo isto, por me ter levantado cedo e deitado tarde em serviço da sua filha doente. Pode guardar essas belas coisas para a sua mulher, comadres!

- Ouvi dizer que é muito má!

- Há mais maldade dentro daquele lindo corpo do que no corpo de todas as feiticeiras da Escócia.

Se o ódio que separava estas velhas do resto da humanidade tinha tornado o seu coração insensível à alegria da festa, não sucedia o mesmo com os habitantes da região. O esplendor do cortejo, o colorido dos trajes, a fogosidade dos cavalos, o aspecto brilhante que apresentava o conjunto dos cavaleiros e das amazonas, produziam, sobre os espíritos populares, o seu efeito habitual. As repetidas exclamações de: "Viva Ashton! Viva Bucklaw!", o disparar das pistolas, das escopetas e dos mosquetes para a saudação tradicional aos noivos, testemunhavam o interesse que levava o povo a acompanhar até ao castelo o regresso da cavalgada.

Seguida por um séquito onde se confundiam ricos e pobres, Lucy ia ao lado de seu pai e de Bucklaw. Chegaram ao castelo por entre um coro de aclamações alegres.

Foi oferecido aos convidados um banquete onde reinou abundância sem limites; e quando a criadagem se banqueteou por sua vez, a multidão exultante pôde repartir os restos da comida, os barris da cerveja, a fim de que a alegria do exterior correspondesse à alegria que reinava dentro do palácio. Os cavalheiros, conforme o costume da época, fizeram largamente honra aos vinhos generosos, quando, reunidos na galeria, aguardavam com impaciência o baile que coroava sempre as festas de um casamento. Depois passaram ao salão, onde, aquecidos pelos vinhos generosos e pela alegria da festa, tiraram as espadas e deram a mão às damas. Os rigores da etiqueta mandavam que a noiva abrisse o baile; mas lady Ashton, desculpando-se com o mau estado de saúde de sua filha, deu a mão a Bucklaw.

Ao levantar graciosamente a cabeça para dar o sinal de começar a música, sentiu um calafrio ao notar a decoração da sala e exclamou, surpreendida:

- Quem se atreveu a pôr aqui aquele retrato?

Olharam todos. Os que conheciam o aspecto habitual da sala verificaram, com espanto, que tinham retirado do seu lugar o retrato do pai de sir William Ashton, substituindo-o pelo de sir Malise Ravenswood, cujo olhar parecia reflectir colérica ameaça de vingança. A mudança tinha sido feita antes de terem acendido os lustres e os candelabros para o baile. Não havia uma só das pessoas presentes cujo orgulho não exigisse um inquérito urgente sobre o que todos consideravam um insulto. Porém, lady Ashton não concordou com esse inquérito. Atribuiu o facto a um acto de loucura praticado por uma criada e cuja imaginação fora afectada pelas histórias de Ailsie Gourlay sobre a antiga família, como lady Ashton chamava os Ravenswood. Retiraram dali o odioso retrato e, depois, lady Ashton abriu o baile com uma dignidade, uma graciosidade que suplantavam os encantos da juventude e quase justificavam os estranhos elogios dos velhos, quando exaltavam os seus méritos de dançarina que ultrapassavam de longe os da nova geração.

Quando lady Ashton serenou, não se admirou ao verificar que sua filha já ali não estava e foi ter com ela para evitar que os seus nervos se agitassem com a misteriosa mudança dos retratos; voltou ao salão uma hora depois, dizendo algumas palavras em voz baixa a Bucklaw, que não tardou em sair. Entretanto, a música prosseguiu, os dançarinos continuaram, com todo o entusiasmo, inspirados pelo ardor e alegria da mocidade, quando soou um grito agudo, que fez parar a música e os bailarinos. Quando se ouviu novo grito, o coronel Ashton agarrou num dos candelabros, pediu a chave do quarto nupcial a Henry, que a guardava como primeiro pagem de honra, e saiu correndo, seguido de sir William Ashton, de sua mãe e de dois ou três parentes, enquanto os restantes convidados aguardavam o seu regresso num estado de grande inquietação.

Chegado à porta do quarto, o coronel Ashton bateu, chamou, mas só obteve como resposta gemidos abafados. Tentou abri-la. Atrás do batente havia qualquer coisa que lhe resistia. Conseguiu abrir por fim e, junto da porta, descobriu, jazendo num mar de sangue, o corpo de Bucklaw. Um grito de terror saiu de todas as bocas. Os convidados acorreram. O coronel Ashton murmurou baixinho a sua mãe:

- Ela matou-o! Procurai-a!

