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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CLANDESTINA... MALDITA / Anne e Serge Golon
CLANDESTINA... MALDITA / Anne e Serge Golon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Na França de Luís XTV não há espaço para os protestantes. Depois de 1685, com a revogação do Edito de Nantes, que lhes permitia relativa liberdade de culto, os huguenotes (adeptos da religião "reformada'"n o país) são combatidos comft iria implacável.

A unidade religiosa nem por isso é restabelecida. Mesmo perseguidos, os fiéis reúnem-se secretamente em locais afastados, nas chamadas "assembleias do deserto". A resistência, a princípio passiva, torna-se uma revolta aberta. Muitas vezes, Luís XTV tem de enviar suas tropas contra os camisards, assim chamados por suas camisas brancas.

Encurralados (só recuperarão legalmente seus direitos na França em 1801, com Napoleão Bonaparte), entre 200.000 e 400.000 huguenotes deixam o país clandestinamente. Levando consigo conhecimentos, experiência, capital e energia, emigram para Holanda, Suíça, Inglaterra e América. No Novo Mundo, instalam-se nas terras da Nova Inglaterra, principalmente na região de Nova York.

Angélica está entre eles. Disfarçada de criada, acaba por refugiar-se entre a comunidade de La Rochelle, tradicional reduto huguenote da França. Ali recupera forças ara uma nova aventura, em usca do grande amor de sua vida, o Conde de Peyrac.

 

"Beije-me agora!' ordena o lúbrico estuprador. "Estou certo de que sabe fazê-lo muito bem."

Angélica tomou o caminho das muralhas de La Rochelle. O sol acabara de desaparecer e o vento frio fustigava-lhe os braços seminus. Olhos fixos no horizonte, esperava ver despontar'.um navio em meio a tantos outros que ali aportavam.

Seria loucura sonhar como uma adolescente cujo coração se emociona de ter sido eleita por um misterioso príncipe dos mares, que por ela renunciaria a tudo? Não era uma mulher desencantada e vivida, marcada pela brutalidade dos homens?

Ah! Era passado o tempo em que seduzira magistralmente todos os grandes senhores da terra e do oceano: Luís XTV, o Rei-Sol; Mulay Ismael, sultão do Marrocos; o temível Rescator, o Mago do Mediterrâneo. Agora, criada anónima, perdida nas ruas de La Rochelle, mal lembrava a mulher fulgurante que tão habilmente sabia manejar as armas de seu sexo.

Não haveria homem que pudesse obter dela o milagre: ressuscitar i antiga alegria do amor, a eclosão misteriosa do prazer, a exaltação da própria fragilidade? "Seria preciso um mago", pensou, voltando o olhar maquinalmente para o mar negro e atormentado onde não" surgia nenhuma vela.

De volta à França após a fracassada" expedição ao Oriente, onde fora atrás de pistas do amado marido, o Conde Joffrey de Peyrac, Angélica, a desejada Marquesa du Plessis-Bellière, rebelou-se contra os desejos tirânicos de Luís XIV, unindo-se aos protestantes do Poitou, onde, derrotada,, caiu em desgraça. Perseguida pelas tropas de Dragões que reprimiam os últimos huguenotes, despojada de seus bens, o castelo destruído, os filhos mortos ou dispersados, a Marquesa dos Anjos acabou presa entre um grupo de salteadores. Por uma ironia do destino, um protestante, Mestre Gabriel Berne, o mesmo mercador a quem ela assaltara havia pouco, compadeceu-se de sua sorte, salvando-a junto com Honorina, a filha de dois anos. A providencial interferência de Mestre Berne, no entanto, não-impediu que. Angélica fosse marcada com a flor-de-lis - estigma infamante das pessoas sob controle da justiça.

 

 

 

 

CAPITULO I

Chegada a La Rochelle - Um moribundo recalcitrante Evocação do cerco de La Rochelle pela velha Rebeca - O garotinho solitário

A tarde caía quando o carro de Mestre Gabriel Berne entrou em La Rochelle. O céu de um azul-escuro intenso, ainda impregnado da luminosidade do dia, desdobrava-se por trás dos campanários e das muralhas seraidesmanteladas, recordação das orgulhosas fortificações abatidas por Richelieu.

Os candeeiros estavam acesos em cada esquina. A cidade dava a impressão de ser limpa e tranquila. Não se viam bêbados nem passantes de rosto patibular. As pessoas caminhavam como se passeassem, apesar do avançado da hora.

Mestre Gabriel fez uma primeira parada diante de um pórtico ainda aberto.

-        São meus entrepostos. Dão para o porto, mas prefiro desembarcar os sacos de trigo na parte dos fundos, longe dos olhares indiscretos...

Ele deixou entrar as mulas e as duas carroças e após dar ordens aos empregados voltou ao carro, que ia aos solavancos pelo calçamento de pedras redondas das ruelas, nas quais o cavalo por vezes patinava arrancando faíscas.

-        Nosso bairro entre as muralhas é bastante calmo - explicou ainda o mercador, que parecia contente por retornar a sua casa. - Estamos no entanto a dois passos do cais e... - Ia dar uma explicação, sem dúvida louvando a comodidade de estar perto do porto e longe de seu bulício, quando, a uma curva da rua, intensas luzes e vozes animadas vieram desmenti-lo.

Viam-se policiais de um lado para-outro com alabardas e archotes, cujas chamas iluminavam ostensivamente a fachada branca"' de uma alta moradia com uma porta-cocheira, ao centro, aberta.

-        Beleguins em meu pátio - resmungou Mestre Gabriel. - Que está se passando?

Desceu, contudo, do carro, sem parecer abalado:

-        Acompanhe-me, você e sua filha. Não há nenhuma razão para ficarem do lado de fora - disse ao ver que Angélica hesitava em se mostrar. Tinha ela, ao contrário, várias e excelentes razões para não acompanhá-lo naquele antro da polícia. Mas sob pena de se fazer notar, viu-se na obrigação de seguir o novo patrão.

Os soldados cruzaram as alabardas.

— Nada de vizinhos. Temos ordem de dispensar qualquer ajuntamento.

— Não venho como vizinho, sou o dono da casa.

— Bem, então está certo.

Após atravessar o pátio, Mestre Gabriel subiu alguns degraus e penetrou numa entrada de teto baixo, sombreada por quadros e pesadas tapeçarias. Um castiçal de seis braços ardia sobre um consolo.

Um garoto desceu a escada de pedra apressadamente, de dois em dois degraus.

— Rápido, pai, suba. Os papistas querem levar o tio à missa.

— Ele tem oitenta e seis anos e não pode andar. Deve ser uma brincadeira - disse Mestre Gabriel, tranqiiilizando-o.

No alto da escada, um homem vestido com esmero em veludo castanho, e cujos punhos e a gravata, assim como a peruca bem-tratada, traíam a posição elevada, aproximou-se com passo frouxo e desconsolado.

— Meu caro Berne, estou bastante contente em vê-lo. Sentia-me consternado por me ver na obrigação de forçar sua porta em sua ausência, mas tratava-se de um caso excepcional...

— Senhor tenente-general, muito me honra sua visita - disse o mercador, inclinando-se profundamente -, mas poderia pedir-lhe algumas explicações?

— O senhor deve saber que novos decretos, que não podemos deixar de aplicar, exigem que todo moribundo pertencente à religião pretendida reformada seja visitado por um padre católico, para que na medida do possível possa deixar este mundo liberto das heresias que o privarão da salvação eterna. Sabendo que seu tio, o Sieur Lázaro Berne, estava à morte, um zeloso capuchinho, Padre Germano, acreditou ser de seu estrito dever trazer o cura da paróquia mais próxima, acompanhado do meirinho, segundo as formalidades necessárias.

"Tendo sido mal acolhidos pelas mulheres de sua casa - ah! essas mulheres, meu pobre amigo! -, eles não puderam cumprir a missão, embora, pela reconhecida amizade que lhe dedico, tenha sido eu chamado para acalmar as damas, com o que me felicitei, pois seu pobre tio, antes de morrer..."

— Ele morreu?

— Está por poucos instantes. Seú tio, dizia eu, diante da aproximação da eternidade, foi enfim iluminado pela graça e pediu para receber os sacramentos.

Súbito ouviram-se uns gritos histéricos e estridentes de menina.

-        Isso não!... Não na casa de nossos antepassados...

O tenente-generalagarrou pela cintura uma pequena forma magra que se precipitava, fechando-lhe a boca com a mão carregada de anéis.  

-        Mestre Berne,"é sua filha? - perguntou com frieza, ao mesmo tempo em que dava um rugido. - A desaforada me mordeu!...

Do interior da casa vinha o rumor de um tumulto.

-        Uh! UhL. fora daqui...

Uma velhota parecendo uma feiticeira surgiu de um corredor lançando projeteis. Angélica viu que eram cebolas. Fora o que caíra nas mãos da velha huguenote... Criados vibravam os grossos sapatos nas lajes do vestíbulo.

Apenas Mestre Gabriel permanecia impassível. Ordenou secamente que a filha se calasse.

Entretanto, o tenente-general fizera um sinal da janela. Soldados subiram. A presença deles acalmou a agitação, e a curiosidade aglutinou todo mundo à entrada do quarto. Sobre um travesseiro, Angélica distinguiu vagamente a cabeça de um ancião, que de fato parecia nas últimas, se já não estava morto.

-        Meu filho, trago-lhe Nosso Senhor Jesus Cristo! - disse o padre, avançando.

Tais palavras tiveram um efeito mágico. O velho abriu, de súbito, um olho extremamente agudo e vivo e ergueu a cabeça na extremidade do longo pescoço descarnado.

-        Não creio que isso esteja em seu poder.

— Há pouco o senhor consentiu...

— Não tenho lembrança.

— Não se poderia interpretar de outro modo o movimento • de seus lábios.

— Tinha sede, era tudo. Mas lembre-se, senhor padre,-de que, se comi couro cozido e sopa de espinhos durante o cerco de La Rochelle, não foi para cinquenta anos mais tarde negar as crenças em nome das quais vinte e três mil dos vinte e oito mil habitantes de minha cidade morreram.

— O senhor esta dizendo disparates!

— É possível, mas não me fará dizer disparates ao contrário.

— O senhor vai morrer.

— Não, senhor!

E gritou com voz curiosamente trémula, mas ainda alegre:

-        Que me tragam um copo de vinho de Borderies.

Os criados estouraram de rir. O tio ressuscitava. O capuchinho, ultrajado, pediu silêncio. Era preciso castigar aqueles insolentes heréticos. Passar pela prisão ensinar-lhes-ia a mostrar uma deferência, se não de coração, ao menos aparente. Um regulamento especial fora aliás instituído para aqueles que, por seu comportamento, incitavam ao escândalo.

Nesse momento, um cheiro de queimado chegou às narinas de Angélica, sugerindo-lhe que se afastasse desses debates, dos quais nada de bom poderia advir para ela nem para ninguém, e se dirigisse à cozinha.

Era uma poça imensa, quente, bem mobiliada, e que de imediato lhe foi simpática. Ela apressou-se em colocar Honorina numa poltrona junto ao fogão, e destampando a panela viu batatas começando a caramelizar, mas que ainda era possível salvar da calcinação definitiva. Lançou uma concha de água no caldeirão, diminuiu o fogo e depois, olhando em torno, decidiu arrumar a longa mesa de centro.

A discussão acabaria por se acalmar, e, como criada, era sua obrigação preparar a refeição.

Ela continuava aturdida e sofrivelmente impressionada com a bizarra cena da chegada. Uma casa protestante talvez não fosse o refúgio ideal. Mas o mercador tratara-a com humanidade. Parecia não ter nenhuma suspeita quanto a quem ela era. Perder-lhe-iam a pista. Quem viria procurar a criada de um mercador de La Rochelle? Empurrou a porta de uma despensa escura e fresca e encontrou o que procurava: reservas de víveres cuidadosamente arrumadas e etiquetadas.

— É sua criada? - ouviu-se a voz do intendente.

— Sim, monseigneur.

— Pertence à religião pretendida reformada?

— Pertence.

— E a criança?... Sua filha?'y'ma bastarda, sem dúvida. Nesse caso deve ser criada na religião católica... Foi batizada?

Angélica permanecia cuidadosamente de" costas, preparando as batatas. O coração lhe saltava. Ouviu Mestre Gabriel responder que empregara há pouco a criada, más que não deixaria de informar-se sobre sua situação e a da menina, e de mantê-la a par das leis.

— E sua filha, Sn Berne, qual é a sua idade?

— Doze anos.,

— Precisamente. *Um~rècénte decreto autoriza as meninas criadas na religião pretendida reformada, a escolher, desde os doze anos, a religião à qual desejam pertencer.

— Creio que minha filha já escolheu, como o senhor pôde perceber há pouco - murmurou Mestre Gabriel.

— Caro amigo - a voz do intendente era seca -, deploro que encare minhas sugestões com um espírito, como direi, um tanto cáustico, e até mesmo rebelde. Lamento insistir. Tudo isso é extremamente sério. E não tenho senão um conselho a dar-lhe: abjure... abjure, creia-me, antes que seja demasiado tarde, o senhor se poupará inúmeros aborrecimentos, inúmeros dissabores.

Angélica preferiu que o Sr. de Bardagne fosse discursar em outro local. Estava cansada de voltar as costas e atiçar o fogo, para disfarçar seu embaraço.

Por fim a voz se perdeu na escada. Pouco depois, a porta da casa e a do pátio estalavam sob o ruído de botas e de cascos de cavalo, e os membros da família surgiram, um após o outro, na cozinha, postando-se em pé ao redor da mesa. A velha criada que lançara as cebolas correu com um passinho de ratazana até o fogão e deu um suspiro de alívio ao verificar que a refeição, que esquecera por completo na febre dos acontecimentos, não sofrera dano.

-        Obrigada, minha bela - cochichou a Angélica. - Sem você, o patrão ter-me-ia passado um carão.

Depois de pousar a travessa, a velha criada Rebeca conservou-se na ponta da mesa e o Pastor Beaucaire tomou a palavra para uma breve alocução, talvez uma prece pedindo a bênção de Deus para a frugal refeição. Em seguida todos se sentaram. Angélica permanecia pouco à vontade, junto ao fogão. Mestre Gabriel interpelou-a:

-        Dame Angélica, aproxime-se e tome lugar à mesa. Os criados sempre fizeram parte da família. Também sua filha nos honra com sua presença. A inocência atrai a bênção de Deus sobre uma casa. É preciso encontrar uma cadeira para seu tamanho.

Marcial, o garoto, disparou e voltou pouco depois com uma cadeira de bebé que devia ter sido relegada ao último andar desde que o caçula de sete anos vestira as primeiras calças. Angélica ali sentou Honorina, que passeou pela assembleia um olhar olímpico.

A luz amarelada das velas, pareceu examinar com o maior cuidado aqueles rostos citadinos surgidos da escuridão sobre peitilhos e golas imaculadas. A sombra ocultava-lhes os trajes negros. As asas brancas das toucas das mulheres, como pássaros incertos, voltavam-se para ela. Fixou então sua escolha no Pastor Beaucaire, na outra extremidade da mesa, e dirigiu-lhe seu sorriso mais encantador, com uma mímica expressiva e algumas palavras, não muito bem compreendidas, mas de cuja intenção amável não havia dúvidas. Esse tato em suas preferências, fixadas de imediato na personagem mais honrada daquela sociedade, encantou a todo mundo.

— Senhor, como é bela! - exclamou a jovem Abigail, filha do pastor.

— Como é graciosa! - disse Severina.

— Seus cabelos são como o cobre das caçarolas - gritou Marcial.

Riam encantados, felizes, enquanto Honorina continuava a contemplar o pastor com admiração devotada. O velho homem pareceu comovido e mesmo envaidecido por ter podido inspirar sentimento tão exclusivo à jovem senhorita. Solicitou que fosse a primeira a ser servida.

-        Os pequenos são reis entre nós. O Senhor gostava de recebê-los.

Falou da parábola da criança que Jesus colocara entre os adultos de espírito atormentado, dizendo-lhes: "Se não se tornarem semelhantes a esta criancinha, não entrarão no reino dos céus".

Os semblantes recobraram a gravidade para escutá-lo, e o filho mais velho, levantando-se, serviu a rriesa, como era usual nas famílias burguesas.

— Pai - perguntou Severina, a garota de doze anos, em tom apaixonado -, que teria feito se obrigassem tio Lázaro a comungar? Que teria feito?

— Não se pode obrigar alguém a comungar, minha filha. Os próprios papistas considerariam isso um sacrilégio, sem valor diante de Deus.

-        Mas se o tivessem feito, como teria agido? Tê-los-ia matado?

Severina tinha pupilas negras, devoradoras, num rostinho gredoso, ao qual â touca branca semelhante à de uma camponesa conferia uma expressão envelhecida.

-        A violência, rriinha filha... - começou Mestre Gabriel.

Ela fez uma careta com a boca ingrata.

— Naturalmente teria permitido que o fizessem. E a desonra cairia sobre nossa casa.

— Não são* as crianças que podem julgar tais coisas - gritou Mestre Gabriel, subitamente encolerizado.

Era um homem de aspecto tranquilo e que facilmente se imaginaria capaz de aproveitar a vida. Na verdade, apesar da silhueta levemente pançuda e da suavidade dos olhos azuis, não haveria homem mais distante de tal definição. De seu contato com ele, Angélica deveria aprender que o habitante de La Rochelle esconde a dureza do gelo sob uma morna capa materialista. Então lembrou-se de repente das bastonadas que ela própria recebera na estrada de Sables d'01onne. Feito para sentar-se diante das verdelhas e saborear-lhes a macia perfeição, ele se alimentava sem pesar com um pedaço de pão e um dente de alho, como o bom Rei Henrique, o qual fora durante muito tempo hóspede de La Rochelle, antes de ir assistir à missa em Paris."

Depois que a família se retirou para uma outra peça a fim de ler a Bíblia, Angélica, que ficara sozinha com a velha criada, sentiu-se profundamente deprimida.

— Não sei se de fato essa refeição a satisfaz - disse ela -, mas minha filha não comeu o suficiente. Mesmo no fundo da floresta, sempre foi mais bem alimentada do que nesta casa, que no entanto parece rica. Será que a fome e a miséria do Poitou estenderam-se até aqui?

— Que está imaginando? - exclamou a velha, indignada. - Nós, de La Rochelle, somos os mais ricos de todas as cidades do reino. E no entanto quase perecemos. Depois do cerco, não se teria encontrado um rabanete. Mas vá ver agora, nos entrepostos, no cais... Transbordamos de mercadorias, vinhos, sal e víveres.

— Mas então por que essa parcimônia?

— Ah! Bem se vê que não nasceu aqui! Saiba que depois do cerco permaneceu entre nós o hábito de cortar um arenque em quatro e de contar as batatas. Era preciso ver o pai do sr. Gabriel! Ah! Que homem admirável! Poderiam fazê-lo comer pedra sem que percebesse! Era exigente somente quanto aos vinhos. Os melhores vinhos de Charentes estão em nossa adega - ajuntou, estalando o tamanco no lajedo da cozinha.

Enquanto falava, limpava os pratos e começava a lavá-los em uma tina de água quente. Angélica olhava-a, os braços pendentes ao longo do corpo. Era decididamente uma criada lastimável. Mas tinha fome. Sentia frio, como se fosse cair doente. A" queimadura do ombro supurava e colava-se ao corpete. Cada movimento recordava-lhe o minuto infamante, o medo, a tortura da angústia, coisas ainda tão recentes, que as sentia sobre si como uma fria sombra.

Tomou Honorina nos braços. Ela não reclamava. Jamais reclamava. O refúgio dos braços da mãe parecia bastar-lhe. Talvez fosse como esses protestantes que desejam apenas uma coisa essencial para viver e que podem desligar-se das outras. Como haviam sorrido para a criança há pouco! A criança maldita!... Deveria permanecer sob esse teto?... Deveria afastar-se? Para que refúgio?

— Aqui tem coalhada e pão para a pequena - disse a velha criada, colocando uma enorme porção num canto da mesa.

— Mas se seus amos...

— Nada dirão, sobretudo por ela... Conheço-os. Depois deitá-la-á aqui.

Ela mostrou a Angélica uma vasta cama, bastante alta e coberta de edredons, num nicho da cozinha.

— Não é o lugar onde você dorme?

— Não, tenho uma enxerga embaixo, na loja. Ali durmo para vigiar os ladrões.

Assim que alimentou e deitou a menina, Angélica voltou para o fogão. Não teria coragem de dormir nessa noite. Preferia cem vezes reter a velha Rebeca, tagarela, que poderia aconselhá-la em sua existência futura. A velha atiçava a? brasas.

-        Sente-se, minha bela -disse, indicando um escabelo à sua frente. --- Vamos comer um caranguejo com um bom vinhozinho de Saint-Martin-de-Ré. Isso porá o estômago no lugar.

O caranguejo, que tirou de um viveiro na despensa, era enorme como um prato. Mexia-se vagamente, e de violeta passou a rosa e vermelho. Rebeca vírou-o habilmente com um atiçador, depois partiu-o com destrezas deu.-a metade a Angélica.

-        Faça como eu, segure a faca deste modo. E deixe apenas a carcaça. Tudo é bom num caranguejo.

A carne fumegante, extraída com pinça, tinha o sabor do mar, seu gosto tão diferente dos produtos da terra,.parecendo levar à nostalgia dos horizontes distantes, à poesia das praias.

— Prove o vinho - indistiu Rebeca. - Recende a sargaços. Ela aplicou o ouvido, inquieta.

— Dame Ana poderia vir até aqui. Ficaria aborrecida... Mas a vasta casa estava em silêncio. Depois dos salmos todos

tinham ido deitar-se. EFm candeeiro-a óleo velava junto ao velho doente. No subsolo, Mestre Gabriel fazia contas. Na cozinha o fogo crepitava. E por trás das portas ouvia-se um rumor sussurrante: o mar.

— Certamente você não é dos nossos - retomou a velha. - Com esses olhos, vem da Bretanha, talvez?

— Não, venho do Poitou - disse Angélica, arrependendo-se imediatamente de ter falado.

Quando aprenderia a considerar o mundo hostil, cheio de ciladas?

-        Houve brigas por lá! - disse a outra, com ar entendido. - Vamos ver, conte-me um pouco:

Seus olhos brilhavam de curiosidade.

-        Ah! entendo - retomou, ao ver que Angélica continuava em silêncio. -, você viu tantas coisas, que não ousa falar. E como a Joana ou a Madalena, as primas do padeiro, ou como aquela gorda Sara, da aldeia de Vernon, que quase ficou louca. Não faça essa cara, eu não disse nada. E coma. Tudo dará certo, vamos! Cada qual se acredita a mais infeliz, mas sempre haverá uma outra com coisas piores para contar. A guerra, os cercos, a fome, que quer que lhe tragam? A desgraça. E por que seria esquecida na distribuição? Não haveria motivo. "Quando o alferes cavalga, a moça perde a honra", diz o provérbio. Eu vivi o cerco, meus três filhos morreram de fome. Vou contar-lhe...

Angélica pensou, levemente chocada com aquele raciocínio simplista: "Sim, mas eu era a Marquesa du Plessis-Belliere".

Sob a alta touca, a velha Rebeca tinha uma face murcha, com olhos risonhos enterrados nas rugas. Mesmo quando falava com gravidade de coisas trágicas, o olhar conservava o brilho divertido.

-        Quanto a mim - disse Angélica em voz alta, surpreendendo-se ao ouvir a si mesma -, carreguei nos braços meu filho degolado.

Seu corpo todo estremeceu.

-        Sim, compreendo-a, minha bela. Quando se perde um filho, passa-se para um outro mundo. Não se é mais semelhante aos outros. Os meus foram três, eu disse três inocentes que deitei no túmulo durante o cerco.

"Vivi o cerco, sim, minha filha; tinha vinte e cinco anos e era mãe de três filhos, o mais velho com sete anos. Foi o primeiro a partir. Eu pensava que ele dormia e não queria despertá-lo, dizendo-me que enquanto dormisse teria menos fome. Mas à noite, comecei a sentir-me inquieta, vendo que não se mexia... E à medida que me aproximava do leito, compreendi. Estava morto desde a manhã. Morto de fome! Eu lhe,disse, minha filha, as guerras, os cercos, por que quer que tragam felicidade?"

— Mas por que você não tentou sair da cidade? - lançou-lhe Angélica. - Era impossível?

— Fora da cidade havia os soldados do Sr. de Richelieu. E não era eu quem podia decidir se a cidade estava vencida ou não. Todos os dias esperava-se o inglês. Mas o inglês viera e partira; e o Sr. de Richelieu erguera sua barreira. Todos os dias acreditava-se que algo iria acontecer. O que, exatamente? Os soldados morriam de fome nas muralhas. Meu homem partiu, dolente. Não tinha mais forças para carregar a alabarda, e vi que se apoiava à parede. Quando certa noite não voltou, compreendi. Morrera em meio ao sono, sob as muralhas, e o haviam lançado à vala comum. Não ousavam jogar os cadáveres pelas muralhas, para que as tropas reais não percebessem que breve não restaria mais ninguém na guarnição... A fome é algo impossível de se descre-er ou fazer entender quando não se a conheceu... Sobretudo quando dura muito tempo... Quando se sai à rua, a cada vez se espera... Achar-se-á alguma coisa... Procura-se por todo lado, em cada canto, sob os degraus, nos muros, como sehouvesse algo de comer entre as pedras... uma erva... Quando ouvia uma ratazana no teto, aue felicidade! Espreitava-se durante horas, e meu mais velho era bastante hábil em agarrá-las. Houve um mercador flamengo que vendeu peles velhas de seis ou sete anos. Elas fizeram um grande bem. A cidade comprou oitocentas, dando'-as aos soldados e aos habitantes capazes de usar armas. Cozmhando-as, obtinham-se boas geléias... Pude consegui-las para os dois filhos que me restavam... E tudo o que acontecia era um pouco mais de dor a cada dia... Nas ruas não se viam senão esqueletos terrosos, corpos amortalhados que eram arrastados ao sepulcro... O marido carregava a mulher ao ombro como uma peça de toucinho... Duas filhas numa padiola, o velho pai... a mãe trazia o filho nos braços como para o batismo...

— Não podiam deixar a cidade? Fugir da fome?

— Fora das muralhas os soldados do rei nos esperavam. Os homens, eles os enforcavam, das mulheres faziam o que queriam, as crianças?... Sabe-se láo que lhes acontecia nas mãos deles! E depois não se podia deixar a cidade. Seria dizer que ela fora vencida. Há coisas que não se pode fazer. Não se sabe por quê. Devia-se morrer com ela ou então... Já não me recordo quando meu segundo filho morreu. Lembro-me apenas de que, quando os deputados foram ajoelhar-se diante do Rei Luís XIII com as chaves de La Rochelle numa almofada, restava-me apenas o menor... As pessoas gritavam, afobavam-se: "Para as portas... carroças, pão..." E eu corria também... acreditava que corria, mas devia arrastar-me como os outros, como fantasmas, apoiando-me de parede em parede.

"Dir-se-iam todos uns fantasmas... Eu olhava o pequeno, seus olhos negros enormes no rosto miúdo, e dizia comigo: 'Está acabado, os deputados foram fazer a rendição... O rei entra na cidade, o pão entra na cidade!... Está acabado, a cidade está vencida. Mas restar-lhe-á este último. Ao menos este. A rendição veio a tempo para o pequeno', dizia comigo... 'mais alguns dias e você seria uma mãe de braços vazios. Deus seja louvado!' Pois bem, sabe o que aconteceu?

— Não - disse Angélica olhando-a com terror, sem pensar que o cerco remontava a quarenta e quatro anos.

— Pois bem! Mas beba ao invés de deixar que o vinho esquente, o vinho da ilha de Ré deve ser bebido bem fresco. Pois bem! Os soldados distribuíram nas portas michas de pão ainda quentes dos fornos do campo militar. Tinham ordens de comportar-se bem com os valentes habitantes de La Rochelle... Os soldados, quando não são instigados, você sabe, são homens como os outros... vi mesmo alguns que choravam ao nos olhar... Então eu comi, comi, e o pequeno comia também, segurando a micha com as duas mãos, como um esquilo... E, de repente, ele morreu... De comer muito e rápido demais... A cabeça tombou sobre o ombro e estava acabado. Não me restou senão enterrá-lo, como aos outros..."E que pensa que me aconteceu depois?... Fiquei louca, é claro, quase louca... Pois bem, minha filha, guarde ao menos algo de tudo isso. Seja o que for que se tenha passado, que se tenha sofrido, a vida é como uma aranha que renova os fios partidos mais rápido do que se espera, e isso é algo que não se pode impedir...

Ela interrompeu-se um instante, e ouviu-se o som da faca com que raspava habilmente a carapaça do caranguejo.

-        No começo, consolava-me comendo - retomou. - Ver todas as coisas de que estivéramos privados ao alcance da mão dava-me uma espécie de contentamento, e, enquanto isso, esquecia. Depois consolei-me olhando o mar. Ia até as falésias e lá ficava muito tempo. Ouvia o ruído das picaretas demolindo as muralhas e as torres de La Rochelle, de nossa cidade orgulhosa. Mas o mar lá estava e ninguém poderia tirá-lo de mim. Eis o que me consolava, minha filha... Depois um homem amou-me. Era um papista. Havia tantos, então, em La Rochelle! Dir-se-ia que saíam do calçamento. Mas aquele sabia falar bem de amor, e isso era tudo o que eu lhe pedia. Poderíamos ter casado, mas precisava converter-me. Isso, sinceramente, não estava entre minhas predileções. Ele partiu num navio para Saint-Malo, onde tinha parentes e uma herdade. Não mais o vi... Pouco importava! Ele dera-me um filho, um menino... E eu tinha que voltar a viver, não é verdade? Os filhos nos dão força.

Tendo concluído o relato, Rebeca levantou-se e sacudiu as lascas de carapaça do avental. Depois aplicou novamente a orelha,

atenta.      

- Não, agora estou ouvindo o mar. Dir-se-ia que se aborrece, o velhaco. Vamos ver.        

No fundo do reduto onde se encontrava a cama, ela abriu uma janela, a folha de madeira e a vidraça com caixilhos de chumbo. O ar engolfou-se com seu rico odor de algas e de sal. O barulhos das ondas contra as muralhas obrigava a elevar-se a voz.

Nuvens passavam, adquirindo diante da lua um matizado cor de chumbo, como fumarolas, com movimentos de echarpe. No claro-escuro da noite agitada, as muralhas impunham, imóveis, sua massa negra. A esquerda perfilava-se um torre encimada por uma alta pirâmide gótica,_çom.um farol na extremidade para os navios que transpusessem as correntes do mar de Pertuis, entre as ilhas. Via-se a silhueta de uma sentinela com a alabarda. O soldado tinha as costas curvadas contra o vento. Após avivar a chama que se via dançar entre as ogivas da torrinha, desceu as escadas em caracol, abrigando-se no corpo da guarda.

Apenas uma ruela estreita separava, a casa de Mestre Gabriel das muralhas. Um garoto ágil poderia divertir-se em saltar da janela para o caminho de ronda. Rebeca explicou a Angélica que conhecia todos os militares que montavam guarda de noite e de dia na Torre da Lanterna. Pois enquanto debulhava as ervilhas diante da janela aberta, ou remendava as meias da família, eles passavam bocejando, e conversavam com ela. Era a primeira a saber da vida inteira do porto, pois as sentinelas da Torre da Lanterna devia assinalar a chegada das frotas de sal ou de vinho provenientes da Holanda, de Flandres, da Espanha, da Inglaterra ou da América, e cada navio, de guerra ou de comércio, estrangeiro ou de La Rochelle. Assim que uma vela branca apontava no horizonte, na frente das ilhas de Oléron ou de Ré, o homem chegava a trompa à boca. Depois, na entrada da enseada, um sino tocava demoradamente. E a efervescência tomava conta dos-corretores, mercadores e armadores. As pessoas jamais se enfadavam em La Rochelle, com tantos navios que a cada dia despejavam no cais a vida do mundo inteiro.

No passado, as chegadas eram assinaladas da Torre de São Nicolau, mas agora que metade da bela torre estava destruída, tal honra cabia à Lanterna.

Era uma sorte para a casa de Mestre Gabriel. Rebeca podia louvar ao Senhor por tê-la guiado até aquela casa, para oferecer seus serviços.

Ela fechou a janela, recolocou os painéis de madeira e o silêncio voltou, mais profundo ainda por ter sido arrancado dos tormentos da tempestade. Angélica passou a língua nos lábios. Estavam frios e salgados.

Viu que Honorina havia acordado. Erguida no leito, com o cabelo luzidio sobre os pequenos ombros nus, parecia uma sereia bebé que ouvisse o chamado das ondas. Os olhos vagos estavam dominados por um estranho devaneio. Angélica deitou-a e cobriu-a. Lembrou-se de que Honorina estava marcada com o sinal de Netuno.

O garotinho de sete anos estava sentado no último degrau da escada que conduzia aos outros andares. Escondido na sombra, devia ter escutado avidamente as histórias da velha criada, que passou por ele balançando a cabeça;

-        Esta criança roubou a vida da mãe quando veio ao mundo. Ela não é amada...

E começou a descer a escada, resmungando:

-        Órfãos que sofrem, mães que choram, é assim mesmo... A ronda das lágrimas não terá fim tão cedo, ouça o que estou dizendo...

Sua coifa tornou-se um ponto branco que se perdeu na escuridão.

-        E preciso deitar-se - disse Angélica ao garotinho.

Ele ergueu-se docilmente. Tinha um semblante doentio. O nariz escorria. Os cabelos secos acentuavam-lhe o mísero aspecto.

-        Como se chama? - perguntou ela.

Ele não respondeu e pôs-se a subir a escada, roçando pelas paredes, como um rato assustado. Quando já estava no andar de cima, ela se deu conta de que ele não pedira uma vela e então alcançou-o rapidamente.

-        Pequeno, espere, você não está enxergando nada, poderia cair--- Tomou-lhe a mão, uma patinha fria e franzina, e aquilo lhe doeu no coração. Era a lembrança de um gesto infinitamente doce, que não fazia há muito tempo.

Ele continuou subindo, e ela o acompahou. Era como uma pequena sombra encarnada, misteriosa, a arrastá-la. Parecia que agora fora ele quem a tomara pela mão.

-        É aqui que você dorme?'

Ele assentiu com o queixo, olhando-a desta vez como se não acreditasse em sua presença. Haviam arrumado na água-furtada um leito que mais se parecia a um eatre. A enxerga não devia ser sacudida com frequência, os lençóis eram duvidosos, a coberta, muito leve para a estação. Ali devia ser gelado no inverno. Na moldura de uma trapeira redonda, a. lua mostrava por instantes o pálido rosto, e iluminava, Sob a malha de sólidas vigas, o amontoado de objetos heteróclitos, cofres, móveis em desuso.     -

Bem em frente à cairia havia um espelho quebrado.

-        Isto lhe agrada? --- perguntou ela ao menino. - Não sente frio ou medo? Não há coisas que se movem, algumas vezes?

Ela captou-lhe d olhar assustado.

"Certamente há ratos", disse consigo, "e ele sente medo."

Começou a despi-lo. Aqueles ombros magros em suas mãos eram o corpo frágil de FJorimond quando pequeno, os lábios fechados, os de Cantor, que falava tão pouco, mas cantava em segredo, a nostalgia no olhar, a de Carlos Henrique, que sonhava com a mãe.

Ele parecia espantado com que o ajudassem a se despir. Queria ele próprio tirar as roupas, que dobrou com o maior cuidado sobre um escabelo. Dava a impressão de ser ainda mais magro na camisa branca.

"Este menino está morrendo de fome."

Ela tomou-o nos braços e apertou-o contra si. Lágrimas corriam-lhe dos olhos sem que ela se desse conta. Não fora mais que uma mãe superficial, disse consigo. Defendera-o.s do frio e da fome, como os animais, porque eram seus filhos"," mas o deleite do coração em apertá-los contra si, em encher os olhos com a visão deles, em viver sua vida, ela não o conhecera e não. o buscara. As raízes que a ligavam a eles ela só as sentira quando lhe foram cruelmente arrancadas. A chaga viva continuava a sangrar, cavando a dor daquilo que poderia ter sido e que ela negligenciara. "O meus filhos! meus filhos!..." Tinham vindo muito cedo. Haviam atrapalhado sua vida. Ela ressentira-se por vezes com sua presença, que a forçava a desviar-se do próprio tiestino para ocupar-se com o deles. Não estava madura para os prazeres delicados. E preciso que nasça a mulher, antes de nascer a mãe.

Ela cobriu o garotinho, sorrindo-lhe para que ele não se espantasse com suas lágrimas. Depois de beijá-lo, desceu.

Nos fundos da cozinha., junto ao leito, tirou o primeiro corpe-te e depois escovou demoradamente os cabelos. Agora não queria mais partir. A casa das muralhas, em frente ao mar, estava cheia de esperança e a protegeria.

CAPÍTULO II

A criada Angélica - O semblante de Gabriel

Berne - Seu amo não- lhe é desconhecido

No dia seguinte, Dame Ana entregou-lhe, não sem solenidade e palavras apropriadas, uma Bíblia encadernada em pergaminho preto.

-        Notei, minha filha, que você não se junta às preces. Sem dúvida deixou enfraquecer sua fé. Aqui tem o Livro dos Livros, no qual toda mulher crente pode haurir ò espírito.de submissão, de fidelidade e de devòtamentó necessário à sua condição.

Quando ficou sozinha, Angélica, após revirar a Bíblia nas mãos, partiu à procura de Mestre Gabriel. O empregado informou-a de que ele estava nó andar térreo, nos armazéns, onde ficavam os livros de contas.,

O pátio dava-acésso, hum nível abaixo, a duas ou três salas amplas, onde o comerciante guardava as mercadorias mais preciosas, entre elas amostras de vinhos de Charentes e aguardentes, dos quais era um dos maiores fornecedores para a Holanda e a Inglaterra. Justo naquele momento, um capitão inglês se retirava após fazer uma encomenda e, sem dúvida, ter provado a bebida. Pairava um odor de aguardente, e moscas rodavam em torno das duas taças de vidro onde se havia bebido.

O capitão inglês passou, empertigado, tirando no entanto o chapéu desbotado diante de Angélica, enquanto formulava um cumprimento à "charming wife ofMaitre Gabriel". Este, sem levantar o nariz dos livros, retificou secamente:

— Not my wife: servant...

— Oh! yes - disse o inglês, saudando novamente, com ar radiante.

Angélica, que não falava o inglês, não acompanhara o diálogo, nem procurara interpretá-lo. Estava preocupada em excesso com as reações que se seguiriam à sua confissão.

-        Mestre Gabriel - disse, reunindo coragem -, devo desfazer um fnal-entendido. Deveria tê-lo feito antes. Não pertenço à religião reformada como o senhor e os de sua família parecem supor. Sou... católica.

O mercador estremeceu e pareceu bastante contrariado.

— Mas então por que se deixou marcar com a flor-de-lis? - gritou. - Deveria ter proclamado sua confissão. Ter-se-ia poupado o horrível suplício. A lei é expressa: toda mulher reformada, culpada de qualquer delito, deve ser marcada com a flor-de-lis e chicoteada. Graças ao juiz correligionário que encontramos em Sables, consegui evitar o chicote. Mas ele não podia passar por cima da outra parte da condenação, pois você fora presa com perigosos bandidos. Sabia que três deles foram enforcados e os outros condenados às galeras?

— Eu o ignorava. Pobre gente!

— Você não parece tão comovida! No entanto, eram seus companheiros...

— Mal os conhecia.

Mestre Gabriel fez um gesto largo, lançando tinta em suas contas.

-        Por que então não se explicou a tempo, infeliz?

Ele secou a mancha com cuidado e limpou a pena.

-        Para uma católica, ser marcada com a flor-de-lis significa reconhecê-la culpada de delitos infamantes: assassinato, prostituição, roubo. Você corre o risco de ser presa ou enviada como colono para o Canadá, se a descobrirem. Por que não falou a tempo?

Ele examinou-a com atenção e disse a meia voz:

— Talvez não quisesse que lhe fizessem muitas perguntas.

— De fato, não, Mestre Gabriel. Não queria. Naquele momento só pensava em minha filha. Ainda ignorava que a tinha salvado. Abandonei-me, sem compreender o que me acontecia... Agora é tarde. Estou marcada para sempre. Mas só o senhor o sabe, Mestre Gabriel, se não me trair...

— Já a acolhi em minha casa. Ninguém atentará contra sua segurança enquanto estiver sob meu teto. Tal é a antiga lei da hospitalidade.

— Não me mandará embora?

— Por que a mandaria embora?

— Tratarei de não decepcioná-lo em sua confiança, Mestre Gabriel, no entanto... quero logo dizer-lhe que...

— Sei o que quer dizer-me - resmungou ele. - Que não pretende converter-se. Nada a impede, no entanto, de ler a Bíblia. Abria-a todos os dias, não importa em que página. A cada vez achará a resposta necessária. Sua leitura a lembrará um país esquecido e elevará seu coração.

E recolocou-a nas mãos de Angélica.

Um sol do sul inundava o pátio, no centro do qual erguia-se uma palmeira de tronco piloso, desdobrando os ramos em leques aguçados sobre o céu de um azul límpido e claro. Ao longo da parede, perto de um banco,, yiam-se lilases-da-espanha, uma fileira de malvas-rosa grandes como repolhos, e, em jarros antigos, buques de goivos castanhos e amarelos. A um canto, sob uma abóbada de conchas, 'havia um tanque com uma fonte, cujo murmúrio completava o exotismo desse misto de pátio e de jardim de província, sobre o qual a alta porta-cocheira fechava-se, protetora.

Angélica voltou, pegando diligentemente as taças para lavá-las na cozinha.

— Mestre Gabriel, perdoe-me por incomodá-lo novamente. Da-me Ana é a responsável pela casa? Devo pedir ordens a ela?

— Minha tia jamais soube distinguir uma caçarola de um chapéu - resmungou ele. - Quando se mete nisso, a coisa vai de mal a pior, e ademais isso a aborrece.

— Então, quem deve dirigir a casa?

— Você, por que não? - disse, olhando-a por cima dos óculos. - Você tem o ar de uma mulher entendida. Que se tenha de comer na panela e ausência de poeira nos móveis é tudo o que peço. Para as compras, você me pedirá dinheiro. Aqui tem algum.

Ele entregou-lhe uma bolsa. Esses detalhes domésticos irritavam-no visivelmente, como à maior parte dos. homens. No entanto, lembrou a Angélica:

— Atenção, exijo contas precisas. Sabe escrever e contar?

— Sim, senhor - respondeu Angélica.

Ao anoitecer, após ter servido à família, sob o olhar perpiexo de tia Ana, uma sopa de couve com toucinho, peixes grelhados temperados, cobertos de manteiga, uma torta de maçãs e saladas; após fazer brilhar os tachos de cobre da cozinha, esfregar os belos móveis dos quartos e arrancar um sorrisp do pequeno Laurier com a história da Gata Borralheira, Angélica, estafada mas tranquila, sentiu que fizera um novo pacto com a vida. Questões cruciais, como saber se escaparia definitivamente às buscas do rei, ficaram relegadas a um segundo plano, sendo-lhe bem mais importante saber se o garotinho dormiria em paz naquela noite.

Foi vê-lo várias vezes na água-furtada. Acariciou-o, contou-lhe histórias, repreendeu-o um pouco, mas a cada vez que subia, com passo abafado, esperando vê-lo adormecido, encontrava-o sentado no leito, espiando seu reflexo no espelho.

Na quarta vez, ela não pôde mais. Desde muito tempo, anos talvez, o pequeno devia dormir a intervalos, esgotado, levantando-se sobressaltado com os ratos, com as formas inquietantes criadas pela desordem da água-furtada, pensando em coisas que não compreendia, os salmos trágicos que o faziam entoar, as palavras que diziam ao contemplá-lo: essa criança roubou a vida de sua mãe...

Cada noite devia ser para ele uma longa prova a vencer, longe das presenças familiares e do calor humano, uma viagem triste e fria da qual a aurora na trapeira anunciava o fim. Então talvez mergulhasse num sono tranquilo. Mas não por muito tempo, pois tia Ana acordava todo mundo às cinco horas, o mais tardar.

Angélica abriu um armário, pegou um par de lençóis e dirigiu-se a um quartinho que lhe havia chamado a atenção. Ninguém parecia servir-se dele. Laurier ali dormiria em segurança, tranquilizado pela vizinhança da cozinha, de tio Lázaro, cuja tosse noturna lhe lembraria uma presença próxima, pelo tique-taque do grande relógio no patamar. E além disso, Angélica lhe deixaria uma lamparina nas primeiras noites.

Ela arrumou a cama com mão ágil, abriu a meio as cortinas de bela seda lavrada. Seda da Holanda. Angélica podia apreciar o valor de tudo o que havia naquela casa, bem mais, talvez, do que seus amos, que pareciam a um tempo buscar e desdenhar aquele conforto opulento.

Na cozinha, despendurou da parede um aquecedor e abriu-o, lançando-lhe vivamente algumas brasas. Quando retornou, viu que uma outra porta estava aberta no quartinho, comunicando-se com o quarto de mestre Berne, o qual permanecia na soleira, um dedo entre as páginas de um livro de orações.

-        Que procura aqui, Dame Angélica? Devo lembrar-lhe de que passa da meía-noite. Seu serviço não a obriga a velar até hora tão tardia.   

O tom cortês não escondia certa irritação. Quando Mestre Gabriel, após terminar suas contas,'recolhra-se ao quarto para meditar as Sagradas Escrituras, gostava de sentir a residência adormecida à sua volta, sem a perturbação das idas e vindas domésticas.

Angélica passou várias vezes o aquecedor entre os lençóis frios.

-        Perdoe-me","Mestre" Gabriel, anotei sua observação e tratarei de adaptar-me. Mas quero preparar este leito desocupado para o pequeno Lãurier, que se acha muito mal instalado lá em cima, na água-furtada.

Mais do que ver, pois estava de costas para ele, ela sentiu o brilho de cólera que atravessou os olhos acinzentados do mercador.

-        Este quarto não deve ser desarrumado. Pertencia a minha defunta esposa.

Angélica enfrentou-o. Ele parecia bastante irritado, furioso, mesmo. Ela lhe disse corri delicadeza:

-        Compreendo. Mas não encontrei outra peça onde alojá-lo.

Mestre Gabriel parecia procurar a solução para um árduo problema. -- Alojar a quem?

— Laurier.

— Por que deseja colocá-lo aqui?

— Ele fica na água-furtada. Sente medo, ali sozinho, e não consegue dormir. Pensei que ele ficaria mais tranquilo se o instalasse aqui.

— Que ideia! E preciso que ele se fortaleça. Você quer fazer dele um melindroso. Também eu dormi na água-furtada em criança.   

— E não tinha medo dos ratos?

— Decerto. Mas habituei-me.

— Pois bem! Ele não se habitua. Dorme mal todas as noites, pouco ou quase nada. É uma das razões de estar tão magro e doente!

— Ele jamais se queixou.

— As crianças raramente se queixam, sobretudo quando ninguém se preocupa em escutá-las - disse Angélica, secamente.

-' Um garoto deve endurecer-se. Você fala como uma mulher.

-        Não, como mãe... - retrucou ela, olhando-o com gravidade.

O olhar dele velou-se, e ele suspirou profundamente.

— Prometera a mim mesmo que nenhuma outra pessoa dormiria no leito onde ela deu o último suspiro.

— A fidelidade de seu sentimento o dignifica, Mestre Gabriel. Mas, sendo para seu filho, não acredita que ela própria ficaria contente?

O mercador suspirou novamente.

-        Ah! Já não sei mais... - disse. - Você colocou a casa de cabeça para baixo. Pensava que o pequeno dormia com o mais velho. Mas é verdade que a água-furtada... tenho dela más recordações, confesso. Está bem... faça como quiser.

Angélica conhecia muito bem o caminho de cima para precisar de uma vela. Subiu os degraus de dois em dois.

— Vim buscá-lo - disse a Laurier, que continuava sentado, tão acordado como uma pequena coruja.

— Para onde vai me levar?

— Onde estará bem. Perto de seu pai...

Ela desceu, trazendo-o com cuidado. Laurier olhava radiante o quarto cálido, a presença do pai, e respirava o cheiro familiar da casa. Do leito, podia ver, do outro lado do patamar, o reflexo do fogo na grande cozinha. A surpresa tornou-o loquaz.

— Vou dormir aqui? Todas as noites?

— Sim, seu pai pensou que, já que você está tão grande, precisava de um leito grande.

— Oh! Obrigado, meu pai.

Angélica afastou-se para preparar a lamparina a óleo. Quando voltou com ela, encontrou Laurier dormindo. A cabeça miúda sobressaía-se no travesseiro. Ele parecia perdido no amplo leito, mas a fisionomia mudara, tendo uma expressão de bem-estar inocente.

A cabeceira, Mestre Gabriel contemplava-o pensativamente. Angélica debruçou-se, acariciando suavemente a fronte pálida do menino.

— Homenzinho! - disse com ternura. Ela ergueu os olhos para o mercador.

— Não me queira mal. Não podia suportar vê-lo infeliz.

— Não se preocupe, Dame Angélica. Penso que está tudo bem. E acrescentou após um momento de hesitação:

— Não, na verdade. Esta noite-, meditando nas Escrituras, repreendi-me por não ter sido justo para'com você, pois deveria adiantar uma parte de seu salário.

— Não é a isso obrigado, Mestre Gabriel, sei que uma criada deve trabalhar um mês para os novos patrões antes de receber o pagamento.

— Mas você veio para minha casa sem nada. E está escrito na Bíblia: "Não oprimirás o mercenário indigente, seja ele um de teus irmãos ou. um estrangeiro em tua terra, à .tua porta. Dar-lhe-às o salário de SewáhAe trabalho antes do pôr-do-sol, pois ele é pobre e precisa recebê-lo". Aqui está, pois, q que havia decidido entregar-lhè.'

Estendeu-lhe uma bolsa que tirou das abas do casaco.

-        Passa um pouco do pôr-do-sol - disse, no entanto.

Um leve humor desmentia por vezes o que ele tinha de solene. Angélica pensou que, nascido num outro credo, numa outra cidade, ele teria podido ser um epicurista espiritual como o Cavaleiro de Méré, por exemplo.

-        Não me sinto oprimida em sua casa, Mestre Gabriel - disse, sorrindo. - Tranqúilize-se, não há risco de eu clamar ao Eterno contra o senhor. Jamais esquecerei sua bondade.

