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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DOCE MORTE EM VENEZA / Lou Carrigan
DOCE MORTE EM VENEZA / Lou Carrigan

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Os dois homens entraram no café chamado “Terrazza del Sole”, quase no extremo norte do Lido de Veneza, a formosa ilha que, em sua parte que dá para mar aberto, forma uma das mais reputadas praias do mundo.

Só que, então, não havia banhista. Nem sequer havia sol, muito logicamente, já que era meia-noite. E quanto à beleza, talvez fosse melhor assim, pois se via a lua refletindo-se no mar, as estrelas, luzes vermelhas e verdes das embarcações que chegavam ou partiam, a iluminação de Lungomare D’Annunzio... A um canto, um vocalista cantava, acompanhando-se com uma guitarra.

Eram dois homens altos, fortes, atraentes, embora talvez demasiados sérios, de olhar penetrante, quase desconfiado.

Sentaram-se a uma mesa, pediram café, um deles consultou o relógio.

 

 

 

 

— Doze horas... — murmurou. — Creio que os russos não tardam a chegar, Thomas.

 

— Talvez já tenham chegado, Bob. Você bem sabe que eles não confiam em nós... Nem nós neles, tampouco. Para lhe ser sincero, estas relações amistosas com o MVD nunca me agradaram. Nós, da CIA, não estamos acostumados a receber gentilezas dos soviéticos.

 

— Você é engraçado — sorriu Thomas. — A menos que pendurem um cartaz no pescoço, não creio que seja fácil identificá-los. E suponho que não o façam. Acho que vou bater umas fotos, pois mais adiante podem-nos servir de algo.

 

— Boa ideia — sorriu também Bob. — Aposto que se os russos estão aqui, já nos fotografaram.

 

Thomas puxou seu maço de cigarros, ofereceu um a Bob e deu-lhe fogo com seu isqueiro... enquanto batia microfotos das pessoas que estavam por trás deste, à direita t esquerda.

 

Depois acendeu seu próprio cigarro, batendo mais fotos, agora para sua esquerda. Deixou o isqueiro sobre a mesa coberta por uma toalha de quadrados vermelhos e brancos, depois, como o cigarro de Bob se tivesse “apagado”, este usou por si mesmo o isqueiro, fotografando todas as pessoas que estavam atrás e à direita de Thomas. Nem sequer uma mosca teria escapado àquele enquadramento fotográfico.

 

Trouxeram-lhes o café, tomaram-no e Bob tomou a consultar o relógio.

 

— Passam quatro minutos... — resmungou.

 

— Não gosto de espiões impontuais.

 

— O relógio deles atrasou, eis tudo. Ou talvez estejam preparando sua jogada suja.

 

— Você não é exatamente um otimista, hem? — comentou Bob.

 

— Estou há algum tempo na espionagem, companheiro — Thomas deu de ombros —, e qualquer jogada suja me parece tão normal que...

 

— Aí estão — Disse Bob, de súbito, olhando para a porta. — Certamente são eles. Não se vire. Apenas faça o sinal... Estão nos olhando.

 

Bob pegou outra vez o isqueiro, distraidamente, parecendo brincar com ele. E, claro está, os dois indivíduos que acabavam de aparecer no terraço do café foram fotografados. Enquanto isso, Thomas sacou seu lenço, desdobrou-o, passou-o pela testa, depois tomou a dobrá-lo cuidadosamente e o guardou.

 

Atrás dele, um dos recém-chegados acendeu um cigarro, sorrindo ironicamente. Deu duas tragadas, atirou-o no chão e esmagou-o com o pé, antes de fazer meia volta. O outro se foi com ele, também sorrindo irônico.

 

— Compreenderam o sinal? — perguntou Thomas.

 

— Sim... — sorriu Bob. — E retribuíram nossa gentileza de fotografá-los... Você, de costas. Está de sorte. Bem, vamos lá. Estou desejando que termine este assunto da troca de microfilmes.

 

Levantou-se, deixou uma célula sobre a mesa e começou a caminhar para a saída do terraço, tal como os agentes secretos russos que tinham chegado com algo mais de quatro minutos de atraso. Thomas foi atrás dele, olhando distraído ao seu redor, fazendo saltar sobre a palma da mão o isqueiro com a microcâmara oculta. Ainda, antes de abandonar o terraço, bateu umas quantas fotos mais em torno... Manias de espiões.

 

Desceram juntos os largos degraus que levavam à areia.

 

Multo perto, viram a lancha em que haviam chegado, balançando sobre as ondas, quase embicada na praia.

 

— Vão por ali — indicou Bob.

 

Os dois russos continuavam caminhando, de costas para os agentes da CIA, que olhavam inquietos para todos os lados. A distância que os separava dos americanos era de uns trinta metros.

 

— Está vendo algo suspeito? — perguntou Bob.

 

— Não — sussurrou Thomas. — De qualquer modo, convém que estejamos atentos.

 

Ao longe, diante deles, brilhavam as luzes de Piazzale Bucintoro e as do grande restaurante que defrontava a praia.

 

Súbito, os dois russos se detiveram e voltaram-se, em clara atitude de espera. Só faltava chegar até eles, trocar os microfilmes e dizer-lhes adeus. O assunto estaria terminado...

 

Thomas sentiu repentinamente na testa um sopro cálido e ouviu o estalido inconfundível de uma bala... À sua direita, ao nível da areia, entreviu a pincelada fulva de um disparo, feito com silenciador... E ainda estava empurrando Bob para rolar com ele pela areia, quando de outros dois pontos chegou a luz amarelada de outros tantos disparos...

 

Nenhuma palavra. Nenhum grito, nem exclamação. Tais manifestações não são de uso entre agentes secretos. No mais completo silêncio, estabeleceu-se a feroz luta pela sobrevivência.

 

Depois de rolar pela areia, ambos se voltaram para onde estavam os russos, mas estes corriam a toda a velocidade, afastando-se. Mandíbulas apertadas, Thomas disparou sua arma contra as costas de um deles, enquanto Bob o fazia contra o outro. Somente um dos soviéticos cambaleou, parecendo dar tropeções... Mas continuou correndo velozmente.

 

A areia espirrou diante dos olhos de Bob, ao mesmo tempo em que à direita de ambos tomaram a brilhar clarões amarelados, provocando mais salpicos de areia a seu redor.

 

Não se via ninguém. Seus inimigos tinham sabido esconder-se exemplarmente, decerto cavando trincheiras na praia.

 

— Vamos... — ofegou Thomas. — Temos que alcançar a lancha, Bob, senão...

 

Os dois atiraram furiosamente para onde mais ou menos haviam localizado seus inimigos, puseram-se de pé e correram, curvados, em direção ao barco. Agora, à esquerda deles, muito perto do café, brotou outro clarão e, para sua surpresa, ouviram à retaguarda um grito de dor. Mas o urgente era correr...

 

Tinham chegado à areia molhada, dura, de modo que podiam escapar melhor para a lancha. E era o que estavam fazendo. Exclusivamente isso.

 

Por trás deles tomaram a brilhar clarões e Thomas lançou um gemido, caindo violentamente de bruços na areia.

 

— Continue! — gritou. — Fuja, Bob!

 

Mas este voltou sobre seus passos, disparou algumas vezes para o lugar de onde os alvejavam e, quando sua pistola se esvaziou, arremessou-a ao mar e inclinou-se.

 

— Não seja louco! — arquejou Thomas. — Fuja!

 

Ele passou um braço de Thomas pelo pescoço, levantou-se, colocou-o sobre um ombro com toda a facilidade e continuou correndo para a lancha. Estava a menos de cinco metros dela quando, atrás, tomaram a brilhar vários clarões.

 

Estremeceu. Tropeçando, chegou junto à lancha e, não pouco rudemente, atirou para dentro dela seu companheiro. Depois, segurando uma perna com a mão crispada, subiu à embarcação, deixou-se cair de bruços e pôs o motor em marcha...

 

Segundos depois, estavam ambos fora do alcance de qualquer arma curta, navegando a toda a velocidade. Ao volante da lancha, virando a cabeça para a praia, Bob viu os três homens, um deles coxeando, que se aproximavam da beirada do mar. De suas mãos brotavam os clarões. Mas ele bem sabia que as balas não os poderiam alcançar.

 

Sentia terríveis fisgadas na perna direita e mal se podia manter de pé. Junto a ele, estendido de qualquer maneira, jazia desacordado seu companheiro Thomas, em cujas costas tornava-se cada vez maior a mancha de sangue.

 

Rosto contraído pela cólera, Bob ergueu o punho fechado em direção à praia.

 

— Vocês pagarão! — gritou roucamente. — A CIA não perdoará isto! Alguém será enviado para lhes dar o merecido!

 

O avião da Air France já estava sobre o aeroporto Marco Polo, de Veneza, descendo para as pistas. Os passageiros, com cintos colocados, tinham ainda os olhos cheios da beleza que acabavam de contemplar. As inúmeras ilhotas, a Grande Laguna, o Grande Canal, onde se viam, diminutas, as gôndolas típicas. E ao fundo, o Lido, cuja formosa praia reluzia ao sol. Barcos grandes, pequenos, médios... Lanchas, vaporetti levando passageiros de uma ilha à outra. E a grande Ponte della Libertà, o aqueduto que unia Veneza por meio de ferrovia e autopista com a terra firme. Ali tinham visto um trem e muitos carros, em ambas as direções, como graciosos brinquedos manejados por crianças.

 

Um dos passageiros virou-se para sua vizinha de banco, que se inclinava para a janelinha, perdida na contemplação da paisagem. Uma vizinha de banco junto à qual valia a pena passar toda á vida viajando. Não era só o rosto deslumbrante, o encanto dos maravilhosos olhos azuis, a figura excepcionalmente sugestiva e perfeita, não... Era mais.

 

Muito mais. No relativamente curto voo Paris-Veneza, o passageiro tinha podido dar-se conta disso. Nunca havia encontrado tão deliciosa criatura!

 

— Já esteve em Veneza, miss Montfort? — perguntou-lhe.

 

Miss Montfort olhou-o sorrindo e assentiu com a cabeça.

 

— Em várias ocasiões, monsieur Tubert. Mas sempre de passagem, para assuntos de trabalho.

 

— Pena... Também esta vez será assim?

 

— Não sei. Gostaria de ficar uns dias, mas sempre depende das circunstâncias.

 

— Meu convite para levá-la a...

 

— Sinto muito. Estão à minha espera e receio que vá estar muito ocupada. Entretanto, se dispuser de um momento livre, telefonarei para seu hotel. Agradeço muito suas gentilezas, monsieur.

 

— Gostaria muito de ser seu cicerone! Por pouco que possa, alongue sua permanência em Veneza. Acredite: vale a pena. Oxalá possa ficar muitos dias e dispor de meus préstimos com frequência.

 

— Obrigada — sorriu docemente a belíssima passageira.

 

Quinze minutos mais tarde, ela chegava ao estacionamento de táxis, seguida de um empregado do aeroporto que levava suas duas maletas, enquanto ela mesma se encarregava da bonita maletinha vermelha adornada de flores azuis. Acomodou-se num táxi e, ajudado pelo chofer, o empregado do aeroporto colocou no porta-malas a reduzida bagagem.

 

— Signorina? — perguntou depois o chofer.

 

— Venezia — sorriu ela.

 

— Va bene.

 

Os olhos do homem abriram-se desmesuradamente quando viu a gorjeta que a passageira dava ao rapaz do aeroporto e, em estado de pura euforia, empreendeu a viagem até Veneza. Pouco depois, passavam por perto de Mestre. Em seguida, pela esquerda, tomaram a Ponte della Libertà, rodando então ao longo do litoral. Brigitte contemplava o céu, as gaivotas, as numerosas embarcações. Pena que não houvesse palmeiras...

 

Sorriu e o chofer, vendo-a pelo retrovisor, esteve a ponto de perder o controle do volante.

 

Já chegando às ilhas, foram separando-se da via férrea, que terminaria na Estação de Santa Lucia. Após atravessar o Canal Chiara, chegaram à Piazzale Roma, onde forçosamente devia terminar o trajeto de carro.

 

— Venezia, signorina.

 

— Obrigada. Podia encarregar-se de conseguir uma gôndola que me leve ao hotel? — pediu ela em impecável italiano.

 

Com grandes expressões de obsequiosidade, o chofer afastou-se para o embarcadouro, enquanto ela acendia um cigarro. Ainda não tinha terminado, quando ele regressou em companhia de um soberbo tipo, alto, moreno, de cabelos crespos, vestindo calças brancas, jérsei de mangas curtas todo em listras horizontais e chapéu de palha. Os dois chegaram conversando animadamente, o chofer gesticulando muito e atirando beijos para o ar. O gondoleiro parecia um tanto cético, mas ficou petrificado quando a passageira saiu do táxi e parou diante dele.

 

— Mamma mia... — conseguiu murmurar, por fim.

 

O chofer deu uma risada e dedicou-se a retirar as maletas.

 

Teve que dar uma cotovelada no gondoleiro para fazê-lo “voltar a si”.

 

— Ei, Dino! — riu.

 

— Hã...? Oh, sim! Excusi, signorina... Parla italiano?

 

— Benissimo... — sorriu Brigitte. — Pode levar-me ao “Gritti Palace”?

 

— Subito!

 

O rapaz encarregou-se das maletas, enquanto Brigitte pagava o chofer, que certamente não se sentiu lesado. Pouco depois, a viajante americana tomava a gôndola, sorrindo, e esta se lançava ao Gran Canale.

 

— Quer um percurso turístico, signorina ?

 

— Em outra ocasião. Desejo chegar ao hotel o quanto antes... Conhece alguém que queira vender uma lancha?

 

— Claro! Quanto quer gastar?

 

— Pagarei exatamente o que valha uma lancha não muito grande, a mais nova possível e que seja veloz. Não me importa o preço, se for justo. Entendido?

 

O gondoleiro entendeu muito bem: sua passageira não era das que podiam ser enganadas.

 

— Entendi, signorina.

 

— De qualquer modo — sorriu ela —, você será gratificado por seu trabalho, naturalmente. Quero a lancha o mais depressa possível.

 

— Não se preocupe, que a terá.

 

— Que a levem ao “Gritti Palace”. Meu nome é Brigitte Montfort. Não vai esquecer?

 

— Nunca, nem que viva mil anos — sorriu o gondoleiro.

 

Ela também sorriu e dedicou-se a olhar, com certa emoção, o ambiente do Grande Canal, cheio de gôndolas, lanchões de transporte de carga, vaporetti, motoscafi, que são menores e mais velozes que os vaporetti... Uma gôndola-balsa, das chamadas traghetti e que são usadas para atravessar passageiros de um a outro lado do canal, passou tão perto deles que Dino começou a gritar, indignado, ameaçando com o punho o mestre daquela embarcação, desfazendo-se em insultos proferidos num vêneto rapidíssimo que a passageira mal pôde compreender... com grande vantagem para sua sensibilidade.

 

O sol parecia transformar a água num espelho. Por todos os lados se ouviam gritos de saudações entre os gondoleiros e um viajante inexperiente começaria a sentir-se aturdido, maravilhado e fascinado ao mesmo tempo.

 

Miss Montfort, simplesmente, estava encantada, contemplando com sorridente aprovação tudo quanto ocorria a seu redor. Já tinham deixado para trás a Ponte degli Scalzi e, pouco depois, começaram a surgir os palácios: Palazzo Labia, Palazzo Vendramin, Palazzo Bataglia, Ca Pesaro...

 

Quando finalmente a gôndola se deteve no embarcadouro do “Gritti Palace”, o mais moderno e luxuoso hotel de Veneza, Brigitte pestanejou, como se ainda deslumbrada pela beleza que estivera contemplando, as belas torres, os palácios de mármore, o pitoresco dos canais que desembocavam no Grande... Um boy encarregou-se imediatamente das maletas, enquanto a turista americana dava as últimas instruções ao gondoleiro: — Vou dormir umas horas, de modo que não precisa se apressar demais. Entretanto, gostaria de ter a lancha para as cinco. Pode ser?

 

— Sem dúvida, signorina. Não, não... — recusou Dino.

 

— Só me pagará depois.

 

— Va bene. Ciao, Dino!

 

Embora brilhasse o sol, o rapaz ficou vendo estrelas no céu pelo simples fato de que a signorina americana recordasse seu nome e pronunciasse com aquele tom legitimamente amistoso. Quando se afastou com sua gôndola, cantando de alegria, reconheceu que Veneza era uma cidade cheia de encanto, principalmente agora que a signorina Montfort ali estava...

 

Enquanto isso, era esta atendida pelo elegante recepcionista do hotel, tão logo pôde ele recuperar-se um pouco de seu deslumbramento. Efetivamente, quatro dias antes um cavalheiro tinha reservado uma suíte com vista para o Grande Canal, em nome de Brigitte Montfort.

 

Deixando o passaporte em suas mãos, ela acompanhou, o boy, que além das duas maletas levava também a chave da suíte.

 

Tampouco o garoto pôde dar crédito à propina recebida, mas finalmente reagiu e deixou instalada em Veneza a mais bela, astuta e perigosa espiã de todos os tempos. A primeira coisa que esta fez foi, como norma estrita, examinar a suíte em busca de microfones. Mas, como já esperava, não havia nenhum. Nada, perigo nenhum, aparentemente.

 

Depois, enquanto fumava um cigarro, esteve contemplando o Grande Canal daquela sacada com colunas, rodeada do conforto do esplêndido hotel: cortinas vermelhas, móveis suntuosos, refrigeração... Muito calor em julho.

 

Em vista do substancial breakfast saboreado em Paris, antes de tomar o avião, resolveu prescindir do almoço.

 

Colocou suas coisas no armário, desfrutou o prazer de um chuveiro frio e, nua e fresca com uma flor, estendeu-se na cama. Três segundos depois estava adormecida.

 

Às cinco menos quinze abriu os olhos, tão límpidos como se apenas os tivesse fechado por alguns segundos. Pôs um minivestido azul, que iria transformar-se na sensação de Veneza quando navegasse por seus canais, penteou-se rapidamente, apanhou a maletinha vermelha e um pacote envolto em sólido papel ilustrado, e abandonou a suíte.

 

No embarcadouro do hotel, Dino a esperava, com outro veneziano, que quase caiu no canal ao vê-la. Dois gondoleiros passaram em suas esguias embarcações e começaram a gritar coisas a Dino e seu acompanhante, rindo e fazendo grandes gestos maliciosos, numa alegria excessiva.

 

— É esta a lancha? — perguntou Brigitte.

 

— É esta sim, signorina. Uma lancha boa, veloz, não muito grande e quase nova, como pediu.

 

— Quanto?

 

Dino e o outro trocaram um olhar.

 

— Mil dólares? — experimentou o vendedor, timidamente.

