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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BELA ADORMECIDA / Dallas Schuze
BELA ADORMECIDA / Dallas Schuze

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Havia uma mulher que morava numa casinha pintada de cor-de-rosa. Era uma jovem de coração bondoso e espírito acolhedor, com os cabelos da cor do mel e olhos azuis como o céu do entardecer. Olhos que, na maioria das vezes, continham uma expressão que sugeria segredos inocentes e sonhos bem guardados.

Ela havia passado a vida toda na cidadezinha em que nascera, abrigada e protegida pela sua família muito além do que seria normal, pois a maldade certa vez estendera sua mão sombria sobre eles, e viviam com o temor de seu retorno.

Por amor, eles a mantinham presa pelos laços do medo e da culpa.

Por amor, ela aceitava estes ternos laços, embora se tornassem mais apertados a cada ano que passava.

Ela permanecia segura entre as paredes da casinha cor-de-rosa, sonhando com lugares distantes, terras exóticas que jamais veria, aventuras que nunca teria. E se, apenas de vez em quando, sonhasse com um homem que tivesse um espírito forte o bastante para romper os laços amorosos que envolviam-na, este era um segredo que estaria melhor guardado entre ela e seu coração.

Afinal, aquela era a vida real, e ninguém mais do que ela sabia que a vida não era um conto de fadas.

 

 

 

 

Neill Devlin nunca acreditara no inferno, pelo menos não naquele inferno representado pelo fogo eterno, enxofre, lavas quentes e almas penadas. Esta era uma metáfora, a moral de uma historia, e ele não acreditava nisso da mesma forma que não acreditava em bruxas montadas em cabos de vassoura, fadas dançando em pétalas de flores ou finais felizes. Continuava mantendo-se firme acerca destes últimos três, mas era óbvio que enganara-se a respeito do inferno. Ele existia, certamente, e não era algum tipo de reino dos mortos, repleto de lava derretida e rochas pontiagudas.

O inferno era ali, no meio de Indiana, no meio do verão, no meio do que pareciam ser quilômetros infindáveis de plantações de milho cortadas por uma estrada de terra que ligava nada a lugar algum, com o sol escaldante de agosto reluzindo num céu claro e sem nuvens, tendo como única companhia o peso morto da sua motocicleta de quase setenta anos de idade.

— Na próxima vez em que você tiver uma ideia brilhante para as férias, Devlin ― resmungou enquanto começava a empurrar a moto pela estrada ―, poupe-se do trabalho e limite-se a se internar no asilo para idiotas terminais mais próximo.

Sob as atuais circunstâncias, era difícil lembrar-se de por que aquela viagem lhe parecera ser uma ideia tão boa, quando a iniciara. Nos últimos oito anos, ele havia escrito três bem-sucedidos livros sobre crimes reais. Um mês atrás, terminara o quarto livro e tanto seu editor como seu empresário asseguraram-lhe que o último fora o seu melhor trabalho até aquele momento, certamente destinado a ir direto para a lista dos mais vendidos do jornal New York Times. Ele gostaria de poder compartilhar o entusiasmo de ambos, mas depois de passar dois anos aprofundando-se na loucura que levara uma mulher a matar os próprios filhos em nome do Senhor, não se sentia particularmente bem sobre o que fazia para ganhar a vida. Na verdade, não estava sentindo-se particularmente bem sobre o mundo em geral.

A verdade era que, aos trinta e cinco anos, depois de passar a última década perscrutando os recantos mais sombrios da alma humana, Neill estava exausto, exaurido e precisando desesperadamente de uma folga.

Também estava mais do que enjoado da chuva de Seattle, do hábito de seus habitantes de comer apenas comida natural, de beber o café com leite, e da sua música grunge. Queria ir a algum lugar onde pudesse pedir uma xícara de café sem que alguém lhe perguntasse se preferia descafeinado, com uma camada dupla de creme batido e uma casquinha de limão. Queria entrar num restaurante e pedir um bife, malpassado a ponto de mugir quando o cortasse, sem nenhuma manteiga com ervas perfumadas, nem uma salada de rúcula com macadâmia como acompanhamento, apenas um grosso pedaço de carne, talvez adornado com um ramo de salsinha como única forma de distração da gloriosa gordura repleta de colesterol. Tampouco queria tornar a ouvir os gorjeios de alegria sobre as maravilhas do Pacífico nordeste. No que lhe dizia respeito, todo o maldito lugar poderia afundar sob o oceano. Aliás, tudo ali já era tão úmido e encharcado que Neill duvidava que alguém percebesse a diferença.

Seus pais tinham-se mudado para a Flórida depois que se aposentaram, para Ft. Lauderdale, onde nada além de um furacão ocasional interpunha-se entre os seus moradores e o sol. Só de pensar nisso Neill sentia-se mais aquecido. Estivera olhando pela janela do seu apartamento alugado, vendo a chuva fina e cinzenta cair quando a ideia lhe ocorrera, e seu primeiro impulso fora pegar o telefone para fazer uma reserva num vôo. Em vinte e quatro horas ou menos, poderia estar esticado junto a uma piscina, deixando que o sol da Flórida derretesse o frio de Seattle de seus ossos.

No entanto, estivera trabalhando sem parar pelos últimos três meses, dormindo pouco e vivendo sob uma dieta de café instantâneo e comida entregue a domicílio. As imagens do seu livro ainda preenchiam-lhe a mente e assombravam-lhe os pensamentos. As experiências anteriores lhe disseram que precisava de algum tempo para a "descompressão", um tempo para afastar-se dos recantos escuros que vivia para explorar.

Se fosse para casa agora, sua mãe daria uma única espiada em suas olheiras e começaria a preocupar-se e a assar bolos, sua reação à maioria dos males do mundo. Seu pai o arrastaria imediatamente para a garagem que transformara em oficina, lhe entregaria um martelo e o faria trabalhar em qualquer que fosse o projeto de marcenaria que estivesse executando no momento. Brandon Devlin tinha uma firme crença nos efeitos terapêuticos do trabalho físico. Após uns poucos dias sujeito aos cuidados intensos de seus pais, Neill estaria alguns quilos mais gordo, teria bolhas em cada um dos dedos e começaria a invejar os amigos que nunca falavam com os pais.

E foi então que teve a brilhante ideia. Guardada na garagem do seu prédio de apartamentos estava a motocicleta Indian, de 1930, que ele comprara seis meses atrás e que, desde então, mal tivera tempo de dar uma olhada. Uma viagem de moto, cruzando o país. Era exatamente o que ele precisava, umas poucas semanas na estrada sem nada a fazer exceto admirar a paisagem, e sem nada com que se preocupar, exceto onde parar para passar a noite. Ninguém o esperava em lugar algum, portanto poderia gastar o tempo que quisesse. Ora, poderia até passar o ano inteiro na estrada, se lhe desse vontade. Talvez até resultasse um livro desta experiência, algo diferente, algo que não exigisse que ele mergulhasse nas escuras profundezas da loucura.

Neill precisara de menos de uma semana para concluir os detalhes da sua vida em Seattle: devolver o apartamento para a imobiliária, empacotar e guardar num depósito o punhado de coisas que fora juntando ao longo dos últimos dois anos, ligar para as poucas pessoas que poderiam reparar em sua ausência. Então, sentindo-se como um cruzamento de Easy Rider e Alexis de Tocqueville, deixara para trás o chuvisco fino e cinzento de Seattle, tomando o rumo para o sul e leste em busca do sol e da legendária sensação de liberdade e aventura que acompanhava a vida na estrada.

Depois de três semanas, chegou à conclusão de que a tal vida na estrada era altamente superestimada. Havia visto muitas paisagens belíssimas mas, após quase uma semana na estrada, um pôr-de-sol espetacular começava a ficar bastante parecido com todos os outros. Fora apenas a teimosia que o impedira de abandonar toda a ideia uma semana antes e dirigir-se para o aeroporto mais próximo.

Mas aquela fora a última gota. Ele já estava cansado de viver como um nômade. Estava farto de ficar em motéis com paredes finas como papel e um escasso suprimento de água quente. Farto da "comida caseira" que era tirada direto de uma lata. Seu traseiro estava dormente, e suas pernas pareciam prestes a ficar permanentemente arqueadas por montar na moto. Sua camisa estava grudenta com o suor das costas, e havia a ameaça sinistra de uma bolha formando-se em seu calcanhar esquerdo. Estava com fome, com sede, o a maldita moto ficava mais pesada a cada minuto que passava. Queria uma bebida gelada, um banho quente, uma refeição que não ficasse nada a dever ao espaguete do chef Boyardee, e uma cama com um colchão que fosse mais novo do que ele. A única forma de extrair um livro a partir daquela experiência de sua vida seria se mudasse para o gênero de terror, pensou amargamente.

Uma brisa leve perpassou o ar, um fraco sopro que provocou um sussurro nas altas fileiras do milharal que alinhavam-se nos dois lados da estrada. Por falar em terror, ele estava começando a sentir-se como se estivesse preso num antigo episódio da série "Além da Imaginação", aquele em que Billy Mumy ficava mandando as pessoas para os campos de milho.

— Não me admira que tenham ficado aterrorizados ― Neill murmurou. ― Aposto que era a época do verão em Indiana.

O tossido de um motor quebrou o silêncio e Neill parou, recostando a moto contra a perna enquanto virava-se para olhar para a estrada. Permitiu-se uma breve fantasia sobre Cindy Crawford aproximando-se numa limusine. Ela estaria a caminho do aeroporto mais próximo e morrendo de vontade de dar uma carona para um escritor desgarrado. Porém, a velha caminhonete vermelha que surgiu por entre uma nuvem de poeira também não parecia nada má, especialmente quando o motorista diminuiu a velocidade assim que avistou Neill, os freios gemendo numa queixa quando o veículo parou ao seu lado.

— Está precisando de uma carona, moço?

O rosto que espiou-o por cima do assento todo esgarçado era marcado pelos anos de uso e curtido pelo sol. Olhos azuis esmaecidos, um nariz pontiagudo e os lábios finos ocultos sob um espesso bigode grisalho.

— Gostaria muito. Será que há espaço para a moto lá atrás?

Bem, quem precisava de Cindy Crawford? Provavelmente ela nem sabia dirigir uma caminhonete.

— Sabe de uma coisa? Se você comprasse um carro de verdade, não teria de passar metade da sua vida na oficina de David Freeman e a outra metade ganhando o bastante para pagar os consertos daquele pedaço de lixo.

Lisa Remington diminuiu a velocidade do seu carro e ligou a seta, esperando até que um caminhão passasse antes de virar à esquerda na avenida Signal para dentro do posto de gasolina.

— Lucy é um carro de verdade! ― Anne Moore protestou.

— Pois acho que isso depende de como você define "de verdade". Eu, pessoalmente, acho que um carro deve carregar mais do que uma pessoa e meia. E ter a capacidade de correr mais do que sessenta quilômetros por hora.

— Lucy acomoda duas pessoas confortavelmente.

— Só se forem dois contorcionistas ― Lucy resmungou.

— E ela corre mais do que sessenta quilômetros por hora.

— Só se uma das pessoas ficar empurrando.

Anne riu, soltando o cinto de segurança quando Lisa parou ao lado da oficina. Aquela era uma discussão antiga, que nenhuma delas esperava ganhar.

— Você está com inveja porque o meu carro tem personalidade.

— Ah, sim, uma personalidade hipocondríaca. Se não são os freios, então é o motor ou a embreagem. Você comprou aquela porcaria apenas porque ninguém mais a queria.

Anne encolheu os ombros, mas não podia negar a acusação.

— Eles iam vendê-la para o ferro velho.

— Onde é o lugar dela.

— Shh... ela pode escutá-la ― Anne falou, sorrindo enquanto fazia um gesto na direção da porta da oficina.

Lisa enviou um olhar de tristeza para o antigo "fusca" que estava parado lá dentro.

— Nada tão velho ainda pode ser capaz de ouvir alguma coisa. Você sabe quantos anos este carro teria, se contasse na idade dos cachorros?

— Pois se ela fosse um cachorro, eu ficaria preocupada ― Anne retrucou secamente. Abriu a porta do carro. ― Obrigada pela carona, Lisa.

— Ora, ora...

Ao ouvir a leve exclamação da amiga, Anne virou-se para olhá-la, com um pé para fora do carro. Lisa estava com os olhos fixos na porta da oficina, hipnotizada, e quando Anne seguiu a direção de seu olhar, pôde entender porquê.

Ora, ora, mesmo, Anne pensou. O homem que inclinava-se sobre o motor do "fusca" era o sonho de um fabricante de jeans transformado em realidade. O tecido de brim azul e desbotado ajustava-se lindamente em torno dos quadris estreitos e das longas pernas.

— Se eu fosse homem, diria algo bem preconceituoso como "este é o traseiro mais incrível que já vi" ― Lisa ofegou com reverência.

— Não é preconceituoso quando é verdade.

— Ele deve ser de fora. Eu saberia se um traseiro como este morasse aqui em Loving ― Lisa afirmou, convicta.

— Acha que o restante dele faz jus à parte de trás? ― Anne ainda segurava o trinco da porta, mas esquecera-se de sair do carro.

— Isso seria impossível.

Como em resposta à pergunta, o homem endireitou-se e virou-se na direção delas. A fraca luz no interior da oficina não permitia uma visão muito nítida de suas feições, mas o que podiam ver era mais do que o suficiente.

— Olhe só para aqueles ombros ― Lisa suspirou.

Anne já estava olhando. A camiseta preta moldava-lhe o tronco, revelando os ombros largos que terminavam na cintura estreita e sem o menor sinal de barriga. Ele era alto, talvez um metro e oitenta e cinco, mais ou menos, e cada centímetro era de músculos. Os cabelos escuros e espessos caíam-lhe na testa e, mesmo à distância, a impressão geral era de uma beleza rija e máscula.

— Detesto ter de usar um chavão, mas este aí é um pedaço de homem.

— Talvez seja dentuço.

— Ou vesgo.

— Ou então é gay ― Anne falou com uma certeza sombria. Ambas ficaram em silêncio por um instante, contemplando tal deprimente probabilidade.

Ele moveu-se para dentro da oficina, fora do alcance da visão, e as duas mulheres suspiraram. Anne despertou um pouco e lembrou-se de puxar o trinco da porta.

— Fico imaginando quem será ele.

— Talvez David finalmente tenha contratado alguém para ajudá-lo na oficina ― Lisa falou. ― Há uns dois anos ele está ameaçando arrumar um ajudante de meio período.

— É mais provável que ele esteja apenas de passagem pela cidade ― Anne comentou, abrindo a porta de todo.

Mais pessoas mudavam-se de Loving, em Indiana, do que para a cidade e, mesmo à distância, havia um ar de contida inquietação naquele estranho que tornava difícil imaginá-lo morando numa sonolenta cidadezinha rural.

— Você vai jantar com Jack esta noite? ― Anne perguntou, escorregando para fora do carro.

— É claro que sim. Onde mais eu teria meu caráter sendo questionado e meu senso de estética sendo insultado, tudo numa só divertida noite?

— Não é tão ruim assim.

— É, sim. Sua mãe me detesta. Já me detestava quinze anos atrás, quando Brooke era viva e eu era a sua melhor amiga, e detestou-me quando voltei para Loving há dois anos. Diabos, provavelmente ela detestou-me até durante os dez anos em que morei na Califórnia. ― Lisa encolheu os ombros, os lábios curvando-se num sorriso irônico. ― Pelo menos pode-se dar a ela o crédito de ser consistente.

— Ela não detesta você ― Anne protestou fracamente. ― Ela só se preocupa com...

— Com a ideia de que seu irmão me peça em casamento ― Lisa completou, sem rodeios.

— Não é bem assim. Não exatamente. ― Captando o olhar da amiga, Anne refez a frase: ― Não é apenas isso, de qualquer forma. Ela receia que Jack...

— Cometa um erro? ― Lisa perguntou, num tom seco. Balançou a cabeça quando Anne ruborizou. ― Não deixe que isso a incomode. Eu não deixo. Sua mãe acha que, se Jack casar comigo, vai continuar morando em Loving e permanecer no cargo de xerife. ― Exasperada, Lisa passou os dedos por entre os cabelos, desarrumando ainda mais os cachos revoltos e avermelhados. ― Ele tem trinta e cinco anos, pelo amor de Deus, mas, eu juro, ela ainda acha que ele irá voltar para a faculdade de Medicina e tornar-se um famoso cirurgião, como ela e seu pai planejaram. Isso acabou quando Brooke morreu. Por que ela não consegue aceitar este fato?

Muitas coisas haviam acabado quando sua irmã morrera, Anne pensou, mas limitou-se a responder:

— Aceitação não faz parte do vocabulário de minha mãe.

— Agora você disse tudo.

Nenhuma delas falou por um momento, até que Lisa quebrou o silêncio.

— Você leva os feijões para a salada e eu levo o vinho Chianti. Podemos dizer à sua mãe que é um presente para a anfitriã.

Anne estava sorrindo quando saiu do carro, mas o sorriso desapareceu assim que Lisa se afastou. Ela conhecera Lisa pela maior parte de sua vida, apesar de que, quando era criança, os seis anos de diferença em suas idades eram um abismo intransponível e Anne a considerava apenas como a amiga da sua irmã mais velha. A amizade entre elas iniciara-se dois anos atrás, quando Lisa retornara a Indiana.

Na superfície, não tinham muito em comum. Lisa era uma artista. Anne trabalhava como secretária num banco. Lisa havia se mudado para a Califórnia aos vinte anos, casara-se com um músico e viajara com ele por todo o país. Quando divorciaram-se, ela vendeu a metade que lhe cabia de seus bens e passou seis meses na Europa. Anne, por sua vez, exceto por uma viagem para a Disneyworld quando era criança, nunca se afastara de Loving por mais do que uma viagem de duas horas de carro. Tampouco tivera nenhum relacionamento sério com alguém do sexo oposto, a não ser que contasse Frank Miller, e ela realmente odiava a ideia de contá-lo. Depois de mais de um ano saindo com ele, mal conseguia lembrar-se de como ele era, entre um encontro e outro.

Mas, a despeito das diferenças, ou talvez por causa delas, ela e Lisa haviam se tornado grandes amigas, e o fato de que Lisa e Jack estavam namorando teria se transformado num quadro perfeito, se não fosse pela hostilidade educadamente implacável de sua mãe, Anne pensou enquanto saía da luz brilhante do sol para dentro da oficina escura.

Talvez no fim das contas Deus existisse mesmo, Neill pensou, olhando para a mulher que acabara de entrar na oficina. Ela havia parado bem na porta, esperando que seus olhos se acostumassem à pouca luz no interior. Talvez fosse pouco considerar uma carona para a cidade, um refrigerante gelado e meia dúzia de biscoitos como uma intervenção divina, mas, quando a gente se depara com uma linda loura usando um vestido de verão estampado de flores azuis, não havia mais espaço para dúvidas. Deus estava no céu e, se tudo ainda não estivesse completamente certo com o mundo, bem, pelo menos as coisas estavam melhorando.

Com os olhos ainda ofuscados pelo sol, ela ainda não o avistara, e Neill não estava com pressa de se fazer perceber. Recostando-se no balcão atulhado de ferramentas, ficou admirando a visão. Ela não era muito alta, talvez um metro de sessenta e poucos centímetros, mas tinha uma bela embalagem. A saia curta e esvoaçante do vestido revelava um par de pernas bronzeadas, pernas deliciosamente longas para uma mulher de pouca estatura, e o restante dela era igualmente atraente. Era o tipo de corpo que estivera na moda nos anos cinquenta, um pouquinho cheio demais no busto e quadris para a moda atual, com a cintura fina que enfatizava as curvas. Se ela fosse como a maioria das mulheres que ele conhecia, provavelmente achava que precisaria perder uns três quilos, mas, no que lhe dizia respeito, era toda certa, suave, arredondada e muito, muito feminina.

E é óbvio que você passou tempo demais afastado do mundo real, Devlin. Neill mudou de posição, desconfortavelmente ciente de que sua calça jeans de repente ficara mais apertada do que devia. Ele já passara, pelo menos vinte anos da idade em que apenas olhar para uma mulher bonita era o bastante para provocar-lhe uma ereção. No entanto, passara a maior parte do ano anterior mergulhado em pesquisas e, nos últimos seis meses, o mais próximo que chegara de um relacionamento carnal fora ao morder um pedaço de pizza quente.

Ela encaminhou-se para o velho "fusca", a barra do vestido estampado dançando levemente em suas pernas. Quando inclinou-se para espiar dentro do compartimento do motor, o fino tecido de algodão dobrou-se lindamente em torno das curvas suaves de seu traseiro, e Neill engasgou com o refrigerante que acabara de beber.

Assustada, Anne endireitou o corpo no mesmo instante e virou-se na direção do barulho, uma das mãos pressionando o coração que disparava subitamente, os olhos perscrutando a oficina mal iluminada. Alguém estava desencostando-se do balcão de ferramentas, movendo-se em sua direção... Um homem, um desconhecido. Tal percepção fez com que sua pele ficasse gelada, e encheu sua garganta com o gosto ácido de um medo antigo.

— Desculpe, eu não pretendia assustá-la.

O desajeitado pedido de desculpas conteve seu movimento impulsivo de virar-se na direção da porta e fugir. Ela engoliu em seco, lutando para controlar-se conforme ele se aproximava.

— Acho que você não me viu ― Neill disse, parando a poucos passos de distância e sorrindo para ela.

Camiseta preta, jeans desbotado, botas pretas e empoeiradas e os cabelos espessos, escuros como a noite. Era o "pedaço de homem", Anne deu-se conta, o mesmo que ela e Lisa tinham estado analisando desavergonhadamente minutos atrás. Anne respirou fundo, sentindo a irritação substituir o pânico momentâneo. Achava que já havia superado tal tipo de reação, anos atrás. No entanto, ali estava ela, tremendo como um coelhinho acuado apenas porque acontecera de ficar sozinha com um homem desconhecido por alguns instantes. E nem mesmo estavam realmente sozinhos, ela pensou, odiando o medo que a obrigava a olhar na direção do escritório.

— David foi atender um telefonema minutos atrás ― Neill falou, vendo a direção de seu olhar.

Ele manteve uma distância cuidadosa entre os dois, e a voz baixa e suave. Não queria fazer nada para provocar novamente a aguda expressão de medo que fizera com que aqueles olhos cinzentos se tornassem quase negros. E eram olhos tão bonitos, ele pensou. Ela era bonita, como as moças que enfeitavam antigas caixas de doces. Grandes olhos acinzentados, um tipo de pele que só poderia ser chamada de pêssego com creme, os cabelos cor de mel claro, um narizinho reto e os lábios bem contornados, o lábio inferior sendo um pouco mais cheio do que o superior, o tipo de boca que faz um homem desejar provar aquela leve insinuação de um biquinho.

Como regra geral, seu gosto por mulheres direcionava-se mais para as morenas altas e de pernas compridas, mas estava disposto a concordar que seu foco estivera um tanto limitado no passado. Sem dúvida havia algo a dizer acerca das loiras baixas e curvilíneas.

— É seu carro? ― ele perguntou, indicando o "fusca".

— Sim. Ela veio para uma revisão.

— Ela? ― Deliberadamente, Neill esboçou seu sorriso mais amigável. ― Qual é o nome dela?

— Lucy ― Anne respondeu automaticamente, mas depois ruborizou, preparando-se para ouvir as risadas. Nem todo mundo entendia o impulso de se dar um nome a um carro.

— Alguns carros parecem que precisam ter um nome, não é mesmo? ― O sorriso dele alargou-se, numa divertida camaradagem. ― Minha irmã tinha um Volvo de cem anos de idade, pintado de cor-de-rosa, e o chamava de Morris. Eu estava na quinta série e minha mãe costumava pedir a Darcy que fosse buscar-me na escola. Fiquei convencido de que minha mãe me odiava. Já era ruim demais ter minha irmã apanhando-me na frente da escola, mas aquele carro... ― Ele estremeceu com a lembrança. ― Como um sujeito pode mostrar-se másculo se é obrigado a andar com a irmã num Volvo cor-de-rosa?

— Deve ter sido muito traumático. ― Anne sorriu, sentindo os últimos vestígios de medo evaporarem-se.

Não era possível ter medo de um homem cuja irmã guiara um Volvo cor-de-rosa chamado Morris. E, depois, havia aquele sorriso. E a maneira como os olhos dele riam, mesmo quando ele estava sério.

Não era dentuço, nem vesgo e, desde que a observava com evidente apreciação masculina, parecia pouco provável que fosse gay. Na verdade, não havia nenhum defeito visível, Anne concluiu, lançando lhe um olhar de apreciação. Trinta e poucos anos, com um corpo esguio e musculoso, olhos muito, muito azuis, cabelos quase negros, as feições do rosto fortes e angulares e uma boca que parecia estar sempre sorrindo. O homem era praticamente um modelo de "pôster".

— Nunca fui capaz de entender por que tantas pessoas são tão malucas por estes "fuscas". ― Olhando para o carro de Anne, ele balançou a cabeça diante do fenômeno. ― Um amigo meu ganhou um desses quando fez dezesseis anos. Não tinha ar-condicionado, o aquecimento era uma piada e, quando tinha de subir uma ladeira os passageiros eram obrigados a descer e empurrar. Mas ele adorava aquele carro. E eu não ficaria surpreso ao saber que mandou moldá-lo em bronze e o mantém na estante da sala, junto com os sapatinhos dos bebês.

Anne deu uma risadinha, mas, ao mesmo tempo, estendeu a mão e deu uma palmadinha amigável no para-choque do carro.

— Lucy tem coração ― disse.

Ele assentiu, aquele sorriso dançando novamente em seus olhos.

— Seth costumava ficar com esta mesma expressão quando falava sobre seu carro. ― Neill enfiou as mãos nos bolsos e deixou o sorriso alcançar-lhe os lábios. ― Pessoalmente, acredito que seja a síndrome do filhotinho feio. Você sente-se compelida a amar o carro porque sabe que ninguém mais o fará.

Anne sorriu.

— Ela ia ser toda desmanchada, e as peças vendidas ao ferro velho.

Ele riu.

— Quer dizer que comprou o carro para salvá-lo do desmanche?

— Mais ou menos. ― Anne deslizou a mão pelo para-choque, e Neill tentou não pensar sobre como seria ter aqueles dedos suaves tocando-lhe a pele.

Definitivamente, você passou tempo demais sozinho, Devlin.

— Você está trabalhando para David? ― Anne perguntou, com uma pontinha de timidez.

Mais tarde, ficaria surpresa com a facilidade com que conversara com ele. Nunca fora o tipo de pessoa que engajava-se numa conversa casual com pessoas estranhas mas, ainda assim, lá estava ela, tagarelando com o desconhecido mais atraente que já lhe cruzara o caminho em vinte e cinco anos.

Ele balançou a cabeça.

— Minha moto simplesmente desistiu de funcionar há alguns quilômetros da cidade. ― Indicou a motocicleta vermelha e prateada que estava estacionada mais adiante. ― Tive sorte de conseguir uma carona até aqui. Do contrário, ainda estaria perdido em algum milharal.

Anne sorriu novamente, e ele sorriu de volta. Um refrigerante, alguns biscoitos e uma conversinha com uma linda jovem... sim, a vida estava melhorando, sem dúvida.

— Tenho certeza de que David vai conseguir consertar sua moto ― ela falou.

— Você precisa ter cuidado ao fazer promessas que eu talvez não possa cumprir.

A voz de David Freeman precedeu-o, quando ele entrou na oficina. Era um homem baixo e atarracado, com os cabelos castanhos e feições comuns que tornavam-se notáveis graças aos olhos de um azul inesperadamente claro. Neill gostara dele na hora, e ainda mais quando o mecânico reconhecera imediatamente a motocicleta Indian e o seu valor. Havia indicado a geladeira com os refrigerantes e prometera dar uma espiada na moto assim que terminasse o serviço que estava fazendo.

— Como vão as coisas, Anne?

— Tudo bem. Ou estarão bem se você conseguiu deixar Lucy em ordem.

Anne, Neill pensou. O nome possuía uma feminilidade antiquada, que combinava com ela. Não precisaria de muita imaginação para pensar nela usando um vestido longo e um chapeuzinho de plumas enfeitando-lhe o rosto. Não que ele não preferisse a versão moderna, admitiu, permitindo que seus olhos deslizassem lentamente pelas pernas nuas até a altura da barra do vestido estampado.

— Deixei a sua Lucy em perfeitas condições novamente ― David falou, aproximando-se de Anne.

Neill captou o olhar que o mecânico lançou em sua direção e perguntou-se se estaria imaginando uma expressão de aviso, ali. E não haveria também um ar de proprietário na maneira como David tocou o braço dela, enquanto explicava o que fizera no carro?

Neill ficou surpreso ao sentir uma pontada de desapontamento ao pensar que ela já estaria comprometida com alguém. Afinal, estava apenas de passagem. Se tivesse muita sorte e o mecânico conseguisse ressuscitar sua moto nas próximas horas, ele poderia voltar para a estrada antes do anoitecer. Caso contrário, partiria no dia seguinte, ou no outro. De qualquer forma, não ficaria nas redondezas pelo tempo suficiente para importar-se caso a Anne dos lindos olhos azuis e sorriso doce estivesse namorando alguém.

Tempo demais sem uma vida social, pensou enquanto observava-a tirar o talão de cheques da bolsinha que carregava. Se eram namorados, ou amantes, ela deveria estar pagando pelo conserto do carro? Não que isso tivesse importância para ele, Neill tornou a lembrar-se enquanto virava-se, inquieto. Era simples curiosidade, um hábito de escritor. Ergueu a cabeça, bebendo o último gole do refrigerante já quase morno. Voltou-se de repente, ao ouvir o capô do carro dela fechar-se. Ela estava entrando no veículo, dando-lhe uma última visão das pernas longas e esguias.

Anne fechou a porta, olhou para ele pela janela e sorriu timidamente.

— Boa sorte com sua motocicleta.

— Obrigado.

Ainda bem que ela estava indo embora, Neill pensou. Mais alguns minutos e ele teria se apanhado convidando-a para sair. Tinham sido muitas noites passadas sozinho, tempo demais com os olhos fixos no monitor, sem outra companhia além dos seus pensamentos. Ainda assim, viu-se caminhando para a porta da oficina, observando o tolo carrinho preto virar a esquina da avenida principal.

— Esqueça. ― Atrás dele, a voz de David Freeman era fria como gelo.

— Por quê? ― Neill virou-se, os olhos contendo uma pergunta e um leve desafio. Não iria fingir que não sabia sobre o que David estava falando. ― Ela está comprometida?

— Não que eu saiba.

— Então, por que devo esquecer?

David encolheu os ombros, com uma expressão inescrutável.

— Apenas aceite o meu conselho. Ou não aceite. Não tem muita importância, desde que você está somente de passagem, não é? Vou dar uma olhada na sua moto, agora. Veremos qual é o problema.

David afastou-se, mas Neill continuou onde estava por mais algum tempo, os olhos fixos na avenida. O carrinho preto já desaparecera e Freeman estava certo: não tinha importância alguma.

Então, por que ele achava isso tão irritante?

 

Olívia Moore poderia ter sido a inspiradora da expressão "flor de aço". Sendo a única filha de um rico empresário de Atlanta, Olivia foi criada num mundo de riqueza e privilégios. Seus pais haviam esperado que ela fizesse o casamento adequado, com um sulista de sua própria classe, mas ela surpreendera tanto a si mesma quanto a eles ao apaixonar-se por John Moore, um médico rural sem nenhuma projeção social específica, e um ianque convicto.

Quando não conseguiram convencê-la a desistir de tal casamento, os pais de Olivia ofereceram-lhe uma festa espetacular, para a qual toda a nata da sociedade de Atlanta foi convidada. Também legaram à filha uma quantia de dinheiro igualmente espetacular, para certificarem-se de que ela pudesse manter o estilo de vida a que estava acostumada, mesmo nos confins do norte para o qual o marido a estaria levando.

O dinheiro permitiu que Olivia nunca tivesse de preocupar-se em viver com os rendimentos do marido, ou confinada ao estilo de vida com que se casara. Ela havia redecorado sua nova casa, uma monstruosidade desconexa com ridículas pretensões no estilo Tudor, com lindas antiguidades e viajava duas vezes por ano a Nova York a fim de renovar o guarda-roupa. As mulheres locais, que mostraram-se perfeitamente dispostas a aceitar a nova esposa do jovem Dr. Moore em seu círculo social, logo descobriram que Olivia não estava interessada.

Numa cidade em que quase todos se conheciam, pelo menos de vista, ela fez muitos conhecidos, mas nenhuma amizade verdadeira. A falta de amigas não a incomodava, desde que não tinha nenhum interesse especial em tornar-se intimamente ligada a esposas de fazendeiros e balconistas de lojas. Olivia teria ficado levemente surpresa ao saber que os moradores da cidade a consideravam uma tremenda esnobe. Para ela, era tão óbvio que Loving simplesmente não podia proporcionar o tipo de sociedade a que ela estava acostumada, que nunca lhe ocorreu que as outras pessoas poderiam pensar de maneira diferente. Os churrascos do feriado de Quatro de Julho e as Feiras da Colheita estavam, definitivamente, muito abaixo do seu nível.

Em sua opinião, sempre fora uma boa esposa. Ficara desapontada quando John recusara-se a sequer considerar a possibilidade de morar em Atlanta, onde ela tinha amigos, família e uma vida social de verdade, porém não insistira para que ele mudasse de ideia. Nem tampouco queixara-se sobre a falta de comodidades da pequena comunidade rural para onde ele a trouxera. Se, com a clareza da percepção tardia, ela tivesse visto a sabedoria dos argumentos de seus pais contra o casamento, o orgulho não lhe permitiria que o admitisse. O divorcio era impensável, uma admissão de fracasso que ela recusava-se a fazer. Jamais lhe ocorreu que John pudesse sentir os mesmos arrependimentos. Afinal, fora ela quem abrira mão de tudo, enquanto que ele ganhara... Bem, ele ganhara uma esposa que não era apenas bonita, mas também saída de um nível social muito mais elevado do que ele jamais poderia almejar. A ideia de que ele também pudesse nutrir seus arrependimentos a teria deixado perplexa.

Tendo feito sua própria cama, Olivia decidiu deitar nela da maneira mais graciosa possível. Se seu marido tivesse demonstrado o menor traço de ambição, ela teria usado suas consideráveis habilidades sociais para ajudá-lo a progredir na carreira, mas, desde que ele satisfazia-se em praticar a medicina naquela comunidade estagnada, não havia nenhuma possibilidade de progresso, portanto Olivia voltara toda a sua atenção para os três filhos.

Desde o início, ela tentara instilar neles o sentido de seu próprio valor. Era importante que eles compreendessem que o mundo real estendia-se além do sufocante confinamento de Loving, em Indiana. Nessa empreitada, fora tolhida pela súbita e inesperada recusa de John de permitir que ela os enviasse para um internato de luxo. Seus argumentos de que eles precisariam começar, desde bem cedo, a associar-se com o tipo certo de pessoas e fazer o tipo de amizades que poderiam beneficiá-los no futuro, nem sequer foram ouvidos.

No que lhe dizia respeito, fora unicamente como resultado de tal atitude irracional que seu único filho havia desistido da faculdade de Medicina para tornar-se o xerife da cidade, uma posição com muito poucos benefícios e sem nenhuma oportunidade de progresso. O fato de que Jack não parecia interessado em progresso também era culpa de John. Se John tivesse ao menos demonstrado mais ambição, dado um exemplo para o filho... Mas nada disso acontecera e agora, com trinta e cinco anos, Jack parecia satisfeito em permanecer no que sua mãe considerava um emprego sem futuro.

Como se isso não bastasse para deixá-la desgostosa, ele envolvera-se com uma mulher cujo senso de estilo para vestir-se parecia derivar-se de uma revista circense. Olívia olhou para o lugar na mesa onde Lisa estava sentada, de frente para Anne, e mal reprimiu um estremecimento de desgosto. Ela era exagerada em... tudo. Alta demais, risonha demais. Seus traços eram grandes demais, seus gestos rápidos demais, os cabelos vermelhos demais. Não tinha nenhum refinamento, nenhuma elegância, e nem mesmo os dez anos que passou na Califórnia poderiam explicar o impulso que a levara a juntar uma bata turquesa com margaridas amarelas dançando na barra com uma camiseta púrpura, calça comprida justa da mesma cor e sapatilhas com botõezinhos cor-de-rosa-choque. Em combinação com os cabelos muito vermelhos e brincos multicoloridos que mais pareciam anzóis de pesca, ela pintara os olhos com sombras que iam do azul ao cinza, nos mesmos tons que com tanto bom gosto havia decorado a sala de jantar.

O fato de que Lisa havia crescido com a irmã mais velha de Anne de nada servia para reconciliá-la com a possibilidade de Jack ter sérias pretensões a seu respeito. Olivia já considerara Lisa como uma má influência quando Brooke estava viva, e os quase quinze anos após a morte de sua filha nada tinham feito para melhorar a sua opinião. Era uma pena que Lisa não tivesse ficado na Califórnia, bem longe de Jack, porque era óbvio que ela era completamente inadequada. Não que Olivia fosse tola o bastante para expressar sua opinião a Jack. Ele era parecido demais com o pai, sua teimosia crescia em proporção direta com a estupidez de seus atos.

Se fosse o pai quem lhe dissesse alguma coisa, Jack talvez ouvisse, mas John, como sempre, recusara-se a interferir. Ele gostava de Lisa, dissera. Ela o fazia rir. O comentário ácido de Olivia de que esta era uma qualidade admirável num cômico profissional mas dificilmente uma prioridade para uma nora recebera nada além de um encolher de ombros como resposta, e a expressão distraída nos olhos dele avisou-a de que nem adiantaria prosseguir com a discussão. Sem contar que, com o passar do tempo, John passara a desenvolver uma irritante tendência de desligar-se de tudo o que acontecia à sua volta.

Deixada por conta própria, Olivia primeiro tentou ignorar a coisa toda, esperando que fosse apenas uma fase pela qual Jack estivesse passando, um tipo de crise de meia idade precoce, mas quando continuaram namorando por quase um ano e meio, tornou-se evidente que o fato de ignorar Lisa não a faria desaparecer. Fora ideia sua que Jack trouxesse a namorada para os jantares de domingo. Olivia esperava que vendo Lisa ali, na elegância discreta da casa de sua família, Jack poderia abrir os olhos para sua total falta de adequabilidade, mas isso não parecera surtir o efeito desejado. Talvez estivesse na hora de partir para uma ação mais direta.

— Estive pensando, Lisa, onde você tem feito suas compras ultimamente? ― Olivia tocou os lábios com a pontinha do guardanapo e enviou um leve sorriso para o outro lado da mesa. ― Você deve achar as lojas locais muito limitadas, depois de morar tanto tempo em Los Angeles. Especialmente sendo alguém com um senso de estilo tão... exclusivo.

Anne fechou os olhos brevemente, os dedos apertando o garfo com mais força. Justamente quando pensava que seria seguro comer a sobremesa, pensou, quase engasgando com o riso que subiu-lhe pela garganta, e que continha mais do que apenas um toque de histeria. Na verdade, a única surpresa ali era o tempo que sua mãe demorara para fazer o comentário, embora tortuoso, sobre as roupas de Lisa, um traje que Lisa devia ter planejado cuidadosamente com o objetivo de lançar a pressão sanguínea de sua anfitriã para as alturas.

— É bem difícil, Sra. Moore ― Lisa respondeu, fingindo considerar a preocupação evidentemente falsa como se fosse real. ― Por sorte, tenho uma amiga em Los Angeles que envia-me as roupas. Ela encontrou esta peça num "brechó" sensacional, no Santa Monica Boulevard. ― Lisa alisou alegremente os ombros da bata cor de turquesa. ― É claro que precisou de algumas reformas, mas não se pode ser muito exigente quando se trata de roupas de segunda mão.

Anne pegou o copo rapidamente, engolindo o riso com um pouco de chá gelado. Sabia de tudo acerca das lojas onde a amiga de Lisa fazia suas compras. O termo "roupas de segunda mão" era um tanto exagerado, pois as peças que Lisa usava eram quase antiguidades, com marcas de costureiros famosos. Mas o tom de Lisa conseguira passar a impressão de que sua amiga costumava escarafunchar em caixas cheias de trapos usados.

— Não... Imagino que não se possa ser muito exigente com... roupas usadas ― Olívia repetiu, os traços sofisticados congelando-se com nojo. ― Mas, é claro, suponho que se o objetivo for economizar os seus tostões, então estes "brechós" são uma ótima solução. ― Seu sorriso era como uma navalha afiada. ― Sei como deve ser difícil para pessoas criativas lidar com finanças. Como está o seu pequeno negócio, minha cara?

O sorriso de Lisa contraiu-se, os olhos reluziram perigosamente. Os ataques pessoais não a incomodavam, mas ela levava seu trabalho muito a sério e esperava que o restante do mundo fizesse o mesmo.

— Muito bem, obrigada. Acabei de mandar vários modelos para uma butique em São Francisco. E já tenho pronta uma encomenda especial feita por um cliente em Manhattan.

— É aquele com todas as frutas? ― Jack perguntou de repente, emergindo de um silêncio distraído. ― É o chapéu mais bobo que já vi na vida ― comentou alegremente, dirigindo-se à mãe. ― Parece que uma salada de frutas de néon espalhou-se por cima de um chapéu de safári. Ainda digo que cobrar quinhentos dólares por um chapéu daqueles, que ninguém nunca vai usar, tinha de ser ilegal.

— Meu maior fã ― Lisa falou com ironia, dando-lhe uma cotovelada no braço.

A rigidez dos lábios de Olivia deixou claro que ela reconhecia o valor daquela súbita contribuição, seu filho não apenas sabia que o "pequeno negócio" de Lisa ia muito bem como também dava-lhe todo apoio.

— Isso é maravilhoso ― Olivia falou, sem a menor sinceridade. ― Tenho de admitir que já pensei em fazer chapéus para colecionadores. ― Seu risinho deixava claro o absurdo da ideia. ― Eu nem sabia que havia quem colecionasse algo assim, mas quem pode dizer que coisas estranhas as pessoas fazem, não é? Basta ver as pedras em formatos de animais para saber que tem gente que coleciona os objetos mais estranhos.

— É mesmo, não é? ― Lisa concordou, os dentes apenas levemente cerrados. ― Acho que tenho sorte de haver pessoas que consideram meus chapéus pelo menos tão interessantes quanto pedras em formatos de animais.

Mais uma noite desfrutada no seio acolhedor de seu lar, Anne pensou. A única coisa comparável a isso seria sapatear descalça num campo minado enquanto alguém ficava atirando bolas de boliche na direção de sua cabeça. Anne lembrava-se de que, quando era mais nova, costumava assistir na tevê as reprises da série "Papai Sabe Tudo" e perguntava-se se existiriam famílias que realmente conversavam; se existiria um lugar em que bastava voltar-se para a família para encontrar a solução de todos os seus problemas, fossem grandes ou pequenos.

Para ela, sempre fora um enigma o fato de os personagens saberem que podiam contar uns com os outros. Não poderia ser somente uma questão de nascimento ou casamento porque, se esse fosse o caso, ela teria o mesmo sentimento em relação à sua própria família. Anne não podia lembrar-se de nenhuma ocasião em que sentira que poderia confiar seus problemas à família. Não porque não existisse amor entre eles, disse a si mesma, ignorando a leve dúvida que se seguiu. É claro que eles se amavam, porque era isso o que as famílias faziam. Havia muito tempo que abandonara a ideia de que a vida real pudesse ser parecida com uma série de tevê, mas ainda permanecia nela uma pequena e desejosa parte que perguntava-se como seria estarem juntos na mesa do jantar e realmente conversarem uns com os outros.

Anne nem precisava olhar para o pai para saber que, embora ele estivesse sentado na mesa, não estava realmente presente. Esta era uma aptidão que ele desenvolvera anos atrás, a capacidade de fugir para algum lugar, de abstrair-se do que quer que estivesse acontecendo à sua volta. Ela muitas vezes invejava tal capacidade, mas naquela noite, quando olhou para ele, subitamente ocorreu-lhe que devia ser um modo muito solitário de se viver.

E seu irmão... Jack sempre fora um tanto misterioso para ela. Quando era criança, a diferença de quase dez anos entre eles emprestara ao seu irmão uma aura quase mística aos seus olhos. Alto e esguio, com os cabelos da cor dos raios de sol e os olhos azuis, a perfeição física de Jack a deixava encantada, bem como o fato de ele ser um adulto enquanto ela era apenas uma criança. Foi somente quando ela própria tornou-se uma adulta que começou a enxergar o homem sob a imagem que ela havia criado.

Anne franziu a testa levemente quando Jack pegou a garrafa de vinho no centro da mesa e entornou todo o conteúdo restante em seu copo. Na superfície, ele parecia satisfeito com a sua vida, mas havia uma sombra em seus olhos, uma sombra espreitando por trás de seu sorriso, e ela perguntava-se qual seria a fonte desta tristeza.

— Alô, alô. Terra para Anne. Há alguém aí?

A voz de Jack assustou-a. Anne olhou para cima, subitamente ciente de que não era a primeira vez que ele lhe falava.

— Desculpe-me. ― A beirada do prato tilintou, quando pousou o garfo. ― Acho que, por um minuto, andei viajando para outro lugar.

— Pensando no "pedaço de homem"? ― Lisa perguntou com um sorriso brincalhão.

— Não.

Porém, a pergunta de Lisa a fez lembrar-se dele imediatamente. Anne havia pensado nele várias vezes durante a tarde, imaginando de onde ele teria vindo, para onde iria, meio que desejando ser o tipo de mulher que faz perguntas como estas. Ou, talvez, ser o tipo de mulher que faria um homem como ele mudar os planos e ficar na cidade, apenas esperando ter a chance de conhecê-la melhor.

Vendo o leve rubor que surgiu nas faces de Anne, Lisa inclinou-se para a frente, os olhos verdes reluzindo de interesse.

— Você conversou com ele?

— Por que tenho a impressão de que estou "por fora" desta conversa? ― Jack reclamou. ― Sobre o que estão falando?

— Havia um sujeito na oficina de David quando levei Anne para pegar aquele ferro-velho que ela dirige. O mais belo traseiro que já vi em muitos anos.

— Será que devo ficar com ciúme? ― Jack, perguntou.

— Talvez, só um pouquinho ― Lisa respondeu, sorrindo. ― De fato, era um traseiro excepcional. ― Tornou a olhar para Anne. ― Então, conversou com ele?

— Um pouco. ― Anne ergueu a mão para impedir a pergunta que via surgindo nos lábios da amiga. ― A motocicleta dele quebrou na estrada e ele conseguiu uma carona até a cidade. David ia examinar a moto. Isso é tudo o que sei.

— E ele é tão bonito de perto quanto era de longe? ― Lisa indagou, irreprimível.

— Agora estou definitivamente enciumado ― Jack afirmou, num tom seco. ― Se esse sujeito ainda estiver por aí, terei de expulsá-lo da cidade imediatamente.

— Não posso acreditar que vocês estejam brincando com uma coisa dessas.

O tom frio e irado na voz de Olivia interrompeu a conversa descontraída como se fosse uma adaga rasgando a fina seda. Olhando para a mãe, Anne assustou-se ao ver a emoção contida que contraía-lhe as feições. Por experiência própria, sabia que a mãe era uma especialista em evitar emoções fortes. Nada envelhece mais uma mulher do que as emoções fortes, Anne. Atualmente não é moderno dizer algo assim, mas uma dama sempre deve conter suas emoções.

— Brincando com o quê? ― Anne perguntou, confusa.

Enviou um olhar de indagação para Jack, mas, depois de um único relance para a mãe, ele ficou absorvido em observar os reflexos que a luz produzia no cristal da taça em sua mão.

— Você realmente conversou com o desconhecido? ― Olivia indagou, colando Anne à cadeira apenas com a força de sua ira.

— Um pouco.

A compreensão emergiu e formou um nó em seu estômago. Anne baixou as mãos para o colo, os dedos entrelaçando-se. Subitamente tinha dezesseis anos outra vez, chegando tarde da escola, ouvindo os soluços histéricos de sua mãe e os gritos sobre todas as coisas terríveis que poderiam ter acontecido à única filha que lhe restara.

— Ele foi muito educado ― adiantou, sabendo que isto não seria o bastante.

— Isso não quer dizer nada ― Olivia disparou. Empurrou o prato com um gesto rápido e impaciente, fazendo-o bater de encontro com a taça de vinho. A taça vacilou e teria caído no chão se Jack não a pegasse no ar, tornando a colocá-la na mesa. Olivia nem sequer reparou no pequeno incidente. ― Ele era um desconhecido. Poderia ser qualquer um, ter feito qualquer coisa.

— Tenho certeza de que não havia perigo algum, Liwy. ― John Moore falou pela primeira vez desde o início da refeição, num tom de voz tranquilizador. ― Afinal, foi em plena luz do dia.

— E todos sabemos como isto é seguro, não é? ― A pergunta sarcástica foi seguida de um silêncio pesado.

Mesmo contra sua vontade, os olhos de Anne dirigiram-se para a mesinha lateral onde os porta-retratos estavam dispostos com todo cuidado. Havia várias fotografias, mas a maior delas era a de uma linda loura, de cabelos muito claros e olhos azuis. A foto mostrava uma jovem prestes a tornar-se mulher, os olhos brilhando pela antecipação de uma vida inteira à sua frente. Uma vida que fora encerrada quase um mês depois de a foto ser tirada.

— Bem, nada aconteceu ― John falou, depois de um momento.

— Ainda não, mas como saberemos se este homem não a seguiu até em casa? Ele poderia estar à espera dela, agora mesmo.

— Estou certa que não. ― Anne manteve a voz calma. ― Dificilmente ele poderia seguir-me sem um meio de transporte e, desde que nem sabe o meu nome, seria pouco provável que descobrisse onde moro, não acha?

O tom neutro e desinteressado obteve o efeito desejado. O rubor de ansiedade que colorira as faces de Olivia começou a diminuir, e aos poucos ela foi relaxando a pressão que fizera com os dedos na beirada da mesa.

— Sim, imagino que sim. ― Olivia pressionou a mão na garganta, visivelmente reunindo as pontas do seu autocontrole habitual. ― Mas não gosto da ideia de você voltar para aquele chalé vazio ― disse, nervosa. ― Nunca entendi por que você insistiu tanto para mudar-se para lá. Nesta casa há espaço mais do que suficiente.

— Preciso de um lugar que seja só meu ― Anne falou, sentindo o nó no estômago apertar-se ainda mais.

Elas já haviam tido aquela mesma discussão três anos atrás, quando Anne decidira mudar-se. Não pretendia passar por tudo aquilo novamente.

— Eu sei, eu sei... Você queria ter privacidade ― Olivia falou com amargura. ― Mas nunca entendi por que você achava que precisava mudar-se apenas por isso. Poderia ter ficado aqui e ter toda a privacidade que quisesse.

Anne engoliu um risinho histérico, ciente de que sua mãe realmente acreditava no que estava dizendo.

— Não é como se eu tivesse me mudado para um lugar distante ― ela disse, desviando-se dos motivos porque devia ou não ter-se mudado. ― O chalé fica a apenas alguns metros de distância.

— É longe o bastante. Nem mesmo posso vê-lo daqui de casa.

E esta foi a única razão porque concordei em ir para lá, Anne pensou. Apesar de afirmar que respeitava a privacidade da filha, Olivia não pensaria duas vezes antes de manter um rígido controle sobre as idas e vindas no chalé. Não que tivesse muito o que vigiar, Anne admitiu em silêncio, e com uma pontinha de tristeza.

Quando Anne não demonstrou nenhuma disposição de empacotar suas coisas e voltar para a casa da família, Olivia comprimiu os lábios com irritação. Gostaria de continuar insistindo no assunto, mas sabia que não chegaria a lugar algum, da mesma forma que nada conseguira três anos atrás. Fora um choque descobrir sua filha, normalmente tão maleável, fincando os pés naquela questão, insistindo que estava na hora de ter seu próprio lugar. Tinha de contentar-se com a ideia de que pelo menos convencera Anne a morar naquele ridículo chalé em falso estilo vitoriano que ficava na entrada da propriedade, em vez de em algum apartamento na cidade. Não havia sentido em reacender o assunto, especialmente na presença de Lisa, que estava ali ouvindo cada palavra. Não se discutem problemas de família diante de estranhos e, se dependesse dela, era isso que Lisa continuaria sendo.

— Ainda não consigo acreditar que você ficou conversando com um desconhecido ― Olivia tornou a falar, nervosa. ― Como se você fosse qualquer uma.

Como se houvesse alguma vez, nos últimos quinze anos, em que foi-me permitido esquecer que Brooke Moore era a minha irmã, Anne pensou com amargura. Como se ela algum dia tivesse sido capaz de ser "qualquer uma".

— Ele era apenas alguém de passagem ― foi tudo o que disse. ― Tenho certeza de que agora já deve estar a meio caminho de Chicago, ou Nova York, ou seja lá qual for o seu destino.

— Não Nova York ― Jack intercedeu de repente. ― A não ser que ele tenha uma moto com o motor de um foguete.

— Poderia ser um motor nuclear ― Lisa intrometeu-se num tom de brincadeira, aproveitando aquela "deixa" para aliviar o clima. ― Aposto que qualquer pessoa pode pegar na internet os planos para construir um motor movido a energia nuclear.

— E provavelmente comprar tudo o que precisa para construí-lo na loja de departamentos da sua cidade.

— Não creio que isto seja motivo para brincadeiras ― Olivia falou com frieza, mas o momento de crise havia passado e todos sabiam disso.

Mais uma noite tranquila passada no seio acolhedor de sua família, Anne pensou. Levantou-se e começou a tirar os pratos de sobremesa. Tudo aquilo porque ela havia trocado umas poucas palavras com um homem a quem nunca mais veria. E não era ridículo que se sentisse triste com a ideia? Provavelmente ele acabaria se mostrando uma pessoa entediante. Qualquer homem que fosse tão bonito como ele certamente teria um ego do tamanho do Estado de Kansas. Ainda assim, ela permitiu-se um instante de fantasia e perguntou-se onde ele estaria agora.

 

Naquele exato momento Neill estava esvaziando sua mochila de lona sob os olhares atentos de Claudette Colbert e Bela Lugosi. Eles o observavam de seus respectivos cartazes, Colbert parecendo ardente e perigosa como Cleópatra, e Lugosi parecendo o sonho de um ortodontista tornado realidade em seu papel de Drácula. Era uma combinação interessante, Neill pensou, para a decoração de um quarto de motel. No entanto, mesmo conhecendo-a tão pouco, ele já podia dizer que sua senhoria temporária era uma mulher muito interessante.

Quando ficou claro que nada, exceto uma intervenção divina, faria com que a moto voltasse para a estrada ainda naquela noite, David Freeman lhe recomendara o Motel Dália Azul.

— A proprietária é a minha tia-avó Dorothy. Não tem nenhum luxo, mas é limpo e o preço é razoável. ― David tirou um trapo sujo de graxa do bolso traseiro, procurou um canto mais ou menos limpo e começou a limpar os dedos. Já era tarde e ele estava pronto para fechar a oficina. ― Para dizer a verdade, não temos muitas opções numa cidade deste tamanho. Gert Billings às vezes aluga o quarto extra de sua casa, mas ela está procurando um inquilino para ficar mais tempo do que você provavelmente ficará. Além disso, você é um pouco jovem demais.

— Para quê? ― Neill perguntou, confuso.

— Para Gert. Ela está procurando um marido desde que Willie morreu, uns dois anos atrás.

— Willie era o marido dela?