Enquanto se afastava, Angélica começava a compreender por que logo se estabelecera entre ela e o mercador uma espécie de familiaridade, de entendimento, como entre pessoas que já se conheceram em outras circunstâncias. Agora tinha certeza, já o havia encontrado em algum lugar. Onde? Quando? Em que ocasião .ele inclinara para ela aquele sorriso tranquilo e generoso que por vezes vinha iluminar-lhe o rosto frio e fechado?

CAPÍTULO III

Angélica e Honorina

A ideia de que Mestre Gabriel pudesse tê-la encontrado no passado atormentou-a durante muito tempo. Depois, ela esqueceu.

A noite, quando tia Ana e os convidados retiravam-se, finda a oração, Mestre Gabriel por vezes cedia a um hábito bonachão. Ia ao quarto escolher na parede um longo cachimbo holandês, dos quais tinha toda uma coleção. Enchia-o cuidadosamente de tabaco, depois voltava à cozinha, pegando uma brasa para acendê-lo.

Então apoiava-se ao umbral da porta e fumava, contemplando através da fumaça, com os olhos semifechados, a grande sala familiar, o vaivém das criadas, das crianças e dos dois gatos da casa. Nessas noites, os filhos sabiam que ele estava de excelente humor e permitiam-se fazer-lhe perguntas, falar-lhe de si mesmos. Há algum tempo Laurier também participava. Ele se transformava, adquiria um ar astuto e enfrentava os sarcasmos de Marcial.

Numa noite em que Laurier estava sentado no colo de Angélica, que lhe afagava suavemente os cabelos, ela surpreendeu o olhar pensativo do mercador entre as volutas azuis da fumaça e foi ao encontro da reprimenda que sentia vir até si.

— O senhor acha que o mimo em demasia para um menino? No entanto, veja como está forte. Suas faces ficaram mais rosadas. As crianças precisam de ternura para crescer, Mestre Gabriel, como as flores precisam de água...

— Não o nego, Dame Angélica, reconheço que seus cuidados estão fazendo um belo menino desse pequeno aborto cuja visão me era penosa, confesso... Pequei por injustiça, por ignorância também. Endendo-me melhor farejando a qualidade de uma boa aguardente ou de uma pele do Canadá do que discernindo o que pode ser necessário a uma criança. O que me intriga é que considere essa ternura tão pouco importante para sua própria filha... Decerto você cuida bem dela, porém jamais a vi beijá-la, sorrir-Ihe ou mesmo apertá-la nos braços.

-        Eu faço isso? - exclamou Angélica, enrubescendo até a raiz dos cabelos.

E olhou aterrada para Honoriná; sentada diante de seu prato de papa.  '

Haviam-na deixado sozinha à mesa, porque ela não tinha pressa. Desde algum tempo, levava horas para.comer, a colher em punho e os olhos no vazio. Angélica atribuíra ao confinamento - a menina estava habituada a.vi ver. ao ar livre - a perda de seu grande apetite. Seria possível que Honoriná sofresse por ser negligenciada pela própria mãe? Que comparação estabelecia por trás dos olhinhos sagazes-e brilhantes? Tinha, com frequência, violentas cóleras que enervavam Angélica. Descobrir aquela minúscula vontade, e chócar-se com ela, espantava-a e indignava-a. Ela perdia a paciência. "Má!", gritava-lhe Honoriná, irada. Angélica punha-a na cama ou a confiava a Rebeca, por quem a pequena tinha um fraco. Angélica voltara-se para Laurier. Nele reencontrava seus garotinhos, seus verdadeiros filhos. Honoriná ainda não era verdadeiramente sua filha.

"Mestre Gabriel tem razão", disse consigo. "Minha filha... aceitei-a em minha vida, mas não posso admitir amá-la... Ele não pode saber!... É algo impossível para mim. Se soubesse, compreenderia..."

-        Você se apegou a meu filho - disse Mestre Gabriel com um leve sorriso -, e eu me apeguei a sua filha. Jamais esquecerei a coisinha abandonada que dormia ao pé da árvore, e que me estendeu as mãos quando a despertei, balbuciando-me sua triste história.

Os traços de Angélica se crisparam. Mostrou uma expressão tão transtornada que Mestre Gabriel maldisse a si mesmo por ter falado. Com o pudor dos homens emBaraçados pela emoção, pigarreou, pareceu lembrar-se de um súbito problema e retirou-se. Laurier acompanhou-o. Toda noite Mestre Gabriel permitia que ele fosse rodar entre as mercadorias do armazém.

Angélica ficou sozinha com Honorina. Vivia um instante estranho, crucial, e a angústia a sufocava como se o gesto que ia fazer, ou que não faria, fosse decidir sua vida. Era curioso que a causa fosse essa "coisinha", como dizia Mestre Gabriel, sentada com um altivo ar sonhador. Acreditou rever sua irmã Hortênsia, aquela rabugenta. Por mais feia e maldosa que tivesse sido, possuíra sempre um porte de princesa. Honorina, em sua cadeira alta, empertigada e sem se queixar, ressuscitava a imagem apagada. Mesma posição do pescoço, mesmo modo altivo de erguer a cabeça. Hortênsia, embora pequena, era bem magra. Honorina, ao contrário, mostrava-se redonda, robusta, bem-constituída. Mas na atitude, nos mesmos olhos negros, puxados e incisivos, o parentesco se revelava. Ao invés de se sentir contrariada com isso, Angélica ficou aliviada. Estendeu os braços para Honorina.

-        Venha!

Honorina, saindo do devaneio, considerou-a com ar pensativo, depois distendeu a boca até as orelhas num sorriso.

— Não! - disse, escondendo-se sob a mesa.

— Venha, vamos!

— Não!

Angélica teve que ir pegá-la, tirá-la do lugar onde se escondera e carregá-la, não sem dificuldade.

-        Pesa como chumbo, palavra!

Olhava o rosto da filha com uma intensidade dolorosa.

-        Você é ruiva, mas é bela... minha filha!... Quer queira, quer não, fui eu quem a pôs no mundo. E, sobretudo, você está aqui!

Está ligada a mim pelo próprio horror que eu tinha em senti-la dentro de mim, pela cumplicidade de nossas duas fraquezas lutando para arrancar-se à sua sorte monstruosa, ao implacável destino, cego destino que nos quis mãe e filha. Meu coração!

Angélica pousou os lábios na face fresca de Honorina. Aquele odor de bebé recordava-lhe o da floresta, nos tempos únicos da revolta do Poitou. Ele passara-sè para ela, para dissolver a secura de seu ódio. Ao lado dos massacres e das emboscadas, houvera Honorina e seus pezinhos brancos, que Angélica aquecia ao fogo das lareiras. Honorina abrindo os olhos inteligentes nos braços do Abade de Lesdiguiere. Honorina chamando Angélica no bosque invernal e arrancando-a à horrível fascinação da clareira dos enforcados.

Houvera o despojamento da gruta onde ela dera seu primeiro grito, o ranger da "roda" que a levava à escuridão do orfanato. "Oh! todas as crianças abandonadas nas soleiras das portas e recolhidas pelo Sr. Vicente! Como é possível abandonar uma criança? Abandonei minha própria filha. Bendita seja a providência que a devolveu à mim. Haverá dor mais amarga que a de arrastar no fundo do coração o grilhão trágicotle um filho perdido? Onde está, carne de minha carne?' Por onde vagueia, as mãozinhas estendidas, cegamente, através do'desconhecido onde a precipitei? Como a reconheceria na morte? Teria ao menos o direito de conhecê-la no outro mundo, eu, sua mae, que a abandonei?...

Angélica estremeceu, despertando como de um sonho. Estava na cozinha de Mestre Gabriel, em La Rochelle, sentada junto ao fogo que se apagava, com Honorina ao colo, a quem abraçava com paixão.   

-        Minha vida!

A vaga do amor por; longo tempo contido, quase ignorado, jorrava com a força de uma fonte que desemboca por fim, purificada, das profundezas da terra.

-        Não sabia que a amava tanto... Por que não amá-la?...

Por quê? Procurava com a razão e não encontrava. Não lhe restava verdadeiramente nada de sua vida passada. Tudo caíra num precipício de sombra. A graça inocente de Honorina, o brilho da vitalidade inscrito no rosto redondo, a beatitude de seu sorriso no instante em que via debruçar-se para beijá-la aquela que representava todo o seu universo, o carnal sentimento de posse que Angélica experimentava com relação a ela: "Você só tem a mim, só tenho a você...", tudo isso apagava, como por trás de uma cortina indevassável, as razões que tivera para odiar aquela pequena existência.

Como o espírito esquece rápido!

O corpo esquece menos depressa. Em seus pesadelos, Angélica ouvia, por vezes, a trompa de Isaac de Rambourg; acontecia-lhe também sentir nos punhos e nos tornozelos a tenaz de mãos brutais prendendo-a ao chão.

Mas ao despertar, via dançar na parede em frente a luz da chama acesa no cimo da Torre da Lanterna para guiar os navios. Honorina dormia junto dela. Angélica contemplava-a demoradamente e tranqiiilizava-se, maravilhando-se com esse tesouro que lhe restava e que justificava sua pobre existência destruída e perseguida.

-        Durma, coração, durma, minha filha, minha vida... você está perto de sua mãe. Não tema mais nada.

Desde que soubera que Angélica era papista, Severina olhava-a com um santo horror.

-        Essa garota foi colocada em nossa casa pela Companhia do Santo Sacramento para espionarmos, tenho certeza! - declarava a quem quisesse ouvir,

Tia Ana aprovava.

-        De fato, é bem possível, minha pobre criança. Oremos ao Senhor para escapar às suas manobras!

"Que ranzinzas!", pensava Angélica, com a paciência irritada.

Severina acompanhava-a com o olho para pegá-la em falta. Afe-tava uma rigidez exemplar, imitada da tia, e por vezes irrompia em gargalhadas, com ar zombeteiro:

-"O homem perverso, o homem ímpio

Caminha com a falsidade na boca",

salmodiava ela.

"Ele pisca os olhos, fala com o pé

Faz sinais com os dedos..."

-        Não é mesmo, minha tia?

Foi assim que Angélica percebeu que elas lhe reprovavam uma exuberância bastante imprópria...

-        Se você tivesse ido a corte do rei, Severina - observou-lhe ela um dia -, saberia que ficar assim dura como um bastão, com movimentos rígidos de marionete, é sinal de pouca educação; é preciso adquirir desembaraço nos gestos.

-        A corte é um lugar de perdição - disse Severina, vexada.

Foi a vez de Angélica dar uma gargalhada. A garota saiu rubra de cólera.

Tinha no entanto seu lado vulnerável. Atraída pelos bebés, como todas as meninas dessa idade, ardia por obter as boas graças de Honorina. Tentava desajeitadamente pegá-la nos braços, seguia-a por todo lado, queria dar-lhe de comer, ajudá-la a despir-se.

— Deixa! Deixa! - gritava Honorina, com um furor de imperatriz ultrajada.

Angélica tinha pena de Severina, que se afastava humildemente. Era-lhe difícil persuadir sua irascível filha a mostrar-se mais amável. Honorina tinha suas preferencias e antipatias bem marcadas. Em geral, todos os representantes do sexo masculino encontravam graças aos seus olhos. Observava a mais doce deferência com relação a Laurier. Mestre Gabriel era objeto de respeitosa admiração. O Pastor Beaucaire continuava a recolher todos os favores, a cada vez que se mostrava. Mas seu ídolo era Marcial. Ele lhe fizera, com sua faca, um cofrezinho esculpido, no qual ela guardava seus" tesouros: botpes, pérolas, pedregulhos, penas de frango... A pequena tinha caprichos maternais. Vendo-a vaguear, o pequeno cofre sob o braço, seu gatinho no outro, Angélica recordava-sê do cpfre-incrustado de nácar no qual ela própria outrora arrumava as lembranças colhidas durante sua vida atormentada.

As relações de Honorina com a espécie feminina eram mais complicadas. Passada a idade canónica, ela lhe inspirava a maior ternura. Rebeca e todas as avós tinham direito a seus sorrisos. Diante das mulheres de meia-idade, observava uma estrita neutralidade. A coisa se complicava com as adolescentes; e as de sua idade, consideradas rivais em potencial, eram objeto de seu ódio. Quase afundara os olhos da pequena Rute, de três anos, filha mais nova do advogado Carrere. Em suma, aquela boneca redonda que era Honorina, balançando-se nas saias com ar decidido, animava bastante a casa.

Frequentemente emitia um grito estranho, que Angélica aprendera a reconhecer. Significava que Honorina sofria por estar fechada e desejava ver o mar. Na praia, nada mais existia para ela além do jogo das ondas e dos sargaços, e do domínio maravilhoso das conchas. Semelhante a uma abóbora com as saias erguidas, ela patinhava com ardor. Angélica acompanhava-a trocando algumas palavras com as catadoras de mariscos.

Ao pé das muralhas, a maré deixava a descoberto vastos espaços rochosos, cobertos de algas, com depressões de águas claras onde caranguejos se escondiam. Umanuvem de garotos divertia-se com as gaivotas. Entre eles encontrava-se, mais amiúde do que o necessário, o jovem Marcial, brigado com o banco escolar. Marcial dava muitas preocupações ao pai. Tinha disposição para o estudo, mas preferia roubar os pomares e hortas com seu bando de amigos, entre os quais se achavam os mais rebeldes do bairro, como os dois filhos mais velhos do advogado Carrere, João e Tomás, e o do médico, José.

Mestre Gabriel deplorava que o garoto não pudesse conhecer a rígida disciplina de um colégio. Decidira então enviar o filho mais velho para a Holanda. Ao menos ele aprenderia a boa marcha de um negócio.

Angélica entristecia-se antecipadamente com essa partida fatal. Muitas coisas em Marcial lembravam-lhe seu filho Florimond. Reconhecia, por trás de sua alegre desenvoltura, a inquietação do adolescente avançando num terreno movediço e que, ao descobrir, a sociedade em que deve viver, percebe de repente não haver nela lugar para si. Fora essa terrível descoberta que levara Florimond a deixar a mãe, a fugir, a procurar um canto da terra onde pudesse ser ele mesmo, sem a dupla maldição de seus pais.

Também Marcial fugiria,um dia, bem como aqueles garotos que a inacreditável cegueira dos adultos mantinha na margem condenada.

Nesse dia eles estavam sentados no cimo de um rochedo, voltados uns para os outros, de tal modo absorvidos que não a ouviram aproximar-se. O vento revolvia-lhes os longos cabelos, as camisas abertas nos peitos jovens. Ela foi tomada de angústia com o pensamento de que a máquina que deveria esmagá-los já estava instalada, escondida como um monstro, no próprio coração da cidade.

Marcial lia com voz aplicada:

— "Jamais faz frio nas ilhas da América. Tampouco a neve é conhecida, e seria considerada um prodígio. Não há quatro estações iguais e diversas como na Europa, mas apenas duas. Uma é aquela em que as chuvas são muito frequentes, de abril a novembro, e a outra, a das grandes secas... Contudo, a terra está sempre coberta de uma agradável verdura, e permanece quase o, tempo todo coroada de flores e de frutos..."

— Ali existem videiras? - interrompeu um garoto de cabelos cor de palha. - Porque meu pai é um refugiado de Charentes, um vinhateiro. E que faríamos nós numa terra sem videiras?

-        Sim, existem videiras - disse Marcial, triunfante. - Escute a continuação... "A videira dá-se muito bem nessas ilhas e além de uma espécie de videira silvestre, que cresce naturalmente entre os bosques, com belas e gordas uvas, vêem-se em muitos lugares videiras cultivadas, coma na França, mas que dão frutos duas vezes por ano e por vezes ate mais..."

A lição de geografia prosseguiu com á descrição de árvores que davam pães, dos mamoeiros em cujos galhos cresciam espécies de melões, do coco e seu delicioso leite vegetal. "O saboeiro produz um sabão líquido que lava e clareia a roupa, o cabaceiro produz recipientes e utensílios domésticos que não precisam ser fabricados por artesãos..."

-        E de que cor são os habitantes dessas ilhas quentes? Vermelhos com plumas como os da Nova França?

Marcial folheou o livrinho e disse não encontrar informação a esse respeito. De cornum acordo, voltaram-se para Angélica, sentada perto deles, com Honorina no colo.

— Sabe a cor desses habitantes das ilhas, Dame Angélica?

— Creio que são negros, porque há muito tempo se levam escravos da Africa para essas ilhas.

— Mas os caraíbas não são negros - observou o jovem Tomás Carrere, que escutava de bom grado as histórias dos marujos no porto.

Marcial cortou o debate:

— Basta perguntar ao Pastor Rochefort, quando o virmos.

— O Pastor Rochefort, você disse? Angélica sobressaltara-se.

-        Está falando desse grande viajante, autor de um livro sobre as ilhas da América?

-        E o que estou lendo para os meus companheiros? Veja!

Ele mostrou-lhe a edição recente e acrescentou a meia voz:

-        Corre-se o risco de cinquenta libras de multa e de prisão quando se é descoberto de posse desta relação de viagens, por que ela parece dar aos protestantes o gosto dé emigrar. Devemos, pois, ter muito cuidado...

Angélica voltava as páginas ilustradas com croquis ingénuos das árvores e animais dessas terras distantes.

Do vazio de seu passado ressurgia uma visão esquecida e que sempre lhe parecera sem explicação, porém marcada pelo destino: a visita do Pastor Rochefort a Monteloup, quando ela estava com dez anos.

Aquele sombrio e solitário cavaleiro, chegado num tempo de tempestade e de fim de mundo, falara de coisas desconhecidas e singulares, de homens vermelhos com cabelos de penas, de terras virgens habitadas por monstros antigos...

Mas na época - eram passados mais de vinte anos - a singularidade de sua visita não residirá nem em sua aparição insólita, nem no exotismo de sua conversa. Não. Sua visita permanecera a de um mensageiro do destino, temível e pouco compreensível, portador de um chamado para longe. A esse chamado, vindo do outro lado do mundo, seu irmão mais velho, Josselino, respondera imediatamente. Deixara a família, sua terra, e ninguém jamais soube o que lhe acontecera.

-        Mas hoje o Pastor Rochefort deve estar morto - disse ela, numa voz que lhe pareceu baixa e pouco segura.

-        Oh! não. Está bastante velho, mas continua viajando.

O garoto prosseguiu mais baixo:

-        Neste momento está em La Rochelle. Ninguém deve saber quem o esconde, senão seria imediatamente preso. Interessar-lhe-ia vê-lo e ouvi-lo, Dame Angélica?

E como ela lhe fizesse um sinal afirmativo, ele enfiou algo em sua mão.

Era uma grosseira moeda de chumbo, na qual podia-se distinguir uma cruz encimada por uma pomba.

-        Com isto você poderá apresentar-se na assembleia que acontecerá perto da aldeola de Jouvez - explicou-lhe Marcial. - Ali verá e ouvirá o Pastor Rochefort. Ele deve tomar a palavra, pois a assembleia realizar-se-á por sua causa. Haverá mais de dez mil

dos nossos...

CAPITULO IV

A assembleia do deserto

O garoto exagerara ao pensar que "a assembleia no deserto", para a qual Angélica se, dirigia, reuniria dez mil devotos.

O temor continha muitos deles, e o-fundo da salina seca e rodeada d e diques, nos, quais ainda .se amontoavam quantidades consideráveis de sal, dificilmente poderia conter alguns milhares de peregrinos .a maist-

A salina desativadaíora escolhida por formar um branco isolado, limitado por duas arestas rochosas, que dissimulavam aquela depressão para os que atravessavam a planície p*antanosa em torno de La Rochelle. jO mar estava próximo e acompanhava com seu rumor o burburinho das vozes. As pessoas saudavam-se à medida que chegavam e instalavam-se, trocando alguns comentários.

Um semicírculo de pedras calcárias formava um tosco anfiteatro ao redor de uma pequena mesa, diante da qual o predicante falaria.

- Essa mesa é o púlpito e a outra que estão trazendo é a mesa de comunhão - explicou Marcial.

Ele fizera questão de acompanhá-la, orgulhoso de tê-la "recrutado". Juntos, haviam conseguido lugar na carreta do padeiro do bairro, cujo filho, Anastácio, era um outro amigo do jovem Berne.

Tia Ana e Severina, que chegavam em outra carreta com o papeleiro, a mulher e a filha, tiveram um estremecimento ao avistar "a papista". Foram vistas de longe,__a„discutir com Mestre Gabriel, que as escoltava a cavalo, demonstrando-lhe sem dúvida o perigo da presença de Angélica. O mercador dava de ombros. Um recuo da multidão escondeu o grupo. Traziam uma bandeja de estanho coberta por um pano branco, sob o qual se adivinhava a forma de um pão e duas taças de estanho. Ao pé da mesa foi colocado um jarro de arenito igualmente protegido.

Angélica hesitara bastante em ir à assembleia. Arriscava-se às mais graves sanções se o fato se propalasse. Mas ali quase todo mundo arriscava-se a alguma coisa, uns a multas ruinosas, outros à prisão, ou à própria morte, como os "convertidos", que deslizavam triste e envergonhadamente por entre os antigos correligionários, não tendo podido resistir aos tormentos que os perseguiam desde sua abjuração.

Todas essas pessoas perseguidas estavam vestidas de negro ou de cores escuras. Um dos maiores armadores de La Rochelle, Ma-nigault, apareceu, ao contrário, muito digno num traje de veludo ameixa, meias negras e sapatos com fivelas de prata. Parecia a todos um belo homem, acompanhado de seu negro Síriki. Trazia pela mão o filho Jeremias, de quem muito se orgulhava, um encantador serafim de longos cachos louros, que as quatro irmãs e a mãe adulavam como um pequeno rei.

Ali estava, igualmente, toda a família do advogado Carrere. As dimensões da Sra. Carrere anunciavam a décima primeira maternidade.

Alguns autênticos gentis-homens faziam-se reconhecer por suas espadas. Agruparam-se entre eles e puseram-se a conversar.

- Passagem, abram passagem para a Sra. de Rohan!

Criados traziam para a primeira fileira uma poltrona forrada na qual sentou-se uma velha dama autoritáiria, a mão com garras de coruja velha sobre a bengala de castão de prata.

A afluência agora era máxima. Mas tudo se fazia em ordem. Jovens circulavam com um saco de tela onde se depositava a contribuição para o sustento dos ministros do culto. A maior parte das pessoas estava sentada no chão, entre os resíduos viscosos de sal marinho. Os mais ricos ou precavidos haviam trazido almofadas, sacos e aquecedores a carvão, pois fazia frio e ventava.

Na charneca podiam-se avistar, amarrados aos esguios tamarindeiros ou guardados por garotos prestativos, os cavalos, asnos e mulas dos assistentes. Os meninos deviam também servir de sentinelas para assinalar a possível aproximação dos dragões do rei. As carretas com os varais levantados aguardavam o fim da cerimonia.

Um cântigo logo se elevou, retomado pelo coro surdo e poderoso da multidão.

Três personagens vestidas de preto e com imensos chapéus redondos também pretos avançaram para o centro ocupado pelas mesas.

Uma delas êra o Pastor Beaucairç. Mas Angélica examinou avidamente o mais alto e idoso do grupo. Apesar dos cabelos brancos que emolduravam o rosto queimado e enrugado, ela reconheceu o Homem Negro; o viajante lendário de sua infância. A vida errante, os perigos enfrentados em suas múltiplas peregrinações pareciam ter conservado teso seu corpo magro e seco.

O terceiro pastor era uma personagem atarracada e corada, de olhar vivo e autoritário. Foi ele quem tomou a palavra, com voz forte e de longo alcance.

-        Irmãos, o Senhor fez soltar as correntes que me prendiam, e é penetrado de profunda felicidade que posso novamente erguer a voz entre"vocês„.Minha pessoa não tem nenhuma importância. Sou apenas jum servidor de Deus, esmagado, porém, por sua imensa tarefa: apreocupação com meu pequeno rebanho, quer dizer, todos vocês, reformados de La Rochelle, que procuram

a voz da salvação entre emboscadas cada vez mais perigosas...

Pelo discurso, Angélica compreendeu tratar-se do Pastor Tavenaz, responsável pelo Colóquio de La Rochelle, o conjunto, das igrejas protestantes da cidade. .Também ele havia saído recentemente da prisão, onde permanecera seis meses.

-        Alguns dentre vocês vieram ver-me perguntando: "Deve mos pegar em armas como fizeram outrora nossos pais?", pergunta que talvez muitos se façam em segredo, cedendo à tentação perigosa do ódio, que nem sempre é tão bom conselheiro como a prudência. Começarei então por emitir minha opinião: sou pela não-violência. Longe de mim minimizar o heroísmo de nossos pais, que souberam afrontar os horrores do cerco de 1628, mas terá nossa confissão saído engrandecida dessa imensa e orgulhosa revolta? Infelizmente, não! Por pouco não estou um só huguenote em La Rochelle e nossa fé não se ausentou para sempre destes muros! O Pastor Tavenaz prosseguiu nesse tom por muito tempo. Evocou o sínodo nacional que deveria reunir-se em Montélimar no ano seguinte, quando seria redigido um memorial sobre as manobras administrativas e outras, de que os huguenotes franceses eram vítimas, memorial que seria entregue ao rei em pessoa. Concluiu com um último apelo à confiança e à calma, tomando como exemplo seu próprio caso e o do Pastor Beaucaire.

A velha Duquesa de Rohan mostrara diversas vezes"sua impaciência durante o longo discurso. Balançava a cabeça, batia no chão com a bengala. Aqueles conselhos burgueses não deviam agradar-lhe, mas devia ter pensando que estava demasiado velha para rebelar-se e calou-se com um profundo suspiro.

Um murmúrio de aprovação elevou-se na assistência. Apenas um homem ergueu-se, um -camponês de franja comprida, o chapéu nas mãos sobre a camisa branca.

-        Sou de Jarans, em Gâtine. Os dragões do rei vieram até nossa aldeia. Puseram fogo no templo e depois tomaram-me os presuntos, os pães, minhas duas vacas, meu asno e minha mulher. Então, ora.essa, penso que se pudesse pegar um machado e matá-los todos, isso me aliviaria bastante!

Alguns risos, logo abafados, haviam se espalhado com a enumeração que o pobre homem fizera da perda de seus bens.

O camponês arruinado olhava à sua volta buscando compreender.

-        Arrastaram minha mulher pelos cabelos, na estrada... O que lhe fizeram, estou longe de esquecer... Depois jogaram-na no poço...

A voz perdeu-se em meio aos primeiros movimentos de um salmo, retomado em coro por milhares de vozes.

O Pastor Rochefort tomara a palavra. Lembrou aos fiéis o Êxodo, e de como os judeus, vendo-se perseguidos pelos egípcios, haviam suplicado a Moisés: "Deixe-nos servir aos egípcios ao invés de perecer no deserto..." Mas o Eterno manifestara seu poder afogando os exércitos do faraó, e os judeus haviam finalmente atingido a erra de Canaã. Tê-la-iam atingido antes se não houvessem duvidado da bondade do Eterno, que os arrastava ao deserto para arrancá-los a uma escravidão infamante, sob a qual arriscavam-se a esquecer a fé dos pais.

O Pastor Rochefort encetou valentemente o canto de Moisés:

-        "Cantarei ao Eterno, pois Ele fez brilhar sua glória

Precipitou no mar o cavalo e o cavaleiro O Eterno é minha força e objeto de meu louvor

Foi Ele quem me salvou..."

Sua voz, ligeiramente alquebrada pela idade, ainda era forte. Mas cantava quase sozinho. As pessoas cansadas, transidas, retomavam molemente o salmo, que aliás pareciam mal conhecer.

Desconcertado, o velho homem parou, lançou um olhar espantado à assistência e retomou,'exortando:

-        Não compreenderam, irmãos, o sentido desse relato? A força de permanecer sob o vidro, a;vela se apaga. A força de viver em escravidão, os judeus teriam acabado por adorar os deuses egípcios. Eis o perigo que os espreita.- Perguntpu-se-lhes, há pouco, se queriam pegar em armas para defender-se, ou então suportar com resignação as perseguições. Tomei a palavra para propor-lhes uma terceira solução: partir! Países novos, imensos, oferecem-lhes o refúgio de uma terra virgem,'que poderão fazer prosperar para glória do Senhor, expandindo a alma no exercício respeitoso de sua religião...

Suas palavras se perderam num tumulto de fim de sessão. Ao redor de Angéliça,'as pessoas puseram-se a conversar a meia voz:

— E seu comércio de garança no Languedoc?

— Se salgássemos o peixe, como em Portugal, certamente venderíamos o "dobro da pesca. Mas é proibido pela gabela.

— Para uma grande assembleia como esta, você poderia ter colocado suajroúpa dcfesta, Josias Merlut.

— Com esta lama!...

As sugestões do Pastor Rochefort não interessavam aparentemente a ninguém.

O som de uma matraca, vibrada por um jovem criado, restaurou o silêncio. O Pastor Tavenaz, dirigindo ao colega um olhar que significava: "Eu bem que lhe disse", retomou a palavra.

A assembleia não poderia terminar sem que se procedesse a uma votação com a mão, para determinar claramente o comportamento dos habitantes de La Rochelle no futuro.

Quem desejava a resistência armada?

Ninguém se moveu.

Quem desejava partir?

— Eu!... Eu... - gritou uma dezena de garotos sentados na primeira fila.

— Eu! - berrou Marcial, levantando-se ao lado de Angélica.

Os protestos indignados dos pais cobriram as vozes juvenis, e o advogado Carrere lançou uma bofetada no filho mais próximo.

O Sieux Maingault ergueu-se, desdobrando a vigorosa estatura contra um fundo de oceano acizentado, e estendeu a mão para acalmar o burburinho.

-        Senhor pastor - disse, dirigindo-se com profundo respeito ao velho e célebre viajante -, tivemos grande honra em escutá-lo, mas não o surpreende que em La Rochelle a ideia de emigrar tenha tão poucos adeptos?

Ele pôs a mão no peito.

— La Rochelle está aqui - disse com força -, é nossa cidade, fundada por nossos pais, e pela qual morreram. Nenhum de nós pode abandoná-la.

— É melhor abandonar sua fé? - exclamou o velho pastor, com voz tremula.

— Está fora de questão. La Rochelle pertence aos huguenotes. Será sempre dos huguenotes. Sua alma nasceu da Reforma. Não se muda a alma de uma cidade.

Houve aplausos. Manigault dissera palavras justas, que iam direto ao coração do povo de La Rochelle.

— Que podem contra nós? - ouvia-se murmurar. - Somos nós que possuímos o dinheiro!

— Está claro, tudo ruiria sem nós.

— Parece que o Sr. Colbert pediu reformados para implantar manufaturas.

Angélica permanecia pensativa, o olhar fixo na porção de oceano acinzentado, manchado de branco, que se avistava entre as dunas. A alguns passos dela, o Pastor Rochefort também olhava o mar. Ela ouviu-o murmurar:

-        Eles têm olhos e não vêem. Têm ouvidos e não escutam...

Que via ele, com seu olhar de homem esclarecido? Já enumerava nesse rebanho que se afastava os mártires, os renegados?... Todos condenados!...

O medo, que fizera uma trégua, insinuava-se no coração de Angélica. "JE preciso partir." A margem não era segura. A maré continuaria a subir e também a alcançaria um dia, a ela e a Honorina. Sozinha, por cansaço, ela talvez se deixasse atingir. Mas devia salvar Honorina. O suor porejou-lhe a fronte à simples ideia de que os dragões pudessem um dia apoderar-se de Honorina, torturá-la com suas risadas grosseiras e jogá-la pela janela, sobre as lanças.

Ela se pôs a andar, apressada, ao encontro da filha.

A chuva caía. Poças no caminho refletiam o céu esbranquiçado. Um cavaleiro ultrapassou-a e voltou-se sobre a cela. Era Mestre Gabriel.

-        Posso levá-la na garupa, Dame Angélica?

Ela sentiu um estranho choque. Via-se numa estrada esburacada, num cenário semelhante, com um cavaleiro que se voltava para ela e tinha o sorriso de Mestre Gabriel.

— Não - ela se ouviu respondendo, depois de um longo momento. - Sou sua criada, Mestre Gabriel. Fariam comentários...

— É verdade que não estamos nos arredores de Paris, na estrada de Charenton.

O véu se rasgou.,A Polaca estava a seu lado, e Angélica tinha os pés gelados como hoje. .'

Como hoje, tinha no" coração a angústia de um filho ameaçado: Cantor, raptadcrpelos ciganos. Cavaleiros haviam parado. Um deles levara-a à garupa até Paris. Era um jovem protestante, filho de um mercador de La Rochelle.

— Reconhece-.me agora? - perguntou ele.

— Sim, é;o cavaleiro que me socorreu há anos, numa noite de inverno.

Ela permanecia imóvel na chuva: Doze anos se apagavam. As duas cenas se aproximavam, parelhas. Tinahm o mesmo gosto de solidão infinita. No abandono total, um rosto de homem estranho, um sorriso compadecido, traziam um consolo fugaz.

Foi o que a chocou de início nesse descoberta. A semelhança das duas situações, tendo entre elas os cimos vertiginosos das honras e riquezas da corte de França.

"Assim, foi preciso que você rodasse por duas vezes o círculo infernal para compreender... Para compreender que não havia nenhum lugar para você nesse reino, e que devia partir... partir para além dos mares...", disse consigo.

Com um misto de alívio e humilhação, imaginava, pensando em Mestre Gabriel: "Felizmente ele scTme conheceu na miséria..."

Devia ter guardado a imagem de uma mendiga dos subúrbios e reencontrara uma salteadora das estradas. Ali não havia nada de muito tranquilizador. Era de se admirar a generosidade com que ele a acolhera sob seu teto. Não quadrava com seu caráter, prudente em excesso.

-        Por que o fez? - perguntou-lhe ela num impulso. - Quero dizer: como teve confiança em mim para abrir-me sua casa?

Ele acompanhara sem dificuldade o raciocínio que ela enunciara e compreendeu o sentido da pergunta.

-        Creio no valor de certos sinais - respondeu. - Aquele rosto entrevisto numa noite de inverno, como símbolo encantador e pungente da grande cidade cruel, perseguia-me, e através dos anos acabei por me convencer de que elé significava mais que uma

simples recordação, que aquele encontro fora como uma advertência... o dobre dos sinos em algum lugar do destino, e cujo eco se perde... Mas algo acontece, e nos recordamos de termos sido advertidos... Não me pareceu tão surpreendente reconhecê-la naquela escaramuça. Estava escrito. Não poderia deixar de interessar-me por você e por sua filha. Senti que era meu dever fazer de tudo para tirá-la daquela prisão antes que fosse muito tarde. Contei com a ausência do juiz católico.

E observou, pensativo:

— Por que disse tais palavras: antes que fosse muito tarde?... E verdade que estava convencido de que o tempo urgia, que para você era uma questão de horas. Estava obsedado pelas palavras da Bíblia: "Liberta os que são arrastados para a morte. Salva os que vão ser degolados..." Sinto que sua presença entre nós tem uma imensa importância. Mas qual?

— Creio saber qual é - disse Angélica, também impelida pela atmosfera insólita dessas confidências e da charneca desolada, batida pelo vento, e agora deserta em torno deles. - E que devo um dia salvá-lo, ao senhor e aos seus, como salvou a mim...

         CAPITULO V

Encontro com o Sieur Rochat, ex-cônsul de Cândia

Alguém passou por ela e disse:

-        A Francesa!

Angélica voltou-se. Um homem parara e còntemplava-a de boca aberta. Vestia um casaco com douraduras desbotadas, sapatos de tacões vermelhos com ô couro ressecado, chapéu com uma pluma sem viço. Piscava os olhos como uma coruja sob o sol.

-        A Francesa - repetiu. - A Francesa de olhos verdes.

Angélica tinha ao mesmo tempo vontade'de fugir e de saber de quem se tratava. Maquinalmente dirigiu-se até ele. O homem saltou como. um esquilo.

-        Agora não há nenhuma dúvida. E você... Um tal olhar! Mas...

Ele examinava seu traje modesto; a touca que lhe escondia totalmente os cabelos.

-        Mas... então, não era marquesa. No entanto, era o que afirmavam em Cândia... e eu acreditei... Porém vi seus papéis, que diabo!... Que está fazendo aqui, com essas roupas ridículas?

Agora ela o reconhecia, principalmente pelo queixo mal barbeado.

— Sr. Rochat... Você?... Será possível? Então conseguiu deixar as colónias do Levante como desejava?

— E você conseguiu escapar de Mulay Ismael? Correu o boato de que ele a fizera perecer em meio a torturas...

— Não, pois estou aqui!

— Fico bastante feliz.

— E eu então!... Ah! caro Sr. Rochat, que prazer em revê-lo.

-        Prazer inteiramente correspondido, cara senhora.

Apertaram-se as mãos com efusão. Angélica jamais imaginaria que reencontrar o engraçado funcionário colonial pudesse alegrá-la a esse ponto. Eram, ambos, os únicos sobreviventes de uma terra mágica, reencontrando-se no limbo. Traduzindo seu mútuo sentimento, Rochat exclamou:

-        Ah! Enfim!... alguém de "lá" com quem falar!... neste porto setentrional sem alma, sem cor... que alívio! Estou exultante!

Novamente apertou-lhe as mãos a ponto de esmagá-las, depois contristou-se.

— Mas... você não era, então, marquesa?-

— Psiu! - fez ela, olhando em torno. - Encontremos um lugar tranquilo para conversar e lhe explicarei - murmurou.

Rochat disse com um momo de desdém que infelizmente não conhecia lugar em La Rochelle onde se pudesse beber o verdadeiro café turco. Havia a Taberna da Nova França, onde se servia uma beberagem com esse nome, mas era o café das ilhas. Nada em comum com as favas dos platôs da Etiópia, devidamente torradas conforme o ritual, e cujo divino extrato se bebia "lá", no Oriente. Dirigiram-se, contudo, à lastimável taberna em questão, felizmente deserta àquela hora, e sentaram-se no nicho de uma janela, Rochat recusou o café oferecido.

-        Francamente, não lhe recomendo. Uma tintura de alcaçuz misturada com uma decocção de bolotas, eis ao que chamam de café...

Preferiram um vinho de Charentes, o mais aceito no lugar, e de agrado certo, que o proprietário fez acompanhar de um opulento prato de frutos do mar.

— A única coisa aceitável nesta triste terra - disse Rochat: - os crustáceos, os ouriços-do-mar, as ostras... empanturro-me com elas... - Lançou um olhar desiludido para o emaranhado de vergas e cordames que escurecia o céu luminoso.

— Que tristeza! Onde estão as galeras de Malta com seus estandartes, as auriflamas dos piratas cristãos, os pequenos asnos e seus cestos de laranjas... Simon Dansat e sua barba vermelha!

Angélica sentiu-se tentada a observar que aquele porto não era tão setentrional nem tão desprovido de cores como ele parecia crer.

-        Não se queixava outrora de estar perecendo no Oriente? Não sonhava senão com o retorno à metrópole.

-        É verdade, fiz o que pude para voltar à França. Agora faço que posso para voltar para "lá"... Em Paris, que tédio! Havia

uma pequena tasca para os lados do Vieux Temple, onde se podia beber o verdadeiro café e encontrar alguns cavaleiros de Malta, alguns turcos... Enviaram-me até aqui para retirar o monopólio dos seguros dos protestantes... aproveitei para sondar alguns co

merciantes... os de La Rochelle têm ramificações por todo lado.

Um deles envia-me novamente a Cândia. Parto terça-feira - concluiu radiante.       

— E a administração real?

Rochat fez um gesto fatalista:

-        Que você quer? Chega um momento em que um homem inteligente começa a perceber que servindo aos outros, quer dizer, ao Estado, fazem-no um pouco de.tolo. Sempre tive qualidades de comerciante. Chegou a hora de servir-me delas. Quando for rico, farei vir a família...

A jovem semia-se tranquila por sabê-lo de partida. Podia falar mais francamente.

-        Senhor,.prometá-me segredo sobre o que vou confiar-lhe.

Confirmou ser a Marquesa du Plessis-Belliere. De volta à França, defrontara-se com o rei, aborrecido com uma partida que ele havia proibido. T.endp caído em desgraça, vira-se arruinada e obrigada a levar uma vida bastante modesta.

-        Que pena! Que pena! - disse Rochat. - No Oriente não se rebaixariam qualidades tão evidentes como as suas...

De repente se inclinou:

— Sabia que ele deixou o Mediterrâneo?

— Ele quem?

— É para se perguntar: ele quem?, quando se enfrentou o mar como você?... O Rescator, ora!...

E como ela o olhasse um pouco fixamente sem reagir:

-        O Rescator! - repetiu, irritado. - O pirata mascarado que a comprou por trinta e cinco mil piastras no batistan de Cândia, e em quem você pregou a maior partida de que se tem memória entre os escravos... Dir-se-ia que não se lembra de que tudo isso lhe aconteceu.

Ela recobrava as cores. Era absurdo émocionar-se assim com um nome!

-        Deixou o Mediterrâneo? - perguntou. - No entanto era ali todo-poderoso. Soube-se ao menos por quê?

— Disseram que foi por sua causa.

— Por mim?...

Ela voltou a se perturbar, e seu coração bateu descompassadamente.

— Estimar-se-ia ridicularizado com minha fuga a ponto de não mais poder aceitar os sarcasmos de seus colegas piratas?

— Não, não é isso... Embora seus guardas marroquinos tenham passado um mau bocado quando ele soube de sua fuga. Por pouco não enforcou a todos. Mas isso não está em seus hábitos. Contentou-se em enviá-los a Mulay Ismael, designando-os como cães incapazes. Aposto que os pobres-diabos teriam preferido ser enforcados. Ah! você pode vangloriar-se de ter feito correr lágrimas e sangue no Mediterrâneo! E para finalizar, La Rochelle! Enfim!...

— Mas por que por minha causa} - insistiu Angélica.

— E uma história com Mezzo Morte, seu pior inimigo. Lembra-se ao menos de Mezzo Morte, o almirante de Argel?

— Estou bem longe de esquecer, pois fui capturada por ele.

— Pois bem, Mezzo Morte vangloriou-se de ter em sua pessoa o meio de expulsar para sempre o Rescator do Mediterrâneo. Assim que a viu em seu poder, enviou um mensageiro a Cândia... Mas antes é preciso que lhe conte outra coisa. Pouco depois de sua fuga, dois ou três dias mais tarde, creio, o Rescator mandou chamar-me.

— A você?

— Sim, a mim. Serei uma personagem tão mísera que não possa frequentar os grandes príncipes piratas?... Já havia estado com Sua Senhoria, apesar do que você possa estar pensando. Era uma das mais divertidas personagens que se poderia encontrar ao longo da existência, mas dessa vez devo admitir que seu estado de espírito quadrava com seu aspecto tenebroso. A máscara já é desagradável para o interlocutor, mas quando um olhar penetrante e furioso lhe chega por aquelas fendas de couro, seria preferível estar em outro lugar. Ele se recolhera a seu palácio de Milos. Que residência maravilhosa, cheia de objetos raros! Seu navio fora bastante danificado pelo incêndio para que ele pudesse pensar em persegui-la. Aliás, se bem me lembro, houve então uma violenta tempestade. Nenhum navio podia sair da enseada... O Rescator ouvira dizer que eu a conhecia. Perguntou-me demoradamente sobre você... _ Sobre mim?

-        Cáspite! Não se vê desaparecer com um sorriso uma escrava pela qual se pagou trinta e cinco mil piastras. Disse-lhe o que sabia a seu respeito. De como você era uma grande dama francesa, em favor junto ao Rei Luís XIV, imensamente rica, pois era até proprietária do cargo de cônsul em Cândia. E depois de como a encontrei nas mãos de D'Escrainville, meu antigo condiscípulo na Escola de Línguas Orientais,na Constantinopla. Acabei por contar-lhe como me esforçara para que fosse comprada pelos Cavaleiros de Malta... Você é testemunha, cara senhora, de que fiz o melhor possível! Aliás, recebi efetivamente as quinhentas libras que você enviou de Malta. Foi assim que se soube em Cândia que não havia perecido na tempestade, como todos supunham.

Rochat bebeu um gole de vjnho.

— Hum! Suponho que hoje-você não me queira mal por saber que achei bom advertir Monseigneur Rescator sobre isso... Apesar de tudo, eu tinha'obrigações para com ele... Ele é bastante generoso, não é mesmo, o dinheiro nada lhe custa. E depois era seu amo, e é normal que se ajude um proprietário a recuperar seus bens... Por que sorri?... Porque me acha mais oriental que de natureza... Eu oadverti, então. Mas quando ele ia embarcar para Malta o mensageiro" de Mezzo Morte chegou... Por que parece tão abatida de repente?

— Se conhece a reputação de Mezzo Morte, você pode supor que isso não me recorde bons momentos - disse Angélica, cada vez mais perturbada, a contragosto.

— O Rescator partiu então para a Argélia. Nós nunca soubemos o que aconteceu ali. Quando digo "nós", falo de todos os que fazem cabotagem, navegação e comércio por lá... do Mediterrâneo, enfim!... Poucos pormenores transpiraram. Parece que Mezzo Morte fez uma espécie de chantagem: ou o Rescator jamais saberia o que acontecera com você, ou Mezzo Morte lhe revelaria seu refúgio sob seu juramento de abandonar para sempre o Mediterrâneo, permitindo a ele, 5 Almirante da Argélia, reinar sozinho... Muitos disseram que era tolo supor que o Rescator pusesse na balança seu imenso poder, sua fortuna-mais imensa ainda, sua situação única de traficante de prata, por uma simples escrava, por mais bela que fosse. Mas deve-se acreditar que Mezzo Morte sabia o que fazia, pois o Rescator..., o orgulhoso, o imbatível, aceitou essas humilhantes condições.

— Aceitou? - perguntou Angélica num sopro.

— Sim!

Os olhos um pouco míopes do antigo funcionário colonial tornaram-se pensativos.

-        Uma loucura completa... Ninguém compreendeu... Deve-se acreditar que você lhe inspirou mais do que desejo... amor.

Quem pode saber?

Angélica escutava, o fôlego curto.

— E então?

— Então?... Que posso dizer? Sem dúvida Mezzo Morte confiara-lhe que a vendera ao sultão do Marrocos, e o Rescator ficou sabendo que ele a degolara... Outros diziam que você havia escapado e morrido no caminho. Vejo, afinal, que nem uma nem outra das versões era exata, pois você está bem viva no reino de França.

Seu olho cintilou.

— Que boa história para contar quando estiver em Cândia... Ninguém poderia imaginar semelhante epílogo. Uma mulher escapando do harém de Mulay Ismael... uma cativa fugitiva chegando à terra cristã... Serei o único a testemunhá-lo... Eu a vi!

— Não me prometeu segredo, senhor?

— É verdade - disse Rochat, desapontado.

Refletiu tristemente um momento, antes de esvaziar o copo. Acharia um meio de contar a história sem nomear La Rochelle nem ninguém.

-        Então - concluiu -, o Rescator deixou o Mediterrâneo.

Embora não tivesse podido recuperá-la, devia respeitar a promessa solene feita a Mezzo Morte, o qual mantivera a sua. Os lobos têm obrigações entre si. Mas antes desafiou Mezzo Morte para um duelo. O Almirante da Argélia fugiu para o fundo de um oásis saariano, a fim de escapar e aguardar a partida de seu inimigo. E o Rescator transpôs o estreito de Gibraltar. Foi para o Atlântico. Desde então, ninguém mais sabe o que lhe aconteceu - concluiu Rochat com voz lúgubre. - Que história sinistra! De desesperar!

Angélica levantou-se.

— Devo retirar-me. Posso ter a certeza de que não me trairá nem falará de nosso encontro a ninguém, ao menos enquanto estiver em França e em La Rochelle?

— Pode estar certa disso - prometeu ele. - Aliás, com quem poderia falar aqui? Essa gente de La Rochelle é fria como o mármore...

Na soleira, ele beijou-lhe a mão. Não era mais funcionário. Começava uma vida nova. E sua personalidade vagamente poética e aventureira, âté ali estreitamente encoberta, começava, inquieta, a se revelar.

-        Bela cativa de olhos verdes, que o deus dos ventos leve seu barco para longe desta sua sorte tão funesta'. Embora seus encantos, que deslumbraram outrora Cândia inteira, permaneçam severamente escondidos, é de se supor que não mereçam um tal eclipse. Sabe o que lhe desejo? Que o Rescator venha lançar âncora diante deLa Rochelle e que a apanhe de novo.

Ela tê-lo-ia beijado'por essas palavras. Mas protestou molemente.

-        Deuses!, não! Terno que me faria pagar demasiado caro os aborrecimentos que lhe causei. Ainda deve maldizer-me até hoje...

Para ganhar tempo ela tomou o caminho das muralhas. Deviam estar surpresos com sua longa ausência. A sopa da noite não ficaria pronta. O sol acabara de desaparecer e o vento frio fustigava-lhe os-braços seminus, pois saíra sem manta, na morna tarde de outono. Sob o céu amarelo-claro, o mar tinha uma cor acinzentada e fosca. Estava tranquilo e rolava suas ondas ao longo da praia de sargaços. De tempos em tempos, uma vaga mais forte batia ao pé dos muros e a água voava com o vento.

Olhos fixos no horizonte, Angélica acreditava ver despontar um navio em meio a tantos outros que haviam surgido. "Ele foi para o Atlântico..."

Seria loucura sonhar como uma adolescente, cujo coração se emociona de ter sido eleita por um misterioso príncipe dos mares, que por ela renunciaria a tudo?

Não era uma mulher desencantada, vivida? A brutalidade dos homens não a havia marcado para sempre?

Quando a imaginação das mulheres cessa de voar? O gosto pelo maravilhoso e pelos grandes sonhos inacessíveis deve morrer com elas.

"É a magia dessa história que me fascina", pensou.

Como esquecer a suavidade daquele manto de veludo negro a envolvê-la, a voz surda, um pouco tremula!

"Há rosas em minha casa... Em minha casa você poderá dormir..."

Ela estava tão absorta que se chocou com o soldado Anselmo Camisot, o qual lhe barrava a passagem com a alabarda.

— Bela dama, já que está em meu território, deve-me um beijo.

— Por favor, Sr. Camisot - suplicou Angélica, gentil e firmemente.

— Ah! se é a rainha que pede, como poderia não me inclinar, pobre sentinela que sou?

Ele se afastou para deixá-la passar. Apoiado à alabarda, acompanhava com os olhos, com uma melancolia de cão triste, a silhueta de andar principesco sob o pobre vestido, admirando-lhe apaixonadamente o talhe redondo, a linha dos ombros viçosos, a nuca reta e a curva do branco perfil voltado para o mar.