Depois desembainhou a espada, postou-se no corredor e declarou que não deixaria passar ninguém, salvo o padre e um médico. Bucklaw respirava ainda. Levaram-no para outro quarto, onde os Seus amigos, desconfiados e fazendo comentários, o rodearam para saber a opinião do médico.

Entretanto, lady Ashton, seu marido e os familiares que o tinham acompanhado, procurando em vão Lucy no leito conjugal e no quarto, chegaram, à conclusão de que se tinha atirado pela janela, visto não existir qualquer passagem interior. Um deles, quando baixou o castiçal, viu uma mancha branca ao canto do velho e monumental fogão. Encontraram ali a infeliz rapariga sentada ou, antes, agachada como um animal perseguido. Os cabelos em desalinho, o vestido de noiva rasgado e salpicado de sangue, os olhos vítreos, as feições congestionadas pela demência. Ao ver-se descoberta, lançou gritos inarticulados, fez caretas e, com ar triunfante e diabólico, mostrou os dedos ensanguentados, agitou-os com gestos frenéticos.

Levaram-na dali à força para outro quarto, onde tomaram todas as medidas que se impunham à situação para sua segurança e vigilância. A inexprimível dor da família, o terror e a confusão que reinavam no castelo, a excitação dos amigos de uns e de outros, aquecidos pelos excessos dessa noite, são coisas que não podem descrever-se.

O médico foi o primeiro a conseguir fazer-se ouvir. Declarou que o ferimento de Bucklaw, embora grave, não era mortal. Isto fez calar os amigos do noivo, que até ali tinham insistido para o levarem para o castelo mais próximo. Contudo, pediram ainda que, considerando o que se tinha passado, quatro de entre eles fossem autorizados a velar o ferido e ficassem no castelo, alguns criados armados. Estas condições foram aceites pelo coronel Ashton e por seu pai; os outros amigos do noivo deixaram o castelo, não obstante a hora avançada e a escuridão da noite. O médico pôde, depois, dar o seu parecer sobre miss Ashton, cujo estado julgou bastante grave. Outros médicos prognosticaram para a noite uma crise que seria decisiva e que o foi, de facto. Quando a doente saiu da sua letargia, parecia calma. Quis que lhe mudassem a roupa e cuidassem da cama. Mas apenas levou a mão ao pescoço, como a procurar a fatal fita azul, um turbilhão de recordações apossou-se dela e nem o seu espírito nem o seu corpo puderam suportar essa avalanche. Sucederam-se as convulsões, que só terminaram com a morte, sem que ela tivesse dado uma palavra sequer para explicar o drama.

O juiz provincial do distrito chegou de manhã e procedeu, com todos os cuidados possíveis para com a desolada família, ao seu inquérito sobre as causas e pormenores dos cruéis acontecimentos. Mas, por fim, aceitou a hipótese geral, isto é, a noiva, num súbito acesso de loucura, ter apunhalado o esposo à entrada do quarto. A arma fatal foi encontrada, tinta de sangue. Era a adaga que Henry devia levar no dia do casamento e não conseguira encontrar. A sua infeliz irmã tinha-a escondido, certamente, na tarde em que ele a tinha mostrado entre outros objectos preparados para a boda.

Os amigos de Bucklaw esperaram que este os esclarecesse sobre a sombria história. Apertaram-no com perguntas, a que ele respondeu logo que o seu estado de convalescente lho consentiu. Reuniu todas as pessoas, homens e mulheres, que se supunham com direito a interrogá-lo, agradeceu-lhes o interesse que lhe tinham manifestado e acabou por declarar:

- Agradeço-vos, meus amigos, o vosso interesse, mas nada tenho para vos contar nem injúria a vingar. Se, de futuro, uma dama me interrogar sobre os acontecimentos dessa triste noite, calar-me-ei e considerá-la-ei como uma pessoa que deseja quebrar todos os laços da sua amizade para comigo. Numa palavra: nada lhe direi. Mas se, por outro lado, um homem me interrogar sobre o mesmo assunto, tomarei a sua indelicadeza por um convite bastante significativo a um encontro com ele.