— Na verdade, era irmão. ― Ao ver que os olhos de Neill arregalavam-se, David riu. ― Willie era um tremendo "faz-tudo". Era capaz de consertar qualquer coisa, e a um preço muito baixo: um quarto, refeições e uma tevê colorida já faziam dele um homem feliz. Gert é um bocado pão-dura, e aquela casa velha onde mora está precisando de muitas reformas. Ela calcula que um marido seja a mão-de-obra mais barata, mas ainda não encontrou nenhum pretendente.

— Bem, por mais tentadora que seja a ideia de um quarto e refeições grátis, acho que posso resistir aos encantos de Gert.

— E não esqueça da tevê colorida.

— Isto torna ainda mais difícil rejeitar, mas creio que vou ficar no motel de sua tia-avó. ― Neill pegou a mochila que estava amarrada na traseira da moto. Enviou um olhar cauteloso a David, enquanto endireitava o corpo. ― Sua tia não está procurando marido, não é?

David sorriu e balançou a cabeça.

— Não. Ela enterrou tio Léo há quarenta anos e nunca demonstrou nenhuma inclinação para substituí-lo. É um tantinho excêntrica, mas vai tratá-lo bem. Diga-lhe que fui eu quem o mandou.

— Obrigado. ― Neill jogou a mochila nas costas e fez um gesto para a motocicleta. ― Quanto tempo acha que vai levar?

David já havia determinado que o problema na moto era uma válvula do motor, mas não tivera tempo de descobrir toda a extensão dos danos. Encolheu os ombros.

— É difícil dizer. Terei de desmontar o motor amanhã à tarde e verificar que peças que vou precisar.

Com um suspiro interior, Neill resignou-se ao fato de que não iria a parte alguma por pelo menos dois dias. E levaria quase o mesmo tempo para conseguir um transporte alternativo, caso a Indian não pudesse ser consertada rapidamente, o que parecia mais provável.

Seguindo as instruções de David, não teve problemas para encontrar o Motel Dália Azul. Parado na calçada, observou o local sem grandes expectativas. Havia passado tantas noites em quartos de motéis medíocres para impressionar-se com o jardim caprichado e a pintura recente. O nome do lugar estava escrito com letras de néon azul, com o pingo no "i" formando uma dália cheia de pétalas. Era um letreiro impressionante, especialmente considerando-se o prediozinho indefinido que encontrava-se numa cidadezinha indefinida, mas ele não permitiu que suas esperanças se elevassem demais.

Excêntrica. Neill lembrou-se da palavra quando abriu a porta que indicava a Recepção. David dissera que sua tia-avó era excêntrica. A experiência lhe ensinara que tal palavra poderia ser usada para descrever uma multiplicidade de condições mentais, que iam desde um maluco pouco convencional até a um doido varrido. A mulher que estava molhando um vaso de filodendros de aparência doentia não parecia encaixar-se em nenhum dos extremos da balança.

Neill calculou que ela devia estar em algum ponto da casa dos setenta anos, mas não havia nada de frágil nela. Os cabelos eram grisalhos, usados bem curtos em torno do rosto quadrado. O estilo prático combinava com a expressão franca e direta dos seus olhos azul-claros. O corpo baixo e rijo estava vestido com uma camisa azul e calça jeans desbotada. Ela parecia ter exatamente a aparência que Neill imaginaria para a esposa de um fazendeiro, exceto pelos sapatos: tênis vermelhos com reluzentes estrelas douradas, usados com meias listradas de vermelho e branco.

Nem as meias ou os sapatos teriam merecido um segundo olhar em lugares como Seattle ou Los Angeles, mas Neill supunha que numa cidade do tamanho de Loving aquele gosto por tênis coloridos era o bastante para rotulá-la de excêntrica.

— Você é Dorothy?

— Dorothy Gale. Está procurando um quarto? ― ela perguntou, não parecendo particularmente encantada com a possibilidade.

— Quero, sim. ― Neill ofereceu-lhe o sorriso que, tempos atrás, uma namorada lhe dissera que deveria ser registrado como uma arma mortífera. Sem impressionar-se, a mulher continuou olhando-o com a testa franzida. Suspirando, Neill abandonou o charme e decidiu tentar a abordagem direta. ― David Freeman disse-me que talvez você tivesse um quarto disponível.

— Não, ele não disse. ― Ela foi para trás do balcão e deixou o regador sobre ele. ― Não há nenhum "talvez" nesta história ― acrescentou, antes que Neill pudesse protestar sua sinceridade.

— Sempre tenho quartos disponíveis, exceto às vezes na época do Natal, e David sabe disso. ― Ela não parecia estar esperando uma resposta, o que era bom, porque Neill não tinha nenhuma.

— Quanto tempo pretende ficar?

— Ainda não sei. Até que minha motocicleta seja consertada, ou que possa arrumar outra condução. Uns dois dias. Talvez mais.

— Posso lhe dar um quarto com cama de casal e quitinete. ― Ela disse o preço, e Neill assentiu.

— Parece bom.

— Preencha isto aqui. Vou precisar de um cartão de crédito, ou pagamento à vista.

Neill tirou a carteira do bolso e entregou-lhe o cartão de crédito antes de pegar a caneta no balcão e começar a preencher o cartão que ela pusera à sua frente.

— Temos tevê a cabo ― Dorothy falou, enquanto passava o cartão dele pela máquina. Agora que ele era um hóspede oficial, parecia mais disposta a mostrar-se amigável. ― Com filmes vinte e quatro horas por dia. Você gosta de filmes?

— Não tive muito tempo para assisti-los nestes últimos meses ― Neill respondeu distraído, com a atenção voltada para a ficha.

— Não estou falando destas porcarias que fazem hoje em dia ― Dorothy disse, com tanta convicção que Neill olhou para cima. Ficou surpreso ao ver a intensidade com que ela o fitava. ― Espalham sangue e entranhas por toda a tela e chamam de terror, ou mostram um casal sacudindo-se na cama e chamam de erótico. Tolices. Pura bobagem. Não existe um só produtor de filmes, atualmente, que saiba o que está fazendo. Você sabe o que é "dália azul"?

Ela fez a pergunta com tal ferocidade que Neill não pôde evitar de pensar se a resposta errada lhe custaria o seu quarto. Mais tarde, concluiu que devia ter sido a pressão do momento que fez com que a antiga lembrança emergisse em sua mente.

— É o nome de um filme, não é? Com Alan Ladd? ― Ele realmente estava arriscando, mas havia um desafio nos olhos dela, um desafio que suavizou-se com a aprovação diante da resposta.

— Sim, com Alan Ladd, Veronica Lake e William Bendix. Estúdios Paramount, 1946. ― Dorothy forneceu a informação de um só fôlego. ― Escrito por Raymond Chandler. Agora eles chamam de "filme noir". Nós chamávamos simplesmente de um filme danado de bom, e deixávamos como estava. Quem é a sua atriz favorita?

A pergunta apanhou-o de surpresa, mas Neill não era estúpido. Abandonou Michelle Pfeiffer sem hesitação e fez uma busca em seus arquivos mentais por uma escolha mais aceitável. Um rosto exótico surgiu em foco.

— Gene Tierney.

— Fez alguns filmes muito bons ― Dorothy admitiu, resmungando sua aprovação. ― Nenhum filme de suspense jamais superou o "Laura".

— Com Dana Andrews, Clifton Webb e Vincent Price ― ele disse, pisando em terreno mais firme. Havia assistido ao "Laura" na tevê a cabo apenas alguns meses atrás.

Neill não conseguiu afastar a sensação de que Dorothy o estava testando para ver se ele merecia o quarto.

— Qual era o nome do personagem de Clifton Webb? ― ela perguntou, imediatamente destruindo quaisquer pretensões que ele tivesse de mostrar-se um especialista em filmes antigos.

Neill encolheu os ombros.

— Ele datilografava enquanto estava na banheira. Lembro-me disso.

— Waldo Lydecker ― ela esclareceu com um sorriso amigável que deixou claro que, se houvesse um teste, ele teria passado.

Uma hora mais tarde, pensando na conversa, Neill viu-se sorrindo. Dorothy não era exatamente acolhedora e prestativa, mas era interessante e havia um brilho de humor em seus olhos que sugeria que não recebera o título de "excêntrica" por acaso.

O quarto que ela lhe dera era maior do que ele esperava. A minúscula quitinete poderia ser útil caso ele decidisse esperar até que a moto ficasse pronta. A decoração, considerando-se a proprietária, era surpreendentemente normal, se não se contassem os cartazes de filmes que substituíam as inócuas gravuras habituais. No fim das contas, parecia ser um lugar bastante agradável para se passar alguns dias. Neill simpatizara com David Freeman logo de início e não via motivos para mudar de opinião, e sua senhoria prometia ser uma interessante companheira de conversas.

Era uma cidade pequena. Se ficasse por ali por tempo o bastante, provavelmente acabaria conhecendo a maioria dos habitantes. Talvez pudesse até cruzar com aquela linda loura dos olhos acinzentados. Anne. Não que pretendesse ficar ali apenas por isso, mas, quando a vida nos dá limões é melhor tentarmos fazer uma torta com suspiros e, sem dúvida, ela parecia bastante apetitosa.

 

Seria bem pouco provável que Loving aparecesse em alguma lista dos dez melhores lugares para se conhecer no Estado de Indiana. Uma cidade rural, cercada por campos de milho e trigo, e por toda a extensão da única avenida principal alinhavam-se a já esperada diversidade de estabelecimentos: uma mercearia, uns dois cafés, uma lojinha de pechinchas de aparência cansada. Havia um banco, uma imobiliária com um cartaz que anunciava seu funcionamento duas vezes por semana, incluindo um número de telefone para o caso de alguém que fosse atacado por um súbito impulso de comprar ou vender um imóvel e não conseguisse esperar até quinta feira ou sábado.

Era uma cidade bem parecida com muitas outras cidadezinhas em que Neill já estivera, um pouco mais próspera do que algumas. O único fato que a tornava famosa eram as milhares de cartas enviadas ao correio local na época do dia de São Valentino, o santo dos namorados, a fim de receber o selo comemorativo. Este era considerado um grande evento anual, exigindo que o correio contratasse empregados temporários. Neill recebera tal informação como uma cortesia de Dorothy, que estava molhando as plantas do jardinzinho do motel quando ele saiu, na manhã de quinta-feira.

Após um breve cumprimento, Dorothy quis saber se ele havia visto o "Prisioneiro de Zenda" na tevê a cabo.

— Só começou depois da meia-noite, mas vale a pena ficar acordado até tarde para assistir este filme. Não é a versão melosa que fizeram nos anos cinquenta, mas sim o original com Ronald Coleman e Douglas Fairbanks Jr. Este sim era um artista de filmes de ação.

Neill admitiu que já estava dormindo à meia-noite, mas pôde dizer, com sinceridade, que havia visto o filme e que gostara muito. Sua confissão de que nem mesmo sabia da existência de uma segunda versão aparentemente foi bem recebida. Ela sorriu, revelando uma fileira de dentes um tanto perfeitos demais. Naquela manhã Dorothy estava usando um short caqui que revelava os joelhos enrugados, uma camisa de mangas curtas e outro par de tênis vermelhos, embora nesses não houvesse nenhum brilho.

— Refilmagens quase sempre são um grande erro ― ela disse, com firmeza. ― Veja o filme "My Man Grodfrey", por exemplo. Não tenho nada contra David Niven, mas ele não era William Powell.

Neill assentiu, sentindo que estava pisando em terreno firme. Sem dúvida, David Niven e William Powell tinham sido duas pessoas diferentes.

— "Motim a Bordo" é outro exemplo. ― Dorothy apoiou-se no ancinho, estreitando os olhos contra a luz do sol. ― Não se pode dizer que a versão com Brando não teve algum valor, mas onde estava Charles Laughton?

— Morto? ― Neill sugeriu, hesitante, quando viu que ela parecia estar esperando uma resposta.

Houve um instante de silêncio, então Dorothy deu uma risadinha.

— Provavelmente. Você precisa tomar cuidado comigo quando começo a falar sobre filmes. Na verdade, é um hobby que tenho.

Neill arqueou a sobrancelha e tentou dar a impressão de que aquilo era novidade para ele, mas ela tornou a rir.

— Não banque o espertinho comigo. ― Dorothy tirou do bolso traseiro um boné com a inscrição "John Deere" na frente. Enfiando-o sobre os cachos grisalhos, encarou-o com uma expressão de agudo interesse. ― Então, fale-me sobre você.

Uma coisa que Neill aprendera desde que seu primeiro livro entrou na lista dos mais vendidos era a arte de falar sem dizer muito. Levara algum tempo para descobrir que autores de sucesso geralmente eram incluídos na mesma categoria de desastres de trens e visões de alienígenas, despertavam a curiosidade e inspiravam perguntas que logo ele cansou-se de responder. De onde você tira suas ideias? Como conseguiu ser publicado? Você realmente ficou rico escrevendo? E, a sua favorita: Eu li algum livro seu?, que sempre o fazia pensar se a pessoa que perguntava estaria confundindo-o com um vidente. Como diabos ele iria saber o que a pessoa havia lido?

Ele havia experimentado a mentira, nada encerrava uma conversa mais rápido do que o anúncio de que você trabalha numa funerária, e cozinheiros de lanchonete também não despertam muito interesse. Mas sempre havia a possibilidade de que o novo conhecido acabasse descobrindo a verdade, o que levaria a ressentimentos e possíveis recriminações. Assim, Neill desenvolveu uma habilidade de contar a verdade, ou parte dela, e fazê-la soar como entediante demais para merecer maiores discussões.

Quando despediu-se de Dorothy, ela sabia que ele era um escritor, mas foi deixada com a vaga impressão de que escrevia artigos para revistas técnicas. Ele lhe dissera que estava de férias, o que era verdade, e que não tinha nenhum plano específico, também verdade. Neill, por sua vez, ficara sabendo mais coisas sobre a sua senhoria, ouvira um breve resumo da história de Loving e recusara a oferta de ter um aparelho de vídeo instalado em seu quarto para que pudesse assistir a extensa coleção de fitas de Dorothy.

Quando Dorothy foi atender o telefone na Recepção, Neill calculou que tinham estado conversando por quase uma hora. Ela havia falado mais, e ele escutado, mas apreciara cada minuto. Como muitos escritores, Neill possuía uma curiosidade insaciável sobre as pessoas e lugares, e divertira-se com os comentários aguçados de Dorothy sobre a cidade e seus habitantes. Ao afastar-se do motel, sentia-se como se tivesse recebido um curso rápido sobre a política local, e achou graça em descobrir que era tão cheia de intrigas e debates como a política de qualquer cidade grande.

O Motel Dália Azul localizava-se numa travessa da avenida Signal, que era a rua principal de Loving. O luminoso de néon com a dália cheia de pétalas parecia ligeiramente desbotado à luz do dia. Havia carros estacionados diante de duas das doze unidades, e Neill perguntou-se se alguma vez o motel ficara completamente lotado. No Natal, talvez, concluiu, quando as pessoas voltavam para passar as festas com suas famílias.

Sem nada melhor a fazer, foi caminhando na direção do centro da cidade. Na verdade, não havia o bastante para considerar aquilo um "centro", ele pensou, passando por um salão de cabeleireiros e por uma farmácia. Os negócios eram todos do tipo "familiar", com vitrines simples e diretas, que davam mais enfoque à informação do que à decoração artística. Trocou cumprimentos com uma jovem mãe empurrando um carrinho de bebê, com um homem idoso e enrugado usando um macacão, com duas meninas que pareciam alegres demais para serem adolescentes, e com uma matrona de seios enormes, usando um vestido estampado que parecia ter sido feito na década de quarenta.

Túnel do tempo, ele pensou, parando na sombra de uma árvore cujos galhos pendiam para a calçada. Essa era a única explicação possível para o que estava vendo. Neill prendeu os dedos nos bolsos dianteiros da calça jeans e contemplou tal possibilidade. Faces sorridentes e amigáveis, pequenos negócios de família... obviamente ele passara por algum túnel do tempo e fora parar nos anos cinquenta. Ou talvez, considerando-se a sua senhoria, despencara num filme antigo.

Só lhe ocorreu que estava com fome quando viu que estava parado bem na frente de uma mercearia. "Mercearia do Bill", era o que estava escrito em grandes letras de forma no alto do prédio. Havia uma simplicidade encantadora nisto, uma recusa estóica de ceder àqueles que preferiam nomes elegantes ou rebuscamentos em seus letreiros. Depois de morar dois anos em Seattle, onde podia-se encontrar um "emporium" ou "mercado" de especialidades em cada esquina, havia algo de agradavelmente honesto naquele simples estabelecimento.

Neill tinha planejado almoçar em algum restaurante que encontrasse pela avenida, mas pensou na quitinete que acompanhava o seu quarto. Já fazia algum tempo desde a última vez em que preparara uma refeição para si mesmo, a não ser que contasse esquentar comida chinesa no microondas. Ele gostava de cozinhar, na verdade, passara alguns meses trabalhando como cozinheiro de lanchonete, e ocorreu-lhe que havia tempos que não colocava uma panela no fogo. Deixando-se levar pelo impulso, abriu a porta da Mercearia do Bill e entrou.

Anne pegou um melão e tentou lembrar-se de qual era o truque para saber se estava maduro. Será que era para ter um pontinho amarelado no lugar onde ficara apoiado, ou deveria fazer um barulho oco quando se dava batidinhas na casca? Ou isto era com as melancias? Havia alguma coisa que deveria parecer pesada demais para o seu tamanho... seriam melões ou alfaces?

— Tente cheirar a pontinha onde esteve o cabo ― uma voz masculina sugeriu, atrás dela.

Assustada, Anne virou-se e deparou com um par de sorridentes olhos azuis. O reconhecimento foi imediato. Era o desconhecido do posto de gasolina, aquele que ela presumira estar a meio caminho de algum lugar, naquele momento. A surpresa fez com que balbuciasse a primeira coisa que lhe veio à mente:

— O que está fazendo aqui?

— Comprando verduras ― ele respondeu, como se não houvesse nada de estranho em sua pergunta abrupta.

— Não, eu quero dizer, o que você... ― Anne calou-se e mordeu o lábio, sentindo o rosto ruborizar enquanto ouvia o eco das próprias palavras.

— Eu só... bem, pensei que você já estivesse... em algum outro lugar, agora.

— No corredor dos salgadinhos, talvez? ― Ele suspirou, parecendo arrependido. ― Escuto isso o tempo todo.

— Não, eu quis dizer em outro lugar. ― Anne acenou a mão, como se indicasse uma grande distância. ― Em outra cidade, outro Estado. Não sabia que iria ficar aqui. Em Loving.

— Isso não estava nos meus planos, mas parece que o conserto da minha moto ainda vai demorar alguns dias. O seu amigo David terá de procurar as peças.

— Ah, sinto muito. Espero que isso não esteja atrapalhando algum compromisso que você teria para hoje.

— É o que se ganha quando se tem uma motocicleta velha ― Neill falou, encolhendo os ombros. ― Não tenho nenhum compromisso, portanto não há problemas em ficar aqui por algum tempo.

Na verdade, naquele momento, o encontro inesperado começava a parecer bastante promissor. Ele havia pensado em Anne com seus grandes olhos acinzentados, lindo sorriso e pernas espetaculares várias vezes nas últimas vinte e quatro horas. Quando deu-se conta de que ficaria emperrado ali por um tempo, perguntara-se se seus caminhos tornariam a se cruzar. Afinal, aquela era uma cidade pequena e isso não estava fora dos limites da possibilidade. Quando a vira olhando para o balcão de melões com uma expressão tão séria, Neill sentiu que sua sorte estava em alta. Decidiu arriscá-la um pouco mais.

— Está na sua hora de almoço? ― perguntou, reparando que ela usava uma saia preta justa que terminava vários centímetros acima dos joelhos, e na blusa de seda lilás, cuja cor refletia-se em seus olhos.

Os sapatos pretos de salto alto elevavam aquelas pernas à perfeição, e os cabelos de tom dourado-escuro estavam presos num coque meio solto. Alguns cachinhos escapavam em torno da nuca, algo que ele achou ridiculamente tentador.

— Estou, sim. Eu trabalho no banco. ― Anne percebeu que continuava segurando o melão e virou-se para deixá-lo com os outros, aproveitando aquele instante para tentar controlar o nervosismo. Quando voltou-se para ele, sentiu que seu sorriso atingira o nível ideal de amigável distanciamento.

— Vou comprar algumas coisas e levar para casa.

— Almoce comigo ― ele convidou.

— O quê? ― Ela encarou-o com os olhos arregalados de surpresa. ― Eu... não posso.

— Por que não? Você precisa comer. Eu preciso comer. Por que não comemos juntos?

Por que não comemos juntos? Todos os motivos porque não ressoaram na mente de Anne e, finalmente, foram formulados num único protesto:

— Eu nem sei o seu nome.

— Neill Devlin ― ele falou, prontamente.

— Anne Moore.

A resposta dela foi automática, bem como o ato de aceitar a mão que ele estendia. Porém, teve de fazer um esforço para não pular sob a eletricidade que aquele simples toque produziu. Seus olhos fixaram-se no rosto dele, indagando se ele sentira o mesmo. Com o rosto afogueado, retirou a mão, resistindo ao impulso de esfregar os dedos contra a palma ardente.

— Agora que fomos apresentados, almoce comigo. ― O tom de voz dele era alegre, tranquilo, fazendo-a sentir-se ridícula por ter dúvidas, tola em recusar. Ao vê-la ainda hesitante, Neill esboçou um sorriso triste. ― Tenha pena de mim. Sou um estranho, numa terra estranha, e detesto comer sozinho.

Anne mordeu o lábio, considerando a ideia. Aquilo era loucura, evidentemente. Ela não fazia coisas desse tipo, almoçar com um homem desconhecido, mesmo se ele tivesse sorridentes olhos azuis e uma boca maravilhosa.

— Eu lhe disse como escolher um melão ― Neill lembrou-a. ― Almoçar comigo parece-me o mínimo que você pode fazer para retribuir este favor.

Um sorriso brincou nos cantos dos lábios dela.

— Melão é uma das minhas frutas preferidas.

— Bem, agora tornou-se um débito de honra ― Neill falou, solene. ― Definitivamente, você terá de salvar-me de um almoço solitário.

— Eu... há um restaurante de comida caseira aqui perto ― Anne falou devagar, sentindo uma excitação na boca do estômago.

Aquilo era loucura, naturalmente. Tal comportamento não fazia parte da sua personalidade. No entanto, nos últimos tempos, ela começara a achar que sua personalidade era um bocado maçante.

O Café Luanne parecia um cenário do filme "American Grafitti". O piso de linóleo em xadrez preto e branco, os bancos revestidos de vinil vermelho, alguns deles com remendos de fita adesiva, um comprido balcão de laminado cinza e as banquetas vermelhas. As paredes estavam cobertas de fotografias emolduradas de diversos times de futebol, indo desde o time "dente de leite" local até os profissionais de todo o país e, pela aparência dos uniformes, datando desde os anos quarenta.

Aparentemente os negócios iam bem, com todos os lugares ocupados no balcão e apenas uma mesa vaga. Neill ocupou-a, sentando na cadeira que dava para a porta, perguntando-se se a Anne dos lindos olhos cinzentos iria aparecer. Estava inclinado a pensar que sim, mas não apostaria o seu próximo pagamento nisso.

Ela era uma coisinha bem estranha, Neill pensou enquanto pegava um pacotinho de biscoitos salgados na cesta que estava na mesa e abriu o involucro. Não era exatamente tímida, mas sim... desconfiada. Como um gatinho que deseja ser acariciado, mas é cauteloso demais para chegar muito perto. Mas não fora imaginação sua a maneira como os olhos dela brilharam ao vê-lo e Neill sabia, sem nenhuma modéstia, que ela havia pensado nele uma ou duas vezes desde o breve encontro no dia anterior. Quando sugerira o almoço, ela quisera aceitar. Ele havia visto em seus olhos, também. No entanto, hesitara como se ele a tivesse convidado para um tórrido fim de semana juntos, o que, tinha de admitir, não parecia má ideia.

Neill confiava em seus instintos. Como escritor, tinha de confiar. Com muita frequência, principalmente quando estava iniciando um novo projeto, isso era tudo o que tinha. E seus instintos lhe diziam que havia muito mais em Anne Moore do que ela deixava revelar à primeira vista. Também lhe diziam que ela iria aparecer, ele pensou, sorrindo ao vê-la entrar pela porta.

Anne mordiscou o lábio enquanto seus olhos perscrutavam o restaurante, e Neill apanhou-se pensando em como ela reagiria caso ele se oferecesse para mordiscar-lhe os lábios para ela.

A expressão dela iluminou-se ao avistá-lo, e a boca curvou-se num sorriso tímido que, por algum motivo, fez com que Neill desejasse puxá-la para a mesa e beijá-la loucamente.

Sem dúvida, passei tempo demais sozinho, ele pensou, levantando-se quando ela se aproximou.

O gesto de antiquada delicadeza fez com que Anne ruborizasse de prazer, embora preferisse que ele ficasse sentado e menos notado. Quando concordara em almoçar com ele, não pensara sobre o fato de que não haveria lugar algum, exceto se fossem para outra cidade, onde provavelmente alguém a reconhecesse e se perguntasse quem seria aquele homem que a acompanhava. Além disso, a não ser que ele enfiasse um saco na cabeça, seria impossível que alguém não reparasse num homem como ele.

— Então, existe mesmo uma Luanne? ― ele perguntou quando Anne sentou-se à sua frente.

— O quê?

A pergunta inesperada deixou-a confusa. Nos dez minutos que se passaram desde que haviam se separado na mercearia, ela quase ficara doente perguntando-se o que diria a ele, o que ele lhe diria, tentando pensar em assuntos para a conversa. Porém, nenhum dos cenários fragmentados em sua imaginação havia começado daquela maneira.

— Luanne. ― Neill indicou com o dedo o nome estampado em letras pretas no cardápio vermelho. ― Existe uma pessoa com este nome, ou eles só inventaram para dar um ar de exótico mistério ao lugar?

— Exótico mistério? ― Anne arqueou a sobrancelha e, captando o humor nos olhos dele, esqueceu de ficar nervosa. ― Sim, posso entender como o nome Luanne evocaria imagens de terras exóticas e mulheres ardentes. Sinto muito decepcioná-lo, mas Luanne foi a primeira cozinheira deste restaurante, na década de quarenta e, segundo me contaram, era uma senhora negra de quase um metro e oitenta, magra como um caniço, que mascava tabaco e teve seis maridos.

— Todos de uma vez? ― Neill arregalou os olhos com uma expressão de choque exagerado, e Anne teve de esforçar-se para ficar séria.

— É claro que não. Estamos no Estado de Indiana, e aqui essas coisas não são permitidas. Ela divorciou-se uma vez e ficou viúva cinco vezes. ― Anne fez uma pausa, limpou a garganta e pressionou os lábios numa linha desaprovadora. ― Havia rumores, eu creio, de que nem todos os seus maridos partiram desta para melhor com muito boa vontade, se é que você me entende. Mas nada nunca foi provado, e tanto o xerife como o prefeito gostavam demais do ensopado de galinha que ela fazia e, por isso, talvez não se aprofundaram muito nas investigações.

— Eu sabia que devia existir uma história por trás de um nome como este. ― Neill abriu o cardápio e depois abaixou-o, fitando-a. ― O que aconteceu com ela?

— Receio que não tenha sido nada muito exótico. Ela comprou o restaurante no final da década de cinquenta, depois vendeu-o nos anos setenta e mudou-se para o Arizona, onde, pelo que sei, está às voltas com o décimo marido.

— Espero que sim. Detestaria pensar que uma mulher como essa tenha ficado reduzida a jogar bingo e ver novelas na tevê. É importante ter algum passatempo.

— De fato, parece que o passatempo dela foi ter sido dura demais com os maridos ― Anne salientou.

— Sim, mas um ensopado de galinha realmente excepcional vale uns poucos riscos ― ele retrucou pensativo, e ficou contente ao ver que ela ria.

Anne parecera nervosa, beirando o medo, quando entrara no restaurante, com os olhos fugindo dos dele. Porém, apesar de parecer tão pouco à vontade, ela fora encontrá-lo, e Neill achou interessante. Queria acreditar que havia sido o seu charme irresistível que a convencera, mas tinha a impressão de que ela tentava provar alguma coisa, fosse para si mesma ou para alguém, ainda não tinha certeza. E por que isso o interessava, não sabia. Ela... o deixava intrigado. Ao menos por enquanto, contentava-se com esta resposta.

Neill ergueu os olhos quando a garçonete vestida num uniforme cor-de-rosa parou ao lado da mesa. Aparentando vinte e tantos anos, com os cabelos louros e espessos e um corpo magro e anguloso, ela usava um anelzinho de brilhantes e uma aliança de ouro na mão esquerda, mas, a julgar pelo espalhafatoso convite em seus olhos pesadamente maquiados, era evidente que não acreditava que o casamento pudesse restringi-la. Seus olhos se encontraram e ela enviou-lhe um sorriso ardente.

— Gostou de alguma coisa, benzinho?

No que se referia a "cantadas", ele já ouvira piores, Neill decidiu, indiferente. Quinze anos atrás, provavelmente ele próprio passaria uma "cantada" tão ruim. Ora, quinze anos atrás ele poderia até ter-se sentido lisonjeado, talvez até mesmo tentado, embora preferisse pensar que mesmo com vinte anos seu gosto tivesse sido um pouco mais seletivo. Agora, no entanto, não podia evitar de achar a atitude da mulher um tanto patética e, considerando-se que ele estava acompanhado, certamente muito mal-educada.

— Acho que ainda vamos precisar de mais uns minutos. ― Neill lançou um olhar impassível para o que a mulher estava lhe oferecendo, e voltou a atenção para sua acompanhante. ― Anne?

Com o canto do olho, Neill viu a garçonete enviar um olhar de calculada indiferença para o outro lado da mesa. Ela já voltava-se novamente para a direção dele, quando pareceu registrar quem era a pessoa que ali estava. Quase caiu sobre a mesa, ao virar-se para encarar Anne.

— Anne? ― O ronronar enrouquecido deu lugar a um gritinho animado. ― Anne Moore?

— Olá, DeDe. ― Anne precisou de toda sua força de vontade para impedir-se de empalidecer. Ciente do olhar interessado de Neill, conseguiu esboçar o que esperava ser um sorriso distraído. ― Como vai?

— Tudo bem. ― DeDe continuou encarando-a, os olhos arregalados de incredulidade. ― Você está aqui... com ele? ― perguntou, como se precisasse de uma confirmação verbal para acreditar no que estava vendo.

— Estou, sim. ― Vendo que a simples afirmação não seria o bastante, Anne assentiu na direção de Neill. ― Este é Neill Devlin. Neill, esta é DeDe Carmichael. Nós estudamos juntas.

Neill cumprimentou-a com um sorriso educado, mas nem precisava ter-se incomodado. Segundos atrás a mulher o havia encarado com a mesma expressão de um gato espreitando um canário particularmente gordo. Agora, fitava-o com a expressão que reservaria para um alienígena de duas cabeças. Neill perguntou-se se deveria sentir-se ofendido, mas concluiu que estava mais interessado em saber por que DeDe achara tão extraordinário o fato de ele e Anne estarem juntos.

— Nós estudamos juntas ― DeDe ecoou, a cabeça agitando-se para cima e para baixo enquanto os olhos iam de Anne para Neill, depois voltavam novamente.

O silêncio prolongou-se. Os tênis cor-de-rosa de DeDe pareciam estar colados no piso de linóleo. Neill estava prestes a lembrá-la de que precisavam de mais tempo para decidir o que pedir, quando o irritante soar de uma sineta rompeu o silêncio bestificado.

— Ficou surda, DeDe? ― uma voz irascível gritou do outro lado do balcão. ― O pedido está pronto!

DeDe deu um pulinho de susto e franziu a testa.

— Já vou ― gritou por cima do ombro. Enviou mais um olhar especulativo para Neill e Anne e lançou-lhes um largo sorriso. ― Voltarei para anotar os seus pedidos ― prometeu, e Anne disse a si mesma que fora apenas a sua imaginação que fizera tais palavras soarem como uma ameaça.

Ela captou a pergunta nos olhos de Neill e soube que ele deveria estar especulando sobre a surpresa de DeDe em vê-los juntos. Considerou brevemente a possibilidade de contar-lhe que nunca saía com ninguém, o que era mais ou menos verdade. Mas não era toda a verdade, nem mesmo a parte mais importante dela e, além disso, não era algo de que podia orgulhar-se. Portanto, esboçou o que esperava ser um sorriso casual e abriu o cardápio.

— Os hambúrgueres daqui são excelentes.

Esperou que ele fizesse a pergunta que não queria responder, mas Neill limitou-se a arquear as sobrancelhas com surpresa e dizer:

— O quê? E o tal ensopado de galinha?

Neill gostaria muito de saber o que estava por trás da reação de DeDe, mas não pôde ignorar a expressão nos olhos de Anne, a súplica que provavelmente ela nem tinha consciência de estar fazendo. Assim, abafou a curiosidade, a maldição dos escritores, fingiu que a evidente incredulidade de DeDe não tivera nada de extraordinário, e dedicou-se a extrair um sorriso genuíno da sua acompanhante.

— Então, o que uma garota bonita como você está fazendo num lugar como este?

Os olhos dela arregalaram-se um pouco, com a surpresa e algo que poderia ser gratidão reluzindo nas claras profundezas azuladas. Neill pensou que jamais conhecera alguém cujas emoções fossem tão transparentes. Tudo se refletia naqueles olhos.

— Eu nasci e fui criada aqui. ― Anne fechou o cardápio e deixou-o sobre a mesa, ajeitando-o com todo cuidado, mantendo os olhos fixos na tarefa porque era bem mais seguro do que olhar para ele. ― E quanto a você?

— Eu não nasci nem fui criado aqui ― ele respondeu, balançando a cabeça.

O tom de voz sério fez com que ela o fitasse. Captando o sorriso naqueles olhos impossivelmente azuis, ela viu-se sorrindo livremente. Apesar do nervosismo que lhe comprimia o estômago, Anne decidiu que iria desfrutar daquele momento sem preocupar-se com o fato de que DeDe Carmichael era a maior fofoqueira da cidade e que ao final do dia, todos que estavam interessados e uns poucos que não estavam, saberiam que Anne Moore havia sido vista almoçando com um completo desconhecido.

— E eu que pensava que você fosse um nativo.

— Acho importante tentar absorver a cultura nativa, sempre que possível ― ele disse, com um ar pedante.

— Pois está fazendo um bom trabalho ― ela assegurou-o. ― Onde você mora?

— Mais recentemente? Em Seattle, nos últimos dois anos.

— E a região do nordeste do Pacífico é tão bonita quanto parece nas fotografias?

— Há um bocado de verde ― Neill respondeu, sem muito entusiasmo. ― Ainda não descobri como pode existir tanto verde se quase nunca faz sol. Se algum dia a região esquentasse, acho que seria como viver dentro de uma sauna. Por enquanto, é apenas gelada, úmida e... verde.

— Então, por que ficou morando lá por dois anos? ― Anne perguntou, sorrindo diante da descrição pouco entusiasmada.

— Trabalho ― ele disse, olhando em volta à procura de DeDe e seu uniforme cor-de-rosa, esperando que ela lhes fornecesse uma distração antes que Anne perguntasse qual era o trabalho dele.

Mas DeDe estava no outro lado do balcão, discutindo com o cozinheiro. E Anne já estava lhe fazendo a pergunta óbvia.

Que tipo de trabalho você faz?

— Sou escritor ― ele respondeu, pronunciando as palavras com um leve descaso. Não queria falar sobre isso.

— É mesmo? ― Anne encarou-o, ligeiramente incrédula. ― Você não parece um escritor.

O comentário o surpreendeu.

— E com o que um escritor se parece?

— Mais... intelectual. ― O sorriso naqueles olhos azuis intensificou-se e ela encolheu os ombros, sorrindo também. ― De óculos, talvez. Ombros encurvados. Uma expressão meio vaga.

— Acho que você está confundindo escritores com professores distraídos ― Neill falou, com uma risadinha.

— Pode ser.

Certamente o homem sentado diante dela estava o mais distante possível de tal imagem, Anne pensou, permitindo que os olhos se demorassem naqueles ombros largos. Imaginou como ele ficaria sem camisa. O peito seria sedoso ou recoberto com uma camada de pêlos escuros e crespos? Podia ver o contorno dos músculos sob a fina malha de algodão da camiseta, e imaginou como seria senti-los sob as mãos. Captando o olhar interrogativo dele, Anne sentiu as faces arderem e amaldiçoou sua pele tão clara, que tornava impossível esconder o rubor. A fim de distraí-lo, e aos seus próprios pensamentos instáveis, apressou-se em dizer:

— Então, o que você escreve?

Neill hesitou um momento, antes de responder. Se lhe dissesse o que escrevia, haveria uma chance de ela relacionar N.C. Devlin, o famoso escritor com Neill Devlin, o motociclista desgarrado. E com isso, as coisas iriam mudar. Anne não lhe parecia o tipo que corre à procura de uma caneta para pedir um autógrafo, mas a fama sempre modifica as coisas. E, embora ele não pudesse dizer por que isso importava, não queria ver a expressão dos olhos dela mudar de interessa para curiosidade.

— Não sou um escritor de ficção ― respondeu encolhendo os ombros levemente. ― Já escrevi artigos sobre uma variedade de assuntos, como plantar e cultivar roseiras, dez "dicas" para comprar uma escada, este tipo de coisas.

Aquilo não deixava de ser verdade. Neill passara alguns anos escrevendo como "freelance". tendo os mais estranhos empregos enquanto utilizava todo seu tempo livre para escrever o "Estranho Vizinho", seu primeiro livro e, graças a sorte e aos caprichos do mundo editorial, o seu primeiro sucesso. Não havia mentido, disse a si mesmo em resposta à pontada na consciência, mas ficou grato pela interrupção fornecida pela súbita chegada de DeDe, com seu uniforme cor-de-rosa, sombra azul e tudo o mais.

— Já escolheram? ― ela perguntou, o lápis posicionado no bloquinho de pedidos, os olhos ávido de curiosidade.

Anne pediu uma salada e ficou ouvindo cobiçosamente enquanto Neill pedia um hambúrguer, batatas fritas e um milk-shake. Era uma das grandes injustiças do mundo o fato de que os homens podem esbaldar-se em trilhões de calorias sem engordar nem um grama, enquanto que para as mulheres basta passar na frente de uma confeitaria para ficarem mais gordas.

Ele não queria falar sobre seu trabalho, ela pensou enquanto bebia um gole de água. Não era difícil de entender. Anne nunca conhecera nenhum escritor, mas sabia que a maioria deles tinha sorte se conseguia ganhar o bastante para sobreviver. E era evidente que ele encontrava-se neste limite. A calça jeans gasta e desbotada poderia ser apenas uma questão de estilo, mas ele havia mencionado que a motocicleta era velha, que teria de esperar até que as peças fossem encontradas. Sua mãe já o teria rotulado de fracassado, mas Anne admirava qualquer pessoa que tivesse um sonho e estivesse disposta a lutar por ele.

— Ouvi dizer que o campo editorial é muito competitivo ― ela falou, quando DeDe afastou-se relutantemente com os pedidos.

— Pode ser.

— Mas vale a pena, se você estiver fazendo o que gosta.

O tom era encorajador, a expressão nos olhos dela era de simpatia, e Neill sentiu um violento beliscão em sua consciência. Era óbvio que ela chegara à conclusão de que ele era um escritor "freelance" que lutava para manter-se à tona. Quase lhe contou a verdade naquele mesmo instante, mas conteve-se no último minuto. Que diferença faria o que ela pensava? De qualquer forma, ele iria embora dali a dois dias e, se lhe contasse agora provavelmente ela se sentiria ridícula por ter tentado encorajá-lo.

— Então, onde morou, antes de Seattle? ― Anne perguntou, achando melhor mudar de assunto, desde que era evidente que ele sentia-se envergonhado pela falta de sucesso na profissão que escolhera.

A vulnerabilidade que isso revelava o tornara bem menos assustador. Anne recostou-se na cadeira e sorriu, subitamente sentindo-se quase à vontade com ele.

Anne já fizera mais refeições no Luanne do que seria capaz de contar. Podia lembrar-se de quando seu pai a levava ali, quando era pequena, algum tempo antes que ele mergulhasse tão completamente para dentro de si mesmo. Eles sentavam-se numa das mesas e as refeições eram sempre interrompidas pelas pessoas que paravam para cumprimentar o Dr. Moore. Em raras ocasiões, sua mãe os acompanhava, embora sem nunca deixar de mencionar algum restaurante que ela conhecia em Atlanta e o quanto lá a comida e o ambiente tinham sido bem melhores. Poucas pessoas paravam para conversar, quando Olivia estava com eles.

Quando Anne ficou um pouco mais velha, Jack às vezes condescendía em levar a irmãzinha para comer um hambúrguer ou uma fatia de torta. Ele preferia sentar no balcão, o melhor lugar para flertar com as garotas que estivessem por ali. Jack nunca ralhara com ela por estar girando na banqueta, e sempre a deixava pedir o que quisesse, sem lhe dizer que seus olhos eram maiores do que a barriga.

Os poucos namorados que Anne tivera na época do colegial sempre acabavam levando-a para o Luanne. Numa cidade onde não havia nenhum shopping center nem um McDonald's, o restaurante era a única opção para os adolescentes locais. Na primeira vez em que Frank Miller a convidara para sair, pouco menos de um ano atrás, ele a levara ao Luanne. Desde então, com a precisão de um cronômetro, seus encontros semanais alternavam-se entre o Luanne e o Barney's Bar e Grill.

Em todas as vezes que estivera ali, Anne não lembrava-se de realmente conversar com quem quer que a estivesse acompanhando. Seu pai sempre fora um homem de poucas palavras, seu irmão interessava-se mais pelas garotas, e Frank... Bem, Frank não era muito de conversar.

Naquele almoço de quarenta e cinco minutos, ela havia conversado mais com Neill Devlin do que em seis meses de jantares com Frank. Ele a fizera rir com suas histórias sobre os horrores de uma viagem de moto através do país, como o motel onde ficara em Wyoming, onde acordara no meio da noite quando um dos vizinhos enfiara o punho pela parede bem acima da sua cama. E aquele em Nebraska, onde o encanamento era tão enferrujado que a água que saiu do chuveiro o fez sentir-se como se fosse um figurante de um filme de terror.

Rindo, Anne balançou a cabeça.

— Você não terá de preocupar-se com essas coisas, enquanto estiver aqui.

— Com as brigas ou com a ferrugem no encanamento? ― Neill perguntou, despejando "ketchup" nas batatas fritas.

— Com nenhum dos dois. ― Anne comeu uma porção da salada, tentando não pensar em como o hambúrguer e as batatas fritas dele pareciam bons. ― Dorothy é muito rigorosa. Brigas e ferrugem não são permitidas.

— Quando me registrei no motel, me senti como se estivesse participando de um programa de tevê de perguntas premiadas. Qual será o motivo da mania de Dorothy por filmes?

— Ah... ― O riso cintilou nos olhos dela. ― Os sapatos que ela usa deveriam ter-lhe dado uma pista.

— Os sapatos? ― Neill franziu a testa. ― Os tênis vermelhos, com ou sem estrelas douradas?

— Todos os sapatos dela são vermelhos. E, é claro, há o nome dela: Dorothy Gale. ― Vendo que Neill continuava sem entender, Anne balançou a cabeça com desaprovação. ― E óbvio que não está se lembrando de "O Mágico de Oz".

— "O Mágico de..." ― Neill começou a sorrir. ― Você está brincando, certo?

— Certamente que não. O filme estreou no dia em que Dorothy completou oito anos. Elas tinham o mesmo nome, e Dorothy tinha até uma tia chamada Em. As semelhanças tiveram uma influência poderosa. E, pelo que sei, ela passou a usar sapatos vermelhos desde aquela época.

— Diga-me que ela tem um cachorro chamado Totó ― Neill pediu.

— Um gato, na verdade. ― Anne sorriu, ao vê-lo rir. ― Ela não gosta de cachorros mas, no decorrer dos anos, teve muitos gatos, todos chamados Totó.

— Eu adoro isso! ― Neill reparou que Anne olhava para o seu prato e, pegando uma batata frita, ofereceu-a por cima da mesa. ― Experimente uma.

Anne inclinou-se para a frente sem pensar, dando-se conta da intimidade distraída do momento apenas quando a batatinha crocante tocou-lhe os lábios. Idiota, pensou. Ele esperava que você a pegasse com a mão, e não que tivesse de colocá-la em sua boca. Agora, vai pensar que você é uma completa imbecil. Mas era tarde demais para afastar-se com um mínimo de dignidade, portanto ela abriu a boca e aceitou a batatinha.

Apesar da sua determinação em não fazê-lo, olhou para ele ao se afastar e o calor que viu nos olhos dele deixou bem claro que Neill não estava exatamente preocupado com seu Q.I. Ninguém jamais a olhara daquela maneira, como se estivesse contemplando a possibilidade de mordiscar qualquer parte de seu corpo que estivesse à mão. Sentindo o pulso acelerar-se ela baixou os olhos, mantendo-os fixos em sua salada enquanto tentava pensar em algo neutro para dizer.

— Pensando bem, pode-se dizer que felizmente Dorothy não teve o mesmo nome que Bela Lugosi ― Neill falou, quebrando o silêncio antes que este se tornasse incômodo. ― Sapatos vermelhos são uma excentricidade aceitável, mas seria complicado andar o tempo todo com uma capa, principalmente no verão.

Anne riu um pouco mais do que o comentário merecia, esperando que ele não percebesse que suas faces estavam vermelhas.

Foi assim que David Freeman encontrou-a quando encaminhou-se para a mesa, rindo, o rosto delicadamente ruborizado. Ele hesitou, sua expressão imobilizando-se subitamente. Conhecera Anne por toda sua vida, e nunca a vira daquele jeito. Olhando para o homem que a acompanhava, não teve muito trabalho para adivinhar o motivo daquelas cores no rosto de Anne e do brilho em seu olhar. Ela parecia... feliz, ele pensou, e somente vendo-a daquela maneira o fez dar-se conta da tristeza que normalmente existia em seus olhos.

Com um ar pensativo, aproximou-se da mesa.

— Olá, Anne.

— David! ― O sorriso dela modificou-se, tornando-se constrangido. ― Não o vi por aqui.

— Acabei de entrar para pegar meu almoço. ― David assentiu para Neill. ― Pretendia passar no motel mais tarde, para lhe dizer o que descobri a respeito da moto. Neill fez uma careta.

— Isto está me soando um tanto sinistro.

— Meu Deus, eu nem percebi que já era tão tarde. ― Anne olhou no relógio e imediatamente começou a se levantar. ― Eu tinha de voltar ao trabalho há vinte minutos. ― Hesitou pelo tempo bastante de enviar um sorriso rápido e tímido para Neill. ― Gostei muito de conversar com você. Boa sorte com sua moto.

Antes que Neill pudesse dizer algo corriqueiro como "Que tal jantarmos esta noite" ou "Você gostaria de criar os meus filhos?", ela já corria na direção da porta. A força de sua urgência em segui-la obrigou-o a ficar onde estava. Em breve ele estaria partindo, lembrou-se. Partindo para a Flórida, onde derreteria sob o sol. Sem planos, sem compromissos. Principalmente sem compromissos.

— Então, qual é o caso com as peças? ― perguntou a David, enquanto levantava-se e pegava a carteira no bolso.

David havia se virado para observar a saída de Anne. Quando voltou-se, havia uma expressão em seus olhos que Neill não conseguiu captar, um tipo estranho de vigilância e algo que poderia ser uma pergunta.

— Bem... O conserto pode levar algum tempo ― ele respondeu, devagar. ― As peças para as motocicletas Indian não são muito fáceis de se encontrar. Tenho dois fornecedores. Um deles acha que poderá conseguir o que precisamos, mas levará alguns dias antes de saber com certeza.

— Alguns dias? ― Neill olhou por sobre o ombro para as grandes janelas e a rua lá fora. Mayberry, pensou, vendo uma antiga caminhonete azul passar ruidosamente. Eu vim parar em Mayberry.

— Isso é um problema? ― David perguntou. ― Você está com pressa de chegar em algum lugar?

Anne lhe perguntara mais ou menos a mesma coisa, Neill lembrou-se.

— Não. ― Ele balançou a cabeça lentamente. ― Não, na verdade eu estava até matando o tempo.

Ele não precisaria ficar, pensou. Bastava dar um telefonema e um carro viria buscá-lo. Seu irmão estava em Chicago, a poucas horas de distância. Se tivesse dificuldade em conseguir um carro, provavelmente conseguiria convencer Tony a vir em seu socorro. Apenas mais algumas horas, no dia seguinte, no máximo, e ele estaria novamente em seu caminho. Não precisava ficar.

— Não há problema algum ― ouviu-se respondendo. ― Acho que posso matar o tempo aqui tão bem quanto em qualquer outro lugar.

 

— Você almoçou com o bonitão? ― Lisa enrolou o pedaço de fita de veludo púrpura que acabara de cortar e olhou para Anne com incredulidade. ― Almoçou com ele, de verdade?

— Sim, no Luanne ― Anne confirmou, tentando mostrar-se indiferente.

As duas estavam sentadas no estúdio de Lisa, que ficava numa pequena loja espremida entre o salão de cabeleireiros Betty e o escritório do jornal local. Ela poderia ter montado o estúdio de trabalho na casinha que alugara quando voltara para Loving, mas decidira que se fosse para transformar em um negócio a sua habilidade de fazer chapéus decorativos e acessórios, precisaria ter um local certo de trabalho. Usava a lojinha estreita e comprida como uma espécie de oficina, trabalhando no horário comercial e, embora não precisasse vender a varejo, a porta estava quase sempre aberta e várias vezes por dia as pessoas entravam para ver as novidades que ela estava criando.

Ela gostava de companhia, dissera quando Anne lhe perguntara como conseguia trabalhar com gente observando-a, conversando com ela e maravilhando-se com o fato de haver pessoas dispostas a pagar um bom dinheiro por um chapéu que nem mesmo iriam usar. Vez por outra alguém lhe trazia coisas que havia encontrado no porão ou guardadas em algum armário, coisas como frutas de plástico, flores artificiais, animais feitos com pinhas coladas umas nas outras. Lisa aceitava de bom grado todas as doações, guardando-as nas prateleiras já abarrotadas que cobriam três paredes do estúdio. Fitas, rendas, velhas garrafinhas de remédios cheias de contas, cestas cheias de penas, peças de tecidos e potes antigos repletos de botões misturavam-se num alegre e colorido caos, mas, a despeito da falta de qualquer coisa que se assemelhasse à organização. Lisa normalmente era capaz de encontrar todos os itens que desejasse.

Aquela bagunça colorida era tão típica de Lisa, Anne pensou. Naquela noite, sua amiga estava usando uma calça jeans tão velha que os buracos nos joelhos nada tinham a ver com a moda, e uma blusa de seda que reluzia com enlouquecidos borrões de cores. Estava descalça, exibindo as unhas pintadas de vermelho-vivo. Os luminosos cabelos vermelhos estavam presos no alto da cabeça, num coque descuidado preso apenas com um lápis amarelo. Enormes argolas azuis pendiam de suas orelhas, e a armação dos óculos de leitura que pendiam na ponta de seu nariz também era azul. Ela parecia um misto de cigana e professora primária. Com a simples calça jeans e camiseta branca que vestira depois do trabalho, Anne sentia-se como uma foto em branco e preto ao lado de um filme revelado em tecnicolor.

— Quer me contar a história novamente? ― Lisa pediu, olhando-a por cima dos óculos.

— Eu almocei com o bonitão da oficina. ― Um sorriso estragou a tentativa de Anne de parecer blasé. ― Eu estava escolhendo melões na mercearia do Bill, e ele apareceu de repente dizendo que eu deveria tentar cheirar a fruta para descobrir se estava madura.

— Um bonitão que entende de frutas... Uau! ― Lisa parecia devidamente impressionada. ― Então vocês cheiraram juntos alguns melões e, depois, você saiu para almoçar com ele?

— Na verdade, desisti dos melões ― Anne falou. Nem mesmo para Lisa ela admitiria que, parada ali, com os impressionantes olhos azuis de Neill Devlin fitando-a, quase nem se lembrava mais do que era um melão.

— Não acredito que você nem tenha me ligado para contar tudo. ― Lisa enviou-lhe um olhar de recriminação. ― Eu poderia ter ido "por acaso" até o Luanne e dado uma espiadinha no bonitão.

— Foi um almoço, e não um show de exibição ― Anne falou, apanhada de surpresa por uma ligeira irritação.

— Ah, mas ele é tão "exibível" ― Lisa ronronou, e a irritação de Anne transformou-se numa risada.

— DeDe Carmichael certamente pensou a mesma coisa. ― Anne escolheu uma jujuba na compoteira de cristal que estava na mesa e enfiou-a na boca.

— Ela fez aquele truque com os olhos? ― Lisa inclinou a cabeça para o lado e pestanejou numa perfeita imitação do olhar sedutor de DeDe.

— Sim, e o truque dos quadris, também. ― Anne deslizou para fora da banqueta e recostou-se na mesa.

— Ah, sim, aquele. ― Lisa assentiu e pegou novamente o pedaço de fita púrpura. ― Não sei de onde ela tirou a ideia de que fica sexy quando faz estas coisas. Acho que fica parecendo com um camelo descontrolado.

Anne balançou a cabeça.

— Nenhum camelo usaria tanta maquiagem.

— Um camelo não precisaria usar tanta maquiagem.

Trocaram um olhar e começaram a rir.

— Não há nada como uma boa maldadezinha para abrir o apetite ― Lisa falou, pegando um punhado de jujubas. ― E então, o que o bonitão ainda está fazendo na cidade? E ele tem nome?

— Ele se chama Neill e, ao que parece, aquela moto dele é um bocado velha. Não sei o que há de errado com ela, mas David terá de procurar as peças que quebraram. ― Anne reclinou-se na mesa e escolheu uma jujuba com sabor de uva. Mordeu-a cuidadosamente no meio antes de continuar: ― Ele está hospedado no Dália Azul.

— Bem, nesta cidade ou ele fica lá ou dorme num banco de jardim.     Lisa começou a dobrar a fita de veludo, formando um laço. ― E come ele é, visto mais de perto?

Como ele era? Anne hesitou, antes de responder. Dificilmente poderia dizer que ele era o homem mais atraente que já conhecera, ou que, quando a olhava, provocava uma sensação de arrepio em todo seu corpo. Lisa sem dúvida acabaria tirando as conclusões erradas, se lhe dissesse essas coisas. Provavelmente as tiraria de qualquer forma, mas não fazia sentido ajudá-la nisto.

— Ele é... interessante ― respondeu afinal, mas depois começou a rir diante do olhar de desgosto que a amiga lhe enviava. ― Está bem, ele tem um sorriso maravilhoso, uns olhos azuis indescritíveis, e é realmente sensual, para quem gosta do tipo alto, esguio e musculoso.

— E será que existe alguma mulher neste mundo que não goste desse tipo?

— Talvez não. Mas ele também é interessante e tem um ótimo senso de humor. Nós rimos bastante. É um ótimo contador de histórias. Ah, e é um escritor ― acrescentou, lembrando-se. Franzindo a testa levemente, comeu a outra metade da jujuba. ― Não creio que seja um escritor de sucesso, pois pareceu pouco à vontade quando toquei neste assunto, e nem quis esticar a conversa. Normalmente, quando um homem tem uma carreira de sucesso mal pode esperar para lhe falar sobre isso.

— Ou lhe contar algumas mentiras ― Lisa concordou. ― Então, quanto tempo ele vai ficar na cidade?

— Não faço ideia. ― Anne não se deixou enganar pelo tom casual da pergunta. ― E, antes que você pergunte, também não sei se tornarei a vê-lo. Ele não me disse nada.