CAPITULO VI

A morte do velho Lázaro - Seu corpo será profanado -

Angélica intervém junto ao Sr. de Bardagne, tenente do rei

Certa manhã encontraram tio. Lázaro morto serenamente em seu leito. Darne Ana^e Abigail fizeram a toalete mortuária e acomodaram-no em magníficos lençóis brancos: O pastor já estava lá com o sobrinho. O-papeleiro chegou pouco depois, e em seguida os vizinhos, cada vez mais numerosos. No meio da manhã, bateram no portal. Angélica desceu ao pátio para abrir e introduziu um homem cuja roupa severa, casaca preta, peitinho branco, não lhe inspirou confiança, e que se apresentou como sendo Sieur Baumier, presidente da comissão real para os negócios religiosos e auxiliar do Sr. Nicolau 'de Bardagne.

Angélica ouvira falar dã personagem. Mordeu os lábios e não se espantou ao descobrir, por cima do ombro do visitante, quatro soldados que entraram bamboleando-se com um ar atrevido, bem como um indivíduo de rosto pouco atraente, cujo casaco tinha as armas da cidade: a nave de duas velas, com três flores-de-lis.

Com um ar de circunstância, ou seja, fúnebre, Baumier dirigiu-se para as escadas, seguido pelo auxiliar e seus acólitos pouco confiáveis.

Ao vê-los, a assembleia ajoelhada ergueu-se, bruscamente tensa.

O Sieur Baumier desenrolou um pergaminho e fez a leitura com voz irritada:

- "Visto que o Sieur Lázaro Berne, convertido no dia 16 de maio, recaiu em erro, negligenciou a salvação eterna, deu um perigoso exemplo, etc..." - era reconhecido como culpado de crime de reincidência, em reparação do qual seu cadáver seria arrastado numa grade pelo carrasco, através dos cantões e encruzilhadas da cidade, e lançado à vala de lixo, e além disso condenado a três mil libres de multa a ser paga ao rei e cem libras de esmola para os pobres prisioneiros da prisão anexa ao Palácio da Justiça...

Mestre Gabriel interveio. Estava muito pálido. Colocou-se entre Baumier e o leito, onde apenas o morto em toda a assembleia conservava uma expressão serena e algo irónica.

-        O Sr. de Bardagne não pode ter tomado tal decisão. Ele próprio foi testemunha da recusa de meu tio. Proponho que se vá procurá-lo.

Baumier fez uma careta enquanto enrolava o pergaminho.

— Está bem - disse, muito seguro de si -, vá procurá-lo, mas eu fico. Tenho todo o tempo disponível. Está a serviço de uma causa sagrada que acabará por livrar a cidade de perigosos conspiradores. Pois existe conspiração dos anjos maus contra os bons, como há conspiração dos maus súditos do rei contra os fiéis, e amiúde em La Rochelle os dois se confundem.

— Estaria designando-nos como traidores do reino? - perguntou o almotacé Legoult, avançando com as narinas comprimidas e as sobrancelhas despenteadas.

Mestre Gabriel interpôs-se:

— Quem irá procurar o Sr. de Bardagne? - perguntou.

— Fico aqui com meus homens - exclamou Baumier, com um riso sardónico.

— Então vou eu - disse Angélica.

Já com a manta nos ombros, desceu a escada.

-        Corra, corra - encarneceu Baumier.

Angélica atravessou a cidade sem ter tempo de torcer os pés nas pedras redondas, de tanto que corria. No domicílio do Sr. de Bardagne disseram-lhe: "No Palácio da Justiça". No Palácio da Justiça, depois de muitas voltas, um funcionário pôde dar-lhe a informação. O Sr. de Bardagne estava em visita ao grande armador João Manigault.

Angélica partiu a toda. Que poderia estar acontecendo na casa das muralhas, que ela deixara mais carregada de paixões assassinas que um paiol? Não deixariam de brotar faíscas entre os sarcasmos de Baumier, a grosseria dos soldados, a indignação e a cólera dos protestantes. E ela esquecera Honorina ali! Que imprudência! Já se via diante de uma casa deserta, os selos na porta, todo mundo numa prisão ignorada...

Estava morta de ansiedade, quando chegou à frente da soberana mansão dos Manigault.

O Sr. de Bardagne comia uma colação com a família Manigault, sob os retratos atentos de uma dinastia de armadores de La Ro-chelle. No recinto reinava um odor"agradável de chocolate apimentado, que o escravo Siriki derramava num jarro de prata, enquanto no centro da mesa ergúia-se numa montanha de frutos exóticos: abacaxis, laranjas, misturados às belas uvas da região, sobre uma travessa de porcelana. Angélica não teve um olhar sequer para esses esplendores. Precipitou-se, esbaforida, para o tenente do rei.

-        Senhor, suplico-lhe, venha depressa. Mestre Gabriel Berne o chama em seu socorro. Não pode contar senão com sua ajuda.

O Sr. de Bardagne levantou-se, muito galante e impressionado com a aparição^ Angélica, a tez avivada pela corrida, os olhos brilhantes, o peito fremente sob o corpete negro, irradiava sem o saber uma febre bastante perturbadora. Sua emoção, a expressão suplicante, acrescida ao mais belo olhar do mundo, não podiam deixar insensível um fervoroso admirador do belo sexo, como era -o caso de Nicolau de Bardagne.

-        Senhora-, acalme-se e explique-se sem medo - disse, suavizando o brilho dós olhos acinzentados e aveludando a voz. -Não a conheço, mas escutá-la-ei com a maior benevolência.

Compreendendo sua incorreção para com o Sr. Manigault e sua gorda esposa, Angélica dirigiu-lhes uma reverência apressada. Depois, com voz entrecortada, fez o relato dos últimos acontecimentos ocorridos na casa de mestre Gabriel Berne... Coisas horríveis iriam acontecer, talvez já tivessem acontecido... Ela deu um leve soluço.

-        Mas vamos, vamos, acalme-se - repetiu o Sr. de Bardagne. -Por que esta mulher se põe em tal estado? - perguntou, tomando os Manigault como testemunhas. - Aquela é uma falta insignificante.

-        É bem do feitio de Mestre Berne .envòlver-se em confusões - disse a Sra. Manigault, ácida.

-        Mas vamos, minha boa Sara, ele não pode deixar arrastar o tio em uma grade - protestouo armador.

-        Tudo o que sei é que essas coisas só acontecem a ele - disse sentenciosamente a gorda mulher.

Ela bateu palmas.

— Minhas filhas, coloquem seus capuzes de veludo negro e que vistam Jeremias. Devemos ir até o pobre Lázaro, para que nossas preces o acompanhem à morada eterna.

— E verdade, não me haviam prevenido de sua morte - disse Manigault, voltando-se de súbito.

— Irei na frente - avisou o Sr. de Bardagne, jovial. - Esta dama tem grande pressa em assegurar-s,e de minha presença, para que eu possa demorar-me.

Ele fez com que Angélica subisse em sua carruagem, que o aguardava flanqueada por dois beleguins.

— Meu Deus, tomara que não cheguemos demasiado tarde - murmurava Angélica. - Senhor, apresse a marcha.

— Como está nervosa, minha cara criança! Apostaria sem susto que você não é originária de La Rochelle.

— Não, de fato. Por quê?

— Porque estaria habituada a essas histórias, que, apesar do que diga Dame Sara, são frequentes em nossa cidade. Pobre de mim, sou obrigado a usar de rigor. O mal praticado em excesso merece castigo. No entanto, reconheço que, no caso, Lázaro Berne . não juntou à sua obstinação, consagrada por vinte e quatro anos de crenças funestas, a falta imperdoável da abjuração...

— Então não deixará aquele horrível- homenzinho arrastá-lo na lama?

O tenente do rei pôs-se a rir, mostrando os dentes muito brancos e bem-feitos sob o bigode castanho.

-        É a Baumier que chama assim? Assenta-lhe muito bem, reconheço.

Ele ficou levemente sério.

-        Não estou sempre de acordo com ele sobre os métodos a empregar... Mas perdoe-me, por um lado parece-me que a estou vendo pela primeira vez, e por outro, que já a vi antes... Se assim é, como pude esquecer o nome de uma pessoa tão encantadora?

-        Sou a criada de Mestre Gabriel Berne.

Subitamente ele se lembrou.

-        Já sei. Eu a vi, com efeito, na casa de Mestre Berne, naquela famosa noite em que os capuchinhos do mosteiro dos mínimos vieram buscar-me pelo colarinho para converter o pobre Lázaro, supostamente à morte. Mestre Gabriel voltava de viagem e você estava em sua companhia... E acrescentou com severidade:

— Você tem uma filha que, segundo a lei, deve ser criada na religião católica.

— Lembro-me de que o senhor disse que minha filha era sem dúvida uma bastarda - disse Angélica, decidindo intimamente que para evitar um interrogatório era melhor pôr as cartas na mesa. - Pois bem! Tem razão, ela o é.

O Sr. de Bardagne sobressaltou-se diante desse acesso de franqueza.

— Perdoe-me se a ofendi, mas meu difícil ofício nesta cidade obriga-me a fazer o censo da situação religiosa de todos os habitantes e...

— Assim são as coisas - disse Angélica, dando de ombros.

— Quando,se é 'tãçúbela como você - disse o funcionário real com um sorriso indíilgente -, compreende-se que o amor...

Angélica atalhou-o.

-        Quero simplesmente preveni-lo de que não precisa se preocupar com seu batismo nem com seu catecismo, pois ela é católica, pelo fato de eu também o ser!

O Sr. de Bardagne dizia justamente a si próprio que aquela jovem devia seruma convertida ou pelo menos ter sido criada num convento católico. Encantado com seu faro, congratulou-se consigo mesmo.

-        Tudo se explica, pois eu tinha minhas dúvidas... mas como ousou colocar-se numa casa de protestantes? Isso é muito grave.

Angélica tinha a resposta pronta. Ocorrera-lhe uma ideia, indiretamente inspirada pelas reflexões hostis de Severina:

-        Senhor - disse ela, baixando os olhos -, minha vida nem sempre foi das mais exemplares. Bem pode suspeitá-lo, infelizmente, pelas confissões que lhe fiz. Mas tive a graça de encontrar uma pessoa bastante piedosa, de quem não posso dizer o nome, embora viva aqui, e que me fez compreender a necessidade de resgatar minhas faltas e o melhor" modo de fazê-lo. Foi assim que entrei para o serviço da família Berne, que todos os zeladores esperam contar um dia entre os convertidos de La Rochelle.

-        Naturalmente você pode contar comigo.

Ele buscava na memória a dama da Companhia do Santo Sacramento que poderia ter colocado a jovem em missão de espionagem junto aos Berne. A Sra. de Berteville?... A Sra. d'Armentieres?... Que importava? Ficaria na curiosidade. As leis da companhia eram bastante herméticas. Sabia alguma coisa sobre isso, pois ele próprio fazia parte dela.

Angélica havia voltado o olhar para a janela. A visão da rua das muralhas voltou a inquietá-la.

— Seria horrível pensar que tenharo-podido matar-se uns aos outros em nossa ausência. E deixei aqui minha filha...

— Vamos, vamos, sem dramas!...

Ela era encantadora quando empalidecia assim, quando assumia esse ar desorientado que lhe dilatava as pupilas claras e conferia-lhes uma expressão patética, pungente. Tinha-se vontade de tomá-la nos braços e jurar-lhe proteção para sempre. Ele ajudou-a a descer da carruagem, estendendo-lhe a mão cortesmente. Luís XIV ensinara seus pares a mostrar deferência para com as humildes camareiras, e de bom grado se esquecia a situação subalterna daquela que ali estava.

O Sr. de Bardagne rejubilava-se interiormente. Agora que sabia ser ela uma criada, não cabia em si de alegria.

Ela não poderia deixar de sentir-se envaidecida atraindo a atenção de tão poderosa personagem como o tenente-general, representante pessoal do rei em La Rochelle. Enfim, não teria que vencer o pudor quase congénito das mulheres da religião reformada, das quais tentara em vão combater a reserva. Perdera toda a esperança, mesmo em relação à ácida e picante Jeni, a filha mais velha de Mestre Manigault.

Ao se contemplar essa mulher magnífica, podia-se supor que as faltas de que se arrependia estavam entre as que ele, Nicolau de Bardagne, absolvia de bom grado, sobretudo quando cometidas em seu benefício.

E havia mesmo a presença de sua filha bastarda, o que a colocava numa situação de inferioridade, que para ele seria bastante cómodo aproveitar.

Excelente negócio, magnífico dia para ele!

Ao entrarem no pátio, ele tomou-lhe o braço.. Angélica mal o percebeu. Precisava disso, aliás. As pernas mal a sustinham.

-        Veja - disse o Sr. Bardagne, tranqiiilizando-a -, tudo está calmo!...

No vestíbulo dos rés-do-chão, os quatro soldados, o carrasco e o Sieur Baumier bebiam vinho, servidos pela velha Rebeca. Bau-mier mantinha-se um pouco afastado, comp um homem de qualidade que não pode misturar-se com o carrasco.

Ao avistar o superior, levantou-se, inclinou-se profundamente, mas não pareceu embaraçado. '

-        Está ouvindo? - perguntou com um olhar resignado para cima.

Um salmo lento e triste, vindo do quarto de Lázaro Berne, cantava a morte e a.angústia da alma. Os-protestantes velavam ao redor do cadáver ameaçado, buscando conforto na oração.

-        Está vendo - repetiu o Sr. de Bardagne a Angélica -, não lhe havia dito?Em LaRochelle,',estamos entre gente boa. As coisas se arranjam por si mesmas.

Ela não podiaescutar esses coros distantes sem estremecer. Sempre os ouviria', dos lábios de seus criados e das crianças de Ram-bourg ao redor da mãe, no instante em que os dragões penetravam com o sabre desembainhado no castelo...

O tenente do rei conversou a meia voz com o presidente da comissão real .pára assuntos religiosos.

— Temo bastante que haja um mal-entendido nesta operação, Sr. Baumier. É difícil acusar Lázaro Berne de crime de reincidência, já que ele nunca se converteu.

— O senhor me disse que eu estava livre para tratar deste caso segundo meu entendimento - protestou Baumier, rígido.

— Decerto, mas também confio em você para elaborar os dossiês o mais corretamente possível. O menor erro nessas delicadas questões leva-nos às piores dificuldades. Os reformados são muito suscetíveis e tendem em excesso a acusar-nos de má-fé...

O funcionário das conversões fez uma mímica significando que essas nuanças psicológicas pareciam-lhe exageradas.

-        Senhor tenente-general, o senhor "tem muita consideração por esses miseráveis, que são, na realidade, desertores da verdadeira fé. Devem ser tratados com todos os rigores reservados aos soldados culpados de tais crimes nos campos de batalha.

Entrementes, o Sr. Manigault chegava com seu jovem filho Jeremias pela mão e seguido de toda a sua tropa de mulheres.

O tenente do rei acompanhou-o até em cima. Baumier, um sorriso de mártir cujos lábios afiados calavam suas próprias ideias, foi junto com eles. Estava habituado a engolir todos os desgostos. Contudo, a certeza de estar no bom caminho, espiritual e administrativo, ajudava-o a suportar as humilhações passageiras. Ouviu sem piscar Nicolau de Bardagne falar à assembleia com compunção sobre o famoso "mal-entendido", e mesmo assegurar a Mestre Gabriel que não haveria nenhuma complicação para se abrirem as portas da cidade no momento do enterro.

O incidente estava, pois, encerrado.

Quase recomeçou quando uma pequena forma redonda, coberta com uma touca verde-maçã, avançou para o Sieur Baumier, brandindo um bastão e dizendo:

-        Você é mau... Muito mau. Vou te matar!

Era Honorina, que, completamente esquecida por todos, decidira intervir, indo direto ao responsável pela perturbação familiar. Ele era o génio mau, o homem carregado de malefícios naquela multidão agitada. Era preciso abatê-lo. Ela levara algum tempo para tirar o bastão do depósito de lenha. Baumier escapou por pouco dos golpes desferidos por seus valentes bracinhos de dois anos. O Sr. de Bardagne reconheceu a filha de Angélica e não fez mais que rir.

— Cá está esta encantadora criança!

— Ah! O senhor acha? - rangeu o presidente do comité de conversões. - E admite que esta semente de herética me insulte?

— Outro erro, meu caro, esta pequena é devidamente batiza-da por nossa Santa Madre Igreja.

Ele dírigiu-lhe uma piscadela confidencial.

-        Venha, mestre Baumier, colocá-lo-ei a par do que escapa a sua vista demasiado curta...

Angélica já agarrara a filha com um braço, Laurier com o outro e refugiara-se na cozinha. Honorina estava rubra e presa de uma cólera cega. Estimava ter tido paciência em excesso durante esse dia em que as pessoas grandes não se haviam preocupado com ela mais do que com os gatos da casa. Ela pudera brincar impunemente com uma tina inteira de água, virar uma tigela de leite tentando alimentar seu gato esfomeado, devorar a metade de um pote de geléia... As pessoas grandes continuavam a olhar-se com rostos rígidos e a dirigir umas às outras palavras empoladas. Depois, de tempos em tempos, cantavam... Tendo sua mãe se tornado invisível, Honorina começara a semir-se pouco à vontade e acercara-se das pessoas grandes para observá-las mais de perto. Sua antipatia dirigira-se imediãtameate a Baumier porque ela o vira tirar uma tabaqueira das'abas do casaco, enfiar duas ou três pitadas no nariz e depois espirrar ruidosamente. Aqueles gestos incongruentes haviam parecido particularmente odiosos à pequena, e ela decidira aniquilar a" repugnante personagem.

-        Quero matá-lo -? repetia energicamente.

Angélica tentava segurá-la enquanto observava que a filha estava lambuzada-de geléia até os cabelos. Nesse momento o pequeno Laurier pos-se a vomitar, devido à emoção. Temera por seu pai, sem saber ao certo o que o ameaçava. O,temor devolvia-lhe o aspecto miserável dos primeiros dias. Angélica encheu de água o caldeirão de ferro e pendurou-o na cremalheira. Depois avivou o fogo. Era. preciso lavar todo mundo.

Severina entrou em companhia de Dame Ana. Repetia com voz excitada: ;

— E então, tia Ana?... Tê-lo-iam arrastado pelas encruzilhadas da cidade...

— Sim, minha filha, a- canalha teria tido o direito de injuriá-lo, cuspir nele, cobri-lo de lixo...

— Acredita ser útil descrever esse espetáculo, já que ele não aconteceu? - perguntou bruscamente Angélica.

De repente Severina ficou mais branca ainda e deslizou da cadeira. Angélica teve apenas tempo de erguer a menina nos braços e levá-la até o quarto. Depois de tirar-lhe os sapatos, deitou-a. As mãos de Severina estavam geladas.

Angélica voltou à cozinha e pegou um recipiente no qual despejou a água, que começava a ferver. Preparou igualmente o aquecedor.

Tia Ana observou, contrafeita, que se espantava de que Severina perdesse a coragem a esse ponto, pois sempre fora enérgica e resistente, sem pieguices inúteis.

-        E eu me espanto de que se espante - replicou Angélica. - Pois é uma mulher, parece-me, e deveria pensar que Severina tem doze anos, e que nessa idade uma menina tem necessidade de certos cuidados.

Dame Ana pareceu chocada com a alusão; decididamente aquelas mulheres "papistas" careciam do pudor mais elementar.

Angélica ergueu Severina com a ajuda de mais um travesseiro e disse-lhe que mergulhasse as mãos na água quente até sentir-se melhor. Voltou para buscar o aquecedor e depois um pequeno frasco de perfume e fitas de veludo branco que comprara na Rue des Merciers.

Sentada na borda da cama, dividiu com dedo ágeis os longos cabelos da menina em duas tranças castanhas entremeadas com as fitas.

-        Assim ficarás melhor para repousar.

Lançou algumas gotas de perfume na água da bacia e esfregou com a palma da mão a fronte e as fontes de Severina, que consentia em tudo, dividida entre o remorso por sua fraqueza e o bem-estar que a invadia após sua molesta indisposição.

— Tia Ana não ficará contente - murmurou.

— Mas por quê?

— Ela jamais fica doente. Diz que é preciso mortificar o corpo.

— Vamos, nosso corpo já encarrega de mortificar-nos sem que o levemos a isso - disse Angélica, rindo.

O rosto de Severina, inclinado para trás sobre o travesseiro, pareceu-lhe subitamente novo. As pálpebras azuladas enlanguesciam-lhe o olhar, e sob os traços ingratos e ainda infantis transparecia um semblante de mulher. Seus olhos teriam profundezas noturnas, e podia-se adivinhar que a boca muito grande adquiriria mais tarde uma sensualidade expressiva.

Severina era íntegra, forte, bem mais forte do que os irmãos, mas não escaparia à ferida original. Ela também, um dia, mostraria nos braços de um homem essa mesma expressão vencida. Ela também se curvaria ao amor.

Angélica falou-lhe com delicadeza para tranquilizá-la, como outrora sua mãe fizera com ela. Mas Severina retomava pouco a pouco as cores e seus olhos começaram a brilhar. Sempre sofrera por ser uma menina entre os dois irmãos, Marcial, a quem admirava, e Laurier, a quem invejava por- ser menino.

— Não quero ser mulher - declarou com veemência. - É uma condição horrível, humilhante.

— Que ideia! Também sou mulher. Tenho um ar infeliz?

— Oh! não é a mesma coisa - disse Severina. - Em primeiro lugar, o tempo, todo você está rindo... E depois, você é bela.

— Mas você também será muito'linda.

— Ah! Não, não quero. Tia'Ana diz que a beleza das mulheres induz os homens à tentação « leva-qs a cometer pecados que o Senhor abomina.

Angélica novamente não pôde conter o riso.

— Os homens cometem os pecados que desejam cometer, pode acreditar. Por que a beleza das mulheres seria uma armadilha e não uma homenagem ao Criador? .

— Suas palavras são perigosas - declarou Severina, com o timbre de Dame -Ana. ' *

Mas ela bocejava e suas pálpebras se fechavam. Angélica cobriu-a"e- deíxotr-a, contente de nela ver, como em Laurier em -meio ao-sono, um sorriso de criança feliz.

CAPÍTULO VII

As crianças Berne na prisão - O Sr. de Bardagne apaixonado

Alguns dias mais tarde, Marcial embarcou de noite num navio holandês. Mas o navio foi inspecionado pelas naus da marinha real, ao largo da ilha de Ré. O jovem passageiro foi detido, trazido de volta à terra e encerrado no Fort Louis.

A notícia'teve o efeito de um tiro de canhão.

O filho de Mestre Berne na prisão! Uma das mais honradas famílias de La Rochelle aviltada a esse ponto!

Mestre Berne saiu imediatamente para pedir uma audiência ao Sr. de Bardagne, que não pôde recebê-lo de manhã. Mas conseguiu ver Baumier - o qual se mostrou escarnecedor e intransigente - e depois foi conferenciar com Manigault. O dia passou-se em diligências que se esperavam definitivas. Gabriel Berne retornou à noite, cansado e pálido. Angélica não teve coragem de informá-lo de que passara parte da tarde discutindo com o subdelegado dos arrendamentos de Charentes, o qual viera reclamar o segundo imposto, a ser cobrado do mercador na qualidade de reformado. Uma desgraça jamais vem sozinha!

Mestre Berne contou que se avistara com o Sr. de Bardagne, mas que, para sua grande decepção, este se mostrara bastante reticente. Assegurava que o delito de fuga caía no domínio de uma jurisdição draconiana. Não haviam chegado a enforcar sumariamente os viajantes protestantes detidos na estrada de Genebra? Não seria diferente com o caminho para a Holanda. O Sr. de Bardagne pediu para refletir, dada a alta posição social do menino. Afirmara estar muito, muito aborrecido.

A noite em casa dos protestantes foi sinistra.

A indignação, à vergonha, sucedia o temor. O advogado Carrere lembrou com ar lúgubre que crianças protestantes detidas em condições análogas haviam tido um destino ignorado, correndo o boato de que eram utilizadas nas galeras do rei. Os mais vigorosos não resistiam um ano...

Durante dois dias, Mestre Berne negligenciou completamente o comércio, correndo de um a outro'para tentar libertar o filho, ou ao menos conseguir vê-lo.

No terceiro dia, Severina, queífora tomar sua aula de alaúde de uma hora com uma velha senhorita do bairro, não voltara até o meio-dia. Vieram contar que a filha de Mestre Berne fora detida por cometer "atos profanadores" e conduzida ao convento das ursulinas.

Uma atmosfera de pesadelo instalou-se na casa.

Angélica passou a noite sem dormir.

Ao amanhecer, confiou Laurier e Honorina à velha Rebeca e foi ao Palácio da Justiça, onde pediu em tom bastante seguro para ser recebida'pelo fenente do rei, o Gonde de Bardagne.

O rosto do "oficial ijuminou-se ao vê-la entrar, já esperava secretamente pela visita, e disse-lho.

— E seu patrão quem a envia? Pois você deve saber que o caso é bastante grave e não há nada a fazer.

— De modoalgum, vim por minha própria vontade.

— Fico satisfeito com isso. Não esperava menos de sua inteligência. Considerando-se que os acontecimentos se precipitaram, era indispensável que me fizesse seu relatório. Crê que Mestre Berne esteja a ponto de ceder?

— De ceder?

— Quero dizer, de se converter. Confesso que essa ideia não me dá sossego. Reuni alguns nome selecionados durante um ano inteiro de paciente observação. Uma dezena, não mais, mas sei que, quando os tiver levado a um acordo, os pilares de La Ro-chelle huguenote ruirão, ipso facto...

Fazia bastante calor rio recinto. Um fogo- crepitante, atiçado pelo vento tempestuoso, dominava a lareira flanqueada de grif fons e naves esculpidas. As faces de Angélica logo tomaram a cor dos pêssegos maduros, e os pensamentos do Sr. de Bardagne, um curso mais galante.

-        Mas tire seu manto... Aqui estamos ao abrigo das intempéries.

Fez, ele próprio, deslizar a pesada manta dos ombros de Angélica. Ela aceitou maquinalmente, preocupada apenas em retifi-car o discurso que preparara em sua mente. Viera como suplicante, decidida a arrastar-se de joelhos aos pés do tenente do rei, se fosse preciso. Percebeu que seria o maior erro que poderia cometer, pois acolhiam-na como colaboradora, como cúmplice de conversões forçadas.

-        Sente-se, por favor - disse o representante do rei.

Ela obedeceu, sentando-se bastante ereta, com o desembaraço de uma longa convivência mundana. Continuava a refletir e não percebia que Bardagne a devorava com os olhos. "É decididamente muito bonita", dizia ele consigo. Quando ela surgia, quando se a via com suas roupas austeras, sob a touca branca, as pessoas tomavam-na pelo que era: uma criada. Ao cabo de alguns instantes não se podia impedir de tratá-la como uma dama. Dela irradiava uma tranquila segurança, uma liberdade de movimentos e de palavras, uma discrição distinta unida a uma simplicidade que punha os interlocutores à vontade. Possuía realmente um encanto fascinante, devido, sem dúvida, à sua excepcional beleza, ou então...

Aquela mulher tinha um mistério!... O conde permanecera em pé diante dela. Podia assim contemplar por entre as bordas do fichu de tela branca o despontar de um colo marmóreo, cuja forma roliça o grosseiro corpete de fustão não conseguia inteiramente dissimular.

Esse colo e o pescoço cheio, firme, um pouco queimado, davam-lhe um ar de saúde, uma robustez camponesa, que contrastavam com a delicadeza dos traços cheios de nobreza, um pouco trágicos, mesmo quando ela meditava.

O Sr. de Bardagne sentia-se irresistivelmente atraído por esse pescoço, pela curva de onde brotava um ombro que se adivinhava liso e macio. Ansiava pousar nele os lábios. Sentiu a garganta seca e as mãos úmidas.

Angélica, consciente do silêncio que se instaurava, ergueu os olhos para ele e apressou-se em desviá-los diante da confissão sem disfarce do olhar masculino que a contemplava.

Ele suplicou.

— Não, peço-lhe, não baixe as pálpebras. Uma cor tão rara, esse verde luminoso que só se pode comparar à esmeralda!... É um crime cobri-la!

— Trocá-la-ia de bom grado por uma outra - disse Angélica, de mau humor. - Ela me traz muitos aborrecimentos...

— Não gosta de cumprimentos? Dir-se-ia que teme as homenagens. No entanto, todas as mulheres tem avidez por elas.

— Eu não, confesso. E agradeçó-lhe, Sr. de Bardagne, por tê-lo adivinhado.

O tenente do rei aceitou a lição roendo ofreio. Nada obteria precipitando as coisas. Retomou seu lugar atrás da escrivaninha e tentou gracejar.

— Estaria a promiscuidade da Reforma contaminando-a a ponto de fazê-la acolher com aborrecimentos-minha admiração muito sincera, que sua beleza não pode deixar de suscitar? Não é normal deter-se encantado diante de uma flor, obra-prima da natureza, cujas cores deslurõbrantes-sao criadas para a alegria de nossos olhos?        

— Ignoramos'o que pensam.as flores - disse Angélica, com um pálido sorriso -:, e se nossa admiração, por vezes, não as importuna. Senhor conde, que fará pelos filhos de Mestre Berne?

— Ah! sim, é verdade, onde eu estava mesmo? - perguntou Bardagne, passando a mão na fronte..

O caso das crianças Berne, que o impedia de dormir há três dias, parecia ter-se de súbito volatilizado de sua memória. Era um fenómeno estranho. Jamais uma mulher tivera o poder de lançá-lo tão bruscamente em transes sensuais cuja exigência não deixava de embaraçá-lo. Sentira algo análogo no outro dia, ao acompanhá-la na carruagem. Depois a lembrança se esfumara. Continuara a pensar nela com uma indulgência feliz. Dizia consigo mesmo que nesse dia próximo, quando tivesse menos encargos, ser-lhe-ia preciso ocupar-se da bela criada. Porém mal ela reaparecera, ele se sentira febril e presa de um ardor impróprio. Para ele isso era perturbador, inquietante, quase humilhante... Em todo caso, era muito excitante. Desta vez o Sr. de Bardagne insistira em proveito próprio! Compreendera que um homem não tem duas vezes na vida a oportunidade de encontrar uma mulher capaz de atraí-lo a esse ponto. Infelizmente tinha todos aqueles negócios em curso, os coriáceos reformados a dominar, os colegas enciumados que o acusavam de fraquezas sem motivo, os altos funcionários eclesiásticos que jamais achavam as listas dos convertidos suficientemente longas... Como encontrar tempo para sacrifícios a Vénus em meio a tal estratégia?... Ah! Hoje não se sabia mais viver!... Como homem consciencioso e desejoso de ser bem-sucedido, esforçou-se para retomar pá na situação.

— Onde estávamos nós? - repetiu.

— Meu patrão faria parte das personalidades que o senhor considera como pilares da resistência huguenòte?

— Se faz parte? - exclamou Bardagne, indignado, erguendo os braços aos céus. - Mas é um dos piores! Trabalha na sombra, mas de modo mais nocivo do que se pregasse em praça pública. Ajuda os pastores interditos, os refugiados, sabe-se mais o quê! Você deve ter podido notar suas idas e vindas suspeitas...

— Vejo Mestre Gabriel fazer contas e ler a Bíblia - disse Angélica. - Nada tem de um conspirador.

No entanto, enquanto ela falava, a memória devolvia-lhe uma série de impressões, rostos entrevistos, estranhos, furtivos, que passavam da casa de Mestre Berne para a do papeleiro ou para a do Pastor Beaucaire, conciliábulos sussurrados, passos durante a noite... Felizmente o representante do rei parecera abalado com sua segurança.

-        Você me surpreende... ou então é você que não vigia bem.

Bateu com a mão num espesso dossiê.

— Pois possuo relatórios que não deixam nenhuma dúvida sobre suas atividades perigosas e malsãs. Muitas vezes o adverti. Ele aparentava compreender e escutava-me com amizade. Parecia sincero, mas a fuga de seu filho causou-me uma cruel decepção.

— O jovem Marcial partia para estudar cordoaria na Holanda.

— Como você é ingénua! Seu pai o enviava porque sentia o adolescente prestes a converter-se e queria mantê-lo em suas crenças.

— Disseram-me isso com efeito - falou Angélica sentindo-se dolorosamente oprimida. - Mas creio que o senhor se deixou iludir pelas aparências. Eu que vivo há longos meses com essa família, posso garantir que Mestre Berne procurava unicamente aperfeiçoar a educação do filho. Não se ignora que os reformados têm o costume de viajar muito.

-        Em demasia - disse o Sr. de Bardagne secamente. - É um hábito que fariam bem em perder. Aliás, as ordens são formais a esse respeito.

— Imaginava-o com uma disposição mais amável. O funcionário real comoveu-se.

— Que quer dizer?... Desaprovo, a violência e...

-        Quero dizer que toda essa atividadé*de inquisidor parece-me pouco conforme a seu caráter..-. que penso ser sobretudo acessível às satisfações terrestres. '

Ele riu com vontade, no fundo, envaidecido. Ela não era tão indiferente e sonhadora como aparentava.

— Entendamo-nos bem - retomou ele, - Como todo bom cristão, desejo ganhar o céu, mas confesso que a obra em questão me atrai sobretudo "por seu lado temporal. Ocupar-se de negócios religiosos é, no presente momento, o modo mais rápido para um funcíonário;progredir. Por outro lado, tenho a maior estima por Mestre"Berne^ueria ir em seu auxílio, mas ele se obstina, não quer compreender...

— Que deve ele-compreender?

— Que só podemos confiar a educação de seus dois filhos a uma família católica. O mal já está demasiado profundo nessas jovens almas.

— Por que "detiveram Severina?

— Porque era tempo-de que ela se.pronunciasse sobre a religião de sua escolha.

— Essas decisões destroem a autoridade do pai de família, base de nossa sociedade e do país.

— Que importa, se essa autoridade é nociva? Tenho aqui um relatório que...

Ele puxou um outro dossiê, depois deteve-se em seu gesto de abri-lo.

-        Mas... você os está defendendo!... - disse, considerando-a com desconfiança.

Angélica repreendeu a si mesma com violência. Mostrara-se desajeitada. Deixara transparecer em excesso ^sua opinião pessoal. Sentia-se incapaz de representar totalmente a comédia como o faria outrora. No passado, teria dissimulado, mentido com a maior facilidade. Talvez, então, se interessasse menos pelas.coisas. Era preciso, custasse o que custasse, reparar a situação.

-        Não os defendo, mas insisto em demonstrar-lhe que sei o que se passa nessa família. E vejo que o senhor trabalha sobre os falatórios de seus esbirros, que eles pomposamente nomeiam Xelatórios", ao passo que a mim ninguém pergunta nada.

— É porque você nada diz! Esperava múltiplas informações, precisamente de sua diligência. Esperei em vão.

— Nada havia a comunicar de interessante.

— No entanto você permitiu que Marcial Berne fugisse, sem informar-me sobre seus projetos de partida, dos quais não podia deixar de estar prevenida.

— Não se tratava de fuga, mas de uma viagem.

— Iludiram-no.

— Diga logo que sou uma tola!

Vendo-a em pé, a ponto de deixar a peça, o Sr. de Bardagne sentiu-se aterrado. Deu vivamente a volta à secretária para detê-la.

-        Ora, não iremos aborrecer-nos por isso. Você interpretou

mal minhas palavras. Estou desolado...

Sob pretexto de retê-la, punha-lhe as mãos nos ombros. Sentia a carne firme e macia sob a tela das mangas. Seu leve odor de mulher sadia inebriava-o. Angélica não podia mais iludir-se sobre a natureza de seu poder. Isso deixava-a bastante constrangida, mas disse a si mesma que era seu dever tirar partido da situação e desprendeu-se com toda a diplomacia.

— O senhor me magoou de fato.

— Lamento-o, estou arrependido.

— Porque creio poder dizer-lhe que, agindo assim com relação a Mestre Berne, jamais o dominará. Começo a conhecê-lo bem. Ele se obstinará e só se tornará mais intransigente. Ao passo que, tocado pela indulgência e pela ajuda que lhe manifestasse, ele seria mais sensível a seus argumentos.

— Deveras?

— Talvez!

O tenente do rei.estava novamente agitado. Não poderia ser de outra forma, estando junto dela, o olhar a vagar por aquele pescoço fascinante.

-        Mas não posso devolver-lhe os filhos - gemeu -, é impossível... Aliás, permito-me confessar-lhe. E esse infame Baumier o instigador de tudo. Mas agora que o processo está em curso, que o delito de fuga foi reconhecido, que a menina está detida, não posso mais recuar.

— Que está contando fazer com eles?

— O garoto será confiado aos jesuítas; a menina, às religiosas... "E jamais voltaremos a vê-los", pensou Angélica, transtornada.

— Foi precisamente para lhe propor uma outra solução que vim vê-lo, senhor conde. Mestre Berne não poderia ficar intran-qúilo com ela. Ele tem uma irmã convertida, casada com um oficial da marinha real, que reside na ilha de Ré.

— É exato, a Sra. Demuris.

— As crianças poderiam então ser-lhe confiadas... Afirmaram-me ser isso usual. Quando existe a obrigação de tirar um filho reformado dos pais, proeuram-se os parentes católicos mais próximos, encarregando-os de sua educação. É aliás uma medida de humanidade e-de bom senso.

— Mas como não pensei nisso antes? - exclamou o tenente do rei, iluminado. -'."E de fato a solução perfeita. Mesmo Bau-mier não terá o que retrucar, e.por seu turno, Mestre Berne ser-me-á grato, penso eu. Você é maravilhosa. Sua inteligência iguala sua beleza.

— No entanto parece-me que o senhor duvida dela.

— Como fazer-me perdoar?

Bardagne, transportado, aliviado, encantado com os tesouros que não parava de descobrir nessa criatura surpreendente, não pôde resistir. Tomou Angélica pela cintura e pousou-lhe os lábios no pescoço liso, cuja linha suave, os movimentos plenos de graça, não haviam cessado de inebriá-lo durante toda a conversa.

Angélica saltou como se tivesse sofrido uma queimadura. Arrancou-se tão bruscamente ao abraço que o pobre homem ficou atónito.

-        Será possível que a repugne a esse ponto? - balbuciou.

Ele tinha os olhos perturbados, os lábios trémulos. Embora breve, o contato bastava para confirmar-lhe todas as esperanças. Aquela era a mulher mais excitante que conhecera. "Maldição", pensou, "será tão recatada como as outras huguenotes? Era o que me faltava!"

CAPÍTULO VIII

Angélica repele os avanços do tenente do rei

Angélica apoiou-se à secretária marchetada, sem saber que atitude tomar.

Ele não era desagradável, afinal. Era galante. Tinha belos olhos, belas mãos, lábios conhecedores. Quem sabe se outrora - esse outrora do qual parecia-lhe estar separada por uma grade negra e intransponível - ela não se teria deixado tentar? Não podia esquecer que era uma humilde criada e ele, o representante do rei em La Rochelle, o que queria dizer, na ordem hierárquica, o homem mais poderoso da cidade.

Felizmente não era presunçoso. Por instantes, o recuo de Angélica parecia-lhe menos um insulto do que um doloroso golpe da sorte. Ela sentiu que era preciso reconfortá-lo.

— O senhor não me repugna... - disse. - Ao contrário. Confesso que o acho amável. Mas... como explicar-lhe... Prometi a minha protetora... a pessoa que não posso nomear... levar uma vida comportada a fim de resgatar meus erros passados.

— Que a peste carregue com essas beatas! - exclamou Nicolau de Bardagne -, aposto que essa é mais feia que os sete pecados capitais. Ela não se dá conta de que uma mulher tão bela como você não pode levar uma vida de freira.

— E se eu mesma desejasse permanecer virtuosa, senhor conde... É seu papel induzir-me à tentação?

O Sr. de Bardagne suspirou profundamente. A aventura mostrava-se mais difícil do que acreditara de início. Decidiu ser um bom jogador.

-        Em minha opinião, é o papel de todo homem de constituição normal, quando se encontra em sua presença - disse jovialmente. - Tem bastante espírito... e experiência, estou certo, para compreendê-lo e perdoar-me. Ele estendeu-lhe as mãos.

-        Esqueçamos tudo isso, Dame Angélica, e façamos as pazes.

Ela mostraria má vontade se não aceitasse a reconciliação. Ele beijou-lhe levemente a ponta dos~ dedos, e ela teve um reflexo bem feminino de contrariedade-ao pensar que suas mãos estavam estragadas e ásperas devido aos trabalhos domésticos.

Aceitou que ele lhe colocasse o manto nos ombros. Ele acompanhou-a até a porta. Inclinava-se para ela com uma ternura respeitosa.

-        Dame Angélica, lembre-se somentede que tem em mim um amigo pronto, a ajudá-la em.todas as circunstâncias...

Ele rodeava-a com sua sedução, é tanto tempo havia que um homem não" a cercava desse modo que ela se deixava atingir por reminiscências perturbadoras. Tantos homens se haviam inclinado sobre "ela cosi esse mesmo olhar ardente! Reconhecia sua aproximação, sempre a mesma, a um tempo humilde e imperiosa. A fraqueza comovente das pupilas veladas, da voz embargada, a doçura atenciosa sob a qual se esconde, como numa luva de veludo, a" arma cruel da posse, que, quando é chegada a hora, transforma o suplicante em senhor, a deusa inacessível em vencida.

Angélica jiãõ teria acreditado que continuasse sensível às sutilezas do jogo eterno. Ele a torturava e ao mesmo tempo retinha-a como a evocação de um clima familiar.

Suas faces estavam em fogo, e a voz, quase trémula de nervosismo, enquanto se despedia do tenente real, a um tempo desconcertado e encantado com sua atitude.

Fugiu, confusa, passando indiferente sob os olhares assassinos ' dos outros solicitantes, deixados para mais tarde. As banquetas estavam semivazias. Alguns, cansados, tinham ido almoçar. Passava do meio-dia. Na rua, Angélica, apanhada pelos turbilhões do vento, lutou com a manta e não avançou senão com dificuldade. O céu estava surpreendentemente azul. A tempestade torcia a luz invernal em chamas sutis,~qué davam a impressão de erguer-se, crepitantes, do leito das ruelas estreitas.

Angélica avançava sem se preocupar com o temporal, absorvida pela entrevista que acabava de se realizar. Remoía-a uma sensacão de vergonha ao pensar em sua falta de jeito, em sua inabilidade.

Ah! era passado o tempo em que seduzira magistralmente o embaixador persa Bei Bakhtiari, para levá-lo amarrado como um totó aos pés de Luís XIV. Usava então de alta estratégia feminina. E sem ter de perder um dedo de virtude!... Ao passo que, hoje, estivera... lamentável. Não havia outra palavra. Ao invés de rejubilar-se por ver esse homem, do qual tinha muito que obter, tornar-se febril e em poucos minutos balir como um carneiro, ela se irritara... Quase o perdera para sempre ao encarar suas declarações um pouco audaciosas em demasia com a aspereza de uma donzela recém-saída do convento. Na sua idade, era ridículo!... Outrora tê-lo-ia colocado em seu lugar com um sorriso, um dito picante...

Angélica, criada anónima, de roupas de sarja e de fustão, perdida nas ruas de La Rochelle, dedicou um pensamento cheio de estima à mulher brilhante que fora alguns anos antes e que tão habilmente sabia manejar as armas de seu sexo. Entre aquele tempo e os dias presentes houvera a noite do Plessis. Aos poucos ela se firmara, voltara a caminhar. A vida brotara. Mas de uma coisa jamais se curaria, pensou. Não havia homem que pudesse obter dela o milagre: ressuscitar a antiga alegria do amor, o impulso caloroso de seu corpo em direção a outro corpo, a eclosão misteriosa do prazer, a exaltação de sua própria fragilidade.

"Seria preciso um mago", pensou de repente. E maquinalmente seu olhar voltou-se para o mar negro e atormentado onde não surgia nenhuma vela.

CAPITULO IX

Provocação e duplo assassinato

O Sr. de Bardagne manteve a palavra. E foi um grande alívio para o espíritomortificado de Angélica verificar que, apesar da inabilidade que reprovava em si mesma, ele se apressara em seguir seus conselhos, e em contentá-la. No dia seguinte, Marcial e Severina tinham sido transferidos para a ilha de Ré, na casa da tia.

Angélica não deixava"de ter trabalho com toda aquela gente. Os afazeres-domésticos não lhe permitiam tempo para meditações.

Ela lavava a própria roupa numa fonte da cidade maior que a do pátio da casa, e levava Honorina consigo. Certa manha em que acabava-de empilhar no cesto as peças que alvejara, teve a surpresa de ;yer a filha brincando com um objeto brilhante.

-        Mostre-me isso - disse.

Honorina^ desconfiada por experiência, escondeu o objeto nas costas, mas Angélica teve tempo de ver uma linda argola de ouro lavrado com cabo de marfim, uma verdadeira jóia.

-        Onde achou essa argola? Você não deve ficar com o que não lhe pertence.

A pequena mantinha-a agarrada.

— Foi o gentil senhor que me deu.

— Que gentil senhor?

— Ali - disse Honorina com um gesto vago na direção do fundo da praça.

Para evitar um drama que se traduziria por gritos agudos e o velho coro das comadres à volta da criança, Angélica não insistiu, prometendo a si mesma esclarecer o caso assim que chegasse à casa. Pôs o cesto no braço, pegou a filha pela mão e tomou o caminho de volta.

Numa ruela estreita e pouco transitada, um homem abordou-a, afastando a aba da capa com que escondia o rosto. Ela deu um pequeno grito, tranqiiilizando-se quando reconheceu o tenente do rei, Nicolau de Bardagne.

— Oh! Você me assustou!

— Lamento-o.

Ele parecia excitado com sua escapada galante.

— Aventurei-me sem escolta neste bairro hostil, e seria preferível, sob todos os pontos de vista, que eu não fosse reconhecido.

— E o gentil senhor - disse Honorina.

— Sim, quis anunciar-me através de um presente a essa encantadora criança.

Honorina contemplava-o com olhos cheios de admiração. Como já era mulher, conquistada por uma argola de ouro!...

— Não posso aceitar - disse Angélica -, é um objeto muito valioso. Devo devolvê-lo.

— Ah! hão é fácil comovê-la - suspirou ele. - Sonhei com você noite e dia, tentando imaginá-la com uma expressão de suavidade e de abandono. Porém mal apareço, você ergue a barreira de seu olhar... Posso acompanhá-la? Amarrei meu cavalo não longe daqui.

Puseram-se a caminhar a passo lento. Mais uma vez o Sr. de Bardagne dizia consigo, desesperado, que aquela mulher o acorrentara com um encanto desconhecido. Apaixonado paciente quando sonhava longe dela, em sua presença perdia o controle. Talvez fosse um fenómeno anormal. Mas era um fato. Ele o reconhecia. Aceitava-o. Rendia-se... Sentia-se capaz de pôr-se de joelhos para suplicar.

Ela possuía belos braços de criada, avermelhados pela água fria onde há pouco os mergulhara, cílios de menina, boca de rainha, naquele instante preocupada e levemente trémula.

— Senhor conde, perdoe-me. O senhor é poderoso, e eu, apenas uma pobre mulher, sozinha e sem defesa. Não tome como ofensa o que vou dizer-lhe, porém nada deve esperar de mim. Eu... isso é impossível.

— Mas por quê? - gemeu ele. - Você me fez compreender que eu não a desagradava. Está duvidando de minha generosidade? Está claro que deixaria sua condição de subalterna. Terá o conforto de uma casa da qual será única senhora, criados, uma carruagem se o desejar. Todas as suas necessidades e as de sua filha estarão asseguradas.

-        Cale-se - disse ela secamente -, essas questões não estão em jogo.

Ele obrigoc^a a deter-se, tloqueando-a no vão de uma porta para contemplá-la de frente.       

-        Achar-me-á louco, talvez. Más é preciso que lhe diga a verdade. Jamais uma mulher inspirou-me paixão tão devoradora quanto a que a visão de sua pessoa faz nascer em mim. Tenho trinta e oito anos, e minha vida não foi de comportamento exemplar, confesso. E fértil em aventuras de que não posso orgulhar-me. Mas desde que a conheci compreendi que estava ocorrendo comigo o que todo homem teme e deseja a um tempo: o encontro com uma mulher com poder de acorrentá-lo, de fazê-lo sofrer com suas recusas, de cumulá-lo de favores, de quem está pronto a aceitar o jugo^os caprichos, para não perdê-la... Não sei de onde vem o poder particular que você tem sobre mim, mas chego ã pensar-que antes de você nada conheci. Tudo era insipidez, prazer vulgar. Somente através de você poderia conhecer o amor...

"Se elesoubesse que lábios antes dos dele disseram-me palavras semelhantes", pensou. "Os lábios do rei..."

-        Pode rçcusá-lo? - insistiu. -_E a vida que me recusa.

Sua fisionomia amável e suave de homem de salão endurecia-se. Os olhos sombrios examinavam-na com avidez. Ele se perguntava de que cor poderiam ser os cabelos que ela escondia sob a touca severa: louros, castanhos, ruivos como os da filha, escuros, talvez, como a tez queimada parecia sugerir.

Os lábios eram nacarados, lembrando o discreto esplendor das conchas.

Ele estava em tal estado que, sem a presença de Honorina, que os observava de nariz levantado, tê-la-ia tomado à força nos braços e procuraria despertar seu desejo.

-        Partamos - disse ela, afastando-o polidamente. - O senhor é louco, de fato, e não creio em nenhuma palavra do que me disse. Certamente conheceu mulheres mais brilhantes do que eu e creio que está querendo abusar de minha ingenuidade, senhor

tenente do rei.

Nicolau de Bardagne acompanhou-a com a morte no coração, consciente de tudo o que sua declaração poderia ter de insensato. Ele próprio não compreendia, mas repetia-se que o fato ali estava. Amava-a a ponto de perder a cabeça, de comprometer-se, de arruinar sua carreira. Ao considerar a garotinha que caminhava de mãos dadas com a mãe, um outro pensamento"ocorreu-lhe.

-        Juro-lhe que, se tiver um filho meu, reconhecê-lo-ei, e garantirei sua educação.

Angélica sobressaltou-se. O Sr. de Bardagne não poderia encontrar melhor promessa para afastá-la de qualquer arrebatamento. Ele o percebeu.

-        Sou um desajeitado - suspirou.

Como chegassem diante da residência dos Berne, Angélica pousou o cesto no chão e apanhou na cintura a chave que abria a porta lateral.

O tenente do rei acompanhava cada um de seus gestos com um agudo sentimento de dor e de encantamento. Ela era a própria graça. Seria o adorno de uma casa.

