Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CHÃO DOS LOBOS / Dalcídio Jurandir
CHÃO DOS LOBOS / Dalcídio Jurandir

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

  

Sempre ausente do Ginásio, às aulas não faltava. Sem­pre em Cachoeira, aqui escondido. Da José Pio, Ana, jaquei­ra, da velha avó, não sabia, deles tão perto, por isso mesmo mais separado. Maré vem, maré vai, três linhas para mãe: me mande ao menos o Dicionário, aquele, na mochila do búfalo. Sem resposta.
Pois sigo na Guilherme: surpreender no chalé o silên­cio e os ratos, entra pelos fundos, abre a dispensa, reen­contra dentro da garrafa a borboleta queimada há anos, está na saleta, o Major folheia o catálogo, saltam do álbum as francesas nuas e embalam a rede.
Ficou na escadinha da Port Of, vendo a lancha sair. Vendo a mãe, à noite, guiada pela acuraua, atrás de Ma­ridonha pelo campo, de bruços na beira-rio pescando o filho afogado. Aquela conversação na escada do chalé — a história do lilás, o pescador obrigado pelos fazendeiros a desenterrar o defunto, irmão deles, te gruda na morte dele, na morte que fizeste... — distanciava-se. Agora ouve a mãe em Muaná, entre os miritizeiros do avô, sentada nas pedras, no limo, nas lendas do Araquiçaua. Longe o som da moringa na camarinha de São Pedro, atravessando a baía. Do barco, que se afundava na memória, subia o rosto da mãe, ao som da moringa as águas serenavam.
Chover não passava. O céu aquele chumbo. Bondes carregados de mau humor, carvão e paneiro, de retardatá­rios bocejando. A que rumo vai o rabecão da Santa Casa? O galego, tabuleiro na cabeça:
Via pela cidade uma apressada gulodice, rápidos co­medores de pupunha e camarão frito, mingaus bebidos num repente, todo o arroz doce numa colherada, e cedo esvaziam açougues, aparadores de peixe, panelas de munguzá e caruru no Mercado de Ferro. A manhã, na feira da praia, se cobria de vinagreira, maxixe e cabelo de mulher. Içando os panos molhados, as canoas se enxugavam. Parda uma, subia a branca, azul aquela, esta vermelha alta, velame em cima, desabrochavam na maré seca, velas em girassol. Lá fora o rio passado a ferro. Na praia, as amassadeiras roxeavam mão e beiço provando açaí nos paneiros, donas no exigir o mais bom e a menos preço, os vendedores remancheavam.
Queria ver no rosto das amassadeiras e dos sobrados o reflexo do velame ao sol. Algumas janelas. Algum azulejo, certos semblantes. Aqui no aparador do Dr. Raiz, que raiz, erva, grude, miolo ou dente de bicho, lhe servia de remédio ou lhe guiava o passo? E que passo? Esse, do velho aposen­tado, resmungando: não é mais aquele tempo. Hoje só dá caranguejo magro. Belém? Belém? Aquele tempo? Ah! Era cada caranguejo! Cada um gordo! Todo esse Mercado de Ferro de hoje não vale a unha de um daqueles caranguejos tão vivos da Vigia, vivões! Que me diz, Dr. Raiz?

Junto às proas, Alfredo come a posta de peixe frito do tabuleiro. Nisto, no ombro o braço nu pitiando a guri­juba. O caboclo, calção lá embaixo, casquento de sol, o mu­que tatuado, lhe estende a mão cheia de farinha:
— Suco! Não me coma assim tão escoteiro, perde a sa­borosidade, estraga é o peixe, assim, não, meu camarado. Apare esse pingo aqui da mea mão, não repare o tico. Já o senhor aí sem um cuí, um bago...
O caboclo lhe vira a farinha na palma da mão, a mu­nheca suando, suando a tatuagem, o bonde passa, o caboclo lambendo os beiços, no pano de fundo das velas içadas. Um giro, corre a saltar pelo cordame, enfia-se num toldo, agora na cana do leme, devorando a meia melancia como se a tivesse ganho num campeonato.
Alfredo jogou a farinha na boca à moda canoeira. O gosto que deu no peixe, no comer assim, já de frente para o bonde! Também lambia os beiços. De pé sobre a cana do leme, o tripulante misturava na melancia a cor das velas, o sol nos mastros, aquele veterano sossego dos telhados e tudo comeu, muito inocente.
Corre a doca e a praia, corre entre os jerimuns e ven­dedeiras de cheiro, abriga-se entre as velas que parecem acesas. Esperou: na canoa que baixou o pano, o tio che­gando? O tio nunca chegava. Já a maré pelos igarapés de Belém abria, pelo fundo, a palma da mão e embalava a cidade.
Bagé adentro, parou defronte do casarão de barra des­cascada. No beiral murcho, o urubu de asa aberta. O Orfa­nato. Bateu. Lá de cima, a visagem puxa o cordão da porta. O que ele quis dizer, não disse (Irmã, a senhora conheceu uma que aqui morou, todo dia gramando palmatória, horas de joelho, uma por nome Ana? De tanto apanhar bolo, escarrou, com perdão da palavra, o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo?), a porta estronda-lhe na cara, se dá conta:
Lá está o Arsenal de Marinha guardando as freiras. Melhor entrarmos nesta passagem onde só é lavação de roupa e serragem. Salta entre os lençóis estendidos, retrocede, acer­tando o passo com o silêncio e o sono destes sobradinhos beatos. Que será que até sentou na calçada do Carmo? É pelo sangue, aqui entranhado na laje, daquelas guerras?
Puxa pelo barbante a folha do portão: no encharcado, o correr de quartinhos de madeira com o magro alpen­dre, é a estância. Aí, no 2, a vinte o aluguel, guardou-se.
Arma a rede, embala-se, telhados, velas, lençóis se mis­turam no cochilo. A laje, menos a laje, aquele sangue, pesava-lhe. A porta do Orfanato atroava. À sua rede, aqui no tão abafado, chegavam os sinos de São Raimundo, o [8] bate-|boca do casal português encarregado da estância, e o baru­lho, aqui bem junto, bem saboreado, no banheiro de zinco, rente da parede. A vizinha se assustando: Mãe da Miseri­córdia, um tamanho cururu! E este grilo! Ah, gelume d’água! chamando a atenção do mundo para o seu banho. E tudo isso embalava mais a rede, fazia correr a tarde; apitava as seis, Folha!, passava o jornaleiro.
Deste jornal escorre um fio de remota ou absurda notí­cia de Calcutá ou do posto policial do nosso bairro. Quem dá notícia daquele instante da farinha ao pé do tabuleiro e do velame ao sol? O jornal sujava os dedos. Estaria Ro­dolfo, no chalé, compondo o Cachoeira Nova? Neste, nunca impresso por falta de papel, o tipógrafo registra a vida de Cachoeira que ele faz de conta, acontecimentos que tão sonhava, logo distribui o sonho pelas caixas; desfeita a composição, volta a compor, os passarinhos pela varanda, como repórteres, entrando e saindo.
Mas este aqui na mão, a duzentos réis, responde a esta informe indagação de tudo? De todo aquele mar lá fora, esta escuminha de tinta, esta bolha de tempo. As cartoman­tes se anunciavam. Também o Porca Prenha? No novo escri­tório? E este piano aqui em leilão? O compacto obituário. Como morre esta cidade! Chega de Guamá, mas sem aqueles bons bandoleiros, a lancha Antonina. O jornaleiro atira o vespertino na sala do major reformado que pula da sesta, café! pede aos berros, engolindo o noticiário. Da outra ja­nela, desce a cadeira de vime para a calçada e logo na porta, pijama, calva e charutinho, o guarda da Saúde, os óculos pela vizinhança, um salamaleque para a senhora que passa, o riso desdentado e feliz, coçando o pé na chinela, agora estira-se no vime com o privilégio de abrir a folha, sua exclusividade, seu regalo, tudo no mundo só acontecia para o seu Ribeiro saber e comentar, um pouco antes do aperi­tivo e da janta. Vendo o Alfredo, que lhe fazia um aceno, levantou-se num festivo cumprimento, jornal em punho, o sotaque de Mossoró.
— Boa tarde, cavalheiro. Será que pela boquinha da noite temos chuva? É que é a palestra do General Diocle­ciano. Às oito. Tenho de ouvi-lo. Já leu o valoroso vesper­tino? Então? Domingo em Marituba, na nossa caravana? Chegue-se ao nosso ideal excursionista, ao nosso Garim­peiro. Um banho naquele igarapé, concidadão, lava os re­folhos. A água lá, vê-se a areia do fundo. Também assim voltamos de Marituba de alma transparente, creia. Um pouco de plena natureza!
Voltou ao vime, senhor do mundo, e Alfredo, agora, olha é para a D. Violante, da Cachoeira, na máquina de cos­tura, catando nos jornais trazidos pela Lobato, uma catás­trofe, a derrubada de um trono, a punhalada num grande da República, com um ora bolas! se não via nada, afasta o jornal, virando a máquina de fazer calça de homem.
D. Violante! Agora recorda: Rapazinho, teu pai já te deu pra ler o Carlos Magno? Não? Pois tu não sabes que dois filhos meus têm nome tirado do livro?
Aqui, no jornal e nas chinelas, seu Ribeiro mergulhava. Então, entreabrindo as rótulas, na casa de lado, aparecia, furtiva. a cabeça da filha-do-italiano, só o cabeça. só um repente nada mais. E era tudo. A casa sempre num silêncio, trancada. Sabia-se do gramofone no consolo, o reposteiro no corredor, o cão, enorme, mudo, se amontoava no sofá. Que a moça só era ali toda hora, atrás da veneziana, à espreita, Alfredo desconfiava. Na rua, passava com bandós, toda-toda abotoada, rosto atrás do leque, alta, fugidia. Alfredo se­guia-lhe o passo, o perfume, uma música, uma luz da Itália entrava pela estância, embalava-lhe a rede. Uma noite, na casa dela, soou, fanhoso, o gramofone, logo parou. Atrás da veneziana, na sala apagada, a moça espiava, Só sair na rua, ganhava aquela altura, sem ver e ouvir nada, sem dar bola a ninguém, não por soberbia mas por nunca se dar conta, muito italiana. Ali, nas rótulas, dobrava-se, atenta, ávida dos rumores e movimentos da rua, desabotoada, [10] des|calça. Seu Ribeiro, ao vê-la na rua, vergava-se a dar-lhe passagem, sussurrando para Alfredo:
— A nossa madona, a nossa madona.
Alfredo, atrás dela, seguia para a Itália. Seu Ribeiro advertia-o:
— Concidadão! Concidadão!
Como ciumento, no risco de saber que a moça, lá um dia, quem sabe? por distração ou engano, desse pelo rapaz, respondendo-lhe ao boa tarde, O viajante viajava pela cal­çada, roçando na janela, esperando ver ao menos entre as rótulas a pestana da espiona, ou sentir-lhe o respirar. Só uma vez lhe ouviu a voz, surda, ríspida, não sabia se um tanto ressentida ou habituada àquela sala, àquela espreita, àquele cão no sofá. Alfredo passou três vezes, três vezes na esquina, sabendo-se espiado. A dama ali dentro, na casa adormecida, os incessantes olhos clandestinos.
Alfredo entrava. Pelo encharcado os inquilinos se ser­viam da mesma torneira e do mesmo banheiro onde Alfredo despejava a lata cheia na velha tina, tomando banho o mais que depressa senão vazava tudo. E se via, muito afobado, surpreendido pela vidente da veneziana, até aqui vem o olhar da curiosa? Lá da sala fechada olhando o mais miúdo de todos nós? À roda do banheiro e da torneira, as crianças merendavam esta e aquela sobra de sabão, rolam sabugo de milho; de lama e do lixo faziam brinquedos, armas para briga e suas asas de anjo. Os cachorros disputavam prato cuia panela que lambiam por teima e era apanhar guri distraído lhe tiravam a ração. Na ponta das estacas, o urubu tomava nota. Aos fundos, num aguaçal grosso, atolava-se o Não-Se-Assuste, renque de palhoças onde a mãe do Ferri­nho, com aquele montão de roupas, o seu primeiro sangue dentro da tina cuspiu. E estes desconhecidos na soleira, ca­lados, no visgo que o ar trazia depois de chuva? Ali enco­lhidos, respiravam calados, que nem moscas no batente de chão, destilando sonolência. A lama entrava pelas portas. Ana, D. Dudu, o sótão da moura, a jaqueira, a mãe errante [11] no campo, a moça atrás da veneziana, coavam suas som­bras no esverdinhado desta poça d’água. Batia na porta o gringo, ruivo, regougante, vendendo quadros de santo a pres­tação.
— Se me trouxer um daquela italiana, compro.
— Que santa italiana, senhorr, que santa italiana, senhorrr?
— Da casa do lado. Do 142. Depressa. Compro.
Corriam rifas, vinha o bicho que deu, o rabecão veio cobrar um defunto, também saiu o anjo, um morre-não-mor­re muitos meses, que a solteirona, a D. Sebastiana dos Pra­zeres, criava.
— Já posso ir depois bem sossegada. Nossa Senhora me escutou. Agora ela te leva. Também tu meu não eras. Do pecado foste filho, gerado no erro foste. Faz muito tempo que te dei a ela. Pode ir, meu filho.
A voz pingava no silêncio, no calor, no zumbido lá fora das meninas que queriam carregar o anjo. Mas Alfredo se adianta, apanha o caixão como um brinquedo, carregando aquele de Maninha, que só ele queria carregar pelo campo, entre as vacas, sozinho no cemitério a abrir a cova com as mãos e assim guardar a irmã como guardou as cinzas da borboleta. A seu lado as meninas zumbiam desaprovação e raiva: quem mandou que ele... quem pediu? Ser visto pela moça da veneziana, carregando o anjo, Alfredo tam­bém queria. E olhou para a tal janela. Fechada. Por certo a abelhuda espiava. Voltou à barraca da D. Sebastiana dos Prazeres:
— Me separa por lá um cantinho pra mim, meu filho, nem que seja no chão que aqui neste dos Lobos já tudo é por demais incômodo.
Alfredo ouvia era a voz da nhá Lucíola, aquelas noites:
ela até que desejava a morte dele, os dois levados por Nossa Senhora. Então lá em cima, aí, sim, tua mãe sou, meu filho és, certa de que te pari.
Mal saiu o anjo, entra o investigador a arrancar lá de dentro do Não-Se-Assuste um rapazinho ladrão que trazia no pescoço cruz, rosário e várias orações no bolso contra cadeia e bala. Tem licença dos santos, autorizado por eles a roubar, resmungou o encarregado da estância; voltavam as mulheres do mercadinho trazendo a piramutaba da vira­ção, um quilo de “mulher-ingrata”, já meio fedida. E nem uma vez entrou, por milagre, a cabeça no portão, nem um só momento a sem-nome da veneziana. Agora é a velha do outro sábado, chapéu de sol cobrindo a imagem que carre­gava: Esmolinha pro São Miguel. Esmolinha por São Miguel. Estância e Não-Se-Assuste se benziam sem pingar na mão da pedinte um mel coado. A velha, na rua, virava-se para o portão: São Miguel, meu São Miguelzinho, me façazinho isto pra mim, vos rogo, me jogue todos esses enjeitados na­quele caldeirão, já-já, me abra aí debaixo da bunda deles aquela goelona fervendo. Alfredo seguia a velha que parava na janela da italiana, e dois dedos alvos por cima da rótula, ariscos, deixavam cair na mão da outra a moedinha.
Pois bem ao pé do portão, um lunfa correndo não tomou o São Miguel da velha? Veio varando o Não-Se-Assuste, como, onde se escondeu, ninguém soube. O soldado de po­lícia, com a velha atrás, bate as palhoças, uma a uma, as lavadeiras num vozerio: Não tinha nem um ladrão na casa delas. Nem um São Miguel nem dentro dos baús nem na privada. Só se por dentro do nosso peito, debaixo da nossa saia! O ladrão era o próprio santo, arre!, exemplou a bruxa. Todo quarteirão varejado, invadido o Não-Se-Assuste. De lá, de onde espiava, a moça da veneziana só espiando, e via tudo. Ou o ladrão, entrando pelo telhado, foi depor o São Miguel aos pés dela? Mal saiu o soldado e a velha, o surdo alarma: — Se escondam... o senhorio do Não-Se-Assuste.
— Por conta dos atrasados arrecado já-já essa rouparia toda aí da corda e do quarador! Onde estão as lavadeiras? Mando o Dr. Viriato requerer o despejo! Apareçam as lava­deiras!
Ao pé da bica, guarda-sol aberto, o senhorio esperava.
— O Dr. Viriato, é o Dr. Viriatinho? — perguntou Al­fredo, examinando aquela figura azinhavrada, de guarda-sol aberto.
— É, é o Dr. Viriatinho por alcunha o Porca Prenha, o meu advogado.
— O menino, Nossa Senhora levou, seu Batista, tenha uns diazinhos mais de santa paciência.
Era a D. Sebastiana dos Prazeres pondo a cabeça de fora. A vizinha lhe varria a sala.
— Pois tome dois mil réis. Ponha meu nome na lista da subscrição do enterro. Será mais um anjo por nós lá nas alturas, sim. E a senhora, D. Sebastiana, os dois meses que atrasou, pra quando?
— O tempo que eu possa sair daqui seguindo o anjo, seu Batista. Espere só um tempinho que logo o senhor ocupa o que é do senhor, o que é seu, seu é, sua posse, isso não desconheço. O alheio é o alheio, é a lei. Mas só espere o pouquinho que me falta pra juntar o pé. Capaz até do meu espírito ir deixar a chave, a chave, não, que não tem, o japá com que fecho a porta, deixar bem embaixo de sua rede.
— Rede, não, D. Sebastiana. A conselho médico, durmo em cama.
— Então, na sua cama.
— Olhe que um despejo pela Vara da Justiça não é uma folia. Aquele Dr. Viriato nisso é mais que uma fera. Duvi­dou, se apropria das roupas. Não sou eu, é o meu advogado. Ó lavadeiras! E eu pago a taxa aos Lobos, que isto é chão dos Lobos, por lei antiga do Rei de Portugal.
De guarda-sol aberto, o senhorio foi na porta de D. Se­bastiana, fez cair na mão dela duas moedas de dez tostões.
— Nossa Senhora que lhe acrescente.
— Os dois meses, D. Sebastiana, pra quando?
Já não lhe disse, seu Batista? O anjo já não foi na frente escolher e marcar o meu cantinho?
— E as lavadeiras? Duvidou, duvidou, o meu doutor manda fechar a água. Tranca a água, tranca a roupa. As lavadeiras, aonde andam? Pessoal parece que nunca viu a Vara da Justiça. Tranca a água. Onde estão as lavadeiras?
D. Sebastiana agora só dizia: — Ah, agora é... ah, agora é...
Alfredo batendo, ensaboando, torcendo, não as rou­pas mas seus espantos, seus temores, seus silêncios, sua ronda pela janela da espiona. Vem e vai, folheando o Atlas, é o lente bêbado: Singramos, agora, os mares da Hélade. Alfredo se lembrava do seu Antonino Emiliano abrindo o casco do caranguejo para daí tirar a Vênus que não era senão D. Ce­leste desembarcando do baile no Trombetas. Subia no alpendre o agente de seguros e de aparelhos contra surdez:
— Aqui dou com o nariz na porta. Minha freguesia é a outra, bem sei. Mas sempre me condói, gostaria de fazer um seguro aí, aí que é o que tem de mais inseguro nesta cidade. Quanto aos aparelhos de surdez então é bater debalde. Aqui? Vou para São Jerônimo, Nazaré, Serzedelo, o comércio... É que a maioria dos ricos surdos-mudos são.
Também subia no alpendre a mocinha vesga, um antigo anjo de procissão de São Raimundo, de fita na testa:
— Eu, se tal pudesse, um dia o que só criava no meu quintal? Só-só borboleta. Vender as enfiadas no vapor inglês. Borboletas de raça. E tua roupa, quem lava? Diz depressa, quem lava?
Demorava sobre Alfredo os olhos zanoios, meio esver­deados, sempre olhavam a outra coisa, ou parecia a Alfredo que ele era sempre este e outro no olhar dela, qual dos dois era ou não, nem um nem outro? Um poder, esse que eu queria, o de criar borboleta. Olhava como se nunca se olhasse no espelho, nunca soubesse de seus olhos, deles sem­pre muito satisfeita, ou escondia? Mostrava a unha podre.
— Foi um cobreiro mas já secou. Pode espremer que não sai mais matéria. E tua roupa, quem lava?
Ia para a tina, entrava pela noite, lavando, incessante na sombra. Alfredo, então, fazia cair aos pés da mirolha um quintal de borboletas.
— Boa noite, seu Alfredo, ora me descubra um santo medicamento pra esta minha esipra, me estude um medi­camento.
A D. Fausta, debaixo do braço a pasta das valsas, tocava piano no cinema São João durante duas sessões.
— Nem o Dr. Raiz, D. Fausta, corta a esipra?
— Nem, meu filho, nem. E no que me sento no cinema e vou tocando, meu filho, então que é doição.
— Mas nem o Dr. Raiz?
— Ontem na fita do Chico Bola, eu, sabe Deus como tocando e gemendo, me via debaixo daquela gargalhada geral. Eu ardendo de dor acompanhando a comédia. Até numa pas­sagem quando pensava que eu ia rir, gemi, tirei a mão do piano...
— Valsa?
— Berravam por um repinicado. Assobiavam, raspavam o cimento. Platéia bem baixa aquela, seu Alfredo. Também não é qualquer um que aprecia piano.
— E o seu piano, D. Fausta?
— Meu? O meu? Era. Vendi ao dono do cinema. Foi numa precisão, meu consolo é tocando nele este resto da vida. Está é um tanto desafinado.
— Conhece aquele alemão...
— O dono do cinema não chama... Deixe indo assim mesmo desafinado, D. Fausta, pra quem é, bacalhau basta, ele me diz. Está que dá pena, uma lata velha. Coitado. Passei a minha esipra nele.
— A senhora quer, eu consulto o Dr. Raiz lá no Mer­cado.
— Não carece, meu filho. Já não espero o milagre.
Alfredo, atrás do milagre, vai na Ponte do Galo.
— Tu não és o Biá, o filho do finado Sabino lá da Usina? Tu não és o Biá?
— És o Alfredo do Major?
Sabino, o maquinista, o foguista, o eletricista da luz de Cachoeira, quando tinha luz. Um dia o dínamo parou, lama entupia os canos, a usinazinha a lenha, adeus. Luz so era das seis às oito, apagou-se a vila, um ano de escuridão, guerra na Europa, de querosene se contavam as gotas e luz entre o geral dos pobres era candeia de azeite de andiroba ou luar. Todos os dias ia comprar, ou trazia fiado, o meio quartilho no Delfim Ruela. A garrafa no dedo por um barbante. O carocinho na palma de mão iluminava o mundo. Para a lamparina, o farol na varanda, o candeeiro da saleta, bastava aquele meio quartilho chorado. Vinha a Rita da Siá Pureza, com um vidro, que foi de óleo de rícino:
— D. Amélia, mamãe mandou dizer, se a senhora pode. que a senhora emprestezinho do seu querosene um pingo, que logo que o Amâncio chegue da tarrafeação lhe traz um peixe.
Aqui no chalé: Diminui essa luz, menino! Lá fora, já nem se via mais o outrora poste que dava choque nos meni­nos, a vila no escuro, o carocinho no escuro, o Brasil no escuro, a guerra no escuro, no escuro agoirava a matinta­perera. Meio quartilho, quando tinha, era o que cabia ao chalé. Nas casas de baixo (casas! — palhoças de chão e taboca), uma e outra candeia com a velinha de bubuia no azeite, luz tão pobre e hoje para Alfredo tão escurinha como esse Biá do Sabino, aqui por acaso na Ponte do Galo. Adian­te o rio passava no escuro, ou é ainda muito Brasil na escuri­dão, a aula de latim, o pingo de querosene, a mãe levando a lamparina para alumiar um momento de agonia do filho da D. Porcina?
— Biá, tu te lembras daquela tua escola? A professora: Meninos, o Brasil é muito, muito, muito rico. Tem riquezas colossais. E tu: Professora, que é colossais? A mestra: Mas menino! E o nosso ouro e o nosso café e o nosso Conselhei­ro Ruy Barbosa? Escreva no quadro.
— Mas, professora, e o giz?
— Então no caderno: o Brasil...
— Nem um tico de papel que dirá caderno, professora.
— Tome papel, escreva a lápis.
— Lápis?
Que é que tinha naquela escola? O Inspetor chegava. A professora com aquela cara de quem sempre jejuava, vexada, gaguejando:
— Inspetor, nem unzinho material escolar? Estou sem um toco de giz.
— Providenciaremos, providenciaremos. Já decoraram o hino?
E a mestra voltava a ensinar que o Brasil... Vamos decorar o hino, criançada. Os meninos cabeceavam, sequi­nhos, ou roíam seu torrão de terra, a ponta da caneta, muitos vindo de longe, remando, do de comer só o ar do rio, só, sem um torrão de açúcar, um chibé. As letras vira­vam aquela rosca no balcão, o pão na canoa ligeira, a fari­nha pesando na balança do Delfim, cuspiam. Não cuspam no chão, mal educados! Cantem. Nossa terra tem mais flores. A professora: Vamos, meninos. Biá voltava, remando, apa­nhava pelo rio algum taperebá que ia roendo, roendo até chegar no jirau da barraca onde o periquito lhe beliscava o dedo. Em casa o pau de lenha à espera do aracu que o pai há de trazer — peixe anda arisco, arisco. Veio a mãe, amarela, seco e solto o cabelo, um trapo em cima da pele, verme até os olhos.
— Mamãe, por que diz que o Brasil é tão rico e a gente...
Perturbou-se, a mãe ralhou: Abom! O periquito gritava.
Alfredo abraçou o conterrâneo.
— Tu te lembras, Biá? Foi, ou não, assim? E agora Biá?
— Me ajeito na boca de uma caldeira, em Val-de-Cans. Aprendiz. E tu?
— Estou lá.
— Lá onde?
— Ah, rapaz, num tal de Ginásio. E tu, ganhas?
— Aprendiz tu também nessa tua oficina?
— Não, não, Biá. Dizer que aprendo? Adeus. Dá lem­brança. Ah, tu te lembras do Raimundinho? Sim, quedê ele?
Raimundinho. Pretinho, cabeça de coco, vendia os pastéis da mãe da professora. Pela manhã, estudava. Que cabeça para os números!
— Raimundo, você tem é queda para os cálculos da matemática. É taco nas contas, número é contigo, não?
— Ah, meu camarada, pudesse... Pudesse, e este seu criadinho aqui ia era ser um da engenharia.
— E então?
— Ouvi falar assim por alto, soprou aqui pelo meu ouvi­do que tem lá no Rio de Janeiro uma escola por nome Poli­técnica.
Disse o nome, até assustou-se, ficou roendo a unha, melhor tratar de vender os pastéis. Era chegar hora da tabua­da, e Raimundinho ficava sozinho, dono dos números, as quatro operações na ponta da língua. Traçava a fração com um desembaraço! E tão maneiro com os sinais, com os pro­blemas, o olhar comendo os algarismos. No arraial, em dezembro ficava ao pé do xarão de pastéis, encolhidinho, mais pretinho, talvez mergulhado nas mil numerações. E vender bem pastéis da mãe da professora, isso, também sabia. Os pastéis mereciam.
— Aí na Politécnica, Raimundinho?
Os colegas vinham namorar o charão, comer o cheiro dos pastéis. O pasteleiro acudia:
— Tomem unzinho só, se repartam. A azeitona é minha.
A professora falava:
— Pago promessa à Nossa Senhora da Conceição para que você, Raimundinho, possa ir estudar ao menos na Fênix Caixeiral, lá na cidade, o ofício de guarda-livros.
Uma tarde, Raimundinho via chegar na lancha um senhor por nome o Deputado Federal, o doutor Bento.
— Esse aí, Raimundinho, estudou na Politécnica. Sabe quantas reses a família dele tem nas sete fazendas do Alto Arari?
Raimundinho nem sabia, essa aritmética não sabia. Por isso mesmo segue pros rios acima num pontão velho. reco­lhendo cabos, ali é a sua Politécnica.
— Até um dia, Biá.
Da Ponte do Galo ao Valha-me Deus, depois Pedreira:
passa pelo posto onde as serpentes desovam e há uma amare­lidão geral.
— Ara me deixa meter a mão no meio das cobras...
— Pois não, à vontade. Sem cerimônia. Cobras, lambam a mão dele.
Fede a calomelano. Espia a baixa de onde os sapos inda­gam: tens notícia da tua mãe? O Ginásio é a tua oficina?
Agora nesta chuva o subúrbio se sobrecarrega. Que faço, nesta chuva, destes livros, desta idade? Parece que ali na barraca 46 tem um vivente batendo o pacau.
— Já — gritou a vizinha.
— Já — respondeu a outra, carregando no colo o me­nino com guariba.
Aqui na baixa é o caldeirão das febres. Onde estás, Guamá, com teus cabanos? Na entrada da Pedreira, a faixa do aniversário:
VIVA O SENADOR FACIOLA, O PAI DOS POBRES
Embaixo, uns curumins nuzinhos, só te olham. Um estica o dedo para o céu, para o arco-da-velha.
— Me dá do teu um tostão? Me dá do teu?
Do teu, onde, onde? Que fim levaram aqueles noivos guardados pela Mãe Ciana, levados pelo seu Lício, na véspe­ra do Círio?
Voltarão?
Um dia?
Com seus filhos, muitos, atulhando o trem, eivém o trem, é agora, é agora, soltam o trem porta dentro do Palácio? Ó cidade do Senador Faciola!
O remédio é chegar ao quarto, sentir-se espiado pela ragazza da veneziana. Bordeja pela calçada.
Mas, e essa menina, na porta desta casa? O bichinho sem um sangue no beiço.
— Menina, te conheço, tu não és a irmã da Odaléa?
Séria, tão bem penteada, repentina, a Odaléa diante dele, a Odaléa de Muaná, a prima do lado branco.
— Estamos aqui nesta casa de uma família. Mamãe, eu e esta. Esta, com a tal de uma febre! Veio ao médico.
— Odaléa!
— Milagre tu te lembrares do meu nome!
— Odaléa!
— A carta, aquela, a tua, todos os namorados em Muaná copiaram. Sim, senhor, sim, senhor, seu escrivão dos namorados, seu fino!
Entram na sala, ela abre a janela, aqueles olhos iraúnas da Odaléa nos objetos, muito branca, a voz repleta. Canta baixinho:
À noite convida o apache
A gigolete, a gigolete...