Mas, naturalmente, ela não lhe dera a chance de dizer, da maneira como saíra do restaurante quase correndo. Mas seria pouco provável que ele mencionasse um outro encontro, mesmo se ela não tivesse ido embora tão abruptamente, Anne disse a si mesma. Ela não era o tipo de mulher a quem Neill Devlin ficaria desesperado para reencontrar. Não que não fosse razoavelmente atraente, de maneira geral, mas um homem como aquele estaria procurando algo mais do que uma loura baixa e curvilínea, com um sorriso amigável e pernas um pouco melhores do que a média. Com um suspiro inconsciente, Anne escolheu outra jujuba e comeu-a.

Lisa estivera observando as expressões que perpassavam o rosto de Anne e seguindo seus processos mentais com razoável exatidão. Como Neill, ela jamais conhecera alguém cujas emoções fossem tão facilmente percebidas. Ou que se menosprezava tão completamente.

— Por que você não vai vê-lo no motel? ― Lisa sugeriu num tom distraído, mantendo os olhos fixos em seu trabalho.

— Não posso fazer uma coisa destas ― Anne falou, chocada. ― Não quero que ele pense que eu...

— Está interessada? ― Lisa arqueou a sobrancelha. ― Acha que ele ficará ofendido com isso?

— Sim. Não. Como posso saber o que ele vai pensar? ― Anne retrucou, exasperada. ― Nem mesmo o conheço.

— E, provavelmente, nunca o conhecerá se não demonstrar que está interessada.

— De que adianta isso, se ele vai embora assim que a motocicleta estiver consertada?

— E daí? Ai! Que droga! ― Lisa levou o dedo à boca e sugou o lugar onde a agulha o espetara. Olhou para Anne por cima do dedo machucado, os olhos aguçados de impaciência. ― Não estou sugerindo que você durma com ele ― disse. ― Apenas que dê uma passadinha no motel, e se ofereça para... levá-lo a conhecer os arredores, talvez.

— Não há nada para se conhecer, por aqui.

— Bem, invente alguma coisa. ― Satisfeita ao ver que o sangramento no dedo cessara. Lisa retomou o trabalho. ― A questão é, não lhe faria mal algum passar uns dois dias em companhia de um homem atraente que não tenha nascido e passado a vida inteira nesta cidade. O fato de que ele irá embora em breve talvez seja até bom, pois assim não terá tempo de se tornar aborrecido.

Lembrando-se de como o tempo parecera voar durante o almoço, Anne achou difícil imaginar que Neill se tornasse aborrecido mesmo se o conhecesse melhor. Tinha a inquietante sensação de que o verdadeiro problema seria exatamente o oposto.

— Se você não tomar cuidado, acabará se casando com Frank Miller, por absoluta falta de opções ― Lisa continuou, encarando-a por cima dos óculos. ― É isso que ele está querendo, e você sabe. Com aquele jeito metódico e sem graça, Frank está cortejando você. Mais uns dois ou três anos de jantares e, provavelmente, ele estará pronto para pedi-la em casamento. E, se não fizer alguma coisa a respeito, você acabará aceitando apenas porque ele está ali, e porque não pode pensar em nenhum motivo que a impeça de aceitar.

— Não há nada de errado com Frank. ― O protesto de Anne não foi muito enfático. Na verdade, ela mesma já pensara em tudo aquilo.

Lisa assentiu.

— Frank é um homem decente, e Jack diz que é um bom policial. Mas também é mais previsível do que um relógio e quase tão interessante quanto. E o tipo de sujeito digno que deveria casar-se com uma mulher digna e ter montes de filhos dignos, que serão tão entediantes quanto ele. Eu detestaria vê-la cair nesta armadilha.

— Não sou digna o bastante? ― Anne perguntou, o sorriso disfarçando o medo que sentia ao ouvir a nítida descrição do quadro que Lisa pintava.

Era bem fácil imaginar-se numa casinha decorada com capricho, com três ou quatro miniaturas de Frank enfileiradas e vestidas com todo esmero, todas encarando-a com a mesma expressão calma e serena. Não era uma imagem reconfortante. Ela balançou a cabeça, querendo afastá-la, e decidiu que estava na hora de mudar, de assunto.

— Por falar em casamentos dignos, você e Jack irão arriscar-se a ficar noivos, ou vão agir com mais inteligência e fugir para casar em Las Vegas?

Lisa lhe dissera que ela e Jack estiveram falando sobre o casamento, e Anne esperava que o comunicado, ou a fuga, acontecesse a qualquer momento. Imaginou ter feito uma pergunta inocente, mas arrependeu-se no instante em que viu um lampejo de mágoa perpassar os olhos de Lisa, e em seguida a sua expressão fechar-se.

— Talvez nenhum dos dois. Nem mesmo tenho certeza de que temos um compromisso.

Lisa encolheu os ombros, indicando que isso pouco lhe importava. Cortou mais um pedaço da fita de veludo, mas suas mãos não estavam firmes e ela deixou a fita cair em seu colo.

Anne fitou-a, desconcertada. Nunca havia visto Lisa tão... derrotada.

— Eu... sei que não é da minha conta, mas se quiser conversar a respeito... Jack é meu irmão, mas você é a minha melhor amiga. Se acha que ajudaria um pouco conversar... Se vocês discutiram...

— Se discutimos? ― Lisa arqueou a sobrancelha. ― Você não conhece muito bem o seu irmão, se acha que é possível discutir com ele. Jack simplesmente se esquiva, sem concordar nem discordar, deixando-me a opção de esquecer o assunto ou ficar falando sozinha.

Anne mexeu-se desconfortavelmente e tentou pensar no que dizer. Poderia ter salientado que, se Jack fosse assim como Lisa estava descrevendo, talvez fosse porque aquela era a maneira mais fácil de lidar com a mãe, mas não se sentiu à vontade para fazê-lo.

— Eu lhe disse que acho que ele está bebendo demais ― Lisa falou, abruptamente.

Anne encarou-a, chocada. Qualquer que tivesse sido o motivo da briga, não poderia ser este.

— Jack não... Não posso imaginar porque você acha que ele está com este tipo de problema.

— Meu ex-marido era alcoólatra. ― Agora que desabafara. Lisa parecia extremamente calma. ― Eu conheço os sintomas, e seu irmão tem a maioria deles.

— Eu não reparei em nada de anormal. ― Inquieta demais para ficar parada, Anne desceu da banqueta e deu alguns passos pela sala, parando diante de uma prateleira repleta de fitas. ― Pode ser que o fato de seu ex-marido ter sido um alcoólatra a tenha deixado um pouco paranóica.

— Quantas taças de vinho você bebeu no jantar de ontem? ― Lisa perguntou.

— Nenhuma. Não gosto muito de vinho.

— Eu também não bebi nada, e tampouco o seu pai. Sua mãe bebeu uma taça. Jack acabou com a garrafa. Ele já havia tomado algumas doses de uísque antes do jantar. Aliás, desconfio que tenha bebido mais umas duas, antes de sair de casa, a fim de criar coragem para enfrentar a provação.

Anne mantinha os olhos fixos num peixinho bordado de lantejoulas coloridas, que estava enfiado entre as peças de fitas e um montinho de cascas de amendoim. Não queria acreditar no que Lisa estava dizendo, não apenas pelo bem de seu irmão, mas pelo que isto revelava acerca do seu relacionamento com ele. Você não conhece muito bem o seu irmão, Lisa dissera. E talvez estivesse certa.

— Pode ser que ele tenha bebido um pouco demais ontem à noite, mas você sabe como é a minha mãe. Ela odeia o fato de ele ser um policial e de estar...

— Saindo comigo ― Lisa terminou a frase, quando Anne hesitou. Sorriu com uma pontinha de amargura ao ver o olhar de desculpas da amiga.

— Ela não faz segredo disso. Felizmente não sou uma pessoa muito cheia de "sensibilidades", portanto nem escuto o que ela diz.

— Ela não tem a intenção de...

— Tem, sim. ― Lisa fez um gesto com a mão. ― Mas a opinião de sua mãe nunca fez nenhuma diferença para mim.

O que, provavelmente, é um dos motivos para ela odiá-la, Anne pensou. A indiferença de Lisa era muito mais difícil de se lidar do que se fosse simplesmente uma antipatia.

— Talvez Jack tenha bebido para desligar-se de sua mãe, mas isso não justifica. E, também, não é a primeira vez que ele faz isso.

— Ele nunca bebeu enquanto está de serviço Anne protestou, chocada com a ideia de que Lisa pudesse pensar o contrário.

— Talvez ainda não ― Lisa concedeu. ― Mas está encaminhando-se nesta direção. Já conversei com ele a este respeito outras vezes, mas quando ele levou-me para casa ontem à noite, fui um pouco mais firme nesta questão. Este é um erro que não vou cometer novamente.

— Não, é claro que não.

Anne voltou para a mesa, com a expressão pensativa. Não estava convencida de que Lisa tivesse razão. Mas, se tivesse... Bem, talvez houvesse motivos. Não exatamente desculpas, mas explicações.

— Se Jack estiver enfrentando problemas com a bebida ― disse, enfatizando cuidadosamente o "se" ― pode ser que haja um motivo. Você sabe, depois que Brooke...

— Não diga mais nada. ― Surpresa com a interrupção abrupta, Anne olhou para cima e encontrou os olhos verdes de Lisa em brasa. ― Será que nunca lhes ocorreu que, se Brooke ainda estivesse viva, seria impossível que dominasse a vida de todos vocês como tem feito desde que morreu?

O silêncio que se seguiu foi tão profundo que o barulho da porta de um carro fechando-se em algum ponto da rua soou como um tiro. Olhando para Anne, vendo o choque em seu rosto, Lisa cerrou os olhos por um momento e lembrou-se de que não era culpa de Anne. De todos eles, Anne era a única que não tinha culpa nenhuma.

— Desculpe-me. ― Lisa exalou um suspiro e estendeu a mão, pousando-a sobre a da amiga. ― Jack e eu ficaremos bem. Nós discutimos, mas não terminamos. Apenas sinto-me frustrada e preocupada, mas não tive intenção de descontar tudo em você. Na verdade, nem pretendia contar-lhe estas coisas. A tensão pré-menstrual e o excesso de trabalho estão enfraquecendo os meus já cansados neurônios.

— Lisa...

— Não. ― Lisa balançou a cabeça, com fraco sorriso nos lábios. ― Vamos esquecer tudo isso. Estou realmente cansada e, provavelmente, nem um pouco racional. ― Passou os dedos por entre os cabelos, deslocando o lápis que os prendia, que caiu no chão e rolou para baixo da mesa. ― Esta é a última vez que aceito uma encomenda de alguém que quer o trabalho pronto para ontem.

Olhando para a amiga, Anne reparou que ela de fato parecia cansada, com seu brilho natural bastante diminuído. Embora continuasse pensando no que fora dito, esforçou-se para esboçar um sorriso.

— E isso que acontece quando você permite que a ganância sobreponha-se à sua integridade artística.

— É, acho que sim. ― Lisa olhou desanimada para as pilhas de fitas e botões espalhadas sobre a mesa e suspirou. ― Talvez tudo isso faça algum sentido amanhã cedo, mas no momento parece que um furacão passou por aqui. Está na hora de ir para casa.

Anne esperou até que Lisa encontrasse os sapatos, as chaves, e apagasse as luzes. Ficou vagamente surpresa ao ver que apenas acabara de anoitecer. Parecia ser muito mais tarde. O ar ainda estava quente, mas carregava a doce promessa da chuva que estava prevista para aquela noite. A rua estava quase vazia, a maioria das lojas haviam sido fechadas horas atrás, mas havia alguns carros estacionados diante do bar um pouco mais adiante, e outros na frente do Luanne, no lado oposto da rua.

Vendo o café, Anne lembrou-se de seu almoço com Neill Devlin. Parecia ter sido há muito tempo.

— Tudo certo ― Lisa falou, trancando a porta. Virou-se e, embora a luz fosse fraca, Anne pôde ver seu olhar de desculpas. ― Eu não pretendia magoá-la, Anne.

— Está tudo bem. ― Anne olhou para além dela, na direção das janelas iluminadas do café.

— Talvez eu não tenha prestado muita atenção, ultimamente... em várias coisas. ― Pressentindo que a amiga ainda estava preocupada, acrescentou:

— Sabe, acabou de me ocorreu que não paguei a minha parte no almoço de hoje. Estava com tanta pressa de voltar ao trabalho que esqueci de tudo e deixei Neill pagar a conta sozinho.

O sorriso de Lisa foi vagaroso.

— Bom Deus, você não pode deixá-lo pensando que os Moore não pagam suas contas. Isto poderia causar um dano irreparável à reputação de todo o Estado.

— Talvez eu deva dar uma passadinha no Dália Azul e acertar as contas com ele. ― Anne sentiu um frio de excitação na boca do estômago.

Neill afastou a cadeira da mesa e olhou para as palavras dispostas na tela do laptop com desconcertada surpresa. De onde diabos aquilo havia surgido? Ele não tinha pensado em começar outro livro, não por enquanto e, talvez, não por um longo tempo. E, caso tivesse pensado num novo livro, certamente não seria algo como aquilo. O que estava fazendo, ao começar a escrever uma história dos tempos do "faroeste"? Ele nem mesmo escrevia ficção, pelo amor de Deus.

Mas as palavras ali estavam, pretas na tela branca, indubitavelmente descrevendo a cena de abertura para um romance: um homem, sozinho e ferido, deixado à morte por aquele que havia sido seu companheiro. Agora ele permanecia imóvel, cercado pelo céu e pelos prados, sem nada além da própria força de vontade e da sorte para mantê-lo vivo. E havia uma mulher, não muito bonita, mas de traços fortes e marcados pela luta pela sobrevivência numa terra de beleza selvagem e pouca piedade. Seus caminhos iriam se cruzar, embora Neill ainda não soubesse como ou quando.

— O que será isso? ― resmungou, afastando a cadeira e levantando-se.

Escurecera enquanto ele trabalhava, então acendeu algumas luzes antes de pegar uma cerveja na minúscula geladeira da quitinete. Abriu a tampa e bebeu um longo gole, os olhos voltando para a tela luminosa no outro lado do quarto.

Quando arrumara a bagagem para viajar, havia guardado o computador portátil mais por hábito do que qualquer outra coisa. O laptop era o equivalente tecnológico ao bloco pautado que ele usava quando começara a escrever, mas, além da vaga ideia de transformar a viagem em algum tipo de guia com comentários, Neill não planejara escrever qualquer outra coisa. Na verdade, depois que terminou seu último livro, nem tivera certeza de que desejaria voltar a escrever. E, com toda certeza, nunca pensara em escrever um romance.

Neill bebeu mais um gole de cerveja e sorriu. Estava bom, pensou, olhando os dois primeiros parágrafos. Talvez ainda não estivesse pronto para mandar Larry McMurtry tomar as providências necessárias, mas era um bom começo para... fosse lá o que acabasse se tornando. Fazia muito tempo que ele não escrevia pelo simples prazer de escrever. Tempo demais.

Estava tentando decidir entre escrever mais um pouco ou preparar um sanduíche com os ingredientes que comprara na mercearia, quando alguém bateu na porta. Dorothy, ele pensou, vindo lembrá-lo de que não podia perder o filme que estaria sendo exibido na tevê a cabo às duas da madrugada. Neill tinha a fama de mostrar-se hostil com as pessoas que o interrompiam quando estava trabalhando, mas agora sentia-se tão bem com aquela aventura inesperada nos confins de Wyoming no século dezenove, que estava sorrindo quando deixou a garrafa de cerveja na mesa e foi atender a porta.

O sorriso transformou-se, aqueceu-se, tornou-se muito mais íntimo no instante em que viu Anne parada no degrauzinho de cimento no lado de fora da porta. Ele havia pensado nela, imaginando um plano para vê-la novamente. Havia mais ou menos decidido buscá-la no trabalho no dia seguinte e tentar convencê-la a almoçar com ele outra vez. E, agora, ali estava ela.

— Olá.

— O-olá. ― Anne precisou limpar a garganta para falar. ― Eu... Dorothy me disse em que quarto você estava.

Ela precisou resistir ao impulso de contorcer as mãos. No curto trajeto até ali, quase se convencera de que sabia o que estava fazendo. Mas tal convicção enfraqueceu-se consideravelmente ao ver-se parada diante da porta do quarto dele, e foi apenas o orgulho teimoso que a fez bater. Agora, ele estava parado ali, parecendo tão grande e másculo, e ela tinha de admitir que, no que se referia àquele homem, ela não tinha a menor ideia do que estava fazendo.

— Entre. ― Neill afastou-se, fazendo um gesto para que ela entrasse.

Anne hesitou, os nervos à flor da pele. Mas não poderia ficar parada na soleira da porta e simplesmente entregar-lhe um punhado de dinheiro, mesmo se esta fosse a única razão da sua visita, o que, naturalmente, não era. Além disso, Dorothy sabia onde ela estava, e ele sabia que ela sabia e... ah. Deus, estava perdendo o juízo.

Com um suspiro de alívio pelo rápido retorno da sua sanidade, Anne entrou no quarto.

— Espero não estar atrapalhando ― disse, extremamente ciente do clique quando a porta fechou-se atrás dela.

— Bem, de fato eu tinha um compromisso com o destino, mas creio que posso desmarcar.

— Acha que isso é sensato? ― ela perguntou enquanto Neill adiantava-se para dentro do quarto. ― Não existe um ditado que diz que o destino bate à sua porta apenas uma vez?

— Isto é sobre a oportunidade. Duvido que o destino bata na porta. Acho que ele apenas lhe dá um soco no meio do nariz.

— Parece doloroso.

Parada perto da porta, Anne tentou decidir o que fazer com as mãos. Enfiá-las nos bolsos pareceria um gesto de timidez excessiva, e cruzar os braços no peito seria ainda pior. Elas nunca lhe pareceram tão... no caminho. Decidiu cruzá-las na frente do corpo.

— Quer beber alguma coisa? Tenho cerveja e água... não é exatamente uma grande variedade de opções.

— Não, obrigada. ― Anne observou rapidamente o quarto, olhando para tudo, exceto para ele. Ao deparar com a tela iluminada do computador, sentiu-se ainda mais constrangida. ― Você estava trabalhando?

— Não é realmente trabalho. ― Neill encolheu os ombros. Não estava preparado para rotular de trabalho o que estivera fazendo. ― Eu só estava rabiscando algumas coisas.

Aproximou-se do computador, salvou o arquivo e fechou a tampa. O suave barulho do ventilador do aparelho, mal perceptível momentos atrás, pareceu deixar um enorme silêncio quando cessou.

— Tem certeza? Não quero interromper.

Naquela camiseta branca impecável enfiada na cintura da calça jeans, os cabelos ainda presos no coque e com os delicados dedinhos cruzados, ela parecia tão certinha e comportada quanto uma professora de jardim-de-infância. Ou, talvez, uma estudante à espera da repreensão do diretor, Neil pensou, com um misto de divertimento e desejo.

— Eu não mordo ― ele disse, num tom suave. ― A não ser que você me peça.

Surpresa, Anne ergueu os olhos rapidamente para Neill. Pela expressão dele, era como se desse qualquer coisa para mordiscá-la por inteiro, pensou e, a despeito do arrepio que a percorreu por inteiro, não teve certeza se faria alguma objeção caso ele começasse a agir. Ruborizando, afastou os olhos e falou um pouco depressa demais:

— Esqueci de lhe pagar, hoje. ― Com o canto do olho, viu que ele franzia a testa e sentiu o rubor aumentar. ― Pelo almoço, quero dizer. A minha parte da conta. ― Neill começou a aproximar-se dela, e seus pensamentos dispersaram-se como pintinhos escapando do avental de uma fazendeira. ― Eu... eu não queria que você pensasse que... que eu esperava que você... que eu... ah.

Anne não se deu conta de que estava se movendo até sentir as costas batendo na porta. Neill parou diante dela. A luz incidia por trás dele, realçando-lhe as formas, e Anne sentiu o fôlego lhe faltar quando olhou para ele. Nunca estivera tão ciente da sua baixa estatura, e nem tão vulnerável por isso. De repente, pensou que havia sido louca por ter ido até lá. E daí que Dorothy sabia onde ela estava? Dorothy estava distante demais para ouvir, caso ela gritasse.

— Acho que devemos resolver logo este assunto ― Neill murmurou.

— Que assunto? ― Anne perguntou, arregalando os olhos.

— Este assunto ― ele sussurrou e, apoiando o braço na porta, baixou os lábios até os dela.

A boca máscula era quente e firme, contendo um leve sabor da cerveja que ele acabara de beber. Anne já havia sido beijada antes. Tinha quase certeza disto. Frank a beijava todas as vezes em que tinham um encontro. Parados na varanda da sua casinha, abraçando-a como se ela fosse feita de porcelana, ele a beijava com delicadeza, com todo cuidado, sem nunca exigir mais do que ela estava disposta a oferecer. Nunca pedindo nada, na verdade.

Neill tampouco lhe pedira. Simplesmente tomara. E, enquanto o chão parecia sumir de sob seus pés, ela só podia lhe entregar.

Neill havia imaginado qual seria o sabor dos lábios de Anne, tinha se permitido imaginar, mas a realidade era muito melhor. Os lábios dela eram macios, acolhedores, ansiosos. Tinham o gosto de jujubas, um sabor tão inocente que subitamente atingiu-o como algo muito erótico. Ele não planejara beijá-la, nem desejá-la tanto. Mas ela ficara parada ali, fitando-o com aqueles enormes olhos azuis como uma gravura de Chapeuzinho Vermelho que havia no quarto de sua mãe e, de repente, ele sentira-se como o Lobo Mau, querendo devorá-la de uma só vez. Contentou-se em mordiscar-lhe os lábios e, aproveitando-se de seu breve arfar de surpresa, deslizou a língua até encontrar a dela.

Um gemido leve e assustado subiu-lhe pela garganta, enquanto ela inclinava a cabeça num pedido inconsciente para que ele aprofundasse o beijo. Anne nunca imaginara que podia ser assim. Que poderia haver cores, luzes, e aquela sensação nebulosa de estar flutuando para fora de si mesma. Suas mãos ergueram-se para abraçá-lo, os dedos agarrando o fino algodão da camiseta apoiando-se nele como se fosse a única coisa sólida em todo o universo.

Tal rendição acendeu uma fagulha em Neill fazendo seu sangue correr mais rápido pelo desejo de ter mais, mais daquele gosto doce, mais suspiros suaves. Anne colou-se a ele e Neill espalmou a mão em suas costas, afastando-a da porta, enquanto a outra mergulhava em seus cabelos, retirando os grampos até que a sedosa onda cor de mel se desmanchasse entre seus dedos.

Mais, ele pensava, puxando-a mais para si, sentindo o suave contorno dos seios contra a dureza de seu peito. Ele poderia ter tudo o que desejava. Ela era tão flexível quanto um galho de salgueiro, trêmula em seus braços. Sua, toda sua.

Foi exatamente a força do seu desejo por ela que fez soar um alarme na mente de Neill. Era cedo demais. Ele jamais desejara alguém daquela maneira, tão faminta e avassaladora. Não por uma mulher que conhecera há menos de vinte e quatro horas. Nem por qualquer mulher. Nunca. Um homem não chegava aos trinta e cinco anos sem uma certa experiência neste aspecto, porém ele não era do tipo que se entregava ao sexo casual e descompromissado. Gostava de conhecer sua parceira, antes de se tornarem amantes. No entanto, lá estava ele, prestes a possuir aquela mulher ali mesmo onde estavam, pressionando-a contra a porta, com as pernas rodeando-lhe a cintura. A imagem o fez enrijecer ao mesmo tempo em que obrigava-se a se afastar, ignorando o pulsar em seus ouvidos, a voz primitiva que o incitava a tomar o que poderia ser seu.

Anne sentiu os pés tocarem novamente o chão, e depois a dureza da madeira da porta contra as costas. Ele mantinha as mãos em seus ombros, apoiando-a, como se ela pudesse desabar sem aquele toque. E talvez ela caísse mesmo, Anne concluiu, sentindo a mente girar em círculos lentos. Então era isso, pensou. Seus lábios se separaram e ela passou a língua sobre os seus, sentindo o gosto dele. Neill gemeu, as mãos enrijecendo quase dolorosamente antes de soltá-la. Ela sentiu-o dar um passo para trás e forçou-se a abrir os olhos, fitando-o.

— Eu não pretendia fazer isso ― ele disse. As palavras continham um tom de surpresa e frustração sexual.

— Não pretendia beijar-me? ― Ela deveria sentir-se ofendida, ou envergonhada, ou ultrajada, ou... alguma coisa. Não sabia o que, mas tinha certeza que deveria sentir algo mais, além daquela sensação deliciosamente agradável.

— Eu pretendia beijá-la. Só não pensei que iria tão longe, tão depressa. ― E nem fui tão longe quanto gostaria de ter ido, ele pensou, os olhos fixos nos lábios dela. ― Você é confiante demais.

Anne sentiu um baque no peito. Confiante demais? Ele não tinha como saber o quanto estava errado. E como poderia, sendo que ela entrara em seu quarto tão casualmente como se fosse o tipo de coisa que fazia todos os dias? Anne pensou nas arengas constantes de sua mãe a respeito dos males em potencial que estavam à espreita, prontos para devorar as mulheres sem qualquer aviso. Pensou nos muitos encontros que recusara, nos beijos que jamais dera, em todas as noites que passara sozinha porque não confiava o bastante, e não soube se deveria rir ou gritar.

Neill observava as emoções refletirem-se no rosto dela: surpresa, irritação e algo que poderia ser um humor amargo. Não sabia o que havia dito, mas lamentou ter apagado aquela expressão de confuso prazer em seus olhos. Por outro lado, talvez fosse melhor assim, pensou. Se ela continuasse a olhá-lo daquele jeito, talvez ele não fosse capaz de resistir ao impulso de levar as coisas um pouco mais adiante do que haviam deixado.

— Anne, eu... droga! ― O ruído do telefone o interrompeu. ― Deve ser meu irmão ― disse. ― Deixei um recado para ele hoje cedo, e ele sempre teve este hábito de aparecer na hora errada. Espere um pouco, livro-me dele num instante.

— Está tudo bem.― Anne agarrou a maçaneta da porta e enviou-lhe um sorriso rápido e impessoal. ― Preciso mesmo ir embora.

— Eu quero... ― O telefone tocou novamente e Neill lançou os olhos para o objeto cor de cinza.

— Não, eu realmente preciso ir embora. ― Sem lhe dar a chance de dizer mais nada, ela esgueirou-se pela porta e fechou-a sem ruído atrás de si.

E foi somente quando parou de correr que deu-se conta de que havia se esquecido completamente de pagar a sua parte do almoço.

 

Os dedos de Anne moviam-se rapidamente sobre o teclado, os olhos fixos no bloco apoiado ao lado do computador enquanto transcrevia as anotações escritas à mão pelo seu patrão. Há quase quatro anos ela trabalhava como secretária do vice-presidente do banco, Richard Lawrence, e aquela era a primeira vez em que tinha motivos para lamentar o fato de ele ser uma pessoa metódica e organizada. Naquele dia Anne aceitaria de bom grado a distração de ter de decifrar um garrancho ilegível, ou ter de ficar em estado de alerta por causa de exigências irracionais. Mas seu dia estava seguindo o tranquilo padrão de sempre e o mais próximo que ela chegara de um desafio fora quando tivera de desmarcar um compromisso de Richard.

Isso lhe dava tempo demais para pensar, e o que ela mais pensava era sobre a cena no quarto de Neill na noite anterior. Já havia passado boa parte da noite pensando nisto e fora dormir bem depois da meia-noite. Quando o despertador tocara, ela acordara sonolenta, cansada e irritada consigo mesma. Fora apenas um beijo, tentara se convencer enquanto tomava um banho. Não importava o fato de que ela jamais havia sido beijada daquela maneira, de que nunca acreditara realmente que beijos como aquele existissem fora das páginas de um romance: ainda era apenas um beijo. E ela tinha idade o bastante, se não experiência o bastante, para não transformar um breve encontro num acontecimento extraordinário. Havia pensado naquilo o suficiente, concluíra enquanto tomava o café. Agora, iria simplesmente esquecer tudo.

Era mais fácil falar do que fazer, Anne admitiu três horas mais tarde, enquanto corrigia seu milésimo erro de digitação daquela manhã. Não se tratava apenas do beijo. Era também por saber que havia ido até o quarto dele no motel, procurando-o como se fosse uma adolescente atrás de um astro de "rock" e, depois, utilizado a desculpa ridícula de pagar sua parte na conta do almoço. Tal lembrança foi o suficiente para lhe dar vontade de bater a cabeça no teclado. Como se isso não fosse humilhação o bastante, nem lhe dera o maldito dinheiro. Ele provavelmente havia pensado que ela armara tudo apenas para ser beijada. E, que Deus a ajudasse, talvez fosse isso mesmo. Pior ainda, ela estava ciente de uma inegável tristeza ao pensar que seria bem pouco provável que isso tornaria a acontecer.

Anne manteve os olhos fixos no monitor, os dedos imóveis no teclado. Não era justo, pensou, melancólica. Na noite anterior, quando Neill a beijara, havia compreendido pela primeira vez o motivo de tanto alvoroço. Ela achava os beijos de Frank ligeiramente agradáveis, ou, pelo menos, não de todo desagradáveis, mas eram esquecidos assim que se separavam, exatamente como Frank era esquecido assim que desaparecia da sua frente. Meses atrás, chegara à conclusão de que sua reação morna talvez fosse uma indicação de que havia algo de errado com ela. A quem estava tentando enganar? Anne sabia que havia algo de errado com ela. Do contrário, como explicar o fato de que tinha vinte e cinco anos e nunca se deparara com um desejo verdadeiro? Até a noite anterior.

Naquela noite ela finalmente tivera um vislumbre daquilo que as pessoas tanto falavam. E tinha de acontecer justamente com um homem que iria embora numa questão de dias. Já poderia ter partido, pelo que ela sabia. David talvez já tivesse consertado a moto, ou quem sabe Neill tivesse conseguido uma condução, talvez até uma carona com alguém. Pelas coisas que lhe contara durante o almoço, era evidente que ele viajava bastante. Não lhe parecia provável que um homem que já estivera em Paris e Budapeste, e Deus sabe onde mais, pudesse encontrar algo de interessante em Loving, Indiana.

Anne tanto subestimava a própria capacidade de atração quanto superestimava a vida na estrada. Neill havia decidido que já tivera o bastante da segunda, enquanto que a primeira... bem, a primeira tinha algum potencial, sem dúvida. Sendo homem, ele não passara tanto tempo quanto Anne analisando aqueles momentos em seu quarto mas, ao contrário de Anne, nem mesmo incomodara-se em tentar se convencer que fora "apenas um beijo". Tinha trinta e cinco anos, era mais do que razoavelmente atraente e, também ao contrário de Anne, já tivera muitas experiências com o desejo. Porém, desde seus tempos de adolescente guiado pelo hormônios, nunca um único beijo fora capaz de deixá-lo prestes a perder o autocontrole

A força inesperada da sua reação o apanhara de surpresa e lhe despertara a curiosidade que sua mãe muitas vezes dissera ser a sua pior fraqueza e que certamente algum dia ainda lhe causaria problemas. Neill ficara acordado por quase tanto tempo quanto Anne, as mãos cruzadas por trás da cabeça, os olhos fixos na parede onde cartaz de Bela Lugosi o encarava, e havia considerado a possibilidade de sua mãe estar certa. Sem dúvida, se fosse um homem mais cauteloso, já começaria a providenciar uma rápida retirada. Mas os homens cautelosos tinham vidas tão tediosas, e ele era fatalista o bastante para sentir-se compelido a ficar um pouco mais e ver o que acontecia.

Apesar de ter adormecido bem tarde, Neill acordou cedo. Depois de espiar no relógio, fechou os olhos novamente e cobriu o rosto com o travesseiro. Nunca fora uma pessoa do tipo matinal, e não tinha a intenção de começar a ser agora. Mas, depois de quinze minutos, ficou óbvio que, quisesse ou não, estava desperto. Resmungando baixinho, escorregou para fora da cama. Talvez fosse por estar numa região rural, pensou enquanto arrastava-se até a quitinete a fim de ferver a água para o café. Talvez os milharais desprendessem alguma toxina cujo efeito era obrigar os sujeitos vindos da cidade a seguir os horários dos fazendeiros.

Depois de lavar o rosto, pentear os cabelos com os dedos e tomar o primeiro gole do café escaldante, ele já se resignava a estar acordado, mesmo não sentindo-se particularmente contente com isso. Pensou em ligar a tevê e assistir um dos noticiários matutinos, mas nem pegou o controle remoto. Não estava com disposição de ouvir os relatos das últimas guerras, assassinatos e trapaças políticas. Em vez disso, abriu o laptop e começou a ler as páginas que escrevera na noite anterior, meio que esperando achá-las uma tremenda porcaria.

Quando tirou os olhos da tela, o café quase intocado já esfriara na xícara ao seu lado. Seus ombros e pescoço estavam doloridos pelo esforço de inclinar-se sobre o teclado do computador, e ele teve de piscar várias vezes antes que pudesse focalizar o relógio perto da cama. Eram quase onze horas, o que explicava o vazio que sentia no estômago.

Com um gemido de cansaço, afastou a cadeira da mesa e levantou-se. Deus, nem mesmo conseguia lembrar-se de quando trabalhara daquela maneira, com as palavras jorrando de sua mente quase tão rápidas quanto ele podia digitar. A história ainda mal começara, mas já adquiria contornos mais nítidos tanto em sua mente quanto nas páginas. Neill ainda não sabia qual o rumo que tomaria, ou o que faria quando chegasse lá, porém a história existia e ele não acreditava que fosse desaparecer até que lhe desse forma.

As palavras o cutucavam, incitando-o a continuar, mas sua cabeça zunia pelas longas horas de concentração e seu estômago enviava avisos educados sobre a própria condição. Além disso, lembrou-se, ele tinha planos para o almoço.

Na hora do intervalo para o almoço Anne mal conseguira concluir metade do trabalho que normalmente fazia. Como um prêmio extra, também havia desfiado a meia no canto da escrivaninha, quebrado uma unha e, distraidamente, arquivara o mesmo relatório duas vezes no computador, sob dois nomes diferentes.

— Está numa daquelas manhãs? ― Marge Lancaster perguntou, parando ao lado da sua mesa e enviando-lhe um sorriso de solidariedade.

— Ainda é de manhã? Tem certeza de que não está na hora de irmos para casa? ― Anne retrucou, num tom cansado.

— Infelizmente, não.

Marge recostou o quadril gorducho na mesa de Anne, aliviando o peso dos seus pés. Os calos estavam matando-a e aqueles sapatos novos não ajudavam em nada, embora fossem muito bonitos, pensou enquanto inclinava a cabeça para admirar os escarpins azul-marinho com lacinhos brancos.

— Sapatos novos? ― Anne indagou, seguindo o olhar da amiga mais velha.

— Comprei-os pelo catálogo, na semana passada ― Marge respondeu, sorrindo para os próprios pés.

— São muito bonitos.

— Não são, mesmo? ― Marge suspirou e flexionou os dedos dos pés, mal contendo um gemido de dor. ― Naturalmente, são muito desconfortáveis, mas eu nunca consegui resistir a um belo par de sapatos. Na minha idade, poderia-se pensar que o conforto vencesse a vaidade, mas não é assim que funciona. Harold e eu faremos quarenta anos de casados em dezembro e, para dizer a verdade, eu poderia usar chinelos o tempo todo que ele nem perceberia, portanto nem posso fingir que fico me torturando para agradá-lo.

Anne riu. Quando começara a trabalhar no banco, fora Marge quem a ajudara, dando-lhe as primeiras instruções. Oficialmente ela era a secretária do presidente, mas todos, desde o porteiro até o próprio presidente, sabiam que ela poderia facilmente comandar todo o banco sozinha. Quase beirando os sessenta anos, Marge tinha os cabelos francamente grisalhos, era gorducha, tinha uma aparência de matrona, um coração de ouro e uma inteligência aguçada.

— Ah, como isso me faz desejar que eu fosse trinta anos mais nova ― Marge suspirou, olhando na direção da entrada do banco.

Anne virou-se para acompanhar seu olhar e sentiu o coração dar um baque doloroso no peito. Neill estava parado perto das portas de vidro, conversando com o guarda. Ela havia passado a manhã inteira e boa parte da noite tentando convencer-se de que tinha exagerado a atração que sentira por ele e, acima de tudo, exagerado aquele beijo. Passadas mais uma ou duas semanas, poderia até ter acreditado em si mesma, e então ele resolvia aparecer ali, e o simples fato de vê-lo foi o bastante para destruir todos os seus pensamentos lógicos e tranquilizadores.

— Ali está um homem a quem eu não me importaria de oferecer um empréstimo ― Marge falou, observando Neill adiantar-se. Depois daquele primeiro relance, Anne não olhou mais. Não conseguia. ― Acho que ele está vindo em nossa direção.

Marge soava surpresa e curiosa. Endireitou o corpo e tornou a calçar os sapatos quando Neill parou diante do cercadinho de madeira que separava os escritórios do saguão principal do banco.

— Em que posso ajudá-lo? ― Marge perguntou.

— Eu gostaria de falar com Anne Moore.

Havia um tom de indagação na voz dele e Anne deu-se conta de que, entre o monitor do computador e a figura um tanto volumosa de Marge, Neill não podia vê-la. Por um breve instante, seu nervosismo quase lhe deu a ideia de esconder-se embaixo da mesa, mas, considerando o decorrer daquele dia, era bem provável que não coubesse.

— Sim, é claro. Ela está aqui.

Marge virou-se, os olhos reluzindo com perguntas que Anne fingiu não perceber. Desde que Marge era perfeitamente capaz de expressá-las em voz alta, foi como se a divina providência viesse em socorro de Anne quando o telefone da amiga começou a tocar e ela foi, com evidente relutância, atender, deixando Anne mais ou menos sozinha com Neill, a não ser que se contassem os três caixas e a meia dúzia de clientes parados logo atrás dele, o que Anne não viu, pois esquecera-se da sua existência.

Neill ficou parado do outro lado da cerquinha, sorrindo para ela, e mesmo se uma banda formada por brontossauros entrasse no banco marchando, ela não teria reparado. Ele estava usando calça jeans novamente, talvez fosse a única roupa que trouxera, Anne pensou. Mas quando um homem fica tão devastador, mesmo usando calça velha e desbotada, não precisava de mais nada. A camiseta daquele dia era azul-celeste e, como a outra, também colava-se em seu peito musculoso. Olhando para ele, Anne não pôde evitar de lembrar-se da sensação daqueles músculos sob suas mãos, e tal lembrança fez com que suas pernas ficassem bambas.

Ela teria ficado horrorizada se soubesse com que nitidez Neill lia seus pensamentos, satisfeito em poder enfiar as mãos nos bolsos a fim de impedir-se de pular o cercadinho, arrancá-la da cadeira e beijá-la até a loucura. Devagar, pensou. Havia decidido ir mais devagar. Não sabia o que existiria por trás daquela atração física que sentiam, e que ia muito além de qualquer coisa que ele já experimentara, mas decidira que não iria apressar nada.

Então ele sorriu e tentou não gemer quando Anne passou a língua nervosamente pelos lábios.

— Você gosta de piqueniques?

— Piqueniques? ― Anne repetiu, atônita. Ela havia passado mais tempo do que gostaria de admitir imaginando como seria o encontro seguinte com ele, imaginando-se agindo com uma sofisticação que achava estar faltando nos anteriores, mas nenhum dos cenários que fantasiara envolvia tal pergunta sobre piqueniques. ― Eu... gosto, sim, muito.

— Tem algum plano para o almoço?

Anne sentiu todas as incertezas desaparecerem sob o calor do sorriso dele. Subitamente, achou que havia sido uma tola em passar tanto tempo analisando algo que qualquer outra mulher aceitaria na hora. Na noite anterior ele a beijara. Agora, a convidava para almoçar. Era uma progressão de eventos perfeitamente natural. Somente a sua inexperiência transformara aquilo em algo tão assustador.

— Nenhum plano ― ela respondeu, sorrindo | para ele. ― Estava apenas sentada aqui, pensando em quanto gostaria de fazer um piquenique.

— E ainda dizem que coincidências não existem. ― Neill olhou de relance para o grande relógio na parede dos fundos do banco. ― A que horas você estará livre?

Anne resistiu ao impulso de sair imediatamente com ele. Ninguém faria objeções se ela saísse para o almoço uma hora mais cedo, mas haveria perguntas, explicações. O que acabaria acontecendo, de qualquer forma. Ela já podia sentir os olhos de Marge formando um buraco em suas costas.

— Daqui meia hora?

— Perfeito. ― Sorrindo, Neill afastou-se do cercado. ― Enquanto isso, vou providenciar uma bela cesta de piquenique.

— Acho que Dorothy aprovou a ideia do piquenique ― Neill falou enquanto estendia uma manta sobre a grama, sob uma velha árvore. ― Ela disse que Humphrey Bogart levou Greta Garbo para fazer um piquenique no filme "Mogambo". ― Franziu a testa e balançou a cabeça. ― Ou será que era Clarke Gable e Ginger Rogers em "Duck Soup"?

— Creio que você está misturando todos os filmes e atores. ― Anne sentou na manta e cruzou as pernas sob o corpo, grata por estar usando o vestido de saia longa. ― "Duck Soup" não é um filme com os Irmãos Marx?

— Nesse caso, então Clark Gable levou Groucho Marx num piquenique ― Neill falou, despreocupado. Olhou para ela, os olhos reluzindo de humor. ― Garbo, Groucho. Qual é a diferença?

Anne riu.

— Acho que Groucho era aquele que tinha um bigode.

Havia uma pequena placa de bronze perto da entrada do parque, informando que este fora criado em memória daqueles que morreram na Segunda Guerra, seguido por uma relação de nomes, maridos, filhos e pais que não tinham voltado para casa. A pacífica extensão dos campos relvados e as árvores frondosas estava a mundos de distância das visões e sons das batalhas, o que provavelmente era a intenção do parque, Neill pensou.

Num dia de semana, tinham o local quase que todo para eles. Algumas crianças brincavam na areia perto dos balanços, e, embora não pudesse avistar os jogadores, Neill ouvia o bater ritmado de uma bola de basquete na quadra de cimento. O lugar continha uma paz que penetrava nos ossos. Era aquilo que ele procurava quando saíra de Seattle, pensou. Aquela sensação de que o tempo não apenas havia parado, mas que cessara de existir.

Tinham comido sanduíches e salada de batata, conversando com tal facilidade que parecia já se conhecerem havia anos, em vez de alguns dias. Neill ficara sabendo que Anne gostava de filmes antigos, livros de mistério e rosas amarelas. Ela detestava lavar roupa, quase repetira em matemática no colegial e considerava as calculadoras de bolso como uma das grandes invenções do século, rivalizada apenas pelos aparelhos de Cds porque "mais cedo ou mais tarde todas as fitas acabam sendo engolidas pelo toca-fitas". Ambos compartilhavam o gosto por "rocks" antigos, mas discordaram francamente na questão da música "country", que Neill considerava ser, depois da ópera, o tipo de música que encorajava a narrativa de uma bela história, e com Anne torcendo o nariz diante da ideia das guitarras chorosas e lamentos nasais sobre esposas traidoras e amores perdidos.

— É óbvio que você não ouviu a boa música "country" nesses últimos anos ― Neill falou, enfático, e ela admitiu que fazia algum tempo.

Da música, a conversa foi para os escritores que ambos admiravam. No momento em que concordaram que Hemingway era superestimado e que nenhum deles gostava de histórias de terror, os sanduíches tinham acabado e os pratos e copos de plástico usados tinham sido postos num saco de papel.

Agradavelmente satisfeito e um tanto sonolento, Neill ficou aliviado por ela não achar necessário quebrar o silêncio confortável que instalou-se. A maioria das pessoas encarava o silêncio como uma ameaça ou um desafio.

Mas Anne sentou-se à sua frente, recostando-se nas mãos, as pernas estendidas, a cabeça inclinada para o lado e os olhos fechados. A inocente sensualidade de tal posição fez com que um nó se formasse no estômago de Neill. Ele queria adiantar-se e mergulhar as mãos nos cabelos que caiam pelos ombros dela, queria beijar a curva delicada de seu pescoço. Não sabia por que ela o fazia desejá-la tanto. Não era como se se vestisse de maneira a enlouquecer os homens. O vestido amarelo-claro que ela usava, com decote em V e mangas curtas, a saia comprida e rodada, dificilmente fora destinado para seduzir, porém seus dedos formigavam com a vontade de abrir aquela trilha de pequenos botões, que ia do decote até a barra.

Se ele se inclinasse e a beijasse, ela responderia como na noite anterior, trêmula de desejo e incerteza? E o que estaria usando por baixo daquele vestido comportado? Seda e rendas, ou simples algodão?

Nem mesmo deu-se conta de que estava se movendo até sentir a mão deslizando pela densa cascata de cabelos, espalmando-se em sua nuca. Anne não teve nenhuma reação, exceto abrir os olhos devagar, como se estivesse esperando por ele.

— Só preciso ver se não imaginei ― ele sussurrou.

— Imaginou o quê?

— O seu gosto. ― A última palavra foi pronunciada contra os lábios dela.

Foi diferente daquela vez, Anne pensou. Na primeira, ela estivera surpresa, um tanto amedrontada, e completamente despreparada para a onda de calor que invadiu-a quando ele a tocou. Desde então, passara um bom tempo lembrando-se, imaginando, esperando. E agora, acontecia novamente, só que melhor. Muito melhor.

Com um suspiro, ela entreabriu os lábios para ele, a língua pronta para encontrá-lo. Quando sentiu os braços dele enlaçando-a pelas costas, puxando-a mais para si, ergueu os seus e passou-os pelo pescoço dele, entregando-se ao prazer de mergulhá-los nos cabelos macios como uma seda negra. Gemeu baixinho, ao sentir dos dentes dele mordiscarem seu lábio.

Era como da primeira vez, Neill pensou, atordoado pela força e rapidez do seu desejo. Um único beijo, apenas um toque, e ele queria mais, muito mais. E poderia ter, sabia disso. Se estivessem sozinhos, ele poderia abrir aqueles botões tentadores e tomar o que ela tão docemente lhe oferecia.

Mas não estavam a sós, e era cedo demais, mesmo se ele sentisse como se estivesse esperando-a por toda sua vida. Ela iria arrepender-se. Neill não precisava questionar tal certeza, simplesmente a aceitava, bem como aceitava a necessidade de vê-la outra vez, tocá-la outra vez. Mas ele tinha tempo, lembrou-se. Não iria a parte alguma antes de descobrir o que era... aquilo que existia entre eles.

Relutante, afastou-se o bastante para poder fitá-la. Anne abriu os olhos devagar, como se estivessem muito pesados, e fitou-o com uma expressão de desejo tão evidente que todo seu já abalado autocontrole quase foi totalmente destruído.

— É melhor levá-la de volta ― ele disse, permitindo-se beijar levemente a curva de seu pescoço.

— De volta para onde? ― Anne sussurrou, os sentidos flutuando sob o toque dele, sob seu gosto.

— Para o trabalho. ― Neill tocou a ponta da língua na veia delicada de seu pescoço e sentiu-a pulsar.

— Trabalho... ― Anne esforçou-se para voltar à realidade. Tinha certeza de que aquilo significava alguma coisa mas, no momento, não conseguia lembrar-se de nada.

— No banco. ― Ele pressionou um beijo rápido em seus lábios, antes de soltá-la. ― Seu trabalho no banco, lembra-se?

— Sim.

Parecia uma resposta inadequada, mas a verdade era que ela mal conseguia se lembrar do próprio nome. Anne passou a mão trêmula pelos cabelos, tentando recuperar o controle de seus pensamentos desordenados. Ficou grata quando Neill levantou-se e, pegando o saco de papel que continha os remanescentes da refeição, foi jogá-lo no cesto de lixo mais próximo. Era impossível pensar quando ele estava por perto, e quase o mesmo acontecia quando ele não estava.

Um beijo, ela pensou. Ainda fora apenas um beijo. Este tipo de coisa acontecia todos os dias, no mundo inteiro. As pessoas se beijavam e seus cérebros continuavam funcionando. Parecia incrível, mas ela tinha quase certeza de que isso poderia ser feito.

Quando Neill retornou, ela já estava de pé, apoiando-se nas pernas que já estavam quase firmes. Passou as mãos pela saia, alisando-a enquanto ele abaixava-se para pegar a manta. Ainda sem falar, seguiram na direção da entrada do parque. O silêncio que fora tão confortável poucos minutos atrás agora parecia carregado de tensão, e ela espremia os miolos tentando encontrar algo inócuo para dizer.

— Então, para onde você estava se dirigindo quando sua motocicleta quebrou? ― Anne perguntou, e quase fez uma careta ao ouvir o tom animado demais da sua voz. Simplesmente não tinha a menor experiência em conversar com um homem que acabara de transformar seus ossos em geléia com um único beijo.

— Para Fort Lauderdale, mais ou menos. ― Neill aceitou de bom grado a distração, e estendeu-se no assunto. ― Meus pais moram lá desde que se aposentaram, há alguns anos.

— E onde eles moravam, antes disso?

— Em Wisconsin. Antes disso em Denver, e antes de Denver moraram no Texas, em Los Angeles e em Michigan. Eu nasci na Dakota do Sul.

— Você mudou-se um bocado.

— Mais do que a maioria das famílias, talvez. Mas nem tanto quanto nos mudaríamos se meu pai fosse militar.

Um adolescente vinha velozmente na direção deles sobre um skate. Neill pegou Anne pelo braço e puxou-a para fora do caminho. Mas não soltou-a depois que o garoto passou, deslizando a mão até a dela e entrelaçando os dedos nos seus.

— Qual era a profissão do seu pai? ― Anne ficou contente ao perceber a firmeza da sua voz. Ninguém adivinharia que seu coração disparava como louco no peito.

— Ele fez um pouco de tudo. Foi gerente de restaurante, teve uma lavanderia, de vez em quando trabalhava com construção. Quando moramos em Denver ele teve um açougue e chegou até a trabalhar por um tempo como disc jockey, em Los Angeles.

— Sei como é difícil manter um pequeno negócio ― Anne comentou diplomaticamente, pensando que o pai dele não parecia nada estável.

Neill balançou a cabeça, sorrindo.

— Meu pai não tinha nenhum problema em manter os seus negócios. Ele apenas se entediava assim que conseguia o que queria. Era o desafio que mais o encantava. Tão logo as coisas se estabilizavam, ele vendia tudo e recomeçava do zero, em outro lugar.

— Não foi difícil para você... estar sempre mudando de cidade?

— Não que eu me lembre. Nós costumávamos fazer uma reunião de família e discutíamos para onde iríamos nos mudar. Todos podiam dar sugestões. Nós nos mudamos para Denver porque meu irmão, que estava com treze anos, queria desesperadamente ser um vaqueiro.

— E ele conseguiu?

— Não que se saiba. Ele aprendeu a montar muito bem, mas não passou disso. Vivia caindo do cavalo. Na terceira vez em que fraturou um osso, minha mãe decidiu acabar com aquilo e obrigou-o a desistir da "carreira". De qualquer forma, acho que ele já estava mesmo enjoado de passar o tempo todo numa sela.

— É compreensível. ― Distraída pela conversa, Anne até se esqueceu de ficar nervosa por estar de mãos dadas com ele. ― Você só tem um irmão?

— Um irmão e duas irmãs, uma mais velha, outra mais nova. Darcy é a mais velha. Trabalha no Departamento de Polícia de Denver. Tony trocou os cavalos pelas pizzas. Ele e a esposa têm um restaurante em Chicago, cuja especialidade é massa e pizza. Maggie é a caçula da família. É uma excelente advogada e mora em Nova York.

— Sua família está espalhada por todo o país.

— Não conseguimos mais nos reunir com muita frequência ― Neill falou. ― Mas mantemos contato pelo telefone e, nos últimos dois anos, nos encontramos para as festas de fim de ano.

— Parece que vocês são bem chegados ― Anne falou, com uma pontinha de inveja.

— Acho que somos, sim. Talvez seja resultado de tantas mudanças. Ou pode ser que tenha sido por isso que não tivemos problemas em nos mudar tantas vezes. Podíamos estar numa cidade desconhecida, mas sempre tínhamos uns aos outros.

— Eu nunca morei em outro lugar que não fosse aqui ― Anne comentou, olhando para a rua tão conhecida e tentando imaginar como ela pareceria aos olhos de alguém que já passará por tantos lugares diferentes. ― Nunca viajei para outros Estados, exceto por um passeio à Disneyworld quando eu tinha oito anos. ― Suspirou. ― Eu costumava pensar o quanto deveria ser divertido conhecer o mundo inteiro.

Neill olhou-a de relance, perguntando-se o que haveria por trás daquele tom melancólico.

— Bem, o mundo continua onde sempre esteve e você ainda é muito jovem. Há tempo de conhecer pelo menos uma parte dele.

— Eu... sim, creio que poderia ― Anne falou após 180uma breve hesitação, e Neill imaginou por que tal ideia lhe parecera tão assustadora.

Ele parou e respondeu ao olhar de indagação Anne enviou-lhe assentindo para o prédio atrás dela.

— O banco. ― Disse a si mesmo que era ridículo sentir-se tão lisonjeado pela evidente surpresa dela.

— Gostei muito do piquenique ― ela disse.

— O que vai fazer na sexta-feira à noite? Vamos sair para jantar? ― Neill perguntou, pressionando-lhe a mão quando Anne começou a puxá-la.

— Jantar? ― Ela sentiu um agradável friozinho no estômago. Ele queria vê-la novamente.

— Eu... ah, não posso. Na verdade, já tenho um... compromisso.

O que tinha era o encontro de sempre com Frank Miller e, embora nunca se sentisse particularmente excitada com tais encontros, descobriu-se irritada com o pobre Frank por sempre convidá-la, o que não era apenas ilógico mas também injusto.

— Quero vê-la outra vez ― Neill falou e, por um instante, Anne sentiu-se tentada a dizer-lhe que cancelaria o compromisso.

Porém, seu coração murmurou-lhe que ele estaria na cidade por somente alguns dias. Seria uma injustiça com Frank, que sempre se mostrara tão gentil e educado. Além disso, talvez fosse melhor, e mais seguro, se não visse Neill por um ou dois dias. Suas emoções estavam confusas demais, no que se referia a ele.

— Podemos ir ao cinema no sábado à noite ― ela sugeriu.

— Aquele velho cinema ainda funciona? ― Neill perguntou, surpreso. Ele havia visto o prédio velho e antiquado e imaginara que estivesse fechado.

— Apenas aos sábados. É Dorothy quem passa os filmes, todos antigos.

— "O Mágico de Oz"? ― ele perguntou, arqueando a sobrancelha.

— Sempre no Natal e na Páscoa ― Anne respondeu num tom solene, mas com uma expressão tão engraçada que Neill desejou abraçá-la e beijá-la ali mesmo, diante de Deus e da metade da cidade de Loving.

Ela pareceu ter lido seus pensamentos, pois seus olhos azuis arregalaram-se e ela prendeu o fôlego por um instante. Neill puxou-a um pouquinho mais para si, quase esquecendo-se de tudo, exceto a necessidade de beijá-la outra vez.

— Anne?

Ao ouvir chamarem seu nome, ela emergiu da névoa sensual que começara a espalhar-se novamente em sua mente. Virando-se viu seu irmão parado a alguns passos de distância, olhando-a com uma expressão de surpresa e indagação.