-        Seu pudor me enlouquece; se fosse fingido, de bom grado encarregar-me-ia de curá-la dele. Mas sinto, infelizmente, que é bem real... Escute-me, creio... sim, creio que chegaria ao casamento.

Ela exclamou:

— Mas... o senhor é certamente casado!

— Pois bem, não, é onde você se engana. Não esconderei que desde os quinze anos todas as herdeiras possíveis me foram jogadas nos braços, mas sempre consegui fugir a tempo, e estava decidido a terminar a vida na pele de um celibatário... Mas por você sinto-me capaz de aceitar as cadeias conjugais. Se a ideia de uma vida fora das leis divinas é a única razão que a afasta de mim, eliminarei esse obstáculo.

Fez-lhe uma grande saudação, a perna encurvada.

-        Dame Angélica, dar-me-ia a honra de aceitar-me por esposo?

Decididamente, ele era desconcertante.

Ela não podia tratar o pedido com leviandade, sob pena de ofendê-lo gravemente. Afirmou que estava confusa, que jamais esperara tal honra, mas que tinha a certeza de que, apenas de volta à rica mansão, ele lamentaria a louca proposta, que ela não podia aceitar. O obstáculo que a separava dele não era fácil de ser afastado, mesmo que tivesse um preço.

— Compreenda-me, Sr. de Bardagne... é difícil explicar-lhe as razões do que chama minha insensibilidade... Sofri muito na vida... e devido aos homens. A brutalidade deles feriu-me e afastou-me para sempre dos prazeres do amor... Eu os temo e não tenho mais gosto por eles...

-        E somente isso? - exclamou ele, tranqiiilizando-se. - Mas que pode você temer de mim, tolinha?... Estou habituado às mulheres e a tratá-las galantemente..;. Não sou um carregador do porto... E um gentil-homem que lhe pede para amá-lo, linda dama... Confie em mim e saberei tranquilizá-la e fazê-la mudar de opinião sobre o amor e seus prazeres...

Angélica conseguira abrir a porta, fazer Honorina entrar e depositar o cesto no pátio. Desejava que a conversa acabasse.

— Prometa-me que refletirá em minhas propostas - insistiu o tenente do rei, retçndo-a. Mantenho-as todas. Você escolherá as que lhe aprouverem...

— Agradeço-lhe, senhor conde. Refletirei sobre elas.

— Diga-me, ao menos de que cor são seus cabelos - suplicou ainda.

— Brancos - disse ela, fechando-lhe a porta no nariz.

Angélica fora encarregada por Mestre Gabriel de levar uma mensagem ao armador João Manigault. Voltava por uma ruela ao pé das muralhas", quando "percebeu que dois homens a seguiam.

Imersa em seus pensamentos, não se dera disso conta até aquele momento. Mas a ruela estreita em que acabava de entrar fê-la tomar consciência do ruído de passos que se mantinham atrás a uma distância constante.

Lançando um olhar por cima do ombro, viu dois indivíduos cuja fisionomia não lhe agradou. Não eram marujos em busca de pilhagens, nem tampouco marinheiros do porto. Os trajes burgueses eram mesmo bastante elegantes, mas contrastavam com rostos dissimulados e mal barbeados. Pareciam disfarçados.

O faro antigo fê-la pensar. "Policiais..." E ela apressou o passo. Imediatamente o ruído dos tacões aproximou-se, e um dos homens interpelou-a.

-        Ei!, linda moça, não fuja!

Ela caminhou mais depressa, mas eles já a-ladeavam. Um deles tomou-a pelo braço.

— Peço-lhes, senhores, deixem-me - "disse, desprendendo-se.

— Ora! Mas por quê? Você não parece alegre. Podemos fazer-lhe um pouco de companhia.

Os sorrisos matreiros fizeram-na temer o pior. Se tivesse que esbofetear os importunos, arriscar-se-ia a chamar a atenção. Se eles fossem jovens burgueses de famílias ricas, talvez aceitassem o infortúnio. Mas, não sabia por quê, temia que os belos trajes escondessem personalidades mais temíveis.

Seus olhos buscaram socorro nas fachadas cerradas das casas. Mas era a hora que se segue à refeição do meio-día, e La Rochel-le sacrificava-se ao hábito meridional de fechar as janelas. O sol muito brilhante e quente para a estação incitava a esse repouso no meio do dia. Ninguém nas janelas, nem nas portas. Angélica percebeu, que, felizmente, não estava longe dos entrepostos de Mestre Berne.

Ao invés de procurar chegar à casa, ainda distante, suportando a desagradável escolta, preferiu ali refugiar-se. Tinha certeza de que Mestre Berne lá se encontrava. O mercador saberia colocar os importunos em seu lugar.

Eles continuaram a dirigir-lhe cumprimentos, a dizer tolices.

Talvez fossem apenas bêbados, afinal.

Ela virou à direita e reconheceu com alívio, no fim da longa parede cega, o pórtico diante do qual, na noite de sua chegada a La Rochelle, Mestre Gabriel fizera uma primeira parada para deixar as carretas de trigo. Estava a alguns passos quando um dos homens, o mais alto e que parecia bastante musculoso sob os reflexos da casaca azul, agarrou-lhe a mão e passou-lhe um braço impositivo à volta da cintura.

-        Basta, minha linda! Não vá fazer beicinho para dois bons rapazes como nós, que não pedimos mais que um sorriso e uma beijoca bem sentida. Disseram-nos que as jovens de La Rochelle eram corteses e acolhedoras para com os estrangeiros. Mostre-nos isso!...

Enquanto falava, ele se debruçava e procurava os lábios de Angélica.

Ela jogou-se para trás e aplicou-lhe com toda a força uma sonora bofetada. Ele deixou-a para segurar a face. Ela deu um salto para a frente, mas já o outro a agarrava pela cintura. Um sorriso cruel e como que triunfante distendia os lábios do homem esbofeteado.

— Avante, Jeannot - gritou -, segure-a bem... Vamos almoçar essa bela huguenote... Um pedaço desses... É nosso dia de sorte...

Juntos eles a dominaram. Um violento pontapé por trás dos joelhos fê-la tombar. Ela gritou. Bateram-lhe na boca. Mãos arrancaram-lhe os atilhos do corpete. Ela pensou que fosse desmaiar, depois conseguiu reagir e debateu-se como uma furiosa, arranhando, mordendo.

Conseguiu escapar e correu como louca para o pórtico. Um pedregulho fê-la oscilar. Ela caiu de joelhos, arrastou-se. Gritou:

-        Acuda! Acuda, Mestre Gabriel!... Acuda!...

Eles estavam novamente sobre-ela. Ela-se pôs a lutar em meio a um pesadelo, como lutara com os dragões de Montadour, com o mesmo sentimento de importência e de temor.

Súbito, os assaltantes-pareceram levantar vôo. Um deles saltou contra a parede,impulsionado.por uma força invencível. Seus olhos tornaram-se vítreos. Ele vacilou e caiu sobre Angélica com a moleza de uma marionete. O sangue jorrava-me em jatos da têmpora. Ela. repeliu xom horror o fardo sangrento. O sangue brotava com a violência de uma fonte. Angélica não conseguia libertar-se do peso todo daquele corpo sem vida. Debatia-se contra ele, desvairada. Conseguiu, por fim, jõgá-lo para o lado. Diante dela, o homem de casaca azul defrontava Mestre Gabriel. O mercador ultrapassava em muito a força e a largura dos ombros do adversário. Seus punhos martelavam-no duramente. O homem pedia graça. Por duas vezes fora ao chão. Suas roupas estavam amassadas e cobertas de poeira, o rosto apavorava-se. A peruca arrancada arrastava-se no riacho e os cabelos engordurados e sujos caíam-lhe nos olhos.

-        Já basta!... - ofegou -, chega...

Um violento soco no estômago provocou-lhe uma convulsão. Ele se apoiou à parede, a cabeça balançando em todos os sentidos...

-        Chega, estou dizendo... Deixe-me...

Mestre Gabriel aproximou-se. O outro devia ter lido algo de terrível em seus traços, pois seus olhos subitamente se dilataram.

-        Não - disse com voz sufocada.,- Não... piedade!...

Um novo golpe fê-lo cair de joelhos.

-        Não... Não pode fazer isso... Piedade.

O mercador inclinava-se sobre ele inexoravelmente. Bateu-lhe novamente, depois pegou-o pelo pescoço.

-        Não... - estertorou o outro.

Suas mãos pálidas e enfraquecidas tentaram erguer-se e afastar os dois braços nodosos, duros como barras de ferro, que se haviam apoderado dele. Elas se movimentaram convulsivamente, depois voltaram a tombar. Sons inarticulados escapavam da boca desmesuradamente aberta do homem de azul.

Os polegares de Mestre Gabriel enfiavam-se nessa carne como em argila. Parecia que jamais se soltariam.

Angélica, paralisada de terror, via os músculos das mãos do mercador saltarem, enquanto elas lentamente se fechavam como tenazes. Um estertor elevou-se no silêncio alucinante.

Angélica mordia os lábios para não gritar. Era preciso que aquilo acabasse, que acabasse logo. O rosto do homem arroxeava. Mas aquilo não acabava...

Por fim a agonia cessou. Com as pupilas fora das órbitas, o miserável jazia sobre as pedras redondas, a cabeça tombada para trás. Mestre Gabriel examinou-o atentamente antes de deixá-lo e de erguer-se com lentidão.

Seus olhos claros tinham uma estranha transparência no rosto congestionado pelo esforço. Dirigiu-se ao outro indivíduo, voltou-o, sacudiu-o e deixou-o cair sobre o próprio sangue enquanto resmungava:

-        Está morto! Chocou-se com aquele gancho que saía da parede. Tanto melhor! Poupar-me-á de acabar com ele... Dame Angélica...

Ele ergueu os olhos e susteve o impulso que o levava para ela. Uma perturbação indefinível ínvadia-o. A jovem erguera-se, mas apoiava-se, exausta, à parede, na mesma atitude de desfalecimento que há pouco tivera o homem de casaca azul, ao compreender num lampejo que o mercador iria matá-lo. Ela estava irreconhecível...

Os olhos apavorados de Angélica iam de um corpo inerte para o outro. Diante da tragédia que acabava de ocorrer, e da qual era a causa, o pânico de seu ser perseguido ressurgia e penetrava-a por inteiro, transformando sua expressão habilmente serena e altiva. Tinha o ar de uma menina mortalmente assustada...

Entregue ao medo, ela não se dava conta do estado em que a haviam deixado os dois miseráveis. O corpete fora aberto, a camisa, rasgada. A touca fora arrancada e a cabeleira caía sobre os ombros e os seios seminus. Sob a réstia de sol, as longas mechas douradas tinham um brilho precioso, ainda mais vivo ao lado da pela branca onde havia vestígios de sangue. Sangue que se tornava negro também em sua saia de fustão...

-        Você está ferida?      

A voz do mercador era baixa e como que ausente. Ele não via apenas os vestígios de sangue... Dedos obscenoshaviam deixado marcas naquela carne nacarada, subitamente desvendada. Lábios ignóbeis talvez houvessem nela pousado. A essa ideia, o mercador novamente sentiu-se invadido de loucura assassina. O corpo no qual se proibia cie pensar quando ia * vinha em sua casa a mulher de movimentos desenvoltos e graciosos, o corpo que se movia sob as pesadas pregas das saias, e do qual os rígidos corpetes aprisionavam .QS eloquente? encantos, aqueles porcos tinham desejado macular.   -

Aquilo que ele próprio jamais ousara, nem mesmo em pensamento, eles o haviam feito. Haviam-na desnudado, "revelado suas pernas, delgadas e torneadas como só se vêem nas estátuas, nas deusas.

Jamais esqueceria a visão que tivera no pórtico, ao abarcar com um olhar o quadro de violência e de luxúria: uma mulher atacada por dois vadios. E era ela!...

-        Você está ferida?

Sua voz era tão dura que Angélica voltou a si. A silhueta maciça e vestida de negro de Mestre Berne interpunha-se entre ela e o sol ofuscante, entre ela e a cena de horror.

Ela lançou-se para ele, escondendo o rosto, buscando a sombra de um ombro numa louca necessidade de proteção e de esquecimento.

-        Oh! Mestre Gabriel!... O senhor matou... Matou dois homens... por minha causa... Que irá acontecer? Que será de nós?...

Ele fechou os braços à sua volta, apertando-a a ponto de esmagá-la.

-        Não chore, Dame Angélica... Não a...

-        Não estou chorando... Sinto muito medo para chorar...

Mas as lágrimas brotavam-lhe dos olhos sem que ela tivesse disso consciência e molhavam o peitilho daquele que a consolava. Ela se agarrava fortemente a ele.

— Você não me respondeu... - ele insistiu. - Não me disse se está ferida.

— Não... creio que não...

— Esse sangue...

-        Não é meu... é... de outro.

Ela se pôs a bater os dentes.

A mão do mercador afagou a suave cabeleira com reflexos de ouro e de prata dourada.

-        Vamos, vamos! Acalme-se... minha amiga, minha querida...

Ele tranqiiilizava-a como a uma criança, e ela reconhecia sua voz paciente e a sensação esquecida e deliciosa de, uma proteção masculina.

Alguém se erguera entre ela e o perigo, defendera-a, matara por ela. Ela abandonou-se chorando contra essa barreira inviolável que lhe recordava, sem que soubesse por quê, o ombro do policial Desgrez. A horrível sensação de há pouco se desvanecia. Os sobressaltos de asco e de medo acalmavam-se. A respiração precipitada cessou de sufocá-la e retomou o ritmo normal. Súbito pensou: "Estou nos braços de um homem e não tenho medo".-Era como a revelação de uma cura que não mais esperava.

Ao mesmo tempo, teve vergonha. Sentiu a nudez de sua pele sob mãos quentes e teve consciência da desordem de suas roupas.

Seus olhos molhados ergueram-se furtivamente e encontraram o olhar de Mestre Gabriel. A expressão dele fê-la enrubescer, e ela se afastou.

-        Oh! Perdoe-me, estou fora de mim - murmurou. Ele soltou-a delicadamente.

Angélica procurava febrilmente trazer os fragmentos do cor-pete para o peito e os ombros. Mas o embaraço a impedia. Foi ele quem teve que ajudá-la, encontrando o cordão que havia deslizado, o atilho que fora arrancado. Ela enrubescia cada vez mais.

-        Não se enerve. Aqueles brutos maltrataram-na horrivelmente - disse ele. - Com esses farrapos, é impossível chegar a um resultado satisfatório. Depois você jogará no lixo esse corpete...

— Agora devemos apressar-nos...

Sua voz emudeceu, e Angélica, acompanhando-lhe o olhar, viu o soldado Anselmo, o guardião da Torre da Lanterna, a observá-los do alto das muralhas.

Durante minutos intermináveis houve uma silenciosa espera nas duas extremidades da rua. Depois o soldado pareceu decidir-se e desceu pesadamente os degraus de pedra.

Balançando a cabeça de javali sob o capacete de aço, caminhava na direção deles. O martelar dás botas e da alabarda no pavimento produzia um barulho enorme, O mercador olhou as mãos nuas como a se perguntar se ainda teriam suficiente força para abater o novo inimigo armado.

-        Belo trabalho, amigo - disse o soldado entre dentes, com voz rouca. - Vi de longe o fim de tudo. O senhor tem um bom punho, e não é "só para adulá-Jo, Mestre Berne...

Com a ponta da lança tocou um dos cadáveres.

-        Conheço esses dois, são uns sujos... Baumier paga-os para provocar as mulheres e as filhas dos protestantes. Os maridos ou os pais intervêm. Isso provoca um tumulto, e eis então uma bela ocasião para enfiar alguns huguenotes a mais na prisão... Desse

pão eu não como.

Apoiado à arma, na postura familiar de conversa, ele prosseguiu:

-        Quando se passou como eu pela estrapada e pela chibata, que se pode fazer além de abjurar? Sou um pobre militar e dou valor à minha-comida. Mas não é razão para trair meus antigos irmãos. Vamos, desapareça com essas carcaças... eu nada vi...

Ele deu-lhes as costas e voltou a passo lento para seu posto nas muralhas.

-        Dê uma olhada no pátio - ordenou Mestre Gabriel a Angélica. - Não quero que meus empregados saibam de nada. Se você não vir ninguém, abra o depósito pelo lado esquerdo.

Felizmente o pátio estava deserto. Angélica puxou a porta do depósito que lhe fora indicada. O odor acre da salmoura pegou-lhe na garganta.

Ela voltou para junto de Mestre Gabriel, que tirara o casaco do homem estrangulado e enrolara com ele a cabeça do outro ferido para absorver o sangue. Apesar das precauções, enquanto transportavam o cadáver notaram com horror que seus sapatos maculados deixavam marcas vermelhas nas lajes do pátio. Depositaram o cadáver no armazém e voltaram para buscar o outro.

-        Colocá-los-emos no sal - sussurou o mercador -, não e a primeira vez que isso acontece. É um bom esconderijo. O sal conserva os corpos. Isso nos permitirá aguardar a melhor ocasião para fazê-los desaparecer.

Ele tirou o casaco negro, pegou uma pá e atacou a alta montanha branca que luzia na penumbra.

Angélica ajudou-o cavando com as mãos. Era tal sua pressa de ver desaparecer os dois rostos contraídos numa hedionda expressão, que não sentia os cristais de sal na pele esfolada.

Os dois corpos foram enfiados na parte mais profunda do monte de sal e cuidadosamente recobertos. Angélica e o mercador trabalharam em silêncio. Enquanto ele acabava de devolver ao depósito o seu aspecto habitual, Angélica pegou um balde e o encheu na fonte. Munida de uma escova, pôs-se a limpar as lajes manchadas. Dois auxiliares, que voltavam do cais com um lote de barris, entraram por outra porta. Avistaram-na a distância e não se chocaram por ver a criada de Mestre Berne lavando o pátio. Ela vinha amiúde aos armazéns, e, embora ocupando-se em princípio dos livros de contabilidade, ocorria-lhe entregar-se a trabalhos braçais. Felizmente, sabendo que o patrão estava nas imediações, os moços não se aproximaram. Espantar-se-iam com razão ao descobri-la quase em farrapos, com os cabelos sobre os ombros.

Eles desapareceram no depósito de vinhos e de aguardente.

Angélica voltou à ruela. Moscas começavam a zumbir em torno da poça de sangue. A regueira escoava a água, e estava vermelha até o respiradouro que se abria para o mar, no final da rua.

Felizmente, ninguém ainda havia passado. Ela esfregou demoradamente, de joelhos, os cabelos nos olhos, e não se sentiu tranquila enquanto a última enxaguadura não levou consigo mais do que uma vaga tinta rosada que não poderia atrair suspeitas.

Então fechou cuidadosamente o pórtico quase uma hora antes Mestre Gabriel quase arrancara dos gonzos para precipitar-se em seu socorro.

-        Venha até o escritório - disse o mercador -, está tudo em ordem. É preciso reconfortar-se.

Angélica titubeava. Ele passou-lhe um braço ao redor da cintura e susteve-a até a peça escura onde se amontoavam, ao lado dos livros de contas e de balanças de todos os calibres, preciosas peles do Canadá, objetos de cutelaria da Inglaterra e amostras de aguardente de Charentes.

Por precaução, ele passou o ferrolho.

Angélica deixara-se conduzir até um banco, e apoiara a cabeça nos braços, contra a mesa.

Mestre Gabriel empurrou um copo de aguardente em sua direção.        

-        Dame Angélica, beba... E preciso.

E como ela não se movesse, efe sentou-se junto dela, ergueu-lhe a cabeça e aproximou à força o copo de seus lábios. Ela bebeu alguns goles, tossiu. As cores voltaram-lhe às faces.

— Por que tudo isso, aconteceu? - perguntou ela, olhando em torno com ar assustado. - Eu voltava para casa... Eles começaram a seguir-me„. Pensei vir até aqui para pedir-lhe socorro... Eles se mostraram mais e mais ousados... depois, de repente...

— Esqueça isso - disse. - Nada mais tem a temer, estão mortos.  

Ela estremeceu violentamente.

— Mortos? Não é horrível?... Mortos por toda parte .em meu caminho.

— É preciso que haja mortos - disse Berne bruscamente, cujos olhos conservavam seu brilho singular. - A morte chama a morte, os crimes chamam os crimes. Está escrito na Bíblia: "Darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, marca por marca..."

Angélica recuou no banco. Ergueu-se e afastou-se como se acabasse de descobrir um inimigo a seu lado.

— Odeio os homens - disse com voz surda -, odeio-os todos e odeio a mim mesma. Oh! queria desaparecer. O senhor me olha como se estivesse louca. Desejaria, talvez, que eu permanecesse calma, porém basta, não permanecerei calma.

— Como você parece jovem e infantil de repente! Não fala mais como a mulher experiente que me habituou a conhecer.

— Não está compreendendo, Mestre Berne... Os demónios entraram em meu castelo, atearam-lhe fogo, massacraram os criados, degolaram meu filho mais novo, e me foi devido a essa noite que Honorina nasceu... compreendeu?... A filha do crime e da violação... E o senhor se surpreendia que eu não pudesse amá-la...

Ele pareceu crer que ela delirava; depois, compreendendo bruscamente que fazia alusão a acontecimentos passados:

-        Deixe de lado as recordações. Você as havia esquecido.

, E erguendo-se, passou por sobre o banco. Ela o via com temor vir até ela. Ao mesmo tempo, desejava que ele estivesse junto dela, bem junto dela, para ampará-la e para que ela soubesse se o milagre de fato ocorrera, e que podia se ver feliz nos braços de um homem.

-        Há pouco os esqueceu - repetiu ele em voz baixa -, há pouco... junto a mim!...

Ele roçou-a. Pousou as mãos em sua cintura, e como ela não fizesse nenhum movimento de defesa, atraiu-a para si. A tensão que os.possuía fazia-os tremer, mas Angélica não oferecia resistência.

Estava fria e insensível como uma virgem que se reprime, mas a curiosidade que tinha de si mesma era mais forte. "Há pouco não tive medo", disse consigo. "É verdade... e se agora ele quiser beijar-me, que acontecerá?"

Não lhe repugnava o semblante arrebatado que se debruçava sobre ela. Suportava sem se magoar a pressão de um grande corpo sólido e possuído de desejo contra o seu. A personalidade daquele que a estreitava se apagava. Esqaueceu-lhe o nome e quem ele era. Trataya-se apenas de um homem que a tinha nos braços, em quem reconhecia, sem se apavorar, o apelo veemente.

Sentiu um alívio inexprimível, que a fez respirar demorada, lentamente, contra aquele largo peito, como uma afogada que recobrasse o fôlego. Então ainda estava viva!

Sua cabeça enlanguesceu.

Lábios sedentos, que não ousavam ainda aflorar os seus, perdiam-se em seus cabelos. Começou a perceber a carícia da mão que tremia sobre sua pele nua. A atenção com a qual se redesco-bria isolava todas as suas faculdades.

Foi preciso uma palavra, da qual somente eles podiam compreender o perigoso significado, para fazê-la voltar a si.

-        Sal... sal... - gritou fora um empregado, batendo na porta fechada.

Angélica enrijou-se, subitamente arrancada ao torpor.

-        Escute - disse ela -, falam do sal... Descobriram algo!...

Imóveis, aplicaram o ouvido.

-        É preciso carregar o sal, patrão - repetiu o empregado atrás da porta.

-        Que sal? - rugiu Mestre Gabriel, dando um salto.

Rapidamente recobrou o sangue-frio, e tónçou um olhar a suas roupas e ao peitilho, para ver- se -estavam em ordem. O empregado explicou:

-        E para o imposto. Vieram buscar o vinho e o sal.

-        Aposto que se trata de um gole de Baumier - resmungou o negociante.

E abriu a porta. Um cobrador de impostos, acompanhado de dois auxiliares e de quatro homens da polícia, estava na soleira, atrás do empregado assustado. Duas carretas acompanhavam-nos para carregar o imposto em espécie.

— Já paguei todos-es impostos - declarou Mestre Gabriel. - Posso mostrar-lhes q recibo.

— O senhor pertence à religião pretendida reformada?

— De fato.

— Então, segundo os novos decretos, deve ainda um excedente, equivalente à totalidade dos impostos já pagos. Veja, cá está escrito - acresce fitou, estendendo um pergaminho..

— Mais uma iniquidade, pois não há nenhuma razão para isso.

— Que quer, Mestre Berne, seus correligionários convertidos são isentos do imposto por um ano, e por três anos para as talhas. É preciso que recuperemos essa perda em algum lugar. Que os obstinados como o senhor paguem pelos outros. Aliás, serão apenas doze barris de vinho, cento e cinquenta libras de toucinho salgado e doze alqueires de sal: não é muito para um rico mercador como o senhor.

A cada vez que ouvia a palavra "sal", Angélica empalidecia. O oficial real examinou-a com insolência.

-        Sua esposa? - perguntou a Mestre Gabriel.

O mercador estudava a citação que lhe fora entregue e nada respondeu.

Venham, senhores - disse ele, saindo e dirigindo-se aos depósitos.

Angélica ouviu o oficial escarnecer, dirigindo-se aos seus auxiliares

- Esses hunguenotes querem nos ensinar... Isso não os impede de ter concubinas como todo mundo.

CAPÍTULO X

Ameaças em torno de Angélica e dos protestantes - É preciso partir

Seguiram-se horas de medo em que Angélica esperava, a cada instante, pela catástrofe. Ela espreitava, os ruídos do pátio. Gritos iriam elevar-se. Veria Mestre Gabriel passar, ladeado pelos policiais. Súbito, decidiu eclipsar-se assim como estava, os cabelos em desalinho, e coirer-emhusca de Honorina, para fugir em seguida, sempre em frente, o mais distante possível, sempre mais distante, até que chegasse, esgotada, ao' campo.

A partida do cobrador de impostos salvou-a desse movimento de loucura."As-_carretas passaram com seu carregamento fiscal. As portas fecharam-se sobre elas.

A poeira dançava-no ar amarelado do crepúsculo. Mestre Berne atravessou o pátio acencontro de Angélica; tinha o semblante preocupado, mas estava calmo. Serviu-se, no entanto, de outro copo de aguardente. Vigiar passo a passo as investigações dos soldados, explicar aos empregados que deviam escavar de um lado do monte de sal e não do outro, escapar ao mesmo tempo à atenção desconfiada do oficial, não fora tarefa fácil.

-        Não pude ajudá-lo - disse Angélica. - Ter-me-ia traído.

O mercador fez um gesto lasso.

-        E um golpe de Baumier - repetiu. - Agora estou certo de que foi ele quem colocou aqueles dois indivíduos infames atrás de você... A visita do cobrador deveria seguir de perto a evidência da altercação e resistência à autoridade real. Dentro de algumas horas, começarão a perguntar-se"ò"que fizemos de seus esbirros. Por isso dispensei os auxiliares e os carregadores e fechei o armazém. Não podemos esperar mais tempo para livrar-nos dos cadáveres.

Ele lançou um olhar para o retângulo dourado da porta.

-        Logo anoitecerá e poderemos agir.

Esperaram na sombra, em silêncio, e sem procurar aproximar-se um do outro.

O perigo iminente mantinha-os alerta e dominava-lhes todos os pensamentos. Permaneceram imóveis, como animais ameaçados que palpitassem no fundo da toca, seu último refúgio.,

No enquadramento da porta, o céu tinha matizes de concha, e chegavam até eles os rumores distantes do porto, o sopro ritmado do mar.

A noite elevava-se, fria, azulada e suave.

-        Vamos, é hora - disse o mercador.

Dirigiram-se ao depósito de sal. Mestre Berne tirou um trenó de madeira de uma cocheira.

Novamente cavaram juntos na neve amarga que lhes esfolava as mãos. Os corpos foram içados no trenó e cobertos com sacos de trigo e fardos de pele.

O mercador puxou os varais do veículo. Após saírem na parte dos fundos, deu várias voltas à chave.

-        Não quero que ninguém possa entrar antes que eu próprio volte para uma inspeção.

Tomou um dos varais do trenó e Angélica, o outro. Os patins de madeira deslizavam com facilidade e sem ruído sobre os pedregulhos redondos do Canadá que pavimentavam as ruas e ruelas da cidade. O pavimento bastante peculiar, devido a um prefeito económico que havia encontrado esse meio de empregar os seixos de Saint-Laurent na Nova França, com os quais se lastrea-vam outrora os navios sem carregamento, necessitara do uso de trenós. Uma carreta de rodas contornadas de ferro faria um barulho infernal. Angélica e o companheiro apressavam-se como sombras furtivas, puxando a carga macabra.

-        E a hora mais favorável - sussurrou Mestre Gabriel. - Os candeeiros ainda não estão acesos e, em nosso bairro de teimosos huguenotes, fazem-nos de propósito esperar mais tempo que os outros para nos punir... As afrontas têm por vezes suas van

tagens...

Os passantes com os quais cruzavam não teriam que perguntar o que faziam Mestre Berne e sua criada e o que transportavam, pois estava escuro como breu.

O mercador parecia saber para onde ia. Metia-se por ruelas estreitas num circuito, complicado, que devia ter por objetivo evitar as ruas mais largas e mais transitadas.

Angélica tinha a impressão de que a expedição já durava horas e surpreendeu-se ao se ver não.longe da casa, diante da porta-cocheira de um de seus vizinhos, o papeleiro Jonas Mercélot.

Seu patrão ergueu três vezes a aldrava de bronze. O papeleiro em pessoa veio abrir.         .

Era um homem de cabelos brancos, amável e de grande erudição, que possuíra outrora a quase totalidade dos moinhos de papel do Angoumois. Arruinado pelas taxas e pela interdição de se manterem artesãos especializados protestantes, nada mais lhe restava senão a bela residência em La Rochelle e um pequeno comércio de papel de arte, do qual era' o único a conhecer o segredo.

— Tenho algo para seu poço - disse-lhe Berne.

— Perfeito! Entrem, jpois, caros amigos.

Ajudou-os com a maior cortesia a empurrar o trenó e sua lúgubre carga até um celeiro com um fresco perfume de maçãs, trazendo alta a lanterna para iluminar o caminho.

O mercador descarregou as peles e o trigo. Os corpos surgiram, deformadosj lambuzados de sal e de sangue, e o suave papeleiro contemplou-os sem-manifestar nenhuma surpresa.

-        Dame Angélica faria o obséquio de segurar a lanterna?

Ajudar-lhe-ei a transportá-los - disse apenas, com a cortesia habitual.

Berne sacudiu a cabeça.

— Não, é preferível que nos guie. Ela não conhece o caminho.

— Está certo.

Angélica mais uma vez teve que pegar em dois pés rígidos e que pareciam pesar como pedra. Doíam-lhe os braços esticados. Com o papeleiro a precedê-los, iluminando o caminho, desceram três degraus de pedra que conduziam a uma loja atulhada de resmas de papel empilhadas, fardos de trapos velhos e garrafões de ácido. Nos fundos, Mestre Mercélot deslocou, não sem esforço, uma prensa manual de modelo antigo que dissimulava uma portinha carcomida. A chave ficava escondida numa depressão da parede.

A porta abria-se sobre uma escada em caracol, felizmente bem pequena.

Eles estavam agora numa grande sala subterrânea, _de abóbada bem baixa e sustentada por largos pilares romanos. No centro encontrava-se um poço. Jonas Mercelot retirou a tampa de madeira, fechada a cadeado, e o fluxo e refluxo de um marulhar de ondas encheu a sala.

-        Esse poço comunica-se com o.mar - explicou Mestre Gabriel a Angélica.

Era obrigado a erguer a voz para se fazer ouvir:

-        O que aqui é jogado espatifa-se contra os rochedos - gritou - e é arrastado para longe pelas correntes.

O rumor do oceano, como que liberado de sua prisão, transformava-se em estrondos e bramidos, em clamores prolongados, que o eco repercutia.

Em meio a esse alarido, os gestos pareciam saídos de um pesadelo. Não se pôde ouvir o ruído da queda dos corpos balançados sobre o abismo de sombra. Eles desapareceram, tragados, parecendo dissolver-se.

A tampa foi recolocada e o ruído se extinguiu. Então Angélica apoiou-se à boca do poço e fechou os olhos. "Não é a primeira vez, infelizmente", dissera Mestre Gabriel.

O rumor surdo que ela continuava a ouvir era La Rochelle secreta, habitada pelo mar cúmplice e pelos salmos que no século XVI se elevavam das adegas subterrâneas onde se reuniam os primeiros adeptos da seita calvinista. Era o eco da luta sem perdão, travada por dois antagonistas entre aqueles muros, e que recomeçava nos tempos de perseguição com a mesma rudeza, os mesmos crimes... justificados de ambas as partes.

Como escapar ao sangue, ao medo?

Honorina estava deitada de bruços, os braços estendidos, a fronte contra o lajedo frio, como um animalzinho que espera a morte sem esperança.

-        Ela a procurou o dia inteiro - explicou Abigail. - Parecia estar numa ansiedade fora do normal. Olhava sob os móveis. Queria que se abrissem as portas e as janelas. Ela não a chamava, mas dava por vezes um grito que nos assustava. Oferecemos-lhe doces. Ela os recusou.

— Quis emprestar-lhe meu cavalo de madeira - explicou Lau-rier... - Ela o rejeitou.

— Está doente, talvez?

Permaneciam todos reunidos com"expressão preocupada ao redor daquele pacotinho prostrado. A consternação aumentou ao verem o estado em que surgiu A.ngéjiça.

— Mas que aconteceu com você? - exclamou tia Ana.

— Nada de grave.

Ela ergueu a filha e abraçou-a perdidamente.

-        Cá estou, coração, cá estou.

"Honorina sentiu que eu estava em perigo", pensou. "Eis por que estava inquieta."        

Honorina nascera no perigo. O instinto fazia-a reconhecer a aproximação da fera imensa e tenebrosa, de passo de veludo. Devia continuar a senti-la,-agachad"a atrás das vidraças das janelas.

Agarrada aopesccfço da mãe, reclamou imperiosamente que se colocassem os painéis de madeira nas janelas para esconder a noite. Todos se apressaram em fazê-lo, e só então ela consentiu em afrouxar et abraço e em sorrir. Sua mãe lá estava, e nos reflexos das vidraças ela não mais via aparecer a face negra e cruel da desgraça.

Instalaram-ha numa cadeira e trouxeram-lhe sua aveia. Angélica foi mudar de vestido, e colocou um avental de tela bem engomado, escondendo numa nova touca os cabelos desalinhados.

Mestre Gabriel falava a meia voz com o Pastor Beaucaire e seu sobrinho, igualmente pastor e refugiado de Cévennes. Ele chegara certo dia trazendo pela mão seu garotinho de quatro anos, Natanael.

O garoto também ali estava nessa noite, e as gémeas da família Carrere completavam o pessoal da casa, pois os vizinhos haviam dividido entre si os dez filhos do pobre advogado, na época do nascimento do décimo primeiro.

Honorina, encantada em ser o ponto de;atração de uma corte tão numerosa, tornou-se tagarela.

— Mamãe - perguntou ela, quando Angélica voltou -, onde está aquele belo senhor que me deu a argola de ouro?

— Que belo senhor? -- perguntou Mestre Gabriel.

-        Que argola de ouro? - perguntou tia Ana, desconfiada.

Angélica acharia ridículo fingir:

-        O Sr. de Bardagne teve a amabilidade de oferecer um presente à menina.

Em meio a um silêncio frio, Honorina ocupava-se em modelar sua papinha com uma colher, atenta, refletindo profundamente.

-        Queria tanto ter um pai como aquele! - disse por fim, com um sorriso animado.

Desde algum tempo, ela procurava desesperadamente um pai. De início, dirigia sua preferência para o Pastor Beaucaire, mas este decepcionara-a fortemente. "Minha menininha, amo-a como a uma filha espiritual, mas não posso dizer que sou seu pai sem mentir."

O carregador de água, a quem dedicava afeição, havia igualmente declinado de tal responsabilidade.

Agora apalpava visivelmente o terreno para o lado do Sr. de Bardagne, mas o momento parecia mal escolhido.

Angélica preferiu conduzi-la para os fundos da cozinha e colocá-la na cama.

Mas Honorina persistia em sua ideia.

— Não é meu pai?

— Não, querida.

— Então, onde está meu pai?

— Longe, muito longe.

— No mar?

— Sim, no mar.

— Então pegarei um navio - disse Honorina.

Suas pálpebras se fecharam sobre a visão de uma fabulosa viagem, e ela adormeceu, esgotada pelas emoções.

Angélica ocupou-se da refeição da noite. Precisava entregar-se às tarefas cotidianas para dominar a angústia. Não voltara a ver o Sr. de Bardagne desde o pedido de casamento, e enviara-lhe somente uma carta destinada a fazê-lo ter paciência.

Todos sentaram-se à mesa e já iam servir-se de uma sopa fumegante de mariscos, quando tocou o sino do portal. Eles entreolharam-se, os semblantes tensos, à luz das velas.

O sino tocou novamente com impaciência. Mestre Gabriel ergueu-se.

— Eu vou. Parecerá suspeito se não respondermos - disse.

— Não. Vou eu -. interpôs-se Angélica.

— Mandemos o criado. ;,

— Mas o criado tinha medo, sem sabej; por quê.

— Deixe-me ir - insistiu Angélica, pondo a mão no braço do mercador. - Que sua criada se apresente, é a atitude mais normal. Perguntarei primeiro pelo' postigo e depois virei prevenir-lhes.

Uma voz perguntou através do postigo;

— É você, Dame Angélica? Desejo falar-lhe.

— Quem é?...   

— Não me reconhece? Sou Nicolau'de Bardagne, o tenente do rei.

— O senhor?. . Angélica desfaleceu".

— Que veio.fazer aqui?... Deter-me?

— Detê-la? --- repetiu a voz, sufocada.

Foi preciso um momento para que o pobre homem se recompusesse. -

— Então crê que valho apenas para isso? Deter as pessoas a torto e a direito?.."] Muito grato pelaopinião que tem de mim. Sei que os obstinados que frequenta representam-me como um lobisomem, mas mesmo assim...

— Magoei-o, senhor, perdoe-me. Está sozinho?

— Se estou sozinho? Certamente, cara criança. E mascarado. E envolto num manto cor de muralha. Um homem de minha linhagem, que tem a estupidez de entregar-se a escapadas galantes, prefere estar sozinho e não chamar a atenção. Se eu fosse descoberto, seria ridicularizado para sempre. Mas era absolutamente preciso que lhe falasse. O assunto é muito grave.

— Que acontece?

— Deixar-me-á falar sem me oferecer ao menos o abrigo de um canto de pátio, ou vir para junto de mini nesta ruela tão pouco transitada e judiciosamente escura?... Irra, Dame Angélica, de que matéria você é feita? O tenente do rei, governador de La Rochelle, desloca-se em segredo para distraí-la-de seu forno e trazer-lhe suas homenagens, e você o trata como a um cão importuno.

— Sinto muito, mas quer seja tenente do rei ou não, sua visita secreta pode fazer-me perder a reputação.

— Você é decididamente intratável, fará com que eu fique louco. Na realidade, não faz questão alguma de ver-me!

— Nas condições presentes, sinto-me de fato constrangida. O senhor não ignora o quanto minha situação já é delicada entre as pessoas a quem devo servir. Se suspeitassem...

— Vim precisamente para arrancá-la desse ninho de heréticos onde corre os mais graves perigos.

— Que está querendo dizer?

— Abra a porta e saberá. Angélica hesitava.

— Deixe-me prevenir Mestre Berne.

— Não faltava mais nada!

— Não direi seu nome, mas é preciso que encontre uma explicação para justificar minha ausência, por mais breve que seja.

— E justo. Mas vá depressa... Só de ouvir sua voz e respirar o perfume de séu hálito já me sinto transportado.

Angélica voltou para casa no instante em que Mestre Berne, inquieto, descia.

-        Quem tocava?

Ela explicou-lhe rapidamente a presença e o pedido do Sr. de Bardagne. As pupilas do mercador tornaram-se tão perigosas como quando se preparou para estrangular os esbirros de Baumier.

— Aquele grosseiro papista! Irá explicar-se comigo. Ensinar-lhe-ei a vir seduzir minhas criadas sob meu próprio teto.

— Não, não interfira! Ele parece ter graves notícias a comunicar-me.

— E de que ordem crê que sejam essas notícias? As reflexões de sua filha inocente são bastante reveladoras. Ninguém ignora que ele fixou sua escolha em você e que desejaria instalá-la numa casa como amante. É a grande piada de La Rochelle!

Angélica retinha com toda a energia Mestre Gabriel, que poderia afastá-la como a um filete de palha.

-        Acalme-se - insistiu ela severamente. - O Sr. de Bardagne detém o poder. Não é o momento de desdenhar seu apoio, quando acabamos de agravar nossa situação já precária e o senhor corre o risco de ser enforcado.

Bem mais que as palavras, a pressão da mão fina em seu punho domava a cólera de Gabriel Berne.

-        Quem sabe o que já lhe concedeu? - bradou de repente. - Até aqui confiei em você...

Ele se interrompeu, revivendo o instante em que essa confiança fora abalada. Confusamente pensara nosjneses de paz doméstica que acabavam de escoar-se sob a égide de uma criada experiente, de quem jamais um gesto ou expressão pareceram suspeitos de coqueteria. Deus sabe que ele ter-se-ia mostrado severo! Mas sua desconfiança, viva de início, adormecera.

E depois houvera a Eva ferida que se jogara em seus braços chorando, a mulher inerte e como que fascinada que ele atraíra lentamente parajunto de si. Se então ela o houvesse repelido, ele teria podido recuperar-se a tempo:-Disso tinha certeza. Mas a fraqueza de Angélica desencadeara nele o demónio da carne, que ele dominava, Jiãõ sem dificuldade, desde õs tormentos da juventude. Ele-perdenra cabeça. Mergulhara o rosto numa sedosa cabeleira epousara'a mão num seio seminu, do-qual ainda parecia guardar o calor voluptuoso na palma da mão.

Seu olhar mudou.

Angélica .deu- um. sorriso triste.

-        O senhoij. disse que antes confiava em mim?... E agora... imagina-me capaz de todas as torpezas porque num momento de confusão dêixei-me perturbar. Pelo senhor!... Não é injusto?

Ele jamais notara antes o quanto a voz de Angélica podia ser carnal e suave. Era porque ela lhe falava baixinho, muito próximo, na sombra, e porque ele via brilharem suas pupilas e seus lábios.

Ah! Como é dolorido e exaltante descobrir por trás de um rosto conhecido o mistério da sensualidade. Falava ela desse modo nas noites de amor? Ele se pôs a odiar todos os homens que ela havia amado.

-        Devo suspeitá-lo dos mais negros pecados, Mestre Gabriel, porque também o senhor perdeu o sangue-frio?

Ele abaixou a cabeça como um culpada. Feliz de sê-lo.

-        Esqueçamos isso, está bem? - disse ela, gentilmente. - É necessário, aliás, esquecer. Não éramos nós mesmos, nem um nem outro... Acabávamos de sofrer um choque terrível. Agora é preciso que as coisas voltem a ser como antes.

Mas ela bem sabia que seria impossível. Haveria sempre entre eles a dupla cumplicidade de um crime e de um momento de abandono.

Contudo, insistiu:

-        É preciso guardar todas as forças para lutar e sálvar-nos. Deixe-me falar com o Sr. de Bardagne. Posso assegurar-lhe que jamais lhe concedi algo.

Ele acreditou ouvi-la acrescentar com um pouco de troça: "Menos do que ao .senhor".

-        Está bem. Vá. Mas seja breve.

Angélica voltou, então, para a pequena porta atrás da qual o Sr. de Bardagne, representante do rei, sapateava de impaciência. Abriu-a e foi agarrada nos punhos por duas mãos possessivas.

— Cá está você, enfim! Está zombando de mim. Que contou a ele?

— Meu patrão é desconfiado e...

— E seu amante, não é mesmo? Não há nenhuma dúvida... Concede-lhe toda noite o que me recusa.

— Senhor, está me ofendendo.

— A quem fará crer no contrário? Ele é viúvo. Há vários meses você vive sob seu teto. Ele a vê o tempo todo ir e vir, falar, rir, cantar... que mais posso saber? E impossível que não esteja louco por você. Isso é intolerável, contrário a qualquer moral. Um escândalo!

— O senhor acredita que vir cortejar-me numa noite sem lua também não o seja?

— Não é a mesma coisa. Eu a amo.

Ele atraiu-a a um canto, bem junto dele. A noite impedia que Angélica lhe distinguisse os traços. Ela sentia o odor de lilás do pó que ele usava nos cabelos. De toda a sua pessoa desprendia-se uma impressão de refinamento e de conforto. Ele estava entre os justos. Não tinha nada a temer. Estava do outro lado da barreira atrás da qual padecem os reprovados.

Angélica não tinha ainda entre as dobras das roupas o odor de sal e de sangue?

Doíam-lhe as mãos gretadas, mas ela não ousava retirá-las.

-        Sua presença me enlouquece - murmurou o Sr. de Bardagne. - Parece-me que se me mostrasse ousado, nesta escuridão, você seria menos cruel para comigo. Enfim, não me concederá um beijo?

Sua voz era humilde. Angélica pensou que devia fazer um esforço. Não se arrasta um funcionário real tão baixo sem tentar consentir em algum consolo para seu amor-próprio.

Esse era o dia das experiências. Teria a natureza, após privar Angélica de suas melhores armas, decidido^ em certa medida, devolvê-las?

-        Pois bem, está entendido, beije-me- disse num tom resignado, nada lisonjeiro.

Nicolau de Bardagne não se sentiu menos transportado de alegria.

— Minha querida! - balbuciou -, você é minha, enfim.

— Senhor, falamos apenas de um beijo.

— O paraíso!... Prometo ser bastante respeitoso.

Ele teve dificuldade em manter a promessa. A difícil vitória conferia toda a doçura-a uns lábios que ele desejaria menos fechados. Mas soube, com tato, contentar-se.

— Ah! se a tivesse.à minha mercê - suspirou, enquanto ela se afastava -, conseguiria quebrar seu gelo.

— Terminou ás confidências que desejava fazer-me, senhor? Creio que devo ;retiràr-me.

— Não, não terminei... Tenho, infelizmente, que voltar a perspectivas menos amáveis...-Minha querida, o que me levou a vir até você, além da febre de revê-la, foi a necessidade de adverti-la do que está sendo tramado contra sua pessoa. Sua sorte inspira-me inquietação. Ah! por que é preciso que esteja tão apaixonado por você? Conheci a esperança, depois a ansiedade, e agora conheço a dor. Pois você me mentiu, enganou-me conscientemente.

— Eu?... Não é verdade.

— Disse-me que foi aqui colocada pela Companhia. Mas não é verdade. Baumier procedeu a uma investigação e concluiu, sem dúvida, que nenhuma das damas do Santo Sacramento se ocupou de você, ou sequer a conhecia.

— Isso prova simplesmente que o Sr. Baumier é mal-informado.

— Não!

A voz do tenente do rei era lúgubre.

-        Isso prova que você mente. Pois esse rato do Baumier está, ao contrário, sempre muito bem-informado. Ele ocupa um alto posto na Companhia Secreta, muito mais alto que o meu. Eis por que me vejo amiúde na obrigação de dar-lhe atenção. Desagrada-me vê-lo ocupar-se de você, mas não posso impedi-lo. Soube por um relatório de um de meus espiões que ele se empenhou em descobrir exatamente quem você é. Aproximou-se mais dela e cochichou:

-        Diga-me, quem é você?

Tentou retomá-la nos braços, mas ela enrijou-se, oprimida.

— Quem sou? Sua pergunta é sem objetivo. Sou uma simples...

— Oh! não. Você continua a mentir. Toma-me por um imbecil? Saiba que não existe em todo o reino de França uma simples criada como você, que possa escrever cartas tão bem elaboradas, com uma pena tão ágil como a que me enviou recentemente. Ela apavorou-me e encheu-me de alegria a um tempo, mas também me confirmou a impressão de que você esconde sua real personalidade sob um nome e roupas emprestados...

"Baumier desconfiou disso assim que a viu... Ouço seu coração bater... Você está apavorada. Se ele descobrisse algo, poderia prejudicá-la? Está vendo, você não responde... Por que não confia em mim, meu anjo? Estou pronto a tudo para salvá-la. Primeiro você deixará esses tristes huguenotes cuja vizinhança lhe é prejudicial. No dia em que vierem detê-los, se a encontrarem entre eles, você não escapará às investigações dos policiais. E preciso, pois, que nessa hora esteja longe e escondida. Posso enviá-la, junto com sua filha, para um de meus domínios no Berry. Mais tarde, quando todos esses casos religiosos tiverem serenado, e Baumier estiver se ocupando de outra coisa, a trarei de volta a La Rochelle... Você será minha mulher, naturalmente".

E repetiu com dignidade, temendo que ela não houvesse avaliado o grau de seu devotamento:

-        Ignoro quem você é, mas desposá-la-ei assim mesmo!

Angélica sentia-se incapaz de articular a mínima palavra. As revelações que completavam esse dia lançaram-na em horrível aflição. No momento em que o deixava sem dizer uma palavra, ele reteve-a.

— Aonde vai? Decididamente, você é uma mulher estranha. Não me respondeu. Refletirá em minha proposta?

— Sim, certamente.

— Já o prometeu uma vez. Mas não demore muito. Devo ir amanhã a Paris, por alguns dias, convocado pelo Conselho do rei. Se você aceitasse acompanhar-me, desposá-la-ia no Berry.

— Não posso decidir tão depressa.

— Posso ao menos ter a certeza de que, ao retornar, você me dará uma resposta?

— Tentarei.

— É preciso que seja afirmativa! Baumier é hábil e tenaz. Temo por você.     

Ainda tentou beijá-la, mas ela furtou-se e fechou a porta. Permaneceu um momento imóvel na escuridão do pátio, depois correu como louca para a casa.

Chocou-se com mestre Gabriel, que a reteve pelos cotovelos.

-        Que lhe disse ele?. Por que demorou tanto? Convenceu-a a segui-lo, não e mesmo?

Ela se desprendeu çom brusquidão e quis subir a escada. Mas reteve-a novamente, tom um. punho exasperado.

— Responda.

— Que quer que eá responda? Ah! São todos loucos! São bem menos razoáveis que crianças, vocês, homens. E no entanto a morte está aqui! Ela os espreita. Talvez ataque amanhã. Seus inimigos fazem armadilhas. Vocês caem nelas, chafurdam no crime e na delação. E em que pensam?... Em ter ciúme de um rival, em beijar uma mulher...

— Ele a beijou?.

— E se tivesse me beijado, qual a importância disso? Amanhã estaremos todos na prisão, seremos menos que corpos sob uma laje com os nomes gravados. Seremos emparedados vivos em uma prisão... O senhor não sabe o que é uma prisão... Eu sei.