— Já sabemos o que é apache, o que é gigolete, Odaléa?
Não é a mesma da casa em ruínas onde, lá na varanda, zumbia a escola estadual, com os meninos toda hora à volta do filtro, o filtro já sem a pedra. Não mais a despenteada, o colo sem cautela, olhando do peitoril a lavadeira que esten­dia roupa. Aqui na casa alheia se cobre, na janela, de ceri­moniosa faceirice. Alfredo, mudo, encostadinho, depressa eivém a noite. Nisto, num sobressalto, dando conta do escuro, Odaléa faz que vai mexer no cabelo dele, não fez, desaparece para dentro de casa, volto, acendo a sala?, as mãos atrás, senta-se na cadeira de embalo, alva, desconhecida na sombra.
— Olha, se não for tanto incômodo... Amanhã à tarde, estás estudando? Tem um tempinho deste tamanho assim  para ir conosco, em nossa companhia, uma voltinha, no Largo da Pólvora? Só pra distrair estazinha, esta febrenta.
Chega a menina, fica no embalo.
— Não sou eu. Por mim não. É a maninha. Vai? Nos faltando cavalheiro. Amanhã à tarde, sim?
A seguinte manhã no Ginásio, Odaléa nos mares da Hélade, no teorema da pedra, e corre a pé até ao Marco, mais de uma hora ida e volta, como a tarde não passava! Na travessa Lomas, que o capim cobria, a lavadeira, esten­dendo roupa. era, sem tirar nem pôr, aquela do Muaná:
— D. Odaléa, D. Odaléa!
— Senhora, D. Tertuliana?
— Rezo que ele seja moreno!
— Olhe que lhe meto na sua boca um tição aceso,
D. Terta! Mas a senhora!
— D. Odaléa!
— Senhora, D. Tertuliana?
O coração escurece que escurece as coisas, não escurece?
— Mas, D. Terta!
Do Marco ao Largo da Pólvora, tudo indolentemente
longo, e suando, pessoas paradas num visgo de sossego e
espera, bondes arrastam-se, as mangueiras ressonam, vão e
vêm as carroças, carregadas de sono e ananás.
Largo da Pólvora, ao apito do Utinga, as quatro, numa aragem de chuva; aquele açaizeiro, sozinho, é ver um repuxo.
— Não estás mais naquela casa?
— Que casa?
— Ora, que casa... Então não sei?
— Moro num sótão bem defronte da madrugada.
— Tão alto que dá pra ver a Eunice atrás do tajá orelha de burro?
— E te ver também comendo mangaba na janela.
— Aquela casa da José Pio, a dona mesmo... morreu?
— Quem que te disse?
— Tio Leônidas.
[22] — Por onde anda esse seu tio?
— Ora por onde... Por esses rios costurando. E tu, onde moras?
— No sótão, menina. Da minha janela avisto...
— Que fim levou aquele jabuti?
— Mora comigo. É o meu criado, varre o sótão, vou ao Ginásio montado nele.
— Ah!
Odaléa vira-se para o Teatro da Paz, abrindo os braços:
Ai, ai, Belém, Belém! Que só te vejo voando! Mamãe, só acabar de consultar, é debaixo do toldo e o pé em Muaná. Mas deixa-te está, deixa-te está! Um dia! Um dia me vingo... Mas, ah! Belém... Teu visgo não me agarra.
Ficou alheiosa, à espera de que surpresa? Ávida de que imprevisto? Tinha marcado um encontro? Vinga-se daquela carta? Fazia-se tranqüila, satisfeita mas seus olhos procuravam, ou fingiam que procuravam, ocupada de si mesma, saboreando o instante. Calada, numa faceira expectativa, segura de que Alfredo, agora, sim, tinha um outro olhar para ela e que a carta, aquela para Eunice, aquela carta.
Alfredo disfarçou, sentou no banco: Ainda não passei de acompanhante. Assim fardado, guarda a princesa entre as plantas. E o rapaz que falava dos teus olhos no jornal, o jornalista? O vento te despenteava, mangabas e ingás te cobriam de resina nem sempre o banho te limpava o calca­nhar. Mais forte o vento e era uma vez o teu pardieiro, a escola na varanda, a professora lá dentro tirando do fogo a panela do camarão, desconsolado, um Lauro Sodré, na sala, tapava o buraco da parede e no lugar de honra o diplo­ma da Escola Normal. Vizinho-vizinho, numa puxada entre goiabeiras e um pé de urucu carregado, era aquela doente-­da-pele, tão dezesseis anos, cabelo pelo ombro, espiando, com a lamparina lá no fundo, podia espiar a seu gosto: O largo da festa, ali quase defronte, toca a banda, começou o leilão, lá vai a Odaléa no seu organdi e laços de fita, o arraial cheira a pão-de-ló e foguete queimado.
[23] — A moça, aquela, da puxada?
— A Esperança? Já não vem na janela.
— Agora é no rosto?
— Nunca mais aparece. Não vem mais na janela.
Odaléa num pasmo, confidente:
— Também ela? Mas até a Esperança, Alfredo?
— Oh, Odaléa!
Odaléa nem se deu conta, vigiou o colo, chamou a meni­na que fugia pelo jardim. Alfredo não se mexe. A prima habituara-se àquela doente, anos, e nunca a visitou, ou quem sabe, nunca mais a viu. Odaléa dá uma volta com a menina, dedicada ao seu papel de moça do interior passeando na cidade, filha de professora. Vai casar com um promotor públi­co, admite Alfredo. Vai entrar na magistratura. Some-se a lavadeira, chega o promotor público.
— Esta é a praça da República — diz a moça, cate­górica.
— Ali a estátua da mesma senhora — falou o rapaz, temperando a goela.
Ouve-se o espreguiçar da cidade, saem do banho as moças para a janela, a tarde cheira a moça. Odaléa, ajeitan­do o atracador no cabelo, cuidadosa do penteado e do pei­tilho:
— Mas tão sem ninguém isto!
— Ninguém-ninguém?
— Ninguém-ninguém.
— Eh, eh, ninguém? Mas noutro dia... Ninguém? Isto aqui virou um escarcéu, ninguém? Então que isto ficou reple­to. Ninguém. Ninguém, hem?
— Aqui? Mas quando.., mas que mentira! Pensando que eu como coco?
— Daqui queriam marchar para o Palácio. As mães, só as mães, não falo do resto. Só as mães queriam comer o governo vivo. Ninguém, bem?
— Eras, Alfredo! Agora em vez daquela carta para a Eunice, já inventando... As mãos antropófagas? Eras!
[24] — Odaléa, de lá pra cá muitas palavras, não?
— Muitas palavras?
— Que aprendeste...
— Aprendi. Mas muitas. A metade na tua carta.
A menina corre para as mãos de Odaléa, esta, abraçada à irmã, ficou de nariz no ar, compenetrada, solitária.
— Perdida no bosque?
— É. Adivinha o meu paradeiro?
— O bosque é imenso. Impossível. Quem é agora lá o promotor público?
— Por quê? Por quê? Que-que tu soubeste? Que-que te contaram? Como voam as coisas! Como tu soubeste?
— Sentindo aquele meu frio — queixou-se a menina.
— Meu Deus! Então vamos!
Alfredo voltou. Amadurecia nesse encharcado? A juven­tude era como aqueles bichos do primeiro tempo da terra, enormes no sol grosso morrendo por muito grandes? E tua roupa, quem lava? A indagação ia além da roupa, além do entendimento. Era saltar da rede para o alpendre, dava com os urubus no pouso, com a vesga inclinada na torneira, com as aulas da manhã lenta. Atravessava o Bulevar onde, dobra­dinhos sobre os paralelepípedos do meio da rua, os ferrinhos de dez anos catavam capim, reco-reco-reco-reco. Um senhor baixo, corado, paletó e guarda-chuva, tomava conta deles, como um velho guardador de carneirinhos sujos que pasta­vam aquele capim por entre os paralelepípedos. Era arrancar o capim, noutro dia o capim grelava. Um dos limpadores morava no Não-Se-Assuste. Mal acabava, ia catar pelo cais um servicinho, ajuda a varrer navio, passa um bom pedaço da noite escolhendo e separando os bagos do feijão do milho, o arroz do café e com isso trazia um sofrido mantimento para casa nem toda semana. Chegava tarde e aqui, no lama­ceiro, à noite, devolvia-se ao menino, entretido a soprar a velha flauta rachada, encontrada num aterro do lixo. Sopra­va, soprava, precisava a mãe:
[25] — Dormir, Candoca, que é o emprego cedo, guarda é que é o peito pro capim que tens de arrancar, a manhã, olha a obrigação.
Uma vez, vergado com o ferrinho tirando capim, mais que a curiosidade deu no menino um tal espanto: Vinha passando com banda de música a parada dos colégios de Nazaré e São Jerônimo, escoteiros na frente, bastão, tambor, bandeira e padres. No seu pasmo, o pirralho ficou de joelhos, a mão na boca, rasinho como capim, a banda estalando os pratos, aquelas batinas escureciam ainda mais o espanto do menino. Alfredo olhando. Entrou no Liceu: O Absoluto existe! Existe um princípio onisciente, uma ciência perfeita, uma sabedoria total... Era o veterano falando, esmirrado, rouco, no pátio, puído o uniforme, sempre errado o passo militar. Alfredo trazia o reco-reco lá de fora, o pasmo do carneirinho, de joelhos, esmagado pela parada escolar, a bati­na dos padres amortalhava o Ginásio. Sol em cheio no pátio, as paredes reverberavam; riam, rinchavam os belerofontes do trote, vaia e assobio. Um do bando, quartanista, aproxima-se do veterano, toca-lhe com o cigarro apagado:
— Certo que fazes voto de virgindade? Casto? Só no casamento? Posso apostar no que tu dizes, é a verdade? Que nem...
Outro abotoa o intruso, dá-lhe um empurrão, o pátio agita-se, veio o inspetor, o veterano apaziguava.
— Eu aceito a aposta. Aquele ar dele, que vocês julgam insolente, é legítimo, sim, um desafio legítimo. Posso fazer a aposta. Admito que é um escândalo. É meu irmão que espalha a verdade, quando só a quero para mim. Não quero dar exemplo.
A um passo era o grosso do pátio, pés e bocas.
— Como falsa é a cópia que se faz da juventude, essa péssima cópia somos todos nós... Quando meninos espera­mos, queremos que ela venha o mais depressa, quanto antes... Chega, e tão de repente, que não sabemos o que fazer dela, nunca estamos preparados. E ficamos à espera [26] da juventude. A que chega não é verdadeira, verdadeira é a que não vem. É uma coisa que nunca pertence a Deus, a juventude? Sempre obra do Diabo? Adão caiu por muito verde.
Alfredo afasta-se, avista o Pereirinha que fazia no Marco da Légua revista manuscrita Belemita, sem nunca trazê-la no Ginásio. Sempre com o Bilac debaixo do braço. Por dentro dos livros um e outro soneto de Augusto dos Anjos e escrito, repetido, no caderno de matemática:
L’Amor che move il sole e l’altre stelle.
Meio arisco, temia que os colegas viessem a saber, de fato, da revista que circulavas um só número, pela Avenida Ceará, sendo só ele que a escrevia toda, distribuído em muitos pseudônimos. Alfredo chega-se:
— E então a revista?
— Que revista?
Pereirinha, para livrar-se, do constrangimento, tira um papel da pasta, hesita, quer rasgar, rasgou, embolou, vai lançá-lo por cima do muro, Alfredo apanha-lhe o braço, toma-lhe um dos pedaços do papel, lê:
As montanhas e abismos que carrego
despedaçar-me nos despenhadeiros
deixar trapos da túnica nas pontas
de eriçados penedos e marcar
cada frágua com a flama do meu sangue
— Frágua, Pereirinha?
Os dois fitaram-se. Alfredo indagava, já não se sabia se por uma insolência ou por ignorar a palavra ou repen­tina presunção de crítico. Pereirinha entrefechou os olhos, vexado, ferido, remexeu na pasta.
— Sugere outra? Outra palavra?
Debicava, azedo. Alfredo até que se assustava.
— Eu? Eu?
[27] Pereirinha mete os pedaços do papel na pasta, retira-se a um canto do pátio, só, com os seus despenhadeiros, assobiando. Alfredo acode:
— Vais publicar no GPC, ou é só na tua revista?
Vamos! Troca a palavra. Tira do teu dicionário a outra palavra.
— Mas eu, Pereirinha?
Alfredo teme agravar o incidente também teme agradá-­lo, gostaria de dizer-lhe: “Toque, aperte a mão. Queres que eu escreva na tua Belemita em letra gótica?” Pereirinha e ele, num esforço de se aproximarem, cada vez mais se sepa­ravam.
— Báiron, já leste, ouviste falar? BYRON?
Pereirinha, rouco, repetia as cinco letras, numa fanfarra surda.
— Báiron...
Alfredo dava um tempo a ele para explicar o Byron, ditar conhecimentos, ou desembaraçar-se da frágua. Dispos­to a ceder, contanto que se entendessem, até gostaria mesmo de colaborar na Belemita com a sua letra gótica. Mas o Pereirinha!
— Vamos! Ainda não encontrou a palavra entre os nomes das suas canoas do Ver-o-Peso?
— Báiron... não é um clube de futebol em Niterói, no Estado do Rio?
— Hilariante! Hilariante... — soltou o Pereirinha já a acenar a um colega e agora subitamente em posição de sen­tido diante de Alfredo, fez continência, a imitar o sargento do Tiro:
— Hilariante o calouro que pensando entrar no primei­ro ano entrou no terceiro e que na hora de enfrentar honra­damente o trote... Pernas pra que te quero?
E rodou nos calcanhares, correu ao chamado do campo na saída do pátio com Alfredo atrás dele a apanhá-lo pela ponta do dólmã.
Virou-o num empuxão:
[28] — Repete.
— Que é isso, Alfredo Coimbra? — Foi o grito do Novaes, o primeiro aluno de Geografia, que diante de tudo se assustava, cheio de exclamações. Os colegas acudiam. O Pereirinha apanhava a pasta no chão. Escorou-se no muro do pátio, sorrindo, a mão pelo cabelo, depois cruzou os braços, esperando.
— Que questão de honra é essa? Tão medievais, vocês!
O veterano lhe tocava o ombro, se aproximou, abra­çou-o. Alfredo puxou um fôlego. Enfrentar honrada­mente... Era preciso uma surra no Pereirinha, ir ao Marco, rasgar diante deles a revista em miudinho. Ou mere­cia? Era merecido? Como se tivesse escutado a voz de Lucia­na. E lá de cima da porteira, ou do búfalo, do jirau rente d’água, a Andreza escutava? Ou desafia o pátio inteiro para o total desagravo? Ou não tinha mais remédio? Via na boca do Pereirinha as mil bocas do pátio, a idéia que todos faziam dele, pátio sujo, sujo estou eu também, uma surra no Pereirinha, sim. Ou tudo consumado, sem apelo? Uma, duas, três bofetadas no Pereirinha.
— Vamos tirar a limpo? Quer marcar lugar e hora?
Distantes um do outro com certa distinção, dois diplo­matas.
— Espero-te à noite na Vila Tubo. Sem testemunhas,
— falou o Alfredo pondo o quepe.
— Na Vila Tubo? Com aqueles pobres de lá só nos olhando? Tomando a sopa do Santo Antônio? E quais as armas?
Pereirinha galhofava e ali mesmo os dois se atracam, se esbofeteiam, purgam suas raivas, no meio do pátio que atiça a luta. Vem o inspetor. Os dois se levantam, triun­fantes, quase felizes, já parecem reconciliados.
— Medievais! Medievais! E estamos na época do Gandhi! Do Gandhi! — repetia o veterano surpreendendo-se com o próprio contentamento — Veja! Veja! — ao ver [29]o duelo, e abraçou os dois, o pátio se agitou numa aclama­ção, os dois carregados em triunfo. Alfredo, ao lado do veterano, sorria com um ar sobressaltado, surpreendido consigo mesmo e grato ao Pereirinha. É assim, é assim que se ganha um bom amigo.
Até a porta do Liceu chegava a raspar dos ferrinhos na pedra do Largo, rins dobrados, ali o dia inteiro, tão bichi­nhos do chão. Agora, na luz do pátio, passa lavado e gordo o Monsenhor da Moral e Cívica. Alfredo olha o veterano, o feinho angélico, que erra o passo militar, a voz enrou­quecida, Parsifal catando o Absoluto.
— Não pretende ser um possesso do Absoluto. Ou quem sabe... Eu queria clareza, clareza absoluta. Não era o que queria também aquele colega? Queria fazer uma aposta. A que provas me submetia?
Ergue a cabeça, sem um sinal de desafio, sobre a agi­tação do pátio impuro. Bate a campa, o pátio se esvazia, Parsifal sobe a escada, meio confuso, meio curvo, sempre errando o passo. Eivém o insolente correndo, dizendo-lhe: Não leva a sério, aquilo, viu? Hem? Sim?
Alfredo, entre esquivo e zombeteiro, um pouco aturdido de si mesmo, subia-descia no Liceu entre o logro das aulas e o suado alarido do pátio. E o Pereirinha, onde estava, para abraçá-lo? Lá fora o reco-reco-reco dos ferrinhos catando o capim entre os paralelepípedos. O velho guardador abria o guarda-chuva, a cada dia mais velhinho, os guris pastavam. Mas, espere, os meninos cantavam? Estão cantando? Can­tando, sim, tão desentoado, ali vergados, ou de joelhos, tirando capim, cantavam? Roucos, fanhosos, apelo surdo, gemer dos rins, ou súplica, coro abafado, os carneirinhos cantavam? Ali debaixo do guarda-chuva o velho guardador parecia reger. Com o reco-reco-reco entre os paralelepípedos o cantar feria, doía.
Alfredo ficava ao pé daquele que não degradava o amor, o consumido pelo Absoluto, o casto, o desajeitoso, o obsti­nado. Sozinho contra a voz geral. Ostentava, humilde, a sua [30] pureza. E disso os demais tinham, entre o respeito, uma vergonha, escarneciam surdamente. O pátio se tomava mais. sujo diante dele. Os professores mais imundos. A verdade mais difícil. Também aqui, neste casarão, ficou, para sempre, a vaga de Luciana. Como aceitar as coisas sem remédio? Quando olhava as moças do quinto ano, tão suficien­tes, missa de cinco divisas, tentava ver um traço da morta ou a visão dos sonhos dela ali no ar feito poeira. Na rua, o cara-de-índio, o Parsifal, falou em Platão. Alfredo lembrou aquele almoço do Círio nos Alcântaras, o mesmo nome na boca do Porca Prenha, a indignação do seu Lício. O cara-de-índio recebia lições de grego com o padre Crolé. Por isso, agora, tão de repente, Alfredo apanha o bonde em movi­mento, Platão e o feinho a pé pela Campos Sales. Entre os anúncios a palavra: Hilariante. Feliz um pouco, estava.
Gastando a tarde pelas bandas de Batista Campos, deu num portão com aquelas três moças de Marapanim tão ao mesmo tempo as três, que com as três se casaria. Passou, atrás do que, não indagava. Atrás dele o cantar dos ferri­nhos, cantar, chorar, ou só gemiam? Que havia com a noite, que tardava? Pensou em Libânia ao passar pelo Soledade onde as visagens do cemitério, trepadas no muro, puxavam, à noite, os passantes pelo cabelo. No que escurece, entra a fundo e sem rumo pela Mundurucus ouvindo aquela ladainha lá embaixo sem um vagalumeio na quadra espessa de man­gueira.
Já na frente da barraca suspendiam a lamparina dentro do paneiro, como nos sítios em festa. Esperou que acabassem de rezar. Esperou.
Veio se chegando, entreviu, na meia escuridão, a mesa, bancos, pessoas, no terreiro a quem desejava pedir um sosse­go, qualquer explicação e um pouco d’água.
Mas quem que ali estou vendo?
Quem aqui no meio do terreiro, a saiona em cima da chinela, olhem a blusa rendada, o bogari no cabelo, quem? Pois não era?
[31] — Ó Magá!
— Mas como? Como é que tu te atreve nem me tomar a bênção, seu coirão? Perdeste o número lá de casa? Já não sabes o rumo dos teus primos? Mas santo Deus! Nem te condói saber da Mãe Ciana?
— Doente?
— Ou não é doença bater Belém a pé todo dia sempre atrás daquele invisível?
Alfredo beija-lhe a mão escura que cheira a tucupi e cera de santo.
— A Virgem de Nazaré não tire a mão de cima da tua cabeça, cuidado com o mundo! Cuidado! Nesta casa se rezou pra São Francisco das Chagas, promessa da mea comadre Quelé, que o filho dela? Quebrou o dedo direito na corda de uma polia, dedo esse... pois não arruinou? Pois por pouco não perdia a mão? Então virou-se, se pegou com o santo.
Torcendo a orelha do parente, torceu, segredou:
— Cuidado é com o mundo. Com o mundo. Olha o que estou te dizendo: Com o mundo. A tua polia é o mundo!
Foi, destampou a panela da tacacá no terreiro.
— Mas venham, pessoal, em nome do São Francisco das Chagas. Oferecimento é dele. Só hoje que amanhã adeus. Desfeiteiem o santo, depois agüentem.
Alfredo escorava-se numas estacas, pensando em Mãe Ciana que ia e vinha pela cidade atrás daquele “não-tem­-descanso”. Eu queria a tua paixão, Mãe Ciana, queria o teu pé incansável e a tua mão que faz o cheiro, temperas a infusão com as tuas lágrimas e tuas raivas. Quero fazer uma promessa para o dia do Círio: Carregar de um lado a velha parteira e do outro a Mãe Ciana, as duas no ombro pesando menos que dois passarinhos.
— Te chega mais pra cá, aqui, rapaz, te desescora, quem te condenou pra ficares aí de castigo. Carece de escora? Quedê teu espinhaço? Me andas com um ar de arrependido ou desgarrado? Tiraste é a sorte nascendo da mãe que tens, [32] felizardo. Então tu não conhece a comadre Quelé? A coma­dre Quelé? Que fizeste então da tua memória, seu rói-casca-­de-queijo? A comadre Quelé? Cansa de armar, coitada, todo santo ano, a barraquinha dela lá em Nazaré, mas da festa, no traseiro do arraial. Do lado esquerdo? De quem entra? Pois nesse correr a barraquinha dela, por nome É Aqui A Quelé, bote idade, o que tem de fazer é passar tinta fresca nas letras da tabuleta, já tudo tão desmaiado. Fica entre o João Barabaia e a Cabana Luar das Flores, defronte da É Aqui A Sereia. Não vem me dizer que não te lembras, saben­do eu a tua cabeça e o teu fraco pelas gulodices do arraial, que herdaste de tua mãe. Também do teu pai. Sendo que ela é aquela tamanha quantidade de tanta pimenta oh!, rapariga! Bote, bote pimenta em toda e qualquer comida. Não olha o prato dela que só de olhar te arde, O teu pai? Quanta vez! Ficava ali de molho no ver-o-peso da festa, e era um mingau e era um cuscuz e era uma coxa de pato no tucupi só pra esperar os fogos, saíam já pelo clarear, tua mãe, sempre bem arrumada, ia pra casa como veio, no esmero, aquele rosto passado na pluma cetim e veludo. Ou já torces o nariz para alizinho a bunda da igreja e são outros os teus comes-e-bebes, viraste princês?
Magá servia tacacá, recendia forte o molho das mala­guetas, Na lata de querosene o mungunzá fumegava.
— Aqui, meu filho, a dona, a comadre Quelé, fez pro­messa de distribuir de graça munguzá e tacacá entre gente convidada e gente do sereno.
Magá andava magra, ao clareúme das lamparinas o rosto reluzia. Tirava o tacacá como numa cerimônia. Debaixo das bandeirinhas de papel, sob o fedor da vala perto, uns con­vidados se abanavam.
— E tua mãe, que nunca mais? Que cachorro te mordeu lá em casa que nem um ar de tua graça? Me admira é de ti, me admira é de ti.
Nisto, trovejou.
[33] — Hum, o porteiro lá de cima arrumando as malas pra viajar? Me levezinho na vossa bagagem, meu São Pedro.
De mangas enroladas, sisuda, distribuía cujas, ganhava uma cor cobre. Atenciosa no servir, não ria um só instante. Teria matado recém-tartaruga?
— Nestes seis meses? Olhe, meu anjo, que só uma! Casa do contador do Tesouro. Só uma, que por sinal bem magralhona. As inocentes estão que estão escasseando. Rari­dade. Mais pimenta, menino? Mais tucupi nessa goma, meu preto? Mais jambu? Comadre Quelé, me mande mais jambu. E do mungunzá, gente? É o santo que oferece. O único pago é beber sem dizer obrigado. Povo, acanhamento de lado, só mandar servir. Não desfeiteiem o santo.
Séria, na serventia do santo, o colo sobre o terreiro, Magá fazia sala.
— Que que então que te deu que de tão longe te atiraste de vento em popa aqui por esta baixa, como se tivesse te ligado o meu telefone? Que é que tu andas mariscando? Adivinhaste? Rastejando o cheiro? Vai primeiro, vai primei­ro pedir bênção do santo lá dentro, entra lá dentro, vai entrando, que não tem cachorro, a abundância que tem ai dentro é agrado, o que nunca falta é carinho. Comadre Quelé! Lhe apresento esse-um aí, esse pau-de-virar-tripa fardado, meu sobrinho, é da raça, anda perdido no Jurunas. Apresente ele ao santo, faça ele ao menos beijar a fita, coisa que já não faz, vá ver, conta as folhas da folhinha, ocupadinho que anda — sabe lá... — com o estudo dele... Susto que o santo te meta em confissão, saber teu fogo, que é que tu andas... tamanha lonjura, aqui pela zona do Juru­nas, atrás de que companhia, no pegadio da Mundurucus? Te influi! Te influi! Te influi com o Jurunas! Te influi! Que a Mundurucus, por demais grudenta, gruda de arrancar pele, Vai atrás de isca neste remanso, vai... Da feita que fisgou...
Magá falava por experiência? Aqui pegada, trazida de sua esquina do tacacá na São Jerônimo onde é dona, mora­deira velha da Ruy Barbosa em que passa o bonde, com o [34] retrato do falecido, mestre funileiro, na parede e no estan­darte, e aqui na Mundurucus servindo a São Francisco das Chagas, a um pecador do Jurunas, seu travesseiro de orelha? Aqui no fisgo? De quem? Só por amizade à comadre Quelé? Ou por um não-te-digo-o-nome do Jurunas, unzão da estiva, do boi-bumbá ou da diretoria do São Domingos Futebol Clube? Atrás do jirau, lá atrás, cachimbava um senhor afas­tado, só de banda, no-só-te-espio, era ele?
Eu te quero um homem, lhe disse Magá naquela longe tarde. A casa Alcântara ia abaixo. Um homem. Já era? Ou tão só maliciando dela, a enxergar o que não via? Aqui, em torno do tacacá, descobria bruscamente no Não-Se-Assuste, no rosto da D. Fausta tocando debaixo do assobio as suas valsas no cinema, este mundo sem apelo. Por isso, aderia ou puxava o santo pela barba?
— Comadre Quelé, me guie essezinho penitente até o pé do santo.
— Entre, que só paga na saída. As feições da mãe, ele... Ela, como vai?
Comadre Quelé, barraqueira tão atrás do arraial, as faces em festa, era rir e fazia as pessoas felizes; nos braços dela se podia agasalhar a cabeça. Diante do oratório azul, na sala de chão, entre as palmas de açaí, Alfredo ajoelha-se, beija a fita, o santo parecia sufocado de flor, vela e reza ou a dizer-lhe: Me enganando, não, seu safado? Atrás, a coma­dre Quelé, o olhar das moças, eivém um guri, vira-se para ele, muito espião, bastante adivinho, cadê que Alfredo queria ou podia levantar, pois lhe deu um embaraço. Ou culpava-se? Melhor não era ter beijado a palma da mão da D. Quelé que vai agora soprando as velas do oratório? As ceras se apagavam macio, macio, o santo só faltava pedir: Quelé, meu coração, me trás lá da Magá um tacacá mas com bem pimenta, antes que me feches neste oratório.
Alfredo desajoelhou-se. O filho de D. Quelé chegava..
— Lhe cortou o dedo? A polia?
— Ah, não foi nada.
[35] — Não? Não foi nada? — Acudiu a mãe, franzindo ale­gremente a testa. — Olhe o Zezinho. Se atrevendo a dizer na frente do santo que nada foi, o prosa. Só que te aprecio!
Alfredo foge para o terreiro.
— Que te deu, que tu já vai que nem me toma a bença, rapaz? Que desassossego esse, seu tão desempaciente?
Aqui na roda as meninas cantavam:
Das filhas de minha mãe
Sou eu a mais estimada
que me importa
que me importa
que eu seja a mais desprezada
sereno da madrugada...
Surdina um borrifo de chuva, a cidade se agasalhando nos braços da comadre Quelé.
Agora em Batista Campos dormem de rede as três formosas de Marapanim. Entra no parque, deserto, olha os portões, fechados, nas janelas ninguém.
Escrevia no ar ao pé da mangueira:
1 quarto, de preferência sótão ou mirante, rente das madrugadas.
1 cama de soldado, defronte a rede com varandas vermelhas.
1 retrato da filha de italiano a prestação no gringo.
1 enterro para Luciana.
1 peça de linho para a mãe.
1 enxoval ao gosto da donzela viúva.
1 epitáfio, escrito por Parsifal, para a defunta do ra­becão.
1 lei desapropriando o chão dos Lobos.
1 aparição de Andreza sempre menina.
1 flauta para o ferrinho.
1 explicação do Absoluto.
Todos os catálogos de pós-guerra para o pai.
[36] 1 peruca para Dadá.
1 vapor para a D. Celeste.
1 tabuleiro de pupunha para aquele menino que derru­bou no comício do largo da Pólvora. Menino?
O endereço daquela operária que comia gergelim ao pé da estátua da República.
Pendurar na jaqueira de Zulmira, a nua, o manto de Nossa Senhora.
1 oração, ou bom preparado que faça o seu Lício rojar-se aos pés da Mãe Ciana.
1 boa noite da filha de italiano.
1 elixir de formosura para a Bina, a tão feia.
1 bobina de papel para Rodolfo, o tipógrafo.
1 tina para o banheiro.
1 carta da mãe: tudo bem no chalé, meu filho.
A roda, longe, sereno da madrugada, o munguzá fuma­çava, ardia a boca de pimenta.
Virou que virou o calcanhar pelo Jurunas, agora cami­nhando pela D. Pedro com a visão do pai, na varanda do chalé, compondo, bem devagar, o livro do Juiz de Direito, os passarinhos espiavam da janela a sacudir o bico a tão inútil esforço.
Flutuava entre Liceu e vagabundagem, entre optar pelo mundo ou seguir aquele rabecão da Santa Casa até encon­trar uma resposta. Reapareço para D. Dudu? Volto ao meu terreiro? Saboreava a feia, a má ausência que faziam dele, todos, todos, na José Pio, Curro, Rui Barbosa, na errante casa Alcântara, depois que se viu bem servido... Via, de longe, a Nini, uniformizada, mais a caminho do Orfanato que da Fábrica de Chapéus de Homem. Arriscou-se uma se­mana pela Pedreira, uma tarde enfia os olhos por entre as estacas de um quintal: A Dalila?
Caminhando entre as populeiras em flor, Dalila, no pajé, espera o seu banho.
Um tempo.
Dalila entra no barracão.
[37] Esperou.
Ela voltava com uma alegre pressa, e o seu cabelo? Ainda pedia um tifo?
Cortou pelo Acampamento, passa pelas cobras, entra na Curuçá, espiando a Passagem dos Inocentes. Quis ver o jogo, não era domingo. Nem mais as traves senão a mangueira no meio, empoeirada, sombria. Da ramagem ia saltar o Lázaro, voltando do céu que não encontrou?
Aqui na rua da estância, vai e volta, aqui na esquina, comeu um pão, coragem! Roça a janela, lá dentro os olhos da espiona, a luz que vem da veneziana é dela, apostava, apostava. Então te arrisca, te arrisca, coragem, bate palmas. Bate! Corre da porta, desce a rua, vem voltando, sobe na calçada, bate palmas.
Custou.
Aqui fora sol queimando e eis que da moldura desce o rosto oculto na toalha, entreabrindo a porta, só indagou de olhar, cortando afiado.
— Um copo com água, se não for muito incômodo?
Em cheio a porta na cara e já aqueles passos lá dentro e aqui fora este sol, a rua escalda, aqui sem dar mais um passo. Lá dentro enchem um pote? Arrastam um banco? Ou é a princesa voltando à sua moldura na parede?
Veio passando rente. Já atrás da veneziana ela espiava, o ar dizia, dizia a janela.
No quarto, não sossega, corre ao Ver-o-Peso. Chegando uma canoa de Cachoeira?
— Leônidas!
Os dois caminham debaixo das mangueiras do largo do Palácio. Leônidas se despede. Alfredo, impelido a apanhar aquele barco, a canoa aquela, não demora esta noite em Cachoeira.
Vem a pé para a estância, tranca-se, e então é a noite, aquela, de que lhe falou Leônidas:
— A mãe encontrada desfalecida no campo. Uma pessoa carregou ela para o chalé.
[38] — Quem essa pessoa?
— Tu sabendo tu te aborrece.
No campo. Na sua ronda, cercado de seus fantasmas, Edgar Menezes a leva ao chalé, entra pela porta dos fundos, deita a desfalecida na varanda. Lá na saleta o Major —ah, que aspérrimo dezembro! — folheia o catálogo: quem é? Quem entrou?
O chalé fecha-se, os bacuraus gritando.
Seu Ribeiro vem arrancá-lo do quarto.
— É o nosso Garimpeiro, concidadão, hoje é domingo. É a excursão. É nosso convidado. Vamos. Desate a rede. E com cara de que não dormiu?
Seu Ribeiro no trem:
— Aquele cróton! Ali ao pé do portão o cróton! Cróton selvagem, tinhorão lascivo!
Ria, desdentado. Do bigodinho saía todo o acolhimento.
— Olhem ali no cercado um amor-dos-homens floran­do, florando. É ou não é a nossa primavera? A propósito, vamos encontrar na estação, vendendo chouriço, aquele italiano, filho de Catânia, que recita Petrarca.
— Quem? — virou-se Alfredo com a visão do campo es­curo, a mãe estirada na bosta de boi, carregada pelo ban­dido que, onde põe a mão, tudo apodrece.
— Ainda não sabe do freguês do chouriço em Marituba? Pois comeu milho. Pois então comeu milho, meu amiguito. Por um chouriço assado, sapeca-nos um soneto, o molho para o chouriço é um soneto de Petrarca. Mas olhem! Contem­plem. Tivesse eu o pincel de Manoel Pastana! Sim, sim, sou serei um eterno admirador das belezas da natureza. Admi­rai! Admirai!
Passavam crestadas capoeiras, ali um pé de urucu mor­rendo, eivém o aterro escuro onde já foi uma barraca, o bur­rinho e o pouco caso dele pelo trem, aqueles barrigudinhos ao peso de tanto verme nem adeus faziam. Seu Ribeiro, so­prando o fumo do seu charuto, admirava. Por incrível, o [39] trem vai ligeiro, arqueja nesta curva, ligeiro coisa nenhuma, Alfredo. ligeiro é o teu imaginar, fugindo do campo, do chalé, viajas para aquele 142 de platibanda carcomida onde é a Itália. Mas o campo insiste, aqui a mãe despejada na va­randa, já vai o Capitão Edgar pelo aterro, contando o achado.
— Ó Zematias, vai direitinho o nosso farnel? Em or­dem a caranguejada?
Esguio, resseco, sonolento, calça, sapato, camisa, chapéu, todo de branco, Zematias punha os óculos verdes. Junto de Alfredo, murmurou:
— Tenho horror à paisagem. Só mesmo o banho, aquele, lá, é que me faz suportar a moldura. O igarapé é pra me livrar deste meu sono, desta minha esquisita contrariedade por tudo.
Recém-chegava do Nordeste, servia a escritório da Machine Cotton. Viajando no sertão deu com um bando de cabras do cangaço.
— Então como foi, Zematias?
O viajante, num bocejo — Ah. Foi metido nos óculos verdes. Puxava o chapéu sobre o rosto, cochilava. Morto o interesse dos amigos, saltava do cochilo:
— Uns cabras. Foi. Ah. Foi.
Era de sociedade, a família debruçada nas suas quatro janelas da São Mateus, Alfredo via, ao passar de bonde. As Irmãs, três, toda tarde ali a rigor, em ruge penteado e anéis. Aos bailes da Assembléia às paradas altas do Pará Clube, Zematias preferia, no subúrbio, o relancinho com o Filemon e o sírio-libanês do curtume, a companhia do seu Ribeiro com quem fundou os Garimpeiros, e um sabadozi­nho ao mês, na Dois de Junho, a três mil a entrada, cerve­jando — sempre com sono, sempre contrariado — com aquela Antonieta que continuava a escancarar, com o seu sopro, as janelas de família.
— Bem que podia ter trazido a Antonieta...
Espreguiçou-se, oh, sono! Seu Ribeiro tirou o charuto da boca:
[40] — Cavalheiro! Cavalheiro! E a finalidade de nossa ex­cursão? Não desvirtue!
Zematias pigarreando, sonolento, ria de contrariedade? O chapéu sobre o rosto, o lencinho no bolso da camisa. Usava o perfume da família.
— É do hábito dela mesmo passar soprando dentro das casas?
— Quem, Ribeiro?
— Concidadão! Concidadão! Olhe os nossos estatutos! Os nossos estatutos!
— Soprou na tua, Ribeiro?
Ribeiro, sorrateiro, suspende a perna, os olhos em cima:
— Quem sou eu, cidadão! Eu que não sou vós, con­cidadão, concidadão.
Se estes dois rios fôssemos, Maria
Todas as vezes que nos encontramos
Que Amazonas de amor não sairia
De mim, de ti, de nós, que nos amamos!
E o único dente, o de cima, do seu Ribeiro ria.
O trem perdia o fôlego. Parando? Seu Ribeiro espiou pela janela:
— Ah, a minha máquina fotográfica, que nunca tive, sempre sonho e nunca terei! O trem pára, não. O trem caminha. Cumprimentarei, em nome dos Garimpeiros, o ma­quinista, lá na estação.
— E aquele outro teu desejo, Ribeiro, aquelezinho? O carrinho Ford? Quando?
No que falou, Zematias baixa a voz, inclinando-se para o amigo:
— Filemon, ali, caladão, coçando a fístula.
— Ó Filemon!
— Aqui estou eu descansando da insônia desta noite.
— A ferida? Como vai? Fecha ou não fecha?
[41] Seu Ribeiro acudiu:
— O carrinho Ford, Zematias? Sim, sim, ah, um bem usado, humildemente... O carrinho oficial das excursões. Propiciava, propiciava. Mas bem usado, humilde, nem que seja se quebrando por aí afora, sim... Não por mim mas pela finalidade... E aí você, ginasiano, nem uma palavra? Nem a paisagem admira? A paisagem é um estado de alma, é não? Já ouviu dizer? Olhe por exemplo aquela palmeira.
Alfredo via: A filha de italiano se pendurava na pupu­nheira em flor, seguindo o trem, entra no carro com a fuma­ça da máquina e sempre ali atrás das rótulas, vergada na espionagem, gulosa da rua.
Chegavam.
— Sr. Maquinista! Sr. Maquinista! Os cumprimentos do grupo excursionista. Os Garimpeiros pela boa disposição da locomotiva e por vossa perícia!
Onde o chouriço e o Petrarca? O italiano do chouriço, viram? Então caminhemos já para o éden. Ao garimpo! Desencardir a alma! Ah! Só este ar. Este orvalho! Este sos­sego! Balsâmico! Balsâmico! Deleite-se! Deleite-se, menino! Por entre a folhagem entreabre-se o igarapé tão de repente, ali aconchegando na sombra. É ou não é uma visão celeste?
— E os caranguejos, Zematias? Em ordem o bornal? Bem?
Alfredo, as mãos dela vê, muito alvas, dando-lhe água. Seu Ribeiro retira da pasta do clube a flâmula verde-amarela e pendura no ramo:
— A missão excursionista de Os Garimpeiros é difun­dir o gosto pela natureza, fazer o turismo em nossos igara­pés regionais. Se adoto o espiritismo, não menosprezo aos domingos o culto panteísta.
Retirou a garrafa de cana:
Ai dos teus tristes ais, moenda arrependida!
Álcool para esquecer os tormentos da vida
[42] E cavar, sabe Deus! um tormento maior!
— Vamos deitar o néctar de bubuia, esfriarzinho no seio da linfa. Nas tuas mãos, mãe-d’água, a botija de Baco! Um golito, Alfredo. In vino ventas! In vino ventas! Vinde, sereias!
Desenrolou, um trago, abriu os braços:
Tenho sede demais, samaritana
Tenho sede demais, quero beber.
Alfredo estirou-se no fundo de areia e limo. O limo não mais dos cabelos de Dolorosa naquela noite de Santana em que nasceu a criança e um rapaz. Aqui no limo e areia, va­garosamente desfiados, os cabelos de quem espia da vene­ziana. Sobre o peito a corrente fria, desliza o rosto oculto, o rosto que desceu do quadro. É ou não é uma visão celeste? repetia o seu Ribeiro com outro gole, tirando a roupa:
— Ao estado natural. Ao estado natural. Agora aos caranguejos. Ave, César, os que vão... Zematias, amarra a garrafa num ramo dentro d’água. O embrulho de camarão seco, Zematias? O camarão seco? Vinde a nós, São Fran­cisco de Assis, meu pobrezinho, prega nestas nossas águas, que nós te merecemos! O camarão seco, Zematias.
Alfredo caçava no silêncio folharal, nos esconderijos, o olhar, aquele, da veneziana.
— Que este igarapé me afogue esta... que choca dentro do peito.
— Quem que choca, Filemon?
— Aquela, rapaz, aquela, dona de todos nós, de todos nós.
Filemon entrando n’água, com o copo que emborcava. Já o Zematias, achando a água gelada, bebia na garrafa. Ainda com a visão dos cabras na caatinga?
— Viva os Garimpeiros! — gritou o guarda da Saúde, dentro d’água, chupando a unha de caranguejo.
— O martelinho de quebrar caranguejo! Esqueci-me! Agora só a pau. Estão é magros. Dêem-me um charuto aceso [43] .e cortem. Conhecem a frase? De Mariz e Barros que na casa­mata do encouraçado recebe um estilhaço e tem de cortar a perna... Ao herói! Ao herói!
Filemon coçando o peito, a ferida que não sarava:
— Magros? Pois não fui eu que os comprei e mandei cozinhar? Magros?
— Estão magros, não?
Caranguejo gordo só dá nos meses sem R: maio, julho, agosto. Nos demais meses é que é caranguejo junho, magro.
— Mas estamos em maio, Filemon.
— Por isso, Ribeiro, por isso, Ribeiro. Estão gordos! Magro é o teu conhecimento sobre o assunto, rapaz. Sabem? Vi seguir ontem no rabecão a Chiquinha Buá. Soube servir e empestar, no Umarizal, duas gerações. A Chiquinha Buá!
Quando levantam na praça um monumento às putas? Seu Ribeiro, tomando pé, não sabia nadar, batia água:
— Dobra a língua, que isto não é dos nossos estatutos. E bem que eu não quero morrer sem que ela morra... Sabes que sou sócio da Sociedade Olhar de Jesus que ampara as decaídas.
Alfredo sacudiu o ramo, descascou um camarão seco, olhando aqueles excursionistas, no regozijo dominical. Seu Ribeiro lavava-se de seis dias de repartição, e do mergulho saía recitando:
Porque na terra deu-se apenas isto
Multiplicou-se o número de Judas
E vai crescendo a prole de Pilatos...
Zematias enxugava-se, branquíssimo, magríssimo, con­trariando-se, procurando o sol, ou enxugava ainda o seu terror? Filemon escondia-se no cipoal, coçando o peitame, era ou não era?
— Quero um grama de rádium! — gritou, rouco.
[44] Alfredo via-lhe o gordo rosto angustiado. O sol varou a folhagem. O olhar da espiona, era? Alfredo mergulhou, abriu os olhos no fundo, mais só, muito mais só, boiou ouvindo:
— Viva os Garimpeiros! Viva os Garimpeiros!
— Este minuto só, em troca de toda aquela eternidade lá embaixo! — Ergueu-se Filemon esticando sete dedos. Al­fredo mergulhou de novo, tão-tão longe dos três que bebiam, partiam caranguejos, cantavam. Mais longe de si mesmo, sim, batendo esta água, agora batendo aquela porta em vão,. e aquela noite em que entra pelos fundos do chalé o bar­budo assassino carregando a desacordada. É ou não é uma. visão celeste? Onde o italiano do chouriço? Ouvir dele os sonetos que só aquela da veneziana merecia, sim, sim o carca­mano onde morava? E Catânia, em que parte da bota, aquela do mapa, que o mestre de Geografia enchia de cana e virava?
— Comer! Vamos comer! Esfreguem a alma!
— Sai isto de mim? — indagou, suplicante, o Filemon, batendo o peito, logo um trago.
— Este sono, esta contrariedade? — zombou o Zema­tias, tapando o rosto contra o sol.
— Abre um bicho desses, Alfredo. Esta unha! É ou não é uma visão celeste?
Alfredo apanhava a unha. De que valia? Onde o chouri­ceiro? Zematias cabeceava de sono. Ou vomitando o seu terror trazido da caatinga? Debaixo da ramagem, a mão n& peito, seu Filemon parecia sabendo a verdade.
— Sob o signo do caranguejo, Filemon! Comer! Viva Os Garimpeiros! Viva a democracia liberal! De 24 de feve­reiro, a nossa Carta Magna!
Os três escorregaram no limo e na areia, um trem longe apitou. Alfredo espremia solidão e do mergulho breve trazia sobre as costas todo o chalé com a desacordada no meio da varanda. Os três emborcavam. Seu Ribeiro erguia a garrafa: E tu, verdade viril por quem trabalho, com a alma agradecida dos melhores paraenses, rodeie cada vez mais [45] carícias sem conta a existência daquele a quem deve o lím­pido fulgor de suas louçanias! Bebamos! Nem um canto de saudade!
Zematias tentava acordar, Filemon mirava n’água o seu peitame, corriam ecos pelo mato, os passos no chalé en­trando na varanda. No meio d’água os três abraçavam-se, deu sol na garrafa de bubuia.
— Será o meu banho de despedida? — perguntava Fi­lemon.
— Só vestir a roupa, visto a contrariedade — lasti­ma-se Zematias.
— Brilhe ao sol a nossa flâmula — gritou o seu Ri­beiro.
Alfredo abriu o peito do caranguejo com um súbito desespero. Os três saltaram d’água, já se vestiam em silên­cio, agora é sol no caminho, onde o chouriceiro? Aqui no pé da plataforma o cavalo já bem idoso.
— Me ceda um tempo só prum galope?
Trotou à volta da estação, sobre o sono do Zematias, o peito do Filemon, a flâmula do seu Ribeiro.
— É o teu domingo hípico, ginete!
O cavalo empacou.
— Moço, isso é o aviso dele, melhor que desapeie. É a idade.
— Minha ou dele?
— Dele. Não queira o risco.
Soltou a rédea, foi-que-foi longe, desapareceu a vila. tomou a galope, vamos, velho, senão perco o trem, o trem chegando. O trem, Alfredo! O trem! O trem partia.
Apela na estação deserta. Onde o chouriceiro? Agora rodeia a oficina da estrada de ferro; os ferros descansavam ou se cobriam de ferrugem e limo. Voltou ao igarapé, o mato resingava, quem que ali deita a cabeça no tronco?
O folharal fiava os escurões para a noite. Atrás do tronco a mulher soluçava.
— A senhora...
[46] — Vamos, Durvalina! Acabas é tendo o inocente na beira deste igarapé, sua desesperada. Querer parir como as vacas do compadre Abreu, cristã?
Três homens agarram a mulher. Não quero. Não quero! A cristã debatia-se. Adalberto! Adalberto!, gritava surdamente. Alfredo seguiu-os. Entraram numa barraca, os gritos continuavam. Nem um trem? A alegre excursão! E se a pé até a cidade? Seria a mãe assim, grávida do primeiro filho, fugindo pela beira do igarapé, as mãos na barriga, Adal­berto? Adalberto?
Dos três garimpeiros... Ribeiro, na cadeira de vime, onde esqueci a flâmula?, o Zematias aposta no relancinho o sono e a contrariedade esquisita, o Filemon, à mesa espí­rita, isto aqui no peito? Isto aqui no peito? São Pedro, lá em cima, arrumando as malas, ia viajar? Adalberto! Um foguete pelas alturas do Ananindeua. Debaixo deste caramanchel de maracujá, valia um descanso, sim. Da velha casa saem morcegos apressados. Será sono? Os caranguejos agar­ram o cochilo, quando aquele copo d’água nas mãos da italiana? Filemon abre o peitame, engolindo este limo, este domingo. Os morcegos olham a perfeição deste sono e não ousam, o pente cai do bolso, pinga das folhas a madrugada, os galos não respondem, gordos os caranguejos em maio, de que valia tudo? Os galos não respondiam, vamos de volta a pé, carregado de caranguejo, garrafas de bubuia, os gritos da mulher, o pé do urucu morrendo, o burrinho no ombro, afia as tuas pestanas, espiona, e espia este-um aqui desca­minhando pelo trilho do trem, amanhecia rosa com duas estrelas crepitando alto, rosa, entrava pelo sono, restituía íntegro para o mundo este olhar, este passo, este rumo, flâmula no ombro, alegre domingo em Marituba.
Iam a pé para a usina as quebradeiras de castanha.
Enforco a aula de desenho?
Dá volta pelo Reduto, um café, ali se demora, vê a mãe de Zuzu da Jaqueira (tão cedo?) à porta da lojinha [47] mi|rando, esquecida, a peça de chita que o sírio desdobra e pendura, oi a tapuia-mãe não tira os olhos.
Deu a volta, de novo virou-se para a loja: O olhar da senhora na chita que o vento sacudia.
E vem, a zanoia das borboletas lhe aparece, o beiço grosso de pintura, o cabelo encaracolado, o tamanquinho, um galho de roseira com duas rosas na ponta, os olhos cada um para o seu lado.
— Caçando borboleta?
— O senhor, sim, que mais parece. Vá, vá mangando, que um dia... Um dia vai ver é eu saindo com a minha criação até a bordo do vapor inglês.
— Já viu um vapor inglês?
— Sempre olho nos anúncios do jornal, aquele vapor. Em pessoa mesmo nunca vi, assim de dizer que vi de perto, de pertinho, não. Mas penso.
— Pensa?
— Não é? Oiço ou não oiço que tem navio inglês que vem e vai? Quem que compra borboletas? E essa flâmula enrolada na mão, é o seu clube?
— É.
— Me deixe ver as letras.
— Não. É um clube proibido. Não pode ver. É feio. Onde vai?
— Ali cobrar uma roupa. Depois vou na Cidade Velha. Lá onde morei.
— Te acompanho?
Tinha morado, sim, na Cidade Velha. Também numa estância. Sendo que lá, por mui pobríssimo que fosse, sem­pre cabia. Agora? Naquele tal de Não-Se-Assuste? Na Ci­dade Velha, sim. A mãe levava ela para as freiras, para a porta do Arsenal, os marinheiros lhe davam rebuçado, das cinco, na Sé. Dava-lhe vertigens, sabia? Certa missa, zonzeou, olhando os vitrais, como se fosse ficar num deles, não sabia, a cabeça rodava, por falta de café não era, bebeu [48] com pão, ou medo? Fugindo de rezar ou ainda agarrada no sono? Nosso Senhor lhe dava a modo de um calafrio, de madrugada. De menina rezando assim cedinho, a Nossa Se­nhora de Belém não aprovava. Ah, tinha, às vezes, cada um desgosto! Então que carregava cada aborrecimento! Olhasse ela por dentro. Por exemplo, cobrar roupa. Cabia? Era um instante só, passava. Passava? Primeiro um e outro preferir errando, confronte as vitrinas, quiosques, aquele pano tão primeira vez que via no Paris n’América, e se desse a cabeça de ir no cais? E aquela boneca, ali na Santo Antônio, de encher o colo? O olhar nas continhas daquela volta, tanta rede no Mercado de Ferro e dela nem uma? Doideira de sair descalça entrar correndo na Gurjão provar todos os sapatos de seu número, em todos da prateleira deixar o rastro de seu pé e ir dizendo, ao ver cada um no pé das outras: Esse foi meu, meu também aquele, todos por mim já usados.
— Meu pé é grande? Acha?
— Mimoso.
— Mimoso? Mas ah! Só estou seu gosto! Pois bem, muito obrigado. Vou pôr no meu cofre a sua palavra.
— De vez em quando abra o cofre e tire a palavra que eu areio... dou um lustro. Sim?
— Acabei foi enfiando a cabeça num quintal de bor­boletas. Crio?
A zanoia riu tão menina, lembrou aquele rir da Semí­ramis no baile em Muaná, e aqui os dois caíram pensativos.
— Agora, noutro mês... Parece. Ao que zoou... Zoou... que vou pra fábrica de cigarros.
— Cigarreira?
— Aleja?
— Quem disse?
Nele brotou a moça do gergelim na praça: E tu, onde tu trabalhas?
— Fuma?
— Eu?
[49] — Pois aprende com cigarro feito da minha mie, sim? Ah, peguei a falar, peguei a falar, já está então bem tarde, ah! vou cobrar a roupa. Tão aborrecido... É num instante. Me espera?
Voltou.
— Na Cidade Velha, a estância onde morou, onde?
Ela não quis dizer, caminharam, ela entrou em Santana, beijou o pé de São Pedro. Quando viram estavam na Cidade Velha, cheios de suor e espanto. A mocinha olhava. A velha cidade lhe parecia mais pesada, a Sé caindo-lhe no coração, com aqueles altares, aquelas portas. Alfredo esperou que ela rezasse.
— E a estância?
— Olhando esta queimadura no braço, esta marca? É Deus que ainda pude pular pela janela. Uma semana antes do casamento da titia.
— Que foi?
— Queimou tudo, o casariozinho queimou tudo. Foi pegar fogo, a tia Magui casou-se.
O casamento da tia? Perdeu a conta do tempo do noi­vado. A caixa de charuto assim de postais só do namoro deles e iam ficando os dois tão ressequidos, tão aborrecidos de se olhar um para outro aquela toda noite nas cadeiras de fundo furado! Ele chegava, assinando o ponto, tal e qual como na sua repartição, a das Águas, era do protocolo, entretia-se com um almanaque e ela com o croché. Ao apito do Utinga, às nove, o noivo bem, boa noite, não te esquece, Magui o gengibre pra cabeça. De primeiro mimavam o futuro com casa própria, mobília, e toalhas brancas no do­mingo, e lâmpada acesa ao Coração de Jesus, e um peru no Círio. O mimo escoando-se, deu broca no futuro, este agora tão atrás, já nem se davam conta, quebrou-se aquele vidro de aumento que era a esperança. Nada mais preciso senão casar. Nada mais que o pobre dia, já cheio de bicho, velha goiaba do chão. No que chegou, já tão fora de tempo!
[50] Passou do ponto, o doce queimou. Por baixo daquele sim, um cuspo engolido.
A mirolha queria o casamento da tia mas na Sé, segu­rando-lhe o véu, conta os carros, os preparos, as posições, o fotógrafo batendo a cerimônia. Acabou que nem na Sé foi, tão chinfrim na Intendência, cobertos de mofo os noivos pareciam. Os botões da grinalda caíam de velhos. O padre casava ou dava extrema-unção?
— Casar, eu? Só se o rapaz na mesma horinha me dis­sesse: Vamos ficar papel queimado um com outro? E eu, aí sim, pois vamos, seu bobo. Pois depois a tia veio: Olha, não diz nada a ninguém do que vou te dizer: Tão me acos­tumei de ser noiva que cada vez mais aborreço de estar casada.
— No Bosque, você dança? No Bosque?
— Bosque? De bosque só sei quando danço ali na rua na roda das meninas.
— Quantas vezes foi anjo de procissão?
— Uma só vez ah, me aborreci! Mordi o dedo de outro anjo, fui excluída.
— Quer dizer que é um anjo rebelado?
— Hein? Olhe, se for cigarreira até quem sabe... vou tirar uma linha desse seu Bosque. Onde é mesmo?
— Tão inocente!
— Juro... Juro... De bosque só na roda da D. Sancha. Bem, agora a dona deve estar em casa. Vou cobrar a roupa. Espera?
Tinham voltado da Cidade Velha. Alfredo só agora temia ser visto no lado da zanoia e desse temor se enver­gonhava. Galho da roseira na mão, beiço grosso de pintura, a mocinha batia os tamancos.
— É num instante. Espera?
— Espero.
Não esperou. A moça voltou à estância, sorrindo para ele:
— Esperou a vida inteira, não?
[51] — Foi.
— Olha a mentira dele, pois foi menos dum ins­tante mas ah! Mas ah!
— Fui caçar borboleta.
Ela, mordendo o beiço, num silêncio, não sabia onde pôr os olhos, quis rir, tapou o rosto. Alfredo, batendo a porta, entrou no quarto, borboleta coisa nenhuma, coisa ne­nhuma! Desceu ao banheiro, foi ao portão. A vesga, já sobre a tina, lavava; as duas rosas numa cuja sobre o cepo.
Mas não me lava aqui por dentro, borboleta coisa ne­nhuma! Longe no campo, no caminho das formigas, des­maiou a mãe. Vão morrer as pixuneiras do campo. Por que não foste, tu, Sabá Manjerona, nas tuas rondas, que acudiste, levando-a para a cama de ferro, esperando que ela acor­dasse e viesse pelo caminho de baixo, molha a cabeça com água do moinho, o velho cachorro brabo lambe o pé dele, e entra no chalé pelos fundos, senta um pouco na escada, devagarinho na varanda, maneja o prelinho, ralha com os ratos do telhado...
Agora aqueles gritos no Não-Se-Assuste: O diabo te entortou a vista, infortunada! E o meu lenço? Tiraste do lugar? Quem sabe já não vendeste o lenço que o teu irmão me mandou? Dá cá o lenço, anda, quero apalpar. Bem pausado, bem pausado, estás correndo muito, desembestada.
A mocinha lia, lia. Ao menos me deixe molhar a goela, mamãe, espere um pouco.
Noutra noite, a zanoia virou na roda, cantou a D. San­cha, veio assoviar na porta de Alfredo.
— Promessa é dívida, quedê as borboletas? Sua roupa, quem lava?
— Olhe aí sua mãe...
— Não sabia?
— Que?
— Que cegou da vista, entrevou das pernas?
— Ela?
[52] — Não sabia? Mamãe paga inocente. O senhor tem por aí aquele do Imperador Carlos Magno e os doze Pares?
Na sombra os olhos dela ganhavam uma fixidez, que diante dela tudo vira um pouco inocente? Suava no rosto, pálida. A mãe queria ouvir romance toda hora ou folhetos da Guajarina, onde achar? Andava pelos vizinhos catando este e aquele, agora lia A Condessa Cega, A Condenada à morte, lia com muita pausa, rendendo, retardando o mais possível, e a mãe, pelas noites, a escutar, adeus, sono, es­cutando, nunca satisfeita, então parecia que a vizinhança dormindo escutava também. Mamãe, já é bem tarde. Acor­da o vizinho. A um resmungo da mãe, continuava, O galo já cantou, mamãe. Que tem o galo com a leitura, boa merda. E assim, folha a folha, ia lendo com o galo can­tando, já tinha gente cá fora aparando água da torneira.
Conta no dedo, tirante os folhetos, bote dúzias de ro­mances que leu, que a mãe ouviu. Aquele-um grande, em fascículos, olhe a altura deles, pesando mais de quilo e meio, leu todinho, quando acabou uf! a goela queimava, ardia a língua: Ponto Final, mamãe. Aqui bem pingado. Pelo tanto que padeceram, ela e ele bem felizes. E nós? Diabo! tu não saltaste as folhas? Parece que saltaste, sua sem-vergonha, o pouco tempo de tua leitura não casa com a porção do livro. Não vejo mas apalpo, sua sem-vergonha. Tu saltaste!
— Um aí entre os seus sem ser de estudo, tem? To­mara que não, senão me agarro nele, tenho de ler perante a mamãe até o ponto final, e babau novena de São Rai­mundo, adeus, rua, roda, cabeça no portão, e atrasando a roupa, ai! acaba me caindo a língua da boca... Já me corre é um frio aqui por dentro da espinha. Também a
D. Imaculada, essa portuguesa da estância, que é que tinha só de emprestar um só dos dela? Mas não! São em língua francesa, me diz. E olhe, no que acabo de ler, devolvo. Inda ontem devolvi pra dona, uma cara-de-onça lá de Curuçá, um mas desconforme! (carreguei o bicho num paneiro, e olhe [53] o tamanho peso! E escute eu dizendo para a D. Imaculada:
— Pois me deixe ver o francês de seus livros. E ela: —Suspeitando de minha palavra, menina? Suspeitando? É assim?
Os dois irmãos? Onde que mais senão no mundo? Pas­savam, esta e aquela viagem, nos monarcas do Lóide, e dei­xavam um sapato, um perfume, inveja e fogo nela, de segui-los. Nunca deixavam que ela fosse no cais. Por quê? Porque não, respondiam. A bem da verdade, só um mesmo, o mais velho, deixava assinzinho as coisas em casa, o outro, o mais novo, nem “Bênção, mamãe?” Só mandava retrato, em cada porto tirava um. O mais velho? Tempo já que não passa por Belém! A última que veio? Já não dizia macaxeira, dizia aipim. Nem jerimum, era abóbora. A mamãe babada. Filho bom como aquele? Quem que mais viajado? Felizona, ditosa mãe de semelhante filho. Andando que anda pelo mundo, sofreu um arranhão a índole do Imbiriba? Quem te disse? Por que... olhe que o Rio de Janeiro é que é encan­tador de maridos alheios e de filhos, pois de toda aquela encantação, Imbiriba nem sinal. Assim como saiu de dentro da mãe, assim é dentro do mundo. Um agrado, sempre dei­xava, ou mandava, um corte, um cartão, Quer ver? Jus­tinho na hora da aflição de não achar nem nas frinchas da mesa um bago de farinha, e já pensando pedir uma sopa no Santo Antônio, chega da América do Norte aquele lenço de seda, todo-todo amarelinho, tão bem apreciado, de se pôr na cabeça, passado na gema. O de comer? Não tinha? Mas não chegava o lenço? Vamos torrar, mamãe, a gente oferece na janela da filha do italiano, sim? A brabeza da velha! De tanto jejum desmaiando, passa e repassa o lenço no pescoço, até com uns orgulhinhos de faceirice: Agora isto! Tu que te atreva. Que a velha cegou e entrevou, disso, até hoje o mano não sabia. Ela não quis que mandasse dizer, proibiu, nem uma linha, sim, um recado sequer, um sopro no cais. De minha parte respeito as vontades dela. É pura seda, dizia, apalpando o amarelo, muito conhecedo­ra, coração despencando à falta dum caribé. Coma o lenço [54] de seda, mamãe. Jantando e almoçando as saudades do filho se empanturrava. Num esforço da faceirice, pedia que Lhe atasse na cabeça emplastada o lenço da América do Norte. E logo, braba-braba: Coisinha, estás engordurando o lenço, que o teu irmão me mandou, nos meus implastos, diaba! Mandava guardar o presente bem debaixo da imagem de Nossa Senhora do Rosário. Tu nunca me pega nesse lenço, sua mexe-se-mexe, não te enxere com ele, respeita o pé da santa, vê lá. Ela queria o lenço para quando morresse, nin­guém lhe visse o rosto nem por parte de sua morte olhar os vivos, fechem o caixão com ele dentro. Ora, mamãe, a senhora só quer gozar quando morrer? Ele assim não lhe manda é mais nada. Mais nada. E quando, de repente, aque­les cinqüenta mil réis? Quinhentos, espalhou-se pelo Não-Se-Assuste, meu filho mandou mas foi quinhentos. Desde os 18, Imbiriba embarcava. Tudo que mais queria era logo aposentar-se, o resto da vida então entre o peixe e a água de coco em Salvaterra. Papéis, selou, protocolou, direitinho tudo? Bem! Alto mar, meu velho, adeus, linha da Europa, linha da América, bom proveito, fornalhas, portos do mundo, muito obrigado por tudo, fundeio nesta praia, agora é na montaria em cima das marés de Soure pescando, ou debaixo dos coqueiros de Salvaterra tirando um cochilo. Belém, esta, não engolia. Na cidade, quando nada, sempre era uma dor de dente. Que a mãe ficasse em Belém, o descanso dele, santa paciência, era aquele caldo de gurijuba e o coco verde em Salvaterra, lá um domingo o gole de tiborna pelos roça­dos e fornos de farinha de Jubim. Na visão da mãe cega, onde estava sempre o filho? Onde mais se não a bordo na boca da fornalha? Mas cercado pelos anjos. Quem quisesse espiar pelos muitos buracos da barraquinha, espiasse: Tama­nha madrugada, a mãe bem rezando. Aos vizinhos: Imbiriba, vejam o que lhe deu no juízo, pois não mandou uma caixa de passas? E aquele sapato... vai buscar, não esconde o teu sapato, dos outros, coisinha! Não esconde dos outros. Ela? Ela esconde! Certa de que a filha não trazia, que [55] sapato não tinha, O Não-Se-Assuste viu foi no Natal: Da parte do filho o embrulho de castanhas portuguesas, toca a zanoia, da parte da mãe, a distribuir, em cada porta ou janela, lembrança do Imbiriba, não repare a insignificân­cia, uma, todo mundo quebrava a sua castanha de Natal, era ou não era? As restantes — toma a tua, coisinha — a mãe guardavazinho no balaio dos retalhos, guardava, até que apodreciam.
— Fez de um saquinho de castanha um castanhal pra todos.
Imbiriba, o mais velho, até que engordou, linha da Europa, linha da América, boca da fornalha, da fornalha para o ventilador e um copo de água gelada, ai! Um fôlego, um ar no bofe, enxuga este suor, não mereço? Ah, mea filha, tu veste, tu luxa mas não sabes que tudo isso é o teu irmão na boca da fornalha, aquele vagante por esses sem-conta e arriscosas e diversas paragens e onde atracava, aí da América, ali de Lisboa, lá vem carta, olhe esta encomenda. Boa noite, comadre Germina, aqui este dinheiro, de ordem de seu filho, chegava o compadre Manduca Bagre que trabalhava no cais, coitado, carregando aquela hérnia lá nele, que a hérnia? Só o tamanho, faça um juízo. Que é que fazia ainda aquele padecente no cais? Uma vez, Imbi­riba viajando, vinha da América, dormia. Quando viram, Imbiriba! Imbiriba! O adormecido soluçando, soluçando, que soluços são esses, e de sono ferrado. Sacudiram ele.
— Em que altura estamos?
— Muito ao largo.
— Não se pode mandar um telegrama pro Pará?
— Não, Imbiriba. Só pela altura de Salinas.
Pela altura de Salinas, com resposta paga: Notícias mamãe. Responda para Bahia. Que a mãe tinha morrido, o que sonhou, sim. Com resposta paga, com resposta paga! Para a Bahia. Passe, passe logo, compadre Manduca Bagre. Para a Bahia. As lavadeiras entravam, sentavam, o telegra­ma de mão em mão, resposta paga, ficavam escutando. [56] Res|posta para a Bahia. Para a Bahia. O vapor só vai pelo mar de fora. Bahia, Bahia, entre a espuma das lavagens, Bahia pelos lençóis do quarador. Tua mãe telegrafou com respos­ta paga, foi? Indagou aquela menina da roda da rua, meio não acreditando. Da Bahia só conheço é aquela senhora do sobrado, mas de um homem a voz dela, credo!
A zanoia sacudiu o vestido.
— Só esqueceu da minha, não?
— Da sua?
— Sim, da castanha que me cabia.
— O senhor nem sonhava de vir morar aqui, nem sonha­va, ora, ora. Só uma?
— Então só uma não bastava?
— O senhor que sabe...
— A metade já me contentava.
— Isso o senhor quer dizer é mais o avesso, o avesso do que diz. Me morda aqui... Não mangue de nós, que-que eu tinha então de lhe contar. O senhor só mangando. É assim o seu mau-juízo?
A zanoia espichou o minguinho e sempre ocupada em falar, agora com voz ressentida:
— Tu veste... Tu luxa... Me visto? O mais, e olhe lá! Que faço, é-é me cobrir. Me cubro, não me visto. Ao menos aquele lenço, uso? E é só a boca da fornalha? E a beira daquela senhoríssima tina, a corda de roupa, o qua­rador e entrega e cobra e lá vem na cabeça, de novo, o trouxão? Ah, não? Mas coitadinha da mamãe, sempre pagan­do inocente. Mamãe passa martírio.
Coçou o cangote, desceu o alpendre, voltou num pulo.
— Sendo que o filho mais novo? O outro? Sobre este a mamãe costura a boca. Abra só por uma curiosidade o travesseiro dela, na rede: Assim de retrato dele. É o prefe­rido em segredo. Também meu, Nosso Senhor não me castigue. O outro, meu aquele-menino... o outro? Eu, eu, se eu não fosse irmã dele, ou não sendo irmã, não fosse assim tão desamparada de feição e talhe, as duas coisas não [57] fosse para poder ser a outra, olhe, pela luz divina, que estava aqui ela se arrastando de joelho na pedra, na folha de urtiga, no caco de vidro, até chegar no cais do porto rogando a Osvaldo: Te casa com ela. De tanto que ele apaixona as pessoas. E tão sem cabeça, tão, tão! Do sem­blante? O senhor perto dele, vá me desculpando, que o se­nhor até que não é tão feioso, mas desaparece. Qualquer rapaz dos que eu conheço, comparado com ele, ponha no lado dele, desista do concurso, que não tem um. Ver um rosto tirado de um cinema. Agora me escute, tire só um cálculo:
Inteirinho escrito, escarrado, sem tirar nem pôr é um puro demônio, que eu não pague pelo que eu digo. Me coçava com galho de cuieira, me queimava com tição. No meu braço a dentada dele, bem funda, arruinou. Me levantava tanto aleive. De perder a conta a mamãe me castigando eu inocente-inocente, o aleivoso atrás da porta bem roendo caroço de bacaba roubada do alguidar da vizinha. E a tão recolhida paixão da mamãe por ele, meça! Abra o traves­seiro, aperte o nariz por via do enxofre e da fumaça e puxe de dentro os retratos, mesmo que um mágico tirando o sem-fim das fitas da cartola vazia. No que amaldiçoa, a mãe suspende ele entre os querubins. Quando eu era anjo de procissão, no meu lugar, na procissão, ela só via o Os­valdo. Isso tudo ajudou a cegueira e a entrevação dela pois tão assim tão das trevas outro mais não tem. Por que, por que eu falo? Se eu também ficava cega, entrevada? Ficava, ficava. Ele cega as pessoas, por onde passa empeçonha. Deus de misericórdia, lugarzinho naquele caldeirão, dele, lá está reservado, se já não está lá. Mas ó mano, me leva contigo, vem, me carrega!
A zanoia fez que se assustou.
— Olhe, olhe! Não leve a mal que tudo é a mea pura bestice. Eu nos mais das vezes vario, entro na corrente do meu irmão. O que me falta é eu ter uma certa paciência comigo. É, lhe juro. Aai, que às vezes me falta! Passo mar­tírio! O meu merecido não era este.
[58] De costas para Alfredo:
— Enfim, mamãe cegou por só ter olhos de coruja e entrevou porque os dois dela, meus irmãos, as pernas deles não param no mundo... Demais. Demais. Mas, e eu? As minhas pernas? Ando? Eu ando? Quando andei? Eu ando?
Insistiu pelas borboletas. Espiou o quarto.
— Um dia, um dia... Um dia entro aí dentro com um balde cheio e baldeio o seu assoalho. Me deve, pelo menos, um par de borboletas, ouviu? Onde está sua roupa suja?
— Aquela moça lá da frente, da janela de veneziana, mal aparece, mal sai... pode me dizer o nome? Conhece?
Quis dizer mais: lavas roupa da casa dela? Não disse.
— Quem? Quem?
Agora é Alfredo em silêncio, quase alheio, meio impa­ciente. Sem mais nem menos ela sentou no alpendre, repen­tino dobrou-se num choro, miúdo, abafado, não cessava. Alfredo inclinou-se, receando gente.
— Vamos, então, no Una, domingo, caçar borboleta.
Num instante, ela de pé, assoa-se, negou a mão, desceu.
Alfredo escutava.
— O remédio, mamãe.
— Remédio é aquele rabecão, coisinha! Já acendeste lá fora o toco da vela para as almas? Me carrega até ao bacio, desgraçada. E o livro? Onde tanto tempo te meteste que não trouxeste nem uma folha de livro? O Imperador Carlos Magno, não me prometeste, esta noite, infeliz? Mas a quem devo culpar, a quem? E a tua vaga na fábrica de cigarros, diabo, quando, mas quando?
— Tia Magui não traz a resposta, sábado? Sábado, mamãe. Sábado. E só quero ver quem fica então cuidando da senhora. A minha alma? Só meu corpo lá fazendo cigarro?
Alfredo escutava. Ela voltou a bater roupa, repetindo abafadamente: Sábado, sábado. Carregou água, pendurou na corda um lençol grande, lá dentro a mãe suplicava: O Carlos Magno, mea filha, o Carlos Magno.
[59] De manhã, ao seguir para o Ginásio, Alfredo deu com ela que vinha da padaria.
