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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A REVELAÇÃO / Odette de Saint Maurice
A REVELAÇÃO / Odette de Saint Maurice

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

A irritação de Dona Teresa Mafalda era visível. Desde pela manhã que se manifestava e o seu temperamento, já naturalmente difícil, magoado por qualquer coisa, expandia-se em contínuas reprimendas e em sucessivos queixumes.

Implicara com o marido porque ele há três dias não mudava de gravata.

Implicara com a Lili porque saíra de casa cinco minutos mais tarde do que o habitual.

Implicara com a Rita porque ia de sapatos pretos com o casaco azul escuro.

Implicara com a Mirita porque suplicara autorização para entrar no quarto de banho quando ela estava a lavar os dentes.

Implicara com a Sofia porque viera perguntar o que se fazia para o almoço antes de ela, ama, haver pensado nisso, visto que a chamava quando já tinha pensado.

Coisas vulgaríssimas perante as quais Dona Teresa Mafalda sempre ficava indiferente e naquela manhã a obrigavam a assumir uma atitude hostil - atitude que, aliás, não preocupava ninguém. Ou melhor, não afligia, pois todos sabiam que aquilo passava lá mais para a tarde. E entretanto restava a consolação de que ficara uma livre do ataque de má-disposição da Mãe - a Rosarinho, que já saíra a caminho do Liceu quando ela se levantara.

 

 

 

 

Aconteceu, porém, que a má-disposição de Dona Teresa Mafalda não fez outra coisa senão acentuar-se durante a manhã.

A Sofia viria depois a explicar os motivos, ou, pelo menos, o que parecia ser motivo.

A Senhora combinara para essa tarde um joguinho janota, em retribuição de convites. Duas mesas de canasta. E desde a véspera que a coisa estava a falhar.

Começara pelas duas irmãs Souselas. Tinham telefonado a avisar que não podiam comparecer. A Mãe ia ser operada de urgência, não iam deixá-la só, evidentemente. E por mais justificadas e desculpadas, eis a complicação! Duas parceiras que falham em oito e quase à última hora constitui um problema levado dos diabos, tão grave que perante ele a sorte da padecente talvez em risco de vida perdia realce, tornando-se num assunto de pouca monta. É que, mesmo que para resolver a situação ela, Teresa Mafalda, ficasse de fora, ou decidissem jogar de cinco - o que sempre se torna incômodo! - sobrava uma.

Depois, logo pela manhã - pouco passava das oito e meia! - o telefone tocara pondo termo a um sector da sua perplexidade. A Aninhas Cantareiro faltava. Tinha de ir ao Aeroporto às cinco da tarde esperar o irmão residente no Canadá e que não via há anos. Uma visita inesperada! "E bem vês, minha querida, não hei-de abandoná-lo logo a seguir. ". Claro.

Claro! .

Agora estava certa a mesa tornada única. Ficava ela de fora, a olhar.

A olhar!.

Na cozinha, fazendo um bolo e preparando uma massa folhada, enquanto a Sofia fora ao mercado, Dona Teresa Mafalda (que sabia muito bem de culinária, as filhas lambiam-se todas quando ela se decidia a confeccionar o seu pitéu) suspirava, apiedando-se de si própria.

Nascera mesmo com pouca sorte!. É que tudo lhe corria torto!.

Tortíssimo!.

Tor-tís-si-mo!

Àquela hora, no Tribunal, o Dr. Álvaro Abegorim declarava inocente um desgraçado Pai de seis filhos que mal ganhava para comer e batera num Farmacêutico que recusara fiar-lhe determinado medicamento para uma filhinha que tinha à morte.

Àquela hora, na Faculdade, Mirita tentava consolar a Mãe de uma colega que há dias morrera vítima de um atropelamento.

Àquela hora, no emprego, Leonor Augusta ouvia a história dramática de uma rapariga filha de um casal desunido que a deixara ao Deus dará.

Àquela hora, na aula de inglês, Rita ouvia o Professor contar como perdera a família num desastre de avião.

Àquela hora, na praça, Sofia assistia ao desespero das donas de casa cujos orçamentos não comportavam os preços marcados.

E Dona Teresa Mafalda da Câmara de Sousa Medeiros Abegorim considerava-se infeliz por passar uma tarde sem jogar.

A sua má-disposição não cedia. Conservava-se inalterável à hora do almoço. E nada conseguia desanuviá-la, nem sequer o relato que cada um fez do que mais o impressionara durante a manhã. Sim, que tanto o Dr. Juiz como as pequenas contaram os factos trocando impressões acerca das horas más que desabam sobre as pessoas. O aspecto carrancudo da Mãe não aliviava, não abria. E as quatro irmãs olhavam-na de soslaio, preocupadas e aterrorizadas. E o Marido olhava-a de frente, contristado e discordante.

No final da refeição, todos saíram. Todos, menos a Rosarinho. A Rosarinho ficou.

Ou antes, a Rosarinho ficou ainda uns momentos, porque não tardou em dizer, com a maior naturalidade deste mundo:

- Mãe, eu vou lá abaixo um bocadinho.

- Lá abaixo. onde?

- A casa da S'Dona Ester.

Rosarinho escapara, até então e providencialmente, às conseqüências da má-disposição de Dona Teresa Mafalda. Ia terminar a sua imunidade.

A cólera da Mãe extravazou.

- Pois! E eu que fique para aqui sozinha!

- Sozinha? - pasmou a inocente.

- Pois, sozinha! - e Dona Teresa Mafalda, mais perturbada do que todos os seus motivos pudessem justificar, continuou, embalada: - As minhas filhas saem, cada uma para seu lado, e eu, a sacrificada da família, que me agüente! Querem lá saber de mim! Importam-se bem com o que eu passo, com o que eu sinto! É cada uma a fazer o que lhe apetece e pronto!

A Sofia apareceu à porta, a ver o que havia, tal a estridência da voz da ama e o volume das exprobações. Não notando, da parte da menina, nada de anormal, retirou-se com um compreensivo encolher de ombros.

Rosarinho, os olhos rasos de lágrimas, pasmava, sem palavras e quase sem pensamentos, diante da injustiça. Como é que a Mãe podia, como?.

A Mãe? .

A Mãe que.

Conseguiu por fim tartamudear:

- Mas, Mãe. eu não a deixo só! Eu ia apenas fazer um pouco de companhia à Dona Ester, que não tem ninguém ao pé dela, nem sequer o Fru-Fru. A S'Dona Ester nunca mais se levantou da cama, desde que o pobre do cãozinho morreu, e eu prometi visitá-la e ainda não pude cumprir. Só lá tenho passado de corrida, por causa desta última série de pontos, e hoje calhava!. Visitar os doentes é uma obra de caridade e. e. -engoliu a saliva e ousou desabafar: - Não pensei que a Mãe precisasse de mim! A Mãe de aqui a pouco tem aí as suas amigas para jogar.

- Maria do Rosário? .

- Mãe?

- Cale-se!

A rapariguinha calou-se.

Sentou-se numa poltrona e, sem saber nem que fazer nem que dizer, após aquela sua tirada tão integralmente sincera e com tanta veemência repelida, começou a roer as unhas, coisa que não fazia há que tempos e a que se aplicava agora com uma persistência impressionante. E só Deus sabia o esforço que ela dispendera para conseguir perder o hábito!

Dona Teresa Mafalda pareceu, durante momentos, algo perplexa com a própria reacção. Talvez a escutar um protesto da sua consciência. A sua consciência não podia estar de acordo com ela. De maneira nenhuma!

Incomodada, arranjou mil pequenas coisas que a ocupassem - ou lhe ocupassem as mãos. Depois, enquanto armava a mesa de jogo, pôs-se a falar. Mas, ainda sob o domínio das contrariedades porque se havia até aí deixado conduzir, não evitou o tema e recomeçou a lastimar-se. Acima de tudo queixando-se da falta de compreensão da família. "Até ela, Rosarinho, se tornara incapaz de perceber as razões que lhe assistiam para considerar-se uma pessoa sem sorte".

Quanto disse - e foi bastante! - esbarrou no silêncio obstinado da filha mais nova. Não que Maria do Rosário estivesse amuada. Não era do gênero e ninguém esquecia mais depressa do que ela ofensas e mágoas. Simplesmente não reconhecia ponta de razão nas palavras doloridas da Mãe.

Quase sentia medo de a reconhecer de tal modo ingrata para com o destino.

Sem sorte ?

Sem sorte, por quê?

Cheia de saúde, graças a Deus. Habitando uma casa bonita e confortável. Possuindo o amor do marido, um homem bom para toda a gente. Quatro filhas que não raiavam a perfeição mas podiam considerar-se óptimas raparigas. Sem problemas de maior

- a não ser os triviais de um lar remediado - sob o aspecto material, claro. Tendo uma criada de inteira confiança e dedicadíssima.

Sem sorte!. Ora! .

Cansada de não obter qualquer resposta, Dona Teresa Mafalda sentiu que a voz se lhe extinguia como um fogo sem oxigênio. E, agora verdadeiramente triste, - o silêncio da filha volvia-se uma espécie de acusação, - calada, indisposta já não com os outros mas consigo própria, sentou-se à mesa de jogo, baralhando as cartas maquinalmente. Se fosse capaz de não se deixar levar por idéias que só faziam mal.

A Sofia, a quem o silêncio por vezes também inquietava (jeito do tempo das meninas pequenas, quando sossego queria dizer asneira), voltou a espreitar à porta, desdobrada em cuidados. Pareceu-lhe que a ama se entretinha numa das suas paciências. Não notou nada de anormal da parte de Maria do Rosário que entretanto fora encostar-se a uma das janelas, como se o que se passava na rua lhe interessasse imenso. Julgando tudo em ordem, retirou-se.

Pouco depois, na cozinha, acabando de a arrumar do almoço, cantarolava. Para a singeleza da Sofia, os conflitos só existiam de facto quando soavam. Pelo menos os conflitos perigosos.

Dona Teresa Mafalda não conseguia expor as cartas. As idéias que desejaria não ter, assediavam-na. No fundo, a única coisa verdadeiramente grave de que podia queixar-se era só uma. Não ser uma mulher rica. Muito rica. Se o fosse, tudo correria melhor. Daria validade aos seus anseios contidos! Porque, na essência, não desejaria que a família lhe mudasse. Quereria, sim, mover-se com a família num outro ambiente.

Uma casa enorme, luxuosa.

Um batalhão de pessoal.

Vestidos de colecção.

Passou a mão pela testa. Para quê, aquelas inúteis lamentações?

Não seria uma mulher muito rica. Nem teria uma casa enorme, luxuosa. Nem um batalhão de pessoal. Nem vestidos de colecção. Tinha de continuar a adaptar-se, a sacrificar-se, a.

O relógio, no escritório, cantou meia-hora. Olhou para o pulso, num sobressalto, a acordar para o dia-a-dia. Três e meia! As amigas não demoravam, já!

Saiu da sala, foi à cozinha dar à Sofia as últimas instruções. "Que o carrinho de chá fosse arranjado com os panos de renda que a tia Casimira acabara há dias. Que os pãezinhos com lingüiça fossem aquecidos. Que não faltasse água quente, leite e um pires

Com rodas de limão, por causa da Sr. condessa, que não as dispensava. "

A Sofia, querendo ser agradável, propôs: -Talvez seja melhor eu fazer mais uns biscoitos. A modos que isto será pouco.

- Não, não é pouco. Não se usa mais, agora.

- Modas pra tudo, Jesus!. A Senhora sorriu:

- Esta tem a sua lógica, Sofia! Todas nós fazemos dieta. Para quê escangalhar numa tarde o regimen de uma semana?

- Pois!.

E seguida pela primeira concordância do dia, a ama voltou à sala.

Maria do Rosário continuava onde a deixara. Encostada à janela. A acabar de roer a última unha.

Então a Mãe ergueu-se a toda a altura, impondo-se à Pessoa.

- Rosarinho? .

- Mãe?

- Faça qualquer coisa, pelo amor de Deus! Não continue aí especada!

- A Mãe precisa que eu a ajude? - e virou-se, respeitosamente, a encarar Dona Teresa Mafalda.

- Não.

- Então?

- Estude. Faça renda!

- Mais logo. Agora não me apetece.

- Tire a mão da boca!

Não havia mais unhas para roer. Rosarinho tirou a mão da boca. Ficou a contemplar, desconsoladíssima, os seus dedos carecas.

E a Mãe, mirando-a perplexa, observou:

- Sempre gostava de saber que espécie de interesse tem em ir meter-se na casa dessa velha tonta!

Com vivacidade, a pequena replicou:

- A S'Dona Ester não é uma velha tonta, Mãe, mas uma boa senhora sem ninguém! A Mãe não sabe. mas eu digo-lhe o que a criada me contou a S'Dona Ester perdeu toda a família há muitos anos e, com a família, o gosto pela vida. A última afeição que teve foi o Fru-fru. O Fru-fru morreu, não lhe resta nada! E porque a idade já é muita, ficou sem forças para continuar. Eu, indo lá, posso ajudá-la um bocadinho.

- Ajudá-la, como?

- Conversando com ela. mostrando-me disposta a ouvir-lhe as recordações, as saudades, que não importam a ninguém. Mete-me tanta pena, Mãe, tanta! Deve ser de tal forma horrível, a solidão!. A Mãe já pensou nisso?

Dona Teresa Mafalda ficou muito séria, mas sem rugas na testa, sem vestígios do ar carregado que nela se notava desde pela manhã. Pareceu hesitante. Depois, proferiu:

- Então. e de que é que está à espera? Vá! Tem jeito para irmã de caridade, não desejo sentir-me um estorvo na sua vocação.

Rosarinho fitou a Mãe. Não houvera acinte no timbre. Mesmo assim não era com aquelas palavras que ela desejava sentir-se apoiada. Ao mesmo tempo pensou que mais valia aproveitar a anuência do que discuti-la.

De qualquer maneira, crente na promessa feita, a pobre D. Ester devia continuar à espera dela.

Abeirou-se da Mãe, beijou-a ternamente, sorriu-Lhe:

- Até logo, Mãe. Eu não me demoro muito.

- Pode demorar-se, agora. As minhas amigas devem estar a aparecer. Venha para o chá, que hão-de gostar de vê-la.

- com certeza, Mãe.

Naquele instante, o telefone tocou.

- Eu atendo, Mãe.

- Pois sim.

O aparelho ficara na sala de jantar. Dona Teresa Mafalda não ouviu, por isso, o que a filha dizia, longe. Tão-pouco se preocupou com o que pudesse ser, dado que não devia dizer-lhe respeito, visto ser habitual sucederem-se os recados na casa tão cheia de gente.

Sentou-se de novo à mesa de jogo, disposta a intreter-se com uma das suas paciências favoritas até chegarem as parceiras. Estava enfronhada na resolução de uma delas quando a porta da rua bateu discretamente, segundo o jeito da filha mais nova. Vagamente, Dona Teresa Mafalda pensou que a Rosarinho saía à tia, à Casimira. "Gostam de viver para os outros! "

O tempo correu.

Passava pouco das quatro horas quando principiaram a chegar as amigas esperadas. Primeiro a Ana Margarida de Ribatorpes. com a sua frescura. A graça inalterável de uma elegância física e moral.

Ana Margarida! Toda a adolescência de Teresa Mafalda, no Colégio lado a lado. Não fora o jogo açambarcador e as suas imperiosas exigências, e elas duas pôr-se-iam a recordar, a recordar, tornando-se de súbito espelhos das que não haviam morrido nas suas saudades, as rapariguinhas de tranças e batas correndo pelo parque frondoso nas horas de recreio, fazendo partidas nas horas de estudo.

Mas Sara Francelim não gostava de perder tempo. E baralhava as cartas com ar enfadado:

- Então, meninas, quando é que começamos ? Dona Carolina Pestana, baixinha e roliça, empoava-se diante do belo espelho de Veneza, olhando Carmen Atouguia que chegara cinco minutos depois dela.

- Não gosto nada de jogar de cinco!.

- Mas eu fico de fora! - dizia Teresa Mafalda, recomeçando a explicar os motivos que haviam desordenado a tarde.

- Era o que faltava!. (- ou não fosse Ana Margarida um amor! - Uma vez por outra até sabe bem ver o que as outras fazem.

Eram quatro e um quarto quando principiaram. A assistir - quinta parceira designada pela sorte Sara Francelim.

O telefone começou a tocar precisamente quando o monte já estava travado com dois bestões - (loucuras da Carmen). Dona Teresa Mafalda comentou, enervada:

- Devia ter dado ordem à Sofia para dizer que eu não estava.

Um terceiro beste, (um bestão!) a complicar as aberturas e a Sofia, à porta (felizmente já muitíssimo bem fardada), impecável:

- Boa-tarde, minhas Senhoras. Eu peço imensa desculpa de interromper.

- Que há, Sofia?

- A menina Alicinha quer falar com a sr.a Dona Teresa Mafalda.

- Comigo, a Alicinha?. Para quê?

- Isso não sei.

- Traz-me o telefone.

- Sim, minha Senhora.

E Dona Teresa Mafalda, colocando na mesa o quarto beste - e seu único! - "que me quererá a pequena? "

Sofia já de novo cortava as jogadas, emocionantes

- Ponto, minha Senhora.

Com aquela intimidade de sempre, sabendo perfeitamente quem era a Alicinha, Ana Margarida de Ribatorpes não se conteve:

- Que te quere a miúda a esta hora ? Não podia esperar para logo?

- Não sei. Acho estranho. tanto mais que só costuma falar para a Lili! Desculpem! É só um instante.

E levantou-se. E atendeu.

As amigas, cartas bem fechadas nas mãos, ficaram à espera. A ouvir. A ver.

Teresa Mafalda mudara de cor. Sob a maquiIhagem, discreta mas bem feita - ninguém diria, de tão bonita, que ela era Mãe de quatro filhas mulheres! - a esposa do Juiz Abegorim empalidecera terrivelmente. E balbuciava:

- A Rosarinho? A Rosarinho foi lá abaixo, a casa da S'Dona Ester. Se tenho a certeza?. Como?.

Nenhuma das senhoras presentes escutava o que a menina do lado dizia. Dona Teresa Mafalda, essa acolhia as palavras de Maria Alice de Mendonça Peres Fontemora em pleno coração. As palavras da Alicinha, mais uma vez transbordantes de veneno.

- A S'Dona Teresa tem a certeza de que a Rosarinho está em casa da D. Ester?.

- Claro!

- Ah, Bom. então. se é assim, não vale a pena eu dizer nada.

E a Senhora, aprumadíssima, mão crispada no auscultador:

- Vale, sim! Diga tudo. Já agora quero saber a que devo este insólito telefonema.

- Era. é cá uma coisa!

- Que coisa ?

- Bom. sabe?. Eu estava à janela. e vi entrar Pedro pràí!

- Qual Pedro?

À mesa de jogo, as senhoras poisaram as cartas.

- O Pedro Ferreira de Macedo! Pensei que tivesse ido aí a casa e queria falar com ele.

Perigosa. Peçonhenta. Custa a crer que haja maldade na juventude. Mas infelizmente há.

Dona Teresa Mafalda sentiu frio e calor ao mesmo tempo. Sofria. Sim, agora sofria mesmo.

Com razão?.

A custo se dominou a Mãe arrancada a problemas sem gravidade e a distracções sem interesse. A mão crispou-se-Lhe no auscultador.

À mesa de jogo, as amigas, de cartas abandonadas em pequenos montes fechados, observavam-na, notando-lhe a perturbação.

- Aconteceu alguma coisa ? - perguntou Ana Margarida, autorizada pela familiaridade a inquietar-se.

O sentido das conveniências, porém, estrangulou as reacções de Teresa Mafalda. E ao mesmo tempo, com esse sentido agudo, a noção da perfídia.

Conseguiu disfarçar o medo que a invadira.

- Não, Alicinha, o Pedro não está cá em casa. Deve ter ido à dele.

- Ah, pois, pois. Volta e meia lembra-se de matar saudades! -e riu, riu sem poder segurar a flecha envenenada que preparara e ia agora atingir o alvo. - O que é curioso é essa da Rosarinho dedicar tanta atenção à velhota do primeiro andar. Eu, no lugar da S'Dona Teresa, investigava!. -e a desligar: - Enfim. são coisas!. Adeuzinho, boa-tarde!

Boa-tarde! ? Que ironia!

Dona Teresa Mafalda ficou por momentos indecisa. Como agir, como, sem cair no ridículo, sem se tornar precipitada e inconseqüente? A verdade, porém, é que não podia ficar sem saber. Isso, nunca!

Ana Margarida insistiu:

- Então, Teresa Mafalda, que se passa ?

Os bestões, sob o monte, pareciam com seus esgares troçar da situação.

- Sucedeu alguma coisa ? - achou-se a perguntar Dona Carmen Atouguia por dever de educação.

E a Mãe era toda tormento, um tormento que principiava a lutar, para vencer, o seu agudo sentido das conveniências.

Sim, precisava de uma certeza!

De uma certeza!.

O Pedro, um traste?

A sua doce Rosário, uma hipócrita?

Pedro, falso?

Rosário, no caminho do erro?

Era demasiadamente difícil admiti-lo, mas.

Voltou-se para as amigas, a voz estrangulada na garganta.

- Dêem-me licença por um momento! - e saiu sem olhar para trás, direita à cozinha.

O seu ar transtornado alarmou a Sofia.

- Credo, minha Senhora?. Não se sente bem?

- Sofia, vai lá abaixo a casa da S'Dona Ester e diz à menina Rosarinho que suba imediatamente!

A criada não arriscou qualquer pergunta. Desapareceu.

Ouviu-se o elevador funcionar.

Apoiada à mesa da cozinha, onde se estadeavam os preparativos da merenda, Dona Teresa Mafalda sentia-se positivamente agonizar.

Ai o pavor de que a Sofia voltasse e lhe participasse que "a menina não estava no primeiro andar".

As pernas tremiam-lhe. Andava tudo à roda.

Um segundo mais e caía.

Cambaleava já, quando dois braços se estenderam para ela, num imenso alarme.

- Que foi, Mãe?

À frente da Sofia, Maria do Rosário, espavorida.

- Mãe. o que é que tem?.

Dona Teresa Mafalda não caiu. Nem se deixou cair entre os braços da filha.

As pernas haviam deixado de tremer. Já tudo se aquietava em sua volta. Mas.

A maldade de Alice Fontemora chegara fundo. A seta envenenada actuara.

O Pedro. pois não podia o Pedro ter subido só até ao primeiro andar?. Era menos grave, mas era grave.

E a menina, cada vez mais assustada, ao lado da Sofia que também não atinava com qualquer explicação para o que estava a passar-se:

- Mãe, responda-me! Fale, pelo amor de Deus!

- com quem estava lá em baixo ?

- Como?

- com quem estava lá em baixo? .

- Eu?

- É consigo que falo, parece.

Rosarinho, de súbito, sentiu um medo horrível. Teria a Mãe enlouquecido de repente ? Ouvira contar que havia casos e...

- Mãe, - balbuciou, - com quem havia eu de estar? com a S'Dona Ester e a criada.

- Mais ninguém, Maria do Rosário ?

- Não, Mãe. - e deixando que a Mãe mergulhasse as pupilas nas dela, luminosas como a própria pureza: - Pois quem mais havia de lá estar?

Dona Teresa Mafalda passou a mão pela testa, repetidamente. Depois, respirando fundo, como se o ar lhe faltasse, pronunciou, de vagar:

- Ah. de certo. De certo, filha! - e deu meia volta. Já no corredor ordenou, martelando as sílabas, com uma dureza inesperada.

- É verdade, Maria do Rosário. nunca mais a quero ver com essa Alicinha aqui do lado.

Maria do Rosário não percebeu aquela proibição que nada, perante ela, explicava. Sofia não compreendeu tão inesperada atitude. A ama nunca mostrara discordar da amizade que ligava a Lili à outra desde miúdas. À Lili, não não à Rosarinho, portanto a que propósito semelhante decisão?

Também Ana Margarida de Ribatorpes e Sara Francelim e Carmen Atouguia não entenderam a explosão de choro de Teresa Mafalda quando, depois de se sentar de novo à mesa de jogo, apresentadas novas desculpas pelo incidente (que não esclareceu), deu o monte já travado com cinco bestes.

Deviam ser aí umas seis horas da tarde quando o Pedro telefonou à Rosarinho.

- Sabes, pequenina ? Estou aqui em casa. Vim à procura de um livro, pus-me a ler. e só agora dei por mim, imagina! Como é que tu estás?

- Muito nervosa e muito intrigada! - e, por nervosa e intrigada, Maria do Rosário desabafou com ele, contou-lhe tudo o que se passara.

Quando por fim desligaram, o rapaz, de testa franzida, tentava penetrar no que se lhe afigurava mais do que misterioso, carregado de estranhas ameaças. Ameaças escondidas em nevoeiro.

Um nevoeiro que envolvia Dona Teresa Mafalda, no andar de cima.

Boa-tarde - dissera a Alicinha, no final do seu pessimamente intencionado telefonema.

Boa-tarde! .

Que tarde, Senhor do Céu!.

E depois, para cúmulo, nunca ela, jogadora exímia, perdera tanto dinheiro como naquele dia.

Debalde Dona Teresa Mafalda, a quem profundamente doía quanto se passara, desejara ter uma explicação com a filha mais nova, uma explicação que tudo aclarasse, uma explicação que fosse uma espécie de sol benfazejo a dissipar as nuvens dentro das quais se achara e achava ainda.

Na véspera, não tivera qualquer ensejo. O jogo terminara tarde e depois da retirada das amigas não dispusera da menor oportunidade, solicitada pelos deveres domésticos, pelo marido que mostrara vontade de conversar expondo-lhe, como habitualmente, vários assuntos que o preocupavam (ou animavam, pois também aconteciam coisas agradáveis!), pelas filhas que precisava cada uma de ver resolvido determinado problema. Pelas três mais velhas. Maria do Rosário não abrira a boca.

Maria do Rosário estava ou perturbada ou demasiadamente presa a algo que a encantava impedindo-a de comunicar com o ambiente.

Antes de ir deitar-se, Dona Teresa Mafalda foi espreitar a garota. Dormia como um anjo. Como o anjo que era.

E a Mãe, dominada por temores e remorsos, sonhara toda a noite com um anjo cujas asas de seda se desfaziam quando ele, erguendo-se no céu azul, se aproximava do sol.

Dona Teresa Mafalda acordou extenuada. Levantou-se a correr, em busca da Rosarinho. Saíra para o Liceu há um quarto de hora.

E ela cada vez mais convencida de que precisava de ter com a filha uma conversa muito a sério, uma conversa que a aliviasse, que a pacificasse e tudo repusesse nos seus lugares.

Esperou ansiosamente o almoço. Ou melhor, esperou ansiosamente a dispersão normal após o almoço, cada qual para seu lado, para os seus afazeres.

Contra o quase certo, o menos vulgar. A Rita e a Mirita declararam que passavam a tarde em casa, a estudar. Saíram o Dr. Abegorím e a Lili. E a Rosarinho - a quem a tia Casimira telefonou mesmo no fim do almoço convidando-a para ir com ela a uma matinée, ver um filme de que ouvira dizer maravilhas.

Carregada de inquietações, Dona Teresa Mafalda não abrira um sorriso para ninguém. Mal falara durante a refeição. E ninguém lhe perguntou o que tinha, muito embora estranhassem tão demorada má disposição (em geral os enfados da Mãe não resistiam mais do que algumas horas). Mas, conquanto estranhando, não se interessaram, não mostraram apreensão. Pró demais se haviam habituado a que aquelas angústias se baseassem em problemas que em nada podiam atingir a família. Mesmo que sucedesse o contrário!

E o dia, em casa dos Abegorins, ia-se gastando monótono e desprovido do que quer que fosse que justificasse modificações no ambiente.

Deviam ser umas cinco horas quando pela primeira vez durante a tarde soou a campainha da porta.

Era o Zé Chaves.

Um Zé Chaves mais afoito, mais simpático, com um ar de pessoa que está a começar a aprendizagem da utilidade. Em relação aos outros!

Falou do Pai, longamente. O Pai que chegara há uma semana e afinal gostava dele e, descobrindo o filho, se desdobrava em esforços para que o filho também o descobrisse a ele.

Falava-se na partida de ambos, quando o Sr. Eurico Chaves decidisse regressar a Moçambique.

Quando isto contava, Mirita pôs nele uns olhos tão alarmados, tão tristes, que o Zé Chaves sorriu e lhe pegou na mão.

Dona Teresa Mafalda precisou de sair da saleta, para ir à cozinha, a pedido da Sofia, resolver qualquer assunto.

Rita fora ao telefone, que tocara.

Então o Zé Chaves aventurou-se. Inclinou-se para ela, docemente, docemente. E os seus lábios que haviam sido quase insolentes à força de se saberem irresistíveis tocaram com infinita ternura, com infinito respeito, aqueles olhos tão tristes, tão alarmados por causa dele. E murmurou depois:

- O meu Pai vai demorar-se bastante aqui, minha amada. - (era a primeira vez que ele proferia uma tal frase, tão bonita!) - Depois, quando formos. tu vais comigo.

- Eu vou contigo ? - e a rapariguinha sentia-se pairar instalada em cima de uma nuvem cor-de-rosa.

- Sim, vais comigo.

- Como ?

- O meu Pai já sabe do nosso amor. - (outra palavra maravilhosa e inédita na boca dele e agora tocavam sininhos de cristal azul em torno da nuvem cor-de-rosa.) - Creio que tenciona vir brevemente falar com os teus Pais, para marcarmos a data do casamento! E nesta mãozinha vai brilhar o anel que te dirá: nasceste para ele e dele serás até ao fim dos fins!

Mais belo que todos os poemas do mundo!

Noutra altura, dantes, a Mirita um poucochinho inconsciente que ela fora, teria desatado a bater palmas, a rir como uma garota tonta de alegria. A Mirita que ela era desatou a chorar, agarrada à felicidade. Agarrada ao Zé Chaves, de encontro ao peito dele, cingida nos seus braços pela primeira vez - quase a ser na verdade a Sua Noiva!

Foi naquela atitude que a Rita, voltando do telefone, os encontrou. Ficou parada à porta, num sorriso onde a ironia, inevitável, despicava com uma emoção crescente.

- Bravo! Isto vai de vento em popa! - e depois, rápida, avançando: - Eh, pombinhos. olhem que a Mãe vem aí!

E vinha!

Mirita libertou-se do abraço do Zé Chaves, pôs-se de pé como se fosse agarrar-se à irmã para lhe dar a notícia maravilhosa.

Mas Dona Teresa Mafalda acabava de parar diante dela e foi à Mãe, cingida à Mãe num impulso de todo o seu ser, que a Casimira disse, como se revelasse a coisa mais espantosa, uma coisa que ninguém previsse:

- Mãe. vou casar!

A expressão reservada (ou torturada) de Dona Teresa Mafalda sofreu enfim uma alteração causada pela surpresa. Os laivos da alegria eram ainda confusos, na mescla com os da incredulidade.

- Tu?. com o. ?.

- Sim, Mãe, com o Zé! O Pai dele vem pedir-me num dia destes!. -e abraçada ao pescoço da Mãe tanto que na manhã seguinte Dona Teresa Mafalda acordaria a queixar-se de inexplicáveis dores junto à nuca e às orelhas: - Oh, minha Mãe, como eu sou feliz!

E a Mãe comungou com aquela ventura. Rendeu-se-lhe. Entregou-se-lhe. Pois se desde há tanto desejava para a filha aquele marido! Sim, que o Zé Chaves agradava-lhe desde que o conhecera, todos ali em casa o sabiam, até ele próprio.

Estendeu ao rapaz as duas mãos, que ele beijou com respeitoso afecto. E disse, comovida:

- Ah, meus filhos, ainda bem! Ainda bem! Dou-Lhes os meus parabéns!

Depois.

Depois ficaram sentados a conversar numa doce intimidade que a mesinha de chá, rapidamente armada e servida pela Rita e pela Sofia, tornava quente e saborosa (as torradas estavam uma delícia!). Quando, bastante mais tarde, soou a campainha da porta, tiveram todos um pensamento único "quem seria?. Quem viria perturbar aquela hora de perfeita comunhão que estavam a viver, trocando impressões, tecendo projectos - que um casamento numa casa é sempre o acontecimento que exige maior preparação e maior soma de cuidados? ".

- Talvez já seja a Maria do Rosário! - aventou Dona Teresa Mafalda, solicitada entre a necessidade de voltar a franzir a testa diante da pequena e a de mostrar aos quase noivos oficiais a sua satisfação.

A Rita tirou-a daquela indecisão.

- Talvez seja o Antônio Fontemora. Ele telefonou há bocado a dizer que vinha cá. acho que para falar à Mirita.

Não existia qualquer intenção oculta na frase de Rita Isabel. Mas a Mirita tornou-se escarlate. E ao olhar observador do Zé Chaves não passou despercebida a sua repentina e descontrolada confusão.

Com um sorriso a brincar-lhe nos lábios (seria irônico?) o rapaz não pôde deixar de sugerir:

- Se calhar vem trazer-te algum soneto!.

O Zé não perdoara as assiduidades do poeta, é certo. Sabia que a sua candidatura estivera em perigo por causa dele. Contudo. não seria também verdade que só por isso percebera a tempo e definitivamente o que se passava consigo próprio e soubera agarrar com ambas as mãos o que de outro modo podia ter-lhe fugido?

Não havia tempo para conjecturas, de parte a parte. O Antônio Fontemora transpunha já a porta da saleta. Oh. um Antônio Fontemora pálido, olheirento, com um ar cansado que não ficava nada bem a um rapaz de vinte anos!

Pediu desculpa de incomodar e. E os olhos dele, vendo as mãos entrelaçadas da Mirita e do Zé (o Zé apressara-se em agarrar os dedos da menina, não fossem subsistir quaisquer esperanças no coração do outro), tornaram-se mais tristes.

Mas.

Mas não eram só tristes, aqueles olhos. Eram também amargos. Eram uns olhos onde havia uma queixa contida. Como se ele estivesse mentalmente a compor um poema cuja primeira estrofe fosse:

Não há amor capaz de se obrigar. Não há amor que possa ser forçado. Mas porque foi então que para amar um outro, a mim fizeste desgraçado?

Dona Teresa Mafalda, sempre requintada, solicitou imediatamente uma xícara, para servir chá ao recém-vindo. O rapaz não queria aceitar, alegava que aquilo era "entrada por saída". Viera apenas pedir à Mirita os versos dele - os versos que lhe emprestara - e despedir-se.

- Despedir-se por quê ? Para onde vai ? - quis saber Dona Teresa.

- Passar uns tempos à minha terra. - explicou o poeta.

- Anda doente? - e a Rita inquietava-se com reminiscências que a faziam insurgir-se, por dentro, contra aquela norma antiga de os poetas haverem por força de serem todos débeis e enfermiços.

Antônio elucidou-a, elucidando os outros.

- Não, Rita. é assim que se chama, creio?

- e após o aceno afirmativo da rapariguinha, explicou: - Quem está gravemente enfermo é o meu Pai. E a minha Mãe, coitada, preocupada, sem ninguém ao pé dele, precisa da minha companhia. Por isso vou.

- E os seus estudos ? - interessou-se Dona Teresa Mafalda, agradada perante um caso tão humano.

- Não tenho tempo de pensar em mim, minha senhora. Temo que me esperem horas muito graves!

Rita, que saira para ir buscar a xícara pedida pela Mãe, voltava apressadamente e servia-o. Se recusasse, Antônio tornar-se-ia incorrecto. Logo, aceitou. Aceitando, sentou-se. E, quando se sentou, ergueu os olhos para a Rita. E a Rita contemplava-o com uma expressão tão doce, tão compreensiva, tão condoída, que o rapaz ficou como que maravilhado.

Não podia naquele instante saber o que acabava de suceder-lhe. Percebia apenas que aquilo que certa noite, há poucas semanas, o levara para junto de uma rapariga solitária, acabava de suceder com ele, em sentido inverso. Uma rapariga cheia de compreensão inclinava-se para o rapaz magoado. E no entanto, possivelmente.

No entanto. possivelmente. talvez o que se passava não fosse senão o princípio de outro poema.

Oh, ilusão, ilusão, oh, ilusão, tem cuidado. Não me enchas o coração há tão pouco esvaziado.

Ficaram os dois a conversar.

Depois Antônio soube que a Mirita ia ser pedida em breve. Informou-o Dona Teresa Mafalda desejando que ele comungasse da sua alegria. Uma alegria que a não impediu, logo a seguir, de lhe pedir pormenores acerca da doença do Pai, essa doença que ia levá-lo da cidade, para longe dos estudos e - quem sabe ? - das suas esperanças, dos seus anseios.

As pessoas são normalmente egoístas e têm muito mais facilidade em se deixar prender pelas coisas agradáveis do que pelas que podem afligi-las. É humano. Colhidas as informações que uma apurada educação requererá, o assunto desviou-se para outros agora banais, por generalizados.

Rita apresentou a Antônio o prato das torradas.

- Coma uma!. - pediu.

Ele fitou-a, procurando instintivamente a expressão que tão de chofre o cativara - e achando-a.