Ela escapou novamente. Ele teve que agarrá-la, cingi-la com seus braços vigorosos para retê-la.

A lâmpada a óleo no patamar de cima derramava uma luz difusa, e na semi-escuridão o semblante de Angélica, com uma expressão desorientada que lhe sublimava a beleza, parecia saído de um mundo supranormal. Ele tinha nos braços um fantasma errante, surgido diante dos olhos dos humanos graças às magias de uma noite maléfica. Ela já não estava entre eles.

— Para onde está correndo?-Vai assustar todo mundo.

— E preciso que pegue minha filha e Laurier e os-leve comigo. É preciso partir.

Ele não lhe perguntou para onde. Olhava-a como se não a visse muito bem, com sua expressão tensa, os olhos arregalados de medo. Parecia a mulher que ele golpeara com o bastão na estrada de Sables d'01onne, e cujos olhos verdes, antes de se fecharem, haviam-no tão dolorosamente fixado. Hoje parecia-se com a mulher miserável surgida da chuva na estrada enlameada de Cha-renton, e que simbolizava tudo o que havia no mundo de beleza machucada, de inocência humilhada, de fraqueza condenada, aquela mulher que tão amiúde surgira em seus sonhos no correr dos anos, a quem acabara por chamar "a mulher do destino", perguntando-se com angústia o que ela lhe diria um dia, quando chegasse até ele o som de sua voz. Pois ele a via mover os lábios, mas não ouvia o que ela queria dizer-lhe.

E eis que nessa noite ela falava. Ele ouvira as palavras implacáveis, há anos destinadas a atingi-lo: E preciso partir.

— Agora, nesta noite escura? Você está louca.

— Acredita que vou esperar que os dragões do rei entrem aqui para nos massacrar? Que Baumier venha deter-me e entregar-me à justiça do rei? Que vou esperar para ver Laurier partir chorando nessas carretas que a cada dia deixam a cidade, conduzindo as crianças huguenotes não se sabe para onde?... Vi muitas crianças chorar e gritar, e pedir por socorro... Conheci muitas prisões, carcereiros, esperas e injustiças. O senhor é livre para conhecê-los... Mas eu parto com as crianças... Vou para o mar.

— Para o mar?

— Para além dos mares há as terras novas, não é mesmo? Ali os soldados do rei não poderão alcançar-me. Só então conseguirei tornar a olhar o sol brilhante e as flores brotando. Mesmo se não tiver mais nada, sempre terei isso...

— Está divagando, pobre alma...

Como ele não se aborrecesse, e sua voz estivesse cheia de ternura, a tensão de Angélica cedeu. Sentia-se infinitamente cansada, vazia de tudo.

— As emoções deste dia foram fortes - retomou ele. - Você está exausta.

— Decerto, estou exausta - murmurou ela. - E se o senhor soubesse como isso traz lucidez, Mestre Gabriel! Não estou louca. Vejo simplesmente como estou: exausta. Atrás de mim há um círculo de cães enraivecidos que se aproximam. Diante de mim, o mar. Preciso partir. Devo salvar as crianças. Devo salvar minha filha. Não posso suportar imaginá-la separada de mim, abandonada a seres indiferentes, chorando e chamando-me em sua solidão de bastarda, rejeitada por todqj... compreende por que não tenho o direito de deixár-me capturar... nem mesmo de morrer...    

Acrescentou, debatendo-se novamente:

— Deixe-me, deixe-me, ora! Tenho que correr ao porto.

— Ao porto? Para fazer o quê?

— Para embarcar.

— Acredita qu&seja tão fácil? Quem a aceitará? E como pagará sua passagem?

— Vender-mé-ei, seíor preciso, ao capitão do navio. Ele sacudiu-a com fúria.

— Como ousa pronunciar palavras tão escandalosas?

— Prefere que eu.me venda ao Sr. de Bardágne? Se tenho que me vender a um homem, prefiro que seja àquele que me leve o mais longe possível.

— Proíbó-a de fazê-lo, ouviu, proíbo-a!

— Farei qualquer coisa, mas partirei.

Ela gritava e.-sua voz ecoava pela velha casa, onde, sobre a for-ração das paredes, alinhavam-se em molduras de madeira das ilhas as faces pálidas ou coradas de armadores e de negociantes. Jamais essas gerações de La Rochelle tinham ouvido alguém gritar assim ou pronunciar palavras tão ofensivas.

O pastor, Abigail e Dame Ana aproximaram-se com suas velas e inclinaram-se sobre o corrimão.

— Está entendido - disse Mestre Gabriel -, você partirá... Mas partiremos todos.

— Todos? - repetiu Angélica, sem acreditar em seus ouvidos.

O mercador tinha uma expressão crispada, mas resoluta.

-        Sim, partiremos... Abandonaremos a casa de nossos ante passados, o fruto de nossos trabalhos, nossa cidade... Ganharemos o direito de viver numa terra distante... Não trema, Dame Angélica, minha querida... minha bela... Ê você quem tem razão... O solo se furta a nossos passos e temos a covardia de arrastar conosco nossos filhos que começam a viver... Procuramos cegar-nos em vão. Hoje vi o abismo aberto... e soube que não quero perdê-la... Nós partiremos.

CAPITULO XI

Projetos de partida clandestina

Vinte vezes por dia ela olhava o mar. Via dançar, por sobre as muralhas, aquela extensão acinzentada.

- Leve-me! Leve:me! - dizia-lhe baixinho.

Mas era preciso esperar. Ela compreendera a necessidade disso. Dois dias se haviam passado desde que Angélica, em cumplicidade com Mestre Berner'jogara no poço do papeleiro Mercelot os cadáveres.desfigurados.'   .

A vida aparentemente retomara seu curso. Nenhum policial batera no portal ou se apresentara nos entrepostos. Poder-se ia crer que nada aconteceria e que era suficiente persuadir-se de que nada acontecera. Que a existência era calma, que nada havia para fazer além de pôr a panela no fogo e passar a roupa perfumada de manjerona numa tarde ensolarada.

Mas era em vão que Honorina reclamava a cada noite que se pusessem os painéis de madeira nas janelas. Nem por isso a casa deixava de estar ameaçada. Sentia-se que estava marcada por um selo invisível, ela e seus moradores. A cidade cercava-os como uma armadilha. Pois o porto, antecâmara da liberdade, era o feudo de uma polícia minuciosa. Os navios eram submetidos a estrito controle. Para respirar livremente, não bastaria franquear com as velas desdobradas a enseada entre a Torre da Corrente e a Torre de São Nicolau, transpor o dique de Richelieu e ultrapassar o circulo de falésias brancas. Os navios da marinha real cruzavam ao largo da ilha de Ré. Sua função era impedir que os condenados fugissem.

As crianças brincavam de roda em torno da palmeira. Suas vozes estridentes subiam até Angélica junto com o ruído escandi-°o dos tamanquinhos de madeira no piso do pátio.

"À pesca de mariscos

Eu não quero mais ir, mamãe.

Os garotos de Marennes

Tomam meu cesto, mamãe."

Havia ali uma nuvem de crianças vizinhas, que os pais, convocados pelo Conselho dos Antigos, haviam trazido.

As toucas bordadas das meninas, seus aventais de cores vivas sobre as grossas saias franzidas, pareciam flores salpicadas entre a sarja da roupa dos meninos.

Sobre todos os ombros saltavam cachos louros, castanhos ou ruivos. As faces eram rosadas e os olhos, parecidos com estrelas.

A todo instante Angélica deixava o ferro de passar, debruçando-se na janela para vigiá-los.

A qualquer momento, pensava ela, o pórtico poderia abrir-se, homens de negro poderiam entrar, ou soldados armados, que pegariam as crianças pela mão e as levariam embora para sempre.

Os senhores do consistório saíram no patamar. Suas mulheres, que haviam sido recebidos por Tia Ana, juntaram-se a eles. Os grupos desceram. Falavam aos cochichos, como se estivessem na casa de um morto.

Pouco depois, Mestre Gabriel entrou na cozinha, puxou uma cadeira e sentou-se, mas sem o gesto familiar de apanhar o longo cachimbo holandês para saboreá-lo co.mo nas horas de paz.

Falou sem olhar para Angélica.

— Decidimos dirigir-nos a São Domingos - disse. - Nosso grupo representa uma dezena de famílias acompanhadas por dois pastores: Beaucaire e o sobrinho. Todos os que acabam de aderir estão resolvidos a tentar a aventura e a refazer a fortuna numa nova terra. Para alguns a coisa não será fácil: o papeleiro Mercelot, o advogado Carrere querem partir em viagem com toda a prole. Como empregá-los nas ilhas? Mesmo mestres como Gas-serton e Malire, não sei como organizarão facilmentes pescarias. Pois ali se vive sobretudo das plantações: cana-da-açúcar, tabaco, cacau.

— O cacau interessa-me - disse Angélica vivamente. - Ocupei-me outrora da fabricação de chocolate e posso selecionar as melhores qualidades de favas.

Ela já sonhava. Via-se livre, coberta com um grande chapéu Je palha, como fazia sua mãe no passado, e percorrendo uma plantação cor de esmeralda, acompanhada por Laurier e Hono-rina, que apanhariam borboletas de safira e de ouro.

A luz inundou-lhe as pupilas, verdes como se já as invadissem os reflexos mágicos do mar das Caraíbas ejie suas palmeiras.

Mestre Gabriel considerou-a secretamente com melancolia. Em alguns dias aprendera a saborear todas as nuanças de uma beleza que até então se proibira de apreciar. Censurava a si mesmo com violência, mas voltava sem cessar àquele rosto onde aflorava a mais intensa vida, e no entanto a mais secreta. "Ela entrou em nossa vida como um archote", disse consigo. Ela iluminava, mas dela ninguém nada sabia.-Hoje passava com cuidado as toucas engomadas. O vapor quente que subia da roupa úmida rosava-lhe as faces. Cumpria aíarefa de um modo alerta e competente, mas seus olhos imensos, revelavam abismos insondáveis, e quando ele a estudava assim,"com aguda atenção, fazia-o menos levado pelo deseja que pela atraçao.por seu. misterioso passado.

As palavras que por vezes lhe escapavam eram trabalhadas na mente do mercador, e ele esforçava-se por unir os fragmentos de visões bastante diversas. Não acabava ela de dizer que se ocupara de negócios de cacau? Em que circunstâncias? Ele não deixara de notar sua competência comercial, particularmente no domínio das coisas do mar. Mas qual ã ligação entre aquela que vira erguer-se como um anjo miserável na lama cinza do caminho de Charenton e aquela que lhe gritara com ar desvairado: "Eles entraram em meu castelo, degolaram meus criados..."?

"Uma aventureira!", dizia, categórica, a Sra. Manigault, tocando a ponta do nariz. "Meu faro jamais me enganou!"

Angélica encontrou o olhar sagaz de seu protetor e sorriu-lhe, um pouco embaraçada. De comum acordo, haviam decidido "esquecer" e conservar até a partida a aparência de que suas relações eram boas. Ela sentia-se grata a ele por isso. A rígida educação hu guenote acostumara Mestre Gabriel a dominar as paixões. Homem colérico e sensual, conseguira fazer de si mesmo, através da prece e da vontade, a personagem prudente, calma e capaz de ascetismo que todo mundo estimava, e mesmo temia-um pouco, em La Rochelle. O resultado dessa modelagem era de sólida qualidade. Ele não faria os outros suportarem, sobretudo na hora do perigo, as consequências da crise que o transtornava. Tinha suficiente bom senso para discernir que, se as coisas continuassem num determinado tom, eles ficariam loucos e precipitar-se-iam em desastres como carneiros tomados de pânico.

Graças a ele e a seu semblante glacial, uma aparência de paz voltara à casa. Os nervos de Angélica acalmavam-se. A força moral do mercador permitia-lhe suportar a angústia. Mas por vezes havia entre eles pesados silêncios.

-        Como partiremos? - perguntou ela.

Os traços do mercador iluminaram-se:

-        Imagine, parece um milagre, como vocês, papistas, dizem.

O armador João Manigault, aquele que mais se opunha a qualquer partida, decidiu subitamente ser um dos nossos. Uma desgraça recente obrigou-o a isso: seu jovem filho Jeremias foi-lhe tomado quando o garoto teve a imprudência de ficar contemplando uma procissão. "Viram" nisso um desejo de conversão, e como o pequeno tem mais de sete anos, foi conduzido à casa dos irmãos mínimos. Manigault desembolsou uma forutuna para obter sua liberação, que é apenas provisória. Por mais rico que seja, Manigault treme pelo filho. Então quer partir. Sua adesão facilitará a empresa. Ele já possui numerosos estabelecimentos comerciais em São Domingos. E é, pois, em um de seus

próprios navios que iremos embarcar.

"Eis seu plano: parece-me bom. Um de seus navios de tráfico retorna brevemente da África. Os escravos serão colocados nos armazéns do cais, enquanto aguardam a partida para as ilhas. Manigault inscrevê-los-á na lista apresentada às autoridades. Mas no último momento nós é que tomaremos o lugar dos escravos. Se nenhuma visita suplementar for feita a bordo entre o momento em que deixarmos o cair e aquele em que tivermos franqueado o canal de Antioche, poderemos considerar-nos salvos."

— Mas e os escravos?

— Serão deixados em terra, trancados nos armazéns, e ter-se-á o cuidado de drogá-los para que não manifestem sua presença senão o mais tarde possível.

— A grande coragem do Sr. Manigault consiste, pois, em abandonar o lucro de uma carga preciosa - disse Angélica, novamente prática.

— Há muitas outras coisas que devemos abandonar - respondeu Berne pensativamente. - Manigault, porém, não é o que mais jeve ser lamentado. Ele retomará o comércio com seu sucessor aqui. Em suma, estará em São Domingos ao invés de em La Ro-chelle. O negócio será o mesmo. Ele já assegurou suas ligações. Quanto a mim, tenho pequenas somas-depositadas na Holanda e na Inglaterra. Além disso, aproveitaremos os dias que nos restam para transformar a maior parte de nossos bens em sacos de escudos. Isso ocupa pouco lugar em um navio.

— Essa movimentação de dinheiro não corre o risco de atrair suspeitas?

— Estamos agindo com prudência. Os católicos com quem tratamos sabem que os protestantes estão sendo constrangidos a vender para enfrentar a dupla taxação.

Angélica fez a pergunta que lhe queimava os lábios.

— Quando embarcaremos?

— Em duas ou três se-manas. -

— Três semanas! - exclamou. - O Deus, é muito tempo! Seu interlocutor estremeceu e pareceu tomado de rancor.

-        Parece bem pouco quando se trata de arrancar-se à terra dos

pais - disse com. voz surda.

Ele bateu como punho na mesa.

-        Malditos sejam es que nos obrigam a isso!

Ela quisera pedir-lhe perdão, mas nada disse, com medo de irritá-lo ainda mais.

Angélica, que já havia perdido tudo, compreendia com dificuldade o que ainda retinha os protestantes em sua vida dolente, asfixiada.

Mas como o camponês de uma terra ingrata que se apega ao solo que faz frutificar e contempla sem inveja o vale fértil que lhe é estranho, os protestantes continuavam a agarrar-se à sua frágil sorte. O simples pensamento dessas ilhas da América, do sol, da liberdade que lhes prometiam deixava-os tristes.

O hábito de remar no mar revolto, de abordar um obstáculo após transpor um outro, de fincar raízes, fizeía deles uma raça resistente a quaisquer assaltos, ferozmente pertinaz. A perseguição era seu meio ambiente já há dois séculos. Deixar sua cidade e sua província parecia-lhes agora mais insuportável do que a luta surda com a qual estavam habituados.

Não mais viver sob o céu esverdeado de La Rochelle! Pensar que seus filhos não mais respirariam o ar familkr carregado de odor marinho, nem poriam os pés nas marcas deixadas por seus pais. 

De pés nus na areia, gerações de crianças de La Rochelle haviam corrido pela praia fazendo saltar as conchas com uma faca, abrindo uma ostra, bebendo-lhe a água fresca e amarga à sombra da Torre da Lanterna, enquanto a maré vermelha vem para a enseada, fazendo dançar, aqui e acolá, asaltas velas brancas dos grandes navios mercantes.

Abandonar tudo...

- Três semanas é pouco - suspirou o mercador -, e no entanto sei que o perigo é iminente. Mas é preciso tentar colocara toda as boas oportunidades do nosso lado, e eis por que vale a pena arriscar-se a essas três semanas de espera. Pois em três semanas no máximo'a frota comercial holandesa fará uma parada em La Rochelle. Você sabe, como eu, que eles não gostam de viajar isoladamente, ao modo francês. Reúnem-se entre eles, e duas vezes por ano verdadeiras armadas de navios mercantes protegidos por navios de guerra deixam Amsterdam ou Anvers. Ora, Manigault tem um seguro na Holanda. Isso lhe traz certas vantagens, entre as quais a de poder fazer parte desses comboios e beneficiar-se de sua proteção. Teremos, pois, que esperar a chegada deles. Não somente isso criará no porto uma animação e mesmo uma desordem propícias para nossos projetos, como, assim que içarmos as velas, misturados a esse grupo, forçosamente escaparemos ao controlo da marinha real, que teria muito trabalho para investigar cada navio. Assim evitaremos as verificações de estado civil de última hora. Uma vez abandonado o porto, e aposto que nesse dia os delegados civis do almiranta-do não se mostrarão minuciosos, estaremos ao abrigo das perseguições.

Angélica balançou afirmativamente a cabeça. O plano parecia razoável e mesmo bastante hábil. No entanto, continuava a ter medo. As semanas de prazo pareciam-lhe mais longas do que um ano inteiro. Que tramaria, na sombra, o Sr. Bau-mier? Ele não era homem de abandonar a prçsa. Não iria aproveitar a estadia em Paris de Nicolau de Bardagne para tomar decisões que corriam o risco de não ser aprovadas por seu superior?  

Angélica sentia o coração oprimido, mas ergueu a cabeça com coragem. __ Deus te ouça, Mestre Gabriel!

CAPITULO XII

Os piratas - Angélica acredita avistar o Rescator

O caminho da falésia serpenteava entre as ervas secas e salgadas, acompanhando o traçado atormentado do litoral, que de La Rochelle conduzia através de um festão de angras, baías e promontórios recortados até.a aldeola de La Pallice, em frente a ilha de Ré. Uma areia acinzentada tornava a caminhada difícil. Angélica avançava lentamente.

Ela não se inquietava com isso. Tinha tempo disponível e, embora preferisse ter concluído a missão de que fora encarregada, começava a saborear o passeio improvisado.

Honorina caminhava a seu lado com bastante bravura. Desde o dia do assassinato dos dois policiais, Angélica não mais quis deixá-la para trás quando saía. Aliás, ela própria ausentava-se muito pouco. Arriscava-se com repugnância para fora da casa. Por todo lado via silhuetas suspeitas e acreditava ler nos olhos dos passantes uma enigmática condenação. A armadilha se fechava, tinha certeza disso!

As horas, os dias escoavam-se calmos, mas para Angélica eram como a areia que cede sob uma fundação sólida.-A areia deslizaria, deslizaria, e depois tudo ruiria!

Ao seu redor, os conjurados da evasão agiam com uma rapidez tão notável quanto sua discrição. No bairro, nada aparentemente mudara. Não se poderia acusar ninguém de aprontar a bagabem. No entanto, todas as noites fardos misteriosos chegavam ao porto. Os tesouros mais heteróclitos tomavam lugar no porão do Santa Maria, o navio negreiro chegado recentemente da costa da Africa. Pobres ou ricos, cada qual levava aquilo a que estava mais afeiçoado. Queriam partir, mas não pensavam em dormir sem uma certa colcha de cetim amarelo, ou cozinhar em outra panela de ferro que não fosse a que servira para tantas caldeiradas suculentas.

O armador Manigault tinha longas discussões com a mulher, a qual pretendia levar a soberba coleção de faiança que fazia a honra de suas prateleiras, e cujo autor era um huguenote de renome, outrora refugiado em La Rochelle: Bernardo Palissy. O armador esbravejava, autorizava com o tempo uma travessa aqui, uma sopeira ali, mas ele mesmo não queria renunciar a suas tabaqueiras de ouro lavrado.

Nos armazéns do porto, os escravos negros da Costa da Guiné misturavam seu cheiro selvagem ao perfume da baunilha, da pimenta e do gengibre, e-consolayam-se das penas do exílio entoando nostálgicas canções de lamento. Nas'entranhas do Santa Maria, ferreiros revisavam -as correntes que seriam usadas no transporte dos escravos, às ilhas. Nada fazia suspeitar que passageiros de uma outra espécie *Hies~tonlariam o lugar.

Era bastante penoso para tia Ana pensar erri viajar no paiol dos escravos..

- Estará irrespirável - dizia. - E todas as crianças morrerão de escorbuto.

Várias vezes por dia ela empilhava os livros que devia levar: a Bíblia, um tratado de matemática, um de astronomia... A pilha era sempre muito alta, e a solteirona suspirava.

Angélica comprara na lojinha de um levantino uma provisão de figos e uvas secos para as crianças. Savary dissera-lhe outrora que podiam evitar o escorbuto, esse inchamento do corpo todo, com sangramento das gengivas, seguido de morte.

Cada qual ocupava-se com seus preparativos, querendo acreditar que tudo daria certo. E de fato se mostrava em ordem. Angélica oscilava entre a confiança tranquila e a inquietação. O instinto não podia enganá-la; já rondavam sutis ameaças. Mas como discerni-las? Dever-se-ia tomar como indício perigoso o fato de o Sr. de Bardagne não voltar da viagem à capital, ou aquele mais estranho, em que o desaparecimento de .dois homens ligados à polícia não despertara nenhum comentário na cidade, nenhum .interrogatório?... Devia-se ver na recente medida do preboste de polícia, de fechar noite e dia as portas da cidade e selècionar com o maior cudiado aqueles que desejavam entrar ou sair, uma decisão de vigilância mais estreita sobre os huguenotes, ou, ao contrário, considerar como válido o pretexto de que os piratas rondavam a costa? No entanto, não havia que se recear incursões armadas, como no Mediterrâneo; mas aqueles bons comerciantes sabiam em que deviam temê-los. Os piratas lançavam âncoras nas proximidades, e depois, misturando-se aos passantes, t< escoavam o fruto de seus roubos a preços imbatíveis, por não terem que pagar as pesadas taxas de direito de entrada e de ven-si da. Sempre havia negociantes a intrometer-se entre eles, tendo Ç em vista um lucro apreciável e não sujeito a taxação. Seria verdade que indivíduos de rosto patibular, oferecendo peles do Canadá, haviam sido localizados nos últimos dias? Seria apenas devido a eles que um regimento inteiro de dragões se aquartelara no interior da cidade? Não importava a razão, as portas estavam agora fechadas e vigiadas.

Por esse motivo, Angélica fora encarregada de buscar Marcial e Severina na ilha de Ré. Era Mestre Gabriel quem deveria tratar, quando chegasse a hora, de trazer de volta os filhos mais velhos, mas agora os protestantes não saíam senão com extrema dificuldade. Seus nomes eram anotados, interrogavam-nos demoradamente, vigiavam-lhes também a volta e o número.

Por outro lado, o tempo urgia. A partida clandestina era iminente. A frota holandesa já estava anunciada.

Quantas vezes Angélica não se debruçara sobre a janela que dava para as muralhas, interpelando Anselmo Camisot:

-        Os holandeses apareceram?

O guardião da Torre da Lanterna balançava negativamente a cabeça:

-        Ainda não. Por que essa impaciência, Dame Angélica? Teria um admirador entre eles?

Agora corria o rumor de que haviam parado em Brest. Dentro de dois ou três dias chegariam. O horizonte floresceria com as velas. Em algumas horas o mar estaria branco e movediço como uma praia carregada de pássaros. No porto irromperiam pesados latagões de tez avermelhada e acento áspero.

E para um punhado de homens, mulheres e crianças perseguidos, seria o embarque apressado em uma noite escura, sob as vozes cochichadas, o choro dos bebes, que se acalmam ao serem embalados...

Eles já estariam, sombras furtivas, fugindo da cidade, sua cidade, a cidade de seus pais. Nessa noite, a orgulhosa La Rochelle protestante recolheria os, frutos da derrota...

No fundo do porão haveria a espera ansiosa pela partida, cada qual espreitando as ordens distantes, os passos acima de si. O navio estalaria. Senti-lo-iam abalar-se, o movimento das vagas acentuar-se-ia. Mais tarde viria o'instante em que poderiam enfim sair sem perido da emreponte malcheirosa. O mar à volta deles estaria deserto, e eles contemplariam no horizonte aberto a imagem de sua liberdade.

Angélica aspirou profundamenteo ar saturado de odor de sal e de absinta amargo. Pequenas flores amarelo-escuras brotavam no fundo das dunas. Honorina colhia-as com aplicação.

— Apresse-se, querida - disse-lhe Angélica.

— Estou cansada.

— Está bem, vou carregá-la.

Ela ajoelhou-se para que a menina pudesse alçar-se a suas costas.

Era-lhe agradável caminhar ao vento, sentindo contra si o peso daquele leve fardo. Os cabelos sedosos de Honorina, espalhados em todos orsentidos, acariciavam-lhe as faces. Ela ouvia a garotinha rir. O silêncio da charneca, feito de mil ruídos - o do vento, o da ressaca nos calhaus ao pé da falésia, o grito dos pássaros elevando-se dos juncos -, dava-lhes prazer. Angélica percebia - e estava certa de que Honorina partilhava sua opinião

- que elas não eram feitas para a cidade. Fora das muralhas, encontravam subitamente seu meio de eleição: a charneca, o horizonte distante e a atração do que nele se esconde como uma promessa. Essa região era plana, sem florestas, nua, sob o véu impalpável de uma bruma esverdeada, que nesse dia prolongava

indefinidamente a planície composta de dunas, de charcos e de campos. A direita, ao longe, uma aldeola reunia suas palhoças

miseráveis. Era Saint-Maurice.    .

Para o lado do mar, o dique de Richelieu ainda erguia sua barreira central revestida de conchas, tendo de um lado e de outro vigas entrecruzadas que acabavam de ruir, apodrecendo em meio às correntes.

Angélica lançou-lhe apenas um olhar distraído. O mar de Per-tuis abria-se diante dela. Mar interior, entre as ilhas de Oléron e de Ré, mas já impregnado da nostalgia movente do oceano.

Honorina apertou mais os bracinhos ao redor de seu pescoço.

— Está feliz? - perguntou à mãe com a suavidade indulgente das crianças mimadas.

— Sim, estou feliz - respondeu Angélica.

E era verdade. O tempo da libertação estava próximo. Ao olhar essa paisagem ainda tão selvagem, independentemente dos homens e de suas paixões, tinha a certeza de que o mar não a trairia. Uma nova página da vida abrir-se-ia.

Fossem quais fossem os sofrimentos, vivê-la-ia com um coração novo, porque liberto de uma opressão que pesara em toda a sua existência. Como única mágoa dessa terra antiga, ela deixaria um pequeno túmulo na orla da floresta de Nieul, junto a um castelo branco em ruínas. Como único tesouro, leva sua filha, a criança preciosa, sua amiga.

Dentro de algumas horas entraria na zona calma onde os pássaros cansados pela tempestade deixam-se levar, como que embriagados, pelas correntes calmas. A felicidade estava próxima.

-        Então, se você está feliz, cante-me uma canção! - concluiu Honorina.

Angélica riu. Sua filha sempre saberia agarrar as boas ocasiões.

Pôs-se a cantarolar a canção preferida de Florimond, aquela do Moinho Verde. Falava de um moinho coberto de esmeraldas, de um Diabo que o queria para si, do proprietário que se defendia. A história era longa.

Enquanto cantava, Angélica afastava-se da beira da falésia. Devia agora cortar pela charneca para alcançar a estrada que lhe permitiria atingir o pequeno porto de La Pallice, cujos pequenos casebres começavam a se distinguir.

-        Olhe lá - disse Honorina -, estou vendo o Diabo do Moinho Verde.

Sua mãe voltou-se maquinalmente, seguindo a direção indicada pelo pequeno dedo, e ficou com o fôlego suspenso.

Quase no local onde deveriam estar se houvessem continuado a seguir o atalho à beira-mar, uma silhueta acabava de surgir. Angélica estava agora demasiado afastada para distinguir os traços da aparição, mas via um homem de talhe grande, vestido de cores escuras, com um imenso manto negro onde o vento se engolfava.

Era Mefisto!

No mesmo instante o mar soprou para a costa uma cortina de bruma, que pairava, e Angélica viu-se no centro de um sonho imaterial onde parecia viver e palpitar somente a asa negra do grande manto.

Ela acreditou ter cessado de viver, ou ao menos que seu espírito deixara-a de um salto para transportar-se à região onde se materializam as imagens imprecisas, onde o sonho torna-se palpável, enquanto a vida sensível se esfuma.

Deve ser assim quando se enlouquece.

Por ter tão amiúde evocado a frase de-Sieur Rochat: "Desejo que o Rescator venha lançar âncora diante de La Rochelle", eis que ela o vial Estava viva no seio da imagem totalmente criada por suas fantasmagorias.

Acreditou que acabá-va de perder a razão e teve medo.

Depois, o sopro úmído da neblina passou. As cores do mar recobraram seuvivo brilho. Tudo voltou a ser nítido, agudo, incisivo, e a própria La Rochelle tornou-se visível ao longe, branca e recortada como uma coroa de pura prata. O homem estranho ergueu os braços. Aproximou dos olhos uma luneta e observou a cidade. Possuía agora densidade humana, e sua presença negra na beira luminosa da falésia, mesmo permanecendo inquietante, não podia mais parecer fantasmagórica, nem mesmo diabólica.

Firmando-se solidamente nas pernas com botas de couro, ele se demorava na observação. Depois abaixou o óculo e pareceu fazer um sinal a outras pessoas invisíveis na praia.

Angélica recobrou a consciência. Ele iria voltar-se, avistar uma mulher parada. Por que teve ela bruscamente a convicção de que aquele homem e os que o acompanhavam não queriam ser reconhecidos, sequer vistos?

Ela olhou em torno e, apressando-se, ganhou uma moite de tamargas atrás da qual escondeu-se com a filha. Estendida sobre a prega arenosa, distinguia mal o que se passava à distância. Dois homens haviam-se juntado ao primeiro e eles discorriam sobre.si.

Depois desapareceram. Ela poderia acreditar que sonhara se sua orelha, colada ao solo, não lhe tivesse trazido o som abafado de vozes humanas e de golpes vibrados a intervalos irregulares, como os de um martelo de carpinteiro.

Uma rajada de vento trouxe-lhe o odor acre e característico de pez derretido. Da borda da falésia, que nesse local encurvava- se profundamente, formando uma espécie de enseada, subia um pouco de fumaça.

- Não se mexa - disse Angélica a Honorina.

Mas Honorina não pensava em se mexer. Permanecer agachada numa prega de terreno, como um coelho à espreita, correspondia à sua natureza selvagem e devia lembrar-lhe os primeiros tempos de infância.

Angélica arrastou-se pelas ervas até a borda.

Avistou, então, ancorado no centro da enseada, um navio de três mastros, que não trazia nenhum pavilhão nem auriflama. Bastante baixo na água, e relativamente largo, tanto podia ser holandês como inglês, mas não certamente francês, não fazendo parte em hipótese alguma da base de bacalhoeiros de La Rochelle. Estes não ultrapassavam cento e oitenta toneladas. Aquela embarcação devia ter a capacidade de duzentas e cinquenta toneladas ou mais.

Que vinha fazer um navio de comércio naquela enseada situada a uma légua de La Rochelle e pouco apta para a ancoragem, já que era sabido que as falésias abruptas mas curtas não forneciam boa proteção, e que o fundo era lodoso e sem profundidade? Nessas enseadas não se abrigavam senão barcos de pescadores. E poderia, aliás, tratar-se de um navio de comércio? O olho de Angélica habituara-se no Mediterrâneo a reconhecer certas camuflagens. Agora estava certa de que o navio devia ter uma ponte dupla com uma bateria de canhões, e que as portinholas embutidas, quase invisíveis a curta distância, deviam abrir-se, quando era preciso, sobre as goelas negras de uma quinzena de peças. Na ponte, próximo à parte coberta particularmente larga e alta, sacos amontoados de aparência inofensiva deviam dissimular os canhões. Era reveladora a presença de uma sentinela junto a eles. Do mesmo modo, outras pilhas cobertas com toldos deviam esconder os longos madeiros, croques e escadas que servem ao mar para repelir o assalto de um navio... ou para efetuá-lo.

Um caíque destacou-se da embarcação e veio em direção à praia. Quando abordou, Angélica perdeu-o de vista.

Ela avançou mais ainda, bem devagar, e ergueu a cabeça com cuidado.

As vozes chegaram-lhe mais sonoras; não distinguia a língua que falavam. Abaixo de si, viu sobre uma fogueira entre os calhaus uma grande panela onde cozinhava lentamente o pez da Suécia, ou alcatrão, usado ria calafetagem dos navios. Barris alinhavam-se ao redor. Marujos; dos. quais ela via apenas a espinha e as cabeças hirsutas ou cobertas com boinas de lã, mergulhavam pedaços de estopa no alcatrão e dispunham-nos em cestos, aguardando que fossem carregados no caíque.

A equipagem deste último era no mínimo curiosa. Dir-se-ia ser de raça diferente cada urn dos quatro homens que a compunham, tendo-se reunido para representar, numa festa náutica, o bale das quatro partes do rriundo. Um deles, magro e ágil, tinha a tez queimada, os olhos imensos das raças mediterrâneas: siciliano, grego, talvez maltês? O outro, atarracado como um urso sob o boné de pele, parecia não pocler-movér-se, tal a rigidez do casaco e das botas de pele de foca. D terceiro era francamente oriental, com seus olhos rasgados. 0s músculos dos grossos braços nus saltavam enquanto içava sobre o crânio, sem esforço aparente, um tonel de tamanho respeitável contendo pedaços de breu. Um turco, sem dúvida. O último, um mouro altivo e gigantesco, poupava-se de participar das .grosseiras tarefas do restante da equipagem, contentando-se em vigiar os arredores com o mosquete nos braços.

"Os piratas!..."

Assim, os pretextos do preboste para fechar as portas da cidade não eram falsos. Os piratas avistados existiam realmente, e lá estavam! Sua audácia era inconcebível: algumas centenas de metros separavam-nos do Forte São Luís de Rochelle, e uma distância pouco maior, de Saint-Martin de Ré, base da esquadra real!

O velame estava colhido de tal forma que poderia ser desdobrado muito rapidamente, o que indicava um navio à espreita e pronto a içar velas ao primeiro sinal de alerta. Era estranho que se fizesse a calafetagem nessas condições. Sem dúvida isso iludia uma observação superficial e feita à distância, fosse da terra ou de bordo de um navio cruzando "a enseada.

Um ruído de pedras nas proximidades fê-la colar-se mais estreitamente ao solo. Ouviram-se grunhidos espantosos e inesperados, seguidos de gritos cortantes, que teriam parecido trágico se não tivessem sido lançados por dois sólidos porcos, que os proprietários, camponeses da aldeia de Saint-Maurice, tentavam fazer descer para a praia. O marujo de boné de pele veio até eles e começou a discutir o preço. Aparentemente, os camponeses haviam se entendido bem com o barco de piratas instalados em suas vizinhanças. Mas nem por isso deixavam de ser um magote de aventureiros prontos para tudo. Esses piratas eram bem reais.

Ela os vias, ouvia, quase os tocava. Mas era o homem de manto negro que não devia ser real. Era impossível que ele visse em carne e osso lançar âncora diante de La Rochelle. Sobretudo ele!...

Por que ele?... Ela sonhara! Aliás, ele não estava mais visível. A exceção das sentinelas imóveis, o navio parecia deserto. Balançava-se molemente, e a luz fazia brilhar as molduras douradas do castelo de popa não teria desmerecido uma embarcação real, e Angélica conseguiu decifrar um nome estranho, traçado em letras douradas, Gouldsboro.

A pressão de uma pequena mão em seu braço trouxe-a de volta a si. Honorina, que devia ter achado a espera longa, alcançara-a com a prudência de um gatinho.

Ao vê-la, Angélica compreendeu que não podiam ali permanecer.

Se fossem surpreendidas pelos piratas, que lhes aconteceria? Os rebeldes do mar não gozam da reputação de ter coração terno. Tendo em vista os perigos que corriam, mostrar-se-iam intratáveis. E se seu chefe fosse realmente aquele Rescator que ela acreditava ter reconhecido há pouco, o que ganharia tornando a cair em suas mãos?...

Com precaução infinita, deslizando de duna em duna, conseguiu distanciar-se para o interior da região. Quando atingiu por fim a estrada carroçável, retomou Honorina nas costas e caminhou apressadamente para La Pallice. Lançou-se na sala do albergue onde os pescadores vinham beber um copo de vinho após recolher as redes.

— Dir-se-ia que você viu o Diabo - falou a proprietária, trazendo-lhe da cozinha uma bilha de vinho da ilha de Ré.

— Mas sim, nós o vimos - aprovou Honorina.

-        Esperta, a pequena! - disse a mulher, rindo.

Angélica pediu leite e uma fatia de pão para a filha, e para ela

uma sopa quente. Apesar da insistência da hospedaria, declinou do vinho, que acabaria de amolecer-lhe as pernas. Não devia esquecer que viera buscar Marcial e Severina.

Duas horas mais tarde, abordava a pequena capital de Saint-Margin, cintilante de sobrecasacas azuis e vermelhas agaloadas de couro dos oficiais reais.

Ela informou-se e encontrou sem dificuldade a casa da Sra. Demuris, irmã de Mestre Berne. Angélica, ainda pálida e com um ar de pouco ausente, estava na disposição perfeita para representar o papel que lhe fora atribuído". Mestre Gabriel, que caíra subitamente doente, estava muito mal épedia a presença dos filhos antes de morrer.

Sua irmã não teria coragem de retê-los. Foi. ela, aliás, quem mais parecu atingida com a notícia. Não era má mulher. Converte-se porque era ambiciosa e bastante inteligente para compreender que como filha,da religião reformada não conheceria senão humilhações e dissabores.-Mais nova do que Mestre Gabriel, ela muito sofrera ao romper .corrro ir-rhão, a quem admirava. Soluçou, não pensando_senão nossa morte iminente, e deixou partir os dois mais velhos, dos quais fora encarregada'pelo tenente do rei, esquecendo que estava proibida de permitir-lhes deixar a casa sem autorização especial.

O barqueiro; que os conduzia para o continente olhava o céu cobrir-se de nuvens-escuras. Uma tempestade se aproximava. O barco pôs-se a dançar sobre grossas vagas enegrecidas e empenachadas de branco, e quando atracaram, eles foram assaltados por rajadas de chuva fina. Angélica encontrou uma carreta coberta para alugar. Não ousaria, de qualquer forma, voltar a pé pela charneca. O condutor, um huguenote, estava contente por servir aos filhos de Mestre Berne.

A corrida foi curta. Chegaram rapidamente às muralhas de La Rochelle, nas proximidades da Porta de São Nicolau. Uma sentinela guardava-a, abrigada em um capote de oleado. Ela não se abalou e deixou passar a carreta do camponês. Angélica já se felicitava pela borrasca que lhes permitia sair-se tão bem da empreitada, quando dois beleguins saíram do corpo da guarda.

Postaram-se à frente do cavalo para derê-íõ e lançaram um olhar para o interior da carreta.

- Cá está ela - disse um deles.

Angélica reconheceu aquele que lhe perguntara o nome e suas atribuições, quando por ali passara pela manhã, para sair da      h

você, Dame Angélica, criada da casa de Mestre Berne, situada na esquina da Rue Sous-les-Murs com a Place de la Marque au Beurre?

-        Sim, sou eu.

Os dois homens consultaram-se entre si. Um deles subiu para o assento, ao lado do cocheiro.

-        Recebemos ordens, quando tornasse a passar, de conduzi-la ao Palácio da Justiça.

CAPITULO XIII

Nas mãos do Sieur Baumier - Está tudo perdido

O huguenote que conduzia a carreta mudou de cor. Não era bom para um membro da religião reformada achar-se na companhia de pessoas que deviam ser conduzidas ao Palácio da Justiça.

Mas foi obrigado a tornar o caminho indicado. Ao descer diante da longa parede medieval, com suas gárgulas vertendo água, Angélica ainda acreditava, inexplicavelmente, que desejavam falar-lhe dos piratas.~Depois disse consigo que Nicolau de Bardagne retornara e procurava encontrá-la.

No entanto, não a fizeram subir a escada principal no fundo o pátio, sob os tetos em caixotões dourados, que já conhecia.

Empurraram-n'a, bem como às três crianças, para os escritórios escurecidos por uma galeria de arcadas. As velas já estavam -cesas. Escrivães trabalhavam em meio à desordem de papéis, tineiros e penas de ganso. Outros havia, sentados em tamboretes elos cantos, parecendo nada mais ter a fazer do que roer as unhas.

Reinava um odor de sebo e de poeira, próprio de ambientes úgubres, misturado no entanto ao cheio militar de tabaco e de couro de botas, que despertava em Angélica inquietantes recordações. Um cheiro de polícia. Um homem ergueu-se, examinou a jovem com a resignação insolente dos grimaults e abriu uma porta atrás de si.

-        Entre aqui - disse, empurrando-a.

Assim fazendo, separou-lhe a mão da de Honorina.

— Vocês, crianças, permaneçam aqui.

— Mas eles podem vir comigo - protestou Angélica.

— È impossível. O Sr. Baumier deve interrogá-la. Angélica encontrou o olhar de Marcial e de Severina. Tinham os lábios entreabertos sobre o fôlego precipitado. Seu coração devia bater violentamente. Já haviam sido trazidos até ali quando foram detidos. Ela teve vontade de gritar-lhes: "Sobretudo, não digam nada...", pois tivera a imprudência de falar-lhes a meia voz sobre a partida para as Américas, durante a travessia da ilha de Ré para La Pallice. Pôde apenas recomendar-lhes:

-        Segurem bem Honorina. Façam-na compreender que deve comportar-se e que é preciso calar-se...

As últimas palavras perderam-se entre os gritos de Honorina, furiosa por se ver separada da mãe. A porta fechou-se e Angélica permaneceu ansiosa na peça onde acabava de ser introduzida. Aplicava o ouvido aos gritos da filha, que se sobrepunham a ríspidas vozes masculinas, bem-intencionadas sem dúvida, que tentavam acalmá-la. Os gritos decresceram. A menina foi levada para longe. Houve o ruído de outras portas fechadas e fez-se novamente silêncio.

-        Avance. Sente-se.

Angélica sobressaltou-se. Não notara a presença do Sieur Baumier atrás da mesa. Ele indicou-lhe um tamborete do outro lado.

-        Sente-se, Dame Angélica.

Ela teve a impressão de que ele acentuara seu nome com uma entonação indefinível. Fingia não olhá-la enquanto ela se sentava, e folheava um processo, coçando a cabeça com um dedo, por entre os cabelos esparsos.

Fragmentos de rapé saíam-lhe do nariz. Disse entre dentes "Bem... bem..." repetidas vezes, fechou o processo e inclinou-se para trás, contra o alto espaldar da poltrona de forro gasto. Baumier tinha os olhos muito juntos e aquele olhar convergente, um pouco estrábico e animado por uma luz fixa, que se vê nos inquisidores. Nicolau de Bardagne era tão pouco indicado para o papel que lhe fora atribuído quanto Baumier encontrava seu lugar na função que exercia.

Angélica sentiu-o. Teria de combater. O silêncio prolongava-se. Fazia parte da tática de Baumier impressionar desse modo aqueles a quem devia interrogar, mas, no caso presente, o tempo permitia que Angélica concentrasse suas forças. Ela não sabia em que ponto vulnerável ele iria atacá-la primeiro. O próprio Baumier talvez não o soubesse. Ele passava a língua nos lábios finos, entregue a intensas reflexões, o que lhe conferia uma expressão de raposa cruel. Por fim decidiu-se e inclinou-se com ar astuto:

— Diga-me, minha bela, que fez com os corpos?

— Com os corpos? - repetiu Angélica espantada.

— Não comece a fazer-se de inocente. Você não estaria tão abalada se não soubesse do que se trata. Nao é uma boa recordação para você, não é mesmo, esses corpos que foi necessário transportar... esconder... hein?

Angélica conseguiu manter no rosto a mesma máscara de polido espanto. Baumier impacièntava-se.

-        Não percamos um tempo,inútil... de qualquer forma, você será obrigada! confessar. Aqueles corpos... aqueles homens... Você sabe... Um deles tinha uma casaca azul.

Ele bateu comi palma da mão na escrivaninha.

— Pretende dizér-me que nenhum homem de casaca azul se acercou de você, ria rua, no mês passado, fazendo-lhe galanteios?

— Perdoe-me, senhor - ela conseguiu esboçar um sorriso apatetado -, não compreendo nada do que está me dizendo. Não se aborreça...

O encarregado de assuntos religiosos ficou vermelho e em sua boca surgiu uma expressão malévola.

-        Não se recorda desses dois homens?... Exatamente no dia 3 de abril, à uma hora da tarde... Você retornava dos armazéns Manigault, no porto... Aqueles homens a seguiram... pela Rue de La Perche, Rue de La Soura... Não tem, realmente, lembrança?

Ele dosava ironia e persuasão. Ela murmurou, por não saber até que ponto ele poderia confundi-la.

— É possível.

— Ah! estamos chegando aos fatos - disse, satisfeito.

Ele repimpou-se novamente na poltrona, para contemplá-la como a uma presa que não pode mais escapar.

-        Então conte-me.

Angélica reagiu. Deixar-se intimidar pela segurança diabólica de seu interlocutor levá-la-ia à próp"ria perda; de confissão em confissão, ela afundaria.

-        Contar o quê? - perguntou afetando uma brusquidão um pouco vulgar. - O senhor pode imaginar que existam homens que se acerquem de mim na rua. La Rochelle é uma cidade de fama cada vez pior, diga-se de passagem. E tenho mais que fazer do que dar importância a esses tristes senhores e preocupar-me se vestem uma casaca azul ou vermelha. Baumier, com um gesto, desprezou seu protesto.

— Mas destes tenho certeza de que se lembra muito bem. Vamos, faça um esforço. Eles a seguiram e depois...

— Por minha fé - disse ela, mordaz -, já que insiste em que me seguiram, suponho que os tenha mandado passear.

— E você continuou seu caminho?

— Sem dúvida.

— No dia 3 de abril, de volta da casa do Sr. Manigault, você foi diretamente para a residência de Mestre Berne, na Rue Sous-les-Murs?

Ela sentiu a armadilha, e aparentou refletir profundamente.

-        No dia 3 de abril, está dizendo?... E possível que não tenha voltado diretamente para casa nesse diâ, mas que tenha ido pri

meiro aos armazéns de meu amo, como acontecia amiúde quando eu trazia uma mensagem da parte do Sr. Manigault.

Baumier pareceu satisfeito e um sorriso descobriu-lhe os dentes amarelados.

— Bom para você que se tenha enfim lembrado das voltas que deu nesse dia. Se você tivesse afirmado o contrário, teria mostrado má-fé. Pois saiba que os galanteadores em questão, fui eu quem os colocou atrás de você. Do botequim no porto, onde me encontrava quando você deixou Manigault, vi quando começavam a segui-la. Um outro de meus homens, junto com dois beleguins, esperava-a nas proximidades da residência de Mestre Berne, na Rue-Sous-les-Murs. Ora, esse homem testemunha que não a viu voltar durante todo o dia, nem você, nem seus pseudogalanteadores, com os quais devia estabelecer conexão. E quanto a eles... nunca mais foram vistos de volta.

— Ah! - fez Angélica, como se nada compreendesse do subentendido trágico do encarregado, cuja voz baixara lugubremente de tom.

— Não recomece a fazer-se de inocente - gritou ele, batendo novamente na mesa.

Ele rangia os dentes de fúria.

-        Você sabe muito bem por que não voltaram. E porque foram mortos. E sei quem foi. Explicar-lhe-ei como as coisas se passaram, já que sua memória é curta. Você chegou aos entrepostos de seu pretenso patrão, e ali meus homens prosseguiram as ordens, ordens que cumpriam de bom grado, reconheço-o, e procuraram obter uma pequena recompensa. Mestre Berne interveio com os empregados. Houve.um tumulto, meus dois homens sucumbiram sob o número cios atacantes e sob os golpes. Agora, como os fizeram desaparecer é o que desejaria saber.

Angélica conseguira ouvir a narrativa abrindo olhos cada vez mais espantados. A versão de Baumier falhava num ponto, o dos empregados, o que provava não estar ele inteiramente seguro.

— Deus todo-poderoso! - exclamou ela, exagerando na ingenuidade -, mas é horrível o que está me contando. Não posso crer em meus ouvidos. Está acusando meu amo de ser um assassino?

— Sim, um assassino! - escandiu Baumier.

— Mas é impossível, senhor. Ele é um homem muito piedoso. Lê a Bíblia todo$ os dias.

— Isso nada prová^ ao contrário. Esses heréticos são capazes de tudo. Sou pago para sabê-lo, creia-me.

A indignação e a candura simulada de Angélica pareciam tê-lo abalado. Ela insistiu."

-        Ele não faria mala-uma mosca. É um homem bastante tranquilo, bastante calmo.

O inquisidor deu um sorriso desagradável.

— Não duvido que você saiba apreciar tais qualidades, minha bela.

— Meu amo não...

— Meu amo! Meu amo! - resmungou ele. - Não invertamos os papéis. Ele é bem menos seu amo do que você sua amante.

Angélica permitiu-se o tempo de assumir um ar ultrajado, antes de jogar a carta que reservava desde o início, a única, talvez, que poderia tirá-la dessa situação. A alusão grosseira de Baumier dava-lhe o pretexto.

-        Senhor - disse, com muita dignidade, baixando os olhos -, não ignora que o Sr. de Bardagne deu-me a honra de notar-me, apesar de minha modesta condição. Não creio que ele apreciasse as acusações duvidosas e insultantes que está me fazendo.

Ele não pareceu impressionado. Deu, ao contrário, seu sorriso astuto, e fez um gesto que encheu Angélica de surdo terror. Tomando uma pena de ganso de um tinteiro, pôs-se a virá-la pensativamente entre os dedos. Um gesto semelhante nela evocava, até a náusea, o medo dos interrogatórios que o temível policial Francisco Desgrez fizera-a suportar outrora. Também ele tinha essa mania de brincar com uma pena de ganso enquanto se preparava secretamente para atá-la ao pelourinho.

Angélica não mais podia desprender o olhar do movimento maquinal daquele grosso polegar enegrecido de tabaco.