— É domingo, no Una. Senão borboleta, vamos ver as cobras do Posto?
Ela deitou a cabeça pra trás, apressou-se, correu, daí em diante sem uma palavra, sempre fugindo.
Alfredo, assim que saía, entrava, assim que entrava, saía.
Domingo. Viu que ela parava no canto da rua, fita no cabelo, calçada, guardando um vexame.
Esperando por ele?
Alfredo toma o rumo oposto, fugindo, correndo à própria pergunta: Mas por que fujo? Por quê? Ela o espe­rava? E aí, atrás da veneziana, na emboscada a outra! De olhar perfeito, espia, sacudindo o cabelo nas costas, a alça dá camisa escorrendo pelo braço, espiando, espiando.
Correu na casa do seu Ribeiro.
— Tem aí um romance qualquer?
— A Carne? A Carne?
— De moça ler e velha ouvir. Um. Mas bem enorme. Tem o Carlos Magno?
— Bem enorme? Quo Vadis? Serve?
Correu com o livro para o portão nem sombra da zanoia. Entrou. Sobre a tina, sem fita no cabelo, descalça, ela batia e ensaboava roupa.
Voltou com o livro ao seu Ribeiro.
— Mas já? Já leu?
— Já.
— Concidadão! Concidadão! Lhe apetece um charutinho? Domingo, a Peixe-Boi, combinado? Cada qual com a sua flâmula. Dou-lhe uma das minhas. Deixa que vou remexer no caixão do corredor, desencavar o Carlos Magno, descon­fio que tenho. De boa estante careço para desentulhar a livralhada. Esse do caixão arrematei num lote e com um único lance. Estão na minha posse desde... desde... o fim da guerra. Entre eles o Amante de Jesus. De Jesus, [60] cida|dão. Fazer crer que Jesus antes de entrar, aquela triunfal entrada em Jerusalém, foi... Cedeu aos encantos da terra? Tens visto a madona? Espio, espio, e não descubro dela sequer um fio de cabelo. Concidadão! Concidadão! Então, Peixe-Boi?
Alfredo andou pela baixa da Curuçá, apanhou a bor­boleta e chega no pé da tina:
— Cumpri ou não cumpri? Tome...
Inclinada sobre a tina assim ficou a zanoia, tirando espuma do braço.
— Solte a próxima é que é. O senhor só o que o senhor usa á malvadez?
Até que veio a tarde, na D. Januária, eivém o Curro, um bagageiro, a arrastar-se. Alfredo! Alfredo!, e salta do bonde andando aquele pretão alto e maneiro, todos os dentes na risada maciça, Alfredo meio assustado, agora abraçado, o tio, O tio Sebastião, o tio.
— Batendo este chão dos lobos atrás do teu rastro, foragido! Lá, na José Pio, naquela campainha, aquela maça­neta, tudo debalde, me enjoei de apertar e bater, ninguém. tudo trancado. Bordejei pelo vizinho, indaguei que indaguei, canso de tanto indagar. De ti nem um traço, me informei na Ruy Barbosa, as primas abriram na reclamação: que de ti nem um adeuzinho passando de bonde pela janela da casa. Mas assim não, Alfredo! O remédio era eu ir agora lá no Liceu indagar de tua freqüência por lá. No Curro, as três vezes que fui? Tudo debaixo de tranca. Andei catando, catando e dei na José Pio com aquela moça debaixo da jaqueira. Atrás da jaqueira a moça só mostrava a cara, dizer a cara, minto, só os olhos e uma parte do cabelo, só os olhos.
— Só os olhos?
Alfredo se lembrou da formiga taoca que fazia o tio irresistível, Os olhos da Zuzu. Era?
— Atrás do tronco da jaqueira só o par de olhos olhan­do e bem miúdo. A modo que à míngua de uma roupa, [61] não mostrava o corpo. Só os olhos. Disse o teu nome, ela com o dedo que não, me respondia que não, não sabia de quem se tratava. Falar não falava, no que olhava, tirava os olhos, só o dedo conversava. Mas no pouco que deu pra ver nos olhos dela faiscou que te conhecia, sim, sim, embo­ra acenando que não. Que te parece?
— Vou lá adivinhar, titio? Na jaqueira? Só olhos? Não era efeito da formiga, tio?
O tio fingiu espanto, garboso, consentidor, de repente
— Aquela que mordeu o senhor. A força que lhe dá! Não era?
— Tu, tamanhão que estás, metido ainda com aquela formiga? Bem, e então? Não lhe disse? Cheguei ou não cheguei a tempo? E essa cara amarela e esse esvaimento, meu sobrinho? Por que não toma um batatão, me andas é bem puxado!
O tio numa encadernação! Pé-de-anjo no alvaiade, calça branca talhe de Leônidas, camisa urucubaca quebran­do tigela, paletó de burro quando foge, gravata pegan­do fogo, palhinha, o tio escorrendo o seu piche, sua altura, suas caminhadas na Amazônia.
No portão da estância, paga-lhe os dois meses de aluguel e lhe escorre na mão uns trocadinhos.
— E depois, meu sobrinho, e depois?
Alfredo, agarrado ao portão, cuida que o tio não veja o quarto, não espie a estância por dentro, não aviste os urubus já ali tão inquilinos.
— Me deu na vontade de levar comigo na viagem um almanaque da César Santos com o nome dos quarenta remé­dios da casa. Pode que eu tenha uma precisão é só correr na lista, mando aviar. Me arruma um?
— Mas não custa ir na farmácia. Vai mandar aviar os quarenta remédios? Demora em Belém?
— Chegar, virar, o repente de te dar a bênção e azulo.
— Não baixou pelo Arari?
[62] — Vim que vim me arriando aí de muito mais altura. Não era em Belém o nosso encontro? E dela? Tens noticia? Tens escrito?
— Dela?
— Dela, sim, tua mãe, menino!
O tio mentia? Calavam-se, embaraçados.
— Do Maguari, Veio? Nunca se soube mesmo que fim levou aquele Dr. Edmundo no búfalo, titio?
— Até agora... Uai, que lembrança essa?
— Pelo menos numa conversa, quem sabe?
E tinha um nome na boca para indagar do tio, não indagou. Calavam-se, embaraçados.
— Onde atraca o seu vapor? Ou é ainda aquele cava­lo? Um barco? Gaiola? Pontão? Fretou o rebocador Con­queror?
O tio rasgou a risada, amaciou a fala, vagaroso.
— Viajando a bordo de uma pele de jibóia... vou, sim. Pois se admire.
— Esfolou a cobra?
— A pele dela boiou rente-rente da popa do meu casco no furo do Pipixuna. Recolhi a prenda, me debrucei na borda e mandei mea voz lá pro fundo: Dentro dela sigo, meu caruana. Ao que o caruana respondeu fazendo dali por diante aquele tão bom tempo e aquela bem lisa macia maré, eu ia pelo furo, as duas beiragens se roçando uma na outra que era só miritizeiro cacheando.
— Mas então me viajando pelo fundo?
— É só me enrolar no couro, um repente varo as sete marés, no ferver de qualquer rebojo.
— Onde atracou o prodígio?
— No Porto do Sal.
— Então, vamos.
A pé devagarinho. Possível encontrar o seu Lício na Sé, ali ao pé do altar lendo o eterno livro de suas idéias ou escrevendo contra o governo e a cavalaria. E perto, [63] fare­|jando o velho, a Mãe Ciana com o balaio do cheiro. A pé? Há dias falou na Liga da Liberdade contra os Lobos.
— Seu Lício prepara o seu curare contra o governo na pia da Sé? Debaixo da guarda de Santa Maria do Belém? O governo que solte os seus cachorros. E é bom encontrar a Mãe Ciana. Quero também levar daquele cheiro dela. Mas daqui até o Porto do Sal a pé, na pátria-amada, menino? Me deixa num átimo alisarzinho o meu sim-senhor num banco da carruagem inglesa, meu sobrinho. O bonde é bom. É ou não é?
— Pois eu sou do peximetro. O andar não é seu oficio?
— Este meu pé-de-anjo me sujiga um pouco o dedão. E aqui na cidade a pé? Aqui o andar, cada braça mede légua e meia, aquele-menino.
— Agora pra onde, titio? O senhor nunca sossega? Ainda perseguido?
— Ainda secreto. Não sei se ainda perseguido. Se eu pudesse encontrar o velho Lício na Sé! Vou-que-vou me atirando prum mais longe.
— Saindo dum longe, entrando noutro?
— Antes daquele nosso encontro em Cachoeira? Me engajei num arremedo de circo pelas Guianas. Administrei a pantomima. Fazia a função de porto em porto. O barco lastreado de artista e bicho. E assim foi, e assim foi, e eu sei que entra no nosso camarim aquele gringo de um nariz! que era ver rola de cachorro, trazendo no bolso do culote um trevo de quatro folhas. Que botou o pé dentro, adeus, modificou. Empanemou. Quebrou todo o segredo de nossas artes mágicas e pantomimeiras, não dava mais certo um número. O palhaço, uma noite, veio: Sebastião, adeus. Não sei onde deixei a graça, que de hoje em diante o meu papel é correr essa Costa atrás dela, a ver se acho, de novo, o saleiro que perdi. A trapezista, uma ruivinha de papouco, muito exímia, caiu na rede de um contrabandista, já levan­tou-se de barriga, no prazo tem as dores a bordo, o barco no largão brabo de fora. Vento! Tu lembra da Prisca em [64] Santana? Assim fui eu. A aparação do umbiguinho? Me coube a proeza. Nesse dito instante escapole da corda o macaco que fazia o número com o palhaço e tibum! N’água como se atrás do palhaço. Não espicho o acontecido: Já lá me vejo é guiando aquele comboio de gado, ai! Que coitadinho gado tão do magro, tão do triste, tão nos ossos, que eu me dizia: Esse gado? É devera ou visão desta para­gem? Guiava a um grama de ouro por dia. Bem. Entrego, dou conta dos meus flagelados e já venho de proa em riba do Maguari. Quando em Cachoeira? Eu me indagava e assim no corta-volta vinha, pois não virou a embarcação na corredeira? Doze contos de réis do meu dinheiro? O meu revólver cabo de madrepérola? Adeus. E no que, por obra e graça, firmo o pé no escorregume da beirada, Deus te livre! Então que é pium, ventou foi morossoca me tirando cada lasca do lombo, popocou tudo, o beiço inchou, inchou o escroto, arriamos o corpo no remanso e fomos que fomos, até dar com o casco e a lamparina na Goela da Morte. A Goela da Morte? Era que nem um vômito em cima do mar. Pois que saía no mar. Aquele aguaçal brabo? Só barro? Vomitava no mar. Então que avisto um barco garim­peiro bolinando. Andam aí carecendo dum cozinheiro? E já, dessalgo o mapará seco ardido, faço torresmo de um que se dizia toucinho e cadê que mea mão pegava a banda de capivara que só fazia feder? Assim de Calçoene à Guiana tudo não cabe num só postal. Trago aqui pela mochila a ripada daquela ventania, o sol, o sal da Costa Negra. Com quarenta graus e carregado de cada calombo vi o cabo do Norte. Tive um diamante na mão.
— No delírio?
— No meu exato juízo. Tive. Dizer que tenho? Tive.
Pôs a mão no ombro do sobrinho. Alfredo tomava àquele guri de Cachoeira, o tio se cobria com a espuma e os estrondos da pororoca mãe.
— E daquele enfermeiro cego? Fui guia dele. O pé, este agora acochado no bostoque de anjo, comeu dezoito léguas. [65] E tome encharcado, te sustenta na estiva de açaizeiro que aí embaixo é o precipício, rapaz, e cada um monte, de subir, quem disse? e ladeiras de arrancar de uma só vez, inteirinha, a sola do pé e aqui o folharame nos metendo na goela e nos botando das suas tripas para um lavrado seco e atolento com rastro de onça e índio e ossadas que não se sabia. E o enfer­meiro por aqueles trabalhos, acampamentos e loucuras cumprindo cego o seu ofício, cego, cego. Injeção era raro, ataduras? O mais era um sal amargo, uns sarros, umas poma­das, umas cascas, se não sarava, desencarnava. E as trinta e seis cachoeiras? Eu guiando aquele cego por trinta e seis cachoeiras. E sete ilhas, o Travessão, aquela cachoeira onde também tomba o que é o além, o outro mundo. Mais que o das águas era o barulho das almas. Lugar do muito assom­broso. Aparição de acampamentos, palhoça que não era, redes no pau que não tinha, fogueira que de repente subia e era no céu aquele penacho que Deus me acuda, todo um pessoal ali fincado, ali virou só alma catando ouro, enxer­gando diamante onde só bicho bebe. Vinham dos tachos fer­vendo atrás de ouro com que pudessem saldar com o diabo e pagar a entrada no purgatório.
— O chaveiro do purgatório recebia?
— Ouro? Quer apostar? Já não digo São Pedro... bem... Ou também não ponho a mão no fogo?
— E o diamante?
Alfredo via no tio, nos olhos do tio a explicação: Trevo de quatro folhas, os doze contos na corredeira, o guiar en­fermeiro cego, o aparar o umbigo, os quarenta de febre olhando o cabo Norte, culpa de quem? Tudo ausência de Dolores, tudo ali no duro rumo de Cachoeira, sempre atrás de Dolores pela Costa Negra, varando os fogos do acampa­mento fantasma. O tio, como se ocultasse o diamante, meteu a mão no bolso.
— Agora? Agora é pra aquelas alturas do Tapajós, vagareando, vagareando. Ou virar moquém na maloca? Índio come preto. Não come acará pixuna? Ou tirar uma linha [66] daqueles brabos meus pareceros pretos, bote um século, no Trombetas. Ouviu falar?
— E ela? Também?
— Que ela?
— Ora, tio Sebastião... E mamãe, viu?
Teme que o tio tenha visto a mãe e confirme, cru e nu, aquela verdade.
— Ou me trouxe o diamante?
O tio adota uma cerimônia, se descobre, examina o fundo do palhinha, escolhendo uma resposta, teso.
— Como sabes, não baixei pelo Arari.
— Mas vamos na farmácia.
A cada momento o tio cortava o assunto com a sua risada, atravessam o Igarapé das Almas, param na Quinze de Agosto atrás dum caldo de cana. Começa a soprar pelas mangueiras aquelazinha aragem do cair da tarde.
— E aquele seu cavalo?
— Sempre salto no que vejo. Montaria não escolho. Cavalo, que fosse meu, já tive? Por essas e aquelas foi que lá me vi num grande assado: aquele cavalo mal aparecido no Ananatuba, no pé da porteira, pois não me afoitei em cima dele, o bicho só faltando me dizer: às ordens, cava­leiro. Dizer que principiou jogando, isto não, manso até que parecia. Só que a modo queimava lenha por dentro. Num tal repente empinou, soltou aquele seu relincho, foi lá em cima, aquela altura, empinando, saltando, me agarrei na crina dele, que não te conto, desembestando, desembestan­do, me escarrou no atoleiro e foi relampeando lonjura afora como coisa que o tropel dele era no ar, na nuvem, no lavra­do do céu. É Deus que passa um caçador, me puxou do atolado. Montou no Cão?, ele indagou. Um animal do seu bom tamanho, castanho, a crina a modo.., ah sim, quando ele desembestou? A modo de uma labareda. Figure-se, era ou não era? No Ananatuba, arriba de Mocoões. Montei no que não cabia. No mais, o restante é sempre o trivial, cavalo terrestre, bicho de gente. Cavalo que cocei, a [67] quan­|tidade? Bote! Em todas aquelas cavalarias, meti o arreio, sim, arção, sela e balança de todo lugar me conhece e, não 6 o pé, meu jogo, mea montação, meu tropel é muito conhe­cido. Cobri o continente da ilha com o meu galope e a mea risada. Aquele cavalo lá da vila? Foi só aquelezinho instante.
— Que instante?
Alfredo na súbita esperança, o tio revelasse o instante em que arrebata do balcão a filha do padeiro, puxando-a a laço de dentro da saca de farinha de trigo. — O tio tem­perou a goela, esticou-se, fechou-se. Tira um espelhinho do bolso, mira o nó da gravata, o dente, o penteado. Ou só a sua felicidade?
— E o nome do circo?
— O Grande Circo Sul-Americano do Elefante Fan­tasma.
— Tinha?
— O fantasma? Só o mágico fazia ver. Tinha, sim. O mágico tirava o elefante da cartola. Diabo do trevo de quatro folhas!
— Será aquele antigo mágico que uma vez apareceu em Cachoeira comendo fogo e soltando o pombo e que fez filho na Zita Marques?
— Pois aquele mesmo! Vive agora de filar o gole nas tabernas de Caiena.
— E agora o seu cavalo?
— Meu cavalo? Sou eu mesmo.
Alfredo recolhia a indagação, cismoso, mudo, e agora o tio, no igual silêncio, aqui passado a ferro, por dentro voltava a galopar nos campos e descampos, poupando suas risadas, atalhos que inventou, lonjuras que o apanharam de surpresa, com aquela na garuna, a branca escanchada, suan­do suas alvuras na sela, pende a cabeça, pra fugir do sol, nas costas molhadas do cavaleiro, a ouvir miar a onça — onde? e os búfalos, no piri, se entreolhavam, fumegantes, e neste pé de ilha: Sebastião, me apeia aqui um pouco senão me urino no cavalo. E logo na garupa, a galope, Sebastião, [68] está cerrado! Sebastião, seu cego, olha que ninguém atra­vessa este atoleiro, desvia o cavalo da mãe de fogo ali de facho aceso no aterroado escuro, acerta o galope bem em riba da luzinha de vera lá longe, já enxerga o curral, os vaqueiros na porteira afinam viola, a dona estira-se na rede no rancho, o cavaleiro banha-a com leite escumoso tirado agorinha e já se vão com a madrugada, Marajó a fundo, desprende o cabelo sobre o balcedo, onde mijava nascia açucena, os guarás vinham ver para crer, lá está o bago de lua, as águas sonham, o barco no Maguari acende o farol.
— Oiapoque, não, Sebastião.
— Tem que tem diamante, Dolores.
— Não cobiço, Sebastião.
— É a uma panada de Caiena, e aí de contrabando o luxo é lixo.
— Ligo luxo, rapaz?
Já a revoada das garças anunciava o rabo da maré, o tralhoto espetava a cabeça na lama do mangal, para o mangal corriam os patos, cancã cantando fora de hora, cantando fora de hora, sinal, vai se dar o estampido, estron­dou, a maré sacode o rabo, subiu no mesmo estrondo, eivém, a monstra galopando o seu rebojo. Atrás do mangal, o cla­reúme da noite lambia o rosto assustado. Sebastião abre o peixe, lá fora o rabo danando as águas.
— Tu queres deste peixe, bem, sua finge-que-dorme?
Alfredo se indagava: Certo o que dizia o seu Antonino Emiliano, marido da D. Celeste, que o tio desde o Juruá até o Anajás, era só cruzando a raça? O seu Antonino Emiliano falava no adubo da África. Já bem adubada a dama da garupa? Num sovaco de rio, sentada na esteira, atrás do mi­ritizal, já bem barrigudona? Mas aqui, no passeio da cidade, o tio apura a sua inglesia, muito cidadão.
— Então o cavalo é o senhor mesmo?
— Monto em mim mesmo, me galopeio.
— O senhor tem aí que dê para um sorvete na terrasse?
— Terrasse?
[69] — Ali no Grande Hotel.
— Me livre a Virgem de Nazaré de semelhante sorvete naquelas mesas de ferro. Não estou pra um garçom: desin­feta daí, tição, não tisna a cadeira. Isto aqui não é teu cocho, não é pra teu fundilho, zé-ferrugem. E eu, por conta desta minha educação, fora do meu juízo: conheceste, bicho? fazendo o filho-de-deus amarrotar a lamparina na pedra da terrasse. Eu?
— Então saía cinza, era?
— Cinza só faço sair quando dá pra ofender. Por isso evito.
O tio elevou-se, o rosto no sol, os dentes de fora.
— Cinza, sim, por tua mãe, teus tios, pela pele da Areinha, a nossa fidalguia, rapaz, isto é pouca bosta? Põe no teu juízo a cor da tua mãe. Ou o estudo te dá brancura? Essa tua pele disfarça, sim, pegou um alvume que é do teu pai, mas o ninho onde foste gerado onde é?
Carapinha partida ao lado, tio Sebastião examina o pé-de-anjo, cauteloso, sopra da calça vincada o grãozinho de poeira como se soprasse de sua frente a terrasse do Gran­de Hotel.
— O andar a pé pela cidade chama por demais poeira, meu sobrinho.
Olhava os passantes, o bonde, com certa soberania, logo nu:
— Preferível a garapa aqui nesta portinha ah! mas ainda quanta mosca! Queres um sonho? Desengasga com a ga­rapa. Prova deste sonho (Seu caixeiro, mais um sonho).
— Ora me dê uma passagem na casca de sua jibóia... Me dê...
Pedia entre sério e brincalhão ou como se apostasse consigo mesmo. Não me trouxe o diamante? A pele da cobra tentava, sim, mas se quisesse não teria partido antes, moço a bordo, praticante de escrivão? Subia a escada do Ginásio carregando aquele rabecão da Santa Casa, a mãe, atrás, [70] em­|purrando-o, e ali na estância, pela parede, riscava a carvão itinerários impossíveis.
— Olhe que ir a boi do assim... Debaixo das sete marés?
O tio, de cima de suas viagens, do seu mistério, palitan­do o dente, olhava a cidade, alto como um telhado. Belém ouvia-lhe o ranger do pé-de-anjo e a força de seus mer­gulhos pela Amazônia?
Na sua garupa um ano por aí por esses mais longes... (este sonho é de ontem, seu caixeiro? Olhe que azedinho...)
Pedia a passagem, já levado pelas próprias palavras, como se esperasse sorte.
— Apetitou a lonjura?
— Arrisca?
— As suas primeiras voltas pelo mundo é ali no casa­rão pra onde sua opiniosa mãe lhe mandou, menino. Teima de sua mãe? Boa teima, seus tios aprovam. Sua mãe, lá no chalé, olha sempre você entrando no Liceu, todo dia, seja dia santo feriado domingo. Olhando debruçada na janela:
Lá vai o Alfredo entrando no Liceu. Debruçada na janela. Vamos pegar seu Lício, na Sé? Queria uma palavrinha com ele. Na escada da igreja a Mãe Ciana espera? Esperando?
Vararam o comércio, conseguiram o almanaque, se­guiam os trilhos do Bagé. A Sé fechada. Rodaram no largo. Desciam do sobrado, como se desembarcassem de 1680 os dois frades barbadinhos.
— Já é tarde — diz o tio com súbita pressa — estou de caldeira acesa.
— Medo de que lhe tomem a pele mágica?
A risada do tio pela praça deserta. E já sério, escondia uma preocupação, tomou um fôlego.
— Já é tarde, a maré me chama. Você me cata um dia o seu Lício pela cidade? Ou fala com a Mãe Ciana?
— Queria só uns cheiros?
— Queria dele uns papéis.
— Seu Lício?
[71] — Diga a ele que passei por aqui.
— Falo com a Mãe Ciana.
— Bem, na volta, na volta. Eu te escrevo. Na volta.
— Mas essa volta, quando?
— Vai arrancando folha da folhinha, folha a folha...
Anoitecia no Porto do Sal, tio Sebastião pulou numa proa.
— Ei! Ei de debaixo do toldo, ei!
— Chamando o prodígio?
— Ei! Ei! de debaixo do toldo, ei!
De debaixo do toldo ninguém, nem luz lá dentro; o tio debruçou-se espiando, já preocupado, inseguro, não se deci­dia a entrar.
— Ei! Ei de debaixo do toldo... com uma voz cau­telosa.
Alfredo avança pela borda, salta na retranca.
— Dolores...
Disse baixo, vendo-a na boca do toldo, como se cha­masse: Clara! Andreza! Irene! Luciana! A sombra de Isabel descendo do jirau, rabeando entre jejus e sanguessugas, e de repente sobre a solitária pixuneira em flor a lua leite da vaca Merência na panela do céu coalhando. Tantos dias repelindo o mundo e pelo mundo repelido, ali recluso nos dois, e agora na boca do toldo a embiara do caçador negro, recortada pelo anoitecer, secreta na sua alvura e silêncio, domada pelo tio na boca do toldo. Isto pagava. Mais alto que os telha­dos, o tio, era? Fez com ela o que fazem os vaqueiros pra domar cavalo, tirando-lhe a seda do rabo e enterrando no fogão? Dela só um fio do cabelo, e enterrou. Domou? O tio desenrolando a bijarruna, desenrolava a alma. Nisto, roque-­roque-roque, puxam a vela, de onde veio tanto pano? Vai su­bindo. Correu pra cima a bijarruna, larga! Só aquela, na boca do toldo, não içava?
— Até outra volta, meu sobrinho.
— Até outra volta, tio.
[72] Ia dizer: adeus, Dolores, poupou-se, como se de súbi­to só visse a prisioneira amarrada na garupa, com toda Belém nos olhos dela, terrasse, o Bosque, a janela da São Mateus, lá se iam.
Dela trazia o leve aceno, quase nenhum, a mãe alva — o barco noite adentro enrolado na pele da jibóia. Ficava a maré, prenha, espumando, lambendo o trapiche deserto e esta infrene solidão a pé pela cidade. Sem o diamante na mão.
Mais encharcada e escura agora a estância com aqueles sinos de ladainha, a zanoia torcendo roupa, o Não-Se-Assus­te lá no fundo e esse bate-boca, entre pigarros e bater de tamanco, do casal português. Já a vizinha do banheiro, ca­deira de embalo na sapata de sua porta-e-janela, dava pal­madas na perna contra os carapanãs da rua. Seu Ribeiro relia As Noites na Taberna. Vamos, rente-rente da tal ja­nela, com uma tesoura a aparar as pontas da pestana, aquela da espiã? O capitão reformado, com o facho do vespertino, queima lixo no meio da rua. No que cessa a briga do casal, chega na porta do quarto o velho, cabeludo, num paletó mendigo, o ressequido rosto em que sobrava o bigode gri­salho; recendia a cachaça e a sarro. Apóia-se na porta, tenta um espirro, dobra-se a um ataque de tosse. Para que entre a claridade dos outros quartos, Alfredo abre toda a porta.
— Seu Alfredo, o recibo. Aí no lusco-fusco?
— Lusco-fusco? Há séculos que é noite. E o portão? Conseguiu a fechadura?
O velho empunhou as abas do paletó, cuspindo para o alpendre.
— Este valhacouto? Esta estrumeira?
— Mais do que isto não é aquele ali, o Não-Se-Assuste, seu Rodrigues?
O velho arquejava, mais curvo, abotoou-se, lento.
— Veja lá se meu compadre mete mais um preço neste alcoice. Ou aparece aqui, meio pedinte meio assaltante, de recibos na mão como o outro, querendo levar por conta a [73] roupa das lavadeiras. E assim é com as três estâncias. Cuida é só das vinte casas bem alugadas, a oficina de marcenaria onde este seu criado arranca a côdea do pão, não contando a mercearia na Serzedelo, as duas filiais, o botequim no pé dos bordéis da General Gurjão, as duas vacarias, os três capinzais, os depósitos no Ultramarino... Aqui, se fecho o portão, é a barbante. Delindo de ferrugem a dobradiça. Mas todo fim de mês tenho de lhe levar o numerário. E o terreno, por baixo destes esteios, é dos Lobos. O patrão paga a taxa.
— E um barril, uma tina, para o banheiro, seu Rodri­gues? E a chave do portão?
— Guardo a relíquia na caixa de ferramentas.
— Esperando abrir com ela as portas da Divina Pro­vidência?
É D. Imaculada, gemendo sempre, a custo chega à porta, rouca, o buço espesso, as pernas inchadonas, ai meu menino, que é um moimento dos pés à cabeça, me deu cupim nos ossos, ferrugem nas veias, e já aquela mão gelada pela alma... E a filariose e o reumatismo e as dores na cabeça e as hemorragias e os resfriamentos e a insônia e a aflição pelo filho lá na América do Norte, pois não viajou clan­destino? Lá pela América do Norte, e nem uma linha, um eco, um sinal ao menos de que também seguiu clandestino para o outro país a que vamos todos nós, não é?
— O filho, Imaculada? Dará sinal.
— Nem em sonhos nem desencarnado...
— Todo filho é pródigo.
— Aquele é que nunca mais, meu senhor, uma vez pa­rido e criado, já fui teu ovo, hoje não sou mais, galinha velha, cisca noutro terreiro, xô! É o merecido que me coube. É o que sempre converso com a D. Fausta. Os filhos dela? Onde? Então lá no cinema toca as valsinhas, recordando o tempo deles quando mamavam, engatinhavam, apanha­vam... Até que enfia uma valsa noutra, aonde andam os filhos? Ganha vaia, debaixo dos assobios chorando e tocando.
[74] E as varizes embaixo e a esipra sobe-lhe pela coxa... Assim somos nós, mães, cadê os bendito-é-o-fruto? Os filhos? É próprio deles serem como são.
E olha para Alfredo como se encarnasse nele todos os filhos. Alfredo tenta disfarçar, sorrindo, o olhar graúdo. Vem a voz de cima do toldo: até outra volta, meu sobrinho! E aquela alvura e silêncio de Dolores lhe dá Cachoeira, o rio, a mãe debruçada na janela, os algodoeiros brabos florando.
— E por que aí acabrunhando o rapaz, Rodrigues? O rapaz recolhido ao quarto, nas suas meditações, ou estu­do, e invades o sossego do moço? É ele agora o muro das tuas lamentações?
— Trouxe-lhe o recibo.
— Por pretexto?
— Foi bom, foi bom. Estamos conversando, dona Imaculada. Nem meditando nem estudando. Eu só escuta­va — atalhou Alfredo sem dizer-lhes que entrassem, não tinha um banco e a rede estava armada.
— Te lastimas com o rapaz, Jeremias? Falando do teu senhorio e bom patrão? Do teu compadre que te abriu no Pará o caminho da fortuna? A fortuna em que mudamos, ah, graças a ele, graças a ele. A fortuna? A ele! A ele. Só a ele. Só a ele que devemos esta fortuna, esta osten­tação, como somos felizes! Justiça se lhe faça! Vieste de São Paulo com uma ansiosa esposa às costas a bordo do Ale­grete, já se lá vão a galope vinte e cinco anos, correndo ao chamado do compadre. Te acenou com uma quinta em Por­tugal onde pudesses morar bem a teu gosto com o teu reu­matismo ao calor da lareira e a tua tosse, já viúvo... já viuvo... meus ossinhos aqui no Santa Isabel. Sabes bem o que ele queria há vinte e cinco anos!
A velha coçava a perna, a rir, gemendo. Nem mal esta­vam, aqueles anos, em São Paulo, bate aquela carta do seu Simas e num relâmpago é tudo a bordo do Alegrete, e de­sembarcam marido e mulher em Belém de olhos no [75] calçamen|to do cais a ver se as pedras eram... Eram ou não eram?
— E não eram, menino. Calçada de ouro era a ilusão do meu marido.
— Imaculada, também a tua bagagem no Alegrete só era a tua fantasia, menina. Quem te disse?
D. Imaculada ganhou um alívio — por tratada de me­nina? — sacudia a saia.
— E de São Paulo só tenho aquelas lembranças... O senhor conhece a Bodorrada do Luiz Gama?
Do meio de suas dores e gemidos, a velha animou-se.
— Pois saiba o cavalheiro que fui vizinha da Faculdade de Direito de São Paulo. Vi o Bilac fazendo ali uma confe­rência. O Alberto de Oliveira. Namorei estudantes. Tenho um sotaque paulista. Tinha um lampião a gás bem defronte da nossa residência.
— Residência, aí residência... Também tínhamos car­ruagens, Imaculada? Me apanhaste num banco da Acade­mia? Sobra-te ainda muito daquela fantasia, menina!
Os dois velhos se encararam em silêncio, catre gado de moscas.
— A patroa aqui, moço, é o próprio vale do que cha­mamos lágrimas. Nossa Senhora das sete mil setecentas e se­tenta e sete dores. Já? Uma delícia aos pés dela. Residên­cia, ai residência — repetia o velho, a encolher-se no seu paletó sovado.
Os dois juntos, mendigos na sombra, reconciliavam-se, agora em Lisboa, no São Carlos, ouviam a Bohème.
— Imaculada, a ária. A ária! E daquelas tiradas do Alfageme? Do Alfageme? A ária, Imaculada, a ária!
A velha escancarou a boca, falta de ar, Alfredo acudiu.
— A ária, Imaculada! A ária! Vá, coragem! Ar nos pulmões, gorjeia a ária, Imaculada!
A velha tentava limpar a garganta, saía um regougo, as moscas em cima, um cão latiu no alpendre.
[76] — E a passagem do Alfageme, Imaculada! Ao menos! Foi no São Carlos! No São Carlos! O Alfageme! Oh, esse cão!
O olhar da velha — buço mais escuro, rosto de estea­rina, dente amarelo — pedia a Alfredo que não zombas­se deles.
— Nunca ouviu? Nunca ouviu? A ária?
O velho, no alpendre, berrava contra o cão.
— Não carece todo esse berro, seu Rodrigues — ponde­rou grosso o vizinho do quarto. — o cão não lhe mordeu. Passa pra dentro, Beija-Flor.
— Pois, seu Alfredo, faça a fineza de vir a nossa casa um instante para tomar conheci mento de minhas três relí­quias. Dê-nos a honra.
O velho, que discutia com o vizinho, aparece à porta:
— Mas Imaculada! Convidas o rapaz e nem lhe podes brindar com um cálice de Porto?
— Vai só visitar-me as relíquias.
— Nem um cálice?
— Basta-lhe ver as relíquias, meu filho.
Entraram. A sala, estreita, quente, janela sempre fecha­da, fedia a remédio, bolor, urina. Alfredo viu, numa lito­grafia desbotada na parede, o Garrett, o Herculano, o Ca­milo, como lhe dizia a D. Imaculada.
— Aí estão, conhecia? Ouviu falar deles no Ginásio?
— Mas nem um Porto, Imaculada?
— Meu marido, meu marido quer porque quer que abra aquela garrafa do Porto que venho guardando há tan­tos para uma data a que tanto aspiro.
— Carta do seu filho? A volta dele?
— Para lhe dizer a verdade, não sei bem. Mas com toda a consideração que tenho por sua visita à nossa resi­dência, perdoe-me não me ser possível, agora, abrir o Porto; É para aquela data. Qual que seja ainda ignoro. Com­preenda-me.
— Imaculada!
[77] — E o Eça? Também não? E o Eça? — indagava a dona Imaculada num pigarro grosso, sentando-se no baú onde guardava o Porto.
— Do Eça tenho a Relíquia sim... Mas do Herculano escolho O Bobo. Conhece O Bobo? “Meu Deus, meu Deus! Por que me desfalece a esperança?” Conhece? Conhece O Bobo?
— Que é aqui o marido dela, meu caro, o marido dela...
O velho, lamparina na mão, dobrou-se numa tosse. Dona Imaculada levanta-se, pesada e gemendo, remexe papéis, panos, livros na cômoda atulhada, apanha uma brochura já sem capa, largando páginas pelo soalho que o estudante ajun­tava, com embaraço, o nariz na poeira.
— Do Camilo basta-me este Amor de Perdição, meu menino.
À luz da lamparina que o velho, curvo e tremendo, sus­tentava, Alfredo folheou a brochura em pedaços.
— E o Porto, Imaculada? E os direitos de hospitali­dade?
— Meu pai, lá no chalé, contava sempre passagens desse livro, D. Imaculada.
— No chalé?
— Lá em casa, em Cachoeira, em Marajó, meu pai. Curioso que nunca encontrei o livro nas duas estantes. Ma­mãe ia pondo a mesa, eu ajudava a trazer as colheres e a farinha, e eu e ela íamos escutando o Amor de Perdição.
— Até a partida do veleiro? Também de Mariana?
— Papai era melhor representando o pai da moça...
— Pois seu pai, em Cachoeira? Seu pai?
— Sim, meu pai. Meu pai, uma noite na varanda do chalé, representou o Pilatos diante da Madalena que lhe vinha pedir a absolvição de Cristo. Foi o que viu aqui em Belém, no Teatro da Paz. Ele nos contava.
— Pois a varanda de seu chalé um palco e tanto, não?
[78] — Era, é, uma varanda. Papai lavava as mãos numa bacia invisível.
Alfredo reanima aquela varanda, o pai nas representa­ções, a mãe na platéia, a cachorrinha Minu na porta, lá fora, pela noite, os bacuraus em silêncio. À luz da lampa­rina, diante dos velhos, folheia, pela primeira vez, o roman­ce que o pai representava — tantas noites! — na varanda do chalé. Os três ficaram calados. As moscas. Ratos pela cozinha. Alfredo prometeu a si mesmo escrever longa carta para o pai. No alpendre, o Ferrinho tentava a flauta ra­chada.
— Do Camilo basta-me o Amor de Perdição — como que se lastimou a D. Imaculada. Ou fazia uma indireta?
— Que lemos juntos, juntinhos, lá pelos tempos da flor da laranjeira. Os tempos nupciais. Não acredita? Pelos seus olhos, seu Alfredo, não acredita que um dia fomos noivos. Te lembra, Rodrigues, da carta que mandei ao vigário da aldeia em Portugal, pedindo-lhe a certidão de batismo? O se­nhor não acredita? Justiça é mesmo não acreditar. Não?
Alfredo fez que sim, que acreditava, acreditava. Os velhos trocavam olhares de zombaria e desconfiança.
— Sim, já fomos noivos, já fomos noivos — confirmou a D. Imaculada, enxugando o rosto com o avental encar­dido, e bruscamente:
— Mas que bobalhão és, Rodrigues, a porca da vida! O menino aí conversando com dois lixos catarrentos, com um bobo e com uma bruxa. Não estás vendo o horror?
D. Imaculada abateu-se sobre o baú num grunhido longo. O velho apressou-se a mostrar a Alfredo o “cabedal das garrafas” outrora cheias de Porto, Madeira, Moscatel, amontoado a um canto da sala.
— Desse cabedal vazio já vendeu mais de dez para o garrafeiro... — troçou num gemido a D. Imaculada a coçar a barriga. Pela porta do quarto, Alfredo via a cama de ferro. De ferro! Ah, Sabá Manjerona, na tua cama de ferro recebendo, depois do ponto no cemitério, a visita celeste.
[79] Agora em tua cama de ferro, velha rameira da rua das Palhas, Deus se deita contigo.
— E o Monge de Cister, Rodrigues? Também foi no lote que levaste ao sebo para tuas águas, rapaz? Onde o pu­seste? Já bebeste o Monge?
O velho mantinha-se calado, torcendo o bigode, abo­toando-se um tanto respeitoso ou figurando-se arrependido.
— Essa senhora, meu caro visitante, tinha até ontem os seus vernizes. Mas já perdemos a esperança, lá se foi também o lustro. O verniz agora é de seus emplastros, suas pomadas, suas andirobas.
D. Imaculada levantou-se, coçando as nádegas, avançou para a litografia:
— Meu Deus, meu bem! Por que me desfalece a es­perança?
Voltando-se para o estudante, tentou um mimo na voz:
— E para o menino nem uma delicadeza temos. Nem uma delicadeza!
— A delicadeza? Mas está no baú, desmemoriada!
D. Imaculada aproximou-se do marido que sustentava a lamparina, ficaram juntos, muito sujos na sala morna e fedo­renta. Alfredo folheava o Amor de Perdição, as páginas despencavam, assim parecia que era também a voz do pai agora, aos pedaços, na sombra da varanda. Em consideração ao moço, D. Imaculada acendeu o candeeiro, apagou a lamparina.
— Lá está o estupor do pequeno a soprar a flauta ra­chada.
Sobre uns tamancos, no chão, jaziam volumes e cader­nos de música.
— Também música, D. Imaculada?
Ouviu num ar de espanto, como acordando de repente.
— Música?
— Tocava?
— Eu?
— Tocava?
[80] — Dava patadas no teclado, em São Paulo. Hoje com o dedo duro só toco as coceiras e as aflições, O meu piano agora é aquele filho lá na América do Norte, clandestino.
— Queres, agora, desenrolar como um papiro a biografia do filho, Imaculada?
— Primeiro era em arminhos, em veludos, com favos de mel criado. No dia de escolher a carreira: É o Ginásio, menino? Não. Não era o Liceu.
D. Imaculada exala um ai, corre-lhe um calafrio, apa­nha um dos cadernos de música.
— Engraxate. Queria ser engraxate. Não passou uma semana: Quero o ofício de barbeiro. Queria ser barbeiro. Bem. Melhor em cima que embaixo. Antes cabeça que pé.
— No que te enganas, mulher. Preferível pé. Menos sujo que a cabeça é o pé. A cabeça? Nem com todo o di­lúvio. Antes engraxate. Estaria servindo a Deus ainda hoje no Reduto lustrando as botinas do desembargador Serra e Souza.
Ao nome do Desembargador, Alfredo guardou um sobressalto: Via o Leônidas, com o luto de aluguel, voltando do enterro da noiva, O nome dela no jornal, a tarja do aviso para o enterro, o acompanhamento, coche de primeira. Leônidas voltava ao Ver-o-Peso, com o gogó mais fino, de repente muito emagrecido e desabou, assim mesmo en­farpelado, na camarinha do Zéfiro. O cunhado gritava-lhe:
O fato, rapaz! O prazo do aluguel morre às nove da noite. Te desenfarpela que esse luto não é teu, é alugado, rapaz! O coche de primeira... No entanto, Luciana. Algo morria de Belém com Luciana, ou da juventude dele, Alfredo, ou do que deixou de ver no mundo, ou Luciana servia apenas para tirar a limpo a idéia da justiça e da moralidade? Nem a mãe acudia com uma palavra. Aquela família, na fazenda, prepa­ra requeijões para o Arcebispo. O Dr. Gurgel advoga a Questão. Sem apelo a condenada.
— Mas deu coqueluche de dólar, menino. Lá se me foi o barbeiro.
[81] — Dólar?
— Dólar, meu menino. De dólar os caminhos da Amé­rica do Norte. O rapaz precipita-se...
D. Imaculada joga os braços para o lado, para a frente, figurando a sua incompreensão sem cura.
— Não saia da fita em série, e com o nome do Ford na boca e lhe cai nos olhos de barbeiro a vista de Nova York...
— A vista de Nova York? — indagou Alfredo se lem­brando — Onde? Onde? — de uma estampa de arranha-céus em Cachoeira — Onde, onde?
— A lenda vinha de Lisboa. Passavam por Belém, atu­lhando o porão, bandos de portugueses.
O velho se chega para o pé do estudante com voz tre­mida:
— Recolhe de um pé de meia uns escudos e lá se vai também no porão, também clandestino. Pensando que ia nos dizer adeuzinho lá de um décimo quinto andar de cimen­to e aço...
— Meu filho costumava sentar, ainda pequenote, no Dicionário de Cândido de Figueiredo e humildemente lus­trava os sapatos dos vizinhos. Não vislumbrava eu nisso qualquer vocação, senão a da humildade. Um dia vendeu o Dicio­nário e com o dinheiro compra uma escova, a lata de graxa e a banquinha de engraxate. Claro que foi tudo uma pe­chincha. Mas acreditei que fosse um divertimento infantil e mais ainda.
— Nem no cais fomos para a última bênção. Clandes­tino. Aqui a senhora D. Imaculada querendo atirar-se ao cais, bradar à polícia...
— Lá se me foi o barbeiro atrás de uma vaga nas bar­bearias da América do Norte. Não era um rapaz desajei­tado. Queres ver?
A velha levou o Alfredo pelo braço, mostrou, no quar­to, o retrato do filho junto do oratório. Veio o seu Rodri­gues) puxa o estudante para a sala, lhe diz ao ouvido:
[82] — Dólar. Atrás de dólar. O Moloch, lá, engoliu o barbeirozinho.
E alto:
— A mãe, por ter ido o filho para a América do Norte, se cobriu de orgulho. Orgulha-se por isso. Mas não desgosta que eu espalhe aos quatro ventos a sua paixão de mãe que­rendo atirar-se no rio. Orgulha-se disso também. E eu sufo­cando-lhe o grito com a palma da mão, tapando-lhe a boca. E cá entre nós. Ele não tem obrigações tão absolutas conosco. Eu aqui remendeio. Por lá, sabe lá, se sem traba­lho e, para esconder os revezes, não escreve.
E sentenciou, sisudo:
— Ambição de engraxate. Cobiça de barbeiro. Nada mais. A mãe aí a contar as cartas que não recebe, a amon­toar retratos e presentes dele que nunca chegam.
— Foi ambição? E isso é demais? Uma ambição não se admira? Justiça não é dar a cada um a sua ambição? —avançou a velha, com o seu buço e o cheiro de seus remé­dios e moléstias.
— Não se admira? Teme-se e admira-se. Correu o risco.
— Mas, Imaculada, não tentaste correr pelo cais gritan­do doida que a polícia arrancasse do porão o clandestino? Não foi preciso te agarrar os pulsos? Debater-me contigo? Não lhe chamavas de cabeçudo, de desnaturado?
— Era da parte de minhas fraquezas. Teme-se e admi­ra-se, no que eu temia, eu dizia: Vai! me rasgando por dentro. E o digo pelo respeito que tenho pelo moço aqui presente. Tu também não arriscaste, Rodrigues? Não está­vamos sossegadinhos em São Paulo? Não me arrastaste até cá só pra me sobrecarregar de moléstia e aflição? E por cima...
— Imaculada...
Alfredo quis fugir. Também ele, na idade de partir, de arriscar, ali também culpado, sedento de graves faltas, sór­didas ou nobres aventuras e desastres que não tinha. Ou não merecia? O menino, aí fora, calou a flauta?
[83] — Olha, Imaculada, antes lustrando as botas do Desem­bargador.
— Mas eu culpo o Correio, sempre digo, acuso o Cor­reio, o Correio! O desviador da correspondência do meu filho, o Correio dissolve amores, lares, a compreensão entre as pessoas. Meu filho escreve, escreve, o Correio declara guerra ao amor filial.
Seu Rodrigues traz Alfredo para sala, segreda:
— E nós neste alcouce e ele em Gomorra e sem duas linhas, uma só, ao menos o nome dele dentro do envelope e isso bastava. Em Gomorra.
Ergueu o braço, numa voz surda:
— Engolido.
— Se ainda vive, quem sabe... — resignou-se a Dona Imaculada.
— Qual nada, Imaculada. Para semelhante barbeiro, tão cedo a morte não afia a navalha. Só sei que de mim o rapaz nada herdou. Talvez levasse na bagagem ou na moleira fan­tasia da mãe.
Voltou-se para a velha:
— Ou tu querias deste tamanhinho na ventura, como engraxate no Reduto, daquele tamanho na desgraça, desafian­do o arranha-céu? Barbeiro mas em Nova York e sem tra­balho?
— Olha, Rodrigues, já estamos bem defuntos, é o que penso e tudo porque não respondemos às cartas dele que o Correio extravia, ele já nos julga no outro mundo. Enfim não vivemos mais. Não vivemos mais. Já acabamos. Aqui só vagamos como almas. Céu, inferno, purgatório, nos barram a entrada, por isso é que ainda andamos cá, rastejando.
— Com a alma do teu marido lavrando na marcenaria? E não comes e não urras com os teus setecentos achaques? Não vais à latrina?
— Uma rolha na boca, Rodrigues, a rolha, que tuas palavras fedem, rapaz. Onde está o teu acatamento à visita?
[84] D. Imaculada fez sinal a Alfredo, que o desculpasse e falou com súbita rapidez:
— Viver é só pensamento, é só pensamento. Só de pen­sar que ele está vivo, certo estou que está, e está conosco e isso me basta. Não sacudo o braço contra os reveses.
O velho empertigou-se.
— Moral cristã contra a qual me insurjo. Não! Tenho as minhas ponderações contra o clero. Já leu?
Deu ao estudante o Palavras Cínicas.
Alfredo abriu a brochura com a preocupação distante. A velha, resfolegando, sentou-se no baú onde guardava o Porto.
— Resmungo um pouco contra os padres — esclarecia o seu Rodrigues. — Antes engraxate. E em que é que Deus pode ser servido?
— Antes engraxate, antes engraxate... mas desde que ele partiu, Rodrigues, ó deserdado, nunca mais fizeste o cabelo. Nunca mais. Antes engraxate. Nunca mais. Mas o teu cabelo nunca mais!
Sobre o alguidar ao pé do velho crucifixo, A Relíquia; atrás se cobria de pó A Velhice do Padre Eterno. Em cima da Bíblia o latão da farinha.
— A Bíblia sustentando a farinha?
— Já não guardamos farinha pois que não há grão a guardar.
— Comem com pão como bons portugueses.
— Comíamos. A d’água esburacou-me o esôfago, fura-me as tripas, empedrou-me o fígado, meu amiguito.
Alfredo pedia licença, a sala abafava, pedia licença, ia escrever para o chalé, nisto batem no portão, vai o velho, logo volta, abre a janela, fecha, vai no alpendre, vem amarrotando uma carta. D. Imaculada quer segui-lo, cansa-se, abatendo-se no baú:
Acalma-te, Rodrigues. Mas que te sucede? Teu cora­ção te salta pela boca, rapaz! Primeiro o teu coração. Pri­meiro o teu coração. Põe-te um freio! Senta-te!
[85] Seu Rodrigues do quarto para o alpendre. Alfredo apa­nha-lhe a carta: sem selo, em mão.
— Mas o portador, Rodrigues? Corre atrás do portador. Não te disse nada?
— Entregou-me só, não me disse nada.
— A morte, Rodrigues?
— Era um senhor de idade, Imaculada.
D. Imaculada tentou erguer-se. Peso. Peso nas pernas.
— Já não me levanto mais. Já não me levanto... Não é o recibo da água, Rodrigues?
Alfredo, a carta na mão, esperava.
— Eu leio, Rodrigues, eu leio. Dá-me os óculos. Eu leio. Sim, ela não lia melhor que ele? Sempre foi assim, beira
da cama, romances, poesias, jornais, cartas, documentos, anúncios de cartomantes, charadas. O assassinato de Sidônio Paes não se lembrava?
— E a letra? Reconheces a letra, Rodrigues? O moço tem a carta nas mãos. Lê por nós.
Alfredo apressou-se a entregar a carta ao velho, que recusa. A velha pede, de mãos postas:
— Não, meu filho, ampara-nos. Leia-nos por fineza a carta. Talvez nas suas mãos, por misericórdia! se transforme em boa notícia. Agora, neste minuto, nem ele nem eu sabe­mos ler.
Alfredo foi lendo alto. A seu lado, a velha espalmava as mãos no rosto.
— Metido inocente? Estava inocente? Repita, por favor!
— Culpa dos colegas portugueses? Como?
— De álcool? Álcool? Quando? A data! Como? Repita, repita, menino!
— A fábrica onde trabalhava? Escreveu? Escreveu? Não te disse, Rodrigues? Não te disse? O Correio? O Correio! E esse frio dele, terrível, moço, conte, leia! Onde? Mas onde os cobertores dele, onde, onde?
O velho temperou a voz:
[86] — O tom, ao que parece, me soa um pouco falso, Imaculada. A carta é um tanto enigmática. Não diz nem onde está, em que cidade, em que prisão...
— Prisão, Rodrigues? Diz prisão? Assinou o nome dele, seu Alfredo? Diz prisão? Leia de novo. Prisão? Assinou o nome dele, seu Alfredo, Manoel?
— Manoel.
— Quando volta ou se volta? Mais nada? Diz prisão?
— Mais nada, D. Imaculada.
D. Imaculada leva as mãos à cabeça. Apressadamente o velho apanha a carta de Alfredo, some-se no quarto.
D. Imaculada parecia alheia, ausente. O silêncio continuou. Seu Rodrigues vai ao alpendre, volta, cai-lhe do paletó o último botão, procura no soalho. Não encontra, levanta-se, inclinando-se para Alfredo:
— Assim é que estava escrito? Atolado na Gomorra? E por trás das palavras? Talvez com o fogo se esclareça o enigma. Só? Inocente? Culpado? Barbeiro? Trabalhando? Sem trabalho? Antes engraxate?
D. Imaculada, como carregar as pernas? Arrasta-se até o oratório, sopra as teias de aranha de cima dos santos, rezou. Retirou debaixo do latão a Bíblia, apanhou os óculos, abriu, abriu no Jó.
Alfredo pedia licença. Escrever para o chalé. Conversar um pouco, ou longamente, com o menino da flauta. O velho, dobrado no sofá, soluçava?
No portão, olha para a vizinha na calçada. Toda de branco na espreguiçadeira, desgrampeava o cabelo. Logo escutou da sala do casal os gritos da D. Imaculada: onde puseste a carta? A carta? Onde puseste tu a carta? O velho veio ao alpendre:
— Já lá vão vinte e cinco anos! Vinte e cinco anos! E a meus pés: Perdoa-me, Rodrigues, perdoa-me... Contigo, no teu perdão, beberei o meu quinhão de fezes...
[87] Alfredo tentava acudi-lo.
— E não perdoei? Perdoei ou não perdoei? Ou foi só da boca para fora? Pode-se perdoar? Neste mundo cabe?
— Ateasse fogo em si próprio, desgraçado! Esse o teu perdão! Do teu perdão me sobram estas pernas, esta barriga podre, este charco, magnânimo!
Alfredo recolheu-se, o cão ladrava, a carta era invenção do velho? Lá está ao pé da torneira o menino com a flauta.
— Candoca, dormir, que amanhã é a tua obrigação, meu filho!
Alfredo corre:
— Me dá a flauta por um dia para ver onde se conserta ela, sim? Rachada?
— Esta? Conserto? Rachou, adeus. Vou assim mesmo fazendo que sopro. Já vou, mamãe. Tem uma chave inglesa?
— Pra quê?
— Desatarraxar a flauta.
— Que que vocês cantam quando trabalham?
— Nós? Cantamos.
— O que cantam?
— Nós? Cantamos. Toda noite uma barata dorme dentro da flauta.
E o que vocês cantam na rua, sopras aqui na flauta?
— De tudo isso, Zezinho, só sei que cantamos.
Chegava a vesguinha lavando um prato na torneira.
— Pode que ao som da flauta rachada as borboletas apareçam, não?
A moça não respondia.
— Os ferrinhos cantando no meio da rua, já ouviu?
A moça correu ao grito da mãe: com quem que estás aí? Com quem?
Aqui dentro sem querosene para a lamparina nem as primeiras palavras para o chalé. Descia pelo punho da rede a pele de cobra com Dolores, a retranca vibrava, o tio saca o paletó, enfia-se no toldo, sai de tronco relumeoso, pé solto. [88] Empina-se na proa como uma bijarruna, e lá do toldo a branca fecha na palma da mão os rumores de Belém, o sopro que vem do largo da Pólvora, da São Mateus.
No alpendre o cão ladrava. Embaixo, ao velório dos sapos, fermentava o Não-Se-Assuste. D. Imaculada, gritando, pedia a carta queimada. Mesmo que me queimar o filho, incendiário, incendiário!
A um rosno do marido, D. Imaculada vem ao alpendre:
— Rodrigues! Rodrigues! Aquela verdade, não a mere­cias, que só a merecem...
O cão ladrou. Aqui dentro, este outro cão, por dentro morde as correntes. Alfredo colou o ouvido para o banheiro da vizinha, agora um coaxo, um ruído no zinco — as osgas?
— voltou ao portão, a rua deserta, renteou a tal janela, sabia lá se aquela insone não espiava, agarrada à sua espreita.
Entrou.
Cochilou, ouvindo um som de flauta, chovia borboleta? Quem tomava banho na torneira? Pela tosse, é a D. Fausta chegando.
— Meu piano, hoje, D. Fausta? Fale baixo, D. Fausta.
— Mas que é isso, minha filha! Que te deu na cabeça!
— Baixinho, baixinho, D. Fausta. Bem baixinho... Meu fogo D. Fausta.
— Te cobre já-já com a toalha, variada. Te entrou o demônio?
— Olhe, D. Fausta, um dia de são nunca, contrato a senhora pra tocar no meu aniversário, sim? Mas só valsa, sim? Mas só-só valsa. Sim?
Tu que teu costume é sossegada, se de repente um homem? Se entra agora aquele que roubou o São Miguel, menina?
— Ora, D. Fausta, na falta do santo, me roubava, que é que tem? É o piano e a flautinha do ferrinho, contrato assinado, sim?
[89] Abre-se a porta, a porta do quarto dois, corre a menina com a toalha para os fundos, o cão ladrou, deu um vento nas palhas. Vergada ao peso da esipra, das varizes e das valsas, D. Fausta fecha a torneira.
— Boa noite, seu Alfredo, hoje muito estudo?
— E a senhora? Muita valsa, hoje?
— Muita esipra, muita variz e muito assobio, meu filhinho.
Alfredo vai com a lamparina apaga-não-apaga caçando os carapanãs da parede. Alumia os nomes a lápis e que o surpreendem, como se não tivesse sido ele quem escreveu:
Luciano. Andreza. D. Amélia. Ana. Diante da teia de aranha, imagina o tio e Dolores na pele de jibóia sete marés adentro.
Viu-se nos telhados, no telhado da espiona. Afasta a telha? Vê? Nada viu. Tudo lá embaixo era sono, lá dentro escuro escuro. Espreita o Não-Se-Assuste adormecido. Com a carga desse escuro desce na calçada, banha-se nas estrelas, entrou. Saiu. Renteou a barraca da zanoia, espiou pela fresta: sentada no mocho ao pé da rede, à luz da lamparina, a zanoia lia. Um ler pausado, sonolento, a lamparina então que fumaça. — Mais devagar, que teu defunto pai não está na forca, não dispara a língua. Repete esse pedaço, joça!
Lá pela frente aqueles dois reabrem o bate-boca. Incen­diário! Até caírem juntos na cama de ferro, com a cinza da carta cobrindo-lhes a fadiga e o sono. Dentro da flauta dorme a barata, cochichou Alfredo a si mesmo e com um não pequeno espanto, de repente:
— Mas foi que subi mesmo esse telhado? Foi? Não posso render a zanoia na leitura?
Enrolou-se que enrolou-se na rede como na pele da jibóia.
[90] — Ando que ando mas nem calcule! fazendo já mais de semana rezo para encontrar o senhor em casa ou onde mais seja, contanto que lhe pudesse dizer uma palavra, que espe­rança! sempre o senhor saindo, nunca acertava sua hora... hoje Deus me ouviu. Não ardeu todo instante, estes dias, a sua orelha? Até um recado pela filha daquela senhora cega e entrevada, aquela, que lava, a zanoinha... Não? Mas não recebeu?
No portão da estância, Alfredo tira o quepe, põe o quepe, corre o dedo pelos botões do uniforme, o sol em cheio na rua deserta. A desconhecida abre a sombrinha, sus­tenta o ar de mestra puxando os efes e erres, aqui e ali o “vê-lo”, o “encontrá-lo”, um “quiçá”, repleta de condicionais. Por tudo isso uma velha fadiga no rosto ossento e luzidio, o olhar pedinte, a boca muito usada com um dente de ouro, o peito comido, toda num antigo vestido de missa que a ver­gava um pouco. Alfredo, no seu embaraço, vira-se para a janela da italiana. Fechada. Atrás da veneziana, ela espiava?
— Pois só assim seria, professor. Esperaria chamá-lo professor, pois não? Por que não? E então? O senhor consi­deraria o obséquio que me faria. À tarde, sim, das duas às quatro, o senhor concordaria? É que o senhor sabe, compen­sar não compensa, poderia lhe contar os anos que sigo ao peso deste meu lenho de viúva. Imaginaria isso? Os alunos, pagar­zinho mais, não poderiam. Quem nos dera! O senhor sabe, o magistério — este, então, nesta redondeza e particular de primeiras letras — só consumir é o que faz, e sempre. No mais, só Deus.
[91] — Mas não sei se...
— Não, não se escuse, não se escuse, pois não sei? Pois não sei? Basta o que tenho tanto escutado e escuto a respei­to do senhor. Sei que encontraria uma pessoa conforme sempre sonhei. O senhor. Por isso mais que tanto troquei a perna e apurei a vista atrás de encontrar o senhor. Foram dias! Nada! Meu Deus, seria o moço adivinhando que raste­jo a sombra dele? Foi. Mas quem que não teima, eu? Eu? Vejo que é verdade.
— Que verdade? Por quê?
— O senhor. Tão boa ausência do senhor, que todos fazem! Estou por ver igual. Das referências no tocante ao senhor fosse esta sua criada anotar no caderno traria o ca­derno cheio.
— Mas de mim? Eu?
Alfredo falou alto para a janela fechada, para a veneziana da espiona. A senhora espalhasse pela rua as impre­vistas coisas que ia dizendo.
— De mim? Mas eu?
— Quem mais? Não é nem uma nem duas que sobre o seu nome só jogam flores.
Alfredo quis rir, teme ofender a senhora, olhou, de novo, para a janela fechada, querendo correr até lá, como fazia a doida Antonieta: Soprar.
— Não se escuse. Não se escuse. E é só o que lhe rogo, a sorte de minha escola à tarde nas mãos do senhor está.
Suando debaixo da sombrinha, um tanto arquejante, a senhora se fazia mais descorada, a boca num tremor, um olhar cheio d’água.
— Vamos um pouco até a esquina, D. Nivalda? A gente pode ir até lá conversando mais um pouco.
Queria passar defronte da janela, agora fale mais alto, professora, e puxou pela senhora, a fazer-se rogado, então que os louvores choveram, alto. Lhe deu vergonha, certo espanto de si mesmo, um impulso de fugir ou saber que a espiona escutava ou confessar-se diante da professora.
[92] — Não se escuse. Não se escuse, sim? Conceda-me a preferência, sim? À tarde, o sr. não vai ao Ginásio.
— Mas e as lições em casa?
— Sim, sei, ah, isto a... Estudioso que tanto o senhor a... Pensa que não sei de sua aplicação e aproveitamento? Só que imagino é o seu futuro... Conceda-me um pouquinho de suas tardes, sim?
Aqui, professora, isto, bem defronte da janela, repita mais alto, D. Nivalda.
— Não se escuse. Socorra-me. Deixe está que o santo de minha devoção, o meu S. Francisco de Canindé, lhe aju­dará em tudo que de bom o senhor ambicione neste mundo, assim seria. É uma caridade.
Foi alto, bem-bem defronte, e a italiana? S. Francisco de Canindé, abra a janela, escancare. Embaraçou-se mais, estou descendo muito, a professora não se calava.
— Pois, D. Nivalda, pois bem. Pois, hoje, logo às duas.
— Hoje, seu Alfredo? Já hoje? Ah!
Certo estou que espias e escutas, atando o cabelo, o colo suando, muito italiana, aí atrás, teu rosto clareia a sala. A professora, tirando um alívio, agradecia. Num instante, pensativa, tentou fechar a sombrinha, fechou os olhos contra o sol, confusa.
— O senhor compreenderia?
— Como, D. Nivalda?
— Me fio que o sr. não me coloque acima das minhas poucas posses, Sr. Alfredo, um preço...
— Um preço?
— O senhor compreenderia...
Alfredo caminhou, afastou-se da janela, olhava para o capinzal doutro lado, galante professora! A senhora mudava de voz? Mais sem sangue, mais ossuda? Receias que te roube o dente de ouro, esse que agora mostras, pechincheira?
— Ah, sei que muito educado o senhor é. É só ver as suas maneiras... Ah, tão satisfeita que estou, tão-tão feliz por ter andado tanto à sua procura e travar conhecimento com [93] a pessoa do senhor. Então, hoje, conforme a sua vontade, o que o senhor por bem decidir. Às duas? O número, já sabe, mas olhe lá! chegando lá, não ponha reparo em nada, que tudo ali é somenos, tudo aquilo foi, hoje não é, tudo teve um luzimento, agora... E o chão da casa ainda é dos Lobos. Fui mulher de comandante, hoje viúva. Pela manhã dou aula na escola estadual. Ando é tão consumida, mas tão extenuada, Deus que lhe conte. Aqueles meninos? Olhe que puxam muito, não por muito impossíveis, é que desemburrar os outros vai emburrando o desemburrador. Aqui estou eu como um espelho. O que já perdi de fósforo e hemoglobi­na... Então até lá, Sr. Alfredo. Espero o senhor. Sua palavra é palavra! Ah, que foi Deus! Uma libra de cera é quanto vai ganhar o meu santo, sete dias de vela acesa, sim, e eu rezando sete terços.
Alfredo, agora só, cobiça o sótão da esquina de onde podia dominar as baixas de açaizal e capim, talvez o telhado da italiana, ali está a chave de abrir a madrugada. Sótão em que se refugiaria, noites, incomunicável.
Voltou, passo tardo, roça a janela na esperança de abri-la, de súbito, aquele rosto, plena Itália, ou lá dentro se entupia de macarrão? Veio devagar, mestre-escola de D. Nivalda, correu para o portão, que duas da tarde que nada nem hoje nem amanhã! Desceu pela Curuçá, seguindo a empinação dos papagaios, ganhar algum dinheirinho? Um dez mil réis se delindo, sem saber se é ainda dinheiro, de tão emendado, das poucas e sovadas notas que circulam neste chão? Qualquer trocado valia, sim, que os borós do chalé rareiam e convém trabalhar. A pé pela São Jerônimo, um tostão chorado, abaixo de suas poucas posses, chorosa professora, agarrada professora. A professora pedia a seu santo, azeda por ter de adular, o dente de ouro dizia, viúva de comandante. Algum. Para onde vão as ambições? Que éter ambição nesta cidade, ao pé do Não-Se-Assuste, já que Luciana nem morta lhe devolve a chave? Que prometia o Ginásio? Parsifal falava em perdão. Mas quem? Quem?
[94] Quem a obra do perdão começa? Onde? Que será conseguir? Aonde aquele dia que pensou ver nascendo na volta de Mari­tuba? Que fazer com estes passos, este olhar, este estar sozi­nho e arder para abrir essa janela e dizer: Como vai, meu irmão?
Vai em busca do ferrinho, pedir-lhe a flauta rachada. Decifrar a esfinge, sabendo que dilacera mas é preciso. Agora é o forno, este, pela rua, queima o sapato, assa a cabeça, os urubus revoam, chamejantes; os papagaios preci­pitam-se no sol. Daquele monte de lixo, no meio da rua, que o reformado queima quase toda tarde, sobe a italiana.
A fumaça o leva para a escolinha da D. Nivalda, mais só, mais desguiado, um pouco réu, ia-não-ia, onde está o teu espinhaço?, dizia Magá. Não se escuse, não se escuse, de repente levado ao pátio do Ginásio, no redemoinho do trote, cuspido, batido, e o angélico a seu lado, Parsifal casto e sangrento, o rolo com o Pereirinha; começa a subir do liceu a grossa poeira em que iam lentes, matérias, unifor­mes...
Ou passa pela D. Dudu no Curro e lhe pede perdão? Queres café? ela responderá e será tudo, no modo sempre de esquecer a falta (dele e não delas), que perdoar, não, ofensas e ingratidões atocha no bolso da saia a cadeado e segue gomando ou pregando botão nas ceroulas do Bon Marché. Feliz, ferozmente feliz por ver nas sobrinhas o que previa. Feliz nos olhos mas por dentro? Que sei da D. Dudu?
Ou apanha nalguma parte a velha parteira. Ou Zuzu, nudez atrás das jacas, destas a mais madura?
Tudo isso subitamente se apagava, e de tudo isso tinha perdido o melhor gosto, o sumo mais secreto e necessário. Desperdiçava sempre. O último gomo da jaca, naquela tarde, comeu? O caldo de gurijuba, já agora sabe o quanto não saboreou.
E vai, se vê defronte da taberna da Brasiliana, o balcão deserto; não, aqui está o jacamim, lá o sótão com os tajás [95] na janela, os pombos no telhado num burburinho de quem carrega do mar as sedas e os perfumes do contrabando.
Apanha o bonde, salta na D. Januária, segue até à beira do rio, os olhos no barco que suspende a vela, num cami­nho que o leve até o campo onde está a mãe, desfalecida, ou adormecida, e dela afasta o capitão Edgar, afasta o afogado, carrega a mãe nos braços, apaga a surra que lhe deu o tio Antônio, a morte de Maninha, as noites na dispensa. Será que ela atravessa o rio a nado e magma que um dos três pretinhos da extinta pororoca é o filho?
Mas agora, neste toldo, aqui na estância, neste quarto, cala a flauta, ferrinho, calem-se, portugueses, durma mais um pouco, mãe.
Deu com o número no tabuado que escondia a velha casa lá dentro, duas janelas, rente da porta a torneira enchia a lata da vizinha.
— Professor, professor! Milagre de São Francisco de Canindé! Em cima de sua palavra! Esteja a gosto, mesmo que em sua casa, só que não vá reparando. É aqui o nosso... Mas, meninos, meninas! Não se levantaram? É o vosso pro­fessor. Oh!
Corre o olhar pela sala, a mesa ladeada de dois bancos onde sentam os alunos maiores. Nos banquinhos afastados, rentes da parede, os menores, todos agora de pé. Virou-se para a porta, a vizinha acabava de encher a lata e espiava. O relógio, encardido e gasto, dá duas pancadas. Foi olhando os meninos do primeiro banco, seis rostos melados, de maloca e jirau sobre o rio, todos numa curiosidade festiva ou re­ceosa. Dois lhe pediram a bênção. No outro banco, defronte deles, três meninas, exagerando a surpresa, o agarravam com o olhar, tiravam e retiravam o pé das chinelas. E aquela, na pontinha do banco, cabeça baixa, vestido azul, riscando o caderno com o lápis, menos de pé que vergada, a mais alta? Ajeitou o atracador no cabelo curtinho, os olhos no caderno, sem se dar conta. No que a professora corre e atende à porta onde batiam palmas, a aluna ergue um [96] ins|tantinho o rosto para a janela, morde o beiço, deixa cair o lápis, abaixa-se a apanhá-lo, agora folheia o caderno, tirou um santinho, séria, solitária. E Alfredo, sem dizer “sentem­-se” no seu silêncio: A Roberto? Na escolinha da D. Nivalda? Roberta!
Sentem! Sentem! — pôde falar, engolindo o seu es­panto, transpirava vexame. — Sentem.
A aluna da ponta do banco é a última a aceitar a ordem, a sentar-se como a dizer-lhe: Quem tu és, Zezinho? ajeitava o vestido atrás, abana as moscas, logo numa compostura meteu a cabeça no livro.
— Professor, são do primeiro e do segundo... O senhor sente aqui na cabeceira da mesa. Não repare a mesa velha, é só risco de lápis e tinta, pertenceu à minha família quan­do naquele tempo se jantava com o bico de luz em cima da minha avó. Pois sente. Use o rigor que carecer. Olhem, me­ninos, o moço freqüenta aquelas salas do Ginásio. Por muita consideração da parte dele, veio e aqui nos dá a honra. Obra do São Francisco de Canindé! O máximo respeito. Mas o máximo! Não desgostem o moço. Não desgostem o moço.
O professor sentou-se, mal pôde crer: Roberta! Apanha o caderno:
Caderno do aluno Argemiro Gonçalves.
Externato S. Francisco de Canindé.
Roberta! Por trás dos seus livros, as três alunas lhe sorriam, como se compreendessem, à maneira delas, a reco­mendação da professora: Não desgostem o moço. Não des­gostem o moço. De lá do corredor espichou-se a cabeça:
— Um instantinho, professor, que é já que lhe façozi­nho o café, sim?
— Não, não, professora. Vamos começar pelo ditado, um tema? Que a senhora acha?
D. Nivalda, saco de café no braço, veio de mãos postas:
— Que a senhora acha! Que a senhora acha! Ache o senhor é que é, que assumiu a cadeira, professor! Assuma. [97] Assuma. De suas luzes tudo espero. Máxima atenção e res­peito, meninos e meninas.
Voltou com a rosa no copo d’água, colocou no meio da mesa. Espalhou-se o cheiro de café. Uma das meninas, por divertir-se, apertou o nariz. A outra cutucou-lhe: Olha ele aí te olhando. Alfredo fingia-se atento ao caderno, receando o olhar dos alunos. Apanhou um Mário tão muito usado, capa roída, faltavam folhas, lhe fez recordar, por quê? o Di­dico destampando a lata d’água, onde guardava os peixinhos vivos que iam servir de isca na pescaria à noite. Também o professor Chiquinho em Cachoeira. Naquelas tardes apren­dia letra gótica, as ginjas lá fora, o máximo divisor comum aqui no quadro, de repente um passarinho. Acabem com isso. Acabem com isso, seu pio parecia dizer. Aqui os me­ninos por dentro muito agitados nem se mexiam. E o olhar das três meninas? A primeira tirou uma pétala da rosa e comeu, meio escondido, e assustada. Aquela gorducha, cari­nha de lua, sorrateiramente imitou a professora com as mãos postas. À terceira ralhou com as sobrancelhas e se pôs de pé:
— Professor, licença de cuspir lá fora?
Descansado então o andar dela! Volveu com o sol no rosto — escondeste o meu lápis, Zul? — disse por dizer, pis­cando para os meninos. A que comeu a pétala, empoada, escurecendo os cantos da boca, se movimentou, queria pedir, não queria, guardou-se, os dentes fáceis, e um colo de don­zela que irrompia sobre a mesa. Aqui na ponta, cotovelos fincados, mexia os lábios:
Una, duna, tena, catena
Undurinha, undurau...

