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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A VENDEDORA DE ROMANCE / Janifer Ames
A VENDEDORA DE ROMANCE / Janifer Ames

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

    

Odette Cosway tinha uma vida perfeita, era uma atriz famosa e estava noiva de Lance Furner, o ator que todos admiravam e era seu par nos filmes românticos que estrelava. Nem mesmo Paul Hershaw, o famoso diretor que não acreditava em romantismo e duvidava do amor de Odette e Lance poderia fazer com que ela duvidasse deste amor. Mas um segredo terrível faz com que Odette se envolva em uma teia de mentiras que pode acabar com todos os seus sonhos e destruir a vida que ela construiu. Quando uma tragédia acontece, Odette é obrigada a reconstruir sua vida e encarar o amor de forma diferente.

 

 

 

 

PAUL HERSHAW manifestou o desejo de ser apresentado a Odette Cosway. Luke Grimsby, seu diretor artístico, encolheu os ombros e avisou-o: "Teremos de abrir caminho para chegar até ela. Hoje todo mundo quer conhecê-la. Apresentá-lo-ei mais tarde".

Encontravam-se na sala de recepção anual dos Ali Star Studios, um tanto isolados do resto dos convidados. As figuras mais proeminentes do mundo artístico e do cinema estavam, nessa noite, ali presentes: estrelas de primeira grandeza, diretores famosos, autores cinematográficos e novelistas, todos reunidos no grande hall profusamente guarnecido. A orquestra, numa das extremidades do salão, executava música em surdina, tornando o ambiente favorável às palestras: provinham da sala de jantar contígua o espocar de rolhas de champanha, vozes alegres, risos.

"Que multidão", observou Paul recostado a uma coluna, acendendo um cigarro. "Tenho ganas de citar o velho Gilbert: "Onde todos são alguém, ninguém é alguém".

Luke franziu as sobrancelhas e retrucou: "Penso diferente de você".

Paul esboçou um sorriso e fixou o olhar na ponta acesa do cigarro: "Você discorda sempre, Luke. É um marmanjo com idéias românticas de criança de doze anos. Não fosse isso — de novo o leve sorriso — não lhe seria possível dirigir com tanto êxito os filmes de Odette Cosway e Lance Furner. Pois ter em mente os futuros sucessos dos Namorados Mais Perfeitos do Cinema Britânico é uma séria responsabilidade”.

Luke contraiu agressivo as bochechas balofas. Era um hábito seu quando percebia ser alvo de motejos, o que se sucedia com freqüência. Luke Grimsby era demasiado importante. Era o diretor de maior sucesso no Ali Star Studios.

"Fosse você mais romântico que não seria nada mau", comentou secamente. "Seria útil ao seu trabalho. Olhe Paul, não quero ser impertinente com seus filmes. Considero-os, no gênero, bastante bons, mas excessivamente realistas. É a razão por que não chegam a ser... pois é... tão bons quanto deviam. Ora, o que o público deseja..."

"Poupe-me esta noite, por favor, dos desejos do público!" interrompeu-o Paul num risinho sardônico. "É o assunto obrigatório de todas as reuniões da diretoria. Diga-me uma coisa: Odette Cosway e Lance Furner são realmente tão amigos como dizem?"

"Acredito que sim", replicou Luke entusiasmado. "Os mais perfeitos namorados britânicos, tanto na tela como na vida real".

"Peço-lhe, não repita chavões de propaganda", implorou Paul, "provocam-me arrepios. É verdade que são noivos?"

Luke ergueu as espessas sobrancelhas: "Lógico, estão noivos e querem-se tanto..."

"Ah..." suspirou Paul. "Já li a respeito. Para estar-se a par das novidades da tela é preciso ler. Mas é verdade?"

Luke atirou o cigarro, esmagou-o com o salto e olhou desdenhoso para o homem alto e magro a seu lado. "Se não é verdade, então tudo é mentira", resmungou. "Ela chega a adorar o chão onde ele pisa. E veja a maneira romântica como o idílio começou. Odette estava de férias no norte do país, quando o descobriu numa companhia teatral de terceira classe, em tournée. Os estúdios procuravam-lhe um novo galã, e Lance era exatamente o tipo requerido. Desde então, tornaram-se inseparáveis. O próximo filme será o oitavo em que ambos são protagonistas. E o último é sempre melhor que os precedentes."

"Que tal esse Furner? Esquisito, não conheço nem um nem outro", disse Paul.

"É porque passa a maior parte do ano fora da Inglaterra, ensaiando coros de legítimos pingüins para Sagas do Norte, pelas quais ninguém se interessa", riu Luke. "Longe de mim a idéia de criticá-lo", acrescentou.

De novo o sorriso singular iluminou o rosto chupado de Paul. "Talvez", e continuou veemente, "mas com os diabos, não será preferível mostrar aos homens a vida como ela realmente é?"

"Enquanto o Gelway Studios estiverem dispostos a financiá-lo, irá tudo muito bem", ironizou Luke. "Como pagam caro os sucessos artísticos! Ainda assim, outros estúdios os imitam, por propaganda". E, como o silêncio se prolongasse: "Quer saber a respeito de Furner? É rapaz correto, as mulheres apreciam-no. Não lhe pus os olhos em cima, esta noite. Será que não veio? Pensando bem, é curioso. Não veio com Odette, pois a vi chegar sozinha. Estará doente?"

 

O mesmo pensava Odette. Levara a noite a cismar enquanto agradecia os grandes olhos sorridentes, os lábios bem desenhados, murmurando: "É muita amabilidade de sua parte. Agradeço-lhe ter apreciado meus filmes", sempre o mesmo meigo sorriso, no rosto oval delicado: sorriso que a tornara célebre. Mostrava uma covinha brejeira na face. Sorria espontaneamente, revelando a criança mimosa e idealista que ainda era. O triunfo encantara francamente Odette, mas não a viciara. Era como bola dourada e luzente que atirava a Lance com as mãozinhas finas e alvas e que ele lhe devolvia. Adorava-o e ao trabalho que os reunira, unindo-os sempre mais com o passar do tempo.

Nessa noite Odette deveria sentir-se ainda mais feliz que habitualmente. No dia seguinte Lance e ela assinariam o novo contrato, com o salário do ano anterior quase dobrado. Uma noite festiva, certamente. Haviam combinado jantar em seu moderno e encantador apartamento e virem juntos depois à recepção. À tarde, porém, ele mandara-lhe uma mensagem telefônica, desculpando-se por não vir jantar, que se encontrariam mais tarde. Odette pensou à última hora em convidar alguém, mas desistiu. Lance não podendo vir, era preferível ficar só. Jantara, pois, solitária, à elegante mesa de vidro com pernas circulares de metal. Distraiu-se com os pratos deliciosos encomendados, os preferidos de Lance. Provou do champanha especial, erguendo o copo numa saudação ao noivo ausente.

"Ao nosso sucesso... ao nosso amor, querido", murmurou.

E teve a impressão de que os profundos olhos castanhos de Lance lhe correspondiam ao sorriso. Conhecia-lhe o rosto de perto; podia vê-lo nitidamente: a abundante cabeleira negra, ondeada, parecendo que acabava de sair do chuveiro, a testa larga, atraente, o nariz aquilino, lábios cheios, o queixo que, sorrindo, formava uma covinha, algumas sardas no rosto, duas mais pronunciadas sob o olho esquerdo. O corpo perfeito, corpo de atleta: ombros largos, cadeiras finas. Não era de admirar que as mulheres se apaixonassem por ele. Perguntavam muitas vezes a Odette se não era ciumenta.

"Não, por quê?" respondia rindo. "Lance e eu nos compreendemos. Nada de mau nos poderá acontecer". Naturalmente, batia na madeira... Tinha as superstições tolas das naturezas intensamente românticas. Mas acreditava no que dissera convencida de que nada de mau lhes pudesse acontecer.

Sua ausência prolongada nessa noite não lhe dava motivos de preocupação. Ocorriam-lhe explicações lógicas. Mesmo assim, com o passar das horas, sentiu-se colhida por uma estranha sensação de desastre iminente. Deixou-se tomar por uma inquietação esquisita e, quem sabe, pela primeira vez em sua carreira, impacientou-se com a multidão atraída pelo seu sucesso. E resolveu: "Darei uma fugida para telefonar a Lance. Não está doente, espero."

Com dificuldade conseguiu escapar dos admiradores. Fez a ligação de um dos escritórios comerciais do primeiro andar e, com os nervos à flor da pele, esperou ser atendida. Lance, entretanto, não estava no apartamento. Disse-lhe o criado não o ter visto o dia todo. Não, nem sequer voltara para trocar-se, para a recepção.

"Então é porque não vem", pensou Odette. Recolocou o fone no gancho, apoiou-se contra a enorme secretária de mogno, sentindo um mal-estar indefinível.

Era ridículo sentir-se assim, pois ela e o noivo viam-se freqüentemente; todos os dias até, quando filmavam. No entanto, para Odette, uma festa sem Lance não era divertimento.

As paredes do escritório estavam cobertas de inúmeras fotografias suas e de Lance. Ali estavam como tinham aparecido no último filme de sucesso A Princesa que Amou um Cigano. Como fora maravilhoso e como estava belo o seu Lance, namorado cigano! Não mais belo nem mais maravilhoso, no entanto, que na vida real, cogitou sincera, e ficou a imaginar porque sentira arrepios.

Pegou o casaquinho de lamê dourado e deixou o escritório. Era uma bela criatura, Odette Cosway: alta e esguia, tão fascinante na tela como fora dela. Seus grandes olhos azuis, pontilhados de cinza irradiavam alegria e sinceridade; a boca, cheia e generosa; os cantos dos lábios erguiam-se deliciosamente, quando sorria. Seu corpo era o desespero das mulheres de trinta anos e o da maioria das mais jovens. Esbelta e grácil, ainda assim sugeria curvas suaves e redondas. Aos dezenove anos atraíra pela primeira vez a atenção de um diretor de cena; agora, aos vinte e três, era um sucesso garantido. Ignorava-se quanto de sua atual popularidade era devido à feliz associação com Lance e quanto a ela própria.

Odette não quis voltar ao abarrotado salão de festas. Empurrou a porta e saiu para o jardim dos fundos do estúdio. Era noite de luar. E o luar debruava de prata os arbustos que o circundavam. Várias mesas haviam sido dispostas para a ceia, mas estavam desertas, as alvas toalhas brilhantes esvoaçando à brisa, os talheres em desordem.

Ao descer por um caminho pedregoso, encontrou-se frente a frente com um homem de estatura alta, magro, que voltava, era evidente, de um passeio. Esperou que se afastasse para deixá-la, passar, mas enganou-se.

"Que sorte!" ele estacou e sorriu-lhe. "Passei a noite procurando conhecê-la, Miss Cosway. Pedi a Luke que me apresentasse, mas aproximar-me há essa hora seria como abrir uma picada em densa floresta. Meu nome é Paul Hershaw."

"Paul Hershaw?" Ela sorriu-lhe e franziu a testa de leve. "Já ouvi falar em seu nome, não me lembro onde."

"Não procure saber; sou o diretor dos Gelway Studios". E com um risinho acrescentou: "Dirigi provavelmente tantos fracassos financeiros quantos a senhora representou com sucesso."

"Já sei", tornou ela acentuando o sorriso, dirigiu: “A Voz do Norte, não foi?"

Ele aquiesceu: "Gostou?"

"Muito impressionante, muito real e artístico, mas..."

"Deprimente" sugeriu ele irônico.

Odette riu. "Sim, um tanto deprimente e cruel. Não pensa como eu?"

Ele sacudiu a cabeça e o sorriso malicioso acentuou-se. "Não tem metade da crueldade de seus filmes que, francamente, me abatem miss Odette Cosway."

Odette assustou-se, os olhos azuis arregalados de espanto. "Deprimentes? Meus filmes cruéis e deprimentes?" Não acreditava no que ouvia. Ele sorriu.

"Surpreendeu-se, não é verdade? Para mim são cruéis e deprimentes por serem demasiado irreais. Fazem-nos crer o que a vida não é... Bela e romântica, tudo sempre acabando bem."

"Mas é como é", insistiu ela, o rubor ligeiramente aumentado. "A vida é assim".

Paul sacudiu a cabeça devagar. E falou como se confortasse uma linda criança. "Bem sabe que não é. E, em minha fraca opinião, seríamos mais felizes e melhores, se encarássemos a realidade em vez de escondermos a cabeça como o avestruz, numa avalanche de romance". Subitamente sorriu. "Perdoe-me estar a fazer-Ihe sermões. Quer sentar-se a uma destas mesas e fumar um cigarro?"

Ela aceitou. Aquele homem alto, magro, a fronte larga e inteligente, o sorriso levemente irônico nos olhos cinzentos, intrigava-a. Desde início sentiu-o diferente dos outros.

"A senhora é romântica, não é?" murmurou. "Uma esbelta vendedora de romances de cabelos dourados, a tanto por página. Diga-me, acredita sinceramente nos filmes tolos que representa?"

Odette corou ainda mais, amuada. Ele combatia algo que lhe era precioso. "Claro que sim", disse-lhe secamente. "Eu, pelo menos, não os julgo tolos. Considero-os histórias bonitas... e não creio estarem divorciados da vida real".

"Não?" perguntou ele calmo. "Então confia que a criadinha que adora um príncipe acabará casando com ele?"

"Exatamente isso, não". Mordeu de leve o formoso lábio inferior, pensativa. "Mas que mal faz que ela o acredite? Devemos conservar as crenças que nos tornam felizes".

"Mesmo que no fim nos façam ainda mais desgraçados?"

"Isso não é obrigatório". Havia exasperação em sua voz. "Não há motivo para que os romances da vida real não sejam belos e felizes como os dos filmes".

"Não há?" indagou ele. Atirou o cigarro longe, dentro da noite. "Perdoe-me fazer-lhe uma pergunta confidencial: acha o seu romance tão maravilhoso como aqueles em que trabalha Miss Cosway?"

Ela sacudiu a cabeça, baixou o olhar para as mãos alvas e finas, cruzadas no regaço. Calou-se um instante, depois um meigo sorriso lhe recurvou os lábios. Résteas de luar lhe envolviam os cabelos de um louro acinzentado, dando-lhes o brilho da prata. Hershaw jamais vira nada tão belo como Odette naquele instante.

Então ela ergueu a cabeça e fitou-o de frente. "Sim", respondeu, e Paul notou que sua voz vibrava intensamente, "muito, muito superior a qualquer dos romances vividos em meus filmes".

"Tenho prazer em sabê-lo", disse Paul, desta vez sem ironia. "Faço votos para que seja sempre assim".

"Será assim a vida toda, asseguro-lhe", declarou ela com fervor apaixonado. "Há de ser. Se não fosse, morreria".

Por um momento ambos guardaram silêncio. Odette estava um tanto contrafeita pelo seu arrebatamento. De um modo estranho, inexplicável, esse homem magro, de rosto fino e interessante a constrangia, como se ainda fosse criança.

"Alegra-me sabê-la sincera", disse ele afinal. "Era de esperar que fosse assim. Pode-se tentar o sucesso fazendo coisas extravagantes, mas não creio que dê resultado. A melhor divisa na vida é: "A sinceridade acaba vencendo". E acrescentou sorrindo: "Também eu sou sincero".

"Como é amarga a vida que descreve!" protestou ela.

Paul inclinou-se, braços cruzados sobre a mesa. "Nunca achou a vida amarga?"

Meneando a cabeça Odette protestou: "Nunca. Já fui pobre, naturalmente. Cresci num casebre, no campo..."

"Coberto de sapé, com rosas trepadeiras e uma lagoa ao lado, onde nadavam patos, não?" Do outro lado da mesa os olhos cintilavam, maliciosos.

Surpreendida ela encarou-o: "Como é que sabe?"

Ele explicou: "Adivinhei. Qualquer outro gênero de pobreza a tornaria amarga. E há pouco tempo comprou o casebre e deu-o a um velho, antigo serviçal? E de vez em quando foge da cidade intoxicada e esconde-se lá?"

Arregalaram-se os olhos azuis de Odette. E com voz imprecisa: "Não é crível que saiba disto. Nem nas entrevistas deixei entrever esse particular".

"Pura adivinhação", disse Paul sorrindo. "É o que faz toda moça romântica. Eu, crescido numa choupana, rogo a Deus nunca mais vê-la, neste, nem no outro mundo".

A moça perturbou-se: "E por quê?"

Ele ficou a refletir, martelando a mesa com os punhos magros, bronzeados. "Porque não nasci num casebre igual ao seu. O meu era sujo, feio, com repolhos em lugar de roseiras e um chiqueiro substituindo a lagoa dos patos". Riu com azedume. "A vida, para mim, não foi romântica. Talvez por isso não suporte sentimentalismos".

Impulsivamente, sem saber por que o fazia, ela pediu: "Conte-me a seu respeito".

Paul sacudiu a cabeça e enrijou os lábios. "Agora, não. Conservei-a muito tempo afastada de seus adoradores. Um dia, talvez, se me permitir, irei visitá-la e conversaremos".

"Com prazer. Sabe meu endereço?"

"Quem ignora o seu endereço, Miss Cosway? São os ossos do ofício, por ser estrela. Aborrece-a?"

Odette também sorriu vagarosa, infantil e encantadoramente. "Não, não creio. Na realidade, é-me um prazer. Nada tenho que ocultar. Agrada-me sentir o mundo compartilhar de minha felicidade".

"É ainda a menina romântica, cheia de ideais", disse ele com doçura. Sorriu-lhe e prosseguiu: "Ficarei à espera, ansioso, da oportunidade de discutirmos sobre romance. Talvez a converta ao meu modo de pensar. Quem sabe?"

Ela meneou a linda cabecinha loira, brilhante de luar, os cachinhos reunidos na nuca. "Não o conseguirá".

"Esperemos que não", disse ele sereno.

 

Odette não voltou ao imenso estúdio transformado em salão de festa. "Não posso mais conversar esta noite", pensou. "Sinto-me cansadíssima. Não sei por que". O que sabia não ser verdade. Que acontecera a Lance Furner?

O porteiro fez sinal ao chofer e, minutos depois, o enorme Rolls-Royce, propriedade sua, parou rente à calçada. Raios de luar, tombando-lhe sobre a contextura de metal transformavam-no em prata pura. Dir-se-ia o carro mágico de alguma princesa dos contos de fadas.

O chofer abriu a porta e ela entrou. Não acendeu a luz; recostou-se a um canto e cerrou os olhos. Estava deveras cansada. Semanas havia que já andava preocupada, mas não queria admiti-lo. Pareceu-lhe que, ultimamente, estivesse a agarrar com mais força o manto brilhante de sua felicidade, temendo que escapasse se, por descuido, afrouxasse a vigilância. Lance andava esquisito: tristonho, mal humorado, abatido. Não que isso modificasse de maneira alguma o amor que lhe votava. Nada, jamais, o conseguiria.

Quando o carro parou, abriu os olhos assustada. O imenso edifício branco de apartamentos, onde morava, com suas torres e terraços, também parecia, ao luar, um palácio encantado. Entrou, tomou o elevador e subiu ao luxuoso apartamento no último andar do prédio.

A criada abriu-lhe a porta. "Mr. Furner está aqui, senhora, esperando há mais de uma hora. Disse precisar vê-la hoje".

"Mr. Furner!" exclamou Odette ofegante. Uma onda de sangue quente lhe coloriu as faces. Lance esperava por ela! Iria vê-lo essa noite, apesar de tudo. Mas, por que não fora à recepção?

Deu a capa de arminho à empregada e entrou na sala de estar — espaçosa, deslumbrante, de teto alto. Grandes janelas envidraçadas tomavam toda uma parede. Os móveis, ultramodernos. Mesas de cristal de formatos esquisitos, baixas, com pernas de metal. Grandes sofás quadrados, cobertos de cetim negro; estantes em ângulos, cadeiras que semelhavam círculos de metal, com assentos de couro preto; aqui e ali, sobre o piso de linóleo preto, lustroso, macios tapetes de lã, brancos.

Recostado a um aparador, Lance fumava. O cinzeiro cheio ao seu lado dizia quanto ele fumara ao esperá-la. O belo rosto abatidíssimo, quase cinza, os ombros retos, elegantes, ligeiramente curvos.

"Lance!" A moça deteve-se à soleira da porta, mãos estendidas. Sob a luz suave do abajur de pergaminho de formato bizarro, estava deliciosamente linda: uma figurinha delicada, num jogo de luz e sombra nos cabelos claros, quase prateados, e o azul anilado, brilhante do vestido, uma criação de Chanel, especial para ela. Faiscavam-lhe os olhos azuis, a respiração acelerada como de costume, ao divisar Lance novamente, por mais curta que fosse a separação. "Meu velho bobinho" riu ela meiga, ao entrar na sala. "Passei a noite preocupada por sua causa. Onde esteve?"

Ele, porém, não lhe correu ao encontro, como habitualmente, não a tomou nos braços num movimento impulsivo e rápido, o que nos filmes era um sucesso e tornava todas as mulheres descontentes com os amantes. Continuou imóvel e, depois de um rápido olhar, não mais a fitou. Fitava os próprios pés, a sala, qualquer lugar, menos ela.

"Não estava disposto a ir à recepção", disse desajeitado, quando o silêncio se prolongou.

"Você está doente, Lance?" perguntou Odette angustiada.

Ele deu uma risada áspera, curta, e passou a mão pela cabeleira escura, crespa como penas molhadas de um pássaro. "Não, não estou doente".

Odette respirou aliviada e afundou na poltrona à sua frente, sentando-se e enrolando-se como garotinha. "Dê-me um cigarro". Sorriu-lhe ao estender a mão. "E, por favor, não faça cara tão fúnebre".

Não obteve resposta. Ele estendeu-lhe o cigarro que pegou de uma cigarreira de cristal; depois tirou outro para si. Não procurou acender nenhum. Continuou de pé, uns instantes, batendo a ponta do cigarro no aparador.

"Que tal a recepção?” perguntou afinal.

Ela começou a contar, mas percebeu, antes de ultimar a primeira frase, não estar sendo ouvida. Parou de falar e, quando o silêncio se prolongou, voltou-lhe, e com maior intensidade, a estranha sensação de desastre que já provara naquela noite.

"Lance" exclamou afinal, quando não mais pôde suportar o silêncio. "Aconteceu alguma coisa?"

Novamente ele riu áspero. "Alguma coisa? Tudo, isso sim. Uma miséria, Odette. E... nem sei corno dizer-lhe".

Ela arregalou os olhos, com medo indisfarçado. "Que poderá acontecer se temos um ao outro?" protestou.

Lance ergueu a cabeça e, à luz da lâmpada, Odette percebeu que ele havia chorado.

"É o que é", disse ele afoito, "não temos mais um ao outro. Sacrifiquei meus direitos a você. Não a censuraria se não mais me falasse. E é o que você fará, depois de ouvir o que tenho a dizer-lhe. Ah! Odette". Sua voz engasgou num soluço e ele atirou-se de joelhos diante dela, num gesto que seria teatral, se não fosse sincero. "Ah, Odette!", tornou a murmurar, "não sei como contar-lhe".

"Lance, meu bem, não se angustie dessa maneira, por favor,", disse ela baixinho, os dedos alvos a alisar-lhe a cabeleira crespa. "Não pode ser tão grave assim e mesmo que seja — sua voz firmou-se — não o abandonarei. Amo-o demais".

Ele exalou um gemido. Agarrou-se a uma de suas mãos, como se não pudesse largá-la. Levantou-se depois e, trôpego, atravessou a sala. A cortina estava semicerrada. Ficou a observar as luzes faiscantes como olhos de gato, dos automóveis no parque; as luzes bruxuleantes das residências aristocráticas, diante dele; as que brilhavam docemente na sala, atrás de si; luzes, luzes por toda parte e, em seu coração, apenas caos e trevas.

"Meu Deus" pensou pela centésima vez, "como fui fazer isso? E, nas circunstâncias em que me encontrava que mais poderia fazer?"

Odette, imóvel, esperava na poltrona. Estava como que perdida. A coberta de cetim negro dava-lhe relevo à cabeleira loira. Esperava, segurando o fôlego, de tal maneira, que o peito lhe doeu.

"Odette" confessou Lance finalmente, "casei-me hoje".

 

Ela continuou calada muito tempo, dando a impressão de não ter ouvido.

"Disse-lhe que me casei hoje", repetiu ele brusco.

"Já ouvi", disse ela, e ele pasmou ante a serenidade de sua voz — serenidade não natural, como rajada fria naquele quarto superaquecido.

"Ah, está bem!" tornou ele zangado, "se você pouco se incomoda."

Então ela desatou a rir — riso estranho e sufocado — enquanto imaginava: "Um de nós está maluco. Não é verdade. Claro que não é verdade". Lutava desesperada contra si mesma, para não acreditar. Se desse crédito à infâmia inverossímil, estaria perdida. Lance que ela adorava de alma e coração, Lance que a convencera que também a adorava, casado com outra? Era grotesco, impossível.

A risada de Odette tornou-se-lhe intolerável. Faziam vibrar seus nervos tensos demais, os sons agudos, dissonantes. Lance atravessou a sala e sacudiu-lhe os ombros. "Pare com isso. Que é que você tem, está louca?"

"Não", respondeu ela ofegante. "Mas você deve estar... dizendo ter-se casado".

"Mas é fato, casei-me. Casei-me hoje".

"Ah, não!" E, subitamente como começou, seu riso cessou. Envolveu-a de novo a estranha quietude. "Não, você não pode estar falando sério".

"Se estou! Deus tenha pena de mim". Então, com voz embargada, acrescentou: "Odette, meu bem, que hei de fazer?"

Ela fitou-o longamente e, vendo o desespero estampado em seu rosto tão belo, nos olhos escuros, afinal convenceu-se.

"Ah!" Afundou na cadeira e fechou os olhos. Sentiu-se desfalecer de angustia e aflição. O sangue gelou-lhe nas veias. Pensou: "Quero morrer, meu Deus, permiti que eu morra". A morte pareceu-lhe iminente. Não podia sobreviver e encarar a nefanda realidade. Lance casado com outra. O seu Lance.

Percebeu então vagamente que ele falava, tentando explicar-lhe a desgraça em frases entrecortadas e curtas, para ela inconcebíveis. De vez em quando compreendia algumas palavras — palavras que a enchiam de terror.

"... tive de casar-me com ela, compreende, Odette, fui obrigado... o pai, homem de grande influência nos jornais, jurou que, se o não fizesse, contaria a história pela imprensa, mostrando o quanto eu era canalha e ordinário... ameaçou dar-me um tiro; não que eu tivesse medo, mas que fazer? Hoje à tarde arrumaram uma licença especial. Não tive outra alternativa. Compreende Odette, que eu não tinha outra alternativa?" A voz embargada de soluços implorava-a. "Fui um doido, bem sei. Chame-me do que quiser que o mereço. E é você a quem amo Odette. A desgraça é essa. Amo-a, Odette!"

Ela estremeceu qual estátua gelada ao retornar à vida.

"Mas, se me ama", gaguejou ela, e debruçou-se na cadeira, enterrando o rosto nas mãos que tremiam. "Ah, Lance!" murmurou. "Ah, Lance!"

Ele ajoelhou-se ao seu lado e procuro tirar-lhe as mãos do rosto, mas não conseguiu. Abraçou-a compungido e sentiu os soluços a lhe torturarem o corpo. "Não, meu benzinho, não", murmurava os lábios próximos à sua face.   "Isto, isto me mata!"

Ela afinal se acalmou um pouco. Levantou a cabeça, os olhos azuis marejados de lágrimas, as longas pestanas úmidas, grudadas. Ainda de joelhos, Lance puxou do lenço e enxugou-lhe as faces gentilmente. Era tão natural que lhe enxugasse as lágrimas quando brigavam que ela recomeçou a chorar. "Ah, Lance", gemeu, "não tenho forças para suportá-lo. Como é que você fez isso?"

"Como é o que, que me casei?"

"Não... a outra coisa". Tremia de fazer dó. "Se você me amava..."

"Mas amo-a, Odette", insistiu ele, desolado. "Amei-a sempre, sempre. Mas... pois é... os homens comportam-se às vezes como imbecis, como cretinos e fracos. Ela é bonita, lisonjeava-me e amava-me. Não tive intenção alguma. Era namoro passageiro. Perdi a cabeça, uma vez, só uma vez... É difícil, meu bem, resistir, quando vocês mulheres dão em cima".

"Sei disso", murmurou ela. Sua mão tocou-lhe a cabeça escura, reclinada. Gesto tão habitual; não podia evitá-lo. Ele tomou-lhe a mãozinha e beijo-a vorazmente.

"Compreendo", repetia. "É duro para mim também, quando as mulheres o perseguem".

"Procurei não lhes corresponder", resmungou Lance. "Mas Irene, confesso, enfeitiçou-me algum tempo; ela é bonita".

"Irene?"

"É o seu nome", explicou áspero. "O nome de minha mulher".

"Não diga isso!" "Desculpe". Ele levantou-se. "Onde está ela?"

"No Palace Hotel, à minha espera. Disse-lhe precisar ir à recepção. Que se tratava de negócios. Mas não fui. Era-me impossível ver você em meio à multidão. Precisava vê-la sozinha, primeiro".

"Ainda bem que agiu assim".

"Que fazer agora, Odette?"

Ela teve um gesto vago, com a mão. "Não há nada que fazer..."

"É que..." insistiu ele e, após uma pausa, em que umedeceu os lábios: "A respeito da assinatura do contrato, amanhã".

Ela fitou-o atônita, sem compreender. O contrato? Como lembrar-se de contratos quando tudo o que prezava lhe jazia aos pés como vaso precioso espatifado aos pedacinhos? Uma dor violenta sufocava-a, ao contemplar-lhe as ruínas. As lágrimas que não deixava correr ardiam-lhe no coração, na garganta.

"Que contrato?" murmurou.

"O que assinaremos juntos, amanhã, no Ali Star Studios".

"Ah, sim..." disse como voltando de muito longe, para responder-lhe.  "Já não poderemos assiná-lo". "O que?"

"Há uma cláusula que reza que, se um de nós ficar noivo ou casar-se com outro, o contrato se desfaz automaticamente". Seus lábios torceram-se com amargura. "Não consentiriam que um dos Namorados Mais Perfeitos do Mundo casasse com outra pessoa!"

Lance enfiou as mãos nos bolsos. "Que desastre!" resmungou. Após uma pausa prosseguiu com voz curiosamente animada: "Mas suponha que ninguém saiba Odette". .

Olhos esbugalhados, ela repetiu: "Que ninguém saiba?"

"A respeito do meu casamento".

"E ninguém sabe?"

Ele sacudiu a cabeça. "Ninguém, exceto Irene, o pai e duas testemunhas que juraram segredo. Expliquei-lhes na ocasião como era o contrato. Fiz compreender a ambos, a Irene e ao pai, convir a eles, tanto quanto a mim, guardarem sigilo a respeito do casamento". Deu uma risadinha e acrescentou: "Disse-lhes não possuir meios para manter uma mulher, se o contrato não se realizasse".

Ela voltou-se para ele: "Mas Lance, você deve ter dinheiro guardado".

Ele ergueu os ombros, sombrio. "Não tenho. Perdi minhas economias recentemente, numa mina hipotética da América do Sul que, ao que se dizia, "ia fazer minha fortuna". E tenho cometido extravagâncias. Maços de contas por pagar. Além do que, um galã cinematográfico precisa manter sua posição, o que custa dinheiro".

Odette inclinou vagarosamente a cabeça. Lance sempre fora extravagante, o que às vezes a aborrecia, conquanto não pesasse em absoluto em seu amor por ele.

"Está vendo", explodiu o rapaz desesperado, "se você me denunciar, será a minha ruína. Os diretores enfurecer-se-ão mais que dez cascavéis reunidas. Perco as possibilidades de obter novos contratos". E com uma nota de súplica na voz: "Sem você, Odette, nada poderei fazer. Separados, ambos perderemos o nosso público. Já nos tornamos instituição nacional. Não creio que separados nos apreciem. Odette Cosway e Lance Furner — queridinha, os nossos nomes num programa tornaram-se a maior atração do mundo cinematográfico. Será um pecado desmanchá-la".

"Por que não pensou nisso antes?" perguntou ela tristemente.

"Pelo amor de Deus, Odette, não repise no caso. Já lhe expliquei. Admito que fui idiota — tudo quanto quiser pensar de mim. Mas, por favor, não faça disso um cavalo de batalha".

"Não é meu intento, Lance. Não mais do que posso evitar", concluiu num triste sorriso.

"Então concorda?" Vibrara-lhe na voz um pouco de animação. "Não lhe causará prejuízos guardar silêncio sobre este desastrado casamento".

Ela não replicou imediatamente. Levantou-se vagarosa da poltrona, aproximou-se da caixa de cigarros sobre uma das mesas de vidro. Quase não fumava, mas tinha agora necessidade de um cigarro para acalmar-lhe os nervos. A mãozinha branca tremia ao riscar o fósforo, que se apagou.   Lance atravessou a sala, riscou outro fósforo e acendeu o cigarro. E não se afastou. Continuou de pé, encarando-a, os olhos negros infelizes a perscrutá-la.

"Como você é linda!" murmurou-lhe. "Até agora nunca o percebi como esta noite".

"Lance, por favor,", protestou ela num fio de voz. "Isso agora se acabou".

"Amo-a, amo-a... a outra nada significa para mim".

"Não diga isso... é maldade. Não quero ouvi-lo". "Pois bem... mas permite que o contrato seja assinado?"

"Não creio possível... e o nosso noivado? Uma vez que rompemos, provavelmente suspeitarão".

"Odette... será preciso rompermos?" implorou ele. "Por que não fingir que tudo continua como sempre, pelo menos algum tempo? Será vantajoso para ambos — vantajoso comercialmente".

"O que significa", atalhou Odette, a voz rouca e incrédula, "que os de fora continuam a supor que ainda somos noivos, quando você está casado com outra?"

"E por que não? É a única saída. Tudo mais será fatal à nossa carreira". Segurou-a pelo braço puxando-a delicadamente para si. "Se me ama ao menos um pouquinho, você concordará".

Odette fechou os olhos. As lágrimas ali estavam novamente, queimando-lhe as pálpebras. Procurou afastar-se, mas o contato da mão dele em seu braço era magnético, tirava-lhe a resistência. Poderia concordar? Se o não fizesse, talvez nunca mais o visse. Poderia afastar-se dela inteiramente, nada lhe deixando. Só a idéia dessa eventualidade a aterrorizava. Seria preferível morrer... se concordasse, ele ainda continuaria seu, de alguma maneira. A alegria de vê-lo, de estar junto dele, de trabalhar a seu lado. "Sou uma boba", pensou dolorosamente, "mas não posso perdê-lo!"

"Odette, que decidiu?" Conseguira arrastá-la para mais perto. Ela não lhe oferecia resistência, e quanto se maldizia por isso. Deveria detestá-lo, odiá-lo, desprezá-lo... ele que a traíra e a tudo quanto para ela era sagrado...mas, ao seu contato, não conseguia odiá-lo. "Você não deixará minha cretinice arruinar as nossas carreiras?" insistiu Lance.

Houve uma longa pausa.

"Nada direi. Vamos fazer de conta", murmurou Odette afinal.

 

LANCE partiu. Ela ficou só no grande salão ultramoderno. Mais só do que nunca, em sua vida. Por tanto tempo tinham vivido ao lado um do outro. Mesmo ausente Lance continuava presente em seu pensamento. E agora precisava afastá-lo da memória. Ele pertencia a outra mulher, chamada Irene, com quem se casara, e que estava a sua espera.

Odette, subitamente, cobriu o rosto com as mãos. "Não agüento! Não agüento!" soluçou. Mas seria obrigada a suportar. É espantosa a nossa capacidade de resistência, quando chega a nossa vez. Se alguém, antes, lhe tivesse sugerido a possibilidade de tal infortúnio, ela teria exclamado: "Não, não o suportaria! Seria a minha morte". No entanto, sabia agora que, por mais insuportável que fosse a dor, teria de enfrentá-la.

Maude, a empregada, bateu à porta e abriu-a. "Vai deitar-se, Miss Odette?"

"Deitar-me?" Levantou a cabeça com vivacidade, abanando as mãos. "Deitar-me? Como poderei deitar-me? Agüentar a cama horas e horas, na escuridão, virando-me, torturando-me, recordando-me..."

"Não, não ainda, Maude. Não espere por mim".

"Está bem, Miss Odette". A mulher hesitou um pouco. "A senhora está doente?" sugeriu a medo. "Precisa de alguma coisa?"

Odette meneou a cabeça. "De nada, Maude. Estou muito bem".

"Como queira, Miss Odette".

"Certamente". A voz era estridente, os nervos distendidos. A qualquer momento poderia não mais conter-se e começar a gritar. Caminhou pela sala, procurando dominar-se. Onde quer que fosse, via Lance. Lance recostado indolentemente na poltrona, onde passara horas fumando. Lance de pé, no umbral da porta envidraçada do terraço, o luar iluminando-lhe a cabeleira negra e ondulada como penas enroladas de um pássaro, sorrindo ao estender-lhe as mãos. "Venha para o terraço, beleza. É uma pena perdermos este luar..." Lance ao lado da lareira, abraçando-a, reclinando de leve o queixo para beijar-lhe os lábios. "Adoro-a, querida, adoro-a, Odette".

"Não, não e não!" exclamou em voz alta, erguendo as mãozinhas para o alto, num esforço amargurado para afugentar as recordações. "Não posso ficar aqui. Quero sair para um lugar qualquer, agora mesmo!"

Minutos depois telefonava ao chofer: "Traga a Lagonda, Mason", disse sem fôlego. "E não mais precisarei de você. Eu mesma quero guiar".

Uma fugida temporária, sair ao ar livre; sentir nas faces o vento penetrante e frio, provar a sensação inebriante da velocidade. Odette era excelente motorista, destemida e de mão firme.

Envergou o casaco de arminho, amarrou um véu na cabeça e sentiu-se melhor. Era um alívio mover-se, fazer alguma coisa.

A parte dianteira da barata Lagonda, ao luar, era como o focinho de um monstro pré-histórico — monstro cruel, fantasmagórico.

Mason resmungou ao entregar-lhe o carro. "Estou ficando velho, Miss Cosway. Trabalhar até tarde é demais para mim".

"Está bem, Mason, poderá sair no fim do mês".

O homem não esperava por isso. "Oh, Miss..."

Odette, entretanto, já dera a partida e fôra-se. "Por que", suspirou, "quando somos desgraçados, as circunstâncias como que combinam para aumentar ainda mais a nossa miséria?" Mason resmungava demais. Esquecia-se de seu bom ordenado, do trato excelente que recebiam, ele e a mulher, quando um ou outro adoecia. Mas até agora Odette não pensara em demiti-lo.

"Será que a infelicidade nos torna maldosos?" pensou. "Talvez". Seus lábios vermelhos retorceram-se. Como doía, a sensação de amargura. Até há pouco era uma enamorada do mundo inteiro. Estendera bem abertos os braços para a vida, dando-lhe mais do que recebia. A realidade, para ela, fora sinônimo de romance. E o romance havia morrido com um soluço estranho e abafado, quando Lance lhe dissera: "Casei-me hoje".

"Lance... Lance... preciso fugir dele". Mas como consegui-lo, se toda a sua vida estava entrelaçada à dele? E prometera, malgrado o que se dera, continuar trabalhando em sua companhia. "Talvez aprenda a odiá-lo", murmurou. "Talvez então me sinta melhor".

O Palace Hotel. Odette cravou-lhe os olhos em cima, fascinada pelo nome escrito com lâmpadas elétricas faiscantes. Assustou-se. Como viera parar ali, diante dele? Tinha Londres inteira para correr; entretanto, o instinto a trouxera ali. Por quê? Sabia por quê. Ali estavam Lance e a moça com quem ele se casara hoje, sua mulher...Continuou a fitar a alta fachada branca. Luzes misteriosas cintilavam entre as venezianas descidas; num desses quartos iluminados estavam seu noivo e aquela moça...como era penoso pensar nela como esposa de Lance! No entanto, era seu dever. Cerrou os dentes e repetiu: "Sua mulher". Mesmo assim continuou de olhos voltados para cima, como hipnotizada, sem dar tento às luzes resplandecentes como olhos de gato, de um carro vindo em sua direção. Seu próprio carro estava quase parado no meio da rua. Um automóvel que se aproximava buzinou. Odette despertou do sonho com um pulo e, incontinenti, desviou o carro. Mas fê-lo depressa demais. O pára-lama da frente apanhou um pedestre que acabava de descer da calçada. Ela apertou os breques e sentiu-se mal. Teria matado o homem? Se ele tivesse morrido, a responsável era ela. Estava tão aparvalhada de terror que por um instante não se pôde mexer.

O carro que se aproximava também parou. Simultaneamente saltaram dois homens e correram até onde cairá a vítima. Mas antes que a alcançassem, o sujeito estava de pé, um tanto trôpego, sob a luz forte da frente do hotel, o rosto muito pálido. Homem de aparência curiosa, reforçada, cabelos ruivos, fisionomia alongada e branca, com barba por fazer.

"Está ferido?" perguntou-lhe um dos senhores. "Vimos quando foi atropelado. A culpa foi do chofer do outro carro".

"É uma mulher, creio eu. As mulheres são sempre causadoras de acidentes", disse o outro de mau modo. "Choferes assim descuidados não deviam ter licença de guiar. Se quiser dar queixa, serei sua testemunha".

O atropelado sacudiu a cabeça. "Não farei queixa alguma", disse. "A culpa foi minha, por não ter olhado para onde ia. Boa noite".

Sua voz era rude e um tanto grosseira. No entanto, voz de pessoa educada. Ou melhor, dava a impressão de que fora, um dia, educada. As roupas também, conquanto velhas, percebia-se terem sido cortadas por alfaiate de primeira.

Os senhores do outro carro entreolharam-se.

"Bem, se nada podemos fazer..."

O homem sacudiu a cabeça: "Nada".

Ambos ergueram os ombros e voltaram ao automóvel. Pouco depois partiram. Odette, ainda sentada e meio aturdida, viu o sujeito que atropelara cambalear e sentar-se pesadamente na calçada.

Pulou do carro e correu para ele.

"O senhor está ferido", insistiu.

Com um movimento vivo ele ergueu a cabeça. Instantaneamente arregalou os olhos que se cravaram nela.

"Por todos os santos", resmungou, "estarei no paraíso? A senhora é um anjo?"

"Deixe de tolices", respondeu Odette. "Perguntei-lhe se está ferido".

"Só aos loucos acontece terem visões", teimou ele, meio sério, meio brincando.

"Olhe", gritou Odette. "Há sangue em sua mão. A manga de seu paletó está molhada e pegajosa. O senhor está ferido".

"Coisa de nada. Um arranhão garanto-lhe".

"E disse aos homens que não estava ferido. Foi bondade sua".

Ele deu uma risadinha. "Bondade coisa nenhuma. Pelo menos não foi essa minha intenção".

"Foi", redarguiu Odette. "De outro modo teriam chamado a polícia, ter-me-iam prendido e levado à delegacia".

"E eu teria de acompanhá-la", frisou ele com riso sarcástico.

"Mas o senhor seria o queixoso, nada lhe havia de acontecer".

O rosto do homem abriu-se num sorriso e ele ergueu a mão numa espécie de cumprimento. "Se assim o deseja, irmã".

"O senhor foi bondoso e valente. Eu...nem sei como agradecer-lhe".

O homem, divertido, ergueu uma sobrancelha avermelhada: "Insiste em fazer de mim um herói? Está bem, não seja por isso. Pra frente! Será uma nova experiência".

Tentou rir outra vez, mas a cabeça tombou-lhe nos braços e ele exalou um gemido cavo. Ansiosa, Odette circunvagou os olhos pelas redondezas. Que fazer com ele? Não poderia deixá-lo ali, sozinho. Estaria ferido a ponto de precisar de hospital? Se ao menos alguém se aproximasse...veio-lhe à lembrança pedir auxílio no hotel.

"Logo estarei de volta, e com gente para ajudar. Espere aqui, por favor,".

Mas antes que desse um passo, ele agarrou-lhe as vestes. "Não vá buscar ninguém", resmungou. "Não faça bulha. Não tenho coisa nenhuma".

"Não é verdade", exclamou ela. "Pode estar com hemorragia interna".

Ele deu uma risada áspera. "Não estou com hemorragia nenhuma. Apenas um arranhão no braço. Estou atordoado... mas é de fome".

Odette fitou-o um momento. "De fome?"

Ele inclinou a cabeça. "Não é uma queixa poética, mas juro-lhe ser muito desagradável".

Ela continuou a fitá-lo, estarrecida, incrédula. Era algo não conhecido, nem acreditara que isso realmente existisse.

"Diz o senhor que está de fato, com fome?" perguntou-lhe, e como ele concordasse: "Quando comeu a última vez?"

"Anteontem. Dizem que os dois primeiros dias são os piores". E sorriu de novo com azedume.

Timidamente ela tocou-lhe o ombro. "Vou dar-lhe um pouco de dinheiro. Não leve a mal".

Por um minuto não teve resposta.

"Não, obrigado. Nunca recebi dinheiro de mulher". E acrescentou sarcástico: "O herói formidável que eu sou não é verdade?"

"Por favor, reflita", insistiu Odette. "Tenho muito dinheiro. Mais do que posso gastar, e machuquei-o. É justo que o senhor receba alguma coisa como compensação. Se não aceitar, ficarei preocupadíssima. Mormente porque está com fome". Súbito teve uma inspiração. "Quer ir ao meu apartamento tomar uma refeição? Far-lhe-ei um curativo no braço. Venha, peço-lhe".

O homem sorriu. Ela não lhe pôde compreender a expressão.   Seria gratidão, triunfo ou outra coisa?

"Irei, e com prazer", disse ele, fingindo-se despreocupado. "Como desapontar a linda criatura que a senhora é?"

 

Odette continuou intrigada durante todo o trajeto. Ele parecia um vagabundo, mas não falava como vagabundo.   No entanto, se estava com fome, é que por que era pobre. Em sua imaginação romanesca procurou e encontrou a explicação. Ele sofrera um golpe tremendo, e talvez pagasse por crime não cometido. Em todo caso, era um sujeito decente; provara-o o incidente do carro. Reconhecera ter parte da responsabilidade, o que não era exato. Animou-a gratidão. A estranha e quixotesca atitude do homem restituíra-lhe algumas de suas ilusões. Provara que os homens — mesmo os de má aparência — podem ser cavalheirescos e generosos. E, malgrado a miséria em que se encontrava, recusara receber dinheiro dela. "Nunca recebi dinheiro de mulher". Eram justamente as palavras do herói de sua última fita, O Amor nunca Morre.

Por mais asas que desse à imaginação, não concebia o sujeito no papel de herói. Os heróis são como Lance — altos, de ombros largos, esbeltos, cadeiras estreitas, lustrosos cabelos negros, profundos olhos castanhos. Personagens secundárias também podem agir com heroísmo. E Odette trabalhara em número suficiente de filmes para saber que, quanto mais selvagem a aparência de uma criatura, mais puro o ouro de seu coração.

"Como se chama?" perguntou ela.

Ele riu. "Faz tanto tempo que não tenho nome — um nome pelo qual uma senhora me possa chamar. Se quer saber, é Bruce — Bruce Baring".

"Nos filmes não ficaria mau", comentou Odette. "Bruce Baring".

O homem espantou-se. "Nos filmes?" Que tem uma coisa a ver com outra?"

"Ah, não sabe? Sou Odette Cosway!"

Ele continuou intrigado. "Odette Cosway!"

"Sim, deve ter ouvido falar a meu respeito. Odette Cosway e Lance Furner, os Namorados Mais Perfeitos do Cinema", disse sem afetação, sem o menor traço de convencimento. Em seu mundo, todos a conheciam, todos com quem se encontrara de há alguns anos. E não podia ser diferente, pois seu nome luminoso era exibido de um extremo a outro do reino. Quantos milhões de cartazes proclamavam ser ela e Lance Furner os Mais Perfeitos Namorados do Cinema!

"Então trabalha no cinema", disse Bruce. "Mas quem é Lance Furner?"

"É meu..." quase disse meu noivo. Uma onda súbita de dor atenazou-a. Por quinze minutos, desde que se verificara o acidente, não pensara em Lance. Coisa incrível. Como pudera um minuto que fosse, esquecer-se dele e de suas últimas palavras? "É meu parceiro nos filmes".

"Somente?"

Ela exalou um suspiro.  "Somente".

"Não vi nenhum filme seu. Há anos não entro num cinema".

Odette encarou-o espantada. "Não?"

Bruce riu amargamente. "Quando se vive a conjecturar de onde virá o próximo jantar, pouco importam os filmes. É preferível um bom bife com batatas à melhor fita do mundo".