-        Precisamente - disse Baumier com suavidade estudada -, o Sr. de Bardagne não voltará mais a La Rochelle. Autoridades superiores estimam que lhe faltou energia para a tarefa que lhe foi confiada.

Seu lábio pendeu, desdenhoso.

-        Eram necessários números e não promessas. Ora, sob sua jurisdição demasiado indulgente a arrogância dos huguenotes não fez senão crescer, e é preciso reconhecer que as únicas conversões que se puderam levantar nesse período deveram-se unica mente a meu zelo, bem mal reconhecido, confessemo-lo.

Ele abriu as mãos diante de si, subitamente familiar, quase bonachão.

-        Portanto, a situação é clara, minha pequena. Não existe o Sr. de Bardagne para protegê-la e deixar-se apanhar em sua rede.

Doravante deve entender-se comigo. Aposto... sim, sim, que o conseguiremos.

Os lábios de Angélica tremiam a contragosto.

— Ele não voltará... - murmurou, sinceramente aterrada.

— Não... Mas ora! Se esse amante lhe apresentava, reconheço-o, sérias vantagens, Mestre Berne não deixa de representar um valor seguro, uma posição sólida. Você acertou em lançar seu arpão nesse viúvo cheio de dinheiro...

— Senhor, não permito que...

— E eu não permito que zombeis por mais tempo de mim, pequena sujae hipócrita - bradou Baumier, entregando-se a sua santa cólera. - Como?... Não é sua amante? E que fazia então no escritório de Mestre Berne, no famoso 3 de abril, quando o cobrador Grommaire apresentou-se para a requisição?... Ele a viu!... Você tinha o corpete aberto e os cabelos em desalinho sobre os ombros... E foi preciso bater não sei quanto tempo até que esse viciado huguenote se decidisse a abrir... E você tem a coragem de dizer-me face a face que não é sua amante?... Uma mentirosa, uma intrigante, é o que você é.

Ele parou, ofegante, contente por ver as faces de sua interlocutora invadidas por um vivo ardor.

Angélica amaldiçoar-se-ia por não ter podido dominar o rubor. Como negar?... Graças à escuridão do armazém, o cobrador pelo menos não havia notado que suas roupas estavam rasgadas e manchadas de sangue. Q mal não era total se ele atribuíra a desordem de suas roupas a um encontro amoroso. Mas, aos olhos mais indulgentes, a situação continuava indefensável.

-        Ah! Ei-la menos orgulhosa - lançou-lhe aquele que a atormentava.

Ele rejubilava-se p,or tê-la feito baixar os olhos. A audácia dessas mulheresr ultrapassava a imaginação. Por pouco fariam acreditar que era você .que divagava.

— E então?... Que tem a dizer?

— Senhor, estamos sujeitos a fraquezas...

As pálpebras de Baumier se estreitaram e Seus traços adquiriram uma expressão adocicada e malévola.

-        Oh! Decerto!... Pode-se ter fraquezas quando se é uma mulher como você, que atrai o olhar dos homens e tem disso consciência... Eu'diria, palavra, que é essa a sua função. O contrário me espantaria. E que fixasse sua escolha nesse Berne é, ademais, assunto seu. Mas você mentiu acintosamente nesse ponto, e se eu não a houvesse confundido, você continuaria a defender com indignação sua virtude ultrajada... Quando se mente desse modo em um ponto, pode-se mentir em todos os outros! Agora a conheço, minha bela. Sei de suas limitações. Você é muito forte, mas serei mais forte que você.

Angélica começou a sentir-se enredada em um caso complicado. Aquele homenzinho macerado no incenso e na papelada era particularmente astuto, a menos que ela tivesse perdido os reflexos de outrora. Ele assustava-a mais do que Desgrez. Com Des-grez, mesmo no dia em que ele lhe torcera os dedos para fazê-la confessar sua cumplicidade num roubo, houvera sempre alguma coisa - a atração carnal - que tornava exaltante a luta mais feroz.

Mas à simples ideia de ter de empregar seus encantos para neutralizar a maldade desse roedor malcheiroso, Angélica desfalecia de desgosto. Isso estava acima das forças humanas, e aliás, com Baumiei, qualquer empresa desse género arriscava-se ao fracasso. Ele era, numa escala mais baixa, da mesma espécie de Solig-nac. Encontrava a satisfação de sua voluptuosidade no cumprimento de um dever intransigente, no espetáculo de um ser abatido pedindo clemência, em olhares súplices, no sentimento de poder que consiste em destruir com uma penada o arcabouço de toda uma vida.

Ele cruzara as mãos no magro estômago com o gesto de beatitude dos obesos. Isso acentuava-lhe a aparência mesquinha e fazia-o parecer-se a uma solteirona.

-        Vamos, minha linda, sejamos bons amigos. Por que se juntou a esses heréticos? Não digo que, em outros tempos, Berne e seus escudos não poderiam oferecer suas vantagens. Mas você é bastante esperta para compreender que nos dias de hoje a fortuna de um reformado não é senão vento. A menos que se converta. Então a história seria outra. Se você tivesse sido astuta, há muito ter-nos-ia trazido a conversão de Gabriel Berne e de sua família. Teria ganhado de todos os lados, enquanto agora está em maus lençóis: cúmplice de um assassino, de manobras huguenotes, perde as vantagens de ser católica. Pode-se acusá-la de querer aderir à culpável confissão deles. Isso é bem grave.

Ele consultou novamente um papelzinho.

— O padre da paróquia mais próxima de seu local de trabalho, Saint-Marceau, disse jamais tê-la visto assistir aos ofícios, nem tê-la ouvido em confissão. Que significa isso? Que se desligou da fé católica?

— Não, decerto que não - disse Angélica com um sobressalto, que teve a preciosa qualidade de ser sincero.

Baumier sentiu-o e ficou desconcertado. As coisas não caminhavam exatamente como queria. Tomou uma pitada de rapé, aspirou-a, espirrou ruidosamente sem pensar em desculpar-se e assoou-se demoradamente com um cuidado repugnante.

Angélica não pôde impedir-se de evocar o instante em que Ho-norina surgira, enrubescida sob a touca verde, os olhos cintilantes de ódio, enquanto erguia o bastão para Baumier, gritando: "Esse eu quero matar".Seu coração encheu-se de amor pela criaturinha indomável que já se erguia como ela contra o que era baixo, odioso.

Era preciso sair dali, pegar Honorina, ganhar as poucas horas que as separavam da fuga.

-        E quanto a isto? - perguntou Baumier. - Qual é sua opinião?

Ele estendeu-lhe uns folhetos. Era uma lista de nomes. Entre eles havia os de Gabriel Berne" e sua família, dos Mercelot, dos Carrere, dos Manigault e outros mais. Angélica releu-a duas vezes, intrigada e depois inquieta, lançando a Baumier um olhar interrogativo.

-        Todas essas pessoas vão ser detidas amanhã - disse ele com um sorriso largo. E atirou-lhe bruscamente: - Porque querem fugir.

Então Angélica reconheceu a lista. Era a cópia daquela que fora feita por Manigault com os passageiros clandestinos do Santa Maria. Estavam' toçlos4á, até o pequeno Rafael, caçula dos Carrere, aquele que fora declarado- "bastardo de.ordenança", porque os pastores não eram mais reconhecidos, como antes, oficiais do estado civil para o registro de nascimentos.

O nome dela também estava inscrito após a família Berne: Da-me Angélica, criada.

-        O Santa Maria não partirá - retomou Baumier. - Desde agora está submetido à mais estre-ita vigilância.

As soluções e as atitudes mais diversas sucediam-se no espírito de Angélica com um ritmo assustador, e ela as abandonava uma após a outra. Suas faculdades superexcitadas logo lhe mostravam de que maneira Baumier faria com que se voltassem contra ela. Ele sabia muitas coisas. Sabia de tudo. Mas ela não se deixaria levar. Qualquer coisa valia mais que o silêncio, o qual, se prolongado, pareceria uma confissão.

— Fugir - perguntou -, por quê?

— Todos esses huguenotes procuram salvar a fortuna retirando-se junto aos inimigos da França, ao invés de obedecer ao rei.

— Jamais ouvi tais rumores... E por que estaria eu nessa lista? Não tenho que fugir da conversão, "nem fortuna para salvar.

— Poderia temer permanecer em La Rochelle... Ademais você é cúmplice de um assassino.

— Ah! Senhor - exclamou Angélica, afetando grande temor -, suplico-lhe, não repita semelhante acusação. Juro-lhe que é falsa. Poderia prová-lo.

— Sabe de algo?

— Sim, sim.

Angélica mergulhou o rosto no lenço.

— Dir-lhe-ei toda a verdade, senhor.

— Em boa hora - bradou Baumier, cujo rosto iluminou-se de triunfo. - Fale, minha criança, estou ouvindo.

— Esses... esses homens que diz ter enviado para seguir-me no dia 3 de abril, é verdade, lembro-me muito bem deles.

— Tinha minhas dúvidas sobre isso.

— Sobretudo o rapaz de casaca azul. Como explicar-lhe, senhor, tenho vergonha. Mas na verdade, contrariamente ao que acredita ter compreendido, meu amo é um homem austero e em sua casa a vida não oferece distrações. Sou uma pobre moça com o encargo de uma filha. Aceitei trabalhar na casa desse hugueno-te porque ele me oferecia um bom salário. Mas é muito severo. E preciso trabalhar, trabalhar, e ler a Bíblia. E isso é tudo. Naquele dia, quando aquele jovem me abordou na Rue de la Perche, tive prazer em ouvir seus galanteios. Não se aborreça, senhor.

— Não estou me aborrecendo - resmungou Baumier -, isso prova que ele exercia bem a função para a qual eu o pagava. E então?

— Então, continuamos nosso caminho conversando agradavelmente, e quando cheguei aos armazéns de Mestre Berne, para onde deveria ir, creio que havia conseguido fazê-lo compreender... que o veria de bom grado mais tarde... e em condições mais íntimas. Lembro-me de que ele discutiu com o camarada, e este disse-lhe algo no género: "Aquele velho ridículo encheu-nos os bolsos para resolvermos este caso..."

— Aquele velho ridículo? - sobressaltou-se Baumier.

— Não sei de quem ele falava, senhor. Agora suponho que talvez fosse... do senhor.

— Continue - disse ele, furioso.

— Sim, eles pareciam dizer que tinham dinheiro à sua disposição.

Ela avançava em demasia, aquele era um detalhe que ignorava. Mas podia supor que, quando o presidente das comissões reais lançava aqueles sedutores às ruas de La Rochelle, devia provê-los de dinheiro suficiente para deslumbrar as mulheres. Sua dedução mostrou-se justa, pois ele não pestanejou. Angélica tornou-se mais ousada:

— Ele prosseguiu: "Agora que temos uma mulher divertida, e que não nos mete a mão no rosto, não vamos desperdiçar a oportunidade. Espere-me na Taberna de São Nicolau e tome um vinho à custa do velho... hum! Depois, avisá-la-emos".

— Que estava ele querendo dizerí:om isso? - perguntou Bau-mier, parecendo queimar de raiva contida.

— Não sei, senhor... Confesso-lhe que minha preocupação era outra. Ele era um rapaz .tão amável! É preciso reconhecer que escolheu bem. Ele era bastante ousado. Isso hão me desagradava, como lhe expliquei, pois distraio-me tão pouco junto a esses huguenotes, e havia- muito tempo que não desfrutava certos... prazeres. A ruela* estava* deserta...

Ela sentia horror-em improvisar uma história tão abjeta, mas naquele momento Baumier pare"cia nela acreditar. Estava de tal modo abalado, que isso'-estimulava a imaginação de Angélica.

— O que estragou tudo foi que meu amo, o Sr. Berne, surpreendeu-nos. Ele é muito violento e ficou bastante encolerizado. E bastante forte também, e meu novo amigo não tinha condições de lutar contra ele. Tomou o partido de fugir, o que era o mais sábio, não é mesmo?

— Que a peste carregue com esses irresponsáveis. Por que se separaram? Se enviava os dois, é porque havia motivo!...

— Quanto a mim, meu amo arrastou-me até o escritório para repreender-me. Ele estava, como lhe disse, bastante encolerizado.

— Ciúme!

— Talvez - disse Angélica com um movimento de coquete-ria -, mas é verdade que ele estava a ponto de me dar umas bastonadas quando o cobrador Crommaire interveio e poupou-me a correção.

Baumier agitou-se. Era evidente que a nova versão dos fatos desconcertava-o.

— Isso é tudo? 

— Não, não é tudo - murmurou Angélica, baixando novamente a cabeça.

— Que há ainda?

— O rapaz de casaca azul, eu... eu voltei a vê-lo.

— Onde? Quando?

— Nessa mesma noite; Tivéramos tempo para segredar a promessa de um encontro do lado das muralhas. E depois também no dia seguinte.

Ela avançava, tateando. Na tentativa de provar a veracidade de seu relato, não faria ruir o frágil edifício de suas mentiras?

-        E depois não mais o revi. Supus que deixara a cidade... Ele fizera alusão a isso... Fiquei mesmo decepcionada.

Baumier sacudiu os ombros com amargo desencanto.

-        Todos iguais! Esfalfamo-nos para ensinar-lhes uma profissão, persuadimo-los de seu papel, confiamos-lhes missões de importância capital, e eis que eles se saíam para procurar fortuna em outro lugar. No entanto, da parte de Justin Médard isso me espanta. Em quem confiar?

Angélica não lhe deixou muito tempo para espantar-se com a conduta inexplicável do infeliz Justin Médard, que na verdade pagara, servindo de comida aos caranguejos, seu devotamento a uma justa causa e sua corajosa consciência profissional. Ela suplicou:

— E agora, senhor, que lhe confessei tudo, não seja muito duro comigo. Prometo-lhe que a partir de amanhã deixarei esses heguenotes. Estar entre eles traz-me muitos aborrecimentos. Tanto pior! Ainda não sei aonde poderia ir, mas deixá-los-ei, prometo-lhe.

— Mas de forma alguma, não os deixará - protestou ele. - Ao contrário, você deve permanecer em sua casa e manter-me a par de tudo o que está sendo tramado. Vejamos, a fuga no Santa Mana, você está a par dela? Seu nome está inscrito.

— Que posso dizer? Não sei do que se trata, senhor. Parece-me que, se meu amo devia partir, ter-me-ia informado ou ao menos se entregado a certos preparativos.

— Não notou nada?

— Não.

Ela tentava assumir um ar ingénuo. Baumier manipulava a lista reveladora.

— No entanto, minhas informações parecem-me exatas.

— Se aqueles que as fornecem ao senhor ganham tão bem seu dinheiro como o seu Justin Médard... - gargalhou Angélica.

— Cale-se - urrou Baumier. - Porque a ouvi com indulgência, você já ergue novamente a cabeça. Insolente! Desavergonhada! Mereceria que a encerrasse entre as Filies Repenties, pois na realidade você não é senão uma p... da pior espécie... Mas se o é de fato, ser-me-á mais útil cá fora do que lá dentro. Ele considerou-a, novamente calmo, com pensativa atenção.

-        Se o é de fato - repetiu a meia voz.

Ergueu-se e deu a volta à mesa.' Angélica perguntou-se com apreensão em que ele meditava. Esperava que não lhe pedisse um beijo em troca da liberdade. Mas ele dirigiu-se com passo curto até a porta.

— Senhor, senhor - suplicou ela de mãos juntas -, diga-me que vai liberar-me e devolver-me minha filha. Eu nada fiz de mal.

— Sim, creio que vou liberá-la - decidiu ele com olímpica condescendência. - Agora... apenas uma pequena verificação... e você estará livre.

Ele saiu.

Se não estivesse tão tensa, ela teria percebido a nuança inquietante na voz dele ao dizer: "Apenas uma pequena verificação". Mas estava voltada para ò consolo de sua promessa. "Vou liberá-la." Por um momento, a situação parecera-lhe desesperadora. Contanto que lhe devolvessem as crianças Berne junto com Honorina!

Seus ombros se abateram. Ela fechou os olhos e duas lágrimas de fraqueza correram-lhe pelas faces.

Depois a porta tornou a ábrir-se, e alguém entrou no recinto.

Era o policial Francisco Desgrez.

CAPITULO XIV

"Saudações, senhora", diz o policial Francisco Desgrez - Uma

prorrogação de vinte e quatro horas - Corrida louca pela charneca

Vê-lo ali, com seu maxilar quadrado, o olhar castanho e dire-to, os ombros maciços, cingido por uma sobrecasaca marrom com discretos sutaches dourados nas botoeiras, e tudo o que em sua pessoa engravatada e calçada com altos tacões "cheirava" a capital - Paris e suas carruagens e suas noites azuis -, era um acontecimento tão surpreendente que Angélica não compreendeu de imediato o que a presença desse fantasma de seu passado implicava para ela.

A identidade da Marquesa du Plessis-Belliere, da Rebelde do Poitou, descoberta, sua detenção em nome do rei como rebelde, a prisão, os julgamentos, Honorina lançada ao abandono, perdida para ela como Florimond, a fuga para as ilhas tornada impossível...

Com o choque, seu cérebro paralisado foi incapaz de pensar. Ela o reconheceu. Estava mesmo vagamente contente em revelo. Desgrez! Era tudo tão distante... tão próximo!

Ele inclinou-se como se a houvesse deixado no dia anterior.

- Saudações, senhora. Como está?

Sua voz fê-la estremecer, trazendo-lhe o eco distante de seus debates, e dos momentos de ódio e de medo que ela passara por sua causa, dos momentos de amor calorosos e brutais que ele lhe inflingira.

Acompanhou-o com os olhos enquanto ele atravessava o recinto e sentava-se à escrivaninha de Baumier. Ele não trazia peruca. Isso acentuava-lhe o aspecto familiar de outrora, devolvia-lhe, apesar da rigidez dos traços que se havia acentuado, o rosto de estudante divertido e pobre que ela conhecera quando ele ainda não havia entrado para a polícia. Em contraste, sua roupa refinada e seus movimentos seguros, o modo como se repimpava na poltrona como homem habituado a carregar pesadas responsabilidades, eram-lhe estranhos..

Seus traços se burilavam. No canto dos olljps, a funda marca de ironia não se apagaria mais, e em ambos os lados da boca permanecia uma prega meio amarga'emeio,terna, mesmo quando não sorria. Mas ele logo lhe dedicou o brilho amável de seus dentes de carniceiro.

- Então, cara Marquesa dos Anjos, estava escrito que nos re-veríamos, apesar da pressa com que você fugiu de mim, da última vez em que nos encontramos. Quando foi mesmo? ... Há muito tempo... quatro, não, cinco anos!... Jái Como o tempo passa! Para alguns, ele é fértil era acontecimentos, como para você, por exemplo. Faz parte de seu temperamento particular não poder estar tranquila. Para mim-?... Oh!', que você quer, a vida é certamente mais tranquila quando nela você não.irrompe. Tenho despachados os casos corriqueiros. Acabo de deter uma de suas vizinhas... a Marquesa de Brinvilliers. Não sei se você se recorda, ela residia a algumas ruas de sua Mansão do Beautreillis. Envenenou toda a família e mais algumas dezenas de pessoas. Há anos sigo-lhe a pista,, e foi você que me ajudou a detê4a. Mas, sim! Com as preciosas informações que extorqui de você gentilmente a propósito de um roubo efetuado por seus bons amigos do Pátio dos Milagres. Não se lembra mais?... Não, evidentemente, muitas coisas se passaram desde então. Ah! minha cara, cnvenena-se bastante em Paris neste momento. Tenho um trabalho louco. Envenena-se muito em Versalhes, também. Ali a busca é mais delicada... Bem, vejo que esses pequenos mexericos não lhe interessam. Falemos de outra coisa.

"Fui encarregado de encontrá-la e prendê-la. Sempre me infligem tarefas desagradáveis. Prender a Rebelde do Poitou. Não é fácil! Nem é minha especialidade rodar uma província como sua... Pobre província", murmurou, "exangue, assolada, com homens semelhantes a animais, cuja boca se trancava quando se pronunciava seu nome!... Tive de desistir e contar com o acaso... Baumier, esse intrometido, fez seu papel. Foi a Paris entregar um relatório sobre os eternos assuntos religiosos, ao mesmo tempo que buscava informações sobre uma mulher que... O que me fez pôr na cabeça que essa mullher era você? Não sei. E após ter conversado recentemente com o amável governador de La Rochel-le, o Sr. de Bardagne, minhas últimas dúvidas se desfizeram. Apressei, pois, os cavalos, para revê-la, caríssima. É você mesma. Missão cumprida.

"Sabia que rejuvenesceu?... Sim, fiquei surpreso assim que me vi em sua presença. Seria devido a essa touca modesta que me recorda a criada de Mestre Bourjus, nos tempos em que eu ia beber um copo de vinho branco de Sufesnes na Taberna da Máscara Vermelha? Mais tarde, seu novo semblante de favorita do rei, ajaezada de jóias, decepcionou-me. Pode acreditar, eu começava a ler nele os estigmas dos rostos de minhas envenenadoras: avidez, ambição, medo, desejo de vingança. Agora isso passou. Reencontro seus olhos cândidos de jovem... com algo a mais: a pesada experiência. O que a limpou de tudo aquilo? O que lhe devolveu sua face lisa e pura? E seus olhos imensos e devoradores a pedir socorro?

"Quando entrei há pouco, disse comigo: Deus!, como está jovem! Agradável surpresa, é preciso confessá-lo, após cinco anos de separação. Seria talvez devido a essas lágrimas em suas faces?...

"Foi esse velho rato de Baumier que a fez chorar, minha querida? Por quê? Que fez ainda para estar de volta às patas de unhas negras da polícia?... Quando aprenderá a ser prudente?... Vai, enfim, responder-me? Seus olhos são eloquentes, decerto, como sempre o foram, mas isso não basta. Queria ouvir o som de sua voz".

Ele inclinou-se para a frente, muito grave, as pupilas nas de Angélica. Ela se calava, incapaz de articular uma palavra. Do fundo de seu desespero, um apelo se lançava.

"Desgrez, meu amigo Desgrez, socorro!"

Mas nenhum som podia atravessar-lhe os lábios.

Desgrez calou-se. Examinou-a demoradamente. Traço por traço, detalhe após detalhe, devia retomar posse de um rosto e de uma forma humana, que bastante amiúde lhe povoavam os sonhos.

Ele esperava por tudo, vê-la abatida, envelhecida, arrogante, amarga, rancorosa, mas não por tanta dor serena e por esse apelo mudo e pungente de suas pupilas verdes, que lhe pareciam mais claras e mais límpidas do que outrora.

"Sabia que você era bela", pensou ele, "mas está ainda mais bela!..- Por obra de que milagre?"

Sentiu um respeito sincero por essa mulher que dera prova de tanta força, protegendo sua integridade espiritual apesar dos anos terríveis, da guerra, da derrota, de uma existência de animal perseguido e sempre em perigo.

Ele inclinou-se para a frente e ficou sério.

-        Que posso fazer para ajudá-laí, Angélica?

Angélica estremeceu violentamente, como se despertasse de um sono hipnótico.

— Ajudar-me? Aceitaria ajudar-me, Desgrez?.

— Que mais tenho feito desde que a conheço? Sim, mesmo quando tentei detê-la em Marselha, era para ajudá-la. Que não teria dado para impedi-la de lançasse na desastrosa escapada pela qual pagou tão-caro!

— Mas., você têm ordens de deter-me!

— Decerto... e .de mais de uma pessoa., No entanto, não a deterei.      

Ele sacudiu a cabeça.

— Porque desta vez... seria terrível para você. Não mais escaparia. Seria obrigado a jevá-la de pés e mãos atados, meu carneirinho. E .nem mesmo sei até que ponto sua vida está em jogo. Sua liberdade, com certeza. Jamais voltaria a ver a luz do sol.

— Arrisca sua íarreira, Desgrez.

— Não é hábil de sua parte lembrá-lo justo no instante em que lhe ofereço ajuda. É impossível para mim imaginá-la presa pela vida inteira, você que é feita para os espaços abertos... A propósito, é verdade que ia embarcar para as ilhas com uma trintena de protestantes em fuga?

Com dedo negligente folheou a lista de passageiros do Santa Maria. Ela via dançarem os nomes dos Manigault, dos Berne, dos Carrere, dos Mercelot... os prenomes: Marcial, Severina, Laurier, Rebeca, Jeremias, Abigail, Rafael... Hesitou um último segundo.

Um policial tem cem modos de provocar uma confissão. A voz viva de Desgrez, suas afirmações incisivas entremeadas de súbita ternura teriam outro objetivo além de adormecer sua desconfiança e levá-la a um acordo? Com uma palavra poderia entregar os amigos, aqueles que quisera proteger a qualquer preço. Seus lábios tremeram. Ela resolveu arriscar:

-        Sim, é verdade.

Desgrez encostou-se para trás e deu um curioso suspiro.

— Está bem, você nào duvidou de mim - disse ele. - Se o tivesse feito, talvez a houvesse detido. E estranho, em nossa profissão, com a idade, tornamo-nos a um tempo mais duros e mais sentimentais, mais cruéis e mais ternos. Renunciamos a tudo, salvo a algumas pequenas coisas que valem seu preço em ouro. E mais o tempo passa, mais elas parecem preciosas. Sua amizade é uma delas. Permito-me fazer-lhe essas confidências, minha querida, tão pouco do meu estilo, porque sei que, se soltá-la desta vez, não mais tornarei a vê-la.

— Vai soltar-me?

— Sim. Mas isso parece-me insuficiente para protegê-la, pois mais uma vez você está envolvida num caso perigoso. Por que não partiu mais cedo para as ilhas? Era a melhor solução. Eu nunca mais a teria visto, o que seria para mim um alívio. Agora preocupo-me. Baumier foi mais rápido do que você. Todos os seus cúmplices serão detidos brevemente. O barco está sob vigilância. Não há nada a fazer por você, com relação a isso... Que ideia, minha pequena, meter-se com esses heréticos quando tinha cem boas razões para querer passar despercebida. Ocupamo-nos muito com eles em nossos dias, para que suas casas possam ser um abrigo seguro para você... Sem contar que não são nada interessantes. Uns insensíveis, que nem mesmo sabem fazer amor... você me decepciona!

— Está me dizendo que devem ser detidos? - perguntou Angélica, que nada mais ouvira além disso. - Quando?

— Amanhã de manhã.

-        Amanhã de manhã - repetiu ela, empalidecendo.

Ninguém ainda o suspeitava. Na manhã seguinte, homens de negro, beleguins, penetrariam no pátio florido de lilases-da-espanha e de goivos, onde as crianças estariam dançando em torno da palmeira. Pegariam as crianças pela mão e levá-las-iam para sempre. Algemariam Mestre Berne. Empurrariam a velha Rebeca e a honrada Tia Ana, que protestaria comprimindo ao magro peito sua Bíblia e seus livros de matemática. Mas arrancar-lhe-iam os livros e jogá-los-iam no riacho...

E por todo lado, nas ruelas do quarteirão sob os muros, ver-se-iam passar mulheres de toucas brancas, com uma trouxa feita às pressas, homens acorrentados, crianças correndo desnorteadas, arrastadas por soldados.

— Você disse que ia me ajudar, Desgrez...

— E você aproveitará para prevenir a essa gente?... Isso não, minha pequena. Basta de tolices! Dar-lhe-ei exatamente o tempo de buscar suas roupas, e sob minha vigilância, e depois retirá-la-ei desse circuito perigoso onde você-se deixou tolamente afundar. Esqueceu demasiado rápido que você também merece ser enforcada, e que não será sua qualidade de papista que a salvará quando outra pessoa que não eu fizer uma pequena investigação um pouco mais profunda a seu respeito.

— Desgrez, escute-me.

— Não.

— Vinte e quatro horas... Peço-lhe vinte e quatro horas de prorrogação. Use de,seu poder para obter que se adie até depois de amanhã, ou então até amanhã à noite, a prisão deles.

— Com os diabos, você está louca! - exclamou Desgrez, francamente encolerizado. - Fica cada vez mais exigente. Já se tem bastante dificuldade em salvar sua cabeça, posta a prémio por quinhentas libras, e isso não lhe basta.

— Vinte e quatro horas, Desgrez... prometo que fugirei com eles.

— Afirma que antes de amanhã à noite conseguirá esconder meia centena de "pessoas sob ameaça de prisão e conduzi-las suficientemente longe para que não possam ser apanhadas?

— Sim, eu o conseguirei...

Desgrez estudou-a um instante em silêncio.

-        Que estrela é essa que se acende em seus olhos? - perguntou ele com súbita doçura. - Oh! Reconheço-a! Não a mudarão, Marquesa dos Anjos. Pois bem, seja! Conceder-lhe-ei, â eles e a você, a prorrogação que me pede. Por esse sorriso que deu ao dizer: "Eu o conseguirei".

E como ela já se erguesse, ele reteve-a com um gesto.

-        Atenção. Vinte e quatro horas. Não mais. Mesmo que eu o quisesse, não poderia obtê-lo. Respeitam-me aqui porque sou o braço-direito do Sr. de La Reynie, tenente de polícia do reino. Mas vim para um caso particular, o seu, e não tenho que imiscuir-me nos casos da província. Baumier certamente ver-me-á com maus olhos por intervir na prisão de "seus" protestantes. Acharei, no entanto, um pretexto para que a operação seja adiada para amanhã à noite. Mais tarde, porém, é impossível. Ele é astuto. Sabe que a frota holandesa chegará a La Rochelle. A confusão que se seguirá poderia ser demasiado favorável para aqueles que ele espreita há tanto tempo. Todo mundo deve estar sob ferrolhos antes disso.

— Compreendi.

— Passe por aqui - disse, tocando-lhe no cotovelo para guiá-la até uma outra porta, atrás da escrivaninha. - Não quero que a vejam sair. Evitarei, assim, perguntas indiscretas.

Angélica imobilizou-se:

— E as crianças? Não posso sair sem elas.

— Há muito enviei-as para casa - disse ele entre dentes. - Aquela diabinha ruiva, que é sua filha, ao que parece, massacrava-nos os ouvidos com seus berros. Eu disse ao mais velho: Corra para casa, não fale com ninguém e aguardai o retorno de Dame Angélica. Enquanto isso, Baumier a interrogava. Mas eu sabia que chegaria a minha vez.

-        Oh! Desgrez - murmurou ela -, como você é bom!

Ele fizera-a percorrer um corredor estreito e escuro e abriu uma porta. Fora, a noite já era profunda. Bem perto deles, uma gárgula vomitava uma torrente de água. No entanto, não chovia. Mas o vento úmido, e como que embriagado, engolfava-se na ruela em violentas rajadas.

Desgrez deteve-se na soleira. Tomou Angélica nos braços, à sua maneira desenvolta e irresistível, que paralisava qualquer resistência.

-        Amo-a - disse ele. - Posso agora dizê-lo, porque isso não tem mais importância.

Ele mantinha-lhe a nuca para trás, no côncavo de seu braço rijo, e ela desfaleceu um pouco, não devido ao abraço, mas porque, apanhada pela noite e pelo vento, cessara de vê-lo e de senti-lo. Ele tornou-se irreal. Somente contava, no fundo dela mesma, sua pressa de pássaro cativo em fugir para sempre.

Ele compreendeu que não tinha nos braços senão um corpo ausente, um espírito distante. Para essa mulher perseguida, ele, um ser vivo, o homem sólido, ou que assim se acreditava, não era mais que um fantasma do passado que procurava atraí-la para seu túmulo. Ela fugia na direção do próprio destino, onde não havia lugar para ele. "Feita para a imensidão", pensou, "para a liberdade..." Embora inclinado sobre seus lábios, ele não os tocou.

-        Adeus, Marquesa dos Anjos - murmurou.

Muito suavemente, ele pendeu os braços. Fja escapou, deu alguns uns passos, pareceu mudar de ideia. Voltou-se. Ele já não mais via. Mas ouviu sua voz:  

- Adeus, meu amigo Desgrez... Obrigada. Obrigada. Angélica corria na cidade noturna. O vento punha-lhe nos lábios um gosto de sal. Assim devia correr a mulher de Lot na Sodoma ameaçada, enquanto acima da cidade já se amontoavam as partículas mortais destinadas a aniquilá-la.

Ao chegar à casa, não tinha mais fôlego.

Todos estavam lá; as crianças, Mestre Berne, a velha Rebeca e Tia Ana, Abigail e o velho pastor, e o jovem pastor e seu pequeno órfão,

Eles lançaram-se em seus braços, rodearam-na, pressionando-a com perguntas.

-        Fale - exigiu o mercador -, você foi detida. Por quê? Que acontece?

-        Nada de grave.'

Até memo Tia Ana repetia com voz trémula:

— Você nos deu um medo terrível. Temíamos que a tivessem jogado na prisão.

— Não foi nada.

Ela esforçou-se por sorrir para tranquilizá-los. Já que todos estavam ali naquele momento, tinha a certeza de que seu projeto seria bem-sucedido e de que conseguiria salvá-los. Escoltada até a cozinha, precisou sentar-se, e Rebeca trouxe-lhe vinho. Qual deles preferia? Rebeca propunha várias garrafas, uma vez que não se poderiam transportar todas aquelas belas reservas para o navio.

— O navio? - perguntou Mestre Berne. - Foi por isso que você foi detida, não é mesmo? Souberam de. algo?

— Nada de grave.

-        Você repete que não é grave, mas está branca como um lençol. Que acontece, então? Fale. E preciso prevenir Manigault?

Era difícil enganá-lo. Ele pousou a mão no ombro de Angélica.

— Estava a ponto de correr para o Palácio da Justiça.

— Teria cometido um grave erro, Mestre Gabriel. Percebi que aqueles senhores suspeitam de algo, mas não têm provas, e no tempo que levarem para reuni-las, estaremos longe! Suponho que Marcial e Severina não tenham falado.

— Não nos interrogaram - disse Marcial. - Felizmente! Um grande senhor logo veio até nós. Tomou Honorina nos braços para que ela não gritasse mais e depois disse: "Vão para casa, Da-me Angélica irá ao seu encontro". Os outros não tinham um ar contente, mas ele próprio nos conduziu até a rua.

— Creio que veio de Paris - observou Severina, os olhos brilhantes. - Os outros mostravam respeito por ele.

Angélica confirmou:

— Aquele senhor é de fato um amigo e prometeu-me que nesta noite poderíamos dormir em paz.

— Você tem amigos na polícia de Paris, Dame Angélica? - perguntou bruscamente Mestre Gabriel.

Angélica passou a mão na testa:

-        Sim. Por aíaso, mas é um fato! E veja que isso pode ser útil. Prometo contar-lhes tudo amanhã. Mas hoje estou cansada e creio que se deveria deitar as crianças.

No entanto, quando se retiraram, ela pediu que Abigail ficasse: "Preciso falar-lhe".

Esperaram que o silêncio voltasse à ampla casa e que Honorina adormecesse. Angélica abriu uma arca num canto dos fundos da cozinha e tirou sua manta mais grossa, bem como um fichu de lã, que amarrou energicamente sob o queixo para segurar os cabelos.

-        Não falei a Mestre Berne sobre meu projeto porque certamente ele me teria impedido de pô-lo em execução - disse a Abigail. - Mas somente eu posso agir, E preciso, no entanto, que você saiba dos fatos.

E revelou-lhe tudo, atropeladamente. Haviam sido traídos. Quem? Talvez um empregado dos Manigault. Talvez um dos deles... No fundo, que importava? O que contava era que Baurnier estava à par de tudo. Sabia de seus nomes. Esbirros e beleguins vigiavam-nos, a eles, aos entrepostos, ao Santa Maria. Todas as casas já estavam marcadas. O anjo negro do desastre pousara a mão invisível no frontispício das belas residências e das modestas lojas do bairro sob os muros. No dia seguinte viriam prendê-los.

Abigail escutava sem se exaltar. Mais do que nunca parecia-se a uma madona flamenga, com seu suave e largo semblante de sobrancelhas claras sob a touca branca. Ela permanecia calma. Tinha ânimo suficiente para rèsignar-se aq^que devia advir, mas aquilo era-lhe fácil, pensou Angélica, porque Abigail não sabia o que era desgraça. Ignorava o que era estar na prisão, acuada como caça, sem ter uma pedra onde pousar a cabeça, clamando aos seus inutilmente por socorro.

-        Resta-nos uma possibilidade - confirmou. Angélica. - Quero arriscar. É por isso que ainda devo sair esta noite.

Abigail estremeceu.

-        Esta noite?'Com esta tempestade? Escute...

O vento abalava as janelas. A chuva recomeçara, e o ruído de suas cataratas misturava-se ao bramido surdo do mar.

— As horas estão coijtadas - disse Angélica. - E preciso que amanhã tenhamos todos embarcado, senão estaremos perdidos.

— Embarcado? Como será isso possível? Você mesma disse que o porto está sendo vigiado. E nenhum bavio quererá lançar-se ao mar com esse tempo.

— Um só não.tasta? - perguntou Angélica, obstinada. - É preciso arriscar esta oportunidade, a última. Apronte-se, Abigail. Durante minha ausência, gostaria que você fizesse a bagagem de todo mundo. Bem pouca coisa: uma muda de roupa, alguma roupa branca.

— Quando voltará?

— Não sei. Com a aurora, talvez. Mas fique prontos... Trar-lhes-ei sem dúvida a notícia de que o navio os espera para zarpar, e que será preciso apressar-se.

Ela ganhou a porta e deteve-se como se lhe ocorresse uma nova ideia:

-        Se eu não voltar, Abigail... tente proteger minha filha Honorina, apesar do que possa acontecer. Mas como sou tola!... Tenho que voltar. Não pode ser de outro moda.

Abigail alcançou-a e passou-lhe o braço a volta dos ombros.

— Que vai fazer, Angélica?

— Algo bem simples. Vou encontrar um capitão de navio que conheço e pedir-lhe que nos leve, a todos.

A jovem abraçou-a fortemente, e ao erguer os olhos Angélica surpreendeu-se com seus traços luminosos.

Uma visão ingénua de sua infância veio juntar-se ao conforto de descobrir aquela amizade. Quando era pequena, e a tempestade passava assobiando acima dos pântanos de Monteloup, ela imaginava-se nos braços da Virgem Maria, e o medo se esvanecia. Apoiou a fronte no ombro de Abigail, que disse a meia voz:

— Por que procura levar a todos nós? Significa multiplicar suas dificuldades. Sinto que você poderia ter-se salvado sozinha, Angélica!

— Não. Não teria podido --- disse Angélica, sacudindo a cabeça. - Isso estaria, na verdade, acima de minhas forças. Você não pode compreender, doce Abigail, mas sei que se não os ajudasse a salvar-se, a você e a seus irmãos protestantes, jamais poderia resgatar o sangue derramado, nem os erros de minha vida...

E concluiu com uma espécie de alegria:

-        Será esta noite ou nunca mais. Eis por que tenho que conseguir.

Abigail acompanhou-a até o grande portal. Uma brusca rajada apagou a vela. As jovens abraçaram-se sem se ver, e Angélica, colando-se às paredes para escapar ao vento, deslizou sob as muralhas. Não ouviu a porta fechar-se.

Enquanto ela estivesse lutando, Abigail velaria, semelhante a uma lâmpada acesa. Angélica não estaria sozinha. Quase de joelhos, conseguiu subir os degraus inundados que conduziam ao caminho de ronda. No alto, a ventania que soprava do mar envolveu-a. Ela ouvia o choque violento das vagas contra o dique. Elas espirravam, inundando tudo e espalhando-se pelas lajes musgosas. Angélica já estava encharcada quando atingiu o corpo da guarda da Torre da Lanterna.

Por um instante, manteve-se ao abrigo de um contraforte a fim de retomar o fôlego, depois ergueu-se na ponta dos pés, olhando para o interior através de uma bandeira de porta. Avistou o soldado Anselmo Camisot, sentado melancolicamente junto a seu braseiro, cujas brasas lançavam-lhe reflexos avermelhados na face mal barbeada.

Felizmente Angélica conhecia a timidez natural de seu admirador, pois nenhum espetáculo teria parecido menos tranquilizante do que o desse soldado solitário, visto através de duas barras cruzadas, sob as abóbadas da sala de armas medieval.

E ademais, ela não tinha-escolha. Bateu na bandeira.

O soldado acabou por erguer os olhos e seu semblante exprimiu o mais profundo pasmo ao descobrir a aparição enviada nessa noite pelo deus das tempestades. Esfregou várias vezes os olhos, ergueu-se de um salto, tropeçou na alabarda, chocou-se contra o capacete no chão, fazendo d ruído ecoar pela torre inteira, e chegou, por fim, à porta, puxando o ferrolho.

Angélica entrou, tirando com alívio o capuz encharcado.

-        Você? Dame Angélica! - disse Anselmo Camisot, sem fôlego, como se tivesse corrido. - Você!... Em minha casa!...

Era bastante-enternécedor esse "em minha casa", que designava a lúgubre saca redonda, a enxerga, e a modesta refeição de camarões e defpão preto do guarda.

-        Messire Gamisot, vim pedir-lhe um grande favor. Precisaria que abrisse a pequena porta lateral, pois tenho que sair da cidade.

O beleguim considerou o pedido, e a decepção deixou-o sério.

— Precisaria... tenho que... Apenas isso! Mas é proibido, minha bela.

— Por esse-motivo, dirijo-me a você. Esta é a única passagem acessível. Sei que você tem as chaves.

As sobrancelhas de gorila do pobre Camisot franziam-se cada vez mais.

-        Se for para encontrar um namorado, não conte comigo. Sou um guardião da moral, como de todo o resto.

Angélica deu de ombros.

-        Acredita que seja o tempo adequado para encontrar um namorado na charneca?

O soldado escutou o ruído da chuva e os uivos do vento que se introduzia na torre.

-        Para isso, não - disse ele. - Mesmo aqui, se está melhor do que lá fora. Mas então por que quer sair da cidade?

Ela não tinha uma mentira preparada. Encontrou rapidamente uma.

-        Devo levar uma mensagem a alguém que se esconde na aldeia de Saint-Maurice... um homem ameaçado de morte... um pastor.

— Compreendo - resmungou Camisot -, mas se você continua a envolver-se nessas histórias, Dame Angélica, acabará na prisão. E eu arrisco-me não à estrapada, mas à forca.

— Ninguém falará... Prometi levar a mensagem e imediatamente pensei em você. Não comuniquei a ninguém minhas intenções, mas se você recusar, a quem poderia dirigir-me com a mesma confiança?

Ela pousou suavemente a mão na gorda pata aveludada e ergueu para ele um olhar súplice. O pobre Anselmo Camisot estava completamente transtornado. Se outrora, quando a encontrava, ele lhe lançava de passagem alguns galanteios como todo bom soldado que se respeita, nunca, mas nunca mesmo, teria ousado que ela o olhasse um dia face a face, e daquele modo. Passou a mão no queixo, consciente da barba hirsuta e da feiúra que sempre provocara o riso das mulheres.

-        Ser-lhe-ia bastante grata, Messire Camisot - insistiu Angélica... -, tão grata!

A imaginação do soldado não ia além da esperança de um beijo, mas o simples pensamento de que esses lábios admiráveis pudessem mostrar-se clementes para com ele, o mais deserdado da guarnição, bastava para fazê-lo perder a cabeça. Seus camaradas discutiam amiúde sobre a frieza da bela criada dos Berne. Se um dia soubessem que ele, Anselmo, o grotesco, a chacota de todo mundo!... obtivera o que o mais endomingado deles considera um presente impossível... Ah!, seria mesmo o caso de acender um círio numa igreja papista. Nunca se sabe! Ele estava, de antemão, quase atemorizado.

Com a visão turva, balbuciou:

-        Pois bem! Está certo! Além do mais, não estou fazendo mal a ninguém. Sou senhor nas muralhas, e se não se sofre um pouco por uma mulher como você, por quem se sofrerá então?

Ele despendurou o molho de chaves.

-        Quando voltar, ficará um momentinho... em minha casa?

-        Sim, ficarei - disse ela, disposta a quaisquer concessões.

E dedicou-lhe um sorriso, porque realmente pensava que esse rústico era um bravo rapaz, que não lhe pedia, como tantos outros, que pagasse adiantado. Anselmo Camisot calculava que teria tempo para barbear-se diante da couraça que lhe servia de espelho, e de buscar no subterrâneo da torre certos tesouros somente dele conhecidos: um barril de vinho branco, um presunto... Seria uma festa!

Angélica fremia de impaciência, enquanto eles saíam e dirigiam-se para um canto das muralhas, onde uma pequena poterna abrigava outrora, em<aso de cerco,, um grupo de arqueiros que crivariam os assaltantes de flechas. Uma.porta de madeira dava para uma escada estreita que terminava nas dunas. Angélica transpôs a soleira e começou a descer os degraus escorregadios, arriscando-se vinte vezes a quebrar o pescoço. O guarda iluminava-a do alto, mas o vento por várias vezes apagou a-lanterna,, e a jovem esperava que a luz voltasse, colada à parede, da qual a tempestade furiosa parecia querer arrancá-la para jogá-la para baixo.

Por fim sentiu sob os pés o solo mole e inundado. Estava fora da cidade.     

Sob o ruído das ondas que se chocavam com os seixos da praia, Angélica localizou a caminho pára a falésia e enveredou por ele. Não podia distingui-la"senão pelo contato da areia. Por vezes perdia-se entregas ervas-ou chocava-se com uma moita de tamar-gas. Então buscava o atalho, tateando com o pé. Parecia-lhe que jamais andara em tão profunda escuridão.

Nenhuma-luz para guiá-la nesse escuro oceano. Uma chuva fina jorrava em seu rastro sem cessar. Seus cílios molhados colavam-se. A esquerda, adivinhava o abismo da falésia abrupta. O menor passo em falso, e ela seria engolida, indo esmagar-se pesadamente ao pé da muralha de calcário.

Pouco a pouco o temor tornou-se tão forte que ela não ousou dar mais um passo. Pôs-se a andar de quatro, tateando com as mãos e os joelhos a lama do caminho que a chuva transformava em um riacho. Já não mais avançava. Decidiu então, para escapar à apreensão, descer até o pé da falésia e passar pela praia. Chegaria do mesmo modo a seu destino, e não correria o risco de cair. Por um detalhe que notara ao passar por ali com Honorina - uma cruz de madeira à beira do atalho, e contra a qual acabava de se chocar -, ela soube onde se encontrava. Não longe desse local, uma passagem entre os rochedos permitia atingir a praia.

Encontrou-a e começou a descer. Mas uma saliência de terra cedeu e ela se viu arrastada por um desmoronamento de pedregulhos, despencando até um pouco mais abaixo, bastante esfolada, porém incólume. Suas mãos deviam sangrar, e o vestido estava rasgado nos joelhos. Felizmente não tinha sequer uma entorse. Pôde então levantar-se e retomar a marcha, apoiando-se à falésia para guiar-se.

Foi então a vez de o mar de intervir com cólera. Os olhos de Angélica, tendo-se habituado à escuridão, podiam distinguir a brancura da crista das ondas e os longos lençóis de espuma que se lançavam em sua direção, formas pálidas e ameaçadoras, a assaltá-la com um estrépito infernal. Algumas estouravam longe dela; outras, ao contrário, pareciam não conhecer limite para seu arrebatamento e deslizavam com uma flexível ferocidade de serpente até seus pés.

Em determinado momento, a onda que avançava pareceu-lhe tão alta que, aterrorizada, Angélica apoiou-se à pedra como se fosse nela penetrar.

A lâmina de água rompeu-se a alguns passos dela. Sentiu a água fria, num horrível marulhar, rodear-lhe os tornozelos e depois os joelhos. Da próxima vez atingir-lhe-ia a cintura.

Ao se retirar, a vaga arrastou-a com tal força que ela caiu. Ela agarrou-se como pôde.

Nova onda ameaçava levá-la para o mar alto.

"Preciso subir", disse consigo.

Mas como encontrar a saída dessa armadilha? Pôs-se a correr para fugir do perigo, do galope das vagas encarniçadas. Seus pés torciam-se nos pedregulhos. Em certos locais a praia encolhia-se perigosamente.

Agora, ela não tinha senão uma ideia: voltar à charneca. A maré devia estar subindo. Se permanecesse embaixo, certamente afogar-se-ia. As mãos da jovem crispavam-se no flanco da falésia, procurando apoio, mas naquelas paragens a rocha era quase a prumo. No entanto, à força de arrastar-se, ela descobriu uma pequena baía onde barcos deviam por vezes ancorar e, mais ao fundo, o atalho escarpado usado pelos pescadores. Subiu até ele, arrancando-se ao círculo infernal.

Ao atingir a borda da falésia, deitou-se, esgotada, e permaneceu um certo tempo com a face contra a terra úmida.

Essa viagem de fim de noite devia assemelhar-se àquilo que se sente após a morte. Uma lenta e angustiante procura num país desconhecido.

Osman Ferradji, o grande mago negro, assim se explicava:

"Nem sempre nos damos conta da morte. Alguns se vêem, sem saber por quê, em meio a trevas desconhecidas, e devem procurar seu caminho guiados pela única luz adquirida durante sua experiência terrestre. Se nada adquiriram sobre a Terra, então também se perdem no Mundo dos Espíritos... Assim falam os sábios do Oriente..."

Osman Ferradji! Estava diante dela, negro como a noite, e dizia-lhe:

- Por que fugiu desse homem?... Seú destino e o dele se cruzam e tornam a se cruzar.

Angélica ergueu-se nas mãos. "Já que seu destino tem que cruzar o meu", disse consigo entre dentes, "então devo conseguir!" O acaso sozinhonão teria podido trazer o Rescator até aquelas bandas. Certamente aquilo significava alguma coisa. Significava que Angélica devia encontrá-lo. Apesar do vento, do mar, da noite, ela o alcançaria, então. Uma voz rouca, extraordinariamente presente, cochichou-lhe ao ouvido: "Em minha casa você dormirá. Há rosas onde moro". E voltou-lhe a magia de Cândia, e do instante inexplicável em que, junto ao homem mascarado que acabava de comprá-la, ela tivera vontade de ali permanecer para sempre.

Angélica pôs-se em pé.

Percebeu que-a chuva havia cessado. Mas o vento parecia mais forte. Apanhava-a pelos ombros, lançando-a para a frente, depois colocava-se diante dela, obrigando-a a lutar, passo a passo, como se repelida por uma força humana.

Ao cabo de alguns passos, ela temeu ter partido na direção errada. Girou sobre si mesma como uma marionete, e desta vez foi incapaz de se localizar. Mas o céu acabou por surgir. E de repente ela distinguiu para o leste a chama vermelha da Torre da Lanterna. Do outro lado, uma luzinha brilhava na extremidade da ilha de Ré.