Roberta olha o pêndulo, olha o fio da lâmpada forrada de papel crepom, logo se recolhe ao caderno, virando as fo­lhas, quanto mais se fazia de aluna menos era, sempre em si mesma, recebendo pelos ares o seu ar de moça.
[98] — Pois bem, um tema. Vamos?
Que vou dar a eles? Este ditado, o meu espanto, o logro do Ginásio, a visão da mãe no campo, a morte de Luciana, a briga com o Pereirinha, o Não-Se-Assuste, a parecença do que não sou? E por que Roberta? Eis que me surpreende, por quê? À presença dela, por quê? Este sobressalto, me expliquem.
Lembra-se, lembra-se: A menina no meio do milho verde, o pai voltando do Pinheiro. Roberta, morreu o cavalinho. Acabou-se o carrossel. Roberta, morreu o cavalinho. Aca­bou-se o carrossel? O vento arrancava a empanada do car­rossel. Roberta, no meio do milho verde, abria as espigas.
— Prontos?
Abriu o livro, esperou que os alunos preparassem os ca­dernos. As três meninas com os olhos nele, submissas, atentas a uma condescendência dele, a um olhar fora do regulamento... A morena de beiço roxo agitava o peito de rendas sobre a mesa, a esperar que ele só ditasse o que o seu olhar pedia.
— Pronta?
Pela primeira vez falando com a Roberta. Ela só fez foi abrir o caderno com fina má vontade, escreve na primeira linha o nome do Externato, datou, borrou, vira a folha, inter­rompe para mudar a pena, tira de dentro do caderno a flor seca, esmigalhou sobre o livro, de novo o nome do Externato, a data, e esperou de cabeça baixa. Já cheirava a moça o seu cabelo? Cheirava mais a milho verde. E o rosto do pai, es­curo de barba e mágoa?
Era um velho carrossel de oito lugares, muito desarran­jado, quatro cavalinhos, um carneiro, três assentos de pau, rodava no Pinheiro, girou pela Estrada de Ferro, um ano atravessou a baía de Marajó e virou em Soure. Soure ou Salvaterra? Não sabia bem, O dono, um gringo de óculos e chapéu colonial, O pai de Roberta tomava conta. Tinha o cego e sua flauta, um pequeno tocando viola, assim iam. Um domingo no Pinheiro quebra de uma vez a geringonça, o vento arranca a empanada; o pai de Roberta veio no trem [99] guiando o cego, o menino vende a viola na viagem, e a flauta, que rachou, era aquela nas mãos do ferrinho?
Debaixo da chuva, os sapos morando nos cavalinhos podres, acabou-se de uma vez o carrossel. Roberta, morreu o cavalinho. O cego espera-espera-espera o trem de Bragan­ça, tirando esmola na estação. O menino pegou um trole para Benevides, foi comendo doce de gergelim com pão torrado. A barba do teu pai, Roberta, crescia a olhos vistos, agora pelo cais, na Rua 15 de Novembro, escovando urubu. Tua mãe costurava. Roberta, de cabeça baixa, como se visse longe, no Pinheiro, o carrossel quebrado.
— Prontos?
À primeira palavra, “Amanhecia”, que ditou, repetiu mentalmente: Roberta. Roberta. Ditava abafado, o carros­sel quebrava, escoa-se o sobressalto, em cada palavra inda­gando, ditando sem firmeza nem pausa. Entre as letras salta aquela menina de carrossel e milho verde, sempre a pé-descalço da José Pio, no bando dos moleques apedrejava a casa das Boaventuras, a foguete brincando juju nas toiças do largo mas já tão tamanha noite! E foi numa tarde, jogavam bola no campo do Astor-Vila, a relâmpago trepa na mangueira vizinha, desce no telhado da Brasiliana, no meio dos pombos... Te capo, pirralha, gritou a moura, entre os seus. tajás na janela, coberta de cetim, com a moringa na mão. Te capo, pirralha!
— Como, professor? — perguntou um aluno, aconchean­do o ouvido.
— Firmamento. Fir-ma-men-to. Vírgula.
E pela esquina da roda dos rapazes o vem-vem-vem do capinzal e fundos de cerca com a doidinha no meio, criando asas, sempre na berlinda, chispando pela baixa mais que uni moleque, este conta isto, agora é aquele, o que um não viu por outro visto, ao balcão da taberna devorando aquelas anedotas e fugindo rápida à mão cabeluda do taberneiro, caindo de costas no saco de milho. E a D. Brasiliana, virando a registradora: Essazinha? Essa? Esse botão tirado do galho?
[100] Já nasceu teimosa? Deus que me perdoe, que a pixota nem caroço ainda grelou no peito, mas de tudo aquilo, assim e assado, todo o ré-mi-fá-sol de tudo aquilo que só vim a saber direitinho foi bem mais tarde, ela, engatinhando, já traz na ponta da língua, de mecha acesa... Essa lombrigui­nha é-é de nascença! Boa viagem, no teu descaminho, es­tradeira. Ela? É-é... Nascida, batizada na pia do Dia­bo, é...
E soprou no ouvido dele.
— Não, D. Brasiliana! Uma menina? Tão menina assim?
D. Brasiliana sobre o balcão fechava o peignoir, com o jacamim no pé.
— Por ser tão menina assim, não nasceu de racha, meu anjinho, não? Aleijada? Ela tem parte com a Cabra-Ca­briola. — Cantava: Quem não me conhece chora.
A moura ajeitava os papelotes do cabelo, apanhava o leque entre o sótão do contrabando e o bonde que a levava à Alfândega e ao Foro.
— Disse Mãos, professor?
— Mãos, sim. Não tem pressa.
Debaixo destas palavras, quebra-se o carrossel, o pai entre as palhas do milho verde: Roberta, era uma vez o cavalinho. Borbulha a voz da taberneira: É-é, de nascença... O. Brasiliana se benzia, escarrava o nome, o diminu­tivo. Diminutivo. Aqui soa bem, nesta gramática, entre os condicionais da D. Nivalda. Sua aluna! De tinta, sardinha, giz e aritmética! Te capo, pirralha! O pai trazia um ar fla­gelado, seca de 15, de onde veio rapaz sempre assim, nin­guém mais taciturno. A mãe falando Ceará: chora não, Roberta. Aquele brinquedo da peste havia de ir para as pro­fundas, chora não.
Parou de ditar, ouvindo repetir-se o nome sujo, já es­crito no quadro negro, nos cadernos, na tabuada cantada dos mais pequeninos, severamente anunciado pelo relógio, es­corre na torneira, gravado no coraçãozinho do cordão, esse aí da nossa aluna. Palmas na porta, as vozes da taberna:
[101] — D. Brasiliana, D. Brasiliana, ponha termo nesse apre­sentado!
— Mas o vestido da menina, monstro?
— Eu?
— Quem mais, seu cachaça? Quem mais aí ao pé da lenha? Isto aqui não é cepo de sangrar menina, monstro! E tu, paturi danisca, fora! Somezinho já daqui, onde é que tua mãe anda, enjeitada, que não te escalda num banho de malagueta? Ou já te botou na rua, mal-desmamada?
— Mexa com a mea família, não, D. Brasiliana. Me avie logo o meu sal.
— Teu pai, onde está, que não te sova? Alguém já te conheceu, sua apressada? Já? Já?
— Mexa com a mea família, não, D. Brasiliana. Pese é meu sal.
As vozes somem. Os guris da cartilha coaxavam baixi­nho a tabuada. Alfredo suspende o ditado, vai à janela, a papoula sangra ao sol, volta olhando para Roberta. Ela, no meio do milho verde na porta da rua, os zebus passa­vam: “Vem comer milho verde na mea mão, zebuão!”
— Bem. Ponto parágrafo.
E baixo para ela que se mostrava indecisa:
— Noutra linha.
Aqui de azul, caneta amarela, pés quietinhos na sandá­lia, junto ao caderno o santinho e os restos da flor seca. Roça a perna um repente no vestido dela, um repente, sem querer, afastou a cadeira. Roberta. Fazia o ditado como se não escutasse, a letrinha esquiva, roda, carrossel, o cego tocava flauta, o guri a viola, o pai armava e desarmava o brinquedo, aqui a aluna suspende a cabeça. Tomando fôlego? Brusca contrariedade enxotando as moscas. Franziu a testa à caneta amarela. Cedo, com um s ou dois s?. Risca-­não-risca, apressa-se a escrever a seguinte que o mestre re­petiu, sem saber que ele também repetia: Roberta. Roberta. [102] Veio o café, de novo o sobressalto, a roçar no vestido, de repente lá de fora eivém!
“Gombra ouro guebrado!”
— Vamos vender o dentinho de ouro da professora? —cochichou a rechonchuda, já a mão na boca, ao ver-se pilha­da pelo mestre que lhe sorria.
— Ponto final. Marquem no ditado dois substantivos.
— Como, professor?
— Dois substantivos.
— Dois?...
— Dois substantivos.
— Ponto final?
— Ponto final.
Nisto corre um menininho para o pé do mestre:
— Professor...
Encabulou-se, o fura-bolo, de unha escalavrada, pela orelha e nuca. Virou-se, num pulo voltou ao seu mocho, ficou de pé, aí espirrou, “Santinho!” foi a aula em coro. Veio vindo, meio arrepiado. Alfredo lhe pegou a mão:
— Diga.
Esfregou os olhos, quis soltar-se daquela mão.
— Anda. Me diga.
Então deu no aluno uma alegria:
— Esta noite papai matou.
— Quem?
Arrastou o tamanco, piscou muito, abaixou-se para apa­nhar um alfinete:
— É o meu! — falou a menina que lhe tomou o alfinete.
— Vamos. Diga. Você me anda um tanto cabeludo, não? Não precisa de uma escovinha?
No que falou, Alfredo viu: era vexar mais o aluno e se lembrou daquela máquina, no barbeiro do Ver-o-Peso que lhe pelou a cabeça.
— A mucura.
— Mucura?
[103] — Papai matou. Esta noite.
— A tiro?
— De espingarda.
— Comia pinto?
— O meu pintinho. Quer ver, olhe.
Diante da aula em silêncio, puxou do bolsinho umas penas, logo muito cuidadoso, guardou as penas correndo para o seu mocho. Tornou a ficar de pé, a costa da mão pela testa suada. A morena da mesa. Licença, professor?, acudiu o menino, enxugando-lhe o rosto com o lenço lilás que ele trazia de enfeite. E cochichava-lhe: Deixe está. Deixe está que te trago um pintinho, sim? Onde escalavrou a unha?, e tudo isso um pouco também por faceirice, realçar-se diante do professor. O menino ganhou desembaraço:
— Ajudei a jogar a mucura no rio. Amanheceu foi cheinha-cheinha de formiga.
— Cheinha-cheinha? — A morena escapuliu, num fal­so espanto, se deu conta, vexada, voltou à mesa, abriu o li­vro, a colega lhe tocando com o cotovelo, baixo:
— Mas, pequena?!
— Que foi? Que foi? Que foi que eu fiz?
E fincou o nariz no livro, embaixo da mesa as pernas sem sossego. Aqui consigo, Alfredo repetia: Que foi? Que foi que fiz para meter-me nisto? Roberta no mesmo alheamento, assinou, enxuga o nome com um pedaço de giz, a última a passar o caderno às mãos do mestre, sem fitá-lo, já ocupada a guardar os restos da flor dentro da aritmética. A seu lado, as três colegas se cutucavam e sorriam com o livro aberto sobre o rosto, a espiar o mestre que corrigia os cadernos (Que foi? Que foi que fiz?) num vago desamparo por não decifrar o que os alunos, nos seus ditados, queriam ou não puderam lhe dizer, este instante, este instante em que Roberta fecha na aritmética os restos da menina e crava os olhos nele.
Varando a madrugada — meio-dia, uma da tarde — e o tempo não suspende! Pé-d’água! Nesta arca deserta, o [104] quadro-|negro, os banquinhos. a mesa dos adiantados; não se salvou um bicho nem coberto de lama entrou desgarrado um só aluno! Nem um-nem-um, O professor? E esse vapor cobrindo a mangueira, onde a papoula? As goteiras jorrando, o telha­do estalava? Vão chegar, de novo, os tucanos? Depois das moscas, a praga de formiga de fogo? Belém soçobra, os alu­nos chegarão a nado.
Ninguém.
Aqui dentro gordas moscas grudam na parede, na rosa murchinha do copo, no quadro de São Francisco de Canindé. O relógio (quebrou a corda) é aquele trazendo o navio que resfolega e atraca, prancheou a porta. Bufando no aguaceiro, o fantasma de azulão e gorro.
— Amanajás, o teu chá, Amanajás. Esfriando na mesa.
— Lesa? Estás lesa? Ora, não amole.
— É um cozimento da flor do cravo pro teu resfriado, Amanajás. Teu defluxo não passa...
Jogando fora o chá, Amanajás recolhe, como uma trom­ba, aquela brutalidade tão familiar, tão necessária para que tivesse a exata sensação de que vivia. Coçou a corcunda e se abriu num bocejo, como um jacaré no balcedo. Sacudia o casaco roto e sebento. Esfregava as mãos sujas, de unhas ferozes, no nariz achatado. Ao peso da corcunda, batendo os tamancões de galego, sentava-se no banco, junto do portão de casa. Tira o cachimbo. Na primeira fumada, a careta, ta­baco péssimo. Com aqueles olhos espremidos na cara sebosa, permanecia ali um vagabundo de gravura. Ninguém no largo. Ninguém, não, urubus.
(E esse estrondo surdo no dilúvio? Bonde?) O moço des­cerá? Não, que agora só entra peixe e caranguejo. Os sapos ocuparão a escola.
O comandante apagava o cachimbo. Acendia. Ajeita o boné de viagem. Caminhões roem o silêncio, mais pesados e lentos como esta chuva. Uma zoada longe. Vozes vagas ondulando na ramerame do subúrbio. Tropeçam carroças na rua esburacada. Poeira, cheiro de gasolina, urubus no lixo, [105] moscas sobre o bagaço de cana atrás da garapeira. De novo o silêncio. O comandante vai engolindo a fumaça, e os rios que viajou, e os gaiolas que guiou e afundou, empapado de chuva, mormaço e cana. Boné, corcunda, cachimbo, taman­cos, brutalidade recolhida como uma tromba, o comandante Amanajás, o marido. Senta-se ou abre o relógio, berra contra o relógio, investe contra os meninos da escola estadual. Seis e um? Quatro e dois? Sete vezes setenta? Noves fora? Que letra é esta, seu patetinha? A dordolho sarou? Antes cego que soletrando errado, meu come-terra, meu comedor de barro, a tua especialidade é aquela terrinha do Valha-me-Deus? Lombriga? Adjetivo ou substantivo? Depressa, antes que ela te saia pela boca. Que é gramática? Tu, aí, que estás com já-começa. Tu, aí, moleque, me traça no chão com o dedo do pé, inchado de bicho, me traça já-já um ângulo ou a grade do purgatório. Isto é aula ou bicharal?
— Amanajás, lá fora te chamam.
— Mentira! Queres que eu saia da sala! Mentira!
O comandante levantava o braço, os meninos sérios, uni papelinho passando pelas costas, de mão em mão. Jaburu Ja­buru Jaburu.
A professora fingia corrigir cadernos e já lá fora, no Minerva, o botequim da quadra, o Comandante bebia, até que lhe cortassem o fiado. Voltava fumegante contra a instrução pública, pois tamanhos pais-d’égua estudando! Decretei feria­do neste bicharal, abre a jaula! Bando! Embora, embora! Ponto facultativo, rua!
— Amanajás!
Dava as costas, arquejante, suando. A corcunda, nem dez carregadores de piano carregavam. E lá do fundo o sussurro:
Jaburu. Jaburu. Avançou, brandiu o cinturão, a barriga de­ fora, a meninada debandava.
— Amanajás!
Ficava só, atulhando a sala com a corcunda, num re­gougo.
— Amanajás! Amanajás!
[106] A professora enxotava a picota. Os meninos na rua, à espera que o Jaburu desmoronasse na alcova, ao peso de mau cachaça. (O cochicho nesta chuva: Jaburu. Jaburu.)
— Mas, meninos, voltem. Para dentro. Pelo amor de Deus, seus diabinhos, entrem.
— É ou não é? É ou não é, Nivalda? Isto, aqui, é ou não é uma goela da Volta da Tripa?
— E tu és o... O? Deus que me perdoe, Amanajás. Passaste o ungüento?
— O o quê? O o quê?
Avançou, esbugalhado, apanha a cadeira para atirar na mulher, escorrega na casca de manga.
— A seus lugares, meninos. A seus lugares.
A professora cochichava.
A aula recomeçava. O comandante no soalho, estirado. adormecido, babando. A professora assumia a cadeira, terço da mão, os alunos principiavam a cantar a tabuada — ciu... silêncio.., não acordem o Jaburu... corria o cochicho.
— Ensaiar o hino.
— Mas agora, professora?
— Quem atirou a casca de manga? Quem?
— Já podemos começar o hino, professora?
De bruços, encalhado no soalho, o antigo comandante de gaiola, donos dos rios, barrancos e trapiches, todo de branco pelo tombadilho, o navio embandeirado na manhã das regatas. Os meninos começavam a cantar.
Pé-d’água! Nem a nado chegam. O moço, que parece sempre no ar, nem por esta janela entra como um tucano perdido.
Ninguém.
O chuvaral arremessa a gaiola, arremessa o fantasma, aquela primeira viagem.
— Entramos no Amazonas, Nivalda.
Amazonas? Debruça-se. O rio? Ai que me dói a barriga, essa água a bordo, onde o elixir paregórico? Bom é viajar trancada no camarote, o rio passando dentro do sono, passam [107] os estirões, as vilas mortas, os trapiches caindo, as várzeas escorrendo maré.
— Juriti, Nivalda.
Os lagos pelo verão morriam como gente.
— Mas é um lago, Amanajás.
— Um lago?
O tambaqui boiou debaixo do tauarizeiro. Pousava no pau do aparizeiro o pato brabo. O pica-pau subindo na tata­parica. O comandante no trapiche: “Arpoaste o pirarucu? Gordo? Dá cá a ventrecha.” De pé, soturno, o velho arpoador esperava.
— Tua filha afogou-se? Onde? Boiando entre os mururés, de seus cabelos pulou um tralhoto? Foi? Pirarucus, quantos arpoaste este ano? Toma este xarope. Uns anzóis? Leva também umas pílulas, rapaz.
O arpoador calado. O arpoador fechado. Trazia nos olhos um breúme de águas velhas, de noites no lago, son­dando o corpo da filha. E agora, por que vamos neste paraná, roçando o fundo? O francês? Esse francês a bordo vai mesmo ficar aqui, com sua mochila e seu cabelo louro? Nesta beira d’água? Fincar aqui o seu aborrecimento do mundo, mas vai? Chega daquele mundo, minha senhora. Nem ninguém. Nem ninguém. Aqui, sim, aqui, sim. Encontrei, meu comandante.
— E a França?
— Fique com a máquina. Tire retratos de sua senhora. Só me mande um carretel de linha.
(A máquina? Um dia, abre a mala do comandante, sal­tam retratos de Manaus, Itacoatiara, Porto Velho, Manaus:
Belarmina, Matilde, Dulcinéa, Emília, Mercedes, Nhanhá. Manaus.) O comandante espremia limão-caiana na cachaça, comia na folha do remo o pedaço de tambaqui, o beiço queimava, mete a montaria no meio do matupá, de repente o tiro, a surucurana debaixo da folha, foi bem-bem na ca­beça, e o sonho no camarote, os gritos do francês por entre as canaranas e a acordar com a cobra debaixo do sovaco, de [108] quem? Dela ou do francês? A surucurana a enrolar-se no bico do peito, debaixo desta folhagem aqui sempre oculta, ai Amanajás! a cobra! acudam aquele francês coberto de for­migas de fogo, escorrendo no jirau como um camaleão morto pendurado na vara. Apitava o vapor no paraná, este com a sua língua amarela e seus dentes de canaraua comia já o defunto, o alvo, o louro.., apitava o vapor, eivém para a proa, era sol era chuva, o navio atracava no arco-íris e de novo, lá do fundo do paraná, alvinhos, no jirau os ossos do francês. E de tarde no barranco dá de frente com o gavião. Menina! Deu bem de frente com o gavião? É ale­gria, sua arara. É alegria. Bem de frente com o gavião? Insone no beliche com aquele gavião esvoaçando, desconfor­me, arrepiado, sinistra alegria, “até nunca, comandante”, desenrola o carretel, desenrola, me estende a ponta da linha, francês, ao menos, até onde era aquela beira d’água?
— Faro, Nivalda.
Onde pajé é mina? Aqui um ente, por encantamento, choca pedra um caroço, um qualquer caroço, choca, é só o pajé querer. Mas até agora nem caroço nem pedra. E de pajé nem um taquari, um suspiro, um chocalho, uma toada, só a noite com os bichos piando, e aquele guarda-sanitário tirando do morto, que chegou no batelão, o fígado. Das palhoças se entornava um tal luto, um não ter ninguém nem nada! O rio, muito em si mesmo, ressumava seus remansos, e dele fugia a terra, fugia geral até onde são índios. Os uruás, e
Maria Pixi
Acariquiçáua
Uruparanã
Sapucuá
Mirixi e os lagos de pirarucu de Macuricanã, monta­nhas, cachoeiras, castanhais. Nem caroço nem pedra. Tinha era aquela mulher em trânsito, sentada à porta da Casa Amigável, unicamente entregue à sua espera, intocável nas [109] suas sedas. Olhava o rio, esperava. E das montanhas a noite, as velhas tribos ali acossadas vomitavam. A viajante aqui na cadeira de couro de jacaré, sozinha, em busca de sua viagem, armada de solidão e espera, a ouvir saindo de Ma­naus ou de onde nunca se sabe o navio que vem buscá-la. Nem caroço nem pedra. Mas a modo que debaixo dela rezavam os feiticeiros? Está nos cuidados da D. Maria Jar­delina da Terra Santa de Faro? Trespassada pelos caruanas? Chocava?
Nhamundá. Ali acolá é mesmo o espelho da lua?
— O lago? O lago?
Mas olha primeiro um instante esses miudinhos de beira-rio carregando lenha para o gaiola, carregando, carre­gando lenha, como vão vergadinhos! Correm pela prancha, o pé maneiro, ágeis, curvos ao peso das achas, seres de uma estranha espécie, saídos da selva de repente, astutos e velozes. Deles a voz? não se ouvia. D. Nivalda atirou-lhes um pedaço de bolacha, passem um sebo no ombro deles, soprem no nariz deles para que tomem um fôlego. Me deixem com a beira de minha saia enxugar o rosto de cada um? Carre­gando lenha. Toda noite, Amanajás?
— Queres ver o Espelho da Lua? Corta um dos teus peitos, icamiaba, mergulha no lago e traz do fundo aquela pedra.
— Amanajás, tira da mão dos meninos a carregação de lenha. Santo Deus! Toda a noite? Dá ao menos depois uni bando lenha. Toda noite, Amanajás?
Carregando, carregando lenha. Cortar o peito, que nun­ca lhe secasse o peito, pois tomem o peito, curumins da lenha, e pela madrugada, toda a madrugada, aqui está, ma­mem, mamem.
Do fundo do lago subiam os curumins verdes carregan­do lenha.
— Juruti, Nivalda.
Assim de longe, visto do gaiola, era que era uma paz. tudo ali se aninhando, onde mais verdejante? Vá, a prancha! [110] suba o barranco, o olhar daquele um, tão de lá de dentro, a mão na ilharga em cima de uma dor ou do que queria e não sabia dizer, o olhar falava; aqui e na cova, faz dife­rença? O ar fervia. A febre aqui é verde. Debaixo destes folharais o delírio. Se despenca do barranco, chia fumegan­do na maré.
— Óbidos, Nivalda.
A ladeirinha, chão de tijolo, macio, da pensão, o advo­gado fala num Cícero, num Bevilaqua, na palavra precatória. Dois turcos se destratam na língua deles, tocou a cometa no Forte, aqui o frade acordou berrando; a índia! Emprenhei a índia! Emprenhei a índia! Aqui morreu, entre­vado, o caixeiro-viajante. A velha dona do muiraquitã que não mostra a ninguém. Na cabeça do trapiche, o advogado, cruzando as mãos, declama: o crepúsculo! E aqui por dentro do sono, o rio, engasgado com seus abismos, na goela de Óbidos. A posse do Intendente com aqueles bogaris no jarro cívico. Vem o advogado: aqui em Óbidos é na farmácia do Fonseca o nosso Agora. Quer ver na parede da casa os desenhos do Príncipe Adalberto da Prússia?
O urutaí gemia, onde? gemia era aqui dentro, o seu ninho, bem fundo, neste sossego, tão, que desassossegava fundo. O navio se aproxima do trapiche, prepara a prancha
— para o trapiche ou para que a noite, que se debruça ali na beiragem maciça, entre a bordo? O farol da proa, di­reito na face da velha avó, ilumina a maloca destruída. Nas. redes da terceira, na popa, quem batia os dentes de frio da. febre? O navio apitava, caçadores atiravam longe, o coman­dante desceu.
— No jantar temos paca, Nivalda. Paca.
Em Porto Velho, um espanhol ele falava, feito de todas. as línguas; a professora queria passear na Bolívia.
— Não me levas só por causa das tuas bolivianas?
Dizia por um ardil de fazê-lo viajar um pouco mais. acima e perceber nele essa mal contida vanglória de suas. aventuras em tantos anos em navio da lama. Em [111] Madeira-|Mamoré, trilho do trem, dormentes ou cadáveres? Encalha no Purus. Nem repara na corcunda, ia crescendo nele, nem na brutalidade dele contra os marinheiros nem nas horas em que se trancava no camarote: Não estou aqui, Nivalda. Morri. Arma aí fora a tua rede? Purus? Madeira-Mamoré? Acre? As viagens se misturam, agora desce para Oriximiná. Ele quer abrir o corpo do meu pai morto, tirar o fígado do meu pai, comandante, o fígado do meu pai, não deixe, não deixe, não deixe! O fígado do meu pai, comandante! O rosto da menina! Aqui no braço dela o rosto da menina, o coman­dante a abrir os braços e a acenar que despeça a menina, o baque da prancha, o resfolgo da máquina, o estirão abo­canha o navio, entra lenha, entra lenha, o outro tempo! E um monte, na beirada, de ninguém-sabe-o-nome e de onde vinham? Defecados pela selva, um monte pedindo passagem, passagem, passagem! De onde vinham? Passagem! Passa­gem! O estirão, já longe, comia os sem-nome. E que ansie­dade a dela para ver os ingleses, turistas do Hildebrand, traje a rigor a trinta e quatro à sombra. O comandante en­grossava a voz, a arrancar da goela o seu inglês. O postal dos estreitos de Breves. O postal do encontro rio Negro x Amazonas. Os macacos pendurados no mastro. O bando de jacamins viraram o jabuti, iam comendo. Se rega­lem com a vossa embiara, bando de jacamins, mas me deixemzinho do jabuti só o fígado. O fígado, sim? Con­trato assinado, sim? Manaus. O jantar no Hildebrand, traje a rigor a trinta e quatro à sombra. Aqueles se­ringueiros e fiscais de renda sabiam comer à mesa? Se o inglês gaguejava uma, duas palavras em língua da terra, apressava-se o comandante: E o caboclo? Prestava? Os nos­sos bebedores de chibé, matadores de bicho, pais de ter­reiro? Civilização? Quando? Quando? Como a dos senhores, hein? Quando? E aí Nivalda intimamente protestava, o marido exagerava, o marido, às vezes, zombava dos grin­gos. Os caboclos? Quem mais que eles? Quem? Ao certo não sabia o que pensava o marido ou nunca pensava. Ela [112] meio admirava os ingleses, as inglesas, ah não! Muito brua­cas, ou se assustava. Saibam comer na mesa deles, autoridades locais, repórteres de Mares e Rios de Manaus e Belém. Muito termo, minhas senhoras da nossa sociedade, ou não sois a prata da casa? Dos sábios que aqui se embre­nhavam, o marido dizia o nome de cada um, meio enro­lado.
Lambendo o beiço, alagado de suor, no seu rigor, o comandante voltava da civilização para o seu gaiola e tibum! dentro d’água, nu com a sua corcunda, bufando no rio, era de madrugada. Os urutaís gemiam. Assim viajava uma, duas, três, sobe-e-desce o Amazonas. Carrega em Alenquer cas­tanha. Desce no jirau: as lavadeiras de castanha lavavam, uma a uma, escolhe as boas, separa as podres... Aquela tapuia (mascava tabaco ou o seu desprezo) era nos olhar, e cada um de nós sentia o arpão. Febrentas, estropiadas, silenciosas, lavavam, batiam a castanha com aquele sol ser­rando as nucas. Vão carregando os paneiros de castanha. Amanajás, a castanha? De quem? Os mururés cingiam Alen­quer no paraná, a cidade boiando do mururezal, o promo­tor público, de emboscada, se fazendo lobisomem, a assaltar as lavadeiras mais novas debaixo do trapiche, à noite. Sobre carregou o gaiola, fedor dos couros, redes entre cachos de banana, cestos, baútas de folha, e por cima da lenha: De quem aquela harmônica? Monte de periquitos, o porco foge a galinha salta n’água, na falta de capim o burro tenta co­mer a varanda da rede ali atada ao pé dele; reclamando contra a baldeação se levanta de sua tipóia molhada o cego sem guia, barbudo, ossudo, a abrir a boca como se fosse lançar as sete pragas, a fatal profecia. O gaiola metendo lenha, não cabia mais uma acha, carrega, descarrega, o guincho baforando sobre a terceira, enrola, desenrola os cabos por entre as cordas das redes, roca-roca-roca... Que aconteceu que parou? Cerração? Onde? Em que altura? O navio no escuro rente ao verde escurão. Ainda a reboque a alvarenga dos inflamáveis? Estão tocando harmônica. [113] Encadea|das com a luz de bordo as aves pelo salão da proa, ali apanhadas. Queres comer juruti no espeto, professora?
Agora em Guimarães, meses ali passou, tão breve, em­balada pelo silêncio daquelas montanhas do Tapajós, daque­las areias onde as marés, entre as suas sementes, deixam montarias e lendas trazidas de tão longe, ilhas, lagos, para­nás, naufrágios. Lembra Guimarães como quem escreve a velha amiga, com amorosa negligência, aquele abandono com que a cidade sabe acolher o forasteiro e faz dele um filho. Viajava no Vitória, ia de bubuia, viu a serra azulando na manhã em que se escondia a cidade. Não mais estirões da várzea encharcada. Desfraldava-se pedra e cor, raiações san­grentas na chapada entre nuvens e fumos e de onde escorria o silencio satisfeito do sétimo dia da criação. O velho vati­cano conseguia escapar do cenário em que foi envolvido, avança pelo rio, desemboca nas águas — feitas de limo? — do Tapajós e surpreende a cidade.
Os silenciosos pianos de Guimarães, tão silenciosos, com seus panos rendados, até pareciam tocando? Dentro do rio o Castelo era um ingênuo sobrado de aventura, estalagem de folhetim, a hospedar caixeiros-viajantes, o fiscal do im­posto de consumo, um e outro quiromante de passagem, e o doutor Numa. E as procissões com a D. Quitéria, da Irman­dade do Sagrado Coração, que sempre dizia: sou uma mulher generosa, a exibir a sua fita, porta-estandarte das zeladoras?
D. Quitéria, sem consultar antes o seu confessor, o Frei Pio, hospeda na sua pensão o Professor Pekim que instala no quarto, com janela para a rua, o gabinete de cartomante. O Professor Pekim baixou uma cortina e outros paramentos.
Batendo lata pela rua, os curumins anunciavam a novidade. O brilhante no dedo do Professor Pekim encandeou a dona Quitéria.
— Professora Nivalda, valei-me! O Frei Pio vem me pedir contas!
[114] Menos temor e contrição que vanglória. Consagrava a pensão e sua dona à visita do Frei Pio. A Diocese punha na graça de Deus a estalagem da D. Quitéria.
— Professora Nivalda! Meu querubim, que será de sua pobre amiga diante de tamanha visita? Que foi que fiz, pro­fessora Nivalda? Eu nunca ofendo a Deus. Eu sou uma mu­lher generosa.
— O Frei Pio? Aquele a quem Deus deu aquela boca? — indagava a D. Enilda, mulher do Secretário Municipal, recém-chegada de Belém.
— D. Enilda! Não bula no sagrado.
— Olhemzinho só para a boca daquele frei. É de frei? Aquela? A senhora já viu, professora Nivalda?
— Ainda não — mentia a professora Nivalda.
— A boca muito bela, professora Nivalda. Uma boca de precipício. Daquela não pinga prece, pinga favos. Não dá absolvição, põe a perder. Deus me livre! Ali não está uma boca de Deus mas do Demônio, eu juro.
— Mas credo! D. Enilda! Tome é a sua sopa antes que esfrie. Quem vê a senhora assim falando, vai pensar...
D. Enilda!
— Ah, D. Quitéria, não me venha dizer que ainda não reparou na carnação daquela boca, ora veja lá se como milho.
— D. Enilda, a senhora peca! D. Enilda! Se o seu ma­rido ouvisse todo esse despautério, D. Enilda! Deus o livre! Uma senhora que a senhora é, tão distinta!
— Sou só eu? O rezar do Frei Pio? Põe o termômetro debaixo do sovaco de cada moça, na entreperna de cada casada ali de olho revirado, põe e mede o paludismo. É do sopro de Lúcifer. Os vapores do frei, quando abre aquela boca, se virando para os fiéis na hora da missa, dando a hóstia? Não é o Corpo do Filho de Deus que as devotas apetecem, é a boca do homem ali soprando nelas, lhe digo eu. A senhora não viu, professora Nivalda?
— Não, D. Enilda — mentia a professora Nivalda.
[115] — Nossa Senhora, D. Enilda! Olhe o inferno! Não fale o que não sente, que a senhora, eu sei, que é tão distinta. D, Enilda! O horror que a senhora diz!
— E agora vem o frei, aqui na sua casa, repreender a senhora, D. Quitéria? Me deixe atrás da porta espiando um instantinho, Sim? Quero tirar um retrato daquela boca. A missa dele é sempre à cunha, com as mulheres dependu­radas no beiço dele. Não é, professora Nivalda?
— Não sei, D. Enilda — mentia a professora Nivalda
D. Quitéria, em pessoa, varreu a sala, lustrou a cadei­ra, com bordadinho forra o velho sofá, o medalhão de Nossa Senhora, tão ali no baú com pó e caruncho, agora na colu­na, o havia de pôr o véu para ouvir humildemente a pia mas severa repreensão. Repreendida, agradecia e servia o piedoso censor com um cálice de vinho do Porto que o car­tomante lhe deixara de lembrança.
— Por que que fui eu hospedar aquele professor Pekim e o secretário, meu Sagrado Coração de Jesus? Mas não vinha da Capital Federal? Me folheou um álbum de foto­grafias e referências. E o brilhante no dedo e atando aquela cortina e me abre a mala! Fiquei de vista escura com tanto Paramento atopetando a mala! Me deu adiantado 260 mil reis. Pessoas direitas. Ciganos não eram. A primeira coisa que me disse, foi: Esta casa aqui é católica? E no gabi­nete montado, no meio de toda a paramentagem de suas artes e figurações, o quadro do Sagrado Coração. No que abriu o consultório, tudo foi na maior compostura. As coisas que ele adivinhava! Pois muito me admira! Sabendo do pas­sado, do presente, do futuro, olhe que as cartas dele? Só faltavam falar. Sim que falavam pela língua dele. Eu só sei que o que aqui fez, satisfez. Mas que se há de fazer, o Frei Pio aborreceu-se. Agora espero a repreensão.
— Mas a senhora, D. Quitéria, também não põe suas cartinhas a duzentos réis?
— D. Enilda, pela honra de seu marido, não me ande espalhando... É uma coisazinha à parte.
[116] — À parte de quê? Do Frei, da Irmandade, dos Sa­cramentos?
— Mas, D. Enilda, é só um simples passarzinho o do­mingo à tarde no descanso das consumições e só entre as pessoas de minha estreita escolha e que me rogam o ser­viço. Pela honra de seu marido...
— Não meto a mão nas brasas pela honra do meu ma­rido, D. Quitéria. Nem pela minha. Toda a honorabilidade das esposas nesta cidade anda correndo risco naqueles bei­ços do Frei Pio. Daquela boca sai faísca. É preciso um abaixo-assinado exigindo já-já a remoção do frei. Ou fazer um esconjuro, todas nós, mulheres, na pracinha: Sai de den­tro desse frei, Maligno. Que a tua boca é a dele, Disfarçado, sai, Príncipe das Trevas. Senão, senão o estrago é grande. Que a senhora acha, professora Nivalda?
— Não acho nada — mentia a professora Nivalda.
— E no dia da procissão, depois do Te-Deum? Todo nos paramentos, com aquela boca em cima das mulheres, gritou contra o veneno que andava circulando em Guimarães, aqueles papéis do espiritismo. De repente abriu os braços, num arranco e deu aquele berro: Viva o Cristo Rei! Viva a Maria Santíssima! Viva a Igreja Apostólica Romana! De se ver que belo foi, foi, professora Nivalda. No beiço do homem o mulherio de Guimarães se esgoelando em Viva! Viva! e eu sei que para o Cristo não era. Para a boca do padre isto que sim, ele de braço estendido a acalmar as mais derretidas, a passar água benta nas possessas. O povo de saia entrava na igreja ralando o joelho pra Maria Santíssima. Eu bem que sei a Maria Santíssima!
— D. Enilda, minha flor, vá, vá quanto antes se con­fessar, hoje mesmo, que essas suas brincadeiras a Deus não agradam. Se confesse, sim. Não fique cega da razão, dona Enilda, que tão distinta que a senhora é. Mas a senhora está desenfreando a língua, me anda muito ímpia, credo cruz, ave maria, valha-me Deus!
— Confessar-me com ele? É o mesmo que perder-me.
[117] — D. Enilda! Brinque! Brinque! E se seu marido agora de repente... Ave Maria! Com Deus ninguém brinca.
— Mas não é, professora Nivalda?
— Não sei, D. Enilda — mentia a professora Nivalda.
E de volta da confissão, brandindo o rosário, D. Quitéria mandava para os infernos o parente atrasado na pensão dois meses. Despejou-o do quarto:
— Meu parente? Parente? Parente? Dente é que é nosso parente! Está faltando arroz na mesa, peste! Parente? Dente é que é parente. Ó, peste, não estás vendo que falta arroz na mesa? Parente? Dente é que é parente!
A peste era a Rosilda. A conselho do comandante, que lhe conseguiu passagem num Lanchão de Monte Alegre, fugiu numa madrugada. D. Quitéria, perdido o seu braço direito nos afazeres da pensão, trazia a terrina de sopa:
— Eu que sou uma mulher generosa! E o bom pago? Pois uma bicha que meti dentro de casa, com licença da palavra, nua-nua, tudo o que pode ser de mais flagelada e dota banho com creolina na fedorenta, lhe tiro os piolhos, assim.., desculpando por estarem na mesa... as bichas, levo ela pra fazer a primeira comunhão. Enfio-lhe um rosário na mão. E o bom pago? E depois? Não ia lavar no porto porque era quebrada do estômago — dizia. Pois nem a rede que não era dela, era minha, nem a rede deixou? Tudo era meu, tudo do seu uso era desta D. Quitéria,, me pertencia, que ela do que me pertencia até que abusava. A corda, a corda da rede ela levou. A chinela que eu dava empres­tado, levou. O meu trancelim, sim, que quebrado, mas era meu. Aquele meu cinto. Madrinha, me emprestezinho aquele cinto da senhora, o mais usado, sim? Eu sou uma mulher generosa, disso Deus está ciente e dou por testemunho o Frei Pio. E por ser, saí premiada com aquela cachorra no perna-pra-que-te-quero? Pois até o meu gramofone velho? Aqui a prova, carregou ele até o pé da porta da rua, viu que não podia, que pesava, Largou aqui no soalho com a corda quebrada. Dei, dei parte na polícia não pela honrinha [118] dela que sei... ninguém me passa a perna nos meus territórios, ninguém me mete no saco. Aqui em casa? Eu não via? Eu bem que via e ouvia. E por uma comodidade me fiz de cega, me fiz de surda, me faço de palerma quando convém. Dei parte, sim, mas pelo bom nome de minha casa que ela quis emporcalhar fugindo. Quem com porco se mete, farelo come. Mas eu pago a precatória atrás dela e exijo que o meu compadre Cristóvão, o sargento da guarda, ajoe­lhe ela em cima do milho na cadeia e lhe dê de palmatória só duas dúzias, o suficiente, e tudo muito bem gratificado.
O Frei Pio me disse sim. Duas dúzias só! Para isso aqui na terra tenho os meus conhecimentos e sei com quem me pegar por lá por cima. Que paga, paga. Paga!
D. Generosa, me consiga, me rape lá na sua panela um pouquinho de arroz? Ou a Rosilda também levou?
— Esse comandante mesmo... Me mangando... O se­nhor me faça um cálculo, meça o grau da afronta que sofri, comandante.
— Por lhe roubarem a escrava, D. Quitéria? A bichinha rompeu o grilhão, se desenfiou do seu rosário, D. Quitéria. Ou não foi?
— Ah, comandante... O senhor também leva tudo na caçoada... Não é, professora? Mais arroz, professora?
Por que o conselho do comandante, o interesse, aquele socorro a Rosilda? Também generoso? A idéia do gramofone era dele, que imbirrava com aqueles dobrados tocando na hora da sesta. Rosilda e ele... Agora é tarde para saber.
E o Fona, o pinta-cuia? O vagar do Fona desenhando cuja, pintando as pedras que vendia a bordo. Lembrava as mulheres cueiras carregando o paneiro das cujas, rompendo chuva, madrugadas, ou queimando o pé no pedrume quente, lá da Aldeia, pobrinhas palhoças da Aldeia, entravam a bordo. Viagem que não vendiam uma só cuia. O salão de proa ficava em flor e verde dos regalos de Guimarães.
— Queres, Nivalda?
[119] Guardava aquela porção, restam umas pelo fundo do armário baú, desta a tinta saiu, daquela a filha fez um caco para a água do pinto, e assim, Fona, o pinta-cuia e pedrinha, com o seu violão, fazia um tanto pelo povo que tanta coisa grande tem para fazer. Naquele pintar e na­quele tocar, vinha um pouco das cunhatãs que todos os dias sobem as ruas da cidade com latas e baldes d’água do Ta­pajós. Dos trabalhadores de madeira e balata, das canoas de pesca, batelões e caminhos que levam os homens para as cachoeiras em busca de castanha, ouro e pau-rosa. As garças das cuias coloridas voam para dentro de nós, aqui se ani­nham. Via cadência na caboclinha carregando água, subindo a rua. Sua beleza triste e fatigada ficou nas cujas, na melo­dia, na manhã em que os velhos azulejos de Guimarães se enchem de uma luz e de acolhimento. O violão parou. Das cuias e das pedras, agora em silêncio, saltam garças, peixes, nomes de estimação e afago, palmeiras; os poentes do Ta­pajós, Fona, pintando e tocando, sabia recolher, e nos dá esta sensação tranqüila de que a paz virá e a felicidade é possível. A vizinha, a cantar às duas da tarde, invariável e doce, enchia a sesta.
A sesta de Guimarães?
Quanto mas quanto sono! O calor nos parava o cora­ção. Unicamente os esses das redes. Na rua o sol roía a; pedras e a língua dos velhos cachorros. Até hoje na palma da mão a maciez dos azulejos da velha pensão da D. Quité­ria, janelas e portas portuguesas, a bilha d’água no para­peito, o beco empedrado de onde apontava a sege lenta em que viria o capitão-mor. Os sinos da Matriz anunciavam caravela, notícias de Portugal. Na missa de domingo ia ouvir um sermão de Vieira? Junto ao Cristo de Martius, na igreja, escutava o naturalista contar do seu naufrágio no Amazonas. Certas missas, novenas, procissões, lhe falavam de um burgo católico de 1678, vagaroso e severo nos sacramentos, nas pe­nitências. Diante de velhas casas, como a dos Porandubas, não escondia seus cuidados: ia sair agora mesmo na rede, [120] carregada pelos escravos, a Cecília? As velhas casas de ladri­lho e varanda abrindo sobre a caramanchel em flor? A elas pedia benção. Naquela porta de gonzos, forrado de suas gramáticas. o professor Jaguarema ensinava, com assaz paciên­cia, a colocar o pronome, pondo em português as cartas dos namorados e o relatório do Intendente.
O comandante a levava para os Porandubas, havia mesa posta tão copiosa quanto acolhedora, salas de pedra tão feudais de espessura quanto liberais de hospitalidade. Do outro lado, bairro da Aldeia, doía-lhe aquela custosa igreja em obra; em torno as palhoças se apertavamzinhas de pé no chão.
Toda tarde dava o seu bordo pela travessa dos Mártires onde um velho alemão relojoeiro, de tanto olhar a insensível D. Berta na sacada, estuporou. Recorda que anotou no seu diário, jogou no rio, bruscamente, uma noite. Tudo ou não foi? Tudo um pouco, ou muito? Por causa daquele impos­sível doutor doido? Daquele doutor doido que perdeu a for­tuna se educando na Europa, cursou universidades e boê­mias, para ser promotor público em São Domingos do Capim, onde dormia no trapiche, promotor em Mocajuba, Baião, Al­meirim, Aveiro. Vizeu, e aqui demitido, vagamente advo­gando. Uma tarde leva ela pelo braço para o pé da fogueira na travessa dos Mártires e lhe faz uma mesura:
— Vamos, vamos passar fogueira. Estou falando em ter­mos de alegoria, D. Nivalda. De quê? Passar fogueira de quê? De minha alegoria? Sim, de minha alegoria.
Três vezes sobre a fogueira, beijou-lhe a mão, mur­murou:
— Salte daquele navio abalroado, senhora. Salve-se no meu escaler.
À noite, dormia nu pelas areias do Tapajós no meio das laranjas que levava num saco ou corria pela praia revirando imaginárias tartarugas. Vou revirar a lua! Vou revirar a lua! e entrava no baile, H.J., chapéu-chile, a reclamar da música as doze valsas. Era a boca cheia de filósofos alemães, [121] reci|tava aquele soneto do recife de coral, e tome conhaque e tome conhaque! e foi que naquele domingo, manhã cedinho, come lingüiça no mercado, quebra a garrafa vazia à porta da igreja, entra na missa, ao instante da comunhão. O padre. aquele velhinho, cinqüenta anos de ofício pelo interior do Pará, com a sua velha Sexta-Feira, lá na Aldeia, cerzin­do-lhe a batina e tendo dele seis afilhados. O Bispo, por isso, só lhe permitia aquela missa ao lusco-fusco, domingo. Em casa entre suas couves e plantas medicinais, o padre socorria os doentes, benzia com folha de arruda, mestre em cataplasmas, esquentava cuja na barriga doendo dos meni­ninhos, mandava assar a canarana, espreme o sumo, põe no sereno, e bebe, que é um repente a gonorréia. Em fomentar a barriga de senhoras, podia tirar patente. Assim ganhou o apelido de Pajé Padre. Também desconfiavam que era espí­rita e ele mesmo partejava a sua Sexta-Feira. Pois bem. Vendo o padre que aquele doutor se ajoelhava e já abria a boca fumegante para receber o corpo do Nosso Senhor, apertou a hóstia entre as pontas dos dedos, sussurrou, bo­nachão:
— Mas é o senhor mesmo, Dr. Numa? Matando o bi­cho? Primeiro vomite um pouco.
Ali mesmo, entre as velhinhas que esconjuravam e as moças que acudiam, o Dr. Numa vomitou um pouco, rece­beu a hóstia, logo se virou, empinou-se, assoou-se, ganhou o largo na direção do mercado onde ia recomeçar. Voltando de Souzel apanha, tão fora de idade, aquela catapora. Inter­na-se no pequeno hospital onde pelas rótulas zumbia um vento que ele dizia uivante. À noite, se logo não fechava a janela, saltava aos brados pelo corredor, cobertor em punho a bater os carapanãs. Foi vê-lo, levando-lhe laranjas e encontra ao pé da cama dele aquela bela negra alta de olhos feéricos, ali silenciosa, catingando intenso e suado como se fosse a magia mesma.
Uma tarde, passeando na travessa dos Mártires, encon­tra-se com ela, lhe entrega um papel e um búzio.
[122] — Guarde, D. Nivalda, esses rabiscos inspirados na se­nhora e nos meus contratempos. Belém, Aveiro, Melgaço, Vizeu, São Domingos do Capim e a cachaça de Jararaca, tudo isso me apodreceu. Fígado e alma, fígado e alma. Sinto-me agora entre minhas próprias cinzas. E olhe, aquela escura, (o irmão vende macacos a bordo) aquela escura, que viu no hospital, a crioula Sulamita? Arrebatada por um inglês no rumo de Arapiuns. Bebia vinho branco com japana branca para só ter amante branco. Penso partir, hoje à noite. Estou bebendo muito. Ou pouco? Quem sabe? Quem sabe? Minhas homenagens ao comandante. Parto sem ter visto a tal dança dos tangarás. Guarde a jóia mal lavrada. Não comi ovo cozido de japiim no quarto minguante, por isso nada fiz. O búzio, sou eu que lhe vou falando. Sigo só no meu escaler.
D. Nivalda retira do velho cesto de retalhos o canudo de papelão de onde desata a folha amarelenta:
No puxo da maré, a errante amada renascerá dos lagos, o cabelo sinuoso e crespo como os rios no verão. Tuas mãos, misteriosas pedras, errantes, como os muiraquitãs, desejos sem destino na noite em que as florestas nasciam, os rios nasciam e procuravam correr e os bichos nasciam e pro­curavam cantar. Assim tuas mãos vagavam entre as jatoaranas e as lontras, com as índias dançando a puberdade e os jacarés em torno mundiados. Oiço o grito do acauã no Nhamundá, por ordem do pajé choco minha pedra. Dos meus ovos salta a ninhada. As guaribas dançam a anunciação da noite. Venho do rio Negro, fervi num tabacuri, bebendo aqueles venenos, marquei o tempo e a paixão com os nós de um ainhém que a índia cobéua me deu, uma noite, as saúvas saindo debaixo da chuva. Das alturas de Parintins vem o minguante, agasalha-se entre as escamas do peixe­acará de onde nascem as auroras para o sairé de Alter-de­-Chão. Dançam o sairé as velhas índias, se cobrem de limo e fumo no lago verde, e bebem caxiri. No terreiro, na casa de dona Ana, bebo o meu tarubá. Ao lado, o meu mutum de [123] crista encarnada. De repente me vejo em dores: uma aranha de boca encarnada, com duas presas, me ferrou na perna. Dia e noite me doendo perna, coração, o mundo. Sarou assim: o pé do lago, bem de madrugada, faz silêncio geral, de repente como pela primeira vez em terra chora debaixo do toldo aquele verdinho de peito.
Os botos de bom gênio rondam o perau dos curumins afogados. Tuas mios benzem os caboclinhos mortos que ficaram no fundo com as montarias perdidas, ali no fundo dos lagos por não morrerem de fome no fundo das palhoças. Não morreram subindo o Nhamundá e o Trombe­tas atrás de balata e pau-rosa, felizes, felizes, não morreram de febre e bouba como os do Lago Grande e os de Arapiuns nem rachados de inchação, nem acordam nas meias-noites debaixo da chuva para carregar de lenha os regatões com aquele doutor na rede lá em cima, com o seu conhaque, lendo o livro alemão. Felizes, felizes, porque não ficaram tristes ao pé do aturiá e no trapiche de lenha, sentadinhos na antiga balança da borracha, inchadinhos e tuíras, e tristes, e tristes, errante amada, e tristes... Ah, teus cabelos se estendem sobre o vale à flor da enchente, se misturam com os periatãs e os barrancos desmanchados pela corren­teza, o boi urrando no curral dentro d’água e da noite. Teus cabelos uma ilha de aninga e miritizal e garças de repente no anoitecer nascendo dos remansos. Março e abril desatam as correntezas com os cedreiros na espuma, lá em cima re­boam surdamente os repiquetes, aqui embaixo nos rebojos, pelo fundo, o pajé mergulhão escuta a receita de Urumu­tum, o caruana, que há de curar no Boim a menina enco­lhidinha na rede, triste, cada vez mais triste, nem come nem dorme nem fala o que sente, os olhos vidradinhos. E te oiço na voz do remeiro com febre no furo, na voz do canoeiro baixando as velas sob a trovoada no furo, nas vozes da ladainha para a Senhora do Perpétuo Socorro e na voz do seringueiro chamando os cachorros, por onde? Já ninguém sabe, e na voz dos viradores de madeira e nas vozes da febre [124] voando sobre redes e tapiris, caminhos e jiraus, o canto da febre, e os cemitérios: Basta! basta!, repletos. Teus cabelos vão para o mar oceano, são os inumeráveis caminhos para o mar oceano que é o amor e a morte. Teu pé marcou na várzea e o açaizeiro que dá o melhor vinho, o lugar onde o tajizeiro queimado pelas formigas dá mais flor. Teu olhar domina o estuário, como o do pássaro sobre a maré. Nem toda liamba me fará esquecer as promotorias públicas. Feli­zes peixes, me contem de que brincam os curumins afogados, como dançam os peixes-bois sob o capim nupcial, os tamba­quis tão de súbito arpoados, me contem onde se escondem aquelas noites, onde se afogam nas lagos do Alter-do-Chão, onde? Aquelas noites tão de minha vagabundagem e de minhas buscas, como a noite dos homens para sempre per­didos nos balatais. Como te poderei prender, se és dispersa e vives entre os elementos como a semente e a morte? Fica de ti no meu tormento a sombra das mortas auroras. de Alter-do-Chão ou quando morre o marabaxo e sobe pelo tambatambatajá o suspiro do Urumutum, o caruana. As mu­lheres se enrolam nos teus cabelos para ficarem belas e amadas, o corpo fechado contra febre, fome, viuvez... Quem me fecha o corpo contra as promotorias públicas?”
Aqui o doutor risca o escrito. A letra corrida, as emendas ilegíveis, o papel amarelou muito, velho, velhas as pala­vras aqui deixadas, soam como o debater do bêbedo no rio. Naquela noite, conforme avisou na despedida, o Dr. Numa avança pelas areias, gritando: Quero rever as profundezas, e entrou, com a garrafa de conhaque, rio adentro, até hoje.
Molequinhos pela rua, numa algazarra, batendo Lata, anunciavam a fita do cinema. Era também como se anun­ciassem a sua partida; lembrava aquele bater de lata na João Balbi noite de eclipse da Lua. Quero rever as profundezas, o que se escutou, quem por ali passava ou amava, ou à toa ao pé do rio, ao gosto do areal.
Desesperou-se para partir, descesse logo de Aveiro o navio do seu marido. E a esconder o papel e as palavras [125] do afogado ali encravadas na travessa dos Mártires como pedras do calçamento. Queria fugir daquela cidade, das cujas, cestos, doces decorativos, cheiros da terra, que lhe falavam cio escaler, do doido pelo areal entrando no rio, deste papei que quis queimar, queimou? Sigo só no meu escaler. O búzio deu-lhe um temor, podia ser como uruá, que não prestava levar pra casa, jogou n’água. De H.J., chapéu-chile, co­nhaque: Comandante, permita-me esta parte com a sua se­nhora?
Haverá no mundo, como os de Valência, bailes tão lem­brados? Era uma velha casa avarandada abrindo para o quintal, mesas do bar debaixo dos coqueiros. No salão, aquele estrado para os músicos servia também de palco às sessões cívicas e de posse. O mestre da música tocava piano, requinta e bombo, secretariava a Congregação Mariana e administrava o Cemitério. Chegava, pontualmente, a Honória, alta, pálida, os olhos machucados do serão. Ia sentar-se, soli­tária dama, rente à porta da sala de jogo. Dentro de casa, que caía aos pedaços na esquina, vivia costurando, coçando a frieira do pé no chão de tijolo. A mãe, a ocupar-se lá dentro com um neto, nunca aparecia. De instante a ins­tante: Cadê o Lionel? Não deixa o Lionel no sol. Acomodadinho aí, tome o seu pipo, Lionel? Não deixa o Lionel no sol. Acomodadinho aí, tome o seu pipo, Lionel. Cessava a voz, os ruídos lá de dentro, voltava a máquina a coser o pano e o silêncio na sala. Atrás de Honória entrava no baile a irmã, a Davina, miúda, a sobrancelha arqueada, sardenta, as pernas tortas, ali cerimoniosa, meio assustadiça como se fosse a primeira vez que ia ao clube e desde os quinze anos a um baile nunca faltou, sempre bem comportadinha, na sua cadeira cativa. Fossem vê-la junto da irmã, cosendo cuecas, cortando a unha do pé: Era aquela boca apimentada, nomes, gíria, anedota, apelido nos outros, arremedando o próximo, contando como se levantou da mesa o Cobra Prenha, larga o copo no banco e volta e senta a bunda em cheio na boca ido copo, haja fazerem força para arrancar daquela bem [126] fornida bochecha os cacos do copo. Era um doutor local, traçava o seu latim, cheio de linhagens, espichando suas raízes de família até a fidalgaria portuguesa conforme seus pergaminhos. Tinha uma coleção de solitárias conservadas em álcool. Quem tem sua solitária, me chame que eu tiro e conservo no meu museu. O seu cartão:
Dr. Cândido Belarmino
Intelectual
Ao sinal do bombo abrindo o baile partia o Cobra Prenha a tirar a Davina. Demônios, se queixava ela ao pé da máquina, no dia seguinte, a mirar no espelho as sardas e as sobrancelhas, e logo a acender, aqui no muito reser­vado, o cigarrinho, pois o meu primeiro cavalheiro é sempre o Cobra Prenha? Só ele só que me tira o selo do baile. Toca a marcha da despedida e lá me vem o coleciona-soli­tária fechando com chave de ouro a minha bela noite no Valência. Isso não é pior que chá de cadeira? Preferível o croché da Jesuína Almeirim no seu vestido parece pano das bandeiras, emparafusada no assento, sem um cochilo, sem um misericordioso, nem mesmo o Cobra Prenha, ali naque­le suplício, toda a noite. Dá pra carregar um navio, o cro­ché que ela faz sem nunca desistir, no seu trono de rainha de chá de cadeira. Melhor assim que o Cobra Prenha. Pois me cubro de lantejoula, só vou ao clube quebrando tigela, disfarço as pererecas da cútis, empôo as espinhas e a lepra da costa, puxo de lá de dentro o colo, faço uma figuração do peito com o olho de boto dentro da medalha, me benzo ao entrar no baile, distribuo os meus olhares. Quem que vejo? Aquelas caras de papelão? Também que rapazes! Ah, Guimarães! Ah, Guimarães! Rio Tapajós. me arranja uma bruta enchente e engole isto com a Diocese e tudo!
Mestra em penteados, Davina cobrava pouco, à custa de soltar, entre as íntimas, carregando na tinta, o que via na cabeça das suas freguesas, daquelas mais titis-de-galinha, a tal que encarecou e usa postiço dizendo que foi fumaça no [127] cabelo... Davina, tem dó, dá um descanso à língua. Como puxas no preço do teu penteado, pequena! Corria a desinfetar as mãos no seu cheiro de garrafa, mas credo! axi! tama­nhas moças! e ali estão elas no baile etc, e tal, por fora muito enfeitadas e estratadas, pávulas dos meus penteados. Quanto ao seu cabelo, passava o pente, joga a crina pra trás e pronto, seu costume, não se deixava pentear, sim que às. vezes uma fitinha, uma flor. Este meu desalinho é a minha elegância. Trazia ao peito o seu cacho de jasmins, agora no salão, muito respeitadeira, seca para fumar, mas aqui em público? e assim meio vexada era mais por fugir do Cobra Prenha que a caçava e em pleno foxe:
— De Quintiliano, já ouviu falar?
— Quem, Dr. Belarmino? Aquele seu Quintiliano meio coxó que abre cova no cemitério, o coveiro? É, Dr. Belar­mino?
— É o que eu digo. O mal de Guimarães é a sua falta de letras. Deixa estar, deixa estar que hei de fundar o meu Liceu.
Coibida na mão do cavalheiro, Davina queria coçar-se, peguei comichão desse velho? Vá ver que é sarna, cera! cera!
D. Nivalda, olhando as duas irmãs no salão, via-as lá na casa delas meio escura e suja com aquela estampa da parede escalavrada. Davina, os pastora e suas ovelhas na olhos no vazio, apanhava o abano, se abanava, se abanava, atira longe o abano: Bosta! Que faz nessa parede essa pastora, essas ovelhas? Chega. Ó calamidade!
Davina! ralhava a mãe, sempre invisível, a voz não sei onde, às voltas com o Lionel, uma voz apagada, muito soli­tária, como se fosse apurada no bater daquela bigorna do ferreiro.
— Vá tapando as oiças, mamãe. O baile do Valência não dá nem dez réis de marido. Ficar no trapiche vendo navio pranchear e despranchear ou à espera do baile das flores pra ser tirada pelo Cobra Prenha? É me passar por sem-vergonha e sem-vergonha sem os saldos da [128] sem-vergo­|nhice. Minha cruz é continuar honrada, ora já se viu! Mas a donzelinha saçariqueira fica pra semente? O assanhamento dura uns cinco anos, o meu prazo escoa. E eu fiada nas cartas do tal Pekim, aquele embusteiro, ah, meus cinco mil réis! Em que mais que vou me fiar? Não tem conchavo que dê certo. Mas filha de Maria que não vou ser, abrir meus podres no ouvido do frade, agora isso... Pela honra da firma é o pelo-sinal da pia e na hora de cair na rede. Olhe que tenho me fiado! O prêmio é aquele par no Valência? Um dia... Um dia a donzela se enfia entre a carga dos inflamáveis na Alvarenga e tudo salta pelos ares. Em vez de dar no vinte, fico neste vinha-d’alho, aqui defronte dessa pas­tora de mentira, de onde tirei minha fantasia de carnaval de há três anos, dessas ovelhas de papelão? Aqui nesta cidade tem uma rua dos Remédios onde não se acha um pé de sabugueiro, é um lixaral, um foco! Tem uma rua da Misericórdia onde mora o seu Benigno, este não dá um gole d’água a cristão, contando toda noite o dinheiro que guarda e acumula na velha burra. Guarda nota que já não circula mais. É assim. E assim vou penteando as piolhosas, ouvindo o seu Adamastor bater a bigorna entra-e-sai ano, a ferru­gem cobrindo o meu cadeado, com pouco estou coçando o meu caruncho no entulho daquele sereno com a minha lín­gua de pirarucu ralando as que tomaram o meu lugar lá dentro do salão. Tudo me sai virado. Que foi que aconteceu, que-que se deu no mundo que eu me gerei na barriga de minha mãe, e logo em Guimarães! Ó mamãe! a culpa é da senhora, me gorasse... me gorasse... Ao menos em criança tirasse três pontas de cipó tracuá, fervesse, lavasse nele a a minha perna pra desentortar um tiquinho, ah! Também!
D. Nivalda, a senhora precisa de uma lavadeira? Posso pen­tear nem que seja uma porca-espinho num buraco de Belém? Não tem quem lave a bordo as escarradeiras dos passagei­ros? Aqui estou eu! Aqui estou euzinha!
E no que ia arrancar a estampa, já lhe deu pena, sa­cudiu a cabeça, soprou a poeira, uma folhinha de 1916, 16, [129] coitadinha da mamãe, coitada, tem cortado uma volta, aque­le ano da viuvez dela e da nossa orfandade, fique ai sosse­gadinha, pastora, fiquem no pasto, ovelhinhas. O que é pre­ciso é avivar as cores, vou chamar o Fona. Mamãe, me atirezinho um naco do seu migado, me deixe aqui dar um trago já que em público é muito feio, oh, tudo que se ape­tece em Guimarães é sempre muito feio, demais feio, merda para a Diocese. Cale essa bigorna, ai, seu Adamastor!
A irmã em silêncio, tesa, virava a máquina, pescoço duro, costurando, a esperar o delfim que virá buscá-la. No clube, aquela estampa, à altura de sua experiência de salão, a dar com circunspecção e mestria o seu primeiro passo na abertura do baile nos braços sexagenários do Capitão Fonteneles, o Coletor Estadual, membro da sindicância. Nos in­tervalos, o Capitão ia lá fora atrás do coqueiro tomar rapé e livrar-se de seu numeroso vento. Honória aceitava o Ca­pitão como se aceitasse um par de França. Que linha, abrin­do o baile! E que competência no vestir, no deixar-se guiar pelo trôpego cavalheiro, ao sentar-se apanhando o vestido, como ninguém em Guimarães, num saborear os seus feitios ali nas outras, tão dela aqueles vestidos de baile, domingo na praça, procissão, dando-lhe fama e freguesia. Mas ai! o que era melhor, nunca vinha, nunca vem? O delfim?
Davina, para fugir ao Cobra Prenha, escondia-se no ca­marim, como dizia, o reservado às damas, à espera que uma das senhoras, com o marido no bar, a chamasse para uma cerveja. Entravam as duas Pantojas. Não faziam os vestidos na Honória e sim na D. Vitalina da terceira rua, muito acha­cosa: Esse teu vestido, Ambrosina, me Custou uma pedra no rim. E tu, Elvira, tua saia de cambraia me valeu este catarro no peito. Ambrosina, a mais velha, já trazia uns longes de titia menos no rosto que nas maneiras, cobiçada à meia distância pelo irresoluto Juiz que recém enviuvara. Contavam da secreta paixão dela por um Frei Praxedes que abalou para o Xingu a converter índio. Sem nunca realçar-se nem apagar-se, ia mantendo com jeitosa discrição e [130] fideli­|dade a sua paixão pelo missionário e o seu pendor pelo Juiz. A irmã, essa, entrava no salão como enfurecida, rosto tran­cado, coando dos olhos verdes a sonsice e o fogo. Dava-se ao cavalheiro com um ar de recusa e enfado, a cara amar­rada, os olhos verdes de banda, atolando-se no rapaz que logo errava o passo, perplexo, temendo a sindicância do salão. E ela, testa franzida, ciosa de seu dever de engatar-se no homem e desdenhar dele, sem trocar palavra, ali atochada e com toda a surda arrogância da família de quem era, os Uchôas, tronco de monsenhores de Belém e desembargadores de Manaus. Também estudava para catequista. Com uni leve desvio na espádua, a cicatriz no rosto, um tumor sebá­ceo que a fez ausente do clube vários meses, chegava a Lucila Feitosa. Durante o baile, trocava sinais com o clari­netista. Por ter tomado fita recente na Pia União ia dizen­do, bem agarrada ao par: Achei em Jesus o meu caminho. Chegavam as Lima e Silva. A primeira trazia na medalha o retrato do noivo ausente. Quando o casamento? Era sem­pre no fim do ano. Ali a noite inteira, muito noiva, nunca dançava, acenando não aos cavalheiros, a exercer publicamente a sua obrigação de noiva, olhe nas minhas mangas compridas. Me pinto? Nem Davina me penteia mais, aprendo a bordar. Exibia pelo salão a sua aliança de dezoito. ia ao trapiche, praça e comércio, com o letreiro na testa: Estou noiva, estou comprometida, vejam como sei compenetrar-me. sem meter-me a besta como a Sinhá de Aragão que de todos se arredou, engaiolou-se, com o rei na barriga. A irmã tinha uns olhos graúdos, rajados, cheios de pasmo, dançando sem cessar com um aflitivo afinco e sempre a seco sem um licor, um copo d’água sequer um instante no reservado das se­nhoras, sem perder uma, aplicada ao baile como uma ser­viçal. E entrava a Geltrudes, rotunda, sem pescoço, cara chata, a deslizar no salão com toda a sua fluência, uma pluma, diziam os rapazes, uma sílfide enchida a gás, dizia o doutor. Numa, sufocada nos moldes da Honória que não sabia mais como conter aquelas banhas. Fazendo exame para [131] professora interina, com onze erros no ditado, foi nomeada. Devorava pastéis no bar com uma gulodice festeira, tirava um momento o seu pequenino pé do sapato, certamente para dizer: Debaixo destas banhas olhem o pé, este é meu, não é bem da Borralheira?
Neste momento, entra no salão a Nair Camacho, longo vestido de gaze, braços nus, costas nuas, o melhor penteado do baile, Davina a penteava de graça. Era cega. Na sua cadeira, puxando conversa com as vizinhas, sorria sempre. a reconhecer, no tocar a mão, um por um, os rapazes que a vinham tirar, tão satisfeita, macia, no braço do cavalheiro. a envolver o salão com o seu olhar defunto. Carregando os seus estofos entrara a Hildebrandina, imponente de feiúra tão. proporcionada em todos os traços que a faziam tão feia. por isso saía dela uma espécie de beleza. É a vez da Ro­milda dos Pinas, cara ralada, a bacante, como dizia o dou­tor Numa, ardente no dançar e profunda no beber. Boa noite, D. Nivalda. Era a Jacira, franzina, exagerando a fra­gilidade, a dizer pelos olhos e pelos gestos: Protejam-me, protejam-me, que sou uma vítima. Apaixonada pelo noivo alheio, na hora em que este ia dizer o sim a outra ao pé do altar, Jacira irrompe em prantos gritando: Tu me fizeste mal, Coriolano; tu me fizeste mal, Coriolano, me desenca­minhaste, debaixo da romanzeira do quintal, tu me és de­vedor, Coriolano! Coriolano! A noiva desmaia-não-desmaia. arranca o véu, rompe a grinalda, igreja porta afora. Quanto à desencaminhada, submetida a exame, inteira-inteira. E ago­ra tão frágil, sempre o ar desiludido, nos braços do par efe­tivo, o Coriolano.
Aproximava-se o Dr. Numa, com o seu copo de conhaque:
— Repare aquele rosto. É uma cabocla? A mãe índia? Mais parece da Polinésia. Como se viesse pelos fundos do Pacífico e dos Andes e boiasse precisamente aqui no meio do salão. Tem quinze anos? É o primeiro baile? Vejo nela as meninas que amei na adolescência, sobretudo as que [132] sonhei. Quero guardar para mim, intacto, perene, o encanto dessa menina.
Com essa tirada, esvaziou o copo, um passeio entre os coqueiros, convida a bacante para o bar.
Num rumor de argolinhas, colares, braceletes, brincos e fitas, caudas, leques, barbatanas e risinhos, chegavam as Munizes, irmãs e primas, uma penca, tiradinhas da roseira; faziam o lastro nos bailes do Valência, muito oferecidas, bastante faladas no trapiche, por serem tão novas sempre debaixo do olho da sindicância. Filavam sorvete aos caixei­ros-viajantes, vinham ao baile muitas vezes sem jantar, já no almoço comeram escasso. Dançavam com bastante fome. Tudo aquilo é fiado e no calote, murmurava a Honória doutro lado, olhando o cardume. Acabava o baile, corriam as esfomeadas para o laranjal da Chiquinha Pipira onde amanhe­ciam devorando laranjas.
Agora é a vez das moças ricas, entravam por cima do ombro, ostentando o comércio do pai, uma o curso de este­nografia e escrituração mercantil, a outra o pulmão fraco em busca dos ares do Ceará e a terceira os seus três cachor­rinhos de raça que invadiam o salão, querendo pular no colo das moças, atacavam a música, ocupavam o reservado das senhoras; a empregada da família leva de volta na corrente os três anjinhos, o sereno abrindo-lhes ala entre os oh oh de ternura e surdas pragas. As três pareciam dizer: Digam mui­to obrigado pela nossa presença nisto. Isto não é a sociedade que sonhamos. Saindo do cartão-postal, numa aparição estu­dada, a Ivanilda num vestido de tafetá, o rosto compassivo, um ar de resignação como se agora mesmo escutasse o que diziam dela, que só namorava homem casado e isso lhe dava certa auréola, a convicção de que era em Guimarães a in­compreendida. Um vernizinho nessa menina e ela poderia sustentar uma conversação comigo, dizia dela o Cobra Prenha. Ivanilda, afetando languidez, fazia-se mais pequenina no braço do ruivo doutor da Febre Amarela. O médico, entre os da sua roda, contava dos exames de ânus que fazia das [133] senhoras. Ivanilda ali se agasalhava como se protegendo do mundo. Tu não me toma o meu marido, safada, era o olhar da senhora dele na cadeira, seguindo o par pelo salão, a sorrir para Ivanilda, as duas tão amigas. No aniversário do clube, Ivanilda recitava a saudação escrita pelo Cobra Prenha que discutia este advérbio, aquela variação pronominal com o professor Jaguarema. O gramático pontuava a medo, cau­teloso, para não ofender o latinista. Nas festas lítero-cívicas, Ivanilda era indicada pela Diretoria para promover as representações. Era o bom gosto do clube. Tudo assumia com gentil contrariedade, uma risonha compaixão por aquelas que não tinham os seus dons, a sua cabeça. Meu Deus, eu não sou insubstituível. E quando eu morrer? E se acudia no confessionário a contar de suas súbitas vaidades, seus impulsos de breve rancor e desespero ante as calúnias que lhe atiravam. Agora, D. Nivalda espanta-se: Mas a Sinhá de Aragão no baile? Desfeito mesmo o noivado? Exato que aquele passeio a cavalo pelas roças deu motivo ao rompi­mento? Um doutor de Belém aqui passando dançou com ela no Valência, namora sete dias, pediu. Sinhá de Aragão fi­cava no peitoril da casa de azulejos, dominando o trapiche, a sorveteria, as catraias e o sol que se afogava noutra banda. Lá está a noiva, diziam todos, como se por toda Guimarães fosse a escolhida para semelhante noivado. Vai casar com um fino moço, um doutor de Belém. Guimarães numa sus­surrante expectativa por aquele casamento. O Valência, em­bora perdesse a sua mais formosa dama, orgulhava-se, como se mandasse lavrar em ata o ter propiciado aquela noiva, não havia outra em terras do Baixo Amazonas. Sinhá de Aragão, no que se vê noiva se encheu de vento, rompe ami­zades, corta o bom-dia a qualquer um, não mais o pé no clube, sair era só à missa com a mãe, apurando a soberbia e a formosura no quadro de sua janela, lacrada no seu noi­vado. Guimarães sem saber se dava razão a ela ou sufocava os ressentimentos. Sinhá de Aragão, no pouquinho que saía, [134] era tão evitando a cidade como se receasse a peste, o mais que depressa no peitoril, intocável, no êxtase de seu noivado.
Uma tarde de sábado, a cidade sobressalta-se: Sinhá de Aragão a cavalo? A caminho das roças, subindo o platô, a cavalo, montada como um homem, a cavalo. Como expli­car? Como entender? Arrebatada por um centauro, dizia o Dr. Numa, vamos ver o deus que vai sair dela. Já à noiti­nha. a cavalo, voltava das roças a Sinhá de Aragão, defronte de casa, apeia, mas era? Dias depois a carta, registrada, afir­mou o agente do Correio, desmanchando o compromisso. Diziam que até fotografia da moça a cavalo foi entregue em mão ao doutor, as peripécias daquele brusco passeio às roças tudo debulhadinho. O doutor: Pois case com o cavalo. Como explicar? Como entender? Quem desmancha este no­velo? Quebrou seus cadeados, por quê? Por que de sua redoma escanchou-se no cavalo? Voltavazinho agora ao baile, tão de repente dada, catando cumprimentos, a dirigir-se a Honória: Amanhã passo lá, ver um feitio, sim?, coisa que nunca mais fez, virava a cabeça na janela quando passava a costureira. Ali no meio das moças e diante do sereno, tão inesperada, toda devolvida, a afetar naturalidade e regozijo, aqui estou eu, diretores do Valência, a vossa melhor dama, aqui estou, colegas, vos tirando da boca o melhor cavalheiro. E aceitava a corte daquele caixeiro-viajante besuntado de etiquetas, tão educado que repugnava, dizia a Davina, as gentilezas dele são de embrulhar o estômago. Mas Davina não escondia o seu respeito pela moça: Como enfrenta! Aqui dentro e o sereno, é preciso raça. E todas nós debaixo do pé dela. Já um pouco tarde, chegava a Ritinha Almeida, o olhar vidroso, a voz embuçada. Taciturna, sorrateira, sabia colear a cintura, rara em Guimarães, sim que a perna um pouco piririca. Rodava, só, na pracinha, faixa cor-de-rosa, aper­tando ao seio o livro da missa. Constante ao confessionário e ao trapiche, com uma especialidade: se agarrar no escuro com os pilotos. No baile, reservada, obscura, confiava-se ao par que a descobria, sempre um forasteiro, e ia dando suas [135] licenças sem nunca dar na vista, nas escalas do permitido, o mais possível longe do sereno. Nesta curva, nesta área mais à feição, favorecia a face, num repente virava o rosto, a entender ao cavalheiro que dado não foi, nem sugerido, fez que tropeçou para apertar um pouco mais a mão do homem, fingindo um sobressalto. Voltava ao seu lugar, sem falar com as suas vizinhas e de lá de sua obscuridade, mordia a ponta do leque, ávida para ser de novo descoberta, e de repente, sem mais nem menos pedia ao irmão que a fosse deixar em casa onde ficava contando a coleção de santinhos ou a tomar caprichosamente o seu custoso banho de cheiro, dentro da tina, desfazendo com o penteado mais um baile do Valência. Lá fora, defronte do clube, nas duas janelas do salão, aglomerado e burburinhando, falado em todo o Baixo Amazonas, o crespo sereno de Guimarães, na maior parte velha geração da sociedade, casadas, veteranas no mexerico, laureadas no ofício, a virago que apalpava coxa de moça, tudo gente de primeira, compactas solteironas ali, no posto fiscal, vorazes e inapeláveis. Por efeito de tal sereno, o Va­lência amargava crises, dissenções graves, quedas de diretoria. Em muito baile os diretores mandavam distribuir entre aque­las megeras e palmatórias da cidade um agradinho de doce, chocolate e guaraná, o que só servia para afiar o olho e a língua do sereno insubornável. Entre as solteironas, avultava a Sinhoca Ervedosa, cara de holandesa, a sustentar os dois aríetes, como dizia o Dr. Numa, e que eram as mamas formidáveis, as mais eretas de Guimarães, de bronze pare­ciam, eqüestres, encouraçadas, a virgem dos peitos de ferro, dizia o Dr. Numa, a bovina donzela, com aqueles ubres, abas­tecia Guimarães de todo o leite da maldade humana. Seja por pavulagem ou implicância ou aferrada ao detalhe, com os peitos assestados sobre o salão, serenava a binóculo.
E as moreninhas da Aldeia, mas tão bonitinhas, botões de rosa da arraia-miúda?, perguntava o Dr. Numa. Por que proibidas no Valência? Ofereci-me àquela jovem negra para trazê-la no meu braço ao clube. Ofereci-lhe vestido, [136] adere|ços, perfumes, ou viesse mesmo com aquele seu almíscar fabuloso. Sei o meu lugar, me respeite, me respondeu de cara braba. É verdade que barrariam na porta. Sim, sim... Aqui no clube, negro só entra para varrer o salão, carregar as bebidas para o botequim. No mais não convém. Vedado às moreninhas da Aldeia tão bonitinhas. Vissem a negra repe­lindo o meu convite!
Assim conversava o Dr. Numa. D. Nivalda lia nos olhos meios dormidos do cavalheiro: Não quer mesmo seguir no meu escaler? Já lá estava o Cobra Prenha arrancando do bar aquela indefesa. Eu reino, D. Nivalda, eu reino... Não de­mora vomito ali mesmo no ombro dele, cochichava a Davina a amarrar a calça no camarim, com um súbito querer chorar, ou rir de si mesma, sabia?
D. Nivalda — chovia sempre — recompõe o baile, os bailes, todos misturados, este naquele, desfeitos, refeitos, per­didos para sempre, achados em sonho, visão de chuva e de viúva, repleta de moças, que aconteceu a elas, que fim tive­ram, quantas casaram, quantas no sereno, quantas na cova, onde os bailes do Valência?
Mas tudo recomeçava, sim, outros bailes, outras debaixo do laranjal, outra jovem negra proibida, vedado ainda às mo­reninhas da Aldeia? E são novas mocinhas girando na praça, girando em torno do coreto, dos fícus, em torno dos bancos, da adolescência mesma, diante do rio e do inesperado transa­tlântico que passava, indiferente, meio fantasmal, rumo de Manaus. Outras a ouvir missa do galo sentadas nos bancos do largo, comendo doce, o minguinho trançado no do rapaz na sombra. E aquele carnaval? Um certo conhaque fez o comandante piruetar no Valência que nem ninguém. ganhou subitamente fama de bem bom folião; foi curta a in— fluência, se recolhe ao camarote numa ressaca selvagem. No trapiche, D. Nivalda recebia a lata de lingüiças preparada pelo seu Bezerra lá da Coroa de Areia e aquele doce de cupuaçu que a D. Mundica fazia, lá na ilha Daquetá, mistu­rando ao doce os tão tamanhos sustos de saber, sentir que [137] o Amazonas vinha comendo devagarinho devagarinho toda & ilha.
E que terá sido daquelas enfeitiçadas do Lago Grande Como se debatiam, a cabeleira em cima, desnudas. Vinham do Lago, do Lago Grande, tiveram o pulo, flechadas do bicho, todos  diziam, e a Cidade ia ouvir os ais, suas convulsões. seus delírios. Aquela via onça preta, a outra o homem com rabo. Vinham do Lago Grande. No poder do pajé, saltavam dentro da rede como botas. Que é que estava incorporado nelas? Quem retira delas a flechada? Tiveram o pulo. Jaime!, gritava uma. Jaime deu o pulo nela? Chamassem o Pajé Padre.
Talvez a cidade ande mudada ou não a reconhecia mais, por que terá de reconhecer-me?
Agora com esta chuva, bom ouvir aquele silêncio dos pianos, e o outro, seis da tarde, quando cessa a bigorna. Volta àquela noite em que viu a lancha partir, branca no rio es­curo e rápido, como se fosse em busca do Dr. Numa. Tudo tão secreto, tão dela! Não será Guimarães ou só o meu fan­tasma pela cidade, nas ruas de pedra e sono onde não ficou um vestígio dos meus passos? Aqui no peito, estás intacta, sim. O comandante, puxando sapiência, aponta a pensão do Castelo cercada pela maré:
— Lembra ou não lembra Veneza?
Lá está, esculpida em acapu, a velha preta vendendo canjica.
O banho de curumins no Tapajós. Enche a moringa, carrega o pote limoso, rola o barril d’água para o banho da velhinha entrevada. E aquela subida, em junho, tempo em que as pirapitingas, bem boas não estão, pois comem louro e folha da paricá. Em que rio há melhor peixe?, indaga aquele frei perna-de-pau que bebia cana, a barba embebida de cana, babando no breviário? A pirapitinga, no banco da canoa, tinha as escamas prateadas. O frei: Ela, quando en­crespa as escamas? Está guardando suas ovas rio abaixo.
[138] Sem mais nem menos aquela discussão no jantar, se Carlos Magno era ou não era.
— Um grande homem? Não era.
— Era.
— Não era. Um analfabeto.
— Bem. Me deixe ver primeiro o dicionário.
Nasce na Ordem Terceira a única filha, Eleonora, a pri­meira dentição em Manaus, a admiração geral, Oh, tão ainda do peito e tão a bordo, contezinho suas viagens, ó viageira, estudando o ofício de piloto, vai herdar o leme do seu pai? Assim a bordo, mulher de comandante, mãe atrás da filha, seus espantos, sua obediência, seu cerimonial, a senhora é também professora?, escutando as ordens do marido e com a filhinha no portaló.
Subindo rios, rios descendo. Aqui esta passagem, vale a pena? Não lembrou antes, por quê? Por que, pedaço a pedaço, aquele tão fora de propósito, o Dr. Numa? Ou efeito de uma noite de febre, por demais só, afligida sem mo­tivo, ou quase culpada, espiando pela vigia aquelas trevas de água e mato?
A bordo o Dr. Numa com o seu copo de conhaque, o livro alemão, rede atada na popa, o gaiola subindo aquele afluente desconhecido, brusco retorcido de estirões e ilhas, um rio de outras eras, as margens, sacudidas de bicho, com seus beiços de pau na lama. Ao cair da noite, já os dois, o Dr. Numa e o Amanajás, no mesmo conhaque, haviam al­terado as escalas, entrando num paraná, saindo noutro, como se tudo dali em diante já não tivesse rota ou fim. Subiam até as nascentes? Iam lançar o navio nos balsedos? Os dois disputavam o conhaque, ou a mulher aqui trancada no ca­marote? A guarnição se agitava como se quisesse precipi­tar-se sobre a porta do camarote. Apitando, soltando vapor, o gaiola ia-que-ia enfiar-se no barranco, o piloto carrega o calhambeque para outro lado, desvia da ilha, evita o pedral, o desrumo, a catástrofe. Este outro paraná entregou os bê­bedos a um afluente escuro e sem sonda.
[139] — D. Nivalda. Saia que é uma noite no Paraíso. Dos orvalhos do Éden nasceu este rio. Bebemos do rio.
Não respondeu, os olhos na vigia, O rio rebojava com seus alambiques pelo fundo. Já de luzes apagadas, bebendo longamente naquelas águas, o gaiola desembestava por esti­rões e furos.
Foi diminuindo a marcha. Ofegava, esfalfado. Sem lenha’? Com os peixes na bebedeira, ia de bubuia no rio. Agora es­barrou. Vai afundar? Um banco de areia? Tudo se calou a bordo.
— Vamos todos dormir nesta areia, ao pé deste pau-d’arco, comandante. O navio tem que dormir, bêbedo que também está.
Ela se guardou no camarote, a luz não acendia. A tri­pulação dormindo. O Dr. Numa? O comandante? O navio dormia. Só os bichos lá fora sacudiam o escurão. O dia, ai que nunca mais! Quanto rio, naquela vertigem, correu o gaiola?
— Não desce no meu escaler?
Dr. Numa na porta do camarote, sol alto, maré alta. o navio de fogo aceso, sinal de saída no mastro do traquete.
— E o meu marido, Dr. Numa?
Indagou como resignada, agora entregue àquele novo comando, no mesmo instante em que o marido lhe traz o café. Foi? A febre? O terror? Entravam no Amazonas.
Viu no marido um capitão corsário, seus marinheiros no ferro, o faz-e-acontece na linha, fino no afundar e no ganhar o seguro, águia regatão, retarda a partida em Monte Alegre para terminar o relancinho. E guardando, por orgu­lho, aquela suspeita contra o Dr. Numa... Como se tivesse provocado aquela viagem para atirar o doutor nos balsedos, com a garrafa de conhaque, o livro alemão, o escaler.
Ali no camarote? Os guardas fiscais vinham buscar o remédio que os tornava cegos mudos surdos. Na ausência de D. Nivalda, que só ia sabendo aos bocadinhos em Belém, ou adivinhava, cunhatãs do estirão saíam do camarote com [140] um corte de chita debaixo do braço e um corte de sangue debaixo da saia.
Daquela pequena de Sena Madureira? Bateu a história em Belém, meses depois, trazida aos pedaços. A pequena de Sena Madureira, O marido dela trabalhando na fron­teira como soldado, acabou-se com beribéri. A mulher caçada de cima do jirau pelos machos. Embarcou já barriguda, va­riando de febre.
— Tome o quinino. Tome. Vou-lhe mandar depois o doutor de bordo? Entre.
— Mas credo, comandante!
— Mostre o pulso, deixe lhe colocar o termômetro. Use esse Cinto, enfia essa volta, e este tricoline tem três metros. Mas me deixe ver sua febre.
— Mas credo, comandante. Mas o senhor, comandante!
O gaiola descia. Diabo! Ainda mais essa! E este grito abafado, escumando no peito, na goela. Que faço deste lençol? Atiro pela vigia? A careta de choro, a mulher es­vaindo-se, o gaiola descia, diabo! diabo! Marinheiro! Mari­nheiro! Entreabre o camarote, logo tranca-se, diabo! diabo! Tinha de ser. Não é nada. Engole o teu grito, rapariga. Tome um pouco d’água. Está com o comandante. Desem­barca no primeiro porto de lenha, levada pelos lenheiros ao tapiri rente d’água, onde lhe puseram a cera na mão; faz o vestido de tricoline, põe o cinto, a volta, levada na rede ao cemitério beira rio, debaixo do aguaceiro. A maré solapou o barranco, os botos sopravam, os cachorros ladravam contra os urubus, aquela boca de maré sugando as covas masti­gando o cemitério, O gaiola descia.
Chega em Belém, desembarca o comandante, chamado à Direção, são os tantos cumprimentos, entra para a Superintendência. Superintendente. Trazia de Solimões para a Vir­gem de Nazaré aquela arara azul, arrematada, no leilão do arraial, pelo inspetor do Arsenal de Marinha. E como dona Nivalda continuasse professora, o Superintendente:
[141] — Agora cumpre a promessa. Deixa o lugar. Uma banana para a instrução pública.
— É gosto meu, Amanajás.
— Casei-me para ter mulher em casa ou na rua?
Em casa entre as fronhas, criadas e as altas horas em que entrava o comandante, batido de champanha, rameira e jogo. Escoam-se aqueles anos, o inglês cismou, pegou:
O Superintendente metendo a mão? Queria partilha dos nos­sos roubos? E lá se foi rampa abaixo o nosso Amanajás.
D. Nivalda viu de perto aquela corcunda. Os credores cer­cavam a casa. Veio o leilão. Os colegas do comandante en­chiam a sala e só era a zombaria daqueles lances. A carta anônima: Mas você, Amanajás, tão pirata a bordo e no escritório e só com trastes velhos em casa! A tromba en­grossou, saco de pedras nas costas:
— Mas, Nivalda, já podias ter arrumado de novo o teu lugar. Estou a nenhum, não estás vendo? A minha única porta aberta és tu. Acabei.
Coça a corcunda, estira-se na espreguiçadeira de fundo puído, lendo nos jornais o movimento marítimo, a pendu­rar na parede e na corcunda as fotos de seus navios.
Dias e dias, a Palácio, de chapelinho e sapato roído, o bico murcho, aparecimento de cãibras, e espera, e es­pera, e espera. Venha, amanhã. Apareça, terça-feira. Venha sempre. Ou lhe serve São Domingos do Capim? Bagre? A vaga em Portel? Venha sempre. Por um milagre, aquela manhã... Ah, doutor é uma esmola o que o senhor... Ora, professora. Ora, professora. Era no subúrbio, com um lamei­ro na frente mas na capital. Conseguiu que a escola se instalasse na casa dela, o aluguel pago pelo Estado. O ordenadinho, um mês faltou. O procurador, coçando a corcunda, tentava explicar.
— Jogaste, não, Amanajás?
O comandante bateu a porta, foi beber no Minerva. Ela então se deu a uma ousadia: Retirou-lhe a procuração. No outro mês, o procurador foi a Tesouro, e lhe disseram.
[142] Estalou os dedos: Ah, sim. É verdade. Distraí-me. Vim por hábito. Por falta de tempo, não podia eu mesmo receber, sim, sim, esta cabeça! Em casa não piorou. À noite Nivalda, me cede aí uns dez mil réis? Foi beber no Minerva. Com o marido no Minerva, e por que agora era uma necessi­dade, D. Nivalda enjoava a profissão. Também alunos da­quela espécie! Me deixa ver, como foi que arruinou esta pereba na cabeça, Raimundo de Castro. Me deixa olhar essa tua orelha inchada, Nazaré. Professora! O Zito aqui botando uma bruta lombriga, professora! O comandante eriçava a tromba, invadindo a aula. Os meninos começavam a cochi­char. Jaburu. Jaburu. Enxugando as mãos no pano da cozi­nha, mandando o aluno remover a lombriga e limpar-se, a professora reassumia as funções:
— Cantar o hino, meninos e meninas.
— Marcha á ré, marcha à ré, Nivalda. Quero primeira­mente desembuchar um teu aluno: É aquele, o focinho de tatu. Tu, tatu, Otaviano Secundino de Paula, neto de um foguista meu no Rio Juruá. Tu, tatu! Tu! Tu! Sabias! Em vez do 5 me armaste o alçapão do 4! O 5 pingava do teu foci­nho e preferiste engolir o número. E estás te rindo? Te rindo? Pois já de pé na janela, de focinho pra rua! Na ja­nela e com o 5 pendurado no pescoço! Desse tamaninho já e já tão safado! Pelo 5 que sabias e não me disseste! Pelo 5 que escondeste! Aí na janela, aqui está o 5, pen­dura no pescoço, carrega o teu ferrete, condenado! Na janela, de pé, por dez minutos. Assim! Bem, agora, por mim, podem cantar o hino. Cantar? Urrar o hino! Sabem lá cantar o hino! Bem, vou passar meu telegrama.
Mal o comandante saiu, veio a aluna:
— Professora, aqueles dois tostões que a mamãe me mandou deixar no oratório da senhora ao pé da Nossa Se­nhora das Dores? Pois o comandante, no que viu, tirou e mandou o Vadico botar todo o dinheiro no 2464. Deu 2465, professora.
[143] — Otaviano, desce e tira isso do pescoço, meu filho. Vamos! O hino!
D. Nivalda escutava, alta noite:
— Ei, marinheiro. Carrega o leme a boreste! Meta esse amotinado nos ferros!
— Que é isso, Amanajás? Amanajás! Amanajás!
O comandante boiava da rede como um casco velho batia pela casa atrás de sono ou do seu passado, acordando a vizinhança, carregado de seus navios. Ia para a rua cachim­bar, à espera do pão. O padeiro deixava a cesta ao pé dele, a distribuir os embrulhos pela vizinhança. Uma madrugada.
D. Nivalda acorda e corre para aquele bate-boca no portão:
— Como ousa dizer que te tirei pão da cesta, seu ga­lego! Como ousa? Como ousa?
Chegava do Minerva para o almoço:
— Mas só isto? Istozinho? Não mata a fome de uma pulga que dirá de homem.
E tu és um homem?, quis indagar a mulher, de olhos baixos, colher suspensa entre os dedos. Também coitado. Naqueles jantares a bordo, comandante à cabeceira, e aqui, corcunda, sujo, meio bêbedo, debaixo de ração, Jaburu dos meninos.
— Ora, Amanajás, tu não queres, não come. Desintera de lá da gaveta da cômoda, do dinheiro da luz e compra uma lata de sardinha. Ficas te lembrando dos jantares do Hildebrand, é isto.
— Nivalda, mea filha, esse teu feijão brocou de vez. O taberneiro que te avia, aquele Figueira da Foz, rouba além do consentido.
— Esse, pelo menos, me fia, comandante Amanajás, me fia.
— Comandante é a mãe, Nivalda!
— Ora, Amanajás, só queres que te chamem de coman­dante lá fora? Aqui dentro não? Ai de quem lá na rua não te chame... Não? Pois eu...
O comandante estirava o beiço para a foto da parede:
[144] — E ela?
— Ela, quem?
— Ora, quem, Nivalda, a figurinha de cera. Escreveu?
A filha, na parede, sorria com as suas antigas tranças A mãe, aqui embaixo, varria o soalho.
— Onde, onde que está mesmo o trocado?
— Mas, Amanajás, uma lata de sardinha, e não jogo e não bebida, Amanajás. Era da luz.
Está bem, está bem. Como a sardinha lá mesmo. Com pão.
— Onde, Amanajás?
— Onde mais, mea velha, onde mais?
Voltou do Minerva trauteando:
No tempo dos apostólos
os homens eram barbáros
subiam em cima das arvóres
para caçar os passáros
Entrava na alcova, abria a gaveta da cômoda, atrás da­quele resto da luz que a professora já havia escondido.
— Mas por que tudo escondem neste porão? Ah! Ah! Tudo agora é a chave? Trancado? Sob o regime da des­confiança?
Os alunos traziam doces e rosas para a professora toma­dos, no porão, pelo comandante:
— Bença, comandante?
— Deus te desabençõe, cabeça de boi. Seus sovinas! Só istozinho de doce para a vossa professora? E por que essas rosas? Rosa é comida? Bacobaco, sim, é que é pre­sente. Ou querem que a professora se sustente a pétalas?
O bom é o bacobaco, é a paçaroca. O bacobaco. Sacudia a pança, desfolhava as rosas:
— Flores! Tragam nem que seja uma banana. Um beiju, um ovo, um coco seco. Proibido florinhas nesta casa. Primeiro a paçaroca.
[145] Um e outro aluno tentava explicar: Banana? Ovo? Coco? Mas quando? Era, se fosse.
— Minha mulher se matando a desemburrar vocês todos e nem um rebuçado!
Discutia com os meninos já agora em pleno comando, dirigindo a manobra do seu gaiola, prancheou, desembarca suas copiosas coisas de viagem, dono do cais, mares e rios. Quando aquela maior fábrica do norte do Brasil, de doces, pegou fogo à noite, o comandante correu a ver o espetáculo, ali defronte da igreja de Santana. Os bombeiros não sabiam se combatiam o fogo ou combatiam o povo que iniciava o saque.
— Não tem água! Faltando água!
— E aí a caixa d’água?
— Cheia está mas é das lágrimas das putas desta zona. Acuda, comandante!
E foi que o comandante também entrou naquela fúria, a comer, a encher os bolsos, no meio da fumaça, aqui apa­nhado pelo bombeiro, saltando adiante sobre os pudins. tro­peça num bolo inglês, afunda o pé num pão-de-ló, disputa a lata de bolacha, arrebata o queijo, precipita-se na barrica das torradas. Mais que o incêndio era a velha fome geral devorando a casa. Então irrompe no tumulto: São Pedro! Eivém o São Pedro! Tinha saltado de sua cadeira lá da igreja, entra no meio das labaredas, lançando para o meio da rua os estoques da confeitaria. Fluía ardente um rio de doce, manteiga, e maisena. Os bombeiros viam, entre gol­fadas de fumo e chama, aquele santo escurão que arrancava dos depósitos lá do fundo as provisões, pela cidade tão re­clamadas e sempre tão negadas. Com pouco chega a cava­laria. São Pedro mais que depressa correu para a sua ca­deira. O comandante em fuga, chamuscado, encharcado de açúcar, entrava em casa trazendo para a mulher um saquinho de bombom. Foi contando o que fez não fez, víti­mas e bens que salvou, alçou a mangueira, presenteou a solteirona com um bolo de noiva... Dormiu falando, em [146] seus pesadelos, a ferver num tacho de calda de goiaba e gema de ovo.
Aqui o menino suspirava:
— Teu pai, sim, que é carregador...
— Dia que nem um carreto, comandante.
— O entendido, o entendido, em carreto, em bagagem! Que sabes de cais, de navios, de cargas e descargas, seu fedelho? Bem, já te dei muita trela. Queres é escapulir de trazer o que se mastiga. Por isso! Por isso que pisei nos calos quando meu pai quis me fazer professor. Para quê? Por quê? Para isto?
Uma terça-feira, pela manhã, aquelas três enchapeladas com ofício do Diretor. Vinham servir na escola como pro­fessoras auxiliares. D. Nivalda cobria com as mãos o seu pasmo. Não tinha aluno para tanta professora. Mesmo que tivesse! Mesmo que tivesse!
— Aqui? Nesta escolinha poeira? Não está à altura das senhoras. Lugar das senhoras é lá no Barão, no José Ve­ríssimo...
— Professora, é só por ora. Pelo menos aqui é a ca­pital. Onde estávamos? Ah, onde estávamos! Ah, não queira saber daqueles lugarejos, professora. Dispense-nos de pronun­ciar o nome deles.
As três, com súbito pistolão em Palácio, transferidas do interior, já faziam crer que nunca tinham saído da capital.
— Bem, então só dois turnos.
— Preferimos as três juntas no mesmo turno, pro­fessora.
— As três juntas?
D. Nivalda ia notando que as três, na idade, nos cha­péus e nos vernizes, se pareciam cada vez mais. E a escola, que julgava tão dela, agora repartida, devassada. Três, sabia lá de onde e com que costumes, a invadir-lhe a casa e a ver, da porta ao quintal, tudo. Vinham juntas, saíam juntas, ensinavam da mesma forma, enchiam a boca de “novos métodos educativos”, já não era mais merenda era lanche. [147] Acabam não ensinando nada, dizia ela, num desabafo, sem dar pelo comandante que logo assumia um ar dos grandes dias a bordo, espanando os seus navios na parede:
— Nivalda, o farelo que pudeste catar na Escola Nor­mal foi se gastando a bordo naquelas viagens. Assim como perdi meus navios, o timão, a Superintendência e estou aqui espanando os meus fantasmas, perdeste o teu farelo. Por isso te opões à pedagogia moderna.
Deu uns passos pela varanda como num tombadilho.
D. Nivalda até virou-se para ele. Pedagogia na boca de Amanajás. Deus! Esse era aquele e aquele já era esse, es­crito e escarrado, no uniforme de bordo? Pedagogia mo­derna. Na alcova, ao espelho, viu no rosto não só o seu pasmo como a crispação de sua pergunta. Ali se mirou, que­rendo consolar-se, já um pouco divertida. Não, tão ruim pessoa não sou, que merecesse. Isto é verdade. Aqui no rosto se vê a sombra daquela corcunda, sim. Mas não era para estar bem mais usada, mais roída, bem mais caindo aos pedaços? Atrás dela, o espelho mostrava aquele longe portão arriado na João Balbi onde a mãe curtia, debaixo das palhas e curvada sobre a Singer, a sua viuvez. As irmãs bordavam, a caçula, na Escola Normal, indo, vindo, cola grau, sai a nomeação, de repente a bordo rumo de sua ca­deira:
— Gostando da viagem, professora?
— Só pensando para onde vou, comandante, para onde vou.
— Passando esse estirão, está chegando, professora. Só mais um estirão e puxo o apito.
Do trapiche de lenha vinha um bafo morno, um latido, duas velhas altas de luto fechado. E a escola? Defronte do cemitério.
Na descida, um mês depois, desembarca o comandante:
— Então, professora?
— Sim, comandante.
[148] — Marinheiro, me carrega pra bordo a mala da pro­fessora.
Fiel, foi, sim. Naquele escaler, não embarcou, embora quase quase. O primeiro ano bulia um pouco por dentro dela, fervendo, fervendo, nas viagens passava a fervura. No primeiro ano, sim, aquela noite de ópera, no Teatro da Paz, uma derradeira companhia passando por Belém. Ela e ma­rido aqui nas cadeiras e ali defronte o camarote onde um senhor não tirava o binóculo de cima dela. Uma autoridade? Marinha? Exército? Agente do Lóide Brasileiro? Olhares, olhares, mas então olhares. Indiferente à cena repleta de cantoria e traje cada um o mais antigo, via era aquela per­sonagem lá do camarote, põe e tira o binóculo tão... Exér­cito? Comandante da Flotilha? Inspetor da Alfândega? Caiu na conta de sua curiosidade, barrou a vista com o leque, ai! Como cantavam! E assim ficou de rosto no palco, sem ver nem ouvir nada, engolindo a surpresa (é comigo mesmo, sou eu?) a vergonha, a curiosidade, debaixo daquele binóculo durante os três atos. Por um tempo guardou o programa da noite d.e onde saltava, como uma lanterna mágica, aquele binóculo. No mais, este velho papel embebido de conhaque.
Pedagogia moderna. Além do mais, como diz o espelho, o desgosto me conserva a aparência. O roer muito mais por dentro, aqui por dentro o berro, o escarro, os camba­leios do comandante e toda a nossa cinza acumulada. E ele pensa estar sempre comandando. Ainda ontem, violando o seu orgulho, foi ao cais, que não via, meses. Bêbedo. Não lhe permitiram a entrada num gaiola. Os carregadores vie­ram trazê-lo, veio na carroça como um lixo. Trancou-se no quarto, como no camarote, seguia a carta das navegações, numa ressaca de três dias. Veio para a varanda: No meu uísque com os ingleses, eu só bebia era daquele carvoeiro tossindo na boca da fornalha o suor e o sangue? O suor e o sangue? O suor e o sangue? Explodiu a caldeira em cima do velho Teodoro? Os gringos desembarcam de branco e entram no Cachimbo de Aço. O relógio da Companhia [149] mar|cando as horas da cidade. Marcando aquele tritura-tritura lá das máquinas, guinchos, pranchas, porões, carrega lenha. carrega lenha, e os inflamáveis? Explodem os inflamáveis, Nivalda! Não vi, não cheguei a ver as manobras navais, ai manobras da esquadra inglesa, minha velha, minha velha...
Pedagogia moderna. Para mais, pela casa adentro, três víboras.
Tira a cabeça do espelho empoa-se, apanha o leque e o ânimo, entra na sala para enfrentar, sorrindo, as três e man­ter delicadamente aquela linha de diferença entre ela e os bichinhos da Curuçá, Passagem dos Inocentes, goela do subúrbio. As três ao mesmo tempo tiravam um fiapo. A da­nada, no seu casabeque cerzido, até que sustenta bem a calamidade. D. Nivalda sob o olhar delas, os pés suavam frio, desabafava com um e outro aluno. Vamos! o hino! Ninguém se metesse. Deixassem com ela só aquela corcunda.
Com a aluna que ajudava a D. Nivalda na cozinha, apa­nhada no portão, as três insistiam:
— O que eles vão comer hoje, hein?
— Ah, não sei lhe dizer, não, senhora.
— Como que não sabe? Não é lá no fogão o teu lugar de aluna? Não é à boca da panela que ela te ensina a ta­buada? Hein? Feijão de ontem? Bucho requentado? Ou só-só vinagreira?
— Agora isso é que não sei lhe dizer, não, senhora.
— Ela te amarrou a língua.
— Ah, isto não sei lhe dizer, não, senhora.
— Pois, sua boca grudada, e da filha? Tem recebido carta mesmo, como ela diz?
— Ah, isto não sei lhe dizer, não, senhora.
Logradas se não assistiam a uma cena entre a professora e o comandante. Saiam com qualquer coisa lhes faltando, tossiam, escarravam. Viam no sorriso de D. Nivalda uma ga­lhofa de quem diz: Desta vez, hein? Passem fome desta vez. Não comeram hoje a nossa migalha de todo dia, víboras. Fiau. E as três a um tempo:
[150] — Puxa, D. Nivalda, mas a senhora está tão bem hoje, professora. Mas tão bem.
D. Nivalda guardava o suspiro. As três inclinavam-se:
— E olhe, professora, que a senhora tem lutado, não?
— Lutado? Credo!
— Tão bem que está a senhora!
D. Nivalda folheava os cadernos.
Noutra manhã, o menino com um embrulhinho para a professora.
— Que é isso, seu...
— Doce, comandante.
— De quê?
— Não sei, comandante. Mamãe que manda pra mestra.
— Deixa ver, deixa ver.
No que entrega o doce, corre o guri para a aula, atrás o brado do comandante, mandando-o subir na janela, ali de pé na janela.
— Por que castigas o menino, Amanajás?
— É um particular entre nós. Entre nós dois só.
Minutos depois fazia o aluno descer.
— Vem cá, sua peste. Aquele sal amargo polvilhado de açúcar que me trouxeste como doce, seu langanho insolente, podias repetir o presentinho para as três? As três? Aqui entre nós. Que tal para as três?
Diante das três o comandante portava-se como a bordo, na cabeceira da mesa. E elas: Finezas e distinções que tem esse homem! Que lhe fez a delicada esposa para que ele se meta a casca grossa? Aqui conosco é aquele do salão a bordo.
O outro, acuado no Minerva, de quem a culpa;
— A mulher, comandante, é que faz o marido, sim. A boa aparência do esposo é o espelho da boa dona-de-­casa. Não acha?
— Não, minhas senhoras. O homem tem sido um ca­nalha com as senhoras. Se eu pudesse me casar de novo saberia como tratar bem minha mulher. Agora, tarde O tempo me dobrou o espinhaço, já não posso variar de [151] hábitos. O uso faz o abuso. Me acomodo. Mas se eu me amarrasse hoje? Com a Nivalda? Hoje? Rá!
— Mas não são, comandante, felizes?
Instante em que saltou a tromba:
— Indagar de marido e mulher se são felizes não é mesmo que indagar a idade das senhoras? Bem, que data é hoje? Vou passar meu telegrama.
D. Nivalda acudia, fossem pacientes com o Amanajás, não levassem a mal, agora que afogava as boas maneiras no Minerva. Com isso, quer mostrar-se melhor que ele e saboreia a ofensa que sofremos, refletiam as três, duplamente ofendidas. D. Nivalda com o desculpar-se, sabendo que assim feria muito mais, se vingava. A idade das senhoras. Esse Amanajás mesmo! Foi rir na alcova. Com efeito, o tempo. nas três, se distribuía a fundo e sem descanso, às três dava igualmente quinhão implacável. Nisso tentavam diferenciar-se, percebia a D. Nivalda. As duas vão mais depressa, dizia a primeira a si mesma diante do espelho. A segunda bei­java a terceira com um súbito calor ao ver que a colega ia murchando muito mais. A terceira via no rosto das amigas a ruína que, graças a Deus, graças a Deus, ainda não via no dela. E nessa, naquela ou na outra o mesmo caruncho crescente. Tinham deixado longe, como uma tocha apagada, aquela busca de marido. Famosas na vizinhança pelo que faziam no escuro em tantos anos de namora-este-e-namora-aquele ao pé da mangueira e na volta dos bailes. Tocha na mão, corriam Belém inteira. Foram fazer a praça no inte­rior, professoras, a. tocha já apaga-não-apaga, saíram à caça e às suas armadilhas não caía um, estezinho um, quanto mais um casacudo. Baixavam de preço e degrau, mas quem? Naquela altura um qualquer, um qualquer, o diabo quem fos­se, o facho caindo-lhes da mão. Ou não foi melhor? Espiem essa, esse espelho, a D. Nivalda. Casar? Deus que soprou, fez tombar o facho. E isso as juntou, as tornou gêmeas.
Sim, que a professora lançava o seu anzol naquelas três águas, pareciam uma só, e pescava, por exemplo, a surda [152] porfia entre elas no que toca a enfeites, braceletes, colares. Iguais no vestir, parelhas no modo de ensinar, em toda aquela sina tentavam distinguir-se surdamente nas tetéias. Esta, as pérolas de mentira. Aquela, o brinco, vá ver de perto, ah, mas tão ordinário; a terceira, o broche, arrancou do prestação, fingindo que comprou na Krauzer? Por isso mesmo cada vez mais semelhantes, Deus! Que é este mundo! A profes­sora sacudia a cabeça. Já não distinguia esta daquela, as duas da terceira. Completavam-se. A falsidade, escassa na primeira, era um dom na segunda que servia às colegas. Doen­ças ou birras que às duas faltavam, acudia a terceira a dis­tribuir das suas, irmãmente. O destilar o fuxico, o invejar­zinho acariciando a invejada, o cuspir no calcanhar alheio, o ter pena com um arre! engasgado, o lastimar-se, não cabia a uma só mas às três a um só tempo. Via uma só falando por três bocas. Ao se mirarem no espelho, não três mas uma só, ali se viam. A D. Glafira? A D. Emeridiana? A D. Custódia? Uma só, sem nome ou com um número: 3. As 3. E isso dava medo. As 3 entrando na sala, no mesmo passo e ofego, com os meninos de pé, e lá fora, no rumo do Minerva, o comandante:
— Acaba de entrar no picadeiro a 3 Cabeças.
Encerram-se as aulas, os alunos ornamentam a sala com palmas de açaizeiro, colocam seus doces no centro da mesa entre buquês e, sempre com um fiscal de apito na boca, de sobreaviso: O comandante rondando pela varanda. As 3, muito cívicas, dirigem o programa. Com aquele terno preto de Superintendente, o colete, o corcunda, a condeco­ração da Bolívia, o comandante perfila-se ao hino da Ban­deira. Cuidadinho com os doces, olho no Jaburu, cochicham os alunos. Vem a parte dos recitativos. Lígia, do terceiro ano, dedica aos donos da casa, o Vida de Rosas:
Construindo o lar dentro da vida calma
E sempre assim tendo horas deliciosas
[153] Graças ao céu pela felicidade
Vida de espinhos, fazem-na de rosas.
As 3 tossiam, sacudindo os braceletes. O comandante aplaudidor: Bravo! Muito bem! D. Nivalda roía a unha: esse recitativo é de propósito, obrinha delas, víboras. Mordia o beiço, ia chorar? Tão repentino, evitando o olhar da me­nina, como se aquilo tudo fosse verdadeiro, gentil, ou sonhou ou pediu, tão leal na menina. Ou porque na voz das crianças tudo... Logo a gorduchinha, a Íris, avança para o meio da sala:
Ergue o rosto formoso — é uma sultana
Tem um harém — o céu, róseo palor
Tem um palácio — o Amor.
As 3 anunciavam as notas, os prêmios, distribuíam os cadernos enlaçados de fita e flor, a capa com a Bandeira do Brasil e do Pará. D. Nivalda fez foi chorar um pouco na alcova. D. Nivalda! D. Nivalda! As 3 chamavam. Na va­randa, à cabeceira da mesa, o comandante abria a cerimônia, partindo o pão-de-ló que trazia escrito em cima: Salve pro­fessora Nivalda.
D. Nivalda fecha a gaveta do outro tempo, abre a deste instante, é só chuva e a aparição: o professor em uniforme de ginásio. A visão dissipa-se, tudo lá fora é ver goma de tapioca, desfeita a cidade em chuva.
— Ah, que não pára de chover, Santa Clara! De onde-tanta chuva?
Morava ali atrás do Una a mãe da chuva, ali a sua usina destilava o dilúvio.
No quarto, arma a rede, embala-se um minuto. Nas paredes, que transpiravam, desenha-se aquela figura do pro­fessor e o olhar de Roberta em que a figura se consome. Goteja dentro do quarto, sobre a moldura descascada onde a filha com aquelas tranças é que nem uma ave mudando pena.
[154] Cantava no coro de São Raimundo.
— Não puxes tanto pela laringe, minha filha, que assim rebenta as cordas.
— Mas, mamãe? Pois tem quem emende.
E ia puxando as cordas. No cantar, lá no coro, já a modo que a menina ia era se acabando, Nossa Senhora! um piado de perua na chuva. Descia com falta de ar, que fim levou teu sangue, Eleonora? Boca aberta, caía na rede, pe­dindo uma breve morte, o livro da missa no soalho entre as patas da cachorra que ficava mirando os santinhos. Todo aquele subúrbio, domingo, ia escutar, na missa, a língua em­brulhada do padre holandês, que fazia cumprir a norma den­tro da igreja a peso de relincho, coice e polícia. Na porta, policiais obrigavam os fiéis: Ajoelha! ajoelha! ajoelha! Os devotos iam, sim, se ajoelhando de dente trincado, mais pra­guejando que rezando, Deus perdoasse, mas arre! E assim aconteceu que um, bem feito! não quis dobrar o joelho, um por apelido Cara-Longe, ali de joelho duro, a cara em reta­guarda como se fosse arremessá-la contra o mundo: Nunca fui idólatra. Não concebo. Não sou. Os santos é que deviam ajoelhar-se perante nós, humanos, agradecendo:
— É por vossas sujeiras, meus filhos, que ganhamos a santidade. Venerar não venero, e aquele São Raimundo, ali encolhidinho, nunca foi um qualquer ídolo gentio, que isto eu juro.
Espremido entre os policiais, lhe subiu à cabeça, lhe deu um desrumo, aconcheou a mão ao canto da boca, fez uma trompa, desembestou pela igreja, na imprecação, pulou dian­te do altar, arquejante:
— Vamos, vamos, meu São Raimundo!
— Quis subir, arrebatar lá de cima o santo, a inocente imagem traída.
— O sacerdote deste templo é um paquiderme do mar do Norte, do mar do Norte. Correi com ele, São Raimundo! Esta igreja virou cocheira. Cocheira. Chama, chama a ca­valaria! bradava o padre que fazia evacuar a igreja e se [155] pos­|tou na porta, alto, ruivo, possesso, de óculos, banhado de suor como um cavalo.
Se coçando ainda dos percevejos e dos furúnculos, ganhos no xilindró, Cara-Longe esperou, umas oito e meia da noi­te, o reverendo sair da igreja. Foi seguindo o padre pelo escurinho do largo do Esquadrão. O padre meteu-se pela Jerô­nimo Pimentel, entrou num pardieiro. Cara-Longe espia: O padre dá extrema-unção, sim. Esperou. Com pouco eivém, muito apressado, batendo a batina no capinzal, de novo no largo do Esquadrão, e aí, ao pé da vala, Cara-Longe ata­lhou: Reverendo, me desculpe lhe deter o precioso passo. Por gentileza, me conceda um minuto, não sou um lobiso­mem mas, com sua licença, purgue um pouco por mim na sua santa carne holandesa os meus pecados, e deu-lhe de ga­lho de cuia uma surra tão senhora surra que o ministro de Deus, esfolado e sangrando, foi socorrido pelo seu algoz, nos braços de seu algoz até a Santa Casa. Por afilhado do Sena­dor Faciola, Cara-Longe escapou de uma condenação. O pa­drinho tapou a boca da igreja com uma espórtula suplemen­tar, fez o afilhado licenciar-se de Belém, das suas atravessa­ções no Ver-o-Peso, a benzer pela Bahia do Sol pessoas que traziam panariço. Nem pôde, noutro ano, pelo carnaval, fazer o Herodes e o Sardanapalo. O comandante Amanajás brindou a proeza no Minerva: Mais uma vez, e agora em Belém, batemos o batavo! E contam que trocou brinde com o seu Ribeiro (cá entre nós, comandante, mas a galho de cuja? Está na Carta Magna que separou o macho da fêmea? Ontem casada com o Governo. Hoje concubina e com todas as vantagens de uma concubina...). E o Filemon a desespe­rar daquela insarável ferida no peito e o Zematias aos primeiros sinais daquela contrariedade sem motivo, à toa, à toa... O intérprete do Hildebrand, conhaque em punho, o pé na cadeira, puxava o God save the King. Todos já na­quele tempo assíduos no Minerva.
A visita, levando maçã, que Eleonora fez ao padre na Santa Casa, o comandante achou compreensível. Levou à [156] conta de que a filha se agarrava àquela batina, aos santos,. ao desagravo, unicamente pelo Coló. Pegou pelo Coló aque­la total cegueira mas tão cega, tanto se embeiçou que se pai e mãe falassem, ela, tão franzina, no risco de desmaiar: não é minha dor de dente? A marca da bexiga em quem é? A bexigosa é o senhor? A senhora? Quem que pega a lepra? Estou cega? Me deixem que me guio por mim mesma no escuro, que o caminho eu sigo, sei a minha luz. Que o ra­paz — lastimava o pai com seus velhos botões, a meter-se no casaco sebento para ir ao Minerva — cru e nu de qualquer recomendação era pote, cujo barro, só tocar, soa lodo e obra de porco. O rapaz fedia a pira. Condizia que a filha do co­mandante mostrasse o dente a um aceno de um sabe-Deus-quem saindo de uma goela sem fundo, lá das baixas impa­ludosas e minadas de alastrim da Sacramenta onde os buchei­ros baldeiam seus carrinhos? O comandante levantava o pu­nho para os navios da parede, soprando o pó dos navios, aze­do por não tomar banho e não fazer nada, com um diabi­nho em riba da corcunda, cochichando-lhe: Te empina para o lado da gazela, te empina... Não te atrevas senão ela te pendura na tromba murcha um anel daquela carapinha, es­correndo pomada, do Coló. No bilhetinho dele o garrancho: estremosa heleonura com h e h pequeno e aquele u. E quem o pai dele? A mãe? Com h pequeno e o u. Claudomiro de quê? Me diz? Tua certidão? Indaguem dos cururus naquele cariazal.
Virava-se para a O. Nivalda.
— Estás fazendo sentir na tua filha a tua educação, a tua autoridade?
— E as tuas, comandante?
— Que minhas?
— Vamos que como filha da professora... Mas como filha do comandante?
Vai debochando, vai debochando, que qualquer noite dessas te devolvem tua filha pela janela adentro esquartejada... rasgada ao meio pelo estuprador, professora.
[157] Só foi dizer aquilo e Amanajás lhe deu nele um arran­co, arrancando da parede um dos navios, o Andirá, rasga e pisa, apanha os pedaços, quer juntá-los, colá-los, assim sombriamente ocupado o resto da noite.
Mas qual! A filha, com seu beicinho de meia defunta, olheira crescendo, cantareira de fora, tão que tão fraca, batia que batia o pé, encravada no Coló. O pai, no escuro, sem ser visto, receando-a, seguia a filha pela Dois de Dezembro urdin­do um modo de separá-los, a tapona no pirento e a vespa tra­zida pela orelha... Eleonora bem que adivinhava no escuro aquele pai com o peso da corcunda, mas temia? Toda tarde tomava gemada com agrião para ter um fôlego no troca-per­na pelo Umarizal atrás do seu pequeno, e o cujo, bem. pá­vulo, por se ver no píncaro, até que nem como coisa — amanhã te espero neste canto — vinha? Sumia uma semana, voltava na maior cara lisa, e tudo o mais assim, jogando bola no Marco, pelo São Brás de velório e farra, caçando dentro do Bosque as moreninhas ariscas que amansava com pipoca e sorvete rala-rala. Não vê uma saia que não se assanhe. Um estradeiro de marca, um rufião. Vou averiguar quantas en­tradas já deu na polícia!, rosnava o comandante voltando do Minerva.
Senão quando, aquela manhã: pendido no galho da man­gueira, ali pendurou-se, o laço no pescoço, assim encontra­ram o rapaz, ninguém explicava, vestido para um passeio, pa­letó e gravata, se enforcou. A razão? A não serzinho o que se escutava pelo São Brás, pela oficina da Estrada de Ferro. aquele tão soturno agarradio dele com uma tal Dionísia, tra­zida zinha-zinha no trem de Bragança, criou-se com mingau e tacacá ali no mercado, mulata de venta acesa, já tamanha rapariga, no que olhou o recém naval saltando do estribo do bonde, como do torpedeiro, é já que dá dormida a ele, ani­nhou o marujo debaixo de suas anáguas de renda, mais que de repente os dois no Ita, até um dia, mercado e trem de São Brás, do Pará só a falta do açaí.
E de tudo isso o Coló?
[158] Que justamente noutro dia, paletó, gravata, sapato duas cores, amanhece pendurado no galho da mangueira?
Eleonora, esta, adeus, coro, adeus, largo do Esquadrão, lhe deu uma asma, O comandante e a professora, por que esconder, embora com um doer pelo juízo, dizer nunca diziam mas um tanto se aliviaram. E os cuidados com aquela asmática? Ah, quando a filha aparecia na varanda, à noite, sufocada no seu gogo e um vidro o corpo, de tão transparente. (Telefona pro Dr. Camilo, Amanajás, nos dando uma hora, que ele escute os pulmões dela.) Pois muito bem.
Não é que da noite para o dia, junta-se a Eleonora com um terceiro sargento do Exército transferido para o Piauí? Os dois embora, deles nunca mais uma linha.
Da filha restavam aquelas tranças na moldura descascan­do, e aqui, na memória, neste aguaceiro, aquele olhar de Eleonora seguindo o corpo do enforcado que os homens carregavam no jirau sobre a lama. Um olhar por onde sol­tou seu grito.
Nem demora, na Santa Casa, o comandante com um antraz.
— Nivalda, mea velha, só o Camilo meter a faca nisto, rasga este bicho, a tempo de ainda pegar aquela tartarugada, no domingo, do meu compadre leiloeiro. A preparadeira é a Magá, da Ruy Barbosa. E na segunda-feira aquele tamau­tá no leite de coco no Hilário.
Não comeu a tartaruga. D. Nivalda andou catando pelos papéis do falecido um tostão poupado, uma cruz de vintém ocultas, ao menos. Remexe na mala velha de viagem, das viagens, mala outrora copiosa, imponente: o baralho sujo, o dente de tubarão, a gazua. Tinha de descontar do seu orde­nado mesmo. Rezou seus sete terços, embalou-se um minu­to na rede, até desejou ficar ali o resto do tempo, pelo me­nos até que saísse o enterro. Morta estava ela, ali sepultada. Tinha de enterrar o marido em primeira classe, não por ele, ex-comandante, mas por ela, professora em pleno exercício. Meia zonza pela casa, ficava olhando os navios na parede, lá [159] está ele, de uniforme, a mão na roda do leme... Ausente estava ela, e não ele, que tudo atulhava com a sua corcunda, seus navios na parede, sua morte. Da filha, no Piauí, nem o endereço. Nisto chegam as 3, lhe enfiam o braço e a le­vam para a capela da Santa Casa onde os alunos da estadual, gozando o feriado, cobrem de flores o velho Jaburu. Como correram a apanhar o bonde, como tomaram conta do ce­mitério!
— Pois comendo manga de cemitério, meninos!
— Ah, professora, que que tem, tão doce!
Na cova o caixão, apressaram-se a jogar terra que caía, ávida, com fome do defunto. As 3 ralhavam surdamente:
— Mais termos, meninos. Mas que é isso, demônios.
Os demônios comendo manga, disputavam torrões e flo­res, felizes no inesperado brinquedo.
As 3 vieram deixá-la em casa, tudo, tudo é tão transeun­te, explicavam, a sacudir voltas e braceletes, satisfeitas de estarem ali acudindo. Que dia cheio! E que ocasião para bem avaliar a dona-professora, o seu descuido: não internou a tempo o trambolho. As 3 insistiam em ficar. A viúva, numa súbita energia, armou-se de uma tal delicadeza, foi botando as 3 de casa.
Quer, lhe faço um chazinho, lhe faço, sim, lhe diz a afi­lhada de fogão, aquela do não sei, não, senhora. Entrou num sono, se via entre as 3 no meio da praça, numa ciranda, sol­tando balões de onde zarpavam os navios do comandante. De repente o comandante, no seu uniforme de bordo, com o ca­dáver do Coló em punho, seguro pelo pescoço, varria as 3, três cabeças de uma só cobra, varria os meninos que esca­pavam para o largo da Pólvora, se enfiavam pela ramagens de Batista Campos, invadem a Basílica, voam para o Bosque onde aquele doutor no seu escaler desembainha o sabre e bar­ra o passo ao comandante. O escaler puxava os carros do trem por entre os estirões da noite. Só o sabre no ar contra o enforcado no ar. Ou era um navio no ar, a proa do navio na mão do comandante? Era? Cheguei com o meu escaler, [160] ouvi-a. As 3 mordiam-se, espumavam, espremiam o antraz? Os meninos sepultavam a ciranda. Agora era o navio que o comandante fazia rodopiar, seguro pela chaminé. O chá, madrinha, o chá. Ao pé da rede com a xícara sem asa na mão suada, a Não-Sei-Não-Senhora.
Noutra semana, bruxas no ar, foram-se as 3. Perde a casa, a escola fecha, enterra-se no subúrbio, consegue o lugar de adjunta na mista do Umarizal. Ao seu ordenado, acrescen­ta a escolinha, esta, particular, à tarde, tão pouco. Só por necessidade? Mais por estima aos bichinhos? Se podia, só ela, dar conta, por que chama o ginasiano? Agora, este sen­tir-se excluída e mais só, o ter as culpas que não teve, quis e não soube praticar, a pedir, agora, tão tarde, aquele escaler.
Ali à mesa, nestas tardes, fazendo o ditado, o ginasiano mais parece ditando do seu coração, não do livro. Ou só dos seus instintos, acesos no olhar de Roberta, esta quem sabe roçando-lhe a perna por baixo da mesa, passando-lhe, quem sabe, bilhetinhos dentro do caderno e na aritmética fechada.
D. Nivalda não tira os olhos. E isso lhe remexe as cinzas, um sobressalto lhe arde no rosto, algo maligno doendo-lhe nas rugas, atrás dela o olhar de Roberta a surpreendê-la, a dizer-lhe: Ainda não crê no que lhe diz o espelho?
Se lhe dá de chamar a aluna: Não me apareça mais. Seu mal pega nas meninas. Suma-se? A aluna, toda tarde, com uma rosa: É da senhora, professora. Toda tarde. Foi ele en­trando, noutro dia a rosa. Agora toda tarde.
— Que roseira é essa agora que todo dia dá rosa, menina?
— Rezo ao pé dela, professora, e peço: quero uma rosa todo dia para a professora. Acordo e corro no quintal: lá está a rosa.
A sabidinha! A flor é pra ele. Está no olhar da astu­ciosa. Na mão da professora a rosa que te trouxe, diz, quei­mando o rapaz, arisca em tudo que diz, guardando os olhos dentro da aritmética. Lá vem ela, o vestidinho azul, um ar de má vontade, a rosa, taqui que lhe trouxe, professora, [161] sen­|ta-se sem nunca dar pela presença dele e dona dele, faz o ditado, nunca olha o rapaz e vigia-lhe todos os movimentos, sempre a última a entregar-lhe o caderno, no que vai entre­gar não entrega: Ai, me esquecendo de assinar meu nome. Alfredo baixava a cabeça sobre os cadernos, a ouvir aquela pena no papel como se fosse lhe tatuando o peito, letra por letra,