Pouco depois, Bucklaw partiu para o estrangeiro, donde nunca mais voltou à Escócia; e nunca mais, que se saiba, deixou transpirar as circunstâncias trágicas que acompanharam o seu casamento. O que dissemos poderá parecer exagero a muitos leitores, talvez mesmo romântico, nascido da imaginação de um autor desejoso de satisfazer o gosto do público pelo trágico. Porém, os que conhecem a história da Escócia e sabem o que era esta família no tempo em que decorre o nosso romance, não terão dificuldade em reconhecer, apesar dos nomes fictícios, que a nossa narrativa é. infelizmente, verdadeira.

 

Assim acaba uma história!

 

Quem terá o coração tão duro como o mármore para não se comover com esta história? Ver um nobre cavaleiro desaparecer de repente, enterrado, engolido pelas areias, por ter, temerariamente, metido o cavalo por um terreno que não conhecia?

Poema sobre o brasão - Risett vol. II

 

Antecipamos a narração dos acontecimentos para falar na cura de Bucklaw e dizer o que se passou com ele, interrompendo a descrição dos acontecimentos que se seguiram aos funerais da infeliz Lucy Ashton. A triste cerimónia realizou-se numa nevoenta manhã de Outono. Pequeno número de parentes mais chegados acompanharam-na à mesma igreja onde a tinham levado, pouco antes, como noiva. Sir William Ashton tinha mandado preparar o terreno adjacente à igreja para sepulcro da família. Ali, num sarcófago sem nome, sem data, ficaram depositados os restos dessa que tinha sido a personificação do encanto, da beleza e da inocência. Enquanto se procedia ao enterro, as três velhas bruxas da aldeia, que, apesar da hora matinal, tinham, como abutres, farejado o cadáver de longe, estavam sentadas numa lousa tumular e reuniram-se, como de costume, numa conversa ímpia.

- Eu não vos tinha já dito que a boda seria seguida por um enterro? - perguntou Ailsie Gourlay.

- Será verdade que a noiva foi arrancada da cama pelos espíritos malignos, que a levaram para a chaminé depois de terem apunhalado o marido? - observou a paralítica.

- Não queiram saber como a coisa se passou, mas todos sabem que foi um caso muito estranho.

- Visto que estais tão bem informada - perguntou Annie Winnie - é verdade que o retrato do velho sir Malise Ravenswood saltou da moldura, espalhando o terror pelos convidados?

- Não! - respondeu Ailsie - O retrato apareceu no salão apenas para os prevenir de que o seu orgulho seria abatido. Mas o mais extraordinário, comadre, é o que se passa neste momento na cripta. Não vistes descer doze pessoas, duas a duas, trajadas de luto?

- Sim, eu contei-as - respondeu a outra, com vivacidade, como se o espectáculo lhe despertassse grande interesse.

- Mas não vistes que ia outra pessoa atrás, o que perfaz a soma de treze? E, com certeza, com esse número aziago, alguém morrerá em breve, conforme a crença. Vamo-nos, amigas. Se ficamos aqui, acabarão por nos apontar como causadoras da desgraça.

Seguidamente, como corvos anunciadores de uma epidemia, as três bruxas saíram do cemitério.

De facto, no momento em que findou a fúnebre tarefa, os assistentes descobriram que se encontrava entre eles alguém que não tinha sido convidado. Trocaram algumas palavras em voz baixa. As suas atenções fixaram-se num homem que, envolto numa capa negra, se encostava a um dos pilares do edifício. Os parentes e amigos da família Ashton comunicavam entre si a sua surpresa e o descontentamento pela presença daquele intruso, quando foram interrompidos pelo coronel Ashton, que dirigia o funeral na ausência de seu pai.

- Eu sei quem é aquele homem - declarou - Deixai-me falar-lhe e não perturbeis a cerimónia com um escândalo inútil.

Depois destas palavras, separou-se do grupo e, puxando pela capa do desconhecido, pediu-lhe, contendo a comoção:

- Acompanhai-me.

Maquinalmente, como se, ao ouvir aquela voz, acordasse de um sonho letárgico, o desconhecido seguiu-o e ambos subiram a escada em ruínas que da cripta ia dar ao cemitério. O grupo acompanhou-os por sua vez, e todos observavam os gestos dos dois. Parados num dos recantos mais afastados do cemitério, pareciam conversar animadamente.

- Creio que estou falando com lorde Ravenswood?

- começou o coronel Ashton.

O outro não lhe respondeu.