 

Brigitte sorriu. Tomou a olhar a lancha, olhou o vendedor, olhou Dino... Abriu a maletinha vermelha com flores azuis, tirou onze notas de cem dólares, entregou dez ao vendedor e uma a Dino.

 

Quando partiu na lancha, os dois continuavam petrificados.

 

Pouco depois, detinha-se e amarrava a lancha no Molo, porto dos antigos doges de Veneza, cujo palácio se via em frente, deixando à esquerda a Piazzetta, que é na realidade a entrada pelo Molo para a universalmente conhecida Praça de São Marcos. Dominando tudo, as duas esbeltas e famosas colunas, isoladas, uma delas encimada pela figura em bronze do leão alado de São Marcos e a outra pela estátua de São Teodoro. À direita do Palácio Ducal, a prisão conhecida como Cárcere dos Chumbos, ligada àquele pela Ponte dos Suspiros.

 

E atrás do palácio, a basílica de São Marcos, com sua maravilhosa cúpula bizantina, defrontando a enorme praça.

 

Quando Brigitte surgiu ali, pareceu que centenas, talvez milhares de pombos quiseram saudá-la, esvoaçando todos ao mesmo tempo a seu redor. O céu escureceu para ela, coberta pelo magnífico toldo móvel, e o festivo rumor das asas encheu toda a praça, apinhada de gente.

 

A ambos os lados, muitos cafés destacando-se o “Quadri” e o “Florian”, sob cujas loggie ficavam as mesinhas com suas cadeiras coloridas. Os pombos tinham voltado a pousar, sem temer os transeuntes. Na Torre do Relógio, os dois guerreiros manejando grandes martelos moveram-se mecanicamente, batendo a hora: cinco e meia.

 

— Postais, postais, postais...! — apregoava um vendedor.

 

— Os mais belos postais de Veneza!

 

Numa pequena tenda, entre outras coisas, um homem vendia comida para os pombos, em cartuchos. Brigitte comprou uns quantos, enquanto segurava com a canhota a maletinha vermelha e o pacote.

 

— Postais, postais, postais...! — gritava o vendedor ambulante, dando a impressão de que a qualquer momento ia agredir os turistas. — Os mais belos postais da mais bela cidade do mundo!

 

Brigitte atirou ao chão o conteúdo de um dos cartuchos e, no mesmo instante, cem pombos lançaram-se sobre o alimento.

 

— Postais! Quer um lindo postal, signorina?

 

— Não, obrigada — sorriu ela.

 

O homem piscou um olho, sorrindo também.

 

— Os mais belos postais... para a mais bela espiã do mundo.

 

Olhou-o atentamente.

 

— Nesse caso, talvez compre algum — murmurou.

 

— Pode ver... — entregou-lhe o vendedor uma tira de postais. — Quando encontrar os russos, meta uma bala na barriga de cada um, de minha parte.

 

— Amém — disse ela.

 

— Vá ao “Quadri”. Ele a espera lá. Boa sorte.

 

— Obrigada, Johnny.

 

Encaminhou-se para as mesas do café “Quadri”, deixando atrás dela o vociferante vendedor, que continuava apregoando: — Postais, postais...!

 

Atravessou a praça, seguida por “sua” centena de pombos. Chegou ao café e dirigiu-se sem hesitar para a mesa ocupada por um homem de meia-idade e mediana estatura, olhar penetrante e expressão enfarruscada. Sentou-se diante dele, deixando a maletinha e o pacote em outra cadeira.

 

— Como está, Mr. “Europa”?

 

— Aleluia! — resmungou o chefe da CIA no continente europeu. — Terminaram os nossos problemas: chegou a agente Baby.

 

— Oh, quanta gentileza! Como estão as coisas?

 

— Exatamente como quando enviamos as fotos a Washington.

 

— Os dois russos não saíram de Veneza?

 

— Isso não sei — declarou “Europa”. — Entretanto, é muito pouco provável que tenham podido rebentar nosso barbante. Naturalmente você os encontrará.

 

— Naturalmente — disse Brigitte. — Eles continuam negando sua participação na caçada da praia?

 

— Continuam negando. E, por sua vez, acusam-nos de lhes ter armado uma cilada. É uma situação curiosa: funciona uma ratoeira no Lido quando agentes nossos e agentes russos vão trocar microfilmes. Nós acusamos os russos e estes nos acusam. Como se existisse uma terceira força neste assunto.

 

— Ainda continua em contato com eles por meio do rádio de bolso?

 

— Ainda. Posso chamá-los e eles a mim, a qualquer momento. Entretanto, já há dias não temos nada a nos dizer. Um deles está ferido numa perna: foi atingido pela bala disparada por um aos nossos. Isso não lhe agradou.

 

— Tampouco nos agradou que um de nossos companheiros tenha uma bala nas costas e outro numa das pernas. Bem... já que pode chamar os russos pela onda que estabeleceram durante o pacto para a troca de microfilmes, faça-o o quanto antes. Diga-lhes que, com efeito, existe uma terceira força intervindo nisto e que quero falar com eles.

 

— Está louca? — exclamou “Europa”.

 

— Você é muito descortês, meu amigo.

 

— Perdoe... Mas é uma loucura revelar aos russos que Baby chegou a Veneza, e mais loucura ainda marcar um encontro com eles ou os companheiros que possivelmente vieram apoiá-los. Se comparecer a esse encontro, eles a matarão.

 

— Sim, é uma mania que têm muitos: eliminar Baby. Aqui me tem você... Tônica com vodca e gelo — pediu ao garçom que se havia aproximado; esperou que se afastasse.

 

— Quando vai chamar os russos?

 

— Quando você quiser. Mas notificarei Washington que declino de toda responsabilidade.

 

— Está em seu direito — aceitou friamente Brigitte; tirou uma planta de Veneza da maletinha, desdobrou-a e nela encontrou algo que indicou com um dedo. — Diga-lhes que espero seu enviado às doze da noite na Calle del rabbri, no cruzamento com o pequeno canal que passa por baixo. Assegure-lhe que, como no Lido, estamos jogando limpo e que lhes oferecemos todas as garantias que queiram. De qualquer modo, se lhes disser que quem intervém nisto é a agente Baby, eles saberão que o jogo vai ser limpo.

 

— Chega a ser divertido — sorriu ironicamente “Europa”. — Mas em você já não me surpreende nada. Ou quase nada. O que me deixa surpreendido é o fato de ter a Central a ideia de utilizá-la para uma simples troca de microfilmes. E quase me surpreende mais que a enviem numa missão de represália: afinal de contas, nenhum dos nossos morreu.

 

Brigitte sacou um envelope da maletinha e estendeu-o a “Europa”.

 

— Quer examinar estas fotografias? — perguntou.

 

Ele tomou o envelope, retirou as fotos, olhou-as, franziu a testa e virou-se para Brigitte.

 

— São as que nossos companheiros feridos bateram no café “Terrazza del Sole”, no Lido, aquela noite. Conheço-as bem, já que eu mesmo, depois de revelá-las e tirar as cópias, enviei o microfilme a Washington. Estes dois — indicou-os — são os russos. Marquei-os com um X...

 

— Eu sei. Por meio destas fotos, conheço os russos. Mas isso não tem importância agora. Nossos companheiros, sem o saber, fizeram um trabalho excelente.

 

— Acha? Não creio que dois agentes russos a mais ou a menos...

 

— Não, não... Esqueça-os por ora. E dedique toda a sua atenção a este outro personagem — procurou uma foto, separou-a e indicou um freguês do café, que aparecia atrás e à esquerda do agente americano Bob. — Preste bastante atenção a ele, “Europa”.

 

Este pestanejou um tanto desconcertado. Dedicou toda a sua atenção àquele homem e terminou sacudindo os ombros com indiferença.

 

— Parece um indivíduo interessante, decerto, mas não o vejo muito bem. Está algo longe e a foto...

 

— Aqui tem uma ampliação desse homem, obtida em nossos laboratórios.

 

“Europa” tomou a nova foto e assentiu vagamente com a cabeça.

 

— Esta é outra coisa... Sim, um tipo interessante. Uns quarenta e cinco anos, muito atraente com suas têmporas grisalhas, veste-se com sobriedade e elegância... O queixo denota caráter e a boca parece um pouco hostil, não acha? Quem é?

 

— Veja agora estas fotos do nosso arquivo de pessoal. — Brigitte estendeu-lhe um jogo de três.

 

Ao examiná-las, “Europa” sobressaltou-se e desviou o olhar para a foto do sujeito interessante visto em primeiro plano.

 

— Diabo! Parece o mesmo homem...

 

— Com quinze anos mais. Trata-se realmente do mesmo homem.

 

— Mas... não compreendo.

 

— Vejamos... Como é natural, quando o microfilme chegou a Washington, foram obtidas cópias ampliadas de todas as fotos. Um de nossos fotógrafos, que há mais de vinte anos está conosco, lançou uma exclamação ao ver esta foto — indicou a do homem de têmporas grisalhas. — Sem dar mais explicações, foi ao Arquivo do Pessoal de Ação. Uma hora depois, estava diante de Mr. Cavanagh, com estas três fotos do arquivo e com esta onde aparece o elegante cavalheiro no “Terrazza del Sole”, do Lido. Mr. Cavanagh também esteve de acordo em que era o mesmo homem... com mais quinze anos, claro.

 

— Então, esse indivíduo é um agente nosso...

 

— Foi. Morreu.

 

— Como? — balbuciou “Europa”.

 

— Morreu há quinze anos, em Hong Kong. Essa é a explicação que consta de nossos arquivos... Amplio-a um pouco: este homem, que se chama Jefferson Conrad, era um de nossos melhores agentes no Oriente, especializado em assuntos chineses, pelo que atuava de Hong Kong. A última missão de que foi encarregado custou-lhe a vida e a de mais dois companheiros da CIA, chamados Bill Bowles e Aldo Martin, que tinham ido apoiá-lo em seu trabalho. Dito trabalho consistia em passar dois milhões e meio de dólares a um grupo de chineses amigos dos Estados Unidos, no continente asiático. Pois bem, a esse grupo de amigos chineses não chegou nunca o dinheiro e a CIA nunca mais tomou a saber nada dos três agentes que o deviam ter entregue. Portanto, considerou fracassada a missão e os nomes de Bill Bowles, Aldo Martin e Jefferson Conrad passaram ao arquivo dos “Desaparecidos”, sendo eles dados por mortos ao completar-se o tempo regulamentar.

 

— Compreendo... E agora, um desses três homens que desapareceram com dois milhões e meio de dólares surge em Veneza quinze anos mais velho... e perto de agentes da CIA. Qual o pensamento da Central a respeito?

 

— Estou certa de que você já o adivinhou.

 

— Receio que sim... Parece evidente que Jefferson Conrad traiu seus companheiros Bowles e Martin; possivelmente eliminou-os, desapareceu com o dinheiro e agora está em Veneza, vivendo como um milionário, sem dúvida, tal como o terá feito de quinze anos a esta data. Okay?

 

— Okay. Essa é a teoria que se elaborou. Mas, há mais ainda: está claro que Jefferson Conrad não se afastou da espionagem. A prova está nesta foto, na qual aparece atrás de um de nossos companheiros feridos há poucos dias. Ele se encontrava no café “Terrazza del Sole” e temos que aceitar que conhecia nossos companheiros. A pergunta é: que fazia lá um ex-agente nosso que durante quinze anos foi dado por morto?

 

— A terceira força — murmurou “Europa”.

 

— Exatamente. E ainda vamos reforçar mais essa teoria.

 

Atente bem em que Jefferson Conrad, que foi muito bom espião, desapareceu num momento em que se introduzia num assunto relacionado com a China... Fala o chinês com a mesma facilidade que o inglês. Incumbem-no de uma missão e ele desaparece rumo à China. Isso é tudo. Agora, regressemos ao momento atual, quinze anos decorridos: dois agentes americanos e dois agentes russos marcam encontro num café do Lido para trocar microfilmes. Os russos nos iam dar um microfilme e nós íamos dar outro a eles... Correto?

 

— Sim...

 

— Mas intervém uma terceira força e põe tudo a perder. Qual era o conteúdo desses microfilmes, “Europa”?

 

— Os russos tinham conseguido nomes e dados de três dúzias de espiões que trabalham nos Estados Unidos para a China Comunista. Por nossa parte, dispúnhamos de quase quarenta nomes de pessoas que, na Rússia, também estão espionando a favor da China Comunista. Infiltrou-se a notícia aos respectivos serviços, chegou-a a um acordo e decidiu-se proceder à troca dos microfilmes, de modo que o MVD e a Rússia pudessem fazer uma boa limpeza de agentes chineses. Ambas as partes saíam beneficiadas.

 

— E... quem são os prejudicados ?

 

— Os chineses, claro.

 

— Bem. Então, a quem interessa que esse intercâmbio de microfilmes não seja levado a termo são os chineses, não?

 

— Evidentemente.

 

— Diga-me, “Europa”: como e quando desapareceu o agente da CIA chamado Jefferson Conrad?

 

— Ora, a caminho da China, quinze anos atrás, levando dois milhões e meio de dólares... Por Deus! — súbito, ele empalideceu intensamente. — Está me dizendo que durante quinze anos, depois de roubar a CIA, Jefferson Conrad esteve trabalhando para o serviço secreto de Mao Tsé Tung?

 

— Ocorre-lhe outra explicação melhor?

 

— Não, não, é lógico... — “Europa” enxugou o suor da testa com um lenço, enquanto o garçom trazia o pedido de Brigitte. — Já estava estranhando que você interviesse nisto.

 

Tem que encontrar esse Jefferson Conrad, ou como se faça chamar agora em Veneza, não? Veio procurá-lo? Brigitte tomou um gole curto de sua tônica com vodca e gelo, depois sorriu deliciosamente.

 

— Eu não — murmurou: — você.

 

— Como? Eu... ?

 

— Você e todos os rapazes de que possa dispor em Veneza. Dediquem-se a procurar Jefferson Conrad.

 

— Mas tenho todos os homens fechando as saídas de Veneza, para o caso de que os russos pretendam escapar...

 

— Esqueça isso. Apenas convoque os russos para o lugar e hora que lhe disse antes. Eu me entenderei com eles. Você e os outros, procurem Conrad por todos os canais e vielas da cidade. Observe que tem um aspecto muito esportivo, tisnado pelo sol... — indicou a foto. — Aposto que costuma frequentar o Lido. Comecem por lá. Esquadrinhem Veneza. Façam o que quiserem, mas digam-me onde esse homem está antes de amanhã à noite.

 

— Você está brincando... — quase tartamudeou “Europa”. — Veneza não é nenhum lugarejo onde se possa encontrar uma pessoa tão facilmente!

 

— Nem vocês são meros detetives, mas espiões, querido. Têm trinta horas para encontrar Jefferson Conrad. Fique com as fotos, pois delas não necessito. E quando o encontrarem, não façam nada. Somente me deem aviso pelo rádio de bolso.

 

— Já o regulou para a onda de Veneza?

 

— Não — sorriu angelicalmente Brigitte. — Se está de acordo, vou regulá-lo para a onda de Pequim.

 

— Engraçadinha... — resmungou “Europa”. — Muito engraçadinha!

 

— Lamento não poder dizer o mesmo de você, — Não nos simpatizamos muito, hem? — sorriu de súbito o chefe da CIA na Europa. — E nisso você é injusta comigo, Baby. Quanto ao caso de Número Um, eu cumpria ordens, simplesmente[1].

 

— Deve-se aprender a obedecer, “Europa”... — disse Brigitte. — Mas também a desobedecer, quando necessário.

 

— Está bem, pense como quiser. Afinal de contas, tanta hostilidade para comigo não tem razão de ser, pois me consta que Número Um está vivo...

 

— Tolices... — sorriu Brigitte. — Bem, aqui nos despedimos. Onde estão?

 

— Onde estão... quem?

 

— Meus Johnnies feridos.

 

— Acaso pretende ir vê-los? — “Europa” quase saltou de sua cadeira.

 

— Naturalmente. Que há? Acha assombroso que Baby tenha coração?

 

— Calle Sabotino, 6. Na Ilha de Santa Elena — resmungou ele. — Faça o que lhe der na gana, mas deixe-me em paz de uma vez.

 

O rosto de Baby não se alterou. Tomou outro gole de sua bebida, levantou-se, apanhou suas coisas e se afastou sem se despedir. Pouco depois, passava junto ao vendedor de postais, que lhe piscou um olho, sorrindo.

 

— Postais, linda signorina? Os mais belos da cidade mais bela...

 

A agente Baby deixou a Praça São Marcos, sorridente, levando atrás de si duas ou três centenas de pombos, revoluteando sobre a comida que ela lhes atirava a cada passo.

 

Formosa escolta para a rainha universal da espionagem.

 

[1] Ver aventura “Operação Estrelas”, volume 51 desta coleção. N.E.

 

O homem abriu a porta e olhou-a atentamente, com uma luz de esperança nos olhos.

 

— Olá... — sorriu Brigitte. — Estão descansando aqui os simpáticos e elegantes rapazes chamados Johnny e Johnny?

 

A luz de esperança transformou-se em resplendor de alegria nos olhos do homem.

 

— Seja bem-vinda, Baby — exclamou. — Estávamos à sua espera.

 

— Isso me faz feliz. E meus rapazes?

 

— Lá dentro — riu Johnny de turno. — Loucos de impaciência! Ouça: também eu sou um dos seus rapazes, não?

 

— Sem dúvida alguma.

 

Deu-lhe um beijo no rosto e ele, que acabava de fechar a porta, apoiou-se comicamente a ela, como a ponto de desmaiar. Depois, rindo ambos, conduziu-a ao quarto onde estavam os dois agentes da CIA feridos. Um deles, de pijama, levantou-se de uma poltrona ao vê-la e veio capengando a seu encontro, mão estendida. O outro, da cama, olhou-a com expressão melancólica, mas conseguiu sorrir também.

 

Brigitte não aceitou a mão do primeiro. O que fez foi beijá-lo em ambas as faces, depois tomar-lhe ambas as mãos e olhá-lo atentamente nos olhos.

 

— Melhor da perna, Johnny? — perguntou.

 

— Muito melhor agora — riu o espião.

 

— E eu? — perguntou o que estava na cama, debilmente.

 

Baby foi até lá, sentou-se na beira da cama, inclinou-se e beijou-o nos lábios.

 

— Para todos há um prêmio... — sorriu depois. — Em especial, para os meus Johnnies que recebem balaços nas costas.

 

— Se eu soubesse — protestou o outro —, teria pedido àqueles caras que me metessem uma boa bala entre as omoplatas.

 

Os quatros puseram-se a rir. Brigitte olhava-os com seu mais doce sorriso. Acariciou o rosto do ferido com mais gravidade e perguntou-lhe: — Alguma lesão na coluna, Johnny?

 

— Não, não... Tive sorte, apesar de tudo. Dentro de umas semanas poderei voltar à ativa, espero.