Anne sentiu que ruborizava, enquanto puxava a mão que Neill prendia e ficou imediatamente irritada consigo mesma ao perceber que uma rápida onda de culpa a envolvia. E mais irritada ainda com Jack, que postava-se ali olhando-a como se a visão da irmã de mãos dadas com um homem atraente fosse algo digno de espanto. Não importava se aquela era a primeira vez que ela fazia uma coisa destas. Ele precisava mostrar-se tão surpreso?

Neill encarou o outro homem com uma hostilidade velada. Seria aquele o "outro compromisso" de Anne? O policial da cidade? Não podia negar que era um sujeito atraente, para quem gostava do tipo alto, de cabelos loiros e perfil grego, e algumas mulheres eram terrivelmente suscetíveis quando se tratava de uniformes.

— Jack. Não vi você aqui ― Anne falou, esforçando-se para soar distraída, mas resultando em algo muito próximo da culpa.

— Eu percebi.

O tom de Jack foi seco, e ele aproximou-se. Olhou para a irmã, demorando-se um instante em seus lábios, antes de voltar-se para o homem que a acompanhava.

Neill não se deixou intimidar pelo olhar de evidente inquisição do outro. Endireitou o corpo inconscientemente, perguntando-se qual seria a pena por atingir um policial, caso ele desfechasse o primeiro soco.

— Neill, este é Jack, meu irmão ― Anne apresentou-o, sem perceber o sutil jogo masculino que se desenrolava entre os dois. ― Jack, este é Neill Devlin.

Irmão? Somente depois de senti-lo desfazer-se Neill percebeu que um nó havia se formado em seu estômago.

— É o tal sujeito da motocicleta? ― Jack perguntou, lembrando-se da conversa durante o jantar na casa de seus pais.

Anne também se lembrou e disparou a falar antes que o irmão acrescentasse algum comentário indiscreto. A última coisa que queria era que Neill descobrisse que Lisa o rotulara de "pedaço de homem".

— David está consertando a moto, ou esperando por alguma peça para que possa consertá-la ― ela falou rapidamente. ― Neill e eu estávamos... ahn... acabamos de...

— Nós fizemos um piquenique ― Neill concluiu a frase, perguntando-se por que ela estaria tão nervosa.

Porém, reconhecia que os irmãos mais velhos podiam ser uma amolação no que se referia aos namorados das irmãs. Deus sabia o quanto ele próprio infernizara a vida de Maggie, quando eram jovens. Mesmo agora, quando ela já estava com mais de trinta anos, ele ainda preferia não pensar que sua irmãzinha tinha uma vida sexual ativa.

— É um belo dia para um piquenique ― Jack falou, sem nenhum entusiasmo.

Anne assentiu, sem saber como prosseguir com a conversa. Percebia que o olhar de Neill ia dela para Jack e imaginou o que ele estaria pensando. Não deveria ser tão desconcertante, pensou. Ela não tinha nada do que se envergonhar. Estava com vinte e cinco anos, era solteira e sem compromissos, sustentava-se sozinha, e não havia um motivo sequer para aquela sensação desagradável de ter cometido algum tipo de crime.

Pressentindo seu desconforto, mesmo sem ter ideia de qual seria o motivo, Neill concluiu que o melhor a fazer seria deixá-los para que dissessem o que quer que fosse que, tão obviamente, não queriam dizer em sua presença.

— Eu... preciso fazer algumas coisas ― disse. Roçou os lábios levemente no rosto de Anne. ― Então, nos vemos no sábado?

Ela fez que sim, um tanto desajeitada e, assentindo para Jack, Neill afastou-se.

— No sábado? ― Jack perguntou assim que Neill se foi.

Não havia nenhuma ameaça na pergunta, mas Anne empinou o queixo e encarou-o.

— Nós vamos ao cinema.

Ele assentiu devagar, os olhos voltando-se para o homem que se afastava e, depois, novamente para ela.

— Espero que saiba o que está fazendo.

— Eu sei ― Anne respondeu com firmeza, desejando sentir pelo menos uma fração da segurança que demonstrava.

 

Quem quer que tenha dito que as únicas coisas certas na vida são a morte e os impostos não conheceu Frank Miller. No que se referia a previsibilidade, ele fazia a morte e os impostos parecerem tão incertos quanto um jogo de roleta.

Frank dirigia um monótono seda preto, que lavava todos os domingos de manhã. Cortava os cabelos sempre na primeira quinta-feira do mês, fazia as compras de supermercado às terças e parava completamente em todos os sinais de "pare". Havia nascido e crescido em Loving, estudara na mesma escola que Anne e depois fora para a faculdade, onde obtivera boas notas, embora sem nunca sobressair-se em nada. Retornara à cidade ao concluir o seu curso, tornara-se assistente do xerife e imediatamente instalara a rotina na qual permanecia nos últimos dez anos.

Sentada diante dele no Barney's Bar e Grill, o único restaurante "elegante" da cidade, Anne observou-o cortar o filé em pedacinhos cuidadosos; e lembrou a si mesma que ele tinha muitas boas qualidades. Era um homem atraente, com um rosto do tipo quadrado, que lembrava Dick Tracy, os cabelos escuros sempre bem penteados que usava curtos, mas não demais, e os olhos castanhos que raramente mudavam de expressão. Era sólido e responsável. E ela podia apostar que jamais perdera uma conta nem esquecera de molhar uma planta dentro de casa. Era sempre pontual, nunca se esquecia do aniversário da mãe e provavelmente ajudava as senhoras idosas a atravessar a rua, mesmo quando não estava de serviço. Era bondoso, solícito e... mortalmente tedioso.

— Acho que este filé está melhor do que o que comi na semana passada ― ele comentou, mastigando com um ar pensativo. ― Como está o seu frango?

— Muito bom. ― Anne cortou uma fatia do peito de frango com ervas, levou-a à boca e tentou demonstrar que estava adorando.

— Você já deve ter experimentado todos os pratos do cardápio. ― O sorriso de Frank tinha um vestígio de indulgência.

— Hu-hum.

Anne escolhera um barulho neutro como sendo a melhor resposta. Todas as noites de sexta-feira Frank a levava para jantar naquele restaurante. Chegavam às sete horas, pontualmente. Ele pedia o filé bem passado, batata assada com um pouco de manteiga, mas sem creme, e legumes cozidos, bebia uma única taça de vinho tinto durante o jantar e, depois, uma xícara de café. Após um mês, Anne já era capaz de recitar o pedido dele de cor e, depois de dois meses, sugeriu que talvez ele devesse experimentar algo diferente. Mas Frank limitara-se a sorrir e balançar a cabeça.

— Eu sei do que gosto, e nunca vi muito sentido em mudar apenas por mudar.

Era óbvio que ele não via sentido em mudar apenas por causa da variedade, Anne pensou, comendo mais um pedaço do frango. Frank parecia pensar que o fato de ela escolher um prato diferente a cada semana tratava-se de uma inofensiva excentricidade. Ela encarava como uma salvação da sua sanidade. Examinar o cardápio era o acontecimento mais interessante em seus encontros com Frank. Envergonhada com a maldade de tal pensamento, Anne obrigou-se a se concentrar em seu acompanhante. Ele era mesmo um bom sujeito, lembrou a si mesma. E não tinha culpa se, de alguma forma, nos últimos dias "bom" já não parecia ser o suficiente para ela.

Pela meia hora seguinte Anne fez um esforço para manter a atenção focalizada no homem sentado à sua frente. E foi um esforço. A arte de conversar nunca fora o ponto forte de Frank. Ela sempre soubera disso, mas agora, depois de conhecer Neill, o contraste entre os dois homens era doloroso. Não era justo compará-los, pensou enquanto lutava para mostrar-se interessada na história que ele contava sobre um chamado urgente sobre uma suspeita de assalto que acabara não sendo nada além de um cachorro vira-lata. Porém, como podia evitar a comparação? Se Neil lhe contasse o mesmo caso, saberia como realçar o humor do evento, saberia fazê-la rir com ideia de um bando de homens adultos vasculhando os arbustos em busca de um bandido inexistente. A narrativa monótona de Frank era quase tão interessante quanto o relatório que ele fizera sobre o incidente.

Irritada consigo mesma por ser incapaz de parar de pensar em Neill, Anne pregou uma expressão de vivo interesse no rosto e sorriu quando ele terminou de contar a história.

— O Sr. Koshnitzki ficou envergonhado quando você lhe disse que era o cachorro dele mesmo?

— Creio que não. ― Frank pareceu surpreso com a sugestão. ― Ele não tinha como saber que não era um gatuno e, sem dúvida, achei melhor que ele tivesse nos chamado do que se tentasse lidar com a situação por conta própria.

— Você nunca fica enjoado desta cidade? ― Anne perguntou, num impulso. ― Nunca imagina como seria morar num outro lugar, ou ser um policial numa cidade que realmente tivesse bandidos e crimes mais graves do que pequenos furtos em lojas?

Frank acabara de pegar a taça de vinho e parou em meio ao gesto de levá-la à boca, segurando-a no ar, os olhos castanhos arregalando-se de surpresa ao fitá-la. Para Frank, aquela era uma expressão forte e Anne esperou para ver o que se seguiria. Porém, após um momento, ele balançou a cabeça levemente, bebeu um gole do vinho e baixou a taça.

— Estou um pouco velho demais para sair em busca de aventuras.

Bem, pois eu não estou, Anne pensou, mas sentiu o rápido fluxo de ressentimento desaparecer tão depressa quanto havia surgido quando Frank continuou:

— Além disso, você, acima de todas as pessoas deveria saber que os crimes violentos não se restringem às grandes cidades.

A frase foi dita num tom calmo e casual, mas a lembrança provocou-lhe um arrepio. Sim, ela sabia que a violência poderia atacar em qualquer lugar, destruindo vidas sem qualquer aviso, deixando nada além de destroços em seu rastro.

— É verdade ― ela murmurou, baixando os olhos para o prato.

— Anne...

Havia um tom preocupado na voz de Frank mas, antes que Anne pudesse continuar. Jack e Lisa estavam parando junto à mesa deles, sorrindo e trocando cumprimentos.

— Achei mesmo que vocês dois estariam aqui ― Lisa falou. ― Tinha quase certeza de que foram ao Luanne na semana passada. ― Embora falasse distraidamente, seus olhos aguçavam-se de amigável provocação quando olhou para Anne.

— Estamos quase terminando ― Frank falou, levantando-se educadamente. ― Mas será um prazer se vocês quiserem beber alguma coisa conosco.

— Nós estamos de saída ― Jack falou. ― Prefiro deixar para beber alguma coisa em casa.

Algo na voz dele fez com que Anne o olhasse, lembrando-se do que Lisa dissera sobre seu problema com a bebida. Os olhos de Jack pareciam brilhantes demais, quase sem foco. Ele não estava cambaleando, mas algo na maneira como apoiou a mão no encosto da cadeira a fez pensar se seria para manter o equilíbrio. Ou estaria apenas imaginando, porque Lisa metera tal ideia em sua cabeça?

Quando voltou-se para a amiga, viu que os olhos verdes de Lisa lampejavam de raiva, os lábios cheios estavam pressionados, os ombros rígidos quando Jack deslizou o braço em torno deles. Com afeição ou buscando apoio?, Anne perguntou-se, ciente de que um nó de medo formava-se em seu estômago.

Não tinha ideia do que foi dito nos poucos minutos em que o casal demorou-se na mesa, apenas presumindo que dera todas as respostas apropriadas. Recusou-se a olhar quando os dois saíram, sem querer ver se os passos de seu irmão não estavam bem firmes.

Só porque ele bebera um pouco demais naquela noite não significava que tinha um problema, disse a si mesma, convicta. Mas, e se tivesse? E se Lisa estivesse certa? Ela deveria fazer alguma coisa? Falar alguma coisa? Não era obrigação sua, como irmã, conversar com ele? Ajudá-lo? Sua mente vacilou, com a ideia. Embora amasse o irmão, Anne subitamente deu-se conta de que não o conhecia realmente. Nunca haviam conversado, jamais foram além das conversas rotineiras. Ela não sabia o que se passava no coração dele, da mesma forma que ele não tinha como saber o que se passava no seu.

De repente, lembrou-se do comentário que Neill fizera acerca das constantes mudanças da sua família, e como isto nunca o incomodara porque, não importava onde estivessem, sempre tinham uns aos outros. Tentou imaginar-se sentindo o mesmo pela sua família, tentou imaginá-los reunidos para planejar onde iriam morar, tentou imaginar seus pais concordando em mudar-se para Denver pelo único motivo de um garoto de treze anos desejar ser um vaqueiro. A imagem não surgia com nitidez, não apenas porque jamais haveria a possibilidade de seus pais viverem em qualquer outro lugar que não fosse em Loving, mas também porque não conseguia visualizar o que poderia ocorrer para que seus pais consultassem os filhos a respeito de algo tão importante quanto mudar para um outro Estado. Ela não precisava conhecer a família de Neill para imaginá-los sentados em torno de uma mesa, com um mapa aberto à sua frente, discutindo sobre a próxima mudança. Era tão fácil recordar a afeição na voz dele quando falou sobre os parentes. E, em consequência disso, era tão fácil perceber a distância que separava sua própria família, uns dos outros.

— Anne?

Ela levou um susto, subitamente ciente de que aquela não era a primeira vez que Frank a chamava. A garçonete estava parada ao lado da mesa com uma expressão educadamente inquisidora.

— Desculpe-me. O que foi que disse?

— Eu estava perguntando se você quer uma sobremesa.

— Não, hoje não, obrigada. Na verdade, estou com um pouco de dor de cabeça ― ela acrescentou rapidamente, antes que ele pudesse pedir a habitual fatia de torta de maçã, ligeiramente aquecida, com uma bola de sorvete de creme.

Simplesmente não conseguiria ficar sentada ali observando-o comer a sobremesa, alternando pedaços de torta com colheradas de sorvete de forma que, ela nunca conseguira compreender, sempre acabava com a quantidade exata de ambos.

— Eu sabia que havia algo errado com você, hoje ― Frank falou, quase satisfeito por obter uma explicação simples para o comportamento dela.

Ele não disse mais nada enquanto pagou a conta e saíram do restaurante. O breve trajeto até a casa dela também foi feito em silêncio. Anne não sabia se era em respeito à sua suposta dor de cabeça ou porque Frank meramente não tinha nada a dizer, mas, qualquer que fosse o motivo, estava grata demais pelo silêncio para sentir-se culpada pela sua pequena mentira.

Quando chegaram ao chalé, Frank acompanhou-a até a porta, como sempre fazia. Ele nunca lhe pedira para entrar, nem demorara-se por ali com a esperança de que ela o convidasse. Esperou até que ela encontrasse a chave na bolsa e abrisse a porta. Seguindo o padrão que havia sido estabelecido, Anne virou-se e ergueu o rosto para ser beijada. O beijo foi tão morno e sem graça como sempre. Frank não parecia muito ansioso por uma reação e, embora tentasse bloquear a mente, Anne não pôde evitar de lembrar-se como sentira quando Neill a beijara, a maneira como seus joelhos ficaram bambos e sua pele aquecera-se sob as mãos dele.

Suspirou baixinho quando Frank afastou-se e olhou-a com um leve sorriso.

— Boa noite, Anne. Uma boa noite de sono é a melhor coisa para esta dor de cabeça.

— Obrigada pelo jantar, Frank. Foi muito agradável.

O sorriso dela desapareceu assim que entrou e fechou a porta, recostando-se contra a madeira enquanto ouvia os passos de Frank na calçada e depois o ruído do motor de seu carro seguindo pela rua. Foi a última vez, admitiu, suspirando. Não passaria mais nenhuma noite de sexta-feira tentando convencer-se de que o fato de ela e Frank terem crescido na mesma cidade criara um laço duradouro entre os dois.

Na verdade, uma semana atrás ela havia pensado no que faria se Frank a pedisse em casamento, e quase decidira que talvez aceitasse. Queria um lar, uma família, e não tinha dúvidas de que ele seria um bom marido. Para outra pessoa. Porque, agora, ela sabia, sem sombra de dúvidas, que não poderia casar com ele. Nunca.

E isso não tinha nada a ver com Neill Devlin, não diretamente, pelo menos. Mas o fato de ter conversado com ele, a maneira como ele a fizera rir, levou-a a perceber como seria impossível casar-se com um homem que raramente proferia mais do que duas frases seguidas, e que pensava que o mundo começava e acabava dentro dos limites daquela cidade.

Suspirando novamente, Anne obrigou-se a se afastar da porta. Era mais do que assustador concluir que aquele breve encontro com Neill tivera a capacidade de transformar sua vida de uma forma tão profunda. Mesmo se ele permanecesse ali por algum tempo, ou se fosse embora no dia seguinte, havia lhe mostrado que ela jamais se contentaria com aquele tipo de afeição morna que sentia por Frank Miller.

Ela queria mais. Precisava de mais. Talvez, embora fosse um pensamento revolucionário, ela até merecesse mais.

A semana de cinco dias só podia ter sido inventada pelos Puritanos, Anne pensou enquanto tirava as roupas úmidas da máquina de lavar e as atirava na secadora. Cinco dias de trabalho, e penas um dia para fazer tudo o que não se tinha tempo de fazer durante a semana, e apenas um dia reservado para as orações. Se as mãos ociosas fossem o divertimento do diabo, ele sem dúvida odiava o típico horário de nove-às-cinco.

Apertou o botão da secadora e ajeitou a mecha de cabelos que soltara-se de seu rabo-de-cavalo. Como seria, se tivesse filhos?, pensou. Provavelmente ficaria louca. Na verdade, não podia se queixar. Morar numa cidade pequena significava que podia resolver a maior parte de seus problemas domésticos durante a semana, na hora do almoço ou depois do trabalho. Deixava as manhãs de sábado para limpar a casa e tinha as tardes livres para fazer o que quisesse, ou não fazer nada, se preferisse. Este era um luxo que, se tivesse filhos, não poderia se dar.

Mas haveria compensações. Anne apoiou-se no aspirador de pó e permitiu-se sonhar um pouco. Os longos banhos de espuma dariam lugar aos bebês brincando na banheira com patinhos de borracha. A leitura de livros sobre cuidados com as crianças substituiriam os romances policiais. Planos de viagens ao parque Disneyworld, em vez de criar itinerários exóticos para as férias que ela jamais teria. Compartilhar a cama com alguém mais excitante do que os ursinhos de pelúcia que acompanhavam-na desde a infância.

Sem dúvida, haveria compensações.

Com um suspiro, ela abaixou-se para soltar o fio do aspirador que enroscara-se na base. Se queria tanto um lar e uma família, poderia casar-se com o bom e velho Frank. Era mais do que evidente que este seria o rumo que o relacionamento deles tomaria. Então, poderia ter seus patinhos de borracha, os livros didáticos e os passeios à Disney. No entanto, não ficaria surpresa se descobrisse que os ursinhos de pelúcia ganhassem de Frank no quesito "excitação".

Franzindo a testa diante de tal pensamento, Anne foi tirar o fio do aspirador da tomada, mas parou ao ouvir batidas na porta. Um olhar de relance pelo vidro fosco da janela mostrou-lhe uma silhueta esguia e conhecida, e Anne arqueou sobrancelha com surpresa. Embora seu chalé ficasse a poucos metros de distância da casa onde crescera, sua mãe raramente a visitava. Desde o início Olivia havia desaprovado a sua ideia de morar sozinha. Quando Anne recusara-se a ceder aos seus argumentos e lágrimas, Olivia lidara com a situação à sua própria maneira. Mantendo distância, ela podia, de certa forma, recusar-se a reconhecer que o fato acontecera.

Nas poucas ocasiões em que fora visitar a filha, não havia hesitado em expressar seu desprazer sobre tudo, portanto Anne não se surpreendeu quando as primeiras palavras que ouviu da mãe foram para reclamar.

— Não sei o que você estava pensando quando colheu estas cores para pintar a casa. ― Olívia passou os olhos pela varanda com evidente desgosto. ― Amarelo com detalhes em rosa. É um absurdo.

— Bom dia, mamãe.

Anne afastou-se para lhe dar passagem, tentando não suspirar de inveja diante da elegância usual com que ela se vestia. Calça comprida de algodão branco, uma blusa simples cor-de-rosa, usadas com sapatilhas de lona e apenas um discreto brinco de ouro nas orelhas. Perto dela, o conjunto de short e blusinha curta, que Anne achara tão alegre, subitamente parecia incomodamente provocante. Bem, havia muito tempo que ela concluíra que, no que se tratava dos gens da elegância, obviamente ela herdara de outra pessoa.

— Esta casa inteira é um absurdo ― ela disse, respondendo à crítica da mãe. ― Eu precisava de uma cor assim para combinar.

— Você poderia ter escolhido tons mais neutros, justamente para diminuir o impacto. Não que isso fosse fazer com que a casa parecesse menos ridícula, esta construção horrorosa com pretensões vitorianas. Todos estes entalhes e rococós...

Anne já ouvira aquele discurso tantas vezes que nem precisava prestar atenção.

Porém, a descrição de Olivia não deixava de ser exata. O chalé fora construído pelo avô de Anne na década de vinte. A família era bastante próspera na época e ele considerava-se uma espécie de gênio em questões de arquitetura. A casa principal fora projetada com pretensões no estilo Tudor que ficariam perfeitas numa casa localizada em alguma colina na Inglaterra. O fato de que dificilmente combinava com uma cidade do interior de Indiana não incomodava Hiram Moore nem um pouco. Ele também não hesitou em pular um oceano e vários séculos quando escolheu o estilo para o chalé que serviria de estúdio para a esposa cujo passatempo era a pintura.

O chalé tinha o rebuscado estilo vitoriano, com suas inúmeras vidraças, piso de madeira nobre e uma escadaria terrivelmente complicada, embora muito charmosa. Anne lembrava-se de quando a casa limitara-se a abrigar os hóspedes que os visitavam duas ou três vezes por ano. As amigas de sua mãe vinham de Atlanta, com seus sotaques arrastados, vestidos em tons pastéis e penteados imensos. Mas tudo isso mudara quinze anos atrás, bem como tantas outras coisas, Anne pensou, e foi apanhada de surpresa por uma dolorosa pontada de ressentimento.

— Gostaria de tomar um café? ― ela perguntou, quando Olivia esgotou os pontos negativos de sua casa.

Olivia hesitou e assentiu.

— Sim, obrigada. ― Seguiu Anne para a pequena e ensolarada cozinha. ― Você comeu ovos com bacon no café da manhã? ― perguntou, olhando para a frigideira deixada no fogão.

— Comi, sim. ― Abrindo o armário, Anne ficou na ponta dos pés para alcançar as xícaras de porcelana com motivos florais. Normalmente tomava seu café numa caneca, mas sabia que a mãe preferia algo mais delicado.

— Espero que esteja observando sua dieta ― Olivia falou, atrás dela. ― Você sabe que tem facilidade para engordar. ― Anne deixou as xícaras na mesa com um cuidado exagerado e fechou os olhos. ― Na sua idade, alguns quilos a mais não parecem ser um problema, mas é muito fácil perder o controle. Veja a sua avó: ela era uma jovem "robusta", mas ficou obesa antes mesmo de completar quarenta anos. E você é baixinha, exatamente como ela. Se fosse um pouco mais alta, não teria de se preocupar tanto com isso.

Anne pressionou os dedos no tampo da mesa e tentou não permitir que as palavras a atingissem. Já ouvira tudo aquilo antes, desde que era adolescente. Nas entrelinhas de tudo o que sua mãe dizia havia o desgosto por ela não ser um pouco mais parecida com sua irmã. Brooke jamais passara pelo estágio de "gordinha". Brooke sempre fora alta, magra e linda.

Com uma habilidade adquirida por anos de prática, Anne empurrou a dor e o ressentimento para um canto escuro da mente e ali os guardou. Sua mãe pensava em seu bem, disse a si mesma enquanto servia-lhe o café. Ficou aliviada em ver que sua mão estava firme, quando levantou a xícara. Houve um tempo em que as críticas não tão veladas de sua mãe a deixavam trêmula e abalada.

— Acho que uns ovos com bacon de vez em quando não são o bastante para me mandar para uma clínica de emagrecimento ― disse, num tom animado. ― Por que não me conta o que veio fazer aqui? Sei que não faria a caminhada apenas para me dizer que tenho péssimo gosto em decoração e alertar-me contra os males do excesso de gordura.

Olivia estreitou os lábios enquanto pegava a xícara que a filha lhe oferecia. Não tivera intenção de amolar Anne com aqueles assuntos irrelevantes. Mas não que se arrependesse de qualquer coisa que dissera. A pintura da casa de fato era absurda e como mãe certamente ela tinha o direito, e até a obrigação, de alertar sua filha sobre os futuros perigos em potencial, o que era exatamente o motivo da sua visita. Exceto que seus motivos nada tinham a ver com nutrição e Olivia sentiu-se um tanto aborrecida por ter-se distraído. E um pouco mais do que apenas aborrecida por Anne ter-lhe perguntado o que viera fazer ali, tornando impossível uma abordagem mais sutil.

— Ontem conversei com Betty Hardeman. Ela está organizando um comitê para angariar fundos para a restauração do antigo fórum, e perguntou-me se eu estaria interessada em participar.

— Ouvi falar sobre isso.

A fim de ocupar as mãos, Anne serviu seu café numa caneca decorada com uma cena engraçadinha, de ratinhos num piquenique. Tinha quase certeza do que havia por trás daquela visita de sua mãe: Betty Hardeman era tia de DeDe Carmichael. As duas não tinham muitas coisas em comum, pois Betty não fazia segredo do que realmente pensava da sobrinha, mas certamente DeDe comentara com a mãe que Anne Moore almoçara no Luanne com um desconhecido. Lissy Raybourne não pensara duas vezes antes de pegar o telefone e contar a novidade à Betty.

Bem, ela sabia que isso acabaria acontecendo, Anne pensou enquanto mexia o café. Não se pode guardar segredos numa cidade do tamanho de Loving. Se sua mãe não tivesse feito tanta questão de manter-se distanciada da comunidade pelos últimos trinta e tantos anos, não levaria quatro dias para saber da notícia. Anne decidiu encarar as coisas pelo lado bom, e encarar o atraso como um intervalo para respirar. Talvez tenha sido isso que lhe deu coragem para tomar o controle da situação.

— Então, imagino que Betty tenha lhe contado que almocei com um homem que ninguém soube identificar ― ela disse casualmente e obteve a rara satisfação de ver a mãe desconcertar-se.

Foi por pouco tempo, mas a inesperada admissão, bem como o lampejo de firmeza nos olhos normalmente meigos da filha, fizeram com que Olivia decidisse mudar a tática de ataque. Em geral, Anne estava disposta a fazer qualquer coisa para manter a paz, mas às vezes mostrava-se estranhamente teimosa, como quando resolvera mudar-se para aquele chalé ridículo.

— Na verdade, quando Betty contou-me sobre o seu almoço, já sabia de muitas coisas a respeito do seu acompanhante ― Olivia falou. ― O nome dele é Neill Devlin, se não me engano. Um escritor, cuja motocicleta quebrou em algum lugar próximo a cidade, é isso? Presumo que seja o cavalheiro que você conheceu na oficina de David Freeman, na semana passada?

— É, sim. ― A resposta de Anne foi evasiva. Conhecia a mãe muito bem para dar como certa aquela aceitação tão fácil. Uma semana atrás, a simples ideia de que a filha conversara com um desconhecido tinha sido suficiente para deixá-la histérica. Agora, tocava no assunto como se não houvesse nada de errado naquilo. ― Eu o encontrei duas vezes ― Anne admitiu, achando melhor deixar tudo às claras.

— É mesmo?

Olivia manteve o sorriso fixo no rosto, mas seus dedos apertaram-se em torno da xícara delicada. Isso era algo que ela não sabia e servia para confirmar o que seus instintos lhe diziam, que aquele homem era um perigo a ser afastado o mais depressa possível.

— Ele vai levar-me ao cinema hoje à noite. ― Anne empinou o queixo e encarou a mãe. ― Eu gosto dele. Gosto muito. Ele viajou por muitos lugares, é uma pessoa interessante e tem um excelente senso de humor.

— E, se é que posso acreditar em Betty, é muito atraente.

— É, sim. ― Anne não pôde evitar o rubor que cobriu-lhe as faces. ― É muito atraente.

Olivia assentiu e baixou os olhos para a xícara, enquanto debatia consigo mesma sobre a abordagem seguinte. Permitiu que sua expressão se suavizasse, se tornasse mais vulnerável.

— Eu sei que... exagerei um pouco na semana passada, quando você o mencionou. Imagino que, para você, tenha sido uma reação tola. Afinal, já se passaram quin... quinze anos. ― Houve uma sutil hesitação na voz dela. ― É uma vida inteira, para alguém da sua idade, mas eu nunca consegui me esquecer do que aconteceu.

— Nenhum de nós esqueceu. ― Anne tocou o braço da mãe. ― Eu não esqueci.

— Nesse caso, talvez possa entender porque me preocupo tanto com você.

— Eu... é claro que sim. ― Anne demorou um pouco a concordar, pois conhecia bem a capacidade de Olivia de manipular todos que a rodeavam para fazer o que ela queria. Ou o que ela decidia que os outros deviam querer.

Se Olivia ouviu sua hesitação, preferiu ignorá-la.

— Estive pensando se o seu... se o Sr. Devlin gostaria de jantar conosco amanhã ― sugeriu. Percebendo a expressão de chocada surpresa no rosto da filha, apressou-se em acrescentar: ― Reconheço que estou sendo superprotetora, mas me sentiria muito melhor se eu... se nós ficássemos conhecendo este rapaz que você está namorando.

— Não estou "namorando" ninguém, mamãe ― Anne protestou. ― Por tudo o que sei, ele pode estar indo embora amanhã mesmo. Ele vai ficar aqui somente até que David consiga as peças da motocicleta.

— Bem, se ele tiver ido embora amanhã então não teremos nada com que nos preocupar, certo? ― Olivia falou, sorrindo levemente. ― Porém, se ainda estiver aqui, gostaria muito que você o levasse para jantar conosco. ― Seu sorriso tornou-se autodepreciativo. ― Eu me sentiria bem melhor se tivesse uma chance de conhecê-lo.

— Eu... vou perguntar a ele ― Anne falou, tentando ocultar a relutância.

Ela não queria levar Neill para o jantar do dia seguinte. Os momentos que passara com ele tinham sido algo à parte da sua vida real. Para ele, ela era apenas Anne Moore, que trabalhava num banco e dirigia um carro chamado Lucy. Neill não sabia mais nada além do que ela decidira lhe contar. Quando olhava para ela, não via a terrível tragédia e a perda. Via somente... ela mesma. Anne não se dera conta, até agora, do quanto isso significava.

Porém, não podia recusar o pedido da mãe. Porque, fosse como fosse, a perda de Olivia era real. Talvez ela a estivesse usando para manipular as pessoas, mas isso não tornava menos válida a sua preocupação.

— Vou convidá-lo para jantar ― Anne repetiu, forçando um sorriso.

— Obrigada. ― O sorriso de Olivia era caloroso. E por que não seria?, Anne pensou com uma pontinha de sarcasmo quando acompanhou a mãe até a porta. Ela conseguira exatamente o que queria... como sempre.

Anne abaixou-se para pegar o fio do aspirador que largara quando Olivia chegara. Tirando-o da tomada da parede, imaginou o que Neill pensaria do convite que prometera fazer.

— O sujeito levou o machismo a uma altura jamais imaginada ― Anne falou com firmeza. ― Ou a uma profundeza.

— Não creio que já existissem machistas no século dezenove ― Neill argumentou, franzindo a testa. ― Acho que tais espécimes só começaram a surgir por volta dos anos sessenta. Além disso, você precisa dar-lhe um crédito pelo forte sentido de família. Ele poderia simplesmente ignorar o sofrimento emocional dos irmãos mas, em vez disso, decidiu agir e fazer o que podia para aliviar-lhes a dor. Se pensar assim, verá que na verdade ele era um homem à frente do seu tempo: sensível e dedicado.

Anne parou na calçada e virou-se para encará-lo.

— Raptar seis jovens aterrorizadas e deliberadamente deixá-las isoladas numa montanha com um bando de rapazes ignorantes e sujos... acha isso algo sensível e dedicado?

— Tudo bem, então talvez ele fosse um pouco... impetuoso ― Neill concedeu. Um casal passou por eles, olhando-os com curiosidade. ― Mas aqueles rapazes sujos e ignorantes eram irmãos dele, e foi a profunda preocupação pela felicidade deles que o fez agir como fez.

Anne quase engasgou com o ataque de riso.

— Meu Deus! Daqui a pouco você estará me convencendo que ele foi o mais inocente de toda a história.

— Bem... ― Neill prolongou o som da palavra. ― Não sei se chegaria a tanto, mas realmente 180penso que havia uma certa... nobreza de espírito em seus atos que... ― Interrompeu-se quando Anne tornou a rir. Era um som tão alegre e juvenil que ele achou difícil manter uma expressão séria. ― Achei que estivéssemos tendo uma discussão profunda e intelectual acerca da importância social do filme que acabamos de ver.

— Aposto que é a primeira vez que alguém tenta encontrar uma importância social no filme "Sete Noivas para Sete Irmãos".

Neill arqueou a sobrancelha e encarou-a.

— Pois já estava mais do que na hora de alguém reconhecer o seu verdadeiro valor. Por exemplo, como alguém pode ignorar o profundo significado contido nas letras das músicas?

— Ou a melancolia existente na canção "Abençoe o Nosso Belo Esconderijo"?

— Não estou bem certo quanto a essa canção em particular ― Neill falou, pensativo. ― Talvez ela não passe de uma demonstração do mais completo machismo.

O riso de ambos provocou vários olhares e uns poucos sorrisos de simpatia. Durante a semana as calçadas de Loving ficavam completamente vazias por volta das nove da noite. Exceto pelos restaurantes e por um ou dois bares, o comércio todo fechava. Mas as noites de sábado eram diferentes. As noites de sábado eram para se namorar, levar a família para comer um sanduíche e, em semanas alternadas, ir ao cinema. Quando o filme terminava, a pequena multidão saía do velho cinema e, nas noites quentes de verão, demorava mais a voltar para casa.

Passaram por um casal de idosos que caminhava devagar, num mesmo ritmo arrastado, de mãos dadas como namorados. Mais adiante havia um jovem casal com uma criança entre eles, que balançava apoiando-se nas mãos dos pais a cada passo que davam.

— "Mayberry" ― Neill murmurou, e ficou surpreso ao perceber que pensara em voz alta. Captou o olhar de indagação de Anne e encolheu os ombros. ― Esta cidade me faz sentir como se estivesse no cenário de um filme. Fico esperando ver Barney Fife aparecer no fim da rua, ou a tia Bea sair do salão de beleza.

Anne olhou em volta, tentando ver tal cena através dos olhos dele. Para ela, era apenas a cidade onde nascera. Sabia que era pequena e rural, e até desatualizada, mas nunca pensara muito nisso. Simplesmente era como sempre havia sido.

— E isso o incomoda? ― ela perguntou, curiosa.

— Não. É uma mudança agradável. ― Neill tomou-lhe a mão, entrelaçando os dedos nos dela, e Anne sentiu o coração disparar com aquela intimidade casual. ― Sem dúvida, tem as suas vantagens. As pessoas sorriem umas para as outras. Ninguém precisa se preocupar com vagas para estacionar, e o nível de crimes deve ser baixíssimo.

Anne estremeceu, apesar do ar quente da noite.

— Não é nenhum paraíso ― murmurou. ― Os crimes não se limitam às grandes cidades.

— Não, mas também não é contado em números de três dígitos, num lugar como este. ― Neill reparou na expressão dela quando passaram por um poste de luz, e pressionou-lhe a mão. ― O que foi?

— Nada. ― Anne fez um esforço para sorrir e tentou afastar as lembranças que ameaçavam ressurgir. Olhou para ele, seu sorriso tornando-se ligeiramente maroto. ― Eu estava pensando que ainda não paguei a minha parte daquele nosso primeiro almoço. O que acha de eu lhe pagar um milk-shake, agora, e ficamos quites?

— Eu bem que gostaria de um milk-shake. ― A voz dele baixou um tom. ― Mas tenho de lhe dizer que acho que a sua primeira oferta foi um pagamento mais do que adequado.

Anne lançou-lhe um rápido olhar, viu o calor nos olhos dele e deu-se conta de que ele referia-se ao beijo naquela primeira noite, quando fora ao quarto dele no motel. O rubor cobriu-lhe as faces e ela desviou o olhar, temendo que ele percebesse as emoções que invadiam seu peito.

Cinema, milk-shakes e um passeio de carro com uma garota numa noite quente de verão. Neill tentou se lembrar da última vez que passara uma noite tão inocente, agradável e sexualmente frustrante, e concluiu de devia ter sido quando estava no colegial.

Eles tinham rido comentando o filme, depois conversaram enquanto tomavam os milk-shakes até que o proprietário do Luanne anunciou que estava na hora de fechar e expulsou os últimos fregueses pela porta afora. E durante todo aquele tempo, entre risos e conversas, ele estava ciente de uma eletricidade, uma necessidade. Ela também sentia. Neill captou relances nos olhos dela, aqueles olhos acinzentados que mal conseguiam ocultar seus pensamentos. Podia perceber no ligeiro tremor que a perpassava quando tomava-lhe a mão, ou quando tocava-lhe os cabelos.

Sendo homem, não podia evitar de imaginar se conseguiria convencê-la a ir com ele para seu quarto no motel. Achava que as chances eram bastante boas. Porém, porque queria dela algo além de um caso rápido e passageiro, achou melhor não tentar. Não tinha certeza do que esse "algo mais" poderia ser, e isso o amedrontava um pouco. Também tornava mais fácil seguir seus instintos mais básicos. Até que compreendesse o que estava sentindo, não precisava apressar nada.

— Eu me diverti muito esta noite. ― Haviam chegado ao carro dela, que ficara estacionado na frente da lojinha de Lisa. Parada ao lado da porta, ela virou-se e olhou para ele. ― Obrigada, Neill.

— O prazer foi meu.

Ela estava tão linda parada ali, com a blusa listrada de azul e branco e a calça jeans impecáveis, os cabelos presos com um par de fivelas douradas, agradecendo como uma garotinha depois de uma festa de aniversário.

Os olhos dela arregalaram-se um pouco quando Neill aproximou-se e apoiou uma das mãos no teto do seu carrinho. Sua respiração ficou ofegante, os olhos colaram-se nos dele. Por que ela o perturbava tanto?, Neill perguntou-se, quase irritado. Nem era o seu tipo de mulher. Ele gostava das morenas magras e altas, com olhos que diziam que sabiam tudo sobre como era a vida. Não de mulheres como aquela loura cheia de curvas, com inocentes olhos azuis e, que Deus o ajudasse, com os lábios mais tentadores que ele já vira em toda sua vida.

Anne emitiu um leve suspiro quando ele a beijou. Era o que ela estivera esperando a noite inteira. Não, se fosse realmente honesta, tinha de admitir que estivera pensando nisso desde a última vez em que ele a beijara, dois dias atrás, no parque. Quase convencera-se de que havia sonhado com aquele beijo, com a maneira como o mundo girara, enchendo-se de cores e luzes. A maneira como seu sangue parecera ficar mais denso mesmo quando seu pulso se acelerara.

As chaves que ela havia tirado da bolsa caíram no chão, quando agarrou-se a Neill em busca de equilíbrio, sentindo a firmeza de seus músculos quando ele apertou-a mais contra si, mudando o ângulo do beijo, aprofundando-o. Suas bocas entreabriram-se, encontrando-se, saboreando-se mutuamente.

Com esforço, Neill separou os lábios dos dela. Fitando-a, tentou entender o que haveria nela para deixá-lo tão completamente fora de controle, como ninguém jamais fizera. Um único beijo, em público, novamente, e ele já estava pronto para arrastá-la até algum beco escuro e possuí-la. E ela permitiria de bom grado, pensou, vendo o brilho de desejo nos olhos dela. Estava trêmula sob suas mãos, e Neill pressionou-lhe os ombros levemente, antes de soltá-la e dar um cauteloso passo para trás.

Malditos escrúpulos e bom senso, ele pensou com raiva. Abaixando-se, pegou as chaves no chão.

— É melhor você ir embora ― disse, entregando-lhe as chaves.

— S-sim.

Anne ficou olhando para as chaves por um momento, como se não soubesse exatamente para que serviam. Então, conseguiu encontrar a chave certa e abrir a porta do carro. Neill enfiou as mãos nos bolsos e ficou observando-a, com uma expressão emburrada. Antes de entrar, Anne voltou-se para ele, os olhos muito abertos e incertos, os dentes pressionando o lábio.

— Você... quer que eu o deixe no motel?

— Obrigado, mas acho que prefiro ir andando. Preciso de um pouco de exercício. ― Neill não confiava em si mesmo para passar um minuto sequer ao lado dela. Porém, quando Anne virou-se para entrar no carro, deu um passo à frente e disse: ― Vamos jantar amanhã?

— Ah... ― Ela mordeu o lábio, lembrando-se da promessa que fizera à mãe. ― Eu gostaria muito, mas... Jack e eu sempre vamos jantar na casa dos meus pais, aos domingos. Na verdade, minha mãe disse-me para convidá-lo.

— Sua mãe? ― Neill franziu a testa e Anne sentiu-se ruborizar.

— Ela ouviu... isto é, eu... ahn... mencionei que nós temos saído juntos e ela gostaria de conhecê-lo.

Anne sentia o rosto em brasa. Estava tão acostumada ao fato de que sua família, ou melhor, sua mãe, se sentisse no direito de comandar sua vida que foi somente quando proferiu o convite que percebeu o quanto isso parecia estranho. Não era assim que as coisas aconteciam no mundo real, pensou. No mundo real uma mulher de vinte e cinco anos não tinha de levar o homem que conhecera havia menos de uma semana para que seus pais inspecionassem.

Neill pensou no convite por um instante. As coisas tinham mudado muito nos últimos tempos, mas o fato de conhecer os pais de uma garota ainda continha uma ameaçadora aura de um possível compromisso. Mas estava curioso, concluiu. Ele lhe contara tudo sobre sua família, mas Anne não falara quase nada sobre a dela. Já havia conhecido o irmão e talvez fosse interessante conhecer os seus pais.

— É claro ― disse, devagar. ― Um jantar de domingo me parece uma ótima ideia.

 

Uma semana, Neill pensou, enquanto observava o tráfego esporádico de domingo à tarde no posto de gasolina. Uma semana atrás ele estava arrastando-se através de uma estrada de terra, fantasiando sobre pegar o primeiro avião que o levasse para bem longe daqueles milharais. Agora, bastava virar a cabeça para avistar as plantações de milho que estendiam-se a uma distância adequada dos limites da cidade, e a paisagem não o incomodava nem um pouco. Estava até disposto a conceder que havia algo de majestoso nas intermináveis fileiras de folhas verdes e espigas douradas.

O ar estava quente e parado, o sol reluzindo num céu sem nuvens. Ele fora algumas vezes aos bares da cidade e ouvira as conversas dos frequentadores. Havia alguma preocupação com a chuva: ela viria na época certa, e seria suficiente? Não se podia descartar a possibilidade de granizo, também. Naturalmente o milho estava quase pronto para ser colhido, portanto uma chuva de granizo não significaria o mesmo desastre que teria sido no início da estação. Neill ficara sabendo sobre a operação da próstata de Milt Bowdrie, ouvira dizer que a filha mais nova de Lewis conseguira uma bolsa de estudos numa faculdade do Leste e acompanhara a maldosa especulação sobre a possibilidade de a recente viagem de Sally Ann Weaver para visitar a família em Bismark ser apenas uma cobertura para a plástica nos seios que ela faria.

Se alguém acha que a fofoca é uma prática feminina deveria passar uma tarde num salão de bilhar, Neill pensou, lembrando-se. Ficou olhando uma velha picape azul diminuir a velocidade a fim de esperar que um cachorro cinzento atravessasse a rua e ergueu a mão para retribuir o aceno do motorista. Não tinha a menor ideia de quem era, e perguntou-se se ela o conheceria ou se estava apenas sendo amigável.

Satisfação. Era isso que ele estava sentindo naquele exato momento. Não era um sentimento muito comum para ele, especialmente nos últimos anos. Neill já conhecera sensações esfuziantes, a venda do seu primeiro livro, vê-lo alcançar o topo da lista dos mais vendidos do New York Times, depois vender o segundo livro e provar à si mesmo que não fora somente um golpe de sorte, que talvez ele tivesse realmente encontrado algo que poderia fazer pelo resto da vida.

Neill não diria que era infeliz, mas ultimamente estivera ciente de uma inquietante sensação de que algo lhe faltava. Às vezes apanhava-se perguntando: será que isso é tudo? E depois recriminava-se pelo próprio descontentamento e insatisfação. Aquela última semana lhe mostrara que o seu problema não era querer mais. Na verdade, ele queria algo diferente, talvez até menos do que tinha, pelo menos em termos do sucesso convencional. E lembrara-se de uma coisa que quase havia esquecido: o quanto gostava de escrever.

A história que ele começara naquela primeira tarde ainda estava ali, incitando-o, não lhe dando outra escolha senão escrevê-la. Neill não tinha a menor ideia do que faria com ela quando estivesse pronta mas isso não importava. Por enquanto era o bastante simplesmente desfrutar de todo o processo.

— Pode dar uma mãozinha aqui? ― David perguntou atrás dele.

Neill virou-se na porta e foi até onde David estava trabalhando, no motor de uma velha caminhonete preta. Um motor recém reformado estava suspenso sobre o capô aberto, pronto para ser colocado no lugar.

— Segure pelos lados enquanto eu o abaixo ― David instruiu.

— Certo.

Aquilo também era algo de que Neill sentia falta, o cheiro de graxa e gasolina, a satisfação encontrada em construir, consertar, criar alguma coisa com as próprias mãos em vez de usar o intelecto. Depois de passar as manhãs escrevendo, adquirira o hábito de ir até a oficina de David e ajudá-lo no que fosse necessário, incluindo o serviço de frentista no posto de gasolina. Se David Freeman estranhara aquela súbita aquisição de um ajudante, não disse nada. Depois que certificou-se de que Neill sabia a diferença entre um carburador e uma bomba de gasolina, deixou-o por conta própria.

— Esta caminhonete parece mais velha do que meu avô ― Neill comentou enquanto baixavam o motor. ― Não faria mais sentido simplesmente instalar um novo chassis sob o motor?

— Bill Brent comprou esta picape zero quilômetro em 1955. Deve ter pago uns dois mil dólares por ela. Pelo que meu pai conta, Bill reclamou do preço pelos primeiros quinze anos, depois trocou o motor por um novo e continuou reclamando do fato de que o velho tinha durado somente este tempo. Desde então, ele tem se queixado de todos os consertos que precisa fazer no veículo, primeiro com meu pai e depois quando passei a cuidar da oficina. Na verdade, ele se importa mais com esta caminhonete do que com a própria esposa. Mas não o culpo por isso ― David acrescentou, tentando ser justo. ― Roberta Blair tem uma cara de quem comeu e não gostou, uma voz esganiçada e está sempre reclamando de alguma coisa.

— Parece que foram feitos um para o outro.

— Provavelmente. Mas pelo menos Bill não tem uma voz de taquara rachada.

Depois disso, continuaram trabalhando em silêncio. Quando estava no colegial Neill passara um verão inteiro trabalhando como ajudante de mecânico, ganhando o bastante para comprar o seu primeiro carro, um Camaro cupê caindo aos pedaços, que ele mesmo reformara. Neill não conseguia pensar em qualquer outra coisa que possuíra, antes ou depois, que lhe desse a mesma sensação de orgulho. Com o motor no lugar, ele pegou um trapo na bancada de ferramentas e limpou a graxa das mãos. Talvez devesse vender a moto, pensou, comprar um veículo que pudesse reformar.

— Ouvi dizer que você tem visto Anne Moore com frequência ― David falou. Não olhou para cima, e Neill não conseguiu perceber nada em sua voz.

— Acho que, numa cidade deste tamanho, poucas coisas passam despercebidas.

— Poucas coisas ― David concordou. Endireitou-se e olhou para Neill através da caminhonete. ― Eu conheço Anne desde criança. Detestaria vê-la magoada.

O aviso velado espicaçou a raiva de Neill, principalmente porque ele também tinha a mesma preocupação. Não precisaria conhecer Anne desde a infância para saber o quanto ela era vulnerável. Não havia nenhuma malícia nela, nenhuma esperteza, nenhuma das fachadas que as pessoas costumam usar para se proteger.

David provavelmente percebeu o rápido lampejo de irritação, mas seu olhar manteve-se firme. Questionando.

— Eu não sabia que Anne tinha mais um irmão ― Neill falou, contendo a raiva.

— Quando se trata de Anne, a cidade inteira pode agir como se ela fosse uma irmã. Anne já passou por muito sofrimento em sua vida.

Neill ergueu a cabeça rapidamente, os olhos aguçados de curiosidade. A ideia de alguém causando sofrimento a Anne provocou uma onda de puro ódio em todo seu ser.

— Quem a fez sofrer? ― A pergunta foi feita num tom calmo, perigoso.

— Foi há muito tempo. É melhor esquecer. ― David balançou a cabeça e franziu a testa observando o motor, e Neill teve a impressão de que o que havia na expressão dele podia ser qualquer coisa, exceto esquecimento. Quando tornou a falar, foi num tom pesaroso. ― Isso não é da minha conta ― admitiu. ― Mas não posso evitar de me sentir responsável, de certa forma, por você estar preso nesta cidade há tanto tempo, e por ter conhecido Anne.

— Não há nada que você possa fazer, sem as peças.

— Sim, é verdade.

Mas David ainda parecia pouco à vontade. Neill sentiu a súbita irritação desaparecer, tão rápido quanto surgira. Não podia culpar David por preocupar-se com Anne.

— Não sei o que vai acontecer entre Anne e eu ― disse, finalmente. ― Mas jamais a magoarei, 180se puder evitar.

— É bastante justo. ― David assentiu, depois esboçou um sorriso desconsolado. ― Aposto que você preferia ter-me dado um soco no queixo.

— Na verdade, eu teria escolhido o nariz. Faz um barulho bem mais satisfatório.

Neill riu quando David fez uma careta. Com o bom humor restaurado, recostou-se no para-choque da caminhonete e decidiu ele próprio obter algumas informações.

— Então, fale-me sobre a família de Anne. Fui convidado para jantar com eles, esta noite ― disse, e viu os olhos de David arregalarem-se de susto.

— É melhor ir com um colete a prova de balas ― David falou. Porém, no instante seguinte, parecia desejar ter ficado com a boca fechada.

— Um colete a prova de balas? ― Neill franziu a testa. De todas as respostas que poderia esperar, aquela não se incluía. ― Corro o risco de deparar-me com um pai hostil, empunhando uma espingarda carregada?

— Duvido que o Dr. Moore saiba sequer empunhar uma espingarda. A única preocupação que você pode ter a respeito dele é que talvez esqueça da sua presença na casa.

— Bem, eu já conheci o irmão e admito que aquele uniforme e a arma reluzente foram um tanto intimidadores, mas ele não me pareceu o tipo que atira primeiro e depois faz as perguntas.

— Jack é um bom sujeito ― David falou devagar, concentrando-se novamente no motor. ― Nós frequentamos a escola juntos. Ele... mudou um bocado no decorrer dos anos, mas é um bom sujeito.

— Nesse caso, resta apenas a mãe de Anne. Intrigado, Neill inclinou-se para a frente. ― Qual é o problema com ela? Será que costuma vagar pelos milharais nas noites de lua cheia? Masca tabaco e limpa os dentes com a faca?

— Não que eu já tenha visto. ― David hesitou um pouco e encolheu os ombros. ― Ela mora nesta cidade há quase quarenta anos e não creio que haja mais do que duas ou três pessoas que a chamem pelo primeiro nome.

— Interessante.

Neill endireitou o corpo e pensou. Numa cidade do tamanho de Loving, quase todos se tratavam pelo primeiro nome. Se a mãe de Anne conseguira permanecer à parte da comunidade por quatro décadas, era uma realização e tanto. O comentário a respeito do colete a prova de balas deixava claro que não era a timidez que a mantinha em termos tão formais com seus vizinhos. Então, que tipo de mulher seria capaz de manter uma cidade inteira à distância e também criar uma filha tão simpática e carinhosa quanto Anne? Sem dúvida, era uma questão interessante.

— Acho que eu deveria ter ficado quieto ― David falou, desconfortável.

— Fui eu quem perguntou. ― Neill afastou-se da caminhonete e mudou de assunto. ― Por acaso existe alguma locadora de automóveis nesta cidade?

— Não que eu saiba. Não há muita procura por carros de aluguel. Precisa ir a algum lugar?

— Não, só estou um pouco cansado de ficar andando a pé para toda parte.

E, tolo como era, não gostava da ideia de Anne ir buscá-lo para o jantar na casa de seus pais. Era uma noção ultrapassada, mas Neill não conseguia afastar a ideia de que ele deveria buscá-la em casa, e não o contrário. Um exemplo perfeito do que ela chamaria de "machismo". E com toda razão.

David endireitou-se e pegou um trapo sujo no bolso. Limpando as mãos, olhou para Neill com um ar pensativo.

— Eu tenho um carro que poderia lhe emprestar ― disse, devagar. ― Não tem sido muito usado, mas está funcionando perfeitamente.

— Não sou exigente ― Neill assegurou-lhe. ― Qualquer "lata velha" vai me servir.

David riu.

— Duvido que alguém chame o meu carro de "lata velha".

David lhe emprestou o Corvette dele? ― Anne arregalou os olhos com incredulidade, ao ver o carro esporte. Quando o vira estacionar em frente da sua casa, sentira o coração parar por um instante, imaginando que David viera avisá-la de que Neill fora embora da cidade. E até mesmo quando vira a figura alta de Neill saindo pela porta do motorista, levara um momento para captar a realidade.

— David não empresta este carro a ninguém ― ela acrescentou, ainda surpresa. ― Ele próprio só o tira da garagem de vez em quando.

— É, foi o que ele disse. ― Neill deslizou a mão pelo capô do veículo com uma expressão deslumbrada, e Anne não pôde deixar de pensar como seria se ele a tocasse daquela maneira. ― David contou-me que comprou-o por uma pechincha de uma velha senhora no Arkansas, cujo marido o comprara e, poucos anos depois, depois fugira com uma professora do jardim-de-infância. Ela deixou o carro parado no quintal por quase trinta anos. Pode imaginar alguém fazendo uma barbaridade destas com um Stingray cupê 1965?

Ele parecia tão abalado que Anne mordeu o lábio para conter um sorriso. O que seria aquilo, aquela afeição e admiração que os homens nutriam pelos carros? Não que ela pudesse ser a primeira a atirar uma pedra, não com Lucy estacionada ali, sorrindo-lhe.

— O carro estava em péssimo estado quando David o rebocou para cá. Na época, pensei que serviria apenas para o ferro-velho ― Anne falou e quase riu alto ao ver a expressão horrorizada no rosto dele.

— Está brincando? Você sabe o que é isso? Este é um modelo exclusivo, conversível, com um motor V-8 "Turbo-Jet", 425 cavalos, freios a disco. Só foram fabricados umas poucas centenas deste modelo. A carroceria está perfeita e o carburador ainda...

Neill percebeu o ar de completa ignorância nos olhos de Anne e interrompeu-se, sorrindo um tanto timidamente.

— Desculpe-me. Acho que me deixei levar pelo entusiasmo.

— Tudo bem. Eu entendi que ele é conversível, mas fiquei perdida depois disso ― ela admitiu. ― Porém, pelo que você falou, deve ser um carro bastante veloz.

— Muito. Pensei que talvez pudéssemos dar um passeio na semana que vem, seguir pela estrada com a capota baixada e pisar para ver até onde chega este motor.