Angélica saía do limbo. Adivinhava a planície à sua volta, varrida pelo vento, porém liberta da bruma. Ela pôde caminhar mais depressa. Quando chegou próximo à baía onde vira o navio ancorado, diminuiu o passo.

"E se houvesse zarpado!", perguntou-se de súbito..

Depois tranqiiilizou-se. Tantas coisas dramáticas haviam acontecido nas últimas horas - a volta das crianças, a detenção, o interrogatório de Baumier, o de Desgrez - que ela estava com a impressão de ter vivido dias. Quando vira os piratas, eles estavam ocupados com a calafetagem. Isso significava admitir que o navio precisava de reparos, e que eles não haviam podido levantar âncora em plena noite, diante da tempestade crescente.

Eis que surgia, aliás, uma luz mais forte, como uma enorme estrela suspensa acima dela. Compreendeu tratar-se da lanterna pendurada no cimo do mastro do Gouldsboro.

Apesar do desejo de passar despercebidos, os piratas deviam preferir a claridade, pois a baía onde se haviam refugiado não era abrigada, e o navio era moroso para levantar âncora. Na ponte distinguiam-se as silhuetas das sentinelas, que se abrigavam como podiam.

Angélica permaneceu um certo tempo na beira da falésia.

Invisível, ela contemplava o barco surgido da sombra, silhueta de navio fantasma com seus mastros de velas recolhidas para evitar o vento, e que se balançava sobre os borbulhões de espuma como num caldeirão de feiticeira.

Há pouco, deixando La Rochelle, ela achara simples correr para esse local como para a enseada onde os esperava o único socorro possível.

Agora a loucura parecia-lhe evidente: cair voluntariamente no poder desses foras-da-lei, apresentar-se ao perigo pirata que ela ofendera e ridicularizara, pedir-lhe uma ajuda difícil e sem dar nada em troca!... Atos insensatos e que só poderiam precipitá-la numa catástrofe. Mas a catástrofe estava também atrás dela. E ela já fora demasiado longe.

Num nível mais abaixo, dançava uma outra luz, uma fogueira ao abrigo de uma caverna da falésia, e junto à qual marujos faziam a ronda.

A mesma mão, talvez a de Osman Ferradji, que há pouco erguera Angélica, impeliu-a para a frente. "Vai! Vai! Ali está teu destino..."

Esperança e terror partilhavam seu coração. Mas ela não hesitou mais e, encontrando o atalho pelo qual vira chegar à tarde os pescadores de Saint-Maurice com os animais, começou a descer.

Atingiu a praia. Seus pés afundaram no cascalho nacarado, feito de milhões de conchas quebradas. Com dificuldade, ela avançou.

Mãos apanharam-na por trás, pela cintura e pelos punhos, e imobilizaram-na. Uma lanterna foi-lhe colocada diante do rosto. Os piratas falavam ao seu redor em sua linguagem desconhecida. Ela distingúia-lhes as faces queimadas sob os lenços cor de sangue, os dentes cruéis e o refkxodas argolas de ouro que alguns traziam nas orelhas.

Então exclamou, projetando um nome diante de si, como seu escudo:

- O Rescator!. Quero ver seu chefe, Monseigneur Rescator!...

CAPÍTULO XV

Entrevista com o Rescator

Ela esperava, apoiada à parede de madeira, em meio ao rude balanço do navio.

Os piratas que vigiavam na praia haviam-na colocado em um caíque que as ondas chocalhavam como uma casca de noz, e ela não sabia por obra de que forças conseguira içar-se na escada de corda que se balançava no flanco do navio, em meio à noite escura.

Agora chegara a seu objetivo. Haviam-na feito entrar em uma espécie de despensa, domínio do cozinheiro sem dúvida, pois ali se arrastava um odor fétido de gordura.

Dois homens vigiavam-na. Um outro entrou, mascarado e com um chapéu de feltro de plumas sem viço, e ela reconheceu imediatamente a silhueta atarracada.

-        E o Capitão Jasão?

Revia-o na ponte da galera La Royale. O Capitão Jasão, imediato do terrível Rescator, dava ordens ao Duque de Vivonne, primeiro-almirante da frota de Luís XIV. Hoje ele era talvez menos soberbo, porém mantinha a segurança de quem age em nome de um senhor cuja vontade sempre acaba por ser a mais forte.

-        De onde me conhece? - perguntou ele, após um momento de surpresa.

Por trás da máscara, o olhar perplexo examinou a camponesa encharcada, descabelada e em farrapos que lhe apresentavam.

-        Eu o vi em Cândia -- respondeu ela.

Ele teve uma expressão de surpresa. Evidentemente, não a reconhecia.

-        Diga a seu chefe, Monseigneur Rescator, que sou... a mulher que ele comprou por trinta e cinco mil piastras em Cândia, há quatro anos... na noite do incêndio.

O Capitão Jasão pulou literalmente até o teto. Olhou-a, petrificado. Depois praguejou repentinamente em inglês. Por fim, com uma agitação que não lhe devia ser habitual, pois era um homem de aparência calma, recomendou aos marujos, na língua deles, que vigiassem mais atentamente a prisioneira. Depois precipitou-se, e ela o ouviu correr sobre a ponte.

Os dois homens acreditaram-se na obrigação de pegar Angélica pelo braço. No entanto, ela teria receio de fugir. Agora estava na boca do lobo.

O efeito produzido pela declaração que fizera não deixava de inquietá-la. Segundo todas as aparências, não'a haviam esquecido. Deveria enfrentar o senhor. As lembranças assaltavam-na, Cândia iluminada pelo foguete azul, Cândia em chamas, o Hermes do pirata DTIscrainville destacando-se, incandescente, como um monumento de puro ouro, com os mastros desmoronando num feixe de faíscas, O Rescator correndo entre as nuvens de fumaça que escãpãvím de seu navio, e aquele velho gnomo Sa-vary dançando na p£oa do barco grego enquanto gritava: "E o fogo grego! E o fogo grego!"

Ela envolveu-se na capa molhada, que pesava como chumbo em seus ombros abatidos. Na noite de fogo de Cândia, dois destinos se haviam encontrado, e depois se distanciado, fulgurantes, e, em um ponto diferente da terra, contra toda lógica, contra a própria vontade dos deuses, reencantravam-se nessa noite. Fora isso que Osman Ferradji lera nos astros, no alto da Torre Mo-zagreb?

Fora, ouviram-se passos. Angélica retesou-se, preparando-se para vê-lo. Mas foi o Capitão Jasão quem surgiu. Ele fez um gesto seco. Angélica foi conduzida. Ao atravessar uma passarela, deparou novamente com o sopro cortante do vento e o bramido próximo das vagas. Depois, subiu os degraus de uma curta escada de madeira.

Por trás das vidraças do castelo de popa, brilhavam luzes avermelhadas. Evocavam, imóveis, as luzes diabólicas que brilhavam entre as retortas dos alquimistas, servidores de Satã. Por que tal pensamento atravessou o cérebro de Angélica enquanto a empurravam para o interior, numa suprema rajada de vento? Talvez se tivesse lembrado de que o senhor que ali.reinava era chamado de o Mago do Mediterrâneo...

Sua primeira sensação foi a de ter posto os pés num canteiro de musgo e de flores, e, enquanto fechavam a porta, ela notou o calor aconchegante da peça. Depois das duchas glaciais de chuva e do açoite do vento, sentia quase um mal-estar. Teve de apelar para toda a sua vontade, para permanecer em pé e não desmaiar.

Pouco a pouco recobrou-se. Seus olhos habituaram-se à claridade insólida. Distinguiu um homem em pé, que parecia encher a sala com sua presença.

Era o homem da charneca, o Rescator. Ela não se recordava de que ele fosse tão alto. Tocava o teto baixo. Ela não tinha lembrança de que sua estatura fosse tão imponente. E porque o vira avançar com passo indolente e como que felino por entre os orientais do batistan de Cândia, ele jamais lhe parecera tão severo. Parecia talhado em ângulos numa espécie de rocha negra, com os ombros quadrados, a cintura cingida por um largo cinto de couro e de aço de onde pendiam os estojos de duas pistolas lavradas, os músculos longos e secos da coxas delineados por uma calça de pele. Sua atitude, pernas afastadas para resistir ao balanço do navio, mãos atrás das costas, era a de um justiceiro. Fria, observadora, desconfiada.

Ele permanecia na expectativa. Parecia bem diferente do príncipe do Mediterrâneo.

Ela reconheceu-lhe apenas a cabeça estreita, envolta num lenço de cetim escuro, amarrado à espanhola, a máscara de couro inumana e que lhe modelava o nariz, chegando até os lábios, a barba negra e encaracolada que prolongava essa face escura e, através das fendas, os diamantes de um olhar indefinível, insustentável.

Era ele, de fato, o Rescator, porém marcado por uma magia mais áspera, a do oceano, e enquanto ela sonhara durante muito tempo com a enigmática personagem como um herói das mil e uma noites, percebia que tinha diante de si um pirata.

Duas lanternas de Veneza, de vidro vermelho e ouro, emolduravam-no, sem contribuir para torná-lo mais tranquilizador.

Um movimento do mar fez Angélica oscilar e lançou-a contra a porta, à qual teve que se apoiar. Então a estátua negra adquiriu vida. Os ombros sacudiram-se espasmodicamente. A cabeça lançou-se para trás.

E ela percebeu que o Rescator ria com seu riso abafado, que terminava num acesso de tosse.

-        A francesa de Cândia! - exclamou.

A voz rouca e abafada, por vezes com entonações ásperas, produzia nos nervos de Angélica a mesma sensação de outrora. Uma emoção pungente, dolorosa. Algo de insuportável, e no entanto o desejo de ouvi-la novamente! -

Ela o viu avançar em sua direção com passo contido. Seus dentes traçavam uma linha branca na barba negra.

Esse riso desconcertava-a mais do. que qualquer invectiva.

— Por que rides? - perguntou com voz abafada.

— Porque me pergunto sobre o fenómeno que fez da mais bela cativa do Mediterrâneo, por quem paguei uma fortuna, uma mulher pela qual não daria cem piastras!...

Não poderia haver maior desdém, maior insolência. Angélica se viu tal e qual estava na realidade, molhada, rasgada em suas roupas de mulher do povo, o rosto marmóreo sob o fichu negro e encharcado, talvez com mechas de cabelos coladas nas fontes: uma verdadeira feiticeira.

Longe de abatê-la, essa nova estocada deu-lhe subitamente forças para reagir,

-        Oh! Deveras? - disse, sarcástica. - Tanto melhor. Isso apagará os aborrecimentos, se acaso os teve pela partida que lhe preguei em Cândia.

Apoiada à porta, a fronte baixa e o olhar brilhante, ela observava o homem mascarado e percebia que ele não a atemorizava. Decidira que ele os salvaria, porque ele e seu navio eram sua única e derradeira possibilidade. Era, pois, preciso rodeá-lo, atingi-lo. Ora, ele lhe parecia inacessível e hermético, terrivelmente distante, de modo algum real, uma aparição a meio caminho entre o pesadelo e o devaneio. Essa impressão acentuava-se no silêncio.

Desejou que ele voltasse a falar. O som de sua voz ajudava-a a escapar ao poder de seu olhar magnético.

— Não lhe falta audácia para recordar-mê suas façanhas - disse ele por fim. - Como soube encontrar-me aqui?

— Avistei-o há algumas horas, quando atravessava a charneca. Você estava na beira da falésia e observava a cidade.

Ela o viu estremecer como se tivesse sido profundamente atingido.

— Decididamente a sorte brinca conosco - exclamou ele. - Você passou novamente não longe de mim, e não a vi.

— Escondi-me logo nas moitas.

— Deveria no entanto tê-la visto - disse com uma espécie de cólera. - Que poder tem você de aparecer e desaparecer, de escapar por entre meus dedos?

Pôs-se a caminhar de um lado para outro. Mas ela preferia essa atitude à sua imobilidade hostil.

-        Não cumprimentarei meus homens por sua maneira de vigiar - retomou. - Você falou a alguém sobre o que viu, sobre nossa presença aqui?

Ela balançou negativamente a cabeça.

— Felizmente para você... Então, após ter-me avistado, fugiu mais uma vez, e depois.se apresenta à meia-noite... Por quê? Por que veio?

— Para pedir-lhe que leve a bordo pessoas que devem deixar La Rochelle amanhã de manhã, o mais tardar, com destino às ilhas da América.

— Passageiros?

O Rescator deteve-se novamente. Movia-se com extraordinária desenvoltura, apesar do balanço ininterrupto das ondas. Angélica lembrou-se de sua silhueta de malabarista diante do gurupés de seu navio, quando lançava a âncora que deveria salvar a galera Dauphine. Enquanto ela estava presente nesse salão marinho, uma parte de seu espírito continuava a projetar-lhe visões de seu passado. Era como uma busca subterrânea, tendo sempre em mira esse homem negro e fascinante. Como outrora, quando pela primeira vez se aproximara dela na sala de vendas do batistan, ele requeria todas as suas forças e sua atenção.

As confidências de Ellis, a jovem escrava grega, esvoaçavam em sua memória como borboletas estranhas: "Todas as mulheres!... Ele seduz a todas as mulheres... nenhuma escapa a seu poder, minha amiga..." No entanto, ela ouvia sua própria voz responder, lúcida:

— Sim, passageiros. Pagar-lhe-ão bem.

— De que tipo podem ser esses passageiros singulares que têm tanta necessidade de um navio pirata? Certamente querem fugir de La Rochelle...

— Fugir é bem o termo, monseigneur. Trata-se de famílias pertencentes à religião reformada. O rei de França não quer mais heréticos em seu reino. Aqueles que não consentem em converter-se não têm outro recurso senão deixar o gaís para escapar à prisão. Mas a costa está sendo vigiada,-e é difícil deixar o porto clandestinamente.        

— Famílias... você disse? Haverá, mulheres entre eles?...

— Sim... Sim...

— E crianças?...

— Sim... sobretudo crianças - disse Angélica numa voz sem timbre.

Ela as viu dançando em torno da palmeira,' com as faces rosadas e os olhos cheios de estrelas. Era como se tivesse ouvido atrás do fragor da tempestade-o ruído ritmado de seus pequenos tamancos.    

Mas sabia também que a confissão da existência delas condenava-as quase certamente a uma recusa. Um capitão' de navio de frete não admite senão a contragosto passageiros a bordo. Quanto às mulheres e às crianças, são boas apenas para trazer aborrecimentos. Lamentam-se, morrem, os homens batem-se a bordo por causa das mulheres.

Angélica vivera tempo suficiente em um porto como La Rochelle para avaliar a presunção de seu pedido. Como ousar falar a um pirata sobre o advogado Carrere e seus onze filhos?... Sua segurança diminuía.

-        As coisas estão cada vez melhores! - avaliou o Rescator O tom era de mofa.

-        E qual o número desse pouco interessante contingente de cantores de salmos com que você quer atravancar os porões de meu navio?

-        Aproximadamente... quarenta pessoas.

Ela escamoteou uma boa dezena.

-        Hein?... Você está gracejando, minha bela. Penso, aliás, que a brincadeira não irá mais longe. Uma coisa intriga-me, no entanto. Devido a que outro fenómeno a Marquesa -du Plessis-Belliere, pois foi sob esse título que creio tê-la comprado, subitamente se interessa por um punhado de pálidos huguenotes?... Teria parentes entre eles? Um amante?... Embora a coisa não me pareça de modo algum inspiradora para uma antiga odalisca... ou então, quem sabe teria você escolhido entre os heréticos um novo esposo, pois você tinha, se me parece, a reputação de fazer um grande consumo deles?... Sua ironia malévola parecia esconder uma acerba curiosidade.

— Nada disso - disse ela.

— Mas então?

Como explicar-lhe que ela queria a salvação de seus amigos protestantes? Isso era indefensável aos olhos de um pirata, bastante ímpio, certamente, e talvez espanhol, como ela ouvira dizer. Pois então juntaria à impiedade a intolerância de sua raça.

Havia algo de inquietante no modo como ele parecia estar bastante a par de sua vida. Certamente sabia muitas coisas sobre ela. O Mediterrâneo, é verdade, propaga as notícias com uma precisão raramente surpreendida em erro, embora amiúde exagerada.

Ele insistiu, irónico.

-        Você está casada com um dos heréticos, não é fato? Decididamente, desceu bem baixo.

Angélica balançou negativamente a cabeça. As pérfidas alusões, não destituídas de maldade, não a atingiam. Estava absorvida pela preocupação de ver a negociação encaminhar-se tão mal. Que argumentos encontrar para convencê-lo?

-        Entre eles há armadores que colocaram uma parte de sua fortuna nas ilhas da América. Poderão recompensá-lo se lhes salvar a vida.

Ele negligenciou a proposta com a mão.

— Tudo o que me oferecessem não compensaria o estorvo de sua presença. Não tenho lugar a bordo para quarenta pessoas a mais, nem estou mesmo certo de poder deixar a enseada e franquear o canal sem problemas com essa amaldiçoada frota real a barrar-me a passagem, e ademais as ilhas da América não estão em minha rota.

— Se não os aceitar, amanhã à noite estarão todos na prisão.

— Ora! É a sorte de muitos, creio, neste reino encantador.

— Não se deve falar dessas coisas levianamente, senhor - disse ela juntando as mãos, levada pelo desespero. - Se soubesse o que é estar na prisão!

-        E quem lhe disse que o ignoro?

Ela pensou, com efeito, que para viver assim, à margem da lei, ele devia ter conhecido a condenação e o repúdio de seu país. Devido a que crime?

-        Muitas pessoas vão para a prisão em nossos dias. Tantas vidas perdidas! Algumas a mais, algumas a menos... O mar é ainda um domínio livre, e também algumas terras virgens da América... Mas você não respondeu à minha pergunta. Por que a Marquesa du Plessis se interessa por esses heréticos?

Seu tom era imperioso.

— Porque não quero que caiam na prisão.

— Grandes sentimentos, então? Tampouco creio nisso, em uma mulher com sua moraL

— Oh! Acredite no que desejar - disse ela, esgotada. - Posso dar-lhe apenas-um motivo. Quero que os salve, a todos!

Nesse dia, ela avaliava todo o abismo que separa o coração dos homens do das mulheres. Dep"ois de Baumier, Desgrez, o Resca-tor! Homens-cheios de poder, sólidos, indiferentes aos lamentos das mulheres, ou aos soluços de crianças assustadas. Baumier ter-se-ia rejubilado. Desgrez aceitara poupá-las apenas por sua causa, porque ainda a amava. Mas, tendo perdido a sedução aos olhos do Rescator, ele não lhe concederia mais nada.

Ele se afastara dela, aliás, e fora sentar-se num grande divã oriental. Sua atitude testemunhava profundo tédio, e mesmo desânimo. Esticou as longas pernas calçadas com botas.

-        Decididamente as loucuras das mulheres são variadas, mas devo reconhecer que você ultrapassa a média de longe. Recapitulemos: da última vez que a encontrei, abandonou-me, deixando, a título de recordação, meu navio em chamas e trinta e cinco mil piastras de dívida.

"Quatro anos mais tarde, acha perfeitamente natural vir encontrar-me, sem temer nenhum castigo, para pedir-me que a receba a bordo com quarenta amigos fugitivos. Confesse que sua pretensão ultrapassa o entendimento!"

Com um golpe seco do dedo inverteu"uma ampulheta colocada sobre uma mesa baixa junto dele. O instrumento, graças a um pesado pedestal de bronze que o mantinha no lugar, não parecia desequilibrado pelos movimentos do barco. A areia começou a escoar, pequena torrente luminosa e rápida, e Angélica olhou-a fixamente. As horas passavam, a noite findava...

-        Ccncluamos - disse o Rescator. - Seu assunto de transporte não me interessa. Nem você, aliás. Mas como teve a imprudência de vir lançar-se nas mãos de um senhor que cem vezes prometeu a si mesmo fazê-la pagar caro por todos os aborrecimentos que lhe causou, mantê-la-ei a bordo... Nas Américas as mulheres são menos cotadas que no Mediterrâneo, mas vendendo-a talvez consiga recuperar alguma coisa.

Apesar do calor do compartimento, Angélica sentiu um frio glacial invadi-la até a alma. As roupas molhadas colavam-se em sua carne, mas até ali, no calor da discussão, ela não se dera conta disso.

Agora, tremia.

-        Seu cinismo não me impressiona - disse com uma voz que enrouquecia -, sei que...

Um acesso de tosse iriterrompeu-a, sacudindo-a. Aquilo concluía o quadro de sua derrota... A seu aspecto lamentável juntava-se o de uma mulher doentia e ofegante.

Ele teve então um gesto com o qual ela não contava. Voltou para junto dela e tomou-lhe o queixo na mão para obrigá-la a erguer a cabeça.

-        Eis o que se ganha correndo a charneca atrás de um pirata, numa noite de tempestade - murmurou ele.

Aproximou a máscara do rosto dela, e ela sentiu o contato surpreendente do couro duro e frio em meio ao brilho dos olhos ardentes que a paralisavam.

— Que diria de uma xícara de bom café, senhora? Angélica ressuscitou de súbito.

— Café? O verdadeiro café turco?

-        Sim, café turco, tal qual se bebe em Cândia... Mas livre-se antes desse casaco esponjoso... Você inundou meus tapetes.

Ela viu à sua volta, em lastimável estado, o macio tapete oriental no qual acreditava-se caminhar entre o musgo e as flores.

O pirata retirou-lhe a manta e jogou-a a um canto como se fosse um trapo. Pegou no espaldar de uma poltrona seu próprio casaco.

-        Já me deve um, o qual levou em seus ombros sem nenhum escrúpulo, na noite do incêndio. Ah! nunca se viu o Rescator mais ridicularizado...

E era como naquela noite no Oriente, duas mãos quentes em seus ombros, e as pregas mornas e perfumadas do suntuoso casaco de veludo a sua volta. Ele conduziu-a para o divã, mantendo-a junto de si. Quando ela se sentou, ele foi para o fundo do salão e ela ouviu lá fora o som de um sino. A tempestade devia estar se acalmando, pois os movimentos do navio tornavam-se menos violentos.

A areia do belo instrumento íle medir o tempo continuava a escoar-se, faiscando sob a luz alaranjada das lanternas venezianas.

Angélica evadia-se da realidade. Estava no antro de um mágico...

Ao chamado, um homem entrara, um mouro de pés nus, com um albornoz curto sobre calças vermelhas de marujo. Com os gestos flexíveis de sua ra.ça, ajoelhou-ser empurrou na direção do divã uma mesa baixa, ali pousando urrrcofre de couro de Córdova, com enfeites de prata. Os dois lados do cofre, abaixados, transformaram-se errr duas bandejas, nas quais apareceram solidamente fixados todos os" utensílios necessários para o preparo do café e sua degustação: o samovaf de prata, a bandeja em ouro maciço com duas xícaras da China e um pequeno cântaro chinês cheio de água onde nadava um pedaço de gelo e um pires de açúcar-cande.

O mouro saiu e voltou pouco depois com um samovar de água fervente. Comgrande cuidado, e sem derramar uma gota, preparou a bebida oriental^ cujo aroma "penetrou Angélica e nela despertou um prazer quase pueril. Suas faces recobraram subitamente a cor, enquanto ela estendia a mão para o suporte de prata que envolvia a xícara da China. Sentado junto dela, o olhar enigmático, o Rescator observava-a enquanto ela apanhava com dois dedos, conforme o rito muçulmano, a minúscula xícara e ali derramava uma gota de água gelada para fazer descer a borra, levando-a depois aos lábios.

-        Vê-se que você foi hóspede do harém de Mulay Ismael - disse ele. - Que habilidade! Tomá-la-iam por uma muçulmana.

Apesar de sua decadência presente, conservou alguns bons hábitos que permitem reconhecê-la.

O mouro eclipsara-se. Angélica pousou a xícara no suporte que a impedia de virar, e o pirata inclinou-se para servi-la novamente. Ao fazê-lo, notou marcas de sangue no suporte.

-        Por que esse sangue? Está ferida?

Angélica notou que suas mãos estavam esfoladas.

— Eu nada sentia. Aconteceu há pouco, nos rochedos da falésia... Ora! Já passei por iguais situações nos caminhos do Rif.

— Em sua fuga?... Sabe que você é a única escrava cristã que conseguiu tal proeza? Por muito tempo acreditei que seus'ossos branqueavam em alguma pista do deserto.

Os olhos desmesuradamente abertos de Angélica reviviam a dura odisseia.

— E verdade... que foi procurar-me em Miquenez? - perguntou ela.

— Exatamente! Aliás, era fácil: você havia deixado atrás de si uma carnificina.

As pálpebras doloridas da jovem se fecharam. Todos os seus traços refletiram horror. O homem mascarado murmurou com um sorriso ambíguo:

— Onde passa a francesa de olhos verdes, não ficam senão escombros e cadáveres.

— Essa frase tornou-se um novo provérbio no Mediterrâneo?

— Sim, algo semelhante a isso.

Angélica, oprimida, olhava o sangue nas mãos... Ele perguntou ainda:

— Vocês eram dez quando partiram de Miquenez. Quantos chegaram a Ceuta?

— Dois.

— Quem era o outro?

— Colim Paturel, o rei dos cativos.

Novamente a angústia espreitava. Um perigo indefinível... Para afastá-lo, ela esforçou-se por reencontrar o olhar de seu interlocutor.

-        Há muitas recordações entre você e mim - disse ela, baixinho.

Ele deu a risada brusca e rouca que a assustava:

— Em demasia. Mais do que você possa imaginar. Súbito, estendeu-lhe seu lenço.

— Enxugue as mãos.

Ela obedeceu maquinalmente. A dor até então entorpecida despertou: o sal queimava as feridas.

-        Quis passar pela praia para não me perder.

Contou como acreditara que sua hora havia chegado com a maré que subia. Perguntava-se por que milagre conseguira içar-se no flanco da falésia abrupta.

-        Parecia que me debatia no seio da morte... Mas, por fim, eu o encontrei.

A voz de Angélica adquiriu nessas últimas palavras um tom suave de devaneio. Pronunciou-as, aliás; sem ter disso consciência. "Eu o encontrei."

Em meio à luz misteriosa, não via^riais que a face negra e imóvel. Ali acabavam todos os seus sonhos.

Houve um minuto em que Angélica acreditou que iria lançar-se contra o peito sólido do pirata e esconder o rosto nas dobras do gibão de veludo.

Não era de veludo negro,.como ela acreditara, mas de um verde bastante escuro, como o musgo das árvores. Ela olhou-o e pensou: "Como me faria bejn!"

O Rescator avançou a mão. Tocou-lhe a face, o queixo; inexplicavelmente, ele, cujos-olhos penetrantes adivinhavam tudo, tinha gestos suaves de um cego buscando reconhecer traços invisíveis.

Depois, com um dedo, lentamente desatou o miserável fichu que Angélica conservara nos cabelos e jogou-o. A cabeleira, pegajosa devido à água do mar, caiu sobre os ombros da jovem. As mechas brancas punham-lhe traços luminosos. Angélica quisera dissimulá-las.'

— Por que você fazia tanto empenho em encontrar-me? - perguntou o Rescator.

— Porque é a única pessoa que pode salvar-nos.

— Ah! Ainda pensa naquela gente?... - exclamou, visivelmente contrariado.

— Como poderia esquecê-los?

Seus olhos voltaram-se para a queda fluida da ampulheta. A intervalos regulares, o instrumento se invertia e o Rescator virava-o com um movimento maquinal.

Honorina dormia lá longe, no grande leito da cozinha, mas a serenidade do gordo bebé, que Angélica tantas vezes contemplara, encantada, estava perturbada. Ela agitava-se e chorava em meio ao sono. Ainda hoje vira-se rodeada de rostos ameaçadores e sentira o temor de sua mãe. Abigail velava-a, rezando de mãos Juntas por Angélica. Laurier talvez estivesse acordado, como nos tempos em que dormia na água-furtada. Ouvia o passo atormentado do pai no quarto vizinho.

— Como poderia esquecê-lo? Você me disse há pouco que só deixei escombros atrás de mim... Então ajude-me ao menos a salvar esses poucos destroços.

— Esses-homens, esses huguenotes, que fazem eles?... Quero dizer, quais as suas profissões?

Ele fazia as perguntas com brusquidao, torcendo nervosamente a barba. Por esse sinal de perplexidade num homem que ela vira em muitas circunstâncias senhor de si mesmo, compreendeu que a partida estava inexplicavelmente ganha.

Seu rosto iluminou-se.

— Não conte com o triunfo - disse-lhe ele. - Mesmo se pareço ceder a suas instâncias neste caso, não é você quem sairá ganhando.

— Que importa? Se consentir em levá-los a bordo, subtraindo-os assim à prisão e à morte, que importância tem o resto? Pagarei cem vezes por isso!

— Palavras! Você ignora o preço que conto fazê-la pagar. Sua confiança em mim beira a ingenuidade. Sou um pirata dos mares, e você deveria refletir que minha ocupação não consiste em salvar vidas humanas, mas antes em suprimi-las. As mulheres como você não deviam envolver-se senão com o amor.

— Mas é uma questão de amor.

— Ah! Não filosofe - exclamou - ou levá-la-ei em meu navio para afogá-la em alto-mar! Você era menos loquaz em Cândia, e infinitamente mais agradável! Responda a minhas perguntas: que espécie de personagem me pede que embarque além de mulheres piedosas, a pior espécie, e de fedelhos chorões?

— Está entre eles um dos maiores armadores de La Rochelle, o Sr. Manigault, e negociantes habituados ao comércio dos mares. Possuem nas ilhas...

— Há artesãos no grupo?

— Um carpinteiro e seu aprendiz.

— Assim está melhor...

— Um padeiro, dois pescadores. São antigos navegadores que haviam organizado uma flotilha para abastecer o mercado com os peixes de La Rochelle. Esperam poder retomar seu comércio nas ilhas. Há também o Sr. Merlot, fabricante de papel, mestre Jonas, relojoeiro...

— Uns inúteis!

— Mestre Carrere, o advogado.

— Pior ainda.

— Um médico...

— Ah! Basta!... Embarquemo-los,-já que você deseja salvá-los... a todos. Jamais conheci mulher tão importuna. E agora, cara marquesa, poderia apresentar-me um plano,que permitisse levar a bom termo seus caprichos? Não desejo permanecer indefinidamente nesta toca de caranguejos onde cometi a tolice de enfiar-me. Contava partir com a aurora. Aguardarei no máximo a próxima maré, no final da manhã.

— Encontrar-nos-emos na falésia,- disse ela erguendo-se, radiante. - Vou buscá-los:

 

CAPÍTULO XVI

Fuga dos protestantes - Os piratas prestam-lhes socorro - O Rescator salva Honorina

O soldado Anselmo Camisot, que passara uma parte da noite na poterna de canto aquecendo-se com a esperança e com visões paradisíacas, sobressaltou-se com o ruído de uma leve batida na porta da muralha. Sua esperança começava a diminuir como a chama de uma vela gasta, pois a noite findava e a aurora apontaria.

Ele teve dificuldade em movimentar o grande corpo entorpecido pelo frio.

— E você, Dame Angélica? - sussurrou.

— Sou eu.

Ele girou a chave e Angélica deslizou pela abertura da porta.

-        Demorou bastante - suspirou o militar.

No mesmo instante, um braço de aço comprimiu-lhe a garganta, enquanto uma pancada nos rins fazia-o perder o equilíbrio. Um golpe violento, aplicado na nuca com precisão, enviou-o para prosseguir seus projetos idílicos ao país dos sonhos.       

— Pobre homem - murmurou Angélica, enquanto contemplava o longo corpo ossudo de Anselmo Camisot, amordaçado e amarrado como um salsichão.

— Não havia outra coisa a fazer, senhora - disse o marinheiro que a acompanhava.

Eles eram três.

O Rescator escolhera-os entre sua tripulação.

"Dei-lhes ordens para que não se afastem um milímetro de você, e para que a tragam viva ou morta!..."

No pátio da casa dos Berne, a lanterna de Mestre Gabriel ilu- i minuou Angélica e seu casaco escuro, bordado com sutaches de I prata, bem como, ao seu redor, a aparição de três marinheiros patibulares, os quais se teria imaginado com uma faca entre os dentes. Depositaram no piso um enorme pacote, no qual o mercador reconheceu, devidamente amarrado, o guarda da Torre da Lanterna.

-        Pronto - disse Angélica rapidamente -, encontrei um capitão de navio que consente em levara todçjs nós. Ele zarpa dentro de algumas horas. Estes homens devem acompanhar-me enquanto previno os outros. Seria preciso emprestar-lhes roupas para que pudessem passar despercebidos. Trata-se de um navio corsário estrangeiro...

Ela ocultou pudicamente a verdadeira identidade de um pirata que não servia a nenhum soberano, e obedecia apenas ao célebre pavilhão negro dos piratas dos mares. -

-        Está ancorado numa enseada próxima à aldeia de Saint-Maurice. E ali que devemos nos reunir. Cada qual irá até lá por seus próprios meios. Com relação ao senhor e a sua família, Mestre Berne, proponho que-deixe a cidade pela pequena porta nas muralhas. O acesso a ela está livre por mais. três horas, pois a troca da guarda só terá lugar às sete horas da manhã. Se nos apressarmos, outras famílias poderão utilizar essa passagem.

Mestre Gabriel teve a sabedoria de não discutir. Abigail havia lhe falado. Ele. sabia que, perdido por perdido, seria preciso agarrar-se a qualquer solução que lhes permitisse sair da cidade e alcançar mais'rapidamente o mar. Na escuridão ainda opaca, invadida pela neblina, começavam a escoar-se as primeiras horas desse dia que veria sua fuga ou seu fim nos cárceres do rei.

Ele indicou o celeiro, para que nele encerrassem o soldado amarrado, depois subiu a escada atrás de Angélica, dizendo que iria despertar os filhos e a tia.

Mais tarde se preocuparia com os estranhos guardas de tez de pão queimado e boné de pele suspeito que acompanhavam Angélica, e com os incidentes que haviam feito dela uma mulher quase desconhecida, que lhe ditava ordens.

Compreendia obscuramente que a gravidade do momento não mais permitia a Angélica fingir uma personagem. Ela tomara-os a seu encargo com o sangue-frio e o total desprendimento dos grandes nobres de outrora, e o único modo de não conduzir seus sacrifícios a um fracasso era obedecer-lhe prontamente em tudo.

Abigail preparara as magras bagagens como ela lhe recomendará. O Pastor Beaucaire já lá estava com o sobrinho. O pequeno Natanael continuava dormindo ao lado de Honorina.

— Vou acordá-los e vesti-los - disse Abigail, sem fazer perguntas. - Enquanto isso, Angélica, vá aquecer-se nesta tina de água quente que lhe preparei e vestir roupas secas.

— Você é uma fada - disse Angélica, que, sem perder um segundo, fechou a porta que comunicava com a cozinha. Deslizou para o reduto onde a jovem preparara a água fervente, jogou no piso o casaco do Rescator e seus trapos molhados, e teve um arrepio de bem-estar ao mergulhar na água. Sem essa pausa, teria corrido o risco de sucumbir, apesar da espécie de exaltação que a sustentava. E sua tarefa não terminara.

Ouviu Abigail despertar suavemente as crianças, enquanto lhes falava de um país maravilhoso, cheio de flores e de guloseimas, para onde iriam viajar. A jovem encontrou o modo de tirá-los do sono sem choques, sem comunicar-lhes a ansiedade desses momentos em que cada segundo pesava como chumbo.

— Como a admiro, Abigail - disse Angélica por trás do pára-vento. - Você não se aflige.

— É o mínimo que posso fazer por você, Angélica - respondeu, tão calma e ágil como quando fiava lã à noite. - Mas de onde você veio? Está como que transfigurada.

— Eu?

De repente Angélica se viu nua no alto espelho de aço polido apoiado à parede, ao qual tinha o costume de lançar apenas um olhar distraído para ajeitar os cabelos e a touca.

Num átimo reconheceu sua alvura, sua imagem de mulher robusta, cintura bem-feita, seios altos, costas alongadas, pernas harmoniosas, "as mais belas pernas de Versalhes", com a marca vermelha da cicatriz causada por Colin Paturel para salvá-la da serpente no Rif.

Um corpo esquecido!

A voz insultante voltou a seus ouvidos. "Uma mulher por quem hoje não daria cem piastras."

Ela deu de ombros, desenvolta, trocista:

"Do que ele precisa? Pior para ele".

Ela mergulhou numa camisa seca que Abigail colocara sobre um tamborete a seu alcance.

Sacudiu os cabelos com um ar de desafio, e eles novamente desdobraram sua auréola ensolarada.

"Como explicar isso? E meu pior inimigo... e meu melhor amigo..."

Ele tratara-a com maldade e cinismo. Troçara dela. Considerara levianamente sua angústia insuportável de mulher perseguida. "E agora, cara marquesa, tem um plano que permita levar a bom termo seus caprichos?", córrío se o desejo de salvar várias vidas humanas obedecesse a uma fantasia descabida! Mas ele aceitava levá-los a bordo. O risco que um capitão provido de víveres e de escolta teria recusado, o fora-da-lei assumia.

Então, que importavam as palavras cínicas? Havia muito que a sensibilidade de Angélica-se embotara. A desgraça tornara-lhe a espinha flexível. Para ela só os atos contavam. .

E surpreso, apesar de tudo, ele observara-lhe rio momento em que ela deixava o navio:.

— Você tem um terrível caráter, minha cara, isso é certo, e no entanto não -se ofendeu com minha falta de cortesia.

— Oh!, há coisas tão mais importantes! Salve-nos. E poderá tratar-me como lhe agradar.

— Não deixarei de fazê-lo.

Angélica conteve-se para não rir. Abigail nada teria com

preendido. '         .

Mas o que a sustentava era essa cumplicidade entre adversários que adivinham ter a mesma força e sabem dar a réplica.

Ela emergiu do reduto acabando de amarrar os atilhos da saia, torceu os cabelos para mantê-los sob uma touca limpa e envolveu-se numa capa.

— Estou pronta.

— Estamos todos prontos.

Angélica lançou um olhar para o belo relógio. Não havia passado meia hora desde seu retorno. O tempo assumia proporções elásticas.

Honorina, afundada em suas duas saias e seu manto de capuz, dormia em pé. Angélica tomou-a nos braços, sentindo-a pesada de sono.

Rebeca adiantou-se para esvaziar a tina de água. Angélica deteve-a. O tempo urgia. Depois, ela quis ainda arrumar a casa. Era preciso apenas apagar os tições da lareira. Foi Mestre Gabriel quem os esmagou com o pé.

Desceram em silêncio, guiados por uma única vela. Cada qual tinha na mão um cesto ou uma trouxa.

No pátio, Mestre Gabriel perguntou o que se deveria fazer "com o soldado amarrado no celeiro. Abandoná-lo numa casa onde ninguém contava voltar era talvez destiná-lo a uma sorte cruel. Anselmo Camisot ajudara-os antes. Houve um momento de incerteza. Angélica observou que, mesmo que sua fuga não fosse assinalada, policiais deveriam apresentar-sé à noite no domicílio dos Berne para prender toda a família. Encontrariam a residência deserta, revistá-la-iam e libertariam o pobre militar, supondo-se que este não tivesse encontrado um meio de se libertar dos nós que o atavam.

-        Está bem. Partamos - disse Mestre Gabriel.

A noite clareava quando transpuseram a soleira, e a pesada porta fechou-se sobre eles.

Em meio à bruma espessa, chegaram ao pé das muralhas e logo atingiram a pequena porta. Angélica colocou Honorina nos braços de Abigail.

— Não posso acompanhá-los agora. Devo prevenir os outros. Vão até a aldeia de Saint-Maurice. Quando estivermos todos ali reunidos, dirigir-nos-emos ao local onde devemos embarcar. Os pescadores da aldeia nada devem saber de nosso projeto. Digam-lhes que vieram enterrar um correligionário na charneca.

— Conhece o caminho, Marcial? - perguntou Mestre Gabriel ao filho. - Guie as mulheres até a aldeia. Devo ficar com Dame Angélica.

— Não - protestou ela.

— Acredita que vou deixá-la sozinha com esses estrangeiros atrevidos?

Angélica conseguiu convencê-lo a acompanhar a família. Ela nada temia, sentia-se imunizada, queria sobretudo ver o maior número possível deles fora das muralhas. Era uma primeira etapa.

-        Haverá a necessidade de um homem como o senhor para tranquilizar as pessoas que enviarei à aldeia. Elas deixarão suas casas sem tempo de refletir. Mas é possível que sintam medo quando chegarem ao local do encontro.

Quando por fim o grupo formado pelos Berne, os dois pastores e Abigail carregando Honorína desapareceu, Angélica retomou apressadamente seu papel de cão pastor que reunia o rebanho.

Na casa dos Mercelot, o casal, muito calmo, a filha, Bertille, não pediram explicações. Angélica disse-lhes que era preciso partir imediatamente ou dormir aquela -noite na prisão. Eles se vestiram. Mestre Mercelot tomou sobre o braço o livro que redigia há longos anos, em papel filigranado como as armas do rei, e que se intitulava Os anais dos tormentos e dos sacrifícios infligidos aos habitantes de La Rochelle nos anos da graça de 1663 a 1676.

Era a obra de sua vida...

Bertille perguntou o que fariam dos objetos já colocados no Santa Maria.

-        Pensaremos nisso mais tarde.

A família Mercefot tomou o caminho das muralhas, enquanto Angélica ia despertar o relojoeiro.

Um pouco mais tarde ela tocava na casa dos Carrere. Esse advogado sem causa, carregado de onze filhos, representava tudo o que Rescator poderia ter de mais "inútil" em seu Carregamento. No entanto foi Carrere quem levantou o maior número de objeções. Partir? Agora? Mas por quê? Por que iam detê-los? Como ela sabia disso? Haviam-lhe contado? Quem? Tinha provas?... Recusando-se a discutir, Angélica ia de compartimento em compartimento, acordando a casa toda. Felizmente, as crianças, admiravelmente orientadas pela mãe, não fizeram nenhuma desordem. Os maiores vestiam os menores, estes preparavam suas coisas. Em poucos mintuos, todos estavam prontos, os quartos arrumados, as camas feitas. Mestre Carrere, de boné e camisa de noite, ainda estava exigindo de sua futura prisão, e já sua prole aguardava no vestíbulo, equipada da cabeça aos pés.

— Queremos partir, meu pai - disse o mais velho, um garoto de dezesseis anos. - Não queremos ir para a prisão. Os filhos do relojoeiro foram levados e jamais voltaram.

— Vamos, Mateus - disse a mulher -, já que decidimos partir, tanto faz que seja mais tarde ou agora.

Ela colocou o filho recém-nascido nos braços de Angélica a fim de poder pegar as calças do marido. Após vesti-lo como a uma criança, enquanto o repreendia, empurrou-o para fora sem Stnais delongas.

— Minha tabaqueira - gemeu ele.

— Ei-la.

A bruma tornava-se translúcida. O sol nascente impregnava-a de luz. Começava-se a sentir a cidade despertar.

Angélica e os três marinheiros colados a seus passos ajudaram a família do advogado a alcançar a pequena porta.

Ao vê-los desaparecer, um após o outro, pelo atalho da charneca, escondidos pela neblina, Angélica sentiu um alivio indizível.

Havia ainda três ou quatro famílias a.serem avisadas, além dos Manigault, que moravam num bairro mais distante.

Um carrilhão tocou, e quase imediatamente os sons de um sino abafados pela bruma escandiram o chamado para o ângelus. Um bulício começava a pressentir-se. Artesãos retiravam os painéis que fechavam as lojas.

Ao se dirigir mais uma vez para a escada das muralhas, com a família do padeiro, Angélica imobilizou-se.

Pessoas corriam sobre as muralhas. Vozes de homens interpelaram-se. Depois, algo escarlate debruçou-se sobre a ruela.

A bruma ainda não se dissipara totalmente para que o soldado pudesse avistar os fugitivos. Eles se retiraram silenciosamente e conferenciaram sob um pórtico vizinho.

— Houve a troca da guarda e deram pelo desaparecimento do soldado - disse Angélica.

— Devem acusá-lo de ter fugido pela poterna de canto. Mas de qualquer modo irão fechá-la ou colocar uma sentinela.

A vista tornara-se mais e mais clara, e adivinhava-se serem numerosos os uniformes escarlates lá no alto.

-        Os casacos vermelhos, os dragões - murmurou o padeiro.- Por que esse aparato?

-        Talvez devido à chegada da frota holandesa...

A mulher do padeiro pôs-se a chorar.

— Não faltava mais nada. Se você se houvesse apressado um pouco mais, António, teríamos podido passar por lá! Como sairemos agora?

— Mas por uma das portas da cidade - tranqiiilizou-a Angélica. - Devem estar sendo abertas. - Explicou-lhes que em nada poderiam chamar mais atenção do que outros artesãos e mercadores que se dirigissem desde as primeiras horas para La Pallice ou para a ilha de Ré.

-        A cidade não está em estado de sítio e a polícia nos dá ainda um dia de prazo. Passarão com seus cestos de entrega de pão. Se os interrogarem, digam seus nomes.

Ela conseguiu tranquilizá-los e eles se afastaram entre os primeiros passantçs. Mestre Romain munira-se de uma boa reserva da última fornada. Teriam ao menos pão.para morder, enquanto esperassem pela comida do' mar.

Nessa manhã, aos olhos dos q*ie o viam passar, ele era apenas um padeiro de La Rochelle entre seus concidadãos, e no entanto, enquanto se dirigia com o coração pesado para a Porta de São Nicolau, já se sentia um exilado.

A precipitação com que ocorrera a partida entorpecia seu sofrimento. Ainda não acreditava totalmente nela.

Angélica encontrou os Manigault sentados na suntuosa sala de jantar, enquanto Siriki servia-lhes chocolate quente.

Ela estava pelo menos tão ofegante como da primeira vez em que fora até-a casa deles em busca do .Sr. de Bárdagne.

O sol já estava alto. Um dia esplêndido anunciava-se depois da tempestade da noite. As brumas acabavam de dissipar-se. A cidade formigava de vida. A noite retirava-se com sua cumplicidade. Agora era preciso enfrentar os perigos à luz do dia.

Tão sucintamente como pôde, Angélica comunicou-lhes os últimos acontecimentos. O complô fora" descoberto, sua prisão era iminente, só lhes restava um recurso: embarcar imediatamente em um navio que aceitava levá-los a bordo, e que permanecia ancorado nos arredores de La Rochelle. A dificuldade estava em sair da cidade sem chamar a atenção. Os Manigault eram bastante conhecidos, e sem dúvida já haviam sido dadas ordens com relação a eles. Seria preciso que saíssem em grupos separados, sob nomes falsos. Assim que estivessem fora da cidade, reagrupar-se-iam na aldeia de Saint-Maurice...

Mestre Manigault, a mulher, as quatro filhas, o genro e seu jovem filho ficaram petrificados, as xícaras suspensas no ar.

— Mas esta jovem está louca! - exclamou a Sra. Manigault. - Como? Pretende que partamos assim para as Américas?... Abandonando todos os preparativos?...

— Como se chama o navio em questão? - perguntou o armador, sério.

— O... Gouldsboro.

— Não conheço. Estes homens que a acompanham fazem parte da tripulação?

— Sim.

— A julgar por sua aparência, deve ser um navio pouco recomendável e mesmo suspeito.

— Ele o é, com efeito, mas aceita embarcar estes outros suspeitos que somos nós. Pior para vocês se preferirem a aparência dos guardas de Baumier, que virão detê-los esta noite e lançá-los na prisão.

— Pode-se sair da prisão. Tenho influências.

— Não, Sr. Manigault, desta vez não sairão.

Um dos marinheiros que a acompanhavam tocou-lhe o braço.

-        Senhora - disse num francês carregado -, o chefe

recomendou-nos que não nos demorássemos na cidade depois que amanhecesse. É preciso apressar-nos.

Angélica enraivecia-se diante dessa família placidamente sentada em meio à rica baixela, degustando iguarias como se o céu não estivesse a ponto de cair-lhes na cabeça. Deixar Manigault para trás seria privar-se de um negociante experimentado, que tinha nas mãos as principais riquezas da comunidade. Ela prometera que o Rescator seria pago. E havia principalmente aquele belo menino louro, o pequeno Jeremias, que se parecia com Carlos Henrique.

-        Pior para você e para seu filho - disse ela. - Lamento apenas ter arriscado minha vida para vir preveni-los. Se não me visse obrigada a correr até aqui, já teria alcançado a aldeia de Saint-Maurice. Cada minuto que passa diminui nossas possibilidades. Na verdade, você decidiu partir, mas não o desejava. Esperava pelo milagre que lhe permitiria tudo conservar: sua situação, seu dinheiro, sua fé, sua cidade. Você, que medita as Escrituras, deverá lembrar-se de que foi recomendado aos judeus, quando prisioneiros no Egito, que celebrassem a Páscoa em pé, o cajado na mão, prontos para a partida, a fim de poderem fugir assim que o sinal fosse dado., antes que o faraó mudasse de ideia.

O armador Manigault olhou-a fixamente. Ficou vermelho e depois, quase pálido.

-        Antes que o faraó mudasse de ideia - murmurou. - Tive um sonho esta noite. Todas as ameaças à nossa volta adquiriam forma. Eu sabia que uma enorme serpente viria sufocar-me, e aos de minha família. Ela aproximava-se e sua cabeça era...

Ele interrompeu-se, levantou-se, o olhar ainda parado, e após limpar lentamente a hoca no guardanapo, pousou-o junto à xícara inacabada Ae chocolate.

— Venha, Jeremias - disse, tomando a mão do filho.

— Para onde vai? - gritou a Sra. Manigault.

— Embarcar.     

— Não vai acreditar nas histórias descabidas dessa mulher!

— Creio nelas porque sei que são verdadeiras. Há vários dias venho suspeitando que nos traíram.

E dirigindo-se ao velho negro:

— Vá buscar-meu casaco e meu chapéu, e os de Jeremias.

— Coloque todo o ouro que puder em seus bolsos - sussurrou-lhe Angélica.

A Sra. Manigault derramava-se em lamentações:

-        Mas ele perdeu a cabeça! Minhas filhas, que será de nós?

As meninas olhavam alternadamente o pai e a mãe.

O oficial, genro do armador, levantou-se por sua vez.

— Venha, Jeni - disse tomando sua jovem esposa pelos ombros. Olhou-a gravemente, com ternura.

— E preciso partir.

— Mas como? Agora?... - balbuciou ela, apavorada. Estava assustada desde a viagem prevista no Santa Maria , pois

esperava um filho.

— Você havia preparado uma pequena bagagem para' a partida. Pegue-a. E chegado o momento.