 

— Então, vamos celebrar isto. Depois, enquanto espero que me chamem pelo rádio de bolso, ficarei aqui, contaremos anedotas e passaremos bem o tempo. Há copos nesta casa?

 

— Creio que sim — disse o Johnny não ferido.

 

— Pois vá buscá-los. E esfregue-os bem...

 

— Tentarei, mas não garanto que o saiba fazer... Ainda não sou casado.

 

Tornaram a rir. Ele foi buscar os copos, enquanto Baby desfazia o pacote envolto em papel ilustrado, pondo a descoberto uma caixa de plástico. Tirou-lhe a tampa, deixando ver o gelo que continha. Depois, tirou dela um frasquinho de cristal cheio de esferas redondas e brilhantes...

 

— Puxa! São cerejas! — exclamou o Johnny capenga.

 

— Sim. E... voilà! — tirou a garrafa de entre o gelo seco.

 

— “Don Perignon” da safra de 55, nada menos, comprado em Paris durante minha breve passagem por lá! E os copos?

 

O Johnny são chegou correndo com quatro copos nas mãos, ainda pingando água. Plop! A rolha saltou para o teto e o espumoso líquido escorreu para os copos. Depois, Baby colocou uma cereja em cada um. Levantou o seu.

 

— Por quem brindamos? — perguntou. — Pelos espiões?

 

— Por Baby — disseram os três Johnnies ao mesmo tempo.

 

Ela lhes atirou beijinhos com os dedos.

 

— Tim-tim!

 

Pelas nove da noite, estavam todos rindo naquele quarto quando soou a chamada no radinho de Brigitte.

 

— Com licença... — pediu ela, rindo ainda. — Alô!

 

— Falei com os russos.

 

— Ótimo. Estarei às doze em ponto no local combinado, “Europa”.

 

— Não disse que eles tivessem aceito.

 

— Não aceitaram?

 

— Aceitaram... — grunhiu “Europa”. — Não sei por que, mas quando lhes disse que Baby era a encarregada do contato, decidiram aceitar.

 

— Vantagem de ter uma boa fama, querido amigo. Vá tomando nota — fechou o rádio e virou-se para o Johnny não ferido. — Bem, creio que é hora de ir comprar umas boas pizzas para o jantar... E vinho, naturalmente. Mmm... Que lhes parece uma garrafa de “Valpolicella”?

 

— Iuuhuuu...! — gritou o Johnny da cama, que tinha mais cor e estava animadíssimo. — Com champanhe, vinho e sua companhia, eu saio desta cama em menos de quatro dias!

 

— Amém — disse Brigitte.

 

O homem endireitou-se, olhou seu relógio de mostrador luminoso e depois voltou a apoiar-se no gradil da ponte da Calle del Fabbri. Naquele momento começaram a chegar, amortecidas na noite, as badaladas da torre do relógio da Praça de São Marcos. Como se fosse o toque de silêncio para toda Veneza. Naquela zona, a tranquilidade era considerável mas não no Grande Canal, onde centenas de embarcações deviam estar deslizando, cheias de turistas ávidos de conhecer o mundo, ver coisas novas...

 

Soava a décima segunda badalada quando o homem se virou a fim de contemplar a mulher que se aproximava. À luz escassa da iluminação pública pôde vê-la aceitavelmente.

 

Estatura mediana, cabelos louros e rebeldes arduamente apanhados na nuca.., Seus sapatos soavam secamente no calçamento e, enquanto se aproximava, podia-se ver o brilho das luzes em seus óculos. Usava uma saia que não era nem longa nem curta. Uma criatura sem encantos, enfim, que parecia usar tamancos em vez de sapatos.

 

O interesse do homem, entretanto, cresceu consideravelmente quando a desconhecida deteve-se junto a ele e mostrou um cigarro.

 

— Light, please? — pediu.

 

Ele sacou seu isqueiro, aplicou a chama à ponta do cigarro da mulher e, então, pôde ver melhor seu rosto de pele fina, seus olhos bonitos e inteligentes por trás dos óculos.

 

— Está esperando uma mulher? — perguntou ela, de súbito, em russo.

 

O homem contraiu as pálpebras.

 

— Baby?

 

— Às doze em ponto Eu sempre sou pontual, colega...

 

Como devo chamá-lo?

 

— Ivan.

 

— De acordo, Ivan. Diga-me: como está seu companheiro?

 

— Bem. Ficará bom da perna em poucos dias.

 

— Isto me alegra.

 

— Para dizer a verdade, acredito... — sorriu Ivan. — Olhe, Baby, se não me dissessem que você intervinha nisto, eu não teria vindo aqui, esteja certa. Sua presença altera muito a situação em Veneza.

 

— Agradeço suas palavras. Entretanto, tanto russos como americanos devemos andar com muito cuidado neste momento. Há em Veneza agentes secretos trabalhando para a China.

 

— Está sugerindo que foram eles que impossibilitaram nossa entrevista no Lido?

 

— Exatamente. Trouxe o microfilme, Ivan?

 

— Claro que não.

 

— Eu tampouco... — sorriu Baby. — Mas deve compreender que não vamos passar a vida esperando essa troca. Acho que a nós dois interessa terminar tal assunto o quanto antes. Por enquanto, a fim de evitar contratempos, quero deixar bem claro que o ataque não foi obra nossa.

 

— Nem nossa.

 

— Muito bem. Então, há pouco mais que falar, na hipótese de que a troca lhes continue interessando.

 

— Assim é — afirmou o russo.

 

— Também a nós. No momento oportuno, tornarei a pôr-me em contato com você e marcaremos encontro num local onde possamos trocar os microfilmes. De acordo?

 

— Onde nos encontraremos? — pareceu hesitar o soviético.

 

— Ivan: se quer prosseguir com o assunto, muito bem. Se prefere desconfiar, diga, que aqui estará tudo terminado.

 

— Você parece encarar esta situação com a maior naturalidade, o que não ocorre comigo. Afinal de contas, sou um agente do MVD e você é nem mais nem menos que a famosa Baby. Não é normal o que estamos fazendo.

 

— Pareceria mais normal a você que estivéssemos agora trocando balaços ou facadas?! Ouça, Ivan: é possível que dentro de dois dias eu tenha que matá-lo. Mas até lá, as coisas estão deste jeito pacífico e amável. Por que estragarmos tudo? Embora algumas pessoas pudessem rir se nos ouvissem, você sabe perfeitamente que pode confiar em mim. Ou não?

 

Ele passou a mão pela boca e afinal assentiu com a cabeça, sorrindo.

 

— Estarei esperando sua chamada. E terei pronto o microfilme, Baby.

 

— O mesmo digo eu. Algo mais, Ivan?

 

— Não... Quer dizer... Bom, eu devo estar louco.

 

— Por quê?

 

— Tenho diante de mim a agente Baby e ponho-me a falar com ela como se fosse do MVD em lugar de ser da CIA.

 

— Isso não é loucura, mas eficiência de espião dotado de bom-senso. Não creio que esta entrevista pudesse ser melhor de maneira alguma.

 

— Pois eu creio que sim. Eu poderia melhorá-la. Pelo menos, para mim.

 

— De que modo?

 

— Bem... Tenho apenas que meter a mão em meu paletó, sacar uma arma e...

 

Ele tinha metido a mão sob o paletó, mas calou-se de súbito e ficou imóvel, olhando incredulamente a pequena pistola que tinha aparecido na mão esquerda de Baby e ficou diante dele, a menos de dois palmos.

 

— Adiante, Ivan. Que ia dizer?

 

— Uma tolice... — sorriu ele. — Nada mais que uma tolice. Posso ir, ou vai me atirar ao canal com uma bala na cabeça?

 

— Vá. E espere meu chamado. Pode ser que se passem três ou quatro dias, talvez mais, porém fique à espera. Adeus, Ivan.

 

— Adeus, Baby.

 

O russo afastou-se, sem pressa, sem virar a cabeça uma só vez e foi Baby que ficou agora apoiada ao gradil da ponte, olhando para todos os lados... especialmente para aquela esquina onde tinha visto um homem escondendo-se velozmente... Uma gôndola passou por sob a ponte, levando sem dúvida um casal de namorados escondidos de qualquer possível olhar indiscreto, mesmo por parte do gondoleiro, pelas grossas cortinas da cabina. Brigitte sorriu, atirou o cigarro na água e abandonou a ponte. Quando dobrou a primeira esquina, virou a cabeça o suficiente para convencer-se de que o homem que assistira furtivamente sua entrevista com Ivan a estava seguindo.

 

Continuou rua acima, diretamente para a Praça São Marcos. Mas em vez de dirigir-se ao centro da praça, onde remava grande animação e se ouvia música, meteu-se num portal. Com grande rapidez, tirou a peruca, os óculos, os grossos sapatos, o vestido deselegante... Mal havia terminado esta transformação em deliciosa jovem de minissaia, o homem apareceu, apressado, olhando para todos os lados, com expressão inquieta. Pensou que não era russo, mas, evidentemente, não era chinês.

 

Ele passou bem por perto dela, sempre olhando para todos os lados. Parecia aborrecido consigo mesmo. Enquanto isto, Baby tirou a capa preta de sua maletinha, guardou-a na mesma, juntamente com todas as coisas de que se despojara, tirou os leves sapatinhos de salto alto, calçou-os e ficou sob os arcos da praça, segurando a maletinha, que agora era vermelha e adornada de flores azuis. Seu olhar estava fixo, friamente, no homem que sem a menor dúvida a procurava.

 

Por fim, com um gesto de aborrecimento, ele deu por terminada sua busca. Simplesmente, a mulher que tinha visto com o russo havia desaparecido. Impossível localizá-la na concorridíssima Praça de São Marcos...

 

Afastou-se por onde tinha vindo. E agora era ele o perseguido. Como uma sombra, a agente Baby seguia-lhe os passos. Dez minutos depois, tendo atravessado ruas estreitas, pontes, passando por pequenas igrejas carregadas de arquitetura, viu o homem deter-se diante da porta de uma casa. Ela não tinha a menor ideia de onde se encontrava naquele momento, mas pôde ver a placa com o nome da rua e, em seguida, o número da casa. A porta se abriu, o perseguido entrou, a porta fechou-se novamente... e foi só.

 

Oculta nas sombras, estava pensando na conveniência de fazer uma “visita” de inspeção àquela casa, quando viu outro homem surgir numa esquina. Um homem alto, de belo porte, vestido de escuro... Só um instante a luz deu em seu rosto, o suficiente, porém para que Baby tivesse que fazer um esforço para não lançar uma exclamação de assombro.

 

Aquele homem era Jefferson Conrad, o agente da CIA que quinze anos atrás desaparecera a caminho da China com dois milhões e meio de dólares, empresa na qual tinham encontrado a morte dois colegas seus. O mesmo homem que, noites atrás, es tivera no café “Terrazza del Sole” quando funcionara a armadilha contra os agentes do MVD e da CIA... O muito sujo traidor Jefferson Conrad.

 

Viu-o deter-se e olhar hesitante para a casa onde o outro havia entrado, depois acender um cigarro, fumar um instante e, após atirá-lo na água, parecer disposto a afastar-se.

 

E o fez.

 

Retirou-se dali, percorreu uma rua caminhando pela beira do canal e, por fim, saltou para uma pequena lancha amarrada a uma das argolas metálicas. Ia-se embora simplesmente, numa lancha. E se fizesse tal coisa, ela não o poderia seguir...

 

Um instante antes de ser ligado o motor da lancha, ela ouviu o pregão de oferta: — Gôndola, gôndola, gôndola...!

 

Viu a embarcação deslizando pelo canal, passando muito perto da lancha de Jefferson Conrad... e decidiu-se de imediato. Aproximando-se da borda do canal, ergueu a mão e chamou: — Gôndola, gôndol...

 

Não terminou a palavra. O que fez foi gritar, “assustadíssima”, pois perdeu o pé e precipitou-se na água negra. A última coisa que dela se ouviu, antes de afundar no canal, foi aquele grito de medo, quase histérico... Um jato de espuma brilhou sob as luzes. Ouviram-se os gritos do gondoleiro, algumas pessoas correram para a borda, achando graça... Coisas de Veneza.

 

Como por arte de magia, apareceram mais duas gôndolas, aos gritos de que alguém tinha caído no canal. Da cabina de uma delas, espiaram um homem e uma mulher, olhos muito abertos... Os escassos transeuntes daquela parte da cidade se amontoaram na beira do canal...

 

Quando a “infortunada” americana reapareceu na superfície, estavam perto dela três gôndolas... e uma lancha.

 

Os gondoleiros gritavam, chamando-a, e estendiam-lhe suas longas perchas, mas, “muito assustada, completamente desorientada”, a formidável espiã nadou para a pequena lancha e agarrou-se à mão do elegante cavalheiro que a tripulava, agora com o motor parado, usando somente um remo para deslocar-se.

 

Ajudou-a a subir a bordo e sentou-se na popa, encharcada... Um dos gondoleiros começou a increpar o salvador da americana, falando velocíssimo, dizendo qualquer coisa a respeito de ter sido chamado pela americana antes que esta caísse na água... Jefferson Conrad simplesmente ignorou-o, tirou um cobertor da cabina e colocou sobre os ombros da “desditada” jovem.

 

— Sente-se bem? — perguntou-lhe em italiano.

 

— Desculpe... — disse ela, em inglês. — Não compreendo, signore... Non chapisco...

 

— Americana? — sorriu ele, falando também em inglês.

 

— Sim... Oh, meu Deus de que jeito fiquei...

 

— Apenas se molhou e levou um bom susto — tranquilizou ele, sorrindo com simpatia. — Não creio que isso seja grave demais... Mais uma aventura veneziana para contar quando regressar aos Estados Unidos.

 

Brigitte torceu sua espessa cabeleira negra, depois de deixar sobre o convés a maletinha que não havia largado.

 

Enquanto isso, olhou seu salvador com expressão pouco menos que maravilhada...

 

— O senhor... o senhor também parece americano...

 

— Não, não... — negou ele. — Estive uns tempos na América, mas sou italiano. De Roma. Há muitos anos vim para Veneza. E agora me alegro.

 

— É muito amável — sorriu ela; virou-se para o gandoleiro que continuava vociferando. — Que há com esse homem?

 

— Perdeu uma freguesa por minha culpa e agora me insulta — riu Jefferson Conrad.

 

— Oh, é verdade... Eu chamei a gôndola. Queria ir ao meu hotel, mas... Não sei o que aconteceu. Aproximei-me demais da borda do canal. Sinto-me ridícula...

 

— Muitas pessoas caem nos canais. Inclusive venezianos. Se me permite, terei muito gosto em levá-la ao seu hotel, miss...

 

— Montfort... Sim, obrigada! Oh, mas... não quero chegar lá neste estado! Odeio o ridículo. Pelo amor de Deus, esse homem não pode calar?

 

— Eu o farei calar.

 

Conrad meteu a mão num bolso da calça, tirou um maço de notas, separou umas quantas e jogou-as para a gôndola. O gondoleiro apressou-se a recolhê-las e se afastou, ainda proferindo sonoros insultos contra os intrometidos.

 

— Não sei que fazer... — lamentou-se Brigitte. — Se me apresentar assim no hotel, vão rir de mim pelo resto do tempo que eu permanecer em Veneza.

 

— Bem — murmurou Conrad —, eu gostaria de ajudá-la, miss Montfort. Tenho um pequeno apartamento atrás do Ca’Foscari... Ia justamente para lá neste momento. Creio que se viesse comigo poderia recuperar um pouco seu aspecto habitual. Claro que se está pensando...

 

— Não, não, por Deus... Qualquer coisa a voltar assim para o hotel. Agradeço-lhe muito... Que deplorável incidente!

 

— Nós o solucionaremos — riu ele. — Está em Veneza de férias?

 

— Sim. Fui à Praça de São Marcos escutar a música e achei que seria interessante dar um passeio ao longo dos canais. Não gosto de ver apenas a fachada das cidades...

 

— Compreendo. Bem, será melhor que ponhamos proa para meu humilde apartamento. Secaremos suas roupas na cozinha e poderá tomar um chuveiro, se quiser. Peço-lhe compreender que minha proposta é totalmente desinteressada, em todos os sentidos.

 

— Agradeço-lhe muito... — sorriu ela. — Muitíssimo, realmente!

 

Jefferson Conrad lançou uma última olhadela à mesinha e assentiu com a cabeça, satisfeito. Depois acendeu um cigarro e aproximou-se da janela, que dava para o canal. Estava aberta de par em par e parecia um convite a cair nas negras águas. Em frente ficava a parte posterior de Ca’Foscari, um dos mais famosos palácios de Veneza. Até ali chegavam todas as luzes da cidade, especialmente as do Grande Canal.

 

Ouviam-se as sirenas dos últimos vaporetti em serviço.

 

Súbito, Jeff Conrad pareceu recordar-se de algo, que quase o fez estremecer. Olhou para a porta do fundo da sala, depois foi apressadamente a uma cômoda, abriu uma gaveta, sacou uma pistola com silenciador do bolso interno do paletó e guardou-a na gaveta, tornando a fechá-la silenciosamente.

 

Depois seu olhar abarcou o ambiente.

 

— Ecco! Tudo perfeito.

 

Somente havia a luz de uma lâmpada de pé, muito matizada pelo abajur de pergaminho rosado. Uma luz difusa, quase inexistente, na verdade. Via-se o sofá, a mesinha com as bebidas que nela colocara. Mais além o toca-discos, com um disco esperando no prato. Na janela havia alguns vasos de flores e a luz da lua, já quase cheia, punha um colorido romântico, quase melancólico nas pétalas frescas. O cheiro dos canais, entre iodado e ácido, emprestava uma nota de intensa vitalidade ao ambiente. Aquilo, talvez, pudesse ser um sonho de amor no fantástico mundo veneziano cheio de flores, iluminado de luar.

 

A porta que ele tinha olhado se abriu e apareceu Brigitte, envolta num enorme roupão branco com listras escuras e com uma toalha na cabeça.

 

— O senhor é um homem muito grande... — murmurou.

 

— Mas não um grande homem — riu Jeff Conrad. — Sente-se completamente tranquila?

 

— Sim, claro... Se tivesse sabido que em Veneza havia pessoas como o senhor, acho que teria vindo aqui antes.

 

— E se atiraria num canal? — riu ele.

 

— Talvez? Espero que não lhe aborreça muito minha presença em sua casa.

 

Jeff Conrad olhou-a. Era verdade. Aquela mulher não era comum, não era vulgar, não era como as outras... Disso se dera conta a primeira vez que ela o olhara diretamente, na lancha, enquanto torcia os cabelos. Sem dúvida, possuía uma beleza deslumbrante, mas, para um bom conhecedor como ele, isso não era o principal. Quando uma mulher tinha a expressão que ele via naqueles olhos, todo o resto se tornava secundário... embora “todo o resto” a transformasse na criatura mais formosa que ele jamais encontrara. Indicou-lhe a mesinha onde estavam as bebidas.