Anne sorriu. Gostava da ideia, exceto pelo detalhe de deixar a capota arriada e transformar seus cabelos num ninho de gatos. Mas ficava contente por ele ter planejado ficar por ali na semana seguinte, e ainda mais com aquela presunção natural de que estariam vendo-se novamente. Isto a fez sentir-se... quase cúmplice.

— Então, onde moram os seus pais? Vamos de carro ou andando?

— Andando. A casa deles fica a poucos metros daqui. Deixe-me pegar a chave e trancar a porta.

— Anne ficara tão surpresa ao ver que ele estava com o precioso Corvette de David que, em vez de esperar que ele batesse em sua porta, fora encontrá-lo lá fora.

Neill observou-a correr para dentro de casa. Ela estava usando mais um daqueles leves e simples vestidos que lhe caiam tão bem, era azul claro, sem mangas, com um decotezinho redondo e saia curta. E tudo o que ele podia pensar era o quanto queria descobrir o que ela usava por baixo.

Incomodado por descobrir que ficava excitado só de pensar nisso, Neill enfiou as mãos nos bolsos e, cruzando as pernas nos tornozelos, recostou-se no carro e tentou pensar em outra coisa. Qualquer coisa que não fosse a imagem daquelas longas pernas enroscando-se em sua cintura, ou a maneira como os seios dela...

Praguejando baixinho, afastou-se do veículo. Aparecer na casa dos pais dela com uma evidente ereção não daria uma primeira impressão muito favorável, principalmente considerando-se que irmão dela andava armado. Com um esforço determinado, focalizou a atenção na casinha à sua frente. Sem dúvida, era incomum o bastante para lhe fornecer alguma distração. O sobrado todo cheio de detalhes, pintado de um cor-de-rosa suave com os detalhes das janelas e portas em amarelo era uma versão quase de brinquedo das casas vitorianas de São Francisco. Havia uma cerquinha branca com um portãozinho na frente, com arbustos de rosas por toda a extensão. Uma trepadeira de rosas também cobria os pilares da varanda, rosas de todas as cores e tamanhos que enchiam o ar com um suave perfume. Era como olhar para uma casinha encantada num livro de histórias. E, quando Anne saiu pela varanda e caminhou na direção dele, Neill achou que ela combinava com a imagem. Havia nela algo de princesa de contos de fadas, um quê de fragilidade, como se estivesse apenas esperando por um beijo para ser despertada.

Sem pensar, ele adiantou-se e foi ao seu encontro quando ela chegou ao portão. Anne parou e fitou-o, com uma indagação no olhar. Neill não tinha certeza de qual seria a pergunta e, sem dúvida, não queria saber a resposta. Tudo o que sabia era que precisava beijá-la naquele instante, no meio daquelas roseiras, com o zunido sonolento das abelhas e tendo somente os dois em todo o universo.

Viu os olhos dela arregalarem-se quando tomou-lhe o rosto entre as mãos, viu a súbita percepção iluminá-los e, depois, as pálpebras fecharem-se devagar, quando baixou os lábios para os dela.

Foi um beijo tão doce e terno que Anne sentiu as pernas dobrarem-se. Ergueu as mãos, apoiando-se nele enquanto o mundo dissolvia-se à sua volta.

O beijo terminou tão lentamente quanto começara e ela abriu os olhos, relutante em voltar para a realidade. Neill a fitava, com os olhos azuis contendo algo que ela achou impossível discernir. Talvez fosse uma pergunta, ela não sabia. Ficaram parados ali pelo que lhes pareceu um longo tempo, mas podia ser apenas alguns segundos, com as mãos dele segurando-lhe o rosto, os olhos perscrutando sua alma. Então, ele sorriu, os olhos aquecendo-se. Passou um dedo levemente pelo seu rosto e baixou as mãos, deixando-a momentaneamente perdida e solitária.

Sem nada dizer, Neill abriu o portãozinho e, tomando-lhe a mão, levou-a na direção do pôr-do-sol.

Ajantarado de domingo no campo. A frase em si já evocava uma determinada imagem. A família reunida em torno da grande mesa de carvalho, rindo e conversando enquanto passavam os pratos fumegantes de frango frito e crocante, pãezinhos saídos do forno e tigelas com molho gravy. Cortinas em xadrez branco e vermelho flutuavam sob a brisa suave, o trinar dos pássaros e o mugir do gado ao longe, uma extensa e ampla varanda com cadeiras de balanço e, talvez, um banco onde todos se sentavam depois do jantar, bebericando limonada e contemplando o ondular cor de âmbar do trigo, ou as majestosas montanhas arroxeadas à distância.

Porém, Neill concluiu que entre a fantasia e a realidade existia mais do que uns poucos desencontros. A mesa era de mogno envernizado, em vez de carvalho; a sala de jantar era lindamente decorada em tons de cinza e azul, mais funérea do que aconchegante. O ar-condicionado central eliminava, com muita eficiência, a brisa suave, os pássaros canoros e o gado mugindo. Havia uma varanda, mas não era do tipo que acomoda cadeiras de balanço e bancos, mesmo porque Neill não conseguiria imaginar a família Moore ali sentada, bebendo limonada e conversando.

Na hora em que a refeição foi servida, todos os assuntos de conversa pareciam ter-se esgotado. Uma ou outra pergunta sobre como cada um deles passara a semana, uma breve discussão sobre o tempo, a menção de que a recepcionista do Dr. Moore estava pensando em se aposentar, e ninguém mais parecia ter nada a dizer. Neill não pôde evitar a comparação com as reuniões da sua própria família, quando todos falavam ao mesmo tempo, assuntos eram iniciados e abandonados quando um novo tópico surgia, discussões e risos. Imaginou se alguém já dera uma boa gargalhada naquela sala friamente elegante. Certamente não sem a permissão de Olivia Moore, ele concluiu, olhando para sua anfitriã.

Até a conversa que tivera com David na oficina, naquela manhã, Neill não havia pensado na família de Anne. Conhecera o irmão dela e sabia que os pais moravam em Loving, mas não tinha motivos para ir além disso. Mas o comentário que David fizera sobre eles fora interessante, embora Neill não o tivesse levado ao pé da letra, preferindo ver para crer. Agora, estava evidente que, de fato, David conhecia muito bem a família.

O pai de Anne era um pouco mais alto que a média, com uma postura ligeiramente inclinada e cabelos espessos e grisalhos. Parecia o protótipo do médico rural. Cumprimentou Neill educadamente com um aperto de mão, quando Anne os apresentou, serviu-lhe um aperitivo, sentou-se numa poltrona estofada e, por meios que Neill não pôde definir exatamente, conseguiu desligar-se dos procedimentos seguintes.

Desde que Neill já conhecera sua anfitriã, tal comportamento não lhe pareceu tão estranho quanto deveria. Mesmo naqueles poucos minutos em que a conhecia, era mais do que óbvio que o recuo do Dr. Moore baseava-se num instinto de sobrevivência cultivado em mais de trinta anos de casamento.

Apesar dos comentários de David, Neill ainda imaginara a mãe de Anne como uma versão mais velha da filha, mas, exceto pelo fato de serem ambas mulheres, era difícil encontrar qualquer semelhança entre elas. Olivia Moore era mais alta e esguia. Os cabelos eram de um louro-acinzentado que disfarçavam a leve sugestão de grisalho e vestia-se com a mesma elegância fria com que havia decorado a casa. Embora Neill soubesse que devia estar na casa dos cinquenta, ela passaria facilmente por alguém dez anos mais nova. Na batalha contra a idade, ela estava levando a melhor. Neill não duvidava que, quando mais jovem, fora uma mulher extremamente bela. Na meia-idade, ainda era bonita, caso se ignorasse a gélida frieza dos seus olhos, uma frieza que parecia ser um reflexo da sua personalidade.

Quando Anne os apresentou, Olivia foi capaz de expressar, da maneira mais educada possível, que ele era tão bem-vindo quanto um enxame de gafanhotos.

— Sr. Devlin. Que prazer conhecê-lo ― ela disse, sem a menor sinceridade. ― Ouvi dizer que o senhor está aguardando que sua motocicleta seja consertada. Já sabe quanto tempo vai demorar até que possa seguir seu caminho?

Muito prazer e até logo, Neill pensou com ironia, e também um pouco surpreso. Perguntou-se se ela o teria convidado unicamente para deixar bem claro que ele não era bem-vindo. Observando aqueles olhos frios e azuis, decidiu que fora isso mesmo, e imaginou se ela já teria aplicado esta tática com sucesso, no passado.

— É difícil dizer ― ele respondeu. ― As peças podem chegar aqui amanhã, ou na próxima semana. Pode ser até no mês que vem. ― Sorriu, caloroso. ― Por sorte, poderei ficar aqui pelo tempo que for necessário.

— O senhor não tem uma pessoa da família, ou um amigo que se disporia a vir ajudá-lo a... voltar para casa?

— Mamãe... ― A voz de Anne revelava o seu embaraço.

— O quê? ― Olivia arqueou a sobrancelha. ― Estou apenas sugerindo algo que talvez o Sr. Devlin não tenha considerado. Não creio que haja motivos para que ele fique em Loving, se não precisar.

O significado daquilo era claro, impossível acreditar que ele estivesse interessado em ficar ali por causa da sua filha.

Anne ruborizou violentamente, e Neill esqueceu de mostrar-se divertido. Estendeu a mão e segurou a dela, sentindo o seu lampejo de surpresa.

— Na verdade, não tenho planos imediatos de partir, mesmo se David consiga as peças nos próximos dias.

Os lábios de Olívia curvaram-se num sorriso tenso.

— Será interessante ver como se sentirá quando sua motocicleta estiver novamente consertada e pronta para viajar.

— Sim, creio que será ― Neill falou, enviando-lhe um sorriso amigável.

Pensou que ela continuaria insistindo naquele assunto, mas o irmão de Anne chegou naquele instante e Olivia afastou-se para recebê-lo. A mulher que o acompanhava fazia um contraste chocante com a elegância da decoração e dos tons neutros. Alta e magra, com os cabelos vermelhos e volumosos emoldurando o rosto fino, ela era mais intrigante do que bonita, e usava calça comprida justa cor de laranja e uma camisa longa, de seda verde-limão. Imensas argolas balançavam das suas orelhas, e os pés estavam calçados com sandálias douradas, revelando um esmalte cor de lavanda.

As apresentações foram feitas e Neill ficou sabendo que o nome dela era Lisa Remington, e que voltara dois anos atrás para a cidade natal, depois de passar quase uma década na Califórnia. Neill simpatizou com ela na hora. Principalmente quando Olivia recebeu-a com a mesma frieza que dedicara a ele. Qualquer pessoa que não fosse do agrado daquela mulher certamente jamais teria algum valor.

Logo ficou evidente que as duas mulheres eram antigas adversárias. Olivia perguntou sobre o "pequeno negócio" de Lisa, que Neill concluiu que tinha algo a ver com a manufatura de chapéus. Lisa mencionou um anúncio que vira sobre um produto que garantia minimizar as linhas de expressão e rugas na pele de senhoras de meia-idade. Olivia comentou sobre o traje tão "charmoso" de Lisa. Ela agradeceu e disse o quanto invejava a capacidade da senhora de parecer tão bem mesmo usando cores tão insípidas.

Era como assistir uma partida de tênis em Wimbledon, observando-as trocar insultos em vez das bolas. E estava a anos-luz de distância da alegre reunião de família que ele visualizara, embora fosse obrigado a admitir que não deixava de ser divertido. As duas estavam empatadas, nenhuma delas recuando um milímetro sequer. Se tivesse de escolher, teria colocado Lisa um pouco à frente porque era óbvio que, como ele, ela também achava graça na situação. Encontrando os olhos dela no outro lado da mesa, Neill mal conteve um sorriso. Sim, sem dúvida ali estava alguém de quem ele acabaria gostando. Perguntou-se o que ela teria em comum com o homem ao seu lado, além de fato de terem crescido na mesma cidade.

A contribuição de Jack para a conversa não era muito maior do que a de seu pai, embora Neill tivesse quase certeza de que ele estava ouvindo, o que era mais do que se podia dizer sobre o médico que, sentando na ponta da mesa, era como se estivesse em Katmandu. Jack, pelo menos, estava presente. Observando, ouvindo e bebendo quase todo o vinho da garrafa, Neill reparou ao vê-lo tornar a encher a taça. Depois de todas as doses de uísque que Jack bebera antes do jantar, seria interessante ver se ele seria realmente capaz de levantar da cadeira ou se escorregaria por baixo da mesa.

O escritor que havia em Neill estava fascinado pela dinâmica daquela família. O homem, no entanto, estava ciente de que Anne não divertia-se nem um pouco com a educada batalha que as duas outras mulheres travavam entre si. Pressentindo a sua perturbação, Neill procurou-lhe a mão sob a mesa e sorriu quando ela olhou para cima, sorriso que ela enviou-lhe em resposta foi um tantinho forçado.

Captando aquela troca, Olivia pressionou os lábios. Havia sugerido que Anne trouxesse Neill para o jantar porque queria ter uma chance de avaliá-lo. Já fizera uma ideia de como ele seria, antes de conhecê-lo, e ainda não vira nada capaz de fazê-la rever sua opinião. Um homem sem compromissos, sem responsabilidades. Provavelmente não possuía nada além do que pudesse carregar na motocicleta. Um escritor, pelo amor de Deus. Qual seria aquela atração fatal que seus filhos sentiam por tipos criativos? Não havia como negar que ele era bastante atraente. Era de se compreender porque Anne ficara atraída por ele, mas nenhum bem resultaria de tal relacionamento. Não queria ver sua filha magoada depois que ele partisse, o que certamente aconteceria. Talvez ainda fosse possível abrir um pouco os olhos de Anne.

— Então, Sr. Devlin, Anne disse-me que o senhor é escritor.

— É verdade.

Olivia estava sorrindo e Neill lembrou-se de um documentário sobre os crocodilos que vira na tevê a cabo. Agora, recordava-se que tais animais adquiriam uma expressão parecida com aquela, antes de agarrar os antílopes desavisados que iam beber água, puxando-os para dentro do rio.

— Deve ser uma profissão interessante.

— Tem seus momentos ― ele admitiu.

— Como Lisa com seus chapeuzinhos, deve ser-difícil ganhar um salário decente.

Neill pensou nos lucros do seu último livro, que poderiam comprar aquela casa e tudo o que nela continha duas ou três vezes, e enviou um sorriso amigável à sua anfitriã.

— Não é nada fácil, mas tenho tido sorte. Não passo fome por mais do que duas, às vezes três semanas por ano ― respondeu alegremente. ― E sempre posso voltar para a casa dos meus pais, quando as coisas ficam realmente difíceis.

Olivia não ocultou sua desaprovação, e os olhos azuis congelaram.

— Espero que me perdoe por dizer, mas parece estranho que um homem da sua idade ainda não tenha se estabelecido.

Por um breve instante Neill considerou a ideia de dizer-lhe que achava uma tremenda xeretice da parte dela criticar o seu suposto estilo de vida, mas não resistiu à vozinha interior que o incitava a seguir em frente com a encenação.

— Meu irmão mais velho pensa a mesma coisa ― disse, arregalando um pouco os olhos diante de tal aparente coincidência.

— Quer dizer que ele é mais assentado?

— Como se estivesse preso ao chão com cimento. Esposa, dois filhos, hipoteca. Com uma corda amarrada no pescoço. ― Neill encolheu os ombros, atirando sua cunhada e sobrinhos aos lobos sem sequer hesitar.

Sentiu Anne sobressaltar-se, mas manteve sua atenção na mulher na ponta da mesa. Ela o olhava como se acabasse de encontrar um inseto na salada.

— Nem todos consideram a família como um fardo, Sr. Devlin.

— Pode ser que não. ― Seu tom de voz ligeiramente intrigado continha a sugestão de que gosto não se discutia.

— Seu irmão parece ser um adulto responsável ― Olivia acrescentou, aparentemente numa tentativa de levá-lo a perceber a própria irresponsabilidade.

— Sim, Tony é assim mesmo. ― Neill balançou a cabeça, penalizado. ― Ele é responsável, mas não tem muito tempo para se divertir. A senhora sabe, jogar cartas com os amigos de vez em quando, ou assistir o futebol nos domingos, sair à noite para flertar com as garotas.

Do outro lado da mesa, Jack quase engasgou com o vinho. Ignorando-o, Neill prosseguiu mesmo tom animado.

— Tony está sempre me atormentando para que eu arrume um emprego de verdade. Porém, no meu ponto de vista, só se é jovem uma vez, deve-se aproveitar a vida enquanto se pode. Calculo que, daqui a uns quatro ou cinco anos começarei a pensar em me estabelecer, comprar um apartamentozinho barato em algum lugar e, talvez, encontrar uma esposa que tenha um bom emprego. Não que eu espere que ela vá me sustentar ― acrescentou, com franqueza. ― Mas como a senhora disse, é difícil um escritor sobreviver com seu trabalho, e precisaremos de um salário fixo, especialmente quando os filhos chegarem.

Ignorando a expressão ultrajada da anfitriã, Neill comeu o último pedaço do seu pêssego em compota.

Pelo espaço de vários segundos, ninguém falou uma palavra. Olhando através da mesa Neill captou um brilho de algo que poderia ser divertimento nos olhos de Jack, e um mal contido riso no rosto de Lisa. Ao seu lado, Anne parecia ter dificuldade em respirar, e ele sentiu uma pontinha de arrependimento por ter permitido que seu temperamento aflorasse de tal maneira. Porém, a tirania disfarçada de Olivia Moore o tirara do sério.

Mas isso não o incomodava, se dependesse apenas dele. A opinião da senhora a seu respeito e sobre a sua profissão não significava nada. Pelo que podia ver, o marido conseguira divorciar-se da tirania da esposa, se não da própria mulher, e, se aquela noite servisse de exemplo, seu filho tentava afogá-la no uísque. Lisa parecia mais divertida do que ofendida pelas farpas delicadamente atiradas em sua direção. Mas Anne não divertia-se nem bebia, nem tampouco compartilhava da capacidade do pai de ausentar-se do que a rodeava.

Ela permanecia em silêncio, mas Neill podia sentir a sua tensão e ficou irritado consigo mesmo por permitir que as provocações de Olivia o levassem a entrar no seu jogo. Qualquer satisfação que pudesse ter obtido com a expressão horrorizada da mulher com certeza não valia o constrangimento que tão nitidamente causara em Anne.

Buscando algo que pudesse quebrar o súbito silêncio antes que se tornasse desconfortável, os olhos de Neill recaíram nas fotos dispostas numa peça ali perto. A maior delas era de uma loura muito bonita, no final da adolescência. Havia uma foto da mesma jovem na sala de estar. A primeira que ele vira era um retrato formal, mostrando apenas os ombros e rosto, e ele pensara tratar-se de uma foto de Olivia na juventude. Aquela, no entanto, era um instantâneo retratando a garota de jeans e camiseta, rindo para a câmera. Embora a semelhança entre ela e Olivia fosse marcante, era evidente que não eram a mesma pessoa.

— Quem é ela? ― Neill perguntou, indicando a foto emoldurada.

Os olhos de Anne seguiram os dele e ela sentiu o coração parar por um segundo, ao ver sobre quem ele perguntava. Embora a foto de sua irmã estivesse sempre ali, ninguém jamais a mencionava. Sua mãe podia aludir a ela, geralmente quando falava sobre o quanto perdera, porém nunca dizia seu nome, nem reconhecia abertamente que Brooke um dia existira. O padrão tinha sido estabelecido naqueles primeiros e terríveis meses depois da morte de Brooke, e nunca mais fora quebrado.

Mas Neill não tinha como saber destas coisas, e perguntara quem era a jovem da foto. Anne não conseguia olhar para a mãe. Na verdade, não conseguia afastar os olhos da garota sorridente no retrato. O silêncio estendera-se demais. Não podia ficar parada ali como se fosse muda, ou como se Neill não tivesse dito nada.

— É Brooke ― o Dr. Moore respondeu calmamente, falando pela primeira vez desde o início da refeição.

Anne ficou quase tão chocada pelo fato de seu pai ter respondido a algo que não lhe fora endereçado diretamente quanto ficara pela inesperada pergunta de Neill. O Dr. Moore olhava para Neill, com um sorriso triste nos lábios.

— Nossa filha mais velha. Ela... morreu, alguns anos atrás. Na verdade, foi pouco tempo depois de esta foto ser tirada.

— Lamento muito ― Neill falou com sinceridade, e perguntou-se o que haveria por trás da súbita e dolorosa tensão que sua pergunta provocara.

— Acho que devo me desculpar por ter provocado a sua mãe ― Neill falou deslizando a mão pelo braço de Anne até encontrar-lhe a mão. ― Acabei deixando-me levar pela irritação.

O sol estava se pondo quando fizeram a caminhada entre o chalé de Anne e a casa principal, mas agora a noite estava escura e densa, com apenas algumas luzes esparsas iluminando o caminho. O calor do dia perdurava no ar noturno e os grilos produziam uma sinfonia desencontrada na escuridão.

— Minha mãe às vezes mostra-se... difícil ― Anne falou, escolhendo as palavras com cuidado para manter o estreito limite entre honestidade e lealdade. ― Ela está apenas tentando... me proteger, eu creio. Tem medo que eu...

— Ande em más companhias? ― ele concluiu, num tom que a fez rir um pouquinho.

— É, acho que sim.

Anne não queria falar sobre a mãe, não quando era tão agradável estar a sós com ele. A escuridão os envolvia como um manto, bloqueando o mundo real, deixando apenas os dois para ouvir a canção dos grilos e respirar o ar perfumado de rosas.

— O que aconteceu com sua irmã? ― Neill perguntou, e Anne sentiu a pacífica ilusão ser destruída, como se a realidade fosse um martelo que a atingisse.

— Ela morreu ― Anne respondeu após um longe momento. ― Isso é tudo.

Neill hesitou e então decidiu não insistir, embora seus instintos lhe dissessem que havia muito mais a ser dito. Havia alguma coisa ali, algo sobre Brooke ou sobre sua morte capaz de, mesmo passados tantos anos, encher uma sala de tensão com apenas a menção de seu nome.

Mas, por enquanto, ele estava mais interessado no fato de estar sozinho com uma bela garota que encaixava-se em seus braços como se tivesse sido feita para estar ali.

 

— Sabe, depois de passar dez anos em Los Angeles, a chuva de verão ainda me parece um pequeno milagre ― Lisa comentou, enquanto abria a porta da loja para que Anne entrasse. ― Poderia-se dizer que, desde que cresci aqui, isso deveria parecer normal. Mas o que realmente ficou gravado foram estes dez anos de intervalo.

— Acho que li em algum lugar que a impressão do tempo das pessoas é estabelecida nos vinte anos ― Anne falou. Tirou a jaqueta e pendurou-a nas costas de uma cadeira, depois penteou os cabelos molhados com os dedos.

— Impressão do tempo? ― Lisa arqueou a sobrancelha, com um ar de incredulidade. ― Isso não existe.

— Se não existe agora, aposto que algum órgão do governo vai providenciar para que exista.

— Provavelmente. Pelo que sei, quanto mais estúpida a ideia, mais dinheiro eles estarão dispostos a gastar.

Lisa trancou a porta da frente e abriu caminho por entre várias cestas repletas de fitas, uma caixa com retalhos de tecidos e uma lata gigantesca transbordando de pedaços de renda, até chegar no balcão de trabalho, onde se espalhavam os materiais para a confecção de um novo chapéu.

— Tive esta ideia ontem à noite ― disse. ― Estou criando um chapéu para Titania.

Anne sentou-se numa banqueta no lado oposto da amiga e pegou uma jujuba, distraidamente.

— Titania? Você está fazendo um chapéu para um navio naufragado? Qual é o tema... bóias de salva-vidas e tanques de mergulho?

— Este foi o "Titanic" ― Lisa corrigiu-a, sorrindo. ― Estou falando de Titania, você sabe, a rainha das fadas. Casada com Oberon. Fui à biblioteca, ontem, e fiz uma pesquisa.

Anne mordiscou uma jujuba e analisou o arranjo de flores de seda e fitas sobre o balcão.

— As fadas usam chapéus? Tenho uma vaga ideia de que elas andam por aí completamente nuas. Ela não vai ficar um tanto esquisita, usando apenas um chapéu?

— Eu deveria ter dito que estou fazendo um chapéu inspirada na personagem Titania ― Lisa falou, com toda paciência. ― Não estou realmente esperando que ela apareça por aqui para buscá-lo.

Anne pensou um pouco enquanto comia outra jujuba.

— Acho que prefiro o tema com as bóias de salva-vidas. Você poderia fazer um iceberg no meio e uma réplica do navio na aba, ou talvez a metade no navio afundando para fora da aba... para representar o naufrágio.

— Pérolas para os porcos... ― Lisa murmurou com desgosto.

Anne franziu a testa.

— Havia porcos no navio, também?

Elas trocaram um sorriso, satisfeitas com a conversa absurda.

Uma das coisas que Anne mais gostava na sua amizade com Lisa era aquele senso de humor que compartilhavam. Somente quando Lisa voltara para Loving e iniciaram a amizade ela percebera o quão pouco sua família ria. Brooke costumava rir bastante, ela pensou, apanhada de surpresa pela súbita lembrança.

— Então, conte-me sobre o seu Neill ― Lisa falou, e Anne afastou a imagem da irmã para o fundo da memória.

— Ele não é o meu Neill ― protestou, sem muita convicção. ― Ele é só... Nós apenas saímos juntos algumas vezes, é isso. Não há nada... Isto é, assim, que a moto dele estiver pronta ele provavelmente irá embora. Certamente irá embora. Não há nada entre nós... Nada de sério, de qualquer forma. ― Anne percebeu que estava divagando e respirou fundo antes de terminar com o que esperava ser um tom de divertimento. ― Eu o conheço há somente uma semana, pelo amor de Deus.

— E isto é relevante porque... ― Lisa olhou para ela, franzindo a testa.

— Porque ninguém se... Isto é, ninguém pode sentir nada sério por outra pessoa no espaço de uma semana.

— Há alguma lei contra isso?

— Sim, a lei do bom senso.

Com as emoções em tumulto, Anne deslizou para fora da banqueta. Teria começado a andar pela sala, mas as caixas e cestas a transformavam numa espécie de pista de obstáculos, então contentou-se em olhar inquietamente para a prateleira repleta de objetos. Conchas e pedacinhos de madeira disputavam espaço com bonequinhas em miniatura, minúsculas cestas de Páscoa e uma vasilha de cerâmica cheia de uvas de cera.

Quando Lisa permaneceu em silêncio, Anne virou-se para encará-la.

— E então? Não vai me dizer que estou errada?

— Você quer que eu lhe diga que está errada?

— É claro que não. Porque estou certa.

Anne pegou um pinguim de plástico e começou a dar corda no brinquedo, distraída.

— Ele está aqui há apenas uma semana. Pode partir a qualquer minuto. Eu seria louca se me esquecesse disso.

— Ninguém está dizendo para você esquecer disso. Estou apenas perguntando se isto é realmente relevante. ― Os longos dedos de Lisa moviam-se entre as flores e fitas, separando-as, juntando-as, cortando-as. ― Nem todo relacionamento tem de levar a algo permanente, você sabe.

Anne sabia, mas estava começando a pensar que não havia nada que quisesse mais do que ter Neill Devlin como alguém permanente em sua vida. Deixou o pinguim no balcão e observou-o andar desajeitadamente pelo tampo, até bater contra um pedaço de fita de veludo vermelho. Desequilibrado, ele vacilou, pareceu prestes a endireitar-se e depois caiu de bico na mesa. As perninhas ficaram balançando no ar. Anne pensou que sabia exatamente como ele estava se sentindo. Ela também estivera vagando a esmo, sentindo que tinha sua vida razoavelmente em ordem. Talvez tivesse algumas dúvidas, pensado para onde estaria seguindo, mas ainda assim estivera sempre firme, com os pés no chão. Então, Neill Devlin entrara em sua vida e subitamente ela corria o risco de cair de cara no chão. Exatamente como aquele pinguim.

— Vocês vão se encontrar hoje à noite? ― Lisa perguntou, casualmente.

— Vamos jantar no Luanne. ― Anne pegou o brinquedinho na mesa e colocou-o de volta na prateleira, ao lado de uma galinha de pano.

— Se isso a fizer sentir-se melhor, fique sabendo que gostei muito dele ― Lisa falou.

— Não se trata de gostar dele ou não. É só que eu... não sei. ― Anne procurava as palavras que pudessem explicar o que sentia. ― Por muito tempo a minha vida sempre foi bem tranquila. E agora, de repente, as coisas estão mudando. Ou, pelo menos, sinto como se estivessem mudando.

— E isso a deixa apavorada.

— Morta de medo ― Anne admitiu, suspirando. Não sei o que ele sente por mim. Não sei o que sinto por ele. Não sei o que vai acontecer amanhã, nem na semana que vem. Isso é assustador.

Lisa pousou as mãos sobre as flores e fitas enquanto olhava seriamente para Anne.

— Ninguém sabe o que vai acontecer amanhã ou na semana que vem. Não importa o quanto sua vida seja segura e estabelecida, tudo pode mudar num piscar de olhos. Você, mais do que ninguém, deveria saber disso. ― Sem esperar por uma resposta, Lisa prosseguiu, com um meio sorriso. ― Deixe-me lhe dar o benefício dos meus oito anos a mais neste planeta e dizer que ache que Neill Devlin é a melhor coisa que poderia ter-lhe acontecido, mesmo se acabar magoando-a.

Anne encarou-a, surpresa.

— Ora, muito obrigada!

— Você tem vinte e cinco anos ― Lisa falou, ignorando a interrupção. ― E vive na mesma rotina há pelo menos seis anos. Dos dezenove aos vinte e cinco, Anne. Estes são os "anos de loucuras". É a época em que se deve ter loucos casos de amor, longas conversas com alguém que poderia ser, mas geralmente não é, o grande amor da nossa vida. E quando a gente experimenta usar as roupas mais estranhas e muda de penteados dez vezes por mês, vai a festas esquisitas, bebe demais e depois vomita no tapete da sala.

— Parece maravilhoso ― Anne falou, irônica.

— Nem tudo. A gente sofre, acha que a vida acabou, e depois vê que não é nada disso e segue em frente. ― Lisa inclinou-se sobre o balcão e pegou a mão da amiga. ― Nesta última semana você viveu mais intensamente do que nos últimos dois anos que estou por aqui. Talvez Neill Devlin vá embora da cidade no instante em que a moto estiver pronta. Ou, talvez, vocês dois acabem se apaixonando perdidamente e vivam felizes para sempre. De qualquer forma, finalmente você vai acordar um pouco.

— E se eu me apaixonar perdidamente por ele, e mesmo assim ele vá embora daqui? ― Anne perguntou, devagar.

— Nesse caso, você vai recolher os seus cacos, juntá-los novamente e prosseguir com a sua vida. Mas, pelo menos, pôde saber como é amar alguém de verdade.

O problema, Anne pensou, era que já achava que sabia como era isso. E tal ideia a aterrorizava.

Meia hora depois, quando saiu da loja de Lisa, a chuva transformara-se numa garoa fina. As calçadas estavam vazias, o tráfego de automóveis quase inexistente. Numa noite como aquela nem mesmo a "comida caseira garantida" do Luanne seria capaz de atrair muita gente. Uma vez que o restaurante ficava a poucos metros da loja, do outro lado da rua, não fazia sentido pegar o carro para ir até lá, portanto Anne deixou Lucy onde estava e começou a andar, com a mente divagando sobre a conversa com Lisa e a antecipação do encontro com Neill.

E o fato de que estava sentindo tal excitação por encontrá-lo deveria ser um aviso, disse a si mesma. Era muito fácil para Lisa falar que ela poderia juntar os cacos novamente, pois não seria ela quem teria de encontrar a cola para fazê-lo. Se tivesse um pouco de juízo, teria de dizer a Neill que não tornaria a vê-lo. Mas era difícil pensar com sensatez quando seu coração batia tão descontrolado. Talvez Lisa tivesse razão. Talvez estivesse na hora de ela cometer alguma loucura.

De cabeça baixa e ombros encolhidos contra a chuva, ao passar diante de um beco escuro Anne não reparou na silhueta esguia que disparou em sua direção, portanto foi pega completamente de surpresa quando algo bateu em seu ombro, quase derrubando-a no chão. Assustada e sem equilíbrio agarrou automaticamente a bolsa quando o assaltante tentou pegá-la. O instinto a fez segurá-la com mais força, quando ele a puxou.

— Me dê a bolsa, moça. ― As palavras foram cuspidas em seu rosto.

Anne só queria obedecer. Não havia nada na bolsa que não pudesse ser substituído, nada pelo que valesse a pena arriscar a vida. Mas seus dedos estavam travados na bolsa de couro macio, e não respondiam à sua ordem mental de soltá-la.

Praguejando, o assaltante puxou a bolsa com toda a força, a ponto de empurrá-la para trás. Anne gritou de dor quando seu ombro bateu na parede de tijolos do prédio. E, ainda assim, não conseguia obrigar seus dedos a soltarem a bolsa.

— Sua desgraçada, me dê a bolsa!

Anne teve um rápido vislumbre de um rosto fino, olhos avermelhados e cabelos castanhos ensebados. Então a luz refletiu-se numa lâmina e tudo o mais desapareceu à sua volta.

O medo parecia estrangulá-la e enevoou sua visão. Ela ia morrer. Ali mesmo, na calçada, diante de qualquer pessoa que por acaso passasse pela rua. Eram apenas oito e meia e ninguém estava passando, mas, se isso acontecesse, a atenção do motorista certamente estaria na rua molhada, ou na ideia de voltar logo para casa para assistir o filme na tevê ou levar as crianças para a cama. E, mesmo se alguém olhasse na sua direção, talvez não pudesse ver o que estava acontecendo. A luz era fraca demais, e a chuva piorava ainda mais a visão.

Em algum ponto distante de sua mente encontrou-se pensando que sempre soubera que algo assim aconteceria. Dizem que um relâmpago não atinge o mesmo lugar duas vezes, mas isso não era verdade. Ela iria morrer por causa disso.

— Ei!

O grito mal penetrou na névoa branca de medo que inundara a mente de Anne, mas o efeito em seu atacante foi imediato. Amaldiçoando violentamente, o homem deu um último puxão frenético na bolsa, cuja força derrubou-a de joelhos na calçada. Depois, desapareceu, sendo tragado no mesmo instante pela escuridão do beco. Vagamente, Anne escutou alguém correndo em sua direção, mas limitou-se a ficar ajoelhada no chão, os dedos agarrando a bolsa, os olhos arregalados de terror.

— Anne! Meu Deus, você está bem? ― Neill caiu de joelhos ao lado dela, as mãos tremendo enquanto passavam pelos seus ombros e braços, procurando por algum ferimento, oferecendo conforto. ― Eu estava passando do outro lado da rua. Avistei você e vinha ao seu encontro quando ele... ele a machucou?

Tudo devia ter levado apenas uns poucos segundos, Anne deu-se conta. Do instante em que o assaltante a agarrara até o grito de Neill que o fez correr, não poderiam ter se passado mais do que alguns segundos. Porém, lhe parecera que foram horas... uma eternidade.

— Anne? Minha querida, está tudo bem com você? Ele a machucou?

— Estou bem. ― Aquelas palavras pareciam vir de outra pessoa.

— Graças a Deus. ― Ainda ajoelhado na calçada, Neill enlaçou-a pelos ombros e puxou-a contra o peito, abraçando-a com força. No instante seguinte, afastou-a, os dedos afundando em seus ombros. ― Escute aqui, por que você não lhe entregou a maldita bolsa? Ele poderia tê-la matado!

— Foi exatamente isso que ele disse. ― O tom da voz dela era quase sonhador. ― Foi assim que ele falou sobre a bolsa. Na verdade, é uma bolsa muito bonita. Meus pais deram-me de presente, no Natal do ano passado.

Neill fitou-a como se ela tivesse enlouquecido.

— Não me importa se foi feita pelos anõezinhos do Papai Noel, nem se ele a entregou pessoalmente na manhã de Natal ― disse, por entre os dentes cerrados. ― Você deveria ter dado a bolsa para o pivete.

— Meus dedos não abriam ― ela disse, simplesmente. ― Mesmo agora, não consigo soltá-la.

— Jesus! ― A raiva de Neill desapareceu tão depressa, quanto surgira. Baixou o rosto até o dela e tornou a abraçá-la. ― Desculpe ter gritado com você, benzinho. Nunca senti tanto medo, em toda minha vida.

Ignorando a garoa que continuava a cair, ele ficou ali abraçando-a, permitindo que a sensação de alívio por ela estar viva e bem penetrasse nele. Sabia que jamais se esqueceria do que sentira ao ver o vulto obscuro saltar para fora daquele beco. A raiva por alguém atrever-se a atacá-la. A frustração por estar longe demais para impedir que acontecesse. O medo de não chegar a tempo de salvá-la.

Neill não sabia por quanto tempo ficaram ali, mas 180180foi a sensação da chuva em suas costas que finalmente o fez despertar. Estavam ambos ensopados até os ossos. Anne precisava de um banho quente e roupas secas. Ele precisava de uma chance de colocar as mãos naquele magricela desgraçado que fizera isso a ela, mas preferia acudi-la, primeiro. Soltou-a, um tanto relutante, e olhou para ela.

— Tem certeza de que não está machucada?

Anne fez que sim. Seu ombro doía no lugar em que batera na parede e os joelhos latejavam pelo impacto na calçada, mas isso não tinha importância.

— Vou levá-la para a delegacia ― Neill falou, enquanto gentilmente a fazia soltar a bolsa. ― Você precisa falar com seu irmão, registrar uma queixa.

— Não! ― A palavra explodiu de dentro dela, sua cabeça levantando-se tão subitamente que quase bateu no queixo dele. ― Não quero que ninguém saiba!

— Anne, o sujeito a atacou, tentou roubar sua bolsa. Não pode deixá-lo escapar ileso.

— Ele já escapou ileso ― ela disse, num tom cansado. ― Já escapou. Falar com Jack, contar o que aconteceu, não vai adiantar nada. ― Anne agarrou-o pelo braço e, mesmo sob a fraca luz, ele pôde ver a súplica em seus olhos. ― Por favor, Neill. Se eu falar com Jack, se ele registrar uma queixa, todos ficarão sabendo. Todos vão se lembrar de Br... Vão lembrar-se e tornarão a olhar para mim, tudo outra vez. Por favor, só quero ir para casa. Leve-me para casa.

— Tudo bem, tudo bem... ― Neill levantou-se e ajudou-a a ficar de pé. ― Não precisa contar a ninguém.

Pegou-a no colo como se ela fosse uma criança aconchegando-a contra o peito. Não entendia porque ela estava tão determinada a não falar com o irmão, mas estava certa sobre ser uma atitude absolutamente inútil. Não valia a pena aborrecê-la com isso. Beijou-lhe levemente a testa, antes de dizer.

— Vou levá-la para casa, meu bem.

— Tem certeza de que está bem? ― Neill perguntou enquanto tirava a chave da mão dela e destrancava a porta do chalé.

Anne não dissera nenhuma palavra durante o curto trajeto, mantendo-se imóvel no assento Corvette, as mãos soltas no colo, os olhos fitando o nada.

— Estou bem ― ela respondeu, mas Neill não tinha certeza se acreditava.

Ele abriu a porta e guiou-a para dentro da casa Ela se sentiria melhor dentro de sua casa. Estava assustada, mas não ferida. Ele desejou que ela chorasse. As lágrimas provavelmente ajudariam. Porém, Anne permanecia com os olhos secos, parada no meio da salinha de estar.

— Quer que eu chame alguém? A sua amiga Lisa, talvez? ― Pelo que vira da mãe dela e pelo que adivinhara do relacionamento que tinham, nem deu-se ao trabalho de sugerir chamá-la.

— Não. ― Anne balançou a cabeça devagar ― Não quero ver ninguém. Não quero que ninguém saiba.

— Tudo bem. ― Neill segurou-a levemente pelos ombros, sentindo a rigidez dos músculos. Ela estava tão tensa que apenas uma palavra errada poderia fazê-la em pedaços. ― Está bem, não vou ligar para ninguém. Mas ficarei aqui, até você se acalmar.

O tom de voz calmo e suave fez com que Anne tomasse consciência da sua rigidez pouco natural. Ele devia pensar que ela era maluca. Afinal, não estava ferida, nem mesmo fora roubada. Seus dedos pressionaram o couro macio da bolsa até que as juntas ficassem doloridas. Era bobagem estar tão nervosa. Nada havia acontecido. Tinha de se controlar.

Mergulhando profundamente para dentro de si, Anne encontrou um pequeno recanto de calma onde se refugiar e voltou-se para ele, forçando um sorriso.

— Eu estou bem, de verdade. Você não precisa ficar.

Olhando para ela, Neill pensou que "bem" era um pouco demais. O rosto dela estava pálido e os olhos continham aquela expressão assustada que o fazia ansiar por esganar o assaltante. Bem? Em outras circunstâncias, seria até engraçado. O que ela estava era frágil, vulnerável. Ele queria abraçá-la até que todas as sombras desaparecessem, mas algo naquela postura rígida que ela mantinha o fez pensar que, se a tocasse, ela poderia desabar e não tinha certeza se isso seria bom.

— Não vou a lugar algum ― disse, silenciando seus protestos com um arquear de sobrancelha. ― Não vou deixá-la aqui sozinha.

— Está bem. ― Anne desviou o rosto antes que ele pudesse ver o quão ridiculamente grata ela se sentia.

— Por que não vai tomar um banho, enquanto providencio alguma coisa quente para você beber?

Anne assentiu e encaminhou-se para a escada. Seus movimentos eram rígidos e desajeitados, como se os músculos não estivessem funcionando mas, mesmo assim, obrigou-se a subir os degraus para afastar-se do olhar observador de Neill. Um pânico, sem motivo e incontrolável, retorcia-se dentro dela, formando um nó em seu estômago fazendo a garganta doer. Ela passara a maior parte da vida aprendendo a guardar o medo no pequeno compartimento dentro de si, mas agora a fechadura fora quebrada e ele estava escapando, ameaçando engoli-la inteira. Precisava de apenas alguns minutos sozinha, a fim de trancá-lo novamente.

Neill observou-a afastar-se, franzindo a testa. Ela precisava libertar-se um pouco daquele autocontrole excessivo. E desejava que ela o deixasse ligar para Jack, registrar uma queixa. O que ela havia dito? Todos vão saber e irão olhar para mim novamente. O que diabos isso significava?

O barulho da porta fechando-se no andar de cima arrancou-o dos pensamentos. Ainda franzindo a testa, ele foi para a cozinha. Para uma jovem cuja vida parecia um livro aberto, Anne certamente tinha muitos segredos escondidos.

Não teve dificuldades em encontrar o que precisava na cozinha. Esta não era grande o bastante para alguém se perder. Pequena e acolhedora, ele concluiu enquanto despejava a mistura de leite e chocolate numa panelinha, para esquentar. Havia uma janela sobre a pia, de onde se avistavam as rosas do jardim, e uma copa aconchegante num dos cantos. As paredes eram pintadas de branco e os armários eram de madeira clara.

Enquanto o leite esquentava, Neill encontrou duas canecas e reparou no fato de ela ter um belo estoque de sopa enlatada. Veria como ela estava se sentindo quando saísse do banho e, talvez, pudesse convencê-la a comer alguma coisa. De acordo com sua mãe, uma boa sopa e um sanduíche de queijo-quente eram a cura para quase todos os males.

O leite começou a ferver e ele foi desligar o fogo, inclinando a cabeça enquanto tentava escutar o barulho do chuveiro. Numa casa pequena como aquela, deveria ser capaz de ouvir a água correndo. Mas não havia nada, exceto o suave murmúrio da chuva lá fora. Talvez ela já tivesse saído do banho e estivesse se enxugando? Mas, quando pensou nisso, não lembrou-se de ter ouvido nenhum barulho de água.

Inquieto, Neill saiu da cozinha e foi até a escadaria. A princípio não conseguiu escutar nada, mas logo percebeu um som baixo, lamentoso, que provocou-lhe um arrepio na nuca. Subiu a escada de dois em dois degraus. O corredor da parte de cima era minúsculo e havia três portas, mas apenas uma com uma fresta iluminada. O som estava mais nítido, agora, um gemido muito baixo que o fez pensar num animal agonizando numa armadilha.

— Anne?

Ele bateu na porta, mas o lamento continuou no mesmo tom. Meu Deus, e se ela estivesse realmente ferida? Visões alucinadas de hemorragias internas e contusões passaram por sua mente. Neill tentou abrir a porta e praguejou consigo mesmo ao ver que estava trancada. Fazendo o possível para manter o próprio controle, encostou a cabeça na porta e tentou dar à voz um tom tranquilizador.

— Anne? Você precisa abrir a porta, meu bem.

Não houve resposta, apenas o gemido triste impotente que o cortava como se fosse uma lâmina. A frustração quase o levou a arrombar a porta mas conteve-se. Ela já passara por muita coisa naquela noite. Vê-lo irromper para dentro do banheiro não lhe faria bem algum. Mas tampouco podia ficar parado ali, como uma maldita estatua. Ouvi-la gemendo daquela maneira o estava deixando louco.

Pense, Devlin. Deve haver algum jeito de... Sorrindo, Neill pegou a carteira no bolso. Qualquer detetive particular nos filmes da tevê conseguia abrir uma porta com um cartão de crédito. Devia ser muito fácil.

Era mais difícil quando as mãos estavam trêmulas e o coração disparando mas, no fim, Neill calculou que não se passara uma eternidade antes de ouvir o suave ruído da tranca. Sentiu o fôlego explodir dentro de si quando escancarou a porta e entrou num banheiro surpreendentemente espaçoso.

Teve um primeiro relance dos azulejos cor de marfim, pontilhado pelas toalhas vermelhas e cortinas estampadas de flores vermelhas e amarelas. Porém, sua atenção foi imediatamente dirigida para a silhueta encurvada no chão, sob a janela. Anne enroscara-se como uma bolinha apertada, os braços enlaçando as pernas, o rosto pressionado nos joelhos, e balançava-se para frente e para trás gemendo baixinho.

— Anne? ― Neill abaixou-se ao seu lado, estendendo as mãos trêmulas. ― O que aconteceu? Você está ferida?

A voz baixa e quente penetrou no frio terror que nublava a mente de Anne. Ela aprendera, muito tempo atrás, a esconder-se do medo, a recuar para dentro de si mesma, apertar os olhos com força e tapar os ouvidos até que o perigo desaparecesse. Era melhor lidar com ele dessa maneira, sozinha. Tinha vergonha de sua fraqueza, sempre tivera. Não chore, Anne. Como pode ser tão egoísta? Fui eu que perdi uma filha. Pare de agir como um bebê. Será que não se importa nem um pouco comigo?

As palavras tão antigas ecoaram em sua mente, a voz raivosa e aguda fazendo-a desejar tapar os ouvidos e bloqueá-la. Mas não podia bloqueá-la, pois estava dentro dela.

Algo terrível aconteceu com sua irmã. Ninguém lhe dizia o que era. Quando perguntou o que acontecera, a mãe deu-lhe um tapa e mandou-a para o quarto. A mãe nunca batera nela antes. Ela enroscou-se como uma bolinha na cama, agarrando-se ao seu velho ursinho como se fosse um escudo contra o medo que debatia-se em seu peito. Não entendia o que acontecera com Brooke, não entendia porque não podia mais ir a pé para a escola, e nem mesmo brincar no quintal sem que alguém a acompanhasse, mas sabia que era errado perguntar por quê, era egoísmo ter tanto medo. Ela não era mais um bebê. Era uma menina crescida, e as meninas grandes não sentem medo.

Ignorando suas fracas tentativas de afastar-se, Neill enlaçou-a pelos ombros e puxou-a contra si, abraçando-a com força.

— Está tudo bem, querida. Desabafe. ― Repetiu as palavras muitas vezes, como se falasse com uma criança assustada. ― Vai se sentir melhor se chorar. Desabafe. Estou aqui com você.

Os braços que a envolviam eram fortes e sólidos uma barreira segura contra o medo. Estou aqui com você, ele dissera. Anne estremeceu e, virando o rosto contra o ombro dele, deixou as lágrimas correrem livres.

Não tinha ideia de quanto tempo ficara chorando, mas, quando as lágrimas finalmente cessaram deixando apenas os soluços entrecortados, Anne deu-se conta de que não estava mais no chão mas sim no colo de Neill, que sentara-se na tampa fechada do vaso sanitário. Tinha o rosto recostado no peito dele e podia ouvir o ritmo estável do seu coração.

— Está se sentindo melhor? ― ele perguntou baixinho, e Anne ficou vagamente surpresa ao descobrir que sim.

Em pouco tempo ela iria lembrar-se de se sentir envergonhada por aquela perda de controle, mas no momento era bom demais ficar ali, com as mãos dele acariciando seus cabelos. Teve de engolir um murmúrio de protesto quando Neill afastou-se um pouco e estendeu a mão para pegar um punhado de lenços de papel na pia.

— Vamos enxugar este rosto, e depois você precisa tirar as roupas molhadas.

Subitamente embaraçada, Anne tentou esconder a cabeça, mas Neill segurou-lhe o rosto e enxugou as lágrimas com tal delicadeza que a fez sentir o coração contrair-se em seu peito. Hesitando, quase temendo o que veria, ela ergueu os olhos para o rosto dele. Ele não parecia enojado, pensou.

— Estou tão...

— Se disser "envergonhada", serei obrigado a ficar zangado ― ele interrompeu.

— Mas eu... ― Ao ver que ele arqueava a sobrancelha, Anne calou-se.

— Assim é melhor. ― Neill roçou um beijo em seu rosto antes de deixá-la no chão e levantar-se.

— Agora, quero que você tome um banho e se aqueça. Vai precisar de um roupão, ou algo assim ― acrescentou, olhando em volta do banheiro à procura de uma roupa adequada. ― Diga-me onde posso encontrar.

— Eu posso...

— Não pode, não ― ele falou, sorrindo enquanto afastava uma mecha de cabelos do rosto dela. ― 180Deixe-me cuidar de você um pouquinho, está bem?

Como ela poderia argumentar com aquele sorriso? Com aqueles olhos? Como poderia discutir, quando era tão bom ser cuidada por ele? Cedendo, disse-lhe onde estava o roupão e esperou até que ele abrisse a torneira do chuveiro e ajustasse a temperatura da água. Foi somente quando ele começou a abrir os botões da sua blusa que ela voltou à vida.

— Posso despir-me sozinha ― disse, dando um passo para trás.

— Que pena ― ele queixou-se, num tom rouco, e ficou contente em vê-la ruborizar.

Com um sorriso maroto, deslizou um dedo pela face rosada antes de sair.

Quando Anne desceu, vinte minutos mais tarde ele estava servindo os pratos de sopa na mesa da cozinha.

— Chegou bem na hora ― ele disse, ao vê-la hesitar na soleira da porta. Tirou dois sanduíches de queijo quente do forno, cortou-os ao meio com um único movimento experiente e levou-os para a mesa. ― Espero que não se importe que eu tenha remexido nos seus armários. Como perdemos o jantar desta noite, imaginei que você estivesse com fome. Eu estou faminto.

Anne abriu a boca para dizer que não conseguiria comer nada, mas decidiu ficar calada. Se ele estava com fome...

— Eu não sabia o que você gostaria de beber. ― Neill inclinou a cabeça, em dúvida.

— Eu... água. Água seria ótimo.

Aquela cena doméstica não era o que ela esperava. Enquanto estava no chuveiro, tivera tempo para pensar. E o que pensou foi sobre o fato de que Neill certamente lhe faria perguntas. Ele iria querer saber porque ela não registrara queixa do assalto. Provavelmente pensava que ela havia exagerado em sua reação ao ataque. Afinal, exceto por uns pequenos arranhões, ela não fora ferida, nem tampouco ficara sem a bolsa. Será que dissera alguma coisa sobre Brooke? Não conseguia lembrar-se mas, se tivesse falado, ele iria querer saber qual era a relação. Anne descera as escadas temendo as perguntas que viriam, sabendo que lhe devia respostas sinceras, sem evasivas. 180E tudo o que ele lhe perguntava era o que ela queria beber.

— Não sou exatamente um "gourmet" ― Neill falou, depois de encher os copos com água. ― Mas acrescentei uma fatia de tomate nos sanduíches antes de tostá-los, o que é um toque pessoal que eu mesmo criei.

— Talvez você devesse patentear a invenção ― Anne falou, aproximando-se quando ele puxou a cadeira para que ela sentasse.

— Não, prefiro manter o segredo só para mim. Meus sanduíches de queijo quente são reservados apenas para pessoas muito especiais.

Anne ouviu-se rir um pouquinho. Neill ajudou-a a sentar e... ela teria imaginado ou ele realmente roçou um beijo em seus cabelos? Seus olhos incertos encontraram os dele quando ele sentou-se no outro lado da mesa, mas nada havia em sua expressão que sugerisse que acabara de beijá-la, portanto ela disse a si mesma que deveria ter sido imaginação.

Anne tinha certeza de que não estava com fome, mas depois de todo o trabalho que ele tivera, achou que deveria comer pelo menos um pouco. Vinte minutos depois, ficou atônita ao descobrir que comera tudo o que ele havia servido.

— Tem mais sopa, se você quiser ― Neill falou, as primeiras palavras que qualquer um deles pronunciou desde o início da refeição.

— Não, obrigada. ― Ela riu baixinho e balançou a cabeça. ― Eu nem sabia que queria o que acabei de comer.

— Ninguém resiste aos meus sanduíches ― ele brincou, pegando os pratos e levando-os para a pia.

— Deixe-me cuidar disso. ― Anne levantou-a com a intenção de pegar as panelas no fogão, mas ele guiou-a delicadamente, mas com firmeza, fora da cozinha.

— Você não vai fazer nada, exceto ir direto para a cama. ― Neill levou-a na direção da escada. Vou arrumar a cozinha e depois vou dormir no sofá.

— Você não precisa fazer isso. ― O protesto foi automático, mas ficou desesperadamente grata quando ele balançou a cabeça.

— Preciso, sim. Não vou deixá-la sozinha esta noite.

— Eu... Obrigada, Neill. ― O orgulho lhe diz que deveria mandá-lo embora, mas a ideia de que ele ficaria ali, no andar de baixo, era tentador demais. Anne subiu um degrau e virou-se. ― Eu ainda não agradeci por... pelo que você fez antes. Por espantar o pivete e depois... Estou tão... ― Captou a expressão de aviso no olhar dele e engoliu pedido de desculpas. ― Obrigada por estar aqui.

— De nada.

Desta vez não havia como imaginar o beijo que ele pousou em sua testa. Anne abaixou levemente a cabeça, querendo mais e, após uma imperceptível hesitação, Neill aceitou o convite tão docemente oferecido e procurou-lhe os lábios. Foi um beijo com a intenção de reconfortar ao invés excitar, e Anne saboreou a sua ternura. Não podia lembrar-se de jamais ter sido tão completamente acolhida e protegida.

Quando o beijo terminou ela estendeu a mão e tocou a camisa dele.

— Sua camisa ainda está molhada ― murmurou.

— Vou pendurá-la em algum lugar para que seque durante a noite.

A imagem dele com o peito nu e dormindo a apenas alguns metros da sua própria cama a fez estremecer de leve.

— Você não precisa dormir no sofá ― sussurrou, sentindo o rubor subir em seu rosto.

No silêncio que se seguiu, Anne pôde ouvir o barulho da chuva lá fora. Esperou, perguntando-se se estaria fazendo papel de tola, temendo que ele não a quisesse e estivesse pensando numa maneira gentil de recusar.

— Não esta noite. ― Neill tomou-lhe as mãos, afastando-as do seu peito. ― Eu a desejo tanto que chega a doer, mas existem algumas regras a este respeito. Você passou por um grande susto e está grata porque eu a socorri. ― Segurou o queixo dela entre os dedos, obrigando-a a encará-lo. ― Quando nos tornarmos amantes, Anne, não será por gratidão.