- Desculpe, mas não passa nada aqui. -e apontou a garganta.

Aconteceu então que as cinco pessoas presentes se dividiram em dois grupos. Dona Teresa, Mirita e Zé Chaves mergulharam numa troca de idéias todas elas felizes e animadas em que nasciam e se definiam projectos e mais projectos de casamento. Surgia para Dona Teresa Mafalda uma ocupação nova e apetecível. Ia ter de organizar uma festa em grande, uma festa social que lhe exigiria mil cuidados e mil preocupações pagos com um lugar de muito relevo. Tanto a fazer. e tanto a pensar! "Só o enxoval, filha! Só o enxoval!" e mais tarde essa frase seria repetida com todas as entoações possíveis por várias pessoas até provocar, ou precipitar, algo de inesperado.

E enquanto Mãe, filha e futuro genro se embalavam em sonhos e planos um poucochinho superficiais, embora inteiramente lógicos, no outro grupo, grupo a dois, havia um encontro com as dificuldades e as asperezas do dia-a-dia, sobrepostas por uma imprevista comunicabilidade espiritual.

Antônio falava agora abertamente do Pai - do Pai que ia perder sem remissão. Do Pai doente há longos meses, vítima de um mal tornado incurável deixara-o adiantar demais. E dos problemas que iam surgir para a Mãe e para ele. Ficavam sem nada, as magras economias de uma honesta vida de trabalho devoradas pela enfermidade cruel. O futuro dele?. Sabia lá!. Um emprego qualquer e o direito de fazer versos à noite, versos que um dia alguém deitaria ao lixo. Quando o seu corpo fosse lançado à terra.

Os olhos de Rita enchiam-se de lágrimas. E pedia-Lhe que não desesperasse, que não estivesse a antever desgraças que talvez nunca viessem a acontecer. Bem lhe bastavam as que realmente esperavam por ele, essas que não tinha meios de evitar. O porvir era a Deus que pertencia e não ao seu actual desânimo. Ele não tinha nada que prever. Assistia-lhe um único dever - o de tudo agüentar.

Eram seis e meia e Antônio Fontemora precisava de retirar-se a fim de ir buscar as malas à pensão onde passara os últimos meses e apanhar o comboio que ia levá-lo para a casa onde o esperavam o luto e a dor.

Ergueu-se, a despedir-se.

- Queria levar os meus versos. - rogou, à Mirita.

- com certeza! vou buscá-los num instante! Demorou-se, enquanto Dona Teresa Mafalda dizia

algumas banalidades confortadoras ao que ia ficar órfão. Quando voltou a aparecer, havia confusão no verde do seu olhar.

- Oh, Antônio, estou apoquentadíssima! Não sei de todo onde pára o seu caderno! Sempre o guardei na gaveta dos meus exercícios e não consigo encontrá-lo. Se calhar peguei-lhe e larguei-o por aí em qualquer sítio. Até já fui perguntar à Sofia, mas ela garante que o não viu em parte alguma!

Clara, doce, soou a voz da Rita.

- Os versos do Antônio estão em cima da mesa de cabeceira. Fui eu que os lá puz. E não to disse logo porque pensei que visses o caderno mal entrasses no nosso quarto!

- An?. - a surpresa mergulhou na decisão. - vou buscá-los.

E foi então que Antônio Fontemora teve a certeza de que a rapariguinha que inicialmente lhe passara despercebida, a rapariguinha de longos cabelos negros encaracolados que parecia uma garota despreocupada e feliz, possuía a sensibilidade e a compreensão que ele atribuiria a outra, sensibilidade e compreensão que talvez existissem mas não aptas a receberem quanto ele julgara poder confiar-lhes.

Sim, enganara-se a respeito da Mirita (é tão vulgar as pessoas enganarem-se!). Tivera a percepção disso já há dias. No entanto ao vir ali nessa tarde acolhia ainda uma derradeira esperança, algo que fosse luz na escuridão que o aguardava. Mas o facho luminoso desviara-se para muito longe. e ele por instantes ficara perdido, sem nada.

Sem nada? . Quando uma estrela radiante se erguia no seu caminho tão solitário, tão amargo?.

A luz onde ele ignorava que estivesse!

Todas as coisas sucedem como deve ser, mesmo quando não se entendem senão muito depois.

Verificando factos - ele surgira para Mirita no momento em que ela precisava de adquirir confiança em si própria, uma confiança que a ajudasse a passar a barreira que estava na sua frente e vencer como vencera. Logo, o acontecimento tivera a sua razão. Agora, no meio do falhanço que sobre ele desabara qualquer coisa surgia que sem os precedentes havidos não se acharia ali, à beirinha dele, maravilhosamente palpável.

Mirita reapareceu com o caderno dos versos.

- Pronto, aqui o tem!

- Muito obrigado. - e despediu-se de vez.

Ninguém lhe desejou boa-viagem. Ninguém ousava desejar-lha, sabendo que o rapaz partia com um trágico destino a aguardá-lo no términus dela.

- vou acompanhá-lo à porta. - declarou a Rita. E foi.

Parados no patamar, enquanto esperavam que o elevador subisse, olharam-se nos olhos, ela com ternura, ele com saudade.

E Rita, baixinho, formulou um pedido:

- Não deixe de fazer versos, não?

- Gosta de versos ?

- Gosto.

- Depois que leu os meus ? - e havia uma certa desconfiança na pergunta.

- Não! Sempre li versos, desde pequenina. Gostava muito de recitar, na Escola. Sei muitas poesias de cor.

- De que poetas?

- Augusto Gil, João de Deus, Pedro Homem de Melo, Antônio Fontemora.

Ele gaguejou, de espanto sincero.

- Aprendeu ?. Assim ?.

- Você tem poemas lindos!

- Deus lhe pague por mo dizer! Nem imagina o bem que me faz.

- Achei estupendo conhecê-lo, falar consigo. Tanto como teria gostado de apertar a mão a um Antero de Quental, a um Guerra Junqueiro, a um Gonçalves Crespo. Os poetas são homens de eleição!

- Não, Rita! Os poetas são homens como todos os outros.

- Talvez. Mas os homens é que nem todos são poetas!

O elevador, já de portas abertas, ali ao pé deles, oferecia os seus préstimos. Antônio Fontemora estava sem o mínimo desejo de os utilizar.

Talvez afinal valesse a pena lutar, querer Ser.

Uma comoção imensa avassalava-o, retinha-o, ameaçava fazê-lo perder o comboio.

Rita sorria-lhe, percebia-se que por ser corajosa. Havia lágrimas no fundo do seu olhar de veludo.

E aventurou-se a rogar:

- Quando fizer versos de aqui em diante. manda-mos? Prometo devolver-lhos sempre!

- Quer que eu lhe escreva ? - sussurrou por fim o rapaz, vencendo as suas últimas dúvidas acerca da espontaneidade daquela inclinação que se lhe ofertava com a pureza de todas as virtudes.

E ela:

- Quero, sim.

- E responde-me?

Rita mal podia respirar. Estava a acontecer. Estava a acontecer! Antônio dava por ela!

- Responde, Rita?

- Sim! Respondo!

Alguém, no rés-do-chão, batia enervado na porta de ferro do ascensor, reclamando-o repetidamente.

- Tenho de me ir embora! - disse o rapaz como se lhe desse uma incrível novidade.

- Pois tem. -e estendeu-lhe a mão, para o adeus final.

Ele agarrou na mãozinha delgada, apertou-a entre os dedos grossos e depois, respeitosamente, enternecidamente, levou-a aos lábios, tocou-a num beijo leve.

- Até qualquer dia, Rita.

- Até breve, Antônio! E coragem!

Ele entrou para o elevador. Fechou as portas. Carregou no botão.

O elevador desceu.

Cá em baixo, no patamar, a tia Casimira e Rosarinho viram-no chegar ambas espantadas.

O rapaz deu, do seu ar transtornado, uma explicação atabalhoada que nenhuma delas pediu. Ia-se embora para a terra, viera despedir-se da família Abegorim. estava muito atrasado.

Nenhum motivo, nas frases sem lógica evidente, que justificasse a longa demora do ascensor no 4. andar.

No 4. andar onde encontraram a Rita encostada à porta de casa, a chorar como nunca ninguém a vira.

Agora, no início de uma noite sem sono, ao ritmo batido do comboio ronceiro, um rapaz que nascera poeta ia tentar perceber se na verdade mereceria a dádiva do amor dessa rapariguinha pela qual ia passando sem dar por ela.

Efectivamente, há dias que parecem nascer assinalados. Uns para o bem, outros para o mal. E uns tantos nem para o bem nem para o mal mas sim pródigos em acontecimentos fora de série.

Aquele era um deles, para Dona Teresa Mafalda. Seria um deles, até à noite. Embora estivesse entretida na conversa com a Mirita e o futuro genro (agora já podia considerá-lo como tal), não tardou em notar que a Rita, que saira da sala a fim de acompanhar à porta da rua o Antônio Fontemora, se demorava tempo demais. Quando, precisamente, se preparava para se levantar e ir impor à rapariguita a noção das conveniências, ouviu as vozes bem conhecidas da Rosarinho e da cunhada, logo seguidas pela aparição de ambas.

Enquanto a tia Casimira cumprimentava o Zé Chaves, Dona Teresa Mafalda perguntou à filha mais nova:

- A sua irmã?

- Qual delas, Mãe ?

- A Rita!

- Acho que foi pró quarto.

- E o rapaz?

- O poeta?

- Claro!

- Encontrámo-lo lá em baixo. Ele a descer e a gente a subir! Ainda tivemos de esperar pelo elevador.

- Nesse caso. já se foi embora?

- Parece que sim, Mãe. A não ser que tornasse a subir neste bocadinho.

E foi com esta resposta inocente que Dona Teresa Mafalda se sentiu inteiramente restituída ao que nela era preocupação dominante desde a véspera a suspeita que lhe fora sugerida contra Maria do Rosário e contra o Pedro Ferreira de Macedo.

A pequena estava agora entretidíssima a contar à Mirita e ao Zé Chaves as suas impressões acerca do filme que ela classificava de sensacional embora a tia Casimira discordasse, apreciando-o simplesmente como um filme que se via bem mas "banal com a sua historiazinha de amor que acabava o melhor possível". Esperava outra coisa.

Dona Teresa Mafalda mergulhava cada vez mais nas suas preocupações, associando o que pensava com o que ouvia.

Histórias de amor!.

A Rosarinho e o Pedro.

A ROSARINHO E O PEDRO! .

E a cunhada perguntava-lhe agora, com um ar muitíssimo intrigado:

- Teresa, porque é que a Rita estava ao pé da porta debulhada em lágrimas?. Que me conste não era a ela que o Fontemora fazia a corte? .

A frase, dita em voz alta (normal), fora assaz inconveniente.

A tia Casimira (querida tia!), com a sua característica simplicidade, era muitas vezes inconveniente.

E a Mirita, ouvindo-a - Maria do Rosário falava quase sempre num tom baixo - ficou escarlate. E o Zé Chaves, notando-lhe o rubor, ligou-o com o comentário da tia, que também lhe não passara despercebido. Mas sorriu - senhor de si e dela. E pegou-lhe na mão, que apertou. E viu-se perfeitamente que deixara de prestar a mínima atenção ao que a Rosarinho dizia. Aliás já deixara de dizer. Porque percebera o desinteresse dos auditores. E porque também a ela a recordação das lágrimas da irmã principiava a alertar.

Então, deixando os noivos entregues ao seu mútuo enlevo, a isolarem-se de tudo e de todos, e a Mãe e a tia a conversarem (Dona Teresa Mafalda tivera de abstrair das suas íntimas perplexidades para entrar no desejo de comunicação da tia Casimira, que instalada principiara já a fazer renda enquanto procurava interessar a mulher do irmão no caso de uma pobre rapariga a quem o noivo abandonara oito dias antes do casamento. -e seria aquele o assunto para aliviar a tensão nervosa de Dona Teresa?)

- Rosarinho dirigiu-se para o quarto. Ia ter com a irmã.

Foi encontrá-la estendida em cima da cama, a soluçar.

De vez em quando, naquela casa, havia uma menina que assim expandia o desgosto.

Rosarinho, por enquanto, não conhecia a necessidade de chorar agarrada à almofada, amarrotando a colcha e o lençol. E aquelas atitudes faziam-lhe muita impressão.

Condoidíssima, aproximou-se da Rita, ajoelhou-se ao lado dela e, com jeitinho, pôs-se a afagá-la.

- Ritinha. Rita? . Rita Isabel? . Porque é que está neste pranto?

E Rita Isabel, desesperada:

- Gosto dele! Gosto dele! Gosto dele! Rosarinho primeiro achou graça. Pois não era

divertido estarem todas quatro enamoradas ao mesmo tempo? A seguir, afligiu-se. Ingênua e inexperiente, aceitava aquela idéia súbita que lhe acudia sob a forma de um receio novo. Acaso. acaso gostar de alguém podia tornar-se numa desgraça?

Sim, talvez acontecesse! Acontecia, pela certa, visto que a irmã se debulhava em lágrimas.

Preocupadíssima, entendeu que a primeira coisa a fazer consistia em investigar. E, sem quaisquer dúvidas acerca da causa do pesar da Rita, indagou:

- Escute, Ritinha, mas gosta dele desde quando ?

- Desde o primeiro dia!

- Desde o primeiro dia ? Mas ele vinha cá por causa da.

- Da Mirita, eu sei! E nunca ninguém percebeu o que eu sentia, pois não? Nunca mostrei nada. Nem os meus pensamentos, nem a minha dor. Hoje não pude conter-me. e não sei se fiz bem ou mal. De resto não tive tempo de raciocinar, de me dominar. Foi tudo expontâneo. Não consegui continuar a disfarçar quando o vi tão infeliz com a certeza de que não havia mais nada a esperar da Mirita. porque ela vai casar brevemente e.

Vai casar brevemente, a Mirita? - e Maria do Rosário era toda espanto.

Vai. O Zé esteve a contar. Vem o Pai dele pedi-la dentro de dias. Acho que querem levá-la com eles para África.

- Jesus? . Mas como é que pode ser assim tão depressa?

Rita sentou-se na cama, quase a dar com a cabeça no beliche superior. Ficou por momentos a enxugar os olhos e a soluçar espaçadamente, como as crianças quando param de chorar.

Por fim respondeu:

- Não é tão depressa como isso! Eles namoram-se há que tempos!

- Mas não me consta que tencionassem casar de um dia para o outro!

- As coisas modificam-se.

As coisas modificam-se E as situações também.

E quando Rosarinho, os olhos a brilharem de entusiasmo, se preparava para ouvir as confidências da Rita, tudo se alterou com a intervenção da Mãe que lhe dizia, da porta:

- Maria do Rosário, preciso de falar consigo. Não era aquela a primeira vez, desde que na véspera a mandara chamar a casa da S'Dona Ester do primeiro andar, que Dona Teresa Mafalda revelava um tal desejo. Obediente, a pequena levantou-se. Que lhe queria a Mãe, afinal, para tanta insistência, para um ar tão sízudo "preciso de falar consigo" ?

- Vamos para o quarto dos armários.

- Sim, Mãe.

Rita arregalou-se, momentaneamente distraída dos seus grandes problemas.

Desde sempre o quarto dos armários significava descompostura séria, quando não o seu tabefe (dantes eram açoites. ). Que poderia ter feito de mal a Rosarinho?

Com o mesmo espanto, esta, depois da porta fechada, ouvia à Mãe dizer-lhe, cada vez mais exaltada, "que já sabia as razões que a levavam a querer visitar a velha lá de baixo, e que o mundo estava perdido, e que nunca admitiria que uma filha sua fosse capaz de uma tão indigna conduta, e que nem queria pensar na vergonha de tudo aquilo, e que mais valia ela confessar antes que precisassem de intervir a fim de evitar que. "

Pasmada, Rosarinho não percebia nada do que estava a ouvir. Ia ficar sem perceber. Porque justamente naquela ocasião do "a fim de evitar que. " que prometia continuação longa e com ela revelações esclarecedoras, se abriu a porta do quarto dos armários e surgiu o Pai.

- Que se passa ? - perguntou o Dr. Abegorim, olhando alternadamente a mulher, com toda a evidência fora de si, e a filha cuja expressão não enganava ninguém, pois só traduzia surpresa e ingenuidade.

- Que se passa?. Passa-se que a tua filha Maria do Rosário.

A frase soltara-se num grito rouco e perdeu-se no gesto rápido com que o Juiz impôs silêncio.

- Teresa Mafalda, temos visitas! - e explicou, pressentindo-a indecisa (a visita seria o Zé Chaves?. )

- Acabo de convidar o Pedro para jantar connosco.

An? ?. O Pedro?. O próprio? . O.

Com que então, o Pedro? Pois ele ousava vir?.

Olhou de relance para Rosarinho, cujos olhos azuis, já esquecido o espanto, misturavam a expressão da ingenuidade com a da alegria. Sentindo uma quebra interior, que nenhuma razão assim de súbito justificava, na onda em que extravazava toda a angústia acumulada, Dona Teresa Mafalda inquiriu, sem a mínima segurança e até sem a mínima lógica - pelo menos aparente.

- Que vem ele cá fazer ?

- Podia admitir que visitar-nos, apenas. mas creio que a sua presença aqui traduz qualquer outro objectivo, pois estava nitidamente à minha espera, a uma das janelas da casa dele. Mal me viu, desceu ao meu encontro e pediu-me que o recebesse, pois carecia de tratar de um assunto comigo. E como por casualidade eu também queria falar-lhe, disse-Lhe que viesse jantar e. - e notando enfim que o rosto da mulher mais do que uma zanga acidental reflectia talvez uma íntima e profunda inquietação, insistiu no que fora pergunta de choque: - Mas. passa-se realmente alguma coisa, Teresa Mafalda?

Teresa Mafalda teve vontade de ripostar que sim e o que o atraente e tão gabado rapazinho do 2. andar era um hipócrita e talvez um tratante. Mas.

Mas nesse preciso instante, no exacto momento em que a suspeita horrível ia concretizar-se, erguendo ervas altas do que fora semente ruim, ouviu-se, vindo do outro lado da casa, a alternar com o timbre um pouco velado do Zé Chaves, o riso claro, aberto, franco, do Pedro Ferreira de Macedo. E morreram-Lhe nos lábios entreabertos as palavras prestes a soltarem-se. De súbito, com a mesma veemência com que a idéia e o medo a haviam dominado, tudo se desfez e uma clareira limpa ficou no sítio das ervas altas e ruins. Não podia ser! Não podia ser! Aquele riso não era o de um hipócrita, não era o de um tratante. E, sem responder fosse o que fosse à indagação do marido, abandonou o quarto dos armários.

O Dr. Juiz encarou a Rosarinho, que também o fitara. E era engraçado que, sem palavras, ambos se interrogavam acerca do que acabava de passar-se. E nenhum sabia responder à perplexidade do outro. E então sucedeu que, reconhecendo-o no próprio silêncio, desataram ambos a rir.

E foi a rir que Pai e filha entraram na sala onde também a Mirita, o Zé Chaves e o Pedro, junto da tia Casimira, riam despreocupados, bem dispostos.

Por instantes ficaram todos em amena conversa, sem nada de especial a caracterizá-la. Cavaqueavam.

Depois, quando em dada altura o Dr. Álvaro Abegorim ordenou às pequenas "vão ajudar a vossa Mãe"- no que foi prontamente obedecido, o Zé Chaves e o Pedro, ao mesmo tempo, declararam: - Eu queria falar com o Sr. Dr.

O chefe da família, sem deixar de sorrir, encarou-os - Ambos, agora?

De um deles, o Dr. Abegorim esperava mais ou menos o que teria de escutar. Do outro, não. A verdade, porém, é que lhe interessava mais a comunicação do segundo, até porque a incógnita estimula a curiosidade.

E enquanto a tia Casimira discretamente se eclipsava, indagou, com bonomia.

- Qual de vocês deseja ter a prioridade?

Eles entreolharam-se e sorriram. Nenhum respondeu. E o Juiz:

- São assuntos de caracter particular?

Em coro, como se muito bem ensaiados, redarguiram os dois num tom evasivo:

- Bem.

O acerto da inflexão, divertindo-os, pô-los à vontade. E o Zé Chaves, com a confiança permitida por anos de convívio, adiantou-se:

- O meu caso, embora particular, não é secreto e penso mesmo que o Sr. Dr. calcule do que se trata.

O Juiz assentiu com um gesto de cabeça.

- Pois é isso mesmo, Sr. Dr. Desejava que o Sr. Dr. e a S'Dona Teresa Mafalda, (a S'Dona Teresa já se inteirou da situação!) fizessem o favor de marcar um dia para o meu Pai vir pedir a mão da Mirita. Penso que podemos casar breve. se não for contra a vontade dos senhores.

O Dr. Abegorim ficou silencioso por momentos, o que na fisionomia do Pedro, que o fitava atentamente enquanto ouvia as palavras do outro, inscreveu certa ansiedade.

Pois acaso iria haver uma reacção negativa?.

Não haveria reacção negativa. Apenas o toque da emoção natural. Apenas aquela constatação que, fosse muito embora alegria, não podia deixar de constituir mágoa no coração do Pai. "E lá se me vai a primeira. " Aquela constatação que não se traduziria em palavras e toda ficaria contida num fundíssimo suspiro.

Com serenidade, o Zé Chaves esperava a resposta que demorava. A resposta que por fim soou, calmíssima:

- Esta hora tinha de chegar, Zé, eu sabia. Que me não desagradava, é do teu conhecimento. Espero mais das tuas qualidades do que tu próprio, porque te observo há muito tempo. O regresso do teu Pai foi um sinal da Providência que te marcou assim o início da vida de homem que em dada ocasião cada rapaz é chamado a seguir. Combinaremos a visita do teu Pai para o dia que desejares. vou dizer à minha mulher que marque, para essa reunião, um jantar. Terei o maior gosto em receber não só o teu Pai mas também os teus avós que, ao que parece, vão ser os avós da minha Casimira. - e sorriu.

Uma Casimira que ameaça quebrar a tradição das tias Casimiras solteironas da família.

O Zé Chaves, feliz e orgulhoso, apertou a mão do futuro sogro. E, agradecendo, despedia-se.

- Não jantas connosco ?

- Agradeço imenso, mas prometi ao meu Pai sair com ele.

- Então vai, rapaz, vai. O que se promete aos Pais é sagrado.

- Se me dá licença, vou lá dentro despedir-me. e após um segundo aperto de mão ao Dr. Abegorim e um primeiro ao Pedro, saiu da sala.

Acendendo um cigarro e oferecendo outro ao Pedro, que recusou, o Dr. Abegorim, num gesto, convidou-o a sentar-se e instalou-se também.

Estavam agora sós, lado a lado. E o Dr. Juiz esperava que ele dissesse qualquer coisa. Mas o rapaz não sabia exactamente como principiar, conquanto não tivesse as menores dúvidas acerca do que queria obter e explicar.

Então, sentindo-lhe a hesitação, o Dr. Juiz estendeu-lhe a ponte que o ajudaria a transpor a barreira da perplexidade.

- Então que temos, amigo ?.

- Temos que. -e de chofre: - Sempre aceito o cigarro, Sr. Dr. - e com a primeira fumaça chegou a facilidade de exprimir-se: - Ando há já uns dias a pensar que devo ao Sr. Dr. e também à S. a D. Teresa Mafalda uma explicação dentro da qual se encerra um pedido. Creio no entanto que, dada a importância que atribuo ao facto em si e também à forma como o Sr. Dr. me tem tratado, visto que foi o Sr. Dr. que me facultou a entrada na sua casa, que devo colocá-lo em primeiro lugar nesta minha diligência. - e sorveu o fumo, a ponto de quase se engasgar. - Sinceramente, Sr. Dr. estou muito, muito interessado numa das suas filhas.

O rosto do Dr. Álvaro Abegorim encheu-se repentinamente de gravidade. Gravidade onde não tardaria a espelhar-se a mais viva expectativa.

- Se ela fosse mais velha, talvez só de aqui a uns meses, quando absolutamente seguro de que para além do amor existia a confiança total que leva a um casamento, eu viesse falar-lhe no assunto. Mas é nova demais e eu não quero, não posso nem devo, colocá-la na situação de manter um namoro às escondidas, situação que de resto e em todas as circunstâncias se me afigura desaconselhável.

O Juiz esboçou um gesto breve de assentimento e o Pedro, ganhando cada vez mais alento (agora só havia benevolência no olhar do Pai dela) prosseguiu:

- É claro que já conversámos, ela e eu, diversas vezes. Já fui esperá-la ao Liceu e telefono-lhe todos os dias. Pretendi, antes de tudo e no meu encantamento, saber se ela correspondia espiritualmente à imagem que me cativara desde o primeiro instante, desde o instante em que eu, que há tanto conhecia a garotinha, descobri nela a rapariga. Hoje sinto-me maravilhado, na convicção de que ela é aquilo que eu ambicionava e esperava. Acredito que me foi destinada, que me está destinada. Evidentemente que todas as afirmações categóricas são loucas e despropositadas. Acreditar não significa ter a certeza. Nem eu tenho a certeza de nada, nem ela possui qualquer certeza a meu respeito. Por isso mesmo, com toda a segurança, com toda a lisura, agora lhe pergunto - Sr. Dr. Juiz, autoriza-me que procure e ajude a Maria do Rosário a procurar essa mesma certeza? Permite-nos um franco e bem estruturado namoro com vistas a um futuro comum?

Um suspiro dilatou o largo peito do Dr. Abegorim. E disse, baixo:

- A minha Rosarinho, quase uma garota - e depois, muito simples: - Que idade tem você agora, Pedro?

- Vou fazer 21 anos.

- Vão esperar bastante tempo! E ele:

- Tanto, pelo menos, como a minha irmã Ana e o meu amigo Paulo. Mas é bom esperar a felicidade quando somos dois a estender-lhe as mãos. Quanto mais sonhada e ambicionada, essa felicidade, mais bem construída pode ser. Os grandes monumentos não se fazem de um dia para o outro!

Apagou o cigarro no cinzeiro, o cigarro que se fumara mais sozinho do que ele o fumara, voltou-se completamente, ficou sentado na beirinha do sofá e olhou de frente para o Dr. Abegorim, que parecia entregue a profunda meditação, agora. Como se buscasse a solução de problemas intrincados. E ele aguardou uns momentos a resposta que não se soltava da boca cerrada.

Não conseguindo decifrar aquela expressão fechada, o Pedro arriscou a pergunta ansiosa:

- Então, Sr. Dr. ?.

Bruscamente, inesperadamente, a boca cerrada abriu-se num sorriso. Sorriso concretizado em resposta:

- Muito bem, Pedro, tem a autorização que deseja. O mesmo direi à Maria do Rosário, quando lhe falar no assunto, como tenciono. Há Pais que julgam dever conservar-se à margem dos casos sentimentais dos filhos. Eu penso o contrário. A ligação familiar torna-se mais perfeita quando pode haver compreensão entre o passado e o futuro. -e reparando que os lábios do rapaz continuavam a desenhar uma interrogativa, acrescentou: - Há mais alguma coisa, além disto?

- Sim, Sr. Dr.

- Pois fale.

- Peço-lhe uma confiança total em mim.

- Essa agora? . Não estou acaso a demonstrar-lha?

- Eu disse total, Sr. Dr.

- Explique-se.

E o Pedro não hesitou em abrir a alma. Ia estabelecer-se o diálogo que tudo esclareceria, tudo tornando límpido.

- Há tempos, o Sr. Dr. Juiz foi bater à porta da nossa casa, em busca da Rosarinho. Estava lá a minha avó. recorda-se?

- Perfeitamente!

Achei estranha essa atitude que só alguma coisa de muito especial podia ter motivado.

- E motivou!

- Claro, claro! Pois ontem de novo sucedeu algo que me impressionou, ou antes, que me chocou.

- O que foi?

- Depois do almoço vim lá abaixo, procurar um livro de que precisava. E, como tantas vezes me aconteceu já, sentei-me, puz-me a ler e esqueci-me das horas. Quando dei por mim - e dei por mim porque a falta de claridade me chamou para os factos reais! - eram talvez umas seis da tarde. Decidi usufruir uns momentos de descanso. e telefonei cá para cima. E foi então que a Maria do Rosário, confessando-se "muito nervosa e muito intrigada" me contou o que também a mim me deixou muito intrigado e, se não muito nervoso, pelo menos muito aborrecido.

- Mas porquê ?

- A Maria do Rosário tinha ido a casa da S'Dona Ester. onde, um pedaço mais tarde, a Sofia, a criada do Sr. Dr. a foi chamar com um ar aflitíssimo pois a S'Dona Teresa Mafalda lhe ordenara que fosse buscar a menina e isto de forma tão estranha que a boa da mulher nem cabia em si de espanto e inquietação.

- E que deduz o Pedro dessa atitude ?

- Da atitude da S'Dona Teresa Mafalda, visto que a da Sofia está plenamente justificada!

- Sem dúvida!

- Uma só coisa, Sr. Dr. Juiz. Alguém procura levantar suspeitas a meu respeito, alguém tenta intrigar. Alguém, malevolamente e com intenções que nem sequer vislumbro, diligencia provocar situações ambíguas e perigosas.

- Porque chega a essa conclusão, Pedro?

- A reacção da S'Dona Teresa Mafalda seguiu-se a um telefonema.

- Isso talvez nada signifique.

- E talvez signifique bastante. se não tudo!

- Bom.

- Seja porém como for, quero apenas frisar o seguinte, que é verdade autêntica e insofismável nunca a Rosarinho estaria lá em baixo comigo, sozinha! Nunca!. - e sob o olhar atento e compreensivo do Dr. Abegorim: - Sou, por estrutura e educação, conservador de princípios que se me afiguram essenciais à sobrevivência de uma sociedade apoiada em moldes morais, aliás os únicos que realmente nos conferem o direito de nos reconhecermos humanos, ou racionais. Por isto, nunca a Rosarinho lá estaria em baixo, e tanto por mim como por ela. Por mim, porque eu não aceitaria uma conduta menos regular. Por ela. Bem, por ela. porque se ela fosse capaz de fazer, premeditadamente, alguma coisa que não devesse, eu não estaria agora aqui a falar com o Sr. Dr. pois não pensaria na Rosarinho como futura companheira de toda a minha vida!

A expressão do Dr. Abegorim era mais concentrada e grave do que nunca. Compreendia perfeitamente as idéias do Pedro e sentia-se obrigado a respeitá-las como mereciam. Mas.

Mas.

Havia o tal telefonema antes da atitude de Dona Teresa Mafalda, telefonema que urgia esclarecer pois só assim essa mesma atitude podia assumir aspectos razoáveis.

Pôs-se de pé, encarando o rapaz que aguardava confirmação para a pedida e desejada confiança total após a desconfiança que tanto o havia magoado, precipitando até acontecimentos que seriam realizados, sim, mas com mais preparação (nada o obrigava a comprometer-se tão cedo. ). E disse:

- Pedro. fica-lhe prometida, porque lha julgo devida, toda a minha confiança. No entanto quero esclarecer uma coisa.

- O telefonema?

- O telefonema, sim.

- Acho necessário.

- vou interrogar a minha mulher. Não pode deixar de ser.

Chegou à porta e chamou:

- Teresa Mafalda!

Dona Teresa não se demorou.

- Sim, Álvaro ?

- Teresa Mafalda, explica-me o motivo porque ontem à tarde apressadamente mandaste buscar a Maria do Rosário a casa da nossa vizinha do primeiro andar.

Dona Teresa Mafalda franziu a testa. A pergunta não lhe agradava porque não vislumbrava a razão dela.

- Não me é permitido precisar de uma filha de um momento para o outro ? - e fulminava o Pedro com um olhar reprovativo, certa de que ele viera queixar-se, naturalmente por culpa da Rosarinho que lhe contara o sucedido. Mas. a ser assim, as coisas ainda se complicavam mais!.

A dúvida que desde a véspera a magoava, aguiLhoada pela constatação, voltava a atormentá-la. Tanto que não admitia que outras razões determinassem a investigação do marido. E repetia, a frisar o seu desagrado:

- Devo desinteressar-me do procedimento das minhas filhas?

- Pelo amor de Deus, Teresa Mafalda, não se trata de nada disso.

- Então?

E o Dr. Juiz, com toda a sua franqueza, incapaz de esperar mais tempo pela queda de uma resistência que lhe desagradava:

- Parece que tomaste essa iniciativa após um telefonema. um telefonema com insinuações de certa gravidade. Eis o que pretendo saber - o telefonema aludia de facto à Maria do Rosário? Caso afirmativo - de quem foi ?

Então, percebendo onde o marido queria chegar, Dona Teresa Mafalda caiu em si. Ficou por momentos imóvel, a pensar, a recordar como tudo sucedera. Principalmente o teor do telefonema. Depois, sem qualquer relutância, elucidou-os a ambos, a ambos, visto que o quesito do Dr. Juiz se divisava claro e insistente nos olhos cor de azeitonas de Elvas do rapaz:

O telefonema foi da Alicinha e dava a entender que talvez a Maria do Rosário estivesse, não em casa da S'Dona Ester, mas no segundo andar. junto do Pedro.

Pronto. acabavam-se as suspeitas, os receios!

Entredentes, o Pedro comentou:

- Que peste de rapariga!.

E o Dr. Juiz, em tom de lástima:

- É dessa massa que se fazem os que só existem para prejudicar o seu semelhante.

Dona Teresa Mafalda sorriu-lhes:

- Desejam mais alguma coisa ?

Com vivacidade, o Pedro adiantou-se para ela.

- Sim, S'Dona Teresa Mafalda. se me dá licença! - e, espontâneo, agarrou-lhe nas duas mãos que levou aos lábios, uma após outra. Depois, sob o olhar espantado da senhora, exclamou: - Beijo as mãos que sabem guardar uma filha. Muito obrigado!

Se porventura existissem ainda vestígios da reserva experimentada no coração de Dona Teresa, todos se fundiriam no sorriso enternecido que lhe iluminou o rosto desde a véspera tão cheio de sombras. E disse titubeante - ela, tão segura! - "Ah, bem. Ah, bem!. ". Depois fitou o marido numa interrogativa que ele logo interpretou, respondendo-lhe com sinais esclarecedores, pertença de uma expressiva linguagem nascida em tempos de namorados e tão só de ambos que ninguém fora ainda capaz de decifrá-la, no lar. Então o sorriso de Dona Teresa Mafalda alargou-se ainda mais e repetiu "Ah, bem. ah, bem. ".

E depois de virar costas, foi a dizer "bem, bem, bem, bem. " pelo corredor fora.

O Dr. Abegorim e o Pedro começaram a rir.

Riam ainda quando a Lili entrou na sala, acabando de chegar da rua.

Pareceu surpreendida, a rapariga, ao vê-los tão alegres, mas não fez comentários. De resto trazia um ar cansado e tristonho que dir-se-ia estabelecer entre ela e os outros uma barreira que não permitia a menor comunicabilidade.

E o Pai notou aquela expressão que lhe enevoava os olhos, uns olhos onde o cinzento normal, um cinzento tão bonito de crepúsculo suave, era agora um cinzento de tempestade próxima.

O Pedro pensou que a moça ali presente nada possuía de comum com a cachopita de 15 anos (ou já teria os 16?) com a qual ele tanto sonhara aos 12 e que a Rosinha-Mãe considerava tão mal-educada que não gostava que a Ana Maria se desse com ela - e consequentemente com as irmãs a cuja existência, talvez por isso mesmo, ele nunca ligara a mínima importância.

Por que existirão transformações tão radicais?

Sim, que também às vezes as rapariguinhas que se afiguram mais doces e encantadoras vêm precisamente a dar as mulheres mais detestáveis.

E, com esta idéia, acudiu-lhe à mente a imagem da Rosarinho.

Bruscamente, o coração apertou-se-lhe. Ficou pequenino, pequenino, a bater como que a medo. Medo de se deixar distender sob a pressão do sentimento que o enchia. Logo porém reagiu, afastando o receio. Pois admitindo que Maria do Rosário evoluísse mal. não deveria admitir que mal evoluísse a Ana?. E isso. há coisas que nunca!. Nunca!.

Com o Nunca desmesurado que o invadia não ficava espaço para mais nada. E o pensamento que tão de chofre o magoara dissipou-se instantaneamente.

Estava" outra vez só com o Dr. Abegorim.

Lili retirara-se. E o Juiz teve um desabafo:

- Há coisas muito estranhas, de facto! Sempre julguei que a minha filha mais velha fosse, normalmente, a primeira a casar. E afinal desconfio que vão as irmãs. e ela ficará para tia. Tenho de admitir que houve uma troca de nomes, logo de identidades.

O Pedro não sabia o que o Dr. Juiz queria dizer. Não conhecia a história antiga, logo não apreendia o sentido da frase.

Percebendo-lhe a estranheza, o Dr. Abegorim explicou:

- Sabe. é que na minha família, desde há várias gerações, acontece existir sempre uma rapariga chamada Casimira. E pelas mais estranhas ocorrências sucede também que as Casimiras não casam nunca. Acabam por ser "a tia Casimira", como a minha irmã, precisamente. "A querida e indispensável tia Casimira do lar de todos os Abegorins". Um clarão de entendimento luziu nos belos olhos do Pedro.