"É o que o senhor haveria de preferir", disse ela duvidosa.

Mas parecia-lhe extraordinário, trágico mesmo, que alguém pudesse existir sem o cinema. Todo o seu mundo girava em torno de filmes. Era-lhe a essência da vida. Não se afigurava divorciada deles e só via a existência de acordo com as histórias que representava.

Brecou o carro diante do enorme prédio branco, onde ficava seu apartamento. "Moro aqui".

Ele saudou com um gesto de galhofa: "Grandioso. Ser-me-á permitida a entrada?"

"Como não? É meu convidado".

"Convidado mambembe" tornou Bruce alongando os olhos pelo seu terno gasto. "Há anos não sou convidado por nenh... isto é, por nenhuma dama".

Odette fingiu não ter ouvido. "Pedirei ao porteiro leve o carro para a garage. Entre".

O homem do elevador olhou desconfiado. A aparência do convidado era das piores, o terno cinzento rasgado e gasto nos cotovelos. O chapéu de feltro, manchado de gordura e sem fita. Trazia uma cicatriz na face e, no queixo, barba de dois dias. No entanto, percebia-se que já fora um cavalheiro. Esse fato talvez chamasse ainda mais a atenção para a sua desleixada aparência atual.

Ele entrou no salão decorado à última moda: mesas baixas de vidro, reposteiros prateados, e assobiou. "Deve ser lucrativo trabalhar no cinema. Julga que me poderá transformar em astro?"

Odette perturbou-se. "Sim, talvez, para certos papéis"

"O que significa não hein?" riu ele abertamente. "Não a censuro. Sempre soube não ser o que se chama uma beleza. Não quero precipitar as coisas. Mas... se não for indelicadeza, quando virá a ceia?"

"Não... não gostaria... de lavar-se primeiro?" arriscou ela.

Um leve rubor subiu às faces do homem. Rubor visível, por estar tão pálido. Apesar do que ainda transpareceu um leve motejo no modo como lhe sorriu. "Tem razão, irmã. Os perfeitos cavalheiros lavam-se sempre antes das refeições. O lavar-se é uma das afetações da gente rica".

Odette escandalizou-se. "Não se precisa ser rico, para ser asseado. Por mais pobre que se seja, pode-se ser limpo"

"Sim? Mas há escalas na, pobreza", revidou ele. "Quando não se tem um vintém furado no bolso e a barriga vazia, quando não se tem uma casa de cachorro para dormir, o asseio não é a maior preocupação".

Ela estremeceu e seu rostinho oval descoloriu. "Nunca pensei que se pudesse ser pobre assim. Mas o senhor tem onde dormir, não tem?"

Ele fez um gesto amplo, de grande alcance, de zombeteira grandiloqüência. "Londres inteira, irmã. Que mais se pode desejar? Nas noites claras, toda a extensão do cais, com as estrelas no alto e o Tâmisa a brilhar à luz da lua, como veludo e prata. Posso refestelar-me confortavelmente num banco e observar as barcas vagarem na escuridão, suas luzes assemelhando-se a vagalumes. Nas noites úmidas, tenho a cripta de alguma igreja e fazem-me companhia uma multidão de figuras ao meu redor. Ouço histórias de desgraças maiores que a minha. Trocamos anedotas...não é mau o alojamento".

"E não possui um lar?"

Ele sacudiu a cabeça e sorriu sem vontade "Meu lar é onde coloco o meu chapéu. Há anos que o que tenho visto de mais parecido com um lar são os albergues baratos com o dístico: "Lar oferecido pela Pátria", o que é pior que qualquer lar imaginável".

Enquanto ele falava, Odette tomara uma decisão rápida. De temperamento impulsivo, tudo o que o homem dizia lhe impressionava a natureza intensamente sentimental.

"Passará a noite aqui. Insisto. Dormirá no quarto de hóspedes. Afinal de contas sou culpada, pois atropelei-o". Sorria-lhe, lenta e infantilmente. "Ficará, não é verdade?"

Ele aquiesceu sorrindo também. "Claro que fico Miss Cosway".

Maude, despertando de um profundo sono, não se encantou com a idéia.

"Miss Odette, veja lá, seu bom coração será a sua ruína", resmungou. "É provavelmente um vadio, e da pior espécie".

"Não é não! E é valente! É vítima de uma grande desgraça, tenho certeza".

Maude retrucou violenta: "Todos os desse tipo o foram. Que dirá Mr. Lance ao saber que a senhora permitiu a este sujeito dormir a noite em seu apartamento?"

Odette recuou até a janela. Através dos reposteiros filtrava a luz desmaiada e fria da madrugada. Lance, Lance... Por que deviam todos e tudo fazê-la recordar-se? A dor pungiu-lhe coração, atordoando-a.

"O que Mr. Lance disser não tem importância, Maude".

Esta arregalou os olhos. "Será possível, Miss Odette?"

"Ah!... Nada, nada".  E acrescentou:

"Vá arranjar um pouco de comida para esse pobre homem, sim?"

Depois de lavado, Bruce apresentou aspecto mais decente. Saudou Odette ao voltar à sala. "Já me sinto outro, graças à sua generosidade, senhora".

"Sua refeição virá daqui a pouco. Conversemos enquanto ela não chega".

"Por favor, não", atalhou ele depressa. E acrescentou sorrindo tristemente: "Observar como come um esfomeado não é agradável, e talvez tenha esquecido certas regras de como comer à mesa". Seu sorriso então se abrandou: "Não lhe fará bem dormir um pouco?"

Ela sacudiu a cabeça. "Não acredito ser-me possível dormir esta noite".

Ele fitou-a curioso. "Também está descontente com a vida, não é?"

Tremeram levemente os lábios de Odette. "Estou".

"É pena", murmurou Bruce. Após uma pausa prosseguiu: "A senhora é daquelas a quem a felicidade sempre devia sorrir. Em se tratando de gente como eu, não tem importância, mas da senhora — teve um riso forçado — deve ser mesmo um canalha, quem a abandonou".

"Não fale assim!" redargüiu Odette zangada, como se, indiretamente, ele atacasse Lance. E porque o amava tanto, já encontrava desculpas para o que lhe fizera. Mas que dificuldade, mesmo para ela, encontrar desculpas para o seu procedimento.

"Acho que o melhor é ir-me deitar", disse ela hesitante. "Vê-lo-ei amanhã. Preciso ir aos estúdios, primeiro, mas depois conversaremos. Terá todo o conforto aqui. O senhor não... não irá embora?"

"Ir-me embora?" espantou-se Bruce.

Odette riu nervosa. "Desaparecer, sem contar para onde vai".

Incrédulo, Bruce fitou-a. "Pensa então que, ao encontrar um bilhete premiado destes, possa desaparecer?"

"Seria capaz disso", disse ela. "Para não me dar trabalho. E quero ajudá-lo, seriamente, quero. Por favor, não vá embora".

Bruce não replicou imediatamente. E ao fazê-lo brincava-lhe nos olhos o sorriso zombeteiro, mas com laivos de ternura. "Fique sossegada; não sairei daqui. E muito obrigado pelo elogio", disse calmamente.

 

NA MANHÃ seguinte, quando Odette chegou aos Ali Star Studios, encontrou-os em grande atividade. Mensageiros corriam pelos escritórios, camarins e cenários. Já se iniciara o trabalho nos três estúdios principais: eletricistas dispunham nos lugares adequados os imensos refletores, os “inkys” e “kilos”; carpinteiros trabalhavam afanosamente, transformando as salas em deserto, sala de estar ou convés de navio. Atores e atrizes, já preparados, sentavam-se sobre caixotes ou deitavam-se no chão, estudando as respectivas partes: especialistas em maquilagem e cabeleireiros moviam-se entre eles, examinando-os com olhares críticos, pondo uma onda no lugar, suavizando a pintura debaixo dos olhos, passando mais pó de arroz numa testa que se tornara lustrosa. Os diretores, cada um em seu set individual, berravam instruções, amaldiçoando, elogiando, conjecturando porque cargas d'água tudo demorava tanto para ficar em ordem.

Odette, a caminho do escritório do chefe, deteve-se um momento para uma olhadela num dos estúdios. Gostava daquilo tudo. O vai-e-vem constante, o cheiro dos cosméticos gordurosos, as pilhérias incessantes atiradas de cá para lá, até o clarão dos projetores, tão penoso quando a filmagem durava mais de três minutos.  Vozes chamaram-na.

"Olá, Odette, venha aqui!"

Ela podia ser a famosa Odette Cosway, o ídolo do público cinematográfico, com uma correspondência de admiradores rival de qualquer estrela de Hollywood, mas, para todos, nos estúdios, era simplesmente Odette, desde o mais humilde menino de recados, até o chefão, o próprio Hal Leaman. Nos Ali Star Studios predominava a camaradagem e desgraçado o ator, atriz ou diretor que lhe fugisse às leis.

"Hoje é o seu grande dia, hein Odette? Vai assinar o contrato, não?" perguntou alguém.

Ela aquiesceu, mas desinteressada do novo contrato. Ainda ontem, no entanto, sentira-se exultante e feliz como criança em virtude dele. E agora, nada sentia nem sensação de triunfo, nem a mínima altivez. Perdido o amor, perde-se o interesse à vida, presumiu.

"Onde está Lance?" indagou um colega.

Odette teve um gesto instintivo de recuo; só a menção desse nome lhe doía como chicotada. "Não sei, não deve tardar". Gaguejara malgrado o esforço por manter a calma.

Pete Thursby, o artista cômico, piscou malicioso: "Se isto não é verdadeiro amor, então que será? Bastou ouvir-lhe o nome para ficar toda atrapalhada!"

"Por que ele não foi à recepção de ontem?" indagou um ator.

"Não estava disposto", respondeu ela.

Pete tornou a piscar. "Acho que dentro em pouco teremos de preparar as bodas. Então poderá mandá-lo para a cama com uma bolsa de água quente no estômago, quando estiver doentinho."

Riram todos. O rosto de Odette ruborizou-se. Por que não paravam de falar em Lance? Não percebiam que a simples menção de seu nome a perturbava?   Com um risinho forçado disse: "Estão todos convidados para o casamento. É melhor economizarem os níqueis desde já. E fiquem sabendo, nada de colheres de sal, almofadinhas, nem peixes dourados!"

E afastou-se rápida, antes que continuassem. Quase correu pelo corredor comprido e frio que levava ao escritório de Hal Leaman, como a fugir de alguma coisa. Fugir aos próprios pensamentos é que não era possível. E ficou a conjecturar, com profunda mágoa, se jamais o conseguiria.

"Mr. Leaman ainda não chegou, mas espera pela senhora, Miss Cosway. Quer entrar em seu escritório particular?"

Odette sorriu e entrou.

"Que felizarda vai ali", suspirou um dos datilógrafos de Hal Leaman ao acompanhar com os olhos a figura elegante da artista. "Tem na vida quanto deseja: dinheiro, fama, sem falar no próprio herói!"

Enquanto esperava, Odette vagou pelo amplo e rico escritório. Estava muito agitada para sentar-se. Recordou com um sorriso a primeira vez que ali estivera, amedrontadíssima, mas resolvida a conseguir um papel. Não propriamente um papel, mas umas frases no filme Amável Pecador. Um amigo a aconselhara a entrar no cinema e lhe dera uma carta de apresentação para o temível Hal Leaman.

"Você deve ser fotogênica, Odette", dissera-lhe o amigo. "As linhas de seu rosto são perfeitas, seus traços bem modelados. É estranho que, muitas vezes, rostos bonitos fiquem mal, quando fotografados".

Hal Leaman irrompera no escritório tendo na mão a carta fatídica. "Então, é mais uma, hein? Pensa entrar no cinema pela porta de trás, com uma cartinha de apresentação?" Falara zangado, sem fitá-la.

"Pois bem, digo-lhe francamente, menina..." Então fez uma pausa. Olhou Odette pela vez primeira, desde que entrara. Fitou-a longamente e emitiu um assobio prolongado e esquisito. "Levante-se, tire o chapéu e dê uma volta", ordenou. Momentos depois dizia: "O papel é seu, minha cara. Podemos assinar o contrato já".

Assim era ele. Homem de discernimento e decisões rápidas. Excelente chefe, excessivamente honesto, visceralmente correto.

"Daqui a pouco estará aqui", pensou Odette. "Contanto que chegue antes de Lance. Não quero ver Lance sozinha".

Nesse instante ouviu a voz de Lance na sala contígua. Teve um momento de pânico, do maior pânico que jamais sentira. "Se eu pudesse fugir...mas é tolice", refletiu. "Terei forçosamente de encontrar-me com ele. Preciso habituar-me".

"Odette!"

Ela voltou-se e enfrentou-lhe o olhar. O coração batia-lhe descompassado na garganta, como sempre acontecia ao deparar Lance, ao ouvi-lo falar. Continuava o mesmo: alto, ombros largos, testa ampla, nariz aquilino, queixo bem modelado, belo como sempre. Por que o achou diferente? Talvez estivesse cansado — com pequeninas rugas debaixo dos olhos, lábios pendentes, desapontados.

Odette forçou um sorriso que lhe assentou como máscara na fisionomia.

"Alô, Lance!"

Ele passou a mão pela cabeleira negra, num gesto juvenil de embaraço e desespero. "Não faça isso, Odette, por favor. Que trapalhada. Não procure fingir que não é".

Lágrimas brotaram-lhe cios olhos azuis e escorreram-lhe vagarosamente pelas faces. "Sei disso", murmurou ela.

Lance aproximou-se e agarrou-lhe as mãos, apertando-as com força de encontro ao peito. "Levei a noite a pensar em nós dois. Como você se assustou e empalideceu, quando lhe falei ontem. Preferia cortar minha mão direita a ser obrigado a contar-lhe o que contei. Sabe disso, não é querida?"

Odette afastou-se um pouco. "Sim, Lance". Sua voz era um fio. Mas pouco depois acrescentou veemente, não podendo dominar-se: "Lance, por que você fez isso?"

"Por favor, querida". Sua voz grave engasgou-se de comoção, "julguei que ontem tivéssemos esgotado o assunto. Em minha situação, como poderia agir de outra maneira? Mas não a perdi completamente, não é? Isso me seria insuportável. Vamos trabalhar juntos e continuaremos amigos".

"Amigos?" exclamou ela num risinho de escárnio.   "Como poderemos nós ser amigos, Lance?"

"E por que não?... talvez... por nos amarmos tanto?"

"Não sei", disse Odette áspera. "Não fale assim. Não é justo para a moça com quem se casou".

"Já disse que ela não conta... pelo menos não com você".

"Mas agora é preciso contar com ela. Você casou-se com ela".

Lance riu surdamente. "Que uma mulher pese na balança é coisa que não se pode forçar. Ou ela pesa, ou não pesa. Nada há a fazer. E não deixo de pensar que ela seja grandemente culpada pela infernal atrapalhação em que me encontro. Nem mesmo fingi amá-la... mas ela retrucou isso não ter importância, pois ela me amava. Fui idiota em ouvi-la". Sorriu lugubremente e prosseguiu: "Acredito que seja um imbecil, um fraco, a respeito de mulheres. Se nos tivéssemos casado antes, Odette, esta coisa abominável não teria acontecido".

Odette fechou os olhos com força. Era-lhe preciso segurar as lágrimas que brotavam. Quantas vezes, nas noites de insônia, formulara esse desejo. Se se tivessem casado um ano antes, logo depois de noivos!   Se ao menos, ao menos. . .

"Você ainda teima em querer que eu finja nada ter acontecido? Ainda quer assinar o contrato? Não me parece correto. Não posso pensar de outra maneira", disse ela com firmeza.

Ele teve um sorriso trágico e belo: "Se quer arruinar-me, Odette, poderá contar tudo a Leaman".

"Você sabe que não, Lance", exclamou ela incontinenti.

Ele apertou-lhe as mãos com mais força. "Nesse caso, não diga coisa nenhuma, querida. Ele que acredite que tudo continua do mesmo jeito... Psiu, aí vem ele".

Hal Leaman, baixo e retaco, cabeça grande, larga, calva, entrou na sala esfregando as mãos. Seus movimentos todos eram cheios de vida: uma forte personalidade. E tinha miolos. No mundo cinematográfico não havia homem mais inteligente. As fitas apresentadas pela Ali Star Studios raramente deixavam de ser sucessos comerciais.

"Vocês, pombinhos, aos arrulhos, outra vez?" caçoou ele rindo. "Não se pode deixá-los um minuto neste escritório, sem encontrá-los a repetir o que disseram em cena, o dia todo. Não se cansam? Não se enfadam das caras respectivas? Não que os queira diferentes", apressou-se a acrescentar. "Os carinhos e arrulhos de sua vida particular convêm-me para propaganda. O público devora tais notícias. Tome um charuto, Lance. Não o vi na recepção de ontem".

E estendeu-lhe ao falar, a caixa aberta de charutos finos. Lance não aceitou e Leaman pegou um, cortando a ponta com os dentes e cuspindo-a pela janela.

"Eu... não estava me sentindo bem", explicou Lance contrafeito.

Hal Leaman lançou-lhe um olhar penetrante: "Não está com boa aparência, vê-se logo, meu filho. Dir-se-ia que passou na farra cinco noites seguida. O que não serve para o seu gênero de trabalho. O público rotulou-o como a personificação do eterno jovem bonito, e você tem de conservar-lhe a ilusão. Olhe aqui: por que não se casam de uma vez? O público ficará contente. Estão satisfeitos com o noivado, confesso, mas cedo ou tarde se cansarão dele. Que acham?"

Apesar de dirigir-se a ambos, olhava diretamente para Odette. Imaginava que, a ela, competia decidir. "Ora, vamos, Odette", disse carinhoso, os olhinhos brilhantes de malícia. "Lance é bom rapaz. Por que não lhe fazer a felicidade casando-se com ele?"

Desfigurou-se o rosto de Odette. Ela sentiu-se mal. "Eu... eu neste momento, não quero casar com ninguém, Mr. Leaman". Tentou rir, mas em vão.

"Como são contraditórias as mulheres", resmungou o chefe. "Bem, você é quem resolve". Virou-se e apertou o botão de campainha sobre a mesa. Quando a secretária apareceu, disse: "Pode trazer-me o contrato, Miss Wilson? Vamos assiná-lo já, quero ver-me livre dessa preocupação".

Chegou o contrato, em ordem.

"Já foi lido inteiramente por ambos, não há nada a acrescentar", observou ele. "É forçoso admitirem que, sob todos os pontos de vista, o contrato é estupendo. Recebem ambos quase o dobro dos salários do ano passado, mas o público os aprecia, e o que ele aprecia é mister obter-se a qualquer preço. Muito bem". Apanhou da escrivaninha uma caneta-tinteiro. "Qual dos dois assina primeiro? Odette suponho?"

"Mr. Leaman" interveio Odette quase sem fôlego. "Há no contrato uma cláusula que gostaria de discutir. Aquela a respeito do nosso... de não ficarmos noivos nem casarmos senão um com o outro. É realmente indispensável?"

"Ora, ora, que é isto?" Hal Leaman fitou desapontado os dois jovens. "Não é amuo de namorados, hein? Claro que é indispensável. É a cláusula principal do contrato". Voltou-se para Odette, quis brincar com ela, mas falhou. "Não está enfeitiçada por outro peralvilho, está?"

Odette sacudiu vagarosamente a cabeça. "Não, não me enamorei por nenhum outro, Mr. Leaman".

"Então aquilo está bem". Exalou um profundo suspiro. "Vamos, assinem, não posso perder tempo. Esperam-me lá embaixo, no set, para filmar dentro de minutos a comédia musicada Estrelas Voadoras".

Odette pegou na pena. Tremia malgrado o esforço por dominar-se. Olhou um instante para Lance, como a implorá-lo. Mas este, com um gesto, insistiu para que ela assinasse. Odette suspirou e assinou depois do que se sentiu mal. Era o seu primeiro ato desonesto, deliberadamente praticado.

Lance assinou em seguida, rapidamente. "Pronto", disse num riso forçado.

"Conhece o assunto da próxima fita?" indagou Leaman. "Falei ontem à tarde com Luke, a respeito. Planejamos filmar a peça de teatro Oásis que está obtendo sucesso em East End. Vai-lhe às mil maravilhas. É uma peça de costumes, com várias cenas passadas no Marrocos. Iremos até lá, em busca de cor local. Luke sugeriu que se filmassem em primeiro lugar as cenas do deserto. Convém a ambos? Quanto mais cedo a caminho, melhor".

A campainha do telefone tocou e, com uma desculpa, Leaman lhes fez sinal que se retirassem. Encaminharam-se os dois em silêncio até a metade do longo corredor — silêncio constrangido — como se cada um secretamente se envergonhasse de si próprio.

"Desejei... sempre desejei conhecer o Marrocos", disse Odette afinal.

"Eu também... era onde pretendia levá-la, Odette, para a nossa lua de mel".

"Lance, por favor!"

"Em todo caso, lá estaremos sozinhos. Irene não irá. Não o permitirei. Lá você esquecerá esta desgraça. Este pouco de romance, ao menos, será bem nosso".

A voz morreu-lhe na garganta. Segurara-lhe o braço e, apesar de suas tentativas por afastar-se, não o conseguia. Não tinha forças. Quisera tanto acreditar no que ele dizia. Que seria possível, durante umas poucas semanas, reviverem o seu pobre romance sacrificado.

"Hoje, para mim, será um dia de sorte, Miss Cosway", disse uma voz atrás dela.

Odette voltou-se espantada e divisou os olhos cinza e sorridentes de Paul Hershaw.

 

"Ah! é Mr. Hershaw!" sorriu ela. Que faz no campo adversário?”Os Gelvvay Studios eram no mundo cinematográfico os rivais mais poderosos dos Ali Star.

"Tenho negócios a tratar com o grande Hal", disse Paul retribuindo-lhe o sorriso. "Ele vai filmar umas cenas no deserto e precisa de meus conselhos. Mas, não me apresenta ao seu noivo, Miss Cosway?"

"De certo! Que distração, a minha". Fez as apresentações.

"É desnecessário dizer-lhe que já ouvi falar em seu nome, Mr. Furner". Um tênue sorriso perpassou nos lábios finos de Paul.

"Todo mundo sabe da vida um do outro, neste ofício", replicou Lance indiferente. "É a multa a pagar-se, quando se é astro".

"Não me refiro a isso". O sorriso de Paul acentuou-se. "Conversei ontem com Miss Cosway, na recepção".

"Ah!" o rosto de Lance tingiu-se de rubor. Disse depressa: "Verei você depois, Odette", e voltando-se para Hershaw: "Quer desculpar-me? Tenho de falar com Madge, nossa técnica em publicidade."

Os olhos de Paul acompanharam a figura alta, de ombros largos, que se afastava. Havia neles um quê de zombeteiro. "Não é justo que um homem seja bonito assim, Miss Cosway. Em que desvantagem ficamos nós, pobres diabos!"

"A aparência não é tudo", observou Odette.

"Não é tudo? Talvez, mas no que diz respeito às mulheres, leva nove décimos de vantagem. Estou para encontrar a mulher que não prefira um Adônis sem inteligência a um homem feio, embora talentoso".

"Sua opinião com respeito às mulheres não é das mais elevadas", tornou Odette.

O sorriso de Hershaw fez-se irônico: "Declarei-lhe ontem à noite ser realista".

"Sim, recordo-me ter-lhe ouvido algo desagradável", lembrou ela rindo.

"A vida continua tão encantadora hoje cedo como ontem à noite, senhorita Vendedora de Romance?"

Cerraram-se os olhos azuis ao ouvi-lo. As faces tornaram-se rubras. Ele lembrou-se sem razão de manchas sangüíneas em pétalas de rosa creme. Mesmo tentando falar com indiferença, a voz dela tremia. "Claro que sim".

Ele lançou-lhe um olhar penetrante e o sorriso morreu-lhe nos olhos.

"O romance é amigo perigoso, Miss Cosway. É preferível deixá-lo entre as capas dos livros que lê, ou nos filmes irreais em que trabalha".

Não obteve resposta. Odette estava demasiado cansada para discutir. Subitamente detestou-o, pois, sem saber, ele provara ter razão. Mas, com certeza ainda existia romance neste mundo. Romance verdadeiro — como o vivido algum tempo por ela e Lance. . .

"Preciso deixá-lo", disse. "Tenho dúzias de horas marcadas".

"Está trabalhando em algum filme?"

"No momento não — mas é justamente quando me vejo mais ocupada. Costureiros, massagistas, lições de canto, de porte. Para a perversa não há descanso", concluiu rindo.

"Para a beleza", corrigiu ele e sorriu-lhe com um ligeiro fulgor nos olhos profundos, cinzentos. "Não diga que quisera ser diferente", acrescentou. "Todas as mulheres bonitas vivem a repetir que preferiam ser feias. E não o desejam. É interessante quantas coisas dizemos, e dizemos continuamente, sem a menor sinceridade. Talvez por supormos que as esperem de nós. Penso às vezes que a maioria de nossas ações são incentivadas pelo que esperam de nós".

A linda testa de Odette enrugou levemente. "Não sei", disse, "nunca pensei nisso. Julgo, no entanto, uma das coisas mais tristes, o decepcionar alguém que confia em nós". O timbre era amargo. Paul estava pasmo. Teve a impressão de que Odette mudara desde a véspera. Não atinava onde estivesse a mudança — sentia-se apenas. Tal impressão perturbou-o e, embora não o confessasse, encheu-o de curiosidade.

"Não julga preferível não acreditar em ninguém? dessa maneira nunca se é decepcionado".

"Como seria odioso!" exclamou ela ardentemente. "Morreria, se tivesse de perder a fé em todo mundo".

Sem intenção, dera ênfase às últimas palavras. Ele atirou-lhe novo olhar perscrutador. Sim, algo sucedera a Odette desde a véspera. Mas o que? Lembrou-se do nervosismo furtivo de Furner. O jovem perfeito! O amante ideal! Bonito demais e ciente disso, foi o juízo de Paul a seu respeito. Seria ele o responsável pela mudança de Odette?

"Não se esqueceu que me convidou para um chá?" arriscou Paul.

"Claro que não. Quando lhe agradará vir?"

Ele tomou rindo: "Sou da espécie de visitas que dizem: Quanto mais cedo quiser convidar-me".

"Depois de amanhã, às quatro?"

Hershaw curvou-se numa saudação rígida, curiosa, onde se notava certo antiquado encanto. "Serei pontual, Miss Cosway".

Lance esperava por ela na rua. Não parecia de bom humor. "A respeito do que você e aquele sujeito conversaram tanto tempo?" perguntou.

Odette riu sem alegria. "Sobre romance, por mais estranho que pareça, e se deve existir confiança entre duas criaturas".

Os olhos de Lance fuzilaram inquiridores. Enublou-se o semblante.  "Está querendo alvejar-me?"

Odette sacudiu a cabeça. "Não, Lance. Talvez me sentisse feliz, se fosse mais vingativa".

Ele apertou-lhe o braço, magoando-a. "Odette, não fale assim. Faz-me pensar que sou canalha".

"Lamento muito". Sua voz era indiferente.

"Posso acompanhá-la até sua casa?"

"Hoje não. Mais tarde tentarei ser sua amiga". Procurou sorrir-lhe, alegre, amistosamente, mas ante a expressão tensa e desesperada dos olhos castanhos, tão escuros, ela desviou o olhar, titubeante.

"Mas... não se trata de sermos amigos, Odette. Você tinha razão no que disse hoje no escritório de Hal. Não poderemos ser amigos. E não quero sê-lo. Quero tudo àquilo que costumávamos compartilhar. Você também, não é?"

Ela cerrou os olhos. Quereria? Sim, e com toda a alma!

"Mas você está casado", insistiu.

"Por que teima em atirar-me isto em rosto? Hoje em dia o casamento não significa grande coisa".

"Mas para mim significa", disse ela serenamente. "Ou significaria, se me tivesse casado. Adeus".

E deixou-o ali, na alameda, ensolarada, luminosa, ao lado do barracão onde funcionavam os estúdios, e entrou no carro à sua espera. Lance nunca deveria saber quão penoso lhe fora deixá-lo. Ser forte quando ele fraquejara. Seria capaz de persistir nessa firmeza? Cogitou tristonha, ao afundar no assento da luxuosa limusine. Em Londres, talvez, mas no Marrocos? E estremeceu.

 

Em casa havia o problema de Bruce Baring a resolver. Nessa manhã quase o abençoou. Era algo de concreto em que se concentrar. Era-lhe grata pela sua conduta cavalheiresca à hora do atropelo. Urgia fazer alguma coisa por ele.

"Sim, claro que ainda está aqui, Miss Odette", resmungou Maude com acentuada aversão na voz, ao abrir a porta à jovem patroa. "E acho que ficará muito tempo, a menos que a senhora o mande cuidar da vida".

"Não seja pouco caridosa, Maude", censurou Odette. "O coitado deve ser vítima de uma terrível infelicidade".

"A terrível infelicidade deve ter sido uma passagem no xadrez, se me não engano", tornou Maude zangada. "Que dirá Mr. Lance."

"Já lhe disse ontem não ter importância a opinião de Mr. Lance", replicou Odette bruscamente. "Onde está Mr. Baring?"

"Sua Excia. acha-se na sala de estar, lendo os jornais da manhã, estendido no mais confortável dos sofás", declarou Maude sarcástica. "Miss Odette, a pose que ele tem! Se ficar aqui precisará de um mordomo e lacaio para servi-lo".

"É o bastante", ralhou Odette.

Apesar de tudo, sorria, quando a criada se retirou. Maude trabalhava para ela há anos, era uma escrava dedicada, mas, nem nos primeiros tempos calara suas opiniões. Nunca perdia ocasião de dizer o que pensava. E, conquanto a censurasse com severidade muitas vezes, intimamente divertia-se.

Antes de entrar na sala despiu o casaco macio de lontra, que lhe assentava como luva no corpo alto e esguio.

Tirou o pequenino chapéu diante do espelho do toalete de carvalho e prata, depois as luvas compridas de camurça. Ajeitou de leve as ondas do cabelo loiro prateado. Sem ser vaidosa, Odette cuidava sempre da aparência. Julgava uma obrigação, pois não convinha à linda Odette Cosway apresentar-se diante de quem quer que fosse sem estar bem arranjada. Como se vivesse eternamente diante da câmara do cinema.

Bruce Baring ergueu-se ao vê-la entrar na sala. De barba feita, o terno cuidado, o cabelo ruivo penteado, era certamente mais apresentável. O pálido rosto chupado chegava a ser atraente, quando sorria. E sorria agora, ao dizer: "Ora, se não é a Senhora dadivosa em pessoa! Acordou cedo esta manhã".

"Acordo sempre cedo", disse Odette e também sorriu. "Não sabe que deitar cedo e acordar cedo faz uma estrela ter saúde, poder e saber?"

"Sim, mas ontem não se deitou cedo", lembrou ele.

"Não". Desvaneceu-se-lhe o sorriso, e ela disse: "Espero que nada lhe tenha faltado".

"Nada?" Atirou a cabeça para trás e riu. "Há anos não sonhava com tal conforto. Chegava a duvidar que o conforto pudesse existir".

"E o braço, está melhor?"

"Um simples arranhão". E com novo sorriso: "O meu arranhão de mais sorte. Ser atropelado por um carro e, ao recuperar os sentidos, encontrar um anjo glorioso reclinado sobre a gente — e um anjo bastante mundano para possuir um belo automóvel, um luxuoso apartamento, manjares deliciosos e bebidas divinas que se é convidado a partilhar... Se julgasse possível a repetição, levaria a vida passando debaixo dos carros vagarosos!"

Ela desatou a rir num riso fresco e espontâneo. Ria com naturalidade pela primeira vez, desde a cena da véspera.

"Assegure-se primeiro de que sejam suficientemente vagarosos", preveniu ela.

O semblante de Bruce abriu-se num franco sorriso. Cumprimentou-a brejeiro. "Claro que me prevenirei. Não nasci ontem, irmã".

Odette sentou-se no braço de uma poltrona, balançando dois tornozelos delicados, calçados com meias de seda. O sol, entrando pelo terraço, nimbava-a de ouro. Era como pintura delicada numa tela dourada. O homem que a observava de perto susteve a respiração.

"Creio que a senhora é um anjo!" murmurou pouco depois.

Ela voltou a cabeça. "O problema é o que iremos fazer de sua pessoa", replicou Odette.

"Isto é, o que a senhora vai fazer de mim", corrigiu ele. "O que eu faria é exatamente aquilo que faço há anos — rolar morro abaixo, bem depressa, para não sentir os solavancos".

Ela franziu o cenho. "Não gosto que fale assim. Tenho certeza de que ainda não perdeu o respeito próprio".

"É fantástica a rapidez com que se perde o respeito próprio, quando se está com fome", disse ele num riso amargo.

"Não tem emprego? Não conhece alguém que lhe dê trabalho?"

Bruce sacudiu a cabeça, fitando-a curioso, como a estudá-la. "Ninguém me haveria de empregar. Isto é, ninguém que tenha juízo".

Ela arregalou os olhos para ele. "E por quê?" De novo ele hesitou e tornou a fitá-la de modo enigmático.

"Estive preso", disse simplesmente.

Ela recuou um pouco, mas pouco tempo. Era esta uma situação comum em muitas de suas películas. Prenderem-se homens inocentes. Deixavam-se prender de motu próprio, para encobrir crimes alheios.

"Mas não por culpa sua, não?"

"Sob certo ponto de vista foi culpa minha. Havia... uma mulher implicada no caso. Não me era possível deixá-la sofrer. E ela, depois, abandonou-me". Não encarava Odette ao confessar-se. Voltara-se para a janela, para encobrir o rubor que lhe subira às faces.

"Tinha certeza que devia ser uma coisa assim", murmurou ela.

Bruce não pronunciou palavra e seu rubor aumentou. Passado algum tempo, Odette, impulsivamente, falou: "Dar-lhe-ei um emprego, Mr. Baring, e com prazer. Vai aceitá-lo, não é verdade?"

Esse era um dos encantos de Odette. Dava, pródiga e generosamente, sem perguntar a quem, e sempre conseguia que seus protegidos sentissem que, aceitando, lhe faziam um favor.

Bruce riu a contra gosto. "Não se trata de eu aceitar ou não, Miss Cosway. Trata-se da senhora arriscar ou não".

"Arriscar?"

"Sim; dar emprego a um homem que já esteve na cadeia é arriscar-se".

"Deixe disso", atalhou ela, não dando importância ao fato. "Que sabe fazer, Mr. Baring?"

"Muitas coisas... isto é, nada muito bem". E tornou a rir.

"Sabe guiar automóvel?"

"Sei, mas não entendo muito do que há dentro dele".

"Escreve à máquina?" "Escrevia regularmente".

"Pode manter afastadas de mim as pessoas que não desejo ver?"

"Isso me será fácil como cortar manteiga, irmã", disse Bruce sorrindo.

"Se vier trabalhar em minha casa, não poderá chamar-me irmã o tempo todo", protestou ela vagamente.

"Desculpe-me". Ele estava embaraçado. "Foi um hábito adquirido no meio em que vivi. Lá, essa expressão é muito respeitosa".

"Tenho, durante o dia, uma secretária", contou-lhe Odette, "mas seu trabalho é penoso, é demasiado. Talvez o senhor a ajude. E Mason, meu chofer, está ficando velho para o serviço à noite. Pelo menos vive a queixar-se quando trabalha depois da ceia. Pensei ser obrigada a despedi-lo, mas detesto despachar meus empregados. Aceita guiar à noite?"

"É o que venho fazendo estes últimos anos", disse Bruce rindo.

Odette fitou-o curiosa. "Que significa isso?"

"Nada!" respondeu ele depressa. "É brincadeira minha irmã...isto é, Miss Cosway".

Ela tornou a fitá-lo e perguntou: "Não me irá desapontar?"

Ele ficou sério e uma nuvem escureceu-lhe o rosto magro. "Será preciso um canalha pior que eu, para desapontá-la. Há na Bíblia um trecho a respeito da fé que se deposita nas criaturas — que, se lhes depositarmos a confiança necessária, elas não nos decepcionarão. Pois não hei de decepcioná-la, Miss Cosway, tentarei, em todo caso. E um dia, talvez, ainda lhe seja útil. Tenho pressentimento de que o serei".

 

ODETTE atrasou-se para o chá com Paul Hershaw.

Fora inevitável. Ficara presa nos Ali Star Studios, revendo com o diretor Luke Grimsby os originais de Oásis.

"Parte magnífica para você, Odette", disse ele entusiasmado. "Ao representá-la, subirá mais um degrau — se é que ainda lhe faltam degraus na escada da celebridade".

"Não me preocupa subir, mas descer", riu ela. "A fama dá medo. É como se estivéssemos balançando atordoados sobre o cume de alta montanha, com negros abismos de goelas escancaradas ao redor".

"Será..." concordou Luke, inchando ainda mais as bochechas balofas. "Verdadeira matilha de lobos — personificados pelos seus rivais — a espreita sempre, para devorá-la nesses mesmos abismos. Mas você não me preocupa. Estou amolado é com Lance".

"Que houve com ele?" perguntou Odette assustada.

"Não sei, mas há algo que não está certo. Anda susceptível, nervoso, está perdendo a frescura, a juvenilidade que eram o seu maior triunfo". Fitou-a de maneira estranha. "Não houve nada entre vocês dois?"

"Não", acudiu ela depressa — depressa demais. Luke fitou-a intrigado, mas não articulou palavra.

Odette levou consigo os originais, para estudá-los com vagar. Procurou concentrar-se neles, ao seguir de automóvel para casa. Seus pensamentos, no entanto, voltaram-se irresistivelmente para Lance. As palavras de Luke preocupavam-na.

Suas carreiras estavam por tal forma ligadas, que não se podia pensar numa separadamente. A dele fora feita por ela. E por essa carreira sentia desvelos de mãe. Não o tivesse descoberto numa companhia de terceira classe, em tournée pelo norte da Inglaterra, ele não seria hoje o grande Lance Furner. E agora que o perdera, agarrava-se à sua carreira como se esta lhe fosse duplamente preciosa.

Olhou pela janela. O outono, com tonalidades luminosas vermelho e ouro, acinzentava-se para o inverno. O sol da tarde, que penetrava tênue os galhos meio despidos, ia desaparecendo. Entristeceu-se à idéia de que a estação dadivosa e rica estivesse em vias de morrer. Parecia ter morrido numa noite.

"Que alívio, quando me vir longe daqui", pensou estremecendo. "Londres alimenta recordações".

Nesse Ínterim não se lembrava de Paul Hershaw. No entanto, alegrou-se ao tornar a vê-lo. Apesar de não compartilhar de suas opiniões, julgava-as, de certo modo, reconfortantes.

"Sinto tê-lo feito esperar", desculpou-se num sorriso. "Estive com Luke nos estúdios, a examinar os originais. Não se aborreceu?"

"Pelo contrário, distrai-me com um homem que se intitula seu secretário-chofer. Garanto que, se não tivesse cartão para identificar-me, seria ingloriamente posto na rua. Diga-me, por que razão o utiliza — para livrar-se dos indesejáveis?" E os olhos cinza, encovados, fitaram-na divertidos.

"Em parte", admitiu Odette rindo. "Na realidade foi um serviço inventado. Tive de arranjar-lhe trabalho, compreende?"

"Não compreendo. Por que, arranjar-lhe trabalho?"

"Atropelei-o uma noite destas com o meu carro. E ele estava sem emprego e sem dinheiro".

"Hum! Explorou-lhe então a piedade?"

"Não! Zangou-se quando o quis ajudar".

Paul franziu o cenho. "Tem informações a seu respeito? Sua cara não me parece desconhecida. Gostaria de identificá-lo".

"Por quê?"

Paul observava-a pensativo enquanto fazia tilintar moedas no bolso. Ainda assim os olhos cinzentos sorriam. "Receio que a tenham enganado, querida pequena romântica".

"Não me chame por esse nome", protestou Odette vivamente.   "Enganaram-me, e por quê?"

"Por isto: o homem é obviamente um cavalheiro, ou já o foi. E um cavalheiro não vive desempregado, sem um níquel no bolso, salvo existindo motivos sérios". E acrescentou: "Espero que não tenha estado na cadeia".

"Por que... por que pensa isso?" gaguejou ela.

Paul riu-se, mas com ternura no olhar. "Imagino que lhe tenha dito ter estado na cadeia, mesmo que não seja verdade. Que se deixou prender para salvaguardar a honra de uma mulher. Não foi?"

"Como sabe?" tartamudeou Odette.

Desvaneceu-se o sorriso de Paul e ele carregou o cenho. "Não tenho certeza, mas calculo. Como já lhe disse, sou realista. Eu mesmo inventaria essa cantata, em situação idêntica".

Odette deitou-lhe um olhar frio. "Não acha que está sendo odioso?"

Perpassou pelas faces de Hershaw um leve rubor. "Sinto muito. Mas a senhora, a meu ver, necessita de proteção. É estranho que pense assim, pois mal nos vimos duas vezes".

"Estranho e não solicitado".

Ao ouvi-la Paul desatou a rir como costumamos rir das brejeirices de uma criança interessante. "Censura direta, hein? Desculpe-me, se a ofendi. Mas agora que me qualificou de odioso, não me vai dar um pouco de chá?"

Ela atravessou a sala e apertou a campainha. Estava amuada. Ele tinha a virtude de fazê-la sentir-se pequenina, infantil.

"Por que acha que eu preciso de proteção?" perguntou.

Paul caminhou pela sala, deteve-se frente à lareira e pôs o cotovelo entre um vaso de prata e uma cigarreira de cristal. "Porque é uma criança que não cresceu. Tudo isto", e num gesto largo indicou a sala, "é um quarto de criança gigantesco, onde sonha com os contos de fadas e pensa poder vivê-los. Seu gênero de trabalho não a ajuda, pois também é um conto de fadas. Admito que seja encantador, delicioso. Todos os ogros que lhe visitam o palácio são príncipes disfarçados. Mas suponha que o ogro, ao menos uma vez, não se transforme em príncipe? Suponha que o encanto que deveria transformá-lo não funcione?"

"Não fale por enigmas", protestou Odette.

Paul sorriu de modo bizarro. "Procuro falar na linguagem que, pensei você compreendesse".

"Não sou mais criança; não mais vivo no mundo da fantasia", disse ela e Paul tornou a notar-lhe na voz a nota amarga.

"Mas vivia ainda, na noite da festa, quando conversamos no jardim".

"Isso foi há tanto tempo..." "Há apenas uma semana".

"Realmente?" espantou-se Odette esboçando um sorriso. "Parece-me há tanto tempo!"

Surpreso, Hershaw ergueu uma sobrancelha, mas não prosseguiu no interrogatório. Nesse Ínterim Maude trouxe o chá e colocou-o sobre uma das mesas de cristal. O fogo da lareira, a refletir no bule de prata, fazia cintilarem luzes dançantes em sua superfície. Cintilavam também nas xícaras delicadas de porcelana da China e na bandejinha de prata com torradinhas quentes.

Odette serviu o chá, mas nada comeu. Paul notou-o.

"Não se apiede de mim", preveniu ela sorrindo. "Faz tanto tempo que não como torradas com manteiga, que já perdi a vontade. Conhece o nosso lema, nos estúdios: Meio quilo de gordura, adeus emprego".

Paul riu-se, servindo-se de uma torrada. "Graças a Deus não passo de diretor. Foi difícil no começo, hein? Privar-se das coisas gostosas, que engordam?"

"Ah, quanto! Minha boca enchia-se de água, mesmo dormindo. O paraíso para mim seria flutuar numa nuvem de creme batido e comer quanto quisesse. Ao andar na rua, contemplava tão avidamente as vitrinas de gulodices que um senhor idoso se ofereceu para pagar-me o jantar. Com o tempo habituei-me. Há anos não provo o que se chama uma verdadeira refeição. Fico a cogitar se as meninas que sonham em tornarem-se celebridades do cinema conhecessem de perto os sacrifícios exigidos para tanto, não persistiriam na idéia".

"Não, com certeza. A maioria dos humanos almeja tudo sem nada querer sacrificar. Sei por experiência. Nada se ganha na vida sem se perder ao mesmo passo algo de igual valor. O oposto também se verifica. Quando se perde alguma coisa, conquista-se outra de igual monta. É a lei fatal das compensações".

Odette, pensativa, envolvida na luz avermelhada da lareira, descansava o queixo no punho delicado. "Julga que se possa perder algo de insubstituível?" perguntou afinal, num fio de voz.

"Em que sentido?"

"Refiro-me ao amor", disse ela serena.

Ele estremeceu e tornou a fitá-la. Enevoou-se-lhe o rosto fino, mas em seus olhos havia ternura ao perguntar: "Julga possível perder-se o amor? Não será ele uma dessas quantidades enganadoras que vão e vêm? E se o perdemos por algum tempo, em geral adquirimos experiência".

O leve sorriso voltou aos lábios de Odette. Nele Paul entreviu ter magoado a criança que ela ainda era.

"A experiência é substituto bem pobre", murmurou.

"Por algum tempo, talvez", atalhou ele com doçura. "A experiência, porém, há de ensiná-la mais tarde a reconhecer o amor verdadeiro".

Odette sacudiu a cabeça. "Nunca mais hei de amar", disse. Instantes depois a agitou um tremor nervoso, esquisito, como se só então realizasse o que admitira: que o seu romance, o seu amor estava findo.

"Nem sei o que estou a dizer", desculpou-se com voz palpitante, esforçando-se por sorrir. "Peço-lhe, não dê atenção ao que disse agora".

Pouco depois ele se retirou, mas não sem obter-lhe a promessa de que jantariam juntos daí a dias.

"Talvez sejamos ambos o que o outro necessita", afirmou e sorriu. "Sou o antídoto ao seu romantismo e você ao meu realismo".

 

Os trabalhos preliminares para o Oásis no Ali Star estavam em andamento. Os testes de vozes e fotografias, concluídos; o elenco, quase completo. Estavam preparados para partir para o Marrocos dentro de uma semana ou dez dias.

"Arre, que alívio, quando estivermos a caminho", cochichou Lance a Odette ao se encontrarem um dia no estúdio. "Detesto esperar. A vida agora anda horrível, para mim".

"Quem sabe se não é tão má assim, Lance", disse ela num vago sorriso.

"Você não conhece Irene. Naturalmente, a seu modo, ela não é de todo má, mas tão ciumenta!"

"Ciumenta?"

Ele sacudiu enfático, a cabeça bem modelada. "Sim, ciumenta como o demônio. Não faz idéia o que seja viver com mulher ciumenta — que nos está sempre importunando, vigiando todos os movimentos".

"Mas tem ciúmes de quem?" perguntou Odette baixinho.

"De você, é claro. Tem-lhe ciúmes doentios".

"Se desde que me contou seu casamento mal o tenho visto?"

"Assim mesmo ela desconfia. Julga que vou encontrar-me com você todas as vezes que saio do apartamento. Soube do nosso noivado, é claro — antes de obrigar-me a casar com ela". E trincou os dentes, zangado.

"Por favor, não fale assim, Lance".

"E por que não? se é a verdade! De toda maneira, já me enfarei. Desejava embarcar amanhã, e não daqui a dez dias. Odette querida se soubesse o quanto desejo vê-la outra vez sozinha. Uma vez lá, teremos tempo de sobra para estar juntos, sem ninguém que nos amole. Esqueçamos esta miséria por algumas semanas, peço-lhe. Lembremos apenas que nos amamos..." A voz transformara-se em surdo murmúrio, com uma nota de súplica e de paixão. Antes, sempre a dominara. E até agora, malgrado as resoluções, ela sentia-se fraquejar. Ele estava tão perto. Sentia-lhe no rosto a respiração ardente, sentia-lhe até os braços a rodearem-na. Palpitava-lhe o coração com força, quase na garganta. Se pudesse ao menos abrir-lhe os braços e dizer-lhe: "Sou tua, Lance, ama-me como antigamente. Como tenho saudades... que adianta lutar contra o amor, mesmo que estejas casado..."

"Está aí, miss Odette? Mr. Leaman deseja falar-lhe no escritório".

Odette estremeceu, sentindo-se culpada e suspirou fundo. Que alívio, porém! Estivera a ponto de ceder. Isso não mais devia repetir-se.

"Obrigada", disse ao menino de recados. "Irei já". E sem um olhar para Lance, enveredou pelo corredor, até o escritório particular de Hal Leaman.

Minutos depois, acomodada numa confortável poltrona, à frente do diretor, este declarou-lhe: "Tenho notícias agradáveis para você, Odette. Emprestei Paul Hershaw aos Gelway Studios, para ajudar-nos na sua próxima película. Ele é maçante, sei disso, mas é magnífico para cenas do deserto, disseram-me. Fez a fita O Deserto fala. Conquanto não seja um sucesso de bilheteria, mostra ao público, com realismo, a vida árabe. Tenho a impressão de que se pudermos unir o seu gosto artístico a um bom veículo comercial, teremos conseguido algo de verdadeiramente novo. Que acha você?"