Ele não dissera "se" nos tornarmos amantes, mas sim "quando". A certeza na voz dele provocou-lhe um delicioso arrepio pelo corpo inteiro.

Neill tornou a beijá-la, com mais ardor desta vez, depois a fez virar-se novamente para a escada.

— Agora, vá para a cama e pare de me tentar, senão acabo esquecendo todas as minhas boas intenções.

Obedecendo, ela subiu os degraus, adorando a ideia de que era capaz de tentar um homem como Neill Devlin.

 

A nobreza tem o seu preço. Não havia como um homem de quase um metro e noventa acomodar-se confortavelmente num sofá de um metro e setenta. E tampouco ajudava que, através da longa e inquieta noite, Neill estava extremamente ciente do fato de que no andar de cima encontrava-se não somente uma cama, mas também uma mulher quente e acolhedora.

O maldito sofá era estreito demais até para que ele se virasse.

Neill adormeceu quase ao amanhecer e acordou cerca de uma hora depois ouvindo o discreto soar do despertador de Anne. Ainda meio dormindo, virou-se e mal teve tempo de perceber o que acontecia antes de cair com o rosto no chão. O alarme parou e ele ouviu passos no piso de madeira acima. O trabalho, lembrou-se. Anne ia para o trabalho. Se tivesse pensado um pouco, teria concluído; que ela seguiria em frente como se nada tivesse acontecido.

Levantou-se do chão e sentou no sofá, gemendo quando cada músculo de seu corpo expressava um protesto pela noite maldormida. Café. Ele quase gemeu com tal pensamento. Com umas dez xícaras de café talvez começasse a sentir-se humano novamente. Talvez.

Antes de descer Anne olhou pela janela do quarto e viu o Corvette vermelho estacionado na frente da casa, e soube que Neill passara a noite inteira ali. Resistiu ao impulso de correr para baixo e dar uma espiadinha nele, como uma criança que espera apanhar o Papai Noel deixando os presentes sob a árvore.

Pensou que não havia nada de errado com a roupa que escolhera para aquele dia, uma blusa de seda azul-clara que realçava seus cabelos e uma saia curta cor de cinza que deixava as pernas à mostra. Afinal, passara por uma situação difícil e precisava de um "empurrãozinho" extra em seu ego. Aplicou a maquiagem cuidadosamente, pegou a bolsa na cômoda e deu uma última olhada no espelho. Satisfeita ao ver que estava melhor do que nunca, foi para o andar de baixo. Neill não estava no sofá, mas ela sentiu o cheiro de café fresco e ouviu a movimentação dele na cozinha.

Não havia porque ficar nervosa, disse a si mesma enquanto deixava a bolsa na sala e alisava a saia antes de ir para a cozinha. Era uma mulher adulta, madura e ele era...

Um homem e tanto. A profunda percepção deste fato a fez estacar de repente. Nada a preparara para o impacto de encontrar aquele homem másculo, forte e desgrenhado em sua cozinha. Ele vestira a camisa, mas a deixara aberta no peito, emoldurando um tufo de pêlos escuros que descia como uma flecha até desaparecer sob a cintura da calça jeans. Ela precisou fazer um grande esforço para desviar os olhos de tal visão perturbadora.

— Bom dia ― ele cumprimentou. ― Já fiz o café.

— Ah, que bom.

A voz dela estava um pouco elevada e aguda demais, mas pelo menos não tremeu, e Anne considerou isso como um pequeno triunfo. Decidiu que não seria uma boa ideia olhar para o rosto dele, porque a visão daqueles olhos azuis sonolentos e da barba escura por fazer parecia-lhe quase dolorosamente íntima.

Neill bebericou o café e perguntou-se o que ela faria se a derrubasse em cima da mesa e puxasse aquela saia minúscula e tentadora pela cintura. Pela maneira quase faminta com que ela o fitava segundos atrás, talvez não oferecesse muita resistência. Tal pensamento não ajudou muito para aliviar a dor quase permanente que andava sentindo na virilha.

Mas sempre havia o lugar e a hora certos para o sexo ardente e rápido, e não eram aqueles. Na primeira vez em que ficasse com Anne, teria de ser numa cama espaçosa e confortável, com tempo de sobra. E queria estar absolutamente convencido de que ela não pensava estar lhe devendo qualquer coisa pelo que ele fizera na noite anterior.

Teria de ser em breve, Neill disse a si mesmo enquanto tomava o café. Ele não passava tanto tempo naquele estado de semi-ereção desde a adolescência. Uma situação como essa poderia causar danos imprevisíveis a um homem da sua idade.

Como o carro de Anne estava estacionado perto do banco, Neill levou-a para o trabalho. Imaginou se ocorreria a ela que qualquer pessoa que os visse presumiria que tinham passado a noite juntos, o que acontecera, e que seriam amantes, o que não eram. Ainda. Mas, de qualquer forma, nada o impediu de beijá-la em plena luz do dia.

O beijo, três xícaras de café e apenas uma hora de sono combinaram-se para deixar seus nervos em frangalhos, quando dirigiu de volta para o motel. Dorothy estava no jardim, de joelhos na terra, plantando um canteiro de flores. Levantou-se quando Neill saiu do carro e encaminhou-se lentamente na direção dela. Dorothy usava um short azul-marinho que revelava um par de joelhos enrugados, uma camisa masculina branca e os previsíveis tênis vermelhos, estes enfeitados com bolinhas brancas. Um boné com o emblema dos New York Jets estava enfiado por cima dos cabelos. Ela encarou-o pensativa, os olhos azuis demorando-se na camisa amassada e na barba crescida.

— Está chegando agora?

— Estou, sim. ― Ele estreitou os olhos sob a claridade do sol e reparou nas flores do canteiro. ― Boca-de-leão, não é? Minha mãe costumava plantar estas flores quando morávamos em... ― A lembrança fugiu da sua mente cansada. Ele encolheu os ombros. ― Bem, em algum lugar.

— Estas são do tipo mais antigo ― Dorothy falou, enviando um olhar satisfeito para as flores. ― Não são daquelas que abrem como se fossem petúnias. Se eu quisesse petúnias, plantaria petúnias. Não vejo motivo para cultivar uma boca-de-leão que parece uma petúnia.

— Sim, de fato, não faz muito sentido ― Neill concordou.

— Ouvi dizer que você tem se encontrado bastante com a garota dos Moore.

Neill apoiou os dedos nos bolsos e sorriu.

— Respeito a rede de boatos desta cidade o bastante para apostar que você já sabe exatamente quantas vezes saímos juntos e, provavelmente, até o que comemos no almoço.

Dorothy riu, divertida.

— Eu não ficaria surpresa se descobrisse sem nem mesmo tentar. Assim é a vida numa cidade pequena.

— Já percebi.

Neill poderia encerrar a conversa ali mesmo ir para seu quarto, tomar um bom e necessário banho, talvez dormir um pouco. Mas pressentiu que Dorothy tinha algo mais a dizer e, mesmo naquele pouco tempo em que a conhecia, calculou que seria melhor deixá-la dizer.

— É uma linda jovem.

— Eu também acho.

— E muito meiga, também.

— É verdade.

— Imagino que você esteja pensando que deveria cuidar da minha vida ― ela falou, com uma pontinha de beligerância.

Neill arregalou os olhos, surpreso.

— Ninguém nesta cidade faz isso. Não vejo motivo para que você vá contra a corrente.

Ela tornou a rir, e ele sorriu. Gostava de Dorothy Gale, com seus filmes antigos e sapatos vermelhos.

— Bem, pois não é mesmo da minha conta ― ela admitiu, generosa. ― Ou de qualquer pessoa, se quer minha opinião. Mas suponho que existam alguns moradores desta cidade que acham que ela precisa de um pouco de proteção extra.

— Por quê?

A simples pergunta fez com que os olhos dela disparassem na direção dos seus, e depois se afastassem. Ela tirou as luvas de jardinagem.

— Aquela família já ultrapassou a sua quota de problemas ― Dorothy respondeu, devagar. ― Talvez não tenham lidado com o problema tão bem quanto outros o fariam, mas não sou do tipo que aponta o dedo para os vizinhos e afirma que deveriam ter agido melhor.

— Que tipo de problema? ― Neill perguntou, o cansaço já quase esquecido. ― Tem algo a ver com a outra filha? Aquela que morreu?

Dorothy fez que sim, relutante.

— Eu não estava aqui, na época. Meu marido acabara de descobrir que estava com câncer e passamos a metade daquele ano numa famosa clínica em Boston, onde ele recebeu tratamentos que não ajudaram em nada. Ele morreu naquele verão, e por isso não prestei muita atenção em nada durante um bom tempo, antes e depois. ― Ela ficou em silêncio por um instante, lembrando-se, mas recuperou o controle e olhou para ele. ― Talvez você queira perguntar ao meu sobrinho-neto. Ele costumava sair com a garota que morreu.

— Obrigado. Vou fazer isso. ― Neill começou a se afastar, mas ela não havia terminado.

— Antes que comece a fazer perguntas e a abrir portas que ficariam melhor se permanecessem fechadas, talvez deva pensar que talvez não goste muito do que acabará descobrindo.

— Como posso saber se vou gostar ou não, antes de descobrir? ― ele perguntou simplesmente.

Um banho quente, duas horas de sono, duas xícaras de café com torradas e três ovos cozidos mais tarde, Neill saiu do quarto sentindo-se, se não recuperado, pelo menos relativamente humano. Por um breve momento considerara a possibilidade de ligar o laptop e passar algumas horas trabalhando no livro que não planejara escrever, mas havia muita coisa em sua cabeça a respeito do aqui e agora para que ele pudesse se concentrar no Wyoming do século dezenove.

Para variar, David estava trabalhando num carro muito velho, quando Neill entrou na oficina.

— Duvido que você já tenha consertado qualquer coisa com menos de vinte anos de idade ― Neill comentou, observando David desparafusar uma das rodas.

— De vez em quando sou obrigado a sair dos meus padrões ― David respondeu, sorrindo. ― Na verdade, nem tenho o equipamento necessário para consertar os modelos mais novos. E a maneira como são montados exige mais um programador de computador do que um mecânico. ― Balançou a cabeça, com desgosto. ― Precisam de um computador de mil dólares para saber como fazer um ajuste de motor.

— Acho que isso chama-se progresso ― Neill retrucou, irônico.

— Pode ser. Mas fica muito caro manter um negócio. E torna quase impossível alguém fazer a manutenção do próprio carro.

Neill enfiou as mãos nos bolsos, recostou no balcão e esperou que ele terminasse o serviço. Sua motocicleta jazia num dos cantos da oficina. Vagamente, pensou se David tivera alguma notícia a respeito das peças que precisava para o conserto, mas não sentiu nenhuma necessidade urgente de perguntar. Mesmo se a sua Indian fosse consertada naquele dia, não tinha planos de ir embora. Não até que resolvesse os seus sentimentos por Anne. E então, talvez, ele não partiria sozinho.

David tirou o pneu e deixou-o cair suavemente no chão, depois foi empurrando-o para fora do caminho.

— Você disse que conhecia Anne desde pequena ― Neill falou, enquanto o outro pegava uma caixa180 de ferramentas e voltava para o carro.

— É verdade. ― A resposta de David foi distraída, sua atenção concentrada no trabalho.

— Então deve ter conhecido a irmã dela.

A caixa de ferramentas bateu no piso de cimento. Seguiu-se um instante de silêncio mortal, até que David se abaixou para pegar uma das ferramentas, depois endireitou-se e encarou Neill com os olhos apertados.

— Eu a conhecia. Na verdade, fomos namorados durante todo o colegial.

— O que aconteceu com ela? ― Neill indagou, decidindo que era melhor ser direto do que sutil. ― Como foi que ela morreu?

David baixou os olhos para a ferramenta que tinha nas mãos, pensativo.

— Por que quer saber?

Neill hesitou um pouco. Se contasse a David sobre a tentativa de assalto e sobre o pânico de Anne ao pensar que as pessoas pudessem saber e "olhar para ela", tinha quase certeza de que obteria toda a história. Mas Anne lhe dissera que não queria que ninguém soubesse e, embora não compreendesse seus motivos, ele tinha de respeitá-los. Encolheu os ombros.

— Foi alguma coisa que Anne falou. Eu fiquei pensando.

— Por que não pergunta a ela?

— Eu perguntei. Ela disse que foi há muito tempo e que não queria falar sobre o assunto.

— Mas você não está disposto a dar o assunto por encerrado ― David afirmou, num tom neutro.

— Não acredito que esteja encerrado.

Neill não sabia por que ou como, mas sabia que o que quer que tivesse acontecido à irmã de Anne, ainda fazia parte da vida dela.

David assentiu, devagar.

— Talvez não. ― Calou-se, parecendo debater consigo mesmo sobre alguma coisa. Depois, balançou a cabeça. ― Acho que Anne não iria gostar se eu lhe contasse.

Neill exalou um suspiro de frustração, mas não insistiu. Se estivesse no lugar de David, talvez tomasse a mesma decisão. Era uma questão de lealdade. Mas parecia irônico saber que a preocupação mútua por Anne os colocava em lados opostos.

— De qualquer maneira, obrigado. ― Ele virou-se para sair, mas parou quando David falou novamente.

— O que aconteceu não foi nenhum segredo. ― As palavras foram pronunciadas lentamente, como se arrancadas dele. ― Saiu em todos os jornais. Quinze anos atrás, completados no próximo mês de maio.

A Biblioteca Municipal de Loving estava instalada num prédio de concreto, separado do conjunto principal da prefeitura por um extenso e bem cuidado gramado. Uma placa de bronze pregada na parede na entrada anunciava que, em 1953, o prédio fora uma generosa doação do Sr. e da Sra. Whiteberry, que acreditavam que as alegrias da leitura deveriam ser livremente disponíveis a todos. O próprio prédio fora projetado pelo filho deles, o Sr. Alvin Whiteberry. Neill admirava aquela demonstração de sentimentos cívicos mas achou uma pena que o jovem Alvin aparentemente inspirara-se nos bunkers da Segunda Guerra Mundial para fazer o projeto.

O interior era bem mais iluminado e arejado do que podia-se esperar, com a sensação de espaço auxiliada pelas cores suaves e madeira clara. Exceto pela mulher postada atrás de um balcão de madeira e um senhor idoso cochilando numa poltrona na área das revistas, o lugar parecia estar vazio.

Neill parou por um instante ao lado da porta considerando a sensatez da sua empreitada. Havia perguntado a Anne sobre sua irmã, e ela não quisera falar sobre o assunto. Talvez ele devesse deixar como estava. Se e quando ela quisesse que ele soubesse mais, lhe diria. Será que o fato de estar começando a apaixonar-se por Anne lhe dava o direito de ficar espionando em seu passado? Não tinha certeza, mas não podia livrar-se da lembrança de vê-la tremendo em seus braços na noite anterior, ou da convicção de que seu medo fora causado por algo mais do que um pivete que tentara roubar-lhe a bolsa.

Além disso, se o que acontecera à irmã dela estivesse nos jornais, era de conhecimento público portanto ele não estava exatamente invadindo sua privacidade, certo? Se morasse ali quinze anos atrás, poderia ter lido tudo a respeito, juntamente com todos os outros habitantes da cidade. Embora não fosse uma boa desculpa, ele admitiu com um suspiro, precisava saber.

Assim que ele pediu as cópias do jornal local do mês e ano que David lhe dissera, a bibliotecária, uma morena baixinha e gorducha de vinte e tantos anos, assentiu.

— O assassinato da filha dos Moore ― ela disse, com um ar de entendida. Virou-se e começou a procurar nas prateleiras atrás do balcão. ― Já deixamos as cópias separadas dos arquivos regulares, porque houve muito interesse a respeito. Agora nem tanto, mas nos primeiros anos havia muita procura. E as pessoas continuam aparecendo, de vez em quando.

Ela puxou um livro preto e grosso na prateleira e levou-o para a mesa.

— Foi antes da minha época, é claro. Mudei-me para cá há alguns anos, mas meu marido, Jim, frequentou a escola com os filhos dos Moore. Ele é uns dois anos mais velho do que a garota assassinada. Ele conta que a cidade inteira esteve num alvoroço durante semanas. Eu sou de Detroit e pareceu-me um tanto estranho que um assassinato provocasse tal efeito numa cidade. ― Encolheu os ombros, autodepreciativa. ― Mas, depois de viver aqui por algum tempo, a gente começa a entender.

— Um assassinato é um acontecimento e tanto numa cidade pequena ― Neill falou, automaticamente.

A palavra "assassinato" girava em sua mente. Ele havia considerado a possibilidade, naturalmente, mas mesmo depois que David lhe dissera que a morte de Brooke aparecera nos jornais, ainda pensava que pudesse ter sido um acidente, ou talvez um suicídio. O suicídio, principalmente, poderia deixar cicatrizes terríveis naqueles que ficaram.

— E este foi especialmente horrível ― a bibliotecária falou, estremecendo de leve. ― Calculo que não ajudou muito o fato de nunca terem apanhado o sujeito.

— Não. Isso deixa tudo pior ― Neill murmurou, pensando nos casos sobre os quais escrevera, dos sobreviventes que precisam ver o assassino ser preso e levado à justiça antes de conseguirem juntar os pedaços de suas vidas estraçalhadas.

— Certamente não ajudou em nada. ― Ela prosseguiu, num tom mais profissional: ― Não podemos emprestar os jornais mas você pode copiá-los, se quiser. A copiadora fica no lado leste, depois da seção de livros infantis. Fechamos mais cedo nas quartas-feiras, portanto você tem apenas uma hora.

Neill levou o livro para uma das mesas de leitura e puxou uma cadeira. Sentou-se, mas não abriu o livro imediatamente. Tamborilando os dedos na capa dura, pensou no comentário de Dorothy, sobre não gostar do que acabaria descobrindo. Tinha a sensação inquietante de que tais palavras foram proféticas.

Cerrando os dentes, ele abriu a capa.

Apesar do volume de recortes, não havia sido um caso realmente complicado. Mórbido o bastante para obter uma extensa e controvertida cobertura da imprensa mas, na verdade, os fatos disponíveis eram razoavelmente acurados.

Brooke Moore tinha dezoito anos e cursava o último ano do colegial. Era líder da torcida da escola, rainha da simpatia, praticava esportes e fazia parte da Sociedade Nacional da Honra, uma adolescente americana ideal. As fotos em branco e preto dos jornais mostravam-na com a fantasia da torcida e com o vestido de baile da formatura, de braços dados com um jovem magro e sério que Neill mal pôde reconhecer como sendo David Freeman. Se pudesse acreditar nos jornais, ela era amada pelos professores, adorada pelos colegas e o orgulho e alegria da família.

E, então, ela desapareceu.

Brooke fora para a escola naquele dia, e alguns de seus amigos lembravam-se de tê-la visto na saída; Tinham lhe oferecido uma carona para casa, mas ela dissera que o irmão viria buscá-la. Mas Jack perdera a noção do tempo e estava meia hora atrasado e, ao chegar, não encontrou-a no lugar de costume. Presumindo que Brooke cansara-se de esperar e fora andando para casa. Jack foi com os amigos para uma lanchonete. Seus pais imaginaram que Brooke estivesse com o irmão e foi somente quando ele voltou para casa sozinho que começaram a se preocupar.

Lendo nas entrelinhas Neill concluiu que várias horas se passaram antes que a preocupação se tornasse genuína e, depois, se transformasse em medo. Deviam ter feito telefonemas para todos os amigos dela, os lugares que ela costumava frequentar certamente foram checados, e não eram muitos, numa cidade do tamanho de Loving. Quando nada resultou disso, o medo se instalou. Alguns amigos foram chamados novamente: Tem certeza de que ela não disse nada sobre onde iria? Amigos ligaram uns para os outros, ansiosos em compartilhar a notícia de que Brooke Moore desaparecera e para onde ela poderia ter ido?

Neill imaginava que, numa cidade como aquela, teria demorado algum tempo para que a possibilidade de uma tragédia fosse assimilada. Embora parecesse que o xerife seguira todas as regras, Neill estava disposto a apostar que ele considerara tudo aquilo uma perda de tempo e que tinha certeza de que, mais cedo ou mais tarde, Brooke apareceria sã e salva. Apenas quando um dia transformou-se em dois, depois três, e ela ainda estava desaparecida, a polícia local realmente absorveu o fato de que poderia estar lidando com um crime sério. Numa cidade grande, esta teria sido a primeira possibilidade. Porém, em Loving, onde todos se conheciam, um crime de tal gravidade era relativamente raro. Carros roubados, um assalto ocasional, violência doméstica, estes eram os grandes crimes numa cidade como Loving.

Quase duas semanas se passaram antes que tivessem alguma pista. O estômago de Neill embrulhou-se ao ler o relato. Um fazendeiro havia parado para trocar o pneu na estrada, a cerca de cinco quilômetros da cidade e, ao aproximar-se de uma vala, viu a mão de uma garota ali jogada. Depois de devolver o almoço, ele deixou o pneu furado para marcar o lugar e foi direto para delegacia. O pai de Brooke identificou a mão pelo anel que sua filha usava.

Se estivessem agarrando-se a qualquer esperança de ver a filha viva novamente, essa devia ter desaparecido naquele instante. Dois dias depois, encontraram outra parte do corpo dela, a poucos quilômetros do local onde a mão fora encontrada. Depois disso, foi uma questão de vasculhar toda a margem da estrada, traçando a trilha do assassino pelas partes que ele deixara para trás, como o lixo jogado por um carro que passa.

Havia uma extensa cobertura do funeral, que contou com a presença de quase todos os moradores de Loving, bem como da imprensa estadual e nacional. Neill examinou a foto embaçada da família em luto e perguntou-se se estaria enxergando demais ao perceber o fato de que cada um deles mantinha-se distante do outro, sem nem sequer se tocar. Olivia, usando um vestido preto simples, a coluna rígida, o rosto absolutamente estático; o marido parado ao lado dela, de cabeça baixa, a expressão oculta. Um Jack mais jovem e mais magro, os cabelos louros caindo na testa, o rosto contendo a expressão vazia de alguém em estado de choque.

E Anne, de dez anos, postada ao lado do irmão, os olhos muito abertos e confusos, as pernas finas aparecendo sob a barra de um vestido preto. Neill imaginou se Olivia teria saído para comprar os trajes apropriados para o enterro, e depois pensou que talvez estivesse sendo injusto com ela. Agora ela parecia uma mulher fria e amarga, mas a morte de Brooke devia ser, em grande parte, culpada por isso.

Os recortes restantes falavam sobre as investigações que se seguiram, e que não levaram a lugar algum. De acordo com a polícia, exceto pelo cadáver encontrado, não tinham nenhuma pista do caso. Ninguém vira nada. Ninguém reparara na presença de estranhos na cidade. Interrogaram a todos que conheciam Brooke, mas não parecia haver nenhum motivo. O despeito por ter sido derrotada na eleição de "Rainha do Baile" raramente resultava num assassinato daquele tipo.

Os espaços entre as notícias foram se tornando maiores, até cerca de um ano depois, quando houve um alvoroço de novas informações sobre crime semelhante em Oklahoma. O FBI foi chamado para investigar e houve alguma especulação sobre a possibilidade de os dois crimes terem sido cometidos por um assassino serial. Mas, se esse fosse o caso, ele não tornara a matar, ou suas vítimas não foram encontradas, e a morte de Brooke permaneceu como mais um crime sem solução, o caso tendo sido oficialmente aberto mas não oficialmente fechado, pois a polícia não tinha bases para seguir com as investigações.

Neill ficou ali sentado, olhando para o nada, mãos pousadas no livro fechado. Aquilo explicava muita coisa, naturalmente. A reação de Anne à tentativa de assalto, sua quase histeria diante da ideia de ter as pessoas olhando novamente para ela, lembrando-se do que acontecera à sua irmã. Ele podia adivinhar como havia sido, para ela. Esta é a irmã da garota assassinada, sabia? Como será que a família está aguentando? Pobrezinha, será que ela sabe de tudo o que aconteceu? Muitos dos comentários certamente não foram feitos por maldade, mas para uma menina sensível encontrar-se de repente no centro de todas as atenções deve ter sido muito doloroso.

Teria a família de Anne compreendido que para ela, de muitas formas, a morte de Brooke fora mais difícil de enfrentar? Ou estiveram tão envolvidos com o próprio sofrimento que nem foram capazes de reconhecer o dela?

E como Anne reagiria quando descobrisse que ele não era um escritor "freelance" que lutava para sobreviver, mas sim alguém que construíra sua fama, e ganhara um bocado de dinheiro, escrevendo livros que falavam exatamente do tipo de tragédia que ela e sua família sofreram?

Ela deveria estar se sentindo envergonhada, Anne pensou enquanto trocava cumprimentos com os outros funcionários do banco. Depois da tempestade emocional por que passara na noite anterior, deveria encolher-se só de pensar em ver Neill outra vez. Deveria estar tão embaraçada pela sua perda de controle que não suportaria nem mesmo falar com ele, decidiu enquanto guardava a bolsa na gaveta da escrivaninha e ligava o computador. Havia soluçado nos braços dele como uma criança assustada, permitira que ele testemunhasse o medo que ela própria mal conseguia reconhecer. Depois, oferecera-se a ele, dizendo que não precisava dormir no sofá, convidando-o para a sua cama. E ele recusara o convite.

Ah, mas o jeito com que recusara... Quando nos tornarmos amantes, não quero que seja por gratidão. Quando. Não "se", mas "quando".

Os lábios de Anne curvaram-se num sorriso secreto. Supunha que muitas mulheres se sentiriam ofendidas pela arrogância daquela afirmação, mas não era uma delas. Para ela, fora como uma certeza. Ele a desejava. E gostava dela, porque, caso contrário, teria aceito seu convite em vez de passar o que certamente fora a pior noite da vida dele, num sofá tão pequeno e apertado. Portanto, da parte dele, havia mais do que desejo. E, Deus sabia, havia muito mais do que isso, da parte dela. O quanto, exatamente, era algo que ela ainda não tivera coragem de definir.

Estava quase apaixonada por ele, talvez até um pouco mais do que "quase". Não importava que o conhecia por tão pouco tempo. Sempre imaginara que se apaixonaria lentamente, um longo e delicioso processo de conhecer alguém, descobrir suas afinidades, conhecer seus objetivos e sonhos. Em sua imaginação, via tudo como se fosse através das lentes de uma câmera, um tantinho desfocado, com violinos tocando ao fundo... tudo muito suave e delicado.

Anne jamais esperava sentir o impacto de luzes e cores que a invadia quando Neill a beijava, nunca imaginara o agudo desejo que a percorria quando ele a tocava. Não havia nada de suave e sonhador sobre o que acontecia entre eles. Era luminoso, vívido. Urgente, ardente. Elementar e irresistível. E, por uma vez em sua vidinha tão segura e cautelosa, ela não iria resistir.

Quando nos tornarmos amantes.

Ah, sim, definitivamente, ela adorava o som daquela frase.

Na maioria dos dias o trabalho de Anne não lhe exigia muito, e aquele dia não foi diferente. Isso lhe dava tempo para pensar, e ela só pensava em Neill. Num certo momento, chegou a apanhar-se olhando para o espaço, os dedos soltos no teclado do computador, os lábios curvados num sorriso bobo. Por duas vezes Marge parou na sua mesa para perguntar se ela estava se sentindo bem.

— Porque parece que você está em outro lugar. Esta é a terceira vez que você põe água na planta da janela. Mais um pouco e a pobrezinha vai boiar para fora do vaso. E estes documentos, é a segunda vez que você os passa para mim incompletos.

— Desculpe-me. ― Anne ruborizou, pegando os documentos que Marge lhe entregava. ― Acho que estou mesmo um pouco distraída.

— Bem, isso acontece com as melhores pessoas. ― A exasperação de Marge transformou-se em curiosidade. ― Há algum motivo especial para tal distração? Por experiência própria sei que quando uma mulher não consegue pensar direito é porque está pensando num homem. Conheço muitas pessoas que chamariam isso de tolice antiquada, mas a humanidade não mudou tanto assim desde meus tempos de juventude, e ainda não existe nada como um homem para distrair as ideias de uma mulher.

— Você tem razão, é uma tolice antiquada. ― O sorriso de Anne provou que estava brincando. ― Estou apenas distraída, isso é tudo.

— Se é o que diz ― Marge falou, sem dar-se ao trabalho de fingir que acreditava. Olhou para a entrada do banco e sorriu. ― Mas, é claro que se você estiver mesmo pensando num homem, talvez agora tenha a chance de falar com ele.

Neill. Anne virou-se rapidamente, sentindo o coração disparar com a antecipação. Então, teve de fazer um esforço para esconder o desapontamento ao ver Frank Miller aproximar-se da sua mesa. Frank. Ela o conhecia desde a infância, saíra com ele apenas alguns dias atrás, mas quase fora difícil lembrar do nome dele. Não lhe dedicara nem sequer um pensamento desde aquele último beijo morno na varanda da sua casa.

— Anne. Marge. ― Ele assentiu para as duas.

— Olá, Frank. ― O sorriso de Marge era amigável. ― Está tudo bem com sua mãe? Eu não a vi na igreja no domingo passado.

— Sim, está tudo bem. Ela pegou um resfriado, mas nada sério. Ainda está tossindo um pouco, por isso achou melhor não arriscar-se a ter um acesso de tosse no meio do sermão.

— Mel e limão num pouco de água quente ― Marge sugeriu. ― É a melhor coisa para a tosse.

— Darei o recado. ― Frank desviou a atenção para Anne, que ainda não dissera uma palavra ― Estive pensando quando você poderia ter intervalo.

Anne não precisava ser uma vidente para saber sobre o que ele queria conversar. Alguma alma "bondosa" certamente mencionara tê-la visto com Neill. Ela teve de afastar uma rápida sensação de culpa. Afinal, nunca tinham feito promessas um ao outro, pensou. Não tinham nenhum compromisso, nem mesmo a possibilidade de um futuro compromisso.

— Por que não pára um pouco e vai tomar café, Anne? ― Marge sugeriu, com um sorriso de casamenteira no rosto gorducho.

— Eu... está bem, obrigada. ― Anne gravou o trabalho que estava fazendo no computador, desligou-o e afastou a cadeira.

Sempre educado, Frank abriu-lhe a portinhola que a separava do salão do banco, ela sorriu em agradecimento e passou. Podia sentir o olhar especulativo de Marge queimando-lhe as costas.

— Pensei que podíamos sentar no carro de patrulha e conversarmos por um minuto, se estiver bem para você ― Frank falou, abrindo-lhe a porta da frente.

— Contanto que você não me obrigue a sentar atrás, tudo bem ― Anne falou, tentando brincar. Mas, uma coisa em Frank era certa: ele não tinha nenhum senso de humor, nem mesmo nos seus melhores dias.

— Não, o assento da frente é melhor ― ele disse, sério.

O efeito refrescante da chuva da noite anterior já havia se evaporado antes do meio-dia, e agora Loving ardia suavemente sob um céu sem nuvens. Frank abriu a porta do carro para ela e depois deu a volta, sentando atrás do volante e ligando o motor, a fim de acionar o ar-condicionado.

— Eu queria lhe falar sobre a noite de sexta-feira ― ele começou.

— Frank, eu... ― Anne calou-se, engoliu em seco e baixou os olhos para as mãos cruzadas em seu colo. Gostava de Frank. Não o amava, mas ele era um bom sujeito e não queria magoá-lo. Respirando fundo, virou-se para encará-lo. ― Acho que não devemos continuar nos encontrando. Pelo menos não da maneira como vínhamos fazendo. Isso... não vai nos levar a lugar algum.

Se as palavras causaram algum impacto, ela não soube dizer pela expressão dele. Frank continuava olhando-a com a mesma calma de sempre. E, também como sempre, não tinha pressa em dizer o que estava pensando. Enquanto esperava, Anne teve uma aguda percepção do barulho do ar condicionado, das pessoas que passavam pela calçada.

— É o sujeito da motocicleta? Aquele que dizem que é escritor? ― Não havia nenhuma acusação na voz dele. Anne nem mesmo tinha certeza se havia curiosidade.

— Se você está perguntando se tenho saído com ele, estou certa de que sabe que a resposta é sim. Se estiver perguntando se é por causa dele que acho que não devemos mais nos ver, a resposta é não. Neill pode ter sido o agente catalisador ― ela acrescentou, sincera. ― Mas há muito tempo eu sei que nós... ― Deixou a frase no ar, procurando algo que pudesse ser honesto sem ser ofensivo. ― Frank, eu não sinto por você tudo o que você merece de uma mulher.

— Este tipo de coisa cresce com o tempo.

Ou desponta de um dia para outro.

Mas isso ela não falou. Não sabia bem o que Frank sentia a seu respeito. Aliás, este era um dos problemas: ela nunca tivera certeza sobre o que Frank sentia, a respeito de qualquer coisa ou mesmo se ele sentia alguma coisa. Porém, se as emoções dele estivessem envolvidas, não queria magoá-lo além do necessário.

— Sim, é verdade ― ela concordou. ― Mas precisa haver algo desde o início... uma fagulha, uma atração, pelo menos. E, por mais que eu goste de você, infelizmente esta "fagulha" não existe.

— Isso que é sinceridade. ― Frank desviou os olhos por um momento e, quando tornou a encará-la, havia uma preocupação em sua expressão. Foi uma das poucas vezes em que Anne foi capaz de ver o que ele estava sentindo. ― Este sujeito está só de passagem, Anne. Pelo que ouvi dizer, vai pegar a estrada assim que David consertar a moto. Eu detestaria vê-la sofrer.

— Eu não vou sofrer ― ela disse, e esperava que fosse verdade.

Ele assentiu.

— Bem, a vida é sua. ― A breve demonstração de emoção desaparecera, e Anne perguntou-se se havia imaginado.

Houve um breve silêncio, desta vez tenso e desconfortável. Ela nunca rompera com ninguém, antes. Será que teria de esperar um tempo determinado, talvez contemplando o que poderia ter sido? Haveria alguma espécie de protocolo a ser seguido?

— Acho melhor voltar para o trabalho ― ela disse finalmente, quando o silêncio ameaçava tornar-se insuportável. ― Eu... A gente se vê por aí, está bem?

— É claro. ― Frank assentiu mas não olhou para ela.

Anne saiu do carro refrigerado para o calor sufocante lá fora.

No instante em que pisou na calçada, Frank já se afastava. Ela virou-se para vê-lo seguir pela rua, esperando não ter ferido mais do que apenas o orgulho dele. Mas fizera a coisa certa. Independente do que acontecesse entre ela e Neill, sabia que não havia nenhuma chance de um relacionamento com Frank.

— Oh! ― Ao virar-se, quase deu de encontro com um homem parado atrás dela. ― Neill!

— Aquele não era o seu irmão ― ele disse, olhos fixos no carro que se afastava.

— Não. Era Frank Miller. Ele e eu... hum... nós saímos juntos algumas vezes. ― Anne não sabia por que sentia necessidade de explicar.

— Eu deveria ficar com ciúme? ― Os olhos dele, aguçados, indagadores, colaram nos dela.

— Você ficaria? ― ela retrucou, e prendeu fôlego diante do que viu nos olhos dele.

Fora apenas um breve lampejo e ele estava sorrindo mas, por um momento, havia algo perigoso ali, algo que, Deus a ajudasse, provocara um arrepio por todo seu corpo.

— Frank e eu somos apenas amigos ― ela disse ofegante.

Mais tarde teria tempo de considerar a ideia de que era capaz de deixar um homem como aquele com ciúme. Sem dúvida era algo do qual deveria se envergonhar, mas era um pensamento que ela tinha toda a intenção de saborear.

— É bom ter amigos ― Neill falou. Tocou uma mecha de cabelos na testa dela e, depois, deslizou o dedo pelo seu rosto. ― Passei aqui para saber como você está se sentindo.

— Estou bem. Muito bem. ― A não ser pelo fato de seus joelhos estarem se dissolvendo e seu pulso disparando.

— Ótimo. ― Ele seguiu a trilha até os lábios dela, e Anne reprimiu o impulso de entreabri-los. ― Venha para Chicago comigo.

Ela demorou um instante para registrar as palavras. E, quando o fez, arregalou os olhos.

— O quê?

— Vamos para Chicago, passar o fim de semana. Este fim de semana. Poderemos jantar, talvez assistir algum espetáculo. Meu irmão tem um restaurante na cidade e acho que posso convencê-lo a nos alimentar pelo menos uma vez. Se sairmos na sexta-feira de manhã, voltaremos no sábado à tarde. Eu...

— Sim.

Anne não precisava pensar. Provavelmente era loucura concordar em passar um fim de semana com um homem a quem ela conhecia tão pouco.

Uma mulher cautelosa demoraria mais tempo para pensar, não tomaria nenhuma decisão impulsiva. Mas, por experiência própria, ela sabia que as mulheres cautelosas vivem vidas muito aborrecidas. Ao menos naquela vez ela iria arriscar-se, ignorar o bom senso e ouvir o coração.

 

Anne teve a impressão de que o salão do hotel deveria conter pelo menos um acre de carpete azul. A enorme extensão era quebrada apenas por aconchegantes áreas de espera, com sofás confortáveis e plantas em vasos. Acima do murmúrio dos hospedes do hotel, chegando, partindo ou simplesmente vagando por ali, havia o jorrar de uma fonte, com palmeiras e flores. Era como estar no cenário de um filme e Anne descobriu-se admirando o ambiente sem a menor vergonha, querendo ver tudo de uma só vez.

Reparando naquele prazer quase infantil, Neill deu uma risadinha, mas ao mesmo tempo estava ciente de uma raiva surda que começava a sentir por pensar que ela passara a vida inteira a apenas algumas horas de distância daquela cidade, e no entanto esta era a primeira vez que a visitava. Se fosse por falta de interesse dela, seria explicável. Mas a evidente alegria que ela demonstrava, sua fascinação diante de coisas consideradas comuns, deixaram-no dividido entre a raiva em saber que a vida dela fora tão restringida e um prazer culposo por ele ser aquele a lhe mostrar tudo o que ela estava perdendo.

Neill a levara para lá porque tinha certeza de que ela gostaria, mas também porque pensou que seria uma boa ideia estarem em terreno neutro quando lhe contasse que sabia de tudo sobre Brooke, e lhe explicasse que sua carreira não era exatamente o que ela pensava.

Ele havia passado os dois últimos dias convencendo-se de que não tinha com que se preocupar. Anne poderia ficar chateada, talvez um pouco magoada, mas não era como se ele tivesse mentido. Não exatamente. E o que acontecera à irmã dela era de conhecimento público, portanto ele não fora xeretar. Não exatamente.

Assim, a levara para a cidade grande a fim de atordoá-la com as luzes, levá-la a um belo restaurante, talvez amolecê-la um pouco com uma ou duas taças de vinho, antes de fazer a sua confissão. Era um tantinho deprimente dar-se conta de que se tornara tão manipulador, pensou com um suspiro.

Quando vira a qualidade do hotel que Neill escolhera, Anne pensou que era uma grande delicadeza da parte dele ter tanto trabalho para tornar aquele fim de semana especial. Presumira que ele havia reservado um dos quartos menos caros e esperava que não estivesse indo muito além do que suas finanças lhe permitiam. Enquanto subiam pelo elevador, mordeu o lábio e pensou se teria coragem de oferecer-se para dividir as despesas mas, mesmo com sua experiência limitada, algo lhe dizia que ele não aceitaria tal sugestão.

Quando as portas do elevador se abriram e eles entraram num pequeno saguão, sendo cumprimentados por um sorridente homem de meia-idade, ela ficou ligeiramente surpresa, mas como era a primeira vez que ficava num hotel de luxo pensou que talvez, num lugar como aquele, haveria um funcionário para cumprimentar os hóspedes em cada andar.

Porém, não precisava ser uma viajante experiente para reconhecer o luxo do apartamento para o qual Neill a fazia entrar. O piso revestido de um carpete grosso, cor de pérola, cortinas azuis, dois sofás, um deles com estampas de flores e outro com listras em dois tons de azul. Um bar, gravuras de bom gosto nas paredes, um exótico arranjo de flores na mesinha ao lado do sofá e uma segunda porta aberta, através da qual ela teve o relance de uma cama. Não era um simples apartamento, mas sim uma suíte.

— Fiz reservas para o jantar ― Neill falou, atravessando a sala para abrir as cortinas e revelar uma vista espetacular do lago Michigan.

Sentindo-se como se estivesse num sonho, Anne foi até a janela e olhou para fora. Espalhada abaixo deles a cidade parecia uma pintura em tons de cinza e dourado. Ela nunca estivera num lugar tão alto e, por um instante, sentiu-se um pouco zonza. Ou talvez fosse o choque por encontrar-se ali.

Virando-se lentamente, tornou a examinar a sala. Nem podia imaginar quando custaria uma suíte como aquela, mas sabia que devia ser muito. Quando Neill a convidara para o fim de semana, Anne achou que sabia o que esperar. Iriam dormir juntos. Se tivesse se dado ao trabalho de imaginar como seria o cenário para isso, teria concluído que Neill o escolheria com todo o cuidado. Mas um quarto como aquele... nunca teria imaginado.

Observando-a, Neill reconheceu sua hesitação, mas confundiu o motivo.

— Se não gosta do quarto podemos mudar... ou ir para outro hotel, se preferir.

— É claro que gosto, é maravilhoso. ― Anne acenou com a mão, indicando toda a sala. ― Parece algo saído de um dos filmes antigos de Dorothy. Como eu poderia não gostar? ― Olhou para ele por um instante e concluiu que não havia um jeito sutil de dizer o que queria. ― Mas deve estar custando uma fortuna e eu não... Tem certeza de que não será demais para você?

Ela preocupava-se por ele estar gastando mais do que podia. Tal pensamento invadiu-o com um misto de culpa e prazer que já estava se tornando bem conhecido. O prazer pelo fato de que ela preocupava-se com sua situação financeira, e culpa por tê-la deixado com a impressão de que havia motivos para se preocupar.

Conte a ela, sua consciência murmurou. Mas ele queria ter pelo menos uma noite com ela. Sempre haveria a possibilidade de Anne ficar tão zangada com a sua omissão que acabaria indo embora, sem lhe dar a chance de explicar.

— Achei que você não se incomodaria de lavar alguns pratos para pagar a nossa hospedagem e refeições ― ele disse, num tom animado.

Ela sorriu, mas a preocupação permaneceu em seus olhos. Neill tomou-lhe a mão e puxou-a para si.

— Duas noites num hotel de luxo não vão me levar à falência, querida. Afinal, não tenho um estilo de vida muito extravagante.

Aquilo era verdade, Neill consolou-se ao ver a expressão dela se tranquilizar.

— Se você tem certeza disso... ― Ela encarou-o„ ― Não precisa fazer tudo isso por mim ― acrescentou, tímida.

E ele achava que estava "quase" apaixonado? Neill perguntou-se. Não, o que sentia era bem mais do que isso. Fitando os grandes olhos azuis de Anne pensou que talvez apaixonara-se por ela naquele primeiro dia, quando a vira na oficina de David parada ao lado daquele carrinho ridículo, olhando para ele como se esperasse ser agarrada a qualquer momento. E ele quisera agarrá-la, então, como queria agora.

Fazendo uso de todo o seu autocontrole, baixou a cabeça e beijou-a longamente, um beijo quente que deixou-a fraca e trêmula. Por um instante, considerou a ideia de mandar o jantar para o inferno e levá-la para a cama. Porém, não era assim que queria. Devagar e com calma, lembrou-se. Aquilo era mais do que um caso rápido de fim de semana. Na verdade, era tão mais do que isso que até o assustava.

Foi uma noite mágica. O restaurante, com as toalhas de mesa brancas, talheres de prata e delicados copos de cristal, era uma obra prima de elegância discreta. Diante da insistência de Neill, Anne pediu uma lagosta, que estava deliciosa. E também o vinho, olhar para as águas do lago Michigan, tudo era um sonho. Até o garçom era maravilhoso. Mas Anne sabia que teria adorado tudo mesmo se Neill a levasse para comer um sanduíche, pois não era a comida ou o cenário que tornava tudo especial. Era ele.

Ela estivera mentindo para si mesma quando pensara que estava quase se apaixonando por ele, admitiu enquanto bebia um gole do vinho. Na verdade, estava completa, loucamente apaixonada. E em alguns momentos, quando ele sorria, ou a beijava com tanta ternura, ela quase acreditava que talvez ele sentisse o mesmo.

E se não sentisse... Bem, ela se preocuparia com isso quando chegasse a hora. Havia passado a vida inteira sendo cautelosa. Por uma vez, naquele fim de semana, iria viver sem pensar nas possíveis consequências.

Depois do jantar Neill levou-a ao Observatório Hancock, informando, quando chegaram no terraço com o mirante, que estavam a noventa e quatro andares de altura. O tom de guia de turismo que ele usava a fez rir, mas a vista espetacular da cidade a deixou sem fôlego.

— É lindo ― ela murmurou, os olhos reluzindo.

— Você é muito mais. ― Tomando-a nos braços, ele beijou-a até que as luzes da cidade parecessem girar em torno dela.

Já era tarde quando voltaram ao hotel. Subindo pelo elevador, Anne tinha a mesma sensação flutuante e deliciosa que lembrava-se da única vez em que bebera um pouco além da conta. Mas não fora aquele copo de vinho que tomara no jantar que a deixara sentindo-se assim, era o homem parado ao lado dela, o homem que estava prestes a se tornar o seu amante. E esta não era uma palavra maravilhosa, poderosa?

Quando Neill abriu a porta da suíte, fazendo-a entrar, já ardia com a necessidade de tocá-la. De sentir-lhe o gosto. Os beijos que haviam trocado, as carícias casuais naquela noite, deixaram-no a ponto de explodir com um desejo que não podia mais ser contido. Porém, fez o possível para se conter. O que aconteceria naquela noite, com aquela mulher, era muito importante. Importante o bastante para que ele esperasse.

Ele observou-a entrar na sala, depois virar-se para olhá-lo inquisitivamente, e pensou que jamais vira algo tão lindo como ela, com aquele simples vestido preto, as longas pernas cobertas pela meia preta, os cabelos dourados presos no alto da cabeça provocando-lhe uma urgência de soltá-los e sentir-lhes a maciez entre as mãos. Ele respirou fundo.

— Você não é obrigada a fazer nada, Anne. Se não é o que deseja, basta dizer.

Ela inclinou a cabeça para o lado, curiosa.

— E você não se incomodaria de dormir no sofá?

— De jeito nenhum ― ele mentiu com bravura.

Ela deslizou os dedos distraidamente pela abertura do decote, e Neill engoliu em seco.

— Quer dizer que eu posso dormir lá no quarto sozinha e você dorme aqui, sozinho?

Ela estava querendo matá-lo?

— Sim. Sozinho. ― Por Deus, ela o havia reduzido a dizer frases de uma só palavra. Mais alguns minutos e ele nem conseguiria mais pensar.

Anne baixou as mãos e observou-o em silêncio por um instante, depois, lentamente, e de propósito, passou a língua sobre os lábios.

— Você sabe o que estou usando por baixo do vestido?

— O q-quê? ― Neill gaguejou, prestes a explodir.

— Comprei um conjunto de lingerie no ano passado, pelo catálogo. O anúncio dizia que eu ficaria irresistível.

— É... mesmo?

— Eles garantiram. ― Anne enviou-lhe um olhar que era de puro convite, depois virou-se na direção do quarto. ― Talvez eu deva devolver e pedir meu dinheiro de volta.

Neill pensou que tinha de se controlar. Não iria agarrá-la e jogá-la no chão. Não naquela primeira vez. Controlou-se o bastante para segui-la até o quarto sem gemer de desejo.

Anne parou ao lado da cama e cruzou as mãos. A coragem que fora tão fácil de encontrar momentos atrás subitamente desaparecera. Nem podia acreditar que se oferecera daquela maneira, nem sabia de onde surgira aquilo. Ela nunca fizera aquele papel de sedutora. Porém, algo no jeito em que Neill a fitava, os olhos ardendo de desejo mesmo quando sugerira que dormissem separados, despertara algo extremamente feminino e feroz dentro dela.

Agora, no entanto, ali estava ela, ao lado da cama e subitamente ciente do fato de que ele era um homem grande e másculo e, embora não estivesse com medo, jamais teria medo dele, estava um pouco nervosa com o que viria a seguir. Não temerosa, pois sabia como funcionava. Não tinha a experiência prática, mas a teoria ela sabia. Queria que Neill a ajudasse, mas ainda assim, agora que o momento chegara, estava um tanto insegura.

Então voltou-se e olhou para ele, vendo não apenas o desejo mas também uma necessidade que penetrou em sua própria alma, e uma sensação semelhante emergiu de dentro dela, engolindo o medo, o nervosismo, dando-lhe uma coragem trêmula e hesitante.

— Será que pode me ajudar com o zíper? ― murmurou, virando-se.

O zíper deslizou devagar pelas suas costas e ela sentiu o roçar dos dedos de Neill em cada centímetro da sua pele. Quando parou, ela conseguiu apenas permanecer imóvel, respirando rapidamente, perguntando-se o que faria a seguir. Ele tinha de saber que ela queria que acontecesse, que o desejava. Talvez devesse tirar o vestido, deixá-lo cair no chão, mas sua coragem começava a abandoná-la novamente.

E, então, sentiu o hálito dele em sua pele, quente e úmido. Fechou os olhos enquanto ele começava a beijar-lhe os ombros, acariciando-lhe as costas. Estremecendo, Anne mal reparou quando Neill afastou o vestido de seus ombros, puxando-o pela barra até que caísse no chão. Ela virou-se cegamente, obedecendo ao suave comando das mãos dele.

— Meu Deus ― ele sussurrou, quase numa súplica. ― Será que está tentando me matar?

— O quê? ― Surpresa, ela abriu os olhos.

— Este tipo de coisa deveria ser registrado como arma mortal ― ele murmurou, sentindo-se quase zonzo de desejo.

O sutiã de renda preta que ela usava mal cobria-lhe os mamilos e ele já havia visto selos maiores do que aquela calcinha. E completando o conjunto... Por Deus, ela estava usando uma cinta-liga que prendia as finas meias pretas. E estava parada ali, fitando-o, os lindos olhos azuis repletos de nervosismo e desejo, e ele tinha certeza de que seu coração poderia explodir em seu peito.

Neill abriu o fecho do sutiã e ficou observando enquanto a renda preta deslizava pelos seios brancos e túrgidos.

— Neill... Neill? ― Anne ofegou quando ele passou os dedos por seus seios, formando uma trilha ardente em sua pele. ― Eu nunca fiz isso antes ― confessou.

Ele imobilizou-se e olhou para ela. Anne parecia quase culpada, como se estivesse confessando um crime. E assustada, também, como se não tivesse muita certeza de como fora parar ali.

— Eu sei disso. ― Neill achou que soubera desde a primeira vez que a beijara, talvez pela inocência que reluzia nos olhos dela. E isso só fizera com que a desejasse ainda mais. ― Podemos parar, se você quiser.

— Não. ― Ela respirou fundo, sentindo a boca seca quando o sutiã deslizou mais um pouco em sua pele.

— Não vou machucá-la.

— Eu sei. ― Sempre fitando-o, Anne livrou-se do sutiã e jogou-o em cima da cama. ― Eu quero que aconteça, Neill.

Estendeu a mão para os botões da camisa dele, mas Neill afastou-a. Se ela o tocasse, achava que seria capaz de explodir.

— Quero vê-lo ― ela murmurou.

— Nós temos tempo. Todo o tempo do mundo?

— Mas eu... ― O protesto de Anne transformou-se num gemido quando Neill espalmou as mãos em seus seios, acariciando os mamilos rígidos.

Ela estremeceu sob aquele primeiro toque das mãos de um homem em seu corpo, sentiu os joelhos dobrarem-se quando ele passou a beijar os mamilos, sugando-os levemente a princípio, depois com mais força. A pressão dos lábios dele em seu seio provocou-lhe uma onda deliciosa fazendo-a pressionar as coxas, numa inútil tentativa de aliviar a súbita dor que atingiu-a entre as pernas.

Neill dizia a si mesmo para ir devagar. Ele era o primeiro homem dela e, se fizesse tudo direito, poderia ser o único. Tinham tempo, ele dissera. Porém, nunca desejara alguém daquela maneira, com tanto ardor e paixão. Ela era tão quente, tão receptiva. E era sua. Somente sua.

Deitou-a delicadamente na cama, parando pelo tempo suficiente de arrancar a camisa, mas ainda com controle o bastante para ficar com a calça, sem saber se seria capaz de segurar-se sem aquela barreira. E então começou a acariciá-la. Tocá-la por inteiro. E cada centímetro que roçava parecia arder em fogo.

Deslizou as mãos pelo ventre de Anne, tocando os sedosos pêlos entre suas pernas, sentindo-a estremecer quando tocou-a em sua intimidade, descobrindo-a quente e úmida. Em breve, pensou, o coração disparando. Em breve, mas ainda não. Foi movendo a mão com gestos experientes, observando-a respirar mais rápido, quase perder os sentidos.

— Ah, por favor... eu não... eu não posso... ― As mãos dela ergueram-se, agarrando-o pelos ombros enquanto seu corpo arqueava, apanhado num doce êxtase.

— Solte-se, minha querida. Quero ver você gozar. ― Neill deslizou o dedo para dentro dela, sem parar de friccionar o túrgido pontinho na extremidade de seu sexo.

A respiração de Anne explodiu num soluço, enquanto ela tremia por inteiro. Neill podia sentir as delicadas contrações em seu dedo e pensou que jamais sentira algo tão maravilhoso. E, se não a possuísse naquele instante, achava que iria morrer.

Trêmula e inerte, Anne observou-o levantar e tirar a calça, com movimentos rápidos e quase desajeitados. Ele era lindo, pensou. O peito musculoso, a tentadora trilha de pêlos escuros que seguia pelo abdome liso e firme até encontrar com os mais densos na virilha.

Ela arregalou um pouco os olhos ao deparar-se com sua ereção. Já havia visto homens nus em revistas, mas nada a preparara para aquela primeira visão de um homem totalmente excitado. Neill já apoiava-se na cama, quando percebeu que ela o olhava. Hesitou por um instante, imaginando se ela iria mudar de ideia, perguntando-se se suportaria, caso isso acontecesse.

Então, Anne estendeu a mão e tocou-o, os dedos leves como uma pluma deslizando pelo seu membro. Neill cerrou os dentes, fazendo o possível para controlar-se. Não queria fazer nada que pudesse assustá-la, mas começava a achar que ela realmente queria vê-lo morto de desejo. Inclinou a cabeça para trás, gemendo baixinho quando Anne fechou a mão em torno dele, testando-o, acariciando-o de tal forma que o deixava louco de desejo.

— Mais tarde ― murmurou, retirando-lhe mão com delicadeza.

Deitou ao lado dela na cama e abraçou-a. Anne sentiu o calor do corpo dele, sua firmeza e textura. Entregou-se novamente às carícias, sentindo o próprio desejo emergir novamente. Ouviu-se gemendo baixinho, suplicando, e então Neill posicionou-se acima dela. Entreabriu as pernas, recebendo-o, arqueando o corpo para encontrar o dele. Querendo. Ansiando.

Ouvindo o pulsar do coração em seus ouvidos, Neill lutou contra o impulso de penetrá-la imediatamente. Era a primeira vez, pensou, sentindo o sangue ferver diante de tal pensamento. Foi pressionando-a aos poucos, encontrando-lhe a quente umidade, penetrando-a suavemente ao mesmo tempo em que a beijava.

Houve um breve instante de resistência e, quando sentiu-se abrigado no calor aveludado dela, Neill sentiu que ultrapassava suas mais loucas fantasias. Pressionou o rosto contra o dela, esforçando-se para dar-lhe tempo de aceitar tal invasão.