 

— Tenho Sarti e San Bucca... — murmurou.

 

— Creio que uma dose de qualquer deles lhe fará bem. De qualquer modo, se prefere uma bebida leve — Vejamos primeiro o que são Sarti e San Bucca — riu ela.

 

— Bem... Uma espécie de aguardente... italiana, claro. O San Bucca é talvez um pouco mais forte que o Sarti, que é mais fácil de ingerir... e de resistir.

 

— Então, decido-me pelo Sarti.

 

— Gelo?

 

— Sim, por favor.

 

Ele colocou dois cubos de gelo em cada copo, depois serviu a bebida. Enquanto isso, Brigitte se aproximara do toca-discos, que pôs em marcha. As primeiras notas foram suficientes para que identificasse a música.

 

— Chopin... — murmurou. — Creio que não poderia ouvir nada melhor. Obrigada... — recebeu o copo, tomou um pequeno gole e seu rosto mostrou satisfação. — Maravilhoso! Os canais, as flores, a lua, o Sarti, a música... A propósito: ainda não sei seu nome.

 

— Marco Benvenuti.

 

— Tem um nome de artista... — riu ao ver o sobressalto de Benvenuti. — Não se assuste, não sou adivinha. Simplesmente, vindo do banho, vi uma porta aberta, olhei e vi alguns quadros... Suponho que os tenha pintado.

 

— Realmente. Que lhe pareceram meus quadros?

 

— Devo ser sincera?

 

— Peço-lhe.

 

— Então direi que não são maus.

 

— Compreendo. Tampouco são grande coisa, não é isso? Mas asseguro-lhe que o fato não me preocupa, pois costumo vendê-los por preços que me permitem viver discretamente. Terá podido observar que minha casa não é nenhum palácio.

 

— É um bonito apartamento, de qualquer modo. Também gosta de flores? — indicou a janela.

 

— Gosto. Na verdade, tenho temperamento de artista. Aposto que vou surpreendê-la: também toco violino.

 

— Não! — exclamou ela, rindo.

 

— Sim... Embora receie que a qualidade de minha música seja igual à de minha pintura.

 

— Bom, nem todo o mundo pode ser genial, signor Benvenuti. Estou bem certa de que sua esposa, ou sua noiva, estará muito satisfeita com...

 

— Não tenho esposa. Nem sequer noiva.

 

— Oh... Então seus amigos devem convidá-lo para...

 

— Também não tenho amigos, nem parentes. Ninguém.

 

Brigitte esteve uns segundos olhando-o fixamente. Por fim, perguntou: — Está me dizendo que mora em Veneza como se estivesse vivendo num... num deserto?

 

— Pior. Afinal de contas, num deserto não se pode esperar companhia. Numa cidade, sim; e é duplamente melancólico não a ter.

 

— Não o compreendo... É impossível que não haja em Veneza pessoas capazes de dedicar-lhe amizade.

 

— Sou eu que não quero ter amigos.

 

— Mmm... Não sei como interpretar suas palavras, signor Benvenuti. Mas suponho que esteja desejando ver-se livre de mim, pois prefere a solidão. Assim sendo...

 

— Não é assim. O que estou tentando dizer-lhe é que prefiro não ter amigos. Dou azar.

 

Brigitte pôs-se a rir, aparentemente aliviada.

 

— Pelo amor de Deus! — exclamou. — Não me diga que se considera um... urucubaca!

 

— Mais ou menos.

 

— Que barbaridade! Tudo isso são superstições impróprias de um homem de seu temperamento e de sua cultura.

 

— Não acredita na boa ou na má sorte?

 

— Bem, de certo modo... Eu mesma, por exemplo, costumo ter tanta sorte que às vezes me assusto.

 

— Sou todo o contrário... A boa sorte que lhe sobra, a mim me falta. Mais Sarti?

 

— Não... Não, obrigada.

 

Finalmente, ela se sentou no sofá e ficou silenciosa.

 

Marco Benvenuti permaneceu de pé, olhando-a atentamente, ambos escutando o resto do disco. Quando este terminou, fez-se um silêncio denso.

 

— Por que me olha tão fixamente? — perguntou ela, segundos depois.

 

— Estava pensando que gostaria de pintá-la.

 

— Oh.

 

— Aborrece-lhe minha sugestão?

 

— Ainda não sei. Imagino que teria que ser um nu.

 

— Em geral, é como melhor fica representada a personalidade de qualquer um.

 

— Isso é verdade?

 

— Em minha opinião, sim. Se resolver visitar alguma das inúmeras galerias de arte de Veneza, verá muitos quadros formosos, a maior parte retratando figuras célebres de dois séculos atrás... Porém, sejam quais forem esses personagens, estão melhor definidos por sua indumentária, suas joias ou sem cetros que por sua própria personalidade. Uma pessoa só é como é quando a podemos ver em sua magnitude humana, da qual ninguém poderá negar que o aspecto físico é importantíssimo.

 

— É possível que tenha razão... — admitiu Brigitte. — Mas suponho que não seria fácil distinguir um rei que tivessem pintado sem coroa.

 

— Boa resposta — sorriu Benvenuti. — Entretanto, insisto no contrário: deveria distinguir-se o rei embora estivesse sem coroa. O que importa é a qualidade humana e esta deve ser visível todo o tempo. No seu caso, tenho a convicção de que sempre seria a mesma, tanto vestida de veludo, como de biquíni ou com uma indumentária medieval.

 

— Então — sorriu ela — não é necessário que me pinte despida.

 

— Em seu caso, não. Mas gostaria.

 

— Agora?

 

— Não, não... Preferiria fazê-lo à luz do sol.

 

— Quer dizer que suas intenções são... estritamente artísticas?

 

— Sem dúvida. Que outra coisa tinha pensado?

 

Mais uma vez, Brigitte olhou-o fixamente. Acabou sorrindo.

 

— Gostaria de ouvi-lo tocar violino, signor Benvenuti.

 

Mas não me atrevo a pedi-lo a alguém que sempre prefere estar só. Creio que com o calor que providenciamos na cozinha minhas roupas terão secado o suficiente para que ninguém repare em mim. Tomarei a deixá-lo entregue à sua solidão quando me vestir.

 

Pareceu que Benvenuti fosse dizer alguma coisa, mas ficou calado. Brigitte dirigiu-se à cozinha, tocou suas roupas estendidas e, com efeito, achou que poderia vesti-las, já que, naturalmente, não necessitavam ser passadas. Tirou o roupão, vestiu-se rapidamente, calçou os sapatos grossos, já que tinha perdido os outros no canal, depois olhou o conteúdo da maletinha: peruca, rádio, dinheiro escondido, o tripé-fuzil... Dúzias de pequenas coisas que a tornavam a espiã mais bem equipada de todo o mundo.

 

Olhou a pistolinha. Normalmente, teria que voltar para junto de Jefferson Conrad, dizer-lhe que tinha conhecimento de sua traição à CIA, acusá-lo das mortes de Bill Bowles e Aldo Martin quinze anos atrás, meter-lhe uma bala no coração...

 

Naquele momento, chegou até ela a música de um violino. Doce, lenta, nostálgica, aquela música não correspondia a nenhuma composição conhecida, mas sua qualidade era apreciável. Esteve uns segundos pensando que muito perto dali estava um espião-pintor-músico-compositor... e traidor. Finalmente, ficou com um dos pequenos microfones na mão, fechou a maleta e saiu da cozinha. Antes de entrar na sala, colocou o microfone num canto, bem oculto.

 

Quando entrou, inclusive a luz daquela lâmpada de pé havia sido apagada. Marco Benvenuti continuava tocando o violino e estava visível à contraluz, na janela, rodeado de flores... Um momento ideal para meter-lhe uma bala no coração.

 

Uma morte doce. Muito doce.

 

Mas o que fez foi se aproximar dele e permanecer imóvel, enquanto prosseguia a música. Por fim, ele parou e baixou lentamente o arco, mas ficou ainda com o violino apoiado no queixo.

 

— Já vou — disse ela.

 

Ele baixou também o violino e assentiu com a cabeça.

 

— Levo-a na minha lancha...

 

— Não, não. Tomarei uma gôndola. Prefiro me despedir aqui. Muito grata por tudo, signore. Lamento ter perturbado sua solidão. Espero não o fazer nunca mais... Aí vem uma gôndola! Descerei agora mesmo...

 

Estendeu a mão a Benvenuti, que a tomou, mas não soltou-a. Embaixo, no canal, ouvia-se a voz do gondoleiro: — Gôndola... Gôndola...

 

O pequeno farol da embarcação ia refletindo-se na água.

 

Mas Benvenuti, ainda retendo a mão de Brigitte, com o violino e o arco na outra mão, moveu negativamente a cabeça.

 

— Creio que não lhe convém essa gôndola — murmurou.

 

— Como? Não compreendo...

 

— Esse não é um gondoleiro normal.

 

— Que quer dizer?

 

— O gondoleiro que lhe convém é o que vai gritando com mais energia: “Gôndola, gôndola... gôndola...!” Esse que vai apenas sussurrando a palavra, persegue outros fins.

 

— Que fins?

 

— Está... se oferecendo. Há muitos como ele, e quase todos os turistas que vêm a Veneza sabem. Muitas mulheres esperam nos canais que passe um desses gondoleiros e então o chamam. Elas estão sempre sós, em busca de companhia... E são elas que pagam... Suponho que agora me compreende.

 

— Prostituição masculina? — perguntou Brigitte.

 

— Pode chamar assim.

 

Embaixo ouviu se novamente a voz sugestiva: — Gôndola... Gôndola...

 

E a gôndola passou por fim sob a janela. Mais além vinha outra, lentamente, e a oferta de “gôndola, gôndola!” chegou com energia e clareza até eles.

 

— Bem... Tomarei essa outra. Adeus, signor Benvenuti. Espero não ser verdade que é uma urucubaca e que minha gôndola afunde só porque o conheci.

 

— Parece que não acredita nessas coisas...

 

— Não. Só acredito em coisas inteligentes e formosas. E por falar de coisas formosas, gostaria de saber se era capaz de me vender um de seus quadros Não. Não me dê a resposta agora. Se aceitar, deixe recado no “Gritti Palace”. Adeus.

 

Quis retirar a mão, mas os dedos fortes de Benvenuti ainda a retiveram uns segundos. Quando a soltaram, lentamente, ambos se olhavam atentos à luz que vinha do canal, da lua..

 

— Adeus — murmurou ele.

 

Dois segundos mais tarde, estava sozinho. Ouviu embaixo, na estreita calçada, o bater dos saltos de Brigitte, sua voz chamando a gôndola. Depois viu-a deslizar em busca do Grande Canal.

 

O que não pôde ver, nem muito menos ouvir, foi miss Montfort antes de tomar a gôndola. Se tivesse visto, seria muito revelador para ele, sem dúvida, observar como falava... ao que parecia, ou talvez fosse mesmo, com um maço de cigarros...

 

— Você é de uma imprudência fantástica... — resmungou “Europa”, quando ela entrou no quarto dos feridos. — Não devia ter-me feito vir aqui!

 

Além dele, estavam os três Johnnies. O ferido nas costas parecia dormir e Brigitte aproximou-se da cama, passando-lhe a mão pela testa. Os outros dois a observavam atentamente e pensaram que aquele sorriso bem merecia um balaço entre as omoplatas.

 

— Falaremos em voz muito baixa, “Europa” — disse ela depois. — Não precisamos acordar Johnny. Uma coisa: Quando imagina que ele poderá ser transportado?

 

— Dentro de dois dias — disse o ferido na perna.

 

— Bem. Teremos que aguentar a situação até lá... Falei com um russo ao qual chamaremos Ivan e chegamos a um acordo satisfatório. Estará esperando meu chamado para trocarmos os microfilmes.

 

— Devo admitir que foi um bom trabalho — concedeu “Europa”. — Mas podia me ter dito isso pelo rádio, em lugar de chamar-me aqui.

 

— Trouxe as fotografias, conforme solicitei? — perguntou ela, sem lhe fazer muito caso.

 

— Sem dúvida.

 

Estendeu-lhe o envelope. Brigitte tomou-o, sacou as fotos e examinou-as rapidamente. Depois separou uma e olhou-a com grande atenção. Logo indicou um ponto na foto.

 

— Este é o homem.

 

— Que homem? — intrigou-se “Europa”.

 

— O que assistiu, muito mal escondido certamente, à minha entrevista com Ivan.

 

— Tem certeza? — “Europa” empalideceu. — Se você foi seguida...

 

— Não diga tolice — cortou secamente Brigitte. — Se houvesse a mínima possibilidade de que alguém me seguisse, eu não teria vindo aqui.

 

— Está bem. De qualquer modo, parece ter ficado claro que os russos estão jogando sujo...

 

— Outra tolice... Não compreende? Este homem estava seguindo Ivan, a quem vigiava. Se fosse do MVD, não teria feito semelhante coisa. Veja a fotografia... É este homem que se vê já fora do café “Terrazza del Sole”. Foi a última foto batida por Johnny e Johnny — indicou os dois feridos. — Parece evidente que o tal está há tempo atrás dos russos.

 

Estes foram localizados, soube-se que estavam preparando uma troca de microfilmes com agentes da CIA e esperou-se o contato, para caçar todos e apoderar-se dos microfilmes. Portanto, este é um dos homens do ataque na praia do Lido.

 

— Parece razoável — concordou “Europa”.

 

— Estão ainda vigiando os russos. Mas não sabem onde estamos nós. Por isso não fazem nada. Esperam... Querem os dois microfilmes, não um só. Evidentemente, este homem e os de seu grupo estão trabalhando para o serviço secreto chinês. De um ou de outro modo, se inteiraram de tudo, querem os microfilmes e eliminar a nós e aos russos. Quando este homem me viu falando com Ivan, compreendeu que eu era uma agente da CIA e por isso começou a seguir-me. Entretanto, depois de despistá-lo, fui eu quem o seguiu.

 

— Sabe, então, onde podemos encontrá-lo e a seus companheiros? — animou-se “Europa”.

 

Brigitte estendeu-lhe um papel, após ter rabiscado nele.

 

— Estão neste endereço. Não saberia ir lá, mas anotei a calle e o número.

 

— Ótimo! Bom trabalho, na verdade, Baby. Naturalmente, vamos vigiá-los.

 

— É exatamente o que ia pedir. Assim, teremos os agentes russos e chineses controlados. Pude ver bem o homem... Pareceu-me um albanês. Mas, claro, o aspecto não quer dizer nada. Consideremo-lo, simplesmente um europeu.

 

— Há milhares de europeus que estão trabalhando para o serviço secreto chinês — murmurou “Europa”. — E também muitos americanos.

 

— Sei disso. E teremos que agir com muito cuidado. Por minha parte, a menos que algo force a situação, não penso em fazer nada até que se passem dois dias e os Johnnies feridos tenham deixado Veneza. Se as coisas ficassem feias, eles estariam em grave apuro, já que não se acham em condições de lutar.

 

— Eu poderia... — começou o Johnny capenga.

 

— Você talvez, pois só está ferido na perna. Mas nosso companheiro cairia definitivamente se a situação se agravasse. De modo que será feito o seguinte: vocês ficam aqui esses dois dias, até serem retirados. Enquanto isso, “Europa” e os demais agentes úteis vigiam a casa onde está o homem que tentou me seguir. É muito provável que com essa vigilância fiquemos sabendo onde estão os russos. Então, tudo estará sob nosso controle e posso decidir como orientar o desfecho deste assunto. Alguma dúvida? Está de acordo, “Europa”?

 

— Sem dúvida. Entretanto, não poderei destacar muitos homens para a vigilância dessa casa cujo endereço me deu... Não esqueça que devemos procurar Jefferson Conrad.

 

— Esqueça-o.

 

— Esquecer? — exclamou “Europa”. — Já foram distribuídas cópias fotográficas por toda Veneza e a busca já começou. Mas o prazo que você nos deu é tão curto que...

 

— Retire todos os agentes desse serviço. Já encontrei Jefferson Conrad.

 

“Europa” pareceu não compreender. Ficou com a boca aberta alguns segundos. Depois subitamente, enrubesceu.

 

— Encontrou Jefferson Conrad? — balbuciou.

 

— De fato — sorriu Baby. — Já vê que não era tão difícil. E não só o encontrei, como estive em seu apartamento, tomei Sorti com ele e o ouvi tocar violino.

 

— Compreendo... — sorriu azedamente “Europa”. — É uma de suas graciosas brincadeiras...

 

— Nada disso. Jefferson Conrad faz-se chamar Marco Benvenuti, toca violino e vive de uns quadros bem vendáveis que pinta. Não tem família, não tem amigos, mora só... E não vive muito bem. Pelo menos, tão bem quanto poderia com dois milhões e meio de dólares.

 

— Você o encontrou realmente?

 

— Claro.

 

— Com todos os diabos...! Como foi que pôde conseguir semelhante coisa?

 

— Pura sorte, na verdade. Estive com ele em seu apartamento. Depois tomei uma gôndola, fui até onde estava minha lancha e nela vim aqui, depois de pedir que você trouxesse as fotografias. Conrad estava rondando a casa onde entrou o homem que vigiava Ivan e que pretendeu me seguir.

 

— Não compreendo... Disse que ele estava rondando aquela casa ou que “saiu” de lá?

 

— Estava “rondando” a casa, apenas. Se tivesse que dar uma opinião sobre sua atitude diria que ele está vigiando os agentes chineses.

 

— Conrad? Por que faria isso? Se é um deles, se na verdade se vendeu à China quinze anos atrás e ficou com o dinheiro...

 

— Não sabemos isso com certeza, “Europa”. E ele não vive como quem tem dois milhões e meio de dólares, já lhe disse.

 

— Pode ser um ardil. É possível que esteja em Veneza sob o disfarce de um pintor solitário e modesto só para levar a cabo este trabalho.

 

— Já pensei nisso — admitiu Brigitte. — Mas não devemos nos precipitar. Vocês já têm minhas instruções. Eu me ocuparei pessoalmente de Jefferson Conrad.

 

— Pretende tomar a vê-lo?

 

— É um homem muito agradável — sorriu Brigitte.

 

— E muito traidor.

 

— Isso é o que se verá.

 

— Que se verá? Acaso há outra explicação para sua atitude? Quinze anos atrás foi dado por morto e acontece que está vivo. Não teve tempo nem ocasião, em quinze anos, para apresentar-se à CIA, para dar sinal de vida, para explicar-se com a Central? Por que esteve se escondendo de nós? Que fazia no Lido quando feriram dois de nossos agentes...?

 

— Está bem — disse Baby. — Sei pensar nessas coisas por mim mesma, “Europa”. E, naturalmente, você tem razão. De qualquer modo, não quero que haja precipitações. Tenha bem presente que, acima de tudo, sou uma espécie de espiã cerebral... Astúcia e inteligência. Nada tenho de uma jovem emotiva que se deixa levar pelo coração.