ROBERTA

Até se assusta com o caderno nas mãos e os olhos dela, um instante olhar puxando o rapaz de lá de dentro. Assinou? indagou ele, à toa, à toa, sem fitá-la, aqui com o nome dela no caderno. À porta do corredor, suspensa, é D. Nivalda, ralhando sem motivo com os alunos, rouca. Roberta se vol­tou sorrindo: Fez a fatia parida, professora? Esperando que a senhora me ensine a fazer, sim? Demoninha! Já os olhos na aritmética, por baixo olhando o rapaz que não soube o que fazer dos ditados. Ou lia naquele último caderno as cifras de Roberta? Ela a cada instante mais moça, desabrochando-se sobre o rapaz, este de rosto no ar, na tarde lá fora, tarde que só é Roberta.
Por que o chamou? Foi por vê-lo, aquela tarde, e ou­tra, e na manhã de domingo, ou por ouvir... Quis lhe falar na praça, não lhe falou, correu para casa, a doer-lhe a cabeça, rezou os sete terços. Depois aquele encontro, o em­baraço dele, e ela no empenho de vê-lo na escola.
— Mas meu Deus! Meu Deus! O senhor!
As mãos na face, vendo-o surgir, tão de súbito, de den­tro do aguaceiro. Saltou na sala como um peixe, o rosto banhado daqueles orvalhos do Éden, de que falava o doutor Numa.
— Mas, meu Deus, o senhor?
[162] — Boa tarde, professora.
O que ele só falou, tentando enxugar o rosto, a custo reprimindo: Roberta? Roberta? D. Nivalda, a mão na boca, sem saber se o seu espanto era por vê-lo aparecendo ou des­cobrindo nos olhos dele nada mais que a outra, Vá ver nas­cia da chuva. Ou chegava jovem aquele doutor no escaler?
— Ao menos tire a blusa que eu seco a ferro. Mas onde o seu juízo?
Indagou mais de si mesma, colhendo dos olhos dele a busca de Roberta, a surpresa, a raiva, a amargura de não encontrá-la. E em lugar de Roberta, essa sobrevivente do dilúvio.
— Deixe que acendo o ferro.
— Não, não, professora! Seca logo. Tanta chuva, não? Nem um menino? Nem um menino!
O menino dele, quem, o menino! Nem um menino! E em tão poucos dias, tão poucas tardes! Que fiz para chamá-­lo? Que fiz para que esses dois tão de repente... Nem um menino! Unicamente nesta sala era Roberta. Varando o aguaceiro por pensar — ou combinou? — que Roberta viria também, um em busca do outro, ambos usando a chuva para o encontro na sala vazia, os dois únicos bichos nesta arca. Em que virava a escola! Alfredo escorria ao pé da janela. O preço que dá à pequena, o preço! Como se tivesse se sub­metendo a uma prova. Saltou da chuva feito um encantado e ali ficava, gotejante, como sem fôlego.
— Espere que é só pôr brasa no ferro. Num instante. Isso lhe faz mal. Enxugando a roupa no corpo? Não vale o sacrifício. Molhado o senhor não está, está é empapado. Tão moço assim, de pulmão verde, cuidadinho. Por que a proeza? O seu juízo, menino!
Disse menino? D. Nivalda queria dizer-lhe: Pois vai-te embora. Assim como as águas te trouxeram, que te levem. Carrega com a zinha na enxurrada.
— Deixezinho de acanhamento, vá tirando a blusa. Ao menos enxugue as costas. Perto de mim o senhor, ainda é, [163] é, sim, um menino. Com pouco está espirrando... Já tenho idade para ser...
— Ora, professora, chuvão assim é que dá sustância. Me criei na chuva, dentro d’água. Onde moro? Em Cachoeira? Três meses de bubuia na enchente. O velho jacaré, à noite, embaixo do soalho batendo com o rabo: Õ gente desta casa! Õ gente desta casa! Dormindo? Foi assim que me criei. Tem­po que não tomava um banho de chuva assim. Não saltei aqui na sala como um sapo? Foi ou não foi?
Mordeu o beiço, foi à porta sacudir-se, bateu as roupas. Daquela nem um sinal, um. Ainda podia vir? Ainda? A chu­va abrandava. Chegasse de repente, chinela na mão, de re­pente, molhada molhada, a chuva caindo de suas pestanas. A sua flor, professora. E sempre no olhar aquelas águas rápidas. Recolhidos nesta arca, Belém afundando no agua­ceiro. Só você de aluna? Faça o ditado. Qual dos dois dita­dos, o da boca, o dos olhos?
— Tome este paletó velho, professor, está limpo, tire a blusa. Pegue a toalha. Quer vir ao quarto?
Estremeceu, que pensará ele? Ou só sou eu pensando? Outra intenção não foi senão enxugá-lo. Se alguém entra neste minuto ao vê-lo no quarto? Assim molhado mais parece despido, Deus meu! Se alguém entra... Um menino. Uma menina.
— Seco já já a sua roupa a ferro. Não custa.
Ia, vinha, no quarto apanhou o terço, se olhou no espe­lho, ajeitou o cabelo, largou o terço, trouxe duas toalhas. Um café quente? Mas molhado! Veio andando ou nadando? Ao menos os sapatos, eu ponho no fogão. Ensopado. Da chu­va ou de Roberta? Repentinamente se via nas viagens, no escaler, roçando a rede das enfeitiçadas, todo todo um des­perdício aquele guardar-se, agora se debatia nas cinzas de um fogo em que não soube se queimar, não saiu pura, saiu ve­lha. Como em vez da chuva no rosto, ele só transpira Rober­ta! Não se arreda da janela.
[164] — Não se acanhe, tire a blusa. Olhe que lhe faz mal. Passe a toalha por dentro. Pelas costas.
À janela, Alfredo não enxuga o rosto que dirá as costas. Desça neste relâmpago. Chegue nesta refega. Da espessura branca lá de fora, o vestido azul, as chinelas na mão, o salto na sala... Espremia as mangas da blusa como se fosse a esperança. Os sapatos só lama. D. Nivalda ia ao quarto, apanhava o terço, voltava, ia à cozinha, voltava.
Nem sua toalha nem seu paletó velho, professora. O que me enxuga um pouco é a sua cisma, é um pouco adivinhar que a senhora também pensa nela e descobre... E eu de mim que sei? Sei ao certo? Dessa lufada de chuva despen­que a lontra-menina... Não acenda seu ferro, professora. Sei como enxugar-me, ou molhar-me muito mais, quem sabe, molhado molhado... Ela entrou na Brasiliana? Solta no capinzal mamando nas tetas da Cabra-Cabriola. Entre os mo­leques, caçando sapo? A rir, em casa, deste panema na chu­va, deste panema na janela. Não vem. Chova o que chover vou. Dizia. A água monte nas mangueiras, vou a nado.
Escutei o que não era? Nestas poucas tardes, vejo, ouço nela uma outra que não é, só de mim nascida? Traz o cão nos olhos, sal na moleira, brasa nos chifres, calda nos pei­tos. Cabra-Cabriola. Escreveu no caderno: Cabra-Cabriola. E com a moura aprendeu esta:
De coçar este demônio
Quero fazer matrimônio
Estou com o dedo cansado
De coçar este demônio
— Quem te contou da Cabra-Cabriola?
— A que comeu os bezerrinhos?
— Quem?
— Comeu os coitadinhos. Um que me contou, pois foi.
Quem sabe interceptada pela Brasiliana, pela moura atraída, subindo o sótão, tira o vestido da chuva, cobre-se com sedas e rendas da Guiana. E aqui estou, e ela? O [165] tem|po desabava, relâmpagos, trovões, eivém a D. Nivalda com o ferro aceso: professor. a chuva! Não vá, professor!
Roberta anda pela Romariz onde queria se empregar para quebrar caroço. Entre menina de escola e moça de fá­brica: moça. Sim, que moça de fábrica é mal falada, mal vis­ta na cidade. Mas menina de escola, ponto final no ditado, professor. Ficava no trapiche olhando.
— Menina, olha como tu acaba! Moça que muito olha o rio, ou emprenhou ou quer emprenhar.
— O filho que eu pegar, de bicho que não há de ser. Tenho medo de bicho, não. Então me emprenha, rio, anda!
O rebocador passava, canoas de vela preguiçosa à espera de vento, lama da praia faiscando, o esfumarado longe. Ou­via-se bater a quilha do barco no estaleiro. Moleques patina­vam na praia, catando camarões.
— Camaroeiro, me apanha um, que te dou um beijo.
Roberta ninava as águas:
Quase que perco o baú
— Repete, rio: perco o baú.
Quase que não tomo pé
— Repete, rio: não tomo pé.
Por causa do remador
do remador
que remou contra a maré
— Repete, rio: contra a maré.
A correnteza levava a imagem dela para o fundo onde estava a Come-Bezerrinho. Uma noite, ela e um bando ouvi­ram a estória da Cabra-Cabriola. Fizeram de conta que pe­garam a monstra, mete no saco, arrasta até o rio, com uma pedra no pescoço lá no fundo, adeus que comia bezerrinho mais.
— Me dá um camarão, que teu dou uma prova do meu beijo, camaroeiro.
O rio perdia seus mistérios, banhando aquela cidade de cimento e telha, apitos, sinos, chaminés, bacharéis. [166] Abrindo-|se a navios escuros, pesados, resfolegantes. Bóias lhe rasga­vam a treva e o silêncio. Aqui com Roberta, vêm à flor os antigos mistérios. Roberta mirava o rio. Com Roberta o rio restituía-se.
— Quem que não queria assim ficar encantada-encantada? Gosto meu ver o rio. Miro, miro até que me dê uma tontura. Uma vontade! Ficar quietinha lá no fundo, a piraí­ba se chegando: que me vieste fazer aqui, sua menina?
Abria a boca, o sono? Cruz no bocejo. Gosto de estu­dar, não, puxa! mas só chuva? Só chovendo? Chuva na pe­dreira mata a tucandeira. O rio por cima dela como um homem. Seu cabelo flutuava. Os camaroeiros lhe puxavam a perna. Dava uma claridade algodão, azul depois, até ficar bem noite, cor do fundo. Soava. Soava. Chega ó meu prín­cipe do manjericão. Õ meu príncipe do manjericão. Gosto de estudar, não. Quero quebrar caroço na usina Romariz, ca­roço que dá um azeite. Camaroeiro, me dá um dos teus camarões, que te dou um meu cheirinho. Um. Não chega? Te dou dois.
Roberta! Roberta! A mãe lhe sacudia a rede.
— Roberta! É hora!
— Eh, mamãe, já agora? Neste friozinho eu me acor­dar? Eu não.
O pai, já de pé, o ar flagelado:
— Isso, mea filha, vá não, vá não.
— Pois agora que eu vou — e senta-se na rede, inchada de sono, sanhanhando o cabelo.
— Então vá logo que senão chega a tempo não.
— Pois agora que eu não me levanto — e deitava-se, enrolando o trapo de lençol nas pernas.
— Pois então não se levante, é melhor, tire outro sono, que vai fazer lá?
Roberta saltava, trapo no chão, punho da rede gemia na escápula, ia direitinho no pote.
— Bem, pois agora vou.
[167] E aqui na Romariz:
— Mamãe não cansa de me ralhar que sou por demais carregada de meu querer. Sou, rio? Sou, chuva? Sou, meu príncipe de manjericão?
Quase não tomo pé
Não tomo pé
Por causa do remador
Que remou contra a maré
Contra a maré.

Na praia atrás dos camaroeiros.
Alfredo ia subindo o sótão, deu com a D. Brasiliana descendo.
— Que é isso, menino? Delirando? Espere!
Tropeça no jacamim, o telefone chamava, corre debaixo do aguaceiro.
Olha a barraca de Roberta, vizinha do capinzal. Agora, sim, encharcado até os ossos. Até os ossos. Apita as seis. Até os ossos.
No seu quarto, se despiu, se enrolou na rede, e tanto que cerrou a noite, caminhou pelo silêncio do subúrbio depois da chuva e do vento, o tempo estrelou. Rondou a quadra de Roberta, deu sete voltas, nem luz nem rumor na barraca. Ca­minhou no trilho do bonde, querendo chamar, arriar-se no capinzal, e apanhou o bonde até o Ver-o-Peso, voltou noutro que o deixa no fim do Curro. Espiou o serão do curtume — Sabina trabalhava? — deu nove, dez, onze horas, chuviscou, escorou-se na cerca, esperando.
Temia encontrar-se com os seus companheiros da noite, caminhava. Parou no canto da Brasiliana. Sempre à boca da rua aquele valão escancarado, agora com os sapos em festa.
Lá em cima, a janela abria, a luz apagou-se. Alfredo quis fugir. Mas ao cabo que descia do sótão agarrou-se, su­biu num desespero.
[168] Aqui fora, roçando as plantas, olhava à janela: Seu Bahiano pendurava na parede da sala o candeeiro aceso para o primeiro ensaio do pássaro que ia sair pelo São João.
— Cumprindo promessa de ficar aí a noite inteira no sereno, só olhando do lado de fora, é menino? Aqui a bor­do, convés arreia? Deu percevejo no beliche? O barco está de quarentena ou para embarcar me cobra um imposto? Suba a prancha, não conspire com as plantas que elas aí sempre são inocentes, talvez se queixem do dono da casa pelo mau tratamento, precisam de um estrume, um canteiro. Por obsé­quio, entre com as devidas honras, tome o navio, que acomodação sempre se arranja, suponho, isto aqui é um pontão ve­lho, sem sanefas, roído pelo turu, os assentos mancos mas não faz água. Que apito toca no ensaio? Dono do pássaro? Ca­çador? Naturalista? Ensaiador? Ah, o enredo é seu, as letras? Muito que bem. Ah, só estou é o meu zinho querosene...
— Deixe estar, deixe estar, seu Bahiano, deixe estar que o pássaro manda ligar o fio da eletricidade nesse seu navio velho, deixe estar. Já não vai servir de nosso palco? Licença?
A gorducha puxava o bando de suas companheiras, todas à porta, com cerimônia:
— Mas por que não embarcam? O barco, de tripulação, só tem eu agora, é o marinheiro. A comandanta deu um pulo no espiritismo mas de com pouco volta. O palco às or­dens. O tombadilho anda sem calafeto. Tenham só cautela no escolher por onde andam, o pontão não joga. Água, vocês querendo, tem o pote com caneco aí no corredor, às ordens, o pote esfria. Falta é as gambiarras. Quem que é o tesourei­ro da sociedade?
— Bem que havera de ser o senhor mesmo, seu Bahiano, ainda bem que o senhor está lembrando. Aí uma escolha a dedo. Dou o meu voto, O senhor ia arrecadandozinho os donativos e as cotas no seu charão de prata. Era ou não era? Não era? Feliz de quem é servido por um charão como esse-um do senhor, de prata pura. Era ou não era. Não era?
[169] Bem que era, bem que era, sim, aprovavam as moças en­trando na sala. Alfredo, aqui fora, reconhecia rostos, laços de fita, flores no cabelo, a Carlinda apertando o cinto, sempre a modo assustada, o trancelim da Catitinha, o colo da Pérola, a gaga — que papel o dela no bicho? — figurantes do primeiro ensaio, embaraçadas, uma esconde o rosto nas cos­tas da outra, a Palmira, sem termos, esparralha-se no ban­co, os sovacos de fora, afrouxa o cós, como afrontada; na filha do seu Amaro Bucheiro, a amarelidez dava a seus olhos um escurume fundo, não parava com a cabeça? A gorducha entrega a seu Bahiano a garrafa de querosene.
— Mas eu não estava cobrando, eu pilheriava, falei por pura mangação, que apavoramento esse de pagar na bucha a luz do candeeiro?
A Noca metia e tirava uma bola-de-cuba na boca. Aque­la, ali, donde conheço? De um sábado nos Estivadores? Da 20 de março? Do 15 de agosto? Não é a Mindoca? Cortou o pixaim bem rente. E essa, afastada das outras, solitária, alta, já de diadema na testa? Já subindo o palco e recebendo palmas? A pirralha ali no meio, de chinelinho, é a que vai encarnar o pássaro? Bem debaixo do candeeiro, a Esméia, tirando o pé da chinela, tão empoado o rosto virava róseo, mira seu vestido claro, de sombra cor-de-rosa. A um ruído do portão debaixo do maracujazeiro, Alfredo virou-se: Ela? Correu.
— Entrada grátis, Ana. Tempos! Não?
— Cismei, aquele-menino, que até fosse quarto e tu o defunto.
O rosto de Ana, no meio-escuro, branquejava. Alfredo quis apanhar-lhe a mão. Ana atolou-se na sombra. Alfredo querendo indagar: Carregas a sombra da tua tia Luciana? Puxas o rabecão dela para o Santa Isabel? És a herdeira? A Babilônia, ela te legou? É a hóstia do Orfanato que cuspis­te? Ana lhe deu as costas e ele na remoição: Roberta prome­teu que vinha. Ia aceitar um papel no cordão. E lá de dentro:
[170] — O seu charão, seu Bahiano, ia servir como depósito na Pará Elétrica. O senhor deposita a jóia, o inglês, manda ligar a luz, sim? Fora de brincadeira. Falamos agora em nome de uma comissão de senhoritas, sim? Além da sala que tão de agrado nos deu, empenhe em nosso benefício o charão e assim o senhor virava o nosso benemérito, sim? O padri­nho do pássaro, selado?
— Meninas, suas precipitosas. eu ainda nem cobrando a luz do candeeiro, eu brincava...
Alfredo, no portão, outra vez não virá?, tentava a confi­dência com a Ana:
— Entra um pouco, menina — tanto tempo! pra me contares da tia Dudu, do Centro, da D. Santa. Rezou-se mis­sa? Tive que sumir um pouco desde aquela manhã, Ana. Entra que te reservo um papel, conseguiste lugar no curtu­me? Entra que te conto como foi, o que se deu comigo. Ou se quiseres ficar, só ficar de parte, só criticando, fica. Faz um pouco de amizade, de conhecimento com essas moças. Põe o teu rosto na sala, índia gavião de pele descascada. Fica me contando das tuas tias, da tua irmã — Dalila foi ao me­nos um dia no hospital? — do que anda acontecendo no es­taleiro, no Curro, no Una, e tua roseira? Diz que aquelas duas da vacaria, as duas fidalgas do Curro, casaram na polícia? Eu não disse? Quantos quartos de anjo já fizeste este ano? Que te fizeram no orfanato, Ana? Quem te aborrece no mundo, Ana? Descobriste onde moro? Foste no meu rastro? Des­cobriste? Queres um papel no Japim?
Ana escutava até numa paciência, de costas para ele, num repente saltou no maracujazeiro, tirou uma folha, mas­tigou:
— Axi! Axi! Que eu me misture, axi que entre nesse teu cóio. Cuche! E nunca me passou pelo juízo te andar es­piando, descobrindo teu paradeiro, tu quem tu és? Farejar teu rastro... Cachorra é outra, atrás de semelhante osso são as cadelas do teu cordão, que que te incomodas comigo? Pois fizeram muito bem as duas da cocheira, muito bem que elas [171] tivessem soberbia, os zebus são delas, nunca te deram con­fiança, batiam a janela no teu nariz, não eram pro teu bico... A roseira? Foi só arrancares a rosa, secou, seu encaningado. Quisesse eu e hoje era a pastora do Tentém, também fica tu sabendo.
Alfredo espalmava as mãos: Mais baixo. Mais baixo.
— Pássaro! Amizade com elas! Pássaro de asa já que­brada. Vai é levar tanto assobio, tanto caroço de manga, tan­to peido de velha aceso atrás das comas, que eu só de parte só me rindo... E olha, falo no meu natural, não decreta a voz que devo ter. Não estou te dizendo segredo pra falar baixo.
Mas falava baixo, os olhos no pé que mexia a folha do portão. Entre as moças, lá dentro, seu Bahiano ria.
— ... ah, mea filha, meu charão? No cofre do inglês? Meninas, meninas! O charão, esse ai...
Alfredo fez um passo para Ana, na sombra.
— Ana, ao menos aqui dentro, tens medo da luz da ja­nela? Das moças? E tua avó? Pegando criança esta noite? Atrás de ti? Ao menos do pé das plantas, te acocoras, um pouco, ali ao pé da papoula, ao menos ela te dá um sono... Dalila? Moro numa estância, na Manoel Evaristo, vizinho dos portugueses...
Estou falando para esta, ou para a outra que não vem?
— Rapaz, vê lá, ensaia tu, é que é, as tuas misses. A negra, ali na janela, de te espiar vira urubu, dos olhos dela só faltam sair os bagos despencando em cima do portão, com medo de perder a carniça. Tens pulado muita janela? Com teu ar de sempre? E com carinha de santo, o anjinho da tia Dudu, sumiu, coitado, não se sabendo onde anda o mimoso, que desespero deu nele? No Ginásio, quem informa? Pra Ca­choeira, não foi. Em que lugar se enfurnou? Feito a tia Lu­ciana, nem poeira? Ah, até que pode o nome dele sair tam­bém no registro fúnebre, levado no rabecão.., onde a sepul­tura dele? E o anjo bem saltando a janela, agarrado na cor­da do contrabando! Teu desespero é aquele esconderijo em [172] que tu sobes na corda? Ou se encharcando de laca debaixo da jaqueira, ela te adorando? Te fazendo comer piramuta­ba podre? Por mim, sumisse que sumisse, o mais sumir pos­sível, suma que pelo sumiço não arranco um fio deste meu cabelo. Se os do meu sangue, renego, quanto mais tua raça. Fosse no oco da jaqueira, amanhecesse teso de bubuia na maré do Una ou piraíba te cravasse o dente, te estrepassem a ca­veira na estaca da Zuzu, eu? E olha, é livre de se andar na rua ando, velo os meus anjos, pra vovó, onde vou, não abro a boca. As noites que eu quiser, o pé, este pé, é meu e o sono. Sou só, eu, tua ausência e a dos outros é o meu sossego.
— Debaixo da jaqueira, menos verdade,, Ana.
— Que me importa? Que tem a Ana com isso, ora, esta, uai! Égua! A desgraça é minha?
E a voz do seu Bahiano:
— ... esse charão, meninas, esse charão? Ainda hoje, esta noite, suspendo o ferro pra viajar com o meu charão debaixo do braço e abrilhantar um aniversário — bote lon­jura! — quase no Valha-me Deus, um cariazal, os morado­res de lá que digam! Mas vou.
Ana respondia mais baixo:
— ... da jaqueira, que eu sei, sim. Debaixo da jaqueira! O anjo! O teu estudo! Se. agachando de noite pelo telhado da Brasiliana, apanhando os pombos do vizinho para os dois co­merem de espeto? Um papel nesse aí Japim,? Dá pra tua, de Eva. Daqui com pouco ela está serenando com o vestido do ultimo figurino: a folha da bananeira. Te preza, arranja do boi do Bicudo, o Estrela Dalva, uma tanga de índio pra ela, veste a nua em pêlo, desalmado. Rouba uma peça de pano lá de cima... O jacamim desenrola o pano com o bico.
— Jacamim?
— Morde este dedo, seu-se-faz-de-desentendido. Lá, onde mudaste o teu Ginásio. Que a tua mãe descubra onde. Dei­xa-te está que um dia telefono pro Arsenal de Marinha. Quem que não te conhece...
[173] Ana distancia-se, apanha um capim. Alfredo afina o ou­vido pra dentro do portão:
A gorducha
Deixe estar, seu Bahiano, que o senhor no dia do ensaio geral vai servir o chocolate pros nossos convidados no seu charão de prata. Se Deus quiser, se Deus quiser. Aceite esta rosa monte-cristo e ponha no pé do santo no seu oratório...
(Espichou o olho pela porta entreaberta da alcova. Na sala, as moças admiravam o couraçado Minas Gerais e a ân­cora na parede. Seu Bahiano lá nos fundos tomava banho de cuja.)
A gorducha
Que a imagem abençoe esta nossa brincadeira. Bom todos acenderem suas ceras em casa. Que este é o terceiro cordão que promete sair na José Pio. Dois já goraram. (Não fomos nós, Maria Emília! Não fomos nós!) O primeiro, no segundo ensaio, um dos diretores era bombeiro, torrou-se na­quele incêndio, desmanchou-se o cordão, O segundo, a fei­ticeira.
Palmira
Conheci ela. Ensaiava tão bem, tão bem entoado! Nem um instante que não fosse alegre. Já com o cordão em for­ma, pra sair, ia dançar na primeira casa, todos numa paramentação só vendo, a orquestra tocando, a feiticeira de cetim e espelhinhos. Pois não corre para os fundos, não anavalha a garganta, não se atira no poço?

A filha do bucheiro
Joana, Joana, Joana Soares de Almeida. Tanto verso que recitava em festa de aniversário, naquela festa de uma revis­ta escrita a mão... Muito mas muito meiga, tinha uns [174] den­|tes! Trabalhava na Romariz. Na mão direita o dedo cor­tado pela máquina de carimbar sabão. Todo o cordão cor­rendo, ali no redor do poço, esperando subir, içarem o corpo, Os faróis, os gritos, os homens lá dentro...
Esméia
Mas a causa?
Palmira
Se saber bem, bem, não se sabe, nunca se soube. Sim, que tinha um namorado, na ocasião vaqueiro do Estrela Dal­va. Mas havia o outro, aquele que ensinava a ela os versos e ela, muito atormentada, gostando deste, gostando deste sem­pre em segredo, sendo este bem amigo, de tudo muito ino­cente, (Ou não?) amigo e nada mais, assim creio, assim es­cutei, assim correu. Ou o rapaz mexeu com ela? Não. Não que a família mandou fazer o exame na morta. Inteira. Di­reito não se sabe. Torou a garganta, se atirou no poço. Quem explica?
Esméia
Vocês sabem da adivinha do poço? Por cima de ti...
Coro
Esméia! Olha a memória da morta! ímpia!
A gorducha
Não digo que o nosso já entre no concurso... já ganhe taça. Quem ainda somos nós? Ou vai também gorar?
Palmira
Qual de nós é a escolhida? Mande o seu Bahiano escon­der a navalha. Quem tem poço em casa, tape bem tapado, mande rezar no redor. Poço atrai, sim.
[175] Esméia
O meu só está reservado para a minha.
A gorducha
Que minha, rapariga?
Esméia
Morte, que mais? Não é só o que é meu? Que eu tenho? Poço e eu fizemos um trato.
Palmira
Joana. Vi a Joana no Necrotério. Semblante tão sos­segado.
Esméia
Vestida de feiticeira?
Palmira
Como feiticeira, não caiu no poço? Como querias...
Esméia
Toda morte é sossegada? A minha que não. Eu defunta, ninguém me descubra a lamparina. Em quem me tirar o pano do rosto, eu sopro. A morte é um sossego?
A gorducha
Meninas! Deixem a morta em glória. Não agoirem, não agoirem!
Noca
Esméia, estás com um ar! Fadada a cair no poço?
[176] Esméia
Que a tua praga pegue, mea mana, pegue... Prometo só me atirar depois do São João, prometo, assino um do­cumento. Quero saber se dá mesmo um sossego.
A gorducha
Cismo que nesse pé não vamos nem criar pena, que este nosso, coitadinho, vai gorar igual aqueles dois outros. Vocês soprando mau agouro! Esméia já se atirando no poço! Xô, suas corujas!
As moças
Por nossa culpa, não, Maria Emília, por nossa culpa, não. Fé em Nossa Senhora de Nazaré, em nossa boa memória, na nossa falta de acanhamento, que este São João saímos. Que saímos, saímos! Se não sair tão bem ensaiado, desonra não será! Que saímos, saímos! Tapa essa tua boca, agoirenta!
Maria Emília, a gorducha
Vocês? Todas ainda tão vergonhosas? Quando se quer a sério um assanhamento da parte de vocês, aí que nunca sai. Descreio! Mas a música? Nem a música? Noca, ficas com o pape!?
Noca, tirando a bola-de-cuba da boca
De feiticeira? Eu de gênio sou tão pouca feiticeira, mana... Bem, não custa tirar a prova, se não... ah! mas Simão jurou que trazia os músicos camaradas deles! Também só um pouco mais de paciência, sim?
Alfredo, no portão
Entra, Ana, só um pouquinho, descansa a perna, já vens de algum velório? É o meu quarto, sim, lá na sala é o meu [177] corpo, aqui só sou fantasma, com que cera me alumias? Vou num rabecão e tu a pé, atrás, de cera acesa, sim? Por que não aceitaste ser pastora do Tentém? Querias ser a filha do duque? Olha, debaixo da jaqueira, isto é invenção tua. Zuzu, o que tem de nua, tem de pura.
Ana, cuspindo
O papel? O da defunta tia Luciana naquele rabecão da Santa Casa? Me dás? (Batendo a folha do portão, “pura”, sacudindo o maracujazeiro, “tira o r e põe t”. Ana some-se.)
Alfredo, debaixo do maracujazeiro, sozinho. Ana rea­parece.
— Aquela Roberta é tua aluna, que eu sei. Uma bela menina. O que dizem dela é um puro aleive, dou fé. Rober­ta paga inocente.
Alfredo adivinha: Ana louvando a outra como se armas­se uma cilada. Instiga para que Roberta o agarre e o atire de vez naquela vala da José Pio. A minha vingança é a Ro­berta, lê nos olhos de Ana. Bruta menina. A desvairada tudo sabe neste subúrbio. Ana some-se. Alfredo escuta:
— Esméia, te fica bem melhor fazer a feiticeira, meni­na. Noca, a fada, se a recomendada do nosso ginasiano não aparecer... Tu queres fada, Noca? Fada? De fada já tens um arzinho, se não me engano.
Alfredo sacudiu o maracujazeiro, como se Roberta es­tivesse ali oculta. Foi ao canto, passou pela jaqueira, suspei­tou de Ana ali na sombra. Voltou ao portão onde falava a filha do bucheiro:
— E me digam uma coisa: o Japim? Quem confeccio­na o bicho? Quem me está armando o pássaro? Quem já viu bem de perto um Japim verdadeiro? Onde está o ninho do nosso? O ovo? Em que beirada de rio?
Nisto, três moças encostadas na folha do portão, se se­gredaram e saltaram para fora, a rir, tapando a boca: Mas ah! mas, meninas!
[178] Maria Emília
A fabricação do pássaro? Só vão ver o bicho no ensaio geral. Ou queres, Esméia, encomendar um Japim vivo, ensi­nado, lá no rio Barcarena? Por enquanto, fazendo de conta que o pássaro é aqui a nossa tripinha, tu já me tomaste a bênção, Chichita? Deus te faça feliz, dê uma queda e que­bre o nariz.
Fada, murmurou Alfredo. Fada. O papel para Rober­ta. Aqui é a letra, falta a música, a flauta do Satiro que toca no Boi, meio bêbedo, aquele buraco na testa, o cabelo partido ao meio, tocando flauta. Fada. Chegaram duas moças. A tripa correu para a madrinha, muito vexada, que queria ir lá dentro.
— Menina, és frouxa da bexiga? Como é para passar a noite com o Japim na cabeça? Que tripa nos tocou! Vai, entra. Eu não digo?
— Tripa? Não é o passarinho em cima da cabeça da me­nina dançando? Então é um pássaro tamanho do Boi para a menina dançar debaixo?
— Ah, vocês sabiam? Ainda não sabiam? Do que acon­teceu com o Cabuculino ainda não sabem? Não vai mais sair este ano. Um cordão daquela fama, pois não sai este São João. Daquele luxo, pois este ano, gorou. Cordão ganhador de taças, metido a grande, este ano babau.
— Que foi?
— O bichinho bateu o papo.
— Mas que bichinho, filha de Deus?
— O passarinho da representação, o Cabuculino! Não vem me dizer que tu não sabias que era um cabuculino vivo-vivo na cabeça da tripa? Cantava! Bem cantando quando representavam. Até que parecia ensinado. Pois bem. Estavam na metade do ensaio quando repararam que o bichinho adeus.
— Na cabeça da tripa?
— Ah, isso não sei se na gaiola ou na cabeça da tripa. Estou que foi velhice ou paixão. Ou desgosto do ofício. Sem­pre tão sozinho. Também assim tão sem uma companhia, tão [179] solteiro, não? Por isso este ano não tem Cabuculino. Bem feito. Uma vez me assanhei para entrar no cordão deles, me barraram, uma tanta exigência, pois agora bem feito.
— E o enterro do passarinho? Fizeram?
— Não, dona indagadeira, assaram debaixo do teu fogo, comeste de espeto, sua indaga-tudo.
— Ah, a conversação está é comendo as horas, repre­sentar é que são elas. Seu Bahiano já saiu? Quando a mu­lher dele chega então do espiritismo? De com pouco dá as nove e nem os papéis distribuídos. Cedo chega de volta o seu Bahiano, charão no sovaco. Quem aí de vocês já foi de algum cordão, entrou nalgum pássaro, numa pastorinha? Todas cruas? Entra em forma, entra em forma. Façam as alas. Ali­nhamento. Também que pássaro fomos escolher: Japim. An­tes tucano. Não choveu tucano em Belém?
Alfredo corre para o pé de Maria Emília, queria lembrar-lhe: Me reserve sempre aquele papel. A condição dela: Fada. Sem ser Fada, não entra no bicho. Escreveu a lápis na mar­gem da aritmética: Fada.
— Mas a cantoria quem puxa? Que música é? Ah, tudo ainda nem se sabe como se principia. Destrança, Maria Emí­lia, tu que és a cabeça. E a orquestra? Cordão só vai, se pu­xado a orquestra. Remédio é ir na Pedreira, Ângela, e catar um músico emprestado do Boi de lá. Não faz mal que seja o mais ratuína.
— Do Flor da Pedreira?
— O Gafanho, aquele, que pia no clarinete.
— Daquele Boi? Logo daquele Boi?
— Por quê? Que é que tem?
— Vem cá que eu te digo bem baixinho.
Maria Emília inclina-se, a outra com a mão espalmada na boca.
Maria Emília sufocou a gargalhada.
— Põe uma tranca na língua, boca de tramela!
Alfredo vai ao canto, volta, nem a música nem a Fada. Se corresse até a casa dela? Me jurou. Me jurou a lápis que não faltava.
[180] Onde que está tua aluna, rapaz? Ela vem, sim.
— Com toda essa demora?
— Ela vem, sim.
— Ela vem, sim, ela vem, sim, e era uma vez a tua Fada. Ah! Ou é mesmo uma, uma verdadeira tirada do teu bosque?
— Tirada do meu bosque, sim. Não demora, chega.
Alfredo intimida-se. Maria Emília aceitará Roberta? Aquela debruçada no balcão da D. Brasiliana? Aquela? Fada?
— Está esperando ela? Ela vem? Onde ela mora? O pior é que a música... E a música? O pior? — Indaga Al­fredo a si mesmo. — O pior?
— Feiticeira, te desencanta da janela, menina. Tira os olhos do portão, ou é algum tajá no jardim te ensinando o papel? É o tajá? Algum poço te atraindo? Queres meter uma folha do tajazeiro por dentro do vestido? Para a forma, caçador. Noca, ó Noca! Alfredo, quando chega a sua aluna? Nem chega nem nada?
— Deixa, não faz mal que eu façozinho o papel dela, por ora, comadre Maria Emília, tapo a falta, tapo a falta. Me experimente, comadre Maria Emília.
Alfredo deu outro pulo no canto. Lá pelo sótão, lá em cima, estava escuro. Será que ali em cima é a Roberta apren­dendo as outras coisas? Volveu ao portão.
— E o papel de caçador é mesmo moça? Melhor não será homem?
— O combinado não era só moça? Só assim moça? Me­lhor não será homem?
— O combinado não era só moça? Só assim mamãe consentiu.
E então, Alfredo? A sua aluna? Entrem em forma, meninas. Entrem em forma. Assim é que vocês não querem que o cordão gore? Qual! Pra o que que inventei essa tama­nha dor de cabeça e, para mais, lidar com moça alheia, in­ventar nesta rua um cordão de bicho para o São João, já com [181] dois gorados, onde eu tinha o juízo? Bem que podia era ficar preparando a sorte, os meus bons banhos, a locé na rua pas­sando fogueira, criticando o cordão dos outros. Pra o que que me meti. Não somos nós que vamos tirar a urucubaca desta rua. Entrem em forma, entrem, entrem em forma. Ali­nhamento. Esméia, vira essa tua bunda para a janela e entra em forma, janeleira. Te atira no poço mas só na queimação das palhinhas.
Em casa? No capinzal? Na ciranda? No sótão com a Brasiliana? Pois hoje, na aula, escreveu: Vou, mas meu pa­pel é Fada. Durante a aula, Roberta só fazia de conta? Aprendiz ao pé dele e aqui fora já professora, aplicando as suas artes onde não se sabe? Lá aprendia para aqui praticar, invisível, fugitiva, ou no sótão apurando-se?
Queria aprender de Ana aquela obstinação no rancor, na vagabundagem, pela liberdade ou pela sua perdição e com isso domar Roberta, trazê-la até este portão, dizer-lhe: Entra, és a Fada deste bicho, vagabundinha.
Roberta se negava, ou só desafiava? Ali na aula iam e vinham os bilhetinhos, e tudo o que prometia o olhar dela, e certos momentos séria, cobrindo o rosto com a aritmética.
D. Nivalda falava: E da Roberta, professor? Tem aproveita­mento? Melhorou no ditado, na análise? Tão moça já, o se­nhor não acha? E agora, toda tarde, me trazendo rosa.
Com o charão debaixo do braço, vem dos fundos o seu
Bahiano:
— E a música? O acompanhamento? Ou vão chamar o pirralho da jaqueira que mal arranha a rabeca? Cordão, esse, que só na José Pio mesmo! Já foram na polícia tirar licen­ça? E o manuscrito para dele cada uma tirar o seu papel, meninas? A partitura? Ali o moço escreveu mesmo o enredo do bicho, as letras? Vai ter um duque, vai ter um bosque? O caçador mata o bicho e o bicho, vem a Fada, o bicho ressus­cita? As letras? Quem escreveu mesmo? O moço do sereno?
As moças à janela voltam-se para Alfredo que continua entre as plantas, o rosto na luz que vem da sala. No peito­ril o caderno de papel pautado.
[182] — O senhor escreveu que escreveu, mas que quantida­de! Tão tamanha paciência, eu não lhe invejo o gosto, se eu escrevesse tudo isso, o meu dedo me doía, criava calo no meu miolo. Dá até pra dois bichos, ainda sobrando. É escrito que não acaba. Encheu o caderno?
Tudo aqui foi seguindo os velhos enredos, foi, e escrito na intenção de Roberta. Aqui a Fada ressuscita o bicho, sim.
— O enredo modificou? Emendou o caçador, a Fada, a feiticeira? Como se chama a filha do dono do pássaro? E as outras personagens?
— Tudo é seguindo o enredo antigo.
— Como a gente vai decorar tudo isso? Mas tudo isso!
— Falta tempo, Maria Emília, já se está nas portas do São João. Tenho a fábrica. Só de noite... Cada folha cheia!
— Bem, se não serve, é só dizer, levo de volta o caderno...
— Não dê preço, Alfredo, essa menina ela só só é impli­cante. Me deixe espiar o caderno. Olhem! Olhem! O cântico pedindo licença para o bicho entrar na casa da vossa excelentíssima família! Está com toda a cortesia, ah! Aqui o papel da Fada. Fada escrito em letra gótica, meu Deus!
As moças se amontoavam sobre o caderno.
— Comadre Maria Emília, ponha uma ordem em nós senão...
— Mas tudo isso! Tirou da sua cabeça? Só da sua ca­beça? Não fez um translado?
— Olhem, a D. Brasiliana manda dizer que ajuda nas vestimentas, no enxoval do pássaro. D. Brasiliana.
Todas num espanto: D. Brasiliana? D. Brasiliana?
— A D. Marocas Soares costura os trajes, de graça, de graça. Fez o seu oferecimento. Noite e dia na máquina, aquela senhora!
— Qual o meu papel, moço, e os versos das pastoras? O senhor é do Vinte e Seis, do batalhão? Ou da Brigada?
— Antes de indagar, põe atenção nas coisas, Sofia. Não estás vendo que é farda do Ginásio, sua cega, errada, zonza! [183] Gruda a ignorância no céu da boca, menina. Peru calado, ganha um cruzado. Não vais entrar em forma?
— Não, que não venho aqui receber ralho dos outros, ora só. Agora isso... Boa noite.
— Folgou! Folgou! Refrescou foi muito! E nunca mais o pé aqui, escutou?
Vagarosa veio Esméia, roça-se no dólmã do ginasiano, cochichando:
— Pensa que não sei que o papel de Fada... oh,, vergo­nha! Oh, vergonha! Quando soube, não acreditei. Aquela? Fada! Estou de boca aberta.
— Que é, Esméia, que estás pedindo, pidona?
— A língua de quem pergunta.
— Entra em forma, entra em forma, senão encalho este barco do seu Bahiano, é um repente que armo lá no meu oco de pau a mea rede, suas prosas, e adeus nosso assanha­mento de botar cordão na rua. Olhem os papéis! Feiticeira! E a Fada? De onde vem essa Fada, Alfredo? Onde é o encan­to dela?
— Presente, Diretora — apresenta-se a Esméia, piscando.
— A substituta da Fada. Fada que nunca vem. Não afiançou que vinha? A outra, a vice, em forma!
— Eivém a nanica, abram alas, é a vice-fada.
— Nanica não é tua mãe, peste, porque ela, coitada, é mea madrinha.
— Mas assim que não! Tem de haver boa união e acata­mento, criaturas. .. Alfredo, entra e vem me explicar as ou­tras partes do caderno. Mas, vocês aí? Querem uma comis­são que traga vocês para a forma, rogando: Princesas, tenham a honra? E a tal, aquela, me diz o nome dela, Alfredo? Ain­da lá no canto pedindo o alvará do namorado? Mas os músi­cos? As juras do Simão? Será que o pirralho da jaqueira dá um caldinho na rabeca?
— Ele então não aprende com o cunhado?
— Rabeca?
— Não, as letras.
[184] Alfredo fechou o caderno.
— Menino, não vai atrás da burridade delas. Entrem em forma. É sério ou não é sério?
Esméia saiu, veio até a janela, por fora, debruçou-se para dentro da sala, debruçou-se, bem de cara com Alfredo que se voltou para aquele negro rosto róseo, jasmins exalando, o beliscão no braço e ela cochichando, guardando o peito com as mãos:
— Cunhado, não? Cunhadinho? Já? Foi o caldo da pira­mutaba? Já cunhado? Vão casar Adão e Eva naquele paraí­so? Espera que vou dizer para a Fada. No que te tocou com a varinha de condão, arre! nas mãos da Fada! És o Adão da jaqueira?
— Não, que a maçã que comi peguei de tua mão.
— Um molho de malagueta, um molho de malagueta, era o que devia te fazer engolir, seu-não-sei-que-diga. A Fada que te meta na corrente, infeliz. Que aquela, tu bem que mereces, sim. Bem mereces. Mereces. Mas bem merecido. Faço voto.
Maria Emília chamava.
Esméia entrou em forma, olhando de esguelha para Al­fredo,. — enfia o teu caderno no miolo das outras, no meu que não, ah, arrependimento... Aquela noite, só o meu fogo, onde eu estava? Foi a modo de um ímã, ah, arrependimen­to, O que agora ele de mim já espalha, falando de maçã, ah, arrependimento... Cerra os olhos como se voltasse àquela sala que lhe parecia, no escuro, deslumbrante, girou no so­nho em torno do lustre, dos enxovais ali guardados, o mer­gulho no leito, o salto para a rua...
— O teu papel, Esméia.
— O meu já tenho em casa, mana. De cor, inteirinho, letra e música. Era dum antigo pássaro do Umarizal, vovó e mamãe se lembram, bote que tempo, o Aritauá. Desse cader­no aí pra mim já não carece.
— O teu papel, larga de pavulage, Esméia, pega! Assim vocês me obrigam a um regulamento de penalidade. [185] Alfre­|do, me traz amanhã, um regulamento, me traz? Toma o pa­pel, mau-exemplo!
— Pego, mas leio de cabeça pra baixo, serve?
— Olha, Esméia, se gorar não é só só eu que me cubro de vergonha.
— Não ralha comigo, Maria Emília, não ralha... Olha o poço!
E leu na margem do papel: Me desculpa, Ismênia, engu­lo o molho.
Leu, deu-lhe uma raiva, o molho? Engolia? Pela outra? Escolheu, escolheu, tanto escolheu que caiu no alçapão. Ro­berta? Fada? Bem merecido!
— Alfredo, vai com os namorados de Roberta, buscar o alvará. A Fada se faz de rogada, assim não.
Alfredo, à frente do portão, não sossega. Maria Emí­lia chama-o.
— Alfredo, o trato é você não se arredar durante o en­saio. Que aconteceu com a sua aluna? Por que a sua aluna não vem? Arrependeu-se? Ou desdenhou de vir? Soube quem somos, lhe deu nojo? Vai buscar a menina, rapaz.
— Quem? — indagou Esméia, tapando o riso.
— Em forma, Esméia.
— Meu Deus, onde está a encantada, onde a encantada, que não vem?
Alfredo guarda-se debaixo do maracujazeiro e logo for­tes palmas no portão.
— É aqui a sede do pássaro de fama? Frondoso mara­cujazeiro, sim, senhor. Deve dar muito. Pode-se apreciar o ensaio das gentis senhorinhas? Prontas para ganhar a taça na quadra joanina? Posso entrar por uma curiosidade? Um lu­gar na platéia, consigo? Não vou desvendar lá fora para os rivais o que sucede aqui nos ensaios, os variados números, me comprometo. Entrada franca, senhoritas? Licença?
— Maria Emília, o teu pai.
A gorducha, bem baixa, lhe deu uma impaciência: Que cabeça essa do papai aparecer... Que tinha de vir? Era só mandar pelo Bidico. Enquanto não veio, não sossegou...
[186] — Entre, papai. Trouxe o apito?
Alfredo reconheceu: Era aquele mesmo de Santana, o dos efes e erres, só faltava o papagaio no ombro, o dono daquela festa, o presidente da irmandade de São Sebastião re­cebendo os convidados com uma salva de palavras, a noite com os tios no barco Santo Afonso, o parto da misteriosa senhora fugida de Belém, a dança com a Dolorosa, a recém­nascida no colo da D. Prisca a embarcar mal amanhecia maré enchendo, o seu Almerindo, o santo no colo, com palavras da Santa Escritura e lá fora a ilha, de dia, de noite boiúna. Ago­ra na voz, nos olhos do pai de Maria Emília, Alfredo revia o barco, os tios, o resto do menino que ficou em Santana, o suado amarelume de Dolorosa, a primeira mulher nas pedras, a baía lá fora braba. O rio, num limo, clareava com os botos sem sono, e ali boiava o rapaz, este. Agora este rapaz, com este caderno na mão, esperando a Fada.
— Licença pra tirar uma opinião desse vosso primeiro ensaio? Todo começo tem os seus embaraços. Bois e pássa­ros já ensaiei, par deles, no Marajó, no estirão do Arapixi, par deles. Está lá o rio que não me deixa mentir. Então aquele que botamos, o Pirarucu Encantado? Não nego a so­frível experiência que tenho da ciência de cordão de bicho, modéstia à parte, mas pode somar os São João que brinquei, graças a Deus, nunca desconheci ninguém nem ninguém a mim graças a Deus, assim é o proceder, muito aprecio ain­da os folguedos, folgazão que sempre fui depois de feita a obrigação, e estou que a família o meu sangue herda, pegou de mim, não censuro mas façam na boa união e escolha e tudo no devido. Fazer má figura, isto que não convém. Fi­lha minha passando vergonha?
Vira-se para Alfredo, fingindo surpresa:
— As pedras se encontrando! Muito do bem aparecido! Devera me regozijo que o senhor seja um honrador desta brincadeira em que a mea filha Emília toca o apito. Naquela noite menino e nesta meça o tamanho! Folgo de ver o ami­guinho partilhando da idéia da mea filha e suas distintas [187] cole|gas no desempenho de uma representação de um pássaro na quadra joanina. Pode nos dar um especial adjutório com a sua luz? Bastante estudo? E os vossos tios? Ah, Santana! Acabou-se. Perdi a mea senhora, que Deus a tenha, Deus le­vou, em Santana enterrada. Os brancos me pedem o barra­cão de volta,, que de lei é deles, então, no relento sem no que me agarrar, atravesso para a cidade com a família nas cos­tas. A irmandade finou-se, o santo me dê indulgência. O São Sebastião, eu tive que me desfazer dele, precisão duns cobres, o santo é testemunha. Pra onde vou? Onde o aga­salho? Trabucar no que ainda posso, não esmorece, Alme­rindo. Remexo esta cidade. Já peguei um lugar de vigia numa usina, começo amanhã. Assim faço parte desta popu­lação, finco na baixa deste subúrbio a mea raiz marajoara. Começa sempre, sim, há quantos anos, começando sempre, faz desfaz... Um chão, meu, nunca que tive. No alheio ando porém nunca me apropriando, começando sempre, desde curumim tapador de igarapé, vira tartaruga, arpoa pirarucu, caldereiro de ferro, e o mais no que experimentei o pé no mundo. Gosto meu, meu amiguinho, era, isto sim, ficar numa beira de igarapé, ali pelo Arari debaixo dos meus co­queiros, com um roçado atrás, a farinha de tapioca espocada de forno bem quente, o cacuri na maré, ceva uns capados, arma a rede no copiar, o meu mingau de crueira com açaí e deixa cantar o tucano! Porém cismo que amarrei a envira neste porto. A sorte não maldigo. Obedeço ao decreto. E o seu pai, o Major, como está passando? Estou que conheço a senhora sua mãe, ou sua mãe nunca passou em Santana, estou que sim. Ou foi em Cachoeira, se não me engano, te lembra, Almerindo, um inverno, que... Espere... Sim, sua mãe, pois não me lembro? Parece que estou vendo! Ela na porta do chalé com uma braçada de baunilha. Era, sim!
— E a bacia de louça fina?
— Onde lavou sua mão, aquela noite?
Seu Almerindo desata a sua risada.
— Não lhe fez mal o toucinho? Por certo não, que era do santo o capado.
[188] Espicha-se para o ouvido de Alfredo:
— Que é que eu podia fazer mais?
— Como?
— Ainda não sabe o que é arrancar uma família da velha toca, meu menino, carrega com os tarecos, sustenta as bocas na cidade na primeira semana, mês, conforme o tempo, conforme a pedra e a necessidade, até que encontre um osso? Tive que me desfazer não só da imagem mas da bacia, de duas frigideiras que a finada tanto estimava, e do que possuía em tetéia... E depois, perdendo a patroa... Tire o senhor um juízo. Sim, que os filhos pegaram tamanho. O meu mais velho embarcou. O outrozinho praticando a caldeira. Essa, aí, não se vexou, logo se dando com as vizinhas, lá por conta dela entra na fábrica. E aqui me acho. O folgo não perdi.
— Nem a sua risada.
— Ah, que o senhor até que me lembrou! Dar uma ri­sada é soltar os passarinhos da gaiola. E só bem ri quem mui­to chorou sem ter chorado, decifre esta. Como vai a sua aritmética? Devo imaginar a alta numeração que vai nessa ca­beça, não me diz porque não se gaba, o gabar-se é oferecer-se, o oferecido valia não tem. Ainda sei rir, sim, entro nes­ta cidade feito um de primeira viagem, o tombo deste navio não me põe n’água. Agora estou com uma promessa de cor­tar carne, viro açougueiro, assim espero, me adisponho, que conhecer boi, não é por me gabar, sei pro meu gasto, repar­to assim-assim um animal bovino, que a partição de um boi exige uma fina arte, concordo. De talhe e das partes da car­ne verde para açougue sempre passei por um curioso, talhei uns quantos, fiz matalotagem, sangrei, tirei couro, abri. Já não falando em porco, que nisso tirei grau. Está lá o rio que não me deixa mentir. Ainda ontem estive na marchantaria, à espera da promessa. Depende de uma vaga naquele mercadinho da São João. Espero. Mão no leme, traquete firme, vamos embora. Bem, esta hora não é pra falar das responsa­bilidades da vida, é uma hora recreativa e aqui entre nós, seu Alfredo, essa mea filha, pro senhor ver, em pouquinho [189] tem|po em Belém e logo reunindo uma irmandade, cabeceando um cordão, que o que ela tem, tem, impõe respeito, é o san­gue? E os senhores músicos? Não me dou mal nesta cidade. Vamos a ver. Vamos a ver. Safra de moças! Voto que seja um bicho bem falado se bem ensaiado. Que é que falta?
D. Maria Emília, autoriza-me a usar o apito?
Alfredo, agora num alento, tentando desenroscar-se cor­re no portão, encontra os companheiros da noite que se es­palham no jardim.
— Chegou o rabequista da jaqueira? Manda entrar o rapaz. O rabequista da jaqueira?
— Quede a rabeca?
— Falta encordoar e corda não tem.
— Corre pela vizinhança atrás, mas meu Deus! Vai na Brasiliana!
Entre os rapazes, Alfredo parece indagar de cada um:
Estiveram com ela? Um de vocês rolou com ela pelo capin­zal, andaram no estaleiro, aonde? Volta para a sala. O velho fazia as suas caçoadas. Logo se compenetrou: Olha a forma! Bate palmas, apita com bravura.
— Tirar a introdução?
Em forma, as moças se entreolhavam, num embaraço, Maria Emília de cabeça no chão, Esméia fazendo figa escon­dido para Alfredo. Assanhavam-se os rapazes debaixo do maracujazeiro.
Que formalidade falta?
— A orquestra, papai! Não falta a orquestra?
— Pois então até que chegue a orquestra, licença para tirar uma lá das do Arapixi, as senhoritas pão reparem no meu grasno, entôo mas muito desentoado, só o trivial, acompanhem o meu solfejo. Vamos assim mesmo a seco, tudo é a boa disposição, é a boa influência, o acanhamento deixem para o dia, aquele que desejo a todas, O que sobra aí nas senhoritas ah! é a flor da idade, é o botão de rosa, é a flor da idade! Imaginem, meninas, o que era no meu tempo! Um temporal! Animação. Animação! Animação, meninas. [190] Vexa|me? Põe debaixo do chinelo. Aí a menina, a que faz o pássaro, fique no centro, aprenda a evoluir, assim, assim! Maria Emília, tanto que o Bidico chegue manda de volta para bus­car o nosso farol velho que o candeeiro, esse, é pouco. Um! Dois! Três! O senhor não aprova, seu Alfredo? Tem notí­cias do nosso Major? Apreciou aquela nossa festa de San­tana? Ah, o rio, aquele, não vai ver outra igual. As festas? Só as do passado. Feliz o senhor que ainda apanhou a derra­deira. Não é do seu parecer, principiar o ensaio assim mes­mo a seco até que cheguem os instrumentos? Acharam corda para a rabeca? Atenção! Maria Emília, já ensinaste a meia volta, por dentro e por fora? Atenção! Afinem a garganta! Entoem! Ou vamos distribuir primeiro os papéis? Mãozinha na ilharga, passarinho! Assim! Balançando no galho da serin­gueira, a maré subindo, o vento ventando, o ninho balançan­do, ei, japim! Assim. Já!
Salve, salve, meu São João
Saiu, saiu em seu louvor
O Japim de estimação
O Japim de estimação