Anne permaneceu imóvel sob ele. Achava que sabia o que esperar, mas o fato de saber da teoria não era o bastante para saber como seria compartilhar seu corpo com um homem. Sentira uma pontada de dor, mas que desaparecera num instante. O que restara era uma sensação de ser preenchida, e era uma sensação boa, maravilhosa.

Testando-o, contraiu os músculos que o prendiam e sentiu uma onda de puro prazer feminino ao ouvi-lo gemer. Havia poder em ser tão desejada, uma emoção primária em saber que era capaz de fazê-lo estremecer de gozo. Começou a mover os quadris, aceitando-o, recebendo-o, querendo mais. E então Neill passou a mover-se sobre ela, impulsionando-se com mais força para frente e para trás, o ritmo aumentando à medida que o prazer crescia dentro dele, dentro dela.

Anne emitiu um gritinho, pendendo a cabeça para trás ao sentir a tensão crescer cada vez mais, mais forte e poderosa do que antes. Neill agarrou-a pelos cabelos, obrigando-a a fitá-lo.

— Olhe para mim ― pediu.

Num instante a tensão tomou-se quase insuportável até explodir, levando-a consigo. Ela ouviu-o gemer alto, um som rouco que subiu-lhe pela garganta, e então sentiu-o estremecer em seus braços.

Muito tempo depois, com o rosto ainda mergulhado nos cabelos dela, Neill murmurou:

— Anne?

— Humm?

— Acho que você não vai precisar pedir o dinheiro da sua lingerie de volta.

E essa foi outra coisa que Anne não sabia, que o riso poderia ser mais um ingrediente naquela mistura mágica.

 

Anne acordou lentamente. A primeira coisa que reparou foi que estava quente demais, e franziu a testa com impaciência ao sentir o peso das cobertas em torno da cintura e dos quadris. Por que estava com tantas cobertas na cama, no meio do verão? Sonolenta, mexeu-se para afastá-las, mas quando tocou não foi a lã macia que sentiu sob os dedos, mas sim a pele quente e a dureza dos músculos. As lembranças emergiram dela como uma onda, o calor intensificando-se quando abriu os olhos e fitou um teto desconhecido.

Neill. Ela estava com Neill em Chicago, na suíte para a qual ele a levara no dia anterior, na cama onde tinham feito amor a noite inteira. Várias vezes. Cautelosa, quase temendo que tudo não tivesse passado de um sonho, virou a cabeça no travesseiro. Ele estava dormindo ao seu lado, um braço estendido sobre sua barriga, a perna descansando entre as dela com tal intimidade que a fez ruborizar num misto de prazer e vergonha.

Não que precisasse ficar envergonhada, depois da noite que passaram, ela pensou, o rubor aumentando enquanto as lembranças emergiam aquecendo-lhe a pele. Parecia incrível que um homem como aquele pudesse desejá-la tanto, mas ela tivera provas indubitáveis disso pelo modo como ele a procurara tantas vezes, durante toda a noite. Na última vez, estava quase amanhecendo, pois ela lembrava-se da luz perolada surgindo através das frestas das cortinas, sombreando-lhe o rosto enquanto ele movia-se sobre ela, o seu peso pressionando-a suavemente contra o colchão enquanto a amava apaixonadamente.

Ah, sim, não tinha dúvidas de que ele a desejava. Anne sorriu com o pensamento, um sorriso leve felino. Então, era assim a manhã seguinte. Sempre imaginara como seria acordar nos braços de um homem, saber-se desejada. Agora sabia, e era simplesmente incrível. Sua pele estava sensível, como se as carícias dele tivessem reavivado cada nervo de seu corpo. Havia um dolorido delicioso em seus seios e entre suas pernas. A cada respiração que dava, podia sentir o cheiro dele, o aroma almiscarado do sexo, um perfume que ela sabia estar num nível primal.

Seus dedos moveram-se delicadamente no braço dele. Sentia-se diferente, não apenas fisicamente, mas dentro de si mesma. Sentia-se... feminina. Seu sorriso alargou-se. Parecia uma ideia ridiculamente antiquada, como algo saído de um velho romance onde a heroína perde a virgindade e de repente, numa transformação impressionante, torna-se outra mulher do dia para a noite. Porém, não era a perda da virgindade que a fazia sentir-se diferente. Era o que aquele fim de semana representava. Finalmente ela saíra do abrigo protegido em que vivera a maior parte da sua vida e arriscava-se, começava a viver de verdade. Era um pensamento capaz de deixá-la zonza.

Neill esticou-se ao seu lado e toda sua recém-adquirida coragem desapareceu num relance. Uma ameaçadora onda de pânico emergiu de dentro dela ao pensar que teria de encarar aqueles claros olhos azuis naquela manhã. Com todo cuidado, arrastou-se para fora do peso do braço e da perna dele, escorregando para a beirada da cama. Começou a levantar-se, mas no mesmo instante sentiu-o segurá-la pela cintura e puxá-la de volta para o travesseiro.

Os olhos azuis e maliciosos sorriram para ela. A voz dele estava rouca de sono.

— Para onde você estava se esgueirando?

— Eu... hum... eu não estava me esgueirando ― ela mentiu, baixando os olhos.

Havia sido muito fácil mostrar-se ousada na noite anterior, encorajada como estivera pelos beijos dele e pelo vinho do jantar, sabendo que sua aparência estava ótima. Mas era bem diferente de manhã, com as lembranças da noite percorrendo-lhe o cérebro e os dois nus sob a luz do sol que penetrava em cheio pelo quarto.

— Estava se esgueirando, sim ― ele acusou. Baixou a cabeça e começou a beijá-la no pescoço. O rosto dele, com a barba crescida, provocava nela uma sensação desconhecida e deliciosa. ― Sabia que esgueirar-se é um crime passível de pena, aqui em Chicago?

— É mesmo? ― Neill mordiscava-lhe o pescoço, afastando todo e qualquer pensamento lógico que ela pudesse ter. ― Não faça isso... ah! ― Anne arqueou o corpo quando os lábios dele deslizaram-se até seus seios, tomando-lhe o mamilo. ― Não precisa ter um julgamento, antes? ― ofegou.

— Em casos como este, as vítimas podem aplicar o castigo que quiserem.

A língua de Neill deslizou até seu umbigo, descendo mais até senti-la arquear-se e entreabrir as pernas, num convite inconsciente. Ela correspondia a ele de uma maneira incrível, quente e trêmula. Depois da noite que tinham compartilhado, parecia quase impossível, mas ele estava tão excitado como se jamais a tivesse tocado, cada músculo retesando-se com a necessidade de possuí-la outra vez.

— Que... tipo de castigo?

— Este ― ele sussurrou, abaixando-se para provar sua doce e quente umidade.

Ela contraiu-se em choque, a respiração explodindo de dentro de si.

— Ah, meu Deus! Neill, você... ― Seus dedos mergulharam nos cabelos dele, como se quisessem afastá-lo, mas Neill segurou-a pelos quadris e penetrou a língua mais profundamente, até que as mãos dela caíram, em doce rendição.

No momento em que cedeu à exigência do seu próprio corpo e deslizou para cima dela, Anne estava inerte e trêmula sob ele. Ao penetrá-la, Neill sussurrou "Você é minha" e a beijou, enquanto a levava a mais um clímax maravilhoso.

Parecia que muito tempo havia se passado antes que ele reunisse todas as forças que lhe restaram180 e desabou para o lado dela. Definitivamente, ela acabaria por matá-lo, pensou, ouvindo o som ofegante da própria respiração. Mas seria uma morte gloriosa.

— Se é isso que recebo por tentar sair da cama, mal posso esperar para ver qual será o castigo por sair do quarto ― ela disse, também ofegando.

Rindo, Neill puxou-a para si.

— Não fique me provocando. Pelo menos espere até que eu me recupere um pouco.

Pediram o almoço no quarto. Neill sorriu diante da evidente alegria de Anne ao ver a mesa toda arrumada ser levada para a saleta de estar, com os pratos cobertos com tampas de prata. Ele passara muito tempo em quartos de hotel para prestar atenção nestas coisas, mas o prazer dela o fez lembrar da primeira vez em que tivera tal experiência, na excursão de divulgação do seu primeiro livro.

Depois do almoço, resistiu à tentação de levá-la novamente para a cama e saíram para um passeio pela cidade. O clima estava cooperando e, apesar do calor, havia uma brisa agradável e o céu estava muito azul.

Neill levou-a até a Miracle Mile, onde ficaram vendo vitrines juntamente com uma multidão de turistas e residentes. Neill comprou-lhe um adesivo para o carro que dizia "Eu amo Chicago". Viu também dezenas de coisas que queria comprar para ela, um vestido que Anne admirou, um bracelete de brilhantes que a fez suspirar, mas, mesmo se ela os tivesse aceitado, os presentes caros significariam que teria de dar explicações, e esta era a última coisa que ele queria fazer.

Em algum momento, durante aquela noite, ele havia decidido que as explicações podiam esperar. Ou, talvez, bem no fundo, ele não tivesse qualquer intenção de explicar nada, até que o fim de semana se encerrasse. Não tinha mais certeza do que havia pensado antes, mas isso não importava. Na verdade, não importava-se com mais nada naquele momento, exceto ver aquele brilho de felicidade nos olhos de Anne. O mundo real simplesmente teria de esperar por mais um ou dois dias.

Neill não contou a Anne que iriam jantar no restaurante do seu irmão até o momento em que estacionou o Corvette no lugar reservado aos funcionários.

— Eu sabia que seria difícil encontrar um lugar para estacionar no sábado à noite ― ele explicou enquanto a ajudava a sair do veículo. ― Mas Tony prometeu não mandar guinchar o carro.

— Eu não esperava conhecer a sua família ― Anne falou, hesitando.

— E só o meu irmão. ― Neill apertou-lhe a mão. ― Se fosse para encontrar a turma toda, eu teria lhe providenciado um protetor de ouvido. Costumamos ficar um bocado barulhentos, quando nos reunimos.

— Não estou vestida de acordo para uma ocasião destas ― ela falou, incerta.

A ideia de conhecer os parentes dele, mesmo se fosse somente o irmão, a deixara extremamente tensa e nervosa.

— Você está linda ― Neill assegurou-lhe, sincero.

O vestido cor de pêssego, com a cintura marcada e decote redondo realmente a deixava encantadora. Anne havia puxado os cabelos num coque meio solto, com pequenos cachos caídos na nuca. Era um penteado que nunca falhava em provocá-lo, fazendo com que seus dedos formigassem de vontade de mexer nos cachinhos e sentir-lhes a maciez. Mas, na verdade, a simples visão dela dava-lhe comichão nos dedos em todos os momentos, mesmo os menos adequados.

— E vai gostar de Tony e da família dele ― acrescentou.

— Tenho certeza que sim ― ela disse, mas ainda hesitava, olhando para o prédio do restaurante nervosamente.

— Você me deve esta ― ele disse. ― Eu fui jantar com seus pais e sobrevivi.

Relutante, Anne permitiu que ele a levasse. Só lhe restava esperar que o irmão dele não fosse tão intimidador quanto sua mãe.

O nome do restaurante, "Devlin's", estava escrito na frente, em letras pretas num fundo branco. O interior era rústico, todo de madeira, mas havia flores nas mesas e os garçons usavam calça preta e camisa branca engomadas. Era uma mistura interessante de café e restaurante, com um charme todo próprio. A julgar pelo fato de que quase todas as mesas estavam ocupadas, Anne presumiu que os negócios iam bem.

Quando Neill deu seu nome à jovem recepcionista, ela sorriu e imediatamente levou-os para uma mesa perto da porta da cozinha.

— É a mesa mais procurada da casa ― ela disse, puxando-lhes as cadeiras. ― Tony disse-me para reservá-la para o senhor. Vou avisá-lo que está aqui.

Enquanto sentavam-se, Anne enviou a Neill um olhar indagador.

— Desde quando a mesa perto da cozinha é a mais procurada da casa?

— Desde que se esteja comendo no "Devlin's". ― Neill pegou um pedaço de pão na cestinha cortou-o ao meio e entregou-lhe a metade. ― As pessoas não vêm aqui apenas pela comida, que é ótima. Vêm também porque Tony as faz sentir que a sua presença é o que faltava para tornar a vida dele perfeita. Ele costuma sair da cozinha e vir conversar com os fregueses, perguntar do que mais gostam, do que não gostam, saber como vai a avó de um deles, como vai a filha de outro. Ele tem uma memória extraordinária, e nunca se esquece de um rosto.

Neill fez uma pausa, mastigando o pão, e continuou:

— Esta é a melhor mesa do restaurante porque ele sempre pára aqui e, se estiver trabalhando na criação de um novo prato, há sempre uma boa chance de que quem quer que esteja sentado aqui receba uma amostra e faça seus comentários. Não que ele dê atenção ao que dizem ― acrescentou, sorrindo. ― Quando se trata da sua comida, Tony não ouve ninguém além de si mesmo, mas faz com que as pessoas sintam-se como parte de uma...

— Família ― Anne murmurou.

— Exatamente.

Antes que ele pudesse continuar, a porta da cozinha abriu-se e uma pequena multidão emergiu. Sorrindo, Neill levantou-se de um salto. Por uns poucos minutos tudo o que havia eram risos e caos, pelo menos aos olhos atônitos de Anne. Porém, logo ela conseguiu perceber que a "multidão" era formada por apenas três pessoas, quatro, se contasse o bebê de grandes olhos azuis apoiado nos quadris da mulher. Neill estendeu a mão e a fez levantar-se.

— Venha conhecer o sujeito que transformou minha infância num verdadeiro inferno.

— Este é o privilégio dos irmãos mais velhos. ― Tony Devlin sorria enquanto falava, mas o olhar que enviou a ela era firme, questionador.

— Não acredite em tudo o que ele fala ― avisou. ― A verdade é que ele é o preferido de mamãe, que mimou-o escandalosamente. Eu só tentei equilibrar um pouco as coisas.

— O ciúme é um monstro medonho ― Neill falou, balançando a cabeça.

Anne apertou a mão de Tony, da sua esposa Mary Ellen e de Sophy, a filha deles que completara quatorze anos no mês anterior, e recebeu um sorriso desdentado do bebê, que tinha seis meses e chamava-se Timothy.

— Achamos melhor dar um bom espaço entre nossos filhos ― Mary Ellen falou, com uma risadinha.

Era como ser carregada num furacão de alegria. As frases eram iniciadas, interrompidas e finalizadas mais tarde, sem que ninguém parecesse perder o rumo da conversa. Na hora em que Tony anunciou que precisava voltar para a cozinha ou corria o risco de arruinar seus negócios, a cabeça de Anne girava num turbilhão de impressões.

Os dois irmãos tinham o mesmo tom de pele e de cabelos, mas as semelhanças paravam aí. Tony era mais baixo, os olhos azuis não tão brilhantes, e os traços do seu rosto eram agradavelmente comuns. Até que ele sorria. Quando Tony sorria, era impossível não sorrir de volta e perguntar-se se ele não seria muito mais atraente do que se julgara a princípio.

Mary Ellen estava na casa dos quarenta anos e tinha um corpo confortavelmente gorducho. Diante da insistência de Neill, ela e Sophy reuniram-se a eles para o jantar.

— É claro que, se ficar comendo os pratos que Tony prepara, jamais vou conseguir perder os quilos a mais que ganhei na gravidez, mas imagino que este seja o castigo por ter me casado com um chef ― ela disse, dando uma palmadinha no amplo quadril. ― Às vezes desejaria ter-me apaixonado por um corretor do mercado de ações, mas depois calculo que provavelmente ele ficaria rico o bastante para que eu comprasse as tortas de queijo de Tony, e acabaria engordando do mesmo jeito.

— E se divorciaria ― Tony falou, aparecendo a tempo de ouvir o último comentário. ― Porque, na primeira vez em que fosse lhe entregar uma torta de queijo, eu teria de roubá-la do seu marido.

— Você não faz entregas a domicílio ― Mary Ellen falou, inclinando a cabeça para olhá-lo. ― Isso é função de Ernie.

— Mas quando Ernie me falasse sobre a linda e solitária mulher que encomendava minhas tortas todos os dias, eu teria de conhecê-la.

— Ou, talvez, eu acabasse ficando com Ernie ― ela retrucou, rindo.

Desde que Anne já conhecera Ernie, um rapaz de dezessete anos dolorosamente magro, com os cabelos tingidos de azul, um "piercing" no nariz e pernas e braços que pareciam compridos demais para seu corpo, não pôde deixar de rir também. Neill também soltou uma gargalhada, e Tony sorriu para a esposa.

— Está vendo? Todo mundo sabe que fomos feitos um para o outro ― ele disse, pousando a mão no peito e baixando a voz num tom dramático. ― Nada poderia nos separar. Nem um corretor de ações, nem Ernie, ficariam entre nós. ― Tomando a mão de Mary Ellen, pressionou um beijo em sua palma.

— Esqueci de lhe contar que, depois da fase de vaqueiro, Tony participou do grupo de teatro da escola ― Neill falou, pegando uma azeitona no prato de antepastos. ― Durante semanas ele ficava andando pela casa com um manto nos ombros, declamando sonetos de Shakespeare. Mamãe ficou muito impressionada com aquele súbito interesse pelas artes, mas o que ele realmente queria era fazer o papel de Romeu ao lado de Alison Sinclair, que fora escalada para ser a Julieta. Tony passou a maior parte daquele ano tentando chamar a atenção dela.

— Alison Sinclair ― Tony falou, recordando. ― Ela era parecida com a Márcia Brady. Quase todos os garotos da escola eram apaixonados por ela.

— Ora, papai, tenha dó ― Sophie falou, com uma expressão exasperada.

— O quê? ― Tony arqueou a sobrancelha. ― Você não acha que eu devo admitir que um dia me apaixonei por uma garota bonita, com os belos dourados e olhos cor de esmeralda? A mãe entende e me perdoa, não é, querida?

— É claro que sim. ― Mary Ellen deu-lhe uma palmadinha distraída na mão. ― Especialmente depois que ela levou a "namorada" na reunião de ex-alunos.

A gargalhada de Neill quase abafou o gemido de Sophy:

— Mamãe...

Apiedando-se da menina, Mary Ellen passou-lhe o bebê.

— Não quer levá-lo para cima e trocá-lo para mim, querida? ― Depois que Sophy saiu carregando o bebê, ela continuou: ― Ela está naquela idade em que o simples fato de ter pais já é uma humilhação. E quando lhe contamos que iríamos ter outro bebê, ela parecia pensar que tudo era um plano para deixá-la ainda mais humilhada.

— Por que um bebê a deixaria humilhada? ― Anne perguntou.

Mary Ellen franziu a testa, numa expressão de falso horror.

— A ideia de que os pais dela podiam estar fazendo sexo. Na nossa idade! ― Balançou a cabeça, os olhos reluzindo com o riso. ― Supõe-se que os pais não façam sexo, você sabe. Mas todos os adolescentes passam por esta fase, eu acho. Sophy é muito boa com Timothy.

Anne deixou que Mary Ellen aceitasse seu sorriso como uma concordância. Ela própria nunca passara por esta fase. Quando tinha a idade de Sophy, lembrava-se de que acordava todos os dias sentindo um nó no estômago, que só desaparecia ao chegar na mesa do café e ver que nem seus pais, nem seu irmão, tinham desaparecido durante a noite.

O garçom chegou trazendo os pratos de massa e cestinhas com pães crocantes e manteiga com alho. Anne provou a comida e achou deliciosa. Quando cumprimentou Tony pelo sabor da massa, ele bateu nas costas de Neill e disse estar contente em ver que o gosto dele por mulheres estava melhorando.

— A última garota que ele apresentou à família era uma morena alta e magra ― Tony falou para Anne. ― Ela comeu duas folhas de alface, bebericou um copo de água e disse que estava satisfeita.

Neill quase deu uma cotovelada no irmão, a fim de silenciá-lo. Deveria saber que Tony não resistiria a tentação de deixá-lo embaraçado, embora esse fosse o preço que se pagava por ter uma família. Porém, não tinha certeza se Anne gostaria de ouvir sobre outras mulheres com quem ele saíra no passado.

— Pois ela não sabia o que estava perdendo ― Anne falou e, quando seus olhos encontraram os de Neill, ele não viu nada que sugerisse que a indiscrição de Tony a incomodara.

Se ele lhe perguntasse, Anne diria que o fato de saber que ele tivera uma namorada alta e magra a teria perturbado no dia anterior, mas depois que passaram toda a noite, e parte da manhã, fazendo amor como fizeram, ela não acreditava que ele pudesse estar pensando em outra mulher.

Já passava das dez horas quando saíram do restaurante. Anne estava quieta e pensativa, e Neill não forçou uma conversa. Pelas coisas que ele dissera, ela já sabia que a família dele era bem diferente da sua. Quando Neill falava sobre seus parentes, era com afeição, calor e um carinho genuíno, palavras que ela jamais poderia usar ao referir-se à sua própria família.

Anne os amava e achava, esperava, que eles também a amavam, mas não podia afirmar que os conhecia. Fora necessário o alerta de Lisa, para saber que Jack estava enfrentando problemas com a bebida.

Depois disso, tinha de admitir que passara a perceber os sinais, mas nunca realmente prestara atenção no que ele estava fazendo. Porque ninguém, em sua família, realmente olhava para o outro.

E mesmo agora, que estava ciente do problema, ela não sabia o que fazer. A ideia de dizer alguma coisa a Jack era quase impossível. Simplesmente não havia nenhuma ligação entre eles. Jack era seu irmão, mas os laços que os uniam eram apenas os de sangue.

Tentou imaginar o que Tony faria se soubesse que Neill estava passando por um problema semelhante. Provavelmente o pegaria pelo pescoço e o obrigaria a procurar ajuda profissional, ela concluiu, sorrindo levemente. Pelo que Neill lhe contara, achou que o restante da família teria uma reação parecida. Eles... podiam contar uns com os outros.

Era doloroso perceber o quão distante disso a sua família se encontrava.

Neill observava-lhe a expressão, enquanto subiam pelo elevador. Anne estava mergulhada em seus pensamentos e parecia mal dar-se conta de que estavam voltando para o quarto. Ele também a observara durante o jantar, vendo a maneira como ela abria-se para o calor da família de Tony, conversando com Mary Ellen e Sophy, pegando o bebê no colo, olhando-o com carinho.

A súbita necessidade de vê-la segurando nos braços um bebê que fosse deles atingiu-o como um raio. Neill nunca pensara seriamente em ter filhos, relegando tal pensamento para um futuro muito distante. Mas, agora, queria ver Anne grávida, queria segurar uma criança nascida do amor que sentia por ela, um amor que tinha certeza que ela também sentia.

Neill abriu a porta do quarto e afastou-se para que ela entrasse. Vendo-a atravessar a sala, mais uma vez pensou em como era linda e no quanto a amava. Abriu a boca para dizer-lhe exatamente isso, e ele mesmo ficou assustado ao ouvir o que dizia:

— Anne? Fale-me sobre Brooke ― pediu.

Anne virou-se e fitou-o com um ar distante, como se estivesse organizando os pensamentos, dizendo a si mesma que tal pergunta não significava nada de importante. Deu-lhe as costas e deixou a bolsa no sofá, ganhando tempo, tentando acalmar os nervos. Depois, tornou a virar-se para ele.

— O que quer dizer com isso?

— Eu sei o que aconteceu a ela, Anne.

Um lampejo de choque reluziu nos olhos dela, e Anne encolheu-se, como se estivesse se protegendo de um ataque físico. Houve um instante de silêncio denso, doloroso e, quando ela falou, a voz soava frágil aos seus próprios ouvidos.

— O que você... como foi que descobriu?

— Procurei na biblioteca.

— Na biblioteca? ― Parecia ridículo que ele pudera saber tudo sobre o assassinato da sua irmã de uma forma tão prosaica. ― Você estava procurando alguma outra coisa?

Por um momento Neill considerou a ideia de deixá-la acreditar que sim. Dificilmente Anne poderia culpá-lo por ter-se deparado com as informações, certo? Mas ele não iria mentir sobre algo que era tão importante para ela.

— Não, eu fui disposto a descobrir o que aconteceu com sua irmã ― ele admitiu com voz firme, sentindo algo torcer-se em seu peito ao ver a dor nos olhos dela.

Neill queria abraçá-la, prendê-la com força até que tal expressão se dissipasse. Mas, daquela vez, fora ele quem lhe causara a dor e teria de viver com a culpa.

— Por quê? ― A voz dela era um misto de incredulidade e espanto. ― Por que você quis saber sobre algo que aconteceu há tanto tempo?

Neill enfiou as mãos nos bolsos como uma forma de impedir-se de tocá-la.

— Era óbvio que a maneira como ela morreu continuava tendo uma grande influência na sua vida. Quando aquele sujeito tentou assaltá-la você ficou mais aterrorizada com a possibilidade de as pessoas descobrirem do que pelo que de fato aconteceu. Você disse que não queria que ninguém soubesse pois, do contrário, iriam lembrar-se e "olhar" para você. Até começou a dizer o nome de Brooke. ― Neill encolheu os ombros. ― Não foi difícil adivinhar que o seu medo era provocado pelo que acontecera a ela.

— Então, por que não me perguntou?

Anne sentia os lábios dormentes, era difícil pronunciar as palavras. Não havia percebido o quanto desejara que ele não soubesse sobre o assassinato de Brooke. Livre do peso do conhecimento dele, ela fora capaz de ser alguém diferente, alguém cuja vida não estava definida pela morte da sua irmã. Descobrir que ele sabia tudo sobre o assassinato a fez sentir-se como se tivesse sido apanhada numa mentira, como se ele sempre soubesse que ela não era o que fingia ser.

— Eu perguntei ― Neill lembrou-a. ― Você disse que ela havia morrido tempos atrás e que não queria falar sobre isso, portanto fui procurar. Sou um escritor, Anne. A pesquisa faz parte do meu trabalho.

— E achou que tinha o direito de bisbilhotar na minha vida particular?

Neill franziu a testa diante do tom indignado. Não tinha certeza do que esperava, mas certamente não era pela raiva que obscurecia os olhos azuis. Mas, ainda assim, preferia lidar com a raiva do que com as lágrimas.

— Desde que tudo foi publicado nos jornais, não era um assunto exatamente "particular" ele disse. ― E era evidente que o que aconteceu ainda fazia parte da sua vida, uma parte do que você é. Eu precisava saber.

— Será que não lhe ocorreu que isso não era da sua conta? ― A raiva borbulhava no peito Anne. O fato de ele saber era como uma traição. ― Você não tinha o direito. ― Sua voz vacilou ela deu-lhe as costas, erguendo as mãos para o alto, impotente. ― Não tinha o direito...

Olhando para suas costas rígidas, Neill procurou as palavras certas para fazê-la entender por que sentira-se no direito de saber o que acontecera com Brooke. Mas, antes que pudesse formulá-las, ela falou novamente:

— Ela foi assassinada, mas nós nunca usamos esta palavra ― Anne disse casualmente, como se estivesse comentando sobre o tempo. ― A minha família, quero dizer. Quando o assunto aparece, o que é muito raro, ninguém jamais diz "Brooke foi assassinada". Apenas dizemos que ela morreu. ― Virou-se para encará-lo, os lábios contorcidos num sorriso amargo. ― Engraçado, não acha? Se usarmos uma palavra diferente, é como se mudássemos tudo o que aconteceu.

— O que aconteceu? ― Neill resistiu ao impulso de abraçá-la e dizer-lhe que não falasse mais nisso, que não pensasse mais nisso. Ela já sofrerá demais.

— Você leu os jornais. Já sabe o que aconteceu.

— Gostaria de ouvir de você.

Ela hesitou, mas depois encolheu os ombros como se nada mais importasse.

— As reportagens foram bastante exatas. Jack deveria buscá-la na escola, mas atrasou-se. Quando chegou, ela não estava mais lá. Jack calculou que Brooke tivesse ido para casa com alguém e foi com os amigos para uma lanchonete. Meus pais pensaram que Brooke estivesse com ele, portanto ninguém soube que ela havia desaparecido até o momento em que Jack chegou em casa. ― Anne alisou as dobras da saia e suspirou. ― Eu tinha dez anos, na época. Lembro-me que meu pai começou a telefonar para todo mundo. Ainda posso ouvir o medo na voz dele, mas não podia entender por que ele estava tão abalado, pois Brooke costumava dormir na casa de amigos. Quando perguntei se acontecera alguma coisa, minha mãe ficou zangada e mandou-me ir para o quarto.

Anne fez uma pausa, antes de prosseguir:

— Duas semanas se passaram, antes que ela fosse... encontrada. Eu estava muito assustada, mas ninguém me contava nada. E então, de repente, meus pais vieram dizer que Brooke havia morrido, embora ninguém me informasse sobre o que acontecera com ela. Simplesmente morrera. Imagino que achassem que eu era nova demais para saber da verdade.

E, em vez disso, deixaram-na à mercê da própria imaginação, Neill pensou. O silêncio bem-intencionado provavelmente deixou-a mais amedrontada do que ficaria se soubesse a verdade.

— Deve ter sido aterrorizante para você ― ele disse.

— Creio que sim.

Anne foi até a janela e ficou olhando as luzes da cidade, enquanto tentava organizar os pensamentos. Nunca conversara sobre aquele assunto. Na verdade, era um tópico proibido em sua família, enterrado como um segredo terrível. Somente nos dois últimos anos, depois que mudara-se para o chalé, para longe do controle de sua mãe, ela permitira-se pensar nisso.

— Elas tinham discutido um dia antes de acontecer ― Anne murmurou, quase para si mesma. ― Minha mãe e Brooke. Estavam sempre brigando por alguma coisa. Quando fiquei mais velha, pude olhar para trás e ver que isso acontecia porque eram muito parecidas. Minha mãe é a típica "flor de aço", mas o puro aço revestido de veludo. Brooke nem sequer incomodava-se em revestir sua dureza com um invólucro tão bonito. Mamãe queria que ela fosse uma debutante, toda em trajes virginais e voz suave. Brooke queria usar colantes vermelhos e calças jeans. Elas enfrentavam-se constantemente, ainda mais depois que Brooke começou a sair com rapazes. Eu não entendia muito disso, na época, mas com o passar do tempo fui juntando as peças do que estava acontecendo. Brooke costumava dormir com rapazes diferentes, ou minha mãe achava que era o que ela fazia.; Meu quarto ficava ao lado do de Brooke, e lembro-me de ter escutado as duas discutindo sobre o fato de que Brooke estava tomando pílulas anticoncepcionais. Foi logo depois que ela fez dezesseis anos. Ela estava furiosa porque mamãe mexera em suas coisas, e mamãe dizia que não iria permitir que sua filha agisse como uma vagabunda.

Anne parou por um instante, os olhos distantes, focalizados no passado.

— Elas ficaram discutindo até que Brooke finalmente gritou que, se mamãe não parasse de atormentá-la, ela iria foder com todo o time de futebol da escola. Foi a primeira vez que ouvi alguém dizer esta palavra. Eu nem sabia o que significava, mas depois fui olhar no dicionário. Mamãe deu-lhe um tapa. Foi um som horrível. Eu queria tapar os ouvidos, mas fiquei ali parada, congelada no lugar, com medo de me mover. Com medo de respirar. Brooke não chorou. Não creio que tenha dito qualquer coisa. Ela apenas saiu. Não voltou naquela noite, e ouvi mamãe e papai discutindo no quarto deles. Não consegui escutar o que falavam, e nem queria. Lembro-me de ter ficado na cama, imaginando se Brooke teria fugido, se mamãe me amaria mais se Brooke não estivesse mais em casa. Mas Brooke voltou no dia seguinte, e tudo continuou como antes, exceto que, depois disso, ela e mamãe brigavam o tempo todo. Brigavam por causa das roupas de Brooke, dos rapazes com quem ela saía, das suas notas baixas, sobre a faculdade que ela iria cursar. Era tão constante que, depois de algum tempo, eu parei de ouvir.

Anne tornou a se calar por um instante, imersa nas lembranças.

— No dia antes do... acontecido, elas discutiram por minha causa. Eu tinha dez anos e Brooke maquiou-me, de brincadeira. Mamãe ficou furiosa com ela, conosco. Acusou Brooke de tentar transformar-me numa vagabunda também, e mandou-me lavar o rosto. Eu lhe disse para não ficar zangada com Brooke, que estávamos apenas nos divertindo. Ela agarrou-me o ombro, e ainda posso me lembrar da maneira como seus dedos machucaram a minha pele. ― Tocou o ombro, como se tocasse numa antiga ferida. ― Mamãe olhou para mim como se me odiasse. Nunca vou me esquecer daquele olhar. ― Ficou em silêncio por um instante, suspirou, e disse baixinho: ― No dia seguinte, Brooke desapareceu. Por muito tempo, achei que fosse por minha culpa.

Neill enrijeceu, mas Anne balançou a cabeça antes que ele pudesse falar.

— Eu sei que não foi. Há muito tempo não penso mais assim, mas as crianças são tão egocêntricas e, no início, quando pensávamos que Brooke havia fugido, pensei que fosse porque ela e mamãe tinham brigado por minha causa. E quando... quando ela foi encontrada, eu só pensava que às vezes desejava que ela fosse embora, para que mamãe gostasse mais de mim.

Anne virou-se para olhá-lo, seu sorriso contendo um leve divertimento pela criança que havia sido.

— Não há nada como uma garota de dez anos para conjurar a culpa. Se fôssemos católicos, provavelmente eu decidiria entrar para um convento. Então, comecei a fazer de tudo para compensar a morte de Brooke. Durante algum tempo, tentei ser a Brooke, só que a Brooke boazinha, aquela que minha mãe gostaria que ela fosse. Tirava ótimas notas na escola, usava as roupas que sabia que mamãe aprovaria. Acho que continuo usando-as, até hoje ― murmurou, deslizando a mão pela saia cor de pêssego. ― E não tinha namorados. Não sei... ainda não sei se Brooke era realmente promíscua. ― Franziu a testa. ― Não acredito que fosse. Sei que ela e David namoraram por bastante tempo. Não quero pensar que ela tenha sido... generosa demais com os rapazes, mas certifiquei-me de que eu nunca seria. Não que precisasse ficar espantando os rapazes ― acrescentou, com um sorriso autodepreciativo. ― Como todos sabiam do que acontecera, sempre me tratavam com um excesso de cuidados. Não creio que houvesse um rapaz em toda a escola que se atrevesse a passar dos limites comigo. Os dois namorados que tive tratavam-me como se eu pudesse quebrar se eles respirassem com mais força perto de mim. ― Ela riu, embora não ocultasse a dor que sentia. ― Mas isso não importava, na verdade, porque por mais que eu tentasse, nunca consegui equiparar-me a Brooke, fosse na aparência ou na personalidade. ― Suspirou. ― Ela era linda.

Neill lembrou-se das fotografias que vira. Brooke realmente era bonita, com a promessa de uma beleza adulta, mas ainda sem o caráter para sustentá-la. Porém, sabia que Anne não acreditaria nele. Nos anos depois da morte de Brooke, a realidade havia sido alterada e ela passara a ser a garota mais bela, mais encantadora e inteligente que jamais existiu. Neill já vira isto antes, a necessidade de se deificar um ente querido que partiu, como se o fato de lembrar dos seus defeitos, e da sua humanidade, pudesse ser uma deslealdade.

— Anne, você não pode passar a vida inteira tentando compensar a morte da sua irmã.

— Sei disso. Levei algum tempo para perceber, mas agora eu sei.

Subitamente, Anne deu-se conta de uma profunda exaustão. Havia desabafado mais naquelas duas semanas do que em toda sua vida. Talvez dizer que havia "desabafado" não fosse o termo exato porque, desde o momento em que Neill entrara em sua vida, ela não tivera outra escolha. Ele lhe despertara coisas que ela nem sabia que existiam, a fez desejar coisas nas quais nunca antes pensara.

E agora, de alguma forma, ela lhe contara tudo sobre Brooke, algo que jamais falara com ninguém, nem mesmo com Lisa, que era a única pessoa que tinha a coragem de mencionar o nome de Brooke. Agora que tudo estava às claras, sentiu-se exaurida e quase zonza, como se todo o peso que guardava dentro de si tivesse desaparecido de repente.

— Eu... estou muito cansada ― disse, devagar. ― Você se importaria se eu fosse me deitar agora?

Neill reparou que ela estava quase vacilando e deu dois passos rápidos em sua direção, tomando-a nos braços.

— Não. ― A voz dela era trêmula, enquanto ele a carregava para o quarto. ― Esta noite não, por favor.

— Shh... ― Neill empurrou a porta do quarto com o ombro. ― Não vou tentar fazer amor com você. ― Deixou-a de pé ao lado da cama e inclinou-se para beijá-la na testa. Um beijo leve, reconfortante. ― Deixe-me cuidar de você, Anne.

Anne pensou que, naquele pouco tempo em que se conheciam, Neill passara mais tempo cuidando dela do que qualquer outra pessoa jamais fizera, mas estava cansada demais para preocupar-se com isso. Ficou ali parada, obediente como uma criança, e permitiu que ele a despisse. Mesmo quando estava nua diante dele, seu toque manteve-se tão gentil e delicado que não lhe causou nenhum constrangimento.

Neill pegou a camisola cor-de-rosa que ela trouxera, mas que ainda nem usara, e ajudou-a a vesti-la. Depois, a fez sentar na beirada da cama e desmanchou-lhe o coque com toda delicadeza. Quando ele pegou a escova e começou a escovar seus cabelos, Anne fechou os olhos, tentando conter as lágrimas.

Em toda sua vida, nunca se sentira tão querida. Tão amada.

 

Foi com uma pontinha de tristeza que Anne viu que aproximavam-se do seu bairro. Agora que estavam quase chegando em sua casa, tinha de admitir que o maravilhoso fim de semana realmente terminara. Recostando a cabeça, fechou os olhos. Neill havia abaixado a capota do carro e ela adorava sentir o vento batendo em seus cabelos.

Parecia incrível que estivera fora de casa por somente dois dias. Sentia como se fosse uma vida inteira. Havia partido como uma virgem e retornava como uma mulher bem amada. E não importava o que acontecesse entre eles no futuro, se é que teriam um futuro, ela sempre seria grata a Neill por tornar a sua primeira experiência tão especial, satisfazendo-a não apenas fisicamente mas também emocionalmente.

Na noite anterior ele a abraçara com ternura, sem lhe pedir nada. Fora ela quem o acordara de madrugada, com as mãos hesitantes explorando seu corpo, experimentando os poderes que acabara de descobrir até que, com um gemido incontido, Neill rolara por cima dela e a possuíra de tal forma que ela chegara ao clímax quase instantaneamente.

Depois, dormiram outra vez até o meio da manhã. Neill a tirara da cama e a levara para o chuveiro, onde fizeram amor novamente, enquanto a água caía sobre eles.

Não tinham falado sobre a conversa da noite anterior. Neill não mencionara a família dela e, por estranho que parecesse, ela nem mesmo pensara sobre eles. Era como se tivesse separado aquela manhã de todo o restante de sua vida.

Comeram o desjejum no restaurante do hotel e depois, relutantes, iniciaram a viagem de volta. Agora estavam quase chegando e a vida real os esperava. Ainda assim, a vida real tampouco lhe parecia tão ruim, Anne pensou, sorrindo consigo mesma. Não haviam feito quaisquer promessas um para o outro, mas sabia que Neill sentia por ela algo mais do que apenas desejo. Ele não dissera que a amava, mas isso não significava que tal sentimento não existisse. Ela também não lhe confessara seu amor, mas seu coração estava tão repleto dele que chegava a doer. Anne não estava contando com nada, mas, pelo menos por enquanto, a vida parecia cheia de promessas.

Olhando para ela de relance, Neill perguntou-se que pensamentos estariam provocando nela aquele sorriso de Mona Lisa. Faltava pouco para que chegassem na casa dela e ele imaginou se Anne protestaria se simplesmente passasse direto e seguisse em frente. Ou, talvez, se virasse o carro e voltasse para Chicago. Eles poderiam trancar-se no quarto do hotel e nunca mais sair. Lendas surgiriam a respeito do excêntrico casal que nunca saía da suíte. Os garçons e funcionários do hotel passariam informações para a imprensa e, eventualmente, um estúdio de cinema de Hollywood compraria os direitos da história para fazer um filme.

Mas, pensando bem, talvez devesse apenas levar Anne para casa e lhe contar que houvera um pequeno mal-entendido a respeito da sua carreira. Na verdade, ele não era um escritor que lutava para sobreviver, mas sim um autor de sucesso e numa coincidência impressionante, escrevia justamente livros sobre o tipo de coisa que aconteceu à família dela.

Isso não era nada demais, ele pensou, segurando o volante com mais força. Afinal, não sabia da morte de Brooke quando conhecera Anne e, certamente, não planejava escrever sobre isso. Tinha cada vez mais certeza de que já havia explorado o suficiente o lado sombrio da humanidade, já tentara demais explicar coisas que não podiam ser explicadas, entender atos que iam além de qualquer compreensão.

Sem dúvida Anne iria entender quando ele lhe explicasse tudo; que, quando a deixara presumir que ele escrevia artigos para revistas, não estava realmente mentindo, porque ele começara sua carreira fazendo isso. Talvez ela ficasse um pouquinho magoada. E tinha bons motivos para se zangar. Porém, não demoraria muito até que ambos dessem boas risadas sobre toda a história. Ele tinha certeza. Tanta certeza que até poderia adiar a explicação para o dia seguinte, decidiu, e depois encolheu-se diante da própria covardia.

Quando Neill parou na frente da sua casa, Anne achou que o chalé parecia estranho, tão pequeno e arrumadinho, com a cerca branca e os canteiros de rosas. Precisou de um momento para dar-se conta de que não era a casa que havia mudado, mas ela mesma. Parecia diferente porque ela estava vendo com outros olhos.

— Quer jantar comigo esta noite? ― Neill perguntou, quando entraram na varanda. ― Vou fazer uma comida bem simples e, depois, podemos ficar olhando a lua nascer sobre o estacionamento.

— Parece romântico. ― Anne destrancou a porta, antes de virar-se para olhá-lo. ― Hoje é domingo.

— E daí? ― Neill franziu a testa. ― Você não pode olhar a lua nos domingos?

— Sempre vou jantar com meus pais, no domingo.

— Sempre? ― Neill formou uma trilha com o dedo em torno do decote da camiseta dela, provocando-lhe um arrepio.

Anne engoliu em seco.

— Sempre. Por que não vem comigo? ― Anne perguntou, e depois teve de sorrir diante da careta que ele fez.

— E deixar que sua mãe me devore como aperitivo? Tenho uma ideia melhor. ― Ele abraçou-a, inclinando-se para mordiscar-lhe a orelha. ― Por que você não me convida para jantar? Tiramos o telefone do gancho e faremos amor a noite inteira, no tapete em frente da lareira.

Anne aconchegou-se contra ele.

— Está muito calor para acender a lareira. E eu não tenho tapete.

— Eu deixo você ficar por cima ― ele disse, adorando ver o rubor cobrir as faces dela.

— Mesmo assim eu machucaria os joelhos ela retrucou, tímida. Brincou com o botão da camisa dele. ― Eu gostaria muito que você fosse jantar conosco, Neill. Sei que parece uma tradição tola, mas significa muito para minha mãe. E também sei que ela é uma pessoa difícil, mas já sofreu muito. Não quero magoá-la, se puder evitar.

Neill pensou que Olivia Moore era de fato uma mulher de aço, impermeável ao sofrimento. Mas Anne não era e, se isso significava tanto para ela...

— Está bem. Mas pelo menos me dê um tempo para vestir uma armadura.

— Vou ligar para ela e avisar que você irá.

— Por quê? Só para dar-lhe tempo de soltar os crocodilos? ― ele perguntou, mas beijou-a antes que ela pudesse protestar.

No fim das contas, Olivia mostrou-se mais graciosa do que nunca. Nada de crocodilos, nem arsênico na salada. Embora a conversa fosse pouca, era educada, impessoal. Neill não podia evitar de comparar o jantar às reuniões da sua família e perguntar-se por que a família de Anne agarrava-se tão teimosamente a um ritual que não lhes dava nenhum prazer. Mas talvez, quando não existe muita substância, as pessoas agarram-se a pelo menos uma falsa intimidade.

— Já sabe quando sua motocicleta ficará pronta, Sr. Devlin? ― Olivia perguntou, enquanto servia a sobremesa.

— Ainda não. Em breve, eu acho.

— Você deve estar ansioso em seguir seu caminho.

Neill olhou para Anne e sorriu devagar, sem perceber o quanto aquele olhar revelava.

— Não estou com pressa ― murmurou.

Anne ruborizou e baixou os olhos. A qualquer um que os observasse, e todos estavam observando, a intimidade daquela troca de olhares foi inequívoca.

Do outro lado da mesa. Lisa sentiu Jack ficar tenso e pousou a mão em seu braço, apertando-o num rápido sinal de aviso. Ele não olhou para ela, mas Lisa sentiu-o relaxar. Lançou um olhar de relance para a ponta da mesa e não ficou surpresa em ver o brilho de fúria nos olhos de Olivia. Lisa perguntou-se se ela estaria furiosa pela ideia de Anne ter arrumado um amante, ou simplesmente ultrajada pela possibilidade de estar perdendo o controle que tinha sobre a filha. Fosse como fosse, ela não invejava Anne. Ou Neill Devlin, embora ele parecesse o tipo capaz de cuidar de si mesmo. Lisa esperava que ele também pudesse cuidar de Anne, e que estivesse disposto a fazê-lo.

— Você viu o jeito que ele olhava para ela? ― Jack explodiu meia hora depois, mal fechou a porta do carro. ― Como se ele fosse... como se fossem...

— Amantes? ― Lisa completou, num tom irônico.

— Isso mesmo, que droga. ― Jack enfiou a chave na ignição e ligou o motor. ― Que direito ele tem de ficar olhando para ela daquela maneira?

— Eles passaram o fim de semana em Chicago ― Lisa falou calmamente. ― Se ele estiver olhando-a como se fossem amantes, imagino que tenha um motivo.

Em outras circunstâncias, a expressão de atônita incredulidade de Jack poderia até ser engraçada. Mas, no momento. Lisa só podia espantar-se diante de sua cegueira.

— O carro vai andar mais depressa se você tirar o pé do freio e engatar a marcha ― disse, após um momento.

Jack reagiu automaticamente. Não falou até que chegaram no final da rua. Neill e Anne haviam saído um pouco antes, e, ao avistar o chalé de Anne, com uma única luz acesa no quarto, ele pareceu emergir do estado de choque. Pisou com força no freio e o carro parou com um solavanco.

— Vou matar aquele desgraçado ― disse, furioso, abrindo a porta. ― Se ele estiver lá com ela, juro por Deus que...

— Não se atreva a sair deste carro, Jack. ― Lisa segurou-o pelo braço, as unhas afundando nos músculos tensos. ― Não é da sua conta se ele estiver com ela, agora ou em qualquer outra hora.

— Não é da minha conta? ― Ele virou-se para encará-la, os olhos reluzindo de raiva.

— Sim, você não tem nada a ver com isso ― Lisa confirmou, subitamente sentindo-se tão furiosa quanto ele. ― Anne não é nenhuma garotinha. Ela tem vinte e cinco anos. Agora feche esta maldita porta antes que ela escute o barulho do carro e pense que está acontecendo alguma coisa. ― Quando ele hesitou, ela cerrou os dentes e aumentou a pressão no braço dele, até que Jack cedesse. ― E ele não está aqui, seu idiota. A não ser que deixasse o carro de David na cidade e voltasse a pé. E não há motivos para que fizesse isso, da mesma forma que não há nenhum motivo para que Anne não receba um homem em sua casa.

Após um longo e tenso momento. Jack fechou a porta do carro e o pôs em movimento. Lisa soltou-lhe o braço e recostou no assento, desejando acreditar que a sanidade prevalecera, embora soubesse que, se o Corvette estivesse ali, nada impediria Jack de irromper na casa de Anne a fim de proteger sua virtude. Poderia até ser uma demonstração de carinho, se não fosse tão irritante.

Nenhum deles falou até que Jack parasse o carro na frente da casa de Lisa. Desligou o motor, mas ela não fez menção de descer.

— Anne não é como as outras pessoas ― ele murmurou. ― Sei que ela tem vinte e cinco anos, mas sempre foi... protegida.

— Acho que a palavra é "sufocada".

Houve um breve silêncio e ela viu Jack assentir lentamente.

— Talvez. Pode ser que nós a protegemos demais. Mas seja qual for o motivo, ela é jovem para a idade e não quero vê-la magoada. Não gosto desse Devlin. Não sabemos nada sobre ele.

— Sabemos que ele a faz feliz ― Lisa falou, baixinho.

— Feliz? ― Jack falou, num tom de desprezo. ― Uma transa rápida até pode fazê-la sorrir por enquanto, mas o que vai acontecer depois que esse desgraçado abandoná-la?

— Não sei se é isso que ele fará. Mas sei que vi Anne sorrir nestas duas semanas mais do que nos últimos dois anos. Você já olhou de verdade para ela, Jack? Já pensou na vida que ela leva?

Alguma coisa, no fato de estarem ali na escuridão, tornava a verdade não apenas possível, mas também imperativa.

— Já pensou em qual será o futuro dela? Ou tem somente uma vaga ideia de que tudo continuará como sempre, com Anne morando naquela casinha de boneca, sã e salva, fazendo com que todos se sintam bem porque, contanto que ela esteja protegida, sabemos que nada de ruim tornará a acontecer. Que ninguém irá fazer com ela o mesmo que fizeram com Brooke.

A voz de Lisa vacilou e ela viu Jack virar-se, estendendo a mão para tocar-lhe o rosto.

— Não! ― ela exclamou, balançando a cabeça violentamente. ― Isso não é sobre Brooke. Pelo menos uma vez, vamos deixar Brooke de fora.

— O que diabos você está falando?

— Estou falando de Anne e da maneira como a sua família, e toda esta maldita cidade, a trata, como se ela fosse feita de cristal. Ela é uma mulher de carne e osso, Jack.

— Eu sei.

Jack recostou-se no assento, o corpo vibrando de frustração. Como diabos aquela discussão começara? Como se desviara do fato de que sua irmã, a sua irmãzinha, tinha um amante? Só de pensar naquele miserável tocando-a ele sentia o sangue ferver.

— O que ela está pensando? ― ele explodiu, batendo com força no volante. ― O que ela está pensando?

— Em si mesma, para variar. Você esperava que ela morresse virgem?

— Não. ― Jack mudou de posição, desconfortável. Não gostava de falar sobre isso, não queria falar sobre isso. ― Imaginei que ela acabaria se casando, algum dia.

— Com quem? Com Frank Miller? É isso que você quer para ela? Um sujeito que você mesmo me disse achar tão aborrecido que era capaz de curar a insônia?

— Não há nada de errado com Frank ― Jack resmungou. ― Ele é um homem decente, sólido. Deixaria Anne a salvo.

— De quê? ― Lisa estendeu as mãos para o alto. ― De ter alguém com quem conversar? Com quem rir e ser feliz? De ter uma vida de verdade? O que você realmente quer dizer é que Frank a manteria viva. E isso é tudo que importa? E quanto a felicidade? Você não quer que ela seja feliz?

— É claro que sim.

— Então pare de tentar protegê-la. A vida não vem com garantias. Talvez Neill Devlin a faça sofrer, talvez não. Mas sofrer é melhor do que nunca ter sentido nada. Você realmente quer que ela case com o velho e bom Frank, Jack? É isso que deseja para sua irmã?

Ele mexeu-se, inquieto.

— Talvez eu esteja sendo superprotetor ― disse. ― Mas depois que... depois do que aconteceu com Brooke, sinto que devo compensar por não ter estado com ela, quando precisou.

— Não foi sua culpa. ― Dessa vez foi Lisa quem estendeu a mão e acariciou-lhe o rosto. ― Jack, o que aconteceu com Brooke não foi por sua culpa.

— Será que não? ― Os músculos do rosto dele contraíram-se. O silêncio prolongou-se. À distância, um cachorro latiu duas vezes. ― Eu me atrasei ― Jack falou, a voz rouca pelo esforço de pronunciar as palavras. ― Naquele dia, quando Brooke... quando aconteceu... Eu deveria apanhá-la na escola, mas me atrasei. Depois, disse que havia perdido a noção do tempo, mas não foi verdade. Eu estava jogando basquete com meus amigos e sabia que iria me atrasar, mas não quis parar antes de terminar a partida. Imaginei que ela iria andando para casa, se quisesse. E foi o que ela fez. E alguém a pegou, matou-a e cortou-a em pedaços.

Lisa tocou-lhe o braço, que estava quente como brasa. O silêncio era tão denso que Lisa ouvia a pulsação em seus próprios ouvidos. Podia sentir que Jack estava sofrendo, uma dor tão imensa que o devastava, devorando-o por dentro.

— Brooke... todas nós... íamos a pé para casa de vez em quando ― ela disse, finalmente. ― Você não tinha motivos para pensar que daquela vez seria diferente.

— Mas foi diferente, e ela morreu porque eu não quis interromper um maldito jogo de basquete.

Lisa queria abraçá-lo, oferecer conforto, mas seu instinto lhe dizia que não era isso que Jack precisava. Procurou manter a voz calma, neutra.

— Ela morreu há quinze anos, Jack. Quantos anos você ainda pretende passar sentindo pena de si mesmo?

Ele encolheu-se como se ela tivesse lhe dado um tapa e, mesmo sob a fraca luz, Lisa viu o choque em seu rosto.

— Eu não sinto pena de mim mesmo!

— Sente, sim. Você desistiu da faculdade de medicina para tornar-se xerife. Está bebendo demais. Ah, talvez ainda não tenha se transformado num alcoólatra, mas está seguindo nesta direção. Eu conheço os sintomas. E você não consegue comprometer-se comigo, nem pensar em formar uma família. ― A voz dela vacilou, mas esforçando-se por mantê-la firme, começou a falar mais depressa. ― Sua irmã morreu e você passou os últimos quinze anos transformando-se em algum tipo de mártir, em nome dela. ― Seu tom de voz elevou-se um pouco. ― Você nem mesmo se lembra de Brooke. A sua família a transformou num tipo de santa, para que todos possam passar o resto da vida lamentando e exaltando a sua perfeição. Bem, estou farta disso. Estou farta desta cidade, e de você. Vou embora assim que arrumar minhas coisas, e espero que Neill Devlin tenha o bom senso de tirar Anne das garras de todos vocês, antes que consigam sacrificar a vida dela também.

Lisa praticamente gritou as últimas palavras, enquanto procurava o trinco da porta.

— Lisa... ― Jack tentou segurá-la, mas ela o empurrou.

— Deixe-me em paz, Jack. Apenas deixe-me em paz.

Sacudida pelos soluços, ela quase caiu para fora do carro, em sua pressa de afastar-se dele. Cega pelas lágrimas, correu aos tropeços até a pequena varanda. As chaves estavam no fundo da bolsa, naturalmente. Onde mais poderiam estar, quando mais se precisava delas?

— Lisa. ― De repente Jack estava atrás dela, com as mãos em seus ombros, ignorando sua tentativa de desvencilhar-se. ― Não chore. Não chore por minha causa, não mereço isso.

— Não merece mesmo! ― ela soluçou. ― E não estou chorando por sua causa. Estou chorando porque não consigo encontrar a maldita chave!

— Eu quebro a janela ― ele murmurou, puxando-a para si. ― Nunca tive intenção de magoá-la. E só que... acho que não mereço você.

— Você está certo ― ela disse, mas recostou a cabeça no peito dele.