 

“Europa” soltou um grunhido.

 

— O que você realmente parece é uma profissional da palavra, Baby.

 

— Também sou isso. Talvez esteja esquecendo, querido amigo, que Brigitte Montfort é uma jornalista lida em todo o mundo.

 

— E que fala demais — insistiu “Europa”.

 

— É possível — admitiu ela, após ficar uns segundos pensativa. — Talvez seja verdade que falo demais. De qualquer modo, não lhe convém esquecer uma coisa: as palavras o vento leva, mas as balas ficam no corpo das pessoas contra as quais foram disparadas. Eu prefiro falar primeiro, se possível. Chegado o momento, nunca deixei de usar muito bem minha pequena amiga de coronha de madrepérola.

 

Mostrou a pistolinha, guardou-a, recolheu o que a interessava, fechou a maleta e sorriu para os seus Johnnies.

 

Quando ela partiu, o Johnny que estava ferido na perna olhou sério para “Europa”.

 

— Há uma coisa que o senhor parece ignorar... — murmurou. — Se todos os agentes que a CIA tem em todo o mundo tivessem que eleger um futuro chefe para qualquer continente, ou para todos, não haveria a menor discussão a respeito.

 

— Elegeriam Baby, não é? — resmungou “Europa”.

 

— Não, homem — riu divertido o outro Johnny —, escolheríamos você. Nunca vi ninguém no mundo tão capaz de trocar mel por vinagre...

 

— Deixaram um pacote para lhe ser entregue, miss Montfort.

 

Brigitte olhou sorridente o encarregado da portaria, com expressão interrogativa. O homem tirou de sob o balcão um objeto plano, largo, envolto em espesso papel, que lhe entregou. Ela limitou-se a rasgar um canto do pacote. Sorriu outra vez ao ver as cores, a tela trabalhada a óleo. Conhecia bem aquele quadro.

 

— Quando o enviaram? — perguntou.

 

— Não faz muito tempo... Mas não o enviaram. Trouxe-o pessoalmente um cavalheiro. Ele a está esperando no terraço.

 

— Muito obrigada. Poderá guardar o quadro até meu regresso?

 

— Com prazer, miss Montfort, Ela subiu ao terraço do “Gritti Puluco”. O dia estava esplêndido e via-se todo o canal, cinzento e azul, cheio de embarcações.

 

Viu imediatamente a pessoa que estava à sua espera. Foi até a mesa, sentou-se e saudou amavelmente: — Bom dia... Devo entender que não lhe preocupa trazer-me má sorte, signor Benvenuti.

 

Marco Benvenuti olhou-a lentamente, com ar pensativo.

 

— Não pude dormir — murmurou.

 

— A consciência às vezes prega essas peças... — sorriu Baby. — Já matou alguém?

 

Jefferson Conrad empalideceu intensamente.

 

— Referia-me à recordação de sua visita. Não é uma pessoa fácil de esquecer.

 

— Melhor dizendo, uma mulher difícil de esquecer, não é?

 

— Não, não. Sexo à parte, considerando-a unicamente como pessoa, não é possível esquecê-la, miss Montfort, pois tem algo de especial.

 

— Por exemplo: cabelos negros e olhos azuis — disse ela, rindo.

 

— Receio ter perdido meu tempo. Vim aqui para falar sério, não para brincar mais ou menos simpaticamente.

 

— Oh... De vez em quando, também eu gosto de falar sério... Alguma vez viu um dia tão formoso como este?

 

— É possível que não.

 

— Eu, sim. Em muitos lugares: Acapulco, Honolulu, Rio de Janeiro, Nice, Torremolinos, Estoril, Miami... O sol é uma dádiva que quase nunca sabemos apreciar devidamente.

 

— Sei apreciá-lo.

 

— Sabe? Parabéns então! Posso perguntar por que veio ao meu hotel, signor Benvenuti?

 

— Ocorreu-me lhe oferecer minha companhia.

 

— Per la Madona! Como se diz aqui. Está querendo matar-me?

 

Benvenuti tornou a empalidecer.

 

— Por que diz isso?

 

— Pois não me disse que traz má sorte? Francamente, não me considero segura a seu lado.

 

— Pensei numa coisa. Posso mostrar-lhe Veneza, seus arredores, o Lido, os palácios, os canais...

 

— Ah, sei que conhece esta cidade muito bem. Um homem do mundo... — sorriu ela. — Creio que viajou muito. Disse que passou muito tempo nos Estados Unidos. Portanto, é bem possível que tenha ido a outros lugares: Espanha, Índia, África, América do Sul, Ásia em geral, possivelmente Hong Kong... Gosta de Hong Kong, signor Benvenuti.

 

Uma vez mais, ele empalideceu.

 

— Nunca estive lá...

 

— Eu estive. É fascinante, tão exótica...

 

— Veneza não é exatamente exótica, mas vive-se bem aqui.

 

— Sem dúvida... Vou lhe ser sincera, Marco: tinha a esperança de que você se convenceria de que não é nenhum ser maligno, e também de que me viria buscar. Por isso, disse-lhe ontem onde estava hospedada.

 

— Dei-me conta disso ou não? — sorria ele.

 

— Aparentemente, sim.

 

— Que achou do meu presente?

 

— É um presente de boa vontade. Segundo entendo, fazer-me este presente não deve ter sido fácil para um solitário como você.

 

— Nem difícil.

 

— Agora não compreendo.

 

— Bem, houve um tempo...

 

— Sim? Por que se detém?

 

— São tolices.

 

— Oh, por favor, Marco...!

 

— Bem... Houve um tempo em que as coisas pareciam ser cor-de-rosa. Todo homem e toda mulher passaram por uma situação parecida. Acontecem coisas, coisas e coisas, mas todas elas são boas. A gente se pergunta por que é possível que tudo o que há de bem no mundo venha às nossas mãos. Conhecemos pessoas amáveis, temos amigos em toda parte, apreciam divinamente nosso trabalho.

 

— Que espécie de trabalho você fazia?

 

— Era perito de arte... Trabalhava numa galeria onde se realizavam exposições de pintura.

 

— Um trabalho interessante... Que aconteceu depois?

 

— Depois? Bem... Seria um tanto longo e complicado explicar. Simplesmente, perdi tudo.

 

— Por quê?

 

Marco Benvenuti ficou pensativo, com expressão sombria. Por fim, olhou com desalento para Brigitte e pareceu que se esforçava para sorrir.

 

— Má sorte, eis tudo. Preferiria não falar de mim, francamente.

 

— Quer que falemos de mim? — sorriu ela.

 

Outra vez ele pareceu pensativo. Por fim, ele moveu negativamente a cabeça.

 

— Não. Prefiro não saber muito a seu respeito, por enquanto. O natural será que nossa... amizade dure pouco, suponho. Depois você vai embora e eu ficarei definitivamente sozinho. Então, ser-me-á mais fácil recordá-la tal como a estou imaginando em todos os sentidos que encaixá-la na definição que você mesma me dê.

 

— É uma atitude muito romântica... — riu Brigitte. — Afinal, você não me disse grande coisa de si mesmo, nem quer que eu fale de mim. Acho-o um homem estranho, Marco.

 

— Pareço-lhe assim? Na verdade, sou apenas um pobre homem que pinta quadros e toca violino. É bonito este lugar, o terraço com vista para o canal... Tudo muito pitoresco. E a propósito de pitoresco, amanhã haverá uma grande festa em Veneza. Estou certo de que gostará.

 

— De que festa se trata?

 

— A do Salvador. É tradicional aqui... Todos navegam para o Grande Canal e assistem a uma queima espetacular de fogos de artifício que se realiza na Laguna. Você já deve saber que a Laguna está compreendida entre o Canal de São Marcos e a parte interna da ilhota do Lido... Vi esse espetáculo uma porção de vezes e sempre estou desejando que chegue a festa do Salvador. O céu se transforma num mundo pirotécnico, de estupenda beleza... Gostaria de ver isso amanhã?

 

— Naturalmente. Mas amanhã ainda não chegou. Deveríamos pensar em hoje.

 

— Isso é muito acertado — sorriu debilmente Benvenuti.

 

— Costumo ir diariamente ao Lido, nesta época. Nado um pouco, apanho sol, almoço em qualquer pizzaria, durmo a sesta sob uma barraca de praia... Depois navego pelos canais, sozinho, contemplando Veneza, e em certas ocasiões sinto-me bastante melhor.

 

— Você vive muito mansamente em Veneza, ao que parece — disse Brigitte.

 

— Na medida do possível, sim. Compartilharia você de um manso dia comigo?

 

A agente Baby contemplou amavelmente aquele elegante homem de quarenta e cinco anos, de têmporas grisalhas, profundas rugas na testa, uma expressão dura nos lábios. Era um tipo impressionante. Seu aspecto nobre e sereno podia corresponder ao de um traidor de sua pátria e de seus companheiros de luta?

 

— Ficarei encantada, Marco — murmurou.

 

E ficou, realmente. Depois de um delicioso dia na praia, dedicaram-se a percorrer Veneza, tarde, na lancha um tanto velha de Benvenuti. No Lido tinham almoçado mariscos com polenta e a popular risi e bisi, uma sopa de arroz e peixe saborosíssima.

 

Agora navegavam pelo Grande Canal e Marco Benvenuti ia-lhe contando interessantes histórias sobre os palazzi, dos quais os mais importantes eram os de Pesaro, Grimani, Vendramin-calergi, Ca’ d’Oro... Estiveram dando uma volta pelo variado comércio da ponte de Shylock, sob o célebre Rialto. Visitaram brevemente a Scuola di San Rocco, onde Brigitte ficou fascinada com as telas do grande Tintoretto.

 

Mas a basílica de São Marcos maravilhou-a principalmente, com seus fabulosos tesouros.

 

Benvenuti tinha-lhe mostrado peças admiráveis de legítima porcelana chinesa, sorrindo.

 

— Uma lembrança de Marco Polo — informou. — Sabia que em seu tempo chamavam-no Messer Milioni!

 

— Não... Sei algo de Marco Polo, naturalmente, mas não me aprofundei em sua biografia.

 

— Há muitas discrepâncias sobre ela, de qualquer modo — Benvenuti deu de ombros. — Não esqueçamos que viveu entre 1254 e 1324... Chamaram-no Messer Milioni, tal como o seu pai, porque sempre, quando regressavam de suas viagens, falavam de fabulosas riquezas. Por isso, Marco Polo intitulou Il Milioni o seu mais famoso livro. Ao que contou, quando esteve na Ásia foi nomeado governador de Kiang-Nung pelos amigos que fez lá. Em compensação, os genoveses eram seus inimigos e uma vez conseguiram capturá-lo, mantendo-o encarcerado durante dois anos. Só que o nosso Marco nem sequer então perdeu tempo, escrevendo outra obra: “Livro das Maravilhas do Mundo”.

 

À noite, jantaram no Al Graspo de Ua, um lugar muito típico, perto do Rialto. Finalmente foram passar uns momentos no Antico Martini, o melhor clube de Veneza. A essa altura, parecia que o mundo e a vida fossem a cidade das águas, os canais, um homem e uma mulher.

 

Para regressar ao hotel de Brigitte, Benvenuti prescindiu do motor, preferindo utilizar um longo remo, ao estilo gondoleiro, ambos rindo. E ainda riram mais quando ela assumiu o comando da lancha e, enquanto manejava o melhor que podia o único remo colocado na popa, imitava os gritos dos gondoleiros pedindo passagem ou advertindo de sua presença: — Oé! Oé! Oé...!

 

Quando finalmente a lancha se deteve no embarcadouro do “Gritti Hotel”, junto aos coloridos pali, ambos ficaram em silêncio, contemplando a água, as luzes das gôndolas que passavam... Eram mais de duas horas da madrugada.

 

— Bem... — murmurou por fim Benvenuti.

 

— Qualquer turista consideraria este como um dia cheio.

 

— É maravilhoso... — sorriu Brigitte. — Você foi um competente cicerone e agradável companheiro, Marco. E nem sequer tivemos um tiquinho de má sorte.

 

Olharam-se sorridentes. Súbito, Benvenuti ficou muito sério. Pôs a mão no ombro de Brigitte e puxou-a lentamente para si. Talvez esperasse certa resistência, pois seu gesto foi tímido, hesitante... Mas Baby fechou os olhos e ofereceu-lhe os lábios, com toda a simplicidade. Quando tomaram a se olhar, ela sorriu e murmurou: — Boa noite, Marco.

 

— Boa noite, Brigitte.

 

Já em seus aposentos, ela tomou um chuveiro, pôs um diminuto e transparente baby-doll, e olhou o quadro de Benvenuti que um dos boys tinha trazido para a suíte.

 

Acendeu um cigarro, pensativa, até que por fim resolveu recorrer ao radinho.

 

— Alô — ouviu a voz de Johnny.

 

— É Baby, Johnny. Tudo bem?

 

— Tudo bem por aqui. Amanhã, ao anoitecer, chegará um helicóptero ao pequeno aeroporto de Via Selva. Fica no...

 

— No Lido, eu sei. Como estão nossos companheiros?

 

— Em perfeitas condições de partir, os dois. Temos a lancha pronta e, quando escurecer, levaremos para ela o que está ferido nas costas. Iremos ao Lido e usaremos o Canal San Nicoló para chegar o mais perto possível do aeroporto e do helicóptero que nos recolherá... Quer dizer, recolherá os feridos.

 

— Ótimo. Alguma notícia de “Europa”?

 

— Sim, já sabemos onde estão os russos, graças à vigilância que estamos exercendo sobre os que supomos estejam trabalhando para a China. Parece que são três na casa até onde você seguiu o que queria segui-la. Estão vigiando os russos por turnos, Baby.

 

— Compreendo. Esperam que nos ponhamos em contato com eles, como da outra vez, para tentar caçar-nos de novo a fim de conseguir os microfilmes.

 

— Não será agradável para eles enfrentar Baby esta vez, penso eu — riu Johnny. — Que esteve fazendo durante o dia de hoje?

 

— Uma vida romântica... — sorriu ela. — Boa noite, Johnny.

 

Fechou o radinho, acendeu outro cigarro e, durante quinze minutos, com as luzes apagadas, esteve pensativa.

 

Por fim, recorreu ao aparelho receptor do microfone que tinha colocado no apartamento de Marco Benvenuti.

 

Imediatamente a música de um violino brotou do receptor.

 

Ela fechou os olhos e sua imaginação voou até aquele modesto ambiente, onde um homem que há quinze anos vivia sozinho estava dando rédea solta à sua melancolia...

 

Um homem estranho. Um espião estranho. Um traidor estranho...

 

Na manhã seguinte, terceiro domingo de julho, Marco Benvenuti apareceu no terraço do “Gritti Hotel”, de acordo com o combinado, à hora do aperitivo. Sentou-se diante de Brigitte, pôs a mão sobre a dela e sorriu.

 

— Descansou bem?

 

— Muitíssimo bem. E você?

 

— Não muito.

 

— Oh... Esteve novamente pensando em mim?

 

— Com efeito.

 

— Você é muito gentil, Marco. Diga-me: que programa preparou para hoje?

 

— Um bem simples, e espero que o aprove. Ontem foi um dia demasiado intenso. Acho melhor agirmos com mais calma hoje. Além disso, é domingo e tudo estará cheio de gente: a praia, os canais, a Praça de São Marcos, os cafés...

 

— Os domingos são entediantes... — sorriu Brigitte. — Diga-me de uma vez o que lhe ocorreu.

 

— Podemos ir a Torcello. É uma ilha à qual afluem muitos turistas e inclusive venezianos. Mas, para evitar aglomerações e a ruidosa presença alheia, lá somente compraremos algo para comer. Então, iremos por entre as ilhotas, navegando por trás de Torcello e Burano. Em qualquer prainha podemos tomar sol, nadar, almoçar, dormir a sesta... Sozinhos, com o mar e o sol. Ao entardecer, voltaremos a Veneza... e está convidada a jantar em meu apartamento. Eu mesmo prepararei a comida. Que lhe parece?

 

— Maravilhoso e divertido... — riu Brigitte.

 

— Aceito!

 

Pelas cinco da tarde, Marco Benvenuti virou a cabeça, contemplou Brigitte estendida sobre a areia na diminuta praia de uma das ilhotas e sorriu.

 

— Acho que deveríamos voltar — murmurou.

 

— Marco...

 

— Diga.

 

— Estava pensando em você.

 

— Acha que vale a pena? — sorriu ele.

 

— Depende... — sorriu também ela. — Você é um homem estranho.

 

— Estranho?

 

— Gostaria que me contasse a verdade sobre sua vida. Acho que nela deve haver algo dramático. E pergunto-me se lhe pareço tão fútil que apenas sirva para divertir-me, apanhar sol, comer...

 

— Sei muito bem que você nada tem de fútil. E tudo o que está dizendo é na melhor das intenções. Para mim, hoje, você vale mais que ninguém no mundo, Brigitte.

 

— É uma declaração de amor?

 

— É.

 

— Eu...

 

— Não! Não diga... Não diga nada. Não quero saber se você me ama ou não. Eu deveria crer que sim, bem sei, mas não quero palavras. É suficiente este dia entre as ilhas, sob o sol, rodeados pelo mar... Não quero palavras, Brigitte. A menos que você possa começar dizendo que ficará ao meu lado.

 

— Lamento... — sussurrou ela. — Não lhe posso dizer isso, Marco. Mentiria se o fizesse.

 

— Então, para que pronunciar palavras?

 

— Não quer me dizer a verdade a seu respeito?

 

Benvenuti esteve uns segundos contemplando as pequenas ondas que morriam docemente aos pés de ambos.

 

— Pode esperar até amanhã? — perguntou de súbito.

 

— Claro.

 

— Então, amanhã lhe direi a verdade sobre minha vida. E agora devemos ir: está ficando tarde.

 

— Que pressa temos?

 

— Nenhuma especial, só que se esperarmos demais encontraremos os canais cheios de embarcações regressando a Veneza. Agora navegaremos mais tranquilos.

 

— Está bem. Você se importaria de me levar ao hotel?

 

— Mas ficamos de jantar em meu apartamento, não?

 

— Sim. Quero apenas tomar um chuveiro e mudar de roupa. Você pode me esperar no embarcadouro do próprio hotel. Sou muito rápida para me arrumar, garanto.

 

— De acordo. Esperarei. Assim você não terá que ir sozinha ao meu apartamento.

 

— Entre... Já conhece o caminho.

 

Brigitte entrou no apartamento de Marco Benvenuti e foi direta à sala com a janela cheia de flores, dando para o canal.

 

Usava agora um minivestido azul escuro, muito decotado.

 

Na mão esquerda, a graciosa maletinha vermelha, que deixou sobre uma poltrona. Olhou ao redor, depois virou-se para Benvenuti, que a contemplava da porta.