"Esplêndida idéia" anuiu Odette.

Estava contente ou não?... O inteligente realismo de Paul talvez a resguardasse dos perigos de uma nova entrevista com Lance, como a dessa tarde. Poderia auxiliá-la a manter-se lúcida. Mas por que Paul nada lhe dissera?

Nessa noite, ao jantarem juntos, atacou o assunto. O restaurante era pequeno e seleto. Os freqüentadores procuravam-no mais pela excelência da cozinha que para se divertirem. O que convinha a Paul e Odette. Nos estabelecimentos maiores e mais em moda, olhavam-na contínua e insistentemente.

"Que diabo, se a convido para jantar é para poder, eu, mirá-la à vontade", disse ele rindo, "e não fazer a metade dos londrinos levantarem-se amanhã de pescoço duro!"

"Por que não me contou que vai colaborar no meu próximo filme?" perguntou ela depois que o garçom, tendo colocado a sopa diante deles, se afastou.

"Queria surpreendê-la com a novidade. Admirou-se?"

"Muito!" sorriu Odette maliciosa e acrescentou: "Não pensei que desperdiçasse o talento em coisas artificiais e diferentes da vida real como esta película Oásis! Não julgou assim os meus filmes, quando nos encontramos da primeira vez?"

"Sim, mas posso ter mudado".

"Será possível mudarmos?"

"Claro que sim. Vivemos mudando a existência inteira. Pelo menos, se formos inteligentes. Os que não mudam, morrem em pé. Talvez — e inclinou-se sorrindo — você me tenha ensinado um pouco de romance".

"Talvez fosse mais feliz se jamais o conhecesse", proferiu ela baixinho.

Paul fitou-a através da mesa. Fitou-lhe os cabelos louros, prateados, a brilharem docemente sob a luz do abajur; fitou-lhe o rosto pálido, de sobrancelhas delicadamente delineadas; a tentadora covinha bem em cima, na face; os grandes olhos azuis pontilhados de cinzento, onde habitavam a sinceridade e o sorriso. "Mas quero aprender um pouco de romance", insistiu, e uma de suas mãos aprisionou a dela. "Lembra-se como a chamei, quando nos encontramos da primeira vez, loura e esbelta vendedora de romances?"

Ela sorriu, a tremer. "Romances estarão à venda?"

Paul retribuiu-lhe o sorriso, mas de modo enigmático. "Tudo está à venda. Conte-me alguma coisa a respeito do novo filme".

Odette ergueu os ombros. "É dessas aventuras que o senhor despreza. Uma jovem da sociedade, rica, noiva de um rapaz de seu meio, aceita um desafio para voar pela África. Parte de madrugada, acompanhada apenas de um mecânico. Num lugar qualquer do deserto marroquino, são forçados a aterrar; felizmente perto de um oásis. Passam semanas antes que chegue socorro e nesse ínterim apaixonam-se um pelo outro. Mas, como se trata de um mecânico, a menina julga que não dará certo. Em todo caso, de volta a Londres, ela descobre quanto ele é superior aos outros homens de suas relações, mesmo de seu noivo. O rapaz é para ela um oásis, no deserto da gente fútil e estúpida que a rodeia. Desafia então as convenções sociais e casa-se com o mecânico".

Paul aplaudiu silencioso, com sorriso galhofeiro.

"Esplêndido, minha cara. Mas, na vida real, quando a loira heroína voltasse a Londres com seu herói mecânico, haveria de reparar em suas unhas sujas, no fato de ele não pronunciar os ff e rr, e no fato de não cheirar bem o óleo que seu amado usa no cabelo. Poderia ser um mágico para o amor, à moda do homem das cavernas, mas nunca se lembraria da marca de cigarros preferida pela amada, e entortaria o dedo mínimo ao tomar chá, por julgá-lo elegante".

"Mas esses são detalhes insignificantes", protestou Odette.

"São coisas insignificantes as que despertam ou destroem o amor", afirmou Hershaw.

Odette suspirou zombeteira. "O senhor é incorrigível. Nada conhece a respeito de romance. Nem sei como consentiu em colaborar nesta película".

Paul fitou-a demoradamente, uma sobrancelha pouco mais erguida que a outra. "Não sabe? Pois me admira. Devia saber por que entrei nesta aventura marroquina. Não seria mulher, se o ignorasse".

Ela sentiu o sangue subir-lhe às faces e enfureceu-se consigo mesma. De novo ficou a cismar no que sentia por ele. Gostava, ou não gostava dele? Era diferente dos outros homens.  Mofava de tudo quanto para ela era sagrado — de coisas ainda sagradas, malgrado o procedimento de Lance. E, no entanto, de certo modo, sentia em Paul Hershaw um verdadeiro amigo.

"Como vai o nosso esplêndido e injustamente julgado pássaro das grades?" perguntou mais tarde, ao ajudá-la a vestir a capa de arminho.

Dessa vez ela se aborreceu. "Mr. Baring vai bem, obrigada. Presta-me bons serviços".

"Prestará até que desapareça com todas as suas jóias, objetos preciosos e os móveis que puder carregar". Riu-se e acrescentou sisudo: "Não ficarei tranqüilo enquanto a souber associada a tal criatura. Como quisera lembrar-me onde já vi aquela cara!"

"Não se preocupe por minha causa", disse ela friamente. "Tenho a máxima confiança em Mr. Baring".

"Mesmo que lhe tenha granjeado a confiança com uma porção de mentiras?"

"Como sabe que são mentiras?"

Paul fez uma careta. "Pura adivinhação. Mas aposto cem libras como a razão está comigo".

Odette lançou-lhe um olhar por cima do ombro. Seus olhos azuis faiscavam desafiadores, coléricos. "Aceito o desafio. Fechamos a aposta?"

Ele refletiu alguns instantes, em silêncio. "Pois bem", disse afinal. "Não quero o seu dinheiro, mas que lhe sirva de lição".

"Que quer dizer?"

"Há de ensiná-la a não julgar as criaturas pela aparência, nem a acreditar em tudo o que lhe dizem", sorriu Paul.

 

COMO somente aparecessem Lance — o herói mecânico — e Odette, a heroína, nas cenas do deserto, não foi numerosa a companhia escalada para seguir no Paloma, com destino ao Marrocos. Estava próxima a partida, faltavam apenas três dias. A vida de Odette fora um redemoinho de costureiros, cabeleireiros, massagistas e longas horas fechada em seu quarto, a estudar o papel. Parte de seu sucesso era devido ao fato de nunca representar ela um papel qualquer sem antes estudá-lo totalmente. Procurava entrosar-se na alma de cada heroína e compreender todos os impulsos que lhe determinavam as ações. Durante as horas de trabalho dera ordens severas a Bruce para não ser incomodada.

Foi num desses dias que Lance apareceu — belo como sempre, num terno leve, cinza, de esplêndido corte, os olhos escuros preocupados, o rosto mais pálido e obstinado que nunca.

"Se Miss Odette está, preciso vê-la", insistiu zangado, passando a mão pela cabeleira crespa. "Sou Lance Furner".

Bruce, de mãos nos bolsos, cabelos afogueados pelo sol do outono, o rosto pálido e sombrio retrucou áspero: "Seja o rei do Afeganistão, para mim é o mesmo. Miss Cosway não deseja ser perturbada hoje cedo".

“Mas receber-me-á quando souber que sou eu”, replicou Lance. "É importante. Ela sempre me recebe".

Falara com arrogância. Procurava adivinhar quem seria esse sujeito baixo, forte, de cabelos ruivos, ali em pé à entrada, a examiná-lo. Ressentia-se de suas maneiras. Não estava habituado a que o tratassem como a um cobrador qualquer.

"Você é o novo secretário de Miss Cosway?", perguntou.

"Sim, e outras coisas mais", respondeu Bruce. "Minha missão principal é impedir que a incomodem, quando ela não deseja ser incomodada".

"Compreenda-me, homem; o assunto que me traz é urgente". Lance falava com exasperação. Sentia-se exasperado. Acabara de ter com Irene uma cena medonha e enfurecia-o ter a entrada vedada por esse gajo que, afinal de contas, não passava de um mero secretário de Odette.

"Não é minha culpa. Deixe recado, se quiser".

Lance fitou-o, sobrecenho carregado. Bruce devolveu-lhe a carranca e seus lábios finos, gretados, retorceram-se num sorriso de asco. Era a primeira vez que se encontravam e já se acentuava o antagonismo entre ambos. Mais tarde tornar-se-ia em muito mais que antagonismo.

"Lance é você?" Ambos voltaram-se a um tempo. Odette estava à porta de seu quarto, os originais na mão. Com um vestido azul celeste, de listas vermelhas no cinto e nas mangas, apresentava um quadro encantador. O azul suave ressaltava-lhe o azul intenso dos olhos e o lampejo dourado dos cabelos. Ao enxergá-la, morreu a raiva nos olhos de Lance; nos olhos do outro lia-se quase adoração, num olhar de cão vagabundo que finalmente encontrou proteção e um senhor.

"Pareceu-me ouvir vozes", disse ela. "Há muito que está aqui?"

"Dez minutos mais ou menos", resmungou Lance. "Procurava convencer este — engoliu os qualificativos que gostaria de dizer — homem a avisá-la de minha chegada".

Odette riu satisfeita. "Bruce é uma maravilha. Não deixa ninguém se aproximar de mim".

"Maravilhoso demais", comentou Lance secamente.

Ela pegou a cigarreira e estendeu-a a Lance. "Tome um cigarro. Quer falar comigo?"

Lance apontou para Bruce. "É assunto particular", disse.

"Pode retirar-se, Mr. Bruce", disse-lhe Odette.

O olhar de Lance acompanhou-o até que deixasse a sala. "Dir-se-ia um espécime premiado. Onde o descobriu?"

"Ahn... por aí".

"Se está satisfeita, deve ser bom sujeito", concordou e não mais pensou em Bruce.

"Onde tem andado, Lance? Não o vejo há dias". "Tenho rolado... Que tal a nova fita?" "Muito interessante".

"Parece não ser má. Mas não é exatamente o meu estilo".

"Não, você prefere papéis mais requintados".

Ele riu. "De fato; neste, vejo-me coberto de graxa do princípio ao fim".

E continuaram a palestrar sobre a película, analisando-a pormenorizadamente, como sempre o haviam feito.  Odette sentia-se feliz, parecia-lhe reviver o passado. Essa mesma cena poderia passar-se há um mês atrás. Lance refestelado na poltrona, uma perna descuidadamente sobre um de seus braços, a cabeça negra, bem desenhada, reclinada nas almofadas cor de prata, o rosto vivaz, a voz grave, atraente, contagiando-se a pouco e pouco com o entusiasmo dela. Odette sentada na banqueta ao pé da lareira ficava-lhe defronte, os braços mimosos abraçando os joelhos, o queixo enterrado neles, os olhos azuis muito vivos a observar-lhe as mudanças de expressão na fisionomia — sim, era como há um mês atrás, como há seis meses, há um ano. A impressão foi tão forte que sorriu e disse sem pensar: "Como antigamente, não é, Lance?"

Ele, súbito, debruçou-se, derrubou uma almofada no chão coberto de linóleo preto. Ela ali ficou prateada e luzente, como mancha de luar em águas escuras.

"Meu Deus, como quisera voltassem os velhos tempos! E você?"

Ela ergueu os olhos para ele e disse singelamente: "Eu também, Lance". Desviou depois o olhar. Lágrimas estúpidas vedavam-lhe a vista.

Lance agarrou-lhe uma das mãos e disse vacilante: "Fiz de tudo uma trapalhada medonha, e agora, meu bem, estou em situação pior do que nunca".

Odette susteve as lágrimas e ergueu o rosto. "Que foi que aconteceu?"

"Muita coisa. Com Irene... outra vez".

"Com Irene?" Odette retirou a mão que ele segurava. Quebrou-se o encanto, ao ser mencionado o nome da esposa; o passado afastou-se ainda mais. Brotou-lhe no coração um estranho desespero. Julgava ter dominado o seu amor, tê-lo vencido completamente, tê-lo derrotado, e eis que num minuto em sua companhia, na intimidade de sua casa, o sentira reviver — louco e poderoso, a escarnecer da realidade.

"Sim, Irene". Lance fez uma pausa, pegou um cigarro e acendeu-o com mão incerta. "Irene está fazendo um cavalo de batalha porque vou ao Marrocos sem ela. Recusa-se categoricamente a deixar-me embarcar. E ameaça que, se o fizer, entornará o caldo, contando toda a verdade pela imprensa. E — acrescentou sombrio — é bastante mesquinha para cumprir o que disse".

Odette sorveu a notícia aos poucos, conservando o rosto na penumbra. "Mas, Lance, pelo contrato ela não poderá viajar como sua esposa", disse afinal.

Ele meneou a cabeça, aborrecido. "Irene sabe disso. Não se incomoda como vai, contanto que vá".

"Mas corno? Se viajar com você, certo é que haverá escândalo. E você não ignora que nós artistas não nos podemos arriscar a isso".

"Sei". A ponta de seu sapato empurrava enervado a banqueta onde ela se sentava. "É a razão por que vim procurá-la". E acrescentou de um trago: "Odette querida, você tem sido tão correta, tão camarada sempre neste caso... detesto, mas tenho de pedir-lhe novo favor".

Um sorriso brilhou nos olhos da moça, sorriso onde se ocultavam lágrimas. "Tenho prazer em servi-lo, Lance. Será uma estupidez, mas dá-me prazer".

"Minha adorada!" Lance agarrou-lhe a mão e apertou-a forte e longamente contra o peito. Momentos depois limpou a garganta e prosseguiu: "Você permitiria a Irene viajar na qualidade de sua secretária? Ela conhece datilografia e estenografia. Será a solução, não é verdade? Embora — obscureceu-se-lhe o rosto — prefira o inferno a vê-la em Marrocos.

Esperava tão ansiosamente passar estas poucas semanas a sós com você, Odette!"

"Talvez seja preferível que ela vá", disse Odette serena, conquanto no íntimo não desejasse a ida da mulher de Lance. Procurava dominar-se, mas tal emergência a magoava agudamente. Afinal de contas, fora ela quem fizera Lance - fizera-o do nada, transformara-o no astro que era hoje. Possuía com certeza prioridade de direitos sobre ele. "Mas não devo raciocinar assim", disse de si para consigo, assustada, "preciso lembrar-me de que ela é sua mulher".

"Você fará isso, Odette?" perguntou ele aflito. "É pedir-lhe demais, mas que fazer? Irene terá de guardar silêncio até acabar-se o contrato. Tenho um medo horrível de que se zangue e comece a falar".

Odette contemplava suas rnãozinhas alvas, sem proferir palavra.

"Não será coisa fácil para mim, Lance", disse afinal, calmamente.

"Sei disso, querida", gemeu ele. "Para mim tampouco. Mas, como já disse que fazer?"

Ela, com um gesto vago, desencantado: "Nada, suponho. Se você o deseja, ela irá como minha secretária".

Lance apoderou-se das mãos de Odette e beijou uma e outra. "Você é divina, é um anjo!" Depois se levantou, pegou de um cigarro e acendeu-o. "Vejo que conserva a minha marca favorita de cigarros", murmurou.

"São bons como quaisquer outros".

"É essa a única razão?" E sorriu-lhe como antigamente, cheio de audácia e valentia. Odette estremeceu, mas dominou-se.

"Se ela viajar como minha secretária, precisamos nos encontrar para combinarmos certas coisas", disse.

"Claro que sim". Ele enrugou as sobrancelhas e bateu com a ponta do cigarro no mármore da lareira.

"Poderá vir até aqui, hoje à tarde ou amanhã cedo?"

"É que..." ele voltou a cabeça e Odette percebeu-lhe o rosto vermelho de embaraço. "Ela julga... que você é quem deve procurá-la. Como vê", explicou desajeitado, "casou-se de pouco e imagina que compete a você visitá-la primeiro".

Odette espantou-se. "Mas não é o momento de nos preocuparmos com convenções, ando tão atarefada".

"Sei disso", concordou Lance. "Tentei fazê-la compreender, mas ela não se convence. Santo Deus" gemeu alto, "Irene é um demônio, quando discute. Seja boazinha e vá, Odette. A sua visita facilitará tudo".

Ela acedeu, pois ainda achava difícil recusar o que quer que fosse a Lance. Aborreceu-a, entretanto a idéia do encontro. Era-lhe penoso travar conhecimento com a mulher que possuía maiores direitos sobre Lance do que ela, mesmo que fosse sua esposa.

Depois que ele partiu, Odette deixou-se ficar longo tempo sentada, olhos fitos na lareira. Percebia horrorizada que também ela aguardara ansiosa as semanas em Marrocos, sozinha com Lance. E agora, a presença da mulher tudo mudaria, faria tudo diferente. Era melhor assim e, no entanto...de súbito enterrou o rosto as mãos e desatou a chorar. Um choro silencioso, tranqüilo, prolongado...

 

"O sujeito que acaba de sair aborreceu-a, Miss Odette?" Havia na voz de Bruce Baring algo da primitiva e feroz selvageria. Ele entrara pé ante pé, um minuto antes. Odette não o percebera. Num movimento brusco, ergueu a cabeça, mas não se voltou para fitá-lo. Não queria que notasse as lágrimas de seu rosto, conquanto fosse fora de dúvida ele ter percebido que ela chorava.

"Claro que não".

"Melhor para ele".

"Não seja cretino, Bruce. Lance e eu somos velhos amigos".

"Pois não o aprecio", tornou Bruce teimoso. "E se fez a senhora chorar..."

"Não fez! Não estou chorando". Estava indignada. "Além do que, você não tem o direito de criticar meus amigos".

"Hei de criticá-los, se a aborrecerem", tornou Bruce. "Já lhe disse uma vez que a senhora foi feita para a felicidade, e hei de consegui-la, vai ver!"

Ela puxou de um lencinho de crepe da China e assoprou o narizinho. Depois se riu.

"Então você nomeou-se o guardião de minha felicidade?"

Bruce fez que sim com a cabeça, com toda a ênfase. "E o que é irm... isto é, Miss Odette".

"Deseja falar comigo sobre alguma coisa?"

Bruce adiantou-se um pouco mais e pôs-se a fitá-la do outro lado da lareira, os cabelos ruivos ligeiramente em desordem, como se os tivesse penteado com os dedos. E de cenho franzido. "Com respeito a essa viagem ao Marrocos", disse abrupto, "está pensando em deixar-me aqui?"

"Mas como poderia levá-lo, Bruce? É viagem de poucas semanas".

"Leve o carro", sugeriu ele. "A baratinha. Será boa desculpa para levar-me também".

"E se eu não quiser levar o carro?"

"Ele lhe será útil, Miss Odette". Sorriu e acrescentou: "Talvez venha a precisar de mim. Meus pulsos são fortes".

Odette descansou o queixo nas mãos cruzadas e fitou-o curiosa. Verificara no seu pedido de levá-lo uma séria resolução. Estranho espécime de homem. Ultimamente passara a vigiá-la como cão de guarda. O que algumas vezes a irritava e outras lhe proporcionava uma esquisita sensação de segurança.

"Por que faz tanta questão de ir comigo?"

Ele esboçou um sorriso para ocultar-lhe o embaraço. "É que, Miss Odette", tirou o cachimbo do bolso e ficou a brincar com ele. "A senhora e eu nos encontramos em ocasião muito especial, quando ambos precisávamos de auxílio. Ignoro o que a afligia naquela noite, mas devia ser algo tremendo. Em seu olhar lia-se tal expressão de dor, como se o mundo tivesse desabado. Também eu estava desesperado. Parei diante de seu carro, confesso, com a esperança de morrer debaixo dele. E não morri. Em vez disso, consegui aqui uns servicinhos. Apesar de, por enquanto, o meu trabalho não valer o que como, talvez um dia ainda valha. Tenho esse pressentimento, e bem forte. É uma das razões por que quero acompanhá-la à África. A outra é — e sorriu contrafeito — que tenho medo de ficar só em Londres".

Ela fitou-o perplexa, os olhos azuis muito abertos. "Tem medo?"

Bruce sacudiu a cabeça várias vezes. "Sim, tenho medo de recomeçar a rolar morro abaixo. Quisera acreditar-me inteiramente regenerado, mas duvido". Falava com desprendimento e ironia, mas com qualquer coisa de sério na voz.

"Não há razão para que não leve o carro", disse Odette pensativa. "Ele me será útil e, segundo ouvi dizer, seu transporte por mar é barato".

Bruce tossiu e limpou a garganta. "Muito obrigado. É bondade sua. Não o esquecerei".

 

Enquanto o grande Rolls-Royce branco deslizava pelas ruas de intenso tráfego, em direção a Piccadilly, Odette compreendeu que preferia enfrentar tudo no mundo, menos a moça com quem Lance se casara. O encontro iminente a enervava e revoltava. Como seria Irene? Teria raiva dela, Odette? Vestira-se com especial cuidado, como para ser entrevistada por uma dúzia de diretores poderosos.

Para evitar publicidade, Lance e a nova esposa residiam no hotel com nomes supostos. E não num hotel de fama, para evitar o risco de Lance ser reconhecido.

Prevenira Odette serem conhecidos no hotel como o casal Carter.

O porteiro; avisou-a que Mrs. Carter estava à sua espera.

"Lá vou eu", cogitava Odette ao entrar no elevador.   Um criado fê-la entrar numa sala mobiliada com gosto. "Miss Cosway", disse ele, e fechou a porta atrás de si.

Uma moça baixa e morena levantou-se. "Como vai?" perguntou. Não se adiantou ao encontro de Odette, não lhe estendeu a mão. Conservou-se em pé no lugar onde estava, examinando a recém-chegada com olhos cor de avelã, onde se notava disfarçada animosidade.

"Como vai?" cumprimentou Odette e sorriu-lhe indecisa.

"Foi bondade sua procurar-me", tornou a moça. "Fico-lhe agradecida". Sua voz traía vislumbres de sarcasmo, o que fez Odette corar.

"Não é preciso agradecer", disse ela.

"Não?" Irene sorriu pela primeira vez, desde a chegada da visitante. "Mas agradeço-lhe. A senhora é uma personagem, não é, Miss Cosway? E eu, uma insignificância".

Odette perturbou-se e corrigiu contrafeita: "É a esposa de Lance".

"De Lance? Ah, sim! estava a conjecturar qual de nós o mencionaria primeiro. Ele é a causa desta situação, não é, Miss Cosway?" E continuou hospitaleira: "Quer sentar-se e tirar o agasalho?” “Vamos tomar chá”.

Ao atravessar ela a sala, Odette ficou a observá-la. Era pequenina e leve, de cabelos negros azulados que encacheavam graciosamente. De traços interessantes, bonitos até, uma cigana morena, mas que não despertava atenção. O que impressionava nela, era a determinação. Percebia-se que não perdia uma palavra, um movimento sequer do que a rodeava, e de nada se esquecia. Movia-se com graça, conquanto se recebesse dela uma impressão de rigidez.   Seria difícil, pensou Odette, sentir-se alguém à vontade em sua companhia.

"Lance contou-me que a senhora concordou em levar-me como secretária", disse tranqüilamente, ao voltar para junto da lareira.

"Sim, terei satisfação nisso, se desejar ir conosco".

Irene teve um movimento brusco de cabeça e sorriu.  "Seria idiota se ficasse, não acha, Miss Cosway?"

Novamente Odette sentiu-se atrapalhada. A moça possuía o dom de dizer coisas perturbadoras. "Se gosta de viajar..."

"De viajar?" Ela riu-se. "Julga então que desejo ir, devido à excursão?"

"Não", replicou Odette.

"Ainda bem", disse Irene. "Se vamos viajar juntas, o melhor é usar de franqueza". "Creio que sim".

"Lance contou-lhe em que circunstâncias se realizou o nosso casamento?" indagou Irene quando o silêncio se prolongou em demasia.

Odette inclinou a cabeça. E como verificasse que o que a moça procurava era perturbá-la, acrescentou: "Ele me devia essa franqueza, como a senhora deve saber. Porque nós éramos noivos".

"A senhora deve ter recebido um choque", teimou Irene com um sorriso forçado.

"E recebi", admitiu Odette.

"Não posso dizer que o lamento", continuou Irene, "amo demasiado a Lance". Novamente, o estranho sorriso surgiu e desapareceu. "Admito candidamente, Miss Cosway, que é ainda muito perigosa. É um ideal. A mulher com quem um homem não se casa é sempre a mulher ideal. Tolice deles, nesse particular, mas os homens são todos uns bebês. Vivem à procura do fruto proibido. É por isso que sempre devemos vigiá-los. Devemos cuidar especialmente dos maridos, se quisermos conservá-los". Hesitou um segundo e concluiu com voz áspera. "Tenho sérias intenções de conservar Lance só para mim".

Ao pronunciar tais palavras Irene cravou os olhos em Odette. E esta enxergou nos olhos castanhos, atentos, um desafio direto.

Irene continuou: "A senhora tem tantos dotes a recomendá-la: beleza, fama, fortuna... Não sou pretensiosa a ponto de não enxergar porque um homem havia de preferi-la".

Novamente Odette sentiu-se corar. "Posso ter tudo isso, mas o que vale é o amor, não é?" disse dominando-se.

Irene levantou-se e, nervosa, chegou-se à janela. "Amor?" Tenho certeza de que poderá fazer qualquer homem apaixonar-se, se o quiser verdadeiramente. Eu farei o possível. “Mas se Lance fosse à África sozinho com a senhora e eu ficasse, era uma vez”.

"Terei satisfação em levá-la comigo", murmurou Odette após longa pausa. "Para convencê-la de que entre mim e Lance nada mais existe. Creia-me, vi-o apenas uma vez sozinha, depois que me contou ter-se casado — foi hoje de manhã, quando foi pedir-me que a levasse como secretária".

"Deveras?" Ela parecia não acreditar. "Não a censuraria se o tivesse visto, Miss Cosway. Não posso exigir lealdade de sua parte. Se estivesse em seu lugar, lutaria com unhas e dentes para recuperá-lo".

Odette levantou-se. Apanhou as luvas compridas, de suède. "A senhora não me compreende, Mrs. Furner. Amei Lance. Diz a senhora que sou um ideal, pois ele também o era, para mim. Ou talvez o nosso amor fosse ideal. Mas hoje não o quero de volta, mesmo podendo recuperá-lo".

Seguiu-se um longo silêncio constrangido e Irene disse: "Fique mais um pouco. Vamos tomar chá”. “Certamente o aceitaria de novo, se o amasse”. É curioso o que se dá com os homens. Fazemos deles um ideal; julgamos não nos ser possível querê-los, se nos decepcionarem e, ao descobrirmos seus pés de barro, ainda assim os amamos. Naturalmente, para ressalvar o decoro, os colocamos de novo num pedestal. Mas somos por demais honestas para ficarmos realmente decepcionadas. E lutamos com todas as forças para conservá-los. Amor é doença. “Dizem que faz vir à tona o que de melhor temos na alma, mas duvido”. E desatou a rir um riso forçado e triste.

"Mas, se não fosse assim, de que valeria?" protestou Odette.

Irene contemplou-a intrigada, enquanto a empregada trazia o chá. E quando ficaram sós: "Que espírito romântico tem a senhora! Engana-se a si mesma. Talvez chegue a pensar que desistiu de Lance. Essa virtuosa disposição de sacrificar-se não há de curá-la, Miss Cosway. Se o ama realmente, ela não poderá durar". Sorria de novo, ao servir o chá. "É o motivo porque também vou à África!"

 

Paul almoçara com um amigo, Tom Garson, que escrevia enredos policiais para os Gelway Studios. Garson fora outrora membro importante da polícia. O coração fraco forçara-o a abandonar o serviço. Atualmente ganhava uns dinheirinhos escrevendo enredos para filmes policiais e corrigindo erros de outros autores, cujo entusiasmo pela Scotland Yard era maior que os conhecimentos de sua complicada organização.

"Já ouviu falar num camarada de nome Bruce Baring?" indagou Paul de repente.

"Sob que aspecto?"

Paul franziu o cenho e bateu com as articulações na beirada da cadeira. "Criminal, ao que parece".

"Baring? O nome não me parece conhecido. Descreva-o, pode ser que me dê uma indicação". Riu-se um tanto atrapalhado e explico: "Quando estava na Scotland Yard tinha fama de possuir melhor memória para fisionomias do que a maior parte dos colegas".

Paul descreveu a figura de Baring o melhor que pôde. Garson esfregou o queixo, meditabundo.

"Deu-me idéia", disse, "mas não quero afirmar se estou certo ou errado, sem ver o homem. Há possibilidades para tanto?"

Paul refletiu. "Podemos visitar Miss Odette Cosway hoje à tarde. Esteja ela em casa ou não, o tal Baring estará na certa. Francamente, não confio nele. A minha amiga empregou-o quase sem conhecê-lo. Salvo umas histórias que lhe contou; que esteve na cadeia para proteger a honra de uma mulher, o que me parece tapeação".

"A mim também", riu Garson. "Seria bonito que a maioria dos criminosos fosse presa por motivos tão generosos, mas cá tenho as minhas dúvidas".

Ao chegarem ao apartamento de Odette, esta não estava. Bruce apresentou-se para perguntar se queriam deixar recado. Garson ficara atrás, na penumbra e Bruce não lhe percebeu a presença. Mas quando ele falou, assustou-se.

"Já nos conhecemos, hein, Mr. Baring? Ou o seu nome é Waring?"

Bruce voltou-se para o sujeito que falava. Por um segundo, um brilho feroz, selvagem, faiscou nos olhos pálidos. Parecia perigoso como fera pronta para o bote. Mas depois serenou. Chegou a erguer os ombros.

"Waring, tem razão, Mr. Garson. Não quero decepcionar o amigo".

"Temo achar-me descolocado nessa categoria", sorriu Garson tranqüilamente. "Ou achou agradáveis os cinco anos passados lá por culpa minha?"

"Não foram totalmente desinteressantes", retorquiu Bruce sereno. "Todas as experiências da vida são vantajosas, não acha?"

"Mas não era exatamente uma nova experiência hein, Mr. Waring, aliás Harrison?"

Bruce empalideceu. "Da primeira vez não fui culpado", disse com firmeza. "E quando se esteve uma vez, o melhor é voltar. Tem-se ao menos casa e comida".

"Mas certamente não em ambiente encantador como este?" tornou Garson com sorriso irônico, ao indicar com gesto largo o salão luxuosamente guarnecido.

A fisionomia de Bruce endureceu. "Vai fazer com que me expulsem daqui, hein?"

O ex-detetive ergueu os ombros. "Nada tenho com isso. Depende de Mr. Hershaw. É amigo pessoal de Miss Cosway. Mas, se estivesse em seu lugar, não permitiria que uma menina solteira e minha amiga tivesse um falsário, como seu secretário particular".

Uma cintilação de ódio tornou a perpassar nos olhos pálidos de Bruce. E de novo dominou-se.  Conseguiu torcer os lábios num bizarro sorriso. "Que adianta protestar que pretendo ser correto? São palavras corriqueiras demais, para um velho experiente como o senhor".

"À vista do seu passado, creio a regeneração problemática", suspirou Garson.

"Que foi que aconteceu?"

Os três homens voltaram-se. À porta do vestíbulo achava-se Odette. As faces coradas pela brisa outonal, um pequeno chapéu de feltro verde-folha, graciosamente colocado sobre os cachos dourados, o costume verde também, de sarja grossa, a realçar-lhe a maciez da pele branca.

"Que aconteceu?" repetiu ela. "Parecem todos — e deu aquela risadinha palpitante, clara, que ao microfone era encantadora e mais ainda na vida real — como se estivessem numa sessão de júri".

Garson e Hershaw entreolharam-se. Bruce cravou os olhos no chão, completamente desorientado. Afinal foi Paul quem falou: "Mr. Baring tem algo a dizer-lhe, Odette".

Houve outra pausa. Então Bruce aprumou-se e declarou: "Fui descoberto, Miss Cosway, souberam que estive preso".

"Mas", os olhos azuis escancararam-se, surpresos, "estava a par disso".

"Não de tudo, suponho", acudiu Paul tranqüilamente. "Recorda-se, Odette, ter-lhe eu dito que não devia confiar nesse homem? Ao que parece, tive boas razões para fazê-lo. Meu amigo Garson, ex-membro da C. I. D., acaba de identificá-lo como Bruce Waring, aliás Harrison, sentenciado duas vezes, sendo a última sentença de cinco anos, como falsário".

"O que?" sua voz era um fio. Recuou instintivamente e apoiou-se à porta. "É verdade, Bruce?" perguntou.

Este tossiu contrafeito, passou a mão pelos cabelos. "Temo que sim, Miss Cosway", e simulou um sorriso.

"Mas... mas você não pretendia emendar-se?" A voz, o olhar imploravam-no. "Não está resolvido a ser correto, desde que entrou em minha casa?"

"A senhorita tem apenas a palavra de um criminoso", murmurou ele. Entretanto, por um segundo, seus olhos se encontraram. E o que Odette leu neles com certeza a satisfez, porque se dirigiu a Paul e disse serena: "Ganhou as cem libras, Mr. Hershaw; lamento-o, porém".

Hershaw corou; parecia realmente atrapalhado. "Não pensei nisso, Odette. Não as aceitarei de modo algum. Preocupava-me por você".

"Muito bem", seu rosto também avermelhara, "mas não se preocupe mais comigo, daqui por diante. Passe bem".

"Odette!" exclamou Hershaw empalidecendo, "foi por sua causa..."

"Não aprecio os homens que deliberadamente exorbitam de suas atribuições para humilhar um infeliz", retrucou ela friamente. "Amanhã receberá meu cheque. Passe bem".

"Pelo amor de Deus, Odette, não faça mau juízo de mim!" Atravessou a sala ao seu encontro, a voz cheia de magoa. "Se é essa a sua opinião, lamento ter-me envolvido no caso. Não quer falar comigo e deixar-me explicar-lhe?"

Vagarosamente ela sacudiu a cabeça. "Estou atarefada com os preparativos da viagem, Mr. Hershaw".

"Esquece-se de que também vou".

"Então talvez nos vejamos a bordo". Calculadamente reforçara o talvez.

"Está bem; ver-nos-emos a bordo", disse ele com ênfase. "Ver-nos-emos antes mesmo, ou muito me engano".

"Para um encontro fazem-se necessários dois", lembrou ela com frieza.

Os olhos cinzentos de Paul sorriram-lhe num desafio: "Não, quando se é teimoso como eu".

Pouco depois, na rua, Paul deu uma gargalhada sardônica. "Se não é o cúmulo!" disse. "Tenta-se proteger alguém e, como resposta, recebe-se um pontapé".

Garson saiu-se com um chavão: "As mulheres são as mais contraditórias das criaturas. Raramente agradecem ao receberem um benefício".

"Por Júpiter! que criaturinha generosa!" resmungou Paul, admirado sem querer, ao acender um cigarro. "Se interferi, foi porque receava que o homem pudesse roubá-la; e o resultado! Foi sentir-me eu um perfeito miserável!"

"Console-se com a idéia de ter cumprido um dever", confortou-o Garson.

"Você fala como policial que é. Isso não adianta. A idéia do dever cumprido não consola quando resulta na perda de algo muito mais valioso".

"Está interessado pela pequena?" inquiriu Garson.

Paul riu desabusado ao atirar o cigarro na calçada. "Interessado é pouco. Se não fosse um inveterado realista, tornar-me-ia até poético. Várias vezes estes últimos dias chamei-me de sentimental. E agora, veja esta fita, sua fita, embarco para Marrocos, a fim de colaborar em sua direção".

"Que fita?" perguntou Garson.

"Oásis". E que nome imagina você que lhe tenham dado?  Namorados a flutuar!"

"E você metido nisso?" protestou Garson incrédulo. "Sempre o considerei o mais inacessível dos inacessíveis".

Paul teve um sorriso perverso: "O que prova que a paixão é loucura".

 

Depois de Hershaw e Garson se retirarem, a sala de estar de Odette caiu em profundo silêncio. Tanto ela como Bruce estavam embaraçados. Odette pegou de um cigarro, bateu-o no vidro da mesa, mas não o acendeu.

"Bruce" ralhou ela afinal, "você devia ter-me contado a verdade".

"Vai censurar-me por isso?" volveu ele cabisbaixo. "Sua oferta pareceu-me dom divino. E receei perdê-lo, se lhe contasse tudo".

"E inventou ter sido preso para salvar uma mulher", revidou Odette com azedume.

"Não; havia verdade no que lhe relatei. Foi o motivo que me levou à cadeia da primeira vez. Confiei que a senhora acreditasse, pois, se me permite dizer-lhe, Miss Cosway, pareceu-me uma jovem essencialmente romântica".

"Romântica!" Zangada ela bateu o pé. "Acabarei odiando essa palavra! Dir-se-ia sinônimo de idiota. Riu-se de mim escondido, o tempo todo, hein?"

"Não me ri", exclamou Bruce. "Envergonhava-me demais para isso. Era-me tão fácil enganá-la como aproveitar-me de uma criança indefesa. Desde então, senti-me envergonhado".

"Como acreditar em sua sinceridade?"

"Não acredite", sorriu ele. "Não tem como acreditar".

"Então, que fazer?"

Bruce ergueu os ombros. "O mais sensato será mandar-me embora. Mas", e respirou fundo, "felizmente a senhora não é sensata".

Ela baixou os olhos para ele. "Tem assim tanta certeza de que não o mandarei embora?"

"Confio na senhora, Miss Cosway". E acrescentou sereno: "Começo a ter confiança até em mim".

Odette atirou o cigarro intacto na lareira e, meio zangada, meio contrafeita, disse: "Será uma fraqueza, mas não vou demiti-lo. Prefiro que me roube, a saber que tive em mãos a oportunidade de regenerá-lo e não a fiz".

 

O cheque de Odette chegou às mãos de Paul Hershaw com a correspondência da manhã seguinte.

Contemplou-o longamente, sem alegria, rasgou-o em pedacinhos, colocou-os em outro envelope e endereçou-os a Odette. Um mensageiro especial foi entregá-los. Não a haveria de procurar por um dia ou mais. Era o melhor a fazer. Dar-lhe-ia tempo para acalmar-se. Paul começava a compreender, com espanto próprio, que um homem apaixonado não age com sensatez, pois naquela mesma tarde viu-se diante da porta do apartamento de Odette.

Ela não estava em casa. Achava-se no estúdio. Bruce perguntou-lhe com um sorriso: "Não me esperava por aqui, hein, Mr. Hershaw?"

Paul também sorriu. "De fato. É difícil lidar com meninas românticas".

"Não o censuro pelo que fez", observou Bruce após uma pausa. "Apesar de que me poderia custar o emprego. Mas, em seu lugar, agiria do mesmo modo. Se lhe quisesse causar dano, a ela, então sim, não lhe perdoaria".

Como resultado da entrevista, Paul julgou-se mais do que nunca, um trapalhão. Ainda assim estava mais tranqüilo. Não mais acreditava na possibilidade de Bruce vir a lesar Odette.

Ao sair, quase deu de encontro com uma moreninha, que entrava. Notou-a de passagem e só percebeu ser ela estranhamente resoluta. Tirou-lhe o chapéu, desculpou-se e passou. Irene fitou-o um instante e encaminhou-se para o apartamento de Odette. Deviam encontrar-se para ultimar combinações, antes da partida. Maude fê-la entrar e avisou-a de que Miss Odette ainda se achava nos estúdios.

"Esperarei", declarou Irene.

Bruce apareceu e perguntou-lhe se lhe podia ser útil em alguma coisa.

"Vou ao Marrocos, acompanhar Miss Cosway como sua secretária", disse ela ao sentar-se numa confortável poltrona.

"Pois eu também, como seu chofer".

Irene fitou-o surpresa.  "Mas não é chofer, hein?"

"Sou chofer e dos bons, de vez em quando", redargüiu Bruce oferecendo-lhe um cigarro.

"Os choferes, em geral não se sentam nos salões das patroas nem lhes fumam os cigarros", censurou ela.

Bruce ergueu uma sobrancelha amarelada. "Não; mas sou também seu secretário particular".

"Miss Cosway parece ter faro para arranjar secretários", observou Irene com sorriso forçado. "Só desejo que haja suficiente correspondência para nos manter ocupados". Riu, acendeu o cigarro e perguntou prazenteira: "Mora aqui?"

"Atualmente sim", retorquiu ele.

"Bonito apartamento" continuou Irene indiferentemente, mas com um lampejo de triunfo nos olhos castanhos. Inclinou-se para frente e prosseguiu: "Será verdade o que dizem os jornais com respeito ao noivado de Miss Cosway e Lance Furner? Ou não passa de propaganda? Ele vem aqui a miúdo?" Sua voz aguçara, parecia outra vez curiosamente tensa, como um gato prestes a saltar.

"A miúde, não. Vi-o apenas uma ou duas vezes".

Isso não a satisfez. "Talvez se encontrem fora".

"Os encontros de Miss Cosway não são de minha alçada", revidou Bruce secamente.

Irene forçou um sorriso e relaxou os músculos. "Era apenas curiosidade minha. Todas as moças se assanham por novidades, mormente em se tratando de um noivado romântico como o deles!"

Nessa mesma noite, quando Lance e ela se vestiam para o jantar, Irene observou: "A propósito, quem é o sujeito esquisito que mora no apartamento de Miss Cosway?"

Lance voltou-se enervado; estava à procura de um botão de colarinho. "Que sujeito?"

"Tem cabelos ruivos, ombros largos, não deixa de ser atraente, mas é esquisito. Pelo menos, dá-me essa impressão. Não tem aparência de chofer, nem de secretário, apesar de apresentar-se como um e outro".

"Creio que já o avistei", disse Lance. A lembrança do encontro não lhe era agradável. O homem tivera a impertinência de querer impedir-lhe a entrada nó apartamento de Odette. "Não sei como possam julgá-lo atraente. Achei-o justamente o contrário disso".

O semblante de Irene, sentada diante do penteador, abriu-se num lindo sorriso. "Não acho atraente, é lógico, meu bem. Não é meu tipo. Você sabe disso. Mas... Miss Cosway poderá achá-lo.

Lance envergou o dinner-jacket e sentou-se ao pé da cama. "Que quer você dizer com isso?"

Ela esperou um momento para responder. Reclinada diante do espelho, pintava os olhos com cuidado. "Pois é, ele mora lá no apartamento, você não sabia?"

"Sabia, mas..."

"Isso é tudo! pode-se dizer". E soltou uma risada, como a insinuar...

Lance ergueu-se num pulo. "Olhe aqui, Irene, deixe de insinuar coisas, a respeito de Odette. Não admito. Que o homem more no apartamento não quer dizer coisa nenhuma. Maude também mora lá". Riu-se contrafeito. "Julgo aquela mulher uma boa guardiã".

Ciúmes violentos lampejaram nos olhos de Irene. Feria-a toda e qualquer alusão à intimidade anterior entre Lance e Odette.

"Como sabe você se não há nada entre Odette e aquele homem? Tem estado com ela ultimamente?"

"Maldito ciúme o seu" gritou-lhe Lance furioso. "Basta para enlouquecer um cristão. Odette não é das que se possam comprometer com um sujeito desses".

Torceram-se os lábios de Irene. "De maneira que ela ainda é a criatura de seus sonhos, trepada sobre alto pedestal, compreendo!"

"Pois é, e continuará sendo a criatura de meus sonhos", resmungou Lance. Irene recuou. Suas mãos brancas agarraram-se à mesa de toalete. "E se eu lhe provar que ela não vale isto?" E estalou os dedos com força, sugestivamente.

"Não provará coisa alguma e perderá seu tempo", revidou Lance rindo.

"E se provar?"

Ele postou-se diante dela, as veias da testa salientes, as mãos fechadas. "Deixe Odette em paz, minha cara; é meu conselho".

Irene fitou-o intensamente. "Entremos num acordo, quer? Se você a deixar em paz, eu também a deixarei. Se o não fizer, há várias historiazinhas que poderei espalhar. Uma, é ter a inocente e encantadora Odette Cosway um estranho morando em sua casa. Outra, é que apesar de todo mundo acreditar que você e ela sejam noivos, o grande Lance Furner é meu marido".

"É melhor calar essa boca", ameaçou Lance indignado. "Se o não fizer, será o nosso fim, o seu e o meu".

O semblante de Irene encheu-se de escárnio. "Que pensariam suas admiradoras se o vissem agora? A criatura sempre afável e cortês! O namorado encantador — ao menos na tela! Uma história bem diversa lhes seria contada, hein, Lance? Se tivessem coragem, como arrancariam a teia de ouropeis e dourados, tecida pela propaganda em torno de ídolos cinematográficos!"

O rosto bonito de Lance corou. Era visceralmente vaidoso e ela conseguira feri-lo. "Se não gosta de mim, o remédio é fácil", resmungou.

Irene ergueu as sobrancelhas escuras. "Quer dizer, abandoná-lo? Para que você possa voltar voando para os braços fiéis e encantadores de Odette Cosway? Não, querido, continuo firme ao seu lado. E não apenas por despeito. Acontece que o amo".

"Tem um modo estranho de demonstrá-lo", protestou Lance.

Ela virou a cabeça e fitou-o. "Tenho? E, no entanto, se o não amasse, acredita que faria esta viagem como secretária daquela mulher? Ser obrigada a receber suas ordens." E com riso abafado: "Iria até como sua criada, se não pudesse ir de outra maneira. O que prova quanto o amo, querido".

 

DA PEQUENA companhia de artistas, diretores, fotógrafos, o ponto, os engenheiros de som, o encarregado geral, muito poucos foram vistos nos primeiros dias da viagem. O tempo estava péssimo. O mar grosso atirava o Paloma furiosamente de um lado para outro, como medindo forças contra os esforços insignificantes do navio, rindo-se rouco ao lançar contra os tombadilhos ondas cinzentas de espuma esbranquiçada. As refeições que podiam ser tomadas, o eram nos camarotes. Raro alguém aventurar-se no convés.

Odette felicitava-se pelo mau tempo. Os últimos dias em Londres haviam sido tão caóticos que precisava de descanso. E permitia-lhe evitar os dois únicos homens que timbrava em evitar: Lance e Paul Hershaw. Receava encontrar-se com Lance, principalmente devido aos olhos castanhos, ansiosos, da esposa, a observarem-na constantemente. E não perdoara ainda a Paul ter desmascarado Bruce, procedimento, a seu ver, desnecessário e cruel.

Irene, que viajava sob o nome de Miss Carter, vinha diariamente ao apartamento de Odette.

"Tem alguma carta para hoje, Miss Cosway?" perguntava e sorria zombeteira, como a divertir-se da situação.

"Está gostando da viagem?" perguntou-lhe Odette certa manhã.

"Ah, sim!" respondeu ela rindo. "É interessante viajar no mesmo vapor que meu marido, quase sem dirigir-lhe a palavra. Dá novo aspecto; à vida conjugal".

Uma vez, ao deixar o apartamento de Odette, encontrou Lance que chegava. Fechou a porta deliberadamente e segurou o marido no corredor. "Não precisa entrar", disse secamente. "Miss Cosway não quer vê-lo hoje".

"Não? E como sabe?" indagou ele zangado. "Acabe com isso, Irene. Não vê que Odette e eu somos velhos amigos? Preciso falar-lhe a respeito do filme".

Ela sorriu misteriosamente. "Se é sobre isso que quer falar-lhe, voltarei com você. Ela poderá precisar de uma secretária para tomar notas".

Lance deu de ombros e teve de concordar. Não desejava cenas no corredor. Entraram.

E foi essa a primeira vez que se reuniram a bordo. Lance, visivelmente contrafeito. Odette também. Só Irene parecia divertir-se, com um leve sorriso malicioso nos olhos brilhantes.

"Tem-se ressentido do mau tempo?" perguntou Lance.

"Não muito", sorriu Odette. "Precisava apenas de descanso".

Conversaram mais alguns minutos, sem naturalidade. Lance retirou-se pouco depois e Irene acompanhou-o.

"Queria falar-lhe sobre o filme, hein? Escarneceu ela quando se viram no corredor. "E nem sequer o mencionou. Espero que a minha presença não os tenha impedido de tratarem de negócios!"

Nesse mesmo dia Luke Grimsby foi visitar Odette. Falou-lhe das cenas a serem filmadas no deserto.

"Vamos a Marrakesh", disse. "É o melhor sítio para cor local. Um ônibus estará à espera do navio e nos transportará a todos até lá. E você, irá no seu carro?"

Ela inclinou a cabeça. "É melhor. Disseram-me que as estradas são boas".