— Eu... talvez você tenha razão. Talvez eu tenha adquirido o hábito de sentir pena de mim mesmo, não sei. É que... tenho me sentido culpado há tanto tempo. Acho que eu precisava culpar alguém, nem que fosse a mim mesmo. Quando Brooke foi assassinada, uma das coisas mais difíceis com que tive de lidar foi a... casualidade de tudo aquilo. Não foi como se alguém quisesse que ela morresse, foi apenas porque ela estava à mão. E o fato de ela estar disponível aconteceu porque eu me atrasei... e isso me devora por dentro.

Lisa fechou os olhos e falou, sem erguer o rosto.

— Você tinha vinte anos, na época. Quantos rapazes de vinte anos você conhecem que são capazes de sacrificar um jogo de basquete para buscar a irmã na escola, quando ela é perfeitamente capaz de ir para casa sozinha? Tudo bem, foi grosseria sua fazê-la esperar. Foi até um pouco egoísta, mas não foi você quem a matou. E ela não foi obrigada a entrar no carro do assassino, não gritou, nem debateu-se. Se isso tivesse acontecido, alguém teria escutado ou visto alguma coisa. Quem quer que tenha sido, ofereceu-lhe uma carona e ela aceitou. Isso faz com que a culpa seja de Brooke?

Lisa levantou a cabeça e fitou-o. O rosto dele estava tenso e contraído.

— Você realmente se lembra dela. Jack? Lembra-se de como ela gostava de pregar peças nas pessoas, deixar todo mundo preocupado? Se alguém, um desconhecido atraente, parasse e lhe oferecesse uma carona para casa, ou mesmo até a cidade mais próxima, e ela estivesse zangada com você por não ter aparecido, ela teria aceitado.

— Ela sabia que não deveria...

— Aceitar doces de estranhos? ― Lisa esboçou um meio sorriso. ― É claro que sabia, mas Brooke adorava arriscar-se um pouco. Ela teria adorado ligar para sua casa de uma outra cidade e dizer à sua mãe que pegara uma carona até lá. O fato de que sua mãe ficaria furiosa com você por ter-se atrasado seria um prêmio extra, mas o ganho principal teria sido mostrar à Olivia que ela não tinha o controle.

Jack mexeu-se, inquieto, e Lisa tomou-lhe o rosto entre as mãos.

— Se foi isso que aconteceu, se Brooke entrou no carro dele pensando que iria causar apenas um pouco de confusão, se fez algo assim tão estúpido e descuidado, isso a torna responsável pela própria morte?

— É claro que não.

— Então, por que seria diferente com você?

Quando ele balançou a cabeça e não respondeu, Lisa suspirou e deixou cair as mãos. Deu um passo para trás, encarando-o.

— Jack, eu amo você, mas não vou fazer parte desta loucura que você e sua família cultivam. Não vou ficar por aqui vendo você se transformar num alcoólatra. E não vou passar o resto da minha vida esperando até que você decida se já foi castigado o bastante e merece um pouco de felicidade. Quero uma casa, quero filhos, e quero tudo isso antes de ficar velha demais para desfrutar. Queria que fossem seus filhos, mas, se não é para acontecer, vou encontrar outra pessoa e tentar ser feliz.

Jack continuou em silêncio e Lisa tornou a vasculhar a bolsa, finalmente encontrando as chaves. Sem olhar para ele, abriu a porta e entrou, fechando-a atrás de si e recostando-se contra a madeira, esperando ouvir o som dos passos dele afastando-se da varanda.

O silêncio prolongou-se, e ela continuava esperando, o coração batendo forte em seu peito. Então, Jack bateu na porta. Prendendo o fôlego, ela abriu e olhou para ele, sem nada dizer.

— Quantos? ― ele perguntou.

— O quê? ― Lisa fitou-o, confusa. ― Quantos o quê?

— Filhos. ― Jack sorriu, hesitante. ― Não temos tempo de ter mais do que meia dúzia, a não ser que apareçam alguns gêmeos.

— Meia dúzia? ― Ela precisou de um instante para reconhecer que a emoção que emergia de dentro de si era a mais pura felicidade. ― Eu... eu estava pensando em um ou dois.

— Podemos começar agora mesmo e ver o que acontece. ― Jack adiantou-se e abraçou-a com tanta força que ela ofegou. ― Não posso lhe prometer nada, Lisa, exceto que vou tentar ao máximo.

— Isso é tudo o que alguém pode fazer. ― Lisa deslizou a mão pelos cabelos dele, desmanchando-se de amor. ― Isso é tudo o que alguém pode pedir.

— Vamos nos casar o mais rápido possível ― ele disse, tomando-lhe a mão e beijando-a. ― Podemos ficar morando aqui mesmo, ou procuramos outro lugar. Não me importa onde vamos morar. Apenas não me abandone.

 

Neill fechou o portãozinho atrás de si e olhou para a varanda mais adiante. O ar quente estava pesado com o perfume das rosas e ele ouvia o zunir das abelhas, recolhendo os últimos bocados de néctar antes de abrigarem-se com a chegada da noite. Olhando para o chalé, deu-se conta de que nunca vira uma casa de aparência tão feminina. A cerca branca, as cores contrastantes, a varandinha minúscula com as trepadeiras de rosas. Diante dela, sentia-se grande e desajeitado.

Menos de vinte e quatro horas tinham se passado desde a última vez em que vira Anne, e ele viu-se apanhado entre uma antecipação quase dolorosa e um nervosismo comparável ao de um adolescente em seu primeiro encontro. Poderia ter ficado com ela na noite anterior, pensou. Se lhe pedisse, ela não teria recusado. Mas ele não pedira, baseado na vaga teoria que, depois da intensidade do fim de semana, ambos precisariam de um tempo para respirar. Assim, passara uma noite miserável em seu quarto no motel e era egoísta o bastante para esperar que a noite de Anne não tivesse sido melhor.

Olhou com desânimo para o buquê de flores que trazia na mão. O que estava fazendo, levando margaridas para uma mulher cuja casa transbordava de rosas? Porém, a mercearia do Bill não contava com um grande estoque de arranjos florais e, ao ver as margaridas brancas, Neill pensara imediatamente em Anne. Bem, se ela não gostasse, poderia jogá-las no lixo depois que ele saísse.

Ou depois que o chutasse para fora, pensou. Estava determinado a lhe contar tudo sobre sua profissão, ainda naquela noite. Quanto mais tempo demorasse, mais o assunto ganhava uma importância que de fato não tinha. Ou, pelo menos, ele esperava que não tivesse.

Respirando fundo, tocou a campainha. Anne abriu a porta antes que o som se dissipasse e, olhando para ela, Neill sentiu que algo se desmanchava em seu peito. Anne usava calça jeans e uma camisa cor de pêssego, os cabelos puxados para trás mas caindo pelos seus ombros, e tudo o que ele pôde pensar foi no quanto ela era linda.

— Olá. ― O cumprimento dela foi ofegante, os olhos reluzindo de prazer em vê-lo.

Sem nada dizer, Neill passou pela porta e, abraçando-a, beijou-a longamente, sentindo-a estremecer de surpresa e paixão. Quando finalmente ergueu a cabeça e fitou-a, ficou contente em ver o ardor em seus olhos e as faces rubras.

— Olá ― disse, num tom enrouquecido. ― Eu lhe trouxe flores.

— Ah! ― Anne olhou para o buquê que ele lhe estendia. Sua cabeça girava e as pernas estavam bambas. Pegou as flores automaticamente, sabendo que devia dizer alguma coisa. ― Obrigada ― conseguiu murmurar, arrancando a resposta adequada de seu cérebro entorpecido.

Sorrindo, Neill virou-se para fechar a porta.

— Acho bom você colocá-las na água ― disse, quando Anne continuou parada ali, os olhos fixos nas flores. ― Minha mãe sempre põe uma aspirina no vaso, para que durem mais. ―- Pousando as mãos nos ombros dela, a fez virar na direção da cozinha. ― Estou sentindo um cheiro delicioso.

— É frango. ― Anne respirou fundo, tentando se controlar. ― Fiz um ensopado. Não sabia se você iria gostar, mas normalmente todo mundo gosta de frango.

Ela deixou as flores na pia e abriu o armário para pegar um vaso.

— Eu gosto de tudo ― Neill falou, cheirando com prazer um bolo que ela deixara para esfriar sobre o balcão. ― Não sabia que você cozinhava.

— Gosto de cozinhar. ― Anne foi arrumando as margaridas no vaso. ― Mas é claro que prefiro cozinhar quando tenho visitas do que só para mim.

— Isso é cobertura de chocolate? ― ele perguntou, inclinando-se sobre o ombro dela para espiar a vasilha perto da pia.

— É, sim. ― Anne tinha quase certeza de que era cobertura de chocolate mas, com ele estando tão perto, era difícil lembrar até do próprio nome.

— Eu adoro chocolate.

Havia um tom tão desejoso na voz dele que, sem pensar, Anne enfiou o dedo na cobertura e, somente quando virou-se para oferecê-lo a ele, deu-se conta do que estava fazendo. Incerta, tentou afastá-lo, mas Neill tomou-lhe a mão e levou o dedo à boca.

Anne teve de apoiar-se na pia enquanto a língua de Neill deslizava em torno de seu dedo, lambendo-o antes de chupá-lo delicadamente. Ele mantinha os olhos fixos nos dela, observando o turbilhão de emoções.

Anne suspirou quando ele inclinou-se para beijá-la. Os lábios dele tinham o sabor do chocolate e havia algo de estranhamente erótico no contraste entre o gosto doce e inocente e a vibrante rigidez do corpo dele contra o seu.

— O jantar pode esperar? ― ele perguntou, deslizando a boca pela sua nuca.

— Pode.

— Ótimo ― ele falou, ansioso. ― Porque eu não posso.

Quando finalmente foram jantar, o frango havia ressecado e o macarrão que ela fizera cozinhara demais. Anne não importou-se e, ao ver que Neill repetia o prato, achou que também não se importava.

— Se você vai continuar me dando tanto trabalho, tenho de manter as forças ― ele falou, servindo-se pela segunda vez e sorrindo ao vê-la ruborizar.

Considerando o fato de que não estava usando nada por baixo da camisa dele, Anne achou que era ridículo sentir-se embaraçada. E, na verdade, não se sentia. Era apenas a novidade de ter alguém que a desejava tanto como ele. Jamais pensara em si mesma como uma pessoa sensual, mas era óbvio que estava enganada.

Depois do jantar Neill permitiu ser expulso para fora da cozinha, enquanto ela cobria o bolo. Quase sugeriu um uso mais interessante para aquela cobertura de chocolate, mas decidiu que Anne ainda não estava pronta para isso. Ela era um misto delicioso de timidez e sensualidade. Neill tivera outras amantes, mulheres de quem gostara, ou que simplesmente desejara, mas nunca conhecera alguém que o excitasse tanto como Anne.

Relutante, foi para a sala de estar. Havia uma aconchegante domesticidade naquela cena. Tudo o que ele precisava era de um cachimbo, chinelos e uma camisa, pensou, passando a mão no peito nu. E, talvez, um avental para Anne. Imaginando como ela ficaria usando apenas um avental percebeu que começava a ficar excitado outra vez, e procurou algo que lhe desviasse a atenção de tal pensamento.

Havia uma estante de livros numa das paredes e ele foi examiná-los, curioso em saber sobre as preferências dela. Havia alguns romances, alguns livros de mistério e suspense, manuais para o cultivo de rosas, e o restante eram guias de viagem. Europa, América do Sul, Austrália... Lendo os títulos, Neill sentiu algo parecido com raiva crescer em seu peito. Anne tinha uma estante cheia de livros sobre viagens, mas aquele fim de semana fora sua primeira visita a Chicago, que ficava a algumas horas de distância. Há quanto tempo ela estaria lendo sobre lugares que queria conhecer, sonhando com coisas que jamais veria? Escolhendo um livro ao acaso ele abriu-o e viu que ela marcara com caneta os lugares que mais a interessavam: o Louvre, os Champs Elysées, uma padaria famosa que vendia os melhores croissants de Paris.

Ouvindo Anne entrar na sala, ele virou-se com o livro nas mãos.

— Está planejando uma viagem? ― perguntou, casualmente.

Ela ruborizou de leve, deixando na mesa as xícaras de café que trouxera.

— Não exatamente. Gosto de ler sobre lugares diferentes.

— E por que não vai conhecê-los?

— Ah, bem, eu... na verdade, eu nunca viajei. ― Um tanto constrangida, Anne percebeu que ele a olhava com uma expressão estranha, que era quase de revolta.

— Há alguma coisa que a impeça? ― Neill perguntou, devolvendo o livro na estante.

— Acho que não. Só não estou certa de que me sairia bem, longe daqui.

— Você saiu-se muito bem em Chicago, neste fim de semana.

— Sim, mas você estava comigo. ― Anne baixou os olhos, ajeitando as xícaras de café na bandeja. ― Pode parecer tolice para você, mas... depois do que aconteceu com Brooke eu sempre tive vontade de viajar, mas é claro que isso deixa minha mãe muito aborrecida. Quase mudei-me para outro Estado para cursar a faculdade, mas ela tinha medo que algo pudesse acontecer comigo. ― Ocupada com as xícaras de café, não viu o rápido lampejo de raiva nos olhos de Neill. ― É compreensível, depois de tudo o que houve. Não posso culpá-la por preocupar-se.

— Brooke foi assassinada aqui mesmo, em Loving ― Neill falou, num tom suave. ― Se sua mãe está tão preocupada com sua segurança, não deveria ter medo por você morar aqui?

Surpresa, Anne ergueu os olhos para ele.

— Eu nunca pensei por este ângulo. Acho que é bastante lógico, não é? ― Ergueu a mão e brincou com a gola da camisa. ― Mas os sentimentos não têm nenhuma lógica, e aqui eu não sinto medo. Na maior parte do tempo, pelo menos. ― Encolheu os ombros. ― De qualquer forma, talvez algum dia eu mesma me surpreenda e decida fazer uma volta ao mundo. Então, está pronto para comer o bolo? ― ela perguntou, enviando-lhe um sorriso que não ocultava a sombra em seus olhos.

— Mais do que pronto ― ele falou, disposto a aceitar uma mudança de assunto. Se continuassem falando sobre aquilo por mais tempo, ele acabaria dizendo coisas sobre a mãe dela que Anne ainda não estava preparada para ouvir.

Quando ela voltou para a cozinha, Neill virou-se novamente para a estante. Lua-de-mel em Paris, pensou. Ou, talvez, pudessem passar um ou dois meses e visitar o país inteiro. Porém, antes da lua-de-mel, havia coisas que precisavam ser ditas. Coisas como "eu amo você", "quer casar comigo?" e "a propósito, eu menti sobre a minha profissão".

— É a primeira vez que faço esta receita ―. Anne dizia enquanto trazia os pratos de sobremesa. ― Mas parece que está bom.

Deixou os pratos na mesa e olhou para ele, sentindo o coração disparar ao ver-lhe a expressão. Ele estava tão sério...

— Precisamos conversar ― ele disse.

— Sabe, eu já reparei que sempre que alguém diz isso está se preparando para falar coisas que a outra pessoa não deseja escutar ― ela comentou, num tom quase distraído. ― Será que está prestes a me dizer que é casado e tem dez filhos?

Os lábios dele contorceram-se num meio sorriso.

— Não sou casado.

— Bem, isso é um alívio. Eu detestaria pensar que esperei tantos anos para ter o meu primeiro caso, apenas para acabar com um homem casado. ― Ela sabia que estava tagarelando para disfarçar o nervosismo.

— Anne...

— Não estou muito disposta a ter uma conversa séria, esta noite. ― Anne foi até ele e pousou a mão em seu peito, acariciando-o, o medo tornando-a audaciosa. Se ele estivesse para lhe dizer que ia partir, ela queria ter apenas mais uma noite, antes de ser obrigada a lidar com a decepção. ― Não podemos fingir que ainda estamos no fim de semana, um longo fim de semana que durou até a segunda-feira? ― perguntou. ― Não se pode ter uma conversa séria num feriado prolongado.

— Isso é uma regra? ― ele indagou, meio divertido, meio irritado.

Mas estava irritado consigo mesmo, por ter deixado que sua confissão adquirisse proporções exageradas em sua própria mente, e agora criava a impressão de que o que tinha a dizer era algo terrível. Além disso, era impossível pensar em qualquer coisa quando sabia que Anne estava nua sob a sua camisa. Estendeu a mão e começou a abrir o primeiro botão.

— É uma lei municipal ― ela falou, sentindo os receios se dissiparem.

No fim das contas, o que ele tinha para lhe dizer talvez não fosse nada tão grave. Ele não estaria com aquela expressão, como se quisesse devorá-la, se estivesse prestes a lhe dizer adeus.

— Bem, eu não quero violar nenhuma lei ― ele disse, deslizando a mão por dentro da camisa e espalmando-a sobre o seio dela.

Anne ofegou baixinho.

— Como acha que devemos passar o restante do fim de semana? ― ele sussurrou em seu ouvido.

— Tenho certeza de que... podemos pensar em alguma coisa ― ela disse, antes que se esquecesse de como falar.

Na manhã seguinte, Anne estava fazendo o café quando a campainha tocou. Assustada, deixou cair a colher com o pó em cima da pia, sabendo que a única pessoa provável de bater em sua porta naquela hora seria sua mãe que, sem dúvida, vira o carro de Neill parado na frente da casa.

Você é uma mulher adulta, disse a si mesma enquanto abandonava o café e ia atender a porta. Mas seus dedos estavam tremendo quando amarraram o cinto do roupão, e desejou ter vestido uma roupa antes de descer. Se ao menos tivesse acordado um pouco mais cedo, ou resistido quando Neill desligara o despertador e rolara por cima dela...

Mas não quisera resistir a ele, não lamentava por ele estar ali, e não tinha nenhum motivo para sentir-se culpada. Assim pensando, abriu a porta e imediatamente ruborizou sob o olhar acusador de sua mãe.

— Você acordou cedo ― Anne falou, tentando dar um tom normal à sua voz. ― Estou fazendo café, quer um pouco?

— Não, obrigada. ― Os olhos frios de Olívia percorreram a filha, desde os cabelos despenteados até os pés descalços, sem perder nenhum detalhe.

No mesmo instante Anne deu-se conta da sua aparência desgrenhada. Planejara subir para tomar um banho enquanto o café coava, mas não houvera tempo. Mesmo em seus melhores momentos a elegância natural de sua mãe a fazia sentir-se como uma cama desarrumada. Como ela conseguia parecer tão impecável às sete horas da manhã? Calça comprida cor de marfim, a camisa branca engomada, os cabelos perfeitamente penteados, os discretos acessórios de ouro. Ela parecia ter saltado das páginas de um catálogo de moda.

— De quem é o carro que está lá fora? ― Olivia perguntou, num tom gélido. ― Ou será que nem preciso perguntar?

Antes que Anne pudesse dizer alguma coisa, ouviu Neill descendo as escadas. Era óbvio que ele não escutara a campainha, porque estava falando enquanto descia, elevando a voz para certificar-se de que ela o ouvisse.

— Ei, por que não liga para o banco e diz que está doente? ― ele estava dizendo. ― Vou preparar um super desjejum e depois podemos voltar para a... ― Interrompeu-se quando viu Olivia, mas a palavra "cama" ficou pairando no ar.

As duas viraram-se ao ouvir a voz dele, e Neill parou ao pé da escada sentindo o peso dos olhares de ambas. Anne parecia nervosa, culpada. Olivia estava furiosamente zangada.

— Sra. Moore... ― Neill inclinou a cabeça num cumprimento e recostou-se na parede, tranquilo e indolente. ― Anne não mencionou que estava esperando sua visita esta manhã.

Era uma provocação deliberada. Se Olivia fosse dar vazão à sua raiva, Neill preferia que a dirigisse para ele, em vez de Anne. Por um instante achou que funcionara, a julgar pelo olhar que ela lhe lançou. Porém, Olivia recuperou o controle quase imediatamente.

— Eu também não esperava vê-lo aqui, Sr. Devlin. Mas talvez tenha sido bom, pois o que tenho a dizer também lhe diz respeito, de certa forma.

— Mamãe... ― Anne moveu-se a fim de ficar na frente de Neill. Enfiou as mãos nos bolsos do roupão para ocultar o tremor, mas sua voz estava firme. ― Isso não é da sua conta. Sei que se preocupa comigo, mas não sou mais criança e não preciso que você...

— Ele lhe contou porque está aqui? ― Olivia interrompeu.

— Aqui em Loving? ― Anne ficou surpresa com a pergunta. ― A motocicleta dele quebrou.

— Muito conveniente, não é, Sr. Devlin?

— Não especialmente ― ele respondeu, mas já havia visto o livro na mão dela e adivinhou o que se seguiria.

Era sua maldita culpa, pensou. Deveria ter contado a Anne, mas ficara adiando. Agora Olivia lhe diria tudo, e da pior maneira possível. Retirou a mão que pousara no ombro de Anne, ciente do olhar de triunfo da outra mulher.

— Ele lhe contou que veio para cá a fim de fazer algumas pesquisas? ― Olívia perguntou.

— Não foi nada disso ― Neill retrucou, ríspido. ― Minha motocicleta quebrou. Fim da história.

— Uma coincidência impressionante ― Olívia ronronou.

— Sobre o que vocês estão falando?

Anne olhou de um para outro. Nunca havia visto sua mãe tão venenosamente triunfante, e nunca vira Neill parecer tão desconfortável, quase culpado, e não sabia o que a amedrontava mais.

— Ao que parece o Sr. Devlin é um escritor muito mais bem-sucedido do que quis fazer você acreditar ― Olívia falou, estendendo-lhe o livro.

Anne pegou-o automaticamente e ficou olhando para a capa vermelha e preta. "O Vizinho Assassino", por N.C. Devlin. Virando-o, viu o rosto de Neill na contracapa. Na foto ele estava com uma jaqueta de couro preta e calça jeans, tendo ao fundo um céu muito azul e árvores com as folhas amareladas. Era uma bela foto, Anne pensou vagamente.

— Pensei que você escrevesse artigos para revistas ― ela falou, enviando a Neill um olhar incrédulo.

— Eu escrevia. Ainda escrevo. ― Ele enfiou as mãos nos bolsos numa tentativa de impedir-se de esganar o pescoço de Olívia, ou talvez o seu próprio, por causar aquela dor que refletia-se nos olhos de Anne. ― Comecei escrevendo como free-lance. E às vezes escrevo alguns artigos.

— Mas aqui diz que você esteve na lista dos mais vendidos do New York Times. Então você não é... quero dizer, é um escritor de sucesso.

Ele encolheu os ombros, indiferente.

— Mais ou menos.

— Você é modesto demais ― Olívia intercedeu. ― De acordo com o que diz na contracapa, todos os seus quatro livros foram incluídos nas listas dos mais vendidos. Mas o que acho mais interessante de tudo é o assunto sobre o qual você escreve.

— O assunto?

Anne sentia-se como se fora empurrada para uma peça de teatro onde todos sabiam suas falas, exceto ela. Neill e sua mãe sabiam o que estava acontecendo, mas ela debatia-se num nevoeiro.

— O Sr. Devlin escreve livros sobre assassinatos ― Olívia falou, vivamente. ― Faz relatos detalhados sobre um determinado crime, explorando os efeitos causados nas famílias das vítimas. E agora, entende porque ele está aqui? ― Quando Anne fitou-a confusa, Olívia esboçou um sorriso desagradável. ― E porque ele cultivou este relacionamento com você?

— Estou aqui porque a minha moto quebrou e "cultivei" um relacionamento com sua filha porque a amo.

A declaração pareceu deixar Olívia abalada por um instante, mas ela recuperou-se rapidamente.

— Isso não é conveniente? Você costuma apaixonar-se por alguém da família da vítima em todas as pesquisas que faz para seus livros?

Neill deu um passo na direção dela, com uma expressão feroz no rosto. Olivia enrijeceu, e ele obteve um prazer quase selvagem ao ver o medo reluzir nos olhos dela.

— Já chega. ― A voz de Anne rompeu o momento de tensão. ― Vocês dois. Já chega.

Ficou olhando para o livro e, depois, deixou-o sobre a mesa ao seu lado. Cruzou as mãos, com a cabeça baixa, e quando tornou a levantá-la sua expressão estava perfeitamente firme, os olhos inescrutáveis.

— Gostaria que você saísse agora, mamãe.

— Eu? ― Olivia não ficaria mais atônita se Anne a esbofeteasse. ― Por que eu devo sair? Foi ele quem...

— Quero falar com Neill ― ela afirmou. ― E gostaria que você saísse. Por favor. ― Embora acrescentasse o pedido, era evidente que estava dando uma ordem.

— Eu... bem, se tem certeza. Mas acho que você não deveria... ― O choque fez com que Olivia gaguejasse.

— Mas eu sim. ― Os lábios de Anne curvaram-se num sorriso frio. ― Eu acho que devo conversar com ele.

— Bem, é claro, se é o que você quer... ― Sem entender muito bem o que estava acontecendo, Olivia foi na direção da porta. ― Se precisar de alguma coisa...

— Não vou precisar.

Mantendo o sorriso implacável, Anne fechou a porta na cara da mãe. Ficou ali, ouvindo o som de seus passos na varanda e, segundos depois, o ranger do portão se fechando. Atrás de si, sentia o olhar de Neill, esperando para ver como ela iria reagir.

Mas ela também não sabia como reagir, pensou, engolindo um riso histérico. Não sabia o que pensar, nem o que sentir. Não sabia o que era pior, a ideia de que Neill pudesse tê-la usado, ou a fria maldade com que sua mãe lhe dera a noticia.

Olivia se fora, mas Neill estava ali, e ela tinha de lidar com ele antes de conseguir enfrentar a mãe. Respirando fundo, virou-se para encará-lo.

 

— Você acredita mesmo que foi apenas por isso? ― Neill perguntou, quebrando o silêncio que instalara-se depois que Olívia saiu.

— Não sei.

Anne fechou a frente do roupão, outra vez desejando estar usando algo mais substancial. Seria mais fácil pensar com clareza se estivesse vestida. E desejou também que Neill abotoasse a camisa.

— Está pensando que planejei aquele nosso primeiro encontro na oficina? ― ele indagou. ― Acha que tudo isso foi algum plano que elaborei para aproximar-me de você e arrancar segredos sobre a morte de sua irmã?

Quando ela limitou-se a fitá-lo com aqueles grandes olhos azuis, Neill afastou-se com passos largos, cerrando os dentes num misto de raiva e medo, raiva por ela pensar que ele a usaria daquela forma, medo pela possibilidade de perdê-la. Maldita era a mãe dela, por atirar-lhe a verdade de tal maneira, dando a impressão de que ele planejara usá-la. E maldito era ele, por adiar tanto sua confissão.

— Não faço esse tipo de coisa, Anne ― disse, em voz baixa. ― Não me disfarço e tento arrancar informações da família de uma vítima. Nunca minto sobre o que estou fazendo, nem posso. Não se quiser chegar ao âmago de uma história.

— Ao âmago? ― Ela fitou sem entender. ― Que tipo de "âmago" pode existir quando uma jovem de dezoito anos é retalhada em pedaços e depois deixada ao longo da estrada, como se fosse lixo? ― Quando a voz dela vacilou, Neill sentiu o próprio coração parar. Moveu-se na direção dela, mas Anne estendeu a mão, num gesto de aviso.

— Não! Não se aproxime! ― Pressionou os dedos nos lábios, respirando fundo como se lutasse para se controlar.

— Que diabos, Anne, eu... ― Neill interrompeu-se e enfiou as mãos nos bolsos, virando-se.

Não sabia o que dizer a ela, o que fazer. Tal sofrimento o destroçava, e saber que era a causa disso tornava tudo pior. Fora Olivia quem trouxera a notícia, mas ele lhe dera a munição.

— Estou tentando entender ― Anne falou, a voz quase firme. ― Preciso entender, mas não consigo. Não entendo porque você mentiu para mim.

— Eu não menti ― ele disse, odiando-se por agarrar-se a algo tão frágil. ― Eu só... ah, que inferno. ― Virou-se para ela, os olhos reluzindo. ― Deixei que você acreditasse que eu era um escritor iniciante porque foi mais fácil. A princípio achei que não tinha importância, porque iria embora depois de alguns dias. Que diferença faria se você soubesse que escrevi alguns livros de sucesso? A fama é uma coisa engraçada. Não apenas muda as pessoas que a possuem, mas também aquelas que as cercam. Quando meu primeiro livro entrou para a lista dos mais vendidos, recebi telefonemas de gente a quem não via há anos, oferecendo-me investimentos, pedindo doações para falsas obras de caridade e coisas assim. Foi como ganhar um prêmio na loteria.

Neill encolheu os ombros com irritação, como se quisesse afastar tais lembranças.

— Não posso dizer que tenha ficado desiludido ― prosseguiu. ― Deus sabe que é impossível escrever o tipo de livros que escrevo e continuar mantendo quaisquer ilusões sobre a humanidade. Mas era irritante, me incomodava. E não eram apenas os pedidos de dinheiro. Se eu estivesse numa festa e comentasse com alguém que era escritor, isso levava a uma série interminável de perguntas. "Sobre o que você escreve? De onde tira suas ideias? Como faz as pesquisas?" Eu acabava me sentindo como se estivesse exposto numa jaula no zoológico. E, se reconheciam o meu nome, era ainda pior. Queriam saber se eu conhecia Julia Roberts, por exemplo, como se o fato de eu ter sucesso me obrigasse a conhecer todas as celebridades.

Passando as mãos pelos cabelos, Neill afastou-se dela e ficou olhando para as delicadas peças de porcelana que enfeitavam a estante da lareira.

— Não estou me queixando. Gosto de escrever e gosto ainda mais de ser um escritor de sucesso. E estaria mentindo se dissesse que não fico satisfeito ao ver meu nome nos jornais, ou por saber que dois estúdios de cinema desejam comprar os direitos do meu livro que ainda nem foi publicado. E gosto do dinheiro que ganho, embora jamais sentisse falta dele antes que começasse a ganhá-lo. Porém, o que detesto é a maneira como as pessoas passaram a me encarar, como se eu fosse diferente delas.

Quando ele voltou-se, Anne precisou desviar os olhos ao perceber a súbita vulnerabilidade dos dele.

— Quando nos conhecemos, a única coisa que pensei era no quanto você é bonita, e em quanto eu queria levá-la para a cama. ― Anne fitou-o num relance, ruborizando. ― Desculpe, mas é assim que os homens pensam. Depois, passei a conhecê-la melhor e você foi tão meiga, tão aberta, e não esperava nada de mim, além da minha companhia. Foi tão bom e eu não quis... correr o risco de ver tudo mudar.

— Está bem. ― Anne brincava com o cordão do roupão, dobrando-o e desdobrando. Ela entendia melhor do que ele imaginava. Pois não fora o medo de que ele a olhasse de maneira diferente que a impedira de contar sobre a morte de Brooke? ― Está bem, eu acho que posso entender. Mas, e depois? Depois que nós... que eu... ― Não conseguiu encontrar as palavras e terminou a pergunta com um gesto no ar. ― Por que você não me contou, depois?

— Porque, então, eu já sabia tudo sobre a morte de Brooke ― ele respondeu simplesmente. ― Como eu poderia lhe dizer que era não apenas um escritor de sucesso, mas que também escrevia exatamente sobre o tipo de coisa que aconteceu à sua irmã?

— Eu teria compreendido.

— Teria mesmo? ― Neill postou-se diante dela, apoiando-se nos braços da poltrona onde ela se sentara, encurralando-a sem tocá-la. ― Anne, a sua família passou os últimos quinze anos fingindo que Brooke nunca existiu e, ao mesmo tempo, transformando-a numa espécie de ícone de beleza e perfeição. Toda sua vida foi... restringida pelo que aconteceu a ela. Você permanece sã e salva nesta cidadezinha onde todos cuidam de você. Não se arrisca, nem corre atrás de nenhum desafio.

O tom de voz era gentil, mas as palavras atingiam-na como pedras afiadas. Com a respiração ofegante, Anne empurrou-o e levantou-se, indo para o meio da sala pressionando a mão no pescoço, os olhos cheios das lágrimas que estava determinada a não derramar.

— Você pode me culpar por isso? ― perguntou, enrouquecida. ― Pode me culpar por ter medo, por pensar que, se aconteceu uma vez, poderá acontecer de novo?

— Não é uma questão de culpa. ― Neill aproximou-se dela e estendeu a mão, abaixando-a ao vê-la recuar. Ela o fazia lembrar de uma gaivota agonizando na praia, respirando com dificuldade, os olhos arregalados e amedrontados. E fora ele quem provocara tal sofrimento. No entanto, pensou que já estava na hora de cauterizar aquela ferida, mesmo se ela o odiasse por isso. ― O que aconteceu com Brooke foi terrível. Você nunca esquecerá. Não estou dizendo que deve esquecer, nem que você poderia. Mas não há motivos para que permita que isto comande toda a sua vida.

— Eu não permito ― ela protestou. ― Tenho uma vida normal, tenho amigos. Não preciso morar numa cidade grande para ter estas coisas. Eu sou feliz.

— É mesmo? ― Neill foi até a estante e tirou um livro ao acaso. ― "Guia de Viagem para a Grécia". ― Outro livro. ― "Europa de Trem". ― Mais um. ― "Manhattan Histórica".

— Gosto de livros de viagens, e daí? ― ela gritou, antes que ele pegasse outro volume. ― Muitas pessoas gostam.

— Mas você não quer apenas ler sobre estes lugares. Você quer conhecê-los.

Sentindo-se como se ele estivesse retirando dela toda sua proteção, uma camada após outra, Anne desviou os olhos e encolheu-se, como se estivesse evitando uma pancada.

— Tenho bastante tempo. Algum dia eu irei.

— Algum dia? ― Neill deixou os livros sobre a mesa. ― Quando, Anne? O que está esperando? Que o mundo de repente se transforme num lugar seguro? Isso não vai acontecer.

— Eu sei que não. Não sou uma... criança. ― Ela ficou envergonhada quando sua voz vacilou.

Não, ela não era uma criança, mas havia sido tão protegida como se fosse. Não amada, Neill pensou, lembrando-se da expressão triunfante no rosto da mãe dela quando lhe revelou a verdade sobre ele. Não, Olivia Moore não protegera a filha por amor, mas sim pela própria necessidade de manter-se no controle. Talvez houvesse um pouco de medo misturado com isso, ele admitiu a contragosto. Afinal, ela perdera uma filha de um modo particularmente terrível.

Neill virou-se abruptamente e quase bateu na estante da lareira. Não havia espaço suficiente, naquela casa, para que andasse de um lado para outro. Era como uma casinha de bonecas, pensou, frustrado. Ou um chalé de contos de fadas, cercado pelas roseiras. E, naquele confinamento, a família de Anne a mantivera adormecida e em segurança por mais da metade de sua vida.

— Como você pode escrever sobre coisas assim? ― Anne perguntou, e ele tornou a virar-se para olhá-la.

Ela segurava seu livro na mão, e examinou-o por um instante antes de colocá-lo novamente na mesa. Quando ergueu os olhos para ele havia um brilho de confusão sob a dor.

— O que o leva a escrever sobre isso? Já não é ruim o bastante que aconteça? Por que precisa desencavar tudo outra vez?

— Para entender ― ele respondeu simplesmente.

— Entender o quê? ― Anne perguntou, atordoada.

— Porque tais coisas acontecem. ― Neill enfiou as mãos nos bolsos, os ombros tensos. ― Quando eu estava com quinze anos nós morávamos em Saginaw. Meu pai tinha uma lavanderia e minha mãe trabalhava na biblioteca, em meio período. Nós éramos vizinhos da família Kensington. ― Ele falava depressa, como se as palavras ansiassem por sair. ― O casal tinha três filhos, dois garotos e uma menina. Lacey era apenas um pouco mais nova do que eu, e era uma "molequinha". Era capaz de correr mais rápido do que eu, e sempre ganhava quando jogávamos basquete no quintal. E ela não hesitava em gabar-se desta superioridade. Eu a detestava por isso, e o sentimento era mútuo.

Neill foi até a janela e olhou para fora, mas sua mente estava no passado.

— Eu a evitava como se fosse uma praga, o que não era fácil, uma vez que ela morava na casa ao lado. Mas ela também não gostava de mim, de forma que nós conseguíamos manter uma certa distância. Tivemos tanto sucesso nesta empreitada de ignorarmos um ao outro que eu quase esqueci que ela existia até o nosso primeiro ano do colegial. Houve um baile na escola e ela estava usando um vestido de festa rosa-escuro, justo e curto.

Neill fez um gesto com as mãos, como se procurasse as palavras certas.

— Eu nunca havia reparado que ela tinha seios. Certo dia, quando a vi entrando para a aula de ginástica, pensei "Meu Deus, Lacey Kensington tem peitos!". ― Ele riu, com amargura. ― Os rapazes de quinze anos não têm pensamentos muito poéticos. Bem, no tal baile eu a convidei para dançar, duas ou três vezes seguidas. Depois, levei-a para casa e, antes de ir embora, beijei-a.

Ele tornou a virar-se, mas seus olhos fixavam-se em algo para além de Anne, distantes.

— Não estou dizendo que estava apaixonado por ela, mas na semana seguinte acompanhei-a até a escola todos os dias. Era a primeira vez que fazia isso com uma garota. Lacey não era exatamente bonita, mas era divertida e, apesar de ter seios, gostava de esportes. Era como um sonho transformado em realidade, no que se refere a garotas.

— O que aconteceu com ela? ― Anne perguntou quando ele calou-se.

Neill desviou os olhos.

— Uma semana depois daquele baile o pai dela juntou toda a família no banheiro e matou-os com uma pistola automática. Lacey, os irmãos dela, a mãe. Ele matou até o cachorro. Depois, entrou no carro e foi embora. Já havia até guardado uma mala no carro.

— Oh, meu Deus... ― Anne pressionou a mão na boca, sentindo o estômago revirar. ― Por quê?

— Quando foi apanhado pela polícia, uns dois dias depois, ele nem sequer tentou negar. Aparentemente a esposa queria o divórcio e ele calculou que a pensão que teria de pagar a ela e aos filhos consumiria quase todo o seu salário. ― Os lábios de Neill contorceram-se num sorriso amargo. ― Foi uma simples questão de economia, acho. Eu estava em casa quando tudo aconteceu. Ouvi os tiros, mas não sabia o que eram. Mais tarde, vi os corpos sendo removidos, todos fechados em sacos plásticos. Não conseguia entender porque ele fizera uma coisa daquelas. Mesmo depois que ele foi preso e fiquei sabendo que não queria pagar a pensão para os filhos, achei que não era um motivo suficiente. Devia haver alguma outra coisa, algo que levara um homem de quarenta anos, sem nenhum registro de violência, a matar a mulher e os filhos e depois ir embora, como se nada disso tivesse importância. Este foi o tema do primeiro livro que escrevi.

— E descobriu o porquê?

Neill encolheu os ombros.

— Eu procurava por alguma lógica, até mesmo por uma insanidade, mas finalmente decidi que a única explicação é a existência de algo chamado "mal". Pode ser uma ideia antiquada, mas às vezes é impossível explicar certos atos.

Anne pensou em sua irmã, na sua própria necessidade desesperada de saber por quê, de entender. Esta era uma das coisas que tornava tudo tão difícil, o fato de que algo terrível acontecera sem que houvesse um motivo lógico.

— Anne? ― Neill esperou até que ela o olhasse. ― O que eu disse à sua mãe é verdade. Eu amo você.

Pela primeira vez desde a chegada de sua mãe, Anne sentiu os olhos arderem com as lágrimas. Balançou a cabeça e virou-se, pressionando os dedos na boca.

— Você acredita em mim? ― Ele não tocou-a, mas sua voz era insistente. ― Anne, você acredita que eu a amo?

— Não sei ― ela respondeu, afinal. ― Neste exato momento, não sei o que pensar. ― Com um enorme esforço, engoliu as lágrimas e olhou para ele. ― Por favor, Neill. Estou confusa demais. Preciso de tempo para... pensar em tudo isso.

Ele hesitou. Queria perguntar de quanto tempo ela precisaria. Queria abraçá-la e nunca mais soltá-la.

— Tudo bem, vou lhe dar todo o tempo que você precisar. Mas não vou embora, Anne. Vou ficar aqui mesmo, até que você esteja pronta para admitir que nós fomos feitos um para o outro.

Sem esperar por uma resposta, Neill virou-se e subiu as escadas. Quando retornou, momentos depois, estava completamente vestido. Anne permanecia onde ele a deixara. Parecia... ferida, ele pensou, sentindo a raiva dividida entre si mesmo e a mãe dela. Se Olívia merecia a maior parte da culpa era apenas porque não importava-se com o sofrimento que causara à filha.

— Você sabe onde me encontrar ― ele disse, parando ao lado dela.

Anne assentiu sem olhá-lo, e Neill foi invadido por uma espécie de terror. E se ela decidisse que ficaria melhor sem ele? Segurando-lhe o queixo, obrigou-a a encará-lo e pousou os lábios nos dela, beijando-a com imensa ternura. Ela não levantou as mãos para abraçá-lo, mas seus lábios pareceram querer colar-se aos dele, o que para ele foi um pequeno conforto.

— Não pense demais ― disse.

Ela não se moveu quando ele saiu. Ouviu seus passos na varanda, depois esperou pelo conhecido ranger do portão. Somente quando o barulho do motor do carro desapareceu na distância ela saiu do lugar.

Menos de uma hora, pensou, olhando no relógio um tanto surpresa. Menos de uma hora atrás ela estava fazendo o café e acalentando sonhos de um futuro que, apesar de ser vago, estava envolto em nuvens cor-de-rosa. Havia algo que Neill queria lhe dizer, e isso a incomodara, mas ele não teria feito amor com ela como fizera se estivesse prestes a comunicar que iria embora. Alguns homens poderiam agir assim, mas não ele. Embora não tivesse muita experiência com outros homens, ela sabia que Neill não faria isso. Então, qualquer que fosse o assunto sobre o qual ele queria falar, não devia ser muito importante.

E, de fato, não fora, ela pensava agora enquanto pegava o livro sobre a mesa. Não mesmo. Ele não viera à cidade para pesquisar sobre a morte de Brooke, e nem aproximara-se dela para obter informações da família. Sim, ele havia mentido a respeito da sua profissão, ou pelo menos a fizera acreditar que era menos do que a verdade, mas Anne achava que podia entender isso. Talvez o tivesse visto com outros olhos, se soubesse que era um escritor rico e famoso. Certamente teria se sentido menos à vontade com um autor de sucesso do que se sentira com um simples escritor freelance.

Então, qual era o problema?, perguntou-se. Por que não se atirara nos braços dele e confessara que o amava? Ele dissera que a amava, e ela acreditara. Então, por que ainda tinha medo?

Hesitante, abriu o livro na primeira página, sentou-se e começou a ler.

Anne sabia exatamente onde iria encontrar a mãe. Ela costumava passar as tardes de terça-feira fazendo arranjos de flores para a casa e, portanto, estaria na cozinha. Quando entrou pela porta da frente, subitamente ocorreu-lhe que sua mãe deveria ser uma mulher muito solitária. Ela jamais fizera nenhum esforço para adaptar-se à vida social local, nunca fizera amigos.

Antes da morte de Brooke, Anne lembrava-se de que as amigas de Olívia vinham de Atlanta para visitá-la, mas depois do assassinato, por algum motivo, as visitas começaram a diminuir até que cessaram completamente. Olhando para trás, ela perguntou-se se teria sido por escolha de sua mãe, ou se as antigas amigas não souberam como lidar com a enormidade de tal perda e, assim, distanciaram-se dela.

Olívia olhou para cima quando Anne entrou na cozinha, lançando-lhe um olhar que não revelava nada do que estava pensando. Muitas flores espalhavam-se no balcão à sua frente, rosas, lírios, e outras que Anne não soube identificar. Eram enviadas a ela toda semana, uma despesa enorme, e arrumadas em elegantes vasos por toda a casa. Lindas flores numa linda casa da qual ninguém, exceto sua mãe, desfrutava ou gostava.

— Achei mesmo que você viria ― Olívia falou, as mãos graciosas separando e ajeitando as flores.

— Liguei para o banco e disse que estava doente ― Anne falou. ― Estou com minhas férias atrasadas, portanto acho que ninguém vai se importar.

— Nem sei porque você se incomoda de trabalhar.

— Porque não quero passar os meus dias arrumando flores em vasos.

Olívia parou por um instante, mas não ergueu os olhos.

— Ele foi embora?

— Não. ― Anne deixou na mesa o livro que trouxera. ― Pedi um tempo para pensar, e ele concordou.

— Um tempo? ― Olívia arqueou a sobrancelha, em fria surpresa. ― Não posso imaginar porque você precisa de tempo. Aquele sujeito mentiu para você, usou-a.

Anne decidiu ignorar o comentário. Tamborilou os dedos no livro.

— Quando foi à minha casa hoje cedo, levando este livro, fez de propósito para me ferir?

— É claro que não. ― O tom era impaciente, de menosprezo. Conhecido, Anne pensou. Quantas vezes ouvira aquele mesmo tom de voz de sua mãe? ― Achei que você deveria saber qual é a verdadeira intenção daquele homem.

— Não pensou que eu poderia sofrer com isso? ― Anne indagou, curiosa.

— Eu sou sua mãe. É claro que pensei.

Olívia pegou uma rosa de caule longo, acrescentou-a ao arranjo no vaso e deu um passo para trás, a fim de observar o efeito. Satisfeita, retomou a tarefa.

— Por que estava tão determinada a me separar de Neill? Por que se deu ao trabalho de procurar pelo livro dele?

— Era evidente que ele não prestava. Um homem como aquele, chegando na cidade com uma motocicleta quebrada. Não era possível que tivesse algum... ― Olívia interrompeu-se, mas Anne não achou difícil terminar a frase.

— Algum dinheiro? ― Anne franziu a testa. ― Mas quando descobriu que ele tem dinheiro, ainda assim quis nos separar. Por quê?

— Ora, quando descobri o tipo de livros que ele escreve, concluí que era óbvio que ele estava apenas usando você. ― Olívia pegou outro vaso e passou a separar um novo maço de flores.

— Por que era óbvio?

Irritada, Olívia largou as flores e olhou para a filha.

— Porque, se não fosse por isso, o que um homem como aquele iria querer com você? ― Quando Anne encolheu-se, ela estalou a língua, exasperada. ― Não quero parecer maldosa, mas você há de admitir que não tem muito a oferecer para um homem tão viajado e experiente quanto ele. Você mal colocou os pés para fora de casa. E isso nada tem a ver com sua aparência, pois você é uma garota bem bonitinha. Não tão bela quanto... Bem, não é linda, mas tem um certo charme.

Não tão bela quanto Brooke, Anne pensou. Não tão bonita e interessante para atrair um homem como Neill. Porém, ela havia conquistado Neill, pensou com um súbito fluxo de orgulho.

— Neill disse que me ama ― ela falou, em voz baixa.

— Ora, é claro que disse. Os homens falam qualquer coisa para conseguir o que querem.

— Eu acredito nele.

— Imagino que esteja pensando que ele vai casar com você e levá-la daqui.

— Espero que sim ― Anne falou calmamente. ― Acho que sim. Se ele me pedir, eu vou. Você escolheu ficar aqui, mamãe. Você odiava este lugar, mas escolheu ficar aqui e ser infeliz, e deixar que todos soubessem o quanto era infeliz. Eu não odeio esta cidade, mas acho que poderia começar a odiar e não quero ficar como você. Não quero ser como você, mamãe, nunca.

Pegando o livro, Anne virou-se e saiu, deixando a mãe parada ali olhando para ela, pálida e aparentando cada ano de sua idade.

— Está procurando alguém?

Neill virou-se na porta da garagem e franziu a testa para David, que acabara de trocar o óleo de um carro antigo e inidentificável e agora esfregava as mãos com um pano embebido em removedor de graxa. O odor forte espalhava-se pelo ar.

— O quê?

— Esta é a quinta ou sexta vez que você vai olhar pela porta ― David salientou. ― Imaginei que estivesse esperando alguém.

— Não ― Neill respondeu, breve.

Era ridículo achar que o "tempo para pensar" de Anne fosse durar apenas algumas horas. Ele já havia decidido que teria de conformar-se em esperar pelo menos um ou dois dias. A não ser que enlouquecesse antes disso.

Ciente do olhar observador de David, aproximou-se do balcão e pegou uma ferramenta, analisando-a por um instante e tornando a deixá-la no lugar, inquieto. O que ela estaria pensando? Talvez devesse ter insistido para que ela falasse sobre o que estava sentindo. Talvez devesse ter-lhe oferecido mais explicações, desculpas mais intensas.

Olhou no relógio na parede dos fundos da oficina e perguntou-se se seria possível que tão pouco tempo tivesse passado desde a última vez em que olhara. Não eram nem quatro horas. Ainda teria de suportar várias horas até que o fim do dia, e depois uma noite interminável. Havia tentado trabalhar em seu livro, mas as palavras na tela do computador pareciam não fazer sentido. Agora, recostado no balcão, viu a sua moto que continuava encostada na mesma parede onde ficava o relógio.

— Você tem ideia quando as peças da bendita moto vão chegar? ― perguntou, aproveitando-se daquela distração.

David continuava limpando as mãos.

— As peças chegaram uns dez dias atrás ― ele disse, sem erguer os olhos. ― Eu já as instalei e saí para fazer um teste com a moto na semana passada. Parece que está tudo funcionando direito.

— Está pronta? ― Neill encarou-o, atônito.

— Parece que sim ― David respondeu calmamente.

— Eu... por que não me avisou? ― Neill olhou para a moto, e depois para David novamente. ― Pensei que ainda estivéssemos esperando as peças, mas parece que você as recebeu depois de uns dois dias!

— Tenho um amigo na Califórnia que é especialista nestas motocicletas Indian ― David admitiu. ― Liguei para ele no dia seguinte em que você a trouxe para cá, e ele me enviou tudo o que eu precisava na mesma semana. ― David acabou de limpar as mãos e atirou o trapo na direção do cesto de lixo. Apoiando os dedos nos bolsos da calça, olhou para Neill com um ar pensativo. ― Eu ia lhe dizer, mas então vi você e Anne almoçando no Luanne. Lembra-se disso?

Espantado, Neill assentiu.

— Lembro-me, sim.

— Entrei no restaurante e vi que ela estava rindo. ― David balançou a cabeça. ― Eu a conheço há anos e nunca a vi rindo daquela maneira. Nunca a tinha visto tão... juvenil. E, pelo jeito com que você sorria para ela, calculei que a atração era mútua.

— E então me disse que demoraria duas semanas para consertar a moto, apenas para que eu ficasse na cidade? ― Neill franziu a testa e considerou a ideia de David estar bancando o "casamenteiro". ― Você não parece nada com uma fada-madrinha.

— E nem me sinto assim. ― David esfregou a ponta do nariz, um tanto embaraçado. ― Na verdade, agi por impulso e depois fiquei me sentindo como um idiota. ― Enviou um olhar indagador para Neill. ― Imagino que você já esteja sabendo tudo sobre Brooke.

— Sei, sim. Sei o que aconteceu com ela. E sei o que significou para Anne... pelo menos uma parte.

— Eu era namorado de Brooke. Chegamos até a falar em casamento ― David falou, estreitando os olhos enquanto se lembrava. ― Mas não sei se teríamos chegado a tanto. ― Encolheu os ombros, afastando as recordações. ― Eu fiquei muito abalado depois da morte dela. A cidade inteira ficou abalada. Este tipo de coisa não acontece por aqui, nem com pessoas que a gente conhece.

— Eu sei ― Neill murmurou, pensando na garota de cabelos castanhos em seu primeiro vestido de festa. ― E muito difícil de se aceitar.

— Todos queriam fazer alguma coisa, ajudar de alguma maneira. Mas era impossível alguém se aproximar da Sra. Moore, e o Dr. Moore praticamente enterrou-se dentro de si mesmo. Jack saiu da cidade um mês depois do assassinato, voltou para a faculdade. Porém, havia Anne. Ela era apenas uma criança, magrinha, de olhos enormes. Imagino que muitas pessoas pensaram que, se pudessem cuidar de Anne, estariam compensando o fato de não terem cuidado de Brooke. Assim, todo mundo passou a olhar por ela. Quando Anne estava no colegial, não creio que houvesse um só rapaz que pensasse em "tirar uma casquinha" com ela. Ela não teve namorados, não foi para a faculdade. Era como se fosse...

— A Bela Adormecida ― Neill murmurou, lembrando-se da sua impressão inicial.

— É isso. ― David bateu a ponta da bota num pneu que estava no chão. ― A Bela Adormecida. Não que fosse infeliz. Apenas não estava realmente acordada para a vida. Então, eu a vi rindo com você e pensei... Diabos, não sei o que pensei. ― Envergonhado, ele enfiou as mãos nos bolsos. ― Por isso não lhe contei que a moto estava pronta e...

— Esperou que eu ficasse por aqui o tempo suficiente para despertá-la? ― Neill sugeriu. A qualquer minuto iria dar-se conta do quanto estava furioso. Assim que a sensação de gratidão se dissipasse.

Começou a falar quando viu o olhar de David desviar-se para a porta. Neill sabia quem era antes mesmo de virar-se e vê-la parada ali, na soleira. Era quase a mesma imagem que tivera na primeira vez em que a vira, o sol batendo atrás dela, o rosto na sombra.

David falou alguma coisa sobre um telefonema e desapareceu no escritório, deixando-os a sós. Neill mal reparou em seu desaparecimento. Anne estava usando mais um daqueles simples vestidinhos que deixavam-no louco. Este era cor-de-rosa, com uma saia rodada que deixava as pernas à mostra. Estava com os cabelos soltos e ele teve de cerrar os punhos para impedir-se de tocá-los. De tocá-la.

— Eu ia para o motel, mas vi o seu carro... o carro de David parado lá fora, então calculei que você estivesse aqui. ― Anne deu um passo para dentro da oficina e parou, cruzando as mãos. ― Eu... li um trecho do seu livro. Você realmente conseguiu fazer com que eu os visse... Lacey e a família dela, quero dizer. Pude entender o que você fez por eles, como os tornou reais e, talvez, impediu que as pessoas os esquecessem. Não sei se me sinto completamente... à vontade com a ideia de se desencavar todo o sofrimento, mas acho que, de algum modo, pode ser muito útil.

— Não tenho mais planos de continuar escrevendo sobre este tipo de assunto ― Neill falou, sentindo o peso no peito começar a dissipar-se. Tudo ficaria bem, pensou. Era estranho que tudo terminasse ali, onde ele a vira pela primeira vez. Não "terminasse", corrigiu-se. Tudo estava apenas começando. ― Parece que mudei muito, desde que cheguei nesta cidade. De muitas formas.

Anne assentiu. Tinham havido tantas mudanças em sua vida que ela demorara um pouco para dar-se conta de que a vida dele também mudara. Lançou um olhar para o rosto dele, mas logo desviou-o. Queria que ele a abraçasse e dissesse que a amava, mas fora ela quem lhe pedira um tempo e sabia que Neill não iria apressá-la. Teria de dar aquele passo sozinha.

— Fui falar com minha mãe. ― Limpou a garganta e fitou-o. ― Disse a ela que vou embora. Com você. Eu estava certa?

Houve um instante de silêncio, e depois Neill começou a rir, tomando-a nos braços e abraçando-a com tanta força que ela mal podia respirar.

— Pois acontece que eu tenho uma versão atual de um cavalo branco prontinha para partir ― ele disse. ― Mas está quente demais para vestir uma armadura.

— Uma armadura? ― Anne perguntou, confusa.

— Não importa. ― Ele tornou a rir e mergulhou as mãos nos cabelos dela, erguendo-lhe o rosto para que pudesse olhá-la. ― Nenhum Príncipe Encantado jamais teve tanta sorte quanto eu.

 

                                                                               Dallas Schuze 

 

 

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