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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NOVA TRAIÇÃO DE JUDAS / James Rollins
A NOVA TRAIÇÃO DE JUDAS / James Rollins

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Há um mistério nisto. No ano de 1271, um veneziano de 17 anos chamado Marco Polo partiu com o pai e o tio para uma viagem aos palácios de Kublai Khan, na China. A viagem duraria 24 anos e daria origem a histórias de terras exóticas situadas a leste do mundo então conhecido: relatos assombrosos de desertos in­termináveis e rios repletos de jade, de cidades fervilhantes e enormes esquadras de navios a vela, de pedras negras que queimavam e dinheiro feito de papel, de eras inacreditáveis e plantas bizarras, de canibais e xamãs místicos.

Depois de servir por 17 anos nas cortes de Kublai Khan, Marco regressou a Veneza em 1295, onde sua história foi registrada por um romancista italiano cha­mado Rustichello de Pisa, num livro intitulado em francês antigo Le Divisament dou Monde (ou A descrição do mundo). A obra arrebatou a Europa. Até mesmo Cristóvão Colombo levou consigo um exemplar do livro de Marco em sua viagem ao Novo Mundo.

Mas existe uma história dessa viagem que Marco se recusou a contar, referin­do-se a ela apenas de maneira indireta em seu texto. Quando Marco Polo partiu da China, Kublai Khan havia concedido ao veneziano 14 navios imensos e 600 homens. Mas, quando Marco finalmente chegou ao porto, após dois anos no mar, restavam apenas dois navios e 18 homens.

O destino dos outros navios e homens continua um mistério até hoje. Terão sido naufrágio, tempestades, pirataria? Ele jamais contou. Na verdade, em seu leito de morte, quando lhe pediram que acrescentasse detalhes à sua história ou se retratasse, Marco respondeu de maneira enigmática: "Eu não contei metade do que vi.”

 

 

 

 

Os gritos finalmente haviam cessado.

Doze fogueiras ardiam na enseada à meia-noite.

— Il dio, li perdona... — seu pai sussurrou ao seu lado, mas Marco sabia que o Senhor não lhes perdoaria aquele pecado.

Um punhado de homens esperava ao lado de dois escaleres puxados para a praia, as únicas testemunhas das piras funerárias sobre a lagoa escura. Quando a lua nasceu, todos os 12 navios, imensas galeras de madeira, foram incendiados com os tripulantes ainda a bordo, tanto os mortos quanto os poucos desgraçados que ainda viviam. Os mastros das embarcações apontavam dedos de acusação flamejantes na direção do céu. Flocos de cinza incandescente caíam como a chuva sobre a praia e aquelas poucas testemunhas. A noite recendia a carne esturricada.

— Doze navios — murmurou seu tio Masseo, apertando o crucifixo de prata num punho —, o mesmo número dos apóstolos do Senhor.

Pelo menos os gritos dos torturados haviam terminado. Agora, apenas o crepitar e o rugido baixo das chamas chegavam à margem arenosa. Marco queria desviar o rosto da visão. Outros não eram tão corajosos e ajoelharam-se na areia, com as costas voltadas para a água e o rosto pálido como osso.

Todos estavam nus. Cada um deles havia revistado quem estava ao seu lado à procura de qualquer sinal da mancha. Até mesmo a princesa do Grande Khan, que por recato estava em pé atrás de um pedaço de pano de vela, usava apenas seu adorno de cabeça enfeitado com jóias. Marco notou a forma graciosa dela através do pano, iluminado por trás pelas fogueiras. As criadas da princesa, também nuas, haviam-na revistado. Seu nome era Kokejin, ou princesa Azul, uma virgem de 17 anos, a mesma idade de Marco quando ele partiu de Veneza. Os Polo haviam sido incumbidos pelo Grande Khan de entregá-la em segurança ao seu noivo, o Khan da Pérsia, neto do irmão de Kublai Khan.

Isso fora em outra vida.

Haviam se passado apenas quatro meses desde que a tripulação da primeira galera adoecera, exibindo vergões nas virilhas e nas axilas? A doença propagou-se como óleo se queimando, desprovendo as galeras de homens capazes e fazendo-os dar àquela ilha de canibais e feras estranhas.

Mesmo agora tambores soavam na selva escura. Mas os selvagens tinham bom senso suficiente para não se aproximar do acampamento, como o lobo que se afasta de ovelhas doentes, sentindo o cheiro de putrefação e decomposição. Os únicos sinais de sua intromissão eram os crânios, entrançados através das órbitas oculares com trepadeiras e pendurados dos galhos das árvores, protegendo contra uma invasão ou incursão mais profunda.

A doença mantivera os selvagens à distância.

Mas não por mais tempo.

Com a fogueira cruel, a doença fora afinal vencida, deixando apenas aquele punhado de sobreviventes.

Aqueles que não exibiam os vergões vermelhos.

Sete noites atrás, os enfermos restantes haviam sido conduzidos acorrentados aos navios ancorados, abastecidos com água e comida. Os outros haviam ficado na praia, atentos a qualquer sinal de novos casos da doença entre eles. O tempo todo, os que haviam sido banidos para os navios gritaram através das águas, implorando, chorando, rezando, amaldiçoando e dando berros estridentes. Porém, o pior era a gargalhada ocasional, incitada pela loucura.

Teria sido melhor ter cortado a garganta deles com um punhal misericordioso e rápido, mas todos receavam tocar o sangue dos enfermos. Por isso eles haviam sido enviados para os navios e aprisionados com os que já estavam mortos ali.

Então, quando o sol se pôs naquela noite, um brilho estranho apareceu na água, acumulado em torno das quilhas de dois barcos, espalhando-se sobre as águas ne­gras e paradas como leite derramado. Eles já tinham visto o brilho antes, nos tanques e canais sob as torres de pedra da cidade amaldiçoada da qual haviam fugido.

A doença procurava escapar de sua prisão de madeira.

Ela não lhes deixara escolha.

Os navios — todas as galeras, exceto a que fora reservada para a partida deles — foram incendiados.

Masseo, o tio de Marco, andou por entre os homens que sobreviveram. Acenou para que eles voltassem a cobrir sua nudez, mas um simples pano e lã tecida não podiam encobrir sua vergonha mais profunda.

— O que nós fizemos... — disse Marco.

— Nós não devemos falar sobre isso — retrucou seu pai, e estendeu uma túnica em sua direção. — Diga uma palavra que seja sobre peste, e todos os países nos evitarão. Nenhum porto nos deixará entrar em suas águas. Mas agora queimamos completamente o que restava da doença com um fogo que purificou nossa frota e as águas. Temos apenas de voltar para casa.

Enquanto Marco vestia a túnica, seu pai notou o que o filho havia desenhado antes na areia com uma vara. Contraindo os lábios, o pai rapidamente desfez o desenho com um dos calcanhares e encarou o filho. Um olhar suplicante fixou-se em seu rosto.

— Nunca, Marco... nunca...

Mas a lembrança não podia ser desfeita tão facilmente. Ele havia servido ao Grande Khan como erudito, emissário e até cartógrafo, mapeando os muitos reinos que este conquistara.

Seu pai voltou a falar:

— Ninguém jamais deve saber o que nós descobrimos... é uma coisa amal­diçoada.

Marco fez um aceno positivo de cabeça e não comentou sobre o que desenhara. Apenas sussurrou:

— Città dei Morti.

A fisionomia de seu pai, já pálida, empalideceu ainda mais. Porém, Marco sabia que não era só a praga que amedrontava seu pai.

— Jure para mim, Marco — insistiu ele.

Marco ergueu o olhar para o rosto enrugado do pai. Naqueles quatro últimos meses, ele havia envelhecido tanto quanto durante as décadas passadas com o Khan em Xanadu.

— Jure para mim, pelo abençoado espírito de sua mãe, que você jamais voltará a falar sobre o que nós descobrimos e fizemos.

Marco hesitou.

Uma mão segurou seu ombro, apertando até o osso.

Jure para mim, meu filho, para o seu próprio bem.

Ele reconheceu o terror refletido nos olhos do pai, iluminados pelo fogo... e a súplica. Marco não pôde recusar.

Eu guardarei segredo prometeu afinal. Até o meu leito de morte e além. É o que eu juro, meu pai.

O tio de Marco finalmente se juntou a eles, ouvindo por acaso o juramento do rapaz.

Nós jamais deveríamos ter entrado ali, Niccolò ele censurou o irmão, mas suas palavras acusatórias eram, na verdade, dirigidas a Marco.

Fez-se silêncio entre os três, carregado de segredos comuns. O tio dele tinha razão.

Marco imaginou o delta do rio quatro meses antes. O ribeirão negro desagua­va no mar, ladeado por densa folhagem e trepadeiras. Eles procuravam apenas renovar seus suprimentos de água doce enquanto dois navios eram consertados. Jamais deveriam ter se arriscado a ir mais longe, porém Marco ouvira histórias de uma grande cidade além das montanhas baixas. E, como o conserto dos navios deveria demorar dez dias, ele se arriscara, com quarenta homens do Khan, a subir as montanhas e ver o que havia além. Do topo de uma delas, Marco avistara uma torre de pedra nas profundezas da floresta, estendendo-se alta, brilhante à luz da aurora. Como sempre fora curioso, ela o atraiu como um farol.

O silêncio enquanto eles caminhavam pela floresta na direção da torre, no entanto, deveria tê-lo advertido. Não houvera nenhum som de tambores, como agora. Nenhum pio de aves, nenhum guincho de macacos. A cidade dos mortos simplesmente estivera à espera deles.

Foi um terrível erro penetrar na floresta.

E isso lhes custou mais do que apenas sangue.

Os três olharam fixamente enquanto as galeras ardiam lentamente na linha-d'água. Um dos mastros tombou como uma árvore cortada. Duas décadas atrás, pai, filho e tio haviam partido da Itália, sob a chancela do papa Gregório X, para se aventurar pelas terras dos mongóis, até os palácios e os jardins do Khan em Xanadu, onde haviam permanecido por tempo demais, como perdizes engaioladas. Como favoritos da corte, os três Polo se viram presos não por correntes, mas pela imensa e sufocante amizade do Khan, incapazes de partir sem insultar seu benfeitor. Assim, finalmente se julgaram afortunados por estarem regressando a Veneza, liberados do serviço ao grande Kublai Khan para escoltarem a dama Kokejin até seu noivo persa.

Quem dera que a frota deles jamais tivesse partido de Xanadu...

O sol vai nascer logo — disse o pai de Marco. — Vamos embora. É hora de ir para casa.

E se chegarmos àquelas praias abençoadas, o que diremos a Teobaldo? — per­guntou Masseo, usando o nome original do homem, outrora amigo e defensor da família Polo, agora chamado de papa Gregório X.

Não sabemos se ele ainda está vivo — respondeu o pai. — Nós nos ausen­tamos por muito tempo.

Mas, e se ele ainda estiver vivo, Niccolò? — insistiu o tio.

Nós lhe contaremos tudo o que sabemos sobre os mongóis, seus costumes e suas forças, conforme fomos instruídos há tantos anos, de acordo com o edito dele. Mas sobre a praga aqui... não resta nada sobre o que falar. Acabou.

Masseo suspirou, mas havia pouco alívio em sua exalação. Marco interpretou as palavras por trás de sua profunda carranca.

A praga não havia ceifado a vida de todos aqueles que foram perdidos.

O pai repetiu com mais firmeza, como se falar fizesse com que as coisas sim­plesmente fossem assim.

— Acabou.

Marco ergueu o olhar para os dois homens mais velhos, seu pai e seu tio, emol­durados por cinza incandescente e fumaça contra o céu noturno. Aquilo jamais terminaria, não enquanto eles se lembrassem.

Marco olhou para os pés. Embora a marca tivesse sido removida da areia, ela ainda ardia intensamente por trás de seus olhos. Ele havia roubado um mapa pintado em cortiça laminada. Pintado com sangue. Templos e torres espalhados pela selva.

Todos vazios.

A não ser pelos mortos.

O chão estava coberto de pássaros, caídos nas praças de pedra como se tivessem sido atingidos no céu em pleno vôo. Nada fora poupado. Homens, mulheres e crianças. Bois e animais do campo. Até mesmo grandes serpentes pendiam frouxas dos galhos das árvores, com a carne cheia de furúnculos embaixo das escamas.

Os únicos habitantes vivos eram as formigas.

De todos os tamanhos e cores.

Fervilhando em pedras e corpos, elas lentamente devoravam os mortos. Mas ele estava errado... alguma coisa ainda aguardava o pôr-do-sol.

Marco repeliu aquelas lembranças.

Ao descobrir o que Marco roubara de um dos templos, seu pai queimou o mapa e espalhou as cinzas no mar. Ele fez isso antes mesmo de o primeiro homem a bordo dos navios adoecer.

— Esqueçamos isso — advertiu então seu pai. — Isso não tem nada a ver co­nosco. Deixemos que seja tragado pela História.

Marco honraria sua palavra, seu juramento. Jamais falaria sobre aquela história. Todavia, ele tocou uma das marcas na areia. Aquele que havia narrado tanto... era certo destruir aquele conhecimento?

Se houvesse outra forma de preservá-lo...

Como que lendo os pensamentos de Marco, seu tio Masseo expressou em voz alta os temores de todos eles.

- E se o horror ressurgir, Niccolò, será que algum dia chegará às nossas praias?

- Se isso acontecer, será o fim da tirania humana neste mundo — respondeu o pai com amargura. Ele bateu de leve no crucifixo sobre o peito nu de Masseo. — O frei estava mais bem informado do que todos nós. Seu sacrifício...

A cruz pertencera outrora ao frei Agreer. Na cidade amaldiçoada, o dominicano dera sua vida para salvar a deles. Eles haviam feito um pacto sinistro. Haviam-no deixado lá, haviam-no abandonado, cumprindo uma ordem dele.

O sobrinho do papa Gregório X.

Marco sussurrou enquanto as últimas chamas se extinguiam nas águas escuras.

— Que Deus nos salvará da próxima vez?

 

— Quem está a fim de outra garrafa de Fosters? Aproveitem enquanto estou aqui embaixo! — gritou Gregg Tunis do convés inferior.

A dra. Susan Tunis sorriu ao ouvir a voz do marido enquanto passava da es­cada de mergulho para o convés aberto na popa. Ela tirou seu colete equilibrador e arrastou o equipamento de mergulho até a prateleira atrás da cabine do piloto do iate de pesquisa. Seus tanques tilintaram quando ela os colocou na prateleira ao lado dos outros.

Livre do peso, ela pegou a toalha do ombro e secou os cabelos louros, quase brancos de tão descorados pelo sol e pelo sal. Assim que terminou, abriu o zíper de seu traje úmido com um único e longo puxão.

Iabadabadu... iabadabadu... — os gritos ecoaram de uma espreguiçadeira atrás dela.

Ela nem sequer olhou para trás. Era óbvio que alguém passara tempo demais nos clubes de strip-tease de Sydney.

— Professor Applegate, o senhor precisa sempre fazer isso quando estou tirando meu equipamento de mergulho?

O geólogo de cabelos grisalhos, com um livro sobre história marítima aberto no colo, equilibrou os óculos de leitura no nariz.

— Não seria nem um pouco cavalheiresco ignorar a presença de uma jovem saudável se livrando de tanta roupa.

Ela sacudiu com os ombros o traje de mergulho e baixou-o até a cintura, exi­bindo o maio. Aprendera da maneira mais difícil que o sutiã do biquíni tinha a tendência de soltar-se com um traje úmido. E, embora não se importasse que o professor aposentado, trinta anos mais velho do que ela, a devorasse com os olhos, ela não lhe proporcionaria aquele show gratuito.

Seu marido subiu com três garrafas de cerveja suando, presas entre os dedos de uma das mãos, e abriu um enorme sorriso ao vê-la.

— Eu pensei ter ouvido você se chocando contra alguma coisa aqui em cima.

Ele subiu para o convés, alongando o corpo alto. Usava apenas um calção de banho branco Quicksilver e uma camisa folgada e desabotoada. Empregado como mecânico de barcos em Darwin Harbor, ele e Susan haviam se conhecido oito anos antes, durante um dos consertos em dique seco em outro barco da Uni­versidade de Sydney. Apenas três dias atrás, eles haviam comemorado o quinto aniversário de casamento a bordo do iate, ancorado a 100 milhas náuticas do atol de Kiritimati, mais conhecido como ilha Christmas.

Ele passou uma garrafa para ela.

— Você teve sorte com as sondagens?

Ela tomou um longo gole da cerveja, apreciando a umidade. A sucção num bocal salgado a tarde inteira deixara sua boca pastosa.

— Até agora não. Ainda não consegui encontrar uma origem dos encalhes.

Dez dias atrás, oitenta golfinhos Tursiops aduncus, uma espécie do oceano Ín­dico, haviam encalhado ao longo da costa de Java. A pesquisa dela se concentrava nos efeitos de longo prazo da interferência dos sonares em espécies de cetáceos, a origem de muitos encalhes suicidas no passado. Em geral, sempre havia uma equipe de assistentes de pesquisa com ela, um misto de estudantes de graduação e pós-graduação, mas ela viajara em férias até ali com seu velho mentor. Fora pura coincidência o fato de aquele encalhe maciço ter ocorrido na região — daí a prorrogação da estada no local.

- Poderia ser alguma outra coisa que não o sonar fabricado pelo homem? — ponderou Applegate, desenhando círculos com a ponta do dedo na condensação de sua garrafa de cerveja. — Microterremotos estão constantemente sacudindo a região. Talvez um terremoto de subdução em alto-mar tenha atingido a nota tonal certa para fazê-los entrar em pânico suicida.

- Houve aquele horrível terremoto alguns meses atrás — disse o marido dela. Ele se acomodou numa espreguiçadeira ao lado do professor e bateu de leve no assento para que ela se sentasse com ele. — Não seriam, talvez, alguns terremotos secundários?

Susan não pôde argumentar contra as opiniões deles. Entre a série de intensos terremotos nos últimos dois anos e o grande tsunami na área, o fundo do mar fora muito agitado. Isso era o suficiente para assustar qualquer um. Porém, ela não estava convencida. Alguma outra coisa estava acontecendo. O recife abaixo estava estranhamente deserto. Parecia que as pequenas formas de vida que estavam lá embaixo haviam se retirado para nichos nas rochas, conchas e buracos na areia. Era quase como se a vida marinha ali estivesse em expectativa.

Talvez as criaturas sensíveis estivessem reagindo a microterremotos.

Ela franziu o cenho e juntou-se ao marido. Enviaria uma mensagem pelo rádio para a ilha Christmas a fim de verificar se eles haviam detectado qualquer atividade sísmica incomum. Até então, a dra. Tunis tinha notícias que seguramente fariam seu marido entrar na água de manhã.

— Eu descobri o que parecem ser os restos de um antigo naufrágio.

— Não pode ser. — Ele sentou-se empertigado. Em Darwin Harbor, Gregg oferecia excursões aos navios de guerra naufragados durante a Segunda Guerra Mundial que se espalhavam pelos mares próximos à costa norte da Austrália. Ele tinha um ávido interesse nessas descobertas. — Onde?

Ela apontou distraidamente para trás, para além do outro lado do iate.

— A cerca de 100 metros a estibordo de onde estamos. Algumas vigas, negras e que se projetam diretamente da areia. Provavelmente ficaram livres durante o último grande terremoto, ou, talvez, foram expostas quando o lodo que as cobria foi removido durante a passagem do tsunami. Não tive muito tempo para explorar. Acho melhor deixar isso para um perito.

Ela deu um beliscão nas costelas dele e voltou a reclinar-se em seu peito.

Em grupo, eles observaram o sol desaparecer no mar com um último brilho tímido. Era o ritual deles. Exceto em caso de tempestade, eles jamais perdiam um pôr-do-sol quando estavam no mar. O barco oscilava suavemente. A grande distân­cia, algumas luzes de um navio-tanque que passava brilhavam intermitentemente. Mas, por outro lado, estavam sozinhos.

Um latido agudo assustou Susan, fazendo-a estremecer. Ela não sabia que ainda estava um pouco tensa. Aparentemente, o comportamento estranho e cauteloso da vida no recife abaixo a havia contagiado.

— Ei! Oscar! — gritou o professor.

Só então Susan deu falta do quarto tripulante do iate. O cão tornou a latir. O atarracado cão pastor de Queensland pertencia ao professor. Já velho e um pouco artrítico, ele costumava ser encontrado esparramado em qualquer nesga de luz do sol que pudesse encontrar.

— Eu vou me encarregar dele — disse Applegate. — Vou deixar os dois pombi­nhos aconchegados. Além disso, eu poderia fazer algo que estimule a mente. Deixar um pouco mais de espaço para outra Fosters antes de ir dormir.

O professor gemeu enquanto se levantava e seguiu para a proa, com a intenção de dar a volta para o outro lado, mas parou e olhou fixamente para o leste, para o céu mais escuro.

Oscar voltou a latir.

Applegate não o repreendeu dessa vez. Em vez disso, chamou Susan e Gregg com a voz baixa e séria.

— Venham ver isso.

Susan levantou-se rapidamente, seguida por Gregg, e os dois juntaram-se ao professor.

Puta que pariu... murmurou seu marido.

Acho que você descobriu o que expulsou aqueles golfinhos do mar disse Applegate.

Ao leste, uma ampla faixa do oceano brilhava com uma luminescência fantas­magórica, erguendo-se e baixando com as ondas. O brilho prateado revolvia-se e turbilhonava. O velho cão ficou em pé junto à amurada de estibordo e latiu, mas seu latido foi se transformando num rosnado baixo diante da visão.

Que diabo é aquilo? perguntou Gregg.

Susan respondeu enquanto se aproximava.

Já ouvi falar dessas manifestações. Elas são chamadas de mar luminoso. Navios relatam brilhos como esse no oceano Índico desde a época de Júlio Verne. Em 1995, um satélite chegou a registrar uma das florações, que cobria centenas de milhas quadradas. Essa é uma pequena.

- Pequena uma ova! resmungou seu marido. Mas o que é isso exatamente? Algum tipo de maré vermelha?

Ela sacudiu a cabeça.

Não exatamente. Marés vermelhas são florações de algas. Esses brilhos são causados por bactérias bioluminescentes, que provavelmente se alimentam de algas ou de algum outro substrato. Não há perigo. Mas eu gostaria de...

Eles ouviram uma súbita pancada embaixo do barco, como se alguma coisa grande o tivesse atingido vindo de baixo. Os latidos de Oscar intensificaram-se. O cão dançava para a frente e para trás ao longo da amurada, tentando enfiar a cabeça através das grades.

Todos os três juntaram-se ao cão e olharam para baixo.

A extremidade brilhante do mar luminoso envolveu a quilha do iate. Vinda das profundezas, uma grande forma tornou-se visível, de barriga para cima, mas ainda se contorcendo, os dentes rangendo. Era um enorme tubarão-tigre, com mais de seis metros de comprimento. As águas brilhantes espumavam sobre a sua forma, borbulhando e transformando a água leitosa em vinho tinto.

Susan deu-se conta de que não era a água que borbulhava sobre a barriga do tubarão, mas sua própria carne, desfazendo-se em grandes pedaços. A visão horrível afundou. Mas, através do mar luminoso, outras formas vieram à superfície, debatendo-se ou já mortas: toninhas, tartarugas, centenas de peixes.

Applegate afastou-se da amurada.

— Parece que essas bactérias encontraram mais do que apenas algas para se alimentar.

Gregg virou-se para a esposa.

— Susan...

Ela não conseguia desviar os olhos daquela cena terrível. Apesar do horror, ela não podia negar uma pontada de curiosidade científica.

— Susan...

Ela afinal se voltou para ele, ligeiramente irritada.

— Você mergulhou — ele explicou e apontou — nessa água o dia todo.

— E daí? Todos nós estivemos na água pelo menos por algum tempo. Até Oscar nadou um pouco.

O marido não a olhou nos olhos. Ele continuou concentrado no ponto em que ela estava coçando o antebraço. O traje úmido às vezes lhe esfolava os membros. Mas a preocupação no rosto tenso dele atraiu a atenção dela para seu antebraço. Sua pele estava áspera, com uma grave erupção, que havia piorado com o ato de coçar.

Enquanto ela olhava fixamente, vergões vermelhos como equimoses brotaram-lhe na pele.

— Susan...

Ela ficou boquiaberta de descrença.

— Deus do céu...

Ela, porém, também soube da horrível verdade.

— Isso... isso está em mim.


 

Ele estava sendo perseguido.

Stefano Gallo apertou o passo na praça aberta. O sol da manhã já calcinava as pedras da praça, e a multidão usual de turistas procurava lugares protegidos do sol ou abarrotava a sorveteria que ficava à sombra da basílica de São Marcos. Porém, o mais grandioso de todos os pontos de referência de Veneza, com sua altíssima fachada bizantina, cavalos de bronze maciço e cúpulas abobadadas, não era o seu destino.

Nem mesmo um santuário abençoado como aquele poderia oferecer-lhe proteção.

Só havia uma esperança.

Seus passos ficaram mais rápidos depois que ele passou pela basílica. Os pombos da praça se dispersavam à medida que ele tropeçava no meio deles, indiferente ao seu vôo agitado. Ele não podia mais se esconder. Já fora descoberto. Avistara o jovem egípcio de olhos negros e barba aparada quando este entrou no outro lado da praça. Seus olhares haviam se fixado um no outro. O homem agora usava um terno escuro cujo paletó ondulava como petróleo de seus ombros largos e acentuados. Ao abordar Stefano pela primeira vez, ele afirmou que era um estudante de arqueologia de Budapeste, que representava um velho amigo e colega de Stefano da Universidade de Atenas.

O egípcio viera ao Museo Archeologico à procura de uma peça de antigüidade específica. Um tesouro insignificante. Um obelisco de seu país. Financiado pelo seu governo, o egípcio queria que ele fosse devolvido à sua pátria. Ele viera com um pagamento considerável, a ser depositado numa conta especial até que o negócio fosse concluído. Stefano, um dos curadores do museu, não estava em condições morais de recusar aquele suborno; as despesas médicas crescentes de sua esposa ameaçavam expulsá-los de seu pequeno apartamento. Receber aquele pagamento secreto não era impróprio; nas duas últimas décadas, o governo egípcio havia readquirido tesouros nacionais de coleções privadas e pressionado museus para devolver o que de direito pertencia ao país.

Assim, Stefano concordara, prometendo a princípio entregá-lo ao egípcio. O que era um pequeno e desinteressante obelisco de pedra? O objeto permanecera encaixotado por quase um século, de acordo com o manifesto de carga. E sua descrição concisa provavelmente explicava por quê: Obelisco de mármore não-identificado, escavado em Tânis, datado do fim do período dinástico (26- Dinastia, 615 a.C.). Não havia nada de incomum ou de particularmente interessante, a não ser que se prestasse mais atenção, seguindo o rastro de sua proveniência. Ele viera de uma coleção que adornava um dos Musei Vaticani, em Roma: o Museu Grego­riano Egípcio.

Não se sabia como fora parar no depósito subterrâneo ali em Veneza.

Na manhã do dia anterior, Stefano recebera um recorte de jornal, enviado por um courier privado num envelope com um único símbolo estampado num lacre de cera.

     ∑

A letra grega sigma.

Apesar de não entender o significado do lacre, ele entendeu a importância do recorte incluso. Um único artigo, datado de três dias atrás, trazia a notícia do cadáver de um homem encontrado numa praia do mar Egeu com a garganta cor­tada, o corpo inchado e repleto de enguias que se banqueteavam. Uma tempestade particularmente violenta havia removido o corpo de sua sepultura aquática. A ficha dentária identificava o corpo como o de seu colega de universidade, aquele que supostamente enviara o egípcio.

Fazia semanas que o homem estava morto.

O choque fizera Stefano agir de maneira precipitada. Ele segurou o pesado objeto contra o peito, embrulhado em saco de aniagem e ainda comichando com a palha usada na embalagem.

Stefano havia furtado o obelisco do depósito, sabendo que o ato o exporia ao perigo e que também exporia sua esposa, toda a sua família.

Não tivera escolha. Junto com o artigo lúgubre, o envelope lacrado continha uma única mensagem, não-assinada, mas claramente escrita às pressas, com uma letra feminina, uma advertência. O que a mensagem afirmava parecia impossível, incrível, mas ele mesmo analisara a alegação, e ela se revelara verídica.

Lágrimas ameaçavam escorrer de seus olhos enquanto ele corria com um soluço preso na garganta.

Não tivera escolha.

O obelisco não deveria cair nas mãos do egípcio. Ainda assim, era um peso que ele se recusava a carregar nos ombros por mais tempo que o necessário. Sua esposa, sua filha... ele imaginou o corpo inchado de seu colega. Será que aconteceria o mesmo com a sua família?

Oh, Maria, o que foi que eu fiz?

Havia apenas uma pessoa que poderia tirar-lhe aquele peso. A pessoa que enviara o envelope, uma advertência lacrada com uma letra grega. No fim da mensagem, havia um endereço e uma hora.

Ele já estava atrasado.

De algum modo, o egípcio descobrira o furto, devia ter sentido que Stefano o trairia. Por isso, viera buscar o objeto ao amanhecer. Stefano mal conseguira escapar de seu escritório. Ele fugira a pé.

Mas não rápido o suficiente.

Ele olhou para trás. O egípcio desaparecera na multidão de turistas que circu­lavam por ali.

Dando a volta, Stefano andou aos tropeções pela sombra do sino da torre da praça, a Campanile di San Marco. No passado, a torre de alvenaria servira de tor­re de vigia da cidade, que dava vista para as docas próximas e guardava o porto. Tomara que ela o protegesse agora.

Seu destino ficava no outro lado de uma pracinha. À frente erguia-se o Palácio dos Doges, construído no século XIV, onde viveram os antigos doges de Veneza. Seus dois níveis de arcos góticos acenavam, oferecendo salvação em pedra da Ístria e mármore rosa de Verona.

Segurando com força sua presa, ele atravessou a rua aos tropeções.

Será que ela ainda estava ali? Será que ela aceitaria aquele peso?

Correu na direção das sombras protetoras, escapando da intensa luz do sol e do clarão do mar ali próximo. Ele precisava perder-se no labirinto do palácio. Além de abrigar a residência pessoal do doge, o palácio também abrigara repartições do governo, um tribunal, a câmara do conselho e até mesmo uma antiga prisão. Uma prisão mais nova se erguia no outro lado do canal, atrás do palácio, ligada por uma ponte em arco, a famosa e infame Ponte dos Suspiros, pela qual Casanova — o único prisioneiro que conseguira fugir das celas do palácio — um dia escapara.

Quando entrou embaixo do trecho suspenso da loggia, Stefano rezou para que o espírito de Casanova protegesse sua própria fuga. Ele até se permitiu um peque­no suspiro de alívio quando mergulhou nas sombras. Conhecia bem o palácio. Era fácil perder-se em seu labirinto de corredores, um lugar oportuno para um encontro clandestino.

Ou era nisso que ele confiava.

Entrou no palácio pela arcada ocidental, acompanhando o fluxo de alguns turistas. Adiante se abria o pátio do palácio, com suas duas fontes antigas e a mag­nífica escadaria de mármore, a Scala dei Giganti, a Escada dos Gigantes. Stefano contornou o pátio, evitando o sol agora que conseguira fugir dele. Transpôs uma porta pequena e privada e passou por uma série de salas administrativas. Elas terminavam no gabinete do antigo inquisidor, onde muitas pobres almas haviam sido interrogadas da forma mais dolorosa e brutal. Sem se deter, Stefano continuou até a câmara de tortura de pedra ali perto.

Uma porta bateu em algum lugar atrás dele, fazendo-o sobressaltar-se.

Ele segurou sua presa com mais força ainda.

As instruções tinham sido específicas.

Tomando uma escada estreita nos fundos, ele se dirigiu às masmorras mais profundas do palácio, os Pozzi, ou Poços. Era ali que os prisioneiros mais notórios eram mantidos.

Também era o local do encontro.

Stefano imaginou o lacre grego.

           ∑

O que ele significava?

Entrou no corredor úmido, interrompido por celas de pedra negra, baixas de­mais para que um prisioneiro ficasse em pé ereto. Ali os prisioneiros congelavam no inverno ou morriam de sede durante os longos verões venezianos, muitos deles esquecidos por todos, exceto pelos ratos.

Stefano acendeu uma pequena lanterna de bolso.

Aquele nível mais baixo dos Pozzi parecia deserto. À medida que Stefano con-linuava a avançar, seus passos ecoavam das paredes de pedra, dando a impressão de que alguém o seguia. Seu peito apertou-se de medo. Ele diminuiu o passo. Será que estava atrasado demais? Prendeu a respiração, ansiando subitamente pela luz do sol, da qual fugira.

Ele parou, com um tremor sacudindo seu corpo.

Como que sentindo sua hesitação, uma luz cintilou, vinda da última cela.

Quem está aí? perguntou ele. Chi è là?

Ouviu-se o rangido de saltos de sapatos na pedra, seguido por uma voz suave, em italiano, com um leve sotaque.

Fui eu quem lhe mandou o bilhete, Signor Gallo.

Uma figura graciosa saiu para o corredor, com uma pequena lanterna na mão. O brilho tornou difícil discernir suas feições, mesmo quando ela baixou a lanterna. Estava toda vestida de couro preto, que apertava seus quadris e seios. Um lenço de cabeça, enrolado à moda beduína, obscurecia completamente suas feições, exceto os olhos, que refletiam o brilho de sua lanterna. Ela se movia com uma graça sem pressa que ajudou a acalmar os fortes batimentos do coração dele.

Ela saiu das sombras como se fosse uma Madona negra.

O senhor está com o objeto? — indagou ela.

Sim, eu... eu estou gaguejou ele, e deu um passo na direção dela. Ele segurou o obelisco com os braços estendidos, deixando o saco de aniagem cair no chão. Não quero ter mais nada a ver com ele. Você disse que podia levá-lo para algum lugar seguro.

Sim, posso respondeu ela, fazendo um sinal para que o colocasse no chão. Stefano se agachou e pôs o obelisco egípcio de pedra no chão, contente por livrar-se dele. Esculpido em mármore negro, erguia-se de uma base quadrangular com 10 centímetros de lado e terminava numa ponta piramidal a 40 centímetros da base.

A mulher agachou-se em frente a ele, equilibrando-se na ponta de suas botas pretas. Ela correu a luz de sua lanterna sobre a superfície opaca do obelisco. O mármore estava com muitas lascas, muito malconservado. Uma longa rachadura o atravessava. Era evidente por que ele fora esquecido.

No entanto, sangue já havia sido derramado por causa dele.

E ele sabia por quê.

Ela estendeu a mão para Stefano e empurrou a lanterna dele para baixo. Com um leve movimento do polegar, ela acendeu sua própria lanterna. A luz branca obscureceu, transformando-se num roxo profundo. Cada grão de poeira nas calças dele iluminou-se. As listras brancas de sua camisa resplandeceram.

Luz ultravioleta.

O brilho banhou o obelisco.

Stefano fizera o mesmo antes, verificando a afirmação da mulher e testemu­nhando ele mesmo o milagre. Inclinou-se para mais perto dela e examinou os quatro lados do obelisco.

As superfícies já não estavam brancas. Linhas de escrita brilhavam em pequenos símbolos azuis e brancos ao longo dos quatro lados.

Não eram hieróglifos, e sim uma língua anterior aos antigos egípcios. Stefano não conseguiu evitar o espanto na voz. — Será que é mesmo a escrita dos...

Atrás dele, palavras sussurradas ecoaram no piso acima. Uma lasca de rocha solta rolou pela escada dos fundos.

Ele se virou, cheio de medo, o sangue gelando.

Reconheceu a cadência calma e curta do sussurro na escuridão.

O egípcio.

Eles haviam sido descobertos.

Talvez sentindo o mesmo, a mulher apagou a lanterna, cessando a luz ultravio­leta, e a escuridão os envolveu.

Stefano ergueu sua lanterna de bolso, procurando alguma esperança no rosto de sua Madona negra. Em vez disso, ele descobriu uma pistola preta, alongada com um silenciador, apontada para seu rosto, segura na outra mão da mulher. Ele entendeu e se desesperou. Enganado mais uma vez.

— Grazie, Stefano.

Entre a tosse repentina e o clarão na boca da arma, apenas um pensamento forçou passagem pelo hiato fatal.

Maria, me perdoe.

 

Monsenhor Vigor Verona subiu a escada com grande relutância, assombrado por lembranças de chamas e fumaça. Seu coração estava pesado demais para uma subida tão longa. Sentia-se uma década mais velho do que os seus 60 anos. Ao parar num patamar, esticou o pescoço para cima, com uma das mãos apoiando as costas.

Acima, o poço circular da escada era um labirinto atulhado de andaimes entre­cruzados com plataformas. Sabendo que aquilo trazia azar, Vigor passou por baixo de uma escada de pintor e continuou a subir a escada escura que conduzia à Torre dei Venti, ou Torre dos Ventos.

O odor de tinta fresca ameaçou arrancar lágrimas de seus olhos. Porém, ou­tros odores também o importunaram, fantasmas de um passado que ele preferia esquecer.

Carne esturricada, fumaça acre, cinzas incandescentes.

Dois anos antes, uma explosão seguida de um incêndio transformara a torre numa tocha resplandecente no coração do Vaticano. Porém, depois de muitas obras, a torre vinha recuperando seu antigo esplendor. Vigor ansiava pelo mês seguinte, quando a torre seria reaberta e a fita seria cortada por Sua Eminência em pessoa.

Mas, sobretudo, ele ansiava por finalmente enterrar o passado.

Até mesmo a famosa Sala Meridiana, no alto da torre, onde Galileu havia tentado provar que a Terra girava em torno do Sol, estava quase completamente restaurada. Fora necessário um ano e meio, sob os cuidados e a perícia de uma multidão de artesãos e historiadores, para, com esforço, recuperar da fuligem e das cinzas os afrescos da sala.

Quem dera que tudo aquilo pudesse ser recuperado assim, com pincéis e tinta.

Como o novo prefeito do Archivio Segretto Vaticano, Vigor sabia quanto dos Ar­quivos Secretos do Vaticano havia sido perdido para sempre para as chamas, a fumaça e a água. Milhares de livros antigos, textos ilustrados com iluminuras e regestra dos arquivos — maços de pergaminhos e documentos encadernados em couro. No último século, as salas da torre haviam servido para armazenar o excesso de documentos do carbonile, o principal depósito dos arquivos, situado muito abaixo.

Para sua tristeza, a biblioteca agora tinha muito mais espaço.

— Preffeto Verona!

Com um sobressalto, Vigor voltou ao presente, quase estremecendo, ao ouvir o eco de outra voz. Porém, era apenas seu assistente, um jovem seminarista chamado Cláudio, gritando do alto da escada. Ele esperava Vigor na Sala Meridiana, na qual chegara bem antes de seu superior, mais idoso. O rapaz segurava uma cortina de lona de plástico transparente que separava a escada da sala superior.

Uma hora atrás, Vigor fora chamado à torre pelo chefe da equipe de restaura­ção. A mensagem do homem fora ao mesmo tempo urgente e enigmática. Venha imediatamente. Fizemos uma descoberta das mais terríveis e maravilhosas.

Por isso, Vigor saíra de seu gabinete para a longa escalada até o alto da torre recém-pintada. Ele nem sequer havia tirado a batina preta, que usara mais cedo para uma reunião com o secretário de Estado do Vaticano. Arrependeu-se dos trajes que havia escolhido, pesados e quentes demais para a árdua subida. Mas, afinal, alcançou seu assistente e limpou a testa úmida com um lenço.

- Por aqui, prefetto — disse Cláudio, afastando a cortina para o lado.

- Grazie, Cláudio.

Além da lona, a câmara superior parecia um forno, como se as pedras da torre ainda retivessem o calor do incêndio ocorrido dois anos antes. Mas era apenas o sol a pino calcinando a torre mais alta do Vaticano. Roma passava por uma onda de calor particularmente abrasador. Vigor rezava para que soprasse uma brisa, para que a Torre dei Venti fizesse jus ao seu nome com uma rajada de vento.

Mas Vigor também sabia que a maior parte do suor em sua testa nada tinha a ver com o calor ou com a longa escalada usando uma batina. Desde o incêndio, ele evitara subir até ali, dando instruções de longe. Mesmo agora, estava de costas para uma das câmaras, situada ao lado.

Ele tivera outro assistente antes de Claudio.

Jakob.

Não foram apenas livros que as chamas haviam destruído ali.

— Aí está você! — ressoou uma voz.

O dr. Balthazar Pinosso, supervisor do projeto de restauração da Sala Meridia­na, cruzou a passos largos a câmara circular. Com cerca de dois metros de altura, o homem era um gigante vestido de branco, quase como um cirurgião, calçando pantufas descartáveis. Ele empurrara um respirador para o alto da cabeça. Vigor o conhecia bem. Balthazar era decano do departamento de história da arte da Uni­versidade Gregoriana, onde Vigor trabalhara como chefe do Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã.

— Prefeito Verona, obrigado por ter vindo tão prontamente — disse o homen­zarrão, dando uma olhadela no relógio e revirando os olhos, num comentário silencioso e divertido sobre a sua lenta subida.

Vigor gostou da troça gentil. Depois que assumira o alto cargo nos arquivos, poucas pessoas ousavam dirigir-se a ele num tom pouco reverente.

- Se as minhas pernas fossem tão compridas como as suas, Balthazar, eu teria subido dois degraus de uma vez e chegado aqui bem na frente do pobre Claudio.

- Então é melhor terminarmos logo, para que você possa voltar e tirar a sua soneca de costume à tarde. Eu detestaria perturbar esses esforços tão diligentes.

Apesar da jovialidade do homem, Vigor reconheceu um pouco de tensão em seus olhos. Ele também notou que Balthazar havia dispensado todos os homens e mulheres que trabalhavam com ele na restauração. Ao constatar isso, Vigor acenou para que Claudio se afastasse na direção da escada.

- Você nos daria alguns momentos de privacidade, Claudio?

- Claro que sim, prefeito.

Assim que seu assistente recuou para a escada e desapareceu atrás da cortina de lona de plástico, Vigor voltou a atenção para o ex-colega.

- Balthazar, qual a razão dessa urgência?

- Venha, eu lhe mostrarei.

Enquanto o homem se encaminhava para o outro lado da câmara, Vigor viu que a restauração estava quase concluída. Ao longo das paredes e dos tetos circulares, os famosos afrescos de Nicolò Circignani representavam cenas bíblicas, com querubins e nuvens acima. Algumas cenas ainda estavam entrecruzadas com telas de seda, à espera de mais trabalho. Mas a maior parte da restauração já estava pronta. Até o zodíaco entalhado no piso fora limpo e polido até expor apenas o mármore. Ao lado, um único feixe de luz penetrava através de um buraco de 14 centímetros por 20 centímetros na parede, atingindo o piso de lajes da sala e iluminando a linha meridiana'de mármore branco que se estendia ao longo do piso escuro, transfor­mando a câmara num observatório solar do século XVI.

No outro lado, Balthazar abriu uma cortina, revelando um quartinho lateral. Parecia até que a obstinada porta original estava intacta, o que se evidenciava pelo chamuscado parcial de sua grossa superfície de madeira.

O esguio historiador bateu de leve num dos ferrolhos de bronze que prendiam a porta.

Nós descobrimos que a porta tem um núcleo de bronze, o que foi uma sorte, pois preservou o que estava nesta sala.

Apesar da agitação de Vigor por estar ali, aquilo despertara sua curiosidade.

O que havia aí dentro?

Balthazar abriu a porta, revelando um espaço exíguo, sem janelas, com paredes de pedra, e que mal dava para duas pessoas ficarem em pé ombro a ombro. Duas estantes que iam do chão ao teto erguiam-se em cada lado, repletas de livros en­cadernados em couro. Apesar do cheiro de tinta fresca, o odor de mofo da câmara flutuou para fora, provando o poder da antigüidade sobre o esforço humano.

O conteúdo foi inventariado quando começamos a trabalhar aqui e deso­cupamos o quartinho explicou Balthazar. Mas não encontramos nada de muito importante. Eram em sua maioria textos históricos, caindo aos pedaços, sobre astronomia e náutica. Ele deu um suspiro alto e um pouco apologético quando entrou no quartinho. Eu acho que deveria ter sido mais cauteloso, por causa de todos os operários. Mas eu estava concentrado na Sala Meridiana. Nós mantivemos um dos membros da Guarda Suíça a postos aqui à noite. Eu achava que tudo estivesse seguro.

Vigor entrou no quarto seguindo o homenzarrão.

Nós também usamos o espaço para guardar algumas das nossas ferramentas Balthazar acenou para a prateleira inferior de uma estante —, a fim de impedir que elas nos atrapalhem.

Vigor sacudiu a cabeça, ficando cada vez mais cansado em conseqüência do calor e do peso no coração.

Eu não estou entendendo por que fui chamado.

Algo semelhante a um grunhido ecoou do peito do homem.

Há uma semana afirmou ele um dos guardas expulsou alguém que estava bisbilhotando. Balthazar fez um aceno de mão abrangendo todo o quar­tinho. Aqui dentro.

Por que não fui informado? indagou Vigor. Alguma coisa foi roubada?

Não, o problema é esse. Você estava em Milão, e o guarda expulsou o estranho. Eu simplesmente supus que se tratava de um ladrão comum que tirava vantagem da confusão aqui, com as idas e vindas das turmas de operários. Depois disso, coloquei um segundo guarda aqui, por precaução.

Vigor fez sinal para que ele prosseguisse.

—            Mas hoje de manhã um dos restauradores de arte estava colocando uma lanterna de volta no quartinho. Ela ainda estava acesa quando ele entrou.

Balthazar estendeu a mão além de Vigor e fechou a porta, impedindo a entrada da luz que vinha do outro aposento, e em seguida acendeu uma pequena lanterna. Ela banhou o aposento com uma luz purpúrea, iluminando seu macacão branco.

—            Nós usamos luz ultravioleta em projetos de restauração de arte. Ela pode ajudar a revelar detalhes que podem passar despercebidos a olho nu.

Balthazar apontou para o piso de mármore.

Vigor, porém, já havia observado o que aparecera sob o brilho da lanterna. Uma forma, pintada grosseiramente, resplandecia no centro do assoalho.

Um dragão enroscado, quase voltado contra a própria cauda.

Vigor ficou com um nó na garganta. Chegou a cambalear para trás, preso entre o horror e a descrença. Seus ouvidos zumbiram à lembrança de sangue e gritos estridentes.

Balthazar pôs uma das mãos no ombro dele, apoiando-o.

- Você está bem? Talvez eu devesse tê-lo preparado melhor. Vigor libertou-se do aperto da mão do homem.

- Eu... eu estou bem.

Para provar isso, ele se ajoelhou a fim de inspecionar mais de perto a marca resplandecente, uma marca que conhecia muito bem. O símbolo da Ordinis Draconis, a Real e Imperial Ordem do Dragão.

Os olhos de Balthazar encontraram os dele, as escleras brilhando sob a luz ultravioleta. A Corte do Dragão incendiara aquela torre dois anos antes, com a ajuda do traidor ex-prefeito dos Arquivos Secretos, o Prefeito Alberto, agora morto. Era uma história que Vigor acreditara terminada havia muito tempo, finalmente sepultada, em particular agora, com a torre que renascia da fumaça e das cinzas como a fênix.

O que a marca estava fazendo ali?

Vigor ajoelhou-se com uma contratura do joelho esquerdo. A marca parecia ter sido desenhada às pressas, não passava de uma aproximação grosseira. Balthazar permaneceu em pé junto ao ombro dele.

—            Eu a examinei com uma lente de aumento e encontrei um pingo de massa de restauração embaixo da tinta fluorescente, indicando que ela foi desenhada recentemente. Nesta semana, suponho.

—            O ladrão... — murmurou Vigor, lembrando-se do começo da história.

—            Talvez não fosse simplesmente um ladrão comum, afinal de contas. Vigor massageou o joelho. A marca só podia ter um significado horrendo. Uma ameaça ou advertência, talvez uma mensagem para outro espião da Corte do Dragão no Vaticano. Ele recordou a mensagem de Balthazar: Fizemos uma descoberta das mais terríveis e maravilhosas. Fitando o dragão, Vigor agora compreendia o caráter terrível daquela mensagem. Ele olhou para trás e disse:

—            No seu bilhete, você também mencionou a descoberta de algo maravilhoso. Balthazar confirmou com um aceno de cabeça. Ele estendeu a mão para trás e abriu a porta do quartinho, deixando entrar uma torrente de luz proveniente do aposento externo. Com o brilho, o dragão fosforescente desapareceu do chão, como se evitasse a luz.

Ao vê-lo desvanecer-se, Vigor deu um longo suspiro.

—            Dê uma olhada nisto. — Balthazar ajoelhou-se ao lado de Vigor. — Isto nos teria passado despercebido se não fosse pelo dragão pintado no piso.

Ele inclinou-se para a frente, apoiado na palma de uma das mãos, e estendeu a outra mão. Seus dedos roçaram a pedra nua.

—            Foi necessário usar a lupa para revelar isto. Eu avistei isto quando examinava a tinta fluorescente. Enquanto esperava por você, removi da inscrição um pouco da sujeira acumulada durante os séculos.

Vigor examinou o piso de pedra.

- Que inscrição?

- Incline-se mais para perto. Apalpe aqui.

Concentrando-se, Vigor obedeceu. Com as pontas dos dedos, como um cego lendo braile, ele sentiu mais do que viu. Havia uma tênue inscrição na pedra.

Vigor nem ao menos precisou da avaliação de Balthazar para saber que a gra­vura era antiga. Os símbolos eram tão concisos quanto anotações científicas, mas não eram os garranchos de nenhum físico. Como ex-chefe do Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã, Vigor reconheceu o significado.

Balthazar deve ter interpretado a reação dele, pois sua voz baixou até se trans­formar num sussurro conspiratório.

—            Isto é mesmo o que eu acho que é?

Vigor recostou-se e tirou o pó das pontas dos dedos.

—            Uma escrita mais antiga do que o hebraico sussurrou. A primeira língua, caso você acredite nas narrativas.

—            Por que ela foi desenhada aqui? O que significa?

Vigor sacudiu a cabeça e examinou o piso, enquanto outra pergunta surgia. A marca do dragão reapareceu, mas apenas na sua memória, iluminada pela sua preocupação, e não pelo brilho da luz ultravioleta. Sobre a pedra, o dragão enros­cara-se em torno da inscrição, como se a protegesse.

Ele voltou a pensar nas palavras de seu amigo. Isto nos teria passado desperce­bido, se não fosse pelo dragão pintado no piso. Talvez o dragão se destinasse menos a proteger a antiga inscrição do que a iluminá-la, a atrair a atenção para ela.

Mas para os olhos de quem ela se destinava?

Quando Vigor imaginou o dragão contorcido, voltou a sentir o peso do corpo de Jakob em seus braços, fumegante e carbonizado.

Naquele momento, ele soube a verdade. A mensagem não se destinava a outro agente da Corte do Dragão, a outro traidor como o prefeito Alberto. Ela visava atrair alguém intimamente ligado à história da Corte do Dragão, alguém que conhecia sua importância.

A mensagem fora deixada para ele.

Mas por quê? Qual era seu significado?

Vigor levantou-se devagar. Ele conhecia alguém que poderia ajudar, alguém a quem ele havia evitado pedir ajuda no último ano. Até agora, não houvera ne­cessidade de manter contato, sobretudo depois de o homem ter rompido com sua sobrinha. Mas Vigor sabia que parte de sua reticência não era motivada apenas por corações partidos. O homem, tanto quanto aquela torre, o lembrava do passado sangrento ali, um passado que ele queria esquecer.

Mas agora não tinha escolha.

A marca do dragão brilhava na sua memória, cheia de uma advertência terrível.

Ele precisava de ajuda.

 

- Gray, você pode esvaziar a lata de lixo da cozinha?

- Já vou, mamãe.

Na sala de estar, o comandante Gray Pierce pegou outra garrafa vazia de Sam Adams, outro soldado morto da comemoração de seus pais do Quatro de Julho, e a enfiou no engradado de plástico sob o braço. Pelo menos, a festa estava ter­minando.

Ele consultou o relógio: quase meia-noite.

Gray recolheu outras duas garrafas de cerveja vazias da mesa da entrada da frente e parou diante da porta aberta, desfrutando um pouco da brisa através da porta de tela. A noite recendia a jasmim, junto a um cheiro remanescente de fumaça da queima de fogos de artifício na festa do quarteirão. Longe dali, alguns assobios e estalos continuavam a realçar a noite. Um cão uivou no quintal, atrás de sua mãe, irritado por causa do barulho.

Apenas alguns convidados permaneciam na varanda da frente do bangalô em estilo Craftsman de seus pais, descansando no balanço da varanda ou inclinados no balaústre, apreciando a noite fresca depois do costumeiro calor sufocante de um verão em Maryland. Horas antes, eles haviam assistido aos fogos de artifício dali. Depois, os participantes da festa foram diminuindo aos poucos, desaparecendo na noite. Apenas os mais obstinados ficaram.

Como o chefe de Gray.

O diretor Painter Crowe estava encostado num esteio, curvado ao lado do professor-assistente que trabalhava para a mãe de Gray. Ele era um melancólico rapaz do Congo que freqüentava a Universidade George Washington com uma bolsa de estudos. Painter Crowe estivera perguntando sobre o estado das hostilidades na pátria do rapaz. Parecia que mesmo numa festa o diretor da Força Sigma mantinha um dedo sobre o pulso do mundo.

E era isso que fazia dele um grande diretor.

A Força Sigma funcionava como o ramo secreto de operações de campo da DARPA, a divisão de pesquisa e desenvolvimento do Departamento de Defesa. Seus membros eram enviados para salvaguardar ou neutralizar tecnologias cruciais para a segurança dos Estados Unidos. A equipe era formada por ex-soldados das Forças Especiais, escolhidos a dedo em segredo e submetidos a rigorosos programas de doutorado, formando uma equipe militarizada de agentes com treinamento técnico. Ou como Monk, amigo de Gray e membro da equipe, gostava de brincar: cientistas assassinos.

Com tamanha responsabilidade, a única forma de relaxamento do diretor Crowe naquela noite parecia ser o uísque escocês puro malte que estava sobre o balaústre da varanda. Ele bebera devagar a noite inteira. Como que sentindo o olhar perscrutador, Painter acenou com a cabeça para Gray através da porta.

Na luz fraca de alguns lampiões iluminados a velas, o diretor tinha a aparência de uma figura inflexível, de calças escuras e camisa de linho estampada. Sua herança meio indígena se revelava nos planos rígidos de seu rosto.

Gray estudou aqueles planos, à procura de quaisquer sinais de fraqueza no comportamento do homem, sabendo a pressão sob a qual ele devia estar. A estru­tura organizacional da Sigma estava sendo submetida a uma abrangente auditoria interna pela NSA e pela DARPA, e agora uma crise médica estava começando no Sudeste Asiático. Por isso era bom ver o homem fora dos escritórios subterrâneos da Sigma.

Mesmo que fosse apenas por aquela noite.

O dever, no entanto, jamais se afastava da mente do diretor.

Provando isso, Painter alongou-se, fez uma flexão apoiado no balaústre e en­caminhou-se para a porta.

—            Acho que é melhor eu ir embora! ele gritou para Gray, e consultou o re­lógio. Estou pensando em dar um pulo ao escritório e verificar se Lisa e Monk chegaram bem.

Os dois cientistas, a dra. Lisa Cummings e o dr. Monk Kokkalis, haviam sido enviados para investigar uma crise médica que se difundia nas ilhas indonésias. Os dois, que viajavam como adjuntos à Organização Mundial de Saúde (OMS), haviam partido naquela manhã.

Gray passou pela porta de tela de vaivém e apertou a mão de seu chefe. Sabia que o interesse de Painter no itinerário da dupla ia além de seu papel como diretor de operações de campo. Ele via a preocupação de um homem apaixonado.

—            Eu tenho certeza de que Lisa está bem — tranqüilizou-o Gray, sabendo que Lisa e Painter mal haviam ficado separados ultimamente. — Isto é, desde que ela tenha colocado os tampões de ouvido na bagagem, pois o ronco de Monk poderia chacoalhar a turbina da asa de um jato. E, por falar na banda de corneteiros de um homem só, se o senhor ouvir qualquer notícia, informe a Kat...

Painter ergueu uma das mãos.

Ela já telefonou para o meu BlackBerry duas vezes esta noite, para saber se recebi alguma notícia. Deu um gole no uísque. Eu telefonarei imediatamente para ela assim que souber de alguma coisa.

Eu suspeito de que Monk vai dar esse telefonema antes do senhor, por causa das duas mulheres pelas quais ele agora é responsável.

Painter sorriu, como se estivesse um pouco cansado.

Três meses atrás, Kat e Monk haviam tido uma menina, com 2,8kg, batizada de Penélope Anne. Depois de ter sido designado para a atual operação de campo, Monk brincara a respeito de escapar das fraldas e mamadeiras à meia-noite, porém Gray viu como o fato de deixar para trás a esposa e a filhinha abrira um pequeno buraco no coração de seu amigo.

- Obrigado por ter vindo, diretor. Eu o verei de manhã.

- Por favor, transmita meus agradecimentos à sua família.

Ao ser lembrado, Gray deu uma olhadela para a torrente de luz ao longo do lado esquerdo da casa, vinda da garagem separada nos fundos. Seu pai se isolara ali algum tempo atrás. Nem todas as explosões de fogos de artifício naquela noite tinham sido lá fora nas ruas. Ultimamente, seu pai achava as situações sociais cada vez mais difíceis, à medida que o mal de Alzheimer progredia, fazendo-o esquecer nomes e repetir perguntas já respondidas. Sua frustração levou a uma explosão de fúria particular entre pai e filho. Depois disso, seu pai saíra pisando duro em direção à garagem e à sua oficina.

Cada vez mais, seu pai podia ser encontrado refugiado ali nos fundos. Gray suspeitava de que ele estivesse menos se escondendo do mundo do que evitando comunicar-se com pessoas estranhas, procurando um lugar solitário para proteger o que ainda restava de suas faculdades, encontrando conforto na espiral de carvalho produzida pela sua plaina de madeira ou na volta de um parafuso bem apertado. Ainda assim, apesar daquela forma de meditação, Gray reconhecia o medo crescente por trás dos olhos do pai.

—            Eu lhes direi — murmurou Gray.

Quando Painter partiu, os últimos retardatários da festa seguiram seu exemplo. Alguns pararam no interior da casa a fim de cumprimentar a mãe de Gray, enquanto ele se despedia dos outros. Pouco depois, a varanda era inteiramente sua.

—            Gray! — a mãe gritou lá de dentro. — O lixo!

Com um suspiro, ele se curvou e pegou a lata de lixo com garrafas vazias, latas e copos de plástico. Ajudaria sua mãe a limpar tudo e em seguida percorreria de bicicleta o curto caminho pela cidade até seu apartamento. Quando deixou a porta de tela bater atrás de si, apagou a luz da varanda e rumou para a cozinha pelo assoalho de madeira. Ouviu a máquina de lavar louça zumbindo e o barulho de panelas na pia.

—            Mamãe, eu vou terminar isso — disse ele ao entrar na cozinha. — Vá descansar.

Sua mãe afastou-se da pia. Ela usava calças compridas de algodão azul-marinho, blusa de seda branca e um avental xadrez úmido. Num momento como aquele, assoberbada como estava por causa de uma noite de diversão, a idade avançada de sua mãe de repente o impressionou. Quem era aquela mulher idosa de cabelos grisalhos na cozinha?

Ela então sacudiu um pano de prato úmido na direção dele e interrompeu o delírio.

- Só recolha o lixo. Estou quase terminando aqui. E diga a seu pai que é para entrar. Os Edelmman não gostam do trabalho de marcenaria noturno dele. Ah, sim, embrulhei o frango assado que sobrou. Você poderia guardá-lo na geladeira da garagem?

- Vou ter que fazer uma segunda viagem. — Ele arrastou os dois sacos plásticos de lixo com uma das mãos e segurou um engradado de garrafas vazias embaixo do braço, — Volto já.

Ele usou o quadril para empurrar a porta dos fundos e sair para o quintal mergulhado nas sombras. Descendo com cuidado os dois degraus dos fundos, seguiu na direção da garagem e da fila de latas de lixo ao longo de sua parede la­teral. Percebeu que estava se movendo com passos suaves, procurando evitar que as garrafas tilintassem. Um irrigador de jardim Rainbird o traiu.

Gray tropeçou, e o engradado de garrafas chacoalhou quando ele recuperou o equilíbrio. O Scottish terrier do vizinho dos fundos queixou-se latindo.

—            Merda...

Seu pai xingou repentinamente da garagem.

—            Gray? Se for você... me dê uma ajuda aqui!

Gray hesitou. Depois de quase ter respondido à altura aos gritos do pai na­quela noite, ele não queria bis à meia-noite. Nos últimos anos, os dois vinham se dando bastante bem, descobrindo interesses comuns depois de toda uma vida de estranheza. Porém, no último mês, quando alguns dos testes cognitivos de seu pai começaram a declinar de novo, uma irritabilidade muito familiar e indesejada havia retornado ao homem taciturno.

- Gray!

- Espere!

Gray jogou o lixo numa das latas abertas e pôs o engradado ao lado dela. Dando a volta, ele se dirigiu à luz que vinha da garagem aberta.

O cheiro de pó de serra e de graxa o impressionou, fazendo-o recordar-se de dias piores. Pegue a maldita correia, seu fedelho imprestável... Eu farei você pensar duas vezes antes de usar uma das minhas ferramentas... caia fora daqui antes que eu te dê uma surra...

Seu pai estava ajoelhado no chão ao lado de uma lata de café com pregos de 5 centímetros de comprimento, e os limpava. Gray notou o vestígio de sangue no chão, proveniente da mão esquerda do pai.

Seu pai ergueu a cabeça quando Gray entrou. Sob as lâmpadas fluorescentes, não havia como negar seus laços familiares. Os olhos azuis de seu pai tinham a mesma tonalidade acinzentada dos de Gray. O rosto de ambos era esculpido em ângulos e fendas acentuados, marcando a herança galesa. Não havia como escapar a isso. Kle estava se transformando no pai. E, apesar de os cabelos de Gray ainda serem pretos como carvão, ele tinha alguns fios grisalhos para provar isso.

Ao ver a mão ensangüentada, Gray se aproximou e fez um sinal para que o pai fosse até a pia nos fundos.

- Vá lavar isso.

- Não me diga o que devo fazer.

Gray abriu a boca para discutir, pensou melhor e abaixou-se para ajudar o pai.

—            O que aconteceu?

—            Eu estava procurando parafusos para madeira — respondeu o pai, acenando com a mão cortada na direção da bancada.

—            Mas isto aqui são pregos.

Os olhos de seu pai pousaram sobre ele.

—            Não me sacaneie, Sherlock.

Havia uma fonte de raiva mal refreada em seu olhar, mas Gray sabia que ela não era direcionada a ele dessa vez.

Ao reconhecer isso, permaneceu calado e simplesmente juntou os pregos e os pôs de novo na lata de café. Seu pai olhava para as mãos, uma ensangüentada, a outra não.

—            Papai?

O homenzarrão sacudiu a cabeça e afinal disse suavemente:

—            Maldição...

Gray não disse nada.

Quando Gray era jovem, seu pai trabalhara nos campos de petróleo do Texas até ficar incapacitado em conseqüência de um acidente industrial que o fizera perder uma perna na altura do joelho, transformando um engenheiro petrolífero em dona de casa. Gray é que suportara o impacto da frustração dele, sempre considerado estúpido, jamais capaz de ser o homem que o pai queria que ele fosse.

Gray observou o pai fitar as mãos e reconheceu uma dura verdade. Talvez o tempo todo a raiva daquele homem idoso tivesse sido direcionada para dentro. Como agora. Menos a frustração com um filho do que a raiva de um pai por não ter conseguido ser o homem que ele próprio queria ser. E agora, mais uma vez, a incapacidade estava lentamente eliminando aquilo.

Gray procurou algumas palavras.

Enquanto pensava nelas, o rugido de uma motocicleta interrompeu qualquer contemplação ulterior. No fim da rua, pneus cantaram, deixando marcas de bor­racha no asfalto.

Gray empertigou-se e colocou a lata de café em cima da bancada. Seu pai xingou o piloto rude, provavelmente um farrista bêbado. No entanto, Gray estendeu um dos braços e apagou as luzes da garagem.

- O que você está...?

- Continue abaixado — ordenou Gray.

Alguma coisa estava errada...

A moto apareceu, uma Yamaha V-Max preta e robusta. Ela veio rugindo, der­rapando de lado. O farol estava apagado. Fora isso que deixara os nervos de Gray tensos. Nenhum feixe de luz havia brilhado rua acima, projetando-se à frente do rugido do motor. A moto estava completamente apagada.

Sem reduzir a velocidade, ela derrapava de lado. O pneu traseiro levantou fu­maça quando ela tentou fazer a curva brusca de acesso à entrada de veículos deles. Ela hesitou, equilibrou-se e depois avançou com ímpeto.

—            Que diabo! — vociferou seu pai.

O motociclista supercompensou para fazer a curva. A moto deu uma sacudi­dela, e em seguida a colisão com o meio-fio fez o veículo inclinar-se para o lado. O motociclista lutou para manter o controle, mas o pára-lama traseiro prendeu-se na quina do degrau da varanda.

A motocicleta caiu e começou a derrapar, produzindo uma chuva de faíscas verme­lhas e transformando-se em outro espetáculo do Quatro de Julho. Cuspido do veículo, o piloto rolou longitudinalmente, caindo estatelado perto da garagem aberta.

Mais adiante, na entrada de veículos, o motor da motocicleta afogou e morreu.

As fagulhas se extinguiram.

A escuridão desceu.

—            Deus do Céu! — exclamou o pai.

Gray estendeu uma das mãos para trás, a fim de que seu pai permanecesse na garagem. Com a outra mão, sacou uma Glock 9mm de um coldre no tornozelo. Foi até a figura meio de bruços, toda vestida de preto: couro, echarpe, capacete.

Um leve gemido revelou duas coisas: o piloto ainda estava vivo, e era uma mu­lher. Ela estava enroscada de lado, a roupa de couro rasgada.

A mãe de Gray apareceu à porta dos fundos da casa e ficou em pé à luz da varanda, atraída pelo barulho.

- Gray...?

- Fique aí! — ele gritou para ela.

Quando se aproximou da motociclista caída, Gray notou algo a poucos passos do veículo, sua forma negra bem definida contra o cimento branco da entrada de veículos. Parecia alguma pilastra atarracada de pedra negra, rachada pelo impacto. De seu interior escuro, o brilho de um núcleo metálico refletia a luz da lua.

Mas foi o brilho de outro objeto de prata que atraiu seu olhar enquanto ele andava até o lado da motociclista.

Um pequeno pingente em torno do pescoço da mulher.

Com a forma de um dragão.

Gray o reconheceu de imediato. Ele usava um idêntico no próprio pescoço, um presente de uma velha inimiga, uma advertência e uma promessa quando seus caminhos voltassem a se cruzar.

Ele segurou a pistola com mais força.

Com outro pequeno gemido, a mulher girou o ombro e ficou de costas. O sangue escorria pelo cimento branco, um rio negro que avançava aos poucos na direção da grama aparada nos fundos da casa. Gray reconheceu de saída uma ferida em carne viva.