- Ahh!.

- Aqui em casa, a Casimira, - a Mirita! - vive num terror. Embora o Zé Chaves ande atrás dela há que tempos, julgo que a minha segunda filha não acreditou a sério no casamento. e não sei mesmo se já acreditará ou se apenas vai acreditar no momento dos solenes sins. Eu, porém, tenho agora a impressão de que de facto quem nasceu para Casimira foi a Leonor Augusta. Houve pela certa uma troca de nomes e é ela a predestinada para solteirona.

Deu-se então o inesperado.

Dentro do Pedro algo se fez ouvir, numa prece. Era como que o eco de uma voz que lhe pedira, ainda não havia muito tempo "fale ao meu Pai no Júlio". Fale ao meu Pai no Júlio.

E ele sem hesitar respondendo à suspeição do Dr. Álvaro Abegorim com uma frase que obedecia à súplica antes escutada e incrivelmente vinha a encaixar, em ajuste perfeito, com a que o Pai da Lili acabava de dizer, exclamou:

- O Sr. Dr. esquece-se do Júlio!

O semblante do Juiz, tão desanuviado antes, carregou-se de sombras. Encarou o Pedro com uma expessão que eqüivalia a um longo discurso cuja súmula podia caber numa dúzia de palavras – Não me esqueci desse Júlio, infelizmente, mas ele não conta para nada.

E tal como se a houvesse pronunciado, foi rebatido com firmeza.

O Júlio Matinha gosta muito da Leonor Augusta, e parece-me que é retribuído com sinceridade. Eu creio que o Sr. Dr. não autoriza o casamento deles porque não conhece o meu amigo (- e frisou "meu amigo" - ) Pois o Júlio é um rapaz que merece a maior confiança, sob todos os aspectos. Conheço-o desde pequeno e sempre acreditei nele. Compreendo que o Sr. Dr. o rejeita por considerar humildes demais as suas origens. Contudo não posso admitir a hipótese de que um espírito recto e justo como o seu não reconheça que todas as origens humildes são tão susceptíveis de se nobilitarem como. como as mais nobres de se envergonharem. Quem sabe se o Júlio, como homem e como Advogado, não virá no futuro a ser o genro de que o Sr. Dr. mais se orgulhe? Sinceramente, a mim agradar-me-ia muito tê-lo por cunhado.

Não fora muito longa, a peroração. O Pedro não era rapaz para grandes tiradas. Possuía o condão de dizer o máximo no mínimo. Um dom como outro qualquer.

O Dr. Álvaro Abegorim, alma aberta e boa, recebeu em cheio a força das convicções que assim lhe eram transmitidas. Talvez no fundo e afinal ele apenas desejasse que o persuadissem. - tanto o magoava a lembrança dos olhos tristes-tristes da sua Lili.

Da Lili que estava agora junto da porta da saleta.

Percebia-se que ela, sem premeditação alguma, escutara. Escutara porque algo a trouxera ali e a vontade própria depois a retivera, numa ânsia justificada.

Avançou para ambos, a rapariga, com um ar de flor molhada, flor que pende na haste antes de se erguer vivificada para o sol que lhe há-de prolongar a existência. Chegou ao pé do Pedro. Do Pedro que fora o seu sonho de adolescente, do Pedro que lhe abria o caminho para o seu sonho de mulher, e disse num murmúrio, não tão indistinto que o Pai o não entendesse.

- Obrigada, Pedro! O Pedro sorriu.

O Dr. Abegorim encarou-a como se fosse perguntar-lhe "porque é que ali estivera, a ouvir". mas não abriu a boca, pois já a filha, arredando qualquer suspeita de uma preparação antecipada das circunstâncias presentes (pois não há acasos que se afiguram factos estruturados?) anunciava, ainda num fio de voz:

- A sopa está na mesa. A Mãe pede que venham.

- Que horas são ? - surpreendeu-se o Dr. Juiz (que não dera pela passagem do tempo) a perguntar, com o ar mais natural possível.

- Oito e vinte e cinco, Pai. O Pedro sobressaltou-se.

- E eu que não avisei para casa que não ia jantar!

- Vá ali telefonar, ande.

Com certeza. - e dirigiu-se para o escritório, como lhe era indicado.

O Dr. Abegorim ergueu-se e seguiu a rapariga. Deteve-se a meio do corredor. E aí, no escuro, como se sentisse um secreto pudor do sentimento que o ia levar a um grande gesto de ternura, chamou:

- Leonor Augusta.

Ela parou imediatamente, com o coração aos saltos no peito.

- Leonor Augusta, vou rever o problema do seu hipotético casamento com esse tal Júlio. Entretanto permito-lhe que mo apresente.

E recomeçou a andar e passou por ela e foi fechar-se no quarto de banho, sem lhe dar tempo a qualquer manifestação de júbilo ou de agradecimento.

Estavam já todos sentados à mesa, à espera dele para começarem a comer uma perfumada canja, quando o Pedro entrou, excitadíssimo, embora a pedir todas as desculpas pela demora. Mas acabava de receber óptimas notícias, que logo transmitiu. Um seu grande amigo - seu e do Paulo! pianista já famoso apesar da extrema juventude (o Vic Nusen, cuja apresentação estava anunciada para breve numa das principais salas de concertos da capital, acabava de mandar um telegrama a anunciar que vinha dois dias antes da data marcada a fim de passar umas curtas férias com eles.

E logo à alegria autêntica do Pedro respondeu uma exclamação do Dr. Abegorim, a quem a frase "óptimas notícias" despertara para algo.

- com tudo isto, - disse, animado também (e o tudo isto era de facto imenso, dado que no mesmo dia se vira impelido a prometer a cedência de três filhas!) - esqueci-me de que também tenho notícias.

- Que notícias? - quiseram saber imediatamente as meninas, Dona Teresa Mafalda e a tia Casimira.

- De acordo com os teus desejos, Teresa, e com o meu interesse genealógico, tratei de investigar qual o fim do nosso realmente parente D. Miguel Abegorim.

- O quê ? - alterou-se Dona Teresa Mafalda.

- D. Miguel Abegorim morreu há cinco anos.

- E a fortuna ?

- O resto dos seus bens, queres tu dizer. Eis o que apurei - o dinheiro obtido com a venda da Quinta de São Boaventura à família Macedo, Quinta de que era legítimo proprietário por casamento de que não houve filhos - foi o que o manteve durante os seus últimos tempos de vida.

- Mas não o gastou todo, com certeza! - e havia ainda uma tênue esperança naquela constatação.

O Dr. Abegorim abanou a cabeça.

- Não. O que lhe sobrou, legou-o à Misericórdia de Penarim.

Dona Teresa Mafalda baixou os olhos para o prato. Desfazia-se a última ilusão de ter com que fazer face às grandes despesas que se anunciavam. Enfim.

A tia Casimira, silenciosa, passeando o olhar pelas sobrinhas tão completamente alheias ao problema de dinheiro que afligia a cunhada, sorria. Um sorriso inefável.

A atenção, o ar concentrado e ao mesmo tempo surpreendido, quase atônito, com que o Pedro lia a carta acabada de receber do Pai, uma carta tão longa que só por si causava estranheza, dado que o Dr. Rui Manuel de Macedo conseguia ser ainda mais conciso do que o filho, inquietou o Paulo que, por menos curioso que fosse - e era! - não podia deixar de desejar saber a razão do que constatava. E, de lápis no ar - o lápis com que sublinhava no enorme cartapácio aberto na sua frente as passagens que urgia não compreender mas sim empinar, indagou:

- Passa-se alguma coisa de grave?

- Espera aí, espera aí. -redarguiu o outro, sem interromper a leitura.

E o Paulo esperou.

Quando por fim chegou à assinatura, termo da missiva, o Pedro suspirou profundamente e, alheio à ansiedade do amigo, quedou-se meditativo.

Evidentemente que, escrevendo aos Pais e até à irmã, a quem o Paulo também não regateava notícias, ele havia contado quanto nos últimos tempos se passara com a família do Juiz Abegorim. Falara das meninas, dos Pais das meninas, do inesperado e prodigioso parentesco com o antigo dono da Quinta de São Boaventura, etc. etc. Referira, é certo e muito embora sem o acentuar demasiadamente, o interesse de Dona Teresa Mafalda pelo destino da fortuna - ou dos restos da fortuna do seu antepassado. Nada, porém, que pudesse levar o Pai àquilo.

Parecia-lhe que frisara a descoberta dos laços familiares sob o seu aspecto sentimental e não ganancioso - conquanto ganancioso mesmo em relação a Dona Teresa Mafalda fosse uma palavra excessiva, pois a premência de ter mais alguma coisa encontrava sua razão na existência de quatro filhas a quem tanto se tornava preciso dar sem saber onde buscá-lo. De qualquer maneira, nem isso o Pai adivinhara no que ele descrevera, tinha a certeza. E sendo assim como é que. ?

Sim, como é que, por que é que o Pai tomava aquela decisão sensacional?

- Paulo! - exclamou por fim. - Paulo! Paulo, de atalaia, aguardava:

- Diz.

- Eu. eu nem sei explicar! - e calou-se, carta apertada nas mãos.

- Alguma notícia má ? - afligiu-se o outro.

- Não. Má, não! Esquisita. Espantosa!

- A respeito de quem?

- De ninguém.

- Então?

- É. - e emudeceu.

Paulo estava prestes a explodir, numa impaciência que se volvia angústia.

- E se desembuchasses?

- A notícia refere-se às jóias.

- Às quê ?

- Às jóias.

- Que jóias?

- As jóias do Tesouro!

- Do tesouro da Quinta?

- Tens conhecimento de mais algum?

- Não. claro que não! - e o Paulo revia de súbito aquele achado maravilhoso. Contado nos papéis.

Aos treze do segundo mês deste ano de 1808 ordenei eu, Ana, ao reverendo Evangelista, padre capelão da casa de Riba de Cima das Pedras, onde foi nado e criado meu filho Sebastião, que daqui levasse e em toda a segurança guardasse em casa de minha prima Mariana, anotando o esconderijo, o tesouro em moedas, oiro e pedrarias. etc. etc. etc.

E recordando o nesse dia já distante decifrado nos velhos pergaminhos, ouvia o Pedro, excitado, começar a ler-lhe uma passagem da carta do Dr. Macedo.

Confesso que sabia o nome do nosso vizinho há longos anos mas nunca me passou pela cabeça que existisse qualquer ligação com o velho D. Miguel. Também nunca tive tempo, creio, para me deixar alertar por qualquer sugestão que estabelecesse ligações familiares entre pessoas que se afiguravam tão distantes no tempo e no espaço. Julgo que D. Miguel, quando tratou comigo da venda da Quinta, me afirmou ser completamente só no mundo. E só devia considerar-se, de facto, pois esse parentesco não possuía qualquer elo de ligação real. Tal como nós entendemos os elos de ligação, claro. No entanto, provado hoje que os Abegorins do nosso 4. ? andar têm o sangue de um Abegorim de São Boaventura a correr-lhes nas veias, pergunto a mim próprio qual vem a ser o meu direito, o nosso direito, às jóias do tesouro, às jóias da família de Luísa Fernanda.

Aqui o Paulo interrompeu o Pedro com uma exclamação vibrante.

- Não me digas que o teu Pai está a pensar em entregar as jóias aos Abegorins!.

O Pedro baixou a carta e encarou-o.

- Está.

- Heim?

- É precisamente essa a ordem que me dá, aqui. Ir ao Banco buscá-las, visto que tenho autorização para mexer no cofre, e entregá-las ao Dr. Álvaro Abegorim.

O Paulo ficou de boca aberta.

- Irra, que isso é ter categoria!. -e depois, raciocinando: - Categoria a mais.

- A mais?

- A mais, sim, visto que no fim de contas as jóias pertenciam à tal Luísa Fernanda que ninguém sabe de que família descende e se achavam guardadas no solar!

- E depois?

- Depois o teu Pai, quando comprou a Quinta, comprou tudo o que havia dentro dela. Comprou. Pagou, portanto. Pagou inclusivamente, adquirindo-o, o que então se considerava como lenda - a existência do tesouro.

O Pedro sorria.

- Terás muita razão. Deves ter toda a razão, até. Mas o meu Pai manda. e eu obedeço!

Paulo concordou.

- Sim, não podes agir de outra forma. - e depois, gravemente. - Sabes ? Tenho a impressão de que vamos assistir a um duelo de gigantes.

- De gigantes morais, evidentemente. E digo-te que fico ansioso por conhecer o vencedor.

O vencedor?

Ah, pois. o vencedor!.

O Paulo, sentado ao lado do Pedro, agora na sala do Dr. Álvaro Abegorim, observava atento as reacções do Juiz. - as reacções de todos.

À medida que o Pedro ia expondo o assunto que o levara, poucas horas antes, a solicitar aquele encontro urgente às seis e meia da tarde, as expressões modificavam-se e deixavam transparecer uma infinidade de sentimentos desencontrados. À volta deles, espanto, alvoroço, um pouco de cobiça, incredulidade.

E os olhos brilharam mais quando o Pedro tirou da pasta a caixa que, ao abrir, faiscava com as jóias preciosas em oferta.

Dona Teresa Mafalda não pôde suster um gesto para aquele monte de pedrarias:

- Céus! Que maravilha!

O Pedro passou-lhe imediatamente o pequeno cofre para as mãos.

Primeiro intimidada, depois afoita, a Senhora aceitou-a. Os seus dedos esguios tocaram as jóias, afagaram-nas, tomaram-lhes o peso, voltando-as umas após outras.

As meninas, todas presentes, dir-se-iam aparvalhadas diante do incrível.

A tia Casimira sorria plácida - sem dúvida era ela a pessoa mais indiferente ao acontecimento inesperado e sensacional.

O Dr. Álvaro Abegorim não evidenciava a mínima reacção, pelo menos na aparência. Muito sério, impenetrável, conservava-se silencioso, de olhos fixos por cima de tudo quanto o cercava. Fixos em quê? Em algo que só ele via.

Quem o conhecesse bem e houvesse assistido aos seus grandes julgamentos, perceberia sem qualquer hesitação que o Juiz se achava à beirinha de tomar uma decisão. Aquela fleuma precedia sempre um acto definitivo.

O Pedro conhecia-o mal. E por isso, verificando que o Pai das meninas permanecia quieto e silencioso, quase alheio ao que ali estava a desenrolar-se, e que a caixa das jóias se conservava nas mãos de Dona Teresa Mafalda, considerou terminada a missão de que fora incumbido. E, num aceno ao Paulo para que o imitasse, pôs-se de pé, proferindo:

- E agora, se me dão licença, retiro-me. Preciso de.

Calculava-se que ele precisava de ir estudar o motivo mais forte que de ali podia levá-lo. Mas certezas ninguém as teve, porquanto o Dr. Abegorim lhe cortou a explicação com uma frase tão breve que dir-se-ia seca:

- Espere aí. - e ante a surpresa dos dois rapazes estendeu a mão direita e tirou à mulher a caixa cujo conteúdo pela primeira vez contemplou atentamente. Depois um largo sorriso descerrou-lhe os lábios e, num movimento rápido, baixou a tampa que velava uma fortuna.

Ninguém teve tempo de conjecturar o que quer que fosse acerca do que iria passar-se, porque o Juiz falou imediatamente.

E era de facto a decisão.

- com que então, meu rapaz, via-me a aceitar isto com toda essa simplicidade?

O Pedro sorriu.

- Eu não via coisa alguma. Quem viu foi o meu Pai.

- Pois não há dúvida de que admiro muito a atitude de seu Pai, embora não possa deixar de considerá-la, e com a maior simpatia, um bocadinho quixotesca.

- Quixotesca, porquê, Sr. Dr. ?

- Ora essa, Pedro? Mas que direito tenho eu, ou a minha família, à fortuna de um vago tio perdido no tempo passado e de cuja existência eu até há pouco não tinha o menor conhecimento e que de comum connosco só possui o nome de família?

- Mas perdão, Álvaro! - interrompeu Dona Teresa Mafalda. - Acontece imensas vezes receberem-se heranças inesperadas de parentes completamente ignorados!. Ainda não há muitos anos tu próprio deste a sentença a favor de um legado importantíssimo que uma criada de servir disputava a um Médico por causa de um emigrante que morrera na América e.

- Sim, sim, Teresa Mafalda, esses casos sucedem e houve-os que originaram não só pleitos como romances e dramas.

Dona Teresa Mafalda estava efervescente.

- Originaram e originam! Porque as coisas extraordinárias não se confinam a épocas. Podem sempre acontecer! Ainda há cerca de um mês li no Jornal que andavam à procura dos herdeiros de um sujeito que fora para o Canadá em 1925!

O Dr. Álvaro Abegorim estava tão sério que fazia impressão, sobretudo aos dois rapazes que nunca o tinham visto com um tal semblante. E interrompeu a mulher com um aceno concordante com a expressão - profundo e peremptório.

- Teresa Mafalda, peço-te o favor de não continuares. Entretanto, e para que esqueças definitivamente os argumentos com que pretendes embargar um acto que se me impõe, lembro-te que as heranças possíveis recebem-se de indivíduos que morreram em plena posse dos seus bens. Ora o meu tio vendera a propriedade que lhe pertencia com tudo quanto ela continha. e legou o resto do seu patrimônio, como o sabes, a uma Misericórdia. Logo não temos qualquer espécie de direito a guardar o que de forma nenhuma nos pertence! - e após uma certa pausa, com a qual se sentia que desejava serenar por dentro, acrescentou: - Quanto a aceitar presentes. Bom, a verdade é que o Dr. Rui Manuel de Macedo não nos deve favores. logo não tem que obsequiar-nos com umas largas dezenas de contos.

- Dezenas ? - quis gracejar a tia Casimira. - És fraco avaliador, Álvaro! Só o colar de ametistas.

- Realmente nem percebo como a sua Mãe não o usa, Pedro. - estranhou Dona Teresa Mafalda, dominando a decepção.

- A minha Mãe usa sempre o colar de pérolas de cultura que o meu Pai lhe ofereceu no dia do baptizado da minha irmã pequenina. Naturalmente só podia pôr este não trazendo o outro. e ela não troca!

E a senhora:

- Como há duas raparigas na sua família, uma delas virá decerto a herdar essa jóia.

Coube ao Pedro tornar-se sério, quase tão sério como pouco antes o Dr. Abegorim.

- Não gosto de pensar nessas coisas, S'Dona Teresa Mafalda. Trazem com elas sugestões que magoam.

Pairou um curto silêncio. O Pedro receou haver sido - ou parecido - incorrecto, porque lhe ressoava aos ouvidos o tom frio com que pronunciara aquelas palavras. E, temeroso de provocar antipatias e ressentimentos, tratou de apagar o efeito temido com um sorriso onde havia funda ternura:

- De qualquer modo, eu devo obedecer às ordens do meu Pai e.

O Juiz impediu-o de continuar.

- O Pedro não tem nada que lhe obedecer para além do que já fez, visto que o seu Pai não manda em mim! - e pronunciou a frase definitiva com tanta delicadeza que as meninas, aliviadas, puderam rir e o Pedro ficou a olhar para o Paulo, terrivelmente embaraçado. E o Paulo, percebendo que o amigo carecia de ajuda, teve um gesto largo e uma frase eloqüente na sua sintetização:

- Não podes ir mais além!. Podia. Até podia!

E, rápido, o Pedro tomou uma iniciativa. Uma iniciativa que pela certa obteria a adesão do Dr. Macedo; uma iniciativa que não melindraria o Dr. Abegorim.

Aceitou a caixa, abriu-a e procurou, entre as jóias, quatro peças, tendo o cuidado de não escolher as que, pela sua riqueza, pudessem atrair nova recusa. Tirou um bracelete com pedras azuis; uns brincos com pérolas minúsculas; um pregador esmaltado e um anel com uma safira rodeada de minas.

- Bem. - pronunciou com simplicidade. - as jóias vão voltar para o cofre onde estavam, no Banco. Ficarão na família Abegorim, como penhor da amizade da família Macedo, estas pequenas lembranças do passado. O Sr. Dr. não se importa, pois não?

O Juiz importava-se, mas não tinha o direito de magoar o rapaz cuja delicadeza de sentimentos o encantava. E, num gesto de condescendência, encolheu os ombros.

Então o Pedro entregou o bracelete à Lili, os brincos à Mirita (que corou de prazer), o alfinete de peito à Rita e o anel à Rosarinho.

Engraçado!

A Rosarinho, sem a mínima hesitação, enfiou-o no dedo anelar da mão esquerda. E o anel dir-se-ia feito por medida!

O Dr. Abegorim, reparando no facto, pensou que aquilo era como que um símbolo. Uma jóia do passado que no presente ligava a Maria do Rosário a uma promessa para o futuro.

E, felizes todos, ficaram entretidos na conversa que logo se encadeou com os agradecimentos das meninas.

O Pedro, sem reacção do Paulo, esqueceu-se de que precisava de ir estudar. Tàcitamente, numa troca de olhares, haviam já prometido um ao outro trabalharem até tarde na noite. Naquele momento não queriam nada a não ser viver e a Vida estava toda ali com uma história desconhecida dos Abegorins a do portentoso achado do tesouro.

E tudo foi descrito, evocado com a força que torna reais as coisas findas.

Quando os dois amigos, alternando as vozes boas de ouvir, acabaram de contar a descoberta no sótão, eram horas de jantar. E eles já não saíram. Dona Teresa Mafalda, discretamente, dera ordem à Sofia para contar com ambos e a velha criada de tal forma se multiplicou e esmerou que nessa noite nenhuma das quatro meninas esteve de serviço.

Havia decorrido uma semana completa. E, mais ou menos, até à véspera, tudo certo.

Até à véspera. Véspera que fora dia a marcar grandes alterações no lar dos Abegorins.

Com efeito, tivera lugar o pedido oficial da Mirita. O pedido de casamento.

O Pai do Zé Chaves - Eurico Chaves -, um homenzarrão na força da vida, tão interessante como o filho (o rapaz parecia-se com ele) transformara a cerimônia num acto singelíssimo, sem protocolo algum, o que despertou a maior simpatia no Dr. Abegorim, adepto das coisas naturais. Dona Teresa Mafalda não perfilhava as mesmas opiniões. Contudo, não pode manter-se refractária ao agrado daquela convivência aparentemente sem arestas. À lisonja de ver no dedo da filha um esplêndido anel - uma pequena esmeralda cercada de uma dupla fileira de diamantes, em homenagem à cor dos olhos da Mirita, mais lindos do que a própria esmeralda.

Depois haviam conversado, trocado impressões e discutido acerca do que logicamente se apresentava aos olhos dos progenitores como "o futuro do jovem casal". Sim, logicamente. Pois se, sem quaisquer reservas, o casal Abegorim aceitara o Zé para genro e Eurico Chaves a Mirita para nora.

Aventaram-se, no meio do interesse geral, hipóteses de datas para o casamento (dentro de três a quatro meses, talvez). Pensou-se em muito do que se tornava necessário e conveniente que fosse feito na principal das fazendas da família Chaves, a fim de que nela fosse recebida condignamente a rapariguinha (corada e emocionada) que o sogro desejava que logo de início encontrasse condições de vida que lhe permitissem uma rápida e agradável adaptação.

A casa que lhes destinava era sem dúvida boa, mas carecia de uns arranjos que principalmente a alindassem e pusessem confortável para acolher os sonhos de uma recém-casada.

E assim chegara a hora do jantar para que haviam sido convidados, além dos naturalmente indispensáveis, como o Pai do noivo e a tia Casimira, os avós do Zé Chaves que tinham surgido pontualíssimos à hora marcada, nem mais minuto nem menos minuto.

A mesa fora posta com inexcedível bom gosto, enfeitada com botões de rosas brancas que Dona Teresa Mafalda comprara nem ela dissera onde nem ninguém se lembrara de lhe perguntar. O jantar não podia ter sido melhor, culminando com dois pudins deliciosos, um de natas e outro de laranja.

Depois da refeição, para o café, com direito a licor e a bolachinhas de amêndoa e de chocolate, tinham chegado o Pedro e o Júlio.

O Júlio Matinha.

O Júlio da Lili que pela primeira vez transpusera a porta daquela casa e dificilmente conseguira permanecer calmo (estoicamente calmo!) ante a observação pouco amistosa de Dona Teresa Mafalda e a atitude sem dúvida alguma cortês do Dr. Juiz que, tendo autorizado a visita, de novo confirmava a sua noção de lisura e justiça.

E fora uma noite muito agradável. Uma noite que agora, no dia seguinte, à hora do almoço, toda a família recordava com agrado. com um sincero agrado que inesperadamente sofreria tremendo abanão.

É que Dona Teresa Mafalda, quando estavam na sobremesa, saboreando deliciados o que restara dos pudins, declarou, sem qualquer preparação:

- Bem. a partir de hoje, temos de tratar do enxoval.

As duas que se sentiam noivas, a Mirita e a Lili, encararam a Mãe, a ver qual delas tomava a dianteira.

Não podia haver dúvidas; Dona Teresa Mafalda, encarando a segunda filha, continuava já:

- Tem de ser um enxoval em condições, de acordo com a posição da família do Zé Chaves, que levaria muito a mal se a Mirita não apresentasse um bragal condigno.

Então, ainda plácido, o Dr. Juiz indagou:

- E a que chamas tu um bragal condigno ?

- Ao que mereça a designação, evidentemente! A resposta não era satisfatória. E o marido quis aprofundá-la.

- Não sei o que pode ou não merecer a tua aprovação, Teresa Mafalda! Desconheço por completo o assunto. Preferia que traduzisses a tua apreciação num valor material aproximado.

- Os cálculos são difíceis, Álvaro! As coisas estão caríssimas. Mas enfim. para lençóis, roupas de quarto, de banho, de mesa, de cozinha, de vestir, etc. etc. etc. e sem quaisquer exageros. aí entre os 120 e os 150 contos.

- Quanto ? - e o Dr. Abegorim ficou com a colher de doce no ar, pingando natas que o calor da sala desfazia.

As pequenas entreolharam-se, mudas de assombro perante a soma que se afigurava uma enormidade.

Inteiramente segura de si, a Mãe replicava:

- E nem sequer é muito, não julgues.

O marido poisou a colher no prato. O pudim que lhe agradara na véspera, deixara de lhe saber bem. Depois, cuidadosamente, limpou a boca ao guardanapo. E por fim, numa voz velada, redarguiu:

- Não pensas com certeza no que estás a dizer, Teresa Mafalda. Entre 120 a 150 mil escudos? Um enxoval ?

- E então? Mirita é a nossa primeira filha que se casa!

- Teresa, nós não temos só uma filha para casar e não interessa qual delas é a primeira. Neste lar existem quatro raparigas, nenhuma delas vai ficar solteira, espero-o, e o que fizermos a uma fá-lo-emos a todas. E. onde irei buscar 500 ou 600 contos para enxovais. para as despesas dos casamentos? Onde, Teresa Mafalda ? Eu, que sou um homem sem fortuna, um homem que vive e sustenta a família apenas com o seu ordenado? Onde?

Isso não sei, Álvaro! - e com duas rugas ao canto do nariz, mostrava-se hirta e formalizada como nunca as filhas a haviam visto. - Sei apenas que não deves desejar que as nossas filhas nos envergonhem, elas que são Câmara e são Abegorim, casando como pobretonas.

- Não confundas, por favor! Não desejo que elas casem como pobretonas, mas como filhas de um homem honrado, que é aquilo que sou. E serei. Sempre. Ouves, Teresa Mafalda? Sempre!

As meninas estavam a conhecer algo de novo e desagradável. Porque tal como desconheciam a expressão da Mãe, assim ignoravam que o Pai fosse capaz de falar naquele tom de implacável dureza. A Rita teve a impressão de que o via de toga preta e cabeleira postiça cheia de caracóis brancos a ditar leis ao mundo.

Dona Teresa Mafalda empertigara-se ainda mais. Mas depois, numa reviravolta, passando da indignação à ofensa, transformando o olhar fuzilante num olhar lastimoso, já cheio de lágrimas, dobrou-se toda, encolheu-se, pareceu ficar pequenina e, numa voz trêmula, volveu:

- Faça-se então como entenderes! A partir deste momento desinteresso-me de tudo; e se a tua honestidade te poupar às censuras do mundo serei a primeira a congratular-me.

E sem mais uma palavra, o peito soerguido num soluço que iria soltar-se longe das vistas de todos ergueu-se da mesa e abandonou a sala de jantar.

Sofia, no meio do silêncio que se sucedeu ao rugir da tempestade familiar, principiou a retirar os pratinhos do doce que ninguém acabara. Mal-empregadinho!

O Dr. Juiz, numa atitude onde havia tanta fadiga como desalento, apoiou os cotovelos na mesa e encostou nas mãos a cabeça.

As quatro irmãs entreolharam-se confrangidas. E como se nessa troca de olhares uma decisão ponderada e amadurecida se condensasse, a Mirita, sentindo que era a ela, como mais próxima a casar, que competia transmiti-la, disse:

- Pai, não se preocupe! Não seremos as primeiras raparigas que casam modestamente e de acordo com as possibilidades financeiras da família. Isso não tem importância nenhuma. Aqueles que nos escolheram gostaram de nós por nós. e não por sermos meninas de oiro. Isso é o principal. E a partir disto o Pai pode estar certo de que, para nos sentirmos completamente felizes, o que nos importa é que o Pai conserve a paz do seu espírito! Não queremos que tenha quaisquer problemas por nossa causa.

Então, com tanta doçura como firmeza, a tia Casimira, que até aí mantivera o mais absoluto silêncio, exclamou:

- Descansem, filhas. Por causa de assuntos de dinheiro, o vosso Pai nunca mais terá problemas.

Numa reacção imediata, o Dr. Abegorim levantou a cabeça, endireitou o busto e interrompeu a irmã. Ou melhor - quis interrompê-la.

Casimira, não estejas a pensar loucuras, porque eu.

A tia Casimira impôs-se-lhe.

- Tu calas-te! Só!. E escutas. Porque o que tenho a dizer foi pensado e decidido há muito tempo, na disposição de o pôr em prática no instante em que soasse o que eu considerava um sinal. O sinal fez-se ouvir. Portanto a minha determinação concretiza-se, - e a figura graciosa e frágil de Casimira Abegorim dominava no silêncio espavorido das meninas, no silêncio assombrado do Juiz: - As tuas filhas casar-se-ão, segundo os desejos da tua mulher, de acordo com a posição social que a família ocupa. E nada lhes faltará.

O Dr. Álvaro Abegorim conseguira libertar-se daquela espécie de aflição que o estrangulava. E tentando reassumir o ar peremptório com que sempre recusava (ou tentava recusar) as generosas ofertas da irmã e impedia as filhas de pedirem o que quer que fosse, disse, enquanto se punha de pé:

- Tu não lhes darás nada, além do presente de casamento que for do teu agrado escolher, entendes? Nada!

- Ah, bem? Concedes-me o direito de escolher. Sendo assim, o presente pode ter o tamanho que eu quiser. Obrigada, Álvaro! Ansiava por essas mesmas palavras. com tua permissão, o meu presente de casamento pode ter o tamanho que eu quiser. Assim está certo. e elas terão tudo.

- Casimira, proíbo-te!

- com que direito, meu irmão ? Não serei dona e senhora da minha vontade? - e encarando-o a direito: - Escuta Álvaro. e senta-te. Senta-te e presta-me atenção. Repito que o que tenho a comunicar é decisão antiga. Melhor dizendo, é promessa feita a mim mesma. - e com um sorriso inefável que deu às meninas uma imensa vontade de se ajoelharem diante dela. - Meu querido Álvaro, sempre tive uma grande tendência religiosa. E há muito que, na procura de uma vocação, sabia qual era a minha. Uma vocação que pela certa me conduzia para um destino. - e com a mais absoluta serenidade. - vou

entrar num convento.

E soou um Não desdobrado com a mesma veemência nas quatro vozes juvenis, enquanto oito mãozinhas se estendiam para ela como se quisessem agarrá-la, evitar que se fosse dali.

E o Não das meninas repetiu-se, num assombro profundo, proferido pelo Juiz, incrédulo e discordante.

E a tia Casimira, tão serena como se apenas anunciasse o projecto de uma próxima viagem, forneceu explicações.

- vou pertencer à Congregação Salesiana de Maria Auxiliadora. Dedicar-me-ei às crianças e às raparigas carecidas de auxílio e de carinho para se tornarem creaturas bondosas e conscientes. Tentarei ajudá-las a salvarem-se das misérias morais em que milhares de adolescentes se teriam perdido se não fora a obra extraordinária de um dos maiores apóstolos do mundo, que lhes consagrou a vida inteira.

São João Bosco ? - balbuciou a Rosarinho, que conhecia bastante bem a vida do Santo por tê-la ouvido em tempos numa série de episódios transmitidos pela Emissora Nacional.

- São João Bosco. - confirmou a tia.

O Dr. Abegorim voltara a sentar-se. Confinado num mutismo absoluto. Como que perdido em indecisões, em dúvidas, em sentimentos confusos que, amalgamados, o impediam de chegar a qualquer conclusão, a qualquer decisão, confundindo-o, paralisando-o.

A Lili, muito pouco versada em assuntos de índole religiosa, manifestou a sua estranheza:

- Mas a Congregação Salesiana não é composta por homens que fundaram não sei quantos Colégios?

Rita e Mirita navegavam na mesma ignorância. Na mesma, se não mais completa. E a tia:

- O Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora existe desde 1872 e por determinação de Sua Santidade Pio IX encontra-se hoje largamente difundido no mundo.

Rosarinho possuía conhecimentos estranhos ao ambiente familiar. E evidenciou-os, com a sua habitual franqueza:

- Eu sei tudo isso.

O Pai e as irmãs fitavam-na, aguardando pormenores. E ela, tão simples como eficiente:

- Foi Maria Mazzarello a primeira Superiora da nova comunidade religiosa, que surgiu ainda em vida de São Bosco.

E a tia Casimira, sorrindo-lhe docemente:

- Tal qual! Maria Mazzarello, canonizada em 1951 por Sua Santidade Pio XII.

E a menina, com emoção:

- Santa Maria Mazzarello viveu para ajudar a viver. É uma história comovente que se deve divulgar! Faz bem a todos. É bom conhecer Santos activos, Santos que andaram normalmente pelo meio dos homens.

Reinou um certo silêncio. Depois a Rita indagou, perplexa;

- Onde é que a menina aprendeu tudo isso ?

- Lá no Liceu, com a S'Dona Maria Vitória! Uma vez, depois da transmissão de "O Apóstolo da Juventude" (era assim que se chamava e parece-me que nunca mais o esqueço!) a S'Dona Maria Vitória levou uma aula inteira a falar de D. Bosco, o Padre que andava a recolher os garotos abandonados, e de quantos se abeiraram dele para o ajudar. Santa Maria Mazzarello foi uma das suas auxiliares, sem saber ainda que a obra ia chegar ao céu.

O próprio Dr. Abegorim teve vontade de lhe pedir que continuasse a falar, a expor os seus conhecimentos. Mas a pequena, de olhos postos na tia, abandonara o assunto, pelo menos no seu desenvolvimento, e perguntava:

- Só não sabia que havia conventos, cá.

- Não há conventos. Os salesianos não têm conventos, mas casas. Casas-Mães. Mães de todos. E Institutos, que não fecham nem isolam ninguém, pelo contrário. Uma das primeiras e maiores forças da obra salesiana acha-se na comunicação.

E o Dr. Álvaro Abegorim conseguiu libertar-se da sua tremenda ansiedade:

- Nesse caso. ficas em Portugal? .

- Não!

- Não? Mas.

- Não, por enquanto. Voltarei para Portugal, evidentemente. Para perto de vocês, ao alcance de todos. Mas só daqui a uns tempos. Antes preciso de isolar-me, de recolher-me, de preparar-me. De tornar-me DIGNA. - e com a maior suavidade: Parto muito brevemente para Turim onde.

Interrompeu-a um soluço enorme. Rosarinho, toda apoiada na mesa, os cabelos enchendo-se de doce no prato que a Sofia ainda não lhe tirara, a ela, chorava perdidamente.

E logo se lhe sucederam, com lágrimas que se ouviam, as manifestações de desgosto da Rita, da Mirita e da Lili. Da Lili, que, sendo a mais senhora de si, foi a primeira a falar:

- Tia Mira. pois assim quer deixar-nos?

- Eu não as deixo, filhas! Afasto-me por uns tempos. Depois volto. e nunca estarei enclausurada, nunca! A família salesiana vive no mundo, em contacto com o mundo, para o conhecer bem. porque só conhecendo-o bem e sabendo onde é precisa pode exercer da melhor maneira a sua acção! E depois, terei a vida preenchida!.