 

— Acho encantadora sua morada, Marco. Que vai me oferecer para jantar?

 

— Nada muito complicado... Que me diz de uns fettuccini, um pouco de antipasto e... fritto misto?

 

— Excelente... mas não me dê muitos fettuccini: já sabe que a pasta engorda, mio caro.

 

— Va bene.

 

Brigitte viu o violino, aproximou-se dele, tomou-o e, virando-se para Benvenuti, perguntou: — Acha que eu poderia tocar alguma coisa?

 

— Deveria tentar, ao menos. A respeito de vinho, qual vai querer?

 

— Chianti, sem dúvida.

 

— Menos mal... Não tenho outro! — riram ambos e ele terminou: — Gostaria de oferecer-lhe um Villa Antinori, mas é uma reserva difícil de conseguir.

 

— O Chianti estará perfeito. Diga-me o que acha de meu virtuosismo como violinista...

 

Prendeu o instrumento sob o queixo, brandiu o arco e, para assombro de Marco Benvenuti, tocou as nítidas notas de umas czardas.

 

— Fantástico! — exclamou ele.

 

— Mas, infelizmente, é quase tudo o que sei.

 

Novamente riram os dois. Brigitte depôs o violino e instalou-se na poltrona onde deixara a maletinha, colocando esta a um lado, contra a perna.

 

— Estou pensando nos fogos de artifícios desta noite. Vamos vê-los, Marco?

 

— Se você quiser, claro. E, francamente, não deveria perder.

 

— Embora isso signifique sairmos daqui?

 

— Bem... Há tempo para tudo na vida.

 

— Vivendo-se muitos anos, sim... Você perdoa um momento? Quero ir ao banheiro para arrumar um pouco o cabelo.

 

— Tentarei prescindir de sua presença — sorriu Benvenuti.

 

Brigitte levantou-se, levando na mão a maletinha vermelha. Foi ao banheiro, trancou-se nele, abriu a maleta e sacou o radinho camuflado num maço de cigarros... Rádio que tinha sentido vibrar antes sob sua mão, em silêncio, quando a pousara sobre a maleta.

 

— Alô... — murmurou, admitindo a chamada.

 

— Baby, é o Johnny. Há novidades e não muito boas encontramos um microfone.

 

— Um microfone? Onde?

 

— Aqui, na casa onde estão os dois feridos! Estava escondido em...

 

— Não me importa onde estava escondido. Pelo amor de Deus, Johnny, como é isso possível? Não revistaram tudo bem, especialmente depois de terem caído numa armadilha?

 

— Lamento. Mas estava tão bem escondido... Se esse microfone foi colocado pelos chineses, ou mesmo pelos russos...

 

— Não, não, Johnny... Calma. Escute: os russos não sabem onde vocês estão. Portanto, não foram eles que puseram o microfone. Quanto aos agentes da China que estão vigiando os russos, já teriam passado à ação se soubessem onde vocês podiam ser encontrados. Logo, não foram eles que colocaram o microfone.

 

— Então... quem foi?

 

— Jeff Conrad.

 

— Acha que ele sabe onde estamos? — assombrou-se Johnny.

 

— Certamente. Por isso, pôde seguir os dois Johnnies quando foram ao Lido encontrar-se com os russos no café “Terrazza del Sole”. Sabia onde vocês estavam, bem como onde estavam os russos. E também sabe onde estão esses homens que trabalham para o serviço secreto chinês. Sabe tudo. Tudo.

 

— Mas não compreendo... O que está esperando, então? O que é que pretende? É evidente que não trabalha para nós, nem para os russos. E já que não informa os agentes chineses onde estamos, também é evidente que não trabalha para a China... Não compreendo! Que deseja Conrad? Para quem trabalha?

 

— Tranquilize-se. Eu me ocuparei disso. Como vai todo o resto?

 

— Bem. Tínhamos pensado em seguir logo para o aeroporto, mas ao descobrirmos o microfone ficamos com receio de uma armadilha...

 

— Não, não... Não haverá armadilha Os russos continuam em seu esconderijo, vigiados pelos agentes da China?

 

— Continuam. Estão todos à espreita, esperando, esperando...

 

— Logo chamaremos os russos para o intercâmbio dos microfilmes e haverá movimento de sobra. Faça seu trabalho. Johnny. Adeus.

 

Fechou o radinho, corrigiu um pouco o penteado e, para justificar ainda mais sua permanência no banheiro, deu um toque de batom nos lábios.

 

Saiu, deu o passo...

 

Sentiu às suas costas a presença humana. Uma presença que só podia ser a de Marco Benvenuti. Avisou-a seu instinto, sua intuição e quis virar-se rapidamente, desviar para um lado. Conseguiu-o pela metade.

 

Quando pôde ver Benvenuti, a mão direita dele, crispada, alcançou um lado de seu pescoço, num golpe medido, perfeito, de jiu-jitsu.

 

E Brigitte Montfort caiu sem um gemido, como fulminada.

 

Quando abriu os olhos, novamente viu Marco Benvenuti.

 

Estava de costas para ela, junto a uma velha cômoda de madeira escura. Tinha posto umas calças pretas, um jérsei também preto e usava um coldre sob a axila esquerda.

 

Talvez a tivesse ouvido, pois virou-se de súbito para ela.

 

Mas quando a olhou, Brigitte havia fechado novamente os olhos e parecia continuar desacordada por efeito do golpe.

 

Por entre as pálpebras semicerradas, viu nas mãos dele uma pistola com silenciador e um pente de balas que foi energicamente encaixado na base da culatra. Benvenuti esteve a olhá-la fixamente, sem que em seu rosto aparecesse expressão alguma. Sobre a cômoda, ela viu a maletinha vermelha e compreendeu que devia ter sido revistada meticulosamente.

 

Desde quando saberia aquele homem que ela era a agente Baby? Com muita probabilidade, desde a noite em que a retirara do canal... Sim, com muita probabilidade, desde aquela mesma noite, quando ela se reunira com “Europa” na casa onde estavam os dois Johnnies feridos. Mas, pior ainda, podia sabê-lo desde que, à tarde, ela fora visitar os Johnnies... Desde quando havia ele instalado o microfone na casa que era base de operação dos agentes da CIA em Veneza? Desde quando? Que pretendia?

 

Compreendeu de súbito que Marco Benvenuti havia sabido a verdade sobre ela desde sua visita aos Johnnies feridos. Quer dizer que, quando a recolhera no canal e ouvira sua voz, imediatamente soubera que ela era Baby... Boa jogada, magnífica jogada, pela qual Marco Benvenuti ou Jeff Conrad merecia toda sua admiração. Tinha estado brincando nem mais nem menos que com Baby, a superespiã internacional. Tinha-a trazido ah, a seu apartamento, preparara-lhe a armadilha e agora ela estava na linha de mira da pistola que acabava de enfiar no coldre. Num segundo, enquanto ela tivesse o tempo justo de mover-se, ele podia sacar a pistola e matá-la muito antes que pudesse chegar à maletinha em busca de sua arma, ou que pudesse atacá-lo diretamente.

 

Benvenuti sorriu e começou a aproximar-se dela. Brigitte continuou respirando normalmente, como se ainda estivesse desacordada. Ele parou a três passos, de modo que não podia ver-lhe o rosto, pois o seu pendia sobre o peito, dada a posição em que ele a colocara na poltrona... As pernas de Benvenuti se deslocaram, ela ouviu algo roçar, depois tomou a ver-lhe as pernas, junto às quais estava pendente um cordão de cortina. Ia amarrá-la.

 

Esperou que estivesse diante dela. Viu suas mãos, segurando o cordão, aproximando-se. Ele se inclinou...

 

Brigitte endireitou-se de súbito e, enquanto ele tinha um sobressalto, sua mão direita partiu, alcançando-o na garganta com um feroz atemi de judô, frequentemente mortal. Foi um golpe certeiro, impecável. Olho por olho, dente por dente.

 

O sobressalto de Benvenuti transformou-se num gemido rouco. Ele se aprumou, pareceu que ia cair para trás e acabou tombando de joelhos.

 

Crac!

 

Agora foi um golpe de caratê, na cabeça. Um golpe que nada tinha que invejar à potência do dele. Revirou os olhos, abriu angustiadamente a boca e caiu de bruços, imóvel.

 

A primeira coisa que fez Brigitte foi tirar-lhe a pistola.

 

Depois ficou olhando séria para ele. Pensou em reanimá-lo para fazer umas quantas perguntas, mas antes resolveu dar uma volta pelo apartamento. Queria encontrar o receptor do microfone, e talvez encontrasse outras coisas interessantes.

 

E assim foi. Não teve que procurar muito, na verdade, pois tudo estava na cômoda de madeira escura. Depois de uma vistoria geral pelo apartamento, sem encontrar nada de importância, parou diante da cômoda pensando que, pela atitude de Benvenuti junto àquele móvel, devia ter tirado a pistola dali. Ao puxar umas das gavetas, esta não se abriu.

 

Estava trancada.

 

Sorrindo, Brigitte utilizou uma de suas gazuas e, aberta a gaveta, viu justamente o receptor de mecanismo de gravação.

 

Fez retroceder a fita, pondo depois o aparelho em marcha.

 

Ouviu sua própria voz: — Por quem brindamos? Pelos espiões?

 

— Por Baby (a voz dos três Johnnies ao mesmo tempo).

 

— Tim-tim...

 

 

Realmente, não tinha necessidade de ouvir nada mais.

 

Deteve o gravador e levantou aquela pequena caixa metálica, alongada, retangular. Parecia hermeticamente fechada... Tão hermeticamente, que levou quase cinco minutos para encontrar o mecanismo que a abria. Um dos lados menores se abriu, deixando a descoberto uma espécie de gaveta metálica. Puxou-a, como se fosse uma gaveta de arquivo.

 

E era isto: um arquivo.

 

Viu pequenas fotos, muito bem ordenadas, separadas por cartões com indicação do que havia detrás. Num dos cartões estava escrito: CIA. Em outro, MVD, em outro Deuxième Bureau, em outro MI-5, em outro S.S. China, em outro Inteligenza... E atrás de cada cartão, um grupo de fotos de rostos de homens e até três mulheres. No verso das fotos, seus nomes. Havia gente de quase todos os países da Europa, num total aproximado de duzentas fotos. Algumas delas tinham sido riscadas com um grande X vermelho, que ia de um ângulo a outro. Os falecidos, naturalmente.

 

Não se surpreendeu em absoluto ao ver as fotos dos três Johnnies naquele arquivo. Também estava a do homem que tinha tentado segui-la. E a do russo Ivan, cujo sobrenome, ao que parecia, era Zekov. E a do outro russo que tinha comparecido ao encontro na praia noites atrás, que se chamava Fedor Barian.

 

— Admirável... — murmurou Baby. — Mas, que pretende você, querido Marco? Para quem está trabalhando?

 

Permaneceu uns segundos pensativa. Depois colocou no chão seis daquelas pequenas fotografias, arrumadas em filas de três, e por sua vez microfotografou-as com seu isqueiro; virou-as e fotografou também os nomes. Assim, de seis em seis, silenciosamente, foi microfotografando todas as fotos.

 

Somente ela ouvia o levíssimo “clic” de seu isqueiro, ao ser disparada a câmara oculta. Quando terminou, foi à cozinha e queimou todas as fotos do arquivo de Marco Benvenuti.

 

Tirou e destruiu a fita magnética do gravador e danificou irremediavelmente este.

 

Um gemido muito leve do homem desacordado fê-la virar a cabeça, vivamente. Aproximou-se dele e, vendo-o apoiar as mãos no chão para levantar-se, sorriu secamente e aplicou-lhe um golpe na nuca, que o levou de novo ao mundo dos sonhos.

 

Ajoelhou-se então a seu lado, apanhou o cordão da cortina e começou a amarrar-lhe as mãos nas costas. Quando terminou, sentou-o numa poltrona e olhou-o criticamente.

 

Tinha que amarrá-lo mais e melhor, pois não queria surpresas. Benvenuti era muito forte e um cordão de cortina podia ser muito pouca coisa para seus músculos.

 

Abriu a maletinha, disposta a tirar um dos finos arames com que várias vezes tinha estrangulado seus inimigos... e sentiu uma vibração em seu radinho camuflado.

 

Sacou-o imediatamente.

 

— Alô... — murmurou.

 

— Baby, aqui é “Europa”. Algo está acontecendo: os tipos que supomos agentes chineses estão rondando a casa onde estão os russos, os três. Acabam de avisar-me.

 

— Bem... Quantos rapazes temos lá?

 

— Somente dois, vigiando. Mais o que vigiava os chineses e que se reuniu aos dois. Três, portanto. Mas posso mandar todos os nossos homens disponíveis...

 

— Não, não. Espere... Pode ser uma armadilha, “Europa”. Talvez seja justamente isso o que querem os agentes chineses. É muito possível que se tenham impacientado e desejam provocar o contato seja como for.

 

— Três homens não poderiam muito contra nós.

 

— Está querendo ser esperto? — resmungou Brigitte. — Também temos lá somente três homens e num momento podemos mobilizar uma dúzia. Se os agentes chineses querem precipitar as coisas, terão tomado todas as precauções, armando uma ratoeira muito melhor que da vez anterior. Que ninguém faça nada.

 

— É muito possível que você tenha razão, Baby. Entretanto...

 

— Entretanto, você não vai discutir minhas disposições “Europa”. Disse que ninguém fará nada e assim vai ser. Onde exatamente estão os russos?

 

— Em La Giudeca... A velha ilhota habitada quase exclusivamente por judeus. Se você não conhece Veneza não chegará lá, caso seja o que pretende.

 

— Tenho um mapa...

 

— Sei que espécie de mapa pode ter, mais ou menos bom para turistas. A viela em questão não figura no mapa, certamente. Pensa ir lá?

 

— Claro.

 

— Onde está você agora?

 

— Atrás do Ca’Foscari.

 

— Bem... Vá atravessando canais até sair no Canale delia Giudeca. Depois dirija-se ao Rio Ponte Lungo, que está num extremo de Fondamenta Ponte Piccolo... Isso sim estará no seu mapa de Veneza... Eu me reunirei ali com você e iremos aonde estão nossos homens vigiando. De acordo?

 

— De acordo. Sigo agora mesmo para aí. É só.

 

Fechou o rádio, atirou-o dentro da maleta segurou esta e olhou para Marco Benvenuti... Certamente, nunca mais teria uma ocasião tão boa para matá-lo. Mas não podia fazer isso desconhecendo a verdade quanto aos propósitos do traidor Jeff Conrad. Levá-lo na lancha com ela era absurdo...

 

— Voltarei... — disse, como se ele a pudesse ouvir. — E será melhor que você ainda esteja aqui, Marco, senão me encarregarei de que o cacem como um rato por todos os canais de Veneza.

 

Conseguiu um papel, escreveu algo nele e deixou-o no braço da poltrona onde ele estava.

 

O papel dizia:

 

Escolha. Mas escolha bem Jefferson Conrad: ou me esperar aqui, se tem boa explicação para dar à CIA, ou se preparar para viver os mais amargos dias de sua vida até que eu o encontre e mate.

 

Saiu do apartamento, desceu à rua e saltou para a lancha de Benvenuti, afastando-se a toda a velocidade que os canais permitiam.

 

“Europa” veio-lhe ao encontro em outra lancha, precedeu-a e, finalmente, ambas as embarcações se detiveram num canal escuro, solitário. O chefe dos agentes da CIA no continente europeu passou então à lancha ocupada por Baby.

 

— Sabe da última? — perguntou ele.

 

— A que se refere?

 

— Os agentes chineses entraram na casa onde estão os russos.

 

— Quando foi isso?

 

— Enquanto você vinha para cá, evidentemente. Estivemos chamando-a pelo rádio, mas não respondeu.

 

— Com o ruído do motor da lancha, não podia ouvir a chamada... E não esperava que as coisas acontecessem tão depressa. Tem ideia do que ocorreu nessa casa?

 

— Você deu ordem de que ninguém fizesse nada, não foi? — disse desabridamente “Europa”. — Como quer agora que saibamos o que pode ter acontecido lá?

 

— Está bem... Indique-me a casa e eu mesma irei ver o que houve.

 

— Você mesma irá? — sobressaltou-se “Europa”. — Que quer dizer com isso?

 

— Quero dizer que entrarei na casa. Não compliquemos a situação, meu amigo. Chame os rapazes pelo rádio e diga-lhes que se mantenham muito discretamente afastados da casa.

 

— Bom, se você quer se meter sozinha na ratoeira, é coisa sua. Mas, pelo menos, deixe-me dizer-lhe algo, Baby.

 

— Diga.

 

— Podemos chamar mais homens, rodear a casa, entrar nela e caçar tanto os russos como os chineses. A isso chamaria eu dominar toda a situação. E uma vez dominada toda a situação, poderemos agir como melhor nos parecer. Estou certo?

 

— Sim, você está certo. Mas há armadilhas muito curiosas, “Europa”... Quer dizer, quase todas elas funcionam igual: é fácil entrar e muito difícil, para não dizer impossível, sair. Não quero que nenhum dos nossos caia numa possível ratoeira.

 

— Prefere cair sozinha? Porque, se suas suspeitas são exatas e há mais agentes da China esperando nosso comparecimento, você vai se meter numa boa enrascada, querida.

 

Brigitte sorriu.

 

— De uma víbora venenosa não se pode dizer que foi caçada até que lhe cortemos a cabeça. Enquanto estiver viva, ainda que dentro do cesto, não se pode dizer que esteja dominada.

 

— E você é uma víbora?

 

— Pelo menos, digamos que posso ser muito venenosa. Não recomendo a ninguém que me meta numa cesta. Chame os rapazes, que permaneçam bem ocultos e não façam nada, salvo se receberem ordens minhas.

 

— Como queira. Eu a preveni.

 

“Europa” dedicou-se a dar instruções necessárias pelo rádio de bolso, enquanto Brigitte, junto a ele, tirava a roupa, ficando em prendas íntimas. Sacou da maletinha uma bolsa de plástico, que serviu justamente para meter dentro a maleta. A pistola, também envolta em plástico, foi enfiada nas calcinhas.

 

— Vejamos qual é a casa — murmurou.

 

Aproximaram-se até que “Europa” a distinguiu e indicou-a em silêncio. Atrás tinham deixado grande agitação, pois todo o mundo se lançara aos canais, em toda espécie de embarcações, para ir ver os fogos de artifício da festa do Salvador... Ali havia muita tranquilidade e ouvia-se apenas o rumor da água contra as bordas do canal.

 

Brigitte dispunha-se a descer até a água quando ouviu o suave “bip-bip-bip” de uma chamada pelo rádio. Olhou imediatamente para o peito de “Europa’’ que tirou o aparelhinho de um bolso interno.

 

— É o rádio que nos comunica com os russos — murmurou ele. — Se nos chamam é porque talvez tenham dominado os agentes chineses...

