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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A VINGANÇA / Anne e Serge Golon
A VINGANÇA / Anne e Serge Golon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Novembro de 1661. Numa manhã de sol, os repiques dos sinos, o soar dos carrilhões e os disparos do canhão da Bastilha inundam Paris em delírio. A Rainha Maria Teresa deu à luz um menino. "Um delfim! Viva o delfim!", gritam todos em festa. Jorra o vinho das fontes, nas ruas distribuem-se iguarias, à noite há queima de fogos de artifício. "O povo se deleita com o espetáculo", comenta o próprio Luís XTV.

O período é de paz e de reconstrução nacional. Por um momento são esquecidas as diferenças e injustiças. Não foi o Príncipe de Conde, um dos nobres revoltosos, perdoado? A Igreja abençoa o herdeiro. A França é um país rico e em expansão. A Coroa, sob o zelo administrativo de Colbert, investe no mercantilismo de além-mar, na Companhia das índias Ocidentais. O Rei-Sol, vaidoso de seu poder e também amante do espetáculo, despende somas fabulosas no aformoseamento de Versalhes, um monumento a seu luxo e grandeza.

A margem da corte, Angélica procura um meio de voltar a ser uma grande dama, caminhar entre os príncipes do reino. Aconselhada pelo irmão jesuíta, resolve se casar outra vez. Está disposta a tudo para frequentar os jardins de Versalhes e ser vista pelo rei. Quem irá impedi-la?

"Você despertou em mim uma chama viva", suspira o príncipe apaixonado. "Seja minha amante!"

Angélica começou a sonhar com um novo amor, quem sabe um casamento. Havia mudado de vida, era agora uma próspera burguesa, morando com conforto e fazendo planos ambiciosos.

Depois do suplício no Pátio dos Milagres, entre os mendigos, as misérias do passado pareciam esquecidas. Ela só pensava em reencontrar um nome e tornar a ser uma grande dama, ser apresentada à corte em Versalhes, abalar o coração dos príncipes.

Sua vida, contudo, seria palco de uma nova tragédia e de um escândalo, que ameaçariam destruir-lhe as esperanças. Ao mesmo tempo, chegavam-lhe aos ouvidos estranhas revelações sobre a morte do marido, o Conde Joffrey de Peyrac.

Estaria a doce Marquesa dos Anjos condenada ao eterno padecer, à incerteza e a derrota?

De posse de um trunfo inesperado, Angélica planejaria contra seus inimigos uma vingança fulminante. Um a um, ela os desgraçaria — mesmo que fosse preciso manchar os degraus do trono de Luís XIV!

 

Inverno de 1662. Enquanto o frio e a fome assolavam Paris, Angélica prosperava. Depois do audacioso banquete das floristas com que se impusera como sócia ao mestre Bourjus na rôtisserie do Galo Atrevido, a astuta Marquesa dos Anjos acalentava outro plano ambicioso; lançar, com a ajuda de Davi Chaillou, sobrinho do taberneiro, o hábito de uma bebida até então desconhecida na França — o chocolate. Do sombrio passado de mendicância ela resgatara, além dos filhos Florimond e Cantor, a jovem Rosina e os meninos Flipot e Linot, conservando ainda a indispensável proteçào do Grande Coésre, rei de todos os marginais da cidade. Mas cada vez que olhava as águas do Sena ou o burburinho do Pont Neuf vinham-lhe à memória imagens familiares: como a do Grande Mateus, com suas curas milagrosas; ou do policial Desgrez e seu temível cão Sorbonne — além do galante desconhecido, do romântico encontro no barco de feno... Apesar de tudo, no Galo Atrevido, que se especializara em banquetes de confrarias, a freguesia aumentava. O requintado serviço que Angélica instituíra, ajudada pela antiga criada Bárbara, adquiria renome junto a uma clientela mais distinta...

 

 

 

 

Celebridade da Taberna da Máscara Vermelha

—Minha filha, que Deus me condene se eu tornar a pôr os pés em uma bodega onde se engana desta maneira o mais fino dos pa­ladares de Paris!

Bárbara, ouvindo-essa declaração solene, correu para a cozinha. O freguês queixava-se! Era a primeira vez que ele vinha sentar-se sozinho, silencioso e coberto de cetins e de fitas, na rôtisserie do Galo Atrevido.

Preparado ele mesmo como um belo prato, comia com expres­são religiosa e pagava o dobro da conta apresentada.

Sua declaração, estrondosa corno uma trovoada num céu sem nuvens, merecia que se lhe prestasse atenção.

Angélica apresentou-se imediatamente a ele. O gentil-homem examinou-a da cabeça aos pés. Parecia de muito mau humor. Mas a beleza e, talvez, a invulgar distinção da jovem surpreenderam-no.

Após uma hesitação, ele continuou:

—   Minha filha, devo preveni-la de que não porei mais os pés em seu estabelecimento se, uma só vez ainda, me enganarem desta forma.

Angélica esforçou-se por assumir o ar mais humilde e pergun­tou o que não estava indo bem.

A essa pergunta, o cliente ergueu-se na maior agitação. Ele esta­va carmesim, e ela teve vontade de dar-lhe uma palmada nas cos­tas, indagando de si mesma se porventura um osso não lhe tinha ficado atravessado na garganta.

Afinal, o outro recuperou a voz:

—   Minha bela, você pode adivinhar, pelo meu aspecto, que eu tenho em minha casa muitos criados para não precisar vir jantar num albergue. Também não entrei aqui, pela primeira vez, senão por acaso, atraído pelo cheiro divino que flutuava à sua porta. Pa­ra minha grande surpresa, comi uma dessas omeletes como eu mes­mo, escute-me, eu, conselheiro no Parlamento, eu não seiprepararl Angélica, depois de rápida olhadela à mesa, pôde convencer-se, diante da garrafa de borgonha quase cheia, que a embriaguez não estava presente na esquisitice daquele discurso. Assim, ela repri­miu sua vontade de rir, e disse em tom inocente:

—   Maitre, nós não somos senão modestos negociantes, e ainda temos de aprender tudo. Eu ignorava, confesso-o, que os conse­lheiros do Parlamento fossem tão difíceis...

Todo entregue ao seu tema, o cliente continuava a expor sua queixa. A omelete que lhe haiam servido naquele dia em nada lembrava aquela de que ele guardara uma divina recordação.

—   No entanto, os ovos são frescos... — aventurou Angélica. Mas o conselheiro do Parlamento interrompeu-a com um gesto dramático:

—   Só faltava que o não fossem! Não é essa a questão. Eu quero saber quem preparou a omelete do outro dia. Porque não é possí­vel crer que possam fazer-me comer esta, sob o rótulo da primeira.

Após refletir, Angélica recordou que ela própria havia prepara­do a famosa omelete.

—   Estou contente de saber que ela o agradou — disse Angélica —, mas confesso que foi um pouco por acaso que ela lhe foi servi­ da de improviso. Em geral é necessário fazerem-me a encomenda com antecedência, a fim de que eu possa reunir todos os ingre­dientes que a compõem.

Um clarão de cobiça brilhou nos pequenos olhos porcinos da personagem. Com voz suplicante, ele pediu a Angélica que lhe desse a receita, e ela teve de defender o segredo com a mesma te­nacidade com que defenderia sua virtude.

Sendo uma criatura prática e tendo rapidamente julgado o indi­víduo, ela decidiu que ele era dessas pessoas que é preciso condu­zir a cacete, em consequência do quê, ele se tornaria uma inesgotável fonte de lucros para o Galo Atrevido.

Gravemente, ela pôs as mãos nos quadris para representar seu papel de albergueira afável mas astuta, e disse-lhe que ele não de­via ignorar que, por tradição secular, os mestres-cucas não trans­mitiam suas receitas mais notáveis senão em troca de metal sonante e de peso legal.

Malgrado sua condição social elevada, o gordo senhor soltou duas ou três pragas, depois, com um suspiro, conveio que a coisa era leal- Estava entendido, ele pagaria bom preço, mas com a condi­ção de que a nova obra-prima fosse idêntica à primeira. Ele traria, para a arbitragem, um grupo dos mais finos entendidos do palá­cio e do Parlamento.

Angélica saiu-se muito bem na prova e foi calorosamente felici­tada pela elegante assistência. Depois, a receita escrita foi entre­gue contra pesada bolsa do Conselheiro du Bernay, que a leu com voz tão emocionada como se se tratasse de uma carta de amor:

—   "Ponha em uma dúzia de ovos batidos um pouco de cebolinha verde, uma ou duas cristas de galo grelhadas, três ou quatro ramos de pimpinela, duas ou três folhas de borragens, outras tantas de buglossa, cinco ou seis folhas de azeda redonda, um ou dois ramos de tomilho, duas ou três folhas de alface tenra, um pouco de manjerona, de hissopo e de agrião. Cozer o todo em fogo vivo, numa frigideira em que se tenha posto uma parte de azeite e uma parte de manteiga de Vanves, tendo-se o cuidado de não deixar pegar no fundo. Regar com creme fresco".

Depois dessa leitura houve um silêncio respeitoso, e o conse­lheiro disse gravemente a Angélica:

—   Senhorita, reconheço que eu mesmo, por uma quantia mais importante do que a que lhe paguei, nunca teria podido resolver-me a transmitir tal segredo, digno somente dos deuses. Quero ver nisso o desejo que você teve de nos ser amável. Meus amigos e eu saberemos recompensar-lhe frequentando amiúde este agradá­vel lugar.

Foi assim que Angélica obteve a refinada clientela dos "gulo­sos". Ela teve lá o Conde de Broussin, Bussy-Rabutin, o Marquês de Flandry. Para esses senhores, os prazeres da mesa sobrepunham-se a todos os outros, inclusive os do amor. E as carruagens e as cadeirinhas começaram a parar sob a tabuleta do Galo Atrevido, tal como ela sonhara.

Burgueses, homens de letras, médicos vieram também.

Eles tinham o hábito de discorrer até perder o fôlego sobre as propriedades medicinais dos alimentos que lhes eram apresentados.

—   Eis um lombo de cabrito montêsguisado que lhes recomendo, senhores — dizia o Dr. Lambert-Martin a seus amigos. — Pretendemos que as agitações deste animal, sua ligeireza e sua alegria purificam as carnes de todas as superfluidades... E, depois deste guisado, que nos dará, minha bela?

— Chifres-de-veado fritos — respondia Angélica. — Dizem que é excelente para manter no lugar os de certos maridos.

Em 1663, Angélica aproveitou os lazeres forçados da Quaresma para realizar três projetos que afagava.

Em primeiro lugar, ela se mudou. Jamais gostara daquele quar­teirão estreito e agitado, à sombra do Grande Châtelet. Encon­trou no belo bairro do Marais uma casa de dois pavimentos e três cómodos, que lhe pareceu um palácio.

Era na Rue des Francs-Bourgeois, não longe da esquina da Rue Vieille-du-Temple. Sob Henrique IV, um financista havia come­çado a construir ali uma bela mansão de tijolos e pedras de canta­ria. Mas, arruinado pelas guerras ou por suas fraudes, ele fora forçado a deixar inacabada a construção. Somente o pórtico, la­deado por dois aposentos que precediam o grande pátio interno, tinha sido terminado. Uma velhinha, que era proprietária do imó­vel, não se sabia bem por quê, habitava de um lado da abóbada. Alugou o outro lado a Angélica, por preço módico.

No rés-do-chão, duas janelas, solidamente gradeadas, alumiavam um corredor que conduzia à minúscula cozinha e a um quarto bastante vasto, em que Angélica se acomodou. O belo quarto do pavimento superior foi reservado às crianças, que ali se instala­ram em companhia de sua governanta, Bárbara, que deixara o ser­viço de mestre Bourjus para entrar ao da "Sr,a. Morens". Era assim que Angélica decidira fazer-se chamar. Um dia, talvez, poderia ela juntar a este nome a partícula nobiliária. Dessa maneira, os meni­nos usariam o nome de seu pai: De Morens. E mais tarde ela pro­curaria reivindicar para eles os títulos, se não o património.

Ela não perdia a esperança. Ó dinheiro tudo pode. Ela já não estava "em sua casa"?

Bárbara tinha deixado sem pesar a rôtisserie. Não gostava daquela profissão e só sentia prazer com "seus pequenos". Havia algum tempo que ela se ocupava exclusivamente deles. Para substituí-la Angélica tinha admitido duas cozinheiras e uma ajudante. Com Rosina, que se tornara uma amável e esperta criada, Flipot como aprendiz de cozinheiro e Linot, que estava particularmente encar­regado de distrair os fregueses e de vender folhados, pastéis e bar-quilhos, o pessoal do Galo Atrevido havia-se notabilizado.

Na Rue des Francs-Bourgeois, Bárbara e as crianças estariam tran­quilas.

Na tarde em que ali chegou, Angélica, em sua excitação, não cessava de subir de um pavimento ao outro. Não havia muitos móveis: um leito em cada quarto, uma caminha de criança, duas mesas, três cadeiras, almofadas de pelúcia para sentar. Mas o fogo dançava na lareira, e o grande quarto recendia frituras. É com as frituras que se batiza uma morada.

O cão Patou abanava a cauda, e'a pequena criada Javotte sorria a Florimond, que em troca lhe retribuía.

Pois Angélica tinha ido buscar em Neuilly os antigos compa­nheiros de miséria de Florimond e de Cantor. Ao instalar-se na Rue des Francs-Bourgeois, ela pensara na necessidade de ter um cão de guarda. O bairro do Marais era isolado e perigoso de noite, com seus grandes terrenos baldios, suas plantações isolando as ca­sas umas das outras. A proteçâo de Traseiro de Pau fora granjeada por Angélica, mas, na sombra, os ladrões podiam errar o alvo. Assim, vieram-lhe à lembrança a mocinha a quem seus dois filhos deviam, sem qualquer dúvida, a vida e o animal que abrigara a an­gústia de Florimond-

A ama não a reconheceu, porque Angélica usava máscara e ti­nha vindo em carruagem de aluguel. Pela soma que lhe propôs, a boa mulher foi toda sorrisos e deixou partir sem pesar a garota, que era sua sobrinha, e o cão. Angélica perguntava a si mesma qual seria a reação de Florimond, mas os dois recém-vindos não pare­ceram ter senão boas recordações. Finalmente, era ela, Angélica, quem, olhando Javotte e Patou, sentia o coração fendido ao re­cordar Florimond no canil, e jurava novamente que seus filhos nunca mais sentiriam fome nem frio.

Naquela tarde ela fizera loucuras. Havia comprado brinquedos. Não desses moinhos ou dessas cabeças de cavalo enfiadas em um pau, que podiam ser adquiridos por alguns soldos no Pont Neuf. Mas brinquedos da galeria do palácio, que se dizia serem fabrica­dos em Nuremberg: um pequeno coche de madeira dourada com quatro bonecas, três cãezinhos de vidro, um apito de marfim, e, para Cantor, um ovo de madeira pintado, que continha vários outros.

Contemplando sua pequena família, Angélica disse a Bárbara:

—   Um dia, Bárbara, esses dois jovens irão à Academia de Montparnasse, e nós os apresentaremos à corte.

E Bárbara respondeu, juntando, as mãos:

—   Eu o creio, senhora.

Nesse momento, o campainheiro dos mortos passou pela rua.

"Escutem, criaturas que dormem, Roguem a Deus pelos defuntos!" Angélica, furiosa, correu à janela e despejou-lhe um jarro d'água à cabeça.

A segunda iniciativa de Angélica foi trocar a tabuleta da rôtisse-rie do Galo Atrevido, a qual, em virtude de seu êxito, passou a chamar-se Taberna da Máscara Vermelha. A jovem tinha grandes ambições, pois, além de uma placa de ferro forjada, disposta sa­lientemente sobre a rua, e que representaria, sem dúvida, uma más­cara de carnaval, ela desejava uma tabuleta pintada, que se fixaria em cima da porta.

Um dia, voltando do mercado, ela parou de repente diante da loja de um comerciante de armas. Vira que a tabuleta representa­va um velho militar de barba branca a beber vinho em seu capa­cete, enquanto seu pique, apoiado perto dele, brilhava em todo o seu aço.

—   Mas este é o velho Guilherme! — exclamou Angélica. Precipitou-se para o interior da loja, onde o dono lhe disse que a obra-prima existente sobre sua porta era trabalho de um pintor chamado Gontran Sancé, que morava no Faubourg Saint-Marcel.

Angélica, com o coração batendo, correu ao endereço indicado. No terceiro andar de uma casa de modesta aparência, uma jovem, pequena, sorridente e rosada, veio abrir.

No estúdio, Angélica descobriu Gontran diante do seu cavale­te, no meio de suas telas e de suas cores: azul-celeste, vermelho-escuro, azul-cinza, verde-da-hungria... Fumava cachimbo e pinta­va um anjinho nu, cujo modelo era uma bela menina de alguns meses, deitada sobre um tapete de veludo azul.

A visitante, que estava mascarada, falou, para começar, da tabu­leta da loja de armas. Depois, tirando a máscara e rindo, ela se fez reconhecer. Pareceu-lhe que Gontran estava sinceramente fe­liz de revê-la. Ele se parecia cada vez mais com o pai, tinha o mes­mo modo, para escutar, de pôr as mãos sobre os joelhos, como um vendedor de cavalos. Comunicou a Angélica que conseguira passar a mestre e que havia casado com a filha de seu antigo pa­trão Van Ossel.

—   Mas você fez um casamento desigual! — exclamou Angélica com assombro, aproveitando a ausência da pequena holandesa, que estava na cozinha.

—   E você? Se bem compreendi, você é a gerente de uma taberna, e dá de beber a muitas pessoas que estão bem abaixo da minha condição.

Depois de um instante de silêncio,/ele continuou, não sem malícia:

—   E você se apressou em ver-me, sem hesitação, sem falsa vergonha! Ter-se-ia apressado da mesma maneira para anunciar sua presente situação a Raimundo, que acaba de ser nomeado confessor da rainha-mãe? A nossa irmã Maria Inês, donzela de honor da rainha e que se prostituiu no Louvre, segundo a regra daquele enxame de belezas? Ou mesmo ao pequeno Alberto, que é pajem do Marquês de Rochant?

Angélica reconheceu que se havia afastado mais daquela parte de sua família. Perguntou o que era feito de Dionísio.

Está no exército. Nosso pai está contente. Afinal, um Sancé a serviço do rei! João Maria, o caçula, está no colégio. Pode ser que Raimundo lhe arranje um benefício eclesiástico, pois está nas melhores relações cóm o confessor do rei, que detém a folha de nomeações. Acabaremos tendo um bispo na família.

Você não acha que nós somos uma família encantadora? — perguntou Angélica, meneando a cabeça. — Existem Sancés de al­to a baixo da escala.

Hortênsia navega entre duas águas, com seu marido procu­rador. Eles têm muitas relações, mas vivem em dificuldades. Com a história do resgate dos cargos, há bem quatro anos que o Estado não lhes paga um soldo.

Você os tem visto?

Tenho. Assim como a Raimundo e aos outros. Ninguém se sente orgulhoso de me encontrar. Mas cada um está contente de ter seu retrato.

Angélica teve uma breve hesitação.

E... quando se encontram... falam de mim?

Nunca! — disse duramente o pintor. — Você é uma recorda­ção muito cruel para nós, uma catástrofe, uma derrocada que nos esmagou o coração, por pouco que nós o tenhamos. Felizmente poucas pessoas souberam que você er.a nossa irmã... você, a mu­lher do feiticeiro que queimaram na Place de Greve!

No entanto, enquanto falava, ele lhe tomara a mão na sua, man­chada de tinta e tornada áspera pelos ácidos. Afastou-lhe os de­dos, tocou aquela palma miúda que conservava o traço das bolhas, das queimaduras do forno, e pousou nela a face, num gesto de afei­ção carinhosa. Gesto que ele fazia, às vezes, na infância...

A garganta de Angélica doía tanto que ela pensou que fosse cho­rar. Mas havia muito tempo que ela não chorava! Suas últimas lá­grimas, ela as tinha vertido muito antes da morte de Joffrey. Perdera de todo o hábito.

Retirou sua mão, e disse quase secamente, olhando, em seu re­dor, as telas encostadas na parede:

Você faz coisas muito belas, Gontran.

Sim. E no entanto os grandes senhores tratam-me por "vo­cê" e os burgueses olham-me com arrogância, porque essas belas coisas, eu as faço com as minhas mãos. Quererão que eu trabalhe com os pés? E em que o manejo da espada representa uma obra menos manual e menos desprezível que o manejo do pincel?

Ele sacudiu a cabeça, e um sorriso iluminou-lhe a fisionomia. O casamento tornara-o mais jovial e mais tagarela.

—   Irmãzinha, eu tenho confiança. Um dia, nós iremos ambos à corte, iremos a Versalhes. O rei procura artistas em grande número. Pintarei os tetos dos apartamentos, o retrato de príncipes e de princesas, e o rei me dirá: "O senhor faz coisas muito belas". E a você ele dirá: "A senhora é a mais bela mulher de Versalhes".

Soltaram juntos uma gargalhada.

 

Angélica decide "lançar" o chocolate — O mordomo Audiger faz-lhe a corte

O terceiro projeto de Angélica consistia em lançar entre a so­ciedade parisiense a exótica bebida a que chamavam "chocolate". A ideia não lhe saía da'cabeça, apesar da decepção que lhe havia causado seu primeiro contato com aquela estranha mistura.

Davi mostrara-lhe a famosa carta-patente de seu pai.

A carta pareceu à jovem apresentar todos os indícios de autenti­cidade e de legalidade. Continha até a assinatura do Rei Luís XIV, concedendo ao Sr. Chaillou o privilégio exclusivo de fabricar e vender chocolate na França, e especificando que a dita carta era válida por vinte e nove anos.

"Esse jovem está absolutamente inconsciente do valor do tesouro de que é herdeiro", pensou Angélica. "E preciso fazer alguma coisa com esse papel."

Perguntou a Davi se ele tivera ocasião de fabricar chocolate com seu pai. E de que utensílios se servia.

O aprendiz de cozinheiro, que estava muito feliz de prender as­sim a atenção de sua Dulcinéia, explicou-lhe, com ar importante, que o chocolate vinha do México e fora introduzido na corte da Espanha, no ano de 1500, pelo célebre navegador Fernando Cor­tês. Da Espanha, o chocolate passara para Flandres. Depois, no início do século, Florença e Itália haviam-se apaixonado pela no­va bebida, os príncipes alemães também,-e, agora, era bebido até na Polónia.

— Foi meu pai quem me revelou essas histórias, desde a minha infância — explicou Davi, um pouco confuso de sua erudição.

Os olhos atentos de Angélica, pousados sobre ele, faziam-no enrubescer e empalidecer alternadamente. Ela lhe pediu com certa dureza que continuasse suas explicações.

Ele confiou-lhe que um pequeno material de chocolataria, fa­bricado por seu falecido pai, se achava ainda em sua casa natal de Toulouse, sob a guarda de parentes afastados. A fabricação do cho­colate era ao mesmo tempo simples e complicada.

O pai de Davi, de início, fazia vir as favas da Espanha, depois diretamente da Martinica, de onde um mercador, chamado Cos­ta, as enviava.

Era preciso deixar fermentar os grãos. A operação devia ser rea­lizada na primavera, quando a temperatura não era elevada.

Depois da fermentação, devia-se fazer secar os grãos, mas sem exagero, de modo a não os quebrar durante a decorticação. Em seguida, era necessário secá-los ainda uma vez, a fim de torná-los frágeis ao pilão, mas não muito, para que eles guardassem todo o seu aroma.

Afinal, pilavam-se. Era nessa operação que consistia o grande segredo do êxito do chocolate. Devia ser realizada de joelhos, e o gral devia ser metade de madeira, metade de chapa de ferro, e li­geiramente aquecido. Esse utensílio chamava-se metatl, nome que lhe deram os astecas, ou homens vermelhos da América.

Eu vi uma vez, no Pont Neuf, um desses homens vermelhos — disse Angélica. — Poderíamos talvez reencontrá-lo. O chocola­te seria, sem dúvida, melhor ainda se fosse ele quem o pilasse.

Meu pai não era vermelho, e seu chocolate era famoso — disse Chaillou, insensível à ironia. — Pode, pois, ser feito sem índios. Para o cozimento, são necessárias grandes panelas de ferro. Mas, antes, é preciso joeirar as cascas, bem como as peles e as sementes, e, sobretudo, moer bem fino. Depois ajuntar açúcar em boa pro­porção, assim como especiarias e outros ingredientes.

Em definitivo — concluiu Angélica —, supondo-se que pos­samos mandar vir o material de chocolataria de seu pai e favas, você saberia fabricar essa bebida?

Davi pareceu perplexo. Depois, diante da expressão de Angéli­ca, ele disse que sim, e foi recompensado com um sorriso radiante e um amistoso tapinha na face.

A partir desse momento, Angélica buscou em todas as ocasiões informar-se sobre o que já se sabia na França sobre essa bebida não-alcoólica.

Um velho boticário seu amigo, mestre Lázaro, a quem ela comprava certas especiarias e ervas raras, disse-lhe que o chocolate era considerado soberano contra os flatos do baço. Esta última propriedade acabava de ser trazida à luz pelos trabalhos, ainda inéditos do célebre médico Renato Moreau, o qual a tinha observado no Marechal de Gramont, um dos raros apreciadores do chocolate na corte.     .  

Angélica tomou nota, cuidadosamente, dessas informações e do nome do doutor.

O velho boticário, abanando a cabeça, viu-a afastar-se. Ele esta­va inquieto. Havia conhecido tantas mulheres que procuravam no­vos meios para abortar! Isso lhe trouxe subitamente uma recordação atroz. Soltando um grito, mestre Lázaro deixou precipitadamen­te o alambique, onde destilava um xarope, e correu para a rua, no encalço da jovem. Conseguiu alcançá-la, pois ela parou ao ou­vir bater atrás de si os chinelos do velho.

Depois de tomar fôlego, ele lançou um olhar suspeitoso em volta e cochichou-lhe ao ouvido:

Minha filha, apesar das informações favoráveis que eu pude recolher sobre essa bebida, parece-me que devo preveni-la contra os inconvenientes de seu uso. Tive uma informação terrível sobre ela.

Diga depressa, mestre.

Não tão alto, minha filha! Pense que você me põe numa si­tuação penosa, pois quase traí o segredo-profissional, ao qual nós, os boticários, estamos todos sujeitos, como os médicos. Enfim, é para o seu bem! Você não ignora que, a 18 de novembro de 1662, nossa jovem rainha deu à luz uma filha que morreu com a idade de apenas um mês. Pois bem, essa criança era um pequeno mons­tro negro e felpudo como o Diabo, e que não sabiam onde escon­der. Os médicos disseram que essa infelicidade era devida às inúmeras xícaras de chocolate que Sua Majestade não cessava de absorver. Veja, minha filha! Desconfie dessa bebida.

Tomo nota, senhor, tomo nota — afirmou Angélica, a quem a história de mestre Lázaro não assustou de maneira alguma.

Malgrado esse início pouco encorajante, ela continuava com a mesma confiança no chocolate.

Voltou a ver a anã da rainha e, dessa vez, pôde provar o produ­to quando ainda não estava saturado de pimenta e engrossado com muito açúcar. Achou-o saboroso. Dona Teresita, ciosa de seu se­gredo, assegurou-lhe que bem poucas pessoas, mesmo vindas do estrangeiro, eram capazes de preparar o chocolate. Mas o esperto Barcarola lhe disse que havia ouvido falar de um moço burguês que tinha ido à Itália para estudar cozinha e que passava por pre­parar excelentemente essa bebida.

Esse jovem burguês, Audiger, era atualmente mordomo do Con­de de Soissons, e estava prestes a obter a liberdade de fabricar o chocolate na França.

"Ah! Nada disso!", pensou Angélica. "Sou eu que tenho a pa­tente exclusiva da fabricação."

Decidiu colher informações mais completas sobre o mordomo Audiger. De qualquer modo, isso provava que a ideia do chocola­te andava no ar e que era preciso apressar-se em realizá-la, se não queria ser passada para trás pelos concorrentes mais hábeis ou que se beneficiavam de proteções mais poderosas.

Alguns dias depois, numa tarde em que, ajudada por Linot, ela estava ocupada em arrumar as flores nos vasos de estanho coloca­dos sobre a mesa, um belo jovem, ricamente vestido, desceu os degraus da entrada e dirigiu-se a ela.

Chamo-me Audiger, e sou mordomo do Conde de Soissons — disse ele. — Disseram-me que você está pensando em fabricar chocolate, mas que não tem patente. Pois bem, eu tenho essa pa­tente. Eis por que venho avisá-la amigavelmente de que é inútil prosseguir nessa ideia. Se o fizer, será vencida.

Fico-lhe muito obrigada por sua atenção, senhor — respon­deu ela. — Mas, se está certo de ganhar, não compreendo por que vem procurar-me, pois se arrisca, ao contrário, a trair-se mostrando-me parte de suas armas e, talvez, a fragilidade de seus projetos.

O rapaz sobressaltou-se, embaraçado. Observou mais atentamente sua interlocutora, e um sorriso distendeu-lhe os lábios, sublinha­dos por um fino bigode castanho.

Meu Deus, como você é bela, minha amiga!

Se você abre fogo dessa maneira, eu pergunto a mim mesma que espécie de batalha veio travar aqui — disse Angélica, não po­dendo deixar de também sorrir.

Audiger atirou seu capote e seu chapéu sobre uma mesa e sentou-se diante de Angélica. Alguns momentos depois, eles se tinham tornado quase amigos.

Audiger tinha uns trinta anos. Sua leve gordura não lhe prejudi­cava o belo talhe. Como todos os oficiais-de-boca a serviço de um grande senhor, ele usava espada, e andava tão bem vestido quanto seu amo.

Contou que seus pais eram pequenos-burgueses de província, assaz abastados, o que lhe permitia fazer alguns estudos. Ele tinha comprado um cargo de oficial-de-boca no exército e, depois de al­gumas campanhas, houvera por bem passar no mestrado de cozi­nheiro. Em seguida, a fim de completar seus conhecimentos, fora passar dois anos na Itália, para estudar as especialidades de limo-nadeiro e confeiteiro, os gelados e sorvetes, os bombons e pasti­lhas, bem como o chocolate.

Foi depois da minha volta da Itália, em 1660, que eu tive a boa fortuna de agradar a Sua Majestade, de maneira que meu fu­turo se acha doravante assegurado. Eis como: quando eu atraves­sava os campos, nos arredores de Génova, notei incomparáveis ervilhas em vagens. Ora, nós estávamos no mês de janeiro. Tive a ideia de fazê-las colher e guardá-las e, quinze dias depois, estan­do em Paris, apresentei-as ao rei, por intermédio do Sr. Bontemps, seu primeiro criado de quarto. Sim, minha cara, não precisa arre­galar os olhos. Vi o rei de perto e ele teve a bondade de conversar comigo. Tanto quanto récordp, Sua Majestade estava acompanhado de Monsieur, do Sr. Conde de Soissons, do Sr. Marechal de Gra-mont, do Marquês de Vardes, do Conde de Noailles e do Sr. Du­que de Créqui. A uma só voz, esses príncipes exclamavam, depois de ter examinado minhas ervilhas, que jamais tinham visto mais belas. O Sr. Conde de Soissons debulhou algumas diante do rei. O soberano, havendo-me testemunhado sua satisfação, mandou-me levá-las ao Sieur Beaudoin, despenseiro real, e dizer-lhe que empregasse uma parte para fazer vários pratos, um destinado à rainha-mãe, outro à rainha e o terceiro ao senhor cardeal, que en­tão se achava no Louvre, e que lhe guardasse o resto para ele co­mer de noite com Monsieur. Ao mesmo tempo, ordenou ao Sr. Bontemps que me mandasse dar um presente em dinheiro, mas eu agradeci. Então Sua Majestade insistiu e disse que me concede­ria o que eu pedisse. Dois anos mais tarde, tendo acumulado al­guns haveres, eu lhe pedi autorização para abrir uma casa de refrescos, que venderia, entre outros produtos, o chocolate.

Por que você ainda não está instalado?

Calma, minha bela. Essas coisas têm de amadurecer. Mas, re­centemente, o Chanceler Séguier, depois de examinar minha carta-patente real, prometeu-me registrá-la apondo-lhe o selo real e sua chancela, a fim de torná-la executória imediatamente. Como vê, bela amiga, com esta exclusividade de venda, não lhe será muito fácil passar-me a perna, mesmo supondo que obtenha uma paten­te semelhante à minha.

Malgrado a simpatia que a jovialidade e a franqueza do visitante lhe inspiravam, a jovem experimentou verdadeira decepção. Este­ve a ponto de contradizer com energia o seu interlocutor e de abater-lhe um pouco a soberba, revelando-lhe que ela também, ou melhor, o jovem Chaillou, estava de posse de uma exclusividade semelhante, a qual tinha a vantagem de ter sido registrada ante­riormente.

Mas conteve-se a tempo, não mostrando seus trunfos. Um dos papéis podia não ter valor. Ainda precisava informar-se junto às corporações e ao chefe dos comerciantes.

Como não entendia grande coisa do assunto, preferiu não con­trariar seu "concorrente" e continuou a gracejar:

Não está sendo galante, messire, em se opor assim ao desejo de uma dama. Anseio por servir chocolate aos parisienses!

Pois bem — exclamou ele, jovial —, entrevejo o meio de se arranjar tudo. Case comigo!

Angélica riu gostosamente. Depois perguntou-lhe se ficaria pa­ra tomar seu repasto na taberna.

Ele aceitou, e ela o serviu com particular cuidado. Era preciso que ele visse que a Máscara Vermelha não era uma rôtisserie comum.

Entrementes, Audiger a devorava com is olhos enquanto ela ia e vinha através da sala. Quando ele partiu, parecia subitamente preocupado.

Angélica esfregou as mãos. "Ele começa a compreender que ainda não lançou seu chocolate!", pensou ela. "Mas eu não tenho um momento a perder."

De noite, ela abeirou mestre Bourjus.

—   Meu tio, quero pedir sua opinião sobre essa história de cho­colate...

O rôtisseur, que estava em dia de ronda, aprestava-se para apresentar-se ao Châtelet. Ergueu os ombros, sorrindo.

Como se você tivesse necessidade da minha opinião, sonsa, para não fazer senão o que lhe dá na telha!

É que o assunto é sério, mestre Bourjus. Tenho a intenção de ir amanhã ao Departamento das Corporações para indagar do exato valor da patente que Davi possui...

Vá, vá, minha filha. Afinal, que força humana a impediria de ir, se já o decidiu?

Mestre Bourjus, o senhor me fala como se reprovasse minha iniciativa.

Ele soprou o isqueiro com que acabava de acender sua lanterna, depois deu paternalmente umas palmadinhas na face de Angélica.

Você bem sabe que eu sou um timorato... Sempre tenho me­do de que as coisas acabem mal. Mas^ siga o seu caminho, minha pequena, sem se inquietar com os me.iis suspiros de velho resmun­gão. Você é o sol da minha casa, estudo o que você faz está bem.

Enternecida, ela viu-o afastar-se com sua lanterna e sua alabar-da. Não tomou a sério os pressentimentos do rotisseur e, por seu lado, preparava-se para triunfar sobre Audiger.

 

Pedido de casamento no moinho de Javel

Na manhã seguinte, ela compareceu, com Davi, à chefatura dos comerciantes. Foram recebidos por um homem gordo e suaren-to, com volta mais ou menos sebosa, o qual confirmou que a carta-patente concedida ao jovem Chaillou era válida, desde que fossem pagos novos direitos.

Angélica objetou:

Mas, para a rôtisserie, já renovamos a licença de rôtisseur e de cozinheiro! Por que seria necessário pagar ainda para servir-uma bebida não-alcoólica?

Tem razão, minha filha, pois isso me faz pensar que, além dos especieiros, a quem a questão concerne, será preciso também indenizar as subcorporações dos limonádeiros. Se tudo correr bem para vocês, terão o privilégio de pagar duas patentes suplementa­res: uma à corporação dos especieiros e outra à dos limonádeiros.

Angélica tinha dificuldade em dissimular sua ira.

E isso será tudo?

Oh! não — replicou ele gravemente. — Ainda não falei das correspondentes taxas reais, nem das dos visitadores, nem dos fis­cais do peso e da qualidade...

Mas como pode pretender fiscalizar esse produto, se nem se­quer o conhece?

Essa não é a questão. Sendo esse produto uma mercadoria, todas as corporações de que ele depende devem exercer o contro­le... e ter sua parte no lucro. Desde que o seu chocolate é, como diz, uma bebida temperada com especiarias, a senhora deve ter con­sigo um mestre-especieiro e também um mestre-limonadeiro, de­ve remunerá-los largamente, alojá-los, pagar o preço do mestrado do novo fundo de comércio relativo a cada uma das corporações. E como não tem ar de "repartidora", previno-a desde já de que exercemos severa vigilância.

—   Isso quer dizer exatamente o quê? — perguntou Angélica, to­mando seu ar mais audaciosor com as mãos nas cadeiras.

Mas isso divertiu os graves negociantes, e um deles, mais jovem, achou que devia esclarecê-la.

Quer dizer que, entrando na corporação, a senhora se com­promete, por isso mesmo, a admitir também que seu novo produ­to possa ser posto à venda por todos os seus confrades especieiros e limonadeiros, supondo-se que esse estranho produto agrade aos clientes, bem entendido.

Se bem o compreendo, devemos fazer todas as despesas, ad­mitir novos mestres com seus ajudantes, fazer propaganda, lim­par a casa e, depois, ou nos arruinamos ou então dividiremos o lucro dos nossos esforços e do nosso segredo com aqueles que na­da fizeram para ajudar-nos?

Que tudo fizeram, pelo contrário, minha bela, aceitando-a e não se opondo ao seu comércio.

—   Em suma, é uma espécie de portagem que reclamam? O jovem mestre procurou ingenuamente acalmá-la:

Não esqueça que as corporações têm crescentes necessidades de dinheiro. Não deve ignorar, sendo a senhora mesma comer­ciante, que, a cada nova guerra, vitória ou nascimento real ou mes­mo de um príncipe, nos fazem pagar de novo os nossos privilégios duramente adquiridos. E, além disso, o rei nos arruina fabrican­do, em cada ocasião, ou mesmo sem ocasião, novos mestrados ou profissões, um pouco do género dessa que a senhora apresenta em nome desse Sieur Chaillou...

O Sieur Chaillou sou eu — observou o aprendiz. — Ou pelo menos era o meu defunto pai. E eu lhes asseguro que ele teve de pagar bem caro a sua patente!

Justamente, rapaz, é aí que você não está em boa avença co-nosco. Para começo de conversa, você não é e nunca será mestre-especieiro, e à nossa corporação em nada interessa.

Mas, desde que seu pai traz uma descoberta à sua corpora­ção... — começou Angélica.

Demonstre-nos isso começando por fazer seu pagamento. De­pois empenhe-se também em beneficiar-nos com a dita descoberta.

Angélica acreditou que sua cabeça ia estalar e soltou profundo suspiro. Despediu-se dizendo que iá refletir sobre os mistérios das administrações mercantis e que tinha certeza de que, da próxima vez, aqueles senhores ainda encontrariam uma excelente razão para impedi-la de fazer qualquer coisa de novo.

No caminho de regresso, ela se reprovava por ter faltado com a prudência deixando perceber seu nervosismo. Mas já tinha com­preendido que, mesmo com sorrisos, a nada chegaria com aquela gente.

Era Audiger quem estava com a razão, ao afirmar que, com a autorização do rei, ele dispensaria o patrocínio das corporações.

Mas ele era rico e tinha excelentes pistolões, enquanto Angélica e o pobre Davi se encontravam inteiramente desarmados diante da hostilidade das corporações.

Pedir a proteção do rei para aquela primeira patente, concedida havia cinco anos, parecia-lhe tão delicado quanto difícil.

Ela começou por procurar um meio de se entender com Audi­ger. Afinal de contas, em lugar de se combaterem, não tinham eles interesse em unir seus esforços e dividir a empresa? Assim, Angé­lica, com sua patente e seu material de chocolataria, poderia encarregar-se de fazer vir as favas de cacau e entregá-las prontas para o consumo, isto é, até a fabricação do pó açucarado e tempe­rado com canela ou baunilha. O mordomo transformaria o pó em bebida e em toda sorte de especialidades de confeitaria.

Durante sua primeira palestra, Angélica pudera perceber que o jovem ainda não tinha pensado seriamente nas fontes de abasteci­mento. Ele respondia negligentemente que isso "não apresentava nenhuma dificuldade", "que sempre haveria tempo de providen­ciar", que ele as teria como desejasse "por intermédio de amigos".

Ora, graças à anã da rainha, Angélica sabia que a vinda para a França de alguns sacos de cacau necessários à gulodice de Sua Ma­jestade representava verdadeira missão diplomática, necessitava de numerosos intermediários, de relações na corte da Espanha ou em Florença...

Não era assim que se poderia encarar um abastecimento em lar­ga escala. Com esse abastecimento somente o pai de Davi parecia até então haver-se preocupado.

Audiger voltava frequentemente à Taberna da Máscara Verme­lha. A maneira do "glutão" Montmaur, ele se sentava a uma me­sa separada e evitava visivelmente os outros clientes. Depois das primeiras visitas muito arrojadas e divertidas, ele tinha se tornado subitamente taciturno, e Angélica não podia deixar de sentir-se um tanto magoada porque o confrade já famoso não fazia qual­quer elogio à sua cozinha. Ele comia, aliás, com esforço, e não tirava os olhos de cima da jovem, enquanto ela ia e vinha na sala. O olhar obstinado daquele belo rapaz bem vestido e seguro de si mesmo acabou por intimidar Angélica. Ela lamentava seu gra­cejo do primeiro dia, e não sabia como iniciar a proposta que ti­nha em mente. Audiger percebera, sem dúvida, que ela seria mais difícil de afastar do que ele tinha pensado. Em todo caso, observava-a com atenção.

Ele levava mesmo um pouco longe essa espécie de vigilância, pois diversas vezes, durante passeios dominicais que toda a famí­lia fazia ao campo, surgia de repente Audiger a cavalo e, fingindo surpresa, convidava-se cordialmente a participar do lanche sobre a grama. Como por acaso, ele tinha nas bolsas da sela um pastelão de lebre e uma garrafa de champanha.

Ou então encontravam-no ora na galeota que levava a Chaillot pelo rio, ora na diligência de Saint-Cloud, onde suas fitas, suas plu­mas e suas vestes de fino tecido faziam curiosa figura.

Era verão. Aos domingos, desde a alvorada, todos os grandes caminhos em torno de Paris, num raio de mais de uma légua, fica­vam cobertos de excursionistas em carruagem, a cavalo e a pé, os quais corriam a tomar ar e gozar do céu azul, uns em suas casas de campo, outros nas aldeias dos arredores.

Depois de ouvir missa em uma pequena igreja, iam dançar de­baixo do olmeiro com os camponeses, e provavam os vinhos bran­cos de Sceaux, os vinhos claretes de Vanves, de Issy e de Suresnes.

O Poeta Pobre, menos amargo por uma vez, celebrou a eterna necessidade de evasão dos parisienses:

"Que festa quando faz bom tempo!

Paris transborda como a água,

A terra fica coberta

De pessoas sentadas sobre a erva verde".

Mestre Bourjus e seu pequeno mundo acompanhavam o mo­vimento.

— Para Chaillot! Para Chaillot! Vamos, um soldo cada um — gritavam os barqueiros. A embarcação passava diante do Cours-la-Reine e diante do Convento dos Bonshommes. Mais tarde, desembarcava-se para ir ao Bois de Boulogne fazer uma colação.

Às vezes os barcos iam até Saint-Cloud. Corria-se então até Versalhes para ver o rei comer. Mas Angélica recusava aquele passeio. Ela havia prometido a si mesma que não iria a Versalhes senão para ser recebida na corte pelo rei. Era um juramento perante si própria. Valia por dizer que jamais iria a Versalhes... Ficava, en­tão, à margem do Sena, com seus dois filhos embriagados de ar puro. Caía a tarde.

—   Para Paris! Para Paris! Vamos, um soldo cada um! — grita­vam os barqueiros.

Davi e o namorado de Rosina, o filho de um rôtisseur com o qual ela devia casar no outono, tomavam os meninos nos ombros. Ás portas da cidade, cruzavam com grupos de ébrios.

No dia seguinte ao de um alegre passeio, Audiger saiu subita­mente de sua reserva e disse a Angélica:

Quanto mais a observo, mais perplexo fico, bela amiga. Existe em você qualquer coisa que me inquieta...

A propósito do seu chocolate?

Não... ou talvez sim... indiretamente. Primeiro, imaginei que você era feita para as coisas do coração... e mesmo do espírito. Depois, percebi que é na realidade muito prática, mesmo mate­rial, e que nunca perde a cabeça.

"Assim o espero", pensou ela. Mas contentou-se em sorrir da maneira mais encantadora.

Na vida — disse ela —, existem períodos em que somos obri­gados a fazer somente uma coisa. Em certas épocas, é o amor que domina, geralmente quando a vida é fácil. Em outras, é o labor, um fim a atingir. Assim, não lhe escondo que, para mim, o que mais me importa atualmente é ganhar dinheiro para os meus fi­lhos, cujo... cujo pai morreu.

Não quero ser indiscreto, mas, já que falou de seus filhos, acredita que, em um comércio tão esfalfante quanto aleatório e, sobretudo, tão pouco conciliável com uma verdadeira vida de fa­mília, chegaria a educá-los e torná-los felizes?

Não tenho alternativa — disse Angélica duramente. — Além disso, eu não me queixo de mestre Bourjus, e encontrei junto dele uma situação inesperada no que toca à minha modesta condição.

Audiger tossiu fracamente, brincou um momento com as bor­das de sua volta e disse com voz hesitante:

E... se eu lhe der essa alternativa?

Que quer dizer?

Ela olhou-o e viu nos seus olhos castanhos uma adoração contida. O momento pareceu-lhe bem adequado para levar avante as suas negociações.

—   A propósito, você tem afinal a sua patente? Audiger suspirou.

—   Bem vejo que você está interessada, e não o esconde. Pois bem, para dizer-lhe tudo, ainda não tenho o selo da chancelaria, e não espero tê-lo antes do mês de outubro, porque, até lá, o Presidente Séguier estará em sua casa'de campo. Mas, a partir de outubro, tudo irá muito rapidamente. Com efeito, conversei eu mesmo, sobre o meu negócio, com o Conde de Guiché, que é genro do Chanceler Séguier. Bem se vê que você não deve alimentar esperança de ser uma bela chocolateira... a menos que...

—   Sim... a menos que... — disse Angélica. — Escute, então. E, muito à vontade, ela lhe comunicou suas intenções. Revelou-lhe que tinha uma patente anterior à dele, com a qual poderia dar-lhe "aborrecimentos"..Mas não seria melhor entenderem-se? Ela se encarregaria da fabricação do produto, e ele o prepararia. E, para ter participação rrps lucros da chocolataria, a jovem nela tra­balharia e empregaria capital.

—   Onde pensa instalar sua chocolataria? — perguntou ela.

No Quartier Saint-Honoré, perto da Croix-du-Traboir. Mas suas histórias são descabidas!

Elas têm pleno cabimento, e você bem o sabe. O Quartier Saint-Honoré é um excelente bairro. O Louvre está próximo, o Palais-Royal também. Não seria uma loja parecida com uma ta­berna ou uma rôtisserie. Vejo belos ladrilhos pretos e brancos, es­pelhos, paredes forradas de madeira dourada e, atrás, um jardim com latadas, como no recinto dos celestinos... latadas para os amorosos.

O mordomo, que as explicações da jovem haviam contrariado, desfranziu um pouco a testa diante dessa descrição.

—   Você é verdadeiramente encantadora quando se deixa arrastar assim por sua natureza impulsiva, minha amiga. Gosto da sua alegria e do seu ardor, aos quais sabe misturar uma justa modés­tia. Tenho-a observado atentamente. Você tem a réplica fácil, mas seus costumes são honestos. Isso me agrada. O que me decepcio­na em você, não o oculto, é o seu espírito demasiado prático e sua maneira de querer tratar de igual para igual com homens experimentados. A fragilidade das mulheres não harmoniza com um tom peremptório, com maneiras incisivas. Elas devem deixar aos homens o cuidado de debater essas questões em que seus peque­nos miolos se perdem e se confundem. Angélica rebentou de riso.

Eu vejo daqui mestre Bourjus e Davi discutirem essas questões!

Não se trata deles.

Então? Ainda não compreendeu que eu tenho de me defen­der com as minhas próprias forças?

—   Precisamente, falta-lhe um protetor. Angélica fez ouvidos moucos.

Calma, mestre Audiger. Para falar a verdade, você é um egoísta que quer ser o único a beber o seu chocolate. E, como o que lhe expliquei o embaraça muito, procura safar-se fazendo discursos sobre a fragilidade das mulheres. Na realidade, na pequena guerra que estamos travando, a solução que lhe proponho é excelente.

Eu conheço uma cem vezes melhor.

Sob o olhar firme do rapaz, Angélica não insistiu. Levantou o prato dele, enxugou a mesa e perguntou o que ele desejava como prato do meio. Mas, quando ela se afastou rumo à cozinha, ele se ergueu e alcançou-a em dois passos.

—   Angélica, minha amiga, não seja cruel — suplicou ele. — Convido-a a passear comigo no próximo domingo. Quero falar-lhe seriamente. Poderíamos ir ao moinho de Javel. Comeríamos uma caldeirada de peixe. Em seguida, caminharíamos pelos cam­pos. Quer?

Ele tinha posto a mão na cintura de Angélica. Ela ergueu os olhos, atraída por aquele rosto fresco, principalmente pelos lábios forte­mente desenhados sob as duas vírgulas escuras do bigode. Lábios que deviam resistir flexivelmente ao beijo, antes de se entreabri­rem, que deviam impor-se, exigentes, à carne que eles tocassem.

Uma vaga de prazer que ela não dominou a sacudiu, e foi com voz tremula que concordou em ir, no domingo seguinte, ao moi­nho de Javel.

Angélica estava perturbada, mais do que desejaria, pela perspec­tiva daquele passeio. Cada vez que pensava nos lábios de Audiger e na mão dele sobre sua cintura, um frémito muito doce a percor­ria. Fazia muito tempo que ela não experimentava semelhante sen­sação. Refletindo, percebeu que, havia quase dois anos, depois da aventura com o capitão da ronda, nenhum homem a tinha toca­do. Isso era, aliás, um modo de falar, pois sua vida se desenrolava numa atmosfera de sensualidade bastante difícil de superar. Já per­dera a conta dos beijos e das carícias que tivera de repelir a bofetadas. Várias vezes, no pátio, ela fora assaltada por algum bruto avinhado, tivera de defender-se a golpes de tamanco, tivera de pe­dir socorro. Tudo isso, acrescentado à experiência com o capitão da ronda e aos rudes amplexos de Calembredaine, deixava-lhe uma lembrança amarga de violência, que havia esfriado seus sentidos.

Admirava-se de sentir-lhe o despertar com uma subitaneidade e uma doçura que ela fora bem incapaz de prever dois ou três dias antes. Aproveitaria Audiger sua perturbação para fazê-la prome­ter que não estorvaria seus negócios?

"Não", dizia para si Angélica. "O prazer é uma coisa, os negó­cios são outra. Algumas horas de harmonia não podem prejudi­car o bom êxito dos meus futuros projetos."

A fim de sufocar os remorsos que experimentava prevendo uma inevitável derrota, ela se persuadiu de que o interesse dos seus negócios tornava quase indispensável essa derrota. Além disso, talvez nada se passasse. Não tinha Audiger sido sempre perfeitamente correto?

Diante do espelho, ela alisava com um dedo seus longos e delga­dos supercílios. Ainda era bela? Diziam-lhe que sim. Mas o calor do fogo não estaria escurecendo sua cor?

"Estou um pouco gorda. Isso não me fica muito mal. Além dis­so, os homens desse tipo devem amar as mulheres rechonchudas."

Teve vergonha de suas mãos endurecidas e enegrecidas pelos tra­balhos da cozinha, e foi ao Pont Neuf comprar ao Grande Ma­teus um pote de unguento para branqueá-las.

Voltando pelo Palácio da Justiça, subiu até a Galeria dos Mer­ceeiros e comprou uma gola de renda em ponto da Normandia, que poria sobre o decote de seu modesto vestido de pano azul-esverdeado. Teria, assim, o ar de uma pequena-burguesa e não de uma criada ou de uma comerciante. Completou seus atavios pela aquisição de um par de luvas e de um leque. Uma loucura!

Seus cabelos a preocupavam. Eles tinham se tornado mais cres­pos e mais louros, mas não cresceram além de certo ponto. Com pesar, ela evocou a toalha pesada e sedosa que outrora sacudia so­bre as espáduas.

Na manhã do grande dia, ela o; dissimulou sob um bonito len­ço de cetim azul-escuro que pertence/a à Sra. Bourjus. No decote do corpete pusera um camafeu de co.nalina e, à cintura, uma es-moleira bordada de pérolas, que era,- igualmente, herança da po­bre mulher.

Angélica esperou sob o pórtico. O dia estava lindo. O céu mostrava-se puro entre os telhados.

Quando o coche de Audiger apareceu, a jovem precipitou-se para ele, com a impaciência de uma aluna interna em dia de saída.

O mordomo estava positivamente deslumbrante. Usava uma rhin-grave amarela enfeitada com fitas cor de fogo. Seu gibão de velu­do amarelo-claro, com pequenos galões alaranjados, entreabria-se sobre uma camisa plissada, da mais fina'cambraia. A renda de seus canhões, de seus punhos e de sua gravata semelhava teia de aranha.

Angélica tocou-a com admiração.

—   E de ponto da Irlanda — comentou o rapaz. — Esta renda custou-me uma pequena fortuna.

Um tanto desdenhosamente, ele levantou a modesta gola da com­panheira.

—   Um dia você também a usará, minha cara. Parece-me que você é capaz de se trajar com graça. Vejo-a muito bem em vestido de seda, e mesmo de cetim.

"E mesmo de brocado de ouro", pensou Angélica, cerrando os dentes.

Alguns instantes depois, quando a carruagem se pôs a margear o Sena, ela reencontrou seu bom humor.

O moinho de Javel erguia por entre os rebanhos de carneiros da planície de Grenelle suas grandes asas de morcego, cujo doce tique-taque acompanhava os beijos e as juras dos amantes. Ia-se ao moinho de Javel em segredo. Um grande conjunto de aposen­tos, formando albergue, ali recebia os casais, e o dono era discreto.

—   Se não soubéssemos calar em uma casa como a nossa — dizia ele —, seria uma grande pena! Poríamos toda a cidade em desordem.

Via-se passarem pequenos asnos carregados de sacos bojudos. Flu­tuava nessas paragens um odor de farinha e de trigo quente, de sopa de peixe e de caranguejo.

Angélica respirava, com delícia, o ar fresco. Algumas nuvens bran­cas passavam no céu azul. Angélica sorria-lhes e comparava-as a claras de ovo bem batidas. De quando em quando ela olhava os lábios de Audiger e saboreava o leve estremecimento delicioso que a percorria no mesmo instante.

Não iria ele procurar beijá-la? Ele parecia um tanto afetado nas suas belas vestes e todo absorvido em compor o cardápio do al­moço com o dono do albergue, muito honrado com sua visita.

Na sala, onde reinava uma sombra propícia, outros casais se amesendavam. Ã medida que se esvaziavam os jarros de vinho bran­ co as atitudes tornavam-se mais livres. Adivinhavam-se os gestos ousados que os risos arrulhantes das damas sublinhavam. Angéli­ca bebia para enganar seu nervosismo, e suas faces tornavam-se ardentes.     

Audiger pusera-se a falar de suas .viagens e de suas atividades. Empregava uma nomenclatura precisa, não esquecendo uma da­ta, nem uma roda de eixo partido.

Como você pode perceber, querida, minha situação assenta em bases sólidas e que não permitem mais surpresas. Meus pais...

Oh! Saiamos daqui — suplicou Angélica, que acabava de pou­sar sua colher.

Mas faz um calor sufocante!

Lá fora, pelo menos, há vento... e além disso não se vê toda essa gente que se beija — acrescentou ela a meia voz.

Diante do sol ofuscante, Audiger protestou. Ela iria sentir-se mal e estragar a cor da pekr Cobriu-a com seu vasto chapéu de plumas brancas e amarelas, e-exclamou, como fizera no primeiro dia:

—   Meu Deus, como você é bela, minha amiga!

Mas, alguns passos além, quando seguiam por um pequeno ata­lho à margem do Sena, ele reiniciou o relato de sua carreira. Disse que, quando a chocolataria estivesse em funcionamento, escreve­ria um livro muito importante sobre a profissão de oficial-de-boca, no qual se encontrariam todos os ensinamentos necessários aos pajens e cozinheiros desejosos de se aperfeiçoar em sua arte.

—   Lendo esse livro, o mordomo aprenderá a ordem de bem servir uma mesa e de dispor os serviços. Da mesma forma, o copeiro nele achará a forma de bem dobrar a roupa branca em várias figuras, bem como a de preparar toda sorte de compotas e frutas cris­talizadas e toda espécie de confeitos e outras gulodices muito úteis a todo mundo. O mordomo terá a revelação de que, chegada a hora da refeição, ele deve apanhar um guardanapo branco, que dobrará ao comprido e porá ao ombro.-Farei notar que o guardanapo é a marca do seu poder e o sinal demonstrativo e particular desse poder. Eu sou assim. Posso servir de espada ao lado, com o capote sobre os ombros, o chapéu na cabeça, mas sempre o guardanapo deve ser colocado da maneira a que me referi.

Angélica teve um risinho zombeteiro.

—   E quando está amando, em que posição coloca o guardanapo? Ela se desculpou logo, diante da cara escandalizada e estupefata do rapaz.

Perdoe-me. O vinho branco sempre me dá ideias absurdas. Mas, também, por que me suplicou de joelhos que viesse ao moi­nho de Javel... para me falar da colocação dos guardanapos?

Não me ridicularize, Angélica. Falo-lhe dos meus projetos, do meu futuro. E isso quadra com as intenções que tive ao solicitar-lhe que viesse sozinha comigo, hoje. Lembra-se das palavras que eu lhe disse no primeiro dia em que nos vimos? Era, então, um simples gracejo: "Case comigo!" Depois eu refleti muito e com­preendi que você era verdadeiramente a mulher que...

Oh! — exclamou ela. — Estou vendo o depósito de feno. Va­mos lá, depressa. Estaremos melhor que em pleno sol.

Ela pôs-se a correr, segurando seu grande chapéu, e foi jogar-se, esbaforida, sobre o feno tépido. Fazendo boa cara à má fortuna, o jovem alcançou-a, rindo, e sentou-se junto dela.

Pequena louca! Decididamente você me desconcerta sempre. Creio estar falando a uma prudente mulher de negócios, e é uma borboleta que voa de flor em flor.

Uma vez não é costume. Audiger, seja gentil, tire sua peru­ca. Produz-me calor com essa grossa cobertura de peles na cabeça, e eu gostaria de poder acariciar seus verdadeiros cabelos.

Ele fez um pequeno movimento de recuo. Entretanto, ao fim de um movimento, tirou a peruca e passou os dedos, com alívio, pelos curtos cabelos castanhos.

—   Agora é a minha vez — disse Angélica, estendendo a mão. Mas ele a reteve, constrangido.

—   Angélica!... Que você tem? Tornou-se positivamente diabó­lica!... E eu que desejava falar-lhe de coisas sérias!

Sua mão estava sobre o punho da jovem, e ela sentia-lhe o calor. Agora que ele estava assim perturbado, inclinado sobre ela, Angé­lica reencontrou sua emoção. Os lábios de Audiger eram verda­deiramente belos, sua pele, esticada e fresca, suas mãos, brancas. Seria bastante agradável que ele se tornasse seu amante. Ela en­contraria junto dele sólidos abraços, sadios, quase conjugais, que a fariam descansar da sua existência de luta e de trabalho. Depois, deitados calmamente um ao lado do outro, falariam do futuro do chocolate.

—   Escute — murmurou ela —, escute o moinho de Javel. Sua canção protesta. Não se fala de coisas sérias à sua sombra. É proi­bido... Escute, olhe, o céu está azul. E você, você é belo. E eu, eu...

Ela não ousou terminar, mas olhava-o atrevidamente, com seus olhos verdes cheios de luz. Os lábios entreabertos, um pouco úmidos, o fogo de suas faces, a precipitada palpitação dos seios, que Audiger descobriu na abertura da grande gola de rendas, diziam mais claramente ainda que as palavras: "Eu o desejo".

Ele teve um movimento para o lado dela, depois endireitou-se precipitadamente, e ficou uni momento de pé, de costas voltadas para a jovem.

—   Não — disse ele enfim com voz clara —, não você! Certamente já me aconteceu agarrar sobre o feno mulheres de soldados ou criadas. Mas a você, não! Você é a mulher que eu escolhi. Você será minha na noite de nossas núpcias abençoadas por um sacerdote. Respeitarei aquela que escolher para minha esposa e mãe de meus filhos. E foi a você que eu escolhi, Angélica, quase no instante em que a vi pela primeira vez. Eu esperava pedir-lhe hoje o seu consentimento. Mas você me perturbou com suas maneiras fantásticas. Quero acreditar que essa não seja a essência de sua natureza. A reputação que lhe atribuem, de ser uma viúva incorrup­tível, será exagerada? .

Angélica sacudiu despreocupadamente a cabeça. Mordiscava uma flor, toda entregue a examinar o rapaz por entre os cílios. Tenta­va imaginar-se como esposa legítima do mordomo Audiger. Uma boa pequena-burguesa que as grandes damas saudariam com con­descendência, no Cours-la-Reine, quando ela fosse lá passear em uma modesta carruagem forrada de pano oliva, com um mono­grama cercado de um cordão, um cocheiro vestido de marrom e um pequeno lacaio...

Ao envelhecer, Audiger criaria barriga e tornar-se-ia vermelho. E, quando ele contasse, pela centésima vez, a seus filhos ou a seus amigos a história das ervilhas de Sua Majestade, ela teria vontade de matá-lo...

Falei a seu respeito com mestre Bourjus — retornou Audi­ger. — Ele não me ocultou que, se você tem uma vida exemplar e se é corajosa no trabalho, falta-lhe piedade. Raramente ouve missa aos domingos e jamais assiste às vésperas. Ora, a piedade é uma virtude feminina por excelência. É a armadura de sua alma, fraca por natureza, e uma garantia de seu bom comportamento.

Que quer você? Não se pode ser ao mesmo tempo piedosa e lúcida, crente e lógica.    .. -.

Que está dizendo, minha pobre criança? Terá você sido as­saltada pelas heresias? A religião católica...

Oh! Eu lhe peço! — exclamou a jovem, inflamando-se de re­pente. — Não me fale de religião. Os homens corromperam tudo em que tocaram. Do que Deus lhe deu de mais sagrado, a religião, eles fizeram uma mistura de guerras, hipocrisia e sangue, que me dá vontade de vomitar. Pelo menos, em uma mulher jo­vem, que tem vontade de que a beijem num dia de verão, eu pen­so que Deus reconhece a obra de sua criação, pois foi Ele quem a fez assim.

Angélica, você perdeu a cabeça! É tempo de se arrancar à com­panhia desses libertinos, cujas conversas você faz muito mal em escutar. Em realidade, creio que lhe falta não somente um pro-tetor, mas um homem que a domestique um pouco e que a co­loque no seu lugar de mulher. Entre seu tio e o cretino de seu sobrinho, que a adoram, você acredita que tudo lhe é permi­tido. Você tem sido demasiadamente estragada e tem necessidade de ser corrigida...

De verdade? — respondeu Angélica, e bocejou, espregui-çando-se.

Essa discussão tinha acalmado o seu desejo. Ela se deitou con­fortavelmente no feno, não sem ter levantado sonsamente sua longa saia sobre os finos tornozelos.

—   Tanto pior para você — disse ela.

Cinco minutos depois dormia. Audiger, com o coração aos pu­los, contemplou o flexível corpo abandonado. Individuou-lhe to-, das as maravilhas que sabia de cor, como uma litania: uma fronte de anjo, uma boca travessa, um belo busto. Angélica era de esta­tura mediana, mas tão bem-proporcionada que parecia alta. Era a primeira vez que ele lhe via os tornozelos; eles deixavam adivi­nhar as pernas bem torneadas que os prolongavam.

Audiger, com a testa suada, decidiu afastar-se, fugindo a uma tentação à qual se sentia bem perto de sucumbir.

Angélica sonhava que ia sobre o mar, em um barco de feno. Uma mão a acariciava e uma voz lhe dizia: "Não chore". . Ela despertou e viu que não havia ninguém perto dela. Mas o sol, descendo para o horizonte, envolvia-a em seu tepor.

"Por causa desse idiota do Audiger, eis-me reduzida a folgar com o sol", pensou ela com um suspiro.

Um langor demorava-se em seu corpo. Acariciou os braços penugentos.

"Suas espáduas são duas bolas de marfim, seus seios são feitos na medida exata para caberem no côncavo da mão de um homem..."

Que teria acontecido àquele estranho pássaro negro, o homem do barco de feno? Ele dizia palavras galantes e depois, de repente, zombeteiras. Tinha-lhe dado um beijo muito longo. Quem sabe se existia?

Levantou-se, sacudiu as ervas agarradas ao seu vestido e, juntando-se a Audiger no albergue do moinha, pediu-lhe aborrecida que a levasse de volta a Paris.

 

Angélica torna-se amante do Poeta Pobre

Naquele crepúsculo de outono, Angélica passeava no Pont Neuf. Tinha vindo procurar flores, e aproveitava a ocasião para errar de locanda em locanda.

Parou diante do estrado do Grande Mateus e teve um sobressalto.

O Grande Mateus estava ocupado em arrancar um dente a um homem ajoelhado diante dele. O paciente tinha a boca aberta e distendida pela torquês do operador. Mas Angélica reconheceu seus cabelos espetados e louros como palha de milho e seu surrado ca­pote negro. Era o homem que ela conhecera no barco de feno.

A jovem abriu caminho com os cotovelos até a primeira fila.

Embora fizesse muito frio, o Grande Mateus suava em bica.

—Ora essa! Como este é duro! Meu Deus, como é duro! Interrompeu sua tarefa para enxugar a fronte, retirou o instru­mento da boca de sua vítima e perguntou-lhe:

—   Está doendo?

O outro voltou-se para o público e sorriu, sacudindo negativa­mente a cabeça. Não havia dúvida. Era ele, com sua face pálida, sua boca larga, suas visagens de pateta fascinado.

—   Vejam, senhoras e senhores! — exclamou o Grande Mateus. — Não é uma maravilha? Eis um homem que não sente dor, e no entanto ele tem dentes duros, creiam-me! E por que milagre ele não sente dor? Pela graça deste bálsamo miraculoso, com que lhe untei a gengiva antes da operação. Neste pequeno frasco, senhoras e senhores, está contido o olvido de todos os males. Em minhas mãos ninguém sente dor, graças ao bálsamo miraculoso, e posso arrancar os seus dentes sem que o percebam. Vamos, meu amigo, continuemos nosso trabalho.

O rapaz abriu a boca com presteza. Com pragas e grande esfor­ço, o charlatão pôs-se a lutar de novo com a mandíbula renitente.

Afinal, com um grito de triunfo, o.Grande Mateus brandiu na ponta da torquês o molar recalcitrante.

—   E então? Sentiu alguma coisa, meu amigo?

O outro se levantou, sempre sorrindo. E fez sinal que não.

—   Que poderei acrescentar? Aqui está um homem a cujo suplício acabam de assistir e que se retira bem-disposto. Graças ao bálsamo miraculoso, que sou o único a usar entre os médicos empíricos, ninguém hesitará mais em desembaraçar-se desses tocos malcheirosos que desonram a boca de um honesto cristão. Virão, com um sorriso, ao arrancador de dentes. Não hesitem mais, senhoras e senhores. Venham! O sofrimento não existe mais! O sofrimento morreu.

Nesse meio tempo, õ cliente já pusera seu chapéu cónico e des­cia do estrado. Angélica seguiu-o. Tinha vontade de abeirá-lo, mas perguntava a si própria se ele a reconheceria.

Ele caminhava agora ao longo do Quai des Morfondus, sob o Palácio da Justiça. Alguns passos adiante de si, Angélica via flu­tuar, no nevoeiro que subia do Sena, sua silhueta estranha e ma­gra. Novamente ele parecia não ser real. Andava muito lentamente, parava, depois continuava.