Luke guardou os originais e deu uns passos pelo camarote, o rosto pensativo.

"O seu chofer é pessoa correta?" perguntou voltando-se de repente.

Odette entesou-se, fez um esforço e respondeu naturalmente: "Claro. Por que pergunta?"

"Não sei. É um pássaro estranho. É-lhe dedicado, não é?" E acrescentou abrupto: "Não será ele a causa do desentendimento entre você e Lance?"

"Claro que não, pois não há desentendimento", revidou Odette sem naturalidade.

"Não há?" Luke suspendeu uma grossa sobrancelha e esfregou o nariz. "Contanto que a zanga não se torne conhecida dos jornais, é quanto peço". Sentou-se no divã. "Ora vamos, Odette, por que vocês dois não fazem as pazes? Ele é bom rapaz, gosta um pouco de mulheres, é fato, mas prefere você a todas elas. Anda com má aparência, desde que embarcamos".

"É? Que pena!"

"Um pouco de romance no deserto consertará tudo, não?"

"Mas não há nada, Luke", afirmou ela. Sabia, contudo que ele não acreditava. Por quanto tempo ainda continuariam fingindo? Se tivesse unicamente a si mesma a considerar, há muito teria dito a verdade.

 

Odette só viu Paul Hershaw na véspera da chegada a Tanger. Não que lhe desejasse falar, repetia de si para consigo. Ainda assim estava magoada por ele não a ter visitado, nem ao menos indagado de sua saúde.

"É um homem odioso", pensava. "A maneira mesquinha como se comportou a respeito de Bruce".

No último dia da viagem o mar fez as pazes com a natureza e amanheceu calmo e lindo. O sol inundou o camarote de Odette, beijou-lhe as pálpebras cerradas e acordou-a.

"Tenho de subir", pensou ela. "Como está abafado aqui dentro!"

Poucos passageiros estavam em pé. Ela sentiu-se feliz ao caminhar pelo convés recém-lavado. O sol quente e luminoso, o mar azul ferrete, com salpicos de espuma, como se gaivotas brancas pairassem sobre ele. Seu vestido esporte azul combinava com o ambiente e com seus olhos, mais azuis que o céu e o mar.

"Belo espetáculo para uma convalescente!" observou uma voz atrás dela... "Permite-me perguntar-lhe como passou estes dias, Miss Cosway?"

Odette interrompeu o passeio. Paul surgira de súbito, ao contornar ela a sala dos fumantes. Estava à sua frente, de cabeça descoberta, tendo na mão o boné, com a brisa a emaranhar-lhe os cabelos castanhos.

"Passei muito bem, Mr. Hershaw", respondeu friamente.

Os olhos cinza e profundos de Hershaw brilhavam ao contemplá-la. "Habituaram-me ao nome de Paul".

Ela ignorou a observação.

"Podia retribuir-me a atenção e indagar de minha saúde. A resposta seria pessimamente, com enjôos tremendos. Queixa pouco romântica esta. Mas é que nunca pretendi ser herói. Deixo os heroísmos para o nosso amigo Furner".

O que de novo a aborreceu. "Prefiro não comentar meus amigos com o senhor", retorquiu Odette glacial.

"Amigos?!... Julgava-o seu noivo. Ou é apenas propaganda?"

Novamente ela se calou. Ele cansou-se de esperar e arriscou: "Como está tagarela esta manhã! Ainda zangada comigo, por haver desmascarado Baring?"

"Foi mesquinho e desprezível de sua parte", revidou ela exaltada.

Ele sorriu tristonho e ergueu uma sobrancelha. "Essa é minha opinião. Verifiquei que o camarada não é tão mau assim. Já me desculpei com ele. Peço-lhe também desculpas pela intromissão indevida. Aceite-as, que é favor".

Odette hesitava, com desejos de ser sua amiga. No entanto, Paul era tudo o que ela detestava: caçoava de suas idéias, de seus filmes; ridiculizava Lance. Embora, por mais estranho que fosse, desejava ser sua amiga.   Não compreendia por que.

"Está bem", concordou relutante: "É tolice continuarmos zangados um com o outro". Em seus olhos, entretanto, brilhou um último lampejo de ressentimento. "Devia ter aceitado o meu cheque. Quando aposto teimo em pagar".

"Mando-o a uma associação de caridade, se faz questão", pediu ele apressado. "Que acha a respeito de uma casa para cães extraviados? A senhora gosta de proteger cães aleijados a saltarem obstáculos. Diga-me, a secretária morena é um deles?"

"Por que pensa isso?" indagou ela. "Por diversas razões. Uma delas é que a moreninha não parece apreciá-la muito, se acredita que um homem possa ter intuição. Isso se dá em geral com as mulheres que procuramos favorecer", concluiu sorrindo melancolicamente.

"Tenho observado que sua opinião a respeito das mulheres não é lisonjeira", retorquiu Odette.

Paul agitou um dedo à sua frente. "Começava a receber suas lições quando minha educação bruscamente interrompeu. É pena! E se recomeçássemos? Estávamos na aula de sentimentalismo ou de romance? Quanto a mim, preferia romance, especialmente com um cenário convidativo destes". Tomou-lhe o braço e passou-o pelo dele e, juntos, continuaram o passeio no tombadilho. "Luke lhe agradecerá. Ele queixava-se ontem à noite de não encontrar em mim uma onça sequer de sentimentalismo. Confio, em todo caso, na atmosfera do deserto, para completar o seu trabalho tão bem começado".

"Como é agradável sermos de novo amigos, não acha?" perguntou Hershaw quando pararam a contemplar um veleiro que se arrastava na fímbria do horizonte, qual borboleta num muro de jardim.

"Será?" murmurou ela, mas seus olhos azuis sorriam satisfeitos.

"Bem sabe que é. Principalmente quando é assim boazinha e meiga. Que fúria você ficou naquela tarde. Tão furiosa que cheguei a pensar", fez uma pausa e levantou zombeteiramente uma sobrancelha, "posso dizer-lhe o que pensei?"

"Não se incomode", retorquiu Odette interessada.

"Que você estava um pouquinho enamorada de mim", disse em tom de galhofa.

 

A porta do camarote de Lance abriu-se e fechou-se sem ruído. Enquanto Irene não lhe pronunciou o nome, ele não lhe percebeu a presença.

Lia deitado na cama, antes de preparar-se para o jantar. Num movimento rápido, baixou então o livro, ergueu-se nos cotovelos e carregou o cenho. "Você não tem juízo, Irene? Como é que vem aqui? Poderão vê-la".

Ela apoiou-se à porta e fez um muxoxo. "Que me importa. Estou cansada de nunca estar sozinha com você. Por que não devo vir aqui? Se somos casados!"

Lance passou a mão pela cabeleira ondulada. "Mas ninguém sabe disso. Preveni-a, quando teimou em vir, como seria perigoso, a menos que você se resignasse a ser cautelosa".

Irene entrou na cabine e sentou-se ao pé do leito. Estendeu a mão e tocou na do marido. "Pouco me importa a minha reputação", disse revoltada.

"Mas me importa a minha", revidou Lance de cenho franzido, afastando-lhe a mão. "Um astro de cinema tem de se importar".

"E sua amiga, Odette Cosway?" tornou ela apertando os olhos castanhos. "Sempre com aquele sujeito em seu quarto".

"De acordo, mas é seu empregado".

"Não faz diferença. Já estão todos comentando".

"Como assim?"

"Não se pode censurar, por comentarem", prosseguiu Irene afobada. "Já lhe disse que ele, em absoluto, não parece chofer. Todo mundo a ridiculariza por ter trazido o carro para viagem tão curta".

"Todo mundo? Se não é você quem está a envenenar as coisas, Irene". Segurou-a com força, agarrou-lhe o pulso, apertou-o tanto que a magoou.

"Não, Lance. Largue o meu pulso. Claro que não envenenei". Mas uma vermelhidão de culpa lhe tingiu a testa.

Lance afrouxou a pressão. "Muito bem. Não me deixe apanhá-la a espalhar mentiras escandalosas a respeito de Odette. Agora é melhor retirar-se. Há muito que está aqui".

Os olhos de Irene encheram-se de lágrimas. "Lance, por favor, não me mande embora como uma criada! Nem me deu um beijo. Há tantos dias não me diz uma palavra meiga".

"Que remédio", desculpou-se Lance adoçando a voz e tentando vencer a impaciência, "mas avisei-a de que seria assim, se viesse conosco".

"Mas não devia ser". Sentou-se de novo na cama e timidamente lhe tocou na farta cabeleira. "Tantas vezes, quando ninguém está perto, você poderia ser carinhoso comigo. É... é o estar perto dessa mulher que o transforma. Sei disso!"

Lance suspirou exasperado, furioso. "Por que não deixa Odette em paz por cinco minutos? Ela foi tão correta com você permitindo-lhe viajar como sua secretária. Foi correta comigo também, mantendo sigilo sobre o nosso casamento".

"Seria preferível que se recusasse a manter sigilo", explodiu Irene veemente. "Aposto como não o teria feito, se não; lhe conviesse. Era interesse dela, conseguir novo contrato. Não vejo onde esteja a correção de sua parte".

Lance com um suspiro pegou novamente do livro. Discutir com Irene era perder tempo.

Minutos depois, ao sair da cabine, ela deu de encontro com Bruce Baring. Esperou que ele se afastasse para deixá-la passar, mas enganou-se. Seu corpo musculoso e retaco barrou-lhe o caminho. "Esta é a cabina de Mr. Furner, não é?" perguntou ele.

As faces de Irene vermelharam de cólera. "E que tem você com isso?"

"Eu? Nada!" Os Iábios finos forçaram um sorriso. Não simpatizara com a moça desde início. "A mim pouco se me dá. Mas a senhora procura demais por Mr. Furner, sabendo-o noivo de Miss Cosway. Não acha melhor conservar-se a distância?"

O rostinho picante de Irene anuviou-se. "Suponha que não lhe aceite o conselho?"

Bruce passou a mão pelos cabelos ruivos. "Miss Odette poderá não gostar e a senhora será demitida".

Irene pôs as mãos nas cadeiras e soltou uma gargalhada. "Serei demitida, eu? Ela não o faria. E quanto a você e a ela? Você, a me atirar pedras, ótimo! Cuidado, quem tem telhado de vidro..." e deixou-o, furiosa, fugindo pelo corredor.

Bruce ficou a fitá-la, surpreso.

"Que diabo está ela a insinuar? A mulher deve estar maluca!" Mesmo assim a preocupação não o deixou o resto da noite.

 

TANGER banhada de sol, pela manhã, era um soberbo espetáculo. Descia até o golfo como um anfiteatro de brancas fileiras de casas a recuarem umas atrás das outras. Odette, do tombadilho, devorava o cenário, os olhos luminosos. Moços berberes e árabes, de pele escura, enxameavam ao redor do navio, em botes a remo, oferecendo artigos de cores vivas, insistindo com os passageiros para que descessem em terra de barco, em vez de esperarem pelas prosaicas lanchas a vapor.

"E nem sequer passaremos aqui a manhã", suspirou Odette.

Luke, em pé ao seu lado, sacudiu a cabeça. "Não se esqueça de que metade do elenco ficou à espera em Londres, e ganhando, quer trabalhe, quer não. Hal me colocará na rua, se não acabar com isto em tempo recorde. E aqui não há nada que nos interesse. Enquanto não chegarmos a Marrakesh, não estaremos realmente no deserto. Oh, alô, Lance? Que acha disto?" perguntou-lhe, quando este pisou no convés.

Furner aproximou-se. O sol matutino iluminava-lhe a cabeça bem feita, de cabelos escuros, ondulados, como penas úmidas de pássaros. Havia um sorriso em seu rosto juvenil e percebia-se de leve a covinha no queixo. Odette prendeu o fôlego. Como expulsá-lo do coração, assim forçada a ver-lhe de perto a beleza onipotente?

Luke bateu-lhe nas costas, excitado, e ofereceu-lhe um charuto. "Como vai, moço? Você e Odette são mesmo uns felizardos. Vão de automóvel a Marrakesh. Para meus ossos cansados só terei o velho ônibus. E aposto como eles sentirão doidamente todos os buracos da estrada.

"Lance não vai no meu carro", disse Odette apressada. "Quer vir comigo, Luke?"

Este ergueu as bastas sobrancelhas e olhou fixamente para um e outro. "Não quer viajar em companhia desta encantadora menina, rapaz? Que tem você?"

"Nada", respondeu Lance ríspido. "Odette não me convidou".

Sua voz soou zangada.

"Ora, tenham juízo, crianças", ralhou Luke ao tirar da boca o charuto e cuspir no mar. "Nunca houve discórdias em companhias por mim dirigidas, e nesta não haverá. Vou deixá-los, para que façam as pazes, e quando o digo é para que façam mesmo!" Tornou a cuspir no, mar, empurrou o chapéu para a nuca e afastou-se.

"Por que não me leva em seu carro, Odette?" indagou Lance diretamente ao ficarem sós. Tinha no rosto a expressão magoada, infeliz, de um garoto repreendido. Odette conhecia tão bem aquela expressão! Sempre a comovera no passado e tornou a comovê-la.

"Lance, não quero magoá-lo, bem sabe. Prefiro você a qualquer outro. Mas será sensato? E Irene?"

"Pouco me importa Irene! Não agüento Odette, estar perto de você e não poder falar-lhe. É um inferno, asseguro-lhe. Amo-a tanto..."

"Psiu, Lance, não fale assim". Tremia-lhe a voz.

Ele agarrou-lhe a mão, dobrando na sua os dedos delicados. "Há limites para tudo, sabe?" disse aborrecido. "O fato de me ter casado com Irene não significa ficar acorrentado a ela. Odette prometa que ficaremos juntos de vez em quando, ao chegarmos a Marrakesh. Combinamos e escapulimos..."

"Lance, querido". Tentou retirar a mão e afastá-lo. Mas como era penoso, quando todo o seu ser ansiava por corresponder-lhe aos agrados. Mesmo casado com Irene, tinha-lhe algum direito. Se o tinha! Não lhe fizera a carreira? Não o amara dois anos inteiros?  E ele a amava.

"Deixe-me ir com você", implorou Lance. "Direi a Irene ser necessário, mercê das aparências. Já tem havido comentários... dizem que estamos brigados".

Ela esboçou um sorriso. "Mercê das aparências, então".

Lance aproximou-se mais. E com voz baixa e tensa: "Isso pouco me importa, você bem sabe. Preocupa-me apenas por sua causa. Ah, meu benzinho, como pude perdê-la?"

"Que dirá a platéia: esta é uma cena de amor ou apenas ensaio?" soou a voz divertida de Paul, atrás de ambos. "Como sabem", acrescentou com a mesma expressão jovial e irônica, "quero tomar lições de romantismo, e as estou recebendo".

Odette corou.

"Lamento se me intrometo", continuou ele, pois ninguém lhe respondera, "mas devo informá-los da presença de muitos espectadores".

Era verdade. Minutos antes se achavam sozinhos no tombadilho. Agora, vários turistas reuniram-se numa das extremidades, observando-os curiosos.

"É pena oferecer-lhes grátis o espetáculo que estão acostumados a pagar dez cruzeiros pelos lugares mais baratos", murmurou. Pouco depois se afastou. Lance, enervado, acompanhou-o com os olhos.

"Não tolero esse homem", disse. "Para que Leaman o contratou? Luke faria melhor, à sua maneira".

"Possui ótima reputação para estudos da natureza", revidou Odette.

Lance, zombeteiro: "Estudos da natureza? O público pagará mesmo muito para apreciar estudos da natureza! É a primeira produção, aposto, a que está associado, que terá sucesso comercial!"

 

Lance persuadiu Odette a deixar-se ficar em Tanger algumas horas. "É estupidez apressar tanto a corrida para frente. Sinto-me como um colegial em dia feriado, depois de conseguirmos fazer seguir de ônibus o resto da turma, menos o seu chofer, mas ele não se conta. Sabe queridinha", e deixou de sorrir subitamente, "estão falando de você e desse homem".

"Falando de mim e de Bruce?" riu ela. "Que bobagem!"

"Falam", insistiu Lance. "Pelo menos Irene o afirma. Fala-se que você e ele estão apaixonados um pelo outro".

"Eu, apaixonada por Bruce?" espantou-se Odette e desatou a rir tão divertida que Lance também sorriu.

"Eu, naturalmente, sabia isso um absurdo. Mas tenha cuidado".

Estavam em Petit Socco, sentados à mesa de um café, no passeio ensolarado. Formigava ao redor a vida colorida de Tanger. Espanhóis e franceses acotovelavam-se agitados. Alemães sorviam vagarosamente copos de cerveja gelada. Turistas ingleses amontoavam-se em torno das vitrinas, examinando, exclamando. Árabes e berberes, pitorescamente trajados, vagavam entre eles. Os berberes com longos albornozes brancos que os cobriam da cabeça aos pés; Nativos a oferecerem alfombras, tapetes, artigos de missangas e de couro, perseguiam os turistas. Ninguém podia sentar-se a uma das mesas sem ser atormentado.

"Julga sensato deixar Baring morar em seu apartamento?" perguntou Lance de repente, ao engolir um cálice de conhaque e encomendar outro.

"Nunca pensei no caso", murmurou ela. "Levei-o para casa na noite em que o atropelei..."

"Você atropelou-o?"

"Sim, e como estivesse desempregado, ofereci-lhe trabalho".

"Então é por isso que é tão mal ajustado", respondeu ele.   

"Tomou informações a seu respeito?"

Odette sacudiu a cabeça. "Não naquela noite".

"Não acha que foi precipitada? O camarada era bem capaz de estar saindo das grades".

Ela não respondeu. Virou a cabeça para observar um molequinho moreno, comicamente montado num burro. Achava estranho não mais confiar em Lance. Seria por tratar-se de um segredo de Bruce, e não seu? No entanto, poucas semanas atrás, lhe teria contado tudo.  Nem se lembraria de ocultá-lo.

"Não será melhor apressar-nos?" perguntou ela. "Os outros partiram há mais de uma hora".

"Não há pressa, meu bem, nós os alcançaremos num instante". E acrescentou inclinando-se sobre a mesa: "Não se está divertindo? Depois de tanto tempo, é a primeira vez que estamos sozinhos".

Odette sorriu docemente: "Estou me divertindo, é lógico". E estava, mas de certa maneira que lhe parecia estranha. Ele não era mais o seu Lance. Talvez fosse esse o motivo. Podemos ser a mesma para um homem que sabemos pertencer a outra mulher? É possível desejar, tentar até, mas a idéia de um roubo sempre estará presente no íntimo da consciência.

De Petit Socco foram ao Grand Socco, onde, do lado exterior da muralha, havia um bazar. Debaixo de chapéus de palha de largura absurda, mulheres de pele morena, de cócoras, vendiam frangos, frutas e roupas velhas. Cena viva, agitada, os habitantes do lugar atentos aos seus negócios. Berberes montados em jumentos esbarravam com negros, carregadores de água ou domadores de serpentes. Nativos a entoarem melodias com instrumentos bizarros aumentavam ainda a cor local.

"Fascinante!" suspirou Odette maravilhada. "Exatamente como fita falada". Lance apertou-lhe a mão: "Certas vezes a vida se nos depara bizarra como um filme. Hoje, por exemplo, ao menos para mim".

Ela não deu resposta. Uma voz lhe cantava no coração, voz perigosa, pois cantava a felicidade proibida. Era doloroso não lhe dar ouvidos. Mormente hoje, nesta terra multicor, exótica, de faiscantes e alvas muralhas e gente morena, de céu intensamente azul e um sol dourado e abrasador. Londres, com seu eterno nevoeiro, suas tardes tristonhas e breves, estava a um milhão de milhas, afastada a um milhão de anos.

"Sinto-me perturbada", murmurou Odette indecisa.

"Eu também, queridinha", sussurrou Lance. "Doido a ponto de querer tomá-la para sempre".

"E Irene?"

Ele, imperativo, apertou-lhe o braço. "Não me fale nela. Não pense em Irene num dia como hoje".

Não era difícil. Demasiado fácil mesmo, e perigoso, enquanto o comprido automóvel rodava pelas estradas espaçosas e bem pavimentadas. Estranho país, este, onde o modernismo se misturava ao passado. Grandes extensões desoladas de areia e rocha, intercaladas de rodovias moderníssimas. Viam-se caravanas de berberes errantes, os albornozes pitorescos arrastando na poeira, montados em mulas ou camelos, automóveis velozes que os alcançavam ou por eles eram alcançados.

Arrefecera o calor quando atingiram Rabat, cidadezinha branca e brilhante, de grossas muralhas, mesquitas, e intensa vida nativa. Na cidade nova, jardins encantadoramente traçados. O mar que flanqueava a cidade adquiria, ao anoitecer, tons acinzentados.

"Lugar divino!" exclamou Odette.

Tomaram chá nos jardins do Hotel Transatlântico e deixaram-se ficar ali, extasiados com o místico do crepúsculo africano, contemplando o acender das luzes da cidade transformada agora em cimitarra incrustada em pedras preciosas.

"Vamos jantar", sugeriu Lance. "Seguiremos depois para Casablanca. Se pudéssemos passar a noite aqui... se não nos precisássemos reunir aos outros amanhã cedo..."

"Tolice, Lance. Vamos hoje para Casablanca", falou Odette severa, quase impaciente. Mesmo assim tremia-lhe de leve a voz e quando a mão dele lhe roçou o braço, uma estranha fraqueza a dominou.

"Podíamos simular um acidente", insistiu Lance teimoso. ‘ "Se telefonarmos, dizendo que o carro quebrou?"

"Mas se não houve acidente!" tornou ela a voz um tanto velada.

"E se houvesse, você ficaria?"

A resposta não veio imediatamente. Era-lhe penoso recusar. A noite, quente e serena, ele tão perto... A tristeza das últimas semanas como que se desvaneceu. Como era bom estar a seu lado, os dois sozinhos...

"Então... não poderíamos agir de outra maneira. Mas o carro não vai quebrar-se, é lógico".

Ele respondeu-lhe com um beijo inesperado.

Fê-lo num gesto rápido, não lhe dando tempo para empurrá-lo, se o tivesse querido. . .

 

Lance entendia um pouco de automóveis. O suficiente para fazer com que a baratinha não pegasse com facilidade. Colocou-a na garage do hotel. Certificou-se de antemão de que Bruce estava fora, a fazer compras.  Odette preparava-se para o jantar.

Mal terminara, uma voz exclamou atrás dele: "Gostaria de saber o que está fazendo, Mr. Furner".

"Eu? Examinando o motor", explicou Lance sem firmeza.

Bruce aproximou-se do carro. "Que andou fazendo no carburador?"

"Mexi um pouco nele", resmungou Lance atrapalhado.

"Mas, que tem em mira?" Os lábios de Bruce torceram-se desdenhosos. "Sua atitude é suspeita como a do vilão de suas piores fitas!"

Lance, furioso, endireitou-se. "Olhe aqui", disse ríspido, pois chegara a uma decisão. "Quer ganhar dez libras?"

Bruce fitou-a intrigado. Cogitou consigo mesmo e seus olhos claros estreitaram-se. "Sim, e por que não?"

Lance suspirou aliviado. Não seria difícil lidar com o camarada. Tirou uma nota do bolso e estendeu-a: "Depois do jantar, diga a Miss Odette que o carro está enguiçado. Não tem importância", acrescentou, "ela não se aborrecerá. Muito pelo contrário". Sorriu ligeiramente, satisfeito, com vaidade masculina.   "Compreende?"

Bruce continuava a fitá-lo, com o mesmo estranho sorriso nos lábios. "Sim, compreendo perfeitamente", respondeu.

 

Findara-se o jantar. Odette e Lance tomavam café no terraço suavemente iluminado. Do hotel vinha uma musica em surdina, tocada por instrumentos bizarros, nativos, de timbre agradável. O céu, azul ferrete, sem estrelas.

"Escute querida", murmurou Lance inclinando-se, a mão a roçá-la carinhosamente. "Faz um ano, talvez mais, que nos apaixonamos um pelo outro. Dizem ser impossível retornarmos ao passado, mas não acredito. Quando se quer de fato, tudo se consegue... Minha adorada, voltemos ao passado, por esta noite!

Esqueçamos tudo o que no mundo nos afaste um do outro. Na realidade nada existe como você sabe. Algumas convenções que nada significam. O que vale é a felicidade, é o amor.  Amo-a tanto, tanto.

"Não fale assim, Lance!" respondeu ela, mas sua recusa era fraca, mal balbuciada. Como era delicioso tê-lo a seu lado outra vez, observar a luz da lua a brilhar-lhe nos bastos cabelos ondulados, ver-lhe os traços juvenis estremecerem de ânsia e de paixão.

Subitamente, tomada de pânico, cismou: "Não devo ceder". Mas ser-lhe-ia tão doce, tão fatalmente doce, ceder-lhe!...

"Julga você que possamos ser felizes, conscientes de que procedemos mal?" perguntou-lhe em voz baixa.

Ele fez um gesto vago com a mão. "Que é o bem, que é o mal? Um amor como o nosso nunca é o mal, querida. Seria mal ter eu de viver com Irene, quando é você a quem amo. O mal seria eu sofrer como sofro agora, por um momento de leviandade e insensatez. Não se esqueça de que somos artistas, você e eu. Aos artistas deve ser concedida maior liberdade na maneira de viver, do que ao comum dos mortais. Não nos devemos curvar ante convenções pré-estabelecidas. E se o fizermos, nossa arte será prejudicada, com certeza. Benzinho, este poderá ser o ponto culminante de nossas carreiras. As artistas famosas de todos os tempos — Bernhardt, Duse — todas tiveram amantes. Se guardarmos segredo, o nosso amor não nos arruinará. Pelo contrário, será novo incentivo para o sucesso. Depois, sempre trabalharemos melhor".

"Não devemos fazê-lo, Lance. Não é possível!" disse ela num fôlego. "Há tanta coisa a considerar... não seria correto!"

O rosto do rapaz anuviou-se e os olhos castanhos adquiriram uma expressão de infinita tristeza.

"Quer dizer que você não me ama, Odette!"

"Não o amo!" Ela cerrou as pálpebras, contendo as lágrimas. "Como você é injusto!"

Ele agarrou-lhe os cotovelos, aprisionando-os: "O amor tímido não é amor. Abra bem os olhos, querida. Olhe para mim. Deixe-me beijá-la outra vez..."

"Lance!" balbuciou Odette, "precisamos partir... para Casablanca... com os outros..."

Seus lábios colaram-se aos ouvidos dela: "E se o carro não quiser andar?"

"E por quê?"

Lance encolheu os ombros, fez menção de dizer alguma coisa, mas mudou de idéia, um sorriso de triunfo a iluminar-lhe os olhos negros. Avistara Bruce que se aproximava.

"Lá vem Bruce", respirou ela aliviada.

"Lá vem Bruce", repetiu Lance esperançoso, sorrindo.

Bruce também sorriu. Mas algo em seu sorriso não agradou a Lance.

"Lamento tê-la feito esperar, mas estive trabalhando no carro, Miss Odette. Já está em ordem. Dentro de duas horas estaremos em Casablanca". Então, como se algo lhe tivesse ocorrido à memória, voltou-se para Lance e, com o mesmo sorriso enigmático, entregou-lhe várias notas. "Aqui está o seu troco, Mr. Furner. O conserto do carburador não foi dispendioso como o senhor imaginava".

 

AO ATINGIREM Marrakesh, Luke não perdeu tempo em iniciar os trabalhos. Não era exatamente um feitor de escravos, porém dinâmico, e pedia aos companheiros que compartilhassem de seu entusiasmo. Levava diariamente os atores, fotógrafos, engenheiros de som, o ponto, e os demais a um sítio não afastado da cidade, onde coqueiros e tamareiras formavam um oásis no deserto. A ação centralizava-se em Lance e Odette que trabalhavam incessantemente. O sol africano abrasava a todos; o calor sufocava.

"Arre", exclamou Lance, enxugando o suor da testa, "os ensaios de estúdio são brinquedos de criança comparados a isto, e os refletores, zero, diante deste sol desgraçado".

Estava realmente belo, no uniforme rasgado de náufrago-piloto. Nunca tivera melhor aparência e, conquanto reclamasse contra o papel, desempenhava-o de maneira notável. A respeito de Lance, Luke dizia-se plenamente satisfeito. Odette, porém, preocupava-o. Havia algo de forçado em seu modo de representar. As cenas com Lance eram forçadas, quanto mais íntimas, mais forçadas. Parte de seu grande encanto nos filmes anteriores fora justamente a deliciosa espontaneidade com que se desincumbia das cenas de amor. Havia nelas infantilidade, singeleza, ingenuidade, felicidade. Tais requisitos lhes haviam conquistado a reputação de serem os maiores namorados do mundo cinematográfico. Mas agora, ela correspondia constrangida às demonstrações de amor de Lance. Luke obrigava-os a repetirem dezenas de vezes certas cenas. Odette continuava linda, o traje de aviadora assentava-lhe à figura brejeira como um garoto, os cabelos louros artisticamente despenteados brilhavam ao sol como palhetas e refletiam certa luz que as câmaras não falhavam em reproduzir.

"Seria este o maior de seus filmes", queixava-se Luke a Hershaw, "se Odette perdesse o constrangimento que a domina ultimamente. Que diabo estará acontecendo? Pros diabos, se os entendo". Empurrou o charuto para o outro canto da boca, entortou o chapéu panamá e gritou uma ordem.

"Eu também o notei", observou Paul franzindo a testa.

Depois da chegada a Marrakesh, vira Odette raras vezes. Só quando representavam. Convidara-a uma ou duas vezes à noite, para um passeio pela fascinante Medina. Era esta a parte de Marrakesh que ele mais apreciava. Casas de barrote, ruas estreitas, serpenteantes, a palpitarem de vida; velhos monumentos, gigantescas muralhas rodeadas de plantações de coqueiros faziam-na assemelhar-se a uma das magníficas cidades de sonho do Oriente, sobre a qual o esguio e gracioso minarete de Kutubia mantinha guarda. Odette, no entanto, recusara-se a acompanhá-lo.

"Julguei fôssemos amigos" observou-lhe Paul serenamente.

Um sorriso fugidio surgiu nos olhos azuis. "Amigos inimigos, não acha?"

"De fato. Mas, por quê?"

"Discordamos tanto um do outro".

"Não será essa razão ainda mais forte para sermos amigos? Pelo menos não nos aborrecemos mutuamente".

"Os amigos então se aborrecem na companhia um do outro?"

Ele sorriu. "Claro! Mesmo em seu auge, a amizade é tediosa. Só o amor ou o ódio despertam interesse".

"Não quero pensar assim. Gosto muito de meus amigos".

O sorriso de Hershaw adquiriu laivos de malícia. "E não quer gostar um pouquinho de mim?"

Odette forçou um sorriso. "Não estaremos a falar em coisas absurdas?"

"Eu não", afirmou ele. E acrescentou com voz velada: "Sente-se infeliz, não é, Odette?"

"Não!" respondeu ela depressa, depressa demais.

Sob a luz que penetrava o portal aberto e caía no terraço esbranquiçado de luar, Paul fitou-a intrigado. Gostaria de fazer-lhe outras perguntas, mas Odette ultimamente assumira atitude reservada.

"Conversei com Luke a respeito de filmarmos umas cenas nas montanhas Atlas", disse. "Estamos aproximadamente a sessenta quilômetros. Poderemos puxar até lá no próximo domingo, Lance, você, o fotógrafo e eu, para os reconhecimentos. Não se incomoda que eu guie o seu carro?"

"Em absoluto", consentiu ela.

Todos acharam a idéia excelente. Lance era o mais entusiasmado. No entanto, ao levar a notícia a Irene, o mundo quase veio abaixo.

"Quase nem lhe falei a semana toda", queixou-se ela, "e vai passar o domingo fora".

Ele suspirou entediado. Como não a amasse, aquele ciúme o aborrecia e indignava.

"É a serviço", disse. "Odette e eu iremos acompanhados".

"Serviço, sempre serviço!" E bateu o pezinho, raivosa. "Foram com certeza serviços que quebraram o carro, naquela noite em Rabat, obrigando-os a ficar por lá até tarde".

"Oh, não! dessa vez foi prazer, querida".

"Não zombe de mim, Lance".

Ele esboçou um sorriso. "Por que será que todas as vezes que dizemos a verdade, as mulheres não acreditam?"

"Por que é assim maldoso comigo, Lance se estou doente?" balbuciou ela, mudando repentinamente de tática.

"Você está doente?" Lance ergueu os olhos dos originais que procurava estudar.

"Bem sabe que estou. A mesma dor do lado. Devia ter-me operado, antes de embarcar. Ela está aumentando".

"Por que não vai para o hospital de Casablanca? Ouvi dizer que é bom".

Irene fitou-o perscrutadora e firmemente. "Para deixá-lo sozinho com ela? Conviria aos seus planos, compreendo!"

"Não seja tola, mulher!"

"Tola? Você tem feito o possível para livrar-se de mim, desde o início da viagem".

"Tolices. Tenho é trabalhado muito. Aconselhei-a a não vir".

E voltou os olhos para os originais. Se Irene fosse embora e o deixasse sossegado, que felicidade! Estava prestes a dizer-lhe uma maldade.

"Lance!" Irene apoiara-se ao batente da porta, olhos fixos no marido, suplicantes e trágicos. "Lance!" repetiu ela, ao recusar-se ele a erguer os olhos, "você se incomodaria se eu morresse?"

Ainda de olhos baixos, naturalmente, num tom de extrema exasperação, ele respondeu: "Mas você não vai morrer, Irene".

"Como sabe que não vou?" A voz também era trágica. "Parece que vou morrer; não imagina o quanto sofro, às vezes. Para você será uma satisfação, hein? Livrar-se de mim e voltar para ela. Podiam até casar-se. Quanto o estimariam... Odeia-me porque sou o obstáculo em seu caminho. Mas se eu morresse..."

"Cale a boca, por favor!" Lance ergueu-se num pulo e atirou os originais no chão, os nervos em frangalhos. "Você me enlouquece, com suas eternas lamúrias".

"Gostaria de me ver morta, não é?" insistiu Irene em voz rouca. "Não tem dó de mim, nem um pingo de amor...”

"Se continuar a dizer asneiras, acabarei desejando a sua morte", gritou ele furioso. "Não acha que me exaure os nervos trabalhar o dia todo, e ainda me apoquenta sem descanso!" E encaminhou-se para a porta, mas ela lhe agarrou a manga do paletó.

"Lance, não vá procurá-la! É acima de minhas forças". Partiu-se-lhe a voz num soluço. Afastou dos olhos o cabelo negro-azulado. Nesse momento sua expressão era patética. O ciúme violento é a mais cruel das paixões. Lance, no entanto, estava enraivecido demais para enternecer-se.

"Se quiser, irei já procurar Odette!" disse entre dentes. "Você não imagina o alívio que é conversar com ela, depois de uma cena destas". E com um repelão, libertou-se de Irene e saiu porta fora.

A mulher continuou imóvel no meio do quarto. Depois, começou a tremer. Apoiou-se a uma cadeira. Pensava: "Se eu morrer, eles vão se casar e terão tudo: amor, glória, felicidade..." Gradualmente a expressão trágica dos olhos transformou-se em ódio. "Escreverei a papai", pensou consigo mesma. "Contar-lhe-ei tudo. Então, se eu morrer..." A idéia da morte obcecava-a, e a dor do lado aumentava sempre. "Papai não permitirá que isso se dê. Ele publicará toda a história, a minha história, embora tenha de responder a uma porção de processos. Veremos aí que pensará o público de seu ídolo, Odette Cosway. Não me surpreenderia que lhe causasse a mina".

Até altas horas da noite Irene continuou acordada, escrevendo a carta. Depois, sem reler, enfiou-a num envelope e sobrescritou-a ao pai. "Para ser-lhe enviada, se eu morrer", acrescentou ainda, e escondeu-a na gaveta da secretária.

 

Lance dirigiu-se ao apartamento de Odette. "Venha para o terraço, preciso falar-lhe", disse com voz rouca, num apelo desesperado. Nada, porém tinha a dizer-lhe, apenas a necessidade premente de sua companhia.

"Que há Lance? É tarde!" Mas assim mesmo foi e ficou a seu lado, alta, esguia;, muito linda, com a luz da lua a pratear-lhe as madeixas douradas. Espantou-se ao ver-lhe a fisionomia torturada.

"Que foi que houve? Aconteceu alguma coisa?" perguntou aflita.

Ele, com as mãos, teve um gesto dramático de importância.

"Tudo. Não agüento mais. Irene atormenta-me de maneira horrível. E não mais posso viver afastado de você. Como preciso da minha Odette!"

"Psiu, querido". Segurou-lhe o braço, tentando acalmá-lo. "Não deve falar assim. Irene, no íntimo, não é má. E lhe é dedicada. Não tem passado bem ultimamente. Procure ser bom para ela".

Lance, entretanto, não lhe deu ouvidos, tais eram os seus nervos.

"Tenho-lhe ódio", disse ríspido. "Arruinou-me a vida. Quando me contou que está com medo de morrer, devido às tais dores, retorqui-lhe: "Pois morra!"

"Lance! Como teve coragem de dizer-lhe isso?"

"Pois é a verdade".

Ela afastou-se, os olhos brilhantes de lágrimas.

"Volte", disse com firmeza, "e peça-Ihe perdão".

"Prefiro ir pro inferno!" revidou ele furioso. "Está contra mim, também?"

"Ah! você não me compreende, Lance... não posso vê-lo dizer nem cometer perversidades".

"Odette, eu seria diferente, mesmo para Irene, se você fosse boazinha para mim". Atenuou a voz, estendeu a mão e tocou-lhe o braço. "Queira-me ao menos um pouco, Odette... deixe-me beijá-la".

"Não!" Ela afastou-se vivamente. Seu contacto, nessa noite, era-lhe quase revoltante. Não compreendia por que. Talvez por estar cansada, enervada. "Lance" murmurou, "vá fazer as pazes com Irene. É o meu desejo".

Ele fitou-a magoado, ferido. "Há uma semana você anda fria comigo", disse. "Apaixonou-se por outro? Por quem? Por aquele chofer?"

Odette voltou-se indignada.

"Como pode pensar uma coisa dessas e até falar, Lance? Por favor, vá embora. Não quero... não posso conversar com você agora".

"Isto é, não quer conversar", revidou ele, lábios apertados.

Ela calou-se um momento. Não confiava em sua voz. Tinha as mãos trêmulas. Apertou-as com força.

"Pois bem, não quero", disse afinal, dentes cerrados.

"Odette!"

Estranho, mas nem o apelo de sua voz angustiada a comoveu.

"Vá embora, por favor," insistiu.

"Pois bem". Seu rosto jovem e belo tornou-se sombrio. "Você se arrependerá".

E saiu. Odette continuou no terraço. Reclinada no balaustre, contemplava o jardim enegrecido, as fontes atirando confetes prateados dentro da noite. O coração magoado sentiu cansaço em todos os membros. Lance arrebatara-lhe nessa noite algo muito precioso. Mais precioso que ele próprio, em sua opinião. Odette ainda o ignorava. Percebia-o apenas de maneira vaga, meio inconsciente. A atmosfera — a alvura dos terraços do hotel, a lua tecendo rendas prateadas entre os flocos de nuvens, os jardins intensamente perfumados, tranqüilos, silenciosos — era mais romântica que a das fitas em que representara. Levara a vida adorando o romance e, para a maioria do publico, dele se tornara a suma sacerdotisa. O romance parecera-lhe sumamente desejável, mas nessa noite Lance conseguira rebaixá-lo. Mas, embora pensando assim, ainda se revoltava.

"Não", murmurou. "Não pode ser. Estou cansada, trabalhei demais. Eu... nem sei o que me vai pela cabeça".

 

NÃO se pode dizer que o conjunto que empreendeu a excursão no domingo seguinte fosse dos mais felizes: o fotografo e sua máquina no banquinho de trás, Lance, Odette e Paul no largo assento da frente. Entre Paul e Lance surgira uma antipatia que se acentuava sempre mais. Talvez Lance tivesse percebido o interesse de Paul por Odette, pois, conquanto afastado dela pelo casamento que fizera, ainda não perdera as esperanças. Continuava apaixonado.

A antipatia natural de Paul pelo artista ou por qualquer homem de seu tipo era atenuada por uma tolerância irônica, divertida. Seu olhar dizia: "Você não é de minha estirpe, mas poderá ser de tão boa, no entanto guardo minhas dúvidas. As mulheres, em todo caso, parecem apreciá-lo". Mas por mulheres entendia apenas uma: Odette.

Esta notara a implicância entre ambos e tagarelava simulando animação. Lance andava tristonho, o que a aborrecia. Estaria ainda a pensar na cena da outra noite, no terraço? Fora do trabalho, não tivera ocasião de falar-lhe, desde então.

Lance fora vítima de uma cena extremamente penosa com Irene, antes de partir. Esta se agarrara a ele num desespero, pedindo-lhe que a não deixasse. Insistira em afirmar que se sentia doente, muito doente.

"Se está doente, vá a um médico e tenha juízo", ralhou Lance pirracento. "Quanto a mim, preciso ir. É para trabalhar".

Como não fosse de todo insensível, a lembrança do acontecido não lhe saía da mente. Mantinha-se desinteressado da palestra -- mesmo da paisagem. A estrada alongava-se para o sul de Marrakesh, numa planície irrigada por numerosos canais. O domingo prometia ser maravilhoso: quente, sem umidade, com bastante calor, mas longe de ser desagradável. Não se viam aldeias e raramente se encontrava alguém, apenas de quando em quando um ou outro berbere montado num jumento.

"Não é divino?" exclamou Odette. "Estamos finalmente, fugindo da civilização!"

Paul desviou os olhos da direção e ergueu uma sobrancelha. "Julga ser isso vantagem? A idéia de escapar à civilização é romanesca, mas..." havia nos olhos cinzentos a fitá-la um tênue sorriso, "julgo que encontrará sérias desvantagens".

"É maravilhoso poder-se fugir para o deserto", declarou Lance para contradizê-lo.

"Acha?" sibilou Paul. "No entanto, não fosse um excesso de civilização, você, meu caro Furner, não poderia existir".

"Como? Que pretende com isso?" perguntou Lance vivamente.

"Devia ter dito talvez Lance Furner, o ídolo cinematográfico, não existisse", sorriu Paul. "Para o público, você significa tudo quanto é romântico e cavalheiresco — e sem naturalidade alguma. Tenho certeza que, diante de determinadas situações, ninguém agiria à sua maneira romântica. Vejamos sua atual película, por exemplo. Imagine um homem a fazer declarações de amor sem saber de onde virá a próxima refeição, ou temendo ser atacado a qualquer momento por um horda de bandidos árabes! O público que não costuma viajar, entretanto, é tão super-civilizado que chega a supor que, mesmo nessa emergência, continuaria seus protestos de amor. Alguns destemidos talvez o façam, mas não é natural, asseguro-lhe".

"Não concordo", exclamou Odette com calor. "A adversidade, o perigo mesmo, revelam o que há de melhor no homem de valor, tenho certeza".

"Um valentão, talvez", ponderou Hershaw sarcástico. "Mas você não julgaria isso romântico, Odette!"

Ao meio-dia pararam num vilarejo, ao pé das montanhas Atlas. Vilarejo original, com casas de barro e mercado primitivo. Paul e o fotógrafo saíram para reconhecimentos e conseguiram a custo umas poucas fotografias da vida árabe. Tiraram também alguns stills de Lance e Odette vestidos a caráter, naquele novo e pitoresco cenário.

"Que pena, virmos até aqui e não subirmos as montanhas" queixou-se Odette. "A estrada parece razoável".

"Eu topo", concordou Lance entusiasta. "Sempre foi meu desejo galgar os Atlas".

Paul parecia cético. "Esta é a época das inundações imprevistas", avisou.

"Chuvas torrenciais num dia destes?" riu Lance. "Impossível! Se não quiser ir", acrescentou satisfeito, "Odette e eu iremos sozinhos e o apanharemos na volta".

Paul soltou uma risada. "Já que insistem tanto, irei também. Por que não?"

Hankins, o fotógrafo, ficou. O carro assim ficaria mais leve; ele não se interessava por alpinismo. Achava possível conseguir boas chapas nos arredores da vila.

Ao deixar a aldeia, a estrada tornava-se mais íngreme, embora ainda não muito árida. Numerosas fontes irrigavam as moitas de oliveiras e amendoeiras. Afinal chegaram a uma encruzilhada.

"Só Deus sabe qual é a estrada principal", disse Paul.

"Experimentemos esta", sugeriu Lance. "É a mais larga e, depois, sempre teremos o recurso de voltar".

Rodaram um pouco, serpenteando por uma garganta de morros, com declives rochosos de ambos os lados. A região tornara-se árida, coberta apenas por arbustos anões. Havia grandiosidade, imponência, no cenário.

"Se pudéssemos continuar, sempre para frente, a vida toda", murmurou Odette. "Sinto-me como criança que se aventurou pelo país das fadas. Estas montanhas são os castelos dos gigantes, aquelas pedras, os cascalhos que esparramaram pela estrada. Como nos fazem sentir pequeninos, insignificantes!"

Paul assentiu com a cabeça. "Sentimo-nos sempre insignificantes, em contraste com a natureza, mas isso é lugar comum. Se evitássemos os lugares comuns, pouco ou nada teríamos que conversar".

Pouco depois atravessaram uma estreita ponte sobre imenso precipício.

"Olhem!" gritou Odette de repente, apontando o céu. "Dir-se-ia que vem uma tempestade, por aquela montanha!"

"Santo Deus! você tem razão!" concordou Lance. "Coisa extraordinária, termos o sol aqui, e lá em cima a tempestade".

"Este fenômeno é comum nas montanhas deste tipo", observou Paul. "Uma borrasca pode assolar o cume de uma montanha e deixar o de outra, vizinha, incólume. Alô, que é isto?"

Numa curva fechada, a estrada terminava de súbito — terminava definitivamente. Além, só havia carrascais de arbustos e pedras.

"Provavelmente tomamos a estrada errada", observou Lance. "Pelo mapa, a estrada conduz a uma vila de tamanho regular".

"Subamos um pouco aquela montanha e contemplemos a tempestade. Parece magnífica", sugeriu Odette.

De fato, era magnífica. O contraste entre o sol cintilante, que os inundava, e a profunda escuridão do céu à sua frente, riscado de chuva cinza, era esplendoroso. Do alto de uma pedra, todos três contemplavam fascinados.

"Que maravilha, se pudéssemos tirar uma película deste cenário!" exclamou Hershaw.

"Para os bolsos dos produtores, é claro!" riu Lance. "As únicas tempestades que o público paga para ver são as emotivas. Graças a Deus, para mim!"

Paul foi quem avistou primeiro a imensa torrente de água que desabou subitamente, não se sabe de onde, precipitando-se montanha abaixo. "Vejam, vejam!" exclamou. Todos fitaram, pasmos, estupefatos, a densa massa de água que despencava pela garganta da montanha, até a pouco seca como a pedra onde se achavam.

"Vieram as inundações", declarou Paul assustado. "São esperadas, nesta época do ano".

Rochas, arbustos, árvores eram arrancados pela torrente impetuosa e por ela arrastados.

Lance riu entusiasmado. "Realmente, vale a pena ser visto".

"Não acredito que um dos meus gigantes lhe pudesse resistir", sorriu Odette e acrescentou com voz velada: "É incrível que lá nos estúdios em Londres estejam a dizer: O. K. N. G., enquanto criam espetáculos destes, como cenários para os personagens. Isto em si é imenso. É toda a história".

"É o que venho tentando mostrar ao mundo há vários anos", ponderou Hershaw tranqüilamente.

"Que coisa, homem, isto será interessante para Olhar-se algum tempo, mas, com a continuação torna-se supinamente monótono", insistiu Lance.

Paul fitou-o irônico e sorriu. "Não tão monótono quanto às emoções das criaturas medíocres", replicou.

Ao chegarem ao carro, o sol afundara no horizonte. Sentaram-se e puseram-no em movimento. Antes de vencer meio quilômetro, Paul brecou de repente.

"Idiota! Não passo de um idiota!" resmungou. "Por que não pensei nisso antes? Não faz diferença, mas..." e não concluiu, sombrio.

"Não pensou em que?" indagou Odette espantada.

"Na ponte", respondeu ele lacônico. "Foi-se! A correnteza levou-a".

Odette e Lance ficaram algum tempo sem lhe compreender a importância das palavras.

"Mas... como iremos atravessá-la?" perguntou ela.

"Não a atravessamos... aí está o divertido", tornou Paul bruscamente. "Não adianta voltar, a estrada acaba daqui a um quilômetro, como vimos".

"Está falando sério?" perguntou Lance.