- Creio que estou falando com o assassino de minha irmã? - insistiu.

- Dizeis bem - respondeu, por fim, Ravenswood.

- Se estais arrependido que Deus leve em conta o vosso arrependimento. Por mim, não quero saber dele. E, entregando-lhe um papel, prosseguiu:

- Eis a medida da minha espada, com a indicação da hora e do local do encontro. Amanhã, de manhã, ao raiar do Sol, no areal, a Leste de Wolf's Hope.

Ravenswood aceitou o papel. Pareceu indeciso; por fim, pediu:

- Não arrasteis ao extremo do desespero um homem já desesperado! Levai a vida o mais longe que puderdes e deixai que eu procure a minha morte noutro sítio.

- Isso nunca, nunca! - exclamou Douglas Ashton - Ou morrereis à minha mão ou completareis a ruína da minha família, tirando-me ia vida! Se recusais bater-vos, perseguir-vos-ei por toda a parte, cobrir-vos-ei de afrontas até que o nome de Ravenswood seja considerado como o símbolo da cobardia como já é da maldade.

- Aceito o vosso desafio, a hora e o local - declarou Ravenswood - Espero que não teremos testemunhas...

- Estaremos sós. E só um voltará: o que sobreviver!

- Então, que Deus seja misericordioso para a alma daquele que morrer.

- É a mais piedosa promessa que posso fazer ao homem a quem mais odeio neste mundo! Nem mais uma palavra! No areal, à beira-mar, a Leste de Wolf's Hope, ao nascer do Sol. A nossa espada como única arma.

- É o bastante - respondeu Ravenswood.

Os dois homens separaram-se. O coronel Ashton juntou-se ao grupo que o acompanhava no funeral e o castelão dirigiu-se para o seu cavalo, que deixara atado a uma árvore, numa alameda atrás da igreja. Quando regressou ao castelo, o coronel encontrou um pretexto para deixar a família durante o serão. Mudando de trajo, partiu para Wolf's Hope e passou essa noite na estalagem da aldeia.

Não se sabe como Ravenswood passou o resto daquele pavoroso dia. Voltando a Wolf's Crag altas horas da noite, acordou o seu velho criado Caleb. Aos ouvidos deste já tinham chegado uns rumores sobre a morte de miss Ashton e o mistério que a envolvia, e o dedicado servidor sentiu a mais viva das inquietações pela repercussão que o facto poderia ter sobre o espírito do amo.

Contrariamente aos seus hábitos, Ravenswood pediu vinho, e bebeu um copo grande. Quando Caleb o acompanhou ao quarto que ocupava usualmente, Ravenswood parou de súbito no limiar.

- Não, aqui não! - exclamou ele - Leva-me ao quarto onde ela dormiu na noite que passou no castelo.

- Ela, quem, meu senhor? - perguntou Caleb, bastante aterrorizado para poder manter a serenidade.

- Ela, Lucy Ashton! Queres matar-me, forçando-me

a dizer o nome?

O velho retirou-se, não para dormir, mas para orar. De tempos a tempos, dirigia-se de mansinho até à porta do quarto a fim de se certificar se Ravenswood dormia. Um passo pesado, entrecortado por gemidos, indicavam que o infeliz ocupante se entregava, naqueles instantes, ao paroxismo da dor.

Quando amanheceu, uma faixa de claridade vermelha alongava-se no horizonte sobre a linha cintilante do mar. Estava-se em fins de Outubro. O vento de Leste soprara toda a noite e a maré alta fazia com que as vagas batessem mais fortes do que de costume nas escarpas rochosas.

Caleb Balderstone voltou à porta do quarto de Ravenswood e, por uma fisga, viu que, no pequeno compartimento contíguo, o amo media os respectivos comprimentos de três espadas, acabando por escolher uma delas.

- É a mais curta - comentou ele em voz alta - Dar-lhe-ei esta vantagem.

Caleb compreendeu o significado da cena e quase ia sendo descoberto por Ravenswood, que saiu bruscamente, dirigindo-se à cavalariça. O seu aspecto fatigado, o rosto esmaecido, mostravam bem que não tinha dormido nem sossegado durante toda a noite. Seguindo-o sempre, Caleb viu-o selar o cavalo: com voz hesitante, as mãos trémulas, ofereceu-se para o ajudar. Ravenswood recusou com um gesto e levou o cavalo para o pátio. Quando se dispunha a montar, Caleb arrojou-se-lhe aos pés:

- Meu senhor! Matai-me, se quiserdes, mas não vos arrisqueis a uma aventura horrível! Esperai mais um dia. O marquês de Athol chega amanhã e tudo se arranjará.