A Rita não calou um protesto veemente:

- A tia tem a vida preenchida connosco! E a tia, com doce firmeza:

- Tenho tido, queridinha, tenho tido. E por isso ao pé de vocês me conservei até agora. Aqui me conservei e creio que fui útil. Mas agora vocês vão começar a dispersar-se e nas vossas existências cheias posso vir ou não a ser precisa. Ora não desejo que me aceitem por acréscimo. Necessito, acreditem, de estar certa. Chegou o momento de realizar o que devo.

- Mas a tia deve.

A tia susteve a reacção da Mirita.

- Só eu sei o que devo. Aliás, ponderei longamente a minha resolução, buscando uma certeza que fosse também uma inspiração.

Estendeu as duas mãos e acolheu e apertou nelas quatro das oito mãozinhas que se conservavam estendidas na sua direcção e que se lhe confiavam abertamente. E prosseguiu:

- Vão ter saudades minhas só em parte. Porque durante o tempo que eu estiver ausente, muita coisa se modificará, compensando o meu afastamento. A Mirita casa breve. e eu não parto antes disso. vou acompanhá-la ao altar!. E regressarei com certeza a tempo de ajudar a minha Rosarinho a vestir-se de noiva. Que estranho!. Duas Abegorins irão viver em África. Uma em Moçambique, a outra em Angola. A Lili, talvez a última a casar, desconfio bem que vai andar de casa às costas durante muitos anos, como a Teresa Mafalda, se o Júlio vier a dedicar-se à magistratura. - e notando o olhar esperançado da sobrinha, acrescentou: Para bem da organização do lar, espero que ele se instale num excelente escritório de Advogado. e chegue a lente da Universidade.

No ambiente havia algo que oscilava entre o sorriso e a lágrima. E a tia Casimira, entre a lágrima e o sorriso prosseguiu:

- A Rita, julgo, ainda não tem o destino à vista. e faço votos do fundo do coração que esse destino não a leve para muito longe dos Pais. porque na verdade é amargo criar-se filhos e ficar-se demasiadamente só. Voltando porém a mim. Tornei-me dispensável! Não não, não reajam, porque se ainda não tornei, tornarei! - e acalmou o gesto com que Lili parecia querer interrompê-la. - De resto, tenho de fazer qualquer coisa, devo fazer qualquer coisa, quero fazer qualquer coisa.

A Rosarinho erguera finalmente o rosto coberto de lágrimas. E bebia as palavras da tia Casimira.

- Sabem, queridas ? Preciso de sentir que não vivi em vão e que o meu celibato se justificava por uma razão que me esperava. Sou uma mulher activa. Creio que serei activa durante muitos anos. Se continuasse aqui, doravante sem vocês a todos os dias necessitarem de qualquer coisa, aprenderia de forma insuportável a tomar os primeiros contactos com o que se chama uma existência vazia. Por isso, e porque gostam de mim como se deve gostar de alguém, pelo outro e não pelo eu, não me peçam que desista do que me espera agora. Tenho sido feliz. Deixem-me continuar a ser feliz!

O choro das meninas terminara por completo De pálpebras vermelhas e inchadas, contemplavam-na com assombro e respeito - um assombro e um respeito tornados emoção.

A tia Casimira fitou-as, uma por uma. E, depois de vencer o nó que se lhe dera na garganta, pensando que tinha de dar dinheiro à Rosarinho para ir urgentemente ao cabeleireiro, (tão sujos e lambusados ela ficara com os cabelos!) continuou:

- vou sentir-me duplamente bem, espalhando felicidade à minha volta. Em cada rapariguinha que eu ajudar a vencer a barreira das dificuldades, criando nelas o amor pelas coisas belas e boas, encontrarei a réplica de ternura que até agora me encheu os dias. E depois. pensar que terei contribuído para a ventura das minhas sobrinhas amenizará as saudades que hei-de sentir dos anos passados junto de vocês.

O Dr. Abegorim, com pouquíssima segurança, obtemperou, fazendo-se ouvir pela primeira vez depois do muito que ali se dissera.

- Podias perfeitamente deixar isso para mais tarde, para daqui a uns anos.

- Não, Álvaro! Chegou a hora. A hora é esta, porque ainda sou uma mulher válida. Há coisas que não se guardam para a caquexia, quando não servimos se não para dar trabalho aos outros.

- Faz como desejas, então!

- Obrigada pela tua compreensão. Farei! - e após uma breve pausa, como se estivesse a escolher palavras com que devia expressar as suas idéias de forma a não permitir quaisquer interpretações erradas: - De quanto possuo, tirarei o dote que hei-de entregar no Instituto e mais alguma coisa para a obra em geral, reservando-me um pequeno usufruto de certos rendimentos que me permitam acudir a necessidades extras. O resto será dividido em partes iguais por todas as minhas sobrinhas, visto que não me esqueço das que vivem longe mas nem por isso deixam de ter direito a receber uma lembrança minha. No que diz respeito a estas, penso que terão o suficiente para os enxovais e para as despesas dos casamentos. Talvez sobre qualquer coisa. Podem guardar num banco o que lhes restar e.

O Dr. Juiz escondera o rosto nas mãos. As meninas mal podiam respirar, de comovidas e impressionadas.

Com um grande esforço, a tia Casimira vencera a tremura dos lábios, prosseguindo:

- Bom, a verdade é que eu não tenho nada a ver com o que fizerem do que lhes restar. Que o gozem com alegria e sem quaisquer sombras por minha causa! E. se quiserem, dêem a uma filha que Deus lhes der e sem apreensões o meu nome. Perpetuem as Casimiras. porque, disso estou certa, as Casimiras solteironas comigo se acabam. Não vai haver mais nenhuma!

O irmão descobrira a cara e fitava-a, adivinhando a explicação daquela afirmativa esxtraordinária.

- Tu? .

E a tia Casimira.

- Sim. eu redimo essa que se recusou a Deus, tivesse as razões que tivesse. Redimo a sua obstinação, a sua teimosia. Redimo-a porque o meu espírito o deseja, o requer. Redimo-a porque devia estar escrito que eu merecesse a graça de pôr fim à maldição que pesava sobre as inocentes Casimiras. Em mim se cumpre o que a nossa antepassada não quis.

As quatro irmãs, assombradas e maravilhadas, tiveram a impressão (mais tarde o confidenciaram umas às outras) de ver a tia, envolvida num halo de luz, de pé em cima de uma nuvem, com as mãos estendidas a dar - a dar ou a pedir. Ajuda nas horas difíceis. Compreensão e amor para que as pessoas possam todas ser felizes.

Teria a tia Casimira nascido para santa?

Depois de tantas e tão sucessivas emoções, reinava a calma no lar dos Abegorins. Uma calma bastante relativa, pois agora havia sempre notícias a alterar o ritmo dos dias, dado que cada menina ao registar na sua vida qualquer coisa que lhe desse novidade logo se apressava em transmiti-la às irmãs, quando não aos Pais, o que originava constantes e novos motivos de interesse a evitarem toda e qualquer hipótese de monotonia.

Dona Teresa Mafalda, desde há longos, longos anos, pela primeira vez se sentia a pairar sobre nuvens fofas. E andava tão contente, tão completa, que até rejeitara dois convites para jogar -e um deles imensamente lisonjeiro, vindo de quem vinha - uma duquesa vagamente aparentada com Ana Margarida de Ribatorpes, snobíssima na escolha das suas relações e muito cotada na melhor sociedade. Mas Teresa Mafalda preferira sair com Mirita, a escolher lençóis, toalhas de mesa, etc. etc. etc. Aquela certeza de poder comprar dava-lhe uma nova estabilidade emocional e conseguia adoçar o que porventura fosse mágoa. E era mágoa pensar que a Mirita ia para tão longe. E mágoa era também e grande! - a partida da cunhada, o seu afastamento para um mundo tão diverso desse em que até aí vivera. De resto, e com a mais absoluta sinceridade e apesar do alívio real que a decisão de Casimira Abegorim trazia às suas dificuldades materiais, tentara dissuadi-la do projecto quando dele tivera conhecimento. Um juramento solene da parte da futura religiosa, assegurando-lhe que obedecia a uma vocação e não a uma renúncia, serenara porém os escrúpulos que a afligiam e, tranqüilizada, Dona Teresa Mafalda voltara-se para os direitos das filhas e concentrava-se nos preparativos do casamento de Mirita, previsto para o Verão.

Não havia tempo a perder, de facto! Mas a Mãe das meninas não se queixava das fadigas entrevistas e, perdido o ar carregado, expressivo de sacrifício, com que normalmente andava, parecia até mais nova. com o peso que lhe saíra de cima tinham-se ido aí uns dez anos.

A Sofia mal pudera acreditar nos seus ouvidos quando, dias antes, a ouvira, entre grandes arrumações no quarto dos armários, distraidíssima a cantar um fado (e Dona Teresa Mafalda conservava intacta a sua bonita voz de rapariga, no seu tempo muito apreciada pelos amigos, que adoravam escutá-la).

Lili, em paz com a sua consciência e verdadeiramente enamorada do Júlio, que dia-a-dia confirmava os seus sentimentos repletos de bondade e de seriedade, fora apresentada à futura sogra, a sr.a Januária que franzira muito a testa quando a pequena a tratara por Senhora Dona Januária, mas não ousara objectar o que quer que fosse perante o ar natural com que o filho mostrara aceitar a delicadeza.

Excelente pessoa, sincera na sua modéstia, de que não fazia gala mas da qual tão-pouco mostrava o mínimo pudor, a sr.a Januária servira-lhe na salinha de entrada da sua casita na encosta do Castelo, muito limpa e florida, uma simples e deliciosa merenda, e botara fala, declarando-se muito feliz ao ver que encantadora menina o filho havia escolhido, tão digna de o acompanhar no destino que ia levá-lo para bem longe das suas origens e era bem Destino, pois o Júlio desde garotinho mostrara aquela inclinação para os estudos que o ajudaram a vencer dificuldades que pareciam intransponíveis, tornando-o no que já era e aproximando-o cada vez mais do que viria a ser.

Ao contar depois às irmãs quanto se passara, Lili, ante certas dúvidas da Rita que lhe perguntava se ela se adaptaria ao gênero da sogra, respondera que se orgulhava muito de que o Júlio devesse tanto à compreensão e aos sacrifícios daquela boa Mãe. Não houvera contestação. Rita compreendera-a.

Rita, aliás, principiava enfim a ter a sua própria vida bastante povoada. Antônio Fontemora escrevia-lhe com regularidade cartas volumosas, com notícias cada vez mais dolorosas acerca do Pai, cujo prematuro fim se aproximava, e versos que eram verdadeiros retratos da sua alma, dos sucessivos estados porque a alma lhe passava. Rita parecia compreendê-lo e respondia-lhe com palavras certas que o ajudavam a não perder o dom de confiar e de acreditar em dias melhores. Na verdade, Antônio Fontemora aprendia a transferir para ela o afecto que Mirita rejeitara - essa agora felicíssima Mirita que já comprara dois enormes figurinos com vestidos de noiva e passava horas à procura do modelo ideal, que não queria rico mas o mais lindo do mundo! E, cheia de hesitações, pedindo opiniões a toda a gente sem nenhum aceitar, chegava a tornar-se enfadonha - e de isto se queixava a Rosarinho que sendo a que passava mais tempo em casa era consequentemente a que mais vezes a escutava e mais vezes tinha de observar os pormenores dos modelos que em sucessão iam despertando o entusiasmo da irmã. E a Mirita, fingindo amuar, vingava-se a repetir:

- Pois. a menina não liga importância aos vestidos de noiva porque o seu casamento há-de ser lá para as calendas gregas. - uma frase muito erudita - as calendas gregas - e muito malévola, sabe-se, pois as calendas eram a divisão dos meses entre os romanos e os gregos não utilizavam nem a forma nem a expressão, pelo que quem diz calendas gregas quer dizer nunca.

A Rosarinho ria:

- Pois sim! É só o Pedro acabar o curso!

- Vem tudo a dar no mesmo. Quatro ou cinco anos de espera são uma eternidade.

- Ora deixe-se disso, Mirita! O tempo passa a correr, principalmente para quem sabe ocupá-lo.

E ela sabia.

Desde as horas das aulas às horas de estudo, com passagem pelas conversas ao telefone com o Pedro (duas vezes por dia), as visitas à sr.a D. Ester, cujas melhoras se não acentuavam, - tão pouca vontade, ou possibilidades, de reagir mostrava, como se o interior daquele corpo gordo fosse uma vela gasta, uma vela quase a extinguir-se por não Haver Mais, - às leituras, à escuta atenta de dois ou três programas de rádio que costumavam interessá-la deveras e uma escapadela a horas de sono para se entreter com a Televisão quando havia Teatro (ela adorava Teatro) ou ir ao Cinema com as irmãs e o Pedro e os noivos das irmãs, tudo se encadeava e lhe dava uma sensação de plenitude que de forma alguma a levava a desejar mais do que tinha. E, no entanto, sempre havia mais qualquer coisa que surgia e criava diversões que eram quase sempre estimulantes. Evidentemente que também surgiam as notícias negativas, essas que trazem os problemas e as dificuldades. São inevitáveis, há que contar com elas!

Naquela semana, porém, tudo correra bem e continuava a correr.

Agora mesmo a Rosarinho, entusiasmada, ao acabar de receber um telefonema do Pedro, transmitia às irmãs a comunicação que a ele o entusiasmava e entusiasmava as meninas como se estivessem dírectamente ligadas ao assunto. Pois não era notícia e notícia que dentro de horas andaria nos Jornais? Vic Nusen, o pianista e compositor amigo do Pedro, estava em Portugal. Já chegara!

E as quatro irmãs discutiam a presença do jovem artista com tanta alegria que dir-se-ia conhecerem-no de longa data.

E era como se de facto houvesse entre todos uma estreita convivência, pois o Pedro nunca mais deixara de falar dele à Rosarinho e a Rosarinho repetia fielmente às outras as apaixonantes informações. Porque não se tratava só de citar e divulgar a genealidade do que nascera dotado por qualidades assombrosas. Havia também a sua história empolgante e dramática que de forma alguma pertencia ao domínio público. Nem constava de nenhuns dados biográficos publicados nos programas que o apresentavam por onde ia passando. O Pedro (e o Paulo) sabiam tudo porque de certo modo o tinham acompanhado em horas capitais, quando se haviam tornado amigos no Reichvater, o nunca esquecido Colégio da Alemanha ao qual tantos tanto deviam!

Entre esses tantos e além do próprio Vic Nusen, o Fernando Vasco (Jacques Bertrand). E Ma-hur, o rapazinho trigueiro que brincava com pedras preciosas como se fossem berlindes. Ma-hur, o príncipe de Ichanagan, que ali aprendera a ser não um tirano enfatuado mas um governante consciencioso e cheio de humanidade.

Ichanagan.

O Pedro já prometera à Maria do Rosário que haviam de lá ir. Ela, porém, não queria pensar nisso, embora coisas que parecem fantasias se tornem em realidades magníficas.

Pois não fora justamente o que se passara com Vic Nusen? Não se dera, depois do mais brutal dos desastres, a reviravolta da sorte e não lhe surgira, primeiro a fortuna, depois a fama, e por fim outra vez a fortuna, já em ligação com a fama?

Arrebatava as multidões que o aplaudiam, como Liszt no seu tempo. Era disputado. Incensado. Pago quase a peso de oiro. E apesar de isto (o que motivava a máxima alegria do Pedro) continuava a ser o rapaz simples e afável que ele aprendera a estimar quando tudo lhe parecia vedado, a ele, o maravilhoso.

A partir desta empolgante novidade (o Vic estava instalado em casa do Paulo) perturbou-se no lar dos Abegorins a calma que se havia restabelecido.

As meninas não falavam se não do pianista. Pretendiam assistir ao concerto e ao recital e o Dr. Juiz, também deveras interessado, quis ele próprio comprar os bilhetes. Agradava-lhe um camarote, ou uma frisa. Ele compareceria a um espectáculo, a mulher a outro. A tia Casimira, absorvida por preparativos do muito que tinha a fazer, a resolver, se pudesse ir trataria de conseguir uma platéia ou um primeiro balcão.

Imaginavam, ao combinarem as coisas, tudo muito fácil. Pois era dificílimo. De uma complexidade quase sem solução.

Que quase não chega a ser totalidade. A presença de Vic Nusen devia-se a uma organização musical a que se pertencia por assinaturas. Não existiam bilhetes à venda. E, para cúmulo, as lotaÇões estavam esgotadas.

Ninguém se lembrara daquilo!

O Dr. Juiz, perante a desolação geral, de que Participava, prometeu às filhas utilizar (uma vez sem exemplo!) a alta influência do seu prestigioso nome. Conhecia um dos Directores da Nova Sociedade de Arte, telefonar-lhe-ia a tentar a cedência de entradas pelo menos para elas, nem que tivessem de ficar de pé.

Enquanto o obstáculo não se removia (o tal Senhor, muito importante, nunca se achava a horas certas em parte alguma) tudo era reboliço entre as quatro irmãs. Porque, temendo o fracasso da diligência paterna, elas próprias haviam decidido ensaiar as suas possibilidades tentando descobrir entre as amigas e colegas alguma que fosse assinante da Nova Sociedade e dispusesse de um lugar a mais. E a ansiedade e a curiosidade e o interesse passando de umas para outras, cada vez mais divulgados, acrescidos hora a hora pelas notícias elogiosas dos Jornais sob o retrato ainda por cima favorecido de Vic Nusen, gerava um clima de expectativa que, segundo a Cristina Benedites afirmava no Liceu, até fazia doer. É que, para além do talento, havia uns olhos naquele rosto de expressão luminosa.

E não havia nenhuma, nas turmas adiantadas, claro, que não ambicionasse presenciar pelo menos um dos espectáculos, lamentando não se terem inscrito na Nova Sociedade de Arte. Quem podia imaginar, quem ? .

Não havia que imaginar - diziam as favorecidas por uma previdência explicada pelos seus hábitos. Havia que freqüentar normalmente uma das mais nobres manifestações de arte - os espectáculos musicais. Essas eram poucas, no Liceu e na Faculdade. No instituto de Língua não existia nenhuma. E na Empresa de Navegação tão-pouco.

A Lili, rindo, explicava que se todas em toda a parte se interessassem (e todos) os artistas acabariam por terem de se apresentar em dias sucessivos nos grandes estádios nascidos para o culto do físico.

Fosse como fosse, nada consolava o grupo das amigas de Ana Maria (e agora da Rosarinho) cujo alvoroço ia aumentando à medida que a namorada do Pedro lhes ia dando informações directas do Vic Nusen. E admirando umas fotografias do pianista emprestadas pelo Pedro, logo fotografias com muito mais interesse e verdade do que as publicitárias, haviam chegado à conclusão, as quatro - Cristina, Inês, Marta e Maria do Rosário -, de que morreriam de desgosto se não fossem vê-lo. Porque enfim. ouvi-lo, ouvi-lo-iam. A Emissora Nacional transmitia o concerto.

A sobrevivência estava-lhes porém assegurada por um destino benfazejo.

A primeira a encontrar a salvação foi a Inês. A Inês que na véspera do grande acontecimento entrou esbaforida na aula felizmente da sr.a D. Maria Vitória (aula de moral) com três minutos de atraso - logo às 8 e 33 - e uma participação que daria bronca se fosse outra a Professora.

- vou ao concerto! Eu vou ao concerto!

Houve sussurros, risos e um pigarreio expressivo da Senhora que estava a principiar uma dissertação sobre o "o bem que se possui e o bem que se Aparte" e ficou suspensa a encarar a aluna.

Esta, agora muito atrapalhada, escarlate de emoÇão e escarlate de confusão, sentou-se e ficou muito quieta no seu lugar. Muito quieta, sim, e sentia-se que num grande esforço de auto-disciplina. Na verdade, os olhos, resplandecendo, diziam que ela estalava por explicar às amigas e companheiras a origem do feliz acontecimento. E quando Dona Maria Vitória, acalmada a agitação provocada pela rapariga, recomeçava a sua palestra (as lições iniciavam-se sempre com essa característica para terminarem num debate de que participavam umas tantas designadas em cada aula) a Inês não pôde mais e ousou sussurrar para a Cristina, que a encarava implorativa, desejosa de pormenores:

- O Artur teve bilhetes lá no Jornal. Encarregaram-no da crítica, porque o sujeito habitual adoeceu.

E a Cristina, no mesmo bichanar:

- E ele sabe fazer crítica ?

- Parece que sim! Porque além de ser inteligente e de ter muito jeito para escrever, é músico também.

- Ah, pois!

- Estou louca de alegria! Quando ele me telefonou, ainda não eram oito horas, eu nem podia acreditar! Julguei que o sono me toldava a compreensão! E afinal. era mesmo verdade! vou ao concerto.

A Marta, a conspícua Marta, não se conteve que não murmurasse:

- Na verdade. chama-se a isso começar bem o dia! - e suspirou: - Quem me dera também ir ao concerto!

- Eu nem quero pensar que não vou! Sonho noite e dia com o concerto.

E as outras intervinham, comentavam, efervescentes.

E tantas vozes ciciaram a palavra concerto, que a sr.a D. Maria Vitória, a quem nada passava despercebido, deixou de falar. Mas, em vez de emitir um schiu que as metesse na ordem, indagou:

- Vamos lá a saber, meninas. que concerto vem a ser esse que assim as excita?

Estabeleceu-se o silêncio. Embaraçadas, nenhuma sabia se a pergunta pretendia ou não uma resposta. Passara-lhes despercebido o seu verdadeiro significado e tanto podia haver interesse como censura na interrogação.

Dona Maria Vitória, porém, e percebendo-as, insistiu:

- Respondam! Vivo um bocadinho à margem dos acontecimentos mundanos, absorvida pela minha profissão e pela minha família.

Inês ripostou, com vivacidade:

- Mas não se trata de um acontecimento mundano! É um grande acontecimento musical!

- Ah! - e Dona Maria Vitória não se agastara com a réplica. - Aprecio o esclarecimento. mas fico na mesma! De que acontecimento se trata?

E a Cristina, embalada:

- Da primeira apresentação em Portugal de um grande pianista nosso amigo!

- De um amigo das meninas? Bravo!

A intenção irônica do sorriso da Professora escapou a todas. Perdão, a todas, não. A Marta sentiu-se no dever de rectificar a exagerada afirmativa da Cristina.

- Bom, S'Dona Maria Vitória, amigo nosso não é bem. O que ele é é amigo de um amigo nosso, -e para esclarecer por completo a Professora. - A S'Dona Maria Vitória lembra-se da Ana?

- Qual Ana?

- A Ana Maria Ferreira de Macedo.

- Quem pode esquecer-se da Ana Maria, filha?

- e sorriu, já sem sombras de zombaria. - A Ana Maria, porém, não é um amigo. é uma amiga!

Estrepitaram gargalhadas.

E a Marta rectificou, rindo como as outras.

- Bom. é que eu ia falar no irmão da Ana, o Pedro. Citei a Ana apenas como ponto de referência.

Aquela da Ana ser ponto de referência fez de novo com que a maioria das raparigas, que deveras estimavam a colega agora tão distante, risse francamente.

Dona Maria Vitória havia entretanto percebido o alcance da alusão e não o ocultou:

- Nesse caso o moço concertista é amigo do Pedro Ferreira de Macedo.

- Exactamente! - aplaudiu a Cristina, feliz pela dedução que evitava mais esclarecimentos.

E a Senhora, distraída a informação anterior:

- E que toca ele ? Violino ?

- Não, piano!. - e a resposta soou numa dezena de vozes.

- Piano?. Muito bem, adoro piano. E. Como é que ele se chama?

E umas vinte, em coro:

- Vic Nusen!

Dona Maria Vitória começou a rir, tão descontraída como as pequenas:

- Ante uma tal reacção sou obrigada a deduzir que esse Vic Nusen já é célebre! Sinto-me envergonhadíssima por lhe ignorar o nome.

Levantou-se a Inês, açodada e obsequiosa, com um Jornal desdobrado nas mãos, a avançar para o estrado:

- Se a S'Dona Maria Vitória quer ler. vem aqui, na Página das Artes.

Dona Maria Vitória aceitou, leu. e ficou entusiasmada. Tão entusiasmada que depois de ouvir a Cristina, no meio do silêncio geral, contar a história do jovem artista, manifestou um enorme desejo de também assistir pelo menos a uma das suas apresentações. E a dificuldade de obter bilhetes, por muitas apontada como impossibilidade, não lhe diminuía o interesse.

Até ao fim da aula só se falou de arte, da luta pela vida, dos direitos do talento, etc. etc. No fundo, tudo aquilo se tornava numa grande lição, arrancada à própria realidade.

Quando acabou naquele dia o primeiro tempo, as raparigas, nos dez minutos de intervalo, espalharam entre as outras a euforia de que estavam possuídas.

Inês, Cristina e Marta, acompanhadas por mais umas três ou quatro, encontraram-se com a Rosarinho, cujos olhos se dilataram num misto de satisfação e de cobiça ao saber que a Inês ia ao concerto logo sobreviveria ao que para as outras continuaria a ser uma ameaça à própria vida.

E, quando chegou a casa, levava aquela grande notícia às irmãs.

No entanto, quando esperava que elas reagissem manifestando mais uma vez as suas dúvidas quanto às possibilidades de resistirem ao desgosto de terem de ficar em casa a ouvir Vic Nusen pela rádio (a Mirita era apesar de tudo a mais conformada, afirmando que se deitaria comodamente de lingrinhas à cabeceira. ) viu-as desatar a rir. E não teve tempo de pasmar, porque também sobre ela desceu a alegria.

A avó do Pedro, a avó Teresa, telefonara ainda não havia muito tempo a convidá-las às quatro para irem com ela ao concerto pois desfrutava apenas. de uma frisa! Explicação do milagre o Vic dispunha de uma frisa para cada espectáculo. Uma para o concerto, outra para o recital. Ofereceu-as aos dois amigos, à sorte. A do concerto calhara ao Pedro.

E como a boa-nova fora dada à mesa, com todos sentados, não houve nada, nem o olhar reprovativo do Pai, que impedisse Maria do Rosário de se levantar para ir dar um beijinho a cada uma das irmãs, como se lhes fosse devida, a elas, uma tal mercê. E porque logo em seguida voltou para o seu lugar, compostíssima, o próprio olhar reprovativo do Dr. Álvaro Abegorim cedeu, passando a expressar contentamento. Era inevitável! Pois se elas estavam tão felizes.

Já na sobremesa, com o Jornal aberto (infracção que também não foi repreendida) a Rita apontava o anúncio do concerto onde, em grandes letras negras, se lia o nome de Vic Nusen e o programa. Vic tocava o concerto n. 1, de Tchaikowsky.

Dona Teresa Mafalda e o marido, conformados com a frustração dos seus desejos (o Dr. Abegorim não conseguira encontrar o ilustre senhor da Direcção da Nova Sociedade- e já agora, resolvida a situação das filhas, desistia por completo da sua pretensão) ficariam em casa, a ouvir a transmissão do espectáculo.

Mas nem assim, com esta aceitação dos factos, o palpitante assunto se esgotava.

Estavam na fruta, quando o telefone soou.

Sofia veio dizer que era o Só Tôr Paulo de Lemos para a menina Lili.

Foi um espanto.

O Paulo para a Lili? A que propósito?

Leonor Augusta, após um aceno do Pai a autorizá-la, saiu da mesa e da sala de jantar.

As três irmãs que ficavam, teciam conjecturas. Que seria? Que se passava?

Qualquer recado do Paulo parecia natural que viesse do Pedro para a Rosarinho.

Pois iam modificar-se as aparências com o rápido regresso da Lili, animadíssima a explicar o acontecimento.

- Imaginem que o Paulo faz anos precisamente no dia do concerto do Vic Nusen!

A Mirita rectificou:

- Queres tu dizer - amanhã!

Desataram as quatro a rir. E a rir a Mirita proferiu:

- Não me digas, Lili, que o Paulo te telefonou só para te participar o feliz acontecimento pretendendo que a gente vá cantar-lhe da rua, em serenata, o Happy birthday to you.

A alegria esfuseava. O Dr. Juiz e Dona Teresa Mafalda divertiam-se com os factos e com a animação das filhas.

Já Lili esclarecia as irmãs das verdadeiras razões do telefonema, logo da comunicação:

- Olhem a tolice! Era agora para me pedir de presente um recital das manas Abegorim. O que ele queria era convidar-nos para irmos à festa que ele vai oferecer com uma dupla finalidade - festejar o seu aniversário e homenagear o Vic Nusen!

Interpretando a aprovação geral, a Rita exclamou:

- Bravo!.

A Rosarinho, muito corada, pensava, intimamente deslumbrada, que ia conhecer. não Vic Nusen, mas o actual ambiente em que o Pedro vivia. E, o que ainda lhe importava mais, que ia passar umas horas junto dele.

- Só não percebo uma coisa! - declarou a Mirita. - Porque é que o Paulo te telefonou. a ti?

- Naturalmente, penso eu, porque sendo a mais velha represento o conjunto irmanal!

- É capaz de ser isso!

A outra quis saber:

A festa é só para nós, meninas, ou também mete meninos?

Também mete meninos, descansa! O Paulo

disse-me que levasse o Júlio e que te dissesse que convidasses o Zé.

- Ah? . - e tranqüilizada, sentia-se: - Tá bem. Rita suspirou. Só ela não tinha quem a acompanhasse.

A nuvenzinha que sobre ela desceu não conseguiu porém impedi-la de comungar com a boa disposição das irmãs, entregues por completo ao entretecer dos projectos que tão ditosas as tornavam. E começaram a preocupar-se com as "toilettes" para o concerto e para a festa.

As duas do meio eram as que se mostravam mais atrapalhadas. É que, indo ambas, não havia grandes probabilidades de habilidosas permutas. Até nem havia nenhumas!.

A Lili, a rica, nadava em optimismo. Recebia o ordenado de aí a dois dias. A tia Casimira abonava-Lhe o preciso - e contra isso o Pai não se insurgiria e ela comprava:

- Um vestido verde-escuro que vi ante-ontem numa boutique. Não é nada caro e deve ficar-me a matar. E depois não custa muito dinheiro! E dá lindamente com os sapatos castanhos e a carteira. e o meu casaco!

A Rita, depois de muito matutar, chegou à conclusão de que podia levar o vestidinho de jersey azul que fizera no Natal. O pior é que os sapatos estavam velhíssimos.

Mirita vestiria talvez o cor-de-rosa da Páscoa anterior. com os sapatos de verniz preto, ainda em bom estado, agüentava. Quanto a casaco. enfim. E quem não gostasse que não olhasse, paciência!

Rosarinho, interrogada, declarou que não sabia o que havia de levar mas que também não se preocupava com isso. E disse mais:

- De qualquer maneira, vou. nem que seja mascarada de arco-íris!

As outras riram, pensando no que seria a irmã multicolor dos pés à cabeça.

O Dr. Abegorim levantara-se havia instantes e pedira à mulher que o acompanhasse.

E Dona Teresa Mafalda reaparecia já, trazendo no rosto uma expressão contente, contente.

- Filhas, - disse, mostrando entre os dedos um papelito rectangular de aspecto insignificante, - o Pai deseja que as meninas não tenham problemas para essa festa a fim de que possam vivê-la completamente felizes. Graças à decisão da tia Casimira, a nossa situação tornou-se muito mais desafogada, naturalmente. As economias que o Pai desde sempre tem feito, a pensar no futuro das meninas, estão agora disponíveis. Por isso, e premiando muitas renúncias ao longo destes longos e bons anos, o Pai faz-lhes esta dádiva. Tenho aqui um cheque de quatro mil escudos. Um conto de réis, à antiga, para cada menina se vestir. Governem-no o melhor possível, porque, embora pareça bastante, não dá para loucuras e.

E não pôde continuar. As quatro filhas quase a asfixiavam, a abraçá-la e a beijá-la, transportadas de júbilo. E só diziam:

- Oh, Mãe! Oh, Mãe!.

E depois, largando-a, correram à procura do Pai.

E também o Juiz sentiu a respiração cortada.

Quando por fim, serenadas as manifestações de alegria, ela dispersaram, preparando-se para dar realidade às suas pequeninas ambições - tão grandes na importância para elas! - sentiam-se mais felizes do que muitas milionárias.

Na verdade não há nada melhor do que desejar durante longo tempo apertar um dia nas mãos todas as horas de sonho concentradas numa coisa, por mais insignificante que se afigure a quem não sabe o que é não poder ter aquilo de que se precisa.

- Já sabes?.

Como disseram ao mesmo tempo e mal se avistaram, pelo meio das que se empurravam e atropelavam a caminho das aulas, aquele triunfante "já sabes? ", não se ouviram sequer umas às outras mas foram ouvidas por imensas que, cheias de curiosidade face à novidade assim anunciada, queriam à viva força saber o que pelos vistos as interpeladas desconheciam. e dificilmente deveriam deixar de ignorar, atabafadas por um grupo que as rodeava, interpelando-as insistentemente, impiedosamente:

- O que foi? O que há? Que se passa? Marta, Cristina e Maria do Rosário, divertidas

Com o incidente, esbracejando para se livrarem da onda branca (sem resultado!) riam, limitando-se a repetir o quesito que não apreendiam, no tumulto:

- Já sabes?.

- Contem, contem!

A exigência não seria satisfeita. Iam ficar praticamente todas no desconhecimento do que se ocultava nas sílabas daquela interpelação tão cheia de algo que devia ser óptimo - a acreditar no brilho dos olhos das que perguntavam "já sabes?. " porque a voz estridente da gorda D. Rafaela (o dragão fardado do Liceu, a contínua que há tantos anos amedrontava as raparigas) gritou do fundo do corredor, mais forte do que se soasse por um altifalante:

- Meninas, prás aulas! Prás aulas, antes que eu perca a paciência e tire o número a todas!

A Cristina, entre-dentes, comentou:

- Bem razão tinha a Ana para não gramar esta fúfia! Irra!.

E a Inácia, que estava mesmo ao lado dela, percebendo a observação:

- Se fosse só a Ana que tivesse razão para não gostar desta peste!. Mas temos todas!. Até parece que a D. Rafaela nunca foi rapariga!.

Principiaram a separar-se. A onda branca dispersava, sumia-se, prestes a tornar-se apenas respiração contida por muros e portas.

As duas do sétimo ano iam juntas a afastar-se (três, com a Inácia). A Marta e a Cristina sempre a virarem a cabeça para a Rosarinho que seguia sozinha em direcção oposta. Custava-lhes deveras aquela separação sem participação da Maria do Rosário no que entre elas não tardaria a ser cochichado, revelando a grande nova à Inês e uma à outra. Desconheciam que a mais nova como elas havia gritado "já sabes?. "

É que a pequena também chegara ao Liceu com uma notícia para transmitir e ansiosa por dá-la. E a notícia, contida, magoava-a tanto que ela não pôde continuar o seu caminho, rumo à aula de Física. Parou. E voltou-se, como se nas suas costas houvesse mais ar do que à frente e o facto de respirar fundo a aliviasse.

Engraçado! Ela parou e virou-se. As amigas, naquele exacto momento, tinham parado e voltado também. De forma que se viram a olhar-se, distanciadas por muitos metros e evidentemente disPostas a saberem.

E no grande corredor claro, sob o olhar azedo de D. Rafaela, revelaram num brado triunfal que ecoou até ao andar de cima, sobressaltando a antítese de D. Rafaela, a pachorrenta D. Maria das Dores, sempre a achar que as pequeninas eram as flores mais lindas do mundo:

- vou ao concerto!.

Frase nas bocas de Marta, de Cristina e de Maria do Rosário. Frase a que se misturaram risos, no pronto reconhecimento da alegria que as irmanava.

Frase a que logo se seguiu outra, também em coro:

- E vou à festa do Paulo!.

A Inês também a pronunciara e também ria.

- Meninas. vão ter faltas de castigo!

- Oh, D. Rafaela!. -e abriram a porta da aula e desapareceram, engolidas pelo silêncio De Maria das Dores - a Dorzinhas - que descera até meio da escadaria, a investigar, rabujou com a colega:

- Oh, mulher. pois não te compadeces com a alegria daquelas florinhas?. A mim, sabê-las felizes dá-me a idéia de que sou capaz de viver só a cheirar rosas!.

  1. Rafaela foi sentar-se na sua mesa, tão árida como ela própria, a tamborilar com os dedos remo ques sem palavras.

Dorzinhas voltou para o seu poiso, a abanar a cabeça. Não valia a pena falar à sensibilidade das pedras. E riu de si própria, baixinho. Pedras com sensibilidade. ? . Ai, ai!

Rosarinho, na sua aula, perdoada pelo breve atraso, conseguiu arrumar a alegria e a ânsia de ver a tarde chegar ao fim no cantinho das conveniências, a fim de ouvir atentamente as explicações que deveras lhe interessavam. Aluna de quadro de honra permanente. Quanto à troca de impressões com as amigas, aceitou o atraso muito racionalmente.

"Encontramo-nos no intervalo. "

Encontraram-se no intervalo.

Os dez minutos seriam escassos para mutuamente se esclarecerem da forma porque o inesperado- inesperado e magnífico! - se lhes ofertara. Ficava de parte a Inês, claro. Essa já não tinha que explicar, visto que desde a véspera se sabia que ela iria ao concerto. Quanto ao convite para a festa, sendo o Artur primo do Pedro. nada mais explicável. Ou sendo a Inês amiga da Ana.