Paul anuiu com a cabeça. "É uma das pequenas surpresas da vida. Ela demonstra, às vezes, preferência pelo melodramático".

"Quer dizer que ficaremos presos aqui, a noite inteira?" insistiu Lance empalidecendo. "Que vamos fazer?"

Paul sorriu calmamente. "Deve sabê-lo melhor do que eu, meu caro Furner. Deve estar habituado a tais situações".

"Quero ser enforcado, se estou", retrucou Lance exasperado. "Será desagradabilíssimo".

"Desagradável?" caçoou Paul. "Mas é romance! Ou melhor, é uma cena típica de seus romances. É até parecido com o seu filme atual, conquanto confesse que estou atrapalhando. Tem você uma noite africana, gloriosa, para cortejar Odette. Eu, como amigo do herói, retiro-me discretamente, atrás de uma pedra, e fumo meu cachimbo. Ou talvez venha a ser assassinado pelos árabes, por me recusar a contar-lhes o seu esconderijo. O amigo do herói sempre morre gloriosamente na última parte, não é?"

"Por favor, cale-se! Acabe com esses sarcasmos!" grunhiu Lance. "Atacam-me os nervos".

Paul sorriu com finura. "Queria apenas fazer espírito. É a atitude que se espera de um britânico, em meio à adversidade".

"Mas precisamos voltar", interrompeu Odette. "Não temos o que comer".

"Falou a mulher prática", riu Paul.

Lance resmungou: "Estudemos o mapa". E acrescentou depois de analisá-lo atentamente: "Deve haver uma aldeia do outro lado da montanha. Pode ser penosa a escalada, mas chegaremos até lá".

"Esta noite é impossível", disse Paul imperturbável. "Dentro em pouco estará tudo negro. Só servirá para desviarmos do caminho certo".

"Está bem", disse Lance sentando-se no estribo do carro e passando a mão pela espessa cabeleira ondulada. "Hankins compreenderá que estamos perdidos e enviará socorro".

"Você se esquece de que abandonamos a estrada principal", frisou Paul. "Ninguém espera por isso".

"Que inferno!" explodiu Lance. "Por que não procura o lado bom das coisas?"

"Sou realista", desculpou-se Hershaw. "Odette me compreende".

"Acho isto emocionante", explicou ela sorrindo.

Exasperado, Lance fitou-a. "Pros diabos, com vocês dois. Já estou com fome".

Paul agitou um dedo para ela e disse caçoando: "Não era mesmo de esperar-se que o seu herói fosse romântico de estômago vazio".

Lance ergueu-se num pulo, rubro de raiva.

"Amaldiçoado! Pare com os seus sarcasmos, já lhe disse! Suas observações não me divertem, em absoluto". E desceu pela estrada, olhos fitos na garganta inundada.

"Não aborreça Lance", pediu Odette magoada. "É crueldade. Seus nervos têm estado sob tensão, ultimamente".

Esvaiu-se o sorriso de Paul. Ele pegou-lhe a mãozinha. "Sinto muito. Este rapaz tem esquisitices que me obrigam a falar para aborrecê-lo. Mas, se você se zanga..."

"Não gosto", declarou Odette.

Ele apertou-lhe a mão. "Desculpe-me".

Odette voltou para ele os olhos azuis, muito sérios.  "Estamos em situação crítica, não é?"

Hershaw concordou. "Um tanto crítica até amanhã, em todo caso. Como Furner já observou, não temos que comer".

"Quanto a isso!" riu ela. "Fará bem à minha silhueta. Tenho engordado vergonhosamente, aqui".

"Está-se vendo", tornou ele, os olhos cintilantes. "Duas onças a mais de gordura! Luke anda preocupado com elas. Disse-me confidencialmente um destes dias, que seu próximo filme será O Espelho da Mulher Gorda. Vai-lhe às mil maravilhas!"

Ela riu satisfeita e Paul também. Momentos antes Odette tivera medo, não muito, mas medo, em todo caso. E ele, sem nada dizer, lhe dera coragem. E pensou: "Se Lance não estivesse aborrecido, como seria divertida a situação!"

"Vou descer à procura de Lance", declarou. "Não se incomoda?"

"Incomoda-me, é claro. E, com um leve sorriso: "O amigo do herói também tem seus egoísmos".

Lance, sentado numa rocha, contemplava fixa e tristemente as sombras que avançavam, cobrindo os enormes rochedos irregulares. Ela sentou-se a seu lado, passou o braço delicado pelo dele, tentando confortá-lo.

"Amanhã cedinho encontraremos o caminho até a vila mais próxima. Não... não acha lindo isto aqui?"

E sorriu para si mesma. Estava inconscientemente a citar um trecho do filme atual.  Era o que ela dizia, ao herói e ele, Lance, respondia: "Lindo? É maravilhoso estar a seu lado, querida. Isto é um El-Dorado! Se ficássemos aqui para sempre..."

"Lindo?" exclamou Lance. "Que há de lindo neste ermo? Senhor! Que bem me faria um drinque! E aquele homem", prosseguiu ainda furioso, "não o suporto mais. Vale-se do sarcasmo a toda hora, e à minha custa. Se estamos neste embrulho, é por culpa dele".

"Não é verdade, Lance".

"É. Foi ele quem sugeriu esta excursão — esta procura estúpida de cor local. É ele o responsável. Tem obrigação de tirar-nos daqui".

"Mas ele não tem culpa da ponte ter-se quebrado", insistiu Odette. "Não o compreendo, Lance; por que diz palavras tão brutais?"

Lance percebeu ter-se colocado em má posição. Era vaidade demais e procurou justificar-se. Odiava não ter razão, mormente diante da mulher amada.

"Sinto muito, queridinha, mas minha cabeça lateja de dor". “Será insolação, talvez, mas é horrível”.

Odette, sempre pronta a compadecer-se, foi toda solicitude.

"Que tristeza, Lance! Posso fazer alguma coisa por você?" Sua mão macia acariciou-lhe a testa "Dói-lhe muito?"

"Bastante". Mas corou, pois era mentira.

Odette passou-lhe o braço pelas costas e atraiu-lhe a cabeça para o seu ombro. "Descanse, apoiado em mim", sussurrou. "Com meus dedos, farei passar a sua dor de cabeça".

E sentiu um nó na garganta. Quantas vezes apoiara assim a cabeça de Lance em seu ombro, e o acalmara... Não passava de uma criança crescida, e não mais lhe pertencia. Mas estava adoentado, agora, que mal fazia deixar a cabeça repousar em seu regaço? Malgrado Irene, muito dele e de seu passado ainda lhe pertencia.

O sol desaparecera por trás das montanhas. O crepúsculo no deserto é breve. As imensas rochas tornaram-se negras e ameaçadoras. A escuridão da noite era opaca, como cortina de trevas através da qual não se pode passar.

"Quanto daria eu por um projetor e sua máquina fotográfica!" exclamou uma voz risonha.

Ambos se endireitaram. "Maldito homem!" resmungou Lance entre dentes. "Por que não continuou onde estava?"

"Perdoem-me a intromissão, mas a respeito de cama, como vai ser? Devemos seguir amanhã cedinho".

"Não vejo razão para nos apressarmos. Será muito incômodo, os três ali, no banco da frente".

"Odette vai dormir no carro. Nós levamos o tapete e nos deitamos na estrada", disse Paul lacônico.

"Lance não pode dormir na estrada", protestou Odette, "está doente".

Paul fitou-o cheio de curiosidade. "Você está doente?"

"Um pouco de insolação", resmungou Lance.

"Nesse caso, durma no banquinho de trás".

Lance experimentou-o e acabou compartilhando do tapete de Paul, estendido na estrada.

"Não consigo dormir, não importa onde me deite", grunhiu. Na estrada, porém, era menos desagradável que no banquinho apertado.

"Por que não divide comigo o banco da frente?" sugeriu Odette.

Lance ia aceitar, quando Paul interveio com firmeza: "Isso seria favoritismo, não faça isso, Odette", e acrescentou rindo: "As senhoras precisam de conforto, por mais que sofram os homens. É a melhor tradição. Você precisa descansar, pois a caminhada de amanhã será grande. Não permitirei que os roncos do herói a impeçam de dormir!"

"Se se resignasse a ser menos engraçado..." lançou-lhe Lance indignado.

"Lamento-o", desculpou-se Paul, ao virar-se sobre o chão duro da estrada. "Afinal de contas, o humorismo talvez não seja o melhor antídoto à adversidade".

 

O sol, de um dourado intenso, surgindo por detrás das montanhas gigantes, era um grandioso espetáculo. Cobria os cumes rochosos de uma espessa capa alaranjada e dava tons rosados ao verde-cinza dos arbustos.

Paul levantou-se primeiro. Esticou os membros endurecidos e sacudiu Lance que dormia.

"Seu banho está pronto, senhor, e o café não tardará quinze minutos", disse rindo.

"Diabo" resmungou Lance virando-se com um grunhido.

"Você dormiu bem", afirmou-lhe Paul conciso. "Ouvi-o ressonar".

"Dormi bem? Senti a noite inteira os altos e baixos deste chão!"

Paul não discutiu, limitou-se a sorrir. "Vamos acordar agora a bela adormecida".

"Como pode ser tão espirituoso sem haver jantado e sem sequer a perspectiva de uma xícara de chá ou café? Não compreendo!" rosnou Lance.

Neste momento Odette abriu a porta do carro e desceu para a estrada. Estava encantadora, à luz diáfana da manhã — radiosa e fresca como se tivesse dormido três noites inteira.

"Manhã gloriosa!" exclamou ela.

"Odette pelo menos não se desmente", observou Hershaw.

Lance fitou-o colérico: "O mesmo não se dá comigo, não é?"

"Meu caro Furner, não tenho a menor idéia de seu caráter. Referia-me à sua personalidade nos filmes".

Odette, alarmada, olhou um e outro: "Quando partimos?" perguntou mudando de assunto.

"Daqui a pouco", tornou Paul. "Vou subir a colina e tentar localizar-nos. Há lá em baixo na estrada um fio d'água onde poderão lavar o rosto", e afastou-se.

Lance e Odette encaminharam-se para o riacho. A essa hora, após um bom sono, não sentia o mínimo receio. Nem fome tampouco. Os longos períodos de severo regime alimentar para conseguir esbelteza, ajudavam-na agora.

"Que aventura, hein Lance?" disse, os olhos azuis a dançarem nos dele. Estava extraordinariamente bela, sem chapéu, o sol a pintar-lhe fagulhas doiradas nos cabelos. Lance, entretanto, não pareceu dar por isso.

"Da espécie de aventuras que preferimos ler", retorquiu ele. "Deus meu, quanto daria por um bom banho, por barbear-me, sem falar num pouco de café".

Ela fitou-o de esguelha, um vinco de preocupação a sulcar-lhe a fronte.

"Está sentindo melhoras hoje, Lance? Dói-lhe ainda a cabeça?"

"Ah, sim... A insolação de ontem... Estou melhor, obrigado, queridinha".

A fronte de Odette continuou franzida... "Tenho refletido a propósito de Irene. Como deve ter-se afligido, por não termos voltado ontem".

Ele soltou uma gargalhada. "Irene pouco se me dá!"

Enublaram-se de consternação os olhos azuis. "Detesto ouvi-lo falar assim, Lance".

"Sinto muito. Tivesse você de lidar com ela, garanto que teria pena de mim. É ciumenta, loucamente ciumenta".

Odette continuou pensativa: "O ciúme é coisa horrível. Torna as criaturas desgraçadas!"

"Não tanto quanto as vítimas" insistiu Lance.

"Não sou de sua opinião. Já tive ciúmes. É... é medonho".

Lance tomou-lhe a mão e apertou-a entre as suas. "Teve ciúmes de mim, benzinho?"

Lágrimas súbitas, irreprimíveis, brotaram dos olhos de Odette que pestanejou rapidamente à luz do sol. "Por favor, Lance!" e tentou retirar a mão, sem o conseguir.

"Talvez um dia volte tudo a ser como antes", segredou-lhe ele.

Vagarosamente ela sacudiu a cabeça. "Nada, nunca mais será como antes".

"Não seja pessimista", censurou ele ríspido.

Odette deu uma risada forçada, pouco convencida. "Não quero sê-lo".

Passou-se tempo antes que voltassem. Encontraram Paul sentado numa pedra, a pouca distância da estrada, fumando cachimbo. Odette reparou-lhe no rosto desfigurado e tenso. "Talvez seja conseqüência da noite mal dormida", imaginou.

"Quando partimos?" perguntou Lance. "Estive estudando o mapa, ontem à noite. Parece que, se cortarmos pela montanha, chegaremos a uma aldeia".

"Resolvi ficar", declarou-lhes Paul. “Ficarei aqui à espera, até vocês conseguirem auxílio”.

"Vai ficar aqui?" Lance fitou-o incrédulo. "Está doido?"

Paul encarou-o com um tênue sorriso nos olhos cinzentos. "Doido, e por quê? Sou mais ajuizado que vocês. Sento-me aqui e fico tomando conta do carro, até mandarem auxílio".

"Teme que o carro fuja?" zombou Lance.

"Por que não vem conosco?" convidou Odette solícita.

"Não sou alpinista", respondeu Hershaw. "E não vejo necessidade de irmos os três. Por que não fica comigo e deixa Lance seguir sozinho?"

"Seria então o escoteiro, com o pior trabalho nas costas, não?" acudiu Lance. "Odette vai comigo. Vamos!"

Esta circunvagou os olhos por um e outro. Hesitou um segundo. Afinal, era Lance a quem amava malgrado seu casamento com Irene.

"Irei com Lance. Prefiro andar, a continuar aqui à espera". E acrescentou: "Não compreendo sua decisão de ficar, Paul. Está doente?"

"Não, obrigada, conquanto deseje muito sua comiseração. Reserve-a para o herói, quando aquelas pedras lhe tiverem enchido os pés de bolhas d'água".

"E quanto aos meus pés?" disse ela sorrindo.

Paul escandalizou-se. "Lance a carregará nos braços. Para que servem os heróis, menina?"

Lance atirou-lhe um olhar de fúria. "Repito-lhe que não tolero suas malditas ironias".

"Perdoe-me", desculpou-se Paul ainda irônico. "Esqueci-me de que é muito mais versado em como procedem os heróis".

Lance afastou-se. "Está pronta, Odette? É melhor partirmos".

"Não me agrada deixar Paul aqui", disse ela indecisa.     

"Se ele fica, é porque quer!" lembrou-lhe Lance irritado. "Em minha opinião, é um idiota. Dentro de vinte e quatro horas não terá que comer".

"A abstinência fortalece a alma", acudiu Paul brincando. "Aqui sentado, ficarei a meditar. E, como resultado, provavelmente revolucionarei a arte cinematográfica".

"Se está decidido a ficar..." tornou Odette.

Ele sacudiu a cabeça enfaticamente e tirou o cachimbo. "Decidi. Mesmo nas circunstâncias mais favoráveis, detesto caminhar. Arrepia-me a escalada que vão fazer".

"Se não formos, morreremos à fome", atalhou Lance rude. "Vamos, Odette".

"Assim que pudermos lhe enviaremos socorro", prometeu ela.

Paul acenou-lhe um adeus. "Não se esqueça de mim, Odette".

"Seria bem feito se o esquecêssemos", grunhiu Lance mal humorado. "Está imaginando que nos vamos perder, aposto. Não passa de um medroso, é o que é!"

Odette, ao galgar o morro ao lado de Lance, conservou-se em silêncio e pensativa. Não achava Paul medroso. Mas era estranho o fato de recusar-se a acompanhá-los.

Voltou-se uma vez para acenar-lhe um adeus; apenas uma vez. Tivesse olhado de novo, veria que ele tinha desmaiado.

 

Irene sentia-se doente e desesperada. A dor do lado era um tormento constante. Ainda assim isso era nada, comparado à agonia de ver passarem as horas sem que Lance voltasse.

Encontrou-se com Mollie Stewart, a secretária de Luke Grimsby, no saguão do hotel, segunda-feira de manhã.

"Não trabalhamos hoje", disse-lhe Mollie. "Odette Cosway e Lance Furner ainda não voltaram da excursão de ontem. Mr. Grimsby está furioso como cascavel. Quer terminar a filmagem o mais depressa possível e mandar-nos todos para casa. Esperemos que nada lhes tenha acontecido. Esquisito, não?"

"Mais do que isso. É... uma maldição!" A voz de Irene soou áspera, dissonante. Por instantes seus olhos chamejaram no rosto mortalmente pálido.

Mollie espantou-se. "É a secretária de Miss Odette, não é? Tem de se preocupar por ela, é claro!"

Irene desatou a rir; conteve-se depois e, abruptamente: "É sim, se estou preocupada, é por causa dela".

Mollie fitou-a intrigada. Sempre achara bizarra essa moça. Estava tão desfigurada... "A senhora não parece estar passando bem", disse.

Irene apertou o lado com a mão. "Sinto uma dor terrível aqui".

"Não será melhor ir ao médico?"

Vigorosamente Irene sacudiu a cabeça. "Não, não quero saber de médicos".

E se o médico ordenasse a operação imediata? Ver-se-ia separada de Lance por várias semanas, meses talvez. Ele voltaria a Londres com o resto da turma e ela ficaria abandonada ali, sozinha. Para ele seria um prazer, ver-se livre da mulher algum tempo. Ver-se livre, ao menos temporariamente! Poderia estar com Odette o tempo que quisesse. . . Não suportava tal pensamento. Apertou os dedos com força. Por mais que sofresse, era preciso agüentar.

Ao entardecer, uma violenta onda de calor abrasou as casas alvas, como se o sol contivesse verniz. Caravanas de camelos enchiam o largo do mercado sufocante e poeirento. Os berberes, rostos escuros brilhantes de suor, descarregavam artigos provindos do deserto. Quadro pitoresco, mas Irene vagava por entre os nativos acocorados, a venderem suas mercadorias, sem dar conta deles. Saíra, pois não mais suportava dentro do hotel a ânsia por notícias.

Encontrou-se com Bruce, também preocupado. "Se ao menos me tivesse levado junto", repetia ele pela centésima vez. Que presunção a sua, lá estavam três homens para protegê-la...

"Que acha da atual façanha?" perguntou-lhe Irene soturna.

Bruce encarou-a. Também ele a achara sempre um tanto exótica.

"Provavelmente o carro se quebrou", foi a resposta.

"Como você é ingênuo!" zombou ela, Ele ergueu a sobrancelha avermelhada. "Ingênuo, e por quê?"

"Acredita em acidentes com o carro. Não creio que os carros se quebrem quando se deseja". Bruce continuou a fitá-la, aparvalhado.

"Por que se há de desejar que se quebrem os carros?"

"... Os apaixonados, criança! Quando não há outro meio de ficarem juntos!" E soltou um riso forçado.

"Mas quem é que está apaixonado?" perguntou Bruce taciturno.

Um sorriso malicioso curvou os lábios de Irene. "Isso o fere em cheio, hein? Também está apaixonado por ela!"

Bruce corou. "Não sei ao que se refere".

"Não? E por que foi que morou no apartamento dela em Londres?"

"Era, e ainda sou empregado de Miss Odette".

Ela, com sorriso irônico: "Como eu?"

"Que pretende insinuar?"

"Nada... senão que está apaixonado e lhe foi permitido passar semanas em seu apartamento. Ela é acomodatícia, não há dúvida".

Bruce agarrou-lhe os pulsos. Um ódio surdo Iuziu nos olhos pálidos. "Não permito que insinue coisa alguma a respeito de Miss Odette".

"Então é mais outro dos que a julgam a perfeição, a imaculada, sob todos os aspectos", disse ríspida. "A coisa está se tornando monótona".

"E ela é perfeita".

"Mesmo que namore escandalosamente o marido de outra?" Irene mordeu os lábios após ter falado. Por que continuar a mentir? Que resultado obtivera, além de aflições e sofrimentos? Pouco se lhe dava que Lance perdesse o contrato. A pobreza seria preferível. Então talvez ele a quisesse. E seu pai era rico, haveria de ajudá-los.

Bruce fechou carranca. "De que está falando, criatura?"

Irene abanou a cabeça. "Ela namora Lance, não é?"

"Lance Furner?" Endureceu o rosto; odiava aquele homem. "E que tem isso, se são noivos?"

"Noivos? Até você ela enganou! Até o seu amante!" E tornou a rir com escárnio.

"Cale essa boca", ralhou Bruce furioso. "Está fora de si. Não afirmaria coisa semelhante, se conhecesse Miss Odette. Não sei como se encontra a seu serviço; mas se continuar a falar dessa maneira, quanto mais depressa abandonar o serviço, melhor. Pois não farei cerimônia em contar sua opinião a Miss Odette".

"Que resultaria? Já lhe disse que ela não ousará demitir-me. Posso falar quanto quiser... Posso propalar o seu caso com o meu marido!"

"Com seu marido?!" Bruce, incrédulo, esbugalhou os olhos. "Que quer dizer com isso?"

"Lance Furner é meu marido!" exclamou Irene.

Houve uma pausa. Bruce, estarrecido, fitava a moça magrinha e pálida, a massa de cabelos preto azulado e as duas vividas manchas de febre no rosto.

"Lance Furner é seu marido?" perguntou ele afinal.

"É meu marido!" sustentou Irene petulante.

Ele não mais duvidou. Muita coisa antes inexplicável se explicava agora. Escandalizava-o que Odette se prestasse a uma farsa desse quilate. Concordara, naturalmente, mercê da publicidade. Era por isso que evitara Furner. E o próprio Furner? Veio-lhe ao espírito o incidente do carro, em Rabat. Furner deliberadamente tentara enguiçar o carro para passar a noite com Odette.

"Furner é um bandido!" gritou, perdendo o domínio sobre si.

"Que ousadia!" Irene ergueu a mão e deu-lhe uma bofetada no rosto. "Como tem a ousadia de falar mal de Lance? Eu o amo! Ele não é culpado, compreende? A culpada é ela, essa Miss Cosway. Enfeitiçou-o, como enfeitiçou você... como enfeitiça todos os homens. Ela..." Súbito interrompeu os impropérios. Encolheu-se, o rosto mais branco que o branco deslumbrante dos prédios, no largo do mercado. "Como dói", gemeu ela. "Não agüento. Eu... eu..." Seu rosto estava convulso. Bruce olhou ao redor, à procura de auxílio. Um homem de meia idade, um inglês, tocou-lhe o braço.

"A senhora não está bem? Posso ser útil em alguma coisa? Sou médico".

"Ignoro o que ela tenha", disse Bruce. "Estava falando comigo neste momento".

Descerraram-se as pálpebras de Irene. "Esta dor, esta dor de lado", queixava-se gemendo.

"Vamos levá-la ao hotel. É ali, não é?" sugeriu o doutor.

Carregaram-na até o quarto. Parecia sofrer tanto que não podia falar. O médico fez um exame rápido enquanto Bruce esperava no corredor. Minutos depois o chamou.

"Será preciso operá-la imediatamente", disse com simplicidade. "Deveria ter sido operada há semanas atrás".

"É coisa séria?" indagou Bruce alarmado.

Gravemente ele aquiesceu: "Tão grave que temo..." Não terminou a frase e, erguendo a voz, indagou: "Ela tem parentes aqui? Tem marido?"

Bruce olhou para a figurinha estirada na cama. Os olhos de Irene estavam esbugalhados. Fitava-o intensamente e ao encontrar os dele, fez com a cabeça um gesto de súplica para que negasse.

Desorientado, Bruce limpou a garganta.

"Parentes não têm", replicou. “É a secretária de Miss Odette Cosway, a estrela cinematográfica”.

Irene esboçou um sorriso e cerrou os olhos.

"Preciso providenciar imediatamente o que fazer", resmungou o médico. "Cada momento perdido é de importância vital. Há na cidade um hábil cirurgião. Temo que ela nem esteja em condições de ser removida para um hospital".

 

Irene percebeu o avizinhar-se da morte. Estava em seu quarto, no hotel, muito enfraquecida para mover-se e até para falar. Realizara-se a operação, mas, ao voltar do clorofórmio, deixou-se obcecar pela estranha impressão de que ia morrer. Não se importava... Não se importava muito. Sentia-se tão cansada... De quando em vez os sentidos devaneavam obscuramente e cenazinhas do passado flutuavam-lhe na memória. Reais, e, no entanto esquisitas, as pessoas surgiam como que diminuídas, como se as visse pelo lado oposto de um telescópio. Havia sua mãe, mulher morena, silenciosa, sentada a um canto da sala a fazer crochê. Engraçado, via nitidamente o desenho de rosas do cretone, até o lugarzinho que o pai queimara com o cigarro. Entra o pai e manda-a sair. Por trás da porta fechada, ouviu a briga. Então o pai furibundo deixara a casa, sem nem ao menos procurar por ela. E nunca voltou. Ela amara-o tanto, como as crianças sabem amar. Mas ele não voltou. "Tanto melhor", dissera-lhe a mãe, apertando os lábios finos. "Que homem desregrado!" E continuou o crochê. . . Somente depois da morte da mãe, depois de dez anos passados, encontrou de novo o pai. Via-o agora sentado na poltrona de couro, segurando o cachimbo, contemplando o fogo do carvão na lareira do escritório, dizendo-lhe, ao cientificar-se de que ela estava em apuros, em virtude de Lance. "Não posso censurá-la, garota, temo que meu sangue circule fortemente em suas veias. E não o julgo sangue tão mau assim. É melhor que o de sua mãe, conquanto tenha sido uma puritana. É mais natural... e esse artista de cinema, quer casar com você?" A essa altura Lance lhe voltou à memória. Via tudo mais claro, agora. Lance encheu toda a cena. O seu Lance, tão belo, querido e maravilhoso. Fora entrevistá-lo em nome de um dos jornais do pai. Almoçaram juntos; depois, muitas vezes, jantaram juntos. Foram vogar numa canoa do Tâmisa, numa noite de luar veludoso e dourado... Ele resmungara: "Não espera casar-se comigo, hein Irene?" Ela balbuciara "Não", temendo perdê-lo, se dissesse "Sim". Mas pensara: "Casará comigo depois. É dever seu". E casara... Desde então, quanta humilhação e sofrimento. Ele não teria casado, não fosse o pavor que lhe inspiravam os seus jornais. "Amo-o por nós dois", dissera-lhe no dia em que, afinal, Lance concordou. "Amo-o tanto que você também terá de amar-me!..." Diluíram-se as recordações. Irene fitou o teto enfeitado, o sol crepuscular, a enfermeira, os dois médicos, Bruce em pé a um canto do quarto, desajeitado e tristonho.

Começou a perceber que a cama, a pouco e pouco, sumia debaixo dela. "Estou morrendo", pensou e ergueu uma das mãos, como a agarrar a vida desesperadamente. A mão, entretanto, tornou a cair, mole, inútil. Como estava fraca. Súbito recordou-se da carta que escrevera ao pai. Carta denunciando Lance e Odette, contando-lhe quanto sofrerá por causa de ambos. Essa carta iria arruiná-lo. Seria a destruição de sua carreira. Ah não, não!... Não faria isso. Compreendia agora que nunca tivera intenções de causar-lhe o menor dano. Amava-o demais. Lance precisava crescer ainda, tornar-se ainda mais famoso, ainda mais querido de todo o mundo. Era preciso destruir a carta. Abriu os olhos com imenso esforço e fez sinal a Bruce. "Aquela carta" balbuciou ela, "na gaveta... da secretária...por... favor..."

Nada mais pôde pronunciar.  Assim morreu.

"Ela falou numa carta", pensou Bruce. "Disse estar na gaveta da secretária. Desejava naturalmente que a pusesse no correio".

 

ESCURECIA quando Lance e Odette alcançaram o acampamento dos nativos. Avistaram-no de longe, os tugúrios de barrote, iluminados pelo sol moribundo, os telhados como que mergulhados em ouro.

"Ali está ele", disse Odette serena. Sentia-se exausta demais para entusiasmar-se, exausta para qualquer outra coisa senão aceitar o que viesse. Haviam caminhado o dia todo, com pequenos intervalos de descanso pela estrada. Parecia-lhe haver andado anos inteiros. No entanto, não tão fatigada quanto Lance, cujo físico maravilhoso nos filmes era mais o resultado de hábeis massagens que de exercícios árduos. Percebia-o agora. E não dominava o mau gênio. Conquanto encarnasse valentões em suas películas, não era dos que suportavam a adversidade com sorrisos. Resmungara o dia inteiro, dizendo palavrões em voz baixa, toda vez que dava de encontro a alguma pedra ou tropeçava.

Odette fitava-o de quando em quando, pesarosa, meditativa. Onde estava Lance, o seu herói? Nunca existira, então? Qual dos dois ela amava realmente, o Lance de carne e ossos ou o ídolo cinematográfico? Com uma parcela de todas as figuras românticas que incarnara, ela tecera o Lance de seus sonhos. Mesmo agora, não separava o homem fraco do da ilusão. Ao ouvi-lo falar, esperava sempre por palavras de encorajamento, as que ele repetia diante do microfone. Ou esperava vê-lo sorrir, suavizando assim os maus momentos que atravessavam.

Certa ocasião, sentados num rochedo, ela protestou: "Julguei que você enxergasse nisto uma simples aventura, Lance. Ainda estamos vivos!"

"Está certo, mas se não chegarmos àquela maldita aldeia, a coisa não tardará", resmungou ele. "Meus pés estão em carne viva, minhas costas doem infernalmente. Hershaw agiu com juízo. Foi malandragem dele, empurrar-nos o pior".

Odette enrugou o cenho. “Esquisito, não?"

"Nem tanto, quando se considera a espécie de homem que é".

"Como sabe qual seja a sua espécie, se mal o conhece?" retrucou magoada.

"Conheço-o", resmungou Lance. "É um demônio sarcástico, e porque conseguiu duas fitas aprovadas pelos críticos — que não são em absoluto sucessos de bilheteria — tornou-se horrivelmente convencido".

"Não o chamaria de convencido", replicou ela pensativa.

Lance fixou-lhe um olhar penetrante: "Você está sempre a defendê-lo. Por quê?"

"É que... talvez eu goste dele".

"Ah, sim?" E apertou' as sobrancelhas. "É mais do que posso fazer. No entanto", acrescentou numa curta risada, "não surpreende que você goste dele: lisonjeia-a, faz-lhe a corte!"

Um leve rubor subiu ao rostinho branco, cansado. "Sim? Não o havia percebido".

"Não seja incoerente, Odette", disse ele irritado. "Claro que o notou. Ele está apaixonado por você, e por isso vive a diminuir-me".

Ao continuarem a subida, Odette refletia sobre o caso. Não era fácil a escalada: arbustos arranhavam-lhe os tornozelos, areia áspera entrava-lhe nos sapatos, já quase imprestáveis. Pensar em alguma coisa ajudava-a a esquecer a fadiga. Então, Paul a amava? Nunca o confessara. E se fosse verdade, que sentia ela por ele? Ao se encontrarem pela primeira vez, discordaram abertamente um do outro. Ela detestara o completo realismo de sua atitude com relação à vida e ele zombara de seus ideais romanescos. Mas depois... Acontecera tanta coisa. Teriam mudados os seus pontos de vista? Enervava-a ser obrigada a admitir que sim. Era, por natureza, extremamente leal e esforçava-se por conservar os velhos laços, as velhas amizades, até o velho amor.

"É interessante que isto nos tenha acontecido", interrompeu Lance após longo silêncio. "Deve haver lá em cima um brincalhão irônico a divertir-se com a peça que nos está pregando. A situação parece copiada de um de nossos filmes. No entanto, como a vida real é diferente!"

"Também pensava nisso", murmurou Odette.

"Prova quão absurdas são as nossas películas, não é verdade? Ninguém pode ser tão heróico na vida real como fazem parecer as fitas de cinema. É fora de dúvida".

"Não vejo porque", protestou ela vagamente.

"Não? Imagine eu, agora, a fazer-lhe a corte: não seria burlesco? Ambos tão cansados..."

"O heroísmo não cuida apenas de cortejar", frisou Odette. "É mais uma questão de sacrifício voluntário feito por outrem".

"Será. Mas não acredito nesse sacrifício voluntário feito por outrem. E você? Podendo evitá-lo, não o fará".

"Mas é que as criaturas que amam verdadeiramente, sempre se sacrificam por aqueles a quem amam. Mães e pais sacrificam-se pelos filhos. Maridos e mulheres, quando se amam, também o fazem".

"Talvez tenha razão", admitiu Lance. Compreendera subitamente ter falado demais. E não queria desiludir Odette a seu respeito. Sem ela, onde iria parar? Após o casamento, fora forçado a reconhecer ainda mais o quanto ela lhe era imprescindível. Sem Odette não manteria o feitiço que lhe cercava a personalidade de galã. Possivelmente esse feitiço fora conquistado primeiro por Odette, e ele, ator de verdade, lhe correspondera à altura.

"Tenho-me comportado como urso mal humorado; lamento-o, queridinha. Ultimamente Irene me tem aborrecido e perseguido tanto, que não me tenho dominado".

"É verdade", acedeu ela.

Antigamente teria sofrido e perdoado incontinenti. Agora, conquanto tivesse perdoado, não podia esquecer-se de suas palavras.

"Costumávamos ser tão felizes, não benzinho?" murmurou Lance.

Ela meneou a cabeça. Tinha uma horrível impressão de vazio, de desilusão, mas ignorava o que havia perdido.

"Imagine que não achemos o caminho daquela aldeia", disse ela de repente. "Se morrêssemos nesta solidão?"

"Não seja pessimista", grunhiu ele. "Absolutamente, não estou disposto a morrer.

Um risinho divertido curvou-lhe o canto dos lábios, ao continuar a custo a jornada. Na atual película proferia palavras semelhantes. E Lance o herói, replicava:

"Por-me-ia de joelhos, dando graças ao Senhor, por ter o privilégio de morrer a seu lado".

Paul, de certa maneira, tivera razão, naquela primeira noite em que palestraram juntos. Talvez algumas fitas suas fossem tolas paródias da vida, como ele dissera. Até agora relutara em admiti-lo. Os macios retalhos do romance ainda lhe eram preciosos.

A aldeia afinal apareceu, e ao avistá-la, animou-se de novo Odette, esquecendo-se do cansaço e do desânimo. Lance também parecia mais satisfeito. "Permita Deus que encontremos aqui alguém que fale inglês", resmungou.

Encontraram-no com alguma dificuldade. A princípio os nativos os cercaram suspeitosos e fugiram, logo que Odette e Lance se aproximaram. Depois um homem atravessou o bando e declarou: "Falo inglês muito bem. Mim trabalho pra sinhô inglês em Tanger".

Pacientemente, explicaram-lhe o que se dera, ele conhecia a ponte referida e garantiu ser possível mandarem socorro na manhã seguinte, caso o cavalheiro e a senhora tivessem dinheiro, o que sublinhou, fitando-os astuciosamente, com olhinhos de conta.

Afirmou-lhe Odette que tinham dinheiro e mais ainda lhes seria pago, se trouxessem salvos, de volta, Paul e o carro. O homem sugeriu que se mandassem com os homens que os fossem socorrer, algumas taboas, para fazer o carro atravessar a garganta, que era muito estreita.

Na aldeia não havia hotel. Nessa noite Odette e Lance contentaram-se com o colchão sobre a úmida terra batida. Não havia comida que se assemelhasse de longe o que estavam habituados a comer. Mas consolaram-se, com a promessa de, na manhã seguinte, lhes trazerem cavalos e um guia para conduzi-los à aldeia onde ficara Hankins, o fotógrafo.

"Permitam os céus que ele consiga um carro em algum lugar", disse Lance. "Outra noite neste ermo acabará comigo. Santo Deus, que aventura!"

"De fato, foi uma aventura", consentiu Odette calmamente.

Deitou-se no colchão de palha, olhos fixos numa nesga de luar que penetrara por uma fenda, na grossa parede de barrote. Para ela a aventura fora mais moral que física.

"Odette", a voz de Lance chegou-lhe macia, da escuridão, "posso dar-lhe um beijo de boa-noite, querida?" Depois de alimentado, ele sentia-se outro, mais descansado e contente com a vida.

"Temo que não, Lance". E acrescentou humildemente: "Compreenda, por favor".

"Compreender o que? Está fatigada demais ou enclausurada em virtudes, devido a Irene?" No entanto, riu branda e indulgentemente, ao dizê-lo.

"Um pouco os dois", consentiu ela.

"Tolinha querida, tenho ganas de ir até aí e beijá-la!" exclamou ele baixinho.

"Não, Lance!" Em sua voz havia quase terror. Não iria beijá-la nessa noite. E não apenas por estar cansada ou por causa de Irene. Era a sensação de vazio, de confusão que não conseguia explicar a si mesma.

 

Ao tornar a vê-los no pequenino largo do mercado, Hankins abraçou-os quase chorando de alegria. Enviara nativos à procura, em todas as direções. Conseguira, depois, de percorrer cinqüenta quilômetros a cavalo, uma ligação telefônica para Marrakesh, tarde da noite. E Luke arranjara um avião para auxiliá-los na busca.

"É confortante sabermos que algo estava sendo feito", observou Lance grandemente aliviado. "O avião talvez encontre Hershaw. Terá sido azar nosso, quase termos morrido na horrível subida e vê-lo chegar em terra com facilidade e elegância".

"Terei grande prazer em vê-lo de volta, pouco me importa como chegue!" declarou Odette comovida.

Lance atirou-lhe um olhar perscrutador, mas guardou silêncio.

Logo que chegou o carro, tomou conta dele e insistiu com Odette e Hankins para seguirem imediatamente com destino a Marrakesh.

Como Odette protestasse. Lance argumentou: "Se está preocupada com o carro, sossegue, pois não faltará gente que o leve de volta. Luke precisa quanto antes de nós, para as cenas à nossa espera. Nada podem fazer sem estarmos lá, e cada dia de ausência deve custar aos estúdios centenas de libras".

Odette deixou-se persuadir. Mas continuou preocupada com Paul. Ele ficara de livre vontade, é claro, e mesmo que o avião não o descobrisse, o grupo de nativos que saíra à sua procura, daria forçosamente com ele, antes do escurecer. Estava há quarenta e oito horas sem alimento, mas ela própria já experimentara desses regimes de dieta rigorosa. Não havia por que se preocupar. Era esquisito estar assim inquieta. Lance notou-lhe a abstração e aborreceu-se. Passado o perigo, sentia-se mais à vontade. Voltava-lhe facilmente a aparência de namorado terno e encantador. Referia-se à aventura com entusiasmo.

"Que maravilha, termos estado sozinhos naquelas paragens! Guardarei essa lembrança toda a vida, meu bem".

"Mas você, na ocasião, não parecia maravilhado"; observou ela secamente, pasmada da franqueza com que falara. Ele também se espantou. A observação não coadunava com Odette. Ela jamais deixara de concordar com suas tiradas românticas.

"O mal foi eu estar preocupado com você", explicava.

Odette não deu resposta. Não desejava prosseguir na discussão. Pareceu-lhe inesperadamente, tão sem importância... "É que estou cansada, deve ser isso..."

Já era escuro quando alcançaram Marrakesh. A cidade recebia da lua, imensa bola branca, uma claridade esbranquiçada. Contra o fundo negro, as casas quadradas eram de um branco irreal e o minarete da mesquita de Kutubia uma vela branca, apontando para os céus. De longe, as luzes da cidade eram fracas e incertas, como vagalumes errantes, fantásticos, misteriosos. Lance passou o braço pelo de Odette. "De volta outra vez, queridinha", sussurrou-lhe... "De novo aqui, temo a volta à civilização. Quando nos recordarmos da aventura, juntos, ela nos parecerá infinitamente preciosa, tenho certeza".

Outra vez suas palavras não encontraram eco. Ela não podia esquecer-se de que, por algum tempo, a aventura, em absoluto, não lhe parecera preciosa. E conjecturava com amargura, se a maioria dos heróis eram mais heróica retrospectivamente, que na hora do perigo. Mas afastou a idéia: "Estou me tornando odiosa", pensou.

Bruce foi o primeiro a encontrá-los. Estava há muito à sua espera, no saguão do hotel. O rosto pálido, com sobrancelhas ruivas ainda ficava mais pálido. Fundas olheiras cercavam-lhe os olhos, como se não tivesse dormido.

"Graças a Deus estão de volta", disse ao levantar-se da funda poltrona. Mas fitava apenas Odette. Nem sequer olhava para Lance. "Estava tão aflito..."

"Ora essa, Bruce", sorriu ela suavemente, "devia saber que era apenas questão de tempo. Se pensasse um pouco não se afligiria".

Ele sorriu irônico. "Ninguém ouve o que diz a razão num momento desses. A senhora poderia ter sido capturada por bandidos árabes".

Odette tornou a sorrir: "Isso é parecido demais com um filme, para ser verdade, Bruce".

Este ergueu uma sobrancelha: "Pensava que a vida, em sua opinião, fosse assim, Miss Odette".

Ela abanou a cabeça e um estranho sorriso perpassou-lhe no rosto: "Este tempo já se foi, Bruce".

Bruce atirou a Lance um olhar brusco, dardejante. O artista, visivelmente impaciente, conservara-se afastado. Bruce franziu os lábios; uma revolta contida brilhava-lhe nos olhos pálidos. "Tenho más notícias para a senhora, Miss Cosway", disse erguendo propositalmente a voz.

Ela estacou, alarmada ante a súbita gravidade de seu modo de falar. "Más notícias Bruce?"

Ele inclinou a cabeça e desviou o olhar para Lance.

"Sim, a sua secretária, Miss Carter... faleceu".

"Não é possível!" gritou Lance adiantando-se rápido e parando, de olhos arregalados, diante de Bruce. "Não é, não pode ser verdade". Tremia-lhe a voz; tremiam-lhe as mãos, seu belo rosto cobriu-se de suor.

"É", insistiu Bruce e os olhos pálidos continuaram fixos no semblante de Lance. "Miss Irene sentiu-se doente de repente foi operada ontem à tarde. Morreu horas depois".

"Não posso crer, meu Deus!" balbuciou Lance desfigurado.

"Que horror!" gemeu Odette cobrindo com as mãos o rostinho branco.

"Sim, não ignorava o quanto a notícia iria magoá-la", observou Bruce calmo. De novo seus olhos fitaram Lance.

"Dê-nos detalhes", insistiu Lance com a voz rouca. "Não compreendo..." Interrompeu-se bruscamente, receoso de demonstrar mais preocupação do que devia. Não conseguia compreender. Irene morta...estava demasiado atordoado pelo choque, para avaliar o que a nova situação representava para ele.

Bruce deu-lhes detalhes. Ao ouvi-lo, Lance caminhava de um lado para outro, passando a mão nervosa na espessa cabeleira ondulada.

"Foi pena, em seus últimos momentos, não estar aqui presente uma pessoa da família", concluiu Bruno

"Sim, foi pena", repetiu Lance.

"Que judiação!" balbuciou Odette. "Ela... não disse... nada? Isto é..." Lance perturbou-se, rubro, embaraçadíssimo, "não fez declaração alguma?"

Bruce fitou-o de modo enigmático: "Não disse nada de importância".

Lance respirou profundamente, suspirou aliviado.

"Para quando os funerais?" perguntou.

"Amanhã", respondeu Bruce.

"Preciso, precisamos ir até lá", disse Lance indeciso, e acrescentou rápido: "Era sua secretária, Odette. Devemos fazer tudo o que pudermos por ela".

"Sim, se eu fosse o senhor, iria...visto ter sido ela a secretária de Miss Cosway", concluiu Bruce serenamente.

 

Na manhã seguinte Odette, soube que Paul Hershaw estava de volta no hotel. Chegara de avião, muito tarde, na noite anterior — no mesmo avião que o descobrira. Soube da notícia, ainda na cama, deitada de costas, protegendo os olhos contra a luz do sol forte e brilhante desde cedo. Seus cabelos, sobre a fronha de linho alvo, formavam como um lago de ouro a rodear-lhe o formoso rosto. Ainda parecia cansada.

"Paul está de volta", pensou aliviada, numa sensação de quase felicidade. Não julgava gostar tanto dele, nem que existisse tanta amizade entre ambos. Coisa esquisita conhecia-o há pouco tempo.

A secretária de Luke Orimsby trouxera-lhe a informação. Viera ao quarto de Odette cientificá-la da hora em que Luke a esperava para a filmagem, naquela manhã.

"Foi pena o que aconteceu ao tornozelo de Mr. Hershaw" continuou ela. "Levará tempo, até que possa andar".

Odette ergueu-se sobre um cotovelo e afastou do rosto alguns fios dourados de cabelo. "Que lhe aconteceu ao tornozelo?"

A moça pareceu surpreendida. "Não sabe? Não estava com ele quando se deu o desastre? Seu tornozelo está quebrado. Há vários dias. O médico julga necessário tornar a quebrá-lo, para emendá-lo direito. Como há de ser doloroso!"

E continuou a falar, contando a Odette as novidades dos últimos dias: as cenas filmadas sem ela e Lance, várias alterações intercaladas; Luke tivera tempo de estudar, na ausência de ambos. Mas Odette não lhe dava ouvidos.   Paul quebrara o tornozelo, mas quando? Certamente depois de sua partida. Impossível ter acontecido antes, pois não o teria abandonado. Não todos dois, pelo menos. O incidente se verificara depois que partiram. Ainda assim, quanto mais refletia, mais forte se tornava a dúvida. Fora esse o motivo que o impediu de acompanhá-los? Mas com que intenção? Teria escondido propositalmente o fato para não os prender ali?

Urgia saber. Urgia ver Paul, para verificar a verdade. O impulso foi forte demais, para ser contido. Nem esperou pela saída da secretária, para vestir-se. Preparou-se em cinco minutos, como há muito não o fazia. Não que fosse vaidosa; fazia parte, contudo, de sua profissão só aparecer em público imaculada. O feitiço que lhe cercava a personalidade de artista devia persistir em sua vida particular. Não permitiria que dela dissesse uma empregadinha ou uma dama da sociedade: "Vi hoje Odette Cosway; como estava mal arrumada!"

Ao bater à porta de Paul, estava quase sem fôlego. Como se houvesse corrido muito, quando na realidade apenas um corredor os separava.

Ele gritou "Entre!" e ao abrir a porta Odette não viu viva alma. "Quem é?" A voz de Paul soava impaciente. Localizou-a num pequeno terraço mourisco que dava para o quarto.

Foi até lá. O sol causticava e Odette ficou momentaneamente deslumbrada, quase cega pela luz: tudo era tão branco, até o terraço de estuque alvo brilhava, falseava.

"Odette, filhinha, vem visitar-me a estas horas? Será uma honra ou não?" Notava-se-lhe na voz um tom de brincadeira. "Esperava por sua visita, mas não antes do café".

Sentado numa cadeira preguiçosa, seu pé descansava numa banqueta de marroquim vermelho. Ele fez uma careta, indicou o pé e acrescentou: "Perdoe-me ficar sentado. Um pequeno acidente. Nada de importância, nem de romântico!" E seus olhos cinzentos brilharam felizes ao fitar os dela intensamente azuis.

Agora, à sua frente, ela se acanhava; Paul tratava-a como criança impulsiva e simples.

"Sim, contaram-me de sua chegada. Fiquei a conjecturar no que lhe teria acontecido depois de nossa partida".

Ele sorriu ligeiramente. "Nada; continuei sentado, a meditar sobre tanta coisa... tenho idéias para sagas futuras que me poderão servir para uma centena de anos. A dificuldade é encontrar um estúdio com inteligência bastante para financiá-las. Quem tem idéias não tem dinheiro, quem tem dinheiro não tem idéias".

Odette tinha a impressão de que Paul falava para ganhar tempo. Parecia temer a sua pergunta fatal, tanto quanto ela temia fazê-la.

"Quando foi que quebrou o tornozelo?" perguntou postando-se diante dele qual um anjo acusador, os loiros cabelos chamejantes ao sol. "Quebrou-o antes que partíssemos, não foi?"

Pelo súbito rubor que cobriu as têmporas de Paul, ela verificou ter acertado. "Porque não nos contou?" e continuou, sem lhe dar tempo de responder: "Não o teríamos abandonado, de maneira alguma".

"Disso sabia eu", disse ele visivelmente contrafeito. "Mas que adiantava fazer reboliço? Nenhum dos dois se ficasse, me poderia auxiliar, e talvez fizesse mal a si próprio".

"Como assim?"

"Ora, teria uma longa espera, muito incômoda e sem nada que comer, até chegar socorro. Não calculei que um aeroplano, pouco depois, voasse por ali, a nossa procura".

"Que homem corajoso!"

O rosto simpático de Paul enrubesceu. Tentou ocultar a perturbação com uma risada seca. "Por favor, Odette, não queira transformar-me em herói. Além de cômico, será ridículo. O heroísmo não é meu gênero, afirmo-lhe".