- Já não tens amo, Caleb! - respondeu Ravenswood, procurando sair dali - Para que te ligaste a uma casa em ruínas?

- Enganai-vos - afirmou Caleb - Tenho amo enquanto restar um sopro de vida ao herdeiro de Ravenswood!

- És um louco! A existência nunca mais poderá sorrir-me e a hora em que tudo isto acabar para mim será a mais feliz da minha vida!

Dizendo isto, montou a cavalo e afastou-se. Porém, ao chegar ao gradeamento, voltou-se para trás; e como Caleb corresse para ele, lançou-lhe uma bolsa cheia de ouro.

- Caleb! - declarou com um sorriso horrível - Faço-te meu testamenteiro!

E partiu, finalmente, a galope. A bolsa caiu no chão sem que Caleb a apanhasse. Este corria para se certificar da direcção que seu amo seguia. Vi-o voltar à esquerda, num caminho irregular que, entre rochedos, ia dar ao areal, a uma espécie de baía onde, noutros tempos, se amarravam as embarcações ao castelo. Naquele instante, lembrou-se da profecia sobre o último dos Ravenswood, afirmando que desapareceria nas areias movediças do Kelpy, que se estendiam a meio caminho entre a torre e o mar, para o norte de Wolf's Hope. Viu-o dirigir-se para o sítio fatal...

O coronel Ashton, animado pelo desejo de vingança, já se encontrava no terreno do encontro. Ia e vinha num passo agitado, aguardando do lado da torre a chegada do adversário. O Sol nascente mostrou-lhe um cavaleiro que corria para ele e cuja impaciência, a julgar pelo esforço do cavalo, não parecia menor do que a sua. Mas, de súbito, a aparição sumiu-se como se se desvanecesse. O coronel esfregou os olhos. Teria sido joguete de uma ilusão? Aproximou-se do ponto onde avistara o cavaleiro e encontrou-se com Caleb, que vinha em sentido contrário. Não se via nenhum vestígio, nem do cavaleiro nem do cavalo. Tudo levava a crer que os últimos ventos e as marés altas haviam coberto aquela zona de areias movediças e que o infortunado Ravenswood, na cegueira da correria deixara a linha da areia firme para tomar o caminho mais curto e mais perigoso. A única indicação foi uma pena escura do chapéu, que a maré alta fez rolar até aos pés de Caleb. O velho apanhou-a e aconchegou-a ao coração.

Foi dado o alarme em Wolf's Hope. Os seus habitantes procuraram por toda a parte, mas as suas buscas foram vãs. As profundezas das areias movediças guardaram para sempre a sua presa.

A nossa história aproxima-se do fim. O marquês de Athol, inquieto com os rumores que corriam e receando pela vida de seu primo, chegou no dia seguinte para lamentar a sua perda. Depois de fazer tudo quanto possível para encontrar o cadáver, foi esquecer o cruel acontecimento no tumulto da política e nas incertezas do Poder.

Quanto a Caleb Balderstone, a vida perdeu para ele todo o sabor. Todos os seus sentimentos, fossem de orgulho ou de fé, de prazer ou de dor, ligavam-se estreitamente à família que acabava de se extinguir. Comia sem se alimentar, dormia sem repousar; e, com a fidelidade própria de um cão, acabou por morrer passado um ano.

A família Ashton não sobreviveu muito tempo à de Ravenswood. Sir William Ashton sucumbiu pouco depois do filho mais velho, morto em duelo na Flandres; Henry, a quem coube a sucessão, morreu solteiro. Lady Ashton, atingindo idade avançada, foi a única sobrevivente desse grupo de infelizes que ela tiranizara com o seu carácter implacável. Talvez sentisse alguns remorsos; talvez se reconciliasse com o Céu, que tanto tinha ofendido; mas ninguém, à sua volta, lhe surpreendeu o menor sinal de arrependimento. Continuou a manifestar o seu orgulho, essa inflexibilidade de que tinha dado sempre provas. Um monumento de mármore comemora hoje o seu nome, o seu título, as suas virtudes, enquanto que as suas vítimas não têm lousa nem epitáfio.

 

 

                                                                  Walter Scott

 

 

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