— Também tenho uma mala - disse Manigault. - É bastante importante, mas Siriki a levará.

— Siriki não deve acompanhar-nos - aconselhou Angélica em voz baixa. - É demasiado conhecido na cidade como seu negro. Localizá-lo-ão imediatamente. Vocês estão sendo intensamente vigiados.

— Abandonar Siriki? - protestou o armador. - Mas é impossível! Quem se ocupará dele?

— Seu sócio, o Sieur Tomás, que deveria arcar com seus negócios depois da partida e estabelecer correspondência com você assim que chegasse às ilhas.

-        Meu sócio?... Foi justamente ele quem nos traiu. Agora estou certo disso. Sem dúvida sonha em apropriar-se de tudo.

E acrescentou, sombrio:

-        Era dele a cabeça da serpente que vi em meu sonho.

No vestíbulo, seu olhar abarcou com amargura as abóbadas sólidas e trabalhadas. Portas envidraçadas abriam-se para as aléias de um grande jardim. Outras, para o pátio, com sua inevitável palmeira.

Manigault tornou a pegar a mào de Jeremias e atravessou o pátio. Um dos marinheiros acompanhava-o, carregando-lhe a mala.

— Para onde está partindo? - esganiçou a Sra. Manigault. - Não estou absolutamente pronta. Ainda tenho duas ou três travessas da coleção, as mais preciosas, para embalar...

— Embale o que quiser, Sara, e encontre-nos quando puder, mas ao menos uma vez apresse-se - respondeu o armador com filosofia.

O jovem casal acompanhava-o. Depois, uma das filhas alcançou-o correndo, quando chegavam à rua.

— Também quero partir com o senhor, pai.

— Venha, Débora!

Era sua preferida, junto com Jeremias. Ele teve a coragem de transpor a soleira e de atravessar a rua sem voltar a cabeça.

Nas proximidades da Porta de São Nicolau, o grupo formado pelo armador, o filho e a filha, o genro e sua mulher, bem como Angélica e os três marinheiros do Gouldsboro, decidiram separar-se. José Garret, o oficial, passou primeiro com Jeni e Jeremias, depois Manigault, misturado ao grupo dos três marinheiros. O porta-voz do navio pirata respondeu em inglês às perguntas que lhe foram feitas. A sentinela não compreendia uma só palavra, mas sabia que um navio inglês estava ancorado no porto desde a véspera. Com ar entendido, deixou a passagem livre para os estrangeiros a passeio. Duas belas jovens da terra - Angélica e Débora - pareciam acompanhá-los. Assim que a autorização foi concedida, elas transpuseram alegremente a porta, sem dar-se ao trabalho de declinar seus nomes e qualificações, e os soldados não ousaram chamá-las.

O grupo afastou-se, seguido por olhares indulgentes.

-        O mais difícil está feito - murmurou Angélica a Manigault. - Não o reconheceram.        

Colocaram-se um atrás do outro a fim de avançar mais rapidamente. O vento era cortante. As nuvens passavam rapidamente, deslumbrantes de alvura, desfiartdo-se como plumas. A enseada surgiu, escura, ainda sob o golpe de cólera que tivera durante a noite.

— E nossa mãe? - perguntou Débora. - E minhas irmãs?

— Elas seguirão, ou não seguirão...

A vista estendia-se ao longe na planície, e já se avistavam as palhoças de Saint-Maurice. Eles foram'acolhidos com exclamações.

-        Vocês, enfim!

Os fugitivos saíam das casas onde aguardavam, sentados junto ao fogo. Mestre Berne encontrara dificuldade em fazê-los ter paciência e em mant£r-lhes a confiança.

Haviam-lhes falado de um navio. Onde estava? Cada qual começava a perceber que esquecera algo de essencial.

— O xale de Rafael!...

— Minha bolsa com cinco libras!...

Graças à ferula. de Gabriel Berne, a calma se mantivera, apesar de tudo. Haviam dado leite fresco.às crianças, depois o Pastor Beaucaire entoara preces, e os habitantes da aldeia, com rostos de náufragos, juntaram-se a eles, pois eram todos huguenotes apesar do patronímico do lugar.

Ninguém faltava ao chamado, salvo a Sra. Manigault e as duas filhas mais velhas.

-        No entanto, devemos partir - decidiu o marinheiro do Gauldsboro que falava um francês singular e atendia pelo nome de Nicolau Perrot. - A maré vai subir. Começaremos a embarcar os passageiros. Um de meus camaradas permanecerá aqui pa

ra aguardar e guiar os retardatários.

Reuniram as crianças, que, totalmente despertas e radiantes com esse imprevisto passeio ao campo, organizavam jogos.

Agrupados por família, iam tomar o caminho indicado pelo marinheiro que falava francês, quando um chamado vindo da charneca congelou a todos.

Uma espécie de chama alaranjada deslocava-se com rapidez vertiginosa, saltando de moita em moita. Distinguiu-se o velho negro Siriki, correndo como um antílope em sua libré de cetim amaranto com galões dourados.

— Meu amo? Onde está meu amo?

— Ah!, meu filho! - exclamou Manigault, apertando ao peito o velho escravo.

Siriki tirara os sapatos de tacão alto para avançar mais depressa. Balançava em todas as direçôes a cabeça coberta com uma alva carapinha, sacudindo os brincos de ouro.

— Não partirá sem mim, amof Senão morrerei.

— Que disseram as sentinelas ao deixá-lo passar? - perguntou Angélica.

-        As sentinelas?... Nada disseram. Eu corria, corria!

E deu uma gargalhada, mostrando os dentes brancos.

-        Apressemo-nos - recomendou Angélica, empurrando a uns e outros pelo atalho indicado pelo marinheiro.

Ela pegara Honorina pela mão. Os primeiros grupos começaram a avançar pela charneca. Até as primeiras dunas na direção do mar havia um longo espaço plano descoberto. A planície parecia imensa, nua. Ainda com bastante nitidez avistava-se La Ro-chelle, suas torres e suas muralhas. Angélica não estava tranquila. O escravo Siriki, correndo atrás do amo, devia ter chamado a atenção.

-        Venham - disse ela aos Manigault -, não se deve perder mais um instante.

Mas eles demoravam. O armador estava visivelmente dividido entre a tentação de se ver livre de uma vez por todas da comadre que lhe tornava a vida dura há vinte e cinco anos e o aborrecimento de abandonar a esposa e as duas filhas.

"Ela se sairá bem", dizia, encorajando a si mesmo. "Seria mesmo capaz de dominar meu sócio desonesto! Mas se a jogassem na prisão, pobre Sara, que tanto ama a boa comida, ela definharia".

Ouviu-se um ruído de rodas aos solavancos pelo caminho, e a Sra. Manigault surgiu, suando e ofegando, atrelada, ela própria, como um asno, aos varais de uma carreta, na qual se amontoavam tapetes, brocados, roupas, cofres e principalmente a famosa baixela de Bernardo Palissy, à qual ela se apegava mais do que tudo. Suas duas filhas e uma criada empurravam as rodas.

A fadiga não a havia abatido, ao contrário. Pois assim que avistou o esposo, irrompeu em invectivas e admoestações.

— Agora é sua vez - disse, entregando os varais ao genro. - E você, vadio, não podia esperar-me ao invés de fugir como uma andorinha? - gritou para Siriki,

— Passou pela Porta de São Nicolau ;com essa equipagem? - perguntou Manigault, rubro de cólera.'

— E o que tem isso?

— Não lhe disseram nada?         .'

— Sim. Disseram. Mas logo abati a empáfia daqueles grosseiros. Queria vê-los impedir-me de passar!.... ,

— Bom, já que está aqui, avance e apresse-se! - disse Angélica, exasperada.

A gorda mulher devia ter feito u-fn escândalo ao franquear a Porta de São Nicoiau. Assim, a pé, arrastando a carreta como uma cigana! Em sua cólera, eraherhcapaz de ter-lhes gritado que partia, que ia embarcar sem esperança de retornar, e que estava farta de La Rochetle e de todos os seus habitantes! Esse era, aliás, um tema ao qual tinha afeição, pois nascera em Angoulême e jamais se habituara a viver em um porto.

Angélica, com Hónofina nos braços, tomou o caminho da falésia. De tempos em tempos, voltava-se para gritar: "Apressem-se!...", para os Manigault, que vinham atrás puxando a carreta enquanto discutiam.

Depois, ela olhava para os lados da cidade.

La Rochelle, espalhada, deslumbrante de alvura por sobre as terras baixas e acinzentadas, parecia-se mais que nunca a uma coroa com mil florões. Mas Angélica inquietava-se sobretudo com os flocos de poeira que pareciam nascer ao pé das muralhas, do lado da Porta de São Nicolau.

Ela apertou o passo e alcançou a família do padeiro.

— Os Manigault trouxeram uma carreta - disse a mulher com rancor. - Se eu soubesse, também teria carregado meu carrinho.

— Os Manigault podem causar nossa perda com sua carreta - disse secamente Angélica.

Ela subiu correndo pela coluna dos fugitivos ate encontrar Mestre Berne.

-        Olhe lá embaixo, que está vendo? - perguntou, ofegante.

O mercador, que avançava rapidamente, segurando a mão de Laurier, acompanhou com o olhar a direção indicada.

-        Veio a poeira levantada por um grupo de cavaleiros - respondeu.

E acrescentou após um instante de observação:

-        Cavaleiros de uniforme vermelho. Vêm direto sobre nós.

O marinheiro que caminhava à frente da coluna avistara-os.

Pôs-se a correr, agarrando duas crianças em cada braço e pressionando as pessoas a abrigar-se atrás das dunas. Angélica voltou, gritando aos Minigault:

-        Apressem-se! Abandonem a carreta. Os dragões estão nos perseguindo.

Todos correram, escorregando no caminho arenoso. As saias das mulheres prendiam-se nos juncos. Começava-se a ouvir o galope surdo dos cavalos.

-        Rápido! Rápido! Mas abandonem a carreta, pelo amor de Deus.

Manigault arrancou a mulher dos varais que ela teimava em agarrar, empurrando-a enquanto ela berrava.

Angélica agarrou Jeremias com uma das mãos. Ele ao menos era ágil como um elfo, e corria, levado pelo medo, com toda a força de suas perninhas. Jeni, ofegante, vinha amparada por José. "Não posso mais", gemia...

Ao descobrir os fugitivos, os dragões deram um grito selvagem. Haviam-lhes dito que huguenotes fugiam para aqueles lados. Era uma suposição, mas agora avistavam-nos, dispersos, correndo para o mar como lebres apavoradas. Com os diabos! Aquela raça de heréticos não iria escapar-lhes! Já haviam espetado muitos outros, no Poitou e em Cévennes.

Desembainharam os sabres e o tenente deu o toque de carga.

De passagem, um sabre virou a carreta abandonada pelos Manigault. Os tecidos espalharam-se, as belas louças despedaçaram-se em estilhaços brilhantes sob os cascos dos cavalos.

Angélica ouviu esse galope do halali.

"Desta vez estamos perdidos", disse consigo.

A corrida louca recordava-lhe a que fizera com Colin Paturel. sob os muros de Ceuta. Jeremias escorregou. Ela arrastou-o pelo braço, conseguindo colocá-lo de pé. Honorina dava gritos ensurdecedores em seu ouvido. Ria, encantada com o tumulto. Angélica atingiu as dunas, lançando-se ao abrigo da primeira elevação de areia.

Abrigo precário!

Os dragões estavam a alguns passos. "Iriam^alcançar os dois casais dos Manigault, que se arrastavam gemendo.

De repente, enquanto acreditava ver ,abater-se sobre ela e as crianças os sabres assassinos, Angélica ouviu o crepitar de vários tiros de mosquete. O cheiro da pólvora ardeu-lhe nas narinas. Uma fumaça acre elevou-se em torno deles,. -

Ouviu-se a voz de Nicolau Perrot, dirigindo-se aos fugitivos:

-        Não fiquem aqui. Recuem lentamente até a beira da falésia.

Irão descê-los até- a praia.

A mão de alguém tocou em seu ombro. Era o marujo trigueiro que se colara- a seus passos, permanecendo com ela na retaguarda, sem dúvida por ordem do marinheiro que falava francês. Curiosamente, adivinhou a que raça ele pertencia, enquanto se perguntara em vão sobre ela desde a véspera.

"Achei. É um maltês!"

Pensamento bastante incongruente em tal momento. Enquanto rastejava, ele fàzia-Ihe sinal para recuar.

Angélica ergueu ligeiramente a cabeça acima das ervas. Avistou os cavalos relinchando na fumaça e uniformes vermelhos fulminados por terra.

Detidos em seu ímpeto pelo fogo dos mosquetes dissimulados atrás das magras dunas, os dragões haviam recuado e reagrupavam-se um pouco mais longe.

Angélica encheu-se de entusiasmo. Ele pensara nisso também: que poderiam persegui-los! Postara seus piratas armados atrás de cada prega de terreno, para defender o acesso ao local de embarque.

Ela começou então a recuar, incitando os pequenos a segui-la. Agora, ao se voltar, adivinhava o navio na efiséáda, com as velas içadas. O atalho que descia para a praia estava próximo.

-Dame Angélica, não está ferida?

Mestre Berne deslizava a seu lado, com uma pistola na mão.

— Por que ficou para trás?

— Devido àqueles desastrados - disse ela com um gesto de rancor na direção dos Manigault, que rastejavam pesadamente, levados pela areia fluida.

-        Estou ferida! Estou ferida! - gemia a Sra. Manigault.

Talvez fosse verdade. Ela abandonava o peso de seu corpo, e o marido puxava-a e amparava-a praguejando como um corsário.

-        Onde está Laurier? - perguntou Angélica.

-        Os marinheiros começaram a baixar as crianças na chalupa. Mas eu estava preocupado com você. Então tornei a subir.

Deus seja louvado. O capitão desse navio pensou em proteger-nos com armas!... Está embaixo, na praia, dirigindo o embarque.

— Ele está lá! - repetiu Angélica. - Oh! É um homem extraordinário, não é mesmo?

— Ah! Um homem mascarado, pelo que creio ter visto, e chefe de uma tripulação de piratas...

Irrompeu um novo tiroteio. Os dragões, reagrupados, haviam tentado novo ataque e mais uma vez foram barrados.

Mas alguns apearam e começaram também a rastejar na direção das dunas, a fim de enfrentar corpo a corpo os adversários.

Os marujos do Gouldsboro, na posição de batedores sobre a falésia, tentavam recuar ao encontro dos companheiros.

Enquanto permanecessem na falésia, protegendo o embarque dos refugiados protestantes, os dragões teriam dificuldade em se aproximar. Mas quando os últimos mosquetes piratas ganhassem a praia, os soldados do rei poderiam massacrá-los do alto dos rochedos.

Alguns já esboçavam o cerco, e as proximidades guarneciam-se de uniformes vermelhos. Por sorte os dragões traziam poucos mosquetes, estando armados principalmente com pistolas e sabres. A uma ordem do tenente, dois soldados dentre os mais ousados tentaram saltar diretamente na praia. Mas quebraram as pernas ao chegar embaixo, e seus gritos de dor esfriaram o entusiasmo dos camaradas em persistir em tal estratégia.

A única passagem acessível continuava acessível continuava severamente vigiada e protefida pela tripulação do Gouldsboro. Outros marinheiros passavam entre si as mulheres e as crianças, amontoavam-nas na chalupa e rumavam rapidamente até o navio ancorado. As vergas estavam guarnecidas de marinheiros, a mão no cordame, prontos para soltar as velas e estivar, para zarpar.

Mestre Gabriel e Angélica, carregando Honorina, recuavam lentamente. O maltês encarregara-se de Jeremias. Com o mesmo movimento rastejante, os homens do navio pirata munidos de mosquetes batiam em retirada.

Ouviu-se ainda a voz do tenente.

-        Nada temam, dragões. .Quando esses bandidos chegarem em baixo, atiraremos neles à vontade-.,. Vocês, aí embaixo, atirem na chalupa.

Dirigia-se aos soldados que haviam atingido a borda pela direita. Eles estavam muito afastados-para mirar os refugiados e os piratas, enquanto estes permanecessem sob o abrigo das rochas. Mas assim que a chalupa deixava a borda na direção do navio, tornava-se, apesar da distância, um alvo possível para atiradores de elite.

As balas começaram a ricochetear em torno da embarcação, e gritos de terror eleyaram-se do grupo de mulheres e de crianças ali amontoados. O Pastor Beaucaire ergueu-se, apesar dos protestos da tripulação pirata. Sua velha voz trémula ecoou em meio ao tumulto, entoando um cântico.

Os marinheiros da chalupa apressavam-se a fim de sair da zona perigosa. Conseguiram dessa vez, sem nenhum ferido a bordo. Mas precisavam voltar para buscar os que permaneciam em terra.

Os dragões teriam tempo de retificar a pontaria.

-        Estão em nossas mãos! Coragem! Não os perderemos da próxima vez - berrou o tenente. - Preparem-se, dragões.

Ouviu-se o estalido do cão dos mosquetes, o tinir das varetas que limpavam os canhões, e o dos chifres de pólvora contra as barbelas.

Encorajados pelo sucesso próximo, alguns soldados precipitaram-se a fim de deter as pessoas imobilizadas que ainda permaneciam na falésia.

Angélica, que começava a descer o atalho abrupto, viu erguer-se à sua frente a face de bigodes de um dragão de sabre erguido. Gabriel Berne jogou-se diante dela, atirou e o homem desabou. Mas dera um golpe, num último movimento convulsivo. Com o ombro e a fronte cortados, o mercador vacilou. Teria rolado para baixo da falésia se Angélica não o segurasse. Arrastada pelo peso desse grande corpo inerte, ela deslizou para o abismo, gritando por socorro. Úm dos marinheiros do Gouldsboro, a face negra de pólvora, veio em sua ajuda. Amparando o "ferido, fê-los descer como pôde pelo atalho das cabras.

Ouviram-se gritos na praia, em inglês. Uma ordem de recuar, sem dúvida, pois viram-se os últimos piratas, ainda atrás das dunas, saltar como macacos e deslizar para baixo ao encontro dos companheiros.

-        A passagem está livre. Agora é nossa vez - gritaram os dragões, reunindo-se.

Angélica chegou à praia em meio aos calhaus que rolavam, enquanto tentava sustentar a cabeça ensanguentada de Mestre Berne.

-        Está morto! Está morto! Oh!, meu pobre amigo.

Duas mãos apanharam-na pela cintura, obrigando-a a voltar-se. O Rescator estava lá.

-        Cá está, enfim! A última, naturalmente! Que mulher louca é você!

Ela teria jurado que ele ria atrás da máscara. Como se o momento não fosse trágico, como se ele próprio e seus marinheiros não se encontrassem em posição desesperada na praia, com a chalupa sem poder aproximar-se devido aos dragões acima deles, como se feridos já numerosos não manchassem os seixos da praia com seu sangue, como se seus últimos momentos não estivessem a ponto de chegar...

Ele ria e apertava-a contra si, como se.a amasse, a ela, a escrava comprada em Cândia, com um amor feroz e mais exigente, devido às afrontas e dificuldades que ela lhe custara.

Mas Angélica, presa de uma nova e pungente preocupação, debatia-se e voltava a cabeça para todos os lados, desvairada.

-        Honorina! Onde está Honorina?... Deixei-a para segurar Mestre Berne no momento em que foi ferido... estou certa de que ficou lá em cima...

Ela quis precipitar-se para subir. Ele reteve-a com punho de ferro.

-        Para onde está correndo?... Permaneça aqui, infeliz! Os canhões irão atirar. Você ficará em pedaços.

No flanco do Gouldsboro, as portinholas dissimuladas erguiam-se, descobrindo as goelas negras de dez canhões.

Angélica lançou um grito rouco-de animal ferido. Acabava de distinguir a touca verde de Honoriha sobre a falésia. A garotinha estava perigosamente perto da borda. Devido ao tumulto, não se podiam ouvir seus apelos, mas adivinhava-se que gritava de terror, diminuta contra o azul do céu, entre os dragões que se aproximavam e o precipício no fundo do qual avistava sua mãe.

-        Minha menina! - gritou Angélica, fora de si - Minha filha! Salve-a! Vão matá-la!. Ela vai cair!

A mão de aço, inexorável, impedia-a de precipitar-se.

-        Deixe-me, é minha menina! Minha filha! Honorina!. Honorina!

-        Permaneça aqui. Não se mexa. Vou buscá-la.

Paralisada de terror, ela viu o Rescator precipitar-se e escalar

com agilidade surpreendente o atalho escarpado. Um soldado do rei veio para cima da menina. O Rescator descarregou-lhe a pistola em pleno rosto, enquanto com a outra mão agarrava o bebe como um pacote ordinário. O homem atingido rolou para a frente e esmagou-se contra os rochedos com um baque surdo, e alguns passos de Angélica.

Simultaneamente os canhões do Gouldsboro fizeram fogo com um estrépito assustador.

Sob a chuva de terra e de calhaus que se precipitava, Angélica acreditou que o Rescator e Honorina se tivessem sepultado para sempre. Depois, pouco a pouco, distinguiu a silhueta do pirata emergindo de um nevoeiro de poeira e de fumaça.

— Cá está sua filha! Segure-a bem, agora.

— Está ferida?

— Não creio. E agora, embarquemos.

Aproveitando a confusão causada pela rajada de balas entre as fileiras dos dragões, a chalupa voltara. Os últimos marinheiros do Gouldsboro transportaram até ela o corpo inerte de Mestre Berne, e o de um companheiro igualmente ferido. Angélica foi sumariamente empurrada, e recomendaram-lhe que se estendesse no fundo da embarcação.

-        É impossível fazer nova viagem - disse o Rescator. - Desta vez é preciso que todos tomem lugar.

Ele subiu por último, com um gesto teatral para as muralhas brancas das falésias de Charentes.

-        Adeus, ó margens pouco hospitaleiras.

Em pé na £Xtremidade do barco, era um alvo evidente.

Felizmente os soldados, desmoralizados .por um ataque direto e que causara numerosas perdas entre eles, não pensavam em atirar. O tenente estava seriamente ferido. O ajudante berrava ordens contraditórias, que o eco de seu porta-voz levava até os fugitivos.

— Que se galope para pedir o apoio do Fort Louis.

— Avisem a frota de Saint-Martin de Ré e o Grand Forte de la Pointe de Sablonceaux...

— Não se deve deixar esse bandido escapar.

Em meio a um violento ruído de correntes, o Gouldsboro levantava âncora. Simultaneamente os gajeiros soltaram as velas, logo enfunadas pelo vento. Em pé, na passarela, o Capitão Jasão bradava ordens com calma, como se zarpasse solenemente do porto, sob o olhar dos curiosos. Os gajeiros corriam, ágeis, ao longo das vergas e dos mastros, apertando aqui e ali o cordame, uma escota...

O navio estremecia, prestes a partir.

Nesse meio tempo, a chalupa, sobrecarregada com o peso dos últimos fugitivos, havia contornado o navio. Estava agora ao abrigo de qualquer agressão, e o embarque de seus ocupantes pôde ser feito sem transtorno, enquanto o Gouldsboro começava, de onda em onda, a avançar para fora da enseada.

Um marinheiro tomou Honorina nos braços, para subir a escada de corda. Tinha uma venda negra no olho, e lembrou a Angélica o rosto pouco agradável de Coriano, o imediato de D'Escrainville. Ele subjugou Honorina, que lhe colocou os braços ao redor do pescoço e não disse uma palavra enquanto ele a transportava nos ares pela escada de corda.

A subida dos dois feridos revelou-se uma manobra mais perigosa.

Por fim todo mundo chegou à ponte, e a chalupa foi içada por um grande número de polias, e solidamente amarrada a um abrigo. Todos esses diferentes movimentos haviam sido executados com uma calma e uma apidez exemplares.

Angélica, sentindo sob os pés a ponta sólida, ergueu os olhos.

As falésias já se distanciavam, coroadas pela linha vermelha dos dragões que lhes estendiam o punho/Irresistivelmente impelido pela brisa, o Gouldsboro deixou seâ abrigo e desembocou no mar de Pertuis.

A esquerda, surgiu La Rochelle, desdobrando o seu lado junto ao mar. Parecia muito próxima, cintilante de sol acima da água, mas ainda majestosa, com suas torres desmanteladas: São Nicolau, Corrente, Lanterna.-O navio ia em sua direção.

CAPITULO XVII

O Rescator e seu navio de La Rochelle - Ele

triunfa - Angélica desperta a bordo de seu navio

O Rescator fora o último a pôr o pé na ponta. Com um olhar abarcou a situação. Nicolau Perrot, em pé junto dele, balançou a cabeça.

— O vento sopra do noroeste!... Mau para nós...

— Assim é...

A própria Angélica podia perceber que o vento os impelia para a cidade. Na passarela, o Capitão Jasão gritava a plenos pulmões para que se içassem velas e baixassem outras, a fim de orientar o navio para o canal de La Pallice.

Um marujo aproximou-se do Rescator e estendeu-lhe a luneta. O pirata teve um gesto na direção da máscara como se fosse tirá-la. Mudou de ideia e lançou um breve olhar ao redor.

-        Feridos e passageiros no porão! Ninguém na ponte além da tripulação.

Erguendo a luneta, observou por um instante as paragens e os esforços do Gouldsboro para fugir apesar do vento contrário.

-        Não, você não... - disse, sem se voltar.

Sem dúvida sentira o movimento de Angélica, que se preparava para seguir docilmente o grupo que, por uma escotilha, descia para o interior do navio.

O Rescator abaixou a luneta e voltou-se para a jovem, observando-a.

Ela estava em pé, o semblante ainda perturbado, apertando ferozmente a filha nos braços. O vento torcia os cabelos de Ho-norina como uma chama ardente.

-        Sua filha - disse ele com voz surda. - É verdade... Parece-se com você. Qual desses huguenotes que acabamos de embarcar é seu pai?

Seria aquele o momento de fazer tais perguntas?

Parecia a Angélica que a cidade se aproximava. P0r pouco avistar-se-iam os curiosos nas janelas e sobre as muralhas agrupando-se para observar a manobra desesperada desse navio desconhecido..

— Seu pai - disse ela, fitando-o como se ele houvesse enlouquecido. - Ora!... é o deus Netuno../Sim, contaram-no a mim. E agora, olhe, antes, onde estamos. Passaremos ao alcance do Fort Louis. Se a guarnição foi prevenida, estamos .perdidos.

— É bem provável, palavra, minha cara...

O Gouldsboro não conseguira dobrar a ponta do CHef de Baie. Permanecia à vista de La Rochèlle e dò forte, em cujas ameias distinguia-se urpa animação suspeita.

-        Você!... Venha por aqui - decidiu bruscamente o Rescator, fazendo sinal para que Angélica o seguisse.

Atravessou â ponte a passo largo, subiu a escada do castelo de proa e depois a do tombadilho.

-        Abrigue-se, senhora - disse o homem do boné de pele, Nicolau Perrot, indicando a Angélica a entrada dos aposentos do Rescator sob o'tombadilho.

E acrescentou com um sorriso:

-        Nosso chefe acaba de pegar no leme. Sairemos desta.

Essa confiança na habilidade daquele que os dirigia parecia ser partilhada por toda a tripulação. Reinava a maior c^lma entre os homens, e havia mesmo alguns marujos, pendurados no cordame e nos ovéns, que gracejavam imitando a veia Zombeteira daquele que lhes ensinara a enfrentar o perigo com uma filosofia sorridente.

— Mas o Fort Louis vai atirar - disse Angélica, com voz apagada.

— E bem provável - disse com seu bizarro acento francês o marinheiro Perrot, que permanecia junto dela, sem dúvida encarregado de sua guarda.

Subitamente uma leva de ordens lançadas pelo porta-voz do Capitão Jasão irrompeu acima deles, com destino aos gajeiros. Imediatamente passou a reinar a maior atividade na floresta aérea de cordas, mastros e tela, Onde silhuetas humanas pareciam deslocar-se com agilidade simiesca.

No instante em que a fumaça das mechas se elevou acima do Fort Louis, todo o velame do Gouldsboro mudou de lugar e de direção.

O navio quase não se movia e parecia querer imobilizar-se diante do forte e dos canhões apontados para ele.

-        Baixar âncora.

Quase imediatamente ouviu-se o correr dos elos da corrente e os jorros de água tocada pela âncora.

Angélica lançou ao companheiro um olhar cheio de incompreensão e de inquietação.

-        O Rescator desejaria parlamentar? - perguntou, assustada.

Ele balançou a pesada cabeça de urso numa negativa.

-        Não é de seu feitio - disse entre dentes. - E antes minha opinião que ele acredita estar pescando cachalote no estuário de Saint-Laurent.

A âncora tocou o fundo. O navio parara, virando ligeiramente no eixo do vento.

Todos os canhões do forte estrondearam simultaneamente, obedecendo ao comando. Mas nesse mesmo momento, sob uma violenta manobra do leme, o navio visado girava agilmente, tomando a âncora como apoio.

A rajada de balas passou a algumas polegadas, varrendo a espuma do lugar onde três segundos antes o Gouldsboro estava de flanco. Como um hábil duêlista, ele se subtraíra ao golpe.

Mas o perigo fora apenas adiado. Ele não teria tempo de erguer a âncora antes de receber uma segunda carga.

Mal Angélica formulou essa reflexão consigo mesma, o porta-voz soou:

-        Sacrificar a âncora.

Uma bigorna surgiu como que por encanto no castelo de proa, e três viomentos golpes de maça fizeram saltar a corrente.

-        A todo o pano!... Rumo nordeste.

O navio, liberto, obedeceu à atração das velas. Os artilheiros do Fort Louis, apressados, miravam em vão. As balas continuaram a quase roçar o alvo, que foi violentamente sacudido e atingido pela água que espirrava, sem contudo deixar de seguir a seu caminho.

-        Hip, hip, hurra! - gritou Nicolau Perrot.

O grito foi retomado a uma só voz pela tripulação. Perrot comentou:

— Aposto que aqueles sujos ter-nos-iam acertado nas obras vivas se nosso chefe não fosse o mais fino manobrista de todos os mares. Já estaríamos no fundo, palavra!..". Viu,a virada no leme?... Mas entre nesta sala, senhora. Pois-ainda não saímos desse vespeiro...

— Não, quero ficar até o fim, até ver o mar livre diante de nós.

— Por minha fé! Como quiser, senhora. Existem aqueles que preferem olhar a morte de frente. E ademais, não é uma forma errada, pois algumas vezes isso lhe dá medo e ela recua.

Angélica começou a sentir amizade pelo caçador do distante Saint-Laurent. Ele não tinha muito a aparência de um pirata sem religião e sem moral, apesar do chapéu de pele e dos braços azulados de tatuagens., .

Após as acrobacias que lhe haviam permitido escapar às rajadas do Fort Saint-Louis, o Gouldsboro endireitara-se, parecendo agitar-se como um cavalo de batalha que toma consciência da partida a ser jogada. Uma leve inflexão do vento para oeste permitiu-lhe retomar a marcha para a frente. Ele cobriu-se de velas para aproveitar a passageira clemência de seu inimigo, o noroeste, e rapidamente afastou-se de La Rochelle, conseguindo ultrapassar a ponta do Chef de Baie. Precisava ainda, para ter acesso ao alto-mar, transpor a passagem entre as ilhas. O forte vento noroeste, que soprava nesse dia, impedia-lhes o acesso à passagem de An-tioche, no sul, entre as ilhas de Ré, de Aix e de Oléron. Mas para atingir o canal bretão, via de saída mais estreita e mais abrigada entre o continente e a costa norte da ilha de Ré, era preciso franquear um estreito canal, o La Pallice e o da ponta de Sablonceaux.

Foi por esta última solução que o Rescator pareceu decidir-se. Ouviu-se o porta-voz do Capitão Jasão:

-        Olá! Os das velas! Colham as velas mestras! Icem a cevadeira, a brigantina e a vela de estai.

Sob o velame baixo, o Gouldsboro introduziu-se na passagem entre os dois promontórios.

Angélica mal respirava. Sabia como era traiçoeiro o canal rochoso, escondido e pouco profundo, do qual os marinheiros do porto falavam com precaução. O vento rijo, projetando no flanco do navio pequenas ondas duras e violentas, ameaçava a cada instancc fazê-lo sair do estreito caminho, para fora do qual um barco de grande tonelagem fatalmente encalharia.

— Já vieram por esta passagem? - perguntou ela a seu guardião.

— Não, nós entramos pelo sul.

— Então seria necessário um piloto. Entre meus amigos há o pescador Le Gall, que conhece todas as armadilhas do estreito.

— Boa ideia! - exclamou o homem de boné de pele.

E deixou-a subitamente para comunicar a informação aos dois capitães.

Pouco depois, Le Gall apareceu, guiado por um marujo. Angélica não pôde impedir-se de segui-lo pelo tombadilho.

O Rescator estava no leme, sempre mascarado. Seu ser inteiro, tenso, parecia buscar adivinhar ao menor estremecimento do navio a difícil passagem. Trocou algumas palavras com o navegador de La Rochelle e cedeu-lhe o lugar.

Angélica permanecia tão imóvel quanto possível, assim como Honorina. A garotinha parecia compreender que o lugar de uma mulher e de uma menina não é a passarela de um navio na hora do perigo, mas por nada no mundo desejaria estar em outro local.

O Gouldsboro avançava com mais segurança.

— E se do Fort du Grand Sablonceaux atirarem em nós? - disse Le Gall, olhando na direção da ponta extrema da ilha de Ré, onde se adivinhava a fortaleza.

— Seja o que Deus quiser! - respondeu o Rescator.

O tempo tornava-se menos límpido. Com o calor do dia, erguia-se uma bruma dourada que encobria as margens. Uma voz soou no cesto da gávea:

— Navio de guerra na proa. Vem vindo ao nosso encontro. O Capitão Jasão praguejou e pareceu bastante desencorajado.

— Fomos pegos como ratos!

— Devíamos contar com isso - disse o Rescator, como se tomasse conhecimento da coisa mais natural do mundo. - Dê ordem para diminuir a marcha...

— Por quê?

— Para que eu possa refletir.

O navio de guerra, que eles ainda não haviam avistado, surgiu na volta da ponta de Sablonceaux, com suas velas desdobradas, de uma brancura de giz contra o céu enevoado.

Com o vento soprando na popa, avançava rapidamente.

O Rescator pôs a mão no ombro de Corentin Le Gall.

-        Diga-me, senhor, a maré. começa a baixar. Se a passagem tornar-se difícil para nós, não será infinitamente perigosa para o adversário de maior tonelagem que avança ao nosso encontro?

Os olhos de Angélica caíram sobre a mão que segurava o ombro do marinheiro. Mão a um tempo musculosa e aristocrática, com um pesado anel de prata lavrada no anular esquerdo. Ela sentiu-se empalidecer. 

Conhecia essa mão nua, inflexível e suave. Onde a havia visto antes? Em Cândia! talvez,- quando ele tirara as luvas para conduzi-la até o sofá. Mas havia algo além disso, que ela reonhecia como infinitamente familiar. Pensou que, sem dúvida, a aproximação de seus últimos momehtos confundia suas faculdades. Devia estar tomando consciência do destino que Osman Ferradji lera nas estrelas, numa percepção dramática diante da proximidade da morte.

Mas, simultaneamente, sabia também que não iam morrer. Porque era o Rescator que os tinha em seu encargo! Havia nessa personagem enigmática a espécie de imunidade dos heróis antigos. Acreditava nisso ingénua, loucamente, e até ali, diante dessa tentativa inacreditável, ela não se mostrara enganada.

O semblante do piloto iluminara-se:

— Decerto - exclamou -, está coberto de razão, senhor! É preciso que tenham uma vontade dos diabos de apanhar-nos, para lançar-se no canal numa hora como esta. É certo que têm também um bom piloto de nossa terra. Mas a posição deles... é delicada.

— Torná-la-emos mais delicada ainda... E, ademais, irão servir-nos de escudo caso o forte queira intrometer-se. Obrigá-los-ei a colocar-se entre ele e nós... Para a frente! Preparar para combate!

E enquanto os gajeiros precipitavam-se para as vergas, o restante da tripulação, que se conservava rio castelo de proa, irrompia velozmente das escotilhas, machados e sabres de abordagem era distribuídos e os toldos que dissimulavam os canhões junto ao coberto de proa, retirados.

Cada qual tomou seu lugar.

Gajeiros com mosquetes subiram até os cestos dos quatro mastros, içando caixas de granadas a serem lançadas sobre a ponte inimiga.

— Será preciso arear as pontes? - perguntou o imediato.

— Não creio que cheguemos a esse ponto - respondeu o Res-cator, o olho fixo no óculo.

E repetiu com ironia, sorrindo sob a máscara: "Arear as pontes. Ora!" Angélica lembrou-se desse preparativo supremo feito no Mediterrâneo. Lançava-se areia na ponte para evitar que os pés descalços dos combatentes sobreviventes escorregassem no sangue espalhado.

-        Encalharão antes de poder lançar-nos um arpéu que seja -disse ainda o pirata, encolhendo os ombros.

Parecia tão seguro de si que a tensão desses minutos em que os dois navios avançavam inexoravelmente um para o outro se atenuava. E aliás logo se pôde perceber que o navio de guerra estava em má posição. Sobrecarregado por seus quarenta canhões, e tendo cometido a imprudência de içar todo o velame, mantinha-se na rota com dificuldade. As ondas impeliam-no para a margem.

— E se atirar em nós? - perguntou Le Gall.

— Um engenho desses?... Está em muitas dificuldades para colocar-se em posição de tiro. E nós nos apresentamos pelo gurupés; o alvo é muito estreito.

O Gouldsboro continuava, pois, ousadamente a avançar. O navio de guerra lutava cada vez mais para manter-se navegando. Súbito, tendo se voltado, sem poder resistir, para os rochedos, viram-no inclinar-se com um estalo surdo.

-        Encalhou! - gritaram em conjunto os ocupantes do tombadilho do Gouldsboro.

A tripulação agitava os bonés £ manifestava sua alegria.

-        Tenhamos cuidado para não fazer o mesmo - recomendou o Rescator. - O mar está baixando perigosamente.

E enviou sondadores com varas para o castelo de proa. Continuando caminho, o navio pirata passou ao largo do adversário impotente, de onde lhes chegaram invectivas e maldições.

— Lançamos-lhes uma carga? - perguntou o Capitão Jasão. - Estamos bem colocados.

— Não! É inútil deixar lembranças demasiado ruins atrás de nós. De qualquer modo, ainda não nos safamos desta.

Angélica também pensava que outros navios podiam surgir para barrar-lhes o caminho.

Mas conseguiram sem problemas desembocar do canal na passagem bretã. Le Gall retesou-se, as mãos no leme:

— O mais difícil está feito. Agora, senhor, .proponho forçar as velas e seguir a costa norte até a saída, na ponta do Grouin du Gou.     

— Entendido.

A manobra tornara-se mais fácil. A passagem oferecia uma enseada abrigada, onde o vento, menos violento e mais bem orientado, tornava-se um aliado dos fugitivos. A levé gruma permitia distinguir a curva do continente e sua alva renda de pântanos salgados.

Mas do outro lado havia Saint-Martin de Ré, e breve, um a um, como silhuetas de sonho, os navios da frota real desprenderam-se e- singraram até'eles. A matilha partia para a caçada. 

Eles observavam sua progressão em meio a um silêncio tenso.

— Tão perto de nosso objetivo! - murmurou Le Gall. - Acabamos de ultrapassar a ponta d'Arçay.

— Forcemos a marcha! O vento desviou-se ligeiramente. Ele nos favorece.   '

— A eles também.

— Mas estamos na dianteira.

Palavras breves, que lhes serviam para avaliar a situação, pesar as possibilidade e não perder um minuto.

Após parecer aproximar-se com uma rapidez inquietante, os navios da frota conservavam agora a mesma distância. O Gouldsboro continuava fora do alcance de seus canhões.

Novamente o Rescator pousou a mão no ombro do navegador.

-        Cheguemos a alto-mar, amigo, e, palavra de Rescator, prometo que nos colocaremos sob o vento e nenhum dos navios de Sua Majestade conseguirá apanhar-nos.

-        Nós o conseguiremos, senhor - respondeu o piloto, como que galvanizado.

Olhos fixos na rota que deveria seguir, ele auscultava as menores correntes, a mínina brisa, para permitir toda a rapidez possível ao navio que conduzia. Ah! Como conhecia aquelas paragens onde tantas vezes lançara suas redes e recolhera os cestos de lagostas, enquanto cantava e olhava com amor à sua volta as linhas nítidas e douradas da água, da terra e das ilhas que formavam a paisagem familiar de sua vida. De origem bretã, sua família vivia em La Rochelle havia três gerações, o que explicava que fosse huguenote e que mostrasse em sua fé a mesma obstinação que um bretão católico teria pela dele. Nesse momento veio-lhe o pensamento de que hoje percorria os locais onde fora feliz para fugir deles, que no porão desse navio perseguido estavam sua mulher e seus filhos, e que seria horrível morrer ali, afundado ao largo de suas ilhas e de sua cidade, pelas balas do rei de França.

Tinha menos medo da morte, que enfrentara muitas vezes durante suas navegações, do que de tal traição.

"O! Senhor, considere o que temos que sofrer em Seu nome!... Por quê?... Por quê?..."

Angélica lançou um olhar para trás. As velas dos perseguidores cresciam novamente. A partir dali o movimento das águas, a crista mais cheia de espuma das ondas, pareciam anunciar a aproximação do alto-mar. A costa alargava-se e adelgaçava-se. O vento tinha um sabor amargo e tornava-se mais penetrante. O horizonte velado adivinhava-se mais vasto.

O mar alto!... Mas não seria demasiado tarde?...

Ela olhou o Rescator e percebeu que ele também a fixava por entre as fendas da máscara.

Acreditou que ele iria dizer-lhe que se fosse dali, que seu lugar não era o tombadilho. Que iria expulsá-la com a ironia aguçada que sabia usar para com ela.

Ele nada disse. Ela teve a sensação de que ele a olhava assim porque as coisas iam muito mal e o instante era dramático. Ela, que até então se mantivera confiante, teve medo.

-        Agora é muito tarde? - perguntou.

Nesse momento, Honorina ergueu-se em seus braços e apontou na direção do horizonte:

-        Lá - disse com ar alegre -, passarinhos.

Os passarinhos... eram navios.

Eles surgiam no horizonte, barrando a saída da baía. Em alguns instantes seu número pareceu infinito. Comprimido entre a aproximação deles e a da frota real, o Gouldsboro parecia uma caça acuada e cercada, e que não teria sequer o recurso de poder enfrentar todos os adversários reunidos para liquidá-lo.

Uma mesma exclamação incrédula e consternada brotou dos lábios da tripulação reunida em pé de guerra. Desta vez era demais. Poderiam bater-se, mas não,vencer, e todas as possibilidades de escapar estavam-lhes vedadas. Quase imediatamente o Rescator lançou uma exclamação e pôs-se a rir. Não podia falar, de tanto rir, sufocar e tossir.        

"Ele ficou louco", disse Angélica consigo, petrificada.

Mas o pirata conseguiu por fim articular:

-        Os holandeses!

Logo a consternação transformou-se num delírio de alegria.

-        Içar o pavilhão, inglês de comércio no mastro principal - berrou o Capitão Jasão em inglês, em seu porta-voz.

Ele repetiu a ordem em francês.

Os pavilhões subiram e^drapejaram ao vento, o de cruz vermelha atravessado sobre uma cruz" de Santo André branca contra um fundo azul no rrtastro principal e.o escudo de popa vermelho, trazendo no canto o mesmo emblema de cruz tricolor.

Castigada pela tempestade recente, a pesada frota mercantil adentrava a passagem bretã com solene lentidão. Precediam-na dois grandes navios de combate com seus cinco mastros e três pontes de bateria com setenta e dois canhões. Em seguida vinha um grupo enorme de quatrocentos navios mercantes de todas as tonelagens, dos quais o menor ultrapassava, no entanto, a trezentas toneladas. Essa gorda frota vinha ladeada por vinte navios de guerra de menor porte que os de três pontes.

O Gouldsboro esgueirava-se entre eles com a agilidade de uma lebre perdendo-se numa floresta espessa. Em alguns instantes, uma dezena de navios da imensa frota encontrou-se entre ele e seus perseguidores. Era impossível aos oficiais de Sua Majestade dar um só tiro de canhão sem atingir os honestos comerciantes que vinham ancorar em águas francesas.

Foram obrigados a desistir de punir o audacioso pirata que troçara deles.     

Pelo novo movimento das águas, os fugitivos encerrados na entrecoberta souberam que haviam atingido o mar alto. Durante longas horas haviam espreitado ruídos, acompanhando a áspêra luta do navio contra o vento contrário. A manobra diante do Fort Louis projetara-os uns contra os outros, em meio à detonação surda dos canhões, e eles haviam acreditado que chegara sua hora. Depois fora a marcha lenta e como que enferma ao longo do canal. As paradas, os preparativos para o combate, os pés nus correndo acima de suas cabeças, a espera. Horas de preces, de breves palavras, pronunciadas paa romper a angústia ou acalmar as crianças inquietas...

E, como na arca, "não havia janela,, e eles não deviam saber o que se passava lá fora".

Depois o navio pusera-se a navegar em grandes balanços regulares, como que em paz; eles haviam sentido a tensão das velas, orientadas enfim sem empecilhos, infladas, estendidas; e todo o ímpeto liberador que passava pelo casco do navio fazia fremir as madeiras com a alegria de um puro-sangue ao qual se afrouxassem as rédeas.

E Le Gall apareceu na soleira, esgotado, com uma expressão a uma tempo triunfante e desesperada, no seu olhar azul de celta:

-        Escapamos a eles - disse. - Estamos em alto-mar. Estamos salvos!

Então o coração de todos se partiu.

Adeus, cidade de La Rochelle, nossa cidade! Adeus, nosso reino! Adeus, nosso rei!... E caíram de joelhos, os olhos cheios de lágrimas.

-        A terra ainda é visível - disse o Rescator, aproximando-se de Angélica e fixando-a duramente pelas fendas da máscara. - Não se voltará para lançar um último olhar a essas margens que abandona para sempre, senhora?

Angélica sacudiu a cabeça:

— Não - disse ela.

— Você tem pouco sentimento para uma mulher. Não deve ser bom incorrer em seu ódio. Nada deixa ali, então, a ser lamentado, nenhuma lembrança, nenhum ser querido?

"Um filho morto", pensou ela, "um pequeno túmulo na orla da floresta de Nieul... Isso é tudo."

-        Estou levando tudo o que me é caro - disse, estreitando Honorina ao peito. - Meu único tesouro.

E como em todas as vezes que a curiosidade insinuante do Rescator se manifestava, tomando-a de assalto, ela teve a impressão de estar sendo espreitada e que o interesse que ele lhe votava a ameaçava.

Uma incomensurável fadiga tombou-lhe sobre os ombros. Era o peso das horas que acabara de viver, o peso de toda a sua vida no instante em que o destino fechava" atrás jlela uma porta que não mais voltaria a se abrir. Ela sentiu a dor dos braços enrijecidos, que não haviam cessado, porAim te,mpo infinito, de apertar Hanorina contra si.

- Estou cansada - disse numa voz agonizante. - Oh, tão cansada! Gostaria de dormir...

Angélica não teve mais consciência do que se passou entre o momento no qual pronunciou essas palavras e aquele em que despertou, à luz púrpura do anoitecer. Um sol cor de rubi inundava-lhe a vista, destacando-se como uma enorme lanterna no fundo de prata fosca do céu e do mar.

Ele tocou o horizonte, submergiu com rapidez desconcertante, deixando atrás de si. por um breve momento uma luminosidade rosada, mais deslumbrante que a aurora, e que pouco a pouco se pôs a esmaecer.

Angélica sentiu à sua volta o movimento do navio, o balanço ritmado e incessante que a levava de volta a alguns anos atrás, no Mediterrâneo. Naquele tempo, mesmo enquanto estava cativa no Hermes, acontecia de uma sensação de imensidão inflar-lhe o peito, suprir a insatisfação de sua alma apaixonada. Foram esse lembranças de uma viagem em que ela sofrera mil mortes que lhe deixaram uma impressão de saudade e de encantamento.

Nessa noite, ela reencontrava o mar. Pela janela envidraçada do castelo de popa, o crepúsculo oferecera-lhe suas breves chamas e depois o mistério solene da penumbra precedendo a noite.

Ouviu as ondas espirrando contra o casco. E, a intervalos, o estalar seco das velas e o canto da brisa nos ovéns.

Ela se ergueu, sentando-se no divã oriental onde a haviam estendido, e apoiou-se no braço, a cabeça vazia, sem pensamentos, mas com a percepção aguda da felicidade que a invadia. Estava livre.

Honorina dormia a seu lado, confiante, rosada, viçosa, com a carnação das faces avivada pelo crespúsculo.

Angélica inclinou-se sobre ela com infinita ternura.

- Levo-a comigo, meu tesouro - murmurou. - Carne de minha carne, alma de minha alma...

A alegria sobre-humana tornava-se quase dolorosa. Um sonho antigo, que a acompanhara pela vida afora, se realizava.

Ela ia para o mar.

Seu peito encheu-se com o ar salino. Os olhos velaram-se, a cabeça vacilou, inclinada para trás sob uma ebriedade sem nome. Um sorriso de êxtase pairava em seus lábios.

Ali, sozinha na claridade do dia que findava, Angélica estendia ao oceano, como a um amante reencontrado, seu rosto radiante de apaixonada...

À medida que a costa da França ficava para trás e o Gouldsboro avançava por caminhos insondáveis no oceano Atlântico, no íntimo de Angélica o medo fizera uma trégua. Extenuada, a temerária Marquesa dos Anjos sentia sobre os ombros o peso de toda sua vida: o destino fechava atrás dela uma porta que não mais voltaria a se abrir. Não lhe restava verdadeiramente nada de sua vida passada. Tudo caíra num precipício de sombra.

Fora preciso que rodasse por duas vezes o círculo infernal para compreender que não havia nenhum lugar para ela naquela terra assolada e que devia partir. Conhecera muitas prisões, carcereiros, esperas, injustiças. Agora fugia com as crianças. Para além dos mares havia terras novas. Ali os soldados do rei não poderiam alcançá-la. Ali talvez reencontrasse a magia misteriosa do amor.

No próximo número, Angélica no Barco do Amor, a indomável Marquesa dos Anjos finalmente irá realizar o sonho dourado pelo qual tanto se batera. A espera não fora vã! O grande amor de sua vida, inesperadamente, irá se revelar...

Como não pudera percebê-lo, estando ele tão próximo?

 

 

                                                                                                    Anne e Serge Golon

 

 

 

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