Por aí se resolvera a situação da Cristina. Enchera-se de coragem e telefonara ao Pedro. E o Pedro imediatamente lhe dissera que a levava com ele e com o Paulo. Entravam pela porta do cavalo, ou seja, pela porta dos bastidores, a que dá ingresso aos artistas. Deveria pela certa assistir de pé, mas não importava desde que o essencial era estar lá.

Com a Marta fora diferente. Uma amiga da Mãe fizera uma assinatura para aquela série de concertos. Tendo-lhe morrido o sogro dias antes estava impossibilitada de freqüentar espectáculos por uns tempos. A Mãe de Marta, sabedora do pesar da filha, fizera uma diligência junto da senhora em questão, aliás bastante íntima. "Não quereria ela ceder-lhe a entrada para o concerto de Vic Nusen, pagando ela, claro. ?" O pagamento foi rejeitado. O bilhete oferecido. Marta, com as suas economias comprara uma orquídea e mandara-a numa caixinha de celofane a quem soubera proporcionar-lhe uma alegria. Na bondade cabe tanta coisa.

A história da Rosarinho era muito diversa, sabe-se. A avó Teresa possuía uma frisa e levava-a a ela e às irmãs; o Paulo telefonara à Lili, em convite oficial para a festa. E o Pai dera-lhes quatro contos para se ajanotarem, pelo que a seguir ao cabeleireiro (estavam já autorizadas a aproveitar a hora do almoço, a fim de não se atrasarem) iriam a correr fazer compras. Tinham tempo. Sabiam exactamente onde se dirigirem, não corriam o risco de andar de loja em loja, luxo de quem tem horas Para dispender.

Comungavam todas das mesmas esperanças e dos mesmos encantamentos. Tudo estava certo, para elas, quando a campainha as chamou à continuação dos deveres.

- Reunião no próximo intervalo!.

E saíram do cantinho da janela onde se haviam abrigado das coscuvilhices. Para troca de impressões só delas, preferiam isolar-se. com efeito, muitas das que tinham pedido explicações para o já sabes de há uma hora, perguntavam-lhes ao vê-las passar, aceleradas:

- Onde é que vocês se meteram ?.

E a Cristina, a duas delas, mais persistentes:

- No cano de esgoto, como de costume! É o sítio ideal para nos libertarmos das curiosas.

Por vingança, as outras deitaram-lhe a língua de fora.

E no segundo intervalo, escapando à vigilância desorganizada das colegas, lá se encontraram outra vez no recanto da janela, nas traseiras do edifício. É que nunca iam juntas. mas cada uma por seu lado e às vezes até pelo andar superior. Manhas!

Agarraram no assunto como se não tivessem Organização Política (a do 7.) e Matemática (a do 6.) a enchê-las de problemas durante cinqüenta minutos.

- Quem vai, sabem ? - indagou a Inês.

- À festa, acho que todas as conhecidas! - volveu a Rosarinho. - Até a Alicinha foi convidada.

- Olhem a lambisgóia! - replicou a Cristina, que não engraçava nada com a loira e branca filha do Eng. ? Fontemora. - Fazia lá uma falta!.

A concordância da Inês foi adoçada pela interferência da Marta.

Ora vá, meninas!. Sejam piedosas para com a pobre rapariga!

- pobre? - ripostou a Inês. - Uma ricaça. E a Cristina:

- Além disso não merece nada, porque é mazinha a valer!

Lá mazinha é. não há dúvida! - e a Rosarinho, num desabafo (o grande desabafo das pessoas habitualmente reservadas, ou melhor, caladas) principiou a contar aquela história do telefonema que a simpática amiga da irmã fizera à Mãe, não ia ainda muito longe o dia, a arranjar uma intrigalhada medonha que a envolvia a ela, ao Pedro e à S'Dona Ester do primeiro andar.

Estavam todas interessadíssimas - todas e mais umas tantas que por fim as tinham descoberto e em silêncio se apinhavam, tão em silêncio que elas só as viram quando já não valia a pena nem mandá-las embora nem sair dali. Mas Maria do Rosário ficou a pouco mais de meio da narrativa. A impiedosa campainha de novo as chamava para o trabalho.

E lá foram, obedientes mas atrasadas. Atrasadas porque esperaram que Maria do Rosário parasse. e esta, lançada, só se deteve quando sentiu que podia dizer (como disse) "Ponto, parágrafo!" Por atrasadas, em grande corrida, na travessia longa dos corredores A darem ensejo que D. Rafaela desabafasse de maneira que elas a ouvissem:

- Umas matulonas a portarem-se como garotas do 1. ano! E há quem queira fazer gente disto!.

Rosarinho, na carreira, sofreu um percalço. Não.

Não foi um percalço. Esbarrou com a Reitora, que ia a sair de uma aula e que a olhou mal contendo um sorriso na censura.

- Oh, filha!. Cuidado!

- Mil perdões, sr.a Reitora! - e depois de lhe atirar um beijo nas pontas dos dedos, enfiou positivamente na sala onde a Dr. a Olga Violante a flagelou com aquele seu olhar característico, tão difícil de suportar como a reprimenda que logo se lhe seguiu, injusta como normalmente todas as que fazia:

- Sempre fora de horas, menina!.

E a doce Rosarinho, a mesma doce Rosarinho que segundos antes atirara um beijo nas pontas dos dedos à Reitora, teve de dominar-se para não encolher os ombros malcriadamente. Bom. verdade verdade. encolheu-os, mas por dentro. Encolheu os ombros do espírito, a admitirmos que o espírito tenha ombros. E, de pálpebras meio-cerradas sobre os seus lindos olhos azuis agora não brilhantes de alegria mas relampejantes de indignação, caneta a rabiscar a capa do caderno ainda fechado, a rapariguinha pensou que na realidade as pessoas algumas vezes são o que as outras fazem delas, ou seja: os bons podem momentaneamente ser maus e os maus ocasionalmente tornarem-se bons.

- Meninas, atenção. Preparem-se para tomar apontamentos. - e a voz agreste perorava sobre confusos cálculos de uma avançada técnica onde a inteligência pedia meças aos conhecimentos.

Que lá esclarecedora e sabedora isso a Dr. a Olga Violante era-o como poucas! Pena não coar os seus ensinamentos por uma compreensão que fizesse com que o espanto das raparigas se tornasse em carinhosa admiração.

As pequenas, debruçadas para as carteiras, olhos ora nos cadernos, ora no quadro negro, iam escrevendo, escrevendo.

Maria do Rosário continuava a fazer riscos na capa do caderno.

Atrás dela, a Lucília Montemor, -uma das colegas que mais a estimavam, chamou-lhe a atenção, num susto:

- O caderno! Abre-o!

Era um sopro, o aviso. Mas Rosarinho entendeu-o. E, num aceno de agradecimento, obedeceu à sugestão. Não serviu para nada. Continuava a pensar que se tornava infinitamente desagradável embirrar com uma Professora, mas não havia nada a fazer, porque ela não Podia suportar quem só a hostilizava, quem já quisera prejudicá-la. E não ouvia nada do que a Dr. a Olga Violante explicava!

Quando a Mestra, após uma breve pausa, anunciou que ia chamar umas tantas alunas a fim de avaliar do aproveitamento dessa lição, muito importante, Maria do Rosário emergiu do mergulho que dera em si mesma. E emergiu a debater-se com uma sensação de perigo.

Ergueu os olhos que mantivera obstinadamente fixos no papel quadriculado e viu que as pupilas da Dr. a Olga Violante estavam poisadas nela. Como que indecisos.

Efectivamente a Dr. a Olga Violante observara a conduta da loirinha durante os últimos minutos Tinha falado a reparar que ela se conservara sempre inclinada e com a caneta bulindo. A escrever o que devia?.

Na expressão da Professora viu-se desenhado o número de Maria do Rosário Abegorim, para iniciar a chamada. Maria do Rosário Abegorim soube-o como as outras. E, mentalmente, uma prece formou-se-lhe no coração, no cérebro, em todo o seu ser intimidado, tão pequenino na iminência da catástrofe

- Oh, minha Nossa Senhora, valei-me!. Dois segundos decorridos, a Dr. a Olga Violante

chamou:

- A menina. A 19.

A 19 era a Lucília, a que estava atrás da Rosarinho, a que sabia tão bem como a própria que o caderno, naquelas páginas abertas, só continha rabiscos. E a Lucília ergueu-se, abeirou-se do estrado, respondeu às perguntas da Professora, serenamente, conquanto pasmada com o que sucedera. Tão pasmada como a Rosarinho que de uma algibeira da bata tirara o lencito enxugando nele as lágrimas de emoção que tentavam escapar-se por entre as pálpebras momentaneamente cerradas.

Estava ainda trêmula quando, no fim da manhã, voltou a encontrar-se com as amigas, para quem não houvera problemas. E foi, colhida pela boa disposição delas, uma boa disposição que não fizera se não crescer, pois haviam passado a aula tão distraídas como a própria Rosarinho, a trocarem pormenores e informações, que ela, serenada e esquecida do incidente, acabou de contar (já de resto em plena rua, antes da dispersão) o fim da história ocorrida com a Alicinha Montemora e ouviu a última novidade, a que a Marta guardara para o momento da despedida, como quem guarda uma gulodice para terminar um banquete.

É que ia haver outra pessoa no concerto do Vic Nusen e na festa do Paulo!. E os olhos meigos de Marta pareciam dois luzeiros de felicidade, ao participá-lo.

- O Domingos deve estar a chegar!. O Domingos vem de Penarim propositadamente, a convite do Pedro e do Paulo!

E a Cristina, entusiasmada, teve um pensamento largo, generoso como o seu coração que sabia ser amigo:

- Temos de escrever à Ana Maria a contar-lhe tudo isto!.

Concordaram, unânimes. Perguntou a Inês:

- Como é que fazemos ? A Marta propôs:

- Já agora deixamos que tudo se efectue, que tudo se realize. Depois marcamos uma tarde, reunimo-nos na minha casa -e fitou a Rosarinho, que parecia suspensa e logo abriu um sorriso tão cheio de ventura como os olhos da Marta, - e pomo-nos ao trabalho.

- De que maneira?

- Escrevemos todas!

E a Inês:

- Ao mesmo tempo?

- Não, à vez! Isto é - cada uma vai botando no papel aquilo de que se lembrar.

- Em vários papéis?

- Não. Num só! Arranja-se um bloco e umas após outras, conforme as idéias nos acudirem, contamos, explicamos. em jeito de conversa, percebem ?

Percebiam e aplaudiam. A Rosarinho comentou:

- Dessa maneira não escapa nada, porque o que falhar a uma acode a outra.

- Claro! E depois assinamos todas!

- A Ana vai adorar! - aprovou a Cristina rindo.

- Recebe com certeza um volume digno da mais luxuosa encadernação!.

- Portanto, fica marcado para depois de amanhã. heim?.

- Depois de amanhã. - aderiram a Inês e a Cristina.

- Às cinco e meia!

E foi então que, inesperadamente, sustendo o sorriso de pouco antes, a Rosarinho, contraída, exclamou:

- Esperem. acho melhor não contarem comigo!

- Essa agora ? - estranhou a Marta. - Não contamos contigo, porquê? Não podes?

Maria do Rosário, inesperadamente, entrara numa daquelas fases pouco vulgares nela mas que, sucedendo, a isolavam de tudo e de todos. Dir-se-ia que se enrolava sobre si própria, como um bichinho de conta. Tão enrolada, que a sua verdade lhe ficava apertadinha no íntimo, sem que ninguém pudesse divisá-la.

- Então? - esperava Marta, tão surpreendida como as outras.

E Rosarinho encontrou uma explicação que pareceria motivo suficiente.

- Vocês sabem. pensando melhor, não se justifica que eu junte o meu nome ao vosso, para escrever à Ana Maria. Pode fazer-lhe confusão!. No fim de contas, apareceria como uma intrometida, visto que nunca me dei com ela.

- Lá isso, esclarecíamo-la acerca da tua presença entre nós. - sugeriu a Cristina.

- Não me parece a propósito, por agora. Prefiro deixar isso para outra ocasião.

E não houve que dissuadi-la, tanto mais que, vistas bem as coisas, ela tinha razão.

Assim se despediram, até ao fim da tarde.

Até ao fim da tarde. tanto a fazer!

Tanto!

Rosarinho, a caminho de casa, num passo lento discordante com esse tanto (devia largar os livros e correr para o cabeleireiro) pensava, num esforço imenso. Pensava que desistira no momento exacto do que lhe agradava para além do normal. Porque não está certo que se viva apenas para o próprio prazer - principalmente quando se foi tocado por graças especiais, graças mais fortes que a força dos homens.

Ela tinha de saber AGRADECER. E, principalmente, de saber MERECER.

Chegou à porta de casa, tocou para o porteiro.

- Sr. João, por favor. leve lá acima a minha pasta e a bata, sim?

Pois não havia de levar? com certeza!

E Rosarinho, o mesmo ar estranho na doçura das feições, continuava o seu caminho.

Não, não se dirigia para o cabeleireiro. Tinha que fazer, antes.

De AGRADECER. De MERECER. A tarde de segunda-feira não a consagraria ao que só podia dar-lhe profundo gosto-juntar o seu nome aos nomes das amigas, as amigas da Ana, e começar a revelar-se a essa que um dia, acreditava-o do fundo do coração, ia ser da sua família, como uma irmã. O que arranjara como razão não passara de uma mentirinha. Uma mentirinha de que devia penitenciar-se. Sabia lindamente que a Ana compreenderia, tanto mais que já devia estar ao facto de.

A tarde de segunda-feira dedicá-la-ia à felicidade alheia - para AGRADECER. E, agradecendo, seria digna de MERECER. São coisas muito importantes!

Estavam, em sucessão, a acontecer-lhe coisas muito importantes. Pois aquilo na aula, o que fora?.

Ia andando e rememorando, para ter a certeza. Distraíra-se, na aula. Culpa não grave, bem o sabia, que o sr. Padre Cristóvão dissera-lhe uma vez, por ela cheia de pesos na consciência se acusar de se perder a meio das orações, que as pessoas são sujeitas a fraquezas e fraquezas nem sempre se tornam pecados. Fosse porém como fosse, distraíra-se. E distraindo-se correra sério risco - considerando o risco dentro do que para ela era agora essencial, o seu cursozinho. Ao reconhecer a culpa e o risco, implorara, sem ter tempo de pensar, sequer, o auxílio de Nossa Senhora. E o auxílio chegara no instante exacto!

Porque a Dr. a Olga Violante não ia dizer 19. Não ia, não era possível. A Dr. a Olga Violante ia chamar um número muito diferente, o número que a condenaria, mostrando que no caderno aberto, no caderno dela, Maria do Rosário de Medeiros de Passos Abegorim havia rabiscos em lugar de apontamentos. E Nossa Senhora interviera! Nossa Senhora sabe perfeitamente distinguir as grandes faltas das faltas pequeninas. Não se deixa enganar. Não se deixa enganar e lê nos corações. Lera dentro dela tudo, até a mentira que dominara a sua verdade, ao escusar-se a ir a casa da Marta. Lia dentro dela, sempre. E sabia que era uma alma pura a daquela rapariguinha ajoelhada que esperava vez no confessionário, atrasando-se para o cabeleireiro, atrasando-se para as compras, ansiosamente e sinceramente desejosa de MERECER, para AGRADECER.

Longos minutos decorridos, o sacerdote, invisível, voz de compreensão e de paz, sentindo a fé da menina, não se achou no direito de perturbá-la tentando demonstrar-lhe que não se deve acreditar em milagres por coisas tão insignificantes. E disse-lhe com brandura:

- A glória divina não acolhe as injustiças, minha filha. Porque sempre que alguém delas se torna vítima, os corações de Maria Santíssima e de Jesus Cristo apertam-se de amargura. e não pelos que as sofrem, mas pelos que as praticam. A si nada lhe aconteceu. E a sua Professora ficou livre de mais um erro pelo qual um dia lhe pediriam contas, no Céu. A compreensão dos fortes e poderosos é lei cristã a favor dos fracos e humildes.

E como confessor ficasse calado, a vozinha clara ousou indagar:

- Deverei acusar-me à Professora da falta que cometi não escrevendo os apontamentos?

Sentiu-se que sorria enternecida a boca que lhe respondeu:

- Quando Nossa Senhora ajuda. não há que modificar situações. Se os apontamentos lhe fazem muita falta. acho bem que se penitencie pedindo-os emprestados a uma colega e copiando-os sem destruir as folhas com os tais rabiscos.

- Por quê?

- Porque é de uma grande utilidade para o bem da nossa alma termos a coragem de reconhecer os nossos próprios erros.

- Ah, com certeza!

E ela teve a coragem de o fazer.

- Creio. creio que estou em pecado de orgulho!

- Por quê, filha?

Ela disse que renunciara a uma coisa que lhe dava a maior alegria para praticar uma acção meritória e que se sentia como uma heroína. Ora santos e heróis não sabem que o são! Ela, admitindo-se em privilégio, invalidava a generosidade do acto a praticar. Como remediá-lo?

O sacerdote não estava habituado a confissões daquelas. Sentia-se muito impressionado.

- Pois é, filha. pois é. Eu compreendo! - e sem disfarçar a comoção: - Oiça. reze dez Pai-Nosso. cinco Ave-Maria. e pratique a sua boa-acção sem quaisquer escrúpulos. A boa-acção chegará onde deve. mas o seu pecado de orgulho não vai passar daqui.

Maria do Rosário devia sentir-se em paz, uma vez cumprida a suave penitência. Mas não conseguia. Qualquer coisa dentro dela, bem fundo na sua alma, se agitava e revolvia num desassossego que a não deixava caminhar de olhos erguidos. Um peso, bem maior que o do manto loiro que na posição em que seguia lhe tapava um tanto o rosto, obrigava-a a deixar pender a cabeça, tentando perceber. Perceber a verdadeira verdade e não a verdade que ela reconhecera antes. E a verdadeira verdade irrompeu, trêmula primeiro, depois firme, da névoa das conveniências. Pois como ousava ela, em expiação, em redenção, aceitar como sacrifício o que afinal desde há algum tempo se lhe tornara também um gosto - o dever de fazer companhia, de dar assistência, um pouquinho todos os dias, à pobre D. Ester, cada vez mais amarrada ao leito pela tristeza e pela doença implacáveis?

Sacrifício seria não ir ao concerto, nesse dia. Sacrifício seria não ir à festa em casa do Paulo.

Era a verdadeira verdade que surgia, que se impunha.

E a menina de 15 anos, vendo-a com a maior clareza, encolheu-se toda, a chorar por dentro, num desgosto imenso de não ser capaz de vivê-la. E a si própria disse, em justificação, em esclarecimento, em humildade:

- Não posso, não posso, não posso. Eu não sou a tia Casimira!.

E foi, a partir daquele momento, que as orações rezadas junto ao altar pareceram tornar-se realmente eficazes. Perdidas na alma da rapariguinha, deviam ter enfim subido ao céu.

Maria do Rosário, sem mais nada, sentiu-se assim, de súbito, em paz consigo mesma. Logo, feliz.

O entusiasmo tecia laços que ligavam entre si os vários lares conhecidos onde raparigas e rapazes transbordavam de animação.

Eram cinco da tarde.

Em casa dos Abegorins reinava o tumulto dos dias grandes, dos dias de festa.

A tia Casimira, que não quisera turbar a alegria das meninas com a comunicação que trazia na carteira (a carta nessa manhã recebida de Turim e na qual lhe era participado que a sua proposta fora aceite e podia partir quando o desejasse, a iniciar a sua vida religiosa) preparava-se para as ajudar nos alindamentos finais, dado que Dona Teresa Mafalda se vira compelida a sair para à última hora tomar parte num campeonato de bridge (íntimo, claro) em casa da Sara Francelim, comprometido pela súbita falta de uma outra amiga a quem morrera o marido inesperadamente. Por tal sinal que seria ela, Teresa Mafalda, a vencedora, podendo orgulhar-se dos seus talentos de jogadora com a exibição do troféu conquistado- uma taça de prata com 18 centímetros de altura. Isso consolá-la-ia de haver deixado o marido sozinho em casa até às tantas. De resto o Dr. Juiz sossegara-a, apoiando a sua atitude compreensiva e simpática - tanto mais que ela fora convidada com antecedência e esquivara-se a aceitá-lo por ser um sábado e ela detestar sair quando o Dr. Abegorim ficava em casa. Mas enfim, a amizade tem exigências e impõe deveres. E ele precisava de trabalhar, trouxera uma resma de documentos para deles extrair conclusões que mais uma vez lhe permitissem julgar com consciência um caso que tanto podia ilibar de responsabilidades o acusado como fazê-lo passar o resto da vida entre as paredes de uma cela.

Encerrado no escritório, atento e pesquisador de intenções tantas vezes mascaradas por palavras que se afiguram indiscutíveis e são capa de falsidades, o Dr. Álvaro Abegorim ouvia os risos e a algaraviada como se fossem música de fundo a envolvê-lo, a ampará-lo.

De súbito, a porta entreabriu-se. Primeiro, o Juiz não deu por nada. Depois foi obrigado a dar, porque uma vozinha harmoniosa se impunha numa pergunta tão bem-educada como imperiosa, visto que interrompia e exigia resposta.

- Posso entrar. Pai?

- Pode, Rita. Que temos?

Ela fechara a porta e avançava para a secretária pejada de papéis.

- Queria falar-lhe, Pai.

A Rita costumava ser sem problemas. Despreocupada e brincalhona. Porquê aquele ar circunspecto, em hora de festa?

Estranhou e disse:

- A menina não vai sair?

- vou, Pai. Mas ainda é cedo!

- E não se arranja?

- Em tendo o quarto de banho livre, para a tia me esticar o cabelo.

- Não foi ao cabeleireiro? - e cada vez era maior o espanto do Pai, ou não fosse aquela a que mais se preocupava com a aparência.

- Não, Pai.

- Mas eu dei dinheiro para todas!

- Eu sei, Pai! - e o sorriso de Rita era verdadeiramente inefável.

- Então?.

- Preferi guardá-lo.

- Preferiu guardá-lo?

- Sim, Pai. Preciso de economizar para outras coisas.

A surpresa do Dr. Abegorim tornou-se tamanha que até lhe magoava o coração. Que se passaria com a sua Rita? Algo que tinha com certeza uma importância de que ele ainda nem sequer suspeitava.

Encarando-a, o Pai aguardava. Ela pretendia com certeza algo. Dizer? Ou pedir?

Dizer e pedir.

- Que se passa, Rita?

Rita estendeu ao Pai umas folhas de papel que trazia enroladas na mão.

- Gostava que lesse estes versos e me desse a sua opinião.

O Pai pareceu surpreendido. Depois aceitou o manuscrito. E a pouco e pouco as palavras iam-se tornando som na boca do Juiz.

Como te chamas? Como te chamas?

Diz-me o teu nome ao ouvido!

Tu não me amas! Tu não me amas!

Mas diz-me como te chamas, o nome desconhecido da mulher que desconheço, do rosto rosado e triste dessa mulher que eu mereço - da Outra que não existe! É alguém que te não deixa ou não quer, não acha jeito? Anda, chora, faze queixa no tribunal do meu peito!

Mas se és tu que não me dizes porque não queres que eu veja os meus olhos mais felizes, então, pronto! grita longe ao país onde se beija bocas da cor de miragens:

- Sofre sozinho, sê monge e vai vivendo de imagens!.

Sorriu. E continuou a ler. A ler e a dize-los como se colhesse em cada verso uma sensação grata de beleza.

Suponha-se num monte e imagine que se perdeu nas solidões confusas do meu país de cânticos e musas " onde a morte repousa e o sol retine.

O clarim da manhã nos alucine quando romper as serras andaluzas, que nessas cores lívidas, difusas, há-de encontrar a verdadeira Aline!

Aqui não há cansaços matinais Há espigas enroladas, como tranças, e capilares vivos nos rosais!

Correm sonhos no sangue das crianças. E no sono absinal dos azinhais há silêncios proféticos e danças!

Ande! Subamos àquela torre mais alta e bela que uma montanha, verticalmente, direito ao sol, pelas escadas em caracol - pedras puídas, teias de aranha!

Mas vá! Coragem! Subamos! Ande! Depois podemos ler na campina, no imenso mundo que lá se expande - tudo tão grande, tudo tão grande, e a cidade tão pequenina.

Montados largos de um verde-mar, mares de trigo de mil matizes, e os troncos velhos, a negrejar a força imensa que há nas raízes!.

Na cristandade deste deserto, unificai-vos, ó catedrais! Campos de Beja são céu aberto! O Deus que existe fica mais perto. Não há igrejas nem rituais!.

Se o infinito não a deslumbra como o Mondego de águas senis, a torre é alta, quase vislumbra rotas batinas cor de penumbra nos becos velhos do seu país!.

Pelas ameias destas muralhas perpassam golpes, sangues, batalhas, e no Inverno, quando anoitece e a lua-cheia no céu desmaia, dizem que às vezes lá aparece uma voz forte. Ninguém conhece! Voz velha de anos. Mendes da Maia!

E quando as aves se recolherem e as ramarias adormecerem com o silêncio dos descampados; quando adoeçam os horizontes; quando os campónios voltem dos montes; quando se deixe de ouvir os gados, quando soarem, lindas e francas as gargalhadas das casas brancas

e o sol vermelho nos ilumine, dir-me-á então se encontrou ou não, a verdadeira Aline.

O Dr. Abegorim encarou a Rita.

- Não há dúvida, filha. Estes são versos de um poeta autêntico, de um poeta de raiz. Calculo que sejam daquele rapaz que é primo da Alicinha.

E a pequena, gravemente:

- Sim, Pai. São versos do Antônio Fontemora. O Pai não respondeu logo. Observava-a. Mas não conseguia decifrar a expressãozinha fechada da rapariga. Depois, indagou, realmente interessado em perceber:

- Porque quis que eu os lesse, Rita ?

- Porque queria perguntar ao Pai se pode fazer alguma coisa por ele.

- Alguma coisa de que gênero e em que sentido?

- Talvez conseguindo um editor que lhe publique o primeiro livro - visto que o primeiro livro é sempre a grande barreira.

O Dr. Juiz franziu a boca num trejeito de dúvida. E enquanto a filha se sentava ao lado dele, na grande almofada oriental, a velha almofada da casa dos Câmaras onde todas gostavam muito de se instalar, aos pés do Pai (jeito do tempo em que lhe pediam histórias adormecendo às vezes encostadinhas aos joelhos dele), o Dr. Abegorim acabou de apreciar as últimas folhas manuscritas. Aquelas folhas onde havia de facto poesia.

Depois, proferiu:

- Conheço pelo menos dois editores, mas não me parece que qualquer deles esteja disposto a publicar versos.

- Por quê, Pai?

- A nossa era é demasiadamente positiva para que as pessoas gastem dinheiro só para se embalarem com lirismos escusados. Ninguém compra livros de versos.

- Perdão. o Pai compra livros de versos!

- Oh, mas eu sou um abencerragem, queridinha! - e sorriu-lhe, enternecido. - E depois. sabe ? os sujeitos como eu, quando compram versos, voltam-se para os autores dos tempos em que se diziam coisas belas e boas nesse ritmo embalador que faz da poesia a émula do sonho. Temem-se dos desconhecidos.

- Por quê, Pai?

- Porque estamos a atravessar uma época de crise na qual a única preocupação de uma maioria é destruir precisamente o belo e o Bom. Quando não se possui o dom de criar beleza, fazem-se monstros que espantem. E há monstros em tudo - na Literatura, na Pintura, na Escultura, na Música. O feio e o desagradável imperam. O borrão substituiu a forma. O guincho, a melodia. A aridez das palavras, a inspiração. Dantes as criaturas eram porque tinham nascido para ser e se formavam de acordo consigo próprias. Agora não! Agora decidem ser e ocupam os lugares dos que chegam a perder a coragem de lutar, de tão maltratados e atabafados pelos outros, esses que não olham a meios para atingir os fins.

- O Antônio Fontemora corre o perigo de ser maltratado e atabafado?

- Corre, sim.

- Mas por quê ?

- Olha, porque mesmo que ele venha a publicar um livro cujos versos sejam da maior verdade, logo da maior beleza, sofrerá o embate do desinteresse dos que temem o ludibrio e o ataque cerrado, que vai até ao achincalhamento, dos que não estão dispostos a deixar ver que o rei anda nu. e a menina lembra-se deste velho conto, não é assim?

Rita recordava-se muito bem. O rei andava nu, mas convinha a uns tantos, por quase todos considerados, por serem poderosos, como sempre certos nas suas afirmações, lisonjeá-lo afirmando ver as vestes do rei, que eles gabavam por serem prodigiosamente belas e ricas. E ninguém ousava negar a mistificação, até ao dia em que uma criança, na sua pureza, gritara "mas o rei vai nu!. "

Já o Dr. Álvaro Abegorim continuava, uma das mãos poisadas na cabeça da filha:

- Os que matam a poesia com frases de pedra e lama troçariam desta que é feita de sangue e de luz. Entende?

Perfeitamente, sim. Ela percebia perfeitamente. E os seus lindos olhos escuros estavam cheios de lágrimas.

- Pobre Antônio! - murmurou. - Sendo assim, não lhe faltam razões para duvidar como duvida.

O Pai contemplava-a atentamente.

- Rita? .

- Pai?.

- Rita. esse rapaz interessa-lhe muito?

- Creio que sim, Pai.

E o Dr. Abegorim, pela primeira vez em toda a sua vida, ia tomar a iniciativa de convidar uma filha a abrir-lhe o coração, falando com ela de amigo para amigo. O Pai lançando entre ambos uma nova e fortíssima ponte aberta a todas as compreensões, aberta ao mundo novo que ia chegar para as suas existências em ritmo tão diverso do que até aí as compassara.

- Escute, Rita. - principiou. - Quando vi esse rapaz cá em casa pareceu-me que ele vinha por causa da Mirita. ?

- O Pai deu por isso? - admirou-se a pequena, inquietando-se.

- Dei. E por isso mesmo não compreendo como aparece a menina a receber agora estes versos, que julgo, lhe foram enviados.

- Foram, sim, Pai.

- Visto isso. a Aline que ele nomeia vem a ser. a sua figuração?

- À moda dos antigos poetas, sim, Pai.

- E. como sucedeu?

- Deseja que lhe explique?

- Pois se estou a interrogá-la!.

Não, não havia censura na frase. Apenas confirmação, a pô-la à vontade.

E ela falou como até aí não falara a ninguém.

Nem a si própria, a despreocupada Rita Isabel, Rita Isabel a-sem-problemas.

- Sabe, Pai ?. Desde que o vi acho que me senti atraída para ele. mas Deus me livre que alguém o soubesse, visto que na realidade era para a Mirita que ele dirigia as suas atenções. A Mirita, claro, estava a atravessar aquela grande crise, por causa do Zé Chaves, que não atava nem desatava.

- Quando é que se conheceram?

- Na festa de Carnaval em casa da Alicinha! No dia do assalto, quando toda a gente pensou que havia ladrões em casa do Pedro.

- Ah, sim. bem sei.

- Pois foi aí que nos encontrámos. E como o Zé Chaves, numa das suas tonteiras, não parava de dançar com as outras, a Mirita às tantas refugiou-se no interesse do Antônio que viera sentar-se ao pé dela, encantado e enternecido ao vê-la tão bonita e tão só.

O Dr. Juiz disfarçou um sorriso.

- E depois?

- Depois. -e muito séria, fitando o Pai a direito. - Antes de mais, devo esclarecer o Pai de que compreendi perfeitamente a reacção da minha irmã. Como compreendi a reacção do Zé. Quando ele viu que a Mirita era mesmo capaz de não o aturar mais e de arranjar outro, reconheceu que não podia nem queria viver sem ela. e o resultado está à vista!

Era bem curiosa a expressão do Dr. Álvaro Abegorim. Bem curiosa!. Porque o sorriso disfarçado teimara em desenhar-se, ao mesmo tempo que a testa se enrugara com o erguer dos sobrolhos. Sorriso traduzindo agrado ante a lógica de Rita Isabel. Erguer de sobrolhos revelando desagrado pela frase ordinaríssima arranjar outro. Sem atentar, porém, nem no sorriso nem no erguer dos sobrolhos, de tal maneira se concentrara no fio dos próprios pensamentos, a pequena continuava a sua dissertação:

- Aliás a Mirita era dele que gostava! Só tinha perdido a paciência de lhe aturar os caprichos e no fim de contas foi bom que tudo se passasse como passou. As coisas aclararam-se e acertaram-se. O pobre do Antônio é que, perdida a jogada, ficou em pior situação. Sentimental, cheio de problemas, ia-se abaixo com certeza! E a mim. -palavra, Paizinho! - até me doeu o coração. Foi nessa altura que percebi perfeitamente que devia ajudá-lo.

E o Pai, entre o sorriso e as rugas da testa.

- Foi nessa altura que lhe apeteceu ajudá-lo?.

- Sim, Pai. Não havia nada a desaconselhá-lo, pois não?

- Penso que não, se lhe agrada o papel de confortadora espiritual.

- Não me agrada esse papel, Pai.

O sorriso começou a vencer as rugas.

- Então ?

- Estou disposta a ocupar um grande lugar na vida dele. Desejo ocupar esse lugar. Espero ocupar esse lugar.

E o Dr. Abegorim:

- Sem esse projecto a animá-la, Rita, não seria capaz de agir da mesma forma, só pelo bem dele?

- Não sei ao certo. mas talvez não. Parece-me que uma rapariga que dá toda a sua atenção, todos os seus pensamentos, a um determinado rapaz, a fim de o auxiliar a conseguir alguma coisa na vida, cria em si própria um compromisso.

- Pode não passar de um compromisso de simples amizade!

- Pois pode! Mas esse não é o meu objectivo! O sorriso venceu as rugas.

Como Rita Isabel estava uma mulherzinha! E segura de si e dos seus raciocínios. Lúcida. Calma. Tão límpida como um cristal.

O Pai, vagarosamente, acendeu uma cigarrilha (que extravagância, àquela hora!) e começou a fumar silencioso, contemplando-a, olhando os olhos que pediam a opinião dele.

- Rita? .

- Paizinho ?

- Não teme uma decepção?

- Toda a gente está sujeita às decepções. Mas julgo que o Antônio deu por mim, com toda a sinceridade, no dia em que se foi embora.

- Embora para onde ?

- Para junto da Mãe. Para a terra dele.

- Qual é a terra dele?

- Uma vila no coração do Alentejo.

- Então. escreve-lhe?

- Sim, Pai. E manda-me os versos que vai compondo. Estes são os últimos.

- Rita. ?

- Meu Pai ?

Os poetas nem sempre são de fiar, quando

traduzem em verso os seus sentimentos. Ou não conhece porventura aquela famosa quadra do grande Pessoa que diz.

E a Rita, olhos a sonharem:

O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.

- Aí tem.

- Não estou a fiar-me no que ele diz nos versos. mas nas enormes necessidades afectivas que ele tem, na sua bondade, no seu alheamento das coisas materiais. E também me fio em mim.

- Em si, como e por quê?

- Creio que o Antônio vai precisar da minha ternura até não poder passar sem ela.

O Dr. Álvaro Abegorim estava agora muito sério. Dessa seriedade que nele sempre era provocada por algo que transcendia o banal, logo algo que lhe despertava um verdadeiro espanto.

- Tem assim tanta confiança em si ?

- Tenho, Pai. Sei que é preciso semear para colher. O terreno que se me oferece é dos melhores e está bem preparado, julgo. Lancei nele, no momento exacto, a sementeira da simpatia. e já há florinhas azuis e cor-de-rosa a desabrocharem no campo. De resto, o que quero quero ainda mais para ele do que para mim. Acredite, Pai! Quando penso no Antônio, ambiciono ser feliz com ele, sim. mas feliz pela felicidade que ele tiver. Como se. como se me revisse num espelho!

Devagarinho, a Rita escorregou da almofada, ficou aninhada aos pés do Pai, apoiou a cabeça nos joelhos dele. E o Pai poisou as mãos sobre os cabelos negros, longos e revoltos, da filha. Acariciou-lhos. Toda a sua gravidade se tornava emoção.

Aquele que assim ouvira explicar era um desejo raro, um desejo despido de egoísmo e, como quantos acontecem nesse gênero - tão poucos, Deus do Céu!

- cheio de limitações. Não lho diria, porém. Nunca!

Há ideais em que não deve tocar-se. E então, sempre a afagá-la, num gesto que talvez há mais de catorze anos não executasse, e a pensar que ainda nenhuma das filhas lhe falara assim (nem a Rosarinho!) murmurou:

- Bem, bem, bem. aguardemos o futuro. O futuro se pronunciará. Sei que procederá pelo melhor.

- Confia em mim, Pai?

- Confio.

- E nos versos do Antônio ?

- Nos versos do Antônio. pois é! - e suspirou profundamente. - Bom, vou falar com os meus amigos editores, mas não deposito grande fé nos resultados das minhas diligências. Entretanto arranje-me aí uma porção de poemas do rapaz que eu peço ao Director de um grande diário que tem uma belíssima página literária, e com o qual me dou bastante, que mos faça publicar e se interesse junto de uma ou duas revistas de categoria a fim de lhes dar uma certa publicidade. A Rita animou-se. - É assim que se começa! - Claro. É assim que se começa. O nome principia a ser notado, a ser fixado. - Para bem ou para mal.

- Sem dúvida! De qualquer forma, tem de se correr o risco.

- Quem não principia não chega, não é? E o Pai, apreciador.

- Exactamente! Quem não principia não chega. Rita desatou a rir.

- Pai. esta podia ser uma verdade do Sr. de Ia Palice.

- Ou uma opinião do Conselheiro Acácio.

- O Conselheiro Acácio ? - estranhou a pequena.

- Quem é?.

- Todo o mundo e ninguém! - e o Pai ria com a filha, reconhecendo que estavam ambos muito dados a citações literárias. - Ou seja, a voz dos suficientes sem nome que surgidos em Gil Vicente se concretizam em Eça de Queirós!.

Rita acabara de lembrar-se.

- Ah, pois, pois. o Conselheiro Acácio. e todas as outras personagens imortais do grande Eça!.

- Estava a ver se a menina não tinha lido.

- Li, sim, logo que a Mãe me deu licença! Ou seja, comecei a devorar os livros do Eça quando fiz os 16 anos, depois de ter lido no Liceu O Mandarim, A Cidade e as Serras, A Ilustre Casa de Ramires.

- E As Últimas Páginas.

- As Ultimas Páginas, claro!

- Certíssimo! Riram de novo.

E o Pai, a dar-lhe estímulo:

- Então o seu poeta alentejano que mande uma colecção dos versos que preferir e.

Rita interrompeu-o.

- O Antônio, mandar? Não manda nada!

- Não manda ?

- Não! Ou antes, manda para mim. e eu, com a ajuda do Pai, escolho.

- Mas por que é que ele não manda ?

- Pela mesma razão porque necessita de apoio moral.

- Timidez?

- Insegurança.

Naquele preciso momento a porta do escritório abriu-se. Abriu-se e apareceu a tia Casimira, mirando o irmão e a sobrinha (principalmente a sobrinha) com um ar intrigadíssimo.

- Desculpe interromper a audiência, Sr. Dr. Juiz. mas preciso de perguntar à menina Rita Isabel se sabe que horas são?

E ela, arrancada ao seu mundo íntimo:

- De todo não, tia!

- Dezassete e quarenta e cinco. o concerto é às dezasseis e trinta e a menina ainda por vestir, por pentear. Que chegue atrasada, é consigo. Que faça, já não digo as suas irmãs, mas a sr.a D. Teresa de Macedo perder a primeira parte. acho mal! E ela, erguendo-se apressadamente:

- E está mal, tia querida! Mas eu ponho-me pronta num instantinho!

- com a minha ajuda!.

- Isso sabe-se!

A tia viu-a dar um beijo ao Pai e passar à frente dela a correr sem se lembrar de que em breve não teria ali a tia para a auxiliar no que quer que fosse. E para quê turbar a alegria que lhe cintilava no olhar?.

Seguiu-a, dominando a própria pena de ter de a deixar, a ela e às outras. Pois se sempre é preciso DEIXAR, mais tarde ou mais cedo.

Atrás da irmã e da filha, o Dr. Juiz foi fechar a porta que havia ficado aberta, voltando para os seus trabalhos. Disposto a voltar para os seus trabalhos. Porque durante largo tempo iria ficar de braços cruzados, incapaz de abstrair do que viera tomar o lugar dos problemas alheios - os seus próprios problemas.

No quarto dos armários, as três irmãs acabavam de preparar-se, tão animadamente como quando a Rita se eclipsara.

Ficaram espavoridas e indignadas ao vê-la ainda em trajos de trazer por casa.

- Tu, assim? - exclamou a Mirita.

- Onde é que estava metida? - inquiriu a Lili.

- Tive de tratar de assuntos da minha vida particular com o Pai.

Por instantes, ficaram de boca aberta, pasmadas ante a comunicação feita com a maior gravidade.

A Rosarinho (estava linda, a Rosarinho, com o azul do Vestido a realçar o oiro dos cabelos) ia perguntar qualquer coisa, mas a tia não lhe deu tempo.

- Enquanto vocês vestem os casacos ela põe-se pronta.

E pôs! Parecia impossível, mas pôs. Verdade verdade que além da tia lhe acudira a Sofia a chegar-Lhe tudo o que ela precisava -as meias, os sapatos, o vestido (e o fecho a querer encravar, ainda por cima!) e os brincos dourados e o alfinete de peito que vinha de longe na vida. O alfinete de peito que pertencera ao tesouro escondido em São Boaventura, na tal casa perto do fim e mais o etc. etc. etc. De resto, cada uma delas ostentava a sua jóia. E Rosarinho, com certa freqüência muito embora até sem dar por isso, estendia a mão esquerda em cujo anelar brilhava a safira cercada de minas. A safira da cor dos olhos dela. Igualzinha. As minas da cor das suas esperanças. Iguaizinhas. Todas brancas.

Eram dezoito e dez. E elas estavam prontas, prontíssimas.

Foi quando tocou o telefone.

Era a Alicinha, a perguntar se iam de táxi e podiam levá-la.

Mirita, que a atendera, ia condescender quando a Sofia a alertou.

- Ó menina, olhe que não! Os táxis só levam quatro pessoas e as meninas são quatro.

Tinha razão.

Combinaram descer ao mesmo tempo e seguirem em táxis simultâneos, sem esperarem umas pelas outras, ou para esperarem uma pelas outras no átrio do cinema. Uma não - duas, que a Lili, amiga da sua amiga, ofereceu-se para ir com a Maria Alice.

- Meninas, são seis e catorze!. Lembrem-se do trânsito! - recomendou a tia, vendo-as em retoques de pó-de-arroz e sombras nas pálpebras.

A Sofia ralhou:

- Nunca mais perdem o costume de sair de casa à hora em que haviam de estar a chegar ao seu destino!

Rindo - quando é que a Sofia havia de convencer-se de que já não eram garotas irresponsáveis?

- foram dar um beijo de despedida ao Pai, ao Pai ainda imerso nas suas cogitações. Ao Pai que as viu sair sentindo um frêmito de comovido orgulho percorrê-lo dos pés à cabeça. Sim, as suas quatro meninas tinham-se transformado realmente em quatro bonitas raparigas. Quatro raparigas com o pé colocado no primeiro patamar da escada da vida. Que Deus as guardasse, que a ele, Pai, pouco mais competia.

E os maçudos processos em curso continuavam espalhados na secretária, sem que o Juiz sentisse coragem de voltar a enfronhar-se neles.

As risadas e a tagarelice das quatro irmãs perderam-se na cidade lá fora. E como sucedera ainda há bem pouco tempo, de novo o silêncio dominou o lar.

Passaram minutos. Impossível saber quantos! Muitos, com certeza, porque a noite fechara-se em torno de Álvaro Abegorim - a noite estreitamente abraçada ao silêncio. E o Juiz sentiu, em dado momento, que tinha as faces humedecidas. Vagarosamente, tirou o lenço da algibeira, enxugou o rosto e os olhos. E nesse gesto viu que não estava só. Diante dele, a tia Casimira. A tia Casimira com a sua expressão maravilhosa que o irmão não podia divisar naquele instante mas era a de que quem vê o mundo no céu. A tia Casimira que principiou a falar como se lhe houvesse lido os pensamentos, todos os pensamentos:

- Não, meu irmão, não devias entregar-te a essa sensação de fim. Nada acabou, tudo continua. Triste seria que as tuas filhas ficassem fechadas aqui dentro e fossem elas a sentir-se sós no dia em que tu e a Teresa transpusessem a porta da casa para a viagem final.

Num cicio, o Juiz disse:

- Deves ter razão. Mas.

- Não há nenhum mas, Álvaro. Porque tu aceitas a felicidade delas como a máxima que podes desejar, não é verdade?

E o Dr. Abegorim, tentando não sentir saudades de quatro cabecinhas de meninas pequeninas que se tinham transformado nas formosas cabeças de quatro mulheres a partirem para horizontes longínquos, respondeu:

- Aceito, sim! Aceito!

Então a tia Casimira deu a volta à secretária, abeirou-se do irmão e afagou-lhe a testa na qual depôs um longo beijo:

No fim de contas, a vida, para nós, recomeça!

Tu num campo, eu noutro, principiamos uma existência diversa da que tínhamos. - e num sorriso de que se sentia o calor: - Vamos para a terceira fase, sabes?

- Sim, para essa em que se deixa de esperar e de pedir, não é?

- Não! Porque nem tu nem eu deixamos de esperar e de pedir. O que pedimos e esperamos são coisas diferentes da que esperávamos e pedíamos. - e pouco depois: - Álvaro, escuta.

- Dize, Mira.

- Deus deu-te quatro filhas que são quatro amores. Estou muito contente por poder ajudá-las a ser ditosas.

- Mas tu. ?

- Eu vou dedicar-me à ventura de outras raparigas. Em cada campo sua actividade. E digo-te mais, irmão. É muito importante as pessoas reconhecerem que podem fazer alguma coisa que valha a pena.

Regorgitava, o átrio.

Porque o cinema realizara, normalmente, a primeira sessão da tarde, as portas para o concerto ainda não estavam abertas. Pressentia-se que no interior do edifício se ultimavam os preparativos dando-se à pressa uma limpeza na sala e nos corredores.

A multidão apinhada começava a rumorejar protestos.

As cinco raparigas (Lili, Mirita, Rita, Rosarinho e Alicinha) não conseguiam sequer ultrapassar os degraus da entrada. E preocupavam-se, sem descobrir Dona Teresa de Macedo, com a forma de ingresso na sala. Preocupavam-se as quatro irmãs, que a Alicinha conservava-se perfeitamente descontraída, o bilhete da Mãe (assinante regular de quanto exigisse comparência de bom-tom) acautelado na bolsinha.

Não iam tardar os encontros. à primeira cara conhecida foi apontada pela Rosarinho. Era a da Inês. A Inês, lá muito à frente, nos degraus cimeiros, quase rente a uma das entradas (devia ter sido das primeiras a chegar). Estava muito gira, de cabelos ao alto. Pena não se ver como estava vestida, com gente até aos ombros.

Ao lado dela, um rapaz alto e magro despertou-lhe a atenção.

Disse às irmãs, depois de lhes mostrar a amiga- Deve ser o namorado, o Artur Xavier de Sá.

- O primo do Pedro? - indagou a Mirita, um bocadinho desconsolada por não ter o Zé Chaves a acompanhá-la (ele não conseguira bilhete de forma alguma e a Mirita, num inesperado acanhamento ante o que não passava de falta de lembrança pela parte dos outros, não quisera solicitar para ele a entrada de favor que o Pedro oferecera ao Júlio e este não aceitara por não desejar faltar ao emprego onde nessa tarde o esperava, de antemão combinado, um trabalho de responsabilidade - cada qual por sua razão iria depois ter a casa do Paulo).

A Rita, em biquinhos de pés, para ver melhor o companheiro da nova amiga da irmã, comentou:

- Se é primo não parece! Tem tanto de feio como o Pedro de bonito!

E a Rosarinho, muito corada, muito feliz com a apreciação da irmã:

- Também não acho o Artur assim tão feio como isso.

A Mirita concordou com ela:

- Os olhos são grandes e expressivos. E a Rita:

- É de estar embeiçado a olhar só para a Inés. Dir-se-ia que não vê mais nada!

- Oxalá não tenha também só ouvidos para ela!

- Por quê?

- Porque se lhe dá para isso como é que há-de fazer a crítica?

- Ah, pois, pois!.

Sim, claro! O Artur já desfrutava de uma posição de importância!

A Alicinha, esmagada de encontro às outras, escutando-as, pensava que há raparigas com muita sorte.

Cada vez chegava mais gente. Os que se achavam dentro do átrio multiplicavam-se espantosamente, comprimidos pelos que queriam entrar e empurravam uns e outros como se com a sua pressa incorrecta acelerassem a desejada abertura das portas.

- Eh, Rosarinho! . - e a voz alegre que chamava era a de Cristina Benedites que da rua, separada dela aí por dois metros de criaturas em bloco, reconhecera pela cabeleira a mais nova das Abegorins, já incrivelmente colocada nas proximidades de uma das bilheteiras.

Rosarinho lá descortinou um braço a acenar-lhe.

- És tu, Cristina?

- Sou, sou!

- Olá!.

E a outra, gritando para se fazer ouvir:

- O Pedro, o Paulo e o Domingos estão lá adiante, na outra porta, e levam-me com eles. Só entramos na sala na altura do concerto.

- Ficam ao pé do Vic Nusen? - esganiçou-se a Lili, para que o barulho do interior e do exterior não lhe submergisse as palavras.

- Ficamos! - e sumiu-se.

Algumas pessoas, tendo percebido a pergunta olharam interessadas aquela engraçada rapariga Quem seria ela, para se referir tão familiarmente ao pianista que parecia inacessível?

De súbito, as portas laterais, ao topo das escadas, escancararam-se. E a multidão ondulou. Não se precipitou, rolando no seu fragor, porque os porteiros, enérgicos e poderosos, tinham a força suficiente para o controle dos bilhetes, difícil mas implacavelmente exigidos. E aos poucos, uns e outros iam entrando, ora acotovelando-se com um gentil sorriso que pedia desculpa da brutalidade, ora beneficiando da gentileza de alguém que se deixava ficar para trás sem receber um único olhar de agradecimento.

Inês, apesar da sua colocação estratégica, ainda não entrara. Desviara-se e, encolhendo-se para dar passagem, parecia esperar por alguém.

Esperava a Rosarinho (desejosa de ser apresentada às irmãs) e a Marta, que estava no fundo de uma das bichas, a rir-se para ela.

Quando por fim o escoamento se tornou normal, elas puderam juntar-se. E Maria do Rosário apresentou a Rita, a Lili, a Mirita e a Alicinha à Inês e à Marta e a Inês apresentou-lhes, a todas, o Artur. O Artur que, com o seu ar simples e o seu olhar profundo, logo se lhes afigurou extremamente simpático. Sim, extremamente. Quase sedutor, muito embora nada tivesse de bonito. Sim, sedutor. Tanto, a falar e a rir num perfeito à-vontade, que a Alicinha não pôde eximir-se, mais afoita que antes, a pensar "não se me dava. "

Ai aquela Alicinha, tão branca e loira. e tão atiradiça!. Fosse lá alguém fiar-se na sua aparência angelical!. Bem diz o rifão popular que quem vê caras não vê corações!

O tumulto das gentes perdia-se agora lá dentro, dispersando a caminho da sala.

A Marta, animadamente, ia contando que o Domingos entrara com o Pedro e com o Paulo (mais a Cristina, claro) e, radiante, confessava à Inês, ali no grupo a única que o conhecia, que ele estava com um ar imensamente civilizado.

A Inês ria, gracejando:

- Parece um príncipe encantador, não?

- Não! Não tem nada de comum com figuras de lenda, embora para mim possa ser "o meu príncipe. " Isto de resto é o principal! Só se pode ser feliz quando se olha em volta e se acha o que se tem mais belo e melhor que tudo. É a única forma de não cobiçar o alheio!

A Alicinha, que estava de olhos postos no Artur, declarou inopinadamente, afastando-se, que ia entrar. A Marta não a conhecia. Por isso não podia imaginar o alcance da sua frase, dita porque ela era sempre a rapariguinha das coisas sensatas. Quem tudo apreendia era a Mirita, logo porém distraída pela crescente inquietação da Rosarinho.

- A avó Teresa vem muito atrasada!

No relógio, por cima da porta principal, os ponteiros confirmavam, marcando 6 e 30.

- Acho melhor vocês irem entrando! - aconselhou a Lili ao outro grupinho. - Já se ouve afinar os instrumentos.

E ouvia, de facto. O Artur concordou:

- De mais a mais não ficamos juntos! Acabavam de sumir-se nos corredores, quando

surgiu a avó Teresa, elegantíssima no seu conjunto de saia e casaco preto. Dirigiu-se-lhes, açodada e familiar:

- Oh, queridas, perdoem!. O trânsito, Jesus! O trânsito, nesta cidade, cada vez está pior!. -e beijou-as, às quatro, como se entre elas houvesse uma convivência antiga.

A Rosarinho mereceu-lhe um gesto de afago especial, ao longo dos cabelos.

- Vamos, sim ? - e exibia ante o porteiro que principiava a admirar-se e a apiedar-se de ver aquelas quatro bonitas raparigas ali especadas, o seu glorioso bilhete.

Entraram na frisa precisamente quando as luzes começavam a apagar-se.

A orquestra, a postos, aguardava o Maestro.

A sala regorgitava.

As pequenas, sentadas. Lili e Miríta à frente, uma de cada lado da avó Teresa. Rita e Rosarinho atrás. Todas admirando o conjunto do que para elas constituía um espectáculo total.

Rosarinho nunca assistira a um concerto. Ouvia bastante música clássica na telefonia. Já vira algumas transmissões pela Televisão. Mas ao vivo ainda não contactara com a grandiosidade da produção da Música.

O palco absorvia-a. Mirava aquela centena de homens e mulheres, todos agora imóveis como estátuas, cada um segurando o instrumento que deveria fazer soar - e os instrumentos agrupavam-se por naipes, nada estava ao acaso! -como se estivesse fascinada.

De súbito, um sussurro na assistência, mais de agrado que de expectativa.

E, deslizando pelo meio dos músicos, a figura esbelta do Maestro, um homem de estatura mediana, magro, rosto adunco ladeado por cãs, impecável na sua casaca.

De frente para o público, um breve cumprimento. E logo uma salva de palmas, saudando ainda não o artista mas o titular de um nome famoso - Hans Fitcher.

Depois, Hans Fitcher de costas. E a orquestra - aquela centena de homens e mulheres - como que movida por um mesmo toque mágico, ergueu os instrumentos, prontos a estabelecer o espantoso diálogo sem palavras onde tanto se diz e se escuta.

Os violinos, junto aos rostos sobre eles debruçados ternamente. Os arcos à espera de ordens. Os violoncelos aninhados de encontro aos seus executantes. Os contrabaixos aprumados. As flautas hirtas, entre os dedos dos que delas iriam arrancar sons maravilhosos. E os oboés. E as requintas.

As trompas brilhavam, atrás de tudo.

E a mão do Maestro levantou-se. Um gesto apenas.

E a grande sala contida em respeito encheu-se de Música.

Era, segundo o programa, a abertura do Egmont, de Beethoven.

As meninas mal ousavam respirar, com medo de quebrar o encanto do momento.

Foram minutos que voaram!

Quando a orquestra se calou, a sala parecia vir abaixo com aplausos.

Hans Fitcher inclinou-se, agradecendo uma, duas, três vezes. Depois, numa atitude elegante - normal em êxitos - abandonou o estrado, foi apertar a mão a um dos violinistas colocados à sua esquerda (o chamado primeiro violino). Depois, erguendo as duas mãos, mandou que a orquestra se pusesse de pé para receber as palmas que lhe eram devidas.

- Foi de facto uma interpretação formidável! O comentário soou nas costas das meninas e

da avó Teresa, que se voltaram, admiradas. Não o tinham ouvido entrar, de tão mergulhadas no deslumbramento.

- Oh, Pedro! ?. - exclamou a avó Teresa, contente. - Já aqui estás há muito ?

- Cheguei neste instante, avó. O Paulo e a Cristina ficaram lá adiante, o mais possível perto do palco. Do lado esquerdo, para verem as mãos.

- E o teu amigo ?

- Já está atrás das cortinas, pronto para entrar.

- Nervoso ?

O Pedro sorriu à avó, a quem as teclas de um piano infundiam um terror infinito (ou não escorregassem, quando as mãos se cobrem do mais despropositado e inevitável suor).

- Não há nenhum artista que o não esteja quando chega a hora H.

Na sala havia tosses, risos, efervescência. E gente atrasada que entrava.

Todos se agitavam, como se após os instantes de concentração e emoção vividos houvesse a necessidade absoluta de uma válvula de escape.

O Maestro abandonara o palco, enquanto dois sujeitos eficientes se afadigavam para abrir o majestoso piano de cauda que durante o primeiro número ali se conservara como que abandonado e inútil. Como que.

Gigante adormecido, não tardaria em despertar para impor a sua vontade à orquestra. Rei que tudo sabe e tudo pode.

Na sala, a agitação principiava a acalmar. Todos esperavam.

O Pedro, atrás de Maria do Rosário, também esperava. Tinha as mãos geladas.

Sabia o que Vic Nusen era; sabia o que ele valia. Mas.

O encontro com o público não tem muito a ver com os momentos em que o artista está só no seu mundo maravilhoso.

Pedro nunca vira o Vic em público. Sabia-o grande, enorme. No entanto.

O estrondear das palmas cortou-lhe o fio dos pensamentos.

Vic Nusen e Hans Fitcher entravam, pisando o chão do palco com firmeza e distinção. Entravam, avançavam e paravam, recebendo a ovação com um sorriso que era como que uma promessa "vamos tentar não desiludir ninguém. "

Um grande murmúrio de simpatia envolveu o homem grisalho e o mancebo pálido que passeavam o olhar com a mesma gravidade pela sala inteira.

Depois o Maestro subiu ao estrado de regência e o Pianista sentou-se ao piano.

Hans Fitcher ficou quieto, contemplando Vic Nusen, evidentemente à espera do sinal deste para começar.

Vic não tinha pressa. Nunca tinha pressa. Não se parecia nada com certos afobados que mal entram logo se precipitam para despachar o que mais valia às vezes não principiarem. Lentamente, verificou a altura do banco, regulou-o, descendo-o um pouco. Num movimento de braços, repetido, libertou-se o mais possível da pressão das mangas da casaca. Depois explorou com um dedo as teclas do piano, como se as acariciasse, agradecendo antecipadamente a colaboração que lhe prestassem.

Um silêncio de igreja em momento solene dominou a assistência.

Vic Nusen dir-se-ia recolhido, isolado dentro da própria alma.

E depois os seus olhos enormes encararam o Maestro. O Maestro acenou afirmativamente, tocando com a fina batuta ao de leve na estante.

A orquestra aprumou-se, aguardando.

O Pianista ergueu as mãos e fê-las descer sobre o piano.

E a Música chegou.

Tam, tam, tam.

Tam, tam, tam.

Vitorioso, deslumbrante, arrebatado sob as mãos ágeis e imperiosas, o piano dominava, alagava, comandava. A orquestra ia atrás dele, perguntava, respondia e juntos afirmavam que o dom de criar beleza é possível aos homens quando Deus o quer.

Galvanizado, transbordante de emoção, cedendo ao que era mais forte do que ele, sem se aperceber da atitude em que desabafava a pressão interior, Pedro colocou as mãos nos ombros de Rosarinho, apertando-os estreitamente. E a rapariguinha ergueu as dela e apoiou-as sobre as dele, aceitando e retribuindo a pressão.

Foi assim que receberam o primeiro concerto de Tchaikowsky.

Em dado momento, porém, o Pedro sentiu-se longe de tudo e de todos. Levado pela música.

Sem fechar os olhos, sem fechar a alma, recuou misteriosamente no tempo e achou-se num grande parque sombrio, cheio de árvores enormes pelo meio das quais vinham sons que pareciam falar de um mundo diferente, de um mundo maravilhoso. De um mundo onde cada hora podia conter sua alvorada, pura e boa. O mundo do gênio.

Sim, há anos descobrira-o, no Reichvater. Como o descobria naquela grande multidão empolgada que explodia em aplausos delirantes.

Agora a sala não vinha abaixo. A sala tinha uma força que irradiava para lá das suas paredes, para lá do seu todo. Como se não pudesse comportar a força do entusiasmo.

- Bravo! Bravo! Bravo!. Gritavam novos e velhos.

- Bravo!

Vic Nusen, inclinando-se em sucessivas reverências, agradecia, agradecia em todas as direcções, sorrindo com aquele sorriso afável que era tão comunicativo como infinitamente superior.

- Um espanto! - balbuciava a avó Teresa, deslumbrada. - Um espanto!

O Maestro, contemplando o jovem Pianista, aplaudia-o também.

Saíram do palco. Regressaram, exigidos pelas palmas, uma, duas, três, cinco, sete vezes. À oitava, Vic voltou sozinho.

As palmas intensificaram-se e depois cessaram por completo. Os que haviam permanecido sentados acomodaram-se melhor. Os que estavam de pé, sentaram-se. Os que tinham começado a sair voltaram para trás e ficaram onde puderam.

Toda a gente sabia que ia obter o que desejava

- o extra. O Pianista, sem mais ninguém. com a orquestra tornada espectadora.

Lá de cima, o moço artista anunciou, em voz clara e num francês correctíssimo:

Vouz allez écouter une Valse de Chopin.

E Chopin, doce e poético, desceu sobre toda aquela gente que deixava os seus corações bater a três tempos. Talvez houvesse, evidentemente, quem recebesse a valsa de Chopin em compasso quaternário. Há sempre e em toda a parte os que não estão de acordo com a verdade. Mas isso não modifica nada no que é como é.

Cinco ou seis, ou mesmo sete, criaturas, abanavam a cabeça e discordavam da interpretação de Vic Nusen. As palmas que não deram não faziam falta na trovoada que envolvia o Pianista, pedindo mais, mais, mais.

Pedro deixara os ombros da Rosarinho, porque precisara das mãos para ocultar o rosto, à espera do que ia acontecer.

Do que aconteceu. Do que, se fosse anunciado, suscitaria talvez incredulidade, dúvidas. A maioria das pessoas têm muita dificuldade em compreender que haja quem seja capaz de realizar o que a elas lhes está vedado.

Vic Nusen ficara imóvel, de mãos caídas. Parecia concentrado. Estava concentrado.

Debalde o público aguardou que a voz clara os esclarecesse acerca do próximo extra. Ele não disse nada. As mãos caídas, bruscamente ergueram-se e.

E o céu e a terra entraram no Teatro com tudo quanto neles existe de mais feérico. Não eram raios de luz, mas feixes de sons.

Na grande sala palpitante só havia duas pessoas que sabiam o que estava a acontecer. Ou melhor, três. Mas da presença da terceira ainda os outros dois não tinham nem sequer uma suspeita.

O Pedro e o Paulo sabiam que Vic Nusen estava a improvisar diante do público, a transmitir a dádiva prodigiosa da sua inspiração, essa que um dia decerto o consagraria como mais um grande compositor.

Pesava um certo cansaço sobre o público quando por fim e definitivamente o artista se retirou. Ai, não, não cansaço de o ouvir! Mas cansaço provocado por um excesso de emoção, como se as almas estivessem esgotadas de tanto terem vibrado.

Na frisa do Pedro, ou melhor, da avó do Pedro, a comoção pedia meças ao entusiasmo.

- Vamos lá dentro falar-lhe ? - propôs o Pedro.

As quatro raparigas, que se tinham posto de pé para aplaudir, bem como a avó Teresa, anuíram radiantes. Pudera, não!.

Foi-lhes difícil, primeiro, atravessar aquele mar de gente que trocava impressões sobre o Pianista fabuloso, depois vencer a muralha humana que rodeava Vic Nusen, abraçando-o, felicitando-o, pedindo autógrafos.

Estavam todos, agora, com a avó Teresa entre eles. A Inês, o Artur, o Paulo, a Marta, o Domingos (as Abegorins não o conheciam mas calculavam que era ele vendo que a Marta lhe segurava por um braço como se tivesse medo que um sopro lho levasse) a Alicinha - cuja frialdade aquecera ao fogo da loucura colectiva - a Cristina. Dos conhecidos, não faltava ninguém. De resto, foram os últimos (propositadamente, seja dito em abono da verdade) a chegar ao pé de Vic, a quem Pedro apresentou a avó, todas as meninas e o Domingos. Ao Artur já Nusen conhecia da véspera, de casa do Paulo.

As mãos apertavam-se. A simpatia alastrava.

Longe, ouvia-se a orquestra a afinar, prestes a recomeçar a segunda parte do concerto.

A avó Teresa, percebendo que se tornava difícil arredar as pequenas do novo ídolo, eclipsara-se. Não estava disposta, muito embora tivesse adorado o Pianista, a perder a segunda Sinfonia de Brahms que diziam atingir o seu máximo esplendor sob a regência de Hans Fitcher.

E lembrando-se disso mesmo, temendo que os seus amigos e os amigos deles ali ficassem, por um excesso de delicadeza privados do que por certo os deslumbraria como expressão máxima de arte - sempre o mesmo rapaz despretensioso e romântico! -, o Pianista perguntou ao Paulo, que era o que estava mais próximo, se não quereria ir e levar os outros a escutar a Sinfonia mesmo do palco, atrás das cortinas.

Recebendo amortecidos pela distância os sons que atraiam como um apelo directo que obrigava a resposta, o Paulo ia consultar o grupo, talvez anuir e obter anuência. Mas de súbito tudo se modificou sob o que era - foi! - um autêntico lance de teatro.

De tão entretidos e de tão em bloco, nenhum dera fé da aproximação gradual e sorridente de um rapaz loiro, elegantíssimo. Um rapaz cuja voz, soando gerou o espanto, a confusão de um júbilo desmedido. E a frase pronunciada por ele não podia ser mais banal, naquele momento.

- Bravo, Vic!.

- Tu aqui? - exclamou Vic Nusen, os olhos enormes tão desmedidamente surpreendidos que dir-se-ia ter ouvido não um cumprimento mas uma censura.

E o Pedro e o Paulo, ao mesmo tempo:

- Fernando Vasco!

Já Vic Nusen o tinha cingido ao peito. Ou estava cingido de encontro ao peito de Fernando Vasco, muito mais alto do que ele.

E foi um passar de braços para braços que parecia nunca mais acabar! Mal se libertava de um era apanhado por outro. Ou mal largava um agarrava outro.

Como se não pudessem suspender ou interromper a força da alegria que era igual neles todos! Neles, rapazes. Que as raparigas, sem saberem o que ao certo motivaria tamanha expressão de felicidade, limitavam-se a admirar a cena e a pensar que não devia haver mais bonitos olhos azuis no mundo.

Sem saberem sete delas. Que a oitava, a Alicinha, a Alicinha que pouco antes avançara para Vic como se ele fosse um pedaço de metal e ela um íman, concentrada agora no recém-chegado, não tardaria em obter da memória o esclarecimento que deixaria as outras incrédulas e a ela de cabecinha à roda.

- Jacques Bertrand!. - exclamou, triunfante: -Mas é Jacques Bertrand!.

Ele dirigiu-lhe um sorriso, rectificando:

- Aqui, Fernando Vasco!.

Pedro, Paulo Artur, Vic, queriam explicações.

Mas como foi isto possível? Como?. -lia-se-lhes na surpresa a dúvida da realidade. Fernando Vasco riu abertamente.

- Da maneira mais singela, rapazes!. Eu sabia que o Vic tocava hoje. Sabia que hoje eram os anos do Paulo. Tinha o fim de semana comprometido com uma sereia que anda atrás de mim para que eu lhe arranje figuração no meu próximo filme, logo estava livre. - sentia-se que dizia isto sem qualquer gabarolice, por demais habituado a um triste gênero de criaturas do sexo feminino: - Então perguntei ao meu coração porque não havia de utilizar para bom fim as vantagens do progresso dispondo-me a viver umas horas realmente felizes. A resposta do meu coração foi "aproveita, rapaz!. " E pronto. Telefonei para a agência de viagens de que sou cliente, consegui em duas horas a passagem no avião que me convinha. e cheguei ao Aeroporto às 17 e 59. Às 18 e 35 entrava aqui no Teatro.

- Sem bilhete? - estranhou o Pedro.

- Sem bilhete!

- Homem, como?.

- O porteiro reconheceu-me, pá! Vem aí um filme comigo. E o homem, quando me identifiquei, até gaguejava! Custou-me fazê-lo aceitar uma gratificação. E pronto, eis o mistério esclarecido! – e de novo o seu já famoso sorriso espalhou sedução.

- Os meus Pais nem sonham que vim! Amanhã serei para eles. Hoje, sou para vocês!

O Domingos, com o seu sentido prático, observou:

- O que faz o dinheiro, heim? E o Fernando Vasco, rápido:

- O que faz a amizade, pá, o que faz a amizade! A amizade é que obrigou o dinheiro a servi-la!

O Pedro aquiesceu.

- Se não servisse para estas coisas boas, mais valia que o amaldiçoássemos!

O Paulo, então, proferiu:

- E que coisa boa esta, meu Deus! Posso garantir que foi o meu melhor presente de anos!

Pouco depois, pelas traseiras do Teatro em festa, saía um grupo de raparigas e rapazes do qual se podia dizer, olhando-o:

- Benza-o Deus!.

Como o diria horas depois a avó Teresa, quando as quatro irmãs Abegorim lhe telefonaram, a explicar aflitas o sucedido, a agradecer e a pedir desculpa da forma tonta como tinham desaparecido.

- Benza-as Deus!. Estão perdoadas. - e a rir, a avó Teresa concluíra: - Tenho a certeza de que até o Brahms lhes perdoou que assim o desdenhassem.

Estava muita gente nos anos do Paulo. A Alicinha não sabia a direcção a dar às suas baterias, flutuando entre o Vic Nusen e o Fernando Vasco (Jacques Bertrand), na constatação lógica de que eles se iam embora pouco tardaria e os que ficavam ali à mão prometiam hipóteses de continuidade. Sim. mas qual distinguir às claras, de modo a não afugentar nenhum. Um problema, tanto mais que os estudantes de Medicina atraídos, se haviam tornado solícitos em derredor da loira e branca rapariguinha, única desemparceirada presente, visto que a Rita se isolava, tão acompanhada pela ausência de Antônio Fontemora como o estaria se ele andasse por ali.

O jantar, volante, decorrera da melhor maneira, devidamente festejado pelo apetite geral. Os variadíssimos pratos, deliciosos, tinham por fim achado a recusa principalmente da parte das senhoras, que não queriam perder a linha. Os doces, porém, faziam esquecer as mais ajuizadas decisões.

A Alicinha, distraída do Pianista e do Actor, vivia momentos deliciosos, assistida pelos três futuros Médicos que rivalizavam em obséquios. Obséquios que perderam importância no momento em que o Actor lhe apresentou um prato com trouxas de ovos afirmando que há muito não via nem sequer em Paris nada que se lhe assemelhasse. Difícil perceber se ele se referia às trouxas se à rapariga. Porque na realidade a Alicinha, com a sua beleza fora do comum e precisamente quando se desinteressara dele, atraíra as atenções do jovem galã que um tanto ofuscado (e sem despeito) pela presença sensacional de Vic Nusen, procurava entreter-se e não achara nada melhor do que.

O mais engraçado de tudo é nunca ninguém saber o que poderá vir a dar-se a partir de um acontecimento absolutamente fortuito!

Acabado o banquete (o Pedro tinha razão afirmando-o, havia sido de facto um banquete!) a mocidade, deixando os senhores respeitáveis a beberricar cafés e cognacs, fora para a sala de visitas que a sr.a D. Mariana desarmara prevendo que desejassem dançar ao som do magnífico gira-discos estereofónico que tinham dado de presente ao filho. Raparigas e rapazes, porém, (exceptuando a Alicinha que não tardou em dançar com Fernando Vasco, perante a decepção evidente dos três Universitários) preferiam conversar. E não tardou que os pares inicialmente dispersos formassem um grupo único, dialogando sobre temas comuns.

bom, a expressão grupo único não corresponde a uma perfeita exactidão.

Além da Alicinha e do Fernando Vasco, cada vez mais encantado com ela à força de tão habituado à superficialidade do elemento feminino. - ele, o rapaz dos grandes centros! - havia outro par isolado, recolhido ao pé de uma das janelas, numa troca de impressões que se adivinhava séria e intima. E esse par isolado era constituído pelo Vic Nusen e pela Cristina Benedites.

Exactamente. Pelo Vic e pela Cristina. A travessa e azougada Cristina em perfeita comunhão com o melancólico e profundo Vic.

Que estranhas afinidades existem a aproximar os seres que se afiguram mais distantes?.

O Pedro e o Paulo já tinham olhado várias vezes para ambos realmente surpreendidos. Sim, porque com o ar deslumbrado da Alicinha diante do Fernando Vasco e as atenções do Fernando Vasco pela Alicinha eles não pasmavam. (Talvez viessem a pasmar, mas só muito mais tarde). Agora com o Vic e a Cristina. É que nem se podia crer!

Iria sair romance daquele encontro?

O certo é que eles, sem pararem um momento de conversar, em francês, evidentemente (que bom não ter como barreira para a mútua compreensão o desconhecimento dos idiomas básicos!) estavam de mãos dadas.

Pois! Estavam de mãos dadas!

A grande mão elegante e nervosa de Vic apertava a mãozinha estreita e de unhas quebradas da Cristina.