 

— Responda à chamada. Será o melhor modo de sair da dúvida.

 

“Europa” apertou o botãozinho de admissão.

 

— CIA na escuta — murmurou, em russo.

 

— Fala MVD — ouviu-se a voz de Ivan. — Estamos esperando o contato com Baby para a troca de microfilmes. Já se passaram dois dias e não queremos perder mais tempo.

 

— Baby não está comigo — disse “Europa”. — Terei que consultá-la a respeito de seu pedido.

 

— Faça-o. Diga-lhe que não estamos dispostos a esperar nem um dia mais. É só. Espero a resposta o mais breve possível.

 

— Terá sua resposta.

 

“Europa” fechou o radinho e ficou olhando para Brigitte, que parecia muito pensativa. Súbito, ela perguntou: — Já foram evacuados nossos feridos?

 

— Já.

 

— Bem! Nesse caso, chame os russos dentro de quinze minutos e diga-lhes que estou de acordo. Que Ivan me espere, às doze, no mesmo local da vez anterior. Que leve o microfilme, pois levarei o meu.

 

— Tem-no aqui?

 

— Na maletinha.

 

— De qualquer modo, esse encontro parece algo problemático, não acha?

 

— Estou convencida disso. Mas quero que os agentes chineses estejam tranquilos.

 

— Compreendo.

 

— Sim? — sorriu Brigitte.

 

— Claro. Você pensa que os agentes da China dominaram os russos e que os obrigaram a fazer essa chamada, para tirar-lhe o microfilme quando você comparecer ao encontro. Enquanto isso, eles terão eliminado os russos e estarão de posse do microfilme destes. Por isso resolveram atuar sem perda de tempo, para liquidar de uma vez os russos e assegurar-se de que o enviado da CIA compareça com o outro microfilme ao encontro... ao qual comparecerão eles, não um russo.

 

— Ótimo. Para lhe ser sincera, “Europa”, começava a duvidar que você merecesse o posto que ocupa. Estimo ter-me enganado. Depois nos veremos.

 

— Boa sorte — murmurou “Europa”.

 

Por fim, Baby entrou na água e pôs-se a nadar, afastando-se da lancha. Quase em seguida, “Europa” viu-a desaparecer da superfície negra e moveu a cabeça pesarosamente.

 

— Algum dia, esse afã de preservar a vida de seus rapazes vai lhe custar caro, mocinha. Mas oxalá isso demore muito... embora não nos simpatizemos demasiado.

 

Enquanto isto, Brigitte continuava nadando para a casa.

 

Pouco tardou a chegar lá. Estava situada bem à borda do canal, com uma espécie de pequena ponte que a unia à estreita calçada. Uma gôndola apareceu, de súbito, pelo que ela precisou reter o fôlego e submergir. Quando voltou à superfície, a gôndola se afastava, depois de ter passado praticamente sobre ela.

 

Resolveu rodear a casa, em busca de um ponto pelo qual pudesse escalar a parede. Quando o encontrou, permaneceu ainda uns segundos esperando, ouvido atento, à espreita...

 

Tudo estava tão tranquilo que justamente isto a inquietou.

 

Entretanto, sua indecisão durou pouco. Meteu os dedos nas juntas das pedras, depois de passar a alça da maleta pelo pulso, e iniciou a ascensão até a janela aberta que dava para aquela parte do canal. Com o silêncio e a agilidade de uma gata, chegou à janela, içou-se com um só movimento até o peitoril e no instante seguinte havia caído dentro daquele aposento. A única coisa que se ouvia era o gotejar da água escorrendo de seu corpo.

 

Tirou o envoltório de plástico da maleta, fez o mesmo com a pistola e empunhou-a com a direita, segurando a maleta com a esquerda. Abriu a porta daquele aposento e encontrou-se num corredor.

 

Saiu a este e, quase em seguida, colou-se à parede, virando rapidamente os olhos para o vestíbulo da casa, de onde vozes tinham chegado... Não. Não fora do vestíbulo, mas de um dos quartos cuja porta dava para aquele.

 

Viu a luz, aproximou-se mais e olhou a porta entreaberta.

 

Novamente ouviu aquela voz, mas não pôde entender o que dizia. Era uma língua desconhecida para ela... Quer dizer, não seria capaz de entendê-la, mas de identificá-la sim; era albanês. Havia pelo menos dois homens falando em albanês naquele quarto. Mas faltava outro... Tinham que ser pelo menos três. Três albaneses que estavam trabalhando para o serviço secreto da China. Tudo começava a formar sentido: os russos, os americanos e, como fundo, os albaneses, amigos da China Comunista, que se haviam inteirado daquele intercâmbio de microfilmes que continham dados sobre agentes chineses nos Estados Unidos e na Rússia, e queriam impedir que os microfilmes chegassem a seus respectivos destinos.

 

Tudo ficava explicado, menos a intervenção de Marco Benvenuti, que aparentemente não estava do lado de ninguém, mas que sem dúvida participava do assunto.

 

Deu um passo, depois outro... Em completo silêncio, olhos fixos naquela porta, foi caminhando. Até que um de seus pés tropeçou em algo. Algo mole e duro ao mesmo tempo. Algo que se moveu sem ruído, como estranha massa...

 

Agachou-se. E à luz que saía daquele quarto viu o rosto do homem que tinha tentado segui-la duas noites antes. Um rosto tenso, crispado. Os olhos estavam desmesuradamente abertos e um fio de sangue escorria de um canto de sua boca.

 

Via outro corpo, muito perto, e deslizou para lá, sem erguer-se. Era o cadáver de um homem alto, robusto, de rosto duro. Só lhe ocorreu pensar que seria um dos russos, mas não dos que tinham comparecido noites atrás ao encontro no Lido com dois agentes da CIA. Porém mais longe viu ainda outro homem, bem junto a uma parede.

 

Parecia que se sentara por sua própria vontade, comodamente, mas os dois orifícios da bala que tinham na testa convenceram-na de que se estava ali, naquela posição, isso acontecera à sua revelia.

 

E, aquele sim, identificou-o como um dos que tinham participado, noites atrás, do encontro no Lido. Apalpou-lhe as pernas, até encontrar a bandagem... Sim. Aquele era o russo contra o qual Johnny e Johnny tinham disparado e que estivera a ponto de cair, segundo a explicação deles mesmos.

 

O russo ferido... que agora estava morto.

 

Com toda a probabilidade, só restava um soviético. E tinha que ser aquele que chamara “Europa” pelo rádio, sem dúvida intimidado pelos agentes chineses de nacionalidade albanesa. O fato de um destes estar morto significava que só restavam dois. Dois agentes da China e, certamente, um só russo.

 

Chegou à porta, olhou pela fenda entre o batente e a porta das dobradiças, estremecendo ao ver Ivan.

 

Quer dizer, podia e não podia ser Ivan. Se somasse todos os fatores que conhecia, tinha que ser Ivan. Se se guiasse por seus olhos, não o podia afirmar de maneira alguma... O rosto daquele homem era praticamente impossível de identificar.

 

Estava cheio de sangue, inchado, deformado pelos golpes. Tiras rasgadas de lençóis prendiam-no a uma cadeira e seu torso descoberto mostrava laivos de sangue, esfoladuras espantosas... Mantinha-se ereto, mas a expressão de seus olhos era agônica.

 

Diante dele havia dois homens, olhando-o inexpressivamente. Um tinha um rádio de bolso na mão...

 

Estavam esperando a chamada de “Europa”. Quando este chamasse, obrigariam o russo a responder, a marcar o encontro. Depois o matariam e partiriam para o local do encontro.

 

Um dos homens tomou a dizer algo em albanês e o outro assentiu com a cabeça. Foi a um aparador empoeirado, apanhou uma garrafa que parecia de vodca e aproximou-se do russo, levantando-lhe mais a cabeça e fazendo-o beber pelo gargalo. Primeiro, o homem amarrado quis resistir e a bebida escorreu por seu queixo. Depois pareceu perceber que era vodca o que lhe davam e tomou uns goles sofregamente.

 

Seus olhos adquiriram brilho, seu corpo endireitou-se e seu peita emitiu um fundo suspiro.

 

Baby deixou a maletinha no chão, abriu-a, tirou a áspera peruca loura e colocou-a. Em seguida pôs uns óculos de sol e seu aspecto se tomou positivamente grotesco: um esplêndido corpo em soutien e calcinhas, a cabeleira rebelde, os óculos de sol em plena noite...

 

Mas foi assim que interveio para resolver aquela situação.

 

Apareceu de súbito à porta, pistola em riste, mostrando nos lábios um duro sorriso.

 

— Olá, Ivan — disse, em russo.

 

O soviético ficou estupefato, olhos muito abertos. Os outros dois homens lançaram uma exclamação, viraram-se precipitadamente para ela, procurando suas armas.

 

Plop.

 

O albanês que tinha o rádio na mão soltou um grito, deu um salto incrível e caiu de cabeça, como se não fosse suficiente a bala que se havia cravado em sua testa. O outro chegou a tocar o revólver.

 

Só isto: tocar.

 

Seus dedos ainda estavam sobre a culatra, quando soou outro “plop” e a bala entrou-lhe pela boca, aberta numa expressão de espanto e raiva ao mesmo tempo... saindo-lhe pela nuca e parecendo arrastá-lo para trás, derrubando-o.

 

Ficou caído como um pau, com a boca ainda aberta, mostrando o feio orifício no fundo de sua garganta.

 

Brigitte entrou no quarto e parou sorridente diante do russo.

 

— Eu disse “olá”, Ivan.

 

Ele passou a língua pelos lábios tumefatos, lenta, cuidadosamente.

 

— Olá — murmurou com voz rouca.

 

— Disseram-me que você estava impaciente por ver-me e não quis fazê-lo esperar mais. Aqui me tem.

 

Ivan Zekov sustentou durante uns segundos o olhar da espiã mais fabulosa de todos os tempos. Por fim, inclinou a cabeça.

 

— Desculpe... — murmurou. — Eles me obrigaram a falar pelo rádio, pedindo o encontro com você...

 

— Imaginei tudo isso. Na verdade, sobram as explicações entre nós. Tudo está claríssimo e, naturalmente, não posso culpá-lo por ter aceito que armassem uma ratoeira. Afinal de contas, você não tinha que guardar excessiva fidelidade a uma agente da CIA.

 

— De qualquer modo, eles me teriam liquidado... — disse o russo. — Mas não pude suportar mais o castigo. Chegaram não sei como, mataram meus companheiros e me capturaram vivo... Era o que se propunham, naturalmente. Disseram-me que tinha que ajudá-los a preparar uma emboscada para os agentes da CIA. Eu me neguei, mas quando começaram a me torturar...

 

— Já disse que não o culpo por isso. Talvez eu tivesse feito o mesmo em situação semelhante.

 

— Repito que sinto muito... Mas tive que escolher entre meus olhos e sua vida, Baby.

 

— Fez a melhor escolha, Ivan. Bem, você trouxe o microfilme?

 

— Não.

 

— Não? Ora, vamos, Ivan... O microfilme não está com você, nem nesta casa?

 

— Está com eles. Tive que entregá-lo.

 

— Ah... Com qual ficou?

 

Ivan Zekov mostrou com o queixo um dos agentes da China e Brigitte agachou-se a seu lado. Não demorou a encontrar o microfilme, metido numa cápsula de plástico.

 

Tirou-o, desenrolou-o e colocou-o no visor especial do seu binóculo de teatro, que sempre trazia na maletinha. Sem pressa alguma, comportava-se como se estivesse numa reunião de amigos.

 

Uma a uma, as microfotos foram passando pelo visor, ampliadas pelas lentes, diante dos atentos olhos azuis. Por fim, a diminuta tira foi retirada, novamente enrolada e recolocada na cápsula de plástico.

 

— Parece que está tudo em ordem, Ivan.

 

— Já insisti várias vezes em que nós estamos jogando limpo.

 

— E estimo constatar isso. Ficarei com este microfilme dos agentes chineses nos Estados Unidos, Ivan.

 

— Suponho.

 

— E suponho que você queira o dos agentes chineses na Rússia — sorriu ela. — Ou não?

 

— Para falar a verdade — sorriu também Zekov —, já me daria por satisfeito saindo vivo deste assunto. Todo o resto será lucro extraordinário.

 

— Pois vou lhe dar esse lucro extraordinário. Veja, aqui tem o microfilme que você e seus companheiros queriam a todo custo — tirou-o da maletinha, mostrando-o entre dois dedos. — De modo que também a CIA cumpre sua parte na troca, no... pacto, É teu. Adeus, Ivan.

 

Meteu a pequena cápsula numa orelha do russo e saudou agitando a mão, como disposta a partir. Ivan Zekov a olhava absolutamente incrédulo.

 

— Todo trato tem seu limite, Baby... — murmurou. — Eu, em seu lugar, não jogaria tão limpo.

 

— Isso não importa. E não jogo limpo para agradá-lo, mas porque não tenho necessidade de jogar sujo. É preciso sempre saber distinguir entre espiões e espiões, métodos e métodos. Você não atacou meus companheiros e tudo o que fez foi normal numa pessoa em sua situação. Isso é o que levo em conta... Oh, parece que nos chamam.

 

— Deve ser a CIA — murmurou o russo.

 

Baby estava pegando o rádio que tinha escapado das mãos de um dos agentes albaneses. Abriu-o, ao mesmo tempo em que assentia com a cabeça e perguntava asperamente, em russo: — O que é?

 

Até ela chegou nitidamente a voz de “Europa”.

 

— Sobre a entrevista com Baby, ela aceitou. Estará no mesmo local da outra noite e na mesma hora.

 

— É isso mesmo o que acha? — perguntou com sua voz normal, em inglês.

 

Houve dois segundos de silêncio. Depois a voz de “Europa” soou tênue, como arrastada, incrédula: — Baby?

 

— Sim, sou eu, querido amigo.

 

— Mas... onde você está?

 

— Estou me despedindo muito amistosamente do amigo Ivan. Terminou tudo, retirem-se.

 

— Como?

 

— Retirem-se. Chame por nossa onda os rapazes e diga-lhes que a troca de microfilmes já aconteceu. Os russos estão com o que interessava a eles e nós também. Que cada um volte a seu posto habitual.

 

— Mas onde está você exatamente? O que aconteceu?

 

— Não quero discutir mais. Já lhe disse que terminou. Tenho o microfilme e volto com ele a Washington logo que possível. Vocês esqueçam tudo e voltem a seus assuntos. Terminaram com este. Compreendeu?

 

— Sim, mas...

 

— Não há “mas”, querido. Use o rádio para dar esta ordem: retirada geral, voltem aos seus postos, assunto encerrado.

 

— Mas... e Jeff Conrad?

 

— Isso é comigo. Não vou precisar de vocês. Por isso, dentro de três minutos, não quero um só agente nosso envolvido neste caso. Está claro?

 

— Pois se isso é uma despedida — disse acremente “Europa” —, asseguro que não sinto o menor pesar por dizer adeus! Para mim e meus homens, que voltarão todos a seus postos, é como se você não estivesse em Veneza... nem tivesse estado nunca. Boa viagem!

 

— Mil vezes obrigada, querido. Ciao!

 

Fechou o rádio, olhou sorridente para o russo e também ele acabou por sorrir. Acendeu um cigarro, tirou duas baforadas e colocou-o em sua boca.

 

— Gostaria de fazer alguma coisa mais por você, Ivan, mas ainda tenho um assunto pendente. Não creio que leve muito tempo para se soltar. Então, com o microfilme, dará um jeito de voltar a Moscou, suponho... De acordo?

 

— Sim. Espero que me deem crédito quando contar tudo isso.

 

— Por que não? No MVD já sabem que se pode esperar qualquer coisa de Baby. Adeus.

 

— Adeus...

 

Brigitte apagou a luz e a casa ficou completamente às escuras. Por uma janela mal fechada, entrava um pouquinho da luz dos canais.

 

— O que está fazendo? — perguntou Ivan.

 

Brigitte não respondeu. Deslizou em silêncio para o quarto por onde havia entrado. Assomou à janela, mas nada viu de suspeito. Tudo parecia tão tranquilo como antes...

 

Guardou a pistolinha na maleta, tomou a protegê-la com a capa de plástico, passou a alça pelo pulso e uma perna pelo peitoril. Depois a outra. Soltou-se, ficando pendurada pelas duas mãos...

 

O grito de advertência ressoou então.

 

Um grito agudo, um aviso e uma ameaça ao mesmo tempo. Ela desprendeu-se do peitoril e, no momento em que caía na água, em alguma parte brilhava o clarão de um disparo silencioso. Quase em seguida, ouviram-se mais vozes e soaram mais alguns tiros abafados...

 

Por um lado do canal apareceram dois homens, revólver na mão. Pelo lado oposto apareceu outro homem, gritando alguma coisa. Ao longe soou o ronco do motor de uma lancha.

 

Quando Brigitte voltou à superfície, já sabia que estava cercada. Mas, na verdade, havia contado com aquilo e tinha certeza de que sozinha podia escapar melhor do que se tivesse a seu lado vários Johnnies, pelos quais, afinal de contas, não deixaria de se preocupar. Assim, tinha apenas que se preocupar por si mesma. E nadava tão bem que nem sequer ao ver três homens de arma na mão por sobre a borda do canal sentiu o menor receio.

 

Tornou a submergir, nadou com energia e, quando subiu à superfície estava sob uma pequena ponte... Uma das tantas pontes que há em Veneza e cujo total quase atinge meio milhar.

 

Outra vez ouviu vozes, pisadas, instruções em albanês, mas não se moveu. Ficou imóvel sob a ponte, como uma sombra a mais. A lancha não tardou a aparecer no canal, lançando seu farolete para a água negra, oleosa. Nela estavam dois homens, mas um dos da rua saltou também a bordo, excitado. Brigitte viu-o apontando precisamente para onde ela estava e compreendeu que vinham em sua direção.

 

Sem se preocupar muito, esperou que se aproximassem e então tomou a mergulhar... Passou debaixo da lancha, enquanto esta alcançava a pequena ponte. Quando saiu colada à parede do canal, um dos homens da lancha movia o farolete, procurando-a sob a ponte. Naturalmente, se queriam encontrá-la assim, tanto pior para eles. Não poderiam vê-la de modo algum e ela, que tinha a vantagem de vê-los, podia se mover como lhe conviesse.

 

Se necessário, passaria a noite assim, esquivando-se da busca daqueles homens. E não só isso, mas, por pouco que lhe dessem a oportunidade, sairia daquele canal e se afastaria deles... Sim. Era muito melhor estar sozinha, numa situação como aquela.

 

Ouviu mais vozes e virou a cabeça, começando a se sobressaltar. Outra lancha apareceu em cena, procedente do fim do canal. Nela chegavam mais três homens.

 

Começaram a dar instruções uns aos outros, dividindo a busca por aquele canal. Ainda restavam dois homens em cima, dispostos a procurá-la também pelas ruas.

 

Justamente naquele momento, a porta da casa se abriu e apareceu no umbral a alta e maciça silhueta de Ivan Zekov, já praticamente correndo.

 

Baby abriu a boca, disposta a gritar um aviso, mas naquele mesmo instante dois dos homens das lanchas viram o russo e o mostraram, gritando. Ele correu, mas várias armas dispararam ao mesmo tempo... Brigitte viu-o se deter, como se tivesse esbarrado numa parede, levando as mãos às costas, depois ao peito... Soaram mais tiros e o corpo de Ivan Sekov, relaxando de súbito, tombou no canal, erguendo um jato de água.

 

Os dois homens da calçada correram para a casa e entraram nela. Os das lanchas moviam os faroletes, passando a repassando os feixes de luz por sobre a água, enquanto uma vez mais Baby submergia. A luz de um dos faroletes deslizou acima dela.

 

Ao emergir, ficou outra vez colada à parede, bem mais longe. Segurou-se a uma pedra, arquejando... Os dois homens que tinham entrado na casa saíam então, comunicando aos gritos o que lá haviam encontrado: seus companheiros mortos.

 

Sem dúvida os albaneses do serviço de espionagem chinês tinham querido se certificar de que a ratoeira se enchera de ratinhos e tinham rodeado a casa, talvez deixando entrar inclusive a própria Baby... Sim. Talvez a houvessem visto entrar e depois, quando a viram sair, compreendessem que algo não tinha funcionado bem lá dentro...

 

Descolou-se da parede o começou a nadar, afastando-se para uma extremidade do canal, justamente para onde havia deixado a lancha de Marco Benvenuti. Se conseguisse chegar lá, a “ratinha” teria escapado definitivamente da ratoeira dos albaneses.

 

Súbito, uma das lanchas veio na mesma direção, como se a tivessem visto, embora provavelmente quisessem simplesmente cobrir a saída por aquele lado do canal. A outra se deslocou para o extremo oposto, enquanto os dois homens em terra percorriam as bordas, olhando para a água, revólver na mão.

 

A lancha chegou à extremidade do canal e lá se deteve.

 

Os homens que a ocupavam tornaram a manejar o farolete, enviando o feixe de luz para trás, convencidos de que a mulher não podia ter chegado ao ponto em que estavam.

 

Mas quando a luz veio, Baby estava novamente submersa, nadando em direção à lancha. Quando voltou à superfície, tocando o casco, ouviu perfeitamente a excitada troca de impressões entre os homens a bordo, que nunca poderiam sonhar que fosse tão pequena a distância entre eles.

 

Tinham desligado o motor, de modo que tanto eles como ela puderam ouvir que outra se aproximava. Viraram a luz para lá e uma lancha ficou rodeada pelo círculo luminoso, com um homem no comando.

 

— Marco... — murmurou Brigitte.

 

Numa fração de segundo, compreendeu que os homens da lancha iam atirar em Benvenuti. E sem pensar duas vezes, com um salto, agarrou-se à borda da lancha, imprimindo-lhe um violento balanço, tão eficaz como surpreendente: os três homens gritaram e, bracejando no ar, caíram na água, enquanto a lancha, após o último impulso de Brigitte, virava de todo, ficando com a quilha para o ar...

 

Os homens ainda não tinham saído à superfície e ela já nadava para a lancha em que vinha Marco Benvenuti. Este desligara o motor, de modo que a embarcação deslizava em silêncio, diretamente para o centro da zona de perigo.

 

Brigitte agarrou-se à borda, tomou impulso e surgiu acima dela, encharcada.

 

— Dê a volta... — arquejou. — Dê a volta, Marco!

 

Benvenuti empunhou o remo, meteu na água e começou a mover a lancha... enquanto do outro extremo do canal chegava a outra, cujos ocupantes acudiam aos gritos dos companheiros.

 

— Depressa, depressa! — insistiu Brigitte. — Vão nos alcançar!

 

Acabou de subir a bordo e empunhou o volante, de modo que o leme secundou os esforços de Benvenuti. A lancha já estava quase orientada para a saída do canal e, virando a cabeça, Baby viu a outra se aproximando velozmente, lançando sua luz, que iluminou os três homens fazendo sinais da água...

 

— Deixe o remo! — gritou Brigitte. — Vamos embora!

 

— Espere! — gritou Benvenuti. — Você vai bater na parede!

 

— Não importa! Jogue-se no convés!

 

— Não! Eu vou...!

 

Por trás deles brilharam os clarões violáceos de disparos silenciosos. Benvenuti deu um grito e saltou para frente, chocando-se com Brigitte, que mal pôde resistir ao impacto.

 

Enquanto isso, a lancha bateu mesmo contra a parede, resvalou e saiu em disparada rumo ao extremo do canal.

 

— Marco... — chamou Baby. — Marco!

 

— Continue... não se preocupe, estou bem!

 

Brigitte viu-o estendido no convés, mas não podia saber se na verdade estava bem ou não. E viu os da outra lancha recolhendo os que tinham caído na água, depois vindo todos eles atrás da de Benvenuti.

 

A uma velocidade suicida, saiu daquele canal, passou a outro mais estreito, depois a outro mais largo e finalmente, fazendo uma curva fechada, ao Rio Pone Lungo. Neste aumentou mais ainda a velocidade, lançando-se para a saída em mar aberto, para a parte da Laguna.

 

Ao chegarem a esta, Benvenuti conseguira ficar de pé e se agarrava crispadamente na borda.

 

— Brigitte! — gritou. — Não quero fazer nenhum mal a você!

 

— Eu sei! Do contrário, não viria me ajudar, Marco. Pode pilotar a lancha?

 

— Posso... Quero lhe dizer...

 

— Depois, Marco, depois. Venha!

 

Benvenuti, ao tropeços, chegou junto a ela e tomou o volante. Brigitte olhou para trás, viu a outra lancha perseguindo-os, encurtando rapidamente a distância...

 

Benvenuti girou para a esquerda, de modo que agora se dirigiam para o Canal de São Marcos. Enquanto isso, Baby abriu sua maletinha, sacou o tripé e pôs-se a montar com os três tubos seu estupendo fuzil que servia para qualquer tipo de projétil. Os tubos foram enroscados rapidamente e, em seguida, ela introduziu-lhes uma das pequenas granadas incendiárias. Encaixou a culatra e instalou-se na popa, olhando a outra lancha.

 

Naquele mesmo instante, o céu, o mar, o mundo inteiro pareceu explodir em centenas de milhares de luzes coloridas... As estrelas desapareceram sobre aquela orgia pirotécnica e até a lua pareceu empalidecer... Vozes alegres chegaram a eles, acompanhando o esplendor daquelas flores de fogo que desabrochavam espetacularmente sobre Veneza...

 

— A festa do Salvador! — riu Benvenuti. — Ai tem você os fogos de artifício, Brigitte!

 

Mas, por trás, chegavam outros fogos artificiais, muito menos inofensivos. As balas que disparavam da lancha perseguidora passavam já muito perto e Baby levou ao ombro seu fuzil de alumínio. Apontou-o serenamente, sem fazer caso das balas inimigas, e disparou.

 

Uma fração de segundo depois, a outra lancha saltava no ar, transformada numa tocha gigante que se dispersou em todas as direções. A quilha, após a explosão, ficou sobre a água, que refletia as chamas empenhadas em consumi-la rapidamente.

 

Pouca coisa, comparada com os maravilhosos fogos que iluminavam a Laguna!

 

Largando o fuzil, Brigitte colocou-se junto a Benvenuti e pôs as mãos no volante.

 

— Gire... Gire, Marco! Vamos nos meter bem debaixo dos fogos...

 

Parecia que ele queria obedecer, mas pendeu para um lado e caiu no convés, em silêncio, sem um gemido.

 

— Marco! — gritou Brigitte.

 

— Não se afaste... Quero... ver os fogos...

 

Ela deteve a lancha, que deslizou ainda uns metros sobre a água, até perder o impulso. Então, já estava ajoelhada junto a Benvenuti e ao soerguê-lo, pondo a mão em suas costas, sentiu-a úmida, viscosa...

 

— Marco, vou levá-lo a um médico, agora mesmo...!

 

— Não... Não, Brigitte. É inútil... Cheguei ao fim de meu caminho...

 

— Marco...

 

— Veja que bonitas luzes de cores! Veneza em festa!

 

— Marco, não seja criança... Vamos procurar um médico...

 

— Vou morrer, Brigitte... Para que quero um médico agora? Brigitte, eu ouvi vocês, ouvi tudo... E juro que não sou um traidor... Nunca fui um traidor! Quando Bob Tracey e Thomas Delton estiveram... no café “Terrazza del Sole”, eu também fui lá para... ajudá-los... Tenho um arquivo de muitos espiões... um arquivo particular... e sabia que os albaneses estavam preparando algo... Compreendi o que era e por isso estava lá... Eu atirei ajudando os agentes da CIA e feri um dos albaneses. Creio — riu fracamente — que isso permitiu que seus Johnnies escapassem...

 

— Eles disseram falaram de tiros vindos não se sabia de onde, Marco. Se foi você quem atirou, muito lhe agradeço.

 

— Quando soube que você estava em Veneza, Baby, compreendi que meu caminho tinha chegado ao fim... que você descobriria tudo...

 

— Mas eu não sei de nada, Marco. Resolvi o caso da troca dos microfilmes, consegui que meus companheiros feridos saíssem de Veneza, mas nada sei sobre você. E isso era parte importantíssima de meu trabalho. Por que você tinha um arquivo com fotos de agentes de todos os serviços? Para quem está você trabalhando, Marco?

 

— Para ninguém. Quer dizer, para mim... e para a CIA. Estou fazendo isso há quase quinze anos. Cheguei a Veneza, consegui documentos com o nome de Marco Benvenuti e passei a pintar para viver...

 

— E os dois milhões e meio de dólares?

 

Benvenuti riu crispadamente.

 

— Dois milhões e meio de dólares! Nunca os tive!

 

— Mas aquele dinheiro que de Hong Kong...?

 

— Espere... Saiba, Brigitte, que desde que cheguei aqui, além de pintar, pus-me a farejar por toda parte... Um profissional da espionagem fareja outro de Nova Iorque a São Francisco, não é? Pouco a pouco, fui organizando um arquivo de agentes de todos os países, mas sempre... sempre utilizava meus conhecimentos pra ajudar a CIA. Embora muitos de nossos companheiros o ignorem, eu lhes salvei a vida em Roma, em Berna, em Milão, em Marselha, em... em muitos lugares. Vinha a saber de coisas, ia lá e os ajudava, na sombra... Ajudei muitos, Baby, tal como a Bob Tracey e Thomas Delton... Acredite-me!

 

— Acredito, Marco. Você tinha um bom fichário, vigiava todos, ia a toda parte, colocava microfones, inteirava-se de planos, ajudava os da CIA... Acredito. Mas ainda não me explicou por que desapareceu da rota que devia levá-lo à China com dois e meio milhões de dólares e dois companheiros.

 

— Dois companheiros! — riu duramente Benvenuti. — Eram uns malditos traidores, Baby!

 

— Traidores? Refere-se a Bill Bowles e Aldo Martin, os dois homens designados para apoiá-lo naquela missão?

 

— Refiro-me a eles! Venderam-se ao serviço secreto chinês... Quando estávamos perto da costa da China, disseram-me: os chineses iam dar-nos aquele dinheiro em troca de que não chegasse a quem estava destinado e dos nomes destes. Eu me neguei e eles dispararam contra mim, lançaram-me fora da barcaça a tiros... Não lhes importava nada, salvo o dinheiro e a promessa dos chineses de procurar-lhes uma situação interessante. Não hesitaram em vender nossos amigos, em disparar contra mim... Fui recolhido por um pesqueiro e tratado como um animal, durante dias e dias de febre... Ainda não sei como pude sobreviver...

 

— Devia ter informado a CIA, Marco.

 

— Acha que me dariam crédito?

 

— Por que não?

 

— Não tinha provas, não tinha o dinheiro, não sabia onde estavam Bowles e Martin... Podiam pensar que tudo era invenção minha e que na verdade, depois de matar meus companheiros, eu escondera o dinheiro em algum lugar... Podiam pensar tantas coisas! Mas, sobretudo, teriam me detido, tomando impossível meu regresso à China... E eu queria voltar lá, em busca daqueles infames! Você vai rir de mim, mas eu não queria que os soubessem traidores, neste maldito mundo da espionagem... Que ninguém soubesse da existência de traidores na CIA! Preferi que nos considerassem mortos os três. Por isso, mais que por outra coisa, nunca me apresentei à Central.

 

— Compreendo... E não rio de você, Marco, pois seu gesto foi realmente belo. Tantos anos sozinho, escondendo-se, ajudando seus companheiros da CIA, sem que eles mesmos o soubessem... Foi bonito, Marco, muito bonito.

 

— Você o diz... Sinceramente? O que fiz merece... sua aprovação?

 

— Acho que você devia ter-se apresentado e dizer a verdade. Dói saber que há traidores, mas...

 

— Eu ainda era jovem então. Tinhas ideias tão altas a respeito da espionagem Depois disse a mim mesmo que não valia a pena revelar a verdade... Para quê?

 

— Você se torturou sem necessidade... Encontrou Bowles e Martin?

 

— Oh, sim! Encontrei-os um pequeno porto chinês. E matei os dois a facadas! Depois me afastei da Ásia, devagar, quase como um mendigo, passando privações de toda espécie... E cheguei a Veneza... onde ficarei para sempre.

 

— Se formos a um médico...

 

— Não insista... Agradeço, mas sinto já um frio terrível em todos os ossos... Suplico-lhe deixe-me aqui, contemplando os fogos de artifício sobre Veneza... Aqui, de certo modo, fui feliz... Em Veneza se vive... docemente... sim, docemente... E estes dois dias com você foram... os mais doces...

 

— Marco, não fale mais.

 

— Tantas coisas ouvi da agente Baby... Ao escutar sua voz, naquele canal... onde estava vigiando os albaneses, logo me dei conta de que era você, pois a tinha ouvido antes, pelo... pelo receptor... Quis matá-la, mas depois compreendi por que, às vezes, os da CIA diziam que pela agente Baby eles eram capazes de tudo... Sim, escutei-os dizer isso por meus microfones... E devo pedir perdão por... por ter golpeado você em meu apartamento, mas... não queria que você interviesse na fase final, pois... receava que a pudessem matar... Por isso quis amarrá-la, para impedir... que caísse numa armadilha...

 

Brigitte Montfort sentiu que se falasse seria traída por sua emoção. Ouvia já o estertor agônico de Marco Benvenuti, ou Jefferson Conrad, que agarrado a suas mãos e fixando nela as pupilas dilatadas teve ainda forças para dizer: — Um último... favor... Leve-me para mar aberto, quando eu morrer... e atire-me num lugar profundo, diante do Lido, com um bom peso amarrado nos pés... Veneza afundará um dia... e eu... eu a estarei esperando.

 

Sua voz extinguiu-se, mas seus olhos brilhavam febrilmente, contemplando agora a beleza dos fogos que transformavam a noite numa visão de encantamento. Brigitte o abraçava fortemente e, quando terminaram os fogos, fechou aqueles olhos já vidrados pela morte.

 

O peso do coração

 

Quando sua voz deixou de ouvir-se na sala de Mr. Cavanagh, este deteve o gravador onde a fita magnética es tivera girando e apresentando o relatório completíssimo de todo o ocorrido, desde que ela saíra de Washington para cumprir sua última missão até o momento em que tinham terminado os fogos de artifício da Festa do Salvador, em Veneza.

 

Cavanagh olhou para Brigitte Montfort, que estava sentada numa poltrona e fumava em silêncio.

 

— Você o atirou ao mar, como ele pediu? — perguntou o chefe dos agentes de ação da CIA.

 

— Claro... Veneza é uma cidade ameaçada de desaparecer sob as águas. Não sei quanto tempo tardará isso: cinquenta, cem, quinhentos anos... Mas quando acontecer, Marco Benvenuti a estará esperando.

 

— Bem... Quanto ao microfilme que os russos lhe entregaram e você nos trouxe, posso dizer-lhe que tudo está em marcha.

 

— Mandaram uma cópia do que nós tínhamos aos russos, da parte de Ivan Zekov?

 

— Sim — Cavanagh moveu-se inquieto em sua cadeira.

 

— Os russos vão surpreender-se muito. Afinal de contas, você não teve culpa de que matassem seus enviados a Veneza.

 

— Não, mas os que morreram jogaram limpo comigo, com meus companheiros, com a CIA...

 

— Já faz tempo que compreendi teu código de ética — sorriu Cavanagh. — £ certamente não deixaria de atender seu pedido. O microfilme logo chegará a Moscou, como fruto... retardado da missão cumprida por seus colegas soviéticos tombados em Veneza. O serviço secreto chinês vai se ver privado de agentes importantes nos dois países.

 

— Espero que sim. Posso voltar para casa?

 

— Naturalmente. Mas não deve entristecer-se, Brigitte.

 

— Fui a Veneza para ajudar dois Johnnies e o consegui. Mas, de qualquer modo, um outro Johnny morreu.

 

— Como? — sobressaltou-se Cavanagh. — Qual?

 

— Marco Benvenuti.

 

— Oh, esse... Você sabe que...

 

— Para mim, ele era um Johnny. Tudo o que fez, sua maneira de pensar, sua maneira de agir... Mataram um Johnny, chefe.

 

Cavanagh passou a língua pelos lábios. Depois assentiu com a cabeça, desviando o olhar daqueles maravilhosos olhos azuis, nos quais brilhavam duas enormes lágrimas, transparentes como o mais puro cristal... de Veneza.

 

— Lamento... — disse roucamente. — E começo a pensar que você precisa de umas longas, longuíssimas férias, Brigitte. Seu vigor físico é extraordinário, mas está sentindo... demasiado o peso do coração.

 

— Talvez eu tire essas férias — murmurou a mais extraordinária espiã de todos os tempos... Mas que será de meus rapazes se me dedico a descansar?

 

— Continuarão em seus postos... — grunhiu Cavanagh — embora nem todos tenham a sorte de morrer tão docemente como Marco Benvenuti.

 

— Docemente?

 

— Morreu em seus braços, não? E essa é uma morte doce para um Johnny.

 

— Porém mais doce é a vida, acho eu. Sim... Em Veneza se vive docemente, mas ao que parece também se morre.

 

— Como em toda parte.

 

Brigitte levantou-se, pegou sua maletinha e dirigiu-se para a porta.

 

— Vai tirar as longas férias? — ouviu Cavanagh perguntar.

 

Virou-se, olhou-o atentamente e deu de ombros.

 

— Vou pensar... — disse sorrindo, e os mais belos olhos do mundo encheram-se de luz. — Pensarei, Johnny.

 

 

                                                                                                    Lou Carrigan

 

 

 

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