"O heroísmo tem algo que ver com o gênero das pessoas?"

Ele sorriu à socapa. "Com certeza. Sou um realista e um cínico. É este o meu feitio. E nada detestaria tanto como ter de abandoná-lo".

"Sabe de uma coisa?" ela sentou-se na balaustrada, a balançar o tornozelo sedoso fitando Paul com a testa levemente franzida. "Seu cinismo não passa de subterfúgio, é demasiado sensível, coloca-se sempre na defensiva".

"Está se tornando psicóloga", tornou ele brejeiro. "Ou andou consultando estrelas?"

"Não importa", insistiu ela, "agiu com heroísmo, mas sem necessidade".

Ele esboçou um sorriso. "A maioria dos atos de heroísmo neste mundo são desnecessários. É uma dura verdade que aprendemos ao envelhecer".

"O que não lhe tira a glória", declarou Odette.

"Nem a gente depois se julga um perfeito idiota", corrigiu ele rindo.

 

Estavam findos os funerais. Acompanhar o fino caixão de cedro até o cemitério foi uma das maiores provações já sofridas por Odette. Pela vez primeira, entrara em contato direto com o profundo horror e a majestade da morte. Já perdera os pais, mas a esse tempo era muito criança para compreender. E o fato de serem ambos idosos — a mãe tinha mais de quarenta anos, quando Odette nasceu — auxiliara a atenuar-lhe o choque. Odette sentiu a morte de Irene como um súbito arrebatar de algo ainda penosamente incompleto. E o fato de ter morrido sozinha acrescentava mais horror à tragédia.

Lance estava visivelmente perturbado. Não a tinha amado, mas Irene fora sua mulher. Sentia remorsos pelo tratamento rude que lhe infligira. Quanto mais o acusava a consciência, mais se agarrava a Odette.

Nessa noite não quis jantar. E como todos insistissem, ficou até ao meio da refeição, depois empurrou o prato e levantou-se da mesa.

"Não me estou sentindo bem", disse de repente. "Vou dar uma volta".

"Como ele sentiu a morte de sua secretária", observou Luke a Odette. "Dir-se-ia que gostava dela. Mas é ridículo, com você perto, minha cara!" acrescentou com uma piscadela.

"Lance é muito impressionável", murmurou Odette, olhos fitos no prato. "Coisas assim o comovem muito".

Luke beliscou o largo e feio nariz. "Nunca imaginei Lance impressionável", disse com uma risadinha.

Odette imediatamente saiu em campo para defendê-lo. A generosidade era um de seus característicos mais encantadores. "É sim, é muito emotivo também. Foi comigo hoje, ao enterro, e ficou inutilizado".

Luke mudou de assunto. Continuava a achar estranha a conduta de Lance. Intrigavam-no as coisas esquisitas que haviam acontecido depois que deixaram a Inglaterra. Sentia-se como pai de uma grande e teimosa família. Que satisfação provaria ao aportar com todos de volta, em Londres outra vez! Ainda bem que a partida estava próxima. Precisavam estar em Londres para a avant-premiér da última película de Lance e Odette, a Adorada Pecadora. Era de vantagem que as estrelas presenciassem as estréias. Auxiliava a publicidade.

Acabado o jantar, Odette foi ao quarto de Lance e bateu de mansinho. Talvez ele precisasse de consolo.

Não o encontrou. Procurou-o inutilmente. Sem vontade de conversar com outras pessoas, resolveu recolher-se em seu quarto. Deitou-se, tentou ler, mas devia estar demasiado fatigada, pois logo adormeceu. Ignorava quanto tempo dormira mesmo se tinha dormido, quando ouviu baterem à porta e uma voz de homem chamar: "Odette, sou eu. Por favor, deixe-me entrar. Preciso falar-lhe".

Ela piscou os olhos, ofuscada pela luz e pulou da cama, derrubando o livro no chão. Adormecera completamente vestida.

"Está bem, Lance. Um minuto".

"Foi ao toucador, endireitou os cabelos para ganhar tempo. Pelo tom de sua voz, percebia que o choque sofrido com a morte de Irene o derrubara. Necessitava de toda a coragem para abrandar-lhe os remorsos e fazê-lo voltar à tona, novamente. Baixou os olhos para o relógio-pulseira. Quase duas horas. "Meu Deus, como dormi!"

Caminhou pelo tapete, sem ruído, e abriu a porta. "Entre, Lance". Ele entrou e Odette assustou-se com sua aparência. Cabelos emaranhados, olhos vermelhos de chorar e o terno de corte impecável todo amarrotado e poeirento.

"Que é isso, Lance?" perguntou aflita.

Ele afundou na cama e apertou a testa com os punhos cerrados. "Lamento incomodá-la", resmungou. "O remorso me devora. Sinto ter sido um canalha para com ela e com você. Tentei distrair-me caminhando, para raciocinar com nitidez, mas não consegui".

Odette sentou-se ao lado dele, passou os dedos finos pelos cabelos umedecidos, procurando acalmá-lo. "Sei o que está sentindo, Lance. Sei... não se deve torturar assim. Não quero ser dura, mas tudo se acabou e sua aflição não fará com que Irene recobre a vida".

"Mas o que mais me apoquenta é você", gemeu ele. "Tive esta noite a impressão horrorosa de que a perdi. Nada que você tenha dito ou feito. Mas senti-o, e fiquei horrorizado, querida. Sem você, Odette, nada virei a ser. "Nem mesmo poderei viver".

"Bobagens, Lance" consolou Odette, a voz hesitante.

Ele alcançou-lhe a mão e agarrou-lhe o braço. "Sei disso, mas continuo com a mesma impressão. Com o tempo viremos novamente a ser felizes, não é? Não quero forçar sua decisão agora — nem sequer falar-lhe — mas eu... não posso agir de outra maneira. Não viverei, se você não me prometer que, passado algum tempo — nós dois —". Não terminou a frase, mas aumentou a pressão no braço dela. Já dominava e exigia.

"Não pode precisar assim de minha pessoa, Lance".   Havia medo em sua voz.

"Se preciso!" insistiu ele. Inclinou-se de repente e beijou-lhe a mão.  "Minha queridinha!" gemeu.

Odette apertou-lhe os lábios com os dedos: "Psiu. Lance, agora não!" Tremia ligeiramente. O delgado caixão de cedro estava sepulto há muito pouco tempo.

"Compreendo", murmurou ele, "não devia ter falado, devia esperar alguns meses, mas... não me pude conter. Quero saber, Odette. Preciso saber que a não perdi. Não fechei os olhos a noite passada e não dormirei esta, se não me der uma esperança, apenas um pouco de esperança, meu bem".

Por uns minutos ela não deu resposta. Tudo silenciara no quarto. Ouvia-se até o tic-tac do relógio-pulseira. Suas emoções estavam como mortas. Não sentia coisa alguma, exceto uma profunda piedade por Lance. Mas seria isso amor, coisa que semelhasse amor? Quanto o amara, antes. Sem dúvida, voltaria a amá-lo, quando a estranha sensação de entorpecimento a abandonasse e a recordação do caixão de cedro não mais ocupasse o primeiro lugar em seus pensamentos. Lance precisava dela. Precisava agora mais do que nunca.

"Odette, não me deixe nesta aflição. É horrível". Sua voz embargou-se.

Ela respirou profundamente. "Está bem, Lance... mais tarde... quando ambos tivermos esquecido um pouco".  Sua voz era inexpressiva.

"Minha adorada!" Rapidamente ele enlaçou-a nos braços e sua voz soou com um misto de alegria e alívio. Tê-la-ia beijado então, se Odette não o tivesse vivamente afastado.

"Agora não, Lance", sussurrou. "Por favor, vá embora".

 

LUKE GRIMSBY tornara-se um quase feitor de escravos. Resolvera que Lance e Odette deviam presenciar a estréia de Adorada Pecadora em Londres, e de fato chegaram a tempo.

Quando o navio atracou no cais, no sábado seguinte, foi cumprimentado por Hal Leaman em pessoa. "Bom trabalho, Luke. Desejava muito a presença de Lance e Odette para a avant-première de segunda-feira. Será um sucesso. Como vai o novo filme?"

Luke sorriu e esfregou o narigão, satisfeito e pensativo.   "Até agora, O. K."

"Magnífico", disse Leaman. Um ok de Luke significava grande entusiasmo e Hal sabia disso.

Afastou-se dele para saudar Odette e Lance. Ela parecia mais magra e pálida que habitualmente. A estadia na África não lhe fora fisicamente vantajosa. Talvez o calor, talvez a morte de sua secretária... Tivessem impressionado a sensitiva Odette.

"Senti muito o desgosto que lá passou", disse-lhe bondoso.   "Era sua secretária, não era?"

"Era", concordou Odette sacudindo a cabeça.

"Pois é, coisas dessas às vezes acontecem, não é mesmo, Furner? Não se deixe abater demais".

"É o que venho repetindo a Odette", respondeu este.

A aparência de Lance era magnífica. Fizeram-lhe bem os últimos dias a bordo, o pensamento desimpedido. Passado o primeiro choque, julgava aquele desenlace mais uma bênção que uma tragédia. Felicitava-se continuamente por haver mantido secreto o casamento. Após algum tempo Odette e ele haveriam de casar e ficava tudo resolvido pelo melhor. O pai de Irene estava a par dos acontecimentos, sem dúvida, mas Lance conseguiria persuadi-lo a guardar segredo. Se durante o curto período em que Irene fora sua mulher, ele silenciara, por que haveria de, agora, tagarelar? Precisava ir ver o velho, mas podia adiar a visita até a próxima semana, Desculpar-se-ia dizendo-se tão atarefado com negócios, que não tivera um momento livre. Lance tinha por norma adiar as obrigações desagradáveis.

Paul Hershaw mancava pelo tombadilho, apoiado a uma bengala.

"Foi lamentável o seu acidente", comentou Leaman.

"Temo que me tenha inutilizado", desculpou-se Paul.

"Absolutamente, você auxiliou muitíssimo, foi o que Luke me disse".

Hershaw não revidou. Limitou-se a sorrir. Luke apreciava-o mais quando ele não abria a boca e Paul sabia disso.

Mancando, saiu a procura de Odette. Teve a sorte de encontrá-la só. Lance fora desimpedir as bagagens, e Bruce vigiava o carro descer em terra. "Bruce anda esquisito ultimamente", pensou Odette. Mal lhe falara na viagem de volta, e com Paul se dera o mesmo.

"Paul, onde foi que se escondeu este tempo todo? Seu tornozelo judiou-o tanto assim?"

"Não muito. Mas você estava sempre distraída, quando me aproximava".

Ela esboçou um sorriso. Era verdade. Lance estivera todo o tempo a seu lado, durante a viagem. Depois da morte de Irene parecia mais preso a ela que nos primeiros dias de noivado.

"Estranha aventura a nossa, lá no alto da montanha, não?" disse ele sereno.

Ela inclinou a cabeça. Juntou as mãos e apoiou-se à balaustrada.  "Muito estranha", e suspirou.

Paul, sobrancelhas franzidas, fitou-a intrigado.

"Por que suspira? Foi dolorosa a experiência?"

Um sorriso tristonho perpassou-lhe no rosto. "É sempre doloroso aprender demais, não acha?"

"Depende do que aprendemos".

"Lógico" concordou Odette, e mudou de assunto.

Odette pensava em Lance. O amor idealista que sentira por ele pertencia ao passado, fossem quais fossem os acontecimentos futuros. Ainda poderia amá-lo — e tentava persuadir-se disso — mas o romântico namorado de seus sonhos estava morto. Comprometera-se novamente a desposá-lo, porque Lance ainda precisava dela, mas unicamente por essa, razão.

"Talvez siga breve para Hollywood", contou-lhe Paul.

Ela estremeceu e ergueu os profundos olhos azuis. "Isso é surpresa, não é?"

Ele meneou a cabeça. "A notícia estava a minha espera. Segundo parece, o meu agente recebeu uma boa oferta em minha ausência, oferta de uma companhia de lá. Há muito que discutir, é claro, será preciso que os Gelway Studios me dêem liberdade".

"Qual a sua impressão?"

Ele fez uma careta e os olhos cinza brilharam. "Não me tornei para eles negócio vantajoso", murmurou. "Minhas películas não conservam o bom humor dos acionistas, como sabe".

"Mas você, ao menos, reproduz a vida tal qual é".

Os olhos de Paul fuzilaram. "Nunca pensei ouvir isso de sua boca, Odette".

Ela riu, mas havia laivos de escárnio em seu riso. "Outra coisa aprendida há pouco, Paul".

"Pois o lamento", tornou ele. "Desejaria que continuasse eternamente presa ao seu castelo de sonhos". E acrescentou: "Seu trabalho não sofrerá com isso, espero".

Ela fitou-o pasmada. "Que quer dizer?"

Paul tirou um cigarro, bateu-o no balaustre. "Quando nos encontramos da primeira vez, você cria religiosamente no que interpretava. Agora, não crendo mais, poderá julgar seu trabalho desinteressante. Talvez lhe seja necessário mudar de gênero e obter outra espécie de argumentos".

"Não será possível. Tenho um contrato. Além do que, nunca saberei representar tipos novos. Você me assusta, Paul".

Este sorriu pesaroso. "Longe de mim a idéia de assustá-la. Mas poderá interpretar outro gênero de heroínas. Você mudou muito, desde que a conheço. Transforma-se dia a dia; tem mais compreensão, mais experiência da vida, o que já se nota em sua fisionomia e deverá ser observado em sua atuação. Como gostaria de dirigir um filme seu, Odette!"

Ela riu. "Seria o fim de minha carreira romântica".

"Talvez seja. Sem falso orgulho, eu poderia torná-la uma grande artista. Outra Greta Garbo. Talvez um dia se apresente a oportunidade. A vida é caprichosa, nunca sabemos..."

 

Londres estava nublada, quando à noite a atravessaram de automóvel. As luzes dos ônibus semelhavam olhos de enormes e disformes animais pré-históricos, avançando ao seu encontro.

"Parece incrível que exista um sol intenso como o de Marrocos", observou Odette ao olhar pela janela. "Nossa estadia lá já me dá a impressão de um sonho".

"E, em parte, de um sonho encantador", sussurrou Lance segurando-lhe a mão.

Odette não respondeu. Para ela não fora encantador.

De volta ao ambiente agradável que lhe era habitual, Lance readaptava-se facilmente ao papel de grande amoroso. Seus gestos e palavras semelhavam os que no passado tanto a tinham enfeitiçado, aumentando-Ihe ainda o amor. Mas agora, sempre que procurava retribuir-lhe as manifestações de carinho, sentia-se desajeitada, como se tudo fosse parte de uma fita destituída de interesse. Pedia a Deus que remediasse a sua falta de entusiasmo. Perturbavam-na as palavras de Paul. Mudara tanto assim, como ele dissera? E se fosse verdade, que fazer? À antiga Odette não só pertencia o amor por Lance como a carreira conquistada com tamanhos sacrifícios. Urgia descobrir meios e modos de ressuscitar a antiga Odette.

Pouco depois de Lance sair, Bruce bateu à porta e entrou. Postou-se frente à lareira, contrafeito, o boné de chofer na mão, rosto pálido e cabelos em desordem.

"Agora que estamos de volta, Miss Odette, venho pedir-lhe que me dispense e permita procurar outro emprego".

"Mas, por que, Bruce?" Sua voz denotava surpresa e mágoa. "Nunca imaginei que me quisesse deixar. Não gosta de trabalhar para mim?"

"Se gosto, Miss Odette?" Por um momento falhou-lhe a voz e ele não pôde continuar. "Gosto demais". E acrescentou com vagar: "Nunca poderei agradecer-lhe tudo o que fez por mim. A senhora deu-me muito, muito mais do que julga ter dado".

Era impossível duvidar de sua sinceridade. Odette aproximou-se e tocou-lhe timidamente o braço. "Mas então... por que teima em deixar-me?"

Bruce limpou a garganta e mudou os pés, desajeitado. "Acho preferível eu sair, Miss Odette".

Não lhe era possível contar à sua senhora os comentários maldosos de que fora vítima, O fato de ser um chofer tão pouco convencional dera motivo a escândalo. Por enquanto só falavam no mundo cinematográfico, e não deveria sair dele. Preferia morrer a, de qualquer maneira, fazer mal a Odette.

"Não creio ser apreciado por Mr. Furner; se continuar aqui poderei desagradá-lo", disse Bruce rude.

O que era verdade, ela bem o sabia. Lance jamais perdera ocasião de insistir para que ela despedisse Bruce. Ultimamente então, parecia idéia fixa. Odette recusara. Queria bem a Bruce e sua despedida inesperada aborrecia-a. E depois, que iria ele fazer? Seria uma pena, se recaísse na mesma vida que levava quando o socorrera.

Por palavras exprimiu esse temor: "Que pretende fazer, Bruce?

Ele esboçou um sorriso: "Não se apoquente, tornarei a rolar".

"Não é por vontade minha que vai sair, Bruce, mas se o julga necessário, faça como entender". E acrescentou sorrindo: "Sentirei falta de você, Bruce".

"Eu também sentirei a sua, Miss Cosway", gaguejou ele.

"Se um dia precisar de mim ou de um emprego, prometa que voltará!"

"Prometo. "E se um dia a senhora precisar de mim, por mais fantástica que pareça uma coisa dessas?..."

"Só Deus o sabe", articulou Odette com vagar. "Talvez um dia precise muito de um amigo como você. Porque você é um amigo, Bruce".

"Muito obrigado", respondeu ele limpando a garganta.

 

Desencadeou-se a tempestade no dia seguinte, um domingo. Domingo tristonho de fim de Novembro, com espesso nevoeiro cinza-amarelo a obscurecer a luz do dia,

Maude, olhos inchados e mãos trêmulas trouxe a primeira refeição de Odette e, ao divisá-la, rompeu novamente em prantos.

"Ah! Miss Odette, acontecer isto, justamente à senhora!" gemeu ela.

Odette afastou os cabelos dos olhos e fitou-a assustada.

"De que está falando, Maude?"

"Imagine", continuou a empregada desconexa-mente, "ousaram dizer coisas medonhas da senhora, que nunca fez mal a uma mosca, quanto mais a outra mulher. E a uma mulher doente ainda, coitada. Ah! poderia pisar naquele jornal! Tive ganas de enfiá-lo no fogo, quando li. Mentiras assim! Como se a senhora soubesse que aquele bandido era casado. Dizem até que a senhora o encorajava, de caso pensado. Garanto-lhe, Miss Odette".

Odette pulou da cama, E ficou em pé, trêmula, na camisola de cetim, a sacudir pelo braço, a incoerente Maude.

"De que está falando? Que jornal? Que mentiras são essas?"

Maude enxugou os olhos com a ponta do avental. Tentou dominar-se e disse: "O Echo, o Suday Echo, Miss Odette. Na primeira página, está escrito: "A Esposa de Conhecido Astro Cinematográfico Morre Sozinha no Deserto". E pensar que o miserável vinha vê-la sempre, aqui!" E sacudiu o punho vigoroso para o retrato de Lance.

"Quero ver esse jornal", disse Odette calma.

Maude soluçou um "Sim, senhora", e enveredou para a porta, mas antes de sair voltou-se. "Que devo responder às pessoas e aos outros jornais que não se cansam de telefonar? Disse-lhes que a senhora estava dormindo e desliguei. Mas, patroazinha querida, eles com isso não se contentam e o maldito telefone não pára de chamar. Ouça, está tilintando de novo".

"Não atenda", atalhou Odette depressa. "Tire o fone do gancho e corra a buscar o jornal".

Minutos depois Maude voltava com o periódico. Odette quase o arrancou das mãos. Lá estava o cabeçalho: "A Esposa de Famoso Astro Cinematográfico Morre Sozinha no Deserto". Havia ainda um retrato seu e outro de Lance. Sob a sua fotografia liam-se as palavras: A Bela Sereia do Cinema que Seduziu Lance Furner, Afastando-o de sua Esposa.

"Não! Não!" gritou Odette. "Não pode ser!"

Era horrível demais, inacreditável. Como um pesadelo. Não seria pesadelo? No entanto estava acordada, com o medonho jornal à vista. Desejaria atirá-lo longe, não mais olhar para ele, mas tinha de ler o que fora publicado. Mentiras, mentiras e calúnias. Mas mentiras onde havia verdade suficiente para condená-la. Ela sabia Lance casado com Irene. Levara-a como secretária. Permitira que o seu noivado com Lance continuasse público, mesmo ciente do casamento. Sim, mas fizera-o por ele — por ambos. Não para seduzi-lo, como insinuava o jornal! Permitira que ela acompanhasse Lance à África, mas para que não percebessem a verdade. Mas quem acreditaria nisso? Quem acreditaria diante da dolorosa carta de Irene, que ali vinha impressa?

"Esta carta foi escrita por minha filha, (afirmava o pai, proprietário do jornal), para ser-me enviada no caso de sua morte. A pobre criança morreu de pesar, sozinha no deserto. Morreu de dor, enquanto essa mulher, Odette Cosway, se divertia em passeios de automóvel com o marido de minha filha. É esta o ídolo do cinema inglês, Odette Cosway! Pouco me importa ser processado por difamação. Farei justiça à minha pobre filha morta de desgosto. Do túmulo, sua alma clama por vingança; castigo para o marido que tão mal a tratou e para a mulher vampiro que ignominiosamente o seduziu!"

Odette lia olhos arregalados, apoiada à parede. Se tentasse ficar em pé, teria caído. Como era patética a carta de Irene! Todos os fatos deformados é verdade, pela imaginação alucinada de ciúmes. Tudo parecia verdadeiro. Odette compreendeu-o e sentiu náuseas. Era como se fosse verdade. Irene escrevera a história do seu ponto de vista. Tudo o que Lance lhe fizera atribuía-o a Odette. Fora Odette quem deliberadamente usara de sua beleza para roubar-lhe o marido. E o conseguira! Irene insinuava maldosamente ter Odette outro amante, um homem que viajara como seu chofer e ultimamente vivera com ela em seu riquíssimo apartamento londrino.

"Não, não!" exclamou Odette. "Como pode alguém imaginar tais horrores e depois publicá-los? Irene estava maluca!"

Fosse doida ou não, Odette compreendeu antes de terminada a leitura, o grande mal que lhe causara Irene, tão grande que não podia ser calculado. Atingira o cume da fama e, de um só golpe, a pobre morta a derribara. E arrastava Lance na queda. Mas, se o amava como tinha feito isso? Amara-o tanto. Via-se claramente; era de causar dó. Amara-o profundamente. Odette concluiu que a moléstia e a paixão deviam ter-lhe perturbado o juízo.

"Qual será o resultado disto?" conjecturou. Mas sabia perfeitamente das consequências.

Astro algum, cinematográfico, resiste a tais escândalos. Que pensaria o público de seus Namorados ideais, quando lesse a malfadada notícia? E — mais importante ainda — qual seria a opinião de Hal Leaman? E a de Luke Grimsby?

Atirou-se na cama com um gemido. Cerrou os olhos: as palavras em letra de fôrma dançavam-lhe no cérebro. Conquanto inocente, via-se condenada. Nada a poderia salvar. Seria inútil processar o pai de Irene. Mesmo com ganho de causa, o público nunca a haveria de absolver. A seus olhos, continuaria culpada.

Maude chegou à porta do quarto. "É Mr. Furner. Não o deixo entrar, não é Miss Odette?" Sua voz, sua atitude exprimiam apaixonada indignação.

"Faça-o entrar, Maude. É tanto culpa dele quanto minha".

Maude fungou e saiu carrancuda. Não condenava a patroa querida, mas a Mr. Furner certamente condenava. Claro que o condenava. E era ela uma, dos milhões de pessoas que haviam de ler e sentenciá-la, pensou Odette. Milhões de criaturas hão de ler e acreditar no que foi publicado. Não me desculparão como faz Maude. Não me têm amizade. Por que haviam de ter?"

Lance entrou afobado no aposento. Nem pensou em tirar o sobretudo, o rosto desfigurado.

"Leu o Echo, Odette?"

"Sim, há poucos minutos".

Ele afundou na cama e fechou as mãos nervosamente. As juntas embranqueceram. "Que é... que é que vamos fazer?"

Ela fez menção de erguer os ombros: "Há alguma coisa que fazer?"

Lance passou a mão pelos cabelos hirtos. "Deve haver uma saída. Não nos devemos deixar condenar dessa maneira. Será... será a nossa ruina".

"Foi a nossa ruina".

Ele fitou-a estatelado. "Que quer dizer com isso?" falava indignado. "Temos de negar tudo, é claro".

"Quanto mais negarmos, mais nos condenaremos".

"Mas é monstruoso... e é mentira".

Odette suspirou. "Sim, é mentira, mas com suficiente verdade para que tudo pareça verdadeiro. É o que nos condena".

Ele cravou os olhos nela, os lábios brancos: "Que acontecerá?"

"O que só acontece quando o escândalo atinge astros de cinema. Perderemos o contrato. Afundaremos na obscuridade. No que diz respeito ao mundo dos filmes, Odette Cosway e Lance Furher deixaram de existir".

Lance ergueu-se num pulo. "Não acredito!" gritou rouco. "É horrível demais. É crueldade excessiva, ser-se condenado sem culpa".

"Mas você não tem culpa, Lance?" interveio Odette serena.

"Até você contra mim!" trovejou ele. "É tudo mentira. E aquela cachorrinha..."

"Lance, não!" gritou Odette indignada. "Não a injurie! Tudo isto será pavoroso para nós, mas tenha compaixão de Irene! Pense no que ela padeceu antes de escrever a carta. Pense no quanto você a fez sofrer e eu também. De certo modo isto é merecido, se bem que o castigo que nos espera não seja justo".

"Odette...", ele fitava-a incrédulo. "Não a compreendo. Você parece não dar importância!"

Ela silenciou um momento. Não dava importância? Talvez em face do inevitável, sejam as mulheres mais calmas que os homens. Talvez possam enfrentar a tragédia com mais espírito e, malgrado sua fragilidade, tenham mais coragem para reerguer-se de sob as ruinas.

"Dou muita importância, Lance", sussurrou ela. "Mas não adianta desesperar. Sinto muito, por sua causa". Com a mãozinha tocou-lhe a cabeça inclinada. "Conservemo-nos unidos. Talvez não seja assim tão mau".

"Hal Leaman terá lido isto?" perguntou Lance.

Ela sorriu sem alegria. "Alguém com certeza foi acordá-lo, só pela satisfação de mostrar-lhe a notícia".

"Qual... qual será sua atitude?"

"A única plausível. No que lhe disser respeito, estamos liquidados".

Novamente ele tomou a defensiva. "Não vou recuar; não permitirei que me tratem assim. Duvido que Leaman assuma tal atitude. Você logo desiste, Odette. Eu não. Tenho de pensar em mim. Em minha carreira. Precisamos tomar posição desassombrada. E quanto a Leaman, se tiver senso comum, fechará os olhos. Somos troféus demasiado valiosos para que nos atire fora com essa facilidade. Ele jamais nos poderá substituir".

Ela sorriu com tristeza. "Sempre podemos ser substituídos, Lance. Não nos é fácil acreditar, mas é a pura verdade".

"Lá vem você de novo", gritou ele. "Não bastam os aborrecimentos que tenho e você a azedar ainda o cálice. Aposto como tenho razão. Agora mesmo vou telefonar a Leaman".

Odette não tentou impedi-lo. Deixou-o sair. Por que se iludia? Devia saber, tão bem quanto ela, que suas carreiras estavam findas.

Lance voltou logo depois, o rosto rubro de cólera, as veias da testa crescidas, tal a sua raiva. "Não quis falar comigo. Mandou-me dizer que a estréia de amanhã de Adorada Pecadora foi cancelada".

O rosto de Odette tornou-se lívido. Já suspeitava isso, mas a certeza magoou-a, humilhou-a. Conservou-se imóvel, fechando as mãos com força, pois tremiam. Com maior clarividência que Lance, via o futuro, previa a ruina de tudo por que lutara se esforçara. Via-se pária de um mundo que para ela era a própria vida.

"Diga alguma coisa!" pediu Lance furioso. "Fica aí em pé, como se se tratasse de uma insignificância!"

Odette repuxou os lábios. "A situação é tão grave que me impede de falar".

Ele não a ouviu, atordoado de aflição.

"Tratou-me como se fosse lixo. Recusou-se a atender-me no telefone", resmungava. "Mas a coisa não ficará assim. Cancelou a estréia. Faça como quiser, é sua a fita. Mas não se livra do contrato. Vê-lo-ei no inferno, antes. Vou dizer-lhe isso. Vou até lá e porei cobro à história de uma vez. Ele cumprirá o contrato ou lhe porei todos os advogados de Londres nas costas".

Pegou do chapéu e encaminhava-se para sair quando Odette lhe agarrou o braço. "Lance, não será melhor você esperar, acalmar-se, antes de enfrentar Leaman?"

Lance tirou-lhe a mão do braço. "Não, não é momento para fraquezas. Precisamos manter atitude firme ou estamos perdidos. Se fraquejarmos, Leaman julgará poder até matar-nos, e sem castigo. Vou já à casa dele".

Odette deixou-o sair. Desejaria evitar a entrevista. Leaman se recusaria a recebê-lo, era sua esperança. Num momento de cólera Lance diria coisas estúpidas de que depois se havia de arrepender. De toda maneira, Leaman só agiria como bem entendesse. Ninguém — muito menos Lance Funer — podia intimidar o gordo retaco magnata do cinema.

Vestiu-se vagarosamente, tendo com a aparência o cuidado costumeiro, que para ela se tornara um hábito. De vez em quando ouvia o telefone chamar em surdina, como se alguém quisesse falar-lhe. Seriam outros jornalistas, ávidos por detalhes, teve um sorriso cheio de azedume.

Pouco depois de vestida, chegou Bruce. Maude fê-lo entrar sem demora. Tinha um fraco pelo antigo chofer de Miss Odette.

Este pareceu ainda mais aflito que Lance.

"Miss Odette, o que foi que eu fiz! Devia arrebentar os miolos", exclamou. "Tudo foi culpa minha".

Ela, estarrecida, arregalou os olhos azuis. "Foi sua culpa, Bruce?"

Ele sacudiu a cabeça. Odette viu-lhe a garganta movendo-se convulsivamente. "Sim, fui eu que pus aquela carta no correio".

"Que carta?"

De novo percebeu-lhe a dificuldade de falar. "A carta publicada no Echo, a que Miss Irene me disse estar na gaveta da secretária, antes de morrer. Fui eu que a pus no correio. Julguei meu dever obedecer-lhe à última vontade. Mas... e se não foi essa a sua última vontade? Se depois de tê-la escrito, tivesse se arrependido e não quisesse mandá-la, e eu, desgraçado idiota, a pus no correio? É de enlouquecer, a idéia de fazê-la passar por isto tudo, sem necessidade!"

Odette, em pé ao lado da lareira, estendeu as mãos para o fogo. "Não se desespere Bruce. Imagine que Irene não quisesse enviar essa carta maldosa. Mas de que adianta? Desde que não há remédio, que adianta aborrecer-se? E é tolice recriminar-se como faz". Forçou um sorriso. "As coisas podem não ser tão más como parecem".

"Já soube... de alguma coisa dos estúdios?" perguntou Bruce hesitante.

Odette corou levemente: "Sim, que a estréia de amanhã foi cancelada".

"Isso é grave, não?"

Ela abaixou a cabeça.   "Sim, é muito grave".

Bruce gemeu e enterrou o rosto nas mãos. "Eu deveria é acabar comigo", disse com voz rouca.

Ela cravou nele os olhos penetrantes: "E causar-me ainda mais este pesar?"

Coloriram-se as faces de Bruce. "Causar-lhe-ia pesar, Miss Odette?"

Os olhos da artista encheram-se de lágrimas. "Bem sabe que sim, Bruce".

Seguiu-se um longo silêncio e Bruce afinal articulou a custo: "Não quisera deixá-la agora, Miss Odette, principalmente depois do que aconteceu. Se quiser que eu fique, ficarei, mas..."

"Compreendo Bruce", interveio ela serena. "É por causa de Lance, não é?"

Ele aquiesceu. E com voz rude. "Nunca poderei, perdoá-lo. A culpa é só dele".

"Não fale assim", atalhou Odette severa.

"A senhora é para ele de uma espantosa generosidade. Se ao menos... se ao menos ele o reconhecesse e procedesse à altura", não pôde deixar de dizer.

Odette franziu o cenho. "Isso compete a mim decidir, Bruce".

Este suspirou. “Tem razão". Encaminhou-se para a porta, mas antes de alcançá-la voltou-se e acrescentou sorrindo: "Não a deixarei inteiramente, Miss Odette. Ficarei nas vizinhanças. Se precisar de mim... sabe?"

Nessa mesma tarde, horas depois, chegou uma enorme caixa de flores. Ao ser aberta, sua fragrância perfumou a sala. Rosas brancas como sua pele; rosas amarelas que, à luz crepuscular, pareciam douradas como seus cabelos; rosas vermelhas como o corado de seu rosto, quando ela corava. Acompanhava-as um cartão onde fora rabiscado com letra firme, masculina: "Com todo o meu pesar. Posso acrescentar com todo o meu amor? Paul".

Odette tirou as flores da caixa e tomou-as nos braços. Apertou-as com ternura, como se afagasse uma criancinha. Enterrou nelas o rosto. Ao reerguer a cabeça havia lágrimas em seu semblante. "Talvez valha a pena ser pária", pensou, "para saber quais são os verdadeiros amigos... Muito obrigada, Paul".

 

HAL LEAMAN visitou Odette no dia seguinte.

"Julguei preferível vir aqui, a chamá-la nos estúdios", disse em pé, diante da lareira. "Muito lamento o que se deu Odette. Por favor, acredite-me".

Ela sorriu tristonha. "Muito agradecida, Mr. Leaman". E acrescentou com sorriso forçado: "Palavras bondosas de carrasco, não é?"

Ele grunhiu e deu um passo para frente, contrafeito.

"Sou mais ou menos isso, é o que parece".

"Sente-se", convidou Odette. "Ou precisa ler minha sentença em pé?"

"Admiro-lhe a coragem", resmungou Leaman. "Repito, daria muito para não ser obrigado a fazê-lo".

De novo um tênue sorriso aflorou aos lábios de Odette. "Também eu, Mr. Leaman".

Ele tossiu e passou a mão pela careca luzidia, "Não duvido. O jovem Furner também. Garanto que a culpa é dele. Meteu-se em apuros com a pequena e teve de casar com ela". Voltou-se para Odette e perguntou de repente: "Você sabia do casamento, quando assinou o contrato?"

Odette enrubesceu e depois se tornou lívida. Era a pergunta temida. Seria fácil mentir — mas não podia mentir a Hal Leaman, sempre corretíssimo para com ela.

"Sabia, Mr. Leaman".

As sobrancelhas grisalhas ergueram-se e abaixaram-se.

"Bem, isso atenua o rigor do meu procedimento. Não devia ter agido assim, Odette. Julgava-a impecável".  Mas a voz era bondosa.

Um vivo rubor cobriu o rosto da artista. "Mereço o castigo, Mr. Leaman" concordou ela serena. "Não adianta dizer quanto o lamento".

"Sempre adianta, menina, se o diz sinceramente. Não a poderei censurar. Foi Furner quem a persuadiu, não foi? Você o amava, não é?"

"Amava-o", respondeu Odette sem perceber que falara no passado. "Mas... não procurei roubá-lo à sua mulher".

"Disso tenho certeza", afirmou Leaman convicto. "Você não é desse gênero, se é que sou juiz a respeito de mulheres. No entanto, terá de sofrer, seja culpada ou não. Não podemos tolerar escândalos com nossos astros. Se houver algum, eles que se retirem. É uma lei severa, mas é a nossa, e precisamos respeitá-la".

"Compreendo".

Houve uma pausa, penosa para ambos.

"A respeito da fita atual, como fará, Mr. Leaman?" perguntou Odette.

Leaman ergueu os ombros: "Vamos rasgá-la. Custará um dinheirão ao estúdio, mas não há remédio".

A nova feriu Odette em cheio. Todas as suas fitas eram parte dela própria. Rasgar uma delas era como cortar-lhe as carnes. Tanto tempo, tantos esforços, tanto trabalho, em vão. E havia o resto do elenco a ser considerado. Se o tivesse previsto, não concordaria em manter secreto o casamento de Lance.

"Imagino que tenha algum dinheiro de lado?" indagou Leaman antes de sair. "Se não tiver, passará meses um tanto magros".

"Tenho, um pouco, Mr. Leaman".

"Menina de juízo". E da porta acrescentou: "Se tiver influência sobre Furner, impeça-o de tornar-se ridículo. Escreve-me cartas ameaçadoras; vai ameaçar-me pessoalmente. Não adianta. Quanto ao cinema, ele está liquidado. E quanto ao último contrato, eu poderia, se o quisesse, acioná-lo por declaração indébita, quando o assinou. Naquela cláusula a respeito de casamento com outra que não você".

"Farei o possível", prometeu Odette.

Por muito tempo, após a partida de Leaman ela permaneceu ao pé do fogo, atiçando distraída os carvões acesos. Sentia-se como um criminoso, ao ouvir do juiz de gorro negro a leitura da sentença de morte. Era a condenação à morte de sua carreira. E quanto significava para ela essa carreira? Tudo, tudo quanto valia a pena. Poderia viver sem ela? E precisa viver. Que outro estúdio receberia Odette Cosway como artista, depois de tamanho escândalo? Precisava arranjar outro meio de vida; que saudades sentiria da vida nos estúdios. O cheiro da pintura, o brilho dos projetores, os pintores e kilos, a voz rouca do diretor, os gritos de "Silêncio!'", o ruído da sincronização e ação, e afinal a cena, seguida de um horrível período de dúvida, enquanto se espera pelo "N. G. ou o O. K.” da direção.

Um estranho temor cresceu dentro dela. "Se desistir, será a minha morte".

Estava ainda reclinada sobre o fogo quando entrou Paul Hershaw.

"Odette!"

Correu para ela e agarrou-lhe as mãos. "Posso beijá-la?" perguntou e, inclinando-se, beijou-lhe as faces frias.

"Foi gentileza sua, Paul", gaguejou Odette.

"Gentileza minha? Querida filhinha! Nada há no mundo que eu não faça por você. Sabe disso?"

"Então não acredita nos horrores publicados no Echo?"

Paul abraçou-a com ternura. "O que acredito é ser você a criatura mais preciosa do mundo".

Ela sorriu, a tremer. "Se for bom demais comigo, acabarei chorando, Paul. O que o magoaria, não é verdade?"

"Suportaria até isso", tornou ele sorrindo.

Maude trouxe o chá. Paul serviu-o e passou-lhe uma xícara. Havia tanto respeito em suas maneiras que brotaram lágrimas dos olhos de Odette.

"Lembra-se da primeira tarde que tomei chá aqui?"

"Lembro-me. Brigamos o tempo todo. Você desaprovou meus filmes. Nem sei se não me desaprovava também. Achou-me demasiado romântica. Pois bem — e uma risada estridente — não mais sou romântica, Paul!"

Ele vagarosamente sacudiu a cabeça. "Ainda é. Esta fase é temporária. Passará".

"Mas o romance, como eu o imaginava, foi uma mentira".

Paul ergueu uma sobrancelha e fitou-a enigmático. "Porque não passava de ilusão, minha filha. Perdida a ilusão, encontra-se a realidade".

Odette levantou os olhos azuis, inquiridores. "Quais são as realidades da vida, Paul?"

"Trabalho, amizade e amor", disse-lhe o amigo suavemente.

"Amor já tive".

"Não teve; o que teve foi arremedo de amor".

Ela não procurou contradizê-lo. Enterrou o queixo na mãozinha fechada e ficou a cismar. Súbito, porque tal pensamento era por demais perturbador, disse com voz rouca: "Hal Leaman esteve hoje aqui".

O rosto fino de Paul tornou-se pesaroso.

"Esteve?"

"Executou a sentença o mais cavalheirescamente possível".

"Sinto muito, querida. Como dói, não?"

Ela abaixou a cabeça, olhando fixamente para as mãos frias, fechadas. "Um pouco", sussurrou.

Ambos silenciaram. Ainda assim Odette sentiu-se estranhamente confortada, como se, nada dizendo, Paul dissesse muito.

"Odette", falou Hershaw passado algum tempo, "aceitei a oferta; sigo para Hollywood".

"De verdade, Paul?" e estremeceu. "Que bom para você", disse forçando na voz o entusiasmo que estava longe de sentir. Não porque lhe invejasse o sucesso; mas por sentir de repente um vazio tremendo, um vácuo, como se alguém houvesse aberto uma porta e deixasse entrar um vento frio, gelado.

"Sim, serei um dos diretores dos Harlequin Studios".

"É um dos maiores de Hollywood, não?" "É".

"Então você está feito, Paul". "Ainda não", sorriu ele.

"Oh, mas vencerá, na certa!" afirmou Odette. "Não poderá fracassar".  Seus olhos azuis cintilavam.

Inesperadamente Paul se curvou e pegou uma de suas mãozinhas, segurando-a entre as dele. "Quer ir comigo, Odette".

Olhos estatelados, ela o encarou. “Mas, como?"

"Devo ser mais explícito", tornou Paul com um sorriso. “Estou a pedir-lhe para casar comigo, Odette".

A moça empalideceu, uma veia pulsou-lhe na garganta. Várias emoções lutavam pela supremacia. Gratidão, alegria... E um bizarro desânimo, como um entorpecimento.

"Mas há Lance", disse ela devagar, após uma pausa que pareceu interminável. "Não posso abandoná-lo".

"Você o ama?"

Ela não respondeu diretamente. "Ele precisa de mim. Desde... desde a tormenta, parece totalmente desorientado. Se não me conservar ao seu lado não sei o que fará".

"Odette... você vai sacrificar-se por ele?" exclamou Paul apertando-lhe o braço com força.

"Não fale assim. Julgo ser meu dever agir dessa maneira. Se o não fizer, jamais terei sossego".

Paul fitou-a com infinita ternura e sacudiu a cabeça. "Pobre coraçãozinho generoso! Se ao menos essa generosidade valesse a pena. Sacrificar-se por outrem é um gesto raro, mas é justamente esse outrem quem menos o aprecia".

"Que importância tem isso? Cumpro um dever", replicou, e acrescentou sorrindo: "Será talvez egoísmo".

Houve uma nova e longa pausa, depois da qual ele implorou: "Não conseguirei persuadi-la, Odette?"

"Não o tente, Paul, for favor".

 

Os primeiros dias depois do embarque de Paul Hershaw para os Estados Unidos foram negros para Odette. Nem sequer sonhara que pudessem ser tristes assim. Não avaliara antes quanto a sua amizade — insistia em dar-lhe esse nome — significava para ela. Como se algo muito precioso a houvesse abandonado, e a deixara ferida, a alma a sangrar.

Sentiria menos, se ainda trabalhasse nos estúdios. Sem nada que fazer era simplesmente horrível. Seu único lenitivo era comprar revistas de cinema e lê-las avidamente, do princípio ao fim. Às vezes, ao sentir demais a solidão e infelicidade, chorava em cima delas. O seu mundo bem amado, que lhe era necessário como o ar que respirava, se lhe fechara para sempre.

Urgia libertar-se do apartamento dispendioso. Não mais possuía meios de mantê-lo. Mas, desacorçoada para tentar qualquer esforço, deixava o mundo correr.

Lance estava mais abatido do que ela. Quando a procurava, não se esforçava por encorajá-la. Odette conversava com ele, animando-o, insistindo para que procurasse emprego.

"Com os diabos, Odette!" exclamava. "Imagina que eu vá ser caixeiro ou menino de recados? Se me conservar calado, alguma coisa de teatro acabará surgindo. O nome de Lance Furner deve ter algum valor".

"Talvez surja alguma coisa", disse Odette. Não era otimista. O escândalo ainda era recente. Poucos teatros de West End haviam de desejar em seus programas os nomes de Lance Furner e Odette Cosway.

No entanto, dias depois, Lance irrompeu no apartamento muito excitado. Assim entusiasmado, Odette não o via há meses.

"Chegou a oferta esperada!" exclamou ao entrar. "E magnífica. Para nós ambos, queridinha. A Ali Variety Corporation oferece-nos quinhentas libras por semana, para aparecermos num sketch em seus teatros!"

Ela cravou os olhos nele, sem compreender. "Quinhentas libras por semana para aparecer num sketch no teatro! Não valemos tanto assim, Lance".

"Se valemos!" insistiu ele. "Acabei de falar com um dos diretores. Disse-me que virá público da Inglaterra inteira apreciar-nos, depois daquele barulho dos jornais".

"Quer dizer que virão mercê do escândalo?"

"Cabe-nos reclamar, se vierem aos magotes? Desde que venham? riu ele.

Odette não replicou. Um estremecimento a agitou. E ficou a olhar fixamente para Lance, como se o visse pela primeira vez.

"Que é que você tem?" perguntou ele irritado. "Por que não fala? Não são boas as notícias? Não é uma sorte, essa oportunidade?"

Odette sacudiu a cabeça vagarosamente, lábios esbranquiçados. "Não, não acho, Lance. Não quero receber quinhentas libras por semana para o público vir encarar-me".

Lance surpreendeu-se. "Com os diabos, Odette, que importância tem isso, se recebemos o cheque todo fim de semana? Nos tempos que correm, quinhentas libras é muito dinheiro. Não ousariam oferecer-nos menos. Somos famosos demais".

"Ou notórios demais!"

Ele ergueu os ombros. "Chame como quiser. Não tem importância. E, se como você diz, somos notórios, devemos fazer dinheiro disso".

"Não, não concordo", protestou Odette ríspida. "Prefiro a morte, a fazer dinheiro a custa do escândalo. Não suportarei o público a fitar-nos dizendo: "Esse é Lance Furner, o que deixou a esposa morrer de desgostos no deserto, e essa é Odette Cosway, a que o seduziu!”Que o dirão, você bem sabe. Noite após noite estarei ouvindo-os, o teatro em peso vibrará a tais palavras. Não lhes poderei suportar os olhos fixos e os cochichos. Prefiro, até esfregar soalhos!"

"Você está maluca!" gritou Lance furioso. "Sabe muito bem que não esfregará soalhos! é representar que está em nosso sangue, e..."

"Representar!" interpôs Odette rindo asperamente. "Não pagarão mais, para nos ver representar!"

"Sei disso", resmungou Lance. "Mas que mal há? Você é muito implicante. Olhe aqui, poderá ser plutocrata, mas aquelas duzentas e cinqüenta libras semanais me parecem oportuníssimas. Se não as aceita, é que é egoísta!"

"Lance", disse ela então, com voz trêmula, "estou me cansando de não ser egoísta com você".

Este espantou-se. Fechou carranca, olhos fixos nela.  "Que entende por não ser egoísta comigo?"

Ela apertou os lábios. "Isso mesmo, Lance. Tudo o que aconteceu, foi porque não quis ser egoísta com você. Precisamos às vezes pensar em nós mesmos. E é o que, neste caso, hei de fazer".

O rosto dele empalideceu, depois tornou-se rubro de raiva.

"Quer dizer que recusa a oferta?"

"Terminantemente, recuso".

Lance aproximou-se, fitando-a intensamente, de mãos fechadas. "Se você me amasse, Odette, faria o que lhe peço".

Ela suspirou e deu-lhe as costas. "Talvez, Lance".

O rapaz, desesperado, agarrou-lhe os ombros finos e fê-la virar-se para ele. "O que significa que não me tem mais amor?" trovejou.

Odette retribuiu-lhe o olhar, mas com lágrimas nos olhos e lábios trêmulos. "Não, Lance, não o amo mais".

O choque fê-lo estarrecer e, por um instante foi superior à sua zanga. "Que idiotice! Diz isso porque está zangada", resmungou.

Ela meneou a cabeça, lábios comprimidos. "Como desejava que você tivesse razão. É triste verificar que o meu amor — o amor cego que lhe dediquei — tenha desaparecido totalmente".

Lance afastou-se, mortalmente pálido.

"Você não quis dizer isso, Odette?"

"Quis. Não o amo há muito, mas — foi mister uma cena destas, para compreender a realidade".

Um rubor intenso tingiu-lhe o rosto. Estava ferido em sua vaidade, um das mais fortes características de Lance.

"Vai arrepender-se do que disse!" atirou-lhe no rosto.

Ela balbuciou: "Gostaria de acreditar que sim".

 

Foi com imenso alívio de Odette que ele partiu. E tristeza também — a inevitável tristeza ante um belo romance que morreu. Mas predominava o alívio.

Como se após uma longa permanência num cárcere, alguém a tivesse libertado. O problema de sua vida continuava insolúvel, mas agora só tinha que cuidar de si.

Se pudesse tornar a nascer e recomeçar a existência... "Se pudesse mudar-me para outras terras, mudar de nome, livrar-me das recordações que tanto ferem — deixar para trás Odette Cosway..."

Mas, seria possível? Ir para onde? Súbito um nome lhe perpassou na mente. Nome feiticeiro, sinônimo de brilho, triunfo, como de fracasso. Hollywood! Por que não ir para Hollywood e recomeçar a vida sob outro nome? Mal a idéia lhe acudiu ao espírito, ela se resolveu. Não importava ser uma extra — qualquer coisa que lhe permitisse voltar à vida para a qual nascera. Compartilhar da vida da tela, voltar aos estúdios, sentir a luz intensa dos projetores em sua pintura, ouvir os gritos do diretor, as pilhérias entre, as filmagens dos outros artistas, sentar-se em caixotes, estudando às pressas a sua parte. Quem reconheceria numa extra desconhecida, a outrora famosa Odette Cosway? Mormente se tingisse os cabelos e mudasse de nome.

A idéia não mais lhe saiu da cabeça. Nada a impedia de realizá-la. Na Inglaterra, nada mais poderia tentar. Quanto maior a distância entre ela e Lance, tanto melhor. Ele recomeçara a apoquentá-la pelo telefone, querendo ser recebido. O que precisava evitar a todo transe, pois temia um momento de fraqueza ou pelo horror à solidão, fazer as pazes com ele.

Firmemente decidida a seguir para Hollywood, não perdeu tempo. Tomou uma passagem para New York no Mauritânia, sob nome diferente. Desfez-se do contrato do apartamento e Maude ajudou-a a preparar as malas.  Maude ficava na Inglaterra.

"Como se arranjará sem mim, Miss Odette?" gemia ela.

"Como me arranjei antes de você, Maude. Não se esqueça, já fui pobre".

"Mas está habituada há tempo a ter alguém para ajudá-la. Vai para tão longe, sozinha".

"Receia que um homem mau fuja comigo?" gracejou Odette.

"A senhora é muito bonita, não devia viajar só", censurava a boa criatura.

"Espere ver-me com cabelos ruivos!" e seus olhos brilharam divertidos.

"Não a deixará menos bonita", afirmou Maude sincera,

E tinha razão. Odette, os cabelos ruivos severamente penteados para trás, um traço apenas nas sobrancelhas, com pó de arroz mais escuro, continuava linda como sempre. Talvez alguns a achassem mais bela ainda. Mas diferente; sua beleza loira, juvenil, desaparecera por completo. Os antigos admiradores de Odette Cosway, menina romântica, não apreciariam absolutamente a nova Odette. Mais madura e requintada e, no entanto, encantadora como sempre. O sorriso era o mesmo: provocante, espontâneo e brejeiro.

"Ah, Miss Odette!" gemeu Maude ao vê-la metamorfoseada, "que foi fazer consigo!"

"Assinei novo contrato com a vida", sorriu-lhe Odette. "Não sou mais Odette Cosway. Sou Dorothy Fletcher. Era o nome de minha mãe".

 

Somente a fiel Maude foi ao embarque de Odette. Ninguém soube de sua partida. Desde o escândalo do Echo evitara a maior parte dos amigos. Não que a maioria não se tivesse conservado a seu lado, mas ela sentia-se contrafeita em presença deles. Entretanto, ao afastar-se o transatlântico do cais, desejaria ter permitido a alguns viessem dizer-lhe adeus. Era triste partir solitária para terras distantes, desconhecidas. Em pé no convés, observou as costas da Inglaterra diminuírem e desaparecerem e sentiu profunda solidão e uma imensa saudades.

Não soube ao certo quando notou, pela primeira vez, um homem da terceira classe que a fitava intensamente, nem quando desconfiou que o conhecia. Era de estatura regular, usava um enorme sobretudo, boné de quadrinhos, bem puxado em cima dos olhos. A essa distância não lhe distinguiu as feições, mas "sua atitude lhe era familiar. Ao analisá-lo, viu que ele erguia a mão e a, saudava.

"Bruce!" Em seu espanto e excitação, pronunciara o nome em voz alta.

Instantes depois corria apressada pelos corredores e tombadilhos, a caminho da proa. Sempre mais depressa. Não eram apenas as mil e uma perguntas que tencionava fazer-lhe que a apressavam, mas a alegria de tornar a vê-lo.

Este continuava apoiado ao parapeito onde o avistara pela primeira vez, os pés cruzados e as mãos enfiadas nos bolsos do enorme sobretudo. Quando ela se aproximou, Bruce endireitou-se, caminhando em sua direção.

"Como vai, Miss Odette?"

"Bruce, que faz aqui?" Estava um tanto sem fôlego.

Ele sorriu malicioso. "Vou aos Estados Unidos. Decidi puxar até Hollywood".

"Quer entrar para o cinema, Bruce?" indagou ela sorrindo.

Com vagar, ele sacudiu a cabeça, galhofeiro. "Pensava na senhora, Miss Odette".

"Mas... não compreendo, Bruce!"

Ele tirou o boné e pôs-se a examiná-lo. "É como vê, Miss Odette. Certa ocasião a senhora foi muito boa para mim. Parece-me que chegou a hora de retribuir-lho".

"Como soube de minha partida?" perguntou após longa pausa.

"Maude contou-me. Ao cientificar-me de sua ida a Hollywood, pensei em acompanhá-la. Tinha uns dinheirinhos guardados. Isso não... não a aborrece, Miss Odette?"

"Se me aborrece?!" Ela sorriu e confessou trêmula: "Estou tão contente de vê-lo aqui que, por um pouco, desando a chorar".

Bruce também sorriu, um sorriso muito doce e saudou-a: "Então está O.K., irmã".

 

QUANDO a Sunset Limited se aproximou de Los Angeles, Odette entusiasmou-se como criança. Logo chegaria a Hollywood. Que futuro esperava por ela? Entraria timidamente, como humilde suplicante. Odette Cosway, a grande estrela, morrera em Londres. Era agora Dorothy Fletcher, uma desconhecida, sem reclame, que vinha lutar por subir a mesma escada que já galgara antes com tanto sucesso. Uma jovem de cabelos ruivos, severamente trajada, com apenas uma sugestão de sobrancelhas, mas cujo sorriso permanecia o mesmo. Sorriso malicioso, brejeiro, que lhe marcava uma covinha no queixo: notava-se nele a mesma doçura mas com laivos de tristeza. E nos grandes olhos azuis, mais sabedoria não existente meses atrás.

A viagem a bordo e a longa travessia por estrada de ferro através do continente repousaram-na. Acabara-se o nervosismo das últimas semanas na Inglaterra. Sua terra parecia afastar-se sempre mais, à medida que o trem penetrava rapidamente nas regiões batidas de sol da Califórnia. Sol luminoso, como as grandes frutas maduras que se viam pendentes das árvores, por toda parte, como bolas de ouro puro, refulgentes à luz intensa do astro rei.

Nada melhor que uma mudança de atmosfera para restabelecer o equilíbrio mental. Preocupações de aparência irremediável e dolorosa diminuem e desaparecem em meio diferente. Como Lance estava longe! Longe como alguém que se entrevê num sonho — sonho maravilhoso no início, que depois fere e machuca.

Bruce viajava no mesmo trem, mas no carro comum, enquanto Odette ia de Pullman. Recusara ele o Pullman, pretextando haver dormido em lugares muito menos confortáveis que um carro de estrada de ferro. Encontravam-se às vezes na plataforma quando o trem parava o tempo suficiente para que os passageiros fizessem um pouco de exercício. Apressadamente trocavam impressões, riam notando as diferenças entre o novo país e o seu. Às vezes, quando o trem parava para o almoço ou jantar, compartilhavam a mesa num dos famosos restaurantes de Harvey House.

"Uma bela aventura, não é, Bruce?" disse Odette uma noite, sorrindo-lhe do outro lado da mesa. "Sinto-me outra, e como é bom! Não é saudável ser-se sempre a mesma criatura; aprendi-o ultimamente. Metodizamo-nos demais e perdemos a originalidade. Quando a vida se torna muito fácil, toda alegria desaparece. Minha vida já foi fácil. É estupendo ter de recomeçar".

Bruce também riu. "É extraordinário poder compartilhar de sua luta, Odette, ser seu amigo".

Ouviu-se o apito do trem e tiveram de abandonar o jantar em meio. Nessa noite Odette ficou longo tempo na plataforma do carro, a fitar a escuridão. Sentia-se reconfortada, menos sozinha que há muito tempo. Talvez a amizade fosse a coisa principal na vida. Mais importante, talvez, que o próprio amor.

O trem chegaria a Los Angeles a qualquer momento.

Os passageiros reuniam os livros, cobertas, revistas, fechavam malas e trocavam endereços. Por várias vezes, durante a longa travessia, pelo continente americano, conversara com uma atriz da Broadway, de cabelos negros, pequenina, que ia tentar a sorte em Hollywood. Ela aproximou-se de Odette e disse: "Já encomendou quarto em algum hotel? Ou ficará em casa de amigos?"

Odette sacudiu a cabeça. "Não tenho a menor idéia de onde ficar. Nunca estive em Hollywood".

"Nesse caso", tornou a moça, "se é uma celebridade e tem dinheiro, se hospedará no Ambassadors. "Mas", e piscou os olhos claros, "suponho que não é uma celebridade".

Odette sorriu-lhe e ladeou a questão. "Ninguém aqui ouviu falar em Dorothy Fletcher, pelo menos é o que suponho".

"Quanto a mim, não ouvi", confessou Mamie candidamente. "E sou autoridade em artistas de cinema. Desde criança só leio revistas cinematográficas. Sou louca por cinema. Economizei algum dinheiro ganho nos palcos da Broadway, dançando e cantando, para vir ter aqui e tentar a sorte".

"Desejo-lhe sucesso", murmurou Odette.

"Com certeza!" riu a moça. "Em minha opinião, quando se precisa ganhar a vida, não nos é permitido pensar em fracassos", e acrescentou hesitante: "Gostaria de partilhar comigo um apartamento barato?"

A oferta apanhou Odette de surpresa. Ainda não se habituara à espontaneidade impulsiva dos americanos. Mas sensibilizou-se, pois gostava realmente da moreninha, tão cheia de vida.

"Com prazer", respondeu. "Mas teremos primeiro de ir a um hotel, não?"

Mamie aquiesceu. "Claro que sim. Conheço um, de preços razoáveis. Podemos usar o mesmo banheiro".

Na estação de Los Angeles Odette apresentou Bruce a Mamie. Quando seguiam de carro para Hollywood, Mamie pediu informações de Bruce.

"É seu namorado?"

Odette riu-se. "É meu grande amigo, não meu namorado. Coisa diferente, não acha?"

"Você é novata", disse Mamie fitando-a incrédula, a cabecinha morena reclinada para um lado. "Se for namorado, você tem uma quedinha por ele, se não, é que é apenas amigo".

"Então é apenas amigo", disse Odette depressa.

"Foi o que imaginei, mas pelo modo como ele a fita, pode-se dizer quanto está caído! Porque você é linda! Como gostaria de ter a sua aparência. Os homens endoidecem por você, garanto". Odette não deu resposta. Sentia-se embaraçada. Não aprendera ainda que os americanos fazem elogios sem pensar.

"Também a considero fotogênica", continuou Mamie.  "Já trabalhou em cinema, na Inglaterra".

"Sim, algum tempo, nada de importância", mentiu Odette.

"Trouxe cartas de apresentação?" inquiriu Mamie. "Nenhuma".

"Isso é mau. É difícil conseguir-se entrar, sem uma boa carta de apresentação a um diretor. Não que adiante muito, a maior parte das vezes. A menos que se traga uma carta de um amigo íntimo; e o pior é todos, na Broadway, se vangloriarem de ser íntimos amigos de algum diretor, sejam ou não. Desmascarei muitos de meus amigos e tenho uma bolsa recheada de cartas. Mas viria, mesmo sem elas. Morreria se não viesse. Se, depois de tantos planos, não obtiver resultado, que será de mim? Quando toda a vida se teve uma idéia fixa, não se admite o fracasso, não acha?"

"Não, é claro", disse Odette.

E era duro pensar-se em derrota sob este sol doirado, os formosos bangalôs aninhando-se como cogumelos nas verdes colinas, e as imensas casas de apartamento muito altas, como alvos pilares a apontarem para os céus.

"Olhe, isto é Hollywood!" murmurou Mamie. "Estamos na Rua Sunset; ouvi dizer que vai diretamente a Hollywood. Que acontecimento!"

Odette meneou a cabeça. Sentava-se retesada a um canto do táxi, fitando atentamente ao redor Hollywood, afinal! Muitas vezes, no passado, recebera convites para vir, ofertas de contratos. Como seria diferente a sua chegada, então. Teria feito barulho, seria aclamada, adorada, todas as portas lhe seriam abertas. A grande Odette Cosway, a maior "estrela de Inglaterra. E entrava ali agora num táxi barulhento, tendo como companheira uma artista de segunda. No entanto, sentia-se estranhamente feliz — como se recomeçasse a vida.

Hollywood era mais hospitaleira que Los Angeles. Odette adorava os patiozinhos familiares rodeados de casinhas de estuque; as palmeiras esguias fronteando as grandes avenidas; o emocionante vislumbrar dos imensos estúdios guardados por detrás de imponentes muralhas; o movimento na praça, principal, com prédios altos e restaurantes movimentados e, no fundo, Beverly Hills, com suas vastas mansões, cada qual ostentando um triunfo da arquitetura americana, todos diferentes de igual magnificência. Alguns no estilo das enormes haciendas mexicanas, outros inspirados em qualquer parte do mundo.

Recebia-se a impressão de uma cidade de sonho. De uma miscelânea de idéias, como se criaturas vindas de toda parte, trouxessem consigo seus sonhos prediletos. Conquanto faltasse unidade, o encanto ainda aumentava.

O hotel, logo no Hollywood Boulevard, acomodou-as em dois quartos com um banheiro.

"Como é caro", resmungou Mamie. "Vamos hoje mesmo procurar apartamento. Estou ansiosa por nos acomodarmos e começar a entrega das cartas de apresentação. Vou apresentá-la como minha amiga".

Odette, que apreciava da janela o bulício da rua, voltou-se assustada. "Mas... que tenho eu com isso?"

"Levarei você para apresentá-la também", sustentou Mamie. "Ótima companheira seria, se a deixasse de lado, quanto mais você não tendo cartas de apresentação".

O rosto de Odette ruborizou-se de leve. "Mas como assim... irei certamente atrapalhá-la!"

"Se eu não o fizer, que será de você?"

Odette encolheu os ombros. "Não sei, Não há um lugar chamado Escritório Geral dos Artistas? Deixarei lá meu nome".

Mamie sentou-se na cama para rir à vontade. "Se. contar com isso, belas oportunidades terá de conseguir trabalho! Ignora que há diariamente milhões de pedidos? Dizem que um, em mil dos que lá se apresentam, consegue alguma coisa. E somente como extra! Não alimento ilusões quanto a isso, Dorothy; valer-me-ei de todos os trunfos possíveis para poder entrar".

Odette estava comovida. Por que essa moça, com quem casualmente se encontrara, se preocupava com ela? Poderia estorvá-la na sua própria chance, o fato de levar outra moça em sua companhia. Tentou convencer Mamie, mas a pequena artista de cabelos negros continuou irredutível.

"É muita bondade sua", disse finalmente Odette, os olhos rasos d'água.

"Bobinha!" revidou Mamie zangada. "Neste país, quando se tem uma amiga, o menos que se faz é protegê-la".

 

No dia seguinte Odette e Mamie encontraram um lar. Queriam um apartamento mobiliado mas, conquanto os houvesse em grande número, a maioria era pouco atraente e os móveis muito feios. Pelo menos a Odette assim pareceu.

"Suas idéias são à La Ritz, hein?" observou Mamie. "Qualquer um pensaria ter você passado a vida no palácio de Buckingham!"

Odette sorriu. "Isso, garanto-lhe que não fiz".

"Bom é melhor desistir das manias de grandeza", avisou Mamie. "Lembre-se, nenhuma de nós ainda tem emprego e teremos de espichar os cobres até o encontrarmos. Por enquanto ainda somos duas raparigas muito trabalhadeiras, mas sem trabalho".

Odette riu mas compreendeu e deu razão a Mamie. Era-lhe penoso pensar em dois quartinhos, uma cozinha e banheiro, mobiliados com indiferença, quando recordava o lindo e espaçoso apartamento em sua pátria, com a imensa lareira, o teto elevado, as enormes janelas e a mobília de metal e vidro.

Decidiram-se afinal por um pequeno bangalô de estuque que cercava um pátio, em companhia de outros semelhantes. Era uma casa de boneca, compacta, mas provida de todas as comodidades domésticas. A mobília era singela, mas de bom gosto.

Levaram o resto do dia a desarrumar as malas e nessa noite convidaram Bruce para festejar a inauguração da casa. Mamie conseguiu uma deliciosa refeição, toda trazida em latas. Bruce, segundo dizia, tivera sorte. No primeiro lugar em que se apresentou, conseguiu emprego de chofer de caminhão. A firma entregava diariamente, para a refeição da manhã, garrafinhas de suco fresco de laranja.

"Preciso ainda de minha licença de chofer", disse-lhe, "e durante alguns dias farei o trabalho em companhia de alguém que me explique os itinerários".

"Pode incluir-nos em sua lista; compraremos seu estimável suco de laranja", prometeu Mamie.

"Com sua promessa, terei promoção, na certa", riu Bruce.

Foi um jantar alegre e combinaram repeti-lo freqüentemente.

"Ele está caído por você" murmurou Mamie depois que Bruce se retirou "Raramente lhe tira os olhos de cima. Ahn!" suspirou, "gostaria que um homem estivesse assim caído por mim. Que sensação de calor maravilhoso se deve ter!"

Odette sorriu, conquanto corasse de constrangimento. "Não seja absurda, Mamie. Garanto que muitos homens já ficaram doidos por você".

A atrizinha sacudiu a cabeça. "Não", confessou. "Todos consideram-me uma boa companheira e... fica por isso. O que me parece, às vezes, a pior coisa que possa suceder a uma mulher. Ajudamos os amigos a saírem de encrencas, eles nos apertam calorosamente a mão, juram gratidão eterna, depois desaparecem e casam-se com o primeiro rostinho egoísta e faceiro que lhes revira os olhos".

Conquanto pilheriasse, uma expressão de amargura de Mamie surpreendeu Odette.

"Bobagens, Mamie!"

"Bobagens?" Ela riu-se e continuou: "Certa ocasião um camarada — costumávamos cantar e dançar juntos, num ato — adoeceu gravemente. Cuidei dele durante seis meses. Depois disso, foi para a casa dos pais, no Middle West, convalescer. Quando ouvi falar na criatura outra vez, estava casado com uma rapariga de lá, que mal conhecia. Escreveu-me dizendo ser eu a melhor criatura que ele havia conhecido, mas... Essas coisas acontecem. A vida gosta de rir à nossa custa, mas não nos é fácil descobrir onde está a graça".

Odette aproximou-se de Mamie e abraçou-a. "Que pena", murmurou. "Se ele tivesse casado com você, talvez fosse ainda pior. Você podia...desiludir-se com ele, ficando ainda mais magoada".

Mamie sorriu maliciosa. "Pois arriscaria a desilusão! A solicitude, a vida toda, é mais triste que um desengano, sabe?"

 

No dia imediato Mamie insistiu para começarem o ataque a um estúdio, armadas com cartas de apresentação. Odette preferia adiar a façanha e passar o dia vagando por Hollywood. Quisera andar por Beverly Hills, contemplar as residências dos astros. Como era bizarro lembrar-se que, tivesse ela aceito as ofertas passadas para vir a Hollywood, estaria agora ocupando uma dessas mansões. Chegariam visitantes de ônibus, apontariam a sua casa, comentando: "É onde mora a grande Odette Cosway!" Agora, não era mais que um dos visitantes, a observar respeitosa a casa que talvez tivesse ocupado. Como a vida era caprichosa...

"Em primeiro lugar", anunciou Mamie, "daremos a grande oportunidade aos Harlequin Studios. Tenho carta para um dos diretores, chamado Isaac O'Riley. Nome engraçado, não? Deve ser filho da Rosa Irlandesa Abe".

Odette voltou-se espantada. Estivera limpando a mesa do café.  "Os Harlequin Studios?"

"Sim. Os Harlequim Studios são os mais avançados daqui. Cresceram como praga, o ano passado. Contrataram diretores importantes da Inglaterra e da Alemanha..." E olhando para Odette, ainda em pé e imóvel: "Tem alguma coisa contra os Harlequin Studios?" perguntou.

"Não", respondeu Odette apressada. Sua voz, porém, não era firme. Paul Hershaw lá estava, como um dos diretores. Paul, o grande amigo, e que poderia ter sido muito mais, não fosse Lance. Por que não o procurara logo, ao chegar? Tencionava procurá-lo um dia? Não pretendia fazê-lo, senão depois de granjear algum sucesso. Se o procurasse agora, desconhecida e sem nome, ele julgaria que o fizera para que a ajudasse com sua influência.

"Acho preferível você ir só ao Harlequin Studios", murmurou.

"Que tolice!" atalhou Mamie vivamente. "Se não vier comigo, não irei, e no momento, esse é nosso melhor triunfo. Ouvi falar que estão organizando um programa novo, original. Deve haver trabalho para nós. E se minha amiga Gertie conhece O'Riley como garantiu, ele nos auxiliará".

Odette deixou-se convencer. Afinal de contas, os Harlequins Studios eram enormes; pouco provável que encontrassem acidentalmente Paul Hershaw naquela Babilônia. E se isso se desse, reconheceria ele na mulherzinha ruiva em que se transformara, a louca e magnífica Odette Cosway? Ainda assim, se o enxergasse primeiro, encontraria meios de evitá-lo.

Nessa tarde, um tanto receosas, seguiram juntas para os estúdios. De Hollywood até lá levava-se meia hora de ônibus. Em caminho, almoçaram numa barulhenta cafeteria. Odette notou a beleza das moças atrás dos balcões. Mamie comentou o fato com uma careta.

"Afirma-se a existência de maior número de moças bonitas em Hollywood que em outro qualquer lugar do mundo. Vieram todas para cá, na esperança de obter trabalho e o conseguiram, mas não da espécie que almejavam".

"O que hão encoraja muito, hein?" suspirou Odette.

Mamie endireitou os ombros frágeis. "Não é razão para desanimarmos. Todos sabem que apenas a beleza não faz da gente uma artista. É preciso ter-se personalidade., ser-se fotogênica. Eu tenho personalidade e sempre saí bem nas fotografias, portanto não sei por que não triunfarei".

"Triunfará na certa", afirmou Odette, mas fitava atônita a criaturinha de cabelos negros. Seria genuína essa confiança em si mesma, ou fingimento tão grande e descabido que se enganava a si própria? Compreendera Odette que ela empenhara na expedição tudo quanto economizara e todas as esperanças. Não ousava prever o fracasso. Odette quisera ser assim confiante. Malgrado seu imenso sucesso na Inglaterra, sentia-se nervosa qual uma novata na arte. Seus conhecimentos de cinema eram reais, sabia quanto era difícil conseguir-se uma entrevista com um diretor.

A viagem de ônibus para os Harlequin Studios foi sensacional. Em meio a dilatados campos viam-se ruinas de imensas construções — cidades inteiras, feitas com massa de papelão, usadas apenas uma vez ou duas, e depois abandonadas. Uma apresentava uma arena; outra, a cópia de gloriosa catedral. Era triste pensar-se que pareciam assim magnificentes por uma semana e logo depois ruíam, ao abandono. Haveria algo duradouro no cinema? pensava Odette. Sua carreira fora breve. Tombara do píncaro da fama e fora varrida como aqueles palácios sem consistência que seriam arrastados a qualquer hora por um vendaval. Tal pensamento oprimiu-a. Se ao menos tivesse a inquebrantável confiança de Mamie!... e era-lhe tão imprescindível triunfar como à pequena atriz da Broadway. Não somente do ponto de vista financeiro, como para reconquistar a confiança em si mesma.

Os Harlequin Studios ostentavam uma fachada pouco acolhedora. As altas muralhas, o portão trancado pareciam inacessíveis como a entrada de um presídio, e um sujeito de farda, como guardião de penitenciária, ali estava, pronto para expulsar os que ousassem entrar sem sua permissão.

"Trago uma carta para Mr. Isaac O'Riley", disse Mamie confidencialmente.

Ele fitou-a entre desconfiado e rabugento. "Tem mesmo? Quero ver".

Mamie tirou-a da bolsa e meteu-lha debaixo do nariz.

"Aí está, engraçadinho ! Ou talvez nem saiba ler!"

"Vão lê-la sem falta no salão de entrada, e aposto dez contra um como a mandarão de volta", resmungou o homem. "Houve ultimamente uma epidemia de cartas falsas de apresentação. A gente as vê quando entram e as vê saírem mais depressa do que entraram".

"Pois não sairemos depressa", atirou-lhe Mamie por cima dos ombros. "Vamos passar a semana aqui, resigne-se, portanto!"

A mesa-secretária da entrada era no escritório interno e tão grande que dez funcionários estacionavam do lado oposto. Rapazes bem trajados, bem parecidos, com ares indiferentes e sorriso desencorajador. "Esta carta de nada lhe adiantará, pequena", pareciam dizer. Na outra extremidade enfileiravam-se cadeiras incômodas onde se sentavam à espera várias pessoas. Dir-se-ia que esperavam ali há semanas. Havia um formalismo neste estúdio que não se notava nos Ali Star Studios de Londres. Talvez fosse mais eficiente, mas a atmosfera do inglês era mais acolhedora.

Mamie entregou a carta a um dos elegantes jovens. Este atirou-a com descaso a um mensageiro fardado: "Leve isto ao secretário de Mr. O'Riley", ordenou.

"Ai, como estou nervosa", cochichou Mamie a Odette, "Não faço bom juízo destes gajos. Nem sequer nos mandam sentar!"

"Em sua opinião não nos demoramos aqui muito tempo", murmurou Odette com sorriso forçado.

"Não seja tola", revidou Mamie zangada. "Vai receber-nos, se vai! Gertie garantiu-me tê-lo conhecido há tempos, quando andaram juntos, fazendo tournées".

Pessoas entravam e saiam. Odette não pôde deixar de conjecturar que se os diretores recebessem cada um dos portadores de cartas de apresentação, pouco tempo teriam disponível para outra coisa. As respostas para a quase totalidade dos portadores de cartas eram: "Não, o sr. Fulano sente muito, mas não pode recebê-lo", ou, "Não, o sr. Sicrano estará ocupado a semana inteira".

"Estes camaradas podiam-se chamar os homens do Não", cochichou Mamie, excitada.

A resposta não demorou. "Mr. O'Riley lamenta não poder recebê-la. Não se recorda da senhora que lhe deu a apresentação".

"Ora, quero ir..." Mamie súbito emudeceu, o rosto rubro de indignação. "Não é possível!" gritou ao funcionário.

Este atalhou secamente: "Foi a resposta enviada dos escritórios de Mr. O'Riley".

"Não podemos esperar?" implorou Mamie. "Houve engano, com certeza. Gertie diz conhecê-lo tão bem! Fizeram uma tournée juntos, tournée de seis meses e...

"Peço-lhe que se retire", redargüiu o empregado insolente. "Há muita gente à espera e a senhora está ocupando lugar na secretaria".

A esse tom de voz a cólera se apoderou de Odette, que ficou lívida. Se dissesse: "Sou Odette Cosway; peço-lhe dizer a M. Paul Hershaw que desejo vê-lo imediatamente", tinha certeza de ser recebida. E Mamie seria vingada. Jurara no entanto não procurar Paul sem antes haver conseguido alguma coisa. Tocou no braço da amiga, "É melhor irmos embora, não adianta esperar".

Lágrimas brilharam nos olhos escuros de Mamie. "Não posso compreender. Poderia receber-nos sem compromisso. Como sabe se somos, ou não, os tipos que procura?" E tornando a voltar-se para o rapaz da secretária: "Darei um jeito para que ele nos receba!"

"Impossível", teimou o funcionário. "Por favor, Miss, queira retirar-se".

As duas pequenas saíram, Mamie magoada e aflita, Odette Iembrando-se que esperara por isso, o que não era agradável. Sua indignação passara. Talvez fosse preciso tratar assim os recém-chegados, para a preservação dos grandes estúdios.

Saíam do escritório, quando Mamie lhe agarrou o braço. "Lá está Isaac O'Riley em pessoa", sussurrou nervosa, apontando para um sujeito baixo, .moreno, cabeçudo, com aparência de judeu, que saía de uma porta lateral. "Gertie mostrou-me sua fotografia numa revista. Eu o reconheceria em qualquer lugar. Vou perguntar-lhe se se lembra de Gertie". E antes que Odette pudesse segurá-la, encaminhou-se em sua direção.

Odette foi atrás, mas devagar. Mamie agarrara pelo braço o espantado e furioso diretor.

"Por que nos devolveu a mensagem de Gertie Grayson dizendo que a não conhece?", perguntou-lhe intempestivamente. "Gertie falou-me tanto no senhor! Era o cômico da companhia, não era. Gertie contou-me daquela vez que, por engano, durante o ato, o senhor deu um pontapé num balde d'água e molhou-se inteiro".

"Largue-me o braço", disse Isaac O'Riley grosseiro. "Não sei de quem está falando e estou com pressa. Esperam-me para a filmagem".

"Marque-nos então uma hora amanhã", insistiu Mamie. "Quer conceder-nos uns minutos amanhã, a qualquer hora? Não é pedir muito, e se escrever a Gertie em New York, dizendo que..."

Mas O'Riley libertara-se.

"Pouco me importa o que Gertie disse", tornou ele. "Não a conheço e..."

Odette deu dois passos para frente. Não adianta insistir.

"Vamos embora, Mamie", falou depressa e em voz baixa. "Temos outras cartas de apresentação, como você sabe".

Súbito, porém, ao ouvir-lhe a voz, Isaac O'Riley estacou. Olhou para ela, a princípio com indiferença, depois com interesse crescente.

"Quem é você? perguntou.

"Esta é minha amiga, Dorothy Fletcher", respondeu Mamie em seu lugar. "Trouxe-a comigo, na esperança de conseguir alguma coisa para ela também".

"Venha procurar-me -amanhã às onze horas", disse O'Riley conciso.

"Ah, que gentileza, Mr. O'Riley!" agradeceu Mamie ofegante. "Viremos, é claro. Tinha certeza de que o senhor se havia de lembrar de Gertie, fazendo um esforço".

 

Na viagem de volta Mamie não podia reprimir o entusiasmo.

"Tem alguma coisa para nós, ou não nos mandaria voltar", afirmava confiante. "Começamos com o pé direito, Dorothy. Estamos há três dias em Hollywood e já temos entrevista marcada com um diretor. Outros pobres coitados, aposto, estão aqui há meses, anos talvez, sem ao menos se aproximarem de um diretor. Desde o instante que embarquei na Sunset Limited, senti-me esperançosa, com certeza de ser bem sucedida, mas não contava vencer assim depressa. Não é maravilhoso?"

Odette aquiesceu, mas intimamente duvidava do triunfo.

Mamie insistiu em jantarem fora essa noite, para festejar. Ficaram depois em meio ao povo, esperando a passagem dos astros e diretores que iam assistir a uma avant-première de importância, no Hollywood Movie Theatre.

Chegaram cedo, mas já encontraram grande multidão. Máquinas de filmagem e projetores estavam colocados à entrada, ao lado de um microfone, As estrêIas e diretores que se dirigiam ao teatro falariam ao microfone.

"Isto é vida!" suspirou Mamie extasiada. "Pensar que amanhã faremos parte deste mundo!"

De novo Odette franziu as sobrancelhas. Como podia Mamie ser tão infantilmente confiante!

Astros e diretores começaram a chegar. Automóveis caríssimos rodavam à entrada e um chofer fardado lhes abria a porta. Uma onda de entusiasmo sacudia a multidão ao reconhecer uma das estrelas. Empurravam-se e cochichavam: "É Janet Gaynor. Como é deliciosa! Lá está Clive Brook, como é garboso!" Odette também entusiasmou-se, mas sentiu algo esquisito. Era estranho não passar de espectadora deste espetáculo no qual ainda ontem brilhara com invulgar destaque. Ninguém a reconhecia nem voltava a cabeça para contemplá-la... era curioso sentir-se assim perdida, anônima. Quantas vezes passara assim em sua valiosa Rolls-Royce para um avant-première, com Lance ao lado!

A turba aumentava ao redor, empurrando-a para frente, na ânsia de ouvir as palavras de cada astro ao microfone. Pouco depois Odette achou-se quase na frente.

"Aqui é melhor, não acha?" suspirou Mamie satisfeita. “Vê-se mais”.

Odette ia replicar, quando, súbito, prendeu o fôlego. Abriu-se a porta de uma limusine e um senhor alto e magro saltou — um homem de profundos olhos cinzentos, testa alta e inteligente. Sorria, levemente irônico, o que lhe sulcava a pele sob os olhos. A mão de Odette agarrou convulsivamente o braço de Mamie.

"Que foi?" perguntou esta.

"... nada!" disse Odette.   Mas sua voz tremia.

"Conhece-o?" brincou Mamie prazenteira. "Chama-se Paul Hershaw, o novo diretor que os Harlequim Studios trouxeram de Inglaterra, Vi uma fotografia sua. Consideram-no muito hábil e parece-me simpático. Como são raros, os diretores simpáticos. Na maioria são baixos, retacos, cabeçudos, como o nosso amigo O'Riley..."

"Fique quieta", murmurou-lhe Odette agoniada de impaciência. "Ouça, ele vai falar ao microfone".

Pareceu-lhe subitamente que morreria se não ouvisse de novo a voz de Paul, sua profunda sonoridade de timbre baixa, com inflexões zombeteiras — a voz que a apoquentara, a elogiara e fora às vezes até suplicante.

"Senhoras e Senhores", dizia ele; "é um imenso privilégio para mim estar entre vós esta noite. Quero aproveitar a oportunidade para agradecer-vos a bondade com que me recebestes desde que cheguei ao vosso esplêndido país. Eu..." Súbito fez uma pausa. Odette, em seu nervosismo, chegara mais para frente. E por um segundo os olhos de Paul encontraram os dela.

Odette sussurrou apressada: "Sinto-me desfalecer", voltou-se e abriu caminho por entre a multidão. Empurrava os outros, sentindo no coração um estranho e incompreensível terror. Por que evitava Paul deliberadamente, se o seu maior desejo era falar-lhe? Seria orgulho? Ou a perversidade existente em todos nós, que nos obriga a fugir ao que mais queremos? Odette não raciocinava. Sentia, apenas, e tão agitada que correu no trajeto para casa.

"Alguma coisa a mordeu?" perguntou Mamie, quando mais tarde se encontraram.

"Não me estava sentindo bem; ia perder os sentidos em meio à multidão".

"Foi pena", revidou Mamie. Perdeu muito. Aconteceu uma coisa engraçada logo depois de sua partida. Sabe aquele diretor inglês, que falava ao microfone quando você fugiu? Pois abandonou o microfone em meio a uma frase, correu para onde você tinha estado e disse: "Onde foi aquela moça? Alguém a conhece aqui?"

"Conheço-a eu, é claro", respondi. "É minha amiga, Dorothy Fletcher. Moramos juntas". Ele pareceu decepcionado. "Ah! sinto muito!" desculpou-se. "Tomei-a por outra pessoa". E voltando para o teatro, desapareceu.  Coisa curiosa, não?"

 

NA MANHÃ seguinte, ao café, Mamie leu alto numa revista de novidades que Paul Hershaw, o diretor inglês, seguira a negócio para New York.

Odette respirou desafogada. Hesitava se acompanharia Mamie ou não, aos Harlequin Studios. Agora entretanto, estava garantida. Não havia possibilidades de encontrar Paul fortuitamente. "Ótimo", pensou consigo mesma, mas com uma intensa impressão de desânimo.

"Estou tão nervosa que nem posso comer", queixou-se Mamie. "Tenho o pressentimento de que ambas conseguiremos um contrato, e um bom contrato!"

Pôs o seu melhor traje e não apreciou o vestido esporte de crepe verde de Odette. Combinava maravilhosamente bem com seus belos cabelos ruivos, o que ela não sabia. Coisa esquisita, desejava nessa manhã que O'Riley não a achasse atraente.

O porteiro tornou-se mais delicado ao saber por um telefonema da portaria, que ambas eram esperadas por Mr. O'Riley.

"Que tal minha carta de apresentação?" vangloriou-se Mamie. "Disse-lhe ontem que viemos para ficar".

Tiveram de esperar. Sentaram-se no fundo do escritório em companhia de outras pessoas também à espera. Havia mães e criancinhas, meninas de rosto empoado e cachos doirados, feitos com elegância e arte. Odette lamentou a infância que elas nunca haviam de ter. Havia moças com elas, de aparência fatigada e ansiosa, e rapazes tentando parecer mais animados do que realmente estavam. Também havia gente velha, de fisionomia gasta e cansada mal vestida e aflita.

"Seria bom que O'Riley se apressasse", murmurou Mamie. "Estou louca por saber o que ele reservou para nós".

Nesse momento chegou um mensageiro para dizer-lhes que Mr. O'Riley as esperava. "Lá vamos nós", sussurrou Mamie.  "Ai, como estou nervosa".

Foram conduzidas através de imensos corredores e atravessaram um pátio, ao fundo do qual ficavam os escritórios dos diretores. Cada um possuía o seu, todos edificados à volta do pátio. A meio caminho, Odette parou. O nome de Paul Hershaw numa porta chamou-lhe a atenção. Sentiu qualquer coisa na garganta; estava singularmente impressionada.

"Vamos", empurrou-a Mamie impaciente. "Que viu você?"

"Nada", retrucou Odette, e tornou a caminhar.

Havia duas salas na casa. Uma pequena, onde trabalhavam duas secretárias de O'Riley e outra maior, ocupada por ele.  A mobília era moderna e a escrivaninha de Mr. 0'Riley, imponente.

Uma das secretárias fez as jovens entrarem.

"Como vão?" cumprimentou O'Riley. Mandou Odette sentar-se numa cadeira, diante de sua mesa. "Venha aqui", disse-lhe conciso.

Odette hesitou em aproximar-se. Antes tivesse convidado Mamie para o lugar de honra. Mamie parecia desconcertada.

"Não, você, senhorita, a de cabelos ruivos", decidiu ele resoluto. "Como é mesmo o seu nome? Fletcher? Tem alguma experiência de cinema?"

"Um pouco, na Inglaterra", murmurou Odette.

"Na Inglaterra? Ahn! Interessante. Tire o chapéu e vire-se, por favor. Sim, filmará bem. Farei dois testes amanhã, de filmagem e de voz. Venha às dez horas e procure-me. Não lhe prometo nada, é lógico", acrescentou rápido, "mas se os testes valerem alguma coisa, tenho em mente um pequeno papel para você". Levantou-se. "Por hoje basta, senhorita Fletcher. Muito obrigado". Tocou a campainha e disse ao secretário: "Acompanhe estas jovens".

"Mas..." Mamie ficou a encará-lo, num apelo violento, estarrecida. "E quanto a mim, Mr. 0'Riley? Terei também um teste de fotografia?"

Isaac O'Riley fitou-a desinteressada e friamente. Tinha o dom de olhar com mais frieza e desinteresse que qualquer outro diretor da indústria cinematográfica.

"Sinto muito, senhorita... não me lembro de seu nome, mas não apresenta o tipo de que agora necessitamos".

Mamie engoliu em seco. "Mas Gertie era minha amiga..."

“Já ouvi bastante a respeito de Gertie”.

"Receio não estar livre amanhã para o teste, se Miss Richards também não fizer um, disse Odette serenamente.

"Como?" O'Riley uniu as sobrancelhas escuras e pareceu zangar-se. "Deve estar doida. Não sabe o que está dizendo".

"Sei", replicou Odette no mesmo tom.

Mamie entretanto, já voltara a si do desaponto. "Não seja tola, Dorothy", ralhou. "Você virá, é claro, fazer o teste de amanhã. Não se preocupe comigo. Pouco se me dá. Ainda bem que uma de nós terá a oportunidade"

"Talvez as senhoras prefiram discutir lá fora e deixar-me continuar o trabalho", ralhou O'Riley impaciente. "Espero-a amanhã cedo, senhorita Fletcher. Até amanhã".

Mamie simulou alegria a caminho de casa, mas Odette não se iludiu. Sentia pena da amiga. Sabia por experiência que Mamie não era um tipo interessante para o cinema e excogitou de si para consigo porque os espíritos mais persistentes são justamente os que contam na vida com menores probabilidades de sucesso.

"Se uma de nós arranjar emprego, podemos ficar sossegadas", disse Mamie jovial. "Você, na certa, é o tipo de que O'Riley precisava para um determinado papel. Pior para mim, mas não vou chorar por isso. Tenho outras cartas de apresentação. Começarei as visitas amanhã. Antes do domingo terei pescado um papel. Verá".

 

Como era de esperar, os testes de fotografias e voz foram um sucesso. Mesmo de cabelos vermelhos e aparência menos refulgente, Odette filmava com perfeição. Isaac O'Riley estava encantado. Desejava que Odette assinasse imediatamente um longo contrato; ela, porém, demasiado experiente, recusou-se.

"A senhorita parece a par destes negócios", observou O'Riley secamente.

"Disse-lhe ter trabalhado um pouco na Inglaterra", revidou Odette.

“O suficiente para não se deixar enrascar nos anzóis atirados aos principiantes", riu ele. “Não posso censurá-la”.

Ela teria um papelucho num filme, cujos ensaios iam principiar dentro em breve.

"Enquanto espera, fique estudando os cenários, para familiarizar-se com o ambiente", aconselhou-lhe O'Riley.

Maior insistência não foi necessária. Os ensaios eram para ela a vida. Aqui tudo era feito em maior escala que na Inglaterra e com mais imponência. Os cenários, magníficos, e era interessantíssimo passear pelos vastos estúdios. Havia cenários permanentes de aldeias estrangeiras originais, usadas quando requeridas; havia vilarejos tiroleses, velhas aldeias inglesas, uma larga avenida parisiense, o Times Square de New York. Era delicioso passear numa cidadezinha italiana e logo depois no Picadilly Circus!

Não fosse a preocupação com respeito a Mamie, Odette estaria feliz. Suas famosas cartas de apresentação não produziam o menor resultado. Ou os diretores se recusavam a recebê-la ou, se lhe falavam, diziam-lhe não terem nada para ela, nem agora nem depois. Um ou dois lhe declararam que o seu tipo francamente não servia para cinema. A intenção era bondosa, pois seria insensatez encorajar uma criatura imprópria aos trabalhos cinematográficos e continuar em Hollywood.

A princípio Mamie suportou as recusas com coragem, até de fisionomia alegre.

"Como se acreditasse no que me diz um velho ridículo". Sacudia a cabeça negra e ria-se. "Ele comeu muito ao almoço, deve estar com indigestão".

Relatava as entrevistas com tanta graça, que Odette e Bruce riam com ela. Mas sob a falsa alegria, Odette enxergava a profunda humilhação e preocupava-se. Se ao menos ser artista de cinema não significasse tanto para a vida de Mamie!

Bruce também se preocupava. Muitas vezes a sós com Odette, discutiam a questão. Encontravam-se para jantar numa cafeteria ou pequeno restaurante.

"Se eu pudesse fazer alguma coisa", queixava-se Odette, as mãos juntas sobre a mesa. "Parte-se-me o coração ver a pobrezinha assim desapontada. Algumas vezes, Bruce", e abaixou a voz, "temo... temo que ela faça uma loucura; está ficando desesperada".

"Isso é bobagem, Odette", asseverou Bruce simulando mais confiança do que,sentia. "Não dramatize as coisas. Há aqui três milhões de raparigas que fracassaram e não cometeram loucuras. Estão por aí, em toda parte". Sorriu e acrescentou: "Nunca vi tanta moça bonita em minha vida. É pena meu trabalho ser à noite".

Odette fingiu não ter ouvido.

"Não é apenas o fracasso em conseguir entrar para o cinema. Antes de deixar New York ela sofreu uma desilusão amorosa. Foi provavelmente o que a decidiu a embarcar. Qualquer sucesso, por menor que seja, a ajudará a esquecer, mas estes contínuos desenganos aumentam-lhe o sofrimento e a solidão".

Bruce concordou e tocou-lhe a mão, penalizado. "Por favor, não se amofine, Odette. Fale-me a seu respeito. Quando começará a filmar?"

"Amanhã. Perguntaram-me hoje se eu conhecia maquiagem. Engraçado, não?"

"Tem visto Paul Hershaw?" perguntou-lhe Bruce de repente.

"Não ainda. Ouvi dizer nos estúdios que voltará breve de New York".

Houve uma pequena pausa.

"Quando se encontrarem novamente, que acontecerá?" indagou Bruce com finura.

"Nada, é claro", volveu Odette forçando um sorriso.

"Desejaria estar mais certo disso!" revidou ele rindo ainda, mas não com muita vontade.

 

A primeira semana de filmagem para Odette foi emocionante. Era delicioso sentir no rosto novamente o calor dos grandes projetores, dos inkys e kilos, ouvir a campainha de "Silêncio", os estalos da sincronização do som e filmagem passarem pelo seu trecho, e ficar a espera, nervosa, pelo "O. K." do diretor. Sentia como se as portas do céu se tivessem aberto de novo para ela. Como imaginara poder existir, longe da vida cinematográfica?

A peça era um drama social com o título Namorados não se Beijam. Todo o elenco gostava do nome, mas sabia que o departamento de cenários lhe haveria de mudar o titulo. Provavelmente acabaria chamando-o: Corações entre Selvagens.

Odette representava o papel de um manequim que, momentaneamente, desperta o interesse do herói. Notara-se desde o início estar Isaac O'Riley encantado pelo seu trabalho.  Considerava-a uma descoberta.

"Bom trabalho, Miss Fletcher", disse ele um dia. "Se continuar assim, ouviremos falar da senhorita futuramente".

De volta para casa, Odette caminhava por entre nuvens.  Coisa estranha, nenhum dos elogios que recebera em grande escala, no passado, não a tinham lisonjeado como este.

"Se Mamie achasse alguma coisa hoje", cismava.

Mas, ao chegar em casa, achou Mamie de joelhos diante da mala, arrumando-a para voltar a New York.

Havia lágrimas no rosto pálido da moça; tremiam-lhe as mãos, tremiam de fazer dó ao dobrar as roupas e colocá-las na mala.

"Não adianta, Dorothy; ninguém me quer aqui. Ninguém acha que eu sirvo. Sou uma fracassada".

"Mamie", protestou Odette, "sua oportunidade ainda não chegou. Por que não teima um pouco mais? Tenho certeza de que tudo breve melhorará para você".

"Se continuar aqui, nem terei dinheiro para a viagem de volta". Mamie riu forçado. "Se tivesse ao menos trabalhado num filme, não me importaria voltar. Teria o que dizer aos companheiros da Broadway. Mas assim, rirão de mim e com razão. Como estava prosa, ao embarcar para cá... Nem pensava em fracasso. Não o achava crível. Deus meu, como vão rir de mim!" Ela mesma tentou rir, mas o que conseguiu foi engolir , um soluço.

"Que vai fazer quando chegar?"

A moça sacudiu a cabecinha escura. "Não sei. Naturalmente aceitarei o que aparecer... se aparecer alguma coisa, com esta crise e tudo mais. Voltarei a cantar e dançar, encontrando um companheiro, mas que tristeza ter outro que não o Bertie". Encolheu os ombros e sorriu. "Que inferno! Tudo acabará se acomodando e se assim não for, há sempre um meio fácil de consertar as coisas".

Um estremecimento sacudiu Odette. Lembrou-se de já ter pensado assim.

"Não vá antes do fim da semana, Mamie", implorou Odette de repente. "Tenho o pressentimento de que até lá tudo se há de arranjar; não sei de que maneira, mas espere mais um pouco".

"Talvez, se é esse o seu palpite..." disse Mamie devagar.

"Tenho a certeza", animou-a Odette. “Confie em mim. Alguma coisa virá".

Enquanto falava, dizia de si para consigo: "Tenho de cumprir esta promessa, mas como, Deus meu?"

 

Passou a manhã seguinte a pensar no caso. Pediu a Mr. O'Riley fizesse um teste de Mamie.

"A moça que não parava de falar em Gertie?" perguntou o diretor com um brilho nos olhos. "Não é possível, menina. Não vale um teste. Nunca fará sucesso em Hollywood".

"Se não fizer, poderá interpretar papéis pequenos", insistiu Odette.

"Duvido, e tenho gente demais dessa espécie, da que não vai nem vem. Não é justo encorajar mais uma. Não há aqui lugar para ela".

Odette teve de resignar-se. Sua aflição aumentou. Precisava dar a Mamie uma oportunidade, a todo custo. Mas como? Já pedira a Mr. O'Riley e não conhecia outra pessoa de influência.

Meditava tristonha, quando ouviu de um dos artistas as palavras: “Paul Hershaw, o diretor inglês, está de volta. Vai começar logo a filmagem de uma super-produção. Não sei qual seja. Por enquanto é segredo".

Odette estremeceu. Passou longo tempo imóvel, o corpo teso, a respiração suspensa. Claro, a solução era essa. Pediria a Paul qualquer coisa para Mamie. Não a pediria em proveito próprio, era estranhamente orgulhosa para tanto. Mas ajoelhar-se-ia, se necessário, para implorar-lhe ajudasse Mamie.

Era mister agir imediatamente. Sua presença não era mais necessária em cena, portanto, sem dar-se ao trabalho de tirar a maquilagem, ou mudar de roupa, encaminhou-se rápida para o local onde ficavam os escritórios dos diretores.

Parou um momento, antes de bater à porta. Estava ofegante, como se tivesse corrido. Já provocara idêntica sensação — quando batera à sua porta, naquela manhã em Marrakesh, após saber de seu acidente.

A secretária fitou-a surpreendida. "Desejava falar a Mr. Hershaw", pediu Odette.

A moça hesitou. "Mr. Hershaw acaba de chegar de New York e está muito ocupado. A senhorita tem hora marcada?"

"Não", disse Odette sacudindo a cabeça, "mas... creio que ele me receberá".

"Qual o seu nome?"

Odette hesitou: "Dorothy Fletcher". E acrescentou: "No momento, estou filmando para Mr. 0'Riley".

Entrou no escritório e ficou a espera. Não conseguiu acalmar-se com a curiosa impressão de que se ia atirar num precipício. Pareceu-lhe depois já ter caído, e bem no fundo.

"Mr. Hershaw pede desculpas, mas não lhe é possível recebê-la hoje", disse-lhe a secretária.

"Não me pode receber?" gaguejou Odette. Como era possível Paul mandar-lhe um recado desses? De repente lembrou-se e sorriu. Ele não podia adivinhar quem fosse Dorothy Fletcher.

"Pode levar-lhe um bilhete?" pediu.

A secretária acedeu, mas seu olhar dizia claramente ser perda de tempo. Odette ficou imóvel, lápis em punho, cenho carregado, depois rabiscou: "Não seja mau comigo, Paul. Odette".

O efeito do bilhete foi milagroso. Segundos depois surgia Paul em pessoa. Alto, magro, e fino rosto inteligente pálido de excitação, os olhos cinza fulgurantes. Fitou-a estatelado, como se avistasse um fantasma.

"Odette!" balbuciou.

Ela murmurou: "Dorothy Fletcher, Paul".

Este fitou-a novamente, examinando-a, depois sacudiu a cabeça. "Compreendo. Entre no escritório". E, virando-se para a secretaria: "Leve aquela mensagem a Mr. Henry e espere a resposta".

 

Mal a secretária saiu, suas mãos estenderam-se e agarraram os cotovelos de Odette puxando-a para si.

"Querida, querida..." dir-se-ia fosse incapaz de pronunciar outra coisa.

Também Odette estava comovida. Sacudiu a cabeça como para afastar as lágrimas que lhe brotavam dos olhos. Forçou um trêmulo sorriso. "Como é bom vê-lo de novo, Paul!"

"Então, no meio do povo, aquela noite, era você, hein? perguntou. "Era".

"E por que fugiu?"

Ela tornou a sorrir. "Fiquei tão nervosa!"

Ele ergueu uma sobrancelha e, com malícia: "Não o repita", avisou. "E todo este tempo perdido sem vê-la!"

Houve um pequeno silêncio e ele acrescentou: "Quero saber tanta coisa. Tanta! Que faz aqui, fantasiada de Dorothy Fletcher? Como está sob a direção de O'Riley e não sob a minha? E por que', e este é o grande porque por que não me procurou, ao chegar a Hollywood?"

"Você pergunta demais", sussurrou Odette ofegante.  "Não posso responder a tudo de uma vez".

"Pois bem, responda então ao mais importante, criatura. Por que não me procurou, ao chegar? Por que não me avisou de sua vinda?"

Frente aos dele, seus olhos azuis se abaixaram. "Não sei, Paul".  E era verdade.  Não o sabia.

"Não queria ver-me?" perguntou. Paul sentara-se numa ponta da secretária, braços cruzados no peito.

"Talvez, Paul".

Ele ergueu de novo uma sobrancelha e sorriu Com finura: "Por quê? Mistérios da mente feminina? Queria ver-me e, no entanto, não procurou por mim. Confesso que atrapalha um pobre mortal. Contento-me com o milagre. Você chegou! E me procurou! Por impulso repentino, ou porque soube de minha volta?"

"Por ambos", admitiu ela, e continuou depressa, pois lhe era penoso pensar em Mamie quando só queria pensar em Paul. "Não vim vê-lo por mim. Vim por uma mocinha minha conhecida... que está desesperada: peço-lhe, dê a ela uma oportunidade".

Ele levantou-se da mesa e aprumou devagar o corpo alto e magro. Uma sombra anuviou-lhe o rosto e, por um momento, quase lhe voltou as costas, olhando fixamente pela janela: "Ah! foi isso que a trouxe..." disse afinal.

Ela quis corrigir: ("Não, não foi isso. Desde que cheguei tenho querido vê-lo. Meu orgulho impediu-me. Queria vencer sem auxílio. E não ousava confessar-lhe uma coisa dessas...")

"Sim", murmurou. "É uma grande amiga minha".

E continuou a. falar-lhe sobre Mamie.

Hershaw parecia ouvir apenas a metade do que dizia Odette. "Está bem. Arranjarei um teste de fotografia e, se for possível, darei trabalho à sua protegida. Não se apoquente, Odette. Farei o que puder por sua amiga".

"Como é bondoso, Paul".

"Absolutamente", revidou ele áspero. "E você está bem agora?"

“Sim; interpreto um pequeno papel em Namorados não se Beijam. Um dos filmes de Mr. O'Riley".

Seus lábios arquearam-se maliciosos: "Deve ser uma sensação para Odette Cosway representar papel tão pequeno, não?"

"Estou recomeçando tudo", confessou ela sorrindo.

Ele não lhe retribuiu o sorriso. "Desejo-lhe sucesso. É agradável vê-la de novo. Tornaremos a nos encontrar a qualquer momento".

Odette sentiu que a mandavam embora. Virou-se hesitante e caminhou para a porta.

"Posso dizer a Mamie que venha procurá-lo?" conseguiu articular.

"Sim, amanhã, a qualquer hora".

Uma vez fora, lágrimas contidas a custo lhe encheram os olhos. Que acontecera? A princípio fora maravilhoso; depois, de repente, estava o caldo entornado. Por sua culpa, ou dele? Feriu-a uma tristeza como há muito não experimentara. Encontrara Paul, mas para tornar a perdê-lo. Nem podia acreditar.

 

PAUL cumpriu a palavra. Aprovou o teste de Mamie e prometeu-lhe algumas linhas na próxima película. Mamie pairava nas nuvens. Convenceu-se estar fadada ao estrelato.

Odette continuava a agradar O'Riley mas, coisa curiosa, o trabalho não mais a entusiasmava. A entrevista com Paul não lhe saía da mente. Por que, depois de recebê-la tão alegre, passara a tratá-la com frieza?   Não compreendia.

Quando a filmagem de Namorados não se Beijam estava concluída, Odette recebeu um chamado de Paul. Há semanas não o via, desde o desastrado encontro.

"Mr. Paul Hershaw deseja falar-lhe, Miss Fletcher", disse-lhe o mensageiro.

"Ele deseja falar comigo?" perguntou Odette.

"Sim. Pode ir agora?"

Ela disse que sim. Sua presença não era mais necessária no set. Sua colaboração no filme estava terminada. Que quereria Paul com ela. Desejaria sentir-se mais calma.  Era insensato tanto nervosismo.

"Sente-se, Odette", disse Paul quando ela entrou . no escritório.   "Quero falar-lhe sobre negócios".

Odette sentou-se. A atitude dele era cerimoniosa. Nada relembrava a profunda amizade de outrora. Repentinamente sentiu-se mal, agoniada. Por que mudara Paul na maneira de tratá-la?

"Já ouviu falar na super-produção que vou dirigir?" perguntou-lhe. E como Odette sacudisse a cabeça, continuou franzindo as sobrancelhas e unindo as mãos sobre a secretária, à sua frente. O título é Mulher do Século, filme forte. A heroína é uma mulher que passa pelo inferno mas consegue sair dele, e triunfante. Quando li os originais, lembrei-me de você. Quer lê-los? Gostaria que fosse você a estrela nessa película.

Odette, estarrecida, não podia falar. Paul lhe oferecia simplesmente o estrelato de sua nova produção. Não era possível!

"Mas, Paul", murmurou a custo, "como pode erigir-me em estrelas? Ninguém aqui me conhece".

Ele não lhe deu tento à objeção. "Isso é comigo. Cada diretor tem poderes para criar uma nova estrela em cada filme. Conheço você. Assim como chegou a estrela sob o nome de Odette Cosway, também chegará sob o de Dorothy Fletcher. Não pode falhar. Está em sua alma. Vendia romances ao público, romances irreais, e agora, sob minha direção, venderá a vida real. Dorothy Fletcher eclipsará todas as demais estrelas de Hollywood. Lembra-se daquele dia a bordo, quando chegamos de Marrocos? Disse-lhe que num papel diferente poderia fazer de você uma artista maior ainda. Não foi apenas bravata de minha parte. Vou agora fazer o teste. Tem coragem?

Ele falara o tempo todo, rápida e animadamente. Nunca o vira tão excitado. Seu entusiasmo contagiou-a. Quando afinal silenciou, Odette respirava ofegante, lábios entreabertos.

"Naturalmente, Paul. Você sabe que sim, mas tem certeza de que posso desempenhar esse papel a contento?"

Ele sacudiu vivamente a cabeça. "Sei! Mas não se esqueça, minha própria reputação está em jogo. Se fracassar, a fita irá por terra. Confio-lhe minha reputação e meu futuro. Não se esqueça".

Brotaram lágrimas dos olhos de Odette. "Não me esquecerei, Paul. Por que faz isso por mim? Arrisca sua reputação de produtor por minha causa. Não há estrelas célebres que lhe garantam o sucesso?"

Paul encolheu os ombros e passou a mão nos cabelos. "Talvez. Mas não encontrei nenhuma a quem o papel fosse tão bem como você. Quando li os originais, há dias, logo pensei em você".  Houve uma pausa. "Como é, está decidida?"

Ela baixou os olhos para as mãos unidas no regaço. Lutava por conservar a voz firme.

"Que posso dizer, senão agradecer-lhe de todo o coração esta magnífica oportunidade? Mas tenho medo. Apavora-me causar-lhe desenganos".

"Isso é comigo", repetiu ele severo. "Não é de sua conta, se quero arriscar".

Novo silêncio. Odette sentia um nó apertar-lhe a garganta.' Não era de sua conta, se ele queria arriscar. Coisa esquisita. Súbito teve a revelação de que se importava muito mais com a carreira dele, que com a dela. A revelação, qual um relâmpago, assomou-lhe ao espírito e deixou-a mole, atordoada.

"Deve compreender que o risco é inteiramente meu", repetia Hershaw ante o silêncio de Odette. "Mesmo que você fracasse — estou certo do contrário — conservará intacta sua atual situação".

"Paul", Odette respirou fundo e ergueu os olhos para ele, "por que se arrisca assim por mim? É..."

"Apenas porque a vejo encarnada nesse papel", interrompeu ele brusco. "Se soubesse de outra mais apropriada, não me valeria de você".

"Pois bem, nesse caso tenho a satisfação em desempenhar o papel. Por estar certo que darei o máximo de mim mesma".

Paul sorriu pela primeira vez durante a entrevista,

"Sei disso, Odette, e será bem sucedida, garanto".

Nesse dia em que obtivera a sua maior oportunidade, Odette chorou até que adormeceu exausta.

De acordo com os hábitos de Hollywood, houve semanas e semanas de ensaios antes de ser iniciada a filmagem. Trabalhavam numa sala onde linhas riscadas no chão figuravam paredes e outras coisas, de modo que os fotógrafos e técnicos em iluminação podiam estudar os ângulos, todos os artifícios requeridos, antes de expor um pedaço de película. O papel era diferente de todos os demais interpretados por Odette. Era grave, realista, dava-lhe campo para exercitar a ação dramática. Ficava a imaginar se, meses antes, seria capaz de interpretar tal personagem. Se não tivesse sofrido, como daria vida a mulher tão trágica? cismava consigo mesma. De certa maneira, aquela história era a sua história. Uma criatura abandonada pelo amante, arrancada de alta posição social, e desprezada justamente por aqueles que diziam adorá-la. Não suportara ela exatamente o mesmo? Conhecia de perto a amargura da situação.

Paul era esplêndido como diretor. Começando a filmagem, tornou-se dinâmico. Parecia ter olhos em toda parte. Era um gênio para conseguir o melhor efeito, o mais raro e justo; um talento extraordinário para os pormenores e com grande dom de conseguir o máximo dos artistas.

Odette ajoelhava-se humilde ante o altar de seu gênio, a adorá-lo. Nunca trabalhara sob direção tão talentosa, eficiente e, ainda assim, compreensiva. Sentia orgulho ao recordar que esse homem já fora seu amigo; chegara mesmo a pedi-la em casamento... e torturava-a a lembrança de que tal amizade tivesse acabado. Bruce notava-lhe o abatimento espiritual e comentava:

"As coisas vão bem entre você e Paul?"

"Sim, muito bem; por que pergunta?"

"Por nada", disse ele franzindo a testa. "Você não está contente. Apesar de se verem nos estúdios, não se encontram freqüentemente aqui fora, hein?"

"Paul anda ocupadíssimo com a película. É de suma importância para ele".

"E para você também", teimou Bruce erguendo uma sobrancelha.

"Lógico que é. Prefiro morrer a desprestigiar Paul".

Bruce fitou-a silencioso.

"Calculei... calculei isso mesmo", resmungou afinal.

"Calculou o que?"

Ele limitou-se a sorrir, enigmático. Não respondeu.

Mamie também teve o que dizer a Odette, com respeito a Paul Hershaw.

"Ele é formidável, não? Tem todas as qualidades de um grande diretor. Se fosse você, estaria caidinha por ele".

"Como, se fosse eu?" perguntou Odette com voz surda.

"Pois é", arriscou Mamie, "você o conheceu na Inglaterra, não conheceu?"

Odette respondeu depressa: "E que diferença faz isso?"

Mamie sorriu atrevida. "É que apanhei um de seus olhares dirigidos à nova estrela; viu-lhe nos olhos uma expressão que me deixou pensativa. Há o fato também de lhe haver entregue o papel principal. Você o desempenha maravilhosamente", apressou-se a acrescentar. "Mas, se não estivesse interessado, ter-lhe-ia dado a oportunidade?

"Sou o tipo de que ele precisa, só isso".

Mamie pôs as mãos nas cadeiras e fitou-a com malícia: "Só isso, Miss Dorothy Fletcher? Acha possível enganar a criatura experimentada e vivida que sou eu? Você não tira os olhos dele, tenho observado. Está caída também. E longe de mim, a idéia de censurá-la!"

Por uma razão qualquer isso enfureceu Odette.

"Não seja boba, Mamie", ralhou. "Admiro-o como diretor, mas é tudo. Já fomos amigos, confesso, mas está tudo acabado. Nunca nos vemos, senão em cena".

"Sei disso", concordou Mamie, "mas não quer dizer absolutamente nada. Já estive doida por homens com quem nunca falei. Talvez ele não queira parecer camarada antes de acabar o filme. Se o fizesse, poderiam criticar, dizer que você conseguiu o papel porque ele a amava".

E Odette desejou ardentemente que o motivo do retraimento de Paul fosse esse. Mas não acreditava. Quando se dirigia a ela, era sempre cortês, mas com nada de especial. Discutiam apenas o trabalho a executar e sua interpretação. Elogiava-a invariavelmente.

"Não me enganei a seu respeito", repetia. "Tinha confiança em você. Esta película a fará grande estrela. Depois, poderá ditar seu preço".

Odette sorria de leve. "O principal é você estar contente, Paul".

Ele fitou-a como se não acreditasse no que ouvia. "É muita gentileza sua, Odette, mas não pode ser verdade. O que importa é o público. É o público somente que deve importar".

Terminou-se a filmagem. Estavam todos abatidos como que desapontados — reação inevitável, após tantas semanas de esforços e tensão nervosa. Odette notou que Paul emagrecera; estava deveras exausto.

"Trabalhou de mais nesta fita", disse ela. "Está na iminência de cair de cama".

Ele esboçou um sorriso. "Não me pode censurar por trabalhar demais. Este filme fará de mim um grande diretor ou um fracasso. Felizmente está acabado. Julgo-o bom".

"Se é bom, é magnífico!" exclamou Odette enlevada.

"Vi projetadas várias cenas", tornou ele. "Parecem-me boas. Todos se entusiasmam pelo seu trabalho, Odette. Dizem que fiz uma descoberta". Sorriu. "Se soubessem a verdade, que haveriam de pensar?"

Os olhos de Odette anuviaram-se.

"Paul, e se alguém, aqui, descobrir a verdade? Que Odette Cosway, a da escandalosa publicidade na Inglaterra e Dorothy Fletcher são uma e mesma pessoa? Que acontecerá?"

O rosto de Paul também anuviou-se.

"Reduzirão a zero, você e meu filme", pronunciou com sardônico sorriso.  "O estúdio terá de retirá-lo do cartaz. Também aqui são severos, não admitem escândalos".

Odette ficou lívida. "Paul, se o tivesse sabido, não teria aceito o risco. Você não devia ter agido assim!" interrompeu-se trêmula. "Nunca me perdoarei, se acontecer alguma coisa por minha causa".

"Não seja tola", ralhou ele. "Competia a mim saber se devia arriscar ou não. Aconteça o que acontecer, não é você a culpada. E nada acontecerá. Você está inteiramente transformada, não mais é a formosa Odette Cosway. Está linda na fita, porém austera. Ninguém poderá reconhecê-la. Até sua maneira de representar é diferente".

"Sei disso", murmurou ela, "mas tenho tanto medo..."

Impulsivamente ele tocou-lhe a mão. "Não tenha medo, Odette. Venha o que vier, afundaremos os flutuaremos juntos. De que valia um de nós alcançar a praia, se deixasse o outro se afogar?"

"Paul, Paul, como você é bom!" Piscou muitas vezes para afugentar as lágrimas e acrescentou: "É a primeira coisa amável que me diz de há muito tempo para cá".

Paul espantou-se. "Ora essa, Odette, se tenho sempre elogiado o seu modo de trabalhar".

"Sim, elogia o meu trabalho, mas..."

"E o seu trabalho não é o mais importante?"

Ela meneou a cabeça. "Não, Paul, não é mais".

"Odette", disse ele ofegante, com voz diferente da habitual, "não compreendo".

Nesse momento um mensageiro veio dizer que o chefão, Gus Hanson, estava à espera de Paul no escritório.

"Chamado oportuno", resmungou Paul, ao afastar-se. "Não fosse ele, tornaria a fazer papel de bobo".

Odette continuou imóvel, sorrindo, depois de sua partida. Há muito, muito tempo, não experimentara tamanha felicidade.

 

Fora alugado um dos principais teatros de Hollywood para a avant-première de Mulher do Século. Quanto mais perto chegavam do grande dia, mais Odette perdia o sono e o apetite, tal a excitação. "Se acontecesse alguma coisa! Se o filme não triunfasse! Acho que morrerei", pensou. Sabia não se mortificar por si mesma. Paul é quem devia vencer, pois o merecia como ninguém.

Na tarde anterior ao dia da avant-première, encontrou-o nos estúdios. Estavam no vasto hall e sorriram-se mutuamente. O arranhão que sofrerá a amizade estava radicalmente curado desde a última entrevista.

"Estou organizando uma ceia íntima para depois da avant-première de amanhã à noite. Aceita um convite?"

Ele sorriu e suspendeu uma sobrancelha. "Deseja a minha presença. Odette?"

Ela também sorriu, a tremer. "Se você não for, não haverá festa".

Paul continuou imóvel: "Está falando sério, Odette?"

"Naturalmente", balbuciou ela.

"Odette!..." Teve vontade de tomá-la nos braços, mas dominou-se com esforço. "Amanhã à noite, querida", murmurou. "Amanhã significa tudo para nós, não é?"

Ela sorriu, ainda mais trêmula.

"Amanhã, ou bebemos champanha, ou..."

"Ou enfiamos a cabeça num fogão a gás", concluiu ele sorrindo.

 

Odette estava gloriosamente feliz naquela noite. Bruce e Mamie o notaram, mas eram demasiado ajuizados para fazer comentários.

Desde que Odette começou a ganhar bastante, mudaram-se para um bangalô mais amplo e confortável. Mamie protestou, reclamando ser o preço acima de suas possibilidades, mas a amiga insistiu em responsabilizar-se pela parte do leão nas despesas.

"Darei uma ceia depois da avant-première, amanhã à noite", avisou ela. E, prendendo o fôlego: "Paul Hershaw irá também".

"Ah! as coisas já estão assim!" riu Mamie entusiasmada.

Bruce silenciou. Olhou para o prato. Sentiu por um momento a aguda mordida do ciúme. Ao erguer a cabeça, porém, sorria.

"O. K., irmã. Espero que seja feliz".

Odette tornou-se rubra. "Não sei ao que se referem", balbuciou.

"Naturalmente que não sabe", volveu Bruce com uma careta.

Ao terminarem a refeição, Mamie exclamou assustada: "Quase me ia esquecendo. Encontrei um inglês nos estúdios, hoje, muito interessado em você, Dorothy.

“Viu-a num dos cenários e garantiu-me, tê-la conhecido na Inglaterra".

Odette assustou-se. "Conheceu-me na Inglaterra?"

"Sim. Disse que foi grande amigo seu, mas a perdeu de vista há algum tempo. Perguntou-me onde você morava".

Odette empalideceu. "E você lhe disse?" perguntou aflita.

Mamie fitou-a surpresa. "Sim, lógico. Ele o descobriria facilmente. E como afirmasse ser um velho amigo, julguei que você gostasse de tornar a vê-lo. É provável que apareça esta noite".

Houve uma pequena pausa. Odette e Bruce olharam fixamente um para o outro, como se tivessem medo da pergunta inevitável.

"Que pretende fazer, Odette?" perguntou então ela afinal.

Mamie franziu o cenho. "Não me lembro bem. Nunca me lembro de nomes. O sobrenome me escapa, mas o primeiro começa por L. Lance... é isso mesmo...Lance qualquer coisa".

 

Bruce aproximou-se de Odette após Mamie deixar a sala. Percebeu quanto ela estava atribulada. Não articulara palavra desde a assustadora notícia transmitida por Mamie.

"Que pretende fazer, Odette?" perguntou em voz baixa.

"Não sei", murmurou ela. "Bruce, Bruce, que hei de fazer?"

"Expulse-o quando chegar. Que pode ele contra você?"

Ela não respondeu imediatamente. Encolheu-se trêmula no sofá.

"Temo que possa muito. Se vierem a saber aqui que sou Odette Cosway, a principal figura do escândalo londrino, estou perdida. E não somente eu; o filme de Paul também estará arruinado. Nem sequer será exibido".

"Como sabe disso?"

"Paul avisou-me"

Houve um silêncio.

"Mas Lance não fará uma coisa dessas", disse ela procurando acalmar-se. "Não irá, de caso pensado, estragar minha carreira e a de Paul. Não poderá fazê-lo".

Bruce não articulou palavra.

"Vai recebê-lo, se ele aparecer?" perguntou.

"Sim. O melhor é encarar os fatos de frente".

"E você não se afligirá?"

Odette sorriu. "Isso não posso prometer. É triste, penoso, rever os que anteriormente tanto presamos e que depois..."

"Quer-nos aqui, a mim e a Mamie?"

Ela pôs-se a refletir, encolhida no sofá; somente pelo tremor das mãos se percebia o quanto estava aflita.

"Não", disse afinal. "Se ele vier, o melhor é eu recebê-lo sozinha".

Bruce sacudiu a cabeça. "Muito bem. Levarei Mamie a um cinema e a deixarei lá. Vou buscar o carro e a trarei de volta, terminada a sessão. Talvez ele nem apareça".

"Quem sabe", murmurou Odette. Mas como conhecia Lance, duvidava muito que não viesse.

Bruce e Mamie saíram para o cinema, o que lhe aumentou a tensão nervosa. Pensava a todo instante: "Seria bom que ele viesse agora. Meu Deus, faça que ele venha logo. Tudo é preferível a. esta aflição, tudo!" Caminhava de Um lado para outro, incapaz de sentar-se, incapaz de concentrar-se. Estava prestes a cair com uma crise de nervos quando a campainha tocou.

Foi com esforço que abriu a porta. E, conquanto esperasse por ele, vê-lo de novo foi um choque maior do que imaginara, o semblante desabusado, perdido para sempre o antigo aspecto garboso e juvenil. Era uma grosseira caricatura do que havia sido. Odette sentiu vontade de chorar. Pensar que ela o amara, o idolatrara!

Lance fez-lhe um arremedo de saudação. "Estava à minha espera, não é, Odette? A moça lhe contou que eu estava aqui?"

"Sim, contou-me. Não vai entrar?"

Coisa estranha: agora, em presença dele, Odette sentiu-se extraordinariamente calma. Seu nervosismo sumira por completo.

Lance entrou e Odette notou que ele mal se sustinha nas pernas. Estivera bebendo.

"Sua casa não é má", observou. "Você, Odette, se não me engano, caiu em pé".

A ênfase que deu à palavra você não passou despercebida.

"Você como vai, Lance?" perguntou ela. "Pessimamente", respondeu ele encolhendo os ombros. "Nada consegui. Fui um idiota em não ter mudado de nome, como você. Só tive essa idéia quando sua amiga me contou que seu nome atual era Dorothy Fletcher. Ainda assim", e sorriu com sarcasmo, "não lhe será agradável que se propale a verdade, hein?"

Odette estremeceu, e decidiu valer-se do cinismo.

"Não creio que isso faça grande diferença", disse serena.

"Ah, não?" ele deu uma gargalhada.

"Como conseguiu chegar até aqui?" perguntou ela para mudar de assunto.

"Hal Leaman deu-me dinheiro". Riu amarelo e prosseguiu: "Ficou caceteado de ver-me sempre rodando pelos Ali Star Studios, apoquentando-o para arranjar-me trabalho".

Houve um silêncio. Ela sentia-se obrigada a ter pena dele e não o conseguia. Era doloroso vê-lo assim, recordando-se do que já fora. Qualquer coisa em seu íntimo a revoltava, enfurecendo-a contra Lance.

"Por que não se esforça?" perguntou-lhe abruptamente. "Se se esforçar, poderá voltar ao cinema".

"Para um homem não é fácil. Onde estaria você, Odette, se Hershaw não a tivesse apoiado? Ele gosta de você, sempre gostou". Ergueu os olhos para ela e sorriu-lhe cinicamente. "Vai casar-se com ele?"

Odette empalideceu e tornou a corar. Não lhe era possível pronunciar o que quer que fosse. Ergueu-se Lance e aproximou-se dela.

"Responderei eu à pergunta. Você não se casará com ele. Mesmo que eu tenha de intervir; e é o que vou fazer".

Odette revoltou-se. "Meu modo de proceder nada tem que ver com você".

"Ah, é?" Lance sorriu desabusado. "Minha cara, peço licença para discordar".

"Não sei por que", desafiou ela.

"Sabe, com certeza sabe. Por que razão imagina que eu tenha vindo a Hollywood? Para procurá-la, é lógico. Pensou então que desistiria de você com essa facilidade? Não, Odette, queridinha, continuo apaixonado como antes". Sorriu e acrescentou: "Com cabelos vermelhos ou loiros, você é maravilhosa".

Um estremecimento de cólera percorreu Odette. "Como ousava ele, agora, falar-lhe em amor? Não tinha decência de respeitar o passado já morto?"

"Por favor, não insista, Lance. O amor está fora de cogitações, entre nós".

"Estará?" riu Lance, de novo sardônico. "Não vejo o motivo. Salvo — seus olhos apertaram-se sinistramente — se você estiver apaixonada por Hershaw".

Um vivo rubor em suas faces a traiu.

"Ah! então é isso!" Ele assobiou baixinho. "Mesmo assim casará comigo, Odette. Andei doente e preciso de cuidados. Se você venceu, por que terei eu de naufragar? É de justiça que compartilhe de seu sucesso".

"Lance, você está louco. Fique certo de que com você não me casarei. Prefiro morrer".

Ele fez-lhe um arremedo de cortesia. "Agradecido pelo cumprimento. Mas se não casar comigo, o melhor será mesmo morrer. Porque será de novo atirada na lama. Sim, você como seu amante, Paul Hershaw". Jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada exultante. "É gostoso pensar que tenho a ambos na palma de minha mão. Poderei obrigá-los a fazer o que bem entender. Pensa que estou derrubado, vencido, e no entanto conservo ainda os melhores trunfos na mão".

Odette não se iludiu quanto às suas intenções. Sentiu uma náusea irreprimível. Mas continuou a fingir. "Não sei ao que se refere".

"Não? pois vou explicar-lhe. Você não é tola. O filme em que é estrela e terá sua avant-première amanhã à noite, é uma super-produção, ouvi dizer. Pois bem. Imaginemos que um jornal de Los Angeles publique a verdadeira história de sua carreira na Inglaterra. Que acontecerá? A avant-première será cancelada. Não ousarão exibir a fita. Seu nome rolará pelas sarjetas do mundo cinematográfico, assim como o de Hershaw. Ele perderá o contrato: com os Harlequim Studios por levá-la ao estrelato, sabendo ser você a famosa e notória Odette Cosway, pária dos estúdios de Inglaterra. É o que se dará, se eu revelar a verdade. E a revelarei, se você não jurar casar-se comigo amanhã".

"Mas não é crível que você publique isso pelos jornais", gemeu ela. "Não é crível que seja tão nojento".

Lance corou e retorquiu feroz: "Não? Fique sabendo que tenho o repórter de um jornal a minha espera, em Los Angeles, agora mesmo. Disse-lhe que tinha uma notícia sensacional a revelar. E quanto a ser nojento, que diz a respeito daquele contrato num cassino, que consegui para nós dois, na Inglaterra, e que você recusou, quando poderíamos ter ganho com ele uns bons cobres? Não foi infame o seu procedimento? Não, Odette, é comigo que você vai casar — e juro que não se arrependerá — ou você e seu amigo Hershaw serão expulsos de Hollywood".

Ela continuou em silêncio. Fitava-o horrificada, fixamente. Não tanto pelas ameaças, como pelo fato de ele, Lance, a quem tanto amara, estar diante dela a proferir ameaças!

"Lance, não é possível que você, deliberadamente, esteja procurando arruinar-me", balbuciou.

"Depende de você", rosnou ele encolhendo os ombros. "Não vejo porque não quer mais casar comigo, se já me amou".

"Lance, por favor!"

"Logo se esquecerá de Hershaw", continuou feroz. "Eu a farei esquecê-lo. Quem é Hershaw, afinal de contas? Um diretorzinho barato, cujos filmes nunca foram sucessos de bilheteria. Está tentando furar com esta nova fita. Talvez o consiga. Cabe a você decidir".

"Não pretende casar-se comigo contra minha vontade, não?"

Ele fez um movimento rápido em sua direção e a teria tomado nos braços, se Odette não recuasse. "Quero de qualquer maneira", murmurou. "Estou louco por você, como sempre estive".

"Então, se me ama, como quer arruinar-me, Lance?" implorou Odette.

Seu rosto tornou-se congesto. “Sim, senhora, prefiro arruiná-la a vê-los, você e Hershaw, receberem juntos todo o amor e todos os louvores. Fique certa disso. Ou me dá sua palavra de honra que se casará comigo amanhã cedo, ou seguirei diretamente para Los Angeles e contarei tudo, esta mesma noite, ao meu amigo repórter!"

Havia em sua voz uma inabalável firmeza. Ela compreendeu, alucinada, que não adiantava continuar a suplicar-lhe. O Lance de outrora não mais existia. Estava à sua frente um desiludido, um fracassado, mas disposto a conseguir a realização de seus desejos ou, caso contrário, arruiná-la e a Paul. Talvez sempre existisse em Lance uma pontazinha de crueldade, que os recentes infortúnios haviam acentuado.

Não a atingia tanto o que ele fizesse diretamente a ela. Em Paul é que era preciso pensar — Paul a, quem amava acima de tudo no mundo. Seu amor atual era diverso da afeição romanesca que dedicara antigamente a Lance.

Mulher do Século era a grande oportunidade de Paul para conseguir um lugar de destaque no mundo cinematográfico de Hollywood. Sua reputação estava em jogo. Poderia, por sua culpa, levá-lo à ruina? Como seria possível, se a vitória dele era para ela o principal?

Lance, apoiado à lareira, tirou um cigarro do bolso e acendeu-o com mãos trêmulas.

"Então, que decidiu?" perguntou. "Tem aí uma bebida qualquer? Estou com a língua seca".

"Não tenho nada em casa".

"Depois de amanhã mudaremos isso, hein?" E fitou-a sorrindo. "Vamos, Odette, você concorda, eu sei. Não será idiota a ponto de comprometer suas oportunidades, agora que está novamente a caminho da glória".

Odette torceu os lábios e apertou as mãos. "Não, não serei tola a ponto de arruinar-me, Lance".

"Ele aproximou-se e agarrou-lhe os ombros. "Então concorda, não é? E que tal um beijo, para selar o compromisso? “Amo-a tanto...”

Com um estremecimento, Odette se afastou. "Não, Lance!" por um segundo vislumbrou o Lance antigo — em seu tom de voz, na expressão de seu rosto — mas que logo se esvaiu. E era-lhe intolerável a caricatura do que já fora o famoso Lance Furner, a fingir paixão por ela.

"Que tenho eu? Não posso acariciá-la?"

"Não, não agora. Retire-se, peço-lhe; esta noite não é possível suportar nada mais".

Ele encolheu os ombros, furioso. "Esta certo, está certo", endireitou-se. "Voltarei amanhã cedo. Não vá fazer asneiras. Não adianta procurar livrar-se do casamento, porque é inútil".

Apanhou o chapéu do divã e encaminhou-se para a porta. Nenhum dos dois ouviu uma janela dos fundos fechar-se devagar, nem passos furtivos que se afastavam do bangalô, em direção à estrada.

 

DEPOIS que Lance se retirou, Odette ficou longo tempo imóvel, sentada a um canto do divã. Quando a verdadeira tragédia nos atinge, não temos lágrimas para chorar. Ela olhou no relógio. Em menos de uma hora lhe haviam arrancado tudo que possuía de valioso, pois, sem a esperança do amor de Paul, nada valia para ela.

Era inacreditável: depois de tudo por que passara, ser obrigada a casar com Lance Furner. Antigamente seria o seu ideal. Hoje, era tão pavoroso que a fazia tremer como se tivesse febre. Mas jurava a si mesma que, mal terminada a cerimônia, nada a forçaria a viver com ele. Talvez Lance se contentasse com o que ela ganhasse, fora sempre doido por dinheiro.

Se pudesse procurar Paul e contar-lhe tudo. Sabia, entretanto, o que ele havia de dizer. Havia de aconselhá-la a desafiar Lance e que ambos suportassem as conseqüências. Não resistia à idéia de um fracasso por sua causa. O filme precisava ser um triunfo, fosse por que preço fosse!

Convidara-o para a ceia depois da avant-première, na noite seguinte. Um tênue e saudoso sorriso perpassou-lhe nos lábios. Quanto esperara desse encontro. Quanto sonhara com ele! E agora, tudo por terra. No dia seguinte seria mulher de Lance.

Cobriu o rosto com as mãos, sem lágrimas para chorar.

"Se pudesse morrer", pensou. "Por que tudo isto me acontece?"

Ainda continuava no mesmo lugar quando Mamie voltou. Esta contemplou-lhe o rosto branco, torturado, e assustou-se.

"Onde está Bruce?" indagou Odette, antes que Mamie falasse.

A moça sacudiu a cabeça. "Não sei. Levou-me ao cinema e não mais o vi. Que lhe aconteceu, Dorothy? Como está desfigurada! Há alguma coisa?"

"Alguma coisa?!" exclamou Odette, e desatou a rir desconsoladamente.

 

Ao deixar o pátio, Lance encontrou a rua deserta. Viu apenas um caminhão de entregas, parado diante do portão.

"Quer uma beirada, moço?" gritou-lhe uma voz. "A esta hora é difícil conseguir táxi".

"Em que direção vai você?" perguntou Lance.

"A caminho de Los Angeles", respondeu a voz. "Quer ir comigo?"

"Com prazer, se não o incomodo".

"Não incomoda", replicou a voz.

Aquela extremidade da rua estava escura como breu. Sentado ao lado do chofer, não lhe conseguia ver o rosto. Talvez por usar o boné enterrado nos olhos.

"O senhor é estrangeiro, não?" inquiriu o homem. Lance concordou.

"Não se importa se eu for pela praia? Tenho de passar pela casa de um camarada, para dar-lhe um recado".

Lance não teve objeções e ambos partiram.

Satisfeitíssimo com a vitória sobre Odette, o estrangeiro estava comunicativo. No entanto, por mais que o tentasse, não conseguia entabular palestra com o chofer. Em meio ao trajeto, teve a impressão de já ter visto esse homem. Seria possível? A impressão persistiu, e foi-se acentuando.

Afinal perguntou: "Escute uma coisa, já nos encontramos antes, não é verdade?"

"Pode ser. Meu trabalho faz-me encontrar muita gente", disse o outro, lacônico.

De novo, longo silêncio.

Lance não tinha noção do caminho que seguiam, mas acreditava ser o de Los Angeles. A estrada subia muito margeando um morro com penhascos abruptos, rodeado de precipícios onde, lá em baixo, tempestuava o mar. A lua, apagada, envolta em nuvens. "Noite agoirenta", cismou Lance, "talvez não passe de impressão, devido ao silêncio teimoso deste chofer".

Ao atingirem o pico da montanha, o chofer afastou o carro para o lado do mar e brecou.

"Que aconteceu? O motor está enguiçado?" perguntou Lance.

Procurava falar com naturalidade. Sem saber por que, amedrontou-se. Bagas de suor escorriam-lhe pelo rosto. Tinha as mãos pegajosas. Histórias de roubos perpetrados por gângsteres de automóvel passaram-lhe pela mente. Fora cretinice sua aceitar o oferecimento do desconhecido. Não devia perder a cabeça. O seu pavor, provavelmente, não tinha fundamento.

"Não", replicou o outro secamente. "Vamos descer aqui mesmo".

"Descer aqui?" repetiu Lance e o inexplicável terror ainda aumentou. "Mas, por quê?"

"Logo o saberá", atalhou o outro ferozmente.

"E se me recusar a descer?" Lance batia os dentes.

"Não se recusará!" Lance sentiu o cano do revólver enfiado entre as costelas.

Desceu. "Que está pretendendo?" gaguejou e disse incontinenti: "Não tenho dinheiro, nem um níquel. Não adianta matar-me pelo que trago comigo".

"Não vou assassiná-lo", revidou o outro calmamente. "Se bem não o mereça, lhe darei a oportunidade de lutar pela vida. Vê aquele trecho de penhasco que se projeta para o mar? É ali que vamos lutar".

O rosto de Lance esverdeou. "Mas... você está doido, homem, gaguejou. "Se um de nós escorregar...será...será o irremediável..."

"Essa é a vantagem, moço", disse o outro sombrio.

Súbito ocorreu a Lance estar nas mãos de um maníaco homicida. Se pudesse contemporizar, conversar com ele, até que passasse um carro...

"Que pretende de mim? Não vê que também arrisca a vida? Nem me conhece, não pode estar interessado em minha morte..."

"Não?" interrompeu o outro. "É no que se engana, Mr. Lance Furner".

"Sabe meu nome?" tartamudeou ele.

"E você o meu; Bruce Baring, às suas ordens".

"Como... você, o chofer de Odette em Marrocos!" gaguejou Lance.

"Também sou amigo dela. Se julga que lhe permitirei casar-se obrigada, com um infame de sua laia, está muito enganado, Mr. Furner".

"Você sabe disso?" pronunciou Lance com voz rouca.

"Ouvi, por uma janela entreaberta", retorquiu Bruce.

Lance fez esforços para rir-se. "Era tudo brincadeira", murmurou. "Nunca pensei em obrigá-la a casar comigo. Claro que não irei denunciá-la. Dou-lhe minha palavra..."

"Sua palavra!" interveio Bruce desdenhoso. "Poderei então acreditar na palavra de um sujeito reles como você? Se o soltasse agora, ainda esta semana, voltará a ameaçá-la. Enquanto você viver, Odette estará em perigo. Quisera ter a coragem de lhe dar um tiro, sem cerimônia, para que não tivesse a possibilidade de salvar o pescoço inútil".

"Ouça aqui: prometo, juro que não exigirei nada de Odette", começou Lance sem fôlego. Bruce, comprimindo um pouco mais o revólver entre as suas costelas, atalhou: "Vamos embora; já perdemos muito tempo em conversas".

Lance foi obrigado a obedecer. O lugar escolhido por Bruce oferecia poucos pés de diâmetro e, à direita, o despenhadeiro acabava diretamente no oceano, de aspecto bravio. Lance vislumbrou ao que se arriscava e tonteou.

Bruce despiu o casaco e jogou o revólver no chão.

"Está pronto?" perguntou. Lance sacudiu a cabeça, não havia escapatória possível. Começaram a luta.

Lance era maior e mais forte, mas encontrava-se em piores condições. Bruce, mais magro, mais nervoso, mas em melhor situação que o adversário. Foi uma luta selvagem, desde início. O ódio faiscava nos olhos de ambos, ódio nascido desde os primeiros tempos, em Londres.

Lance estava certo de que, se não vencesse logo, não agüentaria o baque. Usava toda a sua força, mas os golpes pareciam de pouco efeito sobre Bruce. E o abatimento logo dele se apoderou. Se pudesse manejar Bruce, apanhá-lo desprevenido e atirá-lo no despenhadeiro... Foi então que avistou o revólver. Se o alcançasse e com ele alvejasse Bruce! Deu um impulso nessa direção. Talvez o alcançasse. Valia a pena arriscar. Bruce não podia adivinhar o que lhe passava pela cabeça. Numa pequena pausa, enquanto recuperava fôlego, Lance tentou fazê-lo. Seus dedos quase se fechavam no cabo do revólver, quando o outro, repentinamente, lhe percebeu a manobra e, com um pontapé, atirou longe o revólver. Lance deu uma volta brusca e perdeu o equilíbrio; caiu. O punho de Bruce esmagou-lhe o rosto. Ouviu-se um grito agudo, rouco, e depois mais nada. Bruce estremeceu. Apanhou o paletó e o revólver e voltou para o caminhão.

 

Muito cedo, na manhã seguinte, um possante veleiro de quatro mastros se fez ao mar. O capitão tinha falta de marinheiros, de modo que não perdeu tempo com indagações quanto ao homem retaco, de rosto pálido e sobrancelhas vermelhas que se apresentou. Quem era, o que fora, não importava.

Surgia o sol quando o barco se afastou do porto. Los Angeles era uma cidade doirada. Bruce ficou na proa, a contemplar Hollywood. Ali ficou a olhar fixamente, até sumir a paisagem. Então, de boné na mão, inclinou-se numa saudação meio irônica, meio reverente :

"Adeus, irmã! Ao que me parece estamos quites!"

 

NAQUELA manhã Odette tomou a primeira refeição muito tarde. Não conseguira adormecer até alta madrugada. Sentara-se no terraço, numa cadeira preguiçosa. Mamie cuidava dela, verificando se o café estava quente, as torradas com manteiga. Não fazia perguntas. Sabia que o melhor era calar-se.

Odette estava extremamente pálida, com sombras escuras ao redor dos olhos. Muito abatida, mas resignada. Prometera casar-se com Lance. Por que ele não chegava?  Eram quase onze horas.

"Quer que leia o jornal enquanto come alguma coisa, querida?" perguntou Mamie. "Deve estar preocupada com a avant-première desta noite, poderá distrair-se ouvindo as notícias. Leio primeiro os títulos e você escolhe o que deseja ouvir".

Mamie começou. O terceiro título era: "Morreu um Inglês Afogado, Atirado na Praia esta Madrugada".

"Um inglês?" repetiu ela. "Isto deve interessá-la, é um de seus compatriotas".

Dizia a notícia que o corpo de um homem fora encontrado na costa, perto de Pasadena, nessa madrugada. Por um cartão encontrado em sua cigarreira, fora identificado como o cidadão inglês, Lance Furner.

"Como?" Odette deu um pulo. Olhava pára Mamie, não podendo acreditar no que ouvira.

"É esquisito", murmurou Mamie. "Deve ser o homem que falou comigo ontem nos estúdios e perguntou por você. Era seu conhecido, não?"

"Sim... era meu conhecido", sussurrou Odette.

"Como será que se afogou?" Volveu Mamie baixinho. "Julga a polícia que ele se atirou de um penhasco".

Odette estremeceu: “Não acredito. Foi com certeza um acidente".  E murmurou: "Pobre Lance".

 

Houve apenas uma ceia para dois, após a avant-première, naquela noite. Bruce não estava e Mamie não quis segurar vela para ninguém. Odette recebera pelo correio da tarde, um bilhete de Bruce, rabiscado às pressas "Assinei contrato para trabalhar como marinheiro num barco de vela, e sigo viagem. Não se preocupe comigo. Estou muito bem. Passamos juntos momentos inesquecíveis e sou-lhe muito grato por isso. Talvez um dia nossos caminhos se cruzem novamente, talvez não. Desejo-lhe sempre muitas felicidades. Seu amigo. Bruce"

Odette ficou a cismar sobre o bilhete e no motivo súbito de Bruce fazer-se ao mar. Entristecia-a a idéia de sua ausência. Estimava-o muito, não havia amigo mais dedicado.  "Talvez nos encontremos novamente", pensou. “A vida tem um modo estranho de nos pôr sempre em contacto com os que nos querem bem”.

Malgrado a ausência de Bruce, não estava triste nessa noite. Como seria possível, se a avant-première obtivera sucesso sem precedentes? A assistência erguera-se uníssona para aplaudir e dar vivas. Paul e ela tiveram de aparecer no palco lá ficar por meia hora, enquanto batiam palmas. Cobriram-na de flores — flores atiradas dos camarotes e da platéia. Flores que chegavam ao palco em enormes e lindos ramos. Tudo terminado, o chefe do Harlequim Studios chamou-a de lado e disse: "Esplêndido trabalho, minha cara. Ainda será a nossa maior estrela". Não havia dúvida, Paul e ela estavam feitos.

Viam-se agora diante um do outro, à mesa da ceia. Uma lâmpada irradiava reflexos dourados sobre ambos. "Só conseguiram brincar com os petiscos encomendados, tal a excitação.

"É maravilhoso, não queridinha? exclamou Paul. "Nunca me senti tão feliz".

"Sim, é maravilhoso", concordou, ela. "Estive conversando com alguns críticos. A seu ver, Mulher do Século é a melhor película do ano".

Paul levantou-se e aproximou-se dela, puxando-a para si.

"Não pensava na fita", disse sorrindo. "O maravilhoso, para mim, é ter-se desfeito o mal-entendido havido entre nós".

Odette ergueu a mãozinha e tocou-lhe o rosto. "Meu amor bobinho, imaginou então que o procurei apenas por causa de Mamie! Se todas as vezes que pensava em você, meu coração batia depressa, esquisito a ponto de me sentir mal!"

Os braços de Paul envolveram-na. Seu rosto fino e inteligente sorria para ela. "Costumava caçoar de suas idéias, meu bem" murmurou. "Chamei-a Vendedora de Romance de Cabelos Doirados. Pois você parece ter-me inoculado boa quantidade dele. O que absolutamente não me desagrada".

Odette também sorriu a tremer. "E você me inoculou algo muito mais importante", balbuciou.

Paul ergueu-lhe o queixo com os dedos e fixou-lhe os olhos. "O que foi?" perguntou.

"Amor! O amor que não precisa de romance para florescer. Chega de romance para mim”!

"Deveras?" Paul inclinou-se e beijou-a. "Não tenha certeza disso, menina. Não sabe que um cínico arrependido é a mais romântica das criaturas?"

 

                                                                               Janifer Ames 

 

 

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