Contudo, os dois amigos não tardaram em ser distraídos do que se lhes afigurava sensacional. É que o Fernando Vasco, parando de dançar e sem dúvida pretendendo apenas interessar a Alicinha, acabava de suscitar e centrar as atenções gerais, levando-as para algo que de súbito se agigantava, dominando por completo a acolhedora sala familiar, envolvendo-a num ambiente vasto, frondoso, de horizontes larguíssimos. O ambiente do Reichvater.

Um mundo de recordações que vinha matar as saudades dos que nele tinham vivido. Um mundo de novidades para os que não o conheciam nem sequer de tradição, como a Alicinha, e a Maria do Rosário e a Leonor Augusta, e a Casimira, e a Rita o Júlio, e o Zé Chaves, e todos os outros excepto os colegas do Paulo a quem por vezes falava do grande Colégio de Verão onde vivera as horas mais excepcionais da sua existência. Os bailes oferecidos pelas melhores famílias de Liebrügen, reunindo em grupos de quinze convidados de cada vez os alunos do Reichvater- do Grande Colégio Moderno, com os seus incidentes inesperados e de conseqüências notóriamente importantes.

O almoço na quinta do Dr. Karl Wurst.

O passeio até à grande clareira de Necharen, de barco.

E as longas palestras do Padre Júlio, Iam-se localizando as acções, tornando cada vez mais particularizados os pormenores.

- Lembras-te daquela vez em que fomos dar aquele passeio de bicicleta e nos perdemos no meio da tempestade?

- E fomos parar ao restaurante do Ernest, que foi a nossa salvação?

- É verdade!. E depois tivemos de deixar as bicicletas empenhadas na estação, que lá o homem dos bilhetes não aceitou as pedras preciosas que o Ma-hur lhe queria dar em pagamento!

- A propósito, têm tido notícias do Ma-hur?

- Escreveu-me para Paris há dois meses. Vai casar.

- com alguma princesa das mil e uma noites ?

- Não! O Ma-hur tornou-se muito europeu.

- Felizmente, que ainda me recordo daquela vez em que nos disse que se estivéssemos na terra dele nos mandava cortar a cabeça a todos!.

- Mas afinal com quem casa ele ?

- com uma irmã do Bindar, morena e linda. Conheci-a quando lá estive.

- Que é feito do Sudra?

- Está em Inglaterra a especializar-se em Engenharia, para ir montar umas fábricas quaisquer.

- E do Luís Viegas Pastor, alguém sabe ?

- Sei eu! Tenciona vir a Portugal no fim deste ano.

- Ó Pedro, adivinha lá quem me escreveu há pouco tempo a participar-me o casamento.

- Não adivinho, não.

- O Karl.

- O Karl Erbrüngh?

Pois! E imagina quem é a eleita do seu coração!. - Não faço a menor idéia!

- Recordas-te da Yany? Da loira Yany?. - De quem?.

- Não posso acreditar!. Ó menino, aquela por causa de quem tu.

O Pedro parecia em cima de brasas, a olhar para ele e para a Rosarinho. Sem saber se devia ou não recordar-se.

O Paulo ria.

E o Fernando Vasco, a leste da confusão do amigo, pretendendo avivar-lhe a memória.

- por causa de quem tu ias levando a maior tareia da tua vida.

Ninguém chegou a saber porque é que o Pedro estivera prestes a levar a maior tareia da vida dele. Uma criada acabava de entrar na sala.

- Peço imensa desculpa de incomodar. mas chamam ao telefone com urgência a menina Maria do Rosário.

- A mim? - exclamou a Rosarinho, espantadíssima.

A criada, bem-educada (era a Joaquina) sorria, como que a pedir desculpa da sua ignorância.

- Não sei se há outra menina com o mesmo nome.

Não havia. E Rosarinho, que era das que estavam sentadas em almofadas, levantou-se para atender o inesperado telefonema. Não se demorou nada Pelo que a conversa não prosseguiu, impiedosamente relegada para um plano de muito menor interesse ante os lindos olhos azuis cheios de lágrimas e a vozinha trêmula que anunciava:

- Vou-me embora.

Alarmaram-se todos mas principalmente as irmãs que pensaram não saberiam explicar o quê mas só coisas terríficas.

- Que aconteceu, Rosarinho ?

- Alguma desgraça, mana? Rosarinho abanou a cabeça.

- Para vocês, não. Só podem ter pena. Agora para mim é. é um grande desgosto!

E umas poucas de vozes, em coro:

- Mas de que se trata ?

- A S'Dona Ester está a morrer. e chamou por mim.

- A S'Dona Ester do primeiro andar? - duvidou a Rita.

- Sim. a sr.a D. Ester do primeiro andar. Devo ir já.

O Pedro avançou para ela, resoluto.

- com certeza que deves ir, Maria do Rosário. Eu levo-te.

- Não, nem tu nem ninguém! Não é preciso, porque o meu Pai vem buscar-me.

Despediu-se de toda a gente.

Quando transpunha a porta da sala ouviu-se ressoar a campainha da entrada. Era o Dr. Álvaro Abegorim, que apesar do convite do Dr. Henrique de Lemos, que acorrera à porta a cumprimentá-lo, se esquivou a demorar-se. O Advogado não insistiu. Compreendia" como toda a gente, a urgência que havia em que Maria do Rosário fosse para a cabeceira de quem a reclamava, por mais doloroso que semelhante transe se tornasse para a sensível rapariguinha. Mas que se não habituem as pessoas a eximir-se a deveres só para se pouparem a conhecer as agruras da vida.

Em casa do Paulo, a reunião, tão feliz, ficou como uma lâmpada cuja luz clara sofresse um repentino abaixamento de corrente. Tudo tomou um aspecto embrandecido.

As pessoas falavam mais devagar. O tom das vozes descera. Havia paragens entre as frases de uns e de outros. Eles não tinham nada com o triste acontecimento a desenrolar-se naquela precisa ocasião numa residência com a qual coisa alguma possuíam de comum, mas eram humanos e por isso mesmo susceptíveis de se impressionarem. Existia neles respeito pela dor alheia. E contudo, ao mesmo tempo, todos sentiam que a festa do Paulo, a festa dos anos do Paulo, não podia ser violentamente quebrada. Nada possuía esse direito!

E todos queriam reagir, mas ninguém acertava com a forma de consegui-lo.

Foi então que o Domingos principiou a falar.

E o que ele dizia não era importante. Tinha a singeleza, a humildade de um doce fio de água nascendo entre duas pedras toscas no alto de um monte. Mas tal como esse puro fio de água é capaz de matar a sede a qualquer, o que ele dizia sendo importante, abria caminho como o fio de água a descer para alagar os vales, pelo meio dos corações, e enchia-os com a sua limpidez e a sua frescura. com a sua paz.

Na bonita sala familiar resplandecente das cintilações do lustre de cristal e dos apliques reflectidos no lindíssimo espelho romântico, entrou o ar das serras, o sol fecundo, o perfume das árvores, o canto dos pássaros.

O canto desse estranho passarito que.

O Domingos ia contando:

- Quando vi que o pardalito - era um simples pardal! - saltava da beira da janela para a mesa, perdi o receio de o afugentar, esse receio que sentia enquanto ele se limitava a mirar-me pondo a cabecita à banda como se me pedisse licença para entrar em casa. Estendi-lhe um dedo. Não ligou nenhuma. Mas logo a seguir deu um saltinho e poisou na borda da minha chávena que estava nesse momento mais de meia de leite com café. E diante do meu espanto, mergulhou o bico uma, duas, três vezes, sorvendo deliciado a bebida quente. Dei-lhe umas migalhitas de pão. Comeu-as. Depois, sem mais aquelas, bateu as asas e, num vôo único, saiu pela janela. Fiquei espantado, claro. Mas muito mais espantado fiquei no dia seguinte, à mesma hora, quando a cena se repetiu. Nessa segunda visita

- que aquilo era uma autêntica visita! - ele demorou-se mais. Só se foi embora quando me levantei da mesa. E passou a surgir regularmente todas as manhãs, e de cada vez se ia demorando mais. E Chegou um dia em que não se retirou. Ficou. E andava atrás de mim como se o seu minúsculo coraçãozinho não suportasse o meu afastamento. Porque quando eu ia para a Quinta vigiar os trabalhos da construção do estábulo e o deixava fechado em casa, o meu pardalito ia empoleirar-se no topo do guarda-fatos ou do armário da cozinha e de lá não saía, nem sequer para comer ou beber. A sr.a Joana e o Tomás, a quem tudo faz muita confusão (estão muito velhotes, coitados!) chegaram a dizer-me, com aquela mania supersticiosa das gentes com menos instrução, que aquilo até parecia bruxedo. Eu, cá pra mim, só pensava nas lindas histórias que a S'Dona Rosinha nos contava tantas vezes, ao serão, antes de irmos prá cama "isto é capaz de ser um gênio bom que anda a proteger-me. "

- Ou o teu anjo da guarda disfarçado de passarito. - interrompeu o Pedro com um sorriso, sem resistir a ligar o presente com o passado.

O Domingos sabia lindamente o que ele pretendia dizer com aquela frase. Respondeu-lhe por isso no tom exacto, muito embora a justeza se afigurasse enigmática aos que estavam alheios às histórias de dantes - e os que estavam alheios às histórias de dantes constituíam a maioria.

- Essa seria a interpretação do Rumané que teve o anjo-da-guarda dele metido no corpo do nosso velho Bom.

As pequenas quase todas pediram explicações.

Queriam saber o motivo porque o jovem feitor da Quinta de S. Boaventura assim falava, aludindo a algo que devia ser muito interessante, pois tanto o Pedro como o Artur sorriam de forma bastante significativa. Mas o Paulo, deveras preso à narrativa do Domingos e temendo que um desvio no tema o impedisse de continuar, quebrando o fio emocional que parecia estar a conduzi-lo, encarregou-se de lhes embargar a insistência e com uma frase irrebatível.

- As meninas, e os meninos, que desejarem entender o mistério da citação do Domingos, compreendendo o que ouviram e muito mais, leiam os livros em que a nossa amiga Odette fala de nós todos.

- Ou de quase todos. - corroborou o Pedro, num olhar para as três Abegorins ali presentes das quais a única citada há muitos, muitos anos, fora a Lili.

- Já agora, para se ficar bem inteirado do que foi até sermos, afigura-se de toda a conveniência que se recomende também a leitura do livro da Ana, logo que saia.

Com vivacidade, o Paulo encarou o Fernando Vasco, que pronunciara aquele nome - Ana - como se fosse a coisa mais vestida em saudade que existisse à superfície da terra.

Ana.

ANA.

Porque seria de facto que o nome da Ana ANA - era dito (ou soava?) de uma maneira diferente de todos os outros?

Mas o Fernando Vasco. Porquê, o Fernando Vasco com semelhante entoação? O Fernando Vasco parecia só ter olhos para a Alicinha que por sua vez o comia.

Desistindo de entender, tanto mais que o interesse pelo desfecho da narrativa do Domingos se conservava imperioso, o Paulo requereu, abafando um suspiro:

Não te importas de nos contar como acabou a história do teu pardal? Sim, que a história há-de ter o seu final.

- Como todas! - e o comentário arguto partira do Artur que não se afastava da Inês.

O Domingos recomeçou então a falar:

- Pois a história teve o seu final, evidentemente. Em dada ocasião precisei de me ausentar de São Boaventura para ir ao Norte tratar de uns assuntos. Preocupado com a tristeza do meu passarinho ao ver-se sem mim durante uns poucos de dias, pensei que talvez a companhia dos da sua espécie lhe fizesse bem. E fui metê-lo no aviário que teve o seu início com os passarinhos que o Sr. Padre Joaquim deu à Ana.

De novo o nome dela, ANA, ficou a vibrar com o seu estranho sortilégio. Tanto em algo de tão breve.

E o Domingos prosseguia.

- Aconteceu então uma coisa pasmosa. Os outros pássaros receberam-no com verdadeiras manifestações de ódio!

- Não! - exclamaram involuntariamente quase todos os circunstantes.

- Sim, sim - afirmou o Domingos. - E de que maneira! Atiraram-se a ele às bicadas, tão furiosos que o despedaçavam se eu o não agarrasse e o não retirasse imediatamente, resignando-me a deixá-lo em casa. E fui-me embora, claro! Quando voltei, tinha desaparecido.

Pairou um curto silêncio.

Pouco depois, a Rita, que parecia muito impressionada, balbuciou uma interrogação que traduzia de certo modo o desapontamento dos que esperavam outra conclusão, embora não pudessem prever qual.

- Acaba assim, a história do teu pardalito?

- Não sei.

- Não sabes ? - disseram o Júlio e o Artur, incrédulos ambos.

- Não.

- Mas não sabes porquê ? - insistiu o Zé Chaves, que não disfarçava a decepção.

O Pedro, que conhecia o Domingos como às próprias mãos, percebeu que havia qualquer coisa mais, qualquer coisa que o rapaz temia revelar, não fossem descrer do que ele afirmasse, supondo-o talvez impostor, fazedor de balelas. E então animou-o com uma frase imperativa:

- Conta tudo, vá! Sou fiador da verdade do que afirmares!

- Não há mais nenhuma verdade para afirmar. porque o resto não oferece quaisquer garantias.

- Nesse caso. há resto? -inquiriu a futura Médica.

- Um resto que talvez nada tenha a ver com o princípio. E Deus sabe que eu gostava de ter uma certeza!

Por que é que não podes alcançá-la?

Porquê?. - e sorriu. - Está bem, eu conto tudo e vocês próprios encontrarão a resposta a este porquê. Passou-se o seguinte e dois dias depois de eu chegar a Guimarães, que era a cidade onde tinha de tratar dos meus assuntos. Amanhecera um dia lindíssimo e eu estava a tomar o pequeno almoço na sala da pensão onde me hospedara. A criada abrira de par em par as duas janelas que davam para a rua. De repente, foi como se o chão me fugisse de debaixo da cadeira, tamanho estremeção senti dentro de mim. No parapeito de uma das janelas, de cabeça à banda, olhando para mim, estava um pardal.

Um silêncio, longo.

A Cristina, que num cicio fora tentando traduzir o que ouvira de forma a que o Vic (já desejoso de aprender o português) pudesse comparticipar do que a todos galvanizava, formulou num fio de voz a indagação que traduzia o pensamento geral, feito de espanto e de dúvida.

- Era. o mesmo pardal?

Mais que todos suspensos, o Pedro e o Paulo aguardavam a resposta que não se fez esperar, serena como sereno fora tudo o que ele contara, o rapaz dos campos, transmitindo beleza e lirismo à noite da cidade.

- Sei lá? . Os pardais são todos semelhantes uns aos outros.

Ninguém acrescentou o que quer que fosse.

Como se o laço que os prendera na mesma concentração, no mesmo encantamento, se houvesse naturalmente quebrado, deixando-os livres, começaram de novo a individualizar-se, a constituir núcleos separados.

Era já bastante tarde.

E os mais velhos, que haviam estado entretidos a jogar, apareceram a dar por finda a tão agradável reunião.

Os casais, como previamente se estabelecera, encarregavam-se de levar as raparigas aos seus respectivos domicílios. Claro que os rapazes ofereceram os seus préstimos. Mas, àquela hora, foram recusados.

A avó Teresa e o avô Joaquim iam de táxi e encarregavam-se da Marta e da Inês, que moravam relativamente perto deles. O Dr. Lemos esse saía propositadamente para ir entregar a casa as Abegorins e a pequena Fontemora a quem o Fernando Vasco, disposto a acordar os Pais às 5 da madrugada (nunca é tarde nem cedo para uma alegria, as alegrias chegam sempre a horas!) prometia rever antes de voltar para Paris no avião de segunda-feira de manhã.

E finalmente, no lar da família Lemos, reinou o silêncio. Haviam soado as 6 daquele domingo.

O Vic Nusen, recolhido, dormia regaladamente, repousando das emoções e das alegrias.

O Paulo, depois de num grande abraço ter agradecido às criadas os seus esforços para que todos ficassem satisfeitos, foi-se deitar.

Encontrou o Pedro junto da janela.

- Em que pensas, meu amigo?

- Na Ana! ?

ANA!.

Mas o Paulo não abriu o coração e não deixou sair, em música de amor o nome que não soava com nenhum outro, porque ele o ouvia e dizia como ouvia nem dizia mais nenhum. E respondeu ao filho dos que estavam longe, com doçura, oferecendo-lhe mais uma vez o apoio da sua compreensão total.

- Não foi só ela que nos fez falta, Pedro! Foram eles todos.

Acordaram tarde e estremunhados.

O primeiro pensamento do Pedro, misturado com um longo bocejo e uma meia-volta na cama, foi para o telefone - o telefone com objectivo certo, evidentemente, Falar à Rosarinho para saber da S'Dona Ester.

Mas. e horas?. Quantas seriam?

- É pá! - exclamou do lado o Paulo, pasmado para o relógio. - Já passa das onze e meia! Pfff! . Lá se foi a aula do Mira! - e num comentário jocoso: - Também, para o que ele ensina!.

O Pedro respondeu-lhe como se estivessem a jogar "aos disparates".

- Escuso de telefonar agora, que não a encontro. O outro soergueu-se, olhando-o de banda:

- Estás a sonhar alto, ou quê?

E o Pedro, parecendo lucidíssimo:

- Queria apenas falar à Rosarinho para saber da pobre da S'Dona Ester. Mas a esta hora ela ainda não voltou do Liceu.

E largaram ambos a rir à gargalhada, realmente e finalmente acordados, ambos com a mesma reflexão:

- Mas hoje é domingo!.

Riam ainda quando alguém lhes bateu à porta do quarto, indagando:

- Os meninos já acordaram?.

Os meninos dobraram o riso, volvendo em coro:

- Já sim!

A Joaquina, discretamente, foi entreabrindo a porta:

- Posso?

- Podes!

E o Paulo, sentando-se na cama.

- Ó esperta creatura, trazes-nos o pequeno almoço, é?

- Não, menino. Trago correiozinho.

- An?.

A Joaquina, há anos na casa, sabia lindamente que qualquer dos rapazes tremia de emoção à idéia do correiozinho. Sim. que entre a papelada da propaganda médica que ambos tinham começado a receber "Sr. Dr. fulano de tal". havia aquelas cartas que vinham de longe.

E quando a Joaquina pronunciava "correiozinho" daquela maneira, sabia-se que havia as tais cartas e eles precipitavam-se "dá cá".

Nenhum deles se moveu, porém. E olhavam para a Joaquina com ar de troça.

- Olha a graça! - comentou o Paulo, mais afoito, por dono da casa: - Era bem melhor o cafezinho com leite!

A Joaquina mal podia crer no que ouvia.

- O quê ? Os meninos não querem saber do correiozinho ?

O Pedro abanou a cabeça, agora todo encolhido dentro da roupa.

- Correiozinho ao domingo?. Isso era dantes, quando a civilização não estava tão apurada. Agora os domingos são vedados à correspondência!

E contudo tanto ele como o Paulo avistavam na mão da rapariga um sobrescrito oblongo, bastante característico.

- Não pode ser! - balbuciou o Paulo. Joaquina parecia um tanto embaraçada.

- Isto é do correio de ontem à tarde. Mas com os trabalhos e os preparativos da festa ninguém se lembrou de lá ir abaixo.

Já o Paulo estava junto dela. Já o Paulo quase lhe arrancara da mão a carta vinda de longe. Já o Paulo dizia para o Pedro, num misto de decepção e alegria.

- É para ti. Da Rosinha-Mãe.

A Joaquina retirou-se, afirmando que ia arranjar os almocinhos.

O Pedro, sentado no leito, ficou por momentos imóvel, olhando a carta, palpando-a, sem a abrir.

- Engraçado!. E chega-nos às mãos hoje, horas depois de termos sentido saudades intoleráveis.

- e pouco depois: - Traz retratos dentro.

O Paulo, instalado aos pés da cama, aguardava.

Num gesto seco, o Pedro rasgou o sobrescrito, tirou a carta, desdobrou-a. Caíram sobre a colcha, espalhando-se, umas poucas de fotografias.

O Paulo continuava à espera.

O Pedro, com uma mão que tremia ligeiramente, pegou-lhes. Mirou-as como se o coração lhe subisse aos olhos. E uma a uma foi-as passando ao amigo.

O Pai. O Pai e a Mãe. Os cinco, em grup O Rumané e a Ana. A Ana, sozinha. E a Maria-Rosinha.

- Pode lá ser! - duvidou o Paulo. - Ela já está tão grande?

Ambos tinham bem presente a visão da pequeníssima que ainda mal se sentava quando se fora embora. E agora, em pé, cheia de caracóis, dois lacinhos a prender-lhos aos lados, agarrada a uma boneca quase do tamanho dela, e um riso maravilhoso a mostrar uma porção de dentinhos.

- Que bonita! - sorriu o Pedro. - Mas não percebo com quem ela se parece!

- Ora, parece-se com ela própria!

- Espera. Reparando bem. no nariz, na boca, na testa. é capaz de lembrar a Ana.

A Ana.

A fotografia da Ana - só! -, permanecia nas mãos do Pedro. Mas o Paulo deixara o fundo da cama e estava quase rente à cabeceira. E podia assim contemplar o retrato da Ana como o Pedro.

A ANA!. Sempre Ela, com o seu olhar cheio de profundidade, um olhar que parecia ver o interior das pessoas.

- Acho a Ana mais magra. -comentou por fim o Paulo.

O Pedro, arrancando-se à contemplação da irmã para se fixar no grupo que os continha, a todos, observou:

- Magra, magra, está a nossa Rosinha-Mãe.

Nem parece a mesma que daqui foi. Ora repara, Paulo.

- É certo! Faz uma grande diferença!

Nota-se-lhe um ar. cansado, não?

Talvez. -e apontando o vulto elegante do Dr. Rui Manuel de Macedo: - Em contrapartida o teu Pai dir-se-ia que rejuvenesceu.

O Pedro não dissera que a Mãe lhe parecera um tanto envelhecida. Aquela frase do Paulo era porém como que uma resposta ao que ele calara. E o Paulo reparou no incidente. E tentou corrigi-lo, no que podia ter de chocante para o amigo.

- O teu Pai é um tipo com muita classe!

O Pedro assentiu, num gesto de cabeça. A forma como lhe respondeu, porém, completava a apreciação:

- Têm ambos a raça da alma a luzir-lhes nos olhos!

Depois analisaram o Rumané. Alto, esguio, uma expressão alheia a quanto o cercava. Ou fugidia. No fundo sempre a mesma coisa. O Rui Manuel tinha uma enorme dificuldade em sentir-se feliz. E em comparticipar da felicidade emanada dos outros.

O Pedro, finalmente, desdobrou a carta. O Paulo, acendendo um cigarro, dispôs-se a ouvir.

E o filho dos Macedos começou a ler.

Meu querido filho:

Comecei esta carta há cinco dias. Comecei é uma forma de dizer. Tracei a frase "meu querido filho", esta que repito com tanta frequência, tanta que me sobem as lágrimas aos olhos quando te procuro chamando-te sem te ouvir responder nesse tom que adoro:

Mãe? .

Não passo de uma sentimentalona, não é meu Pedro? Que hei-de fazer?. Sou assim e não consigo modificar-me.

bom, voltemos às razões que me impediram, depois de haver traçado a frase "meu querido filho" de ficar a conversar contigo. Apanhei um grande susto! Ouvi gritar na varanda "acudam à menina" e só pensei que a Maria Rosa havia caído dela abaixo. Não era nada disso, nem nada se passava, graças a Deus, a não ser um acidente que vou contar-te.

Vinha a Ana Maria a caminho da nossa casa, em frente da qual há uma bela e frondosa árvore onde um dos criados colocara uma gaiola de rede, bastante grande, com a esperança de apanhar um macaquito que não se sabe porquê de vez em quando aparece pelo meio dos ramos a espreitar-nos como se lhe interessasse muito a nossa vida. Sucedeu que o moleque colocara mal a gaiola (não discorreu que devia prendê-la com uma cordinha) e esta, desequilibrando-se, desabou em cima da Ana, que apanhou um enorme susto pois calcula tu que a gaiola, que tinha a porta aberta, se enfiou na cabeça da tua irmã. Felizmente a gaiola (de rede, como já disse) era levíssima e nada de mal aconteceu à Ana Maria. As conseqüências do engraçado desastre não foram além de um arranhão na ponta do nariz.

Muito rimos depois, ao lembrarmo-nos da figura dela, com a linda cabeça metida na gaiola.

O Rumané ficou cheio de pena por ninguém se haver lembrado de lhe tirar uma fotografia. Muito senhor de si, afirmou durante dois dias a fio "se eu estivesse em casa não passava, não. " Claro que se ele estivesse em casa só pensava nisso depois. É o costume. As fotografias tiram-se por vocação ou por determinação. Foi o que aconteceu com estas que te envio, pois vocação nenhum de nós a possui.

A tua irmã está cada vez mais amorosa. Cada vêz mais completamente amorosa. É a filha ideal, porque à medida que nela vai surgindo a mulher, a rapariguinha cristaliza-se em ternura e compreensão. Desdobra-se em atenções e carinhos, como se em cada momento desejasse poder preencher o lugar de um filho distante.

Leva uma vida talvez um bocadinho severa demais, a tua irmã. E é engraçado!. Fora dos estudos, quando não escreve, o que continua a fazer com regularidade, borda, à antiga. É um bonito quadro, que me enche de ternura, quando a vejo sentada na varanda, com a Maria Rosinha à frente dela, no parque. Tenho como que uma antevisão do que virá a ser daqui a uns anos! E Deus sabe que gostava bem de ver ainda, a minha Ana e o seu Paulo com bebê! Mas a vida tem-me dado tanto que às vezes sou levada a pensar que não lhe devo pedir demais. É que me lembro das que podiam ter tido tanto como eu, porque nasceram como eu com o direito de serem o que eu tenho sido. e afinal nada foram e nada possuíram.

Aqui o Pedro parou de ler e encarou o Paulo, que também o olhava com evidente inquietação. Depois, como que impulsionados por uma mola comum, ambos se debruçaram para as fotografias, observando-as ansiosamente. Logo a seguir voltaram a encarar-se.

O Pedro estava pálido.

- Paulo. que significarão estas frases? E o Paulo:

- Qualquer coisa não corre bem!

- Sentir-se-á doente, a nossa Rosinha ? Passou tão mal até ao nascimento da Maria Rosa!

- Mas depois ficou óptima! Até engordou.

- A gordura não significa nada!

O Paulo, moderando-se, aconselhou:

- Continua a ler, Pedro. Pode ser que para diante haja algum esclarecimento.

Não havia.

A Rosinha-Mãe não voltava a falar de si, pelo menos como centro de quaisquer atenções. Pelo contrário. O seu tom modificava-se quase por completo.

O Rumané está esplêndido, mas sempre um bocadinho estranho. É simpático, tem amigos, mas não se associa com eles facilmente. Continua com a sua dificuldade de comunicar. Talvez se assemelhe ao tio João, que em pequeno era bastante bisonho e para sempre ficou aquele bicho de mato que tu bem conheces. Tenho pena, porque as pessoas assim encontram sérios entraves para abrir caminho na vida. São criaturas para laboratório. Talvez seja esse o rumo - é certo! - do nosso ex. -Salta-Pocinhas, pois já declarou ao Pai que deseja ir para Farmácia. Adora a química e a física, sabe-se. Mudará ele de idéias ?. Veremos.

O Pai está óptimo e tão bonito (a sério!) que às vezes olho para ele e dá-me vontade de rir porque penso assim "meu Deus, que perigo!. Se eu não o conhecesse e ele me surgisse pela frente, creio bem que me apaixonava outra vez. " De resto, meu Pedro, o melhor de tudo é ser o vosso Pai, na alma e nos sentimentos, tão belo como no físico. Que Bom, olhar os seus olhos cor de azeitonas de Elvas e pensar "queridos olhos, incapazes de falsidade, incapazes de mentiras!. "

Pedro, nunca mintas! Nunca mintas a ninguém e, principalmente, nunca mintas à tua mulher!

Quando um dia te ajoelhares diante do oliar de Deus, aceita tudo definitivamente e passa a agir como se ela fosse o teu próprio corpo e a tua própria alma.

Considero deliciosa e conveniente a tua amizade com o Dr. Álvaro Abegorim. Espero que a conserves como uma bênção.

De novo o Pedro parou de ler. De novo encarou o Paulo, que sorria murmurando:

- É espantosa, a tua Mãe! Como ela ligou as idéias e aproximou a hipótese do teu futuro casamento com a família do Dr. Juiz.

E o Pedro:

- Bebe azeite, a Rosinha! Pressente o que não se lhe diz.

- Devem possuir realmente um sexto sentido, as mulheres. A minha Mãe também tem dessas coisas. Mas continua a ler, anda, que ainda falta bastante.

O Pedro recomeçou, sem se fazer rogado:

A propósito, filho, quero dizer-te que nunca tive má impressão da família do 4. ? andar do nosso prédio. E isto porque notei a preocupação dos teus reparos acerca das qualidades das pequenas vizinhas, parecendo inquieto com os meus juízos a seu respeito. Na realidade dantes afligia-me que Mãe delas as não vigiasse como eu os vigiava, a vocês. Sobretudo porque via a mais velhinha, a Lili, muito distante dos meus ideais em relação ao que deve ser uma menina aos quinze anos. Mais tarde, porém, pareceu-me que a Lili se ia tornando uma rapariguinha atilada e, em relação às mais novas, nunca notei coisa alguma que me desagradasse. Comecei a pensar que elas podiam perfeitamente ter nascido boas. E o facto de a Senhora D. Teresa Mafalda (creio ser este o nome da esposa do Dr. Juiz) levar uma existência completamente diversa da minha podia nada significar em relação à estrutura moral das filhas. As empregadas também quase não têm tempo para dedicar aos filhos e nem por isso estes hão-de forçosamente ser criaturas de nível baixo. No entanto afigura-se-me que a mulher, de uma maneira geral, se encontra ainda muito longe de resolver o seu problema, ocasionado por uma emancipação imprescindível mas pessimamente servida por sentimentos e princípios. Está certíssimo que os dias úteis (por isso mesmo se chamam úteis sejam preenchidos com ocupações produtivas. Os maridos trabalham, as mulheres trabalham, os filhos trabalham, estudando, claro. Todos porém devem procurar as horas e os dias livres para se reunirem e entenderem, certos de que a família é o maior bem concedido ao homem - mas a família tal qual a concebo, porque fora disto a família não passa de uma palavra vã. Voltando porém às meninas do andar de cima, folgo de as saber tão bem encaminhadas na vida, visto que de facto nós delas não conhecíamos nada de positivo.

Engraçado, como vivendo tantos anos tão próximos, só agora, que nos encontramos longe, venho a saber de facto como são! E no entanto tenho bem presente no meu espirito o crescimento delas, das quatro irmãs. Sempre as achei, às duas mais novas, uns encantos. Principalmente a garotinha das tranças loiras cujos lindos olhos azuis me fazem pensar nas ilustrações actualmente fora de moda dos livros de histórias da vossa infância que tu e a Ana adoravam colorir.

Diz às tuas amiguinhas que lhes mando muitas saudades e lhes desejo as maiores venturas.

Falando agora de cá. O Hospital concretiza-se numa obra de esplendoroso realce. A inauguração, forçosamente adiada (não chegaram a tempo determinados aparelhos encomendados na Alemanha) está marcada para meados de Junho e o teu Pai afirma que não sofrerá mais nenhum atraso. Na realidade, que eu veja, tudo se acha concluído.

Como edifício, e embora as suas proporções não igualem as do Hospital de Santa Maria, aí em Lisboa, é verdadeiramente majestoso. E, o que se torna deveras importante numa casa com as suas características - inspira confiança. vou mais longe - quase apetece ir para dentro dele.

O seu apetrechamento é dos mais modernos. Nada falta. Ou antes. falta! Sim, filho, efectivamente, e com grande pesar do teu Pai, falta pessoal médico e de enfermagem.

A Laura continua apaixonada pelo Quico. Afinal espalhar felicidade, ver a felicidade nascer à nossa volta, é tão Bom, tão bom e tão belo!

A Arminda fala muito em ti, mas as saudades não lhe tiram o apetite e come toda chorosa, come a dobrar sempre que faz petisquinhos a pensar no seu rico menino. Está tão gorda que mal passa nas portas de largura normal. E então agora que aprendeu um prato regional feito à base de milho - milho, pois, e não é espanto nenhum que aí bem se come em broas e em papas, não fala noutra coisa. "Ai o Pedrinho muito havia de gostar. "

Gostas com certeza. Chama-se cachupa. Qualquer dia mando-te um cartucho e juntamente a receita para a Senhora D. Mariana aí experimentar. Para já digo-te que é feito tudo em cru e leva, além do milho previamente batido no pilão (espécie de grande vaso em madeira com um grosso pau que pisa o conteúdo a golpes insistentes de braço rijo) chouriço, toucinho, entrecosto, galinha, ervilhas, couves galegas moídas, azeite, banha, colorau, sal, pimenta.

É uma delícia, garanto-te! Há dias, brincando, dei à Maria Rosa um pedacito de miolo de pão embebido no molho e ela até se lambeu! De resto a tua irmã patafaçuda aprecia tudo o que seja de comer e o seu maior desejo, nunca disfarçado, é enfiar a mão no nosso prato de sopa quando se lhe oferece a oportunidade, o que em geral sucede à hora do almoço, refeição a que assiste instalada na sua cadeirinha, fazendo-nos companhia antes do sono da tarde, um sono que freqüentemente me adormece também a mim. A vida aqui, como sabes, é muito diferente da de Lisboa. Começa mais cedo, interrompe-se a meio da tarde devido ao calor e prossegue depois, não acidental mas normalmente, até altas horas.

Como já sabes pela Ana Maria, somos bastante visitados e convidados. Impossível evitá-lo, embora o teu Pai nem sempre aceite o inevitável sem grandes suspiros de sacrifício. Cheio de trabalho, mergulhado em estudos que precedem resoluções e soluções importantes, preferia isolar-se produtivamente. Continua a detestar com simpática lhaneza esta vida mundana que a mim também nada me interessa. Falo do tio João e do Rumané, mas também não sou de convivência fácil. Dir-se-ia que cada vez receio mais as pessoas que não conheço. Há tanta gente má, neste mundo! Tanta que freqüentemente me surpreendo a temer por vocês, meus filhos! Vocês são bons, são puros, são leais. mas terão forças para agüentar o embate com os maus, os contaminados, os desleais ? E do fundo do meu coração só desejo que saibam defender-se, acautelar-se, e não deixar que os façam sofrer, porque. Porque existem sentimentos capazes de magoar até tirarem a cada um o que de mais precioso a criatura alberga em si - a fé e a esperança.

Meu querido Pedro, vou terminar. A tua irmã pequenina acaba de entrar ao colo da nossa criadita Serafina - uma engraçada mulatinha que é prima do noivo da Laura - e galreia expressivamente. Acho que a pedir-me o favor de te mandar beijinhos dela.

Dá por mim um apertado abraço ao Paulo. E à Senhora D. Mariana e ao Dr. Lemos os nossos mais afectuosos cumprimentos.

Saudades da Laura e da Arminda. O teu irmão prometeu-me escrever-te brevemente.

Se vires os Pais do Fernando Vasco recomenda-nos. Têm sabido dele, vocês ? Nunca mais se dignou dar-nos notícias. Mas há dias passou aqui um filme dele e fomos vê-lo. Nenhum de nós, porém, encontrou o que decerto modo procurava - o tempo que passámos juntos.

O teu Pai conta ansiosamente os anos que faltam para tu e o Paulo acabarem o curso. Tantos, ainda, e apesar de serem tu e ele alunos dignos da profissão para que se prepararam! Quanto mais vejo o teu Pai trabalhar menos entendo a existência de médicos sem competência, nem coração, nem dignidade.

A Maria Rosa continua a chalrar. Ofereço-te toda esta algaraviada como te ofereço os meus pensamentos de adoração.

Dá (imagina que ia a escrever um beijinho, vê tu o disparate!) um abracinho meu à nossa loirita do 4. ? andar.

Que Deus te guarde, hoje e sempre.

Rosa Maria.

- É verdade, sabes se a tua comadre já regressou do estrangeiro? Há mais de três semanas que nem um postalzinho recebemos Ela! Aparecerá por aqui, em surpresa? Ou ficar-se-á por aí numa daquelas suas crises de um torpor que me aflige quando penso que nessas ocasiões tudo quebra no seu coração e ameaça submergi-la sob angústias capazes de males sem remédio! Procura-a, meu Pedro Se estiver adormentada, acorda-a, ralha-lhe. Nunca te esqueças de que Ela é a nossa maior amiga- Mãe.

A carta acabada, ambos ficaram imóveis e calados - Sentiam qualquer coisa latente algo de estranho a desprender-se de todas aquelas folhas de papel. Mas o quê, além de ternura?

- Há uma toada singularmente melancólica nesta carta inclusive no que pode considerar-se como boas notícias. Que se passará? A Rosinha sempre tão alegre. -comentou por fim o Paulo.

- Estará doente, de facto ? - e o Pedro voltava à sua inquietação expressa logo no início. - pressentem-se dúvidas e receios.

- Dúvidas e receios ?

- Sim, uma espécie de medo do tempo por vir. não te parece?

Voltaram a contemplar o retrato, procurando entender, adivinhar. O rosto de linhas suaves, num meio sorriso, não deixava transparecer nada que pudesse confirmar o alarme.

Algo perdidos, um suspirou, o outro abanou a cabeça.

Alguém bateu à porta do quarto.

- Meninos! Meninos! - era a voz da Joaquina. Eles encararam as exigências da realidade.

- Já é uma hora, Paulo!

- E nós por arranjar!

Pensaram que estavam a chamá-los para o almoço.

- Já vamos! E ela:

- Telefone pra um dos meninos, tanto faz. Haviam estado de tal modo imersos na distância

que não tinham ouvido o toque da campainha.

- Atende tu! - disse o Pedro ao Paulo.

- É capaz de ser a Rosarinho. Vai tu, antes. E o Pedro foi.

Voltou divertidíssimo.

- Era o Fernando Vasco.

- Combinaste alguma coisa com ele para logo ?

- Não. Tem a tarde ocupada. Talvez nem sequer disponha de tempo para voltar a falar-nos.

- Heim?

- É como te digo.

- Mas porquê?

- Deve voltar de aqui a um mês.

- É Essa, a notícia espantosa? Pfff - Por causa da Alicinha Fontemora!

- An?.

Estavam os quatro a acabar de almoçar (os quatro, Pedro, Paulo e os Pais deste, porque Vic Nusen fora almoçar a casa de uma baronesa muito dada às artes que desejava apresentá-lo a uma série de individualidades curiosas de observarem de perto o Gênio!) conversando animadamente sobre a noite decorrida - e tão bem vivida! - quando, depois de se ouvir soar a campainha da porta da rua a Joaquina voltou a avisar "que estava lá dentro o menino Artur que precisava de falar com o primo".

- Ora essa, manda entrar para aqui imediatamente! - disse a sr.a D. Mariana.

Pouco tardou que o Artur surgisse, como um ar bem diverso daquele com que se retirara nessa

madrugada. Notando-o, o Pedro logo pensou que lhe sucedera qualquer coisa de desagradável e assim, ainda mal ele cumprimentara os donos da casa já lhe perguntava, sem disfarçar a inquietação:

- Que se passa contigo? Dominando-se, com evidente esforço, o rapaz fez-lhe sinal de que não devia perder a calma. Mas o gesto não sossegou o Pedro:

- Alguém doente?. Espatifaste a moto? Sucedeu algum desastre ao Domingos?

Um novo movimento, que significava "nada disso".

A instâncias do Dr. Lemos, aceitou um café acabado de fazer naquele instante pela Mãe do Paulo. A xícara tremia-lhe nas mãos.

E o Advogado, percebendo a tensão nervosa sob que ele se encontrava, entendeu por bem libertá-lo da necessidade de ali se controlar, por delicadeza. Viera para falar com o primo, que fosse falar-lhe.

- Vão para o meu escritório, rapazes, vão! - disse, com a habitual bonomia.

O Pedro levantou-se, imitado pelo Artur. O Paulo ficou quieto, suspenso, entendendo não dever imiscuir-se no que talvez fosse estritamente particular. O Artur, reparando na discrição, já da porta acenou-lhe para que os seguisse.

Uma vez fechados no escritório, sem que o Artur abrisse a boca, mudo, de emoção ou contenção, o Pedro inquiriu:

- É alguma coisa com a Inês ?.

De facto, uma zanga entre namorados podia justificar aquela atitude tão insólita. E o Artur. silencioso.

- Homem, desabafa! - exclamou o Paulo. Depois de um regougo que dir-se-ia libertar-lhe o aparelho vocal do evidente espasmo que o estrangulava, sufocando-o, o Artur respondeu enfim:

- Não aconteceu nada com a Inês. Ela é um encanto de rapariga. O que se passa é só comigo.

- Mas o quê?

Começou então, aos arrancos, como se cada palavra lhe saísse do fundo do coração.

- Vocês recordam-se de noutro dia, quando cá estive, lhes ter contado que ia encontrar-me com um tipo do Teatro por causa de um projecto meu?.

Recordavam-se ambos perfeitamente. O Pedro lembrava-se até da resposta que ele lhes dera, escusando-se a defini-lo "trata-se de um projecto tão vago que não vale a pena revelá-lo por enquanto". E repetiu a frase.

O Artur aquiesceu.

- É certo! Aqui, a vocês, não o descobri e fui meter tudo, tudo, com todos os pormenores, no bico do fulano!

- E depois?

- Depois. roubaram-me!

- O quê?

- Roubaram-me!

- Mas roubaram-te o quê?

- O meu projecto!

- E podemos agora saber de que projecto se tratava?

- Podem. podem e devem! Eu queria fundar no Jornal uma secção nova. em ligação estreita com o Teatro, para apresentar peças, cenas de peças, abrindo uma escola de Críticos. devidamente preparados. e permitindo a discussão quer directa quer nas colunas dessa mesma secção, com o público.

- Ó pá, isso era uma coisa giríssima! - aplaudiu o Paulo.

- Giríssima, útil e de um interesse enorme!

Dava para aí um barulho dos diabos! - corroborou o Pedro.

- Estimulava toda a gente e fornecia meios de expansão que não há.

- E formava mentalidades! E os dois, em coro:

- Parabéns, pá!

Os olhos do Artur poisavam-se no primo e no amigo com um pasmo angustiado.

- Vocês dão-me os parabéns?. Mas então não perceberam?

- Como?

- Sim, não perceberam o que eu disse ? Fui roubado!.

Instantaneamente, fez-se luz no espírito do Pedro e do Paulo. Luz que os deixou num relance alcançar o sentido do imenso desespero do Artur. E no entanto, custava-lhes a crer.

- O tipo, o tal a quem te confiaste. palmou-te ?

- É isso mesmo. Palmou-me!

- É pá, mas para que te abriste com ele ?

- Confiava! E depois, era do meio teatral, precisava dele.

- E então?

- Então. chamou a si a iniciativa. e vai lançá-la!

- E tu?

- Quando soube. e ainda sem acreditar que se tratasse de um facto, procurei-o. falei-lhe. Chamou-me "garotelho pretensioso", "escroquezito sem escrúpulos", "aldrabão sem vergonha".

- An? - e os dois rapazes sentiam-se tremer de indignação.

- Foi ainda mais longe. Negou que eu lhe tivesse falado em particular!

- E não há testemunhas?

- Dezenas!

- Então? .

- Num café. Desconhecidos num meio desconhecido! Sabiam lá o que estava eu a fazer ali sentado à conversa com um sujeito de barbas?.

- É pá, mas tu não hás-de ficar silencioso e quieto ante uma patifaria dessas?

E o Pedro, fulo:

- Sim, que roubar idéias é o mesmo que roubar dinheiro!

- É pior, é pior! - murmurou o Artur, justificando a afirmação: - Porque o dinheiro fabrica-se. ao passo que as idéias nascem! São bens de alma, inalienáveis, sagrados.

Ficaram um momentinho calados, pensando. Depois, o Artur indagou:

- Que hei-de eu fazer agora?. O Paulo sugeriu:

- Pedir conselho a uma pessoa que saiba exactamente como se deve proceder num caso desses!

Assomadiço, o Pedro teve outra opinião.

- Cá na minha, para começar espera-o numa esquina e dá-lhe uma boa tosa.

- E fico sem emprego?

- O quê?

- O tipo tem muitas amarras, conhece gente que nunca mais acaba. E goza de reputação em certos meios.

- Merecida, não haja dúvida!

- Desgraçadamente não faltam por aí malandros da pior espécie encadernados de homens de bem.

- E até importantes!

A constatação, amarga, era bem real. Pena que rapazes tão novos dela já assim tivessem conhecimento!

O Pedro, preocupadíssimo, quis saber:

- Sendo assim. tens medo dele?

- Medo que me espatife a vida. up. E o Paulo:

- Todo o cuidado é pouco com indivíduos de mau caracter. São capazes de todos os meios para alcançar o fim que têm em vista.

O Pedro concordou. Foi mais longe, até.

- E quando tomam uma pessoa de ponta, fazem como um cão feroz a um gato. Só o largam depois de estraçalhado.

- Infeliz de quem lhes cai na dentuça! O olhar do Artur era cada vez mais triste.

- Nesse caso. vocês acham que o melhor é esquecer ?

- Não. isso também não! E o Paulo:

- Volto a dizer que deves pedir conselho a alguém entendido em assuntos desta natureza.

Nenhum deles foi capaz de se lembrar de que naquela casa, bem à mão, havia um Advogado. Nem o Paulo, quando o Pedro propôs:

- Se fôssemos falar com o juiz Abegorim?

É capacíssimo de te dar uma sugestão. Vou telefonar-lhe.

Pouco depois apareceu, dizendo que o Dr. Abegorim não se encontrava em casa.

- Foi a Rosarinho quem te deu essas informações?

- Não, foi a Sofia, que sabe sempre tudo. A Rosarinho continua ao pé da S'Dona Ester, agonizante.

- Sozinha ? - estranhou o Paulo.

- Não, acompanhada pela S'Dona Teresa Mafalda e pela tia Casimira.

- Sendo assim. nada feito, por hoje?

- Como nada feito ? Vamos lá em sendo umas 7 horas. Passo pela S'Dona Ester e depois esperamos que o Dr. Abegorim regresse.

O Artur replicou:

- Tanto tempo sem uma solução para isto! O Pedro, lentamente, como que para dar a cada sílaba a força que lhe permitisse atingir o alvo da frase, redarguíu-Lhe.

- Tanto tempo passaremos na vida sem sabermos o que nos espera.

- Isso é verdade! - apoiou o Paulo. O Pedro continuou:

- Sabes o que há a fazer? E repara que hoje e sempre! Entre o que está a ser e o que está para ser o melhor é preencher da forma mais absorvente todo o tempo. -e quase sem transição, indagou:

- Olha lá e como é que tu soubeste disso ?

- Na Redacção, quando cheguei, por um aconversa do meu chefe com um dos colegas mais categorizados, discutindo a paginação do artigo de abertura.

Na Redacção quando chegaste. como? Hoje

é domingo e tu ontem estavas muito bem disposto!.

- Eu trabalho aos domingos!

- Então. se trabalhas aos domingos que é que estás aqui a fazer ? - a lógica de ferro do Pedro começava a impor-se.

- Estou aqui porque perdi a cabeça, saí do Jornal a correr, fui a casa do tipo, que ainda dormia, esperei que acordasse. discuti com ele, ouvi o que já sabem. e vim ter com vocês, porque os amigos são para as ocasiões! - a lógica do Pedro, eficaz, despertara uma reacção a todos os títulos benéfica. O Artur falava alto e rápido, o que era um óptimo sinal.

O Pedro sorriu:

- Claro que os amigos são para as ocasiões e não se põe em dúvida a justeza e o acerto de te haveres refugiado em nós. Mas não penses que vais aqui ficar a carpir, de cabecinha deitada nos nossos ombros.

O Paulo olhava-o, adivinhando já onde ele queria chegar. Onde ele ia chegar.

- Portanto, e como se nada se passasse, vais voltar para a Redacção e não permites a ninguém que perceba o que se passa na tua alma.

- Não posso!

- Na vida tudo se aprende. A poder, também!

- O gajo é capaz de aparecer por lá.

- E depois?. Queres dar-te em espectáculo aos corvos, que são todos esses que andam à cata do mal dos outros? A consciência acusá-lo-á do que fez, descansa.

- Lá isso, - observou o Paulo, - quem procede como ele procedeu não tem consciência.

- Tem! Todas as pessoas têm consciência. Mais ou menos profundamente entorpecida, mas têm! E chega sempre o dia em que a consciência desperta. Não há sono que não cesse. a não ser o da morte.

- Pode morrer-se antes que a consciência acorde!

- Pois pode. mas olha que deve ser terrível ir prestar contas a Deus das coisas fechadas na consciência que mereçam o nome de pecado ou crime! Porque, enquanto se anda por cá, pode remediar-se o mal.

- Há quem nunca o remedeie!

- O arrependimento, às vezes, salva! O Paulo interferiu:

- O diálogo está muito interessante, com imensa categoria. mas os minutos fogem e entendo que o Artur deve de facto voltar para a Redacção.

O Artur não se resolvia.

- Telefono para Já e dou parte de doente.

- E o gajo fica a rebolar-se e a chamar-te cobarde ?.

- Cobarde?

- Sim, cobarde! Que fugir é sempre fugir, seja de um homem ou da adversidade. Quem não possui estaleca para agüentar, menino, não é digno de nada! Foi o empurrão, brutal mas necessário. O Artur pôs-se de pé:

- Está bem, vou. Mas não sem acalmar. Tal qual me sinto, não suporto.

- E que vais fazer para acalmar? Tomar água de flor de laranjeira?

- Não, Pedro. vou para a Igreja de S. Roque, tocar talvez a Âve-Maria de Schubert. Deve fazer-me bem rezar assim.

O Pedro ficou muito sério. Depois levantou-se também e poisou a mão direita sobre um dos ombros do primo. Olharam-se a direito. Sem uma única palavra.

Como que em nome de todos, o Pedro disse:

- Às 19 horas, prefixas, encontramo-nos à porta da minha casa.

Decorreram instantes após a saída do Artur, sem que nenhum dos rapazes sentisse vontade de falar. Talvez nenhum soubesse do que havia de falar.

Mas depois tornou-se preciso dizer qualquer coisa. O mutismo e a inacção também a eles não convinha.

- Bom. - começou o Paulo, - o Artur vai preencher o tempo, já sabemos como. E nós?

- Apetecia-me telefonar para casa do Artur, à procura do Domingos.

- Não vale a pena. Não te lembras de que ele ia almoçar com a Marta?

- Lembro-me. Mas podia ter voltado cedo.

- Que idéia! Tinham bilhetes para o Cinema.

- Ah, pois!. - e após uma pausa de reflexão.

- E o Vic, a que horas regressará de casa da baronesa?

- Não sei.

Iam sabê-lo naquele mesmo instante. O telefone tocara e a Joaquina estava a chamá-los.

- Um dos meninos ao telefone. É o senhor estrangeiro.

Eles - os meninos. Vic Nusen - o senhor. O Pedro animou-se:

- Talvez esteja despachado e queira combinar qualquer coisa.

E o Paulo:

- Vai lá tu atendê-lo, vai.

O Pedro demorou-se pouco.

- Então ?

- Nada feito. Um dos convidados da baronesa era o Director de uma agência internacional e o Vic vai passar o resto da tarde a estudar com ele as possibilidades de uma série de concertos nas principais cidades das nossas províncias ultramarinas.

- O Vic vai a África ?.

- À África Portuguesa. E parece que brevemente.

E o Paulo chegou a uma conclusão imediata:

- Ah. nesse caso. vai tocar para a Ana!

Quando às 19 horas chegaram a casa do Pedro, este foi logo perguntar pelo juiz.

Apareceu a Sofia, a quem o Pedro perguntou quem estava em casa.

- Estão o Só Tôr. Juiz e a menina Rosarinho Sr. Dr. (agora era sempre assim que a Sofia se lhe dirigia).

- Ah? . -e estranhando que a Rosarinho não aparecesse, sabendo-o ali. - Onde ?

- O Sr. Dr. no escritório. E a Rosarinho na cama.

- Na cama?

- Obrigaram-na, pra ver se lhe passa aquela aflição. Desde que veio da festa que nunca mais parou de chorar. E a S'Dona Teresa Mafalda quando a trouxe pra cima deu-lhe um comprimido. Adormeceu.

- Então. e a senhora e as outras meninas?

- A Senhora voltou lá pra baixo, mais a S'Dona Casimira. E as meninas ficam até mais logo, no velatório.

O Pedro sobressaltou-se, enquanto o Paulo e o Artur davam um passo em frente, compreendendo.

- Ah. nesse caso. faleceu?

- A meio da tarde. Deviam ser aí umas quatro horas.

- Coitada, descansou!

- Pois!. Já não havia mais nada a fazer.

- Nada.

- O Só Tôr e mais os seus amigos entrem, se faz favor. Entrem que eu vou avisar o Sr. Dr. Juiz.

E foi.

O Dr. Abegorim veio recebê-los no limiar do escritório. Sempre cortês, mandou-os sentar, ofereceu-lhes cigarros. Certo, pela presença conjunta e pela atitude circunspecta (quase tanto como a de Sofia) de que eles, ou pelo menos algum deles, precisava de qualquer coisa, tratou imediatamente de pô-los à vontade, convidando-os a exporem o motivo que ali os trouxera.

E o Artur, instado pelos companheiros, principiou a contar tudo, muitas vezes com a voz trêmula, o que ia dando ao Juiz, mais do que a explicação, a exacta medida do que ele havia sofrido - do que ele sofria.

Quando por fim o rapaz se calou, perfeitamente narrado o seu caso, Álvaro Abegorim fitou-o com pena, essa pena sincera que não inventa paliativos para adormecer ou escorar o mal alheio. E proferiu, num suspiro fundo:

- Meu rapaz. só posso responder-lhe isto: conforme-se!

O Paulo reagiu, não podendo acreditar que se fosse vencido sem luta.

- Ó Sr. Dr. Juiz. mas então não há nada a fazer?

- Nada.

- Mas porquê?

- Porquê? Por muitas razões! Entre outras, estas - como é que ele prova o que se passou? como é que ele faz fé do que afirma? quem se sentirá obrigado a aceitar uma verdade desmentida?

- Sendo assim? .

O Artur, que baixara os olhos ao ouvir as palavras do Dr. Abegorim, voltou a levantá-los. E murmurou

- Tem com certeza toda a razão, Dr. De resto eu sabia-o.

O Dr. Abegorim franziu ao de leve a testa, como se raciocinasse "então se sabia para que veio cá?" A imediata explicação do moço Jornalista modificou porém um juízo que não lhe seria muito favorável, a concretizar-se.

O Artur dizia:

- Foi quando estava a tocar há bocado, na Igreja de S. Roque, que pensei isso mesmo. E pensei até mais, ao som do órgão que ia rezando por mim a maravilhosa oração que um Gênio nos legou porque não hei-de afinal dar um pouco do que me pertence a quem nada tem ? Ele precisou do que era meu para fazer alguma coisa, posso perfeitamente ser generoso! Porque eu continuarei a ter idéias e ele. não! Portanto, aceito e. conformo-me, como o Sr. Dr. Juiz me aconselha.

O Pedro e o Paulo miravam-no com admiração sincera.

Deus - que largueza de vistas!

O Dr. Abegorim, acto contínuo, pôs-se de pé. Abeirou-se do Artur, deu-lhe uma palmada afectuosa nas costas e falou, com aquela sua voz emotiva das grandes ocasiões:

- Meu rapaz, não há nada de que eu mais goste do que encontrar um homem feito aos vinte anos, mas feito assim, tal qual você acaba de se me revelar. O mundo acha-se povoado por uma excessiva carga de gente má. Precisamos de sabê-lo e de nos acautelarmos. No entanto a cada criatura boa que se encontra, sentimos que vale a pena acreditar e lutar. Uma só pessoa certa redime duzentas que o não sejam.

Naquele instante abriu-se a porta do escritório e surgiu Dona Teresa Mafalda. Avistando os rapazes, pareceu hesitar, mas logo se decidiu e avançou em direcção ao marido, enquanto eles se punham de pé, saudando-a.

A senhora cumprimentou-os de fugida. Percebia-se que vinha profundamente alterada. Ou disposta a tratar de algo importante que talvez estivesse contido no volumoso sobrescrito lacrado que trazia numa das mãos e logo apresentou ao marido:

- Álvaro, a Georgina acaba de me entregar isto.

- E eu sei quem é a Georgina, Teresa Mafalda?

- A Georgina é a criada da D. Ester.

- E que temos nós a ver com isso ?

- Mas repara. repara no que diz aqui. - e leu, ela própria, o que estava escrito no envelope em letras garrafais: - "O MEU TESTAMENTO".

O Dr. Abegorim fitou a esposa, realmente surpreendido com o nervosismo por ela manifestado ante uma coisa que a ele se afigurava destituída do menor interesse, por vulgar em ocasiões daquelas.

- Muito bem, Teresa Mafalda! Há que avisar a família da falecida.

- Não tem família.

- Como?

- Não tem família nenhuma. Absolutamente

nenhuma!

- Pode lá ser! - A rapariga sabe! Sabe isso e mais ainda.

- Mais. o quê?

- A D. Ester parece que tencionava legar a fortuna, enorme, a determinadas obras de beneficência.

- Se deixou a sua vontade devidamente expressa segundo a lei, tudo se fará como ordenar.

- Álvaro. -e a emoção de Dona Teresa Mafalda aumentava de instante a instante, como a impaciência, - eu disse "parece que tencionava".

- E então?

- Então, depois da morte do Fru-fru, chamou o Notário. e modificou o testamento.

- Por que é que dás como referência a essa mudança de disposições a morte do cãozito?

- Porque sendo um pormenor aparentemente insignificante se reveste da maior importância!

- Que importância ?

- Foi a partir de aí que a Rosarinho se tornou amiga da pobre senhora.

- E depois ?

- Álvaro, acaso não me entendes?

- Não!

- A Rosarinho é a herdeira universal da D. Ester! O Juiz empalideceu.

- Não pode ser!

- Pode ser, sim. É!. A Georgina ouviu, assistiu. A D. Ester declarou ao Notário que procedia como se a nossa filha fosse neta dela. E que morria contente por saber que sob o aspecto material ia deixar feliz a pessoa que mais digna de sorte encontrara em toda a vida, pelos seus bons sentimentos, por tudo! - e estendia com insistência ao marido o testamento.

- Onde está a Rosarinho?

- Dorme profundamente. Fui agora mesmo ao quarto. Parece um anjo de Deus!

- Um anjo de Deus? . -e depois, mais baixo.

- Eu. Pai de uma filha rica? .

O Pedro sorriu-lhe:

- Rica como que por obra de magia. Tornada rica segundo a convicção antiga de que as boas acções são sempre recompensadas!

Era verdade, aquilo.

Maria do Rosário dera sem nada esperar em troca; Maria do Rosário fizera porque a sua alma era cheia de tudo quanto dignifica e justifica a existência de cada um. Logo merecera.

O Dr. Juiz, diante do que surgia com sabor a coisa justa, acontecida por determinação de bem alto, dir-se-ia agora maravilhado. E, inesperadamente, murmurou:

- A minha filha? . -e voltando-se para Dona Teresa Mafalda, em obediência a uma ordem do coração que o alagava em enternecimento: - vou espreitá-la!

Claro que não convidou os rapazes. Não os convidaria nunca, a nenhum propósito. E até, se o consultassem, acharia absolutamente imprópria a atitude que eles assumiram, sem premeditação, sem pensarem sequer no que faziam. É que foram os três atrás dele e de Dona Teresa Mafalda.

Entrou a Mãe, no quarto. Entrou o Pai. Eles ficaram no limiar, espreitando. Apenas.

Rosarinho dormia serenamente, a mão debaixo da cabeça, E o Pedro, de repente, lembrou-se da carta da Mãe recebida nessa manhã.

Quando chegaram a casa, Pedro e Paulo foram chamados pela mãe do Paulo ao telefone.

- Ainda está no meu quarto, filhos! - era hábito velho de que não abdicava, esse de ficar de noite com o telefone à cabeceira.

O Pedro chegou primeiro. Agarrou no auscultador, sofregamente, resistindo ao Paulo que a rir tentava tirar-lho da mão e, vencido, ficou de ouvido o mais perto possível da presença oculta mas real, captando o máximo.

- Madrinha! - exclamou o jovem Macedo, emocionado, com o jeito adquirido desde que Ela, ao ser Madrinha da Maria Rosa se tornara na Madrinha (honorária, dissera radiante) de todos eles.

- Pedro querido! Que saudades!

- Quando chegou?

- Ontem à noite.

- De avião?

O riso dEla, esse riso que nunca mais tinha idade, soou do lado de lá.

- Que idéia! A minha fidelidade ao comboio persiste.

- E o seu medo aos aviões também! O riso foi gargalhada.

- Pudera não! Quando nasci eles caíam quase todos, não te esqueças.

- Mas agora não caem.

- Ó filho? . E garantias? Andam suspensos, não há nada que os agarre. Se se desequilibram, nenhum santo lhes vale.

- Madrinha, não existe meio de transporte mais seguro!

- Pedro. ?

- Madrinha?

- Empregaste-te?

- Eu? Não! Por quê?

- Julguei que estavas nalguma agência de viagem, com comissão especial na venda de passagens de avião.

O riso deles respondeu ao dela.

- Não seja rabina! Mas essa sua mania rouba-a a todos nós tempo demais! Quase não pára quieta em banda nenhuma e perde dias e semanas em transportes arcaicos!

- Pois conformem-se, que eu não mudo. Sabem que sou de idéias fixas.

- Que vergonha!

- Pedro. deixem-me ter este ridiculozinho. No fim de contas não faz mal a ninguém!

O riso do Pedro regressou ao sorriso, enternecido. Amorável, mudou de assunto, ou melhor, derivou.

- E então, Madrinha, essa passeata, que tal, an?

- Foi óptima.

- Correu tudo bem?

- Muito bem.

- Tão bem que se demorou o dobro do que havia dito. e sem dar notícias nestas últimas semanas!

- Pois foi. Deixei-me absorver pelo trabalho. -Pelo trabalho?

- Sim! Estive fechada num hotel à beira-mar, perto do local onde viveu Andersen. sabes?

- Na Dinamarca?

- Certo!

- E diz "fechada num hotel à beira-mar? "

- e gracejou: - É tão expressiva de verdade, a sua frase, que até visiono os muros que a cercaram.

- Muros, Pedro! Tal qual! Atrás e aos lados. Óptimos, isolando-me de todos os barulhos, de todas as intromissões. Diante de mim, ou melhor, diante da varanda envidraçada onde passei dias gelados na rua que o aquecimento central me oferecia deliciosamente quentes, o mar. revolto, bravio. o mar que a Sereiazinha imaginada pelo grande escritor contempla sem cansaço que nos contagie. O mar. como um muro também, entre mim e os outros!

- Madrinha.

- Diz, Pedro?

- Não digo. quero perguntar.

- Pergunta.

- Que esteve a fazer assim fechada ?

- A alinhavar um próximo livro.

A voz do Pedro, subitamente, embargou-se.

- Madrinha. será possível ?.

- An?

- Vai abandonar-nos?. Vai escrever coisas sem ser a nosso respeito?.

A resposta demorou um pouco. O Pedro olhou para o Paulo. O Paulo ficou a olhar para o Pedro. Este afastou o auscultador da orelha de modo a permitir que o companheiro viesse a colher mais nítida a resposta, fosse qual fosse.

Finalmente, a voz tornou a ouvir-se. E falava como se procurasse palavras incapazes de magoarem.

Palavras que tirassem às frases tudo o que no seu exacto sentido houvesse de chocante.

Meu Deus, Pedro. mas dentro em breve

começarei a entrar pelo caminho da indiscrição. Não me julgo com o direito de devassar a vossa intimidade. Estão todos muito crescidos.

- E depois? Perdemos o interesse? Ou deixamos de ter histórias que mereçam ser contadas?

- Não, Pedro, não é nada disso. Vê se percebes. Na voz amiga vibrava uma certa angústia.

- Vê se percebes, Pedro!. Ele não se conformava.

- Percebo lindamente. mas sinto ciúmes! E o Paulo, que está aqui ao pé de mim, fita-me com uma expressão. que traduz pensamentos gêmeos dos meus!

O Paulo acenava com a cabeça repetidas e nervosas afirmativas.

- Ó Pedro. mas há tantas coisas para contar, fora do vosso ambiente.

- Nós sabemos. Mas há também muitas coisas para contar, ligadas a nós.

- Sério?

- Sério.

- Que eu ainda não conheço ?

- Exactamente.

- Acontecidas na minha ausência?

- Claro!

Neste momento o Paulo deixou de conter o gesto que lhe estava há que tempos na mão. Arrancou o telefone ao amigo e sem que este pudesse detê-lo, gritou -sim, praticamente gritou! -ao bocal do aparelho:

- Imagine que até temos o Pedro definitivamente enamorado!

Ela, sem quaisquer dúvidas na identificação da voz, volveu a rir:

- Eh, Paulo. cuidado!. Definitivamente é uma grande palavra.

- Palavrão?.

- Às vezes.

- Quando souber quem o coração do Pedro elegeu, verá que o palavrão não se aplica.

- Pois venha a revelação!

- Assim, sem mais nada ?. - e brincava como dantes, como sempre. - Nem pense.

- Para me aguçar a curiosidade?

- Para a castigar de pretender desinteressar-se de nós. -e o Paulo engoliria a frase, se pudesse.

- Paulinho. - sussurrou a voz meiga, mais meiga do que nunca: - tenho horror à palavra castigar. Cada vez mais horror.

Se ele o sabia!.

- Desculpe, saiu sem eu querer.

- Claro. E ouve.

Já ouviam os dois outra vez, de cabeças encostadas.

- Estou cheia de saudades. Cheia, cheia, cheia. A transbordar!. Anseio por notícias de tal maneira que eu, que não sou curiosa, me sinto estalar no desejo de saber de todos vocês. Foi o pior durante esta longa separação, não conseguir nunca mitigar a necessidade constante de compartilhar das vossas vidas. Esta é que é a verdade! Porque no fim de contas adoro-os como se fossem do meu sangue, carne da minha carne. Afiguram-se-me tão meus. que não sei como vai ser isto quando a distância se instalar entre nós.

Eles perceberam nitidamente que a emoção começara a embargar-lhe a voz. E não podiam dizer coisa alguma, porque também a idéia, apenas aflorada, os deixava doridos, doridos.

Mas Ela era valente. Era forte. E dominou-se. E recomeçou a falar, serena - pelo menos na aparência.

- São dez horas. Preciso de sair para dar umas voltas inadiáveis, mas estarei em casa sendo treze horas. Querem vir ambos almoçar comigo?

- Queremos! - e a resposta foi simultânea.

- Então até de aqui a bocado! - e quebrou-se a ligação.

Eles ficaram a olhar um para o outro, sem comentários.

Não havia comentários a fazer, de resto. Apenas esperar os momentos felizes que iam viver. Apenas.

O Pedro e o Paulo passaram a tarde inteira ao pé de mim e acabaram por convidar-me a jantar fora com eles. Nada mau, aparecer em público com estes dois belos rapagões que se desdobram em amabilidades, em carinhos.

Sinto-me orgulhosa deles! E creio que eles também se sentem muito orgulhosos por minha causa. De resto, obsequiando-os, vesti para os acompanhar ao restaurante de Lisboa de que mais gosto, esse onde os cristais e os ouros prometem reflectir quando menos o previrmos a imagem de um Eça, de um Camilo ou de outros tão grandes que não esquecem nunca, um vestido que comprei em Paris em acesso de loucura - sim, acesso de loucura, que perdi a cabeça e me arruinei por um mês completo, um mês durante o qual não pude gastar dinheiro em doces, o que foi óptimo para a minha ameaçada linha, devo confessá-lo, como confesso que não estou nada arrependida porque o vestido, verde-escuro, é uma elegância! E fica-me bem, dá-me um certo ar. o que se nota logo nos cumprimentos do pessoal que nos recebe e depois serve.

E durante o jantar continuámos a conversa que nos preenchera a tarde inteira. Continuámos, não. Continuaram eles. Ora falando um, ora falando outro. O que o Pedro esquecia, lembrava-o o Paulo. E vice-versa.

Ouvi. Pasmei. Fixei. Tudo?. Tudo não garanto!

Jesus! Realmente tantas novidades!. Tantas que, de facto, não posso deixar de continuar a ocupar-me deles, contando-os.

Fiquei ansiosa por conhecer (mas conhecer realmente!) as meninas do andar de cima, visto que até ao momento em que o Pedro, coadjuvado pelo Paulo, mas revelou, eu só as conhecia de vista.

Creio que há muito, muito, para dizer, daqui em diante. De resto não ignoro que a maioria dos assuntos surgidos durante estes meses, assuntos com os quais entrei de chofre em contacto, ficou em suspenso. Ou seja - nenhum se encontra estabilizado, mas sim em evolução. Temos todos de aguardar calmamente.

A vida não se conta na obra completa do mundo, quanto mais num único livro, por maior que ele seja!

E a verdade é que também eu me sinto agora desejosa de saber como vão desenrolar-se e concretizar-se nos dias de amanhã os destinos destas raparigas e destes rapazes que adoro - porque até esses com os quais não convivi me merecem o máximo.

Será defeito, dedicar tanto carinho aos muito novos ?

Os muito novos! . Os que estão à espera de tudo, os que estão diante de caminhos por percorrer, os que estão sujeitos ao mal que lhes queiram fazer e aos perigos de todas as armadilhas (como o Artur, o primo do Pedro, o Arturito, espoliado por quem devia dar- lhe a mão e rever-se nos resultados da sua ajuda). Os muito novos-principalmente antes de serem tocados pelo mal! Que os tocados pelo mal têm quase sempre os seus erros apoiados nas culpas dos que seguem à frente deles no tempo. Oh, sim, há efectivamente casos naturais de transviamentos. Mas vamos responsabilizar cem por causa de um? Devido a uma pequena percentagem, a generalidade?

Voltando porém aos nossos amigos - antigos, recentes e a chegar. Fica assente que abandonarei temporariamente o projecto do novo livro já estruturado (o tal que me isolou num hotel à beira-mar na terra de um dos maiores contistas de sempre - contista para todas as idades e não para a infância, como teimam em considerar o genial criador da história do delicioso patinho feio, e da da princesa tão mimosa a quem uma ervilha debaixo do colchão incomodava, e da do imperador chinês para quem a mais bela coisa do seu império foi um rouxinol) a fim de me consagrar inteiramente a observar as minhas raparigas e os meus rapazes, a eles e ao evoluir e resolver dos projectos em curso-promessa e início da vida que os aguarda. Estou realmente muito interessada.

Como será tudo, doravante? Como irão desenrolar-se os acontecimentos?

Casará a Leonor Augusta com o Júlio Matinha ?

Irá para a frente o romancinho da Rita com o poeta, o Antônio Fontemora ?

Acerca da Mirita e do Zé Chaves não tenho quaisquer dúvidas. Casam breve, aliás. É que aqueles dois afigura-se-me que nasceram um para o outro. Logo tinham de se entender, por força, vencendo o desentendimento.

Creio piamente na felicidade da Marta com o Domingos (há tempos a Marta escreveu-me a falar de uma belíssima obra com que ela e ele sonham em Penarim - um grande colégio e mais não sei o quê). Como creio na do Paulo com a Ana. Porquê ? Porque sim.

Quanto à Inês e ao Artur, ainda me não pronuncio. A Inês, sem dúvida alguma amorosa e atraente, escapa-me às vezes à compreensão. Afigura-se-me bastante útil. E talvez não seja impressão minha. Ver-se-á!

Quanto à inesperada inclinação surgida entre a Cristina Benedites e o Vic Nusen (é verdade, ouvi-o tocar em Paris e fiquei deslumbrada!) aparece-me cheiinha de inconvenientes. Estará a Cristina suficientemente preparada para acompanhar com total consciência e noção das responsabilidades a vida nômada, caprichosa e absorvente de um artista que se deve ao público e ao porvir ? Ou quererá ela comparticipar dos ouropéis dessa mesma vida esquecendo-se de que ele acima de tudo precisará de encontrar nela e em toda a parte a segurança e o altruísmo de um verdadeiro lar ?

Tanta pergunta sem resposta! Tanta coisa oculta no porvir!.

O menos escondido de tudo parece-me o desastre em que redundará o casamento do Fernando Vasco com a Alicinha Fontemora (não acredito muito que venha a efectuar-se. ) pelas descrições que dela me fazem e certas atitudes com que várias vezes a vi na rua e à janela, como se o dia-a-dia fosse espectáculo. No entanto. posso estar a ser injustíssima. O tempo o dirá também!

E eu vou terminar, pois, por agora, nada mais sei.

Perdão. sei! Sei que qualquer coisa dentro de mim me adverte de que vou gostar da Rosarinho quase como gosto da Ana. Sinto o meu coração pronto a aceitá-la. Mas completamente pronto! Como um berço que espera o menino ou o ninho que espera o passarito.

Que engraçado!. Olhando os olhos do Pedro, os seus lindos olhos cor de azeitonas de Elvas, parece-me ver neles reflectida para sempre a imagem de uma rapariga loira de olhos azuis-escuros. De apelido Abegorim, evidentemente.

Li a carta da minha comadre (a Rosinha-Mãe) e tal como o Pedro e o Paulo, fiquei preocupada. Escrever-lhe-ei sem demora a pedir esclarecimentos. E talvez me decida realmente a ir fazer-lhes uma visita. Como viajarei de barco - claro! -posso pelo caminho ir registando o que me for dado saber. E talvez já leve comigo os primeiros exemplares do livro da Ana Maria, cuja capa tive o gosto de ver e está deliciosa. Ela vai com certeza adorar.

 

                                                                                                    Odette de Saint Maurice

 

 

 

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