— Coro! Coro. Evoluir! O Japim de nossa estimação. Ma­ria Emília, puxa as vozes, puxa a ala. Coro! Assim! Agora vamos distribuir os papéis. Que o senhor está achando, seu Alfredo? Acharam a corda da rabeca? Vamos, vamos distri­buir os papéis. Uma por uma, vou chamando, o senhor não concorda, seu Alfredo? Então vou chamado:
— O amo do pássaro!
— A filha do amo!
— O caçador!
— A feiticeira!
— A fada!
— A fada!
— A fada? Onde a fada?
[191] Olha a manhã verde. Verde o chão, na calçada, nos ta­buleiros, bancas, alguidares, cuias, morenas, principalmente as mais acesas e faceiras do Jurunas e Marco da Légua, verde, verdes as montarias que chegam da outra banda carregadas de São João. Amanheceu São João em Belém. Depois do banho de cheiro, sortes de madrugada, arrumação das lenhas para a fogueira da noite, Belém põe na cabeça a capelinha de São João. Da feira verde nesta beira d’água sai a cidade repleta de ervas, raízes, grinaldas e folhagens, verde o rio, o cais, as janelas.
— Magá!
Alfredo beija-lhe a mão cheirosa. Magá, com a sua ca­pela de pataqueira, alta, escura, os jasmins no cabelo, a sala folhuda, exala banho tomado aquele instante. Larga e lustrosa como folha de morirana.
— Tão cedo na beira da praia, aquele-menino? Estás com cara de noite em claro! Olha! Olha! Vens buscar algu­ma garrafada com o Dr. Raiz? Tento com o mundo! Tento com o juízo! O mundo é a Cabra-Cabriola, só gosta de be­zerrinho novo. Olha, meu cabeça de pião! Queres um ramo? Fizeste, te prepararam uma garrafa de cheiro? Uma capela pra uma das tuas tantas namoradas?
— E a senhora? Preparou alguma tartaruga?
— Olha ali uma virada... Fiz uma, sim, um dia (lesse. Anda vasqueiro, pequeno, ter, teve, e agora?
— Me dê notícia de Mãe Ciana.
— Saindo na minha ilharga agorinha-agorinha com o ba­laio de cheiro pros fregueses dela.
— E depois?
[192] — E depois? O depois tu bem que já sabes.., O depois é ir no rastro daquele santo dela — por onde, é que não se adivinha — até que pegue o danado pelo papo e ralhe: Mas, rapaz! O banho que te preparei desde ontem, fiz serenar toda a noite, te espera, que tu queres mais? Mas banho de São João num diabo velho daquele? Mãe Ciana, por dentro dela, é sempre uma de quinze anos. Estou por ver doença igual.
— A senhora nunca teve?
— Pelo meu finado marido até que me comichou. Mas disse: Ah! Se for meu, outra não come, senão... o diabo que te leve. Nunca padeci dessa febre. De tal gogo. Ah, Deus te livre!
— Hoje bem que é o dia dela. Dia da Mãe Ciana. Dia do cheiro.
— Ah, que hoje em Belém a modo que até a nossa obra, com perdão da palavra, cheira.
— Mais ou menos onde primeiro foi a Mãe Ciana?
— Pra te dizer, aquele-menino, qual a banda que esco­lheu pra ir primeiro, pra te dizer, não sei. Só te digo que saiu pensa com o balaio, trescalando. Lá se foi, a pé, que é o bonde dela.
Mãe Ciana ia salpicar de cheiro o chão, o céu e os soa­lhos. E ele queria seguir — Deus te livre! — com Mãe Cia­na, carregando-lhe o balaio e a paixão.
Também não seguia um rastro, uma sombra, um pé de vento? Não mais Andreza nem Luciana. Essa outra que es­quecia de assinar o nome no ditado. Assim de braço com a Mãe Ciana, pelo cheirume geral, caminhariam entre as fo­gueiras e os cordões, currais de boi e banhos no sereno, os dois pela cidade, aonde anda o diabo velho? A demoninha, aonde? Ah, que lhe acertou fundo a flechada, Deus te livre.
Já não pode esperá-la na D. Nivalda. Roberta na escoli­nha não vai mais, virou moça de fábrica, trabalha na Parah, em solas de borracha. Sai dos serões da fábrica no meio dum bando, todo aquele bando, pitiando a borracha. No sábado, [193] entra em casa, rica do seu salário. Lá pelo quintal a figura do pai, o sempre flagelado. No Reduto compra um pano no prestação, aquele atracador brilhoso, e o sapato branco, tudo nos turcos do Reduto, vejam só a compradeira, agora é só “estive no Reduto”.
— Soube que vai a um baile.
— Soube? Pois não soubesse. Quem te soprou?
— O meu anjo da guarda.
— Foi? Demais linguarudo esse teu anjo. Corto a lín­gua dele.
— Vai?
— Então pra que que comprei no Reduto o pano e o sa­pato? Querias que eu fosse, como? Vou pra não fazer des­feita a quem tanto me pediu que eu fosse. Culpa é minha de ser convidada?
— Só por isso?
— Só por isso. A quem me convidou, dizer não, não posso.
— Quem?
— Meu Deus! Bencinha, papai?
Deus te livre! Andou e reandou, maré vem, maré vai; para não se aproximar do Reduto onde era o baile, varou a Vila Tubo, vagueia pelo cais, que se viu estava no meio da rua só espiando de longe, casa iluminada, uns braços na ja­nela, o jazz na alcova. Aqui fora tudo gelava, ou queimava, Deus te livre! O pé doía, o poste dando choque, o bonde espirrou lama, lá dentro sumia Roberta, naquele clarão um ombro, uma fita, o cabelo, os braços na janela, e esperou infi­nitamente o fim do baile. Lá saiu um bando, a pé pela São João, e passa a convidada, pois de repente não tirou os sapa­tos? Correndo atrás da manga que tinha caído?
— Não oferece?
— Oi que me assustaste, rapaz. Donde já que tu saíste?
— Dum baile na Piedade.
— Na Piedade? Tu? Como? Se nem me avisaste? Baile?
— Baile.
[194] — Toma, come deste lado da manga, que como deste.. Dançou muito?
O bastante que pude.
Comeu a parte da manga que lhe cabia e ela cantarolava com os sapatos na mão. Um tempo assim sem se falarem. Por fim:
— Carrega na tua mão este sapato... Com quem... Bem... Ah, assim, sim! De pé no chão! Vamos neste instan­tinho fugir nós dois?
Volta agora do serão um pouco pálida, impregnada de borracha, convencida moça de fábrica não mais uma aluna nem menina, e passa sem vê-lo ou Consente que a acompa­nhe, seca, mais atenta às colegas que a ele, ou só, com pres­sa. Nem uma vez foi ao Japim espiar o ensaio quanto mais receber seu papel de Fada. No que entrou na fábrica... Em que capinzal ficou a molequinha, em que praia a enfeitiça­da pelo rio?
A última vez que ele a viu aluna foi aquele domingo à noite, rente do muro, os dois passeando, com uma prima de companhia. Ele leva ao sebo o livro de matemática para terzinho uns trocados no bolso, se traja meio tio bimba, paletó claro, calça azul puída, passável para a noite, a sentir-se tão caboclo-do-sítio, jegue-jegue perante ela, moça de fábrica que faz compras no Reduto, de sapato branco. Ainda assim era a aluna a seu lado, um tanto quanto menina na voz, nos mo­dos muito exemplar. Como e onde levá-la? E aqui neste pa­letó ruço, o sapato salto comido, todo embaraçoso, melhor seria fardado, faltava passar a farda, também levava em conta que perdia o Ginásio, não ia às aulas, por isso tinha ver­gonha de uniformizar-se, o ranger da perneira peava-Ihe o passo. Convidava para a garapeira? Ao doceiro? Um pas­seio até o Una? Olhar os imigrantes chegadinhos do Japão ali amontoados na hospedaria? Uma volta de bonde? Ou em busca de um quarto de anjo ou de um bom defunto, ali os dois se namorando mas com todo o respeito defronte do morto? Não. Melhor aqui rente do muro, escondido da mãe [195] dela, a prima de companhia, luar, caminhavam muito calados. A prima: Que é que vocês dois têm que vão tão assim, comeram abio?
O abio, sabia o que era, o que era, e só pressentia fim, o baile atravessado, aquele sapato branco, o serão da fábrica, o iminente bater de asa, as compras no Reduto, era uma vez a aluna. Roberta passava pelo amor, molhando a ponta dos dedos no imenso mar. Ou não era? O luar amadurecia a moça? Ou não era? Ou só lhe ensinei a tabuada e ela me ensina a sua álgebra? Essa era aquela a quem a Brasiliana gritava: Te capo, pirralha?
Iam até ao canto, voltavam, ao Longo do muro, os dois sem língua, a prima inventou uma toada, calou-se. Era um velho muro, lá dentro a horta, e foi que Roberta:
— Ah, eu só um instantinho nessa horta! Não era? Va­mos, Geralda? Tem de ter bom maxixe, tem não?
Puxando um suspiro, a segurar a mão da outra, exami­nou o sapato.
— Vamos? Roubar um pé de couve. Meu jabutizinho lá de casa bem que anda me pedindo uma couve... Mas estou é com pena...
Pena de ter saído de sapato branco, o do baile, preferí­vel ele na mão, assim tão...
— Tiro do pé, Geralda? Vamos na horta?
Alfredo olhou para a sua dama. Ela parecia de asas com
o sapato branco e a zombar de tudo, do luar, da cerimônia do rapaz que já se via entre as couves a apanhar uma folha para a jabota... Como entrar no canteiro senão... Como fazer o desejo dessa jabota?
— O jeito é me encostar no muro, você pula no meu ombro...
— Me tomando por quem? Por uma gata? Uma mucura? Eras!
Roberta apressou-se, parou, olhando o sapato, olhando a lua: Está que encadeia, não, Geralda? Mas é que o meu [196] sa­|pato encarde. Está encardindo. Escorou-se no muro, de ca­beça virada, fechou os olhos no luar.
— Adivinha o que estou pensando, Geralda. Adivinha. Mas adivinha!
— Ainda mais! Não aprendi esse ofício, Roberta. Ele sim que adivinhe. Que adivinhe, que adivinhe.
Ele veio, tocou-lhe o braço, a prima distanciou-se, Ro­berta deu a mão, tão imprevisto, deu um passo e ele lhe ro­çou o beiço no cangote.
— Quem que lhe deu licença? Assim tão confiado? Acos­tumado?
— Não adivinhei?
— Aquilo que te contei, Geralda? Sabes? Pois foi. De­pois te digo mais.
Passou a mão pelo pescoço, desmanchou a fita do cabelo, logo apanhou o rapaz pela aba do paletó, Alfredo temeu pelo paletó.
— Pois venha agora me dizer, venhazinho me dizer. Quem que acabou no meu lugar naquele seu tão falado cor­dão? Quem a muito excelentíssima? A sua escolhida? Aque­le cordãozinho tão chocho? Coitado! E eu ali, pra fazer as vontades do meu professor, eu ali de Fada! As honras... Estas ouvindo, Geralda?
Alfredo sentiu a mão fugir-lhe. A fábrica arrancava-lhe a Fada, não sabia mais desentranhar aquela flecha, como par­tir o cadeado. Tocou-lhe o braço, juntou-se a ela que lhe deu a face, ele a beijou bem no canto da boca fria, fria, de Fada, e assim se despediram, desfeitas no luar as duas moças rente do muro.
Atrás daquele rastro, lá se vai no cadeado, aqui paran­do, capaz de subir na Penitenciária e afundar a cabeça no colo de Bina, a feia, agora correndo, como se uma febre, o beijo, o beijo no canto da boca fria, perdida aluna, perdido luar, perdido Ginásio. Segue pelo Una, renteia o rio, escolhe o ponto do muro onde deve saltar para apanhar as couves, entra na estância, abre a torneira, a cabeça debaixo da torneira.
[197] Agora a todo momento espera o fatal bilhete a lápis: De hoje em diante tenho outro em seu lugar. Queira desculpar as faltas.
Por isso esta noite inteira pelo subúrbio, nos currais de boi bumbá, entre a cabroeira da cachaça, entre a mulamba­da, viu num esgru à porta do botequim o pau cantando, ali­sou-se na roleta, as rameiras de pé no chão metiam rama em­borcando a garrafa atrás do curral e lá vai, mediante o cartão aceito para dançar em casa, o coitadinho do Japim, as moças de amarelo e branco, cetim e acetinado, o bicho na cabeça da tripa, o seu Almerindo puxando o cordão como um diretor de irmandade, o irmão da Zuzu arranhava a rabeca e o Bahiano recolhendo o donativo do dono da casa com o seu charão de prata. Coberta de cetineta, sandália e fita na testa, Esméia uma rosada negra dançando no bosque, debaixo de palmas, “...Tão bem de feiticeira!”
De Ana não sabia. Fechada a janela do sótão. Os com­panheiros da noite andavam pelo arraial de São João, pelos bailes roceiros. Quando foi, se viu defronte do sol raiando, defronte a barraca de Roberta. No sobressalto, apanhou o bonde, veio banhar de verde a sua noite em claro nesta feira de São João atrás do Mercado de Ferro.
Magá voltou com o jambu para o seu tacacá da esquina.
— Passa por lá à tarde por São Jerônimo, seu sumido, não te faz de tão caro. Queres que te prepare um banho? Vai lá em casa. Tirar a caninga, que de caninga Deus te guar­de. Tás é a modo esverdeado, criatura! Não vá ter pegado da Mãe Ciana, Deus te livre!
Os meninos, coroados de folhas, brincam na praia como filhos do curupira. Magá com as suas folhagens, por entre os peixes, os cheiros no ar, aqui é chão de feitiçaria. Alfredo apanha o Curro, o bonde está que um bicho-folharal. Nesta exata manhã perde o Ginásio. Cortada a matrícula, tantas são as faltas, agora é o muito abandono de si mesmo ou des­prezo, solidão sem socorro ou livre para saborear a sua pos­tema. Que vai dizer ao chalé? Aos tios? Aquele caminho [198] per­|deu-se. Fechou-se a porta. No pé de Roberta, os restos do Ginásio. Ao chegar à estância, é o bilhete de Roberta? Bina, tu que és a mais feia por isso a mais carecente, abre o teu colo a esta cabeça. E de tudo desligado, neste nada metido, o passageiro desce no Reduto, na esperança de encontrar a moça de fábrica pelas lojas com a sua grinalda de São João ou com um bando atrás de chita para o baile na roça. Ou prova a sua vestimenta de Fada do Estrela Dalva na casa do seu Quintino Profeta, dono e amo do Boi?
No centro da sala, cercado de meninos, o Boi. Seu couro é de veludo com estrelinhas prateadas. Alfredo quer en­trar, não pode, toda a casa zoando de gente, preparativos, o quintal tomado, brincantes, agregados, espelhinhos, maracás, pandeiros, o macaco, capacetes, tangas, esse tinge o rosto, aquele põe a cabeleira, ali o curumim no urinol. O Boi, o Estrela Dalva, do São João do Bruno, com seus olhos de fun­do de garrafa e chifres dourados, levantou a cabeça. O seu tripa alisa-lhe o rabicho:
— Menino, não toque no Boi. Olha só, senão chamo o seu Profeta.
É o que dança debaixo do Boi, leva o Boi para o meio da roda, para as arremetidas e volteios, na rua, palanque, ar­raial. Com seus pés de homem, o Boi escarva, investe em círculo, curveteia, brabo ou travesso, rabeando atrás dos balizas, Boi dançador que só visto.
— Aqui isto, professor.
O guri lhe põe o papel na mão, some-se casa adentro, encandeado pelo Boi.
Não abre o bilhete. Soltaram um espanta-coió. Os três cachorros ladraram, acendeu alto a fogueira da casa, tam­bém a do vizinho, aquela defronte, ateou-se ali a outra, as fogueiras iluminam a cidade, e este bilhete a lápis,. papel de embrulho, lido ao fogo das achas: “É pra lhe dizer somente que tudo de minha parte teve fim. Tudo que o senhor me es­creveu está no meu poder as suas ordens pra lhe mandar de volta. O que lhe escrevi pode queimar, queime. Alguma fal­ta que fiz foi sem querer. Desta sua amiguinha R.”
[199] Gibões de veludo vestem os vaqueiros e o Amo, lantejou­las no peitilho, esta casa é o camarim do Estrela Dalva, aqui se guarda o Boi durante o ano, seus apetrechos, roupagens, instrumentos, as toadas, suas taças, sua fama, em dormitório especial, com as fotografias do Boi na parede. Vai sair daqui um instante para exibição e desfile ao calor das fogueiras, com os balões subindo e com este . . . tudo de minha parte teve fim.
— Professor, professor, passe fogueira comigo de padri­nho, sim?
— Ar, Zul! Pecado! Com ele de padrinho? Logo tu? Olha que São João te castiga, aquela-menina...
Passaram fogueira, três vezes, São Pedro confirmou, ben­ça, padrinho? Olhem! Vamos! Depressa que o Boi vai longe, já chegando! O Boi dá entrada no curral com trinta estrelas clareando na mão da tropa, estandarte, orquestra, a indiada com as suas plumagens saltando, sobe no palanque debaixo das palmas do terreiro aqui cheio de lama e serragem, barra­quinhas de mingau, arroz-doce, casquinha do muçuã, tacacá, cariru, cerveja paraense, pato no tucupi, rama e um jogui­nho, lá no fundo, de roleta e dado. Pode queimar, queime... Queime. O Boi ocupa o palanque de pau e palha, embandei­rado e com lâmpadas elétricas, o Boi dança:
Já chegou, já chegou
Tá no terreiro
Tá no terreiro
Nosso fama caprichoso
Alevantou
Alevantou
Pra pisar orgulhoso
Alevantou
Pra pisar orgulhoso
Machuca o bilhete, pra pisar orgulhoso, furando pelo curral à cunha, a tropa lá no palanque faz suas evoluções, [200] vai principiar a comédia, O amo do Boi, vestido a fidalgo, desfolha a toada:
Arreceba o Boi
Prata fina brincadô
semeando pena de ouro
que a princesa lhe mandou
Na ponta da fila, luziu o diadema, saia de cetineta, o peito de lantejoula; o manto de arminho, luvas brancas, va­rinha de condão, a Fada. Assim, lá em cima, no palanque, tão de repente, vista de longe, ao clarão das lâmpadas, domi­nava o terreiro, dominava este chão de serragem, esta poça de lama, os balões e as fogueiras. Agora é a voz do primei­ro vaqueiro:
Moça bonita
Sem ser mulata
Teu rosto é lindo
Teus olhos mata
A simples amiguinha em pleno palanque, Fada! Numa nuvem, semeando pena de ouro, reluz o diadema, vira-se da­qui, vira-se dali, na cadência da tropa, rejeitou alpercata, calçou o sapato do baile, e seu manto de arminho? Deus te livre! E dela, nesta mão, como um lacrau ferrando, este pa­pel de embrulho, a lápis, adivinhando esta noite, esta manhã na feira verde, este meio dia no Reduto, esta tarde pelas esti­vas no cariazal, um minuto antes quando tentava de rojão entrar no Profeta para ver os preparativos da saída do Boi. Alteraram a velha comédia, que não tinha Fada, e introdu­ziram a Fada, que era só de pássaros, agora é a Fada no cur­ral, correndo os campos para proteger o Boi, tirar da mão da Feiticeira os vaqueiros enfeitiçados, vira-se daqui, vira-se dali, a tropa entoando:
[201] Levanta meu boi de fama
Estrela da madrugada
a apresentação do Boi às damas e cavalheiros, às auto­ridades e demais convidados. Roberta, com os seus poderes, lá em cima, nunca olhava para baixo, toda em si mesma, na mão direita a varinha de condão, tão certa de ser Fada, tão nascida para o Boi, Deus te livre! O Boi faz um pião, chi­fra o ar, o Pai Francisco entra e solta uma graça, desce a toada:
Meu Boi é prata fina
É pai de muita malhada
Sai de noite do curral
Só volta de madrugada
Roberta no Estrela Dalva. Ali no palanque, de Fada. Com a prima de companhia ensaiou meio secretamente na casa do Boi, nunca no curral, cortou os serões da fábrica, nunca aparecia no ponto do namoro. Quando e como a viu o seu Profeta? Como principiou o conhecimento? Muito manhoso, mandou uma comissão em nome do Boi em casa dela pedir aos pais licença para Roberta ser a Fada. Os pais. (para melhor dizer, a mãe,) se fizeram de muito rogados, que não podia ser, que era por demais de todo impossível, que Boi era Boi, muito do impróprio para uma moça. Não corria má fama? Que-que não se falava! Boi? Minha filha no Boi? Saindo no Boi? Boi era Boi, sabendo-se muito bem os assun­tos que saem, o que era Boi. Sabia de cor. A menina era família.
— Mas nosso Boi é de família, D. Domingas.
— A menina tem sua educação. Fosse num pássaro. numa pastorinha, num bloco de moças para o carnaval... Tinha um cabimento. Mesmo assim, ano passado, não con­senti que ela saísse de sabia na pastorinha do Prado. Agora no Boi? Logo no Boi? Naquele Boi? A menina tenzinho a sua [202] educação, sim que pouquinha. Quem que de nós pode ter muita? Agora sem mais nem menos levada metida saindo no Boi? Pouquinha mas tem e com tão pouca que tem ainda saindo no Boi? Assim desgraça tudo. Arrisco consentir não.
— Mas, e o Boi, D. Domingas? Sabemos dar boa conta de filha alheia. A educação faz parte dos nossos regu­lamentos, lá no Boi, D. Domingas. Nosso Boi é familiar,
D. Domingas.
— Dou licença, não.
— Sua menina é que melhor encarna., D. Domingas.
— Dou licença, não.
— Para aquele papel, outra não tem, D. Domingas, senão ela, só a sua filha, D. Domingas. Não é por estar na sua presença, D. Domingas.
— Dou não.
— Fada e sua filha é só uma, D. Domingas.
A mãe já não falava, só era não com a cabeça. O pai, o ar flagelado, se fechava na sua barba dura. A comissão ia desistir — Esperem, esperem o café. . . — quando a menina, que escutava de costas na janela:
— A vestimenta é toda nova?
— Toda-toda nova, material e confecção.
— Nem um fiapo da do ano passado?
— Toda-toda nova, quebra tigela. Nem um alfinete usado. Tudo que requer um tal papel. Ainda por tirar selo. Sendo mais: que não sai Fada se não ser a senhora.
— Pois então mamãe deixa, o pai, e eu como filha faço as vontades.
Sendo mais: que não sai Fada se não ser a senhora.
Pisou o palanque com o sapato branco do baile, nesse Boi velha prata da casa, que ali são anos e anos de fazer Boi, brincar com o Boi nas noites de junho, aquele Boi, o Estrela Dalva.
Num passo de fidalgo, seu Quintino Profeta se aproxima da Fada, o chapéu armado com fitas de tantas cores, os espe­lhinhos e fios de conta na testeira quebrada, o apito preso [203] ao peito por um cordão de ouro. Se não ser a senhora. Senho­ra! Só faltou vir no andor a roupa de Fada. Senhora! Os panos comprados na D. Brasiliana? Quintino Profeta, no que mandava a comissão, já armava o seu laço? Mestre de Boi­-Bumbá, isso era, que era, era. Ninguém lhe negava o bom brincar, o saber consumir-se, o merecer a Taça. Diabo é o seu costume, por todos esses anos de brincar com Boi: brincar também com as xerimbabas do Boi, as mais de dentro do farrancho, aquele seu ninhal só fêmeo. Assim diziam, como de fato, era muito Cabra-Cabriola com as bezerrinhas do seu curral. Quintino Profeta? Todos lhe conheciam a mandinga e a política, o seu macio abuso de: No que preferiu, possuiu. Como uma atribuição que o Boi lhe dava, cumpria. Nesta hora inclina-se para a Fada, lhe diz.., sabe-se lá o que foi dito? Demais respeitoso à vista do público, o semblante fecha­do, os modos de quem muito se preocupa com umas tantas coisas, o rigoroso apito na boca, transpirando moralidade, não se sabe quando e como afia as unhas, joga a sua tarrafa, iscando com a sua lisonja para colher as mais verdoengas. Sua fala dá sossego, sua conversa é pouca, sua toada já não embrabece nem namora e da geração que fez já chegam os netos lhe pedindo a bênção. Apanhou o maracá, voltou ao seu posto de Amo:
O meu Boi de muita fama
Venha o Rei, venha a Rainha
Vou brincar com este Boi
Pra mostrar pr’estas meninas

Estas meninas. O viveiro delas no putirum dos preparati­vos para a saída do Boi, passarinhando debaixo da manguei­ra, ao pilão socando os tucumãs para o vinho, dá a banana ao macaco, lava com creolina os três cachorros, limpa o bucho e o mocotó para a maniçoba, seguindo o Boi onde o Boi vá, um viveiro onde o seu Quintino Profeta é o urubu-­rei. Das verdes, então, é que mais preferia. Passava maná [204] nas palavras. Sabia fazer coceira na palma da mão delas. Verde? Aquela do diadema? Até que ficou mais alta, vira-se daqui, vira-se dali, solitária, como é o costume de uma Fada no Bosque, nas pastagens do Estrela Dalva, devia de estar suando um bom pedaço, transpirava incanti. Naque­le manto de arminho, sua filha e Fada uma só é, D. Domin­gas. E de tudo que era aquela zinha da rosa para a professo­ra, do ditado esquecendo de assinar o nome, da aritmética atrás da qual sorria e piscava, do muro ao luar, resta este papel de embrulho, a lápis, assinado R. Teve fim. Pode quei­mar, queime. Agora é do Boi. Do baile do Reduto ao Boi não durou um mês. Do Boi. Ali debaixo do apito e da toada do seu Quintino Profeta, não duvidassem que este? Olhem que até com bota brincou na praia Maiandeua, deflorador que só ele, Deus te livre! Roberta trazida pela maré, entran­do no cacuri do seu Profeta. Guarda o Bosque e o campo onde pasta o Boi, e quem salva a Fada daquele laçador de mão certeira? Ou só se moldava, temperando um aleive?
Desde zinho, bem zinho, o seu Profeta brinca de Boi. Balançando no macuru já via o Boi. Gatinhava atrás do Boi, se emperreando para ficar com o maracá do índio. Sua pri­meira palavra: Boi! Principiou a botar Boi na rua com seus pareceiros moleques, Boi-curumim, vira a folhinha do avesso, vira os dias para trás, enfia junho com julho, conta as tem­poradas. Veio vindo, veio vindo, até formar o Dois de Ouro, Boi que fez tremer terra:
O meu Boi por estas bandas
Não tem contrário melhor.

Tempo mesmo de Boi-Bumbá, ali da gema, contrário está me chamando, eu vou dar na boca dele, topando o contrá­rio nos fuzuês, pessoal afiado na capoeira e na navalha, o contrário está dizendo que esta noite tira o couro, Boi que não tinha comédia, Boi do Cazumbá, do Pai Francisco, Mana Maria, do Rebolo. Tempos do Rebolo! Dias machos, o [205] Rebo­|lo com a força de pai dó terreiro, seu peito alvejado por bala de Boi rival. Que na escola do Rebolo, seu Quintino Profeta tirou grau. Como Rebolo, fechou o corpo, sua oração é forte, seus santos e caruanas lhe dão poder sobre os rivais, favo e brio na toada e boa guarda ao Boi até raiar. Antigo serra­lheiro, foguista de gaiola, tocador de rabecão, Quintino Pro­feta carrega o seu Boi no meio dos afazeres e desenganos, atravessando a crise e as alterações do mundo, O Boi dava despesa desconforme, cada ano esticando a conta e São João houve que nem acabar de vestir o pessoal podia. São João passado, não foi? Teve de empenhar a casa. Também tira uns minguados nas orquestras tocando o rabecão, pela festa de Nazaré faz parte de uma banda no arraial. No mais é o só pensar no Boi, que é a sua fortuna e a sua fraqueza. Nome e história de Boi o seu Quintino Profeta tem no jornal, no plantão da permanência, nas rodas da cabroeira, nos cantos do subúrbio. Não viu o seu Dois de Ouro queimando duas vezes pela polícia? Precisou que o soldado rasgasse a sabre o veludo do Boi, derramasse querosene, que só assim o Dois de Ouro pegou fogo, virou cinza com a sua tropa toda em caráter e trajo dentro da cadeia e o seu povo na rua com o coração queimando, recolhendo a cinza. Aqui neste jarro de louça, a cinza recolhida é o Dois de Ouro. Noutro ano, o mesmo contratempo, a armação do Boi resistiu, a armação do Boi não pegou fogo, a cabeça, com o 2 de metal na testa e uma figa na capela, saía chamuscada mas intacta, mais parecendo cabeça de santo. Como tirar de dentro da subprefeitura a cabeça do Dois de Ouro? Deixa na mão dos meninos, com o Mendobi na frente que te afianço. Como de fato. Os guardas naquele plantão fizeram que dormiam e entram os meninos, saem com a Cabeça para a casa do Boi. Salvavam a cabeça do Dois de Ouro, Mendobi na frente, hoje um marujão da flotilha. Meninos daquele tempo hoje cada um pai-d’égua, bigus de batente brabo, vaqueiros do Estrela. Não foi nem uma nem duas que Quintino Profe­ta gramou xadrez, viu seu Boi rasgado a sabre, sabrecado, [206] degolado. Ali no cesto tem ainda pertence de antigos Bois destruídos. Tudo aí nessa alcova do Boi é relicário e uma noite há de mandar rezar ladainha por todos que brincaram no Boi e que não são mais deste mundo. Aqui na alcova será a ladainha, defronte do Boi, com o santo na mesa forrada.
Como ia contando, Boi se queima, Boi se faz de novo. O que é do homem bicho não come, o Dois de Ouro renas­ce das labaredas. Noutro ano armou outro animal, saiu com ele e sua tropa, abriu curral, na rua brincou, no arraial desfilou, dançou em sala de branco, fez a matança do Boi, varreu. Polícia só aí vendo sem piar, o seu Quintino Profeta tinha cartão de Senador conseguido numa audiência. Por fim, morre o nome, o Dois de Ouro, morre naquele ano em que o velho Timbó já de vela na mão ainda parecia fazer toada. Morria um de raça, de lei, toadeiro de Boi estava ali, não renegava. Morte dele lembrava a do velho Macário, este do carimbó, rezador do Divino, morrendo, os seus companheiros foliões rezando a folia do Divino. Morreu ouvindo a sua folia, o tambor tamboreando surdo, a vela acesa, a Coroa no colo da mulher, esta ali com as mãos ocupadas, sem enxugar as lágrimas. Um pombo branco voou do telhado quando o velho folião expirou. Seu Quintino Profeta ajoelhou-se diante da Coroa, desejou, pediu, assim fosse também a sua morte, ao pé do Boi. Então nasce o Caprichoso, chegam as chuvas, vêm as pupunhas, despencam as mangas, e sempre aque­la cachaça, aquele sempre ajuntamento na porta de casa, acabando em serenata, Satiro e Cecílio, o par de sopro, o rabecão falando, as meninas em roda, esta trazendo um café, aquela o tição, as morenas aqui pelo ombro da gente no uso do melhor dengo e do dá cá um cheiro ou deixa que te esprema o cravo. São João se anunciava? Então reúne, que remédio, prega edital na porta, buzina para o Chaminé, bate no cochicholo do Cecílio, o do saxofone, vai ao cais ver o Pixixi, dá um pulo no Satiro, o flautista, e tudo o mais que for preciso que de hoje em diante, neto do Dois de Ouro, filho do Caprichoso, nasce o Estrela Dalva. Vamos botar o [207] Boi. Tinha lido o nome em sonho como coisa que do céu lhe mandaram dizer, ou do fundo onde seus guias estão, aí nessa água açu do Pará e ilhas e poções de cobra-grande, reman­sos e correntezas. Pediu ao professor Cirilo a primeira comé­dia para representar em palanque. Os tempos da ferrugem, do tirasulapa, dos rolos de Boi, longe iam. Não podia escurecer a mudança das coisas. Tinha que acompanhar a transforma­ção. Aluga o quintal do seu Moísés, que paga o foro aos Lobos, finca o curral, arma o palanque, divide e arren­da terreno para os divertimentos da noite, e sobe, Estrela Dalva, no palanque, o soalho é teu. A cidade não mudava? De Belém, aquela, quem me dá notícia? Os ausentes, os mor­ridos! Estas saudades, outros semblantes, bem, Boi, entra no tempo do jazz, te agüenta, que até avião já voa. Carecer de ir no cartório deixar o nome do Boi nos livros, não tem dúvida, ia. Corre na Pedreira atrás do seu Raimundo Ale­crim para vir benzer o bicho. Procura no jornal o seu Seabra, combina com ele uma roda de rama e peixe frito no Boniti­nho e que assim ele publique as notícias do Boi. Planta os tajás protetores do Boi. Pendura pela casa dente de jacaré, de boto, e vamos, que o Boi urrou, nosso-pessoal!
Estrela Dalva entrou no curral como Boi de comédia, a tropa numa vestimenta só de cetim três peças, não digo os ornamentos. Seu Quintino Profeta tirou as toadas saudando a assistência, repetiu umas do falecido Timbó, apalpou a sua oração no bolso de dentro. Vera! Vera! Vem pastar no lavra­do o neto do Dois de Ouro, o filho do Caprichoso, observan­do um pouco as modas de agora sem quebrar o respeito pelo antigo.
O Boi enfiou no chifre a estrela da madrugada, colou no lombo de veludo as Três Marias. E assim principiou o Estre­la Dalva, assim veio de longe o seu urro, varando a cidade. Nunca outro Boi entrou no bairro pra lhe fazer pique, axi! Estrela, o Boi, seus chifres riscam céu e terra, deixam um rastro de cantoria e fios de cetim. Do Esquadrão para dentro. Chão dos Lobos, é chão que só um Boi pisa, um só Amo [208] canta, uma só tropa entoa, um só curral festeja. Ainda assim barulhos não evitou, quando atravessava a cidade, subia o São Brás, ou cruzava um rival. Um e outro chinfrim com a cava­laria e a polícia, mas já não tomava Boi dos outros, ainda assim bota turuna pra correr quando carece. Bala, sabre, ra­bo-de-arraia, pau comendo mas comendo mesmo, já não. Quintino Profeta e sua tropa campeavam num campo dando flor, protegidos pelo Cavaleiro Jorge.
Este ano, sob a varinha de condão, Estrela Dalva levan­tou a cabeça, urrando no seu curral, com a toada do Amo cheia de vozes mortas, de amos e vaqueiros do antigamente, Rebolo, Cazumbás, Mães-do-Mar de outros tempos: Sati­ro, com aquele buraco no meio da testa que nunca sara, tocando flauta à frente do pau e corda. Campeão nos con­cursos da cidade, Estrela Dalva é rival do Pai de Campo do Jurunas, do Canário do Umarizal, este não saiu mais. Cessa­da a briga de capoeira e navalha, desfeita a rixa, agora os Bois se respeitam, até que se cumprimentam, trocam ofícios, usam de educação. A palavra contrário, num tom de desafio, é só pura toada, é só um garbo, tudo o mais é facei­ro. Acabou a emboança, cântico de vera, que xingue, trate o rival de resto, tem mais não. Cavalaria já não vai atrás num tropel, de chanfalho em cima. Ali é a Fada como paz, a menininha do milho verde, a pirralha que a D. Brasiliana queria capar lá no telhado no meio dos pombos e das sedas de contrabando. O punhal, cabo de osso, seu Quintino já não traz no cinturão, é um adorno na alcova do Boi, entre as taças e as medalhas, nunca mais desembainhado nem para cortar tabaco. Mas seu Quintino Profeta, basta um tragui­nho, deixa transpirar a saudade dos tempos de guerra, do brinquedo saindo fumaça, sem Fada nem Feiticeira, Boi nu e cru, guerreiro, do tira a cisma e a teima, arreda da frente que eu quero passar, o pau cerrou, poeirou o furdunço... Agora a toada é um cumprimento, um dizer não fazer, mais por ser bonito:
[209] Urrou, urrou
Tornou a urrar
Já urrou o Estrela Dalva
Guerreiro deste lugar
Vai principiar a comédia?
Boi, boi, boi
Brinquedo de São João
Deus queira que tu não veja
A riqueza do meu chão
O Amo dá um passo para o meio da roda, sacudindo o maracá. Dirige-se ao primeiro vaqueiro:
— Vaqueiro, toma conta do meu Boi. Leva o Boi pro campo pra pastar. Muito cuidado!
— Sim, senhor, meu Amo. Não tenha cuidado que eu tomo conta do seu Boi com toda a vigilância.
Entrem as famílias que o arraial é de sossego, sentem nas barraquinhas, ai reina o respeito. Foi-se aquele tempo.
Os vaqueiros vão dormir.
— Ó Estrela Dalva, nosso Boi vai pastando por aí enquanto nós vamos quebrar a cabeça do sono.
O Boi no campo, pastando. Hora de aparecer o Pai Fran­cisco? Na ponta, vem e vai, vira-se daqui, vira-se dali, tesa, séria, a Fada, segurando a varinha, com diadema e arminho. De lá de cima, do seu reino, enxerga? Por curiosidade, divi­sou nesta serragem o desassossegado a quem mandou o bilhe­te? A lápis. Papel de embrulho. Os músicos tocam a intro­dução. Satiro, a esta hora, no palanque, já deve estar reclamando a chilra. Aquele buraco na testa do flautis­ta nunca há de sarar? Difícil distinguir a voz de Roberta. Com pouco, vai entrar em cena, de varinha dura, tapando com as vestimentas o que ela tem desta serragem, capinzal, beira d’água, da mangueira onde subiu para espiar o sótão da loura. Desce do palanque, devolve o condão e vamos os dois mas só um instantinho? Soa o teu passo no meu peito, já te perdia quando te encontrava nem bem te dou a mão, dela [210] te escapas, agora o que te cobre é cetineta e arminho, teu dono é o Boi. Satiro vem descendo do palanque, a flauta no sovaco, depressa vem tomar a sua rama, que sem ela não soa. Este ano, está sem o parceiro.
Entre os músicos, um não está, mas é verdade! Faltando, este ano, o saxofone.
Quiseram o saxofone no lado do defunto, seu Quintino não deixou. Melhor ficar ali na alcova do Boi, o pedido é feito, assim queria o finado. Aquele saxofone! Em glória esteja o tocador mas aqui neste chão, oh, bicho! O quanto revirou nesta cidade com aquele saxofone! Falassem as casas de família, falasse o raparigal de pé de cerca e passagem. Falasse a Bela, que o nome já dizia, pelo saxofone cega, per­dida, meia-noite de São João fincou a faca na bananeira, na faca amanhecia escrito: Cecílio. Encheu a boca de água, à espera de ouvir o primeiro nome de homem, que com esse havia de se casar. E ouviu: Cecílio. Lhe aconselharam o uso das fezes de gato e mais coisas bem secretas que trouxessem o Cecílio aos pés dela, de joelhos tocando o saxofone. Que nada. Quando estava perto dele, era rezando aquela oração, que lhe ensinaram, tiro-e-queda para segurar o rapaz, mas quem disse? Para depois, ali na raiz da mangueira: me digam por tudo que é mais sagrado no mundo, me digam por onde viram o bom daquele tão demônio, que eu acabo é tendo esta criança na rua atrás dele.
— Melhor chamar a D. Santa. Corre na velha parteira, já-já.
Cecílio bem no Uberaba tocando aquela sua valsa para os quinze anos da Querubina, Feiticeira do Boi, manti­lha amarela, lenço atado à cabeça. Por toda parte, o saxe e a Querubina. No Uberaba, Querubina, instigada a tomar aquelas misturas, foi, que lhe subiu à cabeça. Cecílio cala o saxofone, carrega a-que-bebeu-o-juízo para a casa do Boi. Noutro dia, acordava espantada com a pergunta da outra:
— Querubina, esta noite foi a tua primeira?
— Que primeira?
[211] — Que ele te conheceu?
Correu no rumo do saxofone, onde tocava o saxofone? Agora tocava para os quinze anos da Cilá, uma cabelo-nhã lá da Vila Isabel. Foi o único no subúrbio, que acertou o passo no São João Batista com aquela carioca aqui chegada, aqui revirando cabeças, num repente voltando para o Rio, atrás dela o Belúcio, o do cavaquinho, que mandou tatuar o nome dela no braço e uma estrela com o nome dela em cada ponta. Quando Querubina se viu era com aquela barri­ga já lá embaixo, atrás do saxofone, seguindo as serenatas, o músico fazendo os seus traços no salão do baile, na porta do botequim, sem Bela nem Querubina nem Cilá, apreciava a variedade, era do saxe e da rama, ou cativo de um desgosto? Em meio da serenata sentiu aquele orvalho de sangue, não disse a ninguém, onde a Bela? A Querubina? A Cilá? As noites em que o saxofone dobrava o soluço? Enxugou o bocal, era? Esmorecia? Seu som, seu sangue, ficava no bairro, no caminho da Bela, da Querubina, da Cilá. Quando chamaram o Pedro Chaminé, o músico já estava de vela na mão. Caiu ao peso das serenas, dos Bois, das Belas e da rama, uma segunda-feira. Nem Bela nem Querubina. O seu Quin­tino Profeta apanhou o saxofone:
— É todo o haver dele, isto. Tivemos, justo é dizer, as nossas diferenças, mas na maior parte a gente se deu em boa irmandade. Fez foi facilitar com o peito, abusou do fôlego. O saxe esburacou, chupou o pulmão dele. Nunca teve um só descanso, nunca se privou, não foi por falta de conselho. Era aquela toda noite. Sempre nosso apaixonado. Pra repenicar o que se pedia, nunca se fazia de rogado, o beiço no saxofone. De dentro mesmo de casa, desta família, do pé do fogão, que foi, foi. Honrado rapaz. No lugar de um gema como esse cadê outro? O Boi faz o enterro.
No enterro só faltou o Boi, sim que nem Bela nem Chá nem Querubina.
Agora no palanque entra em cena, ladrando para fazer graça, o Pai Francisco, seguido de três companheiros. [212] Deita|do no campo, a capela nos chifres, as estrelas prateadas no veludo, o Boi.
— Olhem que tão bonito Boi encontrei nesta paragem! É a fala rouca de velho negro, o Pai Francisco.
Os vaqueiros quebravam a cabeça do sono. A Fada, vira-se aqui, vira-se ali, fingia que ali não estava, estava no bosque ou no prado colhendo florinhas, só vem quando chamada e vem cantando. Assim, de cima, nas luzes, no brilha-rebrilha da sua roupagem, é a Fada, ou já é aquela, conhecedeira do mundo, encorpando as suas tentações, maduro o peito, a anca? Aqui desta serragem o olhar já não alcança tanto, e nesta serragem é o arraial repleto, chegou a D. Brasiliana no braço de seu baixinho português, coberta de contraban­do, agitando as pulseiras, espalha a loção da França, crioula pompadour dominando o arraial. A dona aproxima-se do palanque, os quadris ondeiam, a sinuosa abana o leque, o português é a sua bengala, e finca os olhos na Fada. A Fada, mas veja a pirralha! Só de cima, de sapato branco no nariz da moura. A Fada acompanha os movimentos do Pai Francisco e uma graça do negro cobre o sorriso com a mão enluvada. Duvido que me diga, de novo, D. Brasiliana: Te capo, pirralha.
Agora é a vez do Pai Francisco.
Pedro Chaminé, que faz o Pai Francisco, esteve na Marinha, fez, na baía de Guanabara, o motim do encoura­çado, com o João Cândido, seu almirante. Como Pai Fran­cisco, nos currais de Belém, por desempenho e idade, estava só. Este ano, de sua cabeça modificou a cena, inventou a roubada do Boi. No Estrela Dalva, não se mata mais o Boi, se rouba, quem rouba é o Pai Francisco. Não se sangra nem se reparte, só se rouba o Boi, falou Pedro Chaminé, quebran­do rigorosa regra do enredo que nunca mudava. Agora não tem comédia? Não tem Fada? Feiticeira? O ferrador já não é uma moça? Aquela com funda cicatriz de ferida na perna? Não se mata mais o Boi, o Boi é roubado, muito melhor reaver o Boi que ressuscitar o Boi. Seu Quintino Profeta não [213] quis contrariar o velho amigo, aquele seu insubstituível personagem. Aceitou a alteração. Enfia da tua cabeça na comé­dia do professor Cirilo essa roubada do Boi, mete aí dentro tua novidade, se der saldo é só teu, por tua conta só, que por mim me esquivo. Disse por dizer, pois se fiava no preto, preto de cachola boa, também inventar um outro tempero. mau não era.
O Pai Francisco põe um olho no Boi. Gira em torno do Boi, este parece adormecido no meio do campo, debaixo da cobiça do Pai Francisco. Os vaqueiros bem quebrando a cabeça do sono. Tremei, vaqueiros, amigos do Boi, platéia do Boi, que o Boi vai ser roubado. Pedro Chaminé, Pai Fran­cisco todo ele, limpa com a ponta do casaco velho o suorzão do peito. A cara retinta com aquela alvacenta barba postiça, chapéu de massa surrado e o clavinote. Espalhador de graça, arteiro no fazer rir, espremia a sua pimenta, nas ocasiões próprias carregava no sal. Queria um concurso dos Pais Fran­ciscos do Pará, Amazonas, Maranhão, para saber se havia esse-um que ganhasse ele. Matança de Boi tão bem como a dele nas três capitais não tinha, tão caprichosa era, tão bem acabada. Trazia do Una, onde morava, o tabuleiro de munguzá e cariru que a mulher vendia na barraquinha por nome A Cabana Tupi. Vez em quando descia do palanque pelos fundos e atrás da barraquinha matava o seu bicho, vertia suas águas. A outra sua voga, aquela, de bom benze­dor no Una? De um santo emplasto, tinha o segredo. Arca caída, nervo torcido, espinhela arriada, carne rasgada, esta­va canso, era emplastar com o emplasto dele e pá! casca! Tinha visões quando se concentrava rezando: via o pajé sacaca debaixo da maré bem fumando o seu taquari. Imitava o canto do curió. Carregava na arca do peito, sem perder nunca o sentimento, a porção de modinhas, também aposta­va com quem comesse mais que ele: quatro quilos de guriju­ba, uma terrina de caldo e quinhentos réis de açaí, pra reba­ter, foi aquele almoço que só ele comeu, apostando com o Bonitinho do botequim, dia dos Rezes. Isso é fome, canina, [214] falava o seu Quintino Profeta, capaz de jurar que comes­te galinha choca.
Agora, neste instante, agora nesta noite, um rapaz procura a Cabana Tupi.
— Aqui é a barraca do seu Pedro Chaminé? É a senhora dele?
— Pra lhe dizer que sou a senhora dele carecia lhe apre­sentar os documentos. Estão em falta. Se não é o mesmo, faço as vezes.
Ele está?
— Brincando ali no Boi, ali. Suspenda a vista que dá com ele ali.
— Estou é vendo que a senhora não está me conhecen­do, D. Brasiliana.
Xá ver... Me deixe lhe ver direito. Dizer que lhe conheço... Me parece que não.
— Pois sou aquele um que vomitava sangue, um que ia já com guia para o Domingos Freire, já desenganado. Já se lembra?
— Espere... Ah, sim, estouzinho já me lembrando. Ficou bom? A Deus que deve.
— Abaixo de Deus quem me tirou da cova foi o emplas­to do seu Pedro Chaminé, D. Brasiliana. E aqui estes quarenta mil réis por conta, a senhora faça entrega dessa insignificância, sabendo que nem a maior fortuna paga o seu Pedro Chaminé pelo que me fez. Desculpe a demora.
— Tire já-já esse seu dinheiro de minha frente, moço, que se o Chaminé chega e vê, com toda a razão há de ficar bastante bem aborrecido comigo. Não é do trato o que o se­nhor está fazendo. Daquilo ninguém arrecebe, nem do muito obrigado fazemos questão. É sabido e dito que uma coisa o Pedro Chaminé tem: o dom de curar que recebeu.,, recebeu de graça, e obrigação é dele dar de graça. Assim foi ajustado. Arrecade o seu dinheiro de cima da mesa, moço, antes que o meu velho apareça, veja, e me passe, olhe o tamanho do ras­pa! Por eu ter consentido, coisa que o senhor sabe que não [215] estou consentindo, o senhor sem me ouvir foi logo puxando do seu bolso para cima da mesa, ande, guarde o mais de­pressa, estou-lhe pedindo. No mais, não quero o meu velho aborrecido, pois assim só prejudica o papel dele lá no palan­que. Ele ali no palanque é bastante divertidor mas nos as­suntos de seu particular sempre é muito rigoroso no que encontra uma falha. E da feita que se contraria, a velha dele que agüente os azeites.
— Mas, D. Brasilina...
— É o que estou lhe declarando. De tudo que lhe disse não altera uma palavra. A contrariedade dele? Em cima do senhor não é, mas da velha dele, que não cortou a sua intenção a tempo.
Então o rapaz foi em casa dele, trouxe a noiva para apreciar, n’A Cabana Tupi, a roubada do Boi, as artes do Pai Francisco, os vaqueiros quebrando a cabeça do sono.
— Porém o cariru, posso, pagar, não, D. Brasilina?
— O cariru, ah, sim sim, agora isso pode, é à parte. O que desejar, tirar uma prova da nossa mercadoria aqui nesta barraquinha, às ordens. O senhor paga o devido. Assim, sim.
— Pois o meu peito fechou, D. Brasilina. Aquela guia o Domingos Freire? Queimei na lamparina, Deus te livre! Seu Pedro Chaminé no que ia pondo o emplasto me salvava.
— Um outro assunto, com sua licença, o senhor não se aborrece?, — me deixe lhe falar, é bom também lhe dar co­nhecimento. É outra questão fechada desse meu velho. Ele é cheio de poréns. Não ande por aí falando que o meu velho curou o senhor. E ele também finca pé proibindo que espa­lhem por aí, de boca em boca, o senhor sabe, não é? Cale então sua boca. O senhor sabe, é conveniência dele. Isso tam­bém pro meu velho é lei. Do que ele não gosta: Chamarem ele curandeiro.
— Bem, se é lei dele,, D. Brasilina, me regulo pela lei, me calo.
[216] — É o regulamento dele, sim. Assim é o reto. Mais cariru?
— Um mais, D. Brasilina. Minha noiva, é o prato dela, o cariru. Não é, Corina?
Um riso pelo arraial, são as graças do Pai Francisco na hora de roubar o Boi.
— E aquela Catirina, D. Brasilina? Modo que não é a mesma, do ano passado...
— Um custo achar este ano uma outra Catirina. Aquela do outro ano? Pegou um tumor lá nela, um inchamento na barriga lá dela, tão do perigoso, meu Deus! Aí que nem o emplasto do meu velho! Padecendo até hoje na Santa Casa.
— Na Santa Casa?
— Na Santa Casa. Agora o senhor imagine. Na Santa Casa!
— Eu então que não imagino?
— Então meu velho cuscuvilhou, cuscuvilhou, quebrou que quebrou cabeça por esse Chão dos Lobos até que arran­jou essa aí, mas tão envergonhada a rapariga... Que é da vida, ela. Meu velho primeiro teve que fazer lá nela um trata­mento que... nem lhe digo. Mas se desincumbezinho assim-assim mesmo aleijando, no palanque debaixo das vistas do meu velho, um tanto desconsolada, uma água de açaí. Só quer que seu Quintino Profeta lhe dê uma importância para uma saia, uns borós por noite. Também o pouco que ela representa! Demais pouco. Está ali e não está... Dizer que diz duas pala­vras? Quem disse? É mais fazendo figura e o meu velho dando com o pau na paciência. O certo, meu amigui­nho, é que Pedro Chaminé carrega esse Boi na costa.
No ouvido dele era sempre “te passa para o Boi da Pe­dreira, Chaminé não seja arara”. Mas seu Quintino Profeta não lhe deu um milheiro de palha para a cobrição da barraca do Una, três mil réis por ensaio, seis mil por sábado de exi­bição? Era ou não era? Sim, que cobiçado e muito, todos lhe soprando: Vem pro nosso Boi, Chaminé. E Pedro Chaminé:
Só tenho uma palavra. Tudo é também a simpatia, a boa [217] camaradagem, o não ter que dizer mal de seus parcei­ros, sendo mais que o Estrela Dalva é aqui do chão, Boi de casa, Estrela Dalva, o que foi, ainda é. O Boi da Pedreira? Não tinha nem quem tirasse toada. E eivém um diretor de la querendo apalavrar o Chaminé para tirar toada. Gente, que é isso? Não é da mea categoria. Não tiro toada. Brinco, desempenho de Pai Francisco e nisso tirei patente, sou vita­lício, no mais não meto o nariz. Toada é outra especialidade.
Alfredo se desencosta do esteinho da Cabana Tupi. Triste, escura ó magra Catirina no palanque. Tão tão sem uma pedra de sal, a saia poeirenta, o ombro murcho, o rosto sovado, representa lá em cima o que aqui embaixo sempre é e, vão ver, já se gaba, lavada de luzes, quem sabe um pingo de faceirice, à sombra do Boi, par do Pai Francisco, defronte da Fada, a azul-celeste. E ali parece de vera, de todos a mais personagem, da vida, da vida, repete Alfredo tomado de uma áspera compaixão.
Com o aperto de gente, o arraial um forno, o chão pega­joso, lama, serragem, roleta, peixe assando, fervendo a goma do tacacá, entra pelas barracas o perfume francês da D. Bra­siliana; o Pai Francisco, seu freguês de jenjibirra, capricha nas graças, girando em volta do Boi. Lama, mormaço, serra­gem, este bilhete na mão, Ginásio perdido, o Boi lhe rouba a Fada, melhor é fugir deste fofo e úmido inferno, deste ímpeto de subir no palanque e arrebatar a Fada; talvez ela quisesse isso, na hora da roubada do Boi; de lá do palanque inacessível estruge fantasticamente aquela vaia do pátio sobre o calouro, o arraial vaiando e a toada:
... o nosso Estrela Dalva
foi roubado da malhada