Ela fora atingida pelas costas por um tiro.

Uma das mãos estendeu-se para cima e puxou o capacete para trás. Um rosto familiar, contraído de intensa dor, fitava-o, emoldurado por cabelos pretos. A pele bronzeada e os olhos amendoados revelavam sua ascendência eurasiana e sua identidade.

—            Seichan... — disse ele.

Ela estendeu uma das mãos para ele, debatendo-se.

—            Comandante Pierce... me ajude...

Ele sentiu a dor nas palavras dela, mas também algo que pensara que jamais sentiria naquela inimiga fria.

Terror.

 

Apenas outro dia de ócio na praia...

Monk Kokkalis acompanhava seu guia ao longo da estreita faixa de areia. Ambos os homens usavam idênticos trajes anticontaminação Bio-3. Não era a melhor es­colha de vestuário para passear em uma praia tropical. Embaixo de seu traje, Monk usava apenas um sungão. No entanto, sentia-se como se estivesse usando roupas demais, à medida que assava lentamente dentro do plástico lacrado. Protegendo os olhos contra a luz ofuscante do sol a pino, ele olhou para o horror ali próximo.

A baía ocidental da ilha Christmas espumava e se encrespava com os animais mortos, como se o próprio inferno tivesse causado uma destruição desde as pro­fundezas. Montes de carcaças de peixes assinalavam o local até onde a maré alta da noite anterior chegara. Montes maiores de tubarões, golfinhos, tartarugas, e até uma baleia-franca-pigméia, espalhavam-se a praia — embora continuasse difícil dizer onde uma começava e a outra terminava, carne e escamas fundindo-se numa massa malcheirosa de ossos e tecidos em decomposição. Também havia uma gran­de quantidade de aves marinhas, contorcidas e mortas, na areia e na água, talvez atraídas pela mortandade apenas para sucumbirem ao mesmo veneno.

Uma cavidade próxima na rocha expeliu um jorro da imunda água do mar com um berro retumbante, como se o próprio oceano estivesse exalando o último suspiro.

Abaixando-se sob o borrifo da água do mar, os dois homens seguiram para o norte ao longo da praia, percorrendo uma trilha estreita de areia clara entre a imundície da zona da maré e íngremes penhascos cobertos de matas.

— Me lembre de evitar o bufê de frutos do mar quando estivermos de volta ao navio — murmurou Monk através do som áspero de seu respirador.

Ele estava contente pelo ar engarrafado de seu traje e podia apenas imaginar o mau cheiro que devia acompanhar aquele cemitério formado pela maré.

Também estava aliviado por sua colega, a dra. Lisa Cummings, ter permanecido à bordo do navio de cruzeiro no outro lado da ilha. O Mistress of the Seas flutuava em Flying Fish Cove, mantido em segurança contra o vento, longe da nuvem re­pugnante que flutuava sobre a ilha vinda da sopa tóxica em seu lado ocidental.

Mas outros não haviam tido tanta sorte.

Ao chegar ao raiar do dia, Monk testemunhara as centenas de homens, mulhe­res e crianças sendo evacuados da ilha, todos em vários estados de contaminação: alguns cegos, outros apenas cobertos de furúnculos, os mais graves com a pele morrendo aos poucos em fragmentos cheios de pústulas. E, embora os níveis de toxicidade estivessem em rápido declínio, a ilha inteira estava sendo evacuada como medida de segurança.

O Mistress of the Seas, um gigantesco e luxuoso navio de cruzeiro em sua via­gem inaugural entre as ilhas indonésias, fora evacuado e desviado de sua rota e transformado num navio para atendimento de emergências médicas. Ele também servia de centro de operações da equipe da OMS, cuja ajuda fora solicitada a fim de descobrir a causa e a origem do súbito envenenamento dos mares próximos.

Era por isso que Monk estava ali naquela manhã, procurando algumas respos­tas nas conseqüências da tragédia. A bordo do navio, a habilidade de Lisa como médica estava sendo exercida de maneira fatigante, ao passo que o treinamento de Monk o fizera andar por aquele lugar fétido. Por seus conhecimentos de perícia forense — médica e biológica —, ele fora escolhido à dedo para aquela missão específica da Sigma. A operação fora classificada como de baixo risco — apenas investigação —, a fim de facilitar sua volta depois de ter tirado três meses de licença-paternidade.

Ele afastou esse último pensamento, pois não queria pensar em sua filhinha enquanto caminhava pesadamente através da imundície ali. No entanto, era im­possível não pensar. Ele se lembrou dos olhos azuis de Penélope, das bochechas rechonchudas e da incrível coroa de cabelos louros, tão diferente da cabeça raspada e das feições rudes do pai. Como uma coisinha tão linda podia partilhar seus genes? Mas, por outro lado, sua esposa talvez o tivesse deixado em posição desvantajosa nesse departamento. Mesmo agora, ele não conseguia descartar a dor no peito, um anseio físico por elas, como se uma corda o atasse tão certo como um cordão umbilical, um compartilhamento de sangue entre eles três. Parecia impossível que ele pudesse ser assim tão feliz.

Um pouco mais à frente, seu guia, o dr. Richard Graff, um pesquisador oceânico da Universidade de Queensland curtido pelo sal, havia se abaixado e se apoiava num dos joelhos. Ele nada sabia acerca da verdadeira identidade de Monk, apenas que ele fora recrutado pela OMS por seus conhecimentos especializados. Graff pôs sua caixa de plástico para coleta de amostras sobre uma prateleira plana de rocha. Através da viseira, as feições barbudas do homem estavam tensas de preocupação e concentração.

Era hora de começar a trabalhar.

Os dois haviam sido deixados ali por um Zodiac, um barco inflável de borra­cha. O piloto, um marinheiro da Marinha Real australiana, permaneceu no barco, fundeado além da zona da mortandade. Um pequeno navio da Guarda Costeira australiana havia chegado para supervisionar a evacuação da ilha.

A ilha remota, situada 2.500 quilômetros a noroeste de Perth, ainda era território australiano. Descoberta no dia de Natal de 1643, a ilha inabitada foi afinal colonizada pelos britânicos, a fim de explorarem seus depósitos de fosfato, iniciando a exploração de uma importante mina ali, que empregava trabalhadores contratados de todas as ilhas indonésias. E, apesar de as minas ainda estarem em operação, o turismo se trans­formara na principal indústria da ilha tropical. Três quartos da região montanhosa da ilha, repleta de florestas tropicais, haviam sido declarados parques nacionais.

Nem tão cedo, porém, os turistas afluiriam para ali.

Monk juntou-se ao dr. Richard Graff.

O pesquisador marinho percebeu sua chegada e acenou com uma das mãos enluvadas, num gesto que abrangia a mortandade em massa ali.

—            Isso começou pouco mais de quatro semanas atrás, de acordo com os relatos de alguns pescadores do lugar explicou Graff. Armadilhas para lagostas foram encontradas repletas de conchas de crustáceos vazias, com a carne completamente dissolvida no interior. Redes de pesca de arrasto produziam bolhas quando eram puxadas do mar. E a situação só foi piorando.

- O que o senhor acha que aconteceu aqui? Algum tipo de vazamento tóxico?

- Sem dúvida, foi um ataque tóxico, mas não foi nenhum vazamento.

O cientista desdobrou uma sacola preta para coleta de amostras, estampada com uma advertência de substâncias químicas perigosas, e apontou para a arrebentação próxima. As águas espumavam com uma mancha amarelada, uma sopa venenosa repleta de carne e ossos.

Ele acenou com um dos braços.

- Tudo isso é obra da Mãe Natureza.

- O que o senhor quer dizer?

Você está olhando para lodo de fungos, colega. Composto de cianobactérias, um antigo predecessor das bactérias e algas modernas. Há três bilhões de anos, esse lodo se desenvolveu pelos oceanos do mundo. E agora está se desenvolvendo de novo. Foi por isso que me chamaram aqui. Esses organismos são a minha prin­cipal área de especialidade. Eu estudo essas florações nas proximidades da Grande liarreira de Corais, especificamente um chamado fireweed, uma mistura de algas e cianobactérias que pode cobrir um campo de futebol em menos tempo do que você levaria para almoçar. A maldita criatura libera dez biotoxinas diferentes, potentes o bastante para criar bolhas na pele. E, quando seca, ela pode aerossolizar com a mesma capacidade que um spray de pimenta tem de queimar.

Monk imaginou a devastação em The Settlement, o maior povoado da ilha, não muito distante daquela baía, no caminho dos ventos alísios.

- O senhor está dizendo que foi isso o que aconteceu aqui?

- Ou algo desse tipo. Fireweed e cianobactérias estão florescendo em toda a par­te nos nossos oceanos, dos fiordes da Noruega à Grande Barreira de Corais. Peixes, corais e mamíferos marinhos estão se extinguindo, enquanto esses lodos antigos, junto com águas-vivas venenosas, estão florescendo. É como se a evolução estivesse funcionando ao contrário, com os oceanos involuindo para mares primordiais. E a culpa é toda nossa. O escoamento de fertilizantes, de rejeitos químicos industriais e de água de esgoto tem contaminado deltas e estuários. A pesca predatória dos últimos cinqüenta anos fez a população de peixes grandes se reduzir em 90%. E as mudanças climáticas estão acidificando e aquecendo as águas, diminuindo a sua capacidade de reter oxigênio, sufocando a vida marinha. Estamos matando rapidamente os mares, acima da capacidade de eles se recuperarem.

Sacudindo a cabeça, ele olhou para os corpos mortos na praia.

- Em conseqüência disso, estamos vendo o retorno de mares de cem milhões de anos atrás, repletos de bactérias, algas tóxicas e águas-vivas venenosas. Essas zonas de mortandade são encontradas no mundo inteiro.

- Mas o que causou esta aqui?

Aquela era a pergunta que os trouxera todos até ali.

Graff sacudiu a cabeça.

—            Um novo lodo de fungos não-identificado. Alguma coisa que ainda não vimos. E é isso que me assusta. Biotoxinas e neurotoxinas marinhas já são os venenos mais potentes do mundo. Elas são tão graves que estão até mesmo além da capacidade do homem de duplicá-las. Você sabia que a saxitoxina, produzida por bactérias existentes em certos crustáceos, foi classificada pelas Nações Unidas como uma arma de destruição em massa?

Monk fez uma careta na direção do mar através da viseira.

—            A Mãe Natureza pode ser uma cadela malcriada.

—            O maior terrorista de todos. É melhor não encher o saco dela.

Monk não contestou.

Com o fim da lição de biologia, Monk abaixou-se e ajudou a organizar os kits de coleta. Fez um grande esforço para usar as luvas de plástico de seu traje. Esta­va ainda mais comprometido pela mão esquerda dormente. Mutilado após uma missão anterior, ele agora usava uma mão artificial avançadíssima, dotada com o que havia de mais moderno na coleção de engenhocas da DARPA, mas material sintético e bioeletrônica não eram carne. Ele praguejou um pouco quando tentou introduzir uma seringa na areia.

—            Cuidado com isso advertiu Graff. Eu não acho que você queira furar o seu traje. Não aqui. Embora os níveis tóxicos estejam regredindo, é melhor to­marmos cuidado.

Monk suspirou. Ele ficaria contente em se livrar de seu traje de macaco, de voltar para o navio, para sua suíte. A caminho da ilha, Monk dera um jeito de mandarem por avião para o navio de cruzeiro um conjunto completo de equipamentos para exames forenses. Era lá que ele preferia estar.

Mas primeiro eles precisavam de amostras laboratoriais. E de muitas delas. Sangue, tecidos e ossos. De peixes, tubarões, lulas, golfinhos.

—            Isso é estranho murmurou Graff, que se levantou e olhou para a praia de um extremo ao outro.

Monk juntou-se a ele.

- O quê?

- Um dos animais mais onipresentes da ilha é o Geocarcoidea natalis.

- E isso é...?

—            Estou me referindo ao caranguejo-vermelho terrestre da ilha Christmas.

Monk examinou o litoral imundo. Ele lera exaustivamente sobre a flora e I làuna da ilha. O caranguejo-vermelho terrestre era a estrela da ilha e atingia o tamanho de um prato raso. Sua migração anual era uma das maravilhas do mundo animal. Todo mês de novembro, de acordo com os ciclos lunares, cem milhões de caranguejos iam precipitadamente da selva para o mar, esquivando-se das aves marinhas e tentando provar seu direito de se acasalar sobrevivendo Aquela provação.

Graff prosseguiu:

—            Os caranguejos são notórios comedores de carniça. Seria de supor que todas as carcaças aqui os atraíssem, como atraíram as aves marinhas. Mas não vejo um único sequer aqui, vivo ou morto.

—            Talvez eles tenham sentido a toxina e ficado em suas selvas.

—            Se eles fizeram isso, esse fator poderia conter alguma pista sobre a origem da toxina ou das bactérias que a produziram. Talvez eles tenham se deparado antes com essa floração letal. Talvez eles sejam resistentes. De qualquer modo, quanto mais rápido pudermos isolar a fonte, melhor.

—            Para ajudarmos os ilhéus...

Graff deu de ombros.

—            Claro que sim. Porém, ainda mais importante, para impedirmos que o or­ganismo se propague. Ele observou atentamente a água amarelada, e o tom de sua voz baixou de preocupação. Receio que isso possa ser um precursor daquilo que todos os cientistas oceânicos temem.

Monk olhou de relance para ele, esperando que entrasse em detalhes.

—            Uma bactéria que seja um fator decisivo, um agente potente o bastante para esterilizar toda a vida no mar.

—            E isso pode acontecer?

Graff ajoelhou-se para dar início ao trabalho.

—            Talvez já esteja acontecendo.

Com aquela declaração sombria, Monk passou a hora seguinte coletando amostras em frascos, sacolas e copinhos de plástico. O tempo todo, o sol erguia-se muito acima dos penhascos, refletindo-se nas águas, cozinhando-o em seu biotraje. Começou a sonhar de olhos abertos com uma ducha fria e um drinque gelado com um guarda-sol de enfeite.

Os dois foram descendo lentamente a praia. Próximo à face do penhasco, Monk notou um amontoado de varetas de incenso queimadas enfiadas na areia. Elas for­mavam uma paliçada em frente a um pequeno altar budista, no qual havia apenas uma figura sem rosto sentada, há muito desgastada pelo mar e pela areia. Estava embaixo de um telheiro improvisado salpicado de fezes de pássaros. Ele imaginou as varetas de incenso sendo acesas para proteger contra a nuvem tóxica, em busca de alguma intervenção celestial.

Ele passou pelo altar e sentiu um calafrio súbito; perguntou-se se os esforços deles ali se revelariam mais úteis.

O rugido sufocado de um barco que se aproximava atraiu seu olhar de volta para o mar. Ele olhou de relance para a praia. Enquanto coletavam amostras, ele e Graff haviam transposto uma ponta de terra. O Zodiac estava fundeado além da ponta rochosa, fora de vista.

Monk protegeu os olhos contra a luz. Será que o piloto australiano estava tra­zendo o bote para mais perto deles?

Graff juntou-se a ele.

—            É cedo demais para voltarmos.

Disparos de rifles ecoaram sobre a água quando uma lancha com o casco azul repleto de remendos contornou a ponta. Monk avistou sete homens na traseira, com a cabeça envolta em lenços. O sol cintilava dos rifles de assalto.

Graff ofegou, recuando até ele.

—            Piratas...

Monk sacudiu a cabeça. Essa é boa...

A lancha voltou-se na direção deles e deslizou através das ondas encrespadas.

Monk segurou Graff pelo colarinho e puxou-o da praia iluminada pelo sol.

A pirataria estava crescendo no mundo inteiro, mas as águas indonésias sempre foram cheias desses criminosos. As muitas ilhas e pequenos atóis, os milhares de enseadas secretas, as florestas densas, tudo isso criava o local perfeito para que os piratas se multiplicassem. E, depois do recente tsunami na região, o número de piratas locais havia aumentado subitamente, aproveitando o caos e os parcos recursos para o policiamento da região.

Parecia que aquela tragédia em curso não era diferente.

Tempos de desespero geravam homens em desespero.

Porém, quem estava desesperado o suficiente para se arriscar naquelas águas? Monk notou que os pistoleiros estavam envoltos da cabeça aos pés em seus biotrajes improvisados. Será que eles tinham ouvido que os níveis tóxicos estavam baixando ali e decidiram arriscar um ataque?

Enquanto se afastava da beira d'água, Monk olhou de relance na direção do bote deles fundeado ali perto. Entre as ilhas, o Zodiac renderia um bom dinheiro no mercado negro, sem mencionar todo o caro equipamento de pesquisa deles. Monk também notou que o piloto do bote não reagira aos disparos. Pego de surpresa, o marinheiro australiano devia ter sido morto no primeiro ataque. Ele também tinha o único rádio deles. Isolados, eles estavam à própria sorte.

Monk imaginou Lisa a bordo do navio de cruzeiro. O pequeno navio da Guarda Costeira australiana patrulhava as águas ao redor do minúsculo porto. Ela pelo menos deveria estar segura.

Ao contrário deles.

Os penhascos impediam qualquer retirada. Praias desertas estendiam-se de cada lado.

Monk puxou Graff para trás de uma grande rocha destacada de seu leito ori­ginal, o único abrigo.

Os tripulantes da lancha fizeram pontaria na direção deles. Os disparos matraquea­ram, abrindo buracos na areia como uma flecha na direção do esconderijo deles.

Monk e Graff abaixaram-se ainda mais.

Era o fim daquele dia de ócio na praia.

 

A dra. Lisa Cummings espalhou a pomada anestésica nas costas da menina que gritava. A mãe dela segurava sua mão. A mulher era malaia e falava em sussurros suaves, com os olhos amendoados contraídos de preocupação. A associação de lidocaína com prilocaína aliviou rapidamente a queimadura nas costas da criança, dissolvendo seus gritos de dor em soluços e lágrimas.

—            Ela ficará bem — disse Lisa, sabendo que a mãe trabalhava como garçonete num dos hotéis da cidade e falava inglês. — Não deixe de dar a ela os antibióticos três vezes ao dia.

A mulher curvou a cabeça e disse:

—            Terima kasih. Obrigada.

Lisa indicou-lhe com um aceno de cabeça um grupo de homens e mulheres de uniforme azul e branco, a tripulação do Mistress of the Seas.

—            Um dos tripulantes encontrará uma cabine para você e sua filha.

A mulher voltou a curvar a cabeça, mas Lisa já estava se afastando, tirando as luvas com um estalido. A sala de jantar no Convés Lido do Mistress of the Seas se transformara no principal ponto de triagem de todo o navio. Cada pessoa evacuada da ilha era examinada e dividida em casos críticos e não-críticos. Com pouquíssima experiência em medicina de crise, Lisa fora designada para prestar os primeiros socorros. Para assisti-la, haviam mandado um estudante de enfermagem de Sydney, um rapaz magricela de ascendência indiana chamado Jesspal, um voluntário da equipe médica da OMS.

Eles formavam uma dupla estranha: uma, loura e pálida; o outro, de cabelos pretos e pele cor de café. Mas trabalhavam como uma equipe experiente.

Jessie, como está o nosso estoque de cefalexina?

Deve durar, dra. Lisa.

Ele agitou o grande frasco de antibióticos com uma das mãos enquanto preen­chia a papelada com a outra. O rapaz sabia como executar várias tarefas ao mesmo tempo.

Puxando mais alto nos quadris as calças verdes estéreis descartáveis, Lisa olhou ao redor. Ninguém aguardava cuidados imediatos. O restante da sala de jantar con­tinuava num estado de caos controlado, entrecortado por choros e gritos ocasionais, mas no momento a enfermaria deles era uma ilha de calmaria.

—            Acho que a maior parte dos ilhéus foi evacuada — disse Jessie. — Ouvi dizer que as duas últimas chalupas vindas do cais chegaram apenas parcialmente cheias. Acho que estamos vendo os pequenos grupos das aldeias menores mais remotas.

—            Graças a Deus por isso.

Lisa havia tratado mais de 150 pacientes ao longo da interminável manhã, casos de queimaduras, bolhas, tosses sufocantes, disenteria, náuseas, um mau jeito num pulso causado por uma queda no cais. No entanto, atendera apenas a uma parte de todos os casos. O navio de cruzeiro aportara na ilha na noite anterior, e a evacuação já estava bem adiantada quando ela chegou de helicóptero ao raiar do dia. Foi necessário que ela tocasse o chão com a aeronave em movimento. A minúscula e remota ilha possuíra pouco mais de dois mil habitantes. Embora os alojamentos fossem escassos, daria para o navio acomodar a população inteira, sobretudo porque o número de mortos havia tragicamente ultrapassado a marca ile quatrocentos... e continuava a aumentar.

Ela se levantou por um instante, abraçando-se a si mesma, desejando que fos­sem os braços fortes de Painter que a estivessem abraçando por trás e que o rosto áspero dele, com a barba por fazer, estivesse roçando seu pescoço. Fechou os olhos, cansada. Muito embora ele não estivesse ali, Lisa tomou emprestado um pouco da obstinação dele.

Enquanto ela estava trabalhando, cuidando de um caso após outro, fora fácil tor­nar-se objetiva, desligar-se, simplesmente tratar os pacientes e seguir em frente.

Mas agora, naquele momento de calma, a enormidade do desastre deixou-a impressionada. Durante as duas últimas semanas, as enfermidades ali haviam co­meçado com casos triviais, algumas queimaduras resultantes da exposição imediata. Depois, em apenas dois dias, o mar havia produzido uma nuvem tóxica, que afinal entrou em erupção como um vulcão, expelindo um gás vesicante que matou um quinto da população e feriu o restante.

E, embora a nuvem tóxica houvesse se extinguido por si só, doenças e infecções secundárias tinham começado a afligir os doentes: gripes, febres abrasadoras, meningite, cegueira. A rapidez era perturbadora. O terceiro convés fora declarado área de quarentena.

O que ela estava fazendo ali?

Quando aquela crise médica teve início, Lisa pedira a Painter para participar daquela missão, expondo seus motivos. Além de ser formada em medicina, ela era Ph.D. em fisiologia humana, porém, ainda mais importante, tinha uma extensa experiência de campo, em particular em ciências marinhas. Havia trabalhado cinco anos a bordo de um navio de salvamento, o Deep Fathom, fazendo pesquisas fisiológicas.

Ela, portanto, tinha um sólido argumento para ter sido incluída naquela equipe.

Mas não era o único.

No último ano, Lisa ficara baseada em Washington e se vira lentamente con­sumida pela vida de Painter. E, embora uma parte dela apreciasse a intimidade, os dois se tornando um, ela também sabia que precisava daquela oportunidade de ficar longe, tanto por si mesma quanto pelo relacionamento, precisava de um pouco de distanciamento para avaliar sua vida fora da sombra de Painter.

Mas talvez aquele distanciamento fosse longo demais...

Um grito agudo chamou sua atenção para as portas duplas que davam acesso à sala de jantar. Dois marinheiros transportavam para dentro um homem numa maca. Ele se contorcia e gritava, com a pele exsudativa e vermelha como a carapaça de uma lagosta. Parecia que seu corpo inteiro havia sido escaldado. Seus carregadores correram com ele na direção da enfermaria de cuidados críticos.

Num reflexo, o tratamento passou pela sua cabeça, e ela voltou a ficar objetiva. Diazepam e uma infusão de morfina. No entanto, bem no fundo, ela sabia a verdade. Todos eles sabiam. O tratamento do homem que sofria seria apenas paliativo, para deixá-lo mais confortável. O homem na maca já estava morto.

—            Lá vem problema — murmurou Jessie atrás dela.

Lisa virou-se e avistou o dr. Gene Lindholm vindo a passos largos em sua di­reção, um homem parecido com uma avestruz, as pernas e o pescoço compridos, e um topete branco arrepiado. O chefe da equipe da OMS acenou com a cabeça para ela, indicando que era com ela mesma que queria falar.

Qual era o problema agora?

Ela não gostava particularmente do clínico formado pela Universidade de Harvard. Ele viera com um ego a ser confrontado. Depois de chegar ali, em vez de ajudar, ele se isolara com o proprietário da linha de cruzeiros marítimos, o bilionário australiano independente Ryder Blunt. O bilionário, notório por sua abordagem prática dos ne­gócios, estava a bordo do navio em sua viagem inaugural. E, embora pudesse ter ido embora quando o navio foi requisitado, ele permanecera no local, transformando o resgate dos ilhéus numa oportunidade de marketing.

E Lindholm cooperava.

Essa cooperação, todavia, não se estendia a Monk e Lisa. O chefe da equipe da OMS se ressentia dos pauzinhos que foram mexidos para incluir os dois na equipe. Porém, ele não tivera escolha a não ser concordar, o que não significava que tivesse de se sentir satisfeito com isso.

—            Dra. Cummings, estou contente por encontrá-la aqui sem nada para fazer.

Lisa reprimiu uma resposta.

Jessie bufou.

Lindholhm olhou de relance para o estudante de enfermagem como se não tivesse percebido a presença do rapaz; em seguida, com a mesma rapidez, ignorou-o e voltou a atenção para Lisa.

—            Recebi instruções para incluir a senhora e seu colega em quaisquer desco­bertas relacionadas com a epidemiologia deste desastre. E, como o dr. Kokkalis está fazendo trabalho de campo, eu pensei que deveria trazer isto à sua consi­deração.

Ele estendeu-lhe um grosso prontuário médico. Ela reconheceu o logotipo do pequeno hospital que atendia a ilha Christmas. Com o quadro de pessoal composto apenas de médicos generalistas que atendiam todos os pacientes e de duas enfer­meiras de tempo integral, o hospital ficara rapidamente sobrecarregado, exigindo que os casos mais graves fossem levados de avião para Perth. Mas, aquilo se tornara impraticável depois que o colapso biológico atingiu a ilha com plena força. Assim que o navio de cruzeiro chegou, o hospital foi o primeiro a ser evacuado.

Lisa abriu o prontuário e viu que o nome do paciente era John Doe. Correu os olhos rapidamente pela história clínica, bastante sumária. O paciente, um homem de quase 70 anos, fora encontrado cinco semanas atrás vagando nu pela floresta tropical, com sinais inequívocos de demência e exposição. Ele não conseguia falar e estava gravemente desidratado. Em seguida, resvalou para um estado infantil, incapaz de cuidar de si mesmo, comendo apenas se fosse alimentado por outra pessoa. Eles tentaram identificá-lo por meio das impressões digitais e de buscas nos registros de pessoas desaparecidas, mas nada fora encontrado. Ele continuava sendo um John Doe.

Lisa ergueu o olhar.

—            Eu não estou entendendo... o que isso tem a ver com o que aconteceu aqui? Suspirando, Lindholm aproximou-se dela e bateu de leve na tabela.

- Embaixo da lista dos sintomas que o paciente exibe e dos achados físicos. No fim da página.

- "Sinais de exposição de moderados a graves" — murmurou ela, lendo a lista até o fim. Na última linha estava escrito: Profundas queimaduras de sol de segundo grau na derme até as panturrilhas, resultando em edema e grave formação de bolhas.

Lisa tornou a erguer o olhar. Ela havia tratado de sintomas semelhantes a manhã inteira.

- Isso não foi apenas uma queimadura de sol.

- Os médicos da ilha tiraram essa conclusão precipitada — disse Lindholm com evidente indignação.

Lisa não podia culpar nem os médicos nem as enfermeiras da ilha. Naquela ocasião, ninguém sabia do desastre ambiental que estava se iniciando. Ela checou a data de novo.

Cinco semanas atrás.

—        Eu creio que encontramos o Paciente Zero — disse Lindholm de maneira pomposa. — Ou pelo menos um dos primeiros casos.

Lisa fechou o prontuário.

—        Eu posso vê-lo?

Ele concordou com um aceno de cabeça.

—        Esse foi o segundo motivo por que vim até aqui. — Houve um tremor sombrio em sua voz ao fim que incomodou Lisa. Ela esperou que ele explicasse, mas Lindholm simplesmente lhe deu as costas e encaminhou-se para fora. — Venha comigo.

O chefe da equipe da OMS cruzou a sala de jantar até um dos elevadores do navio e apertou o botão do Convés Promenade, no terceiro pavimento.

—        A ala de isolamento? — perguntou ela.

Ele deu de ombros.

Poucos instantes depois, as portas se abriram para o interior de uma enfermaria asséptica improvisada. Lindholm fez sinal para que ela vestisse um dos biotrajes, semelhante ao que Monk vestira para colher amostras.

Lisa vestiu o traje, notando o ligeiro cheiro de suor quando puxou o capuz sobre a cabeça e lacrou os atilhos. Assim que ambos estavam prontos, ela foi conduzida por um corredor a uma das cabines. A porta estava aberta, e outros médicos aglomeravam-se à entrada.

Lindholm berrou para que os outros abrissem caminho. Bem treinados pelo chefe, eles se dispersaram. Lindholm conduziu Lisa para dentro do pequeno aposento, uma cabine interna sem janelas. A única cama estava encostada na parede dos fundos.

Um homem jazia deitado sob um cobertor fino. Parecia mais cadavérico do que vivo, mas, ela notou o sobe-e-desce superficial do cobertor, uma respiração débil e arquejante. Linhas intravenosas estendiam-se até um braço exposto. A pele do membro estava tão descorada e consumida que ficara translúcida.

Ela olhou instintivamente para o rosto dele. Alguém o havia barbeado, mas às pressas. Alguns cortes ainda exsudavam. Seus cabelos eram grisalhos e finos, como os de um paciente submetido a quimioterapia, porém seus olhos estavam abertos e encontraram os dela.

Por um momento, ela pensou ter notado um lampejo de reconhecimento, uma mera surpresa. Até mesmo uma das mãos ergueu-se fracamente na direção dela.

Mas Lindholm se interpôs entre eles. Ignorando o paciente, ele puxou para cima a parte inferior do cobertor e expôs as pernas do homem. Lisa esperava ver pele com crostas, curando-se de uma queimadura de segundo grau, como as que tratara a manhã inteira; porém, em vez disso, viu que uma estranha lesão arroxeada se estendia das virilhas aos pés do homem, formando uma superfície áspera e irregular coberta de bolhas pretas.

—        Se a senhora tivesse lido mais o relatório — disse Lindholm —, teria des­coberto que esses novos sintomas surgiram há quatro dias. O pessoal do hospital suspeitou de gangrena tropical, secundária à profunda infecção das queimaduras. Mas na verdade é...

- Faciite necrotizante — concluiu ela.

Lindholm fungou fortemente e baixou o cobertor.

- Exatamente. Foi o que pensamos.

A faciite necrotizante, mais conhecida como doença devoradora de carne, era causada por bactérias, em geral estreptococos beta-hemolíticos.

- Qual é a avaliação? — indagou ela. — Uma infecção secundária causada pelas feridas anteriores?

- Mandei buscar o nosso bacteriologista. Uma rápida reação de Gram na noite passada revelou uma maciça proliferação de Propionibacterium.

Ela franziu o cenho.

- Isso não faz sentido. Essa é apenas uma bactéria epidérmica comum, não-patogênica. O senhor tem certeza de que não foi apenas um contaminante?

- Não nos números encontrados nas bolhas. As reações foram repetidas em outras amostras de tecido, com os mesmos resultados. Foi durante essas novas análises que uma necrose estranha foi observada no tecido circundante. Um pa­drão de decomposição às vezes visto localmente. Ele pode assemelhar-se muito à faciite necrotizante.

- Causada por quê?

- Pela ferroada de um peixe muito tóxico, o peixe-pedra. Ele se parece com uma pedra, mas, possui espinhas dorsais rígidas envenenadas por glândulas peço­nhentas. Um dos venenos mais perigosos do mundo. Eu trouxe o dr. Barnhardt para examinar o tecido.

—        O toxicologista?

Ele respondeu com um aceno afirmativo de cabeça.

O dr. Barnhardt, especialista em venenos e toxinas ambientais, viera de Ams­terdã. Sob os auspícios da Sigma, Painter solicitara pessoalmente o acréscimo do homem à equipe da OMS.

Os resultados chegaram há uma hora. Ele encontrou veneno ativo nos te­cidos do paciente.

- Eu não estou entendendo. Então o homem foi envenenado por um peixe-pedra enquanto perambulava em delírio?

Uma voz soou atrás dela, respondendo à pergunta.

—        Não.

Ela virou-se. Uma figura alta e volumosa ocupava o espaço da entrada, um homem apertado num traje anticontaminação pequeno demais para a sua circun­ferência. Seu rosto cinzento e barbudo combinava com o seu tamanho, mas não com a delicadeza de sua mente. O dr. Henrick Barnhardt entrou na sala.

- Eu não creio que o homem tenha sido ferroado por um peixe-pedra. Mas ele está sofrendo por causa do veneno.

- Como isso é possível?

Barnhardt ignorou a pergunta dela no momento e dirigiu-se ao chefe da equipe da OMS.

—        É o que eu suspeitava, dr. Lindholm. Peguei emprestadas as culturas de Propio­nibacterium do dr. Miller e mandei analisá-las. Não há nenhuma dúvida agora.

Lindholm empalideceu visivelmente.

—        O quê? — perguntou Lisa.

O toxicologista estendeu uma das mãos e gentilmente ajeitou o cobertor sobre o paciente, um gesto terno para um homem tão grande.

—        A bactéria — respondeu ele —, Propionibacterium... está produzindo o equi­valente do veneno do peixe-pedra, bombeando-o em quantidades suficientes para dissolver os tecidos deste homem.

- Isso é impossível.

Lindholm bufou.

- Foi o que eu disse.

Lisa ignorou-o.

- Mas Propionibacterium não produz nenhuma toxina. É uma bactéria benigna.

- Não sei explicar como nem por quê — disse Barnhardt. — Até mesmo para iniciar qualquer avaliação adicional, eu precisaria de pelo menos um microscópio ile varredura. Mas lhe asseguro, dra. Cummings, que de algum modo essa bactéria benigna se transformou num dos micróbios mais perigosos do planeta.

- O que o senhor quer dizer com se transformou?

- Não acho que o paciente contraiu esse micróbio. Acho que ele fazia parte de sua flora bacteriana normal. Seja o que for a que o homem tenha sido exposto lá fora, mudou a bioquímica da bactéria, alterou sua estrutura genética básica e deixou-a virulenta. Transformou-a numa devoradora de carne.

Lisa ainda se recusava a acreditar. Pelo menos sem mais provas.

—        Meu colega, o dr. Kokkalis, montou um laboratório forense portátil na nossa suíte. Se o senhor pudesse...

Lisa sentiu alguma coisa roçar o dorso de sua mão enluvada. Ela quase pulou de susto. Mas era apenas o velho na cama, estendendo novamente a mão para ela. Seus olhos encontraram os dela, desesperados. Seus lábios, rachados, tremiam com uma respiração seca.

—        Sue... Susan...

Ela virou-se e segurou os dedos do homem. Sem dúvida, ele ainda estava deli­rando, confundindo-a com outra pessoa. Apertou-os de um jeito tranqüilizador.

—        Susan... onde está Oscar? Eu posso ouvi-lo latir na floresta... — Seus olhos reviraram-se nas órbitas. — ...latir... ajude-o... mas não... não entre na água...

Ela sentiu os dedos dele afrouxarem-se no aperto de sua mão. As pálpebras dele fecharam-se, levando de roldão o breve momento de confusa lucidez.

Uma enfermeira aproximou-se e verificou os sinais vitais do homem. Ele estava inconsciente de novo.

Lisa enfiou a mão dele sob o cobertor.

Lindholm avançou, aproximando-se, invadindo o espaço dela.

Precisamos ter acesso a esse laboratório forense do dr. Kokkalis o mais rápido possível, a fim de confirmar ou refutar essa conjectura precipitada do dr. Barnhardt.

Eu prefiro esperar a volta de Monk — disse Lisa, recuando. — Parte do equipamento tem design especial. Nós precisaremos de seus conhecimentos para operá-lo sem danificá-lo.

Lindholm fechou a cara — não tanto para ela quanto para a vida em geral.

—        Está bem. — Ele virou-se. — O seu colega deve estar de volta na próxima hora. Dr. Barnhardt, enquanto isso colete as amostras de que o senhor vai precisar.

Um aceno de cabeça do toxicologista holandês revelou reconhecimento da ordem, embora Lisa tenha notado o ligeiro revirar de olhos de Barnhardt quando o chefe da equipe da OMS partiu. Lisa saiu do aposento com Lindholm.

Barnhardt gritou para ela:

- A senhora vai me mandar um bipe quando o dr. Kokkalis chegar, ja?

- É claro.

Como as demais pessoas, ela estava ansiosa para descobrir a verdade. Mas também receava que eles ainda mal tivessem tocado a superfície. Algo terrível estava tendo início ali.

Mas o quê?

Ela esperava que Monk voltasse logo.

Quando saiu, ela também se lembrou das últimas palavras do paciente.

Não... não entre na água…

 

- Nós vamos ter de nadar para escapar — disse Monk.

- Você... você está maluco? — respondeu Graff quando eles se agachavam atrás da pedra.

Momentos antes a lancha dos piratas fora de encontro a um coral submerso, um dos muitos que deram origem ao nome daquela parte da ilha: Smithsohs Blight. Na água, o tiroteio terminara, substituído pelo rugido do motor à medida que a lancha tentava libertar-se.

Monk havia erguido a cabeça para avaliar a situação e quase perdeu uma das orelhas devido a uma bala de um atirador de tocaia. Eles ainda estavam encurra­lados, acuados, sem ter para onde correr, exceto à vista do inimigo.

Monk inclinou-se e abriu o zíper de um dos lacres de seu traje perto da canela. Estendeu a mão pela abertura e tirou a Glock 9mm do coldre preso ao tornozelo.

Os olhos de Graff arregalaram-se quando Monk tirou a pistola.

—        Você acha que pode matar esses caras todos? Atingir o tanque de gasolina ou algo desse tipo?

Monk sacudiu a cabeça e tornou a puxar o zíper para cima.

—        O senhor tem assistido a filmes demais de Bruckheimer. Esta zarabatana só servirá para fazer com que eles abaixem a cabeça. Talvez por tempo suficiente para que cheguemos à arrebentação no outro lado.

Ele apontou para uma linha de rochas que se estendia água adentro. Se con­seguissem chegar ao outro lado, manter as rochas entre eles e a lancha, talvez pudessem dar a volta até o ponto seguinte.

Depois, se fossem capazes de alcançar a praia no outro lado antes de os piratas desvencilharem a lancha... e se houvesse algum caminho que conduzisse ao inte­rior da ilha...

Maldição, são muitos ses...

Havia, porém, uma certeza ali.

Eles morreriam se continuassem a tremer como varas verdes.

—        Nós teremos que permanecer o máximo possível embaixo d’água — advertiu Monk. — Talvez até possamos respirar uma ou duas vezes se conseguirmos manter o ar preso nos nossos capuzes anticontaminação.

O rosto de Graff parecia pouco aliviado à idéia. Embora o pior do evento tóxico tivesse passado, a baía continuava sendo uma cloaca venenosa. Mesmo os pisto­leiros tinham bom senso suficiente para não deixar a segurança de sua lancha. Os homens mascarados estavam usando remos para conseguir tirar a embarcação das rochas, em vez de pularem na água e aliviar a carga.

Se até mesmo piratas se recusavam a entrar na água...

De repente, Monk começou a questionar a sensatez de seu próprio plano. Além do mais, ele odiava mergulhar. Era um ex-Boina Verde, não um SEAL de merda da Marinha.

—        O que foi? — perguntou Graff, interpretando alguma coisa na expressão de Monk. — Você não acha que o seu plano vai dar certo, não é mesmo?

—        Deixe um homem pensar agora!

Abaixando-se, Monk dirigiu o olhar para a estátua gasta de Buda sob o telheiro, protegida por sua fileira de varetas de oração queimadas. Ele não era budista, mas era capaz de rezar para qualquer deus que o tirasse daquela enrascada.

Seus olhos voltaram a pousar sobre as varetas de oração queimadas. Sem se virar, ele perguntou a Graff:

—        Como esses devotos chegaram aqui? Não existe nenhuma aldeia numa extensão de quilômetros ao longo do litoral, a praia é protegida por recifes, e os penhascos parecem íngremes demais para escalar.

Graff sacudiu a cabeça.

- Que diferença isso faz?

- Alguém acendeu essas varetas de oração, provavelmente ontem. — Monk mudou de posição. — Olhe para a praia. Não existem pegadas além das nossas. O senhor pode ver onde alguém se ajoelhou para acender suas varetas viscosas, mas nenhum passo seguia rumo à água ou ao longo da praia. Isso significa que eles tiveram de vir de cima. Deve haver uma trilha.

—        Ou talvez alguém simplesmente tenha erguido e baixado uma corda. Monk suspirou, desejando uma companhia mais estúpida, alguém menos capaz de apontar falhas no seu raciocínio.

—        Água ou Buda? — indagou Monk.

Graff visivelmente engoliu em seco quando o motor da lancha acelerou. Os piratas estavam quase livres.

Ele virou-se para Monk.

—        Esfregar a barriga de um Buda não... não traz boa sorte? Monk acenou com a cabeça em concordância.

—        Eu acho que li isso num biscoito da sorte em algum lugar. Espero que esse Buda tenha lido o mesmo biscoito.

Monk moveu-se ao redor, erguendo a pistola.

—        Quando eu terminar de contar, o senhor cai fora. Eu vou estar logo atrás do senhor, disparando contra a lancha. Concentre-se apenas em chegar àquele Buda e descobrir essa trilha.

—        E eu vou rezar para que os devotos não tenham usado uma corda para...

- Não diga isso, ou o senhor vai nos trazer azar!

Graff calou a boca.

- Lá vamos nós.

Monk preparou-se, dando uns pulinhos para ativar a circulação sanguínea nas pernas, e contou:

—        Três... dois... um...!

Graff saiu correndo, saltando como uma lebre. Uma bala ricocheteou na rocha, perto dos calcanhares do homem.

Monk praguejou e correu.

—        O senhor devia esperar pelo e já! — murmurou ele, apertando o gatilho e disparando na direção da lancha encalhada. — Civis...

Ele crivou a lancha de balas, obrigando os atiradores a se deitar de bruços. Observou um homem erguer as mãos e cair no mar. Um tiro disparado por Monk que, por sorte, acertara um alvo. A resposta aos tiros consistiu apenas em alguns disparos a esmo, feitos num pânico irado.

Adiante, Graff alcançara o Buda e deslizava na areia, passando pelas varetas de oração. Girando o corpo, ele recobrou o equilíbrio e moveu-se rapidamente para trás do telheiro.

Monk seguiu uma rota mais direta, avançando através de um espinheiro arenoso, e foi parar ao lado de Graff.

- Conseguimos! — disse Graff ofegante, a voz revelando muita surpresa.

- E os deixamos bastante furiosos.

Monk imaginou o homem caindo na sopa tóxica.

Talvez em retribuição, disparos de rifles abriram buracos no telheiro e explodi­ram as trepadeiras e folhagens que cobriam a parede do penhasco. Monk e Graff abrigaram-se juntos, protegidos pela enorme barriga de pedra do Buda. Sem dúvida, havia simbolismo naquele último ato.

Aquilo, porém, era tudo o que o Buda tinha a oferecer.

Monk examinou atentamente os penhascos atrás da barraca de madeira.

Íngremes e impossíveis de escalar.

Não havia nenhum caminho.

—        Talvez um de nós devesse ter esfregado aquela barriga quando corremos para cá — disse Monk num tom mal-humorado.

—        E a sua arma? — perguntou Graff.

Monk ergueu-a.

—        Mais um disparo. Depois disso, eu poderia jogar a pistola na direção deles. Isso sempre dá certo.

Atrás deles, a lancha finalmente se desvencilhou dos corais com um rugido do motor. Pior ainda: a lancha estava agora no lado do penhasco voltado para a ilha, movendo-se rumo à praia, passando por entre os corpos dos animais mortos.

Em breve haveria mais dois corpos para acrescentar à sopa.

Uma saraivada de balas atingiu o Buda e estilhaçou o telheiro. Mais trepadeiras foram transformadas em frangalhos. Uma bala ricocheteou e passou voando pelo nariz de Monk, mas ele não se moveu. Observou um dos mantos de trepadeiras destruídos pelos disparos cair, revelando a boca de uma caverna atrás dele.

Monk avançou arrastando-se, mantendo a estátua entre ele e os piratas que se aproximavam. Abriu as trepadeiras com o cotovelo, e a luz do sol revelou um degrau, depois outro...

—        Um túnel! Sua teoria da escada de corda já era, Graff!

Monk virou-se e viu o médico cair de lado, com uma das mãos pressionando o ombro. O sangue escorria por entre seus dedos. Droga...

Monk voltou correndo até ele.

Vamos. Não temos tempo de cuidar disso. O senhor pode andar?

Graff falou por entre os dentes cerrados.

- Desde que eles não acertem a minha perna.

Com um pouco de ajuda de Monk, os dois rastejaram através do manto de trepadeiras e entraram no túnel. A temperatura caíra em dez graus. Monk segurava no cotovelo de Graff. O homem tremia, mas seguiu a liderança de Monk e subiu apressadamente os degraus em meio à escuridão.

Atrás deles, ele ouviu o rangido de casco na areia e os gritos de vitória dos piratas, confiantes em que sua presa estava acuada. Monk continuou subindo em círculos, avançando hesitante na escuridão.

Os piratas não demorariam a encontrar o túnel. Mas eles os perseguiriam ou simplesmente iriam embora? A resposta veio logo.

Luzes brilharam abaixo... junto com ordens dadas de maneira mais furtiva.

Monk apressou-se.

Sentiu a raiva nas vozes dos homens.

Ele os havia mesmo deixado danados.

Lentamente, a escuridão acima foi, se tornando cinza, e era possível discernir as paredes. Eles aumentaram o passo. Graff sussurrava entre os dentes, mas Monk não conseguiu entender as palavras do homem. Uma prece, uma maldição... ele aceitaria uma ou outra, desde que desse certo.

Por fim, o alto da escada apareceu. Os dois saíram do túnel e chegaram à orla da floresta tropical que cobria o penhasco. Monk seguiu em frente, grato pela densa cobertura da selva. Quando entrou na floresta, viu que a zona tóxica de mortandade não estava restrita à praia lá embaixo. Pássaros mortos espalhavam-se pelo chão da floresta. Próximo aos seus pés, jazia o corpo peludo de um morcego, enrugado como um avião de caça acidentado.

Mas nem todos os habitantes da floresta estavam mortos.

Monk olhou para a frente. O chão da floresta se agitava e turbilhonava numa maré vermelha própria. Porém, não se tratava de uma floração de bactérias: milhões de caranguejos cobriam cada centímetro quadrado do chão da floresta. Alguns estavam agarrados a troncos de árvores e trepadeiras.

Ali estavam os desaparecidos caranguejos-vermelhos da ilha Christmas.

Monk lembrou-se do seu estudo. O ano inteiro, os caranguejos permaneciam dóceis até serem provocados. Sabia-se que, durante sua migração anual, eles cor­tavam com as pinças afiadas os pneus dos carros que passavam.

Monk deu um passo para trás.

Provocados era uma palavra que descrevia bem os caranguejos no momento. Eles subiam uns sobre os outros, agitados, movendo-se rapidamente, num frenesi para se alimentarem.

Monk agora entendia por que as criaturas não eram encontradas na praia lá em­baixo. Por que haveriam de descer se havia alimento em abundância ali em cima?

Os caranguejos não só se banqueteavam com os pássaros e os morcegos mortos, mas também com os de sua própria espécie, numa luta canibalesca. A aparição dos homens, pinças enormes ergueram-se em advertência, estalando como varetas quebradas.

Bem-vindos à festa!

Atrás deles, vozes excitadas ecoaram vindo da abertura do túnel.

Graff deu um passo à frente, apertando o ombro. Um grande caranguejo, oculto sob a folha de uma samambaia, bateu de lado no seu pé e cortou o plástico.

O médico recuou, murmurando entre os dentes outra vez. Era o mesmo mantra da escada, só que agora Monk o entendeu... e não podia senão concordar.

— Nós realmente deveríamos ter esfregado a barriga daquele Buda.

 

—        Que diabo está acontecendo?

—        Eu não sei, pai. Gray e seu pai apressaram-se a fim de fechar os portões pivotantes da garagem. Mas pretendo descobrir.

Os dois haviam arrastado a motocicleta da assassina para a garagem. Gray não queria deixar a moto ao ar livre. Na verdade, ele não queria deixar nenhum vestígio de Seichan ali. Até então, não tinha havido nenhum sinal de quem havia disparado contra ela, mas isso não significava que ele ou eles não estivessem se aproximando.

Ele voltou correndo para onde sua mãe estava. Professora de biologia na Universidade George Washington, ela dera aulas para uma grande quantidade de estudantes de medicina e sabia o bastante para enfaixar o ferimento de Seichan a fim de estancar qualquer hemorragia mais extensa.

A assassina oscilava entre a consciência e a inconsciência.

—        Tive a impressão de que a bala passou direto — disse sua mãe. Mas ela perdeu muito sangue. A ambulância está a caminho?

Poucos momentos antes, Gray fizera uma chamada de emergência do seu te­lefone celular, mas não para o número 911. Seichan não poderia ser levada para nenhum hospital da cidade. Um ferimento à bala exigia que se respondesse a muitas perguntas. No entanto, ele tinha de tirá-la dali, de conseguir assistência médica para ela o mais rápido possível.

No fim da rua, uma porta bateu. Apreensivo a quaisquer ruídos, Gray prestou atenção, com os sentidos aguçados como se fossem uma corda de piano retesada. Alguém gritou, rindo.

—        Gray, a ambulância está a caminho? insistiu a mãe, num tom de voz mais duro.

Ele apenas fez que sim com a cabeça, recusando-se a mentir em voz alta. Pelo menos, não para a mãe. Ele voltou-se para o pai, que se juntara a eles e limpava as palmas das mãos no seu jeans de trabalho. Seus pais pensavam que ele fosse técnico de laboratório em uma companhia de pesquisas do Distrito de Colômbia, um cargo modesto depois de ter sido expulso dos Rangers do Exército numa corte marcial por agressão a um oficial superior.

Mas aquilo também não fora verdade.

Apenas um disfarce.

Seus pais nada sabiam sobre sua verdadeira profissão na Sigma, e Gray pretendia manter as coisas assim. O que significava que ele precisava dar o fora dali o mais rápido possível. Ele tinha de se mexer.

—        Pai, você pode me emprestar o Thunderbird? Com toda essa agitação do Quatro de Julho, os serviços de emergência estão sobrecarregados. A mulher pode chegar mais rápido ao hospital se eu mesmo a levar.

Os olhos de seu pai estreitaram-se de suspeita, mas ele apontou na direção da porta dos fundos da cozinha.

—        As chaves estão no gancho.

Gray correu e pulou os degraus da varanda dos fundos. Abrindo a porta de tela, estendeu a mão para dentro e tirou do gancho o chaveiro com seu tilintar desagra­dável. Seu pai havia restaurado um Thunderbird conversível ano 1960, preto, com o interior de couro vermelho, equipado com um novo carburador Holley, lança-chamas e afogador elétrico. Ele havia sido encostado ao meio-fio para a festa.

—        Correu ao local em que o carro estava estacionado com a capota arriada, pulou por cima da porta do motorista e sentou-se ao volante. Um momento depois, estava rugindo em marcha a ré rumo à entrada de veículos, e quicou um pouco no assento quando atingiu o meio-fio. Seu pai ainda estava solucionando os problemas da suspensão reconstruída.

Gray parou o carro em ponto morto, com o motor ainda funcionando, e correu para onde a mãe e o pai estavam ajoelhados ao lado de Seichan. Seu pai já estava tomando-a nos braços.

- Deixe comigo disse Gray.

- Talvez não devêssemos movê-la opinou sua mãe. Ela está muito ferida.

O pai de Gray ignorou ambos. Ele ergueu Seichan, aninhando-a em seus braços. Seu pai podia ter perdido parte de uma perna e não estar batendo muito bem da bola, mas ainda era forte como um cavalo de tração.

—        Abra a porta — ordenou. — Vamos colocá-la no banco traseiro.

Em vez de argumentar, Gray obedeceu e ajudou a colocar Seichan no carro. Ele abriu a porta e dobrou o banco da frente. Seu pai entrou na traseira e baixou-a com extrema delicadeza, depois se acomodou no banco de trás, apoiando a cabeça dela.

—        Pai...

A mãe dele acomodou-se no banco do carona.

- Eu tranquei a casa. Vamos.

- Eu... eu posso levá-la sozinho — disse Gray, fazendo sinal para que ambos saíssem.

Ele não ia a hospital nenhum. Seu telefonema fora para a central de despacho de emergência, onde ele fora posto imediatamente em contato com o diretor Crowe. Graças a Deus que ele ainda estava lá.

Gray recebera ordens para ir a um abrigo secreto, onde uma equipe médica para evacuação de emergência se reuniria para avaliar e tratar Seichan. Painter não queria correr nenhum risco. Caso aquilo tudo fosse uma armadilha, ela não devia ser levada para a sede da Sigma. Assassina e terrorista conhecida, Seichan estava nas listas dos mais procurados da Interpol e de dezenas de agências de inteligência no mundo inteiro. Segundo um boato, o Mossad, o serviço secreto do governo de Israel, tinha uma ordem para que se abrisse fogo imediatamente contra ela.

Seus pais não deveriam estar ali.

Gray fitou o aço nos olhos do pai. Os braços de sua mãe já estavam cruzados sobre o tórax. Eles não iam arredar pé facilmente.

- Vocês não podem vir — disse ele. — Não é... não é seguro.

- Como se aqui fosse mais seguro — respondeu o pai, acenando com um dos braços para trás, na direção da garagem. — Quem pode dizer se membros de uma violenta gangue de rua ou traficantes de drogas que atiraram contra ela já não estão a caminho daqui?

Gray não tinha tempo para explicar. O diretor já havia despachado um pequeno grupo de seguranças para proteger e vigiar os pais dele. Eles chegariam em poucos minutos.

—        Meu carro... minhas regras — concluiu o pai num tom retumbante e ina­balável. — Agora vá, antes que o sangue dela comece a vazar das ataduras que sua mãe aplicou e suje completamente meus novos assentos de couro.

Seichan gemeu, mexendo-se por causa da dor, num estado de confusa agitação. Um dos braços ergueu-se até a atadura, a fim de arrancá-la. O pai de Gray segurou os dedos da mulher e baixou a mão dela. Ele continuou segurando-a, tranqüilizando e ao mesmo tempo contendo.

—        Vamos — disse o pai.

Mais do que qualquer outra coisa, a rara ternura venceu sua reserva.

Gray tomou o assento do motorista.

—        Coloquem o cinto de segurança — disse ele, sabendo que quanto mais cedo chegasse com Seichan ao abrigo secreto, tanto melhor para todos eles. Ele lidaria com as conseqüências mais tarde.

Quando deu partida no motor, flagrou a mãe olhando fixamente para ele.

—        Nós não somos idiotas, você sabe, Gray — disse ela de maneira enigmática, e se virou.

Ele franziu as sobrancelhas, mais por irritação do que por compreensão. En­grenou a marcha, disparou pela entrada de veículos e fez uma curva brusca ao entrar na rua.

—        Cuidado! — gritou o pai. — São pneus Kelsey novos com aros de arame! Se você os arranhar...

Gray acelerou rua abaixo. Fez várias curvas rápidas, tomando cuidado com os pneus. Era uma sensação boa estar em movimento. O motor 390 V8 rosnava como uma fera. Um resquício de respeito relutante pela obra de seu pai dissipou sua exasperação.

Sua mãe olhou rua abaixo quando ele dobrou na direção oposta à do hospital mais próximo, mas permaneceu calada e afundou ainda mais em seu assento. Ele encontraria alguma forma de lidar com sua família no abrigo secreto.

Enquanto dirigia em alta velocidade atravessando a cidade à meia-noite, Gray ainda ouvia o espocar ocasional de fogos de artifício. O feriado estava ter­minando, mas Gray temia os verdadeiros fogos de artifício que ainda estavam por começar.

 

Era o fim da folga do feriado...

O diretor Painter Crowe desceu o corredor na direção de seu gabinete. O minguado pessoal do turno da noite no Comando Central estava aumentando rapidamente. Um alerta geral fora emitido. Ele já havia recebido e retornado dois telefonemas do Departamento de Segurança Interna. Não era todo dia que uma terrorista internacional caía do céu. E não apenas uma terrorista qualquer, mas um membro da rede obscura conhecida como a Guilda.

Competindo com freqüência com a Sigma, a Guilda caçava e roubava tecno­logias emergentes: militares, biológicas, químicas, nucleares. Na ordem mundial atual, o conhecimento era o verdadeiro poder — mais do que o petróleo, mais do que qualquer arma. Só que, no caso da Guilda, as descobertas eram vendidas a quem oferecia o lance mais alto, incluindo a Al-Qaeda e o Hezbollah, no Oriente Médio, Aum Shinrikyo, no Japão, e o Sendero Luminoso, no Peru. A Guilda ope­rava por meio de uma série de células isoladas ao redor do mundo, com espiões nos governos mundiais, nas agências de inteligência, nos principais institutos de pesquisa interdisciplinar, até mesmo em instalações de pesquisa internacionais.

E, uma vez, até mesmo na DARPA.

Painter ainda sentia a pontada daquela traição.

Mas agora uma agente-chave da Guilda estava sob a custódia deles.

Quando Painter entrou na ante-sala de seu gabinete, seu secretário e ajudante, Brant Millford, afastou-se de sua escrivaninha. O homem usava uma cadeira de ro­das, pois sua coluna havia sido dilacerada por um estilhaço após a explosão de um carro-bomba num posto de segurança na Bósnia.

—        Senhor, estou recebendo um telefonema por satélite da dra. Cummings.

Painter parou, surpreso. Não estava previsto que Lisa prestasse informações tão cedo. Uma ponta de preocupação penetrou o emaranhado de responsabilidades naquela noite.

—        Vou atender a ligação no meu gabinete. Obrigado, Brant.

Painter transpôs a porta. Três monitores de plasma estavam pendurados nas paredes em torno de sua escrivaninha. Por enquanto, as telas estavam escuras, porém, à medida que a noite fosse passando, elas logo ficariam repletas de dados, lodos afluindo para o Comando Central. Por ora, isso podia esperar. Ele estendeu a mão para o telefone por sobre a escrivaninha e apertou o botão que piscava.

A previsão era de que Lisa prestasse informações quase ao raiar do dia, quando estivesse anoitecendo nas ilhas indonésias. Painter havia solicitado o relato do dia inteiro àquela hora, pouco antes de ela se recolher. Esse horário também lhe oferecia a oportunidade perfeita de desejar boa-noite a ela.

—        Lisa?

A ligação estava irregular, com quedas ocasionais.

- Meu Deus, Painter, é ótimo ouvir... voz. Eu sei que você está ocupado. Brant mencionou uma crise... pouco mais.

- Não se preocupe. É menos uma crise do que uma oportunidade. Ele apoiou o quadril na beira da escrivaninha. Por que você está ligando cedo?

- Alguma coisa está acontecendo aqui. Eu transmiti uma grande quantidade de dados técnicos para pesquisa. Eu queria que alguém aí fizesse a contraprova dos resultados do toxicologista daqui, o dr. Barnhardt.

- Vou me certificar de que isso seja feito. Mas qual é a urgência? perguntou ele, sentindo a tensão na voz dela.

—        A situação aqui talvez seja mais calamitosa do que se julgou a princípio.

- Eu sei. Fui informado sobre as conseqüências da nuvem tóxica que soprou sobre a ilha.

- Não... sim, claro que isso foi horrível... mas as coisas podem estar piorando. Nós isolamos algumas anomalias genéticas estranhas que apareceram em infec­ções secundárias. Os achados são perturbadores. Achei melhor coordenar com os pesquisadores e os laboratórios da Sigma o mais rápido possível, para manter o ritmo enquanto o dr. Barnhardt conclui seus exames preliminares.

—        Monk está ajudando o toxicologista?

Ele ainda está no campo, coletando amostras. Nós precisaremos de tudo o que ele puder nos trazer.

- Vou alertar Jennings aqui na Pesquisa e Desenvolvimento, fazer com que tire a equipe dele da cama. Vou mandar chamá-lo e coordenar tudo aqui do nosso lado.

—        Perfeito. Obrigada.

Apesar da decisão, Painter não conseguia fugir à sua própria preocupação. Desde que designara Lisa para aquela missão, estava fazendo todo o possível para equilibrar suas responsabilidades de diretor, para manter o distanciamento profis­sional necessário, mas não conseguia alcançá-lo, não com Lisa. Ele pigarreou.

—        Como você está passando?

Ela deu uma breve e divertida risada, cansada mas familiar.

- Eu estou bem. Mas, depois disso, talvez eu jamais faça outro cruzeiro na vida.

- Eu tentei advertir você. Nunca vale a pena trabalhar como voluntário. Eu queria dar minha contribuição. Fazer diferença disse ele, imitando-a com a sombra de um sorriso. Veja o que você arrumou: um passaporte para o Barco do Amor do Inferno.

Ela deu uma gargalhada desanimada, mas sua voz rapidamente baixou para um tom mais sério, hesitante e inseguro.

- Painter, talvez tenha sido um erro... a minha vinda para cá. Eu sei que não sou membro oficial da Sigma. Talvez esteja além da minha capacidade.

- Se eu achasse um erro, eu não a teria designado. Na verdade, eu teria arru­mado qualquer desculpa para evitar que você fosse. Mas, como diretor, eu tinha o dever de enviar as pessoas mais qualificadas para supervisionar uma crise médica no interesse da Sigma. Com sua formação médica, seu doutorado em fisiologia, sua experiência em pesquisa de campo... eu enviei a pessoa certa.

Seguiu-se um longo silêncio. Por um momento, Painter pensou que a ligação tivesse caído.

—        Obrigada ela sussurrou afinal.

- Então não me decepcione. Tenho de manter a minha reputação.

Ela voltou a sorrir, e seu divertimento soou mais verdadeiro.

- Você realmente tem de se empenhar para encerrar suas palavras de incentivo.

 

- Então, o que você me diz disto? Fique segura, tome cuidado e volte para cá o mais rápido possível.

- Não tem nada melhor?

- Então simplesmente terei de me esforçar para conseguir o ouro. Ele falou com firmeza. Estou com saudades de você. Eu te amo. Quero você nos meus braços.

Ele de fato estava com saudades dela, e isso provocava uma dor física em seu peito.

—        Escute disse ela. Com um pouco de prática, você na verdade pode se tornar um excelente orador motivacional.

—        Eu sei — respondeu ele. — A mesma conversa funcionou com Monk antes.

Seguiu-se uma risada de verdade, que ajudou a dissipar a preocupação dele no momento. Ela estaria bem. Ele confiava nela. E, além do mais, em lugar de Painter, Monk a manteria em segurança. Isto é, se Monk quisesse dar as caras de novo...

Antes que Painter pudesse falar mais alguma coisa, seu ajudante apareceu à porta e bateu de leve. Painter fez-lhe sinal para que falasse.

—        Sinto muito por incomodá-lo, diretor. Mas tenho outro telefonema aguar­dando na linha. Na sua linha privada. De Roma. Monsenhor Verona. Ele parece bastante ansioso.

A testa de Painter enrugou-se. Ele falou ao telefone.

—        Lisa...

—        Eu ouvi. Você está ocupado. Assim que eu falar com Monk, nós nos comu­nicaremos com Jennings sobre a situação aqui. Volte ao trabalho.

—        Fique em segurança.

—        Eu ficarei — disse ela. — E eu também te amo.

A linha emudeceu.

Painter respirou fundo para se recompor e, em seguida, virou-se para apertar o botão de sua linha privada. Por que monsenhor Verona estava telefonando? Painter sabia que o comandante Pierce estivera envolvido num romance com a sobrinha do monsenhor, mas o relacionamento terminara havia quase um ano.

—        Monsenhor Verona, aqui é Painter Crowe.

- Diretor Crowe, obrigado por atender ao meu telefonema. Tentei falar com Gray nas últimas duas horas, mas não tive resposta.

- Sinto muito em saber disso. O senhor tem alguma mensagem que gostaria que eu transmitisse a ele?

Painter não se deu o trabalho de explicar a situação atual. Embora monsenhor Verona tivesse ajudado a Sigma no passado, a questão ali, já codificada como clan­destina, estava numa base em que só as pessoas estreitamente envolvidas tinham acesso às informações.

—        Houve um incidente aqui no Vaticano... mais precisamente, nos Arquivos Secretos. Não tenho certeza absoluta do seu significado, mas me parece tratar-se de uma mensagem ou advertência. Uma mensagem ou advertência deixada para mim e, talvez, para o comandante Pierce.

Painter levantou-se e contornou a escrivaninha até sua cadeira.

- Que tipo de mensagem?

- Alguém invadiu uma câmara aqui na semana passada e pintou no chão o símbolo da Real Corte do Dragão.

Painter afundou na cadeira, perturbado pela coincidência. Dois anos atrás, Gray e monsenhor Verona haviam se associado para erradicar uma seita brutal da Corte do Dragão. Eles haviam tido êxito mas não sem ajuda, o que exigiu uma aliança com uma inimiga, uma agente da Guilda.

Seichan.

E agora a assassina estava ali.

Painter não era homem de acreditar facilmente em coincidências. Nem no passado e, sem dúvida, tampouco agora. No mínimo, seus deveres como diretor da Sigma haviam deixado sua paranóia afiada como a lâmina de uma navalha.

- Alguém viu esse invasor? indagou ele.

- Brevemente. Quem quer que tenha sido, veio sozinho e passou sem ser notado por toda a segurança do Vaticano. Capturamos apenas uma imagem vaga numa câmera de segurança. Não era um ladrão comum. Eu só conheço uma pessoa que poderia ter entrado e saído dessa câmara, deixando não mais do que uma sombra capturada. A mesma pessoa relacionada com o nosso envolvimento conjunto com a Corte do Dragão no passado.

Então parecia que o monsenhor não tinha menos suspeitas do que Painter.

- E o dragão pintado no chão prosseguiu Vigor era sem dúvida uma mensagem, talvez até mesmo a lembrança de uma dívida.

- O senhor acredita que foi a agente da Guilda, Seichan perguntou ele —, aquela que ajudou vocês a derrotar a Corte do Dragão?

- Exatamente. Se pudéssemos encontrá-la, interrogá-la...

Painter sabia que quaisquer outros segredos apenas dificultariam a descoberta da verdadeira ameaça. Aparentemente, o estado da situação em que só as pessoas estreita­mente envolvidas deviam ter acesso às informações acabara de se estender a Roma.

- Seichan está aqui disse ele, interrompendo o monsenhor. Ela está sob a nossa custódia.

- O quê?

Ele relatou rapidamente a volta da assassina à noite, surgindo de lugar nenhum, ensangüentada e em fuga.

Vigor ficou aturdido por um momento e, em seguida, falou apressadamente.

- Ela tem que ser interrogada. Ainda que seja apenas para se perguntar a ela por que pintou a mensagem no chão.

- Nós faremos isso. Assim que ela for medicada, nós a submeteremos a um interrogatório minucioso. Atrás de grades muito sólidas.

- O senhor não está entendendo. Tem alguma coisa maior acontecendo. Talvez maior do que a própria Guilda.

- O que o senhor quer dizer?

- O símbolo do dragão foi pintado em volta de uma inscrição antiga gravada no piso da câmara do arquivo. Gravada possivelmente na época em que o Vaticano estava começando a ser construído, na época de Galileu. Os símbolos são os caracteres do que, de acordo com as conjecturas de alguns, poderia ser a mais antiga de todas as línguas escritas. Mais antiga do que o proto-hebraico. Uma escrita que pode ser até anterior à humanidade.

Painter percebeu a ansiedade na voz do outro.

—        O que o senhor quer dizer com ser anterior à humanidade? Como isso seria possível?

Vigor lhe respondeu.

Painter não demonstrou o choque em sua reação, junto com sua descrença. Ele encerrou o telefonema franzindo profundamente o cenho. A asserção do monse­nhor era obviamente impossível, mas, verdadeira ou não, ele entendeu de imediato a angústia daquele telefonema. Eles precisavam interrogar Seichan o mais rápido possível, antes que qualquer outra coisa acontecesse a ela.

Painter confirmou apressadamente o tempo estimado de chegada da equipe médica e, em seguida, seu ajudante o pôs em contato com a guarda postada junto ao abrigo secreto.

Quem estava de guarda ali?

Ele pediu a Brant que entrasse em contato com o pessoal da segurança e lhes mandasse transmitir imagens de vídeo do abrigo secreto para as telas de plasma de seu gabinete.

Enquanto Painter aguardava, as últimas palavras de Vigor ecoaram em seu cérebro.

Aqueles símbolos... gravados na pedra...

Painter sacudiu a cabeça.

Impossível.

...eles são a língua dos anjos.

 

Gray desceu a Greenwich Parkway a toda a velocidade e entrou no exclusivo trecho de Foxhall Village. Chegou ao fim, dobrou à esquerda numa rua arborizada e reduziu a velocidade, deixando o motor em ponto morto do Thunderbird im­pulsioná-lo para a frente. O abrigo secreto apareceu adiante, uma casa de tijolos vermelhos no estilo Tudor de dois andares, com venezianas verde-escuras, que se harmonizavam com os bosques do Glover-Archibold Park, para o qual ela dava fundos.

Com a capota arriada, ele podia sentir o cheiro da floresta úmida.

Ao se aproximar da casa, notou que a luz da varanda da frente estava acesa, bem como uma lâmpada na janela do canto superior. Era o sinal para seguir em frente.

Ele fez a curva e chocou-se com a entrada de veículos, fazendo sua passageira ferida gemer.

—        Onde estamos? perguntou sua mãe.

Gray freou embaixo de um abrigo para veículos que se projetava do lado es­querdo da casa. Uma porta lateral ficava a alguns passos de distância. Ele tentara repetidamente fazer com que seus pais descessem do carro, porém, a cada hospital ou centro médico por que passavam, eles só ficavam mais obstinados. Ou pelo menos sua mãe. O pai continuava no mesmo nível de inflexibilidade.

—        Isto é um abrigo secreto respondeu ele, vendo pouco motivo para dissi­mular agora. Ajuda médica já deve estar a caminho. Por enquanto, permaneçam onde estão.

Gray desligou o motor e saltou.

No outro lado do carro, a porta lateral da casa se abriu. Um homem alto e de feições desconhecidas surgiu na entrada, com uma das mãos pousadas numa arma num coldre preso ao quadril.

—        Você é Pierce? perguntou o homem, de maneira ríspida e breve, olhando os outros passageiros com suspeita.

—        Sim.

O homem saiu da entrada, ficando sob a luz. Ele parecia um macaco, com membros grossos e cabelos castanhos cortados bem curtos. Trajava farda de serviço. Não era exatamente discreto.

—        Meu nome é Kowalski. Crowe está ao telefone, querendo falar com você. Ergueu a outra mão e estendeu um telefone celular.

Gray se dirigiu à traseira do carro. Ele não ansiava por aquela conversa com o diretor, por explicar seu disfarce malogrado. Não era exatamente um disfarce ter seus pais acompanhando você.

Até mesmo o guarda de serviço ali parecia desconcertado com a presença do casal idoso no conversível aberto. Ele observou atentamente os recém-chegados com as sobrancelhas unidas num nó sobre a testa e coçou o queixo.

—        Trezentos e cinqüenta e dois? — perguntou ele quando Gray deu a volta.

Gray não conseguiu entender o que ele queria dizer.

Seu pai respondeu do banco traseiro.

- Não, é um bloco trezentos e noventa, reconstruído com um motor V8 de um Ford Galaxie.

- Um belo carro.

Sem dúvida, o guarda não estivera observando seus pais, apenas o carro.

Seichan agitou-se no banco traseiro, talvez notando de alguma maneira a falta de vento e movimento. Ela se esforçou fracamente para sentar-se.

—        Você pode ajudar a levá-la para dentro? — indagou Gray ao guarda.

Ao pegar o fone, ele notou a metade inferior de uma âncora da Marinha ame­ricana no bíceps direito do homem. Ex-militar. O que não era de surpreender. Se houvesse uma ilustração embaixo do verbete marinheiro no dicionário, seria a do rosto daquele homem.

Sua mãe abriu a porta do carona.

—        Onde está a ajuda médica?

Ela pareceu não confiar muito no guarda corpulento, e até segurou a bolsa com um pouco mais de força ao lado do corpo.

Gray ergueu a palma de uma das mãos, pedindo paciência.

—        Minha senhora — disse Kowalski, e apontou para a cozinha. — Há um kit médico em cima da mesa da cozinha. Injeções de morfina e sais aromáticos. Tam­bém providenciei um pacote de sutura.

Sua mãe olhou para o homem com uma avaliação mais estudada.

—        Obrigada, meu rapaz.

Com uma olhadela mais fulminante na direção de Gray, sua mãe dirigiu-se ao interior da casa.

Saindo do caminho, Gray falou ao telefone.

- Diretor Crowe, aqui é o comandante Pierce.

- Foi a sua mãe que acabou de sair do carro?

Como diabo...?

Gray esquadrinhou o lugar e avistou a câmera oculta sob o abrigo para veículos. Ela devia estar transmitindo ao vivo para o Comando Central. Ele pôde sentir o calor aumentar na altura do colarinho.

—        Senhor...

—        Não importa. Explique mais tarde. Gray, recebemos informações secretas de Roma, relacionadas com a nossa recém-chegada. Como a prisioneira está passando?

Gray olhou para a traseira do conversível. O guarda e seu pai estavam discu­tindo a melhor maneira de mover a forma mole de Seichan. Ele notou a mancha de sangue fresco no centro da atadura no abdome dela.

- Ela vai precisar de cuidados imediatos.

- A ajuda deverá estar aí a qualquer instante.

Ouviu-se o ruído dos pneus de um veículo pesado. Gray virou-se. Um grande furgão preto fez uma curva e desceu a rua.

—        Acho que eles já estão aqui — disse ele com um suspiro de alívio.

O furgão chegou à casa, moveu-se até o meio-fio e freou junto à entrada de veí­culos. Gray sentiu uma ponta de mal-estar, detestando ter a passagem bloqueada, mas reconheceu o furgão. Era a equipe de atendimento a emergências médicas da Sigma. A ambulância camuflada era baseada no mesmo design do veículo que acom­panhava o presidente, capaz de realizar cirurgias de emergência se necessário.

—        Ponha-me a par da situação assim que eles terminarem a avaliação — disse Painter, que também devia ter avistado o furgão.

As portas laterais do furgão se abriram. Três homens e uma mulher, todos usando trajes cirúrgicos e blusões pretos largos combinando, saíram do veículo com habilidade coordenada. Dois homens puxaram uma maca, cujas pernas foram desdobradas embaixo dela. Eles seguiram o terceiro homem e a mulher, que avan­çaram a passos largos para encontrar-se com Gray. O homem estendeu a mão.

—        Dr. Amen Nasser — disse ele.

Gray apertou-lhe a mão, apreciando seu aperto, frio e seco. Calmo e controlado.O médico devia ter no máximo 30 anos e, no entanto, comportava-se com firme autoridade. Sua pele tinha a cor de mogno envernizado, ao contrário da mulher, cuja cor da pele estava mais para o mel morno.

Gray observou-a atentamente.

Embora de ascendência asiática, a mulher claramente procurava minimizar isso. Ela havia cortado os cabelos à escovinha e descolorado os cabelos remanescentes de modo que ficassem louro-claros. Tatuagens entrelaçadas também circunda­vam-lhe os pulsos num padrão céltico. Embora aquela austeridade jamais tivesse agradado a Gray antes, a mulher possuía algo de estranhamente sedutor. Talvez fossem seus olhos cor de esmeralda, um traço que não precisava de nenhum outro tipo de embelezamento. Por outro lado, talvez fosse a forma com que ela se movia, leonina, musculosa, com equilíbrio. Como grande parte do pessoal da Sigma, ela devia ter tido algum treinamento militar.

A mulher fez um aceno de cabeça para Gray, mas eles não foram apresentados.

—        Fui informado da situação — continuou o chefe da equipe, com palavras precisas, sem dúvida nascido no estrangeiro, com um vestígio de sotaque. — Eu gostaria de pedir a todos vocês que se afastassem e nos deixassem trabalhar. Nós vamos transferir a paciente para o compartimento cirúrgico do furgão. Vou enviar Anni com um relatório da situação em breve — disse ele, finalmente se referindo à mulher.

Os outros dois homens passaram correndo com a maca, seguidos pelo médico, ao passo que Anni permaneceu onde estava, apoiada num dos quadris.

O telefone celular na mão de Gray começou a vibrar quando ele se afastou. O chefe da equipe falou rapidamente. Gray afinal reconheceu o seu sotaque.

Dr. Amen Nasser.

Ele era egípcio.

 

Painter estava em pé em frente ao monitor na parede diretamente atrás de sua escrivaninha. As telas de plasma nas outras duas paredes exibiam imagens de vídeo ao vivo do primeiro e segundo andares do abrigo secreto. A imagem do monitor atrás de sua mesa ficou indistinta e distorcida com a alimentação digital da câmera externa.

—        Atenda o telefone, Gray! — ele gritou para a tela.

Os controles das câmeras estavam um andar abaixo, na central de segurança principal. Painter não tinha como girar a câmera. Ele vira o furgão médico esta­cionar no canto da tela, mas só um segundo atrás avistara o homem e a mulher que haviam aparecido diante de Gray.

Nenhum deles trabalhava para a Sigma.

Painter conhecia todo o pessoal.

O furgão poderia ser da Sigma, mas a equipe que o ocupava não era.

Uma armadilha.

Na tela, Gray abriu o telefone celular e ergueu-o até o ouvido.

—        Diretor Crowe...?

Antes que Painter pudesse responder, um pé fino deu um chute e esmagou o telefone contra a cabeça de Gray. Com um estalo do celular, Gray caiu no chão, pego desprevenido.

—        Gray...

A imagem na tela subitamente oscilou e depois enegreceu.

 

O primeiro tiro destruiu a câmera.

Com a cabeça zumbindo, Gray ouviu a tosse abafada e o som de estilhaços, e girou o corpo.

—        Que diabo? — berrou seu pai quando os fragmentos da câmera choveram sobre ele. Ele ainda estava acomodado no banco traseiro com Seichan.

O guarda, Kowalski, estava no outro lado do carro. Ele ficou paralisado como um cervo à luz de faróis, um cervo cinzento de 90 quilos. Porém, a pistola na sua nuca era um forte meio de intimidação contra qualquer movimento.

Os enfermeiros haviam empurrado a maca para o pátio lateral. Um apontava uma arma para Kowalski, o outro acenava para que o pai de Gray saísse do carro.

—        Fique onde está — uma voz áspera advertiu atrás dele.

Gray olhou para trás. A mulher, Anni, segurava uma Sig Sauer preta na altura de seu rosto, em pé, fora do alcance de uma pernada, mas perto o suficiente para não errar um tiro na cabeça.

Reconhecendo isso, Gray olhou para o Thunderbird.

O dr. Nasser empunhava uma pistola idêntica.

De algum modo, Gray sabia que era a arma que havia acertado Seichan.

Nasser deu a volta para o lado em que o pai de Gray estava. Ele esquadrinhou o lugar onde Seichan estava esparramada, sacudiu a cabeça pesarosamente e em seguida apontou para o pistoleiro naquele lado.

—        Tire o velho do carro. Veja se essa cadela tem o obelisco e depois a leve para o furgão.

Obelisco?

Gray observou seu pai sendo tirado à força do banco traseiro. Rezou para que o pai não agravasse a situação. Mas suas orações revelaram-se desnecessárias. Claramente atônito, seu pai não ofereceu resistência.

—        Não está com ela — disse afinal o homem no banco traseiro, aprumando-se.

Nasser foi até o carro e revistou o interior, mas não encontrou o que procurava. O único sinal de consternação pela não-descoberta foi uma única ruga entre os olhos.

Ele afastou-se do carro e encarou Gray.

—        Onde ele está?

Gray olhou fixamente para o homem.

—        Onde está o quê?

Ele suspirou.

—        Sem dúvida, ela lhe contou, ou você não estaria fazendo tamanho esforço por causa de uma inimiga.

Sem se virar, ele fez um sinal para o homem que havia revistado Seichan, o qual pressionou a pistola contra a testa de seu pai.

—        Eu não faço perguntas uma segunda vez. Você provavelmente não sabe disso. Portanto, vou lhe dar este momento de tolerância.

Gray engoliu em seco, notando o medo aflitivo nos olhos do pai.

—        O obelisco que você mencionou — disse Gray — estava com ela, mas se quebrou quando a moto dela se chocou contra a casa. Ela ficou inconsciente antes que pudesse dizer qualquer coisa a respeito dele. Pelo que sei, ele ainda está lá.

E bem poderia ser.

Ele se esquecera disso na pressa de cuidar de Seichan.

Onde ele tinha ido parar?

O homem mantinha os olhos fixos em Gray. Ele observou-o atentamente com um olhar astuto e firme.

—        Acho que você está realmente me dizendo a verdade, comandante Pierce.

Mesmo assim, o egípcio fez um sinal para seu pistoleiro.

O disparo foi ensurdecedor.

 

Um minuto atrás, Painter notara movimento no lado esquerdo da tela de plasma. As câmeras de vídeo no interior do abrigo secreto ainda estavam funcionando. Ele avistou a sra. Harriet Pierce agachada atrás da mesa da cozinha.

Os agressores pareciam não saber que ela estava escondida lá dentro.

Ninguém, a não ser Gray, sabia que ele estava vindo ao abrigo secreto com dois passageiros extras. O furgão chegara depois que a mãe de Gray havia entrado. Imobilizado o único guarda estacionado na casa, eles presumiram que a questão estivesse encerrada.

Painter sabia que aquela era sua única vantagem.

Ele exigiu que fosse dado um alarme silencioso na casa e que uma linha fosse aberta. Observou a luz âmbar ao lado do telefone da casa piscar repetidas vezes.

Veja a lâmpada piscando, disse-lhe ele com a força do pensamento.

Quer pela luz de alarme, quer pelo simples instinto de pedir ajuda, Harriet engatinhou até o telefone da cozinha, estendeu a mão para cima e puxou o fone até o ouvido.

—        Não fale — disse ele rapidamente. — Aqui é Painter Crowe. Não os deixe saber que a senhora está na casa. Eu posso vê-la. Acene com a cabeça se a senhora entender.

Ela acenou com a cabeça.

—        Muito bem. Mandei ajuda para aí, mas não sei se chegará a tempo. Os agres­sores também devem saber disso. Eles serão cruéis e rápidos. Preciso que a senhora seja mais cruel. A senhora pode fazer isso?

Ela respondeu com um aceno afirmativo de cabeça.

—        Ótimo. Deve haver uma pistola na gaveta abaixo do telephone.

 

O disparo foi ensurdecedor.

Ensurdecedor.

Não com um silenciador como antes.

Gray soube da verdade numa fração de segundo antes de o pistoleiro que apontava a arma para a cabeça de seu pai tombar para o lado, com a metade do crânio espalhando-se contra o pára-lama dianteiro do Thunderbird.

Ele conhecia a atiradora.

Sua mãe.

Ela era natural do Texas, criada por um engenheiro petrolífero que trabalhava nas mesmas jazidas que o pai de Gray. Embora sua mãe fosse favorável ao controle de armas de fogo, não ficava nervosa diante delas.

Gray havia não só receado, mas também esperado alguma distração causada por ela. Ele se mantivera pronto para isso, com as pernas firmes. Antes mesmo de o corpo do pistoleiro atingir o chão, Gray deu um pulo para trás. Ele estivera observando a forma da mulher asiática no cromo polido do pára-choque traseiro.

O disparo alto e o repentino salto para trás pegaram-na de surpresa. Gray ergueu o braço direito e agarrou-lhe o braço que segurava a Sig Sauer. Quando a atingiu, ele esmagou o pé dela com a bota e projetou a cabeça para trás.

Ele ouviu alguma coisa ranger embaixo e atrás.

À frente, Kowalski já dera uma cotovelada no homem que o mantinha sob a mira da pistola; ele agarrou-o pela nuca e bateu com força o rosto dele na extremidade da porta do conversível.

—        Coma aço, seu bundão.

O homem caiu como um saco de carvão.

Sem se deter, Gray segurou o punho de Anni e girou o braço dela na direção do dr. Nasser. Ele pressionou o dedo da mulher contra o gatilho, mas ela lutou. Comprometida, a mira de Gray não foi certeira. Seu tiro atingiu a parede de tijolos com uma centelha ressoante.

Ele, no entanto, teve êxito suficiente. O dr. Nasser desviou-se para a direita, mergulhando nos arbustos em frente à casa, e desapareceu.

Gray arrancou a pistola da mão de Anni e chutou a mulher para trás, para longe dele. Ela tropeçou, mas manteve o equilíbrio. Com o nariz sangrando, girou e fugiu na direção do furgão, saltando como uma gazela, ignorando o pé esmagado.

Estava indo buscar mais armas.

Gray não queria um bis de Anni Get Your Gun.

Ele ergueu a pistola na direção dela, porém, antes que pudesse abrir fogo, uma bala passou chiando pela ponta de seu nariz, vinda dos arbustos.

Nasser.

Sobressaltado, Gray tropeçou para trás, indo refugiar-se embaixo do abrigo para veículos. Ele disparou às cegas contra os arbustos, sem saber onde o filho-da-puta estava escondido. Ele moveu-se rapidamente para trás, até suas panturrilhas se chocarem contra o pára-choque traseiro do Thunderbird, e abriu fogo mais duas vezes na direção do furgão médico.

Mas a asiática Anni havia desaparecido no interior do veículo.

Seus tiros ricochetearam no furgão. Como o furgão médico do presidente, aquele também era blindado.

Gray gritou:

—        Todos para dentro do carro! Agora!

Sua mãe apareceu à porta da cozinha, segurando uma pistola fumegante. Tinha a bolsa sobre o outro braço, como se estivesse indo fazer compras.

—        Vamos, Harriet disse o pai de Gray, estendendo a mão e puxando-a na direção da porta do carona.

Kowalski pulou de ponta-cabeça no banco traseiro. Gray receou que o corpanzil dele pudesse dar cabo de Seichan mais rápido do que qualquer coisa que Nasser planejara.

Gray saltou para o assento dianteiro e caiu com força. Girou a chave, ainda na ignição, e o motor quente rugiu.

A porta do carona fechou-se com um estrondo, e seus pais comprimiram-se no assento.

Gray deu uma olhadela no espelho retrovisor.

Anni estava em pé apoiada na porta do furgão e equilibrava um lança-foguetes no ombro.

Gray engrenou a marcha e pisou fundo no acelerador. Trezentos cavalos-vapor queimaram os pneus traseiros, fazendo a borracha fumegar e guinchar.

Seu pai gemeu no assento ao lado, e Gray suspeitou de que fosse mais pelo desgaste dos pneus novos e lustrosos do que pela sua própria segurança.

Os pneus finalmente aderiram ao solo, e o Thunderbird arremessou-se para a frente, espatifando o portão de madeira do quintal. Assim que transpôs o portão, Gray deu uma brusca guinada no volante para evitar chocar-se contra um enorme carvalho centenário. Os pneus cavaram uma vala em semicírculo no gramado dos fundos e em seguida transportaram-nos a toda a velocidade quintal adentro.

Atrás deles, um assobio sonoro foi seguido por uma explosão flamejante.

O foguete atingiu o grande carvalho, transformando-o numa ruína de galhos e cascas em chamas. Resíduos chamejantes voaram para o alto, acompanhados por rolos de fumaça.

Sem olhar para trás, Gray pisou fundo no acelerador.

O Thunderbird destruiu a cerca de trás e entrou em grande velocidade nos bosques do Glover-Archibold Park.

Mas Gray tinha uma certeza.

A perseguição estava apenas começando.

 

Sungão e botas.

Isso era tudo o que se interpunha entre Monk e um mar de caranguejos canibais. O frenesi por comida continuava através da selva, lutando, estalando, retalhando. Parecia o crepitar de um incêndio florestal.

Seminu, com seu biotraje na mão, Monk voltou para junto do dr. Richard Graff. O pesquisador marinho estava agachado na beira da selva. Ele também despira o biotraje, conforme Monk o instruíra, e estremeceu quando puxou o tecido de plás­tico do ombro ferido. Pelo menos, o pesquisador marinho estava mais bem-vestido: ele usava short e uma camisa havaiana.

O nariz de Monk enrugou-se quando se aproximou dele. De sob o dossel mais denso da selva, o ar queimava, e o mau cheiro dos animais mortos abaixo era como um golpe no rosto com um salmão em putrefação.

É hora de cairmos fora disse Monk com uma careta.

Um grito ecoou do túnel que conduzia à praia tóxica. Os piratas estavam se aproximando com mais cuidado, com prudência. Parado ali, Graff jogava fragmen­tos de calcário túnel abaixo. Além do mais, seus perseguidores não sabiam que a pistola de Monk só tinha uma bala. Mas o medo e as pedras jogadas só rechaçariam os piratas por pouco tempo.

Pela centésima vez Monk se admirou da estranha persistência de seus agressores. A fome e o desespero certamente levavam as pessoas a fazer coisas estúpidas. Porém, se os piratas queriam fazer um ataque de surpresa e roubar o Zodiac, apoderar-se dos suprimentos e do equipamento deles para vendê-los no mercado negro indo­nésio, agora nada os detinha. A maioria dos piratas da região, por mais brutais e desumanos que fossem, agia tomando a presa de assalto e roubando-a.

Então, qual o motivo daquela persistência? Apenas silenciá-los, a fim de encobrir as suas pistas? Ou se tratava de algo mais pessoal? Monk imaginou o homem mascarado caindo na água, atingido por um de seus tiros disparados a esmo. Ou seria vingança?

Qualquer que fosse o motivo, o grupo de agressores não estava interessado apenas no espólio: eles queriam sangue.

Graff sufocou no ar abrasador quando se aprumou.

- Aonde estamos indo?

- Voltando para visitar os nossos amigos.

Monk conduziu Graff até a beira da selva. À alguns passos de distância, o mar vermelho de caranguejos matraqueava e trepidava. Mais precisamente, o número deles havia aumentado nos últimos minutos, talvez atraídos pelas vozes dos dois homens ou pelo sangue fresco que escorria do ombro de Graff.

O pesquisador marinho empacou à margem da clareira.

—        Não dá para passarmos no meio desses caranguejos. Essas pinças gigantes podem rasgar couro. Eu já as vi arrancar dedos.

E eles eram rápidos.

Monk recuou quando dois caranguejos, entrelaçados num combate mortal, passaram precipitadamente por eles, as patas afiadas indistintas, tão rápidas quanto qualquer lebre.

—        Não me parece que temos muita escolha — disse Monk.

—        E tem algo de errado com esses caranguejos — prosseguiu o pesquisador. - Eu testemunhei algumas das agressões deles durante as migrações, mas nada desse tipo.

—        O senhor pode psicanalisá-los mais tarde. — Monk apontou para uma árvore alta nas proximidades, uma castanheira-taitiana. A sempre-viva estava coberta com muitos galhos baixos. — O senhor pode subir naquela árvore?

Graff apertou o braço ferido contra a barriga, tentando não o mexer muito.

—        Vou precisar de ajuda. Mas por quê? Ela não vai nos ocultar dos piratas. Seremos um alvo fácil.

—        Simplesmente suba.

Monk levou-o até a árvore e o ajudou a escalar os primeiros galhos, que eram grossos e fáceis de agarrar. Mesmo por sua conta, Graff arranjou-se bem, subindo mais alto.

Monk pulou, caindo perto de um caranguejo, que ergueu ambas as pinças em ameaça. "Sem essa de sair mais cedo da festa, meu chapa." Monk chutou-o de volta para as hordas de seus confrades e em seguida gritou para Graff:

—        O senhor está vendo a abertura do túnel?

—        Eu acho... sim, eu a estou vendo. — Graff mudou de posição na árvore. — Você não vai me abandonar aqui em cima, vai?

- Assobie quando vir os piratas.

- O que você está...?

Apenas faça isso, pelo amor de Deus!

Monk se arrependeu da rispidez de seu tom de voz. Ele tinha de lembrar a si mesmo de que o homem não era militar. Mas a mente de Monk estava repleta de preocupações. Ele imaginou a esposa e a filhinha. Estava firmemente decidido a não perder a vida para um punhado de bandidos ou para uma floresta cheia de aperitivos de restaurantes de frutos do mar.

Foi até a clareira da floresta e se aproximou da beira da horda que se agitava e estalava. Ergueu a pistola numa das mãos e equilibrou-a com a mão artificial. Inclinou a cabeça e respirou pelo nariz.

"Vamos, vejamos o que vocês vão ganhar..."

Ele ouviu um barulho vindo da nogueira atrás dele. Parecia o som de ar vazando de um balão quase esvaziado.

—        Eles estão chegando! — ouviu o homem sussurrar, a tensão claramente sugando o vento de seu assobio.

Monk mirou através da clareira. Ele tinha uma bala, um tiro.

No outro lado da clareira na floresta, dois tanques de ar estavam encostados ao pé de uma rocha. Antes, quando eles estavam tirando seus trajes, Monk mandou Graff passar-lhe o tanque de ar de seu biotraje. Os cilindros portáteis de ar eram leves, feitos de uma liga de alumínio. Usando o coldre de tornozelo de sua pistola, Monk havia amarrado rapidamente o tanque do doutor ao seu próprio tanque e, num arremesso furtivo, jogou o pacote no outro lado da clareira na selva. Os tan­ques haviam caído com um estrondo no meio dos caranguejos, esmagando dois e fazendo seus vizinhos saírem correndo.

Monk então apontou para os tanques, firmando sua mira com carne e prótese.

—        Eles estão aqui! — Graff disse baixinho.

Monk apertou o gatilho.

A explosão congelou a imagem em sua mente por uma fração de segundo; depois um dos tanques pressurizados emitiu o brilho súbito e breve de uma cha­ma. Os tanques amarrados rodopiaram e retiniram, assobiando e pulando. Em seguida, o bocal do segundo tanque quebrou-se, e a dança ficou mais frenética, Com os tanques chocando-se contra os caranguejos, movendo-se rapidamente e quicando.

Era o suficiente.

No passado, Monk havia caminhado por praias cobertas de caranguejos que, assim que uma ave marinha ou um estranho aparecia, sumiam num piscar de olhos, mergulhando de novo em suas tocas de areia. E o mesmo aconteceu ali. Os caranguejos mais próximos da confusão bateram em retirada, passando por cima de seus vizinhos, o que os levou ao pânico. Logo um pequeno fluxo se transformou numa debandada. Os caranguejos, já irritados, fugiram por instinto.

A maré de caranguejos virou-se na direção de Monk, transformando-se lite­ralmente numa onda de pinças que se avolumava e se agitava, passando uns por cima dos outros para escaparem.

Ele correu de volta para a nogueira, com pinças fechando-se com um estalo próximo aos seus calcanhares.

Deu um pulo e subiu às pressas nos galhos. Um caranguejo agarrou-se à sua bota. Ele bateu a carapaça contra o tronco da nogueira, e o caranguejo caiu. A pinça ainda estava presa com força em sua bota. Ele sentiu a ponta afiada cortando seu tornozelo.

Maldição.

Abaixo, a maré de caranguejos passou rapidamente, obedecendo a algum instinto, talvez relacionado com os seus padrões de migração anual. Eles fugiram em direção ao mar.

Monk subiu até juntar-se a Graff. Um dos braços do pesquisador estava en­ganchado em volta do tronco da árvore. Ele olhou para Monk e então se voltou na direção do fragmento de rocha exposta próximo à boca do túnel marinho.

Os piratas, seis deles, estavam fora do túnel, um pouco dispersos, mas haviam se abaixado por causa do tiro de pistola. Só agora estavam se levantando, inseguros.

Então, o turbulento mar de caranguejos irrompeu da selva.

Monk atingiu o homem mais próximo à orla da selva. Antes que ele pudesse reagir, compreender o que estava vendo, os caranguejos subiram pelas suas pernas até a altura das coxas. Ele de repente gritou, tropeçando para trás. Em seguida, uma perna cedeu embaixo dele.

Durante um combate, o tendão de Aquiles de um colega de Monk dos Boinas Verdes havia sido cortado por uma bala. Ele caíra da mesma forma arqueada que o pirata.

O homem caiu sobre um dos braços, gritando.

Foi coberto pelos caranguejos, que se arrastavam sobre seu corpo a se contor­cer. Mas seus gritos continuaram, enterrados sob a massa. Por um momento, ele voltou a agitar-se. Sua máscara havia sido arrancada, junto com o nariz, lábios e orelhas. Seus olhos eram ruínas ensangüentadas. Ele gritou pela última vez e caiu para trás sob a maré.

Os outros piratas fugiram de volta para o túnel, num pânico horrorizado, sumindo de vista. Um homem foi interceptado a caminho do túnel, encurralado num espigão de rocha que se projetava do penhasco marinho. Os caranguejos avançaram como uma onda na direção dele.

Com um último grito, ele se virou e saltou do penhasco.

Mais gritos ecoaram do túnel.

Como água escoando por um bueiro, o mar de caranguejos turbilhonava na boca do túnel, descendo em espiral numa maré vermelha de pinças afiadas.

Monk deu com Graff ofegando pesadamente ao lado dele, sem piscar os olhos.

Ele estendeu a mão e tocou o homem, que se retraiu.

—        Nós temos de ir. Antes que os caranguejos resolvam voltar para a floresta. Graff deixou-se conduzir até o chão da floresta. Ainda havia centenas de ca­ranguejos ali; eles moveram-se com cautela no meio deles.

Monk quebrou um galho frondoso da nogueira, e afastava qualquer caranguejo que chegasse muito perto.

Lentamente, Graff pareceu voltar a si, a se reacomodar em sua própria pele.

- Eu... eu quero um desses caranguejos.

- Teremos caranguejo para o almoço quando voltarmos para o navio.

- Não, para estudo. De algum modo eles sobreviveram à nuvem tóxica. Isso po­deria ser importante — disse o pesquisador com a voz firme, em seu elemento.

- Está bem — disse Monk. — Levando em consideração o fato de que dei­xamos todas as nossas amostras para trás, não deveríamos regressar ao navio de mãos abanando.

Ele estendeu o braço para baixo e com a mão artificial pegou um dos caranguejos menores, segurando-o pela parte posterior da carcaça. O crustáceo, irritado, moveu abruptamente as pinças para trás, na direção dele, esforçando-se para atingi-lo.

—        Ei, nada de estragar a mercadoria, meu chapa. Dedos novos saem do meu salário.

Monk foi até uma árvore a fim de esmagá-lo contra o tronco, mas Graff acenou com o braço bom.

—        Não! Precisamos dele vivo. Como eu disse antes, tem algo de estranho no comportamento deles. Isso também deve ser examinado.

A mandíbula de Monk contraiu-se de irritação.

—        Ótimo, mas se este projeto de sushi arrancar um pedaço de mim, o senhor vai pagar por isso.

Eles continuaram pelo platô da floresta, caminhando pela ilha.

Depois de quarenta minutos de caminhada, a floresta foi ficando rala, e uma vista panorâmica se descortinou do alto do penhasco. O principal povoado da ilha — The Settlement — estendia-se ao longo da praia e do porto. No mar circundante, além de Flying Fish Cove, flutuava o castelo branco que era o Mistress of the Seas, uma nuvem num céu azul-escuro.

Lar, doce lar.

Um movimento atraiu os olhos de Monk para um grupo de barcos menores, uma dúzia, contornando Rocky Point, cada um deixando atrás de si uma esteira branca. O grupo viajava num amplo V, como numa formação de ataque de aviões de caça.

Um grupo idêntico apareceu no outro lado do porto do povoado.

Mesmo dali, Monk reconheceu a forma e a cor das embarcações.

Lanchas azuis, com carena longa e calado raso.

—        Mais piratas... — lamentou-se Graff.

Monk olhou para os dois grupos convergentes, duas tenazes, ainda mais mor­tais do que as de qualquer caranguejo-vermelho. Ficou boquiaberto diante do que estava encurralado entre eles.

O Mistress of the Seas.

 

Lisa olhou atentamente para a radiografia.

A caixa de luz portátil havia sido montada numa mesa na cabine. Atrás dela, um paciente estava deitado esparramado na cama, com um lençol cobrindo todo o seu corpo.

Morto.

—        Parece tuberculose — disse ela. As radiografias dos pulmões do homem estavam repletas de áreas espumosas com grandes massas brancas ou tubérculos. — Ou talvez câncer de pulmão.

O dr. Henrick Barnhardt, o toxicologista holandês, estava em pé ao lado dela, com um dos punhos apoiado na mesa. Ele a chamara ali.

—        Ja, mas a esposa do paciente disse que ele não tinha nenhum sinal de insufi­ciência respiratória até 18 horas atrás. Nem tosse, nem expectoração, e não fumava. E tinha apenas 24 anos de idade.

Lisa empertigou-se. Eles estavam sozinhos na cabine.

- E o senhor fez uma cultura dos pulmões?

- Eu usei uma agulha para aspirar um pouco do líquido de uma das massas pulmonares. O conteúdo era claramente purulento. Caseoso e com bactérias. Era, sem dúvida, um abscesso pulmonar, e não câncer.

Ela examinou o rosto barbado de Barnhardt. Ele estava em pé um pouco encur­vado, como se o seu tamanho descomunal de algum modo o deixasse constrangido; mas isso também lhe dava uma postura conspiratória. Ele não convidara o dr. Lindholm para participar daquelas discussões.

—        Esses achados são compatíveis com tuberculose — afirmou ela.

A tuberculose era causada por uma bactéria, Mycobacterium tuberculosis, um germe altamente contagioso. E, embora a história clínica daquele caso fosse sem dúvida incomum, a tuberculose poderia ter permanecido latente por anos, desenvolvendo-se lentamente. O homem poderia ter sido exposto há anos, ter-se transformado numa bomba-relógio; depois, sua exposição ao gás tóxico poderia ter estressado seus pulmões o suficiente para fazer com que a doença se disseminasse. No fim, o paciente se tornara inequivocamente contagioso.

E nem ela nem o dr. Barnhardt estavam usando trajes anticontaminação.

Por que ele não a avisara?

- Não era tuberculose — respondeu ele. — O dr. Miller, o especialista em doenças infectocontagiosas da nossa equipe, identificou o organismo como Serratia marcescens, uma cepa de bactérias não-patogênicas.

Lisa lembrou-se de sua discussão mais cedo, relacionada com o paciente com bactérias normais da pele que estavam produzindo em massa venenos que devoravam a carne.

O toxicologista confirmou a comparação.

- Mais uma vez, temos uma bactéria benigna não-oportunista tornando-se virulenta.

- Mas, dr. Barnhardt, o que o senhor está insinuando...

- Me chame de Henri. E não estou apenas insinuando. Passei as últimas horas procurando casos semelhantes, e encontrei mais dois. Uma mulher com uma di-knteria devastadora, que fez com que o seu revestimento intestinal literalmente se desprendesse, causada por Lactobacillus acidophilus, uma bactéria do iogurte que normalmente é um organismo da flora intestinal saudável. E uma menina com convulsões violentas, cuja punção lombar está fervilhando com Acetobacter aceti, um organismo benigno encontrado no vinagre. Ele está literalmente fazendo uma geléia do cérebro dela.

Enquanto ouvia, Lisa percebeu que sua visão estava se estreitando, concentran­do-se na implicação daquilo.

—        E esses não podem ser os únicos casos — disse Henri.

Ela sacudiu a cabeça, não discordando, apenas com a certeza crescente e ater­radora das palavras dele.

- Então não resta dúvida de que alguma coisa está voltando essas bactérias benignas contra nós.

- Transformando amigo em inimigo. E, se isso se transformar numa guerra total, estaremos numa imensa desvantagem numérica.

Ela ergueu o olhar para ele.

- O corpo humano é composto de cem trilhões de células, mas apenas dez trilhões são nossos. Os 90% restantes são bactérias e alguns outros organismos oportunistas. Nós vivemos cooperativamente com esse ambiente estranho. Mas, e se esse equilíbrio se rompesse, se ele se voltasse contra nós...?

- Precisamos deter isso.

—        Foi por isso que eu a chamei aqui. Para convencê-la. Se quisermos progredir, o dr. Miller e eu precisaremos ter acesso ao laboratório forense do seu colega. Temos que começar a responder a perguntas críticas. O que ocorreu nessas bactérias foi uma alteração tóxica ou química? Caso tenha sido uma alteração tóxica ou quí­mica, como vamos tratá-la? E se for algo contagioso? Como podemos isolá-lo ou colocá-lo de quarentena para nos protegermos dele? — Ele fez uma careta através da barba. — Precisamos de respostas. E agora.

Lisa consultou o relógio. Monk já estava uma hora atrasado. Ou ele estava ab­sorto em seu trabalho ou estava apreciando a beleza e as praias da ilha. Mas agora não era hora para excursões por lá.

Ela fez um aceno de cabeça para Henri.

—        Vou solicitar a alguém para mandar uma mensagem pelo rádio para o dr. Kokkalis pedindo-lhe que volte o mais rápido possível. Mas, enquanto isso, você tem razão. Vamos começar.

Ela saiu da cabine na frente. O laboratório forense de Monk ficava perto do topo do navio, cinco conveses acima. A Sigma solicitara uma das maiores cabines para acomodar o equipamento dele. Alguns tripulantes haviam até desmontado camas e móveis a fim de abrir espaço para o laboratório improvisado. A suíte também tinha uma ampla sacada debruçada sobre o lado de estibordo. Lisa desejava estar lá agora, pois precisava da luz do sol, de uma brisa fresca em seu rosto, de alguma coisa que afugentasse o medo crescente.

Enquanto se encaminhava para o elevador do navio, ela sabia que teria de telefonar de novo para Painter. Não poderia assumir aquela responsabilidade sozinha. Precisava de todo o apoio da equipe do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da Sigma.

Além disso, queria ouvir a voz dele outra vez.

Apertou o botão para chamar o elevador.

Como se o botão estivesse ligado a um detonador, uma explosão alta ecoou do outro lado do navio, vinda da área de atracação das chalupas que transportavam pessoas entre a praia e o navio.

Teria sido um acidente?

—        O que foi isso? — indagou Henri.

Uma segunda explosão, mais alta, sacudiu ruidosamente a parte do navio em que eles estavam, em algum lugar próximo à proa. Gritos distantes ecoaram. Então Lisa ouviu um som familiar, o zunido cerrado e violento de tiros disparados por armas automáticas.

—        Nós estamos sendo atacados — respondeu ela.

 

Monk fez o Land Rover enferrujado quicar pela ladeira íngreme abaixo. Fizera uma ligação direta no velho caminhão num estacionamento próximo à mina de fosfato da ilha, abandonada durante a evacuação. Eles seguiam a grande veloci­dade ao longo de uma trilha de terra que ia dos fundos da mina até o povoado litorâneo.

O dr. Richard Graff estava afivelado no assento ao lado dele, com um dos braços erguido até o teto para ajudá-lo a manter-se no lugar.

—        Vá mais devagar.

Monk ignorou-o. Eles precisavam chegar à costa.

Os dois haviam arrombado uma das oficinas da mina e tentado telefonar, mas o aparelho estava mudo. A ilha estava quase vazia àquela altura. Pelo menos, eles conseguiram encontrar um estojo de primeiros socorros no barracão. Graff espa­lhou pomada antibiótica no ombro e enfaixou-o com gaze.

O pesquisador havia cuidado de si mesmo enquanto Monk fazia a ligação direta no caminhão. Graff ainda apertava o estojo de primeiros socorros contra a barriga com o braço ferido. Esvaziado, ele daria uma excelente caixa para guardar o espécime de caranguejo.

Uma curva da estrada na selva obrigou Monk a reduzir a marcha. Mesmo assim, ele fez a curva em alta velocidade, com o caminhão equilibrado em duas rodas alguns centímetros acima do solo. Voltaram a tocar o solo com um baque e foram empurrados para a frente em seus cintos de segurança.

Graff falou ofegante:

—        Você não vai fazer bem a ninguém se enterrar a dianteira do caminhão na selva.

Monk reduziu a velocidade, não por causa das palavras de cautela de Graff, mas porque a estrada terminava num cruzamento pavimentado. Eles haviam chegado a uma parte remota da rodovia litorânea da ilha, uma estreita estrada de duas pistas. A trilha de terra terminava bem ao sul de Flying Fish Cove. Ao norte, erguia-se a parte principal do povoado, uma mistura de hotéis à beira-mar, restaurantes chineses, bares decadentes e armadilhas para turistas.

Mas a atenção de Monk continuava concentrada nas águas, além de Flying Fish Cove. O Mistress of the Seas estava cercado por barcos em chamas, por iates destruídos pelas explosões e pelos destroços do pequeno navio da Guarda Costeira australiana. Fumaça se erguia alto no céu do início da tarde. Como tubarões nadando em círculos, uma grande quantidade de lanchas azuis deslizava em alta velocidade e rugia nas águas.

Um único helicóptero amarelo e vermelho, um Eurocopter Astar, voava ao redor da enseada, um zangão irritado agitando a fumaça. Pelos clarões dos tiros cuspidos pela boca das armas de fogo do lado de fora de sua porta aberta, não era nenhum amigo.

Monk tinha tido vislumbres do ataque marítimo enquanto descia velozmente as estradas em ziguezague nas montanhas: explosões, clarões dos disparos, erupções devastadoras de resíduos flamejantes. As explosões haviam ecoado até o caminhão em que estavam como o som de fogos de artifício distantes.

Bum... bum... bum...

Mais ao norte, uma explosão retumbante vomitou uma massa de fumaça e chamas, vinda do povoado. Uma explosão próxima o bastante para chacoalhar as janelas do Land Rover.

—        Subestação da Tesltra — disse Graff. — Eles estão cortando todos os meios de comunicação.

Outras áreas de The Settlement já ardiam em chamas.

Aqueles não eram piratas comuns. Era um ataque total.

Quem diabo eram eles?

Monk voltou a engrenar a marcha do caminhão e afastou-se do povoado, seguindo pela estrada litorânea.

—        Aonde você está...? — Graff começou a perguntar.

Monk fez uma curva. Um pequeno hotel à beira-mar, isolado dentro de alguns acres cultivados de floresta tropical, apareceu adiante. Ele fez uma curva brusca na altura de uma placa com a inscrição THE MANGO LODGE AND GRILLE e desceu a toda a velocidade pela estrada de acesso. O hotel surgiu à vista, um edifício de dois andares que se dissolvia em alguns bangalôs independentes na selva. Uma piscina cintilou.

O lugar parecia deserto.

—        O senhor estará seguro aqui — disse Monk quando freou, parando ao lado do hotel sob a folhagem protetora da árvore que dava nome à hospedaria, uma mangueira.

Monk saltou do carro.

—        Espere!

Graff lutou com sua porta, até finalmente abri-la, quase caindo do Land Rover, e foi atrás de Monk.

Monk não diminuiu o passo. Ele quase correu na direção da praia. Como todos os hotéis do litoral, o Mango Lodge and Grille oferecia todas as atividades que um vagabundo de praia poderia querer: mergulho com snorkel, aluguel de caiaques, iatismo. Nos fundos do estabelecimento, Monk avistou o centro de atividades do hotel, um pequeno anexo de blocos de concreto de cinzas com teto de sapê. Estava vedado com tábuas por causa da evacuação.

Sem se deter, Monk pegou um tubo usado para limpar a piscina. Num instante, ele estava soltando as tábuas com o tubo e quebrando a porta de vidro.

Graff não ficou para trás.

Monk estendeu uma das mãos e puxou o pesquisador para dentro, tirando-o da exposição ao sol. O helicóptero passou rugindo acima, em baixa altitude, e o distúrbio no ar causado pelo rotor agitou a copa das palmeiras. Em seguida, ele se afastou rapidamente, continuando sua patrulha do litoral.

—        Fique fora de vista! — advertiu Monk.

Graff concordou com um vigoroso aceno de cabeça.

Monk foi até a frente do centro de atividades, abarrotada de toalhas de praia, óculos escuros, bronzeadores e uma grande quantidade de suvenires. O lugar cheirava a coco e pés úmidos. Monk circundou o balcão e passou pelo vão de uma porta com uma cortina de contas que produziam um ruído semelhante ao de guizos.

Encontrou o que estava procurando.

O equipamento de mergulho estava pendurado na parede dos fundos.

Monk tirou as botas.

No lado do recinto que dava para a praia, havia uma variedade de embarcações para lazer ao sol, enfileiradas diante de uma porta de enrolar. Monk passou pelos pedalinhos, por dois caiaques, e parou em frente ao único jet ski. Ele estava apoiado num reboque com rodas, pronto para ser arrastado facilmente para dentro e para fora da água.

Pelo menos o mar naquele lado da ilha estava livre da sopa tóxica.

Monk virou-se para Graff.

—        Vou precisar da sua ajuda.

Dezoito minutos mais tarde, Monk esfregou o cotovelo no postigo manchado de graxa na porta de enrolar. Seu traje úmido guinchou contra o vidro. Esticando o pescoço, ele esperou o helicóptero completar a volta acima e regressar para o norte, rumo a Flying Fish Cove. A enseada estava fora da visão direta, oculta pelo Smith Point. Tudo o que Monk conseguia distinguir da zona de guerra era a cortina de fumaça escura que se erguia acima da crista das montanhas.

Por fim, o helicóptero virou-se e voltou na direção do navio de cruzeiro.

—        Tudo bem, lá vamos nós!

Monk curvou-se e puxou a porta para cima, encaixando-a com um estalo no lugar. Atrás dele, Graff ergueu o engate do reboque, e Monk deu a volta até a frente. Ele segurou a traseira do jet ski, e juntos arrastaram o reboque até a água. Os grandes pneus de borracha para areia facilitaram o trabalho deles.

Graff soltou a embarcação do reboque enquanto Monk corria de volta para buscar seu colete equilibrador e seus tanques de ar. Assim que se equipou, vestiu um blusão esportivo, um dos suvenires do Mango Lodge, por cima de todo o seu equipamento.

Sobrecarregado de peso, Monk voltou com dificuldade para a água e ajudou a soltar o jet ski do reboque.

—        Fique escondido — ele instruiu Graff. — Mas se o senhor conseguir encontrar algum meio de comunicação, um rádio ou qualquer coisa, tente alertar as autoridades.

Graff fez um aceno positivo de cabeça.

—        Tenha cuidado.

Em um minuto, Monk estava acelerando o motor até ele zumbir alto e disparando rumo a Smith Point. Atrás dele, Graff voltou correndo com o reboque vazio para a garagem.

Monk curvou-se ainda mais no assento e pôs a embarcação para funcionar a toda a velocidade. Voando mais rápido, o blusão estalava ao vento. Água do mar e sal espalhavam-se em borrifos. Smith Point foi crescendo à sua frente. Afinal, ele chegou ao esporão rochoso e, sem reduzir a velocidade, o contornou.

No outro lado da enseada, o Mistress ofthe Seas erguia-se como um castelo branco sitiado. Mais perto ainda, as águas ardiam com óleo derramado flamejante e cascos lumegantes de navios. Até mesmo o cais se transformara em ruínas por causa das explosões. E por toda a zona de guerra se ouvia o rugido das lanchas dos piratas.

À caça.

Lá vamos nós.

Como um torpedo deslizante, Monk entrou na luta.

 

- Deve haver algo que possamos fazer — disse Lisa.

- Por ora, vamos aguardar os acontecimentos — advertiu Henri Barnhardt.

Eles estavam refugiados numa das cabines externas vazias. Lisa estava em pé, perto de uma das duas vigias do aposento. Henri ficou a postos junto à porta.

Uma hora atrás, eles haviam fugido pelo navio e descoberto que nele reinava o mais absoluto caos. Tripulantes uniformizados e passageiros de olhos arregalados, tanto os enfermos quanto os sãos, abarrotavam os corredores. Explosões e tiroteios eram quase abafados pelo som enervante da campainha de alarme do navio. Quer usando equipamento automatizado, quer de propósito, alguém desengatara as portas corta-fogo do navio, baixando-as, isolando seções.

Enquanto isso, pistoleiros mascarados desobstruíam os corredores, um após o outro, atirando contra qualquer pessoa que resistisse ou se movesse devagar demais. Lisa e Henri tinham ouvido os gritos, os tiroteios, o ruído de pés no convés acima. Eles mesmos quase foram alvejados. O que salvara fora uma carreira desabalada pela sala de espetáculos dourada do navio e por outro corredor.

Eles não sabiam por quanto tempo mais poderiam resistir.

A rapidez da captura do Mistress of the Seas indicava que alguns membros da tripulação deviam estar envolvidos.

Lisa olhou para fora através da vigia. O mar estava em chamas. Dessa mesma vigia, ela observara um punhado de passageiros desesperados pular das sacadas superiores na água, na esperança de chegar à praia.

As lanchas, porém, percorriam a enseada, disparando contra a água.

Corpos flutuavam em meio a destroços flamejantes.

Não havia como escapar.

Por que aquilo estava acontecendo? O que estava acontecendo?

Finalmente, o som da campainha de alarme silenciou, interrompendo-se com um gemido final. O silêncio então caiu como um peso sobre eles, um peso físico. Até o ar parecia mais denso.

Em algum lugar acima alguém soluçou e se lamentou.

Henri olhou nos olhos de Lisa.

Do alto-falante do aposento, uma voz dura começou a falar em malaio, língua que Lisa não entendia. Ainda fitando Henri, ela observou o toxicologista sacudir a cabeça. Ele estava igualmente perdido. Mas o que quer que tenha sido dito acabou sendo repetido em mandarim. O malaio e o mandarim eram as duas línguas mais comuns faladas na ilha.

Por fim, o locutor mudou para o inglês, com um forte sotaque.

—        O navio agora é nosso. Cada convés está patrulhado por guardas. Qualquer pessoa flagrada nos corredores será alvejada imediatamente. Não faremos mal a ninguém, contanto que nos obedeçam. Isso é tudo.

O discurso terminou com um ruído de estática.

Henri forçou a porta da cabine, a fim de se certificar de que ela estava trancada, e depois caminhou na direção de Lisa.

—        O navio foi seqüestrado. Alguém deve ter planejado isso há algum tempo.

Lisa lembrou-se do Achille Lauro, um navio de cruzeiro italiano seqüestrado por terroristas palestinos em 1985. E mais recentemente, em 2005, piratas somalis haviam atacado outro navio de cruzeiro na costa oriental da África.

Ela virou-se para a vigia, olhando para fora, e observou atentamente as lanchas que patrulhavam as águas abaixo, operadas por equipes de pistoleiros mascarados. Pareciam ser piratas, mas ela suspeitava de outra coisa.

Talvez um pouco da paranóia de Painter houvesse passado para ela.

Aquilo era coordenado demais para um ato de pirataria fortuito.

—        Com certeza — disse Henri — eles vão revistar o navio e roubar tudo o que não esteja trancado à chave, e em seguida vão fugir por entre as ilhas. Se conseguirmos nos manter vivos, evitar qualquer confronto...

O alto-falante voltou a guinchar, e uma nova voz falou através do sistema geral de comunicação do navio. Em inglês, sem repetir a mensagem em malaio ou em chinês.

—        Os seguintes passageiros queiram se dirigir à ponte de comando do navio. Eles serão esperados aqui nos próximos cinco minutos. Deverão vir com as mãos na cabeça e os dedos entrelaçados. Se não aparecerem, cada minuto de atraso resultará na morte de dois passageiros. Mataremos primeiro as crianças.

Os nomes foram enunciados.

Dr. Gene Lindholm.

Dr. Benjamin Miller.

Dr. Henrick Barnhardt.

E por fim: Dra. Lisa Cummings.

- Vocês têm cinco minutos.

O rádio silenciou de novo.

Lisa ainda olhava pela vigia.

- Isso não é um seqüestro.

E esses não são piratas comuns.

Antes de se afastar da janela, ela avistou um jet ski correndo em alta velocidade através da água na direção do navio de cruzeiro. Um jato de água projetava-se alto atrás dele, tornando fácil avistá-lo. Ziguezagueava por entre os detritos com habilidade. Ela não conseguiu distinguir quem estava a bordo da embarcação. O piloto estava bem inclinado para a frente.

E com bons motivos.

Duas lanchas perseguiam-no de perto, movendo-se ruidosamente através das chamas e das pranchas fumegantes. Clarões produzidos pelos canos das armas de fogo faiscavam das lanchas.

Ela sacudiu a cabeça por causa da insensatez do piloto do jet ski.

De cima do topo do navio, um helicóptero apareceu, mergulhando na direção do jet ski. Ela não queria assistir, mas sentia certa obrigação, certo reconhecimento pelo ataque suicida do piloto do jet ski.

O helicóptero inclinou-se num arco abrupto, com a porta lateral aberta.

Um jato de fumaça foi expelido de seu interior.

Lança-granadas.

Estremecendo, Lisa olhou para baixo a tempo de ver o jet ski explodir numa bola flamejante de fumaça e metal calcinado.

Ela virou-se, entorpecida e com o corpo todo tremendo, e encarou Henri. Eles não tinham opção.

—        Vamos.

 

Monk desceu para as profundezas do mar, puxado pelo cinto de lastro e pelos tanques de ar. Ele não lutou contra isso e prendeu a respiração. Acima, o azul da água ardia em chamas. Destroços do jet ski explodido crepitavam através da água. A dois metros de distância, a embarcação desceu para as profundezas com o nariz para baixo.

Enquanto descia, Monk tirou com dificuldade o blusão do Mango Lodge. fá não havia motivo para manter seus tanques ocultos. Ele puxou a máscara de mergulho para cima e estendeu um dos braços para pegar a mangueira de ar. Usou o regulador para limpar a máscara e colocou-a no rosto.

O fundo do mar ficou claro como cristal.

Ajustou o regulador e inspirou pela primeira vez.

Foi mais um suspiro de alívio.

Será que aquele pequeno subterfúgio havia funcionado?

Um momento atrás, quando o helicóptero mergulhou na sua direção, atraído como um falcão por um camundongo, Monk olhou para o pistoleiro na porta do helicóptero. Quando o lança-granadas foi apontado para ele, Monk virou o jet ski de cabeça para baixo no último segundo, mergulhando embaixo dele e nas profundezas. A explosão o atingira como a pancada de uma bigorna na cabeça, e seus ouvidos estalavam.

Ele desceu em direção ao fundo do mar. Flying Fish Cove tinha ancoradouros de águas profundas, de até trinta metros. Mas ele não precisava descer tanto.

Monk ajustou os compensadores de flutuação, enchendo o colete com ar de seus tanques. Sua descida foi ficando mais lenta até ele flutuar. Ele olhou para cima e observou o fundo das lanchas que patrulhavam o local, as hélices agitando a água branca. Elas navegavam em círculos, à procura de quaisquer sinais do piloto do jet ski, prontas para abrir fogo se ele viesse à tona.

Monk, porém, não estava planejando emergir, e, se o seu estratagema tivesse dado certo, ninguém sabia que ele tinha equipamento de mergulho. Deu meia-volta, consultou sua bússola de pulso com mostrador fosforescente e seguiu na direção que já havia calculado.

Rumo ao Mistress of the Seas.

Ele sempre tivera vontade de fazer um cruzeiro marítimo.

 

— Este é o lugar mais distante até onde pude ousar — disse Gray.

Ele passara os últimos sete minutos movendo lentamente o Thunderbird pelo Glover-Archibold Park, avançando pouco a pouco por uma antiga estrada vicinal repleta de ervas daninhas, com arbustos roçando as laterais do conversível. O pneu dianteiro esquerdo era uma ruína cheia de furos, retardando-os, tornando quase impossível dirigir.

Embora a maioria das pessoas considerasse Washington, D.C., um lugar de edifícios históricos, com amplos calçadões com lojas diversas e museus, a cidade também possuía um dos conjuntos mais longos e interligados de parques, que ziguezagueavam pelo coração da cidade, cobrindo bem mais de mil acres. O Glover-Archibold Park marcava uma extremidade, terminando no rio Potomac.

Gray havia se afastado do rio, pois este era muito distante e muito exposto. Seguindo por uma alameda nos fundos, paralela às casas do parque, ele rumara para o norte com os faróis apagados e acabara descobrindo uma antiga estrada de terra cujo fim era impedir a propagação de incêndios e que conduzia ainda mais fundo na floresta densa. Ele tomou essa estrada, pois precisava continuar perdido, e, além disso, o Thunderbird estava quase parando de funcionar.

Reconhecendo que não podia ir além, ele reduziu a marcha.

Eles estavam no fundo de uma ravina. Colinas íngremes e arborizadas erguiam-se em cada lado. Adiante, uma antiga ponte férrea de cavaletes abandonada cruzava o estreito vale. Gray conduziu o Thunderbird para debaixo da ponte de ferro vermelho enferrujado e ripas de madeira. Freou próximo a um dos muros de concreto que sustentavam a ponte. O muro estava todo pichado.

—        Saiam todos. Iremos a pé a partir daqui.

No outro lado da ponte, iluminado pelas estrelas e por uma réstia da luz da lua, um marcador de madeira indicava uma trilha para caminhadas. O caminho mais parecia um túnel, cavado na floresta densamente fechada.

Melhor ainda para escondê-los.

A distância, na outra direção, as sirenes dos veículos de emergência uivavam. Gray avistou um brilho laranja tremeluzente no céu noturno. A explosão flamejante do foguete devia ter iniciado um incêndio numa casa.

Mais perto, no entanto, o bosque estava escuro, pintado com gradações de preto.

Gray sabia que Nasser e sua turma de assassinos podiam estar em qualquer lugar.

Atrás deles, adiante deles, já bem próximos.

O coração de Gray martelava. Seus temores o oprimiam — não por si mesmo, mas por seus pais. Tinha de levá-los a algum lugar seguro para que houvesse uma distância entre eles e os perigos que o rodeavam. A única forma de fazer isso era conseguir tratamento médico para Seichan.

E ele tinha de fazer aquilo longe de todos os olhares.

Mesmo que ainda tivesse seu telefone celular aos frangalhos, ele não ousaria entrar em contato com a Sigma ou com o diretor Crowe. As linhas de comunicação estavam comprometidas, conforme evidenciado pela emboscada no abrigo secreto. De acordo com o protocolo, ele deveria sumir sem deixar rastros. Houvera um vazamento em alguma parte, e, até que seus pais estivessem abrigados em algum lugar seguro, ele não ergueria a cabeça acima das ervas daninhas.

Isso significava, portanto, que eles tinham de procurar outro meio de cuidar de Seichan. Sua mãe havia sugerido uma opção e já executara seu plano, fazendo duas chamadas de seu telefone celular. Logo em seguida, Gray mandou-a tirar a bateria do aparelho, para que ninguém o usasse para rastreá-los.

—        A morfina parece tê-la relaxado — informou sua mãe do banco traseiro. Durante uma breve parada, a mãe de Gray havia passado para o banco traseiro junto com Kowalski, e Seichan estava curvada entre eles. A mãe dele injetara em Seichan uma syrette de morfina pré-dosada, tirada de algum suprimento médico no abrigo secreto.

- Se quisermos conseguir nosso intento — disse Gray —, teremos que carregá-la a partir daqui.

- Eu vou carregá-la — disse Kowalski, acenando para que todos o deixassem passar.

O pai de Gray ajudou sua mãe a sair do conversível. Lá fora, seu pai viu o estado do carro e sacudiu a cabeça, praguejando entre os dentes.

Kowalski levantou-se, erguendo Seichan nos braços. Mesmo na escuridão embaixo da ponte, Gray notou a mancha negra na atadura que circundava seu abdome. O movimento fez Seichan acordar. Ela se debateu por um momento nos braços de Kowalski enquanto ele saía do carro com dificuldade, surpreso, atordoado. Ela gritou e golpeou o rosto dele com a base da mão.

—        Ei...! — exclamou o homenzarrão, evitando outro golpe.

Seichan começou a berrar, num fluxo irado, numa mistura ininteligível de inglês com um dialeto asiático.

—        Acalme-a — disse seu pai, olhando para a floresta escura.

Kowalski tentou tapar a boca de Seichan, mas um de seus dedos quase foi arrancado por uma mordida.

—        Filha-da-puta!

A agitação dela ficou mais intensa.

A mãe de Gray aproximou-se, vasculhando sua grande sacola.

- Eu tenho outra dose de morfina.

Gray sacudiu a cabeça.

- Espere.

Com a perda de sangue de Seichan, ele receava a depressão respiratória que acompanhava o uso de morfina. Uma segunda dose poderia matá-la, e ele ainda precisava de respostas.

Ele estendeu a palma de uma das mãos para a mãe.

—        Sais aromáticos — disse ele, lembrando-se de que Kowalski mencionara que eles faziam parte do conteúdo do kit médico de emergência.

Sua mãe concordou com um aceno de cabeça. Ela estendeu a mão para sua bolsa, remexeu-a por um longo segundo e então lhe entregou algumas cápsulas. Gray pegou uma delas e caminhou até o lado de Kowalski.

O guarda agora exibia um arranhão longo e sangrento numa das faces.

—        Pelo amor de Deus, faça alguma coisa para acalmá-la!

Gray segurou um punhado dos cabelos de Seichan, arqueou-lhe o pescoço e quebrou a cápsula sob o seu nariz. A cabeça dela deu um violento safanão, lutando, mas ele manteve a cápsula junto ao lábio superior dela. Os gritos delirantes cessaram e foram substituídos pelo silêncio.

Uma das mãos da mulher ergueu-se para empurrá-lo.

Ele segurou-a com força.

— Chega...

Seichan tossiu e agarrou o pulso de Gray.

Ele ficou surpreso com a força nos dedos dela, e baixou o braço.

—        Me deixe respirar. Me coloque no chão.

Gray fez um aceno de cabeça para Kowalski. Ele não precisou que ela dissesse duas vezes: pôs Seichan em pé, mas manteve um dos braços embaixo dos ombros dela. Ela havia superestimado suas próprias forças: suas pernas fraquejaram, e ela agarrou-se nos braços do homenzarrão.

Estremecendo, Seichan correu os olhos ao redor. Gray viu a confusão naqueles olhos, atrás da guerra travada entre a dor e a morfina. Ela rapidamente voltou a se concentrar nele.

—        Eu... o obelisco... — disse ela com uma preocupação tensa. Gray estava cansado de ouvir a respeito do maldito obelisco.

—        Nós teremos de pegá-lo mais tarde. Ele se quebrou após o seu acidente. Eu o deixei nos fundos da casa.

Suas palavras pareceram causar mais dor a ela do que o ferimento à bala. Mas talvez esse seu lapso tivesse sido um pouco de sorte. Nasser poderia ter ido procurar o obelisco em vez de persegui-los.

A mãe dele, ouvindo por acaso a conversa de ambos, deu um passo à frente.

—        Vocês estão conversando sobre aquela coluna preta quebrada. — Ela bateu de leve em sua grande bolsa. — Eu a peguei quando entrei em casa para buscar as ataduras. Ela parecia antiga e talvez valiosa.

Fechando os olhos de alívio, Seichan fez um aceno positivo de cabeça ao ouvir ambas as avaliações. Sua cabeça pendeu de exaustão.

- Graças a Deus.

- Por que ele é tão importante? — perguntou Gray.

- Ele poderia... ele poderia salvar o mundo. Se já não estivermos atrasados demais.

Gray olhou de relance para a bolsa de sua mãe e de volta para Seichan.

—        Que diabo você quer dizer?

Ela acenou débilmente com um dos braços, quase desmaiando de novo.

—        É complicado demais. Eu preciso da sua ajuda... não posso... não sozinha... nós temos... temos que fugir.

O queixo dela caiu de encontro ao tórax enquanto ficava inconsciente outra vez. Kowalski aparou o peso dela com o quadril.

Gray sentiu-se tentado a usar outra cápsula de sais aromáticos, porém receava exauri-la ainda mais. Sangue fresco escorria de suas ataduras.

Sua mãe pareceu fazer a mesma avaliação. Ela acenou com a cabeça na direção da trilha.

—        Não podemos estar longe do hospital agora.

Gray virou-se para o caminho escuro no outro lado da ponte. Esse era outro motivo por que ele havia conduzido o Thunderbird para o norte através do bosque, seguindo uma sugestão de sua mãe. No outro lado do Glover-Archibold Park, estendia-se o campus da Universidade Georgetown. O hospital-escola ficava próximo à margem da floresta. Ex-alunos de sua mãe trabalhavam ali.

Se eles conseguissem alcançá-lo em segredo...

Mas será que aquele destino era óbvio demais?

Havia mil saídas do sistema de parques, mas Nasser sabia que o homem que ele caçava carregava uma mulher gravemente ferida e que ela precisava de assistência médica imediata.

O risco era enorme, porém Gray não via meio de evitá-lo.

Ele se lembrou dos olhos de Nasser quando o filho-da-puta perguntou sobre o obelisco. Famintos, implacáveis. O egípcio acreditara na afirmação de Gray de que o obelisco ficara para trás, principalmente porque o próprio Gray acreditava nela. Mas o que era mais importante para o homem: conseguir o obelisco ou tentar se vingar?

Ele correu os olhos pelo pequeno grupo.

A vida de todos eles dependia daquela resposta.

 

Meia hora mais tarde, Painter percorreu a extensão de seu gabinete com um headset preso ao ouvido, que lhe deixava as mãos livres.

—        Todos eles estão mortos?

Atrás dele, a tela de plasma exibia a transmissão ao vivo do incêndio de três casas, junto com uma parte do parque próximo. A estiagem do verão transformara a floresta num local de fácil combustão. Carros do corpo de bombeiros e equipes de emergência aglomeravam-se na área isolada. Furgões de emissoras de televisão já erguiam suas antenas parabólicas. Um helicóptero da polícia voava em círculos acima, os holofotes varando a escuridão, procurando.

Porém, era pouco demais, tarde demais.

Nem o conversível que Gray havia dirigido até o abrigo secreto nem o furgão médico seqüestrado estavam entre os destroços. O incêndio que se alastrava impedia mais investigações.

A única notícia concreta era ruim: os membros da equipe original do furgão médico haviam sido encontrados num terreno baldio, cada um com um tiro na cabeça. Havia quatro pastas sobre a sua escrivaninha. Ele afundou na cadeira. Acima de qualquer outra coisa, tinha de dar quatro difíceis telefonemas antes do amanhecer. Para as famílias.

O ajudante de Painter, Brant, empurrou sua cadeira de rodas até a entrada do gabinete.

—        Lamento, senhor.

Painter fez um aceno de cabeça para ele.

—        O dr. McKnight está aguardando na linha três. Ele está disponível para teleconferência ou videoconferência.

Painter apontou um dos polegares para a tela com as imagens do incêndio.

—        Eu já vi o bastante no momento. Transfira a ligação de Sean.

Painter tirou o headset do ouvido. Ele jurou que mandaria implantar um cirurgicamente, e se virou a fim de olhar para a tela enquanto a cena de emergência se dissolvia, substituída pelo rosto de seu chefe.

Sean McKnight fundara a Sigma, mas fora promovido a diretor da DARPA. Assim que Seichan deu uma trombada na vida de Gray, Painter lhe telefonara em busca tanto dos conselhos quanto dos conhecimentos de seu chefe. Mas também por um motivo mais urgente.

—        Então a Guilda está de volta à nossa porta — disse Sean, passando os dedos pelos cabelos ruivos que já ficavam grisalhos. Estavam desgrenhados, e ele parecia ter sido tirado da cama. Porém, sua camisa branca estava com vincos e passada. Um paletó risca-de-giz azul-marinho estava pendurado num braço de sua cadeira. Ele estava pronto para um longo dia.

—        A Guilda pode estar além da nossa porta — respondeu Painter. — As informações secretas atuais indicam que eles já podem ter transposto a porta. — Painter bateu de leve numa pasta atrás dele. — O senhor já leu o relatório sobre a situação da operação.

A resposta foi um aceno afirmativo de cabeça.

- Sem dúvida, a Guilda sabia a respeito do abrigo secreto. Sabia que Gray es¬tava indo para lá com a agente deles que se ausentou sem licença. Nós temos um vazamento em alguma parte.

- Eu acho que temos de admitir isso.

Ele sacudiu a cabeça. Se fosse verdade, era um desastre. A Guilda já havia infiltrado a Sigma uma vez, mas Painter jurava que sua organização estava limpa agora. Depois que o último espião fora desmascarado, Painter havia reduzido a Sigma a escombros e a reconstruído inteiramente, com centenas de salvaguardas e contramedidas.

Tudo em vão.

Se ainda havia um vazamento, o próprio fundamento da Sigma poderia ser suspeito. Esse vazamento poderia significar a dissolução da organização. Já estava sendo realizada uma auditoria interna, uma análise custo-benefício da estrutura básica de comando da Sigma, sob o pretexto de unificar os serviços de coleta de informações secretas dos Estados Unidos dentro do Departamento de Segurança Interna.

Mas o pior de tudo é que havia um custo mais profundo.

As quatro pastas aguardavam sobre a escrivaninha de Painter para lembrá-lo.

Sean prosseguiu:

—        Não é apenas a nossa divisão que está infestada por uma rede de terroristas de aluguel. Dois meses atrás, o MI6 se livrou de uma célula que havia se infiltrado num projeto de operação secreta da British Aerospace nas imediações de Glasgow. Eles perderam cinco agentes durante esse expurgo. A Guilda está em toda a parte e não está em parte alguma. Aqui nos Estados Unidos, a NSA e a CIA ainda estão tentando imaginar quem é o Osama da Guilda. Não sabemos quase nada sobre o líder ou os principais membros da organização. Nem ao menos sabemos se eles se chamam Guilda. Esse nome derivou de um apelido inventado por um oficial da SAS, agora morto. No entanto, aparentemente as várias células adotaram o nome como se fosse delas, a princípio zombeteiramente, depois, talvez, de uma forma mais autêntica. Sabemos muito pouco sobre a rede.

Ele deixou a última frase suspensa.

Painter compreendeu.

—        E agora temos uma desertora.

Sean suspirou.

Há anos que vimos tentando conseguir uma base de operações na organização. Eu pensei em várias hipóteses, mas nada tão eficaz quanto ter uma agente da Guilda, um membro de sua elite, caindo do céu. Temos de protegê-la.

- E a Guilda vai tentar impedir que isso aconteça com a mesma tenacidade. Eles deixaram isso claro. A fim de eliminá-la, eles optaram por expor sua própria infiltração na Sigma. Uma escolha custosa. E, para levar isso a cabo, eles mandaram seu melhor e mais ardiloso agente. Outro membro da elite deles.

- Eu vi o vídeo do homem no abrigo secreto. Li o dossiê sobre ele — disse Sean com uma careta.

Painter também lera o dossiê. O Açougueiro de Calcutá. Sua verdadeira origem e causa eram desconhecidas. De ascendência mista, ele já se fizera passar por indiano, paquistanês, iraquiano, egípcio e líbio. Se Seichan tinha um equivalente do sexo masculino, ele era esse homem.

—        Temos uma pista — disse Painter. — Conseguimos distinguir o nome dele na transmissão do vídeo. Nasser. Mas foi o máximo que conseguimos.

Sean fez um gesto de desdém com uma das mãos.

—        Seus supostos nomes são tão numerosos quanto os assassinatos que ele tem cometido. Ele vem deixando um rastro de sangue no mundo inteiro, a maior parte concentrada no Norte da África e ao longo do Oriente Médio e do Oriente Próximo. No entanto, recentemente penetrou um pouco mais no Mediterrâneo, estrangulando um arqueólogo na Grécia e assassinando o curador de um museu na Itália.

A atenção de Painter voltou a se fixar na tela.

- Na Itália? Onde?

—        Em Veneza. Um curador foi encontrado morto com um tiro nas masmorras do Palácio dos Doges. Nasser, ou seja lá qual for o seu verdadeiro nome, foi visto rondando a praça lá fora.

Painter esfregou o queixo, com força suficiente para queimar a barba por fazer.

—        Recebi um telefonema mais cedo de monsenhor Verona, do Vaticano. Os detalhes devem estar no relatório sobre a situação da operação. Há uma boa probabilidade de que Seichan também estivesse tentando alguma ação na Itália nessa ocasião.

Os olhos de Sean estreitaram-se lentamente.

—        Interessante. É uma coincidência que requer mais investigações. Ambos os assassinos na Itália. Agora eles estão aqui. Um caçando o outro. Dois assassinos mestres, os melhores da Guilda. E, pelo menos, Nasser empurrou Seichan para os nossos braços.

Ou melhor, para os braços de Gray, acrescentou Painter em silêncio.

—        Precisamos dessa mulher sob a nossa custódia. Imediatamente. É inaceitável perder essa oportunidade.

Painter entendia a gravidade da situação, mas também conhecia Gray, como a mente dele funcionava. Se alguém tinha um nível de paranóia igual ao seu, esse alguém era Gray. A custódia poderia revelar-se um problema.

- Senhor, o comandante Pierce está em fuga. Emboscado no abrigo secreto, deve suspeitar de um vazamento, como nós. Ele vai se esconder com ela. Vai ficar na moita até sentir que é seguro dar as caras de novo.

- Não podemos ficar aguardando por muito tempo. Não com o Açougueiro de Calcutá caçando os dois agora.

- O que o senhor quer que eu faça?

- O comandante Pierce tem que ser encontrado, trazido de volta com ela. Não tenho escolha a não ser expandir a busca, entrar em contato com autoridades locais e com o FBI. Já ordenei uma busca em todos os hospitais e clínicas. Não podemos deixá-lo desaparecer.

- Senhor, eu preferia dar ao comandante Pierce um pouco de liberdade de movimento para avaliar a situação. Quanto mais os holofotes se voltarem para ele, maior a probabilidade de que eles chamem a atenção de Nasser.

- Se isso acontecer, então tentaremos prender dois agentes da Guilda.

Painter não conseguiu dissimular o choque em sua voz.

- Usando Gray como isca.

Sean o encarava do monitor. Painter percebeu a rigidez da postura dele. Voltou a notar o paletó e a camisa passados a ferro e de repente se deu conta de que não fora o primeiro naquela noite a ter a atenção de Sean.

—        Esta decisão foi tomada pela Segurança Interna e assinada pelo presidente. Não será possível revogá-la. — Sean firmou a voz. — Gray e essa agente da Guilda devem ser encontrados e trazidos para cá, ainda que seja necessário empregar a força.

Painter não encontrou palavras para argumentar. Não podia haver nenhuma. Era um novo mundo. Fez um lento aceno de cabeça. Ele cooperaria. No fundo, porém, conhecia Gray.

Em fuga, caçado por ambos os lados, o homem se revelaria formidável.

Ele sairia de circulação.

 

—        Eu vi uma Starbucks no saguão lá embaixo — murmurou Kowalski. — Talvez esteja aberta agora. Alguém quer uma xícara de café?

Vamos ficar onde estamos — disse Gray.

Kowalski sacudiu a cabeça.

- Não esquente a cabeça, garoto. Foi só uma piada.

Ignorando-o, Gray continuou a examinar o obelisco quebrado de Seichan. Eles estavam reunidos na pequena recepção de um consultório dentário. Junto a um de seus cotovelos, uma luminária de mesa iluminava o espaço exíguo, decorado no típico estilo homogêneo: revistas publicadas meses atrás, aquarelas genéricas, um fícus anêmico num vaso e uma televisão escura num suporte de parede.

Quarenta minutos atrás, o grupo havia seguido a trilha no bosque até a extremidade do Glover-Archibold Park. Ela terminava numa rua que separava o parque da Universidade Georgetown. Àquela hora, não havia carros, nenhum tráfego. Eles atravessaram a rua às pressas, moveram-se furtivamente por entre dois edifícios de pesquisa às escuras e chegaram ao Anexo Dentário da universidade. O hospital propriamente dito ficava além, fortemente iluminado. Eles não ousaram ir até lá, correr o risco de se expor tanto.

Por isso tomaram outras providências.

No outro lado da recepção do consultório dentário, Kowalski praguejou em voz baixa e cruzou os braços, obviamente entediado, mas ainda tenso. Todos eles aguardavam ordens.

—        Por que está demorando tanto? — resmungou Kowalski.

Gray ficara sabendo que o homem era ex-marinheiro da Marinha dos Estados Unuidos e que fora recrutado pela Sigma após sua participação numa operação da Sigma no Brasil, não como agente, mas por causa de sua força bruta. Ele tentara mostrar a Gray suas cicatrizes daquela missão enquanto eles esperavam, mas Gray recusara. O homem não conseguia calar a boca. Não era de admirar que tivesse sido designado para ficar de guarda. Sozinho.

Mas os comentários constantes de Kowalski não passaram despercebidos.

No outro lado da recepção, o pai de Gray estava deitado esparramado em três cadeiras, com os olhos fechados, mas não dormia. Era necessário esforço para manter aquela profunda carranca.

—        Quer dizer então que você é algum tipo de espião científico — dissera seu pai mais cedo. — Números...

Gray ainda não sabia o que seu pai quis dizer com aquilo, mas agora não era a hora de encarar o problema. Quanto mais rápido ele conseguisse cuidar de Seichan e se afastar de seus pais... tanto melhor para todos eles.

Gray continuou seu exame. Girou o obelisco, estudando cada superfície. A pedra negra era antiga, esburacada e repleta de entalhes, mas, em outros aspectos, era comum. Parecia egípcia, porém aquela não era sua especialidade. Até mesmo sua avaliação da origem pode ter sido obscurecida pelo sotaque egípcio do assassino fracassado.

Porém, uma característica do obelisco, sem dúvida, não era intrínseca à pedra.

Ele virou para baixo a parte de cima quebrada. Uma haste de prata quase da grossura de seu dedo mínimo projetava-se do fundo. Ele tocou-a, sabendo que ela era a ponta do iceberg proverbial. Alguma coisa fora oculta no coração do obelisco. Olhando com mais atenção para a parte quebrada, ele pôde discernir uma antiga rachadura cimentada na pedra, invisível de fora. Na verdade, o obelisco era formado por dois pedaços de mármore colados com habilidade, ocultando algo no interior. Como escavar as páginas de um livro para se esconder uma arma ou objetos de valor.

Ele se lembrou das palavras de Seichan.

Ele pode salvar o mundo... se já não estivermos atrasados demais.

Fosse lá o que ela queria dizer, era importante o suficiente para que tivesse vindo procurá-lo, para trair a Guilda.

Ele precisava de respostas.

O rangido da porta chamou sua atenção. A mãe de Gray entrou na recepção do consultório dentário e puxou uma máscara cirúrgica do rosto.

Gray levantou-se.

—        Ela teve uma sorte danada — disse ela. — Nós cauterizamos o sangramento e estamos fazendo a infusão de uma segunda bolsa de sangue. Mickie acha que ela vai ficar bem. Ele está terminando de fazer o curativo.

Mickie era o dr. Michael Corrin, um ex-professor-assistente de sua mãe que entrara para a faculdade de medicina, em grande parte com base na recomendação dela. A profundidade do relacionamento e da confiança deles estendia-se àquele telefonema no meio da noite para a casa dele, para um encontro secreto no consultório dentário próximo ao hospital. Uma rápida ultra-sonografia revelou a primeira boa notícia da noite. A bala não havia perfurado a cavidade abdominal de Seichan. O projétil passara apenas lateralmente ao osso pélvico.

- Quando ela poderá ir embora? — indagou Gray.

- Mickie prefere que ela passe pelo menos algumas horas aqui.

- Nós não temos tanto tempo assim.

- Eu expliquei isso a ele.

- Ela está acordada?

A resposta foi um aceno positivo de cabeça.

- Depois da primeira bolsa de sangue, ela reagiu melhor. Mickie aplicou-lhe antibióticos e analgésicos. Ela já está se sentando.

- Então é hora de darmos o fora.

Gray passou pela mãe. Ele havia observado a ultra-sonografia, mas fora expulso do recinto quando o médico começou a cuidar da ferida. Por mais que ele argumentasse, o médico não cedeu.

Gray não gostou de deixar Seichan fora do alcance de sua visão, por isso saíra com o obelisco quebrado. Seichan não iria a lugar nenhum sem ele.

Com as duas partes do obelisco na mão, ele empurrou a porta, seguido pela mãe. Foi até o primeiro consultório dentário e quase se chocou com o dr. Corrin quando este saía. O jovem médico era da mesma altura de Gray, mas tinha cabelos ruivos e era macérrimo. Uma barba bem cuidada contornava seu rosto. Exibindo uma carranca, o dr. Corrin acenou com a cabeça na direção do recinto.

—        Ela arrancou o cateter e me pediu que buscasse você. E uma lâmpada ultra-violeta. — Fez sinal com uma das mãos para os fundos do consultório dentário.

Meu irmão usa uma para avaliar a polimerização de resinas compostas. Logo estarei de volta.

Com o caminho livre, Gray entrou no consultório.

Com as costas voltadas para ele, Seichan estava sentada numa cadeira de dentista, nua da cintura para cima, lutando para vestir uma camiseta Redskins emprestada. Uma atadura estéril estava caída aos seus pés. Mesmo com as costas nuas voltadas para ele, Gray percebeu o extremo esforço físico. Ela teve de segurar no braço da cadeira.

A mãe dele deu um passo para o lado para não se chocar com Gray.

—        Deixe-me ajudá-la. Você não deveria fazer isso sozinha. Seichan resistiu.

—        Eu vou conseguir — disse ela, erguendo um dos braços para repelir qualquer ajuda, porém se retraiu com um arquejo.

—        Basta, minha jovem.

A mãe de Gray foi até o lado dela e ajudou-a a puxar a camiseta sobre os seios nus e o diafragma enfaixado. Ao se virar, Seichan deparou com Gray de pé ali. O rosto dela se anuviou, desconcertado. Mas Gray suspeitou de que o embaraço dela não era por quase ter sido flagrada nua, e sim por demonstrar fraqueza.

Ela levantou-se devagar, com o rosto resistindo à dor. Apoiando o traseiro na cadeira reclinada, tornou a abotoar as calças, ainda apertadas nos quadris.

—        Eu preciso falar com o seu filho — disse ela à mãe de Gray, com a voz rouca, dispensando-a.

A mãe de Gray olhou de relance para ele, que lhe acenou com a cabeça.

—        Vou ver como seu pai está — disse a mãe com frieza, e saiu.

No fim do corredor, o som abafado de uma televisão começou. Parecia que Kowalski havia encontrado o controle remoto.

Sozinhos agora, Gray e Seichan olharam fixamente um para o outro. Nenhum deles falou, ambos levando um instante para avaliar o outro.

O dr. Corrin foi até a porta com uma luminária portátil.

—        Isto é tudo o que temos.

—        Isso basta — disse Seichan, tentando erguer uma das mãos para pedi-la, mas seu braço tremeu.

Gray pegou a luminária, segurando as partes do obelisco numa das mãos.

- Vamos precisar de um minuto.

- Claro.

O dr. Corrin foi atrás da mãe de Gray, percebendo a tensão no recinto.

Os olhos de Seichan não desgrudavam do rosto de Gray.

—        Comandante Pierce, sinto muito por ter colocado a sua família em perigo. Eu subestimei Nasser. — Ela tocou com cautela o ferimento enfaixado. Sua voz ficou ácida. — Não cometerei esse erro de novo. Pensei que o tivesse perdido na Europa.

—        Mas não o perdeu — retrucou Gray bruscamente.

Os olhos dela se estreitaram.

—        Eu não o perdi porque o comando da Sigma está envolvido. A Guilda usou os próprios recursos de vocês para me rastrear e me expor. A culpa não é só minha.

Gray não tinha nenhum argumento contra essa afirmação.

Ela tocou a testa como se houvesse esquecido alguma coisa, mas Gray suspeitou de que ela o estivesse enrolando, ponderando o que dizer e o que omitir.

- Você deve ter mil perguntas — murmurou ela.

- Apenas uma: que diabo está acontecendo?

A sobrancelha esquerda dela ergueu-se. Um gesto estranhamente familiar, uma lembrança do passado comum de ambos.

—        Para responder à sua pergunta, temos de começar por aí. — Ela acenou com a cabeça na direção do obelisco. — Se você o colocar em cima da mesa de instrumentos...

Precisando de respostas, Gray obedeceu, equilibrando o pedaço quebrado sobre a base.

—        A luminária... — disse ela.

Um momento depois, com as lâmpadas do teto apagadas, Gray curvou-se e examinou as seqüências de símbolos iluminados que brilhavam sobre a pedra negra, ao longo das quatro superfícies.

Ele não reconheceu a escrita nem como hieróglifos nem como runas que já tivesse visto alguma vez. Olhou para ela. As escleras dos olhos de Seichan brilhavam no reflexo ultravioleta.

—        O que você está vendo é uma escrita angélica — disse ela. — A linguagem dos arcanjos.

Gray franziu a testa em descrença.

- Eu sei que parece insano — afirmou ela. — A origem da escrita remonta tanto ao cristianismo primitivo quanto ao misticismo hebraico antigo. Se quiser saber mais...

- Pule essa parte. Prefiro descobrir o que você quis dizer quando falou que o obelisco poderia salvar o mundo.

Ela recostou-se, desviando o olhar, e em seguida seus olhos voltaram-se rapidamente na direção dele.

- Gray, eu preciso da sua ajuda. Eu tenho de detê-los, mas não posso fazer isso sozinha.

- Fazer o que sozinha?

—        Lutar contra a Guilda, contra o que eles estão tentando... Mais uma vez ela revelou aquele lampejo de medo.

Gray franziu o cenho. Quando se encontrou com Seichan pela primeira vez, ela tentava explodir antraz a ser usado como arma química sobre o Forte Detrick. Levando em consideração essa insensibilidade, o que a assustaria agora?

—        Eu o ajudei no passado — disse ela, tentando o trunfo da culpa.

- Para derrotar um inimigo mútuo — contrapôs ele. — E salvar sua própria pele.

- E isso é tudo o que estou procurando aqui novamente: cooperação para derrotar um inimigo mútuo. E não é só a minha vida que está em risco desta vez. Centenas de milhões de pessoas estão ameaçadas. E o perigo já começou: as sementes estão plantadas.

Ela acenou com a cabeça na direção da escrita resplandecente do obelisco.

- Tudo o que pode deter a Guilda está encerrado neste enigma. Se conseguíssemos decifrá-lo primeiro, haveria alguma esperança. Mas eu fui até onde pude ir sozinha. Preciso de outros olhos, de alguém com mais conhecimentos.

- E você espera que nós dois consigamos solucionar uma coisa que está frustrando a Guilda com os seus vastos recursos. Se puséssemos a Sigma a par da situação...

- Você estaria dando a vitória de bandeja à Guilda. Tem um espião na Sigma. O que quer que a Sigma fique sabendo, a Guilda também saberá.

Ela tinha razão. Era preocupante, para dizer o mínimo.

- Então você sugere que lutemos sozinhos. Só nós dois.

- E mais alguém... se ele cooperar.

- Quem?

- Quando se trata de lidar com anjos e arqueologia, existe apenas outra pessoa que eu respeito.

Gray soube imediatamente a quem ela estava se referindo.

—        Vigor.

Ela fez um aceno afirmativo de cabeça.

- Deixei um cartão de visita para monsenhor Verona, um mistério para ele começar a solucionar sozinho. Se você cooperar, nós seguiremos em frente. — Ela tocou o obelisco, balançando a metade quebrada. — Até o próximo passo no caminho dos anjos.

- E onde é isso?

Seichan voltou a sacudir a cabeça. Decerto ela não facilitaria as coisas.

—        Eu lhe direi quando estivermos longe. De qualquer modo, temos de nos mover. Quanto mais tempo ficarmos num lugar, maior o risco de nos expormos.

Ela estendeu a mão para o obelisco.

Gray a rechaçou. Ele agarrou a parte maior do obelisco quebrado e ergueu-a acima da cabeça. Já estava farto.

—        Destrua-o se quiser — advertiu Seichan. — Mesmo assim eu não lhe direi mais nada. Pelo menos até que estejamos longe e em segurança, e você concorde em ajudar.

Gray a ignorou.

- Suponho que você já tenha feito cópias desta escrita, provavelmente até fotos.

- Várias, na verdade — disse ela.

- Ótimo.

Ele baixou o braço e despedaçou o obelisco contra o assoalho. Ele se fragmentou em vários pedaços, que se espalharam pelo linóleo. Seichan soltou um pequeno grito de surpresa, dando a entender que não tinha nenhuma pista do que estava oculto no interior do obelisco.

—        O que... o que você fez?

Gray abaixou-se e separou os fragmentos a fim de recuperar a haste de prata dos resíduos. Ficou novamente de pé, e entre os dedos segurava o que estava oculto dentro da pedra. Por um momento, ficou atordoado e em silêncio.

Ele ergueu o grande crucifixo de prata.

Os olhos de Seichan arregalaram-se ao reconhecer o objeto. Ela chegou mais perto, alheia a qualquer dor.

- Não pode ser. Você o encontrou.

- Encontrei o quê?

- A cruz de frei Agreer. — Sua voz baixou, ao mesmo tempo irritada e mortificada. — E ela estava comigo o tempo todo.

- Quem é frei Agreer?

—        Frei Antonio Agreer. O confessor de Marco Polo.

Marco Polo?

Cansado de enigmas e de informações incompletas, Gray falou num tom áspero.

—        Seichan, que diabo está acontecendo?

Ela acenou para uma cadeira lateral, sobre a qual sua jaqueta de couro rasgada fora jogada.

—        Temos que sair daqui.

Ele recusou-se a se mexer, bloqueando a passagem quando ela se encaminhou para a cadeira.

Ela baixou o queixo, e seus olhos endureceram.

—        Gray, mude sua maldita opinião. Eu não tenho tempo — disse ela, tentando passar por ele.

Ele segurou-lhe o braço.

—        E o que pode me impedir de entregar você à Sigma?

Ela girou, libertando-se. Todo o sangue recém-transfundido estava agora no rosto dela, lívido e furioso.

—        O fato de você ter juízo, Gray! Se a Guilda me pegar, eu estou morta. Se o seu governo me capturar, serei trancafiada para sempre num lugar distante, sem a menor condição de impedir o que está prestes a acontecer. Foi por isso que vim procurá-lo. Mas tudo bem. Vou tornar o acordo mais atraente, fazer um negócio com você. O que você acha? Me ajude, convença Vigor do mesmo, e depois eu lhe darei o nome do espião na Sigma. Se salvar vidas não é bom o bastante... os lobos já estão à porta da Sigma. Você talvez não saiba disso, mas as autoridades estão procurando castrar todos vocês, colocar todos vocês para pastar, e, agora que outro espião — um segundo espião — está escondido no meio de vocês, eles os queimarão completamente e jogarão sal na terra. Será o fim da Sigma. Para sempre.

Gray percebeu que estava hesitando. Ele de fato ouvira tais boatos, gerados pela auditoria interna feita pela NSA e pela DARPA. Mas também se lembrou de uma Seichan diferente, curvada sobre ele, com a arma em seu rosto. Ela tentara matá-lo quando se encontraram pela primeira vez. Até que ponto poderia confiar nela?

Antes que o impasse fosse resolvido, ouviu-se um grito vindo da recepção.

—        Comandante Pierce! Venha ver isto!

Gray praguejou entre os dentes ao ouvir o grito do homem. O que Kowalski não entendia sobre secreto?

Gray olhou nos olhos de Seichan. Ela ainda ardia de pura raiva, mas essa raiva não conseguiu destruir o que ele havia percebido na voz dela enquanto ela sangrava na entrada de veículos da casa dos pais dele. Terror.

Ele foi até a cadeira lateral, pegou a jaqueta e entregou-a a ela.

—        Nós faremos as coisas do seu jeito por enquanto. Mas isso é tudo o que eu prometo.

Ela concordou com um aceno de cabeça.

—        Comandante!

Com um aceno de cabeça, Gray saiu do gabinete. Ele ouviu o volume da televisão aumentar e avançou às pressas. Ainda segurando o crucifixo em sua palma, guardou-o no bolso antes de entrar na recepção.

Ele encontrou todos com os olhos fixos na tevê e notou o logotipo familiar da CNN Headline News. Na tela, três casas ardiam à beira de um incêndio na floresta.

—        ...possivelmente incêndio criminoso — continuou a reportagem. — Repetindo: a polícia está à procura deste homem: Grayson Pierce, aqui de Washington.

Uma foto de Gray uniformizado era exibida no canto da tela, com os cabelos pretos completamente raspados, os olhos zangados, a boca rígida. Era sua fotografia de identificação da época em que ele fora encarcerado em Leavenworth. Não era uma foto lisonjeira: ele parecia um criminoso feroz.

Seu pai murmurou ao lado dele.

—        Parece que o seu passado acabou de meter você numa encrenca e tanto.

Gray concentrou-se na reportagem.

—        No momento, a polícia está chamando esse ex-ranger do Exército de uma pessoa de interesse. Isso é tudo. Ele é procurado apenas para interrogatório. A polícia solicita a qualquer pessoa que saiba do seu paradeiro que entre em contato com as autoridades imediatamente.

Kowalski ergueu o controle remoto e desligou o som.

O dr. Corrin afastou-se de todos eles.

—        Tendo em vista tudo isso, eu não posso mais ficar calado... Kowalski apontou o controle remoto na direção do médico.

—        Quem começa tem que ir até o fim, doutor. Quem ajuda vira cúmplice. Cale o bico, ou o senhor poderá dar um beijo de despedida no seu diploma de medicina.

O dr. Corrin empalideceu, e recuou mais um passo.

A mãe de Gray estendeu uma das mãos e tocou o braço do médico de uma forma tranquilizadora.

- Isso é um absurdo. — Ela fechou a cara para Kowalski. — Pare de assustá-lo.

Kowalski deu de ombros.

- Alguém está tentando nos tirar da toca — disse Gray.

—        Mas isso não faz sentido — argumentou sua mãe. — Eu falei com o diretor Crowe ao telefone no abrigo secreto. Ele sabe que caímos numa emboscada. Por que ele está deixando essas mentiras se espalharem?

A resposta veio de trás deles.

—        Porque na verdade é a mim que eles procuram. — Seichan entrou na recepção usando sua jaqueta. — Eles não querem correr o risco de me deixar escapar por entre os dedos.

Gray fitou os outros.

—        Ela tem razão. Eles estão fechando o cerco. Temos que partir agora.

Kowalski confirmou essa asserção. Depois de ter sido repreendido pela mãe de Gray, ele havia ido até a única janela e perscrutado através das persianas.

—        Pessoal, temos companhia.

Gray juntou-se a ele. A janela dava para o hospital principal. A curva do estacionamento das ambulâncias era visível. Quatro viaturas da polícia surgiram à vista, silenciosas, com as luzes girando. As autoridades locais haviam começado a vasculhar os hospitais.

Virando-se, ele fitou o ex-professor-assistente de sua mãe.

—        Dr. Corrin, nós exigimos muito do senhor, mas acho que vou exigir mais. O senhor pode levar meus pais para algum lugar seguro?

—        Gray — disse sua mãe.

—        Mamãe, não vamos discutir — disse ele, sem tirar os olhos do médico.

Corrin fez lentamente um aceno afirmativo de cabeça.

—        Eu possuo alguns apartamentos de aluguel. Um perto do Dupont Circle está mobiliado, mas desocupado atualmente. Ninguém pensaria em procurar seus pais lá.

Era uma boa opção.

—        Pai, mãe... não se comuniquem com o mundo exterior nem usem cartões de crédito. — Ele virou-se para Kowalski. — Você pode tomar conta deles?

Kowalski fraquejou, claramente desapontado.

—        Não, sem essa de me colocar de guarda de novo.

Gray começou a dar ordens, mas sua mãe o interrompeu.

- Podemos tomar conta de nós mesmos, Gray. Seichan ainda está em más condições de saúde. Você talvez precise de duas mãos extras mais do que nós precisaremos.

- E o prédio tem segurança 24 horas por dia — acrescentou o dr. Corrin, um pouco rápido demais. — Vigias, câmeras, alarmes de emergência.

Gray suspeitou de que o apoio do médico visasse menos à segurança de seus p.iis do que manter Kowalski longe de sua propriedade. Mesmo agora, o dr. Corrin tomava o cuidado de permanecer alguns passos longe do homem.

E sua mãe tinha razão. Com Seichan ferida, eles poderiam precisar da força do homenzarrão. Ele era o homem-músculos da Sigma, afinal de contas. Ele poderia muito bem pô-los em ação.

Kowalski deve ter notado alguma coisa na expressão de Gray.

- Está na hora. — Ele esfregou as mãos. — Então vamos começar esta festa. Primeiro, precisaremos de armas.

- Não, primeiro precisamos de um carro — disse Gray, e tornou a virar-se para o dr. Corrin.

O médico não hesitou: entregou-lhe as chaves do carro.

—        Estacionamento dos médicos. Vaga 104. Um Porsche Cayenne branco.

Ele estava mais do que contente por separar-se deles.

Mas outra pessoa não.

Sua mãe deu-lhe um forte abraço e sussurrou em seu ouvido:

—        Tenha cuidado, Gray. — A voz dela reduziu-se a um sopro. — E não confie nela... não plenamente.

- Não se preocupe... — disse ele, concordando com o apelo e a advertência.

- Uma mãe sempre se preocupa.

Ainda nos braços dela, ele sussurrou uma última instrução, destinada apenas aos ouvidos de sua mãe. Ela aquiesceu com um aceno de cabeça e, com um aperto final, soltou-o.

Ao se virar, Gray deparou com a mão do pai estendida e apertou-a. Era o jeito deles. Nada de abraços. Ele era do Texas. Seu pai virou-se para Kowalski e disse:

—        Não o deixe fazer nenhuma estupidez.

—        Farei o possível. — Kowalski acenou com a cabeça na direção da porta. — Estamos prontos?

Quando Gray começou a se afastar, seu pai pôs uma das mãos em seu ombro, apertou-o com força e em seguida deu-lhe um tapinha de despedida. Era a forma de expressão mais próxima de "Eu te amo" que ele poderia receber do homem. E isso alegrou Gray mais do que ele queria admitir.

Sem mais palavras, conduziu os outros para fora.

 

—        Ainda não recebemos nenhuma notícia do paradeiro do comandante Pierce — informou Brant pelo seu interfone.

Painter estava sentado à sua escrivaninha. A falta de notícias o desalentava e aliviava ao mesmo tempo. Antes que ele pudesse analisar sua própria reação interna, Brant prosseguiu.

- E o dr. Jennings acabou de chegar.

- Mande-o entrar.

O dr. Malcom Jennings, chefe do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento, telefonara meia hora atrás, ansioso por uma reunião, mas Painter teve de fazê-lo esperar por causa da crise no abrigo secreto. Mesmo agora, Painter só poderia conceder-lhe cinco minutos.

A porta se abriu e Jennings entrou a passos largos no gabinete, com uma das mãos já erguida.

—        Eu sei... eu sei que você está ocupado... mas isto não podia esperar.

Painter indicou com um gesto a cadeira em frente à sua escrivaninha.

O ex-patologista forense, um homem magricela, sentou-se na cadeira, porém permaneceu equilibrado na beira do assento, claramente ansioso, segurando um fichário numa das mãos. Jennings, de quase 60 anos, estava na Sigma desde antes de Painter assumir o cargo de diretor. Ele ajustou os óculos, cujas lentes em meia-lua possuíam uma ligeira tonalidade azul, para melhor prevenir o cansaço visual durante o uso do computador. Eles também complementavam sua pele cor de azeitona escura e seus cabelos, que iam ficando grisalhos, o que lhe conferia um ar professoral moderno. Mas, naquele momento, o patologista simplesmente parecia exausto por causa da longa noite, embora em seus olhos permanecesse um resquício de excitação maníaca.

—        Presumo que esta reunião seja sobre os arquivos que Lisa transmitiu da ilha Christmas — começou Painter.

Jennings confirmou com um aceno de cabeça e abriu o fichário. Deslizou na direção de Painter duas fotografias horríveis das pernas de um homem, cobertas com o que parecia ser gangrena.

—        Examinei meticulosamente as anotações do toxicologista e do bacteriologista. Eis aqui um paciente cujas bactérias da pele subitamente se tornaram virulentas, consumindo-lhe os tecidos moles das próprias pernas. Nunca vi uma coisa dessas.

Painter examinou as fotos, mas, antes que pudesse fazer ao menos uma pergunta, o médico estava outra vez em pé, andando de um lado para outro.

—        Eu sei que inicialmente nós classificamos o desastre indonésio como prioridade de baixo nível, apenas como uma operação para reunir fatos. Mas, depois desses achados, precisamos elevar o nível imediatamente. Vim aqui pessoalmente para pedir que a situação passe a ser classificada como Estado Crítico Nível Dois.

Painter sentou-se mais empertigado. Aquela classificação significaria o desvio de recursos maciços.

—        Precisamos de mais de duas pessoas investigando lá — prosseguiu Jennings. Quero uma equipe forense completa no local o mais rápido possível, mesmo que tenhamos de subcontratar os serviços de pessoal militar em geral.

—        E você não acha que isso é agir prematuramente? Monk e Lisa devem entrar em contato com a base em — Painter consultou o relógio —, em pouco mais de três horas. Então poderemos elaborar estratégias, quando tivermos mais dados.

Jennings tirou os óculos e esfregou um dos olhos com o nó de um dedo.

- Acho que você não está entendendo. Se as hipóteses preliminares do toxicologista se revelarem verdadeiras, podemos estar diante de um desastre ecológico com potencial de alterar toda a biosfera da Terra.

- Malcolm, você não acha que está exagerando os seus argumentos? Esses resultados são preliminares. A maioria não passa de conjecturas. — Painter acenou para as fotografias. — Tudo isto poderia ser apenas um evento tóxico passageiro.

- Mesmo que fosse esse o caso, eu recomendaria lançar bombas incendiárias naquela ilha e isolar os mares ao redor por vários anos. — Ele encarou Painter. - E, se de alguma forma essa ameaça se revelar transmissível, estamos falando sobre o potencial de uma catástrofe ambiental global.

Painter ficou boquiaberto com as declarações do patologista. Jennings não era homem de dar alarme falso.

O médico continuou.

—        Eu compilei todos os dados necessários e redigi um resumo. Leia-o e me devolva. Quanto antes, melhor.

Jennings deixou seu fichário sobre a mesa de trabalho de Painter.

Painter pôs uma das mãos sobre a pasta e puxou-a na sua direção.

—        Vou fazer isso agora e devolvê-lo na próxima meia hora.

Jennings fez um aceno de cabeça, agradecido e aliviado. Virou-se para sair, mas não antes de acrescentar uma última advertência.

—        Lembre-se... ainda não temos certeza do que matou os dinossauros.

Com aquele pensamento preocupante, o patologista saiu do gabinete. Painter fixou os olhos nas horríveis fotografias ainda sobre a escrivaninha. Ele rezou para que Jennings estivesse errado. Em virtude de toda a agitação das últimas horas, quase se esquecera da situação nas ilhas indonésias.

Quase.

A noite inteira, Lisa jamais estivera longe de seus pensamentos.

Mas agora surgiam novas preocupações, despertadas pela insistência do patologista. Ele tentou não as deixar dominá-lo. Durante a manhã, Lisa não voltara a dar notícias. Aparentemente, nada se agravara por lá o bastante para justificar outro telefonema de emergência.

No entanto...

Painter apertou o botão do interfone.

Brant, você pode ligar para o telefone via satélite de Lisa?

- Imediatamente.

Painter abriu o fichário. Quando começou a ler o relatório, sentiu um arrepio de medo subir pela sua coluna.

Brant voltou a falar pelo interfone.

—        Diretor, só entra a gravação do correio de voz. O senhor quer que eu deixe uma mensagem?

Painter virou o pulso e checou o relógio. Ele estava ligando horas antes do combinado. Lisa poderia estar às voltas com um sem-número de tarefas. No entanto, teve de reprimir um pânico crescente.

- Simplesmente peça à dra. Cummings que telefone o mais rápido possível.

- Sim, senhor.

- Brant, entre em contato com a mesa telefônica do navio de cruzeiro.

Ele sabia que estava sendo paranóico. Tentou voltar a ler o relatório, mas achou difícil se concentrar.

—        Senhor... — A voz de Brant voltou a soar um instante depois. — Consegui entrar em contato com o operador do sistema de radionavegação marítima. Eles estão relatando problemas de comunicação em todo o navio, quedas na alimentação do satélite. Eles ainda estão resolvendo algumas das falhas de programação do novo navio.

Painter fez um aceno de cabeça. O Mistress of the Seas estava em sua viagem inaugural, também conhecida como cruzeiro-teste, quando foi requisitado para aquela emergência médica.

—        Eles não relatam nenhum outro problema significativo — concluiu Brant.

Painter suspirou. Então ele estava mesmo sendo paranóico demais. Estava deixando seus sentimentos por Lisa embotarem seu discernimento. Se fosse qualquer outro agente, será que ele teria ao menos telefonado?

Retomou a leitura.

Lisa estava bem.

Além disso, Monk estava com ela. Ele a manteria sã e salva.

 

Que diabo estava acontecendo?

Lisa estava em pé com os outros três cientistas. Todos estavam reunidos na suíte presidencial do navio. Um mordomo uniformizado despejou uísque puro malte numa fileira de copos em forma de tulipa, alinhados sobre uma bandeja de prata. Por causa do gosto de Painter por uísque puro malte, Lisa reconheceu o rótulo da garrafa: um raro Macallan sessenta anos. As mãos do mordomo tremiam, errando o alvo, derramando o uísque caro.

A culpa pelo mau desempenho do mordomo podia ser atribuída aos dois pistoleiros mascarados, armados com rifles de assalto. Eles montavam guarda junto às portas duplas que conduziam ao interior da suíte. No outro lado do aposento, portas duplas envidraçadas até o chão se abriam para uma sacada grande o suficiente para se estacionar um ônibus municipal, vigiada por outro pistoleiro.

Dentro, armários e estantes de teca e móveis de couro equipavam a magnífica suíte. Vasos de rosas em miniatura nativas da ilha decoravam o aposento, enquanto alto-falantes ocultos sussurravam suavemente uma sonata de Mozart. Os cientistas estavam reunidos no centro da suíte. Poderia ter sido o começo de um coquetel universitário.

A não ser pelo medo bruto estampado no rosto de todos.

Mais cedo, Lisa e Henri Barnhardt haviam obedecido à ordem para subir até a ponte de comando do navio. O que mais poderiam fazer? Ao chegar lá, encontraram o chefe da equipe da OMS, o dr. Lindholm, limpando o sangue do nariz, depois de ter sido claramente espancado no rosto. Benjamin Miller, o especialista em doenças infectocontagiosas, chegou pouco depois.

Haviam sido recebidos por um sujeito alto, o líder dos piratas. Ele tinha o tamanho de um jogador da defesa de futebol americano, músculos fortes e mãos grossas e cruéis. Usava um uniforme caqui, com calças camufladas enfiadas nas botas pretas. Não se preocupara em cobrir o rosto com uma máscara. Seus cabelos eram da cor de barro úmido, cortados curtos, e sua pele era como bronze polido, exceto por uma tatuagem verde e preta no lado esquerdo do rosto. O desenho da tatuagem tinha um padrão maori conhecido como moko, composto de espirais e linhas confusas.

Ordenara que eles fossem conduzidos àquela suíte, a fim de esperar num local isolado.

Lisa ficara contente em sair da ponte de comando. Uma intensa batalha devia ter sido travada no topo do navio, evidenciada por janelas e equipamentos furados à bala. Ela também notara a ampla mancha de sangue no assoalho da ponte de comando, onde um corpo havia sido arrastado.

Ao ser conduzida com os outros para a suíte presidencial, Lisa ficou surpresa em descobrir um último prisioneiro pego na rede.

O dono da linha de cruzeiros, Ryder Blunt, estava em pé ao lado de seu mordomo e reunia um punhado de copos de cristal. Usando jeans e uma camisa de rugby, ele parecia um jovem Sean Connery dourado pelo sol.

Ele se aproximou e distribuiu os copos de uísque.

— Acho que todos nós podemos usar um pouco do calor deste Macallan — disse, soprando a fumaça espessa da ponta de um charuto. — Mesmo que seja apenas para acalmar nossos nervos. E, se não conseguirmos acalmá-los, pelo menos beberemos todo o meu melhor estoque antes que os filhos-da-puta sanguinários o descubram.

Como a maioria das pessoas, Lisa conhecia a história de Ryder. O australiano tinha apenas 48 anos e fizera fortuna durante o boom do silício, desenvolvendo software de criptografia para o download de material protegido por direitos autorais. Depois investira seus lucros numa série de empreendimentos imobiliários e comerciais extremamente bem-sucedidos, incluindo a linha de cruzeiros. Solteirão a vida inteira, ele também era conhecido por seus hábitos pouco ortodoxos: nadar com grandes tubarões-brancos, praticar esqui de helicóptero em lugares remotes do mundo, saltar de pára-quedas de edifícios em Kuala Lumpur e Hong Kong. No entanto, também era conhecido pela generosidade e participava de uma grande quantidade de atividades filantrópicas.

Por isso não era de admirar que houvesse emprestado seu navio para ajudar durante aquela crise médica. Agora, talvez lamentasse essa sua generosidade.

Ryder ofereceu um copo de uísque a Lisa, que sacudiu a cabeça.

—        Minha jovem, não se ofenda — ele murmurou para ela, ainda estendendo o copo de cristal. — Quem sabe quando teremos outra oportunidade?

Ela aceitou o copo, mais com a intenção de que ele se afastasse. A fumaça do charuto dele ardeu em seus olhos. Lisa bebericou o líquido âmbar. Uma suavidade quente desceu até seu estômago, aquecendo-a. Ela exalou um pouco do calor, o que ajudou a acalmá-la.

Assim que os copos foram distribuídos, o bilionário afundou numa poltrona próxima. Ele apoiou os cotovelos nos joelhos, olhando na direção dos guardas armados, soltando baforadas de seu charuto.

Ao lado dela, Henri finalmente fez a pergunta que atormentava a todos.

—        O que esses piratas querem de nós?

Lindholm fungou, com os olhos vermelhos, já ficando roxos por causa do golpe no rosto.

- Reféns — disse ele, olhando de esguelha para o bilionário sentado.

- Talvez no caso de sir Ryder — concordou Henri, baixando a voz, usando o título de cavaleiro do homem. — Mas, nesse caso, por que se preocuparem conosco? Nossas economias juntas nem sequer chegariam ao dinheiro que o homem tem no bolso.

Lisa soprou de seu rosto a fumaça do charuto.

- Eles claramente queriam todos os principais cientistas aqui. Mas como sabiam quem deveriam convocar?

- Podem ter obtido da tripulação do navio uma lista de passageiros — disse Lindholm de mau humor, e voltou a olhar de esguelha na direção de Ryder. — Não resta dúvida de que alguns tripulantes estavam mancomunados com os agressores.

Ryder ouviu e murmurou para si mesmo:

- E se algum dia eu descobrir quem são eles, mandarei enforcá-los nos lais das vergas.

- Mas, esperem... se eles queriam todos os principais cientistas aqui, por que o dr. Graff não foi convocado conosco? — perguntou Benjamin Miller, citando o pesquisador marinho que saíra para coletar amostras com Monk. Ele virou-se para Lisa. — Ou seu colega, o dr. Kokkalis? Por que nos convocaram, mas não aos outros?

Miller bebericou de seu copo, franzindo o nariz à força do puro malte. Com uma vasta cabeleira castanha e olhos verdes, o bacteriologista formado em Oxford não era um homem feio. Tinha pouco mais de 1,50 metro de altura, porém parecia menor, em razão dos ombros baixos e da postura encurvada, possivelmente adquirida durante décadas debruçado sobre um microscópio.

- O dr. Miller tem razão — disse Henri. — Por que eles não foram convocados?

- Talvez os filhos-da-puta soubessem que eles não estavam a bordo — respondeu Lindholm.

- Ou talvez eles já tivessem sido capturados. — Miller olhou de forma apologética na direção de Lisa. — Ou foram mortos.

O peito de Lisa ficou oco de preocupação. Ela esperava que Monk houvesse escapado à armadilha, que agora estivesse pedindo ajuda, mas confiava pouco nesse sonho. Antes do ataque, Monk já estava atrasado para o regresso ao navio.

Henri sacudiu a cabeça, tomou seu drinque num só gole e baixou o copo.

—        Não adianta especularmos sobre o destino deles. Mas, se nossos captores sabiam que nossos colegas estavam lá fora no campo, isso indica que, seja lá o que estiver acontecendo aqui, é mais do que uma situação com reféns.

—        Mas o que mais eles poderiam querer? — perguntou Miller.

O ruído de um helicóptero se aproximando atraiu os olhares de todos eles para as portas abertas da sacada. Ele era gutural demais para ser o do Eurocopter, de menor tamanho, que dera apoio aéreo à batalha marítima. Eles se dirigiram em grupo à porta. Ryder levantou-se soltando uma forte baforada de fumaça e juntou-se a eles.

Uma brisa fresca soprava do mar, cheirando a sal e a um leve resíduo de substância química acre, conseqüência da emanação tóxica, ou talvez fosse apenas o cheiro do óleo queimando na água. Ali próximo, o pequeno navio da Guarda Costeira australiana, destruído pela explosão de um foguete, ainda fumegava e ia a pique de lado, já meio submerso.

Acima do topo do navio, um helicóptero cinza com dois rotores, um na frente e o outro atrás, com design militar, surgiu à vista. Sobrevoou a água e mudou de direção, agitando a fumaça. Passou pelo povoado à beira-mar, em chamas em vários pontos agora, e então deu a volta, satisfeito com o que quer que houvesse inspecionado. Seguiu a toda a velocidade na direção do navio e sumiu de vista. Pelo ritmo de seu rugido, pousou no heliporto no topo do navio.

O ruído das hélices diminuiu e parou.

Na ausência dele, Lisa reconheceu um novo barulho. Uma ligeira vibração fez as solas de seus pés comicharem.

—        Estamos em movimento — disse Henri.

Ryder praguejou em torno do charuto apertado na boca. Lisa viu que era verdade. Muito lentamente, como os ponteiros de um relógio, a vista do povoado em chamas estava se mexendo.

—        Eles estão saindo com o navio — disse Miller. Lindholm fechou um dos punhos de encontro ao tórax.

Lisa sentiu um medo parecido. O fato de saber que a terra estava tão próxima dava certo nível de segurança. Mas mesmo isso lhes estava sendo tirado. Sua respiração ficou mais pesada, e, no entanto, ela inspirava menos ar. Decerto alguém logo perceberia o que havia acontecido e viria investigar. Na verdade, ela deveria telefonar para Painter em apenas três horas. Se ela não telefonasse...

O ritmo do movimento acelerou-se quando o navio de cruzeiro gigante lutou contra sua própria inércia e começou a se afastar da ilha.

Ela consultou o relógio e em seguida virou-se para Ryder.

—        Senhor Blunt, a que velocidade o seu navio pode viajar?

Ele apagou o charuto num cinzeiro.

—        O padrão do Troféu Hales para a velocidade da travessia transatlântica de um navio de cruzeiro é de quarenta nós. Rápido pra burro.

—        E o Mistress? — perguntou ela.

Ryder bateu de leve numa das anteparas.

—        É o orgulho da frota, com motores de design alemão e construção de um único casco. Ele é capaz de atingir 47 nós.

Lisa calculou mentalmente. Se não telefonasse em três horas, quando Painter começaria a se preocupar? Em quatro ou cinco horas? Ela sacudiu a cabeça. Painter não esperaria um minuto sequer além do combinado.

- Três horas — ela murmurou para si mesma.

Seria, porém, tarde demais? Ela virou-se para Ryder.

- Tem um mapa aqui?

Ryder apontou e seguiu na frente.

—        Tem um globo no nicho que abriga a biblioteca.

Ele a levou até um nicho revestido com estantes de teca, afastado do aposento principal. No centro, havia um globo de madeira fixo. Lisa inclinou-se sobre ele e o girou a fim de exibir as ilhas indonésias. Calculou mentalmente e mediu com os dedos.

—        Em três horas, estaremos perdidos no meio da cadeia de ilhas indonésias.

A região, dominada pelas ilhas maiores de Java e Sumatra, era literalmente um labirinto de atóis menores e ilhotas. Mais de 18 mil deles, espalhados por uma área equivalente ao território continental dos Estados Unidos. Longe das principais cidades de Jacarta e Cingapura, a região continuava num nível de tecnologia da Idade da Pedra. Se alguém quisesse esconder um navio de cruzeiro, aquele seria um bom lugar para fazê-lo.

- Eles não podem esperar roubar um navio inteiro — exclamou Lindholm, atraído para a biblioteca atrás dos outros. — E os satélites de vigilância? Não se pode esconder uma coisa tão grande quanto um navio de cruzeiro.

- Não subestime nossos captores — disse Henri. — Primeiro alguém precisa saber para nos procurar.

Lisa sabia que ele tinha razão. Dada a rapidez do ataque, junto com a conivência de membros-chave da tripulação do navio, eles deviam ter levado semanas a planejar o seqüestro. Alguém sabia o que estava acontecendo na ilha Christmas muito antes do restante do mundo. Lisa lembrou-se do paciente na ala de isolamento, o John Doe com as bactérias devoradoras de carne. Ele fora encontrado vagando pela ilha cinco semanas atrás.

Será que os seus captores sabiam disso?

Uma agitação na porta dupla da suíte os fez virar-se. Dois homens entraram. À frente, Lisa reconheceu o líder dos piratas, o homem com o rosto tatuado.

Passando pelo guerreiro maori, um estranho alto avançou. Tirou um chapéu panamá de abas largas e passou-o para uma mulher que surgiu de trás do ombro do homem tatuado. Avançando a passos largos, o recém-chegado aparentemente estava vestido para uma festa ao ar livre: trajava um elegante terno folgado de linho branco, completado por uma bengala combinando e pelos cabelos grisalhos cortados jovialmente até a altura dos ombros. Suas feições lustrosas e seus olhos muito próximos davam a impressão de que ele era indiano ou talvez paquistanês.

Ele se dirigiu até o grupo, batendo a bengala no chão, porém era óbvio que não precisava do apoio, que servia apenas para ele se exibir. Seus olhos brilhavam com um júbilo inapropriado.

—        Namaste. — Ele os cumprimentou em hindi com uma ligeira inclinação da cabeça. — Obrigado a todos vocês por se juntarem a mim aqui.

Quando parou, o estranho fez um aceno de cabeça para o dono do Mistress of the Seas.

—        Sir Ryder, eu lhe sou grato pela hospitalidade e pelo uso de seu maravilhoso navio. Nós nos esforçaremos ao máximo para devolver-lhe seu navio incólume.

Ryder simplesmente olhou com raiva, avaliando o homem. Virando-se, o estranho dirigiu-se aos cientistas:

—        Ao iniciarmos este grande empreendimento, é um privilégio ter estes importantes especialistas da OMS reunidos num único aposento.

Lisa notou as sobrancelhas de Henri se contraírem em razão da cautela e da confusão.

Os olhos do estranho pousaram afinal em Lisa.

—        E, é claro, não devemos nos esquecer da nossa colega das operações secretas dos Estados Unidos. Força Sigma, eu creio, não é mesmo?

Calando-se de surpresa, Lisa só conseguiu fitá-lo. Como ele pudera...?

O homem curvou-se levemente na direção dela, de uma maneira educada, sem zombar.

—        Sinto muito que o seu colega não tenha podido juntar-se a nós. Parece que ele teve um infortúnio enquanto tentávamos buscá-lo. Alguma coisa a ver com caranguejos nativos. Os detalhes ainda são vagos. Perdemos vários dos nossos próprios homens na tentativa. Apenas um deles conseguiu voltar com vida.

A visão de Lisa estreitou-se, e seus olhos fecharam-se de horror.

Monk...

Alguém tocou-lhe o ombro, consolando-a. Era Ryder Blunt. Ele encarou o estranho.

- Quem diabo é você?

- Ah, sim, claro. Desculpem-me. — O homem ergueu a palma de uma das mãos e apresentou-se formalmente. — Dr. Devesh Patanjali, especializado em biotecnologia, a serviço da Guilda.

Apesar da angústia, Lisa sentiu um frio na boca do estômago. Painter lhe contara tudo sobre a Guilda... e o rastro de sangue que a organização terrorista deixava atrás de si.

O homem bateu de leve a bengala no chão de uma forma incisiva.

- E acho que não devemos perder mais tempo com apresentações. Temos muito trabalho por fazer antes de chegarmos ao porto de manhã.

- Que trabalho? — Lisa conseguiu perguntar constrangida, sentindo grande pesar.

Ele ergueu uma das sobrancelhas na direção dela.

—        Minha querida, juntos nós temos que salvar o mundo.

 

Monk apertou a palma da mão sobre a boca do homem. Os dedos artificiais de sua outra mão se fecharam com força na garganta dele, pouco abaixo da mandíbula, comprimindo a carótida, impedindo o fluxo sanguíneo para o cérebro. O homem se debateu, mas os dedos de Monk eram fortes o bastante para quebrar nozes entre eles. Esperou as pernas do homem pararem de dar pontapés e ficarem frouxas e depois o baixou até o chão.

Ele arrastou o homem para dentro de um pequeno armário com equipamento.

Monk notou a vibração sob seus pés e o som agudo dos motores. Empertigou-se. O navio estava em movimento. Ele havia embarcado como clandestino bem a tempo.

Após a explosão de seu jet ski, Monk subira a bordo por uma das correntes estabilizadoras da âncora no outro lado do navio, livrando-se de seus tanques de ar e deixando-os descer até o fundo da enseada. Seu ponto de entrada estava escassamente guardado, pois a maior parte da atenção se voltava para a praia. Da corrente, ele conseguiu pular para um dos botes salva-vidas pendurados e, depois, subir com dificuldade e chegar ao Convés Promenade.

Ele se escondeu rapidamente.

No armário de suprimentos, ele aguardara 15 minutos até um guarda solitário passar — um dos piratas — portando um rifle de assalto Heckler & Koch. Agora o guarda estava estatelado no mesmo armário. Monk abriu o zíper de seu traje úmido e tirou as calças e a camisa folgadas do homem. Trocou de roupa rapidamente, porém não conseguiu enfiar os pés à força nas botas roubadas.

Pequenas demais.

Sem escolha, saiu descalço, mas não desarmado.

O peso do rifle ajudou-o a deixá-lo mais calmo e confiante.

Entrando no saguão, puxou o lenço de cabeça sobre o rosto, disfarçando-se como os outros piratas. Monk conhecia o navio, havia memorizado os diagramas esquemáticos durante a viagem dos Estados Unidos até as ilhas. Seguiu apressadamente por um convés e ao longo do corredor de estibordo. Encontrou outros dois piratas no poço da escada, mas simplesmente os empurrou com os ombros, parecendo ocupado e incomodado.

Um dos guardas gritou para ele, por causa do encontrão durante sua passagem. Monk não entendia a língua, mas sabia quando estava sendo xingado. Ergueu o rifle, admitindo sua culpa, mas sem se deter.

Desceu o corredor às pressas.

Lisa e Monk partilhavam cabines adjacentes ali. Era o primeiro lugar para procurar sua colega desaparecida. No caminho, Monk havia passado por dois corpos estatelados, alvejados nas costas e abandonados onde haviam caído. Ele tinha de encontrá-la.

Contou as cabines. Ouviu alguém gritando atrás de uma porta, mas se apressou até chegar às cabines que lhes haviam sido destinadas.

Puxou a porta de sua cabine. Trancada. Ele havia deixado o cartão-chave eletrônico de seus aposentos em suas sacolas no Zodiac. Passou para a porta seguinte, a da cabine de Lisa. A maçaneta recusou-se a ceder, mas ele ouviu alguém mover-se atrás da porta.

Tinha de ser Lisa.

Graças a Deus...

Ele bateu de leve com o nó de um dedo de plástico na porta e aproximou os lábios.

—        Lisa... sou eu.

O olho-mágico na porta escureceu quando alguém se moveu para perscrutar. Monk deu um passo para trás e baixou o lenço de cabeça, revelando-se. Após um instante, a corrente rangeu no outro lado, e o trinco soltou-se com um estalido.

Monk puxou a máscara e percorreu o corredor de um extremo ao outro, a fim de verificar se estava tudo em ordem.

- Vamos, se apresse — sussurrou ele.

A porta se abriu, puxada para dentro.

Voltando para a porta, ele deu um passo à frente.

- Lisa, temos que...

Monk imediatamente reconheceu seu erro e apontou a arma. Não era Lisa.

Com a silhueta demarcada contra a intensa luz do sol na cabine, um rapaz estava agachado, meio oculto pela porta.

—        Não... por favor, não atire.

Monk segurou seu rifle bem firme enquanto esquadrinhava a cabine. Alguém havia saqueado o aposento: gavetas haviam sido abertas e reviradas, e os armários, esvaziados. Porém, sua atenção se fixou rapidamente no outro ocupante do aposento: um cadáver, de bruços na cama. Era um dos piratas. Pela poça de sangue que encharcara a roupa de cama, sua garganta havia sido cortada.

Arregalando os olhos, Monk voltou sua atenção para o invasor.

—        Quem é você?

O rapaz acenou com um dos braços, num gesto que abrangia todo o aposento.

—        Eu vim aqui para encontrar a dra. Cummings. Não sabia onde mais procurar.

Monk finalmente reconheceu o jovem enfermeiro que vinha ajudando Lisa. Não conseguiu lembrar-se do nome do rapaz.

- Jesspal, senhor... Jessie — murmurou o rapaz, percebendo a confusão dele.

Baixando a arma, Monk fez um aceno de cabeça e entrou.

- Onde está Lisa?

—        Não sei. Eu estava lá em cima na triagem — explicou ele, tremendo da cabeça aos pés, quase tendo um choque. — Depois as explosões... quatro membros da tripulação abriram fogo na enfermaria. Eu corri. A dra. Cummings tinha ido falar com o toxicologista. Rezei a Vishnu para que ela tivesse fugido de volta para a sua cabine.

O rapaz olhou de relance para a cama imunda e em seguida desviou o olhar com a mesma rapidez.

—        A dra. Cummings havia deixado a bolsa lá na triagem. Eu a peguei e encontrei a chave da cabine. Mas esse homem já estava esperando aqui dentro. Ele ficou zangado quando viu que eu não era ela e me fez ajoelhar no chão. Tinha um rádio.

Jessie apontou para o rádio portátil no chão.

- E o que aconteceu com a garganta dele? — indagou Monk.

- Eu não podia deixá-lo informar a esse respeito. E a dra. Cummings havia deixado mais do que o cartão-chave na bolsa. — Jessie tirou um bisturi do cós. — Eu... eu tinha que...

Monk apertou o braço dele.

—        Você agiu bem, Jessie.

O rapaz desabou em cima da outra cama.

- Eu os ouvi pelo rádio de bordo. Eles chamaram alguns médicos, incluindo a dra. Cummings.

- Para onde queriam que eles fossem?

- Para a ponte de comando do navio.

- Eles repetiram a ordem?

Jessie fitou-o por um momento e sacudiu lentamente a cabeça, num gesto afirmativo.

Então Lisa deve ter obedecido...

Agora Monk tinha um destino.

Foi até a porta que ligava os aposentos de ambos. Ela fora deixada entreaberta. Uma rápida espiada revelou que os aposentos dele não estavam em melhores condições. Alguém havia levado todo o seu equipamento pessoal, incluindo seu telefone via satélite. Procurou um pouco mais para ter certeza, mas não teve sorte.

Monk também examinou o cadáver e fez uma descoberta que o surpreendeu. A tonalidade escura da pele do pirata estendia-se apenas às mãos e ao rosto. O restante da pele do homem era branquíssimo, salpicado de algumas sardas. Aquele não era nenhum ilhéu da região, e sim algum mercenário disfarçado.

O que estava acontecendo ali?

Monk voltou à sua cabine a fim de pegar um par de tênis de basquete.

Enquanto os calçava, falou com Jessie.

—        Não podemos ficar aqui. Alguém virá procurar a sua bela adormecida ali. Vamos encontrar outro lugar para você se esconder.

- E você?

- Eu vou procurar Lisa.

- Então eu vou com você — disse Jessie, levantando-se meio trôpego.

O rapaz puxou a camisa sobre a cabeça, com a clara intenção de também ir disfarçado de pirata. Ele era esquelético, mas Monk supôs que também tivesse alguns músculos rijos. Jessie havia atacado de surpresa aquele homem ali, matado alguém com o dobro do seu tamanho.

No entanto...

—        Eu me viro melhor sozinho — disse Monk com firmeza.

Jessie finalmente conseguiu cobrir a cabeça com a camisa e murmurou alguma coisa.

—        O quê?

O enfermeiro virou-se para ele, exasperado.

- Pratiquei jiu-jítsu e caratê e sou faixa-preta de quinto grau em cada uma dessas lutas marciais.

- Estou me lixando se você é a versão indiana de Jackie Chan. Mesmo assim você não vem comigo.

Uma batida à porta assustou ambos. Alguém gritou para eles em malaio, sem dúvida uma pergunta. Monk não entendeu uma palavra sequer e ergueu o rifle. Ele tinha outros meios de comunicação.

Jessie esgueirou-se de mansinho por ele, empurrando para baixo o cano do rifle ao passar. O enfermeiro gritou através da porta, parecendo irritado, retrucando asperamente em malaio. Seguiu-se um diálogo, e quem quer que estivesse à porta foi embora, obviamente satisfeito.

Jessie virou-se para ele, erguendo uma das sobrancelhas.

—        Está bem, talvez você possa ser útil — admitiu Monk.

 

Lisa estava em pé com os outros cientistas e Ryder Blunt. O grupo de prisioneiros fora conduzido sob a mira de armas até a coberta de proa do navio. O grande helicóptero estava apoiado era seus patins, travados agora. Suas portas estavam abertas, e havia uma intensa atividade em volta dele. Homens descarregavam pesados caixotes de seus compartimentos de carga.

Ela notou alguns dos nomes e logotipos de corporações estampados: SYNBIOTIC, WELCH SCIENTIFIC, GENECORP. Numa caixa estavam estampadas uma bandeira americana e as letras USAMRIID: US Army Medical Research Institute of Infectious Diseases."

Tudo aquilo era equipamento médico.

Os caixotes desapareceram no poço de um elevador.

Ela olhou para Henri Barnhardt. O toxicologista também havia notado os caixotes marcados. Uma de suas mãos coçou distraidamente o queixo barbudo. Rugas profundas marcavam seus lábios. Um pouco mais afastados, Miller e Lindholm simplesmente estavam em pé com os olhos como que embaciados, enquanto Ryder Blunt tentava acender outro charuto ao vento que zunia no topo do navio de cruzeiro.

Em pé embaixo dos rotores do helicóptero, o dr. Devesh Patanjali continuava a supervisionar pessoalmente o fim do descarregamento. Ele ainda não explicara sua enigmática declaração a respeito de salvar o mundo. Em vez disso, ordenara a todos eles que fossem até ali.

O líder maori dos pistoleiros estava em pé a um lado, sem nenhuma arma na mão, mas com uma das palmas apoiada numa grande pistola no coldre, uma enorme arma portátil. Ele inspecionava a atividade na coberta de proa com os olhos apertados, como um franco-atirador a vasculhar um campo de tiro. Lisa sabia que nada escapava à observação dele, inclusive a moça que acompanhava o dr. Devesh Patanjali.

Ela permanecia um mistério, não pronunciara uma única palavra sequer, e seu rosto era uma máscara imutável. Estava em pé na coberta de proa com as lustrosas botas pretas juntas, as mãos na cintura, uma postura formal de espera e servidão. E, embora seu rosto pudesse ser ilegível, suas formas curvilíneas haviam prendido completamente a atenção do pistoleiro maori.

Lisa ouvira por acaso o nome dela quando o dr. Patanjali saiu da suíte presidencial abaixo. Surina. Ao sair, o especialista em biotecnologia deu um beijo casto no rosto dela, aceito sem uma centelha de emoção. A mulher parecia ser uma Indiana miscigenada, e vestia um longo sari de seda em suaves tons laranja e cor-de-rosa, drapejado sobre uma longa trança negra como ébano. Se fossem soltos, os cabelos deveriam arrastar-se no chão atrás de seus calcanhares. Ao marcar sua herança, ela exibia na testa um ponto vermelho, o tradicional bindi. Mas sua cútis, semelhante à teca envernizada, era muito mais clara do que a de Devesh Patanjali, o que indicava uma ascendência européia em alguma parte de seu passado.

Lisa não conseguiu discernir se ela era irmã ou a esposa de Devesh, ou uma mera companhia. Mas também havia algo de ameaçador no silêncio dela, talvez intensificado pela frieza em seus olhos. Além do mais, seu braço esquerdo estava oculto por uma luva preta, tão grudada à pele que era difícil dizer se era de couro ou de borracha. Mas parecia que o membro havia sido mergulhado em tinta nanquim preta.

Cruzando os braços, Lisa virou-se e examinou o perfil da ilha Christmas se afastando. No curto período em que eles estavam em movimento, a ilha se reduzira a uma silhueta verde enevoada, deixando um rastro de fumaça escura em direção ao céu. Porém, quem estava lá para ver a fumaça como um sinal? Painter certamente ficaria desconfiado se nem ela nem Monk telefonassem para fazer um relatório. E no momento ela depositava todas as suas esperanças na paranóia dele.

Felizmente, aquela era a coisa mais provável.

Uma rajada de vento soprou súbita e violentamente quando os ventos alísios começaram. Gaivotas flutuaram no vento acima, atraindo o olhar dela. Quem dera se ela pudesse escapar tão facilmente...

Um grito voltou a chamar sua atenção para o helicóptero.

Dois homens com trajes cirúrgicos puxaram uma maca da porta traseira do helicóptero. As rodas desceram e travaram. Devesh pairou sobre eles, checando o paciente amarrado à maca. Equipamento portátil de monitoramento estava preso aqui e ali em volta do paciente para transporte. A figura estava presa a uma tenda de oxigênio. Pelos movimentos ascendentes e descendentes do tórax, o paciente parecia ser uma mulher. As feições estavam obscurecidas por um respirador e um emara¬nhado de tubos e fios. Devesh apontou a bengala, e os dois enfermeiros guiaram a maca na direção dos elevadores, seguindo a série de equipamentos médicos.

Ele afinal voltou para onde estavam os prisioneiros.

— Todos os laboratórios e o equipamento médico serão montados na próxima hora. Por sorte, a dra. Cummings e seu colega foram muito gentis por terem trazido aparelhos que estavam além até do meu alcance. Quem poderia saber que a divisão de pesquisa e desenvolvimento do Departamento de Defesa de vocês aperfeiçoou um microscópio eletrônico de varredura portátil junto com equipamento de eletroforese e de seqüenciador de proteínas? É muita sorte que esses instrumentos tenham caído do céu.

Ele bateu de leve com a bengala no chão e saiu.

—        Venham. Deixem-me mostrar a vocês a verdadeira face do que estamos enfrentando.

Lisa seguiu-o junto com os outros. Naquele caso, ela não precisava dos rifles em suas costas para fazê-la obedecer. Havia mistérios demais ali, e ela queria respostas, alguma pista do motivo daquele ataque e das palavras de Devesh.

Minha querida, juntos temos que salvar o mundo.

Eles foram conduzidos por três conveses abaixo. Ao longo do caminho, Lisa notara equipes de homens em trajes de proteção química, trabalhando ao longo dos corredores mais baixos, movendo-se para dentro de nuvens malcheirosas de desinfetante borrifado.

Devesh continuou até a parte na proa do navio. O corredor terminava num amplo espaço circular, perto do qual se estendiam as cabines mais caras. Monk havia solicitado uma das grandes suítes ali para seu próprio laboratório. Parecia que Devesh solicitara todo o restante.

Enfiando-se embaixo de uma cortina de isolamento, Devesh acenou para que eles entrassem na movimentada área central de trabalho.

—        Aqui estamos — disse.

Vários homens abriam caixotes, puxando a palha e o isopor de proteção e tiravam dali equipamento médico e de laboratório embalado em plástico. Um homem esvaziou uma caixa cheia de placas de Petri, usadas na cultura de bactérias. A porta do laboratório de Monk estava aberta. Lisa notou um homem lá dentro com uma prancheta, fazendo um inventário do equipamento da Sigma.

Devesh levou-os a uma cabine próxima. Passou um cartão-chave pessoal pela ranhura da porta, abrindo-a.

Virando-se, falou com o líder tatuado da força de mercenários.

—        Rakao, por favor, mande alguém levar o dr. Miller à suíte de bacteriologia. — Ele virou-se para o cientista. — Dr. Miller, tomamos a liberdade de aprimorar e expandir sua unidade de bacteriologia com novos fornos de incubação, meios de crescimento anaeróbio e lâminas para cultura de sangue. Eu gostaria que o senhor conversasse com a dra. Eloise Chénier, a virologista da minha equipe, no fim do corredor, para concluir o laboratório de doenças infecciosas.

O líder maori acenou para que um de seus homens escoltasse o dr. Miller até o fim do corredor. O bacteriologista olhou de relance para os outros, obviamente sem querer deixar a companhia deles, mas o rifle em suas costas desencorajou qualquer argumento.

Quando Miller partiu, Devesh acenou com a cabeça para o grupo deles. Rakao, você poderia acompanhar pessoalmente sir Ryder e o dr. Lindholm até a sala de rádio lá em cima? Nós nos juntaremos a vocês a qualquer momento.

—        Senhor.

O homem tatuado não gostou daquela decisão, e sua única palavra soou carregada de advertência, enquanto ele olhava para Lisa e Henri com desconfiança.

—        Nós estaremos bem. — Devesh manteve a porta da cabine aberta e curvou a cabeça para que a jovem indiana entrasse. — Creio que a dra. Cummings e o dr. Barnhardt gostariam de ouvir o que tenho a dizer. E Surina estará comigo.

Lisa e Henri foram conduzidos à cabine.

Devesh entrou atrás deles e começou a fechar a porta; então parou e se virou para o líder maori.

—        Ah, sim, Rakao, me faça a gentileza de reunir as crianças. As que eu escolhi. Eis aí um bom homem.

Devesh fechou a porta, porém não antes de Lisa notar o rosto do líder maori escurecer de raiva. Suas tatuagens, um mapa indecifrável, sobressaíram com mais clareza.

Quando a fechadura estalou, Devesh foi até a escrivaninha da cabine. Na verdade, eram duas escrivaninhas uma ao lado da outra, uma das quais havia sido desparafusada e tirada de outra cabine. Sobre as duas escrivaninhas havia três monitores com tela de cristal líquido ligados a duas torres de computador HP. Eram os únicos acréscimos à suíte. O restante da cabine consistia em uma confortável área de estar com móveis de teca voltados para portas que se abriam para uma sacada abrigada do sol.

Surina foi até um dos sofás e abaixou-se, flexionando apenas os joelhos, a fim de se empoleirar num dos seus braços. E, embora o movimento tivesse certo grau de recatada modéstia, Lisa sentiu poder e ameaça: os olhos focados, o controle silencioso de uma gueixa, mas, sobretudo, os dois punhais embainhados em cada tornozelo que apareceram quando ela se sentou.

Lisa desviou o olhar. Um quarto de dormir estava aberto atrás da escrivaninha. Dois grandes baús de viagem estavam ao pé da cama. Aqueles deviam ser os aposentos pessoais de Devesh Patanjali. Mas por que ele os trouxera ali?

Devesh ligou os computadores pressionando alguns botões, atraindo a atenção dela de novo. Todos os três monitores brilharam intensamente no aposento escuro.

—        Dr. Barnhardt... ou Henri, se o senhor me permite...? — disse Devesh, olhando para trás.

O toxicologista apenas deu de ombros. Devesh prosseguiu:

—        Henri, devo elogiá-lo pela sua avaliação da verdadeira ameaça oculta na nuvem tóxica. Nossos cientistas levaram semanas para descobrir o que você conseguiu discernir em menos de 24 horas.

Lisa sentiu um arrepio na pele. Semanas. Então os captores deles estavam cientes da ameaça na ilha muito antes de a crise irromper plenamente. Mas o que é que isso tinha a ver com a Guilda?

—        É claro que não gostamos do alarme geral que você deu e que chegou a Washington. Isso exigiu que acelerássemos nosso cronograma... e improvisássemos um pouco, como utilizar o talento científico aqui e combiná-lo com meu próprio talento. Mas tudo bem. Temos que agir depressa para que haja alguma esperança.

—        Esperança de quê? — Lisa finalmente perguntou.

—        Deixe-me mostrar a você, minha querida — respondeu Devesh, batendo de leve numa das duas cadeiras, convidando-a a se sentar.

Ela continuou em pé, mas, ocupado com o teclado do computador, ele pareceu não se ofender. No monitor do centro, um vídeo começou a ser exibido. Representava um denso campo microscópico de cadeias contorcidas de bactérias em forma de bastonetes.

—        Até onde vão os seus conhecimentos sobre o antraz? — indagou Devesh, olhando para trás.

Lisa sentiu a pele arrepiar-se ao ouvir a pergunta.

Henri respondeu:

Bacillus anthracis. Ele infecta, sobretudo, os ruminantes: vacas, cabras, carneiros. Mas os esporos também podem infectar os seres humanos, e quase sempre a infecção é fatal.

Foi uma avaliação objetiva, desprovida de emoção. Porém, Lisa observou a contenção tensa dos ombros do toxicologista. Devesh concordou com um aceno de cabeça.

—        Espécies do Bacillus são encontradas no solo no mundo inteiro, e em geral sito inofensivas. Por exemplo, aqui está um desses organismos benignos, o Bacillus cereus.

A imagem na tela mudou para um close microscópico de uma única bactéria. Em forma de bastonetes com uma fina parede membranosa, os filamentos de DNA da célula estavam corados para se destacarem no centro.

—        Como outros membros da espécie, essa bacteriazinha pode ser encontrada cin jardins ao redor do mundo, alimentando-se satisfeita de microrganismos e nutrientes encontrados no solo. Ela não causa mal a nada maior do que uma ameba. Mas seu irmão, o Bacillus anthracis...

Devesh deu um clique na tecla a fim de exibir outra imagem — lado a lado com a primeira, uma segunda bactéria que parecia idêntica.

—        Eis o organismo que produz o antraz — continuou ele —, uma das bactérias mais mortais do planeta. Ela possui o mesmo código genético de seu irmão pacífico que habita os jardins. — Devesh bateu de leve nas hélices coradas do DNA das duas células. — Gene após gene, quase idênticas. Então, por que uma delas mata e a outra permanece inofensiva?

Devesh olhou para trás, fitando Lisa e Henri.

Lisa sacudiu a cabeça. Henri permaneceu em silêncio.

Devesh acenou com a cabeça, como se estivesse satisfeito com a reticência deles. Virando-se, pressionou uma tecla, e a bactéria do antraz aumentou de tamanho na tela. A massa de DNA avolumou-se no monitor. No citoplasma da célula interior, separado do emaranhado principal de DNA, flutuavam dois anéis perfeitos de material genético, como um minúsculo par de olhos fitando-os.

—        Plasmídios — disse Henri, mencionando o nome dos anéis.

A testa de Lisa se contraiu quando foi obrigada a recorrer aos seus estudos preparatórios para ingresso na faculdade de medicina. Até onde podia lembrar-se, os plasmídios eram filamentos circulares de DNA separados do DNA cromossomial principal. Os fragmentos de código genético à deriva eram exclusivos das bactérias. Seu papel ainda era mal compreendido.

Devesh prosseguiu:

—        Esses dois plasmídios — pXol e pXo2 — é que transformam espécies comuns do Bacillus em superassassinos. Se esses dois anéis forem removidos, o antraz volta a se transformar num organismo inocente que vive satisfeito em qualquer jardim. Mas, se esses mesmos plasmídios forem introduzidos em qualquer Bacillus amigável, ele se torna um assassino.

Devesh finalmente se virou para encará-los.

—        Por isso eu pergunto a vocês: de onde vêm esses fragmentos estranhos e mortais?

Lisa respondeu, involuntariamente curiosa.

—        Os plasmídios não podem ser partilhados diretamente de uma bactéria para outra?

—        É claro que sim. Mas o que eu quis dizer foi: como essas bactérias adquiriram pela primeira vez esses fragmentos estranhos de material genético? Qual é a fonte original deles?

Henri mexeu-se, aproximando-se para examinar as telas.

—        A origem evolucionária dos plasmídios permanece um mistério, mas a teoria atual é a de que eles foram adquiridos de vírus. Ou, mais especificamente, de bacteriófagos, uma categoria de vírus que só infecta bactérias.

—        Exatamente! — Devesh virou-se para a tela. — Foi elaborada a teoria de que, em algum ponto do passado remoto, um bacteriófago viral injetou seus dois plasmídios mortais num Bacillus pacífico, criando um novo monstro na biosfera e transformando uma amigável bacteriazinha de jardim numa assassina.

Devesh pressionou as teclas mais depressa, limpando a tela.

—        E o antraz não é a única bactéria infectada dessa maneira. A bactéria que causa a peste negra, Yersinia pestis... sua virulência também é intensificada por um plasmídio.

Lisa sentiu um calafrio aguilhoá-la quando começou a compreender. Toda aquela conversa de bactérias que se transformavam lembrou-a dos pacientes no navio. A menina com convulsões causadas pelas bactérias do vinagre, a mulher com disenteria do cólera causada pelas bactérias do iogurte, John Doe, o homem cujas bactérias da pele estavam devorando suas pernas...

—        O senhor está insinuando que isso está acontecendo novamente aqui? — murmurou ela. — Essa mesma corrupção de bactérias?

Devesh fez um aceno afirmativo de cabeça.

—        Sem dúvida. Alguma coisa ressuscitou das profundezas do mar, alguma coisa com a capacidade de tornar mortais todas as bactérias.

Lisa recordou-se do exemplo de Henri de como as bactérias eram prevalentes no mundo, de que 90% das células no nosso próprio corpo eram compostas de bactérias não-humanas. Se aquela maré se voltasse contra nós...

Devesh continuou:

—        Com base no estudo da genética do antraz e de outras bactérias tóxicas, os microbiologistas predisseram a existência de uma antiga estirpe de vírus. Uma estirpe, ou cepa, que criou os primeiros ancestrais do antraz e de outras bactérias pestilentas. Os cientistas até cunharam um nome para essa antiga estirpe de vírus que transforma amigo em inimigo: a Estirpe de Judas.

Henri devia ter interpretado alguma coisa no rosto de Devesh, um brilho em seus olhos, uma excitação, e se empertigou.

—        Alguma coisa me diz que o senhor isolou o agente causador da epidemia aqui, não é mesmo? Essa Estirpe de Judas. Ou o senhor não estaria aqui.

—        É o que nós pensamos.

Devesh pressionou mais duas teclas. A bactéria desapareceu, substituída por uma figura giratória na tela, uma imagem de uma eletromicrografia, toda em tons de prata. Isso fazia o organismo representado parecer mais mecânico do que biológico. Ele se parecia com um módulo de aterrissagem lunar. O revestimento principal era geométrico, um icosaedro, formado de vinte fragmentos triangulares planos. De cada canto estendiam-se filamentos finos, de extremidades pontiagudas, feitas para segurar e perfurar.

Lisa vira muitas imagens como aquela na faculdade de medicina.

Um vírus.

—        Nós o descobrimos numa amostra de cianobactérias da maré tóxica. Ele transformou as inocentes bactérias marinhas fosforescentes em assassinas que causam furúnculos na carne e expelem veneno. E do interior daquelas nuvens fumegantes de toxina sopradas pelo vento o vírus se disseminou para a terra firme, dando início à lenta transformação das bactérias da ilha em monstros.

—        E agora estamos vendo isso acontecer entre os pacientes — disse Henri. — Voltando nosso próprio corpo contra nós.

Devesh bateu de leve na tela.

—        O supremo traidor da vida. Esse organismo tem a capacidade de viajar pela biosfera do planeta, transformando todas as bactérias em organismos letais, que destroem a vida. É uma bomba de nêutrons da natureza, uma explosão virai com o potencial de exterminar todas as formas superiores de vida, deixando para trás apenas uma sopa tóxica de lodo bacteriano letal. Se ele não for controlado, já vimos, no lado a barlavento da ilha Christmas, aquilo em que o mundo pode se transformar.

—        E, se isso se disseminasse... — o rosto de Henri empalideceu —, não teríamos nenhuma maneira de detê-lo.

Devesh finalmente se levantou e pegou sua bengala.

—        Talvez. Mas nós mal começamos a analisar o organismo. A boa notícia é que, até agora, o vírus parece ter um ciclo de vida curto e não infectar células humanas, apenas bactérias. Por isso representa pouco risco direto para nós. Ele seqüestra uma célula bacteriana, usa-a para produzir cópias de si mesmo em massa, depois deixa para trás os plasmídios tóxicos. Fora da célula, o novo vírus é frágil. Ele pode ser facilmente morto com desinfetantes simples e controlado com boa higiene.

Lisa imaginou as equipes de trabalho que percorriam o navio numa nuvem de desinfetante. Eles estavam esterilizando o navio.

—        Mas, infelizmente, o vírus deixa um assassino em seu rastro: bactérias mortais que se dividem e se multiplicam, cada uma delas um novo monstro acrescentado ao mundo microbiano, contaminando a biosfera para sempre com formas de vida jamais vistas antes.

Preocupado, Henri pôs a palma de uma das mãos na testa.

—        Se a exposição virai se libertar na biosfera geral... estamos falando de mil novas doenças diferentes atingindo o mundo simultaneamente. Uma praga com a capacidade de mudar de aspecto mais depressa do que podemos reagir. O mundo nunca viu nada assim antes.

—        Isso não é necessariamente verdadeiro — contrapôs Devesh de forma enigmática.

Henri voltou a se concentrar no captor deles.

—        Meus empregadores e eu acreditamos que este não é o primeiro surto dessa Estirpe de Judas. Existem relatos históricos aqui da região de um surto semelhante, ocorrido há quase mil anos. — Sua voz reduziu-se a um sussurro contemplativo. - As histórias foram acompanhadas por algumas afirmações estranhas e perturbadoras.

—        Sobre quais relatos históricos o senhor está falando? — indagou Lisa.

Devesh descartou a pergunta dela.

—        Isso não importa. Temos outras pessoas investigando essa questão, seguindo essa pista histórica. Temos que continuar concentrados em nosso objetivo. Nossa missão a bordo do navio não está no passado, e sim no presente. Os meus empregadores orquestraram a evacuação da ilha, providenciaram para que o navio de cruzeiro do sr. Blunt se desviasse para cá. Precisávamos isolar as pessoas atualmente infectadas num único lugar. Aqui temos a rara oportunidade de investigar como essa doença se desdobra: sua epidemiologia, sua patologia, seus efeitos fisiológicos. E o navio está cheio de cobaias.

Lisa deu um passo para trás, incapaz de disfarçar o horror. Devesh apoiou-se em sua bengala.

—        Eu percebo sua aversão, dra. Cummings. Agora a senhora entende por que a Guilda teve que agir. Quando enfrentamos um organismo de tamanha virulência, não pode haver sentimento de culpa, nenhuma reação politicamente correta a esse ataque. A ação deve ser rápida, e decisões difíceis têm que ser tomadas. Em Tuskegee, o seu próprio governo não permitiu que pessoas infectadas com sífilis morressem da doença enquanto os cientistas registravam com imparcialidade o sofrimento, os sintomas progressivos e os óbitos? Para sobrevivermos a isso, temos que ser igualmente brutais e frios. Porque, creia-me, esta é uma guerra pela sobrevivência da espécie humana.

Lisa procurou alguma forma de se opor às palavras dele, chocada demais.

Henri intercedeu, porém não da maneira que Lisa esperava.

—        Ele tem razão.

Lisa virou-se para o toxicologista.

Os olhos de Henri permaneceram grudados na tela que exibia a imagem microscópica da Estirpe de Judas.

—        Isso é um assassino do planeta. E já está à solta. Lembre-se da rapidez com que a gripe aviária deu a volta no mundo. Nós temos uma semana, talvez dias. Se não encontrarmos uma maneira de deter isso, toda a vida — pelo menos as formas superiores de vida — será eliminada da Terra.

—        Estou contente por termos chegado a um consenso — disse Devesh inclinando a cabeça na direção de Henri. Seus olhos encontraram os de Lisa. — E é possível que, quando eu mostrar à dra. Cummings seu papel em nosso empreendimento, ela talvez encontre o mesmo tipo de reconhecimento.

Lisa franziu o cenho ao ouvir essa enigmática declaração.

Devesh virou-se na direção da porta.

—        Mas primeiro temos que nos juntar aos amigos de vocês lá em cima na sala do rádio. Temos que apagar alguns incêndios.

 

Painter olhava fixamente para as reportagens nas suas três telas de plasma: Fox, CNN e NBC. Todas informavam sobre a explosão próximo à Universidade Georgetown.

—        Então está tudo bem — disse Painter, em pé atrás de sua escrivaninha. Segurou o microfone de ouvido com mais firmeza no lugar. A voz de Lisa era débil, propagando-se pela metade do mundo. — Você assustou Jennings na Pesquisa e Desenvolvimento. Ele já estava quase pronto para mandar atacar a ilha com bombas incendiárias.

—        Sinto muito pelo alarme falso — disse Lisa. — Tudo não passou de contaminação do laboratório. Está tudo bem aqui... ou pelo menos tão bem quanto um navio cheio de pacientes queimados poderia estar. A conjectura inicial é de uma floração de alguma coisa chamada fireweed. Ela infesta estas águas há anos, expele uma nuvem corrosiva, que transpõe as praias. Isso foi apenas um evento desastroso causado por esse organismo. O problema deverá ser resolvido até amanhã, e então Monk e eu voltaremos.

—        Essa foi a primeira boa notícia que ouvi hoje — respondeu Painter.

Os olhos dele continuavam movendo-se rapidamente de uma tela de plasma para a outra nas paredes de seu gabinete. Elas exibiam os incêndios sendo finalmente debelados no bosque atrás do abrigo secreto. Carros de combate a incêndio lançavam jatos de água tirada de bombas de incêndio enfileiradas ao longo da estrada de terra usada para combate a incêndios na floresta.

Lisa sussurrou no ouvido dele.

—        Eu sei que você está ocupado. Voltarei a me comunicar daqui a 12 horas, conforme planejado.

—        Ótimo. Veja se dorme um pouco. Imagino que o pôr-do-sol aí deve ser lindo.

—        Sim, é lindo. Eu... eu gostaria que você estivesse aqui para apreciá-lo comigo.

—        Eu também. Mas em pouco tempo você estará de volta. E no momento tenho meu próprio incêndio para apagar.

Na tela, um helicóptero da imprensa fez uma curva para revelar os restos carbonizados do abrigo secreto para o noticiário da manhã. Painter já ouvira dos investigadores o relato do incêndio criminoso. Marcas de pneus no quintal haviam levado à descoberta de um Thunderbird abandonado, o mesmo conversível no qual Gray chegou ao local algumas horas atrás. Aparentemente, ele não havia fugido para as ruas, mas para o bosque. Mas aonde ele tinha ido depois? Ainda não houvera nenhum sinal de Gray, de seus pais ou da agente da Guilda ferida.

Onde eles haviam se escondido?

—        Eu também tenho trabalho aqui — disse Lisa.

—        Você precisa de alguma coisa?

—        Não...

Ele percebeu uma hesitação na voz dela.

—        Lisa? O que é?

—        Nada. — Ela falou um pouco bruscamente. — Acho que é só cansaço. Você sabe como eu fico nesta época do mês.

Brant, o ajudante de Painter, entrou em sua cadeira de rodas no gabinete do chefe com uma pilha de papéis de fax na mão. Notou o timbre no alto da página: Washington PD. Era outro dos relatórios do andamento da investigação deles dos hospitais da cidade. Ele falou enquanto pegava os papéis da mão de Brant.

—        Então não deixe de descansar um pouco — disse ele, já lendo a primeira linha do relatório. — Evite correr riscos e não se esqueça do protetor solar. Não vou suportar você me fazendo parecer um fantasma ao lado do seu bronzeado adquirido na ilha.

—        Farei isso.

A voz de Lisa havia diminuído de intensidade, transformando-se num mero sussurro. A conexão via satélite do navio era irregular. No entanto, percebeu a decepção na voz dela. Ele também sentia saudades dela.

—        Até breve — encerrou ele. — Voltarei a falar com você daqui a 12 horas. Agora vá dormir um pouco.

A linha emudeceu sem mais palavras. Ele tirou o microfone de ouvido e colocou-o em cima de sua escrivaninha. Estabelecendo prioridades, mexeu na pilha de relatórios à sua frente. Ele os escanearia e depois comunicaria o fim do alerta a Jennings.

Pelo menos, uma catástrofe havia sido evitada.

 

Lisa baixou o fone. Seu coração batia com força no peito. A ligação havia sido interrompida a um sinal dos investigadores de Devesh Patanjali. Ele estava em pé à entrada do moderníssimo compartimento de comunicação do navio, apoiando ambas as palmas na bengala.

Ele sacudiu a cabeça, demonstrando seu desapontamento.

Lisa sentiu o estômago embrulhar. Será que ele sabia o que ela havia tentado? Ela se levantou do assento ao lado do operador de rádio. Um dos guardas segurou-lhe o cotovelo.

—        Tudo o que a senhora tinha que fazer era se ater ao roteiro, dra. Cummings — disse Devesh, com a voz gutural de tanta irritação. — Foi uma simples solicitação, e as conseqüências foram devidamente explicadas à senhora.

O pânico fez o sangue de Lisa gelar.

—        Eu... eu segui o seu roteiro. Não disse nada inoportuno. Painter pensa que está tudo bem. Exatamente como o senhor ordenou.

—        Sim. Ainda bem. Mas não pense que a sua tentativa de uma comunicação sutil, de um contexto oculto, me escapou.

Oh, Deus... Ela havia aproveitado uma oportunidade durante a conversa ao telefone. Decerto ele não poderia saber.

—        Eu não estou entendendo...

—        "Você sabe como eu fico nesta época do mês" — Devesh citou-a, interrompendo-a. Ele virou-se e saiu para o corredor. — Na verdade, o seu ciclo terminou há dez dias, dra. Cummings.

Uma dormência gélida difundiu-se pelo corpo dela.

—        Temos um dossiê completo sobre a senhora, dra. Cummings. Um dossiê que eu li. E a minha memória é fotográfica. Acho melhor a senhora não subestimar a minha inteligência outra vez.

O guarda empurrou-a com força para fora da sala, e ela saiu aos tropeções. Fora tola em tentar comunicar-se secretamente com Painter, não importava quão sutilmente.

O que foi que eu fiz?

Lá fora, outros prisioneiros-chave estavam em pé, enfileirados no corredor: o dr. Lindholm, Ryder Blunt e um capitão australiano num uniforme caqui ensangüentado. Todos eles haviam telefonado para as suas respectivas firmas e organizações, informando que tudo estava bem e sob controle na ilha remota, disfarçando a situação, dando tempo aos seqüestradores para aumentar a distância entre o navio e a ilha antes que alguém ficasse mais esperto.

Mas também havia outras pessoas ali: quatro crianças encolhidas de medo, reunidas no fim do corredor. Meninos e meninas de 6 a 10 anos de idade. Uma criança para cada um dos que haviam sido enviados à sala do rádio. A vida de cada uma daquelas crianças dependia da cooperação deles. Para Lisa haviam selecionado uma garotinha de 8 anos, com grandes olhos amendoados, aterrorizada, encolhida no chão, abraçando os joelhos de encontro ao tórax. Seu irmão, alguns anos mais velho, mantinha um dos braços em volta dela.

Com a pistola na mão, o líder maori foi até a criança.

Devesh juntou-se a ele e virou-se para o grupo, com um dos punhos apoiado no quadril.

—        Todos vocês foram advertidos de que haveria conseqüências caso se desviassem do roteiro em algum aspecto significativo, caso tentassem qualquer subterfúgio. Mas como este é o primeiro erro da dra. Cummings, serei indulgente com ela.

—        Por favor — implorou Lisa.

Ela não conseguiria suportar ver suas mãos manchadas com o sangue da criança. Na sala do rádio, agira de maneira instintiva. Fora um estratagema estúpido.

O olhar de Devesh pousou sobre ela.

—        Em vez da garotinha, dra. Cummings, vou deixar a senhora escolher outra criança para morrer no lugar dela.

A respiração de Lisa ficou presa no peito.

—        Não sou um homem cruel, apenas prático. Esta é uma lição que todos vocês devem levar a sério. — Ele acenou para Lisa. — Escolha uma criança.

Lisa sacudiu a cabeça.

—        Eu não posso...

—        Escolha, ou terei que matar todas. Que isto sirva de lição para todos. Temos muito a realizar para tolerar insubordinação, não importa quão insignificante ela seja.

O guarda arrastou-a para a frente a um sinal de seu líder tatuado.

—        Escolha uma criança, dra. Cummings.

Lisa reprimiu um soluço e fitou o rosto das quatro crianças. Nenhuma delas falava inglês, mas elas deviam ter interpretado alguma coisa no rosto dela, compreendido sua angústia, e isso as assustou. Novas lágrimas escorreram. Todas as crianças se encolheram ainda mais.

Lisa olhou Devesh nos olhos, implorando-lhe.

—        Por favor, dr. Patanjali. O erro foi meu. Castigue a mim.

—        Eu creio que é exatamente o que estou fazendo. — Ele encarou-a, impassível. — Agora escolha.

Lisa fitou os quatro rostos. Como a garotinha fora poupada, ela não teve coragem de escolher o irmão dela. Restavam-lhe duas opções. Ela ergueu um braço trêmulo e apontou um dedo para outro menino, o mais velho do grupo, com 10 anos de idade.

Que Deus me perdoe.

—        Muito bem. Rakao, você conhece o seu dever.

O pistoleiro maori foi até o menino, cujo rosto assustado se ergueu cheio de esperança.

Lisa soltou um gemido. Ela deu um passo para a frente, tentando revogar sua decisão. O guarda segurou-lhe o cotovelo com mais força. Contida, sentiu as pernas tremerem, e pouco depois estava de joelhos, cheia de terror e pesar.

O pistoleiro ergueu a pistola e apontou-a para a cabeça do menino.

—        Não... — disse Lisa, com a voz entrecortada.

Ele puxou o gatilho, mas a arma não disparou. O cão da arma deu um estalido brusco no espaço exíguo, chocando-se com força contra um tambor vazio.

Rakao baixou a arma.

No silêncio, um grito gorgolejante irrompeu do outro lado do corredor. Lisa virou-se a tempo de ver o dr. Lindholm cair de joelhos, na mesma posição de Lisa. Ele encarou-a, com os olhos arregalados de choque e pânico. As mãos dele apertaram a garganta, e sangue escorreu por entre seus dedos.

Atrás do ombro dele, a acompanhante de Devesh, Surina, deu um passo para trás, com a cabeça curvada, como se tivesse acabado de servir chá e agora estivesse saindo. As mãos dela estavam vazias, mas Lisa não tinha a menor dúvida de que a mulher havia cortado a garganta do médico; seu punhal desaparecera com a mesma rapidez com que golpeara.

Lindholm foi se curvando até cair de bruços no chão acarpetado. O sangue penetrou na trama felpuda e foi se acumulando numa poça crescente. Uma de suas mãos crispou-se no carpete e depois parou.

—        Seu filho-da-puta... — rosnou Ryder, com o rosto duro, desviando o olhar.

Devesh voltou para onde Lisa estava.

—        Por... por quê? — ela conseguiu perguntar com grande esforço, deprimida e fria.

—        Como eu disse, nada escapa à nossa observação, dra. Cummings, incluindo a habilidade do dr. Lindholm. Ou melhor, a falta de habilidade quando se trata de pesquisa e trabalho de campo. Ele serviu ao objetivo de manter a OMS longe de nós com o seu telefonema, mas, além disso, ele era mais um peso morto do que um trunfo. Sua morte pelo menos serviu a uma última função: como demonstração. E não só para demonstrar o preço da insubordinação. — Devesh encarou-a com um olhar duro. — Será que posso presumir que a senhora entendeu esse preço, dra. Cummings?

Ela fez que sim com um lento aceno de cabeça, olhando fixamente para a poça de sangue.

—        Muito bem. — Ele virou-se para os outros. — A morte também demonstra uma lição para cada um. Uma lição da seriedade da nossa iniciativa aqui. Suas vidas dependem da utilidade de vocês. É simples assim: é fazer ou morrer. Eu aconselho vocês a transmitir essa lição aos seus outros colegas antes que sejam necessárias mais demonstrações.

Devesh juntou as mãos, entrelaçando os dedos.

—        Agora que essa situação um pouquinho desagradável passou, podemos começar nosso trabalho. — Ele acenou para o líder maori. — Rakao, por favor, conduza cada um ao seu respectivo posto. Eu acompanharei pessoalmente a dra. Cummings até a paciente dela.

Pondo a pistola no coldre, Rakao dispersou os homens. Devesh conduziu Lisa corredor abaixo, para longe de todos os demais. Ela passou pela fila de crianças. Profundamente traumatizadas, elas estavam sendo reunidas para voltarem para a creche do navio.

Surina, que ia logo atrás de Lisa e Devesh, parou junto aos dois irmãozinhos. Ela curvou-se para a garota, ainda encolhida de medo sob o braço do irmão. Surina estendeu uma palma vazia; em seguida, com um leve movimento dos dedos, uma bala embrulhada apareceu na mão dela, como que do ar. Ofereceu-a à garota aterrorizada, mas a criança se comprimiu ainda mais contra o irmão mais velho. O irmão dela, mais prático, estendeu a mão e pegou a bala da palma de Surina, como se a estivesse pegando de uma ratoeira com isca.

Surina empertigou-se num movimento suave de seda bordada, roçando os dedos de leve na face da menina ao se erguer. As pontas de seus dedos ficaram úmidas com as lágrimas da criança. Lisa se perguntou se aquela mão era a mesma que havia cortado a garganta de Lindholm. O rosto da mulher permaneceu perfeitamente impassível.

Lisa desviou o olhar, seguindo Devesh.

Ele a levou até a última cabine naquele nível e abriu a porta com seu cartão-chave. Outra suíte. Uma enorme quantidade de aparelhos estava sendo monta¬da na sala externa. Ignorando tudo aquilo, Devesh foi até o quarto de dormir adjacente.

Lisa manteve-se perto dele.

Quando Devesh entrou no aposento, Lisa avistou uma figura familiar esparramada sobre a cama do quarto, transformada numa tenda de isolamento: uma mulher em meio a um emaranhado de aparelhos de monitoramento, com os cabelos louros como os da própria Lisa, porém cortados curtíssimos. Lisa tinha avistado a maca usada para transportar a paciente até o aposento principal. Era a mulher tirada do helicóptero. Suas feições ainda estavam obscurecidas atrás de uma máscara de oxigênio que lhe cobria todo o rosto.

Dois homens, os mesmos enfermeiros que haviam transportado a paciente até ali, estavam ocupados pendurando e prendendo os últimos tubos e sondas que se estendiam da mulher até um conjunto próximo de aparelhos de monitoramento. Lisa captou tudo aquilo com uma olhadela: eletroencefalógrafo, eletrocardiógrafo, monitor de pressão arterial com Doppler. Uma sonda central já havia sido fixada no tórax da paciente,ligada a um dispositivo de gotejamento intravenoso. Um dos homens desfazia as dobras de um cateter vesical.

Devesh ergueu uma das mãos na direção da mulher acamada.

—        Deixe-me apresentá-la à dra. Susan Tunis, uma bióloga marinha de Queensland e uma das primeiras pessoas a se deparar com a floração tóxica de cianobactérias. Eu creio que a senhora já conheceu outro colega dela: o John Doe lá embaixo, na ala de isolamento.

Lisa permaneceu perto da porta, sem saber por que fora trazida ali e ainda entorpecida em virtude do assassinato gratuito do dr. Lindholm. Mesmo que aquela fosse uma das primeiras vítimas, o que aquilo tinha a ver com ela? Ela não era virologista nem bacteriologista.

—        Não estou entendendo — disse ela, expressando sua confusão. — Existem médicos mais qualificados a bordo do navio.

Devesh descartou a afirmação dela.

—        Nós temos técnicos para atender às necessidades médicas dela. Lisa franziu o cenho.

—        Então por que...?

—        Dra. Cummings, a senhora é uma exímia fisiologista, com uma significativa experiência em pesquisa de campo. Porém, mais importante ainda, a senhora se revelou bastante talentosa nos seus serviços à Sigma no passado. Nós precisaremos dessa inovação e experiência aqui para me assistir pessoalmente neste caso.

—        Por que ela? Por que este caso?

—        Porque esta paciente possui a chave de tudo. — Devesh olhou para a mulher, e os olhos dele estreitaram-se de preocupação pela primeira vez. — Ela guarda um enigma que vai muito longe no passado histórico, um enigma que remonta a Marco Polo e suas viagens por estas águas... e para dentro de um mistério maior.

—        Marco Polo? O explorador?

Devesh fez sinal com uma das mãos.

—        Como eu disse antes, essa é uma pista que estamos deixando para outro braço da Guilda. — Ele acenou com a cabeça na direção da mulher. — Todos os nossos esforços aqui, toda a pesquisa a bordo do navio, todos os sacrifícios que ainda estão por vir, tudo isso se concentra nesta mulher.

—        Eu ainda não compreendo. Por que ela é tão importante?

A voz de Devesh baixou.

—        Esta mulher... ela está se transformando. Como as bactérias. A Estirpe de Judas está crescendo dentro dela.

—        Mas pensei que o senhor tivesse dito que o vírus não infectava células humanas.

—        Ele não as infecta. Ele está fazendo outra coisa dentro dela.

—        O quê?

Devesh encarou Lisa.

—        Ele está incubando.

 

Em menos de um dia, Gray havia percorrido em fuga metade do globo, e acabou em outro mundo. Dos minaretes das incontáveis mesquitas de Istambul, os muezins chamavam os fiéis muçulmanos para a oração matinal. O sol nascente projetava longas sombras e iluminava as cúpulas e torres da cidade.

Gray tinha uma vista panorâmica do restaurante no terraço, onde aguardava com Seichan e Kowalski. Nenhum deles parecia feliz. Estavam cansados por causa da mudança de fuso horário e tensos. Porém, a dor surda atrás dos olhos de Gray tinha mais a ver com suas próprias preocupações. Perseguido por assassinos, caçado pelo seu próprio governo, ele começara a duvidar da sensatez da atual parceria.

E agora aquela estranha convocação a Istambul. Por quê? Não fazia o menor sentido. Mas pelo menos dessa vez Seichan parecia igualmente desnorteada. Ela gotejou mel numa pequena xícara de chá turco com a borda dourada. O garçom que servia o chá, usando um colete bordado tradicional azul e dourado, ofereceu mais a Gray.

Ele sacudiu a cabeça, já excitado por causa da cafeína.

O garçom não se preocupou com Kowalski. O homenzarrão — que usava calças jeans, camiseta preta e um casaco cinza leve e comprido — havia ignorado o chá e fora direto para a sobremesa. Ele bebericava de um copo resfriado de aguardente de uva, chamada raki.

— Tem gosto de alcaçuz e asfalto — comentou ele, torcendo o lábio, mas isso não o impediu de consumir dois copos. Ele também descobriu a mesa do bufê, passou manteiga numa pilha de pães e serviu-se de uma grande quantidade de azeitonas, pepinos, queijo e meia dúzia de ovos cozidos.

Gray estava sem apetite. Tinha preocupações demais, perguntas demais.

Ele se levantou e foi até a meia-parede que circundava o terraço panorâmico, tomando cuidado de permanecer à sombra do guarda-sol de uma mesa. Istambul, uma área de ação de terroristas, estava sob constante vigilância por satélite. Gray se perguntou se suas feições já estavam sendo examinadas por um programa de reconhecimento facial em alguma agência de inteligência.

Naquele momento, era a Sigma ou a Guilda que estava fechando o cerco?

Seichan juntou-se a ele, pondo sua xícara de chá sobre o peitoril azulejado. Ela dormira durante todo o vôo até ali, reclinada na primeira classe. Com o repouso, sua cor havia melhorado muito, embora ela ainda mancasse, evitando forçar o lado ferido. A bordo do avião, havia trocado as roupas apertadas por um traje mais folgado, composto de calças caqui e de uma blusa azul-escura drapejada, mas conservara as botas Versace pretas de motociclista.

—        Por que você acha que monsenhor Verona nos chamou até aqui? — indagou ela. — A Istambul.

Virando-se, Gray apoiou um dos quadris na parede.

—        O quê? Quer dizer que agora estamos conversando?

Ela revirou levemente os olhos, exasperada. Desde que eles haviam deixado o consultório dentário na Universidade Georgetown, Seichan se recusara a fornecer quaisquer outras explicações. Não que eles houvessem tido muito tempo. Na fuga, ela havia parado apenas o tempo suficiente para dar um telefonema. Para o Vaticano. Gray tinha ouvido a conversa. Parecia que Vigor estava à espera da ligação dela, e não ficara surpreso por Gray estar com ela.

—        A notícia se espalhou — explicou o monsenhor. — A Interpol, a Europol, todo mundo está procurando vocês. Suponho que foi você, Seichan, que me deixou aquela breve mensagem na Torre dos Ventos.

—        O senhor encontrou a inscrição.

—        Sim, eu a encontrei.

—        E o senhor reconheceu a escrita.

—        Claro.

Seichan pareceu aliviada.

—        Então não temos muito tempo. Muitas vidas estão em perigo. Se o senhor pudesse reunir os seus recursos, imaginar o que...

—        Eu sei o que a inscrição significa, Seichan — Vigor a censurara, interrompendo-a. — E sei o que ela implica. Se vocês dois quiserem saber mais, me encontrem no hotel Ararat, em Istambul. Estarei lá às sete da manhã, no restaurante no terraço panorâmico do hotel.

Após o telefonema, Seichan conseguira rapidamente documentos falsos e providenciara o transporte deles. Ela assegurou a Gray que a Guilda nada sabia dos contatos dela.

—        Apenas favores devidos — explicou ela.

Com uma expressão de dor, ela virou-se para fitá-lo, trazendo-o de volta ao presente. Ela esbarrou o cotovelo na xícara de chá, mas Gray segurou-a antes que despencasse na rua lá embaixo. Seichan olhou fixamente para a xícara em que esbarrara com uma ligeira pontada de preocupação no canto dos olhos. Gray suspeitou de que aquele descuido fosse raro naquela mulher, que estava sempre no controle.

Com a mesma rapidez, a expressão dela voltou a endurecer.

—        Eu sei que o deixei às cegas — disse ela. — Assim que monsenhor Verona chegar, explicarei tudo. — Ela fez um aceno de cabeça na direção dele. — Mas e quanto a você? Fez algum progresso com a escrita do obelisco?

Gray simplesmente deu de ombros, deixando-a pensar que ele sabia de alguma coisa.

Ela encarou-o e então suspirou.

—        Ótimo.

Ela voltou para a mesa deles.

Seichan havia fornecido a Gray fotografias e uma cópia impressa da escrita angélica. A caminho dali, ele tentara decifrar o código encerrado na escrita, porém havia variáveis demais. Ele precisava de mais informações. Além disso, suspeitava de que já soubesse a mensagem do código: quebre o obelisco e descubra o tesouro dentro dele.

Eles já tinham feito isso.

Gray usava o crucifixo de prata num cordão pendurado ao pescoço. Já o havia examinado: sem dúvida, era antigo e bastante gasto. Mesmo sob uma lente de aumento, ele não conseguira discernir nenhuma escrita, nenhuma pista importante que confirmasse a afirmação absurda de Seichan de que a cruz um dia pertencera ao confessor de Marco Polo, o navegador e explorador.

Sozinho junto ao balaústre, Gray examinou a cidade, já movimentada de manhã cedo. Abaixo, ônibus competiam com carros e pedestres. O berro de buzinas tentava abafar os gritos mais agudos de vendedores ambulantes e o murmúrio contínuo de turistas madrugadores.

Ele perscrutou a vizinhança imediata, à procura de qualquer sinal de ameaça ou de aproximação suspeita. Será que eles haviam se livrado de Nasser? Tendo colocado metade do mundo entre eles, Seichan parecia confiante. Mas Gray se recusava a diminuir a guarda. Abaixo, no pátio do hotel, dois homens ergueram-se de cobertores adornados com contas, depois de terminarem suas orações matinais, e desapareceram de volta no hotel. Sozinha agora, uma criança molhava-se distraidamente no chafariz do pátio.

Satisfeito, Gray deixou seu olhar mover-se mais alto por um instante. O hotel Ararat ficava no coração do bairro mais antigo de Istambul, o Sultanahmet. Em toda a extensão até o mar, construções antigas erguiam-se como ilhas da confusão das ruas mais baixas. Bem no outro lado do hotel, as cúpulas imponentes da Mesquita Azul elevavam-se em direção ao céu. Mais abaixo da rua, uma imensa igreja bizantina erguia-se meio rodeada por um andaime preto, como se a armação de ferro tentasse arrastar o edifício para o seio da terra. E, além do andaime, o palácio Topkapi espraiava-se em meio a pátios e jardins.

Gray sentiu o peso das eras naquelas magníficas obras-primas da arquitetura, monumentos de pedra da História. Seus dedos tocaram distraidamente a cruz em volta de seu pescoço. Ali estava outro objeto antigo, com sua origem repleta de significado histórico. Porém, o que ele tinha a ver com a ameaça global mencionada por Seichan? Uma cruz que um dia pertencera ao padre confessor de Marco Polo?

—        Ei, Ali Babá! — Kowalski gritou atrás dele. — Mais um desses drinques de alcaçuz.

Gray reprimiu um suspiro.

—        Ele é chamado de raki — uma nova voz corrigiu, cheia de autoridade professoral.

Gray virou-se. Uma figura familiar e bem-vinda saiu da escada encoberta pelas sombras e entrava no terraço panorâmico. Monsenhor Vigor Verona falou em turco com o garçom que servia o chá, educado, num tom de desculpa.

—        Bir sise raki lüften.

O garçom sorriu com um aceno de cabeça e afastou-se.

Vigor aproximou-se da mesa deles. Gray notou a falta do colarinho romano em torno do pescoço do homem. Sem dúvida, o monsenhor estava viajando incógnito. Livre do colarinho, Vigor parecia dez anos mais jovem do que os seus 60 anos. Ou talvez fossem suas roupas informais: calças jeans azul-escuras, botas de caminhada e camisa preta com as mangas arregaçadas. Também carregava uma mochila surrada a tiracolo. Parecia pronto para escalar o monte que dera nome ao hotel Ararat, em busca da Arca de Noé.

E talvez há muito tempo o monsenhor tivesse feito mesmo aquela longa caminhada.

Antes de ser promovido a prefeito dos arquivos do Vaticano, Vigor trabalhara como arqueólogo bíblico para a Santa Sé. Esse cargo também lhe permitira servir ao Vaticano de outra forma: como espião. O disfarce de Vigor como arqueólogo lhe permitira viajar ampla e intensamente, uma situação perfeita para abastecer a Santa Sé com informações secretas e de outros tipos.

Ele também ajudara a Sigma no passado.

E parecia que seus conhecimentos eram necessários de novo.

Vigor acomodou-se na cadeira com um longo suspiro. O garçom que servia o chá voltou e pôs uma xícara de chá fumegante em frente ao recém-chegado.

—        Tesekkürler — disse Vigor, agradecendo ao homem.

Kowalski endireitou-se na cadeira quando o garçom saiu, olhando fixamente para o seu copo vazio e para as costas do colete bordado do homem. Curvou-se, praguejando baixinho por entre os dentes por causa da má qualidade do serviço.

—        Comandante Pierce. Seichan — começou Vigor. — Obrigado por terem aceitado minha solicitação. E, marinheiro Joe Kowalski, é maravilhoso conhecê-lo.

Algumas outras amenidades foram trocadas. Vigor mencionou com hesitação sua sobrinha Rachel. Era um assunto embaraçoso. O rompimento entre Gray e Rachel havia sido um acordo mútuo, mas Vigor ainda protegia muito a sobrinha. Não que ela precisasse disso. Parecia que Rachel estava indo muito bem como tenente dos carabinieri, e até fora promovida.

Gray, porém, ficou contente quando Seichan o interrompeu.

—        Monsenhor Verona, por que o senhor nos convocou a Istambul?

Vigor silenciou-a com a palma de uma das mãos erguida, bebericou seu chá e depois baixou sua xícara precisamente sobre a superfície da mesa.

—        Sim, nós chegaremos lá. Mas, antes disso, quero que duas coisas sejam esclarecidas logo de começo. Primeiro, aonde quer que isso conduza, eu irei com vocês. — Ele encarou Gray com um olhar fixo, determinado, e em seguida mudou seu olhar para Seichan. — Segundo, mas não menos importante, quero saber o que tudo isso tem a ver com o nosso ilustre explorador veneziano Marco Polo.

Seichan começou.

—        Como o senhor...? Eu não mencionei nada a respeito de Marco Polo.

Antes que Vigor pudesse responder, o garçom voltou. Kowalski ergueu o olhar, com os olhos cheios de esperança. Aqueles mesmos olhos arregalaram-se ainda mais quando o garçom exibiu uma garrafa cheia de raki e a segurou em frente ao ex-marinheiro.

—        Eu pedi meio litro para você — explicou Vigor.

Kowalski estendeu a mão e apertou o braço de Vigor.

—        Padre, o senhor caiu nas minhas boas graças.

Gray voltou a atenção para Seichan.

—        Então, o que tudo isso tem a ver com Marco Polo?

 

O sedã BMW preto dobrou a esquina próxima ao Dupont Circle e deslizou pelas ruas escuras. Seus faróis de xenônio formavam um caminho azulado ao longo da avenida ladeada de elmos. Fileiras de edifícios de apartamentos emolduravam a rua, criando um cânion urbano.

Ele em nada se parecia com os cânions do país de Nasser, onde apenas cabras andavam a esmo, e cavernas e túneis serviam de habitação para as tribos nômades afegãs. Todavia, mesmo aquele país não era sua verdadeira pátria. Quando Nasser tinha 8 anos de idade, seu pai partira do Cairo para o Afeganistão, após a libertação do país das forças russas, a fim de juntar-se àqueles que procuravam um Islã puro. O irmão e a irmã mais novos de Nasser também haviam sido levados para lá. Não lhes restara escolha. Na véspera da partida, seu pai havia estrangulado sua mãe, usando o cachecol de escola do próprio Nasser. Sua mãe não queria partir do Egito e desaparecer para sempre embaixo de uma burca. Ela havia conversado, se queixado aos ouvidos errados.

As crianças tinham sido obrigadas a assistir, ajoelhando-se em submissão, quando os olhos de sua mãe ficaram protuberantes e a língua inchou, punida pelas mãos de seu pai.

Foi uma lição que Nasser aprendeu bem.

Ser frio. De todas as formas.

As lâmpadas de xenônio varreram uma esquina. Do banco do carona, Nasser apontou para o meio do quarteirão.

—        Pare ali.

O motorista, com o nariz fraturado protegido por um curativo, após o seqüestro fracassado, fez o sedã deslizar até o meio-fio. Nasser virou-se a fim de olhar para o banco traseiro, no qual duas figuras se aconchegavam.

Annishen, toda vestida de preto, quase desaparecia nos acessórios de couro. Ela também usava um capuz na cabeça raspada, o que lhe dava a aparência de um monge. Seus olhos brilhavam intensamente na escuridão. Um de seus braços envolvia seu companheiro, e ela inclinava-se de encontro a ele, num gesto de intimidade.

Ele ainda choramingava através da mordaça. Sangue escurecia um lado de seu rosto e sua garganta. Em suas mãos atadas, presas entre os joelhos, ele ainda segurava a própria orelha direita. Nasser descobrira o nome do homem num fichário giratório de mesa.

Um médico.

—        É este o lugar? — perguntou Nasser.

O homem fez um vigoroso aceno de cabeça, fechando os olhos com força depois de verificar o endereço.

Nasser observou o saguão do edifício. Um vigia noturno estava sentado atrás de uma escrivaninha lá dentro. Uma câmera de segurança projetava-se acima das portas de vidro à prova de balas. Segurança total. Nasser esfregou o polegar ao longo da extremidade do cartão-chave em sua mão, um presente de cortesia do passageiro deles.

Após um dia cheio, Nasser estava finalmente de volta ao rastro do americano e da traidora da Guilda. Na noite anterior, ele vasculhara a pequena casa no bairro de Takoma Park. Descobrira na garagem a motocicleta danificada de Seichan, mas pouco mais do que isso. Não encontrara nenhum sinal do obelisco, com a exceção de um fragmento de mármore egípcio na entrada de veículos.

No interior da casa, porém, Alá lhe sorrira.

Nasser descobrira um fichário giratório de mesa.

Com os nomes de vários médicos.

Levara o restante do dia para descobrir o nome certo.

Ele voltou a se virar.

—        Obrigado, dr. Corrin. O senhor me deu o apoio de que eu precisava.

Nasser não precisou acenar com a cabeça para Annishen. O punhal dela penetrou entre as costelas do homem e abriu-lhe o coração. Era uma técnica do Mossad que Nasser ensinara a Annishen. Ele mesmo só a havia empregado uma vez antes.

Enquanto seu pai orava ajoelhado.

Não fora a vingança de uma criança. Apenas justiça.

Nasser abriu a porta do sedã. Ele devia isso a seu pai — ainda que apenas pela lição ensinada a um menino de 8 anos, ajoelhado diante da mãe estrangulada.

Aquela lição lhe seria útil outra vez naquela noite.

Ser frio. De todas as formas.

Saindo do carro, Nasser foi até a porta traseira e abriu-a. Annishen saiu do banco traseiro, erguendo-se com um ruído de couro preto, resplandecente numa jaqueta de couro de bezerro de design italiano e numa roupa de suede escuro, que harmonizavam com o terno Armani dele. Não havia nela uma gota de sangue sequer, provando mais uma vez a habilidade de sua arte. Ele passou um dos braços em torno dela e fechou a porta.

Ela inclinou-se de encontro a ele.

—        A noite ainda é uma criança — sussurrou ela com um suspiro de contentamento.

Ele puxou-a para mais perto de si. Apenas dois amantes voltando de um jantar de fim de noite.

A noite de verão ainda estava úmida e quente, mas o saguão do edifício tinha ar-condicionado. As portas se abriram num suspiro para saudá-los com um movimento do cartão-chave do dr. Corrin. O vigia ergueu o olhar de sua escrivaninha.

Nasser fez um aceno de cabeça para ele e dirigiu-se a passos largos para o hall de elevadores próximo. Annishen ofereceu-lhe um sorriso amarelo, ronronando contra o flanco de Nasser, claramente ansiosa para chegarem ao apartamento deles. A mão dela moveu-se para a Glock no coldre preso à cintura dele.

Por via das dúvidas...

O guarda, porém, simplesmente respondeu ao aceno de cabeça, murmurou um boa-noite e voltou a atenção para a revista que estava lendo.

Nasser sacudiu a cabeça quando chegou ao hall de elevadores. Típico. O que se passava por segurança ali nos Estados Unidos era mais exibição do que essência.

Ele chamou o elevador apertando um botão.

Pouco depois, Nasser e Annishen estavam em frente ao apartamento 512. Ele passou o mesmo cartão-chave pela fechadura da porta. A luz indicadora mudou de vermelha para verde.

Ele olhou de relance para Annishen e interpretou a dança nos olhos dela, incitada pelo derramamento de sangue anterior.

—        Precisamos de pelo menos um deles vivo — advertiu ele. Ela fingiu que fazia beicinho e sacou a arma.

Com um dedo, Nasser empurrou a maçaneta da porta para baixo. Ele abriu com cautela a porta fixada a dobradiças bem untadas. Nem um rangido sequer. Ele entrou primeiro, deslizando para o vestíbulo de mármore. Uma luz emanava de um quarto nos fundos.

Nasser parou bem à entrada.

Um de seus olhos estreitou-se.

O ar estava parado demais. Quieto demais. Ele não precisava ir além. Prendeu a respiração. Sabia que o apartamento estava vazio.

Acenou, no entanto, para que Annishen fosse para um lado e seguiu para o outro. Em instantes, eles vasculharam as dependências do apartamento, checando até os armários.

Não havia ninguém ali.

Annishen estava em pé no quarto principal. A cama estava arrumada e parecia intocada.

—        O doutor mentiu para nós — disse ela com clara irritação e um moderado tom de respeito. — Eles não estão aqui.

Nasser estava abaixado no banheiro principal, apoiado num dos joelhos. Ele avistara no chão algo que rolara para debaixo da beira do toucador de cerejeira do banheiro.

Ele pegou-o.

Um frasco vermelho de medicamentos controlados. Vazio. Ele leu o rótulo. O paciente era Jackson Pierce.

—        Eles estiveram aqui — sussurrou ele com a voz dura, e levantou-se.

O dr. Corrin não mentira. Ele lhes dissera a verdade — ou, pelo menos, o que julgava fosse a verdade.

—        Eles foram embora — disse Nasser, e voltou a passos largos para o quarto.

Ele apertou o frasco de comprimidos vazio no punho, reprimindo a fúria. O comandante Pierce lhe pregara outra peça. Primeiro com o obelisco, depois com o subterfúgio de seus pais.

—        E agora? — indagou Annishen. Ele ergueu o frasco de comprimidos.

Uma última oportunidade.

 

—        Para começar, o que você sabe a respeito de Marco Polo? — perguntou Seichan.

Ela havia posto um par de óculos com lentes azuis. O sol erguera-se o suficiente para que o restaurante no terraço panorâmico se transformasse num misto de sombras e brilho intenso. Eles haviam passado para uma mesa de canto isolada, abrigada sob um guarda-sol.

Gray percebeu a clara hesitação na voz dela — e talvez um vestígio de alívio. A vontade dela oscilava entre um desejo cauteloso de controlar o fluxo de conhecimentos e uma compulsão de se libertar da carga de seu peso.

—        Polo foi um explorador do século XIII — respondeu Gray. Ele lera um pouco sobre o homem na viagem até ali. — Junto com seu pai e seu tio, Marco passou vinte anos na China como hóspede de honra do imperador mongol Kublai Khan. E, depois de regressar à Itália em 1295, ele narrou suas viagens a um escritor pisano chamado Rustichello, que as registrou.

O livro de Marco, A descrição do mundo, transformou-se num sucesso instantâneo na Europa, arrebatando o continente com suas histórias fantásticas: de vastos e solitários desertos na Pérsia, fervilhantes cidades na China, terras muito distantes habitadas por idólatras e feiticeiros nus, ilhas repletas de canibais e animais estranhos. O livro incitou a imaginação da Europa. Até mesmo Cristóvão Colombo levou consigo um exemplar em sua viagem ao Novo Mundo.

—        Mas o que é que isso tem a ver com o que está acontecendo hoje? — concluiu Gray.

—        Tudo — respondeu Seichan, olhando ao redor da mesa.

Vigor bebericava seu chá. Kowalski estava com a orelha encostada num dos punhos apoiado por um cotovelo. Apesar de o homem parecer entediado, Gray notou como seus olhos se moviam ao redor, observando-os a todos, acompanhando a interação. Gray suspeitou de que houvesse profundezas até então inexploradas no homem. Kowalski alimentava distraidamente pardais saltitantes com farelos de biscoitos.

Seichan prosseguiu:

—        As histórias de Marco Polo não eram tão bem definidas quanto a maioria das pessoas acredita. Não existem textos originais do livro de Marco Polo, apenas cópias de cópias. E em cada uma dessas traduções e reedições surgiram diferenças notáveis.

—        Sim, eu li sobre isso — disse Gray, tentando fazer com que ela se apressasse.

—        São tantas as disparidades que algumas pessoas hoje em dia se perguntam se Marco Polo de fato existiu, ou se foi apenas uma invenção do escritor pisano.

—        Ele existiu — insistiu Seichan. Vigor acenou a cabeça em concordância.

—        Eu soube dos argumentos contra Marco Polo, das significativas lacunas nas suas descrições da China. — O monsenhor ergueu a xícara. — Como a paixão do Extremo Oriente por beber chá, uma infusão desconhecida dos europeus na época. Ou a prática do enfaixe dos pés ou o uso de pauzinhos para comer. Marco deixa até mesmo de mencionar a Grande Muralha. Sem dúvida, são omissões gritantes e suspeitas. Mas Marco também mencionou muitas coisas corretamente: a peculiar manufatura da porcelana, a queima do carvão, até mesmo o primeiro uso do papel-moeda.

Gray percebeu a convicção na voz do monsenhor. Talvez fosse apenas o orgulho italiano de Vigor, mas Gray sentiu uma confiança mais profunda.

—        De qualquer modo — Gray afinal admitiu —, o que isso tem a ver conosco?

—        O fato de que existe outra grave omissão em todas as edições do livro de Polo

—        disse Seichan. — Ela diz respeito à viagem de Marco de volta à Itália. Kublai Khan recrutou os Polo para escoltarem uma princesa mongol chamada Kokejin até o seu noivo na Pérsia. Para essa grande empreitada, o Khan forneceu ao grupo 14 galeras imensas e mais de seiscentos homens. No entanto, quando eles chegaram ao porto na Pérsia, apenas dois navios e 18 homens haviam sobrevivido à viagem.

—        O que aconteceu ao restante? — murmurou Kowalski.

—        Marco Polo jamais contou. O escritor pisano Rustichello alude a alguma coisa no prefácio do famoso livro, uma tragédia ocorrida em meio às ilhas do Sudeste Asiático. Mas isso jamais foi escrito. Mesmo em seu leito de morte, Marco Polo se recusou a dizer o que aconteceu.

—        E isso é verdade? — indagou Gray.

—        É um mistério que jamais foi solucionado — respondeu Vigor. — A maioria dos historiadores supôs que doença ou piratas tivessem atacado a frota. Tudo o que de fato se sabe é que os navios de Marco ficaram por cinco meses à deriva entre as ilhas indonésias, escapando apenas com uma parte da frota do Khan intacta.

—        Então — perguntou Seichan, insistindo na importância —, por que uma parte tão dramática da viagem de Marco seria deixada de fora de seu livro? Por que ele a levou consigo para o túmulo?

Gray não tinha resposta. Mas o mistério despertou uma incômoda preocupação. Ele sentou-se um pouco mais ereto. Em sua cabeça, começou a ter uma vaga noção de aonde aquilo poderia estar conduzindo.

A fisionomia de Vigor ficou ainda mais sombria.

—        Você sabe o que aconteceu entre aquelas ilhas, não sabe? Ela inclinou a cabeça em afirmação.

—        A primeira edição do livro de Marco Polo foi escrita em francês. Mas houve um movimento durante a vida de Marco para que fossem reproduzidos livros no dialeto italiano. Esse movimento foi impulsionado por um famoso contemporâneo de Marco Polo.

—        Dante Alighieri — disse Vigor.

Gray olhou de relance para o monsenhor.

Vigor explicou:

—        A divina comédia, de Dante, incluindo o famoso Inferno, foi o primeiro livro escrito em italiano. Até mesmo os franceses passaram a chamar a língua italiana de la langue de Dante.

Seichan acenou afirmativamente com a cabeça.

—        E essa revolução não foi ignorada por Marco. De acordo com os registros históricos, ele traduziu um exemplar em francês do seu livro para a sua língua nativa, a fim de que seus compatriotas o compreendessem. Mas, enquanto o traduzia, fez uma cópia secreta para si mesmo. Nesse livro, ele finalmente relatou o que aconteceu com a frota do Khan, escreveu essa história derradeira.

—        Impossível — murmurou Vigor. — Como esse livro teria permanecido oculto por tanto tempo? Onde ele estava?

—        A princípio, na propriedade da família Polo. Mas, com o tempo, ele foi parar num lugar mais seguro — respondeu Seichan, olhando fixamente para Vigor.

—        Você não está querendo dizer...

—        Os Polo foram enviados ao estrangeiro por ordem do papa Gregório. Há quem afirme que o pai e o tio de Marco foram os primeiros espiões do Vaticano, enviados como agentes duplos à China para verificar o poderio das forças mongóis. Os verdadeiros fundadores da agência para a qual o senhor um dia trabalhou, monsenhor Verona.

Vigor afundou em sua cadeira, refugiando-se em seus próprios pensamentos.

—        O diário secreto estava oculto nos arquivos — murmurou ele.

—        Esquecido, sem registro. Apenas outra edição do livro de Marco, a um olhar superficial. Seria necessária uma leitura meticulosa para perceber que havia um capítulo extra entremeado quase no fim do livro.

—        E a Guilda conseguiu essa edição? — perguntou Gray. — Ficou sabendo de alguma coisa importante?

Seichan fez que sim com a cabeça. Gray franziu o cenho.

—        Mas, para início de conversa, como foi que a Guilda botou as mãos nesse texto secreto?

Tirando os óculos escuros, Seichan olhou para o rosto dele, acusadora, zangada.

—        Você o deu a eles, Gray

 

Vigor viu o choque estampado no rosto do comandante.

—        De que diabo você está falando? — indagou Gray.

Vigor também notou o brilho duro de satisfação nos olhos cor de esmeralda da assassina da Guilda. Ela parecia sentir certo prazer em provocá-los. No entanto, ele também percebeu a tenuidade do rosto dela, um pouco de palidez em suas faces. Ela estava amedrontada.

—        Todos nós somos culpados — disse Seichan, acenando com a cabeça também para Vigor.

Vigor reagiu com tranqüilidade, sem fazer o jogo dela. Estava velho demais para que o seu sangue esquentasse tão facilmente. Além disso, já havia entendido.

—        O símbolo da Corte do Dragão — disse Vigor.—Você o pintou no chão. Eu pensei que fosse um aviso para mim, um pedido para investigar a inscrição angélica.

Seichan confirmou com um aceno de cabeça e recostou-se. Ela percebeu a compreensão nos olhos dele.

—        Mas era mais do que isso — prosseguiu ele.

Vigor lembrou-se do homem que antes ocupara seu lugar nos Arquivos do Vaticano, o dr. Alberto Menardi, um traidor que trabalhava secretamente para a Real Corte do Dragão. O homem furtara dos arquivos muitos textos importantíssimos durante o exercício do cargo e os transferira para uma biblioteca particular num castelo na Suíça. Gray, Seichan e Vigor tinham sido providenciais no desmascaramento do homem, destruindo a seita da Corte do Dragão. O castelo acabou passando por herança para a família Verona, uma propriedade amaldiçoada, com uma história longa e sangrenta.

—        A biblioteca de Alberto no castelo — disse Vigor. — Depois de todo o derramamento de sangue e horror, assim que a polícia nos permitiu ir ao local, descobrimos que a biblioteca inteira não estava mais lá. Havia desaparecido.

—        Por que não fui informado disso? — perguntou Gray, surpreso.

Vigor suspirou.

—        Supusemos que tivessem sido ladrões do lugar... ou, talvez, corrupção entre policiais italianos. A biblioteca do traidor tinha muitas antigüidades preciosas. E, por causa do interesse de Alberto, havia muitos livros sobre conhecimentos arcanos.

Por mais que Vigor desprezasse o ex-prefeito, ele também reconhecia o brilho de Alberto Menardi, um gênio por mérito próprio. E, como prefeito dos arquivos por mais de trinta anos, Alberto conhecia todos os seus segredos. Ele teria valorizado e ficado fascinado por uma descoberta como aquela, uma edição de A descrição do mundo, de Marco Polo, com um capítulo extra oculto.

Mas o que o antigo prefeito havia lido? O que o fizera furtar o livro? O que despertara o interesse e a atenção da Guilda?

Vigor fitou Seichan.

—        Mas não foram ladrões comuns que limparam a biblioteca, não é mesmo? Você contou à Guilda sobre os tesouros que se encontravam lá.

Seichan nem ao menos teve a audácia de se esquivar da acusação.

—        Não tive escolha. Há dois anos, a biblioteca me trouxe novo alento, depois que ajudei vocês dois. Eu não tinha a menor idéia do horror que ela ocultava.

Gray havia permanecido em silêncio durante o diálogo deles, observando com os olhos estreitados. Vigor quase podia sentir as engrenagens girando, rodas parasitas caindo em novas fendas. Como Alberto, Gray tinha uma mente única, uma forma de rearranjar fragmentos díspares e descobrir uma nova configuração. Não era de admirar que Seichan o tivesse procurado.

Gray acenou com a cabeça para ela.

—        Você leu esse texto, Seichan. O verdadeiro relato da viagem de regresso de Marco Polo.

Como resposta, ela empurrou sua cadeira para trás, inclinou-se e abriu o zíper da bota esquerda. Tirou dali três folhas soltas, dobradas e enfiadas num bolso interno. Empertigando-se, alisou as folhas, abrindo-as, e deslizou-as sobre a mesa.

—        Assim que comecei a suspeitar do que a Guilda pretendia — disse ela —, tirei uma cópia do capítulo traduzido.

Vigor e Gray se aproximaram, ficando ombro a ombro, a fim de examinar as folhas juntos. O marinheiro grandalhão também se inclinou, com o hálito recendendo ao anis do raki.

Vigor correu os olhos pelo título e pelas primeiras linhas.

 

Agora sucedeu, depois de decorrido um mês inteiro além do último porto, que nós procuramos nos reabastecer de água doce de um rio e consertar dois navios. Fomos conduzidos em pequenos barcos, e nessa ocasião a abundância dos pássaros e a densidade da flora nos impressionavam. Carne salgada e frutas também se haviam esgotado. Viemos com 42 dos homens do Grande Khan, armados com lanças e flechas; e, como as ilhas próximas eram habitadas por idólatras nus que comiam a carne de outros homens, essa proteção do corpo era considerada sábia.

 

Vigor continuou a ler, reconhecendo a cadência e a prosa rigidamente arcaica de A descrição do mundo. Será que aquelas palavras eram mesmo de Marco Polo? Se eram, ali estava um capítulo em que apenas algumas pessoas haviam botado os olhos. Vigor desejava ler o original, sem confiar inteiramente na tradução; porém, ainda mais importante, queria ler com atenção o dialeto original, a fim de estar ainda mais próximo do famoso viajante medieval. Ele continuou a leitura:

 

De uma curva no rio, um dos homens do Khan gritou e apontou para uma elevação escarpada de outro pico a certa distância da parte plana do vale. Ele se situava vinte milhas terra adentro, nas profundezas da floresta densa; mas não era uma montanha. Era a torre de um grande edifício; e outras torres eram agora avistadas, meio ocultas nas brumas. Com dez dias sem nada para fazer por causa dos reparos, e como os homens do Khan desejavam caçar os muitos pássaros e animais a fim de obter carne fresca, partimos para procurar esses construtores de montanhas, um povo desconhecido e não-mapeado.

 

Após a primeira página, Vigor sentiu uma ameaça palpável crescendo por trás da narrativa despretensiosa de Marco. Em palavras simples, ele relatava como "os pássaros e os animais da floresta foram ficando quietos". Marco e os caçadores continuaram, seguindo urna trilha até as profundezas da selva, "percorrida por esses construtores de montanhas".

Afinal, quando o crepúsculo estava próximo, o grupo de Marco chegou a uma cidade de pedra.

 

A floresta abriu-se para uma grande cidade de muitas torres, cada qual coberta com rostos esculpidos de ídolos. Eu jamais descobriria qual era a feitiçaria diabólica empregada por esse povo; mas Deus, em Sua vingança misericordiosa, castigara essa cidade e a própria floresta com uma grande praga e pestilência. O primeiro corpo foi o de uma criança nua. Seu corpo estava com furúnculos até os ossos e coberto com grandes formigas pretas. Para qualquer lado que se virasse, os olhos pousavam sobre outro corpo e mais outro. Uma contagem de várias centenas não corresponderia à mortandade ali; e a morte não estava restrita ao pecado do homem. Pássaros haviam caído do céu. Animais da floresta jaziam em pilhas retorcidas. Grandes serpentes pendiam mortas dos galhos das árvores.

Era uma Cidade dos Mortos. Temendo a pestilência, procuramos partir a toda pressa. Porém, nossa passagem foi observada. Da parte mais profunda da floresta, eles vieram: sua carne nua não era mais saudável do que a daqueles que estavam espalhados ao longo dos degraus e praças de pedra, ou flutuando nos fossos verdes. Os membros estavam apodrecidos a ponto de exporem a carne embaixo. Outros exibiam vergões e furúnculos empolados que lhes cobriam a maior parte da pele; e outros, ainda, ostentavam barrigas pejadas de inchaço. Por toda parte, feridas exsudavam e exalavam gases. Alguns estavam cegos; outros, cobertos de feridas. Era como se mil pragas houvessem devastado aquela terra; uma legião de pestilência. Saindo do abrigo coberto de folhas, eles moviam-se em grupos com os dentes à mostra, como animais selvagens. Outros exibiam braços e pernas decepados. Que Deus me proteja mesmo agora, pois muitos daqueles membros estavam roídos.

 

Vigor sentiu um calafrio, apesar do crescente calor da manhã. Lia com um horror entorpecedor enquanto Marco descrevia como seu grupo fugira mais para o interior da cidade, à procura de refúgio contra o exército voraz. O veneziano descreveu minuciosamente o massacre e o canibalismo. Quando o crepúsculo caiu, o grupo de Marco retirou-se para um dos edifícios altos, esculpidos com cobras que se contorciam e com reis mortos havia muito. Os homens organizaram uma resistência final, certos de que seu pequeno grupo seria esmagado à medida que cada vez mais canibais doentes entrassem na cidade.

Gray murmurou entre os dentes, sem que suas palavras fossem ouvidas, mas sua descrença era óbvia.

 

Agora que o sol baixou, aconteceu o mesmo com as nossas esperanças. Cada um ao seu modo pronunciava orações aos céus. Os homens do Khan queimaram pedaços de madeira e esfregaram as cinzas no rosto. Ku tinha apenas meu confessor. Frei Agreer ajoelhou-se comigo e ofereceu nossas almas a Deus com preces sussurradas. Agarrou seu crucifixo e pintou minha testa com a cruz do sofrimento de Cristo. Ele usou as mesmas cinzas que os homens do Khan haviam usado. Olhei para os rostos marcados dos outros homens e me perguntei: numa provação como aquela, éramos todos iguais'' Pagãos e cristãos? E, no fim das contas, a prece de quem foi atendida? A prece de quem trouxe a Virtude contra essa pestilência para o nosso meio; uma Virtude sombria que nos salvou a todos.

 

A história parava aí.

Gray virou o papel, procurando mais.

Kowalski recostou-se e deu sua única contribuição para a discussão histórica.

—        Falta sexo nessa história — murmurou, e tentou em vão conter um arroto com um dos punhos.

Franzindo o cenho, Gray bateu de leve num nome na última página.

—        Aqui... esta menção a frei Agreer.

Vigor acenou com a cabeça, pois tinha detectado o mesmo erro gritante. Sem dúvida, aquele texto era falso.

—        Nenhum sacerdote acompanhou os Polo ao Oriente — ele afirmou em voz alta. — De acordo com os textos do Vaticano, dois frades dominicanos partiram com os Polo, a fim de representar a Santa Sé, mas os dois voltaram depois de alguns dias.

Seichan pegou a primeira página e tornou a dobrá-la.

—        Como no caso deste capítulo secreto, Marco omitiu o frade de suas crônicas. Na verdade, três dominicanos partiram com os Polo, um para cada viajante, conforme o costume da época.

Vigor se deu conta de que ela estava certa. De fato, era esse o costume da época.

—        Apenas dois frades voltaram — afirmou Seichan. — A presença do terceiro foi mantida em segredo... até agora.

Gray moveu-se para trás e deu um puxão no pescoço. Ele tirou um crucifixo de prata e colocou-o em cima da mesa.

—        E você afirma que esta é mesmo a cruz de frei Agreer? Aquela mencionada na história?

O olhar firme de Seichan respondeu à pergunta.

Em silêncio, por causa do choque da súbita revelação, Vigor examinou o crucifixo. Ele não tinha adornos, mal exibia a representação de uma figura crucificada. Vigor podia dizer que era antigo. Será que era autêntico? Ele pegou-o delicadamente da mesa e examinou-o. Se fosse autêntico, sua própria importância atribuía conteúdo às palavras angustiantes de Marco.

Afinal, Vigor conseguiu falar.

—        Mas não estou entendendo. Por que frei Agreer foi eliminado da história?

Seichan estendeu a mão e recolheu as folhas de papel espalhadas.

—        Não sabemos — ela respondeu simplesmente. — As páginas restantes do livro foram arrancadas e substituídas por uma página falsa, costurada na encadernação, mas a qualidade e a idade da nova página datavam de séculos posteriores à encadernação original.

Vigor franziu o cenho por achar aquilo estranho.

—        O que constava da nova página?

—        Eu jamais consegui vê-la, mas me disseram o que estava escrito. Ela continha um desvario desconexo, repleto de referências a anjos e citações bíblicas. Sem dúvida, o redator temia a história de Marco. E, ainda mais importante, a página mencionava detalhadamente um mapa incluído no livro e desenhado pelo próprio Marco. Um mapa que eles julgavam maligno.

—        E o que foi que aconteceu com ele?

—        Apesar de eles o temerem, quem quer que tenha editado o livro também ficou preocupado com a destruição total do mapa. Por isso o redator, junto com algumas outras pessoas, reescreveu o mapa num código que o protegeria e abençoaria.

Gray fez um aceno de cabeça, demonstrando sua compreensão.

—        Então eles o ocultaram em escrita angélica.

—        Mas quem inseriu a página? — indagou Vigor.

Seichan deu de ombros.

—        Ela não estava assinada, mas havia na página referências suficientes para indicar que os descendentes dos Polo haviam entregado o livro secreto de Marco ao papado depois da devastação da Peste Negra no século XIV. Talvez a família receasse que fosse a mesma pestilência que assolara a Cidade dos Mortos e que afinal chegara para destruir o restante do mundo. Foi então que o livro foi acrescentado aos arquivos.

—        Interessante — disse Vigor. — Se você estiver certa, isso poderia explicar por que todos os vestígios da família Polo desapareceram mais ou menos nessa época. Até o corpo de Marco Polo desapareceu da igreja de San Lorenzo, onde ele havia sido enterrado. Era como se houvesse um esforço sistemático de eliminar a família Polo. Alguém datou essa nova página desconexa?

Seichan fez que sim com a cabeça.

—        Ela foi dalada do início do século XVII.

Vigor apertou os olhos.

—        Hum... outro grande surto de peste bubônica varreu a Itália mais ou menos nessa época.

—        Exatamente — disse Seichan. — E foi também nessa época que um alemão chamado Johannes Trithemius desenvolveu a escrita angélica, apesar de sua alegação de se tratar de uma escrita anterior à existência do homem na Terra.

Vigor concordou com a cabeça. Ele fizera seu próprio estudo histórico da escrita angélica. Seu criador acreditava que, ao usar seu alfabeto angélico — supostamente oriundo de um profundo estudo meditativo —, alguém poderia comunicar-se com um coro celestial de anjos. Trithemius também se interessava por criptografia e códigos secretos. Seu famoso tratado, Stenographia, foi considerado de natureza oculta, mas na verdade era uma mistura complexa de angelologia e decifração de códigos.

—        Então, se você quisesse ocultar um mapa naquela época — concluiu Gray —, um mapa que considerasse maligno, encerrá-lo em escrita angélica seria uma boa maneira de se proteger contra os seus perigos.

—        Foi exatamente nisso que a Guilda acabou acreditando. Naquela página secreta havia pistas sobre a localização desse mapa codificado, um mapa agora entalhado num obelisco egípcio e oculto no museu Gregoriano do Vaticano. Mas o obelisco havia desaparecido, perdido no tempo, transferido de lugar. Nasser e eu brincamos de gato e rato à procura dele. Mas eu ganhei. Eu o roubei nas barbas de Nasser.

Vigor percebeu o orgulho amargo na voz dela, porém franziu o cenho e perscrutou os outros rostos.

—        De qual obelisco vocês estão falando?

 

De uma maneira bem superficial, Gray explicou sobre o obelisco egípcio usado para ocultar a cruz do frade e descreveu o código pintado com tinta a óleo fosforescente.

—        Eis o verdadeiro texto — disse Gray, passando sua cópia para Vigor.

O monsenhor examinou o complexo emaranhado de código angélico e sacudiu a cabeça.

—        Não faz o menor sentido para mim.

—        Exatamente — disse Seichan. — A carta desconexa no texto de Marco também faz referências a uma chave do mapa, uma forma de revelar o seu segredo. Uma chave oculta em três partes. A primeira chave foi vinculada à inscrição na sala na qual o texto secreto foi originalmente oculto.

—        Na Torre dos Ventos — disse Vigor. — Um bom esconderijo. A torre estava em construção naquele século. Foi construída para abrigar o Observatório do Vaticano.

—        E, conforme a página falsa no livro de Marco — prosseguiu Seichan —, cada chave levaria à próxima. Por isso, para começarmos, precisamos solucionar o primeiro enigma: a inscrição angélica no Vaticano. — Ela se virou inteiramente para Vigor. — O senhor afirmou que teve êxito. Isso é verdade?

Vigor abriu a boca para explicar, mas Gray pôs uma das mãos sobre o braço dele. Ele não tinha a menor intenção de dar a Seichan todas as suas cartas. Tinha de ter pelo menos um trunfo de reserva.

—        Antes disso — afirmou Gray —, você tem que nos dizer por que a Guilda está envolvida em tudo isso. Qual a vantagem de seguir essa pista histórica desde Marco Polo até o presente?

Seichan hesitou. Ela respirou fundo, pois não sabia se devia mentir ou preparar-se para dizer a verdade. Quando ela falou, confirmou os temores crescentes do próprio Gray.

—        Porque acreditamos que a doença descrita por Marco está à solta de novo — respondeu ela. — Libertada de algumas madeiras antigas das galeras originais de Marco encontradas entre as ilhas indonésias. A Guilda já está no local, pronta para seguir a pista científica. Nasser e eu fomos incumbidos de seguir a pista histórica. Como era o costume da Guilda, o braço direito não deveria saber o que o esquerdo estava fazendo.

Gray entendia a compartimentação da Guilda em células, um padrão estritamente seguido por muitas organizações terroristas.

—        Mas eu roubei algumas informações — disse ela. — Fiquei sabendo da natureza da doença e da sua capacidade de alterar a biosfera para sempre.

Seichan continuou a falar sobre a descoberta de um vírus pela Guilda — alguma coisa denominada Estirpe de Judas — e sua capacidade de transformar todas as bactérias em assassinas.

Ela citou o texto de Marco.

—        "Uma legião de pestilência." Foi isso que assolou a Indonésia. Mas eu conheço a Guilda. Sei o que eles planejam fazer. Ao cultivarem e utilizarem esse patógeno, esperam criar uma grande quantidade de novas armas biológicas bacterianas, uma fonte inesgotável originada desse vírus.

Enquanto Seichan relatava os detalhes da doença, Gray havia segurado a borda da mesa. Os nós de seus dedos doíam. Um terror maior se apossara dele. Antes que ele pudesse falar, Vigor pigarreou.

—        Mas, se o braço científico da Guilda está perseguindo o vírus, qual a importância dessa caçada histórica ao longo das pegadas de Marco Polo? Que diferença isso faz?

Gray respondeu, citando uma linha do texto de Marco.

—        "Uma Virtude sombria que nos salvou a todos." Para mim, isso parece uma cura.

Seichan concordou com um aceno de cabeça.

—        Marco sobreviveu para contar a história. Até mesmo a Guilda não ousaria pôr um vírus desses em ação sem algum meio de controlá-lo.

—        Ou pelo menos de descobrir sua origem — acrescentou Gray.

Vigor olhou na direção da cidade, com o rosto delineado contra o sol nascente.

—        E existem outras perguntas não-respondidas. O que aconteceu com frei Agreer? O que amedrontou o papado?

Gray, porém, tinha uma pergunta mais importante.

—        Exatamente onde na Indonésia aconteceu esse novo surto?

—        Numa ilha remota, felizmente longe de qualquer área muito povoada.

—        Na ilha Christmas — completou Gray.

Os olhos de Seichan arregalaram-se de surpresa. Uma confirmação suficiente.

Gray teve um sobressalto. Todos o encararam. Monk e Lisa tinham ido à ilha Christmas investigar a mesma doença. Eles não tinham a menor idéia do que estavam prestes a confrontar — ou do interesse da Guilda. A respiração de Gray ficou mais pesada. Ele tinha de informar Painter. Porém, com a Sigma comprometida, será que seu alarme exporia seus amigos a mais perigo, será que os transformaria num alvo fácil?

Ele precisava de mais informações.

—        Até que ponto essa operação da Guilda na Indonésia progrediu?

—        Não sei. Foi difícil ficar sabendo o que eu soube.

—        Seichan — Gray rosnou para ela.

Os olhos dela estreitaram-se de preocupação. Agitado como estava, ele quase acreditou que a preocupação dela fosse sincera.

—        Eu... eu na verdade não sei, Gray. Por quê? Qual o problema?

Exalando o ar com força, Gray foi até o balaústre, pois precisava de mais um segundo para pensar, para que tudo o que ficara sabendo se aclarasse dentro dele.

No momento, só tinha uma certeza.

Precisava informar Washington.

 

Harriet Pierce esforçou-se para acalmar o marido. Foi particularmente difícil, porque ele se trancara no banheiro do hotel. Ela pressionou um pano úmido frio no lábio rachado.

—        Jack! Abra a porta!

Ele havia despertado duas horas atrás, confuso e desorientado. Ela já vira aquilo antes: síndrome do pôr-do-sol, comum nos pacientes com Alzheimer. Tratava-se de uma condição de agitação intensificada após o pôr-do-sol, quando o ambiente familiar se tornava confuso no escuro.

E ali era pior, porque eles estavam longe de casa.

O fato de o Phoenix Park Hotel ser a segunda acomodação deles em menos de 24 horas não ajudava em nada. Primeiro, o apartamento do dr. Corrin, e agora ali. Porém, Gray fora firme quando sussurrou seu adeus e acrescentou uma instrução específica para ela. Ele lhe dissera que, assim que o dr. Corrin os deixasse no apartamento, ela deveria partir, cruzar a cidade e registrar-se num hotel, pagando em dinheiro e usando um nome falso.

Uma precaução extra.

Mas toda aquela movimentação só havia piorado o estado de Jack. Ele passara um dia inteiro sem o Tegretol, seu estabilizador do humor, e tomara o último comprimido de propranolol, um medicamento para a pressão arterial que reduzia a ansiedade.

Não era de surpreender, portanto, que Jack tivesse acordado antes em pânico, desorientado, na pior crise que ela tinha visto em meses.

Seus gritos e passos pesados e desajeitados haviam-na despertado. Ela adormecera inadvertidamente, sentada numa cadeira em frente ao pequeno televisor na saleta do quarto de hotel. Sintonizara o canal da Fox News e deixara o volume baixo, alto apenas o suficiente para ouvir caso o nome de Gray fosse mencionado de novo.

Harriet despertara sobressaltada pelos gritos do marido e correra para o quarto. Um erro tolo. Não se surpreendia um paciente no estado dele. Jack a esbofeteara, acertando-a na boca. Agitado, ele levou meio minuto para reconhecê-la.

Quando finalmente a reconheceu, refugiou-se no banheiro. Ela escutara os soluços dele. Fora por isso que ele trancara a porta.

Os homens da família Pierce não choravam.

—        Jack, abra a porta. Está tudo bem. Eu telefonei para a farmácia no fim da rua e pedi os remédios. Está tudo em ordem.

Harriet sabia que era um risco telefonar para pedir os medicamentos. Porém, não podia levar Jack a um hospital, e, se não fosse tratada, sua demência pioraria. Os gritos dele ameaçavam atrair a ira da gerência do hotel. E se talefonassem para a polícia?

Sem escolha, com os dentes doendo em conseqüência do golpe, ela tomara uma decisão. Usando o catálogo telefônico, ligara para uma farmácia aberta dia e noite com serviço de entregas em domicílio e solicitara uma renovação da receita. Assim que os medicamentos chegassem e seu marido fosse tratado, ela fecharia a conta, iria para outro hotel e desapareceria de novo.

A campainha soou atrás dela.

Oh, graças a Deus.

—        Jack, é a farmácia. Eu volto já.

Ela saiu correndo do quarto e foi até a porta da frente. Estendeu a mão para o ferrolho, mas parou. Em vez disso, inclinou-se para a frente e olhou através do olho mágico, que proporcionava uma vista olho-de-peixe do corredor. Uma mulher desacompanhada, com os cabelos negros cortados bem curtos, estava em pé em frente à porta. Ela usava um jaleco branco com o logotipo da farmácia na lapela e carregava uma sacola de papel branco com uma receita grampeada.

A mulher sumiu de vista. A campainha tocou de novo. A mulher consultou o relógio e começou a se afastar. Harriet gritou através da porta:

—        Espere um instante!

—        Farmácia Cisne! — a mulher gritou em resposta.

Usando ainda de mais cautela, Harriet foi até um telefone sobre uma mesa à entrada. Ela se olhou ao espelho de parede acima dele: parecia abatida, pálida como cera. Apertou o botão do telefone e entrou em contato com o balcão de recepção no saguão.

Atenderam imediatamente.

—        Phoenix Park. Recepção.

—        Aqui é do quarto 334. Eu gostaria de confirmar a entrega feita por uma farmácia.

—        Sim, minha senhora. Verifiquei as credenciais dela três minutos atrás. Algum problema?

—        Não. Nenhum problema. Eu só queria...

Um estrondo soou do quarto atrás dela, seguido por uma série de imprecações. Jack finalmente abrira a porta do banheiro.

A recepcionista perguntou a ela:

—        Tem mais alguma coisa que eu possa fazer pela senhora?

—        Não, obrigada — respondeu ela, e desligou.

—        Harriet! — gritou o marido dela, com um tom de angústia por trás da raiva.

—        Estou aqui, Jack.

A campainha tocou outra vez.

Esgotada, Harriet puxou o ferrolho da porta, esperando que Jack não fosse ficar irritado por tomar seus comprimidos, e abriu-a.

A entregadora ergueu o rosto, sorrindo, mas não havia calor nele, apenas um divertimento selvagem. Um choque de reconhecimento paralisou Harriet: era a mulher que os havia atacado no abrigo secreto. Antes que Harriet pudesse mexer-se, a mulher terminou de abrir a porta com um chute.

Assustada, Harriet foi atingida no ombro pela extremidade da porta e caiu tropeçando no piso duro. Tentou amortecer o impacto com um braço estendido, mas seu punho explodiu embaixo dela com um estalo brusco. Uma dor queimante subiu por seu braço.

Ofegando, meio apoiada num dos quadris, ela girou o corpo. Jack saiu do quarto usando apenas uma cueca samba-canção.

—        Harriet...?

Ainda confuso, Jack levou muito tempo para registrar a situação. A mulher transpôs o limiar, ergueu uma pistola de grosso calibre e apontou-a para Jack.

—        Aqui estão os seus remédios.

—        Não! — gemeu Harriet.

A mulher puxou o gatilho. Uma descarga repentina de eletricidade explodiu do tambor. Alguma coisa passou zunindo junto à orelha de Harriet, arrastando um fio. Ela acertou Jack no peito nu, com uma cintilação e uma crepitação azul à luz fraca.

Taser.

Ele engasgou, com os braços agitando-se, e caiu para trás. Não se moveu.

No silêncio atordoante, um locutor da Fox News sussurrou do televisor com o volume baixo:

—        A Polícia Metropolitana ainda continua a perseguir Grayson Pierce, procurado por ligação com o incêndio criminoso e o bombardeio de uma casa aqui no Distrito de Colúmbia.

 

Sozinho junto ao balaústre do terraço panorâmico, Gray fez um esforço para pensar em algum canal seguro para se comunicar com Washington sobre os perigos na ilha Christmas. Ele teria de ser prudente, de recorrer a alguma comunicação privada que não se propagasse além de Painter. Mas como? Quem poderia dizer que a Guilda não estava monitorando todas as formas de comunicação?

Seichan falou atrás dele, sentada à mesa. Suas palavras não eram dirigidas a Gray.

—        Monsenhor, o senhor ainda não explicou por que nos chamou a Istambul. O senhor afirmou ter entendido a inscrição angélica.

A curiosidade atraiu Gray de volta à mesa, mas ele não conseguiu sentar-se. Ficou em pé entre Seichan e Vigor.

O monsenhor suspendeu sua mochila e a pôs no colo. Ele a remexeu e tirou um bloco de anotações, abrindo-o sobre a mesa. De um lado ao outro da página havia uma linha de letras angélicas desenhadas a carvão.

—        Esta é a inscrição existente no piso da Torre dos Ventos — disse Vigor. — Cada letra deste alfabeto corresponde a uma palavra tonal específica. E, segundo o pai da escrita angélica, Trithemius, combinados na seqüência certa, esses agrupamentos poderiam abrir uma linha direta com um anjo específico.

—        Como uma chamada interurbana — murmurou Kowalski do outro lado da mesa.

Com um aceno de cabeça, Vigor virou a página.

—        Eu fui em frente e marquei o nome de cada letra.

Gray sacudiu a cabeça, sem notar nenhum padrão.

Vigor pegou rapidamente uma caneta e traçou uma linha sob a primeira letra de cada nome, recitando enquanto o fazia.

—        A. I.G. A.H.

—        Esse é o nome de algum anjo? — indagou Kowalski.

—        Não, não de um anjo, mas é um nome — respondeu Vigor. — O que vocês precisam entender é que Trithemius baseou seu alfabeto no hebraico, alegando o poder das letras judaicas. Mesmo hoje, os praticantes da cabala acreditam que existe alguma forma de sabedoria divina oculta nas formas e curvas do alfabeto hebraico. Trithemius apenas afirmou que sua escrita angélica era o mais puro refinamento do hebraico.

Gray inclinou se mais para perto; começava a entender a direção da pista de Vigor.

—        E o hebraico é lido ao contrário do inglês: da direita para a esquerda. Seichan correu um dos dedos ao longo do papel e leu de trás para a frente:

—        H.A.G.I.A.

—        Hagia — Vigor pronunciou cuidadosamente. — A palavra significa "divino" em grego.

Os olhos de Gray estreitaram-se e depois se arregalaram diante da súbita compreensão.

Claro.

—        O que foi? — perguntou Seichan.

Kowalski coçou a cabeça de cabelos curtos e eriçados, também sem ter a mínima idéia.

Vigor levantou-se, e todos o irritaram. Levou-os para contemplar a cidade.

—        Na sua viagem para casa, Marco Polo passou por Istambul, na época chamada Constantinopla. Foi aqui que ele saiu da Ásia e finalmente reentrou na Europa, uma importante encruzilhada de toda espécie.

O monsenhor apontou para a cidade, na direção de um dos antigos monumen¬tos. Gray o notara antes. Uma imensa igreja de cúpula plana, meio encoberta por andaimes pretos dos trabalhos de restauração.

—        Hagia Sophia — disse Gray, citando o nome da construção. Vigor concordou com a cabeça.

—        Ela foi um dia a maior igreja cristã no mundo inteiro. O próprio Marco comentou as maravilhas de seus graciosos espaços. Algumas pessoas se enganam, achando que Hagia Sophia significa "Santa Sofia", mas, na verdade, o nome da construção é igreja da Divina Sabedoria, que também pode ser interpretado como igreja da Angélica Sabedoria.

—        Então é lá que temos que ir! — exclamou Seichan. — A primeira chave deve estar oculta lá.

Ela se virou.

—        Não tão depressa, minha jovem — repreendeu-a Vigor.

O monsenhor voltou para onde estava sua mochila, enfiou a mão nela e tirou um objeto embrulhado em pedaços de pano. Colocando-o delicadamente sobre a mesa, removeu as camadas de pano, revelando uma barra plana de ouro fosco. Ela parecia muito antiga; tinha um furo numa extremidade e a superfície coberta por uma escrita cursiva.

—        Não é angélica — disse Vigor, notando a atenção de Gray na escrita. — É mongol, e quer dizer: "Pelo poder do eterno céu, sagrado seja o nome do Khan. Que aquele que não o reverencia seja morto."

—        Eu não estou entendendo — disse Gray, franzindo o cenho. — Isso pertenceu a Marco Polo? O que é isso?

—        Em chinês, é chamado de paitzu; em mongol, gerege.

Três rostos confusos fitaram Vigor.

Ele fez um aceno de cabeça na direção do objeto.

—        No linguajar moderno, é um passaporte VIP. Um viajante que portasse este superpassaporte podia exigir cavalos, suprimentos, homens, barcos, qualquer coisa das terras governadas por Kublai Khan. A recusa a essa ajuda era passível de punição com a morte. O Khan concedia esses passaportes aos embaixadores que viajavam a seu serviço.

—        Legal — sussurrou Kowalski, mas, pelo brilho em seus olhos, Gray suspeitou de que o espanto dele se devesse mais ao ouro do que à história.

—        E os Polo receberam um desses passaportes? — perguntou Seichan.

—        Três, na verdade. Um para cada Polo: Marco, seu pai e seu tio. Existe até um episódio relacionado com esses passaportes. Um episódio famoso. Quando os Polo chegaram a Veneza, disseram que ninguém os reconheceu. Os três chegaram abatidos, cansados, num único navio, parecendo pouco mais que mendigos. Ninguém acreditou que eles fossem os Polo há tanto tempo desaparecidos. Ao pisarem na praia, os três abriram as costuras de suas roupas, e uma enorme quantidade de esmeraldas, rubis, safiras e prata caiu no chão. Incluídos nesse tesouro estavam os três paitzus de ouro, descritos minuciosamente. Mas, depois dessa história, os passaportes de ouro desapareceram. Todos os três.

—        O mesmo número das chaves do mapa — comentou Gray.

—        Onde o senhor encontrou este? — indagou Seichan. — Num dos museus do Vaticano?

—        Não. — Vigor bateu de leve no bloco de anotações aberto com a escrita angélica. — Com a ajuda de um amigo, eu o descobri embaixo da laje de mármore sobre a qual a inscrição foi feita. Num buraco secreto sob o mármore.

Como a cruz do frade, Gray se deu conta. Oculto numa pedra.

Seichan praguejou levemente. Mais uma vez o prêmio estivera bem debaixo do seu nariz o tempo todo.

Vigor prosseguiu:

—        Eu acredito que este é um dos próprios paitzus concedidos aos Polo. — Ele fitou-os todos. — E creio que esta é a primeira chave.

—        Então a pista que conduz a Hagia Sophia... — começou Gray.

—        Ela está apontando para a segunda chave — concluiu Vigor. — Mais dois passaportes que faltam, mais duas chaves que faltam.

—        Mas como o senhor pode ter tanta certeza? — indagou Seichan.

Vigor virou a barra de ouro. Inscrita detalhadamente, uma única letra adornava o lado de trás. Uma letra angélica.

Vigor bateu de leve na letra.

—        Aqui está a primeira chave.

Gray sabia que ele estava certo. Ergueu o olhar na direção da imensa igreja. Hagia Sophia. A segunda chave tinha de estar oculta lá, mas a construção era enorme. Seria como procurar uma agulha de ouro num palheiro. Poderia levar dias.

Vigor deve ter percebido a preocupação dele.

—        Eu já mandei alguém na frente a fim de explorar a igreja. Um historiador da arte do Vaticano que me ajudou na Torre dos Ventos com o enigma angélico.

Gray acenou com a cabeça. Enquanto examinava a única letra, não conseguia livrar-se de uma preocupação mais profunda: seus dois amigos, Monk e Lisa, já em perigo. Se não conseguisse entrar em contato com Washington de uma forma segura, talvez houvesse outra maneira de ajudá-los: levar a melhor sobre a Guilda em relação ao que quer que estivesse no fim daquele mistério.

Encontrar a Cidade dos Mortos, descobrir a cura.

Antes da Guilda.

Enquanto olhava para o sol nascente, Gray lembrou-se das palavras de Vigor a respeito de Istambul ter sido a encruzilhada da viagem de Marco. De fato, desde a sua fundação, a antiga cidade tinha sido a encruzilhada do mundo geográfico. Ao norte ficava o mar Negro; ao sul, o Mediterrâneo. O estreito de Bósforo, importante rota comercial e canal marítimo, corria entre eles. Porém, ainda mais importante para a História, Istambul estendia-se por dois continentes: um de seus pés estava na Europa e o outro, na Ásia.

Podia-se dizer o mesmo sobre o lugar da cidade no golfo do tempo.

Um pé no presente, outro no passado.

Para sempre numa encruzilhada.

Igual a ele mesmo.

Enquanto refletia sobre isso, um telefone celular tocou ao lado. Vigor virou-se e tirou seu telefone do bolso da frente da mochila. Franzindo o cenho, observou a identificação da chamada.

—        É um código de área do Distrito de Colômbia — disse Vigor.

—        Deve ser o diretor Crowe — avisou Gray. — Não diga nada. Demore o menos possível, a fim de evitar qualquer rastreamento. Na verdade, nós deveríamos tirar a bateria do aparelho depois, para que ele não seja rastreado de forma passiva.

Vigor revirou os olhos por causa dessa paranóia e abriu o telefone.

—        Pronto — disse ele.

Vigor ouviu por alguns instantes, franzindo cada vez mais a testa.

—        Chi parla? — perguntou ele com uma leve veemência.

O que quer que tenha ouvido deixou-o abalado. Ele virou-se e estendeu o telefone para Gray.

—        É o diretor Crowe? — indagou ele, em voz baixa.

Vigor sacudiu a cabeça.

—        É melhor você atender.

Gray pegou o telefone e ergueu-o até o ouvido.

—        Alô?

A voz que ele ouviu foi instantaneamente reconhecível, o sotaque egípcio era claro. As palavras de Nasser drenaram todo o calor do ar.

—        Sua mãe e seu pai estão comigo.

 

Seus esforços de resgate já eram...

Em pé no elevador na parte central do navio, Monk equilibrava uma bandeja com o almoço numa palma erguida. Sobre o outro ombro carregava seu rifle de assalto. Uma canção do ABBA, uma versão acústica, saía de pequenos alto-falantes. O percurso desde as cozinhas apertadas do navio até o deque superior levou tanto tempo que, ao chegar lá, ele já estava cantarolando a música.

Oh, meu Deus...

As portas afinal se abriram, permitindo que Monk saísse. Ele desceu o corredor na direção dos guardas que flanqueavam as portas duplas no fim. Sussurrou entre os dentes, praticando seu malaio. Jessie roubara um pouco de corante para tingir o rosto e as mãos de Monk, a fim de deixá-lo parecido com os outros piratas, semelhante ao disfarce do homem morto na cabine de Lisa, cujo corpo Monk discretamente jogara no mar.

Longe dos olhos, longe do coração.

Para completar o disfarce, Monk manteve o lenço de cabeça na parte inferior do rosto, desempenhando ao máximo o papel. Uma vez em Roma...

Durante o dia e a noite passados, Jessie havia ensinado a Monk algumas das frases mais comuns em malaio, a língua oficial dos piratas ali. Infelizmente, Monk não aprendera o bastante para transpor o cordão de segurança criado em volta de Lisa. Ele e Jessie tinham vasculhado o navio e descobriram que todos os cientistas e seu pessoal de apoio imediato haviam sido reunidos em um único andar, enquanto a equipe médica continuava cuidando dos doentes em todo o navio.

Infelizmente, os conhecimentos de fisiologia de Lisa deviam ter sido percebidos. Ela foi isolada na ala científica, bloqueada e sob forte segurança. Parecia que apenas a elite dos piratas, sob a supervisão imediata de seu líder, o maori tatuado chamado Rakao, guarnecia esses postos. A sala do rádio estava igualmente guardada. Jessie soubera de tudo aquilo por se misturar na multidão de piratas graças à sua fluência na língua deles.

Naquele ínterim, Monk se transformara em pouco mais do que guarda-costas de Jessie. Não havia muito mais que pudesse fazer. Mesmo que Monk tentasse um assalto à moda John Wayne na ala científica, como ele escaparia com Lisa? E aonde iriam? Embora ainda estivessem navegando à velocidade máxima, eles teriam de pular no mar. E aquele não era o plano mais sensato.

Mais cedo naquela manhã, Monk havia observado as águas de um convés aberto. O Mistress of the Seas navegava em águas profundas por entre as ilhas indonésias. Eles estavam perdidos num labirinto de atóis menores, mil saliências cobertas de florestas apontando para o céu. Se fugissem e nadassem até uma daquelas ilhas, seriam facilmente perseguidos e capturados.

Isto é, se conseguissem passar pelos tubarões-tigre.

Por isso Monk tinha de esperar o momento adequado.

Mas aquilo não significava que ele não podia realizar alguma coisa.

Como agora.

Servindo o almoço.

Era um bom plano. Ele tinha de abrir um meio de comunicação com Lisa. Informá-la de que ela não estava sozinha, porém, ainda mais importante, de que eles poderiam combinar quando Monk estivesse pronto para agir. E, como não podia entrar em contato diretamente com Lisa, ele precisava de um intermediário.

Monk chegou à porta dupla. Ergueu a bandeja na direção dos dois guardas e abriu caminho murmurando em malaio o equivalente de "o sino do almoço já tocou".

Um deles virou-se e bateu a coronha de seu rifle contra a porta. Um instante depois, um guarda, que estava postado lá dentro, abriu a porta. Ele avistou Monk e acenou para que ele entrasse na suíte presidencial do navio.

Um mordomo de fraque e cheio de pompa encontrou-se com Monk à entrada. Ele tentou tirar a travessa de Monk, porém, portando-se de maneira rude como os piratas, Monk tentou um feroz equivalente malaio de aaargh e empurrou o homem bruscamente para o lado com um dos ombros. O mordomo tropeçou para trás, com os braços oscilando, fazendo o guarda à porta emitir um misto de grunhido com uma risadinha.

Monk entrou no salão principal da suíte. Uma pequena nuvem de fumaça vinda de uma espreguiçadeira na sacada lá fora o alertou de seu alvo.

Ryder Blunt estava reclinado, usando um roupão do navio e calção de banho florido, com os calcanhares cruzados, os cabelos louros desgrenhados. Fumava um charuto grosso, observando as ilhas escarpadas passarem lentamente. A fuga estava tão próxima e, no entanto, tão distante. Para combinar com o estado de ânimo sinistro, uma espessa formação de nuvens escuras erguia-se no horizonte.

Quando Monk se aproximou, o bilionário nem sequer se deu o trabalho de dar uma olhadela em sua direção. Era o hábito dos ricos, sempre fingir não notar os empregados que os serviam. Ou talvez fosse apenas desdém pelo pirata que servia seu almoço. O mordomo de Ryder já havia arrumado uma mesa lateral.

Prataria, cristais e guardanapos passados a ferro.

Devia ser bom ser rei.

Monk baixou a bandeja sobre a mesa e sussurrou no ouvido do homem ao se curvar.

—        Não reaja — disse em inglês. — Eu sou Monk Kokkalis, da delegação americana.

A única reação do bilionário foi uma exalação mais intensa de fumaça.

—        O colega da dra. Cummings — sussurrou ele. — Pensamos que você estivesse morto. Os piratas enviados atrás de você...

Monk não tinha tempo para explicar.

—        Sim, quanto a eles... se ferraram com os caranguejos.

O mordomo chegou à porta da sacada.

Ryder o despediu com um aceno, falando em voz alta.

—        Isso é tudo, Peter. Obrigado.

Monk tirou os pratos da bandeja. Ele ergueu uma das tampas de prata sobre a chapa elétrica, revelando dois pequenos rádios embaixo dela.

—        Uma porção extra para o senhor e Lisa. — Ele voltou a cobrir a bandeja e revelou o que estava sob a tampa da segunda chapa. — E, naturalmente, uma sobremesa.

Duas pistolas de pequeno calibre.

Uma para Ryder e a outra para Lisa.

Os olhos do bilionário arregalaram-se, e Monk percebeu a compreensão.

—        Quando...? — perguntou Ryder.

—        Combinaremos tudo pelos rádios. Canal oito. Os piratas não o estão usando. — Monk e Jessie usaram aquela freqüência o dia inteiro, e ninguém descobriu. — O senhor consegue passar um rádio e uma arma para Lisa?

—        Eu farei tudo o que estiver ao meu alcance — respondeu ele, acompanhando sua resposta com um aceno de cabeça decidido.

Monk empertigou-se. Ele não ousava demorar mais, senão os guardas ficariam desconfiados.

—        Ah, e tem pudim de arroz embaixo da tampa da última travessa.

Monk dirigiu-se ao salão principal. Ele ouviu o comentário sussurrado de Ryder:

—        Que coisa mais repugnante... quem é que teve a idéia de pôr arroz no pudim?

Monk suspirou. Os ricos só se sentiam felizes quando tinham algo de que se queixar. Ele chegou às portas duplas e saiu. Um dos guardas perguntou-lhe alguma coisa em malaio.

Como resposta, Monk enfiou um dedo no nariz, parecendo muito ocupado e determinado, resmungou alguma coisa sem sentido e continuou em direção ao elevador.

Felizmente, a cabine ainda estava lá, e as portas se abriram imediatamente. Ele se enfiou lá dentro bem a tempo de ouvir a próxima canção do ABBA começar.

Ele grunhiu.

O rádio num lado de seu corpo crepitou. Monk tirou-o e encostou-o nos lábios.

—        O que é? — perguntou.

—        Me encontre nos nossos aposentos — disse Jessie. — Estou indo para lá agora.

Os dois haviam encontrado uma cabine vazia para partilhar e a transformaram em sua base de operações.

—        Qual o problema?

—        Eu acabei de ouvir. O capitão do navio espera alcançar algum porto hoje. Eles estão acelerando os motores para chegar antes do anoitecer. As informações sobre a meteorologia são de que uma pequena tempestade, movendo-se através das ilhas indonésias, está se transformando gradativamente num tufão. Por isso eles têm de aportar.

— Encontro você em nossos aposentos — disse Monk, desligando.

Prendendo o rádio no cinto, ele fechou os olhos. Talvez aquele fosse o primeiro golpe de sorte deles. Calculou mentalmente, enquanto balbuciava automaticamente as palavras de "Take a Chance on Me", do ABBA.

Era uma canção excelente.

 

Lisa olhou para sua paciente. A mulher usava um avental hospitalar azul e estava conectada por fios e tubos a todo tipo de aparelhos de monitoramento. Dois enfermeiros aguardavam na outra sala.

Lisa pedira um instante de privacidade.

Ela estava em pé ao lado da cama, lutando contra um leve sentimento de culpa.

Lisa conhecia de cor os dados da paciente: mulher caucasiana, 1,62 metro, 50 quilos, cabelos louros, olhos azuis, uma cicatriz de apendicectomia. As radiografias tinham revelado uma fratura antiga e consolidada no antebraço esquerdo. A verificação dos dados biográficos feita pela Guilda revelava até a causa da fratura: um acidente na juventude entre um skate e um meio-fio quebrado.

Lisa memorizara os resultados do hemograma da mulher: enzimas hepáticas, uréia, creatinina, ácidos biliares, contagens das células sanguíneas. Ela conhecia os resultados do último exame de urina e da cultura de fezes.

Num lado estava uma bandeja de instrumental esmeradamente disposto com instrumentos de exame: otoscópio, oftalmoscópio, estetoscópio, endoscópio. Ela os usara a manhã toda. Numa mesa-de-cabeceira próxima, as cópias impressas do eletrocardiograma e do eletroencefalograma estavam dobradas em forma de sanfona. Ela havia examinado cada centímetro da fita. No decorrer do dia anterior, lera todo o histórico clínico da paciente e grande parte dos achados dos yirologistas e bacteriologistas da Guilda.

A paciente não estava em coma. Em termos mais precisos, seu estado era de estupor catatônico. Ela exibia uma acentuada cereaflexibilitis, ou flexibilidade cérea. Se um membro fosse movido, ele ficava naquela posição, como um manequim. Mesmo em posições dolorosas... conforme a própria Lisa havia testado.

Àquela altura, ela sabia tudo sobre o corpo da mulher.

Exausta, dedicou alguns instantes para examinar melhor a paciente.

Não com instrumentos, não com exames, mas com empatia.

A fim de ver a mulher atrás dos resultados dos exames.

A dra. Susan Tunis fora uma pesquisadora conceituada, a caminho de uma carreira de sucesso. Ela até encontrara o homem dos seus sonhos. E, exceto por ter sido casada durante cinco anos, a vida da mulher era semelhante à de Lisa. Agora, o destino dela era uma lembrança da fragilidade das nossas vidas, expectativas, esperanças e dos nossos sonhos.

Lisa estendeu os dedos enluvados e apertou a mão da mulher, pousada sobre o lençol fino.

Nenhuma reação.

Lá fora, na outra sala, os enfermeiros agitaram-se quando a porta da suíte se abriu. Lisa ouviu a voz do dr. Devesh Patanjali. O chefe da equipe de cientistas da Guilda entrou na sala.

Lisa soltou a mão de Susan.

Ela virou-se quando Devesh entrou na sala. Sua sombra permanente, Surina, moveu-se de mansinho até uma cadeira na sala externa e sentou-se, com as mãos cuidadosamente dobradas no colo. A companhia perfeita... perfeitamente letal.

Devesh apoiou sua bengala ao lado da porta e juntou-se a ela.

—        Vejo que a senhora está ficando cada vez mais familiarizada com a nossa Paciente Zero esta manhã.

Lisa simplesmente cruzou os braços. Foi a primeira vez que Devesh falou com ela de uma forma significativa, depois de tê-la deixado em paz com seu trabalho científico. Ele passava a maior parte do tempo com Henri, no laboratório de toxicologia, e com Miller, no laboratório de doenças infecciosas. Lisa até fazia as refeições sozinha em seus aposentos ou ali na suíte.

—        Agora que obteve um quadro completo da minha prezada paciente, o que a senhora pode me dizer a respeito dela?

Embora o homem sorrisse, Lisa percebeu a ameaça por trás de suas palavras. Ela se lembrou do assassinato frio de Lindholm, só para ensinar uma lição: ser útil. Devesh esperava resultados dela, insights que haviam escapado a todos os outros pesquisadores. Ela também percebeu que o tempo que passava a sós com a paciente tinha o objetivo de isolá-la de qualquer tendência preconcebida.

Devesh queria a opinião exclusiva dela sobre a situação.

Ela, no entanto, se recordou de suas palavras anteriores sobre o vírus, sobre o que ele estava fazendo dentro da mulher. Ele está incubando.

Lisa aproximou-se da paciente e expôs-lhe o antebraço. De acordo com os boletins médicos, furúnculos e erupções sanguinolentas já haviam coberto seus membros. Mas, atualmente, a pele não exibia nenhuma cicatriz. Parecia que o vírus estava fazendo mais do que incubar dentro dela.

—        A Estirpe de Judas está curando-a — disse Lisa, sabendo que aquilo era um teste. — Ou, mais precisamente, o vírus de repente decidiu reverter o que havia começado a fazer com as bactérias dela. Por algum motivo desconhecido, ele começou a fazer as bactérias letais no corpo dela voltarem a seu estado benigno original.

Ele concordou com a cabeça.

—        Ele está forçando a saída dos próprios plasmídios que havia introduzido antes nas bactérias. Mas por quê?

Lisa sacudiu a cabeça. Não sabia. Pelo menos com certeza.

Devesh sorriu, com uma expressão estranhamente calorosa e amigável.

—        Ele também nos deixou perplexos.

—        Mas eu tenho uma hipótese — disse Lisa.

—        É mesmo? — perguntou ele, a voz com um tom de surpresa.

Lisa fitou-o.

—        O corpo dela está se curando, mas isso faz me perguntar por que ela permanece num estado catatônico. Esse estupor só ocorre por traumatismo craniano, doença cerebrovascular, doença metabólica, reações a medicamentos ou encefalite.

Ela enfatizou a última causa.

Encefalite.

Inflamação do cérebro.

—        Observei a ausência evidente de um exame em todos os boletins — disse ela. — Uma punção lombar junto com um exame do líquido cerebrespinhal. Faltava esse exame. Suponho que ele tenha sido realizado, para analisar os líquidos ao redor do cérebro dela.

Davesh concordou com a cabeça.

—        Bahut sahi. Muito bem. O exame foi realizado.

—        E o senhor encontrou a Estirpe de Judas no líquido.

Outro aceno de cabeça.

—        O senhor disse que o vírus infecta apenas bactérias, transformando cada uma delas num novo microrganismo maligno, e que o vírus não pode invadir células humanas diretamente. Mas isso não significa que o vírus não possa flutuar no líquido cerebral. Foi isso o que o senhor quis dizer com incubação. O vírus está dentro da cabeça dela.

Ele concordou com um suspiro.

—        Parece que é aí que ele quer chegar.

—        Então não se trata apenas desta paciente.

—        Não; em última análise, trata-se de todas as vítimas... pelo menos das que sobrevivem ao ataque bacteriano inicial.

Ele fez-lhe um sinal para que fosse para um canto da sala, onde havia sido montada uma estação de computadores, e começou a ligar vários monitores.

Lisa prosseguiu enquanto ele trabalhava, andando de um lado para o outro ao pé da cama.

—        Nenhum organismo é maligno simplesmente por ser maligno. Nem mesmo um vírus. Tem que haver um objetivo para a sua toxificação de bactérias. Considerando o amplo espectro de bactérias que ele converte, não pode ser fruto do acaso. Por isso eu me perguntei: o que ele ganha ao fazer isso?

Devesh acenou com a cabeça, exortando-a a prosseguir. Mas, sem dúvida, as conclusões dela não eram nada de novo. Ele continuava a testá-la.

Lisa olhou para a paciente.

—        O que ele ganha? Ele ganha acesso a território proibido: o cérebro humano. O dr. Barnhardt mencionou que 90% das células que formam nosso corpo são não-humanas, A maioria delas é de células bacterianas. Um dos poucos lugares que permanecem inacessíveis a infecções virais ou bacterianas é nosso crânio. Nosso cérebro é protegido contra infecção, mantido estéril. Nosso organismo desenvolveu uma barreira hematoencefálica quase impenetrável, um filtro que deixa o oxigênio e os nutrientes do sangue chegarem ao cérebro, porém pouco mais do que isso.

—        Então, se alguma coisa quisesse penetrar no nosso crânio...? — instigou Devesh.

—        Seria necessário um grande ataque para transpor a barreira hematoencefálica. Como voltar nossas próprias bactérias contra nós, enfraquecer o corpo o bastante para que o vírus passasse através da barreira e penetrasse no líquido do cérebro. Essa é a vantagem biológica que o vírus tem quando converte bactérias comuns em bactérias tóxicas.

—        Você é surpreendente — disse Devesh. — Eu sabia que havia uma razão para manter você viva.

Apesar do elogio oculto nessas palavras, Lisa obteve pouco consolo da ameaça implícita.

—        Portanto, a questão final é por quê — continuou Devesh. — Por que o vírus quer entrar em nossa cabeça?

—        Fascíola hepática — respondeu Lisa.

O non sequitur era estranho o suficiente para atrair de novo toda a atenção de Devesh.

—        Como disse?

—        As fascíolas hepáticas são um exemplo da determinação da natureza. A maioria delas tem um ciclo de vida que envolve três hospedeiros. A fascíola hepática humana produz ovos que são eliminados do corpo nas fezes, que são então drenadas para esgotos ou cursos de água e ingeridas por caramujos. Os ovos então transformavam-se em larvas nadantes, que saem do caramujo e procuram o próximo hospedeiro: a pele de algum peixe que esteja passando. O peixe é então fisgado e consumido por seres humanos, nos quais o verme se desloca até o fígado e se transforma numa fascíola adulta, e então vive feliz para sempre.

—        E qual é a sua opinião?

—        A Estirpe de Judas pode estar fazendo alguma coisa desse tipo. Especialmente se o senhor considerar a fascíola hepática lanceolada, o Dicrocoelium dendriticum. Ela também usa três hospedeiros: o gado, o caramujo e a formiga. Mas o que ela faz no estágio de formiga é que eu acho mais interessante.

—        E o que é que ela faz?

—        Dentro da formiga, a fascíola controla os centros nervosos do inseto, muda o seu comportamento. Normalmente, quando o sol se põe, a fascíola compele a formiga a subir numa folha de grama, cerrar sua mandíbula e esperar até ser devorada por uma vaca que esteja pastando. Se não for devorada, a formiga volta para o seu ninho ao nascer do sol, apenas para repetir a mesma coisa na noite seguinte. A fascíola literalmente guia a formiga como se ela fosse seu próprio carro.

—        E a senhora acha que o vírus está fazendo isso? — perguntou Devesh.

— Talvez de alguma maneira. Mas principalmente estou trazendo esse assunto à baila para lembrar o senhor como a natureza pode ser insidiosa quando se trata de encontrar território para explorar. E o cérebro, estéril e inacessível, é certamente território virgem. A natureza tentará explorá-lo, como a fascíola faz com a formiga.

—        Brilhante. Sem dúvida, um ponto de vista a ser investigado. Mas talvez haja um problema nesse caso específico. — Devesh voltou para o computador. Ele estivera carregando um vídeo QuickTime. — Eu mencionei que o vírus está penetrando no líquido cerebrespinhal de todos os pacientes que sobreviveram ao ataque bacteriano inicial. Eis o que acontece quando ele penetra.

Ele apertou a tecla play.

Um vídeo mudo começou a rodar. Dois homens de jaleco branco lutavam para prender com correias um homem nu que se contorcia, com a cabeça raspada e fios que se estendiam de eletrodos presos ao crânio e ao tórax. Ele lutava, rosnava e espumava. Embora estivesse claramente debilitado, com feridas e furúnculos enegrecidos, um dos braços libertou-se das amarras. Uma das mãos em forma de garra, atacou um dos homens que tentavam contê-lo. O paciente então se ergueu e deu uma profunda mordida no antebraço do homem.

O vídeo terminou.

Devesh desligou o monitor.

—        Já estamos recebendo relatos de reações maníacas semelhantes de alguns dos pacientes, aqueles que foram expostos primeiro.

—        Poderia ser outra forma de catatonia. Estupor catatônico é só uma forma. — Lisa fez um sinal com a cabeça na direção da paciente acamada. — Mas também existe uma reação oposta, sua imagem especular: a excitação catatônica, caracterizada por extrema hiperatividade, caretas intensas, gritos animalescos e violência psicótica.

Devesh levantou-se e voltou para o leito hospitalar.

—        Dois lados da mesma moeda — murmurou ele, e observou a mulher acamada.

—        O homem no vídeo? — perguntou Lisa. Ela havia notado o ambiente de fundo. O filme não havia sido rodado a bordo do navio de cruzeiro. — Quem era ele?

Devesh acenou tristemente com a cabeça na direção do leito.

—        O marido dela.

Lisa ficou tensa ao ouvir a revelação. Ela olhou para a mulher esparramada no leito. O marido dela...

—        O casal foi exposto ao mesmo tempo — disse Devesh — e encontrado num iate encalhado num recife perto da ilha Christmas. O seu John Doe lá embaixo, com a doença devoradora de carne, deve ter nadado até a praia. Nós resgatamos esses dois, ainda a bordo do iate. Fracos demais, quase morrendo.

Então foi assim que a Guilda ficou sabendo de tudo aquilo. Devesh fez um aceno de cabeça na direção da mulher.

—        Isso naturalmente suscita a pergunta: por que o marido dela teve um colapso esquizóide total, ao passo que nossa paciente aqui está se curando de suas feridas externas e permanece despreocupadamente complacente e catatônica? Acreditamos que uma possível cura para todos reside nessa resposta.

Lisa não argumentou, pois não era tola. Apesar das afirmações de Devesh, ela sabia que a operação da Guilda ali não era motivada por altruísmo. A busca deles de uma cura não era para salvar o mundo. Eles tinham planos para o vírus, porém, antes que pudessem utilizá-lo, tinham de entendê-lo completamente, desenvolver um antídoto ou uma cura. E nesse aspecto Lisa não estava em desacordo com a Guilda. Era preciso descobrir uma cura. A única questão era: como descobri-la sem o conhecimento da Guilda?

Devesh deu meia-volta e dirigiu-se à porta.

—        A senhora fez um excelente progresso, dra. Cummings. Meus parabéns. Mas amanhã é outro dia. E nós precisaremos de mais progresso. — Ele olhou de relance para ela, com uma das sobrancelhas erguida. — A senhora entendeu?

Ela fez que sim com a cabeça.

—        Muito bem. — Ele fez outra pausa. — Ah, e o nosso estimado proprietário do navio de cruzeiro, sir Ryder Blunt, convidou a todos para um coquetel vespertino em sua suíte. Uma pequena comemoração.

—        Comemoração de quê?

—        De boas-vindas quando entrarmos no porto — explicou Devesh, pegando sua bengala. — Estamos quase em casa.

Lisa não estava disposta a brindar àquele evento.

—        Eu tenho muito trabalho aqui.

—        Bobagem. A senhora virá. Não vai demorar muito, e ajudará a recarregar suas baterias. Sim, a questão está resolvida. Vou mandar Rakao acompanhá-la. Por favor, use algo apropriado.

E saiu, com Surina em seu rastro.

Lisa sacudiu a cabeça quando eles partiram.

Ela voltou a olhar para o leito.

Para a dra. Susan Tunis.

—        Sinto muito — murmurou.

Pelo marido da mulher e pelo que estava por vir.

Lisa lembrou-se de suas comparações anteriores com a paciente, de como suas vidas tinham seguido caminhos parecidos. Ela imaginou o marido de Susan, com os olhos selvagens e ferozes. Lembrada do seu próprio amor, ela abraçou a si mesma e desejou pela milésima vez estar de volta em casa com Painter.

Falara novamente com ele naquela manhã, num de seus relatórios marcados. Teve o bom senso de não tentar nenhum subterfúgio daquela vez, informando que estava tudo bem. No entanto, estava em lágrimas quando foi tirada da sala do rádio.

Desejava os braços dele em torno dela.

Só havia, porém, uma forma de fazer isso acontecer.

Ser útil.

Ela foi até a bandeja com os instrumentos de exame e pegou o oftalmoscópio. Antes de ir para o coquetel, queria investigar atentamente uma aberração, algo que omitira de Devesh.

Algo que era certamente impossível.

 

Um passo atrás.

Painter desceu dois degraus de cada vez na direção do saguão do Phoenix Park Hotel, impaciente demais sequer para esperar o elevador. Uma equipe forense da Sigma ainda estava no andar de cima, vasculhando o quarto 334. Ele deixara dois agentes de campo do FBI discutindo com autoridades locais.

Um bate-boca por causa de jurisdição.

Aquilo era uma insanidade.

De qualquer modo, Painter duvidava de que qualquer indício confiável fosse encontrado.

Uma hora atrás, ele fora despertado de uma soneca no dormitório do Comando da Sigma. Um dos seus investigadores finalmente tivera êxito: um pedido de entrega de medicamentos controlados para Jackson Pierce. O número do Seguro Social era mesmo o dele. Foi o primeiro acerto desde que Gray e companhia tinham fugido do abrigo secreto atacado com bombas incendiárias. Painter pesquisara todos os pseudônimos de Gray, junto com os nomes de seus pais, e coordenara tudo por meio da rede de rastreamento da NSA.

Painter tinha enviado uma equipe de resposta de emergência à farmácia enquanto se juntava a outra equipe que seguiu para o endereço de entrega no pedido: o Phoenix Park Hotel. A farmácia confirmara o pedido, mas o entregador não havia voltado. As tentativas de entrar em contato com ele pelo celular haviam fracassado até então. A farmácia até mesmo tentara telefonar para o hotel, mas ninguém atendeu à extensão no quarto.

Ao chegar ali, Painter ficou sabendo por quê: o quarto estava vazio. Quem quer que tivesse estado ali já havia ido embora. No registro constavam os nomes de Fred e Ginger Rogers, um casal idoso segundo a recepcionista. Eles haviam se registrado sozinhos e pago em dinheiro. Era óbvio que Gray não estava com eles. Além disso, ele não cometeria um erro gritante como aquele, encomendando uma nova receita, desencadeando um alerta.

Assim, o que levara seus pais a dar um passo tão arriscado? Harriet era uma mulher inteligente. A necessidade devia ter sido medonha. Senão, por que eles não esperaram? O que os fizera fugir? O objetivo era apenas enganá-los? Fazê-los seguir uma pista falsa?

Painter tinha bom senso. Gray não usaria os pais daquela maneira. Arrumaria um lugar para eles se refugiarem anonimamente e permanecerem escondidos. Mais nada. Havia algo de errado ali. Ninguém vira o casal idoso sair.

E também havia o problema do entregador desaparecido.

Painter empurrou a porta do poço da escada e entrou no saguão.

O gerente da noite fez um aceno de cabeça para ele, entrelaçando as mãos.

—        Eu mandei deixarem o vídeo de segurança do saguão preparado, aguardando.

Painter foi conduzido ao escritório do gerente, nos fundos do saguão. Um televisor com um videocassete embutido estava em cima de um arquivo.

—        Ajuste-o para uma hora atrás — disse Painter, consultando o relógio.

O gerente começou a rodar a fita e avançou-a rapidamente para a hora indicada. O saguão estava deserto, a não ser por uma mulher sentada atrás da escrivaninha, trabalhando com a papelada.

—        Louise — disse o gerente, batendo de leve na tela. — Ela está muito abalada por tudo isso.

Painter ignorou o comentário, e inclinou-se para mais perto da tela.

A porta do saguão se abriu, e uma figura num jaleco branco caminhou a passos largos até a recepção, apresentou uma carteira de identidade e seguiu para o hall dos elevadores.

—        A sua recepcionista da noite viu o entregador sair?

—        Posso perguntar...

Painter pausou a fita quando a figura ajustou o jaleco.

Uma mulher.

Não o homem da farmácia.

O vídeo de segurança estava granulado, mas as feições asiáticas da mulher eram evidentes. Painter reconheceu-a. Ele a vira na vigilância por vídeo no abrigo secreto.

Alguém da equipe de Nasser.

Painter apertou o botão eject e pegou a fita. Ele se virou tão rápido que o gerente, sobressaltado, deu um passo para trás. Painter ergueu a fita de segurança.

—        Ninguém sabe disso — disse com firmeza, encarando o gerente com um olhar fixo, esforçando-se ao máximo para parecer ameaçador, o que, levando-se em consideração seu estado de ânimo, não foi difícil. — Nem a polícia. Nem o FBI.

O homem concordou vigorosamente com a cabeça.

Painter saiu porta afora, fechando um punho, querendo esmurrar alguma coisa.

Com força.

Ele compreendeu o que acontecera ali.

Nasser havia seqüestrado os pais de Gray.

Bem debaixo do nariz deles.

O filho-da-puta havia superado a Sigma apenas em alguns minutos. E Painter não podia culpar nenhum espião por ter perdido aquela corrida específica. Ele sabia o motivo: burocracia. Os antecedentes de Seichan como terrorista tinham deixado todos em alerta total, o que significava que cada um estava pisando nos calos do outro. Havia cozinheiros demais na cozinha... e todos estavam de olhos vendados.

Ao contrário de Nasser.

O dia todo Painter havia topado com barreiras, principalmente em virtude da questão burocrática de definição de território. Com a Sigma sob estrita vigilância do governo, outras agências perceberam que ela estava quase derrotada. Quem quer que conseguisse agarrar a traidora da Guilda, o peixe graúdo em meio a todas as iscas, poderia quase garantir certa proteção. Assim, havia pouca cooperação de verdade, e mais um aceno de cabeça em sua direção geral.

Se Painter tinha alguma esperança de frustrar Nasser, ele precisava romper a burocracia que lhe atava os pulsos. E só havia uma forma de fazer isso. Pegou seu telefone celular. Para o diabo com a diplomacia.

Pressionou a tecla de discagem rápida para o Comando Central.

O ajudante de Painter atendeu à ligação.

—        Brant, eu preciso que você me ponha em contato com o diretor McKnight na DARPA. Por uma linha segura.

—        Claro, senhor. Mas eu estava prestes a lhe telefonar no campo. O serviço de comunicações acabou de me transmitir algumas notícias estranhas sobre a ilha Christmas.

Painter levou um instante para mudar de atitude.

—        O que aconteceu? — perguntou ele, depois de respirar fundo para se acalmar, e parou em frente à porta giratória do hotel.

—        Os detalhes são superficiais, mas parece que o navio de cruzeiro usado para evacuar a ilha foi seqüestrado.

—        O quê? — ele engasgou.

—        Um dos cientistas da OMS conseguiu escapar e usou um rádio de ondas curtas para entrar em contato com um navio-tanque que passava.

—        Lisa e Monk...?

—        Nenhuma notícia, mas os detalhes estão chegando em grande quantidade agora.

—        Eu logo estarei aí.

Com o coração batendo forte, ele desligou, enfiou o telefone no bolso e saiu pela porta giratória. O ar fresco pouco contribuiu para eliminar o calor de seu sangue.

Lisa...

Painter recapitulou mentalmente a última conversa. Ela parecia cansada, talvez um pouco tensa, irritada pela falta de sono. Será que fora obrigada a dar aqueles telefonemas?

Não fazia o menor sentido.

Quem teria a audácia de seqüestrar todo um navio de cruzeiro? Decerto eles deviam saber que a notícia se espalharia. Especialmente na era da vigilância por satélite.

Não havia nenhum lugar para esconder um navio daquele tamanho.

 

Monk ficou embasbacado diante da visão.

Santo Deus...

Ele estava no convés de estibordo, sozinho, esperando por Jessie. Uma ilha envolta em brumas ergueu-se bem à frente. Penhascos íngremes projetavam-se do oceano, sem oferecer uma praia ou enseada segura, encimados por picos irregulares. O lugar inteiro parecia uma antiga coroa de pedra, encoberta por trepadeiras e pela selva.

Ela parecia particularmente sombria iluminada pelo céu negro atrás. O navio de cruzeiro enfrentava uma tempestade. A distância, pancadas de chuva escura caíam das nuvens baixas e varriam o oceano com suas cristas espumosas. Os ventos haviam se tornado mais intensos, quebrando bandeiras e soprando com força contra o corpo.

Monk manteve uma das mãos presa na amurada enquanto o imenso navio entrava nas ondas tempestuosas que se erguiam, exigindo demais de seus estabilizadores. Que diabo o capitão estava pensando?

A velocidade havia diminuído, mas o curso continuava em linha reta. Bem na direção da ilha inóspita. Ela não parecia mais acolhedora do que as centenas pelas quais já haviam passado. O que tornava aquela ali tão especial?

Sempre desembaraçado e fluente, Jessie havia obtido alguns detalhes sobre a ilha de um dos cozinheiros do navio, um nativo da região que reconheceu o lugar. A ilha era denominada Pusat, ou Umbigo. Segundo o cozinheiro, os barcos evitavam o lugar. Supostamente, a rainha-feiticeira balinesa Rangda nascera daquele umbigo, e os seus demônios ainda protegiam seu local de nascimento, feras que emergiam das profundezas para arrastar os incautos para o submundo aquático da feiticeira.

Jessie também oferecera outra explicação: Mas era mais provável que fossem apenas recifes invisíveis e correntes traiçoeiras.

Ou será que se tratava de outra coisa?

Aparentemente da rocha escarpada da ilha, três lanchas surgiram à vista. Azuis, de carena longa e baixas. Mais piratas.

Não é de admirar que ninguém ouse vir aqui, pensou Monk. Homens mortos não contam histórias.

Monk olhou ao seu redor quando alguns homens passaram apressadamente, gritando em malaio. Ele se esforçou para compreender as palavras e consultou o relógio. Onde estava Jessie? Uma traduçãozinha naquele instante seria útil.

Monk examinou a ilha adiante.

De acordo com relatos internacionais, as ilhas indonésias eram repletas de enseadas secretas. Mais de 18 mil ilhas formavam a cadeia indonésia: sabia-se que apenas seis mil eram habitadas, o que deixava 12 mil lugares para esconderijo.

Monk observou as três lanchas avançarem a toda a velocidade na direção deles e depois se separarem, virando-se bruscamente com um borrifo de água do mar. Elas posicionaram-se em cada lado da proa do navio de cruzeiro, e uma diretamente em frente, e voltaram na direção da ilha, movendo-se lentamente através das ondas.

Escoltas.

Os barcos menores estavam guiando seu grande irmão até o porto.

A medida que a ilha se aproximava, Monk conseguiu avistar uma fenda estreita na face do penhasco, angulada de tal forma que era fácil passar despercebida. A abertura parecia pequena demais para o navio de cruzeiro, era como fazer um camelo passar pelo buraco de uma agulha. Porém, alguém havia tirado as medidas de profundidade e largura e as comparado às dimensões e ao calado do navio.

O navio de cruzeiro empurrou a proa por entre duas paredes íngremes de rocha negra. O restante da embarcação não teve opção a não ser ir atrás. O bombordo raspou na pedra com um guincho e tremeu. Monk moveu-se para trás quando um espato de penhasco do seu lado triturou dois botes salva-vidas, esmagando-os e fazendo os fragmentos caírem como chuva.

O navio inteiro guinchou.

Monk prendeu a respiração. Mas eles não tiveram de ir muito longe. A passagem voltou a se abrir. O Mistress of the Seas deslizou da fenda para uma lagoa ampla, a céu aberto, do tamanho de um pequeno lago.

Monk aproximou-se de novo da amurada e ficou boquiaberto. Macacos me mordam! Não é de admirar que eles chamem este lugar de umbigo.

A ilha era, na verdade, um antigo cone vulcânico com uma grande lagoa no centro. Paredes irregulares circundavam toda a ilha e formavam sua coroa. No seu interior, os penhascos eram menos íngremes, com florestas luxuriantes, permeadas de cascatas prateadas, e orlados por praias arenosas. O outro lado da ampla lagoa estava repleto de edifícios cobertos com sapé e casas de tábuas. Uma grande quantidade de cais de madeira e quebra-mares de pedra projetava-se da cidadezinha. Vários barcos haviam sido puxados para a praia para serem consertados; outros haviam enferrujado até restar apenas o cavername.

Para os piratas, lar doce lar.

Mais lanchas partiram a toda a velocidade ao encontro do navio de cruzeiro que chegava.

Monk esperava que eles não estivessem vindo vender bugigangas.

Ele olhou para cima, notando como a luz havia se tornado sombria depois que entraram na lagoa. Era como se nuvens de tempestade tivessem se formado repentinamente.

Mas não eram nuvens que escureciam a lagoa.

Alguém esteve trabalhando, pensou Monk quando esticou o pescoço para cima.

Em ziguezague sobre o cone aberto do vulcão, uma enorme rede havia sido amarrada. Ela parecia um pouco uma colcha de retalhos, construída aos poucos, e com certeza sua construção havia levado décadas, talvez séculos. Embora as seções principais fossem sustentadas por cabo de aço e treliça, estendidos de um pico ao outro, outras áreas eram formadas por corda e redes de corais, e seções ainda mais antigas pareciam ser simplesmente feitas de palha trançada e sapê. A construção inteira estendia-se sobre a lagoa como um teto em malha, uma maravilha da engenharia, habilidosamente camuflada com folhas, trepadeiras e ramos de árvores. Do alto, a lagoa seria invisível. Do ar, a ilha daria a impressão de ser apenas uma selva contínua.

E agora a vasta rede havia capturado o Mistress of the Seas, ocultando-o para sempre de olhos curiosos. Nada bom.

Os motores pararam, e o navio perdeu velocidade até ficar à deriva. Monk ouviu o som e a vibração suave quando as âncoras da embarcação foram lançadas. Uma agitação na direção da proa chamou sua atenção.

Monk foi até lá investigar. Outros piratas eram menos furtivos e passaram correndo por ele, com os rifles de assalto erguidos no ar, dando vivas. — Isso não pode ser coisa boa — murmurou.

Mantendo-se afastado, Mark descobriu uma grande multidão de piratas reunida no convés de proa, concentrada em torno da piscina e da banheira de água quente. Música baamiana soava em alto volume, uma cortesia de Bob Marley e seus refrões rastafáris. Muitos tinham nas mãos garrafas de cerveja, uísque e vodca, o que refletia a mistura de mercenários e de piratas do lugar. Parecia que estavam dando uma festa de boas-vindas a casa.

Junto com jogos.

A atenção dos piratas concentrava-se na direção de estibordo do navio. Rifles de assalto eram sacudidos em punhos erguidos; gritos de encorajamento se faziam ouvir. Alguém havia desparafusado a prancha de mergulho e a colocara projetando-se para fora da amurada, sobre a água. Um homem foi empurrado para a frente, com os braços atados às costas. Ele havia sido espancado: seu nariz sangrava e o lábio estava rachado.

Empurrado para o lado, Monk teve um vislumbre do rosto dele acima da multidão.

Oh, não...

Jessie balbuciava desesperadamente em malaio, mas não deram atenção às suas palavras. Sob a ameaça de armas de fogo, ele foi obrigado a subir a amurada e a pisar na prancha de mergulho. Parecia que aqueles piratas eram fundamentalistas, apegados à tradição.

Jessie cambaleava na prancha, empurrado e cutucado até o fim.

Monk deu um passo na direção dele.

Uma massa de piratas, porém, se interpunha entre ele e o jovem enfermeiro. E o que ele poderia fazer? Era claro que Monk não podia abrir caminho a tiros por entre a multidão de piratas ali. Isso só faria com que ambos fossem mortos.

Ainda assim, a mão de Monk moveu-se para o rifle.

Ele não deveria ter envolvido o rapaz. Passara a depender demais dele, fizera-o ir longe demais. Jessie saíra uma hora atrás, à procura de quaisquer mapas da região. Alguém devia ter um mapa ou poderia desenhar um. Os piratas tinham de obter seus suprimentos de algum lugar nas proximidades. Monk insistira em que ele tivesse cuidado, mas Jessie saíra precipitadamente com os olhos brilhantes.

E vejam só no que deu.

Com um último lamento, Jessie caiu da extremidade da prancha e bateu com força na água. Monk correu para a amurada, junto com a maioria dos piratas, ficando ombro a ombro com eles enquanto vaiavam, davam vivas e xingavam. Foram feitas apostas.

Monk respirou de alívio quando Jessie voltou à superfície, agitando os pés com força, de costas, arfando. Dois piratas perto da proa apontaram os rifles para a vítima que se debatia.

Oh, Deus...

Os tiros soaram claros e particularmente alto sob a coberta da rede.

Uma série de respingos marcou o impacto.

Junto aos calcanhares de Jessie.

Mais gargalhadas.

O rapaz agitou os pés com mais força e se contorceu, nadando para longe do navio.

Ele jamais conseguiria chegar à praia.

Uma das lanchas azuis partiu em linha reta na direção de sua forma que se debatia, a fim de atropelá-lo. Porém, no último instante, ela se desviou, encharcando Jessie com a sua esteira.

Ele cuspiu, parecendo mais zangado do que assustado.

De costas, deu umas pernadas e usou os braços atados como uma espécie de leme. O cara era forte e rijo.

Mas a lancha era mais rápida.

Ela tornou a dar a volta, movendo-se velozmente para outra investida.

Um pistoleiro às gargalhadas na traseira da lancha preparou-se e apontou seu rifle de assalto. Ele metralhou a água quando a lancha passou entre o navio de cruzeiro e o rapaz.

Monk encolheu-se de medo, sabendo que Jessie não poderia ter sobrevivido dessa vez.

A lancha passou zunindo.

E lá estava Jessie, tossindo e cuspindo. Ele impelia o corpo agitando os pés. Um pequeno grito de aplauso ergueu-se dos piratas.

As mãos de Monk fecharam-se na amurada, com força suficiente para atravessá-la. Os malditos filhos-da-puta estavam brincando com Jessie, prolongando a tortura.

Embora fosse incapaz de agir, ele se recusou a se afastar, e seus dedos fecharam-se num nó. Seu rosto, vermelho como o fogo, devia estar brilhando intensamente através da maquiagem castanho-escura.

Tudo minha culpa...

Jessie esforçou-se para ir na direção da praia, de lado agora, calculando a distância que teria de nadar para chegar lá. A lancha fez outro círculo. Gargalhadas ecoaram por sobre a água.

Jessie agitou os pés mais rapidamente. De repente emergiu, encontrando areia sob seus pés. Correu, caiu, tomou impulso e mergulhou na direção da praia. Pouco depois, suas pernas estavam se erguendo acima do normal através da água que marulhava. Ele avançou pela praia rumo à selva densa.

Vá, Jessie...

A lancha passou em alta velocidade. Tiros foram disparados. Areia explodiu, folhas rasgaram-se. Então Jessie avançou correndo pelo último trecho e desapareceu na floresta, com os braços ainda atados às costas.

Mais vivas e alguns grunhidos de frustração.

O dinheiro mudou de mãos.

Mas a maioria ainda estava rindo, como de uma piada particular.

Monk cutucou o homem ao seu lado.

— Apa? — perguntou.

Como aquele bando de piratas era um misto de homens do lugar e mercenários estrangeiros, Monk ficara sabendo que o uso do malaio pidgin era permitido. Nem todos eram fluentes como os piratas nativos.

O cavalheiro ao seu lado perdera vários dentes, porém estava contente em mostrar com um amplo sorriso quantos ainda haviam restado. Ele apontou para a praia, mas ergueu a mão mais para cima. Alguns filetes de fumaça podiam ser vistos próximo à crista das montanhas. Havia algum acampamento lá em cima.

—        Pemakan daging manusia — explicou o pirata.

O mesmo para você, meu chapa.

O pirata devia ter percebido a confusão dele e apenas sorriu mais largo, exibindo seu dente do siso apodrecido. Ele tentou de novo.

—        Kanibals.

Os olhos de Monk arregalaram-se. Aquela era uma palavra malaia que ele podia traduzir sem ajuda. Voltou a olhar para a praia vazia e depois para cima, para os rastros de fumaça. Parecia que os piratas partilhavam a ilha com uma tribo local de canibais. E, como quaisquer bons hóspedes voltando para casa, os piratas haviam jogado um osso para seus zeladores.

Literalmente.

O pirata ao seu lado continuou com sua fala ininteligível e apontou para a água. Monk só entendeu algumas expressões, uma palavra aqui e outra ali.

—        ...afortunado... à noite... ruim... — O homem fez uma imitação com a mão, uma garra erguendo-se, segurando alguma coisa e arrastando-a para baixo. — Iblis.

A última palavra era uma maldição em malaio.

Monk a ouvira bastantes vezes, mas tinha quase certeza de que o homem estava usando a tradução direta.

Demônio.

—        Raksasa iblis — repetiu ele, e tagarelou um pouco mais, terminando com um nome sussurrado, fazendo seu sorriso largo murchar, transformando-se mais numa expressão de dor. — Rangda.

Monk franziu o cenho e aprumou-se, inclinando-se um pouco sobre a amurada para fitar a água. Ele se lembrou da história de Jessie sobre as velhas esposas. Rangda era o nome da rainha-feiticeira balinesa cujos demônios supostamente assombravam aquelas águas.

— À noite... — murmurou o homem em malaio, e apontou para a água. — Amat, amat buruk. Muito, muito ruim.

Monk suspirou. Simplesmente fantástico. Ele olhou preocupado para a floresta, na direção em que Jessie desaparecera.

Demônios e canibais.

O que viria em seguida? O Club Med?

 

Com o sol brilhando no restaurante do terraço panorâmico, Gray ouviu a ameaça. Ela exauriu todo o calor da manhã.

—        Se você não seguir as minhas instruções ao pé da letra, vou matar seus pais. Gray apertou com força o telefone celular de Vigor.

—        Se alguma acontecer a eles...

—        Alguma coisa acontecerá, isso eu lhe prometo. Eu lhe mandarei pedaços deles pelo correio durante meses.

Gray percebeu a certeza absoluta nas palavras do homem. Ele virou as costas para os outros, precisando concentrar-se, pensar.

—        Se você tentar entrar em contato com a Sigma — prosseguiu Nasser, com a voz controlada —, eu saberei, e você será punido com o sangue da sua mãe.

Gray sentiu um nó apertar-lhe a garganta.

—        Seu filho-da-puta... eu quero saber se eles estão vivos... ilesos.

Nasser nem sequer respondeu. Gray ouviu uma confusão ao telefone, vozes abafadas, e então sua mãe falou.

—        Gray — ela ofegou. — Sinto muito. Seu pai. Eu precisava dos comprimidos dele.

As palavras dela terminaram num soluço.

O corpo inteiro de Gray tremia, oscilando entre a fúria e a dor.

—        Não importa. Você está bem? Papai está bem?

—        Nós estamos... sim... Gray...

O telefone foi arrebatado dela, e Nasser voltou a falar.

—        Vou deixá-los aos cuidados da minha colega Annishen. Acho que você a conheceu no abrigo secreto no Distrito de Colúmbia.

Gray visualizou a eurasiana com o cabelo à escovinha tingido e as tatuagens.

A asiática Anni.

Nasser continuou:

—        Vou me encontrar com você na Turquia, às 19 horas. Não saia de onde está.

Gray consultou o relógio. Passava pouco das nove da manhã.

—        Eu tenho homens vigiando a sua posição no Sultanahmet enquanto nós falamos. Não tente bancar o espertinho. Estamos rastreando o telefone de monsenhor Verona desde que ele partiu da Itália.

A súbita partida de Vigor do Vaticano devia ter desencadeado um sinal de perigo. Gray queria ficar zangado com o monsenhor por ser tão descuidado, mas sabia que Vigor não operava no mesmo nível de paranóia dele. Poucas pessoas o faziam. E naquele momento Gray não tinha lugar para recriminações, pois estava consumido demais pela própria culpa.

Ele deixara seus pais sozinhos.

—        Eu gostaria de falar com Seichan agora — disse Nasser.

Gray fez sinal para que Seichan se aproximasse. Ela ia pegar o fone, mas Gray o reteve e gesticulou para que ela chegasse perto a fim de que ele pudesse ouvir a conversa.

—        Amen — disse ela, usando o prenome de Nasser —, o que você quer?

—        Sua cadela... por esta traição, eu vou fazer você sofrer de maneiras...

—        Sim. E eu quero que você se dane. Eu consegui, queridinho. — Seichan suspirou, e seu hálito fez cócegas no pescoço de Gray. — Mas acho que vamos ter que nos despedir por aqui. Já terei partido há muito tempo quando você chegar.

Gray ficou tenso e virou-se ligeiramente para fitá-la. Ela ergueu a palma de uma das mãos, indicando-lhe que ficasse em silêncio, e sacudiu a cabeça. Ela não iria a lugar nenhum.

—        Meus homens já fecharam o cerco em torno de você — advertiu Nasser. — Se você tentar partir, eles meterão uma bala entre os seus olhos frios.

—        Como quiser. Assim que esta nossa conversinha terminar, vou sair desta maldita igreja.

Seichan deu uma olhadela significativa para Gray e apontou por cima da parede do terraço panorâmico na direção de Hagia Sophia. Ela continuou falando ao telefone:

—        De qualquer modo, não estávamos fazendo nenhum progresso aqui em Hagia Sophia. Existem murais demais. E eles são todos seus, meu bem. Você jamais vai voltar a me ver.

Gray franziu o cenho. Ela estava claramente mentindo. Mas por quê?

Nasser fez uma pausa e depois falou, com a fúria derretendo seu jeito gélido.

—        Você não vai conseguir dar dez passos! Eu mandei vigiar todas as saídas de Hagia Sophia.

Seichan virou os olhos para Gray, indicando o seu estratagema.

—        Tenho certeza de que você fará isso, Amen — encerrou Seichan. — Ciao, meu bem. Beijinhos.

Seichan afastou-se do telefone e ergueu um dos dedos na direção de Gray, advertindo-o de que tivesse cuidado.

Gray entrou no jogo.

—        O que você acabou de dizer a ela? — perguntou bruscamente ao telefone. — Seichan simplesmente pegou sua arma e saiu da igreja. Que diabo você e essa cadela estão tramando?

Seichan fez um aceno de cabeça com um sorriso tenso.

Ouvindo Nasser xingar com tanta veemência, Gray avaliou mentalmente, lutando para entender o subterfúgio de Seichan, reprimindo sua culpa e raiva. Isso não ajudaria nem a ele nem aos seus pais.

Os olhos dele se encontraram com os de Seichan. A Guilda podia ter rastreado o telefonema de Vigor, mas a triangulação deles não era perfeita. E Seichan havia testado isso ao afirmar que estava em Hagia Sophia. A Guilda sabia que eles estavam em algum lugar no bairro antigo de Istambul, mas não exatamente onde.

Pelo menos não ainda.

Gray olhou através de um parque próximo na direção do imenso volume de Hagia Sophia, com sua cúpula plana gigante, cercada por quatro minaretes pontiagudos.

—        O que vocês estão fazendo em Hagia Sophia? — quis saber Nasser.

Gray avaliou quanto poderia dizer. Ele tinha de ser convincente, e a melhor maneira de fazer isso era com um pouco de verdade.

—        Estamos procurando a chave de Marco Polo. Monsenhor Verona decodificou a escrita no Vaticano, e ela conduziu até aqui.

—        Quer dizer então que Seichan contou o que estamos procurando. — Outro xingamento. — Por tê-la deixado escapar, eu vou ter que lhe ensinar como somos sérios.

Gray percebeu a intenção de fazer mal aos seus pais.

—        Seichan não é mais importante — Gray interrompeu-o bruscamente, protegendo seus pais da única maneira que podia. — Eu tenho o que você está procurando: o código angélico do obelisco egípcio. Ainda tenho uma cópia.

Nasser permaneceu em silêncio. Gray imaginou-o fechando os olhos de alívio. Mais do que punir Seichan, Nasser precisava da escrita angélica.

—        Muito bem, comandante Pierce. — A tensão de um instante atrás desaparecera da voz dele. — Continue cooperando dessa maneira, e sua mãe e seu pai viverão em paz e graça pelo resto de sua vida.

Gray sabia que aquela promessa era tênue como o ar que ele respirava.

—        Eu o encontrarei no interior de Hagia Sophia às 19 horas — disse Nasser. — Vasculhe a igreja à procura da chave de Polo, se quiser. Mas eu tenho atiradores de tocaia em todas as saídas.

Gray forçou um sorriso de escárnio.

—        Comandante Pierce, se você pensar em armar qualquer cilada, saiba que estarei me comunicando com Annishen de hora em hora. Se me atrasar um minuto, ela começará pelos dedos dos pés de sua mãe.

A linha ficou muda.

Gray fechou o telefone de Vigor.

—        Temos que ir a Hagia Sophia. Antes que os homens da Guilda calculem nossa verdadeira localização.

Eles começaram a juntar rapidamente seu material. Ele virou-se para Seichan.

—        Isso foi arriscado.

Ela deu de ombros.

—        Gray, se você tiver alguma esperança de sobreviver a isso, certamente não subestime a Guilda. Eles são poderosos, com muitos aliados. Mas, ao mesmo tempo, não os superestime. A Guilda se aproveitará do seu medo da onipotência dela para enfraquecer o seu moral. Então, simplesmente permaneça concentrado. Seja cauteloso, mas use a cabeça.

—        E se você estivesse errada? — perguntou Gray com uma pontada de raiva.

Seichan inclinou a cabeça.

—        Eu não estava.

Gray respirou pesadamente pelo nariz, tentando dar vazão à sua raiva. Sua mãe e seu pai sofreriam se Seichan estivesse errada.

—        Além do mais — disse Seichan —, eu precisava de uma desculpa plausível para não estar aqui quando Nasser chegar. Ele vai manter você e monsenhor Verona vivos, pois ambos são úteis. E, com sua mãe e seu pai como garantia, Nasser acreditará que pode montar em você como num cavalo alquebrado. Mas ele me mataria imediatamente. Isto é, se eu tivesse sorte. Por isso eu precisava de uma saída estratégica para salvar a minha vida, mas que me permitisse a liberdade de agir por minha própria conta. Se eu quiser ter alguma oportunidade de ajudar você.

Gray finalmente conteve sua raiva. Não eram os pais de Seichan que estavam em perigo. Era mais fácil para ela ser desdenhosa e correr riscos. Ela tomara uma decisão fria, agira rapidamente, e os resultados seriam bons para todos eles.

No entanto...

Seichan virou-se e apontou.

—        E eu vou precisar desse cara.

—        De quem? De mim? — perguntou Kowalski.

—        Como eu disse, Nasser vai me matar imediatamente. Provavelmente, vai matar Kowalski também.

—        Por que eu? — O rosto do homenzarrão murchou. — Que diabo eu tenho a ver com ele?

—        Você é inútil.

—        Ei!

Seichan ignorou a explosão dele.

—        Nasser não precisa de mais nenhum refém, não com o sr. e a sra. Pierce nas mãos. Ele não verá nenhuma utilidade em manter você vivo.

Gray ergueu uma das mãos.

—        Mas e se Nasser já souber que Kowalski está aqui conosco? Seichan simplesmente o encarou, exasperada.

Ele lentamente entendeu.

Não superestime a Guilda.

Franzindo o cenho, Gray esforçou-se para se livrar da idéia de que a Guilda era onipotente. Isso ameaçava incapacitá-lo de agir. Acalmando-se, e considerando lodos os pontos de vista, ele se deu conta de que ela estava certa.

Virou-se para Kowalski.

—        Você irá com Seichan.

—        E eu vou fazer bom uso dele — disse Seichan, dando um tapa no traseiro do ex-marujo.

—        Pelo menos alguém acha que eu sou útil — resmungou Kowalski, esfregando o traseiro.

Tendo reunido todo o seu equipamento, eles dirigiram-se para baixo. Seichan e Gray foram por último. Ele segurou o braço dela quando ela tentou passar.

—        O que você vai fazer para nos ajudar? — perguntou ele assim que ambos ficaram sozinhos no terraço panorâmico.

—        Eu não sei. Pelo menos ainda.

Ela sustentou o olhar dele por um instante longo demais e, em seguida, tentou afastar-se. Sem dúvida, ela queria dizer-lhe mais alguma coisa, porém ainda não tivera coragem. Isso era evidente na tensão da respiração, na ligeira hesitação do olhar dela.

—        O que é? — indagou ele suavemente, preocupado.

A ternura dele só pareceu fazê-la querer afastar-se ainda mais. Mas ela suspirou.

—        Gray... sinto muito... — começou ela, desviando o olhar de novo. — Seus pais...

Havia mais do que preocupação nos olhos e no jeito dela. Também havia certo grau de culpa. Por quê? Culpa implicava responsabilidade. Mas o envolvimento de Seichan com os pais de Gray fora acidental. Gray passara a aceitar isso. Então, de onde provinha essa culpa repentina?

Sua mente examinou rapidamente várias possibilidades, revendo as conversas recentes. Com Nasser, com Seichan. O que a estava incomodando...

...então de repente ele soube.

Seichan praticamente dissera a ele um momento atrás.

Não superestime a Guilda.

Ele apertou ainda mais o braço dela e empurrou-a contra a parede ao lado da porta. Ele inclinou-se para perto, e seus lábios quase se tocaram.

—        Oh, meu Deus... não existe nenhum maldito espião na Sigma. Nunca existiu.

Seichan gaguejou para explicar.

Gray não deixou.

—        Nasser me advertiu contra telefonar para a Sigma, até me ameaçou. Por quê? Ele sabia que eu estava ciente de que havia um espião da Guilda na Sigma. Então, por que se incomodou em me ameaçar? — Ele a sacudiu. — A menos que não haja espião algum.

Seichan se encolheu, lutou por um momento para livrar-se do braço dele, mas ele apertou com mais força, pressionando até o osso.

—        Quando você ia me contar? — indagou ele bruscamente.

Ela afinal conseguiu falar, e sua voz estava zangada, não-apologética, defensiva.

—        Eu ia contar a você depois que tudo isso tivesse terminado. — Ela suspirou de irritação. — Mas, com os seus pais capturados, eu não poderia mais manter isso em segredo... se houver qualquer esperança de libertá-los. Eu não sou insensível, Gray.

Seichan tentou se afastar, mas Gray mudou de posição para manter seus olhos fixos nela.

—        Então, se não havia nenhum espião — indagou ele —, como Nasser soube do abrigo secreto? A emboscada que ele preparou?

—        Um erro de cálculo da minha parte. — Os olhos dela ficaram duros como pedra. — E isso é tudo o que direi. Você terá que acreditar que eu agi de boa-fé.

—        Acreditar em você — zombou ele.

A reação dele pareceu magoá-la, pois ela baixou levemente o queixo. Gray não deu trégua.

—        Se eu tivesse o apoio da Sigma desde o começo...

O rosto dela endureceu.

—        Você teria fracassado, Gray, e eu teria sido trancafiada em alguma prisão. E isso teria sido inútil. Eu precisava de nós dois livres e longe da forma mais hábil e rápida possível. Por isso deixei-o acreditar no que você pensou.

Gray procurou alguma expressão ínfima, um vislumbre fugaz de uma emoção oposta indicativa de mentira. Mas não encontrou nada. Seichan mantinha o olhar fixo, penetrante, desafiador. Ela nem sequer se deu o trabalho de ocultar que havia mais coisas que não haviam sido ditas.

Gray olhou para ela com uma expressão de raiva, amaldiçoando-se por não ter sido mais cauteloso com ela.

—        Eu deveria deixar Nasser fuzilar você.

—        Nesse caso, quem vai lhe dar cobertura, Gray? Quem você tem lá fora? Kowalski? Você está mais seguro sozinho. Você me tem. Essa é a verdade. Então, vamos superar isso. Nós podemos continuar discutindo, perder o pouco tempo que lhe sobra para você telefonar para a Sigma, ou podemos resolver isso depois.

Ela acenou com a cabeça na direção da porta.

—        Tem um telefone no saguão do hotel. Esse é outro dos motivos por que eu queria que Nasser pensasse que estávamos noutro lugar. A essa altura, ele provavelmente está rastreando todos os telefones públicos em Hagia Sophia. O telefone no saguão deve ser seguro. Ou, pelo menos, seguro o suficiente. E você terá de ser breve, pois o nosso tempo já está se esgotando.

Gray soltou-a, empurrando-a.

Mais uma vez, uma expressão magoada cintilou no rosto dela. Que ela seja magoada.

Se soubesse que não havia nenhum espião, ele poderia ter entrado em contato com Painter desde o começo. Pelo menos, providenciado para que sua mãe e seu pai ficassem em segurança.

Ela devia ter percebido a origem da raiva dele. Limpou o rosto, e sua voz suavizou-se, soando extremamente cansada.

—        Eu também pensei que eles estariam seguros, Gray. Sinceramente pensei.

Gray quis retrucar bruscamente, mas não conseguiu pronunciar uma palavra sequer. Não apenas porque estava com raiva, como também, e ainda mais importante, porque não podia descarregar toda a sua culpa em Seichan.

Não havia como negar a pura verdade.

Ele havia deixado os pais sozinhos.

E não outras pessoas quaisquer.

 

—        Diretor Crowe, tenho uma chamada segura procedente de Istambul.

Painter ergueu os olhos do banco de informações de satélite e olhou na direção do chefe de comunicações. Quem estaria telefonando de Istambul?

Painter passara a última hora argumentando com as autoridades do Escritório Nacional de Reconhecimento e com a NSA, tentando obter pleno acesso ao Echelon, o sistema de vigilância por satélite deles, a fim de priorizar uma busca ao redor da ilha Christmas. Mas aquele território remoto, com uma população escassa, era designado como de baixo risco e não estava sob vigilância constante. Rompendo a prática convencional, Painter finalmente convencera a Base Australiana de Defesa Conjunta em Pine Gap a destinar um de seus satélites à área. Mas isso levaria mais 14 minutos.

—        É do comandante Pierce, senhor — disse o chefe de comunicações, e estendeu-lhe o fone.

Painter girou em sua cadeira. Que diabo? Ele pegou o fone.

—        Gray? Aqui é o diretor Crowe. Onde você está?

A voz chegou fraca.

—        Senhor, não disponho de muito tempo, e tenho muitas informações secretas para transmitir.

—        Estou ouvindo.

—        Em primeiro lugar, meus pais foram seqüestrados por um agente da Guilda.

—        Amen Nasser. Nós sabemos. Já estamos fazendo uma ampla busca.

Surpreso, Gray silenciou, e então prosseguiu.

—        O senhor também precisa entrar em contato com Monk e Lisa. Eles estão em perigo na Indonésia.

—        Nós estamos cientes. Estou tentando uma varredura de satélite enquanto conversamos. Se você já terminou de me contar o que eu já sei, por que não começa pelo início?

Gray respirou fundo e relatou rapidamente o que acontecera desde que Seichan havia se intrometido de novo na sua vida. Painter fez algumas perguntas, e as peças começaram a se encaixar como num quebra-cabeça disperso. Ele já havia compreendido muita coisa enquanto esperava a resposta da NSA. Já havia suspeitado de que a Guilda talvez estivesse envolvida no incidente na ilha Christmas. Quem mais dispunha dos recursos para roubar a população inteira de uma ilha e desaparecer? Gray apenas confirmou essa hipótese e respondeu por que aquilo tudo estava acontecendo, dando-lhe, até, um nome.

A Estirpe de Judas.

Uma hora atrás, Painter havia convocado de novo o dr. Malcolm Jennings aos escritórios do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da Sigma, tirando-o da cama. Enquanto voltava de carro do local do seqüestro para a Sigma, Painter revisara as últimas conversas de Lisa. Por ela estar claramente coagida, suas declarações eram suspeitas. Como a afirmação de que a doença que tanto a desconcertara antes era agora apenas um alarme falso. Ele se lembrara do pânico anterior de Jennings em relação à ameaça de uma catástrofe ambiental. E da última declaração arrepiante do homem: Ainda não sabemos o que matou os dinossauros.

Sem dúvida, ali estava algo que poderia interessar à Guilda.

Painter havia até suposto que o súbito aparecimento de Seichan e o desaparecimento de Gray pudessem estar relacionados com a Indonésia. Duas importantes ações da Guilda ocorrendo ao mesmo tempo. Painter não gostava de coincidências. Tinha de haver uma ligação. Mas ele jamais teria imaginado quem ligava tudo isso.

—        Marco Polo? — perguntou Painter.

Gray terminou sua história.

—        A Guilda está operando em duas frentes. Um braço científico está investigando o ataque atual, procurando uma cura e a origem da doença. Ao mesmo tempo...

Painter interrompeu-o.

—        Um braço histórico está seguindo a trilha de Marco com o mesmo fim: uma cura e a origem da doença.

Aquilo agora fazia um sentido terrível.

—        E Nasser está indo para Istambul — disse Painter.

—        É provável que ele já esteja voando.

—        Eu posso mobilizar recursos aí, ter pessoas úteis em campo nas próximas horas.

—        Não, a Guilda saberá. De acordo com Seichan, Istambul é um dos principais centros de atividades deles. Eles estão em todas as agências aqui. Se perceberem que o senhor mobilizou forças, saberão que nós nos falamos. Meus pais... o senhor não pode. Eu vou ter que lidar com Nasser sozinho.

—        Mas você correu um risco enorme nessas circunstâncias, Gray. A Sigma está comprometida. Eu farei todo o possível para evitar que isso vaze ainda mais, porém o espião aqui poderia...

—        Diretor, não tem nenhum espião na Sigma.

Painter teve um sobressalto. Ele levou um instante para reorganizar o pensamento, para considerar essa possibilidade.

—        Você tem certeza? — perguntou finalmente.

—        Certeza suficiente para arriscar a vida dos meus pais.

Painter sentou-se por um momento. Ele acreditava em Gray. A frustração irritante de lidar com toda a disputa entre as agências passou. Se não havia nenhum espião...

A voz de Gray ficou mais débil.

—        Não posso correr o risco de permanecer na linha por mais tempo. Tenho que ir. Eu farei todo o possível para seguir essa pista, para ver aonde ela conduz.

A linha emudeceu por um instante. Painter pensou que Gray tivesse desligado, mas ele voltou a falar.

—        Por favor, diretor, encontre meus pais.

—        Eu os encontrarei, Gray. Pode ter certeza disso. E, quando eu os encontrar, diga a Vigor para esperar um telefonema da sobrinha dele. O telefone tocará algumas vezes e depois será desligado. Esse será o sinal de que os seus pais estão em segurança.

—        Obrigado, senhor.

O telefone ficou mudo.

Painter recostou-se.

—        Senhor — interrompeu o oficial de comunicações —, dentro de mais dois minutos deveremos ter informação do satélite.

 

Apesar da necessidade de se apressar, Gray não conseguiu deixar de diminuir o passo quando se aproximou da fachada ocidental de Hagia Sophia, assombrado com seu tamanho.

Vigor notou seu pescoço esticado.

—        Impressionante, não é?

Não havia como negar isso.

A monumental construção bizantina era considerada por muitos a Oitava Maravilha do Mundo. Localizada no alto de uma colina onde outrora houvera um templo de Apolo, ela dava vista para a magnífica extensão azul do mar de Mármara e para grande parte de Istambul. Sua característica mais marcante, a imensa cúpula bizantina, brilhava como cobre polido ao sol da manhã, elevando-se no ar por uma altura equivalente à de vinte andares. Outras meias-cúpulas mais baixas apoiavam-na a leste e a oeste, enquanto outras cúpulas espalhavam-se de cada lado como criadas de uma rainha, expandindo a largura da imensa estrutura.

Vigor prosseguiu com uma aula de História sobre o lugar e apontou para as arcadas gigantes à frente que conduziam ao interior de Hagia Sophia.

—        As Portas Imperiais. Foi por essas portas que, em 537, o imperador Justiniano se consagrou à Igreja e declarou: "Ah, Salomão, eu vos suplantei." E foi por essas mesmas portas que, no século XV, o sultão Mehmed, o conquistador turco otomano que saqueou Constantinopla, despejou terra sobre a cabeça num ato de humildade antes de entrar na igreja. Ele ficou tão impressionado que, em vez de destruir Hagia Sophia, a converteu numa mesquita.

—        E agora ela é um museu — disse Gray.

—        Desde 1935. — Vigor confirmou e apontou para o andaime no lado sul da construção. — O trabalho de restauração tem sido quase contínuo desde essa data. E não só no lado de fora. Quando converteu a igreja numa mesquita, o sultão Mehmed mandou cobrir de gesso todos os mosaicos cristãos, pois é contra a lei islâmica representar figuras humanas. Mas, nas décadas passadas, houve uma tentativa lenta e meticulosa de restaurar aqueles inestimáveis murais bizantinos em forma de mosaico. Ao mesmo tempo, houve um desejo idêntico de preservar a arte islâmica antiga dos séculos XV e XVI, trechos impressionantes de caligrafia e púlpitos decorados. Para dar equilíbrio a um projeto desses, o trabalho de restauração em Hagia Sophia exigiu a vinda de especialistas de todos os campos da arquitetura e da arte. Foram feitas até consultas ao Vaticano.

Vigor liderou o caminho através da pequena praça aberta na direção da entrada em arcada, seguindo o fluxo de turistas.

—        Assim, eu pensei que talvez pudesse trazer alguém familiarizado com a restauração, alguém que foi consultado pelos curadores de Hagia Sophia no passado.

Gray lembrou-se de Vigor ter mencionado que enviara alguém na frente para começar a procurar a agulha de ouro num imenso palheiro bizantino.

Quando chegaram às portas, Gray notou um homenzarrão barbudo à entrada, bloqueando o fluxo de turistas. Ele estava em pé com os punhos nos quadris, fitando todas as pessoas. Porém, quando avistou Vigor, ergueu um dos braços, saudando-o.

Vigor retribuiu o aceno, indicando-lhe que entrasse na igreja.

Gray foi atrás, ansioso para sair das ruas, sem saber se algum dos rastreadores da Guilda havia determinado a localização deles. Até seus pais estarem seguros, ele não queria irritar Nasser de maneira alguma, fazer o homem questionar o subterfúgio de Seichan.

Transpondo a porta, Gray virou-se para olhar para a praça aberta. Não viu nenhum sinal de Seichan ou de Kowalski. Os dois grupos haviam se separado assim que eles deixaram o hotel. Seichan havia comprado um telefone celular pré-pago descartável. Gray memorizara o número do telefone. Era a única maneira de ele entrar em contato com ela.

—        Comandante Gray Pierce — apresentou Vigor —, este é o meu querido amigo Balthazar Pinosso, decano do departamento de história da arte da Universidade Gregoriana.

A mão de Gray foi encoberta pelo aperto de Balthazar, que tinha pouco menos de 2,15m de altura. Vigor continuou:

—        Balthazar foi o primeiro a descobrir a mensagem de Seichan na Torre dos Ventos e me ajudou nas traduções da linguagem angélica. Ele e o curador do museu aqui também são bons amigos.

—        Um bocado de virtudes que deverá bastar — resmungou Balthazar numa voz grave de barítono, e seguiu na frente para o interior da igreja principal. Ele acenou com um braço para a frente. — Temos uma extensa área para explorar.

O homem deu um passo para o lado e a vista se abriu.

Gray ficou boquiaberto diante da visão. Vigor notou sua reação e deu-lhe um tapinha no ombro.

Uma longa abóbada cilíndrica estendia-se por uma vasta distância à frente, e não era diferente de entrar numa estação ferroviária. Acima, uma série de arcos e cúpulas erguia-se rumo à cúpula principal no centro. Uma colunara no segundo andar emoldurava ambos os lados. Porém, a vista mais impressionante não era nada feita de pedra: era simplesmente o jogo de luz no espaço. Janelas trespassavam paredes e enfileiravam-se na base das cúpulas, permitindo que a luz do sol se refletisse do mármore esmeralda e branco, de mosaicos incrustados de ouro. O mero volume do espaço vazio, não-sustentado por colunas interiores, parecia inacreditável.

Em respeitoso silêncio, Gray seguiu os dois homens pela longa nave.

Chegando ao coração da igreja, ele olhou para cima, para a abóbada em sulcos da cúpula principal, vinte andares acima de sua cabeça. Sua superfície cheia de nervuras era decorada com caligrafia ondulada dourada e purpúrea. Em volta da circunferência da base, quarenta janelas em arco permitiam a entrada da luz do sol, dando a impressão de que a cúpula flutuava acima da cabeça das pessoas.

—        É como se ela estivesse flutuando lá em cima — murmurou Gray. Balthazar juntou-se a ele.

—        Uma ilusão de óptica arquitetônica — explicou o historiador da arte, e apontou para cima. — Você está vendo aquelas nervuras ao longo da parte de baixo do teto, como se fossem as varetas de um guarda-chuva? Elas distribuem o peso ao redor das janelas até os pendentes alargados dispostos sobre colunas maciças dos alicerces. Além disso, o teto em si é mais leve do que parece, construído de tijolos vazados cozidos em Rodes, feitos de argila porosa da cidade. Trata-se de uma obra-prima de ilusão. Pedra, luz e ar.

Vigor concordou com a cabeça.

—        Para citar o grande homem, até mesmo Marco Polo ficou impressionado pela "aparente falta de peso da cúpula e pela desconcertante abundância de efeitos luminosos diretos e indiretos".

Gray compreendeu. Além disso, era estranho saber que Marco Polo também estivera em pé onde ele estava agora, os dois homens ligados através das eras pelo assombro mútuo e respeito pelos construtores antigos.

A única imperfeição do efeito era a parede de andaime preto, que ia do piso de mármore ao topo da cúpula, ao longo de um dos lados.

Ela ajudou Gray a avaliar sua situação. Ele consultou o relógio. Nasser chegaria antes do anoitecer. Tinham menos de um dia para solucionar aquele enigma.

Se o seu plano desse certo...

Mas por onde começar?

Vigor estava perguntando a mesma coisa a seu amigo.

—        Balthazar, você conseguiu interrogar o pessoal do museu? Alguém viu alguma coisa parecida com escrita angélica aqui?

O homem cofiou a barba e suspirou.

—        Entrevistei o curador e conversei com os funcionários. O curador conhece Hagia Sophia desde suas criptas subterrâneas até o topo da cúpula mais alta. Ele insiste em que nada parecido com escrita angélica pode ser encontrado em parte alguma. No entanto, ele expressou um pensamento... algo que você não vai gostar de ouvir.

—        O quê? — indagou Vigor.

—        Lembre-se de quanto de Hagia Sophia foi coberto por gesso quando a igreja foi convertida numa mesquita. O que talvez estejamos procurando pode estar oculto sob centímetros de gesso antigo. Ou pode ter sido inscrito em gesso removido há muito tempo. — Balthazar deu de ombros. — Portanto, existe uma possibilidade muito concreta de que o que procuramos possa ter se perdido.

Gray recusou-se a acreditar nisso. Enquanto Vigor e Balthazar discutiam esses assuntos em detalhes, ele se afastou, porque precisava pensar. Consultou o relógio, num gesto automático. Estava nervoso e preocupado, e nem sequer viu as horas. Baixou o braço e foi até o andaime. Jamais deveria ter deixado seus pais sozinhos. As poucas palavras de sua mãe ao telefone o obcecavam.

Sinto muito. Seu pai. Eu precisava dos comprimidos dele.

Alguma coisa devia ter acontecido. Gray se recusara a levar em consideração a doença de seu pai, sua necessidade de remédios. Será que sua negligência foi uma cegueira proposital, uma recusa a aceitar a verdadeira condição do pai? De uma maneira ou de outra sua negligência agora ameaçava a vida de seus pais.

Gray sentou-se com as pernas cruzadas e olhou para a cúpula. Ele lutava para desanuviar a mente. Suas preocupações, seus temores e dúvidas de nada lhe serviriam. Nem seus pais. Respirando fundo para se acalmar, ele exalou lentamente e deixou o zumbido dos turistas desvanecer-se no ambiente.

Ele imaginou a igreja como ela devia ter sido no século XVII. Em sua mente, repintou as paredes, ocultando os mosaicos dourados com gesso. Ele o fez com uma ponderação concentrada, como um exercício de meditação. Ainda que somente em sua cabeça, a velha mesquita pareceu readquirir vida. Ele ouviu os muezins cha¬mando dos minaretes acima da cidade antiga. Imaginou os suplicantes ajoelhados em tapetes, erguendo-se e baixando-se, em oração sincera.

Num lugar como aquele, onde estaria oculta a próxima chave? Onde naquele vasto espaço, com suas incontáveis ante-salas, galerias e capelas laterais?

Enquanto estava sentado, Gray girou sua vista da igreja atrás dos olhos, como um modelo tridimensional de computador, examinando-a de todos os ângulos. Enquanto fazia isso, seu dedo deslizava distraidamente pelo pó de gesso no chão. Afinal se deu conta do que estava desenhando: o símbolo da escrita angélica inscrito no verso do passaporte de ouro de Marco.

Ele olhou para a única letra enquanto a estrutura arquitetônica de Hagia Sophia ainda girava em sua cabeça.

— Ela já foi uma mesquita — murmurou.

Ele bateu de leve nos quatro círculos, que Vigor chamava de marcas diacríticas.

Quatro círculos, quatro minaretes.

E se o símbolo fosse mais do que a primeira chave para solucionar o enigma do mapa codificado? E se ele também se destinasse a ser uma pista que levasse à segunda chave? Seichan não havia dito alguma coisa a esse respeito? Como uma chave levaria à próxima?

Em sua imaginação, ele superpôs um diagrama esquemático de Hagia Sophia sobre o símbolo, posicionando os minaretes de modo que eles cobrissem as marcas diacríticas. Quatro círculos, quatro minaretes. E se o símbolo também se destinasse a representar Hagia Sophia? E se fosse um mapa grosseiro com os minaretes como âncoras?

Nesse caso, por onde começar a procurar?

Na poeira, Gray acrescentou uma linha pontilhada suplementar.

— X marca o lugar — murmurou.

 

Vigor observou Gray andando de gatinhas próximo ao centro da nave, limpando o piso de mármore com as mãos.

Balthazar notou as ações do homem com uma das sobrancelhas erguida. Os dois homens foram para o lado em que Gray estava.

—        O que você está fazendo? — indagou Balthazar. — Se está planejando checar o assoalho inteiro com as mãos, ficará semanas aqui.

Gray recostou-se, olhou para a cúpula, como que calculando sua posição, e então continuou a vasculhar o assoalho, trabalhando ao longo da beira dos andaimes.

—        Tem que estar em algum lugar aqui.

—        O quê? — perguntou Vigor.

Gray apontou para o lugar onde estivera sentado antes. Vigor foi até lá, olhou para o desenho borrado na poeira, e sua testa franziu-se.

Gray falou:

—        É um mapa rudimentar de Hagia Sophia, indicando onde deveríamos procurar a próxima pista.

Vigor percebeu a verdade da avaliação de Gray, novamente surpreso pela capacidade singular do homem de cogitar e analisar. Isso o deixou um pouco assustado.

Gray continuou a engatinhar, explorando lentamente uma seção específica do piso, e alvo de alguns olhares estranhos de turistas que passavam.

Balthazar seguia-o de perto.

—        Você acha que alguém entalhou alguma escrita angélica no mármore? Gray parou de repente, com o ombro roçando o andaime preto. Seus dedos vol¬taram a um ponto que ele acabara de vasculhar. Ele inclinou-se e soprou a laje.

—        Não escrita angélica — disse Gray, e estendeu uma das mãos para a gola de sua camisa.

Vigor juntou-se a ele. Tanto ele quanto Balthazar se ajoelharam em volta da laje que despertara a curiosidade de Gray. Estendendo uma das mãos, Vigor apalpou o mármore com a ponta dos dedos.

Tenuemente inscrito na laje, gasta pelos séculos e pela erosão dos pés que a haviam pisado, estava o contorno simples de uma cruz.

Gray tirou o crucifixo de prata do pescoço, a cruz de frei Agreer. Ele testou suas dimensões e sua forma comparando com a inscrição na laje. Um encaixe perfeito.

—        Você a encontrou — disse Vigor.

Balthazar já tinha um pequeno malho de borracha na mão, tirado de seu cinto. Ele bateu na laje. A testa de Gray se contraiu diante do trabalho cauteloso do homem.

Vigor explicou:

—        Foi assim que encontramos a cavidade embaixo da laje na Torre dos Ventos: pela percussão, prestando atenção a qualquer cavidade oculta.

Balthazar examinou a laje, meticuloso, mas as rugas em sua testa se aprofundaram.

—        Nada — murmurou ele afinal.

—        Você tem certeza? — perguntou Vigor. — Ela tem que estar aqui.

—        Não — disse Gray. Ele se deitou esparramado de costas, olhando para cima. — Para o que Jesus está olhando?

Vigor olhou de relance para a vaga figura do Cristo de prata no crucifixo e depois para cima.

—        Ele está olhando para a cúpula — respondeu Gray. — Para a mesma cúpula que deixou Marco Polo paralisado. Uma cúpula cujo peso ficou mais leve em virtude do uso de tijolos vazados. Se vocês quisessem esconder alguma coisa que durasse séculos a fio...

Vigor esticou o pescoço, boquiaberto.

—        É claro. Mas qual tijolo?

Balthazar ficou em pé.

—        Eu tenho uma idéia — disse ele, e correu na direção dos fundos do edifício, abrindo caminho aos empurrões por entre um grupo de turistas alemães.

Vigor estendeu uma das mãos e ajudou Gray a levantar-se. Gray pegou a cruz e pendurou-a de novo ao pescoço.

—        Brilhante, Gray.

—        Nós ainda não encontramos o segundo paitzu de ouro.

Vigor sabia que Gray puxara Seichan para o lado para uma breve conversa privada antes de eles se separarem.

—        Qual é a urgência, Gray? Com a chegada de Nasser daqui a algumas horas, por que se preocupar em encontrar a segunda chave?

—        Porque eu quero deixar Nasser feliz — respondeu Gray. Vigor percebeu a preocupação com os pais nos olhos do rapaz. — E provar nossa utilidade para ele. Precisamos dele para nos mantermos vivos.

Vigor sentiu que Gray estava omitindo alguma parte do plano. Antes que pudesse lhe fazer mais perguntas, Balthazar reapareceu correndo de volta na direção deles. Sem fôlego, estendeu um pequeno instrumento.

—        Com toda a construção em andamento, imaginei que alguém teria um ponteiro ou um prumo a laser. São ferramentas úteis quando se trabalha em espaços tão vastos.

O colega de Vigor ajoelhou-se, posicionou o dispositivo a laser em cima da cruz inscrita e ligou-o. Nada pareceu acontecer.

Balthazar pegou uma pitada de pó de gesso e jogou-a sobre o aparelho. Uma cintilação cor de rubi iluminou o pó.

—        Está funcionando. — Ele esticou o pescoço para cima. — Alguém terá de subir no aindame para descobrir qual tijolo é iluminado pelo ponteiro.

Gray fez um aceno de cabeça.

—        Eu farei isso.

Balthazar lançou um olhar de culpa ao redor e, em seguida, entregou-lhe um formão e um martelo.

—        Eu também consegui estas ferramentas. — Ele fez a Gray um sinal para que as escondesse. — Você terá que ser discreto. Ninguém tem permissão para subir lá sem um passe especial de artesão emitido pelo governo turco. Eu obtive permissão do curador para deixar um de nós subir brevemente até lá para tirar algumas fotografias. Mas os seguranças — ele acenou com a cabeça na direção da sentinela armada junto à escada do andaime —, nestes dias de ataques terroristas, foram treinados para atirar e só fazer perguntas depois. Se virem você levar um formão para o teto...

Ele baixou a voz.

—        Além de termos cuidado para não sermos mortos a tiros — advertiu Vigor —, não podemos ser descobertos de jeito nenhum. Se formos expulsos... se a polícia for chamada...

Vigor percebeu a compreensão nos olhos de Gray.

Nasser saberia.

—        E não é apenas a nossa vida que está em risco — admitiu Vigor.

Os pais de Gray também sofreriam.

Com um profundo suspiro, Gray baixou a voz:

—        Então precisaremos usar uma distração.

 

Tendo atingido a metade do andaime, Gray mantinha a cabeça inclinada por causa das escoras baixas enquanto subia. Alcançando uma plataforma de tábuas, ele olhou para baixo e avistou Balthazar. As feições do homenzarrão mal eram discerníveis ali, em pé com o curador do museu. Gray inclinou-se para fora a fim de avistar o segurança postado junto ao andaime. O homem uniformizado se afastara de seu posto para ter uma clara visão do progresso de Gray.

Sob o olhar vigilante de todos, Gray continuou a subir. Ele chegou ao círculo de janelas na extremidade inferior da cúpula. A luz do sol brilhava pelo vidro em arco. Gray teve um vislumbre do mar de Mármara através de uma delas. Pouco depois, ele estava acima das janelas. O caminho ficou mais sombrio. Após escalar mais dois minutos, ele finalmente chegou ao topo do andaime e pôde tocar o teto abobadado. Na verdade, teve de se agachar para evitar bater a cabeça.

Por todos os lados, vastos textos em caligrafia islâmica desciam em cascata pelas paredes festonadas. Imediatamente acima, o vértice central da cúpula continha uma espiral de caracteres árabes ornados com ouro, pintados contra um fundo roxo-escuro.

Gray examinou a extremidade do vértice. Pequenos grãos de poeira agitaram-se para a esquerda com o brilho, iluminadas de baixo pelo ponteiro a laser. Ele avistou seu alvo: um ponto brilhante cor de rubi distinguido numa seção roxo-escura do gesso. Ótimo. A cor era escura o bastante para que qualquer buraco no gesso fosse difícil de discernir.

Pelo menos, era o que ele esperava.

Para chegar ao tijolo visado, era preciso continuar de gatinhas à medida que o teto abobadado arqueava para baixo.

Uma vez lá, Gray agachou-se e apalpou o gesso. Não havia nenhuma inscrição. Nenhuma escrita. Nenhuma outra marca.

Ele franziu o cenho. E se estivesse errado?

Infelizmente, só havia uma forma de descobrir. Gray acenou com a mão através do rastro do laser, iluminando-a.

Era o sinal.

Abaixo, Balthazar curvou-se, recolheu despreocupadamente o ponteiro e direcionou-o para baixo, ao longo da imensa nave.

Como se a luz tivesse atingido algum gongo, um assobio alto da polícia soou daquela extremidade da igreja, penetrando o silêncio solene, ecoando por todo o interior. Gritos confusos seguiram-se.

Gray olhou naquela direção e avistou a irrupção de uma chama: um coquetel molotov improvisado, derivado do álcool de polimento usado para limpar os mosaicos. Vigor provocara o pequeno incêndio numa lata de lixo.

Mais gritos.

Gray girou a fim de manter a maior parte de seu corpo entre o segurança abaixo e sua profanação acima. Tirou as ferramentas do cinto, posicionou a ponta do formão onde antes a marca do ponteiro estivera. Esperou um instante tenso, e então um segundo assobio soou.

Nesse momento, Gray golpeou com força.

O gesso quebrou-se, junto com o estalido surdo de argila seca.

Um pedaço do tijolo espatifado soltou-se, acertou o peito de Gray e quicou. Ele estendeu uma das mãos e pegou o fragmento com a mão na qual segurava o formão antes que ele caísse no piso de mármore abaixo. Encolhendo-se de medo por dentro, Gray enfiou o fragmento na camisa.

Usando o formão, ele rapidamente o usou como uma alavanca no coração do tijolo vazado, tomando cuidado com os pedaços soltos. Estendendo a mão para cima, examinou a cavidade com os dedos. Em vez de argila áspera, ele sentiu que o interior era vítreo, liso como água, e procurou ao redor.

Havia alguma coisa ali em cima.

Gray tocou-a com os dedos. Estava esperando o paitzu de ouro, mas, em vez dele, puxou um tubo de cobre ou de bronze com 20cm de comprimento, rematado em ambas as extremidades, parecido com uma cigarreira. O objeto foi parar dentro de sua camisa.

Olhando pelo canto do olho, Gray notou que o pequeno incêndio na lata de lixo já fora apagado com um extintor.

Apressando-se, ele procurou de novo e sentiu alguma coisa pesada, empurrada delicadamente com o seu dedo indicador. Foram necessários mais alguns segundos para tirar o segundo prêmio da câmara secreta: outro paitzu de ouro.

O pesado passaporte libertou-se, soltou-se de seus dedos frenéticos e caiu com um barulho nos degraus do andaime aos seus pés. O metal soou como um sino badalado, amplificado pela concavidade da cúpula. Infelizmente, ele caiu no exato momento em que houve calma na agitação abaixo.

Merda...

Quando o barulho se extinguiu, Gray pegou o passaporte de ouro e enfiou-o na camisa. Com gritos vindos de baixo, ele fez a única coisa que pôde: atirou o martelo do andaime e caiu depois dele, com os braços agitando-se em pleno ar e um grito nos lábios.

 

Da colunata do segundo andar, Vigor observou Gray despencar do alto do andaime.

Oh, não...

Momentos antes, Vigor havia soprado o apito na extremidade oposta da igreja e jogado o coquetel molotov que segurava, oculto dentro de uma lata de lixo não-vigiada. Ele mal conseguira tirar o braço a tempo, afastando-se às pressas. Soprara o apito outra vez e depois o jogara numa planta num vaso. Já tendo posto o colarinho romano de sua profissão, só tinha de parecer confuso e um pouco assustado. Os guardas o ignoraram quando ele correu ao longo da extensão do piso superior de volta à nave central.

Ele chegou ao centro da igreja a tempo de ouvir Gray gritar e cair de cabeça para baixo do imenso andaime. Pessoas vieram correndo, outras se desviaram do caminho abaixo. Um martelo acertou o piso de mármore com um estalo ressoante.

Acima, Gray girou e agarrou um esteio do andaime com uma das mãos estendidas. Ele se chocou contra as escoras. Seus pés agitaram-se e lutaram para encontrar um ponto de apoio. Ele encontrou-o, arrastou-se com dificuldade para o coração do andaime e deitou-se de costas, sem dúvida recobrando o controle após a queda. O segurança postado junto ao andaime gritou para ele e acenou para outro segurança subir a escada e dar uma olhada nele.

Gray rolava de um lado para o outro, segurando o braço esquerdo, gemendo.

Vigor deu a volta em direção à escada a fim de descer para o piso da nave. Ele juntou-se a Balthazar e ao curador do museu. O segurança ajudou Gray a se levantar; ele apoiou-o parcialmente, e os dois desceram com cuidado.

Enquanto Gray mancava, seu rosto ficou roxo de raiva. Ele apontou para o martelo, para o próprio martelo que Balthazar lhe dera.

—        Seus operários não arrumam as ferramentas quando encerram o trabalho? — esbravejou com uma indignação aterrorizada. — Com toda aquela agitação aqui embaixo, eu acidentalmente pisei na maldita ferramenta. Eu poderia ter morrido!

O curador, um homem esguio com uma barriguinha discreta, recolheu o martelo.

—        Ah, meu caro senhor, minhas desculpas por essa negligência. Eu lhe asseguro, vamos verificar isso. Seu braço...

Gray segurava-o de encontro ao tórax.

—        Torcido, talvez deslocado — disse ele, fitando furiosamente o curador.

—        A polícia já está a caminho... por causa do incêndio — disse o curador.

Gray e Vigor trocaram um olhar preocupado.

Se Nasser souber que a polícia veio aqui...

Vigor pigarreou.

—        O incêndio. Certamente foi apenas um cigarro jogado por um turista descuidado. Ou talvez uma brincadeira inofensiva.

O curador pareceu não ouvir. Ele já havia se virado para um dos guardas e falou rapidamente em turco.

Vigor entendeu.

Aquilo era ainda pior.

—        Não, não — insistiu Vigor, olhando duramente para Gray. — Tenho certeza de que o nosso estudante não precisa ser levado ao hospital. Não é necessário chamar nenhuma ambulância.

Os olhos de Gray arregalaram-se. Eles não podiam sair da igreja. A distração que haviam arquitetado só conseguira fazer com que ficassem ainda mais enrascados.

—        O monsenhor tem razão. — Gray flexionou e girou o braço. Vigor notou um estremecimento. Gray havia de fato machucado o braço. — Só torceu um pouco. Vou ficar bem.

—        Não, eu insisto. É a política do museu. Se alguém se machucar aqui, é obrigatória uma visita ao hospital.

Vigor percebeu que não havia meio de dissuadir o curador. Balthazar deu um passo à frente, pigarreando.

—        Isso parece prudente. Mas, enquanto isso, talvez haja um lugar onde possamos descansar. O seu escritório é no porão, não é?

—        Claro. Ninguém incomodará vocês. Vou receber a polícia e chamar vocês quando a ambulância chegar. Dr. Pinosso, por favor, aceite minhas sinceras desculpas. O senhor foi tão generoso, no passado, dedicando-nos o seu tempo e os seus conhecimentos, e veja como eu o recompenso.

Balthazar bateu de leve no braço dele.

—        Hasan, não se preocupe. Está tudo bem. Nossos nervos estão apenas agitados. É bem feito para o meu aluno, por não prestar atenção onde pisa quando está numa posição precária.

Sirenes soaram a distância.

—        Por aqui — disse o curador.

Pouco tempo depois, os três estavam sozinhos no escritório de Hasan no porão, com sua escassa mobília. Os diagramas esquemáticos da igreja estavam pregados com tachas na parede dos fundos, atrás de uma escrivaninha em desordem. Uma única fotografia emoldurada do curador, Hasan Ahmet, apertando a mão do presidente turco adornava a parede acima de uma fileira de armários de aço. Na parede oposta estava um antigo mapa do Oriente Médio ilustrado com iluminuras.

Balthazar fechou o trinco da porta do escritório e andou de um lado para o outro da sala.

—        Existe um labirinto de salas aqui no porão. Vocês dois poderiam se esconder até esse tal de Nasser chegar. Eu posso ir lá em cima e dizer a Hasan que vocês dois foram embora.

—        Isso tem de resolver o problema. — Vigor afundou num sofá ao lado de Gray, que massageava o ombro. — Não temos muito tempo. Você encontrou alguma coisa lá em cima?

Em resposta, Gray desabotoou a parte de baixo da camisa e tirou uma barra de ouro e um tubo de bronze gasto. Ele sacudiu a camisa um pouco mais, e um fragmento de cerâmica avermelhada caiu no chão. Ele se abaixou, pegou-o e colocou-o sobre a mesa.

Vigor começou a se virar, mas um pedaço de cor da cerâmica atraiu seu olhar. Pegou o pedaço de argila avermelhada do tampo da mesa.

—        É um pedaço do tijolo vazado — Gray explicou de mau humor. — Eu não quis deixá-lo lá em cima. As coisas já deram errado o suficiente.

Vigor examinou-o brevemente. Num lado, um pouco de gesso roxo ainda estava preso a ele, mas no outro lado uma espessa camada de esmalte azul-celeste cobria a argila. Por que alguém haveria de esmaltar o interior de um tijolo vazado?

—        Você viu alguma escrita angélica lá em cima? — perguntou Vigor, e colocou o fragmento de volta sobre a mesa.

—        Não, nenhuma escrita, nada de incomum.

Balthazar curvou-se e virou o paitzu de ouro.

—        Mas tem escrita angélica aqui.

Vigor inclinou-se mais para perto. Conforme esperado, uma única letra da escrita angélica decorava o lado de trás. Um círculo grosseiro a envolvia.

—        A segunda chave — disse Vigor.

—        Mas o que é isto? — perguntou Balthazar, e cutucou o tubo.

Vigor pegou-o. Ele tinha a grossura de seu polegar e nenhum adorno, a não ser as antigas marcas de martelo de quem o forjara.

—        Pode ser um tubo para pergaminhos.

Ele examinou uma extremidade. Uma fina moeda de bronze fora prensada sobre a extremidade, lacrando-a.

—        Nós teremos de abri-lo — disse Gray.

Vigor sentiu certo mal-estar com essa sugestão. Como arqueólogo, ele temia manusear mal um objeto tão antigo. Ele precisava ser fotografado, medido, catalogado.

Gray enfiou uma das mãos num bolso e tirou um canivete. Abriu a pequena lâmina e segurou-a na direção de Vigor.

—        Nosso tempo está se esgotando.

Respirando fundo, Vigor aceitou o canivete. Com uma pontada de mal-estar profissional, ele usou a ponta para forçar a tampa da extremidade. Ela se soltou completamente, como se tivesse sido produzida na véspera.

Vigor abriu um espaço na mesa de centro, inclinou o tubo e deixou seu conteúdo deslizar. Um rolo de material branco caiu na mesa de mogno.

—        Um manuscrito — disse Gray.

Sem tocá-lo, Vigor fez uma avaliação baseada em seus anos de estudo e experiência de toda uma vida.

—        Não é pergaminho, nem velino, nem sequer papiro.

—        O que é isso? — indagou Balthazar.

Vigor gostaria de ter luvas de exame para manusear o velho manuscrito. Receoso da oleosidade em suas mãos, ele pegou um lápis da escrivaninha do curador e usou a borracha para desenrolar a extremidade livre do material.

Ele caiu facilmente, delicado e diáfano como gaze.

—        Parece tecido — disse Gray.

—        Seda. — Vigor foi desenrolando mais e mais, esticando-a na superfície da mesa. — Ela é bordada — disse, notando a fina costura de fio negro através da seda branca.

O trabalho de agulha, porém, não formava uma imagem ou um padrão intrincado. Em vez disso, linhas de texto cursivo, costuradas no material, espalhavam-se ao longo da peça de seda desenrolada.

Gray girou a cabeça para ler, mas franziu ainda mais o cenho, não compreendendo.

—        É língua lombarda — declarou Balthazar com espanto.

Vigor não conseguia tirar os olhos da escrita.

—        É o dialeto italiano da região de Marco Polo. — Ele estendeu a mão trêmula e acompanhou o texto com a borracha do lápis, traduzindo a primeira linha em voz alta.

—        "Nossas orações foram atendidas da maneira mais estranha."

Ele olhou de relance para Gray e viu a compreensão nos olhos do americano.

—        É o restante da história de Marco — disse Gray —, continuando de onde terminava a cópia de seu livro que está em poder da Guilda.

—        As páginas desaparecidas — concordou Vigor —, bordadas na seda.

Gray deu uma olhadela para a porta, claramente nervoso, e acenou para o diário de seda.

— Leia o restante.

Vigor começou do início, continuando a história do grupo de Marco. A primeira seção deixara encurralados na Cidade dos Mortos, cercados por uma horda de canibais. Vigor traduziu cuidadosamente a próxima parte da história, com a voz trêmula por causa da força original das palavras de Marco.

 

Nossas preces foram atendidas da maneira mais estranha. E foi assim que aconteceu:

A noite caiu sobre a Cidade dos Mortos. Da posição privilegiada de nosso santuário, os fossos e tanques da cidade abaixo de nós brilhavam com uma luz de natureza sepulcral; a cor e a luminosidade eram as de fungos e cogumelos. Elas faziam a cena abaixo parecer algum festim pavoroso expelido das entranhas do Diabo, à medida que os mortos se alimentavam dos mortos. Não víamos esperança de salvação. Que anjo ousaria pisar aquelas terras profanas?

Mas então sucedeu que três figuras emergiram da floresta escura. Foi assim que elas apareceram: sua pele emitia um brilho que harmonizava com o dos tanques e fossos, e os terríveis canibais afastavam-se diante dos pés delas enquanto o vento soprava através de uma plantação de cereais. Os três cruzaram a cidade sem pressa, mas com uma direção definida. Assim que chegaram à base da torre, constatou-se que essas aparições estra¬nhas faziam parte do mesmo grupo de pessoas que se banqueteavam com carne. No entanto, a pele delas brilhava com alguma luz abençoada. Tomados de grande terror, os homens do Khan baixaram todas as armas e esconderam o rosto contra a pedra. Os três entraram em nosso abrigo e se aproximaram de nós sem nos incomodar. Seus rostos estavam abatidos e exauridos pela febre; mas a carne deles parecia saudável, ao contrário da de seus irmãos abaixo. Porém, não era carne como a dos homens. A luz de suas peles parecia penetrar mais profundamente seus corpos; e assim revelava a agitação do intestino e o batimento indistinto de seus corações. Também sucedeu que um dos três roçou num dos homens do Khan. Ele gritou e afastou-se; e, onde ele foi tocado, sua pele empolou e enegreceu.

Frei Agreer ergueu sua cruz contra eles: mas o primeiro dos três avançou quase sem medo e tocou a cruz do dominicano. Ele falou em palavras que ninguém compreendeu; mas com muitos gestos o desejo deles foi comunicado: o de que bebêssemos da metade da casca de uma noz das índias. Um dos homens do Khan deve ter entendido o bastante da estranha língua para comunicar-se. Uma grande virtude de cura nos foi oferecida; e, com o seu consumo, nós seríamos protegidos da pestilência que grassava ali. Porém, que o Céu nos perdoe a todos pelo que isso custaria, pelo que faria de nós no fim.

 

A história parava aí.

Vigor recostou-se, frustrado.

—        Deve ter mais.

—        Oculto com a terceira e última chave — sugeriu Gray.

Vigor acenou com a cabeça e bateu de leve no diário de seda esticado.

—        Mas, mesmo com base neste trecho da história, é óbvio por que ela jamais foi contada.

—        Por quê? — indagou Gray.

—        Por causa da descrição das estranhas aparições — ressaltou Vigor. — Resplandecendo com uma luz abençoada, oferecendo salvação.

—        Dá a impressão de que eram anjos — disse Balthazar.

—        Mas anjos pagãos — enfatizou Vigor. — Uma noção dessas não teria tido receptividade no Vaticano durante a Idade Média. E lembrem-se: quem quer que tenha dividido a história de Marco o fez no século XVII, durante outro ataque da peste na Itália. Apesar do conteúdo perturbador, o Vaticano não ousou destruir a mensagem. Alguns místicos no seio da Igreja devem ter dividido o texto para preservá-lo e ocultá-lo. Mas a questão maior permanece: o que ainda não foi contado?

—        Se quisermos descobrir isso — disse Gray —, teremos de encontrar a terceira chave. Mas onde devemos começar a procurar? Não tem escrita angélica em parte alguma.

—        Talvez nenhuma escrita angélica que pudéssemos ver a olho nu — acrescentou Vigor de maneira incisiva.

Gray concordou com um aceno de cabeça. Ele girou a fim de pegar sua mochila e começou a vasculhá-la.

—        Eu trouxe uma lâmpada ultravioleta, para a eventualidade de nos depararmos com mais obeliscos resplandecentes.

Balthazar diminuiu a intensidade das luzes. Gray passou a luz ultravioleta sobre cada objeto, até mesmo sobre o fragmento de tijolo de argila.

—        Nada — declarou afinal. Um beco sem saída.

 

A frustração de Gray chegara ao limite da tensão de uma corda de piano. Ele perdeu a esperança em seu plano original, embora tivesse sido uma possibilidade remota.

—        Não podemos esperar mais — admitiu finalmente, consultando o relógio. — Temos que nos esconder. Vamos juntar tudo isso e encontrar um lugar para nos refugiar.

Eles haviam passado os últimos cinco minutos quebrando a cabeça, procurando alguma pista sobre onde procurar a terceira chave. Vigor tentou decifrar um significado oculto no texto, relendo-o. Balthazar havia examinado todas as superfícies do paitzu de ouro. Todos concordaram que a linha grosseira que circundava a única letra angélica devia ser importante, mas ninguém conseguiu imaginar o que poderia ser.

Vigor suspirou e começou a enrolar o manuscrito.

—        A resposta deve estar aqui. Seichan disse que a cópia da Guilda mencionava que cada chave conduzia à próxima. Mais tarde, simplesmente teremos de imaginar o que não estamos conseguindo perceber.

Gray reuniu o último objeto restante: o fragmento do tijolo. Ele bateu de leve no gesso na parte externa do fragmento.

—        Poderia haver algum significado no fato de o tijolo ter sido revestido de gesso roxo? Eu suponho que o tijolo falso poderia ter tido qualquer quantidade de cores. Eles tinham toda a paleta de cores da cúpula para escolher.

Vigor mal pareceu ouvi-lo quando enfiou o manuscrito de volta no tubo de bronze. Ainda assim, ele disse em voz alta:

—        O roxo é a cor da realeza ou da divindade.

Gray concordou com a cabeça. Segurando sua mochila, empurrou o fragmento para dentro dela. Seu polegar percorreu o espesso verniz azul no lado oposto. Ele lembrou-se de que o interior do tijolo dera a sensação de ser vítreo.

—        Azul — disse ele em voz alta. — Azul e realeza. E foi então que lhe ocorreu.

É claro.

Vigor percebeu isso ao mesmo tempo e se empertigou.

—        A Princesa Azul!

Balthazar deslizou o paitzu de ouro na direção de Gray, para que ele o guardasse.

—        Você está falando sobre Kokejin, a jovem mongol que viajava com Marco.

Vigor fez que sim com um movimento da cabeça.

—        Ela ganhou esse apelido porque a tradução do seu nome é azul-celeste.

—        Mas qual a importância da referência a ela nesse caso? — perguntou Gray.

—        Vamos recuar — disse Vigor, contando nos dedos. — A primeira chave estava no Vaticano, na Itália, onde Marco terminou sua viagem. Um marco importante. Seguindo a rota de Polo para trás, nós chegamos ao próximo marco aqui, em Istambul, onde, vindo da Ásia, ele pisou pela primeira vez de novo na Europa.

—        E se retrocedermos ainda mais na rota de Marco... — disse Gray.

—        O próximo marco importante estaria no lugar onde ele completou a tarefa que lhe fora atribuída por Kublai Khan e que constituiu todo o motivo da viagem: levar Kokejin para a Pérsia.

—        Mas onde exatamente na Pérsia? — perguntou Gray.

—        Em Ormuz — respondeu Balthazar —, no sul do Irã. A ilha de Ormuz fica na boca do golfo Pérsico.

Gray olhou para a mesa. Uma ilha. Ele pegou o paitzu de ouro e observou a linha que circundava o símbolo angélico.

—        Isto poderia ser um mapa grosseiro dessa ilha?

—        Vamos verificar — respondeu Vigor, que se levantou e foi até a parede onde estava o velho mapa do curador ilustrado com iluminuras.

Gray juntou-se a ele.

Vigor apontou para uma pequena ilha próxima ao fundo do golfo Pérsico, perto do território continental do Irã. Ela exibia a mesma forma arredondada com uma ponta nítida no formato de lágrima. Era quase um equivalente exato do desenho em torno do símbolo gravado no ouro.

—        Nós a encontramos — disse Gray, com a respiração acelerando-se de expectativa. — Nós sabemos aonde temos de ir em seguida.

E isso significava que seu plano ainda poderia dar certo.

—        Mas, e quanto a Nasser? — indagou Vigor.

—        Eu não me esqueci dele — Gray fitou o monsenhor e apertou-lhe o ombro. — A primeira chave. Eu quero que o senhor a entregue a Balthazar.

Vigor franziu o cenho.

—        Por quê?

—        Caso alguma coisa dê errado aqui, eu não posso deixá-la cair nas mãos de Nasser. Nós apresentaremos a segunda chave que encontramos como se fosse a primeira. Nasser não pode saber que o senhor encontrou uma chave no Vaticano. — Gray olhou para um e para o outro. — Presumo que vocês dois manterão isso entre si.

Os dois homens concordaram com um aceno da cabeça. Ótimo.

A carranca de Vigor, no entanto, não se havia atenuado.

—        Com certeza, quando Nasser chegar aqui, ele revistará Balthazar e encontrará a outra chave de ouro.

—        Não se Balthazar já tiver ido embora — disse Gray. — Como no caso de Kowalski, eu duvido de que Nasser saiba que seu colega viajou com o senhor. Por que ele haveria de suspeitar de que o senhor veio para cá com o decano do departamento de história da arte? Pelo rastreamento do seu telefone celular, tudo o que Nasser sabe é que o senhor partiu para nos encontrar. Usaremos isso a nosso favor. Mandaremos Balthazar, com tudo o que ele precisa saber, ao encontro de Seichan. Junto com Kowalski, os três podem se adiantar e partir para a ilha de Ormuz. Caberá a eles encontrar a última chave. Assim que Nasser chegar aqui, teremos de reter o desgraçado pelo tempo que for possível. Mas, pelo bem dos meus pais, talvez tenhamos de indicar-lhe o caminho certo.

—        Onde, esperemos, Seichan já terá encontrado a última chave — disse Vigor.

—        Então teremos alguma coisa para podermos fazer um acordo — disse Gray. Gray sabia, porém, que todos esses planos dependiam de uma última esperança. De que Painter encontrasse uma forma de libertar seus pais.

E, naturalmente, de que Gray não tivesse cometido nenhum erro grosseiro de cálculo.

 

Seichan esperava no quarto de hotel em frente à entrada oeste de Hagia Sophia. listava sentada junto à janela do quinto andar. Sua face estava encostada na coronha de seu fuzil de precisão Heckler & Koch PSG-1. Ela olhava para baixo através da mira telescópica, focalizada na praça em frente à igreja.

Observara a polícia chegar e ir embora, parando apenas por uns breves instantes.

O que acontecera?

Atrás dela, Kowalski estava estirado na cama, comendo azeitonas e limpando cinco pistolas portáteis e um rifle de assalto A-91 de 5,56mm da Otan.

Eles tinham ido fazer compras, abastecer-se do imprescindível.

Kowalski cuspiu um caroço de azeitona enquanto trabalhava. Aquilo a estava irritando enquanto ela se mantinha em seu posto. Mas, pelo menos, ele conhecia as armas.

Para sua vantagem, Seichan tinha uma visão desimpedida da rua, do parque e da praça. Ela observava qualquer pessoa que demonstrasse um interesse excessivo na igreja, mais do que o turista típico que tira algumas fotos e vai embora. Ela também prestava atenção a qualquer sinal revelador de alguém portando armas pesadas.

Até agora, tudo bem. Ou estava tudo bem, ou ela estava perdendo a agudeza mental.

Através da mira telecóspica, Seichan observava todas as pessoas que saíam ou entravam pelas Portas Imperiais ocidentais de Hagia Sophia. Ajustou a distância focal para ter uma visão clara dos rostos, e fazia uma avaliação das pessoas que circulavam pelo lugar para ver se algum dos mesmos rostos ia e vinha, indicando alguém que estivesse vasculhando o lugar.

Ela queria saber onde o maior número possível dos inimigos estava posicionado.

Para a eventualidade de um ataque revelar-se necessário.

Até agora, nada. Não fazia sentido.

Onde estavam os homens de Nasser? Eles deveriam estar ali àquela altura, assumindo posições. A Guilda tinha muitos recursos e agentes em Istambul. O suprimento de armas atrás dela era prova suficiente disso. Ou será que Nasser estava operando com economia de recursos? Mantendo seu potencial humano a um mínimo? Era mais fácil misturar um ou dois homens no local do que meia dúzia.

Seichan, no entanto, não estava engolindo aquilo.

—        Alguma coisa está errada — murmurou ela, atrapalhando sua mira.

Qual era o jogo dele?

Ela voltou a se concentrar em seu dever. Um homem alto saiu da igreja, andando a passos largos, sem tentar esconder-se. Seichan focou nele, detendo-se em seu rosto barbudo.

Assim é melhor.

Ela não sabia o nome dele, mas vira o homem antes, encontrando-se com Nasser, há dois anos. Um envelope grosso fora trocado entre eles. Nasser não ficara sabendo que Seichan o seguira e espionara seu encontro com o homem. Ela possuía uma série de fotografias do agente desconhecido em alguma parte de seu cofre-forte num banco suíço. Algo que ela reservara para tempos difíceis.

Ou para um dia radiante como hoje.

—        Não é de admirar que Nasser esteja operando com o mínimo de recursos — murmurou ela.

O filho-da-puta tinha alguém posicionado dentro de Hagia Sophia. Aquilo não estava cheirando bem. Se aquele homem estava indo embora, significava que alguma outra pessoa já o havia dispensado. Ela observou-o parar na praça e pegar um telefone celular.

Provavelmente, ele estava telefonando para Nasser, informando-o de que sua caça estava sã e salva dentro da igreja.

O telefone celular dela tocou.

Estranho.

Ela estendeu a mão às cegas para o telefone, pressionou a tecla falar e levou o aparelho até o ouvido.

—        Ciao — disse ela.

—        Alô — respondeu o autor da chamada, com a voz clara. — Estou tentando falar com uma mulher chamada Seichan. Me disseram para ligar para este número e combinar de nos encontrarmos. Um certo monsenhor e um americano gostariam que nos encontrássemos.

A pele de Seichan ficou arrepiada enquanto ela ouvia, focada no homenzarrão, observando seus lábios se moverem em sincronia com a voz em seu ouvido.

—        Aqui é Balthazar Pinosso, da divisão de história da arte do Vaticano.

Pelo menos Seichan finalmente tinha um nome para o homem das fotografias com Nasser: Balthazar Pinosso, um agente da Guilda. Ela respirou pelo nariz. Nasser não tinha apenas alguém posicionado dentro da igreja; ele também tinha alguém dentro do próprio círculo interno da Igreja.

Seichan recriminou-se mentalmente. Não era a Sigma que tinha um espião da Guilda, e sim o Vaticano.

—        Alô — repetiu o homem, com um quê de preocupação.

Seichan inclinou o rosto com mais força contra a coronha, fazendo uma pontaria certeira.

Era hora de deter o vazamento.

—        Kowalski... — sussurrou ela.

—        Sim.

—        A merda está prestes a ser jogada no ventilador.

—        Até que enfim!

Seichan puxou o gatilho.

 

Graças a Deus, o coquetel havia terminado.

Lisa desabotoou apressadamente o casaco de seda com contas bordadas à mão que cobria seu vestido de noite preto, de cetim de seda plissado. O traje, com design de Vera Wang, estava bem acima do seu orçamento, mas ela o encontrara estendido em sua cama, quando voltou à cabine a fim de se aprontar para a soirée de Ryder Blunt, de boas-vindas ao navio de cruzeiro ao porto de origem dos piratas.

O próprio dr. Devesh Patanjali devia ter escolhido a dedo o vestido numa das lojas de luxo do Convés Lido. Só aquilo já era motivo para tirá-lo do corpo. Lisa não queria ir à festa, mas Devesh não lhe deixara escolha. Por isso ela se juntara ao outro grupo de cientistas mais experientes na suíte de Ryder.

Champanhe e vinho resfriado jorravam em abundância. Canapés eram servidos em bandejas de prata, carregadas no alto por garçons uniformizados, enquanto travessas geladas de caviar cercado por torradinhas em forma de triângulo decoravam a mesa do bufê. Pelo visto, ainda tinham permanecido vivos membros da orquestra do navio suficientes para formar um quarteto de cordas. O grupo tocava calmamente lá fora na sacada enquanto o sol se punha, mas eles foram obrigados a se dispersar quando os ventos sopraram com mais força e começou a chover torrencialmente.

Agora, trovões ribombavam no alto, enquanto a tempestade aumentava de intensidade. Pelo menos, o navio permaneceu estável, abrigado na cratera de um vulcão submerso. Todavia, a notícia de um tufão e um sem-número de responsabilidades logo puseram fim à festa improvisada de Ryder.

Ela durara apenas algumas horas.

Lisa tirou o sutiã e a calcinha, contente de se livrar daquilo. Voltou a vestir seu jeans e deslizou uma blusa folgada pela cabeça, ajeitando-a no lugar. Descalça, foi até a bolsa de noite em cima da cama, outro presente do dr. Patanjali, uma bolsa Gucci presa a uma moldura de metal leve com adereços de prata. A bolsa ainda tinha a etiqueta com o preço.

Mais de seis mil dólares.

O que ela continha, no entanto, era muito mais valioso. Durante as festividades, Ryder lhe passara discretamente duas lembrancinhas da festa, que ela enfiara depressa na bolsa.

Um rádio pequeno e uma pistola.

E a notícia que acompanhava os presentes era ainda mais agradável.

Monk estava vivo!

E a bordo do navio!

Lisa escondeu rapidamente a arma no cós da calça e cobriu-a com a barra da blusa folgada. Com o rádio na mão, foi até a porta e escutou com o ouvido pressionado contra ela.

Não havia nenhum guarda regular postado à sua porta. Aquela ala inteira havia sido isolada perto do poço da escada e dos halls dos elevadores. Devesh destinara uma cabine interna para ela, a apenas duas portas de distância de onde sua paciente ainda repousava num estupor catatônico.

Contente por estar sozinha, Lisa sintonizou o rádio no canal oito, pôs às pressas no lugar o fone de ouvido e o microfone e pressionou o transmissor.

—        Monk, você está aí? Câmbio.

Ela aguardou.

O aparelho chiou com um pouco de estática, e em seguida uma voz familiar falou.

—        Lisa? Graças a Deus! Quer dizer então que Ryder lhe entregou o rádio. Você recebeu a arma? Câmbio.

—        Sim. — Ela queria ouvir desesperadamente toda a história dele, saber como havia sobrevivido, mas agora não era a hora, pois tinha preocupações mais importantes. — Ryder disse que você tinha um plano.

—        Um plano talvez seja um termo muito generoso. É mais uma fuga improvisada para salvar nossas vidas.

—        Me parece ótimo. Quando?

—        Eu vou combinar tudo com Ryder daqui a alguns minutos. Estaremos prontos às nove da noite. Esteja pronta também. Mantenha a pistola com você — disse ele, fazendo então um resumo de seu plano para libertá-la.

Ela acrescentou alguns detalhes necessários para ajudá-lo e consultou o relógio. Menos de duas horas.

—        Devo contar a mais alguém? — perguntou Lisa.

Houve uma longa pausa.

—        Não, sinto muito. Se quisermos ter alguma esperança de escapar, teremos de fugir com o mínimo de pessoas possível, usando a cobertura da tempestade. Ryder tem uma lancha particular numa rampa de lançamento no lado de estibordo. Consegui um mapa do seu amigo Jessie. Tem uma cidadezinha a cerca de trinta milhas náuticas de distância. Nossa maior esperança é alcançá-la e dar o alarme.

—        Jessie vem conosco?

Seguiu-se uma pausa ainda mais longa.

Lisa pressionou o transmissor de novo.

—        Monk?

Um suspiro encheu o ouvido dela.

—        Eles pegaram Jessie e o jogaram ao mar.

—        O quê? — Lisa imaginou o rosto sorridente dele e sua tendência a fazer trocadilhos bobos. — Ele... ele está morto?

—        Não sei. Explicarei mais quando nos encontrarmos.

Ela sentiu uma onda de pesar por um rapaz que conhecera apenas algumas horas atrás. Perdida naquela onda de pesar, nem conseguiu falar.

—        Às nove da noite — repetiu Monk. — Mantenha o rádio com você, mas fora de vista. Entrarei em contato com você de novo. Câmbio e desligo.

Lisa tirou o fone de ouvido e segurou o rádio com ambas as mãos. A concretude do plástico rígido ajudou a acalmá-la. Eles voltariam a conversar dali a duas horas.

Um trovão ribombou.

Ela prendeu o rádio dentro do bolso, dobrando e enfiando também o fone de ouvido, cujo volume manteve oculto pelo drapejado de sua blusa.

Ela olhou fixamente para a porta da cabine. Se eles iam fugir, Lisa não queria partir de mãos vazias. Sabia que havia uma grande quantidade de dados e arquivos no quarto em que sua paciente estava.

Além disso, havia um computador... com um gravador de DVD.

Ela conversara com Henri e com o dr. Miller durante o coquetel. Em palavras sussurradas, eles haviam relatado que Devesh e sua equipe estavam colhendo amostras de várias bactérias tóxicas produzidas pela Estirpe de Judas, as piores da coleção, armazenando-as em câmaras de incubação num laboratório inacessível, chefiado pelo virologista de Devesh.

— Acho que eles também estão fazendo experimentos com o vírus em patógenos conhecidos — informou o dr. Miller. — Vi pilhas de lâminas lacradas com etiquetas de Bacillus anthracis e Yersinia pestis desaparecerem no laboratório com acesso restrito.

Antraz e a bactéria da Peste Negra.

Henri supôs que Devesh devia estar tentando produzir uma supercepa desses patógenos letais. Durante a conversa deles, uma palavra deixou de ser dita — o motivo de tudo aquilo.

Bioterrorismo.

Lisa consultou o relógio e foi até a porta. Se o mundo quisesse ter alguma chance de deter a grande quantidade de pragas que a Guilda estava coletando e produzindo, eles precisavam da maior quantidade possível de dados da paciente dela. O corpo da mulher estava se curando, livrando seus tecidos das bactérias tóxicas, purificando-os.

Como e por quê?

Lisa sabia que Devesh tinha razão acerca de Susan Tunis.

Esta paciente possui a chave de tudo.

Lisa não podia partir antes de reunir a maior quantidade possível de dados.

Ela tinha de correr o risco.

Apertando com força a maçaneta da porta, Lisa abriu-a. Percorreu os cinco passos até o quarto de Susan Tunis. Adiante, a ala circular de suítes científicas ainda estava movimentada, com técnicos indo e vindo. Um rádio tocava música de cabaré, mas o cantor cantava em chinês. O ar recendia a desinfetante e a um odor subjacente de terra.

Lisa olhou brevemente para o guarda armado que patrulhava o espaço central, contornando a pilha de caixotes descartados e de equipamento ocioso. Atrás dela, no fim do corredor, ouviu mais guardas conversando.

Ela seguiu de mansinho para o quarto de Susan Tunis, passou pela fechadura o cartão que Devesh lhe dera e entrou. Como sempre, dois enfermeiros estavam de plantão no quarto. Devesh jamais deixava sua estimada paciente desacompanhada.

Um homem estava reclinado numa cadeira no salão principal, com os pés em cima da cama, assistindo à televisão com o volume baixo. Era algum filme de Hollywood exibido ao mesmo tempo em todo o navio. O outro enfermeiro estava no bem iluminado quarto de dormir com a paciente, com uma prancheta na mão, registrando os sinais vitais de 15 em 15 minutos.

— Eu gostaria de ficar um instante a sós com a paciente — disse Lisa.

O homenzarrão, com a cabeça raspada e usando roupas protetoras, poderia ser gêmeo idêntico do outro. Ela jamais aprendeu os nomes deles e internamente se referia a eles como Tweedledee e Tweedledum.

Mas pelo menos eles falavam inglês.

O enfermeiro deu de ombros, entregou a prancheta a ela e foi juntar-se ao colega.

Raios brilhavam intensamente através das portas da sacada, e trovões ribombavam. O mundo além — a lagoa e a ilha coberta de florestas ao redor — apareceu em nítido contraste, e então voltou a desaparecer na escuridão com um estrondo violento.

A chuva caía com mais intensidade.

Lisa protegeu o rosto com uma máscara, calçou um par de luvas cirúrgicas e foi até a paciente. Ela voltou a pegar o oftalmoscópio da bandeja de instrumentos de exame. Vinha monitorando uma estranha anomalia nos olhos da paciente, algo que escondera de Devesh. Antes de partir, queria checar mais uma vez.

Ela puxou para trás a aba da tenda de isolamento, inclinou-se e usou a ponta de um dos dedos para puxar suavemente para cima a pálpebra do olho esquerdo da mulher. Lisa acendeu a lâmpada do oftalmoscópio e ajustou o foco. Inclinando-se, com o nariz quase roçando o da paciente, começou a fazer um exame fundoscópico das estruturas internas do olho dela.

Todas as superfícies da retina pareciam normais e saudáveis: mácula, disco óptico, vasos sanguíneos. A anomalia passava facilmente despercebida, porque não era estrutural. Mantendo-se na posição em que estava, Lisa desligou a lâmpada do oftalmoscópio, porém continuou a olhar através da lente do instrumento.

A parte posterior do olho da paciente e toda a superfície da retina começaram a brilhar, suavemente resplandecentes com sua própria luz opaca. Alguma fosfo¬rescência estranha havia se introduzido nos tecidos da retina. Começara em torno do disco óptico, onde o principal feixe nervoso procedente do cérebro se ligava ao olho. Mas nas últimas horas o brilho havia se difundido para fora, e agora abrangia toda a superfície da retina.

Ela havia lido os relatos históricos das primeiras manifestações da doença, sobre uma floração de algas na ilha e sobre como o mar havia brilhado com cianobactérias fosforescentes.

E agora os olhos da paciente brilhavam.

Devia haver alguma pista ali. Mas qual?

Com base naqueles achados anteriores, Lisa havia realizado discretamente uma segunda punção do líquido cefalorraquidiano da paciente. Queria saber se alguma coisa havia mudado no líquido ao redor do cérebro. Àquela altura, os resultados já deviam estar prontos e armazenados no computador no canto do quarto.

Lisa terminou o exame, tirou a máscara e as luvas e foi até a estação de computadores, que ficava fora da vista direta do outro aposento.

Entrou no menu dos exames laboratoriais. Os resultados da punção do líquido cefalorraquidiano de fato já haviam ficado prontos. Lisa correu os olhos rapidamente pela análise química. Os níveis proteicos estavam aumentando, porém pouco mais havia se alterado. Ela passou para o exame microscópico. Bactérias haviam sido detectadas e identificadas.

Cianobactérias.

Como ela suspeitara.

Com o enfraquecimento da barreira hematoencefálica, a Estirpe de Judas pôde entrar no cérebro, e levou consigo uma companhia.

Uma companhia que estava crescendo e se multiplicando.

Prevendo esses mesmos resultados, Lisa fizera algumas pesquisas antes. As cianobactérias eram uma das mais antigas cepas de bactérias. Na verdade, elas possuíam a característica de estar entre os mais antigos fósseis conhecidos do mundo: quase quatro bilhões de anos, uma das primeiras formas de vida da Terra. Também eram únicas por serem fotossintéticas, como as plantas, capazes de produzir seu próprio alimento a partir da luz do sol. Na verdade, a maioria dos cientistas considerava as cianobactérias os ancestrais das plantas atuais. Porém, essas bactérias antigas também se revelaram muito adaptáveis, disseminando-se em qualquer nicho ambiental: água salgada, água doce, solo, até rocha bruta.

E, com a ajuda da Estirpe de Judas, ao que tudo indicava, o cérebro humano.

O brilho nos olhos da paciente levava a crer que as cianobactérias no cérebro deviam ter-se deslocado ao longo da bainha do nervo óptico até o olho, onde estavam agora se alojando.

Por quê?

Pela amostra, Lisa viu que um técnico havia realizado uma nova varredura microscópica da Estirpe de Judas. Curiosa, ela exibiu a nova imagem na tela. Mais uma vez, estava diante do verdadeiro monstro: o envoltório icosaédrico com os filamentos que brotavam como ramos de cada canto.

Ela se lembrou de suas palavras anteriores. Nenhum organismo é maligno simplesmente por ser maligno. Ele apenas procurava sobreviver, propagar-se, desenvolver-se.

O arquivo também possuía um índice de referências cruzadas com as fotos originais do vírus. Ela também as exibiu.

O velho e o novo. Lado a lado. Iguaizinhos.

Ela estendeu a mão para fechar o arquivo, mas seu dedo flutuou sobre o botão.

Não...

Sua mão começou a tremer.

É claro...

Um raio crepitou com um brilho intenso através das portas da sacada, acompanhado pelo estrondo imediato de um trovão que a fez ter um sobressalto. O navio inteiro estremeceu. As portas da sacada chacoalharam.

O raio caíra bem acima do navio, e talvez o tivesse atingido.

As luzes da cabine tremeluziram. Lisa olhou para cima no momento exato em que elas se apagaram. A escuridão tomou conta da cabine.

Os enfermeiros gritaram, queixando-se.

Lisa levantou-se.

Oh, meu Deus!

Então as luzes voltaram subitamente, com uma sobrecarga de tensão. O computador reprimiu uma queixa e deu um estalo alto, acompanhado de fumaça. O som da televisão no outro aposento ficou distorcido, e em seguida os diálogos do filme voltaram ao normal.

Lisa permaneceu onde estava, paralisada de choque.

Ela continuou a olhar para a paciente no leito. No momento da breve escuridão, Lisa fizera outra descoberta sobre ela. Ninguém jamais havia apagado as luzes ali? Ou aquele fenômeno era novo?

Não eram apenas os olhos da mulher que brilhavam.

Na escuridão, os membros e o rosto da mulher, que vestia apenas um avental fino, haviam brilhado com uma cor rósea suave, um brilho fosforescente que não era visível à luz intensa.

As cianobactérias não haviam se disseminado apenas para os olhos dela, e sim por toda a parte.

Lisa ficou tão estupefata que, por um longo momento, deixou de notar outro detalhe: os olhos da paciente estavam abertos, fixos nela.

Os lábios rachados moveram-se.

Lisa leu aqueles lábios, praticamente sem ouvir as palavras.

—        Que... quem é você?

 

Monk escutava o fone de ouvido do rádio enquanto subia as escadas, vindo dos conveses inferiores. Fora lá embaixo verificar o acesso à doca privada de Ryder Blunt, onde ele mantinha sua lancha. Ela estava desprotegida. Poucas pessoas sabiam da plataforma de lançamento privada.

—        Eu tenho a chave eletrônica da porta da doca — disse Ryder. — Assim que estiver livre, irei para lá, encherei o tanque da lancha e a deixarei pronta para ser lançada ao mar. Mas você consegue libertar a dra. Cummings sozinho?

—        Sim — disse Monk no bocal. — Quanto menos agitação, melhor.

—        E você já preparou tudo?

—        Sim, mamãe — suspirou Monk. — Estarei pronto em meia hora. Quando eu der o sinal, você sabe o que fazer.

—        Recebido e entendido. Câmbio e desligo.

Monk subiu até o patamar seguinte da escada, foi até um armário com material de limpeza e pegou o cobertor, o travesseiro e as roupas que havia escondido ali dentro mais cedo.

Seu fone de ouvido zumbiu de novo.

—        Monk?

—        Lisa? — Ele consultou o relógio. Era cedo. Seu coração bateu com mais força. — O que há de errado?

—        Nada. Pelo menos, não exatamente. Precisamos de uma mudança nos planos. Precisamos de espaço para mais uma pessoa.

—        Para quem?

—        Para a minha paciente. Ela despertou.

—        Lisa...

—        Nós não podemos deixá-la aqui — ela insistiu no ouvido dele. — Seja lá o que for que esteja acontecendo com ela, é fundamental para tudo o que está acontecendo. Não podemos correr o risco de a Guilda escapar com ela antes que possamos voltar.

Monk respirou com força pelo nariz, recalculando.

—        Até que ponto ela é capaz de se mover?

—        Ela está fraca, mas acho que é bastante capaz de se mover. Não posso avaliar mais com os enfermeiros no quarto ao lado. Estou no meu quarto, onde posso falar. Eu a deixei lá, fingindo que ainda está catatônica.

—        E você tem certeza de que ela é importante?

—        Sim, tenho.

Monk fez mais algumas perguntas, esclareceu mais alguns detalhes, revendo o plano de fuga. Lisa desligou para se aprontar.

—        Ryder? — disse Monk.

—        Eu ouvi — respondeu o bilionário australiano. — Meu rádio também estava ligado.

—        Nós teremos de mudar o cronograma.

—        Não brinque. Quando você estará aqui?

Monk tirou o dispositivo de segurança de sua arma.

—        Já estou indo para aí.

 

Lisa voltou para a enfermaria depois de vestir um suéter. Antes, ela se queixara aos enfermeiros de que estava com frio, uma simples desculpa para regressar brevemente aos seus aposentos e entrar em contato com Monk pelo rádio.

Quando ela entrou, Tweedledee e Tweedledum ainda estavam concentrados em seu filme. Estava havendo um tiroteio na televisão. A vida estava prestes a imitar a arte.

Se tudo corresse bem.

Lisa virou-se e dirigiu-se para o quarto, e em seguida deu um passo para trás, surpresa.

O dr. Devesh Patanjali estava junto ao leito, com as mãos atrás das costas. Adiante, Susan estava esparramada na cama, sob a tenda de isolamento, com os olhos fechados, respirando serenamente.

Não era para Devesh estar ali.

—        Ah — disse ele sem se virar —, dra. Cummings, como está indo a nossa paciente?

 

As portas do elevador se abriram com o som de uma campainha no nível da suíte presidencial. Monk, cansado e irritável, saiu a passos largos para o corredor, carregando o cobertor embrulhado e um travesseiro.

Ele seguiu na direção dos dois guardas postados junto às portas duplas.

Um deles estava sentado numa cadeira, e, empertigando-se, o outro se afastou de onde estivera encostado à parede.

—        Vamos! — disse Monk energicamente ao microfone de seu rádio.

Era o sinal.

Um tiro abafado soou de trás da porta da suíte quando Ryder matou o homem de guarda lá dentro.

Sobressaltado, o guarda que estivera em pé junto à parede virou-se para a porta.

Monk partiu imediatamente para cima dele, movendo ambos os braços, com uma pistola em cada mão, uma enfiada na fronha e a outra embrulhada no cobertor. Ele empurrou o travesseiro contra as costas do homem e puxou o gatilho, acertando a coluna vertebral. Enquanto o guarda caía, ele disparou um segundo tiro na cabeça dele.

Antes mesmo de o corpo atingir o chão, Monk virou-se para o homem sentado, erguendo a pistola embrulhada no cobertor. Ele puxou o gatilho... duas vezes.

 

Lisa entrou no quarto.

— Dr. Patanjali, estou contente por o senhor estar aqui — disse ela, reprimindo o rancor que veio com a mentira.

Ela precisava que Devesh saísse dali, pois dissera a Monk que apenas dois enfermeiros estariam no local.

Devesh virou-se para ela.

Lisa passou um pouco de cabelos soltos sobre a orelha, fingindo estar exausta, enquanto seu coração batia com força.

—        Eu tinha vindo a fim de obter alguns resultados de um exame do líquido cefalorraquidiano de uma punção que fiz mais cedo, mas... — ela apontou para o computador — a sobrecarga de tensão danificou a CPU. Eu esperava rever os resultados antes de ir dormir.

—        Por que a senhora não pediu a um dos homens para buscá-los no laboratório do dr. Pollum?

—        Não tem ninguém lá. Eu esperava que o senhor pudesse agilizar as coisas.

Devesh suspirou.

—        Sim, claro. Eu estava indo para o meu quarto me recolher. Vou telefonar e pedir a Pollum que lhe envie uma cópia impressa.

—        Obrigada.

Devesh afastou-se, mas parou no limiar e voltou-se para ela. Lisa ficou tensa.

—        A senhora estava muito bonita no coquetel. Verdadeiramente radiante.

Lisa manteve o rosto impassível por mera força de vontade.

—        Ob... obrigada.

E então ele se foi.

Tremendo um pouco, ela correu até Susan e, inclinando-se, sussurrou no ouvido dela.

—        Vou começar a desconectá-la de tudo isto. Vamos cair fora daqui.

Susan concordou com um aceno de cabeça. Seus lábios moveram-se, exalando um suave "obrigada".

Quando começou a remover o cateter intravenoso, Lisa notou as lágrimas rolando do canto externo dos olhos de Susan para o travesseiro. Mais cedo, Lisa calmamente explicara o destino do marido da mulher. Lisa lera o relatório da autópsia, uma cortesia de Devesh.

Lisa apertou um dos ombros da mulher.

Felizmente, Devesh não havia notado as suas lágrimas cintilantes.

 

Monk apressou-se pelo lado de fora do convés de estibordo, curvado para se proteger da chuva fustigada pelo vento. Apenas algumas poças de luz derramavam-se para o convés às escuras. Nuvens negras moviam-se rapidamente e agitavam-se acima da rede gigante trançada de um lado ao outro do alto da ilha. Raios brilhavam como uma zona de guerra distante. O ribombar dos trovões era quase constante.

Depois de sua primeira conversa com Lisa, Monk havia examinado a parte adequada do convés e preparado tudo aquilo de que precisava. Porém, não tivera tempo de aprontar uma segunda eslinga. Ele simplesmente teria de puxar as mulheres para cima, uma de cada vez.

Para fazer aquilo rapidamente, ele precisava de mais músculos.

Ryder seguia atrás dele, usando andrajos do lugar como Monk.

O abastecimento do tanque da lancha do bilionário teria de esperar.

—        Por aqui! — gritou Monk acima do banho de chuva e das rajadas de vento.

Uma espreguiçadeira passou deslizando por ele. Os ventos estavam aumentando de intensidade. Eles precisavam estar fora dali na próxima hora, para escapar do impacto mais forte do tufão que se aproximava.

Acima, o teto trançado da ilha sacudia e chacoalhava.

Monk chegou à seção do convés onde fizera uma improvisação com uma corda e uma eslinga de bombeiro, tiradas do equipamento de resgate de emergência do navio.

Monk apontou.

—        Puxe isso para a amurada! — gritou enquanto se inclinava sobre a borda. Ele olhou para baixo, investigando. A curva do casco do navio tornava difícil ter certeza, mas dois níveis abaixo dele devia estar a sacada da cabine na qual Lisa vinha cuidando de sua paciente. Era o ponto de saída daquela operação.

Bem mais abaixo, a lagoa escura refletia as poucas luzes do navio, ondulando suavemente, abrigada da fúria do vento pelas altas paredes vulcânicas. Quando se virou para Ryder, Monk notou alguns brilhos passageiros na água. Não eram reflexos, e sim algo mais profundo. Azuis brilhantes e vermelhos profundos como os do fogo.

Que diabo?

Um raio crepitou acima, atingindo o teto em forma de rede, iluminando a lagoa. Monk abaixou-se para se proteger do estrondo. Onde o raio caiu, energias azuis cintilantes difundiram-se como estilhaços ao longo das escoras de aço da rede, produzindo momentâneas danças de fogo-de-santelmo. A estrutura inteira devia estar aterrada, funcionando como um imenso pára-raios.

Ryder juntou-se a ele na amurada. Ele estava com o rolo de corda num dos ombros e jogou a eslinga por sobre a amurada, baixando-a com a experiência de um estivador especializado. A eslinga atingiu o nível da sacada, oscilando ao vento que zunia.

— Eu vou descer — gritou Monk no ouvido dele. — Trancar a cabine e então voltar aqui para cima. Nós dois teremos de puxar as mulheres.

Ryder concordou com um movimento da cabeça. Ele já tinha ouvido o plano. Monk o repetira só para dar ao homem uma última oportunidade de se oferecer para descer no lugar dele.

Ryder não se ofereceu.

Homem esperto. Não era de admirar que fosse bilionário.

Monk segurou a corda, passou sobre a amurada, enganchou a perna e balançou na corda molhada. Controlando a descida com a mão artificial, escorregou rapidamente pela corda até seus pés tocarem a eslinga.

Ele olhou para a sacada aberta, oscilando ao vento. As cortinas estavam meio fechadas, mas a luz forte no interior revelava Lisa. Um homenzarrão a imprensava contra as portas da sacada, erguendo-a do chão, e apertava o pescoço dela com uma das mãos.

Oh, aquilo já estava indo bem.

 

Lisa estava pendurada no braço de Tweedledee, cuja mão lhe apertava o pescoço. O nariz dele estava encostado no rosto dela, e saliva jorrava enquanto ele gritava.

— Que porra você estava fazendo com as linhas intravenosas, sua cadela?

A última palavra foi emitida em inglês com forte sotaque.

Lisa tirava todos os cateteres de Susan — vesical, intravenoso, a linha central —, preparando-a para partir o mais rápido possível. Infelizmente, o filme a que os enfermeiros assistiam terminara, e Dee tinha ido ao banheiro, passando próximo o bastante para perceber que havia algo errado.

Atrás do irmão, Dum checou a paciente. Ele virou-se e falou rapidamente em russo. Lisa não entendeu, mas era óbvio que alguma coisa estava extremamente errada.

Nada bom.

Ainda pressionada contra a porta da sacada, Lisa sentiu alguém bater de leve no vidro às suas costas.

Por favor, meu Deus, tomara que seja Monk.

Ela estendeu a mão para trás e conseguiu esticar o dedo indicador até o trinco da fechadura, erguendo-o.

A porta abriu-se atrás dela, levando-a consigo.

Surpreso e perdendo o equilíbrio por causa do movimento, Dee tropeçou para a frente e soltou-a. Ela tentou manter o equilíbrio, mas acabou caindo sentada com força.

Um braço irrompeu pela porta aberta da sacada, agarrou Dee pela gola de sua roupa protetora e puxou-o para fora. Ouviu-se um tiro abafado, seguido por um grito que se foi esvaindo.

Dee estava indo nadar.

Por outro lado, Dum estava recuando para junto do leito, tentando alcançar o coldre em seu ombro, ainda assustado e atônito demais para gritar. Lisa procurou sua arma, mas estava sentada nela.

Monk apareceu à entrada, iluminado por trás por um relâmpago, completamente encharcado. Sua pistola estava erguida. O tiro seria ouvido, mas não havia como evitar isso.

Então uma figura ergueu-se atrás de Dum, ajoelhando-se no leito, vacilante.

Susan.

A mulher golpeou com um bisturi, perfurando o pescoço do homem de um lado ao outro por trás. Esquecendo sua arma, o guarda segurou a garganta com ambas as mãos.

Monk precipitou-se para a frente, segurou o cinto do homem e puxou-o para fora.

—        É hora de você averiguar o que seu irmão está fazendo. Dessa vez não houve sequer um grito.

Monk voltou, limpando as mãos.

—        Então, quem está pronto para dar o fora?

Os momentos seguintes foram um grande tumulto.

Lisa correu até a porta da cabine e fechou o trinco de segurança, enquanto Monk ajudava a remover os últimos cateteres e fios de Susan — do eletrocardiógrafo, do eletroencefalógrafo e do Doppler pulsado —, libertando-a do equipamento médico.

Lisa tirou o suéter e ajudou Susan a vesti-lo, junto com um par extra de calças protetoras. Embora ela ficasse instável em pé, seus membros revelaram-se mais fortes do que Lisa esperava depois de cinco semanas de catatonia.

Talvez fosse a adrenalina, talvez alguma outra coisa.

De qualquer modo, logo eles estavam na sacada, expostos à chuva. Uma eslinga quicou na extremidade de uma corda. Monk pegou-a e olhou de relance para Susan, e a surpresa o fez parar por um instante.

—        Lembre-se de me dizer por que a sua amiga está brilhando na escuridão. Afastando-se assustada, Susan tentou puxar um pouco mais o suéter sobre o braço. Lisa já havia demonstrado o efeito a Susan, desligando brevemente as luzes do quarto.

Lisa indicou a corda a Monk com um aceno.

—        Conversaremos sobre isso mais tarde.

Monk franziu o cenho, mas subiu na corda, provando a força da parte superior de seu corpo e a preensão de sua mão artificial.

Lisa ajudou Susan a se acomodar na eslinga.

—        Você consegue segurar-se bem? — perguntou à mulher.

—        Terei que fazer isso — respondeu Susan, tremendo violentamente.

Depois de algumas manobras, Monk e Ryder começaram a puxá-la para cima, usando um poste do navio como suporte.

Lisa esperou, andando um pouco de um lado para outro.

O som alto de uma batida à porta chegou até ela, paralisando-a.

Viera da cabine.

Ela foi até o limiar, onde foi recebida por um grito irado.

Era o dr. Devesh Patanjali.

Ele devia ter tentando usar seu cartão-chave e descoberto que a porta estava trancada por dentro. Mais pancadas.

Lisa recuou, inclinou-se para fora por cima da amurada, e olhou para cima.

Os pés de Susan chutavam o ar. Ela estava sendo ajudada a subir na amurada.

Lisa sacou a pistola do cinto e gritou.

— Rápido! Alguém está vindo!

O vento e um trovão abafaram as palavras dela.

Um estalo acompanhado do som de estilhaços irrompeu da cabine. Eles estavam arrombando-a. Seguiu-se um tiro de rifle, alto como a explosão de um canhão, assustando-a.

Um grito ecoou até ela, vindo de cima.

Monk pelo menos ouvira o disparo.

A eslinga caiu no ombro dela, jogada, e não baixada, chocando-se com força contra ela. Lisa ignorou isso, correu para a frente, até a porta aberta da sacada, agarrou a cortina interna e fechou-a completamente. Ela também fechou a porta.

Deixe-os descobrir que o quarto está vazio.

O estratagema talvez não durasse muito tempo, mas poderia dar-lhe alguns segundos extras. Ela correu, segurou a eslinga e se contorceu para entrar nela. Uma súbita rajada de vento fez com que ela atingisse sua mão, arrancando-lhe a pistola.

A arma voou na escuridão.

Droga...

Desesperada, ela ajustou a eslinga, subiu na amurada da sacada e soltou o corpo.

Lisa sentiu a eslinga dar um solavanco sob seus braços enquanto os homens a içavam para cima.

Girou na direção da sacada no momento exato em que a cortina foi aberta. Um raio brilhou acima. Lisa viu o rosto de Devesh mudar diante da surpresa, sem compreender ao vê-la girar na direção dele.

Ele recuou.

Em seu lugar, Surina apareceu usando um roupão, com os longos cabelos negros soltos. Ela abriu a porta enquanto seu outro braço contorceu-se para trás e pegou a bengala de Devesh.

Lisa atingiu o fim do arco de seu giro. Ela chutou na direção da mulher, mas Monk e Ryder haviam-na puxado para cima, encurtando bastante a corda, de modo que a ponta de sua bota moveu-se no vazio.

A eslinga voltou a girar.

Surina saiu para a sacada, e seus cabelos agitaram-se num torvelinho furioso por causa do vento. Ela segurou a bengala de Devesh com ambas as mãos, girou-a e fez um movimento amplo como o de uma chicotada. Uma bainha de madeira branca envernizada voou para dentro da cabine, revelando toda a extensão da lâmina de aço oculta na bengala.

Surina correu até a amurada da sacada.

Raios iluminavam o céu, transformando a espada em fogo azul. Desarmada, Lisa girou de novo na direção da mulher, que aguardava com a espada.

 

Monk não havia esperado. Ao ouvir a primeira descarga de rifle, soube que Lisa precisava de ajuda mais direta, por isso deixou o grandalhão australiano puxá-la sozinho.

Monk desceu numa corda. A outra ponta estava amarrada a uma bóia salva-vidas presa entre duas grades da amurada do navio. Sua mão artificial apertou a corda com a força de uma pinça de aço. Sua outra mão apontou a pistola.

Ele saltou longe o bastante para ver Lisa girar de novo na direção da mulher com a espada. Apontou a pistola e disparou.

Uma rajada de vento o fez perder a mira.

A bala arrancou um pedaço grosso da amurada de madeira da sacada.

Mas foi suficiente para repelir a espadachim, que recuou com uma suave guinada do corpo.

Ryder gritava enquanto puxava com força a corda de Lisa.

Ao mesmo tempo, com a força nascida da adrenalina e do terror, Lisa impulsionou o corpo para cima com o auxílio dos braços. Ela agora estava em pé, e não pendurada na eslinga, acima do espaço da sacada. Atingiu com força o casco e quicou.

Ryder içou-a a cerca de mais um metro.

Monk esvaziou o restante de seu pente de balas, mais três projéteis, desencorajando a aproximação de qualquer pessoa. Aquilo deveria manter qualquer um a distância.

Mas ele estava errado.

A espadachim reapareceu e saltou para cima da amurada, como uma ginasta numa barra, e em seguida deu um pulo para cima, com a espada apontada para o alto.

Lisa gritou.

 

A lâmina passou deslizando pelo calcanhar de sua bota, cortou seu jeans e penetrou profundamente em sua panturrilha esquerda.

Em seguida, a espada caiu, sucumbindo à gravidade.

Lisa olhou por entre os pés. Surina caiu em pé nas tábuas da sacada e afastou-se habilmente. Ela nem sequer voltou a olhar para o alto.

Ryder içou Lisa ainda mais.

Para fora do alcance da mulher.

Ao ser puxada além da curva do casco, Lisa perdeu a visão da sacada. Abraçando a corda, ela tremia violentamente. Sangue escorria pela sua perna abaixo até a bota.

Ela avistou Monk num lado, subindo de novo na amurada.

Instantes depois, alguém segurou os ombros dela e puxou-a sobre a amurada. Ela caiu no convés, ainda tremendo. Ryder apareceu, desdobrando um lenço de cabeça que caíra em volta de seu pescoço.

— Isso vai doer — disse ele, mas sua voz soou muito distante.

Ele pegou o lenço, enrolou-o ao redor da panturrilha dela, que ardia de dor, e num movimento rápido puxou-o com força. A dor aumentou de intensidade e difundiu-se dentro dela, fazendo-a dar um suspiro abafado. Porém, o sofrimento pôs fim à ameaça de choque.

O som retornou do poço vazio no fundo do qual havia caído.

Ryder ajudou-a a ficar em pé.

—        Nós temos que ir. Eles chegarão aqui em cima a qualquer momento. Ela concordou com a cabeça.

—        Ótimo... ir... sim.

Não era Shakespeare, mas Ryder entendeu. Ele a apoiou com um dos ombros enquanto Monk ajudava Susan. Todos eles estavam encharcados. Eles seguiram na direção da popa do navio.

—        Onde...? — indagou ela, mancando o mais rápido possível.

—        Jamais chegaremos à minha lancha — respondeu Ryder. — Eles devem estar vigiando as escadas e os elevadores.

Para confirmar o que ele acabara de dizer, um alarme disparou, soando fundo no navio e depois explodindo para os conveses.

Monk apontou por cima da amurada e para baixo.

—        Uma doca pública para escaleres — disse ele. — Há uma hora, quando verifiquei se havia guardas próximos à sua lancha particular, avistei uma das lanchas azuis dos piratas amarrada lá embaixo, não-tripulada e abandonada.

—        A doca de escaleres fica muitos conveses abaixo.

Monk conduziu o grupo vacilante para a amurada no centro do navio. Ele se inclinou para fora.

—        Não se seguirmos um caminho mais direto. Ele apontou para baixo.

Lisa esticou o pescoço por cima da amurada. Conseguiu distinguir apenas a extremidade saliente da doca para escaleres. Uma lancha com um motor fora da borda estava ancorada lá. Devia ter sido usada para transportar piratas entre sua aldeiazinha e o navio.

E parecia desprotegida.

—        Nós vamos pular? — perguntou Susan, apavorada.

Monk concordou com a cabeça.

—        Você sabe nadar?

Susan fez que sim com a cabeça.

—        Eu sou bióloga marinha.

Lisa hesitou.

Eles estavam a uns 15 metros acima da água. Gritos ecoaram na direção da popa. Monk olhou de relance para a perna de Lisa e depois para o rosto dela.

Lisa concordou com a cabeça. Não havia escolha.

—        Teremos que pular todos juntos — disse Monk. — Um grande barulho produzido pela nossa queda na água atrairá menos atenção do que quatro.

Eles subiram na amurada e equilibraram-se em cima dela. Monk inclinou-se o máximo para fora.

—        Prontos?

Em resposta, todos acenaram afirmativamente com a cabeça.

O estômago de Lisa embrulhou, sua perna latejou. A dor a fez ver estrelas na água escura, brilhos fugazes de listras elétricas.

Monk fez a contagem regressiva, e todos eles pularam.

Agitando os braços em busca de equilíbrio, Lisa mergulhou em pé. Ela havia mergulhado do alto de penhascos no passado. No entanto, quando atingiu a água, foi como cair em terra compactada. O golpe causou um impacto em todo o seu corpo. Seus joelhos curvaram-se e em seguida o mar abriu caminho. Ela desceu rápida e profundamente na água morna. Após o frio da chuva e do vento, o lago dava a sensação de um agradável banho de banheira.

O impulso dela diminuiu, desacelerando ainda mais com os braços abertos.

Então ela começou a subir. Agitou os pés e os braços de volta à superfície, irrompendo com um ofego. Em toda parte, a chuva fustigava a água. Os ventos sopravam em rajadas contrárias.

Mantendo a cabeça acima da água sem se mover, Lisa avistou os outros três. Monk já havia se dirigido à lancha.

Ryder ajudava Susan. Ele olhou de relance para Lisa.

Ela fez sinal para que ele fosse para a lancha.

Suas botas e suas roupas encharcadas dificultavam as coisas, mas ela manteve o ritmo.

Monk chegou primeiro à lancha e impulsionou o corpo para dentro como uma foca que vai dar à praia. Ele permaneceu abaixado e esquadrinhou a doca de escaleres.

Não se ouviu nenhum grito.

Os alarmes ainda soavam no navio. Provavelmente, todo mundo ainda estava indo para o convés superior, onde os fugitivos tinham sido vistos pela última vez.

Ryder foi o próximo a chegar à lancha com Susan.

Enquanto Monk os ajudava a subir a bordo, Lisa aproximou-se. Ela estava quase chegando à lancha quando...

...alguma coisa atingiu sua perna, batendo com força contra ela.

Assustada, ela se debateu um pouco e em seguida esquadrinhou as águas escuras. Alguma coisa roçou em seu quadril, deixando um rendilhado cintilante de fogo verde na água, e depois desapareceu.

Mãos agarraram seus ombros.

Ela quase gritou, pois não sabia que havia chegado à lancha. Ryder puxou-a para cima e sobre a borda.

Lisa esparramou-se no chão. Ferramentas abandonadas pressionaram suas costas. Ela sentiu cheiro de óleo nos cabelos, mas não se mexeu. Respirava profundamente, a fim de reduzir os batimentos cardíacos.

O motor atrás dela de repente fez um zumbido aquoso. Ryder puxou os cabos de amarração. Monk afastou-se cautelosamente da doca com a lancha. A princípio, ele foi devagar, mantendo o ruído a um mínimo.

Lisa sentou-se e olhou para a doca.

Uma forma saiu do navio e pisou nas tábuas da doca de escaleres. Mesmo com o rosto do homem encoberto pelas sombras, Lisa imaginou suas tatuagens. Rakao. O líder maori não se deixara enganar. Ele sabia que havia apenas determinado número de saídas do navio.

—        Vá! — gritou Lisa. — A pleno vapor, Monk!

O motor sacudiu, expeliu um pouco de água e depois rugiu. Enquanto Lisa olhava, Rakao ergueu o braço. Ela se lembrou de sua enorme pistola.

—        Abaixem-se! — gritou ela. — Abaixem-se todos!

Tiros faiscaram. O lado de metal da lancha retiniu em conseqüência de um tiro que a atingira obliquamente. A velocidade da lancha aumentou, produzindo uma espessa esteira.

Rakao voltou a atirar, mas devia ter percebido que fora um desperdício. Ele já estava com um rádio junto aos lábios.

Monk afastou-se a toda a velocidade do navio de cruzeiro.

Lisa observou outra lancha aparecer ao redor da popa do navio, ainda a certa distância. Ela devia estar regressando da aldeia na praia e de repente aumentou a velocidade, seguindo rumo à doca de escaleres.

Rakao devia tê-la chamado, preparando-se para a perseguição.

Mas eles tinham uma boa dianteira.

Isto é, até o motor afogar com um ruído alto e um jorro oleoso de fumaça. A lancha estremeceu e sua velocidade foi diminuindo. Lisa sentou-se em algo mais alto, girando o corpo. Ela olhou para as ferramentas sobre as quais havia se esparramado. A parte de trás da toalha oleosa estava toda enrugada.

A lancha não estava esperando para transportar passageiros entre o navio e a aldeia: ela estava sendo consertada.

A fumaça expelida pelo motor piorou. O rugido dele transformou-se num ruído quase inaudível.

Ryder praguejou, passou por ela e abriu a portinhola do motor.

Mais fumaça foi expelida.

Ryder fechou a cara.

—        Esta coisinha de lata teve uma pane.

No navio de cruzeiro, Rakao pulou da doca para a lancha, que partiu atrás deles.

—        Não temos escolha — disse Monk, girando o volante enquanto eles avançavam com dificuldade, de maneira instável. O motor crepitou, perdendo um pouco mais de velocidade.

—        Teremos que ir para a praia e torcer para que tudo dê certo. Lisa olhou para a praia e depois para a lancha de Rakao.

Ainda assim, seria por um triz.

Monk conseguiu obter o máximo de cavalos-vapor possível. A floresta escura surgiu diante deles. Pelo menos, ela parecia densa o bastante para ocultá-los. Meio minuto depois, o motor finalmente morreu por completo.

—        Vamos ter que nadar até lá! — exclamou Ryder.

A praia não estava longe. Menos de cinqüenta metros.

—        Abandonar o navio — concordou Monk. — E cair fora.

Mais uma vez, todos eles pularam no lago. Lisa chutou as botas fora e os seguiu. A lancha de Rakao rugia na direção deles.

Só depois de ter atingido a água, ela se lembrou de que alguma coisa se chocara contra ela antes de seu pânico momentâneo. Mas agora Rakao a assustava mais. Tendo mergulhado a vida inteira, Lisa já topara com a sua cota justa de tubarões curiosos.

Rakao era, sem dúvida, mais amedrontador.

Ela nadou rumo à praia.

Olhando para trás, notou clarões estranhos na água.

Esmeralda, rubi, safira.

Cintilações, como fogo debaixo dágua.

Elas se moviam através da água na direção do grupo deles.

Lisa subitamente soube o que havia se chocado contra ela, o que avançava para eles, um grupo de caçadores, comunicando-se com jatos de luz, um código Morse predatório.

—        Vamos, nadem! — gritou ela.

Suas braçadas ficaram mais rápidas.

Eles não conseguiriam chegar à praia.

 

Ele segue o cheiro do rastro de sangue na água. Nadadeiras laterais ondulam e deslizam. Músculos bombeiam água através de seu manto e para fora de sua rígida estrutura traseira, semelhante a um funil, impulsionando seu volume de cerca de dois metros através da água. Ele aperta seus oito braços num ponto firme, uma luzidia seta musculosa. Seus dois tentáculos mais longos cintilam com um intenso brilho nas extremidades. Raios de luz tremeluzem em listras ao longo de seus flancos. Guiando o grupo.

Grandes olhos globulares interpretam as mensagens de seus irmãos.

Alguns se espalham por uma ampla área, outros descem para a profundeza.

O cheiro de sangue torna-se mais forte.

 

Lisa agitava os pés e dava braçadas com movimentos ordenados.

O pânico só a retardaria.

A praia estendia-se adiante, uma faixa de areia prateada entre a água negra e a selva escura. Era uma linha de chegada que ela pretendia cruzar.

A lancha de Rakao rugia atrás dela.

Não era com o pirata maori, porém, que ela apostava corrida. Raios de fogo aquático dispararam na direção dela.

Atraídos pelo corte em sua panturrilha.

Sangue.

Cerca de quatro metros adiante, Monk e Ryder saíram pesadamente da água, puxando Susan entre eles. Lisa agitou os pés com mais força.

—        Monk!

 

Com um aperto final dos músculos, ele segue rumo à agitação na água. Estende seus braços num amplo movimento. Dois tentáculos mais longos se projetam, serpenteando através da água, formando bolhas com luzes amarelas, revestidos por ventosas farpadas com ganchos quitinosos.

 

Monk ouviu Lisa gritar seu nome.

Ela nadava rumo à praia, parecendo desesperada.

Apenas cerca de três metros de distância.

Atrás dela, a lancha do pirata deslizava a todo vapor bem na direção do grupo deles. A chuva caía do céu aberto, criando pequenas ondulações no lago. Sob a superfície, clarões cintilantes de fogo, como balas traçantes na noite, dispararam na direção de Lisa.

Monk lembrou-se das histórias daquela lagoa.

Contadas por um nativo desdentado.

Demônios das profundezas.

Ele voltou a pular na água. A praia inclinava-se abruptamente. Após dois passos, a água batia em sua cintura.

—        Lisa!

Ela olhou de relance para ele, os olhos se encontrando. Em seguida, ela parou com um safanão, agarrada.

Os olhos dela arregalaram-se.

—        Vá...

Monk moveu-se na direção dela, com os braços estendidos.

—        Me dê a mão!

Tarde demais.

Uma confusão de tentáculos explodiu da água, envolvendo-a. Com uma velocidade espantosa, Lisa foi girada e arrastada subitamente para baixo, submergindo por completo. O monstro surgiu brevemente à vista, reluzente e orlado com pequenas asas laterais, ondulando com estreitas faixas de lampejos elétricos. Um olho preto enorme virou-se para trás e então desapareceu.

Um braço com uma manga rompeu a superfície, já a cerca de dois metros de distância. Em seguida, com uma velocidade incrível, ele oscilou através da água, um peixe preso a uma linha que se movia com rapidez. O membro moveu-se bruscamente para a profundeza.

Lisa...

Monk deu outro passo, preparando-se para mergulhar.

Mas disparos de armas de fogo puseram fim ao seu choque. Balas atingiram a água, forçando-o a recuar para a areia.

— Aqui! — gritou Ryder.

Mais tiros levantaram montículos de areia. O fogo de rifles crepitou.

Ele não tinha opção.

Monk tropeçou para trás, foi agarrado por Ryder e arrastado para dentro da floresta escura.

Lisa...

 

Lisa lutou para prender a respiração, entrelaçada em braços que a apertavam. Ganchos gigantes penetravam em sua pele, tornados indolores pelo pânico.

Ela chutava e se contorcia.

Com os olhos abertos.

Jatos de luz deixavam um rastro atrás de si e projetavam-se na escuridão.

Era assim que ela morreria.

 

Monk deixou-se ser arrastado mais para o interior da selva. Ele não tinha escolha. Não havia nada que pudesse fazer.

Por uma brecha na folhagem, ele olhou para trás, para a água negra.

A lancha dos piratas havia reduzido a velocidade perto da praia. Rifles apontavam na direção da praia, procurando. Mas Rakao estava em pé, apoiado na proa, uma silhueta escura com um longo arpão na mão.

Erguendo o braço, o perseguidor maori arremessou a longa extensão de aço dentro da lagoa.

Arcos de raios azuis crepitaram para fora no local em que o arpão acertara, brilhantes na escuridão, iluminando a noite e as profundezas da lagoa. As águas sibilaram com uma bolha de vapor em volta da haste do arpão.

O que ele estava fazendo?

 

Quase inconsciente, Lisa soltou o restante do ar preso. Um choque doloroso propagou-se pelo seu corpo. A lula estreitou ainda mais seu abraço, sentindo a mesma agonia, talvez até com mais intensidade.

Em seguida, seus braços soltaram-na com uma última contorção selvagem.

A água do mar ardia em seu nariz.

Com os olhos abertos, ela viu a criatura descer como um raio para as profundezas escuras, uma seta de fogo cor de esmeralda. Outras a seguiram.

A força ascensional a fez flutuar para cima.

Em seguida, mãos seguraram-na e puxaram-na pelos cabelos. Elas eram lentas demais.

Lisa asfixiou-se na água, com a boca abrindo e fechando como a de um peixe, enquanto a escuridão a tragava.

 

Ao abrigo de uma rocha e de uma selva densa, Monk viu quando Lisa foi puxada da água pelos cabelos, débil, frouxa. A cabeça dela estendeu-se para trás num ângulo impossível.

Rakao jogou seu arpão para o lado.

— Algum tipo de aguilhão elétrico para gado — disse Ryder. — O choque removeu completamente a tinta daquelas coisas detestáveis.

Rakao inclinou Lisa sobre a amurada e empurrou-lhe as costas. Um jato de água do mar espirrou da boca e do nariz dela.

Um braço ergueu-se e golpeou-o.

Viva.

O pirata arrastou-a e colocou-a no chão. Ele olhou na direção da selva e depois mais alto, para os penhascos. Raios crepitaram num espetáculo devastador pelo teto da ilha. Ventos sopravam em rajadas junto com o açoite da chuva, que caía torrencialmente sobre a lagoa.

Rakao ergueu um braço e fez um movimento circular.

A lancha deu a volta, produzindo uma esteira, depois saiu a toda a velocidade, deixando atrás de si um alto arco de água. Eles estavam voltando para o navio.

E levavam Lisa consigo.

Mas pelo menos ela estava viva.

—        Por que eles estão indo embora? — perguntou Susan num sussurro.

Monk olhou para ela. Na escuridão da floresta, o rosto e as mãos da mulher brilhavam com uma radiação discreta, quase imperceptível, mas presente. Era como o luar através de nuvens espessas.

—        Parece que não existe exatamente algum lugar aonde possamos ir — disse Ryder mal-humorado. — Amanhã de manhã eles estarão nos perseguindo.

Monk apontou mais para o interior da floresta.

—        Então é melhor irmos andando.

Com Susan ao seu lado, Monk dirigiu-se para a parte mais alta da floresta. Ele deu uma última olhada para a lagoa.

—        O que eram aquelas coisas?

—        Lulas predatórias — murmurou Susan com certa autoridade. — Algumas lulas bioluminescentes caçam em grupos. No Pacífico, lulas de Humboldt atacaram e mataram pessoas, deslocando-se em grandes grupos desde as profundezas. Mas também existem espécimes maiores, como a Taningia danae. Essa lagoa isolada deve ser o lar dessa subespécie, cujos grupos sobem à superfície a fim de se alimentar. A noite, quando sua comunicação e coordenação luminescentes funcionam melhor.

Monk lembrou-se de uma história de um dos piratas sobre a ilha, de feiticeiras e demônios na água. Ali devia estar a origem da história. Ele também se lembrou de outra história sobre a ilha.

Ele esticou o pescoço na direção dos penhascos irregulares, emoldurados contra o céu escuro. Além do ribombar dos trovões, tambores soavam.

Canibais.

—        E agora? — perguntou Ryder.

Monk seguiu na frente.

—        Está na hora de conhecermos os nossos vizinhos... ver o que estão cozinhando.

 

Apoiada na doca de escaleres, Lisa pendia dos braços de um dos piratas. Estava fraca demais para lutar, cansada demais para se importar. Completamente encharcada, sangrando de uma grande quantidade de ferimentos, aguardava seu destino.

Rakao estava em meio a uma discussão com Devesh.

Em malaio.

E ela não entendia nada.

Lisa, porém, suspeitou de que o motivo da discussão era o fato de o pirata tatuado não ter perseguido Susan Tunis na selva. Lisa entendeu apenas uma palavra.

Kanibals.

Atrás dos homens, Surina, ainda usando o roupão, estava em pé à entrada do navio, abrigada da chuva, com os braços cruzados, as costas eretas, paciente. Seus olhos estavam fixos em Lisa, mas não eram frios, porque isso implicava alguma emoção. Os olhos dela eram um vazio total.

Finalmente, Devesh virou-se e apontou um dos braços para Lisa. Ele falou em inglês, como uma cortesia à sua prisioneira.

—        Fuzile-a. Agora.

Lisa aprumou-se nos braços do pirata. Ela tossiu, e sua voz saiu num sussurro rouco.

Ela ofereceu ao cientista da Guilda a única coisa que podia oferecer.

Para salvar sua vida.

—        Devesh — disse ela com firmeza. — A Estirpe de Judas. Eu sei o que o vírus está fazendo.

 

 

                                                CONTINUA

 

 

O choque retardou o ritmo da cena a um intervalo de tempo parado, silencioso.

De uma janela do segundo andar de Hagia Sophia, Gray observou a parte posterior da cabeça de Balthazar Pinosso explodir num jorro de sangue e ossos. Seu corpo dobrara-se na cintura em decorrência do impacto. Seus braços estenderam-se completamente para o lado. O telefone celular, ao ouvido um momento antes, voou de seus dedos, atingiu o pavimento e deslizou para longe.

O corpo do homenzarrão caiu no chão em seguida

Vigor ofegou ao lado de Gray, interrompendo a cena.

—        Oh, meu Deus... não...

 

 

 

 

Sons chegaram ruidosamente até eles: o eco do disparo, gritos vindos da praça. Gray recuou, respirando fundo para dar-se conta da implicação. Se Balthazar foi fuzilado...

—        Nasser sabia sobre ele — disse Vigor, terminando seu próprio pensamento lento. Estupefato, o monsenhor se conteve no peitoril da janela. — Nasser sabia que Balthazar estava aqui. Os atiradores de tocaia do monstro o mataram.

Gray não se sentia melhor, atordoado pela incompreensão e pela culpa. Ele enviara o homem para fora, ao encontro de um pelotão de fuzilamento.

Os gritos lá fora foram piorando, propagando-se para o interior da igreja. Pessoas correram, a maioria fugindo para o abrigo mais próximo, o santuário de Hagia Sophia.

Minutos atrás, Gray e Vigor tinham subido para o segundo andar da igreja, onde havia menos movimento de turistas, mantendo-se ocultos. Antes de sair, Balthazar informara o curador do museu de que Gray e Vigor já haviam partido, negando a necessidade de uma ambulância. Eles tinham ido até ali em cima para se certificarem de que tudo correra bem.

—        Isto aqui vai ficar apinhado de policiais — disse Gray. — Temos que nos esconder.

Vigor segurou na manga de Gray.

—        Sua mãe e seu pai...

Ele sacudiu a cabeça, pois não tinha tempo para pensar naquilo. Nasser advertira contra qualquer estratagema. Porém, uma vez expresso em voz alta, Gray não conseguiu escapar ao terror. Sua respiração tornou-se mais pesada, e... 

                                                                                               

 

 

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