De repente desapareceu. Angélica soltou um leve grito. Mas com­preendeu que o homem simplesmente havia descido os três ou qua­tro degraus do cais até a margem. Por sua vez, sem refletir, ela se meteu pela escada e quase esbarrou no desconhecido, apoiado à muralha. Dobrado em dois ele gemia surdamente.

Que se passa? Que tem você? — perguntou Angélica. — Está doente?

Oh! Eu morro — respondeu ele com voz fraca. — Aquele bruto só faltou arrancar-me a cabeça. E estou certamente com o queixo deslocado.

Cuspiu um filete de sangue.

Mas você dizia que não estava sentindo dor.

Eu não dizia nada, estava inteiramente incapaz. Felizmente o Grande Mateus me pagou bem para representar esta pequena comédia!

Ele gemeu e cuspiu de novo. Ela pensou que ele ia desfalecer.

—   Que estupidez! Você não devia aceitar isso — disse ela.

—   Há três dias que eu não como nada.

Angélica envolveu com seu braço o magro busto do desconhe­cido. Ele era mais alto que ela, mas tão leve que ela quase se sentia com forças para carregar aquela pobre carcaça.

—   Venha comigo, comerá bem esta noite — prometeu ela. — E nada lhe custará. Nem um soldo... nem um dente.

De volta ao albergue, ela correu à cozinha, procurou o que pu­desse convir a uma vítima da fome e de um arrancador de dentes. Havia caldo de carne e uma bela língua de boi com pepinos. Ela trouxe-lhe tudo, bem como um pichei de vinho tinto e um gran­de pote de mostarda.

—   Comece com isto. Depois cuidaremos do resto. O longo nariz do jovem faminto estremeceu.

—   O sutil aroma das sopas! — murmurou o desconhecido, endireitando-se como se ressuscitasse. — Essência bendita das divindades culinárias!

Ela deixou-o, para que ele pudesse saciar-se à vontade. Depois de ter dado suas ordens, verificado se tudo estava pronto para a chegada dos clientes, ela foi para a copa, a fim de fazer um molho. Era uma pequena peça, onde ela se fechava quando tinha de pre­parar um prato delicado.

Ao cabo de alguns instantes, a porta se abriu e seu convidado passou a cabeça pela abertura.

Diga-me, minha bela, você é a pequena mendiga que conhe­ce latim?

Sou... e não sou — disse Angélica, que não sabia se estava con­trariada ou contente por ele a ter reconhecido. — Sou agora a so­brinha de mestre Bourjus, dono desta taberna.

Por outras palavras, não está mais sob a jurisdição desconfia­da do Sieur Calembredaine?

Deus me livre!

Ele introduziu-se no cómodo, aproximou-se dela com seu passo ligeiro e, segurando-a pela cintura, beijou-a nos lábios.

Ei, messire, creio que você já está perfeitamente reconforta­do! — disse Angélica depois de tomar fôlego.

Isso é o que menos importa. Há muito tempo que eu a pro­curo em Paris, Marquesa dos Anjos!

Psiu! — fez ela, olhando em volta de si, assustada.

Não receie nada. Não há guardas na sala. Não vi nenhum deles e conheço-os todos, pode acreditar-me. Então, pequena men­diga, pelo que vejo, você sabe como afrouxelar seu ninho. Enjoou dos barcos de feno? Deixa-se uma pequena flor pálida, anêmica, enlameada, que chora dormindo, e encontra-se uma robusta dona de casa, confortavelmente instalada... E no entanto é bem você. Seus lábios continuam bons, mas têm agora um sabor de cereja, e não mais de lágrimas amargas. Mais um beijo...

Estou com pressa — disse Angélica, repelindo as mãos que desejavam aprisionar-lhe.as faces. -

Dois segundos de felicidade valem dois anos de vida. Depois, eu ainda tenho fome, você sabe!

Quer folhados e compotas?

'— Não; eu quero é a você. Vê-la e pegá-la é tudo quanto preci­so para saciar meu apetite. Quero seus lábios de cereja, suas faces de pêssego. Tudo em você se tornou comestível. Não se pode de­sejar nada melhor para um poeta faminto... Sua carne é tenra. Te­nho vontade de mordê-la. E você tem calor!... É maravilhoso! O odor de suas axilas me faz morrer de fome canina.

Oh! Você é impossível! — protestou ela. — Com suas decla­rações ora líricas, ora: triviais, torna-me louca.

É isso que eu desejo. Vamos, não se faça rogada.

Com gesto peremptório, que provava o retorno de suas forças, ele puxou-a para si e, deitando-lhe a cabeça no braço, pôs-se a beijá-la.

A pancada de uma acha de lenha contra a mesa separou-os bru­talmente.

Por São Tiago! — rugiu mestre Bòurjus. — Esse gazeteiro mal­dito, esse servo de Satanás, esse caluniador, na minha casa, na mi­nha copa, empenhado em molestar minha filha! Fora daqui, patife, ou o ponho na rua a pontapés.

Piedade, messire, piedade para as minhas calças! Elas se acham tão usadas, que seu augusto pé se arriscaria a proporcionar um es-petáculo indecente para as damas.

Fora daqui, velhaco, plumitivo, desmancha-prazeres! Você desonra minha loja com sua roupa esburacada e seu chapéu de sal­timbanco.

Mas o outro, fazendo caretas, rindo e conservando as mãos sobre o fundilho ameaçado, havia corrido até a porta da rua. Fez urria careta e desapareceu.      .. .

Angélica disse, um pouco lassamente:

Esse indivíduo entrou na copa e eu não pude desembaraçar-me.

Hum! — resmungou o rôtisseur. —- Desta vez você não tinha o ar tão descontente. Calma, beleza, não proteste! Não é contra isso que eu me insurjo: um pouco de carícias, de vez em quando, é coisa que alegra uma bela jovem. Mas, francamente, Angélica, você me decepciona. Não vêm tantas pessoas respeitáveis à nossa casa? Por que você foi escolher um jornalista?

A favorita do rei, Srta. de La Vallière, tinha a boca muito gran­de. Ela claudicava um pouco. Dizia-se que isso lhe dava uma gra­ça particular e não a impedia de dançar admiravelmente, mas o fato estava ali: ela coxeava.

Ela não tinha peito. Comparavam-na a Diana, falava-se do en­canto dos seres andróginos, mas o fato estava ali: ela tinha os seios chatos. Sua pele era seca. As lágrimas causadas pelas infidelidades reais, as humilhações da coru, os remorsos haviam-lhe cavado as faces. Finalmente, após sua segunda gravidez, ela sofrera de um incomodo de alcova, do qual somente Luís XIV poderia revelar os pormenores. Mas o Poeta Pobre os conhecia.

E de todas essas misérias ocultas ou conhecidas, dessas desgraças físicas, ele fez um panfleto surpreendente, cheio de espírito, mas de uma crueldade tal que até os burgueses menos pudibundos evi­taram mostrá-lo às suas mulheres, que o pediam a seus criados.

"Se você é coxa e tem quinze anos,

Peito magro e muito pouco juízo,

Se teve pais só Deus sabe como,

Se já anda na vida e emprenha nas antecâmaras,

Palavra que terá do reino o primeiro dos amantes,

E La Vallière é disso a prova."

Assim começava a canção.

Achavam-se esses libelos por quase toda Paris, no Palácio Biron, onde estava alojada Luísa de La Vallière, no Louvre e até junto à rainha, que, diante desse retrato de sua rival, se pôs a rir pela primeira vez depois de muito tempo e esfregou de alegria suas pe­quenas mãos.

Ofendida, morta de vergonha, a Srta. de La Vallière meteu-se na primeira carruagem que encontrou e fez-se conduzir ao Con­vento de Chaillot, onde queria tomar o véu.

O rei deu-lhe ordem de regressar e de mostrar-se na corte. Fê-la procurar pelo Sr. Colbert. Nesse chamado existia menos de ter­nura indignada que de desafio furioso da parte de um soberano de quem seu povo ousava escarnecer, mas que começava a recear que sua amante não lhe fizesse honra.

Os mais argustos agentes de polícia foram lançados em perse­guição do Poeta Pobre.

Dessa vez, ninguém duvidava de que ele fosse enforcado.

Angélica terminava, no pequenp quarto da Rue des Frances-Bourgeois, seus preparativos para' deitar-se. Javotte acabava de retirar-se com uma reverência. As crianças dormiam.

Ouviu-se lá fora um rumor de passos. Eram abafados pela fina camada de neve que, muito lentamente, naquela noite de dezem­bro, tinha começado a cair.

Bateram à porta. Angélica enfiou seu chambre e foi abrir o postigo.

Quem é?

Abra depressa, pequena mendiga, depressa. O cão!

Sem perder tempo ettí refletir, Angélica correu os ferrolhos. O gazeteiro deu-lhe um encontrão. No mesmo instante surgiu da som­bra um vulto branco, saltou e agarrou-o pela garganta.

—   Sorbonne! — gritou Angélica.

Ela investiu e sua mão encontrou o pêlo úmido do animal.

—   Deixe-o, Sorbonne. Lass ihm! Lass ihm!

Falava-lhe em alemão, lembrando-se vagamente de que Desgrez lhe dava ordens nessa língua.

Sorbonne rosnava, com os colmilhos solidamente enterrados na gola de sua vítima. Passados alguns segundos, reconheceu a voz de Angélica. Sacudiu a cauda e consentiu em largar a presa, conti­nuando a rosnar.

O homem arquejava.

Estou morto!

Oh, não! Entre depressa.

O cão vai ficar diante da porta e advertir o policial. — Entre, digo-lhe!

Ela mesma o empurrou para dentro, depois ficou sob a abóba­da, puxando a porta atrás de si. Segurava firmemente Sorbonne pela coleira. A entrada do pórtico, ela via turbilhonar a neve à luz de uma lanterna. Afinal, distinguiu a "aproximação de um pas­so leve, o passo que sempre ouvia atrás do cão, o passo do policial Francisco Desgrez.

Angélica se adiantou.

—   Está procurando seu cão, Maitre Desgrez?

Ele parou, depois entrou, por seu turno, para a passagem abo­badada. Ela não lhe via o rosto.

Não — respondeu ele com muita calma. — Procuro um pan­fletário.

Sorbonne passava. Eu conheci outrora o seu cão. Chamei-o e decidi retê-lo.

Sem dúvida nenhuma, ele ficou encantado, senhora. Refrescava-se aqui fora com esse tempo agradável?

Eu estava fechando a porta. Mas estamos no escuro, Maítre Desgrez, e tenho certeza de que não adivinhou quem eu sou.

Não o adivinho, senhora; eu o sei. Há muito tempo eu sei quem habita esta casa e, como nenhuma taberna de Paris me é desconhecida, eu a vi na Máscara Vermelha. Faz-se chamar Sra. Morens, tem dois filhos, e o mais velho se chama Florimond.

Ninguém pode esconder-lhe nada. Mas, já que sabe quem eu sou, por que foi necessário um acaso para que nos falássemos?

Eu não sabia que a minha visita lhe dava prazer, senhora. Da última vez em que nos vimos, separamo-nos em péssimas relações.

Angélica evocou a noite em que fora perseguida no Faubourg Saint-Germain. Pareceu-lhe que não tinha mais uma gota de sali­va na boca.

Perguntou com voz sem timbre:

Que quer dizer?

Nevava como esta noite, e a poterna do Temple não era me­nos escura que sua abóbada.

Angélica dissimilou um suspiro de alívio.

Nós não estávamos em más relações. Estávamos vencidos, o que não é a mesma coisa, Maítre Desgrez.

Não deve chamar-me maítre, senhora, pois vendi meu cargo de advogado, e além disso fui eliminado da universidade. Entre­tanto, eu o vendi muito bem e pude comprar um cargo de capitão de polícia, em virtude do qual me dedico a uma tarefa mais lucra­tiva e não menos útil: a perseguição dos malfeitores e dos mal-intencionados desta cidade. Assim, das culminancias do verbo eu tombei às profundezas do silêncio.

Continua a falar muito bem, Maítre Desgrez.

Conforme o momento. Reencontro então o gosto de certos períodos oratórios. E sem dúvida por causa disso que estou parti­cularmente encarregado da sorte desses incontinentes da palavra, escrita ou não: os poetas, os gazeteiros, os plumitivos de qualquer espécie. Esta noite, eu persigo uma personagem virulenta, chamada Cláudio Le Petit, e que também se intitula Poeta Pobre. Esse indivíduo estará, sem dúvida, abençoando sua intervenção.

Por que isso?

Porque a senhora nos reteve e ele continuou a correr.

Desculpe-me de tê-lo retido.

Eu estou pessoalmente encantado, embora a pequena sala em que me receba careça um pouco de conforto.

Perdoe-me. Poderá voltar, Desgrez.

Eu voltarei, senhora.

Ele inclinou-se para o cão, a fim de colocar-lhe a trela. Os flo­cos de neve tornavam-se cada vez mais densos. O policial levan­tou a gola de seu capote, deu um passo, depois parou.

—   Recordo-me de uma coisa — disse ele ainda. — Esse Poeta Pobre escreveu bem cruéis maledicências por ocasião do processo de seu marido. Escute...

"E-a bela Sra. de Peyrac

Roga a Deus que não se abra a Bastilha

E que ele permaneça em seu encerramento..."

Oh! Cale-se, por piedade! — exclamou Angélica tapando os ouvidos com as mãos. — Nunca mais fale dessas coisas. Eu não me lembro mais de nada. Não quero mais lembrar-me...

Então o passado está morto para a senhora?

Sim, o passado está morto!

É o melhor que tinha a fazer. Eu não lhe falarei nada disso. Até a vista, senhora... e boa noite!

Angélica, batendo o queixo, correu os ferrolhos. Estava gelada até a medula por essa permanência no frio, tendo por vestimenta apenas o seu chambre. E ao frio juntava-se a emoção de ter visto Desgrez e de ter ouvido suas revelações.

Ela entrou em seu quarto e fechou a porta. O homem dos cabe­los louros estava sentado sobre a pedra da lareira, os braços uni­dos em volta dos magros joelhos. Parecia um grilo.

A jovem apoiou-se à porta e disse com voz sumida:

É você o Poeta Pobre? Ele sorriu.

Pobre? Certamente. Poeta? Talvez.

Foi você quem escreveu aque... aquelas infâmias sobre a Srta. de La Vallière? Não pode, então, deixar que as pessoas se amem tranquilamente? O rei e essa moça fizeram tudo o que podiam para manter secretos os seus amores, e eis que você lança o escânda­lo, em termos odiosos! O procedimento do rei é condenável, de­certo. Mas ele é um homem jovem, fogoso, que casou contra a vontade com uma princesa sem espírito nem beleza. Ele riu zombeteiramente.

Como você o defende, minha linda! Esse francripault amoleceu-lhe o coração?

Não, mas tenho horror de ver maculado um sentimento res­peitável e real.

Não há nada respeitável ou real no mundo.

Angélica atravessou o quarto e foi apoiar-se do outro lado da chaminé. Sentia-se fraca e perturbada. O poeta ergueu os olhos para ela. Ela viu dançarem neles as pontas vermelhas das labaredas.

Não sabia quem eu era? — perguntou ele.

Ninguém me disse, e como poderia eu adivinhar? Sua pena é ímpia e licenciosa, e você...

Continue...

Você me pareceu bom e alegre.

Eu sou bom para as pequenas mendigas que choram nos bar­cos de feno, e sou mau para os príncipes.

Angélica suspirou. Indicou-lhe a porta com o queixo.

Agora deve partir.

Partir?! — exclamou ele. — Partir quando o cão Sorbonne me espera para agarrar minhas calças, e quando o policial do Dia­bo prepara suas algemas?

Eles não estão na rua.

Estão. Eles me esperam no escuro.

Juro que eles não desconfiam que você está aqui. -

Como sabê-lo? Será que você não conhece esses dois compa­nheiros, você que fez parte do bando de Calembredaine?

Ela fez-lhe sinal para que se calasse.

Está vendo? Você mesma os sente de emboscada lá fora na neve. E quer que eu vá embora!

Quero. Vá embora!

Você me expulsa?

Expulso.

No entanto, nenhum mal lhe fiz.

Fez, sim.

Ele olhou-a, demoradamente, depois estendeu a mão para ela.

—   Então, é preciso que nos reconciliemos. Venha. E, como ela permanecesse imóvel:

Estamos sendo perseguidos pelo cão. Que nos restará se nos zangarmos? Ele continuava a estender a mão.

Seus olhos tornaram-se duros e frios como esmeraldas. Eles não têm mais aqueles reflexos de regato sob as folhagens, que pa­recem dizer: "Ame-me, beije-me..."

É o regato que diz isso?   ,

—   São os seus olhos, quando eu não sou seu inimigo. Venha! Ela cedeu, de repente, e foi aconchegar-se ao jovem. Ele passou logo o braço em volta dos ombros dela.

Você está tremendo. Não tem mais seu ar seguro de boa hos­pedeira. Qualquer coisa lhe fez medo e lhe fez mal. O cão? O po­licial?^

É o cão. É o policial, e é você também, Sr. Poeta Pobre.

O sinistra trindade de Paris!

Você, que está ao corrente de tudo, sabe o que eu fazia antes de estar com Calembredaine?

Ele fez uma cara de enfado.

Não. Desde que a reencontrei, pude mais ou menos compreen­der como você se elevou e como empalmou seu rôtisseur. Mas, an­tes de Calembredaine, não; a pista pára aí.

É preferível.

O que me preocupa é que eu estou quase certo de que o poli­cial do Diabo conhece o seu passado.

Porfiam vocês dois em colher informações?

Trocamo-las frequentemente, ele e eu.

No fundo, vocêi se parecem um com o outro.

Um pouco. Mas existe, em todo caso, uma grande diferença entre nós.

Qual é a diferença?

Eu não posso matá-lo, enquanto ele pode conduzir-me pelo caminho da morte. Se você não me tivesse aberto a porta esta noi­te, eu estaria agora no Châtelet. Já teria ganho mais três polegadas de altura, graças ao potro de mestre Aubin, e amanhã, ao alvore­cer, estaria balançando na ponta de uma corda.

E por que você diz que, da sua parte, não pode matá-lo?

—   Porque eu não sei matar. A visão'do sangue me faz mal. Ela se pôs a rir da sua mímica de horror. A mão nervosa do poeta pousou-lhe sobre o pescoço.

—   Quando você ri, parece um-pombinho.

Ele se reclinou sobre seu rosto. Ela viu naquele sorriso terno e zombeteiro a brecha escura causada pela torquês do Grande Ma­teus, e isso deu-lhe vontade de chorar e de amar aquele homem.

—   Está bem — murmurou ele —, você já não sente medo. Tudo se distancia... Existe somente a neve que cai lá fora, e nós, aqui, bem .aquecidos... Não me acontece muitas vezes encontrar um alojamento assim. Você está nua sob esse chambre?... Sim, eu o sinto. Não se-mexa, minha amiga... Não diga mais nada...

Sua mão deslizou, puxou para trás o chambre para seguir a li­nha da espádua, desceu mais um pouco. Ele riu, porque ela es­tremecia.

—   Aqui estão os botões da primavera. E no entanto é inverno!... Beijou-lhe os lábios. Depois, estendeu-se diante do fogo e puxou-a docemente para si.

"Mas escute um pouco, eu lhe peço:

Estou ouvindo o vendedor de aguardente,

E creio, seriamente,

Cara amiga, que é tempo de partir!..."

O poeta havia posto seu grande chapéu e seu capote furado. A aurora estava ali, envolta em neve, e, na brancura da rua silencio­sa, o vendedor de aguardente, todo agasalhado, tropeçava como um urso.

Angélica chamou-o. Ele serviu aos dois, na entrada, um peque­no copo de álcool.

Quando o bom homem se afastou, eles sorriram um para o outro.

—   Aonde vai agora?

Revelar um novo escândalo ao povo de Paris. O Sr. de Brien esta noite, encontrou sua mulher com um amante.

Esta noite? Como você pode sabê-lo?

Eu sei tudo. Adeus, minha bela.

Ela segurou-o pela aba do capote e disse-lhe:

Volte.

Ele voltou. Chegava de noite, atritava a janela com as unhas, segundo um sinal convencionado. Ela abria sem fazer ruído. E, na tepidez do pequeno quarto, junto daquele companheiro alter­nadamente palrador, satírico e amoroso, ela esquecia o duro la­bor cotidiano. Ele contava-lhe os escândalos da corte e da cidade. Isso a divertia, pois ela conhecia a maior parte das personagens de quem ele falava.

—   Eu sou rico de todo o medo das pessoas que me temem — dizia ele.

Mas ele não dava importância ao dinheiro. Era em vão que ela queria vesti-lo mais decentemente.

Após um bom jantar que ele aceitava, sem aliás fazer o gesto de abrir sua bolsa, desaparecia por- oito dias e, quando tornava a aparecer, macilento, esfaimado,, sorridente, era em vão que ela o interrogava. Entendendo-se tão bem com os bandos de ladrões de Paris, por que não ia ele, oportunamente, pandegar com os seus amigos? Nunca fora visto na Tour de Nesle. No entanto, sendo uma das personagens importantes do Pont Neuf, seu lugar ali es­tava reservado. E, com todos os segredos que conhecia, ele pode­ria fazer chantagem com inúmeras pessoas.

—   É mais divertido fazê-las chorar e ranger os dentes — dizia. Não aceitava auxílio senão das mulheres que ele amava. Uma pequena florista, uma prostituta, uma criada, depois de se have­rem entregue às suas- carícias, tinham o direito de mimá-lo um pou­co. Elas lhe diziamr"Coma, meu pequeno", e olhavam-no com ternura enquanto ele se alimentava.

Depois ele se ia. Como a florista, a prostituta ou a criada, Angé­lica sentia, por vezes, o desejo de retê-lo. Estirada, no calor do lei­to, junto daquele longo corpo cujo amplexo era tão vivo e tão leve, ela passava um braço em torno do pescoço dele e puxava-o para si.

Mas já ele abria os olhos, notava a luz do dia por trás dos peque­nos vidros encaixilhados de chumbo. E saltava para fora da cama, vestia-se às pressas.

Na verdade, ele não parava num lugar. Estava possuído de uma mania bem rara na época e que em todos os tempos é paga bem caro: a mania da liberdade.

 

A pequena guerra das patentes

Ele nem sempre fazia mal em fugir assim. Muito frequentemen­te, quando Angélica, de janela aberta, acabava de se vestir, uma sombra negra se apresentava por trás das grades.

Faz suas visitas muito cedo, senhor policial.

Não venho fazer visita, senhora. Procuro um panfletário.

E pensa encontrá-lo nestas paragens? — perguntava Angéli­ca, desenvolta, pondo o manto aos ombros para ir à Taberna da Máscara Vermelha.

Quem sabe? — respondia ele.

Ela saía e Desgrez acompanhava-a pelas ruas nevadas. O cão Sor-bonne farejava à frente deles. Isso recordava a Angélica os tempos em que, da mesma forma, eles tinham caminhado lado a lado em Paris. Um dia, Desgrez a tinha levado às estufas de Saint-Nicolas, De outra feita, o bandido Calembredaine se tinha erguido diante deles.

Agora, eles se reencontravam, cada qual guardando para si a parte sombria dos últimos anos. Angélica não tinha vergonha de que ele a visse como criada de uma taberna. Ele tinha acompanhado muito de perto o desmoronamento de sua fortuna, para compreen­der a necessidade em que ela se achava de trabalhar humildemen­te com suas mãos. Ela sabia que ele não a desprezava por isso. Ela podia enterrar no fundo de si mesma a lembrança de sua vida com Calembredaine. Os anos tinham passado. Calembredaine não rea­parecera. Angélica esperava ainda que ele houvesse podido fugir para o campo. Talvez se houvesse ligado aos ladrões de estrada... Talvez tivesse caído nas mãos de um recrutador de soldados.

De qualquer maneira, seu instinto lhe dizia que ela nunca mais o tornaria a ver. Podia, pois, caminhar pelas ruas de cabeça ergui­da. O homem que ia junto dela, com seu passo flexível, habituado ao silêncio, não desconfiava dela. Também ele havia mudado. Fa­lava menos e sua alegria tinha cedido lugar a uma ironia que se aprende a temer. Por trás das palavras mais simples, bem frequen­temente se vislumbrava uma ameaça oculta. Mas Angélica tinha a impressão de que Desgrez jamais lhe faria mal.

Ele parecia também menos pobre. Usava belas botas. Muitas vezes trazia peruca.

Chegando diante da taberna, o policial saudava cerimoniosamente a jovem e prosseguia.

Angélica admirava, por cima da porta, a bela tabuleta em cores vivas que fora pintada por seu irmão Gontran. O quadro repre­sentava uma mulher envolta num manto com quadrados de cetim negro. Os olhos verdes brilhavam por trás da máscara vermelha. Em redor dela, o pintor tinha esboçado a Rue de la Vallée-de-Misère, com as silhuetas extravagantes de suas velhas casas erguidas sob o céu estrelado, e a-vermelha claridade de suas rôtisseries.

O vendedor de vinho, matinal, saía do albergue, de jarro na mão.

—   Ao bom vinho sadio e puro! Venham todas, boas mulheres! Os aros estão rebentando!...

A vida recomeçava ativamente com o toque dos sinos. E, de noite, Angélica arrumava em pilha os belos escudos. Depois de tê-los con­tado, colocava-os em pequenos sacos"e encerrava-os no cofre-forte que fizera mestre Bourjus comprar.

Periodicamente, Audiger voltava a pedi-la em casamento. An­gélica, que não esquecia seus projetos sobre o chocolate, recebia-o com um sorriso.

—   E sua patente?

Daqui a alguns dias o assunto estará resolvido! A jovem acabou por dizer-lhe:

Sua patente, nunca a terá!

Verdadeiramente, senhora pitonisa! E por quê?

—   Porque se fez apoiar pelo Sr. de Guiché, genro do Sr. Séguier. Ora, você ignora que o lar do Sr. de Guiché é um inferno, e que o Sr. Séguier se colocou ao lado da filha. Deixando mofar sua pa­tente, o chanceler vê nisso um ensejo, entre muitos, de fazer bu­far o genro, e essa oportunidade ele não a deixará passar.

Ela conseguira esses detalhes com o Poeta Pobre. Mas Audiger, irritado, soltava altos gritos. O registro de sua patente estava bem encaminhado. A prova era que ele já tinha começado a construir sua sala na Rue Saint-Honoré.

Visitando os trabalhos, Angélica constatou que o mordomo ti­nha seguido suas sugestões. Havia espelhos e forros de madeira dourada.

Penso que essa novidade atrairá as pessoas ávidas de singula­ridades — explicou Audiger, esquecendo totalmente que era à jo­vem que devia essa ideia. — Quando se lança um produto novo, é necessária uma atmosfera nova.

E você já se preocupou de fazer vir o produto em questão?

Logo que eu tenha a minha patente, as dificuldades se aplai­narão por si mesmas.

 

Orgia sangrenta na Máscara Vermelha

Angélica pousou a caneta na escrivaninha e releu com satisfa­ção a conta que acabava de fazer.

Regressara da Máscara Vermelha, onde vira a turbulenta chega­da de um bando de jevens senhores, cujas golas de renda em pon­to de Génova e amplos canhões a tinham feito augurar a sua solvibilidade. Eles estavam mascarados, o que era uma prova su­plementar de sua categoria elevada. Algumas personagens da cor­te preferiam, com efeito, guardar o incógnito para ir esquecer nas tabernas as servidões da etiqueta.

A jovem, como agora acontecia frequentemente, tinha deixado a mestre Bourjus, a Davi e aos aprendizes o cuidado de receber esses clientes importantes. Agora que a reputação da casa estava feita e que Davi tinha experiência na confecção de suas especiali­dades culinárias, Angélica expunha-se menos e consagrava mais tempo às compras e à gestão financeira do estabelecimento.

Expirava o ano de 1664. A situação tinha evolvido gradualmen­te para um estado de coisas que, se fosse previsto três anos antes, teria feito ir às gargalhadas toda a Rue de la Vallée-de-Misère. Sem ter ainda comprado a casa de mestre Bourjus, como planejava se­cretamente, Angélica se havia tornado uma espécie de patroa. O rôtisseur continuava proprietário, mas ela realizava todas as des­pesas e aumentara proporcionalmente a sua participação nos lu­cros. Finalmente, era a mestre Bourjus que tocava a parte mais fraca. Ele se achava, aliás, satisfeito por ter se desembaraçado de todos os cuidados e de viver tranquilamente em seu próprio al­bergue, a formar um pequeno pecúlio para seus dias de velhice. Angélica tinha somente de amontoar todo o dinheiro que quisesse. O que mestre Bourjus desejava era ficar sob sua asa, sentir-se cercado de uma afeição clarividente e peremptória. Ás vezes, fa­lando dela, ele dizia "minha filha" com tanta convicção que mui­tos fregueses da Máscara Vermelha estavam persuadidos de seu parentesco. Predisposto à melancolia e sempre convencido de seu fim próximo, ele contava aos que o cercavam que seu testamento, sem ferir os interesses de seu próprio sobrinho, beneficiava gran­demente Angélica. Além disso, Davi não podia formalizar-se com as decisões tomadas por seu tio relativamente a uma mulher que continuava a subjugá-lo inteiramente.

O próprio Davi tornava-se um belo rapaz. Ele sabia disso e não desesperava de um dia tornar sua amante aquela a quem adorava.

Angélica não deixava de perceber os progressos de Davi na ciência amorosa. Media-os por suas próprias reações, pois, se o desazo do adolescente outrora a tinha fortemente irritado, certos olhares dele, agora, causavam-lhe um prazer indefinido. Continuava a tratá-lo de maneira severa, como a um pequeno irmão, mas, nas palavras que lhe arremessava, ela reprovava a si mesma certo coquetismo. Os risos e os gracejos que eles trocavam em volta dos espetos não eram sempre destituídos dessa provocação que uma mulher e um homem permutam quando são atraídos um para o outro.

Troçando intimamente de si própria, a jovem acabava por per­guntar a si mesma se não cederia um dia por distração, àquela paixão tumultuosa e fresca. Porque ela pr 'cisava de Davi. Ele era um dos pilares sobre os quais assentava o êxito de seus futuros empreendimentos. Por exemplo, quando ela adquirisse duas ou três lojas na feira de Sait-Germain, caberia a Davi assegurar seu lançamento e sua celebridade. O outro pilar era Audiger, respon­sável pelas perspectivas do negócio de chocolate e de refrigeran­tes. Com este, também, era preciso entender-se. Era preciso reter e não desencorajar aquele amoroso mais grave, mais intensamen­te enamorado, cuja reserva, acentuando-se, não podia significar se­não um sentimento cada vez mais profundo. Com este, não seria o caso de acalmá-lo com alguma complacência. Davi, por uma noite em que ela lhe concedesse o direito de tocar à vontade o seu "cor­po divino", ficaria sem dúvida perdidamente escravizado. Quan­to ao outro, Audiger, Angélica temia um pouco a sua tenacidade de homem feito e que ultrapassou a idade dos caprichos, sem ter jamais sentido paixões. Aquele calmo burguês, doméstico sem bai-xezas, militar por herança nacional, franco, corajoso e prudente como outros são louros ou morenos, não se deixaria engazopar.

Angélica sacudiu a areia da folha em que acabava de fazer seus lançamentos. Teve um riso indulgente.

—   Três cozinheiros cheios de ternura para comigo, cada qual por motivo diferente! Deve ser a profissão que faz isso... O calor dos fogos derrete-lhes o coração como a gordura dos perus.

Javotte entrou para ajudá-la a despir-se e escovar seus cabelos.

Que é isso que estou ouvindo na entrada? — perguntou An­gélica.

Não sei. Parece um rato roendo a porta.

Como se acentuasse o ruído, Angélica foi ao vestíbulo e consta­tou que ele não vinha de baixo da porta, mas do pequeno postigo a meia altura. Ela abriu a janelinha e deu um leve grito de horror, pois no mesmo instante uma pequena mão negra se introduziu pelas grades do postigo e estendeu-se tragicamente para ela.

—   E Piccolo! — exclamou Javotte.

Angélica puxou todos os ferrolhos, abriu a porta, e o símio precipitou-se em seus-braços.

—   Que terá havido? Ele nunca veio sozinho até aqui. Dir-se-ia, sim, dir-se-ia que ele" quebrou a corrente.

Intrigada, levou o animalzinho para o seu quarto e o pôs sobre a mesa.

—   Meu Deus! — exclamou a criada, rindo. — Em que estado ele se acha! O pêlo está todo peganhento e vermelho. Deve ter caído no vinho.

Com efeito, após acariciar o macaquinho, Angélica percebeu que seus dedos estavam visguentos e tintos de rubro. Cheirou-os e, pron­tamente, sentiu-se empalidecer.

Não é vinho — disse ela. — É sangue!

Ele está ferido?

Vou ver.

Desembaraçou-o de seu casaco bordado e de seu calção, ambos igualmente úmidos de sangue. Entretanto, o animal não apresen­tava nenhum ferimento, embora tremesse convulsivamente.

—   Que há, Piccolo?... — disse Angélica a meia voz. — Que se passa, meu amiguinho? Explique-me!

O símio encarava-a com seus olhos vivos e dilatados. De súbito, saltou para trás, agarrou uma pequena-caixa de lacre e começou a caminhar muito gravemente, agitando diante de si a pequena caixa.

—   Oh! O maroto! — exclamou Javotte, soltando uma gargalhada. — Primeiro nos assusta e depais se põe a imitar Linot com a sua cesta de barquilhos. Não é extraordinário, senhora?

Mas o animal, após ter dado volta à mesa imitando o pequeno vendedor de barquilhos, parecia de novo inquieto. Ele girava, olhava em redor de si, recuava. Seu focinho franzia-se numa expressão ao mesmo tempo lastimosa e amedrontada. Erguia a cara para a direita, depois para a esquerda. Parecia que ele se dirigia, suplican­do, a alguma personagem invisível. Finalmente, pareceu debater-se, lutar. Largou violentamente a caixa que segurava, crispou as mãos sobre o ventre e tombou para trás com um grito agudo.

—   Mas que é isso? Que é isso? — balbuciou Javotte, sobressalta­da. — Ele está doente! Ele ficou louco.

Angélica, que tinha acompanhado com atenção os movimentos do símio, dirigiu-se apressadamente ao guarda-roupa, tirou seu man­to e pôs a máscara.

Creio que aconteceu uma desgraça a Linot — disse ela com voz sem timbre. — É preciso que eu vá até lá.

Irei com a senhora.

Se quiser, venha. Você segurará a lanterna. Antes, leve o mono para Bárbara, lá em cima, para que ela o limpe, o reaqueça e lhe dê leite.

O pressentimento do drama abateu-se sobre Angélica de manei­ra inelutável. Malgrado as palavras de conforto que Javotte lhe mur­murava, nem por um momento, durante o trajeto, ela duvidou de que o macaquinho tivesse assistido a uma cena terrível. Mas a realidade ultrapassava suas maiores apreensões. Mal ela chegou à entrada do Quai des Tanneurs, o impacto de uma bólide quase a derrubou. Era Flipot, extremamente apavorado.

Ela o agarrou pelos ombros e sacudiu-o, para ajudá-lo a recupe­rar a calma.

Eu ia buscá-la, Marquesa dos Anjos — tartamudeou o garo­to. — Eles ma... eles mataram Linot!

Eles? Quem?

Eles... Aqueles homens, os fregueses.

Por que motivo? Que foi que aconteceu?

O pobre aprendiz engoliu a saliva e disse precipitadamente, co­mo se recitasse uma lição decorada:

—   Linot estava na rua com sua cesta de folhados. Ele cantava: "Barquilhos! Barquilhos! Quem chama o barquilheiro?..." Ele cantava como todas as noites. Um dos clientes que estavam na casa, a senhora sabe, um dos senhores mascarados, com gola de renda, disse: "Eis uma bonita voz. Deu-me vontade de comer barquilhos. Chamem o vendedor". Linot veio. Então o senhor disse: "Por São Dionísio, eis um menino ainda mais sedutor que sua voz". Em seguida pôs Linot sobre os joelhos e começou a beijá-lo. Vie­ram outros e queriam beijá-lo também... Eles estavam bêbados co­mo tordos. Linot largou a cesta e começou a gritar e a dar-lhes pontapés. Um dos senhores puxou sua espada e enterrou-a no ventre dele. Outro também lhe enfiou a espa~da no ventre. Linot caiu e o sangue esguichava de sua barriga.

Mestre Bourjus não interveio?

Interveio, sim, mas eles o castraram.

O quê? Que é que você diz? De quem está falando?

De mestre Bourjus.

Você ficou louco!

Não, não sou eu, são eles que estão loucos. Quando mestre Bourjus ouviu Linot gritar, veio da cozinha e disse: "Senhores! Por favor! Senhores!" Mas eles saltaram-lhe em cima. Riam e sovavam-no, dizendo: "Grosso tonel! Grossa barrica!" Até eu co­mecei a divertir-me. Depois, um deles disse: "Estou-o reconhecendo: é o antigo dono do Galo Atrevido!..." Outro disse: "Você não tem ar bastante atreviâo para um galo, vou fazer de você um ca­pão". Pegou uma grande faca de carne, todos se precipitaram so­bre ele e...

O garoto terminou seu relato com um gesto enérgico, que não deixava a menor dúvida sobre a terrível mutilação de que fora ví­tima o pobre rôtisseur.

—   Ele berrava feito um asno! Agora parou de berrar. Talvez esteja morto. Davi também quis detê-los. Deram-lhe uma espadada na cabeça. Então, quando vimos isso, Davi e eu, e os outros aprendizes e as criadas e Susana, todos demos o fora!

A Rua de la Vallée-de-Misère tinha um aspecto inusitado. Sem­pre animada na época do carnaval, os numerosos fregueses que enchiam as rôtisseries continuavam a cantar e bater seus copos. Mas, para o fim da rua, havia uma aglomeração anormal de vultos bran­cos cobertos de altos gorros. Os rôtisseurs vizinhos e seus ajudan­tes, armados de espetos e de manivelas, agitavam-se diante da Taberna da Máscara Vermelha.

Não sabemos que fazer! — gritou um deles a Angélica. — Es­ses demónios bloquearam a porta com "bancos. Eles têm uma pistola...

É preciso ir chamar a ronda.

Davi correu até lá, mas...

O dono do Capão Depenado, que era vizinho da Máscara Verme­lha, disse baixando a voz:

—   Criados detiveram a ronda na Rue de la Triperie. Disseram-lhe que os fregueses que estavam na Máscara Vermelha eram nobres de alta linhagem, pessoas chegadas ao rei, e que a ronda se veria atrapalhada se se metesse nessa história. Davi, mesmo assim, foi até o Châtelet, mas os criados já tinham prevenido os guardas. No Châtelet, disseram-lhe que ele se arranjasse com os seus fregueses.

Da Taberna da Máscara Vermelha um alarido tremendo se ele­vava: risos enormes, cantos de pessoas avinhadas e gritos tão sel­vagens que os cabelos dos honestos rôtisseurs se arrepiavam sob seus gorros.

Mesas e bancos tinham sido amontoados diante das janelas. Na­da se podia distinguir do que se passava no interior, mas ouviam-se os ruídos de vidro e de louça quebrados e, de vez em quando, o estalo seco de uma pistola que devia tomar por alvo as belas gar­rafas de precioso cristal com que Angélica havia adornado as me­sas e o manto da chaminé.

Angélica avistou Davi. Ele estava da cor de seu avental, a fronte amarrada com um pano de cozinha manchado por uma estrela de sangue.

Ele se dirigiu a ela e completou, balbuciando, o relato da pavo­rosa saturnal. Os nobres se mostraram logo muito exigentes. Já tinham bebido em outras tabernas. Começaram por despejar uma sopeira cheia, quase fervente, sobre a cabeça de um dos aprendi­zes. Depois foi preciso fazer os maiores esforços do mundo para expulsá-los da cozinha, onde eles queriam agarrar Susana, presa no entanto pouco atraente. Afinal, houve o drama de Linot, cuja encantadora figura lhes inspirara horríveis desejos...

—   Venha comigo — disse Angélica, segurando o braço do adolescente. — E preciso ir ver. Vou passar pelo pátio.

Vinte mãos a seguraram.

Está louca?... Vai ser estripada! Eles são lobos!...

Talvez ainda haja tempo de salvar Linot e mestre Bourjus!...

Iremos quando eles começarem a cochilar.

E quando eles tiverem quebrado, pilhado e queimado tudo! — exclamou a jovem.

Ela se arrancou às mãos daqueles que queriam retê-la e, levando Davi, entrou no pátio. De lá, passou para a cozinha.

A porta da cozinha, que comunicava com a sala comum, tinha sido cuidadosamente aferrolhada por Davi, quando ele fugiu com os outros empregados. Angélica soltou um suspiro de alívio. Pelo menos, as importantes provisões que ali estavam armazenadas não tinham sido submetidas ao furor destrutivo dos miseráveis.

Ajudada pelo rapaz, ela encostou a mesa à parede e alçou-se até a imposta, que, a meia altura, permitia lançar uma vista d'olhos ao interior.

Viu a sala devastada, juncada de baixelas e de pratos, de toalhas sujas, de vidros quebrados. Os presuntos e as lebres tinham sido desprendidos das vigas. Os bêbados tropeçavam neles, afastavam-nos a grandes golpes de bota. As palavras obscenas de suas can­ções, suas pragas, suas blasfémias, ouviam-se agora distintamente.

A maior parte deles estava agrupado em volta de uma das me­sas, perto da lareira. Por suas atitudes e suas vozes cada vez mais confusas, adivinhava-se que eles não tardariam a desabar. A luz do fogo, a visão daquelas bocas abertas e vociferantes, sob másca­ras negras, tinha qualquer coisa de sinistro. As vestes luxuosas es­tavam manchadas de vinho e de molho e talvez também de sangue.

Angélica procurava distinguir os corpos de Linot e do rôtisseur. Mas as velas tinham sido derribadas e o fundo da sala estava no escuro.

Quem foi que atacou Linot em primeiro lugar? — pergun­tou ela em voz baixa.

Aquele homenzinho, no canto da mesa, aquele que tem uma onda de fitas rosa sobre o casaco azul-claro. Era ele que parecia dar o exemplo e arrastava os outros.

No mesmo instante, aquele que Davi apontava endireitou-se com dificuldade e, levantando seu copo com mão tremula, exclamou com voz de falsete:

—   Senhores, bebo à saúde de Astreu e de Asmodeu, príncipes da amizade!

—   Oh! Essa voz! — exclamou Angélica, lançando-se para trás. Ela a teria reconhecido entre mil. Era a voz que, em seus piores pesadelos, ainda a despertava por vezes: "A senhora vai morrer!" Então era ele, sempre ele. Tinha ele então sido escolhido pelos infernos para encarnar eternamente, perante Angélica, o demó­nio de um malfadado destino?

—   Foi ele quem deu em Linot a primeira espadada? — perguntou ela.

Talvez, não me lembro bem. Mas o alto, ali atrás, de rhingrave vermelha, também o golpeou.

Aquele era outro que não precisava tirar a máscara para que ela o reconhecesse.

O irmão do rei e o Cavaleiro de Lorena! Ela agora tinha certeza de poder dar nome aos demais rostos mascarados!

Subitamente um dos ébrios começou a lançar as cadeiras e os tamboretes ao fogo. Um deles pegou uma garrafa e, de longe, atirou-a através da sala. A garrafa explodiu no fogo. Era aguardente. Uma enorme chama atingiu logo os móveis. Uma labareda infernal engolfava-se rugindo na chaminé, e tições saltavam crepitando so­bre o piso.

Angélica desceu precipitadamente. — Eles vão incendiar a casa. É preciso detê-los!

Mas o aprendiz prendeu-a em seus braços nervosos.

—   A senhora não irá. Eles a matarão!

Lutaram um instante. Com as forças decuplicadas pela cólera e pelo medo ao fogo, Angélica logrou desprender-se e empurrou Davi.

Reajustou a máscara, pois não lhe convinha ser reconhecida.

Resolutamente, puxou os ferrolhos e abriu com estrépito a por­ta da cozinha.

A aparição daquela mulher envolta em seu manto negro e tão curiosamente mascarada de vermelho causou um instante de estu­por entre os pândegos.

Baixou o tom das canções e dos gritos.

Oh! A máscara vermelha!

Senhores — disse Angélica com voz virante —, perderam a razão? Não receiam a cólera do rei, quando pelo rumor público lhe chegarem ao conhecimento os seus crimes?...

No silêncio aparvoado que se seguiu, ela sentiu que tinha lança­do a única palavra — o rei! — capaz de penetrar nos cérebros nu­blados dos bêbados e de ali acender um raio de lucidez.

Aproveitando sua vantagem, avançou audaciosamente. Sua in­tenção era alcançar a lareira e retirar os móveis inflamados, a fim de reduzir o braseiro e de evitar, desse modo, o fogo de chaminé.

Foi então que ela percebeu sob a mesa o corpo horrivelmente mutilado do mestre Bourjus. Perto dele, o menino Linot, com o ventre aberto, o rosto branco como neve, calmo como o de um anjo, parecia dormir. O sangue das duas vítimas misturava-se às regueiras de vinho que corriam entre cacos de garrafas.

O horror daquele espetáculo paralisou-a por um segundo. Co­mo um domador que, preso de pânico, se distrai um instante de suas feras, ela perdeu o controle da matilha.

Foi o bastante para desencadear de novo a tempestade.

Uma mulher! Uma mulher!

Eis o que nos faltava!

Uma mão brutal abateu-se sobre a'nuca de Angélica. Ela rece­beu um golpe violento sobre a fronte. Tudo se tornou negro. Ela estava sufocada por uma náusea. Não sabia mais onde se encontrava.

Em algum lugar, uma voz de mulher soltou um grito agudo e contínuo...

Percebeu que era ela quem gritava.

Estava estendida sobre a mesa, e as máscaras negras inclinavam-se sobre ela com grandes risos soluçosos.

Seus pulsos e tornozelos estavam imobilizados por punhos de ferro. Suas saias foram levantadas brutalmente.

—   De quem é á vez? Quem deseja a pequena?

Ela gritava como se ^rita nos pesadelos, em um paroxismo de desespero e de terror.r

Um corpo abateu-se sobre o dela. Uma boca uniu-se à sua.

Depois, houve como que um brusco silêncio, tão profundo que Angélica pensou que houvesse perdido a consciência. No entan­to, não era nada disso. Eram os seus verdugos que acabavam de calar-se e imobilizar-se. Seus olhares espantados seguiam no chão um objeto que Angélica não via.

Aquele que, um segundo antes, tinha subido à mesa e se prepa­rava para violar a jovem tinha se apartado precipitadamente. Sen­tindo que seus braços e suas pernas agora estavam livres, Angélica ergueu-se e desceu vivamente suas longas saias. Ela não compreen­dia. Dir-se-ia que uma vara de mágico subitamente petrificara os furiosos.

Lentamente, ela se deixou escorregar até o solo. Então viu Sor-bonne, que tinha derribado o pequeno homem de casaco azul e lhe prendia a garganta entre os seus colrriilhos. O cão tinha entra­do pela porta da cozinha e seu ataque fora rápido como um re­lâmpago.

Um dos libertinos gaguejou:

Chame seu cão... Onde... onde esta a pistola?

Não se mexam — ordenou Angélica. — Se fizerem o menor movimento, darei ordem a esse animal para estrangular o irmão do rei!

As pernas lhe tremiam sob o seu peso como as de um cavalo aguado, mas sua voz era clara.

—   Senhores, não se mexam — repetiu ela —, do contrário, se­rão todos responsáveis por essa morte perante o rei.

Depois, muito calma, ela deu alguns passos. Olhou para Sorbonne. Ele segurava sua vítima como lhe havia ensinado Desgrez. A uma simples palavra, as mandíbulas de aço triturariam completa­mente aquela carne palpitante, fariam estalar os ossos. Da gargan­ta de Monsieur d'Orléans escapavam-se balbucios indistintos. Seu rosto se tornara violeta com a sufocação.

—   Warte — disse docemente Angélica.

Sorbonne abanou levemente a cauda, para mostrar que tinha com­preendido e que esperava ordens. Em volta deles, as personagens da orgia permaneciam imóveis, na atitude em que os surpreende­ra a investida do cão. Sua ebriedade não lhes permitia compreen­der o que se passava. Viam somente que Monsieur, o irmão do rei, estava a ponto de ser estrangulado, e aquilo bastava para aterrá-los.

Angélica, sem desviar deles o olhar, abriu uma das gavetas da mesa, apanhou uma faca e aproximou-se do homem de rhingrave vermelha, que se encontrava mais perto dela.

Vendo-a levantar a faca, ele fez um gesto de recuo.

—   Não se mexa! — disse ela em tom peremptório. — Não quero matá-lo. Quero somente saber com que se parece um assassino coberto de rendas.

E, com gesto rápido, cortou o cordão que prendia a máscara do Cavaleiro de Lorena. Depois de olhar bem aquele belo rosto con­sumido pela devassidão e que ela conhecia muito bem por tê-lo visto inclinar-se sobre si, no Louvre, numa noite que jamais es­queceria, ela foi para os outros.

Estupidificados, chegados ao último grau da embriaguez, eles não reagiam, e ela os reconheceu a todos: Brienne, o Marquês d'01o-ne, o belo De Guiché, seu irmão Louvignys e aquele que, quando ela o descobriu, esboçou uma gaifona zombeteira e murmurou:

—   Máscara negra contra máscara vermelha.

Era Péguilin de Lauzun. Ela reconheceu também Saint-Thierry, Frontenac. Um elegante nobre, estendido no solo, nas poças de vi­nho e de vómitos, ressonava. A boca de Angélica encheu-se de ódio e de amargura, quando identificou as feições do Marquês de Vardes.

Ah! Os belos jovens do rei! Ela admirava outrora suas pluma­gens cintilantes, mas a hospedeira da Máscara Vermelha não ti­nha direito senão à imagem de suas almas apodrecidas!

Três deles eram-lhe desconhecidos. O último, contudo, desper­tou nela uma recordação, mas tão vaga que não lhe foi possível precisá-la.

Era um alto rapaz com magnífica peruca de um louro dourado. Menos embriagado que os outros, ele se apoiava em um dos pila­res da sala e fingia limar as unhas. Quando Angélica se lhe aproxi­mou, ele não esperou que ela cortasse o cordão de sua máscara e a levantou ele mesmo, com gesto gracioso e displicente. Seus olhos, de um azul muito pálido, tinham uma expressão gelada e desdenhosa. Ela perturbou-se. A tensão nervosa que a sustentava desapareceu. Uma grande fadiga a invadiu.-

O suor corria-lhe sobre as têmporas, pois o calor da peça tinha se tornado insuportável.

Ela voltou para o cão e tomou-o pela coleira para fazê-lo largar a presa. Esperava que Desgrez surgisse, mas ficara só e abandona­da entre os perigosos espectros. A única presença que lhe parecia real era a de Sorbonne!

—   Levante-se, monséigneur — disse ela com voz cansada. — E vocês todos, vão-se agora. Já fizeram bastante mal.

Vacilando, segurando sua máscara com uma das mãos e arras­tando com a outra os corpos desabados do Marquês de Vardes e do irmão do rei, o^ cortesãos se retiraram. Na rua, tiveram de defender-se a espada contra os ajudantes de cozinha que, armados de seus espetos, os perseguiam com gritos de cólera e de revolta.

Sorbonne farejava o sangue e rosnava, com as negras beiçorras arreganhadas. Angélica puxou para si o corpo leve do pequeno vendedor de barquilhos e acariciou-lhe a fronte pura e gelada.

—   Linot! Linot! Meu doce menino... minha pobre sementinha de miséria...

Um clamor vindo de fora arrancou-a ao seu desespero.

—   Incêndio! Incêndio!

O tubo da chaminé pegara fo^o f este comunicara-se ao alto da casa. Detritos começaram a cair ra lareira e uma fumaça espessa invadiu a sala.

Carregando Linot, Angélica precpitou-se para fora da peça. A rua estava iluminada como se fosse dia claro. Clientes e rôtisseurs mostravam horrorizados o penacho de chamas que coroava o te­lhado da velha casa. Fagulhas choviam sobre os tetos vizinhos.

Correram ao Sena, bem próximo, para organizar uma cadeia de baldes e tinas. Mas o incêndio havia hanho as alturas. Era preciso transportar a água pelos andares dos dois prédios vizinhos, pois a escada da Máscara Vermelha desmoronara.

Angélica, seguida de Davi, tentou regressar à sala para retirar o corpo de mestre Bourjus. Ambos tiveram de recuar, sufocados pela fumaça. Então, pelo pátio, eles entraram na cozinha e leva­ram misturadamente tudo o que encontraram. - Entrementes, chegaram os capuchinhos. A turba os aclamou. O povo amava aqueles monges que tinham em sua regra a obriga­ção de socorrer as vítimas de incêndio e acabaram tornando-se o único corpo de bombeiros da cidade.

Carregavam consigo escadas de mão, ganchos de ferro, e gran­des seringas de chumbo destinadas a lançar ao longe possantes ja-tos d'água.

Assim que chegaram ao lugar do sinistro, eles arregaçaram as mangas de seus buréis e, sem se importarem com as faíscas que lhes caíam sobre os crânios, mergulharam nas casas adjacentes. Apa­receram nos telhados e começaram a demolir tudo em volta, a gran­des golpes de gancho. Graças a essa vigorosa intervenção, a casa em. chamas foi isolada, e, como não havia vento, o incêndio não se comunicou ao resto do quarteirão. Havia-se receado que ele se transformasse num dos grandes flagelos de que Paris, com seu amon-toamento de velhas casas de madeira, era vítima duas ou três ve­zes por século.

Urna vasta brecha repleta de escombros e de cinzas abria-se no lugar onde, pouco uites, se encontrava a alegre Taberna da Más­cara Vermelha. Mas o fogo estava extinto.

Com as faces enegrecidas, Angélica contemplava a ruína de suas into dela estava Sorbonne.

"Onde está Desgrez? Oh! Gostaria de ver Desgrez", pensava ela. "Ele me dirá o que devo fazer."

Pegou o cão pela coleira.

—   Leve-me ao seu dono.

Não teve de caminhar muito. A poucos metros, na sombra de um pórtico, reconheceu o chapéu e o grande capote do policial. Ele ralava tranquilamente um pouco de tabaco.

Boa noite — disse ele com voz calma.

Você estava aí, a dois passos! — exclamou Angélica, sufoca­da. — E não veio?

Por que deveria ir?

Então não me ouviu gritar?

Eu não sabia que era você.

Pouco importa! Era uma mulher que gritava.

Não posso precipitar-me em socorro de todas as mulheres que gritam — disse Desgrez com bom humor. — No entanto, creia-me, se eu soubesse que se tratava de-você, teria ido.

Ela resmungou, magoada:

—   Duvido!

Desgrez suspirou.     

—   Já não arrisquei uma vez minha vida e minha carreira por você? Bem poderia arriscá-las ainda uma segunda vez. Você é em minha vida um deplorável hábito, e muito receio que, apesar de minha prudência congénita, venha ainda a perder a pele por sua causa.

Eles me seguraram em cima da mesa... Queriam violentar-me. Desgrez desceu sobre ela seu olhar sarcástico.

Somente isso? Poderiam fazer pior. Angélica passou a mão sobre a fronte.

E certo! Tive uma espécie de alívio quando vi que era so­mente isso que eles queriam. Depois, Sorbonne chegou... a tempo!

Sempre tive grande confiança nas iniciativas desse cão.

Foi você quem o enviou?

Evidentemente.

A jovem soltou um profundo suspiro e, com um movimento espontâneo de fragilidade e escusa, encostou o rosto ao ombro ru-goso do rapaz.

Obrigada.

Você compreende — tornou Desgrez com seu timbre tran­quilo, que ao mesmo tempo a exasperava e acalmava —, só apa­rentemente pertenço à polícia do Estado. Eu sou, na realidade, policial do rei. Não me cabe perturbar os encantadores entreteni­mentos de nossos nobres senhores. Você ainda não viveu bastan­te, minha cara, para perceber a que mundo pertence? Quem não acompanharia a moda? A embriaguez é uma brincadeira, a devas­sidão levada até a lubricidade, um doce capricho, a orgia levada até o crime, um agradável passatempo. De dia são tacões verme­lhos e reverências cortesãs; de noite, amor,, tavolagem, tabernas. Não é uma existência bem realizada? Você se engana, minha po­bre amiga, se imagina que essas pessoas são temíveis. Na verdade, suas pequenas diversões não são muito perigosas! O único inimi­go, o pior inimigo do reino, é aquele que, com uma palavra, pode abalar-lhe o poder: é o gazeteiro, o jornalista, o panfletário. Eu procuro os panfletários.

—   Pois bem, pode pôr-se à caça — disse Angélica, endireitando-se, com os dentes cerrados. — Prometo-lhe muito trabalho.

Um ideia súbita assaltou-lhe a mente.

Ela se afastou e começou a distanciar-se. Depois voltou-se.

—   Eles eram treze. Há três cujos nomes eu não sei. É preciso que você os descubra.

O policial tirou o chapéu e inclinou-se.

—   Às suas ordens, senhora — disse ele, retomando a voz e o sorriso do advogado Desgrez.

 

O escândalo do pequeno vendedor de barquilhos

Como por ocasião de seu primeiro encontro, ela descobriu Cláu­dio Le Petit dormindo em um barco de feno, para as bandas do Arsenal. Ela o despertou e contou-lhe os acontecimentos da noi­te. Seus esforços estavam todos destruídos. Os libertinos de ren­das haviam devastado de novo a sua vida, assim como um exército de saqueadores devasta a região que atravessa.

—   E preciso que você me vingue — repetia ela com os olhos brilhantes de febre. — Somente você me pode vingar. Você so­mente, porque é o maior inimigo deles. Desgrez o disse.

O poeta bocejava com grandes estalos de mandíbulas e esfrega­va os cílios louros, ainda com sono.

—   Estranha mulher! — disse ele, enfim. — Subitamente, trata-me de igual para igual. Por quê?

Ele tomou-a pela cintura para estreitá-la. Ela se desprendeu com impaciência.

Escute o que eu lhe digo!

Dentro de cinco minutos você vai chamar-me de maltrapi­lho. Você não é mais a pequena mendiga, mas uma grande dama que dá ordens. Está bem: estou às suas ordens, marquesa. Além disso, compreendi tudo. Por qual quer que eu comece? Por Brien­ne? Eu me recordo de que ele cortejou a Srta. de La Vallière e que sonhava em fazê-la pintar na Madalena. Desde então o rei não o suporta. Assim, vamos meter Brienne no molho para o almoço de Sua Majestade.

Ele voltou seu belo rosto branco para leste, onde se erguia o sol.

—   Sim, para o almoço, é possível. Ás prensas de mestre Gilber

to são sempre rápidas quando se trata de multiplicar o eco de meus rangeres de dentes contra o poder. Já lhe disse que o filho do mes­tre Gilberto foi há tempos condenado às galés por não sei que pe­cadilho. Eis uma excelente coisa para nós, não é?

E, tirando do sobretudo uma velha pena de ganso, o Poeta Po­bre se pôs a escrever.

A manhã começava. Todos os sinos das igrejas e dos conventos tocavam alegremente o ângelus.

Findava a. manhã quando o rei, deixando a capela em que acaba­va de ouvir missa, atravessou a antecâmara onde o esperavam os peticionários. Ele notou que o lajedo estava juncado de papeizi-nhos brancos que um criado confuso se apressava em recolher, como se só então os houvesse percebido. Mas, um pouco mais lon­ge, descendo a escada que o levava a seus aposentos, Luís XIV en­controu a mesma desordem e mostrou-se descontente.

—   Que significa isto? Chovem aqui pergaminhos como folhas no outono sobre o Cours-la-Reine? Dêem-me isso, peço-lhes.

O Duque de Créqui, muito vermelho, interpôs-se:

Majestade, esses mexericos não oferecem nenhum interesse...

Ah! vejo que são — disse o rei, que estendia a mão impacien­te — mais algumas intrigas desse maldito Poeta Pobre do Pont Neuf, que escorrega feito uma enguia entre as mãos dos archeiros e vem até o meu palácio depositar suas imundícies sob os meus pés. Dêem-me, eu lhes peço... É realmente dele! Quando virem o senhor tenente-civil e o senhor preboste de Paris, podem apresentar-lhes minhas congratulações, senhores...

Amesendando-se para o almoço, diante de três perdigotos com uvas, uma panelada de peixes, um assado com pepinos e um prato de bolinhos de língua de baleia, Luís XIV colocou perto de si o papel sujo, cuja tinta de impressão, ainda fresca, manchava os de­dos. O rei era grande comedor e, havia muito tempo, tinha apren­dido a dominar suas emoções. Seu apetite não foi perturbado pelo que ele leu. Mas, quando a leitura terminou, o silêncio que reina­va naquela peça, onde habitualmente os nobres tagarelavam agra­davelmente com o soberano, era tão pesado como o de uma cripta.

O panfleto estava escrito naquela linguagem crua e grosseira, cujas palavras, entretanto, feriam como dardos e que, havia mais de dez anos, tinha caracterizado, aos olhos de toda Paris, o espíri­to frondista da cidade.

Ali se contavam os feitos heróicos do Sr. de Brienne, primeiro gentil-homem do rei, aquele que, não contente de ter querido ar­rebatar "a ninfa de cabelos enluarados" a um amo a quem tudo devia, não contente de causar, por seu desentendimento com a es­posa, um escândalo permanente, havia estado, na última noite, em uma rôtisserie da Rue de la Vallée-de-Misère. Ali, aquele galante jovem e seus companheiros, depois de violentarem um pequeno vendedor de barquilhos, tinham-no traspassado a golpes de espa­da. Haviam castrado o dono, que disso morrera, fendido a cabeça de seu sobrinho, violado a filha e terminado suas distrações atean­do fogo à loja, da qual só restavam cinzas.'

"Querem capacitar-nos de que esses crimes e confusões

São uma triste façanha de alguns desconhecidos.

Ora, eles eram treze, todos nobres personagens.

Um fez isto. Outro fez aquilo.

Cada dia revelará um nome, e o último

Será o de quem matou um menino de tenra idade.

Um nome retumbante, que vocês todos conhecem.

Quem é o matador do pequeno vendedor de barquilhos?"

—   Por São Dionísio! — di^se o rei. — Se a coisa for verdadeira, Brienne merece a forca. Algum de vocês ouviu falar desses crimes, senhores?

Os cortesãos balbuciaram, alegando que estavam muito pouco a par dos acontecimentos da noite anterior.

Então, o rei, percebendo um jovem pajem que ajudava os oficiais-de-boca, perguntou-lhe à queima-roupa:

—   E você, meu menino, que deve ser grande bisbilhoteiro e curioso, como todos na sua idade, repita-me um pouco do que se disse, esta manhã, no Pont Neuf.

O adolescente enrubesceu, mas era de boa casa e respondeu sem grande embaraço:

Sire, diz-se que tudo o que conta o Poeta Pobre é exato e que a coisa se passou esta noite na Taberna da Máscara Vermelha. Eu mesmo vinha de uma festa com alguns-companheiros, quando avistamos as labaredas, e corremos para ver de perto o incêndio. Mas os capuchinhos já tinham apagado o fogo. O quarteirão está de pé.

Dizem que o sinistro foi causado por gentis-homens?

É verdade, mas não se sabem os seus nomes, porque eles es­tavam mascarados.

Que sabe você mais?

Os olhos do rei mergulharam nos do pajem. Este temia pronun­ciar uma palavra que pudesse prejudicar a sua carreira. Mas, obe­decendo à injunção daquele olhar imperioso, baixou a cabeça e murmurou:

Sire, eu vi o corpo do pequeno vendedor de barquilhos. Ele estava morto e tinha o ventre aberto. Uma mulher o havia tirado do fogo e o estreitava nos braços. Vi também o sobrinho do dono da taberna com a testa enfaixada.

E o dono da taberna?

Não foi possível retirarem seu corpo do incêndio. As pes­soas diziam...

O pajem esboçou um sorriso, com a louvável intenção de ali­viar a atmosfera.

—   As pessoas diziam que foi uma bela morte para um rôtisseur.

Mas o rosto do rei era de gelo, e os cortesãos levaram rapida­mente a mão aos lábios, para dissimular uma expressão de alegria incoveniente.

—   Procurem-me o Sr. de Brienne — disse o rei. — E o senhor, duque — acrescentou ele dirigindo-se ao Duque de Créqui —, faça comunicar ao Sr. d'Aubrays as seguintes instruções: de um lado, que sejam colhidos todos os informes e detalhes do incidente dessa noite, e que o relatório me seja imediatamente apresentado; de outro lado, que todo portador ou vendedor desses papéis seja imediatamente preso e conduzido ao Châtelet. Finalmente, todo transeunte que for visto recolhendo ou lendo um desses papéis será taxado com multa severa e ameaçado de perseguição e prisão. Quero, igualmente, que as mais enérgicas medidas sejam tomadas imediatamente para a descoberta do mestre impressor e de Sieur Cláudio Le Petit.

Encontraram o Conde de Brienne em casa, posto no leito pelos criados e cozinhando pesadamente a borracheira.

—   Meu caro amigo — disse-lhe o Marquês de Gesvres, capitão dos guardas —, estou encarregado de um penoso dever junto a você. Sem que a coisa esteja caracterizada, eu creio, na realidade, que venho prendê-lo.

E pôs-lhe sob o nariz o poema com que se deliciara durante o trajeto, sem receio de sofrer aplicação de multa.

Sou um homem perdido — constatou Brienne, com voz pas­tosa. — As coisas andam depressa neste reino! Ainda não conse­gui... evacuar todo o vinho que bebi naquela maldita taberna, e já me fazem pagar o preço.

Senhor ministro — disse-lhe Luís XIV —, por muitas razões, é-me desagradável uma conversação com o senhor. Sejamos bre­ves. Confessa haver participado esta'noite dos ignóbeis atentados denunciados neste papel? Sim ou não?

Sire, eu estava lá, mas não cometi todas essas torpezas. O pró­prio Poeta Pobre reconhece que não fui eu quem assassinou o pe­queno vendedor de barquilhos.

E quem foi, então?

O Conde de Brienne não respondeu.

—   Eu o aprovo por não atirar inteiramente sobre outros uma responsabilidade que lhe pertence amplamente. Isso se vê em seu rosto. Tanto pior para o.senhor, conde. Teve o azar de se deixar reconhecer. Pagará pelosldemais. O povo murmura... com razão. É preciso, pois, que se faça justiça, e prontamente. Quero que hoje à noite se possa dizer no Pont Neuf que o Sr. de Brienne está na Bastilha... e que será duramente castigado. Quanto a mim, estou encantado com esta oportunidade, que me desembaraça de um rosto que eu não suportava mais senão com dificuldade. O senhor sabe por quê.

O pobre Brienne suspirou, recordando os tímidos beijos que ten­tara roubar à terna La Vallière, quando ignorava ainda a inclina­ção de seu amo por aquela bela criatura.

Ia pagar, ao mesmo tempo, por um namorico inocente e uma orgia vergonhosa. Era mais um gentil-homem em Paris a maldi­zer a pena do poeta. No caminho da Bastilha, a carruagem que conduzia Brienne foi detida por um grupo de vendedoras do mer­cado central. Elas brandiam as folhas do panfleto e sua faca de trin­char e reclamavam que lhes entregassem o prisioneiro para fazê-lo sofrer... o que ele fizera sofrer ao pobre cozinheiro Bourjus.

Brienne não respirou enquanto as pesadas portas da prisão não se fecharam sobre ele e sobre sua virilidade-posta a salvo.

Mas na manhã seguinte nova enxurrada de folhas brancas inva­diu Paris. Cúmulo da insolência: o rei encontrou o epigrama de­baixo do prato de um lanche, que ele se preparava para comer antes de dirigir-se ao Bois de Boulogne para caçar o gamo.

A caça foi cancelada e o Sr. d'Olone, monteiro-mor da França, tomou direção oposta à que contava seguir. Isto é, em lugar de descer o Cours-la-Reine, ele subiu o Cours Saint-Antoine, que o levou à Bastilha.

De fato, o novo artigo apontava-o expressamente como aquele que segurava mestre Bourjus enquanto o assassinavam.

"Cada dia revelará um nome, e o último

Será o de quem matou um menino de tenra idade.

Um nome retumbante, que vocês todos conhecem.

Quem é o matador do pequeno vendedor de barquilhos?"

Em seguida, foi a vez de Lauzun. Gritaram seu nome nas ruas quando ele se dirigia, de carruagem, ao petit lever do rei. Imediata­mente, Peguilin fez voltar os seus cavalos e tomou a direção da Bastilha.

Prepare meu apartamento — disse ele ao governador.

Mas, senhor duque, não tenho nenhuma ordem a seu res­peito.

Vai recebê-la, não tenha receio.

Mas onde está sua ordem de prisão?

Ei-la — disse Peguilin, estendendo ao Sr. de Vanois a folha impressa que acabava de comprar por dez soldos a um garoto pio-Ihento.

Frontenac preferiu fugir sem esperar. Vardes desaconselhou-o vivamente de proceder assim.

—   Sua fuga é uma confissão. Ela vai, certamente, denunciá-lo. Enquanto, continuando a simular inocência, você talvez consiga passar por essa cascata de denúncias. Olhe para mim. Tenho o ar perturbado? Eu brinco, eu rio. Ninguém suspeita de mim, e o pró­prio rei me confia quanto o atormenta este assunto.

.   — Cessará de rir quando chegar a sua vez.

Tenho a impressão de que ela não virá: "Eles eram treze", diz a canção. Saíram apenas três nomes, e já se afirma que vende­dores detidos revelaram, sob tortura, o nome do mestre impres­sor. Dentro de alguns dias, a chuva das folhas cessará e tudo voltará ao normal.

Não compartilho o seu otimismo — disse o Marquês de Fron­tenac, levantando friorentamente a gola de seu capote de viagem. — Quanto a mim, prefiro o exílio à prisão. Adeus.

Ele tinha alcançado a fronteira da Alemanha, quando seu nome apareceu e passou quase despercebido. É que na véspera Vardes fora sacrificado à vindita pública, e em termos tais que o rei se perturbou. Efetivamente, o Poeta Pobre acusava aquele "celera­do mundano" de ser o autor da carta espanhola que, dois anos antes, fora introduzida no apartamento da rainha, com o único objetivo de informá-la caridosamente das infidelidades de seu es­poso com a Srta. de La Vallière;- A acusação reabriu uma ferida viva no coração do soberano, pois ele nunca pudera pôr a mão sobre os culpados, e, mais de uma vez, falara disso a Vardes, pedindo-lhe conselho sobre o assunto. Enquanto ele interrogava o capitão dos guardas suíços, fazia vir a Sra. de Soissons, sua amante e cúmplice; enquanto sua cunhada Henriqueta da Inglaterra, igual­mente implicada na história da carta espanhola, se lançava a seus pés, e De Guiché e o Petit Momieur discutiam acremente, na inti­midade, com o Cavaleiro de Lorena, a lista dos criminosos da Ta­berna da Máscara Vermelha continuava, imperturbável, a oferecer, cada dia, uma nova vítima à multidão. Louvignys e Saint-Thierry, antecipadamente resignados e havendo tomado suas disposições, certificaram-se, uma bela manhã, de que Paris conhecia agora o nome exato de suas amantes e suas particularidades amorosas. Es­ses detalhes condimentavam o habitual refrão:

"Mas quem, então, matou um menino de tenra idade?

Quem é o matador do pequeno vendedor de barquilhos?..."

Beneficiando-se da perturbação em que as revelações feitas so­bre Vardes lançaram o rei, Louvignys e Saint-Thierry foram so­mente convidados a abandonar seus cargos e se recolher às suas terras.

Um vento de excitação soprava sobre Paris.

—   De quem é a vez? De quem é a vez? — berravam cada manhã os vendedores de canções. Arrancavam-lhes das mãos as folhas. Da rua para as janelas, gritava-se "o nome" do dia.

As pessoas da alta-roda adquiriram o costume de se abeirarem cochichando misteriosamente:

—   Mas afinal quem foi que matou o pequeno vendedor de bar­quilhos?...

E estouravam de riso.

Depois, um boato começou a circular, e os risos se extinguiram.

No Louvre, um clima de pânico e de profundo embaraço sucedeu-se à diversão daqueles que, com a consciência tranquila, seguiam ale­gremente o desenrolar do jeu de massacre. Viu-se várias vezes a pró­pria rainha-mãe dirigir-se ao palácio real, para ali conversar com seu segundo filho. Nos arredores do palácio que o Petit Monsieur habitava, grupos de transeuntes hostis, calados, estacionavam. Nin­guém falava ainda, ninguém afirmava, mas circulava o rumor de que o irmão do rei havia participado da orgia dja Máscara Ver­melha e que era ele quem havia assassinado o pequeno vendedor de barquilhos.

Foi por Desgrez que Angélica conheceu as primeiras reações da corte.

Logo na manhã seguinte ao atentado, enquanto Brienne, con­duzido à Bastilha, tinha bastante dificuldade em ali chegar, o poli­cial bateu à porta da pequena casa da Rue des Francs-Bourgeois, onde Angélica se refugiara.

Ela escutou, com ar sério, o relato que ele lhe fez das palavras e das decisões do rei.

—   Ele pensa que com Brienne o caso estará encerrado — murmurou ela, com os dentes cerrados. — Mas cuidado! Isto apenas começou. Inicialmente, serão os menos culpados. E a coisa subirá, subirá, até o dia em que o escândalo estalará, em que o sangue de Linot salpicará os degraus do trono.

Ela torceu com paixão suas mãos lívidas e geladas.

Acabo de conduzi-lo ao Cimetière des Saints-Innocents. To­das as vendedoras do mercado deixaram seus negócios e acompa­nharam o pobre serzinho, que não recebera da existência senão sua beleza e delicadeza. E foi preciso que príncipes viciosos vies­sem tirar-lhe sua única riqueza: a vida. Mas, para seu enterro, ele teve o mais belo cortejo.

As damas do mercado estão neste momento escoltando o Sr. de Brienne.

Que elas o enforquem, que lancem fogo à sua carruagem, que incendeiem o palácio real! Que elas ponham fogo em todos os cas­telos dos arredores: Saint-Germain, Versalhes...

Incendiária! Onde você irá dançar quando voltar a ser uma grande dama?

Ela o olhou fixamente e sacudiu a cabeça.

—   Jamais, nunca mais; eu não tornarei a ser uma grande dama.

Experimentei tudo, e tudo perdi de novo. São eles os mais fortes. Você tem os nomes que lhe pedi?

Ei-los — disse Desgrez, tirando de seu capote um rolo de per­gaminho. — Resultado de uma pesquisa estritamente pessoal e que eu sou o único a conhecer: entraram na Taberna da Máscara Ver­melha, nessa noite de outubro de 16M: o Sr. d'Orléans, o Cava­leiro de Lorena, o Sr. Duque de Lauzun...

Oh! Eu lhe peço, nada de títulos. — Angélica suspirou.

Isso é mais forte do que eu — disse Desgrez rindo. — Você sabe que sou um funcionário muito respeitoso do regime. Diga­mos então: os Srs. de Brienne, de Vardes, du Plessís-Bellière, de Louvignys, de Saint-Thierry, de Frontenac, de Cavois, de Guiché, de La Vallière, d'01one, de Tormes.

De La Vallière? O irmão da favorita?

Ele mesmo.

Otimo — murmurou ela, com os olhos brilhando do prazer da vingança. — Mas.., isso faz catorze. Lá, eu contei treze.

No princípio, eles eram catorze, pois o Sr. Marquês de Tor­mes estava com eles. Esse homem de idade gosta de tomar parte nos excessos da juventude. No entanto, quando ele percebeu as intenções de Monsieur sobre o rapazinho, retirou-se, dizendo: "Boa noite, senhores, não quero acompanhá-los nessas veredas tortuo­sas. Vou dormir sossegadamente com a Marquesa de Raquenau". Ninguém ignora que essa gorda dama é sua amante.

—   Excelente história para fazê-lo pagar sua covardia. Desgrez observou por um instante o rosto crispado de Angélica e teve um leve sorriso.

A maldade assenta-lhe bem. Quando a conheci, você era so­bretudo o género patético, daquele que atrai a matilha.

E você, quando eu o conheci, era o género afável, alegre, fran­co. Agora, há momentos em que quase chego a odiá-lo.

Dardejou-lhe um olhar e disse-lhe por entre dentes:

—   Tira do Diabo!

O policial pôs-se a rir com ar divertido.

—   Senhora, dir-se-ia, escutando-lhe, que frequentou a classe dos malandros.

Angélica ergueu os ombros, dirigiu-se para a chaminé e tomou uma acha com a tenaz, procurando dominar-se.

—   Você tem medo, não é verdade? — tornou Desgrez com sua voz arrastada de parisiense dos faubourgs. — Tem medo de que prendam o seu Poeta Pobre? Desta vez, prefiro avisar-lhe: ele será enforcado.

A jovem evitou responder, embora tivesse vontade de gritar: "Ele jamais será enforcado! Ninguém prenderá o Poeta do Pont Neuf. Ele alçará vôo como um pássaro e irá empoleirar-se nas torres de Notre-Dame".

Achava-se num estado de exaltação que lhe rompia os nervos. Atiçou o fogo, conservando o rosto inclinado sobre as chamas. Tinha na testa uma pequena queimadura causada, na noite ante­rior, por uma brasa. Por que não se retirava Desgrez? No entanto ela gostava que ele estivesse ali. Hábito antigo, sem dúvida.

Que nome você disse?! — exclamou de repente. — Du Plessis-Bellière? O marquês?

Agora quer títulos? Pois bem! Trata-se, com efeito, do Mar­quês du Plessis-Bellière, marechal-de-campo do rei... O vencedor de Norgen, como você sabe.

Filipe! — murmurou Angélica.

Como não o reconhecera quando ele tirou a máscara e pousou sobre ela aqueles mesmos olhos de um azul frio que ele pousava outrora, tão desdenhosamente, sobre sua prima de vestido cinza? Filipe du Plessis-Bellière! O Castelo do Plessis apareceu-lhe como um branco nenúfar em seu lago...

Como é estranho, Desgrez! Esse rapaz é um dos meus paren­tes, um primo meu que morava a algumas léguas de nosso castelo. Brincamos juntos.

E, agora que o priminho vem brincar com você nas taber­nas, você irá poupá-lo?

Talvez. Afinal de contas, eles eram treze. Com o Marquês de Tormes, o total será esse.

Não está sendo imprudente, minha cara, em revelar todos os seus segredos a um tira do Diabo?

O que eu lhe digo não o fará descobrir o impressor do Poeta Pobre, nem como os panfletos penetram no Louvre. Além disso, você não me trairá!

Não, minha senhora, eu não a trairei, mas também não a en­ganarei. Desta vez o Poeta Pobre será enforcado!

É o que veremos!

—   É de fato o que veremos — repetiu ele. — Até a vista. Depois que ele saiu, ela teve dificuldade em acalmar o longo es­tremecimento que dela se apossara. O vento de outono sibilava na Rue des Francs-Bourgeois. A tempestade açoitava o coração de Angélica. Jamais ela conhecera, no fundo de si mesma, semelhan­te tormenta. A ansiedade, o medo e a dor eram-lhe familiares. Mas desta vez ela atingia um desespero agudo e sem lágrimas, para o qual não encontrava consolação.   .

Audiger tinha acorrido, com seu honesto rosto perturbado. Tomara-a nos braços, mas ela o repelira.

Minha querida, é um verdadeiro drama. Mas você não deve deixar-se abater. Abandone essa expressão trágica. Você me as­susta!^

É uma catástrofe, uma terrível catástrofe! Agora que a Ta­berna da Máscara Vermelha desapareceu, como conseguirei dinhei­ro? As corporações não têm obrigação de me defender; ao contrário. Meu contrato com mestre Bourjus não tem mais valor. Minhas economias vão esgotar-se rapidamente. Despendi grandes somas, ultimamente, na reforma da sala e nas reservas de vinhos, de aguar­dente e de licores. Em rigor, Davi poderá fazer-se reembolsar pe­lo Departamento deis Incêndios. Mas sei dos obstáculos que se levantarão. E, de qualquer maneira, tendo o pobre rapaz perdido toda a sua herança, não poderia eu pedir-lhe o pouco dinheiro que ele obtivesse por esse meio. Tudo o que tão penosamente edifi­quei desmoronou-se... Que será de mim?

Audiger encostou a face nos doces cabelos da jovem.

—   Não tenha receio, meu amor. Nada lhe faltará, nem a seus filhos. Eu não sou rico, mas possuo dinheiro suficiente para ajudá-la. E, quando o meu negócio estiver funcionando, trabalharemos juntos, como estava combinado.

Ela desprendeu-se dos seus braços.

Mas isso não é o que eu queria! — exclamou. — Não preten­do trabalhar com você como criada...

Não será como criada, Angélica.

Criada ou esposa, tudo dá no mesmo. Eu queria entrar com a minha parte nesse negócio. Estar em igualdade...

Nisso é que está o busílis, Angélica! Não estou longe de pen­sar que Deus quis puni-la por seu orgulho. Por que você fala sem­pre em igualdade da mulher? É quase uma heresia. Se você se mantiver modestamente no lugar que Deus reservou para as pes­soas do seu sexo, será mais feliz. A mulher foi feita para viver no lar, sob a proteção de seu esposo, que ela cerca de seus cuidados, bem como aos filhos nascidos de sua união.

Que quadro encantador! — zombou Angélica. — Pois saiba que essa existência resguardada nunca me tentou. Foi por gosto pessoal que eu me lancei no tumulto com meus dois filhos debai­xo do braço. Vá embora, Audiger! Você me parece tão estúpido, de repente, que me dá vontade de vomitar.

Angélica!

Vá, eu lhe peço.

Ela não podia mais suportá-lo. Assim como não podia mais su­portar a visão de Bárbara chorando, de Davi estupidificado, de Ja-votte assustada, e até a presença dos filhos, que, com o instin­to dos pequenos seres que sentem seu universo em perigo, re­dobravam os gritos e os caprichos. Ela estava cansada de to­dos. Que tinham eles então de agarrar-se a ela? Ela perdera o leme, e a tempestade a arrastava em seu turbilhão, onde voavam como grandes pássaros as folhas brancas dos panfletos venenosos do Poeta Pobre.

Compreendendo que sua vez chegaria, o Marquês de La Valliè-re decidiu ir confessar-se a sua irmã, no Palácio de Biron, onde Luís XIV tinha instalado sua favorita. Luísa de La Vallière, ame­drontada, aconselhou, entretanto, seu jovem irmão a confiar leal­mente no rei.

Foi o que ele fez.

—   Se eu o castigasse muito severamente, faria chorar uns belos olhos que me são caros, o que me contristaria — disse-lhe Sua Majestade. — Deixe Paris, senhor, e junte-se ao seu regimento do Roussillon. Nós abafaremos o escândalo.

Mas a coisa não era tão simples como supunha o rei. O escânda­lo não queria deixar-se abafar. Apesar das detenções, das prisões, das torturas, cada dia, com a regularidade de um fenómeno da na­tureza, novo nome surgia. O do Marquês de La Vallière não tar­daria muito, nem o do Cavaleiro de Lorena, nem o do irmão do rei! Todas as tipografias eram visitadas, vigiadas. A maior parte dos vendedores de impressos do Pont Neuf permaneciam nos cár­ceres do Châtelet.

Mas ainda se achavam panfletos até no quarto da rainha!

As entradas do Louvre estavam guardadas como as de uma for­taleza. Todas as pessoas que ali penetravam às primeiras horas do dia — aguadeiro, leiteira, criados etc. — eram revistadas até a pele. As janelas e os corredores tinham sentinelas. Era impossível um homem sair do Louvre ou ali penetrar sem ser notado.

"Um homem não pode, mas um meio homem, talvez", pensa­va o policial Desgrez, suspeitando muito que o anão da rainha, Barcarola, fosse cúmplice de Angélica.

...Como eram seus cúmplices os mendigos das esquinas, que es­condiam maços de panfletos sob seus.andrajos e os semeavam nos degraus das igrejas e dos conventos; os espadachins, que, de noite, após roubar um burguês retardatário, davam-lhe "em troca" al­gumas folhas para ler "como consolo"; as floristas e as laranjeiras do Pont Neuf; o Grande Mateus, que esparzia, a título de receitas grátis oferecidas à amável clientela, as novas produções do Poeta Pobre.

...Como era seu cúmplice, enfim, o novo Grande Coésre, Tra­seiro de Pau, no feudo para onde Angélica, em uma noite sem lua, fizera transportar três malas repletas de panfletos, onde eram re­velados os nomes dos cinco últimos culpados. Uma batida poli­cial nos fétidos antros do Faubourg Saint-Denis era pouco provável. A hora parecia imprópria para assaltar um quarteirão cuja rendi­ção exigiria verdadeira batalha.

Malgrado sua vigilância, os archeiros e beleguins não podiam estar em toda parte. A noite continuava ainda todo-poderosa, e a Marquesa dos Anjos, ajudada pelos seus "homens", pôde sem incidente transferir as malas do Quartier de 1'Université para o palácio de Traseiro de Pau.

Duas horas mais tarde, detiveram o impressor e seus emprega­dos. Um vendedor, aprisionado no Châtelet e que teve de engo­lir, pela mão do carrasco, cinco jarros de água fria, havia dado o nome do mestre. Encontraram na oficina do impressor as provas da sua culpa, mas nenhum vestígio das futuras denúncias. Alguns acreditaram que elas ainda não tinham sido impressas. Desencantaram-se quando, de manhã, Paris soube da covardia do Sr. Marquês de Tormes, que, em lugar de defender o pequeno vendedor de barquilhos, deixara seus companheiros, dizendo: "Boa noite, senhores. Vou dormir com a Marquesa de Raque-nau".

O Marquês de Raquenau não ignorava sua infelicidade conju­gal. Mas, vendo-a proclamada por toda a cidade, achou-se na obri­gação de ir desafiar o rival. Bateram-se em duelo e o marido foi morto. Enquanto o Sr. de Tormes tornava a vestir-se, o Marquês de Gesvres surgiu e apresentou-lhe a ordem de prisão.

O Marquês de Tormes, que ainda não lera o panfleto acusador, acreditou que o levavam para a Bastilha por ter se batido em duelo.

Faltam quatro! Faltam quatro! — cantavam os garotos for­mando farândolas.

Faltam quatro! Faltam quatro! — gritavam sob as janelas do palácio real.

Os guardas dispersavam, a golpes de açoite, a turba que os in­juriava.

Extenuado, acossado de esconderijo em esconderijo, Cláudio Le Petit refugiou-se em casa de Angélica. Estava mais pálido que nunca, o rosto enegrecido pela barba.

Desta vez, minha bela — disse ele com um sorriso crispado —, há um cheiro de chamusco no ar. Tenho a impressão de que não poderei escorregar entre as malhas da rede.

Não fale assim! Você mesmo me disse cem vezes que nunca o prenderiam.

Falamos assim quando nada nos veio atingir a força. Depois, subitamente a força se escapa por uma fenda, e passamos a ver claro.

Ele tinha sido ferido quando fugia por uma janela, da qual tive­ra de quebrar os vidros e entortar os chumbos do caixilho.

Ela fê-lo deitar na cama e deu-lhe de comer. Ele seguia com aten­ção os movimentos da jovem, e ela estava inquieta por não reen­contrar nos seus olhos a habitual expressão de zombaria.

O azar é seu — disse ele bruscamente. — Eu não devia tê-la reencontrado... nem a amado. Depois que ficamos íntimos com­preendi que você tinha feito de mim seu criado.

Cláudio — disse ela, magoada —, por que você procura dis­cussão comigo? Eu... eu senti que você estava muito perto de mim, que tudo faria por mim. Mas, se quiser, ficarei longe de você.

Ela sentou-se à beira do leito e tomou-lhe a mão, encostando o rosto nela, num gesto de ternura.

—   Meu poeta...

Ele se desvencilhou e fechou os olhos.

—   Ah! — suspirou ele —, isso é que é mau para mim. Junto de você eu me ponho a sonhar com uma vida em que você sempre estará presente. Começo a pensar como um burguês estúpido: "Gostaria de entrar toda noite em uma casa aquecida e iluminada, onde ela me aguardasse! Gostaria de encontrá-la toda noite em meu leito, quente e rechonchuda, e submissa ao meu desejo. Gostaria de ter uma respeitável barriga e de ficar às primeiras horas da noi­te sentado à entrada de minha residência, e dizer: minha mulher, falando dela aos vizinhos". Eis o que a gente pensa quando co­nhece você. E começa-se a achar quê as mesas das tabernas são du­ras para nelas se dormir, que faz frio entre as patas do cavalo de bronze e que se está sozinho no mundo, feito um cão sem dono.

Você fala como Calembredaine — disse Angélica, pensa­tiva.

A ele você também fez mal. Porque, no fundo, você não passa de uma ilusão, fugaz como uma borboleta, ambiciosa, lúcida, in­saciável...

A jovem não respondeu. Estava além das disputas e das injusti­ças. O semblante de Joffrey de Peyrac, na véspera de sua prisão, acabava de aparecer-lhe, e também o de Calembredaine, um pou­co antes da batalha íla feira de Saint-Germain. Alguns homens, na hora da derrota, reencontram o instinto dos animais. Quem não notou a tristeza dos soldados partindo para o combate onde a morte os espera?

Dessa vez, não devia deixar-se colher pelo acaso: era preciso lu­tar contra a sorte.

Você vai deixar Paris — decidiu ela. — Sua tarefa está termi­nada, pois os últimos panfletos estão escritos, impressos e em lu­gar seguro.

Deixar Paris? Eu? Mas para onde irei?

Para a casa de sua velha ama, a mulher de quem me falou e que o criou nas montanhas do Jura. O inverno não tardará, os caminhos ficarão cobertos de neve, ninguém irá procurá-lo lá. Você vai deixar minha casa, que não é segura, e refugiar-se na de Trasei­ro de Pau. Ainda hoje, à meia-noite, você alcançará a Porte de Mont-martre, que é sempre muito mal guardada. Ali, encontrará um cavalo e, no coldre da sela, dinheiro e uma pistola.

—   Está bem, marquesa — disse ele, bocejando. E ergueu-se para partir.   

Sua submissão alarmava Angélica mais que uma audácia impru­dente. Seria a fadiga, o medo, ou o efeito do seu ferimento? Ele parecia agir como um sonâmbulo. Antes de deixá-la, olhou-a de­moradamente, sem sorrir.

—   Agora — disse ele —, você é muito forte e pode deixar-nos no caminho.

Ela não compreendeu o que ele queria dizer. As palavras não mais lhe penetravam na mente, e seu corpo estava dolorido como se a houvessem surrado.

Ela não tardou a ver distanciar-se, sob a chuva fina, o vulto ma­gro e negro do Poeta Pobre.

De tarde, ela foi até o mercado de animais da feira de Saint-Germain, comprou um cavalo, que lhe custou uma parte de suas economias, depois passou pela Rue du Vald'Amour, para "tomar emprestada" a Belo Rapaz uma de suas pistolas.

Ficou decidido que, por volta da meia-noite, Belo Rapaz, Peô-nia e alguns outros seguiriam com o cavalo para a Porte de Mont-martre. Cláudio Le Petit ali chegaria, por seu turno, com alguns homens da confiança de Traseiro de Pau. Os narquois o escolta­riam na travessia dos subúrbios, até o campo.

Estabelecido seu plano, Angélica encontrou um pouco de cal­ma. De noite, ela subiu ao quarto dos meninos, depois até o sótão em que estava alojado Davi. O rapaz tinha uma forte febre, pois seu ferimento, maltratado, começava a supurar.

Mais tarde, Angélica, em seu quarto, começou a contar as ho­ras. Os meninos e as domésticas dormiam. O símio Piccolo, após ter arranhado a porta, veio instalar-se sobre a pedra da lareira. An­gélica, com os cotovelos nos joelhos, contemplava o fogo. Den­tro de duas horas, dentro de uma hora, Cláudio Le Petit estaria fora de perigo. Ela respiraria melhor, e então se deitaria e procu­raria dormir. Depois do incêndio da Taberna da Máscara Verme­lha, parecia-lhe que ela esquecera o que era o sono.

O passo de um cavalo ressoou nas pedras da rua, depois parou. Bateram à porta. Com o coração aos pulos, ela foi abrir o postigo gradeado.

Sou eu, Desgrez.

Você vem em nome da amizade ou da polícia?

Abra-me. Di-lo-ei depois.

Ela puxou os ferrolhos achando que a visita de um policial era extremamente desagradável, mas, no fundo, sentia-se feliz em ver Desgrez. Era melhor do que ficar sozinha, sentindo cada minuto de seu relógio cair-lhe no coração como uma gota de chumbo der­retido.

—   Onde está Sorbonne? — indagou ela.

—   Não o tenho comigo esta noite.

Ela observou que, sob seu capote molhado, ele estava vestido com um casaco de tecido vermelho, guarnecido de fitas negras e ornado de uma volta e de punhos de rendas. Com sua espada e suas botas e esporas, ele parecia bem- um pequeno gentil-homem de província, muito orgulhoso de se encontrar na capital.

Venho do teatro — disse ele alegremente. — Uma missão bas­tante delicada junto a uma bela...

Você não persegue mais os panfletários?

Pode ser que nesta ocasião se tenha compreendido que eu não daria o máximo...

Recusou ocupar-se desse caso?

Não é bem isso. Deixam-me muito livre, como você não ig­nora. Sabe-se que tenho meu pequeno método pessoal.

De pé diante do fogo, ele esfregava as mãos para reaquecer-se. Tinha posto suas luvas com punhos de couro negro e seu chapéu sobre um tamborete."

Por que você não se fez soldado no exército do rei? — perguntou-lhe Angélica, que admirava o garbo atual do antigo ad­vogado de aparência miserável. — Achar-lhe-iam um belo rapaz, e você não aborreceria ninguém... Não se mexa... Vou buscar-lhe um jarro de vinho branco e folhados.

Não, obrigado! Penso que, malgrado sua graciosa hospitali­dade, será melhor que eu me retire. Tenho ainda de dar um giro para os lados da Porte de Montmartre.

Angélica sobressaltou-se e lançou um olhar sobre seu relógio: onze horas e meia. Se Desgrez se dirigisse agora para a Porte de Montmartre, haveria muita possibilidade de que ele caísse sobre o Poeta Pobre e seus cúmplices. Seria por acaso que ele queria ir à Porte de Montmartre, ou o diabo do homem havia farejado al­guma coisa? Não, era impossível! Ela tomou bruscamente sua decisão.

Desgrez vestiu o capote.

Já?! — protestou Angélica. — Não compreendo nada de seus hábitos. Chega a desoras, tira-me do leito e vai embora tão cedo!

Eu não a tirei do leito. Você ainda, não tinha mudado a rou­pa. Estava pensando diante do seu fogo.

Precisamente... Eu estava aborrecida. Vamos, sente-se.

—   Não — disse ele, amarrando o,cordão de sua gola. — Quanto mais reflito, mais creio que devo apressar-me.

—   Oh! Esses homens! — protestou ela, amuada. Ela procurava um pretexto para retê-lo.

Receava, menos pelo poeta que pelo próprio Desgrez, o inevi­tável encontro que se daria se ela o deixasse partir para a Porte de Montmartre. O policial tinha uma pistola e uma espada, mas os outros também estavam armados e eram numerosos. Além dis­so, o cão Sorbonne não estava com seu dono. De qualquer modo, seria inútil que a evasão de Cláudio Le Petit fosse acompanhada de uma rixa durante a qual um capitão de polícia de Châtelet muito se arriscaria a ser morto. Era preciso a todo custo evitar isso.

Mas já Desgrez saía do quarto.

"Oh! Que bobagem!", pensou Angélica. "Se eu não for capaz de reter um homem por um quarto de hora, pergunto-me a mim mesma para que foi que Deus me fez nascer!"

Ela o seguiu no vestíbulo e, como ele segurasse a maçaneta da porta, ela pôs a mão sobre a dele. A ternura do gesto pareceu surpreendê-lo. Ele teve uma leve hesitação.

Boa noite, senhora — disse ele com um suspiro.

Não terei uma boa noite, se você for embora — murmurou ela. — A noite é muito longa... para uma pessoa que está sozinha.

E encostou a face no ombro dele.

"Procedo como uma cortesã", pensou ela, "mas pouco impor­ta! Alguns beijos me farão ganhar tempo. E, mesmo que ele peça mais, por que não? Afinal de contas, há tanto tempo que nos co­nhecemos..."

Há tanto tempo que nos conhecemos, Desgrez — repetiu ela em voz alta. — Nunca pensou que entre nós...

Não é do seu feitio lançar-se à cabeça de um homem — disse Desgrez com perplexidade. — Que tem você esta noite, minha bela?

Mas sua mão havia deixado a porta, e ele a segurava pelo om­bro. Muito lentamente, como a contragosto, seu outro braço ergueu-se e enlaçou a cintura de Angélica. No entanto, ele não a estreitava. Segurava-a mais como um objeto leve e frágil com o qual não se sabe o que fazer. Ela sentiu, entretanto, que o cora­ção do policial Desgrez batia um pouco mais rapidamente. Não seria divertido se ela chegasse a emocionar aquele homem indife­rente e sempre senhor de si mesmo?

—   Não — disse ele afinal. — Não, nunca pensei que poderíamos dormir juntos. O amor é para mim qualquer coisa de muito ordinário. Nisso, como em muitas outras coisas, eu desconheço o luxo e ele não me tenta. O frio, a fome, a pobreza e as varas de meus mestres não contribuíram para dar-me gostos refinados. Sou um homem de taberna e de bordel. O que peço a uma fêmea é que seja um bom animal, robusto, um objeto confortável, que se possa manejar à vontade. Resumindo, minha cara, você não é o meu tipo.

Ela o escutava um tanto divertida e sem afastar a fronte de sua espádua. Sentia em suas costas a irradiação quente das duas mãos de Desgrez. Ele não era talvez tão desdenhoso quanto queria afir­mar. Uma mulher como Angélica não se enganava nisso. Muitas coisas ligavam-na a Desgrez. Ela teve um risinho abafado.

Você me fala como se eu fosse um objeto de luxo... não con­fortável, como diz. Você admira a riqueza de meu vestido e de minha morada?

Oh! O vestido nada significa. Você sempre conservará aque­la consciência de sua superioridade que transparecia em seus olhos quando, um dia já dlistante, lhe apresentaram a certo advogado pau­pérrimo e plebeu.

Muitas coisas se passaram depois, Desgrez.

Muitas coisas nunca passarão, entre outras a arrogância de uma mulher cujos ancestrais estiveram, como João II, o Bom, na Batalha de Poitiers, em 1356.

Como bom policial que é, você sabe sempre tudo sobre todos.

Sim... exatamente como seu amigo, o Poeta Pobre.

Ele tomou-a pelos ombros e, com delicadeza mas firmemente, afastou-a de si para olhá-la no rosto.

—   Então?... E verdade que ele devia estar à meia-noite na Porte de Montmartre?

Ela estremeceu, depois pensou que, agora, o perigo tinha passa­do. Ao longe, um relógio deu as últimas pancadas da meia-noite. Desgrez percebeu nos olhos dela um relâmpago triunfante.

—   Sim... sim, é muito tarde — murmurou ele, abanando a cabeça com ar pensativo. — Havia tanta gente que tinha marcado encontro esta noite na Porte de Montmartre! Entre outros, o senhor tenente-civil em pessoa e vinte archeiros do Châtelet. Talvez, se eu tivesse chegado um pouco mais cedo, houvesse podido aconselhá-los a ir tocaiar sua caça noutro lugar... Ou então talvez eu pudesse ter feito um sinal à caça imprudente para' que fugisse por outro caminho... Mas, agora, creio, bem... sim, creio bem que é muito tarde...

Flipot saiu de madrugada para buscar o leite fresco das crianças no mercado de Pierre-au-Lait. Acabava Angélica de passar por um breve sono agitado, quando o ouviu voltar correndo. Esquecendo-se de bater à porta, ele introduziu pela fresta a cabeça desgrenhada. Os olhos saltavam-lhe das órbitas.

Marquesa dos Anjos — disse ele, esbaforido —, acabo de ver... na Place de Greve... o Poeta Pobre.

Na Place de Greve?... — repetiu ela. — Mas ele está comple­tamente louco! Que é que ele fazia lá?

Estava com a língua para fora — respondeu Flipot. — Foi enforcado!

 

Desespero de Angélica

Prometi ao Sr. d'Aubrays, tenente da polícia de Paris, que por seu turno fez idêntica promessa ao rei, que os três últimos homens da lista não ieriam conhecidos do público. Esta manhã, apesar do enforcamento do autor desses panfletos, o nome do Con­de de Guiché foi servido aos parisienses. Sua Majestade compreen­deu muito bem que a condenação do principal culpado não deteria a mão da justiça imanente que vai abater-se sobre seu irmão, isto é, sobre Monsieur. De minha parte, fiz compreender a Sua Majes­tade que eu conhecia o cúmplice ou os cúmplices, que, apesar da morte do panfletário, continuariam sua obra. E, repito-o, prome­ti que os três últimos nomes não apareceriam.

Eles aparecerão!

Não!

Angélica e Desgrez estavam de novo face a face, naquele mes­mo lugar onde, na véspera, Angélica havia reclinado a cabeça no ombro do policial. Jamais ela se reprovaria bastante a si mesma por aquele gesto. Agora, os olhares dos dois interlocutores cruzavam-se como espadas.

A casa estava deserta. Davi, sozinho, ferido e febril, encontrava-se lá em cima, no sótão. Ouvia-se pouco ruído vindo da rua. O eco da agitação popular não chegava até aquele bairro aristocrático. Na entrada do Marais, paravam os gritos da turba que, desde ce­do, desfilava na Place de Greve, diante"dá forca em que balançava o corpo de Cláudio Le Petit, Poeta Pobre do Pont Neuf. Havia quinze anos que ele inundava Paris com seus epigramas e suas can­ções. Ninguém podia acreditar que ele afinal estivesse morto e en­forcado. Eram apontados seus cabelos louros, que o vento revolvia, e seus velhos sapatos de pregos gastos. Tia Marjolaine chorava. Na esquina da Rue de la Vannerie, a velha Hurlurette, com o ros­to inundado de lágrimas, berrava ao som da rabeca desafinada de Hurlurot o célebre estribilho:

"Quando eu for

A Abadia de Monte-à-Regret,

Por vocês rezarei,

Pondo a língua pra fora..."

Ao ouvi-la, a multidão entrava em transe. A falta de melhor, estendiam o punho para o Hotel de Ville.

Na pequena casa da Rue des Francs-Bourgeois, a luta prosseguia, áspera, implacável, mas em voz baixa, como se Angélica e Des­grez desconfiassem de que a cidade inteira estivesse à escuta de suas palavras.

Eu sei onde estão os maços de papéis que você tenciona fa­zer distribuir ainda — dizia Desgrez. — Eu posso pedir o auxílio do exército, assaltar o Faubourg Saint-Denis e fazer cortar em pe­daços todos os tratantes que se opuserem a uma busca da polícia em casa do Grande Coésre, Messire Traseiro de Pau. Entretanto, existe um meio mais simples de arranjar as coisas. Escute-me, pe­quena tola. Cláudio, o poeta, está morto. Tinha de acontecer. Suas insolências duraram muito tempo, e o rei jamais admitirá ser jul­gado pela ralé.

O rei! O rei! Você tem a boca cheia dele. Antigamente você era mais altivo!

Altivez é um pecado da juventude, senhora. Antes de ser al­tivo, é preciso saber contra quem se luta. Eu me choquei, pela força das circunstâncias, contra a vontade do rei. Quase fui quebrado. A demonstração está feita: o rei é o mais forte. Eu estou, portan­to, do lado do rei. Na minha opinião, você, que tem dois filhos pequenos, deveria seguir meu exemplo.

Cale-se, você me horroriza!

Não ouvi eu falar de uma carta-patente que você aspirava a obter para a fabricação de uma bebida exótica, ou de qualquer coisa desse género?... E não pensa que uma boa quantia, por exemplo cinquenta mil libras, seria bem-vinda para ajudá-la a lançar um co­mércio qualquer? Ou então algum privilégio, uma isenção de di­reitos, que sei eu? Uma mulher como você não deve ter ideias curtas. O rei está pronto a conceder-lhe o que pedir, em troca do seu silêncio definitivo e imediato. Eis a boa forma de terminar es­ te drama para benefício de todos. O senhor tenente-criminal será felicitado, conceder-me-ão um novo cargo, Sua Majestade soltará um suspiro de alívio, e você, minha cara, tendo posto a flutuar outra vez o seu pequeno barco, continuará a navegar no rumo dos mais altos destinos. Vamos, não trema como uma poldra sob o chicote do amansador. Reflita. Voltarei dentro de duas horas para ouvir sua resposta...   

Na Place de Greve acabavam de chegar, em uma carroça, o mestre-impressor Gilberto e dois de seus empregados. Três outras forcas estavam erguidas para eles perto da do Poeta Pobre. Quan­do mestre Aubin enfiava no nó corredio a cabeça encanecida do impressor, um rumor surgiu e ampliou-se:

—   A graça! O rei concedeu a graça. Mestre Aubin hesitou.

Acontecia, às vezes, que, ao pé do patíbulo, a graça do rei vinha arrancar um condenado às mãos diligentes do carrasco. Prevendo a mudança de decisão do soberano, mestre Aubin devia mostrar-se pontual, mas sem pressa excessiva. Esperou pacientemente que lhe apresentassem o pedido de indulto assinado por Sua Majesta­de. Entretanto, nada aparecia. Fora um mal-entendido. De fato, não conseguindo a carroça dos capuchinhos, que vinha buscar os corpos dos condenados à morte, abrir passagem entre aquela mul­tidão muito densa, o monge que a" conduzia pusera-se a gritar:

—   Gare! Gare! Arreda! Arreda!

E cada qual compreendera: Grâce! Grâce! Perdão! Perdão!

Vendo do que se tratava, mestre Aubin, tranquilamente, voltou à tarefa. Mas mestre Gilberto, resignado alguns instantes antes, já não queria morrer. Debatia-se e pôs-se a gritar, com voz terrível: ' — Justiça! Justiça! Apelo para o rei! Querem matar-me enquanto os assassinos do pequeno vendedor de barquilhos e do rôtisseurBour-jus se pavoneiam em liberdade. Querem enforcar-me porque eu me fiz instrumento da verdade! Apelo para o rei! Apelo para Deus!

O tablado sobre o qual estavam erguidas as três forcas estalou, sob o ímpeto da turba.

Atacado a pedradas e porretadas, o .carrasco teve de largar a pre­sa e refugiar-se sob o cadafalso. Enquanto corriam em busca de um tição para atear-lhe fogo, os soldados a cavalo surgiram na praça e, a chicotadas, conseguiram desimpedir o local. Mas os condena­dos tinham desaparecido...

Orgulhosa de ter arrancado três de seus filhos ao patíbulo, Pa­ris sentia renascer em si o espírito da Fronda. Ela se recordava de que em 1650 fora o Poeta Pobre o primeiro a lançar as flechas das "mazarinadas". Enquanto ele viveu, podia-se estar certo de ouvir às vezes sua língua afiada fazer-se eco dos ressentimentos novos, podia-se deixar dormir os ressentimentos velhos. Mas, agora que ele estava morto, um medo pânico apoderou-se do povo. Ti­nha este a impressão de haver sido subitamente amordaçado. Tu­do voltava à superfície: as fomes de 1656, de 1658, de 1662, as novas taxas. Que pena ter morrido o italiano! Teriam incendiado seu palácio...

Grupos correram ao longo dos cais gritando:

Quem degolou o pequeno vendedor de barquilhos? Enquanto outros escandiam:

Amanhã... saberemos! Amanhã... saberemos!

Mas no dia seguinte a cidade não teve sua cotidiana florescência de páginas brancas. Nem nos dias posteriores. Retornou o silên­cio. O pesadelo esvanecia-se. Nunca se saberia quem matara o pe­queno vendedor de barquilhos. Paris compreendeu que o Poeta Pobre estava bem morto.

Aliás, ele próprio dissera a Angélica:

—   Agora você é muito forte e pode deixar-nos no caminho. Ela ouvia-o repetir-lhe, sem cessar, essas palavras. E, durante as longas noites em que nem por um instante ela achava repouso, via-o diante de si, olhando-a com seus olhos pálidos e brilhantes como a água do Sena, quando o sol nela se mira.

Não tinha querido ir à Place de Greve. Bastou-lhe que Bárbara levasse os meninos até lá, como ao sermão, e não lhes fosse ocul­tado nenhum detalhe do quadro sinistro: nem os cabelos louros do Poeta Pobre, que flutuavam diante do seu rosto tumefacto, nem suas meias negras em espiral sobre as magras palmilhas, nem seu tinteiro de chifres e sua pena de ganso, que o carrasco, supersti­cioso, tinha deixado em sua cintura.

Levantando-se, no terceiro dia, depois de uma noite de insónia, ela disse a si mesma: "Não posso mais suportar esta existência".

Nesse dia, após o anoitecer, ela devia encontrar-se com Desgrez na casa dele, na Rue du Pont-Notre-Dame. De lá, ele a conduziria a importantes personagens, com as quais se estabeleceria o acordo secreto que poria fim ao curioso caso do pequeno vendedor de barquilhos.

As propostas de Angélica tinham sido aceitas. Em troca, ela en­tregaria a quem de direito as três malas de panfletos, impressos mas não distribuídos, dos quais os senhores da policia fariam, sem dúvida, uma grande fogueira.

E a vida recomeçaria. Angélica teria de novo muito dinheiro. Teria, também, somente ela, o privilégio de fabricar e vender, em todo o reino, a bebida chamada chocolate.

"Não posso mais suportar esta existência", repetia ela consigo mesma.

Acendeu uma vela, porque ainda não rompera o dia. O espelho colocado sobre a penteadeira enviava-lhe o reflexo do seu rosto pálido e abatido.

"Olhos verdes", pensou ela. "A cor que traz infelicidade. Sim, é então exato. Eu levo infelicidade aos que amo... ou aos que me amam." 

Cláudio, o poeta?.-.. Enforcado. Nicolau?... Desaparecido. Joffrey?... Queimado vivo.

Ela passou lentamente as mãos geladas pelas têmporas. Tremia tanto, interiormente, que respirava mal.

"Que faço eu aqui, lutando contra todos esses homens fortes e poderosos? Não é este o meu lugar. O lugar de uma mulher é no seu lar, junto de um esposo a quem ame, ao calor do fogo, na quietude da casa e do filho que dorme em seu berço de madeira. Lembra-se, Joffrey, do pequeno castelo em que Florimond nas­ceu?... A tempestade das montanhas fustigava as vidraças, e eu me sentava em seus joelhos, minha face contra a sua. E olhei, com um pouco de medo e uma confiança deliciosa, sua fisionomia es­tranha, em que brincavam os reflexos do fogo... Como você sabia rir mostrando os dentes brancos! Ou então eu me estendia em nosso grande leito, e você cantava para mim, com aquela voz profunda e veludosa, que parecia repercutida pela montanha. Eu adorme­cia, e você se deitava junto de mim, na frescura dos lençóis borda­dos, perfumados de íris. Eu lhe havia dado muito, eu o sabia. E você me havia dado tudo... E eu dizia, a mim mesma, sonhando, que seríamos eternamente felizes..."

Ela titubeou através da peça, foi cair de joelhos ao pé do leito, afundou o rosto nos lençóis amarrotados.

—   Joffrey, meu amor!...

O grito, contido muito tempo, se elevava.

—   Volte, meu amor, não me deixe sozinha!... Retorne, Joffrey! Mas ele não voltaria mais, ela o sabia. Ele tinha partido para muito longe. Onde poderia ela encontrá-lo doravante? Ela não ti­nha sequer um túmulo onde orar... As cinzas de Joffrey tinham sido dispersadas ao vento do Sena.

Angélica levantou-se. Seu rosto estava em lágrimas.

Sentou-se à mesa, tomou uma folha de papel e aparou a pena.

"Quando lerem esta cana, senhores, terei cessado de viver. Eu sei que atentar contra a própria existência é um grande crime, mas, para este crime, Deus, que conhece o fundo das almas, será meu único refúgio. Entrego-me à Sua Misericórdia. Confio a sorte de meus dois filhos à justiça e à bondade do rei. Em troca de um si­lêncio do qual dependia a honra da família real, e que eu respeitei, peço a Sua Majestade que se incline como um pai sobre essas duas pequenas vidas, iniciadas sob o signo das maiores desgraças. Se o rei não lhes restituir o nome e o património de seu pai, o Conde de Peyrac, que pelo menos lhes dê os meios de subsistência em sua infância e, mais tarde, a educação e as somas necessárias para o seu estabelecimento..."

Ela continuou a escrever, acrescentando alguns detalhes para a vida de seus filhos, pedindo também proteção para o jovem órfão Chaillou. Redigiu, igualmente, uma carta para Bárbara, suplicando-lhe que jamais abandonasse Florimond e Cantor, legando-lhe os pobres objetos que possuía, vestidos e jóias.

Enfiou a segunda carta no envelope e lacrou-o.

Após o quê, sentiu-se melhor. Lavou-se e vestiu-se, depois pas­sou a manhã no quarto de seus filhos, o que lhe fez bem. Mas o pensamento de que ela ia deixá-los para sempre não a perturbava. Eles não mais precisavam dela. Tinham Bárbara, que conheciam e que os conduziria a Monteloup. Eles seriam criados ao sol e ao bom ar do campo, longe daquela Paris lamacenta e malcheirosa.

O próprio Florimond tinha perdido o hábito da presença da­quela mãe que entrava tarde, de noite, em uma casa da qual eles tinham feito seu pequeno reino entre duas servilhetas, o cão Pa-tou, seus brinquedos e seus pássaros. Como era sempre Angélica quem trazia os brinquedos, eles corriam para ela quando a viam e, tirânicos, resmungavam, reclamando ainda alguma coisa. Nesse dia, Florimond puxou sua camisola de droguete vermelho e disse:

Mamãe, quando terei um calção de rapaz? Sou um homem agora, não sabe?

Meu querido, você já tem um grande chapéu de feltro com uma bela pluma rosa. Muitos meninos da sua idade se contentam com um gorro como o de Cantor.

— Eu quero um calção! — gritou Florimond, jogando ao chão sua corneta.

Angélica retirou-se de mansinho, temendo uma cólera que a te­ria obrigado a proceder com severidade.

Após o almoço, ela aproveitou o sono dos filhos para envergar seu manto e deixar a casa. Levava consigo o envelope lacrado. Iria entregá-lo a Desgrez e pedir-lhe que o levasse à famosa reunião secreta. Depois, ela o deixaria e caminharia ao longo das margens. Teria muitas horas diante de si. Tencionava caminhar durante mui­to tempo. Queria ir ao campo, levar como última visão a imagem dos prados amarelecidos pelo outono e das árvores douradas, res­pirar uma última vez o odor dos musgos, que lhe recordariam Mon-teloup e sua infância...

 

Brutalidade e volúpia do policial Desgrez

Angélica esperou Desgrez em sua casa do Pont de Notre-Dame. O policial gostava de residir sobre as pontes, pois os que ele per­seguia moravam debaixo delas.

Mas o cenário tinha mudado depois da primeira visita que An­gélica lhe fizera, alguns anos antes, em um dos velhos prédios do Petit Pont.

Ele agora residia em casa própria no riquíssimo Pont de Notre-Dame. Era quase nova e de um mau gosto de burguês endinheira­do, com suas fachadas ornadas de deuses Termos que sustentavam frutos e flores, seus medalhões de reis, suas estátuas, tudo pintado "ao natural", em cores berrantes.

O quarto em que Angélica fora introduzida pelo porteiro refle-tia o mesmo conforto de uma pessoa da classe média. Mas ela qua­se não olhou para o vasto leito, cujo baldaquim era sustentado por colunas espiraladas, e a mesa de trabalho adornada com objetos de bronze dourado.

Ela não fazia conjeturas sobre as circunstâncias que haviam per­mitido ao advogado melhorar de vida. Desgrez era ao mesmo tempo uma presença e uma lembrança. Tinha ela a impressão de que ele sabia tudo a seu respeito, e isso a tranquilizava. Ele era duro e in­diferente, mas firme como um pilar. Entregando-lhe sua última mensagem, ela poderia morrer em paz: seus filhos não seriam aban­donados.

A janela aberta deitava para o Sena. Ouviam-se as remadas dos barqueiros. O dia estava lindo e um tépido sol de outono espelhava-se no pavimento ladrilhado em branco e preto, cuidadosamente lustrado com óleo.

Afinal, Angélica ouviu no corredor o tilintar de esporas de um passo decidido. Reconheceu o passo de Desgrez.

Ele entrou, sem mostrar qualquer surpresa.

_ Senhora, eu a saúdo. Sorbonne, o meu cão, está lá fora, com as patas enlameadas.

Ainda dessa vez ele estava vestido, se não com elegância, pelo menos confortavelmente. Um galão de veludo negro sublinhava a gola de seu amplo capote, que ele jogou sobre uma cadeira. Mas ela reencontrou o antigo Desgrez na sem-cerimônia com que ele tirou o chapéu e a peruca. Depois ele desprendeu a espada. Pare­cia de muito bom humor.

—   Acabo de estar com o Sr. d'Aubrays. Tudo caminha esplendidamente. Você vai encontrar as maiores personagens do comér­cio e das finanças, minha cara. Diz-se mesmo que o próprio Sr. Colbert assistirá à reunião.

Angélica teve um sorriso polido. Essas palavras lhe pareciam vãs, e não chegavam a sacudir sua hebetude. Ela não teria a honra de conhecer o Sr. Colbert. A hora em que essas onipotentes pessoas se reunissem em algum bairro afastado, o corpo de Angélica de Sancé, Condessa de Peyrac, Marquesa dos Anjos, estaria flutuan­do entre as margens douradas do Sena. Ela estaria livre, então. Nin­guém mais a alcançaria. E talvez Joffrey a reencontrasse...

Angélica teve um estremecimento porque Desgrez continuava a falar e ela não mais compreendia suas palavras.

Que estava dizendo?

Digo que você está adiantada para o encontro.

Também não é por causa dele que estou aqui. De fato, acho-me aqui de passagem, pois um encantador galã me espera para me conduzir à galeria do Palais, onde quero admirar as últimas novi­dades. Talvez, em seguida, eu passe pelas Tulherias. Estas distra-ções me permitirão esperar sem nervosismo a hora fatídica do encontro. Mas trago comigo um envelope que me atrapalha. Po­deria guardá-lo? Apanhá-lo-ei na volta.

As suas ordens, senhora.

Ele tomou o envelope lacrado e, dirigindo-se ao pequeno cofre posto sobre um consolo, abriu-o e ali o depositou.

Angélica voltou-se para apanhar o leque e as luvas. Tudo era muito simples, tudo se desenrolava sem complicações. Com a mes­ma simplicidade, ela ia caminhar, sem se apressar. Bastaria, em dado momento, obliquar para o Sena...

Um rangido na fechadura fê-la erguer a cabeça. Viu que Des-grez fechava a porta com chave. Depois, com a maior naturali­dade, ele enfiou a chave no bolso e voltou para junto dela sor­rindo.

Sente-se por alguns minutos — disse ele. — Há muito que desejo fazer-lhe duas ou três perguntas, e a ocasião me parece oportuna.

Mas... alguém me espera!

Continuará a esperá-la — disse Desgrez, sempre sorrindo. — Além disso, será tudo feito rapidamente. Sente-se, eu lhe peço.

Ele indicou-lhe uma cadeira diante da mesa e tomou lugar do outro lado.

Angélica estava enervada e não levantou outras objeções. Havia vários dias, seus gestos não tinham mais realidade que os gestos de uma sonâmbula.

Havia, no entanto, alguma coisa estranha. Que era?... Ah! Sim! Por que tinha Desgrez fechado a porta a chave?

—   As informações que desejo pedir-lhe referem-se a um caso bastante grave, do qual me ocupo atualmente. A vida de várias pessoas depende disso. Seria muito longo, e aliás inútil, que eu lhe explicasse a génese deste caso. Basta que responda às minhas per­guntas.

Ele falava sem olhá-la e muito lentamente. Com a mão em pala sobre os olhos semicerrados, parecia absorvido por uma visão distante.

—   Há cerca de quatro anos, uma noite, no decurso de um assalto à casa de um boticário do Faubourg Saint-Germain, Sieur Glazer, dois malfeitores de baixa condição foram presos. Pelo que recordo, eles tinham, no meio da malandragem, as alcunhas de Gazua e Prudente. Foram enforcados. Entretanto, antes de morrer, durante o interrogatório, Prudente pronunciou certas palavras que eu encontrei, ultimamente, consignadas em um auto do Châtelet e que podem esclarecer a minha atual pesquisa. Elas dizem respeito ao que o Sieur Prudente viu em casa do Sieur Glazer, durante a visita improvisada que lhe fez naquela noite. Infelizmente, os termos desse testemunho são imprecisos. E um palavrório que deixa suspeitar muitas coisas e nada prova. Por isso quero pedir-lhe que me elucide. Que havia em casa do velho Glazer?

O mundo tornava-se cada vez mais irreal para Angélica. As ima­gens se lhe dissipavam. Uma só luz permanecia, a das pupilas cas­tanhas de Desgrez, subitamente abertas, e que tinham uma espécie de irradiação vermelha e estranha, uma claridade de concha trans­lúcida.

E é a mim que faz essa pergunta? — indagou a jovem.

A você mesma. Que viu você naquela noite em casa do ve­lho Glazer?

Como quer que eu o saiba? Creio que você perdeu a ra­zão.

Desgrez soltou um suspiro e a luz de seus,olhos se extinguiu por trás das pálpebras baixadas. Ele tomou de sobre a mesa uma pena de ganso e começou a virá-la maquinalmente nos de­dos.

Havia naquela noite uma mulher em casa do velho Glazer, a qual acompanhava os ladrões. Não importa quem fosse! Uma mulher que tinha na classe perigosa um nome de que estou infor­mado: Marquesa dos Aríjos. Nunca ouviu falar dela? Não? Essa mulher era a companheira de um ilustre bandido da capital: Ca-lembredaine. Esse Calembredaine deixou-se prender em 1661, na feira de Saint-Germain, e foi enforcado...

Enforcado!... — exclamou ela.

Não, não — disse brandamente Desgrez —, não se perturbe, senhora... Ele não foi enforcado. Na verdade, escapou saltando ao Sena e... afogou-se. Acharam seu corpo com duas libras de areia na boca e inchado como um odre. Que pena, tão belo homem! Compreendo a sua palidez! Voltemos à Marquesa dos Anjos, dig­na companheira desse triste senhor, que era, como você não igno­ra, um assaltante famoso e um assassino. Condenado às galés, ele se evadiu etc. Quanto a ela, seu reinado foi breve mas edificante: ela participou de numerosos assaltos, ataques a mão armada a car­ruagens, como a da própria filha do tenente-civil. Ela tem em seu ativo numerosos assassínios, entre outros o de um soldado do Châ-telet, cujo ventre abriu com muita habilidade, peço-lhe que me acredite...

O espírito de Angélica saiu de seu entorpecimento. A jovem sen­tiu a armadilha fechar-se em torno dela. _

Seu olhar voltou-se para a janela aberta, por onde chegava o ruí­do da corrente. O Sena estava ali!... A suprema evasão! "Mergu­lharei até o fundo! Estarei livre do mundo dos homens, este mundo execrável!..."

—A Marquesa dos Anjos estava com Prudente na casa de Glazer — tornou Desgrez. — Ela viu o que viu aquele homem. Ela...

De um ímpeto, Angélica tinha saltado para a janela. Ali encon­trou Desgrez mais lépido que ela. Ele segurou-lhe os pulsos e fê-la recuar até a cadeira, onde a atirou brutalmente. Sua expressão es­tava transtornada.

—   Ah! não, nada disso! — rosnou ele. — Nada desse joguinho comigo!

Ele inclinava sobre a jovem um cruel semblante.

—   Vamos, fale, se não quer que eu a sacuda. Que viu em casa do velho Glazer?

Angélica olhava-o fixamente. Em seu coração defrontavam-se sentimentos contraditórios, aos quais se misturavam o medo e a cólera.

Proíbo-o de me tratar assim.

Sempre trato assim as mariposas que interrogo.

Ficou completamente louco?

Responda! Que viu em casa de Glazer?

Vou gritar por socorro.

Pode berrar à vontade. A casa é habitada por archeiros. Sa­bem que não devem entrar aqui ainda que ouçam gritar "assas­sino".

O suor perlava as têmporas de Angélica.

"Não se deve", pensou ela, "não se deve transpirar. Nicolau di­zia que era mau sinal. Isto quer dizer que se está prestes a dar o serviço..."

Uma bofetada magistral caiu-lhe sobre a face.

—   Vai falar? Que viu em casa de Glazer?

—   Nada tenho a dizer-lhe. Bruto! Deixe-me partir. Desgrez aproximou-se dela e, segurando-a pelos cotovelos,

obrigou-a a levantar-se, mas com precaução, como se ela estivesse gravemente enferma.

—   Você não quer falar, minha joiazinha? — disse ele com uma doçura inesperada. — Não é gentil, você sabe. Quer que eu me zangue?...

Ele a conservava encostada a si. Muito lentamente, suas mãos desceram ao longo dos braços da jovem e impeliram seus cotove­los para trás. De súbito ela foi atravessada por uma dor pavorosa e soltou um grito agudo. Dir-se-ia que uma tenaz de ferro lhe acabara de arrancar os dois braços. O golpe do policial era tal que ela não podia fazer um movimento sem ter a impressão de rece­ber uma punhalada entre as costelas. Mas eram sobretudo os de­dos do antigo advogado que a faziam sofrer horrivelmente, seus dedos separados, distendidos e que, à-mínima pressão, faziam a tortura ainda mais insuportável.

—   Vamos, fale! Que havia em casa de Glazer?

Angélica suava em bica. Um sofrimento intolerável martelava-Ihe a nuca, as omoplatas, alcançava os rins.

—   Entretanto, não é terrível o que lhe pergunto. Uma simples informaçãozinha para um caso que não lhe diz respeito, nem a você nem aos seus companheiros... Fale, minha bela, eu a escuto. Não quer mesmo?

Ele fez um movimento imperceptível e os dedos frágeis de Angélica estalaram. Ela berrou. Sem se emocionar, ele conti­nuou:

Vejamos, o amigo-Prudente, no Châtelet, falou de uma fari­nha branca... você também a viu?

Vi.  

Que era?

Veneno... arsénico.

Ah! Você até sabia o que era? — disse ele, rindo.

E largou-a. Ele ficou pensativo. Quebrada de dor, ela retomava fôlego.

Ao cabo de um instante, ele saiu de suas reflexões, empurrou-a de novo para a cadeira e, puxando um tamborete, sentou-se dian­te dela.

—   Agora que você está razoável, não a farei mais sofrer.

Ele estava muito junto dela e apertava entre seus joelhos os joe­lhos trémulos de Angélica. Ela olhava as palmas lívidas de suas próprias mãos.

—   Agora, conte-me sua pequena história.

Ele inclinava um pouco de lado a cabeça e não a olhava mais. Tornava-se o duro confessor de segredos sinistros. Ela começou a falar, em voz monocórdia:

Na casa de Glazer existia um quarto com retortas... Um la­boratório.      

Normal... Todos sabem que ele é boticário.

Aquele pó branco estava sobre um balcão, em um prato de bronze. Reconheci-o pelo seu cheiro de alho. Prudente quis prová-lo. Eu impedi que o fizesse, dizendo-lhe que era veneno.

Que mais você notou?

Perto do prato de arsénico havia um pacote de papel grossei­ro, fechado com lacre vermelho.

E, sobre esse papel, havia qualquer coisa escrita?

Sim: para o Sr. de Sainte-Croix.

Perfeito. E depois?

Prudente derribou uma retorta, que se quebrou. O ruído acordou o proprietário da casa. Nós fugimos, mas, ao atraves­sar o vestíbulo da casa, ouvimo-lo descer a escada. Ele gritou: "Nanette! (ou um nome parecido). Você se esqueceu de prender os gatos". Ele também disse: "É você, Sainte-Croix? Veio buscar o remédio?"

Perfeito! Perfeito!

Depois...

O policial teve um gesto desdenhoso.

—   O que houve depois não me interessa. Tenho já o que pre­cisava...

Depois... Angélica revia a rua escura onde surgira, aos saltos, o vulto do cão Sorbonne. Ela se revia a si mesma correndo como uma louca. O passado não queria morrer. Renascia, negro, sórdi­do, desfazendo de um golpe aqueles quatro anos de paciente e ho­nesto labor. Procurou engolir a saliva, mas sua garganta estava rígida como pau. Conseguiu afinal articular:

—   Desgrez... desde quando você sabe?... Ele lançou-lhe um olhar zombeteiro.

—   Que você é a Marquesa dos Anjos? Desde aquela noite. Acredita que é dos meus hábitos soltar uma loureira que eu tenha prendido e, ainda mais, devolver-lhe a faca?...

Ele a tinha, pois, reconhecido! Acompanhara todas as fases de sua queda. Ela disse precipitadamente:

É preciso que eu lhe explique. Câlembredaine era um peque­no camponês da minha terra... um companheiro de infância. Fa­lávamos o mesmo dialeto.

Não lhe peço que me conte sua vida — rosnou ele dura­mente.

Mas a jovem agarrou-se a ele, gritando com voz plangente:

—   Sim... é preciso que eu lhe diga... é preciso que você me compreenda. Ele era meu companheiro de infância. Era criado no castelo. Depois desapareceu. Encontrou-me quando vim para Paris... Ele sempre me quis... E todos me haviam abandonado... Você também, você me tinha abandonado... na neve. Então ele tomou con­ta de mim e subjugou-me... É verdade que eu o segui, mas não cometi todos os crimes que você me imputa. Desgrez, não fui eu quem matou o soldado Martin, juro por Deus... Matei apenas uma vez. Matei o Grande Coésre. Mas foi para salvar a vida, para ar­rancar meu filho a um destino horrível...

Foi você quem matou o Grande Coesre, aquele Rolih Tarra-co de quem todos tinham medo?:

Fui eu, sim.

Ele se pôs a rir levemente.

—   Oh, não! Que número essa Marquesa dos Anjos! Você sozinha? Com sua grande faca?

Ela se tornou lívida. O monstro estava ali, a dois passos, desa­bado sobre si mesmo, com a garganta aberta, de onde o sangue esguichava. Parecia-lhe que ia vomitar. Desgrez, risonho, deu-lhe uma palmadinha na face.

—   Vamos, não faça essa cara! Você está gelada. Venha que eu a aqueço.

Puxou-a para os seus joelhos, apertou-a fortemente contra si, de­pois mordeu-lhe os lábios com violência. Ela soltou um grito de dor e arrancou-se aos seus braços.

Sr. Desgrez — disse ela, reunindo o que lhe restava de digni­dade —, ser-lhe-ei agradecida se tomar uma decisão a meu respei­to. Vai prender-me ou deixar-me partir?

No momento, nem uma coisa nem outra — disse ele, com displicência. — Depois de nossa pequena conversa, não nos po­demos separar assim. Você pensaria que o policial é um gran­de bruto. No entanto, eu posso ser gentil, se a ocasião se apre­senta.

Desgrez levantou-se. Ele sorria, mas seus olhos tinham reencon­trado sua luminosidade de concha vermelha. Sem que a jovem pu­desse esboçar um gesto de defesa, ele a ergueu nos braços e murmurou, com o rosto inclinado sobre o dela:

Venha, minha bonita gatinha.

Não quero que me fale dessa maneira — gritou ela. E rompeu em pranto convulso.

Aquilo veio de chofre. Um furacão de lagrimas, de soluços, que lhe arrancavam o coração, que a sufocavam.

Desgrez levou-a até o leito, onde a sentou, e ficou um longo es­paço de tempo a olhá-la tranquilamente, com muita atenção. Depois, quando a violência daquele desespero se acalmou um pouco, ele se pôs a despi-la. Ela sentiu sobre a nuca o contato de seus de­dos, que retiravam os alfinetes de seu corpinho com a habilidade de uma camareira. Inundada de lágrimas, ela já não tinha forças para resistir.

Desgrez, você é malvado! — soluçou ela.

Não, meu bem, eu não sou malvado.

Eu acreditava que você era meu amigo... Acreditava que... Oh! Meu Deus! Como sou infeliz!

Quietinha! — ralhou ele com indulgência.

Com mão lesta, ele levantou-lhe as grandes saias, desacolchetou as ligas, enrolou as meias de seda, descalçou-a.

Quando ela se achava apenas de camisa, ele se apartou e come­çou, por seu turno, a despir-se, assobiando, atirando as botas, o casaco, o cinturão aos quatro cantos do aposento. Depois, de um salto, juntou-se a ela no leito e puxou as cortinas.

Na penumbra quente da alcova, o grande corpo cabeludo de Des­grez parecia vermelho e revestido de veludo negro. O homem não perdera nada de sua animação.

—   Ufa, minha filha! Como você arqueja! Pare de chorar! O mo­ mento é para rir. Chegue para cá um pouquinho!

Arrancou-lhe a camisa e assentou-lhe sobre os rins uma palma­da tão sonora que ela pulou, enraivecida de humilhação, e enterrou-lhe no ombro os pequenos dentes afiados.

—   Ah! cachorra! — gritou ele. — Isso merece um corretivo!

Mas Angélica se debatia. Lutaram. Ela gritava-lhe as mais bai­xas injúrias que podia encontrar. Todo o vocabulário da Polaca passou por ali, e Desgrez ria feito um louco. As suas gargalhadas, os seus dentes brancos, o acre cheiro de fumo, que se misturava àquele suor viril, perturbavam Angélica até a medula. Ela estava certa de odiar Desgrez, de desejar sua morte. Gritava-lhe que o mataria com sua faca. Ele ria a mais não poder. Afinal, conseguiu imobilizá-la debaixo de si e procurou-lhe os lábios.

—   Beije-me — dizia ele. — Beije o policial... Se não obedecer, dou-lhe uma surra que lhe arderá durante três dias... Beije-me... Estou certo de que você sabe beijar muito bem...

Ela não podia mais resistir às injunções imperiosas daquela bo­ca, que a mordia sem piedade a cada uma de suas recusas. Acabou cedendo.

Cedeu de tal modo que, alguns instantes mais tarde, o desejo a atirou, cega, contra aquele corpo que a tinha vencido. A luta de ambos tomou outro sentido, o da eterna luta dos deuses e das ninfas nos bosques do Olimpo. A alegria de Desgrez no amor era prodigiosa, inalterável. Ganhava Angélica como uma febre. Ela dizia consigo mesma que Desgrez a tratava sem qualquer respei­to, que jamais alguém a tratara assim, nem mesmo Nicolau ou o capitão. Mas, com a cabeça descaída na beira da cama, ela ouvia o seu próprio riso como o de unia fêmea travessa. Agora sentia muito calor. Seu corpo era sacudido por estremecimentos.

Afinal, o homem puxou-a para si, com braço imperioso. Du­rante um segundo, ela entreviu uma máscara diferente: pálpebras cerradas, gravidade apaixonada, um semblante em que todo o ci­nismo morrera, toda a ironia se dissipara sob o império de um sentimento único. No instante seguinte, ela sentiu que lhe per­tencia. E ele ria de novo, ria de maneira selvagem, o que lhe desa­gradou. Naquele momento, ela sentia necessidade de ternura. Um novo amante sempre despertava nela, ao primeiro abraço, um re­flexo de espanto e de-inedo, talvez" de repugnância.

Sua excitação desapareceu. Uma lassidão pesada como chumbo a invadiu.

Ela se deixou tomar inerte, mas ele não pareceu formalizar-se. Ela teve a impressão de que ele a usava como uma decaída qualquer.

A jovem queixou-se, rolando a cabeça de um lado para o outro.

— Largue-me... Largue-me!

Mas Desgrez persistia, como se quisesse esgotá-la completa­mente.

Tudo se tornou negro. A tensão nervosa que a tinha sustido por vários dias cedeu diante de uma fadiga esmagadora. Ela não aguen­tava mais. Estava no fim de suas forças, de suas lágrimas, de sua volúpia...

Ao despertar, ela estava estendida sobre o leito devastado, bra­ços e pernas espalhados em volta de si como uma estrela-do-mar, na posição em que o sono a tinha vencido. As cortinas do leito estavam erguidas. Um círculo de sol rosado se projetava sobre os ladrilhos. Ela ouvia cantar a água do Sena entre os arcos do Pont de Notre-Dame. Outro ruído, discreto, mais próximo, se mistu­rava àquele.

Ela voltou a cabeça e viu Desgrez escrevendo em sua mesa.

Ele trazia a peruca e uma volta branca engomada. Parecia mui­to calmo e absorvido em seu trabalho. Ela olhava sem compreen­der. Suas recordações conservavam-se indistintas. Seu corpo parecia-lhe de chumbo e a cabeça, leve. Teve consciência de sua postura impudica e juntou as pernas.

Nesse momento, Desgrez levantou a cabeça. Vendo que ela es­tava acordada, pôs a pena no tinteiro e aproximou-se da cama.

—   Como vai? Dormiu bem? — perguntou ele em tom cortês e natural.

Ela mirou-o com ar um tanto estúpido. Não estava muito certa quanto a ele. Onde o vira terrífico, brutal, lascivo? Em sonho, pro­vavelmente.

Será que eu dormi? — balbuciou ela. — Acredita que eu dor­mi? Por quanto tempo?

Faz bem três horas que tenho diante dos olhos esse espetácu-lo encantador.

Três horas! — repetiu Angélica, sobressaltando-se e puxando o lençol para se cobrir. — Mas é horrível! E o encontro com o Sr. Colbert?

—   Ainda lhe resta uma hora para se preparar. Ele dirigiu-se ao aposento vizinho.

—   Tenho um quarto de banho confortável e todo o necessário para a toalete das damas: rebiques, moscas, perfumes etc.

Ele voltava, tendo no braço um chambre sedoso, que lhe ati­rou.

—   Ponha isso e despache-se, minha bela.

Um pouco aturdida e com a impressão de movimentar-se numa atmosfera penugenta, Angélica tratou de banhar-se e vestir-se. Suas roupas estavam cuidadosamente dobradas sobre uma mala. Dian­te de um espelho, havia também grande número de acessórios, um tanto surpreendentes naquele banheiro de celibatário: potes de al-vaiade e vermelhão, sombra para as pálpebras, toda uma gama de frascos de perfume.

A memória de Angélica retornava aos poucos, não sem dificul­dade. Ela se lembrou da sonora bofetada que o policial lhe tinha aplicado. Oh! Era espantoso! Ele a tinha tratado como uma pros­tituta, sem nenhum respeito. E ele sabia que ela era a Marquesa dos Anjos. Que faria dela agora?...

Angélica ouvia ranger a pena de ganso. Repentinamente, Des­grez se levantou e perguntou:

—   Está atrapalhada? Posso servir-lhe de camareira?

Sem esperar resposta, ele entrou e começou a amarrar com des­treza os cordões de sua saia.

Angélica não sabia mais o que pensar.

Ao recordar as carícias que élé lhe havia imposto, sentiu-se cons­trangida. Mas na verdade Desgrez parecia pensar completamente em outra coisa. Ela acreditaria que estava sonhando, se o espelho não lhe houvesse mostrado um rosto de mulher sensual e saciada, com as pálpebras enegrecidas pela fadiga do prazer, com os lábios intumescidos pela mordedura dos beijos. Que vergonha! Até aos menos sagazes ofereciam seus traços as marcas da violenta forni­cação a que Desgrez a arrastara.

Maquinalmente, ela pôs dois dedos sobre os lábios inchados e doloridos.

Encontrou-se no espelho o seu olhar com o de Desgrez. Ele es­boçou um sorriso.

—   Está dando na vista — disse ele. — Mas não tem importância. Essas graves personagens que você vai encontrar ficarão apenas mais subjugadas... e talvez vagamente invejosas.

Sem responder, ela acabou de alisar seus cachos e colou uma mos­ca na face.

O policial tinha posto o boldrié e apanhava o chapéu... Estava verdadeiramente elegante, se bem que seus trajes conservassem qual­quer coisa de sombrio e de austero. -

Você vem subindo os degraus da escala social, Desgrez — disse Angélica, esforçando-se por imitar sua desenvoltura. — Agora usa espada, e a sua residência é a de um próspero burguês.

Eu recebo muitas visitas. A sociedade evolve estranhamente. Será culpa minha, se as pistas que farejo me conduzem sempre um pouco mais para cima? Sorbonne está ficando velho. Quando ele morrer, não o substituirei, pois não é mais nas espeluncas que de­vo ir procurar os piores assassinos do nosso tempo. È em outros lugares.

Pareceu refletir e acrescentou, abanando a cabeça:

Nos salões, por exemplo... Está pronta, senhora? Angélica tomou seu leque e fez sinal que sim.

Devo entregar-lhe o seu envelope?

Que envelope?

Aquele que me confiou ao chegar aqui.

Angélica franziu as sobrancelhas, procurando recordar-se. De súbito, sentiu um leve rubor subir-lhe à face. Tratava-se da sobre­carta que continha seu testamento e que ela entregara a Desgrez com a intenção de ir matar-se em seguida.

Matar-se? Que ideia extravagante! Por que desejava matar-se? Essa não era decididamente a ocasião. Agora que, pela primeira vez, em anos, ela estava a ponto de ver o remate feliz de todas as suas tentativas, agora que tinha o rei da França praticamente à sua mercê!...

—   Sim, sim — disse ela precipitadamente. — Entregue-me o en­velope.

Ele abriu o cofre e estendeu-lhe o sobrescrito lacrado. Mas reteve-o no momento em que Angélica ia segurá-lo, e ela levantou para ele uns olhos interrogativos. Desgrez tinha de novo no olhar aquele reflexo vermelho que parecia penetrar como um raio até as pro­fundezas da alma.

—   Você queria morrer, não é assim?

Angélica o encarou, como uma criança apanhada em falta. Depois, com um movimento de cabeça, respondeu afirmati­vamente,

E agora?

Agora?... Não sei mais. Em todo caso, não deixarei de tirar um bom proveito da tibieza dessa gente. A ocasião é única, e es­tou persuadida de que, se chegar a lançar o chocolate, poderei re­fazer minha fortuna.

Excelente.

Ele retomou-lhe o envelope e, dirigindo-se para a lareira, lançou-o ao fogo. Quando a última folha se consumiu, ele voltou-se para ela, sempre calmo e sorridente.

Desgrez — murmurou a jovem —, como adivinhou?...

Oh! Minha querida — exclamou ele rindo —, acredita que eu seja tão simplório que não ache suspeita uma mulher que che­ga a minha casa com ar espantado, sem pó nem pintura, e que me conta que tem um encontro para ir passear na galeria do Palais?... Além disso...

Pareceu hesitar.

—   Eu a conheço muito bem — continuou ele. — Vi logo que alguma coisa não corria bem, que a situação era grave, e que era preciso agir com rapidez e vigorosamente. Em consideração a minhas intenções amigáveis, você me perdoará o ter-lhe brutaliza­do, não é mesmo?

—   Ainda não sei — disse ela, com algum ressentimento. — Vou pensar.

Mas Desgrez pôs-se a rir, envolvendo-a num olhar cálido. Ela se sentiu humilhada. Mas, ao mesmo tempo, dizia para si mesma que não tinha melhor amigo no mundo. Ele acrescentou:

—   Quanto à informação que me deu... com tanta boa vontade, não se preocupe com as suas consequências. Ela me é preciosa, mas não era senão um pretexto;- Conservo-a. No entanto, já esqueci quem me forneceu. Um conselho, ainda, minha cara, se o permite a um modesto policial: olhe sempre para diante. Não se volte jamais para o seu passado. Evite remexer-lhe as cinzas... Essas cinzas que foram dispersadas ao vento. Cada vez que pensar nelas, terá vontade de morrer. E eu nem sempre estarei perto pa­ra acordá-la a tempo...

Mascarada e, por maior precaução, com os olhos vendados, An­gélica foi conduzida, em um coche de cortinas baixadas, até uma pequena casa do subúrbio de Vaugirard. Só lhe tiraram a venda em um salão iluminado por algumas tochas, no qual se achavam reunidas quatro ou cinco personagens de peruca, muito afetadas, e que pareciam contrariadas de vê-la.

Se não fosse a presença de Desgrez, Angélica teria receado ha­ver caído numa armadilha, da qual não sairia com vida.

Mas as intenções do Sr. Colbert, um burguês de fisionomia fria e severa, eram leais. Ninguém melhor que aquele plebeu, que de­saprovava a licenciosidade e os excessivos gastos das pessoas da corte, para apreciar os fundamentos da petição que Angélica endereçava ao rei. O próprio soberano o havia compreendido — um pouco constrangido e forçado, devia-se reconhecer, pelo escândalo dos panfletos do Poeta Pobre.

Angélica percebeu logo que, se discutissem, seria meramente por uma questão, de forma. Sua posição pessoal era excelente.

Quando ela deixou, duas horas mais tarde, a douta assembleia, levava a promessa de que um donativo de cinquenta mil libras lhe seria entregue, do Bolsinho do próprio rei, para a reconstrução da Taberna da Máscara Vermelha. A patente de chocolataria con­cedida ao pai do jovem Chaillou seria confirmada. Angélica figu­raria nominativamente dessa vez. E ficou especificado que ela não dependeria de qualquer corporação.

Toda sorte de facilidades para a obtenção das matérias-primas lhe eram concedidas. Enfim, a título de reparação, ela pediu, para si própria, uma açao da recém-fundada Companhia das índias Orientais.

Esta última cláusula surpreendeu seus interlocutores. Mas aque­les senhores das finanças viram que a jovem conhecia perfeitamente os negócios. Ela fê-los notar que, concernindo ao seu comércio particularmente os produtos exóticos, a Companhia das índias Orientais só poderia sentir-se satisfeita de possuir uma cliente que tinha todo o interesse em que a citada companhia prosperasse e fosse mantida pelas maiores fortunas do reino.

O Sr. Colbert reconheceu, resmungando, que as reivindicações daquela moça eram evidentemente importantes, mas pertinentes e fundadas. Ela conseguiu tudo o que desejava. Em troca, os esbir­ros do Sr. d'Aubrays, tenente de polícia, deviam dirigir-se a um casebre em campina rasa, para ali encontrar uma caixa anonima­mente depositada e cheia de libelos onde se exibiam em tinta es­pessa os nomes do Marquês de La Valliere, do Cavaleiro de Lorena e de Monsieur, irmão do rei.

No mesmo coche de janelas cerradas que a conduzia a Paris, An­gélica procurava conter sua alegria. Não lhe parecia decente aque­la felicidade, sobretudo quando pensava nos horrores de que havia surgido o seu triunfo. Mas, enfim, se tudo se desenrolasse como previsto, seria o diabo se ela não chegasse um dia a ser uma das mulheres mais ricas de Paris. E, com dinheiro, até onde não po­dia ela subir? Iria a Versalhes, seria apresentada ao rei, recuperaria sua posição e seus filhos seriam educados como jovens nobres.

Para o regresso, não lhe tinham vendado os olhos, pois era noi­te fechada. Ela estava sozinha na carruagem, mas, entregue a seus cálculos e a seus sonhos, o trajeto pareceu-lhe curto. Ouvia em torno de si o tropel dos cascos dos cavalos de uma pequena es­colta.

De súbito, a viatura parou e uma das cortinas foi erguida do ex­terior. A luz de uma lanterna, ela viu o rosto de Desgrez inclinar-se para a portinhola. Ele estava a cavalo.

Deixo-lhe aqui, senhora. A carruagem a reconduzirá. Den­tro de dois dias, penso que a verei para entregar-lhe o que lhe é devido. Está tudo bem?

Penso que sim. Oh! Desgrez, é maravilhoso! Se eu chegar a instalar essa chocolataria, minha fortuna está feita.

Você o conseguirá. Viva o chocolate! — disse Desgrez.

Ele tirou o chapéu e, inclinando-se, beijou-lhe a mão, talvez um oouco mais demoradamente do que a cortesia lhe autorizava.

Adeus, Marquesa dos Anjos! Ela teve um pequeno sorriso.

Adeus, tira!

 

O charcuteiro da Place de Greve faz estranhas revelações sobre a morte de Joffrey de Peyrac

O charcuteiro da Place de Greve tomava ar diante de seu esta­belecimento. Era um dos primeiros dias de primavera. O céu mostrava-se radioso. Não havia ninguém enforcado no patíbulo nem aprestos de execução, e, do outro lado do Sena, as torres qua­dradas de Notre-Dame projetavam-se contra um céu azul-claro, no meio de uma grande revoada de pombos e de gralhas.

Não havia muita gente na praça naquela manhã. Percebia-se lo­go que a Quaresma não estava longe. As pessoas começavam a ca­minhar menos depressa e a mostrar:se mal-humoradas, como se fosse uma catástrofe o dever sacrificar-se uma vez ao ano por Nosso Senhor. Decerto, mestre Lucas, o charcuteiro, seria obrigado a fe­char a loja. Perderia dinheiro, e sua esposa grunhiria como uma porca molestada. Mas, enfim, penitência é penitência! Que cris­tãos eram aqueles que queriam fazer penitência sem sofrer? Mes­tre Lucas, no seu íntimo, agradecia à Santa Igreja ter instituído a Quaresma, que lhe permitia associar sua gastralgia às dores do Cristo crucificado.

Entrementes, uma belíssima carruagem surgiu na praça e parou não longe da charcutaria. Uma mulher apeou, uma mulher muito bonita, penteada à nova moda das damas do Marais: cabelos cur­tos, em pequenos anéis cerrados, com dois cachos mais compri­dos descendo ao longo do pescoço, para-pousar graciosamente sobre o peito. Mestre Lucas via nisso ainda um sinal da loucura dos tem­pos: as mulheres cortarem seus cabelos, esse gracioso ornamento que Deus lhes deu. Seria bonito ver a Sra. Lucas ou mesmo sua filha Joaninha cortarem os cabelos para imitar as grandes damas!

Mesmo durante a tremenda fome de 1658, quando o dinheiro faltava em casa, mestre Lucas se opusera a que sua mulher vendes­se sua cabeleira àqueles malditos cabeleireiros, sempre ávidos de satisfazer os gentis-homens. Assim ia o mundo: cortavam os cabe­los das mulheres para pô-los na cabeça dos homens!

A dama olhava as tabuletas e parecia procurar alguma coisa.

Quando se aproximava da Charcutaria Santo António, mestre Lucas a reconheceu. Um dia, haviam-na apontado no Quartier des Halles, onde ela possuía dois entrepostos de mercadoria. Não era uma dama de qualidade, como seu andar e a beleza de seus trajes poderiam fazer crer, mas uma das mais ricas comerciantes de Pa­ris, uma certa Sra. Morens. Por ter tido a engenhosa ideia de lan­çar a moda do chocolate, ela fizera fortuna. Nào somente ela dirigia a Chocolataria Anã Espanhola, no Faubourg Saint-Honoré, mas era ainda proprietária de vários restaurantes e tabernas afamados. Também dirigia algumas empresas mais modestas, mas prósperas, tais como a dos "coches de cindo soldos" e várias lojas da feira de Saint-Germain, bem como o monopólio da venda de pássaros das ilhas no Quai de la Mégisserie. Quatro dos comerciantes que acompanhavam a corte nos seus deslocamentos pagavam-lhe patente.

Diziam-na viúva, saída do nada, mas tão hábil nos negócios que as maiores personagens das finanças, e até o Sr. Colbert, gosta­vam de palestrar com ela.

Lembrando-se de tudo isso, mestre Lucas, quando a dama o abei­rou, tirou o gorro e inclinou-se tanto quanto lhe permitia seu pe­queno ventre roliço.

E aqui que mora mestre Lucas, dono da Charcutaria Santo António? — perguntou ela.

Sou eu mesmo, senhora, para lhe servir. Se quer dar-se ao trabalho de entrar em minha humilde casa...

Ele a precedeu, esperando uma encomenda importante.

Tenho chouriços, salames mais belos que a ágata, mais sabo­rosos que o néctar. Tenho também aqui este presunto vermelho que...

Eu sei... eu sei que tudo o que o senhor fabrica é excelente, mestre Lucas — interrompeu ela gentilmente. — E vou enviar-lhe esta tarde um rapaz para fazer minha encomenda. Mas, se vim eu mesma esta manhã, foi por outro motivo... Tenho uma dívida pa­ra com o senhor, mestre Lucas, há muitos anos, e ainda não a li­quidei.

Uma dívida? — repetiu, surpreso, o charcuteiro.

Ele olhou atentamente os belos olhos de sua interlocutora, de­pois abanou a cabeça, convicto de nunca ter ao menos dirigido a palavra a tão bela criatura.

Ela sorriu.

Sim. Eu lhe devo o preço da visita de um médico e de um boticário, que o senhor fez vir para tratarem de uma pobre moça que caiu doente à sua porta... há cerca de cinco anos.

Isso não me esclarece quem a senhora é — disse ele em tom afável. — Pois tem-me acontecido mais de uma vez cuidar de pes­soas que caem doentes à minha porta. Com tudo o que se passa na Place de Greve, eu teria feito melhor se me tornasse um frade hospitaleiro do que abrindo um negócio de charcutaria. A Greve não é um lugar para as pessoas que querem viver tranquilas. Con­te como a coisa se passou, para que eu me lembre.

Era uma manhã de inverno — disse Angélica com voz que se alterou contra sua svontade. — Queimavam um feiticeiro. Eu quis assistir à execução e vim, mas fiz mal, pois me achava grávida e quase na minha hora. O fogo me assustou. Desfaleci e despertei em sua casa. O senhor tinha feito vir um médico.

Sim! Sim! Agora me recordo — murmurou ele.

O sorriso jovial tinha-se apagado de seu rosto. Ele olhava Angé­lica com expressão perplexa, na qual havia piedade e também um pouco de receio.

—   Então é a senhora — disse ele docemente. — Pobre mulher! Angélica sentiu o rubor assomar-lhe às faces. Aquela visita, ela o sabia, trar-lhe-ia dolorosas recordações. Tinha feito o propósito de não olhar para trás e dizer consigo mesma, sem cessar, que ela era a Sra. Morens, dona de uma sólida fortuna e de uma reputa­ção quase sem mancha.

Mas a exclamação do bom homem libertou sua emoção e ela se reviu perdida na multidão, sacudida, esmagada de todos os la­dos, tão lamentável com seus olhos esgazeados, seu pobre corpo deformado.

Endireitou-se, alisou a saia de faile azul, as rendas tufadas sobre os punhos guarnecidos de jóias. Disse, esforçando-se por sorrir:

—   E verdade. Eu era àquela época uma pobre mulher e o senhor foi caridoso para comigo, mestre Lucas. Mas a vida, desde então, se me tem mostrado mais clemente, e eu posso hoje agradecer-lhe.

Dizendo isso, ela tirou de sua esmoleira uma pesada bolsa de couro que havia preparado e pousou-a sobre o balcão.

O charcuteiro pareceu não lhe prestar atenção ao gesto. Conti­nuou a mirar a visitante com ar atento e desconfiado.

—   Elisa, venha cá! — disse ele por cima do ombro.

A charcuteira aproximou-se e mergulhou nas suas numerosas saias deferrandine com sutaches de veludo. Ela ouvira a conversa.

De fato, a senhora mudou! — disse ela. — Mas eu a teria re­conhecido somente por seus olhos. Meu esposo e eu trocávamos frequentes censuras por a termos deixado partir naquele estado, e muitas vezes desejamos reencontrá-lá.

Tanto mais...

...que nós achávamos, depois, que deveríamos contar-lhe...

...o que se passara antes...

...desde que fosse de sua família...

Eles falavam com embaraço, interrogando-se mutuamente com o olhar e respondendo um ao outro como em uma litania.

De que família? — perguntou Angélica admirada.

Da família do feiticeiro.

A jovem sacudiu a cabeça, esforçando-se por simular indiferença.

Não, eu não era de sua família.

Isso acontece. Há mulheres que vêm assistir à execução e des­maiam diante da minha porta! Mas, nesse caso... se não é de sua. família...

Que me diriam se eu fosse de sua família?

O que se passou na Taberna da Vinha Azul, aqui ao lado, quando a carroça parou e desceram o feiticeiro para fazê-lo beber um gole antes de subir para a fogueira.

E que se passou?

O homem e a mulher entreolharam-se.

—   Oh! A senhora sabe — disse mestre Lucas —, não são coisas que se contem a qualquer pessoa... Quer dizer, a pessoas a quem isso não diz respeito. Somente a um membro de sua família isso poderia interessar... Mas, como não o conhecia...

Os olhos de Angélica iam de uma à outra das duas caras rubi­cundas. Ela não viu senão bondade, amabilidade ingénua.

—   Sim, eu o conhecia — murmurou ela com voz sufocada. — Era... meu marido!

O charcuteiro sacudiu a cabeça.

Bem que eu desconfiava. Então, escute.

Espere... — disse sua mulher.

Foi até a porta, fechou-a cuidadosamente e colocou os dois tapadores de madeira diante do mostruário onde se exibiam as vi­tualhas expostas aos olhos dos transeuntes.

Na penumbra impregnada do apetitoso cheiro das salsichas, do toucinho salgado, do presunto, Angélica, o coração aos saltos, per­guntava a si mesma que revelação iria ouvir. Sua visita ao charcu-teiro não tinha segunda intenção. Ela muitas vezes se reprovara não ter ainda reembolsado as boas criaturas que a tinham socorri­do. Mas protelava sempre esse instante. Que podiam dizer-lhe que ela ainda não soubesse? O carrasco não tinha acendido a foguei­ra?... O corpo de Joffrey de Peyrac não tinha sido consumido e suas cinzas dispersadas ao vento...

— Foi mestre Gilberto, o taberneiro, que nos contou a coisa — explicou o charcuteiro. — Ele falou numa noite em que bebera e seu segredo lhe pesava. Depois, fez-nos jurar que nada repetiría­mos, pois, com semelhantes histórias, a gente se arrisca a encontrar-se uma bela noite com uma adaga na garganta. Ele disse que na véspera da execução alguns homens mascarados o procuraram e lhe ofereceram um saco cheio de escudos. Que desejavam eles em troca? Que mestre Gilberto lhes deixasse sua taberna por toda a manhã do dia seguinte. Evidentemente, em uma manhã de execu­ção, uma taberna na Place de Greve obtém boa féria. Mas o que havia no saco ultrapassava muito o que ele poderia ganhar. Então ele respondeu: "Va lá! Estão em sua casa!" No dia seguinte, quan­do os mascarados vokaram, Gilberto fechou a porta da rua e retirou-se para o seu quarto com a família e as criadas. De vez em quando, para distrair-se, eles espiavam por um furo do tabique, para ver o que faziam os sujeitos mascarados. Não faziam nada. Estavam sentados em volta das mesas e pareciam esperar. Alguns tinham tirado a máscara, mas Gilberto não os conhecia. É preciso dizer-lhe que ele suspeitava um pouco do motivo pelo qual lhe haviam pedido a loja. Debaixo dela existem grandes porões, que são velhas fundações romanas, e há mesmo um subterrâneo meio derruído que comunica com as margens do Sena. Aqui entre nós: Gilberto utiliza às vezes esse subterrâneo para trazer algum tonel sem pagar direitos aos senhores do Hotel de Ville. Assim sendo, ele não se admirou quando viu os indivíduos levantarem-se e pu­xarem o tampo de seu próprio porão: Foi no momento em que a multidão começava a gritar porque a carroça do condenado che­gava à esquina da Rue de la Coutellerie e da praça. Todo mundo correu para as janelas, menos meu amigo Gilberto, que conserva­va o olho no tabique, porque lhe interessava saber o que se passava em sua taberna. Ele viu outros homens saírem do porão. Tra­ziam um objeto bastante comprido, envolto num saco... Ele não pôde ver o que havia no saco, mas fez esta reflexão: "Isso me pa­rece um afogado". Lá fora, o clamor se fazia cada vez mais inten­so. A carroça estava bem defronte da Vinha Azul e o tumulto era tão grande que a impedia de avançar. Mestre Aubin gritava e seus auxiliares davam chicotadas, tudo em vão. Esperando que a turba se acalmasse um pouco, mestre Aubin decidiu-se a entrar na Vi­nha Azul para procurar fortalecer o condenado com um pouco de aguardente. Frequentemente ele faz isso. Ele próprio bebe um gole, bem como os seus ajudantes. Deve-se reconhecer que o ofí­cio de carrasco exige um pouco de estimulante, não acha? Quan­do a porta se abriu, Gilberto viu muito bem o condenado que eles traziam. Tinha a camisa branca manchada de sangue e os cabelos negros tão longos que desciam até o chão... Perdoe-me, senhora, eu a molesto. Elisa, vá buscar uma garrafa com copos.

Não, eu lhe peço, continue — suplicou Angélica, arquejante.

E que... não há mais grande coisa a dizer, para falar a verda­de. O próprio Gilberto o confessa. Ele nada viu. A loja estava es­cura. Ele ouviu mestre Aubin gritar porque não havia ninguém para servir-lhe bebida. Os archeiros, lá fora, guardavam a porta. Haviam posto o condenado sobre uma mesa.

E que faziam os outros, os homens mascarados?

Eles estavam em pé, sentados, como abê-lo? Estava escuro. Gilberto disse: "Eu nada vi". Mas ele não pôde deixar de pensar que o saco que os outros depois levaram não tinha o mesmo con­teúdo que ao entrar e que... foi o afogado saído do subterrâneo que queimaram naquele dia na Place de Greve!

Angélica passou a mão pela fronte. A história parecia-lhe insen­sata, e ela perguntava a si mesma por que a contava o charcuteiro. Ela apreendia mal a significação oculta daquele relato. A luz pou­co a pouco passou através do seu estupor. Joffrey talvez não esti­vesse morto!

Mas seria possível? Ela o vira arder, grande forma negra amar­rada ao poste. Ela ficara sozinha, presa de todos... Jamais uma cla­ridade se produzira na sua noite, uma palavra, uma mensagem, um sinal amigo... Joffrey vivo! E tinha ela esperado mais de cinco anos para que uma alusão àquele milagre lhe fosse feita... por um charcuteiro que, segundo sua própria confissão, nada vira, não fa­zia senão repetir as palavras de um ébrio. Que loucura!

Joffrey vivo!... Ela poderia revê-lo, tocá-lo... Rever sua fisionomia misteriosa, fascinante, única, seu rosto horrível e tão belo! Onde estava ele? Por que ainda não tinha voltado? Ah! se ele ain­da não tinha voltado, era porque estava morto! Sim, morto! Não havia esperança.

—   Acalme-se — disse a charcuteira. — Não trema assim. Tudo isso não passa de uma suposição. Beba um pouco de vinho.

O vinho, muito forte, fez-lhe bem. Ela respirou profundamen­te duas ou três vezes e tranqúilízou-se. Mas estava enfraquecida como depois de uma doença curta e violenta.

Tristemente, ela abanou a cabeça.

—   O que vocês me contam é verdadeiramente estranho. Mas como interpretá-lo? Se tivesse havido substituição, mestre Aubin certamente o perceberia quando cobriu o condenado com o capuz negro, antes de amarrá-lo à fogueira. Seria preciso admitir que mestre Aubin foi pago em troca de sua cumplicidade e que...

Ela estremeceu.

—   Se tivessem visto o carrasco ao menos uma vez, como eu vi, compreenderiam que isso é impossível.

Os honestos donos da charcutaria tiveram um gesto de impo­tência.

Nada mais sabemos, minha senhora! Pensávamos que isso lhe interessaria. Muitas vezes dizíamos um ao outro: "Por que não voltou a pobre moça? Talvez nossa história pudesse dar-lhe um pouco de esperança!"

Cinco anos! — murmurou Angélica. — E nada durante todo esse tempo! Se ele contou com amigos devotados... quais?... para arrancá-lo assim às mãos do verdugo, amigos bastante ricos para pagar a fortuna necessária a dobrar mestre Aubin, por que nin­guém me avisou? Não, tudo isso não passa de loucura!

Ao levantar-se, suas pernas tremiam. Lançou um olhar inquie­to aos seus interlocutores.

Por que me contaram isso? Vão trair-me?

Não! Por quem nos toma, minha amiga?

Então, por quê? Querem mais dinheiro?

A senhora perdeu o juízo! — disse o pequeno charcuteiro, empertigando-se com súbita dignidade. — Gosto de prestar servi­ço ao meu próximo, eis tudo. E, quanto mais eu pensava nessa história, mais estava certo de que ela significava alguma coisa e que era à senhora que devia ser contada.

Ele ergueu os olhos devotamente para a estátua da Virgem.

—   Eu oro sempre a Nossa Senhora para que ela me inspire atos de verdadeira caridade, dessa caridade que é útil e benfazeja, e não daquela de que muitos se vangloriam e que humilha aquele que a recebe.

Se o senhor é tão bom cristão, deveria ter-se regozijado com a morte de um feiticeiro.

Eu não me regozijo com morte alguma — murmurou o char-cuteiro, cujos olhos azuis, enterrados nas pregas de gordura, bri­lharam com uma luz pura. — Todo homem, diante da morte, não é mais que uma alma em perigo. Nenhum condenado passou por esta praça sem que eu pedisse a Nossa Senhora que o salvasse a fim de que ele tivesse tempo de se redimir, ou de melhor viver, tendo medido sua fraqueza diante do abismo da eternidade. E isso às vezes acontece: um mensageiro do rei traz a graça, ou então... como ocorreu não há muito tempo, estala um conflito durante o qual três condenados podem evadir-se. É com essas coisas que eu me regozijo...

A esposa de mestre Lucas tinha ido reabrir a porta. O sol que de novo entrava não mostrou no semblante do charcuteiro senão sentimentos sinceros. Angélica, cuja experiência a tinha tornado assaz clarividente, não descobriu naquele comerciante nenhum sinal de hipocrisia.

Por que o senhor é tão bom? — disse ela, admirada. — As pessoas de suas corporações são insensíveis. Elas não prestam ser­viços sem esperar recompensa.

Por que não haveria de ser bom? — respondeu o charcuteiro com a alegria de um filho de Deus. — A vida é tão curta e eu não tenho muita vontade de perder meu paraíso por qualquer maro-teira ou dureza que me tornassem apenas mais rico e mais pode­roso que os outros.

Ao deixá-los, Angélica dispensou sua viatura e decidiu voltar a pé à Place Royale.

Ela sentia-se débil, mas tinha necessidade de caminhar para pôr alguma ordem nas ideias.

Seguiu o Sena por um cais que acabava de ser construído e que orlava o Convento dos Célestins.

As parreiras do belo pomar monástico começavam a e.nfeitar-se de folhas e gavinhas de um verde tenro. O público podia passear no recinto. Não se fechavam as portas, senão na época em que as uvas maduras podiam tentar os visitantes, e eram reabertas de­pois das vindimas.

Angélica entrou no pomar e foi sentar-se embaixo de uma das latadas. Ela ia frequentemente àquele lugar com amigas e homens galantes que lhe recitavam versos, ou mais simplesmente no do­mingo, como mãe de família, com Florimond e Cantor.

Naquela manhã, o recinto ainda estava meio deserto. Alguns fra­des, de burel pardo, cingidos por ayental de pano grosso, revol­viam a terra dos canteiros ou enxertavam as vinhas. Do convento chegava um sussurro de preces, cantos salmodiados, e um sino to­cava sem cessar.

Era daquela mistura de vozes, de cânticos, de círios acesos, de incenso, daquele acúmulo de ritos, de observâncias, de dogmas, que surgia, às vezes, no correr dos tempos, uma flor da santidade real, perfeita, como o Sr. Vicente, como o charcuteiro da Place de Greve.

Santidade cotidiana, impregnada de moderação e benevolência, que apagava séculos de torpezas, de mesquinharias, de intolerân­cia religiosa.

"Por causa desses seres excepcionais", pensou Angélica, "pode-se perdoar."     

 

Habilidade comercial de Angélica

Sentada naquele local, Angélica recordava sua visita ao charcu-teiro. Seu espírito continuava a voltear em torno da bendita pes­soa de mestre Lucas, na esperança de colher a certeza ou a dúvida.

O relato assumia, segundo o juízo que ela fazia do charcuteiro, aspectos diferentes. Alternadamente, ela queria ver nele o fruto de uma imaginação mista, uma manobra interessada para extrair-lhe dinheiro, ou simplesmente as confidências de um tagarela sem­pre feliz de mostrar que é mais bem informado que os outros.

Ao cabo de tantos anos, que podiam significar as açôes e os ges­tos de alguns indivíduos mascarados em uma manhã de execução? Supondo-se que a memória confusa de um ébrio, tal como o mes­tre da Vinha Azul, não houvesse confundido dois acontecimen­tos em um só, quem poderia ter-se preocupado em fazer escapar Joffrey de Peyrac?

Angélica sabia melhor que ninguém em que abandono eles se tinham encontrado, seu marido e ela, após caírem em desgraça.

A época, Andijos não passava de um desertor. Decerto, mais tar­de, ela ouvira dizer que ele tinha sublevado o Languedoc contra o rei. Uma luta surda, feita de hostilidade e de guerrilhas, se havia declarado; recusa de pagar impostos, escaramuças com as tropas reais. Finalmente, o próprio rei tivera de ir ao Languedoc, para pôr fim àquela tensão perigosa. Andijos fora capturado. Tudo aquilo Angélica ouvira dos bate-papos de pessoas da corte ao saborearem seu chocolate na Anã Espanhola.

Tudo aquilo havia talvez vingado Joffrey de Peyrac, mas não o havia salvado.

E mestre Aubin? Como aceitar a simples ideia de sua cumplici­dade? Aquele perfeito funcionário do reino já recusara fortunas, diziam.

E por que, em cinco anos, não recebera Angélica o menor eco daquela estranha conspiração?

A medida que as horas passavam, p raciocínio sem falha da Sra. ]Vtorens destruía a louca esperança da pequena Angélica. Ai! Ela não era mais uma jovem sonhadora. A vida se encarregara de convencê-la da sua solidão sem recurso. Quer seu marido houves­se morrido na fogueira, quer mais tarde, em um refúgio ignorado, ele não ressuscitaria! Jamais ela o veria de novo.

Apertou as mãos uma contra a outra, num gesto que se lhe ti­nha tornado habitual quando queria dominar emoções muito vi­vas. Seu semblante de mulher jovem tinha, por vezes, uma expressão distante e suave, que espelhava a sua resignação. Mas poucas pes­soas lhe conheciam aquela fisionomia, pois as necessidades de seu comércio a faziam risonha e amável, e mesmo um pouquinho rui­dosa. Ela se conformava de bom grado com esse papel. Estava na sua natureza o mostçar-se animada.

Além disso, aquilo a atordoava. Ela não tinha mais tempo de pensar. Assim, no correr do ano, ela não hesitara em lançar-se a iniciativas arriscadas, que faziam gemer Audiger e que tinham to­das, ou quase todas, alcançado bom êxito.

Agora Angélica era rica. Possuía um coche e morava na Place Royale. Já não era ela quem, na chocolataria, vertia a cheirosa be­bida nas xícaras das belas coquetes, mas um exército de negrinhos enfitados, que ela fizera vir de Sete e que havia treinado para esse fim.

Ela só se ocupava das contas e das faturas. Sua existência era a de uma burguesa abastada.

Angélica levantou-se e reencetou a caminhada ao longo do Quai des Célestins. Para não refletir muito sobre a confidência de mes­tre Lucas, pôs-se a evocar as diversas etapas percorridas desde a noite em que havia comparecido diante do Sr. Colbert.

Houvera, de início, a inauguração da chocolataria, tornada em pouco tempo um dos lugares da moda em Paris. Na tabuleta lia-se "Anã Espanhola", A rainha comparecera, encantada de não mais ser a única a beber chocolate. Sua Majestade viera acompanhada pela anã e seu anão, o grave Barcarola.

Desde então, a chocolataria não cessara de prosperar. Angélica reconhecia que uma sociedade com um homem enamorado como aquele honesto Audiger apresentava sérias vantagens. Muito fra­co para resistir-lhe e, por outro lado, persuadido de que ela um dia seria sua mulher, ele deixava-a inteiramente livre para fazer o que quisesse.

Escrupulosa na obediência às cláusulas do contrato, Angélica não procurava menos, antes de tudo, fazer frutificar sua parte. Assim é que tomara inteiramente a seu cargo a instalação de filiais em várias cidadezinhas dos arredores de Paris: Saint-Germain, Fon-tainebleau e Versalhes, e até em Lyon e Nantes.

Escolhia muito bem aqueles que colocava à testa de suas novas empresas. Concendia-lhes grandes vantagens, mas exigia uma con­tabilidade honesta e estipulava no contrato que o estabelecimento devia, nos seis primeiros meses, fazer progressos contínuos, sob pena de demissão. Esporeado por tal ameaça, o gerente desenvol­via uma atividade febril para convencer os provincianos de que era sua obrigação beber chocolate.

Angélica, ao contrário de muitos comerciantes e financistas da época, não entesourava o dinheiro.

Investiu o que possuía em outros pequenos negócios, tais como o das carruagens públicas de Paris, que partiam do Hotel Saint-Fiacre, apanhando em seu percurso obreiros, criados, pajens, ven­dedoras, soldados de muletas e escreventes apressados, e os leva­vam aonde eles queriam, por apenas cinco soldos.

Associara-se, igualmente, com seu antigo cabeleireiro de Tou­louse, Francisco Binet.

Angélica havia reencontrado Francisco Binet um dia em que, diante de seu espelho, ela mais uma vez se entristecia pensando em seus longos cabelos, outrora sacrificados pelos guardas do Châtelet.

Seus "novos" cabelos não eram feios. Eram até mais dourados e mais ondulados que os antigos, mas permaneciam desesperada­mente curtos. Agora que ela se tornara de novo uma dama e não podia dissimulá-los sob uma touca, sentia um certo constrangimen­to. Precisava de cabeleira postiça. Mas encontraria ela facilmente aquele tom de ourò-castanho, tão raro, que era o dos seus cabe­los? Recordou-se do que dissera o guarda que os havia cortado: "Vou vendê-los ao Sieur Binet, na Rue Saint-Honoré".

Seria o Binet de Toulouse?... Quem quer que fosse, havia pouca probabilidade de que o cabeleireiro ainda tivesse, em sua loja, a cabeleira de Angélica. Mas a curiosidade de rever aquele familiar dos tempos felizes não mais a abandonou. Foi logo procurá-lo.

Era mesmo Francisco Binet, discreto, obsequioso, tagarela. Com ele, estaria tranquila. Ele falaria de tudo, mas não faria nenhuma alusão ao passado.

Havia desposado uma mulher que tinha muita habilidade para pentear as damas e se chamava La Martin. Os dois atraíam uma clientela já bastante seleta.

Angélica podia apresentar-se sem falsa vergonha diante do anti­go barbeiro de seu marido.

A Sra. Morens, chocolateira, era personalidade muitíssimo co­nhecida em Paris. No entanto, todo entregue a penteá-la, Binet continuava a chamá-la a meia voz "senhora condessa", e ela não sabia se isso lhe agradava ou lhe dava vontade de chorar.

Binet e sua mulher compuseram para Angélica um penteado au­dacioso. Cortaram muito curto os seus cabelos, descobrindo-lhe as orelhas arrebatadoras e, com o que tiraram, formaram dois ou três cachos postiços que caíam graciosamente ao longo do pesco­ço e das espáduas e davam uma falsa aparência de compridos.

No dia seguinte, quando Angélica passeava no Mail com Audiger, duas damas a abeiraram e perguntaram-lhe quem a tinha pen­teado de maneira tão apropriada.

Ela mandou-as a Binet. Isso deu-lhe a ideia de associar-se com o cabeleireiro e sua mulher. Enviar-lhes-ia as grandes damas de sua própria clientela e ganharia uma porcentagem sobre o montante dos negócios do casal. Também lhes emprestou dinheiro para que eles mandassem viaturas à província, carregadas de aprendizes ca­beleireiros, que deviam comprar as cabeleiras das belas campone­sas. Paris já não chegava para o enorme consumo de cabelos destinados à fabricação de perucas.

Enfim, Angélica concluiu um negócio mais importante que to­dos os outros. Comprou "partes de barco" a um comerciante de Honfleur chamado João Castevast, com o qual já tinha relações para seu abastecimento de cacau.

Mestre Castevast fazia um tráfico bastante complicado, que ia do fretamento de pesqueiros para os bancos da Terra Nova à ven­da do bacalhau em Paris; das compras maciças de sal nas costas do Poitou e da Bretanha ao armamento de navios que traziam da América produtos exóticos. Aparelhava também corsários.

Seus negócios prosperavam. Ele emprestava dinheiro a juros al­tos e prazo curto aos marujos de suas próprias embarcações; ressegurava a quatro por cento créditos duvidosos que os estrangei­ros julgavam pouco seguros, mas que ele considerava bons; resga­tava escravos cristãos, trocando por eles mouros capturados por seus barcos, isso por intermédio de religiosos da Trindade, que tinham um convento em Lisieux.

Esta última atividade permitia a mestre Castevast passar por ben­feitor da humanidade, sempre pedindo "adiantamentos" às famí­lias dos prisioneiros e aceitando a expressão substancial do seu reconhecimento.

Os negócios do mercador Castevast eram habitualmente muito prósperos, mas ele assumia grandes riscos e, ultimamente, havia-se encontrado de súbito à beira da falência. Um de seus barcos tinha sido capturado pelos berberes; outro desaparecera em segui­da a uma revolta da equipagem, e o aumento do imposto sobre o sal tinha-lhe feito perder todo um carregamento de bacalhau.

Angélica fingiu que corria em socorro do pequeno mercador ma­treiro, cuja ousadia e habilidade ela í apreciara.

Ajudou-o de início emprestando-lhe dinheiro. Depois, por meio de suas relações, ela o fez eleger procurador do rei na câmara mu­nicipal de Honfleur. Obteve igualmente, para o irmão dele, o car­go de procurador do rei no almirantado da mesma localidade. Graças a esses dois cargos reais, João Castevast se encontrou qua­se inteiramente ao abrigo das rapinagens do fisco.

Além disso, sendo acionista da Companhia das índias Orientais e Ocidentais, Angélica obteve de Colbert autorização para que os barcos de Castevast tivessem acesso à Martinica e não pagassem senão uma pequena quantia aos funcionários reais da ilha.

Essa isenção de tributos era a primeira satisfação que ela busca­ra, como inconsciente vingança contra o cobrador de impostos que a importunara em sua infância. Ela também se lembrava, tal­vez, das primeiras normas comerciais que lhe tinham sido incul­cadas pelo Sieur Molines.

Um dos princípios da Sra. Morens, e talvez o segredo de seu êxito, era este rifão pessoal que ela jamais confiou a pessoa algu­ma: "Qualquer negócio é vantajoso... sem o fisco!"

Em troca de seus préstimos e de seus serviços, Angélica conse­guira de Castevast duas partes de seus barcos. Ela era, enfim, sua única comanditaria em Paris no que concernia aos produtos exó­ticos: cacau, marfim, carapaças de tartaruga, pássaros das ilhas, ma­deiras preciosas.

Fornecia madeiras às novas marcenarias reais, que o Sr. Colbert acabava de fundar. Quanto aos símios e aos pássaros, ela os ven­dia aos parisienses... Tudo isso lhe permitia ganhar muito dinheiro.

Angélica percebeu que, toda entregue a seus cálculos, deixara o cais e entrara na Rue du Beautreillis. A movimentação que rei­nava naquela rua chamou-a à realidade. Ela lamentou ter dispen­sado o coche. Andar a pé entre aguadeiros e criadas não se harmonizava com a sua nova condição. Tendo abandonado a saia curta das mulheres do povo, ela via com pena a barra de suas pe­sadas saias sujar-se de lama.

Um tumulto da populaça espremeu-a contra a parede de uma casa. Ela protestou violentamente. O gordo burguês que a tinha imprensado vokou-se para gritar-lhe:

—   Paciência, beleza! É o senhor príncipe que passa.

De fato, uma grande porta-cocheira acabava de abrir-se e uma carruagem de seis cavalos saiu.

Por trás da vidraça, Angélica teve-tempo de reconhecer o perfil sombrio do Príncipe de Conde. Algumas pessoas gritaram:

—   Viva o senhor príncipe!

Ele ergueu, enfadado, o punho de rendas. Para o povo ele conti­nuava o vencedor de Rocroi. Infelizmente, a paz dos Pireneus o forçava a um retiro que não lhe agradava muito.

Depois que ele passou, normalizou-se o tráfego. Angélica foi até diante do pátio da mansão que o príncipe acabava de deixar. Deu uma olhadela. Havia algum tempo que seu belo apartamento da Place Royale já não a satisfazia. Ela sonhava em possuir também uma casa com porta-cocheira, pátio para manobra de carruagens, pátio de cavalariças e de cozinhas, alojamento de criados e, por trás, um belo vergel com laranjeiras e canteiros floridos.

A residência que ela viu naquela manhã era de construção rela­tivamente recente. Sua fachada clara e sóbria, com janelas muito altas, balcões de ferro forjado, telhado de ardósia muito limpa, com trapeiras arredondadas, estava na moda nos últimos anos.

A porta fechava-se lentamente. Sem saber por quê, Angélica demorava-se. Observou que, por cima da porta, o brasão esculpi­do parecia ter sido quebrado. Não eram„a -velhice nem as intem­péries que tinham podido apagar assim as armas principescas, mas certamente o deliberado cinzel de um obreiro.

—   A quem pertence essa casa? — perguntou ela a uma florista que tinha loja não distante dali.

Ora... ao senhor príncipe — respondeu a outra, empertigando-se.

Por que fez o senhor príncipe retirar o escudo colocado por cima da porta? É pena, as outras esculturas são tão belas!

Oh! Essa é outra história — disse a boa mulher, com ar som­brio. — Eram as armas de quem fez construir a casa. Um nobre maldito. Ele praticava a feitiçaria e invocava o Diabo. Condenaram-no à fogueira.

Angélica ficou imóvel. Depois, sentiu o sangue fugir-lhe lenta­mente do rosto. Eis por que ela sentiu, diante daquela porta de carvalho louro que refletia os raios solares, uma impressão de coi­sa já vista...

Fora ali que ela viera em primeiro lugar, quando de sua chegada a Paris. Fora sobre aquela porta que ela vira apostos os selos da justiça do rei...

—   Dizem que esse homem era muito rico — continuou a mulher. — O rei distribuiu os seus bens. O senhor príncipe teve o maior quinhão, do qual fazia parte essa casa. Antes de ali entrar, ele mandou raspar as armas do feiticeiro e aspergir água benta por toda parte. A senhora pode imaginar... ele queria dormir tranquilo!

Angélica agradeceu à florista e afastou-se. Ao atravessar a Rue du Faubourg Saint-Antoine, já excogitara uma hábil manobra para fazer-se apresentar ao Príncipe de Conde.

Angélica mudara-se para a Place Royale alguns meses após a inau­guração da chocolataria. Saindo da Rua des Francs-Bourgeois pa­ra o centro do bairro aristocrático, a jovem subia um degrau na escala social.

Na Place Royale os gentis-homens batiam-se em duelo, e as be­las discutiam filosofia, astronomia e rimas.

Longe do cheiro penetrante do cacau, Angélica sentia-se renas­cer e abria olhos cheios de simpatia para aquele mundo fechado e tão parisiense.

A praça, emoldurada por suas casas cor-de-rosa, com seus altos telhados de ardósia e a sombra de suas arcadas que abrigavam, no pavimento térreo, lojas de rendas e bordados, ofereceu-lhe um re­fúgio onde ela descansava de seu labor.

Ali, vivia-se discreta e preciosamente. Os escândalos tinham fal­sos ares teatrais.

Angélica começou a saborear o prazer da conversação, esse ins­trumento de cultura que, havia meio século, transformava a sociedade francesa. Infelizmente, ela receava sentir-se canhestra. Seu espírito estivera tanto tempo distanciado dos problemas gerados por um epigrama, um madrigal ou um soneto!

Além disso, por causa de sua origem plebeia, ou que assim se acreditava, os melhores salões se lhe mantinham fechados. Para conquistá-los, ela encheu-se de paciência. Vestia-se ricamente, mas sem muita certeza de estar na moda.

Quando seus filhos passeavam sob as árvores da praça, os tran­seuntes voltavam-se para olhá-los, tão bonitos e bem vestidos eles eram. Florimond e o próprio Cantor usavam agora verdadeiros trajes de homem — de seda, brocado e veludo —, com grandes go­las de rendas, meias bordadas, sapatos de rosetas e tacões. Seus be­los cabelos frisados eram cobertos por chapéus de pluma, e Florimond tinha uma pequena espada, o que o encantava. Sob sua aparência nervosa e frágil, ele tinha a paixão da guerra. Desafiava para duelo o macaquinho Piccolo ou o pacífico Cantor. Este, com quatro anos, falava pouco. Não fosse a inteligência de seus belos olhos verdes, Angélica;o teria crido um tanto retardado. Ele era apenas taciturno e não"via a utilidade de falar, pois Florimond o compreendia e os criados adivinhavam seus mínimos desejos.

Angélica, na Place Royale, tinha uma cozinheira e um segundo criado. Com Flipot, promovido a pequeno lacaio, e o cocheiro, a Sra. Morens podia fazer muito boa figura entre suas vizinhas. Bárbara e Javotte usavam toucas de rendas, cruzes de ouro, xales indianos.

Mas Angélica sabia que aos olhos dos outros ela não passava de uma ricaça. Queria ir mais alto, e precisamente os salões do Ma-rais permitiam às ambiciosas "passar" da burguesia à aristocracia, pois burguesas e grandes damas ali se encontravam sob o signo do espirito.

Ela começou por ganhar as boas graças da velha senhorita que ocupava o apartamento por cima do seu. Esta havia conhecido os belos dias da sociedade "preciosa" e das querelas femininas. Ti­nha encontrado a Marquesa de Rambouillet, frequentara a Srta. de Scudéry. Seu jargão era delicado e ininteligível.

Filônis de Parajonc pretendia que existiam sete espécies de esti­ma e dividia os suspiros em cinco categorias. Desprezava os ho­mens e detestava Molière. O amor era a seus olhos "a cadeia infernal".

No entanto, ela não fora sempre tão desdenhosa. Murmurava-se que, na sua juventude, longe de contentar-se com o insípido país da Ternura, ela não menoscabara o reino do Coquetismo e tinha frequentemente visitado sua capital, a Sensualidade. Ela própria confessava, levantando uns olhos brancos: "O amor devastou-me terrivelmente o coração!"

— Se não houvesse devastado, como seria! — resmungou Audi-ger, que não via com bons olhos as visitas frequentes de Angélica aquela preciosa que começava a envelhecer. — Você vai tornar-se pedante. Um provérbio nosso diz, entretanto, que uma mulher é bastante sábia quando pode estabelecer diferença entre a camisa e o gibão de seu marido.

Angélica ria e desarmava-o com um trejeito.

Em seguida, ela ia assistir, com a Srta. de Parajonc, às conferên­cias do Palácio Precioso, onde aquela a tinha feito se inscrever por trinta francos.

Ali se encontrava a flor das pessoas honestas, isto é, muitas mu­lheres da média burguesia, eclesiásticos, jovens sábios, provincia­nos. O prospecto da sociedade era muito atraente:

"Pretendemos, mediante somente trinta francos, fornecer du­rante três meses, do primeiro dia de janeiro à terceira quinta-feira da Quaresma, todas as diversões que o espírito razoável pode imaginar.

Às segundas e aos sábados, baile e comédia, com distribuição gratuita de limões doces e laranjas de Portugal.

Às terças, concertos de alaúdes, de vozes e de instrumentos.

Às quartas, lição de filosofia.

Às quintas, leitura das gazetas e de peças novas submetidas a jul­gamento.

Às sextas, propostas curiosas submetidas a julgamento".

Estava tudo previsto para tranquilizar as damas a quem podia inquietar um regresso noturno:

"Dá-se boa escolta às pessoas que dela precisem para a seguran­ça de seu dinheiro, de suas jóias e pontos de Génova. Talvez não seja necessária, estando nós em entendimentos com todos os lará­pios de Paris, que nos prometem bons passaportes, de modo que se possa ir e vir com toda a segurança, havendo esses senhores fei­to ver que eles são bastante religiosos para cumprir a palavra em­penhada".

A tanta solicitude o Palácio Precioso acrescentava uma seleção de conferencistas de boa marca. Roberval, professor de matemáti­ca no Colégio Real, vinha falar do cometa que em 1665 agitara oS- parisienses.

Discutia-se a enchente do Nilo, o casamento de inclinação, mas também as causas da luz, a questão^do vácuo e do peso do ar.

Ouvindo as conferências científicas, Angélica não se sentia à vontade.      

Diante de certos vocábulos, ela estremecia, percebendo-lhe ou­vir a voz apaixonada de Joffrey de Peyrac e ver brilhar o fogo de seu olhar.

Meu cérebro é muito pequeno — disse ela um dia à Srta. de Parajonc. — Todas essas grandes questões me assustam. Não que­ro mais ir ao Palácio Precioso senão para o baile e a música.

Seu sublime está muito profundamente enterrado na maté­ria — lamentou a solteirona. — Como quer brilhar em um salão, se não anda ao corrente do que se discute? Você não quer nem filosofia, nem mecânica^ nem astronomia e não sabe versejar. Que lhe resta?... A devoçãc£ Leu ao menos São Paulo e Santo Agosti­nho? Bons obreiros para estabelecer a soberana vontade de Deus. Eu lhes emprestarei.

Mas Angélica recusou São Paulo e Santo Agostinho, e mesmo o livro da Srta. de Gournay: Da Igualdade dos Homens e das Mu­lheres, onde ela teria, entretanto, podido colher sólidos argumen­tos para opor às 'declarações de Audiger.

Em compensação, mergulhou avidamente, e quase em segredo, nas páginas do Tratado de Ademanes e de Boa Aparência, da Srta. de Quintin, e nas da Arte de Agradar na Corte, da Srta. de Croissy.

 

Vítima de um lacaio licencioso, Angélica é defendida pelo Marquês de Montespan

No dia seguinte ao em que fora à Place de Greve, Angélica ti­nha pedido à Srta. de Parajonc que a acompanhasse às Tulherias.

Era esta a sua companheira habitual. Conhecia todo mundo e dizia o nome de uns e outros à sua amiga, que assim ia conhecen­do as novas fisionomias da corte. Fazia-a também sobressair pelo contraste. Aliás, inconscientemente, pois a pobre Filônis, coberta de alvaiade até os olhos e com as pálpebras sombreadas de negro como uma velha coruja, acreditava-se ainda tão irresistível como nos tempos em que fazia suspirar interminavelmente os seus ad­miradores.

Ela ensinava a Angélica a boa maneira de passear nas Tulherias, representando com bastante vivacidade os gestos necessários, o que fazia rir os insolentes. Ela não via nisso senão homenagens presta­das aos seus encantos.

— Nas Tulherias — dizia ela —, é preciso passear displicente­mente na grande aléia. Deve-se falar sempre sem nada dizer, a fim de parecer espiritual. Deve-se rir sem motivo, a fim de parecer ale­gre... aprumar-se a todo instante, para exibir a garganta... abrir os olhos, para aumentá-los, morder os lábios para fazê-los vermelhos... falar com a cabeça a um, com o leque a outro... Adocicar-se, en­fim, minha cara! Graceje, gesticule, amaneire-se e faça tudo isso com ar de languidez...

A lição, de fato, não era má, e Angélica aplicava-a com mais pro­priedade e também mais sucesso que sua companheira.

As Tulherias eram, segundo a Srta. de Parajonc, "a liça da alta sociedade", e o Cours-la-Reine, "o império dos olhares amorosos". Ia-se às Tulherias para aguardar a hora do corso, e ali se vol­tava de noite, após o corso, alternando-se o passeio de carruagem com o passeio a pé.

Os bosquetes do parque eram favoráveis aos poetas e aos aman­tes. Os padres ali preparavam seus sermões, os advogados, seus arrazoados. Todas as pessoas de qualidade marcavam encontro na­quele local e ali se via às vezes o rei ou a rainha, e frequentemente Monseigneur, o delfim, com sua governanta.

Naquele dia, Angélica levou sua companhia para a banda do Grande Tabuleiro, onde eram encontradas habitualmente as altas personagens. O Príncipe de Conde ali se. achava quase toda tarde.

Ela ficou decepcionada de não vê-lo, enraiveceu-se e bateu com os pés.

Gostaria de saber por que você está tão ansiosa por ver Sua Alteza — disse, admirada, Filônis.

E absolutamente necessário que eu o veja.

Você tem alguma petição a dirigir-lhe?... Pois bem, não cho­re mais, minha cará, ali está ele:

De fato, o Príncipe de Conde acabava de chegar e aproximava-se pela grande aléia, cercado dos gentis-homens de sua casa.

Angélica viu logo que não havia qualquer encontro possível en­tre ela e aquele príncipe. Ela ia declarar-lhe sem cerimónia: "Mon­seigneur, entregue-me a casa da Rue du Beautreillis, que me pertence e que o senhor recebeu indevidamente das mãos do rei?"

Ou ainda: "Monseigneur, eu sou a mulher do Conde de Peyrac, cujas armas o senhor fez retirar e cuja casa mandou exorcismar..."

O impulso que a conduzira às Tulherias para ver o Príncipe de Conde era pueril e estúpido. Ela não passava de uma chocolateira enriquecida. Ninguém podia apresentá-la àquele grande senhor, e, além disso, que lhe diria ela?... Furiosa, dirigia a si mesma vee­mentes reproches: "Idiota! Se você se mostrar sempre tão impul­siva e sem raciocínio, que acontecerá aos seus negócios?..."

—   Vamos — disse ela à solteirona.

E, num súbito movimento, desviou-se do grupo cintilante e ta­garela que passava perto dela.

Malgrado a tarde radiosa, a doçura primaveril do céu, Angélica ficou emburrada durante o resto do passeio. Filônis perguntou-lhe se iriam ao corso. Ela respondeu que não. Sua carruagem era muito feia.

Um peralvilho as abeirou:

—   Senhora — disse ele a Angélica —, meu companheiro e eu trocamos perguntas a seu respeito. Um apostou que a senhora é esposa de um procurador; o outro, que é senhorita e preciosa. De­sate nossa dúvida.

Ela poderia ter rido. Mas seu ânimo estava sombrio, e ela detes­tava aqueles janotas, pintados como bonecas é que usavam a unha do auricular mais comprida que as dos outros dedos.

—   Aposte que é um tolo — respondeu ela. — E nunca perderá. E deixou-o estupefato.

Filônis de Parajonc estava escandalizada.

Sua réplica teve espírito, mas cheirava a peixeira a três léguas de distância. Jamais terá êxito em um salão se...

Oh! Filônis! — exclamou Angélica, parando de repente. — Olhe... ali!

O quê?

Ali — repetiu Angélica, com uma voz que não era mais que um murmúrio.

A alguns passos dela, no enquadramento verde de um bosquete, um jovem alto se tinha displicentemente apoiado contra a base de uma estátua de mármore. Era de uma beleza notável, que a ele-^pcia de seu traje tornava perfeita. Sua roupa de veludo verde-jftiêndoa tinha bordados de ouro que representavam pássaros e *nores. Era um pouco extravagante, mas bela como a libré da pri­mavera. Um chapéu de feltro branco, ornado de plumas verdes, cobria sua abundante peruca loira. Na moldura de seus longos ca­chos, seu rosto branco e rosa, levemente empoado, era guarneci­do de um bigode louro, desenhado em um só traço. Seus olhos eram grandes, de um azul transparente, que a sombra da folha­gem enverdecia.

O semblante do gentil-homem estava impassível e seus olhos não pestanejavam. Estaria sonhando? Meditando?... Suas pupilas azuis pareciam vazias como as de um cego. Tinham elas, na fixidez da­quele devaneio, a frieza da serpente.

O desconhecido não parecia perceber o interesse que despertava.

O que é isso, Angélica? — disse acremente a Srta. de Para­jonc. — Você perdeu o juízo? Essa maneira de olhar para um ho­mem é da última das burguesas.

Como... como se chama ele?

É o Marquês du Plessis-Bellière! Que há de extraordinário? Ele espera alguém, sem dúvida. Você, que não gosta dos perailhos, por que fica plantada aí como uma árvore que houvesse criado raízes?

Desculpe-me — balbuciou a jovem, caindo em si.

por um segundo, ela se tinha tornado de novo uma menina ad­mirativa e bravia. Filipe! Aquele grande primo desdenhoso. Oh! Monteloup e o cheiro da sala onde o calor da sopa fazia fumegar a toalha úmida. Sofrimentos e doçuras misturados!

As duas damas passaram diante dele. Ele pareceu notá-las, mexeu-se e, tirando o chapéu, com gesto de profundo tédio, saudou-as.

É um gentil-homem da corte, não é? — perguntou Angélica depois que se afastaram um pouco.

Sim. Ele foi para a guerra com o senhor príncipe, no tempo em que o mesmo estava com os espanhóis. Depois, foi nomeado monteiro-mor da França. Ele é tão belo e gosta tanto da guerra que o rei o chama de Marte. No entanto, contam-se dele coisas horríveis.

Coisas horríveis?... Eu gostaria de saber...

A Srta. de Parajonc teve um risinho resignado.

—   Você já está ofendida de ouvir falar mal desse belo senhor. Aliás, todas as mulheres são como você. Elas correm atrás dele e desmaiam diante de seus cabelos louros, sua cor fresca, sua elegância. Não sossegam enquanto não se metem na cama dele. Mas aí elas mudam de tom. Ouvi as confidências de Armanda de Circé e da Srta. Jacari... O belo Filipe parece doce e polido. Ele é distraído como um velho sábio, e isso faz sorrir a corte. Mas parece que no amor ele é de uma brutalidade extrema; um palafreneiro tem mais consideração por sua mulher que ele por suas amantes. Todas as que passaram pelos seus braços o odeiam...

Angélica escutava com uma só orelha. A visão de Filipe, apoia­do à estátua de mármore, imóvel e quase tão irreal como uma apa­rição, não a abandonava. Outrora, ele a tinha tomado pela mão para fazê-la dançar. Foi no Plessis, naquele castelo branco envol­vido misteriosamente pela'grande floresta de Nieul.

—   Parece que ele tem uma cruel imaginação para torturar suas amantes — continuou Filônis. — Por uma nuga, ele bateu na Sra. de Circé tão horrivelmente que ela ficou sem poder mexer-se, ou quase isso, durante oito dias, o que foi bem embaraçoso, por causa do marido. E, nas suas campanhas, a fornia pela qual ele se conduzia quando era vencedor constituía um verdadeiro escândalo. Suas tropas são mais temíveis que as do famoso João de Werth. As mulheres são perseguidas até nas igrejas e violentadas sem discernimento. Em Norgen, ele fez vir as filhas das pessoas impor­tantes, quase as matou porque elas resistiram e, depois de uma noite de orgia com seus oficiais, ele as entregou à tropa. Várias morre­ram ou ficaram loucas. Se o senhor príncipe não houvesse inter­vindo, Filipe du Plessis teria, certamente, caído em desgraça.

—   Filônis, você é uma velha invejosa! — exclamou Angélica, tomada de uma irritação súbita. — Esse jovem não é nem pode ser o energúmeno que você me descreve. Você exagera deliberadamente os mexericos que ouviu a seu respeito.

A Srta. de Parajonc estacou, sufocada de indignação.

Eu? Mexericos?... Você bem sabe como tenho horror a isso, a histórias de vizinhança e a tudo o que cheira a visita feita a uma parturiente. Eu, mexericos!... Eu, que sou tão desprendida das coisas vulgares! Se lhe falo assim é por ser verdade]

Pois bem, se é verdade, não é inteiramente por culpa dele — decretou Angélica. — Ele é assim porque as mulheres lhe fize­ram mal, devido à sua beleza.

Como... como você sabe disso? Você o conhece?

N... não.

Então, está louca! — exclamou a Srta. de Perajonc, que se tor­nara escarlate de cólera. — Nunca pensei que você pudesse ficar transtornada por um bonifrate dessa espécie. Adeus...

Ela a deixou e dirigiu-se, a passos largos, para o portão de saída. Angélica não teve outro recurso senão segui-la, pois não queria indispor-se com a vizinha, a quem muito prezava.

Se Angélica e a velha preciosa não houvessem discutido naquele dia, nas Tulherias, por causa de Filipe du Plessis-Bellière, não te­riam saído tão precipitadamente. E, ,se elas não houvessem saído naquele instante, não teriam sido vítimas de uma grosseira aposta que acabam de fazer os lacaios amontoados diante das grades. O Sr. de Lauzun e o Sr. de Montespan não se teriam batido em due­lo pelos belos olhos verdes da Sra. Morens. E Angélica teria de esperar, sem dúvida, muito tempo ainda, antes que pudesse fre­quentar de novo os grandes daquele mundo. O que prova que às vezes é bom ter a língua solta e ser agastadiça.

Com efeito, sendo proibida por escrito a entrada no jardim "aos lacaios e à ralé", sempre havia diante das grades uma ruidosa tur­ba de criados, lacaios e cocheiros, que passavam as horas de espe­ra entre partidas de baralho ou de boliche, quando não estavam metidos em alguma briga ou bebendo na taberna da esquina. Naquela tarde, os lacaios do Duque de Lauzun tinham feito uma apos­ta. Pagariam um quartilho àquele que tivesse a audácia de levantar a saia da primeira dama que saísse das Tulherias.

Aconteceu que essa dama foi Angélica, que acabava de juntar-se a Filônis e procurava acalmá-la.

Antes que ela tivesse tempo de prever o gesto do insolente, viu-se agarrada por um zangaralhão que fedia a vinho e estava des­composto. Quase instantaneamente, sua mão abateu-se sobre a fa­ce do indiscreto. A Srta. de Parájonc soltava gritos papagaiais.

Um gentil-homem que entrava em seu coche e assistira à cena fez um sinal aos seus homens, e estes, muito contentes pela opor­tunidade, caíram sobre a famulagem do Sr. de Lauzun.

Foi um pugilato furibundo, sobre excrementos de cavalos e no meio de um círculo de curiosos. Coube a vitória à libré do gentil-homem. Ele aplaudia entusiasticamente.

Ele veio a Angélica e saudou-a.

—   Senhor, obrigada por sua intervenção.

Estava furiosa e humilhada, mas sobretudo assustada, porque es­tivera a ponto de corrjgir ela própria o bêbado, à boa maneira da Taberna da Máscara Vermelha, temperando a lição com algumas palavras enérgicas saídas diretamente do vocabulário da Polaca. Todos os cuidados que Angélica tomava para voltar a ser uma gran­de dama teriam sido inúteis. No dia seguinte, as damas do Marais gozariam o incidente.

Branca de emoção a esse pensamento, a jovem resolveu desfale­cer levemente, segundo as boas tradições.

Ah! senhor... que infâmia! É horrível! Estar assim exposta aos ultrajes desses patifes!

Reanime-se, senhora — disse ele, sustentando-a pela cintura com braço presto e vigoroso.

Era um belo rapaz de olhos vivos e cujo acento cantante não podia enganar. Era um gascão, com toda a certeza! Ele se apre­sentou:

—   Luís Henrique de Pardaillan de Gondrin, Cavaleiro de Pardaillan e outros lugares, Marquês de Montespan.

Angélica conhecia o nome. O recém-vindo pertencia à mais an­tiga nobreza da Guyenne. Ela sorriu com toda a sedução de que era capaz, e o marquês, manifestamente encantado pelo encontro, procurou saber onde e quando poderia ter notícias dela. A jovem não quis dizer seu nome, mas respondeu:

—   Venha às Tulherias amanhã, à mesma hora. Espero que as circunstâncias sejam mais favoráveis e nos permitam palestrar agra­davelmente.

Onde a esperarei?

Perto do Eco.

O local escolhido prometia muito. O Eco era o lugar dos en­contros galantes. Satisfeito, o marquês beijou a mão que lhe era estendida.

Tem uma cadeirinha? Posso dar-lhe condução?

Meu coche não está longe — afirmou Angélica, que não que­ria exibir sua modestíssima carruagem.

Então, até amanhã, misteriosa beldade.

Dessa vez, ele beijou-lhe a face com presteza e, a largas passa­das, voltou para sua viatura.

—   Você não tem pudor — começou a Srta. de Parajonc. Mas o Marquês de Lauzun apareceu junto ao portão. Vendo em que estado se encontravam seus criados, um cuspindo os dentes, outro sangrando pelo nariz, todos rasgados e empoeirados, pôs-se a esbravejar com voz de falsete. Como lhe explicassem que o mal viera da criadagem de um grande senhor, ele exclamou:

—   Moerei a cacete esses infames e seu amo! Essa espécie não é digna de ser tocada com uma espada.

O Marquês de Montespan ainda não estava instalado em seu co­che. Ouvindo aquilo, saltou do estribo, correu por trás de Lau­zun, agarrou-o pelo braço, fê-lo rodar sobre os calcanhares e, depois de enterrar-lhe o chapéu sobre os olhos, chamou-o de estúpido e mariola.

Um segundo mais tarde, duas espadas brilhavam, e os dois gas-cões se batiam em duelo sob os olhos cada vez mais interessados dos presentes.

—   Senhores, por favor! — gritava a Srta. de Parajonc. — O due­ lo é proibido. Dormirão esta noite na Bastilha.

Mas os dois marqueses não deram ouvidos a essas razoáveis pre­dições e esgrimiam com ardor, enquanto a turba opunha verda­deira resistência passiva aos guardas suíços que procuravam romper as fileiras para chegar até os duelistas.

Felizmente, o Marquês de Montespan conseguiu cortar a coxa de Lauzun. Péguilin vacilou e deixou cair sua espada.

—   Vamos depressa, meu caro! — gritou o marquês, sustentan­do o adversário. — Evitemos a Bastilha! Senhoras, ajudem-me.

O coche arrancou no instante em que, à custa de murros e gol­pes de alabarda, os guardas suíços estavam prestes a alcançá-lo. Enquanto a viatura descia, com grande estrépito, a Rue Saint-Honoré, Angélica, pondo sua echarpe sobre a ferida de Péguilin, achou-se amontoada na carruagem com o Marquês de Montespan, a Srta. de Parajonc e até o lacaio que havia provocado o incidente e que tinha sido jogado meio morto ao piso do veículo.

Você será condenado à golilha~e às galés — disse-lhe Pégui­lin, dando-lhe um coice no estômago. — E não serei eu quem pa­gará uma libra pelo seu resgatei-... Com os demónios, meu caro Pardaillan, graças a você, meu cirurgião não terá necessidade de sangrar-me nesta estação.

É preciso pensar-se — disse o marquês. — Venha à minha re­sidência. Creio que minha mulher hoje está em casa com amigas.

Na esposa do Sr. de Montespan, Angélica reconheceu a bela Ate­naís de Mortemart, a antiga colega de internato de Hortênsia, com a qual ela assistira outrora à entrada triunfal do rei em Paris.

A Srta. de Mortemart, que se chamava, em sua juventude, Srta. de Tonnay-Charente^ havia-se casado em 1662. Tornara-se mais bela ainda. Sua tez rasada, seus olhos azuis, seus cabelos de ouro e o célebre espírito de sua família faziam dela uma das mulheres mais notáveis da corte. Infelizmente, se a família de seu marido e a sua eram de alta linhagem, também se equiparavam em difi­culdades financeiras. Atormentada de dívidas e assediada pelos cre­dores, a pobre Atenaís não podia dar à sua beleza o lustre que ela merecia, e acontecia-lhe faltar a festas na corte por não poder ali comparecer de roupa nova.

O apartamento para onde se dirigiam os duelistas das Tulherias, acompanhados de Angélica e de Filônis de Parajonc, trazia a mar­ca de uma pobreza quase miserável,- contrastando com uma ele­gância de trajes quase opulenta.

Vestes luxuosas estavam em desordem sobre os móveis empoei­rados. Não havia fogo na lareira, malgrado a estação ainda fresca, e Atenaís, em chambre de tafetá, discutia feito uma megera com o empregado de um ourives, que viera cobrar o sinal da encomen­da de um colar de ouro e prata dourada, que a jovem devia estrear em Versalhes na semana seguinte.

O Sr. de Montespan chamou a si a questão e expulsou o caixei­ro a pontapés. Atenaís protestou. Queria seu colar. Seguiu-se uma discussão, enquanto o sangue do pobre Lauzun inundava o piso.

A Sra. de Montespan refletiu, afinal, e chamou sua amiga Francisca d'Aubigné, que viera ajudá-la a pôr um pouco de ordem no apartamento, pois as criadas haviam partido na véspera.

A viúva do poeta Scarron apareceu logo, tão parecida consigo mesma, em seu vestido pobre, com seus grandes olhos negros e a expressão reservada de sua boca, que Angélica teve a impressão de havê-la deixado na véspera.

"Dentro de um instante verei surgir Hortênsia", pensou ela.

Ajudou Francisca a transportar para um canapé o Marquês de Lauzun, que acabara por desfalecer.

—   Vou buscar água na cozinha — disse a viúva Scarron. — Tenha a bondade de conservar o curativo sobre o ferimento... senhora...

Pela imperceptível hesitação, Angélica compreendeu que a Sra. Scarron também a reconhecera. Isso não tinha importância. A Sra. Scarron era dessas pessoas que devem ocultar uma parte de sua existência. De qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde, Angé­lica teria de se defrontar com as caras do seu passado.

No aposento vizinho, o casal Montespan continuava a altercar.

Mas como não a reconheceu?,.. É a Sra. Morens! Você se ba­te em duelo agora por uma chocolateira?

Ela é adorável... e não esqueça que ela tem fama de ser uma das mais ricas mulheres de Paris. Se é mesmo dela que se trata, não me arrependo de meu gesto.

Você me desgosta!

Minha cara, quer ou não seu colar de diamantes?

"Bem", disse Angélica consigo mesma, "saberei como testemu­nhar meu reconhecimento a essas pessoas da grande nobreza. Um presente valioso, talvez mesmo uma bolsa bem pesada, mas tudo envolto em discrição e delicadeza."

O Marquês de Lauzun ergueu as pálpebras. Pousou em Angéli­ca um olhar vago.

Estou sonhando — balbuciou ele. — E você, minha querida?

Sim, sou eu — disse ela, sorrindo-lhe.

Que o diabo me leve se eu esperava tornar a vê-la, Angélica! Muitas vezes perguntei a mim mesmo o que era feito de você.

Perguntou, mas aposto que não procurou sabê-lo.

É verdade, querida. Eu sou um cortesão, e todos os corte­sãos são um tanto covardes em relação àqueles ou àquelas que caem em desgraça.

Ele examinou o traje e as jóias da jovem.

—   As coisas parecem ter-se arranjado — disse ele.

Era preciso. Agora eu me chamo Sra. Morens.

Por São Severino, já ouvi falar de você! Vende chocolate, não?

Eu me distraio. Há os que se ocupam de astronomia ou de filosofia. Eu vendo chocolate. E você, Péguilin? Continua a bri­lhar na corte? O rei continua a dedicar-lhe amizade?

péguilin ficou sério e pareceu esquecer sua curiosidade.

Ah! minha cara, o equilíbrio do meu favor é instável. O rei pensa que eu estou ligado a Vardés na história da carta espanhola, aquela carta que fizeram chegar à rainha para informá-la das infi­delidades de seu augusto esposo com La Vallière... Eu não consi­go dissipar essa suspeita, e Sua Majestade é às vezes muito rude comigo!... Felizmente a Grande Mademoiselle está enamorada de mim.

A Srta. de Montpensier?

Ela mesma — cochichou Péguilin, revirando os olhos bran­cos. — Penso que ela vai perdir-me em casamento.

Oh! Péguilin! — exclamou Angélica, soltando uma gargalha­da. — Você é impagáyel, incorrigível. Não mudou nada!

Você também nãõ mudou. E está bela como uma ressuscitada.

Que sabe você sobre a beleza das ressuscitadas, Péguilin?

O que diz a Igreja! Um corpo glorioso!... Venha cá, coração-zinho, que eu quero beijá-la.

Ele tomou-lhe o rosto com as duas mãos e puxou-a para si.

—   Com os demónios! — exclamou Montespan da entrada do aposento. — Não lhe basta que eu lhe abra a coxa para impedir-lhe de correr? É preciso ainda, Péguilin do diabo, que você venha passar-me para trás em minha própria casa? Fiz muito mal em não deixá-lo ir para a Bastilha!

 

O Príncipe de Conde pede a Angélica que se torne sua amante

Depois desse encontro, Angélica revia frequentemente, nas Tu-lherias e no Cours-la-Reine, o Duque de Lauzun e o Marquês de Montespan. Estes apresentaram-lhe seus amigos. E, pouco a pou­co, os rostos do passado foram ressurgindo. Um dia em que An­gélica passeava no Cours com Péguilin, seu coche cruzou-se com o da Grande Mademoiselle, que a reconheceu. Nenhuma alusão foi feita. Prudência ou indiferença? Cada uma tinha tanto em que pensar!

Depois de mostrar-se reservada para com Angélica, Atenaís de Montespan tinha-se repentinamente afeiçoado a ela e convidava-a para ir a sua casa. Ela observara que aquela chocolateira falava pou­co, mas dava-lhe réplicas admiráveis.

Foi a Sra. Scarron, que Angélica frequentemente revia na resi­dência dos Montespan, quem a introduziu em casa de Ninon de Lenclos.

O salão da célebre cortesã nlo era considerado lugar de liberti­nagem, mas escola, por excelência, de bom gosto.

A amizade que uniu Ninon de Lenclos e Angélica de Sancé per­maneceu discreta. Poucas cartas existem que dêem testemunho dessa amizade, e nenhuma das duas fez alarde dos sentimentos profun­dos e sólidos que as ligaram desde o primeiro encontro. Perten­ciam ambas a essa raça de mulheres que atraem os homens, mais ou menos inconscientemente, por um encanto em que se dosam igualmente os atrativos do corpo, do coração e da inteligência. Elas poderiam ter sido inimigas. Ao contrário, sentiram uma pela ou­tra a única amizade feminina de suas existências.

Angélica, por ter lutado pertinazmente para sobreviver, era capaz de apreciar em Ninon aquelas qualidades de retidão, coragem e simplicidade tão raras em seus semelhantes e que faziam da cortesã "um homem honesto". E, por seu turno, esta compreendeu logo que Angélica desejava servir-se dela para elevar-se o mais alto possível na escala social. Desempenhou esse papel da melhor maneira, guiando a nova amiga, aconselhando-a, apresentando-a a todos.    

Para que Angélica não se enganasse, ela lhe disse um dia:

—   Minha amizade é o que eu tenho de melhor, Angélica. De todas as dedicações, todas as delicadezas e longanimidade que não existem no amor minha amizade é capaz. De todo o meu coração, eu a ofereço a você. Não depende senão de você que ela dure o tempo de nossa vida.

Conhecendo melhor do que ninguém o valor de uma vida vo­luptuosa, Ninon comprazia-se em aconselhá-la às naturezas ver­dadeiramente sensíveisj. Encorajou Angélica a arranjar um amante bem titulado. Mas Angélica mostrava-se indiferente. Estando sua vida material garantida por suas atividades comerciais, ela achava que a galanice era na realidade o meio menos seguro para alcançar o ápice das honras. A Companhia do Santíssimo Sacramento, oculta e poderosa, reinava até nos degraus do trono. Tinha devotos em toda parte. No jogo que praticava, Angélica apoiava-se neles com uma das mãos, por sua reputação de prudência, e com a outra nos libertinos, por sua alegria e seu entusiasmo em todas as festas.

—   Tome ao menos um amante para o prazer — aconselhou ainda Ninon. — Não vá fazer-me crer que o amor a desagrada!

Angélica respondeu que não tinha tempo para pensar nisso. Ela mesma se admirava da calma de seu corpo. Dir-se-ia que sua cabe­ça, a força de trabalhar sem descanso e de acumular projetos so­bre projetos, a tinha esvaziado do desejo mais elementar. Quando desabava de noite em seu leito, morta de fadiga e após ter concluí­do seu dia com uma suprema brincadeira de esconde-esconde com seus filhos, ela não tinha senão uma ideia: dormir profundamen­te, refazer as forças, para continuar a faina do dia seguinte.

Jamais se entediava, e o amor é frequentemente, para a mulher desocupada, um derivativo. As declarações inflamadas de seus cor­tadores, suas carícias furtivas, as "cenas conjugais" de Audiger, que as vezes terminavam por beijos aos quais o mordomo se arrançava dificilmente, tudo isso não representava para ela senão "jo­gos úteis ou inúteis", conforme o proveito que auferia.

Ninon, depois de escutar suas confissões, afirmou-lhe que essa mentalidade confinava com a doença. Para curar-se, era preciso abandonar algum tempo o trabalho e aproveitar os prazeres que uma vida livre oferecia aos ociosos: passeios, bailes de máscara, teatro, ceias e jogos a todas as horas.

Em casa de Ninon, Angélica encontrou Paris inteira. O Prínci­pe de Conde ali ia jogar semanalmente sua partida de boca.

Várias vezes ela viu Filipe du Plessis, a quem se fez apresentar. O belo jovem deixou cair sobre ela um olhar cujo desdém ela já experimentara, e, após refletir, disse com desprezo:

—   Ah! então é você, Sra. Chocolate.

O sangue de Angélica paralisou-se. Ela inclinou-se em uma pro­funda reverência:

—   Para servi-lo, meu primo.

As sobrancelhas do rapaz aproximaram-se.

Seu primo? Parece-me, senhora, que é muito ousada...

Não me reconheceu — disse ela, encarando-o com seus olhos verdes fulgurantes de cólera. — Sou sua prima Angélica de Sancé de Monteloup. Encontramo-nos outrora no Plessis. Como vai seu pai, o amável marquês?... E sua mãe?...

Ela falou-lhe assim ainda por algum tempo, a fim de conven­cê-lo de sua identidade. Depois deixou-o, mordendo a língua por sua tolice.

Durante vários dias, ela viveu no receio de ver divulgado o seu segredo. Quando de novo encontrou o Sr. du Plessis, suplicou-lhe que não repetisse o que lhe dissera.

Filipe du Plessis pareceu cair das nuvens. Declarou, afinal, que aquela confidência o deixara indiferente e que, além do mais, ele não tinha interesse em que soubessem que ele era parente de uma dama que se rebaixara a vender chocolate.

Angélica deixou-o, furiosa, prometendo a si mesma não mais prestar-lhe atenção. Ela sabia que o pai de Filipe morrera e que sua mãe, tornando-se devota em reparação de suas loucuras passa­das, se retirara para o Val-de-Grâce. O rapaz dilapidava sua fortu­na em extravagâncias. O rei gostava dele por causa da sua beleza e da sua bravura, mas sua reputação era escandalosa e mesmo in­quietante. Angélica se reprovava por pensar nele tão frequen­temente.

Uma declaração de amor inesperada e uma partida de hoca sensacional perturbaram-lhe a existência e desviaram-na de seus pen-samentos durante alguns meses.

£la estava bastante orgulhosa de figurar na lista das pessoas a quem a Srta. de Montpensier permitia entrar no jardim do Lu­xemburgo. Um dia em que ela ali chegara, a mulher do suíço, es­tando o marido ausente, abriu-lhe o portão.

Angélica internou-se nas belas aléias" margeadas de salgueiros e magnólias. Percebeu logo que o jardim, habitualmente muito ani­mado, estava naquele dia quase deserto. Não notou senão dois cria­dos de libré, que corriam desabaladamente e se embrenharam num bosquete. Depois, mais nada. Intrigada e vagamente inquieta, con­tinuou seu passeio solitário.

Quando passava perto de uma pequena gruta de embrechados, pareceu-lhe ouvir um leve ruído e, voltando-se, distinguiu uma for­ma humana agachada em uma touceira. "Deve ser algum larapio", pensou ela, "algum vassalo do Sieur Traseiro de Pau, à espera de uma oportunidade para entrar em ação. Seria bem divertido surpreendê-lo e falar-lhe ém gíria, para ver a cara que ele'faria."

Ela sorriu antecipadamente. Não era todos os dias que um rapa-bolsas de emboscada podia ter ocasião de se encontrar diante de uma grande dama que falava a pura linguagem da Tour de Nesle e do Faubourg Saint-Denis. "Em seguida dar-lhe-ei minha bolsa, para arrancar o pobre homem ao seu estupor!", pensou ela, en­cantada de uma brincadeira que não teria testemunha.

Mas, quando se aproximou, de mansinho, viu que o homem es­tava ricamente vestido, embora seus trajes estivessem sujos de la­ma. Ele se conservava de joelhos, com o busto inclinado para a frente, apoiado sobre os cotovelos, em uma postura estranha. De súbito, ele voltou nervosamente a cabeça, como se escutasse, e ela reconheceu o Duque d'Enghien, filho do Príncipe de Conde. Já o encontrara nos passeios da moda, nas Tulherias, no Cours-la-Reine. Era um adolescente muito brilhante, mas que diziam in­tratável nas questões de etiqueta e desprovido de moderação.

Angélica constatou que ele estava muito pálido, com uma ex­pressão selvagem.

"Que faz ele ali? Por que se esconde? Que receia?", perguntou ela a si mesma, tomada de um mal-estar indefinível.

Depois de .hesitar, ela se retirou sem ruído e voltou a uma das grandes aléias do jardim. Passou pelo suíço, que, vendo-a, ficou assombrado.

— Oh! Senhora, que faz aqui? Retire-se depressa!

—   Mas por quê? Você bem sabe que eu estou na lista da Srta. de Montpensier. E sua mulher deixou-me entrar sem dificuldades.

O guarda olhou em volta de si com ar desolado. Angélica sem­pre fora muito generosa para com ele.

—   Que a senhora me perdoe — cochichou ele, aproximando-se —, mas minha mulher não sabe o segredo que vou confiar-lhe: o jardim está hoje interditado ao público, porque desde cedo andam à procura do Sr. Duque d'Enghien, que imagina ser um coelho.

E, como a jovem escancelasse os olhos, ele tocou as fontes com o dedo.

Sim, isso lhe dá de vez em quando, pobre rapaz! Parece que é uma doença. Quando ele se supõe coelho ou perdiz, tem medo de que o matem e corre a esconder-se. Faz horas que o procuramos.

Ele está ali na moita, perto da pequena gruta. Eu o vi.

Graças a Deus! É preciso ir prevenir o senhor príncipe. Ah! Vem ele aí.

Uma cadeirinha se aproximava. O Príncipe de Conde pôs a ca­beça pela janela.

—   Que faz aqui, senhora? — perguntou ele, furioso. O suíço apressou-se em intervir.

Monseigneur, esta senhora acaba de descobrir o senhor du­que junto da pequena gruta.

Ah! bem. Abram-me essa portinhola, tratantes. Ajudem-me a descer! Não façam tanto barulho; vão assustá-lo. Você aí, corra a buscar seu primeiro criado de quarto, e reúna você todos os ho­mens que possa encontrar e coloque-os nas saídas...

Alguns instantes mais tarde, ouviram-se nas moitas saltos desor­denados, depois uma carreira rápida. O Duque d'Enghien surgiu, correndo a toda a velocidade. Mas dois domésticos que o perse­guiam conseguiram agarrá-lo e retê-lo. Ele foi logo cercado e do­minado. Seu primeiro camareiro, que o tinha criado, falou-lhe com doçura:

—   Ninguém o matará, monseigneur. Ninguém o fechará numa gaiola... Daqui a pouco o soltaremos e poderá correr de novo no campo.

O Duque d'Enghien estava lívido. Não dizia uma palavra, mas tinha no olhar a expressão patética e interrogadora dos animais acossados. Seu pai aproximou-se. O rapaz debatia-se furiosamen­te, mas sempre em silêncio.

—   Levem-no — disse o Príncipe de Conde. — Chamem seu médico e seu cirurgião. Que o sangrem, que o purguem e, principalmente, que o amarrem. Não tenho a mínima disposição de recomeçar uma nova brincadeira de esconder esta tarde. Farei surrar aquele que o deixar fugir de novo.

O grupo afastou-se. O príncipe voltou-se para Angélica, que ti­nha assistido, completamente abalada, àquela triste cena e que es­tava quase tão pálida quanto o pobre enfermo.

Conde postou-se diante dela e examinou-a com olhar sombrio.

Bem! — disse ele. — Você o viu? Ele é belo, descendente dos Conde, dos MontmorencyL. Seu bisavô tinha manias, sua avó era louca. Tive de casar com a filha. Na época, ela já começava a ar­rancar os cabelos, um a um, com uma pinça. Eu sabia que seria atingido em minha descendência, mas tive de casar com ela de qual­quer maneira. Era uma ordem do Rei Luís XIII. E aqui está meu filho. Às vezes, acredita que é cão, e luta para evitar latir diante do rei. Ou então pensa que é morcego, e receia chocar-se contra os lambris de seu apartamento. Outro dia ele sentiu-se transfor­mar em planta, e foi preciso que os criados o regassem... E engra­çado, não é? Não vaip rir?

Monseigneur... como pode acreditar por um segundo que eu tenha vontade de rir?... Evidentemente, o senhor não me conhece...

Ele a interrompeu com um sorriso súbito que iluminou seu rosto severo:

—   Eu a conheço bem, Sra. Morens. Eu a vi em casa de Ninon e de outros. Você é alegre como uma jovem, bela como uma cortesã e tem o coração afagante de uma mãe. Além disso, suspeito que seja uma das mulheres mais inteligentes do reino. Mas não faz alarde disso, porque é astuta e sabe que os homens temem as eruditas.

Angélica sorriu, por sua vez, surpresa dessa declaração inesperada.

Monseigneur, o senhor me lisonjeia... E eu gostaria de saber quem lhe deu essas informações a meu respeito...

Não tenho necessidade de que alguém me informe — disse ele com sua maneira brusca e áspera de guerreiro. — Eu a obser­vei. Nunca percebeu que eu a olhava com frequência? Acredito que me receia um pouco. No entanto, você não é tímida...

Angélica levantou os olhos para o vencedor de Lens e Rocroi. Não era a primeira vez que ela o olhava-assim. Mas certamente o príncipe estava a cem léguas de recordar a patinha cinzenta que me fizera frente e à qual ele dissera: "Quando você for mulher, ja estou prevendo que haverá homens que se enforcarão por terem-na encontrado".

Ela sempre acreditara que alimentava profundo ódio ao Prínci­pe de Conde, e teve de defender-se contra um sentimento de sim­patia, de compreensão, que nascia entre eles. Não havia ele feito espioná-los durante anos, a ela e seu marido, pelo criado Clemen­te Tonnel? Não tinha herdado bens de Joffrey de Peyrac? Havia muito que Angélica perguntava a si mesma como poderia saber exatamente o papel que o Príncipe de Conde havia desempenha­do em seu drama. O acaso servia-a estranhamente.

—"Não responde nada? — disse o príncipe. — É então verdade que eu a intimido?

Não! Mas sinto-me muito indigna de conversar com o senhor, monseigneur. Sua fama...

Ora! minha fama... Você é demasiadamente jovem para sa­ber dela alguma coisa. Minhas armas estão enferrujadas e, se Sua Majestade não se decidir a dar uma lição a esses patifes holandeses ou ingleses, arrisco-me bem a morrer em meu leito. Quanto a con­versar, Ninon disse-me cem vezes que as palavras não são balas que se enviam ao estômago de um adversário, e ela pretende que eu ainda não aprendi bem a lição. Ah! Ah!

Ele soltou uma ruidosa gargalhada e segurou-lhe o braço com desenvoltura.

—• Vamos. Minha carruagem espera-me lá fora, mas, para cami­nhar, sou forçado a apoiar-me em um braço caridoso. Eis o que devo à minha fama: dores contraídas nas trincheiras cheias de água e que, certos dias, me fazem arrastar a perna como um velho. Quer fazer-mc companhia por alguns momentos? Sua presença é a úni-' i que me parece suportável depois do penoso dia que acabamos de passar. Conhece minha Mansão do Beautreillis?

Angélica respondeu, com um salto do coração:

Não, monseigneur.

Dizem que é uma das mais belas coisas construídas pelo ve­lho Mansart. Eu não me sinto bem ali, mas sei que as damas se extasiam diante da beleza dessa morada. Venha vê-la.

Embora relutasse em admiti-lo, Angélica apreciava a honra de estar sentada no coche de um príncipe de sangue, que os transeuntes aclamavam à sua passagem.

Estava surpresa da atenção que seu companheiro lhe testemu­nhava e que ela sentia sincera. Dizia-se abertamente que o Prínci­pe de Conde, desde que sua amiga Marta du Vigean havia entrado para o Convento das Carmelitas do Faubourg Saint-Jacques, não dispensava mais às mulheres as atenções que a nobreza da França tinha o costume de prestar-lhes. Ele não lhes pedia senão um pra­zer todo físico e, fazia anos, só se lhe conheciam aventuras de cur­ta duração e de muito baixa origem. Nos salões, sua rudeza para com o belo sexo desencorajava as melhores vontades. Dessa vez, entretanto, o príncipe parecia fazeresforços para agradar à sua com­panheira.

A carruagem deu a volta no pátio da Mansão do Beautreillis.

Angélica subiu a escadaria de mármore. Cada detalhe daquela vivenda harmoniosa e clara falava-lhe de Joffrey de Peyrac. Ele quisera aquelas linhas flexíveis como gavinhas nos ferros forjados dos balcões e das balaustradas, aqueles frisos de madeira esculpida recobertos de ouro a emoldurarem os altos planos lisos dos már­mores ou dos espelhos, aquelas estátuas e aqueles bustos, aqueles animais e aqueles pássaros de pedra, presentes em toda parte co­mo graciosos gêniosde um lar feliz.

—   Não diz nada? — admirou-se o Príncipe de Conde, após haverem percorrido os dois andares de aposentos luxuosos. — Geralmente, minhas visitantes fazem exclamações de papagaio. Será que este conjunto não lhe agrada? Dizem, entretanto, que você é muito entendida no que concerne à organização de uma casa.

Eles se achavam em uma sala forrada de cetim azul bordado a ouro. Uma grade de ferro forjado, de requintado desenho, separava-os da comprida galeria que dava para os jardins.

Ao fundo, a lareira, ladeada por dois leões esculpidos, exibia no frontão um ferimento recente. Angélica ergueu o braço e pôs a mão nele.

—   Por que danificaram este ornamento? — perguntou ela. — Não é o primeiro estrago que observo. Olhe, nas janelas desta mesma sala apagaram o desenho em certos lugares.

O rosto do senhor príncipe tornou-se sombrio.

—   São as cifras do antigo proprietário da casa, que eu fiz apagar. Um dia, restaurarei isso. Não sei quando!... Prefiro empregar meu dinheiro na instalação da casa de campo em Chantilly.

Angélica conservava a mão sobre o escudo mutilado.

Por que não deixou as coisas como estavam, em lugar de danificá-las assim?

A visão das armas desse homem causava-me desprazer. Ele era um maldito.

— Um maldito? — repetiu Angélica.

—   Sim. Um gentil-homem que fabricava ouro por meio de um segredo que lhe fora revelado pelo Demónio. Foi queimado vivo. E o rei me fez doação de seus bens. Não estou ainda bem certo de-que Sua Majestade não houvesse procurado trazer-me infelici­dade com esse gesto.

Angélica, a passos lentos, aproximara-se da janela e olhava para fora.

—   O senhor o conhecia, monseigneur?.

- Quem? O gentil-homem condenado?... Oh! Não, e tanto me-lhafpara mim!

—   "Creio lembrar-me do caso — disse ela, espantada de sua audácia e ncxentanto muito calma. — Será que não era um tolosano, um Sr... de^peyrac?

—   Sim, realmente — confirmou ele com indiferença. Ela passou a língua sobre os lábios secos.

Não disseram que ele fora condenado principalmente por­que conhecia um terrível segredo do Sr. Fouquet, que era então muito poderoso?

É possível. O Sr. Fouquet considerou-se durante muito tem­po o verdadeiro rei da França. Ele tinha bastante dinheiro para isso. Mandou fazer asneiras com muita gente. Comigo, por exem­plo. Ah! Ah! Ah!... Ora! Tudo isso pertence ao passado.

Angélica voltou-se lentamente para observá-lo. Ele se deixara cair em uma poltrona e acompanhava com a ponta do bastão as rosá­ceas do tapete. Se ele teve uma zombaria amarga ao lembrar-se das asneiras que o Sr. Fouquet mandara fazer com ele, não reagira às alusões concernentes a Joffrey de Peyrac. A jovem teve a certe­za de que não fora ele quem, durante anos, mantivera junto dela o criado Clemente Tonnel. Quem sabe? Talvez aquele Clemente Tonnel já houvesse sido colocado como espião, pelo Sr. Fouquet, junto ao Príncipe de Conde. Haviam-se visto nas conspirações da­quele tempo as intrigas mais complicadas. E os nobres tinham ra­zão de praticar a política da memória curta.

Que necessidade havia, para o senhor príncipe, de lembrar que outrora quisera envenenar Mazarino e que se vendera a Fouquet? Ele tinha de esforçar-se bastante para recuperar o valimento de um jovem rei ainda desconfiado, e para conquistar aquela bela mu­lher cuja melancolia secreta, sob o riso alegre, o tinha seduzido mais profundamente do que ele queria acreditar.

—   Eu estava em Flandres à época do processo de Peyrac — tor­ nou ele. — Não acompanhei o processo. Antes assim! Ganhei a vivenda e confesso que não me regozijo muito. Parece que o feiti­ceiro nunca a habitou. No entanto, vejo nessas paredes algo triste e sinistro. Dir-se-ia uma decoração preparada para uma cena que jamais se realizou... Esses objetos graciosos aqui reunidos esperam um hóspede que não sou eu. Conservei um velho palafreneiro que pertencia à criadagem do Conde de Peyrac. Ele diz que vê seu es­pírito certas noites... E possível. Respiro aqui uma presença que me repele e me enxota. Permaneço nesta casa o mínimo possível. Será que você também experimenta essa penosa impressão?

—   Não, pelo contrário — murmurou ela.

Seu olhar errava em torno de si. "Aqui, estou em minha casa", pensou. "Eu e meus filhos, eis os hóspedes que essas paredes espe­ram."

Então esta moradia lhe agrada?

Amo-a. Ela é admirável. Oh! Gostaria de morar aqui! — ex­clamou Angélica, juntando as mãos sobre o peito com uma pai­xão inesperada.

Você poderia morar aqui, se quisesse — disse Conde.

A visitante voltou:se vivamente para o príncipe. Ele fitou nela aquele olhar magnífico e imperioso, do qual um dia o Sr. Bossuet falaria em termos eloquentes: "Esse príncipe... que trazia em seus olhos a vitória..."

—   Morar aqui? — repetiu Angélica. — A que título, monseigneur? Ele sorriu de novo e ergueu-se abruptamente para aproximar-se dela.

—   Já lhe direi. Tenho quarenta e quatro anos, já não sou jovem, mas ainda não sou velho. Sinto às vezes dores nos joelhos, é certo, mas o resto ainda está bem-disposto. Digo-lhe isto cruamente. Em resumo, creio que posso ser um amante suportável. Penso que você não ficaria melindrada com a minha declaração. Ignoro de onde você saiu, mas alguma coisa me diz que tem ouvido muitas de outros, e eu pelo menos não a pego à traição. Com as mulheres costumo ir direto ao assunto; acho inútil usar de tantos rodeios para chegar sempre à mesma pergunta: "Quer ou não quer?"... Não, não responda ainda. Quero que conheça bem algumas vantagens que poderei proporcionar-lhe. Você teria uma pensão... Sim, eu sei, já é muito rica. Pois bem! Escute, "dar-lhe-ei esta Mansão do Beautreillis, já que ela lhe agrada. Ocupar-me-ei de seus filhos e os recomendarei em sua educação. Sei também que é viúva e bastante ciosa da sua reputação de castidade. É verdade que isso é um bem precioso, mas... considere que eu não lhe peço que perca essa reputação por um velhaco. E, já que me falou da minha fama, permita-me fazer-lhe notar que... Ele hesitou com uma modéstia real e tocante.

...que não é uma desonra ser amante do Grande Conde. Nossa sociedade é assim. Apresentá-la-ei por toda parte... Por que esse sorriso cético e algo desdenhoso, senhora?

Porque — disse Angélica, sorrindo — eu me recordei deste refrão que Hurlurot, um velho truão, costuma cantar nas esquinas:

"Os príncipes são pessoas estranhas.

Felizes os que não os conhecem muito.

Mais felizes os que não precisam deles..."

—   Ao diabo o insolente! — exclamou ele com furor fingido. Tomou-a pela cintura e puxou-a contra si.

—   É por isso que eu a amo, minha amiga — disse ele, com voz contida. — Porque observei que, em sua profissão de mulher, você tem uma grande audácia de guerreiro. Ataca no momento certo, aproveita a fraqueza do adversário com uma habilidade maquiavélica e desfere contra ele golpes terríveis. Mas não retrocedeu com bastante rapidez para as suas posições. Ataco-a eu agora!... Como você é fresca e firme! Tem um pequeno corpo sadio e tranquilizante!... Ah! como eu gostaria que não me escutasse co­ mo príncipe, mas tal qual eu sou, isto é, um pobre homem bas­tante infeliz. Você é tão diferente das coquetes de coração frio!

Encostou a face nos cabelos de Angélica.

Há nos seus cabelos louros uma mecha de cabelos brancos que me comove. Parece que, sob seu ar de juventude e alegria, tem a experiência que deriva das grandes dores. Estarei enganado?

Não, monseigneur — respondeu Angélica docilmente.

Ela pensava que, se na manhã daquele dia alguém lhe houvesse dito que antes do anoitecer ela estaria nos braços do Príncipe de Conde e reclinaria sem revolta a fronte naquela augusta espádua, teria gritado que a vida não era tão louca. Mas sua vida nunca fora simples, e ela começava a se habituar às surpresas da sorte.

—   Desde a minha juventude — continuou ele —, só amei uma mulher. Nem sempre lhe fui fiel, mas não amei senão a ela. Era bela, doce, e era a companheira de minha alma. As intrigas e conspirações que se formavam sem cessar para nos separar acabaram por fatigá-la. Desde que ela tomou o véu, que me resta? Em toda a minha vida não tive mais de dois amores: ela e a guerra. Minha bem-amada retirou-se para um convento e o tratante do Mazarino assinou a paz dos Pireneus. Não sou mais que um manequim pomposo, que vive a cortejar o jovem rei na esperança de obter, sabe Deus quando, algum governo militar e talvez um comando, se algum dia ele tiver a feliz ideia de reclamar o dote da rainha aos flamengos. Fala-se no assunto... Mas deixemos isso, não quero molestá-la. Sua visão despertou em mim uma chama viva, que pa­recia extinguir-se. A morte do coração é a pior... Eu gostaria de conservá-la junto de mim...

Angélica desprendera-se brandamente enquanto ele falava, e re­cuou um pouco.

—   Monseigneur...

— Sua resposta é "sim", não é? — disse ele com ansiedade. — Oh! Eu lhe suplico... Que a retém? Ama outro homem? Não vai dizer-me que tem afeto a esse criado de baixa extração, esse Audi-ger que a acompanha na cidade como um cão fiel.

Audiger é meu sócio nos negócios.

O que não impediu — rosnou ele, subitamente enciumado — que as tivessem vistçí ontem no teatro com o mordomo do Conde de Soissons. É o cúmulo da vulgaridade!

Monseigneur — respondeu ela —, sabe que não renego nunca os meus amigos enquanto eles me são úteis. Eu ainda preciso do mordomo Audiger.

Ele mordeu os lábios.

Meu Deus! Você é temível, quando fala assim.

Como vê, não sou apenas tranquilizante — disse ela com um pequeno sorriso.

Que importa?! É tal qual é que a desejo.

Ela não podia compreender o dilema que ele lhe suscitara. Que teria ela respondido se ele lhe houvesse feito essa proposta em ou­tro lugar? Ela não sabia.

Mas ali, naquela mansão em que penetrava pela primeira vez, ela se achava cercada de fantasmas. Perto do Príncipe de Conde, surgido do passado, com sua rhingrave um pouco fora de moda, existia a luminosa e dura silhueta de Filipe, em seus cetins páli­dos, e, por trás deles, aquela sombra mascarada, vestida de veludo negro e prata, com um solitário rubi sanguíneo em um dos dedos, o gentil-homem maldito que tinha sido seu mestre e seu único amor.

Entre todos aqueles que a vida ou a morte haviam libertado, so­mente ela permanecia prisioneira da antiga tragédia.

—   Que há? — disse o príncipe. — Por que essas lágrimas em seus olhos? Que mágoa lhe causei? Fique nesta casa, que tanto lhe apraz. Permita que a ame. Eu serei discreto...

Ela sacudiu lentamente a cabeça.

— Não, é impossível, monseigneur.

 

Hortêasia reaparece — Uma sensacional partida de hoca — Angélica arrisca sua fortuna e sua virtude

Quando ela teve ocasião de rever o Príncipe de Conde, ele não lhe demonstrou nenhum ressentimento. Ele não tinha no amor a arrogância que mostrava na corte e nos campos de batalha.

—   Ao menos não me abandone para a minha partida de boca disse-lhe ele. — Conto com você, em casa de Ninon, toda segunda-feira.

Ela decidiu-se a ir, feliz de testemunhar-lhe sua amizade. A proteção do senhor príncipe não era de desdenhar. E, cada vez que Angélica pensava na Mansão do Beautreillis, sentia um estremecimento. Não lamentava, entretanto, haver recusado a proposta. Mas Mansão do Beautreillis era dela. Isso a revoltava. Indignava-se Je não poder reivindicá-la sem compensação.

Sua personalidade de comerciante enriquecida pesava-lhe cada ez mais. Certa vez, ouvindo Ninon pronunciar o nome de San-é, perguntou vivamente:

—   Conhece alguém de minha família?

—   Sua família? — admirou-se a cortesã. Angélica disfarçou como pôde:

—   Pensei ter ouvido Rance. São parentes distantes... De quem falava, então?

—   De uma amiga que deve chegar a-qualquer momento. Ela tem animação e eu me deleito em ouvi-la, se bem que a receiem mui-

o: a Sra. Fallot de Sancé.

—   Fallot de Sancé — repetiu Angélica, endireitando-se de repente, Seus olhos se dilataram.

E ela vai vir... aqui?

Vai vir, sim. Eu aprecio seu espírito... muitas vezes malévo­lo, é verdade. Mas são necessárias essas línguas que destilam vina­gre para trazer um pouco de pimenta à conversação. Um mundo de doçura e benignidade seria insípido.

Eu ficaria contente, confesso-o.

Você parece odiar a Sra. Fallot de Sancé.

Isso é dizer pouco.

Ela estará aqui dentro de um instante.

Vou arrancar-lhe a pele!

Não, minha amiga... isso não se faz em minha casa.

Ninon, você não pode saber... você não pode compreender.

Querida, se todas as pessoas que se encontram aqui decidis­sem resolver imediatamente suas querelas, eu assistiria cada dia a três ou quatro mortes violentas... Assim, haverá de ser prudente. Será que isso lhe faz mal?

Faz, sim — disse Angélica, que se sentia muito pálida. — Ten­ciono ir embora.

Por que não procura ficar? Todas as paixões podem ser do­minadas, minha amiga, mesmo o rancor mais justificado. Não existe justificação para a loucura, e a cólera é uma delas. Quer um con­selho? Afaste-se de sua cólera como de uma frigideira incandes­cente. Sente-se tranquilamente dentro de si mesma, e evite olhar para as razões de seu ódio.

Será difícil para mim, se eu tiver de conversar com minha irmã.

Sua irmã?

Oh! Ninon, não sei mais o que digo — murmurou Angélica.

—   E uma experiência superior às minhas forças.

—   Não existem experiências superiores às suas forças, Angélica —respondeu Ninon, sorrindo. — Quanto mais a conheço, mais me persuado de que é capaz de tudo... mesmo disso. Veja, aí vem a Sra. Fallot. Fique aqui neste canto um momento, para recobrar o seu sangue-frio.

Ninon afastou-se e foi para junto de um grupo de senhoras que chegavam.

Angélica sentou-se em um banco estofado de pelúcia. Como em um sonho, reconheceu, destacando-se entre os cumprimentos, a voz aguda de sua irmã. Era aquela mesma voz que lhe gritara um dia:

—   Vá embora! Vá embora!

Angélica recuou para dentro de si mesma, como lhe recomen­dara Ninon, e procurou esquecer aquele grito.

Ao cabo de um instante, ousou levantar a cabeça e olhar para o salão. Reconheceu Hortênsia em um belíssimo vestido de tafetá vermelho-escuro. Tinha emagrecido mais e ficado mais feia, se is­so era possível, mas pintava-se e penteava-se bem. Sua voz esgani­çada provocava risos. Parecia ter uma viveza de espírito extraordinária.

Ninon tomou-lhe o braço e levou-a para o canto onde se achava Angélica.

—   Cara Hortênsia, há muito tempo que desejava encontrar a Sra. Morens. Eu lhe fiz esta surpresa. Ei-la aqui.

Angélica não tivera tempo de fugir. Viu muito perto de si o ros­to medonho de Hortênsia, franzido em uma expressão açucarada. Mas sentia-se agora muito calma.

—   Boa tarde, Hortênsia.'— disse ela.. Ninon olhou-as um instante e afastou-se.

A Sra. Fallot de Sancé teve um sobressalto violento. Seus olhos amendoados alargaram-se. Tornou-se amarela sob a pintura.

—   Angélica! — murmurou ela.

Sim, sou eu. Sente-se, minha cara Hortênsia... Por que tem o ar tão espantado? Pensava sinceramente que eu estava morta?

De fato! — disse violentamente Hortênsia, que se reani­mava.

Ela fechou o leque na mão como uma arma. Suas sobrancelhas se aproximaram, sua boca se convulsionou. Angélica a encontra­va inteira.

"Como está feia! Como é horrível!", disse a si própria, com a mesma jubilação pueril dos tempos de sua infância.

E permita-me afirmar-lhe — continuou Hortênsia, acremente — que, segundo a opinião da família, é o que teria de melhor a fazer: morrer.

Não compartilho a opinião da família a esse respeito.

E uma pena. Que cara faríamos agora? O eco desse terrível caso mal começa a extinguir-se. Tínhamos conseguido fazer esque­cer que você era dos nossos, e eis que você reaparece para prejudicar-me novamente!

Se é disso que você tem medo-, não tenha receio, Hortênsia— disse Angélica tristemente. — A Condessa de Peyrac não rea­parecerá jamais. Conhecem-me agora sob o nome de Sra. Mo-rens. Isso não acalmou a mulher do procurador.

—   Então é você a Sra. Morens? Uma original que leva uma vida escandalosa, uma mulher que negocia como um homem ou a viúva de um padeiro. Você passará a vida a se singularizar para nos desonrar? Dizer-se que só existe em Paris uma mulher que vende chocolate, e que ela teria de ser minha própria ir­mã!...

Angélica ergueu os ombros. As jeremiadas de Hortênsia não a comoviam.

—   Hortênsia — disse ela de repente —, dê-me notícias de meus filhos.

A Sra. Fallot interrompeu-se e olhou sua irmã com ar estúpido.

—   Sim, meus filhos — repetiu Angélica —, meus dois filhos que eu lhe confiei quando me caçavam por toda parte.

Ela viu que Hortênsia se preparava de novo para a luta.

Era tempo de se informar dos seus filhos! Foi por me encon­trar que pensou neles — chasqueou ela. — Eis, decididamente, um coração de mãe extremosa...

Eu tive dificuldades...

Antes de comprar atavios como esses que exibe, você teria podido, parece-me, informar-se de sua sorte.

Eu os sabia em segurança perto de você. Fale-me deles. Co­mo vão?

Eu... eu não os vejo há muito tempo — disse Hortênsia com esforço.

Não estão, pois, com você? Entregou-os a uma ama?

Que mais eu poderia fazer?! — exclamou a Sra. Fallot, em novo acesso de cólera. — Iria guardá-los comigo, quando nunca pude pagar uma ama a domicílio para meus próprios filhos?

—   Mas agora? Eles estão crescidos. Que é feito deles? Hortênsia olhou em volta de si, como acuada. De súbito suas feições se abateram e os cantos de sua boca desceram de maneira lamentável. Angélica teve a impressão surpreendente de que sua irmã ia desfazer-se em soluços.

—   Angélica — disse ela com voz sufocada —, não sei como dizer-lhe... Seus filhos... É horrível... Seus filhos foram raptados por uma cigana!

Virou para o lado a cabeça. Seus lábios tremiam. Houve um longo silêncio.

Como você soube disso? — perguntou afinal Angélica.

Pela ama... quando fui a Neuilly. Era muito tarde para pre­venir a polícia... Já fazia seis meses que seus filhos tinham sido raptados...

Então, você ficou mais de seis meses sem ir ver a ama, sem pagar-lhe, talvez?  

Pagar?... Com quê? Mal tínhamos com que viver. Depois do escândalo do processo de seu marido, Gastão perdeu quase toda a clientela; foi necessário que nos mudássemos. Logo que pude, fui a Neuilly. A ama contou-me o drama..: Parece que um dia uma cigana, uma mulher andrajosa, entrou no pátio e reclamou as duas crianças, dizendo-se mãe delas. E, como a ama quisesse chamar os vizinhos, ela feriu-a com uma grande faca... Eu própria fui obrigada a pagar uma conta do boticário, por causa desse fe-

. rimento...

Hortênsia fungou k procurou o lenço na esmoleira. Angélica per­manecia de boca aberta. Ás lágrimas que avermelhavam os olhos de Hortênsia estupidificaram-na mais ainda do que ouvir que sua irmã tinha voltado à casa da ama.

A mulher do procurador pareceu perceber o seu comportamento insólito:

—   Então, é esse todo o efeito que isso lhe causa? — disse ela. — Conto-lhe que seus filhos desapareceram e você fica mais indiferente que um pedaço de pau?... Ah! nós somos muito idiotas, Gastão e eu, que nos temos consumido durante anos pensando nesse pobrezinho do Florimond, arrastado pelas estradas com... ciganos!

A voz quebrou-se na última palavra.

Hortênsia, acalme-se — balbuciou Angélica. — Não aconte­ceu nada de mau às crianças. Essa... essa mulher que foi buscá-los... era eu.

Você!

Nos olhos horrorizados de Hortênsia, Angélica viu passar a ima­gem de uma mulher em farrapos, armada de uma faca ponti­aguda.

—   A ama exagerou: eu não estava em farrapos e não a feri com uma faca. Apenas tive de gritar um pouco alto porque os meninos se achavam num estado espantoso. Se eu não os fosse buscar, você nunca mais os encontraria, porque eles estariam mortos. De outra vez, trate de escolher um pouco melhor a ama.

—   Evidentemente. Com você pode-se sempre prever uma outra vez — disse Hortênsia levantando-se, fora de si. — Você é de um desleixo incrível, de uma insolência, de uma... Adeus.

E retirou-se, derribando o tamborete em sua ira.

Deixada só, Angélica permaneceu muito tempo com as mãos juntas sobre o vestido, em atitude de meditação. Ela dizia a si mesma que as pessoas não são sempre tão más quanto poderiam ser.

Uma Hortênsia que, sob a influência de um medo abjeto, a ex­pulsara sem compaixão era capaz de sentir remorsos lembrando-se de um pequeno Florimond transformado em cigano.

Um galhofeiro meridional como Andijos, muito bom para per­der ao jogo e para fazer tufar seus punhos de renda, subitamente insurgia-se contra o rei e mantinha, durante quatro anos, como chefe de bando, uma província inteira em revolta.

Um Príncipe de Conde salvava um reino, tramava assassínios, atraiçoava, depois humilhava-se para recuperar o valimento do mo­narca, e não era, no fundo, senão um homem simples, realmente modesto, entristecido pela loucura de seu filho, um homem cuja vida inteira fora dominada por um único amor terno e apaixonado.

No dia seguinte, Angélica enviaria Florimond e Cantor à casa dos Fallot de Sancé, com presentes para seus primos e para sua tia.

Você está aí? — perguntou Ninon, levantando a cortina. — Vi partir a Sra. Fallot. Ela parecia de boa saúde, mas de mau hu­mor. Devo acreditar que você lhe arrancou a pele?

Pensando bem — respondeu Angélica suavemente —, achei que seria mais cruel deixá-la como estava.

Esse mesmo dia poderia ser marcado com uma pedra branca. Foi após o anoitecer que se jogou, entre a Sra. Morens e o Prínci­pe de Conde, a célebre partida de hoca que devia entreter os me­xericos mundanos, escandalizar os devotos, encantar os libertinos e divertir toda Paris.

A partida começou, como de hábito, à hora de trazerem as ve­las. Conforme a sorte dos jogadores, poderia durar três ou quatro horas. Depois, haveria uma pequena ceia. Em seguida, cada um iria para sua casa.

O hoca começava com um número ilimitado de participan­tes.

Nessa noite, uma quinzena de jogadores iniciaram a partida. Jogava-se forte. Os primeiros lances eliminaram rapidamente me­tade dos parceiros. A partida tornou-se mais lenta.

De súbito, Angélica, que estava distraída e pensava em Hortên­sia, percebeu, com espanto, que fazia ousadamente um combate muito cerrado contra o senhor príncipe, o Marquês de Thianges e o Presidente Jomerson. Era ela quem, havia algum tempo, "man­dava" no jogo. O pequeno Duque de Richemont, que a adorava, marcava seus cartões e, dando-lhes uma olhada, ela viu que tinha ganho uma pequena fortuna.

Está com sorte esta noite, senhora —. disse-lhe o Marquês de Thianges com uma visagem. — Há perto de uma hora que tem a banca e não parece decidida a largá-la.

Nunca vi um jogador conservar a banca tanto tempo! — ex­clamou o pequeno duque, muito excitado. — Senhora, não esque­ça que, se a perder, deverá reembolsar a cada um desses senhores a mesma soma que ganhou até agora. Ainda é tempo de parar. Tem direito a isso.

O Sr. Jomerson pôs-se a gritar que os espectadores não tinham o direito de intervir e que, se aquilo continuasse, ele faria evacuar a sala. Acalmaram-no fazendo-lhe notar que ele não estava no Pa­lácio da Justiça, mas em casa da Srta. de Lenclos. Esperaram a de­cisão de Angélica.

—   Eu continuo — disse ela.

E distribuiu as cartas. O presidente respirou. Ele tinha perdido muito e esperava que um golpe de sorte viesse, no segundo ime­diato, recompensá-lo, ao cêntuplo, de suas imprudências. Jamais se vira um jogador conservar a banca tanto tempo quanto aquela dama. Se a Sra. Morens se aferrasse, estaria fatalmente perdida, e tanto melhor para os outros. Era bem de uma mulher persistir daquela maneira! Felizmente, ela não tinha marido a quem pres­tar contas; do contrário, o pobre homem poderia desde logo preparar-se para fazer vir seu intendente a fim de saber de quanto dispunha ainda em dinheiro líquido.

Entrementes, o Presidente Jomerson teve de mostrar um jogo lamentável, e abandonou a partida, muito embaraçado.

Angélica ainda mandava. Assistentes a cercavam e pessoas que estavam de saída não se decidiam a ir embora: ficavam na ponta dos pés, com o pescoço espichado.

Durante algumas mãos conservou-se a igualdade. Nesse caso, Angélica topava a parada feita, mas nenhum jogador era eliminado. Depois o Sr. de Thianges perdeu e deixou a mesa enxugando a testa. A noite tinha sido cruel! Que diria sua mulher, ao ouvir que ele devia pagar à Sra. Morens, a chocolateira, as rendas de "dois anos? Desde que ela ganhasse, naturalmente! No caso contrário, ela deveria pagar ao Príncipe de Conde o dobro da quantia que já havia ganho. Sentiam vertigens só èm pensar nisso! Aquela mu­lher estava doida! Corria ao encontro de sua ruína. No ponto a que ela chegara nenhum jogador, ainda o mais louco, teria o atre­vimento de continuar.

—   Detenha-se, meu amor! — suplicava o pequeno duque ao ou­ vido de Angélica. — Você não pode mais ganhar.

Angélica tinha a mão pousada sobre o maço de cartas. Era um pequeno tijolo, liso e duro, que lhe queimava a palma.

Ela fixou um olhar atento sobre o Príncipe de Conde. A parti­da, no entanto, não dependia somente dele, mas da sorte.

A sorte achava-se diante dela. Assumira as feições do Príncipe de Conde, seus olhos de fogo, seu nariz aquilino, seus dentes bran­cos e agudos, que um sorriso descobria. É já não eram cartas que ele tinha entre as mãos, mas um cofrezinho em que brilhava um frasco verde de veneno.

Em volta dele, só havia trevas e silêncio.

Depois o silêncio quebrou-se como vidro, ao choque da voz de Angélica:   .

—   Eu continuo.

Dessa vez ainda houve igualdade. Villarceaux pôs-se à janela. Cha­mava os transeuntes, gritando-lhes que era preciso subir, que nunca se vira partida tão sensacional desde aquela em que seu avô tinha jogado sua mulher e seu regimento, no Louvre, com o Rei Henri­que IV.

Espectadores amontoavam-se no salão. Os próprios criados ti­nham subido às cadeiras para acompanhar de longe a peleja. As 'velas fumegavam. Ninguém cuidava de espevitá-las.

Fazia um calor sufocante.

Eu continuo. — repetiu Angélica.

Igualdade.

Se ainda durante três mãos houver igualdade, haverá a "es­colha dos prémios".

O supremo lance do hoca... Um lance que não se vê senão de dez em dez anos!

De vinte em vinte, meu caro.

Uma vez em cada geração.

Lembrem-se do financista Tortemer, que pediu o brasão de Montmorency.

Que tinha pedido a frota inteira de Tortemer.

Foi Tortemer quem perdeu...

Continua, senhora?

Continuo.

Um bulício quase derribou a mesa e dobrou os dois jogadores sobre suas cartas.

—   Com os demónios! — praguejou o príncipe, procurando seu bastão. — Juro-lhes que os espancarei a todos, se não nos deixa­ rem respirar. Afastem-se, que diabo!...

O suor rociava a fronte de Angélica. Somente o calor a fazia transpirar. Ela não experimentava nenhuma ansiedade. Não pen­sava nem em seus filhos nem em todos os esforços que havia em­pregado e que estavam-a ponto de ser anulados.

Na verdade, tudo lhe parecia perfeitamente lógico. Durante mui­tos anos ela lutara contra a sorte, como uma toupeira laboriosa. Eis que se encontrava face a face com a sorte, em seu terreno, em sua loucura. Ia agarrá-la pela garganta e apunhalá-la. Ela também estava louca, perigosa e inconsciente como a sorte mesma. Esta­vam em igualdade!

Igualdade.    .      . Houve um rumor, depois gritos.

A escolha dos prémios! A escolha dos prémios! Angélica esperou que a confusão se acalmasse para perguntar,

com voz modesta de escolar, em que consistia exatamente o lance supremo do boca.

Todos se puseram a falar de uma vez. Depois o Cavaleiro de Méré veio instalar-se junto dos jogadores e, com voz trémula, explicou-lhe a coisa.

Para essa derradeira mão, os jogadores partiam de zero. Dívidas e ganhos precedentes eram anulados. Cada qual escolhia seu pré­mio, isto é, não o que oferecia, mas o que reclamava. E devia ser enorme. Citavam-se exemplos: o financista Tortemer, no último século, tinha reclamado os títulos de nobreza de um Montmorency, e o avô de Villarceaux tinha aceitado ceder sua mulher e seu regi­mento ao adversário, caso perdesse.

—   Posso ainda retirar-me? — perguntou Angélica.

É seu direito estrito, senhora.

Ela permaneceu imóvel e pensativa. Podia-se ouvir o vôo de uma mosca. Por várias horas Angélica tinha "mandado no jogo". Iria a sorte abandoná-la naquele supremo lance?

Seus olhos pareceram despertar e puseram-se a brilhar com uma intensidade quase feroz. No entanto, ela sorriu.

—   Eu continuo.

O Cavaleiro de Méré-engoliu a saliva e disse:

—   Para a "escolha do premio", a frase regulamentar é esta: "Par­tida aceita. Se eu ganhar, peço..."

Angélica inclinou docilmente a cabeça e, sempre sorrindo, repetiu:

—   Partida aceita, monseigneur. Se eu ganhar, peço-lhe a sua Mansão do Beautreillis.

A Sra. de Lamoignon soltou uma exclamação, que seu esposo abafou prontamente com mão furiosa.

Todos os olhos estavam voltados para o príncipe, que tinha a cólera nos olhos. Mas ele era um jogador limpo e sem subterfúgios.

Sorriu, por seu turno, e ergueu a majestosa fronte.

—   Partida aceita, senhora. Se eu ganhar, a senhora será minha amante.

As cabeças, num só movimento, voltaram-se dessa vez para An- , gélica. Ela continuava a sorrir. As luzes punham reflexos em seus lábios entreabertos. A umidade que perlava a superfície de sua pe­le dourada tornava-a brilhante, lustrosa como uma pétala sob o orvalho da manhã. A fadiga que azulava suas pálpebras dava-lhe uma curiosa expressão de sensualidade e abandono.

Os homens presentes estremeceram. O silêncio fez-se pesado.

A meia voz, o Cavaleiro de Méré falou:

—   A escolha cabe-lhe ainda, senhora. Se recusar: partida nula, e volta-se ao lance precedente. Se aceitar: partida ajustada.

A mão de Angélica tomou as cartas.

—   Partida ajustada, monseigneur.

Ela não tinha senão valetes, damas e cartas baixas. Seu pior jogo desde o início da partida. No entanto, depois de algumas trocas, conseguiu compor uma série de pequeno valor. Restava-lhe duas soluções: mostrar logo suas cartas e correr o risco de que o jogo do Príncipe de Conde fosse maior que o seu, ou então procurar compor, com o auxílio da "loteria", uma série mais importante. Nesse caso, o príncipe, talvez bastante malprovido, pudesse me­lhorar seu jogo e pôr-lhe diante dos olhos uma série de reis e ases.

Ela hesitou, depois mostrou suas cartas.

Isso não produziu grande ruído, mas um tiro de canhão não te­ria petrificado mais a assistência.

O príncipe, com os olhos em seu jogo, não fazia o menor mo­vimento.

De repente ele se levantou, exibiu suas cartas, depois inclinou-se profundamente.

— A Mansão do Beautreillis é sua, senhora.

 

Alegrias e tristezas na Mansão do Beautreillis — O fantasma de Joffrey

Ela não podia acreditar em seus olhos. Um jogo de cartas e a sorte mais incrível, mais absurda, lhe haviam devolvido a Mansão do Beautreillis!

Puxando seus dois filhos pela mão, ela percorreu a suntuosa re­sidência. Não ousava dizer-lhes:

Isto aqui pertencia a seu pai. Mas repetia-lhes:

Isto aqui é seu! É seu!

Não se cansava de examinar as maravilhas: a decoração alegre de deusas, crianças e folhagens, os balaústres de ferro forjado, os revestimentos de madeira ao gosto da época e que substituíam as pesadas tapeçarias.

Na penumbra das escadas e dos corredores, via-se brilhar uma profusão de ouro e de guirlandas de flores, cuja cintilação miúda só era interrompida aqui e ali pelo braço coruscante de uma está­tua que sustentava um candelabro.

O Príncipe de Conde não tinha montado aquela casa, de que não gostava muito. Havia retirado alguns móveis. Os que sobra­ram, ele deixou-os para Angélica com uma generosidade de gran­de senhor.

Como bom perdedor, afastara-se depois de ter entregado o pré­mio da partida àquela que o tinha ganho. Ele estava, talvez, na realidade, mais magoado do que desejava confessar pela completa indiferença da jovem em relação a ele. Angélica não tinha olhares senão para a mansão do Beautreillis, e ele perguntava a si mesmo, com melancolia, se a amizade que acreditava ler, às vezes, nos olhos de sua graciosa vencedora não tinha sido, também, simples mano­bra interesseira.

Demais, o senhor príncipe receava-um pouco que o eco daquela partida sensacional chegasse aos ouvidos de Sua Majestade. Este não gostava muito das excentricidades retumbantes. O senhor prín­cipe decidiu retirar-se para Chantilly.

Angélica ficou sozinha em face de seu sonho exaltado. Com um prazer sem jaca, ela empreendeu a ornamentação de sua casa com tudo o que havia de mais novo.

Ebanistas, ourives e tapeceiros foram convocados. Fez fabricar pelo Sr. Boulle móveis de madeiras translúcidas, com incrustações de marfim, concha de tartaruga e bronze dourado. Seu leito escul­pido, as cadeiras e as paredes de seu quarto foram cobertos de ce­tim branco e verde com grandes flores amarelas. Em seu quarto de vestir, a mesa, a mesinha de centro e a madeira das poltronas eram revestidas de belíssimo esmalte azul. O soalho desses dois aposentos era de marchetaria e de madeira tão odorífera que o seu aroma penetrava as vestes de quem o pisasse.

Ela fez vir Gontran para pintar o teto do salão.

Comprou mil coisas, bibelôs da China, quadros, roupas bran­cas, baixela de ouro e de cristal.

A escrivaninha passava por peça rara, de escola italiana, e era quase o único móvel antigo da mansão. Era de ébano, ornada de rubis rosa e vermelho-cereja, granadas e ametistas.

Em sua febre de despesas, ela fez, igualmente, aquisição de uma pequena hacanéia branca para Florimond, a fim de que ele pudes­se galopar pelas aléias do jardim que ela fizera guarnecer de laran­jeiras plantadas em caixas de madeira.

Cantor ganhou dois grandes cães severos e mansos, que podia atrelar a um pequeno coche de madeira dourada, em que tomava assento.

Ela própria seguiu a moda da estação, adquirindo um desses pe­quenos cães fraldiqueiros, bem peludos, que eram a coqueluche das damas. Deu-lhe o nome de Crisântemo. Florimond e Cantor, que gostavam dos grandes animais bravios, desprezavam franca­mente aquela miniatura desgrenhada.

Finalmente, para coroar sua instalação, ela decidiu oferecer uma grande ceia, seguida de baile. -Essa festa consagraria a no­va situação da Sra. Morens, não mais chocolateira no Faubourg Saint-Honoré, mas transformada numa das damas de qualidade do Marais.

Para esse festim, ela se lembrou de Audiger. O mordomo ser-lhe-ia precioso conselheiro. Angélica lembrou-se de que não o vi­ra nos últimos três meses. Negligenciara um tanto os seus negó­cios durante esse tempo, mas, felizmente, pudera despender alta soma sem preocupações, porque dois de seus navios tinham vol­tado sem contratempo de uma primeira viagem às índias Orien­tais, e ela vira dobrar seus lucros de uma hora para outra.

Angélica sabia que o duque, então Conde de Soissons, havia acom­panhado o rei ao Roussillon, e deduziu que Audiger fizera parte da comitiva. Admirou-se, no entanto, de que seu sócio, habitual­mente solícito e respeitoso, houvesse deixado Paris sem dizer-lhe adeus.

Em todo caso, mandou-lhe um recado pedindo-lhe notícias e di­zendo que teria prazer em vê-lo.

Ele apareceu logo no dia seguinte, com ar sombrio e puritano.

Que acha do meu palácio? — disse Angélica, recebendo-o ale­gremente. — Não é uma das mais belas mansões de Paris?

Para falar a verdade, não acho nada — respondeu Audiger com voz cavernosa.

Angélica fez uma cara de decepção.

Ainda está zangado! Não está feliz pelo meu êxito?

Existem duas espécies de êxito — disse o mordomo, inflexí­vel. — Inclino-me diante daquele que é fruto do trabalho e da in­teligência. Mas não me disseram que ganhou a sua casa no jogo?

É exato.

E não me disseram que o Príncipe de Conde, seu parceiro, lhe pedira que fosse sua amante, caso perdesse?

Também é exato.

Que teria feito, se ele ganhasse?

Ter-me-ia tornado sua amante, Audiger! Você sabe tão bem quanto eu que uma dívida de jogo é sagrada.

A redonda cara do mordomo tornou-se escarlate, e ele aspirou profundamente. Angélica apressou-se em acrescentar:

Mas eu não perdi! E agora sou proprietária desta esplêndida moradia. Será que não valeu a pena correr o risco de ser... coquete?

Semeie coquetismo e colherá cabrões — disse Audiger som­briamente.

Suas reflexões são estúpidas, meu pobre amigo. Encare a rea­lidade. Eu não perdi, e você não é cabrão... pelo simples motivo de que não somos casados. Não o esqueça tão frequentemente.

Como o esqueceria? — gemeu ele com voz alterada. — Eu me consumo em pensar nisso, Angélica. — Estendeu para ela as duas mãos. — Case-se comigo, eu lhe imploro, casemo-nos enquanto é tempo.

Enquanto é tempo?... — repetiu ela com surpresa.

Ela estava de pé no último degrau da escadaria, de onde o tinha interpelado quando viera ao encontro dele.

Sua pequena mão ornada de anéis repousava no corrimão de pe­dra trabalhada. Usava um vestido caseiro, de veludo negro, que realçava sua carnação alambreada. Ao pescoço, um colar de pérolas.

Em seus cabelos cacheados, com reflexos de ouro, a mecha de cabelos brancos, como uma rosa de prata, era uma outra jóia, co­movente...

Sua pessoa era a imagem de uma jovem viúva muito frágil para viver, assim isolada, no seio de uma grande habitação semideser-ta. Mas seus olhos verdes recusavam qualquer clemência. Vagaro­samente, eles percorreram a decoração grandiosa do vestíbulo de mosaicos de pedra dura, as altas janelas abertas para o pátio, o te­to de caixotões, guarnecido de emblemas que não puderam ser apagados.

—   Enquanto é tempo? — repetiu ela em voz mais baixa, como para si mesma. — Oh! Não, sinceramente, eu não creio.

Com a sensação de haver recebido uma bofetada, Audiger me­diu o abismo que o separava dela. O infeliz não compreendia por qual implacável evolução a modesta criada da Máscara Vermelha se tinha metamorfoseado naquela grande dama desdenhosa. Não via nela mais que uma criatura cheia de ambição.

Em sua ingénua simplicidade desprovida de instinto, o mordo­mo não podia adivinhar que trágica silhueta se erguia, ali mesmo, por trás da jovem solitária: a de Joffrey de Peyrac, Conde de Tou­louse, o esposo querido que fora queimado como feiticeiro na Place de Greve e que, mesmo morto, continuava o dono inconteste da­quele lugar.

Conhecendo a nobreza, seus dentes acerados, sua tolice invete­rada e sua arrogância, ele estava persuadido de que a pobre meni­na se quebraria contra barreiras intransponíveis e voltaria a ele um dia, ofegante, humilhada, mas ajuizada afinal. Aliás, não ha­via ela querido revê-lo, não o havia chamado, tomando consciên-C1a, enfim, de sua loucura e desejosa de um conselho amigo e prudente, como só ele poderia dar-lhe?

Você me escreveu — disse ele cheio de esperança — que que­ria ver-me?

Oh! Sim, Audiger! — exclamou a jovem, feliz pela diversão. — Imagine que tenho muita vontade de oferecer um grande ban­quete e gostaria que você se ocupasse de preparar a mesa e orien­tar os criados para o serviço.

Ele ficou vermelho. Ela sentiu seu erro ejsrocurou emendá-lo.

—   Não é natural que eu apele para você? E o mais perfeito mordomo que conheço, e ninguém melhor que você sabe dobrar os guardanapos para dar-lhes toda espécie de formas curiosas e novas...

Audiger passou por todas as cores do arco-íris. Ele tinha, simul­taneamente, vontade de injuriar Angélica, de moê-la de pancadas, de partir em silêncio, de obedecer-lhe e de fazer saltar os miolos. Com amargura, dizia a si mesmo que não há como as mulheres para tornar ridículo um homem, qualquer que seja o partido que ele adote.

Ele escolheu, no entanto, o mais digno:

—   Estou desolado, mas não conte comigo — disse ele com voz rouca.

E, com uma grande saudação, deixou-a inopinadamente.

Ela teve de passar sem ele. Mas a festa que a Sra. Morens deu em sua casa do Béautreillis foi um grande sucesso.

As pessoas mais tituladas de Paris não se dedignaram de lá com­parecer. A Sra. Morens dançou com Filipe du Plessis-Bellière, ofus­cante em um costume de cetim azul-claro. O vestido de Angélica, de veludo azul-rei com sutaches de ouro, combinava com o traje de seu par. Formaram o mais brilhante casal da reunião. Angélica teve a surpresa de ver o frio rosto abrir-se num sorriso, enquanto ele, sustendo no alto sua mão, a guiava em uma dança através do salão.

—   Hoje você não é mais a Baronesa do Triste Vestido — disse ele.

Ela guardou aquelas palavras em seu coração, com o sentimen­to de um bem precioso, infinitamente raro. O segredo de sua ori­gem tornava-os cúmplices. Ele se lembrou da pequena patinha cinzenta cuja mão tinha tremido na de um belo primo.

"Como sou tola!", refletia Angélica sorrindo, pensativa, incli­nada sobre o seu passado de adolescente.

Terminada a montagem de sua residência, Angélica sofreu uma súbita depressão moral. A solidão de sua casa principesca a opri­mia. A Mansão do Béautreillis significava muitas coisas para ela. Aquela moradia, que jamais fora habitada e que, no entanto, ela sentia impregnada de lembranças, parecia-lhe envelhecida por uma longa aflição.

"As lembranças do que deveria ter sido", pensou ela.

Sentada, no decurso das suaves noites primaveris, diante do fo­go ou diante da janela, ela deixava passar as horas. Sua atividade habitual abandonara-a. Ela era presa de um mal que não podia com­preender. Pois seu corpo de mulherjovem estava solitário, enquanto seu espírito e seu coração sentiam a presença de um fantasma. Às vezes erguia-se de súbito e, tomando um candelabro, ia até a en­trada, para espreitar, nas trevas da galeria, não sabia o quê...

Viria alguém?... Não! Era o silêncio. As crianças dormiam em seu aposento, sob a guarda de servilhetas dedicadas. Ela havia-lhes entregue a casa de seu pai.

Angélica deitava-se em seu leito magnífico. Sentia frio. Tocava sua carne lisa e firme e acariciava-a com uma espécie de melanco­lia. Nenhum homem vivo poderia satisfazer seu desejo. Ela esta­va sozinha diante da vida!

Aquela parte do Maíais onde se achava a Mansão do Beautreil-lis estava repleta de vestígios medievais, pois fora o local do Palá­cio de Saint-Pol, que tinha sido, sob Carlos VI e Carlos VII, a residência preferida dos reis. Construído para o soberano e seus príncipes, o Palácio de Saint-Pol havia agrupado numerosas habi­tações ligadas entre si por galerias separadas por pátios e jardins e onde se encontravam o aviário, um pequeno jardim zoológico, os campos de jogo e de justa. Os grandes vassalos tinham suas re­sidências particulares na imediata vizinhança do rei. Estas casas, muito belas, como as de Sens ou de Reims, misturavam ainda suas empenas e suas torrinhas agudas às novas residências. Por toda parte, a trabalhada pedra medieval sobrevivia e ostentava-se nas belas fa­chadas concebidas por Mansart ou Perrault.

Angélica possuía, no fundo de seu jardim, um poço muito velho, rendilhado como uma peça de ourivesaria. Depois de ter subido os três degraus circulares que o debruavam, podia-se sentar sobre o bocal e sonhar à vontade sob a cúpula de ferro forjado, acariciando com um dedo salamandras esculpidas e cardos de pe­dra musgosa.      

Numa noite serena e de lua cheia em que a jovem passeava em seu jardim, encontrou junto ao poço um velho alto de cabelos bran­cos, que tirava água. Reconheceu o doméstico que trazia a lenha e se ocupava das velas. Ele já estava na Mansão do Beautreillis quando ela para ali se mudou. Era ele que o Príncipe de Conde dizia ter servido o antigo proprietário.

Angélica raramente havia falado com o ancião. Os outros cria­dos designavam-no com o nome de "vovô". Ela perguntou-lhe co­mo se chamava.

Pascalou Arrengen, senhora, para lhe servir.

Eis um nome que diz bem de onde vem você. É gascão ou bearnês?

—   Sou de Bayonne, senhora. Sou basco, para dizer tudo. Ela passou a língua sobre os lábios e perguntou a si mesma se devia falar.

O velho tinha tirado o balde do poço. A água salpicou o bocal e brilhava sob a lua.

É verdade que quem fez construir esta casa era de lá, do Languedoc?

Certamente que era... de Toulouse!

Como se chamava ele?

Ela queria ouvir seu nome, saborear a doçura amarga de senti-lo vivo ainda na recordação de um pobre homem que se aproxi­mara dele e talvez o tivesse amado. Mas o velho benzeu-se preci­pitadamente e olhou assustado em volta de si.

—   Psiu! Não se deve pronunciar seu nome. Ele é maldito! O coração de Angélica sangrou.

Então é verdade? — perguntou ela, continuando a represen­tar seu papel. — Dizem que ele foi queimado como feiticeiro...

Dizem.

O velho olhou-a com atenção extrema. Seus olhos mortiços pa­reciam interrogar, como se ele hesitasse à beira de uma confidência.

Subitamente ele se pôs a sorrir, e suas rugas impregnaram-se de uma malícia sonsa.

Dizem... mas não é verdade.

Por quê?

Foi um outro, já morto, que queimaram na Place de Greve. Dessa vez, o coração de Angélica pôs-se a bater como um tambor.

Como você sabe?

Sei porque tornei a vê-lo.

Quem?

A ele... o conde maldito.

Tornou a vê-lo? Onde?

Aqui... Uma noite... na galeria de baixo... eu o vi. Angélica suspirou e fechou os olhos com lassidão. Que loucura buscar uma esperança nas divagações de um pobre criado que acre­ditara ver um fantasma! Desgrez tinha razão de dizer que não se devia mais falar nele, que não se devia mais pensar nele. Mas o velho Pascalou estava embalado.

—   Foi numa noite, pouco depois da fogueira. Eu dormia na ca­valariça, no pátio, e estava só, porque o porteiro tinha ido embora. Eu havia ficado. Aonde queria .que eu fosse? Ouvi ruído na galeria, e reconheci seu passo.  

Um riso mudo fendeu a boca desdentada.

—   Quem não reconheceria seu passo?... O passo do Grande Coxo do Languedoc?... Acendi a lanterna e entrei. O passo marchava diante de mim, mas eu não via ninguém, porque a galeria fazia um cotovelo. No entanto, quando cheguei à volta, eu o vi! Ele se apoiava à porta da capela e voltava-se para mim...

A pele de Angélica çontraiu-se em um longo frémito.

Você o reconheceu?

Reconheci-o "cómó um cão reconhece o dono, mas não pude ver-lhe o rosto. Ele traria máscara... Uma máscara de aço negro... De repente, ele mergulhou na parede e eu não mais o vi.

—   Oh! Vá-se — gemeu ela —, você me faz morrer de medo. O velho olhou-a com surpresa, passou a manga sob o nariz, apa­nhou seu balde e afastou-se mansamente.

Angélica voltou para seu quarto em um estado de pânico indes­critível. Eis por que, entre aquelas paredes, ela se sentia oprimida alternadamente pela alegria e pela dor.'Era porque o fantasma de Joffrey de Peyrac as frequentava. Joffrey de Peyrac... fantasma! Que triste destino o dele, que não era senão vida, que adorava a vida sob todas as formas e cujo corpo era tão maravilhosamente adestrado para a voluptuosidade!

Ela deixou tombar a cabeça entre as mãos e acreditou que ia chorar.

Foi então que, do seio da noite, nasceu um canto, um canto ce­leste e delicioso, que lembrava o dos anjos quando voam sobre os campos, na noite de Natal.

A princípio, Angélica supôs que fosse uma alucinação. Mas, aproximando-se do corredor, distinguiu claramente uma voz de criança a cantar.

Tomando um castiçal, ela dirigiu-se para o quarto de seus filhos.

Suavemente, levantou o reposteiro e parou, embevecida com o quadro que tinha diante dos olhos.

Uma lamparina de prata dourada alumiava docemente a alcova em que dormiam os meninos. De pé sobre o grande leito, Can­tor, de camisa branca, as mãos gordinhas juntas sobre o ventre e de olhos levantados, cantava, semelhante a um anjinho do paraí­so. Sua voz era de uma pureza extraordinária, mas sua dicção in­fantil estropiava as palavras da maneira mais tocante:

"É o dia de Natal

que Jesus nasceu.

Ele nasceu em um estabo,

em cima da palha;

ele nasceu a um canto,

em cima do feno".

Florimond, com os cotovelos apoiados no travesseiro, escutava-o com visível prazer.

Um leve ruído tirou Angélica de seu êxtase. Ela viu Bárbara a seu lado, enxugando duas lágrimas enternecidas.

— A senhora não sabia que o nosso tesouro tinha tão bela voz? — cochichou a criada. — Eu queria fazer-lhe uma surpresa. Mas ele é esquivo. Só quer cantar para Florimond.

De novo a alegria substituiu a angústia no coração de Angélica.

A alma dos trovadores se tinha encarnado em Cantor. Joffrey de Peyrac não estava morto, pois revivia em seus dois filhos. Um parecia-se com ele, o outro tinha a sua voz...

Imediatamente ela decidiu fazer dar lições a Cantor pelo Sr. Lulli, o músico do rei.

 

Mistérios e venenos no bairro da Marais

Assim Angélica organizava sua vida naquele belo bairro em que morava a fina flor de Paris. Construíam-se muitas casas claras, com fachadas levemente inclinadas. Os jardins e os pátios das casas par­ticulares formavam, entre aquelas construções comprimidas, ilhotas de verdura em que sermisturavam os contrastantes odores das la­ranjeiras e das estrebarias.

A Sra. Morens tinha dois coches, seis cavalos, dois palafrenei-ros, quatro lacaios. Sua famulagem era completada por dois ca­mareiros, um cozinheiro, um escriturário, várias criadas e um número ilimitado de criadinhas e ajudantes de cozinha.

Ela poderia completar sua personalidade de dama do Marais in­do à igreja com um lacaio carregando o coxim, um outro sustentando-lhe a cauda do vestido e um terceiro com o saco bor­dado em que se punha o livro de orações.

Mas Angélica raramente ia à igreja, ou, melhor dizendo, jamais. Sabia que isso lhe prejudicava a reputação, mas a casa de Deus era para ela um lugar de tormentos. Lembrava-se de que havia come­tido um crime, de que vivera como uma decaída. Revia a fogueira da Place de Greve, o crucifixo erguido do monge Bécher...

Tomada de náusea física, ela se reencontrava mentalmente no adro das igrejas, entre mendigos deitados nos degraus...

Renunciara a acompanhar suas amigas às cerimónias litúrgicas e era, para os que a cercavam, um motivo-de assombro. Sua vida casta e sua irreligiosidade causavam estranheza, numa época em que não se conhecia senão a conversão da carne ou da heresia, mas não a da fé em Deus.

A Sra. Scarron empreendera secretamente reconduzi-la à piedade. Angélica parecia-lhe uma presa mais fácil que a encantadora Ninon, cujo pensamento livre assentava sobre uma filosofia hau­rida nas fontes gregas e que se traduzia por uma vida escandalosa.

Angélica frequentemente se encontrava com a viúva Scarron, ora nas graves reuniões da casa de Aumont, ora nas recepções mais agitadas dos Montespan. Na volta, Francisca propunha-lhe acompanhá-la. Regressavam a pé, amigavelmente, tendo uma e ou­tra guardado da pobreza o gosto de caminhar pelas ruas e despre­zar a escravidão da carruagem. Era esse passado miserável, durante o qual elas se haviam reunido furtivamente junto à lareira da Sra. Cordeau, que as ligava tão fortemente? Angélica temia e amava a Sra. Scarron por uma só razão: é que ela sabia, de maneira notá­vel, ouvir confidências. Por sua voz harmoniosa, sua compreen­são flexível, seu interesse não fingido, ela dava ao coração mais fechado o desejo de expandir-se, e Angélica receava constantemente deixar escapar uma palavra imprudente. Por seu turno, a Sra. Scar­ron lembrava-se de que nascera numa prisão; que aos doze anos, em La Rochelle, ela ia buscar um prato de sopa no convento dos jesuítas e que, mais tarde, morando com sua tia de Navailles, tra­tada quase como uma servilheta, viajava montada num dos mulos da liteira de sua prima.

Ocultando reciprocamente suas misérias antigas, ambas sentiam, todavia, uma pela outra, a atração que entre elas suscitavam aque­les destinos perturbados, e viam-se com grande prazer.

Outra amiga de vizinhança que Angélica frequentava assidua­mente era a encantadora Marquesa de Sévigné.

Esta também, como a Sra. Scarron, evitava o amor, que a tinha martirizado durante muito tempo, mas, enquanto Francisca subs­tituíra tal sentimento por uma ambição tão desmesurada quanto secreta, a Sra. de Sévigné, segundo ela própria confessava, "tinha enchido seu coração de amizade". Era um encanto passar algu­mas horas junto dela e, mais ainda, receber suas cartas vivas e cheias de espírito.

Angélica visitava-a para ouvir falar de Versalhes, onde a mar­quesa às vezes comparecia, por expresso convite do rei, que gosta­va da sua companhia. Ela contava com muito ardor e entusiasmo os divertimentos que ali se ofereciam: jogo da argolinha, bailados, comédias, fogos de artifício, passeios. E, quando ela via demasia­do pesar nos olhos de Angélica, exclamava:

— Não fique desolada, querida! Versalhes é o reino da Desor­dem. A confusão é tal que, quando há uma festa, os cortesãos se irritam, porque o rei não lhes dispensa o mínimo cuidado. Outro dia, os Srs. de Guise e d'Elbeuf não acharam um buraco onde se abrigar. Tiveram de dormir na estrebaria.

' Mas Angélica estava persuadida de que os Srs. de Guise e d'El-beuf preferiam dormir na estrebaria a ser excluídos dos fastos de Versalhes, e ela estava certa.

Aquele castelo real, onde todo mundo conversava, e"que ela se recusava a conhecer antes de poder ali apresentar-se em todo o seu esplendor, convertera-se em alvo, ao mesmo tempo único e inverossímil, de sua ambição. Ir a Versalhes! Mas podia uma cho­colateira, mesmo a mais rica de Paris, encontrar um lugar na cor­te do Rei-Sol?

Ela se persuadiu de que isso aconteceria um dia. Já lhe tinham acontecido tantas coisas!

Luís XIV despendia somas fabulosas no aformoseamento de Ver­salhes.

"Ele se ufana da lindeza de sua casa como uma bela do seu ros­to", dizia a Sra. de Sevigné.

Quando a rainha-mle morreu de câncer, o rei, que tinha des­maiado à sua cabeceira, correu a Versalhes. Ali ficou três dias, er­rando entre as aléias de tílias, os bosquetes de buxo aparado em globo e a multidão marmórea de- deusas e deuses. Versalhes pôs um bálsamo sobre a ferida cruciante. Ele pôde derramar lágrimas, evocar com doçura a augusta presença daquela que fizera dele um rei e que ele revia em suas vestes negras adornadas de rendas e de bordados, com o magnífico colar de pérolas que lhe descia até os joelhos, sua bela cruz de diamantes e suas pequenas mãos admirá­veis. Ele demorou no aposento em que a tinha recebido e que erá ornamentado por duas coisas que Ana d'Áustria preferia: buques de jasmim, vastos como touceiras, e bibelôs da China em filigrana de ouro e de prata. Em Versalhes, pelo menos, ele não tinha feito sua mãe chorar.

Pela mesma época, a Sra. de Montespan também perdeu a mãe, e esse luto, junto ao da corte, reteve um momento em casa a lou­ca conterrânea de Angélica. Ela vinha mais frequentemente à casa desta, fugindo aos credores e aos aborrecimentos domésticos. Sua alegria era turbada por um tormento secreto. Falou de sua infân­cia. Seu pai era homem dissoluto e sua mãe, uma beata. De sorte que, estando uma na igreja durante o dia, o outro na farra durante a noite, os dois esposou quase não se viam. Não se sabia como en­contraram maneira de-gerar alguns filhos. Atenaís falava também

da corte, mas com reticências e uma impaciência mal dissimula­da: a rainha era uma tola, e La Vallière, uma infeliz imbecil. Quan­do, então, o rei se decidiria a repudiá-la? Não faltavam pessoas prontas para ocupar o lugar dela... Dizia-se que a Sra^ de Roure e a Sra. de Soissons tinham ido procurar La Voisin para envene­nar La Vallière.

Falava-se muito de veneno em Paris, e, no entanto, existiam no Marais apenas três velhas damas que, na hora da refeição, faziam trazer-lhes a credencia, pequeno armário com taças cheias de pedras-de-sapo ou de pedaços de chifre de licorne e também o languier, espécie de saleiro de ouro ou de prata, em que se viam línguas de serpente. Todas essas coisas eram destinadas a combater os efeitos do veneno.

A nova geração afetava desprezar essas práticas. Entretanto, mui­tas pessoas morriam misteriosamente, e os médicos achavam suas vísceras queimadas por um fogo corrosivo. Aparentemente alguém lhes havia dado, segundo a expressão do policial Desgrez, "um tiro de pistola na sopa".

Angélica tinha por vizinha a Marquesa de Brinvilliers. Esta mo­rava na Rue Charles V, a dois passos. Foi no entanto por acaso que Angélica se encontrou diante daquela mulher que ela assalta­ra nas proximidades da Porte de Nesle, quando fazia parte do bando de Calembredaine.

A Sra. de Brinvilliers não a reconheceu, pelo menos Angélica assim pensou. Mas a última sentiu-se extremamente embaraçada durante a visita, pensando no bracelete de ouro guardado num co­fre, juntamente com o punhal de Rodoguno, o Egípcio. . A Sra. Morens tinha vindo à casa da filha do tenente de polícia, Sr. d'Aubrays, para dirigir-lhe uma petição. O Sr. d'Aubrays mor­rera recentemente, mas seu filho tinha ocupado o cargo, e Angéli­ca esperava que a Sra. de Brinvilliers se dispusesse a intervir junto a seu irmão. Tratava-se de obter a libertação de um pobre pedin­te, detido por mendicidade, e que a Sra. Morens, que o conhecera outrora, desejava tomar a seu serviço.

O mendigo era Pé Ligeiro.

Um dia em que Angélica passava de carruagem pela Place du Pilori, notara, exposta na golilha, a cara comprida, de olhos tris­tes, de Pé Ligeiro.

Seu sangue paralisou-se, pois Pé Ligeiro era um inocente, que seu fatigante ofício de corredor tornara inválido e reduzira à miséria. Mesmo na Tour de Nesle, jamais Angélica o vira roubar. Calembredaine achava justo alimentá-lo e abrigá-lo sem lhe exigir compensação.

Angélica fez parar sua viatura e desceu à terra. Sem se importar com os assistentes, ela interpelou o-condenado:

Pé Ligeiro, meu amigo, que faz você aí em cima?

Oh! E você, Marquesa dos Anjos? — respondeu o infeliz. — Sei lá o que eu faço aqui! O beleguim dos pobres me agarrou. Depois, eles me puseram no seu campanário. Saber por que é outro assunto.

Tenha um pouco de paciência, eu venho tirá-lo.

A fim de não perder tempo em tentativas infrutíferas, Angélica correu diretamente à casa da irmã do tenente de polícia. Obteve que o inquérito fosse rápido e a libertação assinada no dia seguin­te. A Sra. de Brinvilliers convidou Angélica para sua próxima reu­nião. Ela veria ali toda sorte de pessoas encantadoras, entre outras o Cavaleiro de Sainte-Croix.- Ninguém ignorava que o referido ca­valeiro era o amante titular da dama...

Pé Ligeiro, envergando belíssima libré, foi nomeado camareiro de Florimond e de Cantor. Não podia fazer grande coisa, mas era meigo e bom, e sabia contar histórias aos meninos. Não lhe exi­giam mais que isso.

Não era o primeiro egresso da Tour de Nesle que Angélica re­colhia na Mansão do Beautreillis.

Os outros, os irredutíveis mendigos, estropiados, vagabundos, tinham aprendido depressa o caminho de sua morada, onde, três vezes por semana, os esperava uma sopa quente, pão e roupas. Dessa vez, Angélica não pedira a Traseiro de Pau que a livrasse de seus mendigos. Receber os pobres fazia parte das suas atribuições de grande dama, e ela gostaria de poder abrigá-los todos.

Enquanto a familiaridade de Audiger começava a se lhe tornar odiosa, relembrando-lhe sua humilde condição de criada, os po­bres continuavam seus irmãos, e ela não temia, baixando a voz a fim de não ser ouvida por seus criados, falar gíria com eles. Os mendigos soltavam, então, assustadora gargalhada, aquela garga­lhada que ela conhecia tão bem...

Poderia ela esquecer a Tour de Nesle, o cheiro do ensopado que fervia na panela, as velhinhas roendo os cadáveres de ratos trazi­dos pelo espanhol, a dança monstruosa de Hurlurot e Hurlurette, o canto da velha, as risadas estrepitosas, os grandes gritos, as res­pirações estertorosas?...

Ela abria sua porta. E, nas manhãs geladas de inverno, aquelas manhãs silenciosas de neve, em que o hálito podre dos mendigos se condensava em nuvens opacas, a jovem os via dirigir-se para ela como feras.

—   Os pobres são terríveis — dizia o Sr. Vicente.

Sim, eles eram terríveis. Mas Angélica sabia como a aflição e a maldade podem morder a própria carne, o próprio coração. Ela também fora arrastada na torrente purulenta.

A velha voz cálida que havia despertado o século para a carida­de, a voz do Sr. Vicente, achava nela um eco.

—   Os pobres... que não sabem aonde ir nem o que fazer, que erram na solidão de sua miséria e que já se multiplicam, ai!... são a minha carga e a minha dor!

De joelhos sobre o piso, ela lhes lavava os pés, pensava-lhes as feridas. Somente eles e seus dois filhos tinham o poder de reani­mar a fonte do amor em seu coração endurecido.

Pouco depois do incidente com Pé Ligeiro, ela reviu Pão Ne­gro. O velho não mudara. Estava sempre coberto de suas conchas, de seus terços de falso peregrino. Enquanto ela lhe pensava a úlce­ra que lhe roía a perna, ele lhe disse:

Minha irmã, eu vim para preveni-la: se você tem amor à pe­le, não deve continuar seu pequeno manejo.

Que história é essa, Pão Negro? Que foi que eu fiz?

Você, nada. Mas trata-se da outra.

Que outra?

A mulher que lhe faz festinhas há uns oito dias. Cuidado! Olhe, ainda hoje eu a vi sair de sua casa.

Angélica lembrou-se de que a Sra. de Brinvilliers tinha vindo visitá-la.

Aquela dama pequena, vestida com um manto purpurado?

Não sei se era purpurado o seu manto, mas aquela pequena dama, eu a conheço bastante para lhe dizer que desconfie dela... como do Diabo.

Ora essa, Pão Negro, ela é a Sra. de Brinvilliers, a própria irmã do tenente de polícia.

É possível! Mas eu lhe digo que deve desconfiar.

Como você a conhece?

E uma história novelesca. Um dia em que fazia frio, eu ador­meci no adro da Igreja de Santa Oportuna. Acordei no Hôtel-Dieu. Cobertores, um colchão, cortinas e, na cabeça, uma touca de la­ço... nunca minha vermina fora tão aquecida. Apesar disso tudo, minhas gâmbias não queriam mais mexer-se... Fiquei no Hôtel-Dieu... Tinha de ser!... Aquela dama nos visitava. Trazia doces, presunto... Uma boa dama. Somente que todos os enfermos que comiam o que ela lhes levava morriam como moscas. Eu fiquei de olho. Pude ver tudo sozinho. Assim, quando ela veio um dia e me disse, toda açucarada: "Estão, aqui alguns doces, meu pobre homem", eu disse: "Não, não tenho ainda vontade de ir ver o Franc-Mitou, não tenho vontade de morrer!" Que miradas ela me lan­çou! O fogo do inferno estava dentro delas, É por isso que eu lhe digo: cuidado, Marquesa dos Anjos, ela não é pessoa que se fre­quente.

Que anda você imaginando, meu pobre Pão Negro?

Imaginar... imaginar!... Eu creio no que vejo. E conheço tam­bém um criado que se chama La Chaussée e que é da casa do Sr. de Sainte-Croix, o galã dessa Brinvilliers, e esse La Chaussée me contou histórias estranhas.

Angélica ficou pensativa. O nome de Sainte-Croix tinha sido en­volvido na expedição à casa do velho Glazer, onde ela descobrira arsénico. E Desgreznão lhe dissera: "Os criminosos de nosso tem­po, não é mais nas ruas que devo procurá-los, mas em outros lu­gares... talvez nos salões..."?

Ela estremeceu. Belo bairro tranquilo do MaraisL. Quantos dra­mas ainda se ocultavam por trás das pprtas-cocheiras encimadas por escudos de pedra! Não existia paz naquele mundo...

—   Está entendido, Pão Negro. Não frequentarei mais essa dama. Obrigada pelo aviso.

Foi buscar-lhe uma garrafa de vinho e um pedaço de toucinho.

—   Sua sacola não está muito pesada, meu pobre Pão Negro. O velho contemplou a rua nevosa, que era sua única morada.

Piscou um olho:

"   — Ai! os pobres mendigos, cheios de desventuras,

Não são ricos senão de coisas futuras".

Sobre os passos do mendigo, chegou o policial de nariz compri­do. Ela raramente vira Desgrez no curso dos últimos anos, e isso não acontecia, cada vez, sem algum embaraço para ela. Malgrado as maneiras muito corretas do policial, ela não podia olvidar in­teiramente a cena, ao mesmo tempo brutal e voluptuosa, a que ele a submetera. Sentia-se em condição de inferioridade perante ele, e, desde então, temia-o um pouco.

Quando a avisaram da presença do antigo advogado, fez uma careta e desceu aborrecida. Tinham-no introduzido em um pequeno gabinete, onde ela recebia habitualmente os escreventes e os for­necedores.

Não está com o ar muito satisfeito, senhora — disse alegre­mente Francisco Desgrez. — Será por ver-me? Venho, no entan­to, felicitar-lhe pela admirável morada em que teve o bom gosto de se instalar. Deus sabe como a conseguiu...

Deus talvez não saiba — respondeu Angélica —, mas, em com­pensação, estou bem certa de que você o sabe. Não seja hipócrita, senhor policial, e diga-me sem rodeios a que devo a honra de sua visita.

Sempre assoberbada, pelo que vejo. Está bem! Vamos ao fa­to. Você tem por vizinha e amiga, creio, essa encantadora Dama de Brinvilliers. Poderia, oportunamente, apresentar-me a ela?

Por que isso? Você é policial e, nessa qualidade, poderia muito bem introduzir-se por intermédio de seu irmão.

Acontece que eu não quero apresentar-me nessa qualidade. Mas poderia ser, por exemplo, um jovem nobre de sua amizade, seduzido por seus belos olhos e que arde por fazer-lhe a corte.

Por quê — repetiu Angélica, que torcia as mãos com uma angústia inconsciente —, por que pede isso a mim?

Você já está ao corrente de muitas coisas, minha filha, e po­deria ser-me útil.

Não quero ser-lhe útil! — exclamou a jovem. — Não quero introduzi-lo nos salões para ali exercer sua suja função de tira. Não quero frequentar essa mulher... Não quero nada de comum com vocês todos... com todos esses horrores. Deixe-me em paz!...

Todo o seu corpo tremia. O homem olhou-a com surpresa.

Que tem você? Está com os nervos em farrapos, palavra. Já a vi assustada ou desesperada, mas nunca tão amedrontada, sem razão plausível. No entanto, parece-me que você triunfou. Aqui você pode ficar tranquila, está a salvo.

Não, eu não estou a salvo, pois você ainda vem aqui... Vem sempre! Especula sobre o meu passado miserável para fazer-me confessar... não sei o quê. Eu não sei de nada, não quero saber de nada, não quero ouvir nada, não quero ver nada... Você não compreende que já destruí minha vida por me haver envolvido em intrigas dos outros?... Ainda tenho um longo caminho a per­correr e, se eu tremo, é porque tenho medo de vocês todos, que vão aliar-se para perder-me outra vez... Deixe-me, esqueça-me. Oh! Desgrez, eu lhe suplico!

Ele a escutava pensativo e ela acreditou ver, no fundo de seus olhos pardos, uma expressão inusitada, um olhar melancólico de cão espancado. Ele estendeu a mão-como se quisesse acariciar-lhe o rosto, mas não completou seu^gesto.

— Tem razão — disse ele com um suspiro. —Já lhe fiz bastante mal. Fique em paz. Não mais'a atormentarei, coração.

Ele se retirou e ela não mais o reviu.

A jovem guardou disso uma inconfessada mágoa, mas sentiu-se aliviada.

Não queria mais evocar aquele passado, que começara a arran­car de si como um traje vergonhoso.

Brinvilliers podia envenenar sua própria família inteira, se isso lhe agradasse. Angélica não se importava. Não seria ela quem se meteria a ajudar urri policial a desmascará-la.

Tinha outra coisa que fazer. Queria ser recebida em Versalhes.

Mas os últimos passos de sua ascensão eram os mais penosos. Ela ofegava. Sentia que, para chegar ao fim, era-lhe preciso travar um último combate, o mais duro, o mais áspero de todos...

Marcou um tento importante quando o acaso a pôs novamente em contato com seu irmão, o jesuíta Raimundo de Sancé.

 

Raimundo aconselha Angélica a seduzir o glacial Filipe du Plessis

Uma tarde, muito antes da noite, quando Angélica secava com areia uma epístola à sua cara amiga Ninon de Lenclos, vieram avisá-la de que um clérigo tonsurado a solicitava com urgência. Na en­trada, a jovem encontrou um sacerdote. Este lhe disse que seu ir­mão, o Reverendo Padre de Sancé, queria vê-la.

Agora?

Agora mesmo, senhora!

Angélica subiu para pôr um manto e a máscara. Hora estranha para o reencontro de um jesuíta com sua irmã, e também com a viúva de um feiticeiro queimado na Place de Greve!

O clérigo disse que não era longe. Após alguns passos, a jovem encontrou-se diante de uma casa de aparência burguesa, da Idade Média, contígua à nova colegiada dos jesuítas. No vestíbulo, o guia de Angélica desapareceu como um fantasma negro. Ela subiu a escada, com os olhos erguidos para o andar de onde se inclinava uma comprida silhueta que segurava um castiçal.

E você, minha irmã?

Sou eu, Raimundo.

Venha, eu lhe peço.

Ela seguiu-o sem fazer perguntas. Os laços secretos dos Sancé de Monteloup reatavam-se prontamente. Ele fê-la entrar em uma cela de pedra mal alumiada por uma lamparina. Ao fundo da al­cova, Angélica distinguiu um pálido rosto delicado — mulher ou criança? — de olhos cerrados.

—   Ela está doente e talvez morra — disse o jesuíta.

Quem e?

Maria Inês, nossa irmã.

Após um instante de silêncio, ele acrescentou:

Ela veio refugiar-se junto,a mim. Fi-la repousar, mas, dada a natureza de seu mal, eram-me necessários os conselhos de uma mulher. Pensei em você.

Você fez muito bem. Que tem ela?

—   Perde muito sangue. Achoíque provocou um aborto. Angélica examinou sua jovem irmã. Tinha as mãos maternais,

precisas e que sabiam tratar. A hemorragia não parecia violenta, mas vagarosa e contínua.

É preciso estancá-la o mais depressa possível; senão, ela morrerá.

Pensei em chamar um médico, mas...

Um médico!... Ele saberia apenas sangrá-la, e isso acabaria com ela.      

Infelizmente, eu não posso introduzir aqui uma parteira, sem dúvida curiosa e tagarela. Nossa regra é ao mesmo tempo muito livre e muito estrita. Não receberei nenhuma censura por ter so­corrido sigilosamente minha irmã. Mas devo evitar os mexericos. É-me difícil conservá-la nesta casa, que é o anexo do grande semi­nário... Você me compreende facilmente...

Logo que ela tenha recebido os primeiros cuidados, fá-la-ei transportar para minha residência. Enquanto isso, é preciso ir buscar o Grande Mateus.

Um quarto de hora mais tarde, Flipot galopava para o Pont Neuf, assobiando às vezes, para fazer-se reconhecer pelos vagabundos. Angélica já tinha recorrido ao Grande Mateus por ocasião de um acidente de Florimond, atropelado por um coche. Sabia que o em­pírico possuía um remédio quase milagroso para estancar o san­gue. Ele também sabia envolver-se, quando lhe recomendavam, em um manto... de discrição.

Ele veio prontamente e cuidou da jovem enferma, com a ener­gia e habilidade de uma longa prática, sempre monologando, co­mo era seu hábito:

—   Ah! pequena dama, por que não usou a tempo o eletuário de castidade que o Grande Mateus vende no Pont Neuf? É feito de cânfora, alcaçuz, sementes de videira e flores de nenúfares. Basta tomar de manhã e à noite duas ou três dracmas, e beber por cima urn copo de soro de leite no qual se tenha mergulhado um ferro em brasa... Creia-me, pequena dama, não há nada melhor para reprimir os excessivos ardores de Vénus, que se pagam tão caro...

Mas a pobre Maria Inês estava completamente incapaz de es­cutar essas tardias recomendações. Com as faces diáfanas, as pálpebras arroxeadas e o rosto diminuído em seus opulentos cabelos negros, ela parecia uma suave figura de cera privada de vida.

Afinal, Angélica pôde constatar que a hemorragia parecia deter-se, enquanto um pouco de colorido voltava às faces de sua jovem irmã.

Foi-se o Grande Mateus, deixando com Angélica uma tisana que a doente devia beber de hora em hora "para substituir o sangue que perdera".

Ele recomendou que esperassem algumas horas antes de removê-la.

Depois que ele partiu, Angélica veio sentar-se junto da pequena mesa de onde um crucifixo negro com pedestal projetava sobre a parede uma sombra gigantesca. Alguns instantes depois, Raimun­do reuniu-se a ela e sentou-se do outro lado da mesa.

Eu penso que de manhã cedinho poderemos fazê-la transportar para minha casa — disse Angélica —, mas é preferível esperar um pouco mais, até que ela recupere as forças.

Podemos esperar — aprovou Raimundo.

Ele inclinou o rosto mate, talvez um pouco menos magro que outrora, em atitude de meditação. Seus cabelos negros e pratea­dos caíam sobre a volta branca da sotaina. Sua tonsura estava um pouco ampliada, sob as primeiras investidas da calvície, mas ele não mudara muito.

—   Raimundo, como você soube que eu morava na Mansão do Beautreillis e que usava o nome de Sra. Morens?

O jesuíta fez um gesto vago com sua bela mão branca.

Foi fácil informar-me e encontrá-la. Eu a admiro, Angé­lica. O terrível caso de que você foi vítima está agora bem dis­tante.

Não tão distante ainda — disse ela com amargura —, pois ainda não posso mostrarrme em pleno dia. Muitos senhores de menos nobre linhagem que a minha olham-me como uma chocolateira enriquecida, e eu jamais poderei voltar à corte, nem ir a Ver­salhes.

Ele lançou-lhe um olhar penetrante. Conhecia todas as manei­ras de superar as dificuldades mundanas.

—Por que você não desposa um grande nome? Não lhe faltam admiradores, e sua fortuna, se não sua beleza, pode tentar mais de um nobre. Você encontrará, assim um nome e títulos novos.

Angélica pensou subitamente em Filipe e sentiu-se enrubescer a essa nova ideia. Desposá-lo? Marquesa du Plessis-Bellière?... Se­ria maravilhoso.

Raimundo, por que não pensei nisso antes?

Porque você talvez ainda não tivesse notado que era viúva e livre — replicou ele com firmeza. — Você tem hoje todos os meios de ascender a uma alta situação de maneira honesta. É uma posi­ção que oferece muitas vantagens, e eu posso ajudá-la com toda a minha influência.

Obrigada, Raimundo. Seria mavarilhoso — repetiu ela, pen­sativa. — Venho de tãa longe, Raimundo, você nem pode imagi­nar. De toda a família^fui eu quem caiu mais baixo, e no entanto não se pode dizer que b destino de cada um de nós tenha sido tão brilhante. Por que nos saímos tão mal?

Agradeço-lhe esse "nós" — disse ele com um sorriso rápido.

Oh! Ser jesuíta também é sair-se mal. Lembre-se, nosso pai não ficou satisfeito. Ele preferiria vê-lo possuidor de um bom e sólido benefício eclesiástico. Josselino, esse desapareceu na Amé­rica. Dionísio, o única militar da família, tem fama de brigão e mau jogador, o que é mais grave. Gontran? Nem se fala. Ele se desclassificou pelo prazer de lambuzar telas como um artesão. Al­berto é pajem em casa do Marechal de Rochant. É amante do ca­valeiro, a menos que esteja reservado aos encantos da gorda marechala. E Maria Inês...

Ela se calou, escutou a respiração quase imperceptível que vi­nha da alcova, e continuou, mais baixo:

Ainda menina, já era assanhada e rolava na palha com os ra­pazes da região. Mas, na corte, creio que se entregou a todo mun­do. Você faz ideia de quem seja o pai da criança?

Penso que ela própria não faz ideia — disse cruamente o je­suíta. — Mas o que eu gostaria principalmente que fosse esclareci­do é se se trata de um aborto ou de um nascimento clandestino. Tremo ao pensar que ela tenha podido deixar um pequeno ser vi­vo entre as mãos dessa Catarina Monvoisin.

Ela foi à casa de La Voisin?

Creio que sim. Ela balbuciou esse nome.

Quem não a procura? — disse Angélica, erguendo os ombros.

—   Há pouco tempo, o Duque de Vendôme foi lá, disfarçado em limpador de chaminés, a fim de extrair daquela mulher alguma revelação a respeito de um tesouro que o Sr. de Turenne teria escondido. E Monsieur, irmão do rei, fê-la ir a Saint-Cloud, para que lhe mostrasse o Diabo. Não sei se ela o conseguiu, mas ele pagou-lhe como se o tivesse visto. Adivinha, fazedora de anjos, trafican­te de venenos, ela tem muitas habilidades...

Raimundo escutava, sem sorrir, essa parolagem. Fechou os olhos e suspirou profundamente.

—   Angélica, minha irmã, estou apavorado — disse ele lentamente.

—   O século em que vivemos é testemunha de costumes tão infa­mes, de crimes tão atrozes, que os tempos futuros estremecerão. Só neste ano, várias centenas de mulheres acusaram-se, em meu confessionário, de terem-se desembaraçado do fruto de seus amores. Isso não é nada: é a consequência normal da licenciosidade e do adultério. Mas quase metade dos meus penitentes confessam ter envenenado um dos seus, ter procurado fazer desparecer, por meio de práticas demoníacas, aquele ou aquela que os constrangia. Seremos porventura ainda bárbaros? Aluindo as barreiras da fé, ter-nos-ão as heresias revelado o fundo de nossa natureza? Há um desacordo terrível entre as leis e as inclinações do povo. E cabe à Igreja mostrar de novo o caminho reto no meio desse desre­gramento...

Angélica escutava com surpresa as confidências do grande jesuíta.

—   Por que você me conta isso, Raimundo? Sou talvez uma dessas mulheres que...

O olhar do religioso voltou-se para ela. Ele pareceu examiná-la e depois sacudiu a cabeça.

—   Você é como o diamante — disse ele —, uma pedra nobre, dura, inflexível... mas simples e transparente. Ignoro que faltas você cometeu durante esses anos em que esteve desaparecida, mas estou certo de que, se as praticou, foi porque muitas vezes não lhe era possível proceder de outra forma. Você é como os verdadeiros pobres, minha irmã Angélica, você peca sem saber, ao contrá­rio dos ricos e dos grandes...

Uma gratidão ingénua invadiu o coração de Angélica, ao enun­ciado dessas" surpreendentes palavras, em que ela discerniu como que um chamado da Graça e a expressão de um perdão vindo de mais alto.

A noite estava calma. Um odor de incenso flutuava na cela, e a sombra da cruz que velava entre eles, à cabeceira de sua irmã em perigo, pareceu a Angélica, pela primeira vez em muitos anos, suave e tranquilizante.

Com um movimento espontâneo, ela se ajoelhou sobre o lajedo. . — Raimundo, você quer ouviç-me em confissão?

 

Sonhos ambiciosos — Consulta a La Voisin

O restabelecimento de Maria Inês prosseguiu de maneira satis­fatória na Mansão do Beautreillis. No entanto, a jovem permane­cia abatida e triste. Parecia ter esquecido seu riso cristalino, que era o encanto da corte, e não mostrava de seu temperamento se­não o lado exigente e impulsivo. A princípio, não manifestou ne­nhum reconhecimento pelas gentilezas de Angélica. Mas, quando ela recuperou as forças, Angélica aproveitou a primeira oportuni­dade para dar-lhe uma sonora bofetada. Desde então, Maria Inês decretou que Angélica era a única mulher com quem poderia entender-se. Aconchegava-se carinhosamente a sua irmã naquelas noites de inverno em que permaneciam junto ao fogo, tocando bandolim ou fazendo um bordado. As duas trocavam impressões acerca das pessoas que conheciam e, como tinham a língua acera­da e o espírito vivo, riam, por vezes, a bandeiras despregadas de suas pilhérias.

Depois de curada, Maria Inês não parecia de modo nenhum de­cidida a deixar "sua amiga, a Sra. Morens". Ignorava-se que elas eram parentas próximas. Isto as divertia. A rainha informou-se da saúde de sua donzela de honor. Maria Inês mandou dizer que es­tava bem, mas que ia entrar para um convento. Essa piada era mais séria do que parecia. Maria Inês recusava-se obstinadamente a ver quem quer que fosse, e mergulhava nas epístolas de São Paulo e acompanhava Angélica aos ofícios religiosos.

Angélica estava muito contente por ter tido a coragem de se con­fessar a Raimundo. Isso lhe permitia apresentar-se diante do altar sem segunda intenção nem falsa vergonha, e desempenhar perfeitamente seu papel de dama do Marais. Ela reencontrava com sa­tisfação a atmosfera das longas cerimonias impregnadas de incenso, vibrantes com a voz sonora dos pregadores e a música dos órgãos.

Era muito consolador ter tempo para rezar e pensar em sua alma.

O boato da conversão das duas atraiu à Mansão do Beautreillis gentis-homens indignados. Admiradores de Angélica ou ex-amantes de Maria Inês, todos protestavam.

—É verdade o que nos disseram? Estão fazendo penitência? Ten­cionam clausurar-se?

Maria Inês opunha às perguntas uma máscara de pequena esfin­ge desdenhosa. Muitas vezes, ela preferia não aparecer, ou então abria ostensivamente um livro de orações. Angélica, por seu tur­no, desmentia energicamente. O momento parecia-lhe inoportu­no. Assim, tendo-a levado a Sra. Scarron ao seu diretor espiritual, o honesto Padre Godin, Angélica rebelou-se logo que ele lhe fa­lou em cilício. Não Seria agora, quando ela arquitetava projetos j para casar com Filipe^ que iria estragar sua pele e as atraentes cur­vas de seu belo corpo com cinturões de crina e outros objetos de penitência.

Não achava excessivas todas as suas seduções para vencer a indi­ferença daquele estranho rapaz que, com seus cetins claros e seus cabelos louros, parecia feito e vestido de gelo.

No entanto, ele era bastante assíduo na Mansão do Beautreillis. Chegava despreocupado, falando pouco. Ao contemplá-lo em sua beleza desdenhosa, Angélica reencontrava sempre uma sensação distante, um pouco humilde e admirativa, de mocinha diante do alto e elegante primo. Quando pensava nele, essa recordação de­sagradável era acompanhada de uma voluptuosidade bastante per­turbadora. Lembrava-se das brancas mãos de Filipe sobre suas coxas, da esfoladura causada por seus anéis... Agora que ela o via tão frio e distante, acontecia-lhe lamentar aquele contato e sua própria fuga.

Filipe ignorava, certamente, ser ela a mulher que ele atacara na­quela noite.

Quando seus olhos claros pousavam em Angélica, ela sentia a deprimente impressão de que o jovem nunca notara sua beleza. Ele não lhe fazia nenhum elogio, ainda o mais banal. Era pouco amável, e as crianças, em vez de se deixarem atrair por seu garbo, tinham-lhe medo.

—Você tem um modo de olhar o belo Plessis que me alarma — declarou uma noite Maria Inês a sua irmã mais velha. — Angé­lica, você que é a mulher mais sensata que conheço, não me diga que se deixa prender pela sedução desse...

Ela pareceu buscar um epíteto lapidar, não o encontrou, e fez uma cara de desgosto.

—   Que lhe censura? — indagou Angélica, admirada.

— O que eu lhe censuro? Pois bem, é precisamente o ser tão belo, tão sedutor, e nem mesmo saber prender uma mulher em seus braços. Porque isso tem importância, confessa-o, a maneira pela qual um homem prende uma mulher em seus braços...

Maria Inês, eis um assunto bem frívolo para uma jovem que tenciona entrar para o convento!

Justamente. É preciso aproveitar enquanto ainda não estou lá. E pela maneira de um homem me agarrar que eu o julgo pron­tamente. O gesto do braço peremptório e suave, do qual sinto que não poderei desprender-me e que, no entanto, me deixa livre. Ah! que prazer, nesse instante, em ser mulher e frágil!

Seu fino rosto, com olhos de gata cruel, abrandou-se num êxta­se, e Angélica sorriu por ver-lhe fugitivamente a máscara de volú­pia que ela só mostrara aos homens. Depois, as sobrancelhas da jovem franziram-se de novo.

—   Deve-se reconhecer que bem poucos homens possuem esse dom. Mas ao menos fazem o que podem, enquanto Filipe nem sequer o tenta. Ele não conhece senão uma forma de agir com as mulheres: derruba-as e viola-as. Deve ter aprendido a amar nos campos de batalha. A própria Ninon nada pôde fazer. Sem dúvida ele reserva suas graças para seus amantes!... Todas as mulheres o detestam na proporção em que ele as decepciona.

Angélica, inclinada sobre o fogo em que assava castanhas, irritava-se com a cólera que lhe causavam as palavras de sua irmã.

Decidira desposar Filipe du Plessis. Era a melhor solução, a que arranjava tudo e remataria seu ascendimento e sua reabilitação. Mas queria iludir-se com relação àquele homem que escolhera pa­ra segundo marido e aos sentimentos que a atraíam para ele. Que­ria achá-lo "amável" para ter o direito de amá-lo.

Em um impulso de franqueza para consigo mesma, correu à ca­sa de Ninon no dia seguinte, e interpelou-a sobre o assunto.

Que pensa você de Filipe du Plessis? A cortesã refletiu, com um dedo na face.

Penso que, quando o conhecemos bem, achamos que ele é muito pior do que parece. Mas, quando o conhecemos mais pro­fundamente, concluímos que ele é muito melhor do que parece.

Já não a entendo, Ninon.

Quero dizer que ele não tem nenhuma das qualidades pro­metidas por sua beleza, nem mesmo, o gosto de se fazer amar. Em compensação, se formos à essência das coisas, ele inspira estima, porque é espécime de uma raça quase extinta: é um nobre por ex­celência. Aflige-se por questões de etiqueta e receia uma nódoa de lama em sua meia de seda. Mas não tem medo da morte. E, quan­do morrer, estará solitário como um lobo e não pedirá socorro a ninguém. Ele não pertence senão ao rei e a si próprio.

Eu não o sabia tão cheio de grandeza!

Mas você não vê também sua pequenez, minha cara! A mes­quinhez de um verdadeiro nobre é hereditária. Seu brasão ocultou-lhe o resto da humanidade há séculos. Por que sempre acreditar que a virtude e o seu oposto não podem coexistir em um mesmo ser? Um nobre é ao,mesmo tempo grande e mesquinho.

E que pensa elê das mulheres?

Filipe?... Minhaquerida, quando você o souber, virá dizer-mo.

Parece que ele é horrivelmente brutal com elas.

É o que dizem...

Ninon, você não me fará crer que ele nunca dormiu com você.

Ai, minha cara, toda a minha habilidade malogrou com ele.

Você me assusta, Ninon!

Para dizer a verdade, ele me tentava, aquele Adónis de olhos duros. Diziam-no malformado para as coisas do amor, mas eu não receio uma certa impetuosidade e agrada-me discipliná-la. Fiz tu­do, pois, para atraí-lo à minha alcova...

E então?

Então, nada. Eu teria talvez mais sorte com um boneco de neve apanhado no pátio. Ele acabou por confessar-me que eu não o excitava de modo nenhum, porque ele me tinha amizade. Acre­dito que ele necessita do ódio e da violência para sentir-se em forma.

E um louco!

Talvez... Ou talvez não: ele é apenas retardado para a sua épo­ca. Deveria ter nascido cinquenta anos mais cedo. Quando o vejo, ele me comove estranhamente, porque jne recorda a minha ju­ventude.

Sua juventude, Ninon?... — disse Angélica, olhando a face delicada, sem uma ruga, da cortesã. — Mas você é mais jovem do que eu!

Não, minha amiga. Para consolar certas mulheres, costuma-se dizer que o corpo envelhece mas a alma continua jovem. Para mim, porém, é um pouco ao contrário: meu corpo permanece jo­vem... que os deuses sejam louvados!... mas minha alma envelhe­ceu. O tempo de minha alma envelheceu. O tempo de minha juventude foi no fim do último reinado e no começo do atual. Os homens eram diferentes. Batiam-se por toda parte: hugueno-tes, suecos, os revoltosos do Sr. Gastão d'Orléans. Os moços sa­biam guerrear e não amar. Eram grandes selvagens com golas de renda. Quanto a Filipe... quer saber com quem ele se parece? Com Cinq-Mars, aquele belo gentil-homem que foi favorito de Luís XIII. Pobre Cinq-Mars! Apaixonou-se por Marion Delorme. Mas o rei era ciumento. E o Cardeal de Richelieu não teve grande trabalho para precipitar sua desgraça. Cinq-Mars pôs ateia cabeça dura no cepo. Havia muitos destinos trágicos naquele tempo!

Ninon, não fale como uma avó. Isso não lhe assenta bem.

Preciso mesmo assumir uns ares de avó para ralhar um pou­co você, Angélica. Porque tenho medo de que venha a cometer um erro!... Angélica, minha linda, você, que sabe o que é um grande amor, não vá dizer-me que está enamorada de Filipe. Ele está muito distante de você. Decepcionar-lhe-ia mais que a qualquer outra.

Angélica ruborizou-se e os cantos de sua boca tremeram como os da boca de uma criança.

Por que você diz que eu conheci um grande amor?

Porque isso se vê em seus olhos. São tão raras as mulheres que trazem no fundo das pupilas esse traço melancólico e maravi­lhoso! Sim, bem o sei... Acabou-se tudo para você. De que manei­ra?... Pouco importa! Talvez você tenha sabido que ele era casado, talvez ele a tenha enganado, talvez esteja morto...

Ele está morto, Ninon!

—   E melhor assim. Sua grande ferida está sem veneno. Mas... Angélica aprumou-se com altivez.

— Ninon, não fale mais, eu lhe peço. Quero casar com Filipe. E preciso que eu case com Filipe. Você não pode compreender por quê. Não o amo, é verdade, mas ele me atrai. Sempre me atraiu. E eu sempre pensei que ele me pertenceria um dia. Não me diga mais nada...

Munida dessas insignificantes informações sentimentais, Angé­lica reencontrou em seu salão aquele mesmo Filipe enigmático. Ele vinha frequentemente, mas o plano de sua prima não fazia ne­nhum progresso.

Angélica desconfiou que ele vinha por causa de Maria Inês. Mas, apesar de sua jovem irmã ter-se retirado para o Convento das Car­melitas do Faubourg Saint-Jacques a fim de preparar sua Páscoa, ele continuou a se apresentar amiúde. Ela soube um dia que ele se gabava de beber em casa da-Sra. Morens o melhor rosólio de toda Paris. Talvez ele não viesse senão para saborear aquele fino licor que ela própria preparava com grande quantidade de funcho, anis, coentro, camomila e açúcar macerados em aguardente.

Angélica tinha orgulho de suas habilidades domésticas, e nenhum engodo lhe parecia negligenciável. Mas ficou magoada a esse pen­samento. Então nem sua beleza nem sua conversa atraíam Filipe?

Quando chegaram os primeiros dias da primavera, ela se sentiu desesperada, tanto mais que um rigoroso jejum quaresmal a tinha enfraquecido. Estava tão entusiasmada secretamente com a ideia de desposar Filipe que não tinha coragem de renunciar a ele. Com efeito, tornada Marquesa du Plessis, ela seria apresentada à corte, visitaria sua terra natal, sua família, e reinaria no belo castelo branco que lhe maravilhara a juventude. ..

Com os nervos irritados por alternativas de esperança e desâni­mo, ardia por ir consultar La Voisin, a fim de que lhe previsse o futuro. A ocasião foi-lhe proporcionada pela Sra. Scarron, que uma tarde se apresentou em casa dela.

—   Angélica, venho buscá-la, pois é absolutamente necessário que me acompanhe. Essa louca Atenaís meteu na cabeça a ideia de ir perguntar não sei o quê a uma adivinha diabólica chamada Catarina Monvoisin. Parece-me que nós não seremos mais que duas mulheres piedosas para rezar e lutar contra os malefícios que vão talvez abater-se sobre essa infeliz imprudente.

—   Tem toda a razão, Francisca — apressou-se a dizer Angélica. Ladeada por seus dois anjos custódios, Atenaís de Montespan penetrou no antro da feiticeira. Era uma belíssima casa do Fau­bourg du Temple, para onde a feiticeira enriquecida se mudara do sinistro sótão em que por muito tempo o anão Barcarola in­troduzira furtivas silhuetas. Agora, iam quase abertamente procurá-la. Ela em geral recebia seus clientes sobre uma espécie de trono e envolta num manto bordado de abelhas de ouro. Mas, naquele dia, Catarina Monvoisin, que a frequência da alta-roda não des­viara de seus hábitos deploráveis, estava ébria de cair.

Da porta do locutório em que foram introduzidas, as três mu­lheres compreenderam logo que nada podiam extrair à pitonisa.

Esta, depois de contemplá-las longamente com olho turvo, acabou por descer de sua poltrona, titubeando, e esbarrou na horro­rizada Francisca Scarron, cuja mão agarrou.

Você tem um destino pouco comum— disse ela. — Vejo o Mar, depois a Noite, e depois principalmente o Sol. A Noite é a miséria. Sabe-se o que é isso! Não existe nada mais negro! Como a Noite! Mas o Sol é o rei. Eis, minha bela, o rei amá-la-á, e até casará com você.

Mas você se engana! — exclamou Atenaís, furiosa. — Eu é que vim perguntar-lhe se o rei me amará. Confundiu tudo.

Não se zangue, minha pequena dama — protestou a outra com voz pastosa. — Não estou tão embriagada que possa confun­dir o destino de duas pessoas. Cada qual tem o seu, não é verdade? Dê-me sua mão. Em você também há o Sol. E depois, a Sorte. Sim, a você também o rei amará. No entanto, ele não casará com você.

Que vá para o diabo a bêbada — resmungou Atenaís, reti­rando a mão com raiva.

Mas La Voisin resolvera dar a cada uma boa medida. Apoderou-se da mão de Angélica, revirou os olhos, abanou a cabeça.

Um destino prodigioso! Vejo a Noite, mas principalmente o Fogo, o Fogo que domina tudo.

Eu gostaria de saber se vou casar com um marquês.

Não posso dizer-lhe se ele é marquês, mas vejo dois casamen­tos. Aqui, nestes dois pequenos traços. E depois seis filhos...

Meu Deus!...

E depois... ligações amorosas!... Uma, duas, três, quatro, cinco...

Não vale a pena — protestou Angélica, querendo retirar a mão.

Espere!... E esse Fogo que é surpreendente. Ele arde durante toda a sua vida... até o fim. Ele é tão violento que esconde o Sol. O rei a amará, mas você não o amará por causa desse Fogo...

No coche que as reconduzia, Atenaís não se desencolerizava.

—   Essa mulher não vale um único soldo de todo o dinheiro que lhe demos. Nunca ouvi tamanha coleção de asneiras. O rei amá-la-á!... O rei amá-la-á!... Ela diz a mesma coisa a todo mundo!

Foi pela Srta. de Parajonc que Angélica soube da novidade. Não esperava por isso, e levou algum tempo para distinguir a verdade no jargão da velha preciosa. Esta viera vê-la, conforme seu hábito, à hora da ceia. Surgira da noite brumosa, qual uma coruja som­bria, cheia de fitas, com os olhos fixos e espreitadores. Angélica ofereceu-lhe alguns folhados junto à lareira. A solteirona falou de­moradamente acerca de sua vizinha, a Sra. de Gauffray, que aca­bava de "sentir a consequência do amor permitido", isto é, que após dez meses de casada tinha dado à luz um belo menino. De­pois estendeu-se sobre os incómodos de "seus caros padecentes". Angélica supôs que ela falava de seus velhos genitores, mas tratava-se dos pés da Srta. de Parajonc. Os "caros padecentes" tinham calos. Afinal, depois de dividir os cabelos em quatro e os sentimentos em oito, depois de ter declarado, olhando a chuva através da vi­draça, "O terceiro elemento está caindo", Filônis, desejosa de anun­ciar a novidade, decidiu falar como o comum dos mortais:

Sabe que a Sra. de Lamoignon vai casar a filha?

Bom proveito! A pequena não é bela, mas tem bastante di­nheiro para fazer um brilhante casamento.

Como sempre, você enxergou logo de maneira precisa, mi­nha cara. É bem verdade que somente o dote dessa pequena tri­gueira poderia tentar tão belo gentil-homem como Filipe du Plessis.

Filipe?   

Você não tinha ouvido nenhum boato? — perguntou Filô­nis, pestanejando com seus olhos atentos.

Angélica havia recobrado o sangue-frio. Disse, erguendo os ombros:

—   Talvez.... Mas não dei importância. Filipe du Plessis não pode rebaixar-se a desposar a filha de um presidente, altamente colocado, é verdade, mas de origem plebeia.

A solteirona teve um riso zombeteiro.

—   Um camponês de meus domínios dizia muitas vezes: "O dinheiro só se encontra na terra, e para apanhá-lo é preciso abaixar-se". Todos sabem que o jovem Du Plessis está sempre em dificuldades. Ele joga alto em Versalhes, e para o equipamento de sua última campanha despendeu uma fortuna. Levou atrás de si uma tropa de dez mulas transportando sua baixela de ouro e não sei mais o quê. A seda de sua tenda era tão bordada que os espanhóis a descobriram de suas trincheiras e a tomaram para alvo... Reconheço, além do mais, que esse encantador insensível é furiosamente belo...

Angélica deixou-a monologar. Depois -de uma primeira reação de incredulidade, sentiu-se desanimada. A última porta a franquear para enfim aquecer-se à luz do Rei-Sol — o casamento com Filipe — desmoronava. Ela sempre soubera, aliás, que isso seria muito difícil e que não teria forças bastantes. Não passava de uma chocolateira, e nâo poderia manter-se por muito tempo mais ao nível da nobreza, que jamais a acolheria. Recebia-a, mas não a acolhia... Versalhes!... Versalhes!... O brilho da corte, o esplendor do Rei-Sol! Filipe! Belo deus Marte inacessível!... Ela recairia áb nível de um Audiger. E seus filhos nunca seriam gentis-homens...

Absorvida em seus pensamentos, ela não sentia o tempo passar. O fogo se extinguia na chaminé, a vela fumegava.

Ouviu Filônis interpelar asperamente Flipot, que se mantinha de guarda junto à porta:

—   Imprestável, remova o supérfluo dessa ardente.

Como Flipot ficasse de boca aberta, Angélica traduziu em tom lasso:

—   Lacaio, espevite a vela.

Filônis de Parajonc levantou-se, satisfeita.

—   Minha cara, você parece pensativa. Deixo-a entregue às musas...

 

Ameaçadora declaração de amor

Naquela noite, Angélica não pôde conciliar o sono. De manhã, foi assistir à missa. Regressou muito calma. Não havia, no entan­to, tomado qualquer decisão, e quando, na parte da tarde, chegou a hora do corso e elaisubiu para sua carruagem, ainda não sabia o que iria fazer.      

Mas dispensara especial cuidado ao seu traje. Dando tapinhas em seus failes e suas sedas, ela se reprochou de repente na solidão de sua viatura. Por que havia estreado aquele vestido novo de três saias alternadas, cores castanha-da-índia, folha de outono e verde-tenro? Um finíssimo bordado de ouro, realçado por pérolas, co­bria como uma rede de ramagens cintilantes a primeira saia, o man­to do vestido e o corpete. As rendas da gola e das mangas, com lacinhos verdes, reproduziam o desenho dos bordados. Angélica havia-os feito executar especialmente pelas manufaturas de Alen-çon, segundo um projeto do Sr. de Moyne, ornamentista das ca­sas reais. Ela havia, a princípio, reservado aquele traje, austero e luxuoso ao mesmo tempo, para as reuniões de grandes damas, co­mo as que oferecia a Sra. d'Albret, onde as conversas mundanas não se queriam demasiado frívolas. Angélica sabia que seu vestido combinava admiravelmente com a sua cor e os seus olhos, embo­ra a envelhecesse um pouco.

Mas por que o tinha ela posto para ir ao corso? Esperaria des­lumbrar o implacável Filipe, ou, pela severidade de seu vestuário, mspirar-lhe confiança?... Abanava-se nervosamente, para atenuar a onda de calor que lhe subia às faces.

Crisântemo franziu o pequeno focinho úmido e lançou um olhar Perplexo a sua dona.

— Creio que vou fazer uma bobagem, Crisântemo — disse-lhe a jovem com melancolia. — Mas não posso renunciar. Não, ver­dadeiramente, não posso renunciar.

Depois, para grande surpresa do pequeno cão, ela fechou os olhos e deixou-se tombar no fundo da viatura, como se tivesse perdido todas as forças.

Ao aproximar-se das Tulherias, Angélica reanimou-se repenti­namente. Com os olhos cintilantes,- tomou seu pequeno espelho trabalhado, que lhe pendia da cintura, e examinou sua maquila-gem. Pálpebras negras, lábios vermelhos. Ela não se permitia mais que isso. Não procurava branquear a tez, havendo concluído que o calor de sua carnação lhe atraía mais homenagens que as delica­das tentativas de revestimento a gesso, em moda. Seus dentes, cui­dadosamente esfregados com pó de flores de giesta e enxaguados com vinho queimado, tinham um brilho úmido.

Ela sorriu para si mesma.

Tomou Crisântemo sob um dos braços e, segurando com a ou­tra mão o manto do vestido, atravessou o portão das Tulherias. Após um breve instante, disse a si mesma que, se Filipe não esti­vesse ali, ela renunciaria à luta. Mas ele estava. Ela o viu junto ao Grande Tabuleiro, ao lado do Príncipe de Conde, que perora­va naquele lugar favorito, onde gostava de ir mostrar-se aos curiosos.

Angélica dirigiu-se ousadamente para o grupo. Deliberou subi­tamente que, se o destino havia trazido Filipe às Tulherias, ela cum­priria o que havia decidido.

O final da tarde estava doce e fresco. Uma breve pancada de chuva tinha escurecido o saibro e tornado lustrosas as primeiras folhas das árvores.

Angélica passava, cumprimentando e sorrindo. Dizia a si mes­ma, contrariada, que seu vestido discordava horrivelmente do cos­tume que Filipe trazia. Ele, que sempre vestira roupas claras, ostentava nesse dia um extraordinário traje azul-pavão, com es­pessas botoeiras de bordados de ouro sem intervalos. Sempre na vanguarda da moda, ele já tinha dado ao seu casaco a nova forma de ampla saia, que a espada levantava atrás.

Seus punhos eram belos, mas os canhões eram quase inexisten­tes, e o calção apertava estreitamente os joelhos. Os que ainda usa­vam rhingrave ruborizavam-se ao encontrá-lo. Belas meias escarlates com quadrados de ouro acompanhavam os tacões vermelhos de seus sapatos de couro com fivelas de diamantes. Debaixo do braço, Filipe trazia um pequeno chapéu de castor, tão fino que se di­ria de prata velha polida. As plumas eram de cor azul-celeste, e, como o jovem acabava de chegar, não tivera o aborrecimento de ver essa obra-prima desarranjada pela chuva primaveril.

Com sua peruca loura cascatéando sobre as espáduas, Filipe du plessis-Bellière semelhava um belo pássaro aprumado sobre os es­porões.

Angélica procurou com os olhoá a silhueta da pequena Lamoignon, mas sua triste rival não estava presente. Com um suspiro de alívio, caminhou em direção ao Príncipe de Conde, que sempre que a encontrava dava mostras de uma afeição decepcionada e resignada.

—   Então, minha linda! — suspirou ele, esfregando seu longo nariz na fronte de Angélica. — Minha cruel, dar-nos-á a honra de vir ao Cours partilhar nossa carruagem?

Angélica deu um pequeno grito. Depois fingiu lançar um olhar embaraçado para Filipe e murmurou:

Que Vossa Alteza me perdoe, mas 6 Sr. du Plessis já me ha­via convidado para o ipasseio.

Ao diabo esses frangos emplumados! — resmungou o prínci­pe. — Olá, marquês, terá a pretensão de reter por muito tempo, para seu uso pessoal e exclusivo, uma das mais belas damas da capital?

Deus me livre, monseigneur — respondeu o jovem, que não tinha ouvido o diálogo e ignorava de'que dama se tratava.

Está bem! Pode levá-la. Eu a concedo a você. Mas, no futu: ro, digne-se descer de sua nuvem a tempo de considerar que não é único no mundo e que outros também têm direito ao mais bri­lhante sorriso de Paris.

Tomo nota, monseigneur — afirmou o cortesão, varrendo o saibro com sua pluma azul.

Após uma profunda reverência à companhia, Angélica já tinha posto sua pequena mão na de Filipe e o levava. Pobre Filipe! Por que parecia tão temível? Ele era, ao contrário, desarmante, com sua distração altiva, da qual se podia tão facilmente abusar.

Quando o casal passava diante de um banco, o Sr. de La Fontaine, que ali se achava em companhia dos Srs. Racine e Boileau, co­mentou em voz alta:

—O faisão e sua faisoa!

Angélica compreendeu a alusão ao contraste que formavam seus costumes. Por trás de seu leque, dirigiu um pequeno olhar ao poeta, que lhe respondeu com uma piscadela brejeira. Mas ela pensava. "O faisão e sua faisoa?... Deus o ouça!"

Baixou os olhos e viu, com o coração batendo, o passo seguro e magnífico de Filipe, com seus tacões vermelhos. Nenhum se­nhor sabia pisar como ele, nenhum tinha tão belas pernas, cheias e arqueadas. "Nem mesmo o rei...", pensou a jovem. Mas, para julgá-lo, era-lhe necessário rever o rei um pouco mais de perto e, para isso, ir a Versalhes. Ela iria a Versalhesí Assim, com sua mão sobre a de Filipe, subiria a galeria real. Os olhares da corte exami­nariam seu traje maravilhoso. Ela se deteria a alguns passos do rei... "A Sra. Marquesa du Plessis-Bellière..."

Seus dedos crisparam-se um pouco. Filipe disse então, de mau humor:

Ainda não compreendi por que o senhor príncipe me impôs sua presença...

Porque ele pensou que lhe agradava, você sabe que ele o quer ainda mais que ao senhor duque. Você é o filho de seu espírito guerreiro.

E acrescentou, dirigindo-lhe um olhar carinhoso:

Minha presença o aborrece a esse ponto? Está esperando alguém?

Não! Mas eu não tencionava ir ao Cours esta tarde.

Ela não ousou perguntar-lhe por quê. Talvez ele não tivesse ne­nhum motivo. Com Filipe era frequentemente assim. Suas deci­sões não significavam nada de sério, mas ninguém ousava interrogá-lo.

Ao longo do Cours, os passeantes ainda eram raros. Um cheiro de bosque fresco e de cogumelos impregnava o ar sob a abóbada sombria das grandes árvores.

Ao subir para o coche de Filipe, Angélica notara a gualdrapa com franjas de prata que pendiam quase até o chão. Onde pudera ele encontrar os recursos necessários para aquela nova elegância? Ela supunha-o, no entanto, muito endividado, após as suas loucu­ras do carnaval. Seria já o efeito das generosidades do Presidente de Lamoignon para com seu futuro genro?

Nunca Angélica havia suportado tão dificilmente o silêncio de Filipe.

Impaciente, ela fingia interessar-se pelas facécias de Crisântemo ou pelas carruagens com que cruzavam. Várias vezes ela abriu a boca, mas o perfil imperturbável do rapaz a desencorajava. Com olhar distante, ele movia lentamente as faces, chupando uma pas­tilha de almíscar ou de funcho. Angélica dizia a si mesma que, quan­do fossem casados, ela o faria perder aquele hábito. Quando alguém possui uma beleza tão pura, nãa deve entregar-se a um hábito que pode fazê-lo parecer um ruminante.

Agora havia mais sombra, porque as- árvores eram mais frondo­sas. O cocheiro fez perguntar por,um lacaio se devia voltar ou prosseguir pelo Bois de Boulogne.

—   Prosseguir — ordenou Angélica, sem esperar o assentimento de Filipe.

E, tendo o silêncio afinal sido quebrado, ela continuou vivamente:

—   Sabia da tolice que se propala, Filipe? Estão dizendo que vo­cê vai casar com a jovem Lamoignon.

Ele inclinou a bela cabeça loura.

Essa tolice é verdadeira, minha cara.

Mas...

Angélica tomou fôlego e investiu:

Mas isso não é possível! Você, o árbitro da elegância, não vai fazer-me crer que acha algum encanto naquela moça.

Não tenho qualquer opinião sobre seu encanto.

Afinal, que é que o inspira nela?

Seu dote.

A Srta. de Parajonc não tinha, pois, mentido. Angélica reteve um suspiro de alívio. Se era uma questão de dinheiro, tudo pode­ria arranjar-se. Mas esforçou-se por dar ao rosto uma expressão penalizada.

Oh! Filipe, não o acreditava tão materialista!

Materialista? — repetiu ele, erguendo os supercílios com ar ignorante.

Quero dizer, tão apegado às coisas terrenas.

A que deseja que eu seja apegado? Meu pai não me destinou às ordens.

Mesmo sem ser da Igreja, pode-se considerar o casamento de outro modo que não seja por uma questão de dinheiro!

De que modo então?

Ora!... por uma questão de amor.

Oh! Se é isso que a inquieta, minha' cara, eu posso afirmar-ihe que tenho a intenção de fazer um magote de filhos nessa pe­quena sem encanto.

Não! — gritou Angélica, irritada.

Ela os terá por seu dinheiro.

—   Não! — repetiu Angélica, batendo com o pé.

Filipe voltou para ela um rosto profundamente surpreso.

Não quer que eu faça filhos em minha mulher?

Não se trata disso, Filipe. Não quero que ela seja sua mu­lher, eis tudo.

—   E por que, então, não o será ela? Angélica soltou um suspiro de exasperação.

Oh! Filipe, você, que frequentou o salão de Ninon, não pos­so compreender como não adquiriu o menor senso da conversa­ção. Com seus ''porquês" e seus ares aturdidos, acaba por dar a seus interlocutores a impressão de que eles são completamente es­túpidos.

Talvez o sejam — disse ele com um leve sorriso.

Por causa desse sorriso, Angélica, que estava com vontade de bater-lhe, foi invadida por um enternecimento absurdo. Ele sor­ria.,. Por que sorria tão raramente? A jovem tinha a impressão de que somente ela poderia vir a compreendê-lo e fazê-lo sorrir assim.

"Um tolo", diziam alguns. "Um bruto", diziam outros. E Ni­non de Lenclos: "Quando o conhecemos bem, achamos que ele é muito pior do que parece. Mas, quando o conhecemos mais pro­fundamente, concluímos que ele é muito melhor do que parece... É um nobre... Não pertence senão ao rei é a si próprio..."

"A mim também, ele me pertence", pensou Angélica ferozmente.

Estava com raiva. Que seria necessário para fazer sair aquele ra­paz de sua indiferença? O cheiro da pólvora? Pois bem! Ele teria a guerra, já que a desejava. Ela afastou nervosamente Crisântemo, que mordicava as borlas de seu manto, depois fez um esforço pa­ra dominar sua irritação e disse em tom jovial:

Se se trata de restaurar sua fortuna, Filipe, por que não se casa comigo? Tenho muito dinheiro, meus bens não correm o ris­co de ser hipotecados em consequência de más colheitas. São ne­gócios bons e sólidos e que tendem a aumentar.

Casar-me com você? — repetiu ele.

Seu espanto era verdadeiro. Ele soltou uma gargalhada desa­gradável.

—   Eu? Casar-me com uma chocolateira! — disse com supremo desdém.

Angélica enrubesceu violentamente. Aquele Filipe teria sempre a arte de transtorná-la de vergonha e de cólera. Ela disse, com os olhos faiscantes:

—Não se diria que eu proponho unir meu plebeísmo a um sangue real? Não esqueça que eu me chamo Angélica de Ridoué de Sancé de Monteloup. Meu sangue é tão puro quanto o seu, meu primo, e mais antigo, pois minha família descende dos primeiros Capetos, enquanto, pelos homens, você não pode orgulhar-se se­ não de um bastardo qualquer de Henrique II.

Sem pestanejar, ele a fixou demoradamente e um sutil interesse pareceu acordar em seus olhos pálidos.

—   Oh! Você já me disse outrora qualquer coisa desse género. Eu me recordo. Foi em Monteloup, na sua fortaleza em ruína. Uma pequena suja e feia, mal penteada e em farrapos, esperava-me ao pé da escada para fazer-me saber que seu sangue era mais antigo que o meu. Oh! Era verdadeiramente muito engraçado e ridículo.

Angélica reviu-se no corredor gelado de Monteloup, os olhos erguidos para Filipe. Ela recordou como suas mãos estavam frias, sua cabeça ardente, seu ventre dolorido, enquanto ela o via descer a grande escada de pedra. Todo o seu jovem corpo, trabalhado pelo mistério da puberdade, havia tremido diante da aparição do belo adolescente louro. Ela desmaiara.

Quando voltou a si, no grande leito de seu quarto, sua mãe explicou-lhe que ela não era mais uma menina e que um novo fe­nómeno se manifestara nela.

Que Filipe houvesse estado assim ligado às primeiras manifesta­ções da sua vida como mulher ainda a perturbava depois de tan­tos anos. Sim, como ele lhe dizia, era ridículo, mas não carecia de doçura.

Contemplou-o com ar incerto e esforçou-se por sorrir. Como naquela tarde, sentia-se quase a tremer diante dele. Murmurou em tom súplice:

—   Filipe, case comigo. Você terá todo o dinheiro que quiser. Sou de sangue nobre. Esquecerão rapidamente o meu comércio. Aliás, muitos gentis-homens, no momento atual, não se dedignam de comerciar. O sr. Colbert me disse...

Ela se interrompeu. Ele não a escutava. Talvez pensasse em ou­tra coisa... ou em nada. Se ele lhe houvesse perguntado: "Por que deseja casar comigo?", ela lhe teria gritado: "Porque eu o amo!" Pois naquele momento ela descobria que o amava com o mesmo amor nostálgico e ingénuo com que adornara sua infância. Mas ele não fazia nenhuma pergunta. Então, ela continuou, desastra­damente, cheia de desespero:

—   Compreenda-me... eu quero reencontrar meu meio, ter uninome, um grande nome... Ser apresentada à corte... em Versalhes...

Não era assim que deveria falar. Lamentou prontamente essa confissão, esperou que ele não a tivesse ouvido. Mas ele murmu­rou, com um leve sorriso:

—   Não seria certamente um casamento por questão de dinheiro! Depois, com o mesmo tom com que repeliria a mão que lhe estendesse uma doceira:

—   Não, minha cara, decididamente não...

Ela compreendeu que a decisão dele era irrevogável. Ela havia perdido.

Ao cabo de alguns instantes, Filipe fez-lhe notar que ela não res­pondera ao cumprimento da Srta. de Montpensier.

Angélica percebeu que a carruagem tinha regressado às aléias do Cours-la-Reine, agora muito animadas.

Pôs-se a responder maquinalmente às saudações que lhe dirigiam. Parecia-lhe que o sol se tinha apagado e que a vida tomara um sa­bor de cinza. Acabrunhava-a o pensamento de que Filipe estava sentado junto dela e que ela se achava assim desarmada. Não ha­veria, então, nada mais a fazer?... Seus argumentos, sua paixão des­lizavam sobre ele como sobre uma carapaça lisa e gelada. Não se pode forçar um homem a casar conosco quando ele não nos ama nem nos deseja e seus interesses encontram outra solução. Somente o medo poderia talvez constrangê-lo. Mas que medo conseguiria curvar a fronte daquele deus Marte?

Eis a Sra. de Montespan — tornou Filipe. — Ela está com sua irmã, a abadessa, e a Sra. de Thianges. São verdadeiramente criaturas radiosas.

Eu pensava que a Sra. de Montespan estivesse no Roussillon. Ela suplicou a seu marido que a levasse, para fugir aos credores.

A julgar pelo aspecto de sua carruagem, os credores deixaram-se enternecer. Notou como o veludo é belo? Mas por que preto? É uma cor sinistra.

Os Montespan ainda estão de luto aliviado por sua mãe.

Muito aliviado luto. Ontem a Sra. de Montespan dançou em Versalhes. Foi a primeira vez que houve ali um pouco de diverti­mento após a morte da rainha-mãe. O rei convidou a Sra. de Mon­tespan.

Angélica fez um esforço para perguntar se aquilo significava que a desgraça da Srta. de La Vallière estava próxima. Ela mantinha com dificuldade aquela conversação mundana. Pouco se lhe dava que o Sr. de Montespan fosse cabrão e que sua audaciosa amiga se tornasse amante do rei.

O senhor príncipe lhe faz smais — disse ainda Filipe.

Com alguns movimentos de leque, Angélica respondeu aos gi­ros de bastão que o Príncipe de Conde lhe dirigia pela portinhola de seu coche.

—   Você é, certamente, a única mulher a quem monseigneur ainda dirige alguma galanteria — constatou o marquês com um pequeno riso, que não se sabia se era de mofa ou de admiração. — Desde a morte de sua doce amiga, a Srta. Le Vigean, no carmelo do Faubourg Saint-Jacques, ele jurou que não mais pediria às mulheres senão um prazer carnal. Foi ele quem me fez a confidência. Mas eu pergunto a mim mesmo que poderia ele pedir-lhes ante­riormente.

E, depois de um polido bocejo:

Ele não almeja senão uma coisa: conseguir de novo um co­mando. Logo que ele sabe que há no ar ideias de campanha, não falta um dia ao jogo do-rei e paga suas dívidas com pistolas de ouro.

Que heroísmo! — chacoteou Angélica, que começava a ficar exasperada com o tom aborrecido e precioso de Filipe. — Até on­de esse perfeito cortesão não se arrastaria para recuperar o vali­mento real?... Quando penso que já houve tempo em que ele procurou envenenar o rei e seu irmão!

Que está dizendo, senhora? — protestou Filipe, indignado. — Que o príncipe se tenha rebelado contra o Sr. de Mazarino, ele próprio não o nega. Seu ódio levou-o mais longe do que ele teria desejado. Mas atentar contra a vida do rei, jamais essa ideia poderia ocorrer-lhe! A que ponto chega a irresponsabilidade das mulheres!

Oh! Não se faça de inocente, Filipe. Você sabe tão bem quanto eu que isso é verdade, pois foi no seu próprio castelo que se tra­mou o atentado.

Houve uma pausa e Angélica compreendeu que atingira o alvo.

—Você está louca! — disse Filipe com voz alterada. Angélica voltou-se subitamente para ele. Havia ela então encon­trado tão depressa o caminho de seu medo, de seu único medo?...

Viu-o pálido, tenso, com os olhos a espreitarem-na com uma expressão afinal atenta. Disse em voz baixa:

—   Eu estava lá. Vi-os e ouvi-os. O Príncipe de Conde, o monge Exili, a Duquesa de Beaufort, seu pai e muitos outros ainda vivos e que no momento se divertem em Versalhes. Eu os ouvi venderem-se ao Sr. Fouquet.

—   É mentira!

Semicerrando os olhos, ela recitou:

"Eu, Luís II, Príncipe de Conde, assumo perante Monseig-neur Fouquet o compromisso de jamais me subordinar a outra pessoa que não ele, de lhe entregar minhas praças, fortificações e outras obras de defesa, todas as vezes..."

Cale-se! — gritou ele, horrorizado.

—   "Feita no Plessis-Bellière, a 20 de setembro de 1649." Com grande júbilo, ela o via empalidecer cada vez mais.

Pequena tola — disse ele, erguendo os ombros com despre­zo. — Por que você exuma essas velhas histórias? O passado é o passado. O próprio rei não lhes daria crédito.

O rei nunca teve entre as mãos tais documentos. Ele jamais soube verdadeiramente até onde podia ir a traição dos grandes.

Ela se interrompeu para saudar a carruagem da Sra. d'Albret, depois continuou com muita suavidade:

Ainda não faz cinco anos, Filipe, que o Sr. Fouquet foi con­denado.

E daí? Aonde você quer chegar?

A isto: que o rei, durante muito tempo ainda, não poderá ver com ternura os nomes de tais ou tais pessoas ligados ao do Sr. Fouquet.

Ele não os verá. Tais documentos foram destruídos.

Nem todos.

O jovem aproximou-se dela, no assento de veludo. Ela teria so­nhado com aquele gesto para um beijo de amor, mas a hora não era, manifestamente, de galanterias. Ele agarrou-lhe o pulso e apertou-o em sua mão fina, cujas articulações embranqueceram. Angélica mordeu os lábios de dor, mas seu prazer foi mais forte. Ela preferia mil vezes vê-lo assim, violento e grosseiro, a vê-lo dis­tante, fugidio, inexpugnável no retraimento de seu desdém.

Sob a leve maquilagem, o rosto do Marquês du Plessis estava lívido. Ele segurava-lhe o pulso.

Ela recebeu em pleno rosto seu hálito almiscarado.

O cofre com o veneno... — cochichou ele. — Então foi você que o apanhou!

Sim, fui eu.

Sujeitinha reles! Eu sempre tive certeza de que você sabia alguma coisa. Meu pai não o acreditava. O desaparecimento desse cofre torturou-o até a morte. E foi você! E ainda tem o cofre?

Ainda o tenho.

Ele se pôs a praguejar entre dentes. Angélica achava magnífico ver aqueles belos lábios desfiarem tal rosário de imprecações.

—   Deixe-me — disse ela —, você me maltrata.

Ele afastou-se lentamente, mas com um fulgor no olhar.

—   Eu sei — disse Angélica — qucvocê gostaria de maltratar-me mais ainda. Maltratar-me até que eu me calasse para sempre. Mas nada ganharia, Filipe. No mesmo dia da minha morte, meu testamento deve ser entregue ao rei, que nele achará as revelações necessárias e a indicação do esconderijo onde se encontram os documentos.

Com uma pequena careta, ela descolou de seu punho a corrente de ouro, cujos elos os dedos de Filipe haviam incrustado em sua carne.

—   Você é um bruto, Eilipe —disse ela em tom leve.

Depois simulou olhar pela portinhola. Agora estava muito calma.

Lá fora, o sol descera .para o poente através das árvores. A car­ruagem tinha voltado para o Bois de Boulogne. Ainda estava cla­ro, mas a noite não tardaria a cair.

Angélica sentiu-se penetrada pela umidade. Com um estremeci­mento, voltou-se de novo para Filipe.

Ele se achava branco e imóvel como uma estátua, mas ela notou que seu bigode louro estava molhado de suor.

Eu amo o príncipe — disse ele —, e meu pai era um bom homem. Penso que não se pode fazer isso... Que dinheiro você quer em troca desses documentos? Tomarei emprestado, se ne­cessário.

Não quero dinheiro.

Que você quer então?

Já lhe disse há um instante, Filipe. Quero que se case comigo.

Nunca! — disse ele, recuando.

Ele desgostaria dela a tal ponto? No entanto, havia entre os dois mais que simples relações mundanas. Não tinha ele buscado sua companhia? A própria Ninon atentara nisso.

Permaneceram muito tempo silenciosos. Somente quando a car­ruagem se aproximava da Mansão do Beaútreillis foi que Angéli­ca percebeu que tinha voltado a Paris. Era noite fechada. A jovem nao via mais o semblante de Filipe. Era melhor assim.

Ela teve a audácia de perguntar, em tom mordaz:

—   Então, marquês, por onde andou em suas meditações? Ele mexeu-se e pareceu despertar de um sonho mau.

—   Estamos entendidos, senhora, eu casarei com você! Apresente-se amanha de noite em minha casa da Rue Saint-Antoine. Discuti­rá ali com o meu intendente os termos do contrato.

Angélica não lhe estendeu a mão. Sabia que ele a rejeitaria.

Ela recusou a colação que lhe apresentou o criado e, contraria­mente ao seu hábito, não subiu para Ver os filhos, mas ganhou diretamente o familiar refúgio de seu escritório chinês.

—   Deixe-me — disse ela a Javotte, que se apresentara para tirar-lhe a roupa.

Quando ficou só, apagou as velas, pois tinha medo de ver a pró­pria imagem refletida num espelho.

Ficou muito tempo imóvel, apoiada ao canto da janela. Do for­moso jardim lhe vinha, através das sombras, o perfume das flores novas.

O fantasma negro do Grande Coxo com máscara de ferro a es­preitava?

Recusava voltar-se, olhar para dentro de si mesma. "Você me deixou só! Que poderia eu fazer então?", gritava ela ao fantasma do seu amor. Dizia a si mesma que muito em breve seria Marque­sa du Plessis-Bellière, mas não sentia nenhum júbilo em seu triun­fo. Experimentava um dilaceramento de seu ser inteiro, uma destruição completa.

"O que você fez é ignóbil, espantoso!..."

Lágrimas correram-lhe pelas faces e, com a fronte apoiuda-aos vitrais onde uma sacrílega mão apagara as armas do Conde de Peyrac, ela chorava convulsivamente, jurando que aquelas lágrimas de fraqueza seriam as últimas que derramaria em sua vida.

 

Molines prepara o novo contrato de casamento

Quando, no dia seguinte, a Sra. Morens se apresentou à casa da Rue Saint-Antoine, tinha reencontrado um pouco de sua altivez. Havia decidido não comprometer, por escrúpulos tardios, as con­sequências de um ato que tivera tanta dificuldade em concretizar. "O vinho está tirado, épreciso bébê-lo", teria dito mestre Bourjus.

Com a cabeça erguida, ela entrou em um grande salão, alumia­do apenas pelo fogo da lareira. Não havia ninguém ali. Teve tem­po de tirar o manto e a máscara e estender os dedos para as chamas. Embora ela se defendesse contra qualquer apreensão, tinha as mãos frias e o coração agitado.

Alguns instantes mais tarde, um reposteiro se levantou e um velho modestamente vestido de negro aproximou-se dela e saudou-a pro­fundamente. Angélica não pensara um só momento que o inten­dente dos Plessis-Bellière pudesse ser ainda o Sieur Molines. Reconhecendo-o, deu um grito de surpresa e agarrou-lhe esponta­neamente as duas mãos.

Sr. Molines!... Será possível? Oh! Como estou feliz"por vê-lo de novo!

A senhora me honra muito — respondeu ele, inclinando-se outra vez. — Sente-se nessa poltrona.

Ele sentou-se perto da lareira, diante de uma mesinha de centro na qual havia folhas de papel, um tinteiro e uma taça de areia.

Enquanto ele aparava uma pena, Angélica, ainda estupefata por aquela aparição, examinava-o. Ele envelhecera, mas seus traços permaneciam firmes, seu olhar, rápido e inquisitório. Somente seus cabelos, que ele cobria com um solidéu de pano preto, se haviam

tornnado completamente brancos. Ao seu lado, Angélica não podia deixar de evocar a silhueta robusta de seu pai, que tantas vezes tinha ido sentar-se junto à lareira do intendente huguenote para discutir e preparar o futuro de sua ninhada.

Pode dar-me notícias de meu pai, Sr. Molines? O intendente soprou as aparas da pena de ganso.

O senhor barão está de boa saúde, senhora.

E os muares?

—   Os da última estação vão bem. Penso que este pequeno co­mércio tem dado satisfação ao senhor seu pai.

Ao lado de Molines, Angélica estava sentada como outrora, mo­cinha pura, um pouco intransigente e muito direita. Fora Moli­nes quem negociara seu casamento com o Conde de Peyrac. Ela o via agora reaparecer, mas dessa vez em nome de Filipe. Como uma aranha tecendo pacientemente seus fios, Molines era sempre encontrado envolvido na trama de sua vida. Era tranquilizador havê-lo reencontrado. Não seria o sinal de que o presente se liga­va ao passado? A paz da terra natal, a força haurida no seio do património familiar, mas também os cuidados da infância, os es­forços do pobre barão para estabelecer a progénie, as inquietantes generosidades do intendente Molines...

—   O senhor se recorda? — perguntou ela pensativamente. — O senhor estava lá, na noite de minhas núpcias em Monteloup. Eu não simpatizava com o senhor. E no entanto fui imensamente feliz, graças ao senhor.

O velho lançou-lhe um olhar por cima dos grossos óculos de tartaruga.

—   Nós estamos aqui para perder-nos em considerações comoventes sobre seu primeiro matrimónio ou para discutir as condi­ções do segundo?

As faces de Angélica empurpuraram-se.

Está sendo muito duro, Molines.

A senhora também é dura, a julgar pelos meios empregados para persuadir meu jovem amo a desposá-la.

Angélica respirou profundamente, mas seu olhar não se desviou. Ela sentia que o tempo não era mais aquele em que, mocinha inti­midada e pobre, ela olhava com temor o todo-poderoso intenden­te Molines, que tinha entre as mãos a sorte de sua família.

Ela era agora uma mulher de negócios, com quem o Sr. Colbert não desdenhava palestrar, e cujos raciocínios lúcidos desarmavam o banqueiro Pennautier.

—   Molines, o senhor me disse um dia: "Quando alguém quer atingir um fim, deve estar disposto a fazer algum sacrifício". Nes­te caso, eu creio que vou perder qualquer coisa de muito precio­so: a estima de mim própria... Mas é preciso! Tenho um fim a atingir. Um leve sorriso distendeu os lábios, severos do intendente.

—   Se minha humilde aprovação pode servir-lhe de algum consolo, senhora, eu a concedo.

Foi a vez de Angélica sorrir. Ela sempre se entenderia com Molines. Essa certeza deu-lhe a coragem de enfrentar a discussão do contrato.

Senhora — tornou ele —, sejamos precisos. O senhor mar­quês deu-me bem a entender que estão em jogo coisas muito sé­rias. Eis por que vou expor-lhe algumas condições, que a senhora deverá subscrever. Em seguida a senhora dar-me-á conhecimento das suas. Depois eu redigirei o contrato e farei sua leitura diante das duas partes. De início, senhora, deverá jurar sobre um crucifi­xo que conhece o esconderijo de certo cofre do qual o senhor mar­quês deseja obter a posse. Somente depois desse juramento é que o contrato terá valor../"

Estou pronta a fazê-lo — afirmou Angélica, estendendo a mão.

Em alguns instantes, o Sr. du Plessis vai apresentar-se com seu capelão. Entrementes, esclareçamos a situação. Estando con­vencido de que a Sra. Morens é possuidora de um segredo que lhe interessa em alto grau, o Sr. Marquês du Plessis-Bellière aceitará desposar a Sra. Morens, nascida Angélica de Sancé de Monteloup, em troca das seguintes vantagens: realizado o casamento, isto é, imediatamente após a bênção nupcial, a senhora se desfará do re­ferido cofre, em presença de duas testemunhas, que serão sem dú­vida o capelão que tiver abençoado o casamento e eu mesmo, seu humilde servidor. Além disso, o senhor marquês exige poder dis­por livremente de sua fortuna.

Oh! Um momento! — disse vivamente Angélica. — O senhor marquês disporá de quanto dinheiro queira, e eu estou pronta a fixar os algarismos da renda que lhe atribuirei anualmente. Mas permanecerei a única proprietária e administradora dos meus de­veres. Oponho-me mesmo a que ele participe de qualquer manei­ra dos meus negócios, pois, após haver trabalhado tão duramente, nao estou disposta a encontrar-me de repente na miséria, mesmo com um belo nome. Conheço o génio dilapidatório dos grandes senhores!

Sem pestanejar, Molines riscou algumas linhas e escreveu outras. A seguir, pediu a Angélica que fizesse uma exposição tão de­talhada quanto possível dos diversos negócios de que ela se ocupa­va... Com bastante orgulho, ela pôs o intendente ao corrente de suas empresas, feliz de poder sustentar a discussão com aquela ve­lha raposa e de lhe indicar as personagens importantes junto às quais ele poderia verificar o que ela dizia. Essa precaução não me­lindrou a jovem, pois, desde que ela começou a penetrar nos arca­nos das finanças e do comércio, tinha aprendido que nenhuma palavra tem valor senão na medida em que esteja apoiada em fa­tos verificáveis. Ela notou em seus olhos um brilho de admiração, quando lhe explicou sua posição na Companhia das índias, e co­mo ali havia ingressado.

—   Confesse que não me saí mal, Sr. Molines — concluiu ela. Ele meneou a cabeça.

—   Confesso que seus negócios não me parecem desazados. Tudo depende, evidentemente, do que pôde investir no início.

Angélica teve um risinho amargo.

—   No início?... Eu não tinha nada, Molines. A pobreza em que vivíamos em Monteloup não era nada em comparação com a que eu conheci depois da morte do Sr. de Peyrac.

A menção desse nome, eles permaneceram silenciosos algum tem­po. Como o fogo diminuísse, Angélica apanhou uma acha num depósito colocado junto da lareira e pô-la sobre os tições.

É preciso que eu lhe fale de sua mina de Argentière — disse afinal Molines, no mesmo tom tranquilo. — Ela tem contribuído muito para o sustento de sua família, nestes últimos anos, mas é justo que, doravante, a senhora possa receber, assim como seus filhos, o usufruto dessa produção.

Então a mina não foi posta sob selos e atribuída a outros, como todos os bens do Conde de Peyrac?

Escapou à rapacidade dos inspetores reais. A época, ela re­presentava seu dote. Sua situação de propriedade permaneceu bas­tante ambígua...

Como todas as coisas de que o senhor se ocupa, mestre Mo­lines — disse Angélica, rindo. — O senhor tem o génio de poder servir a vários amos.

Isso é que não! — protestou o intendente. — Eu não tenho vários amos, senhora. Tenho vários negócios.

Percebo a sutil diferença, Maítre Molines. Falemos, então, do caso de Du Plessis-Bellière Filho. Subscrevo os compromissos que o senhor me pediu com relação ao cofre. Estou pronta a estudar o montante da renda necessária ao senhor marquês. Em troca dessas vantagens, peço o casamento e que seja reconhecida como marquesa, soberana das terras e títulos pertencentes a meu espo­so. Peço igualmente que seja apresentada aos seus parentes e ami­gos como sua mulher legítima. Peço também que meus dois filhos encontrem acolhida e proteção na casa de seu padrasto. Finalmente, eu gostaria de ser sabedora dos valores e bens de que ele dispõe.

Hum!... Aí a senhora arrisca-se a não descobrir senão insig­nificantes vantagens. Não lhe ocultarei que meu jovem amo está muito endividado. Ele possui, além desta casa parisiense, dois cas­telos, um na Touraine, que lhe vem de sua mãe, o outro no Poi-tou. Mas as terras dos dois castelos estão hipotecadas.

Terá o senhor gerido mal os negócios de seu amo, Molines?

Ai de mim, senhora! O próprio Sr. Colbert, que trabalha quin­ze horas por dia para sanear as finanças do reino, nada pode con­tra o espírito de prodigalidade dò rei, que torna falhos todos os cálculos de seu ministro^Da mesma forma, o senhor marquês con­sumiu todas as suas rendas, já muito diminuídas pêlo fausto do senhor seu pai, em campanhas guerreiras ou frivolidades cortesãs. Várias vezes o rei lhe fez presente de cargos interessantes, que ele poderia ter feito frutificar. Mas ele apressava-se a vendê-los para pagar uma dívida de jogo ou comprar uma carruagem. Não, se­nhora, o negócio do Plessis-Bellière não é um negócio interessante para mim. Ocupo-me dele por hábito... sentimental. Permita-me redigir sua proposta, senhora.

Durante alguns instantes não se ouvia na peça senão o arranhar da pena, que respondia ao crepitar do fogo.

"Se eu me casar", pensava Angélica, "Molines tornar-se-á meu intendente. E curioso! Nunca pensei nisso. Ele certamente procu­rará meter seus longos dedos em meus negócios. Terei nele um conselheiro excelente."

Posso permitir-me sugerir-lhe uma cláusula suplementar? — perguntou Molines, erguendo a cabeça.

A meu favor ou de seu amo?

A seu favor.

Eu acreditava que o senhor representava os interesses do Sr. du Plessis...

O velho sorriu sem responder e tirou os óculos. Depois recostou-se no espaldar de sua poltrona e lançou sobre Angélica aquele olhar vivo e penetrante que já pousara sobre ela dez anos antes, quando lhe dizia: "Creio que a conheço, Angélica, e falar-lhe-ei diferente­mente do modo como falo a seu pai..."

Eu penso — disse ele — ser muito bom casar com meu amo. Não esperava tornar a vê-la. A senhora está aqui, contra toda a probabilidade, e o Sr. du Plessis acha-se na obrigação de desposá-la. Faça-me a justiça de admitir, senhora, que eu em nada concor­ri para tal união. Mas agora é preciso que essa união seja um êxi­to: no interesse de meu amo, no seu e também no meu, pois a felicidade dos patrões faz a dos servidores.

Sou de sua opinião, certamente, Molines. Qual é, então, essa nova cláusula?

Que exija a consumação do matrimónio...

A consumação do matrimónio? — repetiu Angélica, abrindo olhos de pensionista recém-saída do convento.

Espero que compreenda o que lhe quero dizer!

Sim... eu compreendo — balbuciou Angélica. — Mas o se­nhor me surpreendeu. É bem evidente que, desposando o Sr. du Plessis...

Não é de todo evidente, senhora. Casando com a senhora, o Sr. du Plessis não faz um casamento de inclinação. Eu diria, mes­mo, que ele faz um casamento forçado. Assombrá-la-ei se lhe dis­ser que os sentimentos que inspira ao Sr. du Plessis estão longe de parecer os do amor e se aproximariam mais da cólera e mesmo do ódio?

—   Eu imagino — murmurou a jovem, erguendo os ombros. Mas, ao mesmo tempo, a angústia a invadiu. Exclamou com violência:

E daí?... Que me importa que ele me ame ou não? Tudo o que eu quero é o seu nome, são os seus títulos. O resto me é indi­ferente. Ele pode desprezar-me e ir dormir com prostitutas, se is­so lhe aprouver. Não serei eu que correrei atrás dele!

Cometerá um erro, senhora. Creio que a senhora conhece mal o homem com quem vai casar. No momento, sua posição é muito forte porque o crê fraco. Mas, depois, será necessário que o domine de qualquer maneira. Senão...

Senão?...

A senhora será horrivelmente infeliz.

O rosto da jovem tornou-se duro, e ela disse, com os dentes cerrados:

—   Já fui horrivelmente infeliz, Molines. Não tenho a intenção de recomeçar.

—Eis por que lhe proponho um meio de defesa. Escute-me, Angélica, sou bastante velho para lhe falar cruarrlente. Depois do seu casamento, não terá mais poder sobre Filipe du Plessis. O dinhei­ro o cofre, ele possuirá tudo. O argumento do coração não tem nenhum valor para ele. É preciso, pois, que'consiga dominá-lo pe­los sentidos.      

—   É um poder perigoso, Sr. Molines,'e bem vulnerável.

É um poder. Cabe-lhe torná-lo invulnerável.

Angélica estava muito perturbada. Ela não se sentia chocada com tais conselhos na boca de um austero huguenote. Toda a personali-dade de Molines era impregnada de uma prudência astuta, que ja­mais levava em conta princípios, mas somente as flutuações da natureza humana a serviço dos interesses materiais. Mais uma vez, Molines devia ter razão. Angélica recordou os acessos de medo que Filipe lhe inspirara e, também, a sensação de impotência que ela experimentava diante da sua indiferença, da sua calma glacial. Ela percebeu que, no fundo de si" mesma, já era com sua noite de núp­cias que ela contava para escfavizá-lo. Afinal de contas, quando uma mulher tem um homem nos braços, é muito poderosa. Chega o momento em que as defesas do homem cedem diante da atração da voluptuosidade. Uma mulher hábil deve saber aproveitar esse momento. Mais tarde o homem voltará, contra a vontade, à fonte do prazer. Angélica sabia que, quando o corpo magnífico de Filipe se juntasse ao dela, que, quando aquela boca.elástica e fresca como uma fruta se colasse à sua, ela por seu turno se converteria na mais viva e mais sábia das amantes. Eles encontrariam juntos, no anoni­mato da luta amorosa, um entendimento que Filipe, ao clarear o dia, talvez fingisse esquecer, mas que os ligaria mais firmemente um ao outro do que qualquer declaração inflamada.

Seu olhar um pouco vago voltou-se para Molines. Ele devia ter seguido sobre seu rosto o fio de seus pensamentos, pois teve um pequeno sorriso irónico e disse:

Penso também que você é bastante bela para jogar a partida. Seria preciso ainda... que ela pudesse travar-se. O que não signifi­ca, aliás, necessariamente, que ganhará a primeira parada.

Que quer dizer?

Meu amo não gosta das mulheres. Ele certamente as conhe­ce, mas elas são para ele um fruto amargo e nauseante.

—   Atribuem-lhe, no entanto, aventuras retumbantes. E aquelas orgias célebres, durante suas campanhas estrangeiras, em Norgen...

São reflexos de militar excitado pela guerra. Ele toma as mu­lheres como atearia um incêndio, como atravessaria com um gol­pe de espada o ventre de uma criança... para fazer o,mal...

Molines, você diz coisas assustadoras!

Não quero assustá-la, mas somente preveni-la. Você é de fa­mília nobre, mas sadia e rústica. Parece ignorar a espécie de edu­cação a que é submetido um jovem gentil-homem cujos pais são ricos e mundanos. Desde a infância ele é joguete das criadas e dos lacaios e, depois, dos senhores em cujas casas é colocado como pa­jem. Nas práticas italianas que lhe ensinam...

Oh! Cale-se. Tudo isso é muito desagradável — murmurou Angélica, olhando o fogo com ar contrafeito.

Molines não insistiu e pôs de novo os óculos.

Devo acrescentar esta cláusula?

Acrescente o que quiser, Molines. Eu...

Ouvindo a porta abrir-se, ela se interrompeu. Na penumbra do salão, a silhueta de Filipe, vestido de cetim claro, apareceu de iní­cio como uma estátua de neve, que pouco a pouco se tornou mais distinta. Branco e louro, coberto de ouro, o jovem parecia prepa­rado para ir a um baile. Saudou Angélica com uma arrogância in­diferente.

Em que pé estão as negociações, Molines?

A Sra. Morens concorda em subscrever os compromissos pro­postos.

Está pronta para jurar sobre o crucifixo que conhece verda­deiramente o esconderijo do cofre?

Posso jurá-lo — disse Angélica.

Nesse caso, pode aproximar-se, Sr. Carette...

O capelão, cuja magra e negra figura permanecera invisível atrás da de seu amo, apareceu por seu turno. Segurava um crucifixo so­bre o qual Angélica jurou que conhecia verdadeiramente o escon­derijo do cofre e que se comprometia a entregá-lo ao Sr. du Plessis após seu casamento. Depois, Molines enunciou o montante da renda que Angélica outorgaria mais tarde a seu esposo. A quantia era vultosa, mas devia corresponder ao conjunto das despesas do jo­vem gentil-homem, tais como o intendente tinha o hábito de fi­xar cada ano. Angélica fez uma pequena careta, mas não pestanejou: se seus negócios permanecessem sólidos e prósperos, ela não teria dificuldade em cumprir o contrato. Por outro lado, quando ela fosse a Marquesa du Plessis, procuraria fazer prosperar ao máxi­mo as duas propriedades de Filipe.

Este não levantou nenhuma objeção. Mostrava um ar de pro­fundo aborrecimento.

—   Está bem, Molines — disse ele, dissimulando um bocejo. — trate de regular o mais rapidamente possível esta desagradável história.       O intendente tossiu levemente e esfregou as mãos com embaraço.

—   Existe ainda uma cláusula, senhor marquês, que a Sra. Morens, aqui presente, me pediu que incluísse no contrato. Ei-la: as condições financeiras não serão executadas se não houver a con­sumação do matrimónio.

Filipe pareceu levar alguns instantes para compreender, depois sua fisionomia purpurou-se.

—   Oh! Com efeito! — disse ele. — Oh! Com efeito!...

Ele pareceu tão pobre de vocabulário que Angélica teve por ele um estranho sentimento de compaixão.

—   É incrível! — exclamou ele, afinal. — O impudor unido à im­pudência!     

Agora ele estava branco de raiva...

—   E pode dizer-me, Molines, como deverei provar ao mundo que honrei o leito dessa pessoa?... Deflorando uma prostituta que já tem dois filhos e que andou com todos os mosqueteiros e finan­cistas do reino?... Apresentando-me perante um tribunal, como o idiota desse Langey, que teve de esforçar-se diante de dez pessoas para provar sua virilidade? A Sra. Morens preveniu as testemunhas que deverão assistir a tal cerimónia?

Molines fez com as duas mãos um gesto de apaziguamento.

—   Não vejo, senhor marquês, por que esta cláusula o coloca em tal estado. Ela é, na realidade, tão... posso permitir-me dizê-lo?... tão interessante para o senhor como para sua futura esposa. Ima­gine que, num impulso de aborrecimento ou de rancor bem com­ preensível, negligencie seus deveres conjugais; a Sra. Morens terá o direito, daqui a alguns meses, de reclamar a anulação do casa­mento e arrastá-lo a um processo ridículo e dispensioso. Eu pertenço à religião reformada, mas acredito saber que a não consumação do casamento é uma das causas de anulação reconhecidas pela Igreja. Não é assim, senhor capelão?

Exatamente, Sr. Molines, o casamento cristão e católico não tem senão uma finalidade: a procriação.

Ai está! — disse com suavidade o intendente, cuja ironia so­ante Angélica, que bem o conhecia, podia perceber. — Quanto à prova de sua boa vontade — continuou ele —, parece-me que a melhor é sua esposa dar-lhe logo um herdeiro.

Filipe voltou-se para Angélica, que, durante essa conversação, procurava manter-se impassível. No entanto, quando ele a olhou, ela não pôde deixar de erguer os olhos para o jovem. A dura expressão daquele belo rosto causou-lhe um estremecimento invo-untário.e que não era de prazer.

— Pois bem, está entendido — disse lentamente Filipe, enquan­to um sorriso cruel distendia seus lábios. — Farei o que me sugere...

 

Estranhas palavras de Molines sobre o Conde de Peyrac

Você me fez desempenhar um papel mais odioso do que eu pensava — disse Angélica.a Molines.

Quando se escolheu úm papel odioso, senhora, não se pode vacilar. É necessário firmSr bem suas posições.

Levemente curvado, ele a seguiu e acompanhou-a até sua car­ruagem. Com seu pequeno barrete negro e o gesto um pouco as­tuto de suas mãos secas, que esfregava naturalmente uma na outra, ele era uma sombra surgida do passado.

"Volto para os meus", disse Angélica a si mesma, com uma sen­sação de plenitude que lenia as feridas humilhantes produzidas pelo desdém de Filipe.

Ela tomava pé novamente, reencontrava seu mundo. Na porta, o intendente pareceu examinar com ate/ição o céu estrelado, en­quanto a carruagem da Sra. Morens dava volta no pátio a fim de se colocar diante da escada.

Eu me pergunto — tornou o intendente, franzindo as sobran­celhas — como tal homem pôde morrer.

Que homem, Molines?

O Sr. Conde de Peyrac...

Angélica estremeceu. Depois de algum tempo, o desespero que ela sempre experimentava ao pensar em Joffrey agravou-se por obs­curos remorsos. Seus olhos também buscaram-maquinalmente o céu noturno.

Acredita que... que ele me quererá mal... se eu casar com Fi­lipe? — perguntou.

O velho não pareceu havê-la entendido.

—   Que tal homem pudesse morrer, eis o que ultrapassa o entendimento — tornou ele, meneando a cabeça. — Talvez o rei o haja compreendido a tempo...

Angélica segurou-lhe o braço com gesto impulsivo.

Molines... você sabe alguma coisa?

Ouvi dizer que o rei o perdoou... no último momento.

Ai! Eu o vi, com os meus próprios olhos, ser queimado na fogueira.

Então, deixemos os mortos enterrarem os mortos — disse Mo­lines com um gesto de pastor que lhe ficava muito bem e que de­via ajudá-lo a enganar seu mundo. — Que a vida siga seu caminho!

No coche que a reconduziu a casa, Angélica apertava uma con­tra a outra suas mãos cheias de anéis.

—   Joffrey, onde está você? Por que esta claridade que se precisa, agora que a chama da fogueira está extinta há cinco anos?... Se você erra ainda sobre a terra, volte para mim!

Calou-se, espantada com as palavras que murmurava. A passa­gem da viatura, as lanternas das ruas, que o Sr. de La Reynie havia mandado instalar, projetavam manchas de luz sobre seu vestido. Ela não as via com bons olhos, pois dissipavam a escuridão em que desejava submergir cegamente.

Estava receosa. Tinha medo de Filipe, mas sobretudo de Joffrey, estivesse morto ou vivo!...

Na Mansão do Beautreillis, Florimond e Cantor aproximaram-se da mãe. Estavam ambos vestidos de"cetim rosa, com golas de renda, usavam minúsculas espadas e tinham à cabeça chapéus de feltro com plumas cor-de-rosa.

Apoiavam-se ao pescoço de um grande cão de pelagem ruiva, quase tão alto como Cantor.

Angélica deteve-se, com o coração agitado, diante da graça da­queles seres adoráveis. Como eles estavam graves e compenetra­dos de sua importância! Como caminhavam lentamente, a fim de não amarfanhar seus belos trajes!

Entre Filipe e o fantasma de Joffrey, eles surgiam, fortes em sua fraqueza. "Que a vida siga seu caminho", tinha dito o velho in­tendente huguenote. E a vida eram eles. Era por eles que ela devia continuar a traçar seu caminho, lentamente, sem desfalecimento.

 

Os rostos do passado

Os pavores e os escrúpulos que durante esse período assaltaram Angélica e perturbaram suas noites não foram suspeitados nem pelos que a cercavam-nem-por seus amigos. Nunca ela parecera tão bela, tão segura de si mesma. Recebeu com um sorriso ao mes­mo tempo condescendente-e natural-a curiosidade dos salões, on­de se espalhou, como um rastilho de pólvora, simultaneamente com a notícia do seu futuro casamento, a revelação de sua origem aristocrática.

A Sra. Morens! A chocolateira! Uma Sancé?... Família tornada obscura durante os últimos séculos, mas aliada, por um entrelaça­mento de ramos gloriosos, aos Montmorency e mesmo aos Gui­se. Aliás, os últimos rebentos dessa família tinham começado a orná-la com novo lustre. Não havia a própria Ana d'Áustria re­clamado à sua cabeceira de agonizante um grande jesuíta com olhos de fogo, o Reverendo Padre de Sancé, cuja direção espiritual to­das as grandes damas da corte desejavam receber? Então, a Sra. Morens, cuja original existência e repentina ascensão não deixa­vam de constituir um pequeno objeto de escândalo, era a própria irmã daquele fino e hábil eclesiástico, já quase ilustre?... Muitos duvidavam. Mas, em uma recepção cada pela Sra. d'AÍbret,-que fora arranjada para pô-los face a face, viu-se o jesuíta abraçar a fu­tura Marquesa du Plessis-Bellière, tratá-la ostensivamente por vo­cê e conversar demoradamente com ela entre gracejos fraternais.

fora, aliás, para Raimundo que Angélica se precipitara no dia seguinte ao de seu encontro com Molines. Sabia que nele teria um aliado seguro que, sem tocar no assunto, organizaria admiravelmente sua reabilitação mundana. O que, aliás, não deixou de acontecer.

Não fazia uma semana que desmoronara a barreira de arrogân­cia erguida entre o presumido plebeísmo da jovem comerciante e a simpatia das nobres damas do Marais. Falava-se de sua irmã, a deliciosa Maria Inês de Sancé, cuja graça tinha encantado, em duas estações, a corte. Sua conversão era passageira, pensava-se. De qualquer modo, a corte ia honrar-se com a presença de outra Sancé, cuja beleza nada tinha que invejar à da primeira e cujo es­pírito já era célebre nas ruelles.

. Seus irmãos Dionísio e Alberto, este último pajem da Sra. de Rochant, vieram vê-la e, depois das efusões mescladas de franque­za, pediram-lhe dinheiro.

Não falaram do irmão pintor, cujo destino ignoravam. Referiam-se de passagem ao mais velho, um jovem louco que seguira outro­ra para as Américas. Da mesma maneira, não insistiram muito so­bre o primeiro casamento de Angélica, nem sobre as razões que tinham podido levar a descendente de uma autêntica família de príncipes a fabricar chocolate. Aqueles cortesãos e aquelas damas frívolas sabiam perfeitamente olvidar, nos cochichos de uma con­fidência, o que uns e outros tinham interesse em esquecer.

Com exceção de um só, De Guiché, todos os favoritos de ou­trora, temendo a desgraça, haviam aprendido a ser mais discretos. Vardes estava na prisão desde o caso do pequeno vendedor de bar-quilhos, caso que concorrera para desvendar o da carta espanhola.

A profunda bondade da Grande Mademoiselle ditou-lhe o silên­cio, malgrado seu gosto das bisbilhotices. Abraçou Angélica de­moradamente e disse-lhe: "Seja feliz, muito feliz, minha querida", enquanto enxugava algumas lágrimas de emoção.

A Sra. de Montespan recordava-se bem de um pormenor bas­tante estranho na vida daquela Angélica de Sancé, mas, toda en­tregue às suas próprias intrigas, quase não se ocupou do assunto. Regozijava-se de que Angélica estivesse prestes a ser apresentada à corte. Com a triste Luísa de La Vallière e uma rainha mal-humorada e choramingona, a corte precisava de entusiasmo. Ora, o rei, taciturno e grave, estava tão necessitado de alegria e folgan­ça como um adolescente muito tempo reprimido. O caráter jo­vial de Angélica faria maravilhas para permitir ao da brilhante Atenaís expandir-se. A parelha formada por essas duas belezas ri­sonhas e que sabiam replicar tão vivamente uma à outra não era já buscada nos salões como garantia de animação e de êxito de um sarau?

Atenaís de Montespan acorreu e deu à sua amiga uma série de conselhos sobre seus vestidos e as jóias que lhe eram necessárias para sua apresentação em Versalhes.

Quanto a Sra. Scarron, podia-se ter confiança em sua discrição. A inteligente viúva tinha o cuidado muito constante de manter reserva sobre o presente, o passado ou o futuro das pessoas que podiam ser-lhe úteis, e não se arriscaria a cometer uma imprudência.

Por esse acordo tácito e geral, o recente passado de Angélica pa­receu tombar em uma negra cova.-Certa noite, depois de ter olha­do uma vez mais o punhal de Rodoguno, o Egípcio, a jovem compreendeu que tudo aquilo tinha sido apenas um sonho atroz. Sua vida reatava, segundo uma linha contínua e traçada com ante­cipação, a vida de Angélica de Sancé, jovem nobre do Poitou, à qual, já outrora, Filipe du Plessis-Bellière parecia prometido.

 

As violências de Audiger

No entanto, esse desaparecimento de uma fase de sua existência não se efetuava sem alguns incidentes.

Certa manhã, quando ela se preparava diante do toucador, o mor­domo do Conde de Soissons, Audiger, se fez anunciar.

Podendo enfiar um vestido e descer para recebê-lo, Angélica pre­feriu ficar sentada em frente da penteadeira. Uma grande dama podia muito bem receber de roupão um subalterno.

Quando Audiger entrou, ela não se voltou e continuou a em­poar suavemente o pescoço e o colo. No grande espelho oval, er­guido diante dela, a jovem podia ver o visitante avançar, entesado em suas vestes burguesas. Tinha a expressão severa, que ela co­nhecia bem, aquela que precedia entre eles a explosão das "cenas conjugais".

Entre, Audiger — disse ela cordialmente —, e sente-se perto de mim, nesse tamborete. Há muito tempo que não nos vemos, mas não era necessário. Nossos negócios caminham bem com es­se honesto Marchandeau!

Sempre deploro ficar muito tempo sem encontrá-la — disse o rapaz, com voz moderada. — Porque geralmente aproveita mi­nha ausência para fazer tolices. É verdade que vai desposar o Mar­quês du Plessis-Bellière?

É o que existe de mais verdadeiro, meu amigo — respondeu negligentemente Angélica, removendo com uma pequena escova macia um pouco de pó-de-arroz do seu pescoço de cisne. — O mar­quês é meu primo e creio, na verdad :, que sempre lhe tive amor.

Então, você conseguiu final reaiízar os projetos de sua ca­becinha ambiciosa! Há muit j temj o que eu compreendi que nada seria jamais bastante alto para você. A qualquer preço e como se isso valesse a pena, você quer fazer parte da nobreza...

—   Eu sou da nobreza, Audiger, e sempre fui, mesmo no tempo em que servia os fregueses de mestre Bourjus. Você, que está tão bem ao corrente de todos, os boatos, certamente não deixou de ouvir, nestes últimos dias, que eu me chamo, na realidade, Angé­lica de Sancé de Monteloup.

O rosto do mordomo se crispou. Ele estava muito vermelho. "Deveria fazer-se sangrar", pensou Angélica.

—   Ouvi, com efeito. E isso me esclareceu acerca do significado do seu desdém. É por essa razão que se recusava a tornar-se minha mulher!... Porque eu a encheria de vergonha.

Com um dedo, ele abriu a volta que, em sua cólera contida, o estrangulava. Depois de respirar, continuou:

—   Ignoro por que razões você desceu tão baixo, a ponto de eu tê-la conhecido corrío criada pobre e escondendo-se de sua própria família. Mas conheço bastante o mundo-para adivinhar que você foi vítima de intrigas sórdidas e criminosas, como se encon­tram sempre à sombra das cartes. E ágoraquer voltar para esse mundo!... Não, não posso ainda considerá-la assim. Eis por que continuo a falar-lhe em tom familiar, que talvez já a melindre... Não, você não vai desaparecer, Angélica, mais cruelmente do que se morresse. A bela gloríola de pertencer a um meio vil, hipócrita e estúpido! Como é que você, Angélica, cuja lucidez e sólido bom senso eu admirava, pode permanecer- cega aos defeitos dessa classe à qual deseja pertencer?... A atmosfera sadia de que você tem necessidade para se expandir e a bondade fraternal dos simples que encontrou entre nós... veja, eu não tenho vergonha, eu, de me pôr em pé de igualdade com um mestre Bourjus!... Como pode você rejeitar tudo isso tão facilmente?... Ficará sozinha entre esses intrigantes, cuja futilidade e vilania entrarão em conflito com o seu gosto da realidade, com a sua franqueza, ou melhor, como eles, você se corromperá...

Angélica pousou um tanto secamente sua escova de prata na beira do toucador. Irritava-se muitíssimo com as cenas conjugais de Au­diger. Deveria ela, até Versalhes, ouvir os sermões de um mordo­mo? Lançou um olhar sobre o rosto cheio e liso, de olhos honestos, de belos lábios, e disse a si mesma: "É "pena ser um homem ao mesmo tempo tão simpático e tão estúpido!" Com um suspiro de decisão, ela se levantou.

—   Meu caro amigo...

—   Eu não sou seu amigo, Deus me livre! — disse ele, erguendo-se por sua vez.

De vermelho que era, ele se tornara muito pálido. Seus traços se alteraram. Sua voz tremeu como sob o acesso de um súbito desvario.

—   Ilusões!... — resmungou ele. —Jamais tive senão ilusões a seu respeito. Pensar que estive até a planejar... Você, minha mulher! Pobre idiota! É verdade... você pertence bem ao seu mundo. Afi­nal de contas, não passa de uma fêmea boa para se virar as pernas para o ar!

Em dois passos ele chegou junto dela, tomou-a pela cintura e derribou-a sobre o divã. Arquejante, com uma raiva inaudita, ele segurou-lhe os punhos com uma só mão, mantendo-os contra o peito da jovem a fim de imobilizar-lhe o busto, enquanto com a outra mão lhe arrancava o chambre, a fina camisa, procurando desnudá-la inteiramente.

O primeiro reflexo de Angélica tinha sido de revoltar-se, mas, muito depressa, imobilizou-se, ficando entregue àquele assalto fu­rioso. O homem, que esperava uma luta, sentiu, pouco a pouco, a inanidade e o ridículo de sua violência. Desconcertado, afrou­xou seus gestos, depois desfez o arrocho.

Seus olhos bravios examinaram o rosto que, tombado para trás, fazia pensar no de uma morta.

—   Por que não se defende? — balbuciou.

Ela o olhou fixamente, com seus olhos verdes, sem pestanejar. Jamais o rosto de Audiger havia estado tão perto do seu. Grave­mente, ela afundou suas pupilas naquele olhar de bronze, em que se acendiam e apagavam, alternadamente, a loucura, o desespero, a paixão.

—   Você foi um companheiro muito útil, Audiger — murmurou. — Eu o reconheço. Se me deseja, possua-me. Não me recusa­rei. Você bem sabe que nunca recuo quando é chegada a hora de pagar uma dívida.

Mudo, ele a contemplava. O sentido das palavras que ela pro­nunciava não penetrava senão lentamente em seu espírito. Sentia contra sua perna aquela carne macia e firme, cujo odor, ao mes­mo tempo estranho e familiar, fazia-o desfalecer. Angélica não es­tava por modo nenhum perturbada. Ele devia reconhecer que ela se entregava sem resistência. Mas aquele próprio abandono era in-sultante. Era um invólucro sem alma que se lhe oferecia.

Ele o compreendeu. Com uma espécie de soluço, endireitou-se e recuou alguns passos titubeando, sem deixar de olhá-la.

Ela não se mexeu, e permaneceu ali, meio estendida sobre o di­vã, sem mesmo fazer o gesto de reunir sobre o peito a renda ras­gada de seu chambre. Ele podia ver as pernas com que tanto sonhara, e elas eram tão perfeitas, como ele as tinha imaginado, longas, fuseladas, terminadas por pés muito pequenos, que se des­tacavam sobre o veludo dos coxins como esquisitos bibelôs de mar­fim cor-de-rosa. Audiger respirou profundamente.

—   Eu o lamentarei, decerto, a vida toda — disse com voz sufocada. — Mas ao menos não terei desprezo a mim mesmo. Adeus, senhora! Não quero sua esmola.

Recuou mais, até o reposteiro, e saiu.

Angélica ficou ainda muito tempo a refletir. Depois examinou os estragos de suas vestes. A gola de renda de Malines estava perdida.

—   Ao diabo os homens! — disse ela com irritação. Recordou-se do quanto ansiara, durante o passeio ao moinho de Javel, que Audiger se tornasse seu amante. Mas as circunstân­cias eram outras. Aquela época, Audiger era mais rico que ela, e a gola que ela usava naquele dia não lhe custara nem três libras...

Com um pequeno suspiro, foi sentar-se diante da penteadeira.

"Ninon de Lenclos tem razão", pensou ela. "O que geralmente causa mal-entendidos em amor é que os relógios do desejo não soam sempre à mesma hora."

No dia seguinte, por uma criada da Anã Espanhola, Angélica recebeu um lacónico recado de Audiger, que lhe pedia fosse ao estabelecimento à noite, a fim de examinar com ele os livros. O convite pareceu-lhe uma esperteza simplória. O pobre rapaz, de­pois de uma noite de insónia e de tormentos, tivera de mandar ao inferno sua dignidade e sua grandeza de alma e tentaria receber o inesperado presente que ela lhe ofertara. Angélica não recuou. Como dissera na véspera, estava decidida a fazer as coisas correta-mente, e sabia que devia muito a Audiger.

Assim, sem entusiasmo mas decidida a provar-lhe, naquele úni­co amplexo, todo o seu reconhecimento, foi ter com o mordo­mo. Achou-o no pequeno escritório eontíguo à sala de refeição. Ele trajava um casaco de cavaleiro e usava botas de caça. Parecia muito calmo e mesmo alegre. Não fez qualquer alusão à escara­muça do dia anterior.

—   Desculpe-me, senhora — disse ele —, de tê-la incomodado, mas, antes de partir, pareceu-me necessário examinar a seu lado os negócios da chocolataria, embora a gerência de Marchandeau possa inspirar-nos toda a confiança.

Você vai partir?

Vou. Acabo de assinar um contrato para o Franco-Condado, onde dizem que Sua Majestade terá alguma cidade a conquistar nesta primavera.

Durante mais de uma hora, com a ajuda de Marchandeau, es­miuçaram os livros de contabilidade, foram à oficina, para exami­nar as máquinas, e aos depósitos, para verificar as reservas de cacau, açúcar e especiarias. Depois, em dado momento, Audiger levantou-se e saiu, como se fosse buscar algum outro dossiê de faturas. Mas, alguns instantes depois, Angélica ouviu o passo de um cavalo que se afastava. Compreendeu que Audiger tinha partido e que nunca mais o veria.

 

Adeus a Desgrez

Ela acabou de escrever uma carta ao seu armador de La Rochel-le. Depois, tendo-a secado com areia e lacrado, pôs a máscara e apanhou seu manto. Ouvia o burburinho vindo da sala que esta­va superlotada porque uma chuva forte e breve acabava de expul­sar dos caramanchões os fregueses que ali se achavam.

O cheiro do chocolate, misturado ao das amêndoas torradas, pe­netrava naquele escritório onde, durante dois anos, Angélica, de vestido negro, gola branca e punhos brancos, com uma pena de ganso na mão, havia-se afadigado sobre faturas intermináveis.

Como de hábito, ela foi até a porta da sala e observou "seus" clientes, pelo discreto interstício da tapeçaria. Quando se tornas­se Marquesa du Plessis-Bellière, não mais penetraria naquela sala senão acompanhada de um grupo de ridículos janotas, para sabo­rear o "divino" chocolate. Isso seria bem engraçado — uma des­forra assaz picante.

Os grandes espelhos, em suas molduras de madeira dourada, re-fletiam a animação de bom-tom que ela sempre soubera manter na Anã Espanhola, sem grande esforço, aliás, pois o chocolate é uma bebida que dá mais propensão para os suaves colóquios do que para as ásperas querelas.

Muito perto da tapeçaria atrás da qual se dissimulava, ela notou um homem que estava sentado sozinho diante de uma xícara fu­megante e que melancolicamente esmigalhava pistácios. Depois de o ter olhado duas vezes, Angélica disse a si mesma que o conhecia e> da terceira vez, começou a suspeitar que aquela personagem ri­camente vestida não podia ser outra senão o policial Desgrez, com 0 rosto habilmente disfarçado. Teve uma alegria pueril. Entre os rancores glaciais de seu futuro esposo, os reproches de Audiger, a curiosidade de seus amigos, Desgrez era o único ser com quem ela poderia palestrar sem ser obrigada a apelar para todas as suas forças ou a representar uma comédia. Saiu do esconderijo e aproximou-se dele.

—   Parece-me que o abandonaram, Maítre Desgrez — disse ela a meia voz. — Posso substituir, oh!, muito modestamente, a cruel que lhe faltou?

Ele levantou os olhos e reconheceu-a.

—   Nada me honraria mais do que ter ao meu lado a dona deste lugar encantador.

Ela sentou-se rindo perto dele e fez sinal a um dos negrinhos para trazer uma xícara e bolos.

Que vem você caçar em minhas terras, Desgrez? Um jorna­lista virulento?

Não. Somente seu equivalente no sexo feminino, isto é: uma envenenadora.

Ora! É muito banal. Eu mesma conheço envenenadoras — disse estouvadamente Angélica, que pensava na Sra. de Brinvilliers.

Eu sei. Mas o que você tem de melhor a fazer é esquecer que as conhece.

Como ele não sorrisse, ela fez sinal de que compreendera.

—   Quando eu tiver necessidade de suas informações, saberei pedi-las — observou Desgrez com uma ponta de ironia. — Sei que você mas confiará de muito bom grado.

Angélica absorveu-se na deglutição da bebida quente que o ne­grinho Tom acabava de servir-lhe.

Que pensa deste chocolate, Sr. Desgrez?

É uma verdadeira penitência! Mas, no fundo, quando faço uma investigação, sei muito bem que terei de passar por algumas pequenas provas deste género. Devo reconhecer que, durante mi­nha carreira, tive muito frequentemente de penetrar em lugares mais sinistros que esta chocolataria. É muitíssimo galante...

A jovem estava persuadida de que Desgrez se achava perfeita­mente a par do seu projeto de casamento com Filipe. Mas, como ele não lhe falasse disso, ela se achava embaraçada para tocar no assunto.

O acaso veio em seu socorro, trazendo, entre um alegre bando de senhores e damas, o próprio Marquês Filipe. Angélica, masca­rada e sentada em um canto recuado da sala, não se arriscava a ser reconhecida por ele.

Disse, mostrando Filipe a Desgrez:

—   Vê aquele gentil-homem de cetim azul-celeste? Vou casar com ele.

Desgrez fingiu surpresa.

Ha?... Mas não é o priminho que brincou com você certa noite, na Taberna da Máscara Vermelha?

É ele mesmo — confirmou Angélica, com um movimento provocante do queixo. — Então, que acha?

De quê? Do casamento ou do priminho?

Dos dois.

O casamento é um assunto delicado e eudeixo ao seu confes­sor o cuidado de conversar com você a esse respeito, minha crian­ça — disse Desgrez, em tom douto. — Quanto ao priminho, constato com pesar que ele não é absolutamente seu género de homem.

Como assim? Ele é, entretanto, muito belo.

Precisamente. A beleza é a coisa menos suseetível de seduzi-la nos homens. O que você ama neles não são as qualidades que os aproximam das mulheres, mas aquilo que os diferencia delas: sua inteligência, sua visão do mundo, quiçá nem sempre muito justa, mas que lhe parece nova, e também o mistério de sua fun­ção viril. Sim, minha cara, você é assim. Não vale a pena olhar-me com esse ar chocado por trás da sua máscara. Acrescentarei que, quanto mais um homem se destaca do comum, mais você o reconhece como senhor. É por isso que seus amores não acabam sempre bem. Desde que um homem saiba distraí-la e fazê-la rir, você está pronta a segui-lo até o fim do mundo. Se além disso ele tiver a robustez e a habilidade necessárias para satisfazer as exi­gências de seu pequeno corpo refinado, você lhe perdoará tudo. Ora, aquele ali não é tolo, mas não tem espírito. Se ele a ama, vo­cê se arrisca muito a aborrecer-se mortalmente em sua companhia.

Ele não me ama.

Tanto melhor. Você poderá sempre distrair-se tentando fa­zer com que ele a ame. Mas, para o amor físico, eu apostaria sem vacilar que ele é menos sutil que um lavrador. Não me disseram que ele fazia parte do grupo de Monsieur}

Não gosto que se fale assim de Filipe — disse Angélica, en­sombrada. — Oh! Desgrez, não me agrada fazer-lhe esta pergun­ta. Mas será que tais práticas não podem impedir um homem de... ser pai?

Depende do tipo de homem de que se trate, minha bela ino­cente — disse Desgrez, rindo. — Pela compleição desse rapaz, penso que ele tem todo o necessário para tornar feliz uma mulher e dar-lhe uma ninhada. Mas o que lhe falta é o coração. Quando ele mor­rer, seu coração não poderá ser mais frio em seu peito do que o é agora... Oh! Vejo que você quer saborear a beleza. Pois bem! Saboreie-a, morda-a gulosamente e, sobretudo, não lamente nada. Quanto a mim, vou deixá-la.

Levantou-se para beijar-lhe a mão.

—   Minha envenenadora não veio. Estou pesaroso. Obrigado, entretanto, por sua agradável companhia.

Quando ele se afastou por entre as mesas, Angélica ficou parali­sada pela sensação de.inquietude e de melancolia que lhe apertava a garganta.

"Quanto a.mim, vou deixá-la", dissera Desgrez.

Subitamente ela compreendeu que, no mundo em que iria en­trar — a corte, Versalhes, Saint-Germain, o Louvre —, não mais encontraria o policial Desgrez e seu cão Sorbonne. Eles desapare­ceriam, voltariam para o meio de criados, de mercadores, de gen­te insignificante que se movimenta em volta dos grandes e que os olhos destes não vêem.

Angélica levantou-se por sua vez e, rapidamente, alcançou a porta pela qual Desgrez tinha saído. Viu-o afastando-se pelas aléias escu­ras do jardim, seguido da silhueta branca de Sorbonne.

Correu atrás dele.

—   Desgrez!

Ele se deteve e voltou. Angélica puxou-o para a penumbra de um caramanchel e passou-lhe os braços em volta do pescoço.

—   Abrace-me, Desgrez.

Ele teve um pequeno sobressalto.

Que se passa com você? Quer salvar algum panfletário?

Não... mas eu...

Ela não sabia como exprimir-lhe o pânico que a assaltara ao pen­samento de que não mais o veria. Perturbada, esfregou carinhosa­mente a face no ombro de Desgrez.

Você compreende, eu vou me casar. Depois, então, não me será possível enganar meu marido.

Pelo contrário, minha cara. Uma grande dama não deve cair no ridículo de amar seu marido e ser-lhe fiel. Mas eu a compreen­do. Quando você for a Marquesa du Plessis-Bellière, não será muito elegante para si contar entre seus amantes um policial chamado Desgrez...

Oh! Por que você busca razões? — protestou Angélica.

Ela desejaria rir, mas não chegava a dominar sua emoção. E seus olhos se encheram de lágrimas quando murmurou de novo: I — Por que buscar razões? Desde que o mundo é mundo, quem, senhores, já soube explicar o coração das mulheres e o porquê de suas paixões?

Ele reconheceu o eco de sua pruria voz, quando um dia se er­gueu no tribunal para defender o Conde de Peyrac.

Silenciosamente, fechou os braços emredor dela e apertou-a con­tra si.

Você é meu amigo, Desgrez — murmurou Angélica. — Eu não tive nenhum melhor, jamais terei algum melhor que você. Diga-me, você que tudo sabe, diga-me que não me tornei indigna dele. Era um homem que tinha dominado suas desgraças e a pobreza, a ponto de reinar sobre o espírito dos outros como poucos seres podem fazê-lo... Mas eu, que não dominei eu também? Você, que sabe de onde eu venho,.lembre-se e diga-me... Sou indigna daque­le prodigioso fenómeno de vontade que era o Conde de Peyrac?... Na força que desenvolvi paja arrancar seus filhos à miséria não reconheceria ele a sua?... Sé ele voltasse...

Oh! Não quebre a cabeça, meu anjo — disse Desgrez com sua voz arrastada. — Se ele voltasse... bem, se ele voltasse, pelo que eu pude julgar desse homem, penso que ele começaria por aplicar-lhe uma surra de varas verdes. Em seguida ele a tomaria nos braços e possuí-la-ia até que você pedisse clemência. Depois, ambos se ocupariam em achar um canto tranquilo para ali aguar­dar bodas de ouro. Acalme-se, meu anjo, e siga seu caminho.

Não é estranho, Desgrez, que eu não possa destruir em mim esta esperança de revê-lo um dia? Alguns disseram que... não foi a ele que queimaram na Place de Greve.

Não dê ouvidos a conversas — disse ele duramente. — Pro­curam sempre criar lendas em torno dos seres extraordinários. Ele está morto, Angélica. Não alimente esperança. Isso desgasta o âni­mo. Olhe para a frente e case como seu marquesinho.

Ela não respondeu. Sentia no coração uma dor imensa, desme­surada, infantil.

Não suporto mais! — gemeu ela. — Estou muito triste. Beije-me, Desgrez.

Oh! Essas mulheres... — resmungou ele. — Falam de seu maior amor, do ser único. Meio minuto depois, elas nos pedem que a beijemos. Que raça!

Um pouco brutalmente, ele desceu-lhe as mangas do corpete até os cotovelos, descobrindo-lhe as espáduas, e ela sentiu as velosas mãos de Desgrez deslizarem sob suas axilas, cujo calor ele pare­ceu saborear.

Você é extremamente apetitosa, não posso negá-lo, mas não a beijarei.

Por quê?

Porque tenho outra missão que não amá-la. E, se eu a possuí uma vez, foi unicamente para prestar-lhe um serviço. E uma vez já foi demasiado para a paz da minha alma.

Lentamente, ele retirou suas mãos, roçando na passagem os seios intumescidos pela armação do peitilho.

—   Não me queira mal, minha bela, recorde-se de mim... de vez em quando. Eu ficarei contente. Boa sorte, Marquesa dos Anjos!...

 

Regresso ao Poitou

Desde o início, Filipe lhe dissera que o casamento seria celebra­do no Plessis. Ele não pretendia dar o mínimo fausto a essa ceri­mónia. Isso convinha perfeitamente a Angélica, dando-lhe assim a possibilidade de apanhjar o famoso cofre sem que os seus movi­mentos despertassem atefição. Ás vezes, sentia um súbito suor frio ao perguntar a si mesma se o cofre continuava no mesmo lugar, na falsa torrinha do castelo. Não o teria alguém descoberto? Mas isso era pouco provável. Quem se lembraria de ir arrastar-se so­bre uma goteira, por onde mal podia passar uma criança, e olhar para o interior de uma torrinha de aspecto tão insignificante? E ela sabia que no curso dos últimos anos "o Castelo do Plessis não tinha sido objeto de nenhuma transformação. Era, pois, muito pro­vável que ela encontrasse o trunfo de seu jogo. A hora mesma do casamento, ela poderia entregá-lo a Filipe.

Os preparativos da partida para o Poitou foram animados. Iriam para lá Florimond e Cantor, bem como toda a famulagem, os cães, o símio e os papagaios. Para as malas e os criados, foram necessá­rios um coche e mais duas viaturas. A comitiva de Filipe seguiria separadamente.

Este fingia permanecer estranho a todos esses aprestos. Conti­nuava a frequentar as festas e as recepções na corte. Quando al­guém fazia alusão ao seu casamento próximo, ele erguia as sobrancelhas com ar admirado, depois exclamava em tom de des­prezo e desdém: "Ah! sim! realmente!"

Durante a última semana, Angélica não o viu uma só vez. Por breves bilhetes que Molines lhe transmitia, ele ditava-lhe suas or-dens. Ela devia partir em tal data. Ele a encontraria em tal dia.

Chegaria com o padre e Molines. O casamento seria efetuado sem demora.

Angélica portava-se como esposa dócil. Vê-la-iam, mais tarde, fazer mudar de tom aquele rapaz inexperiente. Afinal de contas, ela lhe trazia uma fortuna e não lhe quebrara o coração ao separá-lo da pequena Lamoignon. Far-lhe-ia compreender que, se ela ti­vesse de agir um pouco brutalmente, não haveria vantagem para nenhum dos dois e que o seu mau humor permanente era ridículo.

Aliviada e ao mesmo tempo decepcionada de não vê-lo, Angéli­ca esforçou-se em não pensar muito no seu "noivo". O "proble­ma Filipe" era um espinho introduzido em sua alegria, e, quando ela refletia sobre isso, percebia que tinha medo. Era melhor, por­tanto, não refletir.

As carruagens cobriram em menos de três dias a distância entre Paris e Poitiers. Os caminhos se achavam em mau estado, com depressões causadas pelas chuvas da primavera, mas não houve in­cidentes, à parte um eixo quebrado um pouco antes de chegarem a Poitiers. Os viajantes permaneceram vinte e quatro horas nessa cidade. Dois dias depois, de manhã, Angélica começou a reconhe­cer os lugares. Passaram não longe de Monteloup. Ela teve de fa­zer um esforço para não se dirigir para lá, mas as crianças estavam fatigadas e sujas. Haviam dormido, na noite anterior, em um pés­simo albergue infestado de pulgas e ratos. Para encontrar algum conforto, era preciso chegar ao Plessis.

Com um braço passado em volta dos ombros de seus garotos, Angélica respirava com delícia o ar puro dos campos em flor. Per­guntava a si mesma como pudera viver tantos anos em uma cida­de como Paris. Dava gritos de alegria e dizia os nomes dos lugarejos que atravessava, cada um dos quais lhe recordava uma anedota de sua infância. Durante vários dias ela fizera a seus filhos descrições detalhadas de Monteloup e dos folguedos maravilhosos a que po­diam entregar-se ali. Florimond e Cantor conheciam o subterrâ­neo que lhe servira outrora de caverna de feiticeira e o celeiro de desvãos encantados.

Afinal, 0 Plessis surgiu ao longe, branco e misterioso, à beira de seu lago. Pareceu a Angélica, que conhecera as moradas suntuosas e os palácios parisienses, menor que a imagem gravada em sua memória. Alguns domésticos se apresentaram. Malgrado o aban­dono em que os senhores do Plessis deixavam seu castelo de pro­víncia, ele estava bem conservado graças aos cuidados de Molines.

Um correio, expedido uma semana antes, havia feito reabrir as janelas, e o odor fresco da cera de lustrar combatia o do mofo en­tranhado nas tapeçarias. Mas Angélica não experimentou o pra­zer com que contava. Suas sensações pareciam subitamente atenuadas. Talvez fosse necessário que ela chorasse ou se pusesse a dançar, a gritar, a beijar Florimond e.Cantor. Não podendo fa­zer tudo isso, ela se sentia uma alma morta. Incapaz de suportar a excessiva emoção daquele retorno,«la estava tão embargada que não tinha nenhuma reação.

Indagou do lugar em que seus filhos poderiam repousar, ocupou-se ela mesma da instalação deles, e não os deixou enquanto não os viu, lavados e vestidos com roupas macias e limpas, sentarem-se diante de uma refeição de laticínios e bolos trazidos pelos camponeses.

Fez-se, então, conduzir ao quarto da ala norte, que mandara pre­parar para si: o quarto do Príncipe de Conde.

Teve ainda de aceitar os serviços de Javotte e responder às sau­dações de dois criados que traziam as tinas de água fervente para o banheiro contíguo. Distraidamente, diante de seu francês po­bre, ela respondeu em patoá. Eles abriram a boca de surpresa, ao ouvirem aquela grande dama de Paris, cujos atavios, por certo, lhes pareciam extravagantes, exprimir-se em seu dialeto como se o fa­lasse desde o berço.

—   Sou eu! — disse-lhes Angélica, rindo. — Não me reconhecem? Sou Angélica de Sancé. E você, Guillot, eu me recordo que você é da aldeia de M lubuis, perto de Monteloup.

O dito Guillot, com o qual ela fizera outrora algumas colheitas de amoras e cerejas, nos belos dias de verão, teve um sorriso ex­tasiado.

Foi a senhora, então, que casou com o nosso amo?

Fui eu, sim.

+- Bem, isso vai alegrar todo mundo. Perguntávamos uns aos outros quem seria a nova patroa.

Assim, os camponeses não estavam mesmo informados. Ou, an­tes, estavam mal informados, pois já a supunham consorciada.

—   É pena que não tenham espetado estar entre nós — continuou Guillot, meneando a cabeça hirsuta. — Teríamos feito tão belas núpcias!

Angélica não ousou desmentir Filipe dizendo àquele bronco Guil­lot que o casamento devia realizar-se mesmo no Plessis e que ela contava, no que lhe concernia, com festejos que lhe permitissem rever todos os habitantes da região.

—   Em todo caso, haverá festas — prometeu.

Em seguida, pediu a Javotte que se apressasse em tirar-lhe a rou­pa. Quando a pequena camareira se retirou, Angélica, envolta em seu chambre de seda, foi até o meio do aposento.

A decoração não havia mudado nos últimos dez anos. Mas An­gélica não a via mais com seus olhos deslumbrados de menina-moça e achava terrivelmente fora de moda os pesados móveis de madei­ra negra, de inspiração holandesa, e o leito de quatro colunas maciças.

Dirigiu-se para a janela e abriu-a. Assustou-se ao constatar a es­treiteza do rebordo em que, no passado, ela grimpava tão agilmente.

"Fiquei muito gorda, nunca poderei ir até a torrinha", pensou, desolada.

Muitos haviam gabado seu corpo elegante... Angélica, naquela tarde, mediu amargamente a marcha implacável do tempo. Não somente ela já não tinha a ligeireza necessária, como carecia de flexibilidade, e arriscava-se muitíssimo a quebrar o pescoço.

Depois de refletir, tomou a decisão de chamar Javotte.

Javotte, minha filha, você é magra, pequena e mais flexível que um caniço. Procure subir a esse rebordo e chegar à torrinha do ângulo. E trate de não cair!

Está bem, senhora — respondeu Javotte, que passaria pelo orifício de uma agulha para agradar a sua ama.

Inclinada à janela, Angélica seguiu com ansiedade a progressão da mocinha ao longo da goteira.

Olhe para o interior da torrinha. Vê alguma coisa?

Vejo uma coisa escura, uma caixa — respondeu prontamen­te Javotte.

Angélica fechou os olhos e teve de apoiar-se ao alizar.

—   Está bem. Apanhe-a e traga-ma com cuidado.

Alguns instantes mais tarde tinha em suas mãos o cofre do monge Exili. Uma crosta de terra o recobria. Mas ele era de sândalo, e nem os bichos nem o bolor haviam podido invadi-lo.

Vá — disse Angélica com voz sem timbre a Javotte. — E não conte a ninguém o que acabou de fazer. Se calar, eu lhe darei uma coifa e um vestido novo.

Oh! senhora, a quem quer que eu conte? — protestou Javot­te. — Nem sequer entendo a língua dessa gente.

Ela lamentava muito ter deixado Paris. Com um suspiro, foi juntar-se a Bárbara, a fim de conversar com ela sobre pessoas co­nhecidas e particularmente sobre o Sieur Davi Chaillou.

Angélica limpou o cofre. Teve muita dificuldade para fazer fun­cionar a mola enferrujada. Enfim, a tampa se levantou e, sobre o leito de folhas de papel dobradas, apareceu o frasco de veneno cor de esmeralda. Depois de o contemplar, ela tornou a fechar o cofre. Onde iria escondê-lo, enquanto esperava a chegada de Fili­pe e a hora de entregar-lho em troca do anel nupcial? Guardou-o na mesma secretária de onde, dezessete anos antes, o retirara tão irresponsavelmente. "Se eu tivesse sabido!", disse a si mesma. "Mas pode alguém, aos treze anos, avaliar as consequências de seus atos?"

Com a chave da secretária escondida no corpete, ela continuou a olhar em volta de si com desespero. Aqueles lugares não lhe ha­viam causado senão tormentos. Por causa do furto que ela come­tera, Joffrey, seu único amor, tinha sido condenado, e sua vida destruída!...

Decidiu-se a repousar. Depois, percebendo por um chilreio in­fantil sobre o relvado que seus filhos estavam acordados, foi juntar-se a eles e fê-los subir com Bárbara, Javotte, Flipot e Pé Ligeiro em uma velha carriola, que ela própria conduziu. E todos parti­ram alegremente para Moriteloup.

O sol declinava e lançava uma luz açafroada sobre os grandes prados verdes em que pastavam os muares. Os trabalhos de dre­nagem dos pântanos haviam transformado a paisagem.

O domínio dos ribeiros, sob seus arcos de verdura, parecia ter recuado para oeste.

Mas, ao franquear a ponte levadiça, onde os perus se pavonea­vam como outrora, Angélica constatou que o castelo de sua in­fância não havia mudado. O Barão de Sancé, malgrado a relativa abastança de que agora desfrutava, não tinha feito na velha cons­trução todos os reparos necessários. O torreão e as muralhas amea-das continuavam desmantelados sob seu revestimento de hera, e a entrada principal continuava sendo a da cozinha.

Acharam o velho barão perto da ama, que estava limpando ce­bolas. A ama ainda era muito alta e viva, mas perdera os dentes, e seus cabelos, inteiramente brancos, faziam-lhe o rosto parecer tão escuro como o dos mouros.

Seria uma ilusão? Pareceu a Angélica que a alegria com que seu pai e a velha serva a receberam tinha qualquer-coisa de forçada, como acontece quando se reencontra viva uma pessoa que se su­punha morta. Prantearam-na, sem dúvida, mas a vida prosseguiu sem ela, e agora era preciso arranjar-lhe de novo um lugar.

A presença de Florimond e de Cantor dissipou o constrangimento. A ama chorou apertando "estes belos queridinhos" contra o coração. Em três minutos, os meninos tinham as faces vermelhas de seus beijos, as mãos cheias de maçãs e nozes. Cantor, em cima da mesa, cantou seu repertório inteiro.

E a velha pequena dama de Monteloup, o fantasma, será que ainda passeia? — indagou Angélica.

Não a vejo há muito tempo — disse a ama, abanando a cabe­ça. — Desde que João Maria, o caçula da família, partiu para o colégio, ela não mais reapareceu. Sempre tenho pensado que ela procurava uma criança...

No escuro salão, a tia Joana continuava a reinar diante do seu trabalho de tapeçaria, feito uma gorda e negra aranha no meio de sua teia.

—   Ela não ouve mais e tem a mioleira desarranjada — explicouo barão.

A velha, depois de perceber Angélica, perguntou com voz rouca:

—   O Coxo também veio? Eu pensava que o tivessem queimado...

Foi essa a única alusão que se fez em Monteloup ao primeiro ca­samento de Angélica. Pareciam preferir deixar na sombra essa par­te de sua vida. Além disso, o velho barão parecia não fazer a si mesmo muitas indagações. À medida que seus filhos se iam, se casavam, retornavam ou não retornavam, ele os confundia um pouco em seu espírito. Falava muito de Dionísio, o oficial, e de João Maria, o mais novo. Não se preocupava com Hortênsia e não sabia, mani­festamente, o que era feito de Gontran. O assunto principal de sua conversa eram sempre os muares.

Depois que Angélica percorreu o castelo, sentiu-se mais tran­quila. Monteloup permanecera na mesma. Tudo ali era ainda um pouco triste, um pouco miserável, mas tão cordial!

Ela viu com alegria que seus filhos se tinham instalado na cozi­nha de Monteloup como se houvessem nascido ali, entre os vapo­res da sopa de couve e as histórias da ama Fantina.

Eles insistiam em ficar para o jantar e para dormir. Mas Angéli­ca levou-os de volta ao Plessis, pois receava a chegada de Filipe, e queria estar lá para recebê-lo.

No dia seguinte, como nenhum mensageiro o anunciasse ainda, ela voltou sozinha à casa de seu pai.

Em sua companhia, percorreu as terras, e ele mostrou-lhe todos os seus arranjamentos.

A tarde estava linda e perfumada. Angélica tinha vontade de can­tar. Quando o passeio terminou, o barão deteve-se subitamente e pôs-se a olhar sua filha com atenção. Depois soltou um suspiro.

—   Então, você voltou, Angélica? — disse ele.

Apoiou sua mão na espádua da jovem, e repetiu várias vezes, com os olhos úmidos de lágrimas:

—   Angélica, minha filha Angélica!... Esta respondeu, emocionada:

Voltei, pai, e vamos poder encontrar-nos frequentemente. O senhor sabe que vou casar-me com Filipe du Plessis-Bellière, para o que nos enviou seu consentimento.

Mas eu supunha que esse casamento já se tivesse realizado! — disse ele com espanto.

Angélica cerrou os lábios e não disse mais nada, Quais eram as intenções de Filipe deixando que as pessoas da terra e da sua pró­pria família acreditassem que o matrimónio fora celebrado em Paris?...

 

Angélica defende seus filhos contra Filipe

Na viagem de regresso, Angélica estava inquieta, e seu coração bateu mais rápido quando ela reconheceu no pátio a carruagem do marquês.

Os lacaios disseram-lhe que seu amo tinha chegado havia mais de duas horas. Ela se apressou rumo ao castelo. Quando subia a escada, ouviu as crianças gritarem.

"Mais um acesso de raiva de Florimond ou de Cantor", pensou ela, contrariada. "O ar do campo torna-os turbulentos."

Não convinha que seu futuro padrasto pudesse considerá-los se­res insuportáveis. Precipitou-se para o quarto dos meninos, a fim de chamá-los severamente à ordem. Reconheceu a voz de Cantor. Ele gritava com terror indizível e aos seus gritos misturavam-se latidos ferozes.

Angélica abriu a porta e ficou petrificada.

Diante da chaminé, onde flamejava um grande fogo, Florimond e Cantor, agarrados um ao outro, achavam-se encurralados por três enormes cães-lobos, negros como diabos do inferno, que la­dravam ferozmente, estirando as correias. A extremidade destas estava na mão do Marquês du Plessis. Este, retendo os animais, parecia divertir-se muito com o terror dos infantes. Sobre o piso, Angélica reconheceu, banhado em um mar de sangue, o cadáver de Parthos, um dos dogues familiares dos meninos, que certamente fora estrangulado ao procurar defendê-los.

Cantor gritava, com o rosto redondo inundado de lágrimas. Mas a figura pálida de Florimond tinha uma extraordinária expressão de coragem. Ele puxara sua pequena espada e, apontando-a para os animais, tentava proteger o irmão.

Angélica não teve tempo de soltar uma exclamação. Mais rápi­do que seu pensamento, um reflexo fê-la apanhar um pesado tam­borete de madeira e ela o lançou à boca dos cães, que uivaram e recuaram ganindo de dor.

Já ela tomava Florimond e Cantor em seus braços. Eles agarraram-se à mãe. Cantor calou-se prontamente.

—   Filipe — disse ela ofegante —, não deve assustar assim essas crianças... Elas poderiam ter caído no fogo... Veja, Cantor já tem a mão queimada...

O jovem marquês volveu para ela suas pupilas duras e límpidas como gelo.

—   Seus filhos são covardes como fêmeas — disse ele com voz pastosa.

Seu rosto estava mais sombrio que de hábito, e ele vacilava um pouco.

"Ele bebeu", pensoiíela.

Nesse momento, surgiu Bárbara. Esbaforida, pôs uma das mãos sobre o peito, para conter os saltos do coração. Seus olhos, com expressão de terror, foram de Filipe a Angélica, depois se detive­ram sobre o cão morto.

Que a senhora me desculpe — disse ela. — Eu tinha ido à copa buscar o leite, para a refeição dos meninos. Deixei-os sob a guarda de Flipot. Não podia imaginar...

Não há nada de grave, Bárbara — disse Angélica, muito cal­ma. — Esses meninos não estão habituados a ver animais de caça tão ferozes. É bom que eles se acostumem, se quiserem, mais tar­de, caçar o cervo e o javali, como verdadeiros gentis-homens.

. Os futuros gentis-homens lançaram um olhar pouco entusias­mado aos três cães. Mas, como estavam nos braços de Angélica, não receavam mais nada.

—   Vocês são uns tolinhos — disse-lhes ela em tom de doce re­preensão.

Parado, com as pernas afastadas, Filipe, em seu costume de via­gem de veludo castanho-dourado, contemplava o grupo de mãe e filhos. De repente, fez estalar seu chicote sobre os cães, puxou-a para trás e saiu da peça.

Bárbara apressou-se a fechar a porta.

—   Flipot foi me chamar — cochichou ela. — O senhor marquês o expulsara do quarto. A senhora não me tirará da ideia que ele queria fazer devorar as crianças pelos cães...

Não diga tolices, Bárbara — interrompeu secamente Angéli­ca. — O senhor marquês não está acostumado a crianças: ele quis brincar...

Brincar? Brinquedo de príncipes! Sabe-se até onde pode che­gar. Conheci um pobre menino que o pagou bem caro.

Angélica estremeceu evocando Linot. O louro Filipe, de passo displicente, não tinha estado entre os verdugos do pequeno ven­dedor de barquilhos? Pelo menos, não tinha ficado indiferente às suas súplicas?...

Vendo os filhos tranquilizados, ela foi para seu aposento. Sentou-se diante da penteadeira, para recompor seus cachos.

Que significava o que tinha acontecido? Deveria tomar a sério o incidente? Filipe estava ébrio, saltava aos olhos. Desembriaga-do, ele se desculparia de ter causado aquele rebuliço...

Mas as palavras de Maria Inês vieram aos lábios de Angélica: "Ele é um bruto!"

Um bruto dissimulado, sonso, cruel... "Quando ele quer vingar-se de uma mulher, não hesita diante de coisa alguma."

"Ele não chegará da mesma forma a atacar meus filhos", pen­sou Angélica, largando o pente e levantando com agitação.

No mesmo instante a porta do quarto se abriu. Angélica viu Fi­lipe na soleira. Ele pousou sobre a jovem um olhar pesado.

Está com o cofre do veneno?

Entregar-lho-ei no dia de nosso casamento, Filipe, como foi estipulado em nosso contrato.

Nós nos casaremos esta noite.

Então, eu o entregarei a você esta noite — respondeu ela, esforçando-se por não mostrar seus receios.

Ela sorriu e estendeu-lhe a mão.

Ainda não nos cumprimentamos...

Não vejo necessidade — replicou ele, e fechou a porta bru­talmente.

Angélica mordeu os lábios. Decididamente, o esposo que ela es­colhera não seria fácil de acariciar. Veio-lhe à memória o conse­lho de Molines: "Procure escravizá-lo pelos sentidos". Mas, pela primeira vez, ela duvidava de sua vitória. Sentia-se sem forças so­bre aquele homem gelado. Não tinha jamais notado nenhum desejo nele quando estava em sua presença. Ela própria, no momen­to, amarrada pela ansiedade, não experimentava qualquer atração por ele.

"Ele disse que nos casaremos esta noite. Ele não sabe mais o que diz. Meu pai nem mesmo foi avisado..."

Estava nesse ponto de suas reflexões, quando bateram timida­mente. Angélica foi abrir e viu que eram seus filhos, ainda agarra­dos um ao outro da maneira mais tocante. Mas dessa vez Florimond estendia sua proteção de mais velho ao símio Piccolo, que tinha sobre um braço.

Mamãe — disse ele com uma vozinha trémula —, nós gosta­ríamos de ir para a casa do senhor nosso avô. Aqui, nós temos medo.

Medo é uma palavra que um menino que usa espada não de­ve pronunciar — disse Angélica severamente. — Serão vocês co­vardes, como foi insinuado há pouco?

O Sr. du Plessis já matou Parthos. Agora ele vai talvez matar Piccolo.      

Cantor pôs-se a chorar com pequenos soluços abafados. Can­tor, o calmo Cantor, perturbado! Era mais do que Angélica podia suportar. Era inútil indagar se isto era ou não estúpido: seus fi­lhos tinham medo. Ora, ela jurara a si mesma que eles não mais conheceriam o medo.

Está bem; vão partir com Bárbara-para Monteloup imediata­mente. Apenas desejo que tenham juízo.

Meu avô prometeu-me que me faria montar em um mulo — disse Cantor, já reconfortado.

—   A mim ele vai dar-me um cavalo — afirmou Florimond. Menos de uma hora mais tarde, Angélica os introduzia numa carriola, com seus criados e suas malas. Havia bastantes leitos em Monteloup para os alojar a todos. Os próprios domésticos pareciam contentes de ir embora. A chegada de Filipe trouxera ao cas­telo branco uma atmosfera irrespirável. O belo jovem, que desempenhava o papel da graça na corte do Rei-Sol, fazia reinar em seu domínio solitário o punho de um déspota. Bárbara murmurou:   

—   Senhora, não vamos deixá-la aqui, completamente só com es­se... esse homem.

—   Que homem? — perguntou Angélica, altiva. E acrescentou:

— Bárbara, uma existência confortável a fez olvidar alguns epi­sódios de nosso passado comum. Recorde-se de que eu sei como defender-me.

Beijou a criada nas faces redondas, pois sentia o coração tran­sido.

 

Brutal noite de núpcias

Quando deixou de ouvir, na tarde azulada, o som das campai­nhas da pequena viatura, Angélica voltou a passos lentos para o castelo. Estava aliviada por sentir seus filhos sob a asa tutelar de Monteloup. Mas o Castelo do Plessis pareceu-lhe mais deserto e quase hostil, não obstante sua beleza de bibelô renascentista.

No vestíbulo, um lacaio se inclinou diante dela e avisou-a de que o jantar estava servido. Ela se dirigiu à sala de refeições, onde a mesa estava posta. Quase imediatamente Filipe apareceu e, sem uma palavra, sentou-se a um dos extremos da mesa. Angélica to­mou o lugar no outro. Estavam sós, servidos por dois lacaios. Um ajudante de cozinha trazia os pratos.

As chamas das três tochas eram refletidas pelas peças de precio­sa prataria. Durante toda a refeição não se ouviu senão o ruído das colheres e o tinir dos copos, que dominava o canto estridente dos grilos na relva. Pela porta da sacada via-se a noite brumosa invadir a campina.

Angélica, após haver dito a si mesma que não poderia engolir nada, comeu com bom apetite, em obediência às injunções parti­culares de seu temperamento. Observou que Filipe bebia muito, mas que a bebida, longe de torná-lo expansivo, aumentava mais e mais sua frieza.

Quando ele se levantou, tendo recusado a sobremesa, ela não teve outra alternativa senão acompanhá-lo- ao salão vizinho. Ali encontrou Molines e o capelão, bem como uma camponesa que, só mais tarde ela o soube, fora a ama de Filipe.

— Está tudo pronto, padre? — perguntou o jovem, saindo de seu mutismo.

Está, senhor marquês.

Então, vamos à capela.

Angélica estremeceu. O casamento, seu casamento com Filipe, ia mesmo realizar-se naquelas condições sinistras? Ela protestou:

Não pretende que tudo esteja pronto para o nosso casamen­to e que ele se celebre tão precipitadamente...

Não o pretendo, senhora — respondeu Filipe, escarninho. — Nós assinamos o contrato em Paris. E o suficiente para o mun­do! O senhor padre aqui presente vai abençoar-nos, e nós trocare­mos nossos anéis. É o bastante para Deus! Outros preparativos não me parecem necessários.

A jovem olhou com hesitação para as testemunhas daquela ce­na. Uma única tocha, sustentada pela velha, os alumiava. Lá fora, a escuridão era total. Os criados haviam-se retirado. Se Molines não estivesse ali, o áspero, o duro Molines, mas que a amava mais que à própria filha, Angélica recearia ter caído numa cilada.

Procurou o olhar do intendente. Mas o velho baixou os olhos com aquele servilismo particular que sempre afetava diante dos senhores Du Plessis.

Então, ela se resignou.

Na capela, iluminada por dois grandes círios amarelos, um pe­queno camponês estupefato, metido numa casula de menino-de-coro, trouxe a água benta.

Angélica e Filipe tomaram lugar em dois genuflexórios. O ca­pelão veio colocar-se diante deles, recitou num resmungo as pre­ces e fórmulas habituais.

Filipe du Plessis-Bellière, aceita como esposa Angélica de Sancé de Monteloup?

Sim.

Angélica de Sancé de Monteloup, aceita como esposo Filipe du Plessis-Bellière?

Ela disse "sim" e estendeu a mão para Filipe, a fim de que ele lhe pusesse o anel. Lembrou-se de um gesto idêntico, realizado anos antes, na catedral de Toulouse.

Naquele dia, ela não estava menos trémula, e a mão que havia tomado a sua apertara-a docemente, como para tranquilizá-la. Em seu nervosismo, ela não compreendera a significação daquele dis­creto aperto. Agora aquele detalhe voltava-lhe à mente e a feria como uma punhalada, enquanto ela via Filipe, meio ébrio, cega­do pelos vapores do vinho, tatear sem conseguir enfiar-lhe o anel. Finalmente o colocou. Tudo estava consumado. O grupo saiu da capela.

—   E a sua vez, senhora — disse Filipe, olhando-a com seu insu­portável sorriso gelado.

Ela compreendeu e pediu aos assistentes que a seguissem até seu quarto.

Lá, ela retirou da secretária o cofre, abriu e entregou-o a seu ma­rido. A chama das velas refletiu-se no frasco.

—   É este o cofre perdido — disse Filipe depois de um instante de silêncio. — Tudo vai bem, senhores.

O capelão e o intendente assinaram um papel em que declara­vam ter sido testemunhas da entrega do cofre pela Sra. du Plessis-Bellière, segundo as cláusulas do contrato de matrimónio.

Depois eles curvaram a espinha mais uma vez diante do casal e afastaram-se a passos contados, precedidos da velha ama que lhes alumiava o caminho.    

Angélica teve de dominar-se para não reter o intendente. O pâ­nico que ela sentia era não somente ridículo mas sem fundamen­to. Certamente nunca é agradável ter de enfrentar o rancor furioso de um homem. Entretanto, entre ela e Filipe haveria um meio de se entenderem, de assinarem uma trégua...

Ela deitou-lhe um olhar furtivo. Cada vez que o examinava, na perfeição de sua beleza, ela se tranquilizava. O homem inclinava para o temível cofre seu perfil de uma pureza de medalha, leve­mente tufado sobre o lábio pelo bigode louro. Seus longos cílios espessos projetavam uma sombra sobre suas faces. Mas ele estava mais vermelho que de costume, e o forte odor de vinho que exala­va era bem desagradável.

Vendo-o levantar com mão insegura o frasco de veneno, Angé­lica disse vivamente:

Cuidado, Filipe. O monge Exili pretendia que uma só gota desse veneno bastaria para desfigurar para sempre.

Deveras?

Ele ergueu os olhos para ela e um brilha perverso atravessou-lhe as pupilas. Sua mão balançou o frasco. Num átimo, Angélica compreendeu que ele estava tentado a lançar-lhe ao rosto. Parali­sada de terror, não pestanejou, entretanto, e continuou a olhá-lo com expressão calma e ousada. Ele riu zombeteiramente e em seguida repôs o frasco no cofre e fechou-o, pondo-o debaixo do braço.

Sem uma palavra, segurou o punho de Angélica e arrastou-a pa­ra fora do quarto.

O castelo estava silencioso e escuro, mas a lua, que acabava de nascer, projetava sobre o piso a imagem luminosa das altas janelas.

A mão de Filipe segurava tão duramente o frágil punho da jo­vem que esta sentia seu próprio pulso. Mas ela preferia isso. Em seu castelo, Filipe tomava uma consistência que na corte não ti­nha, absolutamente. Sem dúvida, ele era assim na guerra, abando­nando o envoltório do belo cortesão pensativo para assumir sua verdadeira personalidade de guerreiro nobre, preciso, quase bárbaro.

Eles desceram a escada, atravessaram o vestíbulo e saíram para o jardim.

Um nevoeiro prateado flutuava sobre o lago. No pequeno em­barcadouro de mármore, Filipe empurrou Angélica para um bote.

— Entre! — disse secamente.

Tomou, por sua vez, lugar no bote e pousou com precaução o cofre sobre um dos bancos. Angélica ouviu soltar a amarra. De­pois, lentamente, o esquife se afastou da margem. Filipe tomara um dos remos. Levou o barco para o meio do lago. Os reflexos da lua brincavam sobre as pregas de seu traje de cetim branco, so­bre os cachos dourados de sua peruca. Não se ouvia senão o roçar do casco nas folhas cerradas dos nenúfares. As rãs, intimidadas, haviam-se calado.

Quando atingiram a água negra, mas límpida, do centro do la­go, Filipe imobilizou o bote. Olhou em torno de si, com atenção. A terra parecia distante, e o castelo branco, entre os dois alcantis sombrios do parque, fazia pensar numa visagem. Em silêncio, o Marquês du Plessis retomou entre as mãos aquele cofre cuja desa­parição afligira os dias e as noites de sua família. Resolutamente, lançou-o à água. O objeto afundou e, muito rapidamente, desfizeram-se as ondas que assinalavam o local de sua queda.

Então, Filipe olhou Angélica. Esta tremeu. Ele se deslocou e veio sentar-se perto dela. Esse gesto, que àquela hora, naquele ambien­te feérico, poderia ter sido o de um amoroso, paralisou-a de medo.

Lentamente, com aquela graça que caracterizava cada um de seus movimentos, ele levantou as duas mãos e pousou-as no pescoço da jovem.

E agora vou estrangulá-la, minha bela — disse ele em voz baixa. — Você irá reunir-se, no fundo da água, ao seu maldito cofre!

Angélica não se mexeu. Ele estava ébrio ou louco. De qualquer modo, era capaz de matá-la. Ela não estava à sua mercê? Não po­dia nem pedir socorro nem defendér-se. Em um movimento im­perceptível, apoiou a cabeça contra o ombro dele. Sobre sua fronte sentiu o contato de uma face que não fora barbeada desde a ma­nhã, uma face masculina, enternecedora. Tudo se acabou... A lua viajava no céu, o cofre jazia no fundo da água, a campina suspira­va, representava-se o último ato da tragédia. Não era justo que Angélica de Sancé fosse morta assim, pela mão do jovem deus que se chamava Filipe du Plessis?

Subitamente, voltou-lhe o fôlego, e o aperto que a sufocava relaxou-se. Ela viu Filipe, de dentes cerrados, o rosto convulsio­nado pela cólera.

—   Com os diabos! — praguejou ele. — Nenhum medo fará en­ tão curvar-se sua cabecinha orgulhosa? Nada a fará gritar, supli­ car?... Paciência, você haverá de chegar a isso!

Repeliu-a com brutalidade e retomou o remo.

Tão logo pisou terra firme, Angélica resistiu ao desejo de fugir desesperadamente. Não sabia mais o que devia fazer. Suas ideias estavam confusas. Levou a mão ao pescoço, que lhe doía horri­velmente.

Filipe observava-a com uma atenção que-tornava sombrio o seu olhar. Aquela mulher não parecia de uma espécie comum. Nem lágrimas nem gritos. Nem sequer tremia. Desafiava-o ainda por cima, e no entanto era ele o ofendido. Ela o havia constrangido, humilhado como nenhum homem pode suportar sem desejar a morte. Por semelhante afronta, um nobre pode responder com a espada, um camponês com o porrete. Mas uma mulher?... Que reparação exigir dessas criaturas resvaladiças, moles, hipócritas, cujo contato é semelhante ao dos animais venenosos, e que tão bem nos envolvem em suas palavras que nos achamos embaídos... e cul­pados ainda por cima?

Oh! As mulheres nem sempre eram vitoriosas. Filipe sabia co­mo vingar-se delas. Havia-se deleitado com ps-sòluços, os gritos, as súplicas das moças que violentara nas noites de combate e que em seguida entregara como pasto aos seus homens.

Vingava-se, assim, das humilhações que elas lhe haviam feito so­frer em sua adolescência.

Mas aquela, como abatê-la? Ela reunia, por detrás de sua fronte convexa, lisa, por detrás do seu olhar de água verde, todas as ma­nhas femininas, toda a força sutil de seu sexo. Pelo menos, era o que ele acreditava. Não sabia que Angélica tremia e estava" a pon­to de chorar.

Se ela o enfrentava, era porque tinha o hábito de enfrentar e combater.

Ele tomou-lhe o braço, com um gesto de malvado carcereiro, e levou-a para o castelo. .

Quando subiam a grande escada, ela viu-o estender a mão para o longo chicote de cães, pendurado na parede...

Filipe — disse ela —, separemo-nos aqui. Você está embria­gado, eu creio. Para que brigarmos outra vez? Amanhã...

Oh! Não! — disse ele, sarcástico. — Não tenho obrigação de cumprir meu dever conjugal? Mas antes quero corrigi-la um pou­co, para fazê-la deixar o gosto da chantagem. Não esqueça, senho­ra, que sou seu marido e que tenho todo o poder sobre sua pessoa.

Ela procurou escapar-lhe, mas ele a reteve e açoitou-a como ha­veria açoitado uma cadela rebelde. Angélica soltou um grito que era mais de indignação que de dor.

Filipe, você está louco!

Você me pedirá perdão! — disse ele, com os dentes cerrados. — Você me pedirá perdão do que fez!

Não!

Empurrou-a para o quarto, fechou a porta atrás deles e come­çou a golpeá-la com o chicote. Sabia manejá-lo. Seu cargo de monteiro-mor da França não era, certamente, imerecido.

Angélica pusera os braços diante do rosto, a fim de proteger-se. Recuou até a parede, virou-se num gesto instintivo. Cada chicota­da a fazia estremecer, e ela mordia os lábios para não gemer. No entanto, um curioso sentimento a invadiu, e sua revolta inicial ce­deu diante de uma espécie de aceitação, um estranho gosto da jus­tiça. De repente exclamou:

—   Basta, Filipe, basta!... Eu lhe peço perdão.

Como ele se detivesse, espantado de sua fácil vitória, ela repetiu:

—   Eu lhe peço perdão... É verdade, procedi mal para com você. Indeciso, ele permaneceu imóvel. Ela ainda o insultava, pensou ele, ela se furtava à sua cólera por meio de uma humildade enga­nosa. Todas eram assim! Arrogantes na vitória, rastejantes sob o chicote! Mas o tom de Angélica tinha qualquer coisa de sincero

 

que o perturbava. Talvez ela não fosse corno as outras, talvez a lembrança estereotipada em sua memória da pequena "Baronesa do Triste Vestido" não fosse uma simples aparência...

Na penumbra em que competiam a claridade lunar e a da to­cha, a visão daquelas brancas espáduas contundidas, daquela nuca frágil, daquela fronte escondida contra a parede como a de uma criança penitente, despertou nele um desejo violento, mas inusi­tado e como nenhuma mulher jamais lhe havia inspirado. Não era mais somente uma exigência bestial e cega. A ela se juntava uma atração um pouco misteriosa, quase doce.

Subitamente ele teve o pressentimento de que, com Angéli­ca, iria alcançar qualquer coisa de novo, uma desconhecida região do amor, em vão buscada por meio de tantos corpos olvida­dos..

Seus próprios lábios pareceram-lhe secos, sedentos, ávidos de se desalterar ao contato de uma carne macia e perfumada.

Com a respiração curta, ele atirou para longe o chicote, depois desembaraçou-se do gibão", e da peruca.

Angélica, inquieta, viu-ó subitamente meio despido e desarma­do, ereto como um arcanjo na sombra, com seus curtos cabelos louros que lhe davam uma nova cabeça de pastor antigo, a camisa rendada entreaberta sobre vim torso liso e branco, os braços afas­tados, em um gesto indeciso.

De repente, ele se aproximou da jovem,-agarrou-a e, canhestra-mente, pousou a boca na ardente cavidade do pescoço. Mas Angé­lica ainda sentia doer aquele lugar, e foi a sua vez de se enraivecer. Além do mais, se ela possuía retidão bastante para reconhecer seus erros, era também muito altiva para que o tratamento que acaba­va de receber a pusesse em disposição amorosa.

Arrancou-se às mãos de seu novo esposo:

— Ah! não, isso não!

Ouvindo-a gritar, Filipe tornou-se urioso. Então o sonho ain­da lhe fugia! Aquela mulher não era st não uma mulher como as outras, recalcitrante, calculista, exigente, o eterno feminino!... Re­cuou, ergueu o punho e golpeou-a em cheio no rosto.

Ela vacilou. Depois, agarrando-o com as cjuas mãos pela gola da camisa, mandou-o, com um empurrão, contra a parede. Ele fi­cou um momento estupefato. Ela fizera, para defender-se, um gesto de cantineira habituada aos ébrios.

Jamais ele vira uma dama de qualidade defender-se daquela maneira. Achou aquilo ao mesmo tempo muito engraçado e exaspe­rante. Supunha ela que ele iria ceder?...

Ele conhecia muito bem aquela casta. Se não a domasse naquela noite mesma, ficaria, mais tarde, escravizado a ela. Rangeu os dentes, invadido pelo acre desejo de destruir, de superar uma fraqueza. Depois, subitamente, saltou com uma leveza dissimulada, agarrou-a pelo pescoço e bateu-lhe selvagemente com a cabeça na parede.

Com o choque, Angélica ficou meio desfalecida e resvalou para o chão.

Lutava para não desmaiar. Uma certeza acabava de se lhe im­por: na Taberna da Máscara Vermelha fora mesmo Filipe quem a tinha deixado moída de pancadas antes que os outros se apode­rassem dela para a violar! Oh! Ele era um bruto, um bruto horrível!

O peso de seu corpo a esmagava sobre o lajedo frio. Angélica tinha a impressão de ser presa de uma fera excitada, uma fera que, depois de a ter forçado, a martelava sem trégua, selvagemente. Dores inumanas trespassavam-lhe os rins... Mulher nenhuma poderia so­frer aquilo sem morrer... Ele ia mutilá-la, destruí-la!... Um bruto horrível!...

Finalmente, não resistindo mais, ela soltou um grito lancinante:

— Clemência, Filipe, clemência!...

Ele respondeu com um grunhido surdo e triunfante. Afinal, ela havia gritado. Enfim, ele reencontrava a única forma de amor que podia satisfazê-lo, a alegria infernal de estreitar uma presa inteiri­çada pela dor, uma presa dementada, suplicante, que o vingava das humilhações pretéritas. Seu desejo, exaltado pelo ódio, tornava-o rijo como uma barra de ferro. Ele a esmagava com toda a sua força.

Quando afinal a largou, ela se achava quase inconsciente.

Ele a contemplou, estendida a seus pés.

Ela já não gemia, mas, buscando vagamente recobrar a plenitu­de dos sentidos, mexia-se um pouco sobre o piso, como um belo pássaro ferido.

Filipe teve uma espécie de soluço.

"Que é que eu tenho?", pensou ele com terror.

Subitamente o mundo não era mais que trevas e desespero. To­da a luz havia se extinguido. Tudo estava destruído para sempre. Tudo o que teria podido ser estava morto. Ele havia assassinado até a tímida lembrança de uma menina vestida de cinzento, cuja mão havia estremecido na sua — aquela lembrança que lhe acu­dia, às vezes, e o encantava, ele não sabia por quê...

Angélica abriu os olhos. Ele tocou-a com a ponta do pé e disse, com um riso escarninho:

— Penso que você está satisfeita! Boa noite, Sra. Marquesa du Plessis.

Ela ouviu-o afastar-se dando encontrões nos móveis. Depois, ele saiu do aposento.

 

Angélica não se dá por vencida

Ela ficou muito tempo estendida no chão, apesar do frio que lhe mordia a carne desnuda.

Sentia-se mortificada até o sangue, e sua garganta estreitava-se num desejo infantil de chorar. Malgrado seu, a lembrança de suas primeiras núpcias, sob o céu de Toulouse, voltou a visitá-la.

Revia-se deitada, inerte, a cabeça leve, os membros pesados de uma lassidão que ela conhecia pela primeira vez. A sua cabeceira inclinava-se a figura do grande Joffrey de Peyrac.

"Pobre pequena ferida!", dissera ele.

Mas sua voz não tinha piedade. E, de repente, ele se pusera a rir. Era um riso de triunfo, o riso exultante do homem que foi o primeiro a apor seu selo na carne da companheira amada.

"Eis também por que o amo!", havia ela pensado então. "Por­que é o Homem por excelência. Que importa sua face destroça­da? Ele tem a força e a inteligência, a virilidade, a intransigência sutil dos conquistadores, a simplicidade, em suma, tudo b que faz do Homem o primeiro dos seres, o rei da criação..."

E fora esse homem que ela perdera, que acabava de perder uma segunda vez! Pois sentia obscuramente que o espírito de Joffrey de Peyrac a renegava. Não acabava ela de traí-lo?

Pôs-se a sonhar com a morte no pequeno lago coberto de nenú­fares. Depois lembrou-se do que Desgrez lhe havia dito:

"Evite revolver as cinzas que foram dispersadas ao vento... Ca­da vez que pensar nisso, terá vontade de morrer... E eu nem sem­pre estarei presente..."

Então, por causa de Deígrez por causa de seu amigo policial,

a Marquesa dos Anjos afastou mais uma vez a tentação do deses­pero. Não queria decepcionar Desgrez.

Soerguendo-se, arrastou-se até a porta e empurrou os ferrolhos. Depois, foi abater-se como um fardo sobre o leito. Era muito me­lhor não refletir. Além disso,'Molines a tinha prevenido: "Pode ser que perca a primeira parada..."^

A febre cozinhava-lhe as têmporas, e ela não sabia como apla­car as dores pungentes de seu ccjrpo.

De um raio da lua saltou o leve fantasma do poeta, com seu cha­péu pontudo e seus cabelos pálidos. Ela chamou-o. Mas ele já de­saparecera. Acreditou ouvir Sorbonne latir e o passo de Desgrez diminuir na distância...

Desgrez, o Poeta Pobre... Ela os confundia um pouco em seu espírito, o caçador e o perseguido, ambos filhos da grande Paris, ambos trocistas e cínicos, esmaltando sua gíria de latim. Mas ela havia reclamado em vão sua presença: eles se esfumavam, perdiam toda a realidade. Não piais faziam parte de sua vida. A página ti­nha sido virada. Ela je separara deles para sempre.

Angélica despertou~'subitamente e pôs-se a escutar.

O silêncio da floresta de Nieul envolvia o castelo branco. Em um dos quartos, o belo verdugo devia ressonar, embrutecido pelo vinho. O pio de uma coruja trouxe consigo toda a poesia da noite e do pequeno bosque.

Uma grande calma invadiu a jovem. Ela se virou no travesseiro e resolutamente procurou o sono.  

Tinha perdido a primeira parada, mas em todo caso havia-se tor­nado Marquesa du Plessis-Bellière.

A manhã seguinte, todavia, trouxe-lhe uma nova decepção. Quan­do descia, tendo-se preparado ela mesma para evitar a curiosidade de Javotte, e depois de ter mascarado o rosto com alvaiade e pó, a fim de dissimular uma equimose demasiado visível, soube que o marquês seu esposo partira para Paris de madrugada. Ou me­lhor, para Versalhes, onde a corte se reunia para os últimos feste­jos antes das campanhas de verão. O sangue de Angélica ferveu. Imaginaria Filipe que sua mulher aceitaria ficar enterrada na pro­víncia, enquanto havia festas em Versalhes?...

Quatro horas depois, uma carruagem puxada por seis velozes cavalos lançava-se pelas estradas pedregosas do Poitõu.

Angélica, morta de cansaço mas firme na sua vontade, retorna­va, também, a Paris.

Não ousando reencontrar o olhar perspicaz de Molines, havia-lhe deixado uma carta em que lhe recomendava seus filhos. Entre Bárbara, a ama, o avô e o intendente, Florimond e Cantor,esta­riam como peixes dentro d'água. Ela podia ausentar-se com o es­pirito tranquilo.

Em Paris, foi cair em casa de Ninon de Lenclos. Esta, havia três meses, era fiel ao amor que lhe inspirava o Duque de Gassempier-re. Como o duque estava na corte, onde permaneceria uma sema­na, Angélica encontrou na residência de sua arniga o almejado retiro. Passou quarenta e oito horas estendida no leito de Ninon, com uma cataplasma de bálsamo-do-peru sobre o rosto, duas compres­sas de alume sobre as pálpebras, o corpo untado de óleos e de pomadas.

Havia atribuído a um acidente de carruagem as numerosas pisa­duras e vergões que lhe cobriam o rosto e as espáduas. O tato da cortesã era tão grande que Angélica nunca soube se ela havia ou não acreditado.

Ninon falou-lhe muito naturalmente de Filipe, que ela vira, por ocasião de seu regresso, dirigindo-se para Versalhes. Um progra­ma de festejos dos mais agradáveis estava previsto lá: jogo da ar­golinha, bailados, comédias, fogos de artifício e outras diversões interessantes.

Sentada à cabeceira de Angélica, Ninon tagarelava sem cessar, a fim de que sua paciente não fosse tentada a abrir a boca, pois a calma lhe era muito necessária para recuperar depressa as cores naturais. Ninon dizia que não lamentava desconhecer Versalhes, onde sua reputação lhe interditava ser recebida. Seu domínio era em outro lugar, naquela pequena mansão do bairro do Marais, onde era verdadeiramente rainha e não seguidora. Bastava-lhe saber que, a propósito deste ou daquele incidente de alcova ou da corte, o rei perguntava, às vezes: "Que disse a respeito a bela Ninon?"

— Quando for acolhida em Versalhes, você me esquecerá, mi­nha amiga? — perguntou ela.

Com um sinal, Angélica, sob os emplastros, respondeu que não.

 

Angélica diante do rei

A 21 de junho de 1666, a Marquesa du Plessis-Bellière dirigiu-se a Versalhes. Não tinha convite, mas possuía, em compensação, a maior audácia deste mundo.

Seu coche, guarnecido de veludo verde por dentro e por fora, com franjas e galões de ouro, a carroceria e as rodas inteiramente douradas, era puxado por dois grandes cavalos malhados.

Angélica usava um vestido de brocado verde-cinza, com gran­des flores de prata, e, por jóia, um esplêndido colar de pérolas de várias voltas.

Seus cabelos, penteados por Binet, estavam igualmente ornados de pérolas e guarnecidos por duas plumas leves e imaculadas co­mo um adereço de neve. Seu rosto, maquilado cuidadosamente, mas sem exagero, não mais mostrava traços das violências de que ela fora vítima alguns dias antes. Só restava uma marca azul na têmpora, a qual Ninon havia dissimulado com uma mosca de ta­fetá em forma de coração. Com outra mosca, menor, ao canto do lábio, Angélica estava perfeita.

Ela enfiou as luvas de Vendôme, abriu o leque pintado à mão e, inclinando-se à portinhola da carruagem, gritou:

—   Para Versalhes, cocheiro!

Sua inquietude e alegria faziam-na tão nervosa que ela trouxera Javotte, para ter com quem pairar durante o trajeto.

Nós vamos a Versalhes, Javotte! —"repetia ela à pequena, que se tinha sentado diante dela, com touca de musselina e avental bordado.

Oh! Eu já estive lá, senhora. Com o barco de Saint-Cloud, no domingo... para ver o rei jantar.

—   Não é a mesma coisa, Javotte. Você não pode compreender.

A viagem pareceu-lhe interminável. A estrada era péssima, sul­cada de rodeiras profundas pelas duas mil carroças que, diariamente, a percorriam nos dois sentidos, transportando pedras e gesso para a construção do castelo, bem como embrechados, canos de chum­bo e estátuas para os jardins.

Carreteiros e cocheiros trocavam injúrias copiosamente.

Não deveríamos passar por aqui, senhora — dizia Javotte —, mas por Saint-Cloud.

Não; é muito longo o trajeto.

A cada momento, Angélica punha a cabeça pela portinhola, com risco de destruir o artístico trabalho de Binet e de fazer-se salpicar de lama.

—   Depressa, cocheiro, com os demónios! Seus cavalos são umas lesmas!

Mas já via erguer-se no horizonte uma alta escarpa rosa e cinti­lante, que parecia irradiar todo o sol da manhã primaveril.

Que é aquilo, cocheiro?

É Versalhes, senhora.

Uma aléia de árvores plantadas recentemente sombreava a ex­tremidade da avenida. Nas vizinhanças do primeiro portão, a car­ruagem de Angélica teve de parar, a fim de deixar passar um coche que, pela estrada de Saint-Cloud, se aproximava a toda a velocida­de. A carruagem vermelha, puxada por seis cavalos baios, era es­coltada por cavaleiros. Era de Monsieur. O coche de Madame a seguia, com seis cavalos brancos.

Angélica fez sua carruagem acompanhá-los. Não mais acredita­va nos maus encontros, nos malefícios. Uma certeza mais forte que todos os receios assegurava-lhe que a hora de seu triunfo esta­va próxima.

Esperou, entretanto, que a agitação causada pela chegada das duas grandes personagens se acalmasse um pouco. Depois desceu da via­tura e ganhou o pátio de mármore, pelos degraus que lhe davam acesso.

Flipot, de libré, sustentava a cauda do seu manto de vestido.

Não assoe o nariz na manga — disse-lhe ela. — Não esqueça que estamos em Versalhes.

Sim, senhora — suspirou o antigo pivete do Pátio dos Mila­gres, que olhava em torno, boquiaberto de admiração.

Versalhes ainda não tinha a esmagadora majestade que lhe de­viam conferir as duas alas brancas acrescentadas por Mansart no fim do reinado de Luís XIV. Era um palácio feérico, que se erguia sobre uma estreita colina, com sua arquitetura alegre cor de pa­poula e rosa, seus balcões de ferro lavrado, suas altas chaminés cla­ras. Os pináculos e mascarões eram inteiramente folheados a ouro e brilhavam como jóias a ornarem um precioso cobre. A ardósia nova tinha, conforme os ângulos que refletiam a sombra ou a luz, a profundeza do veludo negro ou a cintilação da prata.

Uma grande agitação reinava nas proximidades do castelo, pois as librés multicores dos criados e dos lacaios misturavam-se às blusas escuras dos trabalhadores que se movimentavam com seus carri­nhos de mão e suas ferramentas. O ruído cantante dos cinzéis que martelavam a pedra respondia aos tamborins e aos pífanos de uma companhia de mosqueteiros que desfilava ao centro do grande pátio.

Angélica, olhando em volta de si, não mais viu fisionomias co­nhecidas. Entrou, finalmente, no castelo por uma porta da ala es­querda, onde a movimentação parecia intensa. Por uma vasta escada de mármores de cor dirigiu-se a um grande salão onde se compri­mia um ajuntamento de pessoas modestamente vestidas, que a olha­ram com espanto. Ela pediu informações. Disseram-lhe que se achava na sala dos guardas. Todas as segundas-feiras, os postulan­tes ali vinham apresentar seus requerimentos ou buscar a resposta a suas petições anteriores. Ao fundo da peça, por cima da chami­né, uma nave de ouro e de prata dourada representava a pessoa do rei, mas esperava-se que Sua Majestade aparecesse em pessoa, como às vezes fazia.

Angélica, com suas plumas e seu pajem, sentiu-se deslocada en­tre aqueles velhos militares, aquelas viúvas e órfãos. Ia retirar-se quando viu a Sra. Scarron. Saltou-lhe ao pescoço, feliz de afinal encontrar uma pessoa conhecida.

— Estou procurando a corte — disse-lhe. — Meu marido deve estar assistindo ao despertar do rei, e quero juntar-me a ele.

A Sra. Scarron, mais pobre e modesta que nunca, parecia pouco indicada para informá-la. Mas, desde que frequentava as antecâ­maras reais, em busca de uma pensão, a jovem viúva se achava mais a par do programa detalhado da corte que o próprio noticia­rista Loret, encarregado de registrar,-hora por hora, os aconteci­mentos.

Muito obsequiosamente, a Sra. Scarron levou Angélica para ou­tra porta, que dava para uma espécie de vasto balcão, além do qual se avistavam os jardins.

—   Creio que o despertar do rei terminou — disse ela. — Ele acaba de passar ao seu gabinete, onde vai conversar alguns instantes com as princesas de sangue. Depois, descerá aos jardins, a menos que venha até aqui. De qualquer modo, o melhor para você será seguir esta galeria aberta. No fim, à sua direita, encontrará a antecâmara que conduz ao gabinete do rei. Todos se amontoam ali a esta hora. Você encontrará sem dificuldade o seu esposo.

Angélica lançou um olhar ao balcão, onde não via senão alguns guardas suíços.

Eu morro de medo — disse ela. — Você não vem comigo?

Oh! Minha querida, como poderia fazê-lo? — assustou-se Fran­cisca, lançando uma olhada confusa ao seu pobre vestido.

Angélica notou somente o contraste entre suas vestes.

Por que está aqui como solicitante? Ainda tem preocupações de dinheiro?

Mais que nunca, ai de mim! Com a morte da rainha-mãe, fi­quei sem a minha pensão. Tenho vindo na esperança de fazer que a restabeleçam. O Sr. d'Albret prometeu-me seu apoio.

Desejo que o consiga. Estou verdadeiramente desolada.

A Sra. Scarron sorriu muito gentilmente e acariciou-lhe a face.

—   Não fique triste. Seria lamentável. Você parece tão feliz! Além disso, você bem merece sua felicidade, minha cara. Regozijo-me de vê-la tão bela. O rei é muito sensível à beleza. Não duvido de que ele fique encantado com você.

"Começo a ter minhas dúvidas", pensou Angélica, cujo cora­ção se pôs a bater de maneira desordenada. A esplêndida decora­ção de Versalhes encorajava-a a levar até o fim sua audácia. Com toda a certeza, ela estava louca. Mas não tinha importância! Não iria agir como o corredor que baqueia a poucos passos do fi­nal...

Depois de um sorriso à Sra. Scarron, ela se lançou através da galeria, andando tão depressa que Flipot se esbofava atrás dela. Quando estava a meio caminho, um grupo surgiu na outra extre­midade, parecendo vir ao seu encontro. Mesmo àquela distância, Angélica não teve qualquer dificuldade em reconhecer, entre os cortesãos, a figura majestosa do rei.

Tornado mais alto por seus tacões vermelhos e sua opulenta peruca, Luís XIV distinguia-se dos outros por uma admirável arte de caminhar. Além disso, ninguém melhor que ele sabia servir-se das altas bengalas, cuja moda ele lançara e que, até então, pareciam ter sido reservadas somente aos velhos ou aos inválidos. Ele fazia delas um instrumento de segurança, de bela postura e mes­mo, em seu caso, de sedução.

Ele avançava apoiado em sua bengala de ébano com castão de ouro, trocando palavras alegres com-as duas princesas que o ladeavam: Henriqueta da Inglaterra e a jovem Duquesa d'Enghien. Naquele dia, a favorita titular, Luísa de La Vallière, não tomava parte no passeio. Sua Majestade não estava descontente. A pobre jovem tornava-se cada vez menos atrativa. O encontrá-la na inti­midade ainda tinha alguma doçura. Mas, para aquelas belas ma­nhãs, em que desabrochavam os esplendores de Versalhes, a palidez e a magreza da Srta. de La Vallière pareciam acentuar-se. Tanto assim que ela permanecia em seu retiro, onde ele iria vê-la em bre­ve e informar-se de sua saúde...

A manhã estava verdadeiramente esplêndida, e Versalhes, ma­ravilhosa. Mas... não era a própria deusa Primavera que vinha pa­ra o monarca na pessoa daquela mulher desconhecida?... O sol lhe punha uma auréola, e suas jóias desciam-lhe até a cintura como pérolas de orvalho...

Angélica compreendera logo que, se voltasse, se cobriria de ri­dículo. Continuou, pois, a avançar, mas cada vez mais lentamen­te, com aquela estranha sensação de impotência e de fatalidade que às vezes se tem em sonho. Na névoa que a envolvia, ela distinguia somente o rei, e olhava-o fixamente, como atraída por um ímã. Gostaria de baixar os olhos, mas era incapaz de fazê-lo. Estava agora tão perto dele como outrora, no aposento escuro do Louvre, on­de o tinha enfrentado, e tudo se extinguia para ela, afora essa lem­brança terrível.

Não tinha, mesmo, consciência do espetáculo que oferecia, so­zinha ao centro daquela galeria banhada de luz, com seus atavios magníficos, sua beleza desbordante e cálida, sua expressão fascinada.

Luís XIV havia parado, e os cortesãos atrás dele. Lauzun, que reconhecera Angélica, mordeu os lábios e escondeu-se atrás dos outros, rejubilando. Iriam assistir a qualquer coisa de surpreendente!

Muito cortês, o rei tirou o chapéu ornado de plumas cor de fo­go. Impressionava-se facilmente com a beleza das mulheres, e a ousadia tranquila com que aquela o olhava com seus olhos de es­meralda, longe de contrariá-lo, encantava-o sobremaneira. Quem era ela?... Como ainda não a tinha notado?...

Obedecendo a uma reação inconsciente, Angélica fez uma pro­funda reverência. Agora, meio ajoelhada, ela gostaria de nunca mais se levantar. No entanto, reergueu-se, os olhos irresistivelmente atraí­dos pelo rosto do rei. Olhava-o, malgrado seu, de maneira pro­vocante.

O rei éspantou-se. Havia qualquer coisa de inusitado na atitude daquela desconhecida e também no silêncio e na surpresa dos cor­tesãos. Ele lançou um olhar em volta de si e franziu levemente os supercílios.

Angélica pensou que ia desmaiar. Suas mãos puseram-se a tre­mer nas dobras do vestido. Estava sem forças, estava perdida.

Foi então que uns dedos apertaram fortemente os seus, enquan­to a voz de Filipe dizia, muito calma:

Sire, que Vossa Majestade me conceda a honra de apresentar-lhe minha mulher, a Marquesa du Plessis-Bellière.

Sua mulher, marquês? — disse o rei. — A notícia é surpreen­dente. Eu já tinha ouvido dizer qualquer coisa a respeito, mas es­perava que o senhor mesmo viesse participar-me o seu matrimónio.

Sire, não me pareceu necessário informar Vossa Majestade de semelhante bagatela.

Bagatela? Um casamento?! Cuidado, marquês, que o Sr. Bossuet não o ouça!... E também essas damas! Por São Luís, desde quan­do o conheço, pergunto a mim mesmo, às vezes, de que estofo é feito. Sabe que sua discrição para comigo é quase uma insolência?...

Sire, aflige-me saber que Vossa Majestade interprete assim o meu silêncio. A coisa tinha tão pouca importância!

Cale-se, senhor. Sua inconsciência ultrapassa os limites, e eu não lhe concederei cinco minutos mais para fazer tão maus dis­cursos diante dessa encantadora criatura, sua mulher. Palavra que vocênão passa de um soldado. Senhora, que pensa de seu esposo?

Tratarei de acomodar-me — respondeu Angélica, que, durante esse diálogo, havia recuperado alguma cor.

É uma mulher razoável. E, além disso, muito bela. Os dois não combinam muito! Marquês, eu o perdoo por causa de sua be­la escolha... e de seus belos olhos. Olhos verdes.Uma cor rara, que não tenho tido ocasião de admirar frequentemente. As mu­lheres que têm olhos verdes são...

Ele se interrompeu, pensou um instante, sempre examinando com atenção o rosto de Angélica. Depois seu sorriso esvaeceu-se e toda a pessoa do monarca paralisou-se como se ele tivesse sido tocado por um raio. Sob os olhos dos cortesãos, de início perple­xos, depois assustados, Luís XIV começou a empalidecer. A nin­guém escapou o fenómeno, pois o rei era de carnação sanguínea, e seu cirurgião tinha de sangrá-lo frequentemente. Ora, em alguns segundos ele se tornou tão branco como os bofes de sua camisa, embora nenhum de seus traços se movesse.

Angélica, perturbada, olhava-o de novo e, malgrado seu, de ma­neira provocante, como certas crianças culpadas'olham aquele por quem esperam ser castigadas.

Não é originária do Sul, senhora? — perguntou o rei subita­mente. — De Toulouse?

Não, sire, minha mulher é originária do Poitou — disse ime­diatamente Filipe. — Seu pai é o Barão de Sancé de Monteloup, cujas terras se acham nos irredores de Niort.

Oh! Sire, confundir uma natural do Poitou com um dama do Sul! — exclamou Atenaís de Montespan, soltando uma garga­lhada. — O senhor, sire!...

A bela Atenaís já se sentia bastante segura no valimento do mo­narca, para não recuar diante de uma audácia desse género. O cons­trangimento logo se dissipou. O rei recuperou sua carnação normal. Sempre senhor de si, lançou uma olhada divertida sobre Atenaís.

É verdade que as filhas do Poitou têm muitos encantos — suspirou ele. — Mas, cuidado, senhora, que o Sr. de Montespan não seja obrigado a medir-se com todos os gascões de Versalhes. Estes poderiam querer vingar o insulto feito às suas mulheres.

Houve insulto, sire? Teria sido contra a minha intenção. Eu queria dizer somente que, se os encantos das duas raças são iguais em qualidade, todavia não se confundem. Que Vossa Majestade perdoe minha humilde observação.

O sorriso dos grandes olhos azuis mostrava-se contrito, mas era certamente irresistível.

—   Eu conheço a Sra. du Plessis há muitos anos — continuou a Sra. de Montespan. — Fomos criadas juntas.-Sua família é apa­rentada com a minha...

Angélica prometeu a si mesma jamais esquecer o que devia à Sra. de Montespan. Qualquer que fosse o móvel a que tinha obedeci­do a bela Atenaís, esta não tinha deixado de salvar sua amiga.

O rei inclinou-se de novo, com um sorriso apaziguado, diante de Angélica du Plessis.

—   Muito bem... Versalhes regozija-se de acolhê-la, senhora. Se­ja bem-vinda.

E acrescentou, mais baixo:

—   Estamos felizes de tornar a vê-la.

Angélica compreendeu então que ele a reconhecera, mas que a recebia e queria apagar o passado.

Pela última vez as labaredas de uma fogueira pareciam erguer-se entre eles. Prostrada em uma profunda reverência, a jovem sentiu uma torrente de lágrimas intumescer-lhe as pálpebras.

Graças a Deus, o rei se havia posto em marcha. Ela pôde levantar-se, enxugar furtivamente os olhos e lançar um olhar um pouco constrangido na direçào dó esposo.

Como agradecer-lhe, Filipe?...

Agradecer-me! — rangeu ele a meia voz, as maxilas cerradas de cólera. — Mas era o meu nome que eu tinha a defender do ridí­culo e da desgraça!... Você é minha mulher, ora essa! Peço-lhe que se lembre disso doravante... Chegar assim a Versalhes! Sem convi­te! Sem apresentação!... E você olhava o rei com uma insolência!... Nada pode então abater seu infernal topete? Devia tê-la matado naquela noite.

Oh! Eu lhe peço, Filipe, não me estrague este belo dia!

Seguindo os outros cortesãos, eles tinham chegado aos jardins. O azul do céu, misturado ao cristalino dos repuxos, e o brilho do sol refletido na superfície lisa dos dois grandes lagos do pri­meiro terraço deslumbraram Angélica.

Ela acreditava caminhar no seio de um paraíso, onde tudo era leve e ordenado como no Olimpo.

Do alto dos degraus que dominavam um lago, em pirâmide re­donda, ela podia ver o desenho admirável das grandes árvores em quincunces cercadas pela farândola das brancas estátuas de már­more. Os tabuleiros dos jardins estendiam em derredor, e até o horizonte, suas tapeçarias cintilantes.

Angélica, com as mãos juntas diante dos lábios, em um gesto de fervor infantil, permaneceu imóvel, tomada de um êxtase em que o entusiasmo de seus sonhos se confundia com uma admira­ção sincera.

Ao pé dos degraus acabava de parar o coche do rei. Mas, quan­do este já ia subir para a carruagem, voltou sobre seus passos e

I galgou de novo os degraus. Angélica viu-o subitamente ao seu la­do. Estava sozinho junto dela, pois, com gesto imperceptível, ha-i afastado as pessoas que o cercavam.

—   Está admirando Versalhes, senhora? — perguntou ele. Angélica fez uma reverência è respondeu com muita graça:

—   Sire, agradeço a Vossa Majestade o.ter posto tanta beleza sob os olhos de seus súditos. A história" lhe será reconhecida por isso.

Luís XIV permaneceu silencioso um momento, não porque fi­casse perturbado pelos louvores, aos quais estava acostumado, mas porque não conseguia, naquele instante, exprimir seu pensamento.

—   Você é feliz? — perguntou ele, afinal.

Angélica desviou os olhos e, ao sol e ao vento, pareceu subita­mente mais moça, como uma jovem que não houvesse conhecido nem dores nem aflições.

Como pode alguém não ser feliz em Versalhes? — murmurou ela.

Então não chore majs — disse,o rei. — E dê-me o prazer de acompanhar-me no meu passeio. Quero mostrar-lhe o parque.

Angélica pôs sua mão na de Luís XIV. Com ele, desceu os de graus do lago de Latona. Os cortesãos inclinavam-se à sua passagem.

Quando ela se sentou perto de Atenaís de Montespan, diante das duas princesas e de Sua Majestade, entreviu o rosto de seu marido.

Filipe a olhava com uma expressão enigmática, que não era des­tituída de súbito interesse. Ele começava a compreender que ha­via desposado um verdadeiro fenómeno.

Angélica teria podido voar, tão leve se sentia. O futuro, a seus olhos, era tão azul como o horizonte. Ela dizia consigo mesma que seus filhos nunca mais conheceriam a miséria. Seriam educa­dos na Academia de Montparnasse e tornar-se-iam gentis-homens. Ela própria seria uma das mulheres mais festejadas da corte.

E, já que o rei havia expressado esse desejo, ela tentaria apagar de seu coração qualquer traço de amargura. No fundo de si mes­ma, Angélica bem sabia que o fogo do amolem que ela fora con­sumida, aquele temível fogo que também consumira seu amor, não se extinguiria jamais. Duraria toda a sua vida. La Voisin o tinha dito.

Mas o destino, que não é injusto, queria que Angélica descansasse, por algum tempo, sobre a colina encantada, a fim de ali re­cuperar as forças na embriaguez de seu êxito e no triunfo de sua beleza.

Amanhã ela retomaria o caminho de sua aventurosa existência. Mas hoje nada mais temia. Estava em Versalhes!

Angélica tinha motivos de sobra para sentir-se vitoriosa. O casamento com o belíssimo primo Fi­lipe du Plessis-Bellière fora a melhor maneira de coroar com uma respeitável posição social afor­tuna imensa que já possuía.

A entrada triunfal em Versalhes e o consentimen­to do rei eram a melhor recompensa para tantos anos de trabalho e sacrifícios. Agora ela era a Marquesa du Plessis-Bellière, seus filhos voltavam a ter um nome e nunca mais passariam fome novamente.

Mas a doce menina dos campos de Monteloup sabia que ainda teria de enfrentar o rancor do ma­rido. Filipe e a um homem de coração de gelo, de uma brutalidade sem igual. Ele não mediria recursos para vingar-se do casamento que a jovem o obrigara a contrair.

No entanto, não era o próprio Filipe que conside­rava sua bela mulher um “ fenómeno"?

 

 

                                                                                                    Anne e Serge Golon

 

 

 

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