Os vaqueiros se dão conta, o Boi? Mas e o Boi? Eston­teados pelo campo deserto.
— Então, vaqueiro, que conta me dás do Estrela Dalva, Boi de minha estimação?
[218] — Meu amo, nós estava muito cansados. Trabalhando seis dias, dia e noite. Nos foi preciso quebrar a cabeça do sono.
Aí grita de longe para a platéia, gracioso, o Pai Francisco:
— Nunca vi sono com cabeça!
O Amo se desespera, se desespera a tropa, o Boi rouba­do! Onde encontrar, como recuperar o Boi? Aqui embaixo, nesta serragem, a desesperada busca, como arrancar do palanque a aluna?
— Então, vaqueiro? Quero o Estrela Dalva de volta pro meu poder!
— Meu Amo, para conseguir de novo o Estrela Dalva, só com o Diretor dos índios.
Aqui embaixo na A Cabana Tupi:
— Mais cariru?
— Mais um, sim, D. Brasilina. Olhe que o seu cariru, hein? Não é por estar na sua presença...
Lá no palanque chegam os vaqueiros: Pai Francisco atirou num.
Ó sinhô meu amo
Chico me atirou
Nem bala nem chumbo
Nada me pegou.
Lá se vão os vaqueiros para a maloca. Os índios hão de prender os roubadores do Boi? Que é feito do Boi? Com pouco será a voz da Fada, seus poderes em cena, a varinha de condão salvando o Boi. O palanque se distancia, o curral do Boi um minuto apaga-se, interrupção da luz, e só a Fada no palanque, nunca mais conseguida, iluminava.
E essa pouca trava que se fez no arraial alojou-se no peito, aqui se acumula, apodrece, ou crepita, aqui se destam­pa a panela de cariru, espanta as moscas de cima do peixe frito; ali, no inacessível, a Fada, e ao pé, com o apito, o Amo a chamar pelo Boi roubado, o Boi perdido, o Boi, quem [219] sabe, sangrado e repartido. Os índios demorando. O Amo dá o seu passo no palanque. E todo o seu desempenho mais parece para a Fada, o laço vai apanhá-la, o urubu-rei revoa com seu veludo e vidrilhos, as asas invisíveis.
Então será na derradeira noite, pela volta do arraial de São Brás, volta de campeão, a tropa cansada, Satiro escor­rendo o bocal da flauta, o tripa, debaixo do Boi, comendo a pamonha, mais dormindo que caminhando, viram rama pra espertar do sono, sa-gente! Pegue, Fada, leve a Taça, está em boa mão. Vai recolher o Boi, bote festejo, comes e be­bes em casa e no quintal, faz a matança e varrição do Boi. E as grudes principiam a grudar o pé da Fada, as grudes do Amo que se unge de marapuama. Também mordido pela formiga taoca? Tudo não será em nome do Boi? Em nome do Boi, pois então! Corre o frasco, já tomaste o vinho de tucumã que te guardaram? E desta misturada de maracujá, uma prova, experimente, molha o beicinho, forte? Dobre o manto, tire o diadema, descansezinho um pouco a varinha de condão, guarda a Taça, sim? Seu Quintino Profeta se des­cobre, recolhe o seu chapéu de Amo, suspira aquele suspiro que sempre dá no apagar da fogueira, acendendo o cachim­bo no derradeiro tição, fecha o curral, varre o curral, o Pai Francisco aparece lá de dentro com o prato de barro cheio de maniçoba, e no lugar de sempre se deita, ali sagrado, até outro ano, o Boi. Tudo antes no dormitório as meninas defumaram, e lá pelo quintal ao pé do araçazeiro arma-se a rede. Será assim. Noutra manhã, não mais Fada, seguirá para a fábrica. Só para a fábrica?
No arraial fumegante cheirando a pimenta é difícil va­rar até a rua, agora a Fada lá em cima se cobre de poeira, névoa e toada. Alfredo consegue sair. Incha-lhe na palma da mão, como um rato podre, o bilhete a lápis.
— Professora, a senhora por aqui?
— Espairecendo...
O que disse a ele, toda sem desculpa, pegada na falta, agora querendo meter-se terra adentro. Alfredo, um [220] instan­|te a seu lado, olhando para o inacessível palanque que pare­cia subir como um balão.
— Mas aquela, a Fada, professor? Professor, não é a nossa aluna? Aquela?
— Não sei, parece. Será? A senhora aprecia Boi?
A professora calava-se. Disfarçado! O diadema te deixa em carne viva, partioso. Ou te escurece a vista? Um fogo no meu rosto. Meu Deus! Preciso ir embora, agarrar-me a mim mesmo, e aqui miserável ao lado do moço. Falar, quem dis­se? Alfredo tinha os olhos no palanque. Me leve, professor, até em casa, quis pedir, numa súplica, um orgulho lhe tapou a boca, lhe veio a visão do escaler, das viagens, do navio que bebia, e do espelho lá na alcova.
— Bem, professora, boa noite.
Tentou segui-lo, já não via nada, empurrada, batida, es­premida no arraial, náusea daquelas comedorias e de si mes­ma, até que pôde ganhar a rua, às pressas, as mãos no ros­to., cega, a seus pés estalou um foguetinho, atravessou uma roda de fogueira, ouviu: Quem dá confiança a bucho é fei­jão. Quem dá confiança a bucho é feijão. As risadas. Quem dá confiança a bucho é feijão. Bucho sou mas não do teu cocho, que puta sou que Deus quis mas benquista.
A professora chegava em casa. Sentou-se no baten­te, arquejava, como se tivesse feito aquele trabalho delas, aquelas, pela rua e cercados, carregasse o escaler no ombro, suas viagens, o peso daquelas águas, ou chegasse de quatro patas arrastando-se... Deu-lhe uma tosse, lá na esquina uns bêbedos principiavam a gritar. E por todo o subúrbio o es­pectro das fogueiras.
Alfredo foge por este beco em silêncio. Agora vai ca­minhando pelo Acampamento. Dá com a mulher de cócoras num esteio ao pé da vala.
— Fazendo aí o que, Maria? Não estás no Boi?
A Maria Igarapé. Nasceu no Ceará, serra do Maran­guape, casou lá, teve filho lá, como acabou no meio dos fla­gelados neste Chão dos Lobos não se sabia. No Cais, os [221] ma|rinheiros ingleses, que lhe davam ficha, lhe diziam camone. Era da serra, virou do igarapé, Maria Igarapé.
— Vou é ver o Boi da Pedreira. Aquele com o curral no fundo das sentinas. Por isso se diz que é o Boi da merda.
— E por que sentada, aí, o nariz na lama. Maria? Chocando?
— Chocando mea pedra.
— Chocando?
— Ah, meu mano, aqui debaixo deste escuro estava era só alembrando da serra... Ah! É o meu choco.
— Foste mesmo casada? Ele que te abandonou?
— Não. Nós se abandonamos.
Caminharam por um beco. Para ajudá-la a saltar a vala. segurou-lhe o braço.
— Olhe, quer, lhe arrumo uma... Conchavo pro senhor uma rede vaga. Que comigo, hoje não, que estou de lua.
Alfredo queria responder-lhe: Pela Roberta é que te acompanho. O mais, não, irmã.
— Não acredita? Pois olhe.
A Alfredo é a cena brusca na ladeira do Castelo, che­gando menino a Belém. É o defunto do necrotério, barriga aberta, gordo, é a mãe no quintal cheio... E a esta hora, a mãe? Como se acompanhasse a mãe pelo beco, a esta hora, pelo campo, ou correndo fogueiras e cordões da vila, e ela aos conhecidos respondendo: Meu filho? Meu filho? Há de voltar doutor.
— Tão que escureceu! — disse a Maria Igarapé, como um lamento baixando o vestido.
Pararam no caminho da baixa. Devolve aos sapos a Maria Igarapé de lua. Os sapos no cariazal esperavam. calados.
E eu aqui, em vez do diamante na mão, com este bilhe­te a lápis. Tio e Dolores, embarcados na pele de jibóia, es­tavam chegando mas aonde? Saltou um sapo como se saltas­se a Fada, azul celeste, escrevendo o ditado.
— Vai mesmo no Boi?
[222] — Com esta intenção. Ah, que não me agüento com estas mil dores, sabe?
— Pois se meta na rede. Onde mora?
Num dos quartos do Teófilo dentro do igapó. Como um trem a fila dos quartos balançando sobre o charco, a quinze mil o mês.
— A esta hora, com a maré seca, o igapó fede que só o diabo.
— E isso aí também é dos Lobos?
— Esse lodo? Pode que ser. Ou da Marinha? Sei, não.
— Quer que te leve?
Respondeu que não, as mãos na barriga, o pé grosso de lama. Prendeu o cabelo, ‘Ia ver o Boi da Merda.
— Então, bom Boi, Maria. Levas a faca no dente contra o lobisomem? Me deixa te dar um beijo na testa, boa noite. Tu queres que a D. Santa olhe tua barriga, benza tuas mil dores? Conheces a D. Santa?
Alfredo voltou para o São João, será que estou com febre? O arraial fervia, o Boi retornou ao Amo:
Urrou meu Boi
Já urrou, tornou a urrar
Nosso Boi Estrela Dalva
Guerreiro deste lugar
Lá estava o diadema, a roleta parou no Touro, não mais balões, aonde o Japim?
Aqui perto um resto de fogueira. Os cantos do Boi longe iam. Para as bandas de São Brás e da Pedreira subia uma sonolenta iluminação. Aqui as fogueiras cessavam, o curral, já ao longe, se cobria de silêncio. Quis seguir a Fada, vê-la descer do palanque, levada pelo braço... Tornou ao curral que se apagava, o palanque deserto, restavam bebedores pelas barracas, alguns rapavam os derradeiros carirus. A ro­leta rodava.
Também trazia a visão de Maria Igarapé suspendendo a saia, as mil dores dela, o choco da serra. Era febre? [223] Cami­|nha para o Não-Se-Assuste onde a zanoia, decerto, sem ter pulado uma só vez fogueira, lê para a mãe o Carlos Magno e os Dozes Pares. D. Fausta, a esta hora, sacode-se de pesa­delos, debaixo da vaia no cinema, passando ao piano a sua ezipra. Na altura da José Pio, dá com um homem sentado na ponta da calçada.
— Não está no Bio, seu Satiro? Saiu de lá hoje tão cedo?
O sentado custou a responder. Alfredo inclinou-se:
— Se sentindo mal?
— Hoje? Hoje? Uma sombra daquele Satiro, menino, hoje sou.
Pigarreou, deu-lhe uma sufocação, com pouco aliviou.
— Tu aí, meu camarado, não te fazendo de meu mole­que, acode o velho de perna morta. Me acende este toco de cigarro ali na cinza da fogueira. Pois não?
Alfredo voltou com a bagana acesa.
— Hoje? Uma sombra... A sombra daquele Satiro.
— Não lhe quero sentado assim na beira da calçada, fa­lou uma da-vida que boiou repentina no escuro, um tanto gorda, a modo sabrecada pelas fogueiras, o rosto contraria­do. Era aquela que falava, muito ofendida, quando passou a professora Nivalda de volta do curral.
— Na beira da calçada, não. Sentado estou em cima da caixa de minha flauta, pecadora.
Satiro levantou-se, esfregou o buraco da testa, Alfredo apanhou-lhe a flauta.
O pessoal só me chama Satiro mas meu nome é St. tiro! Sátiro!
Foi andando, Alfredo devolveu-lhe a flauta.
— Sátiro! — gritou, rouco, num gesto de quem ia lançar a flauta na vala.
— Soa a invenção, já, a sua! Dizer seu nome, ago­ra, como não 6, seu Satiro... — Riu a mulher, ajeitando a cintura, abanando a cabeça para Alfredo.
[224] — Não sou o que sou. Me chamam como não devo ser chamado. Vontade tenho, por isto, de rachar esta flau­ta neste poste apagado. Sátiro! Onde estás, que me tiraram de ti? Racha a flauta! Sátiro!
— Mas, seu Satiro! — Acudiu a mulher detendo-lhe o braço. — Quebrar a flauta, mesmo que quebrar esse seu espinhaço. Toque é que é uma bem sentida aqui pra mim, pra mim e aí o moço... Olhe, moço, o senhor... Eu bem que lhe conheço. E olhe que o senhor tirou uma sorte por ser eu, eu só que vi, vi o senhor subindo aquela janelinha seguro num cabo... Mas eu? O que vejo, é pedra no fundo dágua, adeus, pode contar. Petisque bem a sua mocidade, tenha sempre bom apetite. Toque, seu Satiro, sim?
— Não te gasto — cuspiu o músico a sentar na caixa de flauta, todo urinado. — Não te gasto. Axi! Eu? Sátiro Gonçalves Pantoja! Sátiro!
— Não faça fita que fita o Boi não quer — cantarolava a gorducha desgrampando o cabelo, espalhando os seus chei­ros de banho.
— Pétala desfolhada de uma rosa, vem cá. anda, sua sem-vergonha! Toma a chave do meu instrumento. Me chama, já-já, de Sátiro, como o meu nome mesmo! Sátiro! Já-já. Pronuncia! Quero escutar o meu exato nome. De tua boca podre o meu exato nome.
— Olhe já! Mea língua que dá, seu Satiro? É ou não é, moço, o senhor que presenceia, não acha? A língua não afina.
Satiro vomitou um pouco.
— Venha que lhe faço já-já um chá por seu estômago.
— Estou é com pinima de acabar a noite lá no buchei­ro da São João Batista. Lá de dama é só refugo. Só traíra de viração. Só quando a Antonieta passa na rua e sopra pela janela, os buchos ganham um alento, o sopro da demônia a modo que remoça as caras, refresca o salão. Uma noite: Me [225] sopra na flauta, Antonieta, eu disse a ela, e ela soprou. Um instante tirei um som, mas que som, que sonoridade, aquela mulher tira do peito um sopro encantado. Tu, tu vais co­migo, na São João Batista, lixo da noite!
— Mas primeiro sossegar esse seu estômago com o chá, sim?
— O selo! Tens o selo? A polícia empombou com a fes­ta do Sacramenta por via do selo da caridade que não foi pago. Ah, Quintino Profeta! Ah, Quintino Profeta! Pagaste?
De pé, a flauta em punho:
— Quintino Profeta! Pagaste o selo?
Sua voz enchia a quadra deserta, o vento levantava as cinzas da fogueira morta, a mulher mascava tabaco.
— E tu, velho bucho do Chão dos Lobos, megera das cloacas, pagaste o selo? Pagaste o foro dos Lobos? O selo da misericórdia? Tu, velha pirangueira, me mostra, tira de dentro do seu farrapo, dessa tapera que é o teu peito, o pa­pel de tua licença, o alvará da tua desgraça...
— Seu Satiro, me deixe lhe fazerzinho um chá... Bem ali naquele buraco que durmo, onde faço que moro. Seu es­tômago está enrolado.
— Terreno dos Lobos?
— Onde moro? De quem mais?
— Também este buraco aqui no centro da testa é dos Lobos. Os Lobos, um São João, hão de levar o Boi como pe­nhora, por conta dos foros do curral. Ainda ontem me fo­ram cobrar o imposto lá na barraca, como eu não tinha com que, o cobrador: Empenha a flauta.
Pagaste o selo, Pulunga? Essa é a D. Pulunga, rapaz. Gato antigo do Chão dos Lobos. Tu queres ir com ela no beiçame? Ela é mãe de caridade. Aqui neste chão ela vai por um tabaco, serve por uma cabeça de alho, dá pela gra­ça de Deus. Tu és muito compadecida, Pulunga. Pois então me dá teu chá, onde é o teu cocho? Vamos, vamos, que te toco a valsa bem baixinho enquanto o chá ferve. Servido, cavalheiro?
[226] Este quarto. Lá fora a torneira escorrendo, visões do pa­lanque: da serragem e da lama salta o Boi com a sua tropa de veludo, dourados e arminho, a Fada no ombro do Seu Profeta, pendurando o diadema, a varinha e a vergonha na lança do Amo, os cordões atrás, maracás, triângulos, violões, seda e cetim, as plumagens, Esméia, a Feiticeira, sacudindo o jasmineiro nos zebus que passam, eivém seu Almerindo com a bacia de louça, o São Sebastião no charão de prata do Marujo, os peixes do cacuri debatendo-se na montaria carregada pelos três Garimpeiros, um com a esquisita contra­riedade, o segundo com a ferida no peito, o seu Ribeiro, com a flâmula, recitando: o beijo, amigo, é a véspera do escarro. A Maria Igarapé levanta a saia, no seu corpo o ar da serra, o amanhecer na serra, a coalhada na serra; os currais reú­nem com fogo de artifício e com a volta dos tucanos, coroan­do o Pedro Chaminé campeão dos Pais Franciscos e a seu lado, liberta da Santa Casa, aquela Catirina: desinchou, de organdi e tarlatana, braço dado com esta outra Catirina que vai cobrindo com as suas anáguas de renda o arraial; oi que febre enxugou a serragem, a lama, os vômitos do Satiro, os condicionais da professora Nivalda, a pungente insolência de Ana, a mágoa da Pulunga sempre tão ofendida quando rejei­tada, sempre a troco do-quanto-quiser-dar ou então-não-dê que é tudo que lhe resta neste atoleiro dos Lobos e sabe, com todo o coração, fazer um chá, altas horas. Chá que ne­cessito para passar esta febre, esta flechada funda, um chá para arrancar dos Lobos este chão e estas almas, tapar o bu­raco na testa de Satiro, fechar aquele poço onde caiu Joana para que não caia Esméia. A febre queima o bilhete a lápis [227] nesta trempe, chiam suas palavras ou se transformam em piolho aqui pelas costelas, aninham-se no umbigo, palavras de Roberta, a que escrevia o ditado, escrevia nesta pele, numa urgente tatuagem, o seu nome, o sonho do sapato bran­co, o lugar na fábrica de borracha, o baile no Reduto, de re­pente no Boi, cantando no palanque, escrevia com as tintas daquele muro no luar, o sumo de mangue e gelo daquele beijo. O português tossindo. Andam pelo telhado? A italia­na? De dia era espiando pelas rótulas. De noite, pelo telha­do? A espiar sonos, fornicações, insônias, a reles e imprevisível intimidade, aquelas redes como sepulturas, como se es­piasse um cemitério, o do sono; só a menina acorda de re­pente, salta da rede: Mamãe! Mamãe! Estou com este san­gue. Este sangue, mamãe! Abre-se a concha, todas as redes sacodem, rangem nos esses. Um vento pelas casas, agitam-se os mosquiteiros, espalham-se as sementes, os gritos da menina acordam o cemitério, bebendo aquele sangue o galo anuncia­va, e nesta febre escorre, aceso, escaldante, o sangue, regan­do a cidade, a italiana pelo telhado flutua como um pólen, a torneira escorre, o pé da italiana, por muito alvo, acende os escuros do casario sobressaltado. Subo já e sigo aquele pé no sem-rumo da noite e de Roberta. A torneira escorren­do é lá longe no pedral da ilha das Pombas, um banzeiro na quilha do Santo Afonso, com o tio Antônio no leme, fare­jando aquela nuvem. Nesta febre melhor será sair, agarrar-me ao cabo que a moura me lança da janela e arder meu de­lírio entre aqueles anéis da serpente. Nesta febre das foguei­ras, dos balões, do palanque inacessível, o quarto submerge num caldeirão. Se de repente, ela... Que febre essa que tu tens, é por mim? Me deixa ver teu pulso. Põe tua cabeça bem em cima do meu umbigo, que passa.
Desarma a rede, rede debaixo do braço, tamanha hora da noite para a travessa do Curro. Ou no rumo do seu Pe­dro Chaminé?
— Menino! Mas, menino! Estás pegando fogo, cria­tura!
[228] Levado pela D. Dudu ao quartinho aqui atrás, aqui atrás tomando um chá, mormaço escuro, igapó fumegante.
Dias sem se dar conta, no quarto, a todo instante morre ou salta para a rua, entra na barraca de Roberta, caindo aos pés dela. Já não sabe do mundo, lá fora os ruídos de um uni­verso perdido. Passa o bonde, a carroça, por certo a man­do de Luciana, o rabecão da Santa Casa apanhando os defun­tos do bairro, O búfalo do Dr. Edmundo lhe traz Andreza morta. O cata-vento range, o cata-vento range, o cata-vento na cocheira dos zebus. Nesta porta-e-janela esburacada, a centopeia pelo soalho, goteiras, as paredes suando, escor­re chuva pelo punho da rede, oh, aquele apito do curtume! Vem a velha parteira, só de camisa, a lamparina na mão, o cabelo solto, curva, encovada, falando fanhoso: Deixa te re­zar na cabeça. Aonde andam as duas netas? Vai beijar a mão da avó parteira e se encolhe, crispado. A lamparina espicha a língua do fuligem, tisnando a parede. Febre com o gosto dessa aflição da avó morrendo atrás das netas, des­ses trapos, cacarecos, fumaças, murrão de lamparina, a som­bra da louca, a mãe da Nini, no quintal de lama podre. Um visgo em que se queima, lento, e se precipita na rede funda daquele irmão lá da saleta do chalé, morto como ele, não por Irene mas pela donzela do palanque, a que o Boi comeu. Lá fora é verde, o capinzal defronte, os zebus ruminando ao pé do cata-vento e suas donas, aquelas duas do colégio das freiras, bem grávidas, na janela. Roberta a caminho da fá­brica ou debaixo do araçazeiro? Aqui dentro o cata-vento não é senão a febre girando, moendo o Ginásio, o chalé, o Não-Se-Assuste... Dezoito anos? Vamos queimar a flâmula, seu Ribeiro, vamos multiplicar essa contrariedade, Zema­tias, apodrecer dessa ferida, seu Filemon. Aqui só fede a mofo. Zuzu flutua na sombra, com a sua melhor laca, pe­luda na sombra. Dolores e o tio enrolados na pele da jibóia, puxam a maré pra cima desta febre. Passa aí fora, Antonie­ta, e sopra na janela.
[229] Dói-lhe o osso, os escrotos, o sonho, o cata-vento mói aqui dentro, zumbindo. Um boi urrando? O Estrela Dalva? Pedro Chaminé raspa o resto da maniçoba na queimação do Boi e o Amo com a Fada debaixo do araçazeiro. É um boi urrando, sim, um zebu desmergulha do valão e entra pela
D. Brasiliana adentro. Devagarinho vem a vila, o chalé, o velho curral das vacas, Maninha guardando os pintinhos no oratânio, Andreza com a sanguessuga na coxa, e a mãe no campo entre os bacuraus naquele caminho da pixuneira em flor. Lobo um travesseiro na cama. Leontina, afilhada do Major, vinha ao chalé, gostando de brincar com o menino na cama. A mãe acudia: Andem que o vinho de tucumã já está na mesa. E ia para o Major ao pé do prelinho: Essa sua afilhada... Deus o livre. Só é inocente quando dorme.
Aquele vinho, um sangue tucumã, põe mais farinha e mel, o melado grosso escorrendo do pote. A guria se dava como uma patinha n’água, era aflitivo, o nariz nos cabe­los dela que se derramavam, anelados, plumagem escura. A patinha naquela maré enchendo, as fitas do vestido se mexiam como mururés na correnteza. Dela o sempre cheirume, no travesseiro, cheirume de quem acorda suada com a chuva no zinco e com os cupuaçus abertos no alguidar. A mãe:
— Já, já daí. Só não duvidar, um dia esse travesseiro acaba tendo filho.
Esta rede, nesta febre, coleia pelas sombras, O rosto de Leontina é o da Roberta no galho da mangueira espiando o esconderijo da moura e a moura com o frasco de loção aber­to entre os peitos suados: te capo, pirralho. O cata-vento geme. Nem Ana? As duas netas botaram o pé no mundo? Nini chega da Chapéus, de uniforme, choramingando, órfã cada vez mais. D. Dudu entra e sai num ar de tão ocupada, como se festejasse a febre do rapaz e a desaparição das so­brinhas. Te tenho na mão, diz o olhar dela, que dizia eu das duas? Não foi? A velha parteira vagueia pela casa, dobrada e sem voz, saindo a um chamado.
Aqui no atoleiro fervendo, no visgo deste delírio, ouve lá fora, na calçada, as pequenas da fábrica e do curtume. [230] Trabalham. Pitiando a borracha e o couro. Trabalham. No curtume, atoladas nos tanques. Trabalham. Sabina revira os couros verdes, trabalha e vai, de fita na testa larga, esgule­par na Dois de Junho. E neste tanque quem me remexe este couro, quem me sacode esta inércia? Visões inundam o tra­vesseiro, a Fada escanchada na cabeça do Boi, o choco da Maria Igarapé, o bucheiro daquelas onde toca e cochila o Sa­tiro com a Pulunga dando-lhe chá, cobrindo-lhe com folha de arruda o buraco da testa.
— Ei, mea gente desta casa!
Levanta meio corpo da rede e já no quarto: Ei, mea gente desta casa!, de repente, numa aragem:
— Mas então? Já morreu?
Nem tomou bença, olhando para ela como se fosse pega­do em extrema culpa, tivesse perdido toda vergonha, não merecesse aquela visita. De novo o som da moringa. De novo a voz de Areinha. De novo, à boca do toldo, neste mau tempo, o rosto escuro, belo como o acará-pixuna. Vinha dos seus desmaios no campo, das caminhadas pela beira-rio, de :sua janela olhando o ingazeiro, para colher do soalho a pon­ta deste lençol e tocando, de leve, o punho da rede: Mas tu nem mais febre tens? A mão, pela testa do filho, sábia e sossegada. Às perguntas que ela lhe fazia, mantinha-se cala­do, ou não, sim, sim, não, confuso, escondendo a febre, como se tirasse de dentro da rede e depositasse aos pés dela o bilhete a lápis, aquela noite do Satiro e da Pulunga, o Gi­násio perdido. Sentou-se na rede para dizer que... Tinha de partir para o sul. Largar Belém, seguir para o Rio ou em busca do tio Sebastião entre as tribos e os balatais. En­gole a palavra, deita-se, ouvindo a fala da mãe, fala festeira, voz de Areinha, da família. A mãe, mas nem parece! Intacta, sem um sinal daquelas suas noites, imune ao tem­po e à mão, que no que toca apodrece, do Capitão Edgar. O vestido de florinhas, novo, e seu penteado e suas unhas, o sapato, seus movimentos... Não muda, ou melhor, se apu­ra. Agora mãe e filho atravessam o mau tempo, ficam os [231] dois se enxugando à sombra do miritizal onde o velho avô tira tala para os cestos. Entra a D. Dudu com a cadeira.
— Conforme se pôde, o doente foi assistido. Até que não carecia de vir com tamanha pressa. Uma viagem é uma viagem. O mais arriscoso já passou. Boa travessia, fez? Mas sente, D. Amélia.
D. Dudu mantinha-se à distância, tesa, séria, e seu triunfo: Teu filho fora de perigo. Chegaste atrasada. Numa cortesia, deixa mãe e filho à vontade. D. Amélia sentou-se, esquecendo por alguns instantes o doente para contar da via­gem, tão sem mares a travessia, quem vinha de passageiro, a carga de porcos no barco... Alfredo cortou:
— E o Major? Como vai o Major? — num gracejo brusco, sentado na rede, contendo uma impaciência. A mãe voltou-se, viu-lhe a palidez, o constrangimento, curvou-se sobre ele:
— Agora vai me dizer tudo bem contadinho onde e como me arranjou essa febre na casa alheia. Dando consumi­ção a D. Dudu! Os tantos incômodos! Vá ver... Tens de ir ao médico.
— Consumição, D. Amélia? Era ou não era obrigação de minha parte? A quem mais que a senhora confiou ele? Estou-lhe prestando conta. E me dê licença: pra ele, esta casa não é alheia, não, senhora.
Alfredo se encolhe no fundo da rede, já não sabe se ve­xado ou divertido. D. Amélia alteou a voz, um breve rir meio trocista ferindo o filho.
— Mas então já é um homem, D. Dudu! Ou partiosida­de dele para que a boba viesse a toque de caixa de lá de Cachoeira? Traga, por favor, a sua trena da costura e me tire o tamanhão desse mimi, tome as medidas, D. Dudu. Só a ele mesmo se confia. Fazendo é de sua casa hospital, não lhe gabo a sorte, D. Dudu, o que a senhora faz é de coração. não cobra.
— Bem que cobro, D. Amélia, bem que cobro, então que não cobro? Ai de mim se não cobrasse. Não costuro fiado. [232] Fiado é com a mamãe, à volta com os partos e benzições. e com as duas cachorras, a sina é dela. Eu, não. De onde vinha a farinha? E a senhora pensa que o seu filho não andou fazendo bem das dele nesta cidade? Deixe está que devagarinho vou-lhe dando parte dele, na presença dele pra que me desminta.
— Pois me conte, D. Dudu. Desenrole o seu novelo, que eu ando um pouco seca pra saber os mistérios, um pouco crua desse cavalheiro. Ele tão nesta cidade e euzinha lá no pé do meu poço. Me conte. Um homão adoecendo sem mais nem menos! Foi quarenta graus de febre ou nem um grau de juízo?
— Pra mim, ele nessa rede, com aquela tamanha febro­na... ver um menino.
D. Dudu falou como se não admitisse contestação, dan­do o preço de seu desvelo.
— Febrona? Agora então no que chego eu, ele engole a febre? Não é duvidando da sua palavra, D. Dudu. É que essa gente nessa idade o que sabe é fazer dum estrepinho no pé um Deus-nos-acuda.
— Ele bem que variou... Falava sem ligar coisa com coisa. Esteve feio.
— Falei? — acode Alfredo e logo se encolhe, vexado daquela situação, com receio de levantar-se e dar um grito com as duas.
— Ou fez foi pregar susto na senhora, D. Dudu? Resta saber o que ele andou soltando debaixo dos quarenta graus. Qual, D. Dudu! Menino! E por que me mandou dizer tão tarde, Alfredo? Teu pai está bem, sim. Anda é com umas coceiras. Aquilo é mais dos catálogos — todo dia, todo dia!
— da tinta do prelinho, do caruncho da Intendência. E tei­mando que é ácido úrico. E tu, meu fino, tens tosse, deixa ver teu olho, me deixa ver tua língua, tens fastio? Então, menino, não, D. Dudu? O biguane! Menino!
Alfredo já entende. Debaixo daquela troça, daquele pouco caso, a mãe arrolha os seus ocultos e põe o filho em [233] brios. Seu olhar, de vez em quando cauteloso, procura-o com uma certa malícia, como se lhe dissesse: Bem que te conheço. Ou empenhada em surpreender no filho o homem que dali saía? Quem sabe não teme perder para a D. Dudu aquela atribuição de conhecer o filho mais que ninguém? Tanto tempo longe dele e ele com a D. Dudu tão junto.
— Olha, desta vez te trouxe... Adivinha! Adivinha!
O filho não adivinha.
— Mas roubado, viu? Bem roubado...
O filho não entende.
— O Dicionário de Latim, rapaz! Que era que eu mais podia roubar do teu pai? Tanto que mandavas me pedir.
Alfredo se arrepiou. Nada mais lhe resta senão se le­vantar da febre e partir, embarcar. Subir aquela escada do Liceu nunca mais. Mas como dizer-lhe? Não dizia o tio que eIa no chalé só via era o filho entrando e saindo, toda manha no Ginásio? Era arrancar da mãe a última confian­ça. Vai, quem sabe, romper o último laço que a prende ao chalé e entregá-la inteiramente ao seu demônio.
D. Dudu vem com o café.
— Pois muito bem, D. Dudu, deu a mão à palmatória, já que consumição não foi, foi gosto, lhe agradecer não lhe agradeço. O doentinho é seu. Serve de pago. Fique com essa prenda. Empregue ele para abrir vala no quintal, tirar goteira, embarrear buraco de parede, capinar na frente de casa e acompanhar a D. Santa pelos partos com um farol na mão... Fique com essa prenda.
D. Dudu, mãos na ilharga, cabeça lá em cima, olhan­do de cima, ganhou intimidade:
— Tudo passado no papel? Selado?
— Selado e sacramentado. Uai, D. Dudu, não lhe disse que é seu? Pois carregue o peso.
— Não apoiado, D. Amélia, o seu filho, o mister dele...
— Mas o Dicionário? Aí na mala? Ou está brincando? — cortou Alfredo.
[234] — Querias que eu carregasse ele no colo toda a viagem? Ou num aturá na costa?
Tão confiante! Nada lhe pergunta sobre o Ginásio, se­gura do caminho dele, trazendo-lhe o Dicionário, escondido.
D. Dudu coloca-se de parte, já sem contestar mais nada. E de repente:
— Hora do teu chá, aquele-menino! Espera...
— Não, D. Dudu. Deixe que mamãe...
— Tua mãe aqui é só visita, rapaz. Não te dei alta.
D. Dudu retirou-se, apressada. A mãe só fez foi sorrir, abriu o baú e tirou o Dicionário. Roubadinho, hein? Hein?
O Dicionário grande, o patriarca da estante, o pé de meia da ilustração do pai. Roubado. Nos braços estendidos, como um cofre repleto. No instante em que se curva sobre a rede
— Mamãe, perdi o Ginásio —, range a rede na escápula, passa o bonde, o Curro, arrastando-se para o fim da linha, move-se o cata-vento, entra a D. Dudu com a tigela de chá. Agora com o livro na mão, pesado, como se a vergasse um pouco, D. Amélia encara o filho que toma o chá, franze a testa, fica olhando o livro como se lhe tivessem proposto um enigma ou aguardasse a D. Dudu sair do quarto. Que ele devolve a tigela à D. Dudu, toma, entrega-lhe o volume e se escora no esteio que separa o quarto da sala. Alfredo sus­tenta no braço o cofre já vazio.
— E essa febre? Quantos dias?
Alfredo não responde, alisando a capa vermelha, o Di­cionário cheira um pouco a cânfora. A mãe volta ao baú e vem com um embrulho:
— Também te trouxe isto, um morim espora tirado lá no turco, te fiz um lençol. Marquei tua letra. D. Dudu pre­cisou chamar médico? Fez conta na farmácia? Teu tio pas­sou por aqui, te adiantou algum dinheiro? É certo que estás ensinando? Mas, meu filho... Febre, que seja febre, não tens mais. E é só febre? Foi? Me fala verdade.
— Perdido. Perdido.
[235] E quer com isso, obscuramente, culpar a mãe, vendo-a solta no campo, desfalecida no caminho do gado, levada ao chalé pelo bandido, e todo o silêncio dela (Fale, mãe, fale a sua verdade), do pai, de todo o chalé... Também mede com isso a própria culpa, é certo ou só agora acorda de seu descaminho. A mãe desembrulha o lençol sem pressa, cui­dadosa em guardar o papel de embrulho acetinado e o cor­dão:
— Teu pai sempre diz: vintém poupado... Sempre aque­le teu pai. — Subitamente Alfredo vê nos olhos dela o pri­meiro filho afogado. Mariinha morrendo... Quer pegar-lhe a mão, vira-se, sacode a varanda da rede contra as moscas, torna a sentar, a mãe desdobra o lençol.
— Quando recebi o recado, eu estava no pé do poço, puxando água. Lá no jirau dela a Isabel era escamando pei­xe, O recado veio com o filho da Marcelina que passava do trapiche. Depressa dei um pulo na ponte atrás de qualquer passagem, fosse lá no que fosse que descesse. Larga-não-lar­ga, estava a Boa-Esperança, carregada de porcos. Tenha paciência... como é sua graça? Ah, seu Fileto. Seu Fileto, não desatraque antes que eu ponha o meu pé no seu convés. Até que quem me ajudou a passar a ferro foi a Isabel. Coi­tada, me carregou o baú até o trapiche e ainda queria te man­dar uns tamautás salgados... Deus me livre! E olha que de me assustar não sou.
Baixa a voz, confidente, e Alfredo sabe que ela quer dizer outra coisa, fazê-lo confessar tudo, essa delicadeza da mãe o exaspera. Ela desdobra o lençol sobre a rede, cobrin­do o filho com aquele cheiro de roupa lavada de chalé, lim­pezas da mãe, a mão de Isabel, a escamadeira de peixe no jirau. Debaixo do lençol, choro e ímpeto de sair porta afora, reprimia, O Dicionário pesa-lhe nas pernas como um grilhão.
— Pra te falar a verdade, nem me lembrei de dizer à Isabel que aquecesse a janta do seu Alberto. Mas que aque­ceu, aqueceu, aposto. Ou eu disse a ela? Seu Alberto: vá ver, não é nada. Ele já pegou sarampo? A Isabel: deixe [236] estar, D. Amélia, que hoje mesmo acendo uma cera em ten­ção de São Expedito da finada Lucíola. Na Bahia ficamos foi de bubia, bote... Valha-me Deus, que caíazinho um vento... Rodolfo, esse, a gritar da beirada, me fazendo uma encomenda (coitado, sempre esperando ocasião de ter um papel pra imprimir o jornal que compõe e desmancha, desmancha e compõe) e a Benedita, essa: Madrinha, me tra­ga um par de brinco que aqui lhe pago. E Mercedes me pe­dindo que eu não deixasse de ver a sobrinha dela lá no Orfanato. Ah! Eu com que cabeça?
Senta-se, como aliviada, cruza os braços:
— Mas então, essa tua febre, de que, de onde?
Levanta-se: morreu? Vai à janela: de um moinho de vento como esse é do que estou precisada no chalé, volve ao quarto, recolhe o lençol, dobra-o com aquela habilidade que o filho tão bem conhecia, O filho, estirado na rede com o Dicionário nas pernas, bate as moscas da tarde quente.
Entram dois senhores com a D. Santa nos braços, encon­trada caída na estrada do tina. Juntou gente na calçada, já invadindo a casa. Alfredo desarmou a rede, fugiu para o quartinho dos fundos. Não demorou, Dalila e Ana chega­vam. Entrou seu Pedro Chaminé. D. Amélia apanhou o bonde em busca do médico. A casa encheu. Pouco antes do Utinga apitar as nove, a velha parteira expirou.
Alfredo saiu do quartinho para a sala onde já não cabia mais ninguém. Disputando a única janela, aqueles rostos da rua, o rosto do Una, do São João do Bruno, do Valha-me-Deus, e em todos o barro dos Lobos. Outras cabeças atrás se comprimiam. No quarto cheio, já preparada, a defunta na esteira. Alfredo descobriu-lhe o rosto à luz das velas: só pele e osso, múmia tapuia em que se via ainda a pacífica obriga­ção de servir ao próximo e a obstinada busca das duas netas. Ana está de joelhos, suando, inclinada sobre a avó, uns olhos. vorazes, o beiço insolente. Escorando-se na parede. Da­lila ainda apalermada. Veio D. Amélia:
[237] — Alfredo, sai deste abafado. Isto aqui bem não te faz.
O quarto fedia a remédios; ardia ao canto um fogarei­ro de barro. Coberto por um pano o espelho da parede. No oratório, os santos espiavam. Alfredo correu os olhos pela sala. Trepada no banco, Nini pendurava o candeeiro gran­de do vizinho no prego do esteio.
Cumprimentou a mãe de Roberta. E eu, como nunca tivesse febre nem nada? Chegou o caixão, estabeleceu-se o velório, vieram cadeiras e bancos da vizinhança. Alfredo preparou os dois castiçais. D. Amélia trouxe o crucifixo e Bina, a feia, num vestido bem colado, pastosa de talco e suor, entrou com uma braçada de angélicas. D. Amélia pediu que evacuassem o quarto onde armou a rede para a D. Dudu que preferia o quintal, preferia ficar no tempo.
— Ou entregar a ossada pras cachorras.
— Não, D. Dudu, agora eu. É a minha vez. Deixe por minha conta. Descansezinho um pouco.
No quarto, sentada na rede, dura, calada, D. Dudu pa­recia alheia a tudo, como se a presença das duas sobrinhas a tomasse insensível à morte da mãe. Ou a morte da mãe, para seu maior triunfo, consumava a profecia? Seu pé de meia pagava os funerais, as cuecas do Bon Marché pagavam. A Santa Casa aqui não pára a carroça. O rabecão leva eu sei quem... Obra de Deus esse tombo no Una, esse fim mais cedo, a vê-la pelo escuro e debaixo de chuva atrás das duas vagabundas.
Mais mães entravam com seus filhos pela mão e no colo, algumas sentavam-se no chão do corredor para o resto da noite. Outras iam à cozinha preparar mamadeiras ou ofere­cer-se para um serviço. A criançada principiava a correr e a chorar pela casa toda, derramando-se pelo quintal.
— Sai daí dessa lama, meu filho! Seu demoninho, sai da lama! — gritavam. Alfredo via a velha parteira cercada de mães. curumins chorando e correndo, ninhadas que pegou. Bem que merecia aquelas vozes, era como se estivesse [238] escutan­|do, melhor que entre os anjos. Alfredo ia na sala, ia na cozinha, entrava no quarto, passando a mão no queixo, diabo desta penugem no queixo, viu-se cabeludo, saindo daquela fornalha que nem caldereiro. Varou a cerca, foi ao vizinho, seu amigo Oscar o levou ao banheiro; a tina, cheia, que entornava. Oscar lhe deu a chaleira quente:
— Pra quebrar a friagem. Tira esse limo. Essa graxa da febre, essa sarna da Roberta.
— Água de poço por que trava? Quando vamos ao avi­so do teu pai?
— Fosse do meu pai, fazia ele navegar para Paramaribo, carregar seda. Toma o sabonete.
Ah, banho! Lhe restituía o alvoroço de viver, tirava a flechada do peito. Isto lhe dava o preço do mundo, do que tinha a fazer. Varou a cerca, chegou ao quartinho escuro, dá com a Dalila a um canto atrás duns panos na corda, nua-nua se passando cheiro. De toalha passada no corpo se aproxima dela, cochichando:
— O pajé te dava banho quando soubeste?
Lá fora a voz do seu Bahiano:
— O charão às ordens. Às ordens! Pra servir o café, às ordens!
Às duas primeiras palavras quase festivas, seguiu-se um pesame de voz lenta no silêncio da sala em que o charão fa­zia brilhar a sua prata.
— Ah, D. Santa! Inda ontem rezou na cabeça da mea patroa. Toda vez que lá passava, me abençoava. Abençoadei­ra que só ela.
— Também de lá nos abençoa. Nos abençoa a nós to­dos — atalhou a senhora que fazia assoar o filho, dava pal­mada no outro por querer este por força ficar com o charão. Um estivador entregou a D. Amélia um embrulho de café. De paletó e guarda-chuva, vindo da União Espírita, entra o seu Ribeiro alisando a careca:
— Na porta de casa soube do desencarne. Ela? Mais um espírito de luz, lá em cima, por nós. Mais do que fez nesta [239] nossa tão curta passagem pela terra, no além ela fará e eternamente.
Limpou os óculos:
— Esta vidinha material! Esta vidinha material! — e puxou pela manga de Alfredo, agora num cochicho:
— Mudou-se de lá? Doente? Temos, domingo, uma ex­cursãozinha a Marituba.
— Boa noite, D. Brasiliana.
Aquele perfume na sala só uma pessoa podia usar no bairro: D. Brasiliana, de lamê preto, o penteado alto, uns graúdos brincos verdes. Indagou de Nini:
— O enterro?
E no ouvido da moça:
— Qualquer coisa, às ordens. Às ordens.
E alto para toda a sala:
Às ordens. Não façam cerimônia.
— Não é preciso, não é preciso — exclamou Nini tão ofendida, lhe tremia o beiço. — Não é preciso. — Tremia o beiço, a voz tremia.
— Às ordens. D. Santa, o bem que fez! Morreu acudin­do gente. A quem se não deu a mão nestes buracos? Era o socorro em pessoa. A rezadeira que era! A falta que vai fazer nesta nossa carecência de tudo...
As mães se acotovelavam com desagrado e impaciência: Essa intrusa. Ali mães pariam, assistidas pela velha e ago­ra, de lamê e penteado de gala, intrometia-se a manina do contrabando a falar em nome delas, a abrir subscrição para o enterro e debaixo daquela perfumaria como se viesse da Primeiro de Março... D. Brasiliana, indiferente ao olhar das mulheres, ficou junto do caixão, muito formalizada. Ao des­pedir-se de Nini, então fez que deu com a presença de Al­fredo, armando um pasmo:
— Assim tão pálido? Que foi?
As mulheres seguiam os mínimos movimentos da taber­neira. D. Amélia até assustou-se com aquela crioula no trin­que que lhe estendia a mão, respeitosa:
[240] — Conheço já a senhora de vista, sim. Mas ele? Andou doente? Tão pálido!
D. Amélia só fez sim, sem sorrir, com boa maneira, pedindo licença, chamavam ela da cozinha.
— Às suas ordens, lá na nossa quitanda, minha senhora.
D. Amélia piscou para Dalila que viera espiar a sala. A moura tirou de dentro do peitilho o leque negro de pontas douradas, abanou-se agitando a luz das velas, o que mais danou as mulheres, e com o leque, séria, tocou no Alfredo que tentava evitá-la.
— Pode me levar, não for incômodo até a parada, sim?
Saiu debaixo de todo o olhar do velório, como se saísse de um baile, rompendo caminho no sereno apinhado. Alfre­do acompanhou-a em silêncio, pouco atrás dela, não troca­ram palavra. O bonde por sorte não demorou.
Voltando à sala, o primeiro olhar sobre ele era de Ana como se lhe dissesse: Mas nem diante do cadáver? E engros­sou o beiço, engoliu o cuspo, à cabeceira da avó, olhando as ceras pingarem nos castiçais. Ainda nem sabes, rapariga, que ela tombou ao teu peso, por ti, em tua busca, por ti a toda hora, e por ti se acabou? Fazedeira de velório dos outros, faz agora o da tua avó. Alfredo remoía a indagação com uma gana de arrastá-la ao quintal, dizer-lhe tudo, cara a cara ou... As velas a modo que avermelhavam o rosto de Ana, nem um sinal de culpa, medo ou abatimento, seu rosto dominava a sala, projetava a sua luz nas faces da defunta. Alfredo voltou-se, viu, e fez um gesto de incredulidade: A ita­liana? Também a italiana? Sem dar boa noite, de bandós, vagarosa, esquiva, inclinou-se sobre o caixão, rezando. Al­fredo via nela um ressentimento que a levava a rezar assim:
Não esperaste minha vez, velhinha, me farias um grande par­to. Rezou, e sem olhar para ninguém, retirou-se, apressada, como uma dançarina. Alfredo seguiu-a e dela só trouxe um breve gesto quando se voltou no escuro para ele ou por nada sumiu.
[241] Seu Bahiano servia café no charão de prata. A roma­ria se avolumava. Entravam famílias, mães solteiras, a Ma­ria Igarapé, a Pulunga e foi que também entrou, Alfredo reconhecia: A tal Antonieta, a que soprava para dentro das casas, afinou, com seu sopro, a flauta do Satiro, aquela tal, neste instante se debruça sobre o caixão, chorando. Blusa lilás, saia branca, o cabelo à Nazareno, a chinelinha amare­la. Chorando. Seu Ribeiro limpava relimpava os óculos na manga do paletó. Diante do crucifixo, a mulher se ben­zeu, o rosto molhado, murmurou à Nini: Meus pêsames, saiu como acossada, seguindo-se o repentino boa noite alto, do seu Ribeiro a tropeçar no batente, amparado pelos estivado­res que guardavam a porta, Cristo vos lhe pague! Cristo vos lhe pague! E a que horas o enterro? Lá se foi atrás. Com seus jasmins e suas parceiras, entrava Esméia. Tentavam va­rar o aperto em torno do caixão. Roberta? Nem no sereno. A mãe dela se aproximou:
— Ela que me pegou a Roberta. E também o outrozi­nho. E olhe, seu Alfredo, chegou a ocasião, tenho um assun­tinho a lhe falar.
Alfredo, fugia-lhe o sangue, quis levá-la para o sereno, agora impossível de atravessar com tanta gente.
— Não, não, aqui, aqui mesmo, Roberta lhe falou não?
— Tempo que não vejo Roberta, D. Domingas.
D. Domingas se esticou para falar-lhe ao ouvido:
— Pois o assunto é o de me dar umas aulinhas em casa, de noite, pro meu filho, o Raimundo, que me anda tão ruei­ro! Pode? De noite? Me ceda duas das suas noites, é o bastante. Pagar justo, vou já lhe desenganando, lhe pago, não. Mas lhe pago no que for do meu alcance. Pensa que não sei que quem desemburrouzinho o irmão daquela semelhante ín­dia da jaqueira foi o senhor? Sim, aquela que usa a folha de bananeira feito tanga. Agora é a minha vez. Roberta, na fábrica, botou de vez a pedra em cima de livro. Agora, de noite, aprende violino. O senhor pode?
— Não, D. Domingas. Vou embarcar.
[242] — Ali, embarque, não... Roberta, é o que diz sempre, que o senhor é um professorzinho e tanto.
Um professorzinho e tanto! Violino! Aprendendo violi­no! À noite! Um professorzinho e tanto! As crianças cho­ravam, faziam pixixi pelo soalho. Todos suavam. A janela carregava aqueles rostos de fora, pesados, parados, amarelos. Seu Bahiano trazia da cozinha o charão cheio, agora à janela, servindo o sereno. Dentro, na rua, na calçada, naquela aglomeração, Alfredo descobria o Satiro com a caixa de flauta, o seu Quintino Profeta, o Pedro Chaminé, a Catirina, toda a tropa do Estrela Dalva, caras do Não-Se-Assuste, e maridos e companheiros, pessoal de oficina, carrinho de bucho e esti­va. Será que daí sai tacacá, sai cariru, sai dominó e roda de bisca no sereno? Sabina, a do curtume, afobada, sem nem olhar a defunta, varou o corredor para tomar a bença da
D. Amélia na cozinha repleta e fumacenta. Ali ficou, aju­dando a lavar as xícaras e toca a perguntar sobre Cachoeira. Olhe, madrinha Amélia, seu filho, uma vez, pois não foi que me ofereceu uma rosa? Eu ia a caminho do curtume e quan­do vi seu filho me fazendo presente de uma rosa. Alfredo no corredor: A professora. D. Nivalda acompanhada de duas alunas.
Por obséquio, faça ciente à família para me descul­par... pois não poderia passar a noite. Pudesse, passaria. Mas já rezei meus sete terços. Meus sete terços. E o senhor? E o senhor? Nem para me mandar dizer! Por quê? Os seus alu­nos tão ansiosos...
A morte da velha parteira foi o pretexto para vê-lo, via-se nos atrapalhados olhos dela, na canseira, no tremor das mãos. Com pouco retirou-se, já arrependida de ter vindo, depressa, meninas! Depressa que está trovejando e ia ficar só, como sempre, na velha casa, ao peso do seu comandante e suas viagens.
Pelo braço do marido que capengava e trazia um em­brulho, entrou a custo uma senhora grávida.
[243] — Que será de mim, de mim que estou em véspera do quarto e sempre contei com ela?
Espremeu-se na sala à cunha, roçou a barriga alta na tampa do caixão como se isso lhe desse sorte.
— Entrega o açúcar, meu filho... Como está de flor, não? — virou-se, já incorporada às outras que iam fiando e desfiando seus velhos assuntos, já íntimas daquela morte.
— O bonde parou defronte! — exclamou a Esméia apa­rando os jasmins que lhe caíam do cabelo e todo o velório se voltou para o bonde parado, bem defronte. Saltou o motor­neiro com a chave na mão, entrou. A linha do bonde queria custear o enterro.
— Os meus três filhos? Os dois da minha cunhada? Os cinco de minha irmã? Tudo berrando na mão dela. Na mão dela. Sem falar dos meus colegas.
Ana, que acendia outro castiçal, bruscamente fugiu num choro surdo. Passou pela porta do quarto onde estava a tia e Alfredo viu a costureira levantar-se, metendo o pé na chinela.
— Quer café, D. Dudu? Café no charão de prata?
D. Dudu empertigou-se, o rosto seco, lívido, sorriso lívi­do, sentando-se; Alfredo deu um embalo à rede que pesava.
D. Amélia se chegou para o filho:
— Não abuse do sereno, olhe... Fique aí conver­sando com a D. Dudu. O seu Bahiano, entre aqui com o seu charão.
Incessante mãe, guardando seus tormentos, dona da casa alheia, a trazer do quintal a Ana, a fazê-la sentar ao pé do fogão, a passar-lhe a mão no cabelo. A ordem que dava ao velório!
Seu Bahiano continuava a servir café no seu charão de prata e assim foi até horas altas quando, com receio de D. Amélia, se meteu na roda aqui fora, do Quintino Profeta, bebeu enfim a sua talagada.
Dois dias depois do enterro, o embarque da mãe no Ver-­o-Peso. Fique com estes duzentos mil réis e veja lá o que é [244] que vai   bem, a cabeça não é minha, é sua. E a carta pro seu pai? Escreva, Só o que disse a mãe no instante em que Alfredo lhe tomava a bença. O filho a sete chaves, sem uma palavra, uma razão. Ia embora a mãe para as noites do cha­lé. A canoa ganhou o largo, dobrou a vela e tudo ao pé do Necrotério ficou vazio, irremediável.
Sacudia as sete chaves caminhando para o Curro.
D. Dudu, no quarto, cosia o seu luto e o rancor contra as duas sobrinhas. Estas pelo bairro, espalhadas, com o fan­tasma da avó atrás.
Ia vender o Dicionário de Latim, cobrar os atrasados da escola e partir. O professor de geografia lhe falara de sua amizade com um comissário de bordo, o do Duque de Canas, que voltava de Manaus. Fácil encontrar o lente na terrasse do Grande Hotel tomando gim.
Subiu na Brasiliana. A moura saia do banho. Os pom­bos arrulhavam no telhado. Os tajás na janela exalavam a sua magia. Menino! Mas menino!
Ela agora insistia: Espera só um pouco que embarcamos juntos. Só um mês e embarcamos. Vai comigo. Estou caladinha me preparando pra voar de uma vez deste galinheiro, de Belém, deste pé de vala. A vala é cavando debaixo da taberna cada vez mais fundo. Um dia é tudinho abaixo, poço adentro. Embarcamos para a Guiana. Estou só à espera do Cassiporé. Vem comigo que te abro os caminhos. Me farás companhia, e te dou o estudo, esta garupa, até que me abandones... Espera, espera que inda te quero dizer mais...
Ia vender o Dicionário. Passou pela casa do Ribeiro que lia o livro sobre Messalina. Na cadeira de vime. O Sagrado Coração de Jesus na parede, o Allan Kardec no banquinho:
— Cidadão! Cidadão! Esgotada mas não saciada! Cida­dão! Ah, Roma! Ah, Roma!
Ribeiro trazia no rosto o sopro da Antonieta.
Entrou em casa, andou pela cozinha, bebeu um café frio. Nini acudia: Estalo já-já dois ovos, sim? Bateram palmas.
[245] — Professor, pro senhor falar com ela lá no canto da travessa do Curro.
Ao aproximar-se do ponto, foi esmorecendo, quis fugir. Vendo a esquina deserta, afoita-se pela São João. Noutro lado, em companhia da prima... Noutro lado. De vestido branco, de sapato branco. Noutro lado.
Fingia não vê-las. As duas vieram vindo pela quadra, atravessaram a rua. Param na esquina. Alfredo passa rápido, o cordão do sapato desmancha-se. Diabo!
— Rico? Já nem conhece os pobres... — falou a prima.
— Ah, não repare... Passeando?
Amarrou o sapato, emparelhou-se com a prima que se distanciou da companheira.
— Tinha mas era gente no enterro, não?
Atrás, a outra desatava a fita do cabelo, parou, de cos­tas dobrando a fita.
— Um enterro tão bonito...
— Sua prima que me mandou chamar?
A moça fez sim com a cabeça e se esquivou, correu, es­corando-se no muro da horta. Roberta, atrás, ata e desata a fita, eivém vagarosa.
— Me mandou chamar?
— Eu? Quando? Eu? Foste tu, Geralda?
Geralda riscava o muro com a ponta da sombrinha sem dar resposta.
— Não foi seu o recado? — indagou Alfredo, muito ca­valheiro, fazendo cerimônia.
— Mas que não foi, que eu me lembre... Eu?
— Então desculpe, boa noite.
— Desculpado, boa noite. Amanhã devolvo seus papéis.
— Pode queimar, queime, jogue no fogo.
— Jogando no fogo enfeia sua letra, eu, não.
— Enterre no quintal.
— Olhe que grela um pé de urtiga...
— Enfeite o Boi com ela.
— Quando é o embarque?
[246] — Adivinhando?
— Mamãe que deu com a língua. Adoeceu que adoeceu mesmo? Não soube, senão lhe mandava o meu médico.
— O Pedro Chaminé, o Pai Francisco?
— Não uso. Que que não posso lhe mandar um médico?
— Bom não ter mandado. Senão era o meu aquele enterro.
— Quem me dera eu dispor da morte... Então sou eu quem manda a morte? Fale sério, adoeceu mesmo?
— Não. Mas vou embora.
— Não antes de ensinar meu irmão, só umas noites. De. pois, sim, me apresente a conta e corra que o navio está lar­gando. Mamãe, eu sei, que lhe falou.
Alfredo não respondeu.
— Até eu se quisesse... se ainda quisesse, até eu... ficava de aluna. Só de aluna. Mais, não.
— Não estou lhe pedindo nem menos nem mais.
— E eu? Se quiser ensinar meu irmão, ensina, está na sua vontade, o saber é seu, ninguém lhe tira à força. Sim, que pagar nós pagamos. Para isso estou na fábrica. Faço serão. Suplicar não suplico. Suplicar? Eu? Vem, Geralda!
— Era esse o assunto?
— Que outro mais, então? Eras! Era outro assunto, Ge­ralda? Geralda!
Geralda, ao pé do muro, cantarolava:
Vou-me embora, vou-me embora
Mineiro pau... Mineiro pau...
Na segunda para a terça
Mineiro pau... Mineiro pau...
— Que é que tem essa tua fita, que põe e tira, tira e põe...
— Os incomodados... Com ela trago a morte amarrada. Não sou eu quem manda na morte?
[247] — Bem, já está tarde. Pode o Boi nos pegar conver­sando...
— O Boi! O Boi! Quem aqui falou em Boi? A morte é o Boi?
— O Boi é o Boi. O diabo te livre da chifrada do Boi.
— Não aprovou, professor?
— Quem sou eu para aprovar ou desaprovar. Não foi a Fada?
— Quem que está lhe pedindo opinião? És tu, aí, Ge­ralda?
Deu as costas, passou a fita pela cintura, jogando o seu escárnio:
— Então vai deixar Belém... Cada um procura as suas melhoras...
— Assim me consta.
— Que vai ser de suas apaixonadas?
— Cairão todas no poço.
— A primeira que se atira é a professora...
— Assim espero.
— Deixe está que pingo um veneno no chá da desconsolada.
— Deixo-lhe uma procuração. Ou basta que você cuspa no chá?
— Ou sua viagem é alizinho onde tem uma jaqueira, onde tem uma Eva, onde... Ou sentou praça? Espere um pouco, com licença.
Correu para a Geralda, cochichou-lhe, e voltou como aborrecida, abrindo a boca com sono.
— Ah, e os meus garranchos, queimou? Os meus erros de ortografia?
— Bem, vou embora.
— Se não diz pra onde, é que não vai pra parte alguma. Vai o que...
Fez muxoxo:
— Por mim... que que tenho com a sua viagem, se vai não vai, fica não fica. . . Geralda!
[248] Sapato branco, vestido branco, descida do palanque. Laçava o pescoço com a fita sem sossego. Olhava sempre para o outro lado. Era outra a voz? De quem atra­vessou a fábrica, os bailes do Reduto, o Boi, o som do violi­no. A prima, escorada no muro:
Vou-me embora, vou-me embora
Mineiro pau... Mineiro pau...
— Geralda, vem cá, sua mineiro pau... Tão ruim não ter tido serão hoje...
Deu uma volta, veio vindo:
— E olhe aqui, se alguém lhe mandou chamar, está uma aqui que não foi. Se julga que fui eu, come coco.
Caiu-lhe a fita da mão, Alfredo apanhou-a.
— Me dê a fita que senão não amarro a morte...
— Amarre, tome... Sem mais adeus, sustente o diadema.
— Agora-agora que vai embora?
— Agora.
— Ali pra a garapeira? Pra sua rede? Por causa do sereno?
— Indague de sua varinha... Ou tudo acabou no pa­lanque?
— Hein?
— Debaixo do araçazeiro?
— Me diga quando, que eu e a Geralda, não é, Ge­ralda?, vamos nós duas ao seu embarque. Ah! Já vai...
Cadê teu lenço, Geralda? Adeus, professor Alfredo...
— Ai, que não sou merecedente — gracejou Alfredo, abrindo os braços como para recebê-la, restituída, tirando-lhe o sapato branco, partindo em dois o violino.
— E meu irmão?
— Mas se estou com o pé na prancha?
— Nem uma, nem que fosse uma noite? Que foi que disse? Debaixo do araçazeiro?
[249] — Já tirei passagem. E o seu violino? Já executa?
— Que araçazeiro é esse?
— É que nada mais temos a dizer, não é, Roberta?
Um no lado do outro, parados, debaixo do araçazeiro. A prima correu do muro:
— Já se entenderam?
— Entendemo-nos — disse Alfredo afastando-se, com um aceno, logo dobrou a esquina. Apanha o bonde, encontra o lente encharcado de gim na terrasse do Grande Hotel. O Duque de Caxias voltava de Manaus.
Do Quinze de Agosto, embrenhou-se pelas transversais, viu-se no largo de Santana, de repente no Reduto, tornou ao largo da Pólvora, dobrou a Dr. Moraes, desceu pela Rui Barbosa, parou diante do capinzal no Igarapé das Almas, ali um tempo na boca do escuro-escuro, ou da baía que a mãe atra­vessava, devolvida ao rio, às noites de Cachoeira.
Já pela São João, parou no ponto para sempre perdido.. Aqui é debaixo do araçazeiro.
Acercou-se da barraca fechada. Pelas frestas luz na sali­nha. D. Domingas. D. Domingas tossiu. Com pouco a luz apagou.
Em casa, entrou no quarto, D. Dudu, sentada na rede, mais de pedra parecia.
[250] Terceira vez a campa, lá embaixo o cais, o seu Ribeiro. já miudinho, o Filemon, com a sua ferida, o Zematias doen­te de sono e da contrariedade esquisita. Fazendo-se de muito alegre, o Oscar acenava, quem sabe a repetir: Vou te ver no meu aviso de guerra. No meu aviso de guerra. Bina, descon­fiou que Bina... Era? Se fosse Ana? A campa recolheu-se aqui dentro batendo longamente, esse monstro engoliu-me, os guinchos calaram, lá em cima os salões, a proa implacável. Aqui nasço de novo, um outro hei de ser. Nunca havia entra­do no ventre de uma nave, leu isto, folheando velhos volu­mes do sebo, já não sabia que livro, nunca havia entrado no ventre de uma nave. É a minha pele de jibóia. A cidade é aquela? Em que rumo é o chalé? Separei-me de mim, agora que me precipitei neste bojo. Salta das águas revolvidas a jibóia com o tio dentro. Estamos passando defronte da José Pio? Do estaleiro? Do aviso de guerra para sempre encalhado, onde marujos assinam o ponto, lixam os metais, dormem a sesta, sonhando com um palpite de bicho? Do curtume? Da praia, onde aquela menina queria empre­nhar do rio? Ana, no trapiche, murmurando a praga ou espe­ra o seu boto no camarote de um dos navios mortos no Curro. Esméia debaixo do jasmineiro? A sombra da jaqueira cobre a nudez de Zuzu. Da torre de contrabando, a moura assesta o binóculo. Vamos juntos para a Guiana. Em primeira no Cassiporé... Vamos, até que me abandones... Até que me abandones... Agora é neste silêncio em volta, os rumores do navio se tornam surdos, ou não anda? Verdadeiramente só [251] e capturado. Estamos defronte do Mosqueiro? Agora é ter em conta essas pessoas ainda sob o espanto do embarque e da viagem, ainda não se sentem a bordo, esse-um alto, o rosto comprido, aqui ao pé, sombrio, sossegado. Desce à terceira, engolido subitamente pelo porão, desce como uma carga. Os beliches, uma enfermaria indigente, em tudo um pegadio imundo, as caras subterrâneas. Subiu ansioso, falto de ar e olha para a cidade que não tem mais. A proa devora o rio selvagem e tudo atrás, o Não-Se-Assuste, Boi, Chão dos Lobos, aquela fita no cabelo, fica na mesma sepultura de Luciana. Nem uma palavra à mãe que carregou para o chalé o Liceu perdido, o mistério da febre e da viagem. Aqui na popa, olhando o turbilhão da hélice, como dormir, ou man­ter-se acordado? Lá embaixo é percevejal, aí em cima os salões, os escaleres, a impassível hostilidade de tudo. Vol­tou à terceira. Fedia. Aqui embaixo da escada, ao pé da mesa, junto de malas e sacos, tem um banco. O pardo de rosto comprido, descendente de boliviano, conversa abafado, confuso, e desaparece no forno dos beliches. Aqui é o dormitório dos homens. Ali o das mulheres. Melhor este banco que o beliche. Nele estira-se, arrepiado, ao peso desta insônia. Ou não deixou no cais aquela carga? Ou toda a bagagem comigo é o chalé, a mãe, o pátio do Liceu, a Maria Igarapé deitada no igapó, por travesseiro a serra do Maranguape? Dói a cabeça neste banco duro. Com a cabeça nesta pedra, á Jacob, subo na tua escada? Subiu para a popa, o hélice revolve um breu escumoso. Por toda parte, lá fora, é treva e sono. Nem céu nem margens. E de uma luzinha da canoa ou da palhoça numa ilha vem a D. Dudu na rede, de pedra feita. Ao despe­dir-se dela, escutou: Que tu vais fazer tão de repente e tão longe, menino, mal saído de tamanha febre? Que te deu na cabeça? Te olha no espelho. Estás ainda seco, verde da febre, seco e verde... Andou em busca de Ana pelo bairro, não encontrou senão o Satiro na esquina com a sua flauta, Pulun­ga a dar-lhe o chá e passar-lhe a mão na testa esburacada. Foi jantar no seu Ribeiro, aquela comidinha tão da velha [252] mãe do seu Ribeiro. O amigo lhe abriu um vinho e falou no filho pródigo, na reencarnação, em Messalina e Sodoma. Não olhe para trás. Não olhe para trás. E agora debruçado nesta popa em sal me tornei. Que será depois de Maranhão? O professor de Geografia a bordo falou ao comissário e este muito atencioso: Vamos ver o que se faz, vamos ver o que se faz. Para facilitar, compre uma passagem de terceira até o Maranhão. Até o Maranhão. Depois serão tomadas providências. Vamos ver o que se consegue. Uma passagem para o Maranhão. Vamos ver o que se consegue. E nesta insônia amanhecia, Salinas um fio de areia, a barca do prático se foi, bom será mergulhar nesta espuma, apanhar aquela cida­de pela anca e mergulhá-la neste banho, lavá-la nesta espes­sura. Cospe a tua insônia no mar, que te recebe em pessoa, o que sonhavas, menino, quando enchias o tanque embaixo do chalé, afogando os caroços de tucumã. Lá atrás o chão desfeito, o formigueiro dos rios, agora, largamos. O navio não joga, jogam estes nervos, este ir não sei aonde... Bate a campa, é o café, distribuem-se os canecos, eivém o bule pesa­do, as bolachas duras, agüente-se, o café é uma lavagem de espingarda, recusa; aceita as duas bolachas que o sombrio, sossegado companheiro lhe oferece. Em volta do bule, os mal acordados da terceira estendem os canecos. Os marinheiros lavam o convés como se dançassem, agora é sol, estamos che­gando ao Maranhão.
— Esta passagem só é até o Maranhão. Tem de desem­barcar no Maranhão.
— Fale com o Comissário.
— O Comissário? Que Comissário? Aqui já é São Luís. Tem de desembarcar no Maranhão.
— O Comissário sabe...
— Salta no Maranhão.
— Espere... Lá vai o Comissário. Ó seu Comissário! Seu Comissário!
De branco, sobrecenho fechado, vira-se o Comissário,. outrora tão gentil:
[253] — Nada tenho a ver com as suas complicações... Que tenho a ver com isso? Quem é o senhor? Mostre sua passagem... Desembarque no Maranhão.
— Mas sou o recomendado do professor... Já não se lembra?
— Que é que o senhor já arranjou para usar o meu nome. Desembarque no Maranhão.
— Mas foi o senhor mesmo que...
— Carregue já a sua mala, rapaz, desembarque no Ma­ranhão.
Mas não ficou combinado?
— Ou isto aqui é Pará e não Lóide? Mostre sua cartei­ra. Taifeiro? Onde arranjou isso? Seu destino é o Maranhão.
— O senhor prometeu, combinou...
— Viajou até o Maranhão... Não posso perder meu tempo. Salte no Maranhão.
— Só desembarco carregado. À força. Só à força fico no Maranhão.
Eivém um marinheiro a chamar o Comissário que subiu ao comando. Estavam no Maranhão.
Espera os guardas, ou quem quer que seja, que o carre­gue e o jogue no Maranhão. Junto a ele o descendente de boliviano, sombrio, sossegado. Bate a campa para a janta, sobe o caldeirão, fumegou no convés, apertem o nariz, que é a perfeita gororoba. Os da terceira, com os pratos de folha, se aproximam como condenados.
— A bóia! — berrou o tripulante impaciente, de concha cheia para o primeiro prato.
— Que nem pra porco — resmungou um com o prato nas costas.
— É mais vômito. Deles. Esquentaram o vômito dos da primeira. Isso tudo é vomitado.
— É a bosta deles.
Alguns se arriscam. Alfredo, refugiado na popa, como um desertor, envergonha-se. Por que recusa a gororoba? Não é do código, da aventura, do seu desafio? Que fraqueza [254] é que cede à náusea? Ninguém vem desembarcá-lo? Entre o caldeirão e o desembarque, espia o mar.
— Deixe estar... Deixe estar.., Vá ficando aparece o companheiro, a oferecer-lhe um prato de comida.
— Faça uma boquinha com esta. Dá pra dois. É lá da copa. Vá comendo enquanto não vai desembarcando.
— Vai ser sempre essa mesma gororoba?
— Não. Pior.
Hesita em receber o prato, irrita-se por não ter se ante­cipado ao companheiro para conseguir aquela janta. Avan­çou com seu prato de folha para o caldeirão. Recuou, a mão ao nariz, tropeçou numa caixa, vai vomitar?
— Dá pra dois, sim — lhe fala o companheiro. Alfredo olha o prato que recende. Um pedaço de omelete.
Desceram os dois, abancam-se debaixo da escada e se re­partem. Terminado, o companheiro inclina o rosto na mão como tomado de um pesar.
— Comendo vai ficando. Vai ficando.
— Vai passear no Rio?
— Não. Trabalhar. Trabalhar no guincho. E você? É mesmo taifeiro?
— Não. Tirei a carteira na polícia por simples tirar.
— Por simples tirar? Sem ofício? Como? Sem ofício?
Ergueu-se num espanto.
— Mas em que vai trabalhar? Como viaja sem ofício? Ou não sabe ou não vai trabalhar?
— Não — disse Alfredo.
— Ainda não sabe?
— Não sei.
— Então acaba ladrão?
— Quem sabe?
— Será esse o seu ofício.
— Com a graça do Diabo, não é?
— Mas me diga...
— Penso em jornal...
— Jornaleiro? Vender jornal, sim, sim... Agora sim..
[255] O outro fez um aceno aprovador e repetiu, suspirando:
— O ofício... Mostre as mãos. Finas. Pode, sim. Mão de ladrão é acetinada. A sua é. Mas vai vender jornal, já é o trabalho. Eu no guincho. Guincheiro. É o que sei e me satisfaz.
Subiram, O companheiro levou os pratos à copa, ajudou a lavá-los, trouxe duas bananas. Os dois ficaram na popa.
— Viu que não lhe desembarcaram?
— O Comissário se esqueceu.
— Vá ficando. A cada porto, é: desembarca! sempre não desembarcando.
— Vou metade clandestino.
— Com um pé a bordo e outro em terra.
— Faz de conta que fiquei no Maranhão. O Comissário me dá por desembarcado. Não estou mais a bordo.
— É. Está em São Luís. Me mande um camarão.
— Seu nome?
— Emiliano Romero. Muralha o apelido.
— Muralha?
— Muralha.
Muralha escorou o rosto na palma da mão e não mais falou, sombrio, sossegado, contemplando São Luís do Maranhão.
— Será que o navio não sai mais? — indagou Alfredo sem sossego mas sem medo.
— Sai, mas na hora. Ele tem a sua hora. Não está escutando o guincho? Na hora dele. Carrega.
Muralha. O guincho era o seu canto, a sua viagem.
Passaram marinheiros, o Coberto chegou dobrou, outros vieram, a quem procuravam? Alfredo desceu ao banco e esti­cou-se, atento. A cabeça sobre o rolo de suas camisas, duas. Defronte aquele barbudo cachimbava. Vinha dos dormitórios um mormaço. O companheiro se aproximou, inclinou-se:
— Com pouco é barra afora, sossegue, boa noite, meu amigo.
[256] Meu amigo, repetiu Alfredo, com quase espanto, um ca­lafrio, querendo levantar-se, pôr a mão no ombro do outro, e ficou inerte, agora suava. Como um anjo da guarda, sombrio, sossegado, o outro entrou no dormitório e entregou-se aos percevejos.
No Ceará, de novo a ameaça de ser desembarcado. Fica­va na borda a olhar a cidade, a longe montanha tão ali num sossego que podia assustá-la quem lhe tocasse de leve. Os botes traziam passageiros que saltavam, com risco, na escada do navio ancorado.
— Na hora de me desembarcarem... — disse ele ao Muralha.
Muralha, o rosto na palma da mão, sombrio, sossegado. Alfredo caçando um alívio, voltava a olhar a serra lá aos fundos, como suspensa, azul sobre Fortaleza, a Maranguape, aquele travesseiro da Maria Igarapé nos encharcados do Una? E por que tão de repente se fez noite? Desembarca!, grita­vam lá embaixo, dos botes. A noite boiava, espessa, do mar, o céu salgado. Já agora adeus, serra. Desce dos salões a luz e o gosto do jantar. Aqui embaixo fedeu a gororoba.
— Com pouco mais vou verzinho a nossa bóia — acudiu o Muralha num cochicho, ajustando o boné.
Quando vê, entra a bordo a moça da muleta, a perna ressequida, o solto e ondulado cabelo negro. Atrás o casal com a bagagem. Quis segui-la. Luzes, bagagens, rumores, gentes no navio o atordoavam. A aleijada desceu para a terceira de cabeça baixa, como apressada para esconder-se no beliche. Alfredo via descendo a flagelada do sertão, o Ceará emigrando, a Iracema de muletas. Batia a campa. Lá em­baixo no mar as últimas vozes da terra, a onda cobriu a cidade, já vamos, aqui não desembarcou.
Desce, estira-se no banco, a lâmpada em cima do rosto. Vai, abre a maleta, tira um livro, quer subir, e senta-se, ou­vindo o silêncio da terceira. Aonde o Muralha? Combatendo percevejal? Ou na popa, lá em cima, sombrio, sossegado, ao pé da casa do leme? Já não sabia se... Desembarcado era [257] uma violência que o exaltava, edificava seu orgulho. Segui­ria a pé pelo sertão, vestido de couro e desespero. Aqui es­quecido, virava resto de carga, rato de bordo... Já não queria prosseguir? Que foi ao certo que o impediu? O banco onde se deita é amarelo, duro, estreito. O rolo das duas camisas cai-lhe da cabeça. O barbudo, de pé, bate o cachimbo, escoan­do-se pelo dormitório. Fica o sarro, os odores do navio, carga, suor e restos de comida. E de repente: à porta do dormitó­rio das mulheres, aquele rosto em cheio, queimado, sério. Alfredo ergue-se, surpreendido. O rosto, pleno. Dele uma luz tranqüila, íntima, confiante. O olhar deu com ele menos que um instante, o rosto fugiu. Escureceu a porta. Era a morena de muletas, com o seu rosto de sertão, agora no beliche, de olhos acesos, curiosa da viagem e sem sono, escutando o navio. Aqui Alfredo também escutava. Esperou. Vagueou ali embaixo da escada, topando bagagens, esperou. As muletas? Dormia com as muletas? Deixava embaixo? In­dagação tola. As muletas. A perna seca, seca, sacudia um pouco a perna seca, a pressa com que entrou e desceu, o cabe­lo negro, a cabeça baixa, o rosto que não mostrava. E agora num repente, pelo meio da noite, brotando no mormaço, do silêncio, do mau cheiro, dos percevejos, aquele rosto que ninguém viu chegando nem descendo, assim queimado e sério. Esperou. Escutou. Compaixão, percevejos, para semelhante rosto. Lhe toquem na face, não.
Tentava ler, à mesa, sob os passos na escada descendo subindo. Aqui embaixo, nesta popa, ruge a bunda do bicho. Muralha, o rosto na mão, espia a máquina do leme.
Subiu. Trazia para as trevas da navegação aquele rosto inesperado. As estrelas, sal cuspido do mar. O navio jogava. Num pressentimento, desceu rápido para ver à porta do dor­mitório o mesmo e insone rosto. No que foi visto, desapare­ceu. Alfredo caminhou, deteve-se na porta, era proibido, e sentiu lá por dentro os passos da fugitiva. Voltou ao seu banco, abriu o livro, à espera de nova aparição.
[258] Ficou que ficou escutando. Compaixão para o rosto, aquele, percevejos. Ao menos o rosto, que é a única luz, tão de súbito, nesta terceira. Lhe toquem na face, não.
Badalou o café, acorda assustado, o banco duro na cabe­ça e sob o incessante sobe-e-desce na escada. Na porta do dor­mitório das mulheres a moça espiava-o apoiada nas muletas. Desceu o Muralha com a sua sombra e o sossego:
— Ao café?
Subiram. Alfredo cuspiu no mar se lembrando do chalé, a pontezinha sobre a cheia, aquele raso aguaçal de mururé e horizonte, um lento vôo de garça, mãe e pai tão juntos na janela quanto, quem sabe, tão separados, sem ver que a cascavel, fugindo das águas ou curiosa da casa, subia a esca­da; acabará por certo por enrolar-se dentro do oratório.
Que mudava em seu corpo, ou em seu espírito, ou nada mudava senão pelo que via à porta da terceira, a tão de rosto cheia e a perna seca? Cuspia no mar, O Liceu, o Boi, boiavam ao mar.
Muralha lhe entrega a caneca e nesta lavagem de espin­garda Alfredo vê a D. Dudu passando o seu café na José Pio (Queres café?), agora na Timbó, para onde se mudou. Mas tu me vais logo na horinha-horinha que eu compro o meu palacete?
D. Dudu largava a porta-e-janela do Curro para enca­fuar-se na Timbó. A do Curro adeus, dela não era, desistia da partilha. Esta palha que me cubra, não aquele telhado, o soalho de lá não é mais pra este meu pé. Livre é pras damas, as duas damas abrirem ali a porta do mundo. Se demitia dos seus direitos. Com trezentos mil réis compra a barraquinha em Chão dos Lobos e pendura a rede e põe na sala a máqui­na de costura e arma a trempe lá fora, rente da rede. No quintal uma laranjeira-da-terra carregava, em glória quem aqui te plantou, criatura. As duas netinhas, sim, ah, coitadinhas! Depois que mataram a avó, herdassem o buraco velho. Era ou não era gosto da avó no Santa Isabel de sepultura perpé­tua, cruz, nome, data? As duas damas? Fossem ao leilão, [259] arrematassem a cama, a cama no meio da sala, vista pelo. bonde, pelos passantes da calçada, a cama; venham, pessoal! Pusessem placa na porta, ou reposteiro, alvará na parede,. preço de viração, a cama chamando. Mas aqui na Timbó? L o meu, e pertence próprio, aos Lobos pago a taxa. Um cochi­cholo, quase todo destapado, a palha podre, chovia dentro, umas tabuinhas dando cupim na sala, aqui na mesa é o Santo Antônio, bem de raiz e a tábua de engomar, mea camarada velha, lá na frente, oculto pelas ervas o poço, debaixo das folhas, aquelazinha água tão da encabulada.
Se meteu feito um morcego pelo quarto, o único, de chão, já cheio de cacareco e carapanã, só aqui tapado, escurecen­do úmido. Vais quando? Estou te convidando pro meu pala­cete. Levava Nini com ela. Casebre fincado num teso domi­nando o capinal da vacaria, as toiças de açaí na baixa, uns telhados no sol, e vinha dos açaizeiros uma aragem com esta e aquela borboleta, sempre um cão, fosse no céu ou num quintal, ladrava. Lá doutro lado chispava pelas noites um fo­guete de ladainha ou levando a São Pedro noticia de mais um anjo e o som de terreiro tamboreando nos longes da meia-noite. Lá está na onda desfolhada a D. Dudu costuran­do, o rosto aplicado. O Santo Antônio no respingo da chuva naquele sem-que-fazer de santo nem se espreguiçar sequer. Tinha também um pé de papoula beirando o poço. O orvalho das papoulas escorria dentro do poço e lá do fundo senão água, se puxava sono, sonhos, um sapinho verde, uai! Esse mar virou lilás? Desbalançou o navio? Aqui, de verdade, o Muralha nem a goela temperou. Alfredo voltou ao seu banco, lá embaixo, e deu com a moça bem sentada.
— Abusei do alheio. Deixei em casa o acanhamento. Roubei seu beliche.
— Não, não. Dá pra mais um, sim.
Ela sorria. Me dá por prenda o teu sorriso e com ele ser desembarcado, com ele me perder pelos areais da Costa. Quis lhe tocar na pele queimada. Cheirava ainda a sertão, a caminhadas sabia que longes, com aquelas muletas, [260] arrastan­|do a perna seca. Com estas mãos apanhar-lhe o rosto, apa­nhar-lhe o acolhimento, o sorrir, e toda a desalegria que essa perna lhe dá...
— É de onde?
Intimidou-se com a pergunta que ela fazia mais de olhar menos de boca.
— É de onde? De que parte?
— Lá do Pará — respondeu com modéstia.
Ela fez uma admiração, as mãos no rosto.
— Pará? Primeira vez que ponho a vista num Pará. Pará?
A voz lembrava os Alcântaras, os antigos flagelados da Penitenciária, o cantante de Bina e daquela quitandeira viúva da Podrona que pendurava as bananas pacovas à janela da barraca. Arriscou-se:
— Seu falar é assim de quem comeu bem rapadura... e me lembra uma família...
Ela, cresceu o olhar, a mão na boca por um espanto, acabou se rindo e muito, pois rir era sua riqueza. Ria como se chovesse sempre no sertão. Deus! E lá embaixo do banco aquela perna morta, ressequida. A outra, se via, desmanada, cheiosa. E o colo onde o peito cacheava, o corte da boca, o rosto.
— Meu nome? Sou sem nome. Mereço um nome, não. O seu, já sei, é Pará. Precisa dizer, não, seu nome. Ó Pará... Deixe lhe meter este sal na boca. Batizado. Pará.
Nada a te dizer, criatura, que só tua voz escuto. E és uma espécie de sereia, mulher na banda do colo, o resto sereia e seca. A seca do teu chão te secou a perna e sorris. E esse anel que tens, eu te pedia, com ele desembarcava, linda-pela-metade.
— Que tanto me espia?
— Não te espio, te decifro.
— Tu não é besta, não?
Ela não se cansava de repetir. Tu não é besta, não?, e lhe deu um pedaço de rapadura já molhado de sua boca. Alfredo subiu, atrás do Muralha ou dum rumo, que fará [261] desta viagem? Desembarcava? Será desembarcado em Cabede­lo? Nunca mais viu o Comissário. Não mudava a calça de mescla nem a camisa, já azeda, usava uns tamancões, ficava olhando os escaleres, um e outro passageiro da primeira ati­rava sobre a terceira um pouco de fumo e um qualquer olhar de nenhum caso e cautela. Subia descia a escada, um modo de enganar o receio, ou curar-se daquela piedade, ou impu­reza, que tomava conta dele na presença da Sem-Nome. Voltou. Ela, sentada no banco, cerzia.
— Viu eu lá por cima, viu eu? Foi o que vi, nada mais.
— Tu não é besta, não?
— Quixadá, onde é?
— Onde vós não sabe. Mangue de minha terra, não, senão...
— Tire do dedo um instante esse anel, me mostre...
— Cobiçando o meu ouro? Ouro pra não dizer chumbo.
— Cor de chumbo não tem. Chumbo era, no que enfiou no dedo virou ouro.
— É um de estimação. Não é por luxo. Foi minha madrinha.
— Aqui lhe devolvo, inteiro-inteiro. Ou é aliança?
Ela apanhou as muletas, levantou-se, o olhar torcido para Alfredo como se quisesse descobrir nele uma pena ou desprezo por ela ou qualquer troça ou desejasse que ele só tives­se olhos para o seu rosto, que era tudo, o seu rosto, o colo em plena flor. Apoiou-se nas muletas, um pouco curva, os cabelos sobre o rosto. Foi subir, trabalhão, as muletas pesa­vam, a perna seca-seca, bambeava. Ao meio da escada, voltou, lenta, entregue às muletas, retirando-se para o dormi­tório. Alfredo deitou-se, o banco duro na cabeça, ou sobre aquelas muletas? Esperou que ela voltasse. Veio a noite. Apa­receu, de roupa mudada, o rosto empoado, ali no banco mas ausente, fingindo não vê-lo. Fez de repente um ar de sono, abria a boca, um sono... fechava os olhos, tão mau-olhado, quem me deu, que só que quero é dormir? Um instante tão [262] afastada das muletas, estas e a perna seca jogadas no mar. Dez horas, levantou-se Alfredo, ia subir.
— Ainda? Vai dormir, não? Vai render serviço? Onde é a sua ronda lá em cima?
Quer saber por quê? Vai? Guardo o escaler.
— Tu não é besta, não?
— Tem razão, é. Não subo mais.
— É que é um vento cão lá fora...
Ela entrou no dormitório, não demorou, da porta atirou-lhe um pequeno travesseiro e sumiu-se. Alfredo ficou olhan­do para a porta. Escura. Ninguém. Em suas mãos o pequeno travesseiro. Com ele cobriu o rosto, um tempo assim, suji­gando o nó, um soluço, sabia lá. Deitava a cabeça no traves­seiro ou no coração dela?
Cabedelo.
Espiou coqueiros, freges, aquele ar tão areoso, e escure­cido, dos que ali moravam, areia funda e morna. Lá de bordo, debruçada com as suas muletas, a Sem-Nome olhava.
Voltou com um desejo de lhe trazer cretone, um borda­do de terra, uma rendinha de boneca e só lhe deu foi a laran­ja que ela descascou, repartiu. Sempre comia tudo com alegre, travessa fome. As coisas de comer já os dois se repartiam. Porém no prato que o Muralha trazia ela não tirava um fio de macarrão. Submetia-se à medonha bóia da lei, saboreando a gororoba sem franzir a testa, muito festiva, comia gulosa (para divertir-me?) a mão ao nariz.
— Estou mais gordinha, estou, não? De comer isto.
Um pedaço de marmelada ou queijo, ela, aí, sim, com voz menina: Me deixa morder nessa ponta. O que um tinha dos dois era. Viu o livro na mão dele, tomou e de dentro do livro tirou o retratinho, escondeu na palma da mão, meteu na boca. Enxugou-o no peitilho.
— Conhecida, minha conhecida, só.
Fez que ia rasgar o retrato.
— Nome?
[263] — Quero me lembrar, mas não me lembra.
— Pois olhe aqui, seu deslembrado, aqui meio apagadi­nho a lápis. Soletre.
Repôs dentro do livro que fechou, sentou em cima, cru­zando os braços.
— Tua noiva, sim.
— Era a Fada do Boi.
— Tu não é besta, não?
E espetava o braço de Alfredo com o alfinete, pegou um papel escreveu a lápis: oh, que saudades tenho de ti, Roberta, meu anjinho que tristeza eu sinto por está tão longe de ti não achas? Alfredo.
— Meta no envelope, sele e mande na mala-postal.
Abriu o livro e se demorou, atenta, fingindo ler, repe­tindo Roberta, Roberta, Roberta, Roberta, o cabelo pelo rosto.
— Pará, que tu vai ver lá no sul? Que apito vai tocar? Onde desapeia?
Sul? Alfredo no ar, sem responder, desatando uma área nas nuvens, um sul que não vislumbrava, fosse uma enseada, o trem da Central, o Mourisco, sul? Então pediu segredo. Ele, por lei, não viajava, podia ser desembarcado a qualquer minuto, jogado num escaler em plenos mares. Sua passagem? Só foi até ao Maranhão, até São Luís. De fato viajava, de direito, não.
— Tu não é besta, não? Tu não é besta, não? — a Sem-Nome picava-lhe o braço com o alfinete.
— Aí embaixo no porão estão juntando os paus da jan­gada onde vou.
— De volta pro Maranhão? O Pará é o Maranhão?
— E a vela? Faço com teu cabelo?
Ela virou-se:
— Tome meu cabelo, apare a vela e prenda no mastro da jangada.
[264] Assim sentada, embaixo dos degraus, esquecia as mule­tas, o rosto de serão em luz de navio, no mais. só ele e ela na jangada.
À noite, a bordo aquela carga de cristãos, azeda de sol e das léguas, esmolambados, ali amontoados, aninhando os. filhos à sombra do toldo armado no convés. A carga entrava. Nisto, um corre-corre dos diabos, a polícia desembarca a moça que ia fugindo com o namorado para os cafezais de São Paulo e eivém que ela eivém de volta correndo, atraca-se com Alfre­do. Não me deixe desembarcar. Não me deixe! Não me deixe!,. arrastada para fora. Francisco onde tu estás! Francisco!, arrastada e sumida pelo areal. Alfredo se via culpado, no ombro os dedos da moça e o grito aqui, repetido, neste navio implacável, com a outra das muletas, ali ao pé a dizer-lhe:
Que mal fez a criatura.., que mal fez a criatura... Já um sujeito mulato tentava fazer graça imitando trem, batendo o pé, apitando sem sossegar, sacudindo o macacão, O trem de ferro. O trem! E apitava: Francisco! Francisco!
— Quase que você ia com ela... Em troca do dela que sumiu a bordo era o Pará que ela levava. Ai que agarrou-se com ele, como agarrou-se! Já não era mais o outro, era o Pará. Foi, não? Está em tempo de ficar na vez do outro. Vá com ela. Corra o areal. É dois desembarcados. Faz o par.
Alfredo cismou: A aleijada via na outra era aquele par de pernas no areal, uma e outra, iguais, correndo pelo navio,. escada e areal.
— Quase pronta a jangada? Pra nós dois?
— Acuda a desamparada.
Ah, correr no areal com aquele par de pernas, embora perdida a viagem, perdido o Francisco.
Que o navio andou, ela veio, batendo as muletas.
— Me peguei com meu santo pra que você fosse atrás dela. Se dando bem no Maranhão? Sua noiva lhe escreveu?
— Levo na jangada o travesseiro. Aquele seu travessei­ro? Amansou meus marimbondos.
— Virou eles de perna pro ar? Ah, Pará!
[265] — No que me atirou lá da porta...
— Mangando do coitadinho... Seu mangão. Que é isso? Quer tirar o anel do meu dedo? Pois tome. Francisco! Fran­cisco!, ela gritava. E eu: Se console com o Pará, desafortu­nada.
Guardou o anel, subiu a escada, tornou ao banco. Subiu de novo, voltou. A moça num divertido espanto: Perseguido? Anda perseguido? É o Comissário atrás? Olhe, mocinho, por favor, a sua passagem. Alfredo via o colo que ali se dava e a perna, embaixo, seca. Fugiu para o convés. Aquietou-se na popa, escutava os paraibanos, ia ouvindo neles o Brasil, varia­do, confuso, imitando o trem, no berreiro dos meninos, nas muletas da Sem-Nome, vozes a bordo que abafavam as má­quinas e o mar, a campa anunciando a gororoba e bumba! Estourou a contrariedade contra a comida. Foi geral. Era demais. Vamos ao Comandante!
— É um motim? — gritou o Coberto olhando para Alfredo.
— Motim ou o diabo que seja. Aos tubarões! Aos tuba­rões! Aos tubarões! — atirada ao mar a lata de gororoba, es­cureceu com um vento áspero. Aos tubarões! Aos tubarões! Durou um tempo o rebuliço e Alfredo se viu entre os parai banos acuados no convés. O Comandante, este não aparecia, Alfredo olhava as luzes da primeira. Lá em cima, na pri­meira, tinha música e omelete. Um longo, brabo bater de pratos de folha aqui embaixo entrava pela noite. Não veio outra comida. Alfredo recusou o jantar do Muralha. Encon­tra a Sem-Nome na escada, vira-lhe o rosto, deitou-se. Re­jeitou o travesseiro. A cabeça no banco duro. A hora não cessava. As máquinas de bordo mastigavam a raiva e o sono.
— Viu a cunhada? Viu, não? Viu? — indagava a senhora, já apreensiva.
— Pois não vejo faz hora. Viu?
Chega o marido, tinha procurado a irmã lá por cima.
— Ela não lhe disse nada, não?
Alfredo a desassustá-los:
[266]— Brincando de juju, ela. Só sendo. Não demora apa­rece.
— Trocou com ela, sem querer, alguma má palavra? Não lhe estou pondo culpa. Não trocou? Ela vive de sentimento muito exposto. Trocou?
Alfredo subiu, desceu, ora, inda mais esta. Má palavra? Foi o bastante? Atrás das bagagens, dos montes de gente. quem sabe no porão entre as cargas agarrada num marujo. Má palavra? Mas a ofendeu? Por ter virado o rosto na esca­da? Muito de ferida exposta? Ademais corria que as cearen­ses, por paixão, cortavam volta, muito por demais sentidas, por istozinho assim se melindravam, de repente se ofendiam e tomavam decisões desesperadas. Alfredo, aqui por cima, ia, vinha, que demônio deu nela? O vento pesado. O navio jo­gando. Ali na terceira ninguém sabia. Indagava, de novo, pela copa, bar, escaler, quem sabe no beliche dum tripulante ou ajudando na cozinha. Olhou lá fora. Vá ver, despencou-se Ferida com a desatenção na escada, corre e era uma vez. Desceu, varejou, insistiu, subiu com o irmão dela e a cunha­da atrás. Dela este travesseiro, este anel, e em troca no meio da escada, lhe deu as costas, a ofendida se atirou? Zonzeia a bordo, invade a primeira, atravessa os salões, é convidado a descer, espiou pelas máquinas. Busca, rebusca, vira o navio do avesso, o restante é o lá-fora, desconforme, ventoso. Não lhe ponho culpa. Se perdeu a bordo ou despencou? Precipi­tou-se para a terceira, já reza-não-reza, a tanto levou a ver­gonha? Aqui o irmão dela puxando um silencio e ali a cunha­da cheia de aves-marias, O navio avança como um monstro satisfeito. Erra pela popa, corre o passadiço, volta a espiar os escaleres. Até que a desencanta num oculto do convés, mas veja! Ao pé duns cabos, atrás de umas bagagens, enco­lhidinha, as muletas no chão, a cabeça nos joelhos.
— Mas, menina, que esconderijo é esse, que foi que foi isso. .
Passa-lhe a mão pelo cabelo, rosto molhado, abaixa-se e aperta-lhe os dedos úmidos que se negam.
[267] — Mas, Sem-Nome! Atrás de ti pelo navio todo! Onde que não te procuramos? Quem te botou tão invisível?
A cabeça nos joelhos, enrolada no silêncio, por dentro de seus cabelos.
— E assustando tua cunhada, teu irmão... Só faltou o navio parar.
Toma um fôlego:
— Saudades de Quixadá? Foi lá e voltou? Pediu asa de gaivota? Sabe o que já se dizia a bordo? Os tubarões janta­ram a moça.
Ela destapou o rosto, firmou-se nas muletas, assim de pé, olhando as luzes da primeira.
— Me vomitaram, voltei.
Agarrada às muletas, na sombra do convés, o cabelo no vento. Alfredo continha-se, temendo ofendê-la com a sua piedade e iludi-la com a sua ternura.
— Vá, vá na frente, que meu costume é só.
— Ora, Sem-Nome, comigo que mal faz? Comigo, anda.
Fez que não, tornou a sentar-se, enrolada em seus cabe­los, sustentando as muletas. Alfredo afastou-se entre alivia­do e afligido, desceu ao banco, novamente subiu, espiando-a. Ficou de guarda. Vendo-a levantar-se e caminhar, correu para baixo, deitou-se, a cabeça no travesseiro. Esperou que ela descesse, coitadinha, com aquela dificuldade toda. Meu cos­tume é só. Me vomitaram, voltei — foi descendo, ali, de­grau a degrau, só lhe via o cabelo, mas o rosto, onde?
Desceu, passou, carregando-se a si mesma para o dormi­tório. Meia hora depois voltava, aproximou-se do banco, sus­tentou-se nas muletas.
— Esta noite o navio jogando um bocado, não? Imagi­ne lá fora, não?
Alfredo não insistia, ela de pé com as suas muletas pelos tubarões vomitada. Sentou-se na beirinha do banco, de cos­tas para ele, veio a cunhada, conversaram, a cunhada saiu.
[268] Ficaram os dois no banco, num serão mudo, o travessei­ro os separava. À porta do dormitório dos homens, fuman­do, o Muralha os espiava, sombrio, sossegado.
Natal.
Bahia.
De Salvador aquele negro, subindo a ladeira com um baú azul na cabeça, lembrava o tio. E esta laranja, a Sem-Nome lhe deu, e este mar é caldo daquelas comidas, mais nascido daquelas igrejas, candomblés e ladeiras. Pedia o ris­co de ser botado em terra, adotado pela Bahia. Os gomos da laranja na mão da Sem-Nome, repente de se esconder no porão, à espera que a cearense fosse encontrá-lo entre car­gas, no bem escuro. Toca a campa. Amanhece em Recife. O mar cuspia a sua espuma no pedral. Eivém a Sem Nome com um coco verde: queres a água?
— Me dás na concha da mão.
Na concha da mão. Alfredo se debatia entre os seus se­melhantes da terceira. Pertencia mesmo a estes ou aos outros lá de cima, lá por cima, entre a música e a omelete? O tio viajava na terceira. Agora é pelo fundo, dentro da pele da jibóia, ou subindo a pé aquelas montanhas doutra banda para ver o Orenoco ou espiar onde se amamenta o Amazo­nas. O tio em terceira viajava, cabo do Exército na viagem de volta. A mãe, por preta, da terceira por nascença, levada pelo Major à primeira, ninguém mais senhora do seu cama­rote. A Sem-Nome chegava, penteando o cabelo, e se ouvia lá nos homens um som de viola. Que lhe pregou o botão na camisa, a Sem-Nome:
— Que foi que não fala?
— Estou te vendo no chalé lá de casa, em Araquiçaua, Areinha, as goiabas de lá estão te chamando. Queres?
— Tem o juízo aonde?
— Jantando na primeira, música e omelete.
— Danou-se! Virou o miolo? Vou chamar o doutor.. Ó doutor!
[269] E o espanto no entrar — que será isto? —- em Vitória. Ver, tão surpresa foi, que ver o que via não era. O navio, por estes encantados, vai abrigar-se no coral das delfins? A Sem-Nome veio e juntos ficaram olhando a pintura. Na popa, juntos, sem se tocarem ou falarem, com os últimos gomos, comiam a laranja e a paisagem. E dele o desejo de extrair daquele mar e daquela montanha o sumo para rever­decer a perna, aquela perna. E então, numa cerimônia, lan­çar nestas águas de Vitória as muletas da Quixadá. Roçou-lhe o braço, ela olhava como habituada ao cenário (Ou quem sabe? Um instante a perna sã?). Silenciosa, consentida. Mas tão de repente desenfreado saltou diante deles o Muralha.
— Todo o nosso dinheiro... Todinho o dinheiro...
— Que dinheiro?
— O nosso! O nosso!
— O meu? O nosso?
— Como abriram a mala é que não sei, não sei, no que subi, desci, adeus, foi tudo, o meu, o seu, foi tudo!
Muralha desarvorava-se. Só fazia coçar a cabeça, no que subi, desci, adeus, cuspindo no espetáculo aqui fora, o navio neste canal e a Sem-Nome os olhos tamanhões, agora sim que se espantava. Os dois desceram como se fossem achar o ladrão. Junto ao banco a mala do Muralha. Exalava ex­trato e canforina, intacta, intocada, e dela o meu, o dele — quanto o dele? — e o meu, 260 mil réis, entregues pela mãe, agora furtados de mansinho no justo momento de cenografia e pasmo, lá fora, à popa, com a Sem-Nome recolhendo ao colo os cromos de Vitória. Aqui estava. Guardei aqui. Só eu e Deus sabia. Muralha coçava a cabeça, gaguejava, veste desveste a camisa, revira a mala, o olhar de acossado. O paraibano imitava o trem da Great Western. Alfredo ou por não acreditar ainda, decidiu ficar por cima: Foi? Melhor! Subiu, deu de ombro, com risonha indiferença e voltou ao postal. A Sem-Nome com as suas muletas:
Não trancou a chave? E ali ao pé do banco na vista de tanto povo? Só estou é o sangue-frio.
[270] Alfredo não respondia, catando lá por dentro os cacos de sua indiferença ou estupor, misturando o roubo ao roche­do, a esta garganta de água azul, a colina... A moça calou-se em pleno sol e espanto, e dela o cheirume de Quixadá se espalhava, o navio imperturbável ia indo. Alfredo se buscava na montanha, enseada, botes, a areia, tão súbita, cintando a pedra, e o navio num vagar de enfeitiçado, a caminho dos delfins. A Sem-Nome roçou-lhe o braço (cheirando a rapa­dura?), rosto com rosto, o sol sobre os dois tão solitários que a popa e paisagem: E então? Lhes diziam. Assim menos que um instante Alfredo lhe deu o beijo, meio desesperado, meio enraivecido, e ela que se fez quieta-quieta, a blusa entreabre-se, faltando um colchete. Ao lado das muletas, embaixo a perna morta; ele se afastou, mordendo o beiço, onde escon­der-se? Chegava o Muralha, coçando a cabeça, falando sur­do, de que valia a queixa ao Comissário, saber quem foi, mas como? O paraibano, imitando o trem da Great Western, ali mesmo na borda sobre o panorama, mijou. Lá na frente se desenrolavam os cabos da atracação? Que era? Muralha, de lá para cá, descompassado, como aquela água lá embaixo vi­rada pela hélice. Alfredo olhou para ele, um minuto, logo virou-se arrepiado. Quem? Quem mais? Muralha? Muralha? Não, não cabia. Muralha transpirava leal. Lhe deu a calça velha para andar a bordo, trazia-lhe a comidinha da copa. Verdadeiro em todo o seu ar sombrio e sossegado. Direito na voz, no coçar a cabeça, assentado de modo e palavra. Dos dois a agir torto, era eu, por desfastio ou mau bofe, ou teima de me atormentar. O Coberto batia danadamente a campai­nha. Os esfomeados da terceira acudiam com os pratos de folha. A gororoba caía no bucho deles à força, à força de tão intragável. Os da terceira? Só emporcalhavam a bordo, risco de desovarem sabe lá que peste no meio da viagem, carregavam mais doenças que bagagens, cacarecos da terra, batidos de azar, de calamidade. Nos beiços da aleijada provou o flagelo. Isso nem carga é, quanto mais passageiro, é baga­ço só. Esta terceira acaba afundando o Lóide. Os de lá de [271] cima olhando para baixo, cá embaixo, que viam lá de cima? Exato o que leu no diário de viagem do Dr. Genaro, Procurador Fiscal do Estado, voltando de suas águas de Caxam­bu: Aqueles da terceira? Bichos. Escrito e escarrado bichos. E aqui mais lanzudo, ia e vinha este-um de bicharal, que assaltou a aleijada, já suspeitava do Muralha, farejando naquele monturo quem que era o ladrão. Ordinária proeza na popa do Lóide. Legalmente desembarcado do Maranhão nem ao menos cuspido de bordo como clandestino. Rouba­va, isto, sim, o sossego da inocente. Em vez de juntar-se ao Muralha e bater o navio atrás do ladrão, agarra-se àquele beiço, a aleijada deixou cair as muletas. A perna mais seca. Olhos no espumejo já debaixo, navio em manobra, a moça chorava; choraste em presença da morte? Dizia o pai no chalé ao pé do fogão, fazendo o velho tuxaua. A campainha badalava, badalava, inchando a orelha, moendo nervo a nervo, não duvidar vomito. Eivém a bosta com arroz e abó­bora. Só falta vir no penico, grunhia o penitente, pele e caveira, arrastando a perna com tão antiga ferida; só vivia para a sua chaga. Metia a mão na gororoba e tudo engolia com ódio como para saciar a perna podre que o devorava.
A Sem-Nome chorava? Escondeu-se? Não. Está aqui na popa, engolindo o manjar de bordo...
Se eu tivesse... Se eu pudesse, olhe que eu lhe acudia.
— Mais do que acudiu? E o travesseiro?
— Fingindo soberbia? Que não se abalou? Me deixe lhe ver aí por dentro. Com uma só espetada do meu alfinete lhe tiro a verdade.
— Tu não é besta, não?
Diante dela parecia fechado ao desânimo. Vinha dela uma força simples que o acusava ao mesmo tempo.
— Sabe? O dele e o meu guardei foi dentro do traves­seiro, o seu. Escondi.
— É mais meu, não, o travesseiro, não lhe dei? Guar­dou... Não é o que vejo nos seus olhinhos. Todo o seu [272] so­|brosso... Se fazendo aí de sossegado? Deixe lhe meter o alfinete.
— Vou só abrir o travesseiro no Rio, vá ver.
— Engolindo o fel e cuspindo potoca? Coitadinho do Pará.
— Com aquele travesseiro, eu, coitadinho? E olhe, queria lhe dizer uma coisa a respeito do travesseiro e cadê?
Então é mentira. Tão nonada aquele travesseiro, oxente!
— Ela comia o intragável tão gostoso, lia-se nos olhos dela: Agora que você tão brusco me tirou esse beijo de minha boca, me meto numa fábrica, lavo, engomo, cozinho, por você eu faço, contanto que carregue comigo esta perna. Ela capen­gou para outro lado com o prato vazio, O prato vazio. O vapor não atracava? Alfredo se via só, destilando suspeitas contra-suspeitas.
Muralha? Muralha que falava da noiva, da família, do di­nheirinho que poupara, do guincho em que ia trabalhar. Não. Estava tudo consumado. Tudo consumado, como traduzia o pai aquele latim na varanda ao fazer o Cristo na Cruz. Dis­sera ao Muralha: Olha, me guarda na tua mala este meu co­brinho chorado, que aí é mais seguro. São os meus contos de réis. Na minha maleta é mesmo que deixar tudo à mão. Na maleta, foi, só deixou aquele trocado, que ninguém me­xeu, este resto, trinta mil réis, o que se salvou. Tanta gen­te era na terceira, quando que se havia de saber? Trinta mil réis. Diabo! A Sem-Nome só faltava lamber o prato, o sabor que ela dá às coisas! É isso! Trinta mil réis só? Saltando de bolso furado? Liso? Pega o pião na unha. Esta prova não me verga, não corro do desastre. Deu uma queda? Pois te le­vanta! Foi? Que remédio! E aqui, por onde entra o navio, é tudo inesperado, dizendo que vale a pena! Chegavam a Vi­tória. Será que aquilo ali, no relvado lá em cima, é um gan­so? Os gansos novos devem ter fácil acesso à erva fresca, aconselhava La Hacienda aberta na rede, à tarde, pela sesta do Major. É mesmo um ganso no relvado? Desponta o [273] telha|do do padrinho Barbosa, calou-se, anos, o gramofone, o gan­so velho reclama queijo e o padrinho, sem queijo, entre as louças da borracha, rapavazinho a sopa de falido. No tape­te que saía para a rua a menina e este menino. A caixa de música, tinha? Aqui em Vitória, debaixo da asa do ganso, tocava. 260 mil réis. Que falta faziam se estava ali a bela pedra, o ganso no relvado, a moça do Quixadá tão com apetite?
— Faz de conta que aquele ganso, ali... estás comendo assado.
Já sem dizer tu não é besta, não, a Sem-Nome, tão séria, comia mesmo ganso? Mas de repente adeus, ganso, eivém é a Fada batendo suas asas de cetim e serragem, fez do relvado um palanque, num repuxo de fitas, cetim e penas, inteira nesta moldura. Confuso instante, o gosto é castigar-se, o des­rumo no Rio e tudo o mais muito bom pelo tamanho da in­quietude. Mas a Sem-Nome batia palma como para acordá­-lo. Sem-Nome! No meio do corpo para cima como era! Por que então tem Deus, se carrega embaixo aquele trambolho? A perna seca, mais seca pelo meu beijo? Comia o ganso? Mar. Montanha, aves, a perna secava.
À noite, estirado no banco, cabeça no travesseiro, então que principiou a perder os 260 mil réis. Dinheirinho arran­cado ao pai, trazido pela mãe, queimando a mão. A mãe. esta, sem atinar por que lhe fugia o filho. Que fugir era, ou não era, ou fugia da Fada, do Boi, de novo a cabeça rapada no Ver-o-Peso, o trote no pátio, as duas esposas no descami­nho em busca dos maridos de repente somem, o bilhetinho a lápis, o Satiro de buraco na testa chorando na flauta enquan­to a Pulunga faz chá. Trinta mil restam. Com esses trinta dinheiros salta no Rio, de esporão em brasa, ah, larápio! Foi ver o mar. O navio jogava. A terceira adormecia. Bina, pro­meteste rezar por mim. Valeu de nada tua reza, á, feia da peste, os santos só atendem às outras. A Fada no palanque ou no revaldo ria a sua risadinha de ganso e se embalava debaixo do araçazeiro. O palanque se cobre de lama, [274] serra|gem, noites mortas. A esta hora, Maria Igarapé caça um macho nos escuros do cariazal ou derruba, com um trago só, no Bonitinho, a sua fome, e se agasalha com a visão da serra. A Sem-Nome, dormindo, o sono lhe tirava as muletas. E ele, o badalo da gororoba badalando-lhe insônia, sacudin­do-o, oh, teu fedor, gororoba! e doe vez em vez aquela do palanque e da aula, o joelho dela, não mais menina, na sua mão. Voltou para o banco. Sentou-se, olhando mais que olhando a porta das mulheres. A Sem-Nome dormindo, de que lado o seu beliche? Estirou-se, a cabeça no travesseiro, trancava os olhos, aonde andas, sono? Que só encontro a aluna e aqui defronte a outra, o seu carnume pela metade, suas rapaduras, seu sertão. Duzentos e sessenta mil réis. Muralha? Muralha, não. Por um descuido a mala aberta, o ladrão foi num relâmpago. Aquele susto, aquele coçar a cabeça, o Muralha não fingia. Não. Era uma só peça. de uma só, sombrio talvez por ser um só. No dormitório dos homens aquela tosse que nunca acabava acusava como diabo. Urgente era entrar no dormitório das mulheres e surpreen­der debaixo do lençol aquela linda metade do umbigo para cima senão quando o maço furtado. Ficou de bruços sobre o travesseiro. Ergueu-se. Quis ler, lia coisa nenhuma! Abriu a maleta. Virou-se. A Sem-Nome trazia-lhe café.
— Onde arranjou?
— Precisa saber, não.
Falava em meia voz. Lá nos homens, a tosse se agravava.
— Esse café é de conta que é teu leite.
Ela lhe pôs a mão na boca:
— Mais baixo, boca de sapo, mais baixo e beba, seu des­respeitoso.
— Teu leite?
— Onde tenho leite? Nunca pari.
— É um leite de que falava um meu amigo lá do Pará, sempre me falava. Tinha em casa um sortimento de livros e eu disso me aproveitava, lia. Ele, então, me festejava: Entre, que aqui é a fonte de Castália, concidadão!
[275] — Oxente!
— Não liga a palavra, é uma qualquer das tantas fecha­das no dicionário, deixa o dicionário em paz. Era por via das meas leituras. Sempre me convidava pra jantar, a velhi­nha mãe dele caprichava num escabeche que ai, ai... De pijama e chinelo ia na mercearia e mandava arriar um vi­nho: ponha na conta, seu Alexandre. Na calçada da casa dele, se conversava. Ele falava de política, se dizia um cis­ne sem ter uma cisne nadando a seu lado, e era espiritismo, Jesus e Samaritana, a mulher obrigada a montar no cavalo nua-nua... De repente: Nada como a liberal-democracia. Quando luar, vinha um violão vadio ou um antigo caixeiro-viajante contando das suas viagens. Tempo de São João, pa­gava para um cordão de bicho dançar na frente de casa pois lá dentro a sala não cabia e mesmo podia quebrar uma ca­deira, sumir um postal da coluna, noutro dia a velhinha mãe a lavar o soalho... E tome aluá! Na hora da cachacinha...
— Tu?
— Tu o quê?
— Já bebendo, Pará?
— ... ele pedia ao Supremo Arquiteto que desse um co­bro nessas nossas autoridades, fazer mais estradas de ferro, repartir mais o bê-a-bá, pagar em dia, etc. e tal e de repente: Viva a liberal-democracia!
— E que bicho é esse, a liberal...
— Pra te dizer a verdade...
— Salta a palavra, vamos ao leite.
— O leite? O leite, ele dava um nome. Sentado na ca­deira de vime, depois da janta, dizia de que peito, de quem era...
— Oh, Pará! Mais baixo, mais baixo... Não és a cam­pa de bordo. E bebe senão esfria. Mais baixo. De quem que era?
— De uma tal bondade humana, assim ele dizia, tirando o charuto da boca, embalando a cadeira.
— O leite? Tu não é besta, não?
[276] — Nos furtaram, minha irmã.
— Irmã?
— Pois não foi?
— Irmã? Irmão esse na boca da irmã, tão, que tive de puxar meu beiço? Te descreio. Irmão o diabo, o diabo.
Falava baixo, como se recebesse no rosto o cuspo da pie­dade dele, o beijo devolvido.
— Estou que ele saltou em Vitória, o nosso bom ladrão, — falou Alfredo, embaraçado, e cochichou miúdo: — Sim, o ladrão. Eu? Aquele? O outro? Todos do navio? Um não foi?
Bebeu o café, assustou-se com o olhar dela... Ou foi... Alfredo estalou os dedos, já a Sem-Nome bebia o sobejo da xícara. Alfredo lhe via os peitos cheios.
Ia atracar. Nada via senão sua solidão, seu Susto, seu não saber onde ir, onde mudar de roupa, ao vai-e-vem de bordo:
— Cala essa estrepolia de trem, apitador do Cão! Arrolha teus apitos, boca do diabo!
Divide os trinta mil réis com o Muralha que está a ne­nhum, aqui sentado na sua mala agora fechadinha a chave. Ambos num embaraço, envergonhados, como dominados por mútua suspeita ou é a despedida? Aqui se corta a amizade e tudo assim, chegando o porto, se interrompe. Perto, dente de fora, penteando-se, a Sem-Nome com o seu vestido de saltar acostumando os olhos no que via.
Com a sua maleta, vê-se no cais, o cais jogando, os guin­dastes vão despencar? Nos olhos o serão embaixo da escada, a ação do travesseiro, o entrar em Vitória, noites de gororo­ba e mar, a face da cearense entre os cabos e os barulhos de bordo, aqueles muitos pés de Cabedelo na terceira, o beijo ao som do hélice lá embaixo escumando, o olhar de Mura­lha, o meu, o teu, adeus e a chaga do penitente pele-e-caveira, o feroz flagelado. Onde fica ele? Salta em Santos? Dele, em Santos, é só aquela chaga a saltar.
[277] Aqui em terra e sem fôlego, com a falsa identidade de taifeiro, e sua maleta. Sim, a carta para a rua do Livramen­to. Pelo menos uma rua, um número, uma porta. Trinta mil réis? Agora quinze.
— Cadê o sangue da cara, Pará?
Se despede, com o irmão e a cunhada, agora no cais, meio dissolvidos no cais.
Quer agarrar-se àquelas muletas, os dois cidade aden­tro, e está sem voz, os pés no ar; a moça, neste minuto, nada mais que aleijada no cais, reduzida àquela perna; doeu-lhe pensar assim e ver assim, certo do que ia acontecer a ela nes­te cais duro e sujo e mais adiante.
— Te despede de eu, Pará. Pode que nunca a gente se veja mais um dia só, você faz voto?
Sorria, rainha de suas muletas, com elas pronta a rom­per cais, cortiços, e demais durezas, tranqüila quanto ao im­previsível, aceitando o que ia lhe acontecer.
Teu sangue, Pará?
Meio caçoava, como se indagasse: Foi quanto te custou, Para, aquele boca-com-boca, te cobro dobrado, Pará. O san­gue, cadê? Teu sangue? As muletas a levavam. O aperto de mão, o; olhos dela. E teu sangue? Sem sangue estou mas e por minhas baixezas, cospe no rosto que desconfia de ti, ino­cente. Nunca mais. Quem te tirou teu sangue, Pará? De repente sumiram?
Veio o Muralha, desgovernado, tossindo, e se despedia, rumo ao guincho, ou atrás dela? Tinham combinado? De re­pente sumiram, esses dois, quem sabe? Tão entendidos que suspeitar paga no inferno? Tinham combinado? Lá adiante, com as suas goelas, a cidade: Cá te espero, recruta. Cais sujo, duro, onde é a saída? Apalpa a carta no bolso, os quinze dez tostões, aquele par de bordo, o guincheiro e a aleijadinha. Cuspia no prato, estripava o travesseiro. Neste adeus, nesta saudade, deu bicho. Correu para vê-los. Sumiram-se. Escuta­va no calçamento o baque surdo das muletas.
[278] — O senhor me ensina por favor a Rua do Livramento? Onde a rua, que não aprendia? O chão trepidava. Ia es­curecendo irreal, rodava o labirinto, em tudo um redemoinho. Andava que andava, onde era? Seguia trilhos, os bon­des o enxotavam, ferozes; parou nesta porta a ouvir bater a bigorna, bem batendo a bigorna, um som limpo, sossegado, parecia vir de longe e batia por dentro do peito, era o fer­reiro de Cachoeira, chaves da cadeia, Andreza a chave joga­va no rio, a marca em brasa no quarto da Merência, o fer­reiro batendo. Queria misturar-se em tudo isto, bigorna, gen­te, portas, assim no primeiro instante, e só via a Sem-Nome batendo as muletas no barulho geral. Maleta na mão, se can­sou, fico na esquina, a maleta pesando, era todo o Pará que carregava. E esses mendigos, esses bêbados, esses com um ar de múmias, na calçada, chumbados? Pediam, escancara­vam as chagas, espichavam o braço imundo. Onde a Livra­mento?
Até que entrou num túnel, lá do escuro explodiu aquele grito como nunca ouviu, alguém ali caído, onde estava, de onde vinha, quem? Os escuros do túnel faziam mais tenebro­so o grito. Todos os miseráveis da Terra gritavam naquele grito. Retrocedeu, respirou numa pracinha. Tornou a andar, com o Pará na maleta, voltaria ao cais?
— Meu senhor, por obséquio, onde é que é a Rua do Livramento?
— Está andando nela, moço, andando nela.
Aqui é o número, bateu. Dos bondes que passam salta o grito do túnel.
Zarolho pelas esquinas, já nem se reconhecia, quem me devolve o que sou? Caminha jogando no ar o invisível tucumã, por isso aluga quarto na Sacadura — aquele mirante — tira as medidas no alfaiate, manda buscar a mãe. Me perdoa, Ro­berta, lhe escrevia, e acabava gaguejando, esmorecido e sua­do, por um copinho d’água no café. Com seu sola de borra­cha que até chamava atenção, descia pela Sacadura, roçando [279] naqueles desconhecidos do Lóide, Costeira, Marinha, jogo de bicho e turfe, estiva e patentes do morro, aqui se deu uma punhalada, ali um tiroteio, no beco, este, costuma passar va­lentes, essas ladeiras no escuro e no silêncio fazem abrir na­valha, aqui nos batentes saiu carnaval e morte. Lá por cima os morros onde parecia a paz, qual nada, escorria de lá uma pobreza de tamanco apressado ou se jogava futebol todo dia num baldio e às quartas tinha feira. Aqui é a Saúde. Aqui bem na bunda do cais, transpirando estiva, botequim, vare­jo, porão, o hálito das viagens e dos contrabandos. Dos fre­ges chinas o fedor de sebo, carne velha e repolho. O herói vagueando no calor de outubro a ouvir nesta esquina falar do Vasco, é o Rio? Vamos nos guiar pelo toutiço da Galeria, para a maré dos encontros, onde ninguém encontrava nem consigo mesmo, sendo um zero a mais no meio fio. Ah, Pará! A maleta pesava lá na Livramento. Em Belém tudo é vizi­nho, tudo na palma da mão, aqui o descostume amolece espi­nhaço, rói o sapato, pui o fato número um, escurece o cola­rinho, o juízo é um pião. Ah, Chão dos Lobos aquelas tar­des com o Oscar no aviso de guerra — Vamos fazer deste aviso da Marinha a moradia da Maria Igarapé? — Subia fora da lei a janela do sótão, tão familiar, os sabores do a pé pelo Marco, o tempero de tucupi e ladainha na voz da Magá, a mão, por debaixo da mesa, tateando o joelho e a dona do joelho aqui por cima estudando o catecismo. Suspenso sobre o Não-Se-Assuste, o quintal de borboletas onde a zanoia lia o Carlos Magno para a mãe, e a ragazza atrás da veneziana, coçando o cotovelo, espionava Deus e o mundo. Com aquele seu pesão cavado de beijo, o velho São Pedro de Santana, sem se afastar dali, fechava e abria a Porta lá de cima. Tudo na palma da mão, visto e conferido, de cor e salteado, a desnu­da entre as jacas, o sapo ancião da vala, veterano do Para­guai, coaxando a batalha de Tuiuti, fedores e cheirumes de Belém, aquele sempre piano na travessa do Curro ao fim da tarde, depois da chuva, vá ver quem tocava, outra não era senão D. Emília Alcântara. O jeito das mangueiras em [280] cer|tas noites ou quando em São Brás desembarcava do trem a madrugada já no fim da serenata e se espalhavam os boê­mios bebendo orvalho à falta do último gole. Onde a cova de Luciana, não sabia, e tão à vista na sala da José Pio. O rosto da passante, quem, não sei, e é de toda intimidade, e aqui a rua cega, apinhada, a areia come os passos, dormin­do de misericórdia naquele cantinho do soalho, debaixo das inquirições de D. Aurora, aqui na Livramento, neste sobrado encardido de três janelas com um misterioso depósito no tér­reo sempre trancado. Porém, na José Pio, debaixo do jasmi­neiro, Esméia despetala seu escurume, como se gerasse jas­mins. Lá no sótão a pompadour de jinjibirra e alho fazia as malas para Caiena: Vem comigo que, é só não duvidar, a gente dá um saltinho lá na França, que tu achas? Tu gastan­do esse teuzinho francês decorado com a D. Marta, te des­pacha, meu arara, pula no estribo, te agarra a esta costela, que meu vôo é esticado, vou é léguas. Ter com o que viajar, ter, tenho. Não tão como o que tens e isso é de berço. En­tra no balaio que te carrego nas costas o tempo que der, sim que depois, filho, que se há de fazer? Aí, o mundo é só teu.
Aqui ninguém sai do ouriço, dos seus ocos, de seus den­tes ferrados. Vozes, passos, rostos, roupas, aglomerações, bancas, estátuas e mictórios, estoura o barril do chope, desem­bestou a sirena, tudo o suficiente para ocultar o que pelas almas é solidão, o pé atrás, quarteirões de pedregulho e caco de vidro esfolando o recém-chegado. Uma palavra, uma so, só uma quero escutar, que me assegure que estou em redor de gente ou comigo mesmo, uma palavra, uma palavra, ao menos aquela, a derradeira, no cais, que a Sem-Nome exa­lou: “e teu sangue?” tão Ceará, baixinho, como se também se esvaziasse de Quixadá e de si mesma, aqui lançada às feras. Uma palavra. Neste calor só de gelo, aqui de cambulhada, no corre-corre de um milhão de gente, adeus, quinze mil réis e a razão da viagem. Este edifício mais alto da América do Sul sorve e cospe as lesmas que entram e saem por entre os marinheiros bêbedos. Então vamos ao escritório levar a [281] se|gunda carta de recomendação do professor de Geografia, coi­tado, metia suas canas desde o café e do seu delírio ditava a aula e suas cartas de recomendação, sempre desembaraçoso no recomendar, encerrando o dia com gim na terrasse, seguia para a casa a pé pelos Alpes ou fundeava no Mediterrâneo, um buraco de cachaça e posta de piramutaba na São Mateus. Pois vamos levar a carta de recomendação no tal escritório. Era chegar, no que põe o pé no primeiro degrau, dava atrás. vá ver puxado por uma alma, tão atrás, varrido por um ven­to que o deixava na Avenida. Só dava conta de si já pelas alturas da Ouvidor onde gritavam:
— Pérolas Japonesas! Pérolas Japonesas!
E as vitrolas ganiam.
Horas e horas na rua para não almoçar na Livramento. Como no baile imaginário da fazenda Mãe Maria, Andreza lhe tirava das vitrinas a lingüiça, o pão, o pudim, o vinho. O leitão assado com a batata na boca. Aquele terno de casi­mira. Aquela camisa com aquele preço tão nas nuvens. O jornaleiro: O crime da mala! O crime da mala! Agora com dois mil réis no bolso, o passo de borracha entre tantos e tamanhos bancos desta rua, bancos de nome comprido e nome gringo, aqui neste guichê um senhor, oh, quantidade assim de notas, não pára de contar? Fugia para Botafogo. Comia a enseada ao molho inglês visto do Largo da Carioca. Pendu­rava a enseada no pescoço da Esméia ou no quarto de Bina, a mais feia. Passou pelo hotel, aqueles criados na frente que nem marechais. Sentou-se num banco do Flamengo. O man­gue, onde era? Roberta salta daquele bote a vela, ou doutro lado, com o Boi, conduzida no ombro do Amo, seu Profeta.
Entrava na Sacadura. Aqui, neste fim de tarde, o mesmo velho dos bilhetes de loteria. Na esquina estendia a mão, em silêncio. Todo dia ali fincado, com um tremor no corpo todo, oferecendo a sorte. Ninguém comprava, ninguém olhava. Ah, tudo isso aqui é de chumbo, só chumbo. Que­ria-lhe dizer, por exemplo: Boa tarde. A língua não dava. O velho responderia duro, quem sabe também, de chumbo, [282] chumbo. Vem e vai, é o mesmo velho, mendigo de corpo inteiro sustentando o maço da loteria, de mão estendida a oferecer fortuna. Vem e vai, e é o mesmo velho. Segue para a Livramento. (O crime da mala! O crime da mala!) Nova­mente para dizer que foi furtado e ninguém a acreditar? Me furtaram, dizia sem calor como se não fosse exato. No túnel, gritou: Me furtaram!, todos os ecos o escuro comeu.
Voltava à Livramento, cortando gente e esquina, mais zarolho, o fato mais sujo, mais suor pelos sovacos e com bos­ta de cachorro na sola de borracha. E o primeiro furinho no fundo do bolso, onde enfiava o dedo e o ânimo.
Na Livramento, entrar quem disse? Como fugir das vis­tas da D. Aurora que sempre puxava o cabo da porta? Gor­duchona, movimentada, falante, D. Aurora do Pará fornecia refeições, subalugava quartos, agarrada ao seu serralheiro, o seu Mílton, também paraense, mulato amareloso, meio arti­manhoso no falar, bem mais moço que a D. Aurora. Menos se esperava rompia a D. Aurora pela casa, bochechas em fogo, o cabelo à la garçonne, brandindo a vassoura: Pois mal me chega, mal me toma banho, mal me janta, mal atira no ombro da vaca velha o macacão da oficina pra que lhe seja de­volvido bem passadinho, etc. e tal, e o meu: Mas onde tu vais? Que se deu pra tamanha pressa, quem que na rua vais tirar da forca?, ele botando tromba: É a sessão, mulher, é a sessão da minha sociedade profissional, já vou atrasado. Atra­sado! Sociedade profissional! Arma a Kodak, tira uma vista da sociedade profissional, bate a chapa. Descarado! Vou é sa­ber já-já onde é no Mangue esse teu puteiro, bato lá de táxi, pago, ponho um secreta grudado no teu fundilho! E de quan­do aqui chegando do Pará adoece e olhe os meses.., entre a visita do médico e a vela na mão e te paguei, doutor, far­mácia, as maisenas: Ai, Aurora, não me deixa morrer, Au­rora..., o froxura! e colherinha do xarope na boca e a bem dizer aparava na palma da mão o mijo da tua bexiga podre, cadê, seu descarado?
[283] Marinheiros e barbeiros, que comiam na D. Aurora, se vergavam sobre o prato de sopa, partiam o pão com diver­tida paciência. O serralheiro, sapato duas cores, chapéu de palha, o lenço no paletó com uma ponta de galhofa, descia pateando os degraus e com um coice na porta. D. Aurora tra­zia no tabuleiro os sólidos da janta e ia cantarolar, lá dentro, sobre o tanque, lavando o macacão. Alfredo entrava debai­xo daquele vexame, com o seu desaprumo de quem comia de graça e ali apanhava o prato já feito na mesa, comia tão de cabeça baixa, a ouvir o 3.º sargento da Armada falar de sua belonave e das mangas de Itamaracá.
— Olhe, Pará, talvez lhe arranje a bordo uma vaga, servir à oficialidade a bordo. Serve?
— Serve, serve, sim — acudia lá do tanque a D. Aurora.
— E olha, grumete, antes de ir servir à oficialidade naval, me comprezinho agora um sebo de holanda na drogaria do canto, sim?
Alfredo arriava o cadáver no chão, onde, à luz da lâmpa­da lá do teto, lia O País. Não demorava: Olha a luzinha correndo... Me apague, sim? Era a D. Aurora, metia pela entreporta o ombro nu e os bugalhos.
— Este quarto, aqui, é baratinho, só sessenta. Você quan­do se empregar, pode ficar com ele. A refeição é duzentos e dez. É só você pegar um emprego.
Não achava lugar no travesseirinho para a cabeça. Fica­va pelo quarto escuro a loção da D. Aurora, o amarelo da­queles bugalhos e a voz um tanto abafada.
Bateu a Saúde, correu cais, Central, Mauá, até no Caju foi, e da aleijadinha nem um eco. Ficava na janela defronte do sobrado onde tinha sempre o velho no peitoril. Toda boca da noite era o ancião de gorro, cachimbo e silêncio à espera que aquela carroça parasse à sua porta e o levasse enfim. Espiando o céu, Alfredo fez um espanto:
— Estrela! Mas tem estrela! Tem!
Veio a D. Aurora, queria que ele, noutra manhã, prefe­rível bem cedo, esfregasse o soalho com pano molhado, sim?
[284] Salas, corredor, escada... sim? Faz crescer o músculo, não custa, sim? Sim, sim, por que não, não era por conta? Pelo menos esfregava o soalho. Veio quarta e ela o rebocou com um cesto à feira e fez dele o seu moleque de carreto, e ai! Que dona mais pechincheira, tira, refuga, tão titi-de-galinha no escolher como no pagar. Já alguma vez comeu cenoura, conterrâneo? Alfredo se via de novo o tal menino lá da Gen­til carregando com o velho Alcântara as compras de domin­go. Foi distrair-se, caiu do cesto a cebola, a folha de alface. Descansou o cesto na calçada. Lá atrás a D. Aurora com o ramo de flores para o centro da mesa. Agora ao pé do tanque, chamou-o: — Que lhe falta pra rebaixar esse seu matagal da cabe­ça? Aí noutro quarto o Ezequiel está fazendo tosquia. Entre, entregue a cabeça, que ele lhe corta a crédito. Ponha abaixo a cabeleira do Norte. Talvez seja ela, talvez seja ela... Me mire bem, me olhe bem, mas de frente, sustente. Raça de índio, aí, que é de doer! Paraense a mais não ser. Me mostre suas marcas da maloca, seus urucus. Que foi? Que se deu? Tudo o que faz é sorrir nos olhos o selvagem.
De cabelo aparado, bastante alheio a tudo, a si mesmo, vai à janela, esperando ao menos aquela carroça chegue em busca do velho lá defronte. Nem os balanços do mar lhe botaram fora a Aluna e a Fada. Nem uma noite se enjoou de enjôo do mar nem mesmo ao pé da gororoba, para vomi­tar o Chão dos Lobos, o Ginásio, a Fada. A Fada, sobretu­do. Vomitá-la na borda e saltar aqui sem um pó de serragem, sem um estribilho do Boi, sem vê-la nunca mais debaixo do araçazeiro. Não era a carroça que chegava, era aqui atrás dele, desatando o avental, a D. Aurora.
— Espere aí, me escute, índio gavião, agora é a sério, pão-pão, queijo-queijo, ponha de lado o arco e a flecha, me dê uma audiência. Venha cá, se sente aqui, me venha dizer, me exponha a questão, cheguezinho cá, mais perto de mim, arraste daí sua cadeira que seu pedaço não tiro, não me dou com carne bugre e me diga devera sem comer uma palavra, [285] aqui entre eu, sua pessoa e Deus, só entre nós três, que essas coisas bem que eu compreendo, nunca são do meio da praça na boca do camelô e tanto que acontecem! Não finja que lhe desaconteceu, não finja. Disso é feito o mundo, é o nosso ingrediente. Me explique de que é culpado ou de quem é vítima, desate comigo o seu nó. Que foi então que me andou por lá fazendo o meu cavalheiro, lá pelas nossas malocas do Pará e já que de lá se atira pra cá assim sem mais nem menos — do que duvido — e a sete chaves e tão sobressaltado, a modo de um cachorro lhe cravando o dente atrás? Então uma pessoa, que não creio que seja à toa, se arreda de onde enterrou o umbigo e de lá do confim inventa semelhan­te viagem, tão despreparado, nem que viesse fugindo da ilha do Diabo? Está a prêmio? Olhe o mapa aí na parede, tire uma imaginação só das distâncias, a enormidão do tempo, quinze vezes vinte e quatro horas ou mais num qualquer ca­lhambeque. Ou isto aqui não é a Capital? A toque de caixa, escapuliu de quê? Em que cumbuca apanhado? Fale nem que seja baixo, estou de oiça limpa. Me declare. Chegando aqui: Me furtaram a bordo, foi no porto de Vitória e nada mais? E fica assim numa sarapantagem? Olhe o seu inventário: suas roupagens. Deus que me perdoe. Um? Um? Uma beca só? Além do mais, que beca, de que fazenda! Um ao menos de casimira me trouxesse, um! Ou desembarcou para o zoológi­co, errou a porta? Todo nu, pintado de urucu, sendo assim servia. Mas já que veio em figura de gente, ah, não! Tenha paciência! Pra sua ciência, olhe o Mílton quando aqui desem­barcou, só de ternos trouxe sete, sete! Todos de casi­mira. Aqui se chama terno a fato. E o meu cavalheiro? Roupa é o melhor documento. Um de casimira, fosse de segunda mão, trouxesse. Ou isto aqui não é a Capital? Que então que sucedeu? Faça o seu relatório. Tão carecente das mais míni­mas coisas, qual a causa? Aí me furtaram a bordo. Fui furta­do em Vitória e só? Rasgue a fantasia e mostre o tumor, mc tire do desentendido. Estou lhe dando um vomitório? Por mal não é o que lhe digo. Conte as artes que fez. Ou que lhe [286] fize­|ram. Olhe só: sua carinha não me engana. Até suas espinhas de rapaz parecem falar. Só a sua voz não fala? Corrido?
— Corrido?
— Corrido, sim, que mais que é? Corrido?
Alfredo afeta embaraço, instiga a suspeita, mira-se no espelho da parede:
— D. Aurora!
— Da justiça?
— D. Aurora!
— Foi fazer, fugiu? Foi?
— D. Aurora!
— Vomite, ande, vomite. Vomite, que lhe aparo o vômito. Ou recolhi no seio uma serpente?
Alfredo riu. D. Aurora abanava-se, respirava fundo fez-se um pouco sufocada.
— D. Aurora, já lhe disse, fui furtado. Sim, que o di­nheiro não era senão para os primeiros dias. Um conto de réis.
— Olhe, meu filho, no seu balão não vou. Bem. Já que insiste, tão apregoa, vá lá, deixa pra lá, isso em Vitória, admi­to, não desminto nem confirmo. Mas o fogo de pegar o navio, o fogo? O sem-que-nem-pra-que do perna-pra-que-te-quero? Alguma?
Alfredo armou o espanto:
— Alguma, D. Aurora?
— E por cima debochando? Sendo você um menor e eu a dona desta casa, não está no meu dever?
D. Aurora mexe-se na cadeira, enfia a mão dentro do peito, arruma a massa dos seios, abana-se, suando as suas gorduras, ávida, piscando o olho.
— Foi fazer e... — palmeou a mão esquerda, logo cru­zou os braços.
— Lhe botaram então os javalis no calcanhar?
Levantou-se, arrastou a cadeira para o pé do rapaz, fez a voz abafada:
[287] Tudo, tudo, tudo faz crer sim. Não que eu queira adivinhar. Deixe de maquiavelismo, criança, criança, e mostre o que lhe fede por dentro que assim, sim. Se a polícia? Queria que escondesse você debaixo da minha saia?
— A polícia me levava, ora essa, D. Aurora.
— Menino, enxugue a alma na bainha desta saia, que esta, aqui, que sou eu, má mulher não é, e a hospedagem que lhe deu foi em muita consideração, que aqui? No Rio? No Rio é um buraco, olhe que é um buraco. Foi fazer, meteu-se a bordo? Fez?
— Que fiz?
— Tire a chave na fechadura e me mostre os comparti­mentos, seu cabeçudo! A sua idade está dizendo, idade assim como essa sua, Nossa Senhora da Boa Morte! Olha só o ras­gado da boca, um beiço pimentão. Essa estatura toda. Por detrás desse teu sorriso, hein? Aí que está a cavilação, índio! Olhe, batida de polícia aqui dentro de casa, Deus me defen­da. Passar pela vergonha? Me escancara a casa com um es­cândalo? A quem abri a porta?
D. Aurora desabotoa o peitilho, enxugou o rosto com o braço, apertou o cinto na barriga. Fez um rogo na voz:
— Desate seus ocultos, índio urubu. Me deixe ver essa sua mão, olha a linha... oi! Infeliz de quem te escuta e te segue... Infeliz.
Alfredo recupera a mão, levantou-se.
— Bem, D. Aurora, se assim é, por isso não, pelo bom nome de sua casa, licença, licença, só é o tempo de pegar a maleta.
— Mas ó, meu diabo! Estou te mandando embora? Vem cá! Vem cá!
Maleta na mão, vara o túnel dá com aqueles gritos. Os mesmos berros de bêbedo ou doido atroando. O berreiro ex­plode ali do escuro, da pedra, das bocas do mundo. Roda a carroça no escuro. Vai buscar o velho na Livramento?
[288] Voltou pela Camerino debaixo dos gritos, descansa no cais. Esse bicho norueguês, aqui descarregando, aceita um grumete? Venderá a maleta, os dois livros, o anel. O travesseirinho. Mas onde? pensa, agora, no menino guardado dentro do caroço de tucumã em Santana (talvez pendurado no pescoço de Dolorosa), o caroço grelando em breve um tucumãzeiro, lá em cima entre os espinhos o cacho do faz-de-conta. Aqui, meu senhor, me compre este caroço, jogue no ar e veja os resultados... Não tem preço mas fique com ele por cinqüenta mil réis pois preciso um casimira de segun­da mão. Segue, de novo, pelo túnel debaixo dos gritos, o túnel despeja escuridão e o berro sobre a praça. Deságua na Cen­tral, o trem saía.
Deita-se no banco da praça, ouviu um toque no quartel. Põe a cabeça no travesseiro. O túnel entra-lhe pelo sono, re­boando.
Mal amanheceu. Nem lhe tinham furtado a maleta? Compra o jornal, corre os anúncios e de maleta em punho chega à Conselheiro Zacarias. É o Café São Silvestre.
— É oitenta mil réis, com direito a café, refeição e duas garrafas de cerveja.
— Não tenho documento. Venho do Pará.
— Não importa. Espere o rapaz que vai lhe mostrar o serviço. Tome logo o café.
Tinha que limpar o fogão, trazer o carvão do depósito, acender o fogo. Chegava o cozinheiro.
— Aqui está o novo empregado.
— Vamos ver se dura, se presta.
O mulato, ajudante de cozinheiro, ensina-lhe a tirar do tanque as carnes velhas, a carregar o carvão, a cortar o repo­lho, a dispor da pia, tinha água quente. O cozinheiro preparava as panelas para o fogo.
— Vamos, traga mais carvão. De sapatos? Tome este tamanco, ponha o avental, parece que está com cerimônia? Vá agora buscar o carvão.
[289] Aos poucos se movimenta o frege, se amontoam os pratos, o diabo é que nem almoçou antes, como é do regula­mento. A torre de pratos cobre a pia e nova pilhas chegam. O grito do garçom se mistura ao do túnel e ao jorro das tor­neiras.
— Nunca na vida lavou prato? Tire a gordura. A gordu­ra. Ponha água quente. A gordura! A gordura!
As comidas saem, sabe Deus como, esse pescoço de gali­nha, não espreme que sai bicho. Repara no cozinheiro, um português, meio esverdeado, porco de língua, de gorro e sempre tossindo, tossindo sobre o cozido e o arroz.
— Hoje é o meu derradeiro escarro. O resto do meu bofe podre sai neste ensopado, assim me pede o Diabo. Está por pouco esta tísica. A cozinha me comeu o peito? Pois que agüentem o menu! Anda, Brito. Leva este ao molho Koch ao freguês!Os pratos se derramam, frenéticos, lava, enxuga, se empa­pa de sebo, fumaça e frio, agora sob a torrente dos talheres. Aqui devolvidos, quentes ainda das bocas saciadas. Lá fora comem o pasto brabo. Daquelas fomes lá fora chegam os pratos sujos, o sobejo, um sarro, um palito, o arroto, a náusea. Teve uma necessidade, vai aos fundos e vê, através da cerca, aquela pretinha bem pretinha a estender roupa. Pedaço de quintal! Flui sossego, a roupa lavada, o rostinho da lavadeira. O rostinho é o Pará puro, as escuras de Areinha, a mãe don­zela a estender roupa. Já o português berrando:
— Ó meu rapaz! Só agora te lembras de mijar? Mija aqui mesmo na pia, lava os pratos no mijo, que é o azeite da casa. Aos pratos! Aos pratos!
Não cessam. Lava também suas suspeitas, seus vexames, seus espantos, o medo indefinido, a cara da D. Aurora, aquele Vem cá! Vem cá!, tantas como estes pratos. E se vê quebran­do pratos, desmorona a torre, joga o avental na cara do cozi­nheiro, agarra a maleta, salta pelos fundos, rompendo a corda da roupa, ouvindo atrás dele a voz doce: ladrão! ladrão!
[290] Consegue ocultar-se num baldio, sentado na maleta, por dentro o escarro do cozinheiro, viscoso, engordurado.
Calçou os sapatos, cheirou as mãos que tinham trabalha­do, precisa fazer a barba, tomar um banho. E esse rumor de oficina?
Que anoiteceu, entrou no túnel que o recebe com os mesmos gritos, ou sai de mim este clamor? Os pratos giram. Outubro, Círio, em Belém roda no túnel a Berlinda, o Carro dos Milagres, o brigue dos serafins, mulatal do Jurunas, as descalças de São Brás, a Mãe Ciana atrás do seu Lício, os bêbedos e raparigueiros do arraial, a cabeça do Arcebispo, as cadeiras de embalo na Sociedade do Descanso, as bandas de música, os Alcântaras mais gordos, todos dentro do túnel que devora a procissão. O túnel reboa.
Chegou ao banco da praça, tirou o travesseirinho e de cada prato, no sonho, salta a menina, aquela, dançando em cima do arroz e da salada, já sentada na Berlinda, toda de cera no Carro dos Milagres, suspende a saia para os serafins, boiou entre os talheres na pia imunda.
Acordou pela madrugada. Um mendigo, sentado na male­ta, lhe pede um cigarro.
— Então vamos ao café.
O restinho dos tostões paga. Os dois ao café bebem uma cachacinha em silêncio, como se comungassem. O mendigo se benze. Mostra a medalha no pescoço, medalha essa que trazia no meio os olhos de Roberta.
De maleta na mão, flanando na Avenida, pára, surpreen­dido. Mas aquele se não é o seu Paula... Aquele fazendeiro do Curral do Meio, lá do rio de cima. Ele mesmo! Ele mesmo!
— Ó seu Paula! Ó seu Paula!
— Mas, seu menino! Que me anda fazendo, assim de maleta na mão, com cara de perdido neste colosso?
Neste colosso, perdido? Alfredo não vacilou: está rumo da Escola de Agronomia de Piracicaba.
[291] Seu Paula, não. Está com a senhora muito mal, tão mal que só Deus.
— Trouxe ela de lá faz dois meses, operou, tentou o rádium. Mas aquele caranguejo, seu menino, quando crava, crava. Venha nos ver no Largo do Machado.
Largo do Machado! Na cama, a senhora muito alva, penteado feito, sobre o seio a mão exangue. Tudo muito limpo, sossegado, lençóis brancos, a laranja descascada, o cacho de uvas, o vidro de perfume, a flor de ontem, as horas, o telefone. A que altura vem a carroça? Aqui será bem recebida. E isso deu a Alfredo:
— O senhor pode já-já me pagar a passagem de volta? Lá lhe saldo. Pode?
Corre no cais, um cargueiro, pulou a bordo.

 

 

                                                                  Dalcídio Jurandir

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades