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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FANTASMA / Jo Nesbo
FANTASMA / Jo Nesbo

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O ASSASSINATO FOI RESOLVIDO. MAS, SERÁ QUE FOI FEITA A JUSTIÇA?
Harry Hole está de volta em Oslo. Ele esteve afastado por algum tempo, mas seus fantasmas têm uma maneira de se aproximar dele. O caso que o traz de volta já está encerrado. Não há margem para dúvidas: o jovem drogado foi morto a tiros por um colega também viciado.
A POLÍCIA NÃO QUER ELE DE VOLTA ...
A permissão para reabrir a investigação foi negada, Harry investiga por conta própria. Debaixo da tranquilidade estranha da cidade, ele descobre um rastro de violência e misteriosos desaparecimentos aparentemente despercebidos pela polícia. Em cada canto Harry se depara com uma conspiração de silêncio..
OS CRIMINOSOS NÃO O QUEREM DE VOLTA ...
Harry não é o único que está interessado no caso. A partir do momento em que ele pisa fora do avião, alguém está observando cada movimento seu e rastreando cada telefonema.
ALGUÉM O QUER SILENCIADO.
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Os guinchos clamavam por ela. Como lanças acústicas, traspassavam todos os outros ruídos da noite no centro da cidade de Oslo: o ronco regular dos carros do lado de fora da janela, a sirene distante que aumentava e diminuía, e os sinos da igreja das proximidades que tinham começado a tocar. Mais cedo ela havia saído em busca de comida. Ela correu com o nariz sobre o linóleo imundo do chão da cozinha. Registrando e classificando os odores tão rápido quanto um raio em três categorias: comestíveis, ameaçadores ou irrelevantes para a sobrevivência. O cheiro acre de cinzas de cigarro. O aroma adocicado de sangue num pedaço de algodão. O odor amargo de cerveja no interior de uma tampinha de garrafa, Ringnes lager. As moléculas de gases de enxofre, salitre e dióxido de carbono emanadas de um cartucho de metal vazio concebido para um projétil de chumbo de nove por dezoito milímetros, chamado de Makarov como a arma para o qual o projétil foi originalmente concebido. Fumaça de um cigarro, ainda aceso, de filtro amarelo e papel preto, com o logotipo da águia imperial russa. O tabaco era comestível. E então: um cheiro de álcool, couro, graxa e asfalto. Um sapato. Ela cheirou. E decidiu que não era tão fácil de comer como o casaco no guarda-roupa, aquele com cheiro de gasolina e do animal podre do qual foi feito. Em seguida, seu cérebro de rato concentrou-se sobre como superar o obstáculo que estava na sua frente. Ela tentou de ambos os lados, tentou se espremer, mas, apesar do fato de que tinha apenas 25 centímetros de comprimento e pesava bem menos da metade de um quilo, ela não conseguiu. O obstáculo estava de lado com as costas bloqueando a entrada do ninho na parede, e seus oito filhotes recém-nascidos, cegos e sem pelos estavam clamando cada vez mais alto pelo leite dela. A montanha de carne cheirava a sal, suor e sangue. Era um corpo humano. Um corpo humano vivo; seus ouvidos sensíveis podiam detectar os fracos batimentos cardíacos por entre os guinchos famintos das suas crias.
Ela estava assustada, mas não tinha escolha. Alimentar suas crias era mais importante que todos os perigos, todos os esforços, todos os seus outros instintos. Em seguida, ela ficou com o nariz no ar esperando pelo surgimento de uma solução.
Os sinos da igreja estavam tocando no mesmo ritmo do coração humano. Uma batida. Duas. Três. Quatro...
Ela arreganhou seus dentes.
 
Julho. Merda. As pessoas não deveriam morrer em julho. Será que são realmente os sinos da igreja o que eu ouço, ou havia alucinógenos nas malditas balas? OK, tudo acaba aqui. E que diferença isso faz? Aqui ou ali. Agora ou mais tarde. Mas eu merecia realmente morrer em Julho? Com o canto dos pássaros, garrafas brindando, risos vindo do Rio Akerselva e aquela puta alegria de verão lá fora? Será que eu mereço estar deitado no chão de um infecto buraco de drogados com dois furos extras no meu corpo, de onde tudo se esvai: vida, segundos e flashbacks de tudo o que me trouxe até aqui? Tudo, grandes e pequenos eventos, todo o conjunto de acontecimentos fortuitos e semi-determinados. Esse sou eu? Isso é tudo? Essa é a minha vida? Eu tinha planos, não tinha? E agora não são mais do que um saco de poeira, uma piada sem graça, tão curta que eu poderia contar antes desse sino insano parar de tocar. Sino dos infernos! Ninguém me disse que ia doer tanto para morrer. Você está aí, papai? Não vá, ainda  não. Ouça, a piada é assim: Meu nome é Gusto. Eu vivi até os dezenove. Você era um cara mau que fodeu uma mulher má e nove meses depois eu apareci e fui enviado para uma família adotiva antes que pudesse dizer 'Da-da'. E então eu causei tantos problemas quanto consegui. Eles só enrolavam o cobertor carinhoso e sufocante ainda mais apertado e me perguntavam o que eu queria para me acalmar. Um maldito sorvete? Eles foram incapazes de compreender que pessoas como você e eu acabariam levando um tiro, exterminados como uma praga que espalhou o contágio e a decadência e se multiplicariam como ratos se tivessem a oportunidade. Eles só podiam culpar a si mesmos. Mas eles também queriam coisas. Todo mundo quer alguma coisa. Eu tinha treze anos na primeira vez que vi nos olhos da minha mãe adotiva o que ela queria.
"Você é tão bonito, Gusto", ela disse. Ela havia entrado no banheiro - eu tinha deixado a porta aberta, e ainda não tinha ligado o chuveiro e, portanto não havia ruídos para avisá-la. Ela ficou lá por exatamente um segundo a mais antes de sair. E eu ri, porque agora eu sabia. Esse é o meu talento, papai: eu posso ver o que as pessoas querem. Sou parecido com você? Você também era bonito? Depois que ela saiu, eu me olhei no espelho de corpo inteiro. Ela não foi a primeira a me chamar de bonito. Eu tinha me desenvolvido mais cedo do que os outros meninos. Alto, magro, já de ombros largos e musculoso. Cabelo tão negro que brilhava, parecia que a luz emanava dele. Maçãs do rosto altas. Queixo quadrado. A boca grande, gulosa, mas com lábios tão cheios quanto os de uma menina. Liso, pele bronzeada. Olhos castanhos quase negros. 'Rato marrom,' um dos rapazes da turma me apelidou. Acho que  seu nome era Didrik. Ele queria ser um pianista de concerto. Eu tinha acabado de completar quinze anos, e ele disse em voz alta na sala de aula. 'Esse rato marrom nem mesmo sabe ler direito.'

Eu apenas ri, eu sabia por que ele dissera aquilo, é claro. Sabia o que ele queria. Kamilla. Ele era secretamente apaixonado por ela; ela não era tão secretamente apaixonada por mim. Dançando numa festa da escola tive a chance de apalpar e sentir o que ela tinha debaixo do seu suéter. O que não era muito. Eu tinha contado isso para dois meninos e Didrik deve ter ouvido, e decidiu me calar. Eu não dei a mínima pelo que ele disse, mas bullying é bullying. Então eu fui até o Tutu no MC Club, motociclistas. Eu já tinha vendido um pouco de haxixe para eles na escola, e disse que precisava de um pouco de respeito para poder fazer o trabalho direito. Tutu disse que ia cuidar de Didrik. Mais tarde Didrik não explicou a ninguém como conseguiu prender dois dedos na dobradiça superior da porta do banheiro dos meninos, mas ele nunca me chamou de 'rato marrom' novamente. E - é claro - ele também nunca se tornou um pianista de concerto. Merda, isso dói muito! Não, eu não preciso de consolo, papai - eu preciso de um pico. Uma última picada e então eu vou deixar este mundo sem um pio, eu juro. Lá vem aquele sino da igreja  de novo. Papai?

Era quase meia-noite no aeroporto de Oslo em Gardermoen, quando o voo SK-459 vindo de Bangkok taxiava até o seu lugar no Portão 46. O Comandante Tord Schultz freou e o Airbus 340 parou completamente; em seguida, ele desligou rapidamente o fornecimento de combustível. O gemido metálico dos motores a jato diminuiu até um bem-humorado ronronado antes de morrer. Tord Schultz observou automaticamente o tempo de três minutos e quarenta segundos desde que tocara o solo, 12 minutos antes da hora programada. Ele e o primeiro oficial começaram a lista de verificação para o desligamento e estacionamento, uma vez que o avião iria permanecer lá durante a noite. Com a carga. Ele folheou a pasta com o Diário de Bordo. Setembro de 2011. Em Bangkok ainda era a época das chuvas e o ar tinha sido um vapor quente como de costume, e ele ansiava pelo lar com as primeiras noites frias de outono. Oslo, em setembro. Não havia melhor lugar na terra. Ele preencheu o formulário do combustível restante. A conta de combustível. Ele já tinha sido obrigado a dar explicações sobre o assunto. Depois de voos de Amsterdã ou Madrid que ele tinha voado mais rápido do que era economicamente razoável, e, portanto queimado milhares de coroas em combustível. No final, o seu chefe o repreendeu severamente.
“Qual o motivo da pressa?”, ele tinha gritado. “Você não tinha nenhum passageiro com voos de conexão!”
“A companhia aérea mais pontual do mundo”, Tord Schultz tinha murmurado, citando o slogan publicitário.
“A companhia aérea com as finanças mais fodidas do mundo! Essa é a melhor explicação que você pode me dar?”
Tord Schultz deu de ombros. Afinal de contas, ele não podia dizer a razão, ele tinha aberto os bicos de combustível porque havia algo que ele próprio tinha que fazer. O voo para o qual tinha sido escalado, para Bergen, Trondheim ou Stavanger. Era extremamente importante que ele fizesse a viagem e não um dos outros pilotos.
Ele era velho demais para que eles fizessem alguma coisa além de gritar o velho discurso retórico e espernear. Ele tinha evitado cometer erros graves, o sindicato cuidava dele, e faltavam apenas alguns anos antes que alcançasse os dois cincos, cinquenta e cinco anos, e então seria aposentado não importando o havia acontecido. Tord Schultz suspirou. Alguns anos para consertar as coisas, para evitar acabar como o piloto com as finanças mais fodidas do mundo.
Ele assinou o Diário de Bordo, se levantou e saiu do cockpit para mostrar sua fileira de dentes perolados estampada no seu rosto bronzeado de piloto para os passageiros. O sorriso que lhes diria que ele era o Senhor Confiança em pessoa. Piloto. O título profissional que uma vez o tornara especial aos olhos de outras pessoas. Ele tinha visto como as pessoas, homens e mulheres, jovens e idosos, uma vez que a palavra mágica ‘piloto’ era enunciada, tinham olhado para ele e descobriram não só o carisma, a indiferença, o encanto de menino, mas também o dinamismo do comandante e a fria precisão, o intelecto superior e a coragem de um homem que desafiou as leis da física e os medos inatos dos meros mortais. Mas isso foi há muito tempo atrás. Agora, eles o consideravam como o motorista de ônibus que realmente era e lhe perguntavam quem tinha as passagens mais baratas para Las Palmas, e porque havia mais espaço para as pernas na Lufthansa.
Que fossem para o inferno. Que todos eles fossem para o inferno.
Tord Schultz postou-se na porta de saída junto aos comissários de bordo, endireitou-se e sorriu, disse: ‘Seja bem-vinda, senhorita’ com sotaque Texano, do jeito que tinham aprendido no curso de piloto na escola em Sheppard. Recebeu um sorriso de reconhecimento. Houve um tempo em que ele poderia ter marcado um encontro no saguão de desembarque com aquele sorriso. E ele marcou muitos, realmente. Da Cidade do Cabo, na África do Sul, até Alta, no norte da Noruega. Mulheres. Muitas mulheres. Esse tinha sido o problema. E a solução. Mulheres. Muitas mulheres. Novas mulheres. E agora? Sua linha de cabelo estava recuando para debaixo do quepe de piloto, mas o uniforme feito sob medida enfatizava sua altura, e os ombros largos. Foi essa a desculpa que ele apresentou por não ter sido admitido nos aviões de combate na escola de voo, e terminou como piloto de carga num Hércules, o burro de carga dos céus. Ele havia dito em casa que a sua coluna tinha espichado alguns centímetros a mais, e que os cockpits dos Starfighter F-5 e F-16 desclassificavam todos, menos os anões. A verdade era que ele não tinha correspondido aos níveis técnicos requeridos. Seu corpo era tudo o que ele tinha conseguido manter daqueles tempos, a única coisa que não tinha decaído, que não tinha se desintegrado. Tal como os seus casamentos. Sua família. Amigos. Como isso tinha acontecido? Por onde tinha estado quando tudo isso aconteceu? Presumivelmente, em um quarto de hotel na Cidade do Cabo ou em Alta, com cocaína no nariz para compensar as bebidas potencialmente mortais do bar, e seu pau na não de uma ‘Seja bem-vinda, senhorita’ qualquer para compensar tudo o que ele não era e nunca seria.
O olhar de Tord Schultz caiu sobre um homem vindo na sua direção pelo corredor. Ele andava com a cabeça inclinada, mas ainda assim ele se elevava sobre os outros passageiros. Ele era magro e de ombros largos, igual a ele mesmo. Mais jovem, entretanto. Cabelos loiros curtos eriçados como um pincel. Parecia norueguês, mas não era um turista a caminho de casa, mais provável que fosse um expatriado com o bronzeado, quase cinza, típico dos brancos que passaram um longo tempo no Sudeste da Ásia. O indiscutivelmente bem talhado terno marrom de linho dava uma impressão de qualidade, seriedade. Talvez um homem de negócios. Graças, talvez, a uma preocupação com as despesas, ele viajou na classe econômica. Mas não foi nem o terno nem sua altura que tinham provocado o olhar fixo de Tord Schultz neste homem. Foi a cicatriz. Começava no canto esquerdo da boca e quase chegava ao seu ouvido, como uma foice em forma de sorriso. Grotesca e maravilhosamente dramática.
“Até a próxima vista.”
Tord Schultz ficou surpreso, mas não conseguiu responder antes que o homem tivesse passado e estivesse fora do avião. A voz era áspera e rouca, que, juntamente com os olhos injetados sugeria que ele tinha acabado de acordar.
O avião estava vazio. O micro-ônibus com o pessoal de limpeza ficou estacionado na pista enquanto a tripulação saía reunida em grupo. Tord Schultz percebeu que o russo pequeno e atarracado foi o primeiro a descer do ônibus, viu-o subir os degraus com seu colete amarelo de alta visibilidade com o logotipo da empresa - Solox.
Até a próxima vista.
O cérebro de Tord Schultz repetiu as palavras enquanto caminhava pela ponte de desembarque para se reunir com o seu pessoal na Sala dos Tripulantes.
“Será que você não esqueceu sua mala de mão no armário?”, perguntou uma das comissárias de bordo, apontando a Samsonite de rodinhas de Tord. Ele não conseguia lembrar qual era seu nome. Mia? Maja? Não importa, em todo caso ele tinha trepado com ela durante uma escala no século passado. Tinha?
“Não”, disse Tord Schultz.
Até a próxima vista. Como em ‘nos veremos de novo’? Ou como em ‘Eu posso ver que você está olhando para mim’?
Já estavam no corredor de desvio que acessava a porta da Sala dos Tripulantes, onde, em teoria, havia espaço para um funcionário da alfândega. Noventa e nove por cento das vezes o assento atrás da divisória estava vazio, e ele nunca - nem uma única vez nos 30 anos em que trabalhava para a companhia aérea - tinha sido parado e revistado.
Até a próxima vista.
Como em ‘eu estou de olho, certo?’. E ‘eu posso ver quem você é’.
Tord Schultz correu pela porta.
 
Sergey Ivanov se assegurou, como de costume, de ser o primeiro a descer quando o micro-ônibus parou na pista ao lado do Airbus, e correu até as escadas do avião vazio. Ele levou o aspirador de pó para o cockpit e trancou a porta atrás de si. Ele colocou as luvas de látex e puxou-as até onde as tatuagens começavam, retirou a tampa da frente do aspirador e abriu o armário do comandante. Retirou a mala de mão Samsonite, abriu o zíper, retirou a placa de metal do fundo e encontrou os quatro pacotes, parecidos com tijolos, de um quilo. Então ele colocou-os no aspirador, apertou-os entre o tubo e o grande saco de recolher o pó que tinha a certeza de ter esvaziado de antemão. Encaixou a tampa da frente e travou, abriu a porta da cabine e ligou o aspirador de pó. Tudo foi feito em segundos.
Depois de arrumar e limpar a cabine a equipe de limpeza caminhou tranquilamente para fora do avião, colocaram os sacos de lixo azul claro na parte de trás da Daihatsu e voltaram para a sala de embarque. Poucos aviões ainda iriam pousar e decolar antes do aeroporto fechar esta noite. Ivanov olhou por cima do ombro para Jenny, a supervisora de turno. Ele olhou para o painel que mostrava os horários de chegada e partida. Sem atrasos.
“Vou pegar o Bergen,” Sergey disse com seu sotaque rude. Pelo menos ele falava norueguês; ele conhecia russos que viviam na Noruega há dez anos e ainda eram obrigados a recorrer ao Inglês. Mas quando Sergey tinha sido trazido para cá, há quase dois anos, seu tio havia deixado claro que era para ele aprender o norueguês, e consolou-o dizendo que Serguei parecia ter um pouco do talento que ele mesmo tinha para entender línguas.
“Eu já escalei o pessoal para o Bergen”, disse Jenny. “Você pode esperar pelo Trondheim.”
“Eu vou fazer o Bergen”, disse Sergey. “Nick pode fazer o Trondheim.”
Jenny olhou para ele. “Como você quiser. Não se mate de trabalhar, Sergey.”
Sergey foi até uma cadeira na parede e sentou-se. Recostou-se com cuidado. A pele em volta dos ombros ainda estava dolorida onde o tatuador norueguês estava realizando seu trabalho. Ele estava trabalhando a partir de desenhos que Sergey tinha recebido de Imre, o tatuador da prisão Nizhny Tagil, e ainda faltava muito para terminar. Sergey pensou nas tatuagens que os tenentes do seu tio, Andrey e Peter, tinham. Os traços pálidos azuis na pele dos dois cossacos de Altai falavam de suas vidas dramáticas e grandes feitos. Mas Sergey tinha um feito em seu nome também. Um assassinato. Foi um pequeno assassinato, mas já havia sido tatuado na forma de um anjo. E, talvez, haveria outro assassinato. Um grande. Se o necessário se tornasse necessário, o seu tio tinha dito, e avisou-o para estar pronto, preparado mentalmente, e para manter a sua faca preparada. Um homem estava chegando, ele tinha dito. Não havia certeza absoluta, mas era provável.
Provável.
Sergey Ivanov olhou atentamente suas mãos. Ele não tinha retirado as luvas de látex. É claro que era uma coincidência que o seu equipamento de trabalho padrão também garantia que ele não iria deixar impressões digitais nas embalagens se as coisas corressem mal um dia. Não havia nenhum indício de tremor. Suas mãos vinham fazendo isso há tanto tempo que ele tinha que se lembrar de vez em quando dos riscos e ficar alerta. Ele esperava que estivesse bem calmo quando o necessário - chto nuzhno – tivesse que ser realizado. Quando ele iria merecer ganhar a tatuagem para a qual ele já tinha encomendado o desenho. Ele evocou a imagem novamente: ele desabotoando sua camisa na sala de estar em casa, em Tagil, com todos os seus irmãos mafiosos presentes, e mostrando-lhes suas novas tatuagens. E não seria necessário falar nada, nenhuma palavra. Portanto, ele não diria nada. Bastaria ver nos olhos deles: ele já não era mais o Pequeno Sergey. Durante semanas, ele vinha orando à noite para que o homem chegasse. E que o necessário se tornasse necessário.
A mensagem para limpar o avião de Bergen crepitava no walkie-talkie.
Sergey se levantou. Bocejou.
O procedimento na segunda cabine era ainda mais simples.
Abrir o aspirador de pó, colocar o conteúdo na mala de mão no armário do primeiro oficial.
Ao sair a equipe de limpeza se encontrou com a tripulação que entrava. Sergey Ivanov evitou os olhos do primeiro oficial, olhou para baixo e notou que a mala com rodinhas dele era do mesmo modelo da de Schultz. Samsonite Aspire GRT. Vermelha. Sem a pequena mala de mão vermelha que podia ser presa nela por cima. Eles não sabiam nada um do outro, nada sobre suas motivações, nada sobre suas vidas ou famílias. Tudo o que ligava Sergey, Schultz e o jovem primeiro oficial eram os números de seus telefones celulares não registrados, adquiridos na Tailândia, para que eles pudessem enviar um texto caso houvesse mudanças no cronograma. Sergey duvidava que Schultz e o primeiro oficial soubessem um do outro. Andrey limitava todas as informações num nível estritamente básico de conhecimento. Por essa razão, Sergey não tinha idéia do que acontecia com os pacotes. Entretanto ele podia adivinhar. Quando o primeiro oficial, em um voo interno entre Oslo e Bergen, aterrissasse não haveria nenhuma verificação alfandegária na bagagem, nenhuma verificação de segurança. O oficial levaria a mala de bordo para o hotel em Bergen, onde a tripulação ficaria hospedada. Uma batida discreta na porta do hotel no meio da noite e quatro quilos de heroína trocariam de mãos. Mesmo com a nova droga, violino, empurrando para baixo os preços da heroína, o valor na rua para um quarto ainda era de pelo menos 250 mil coroas. Mil por grama. Dado que a mercadoria - que já tinha sido diluída – era diluída mais uma vez, corresponderia a oito milhões de coroas no total. Ele podia fazer as contas. O suficiente para saber que era mal pago. Mas ele também sabia que seria digno de merecer uma fatia maior quando fizesse o necessário. E depois de alguns anos com o novo salário ele poderia comprar uma casa em Tagil, encontrar uma garota siberiana de boa aparência, e talvez deixar sua mãe e seu pai se mudarem para lá quando ficassem velhos.
Sergey Ivanov sentiu a coceira da tatuagem entre as omoplatas.

Era como se a pele estivesse ansiosa para a próxima seção.

homem com terno de linho desceu do expresso do aeroporto na Oslo Central Station. Ele deduziu que o dia devia ter sido quente e ensolarado na sua velha cidade natal pois o ar ainda era agradável e envolvente. Ele estava carregando uma pequena mala de lona quase cômica e saiu da estação no lado sul com passos rápidos e flexíveis. Do lado de fora, o coração de Oslo - que alguns afirmavam que a cidade não tinha - batia num ritmo repousante. O ritmo noturno. Os poucos carros por lá estavam enrolados em torno da Traffic Machine, (1) sendo expulsos, um por um, para o leste para Estocolmo e Trondheim, para o norte para outras partes da cidade ou para o oeste para Drammen e Kristiansand. Tanto na forma como no tamanho a Traffic Machine se assemelhava a um brontossauro, um gigante moribundo que estava prestes a desaparecer, para ser substituído por residências e empresas no esplêndido novo centro de Oslo já decorado com a sua esplendorosa nova construção, a Opera House. O homem parou e olhou para o iceberg branco situado entre a Traffic Machine e o fiorde. Esta obra já havia vencido prêmios de arquitetura de todo o mundo; pessoas vinham de longe para andar sobre o telhado de mármore italiano que se inclinava diretamente até tocar o mar. A luz do lado de dentro das grandes janelas do prédio era tão forte como a luz da lua caindo sobre ele.
Céus, que grande melhoria, o homem pensou.
Mas, não foram as futuras promessas de um novo desenvolvimento urbano que ele viu, mas o passado. Esta tinha sido a área de Oslo liberada para drogas, o território dos viciados, onde podiam se injetar e viajar meio escondidos em barracas, a cidade das crianças perdidas. Uma separação frágil entre eles e seus anônimos e bem-intencionados pais sociais democráticos. Uma grande melhoria, ele pensou. Eles estavam embarcando numa viagem para o inferno em cenários muito mais bonitos.
Passaram-se três anos desde a última vez que ele estivera aqui. Tudo era novo. Tudo continuava a mesma coisa.
Eles haviam ocupado uma faixa de grama entre a Central Station e a autopista, mais perto do acostamento da rua. Ainda tão dopados quanto antes. Deitados de costas, de olhos fechados como se o sol estivesse muito forte, encolhidos tentando encontrar uma veia que ainda pudesse ser usada, ou de pé envergados sobre seus joelhos curvos de drogados e suas mochilas, sem saber se estavam indo ou vindo. As mesmas caras. Não as mesmas caras dos mortos vivos de quando ele costumava andar por aqui, é claro, aqueles tinham morrido há muito tempo, definitivamente. Mas as mesmas caras.
Pelo caminho até a Tollbugata havia mais deles. Uma vez que a sua volta estava relacionada com eles, ele tentou colher uma impressão. Tentou determinar se havia mais ou menos deles. Notou que eles estavam negociando na Plata novamente. A pequena pracinha de asfalto a oeste da Jernbanetorget, que havia sido pintada de branco, tinha sido a Taiwan de Oslo, a área de livre comércio de drogas, criada para que as autoridades pudessem manter um olhar atento sobre o que estava acontecendo e talvez interceptar jovens compradores de primeira viagem. Mas como o negócio cresceu em tamanho e Plata mostrou o verdadeiro rosto de Oslo como um dos piores pontos de venda de heroína da Europa, o lugar tornou-se uma atração turística. O volume de negócios com a heroína e as estatísticas sobre mortes por overdose tinham sido uma fonte de vergonha para a capital, mas mesmo assim não uma mancha tão visível quanto Plata. Os jornais e as emissoras de TV alimentavam o resto do país com imagens de jovens chapados, zumbis vagando pelo centro da cidade em plena luz do dia. Os políticos foram responsabilizados. Quando os direitistas estavam no poder a esquerda ficava em polvorosa. ‘Não há centros de tratamento suficientes.’ ‘As penas de prisão criam usuários.’ ‘A nova sociedade de classes cria gangues e tráfico de drogas em áreas de imigrantes’. Quando a esquerda estava no poder, a direita ficava em polvorosa. ‘Faltam policiais’ ‘Os refugiados são aceitos muito facilmente.’ ‘Seis entre sete presos são estrangeiros.’
Assim, depois de ser perseguido por todos os lados, a Câmara Municipal de Oslo chegou à decisão inevitável: salvar a própria pele. Varrer a merda para debaixo do tapete. Fechar a Plata.
O homem com terno de linho viu um jovem vestindo uma camiseta vermelha-e-branca do Arsenal de pé nos degraus da escadaria com quatro pessoas zanzando na frente dele. A cabeça do jogador do Arsenal balançava da esquerda para a direita, como uma galinha, ouvindo uma música imaginária. As outras quatro cabeças estavam imóveis, apenas olhando para o traficante com as cores do Arsenal, que estava esperando até que houvesse um número suficiente deles, um grupo completo, talvez fossem cinco, talvez seis. Em seguida, ele iria receber o pagamento pelas encomendas e levá-los até onde a droga estava. Ao dobrar a esquina ou dentro de um quintal, onde seu parceiro estaria esperando. Era um princípio simples; o cara com a droga nunca tinha qualquer contato com o dinheiro e o cara com o dinheiro nunca tinha qualquer contato com as drogas. Isso tornava mais difícil para a polícia obter a sólida evidência de tráfico de drogas contra qualquer um deles. No entanto, o homem com terno de linho ficou surpreso, pois o que ele viu foi o velho método usado nos anos 1980 e 90. Como a polícia desistiu de tentar pegar traficantes nas ruas, os traficantes tinham abandonado as suas rotinas elaboradas e a montagem de equipes e começaram a vender diretamente quando os consumidores retornaram; dinheiro numa mão, drogas na outra. Será que a polícia começaria a prender traficantes de rua novamente?
Um homem numa bicicleta com marchas chegou pedalando, ofegante, capacete, óculos laranja e roupa de Jersey de cor viva. Os músculos da coxa abaulados sob os shorts apertados, e a bicicleta parecia cara. Deve ter sido por isso que levou a bicicleta quando ele e o resto do grupo seguiram o jogador do Arsenal, dobrando a esquina para o outro lado do edifício. Tudo era novo. Tudo continuava a mesma coisa. Mas havia menos deles, não havia?
As prostitutas na esquina da Skippergata falaram com ele em Inglês macarrônico - Hey, baby! Espere um minuto, bonitão! - mas ele apenas balançou a cabeça. E parece que o boato sobre a sua castidade, ou possíveis dificuldades financeiras se espalharam mais rápido do que ele podia caminhar, porque as meninas mais adiante não mostraram nenhum interesse nele. No seu tempo, as prostitutas de Oslo se vestiam com roupas comuns, calça jeans e jaquetas grossas. Não havia muitas delas; o mercado era vendedor. Mas, agora, a competição era acirrada, e havia saias curtas, saltos altos e meias arrastão. As mulheres africanas pareciam já estar sentindo frio. Esperem até dezembro, ele pensou.
Ele avançou mais fundo no Kvadraturen, que foi o marco inicial da cidade de Oslo, mas agora era um deserto de asfalto e tijolo com edifícios administrativos e escritórios para 250 mil formigas operárias, que corriam para casa as quatro ou as cinco horas e cediam a área para os animais noturnos. Quando o rei Christian IV construiu a cidade em quarteirões quadrados, de acordo com os ideais de ordem geométrica renascentistas, a população vivia de olho nos incêndios. O mito popular dizia que por ali nas noites dos anos bissextos, você poderia ver pessoas em chamas correndo entre as casas, ouvir seus gritos, vê-los se queimando e dissolvendo, deixando uma camada de cinzas no chão, e se você conseguisse pega-la antes que o vento soprasse tudo para longe a casa onde você morava nunca iria se incendiar. Por causa do risco de incêndios Christian IV construiu ruas largas, para os padrões dos pobres de Oslo. Casas foram construídas com um material de construção não Norueguês, tijolo.
Ao longo de uma dessas paredes de tijolos o homem com terno de linho passou pela porta aberta de um bar. Uma nova violação de 'Welcome to the Jungle' dos Guns N' Roses, tocada num ritmo dance-reggae que desrespeitava tanto Marley quanto Rose, Slash e Stradlin, explodia pelos alto falantes para os fumantes que estavam do lado de fora. Ele parou diante de um braço estendido.
“Você tem fogo?”
Uma dama rechonchuda, perto do fim dos seus trinta anos, olhava para ele. Seu cigarro balançava provocativamente para cima e para baixo entre seus lábios vermelhos.
Ele levantou uma sobrancelha e olhou para sua amiga sorridente, que estava atrás dela com um cigarro brilhando. A peso-pesado percebeu e riu também, dando um passo para o lado para recuperar o equilíbrio.
“Não seja tão chato”, disse ela com o mesmo sotaque de Sørland da Princesa Real. Ele tinha ouvido falar que havia uma prostituta que ficou rica por se parecer com ela, falar como ela e se vestir como ela. E que a taxa de 5.000 coroas por hora incluía um cetro de plástico que o cliente podia utilizar do jeito que ele bem desejasse.
A mão da mulher pousou no seu braço quando ele fez menção de seguir em frente. Ela se inclinou em direção a ele e respirou vinho tinto no seu rosto.
“Você é um sujeito de boa aparência. Que tal você... me acender?”
Ele virou o outro lado do seu rosto para ela. O lado ruim. O lado sujeito-com-aparência-não-tão-boa. Sentiu-a estremecer e se afastar quando viu a marca deixada pelo prego naquela vez no Congo. Estendia-se da boca ao ouvido como um rasgo mal costurado.
Ele caminhou em frente quando a música mudou para Nirvana. ‘Come As You Are’. Na versão original.
“Hash?”
A voz veio de um portal, mas ele não parou nem se virou.
"Speed?" (2)
 Ele estava limpo há três anos e não tinha intenção de começar tudo de novo.
“Violino?”
Muito menos agora.
Na frente dele, na calçada, um jovem estava parado diante de dois traficantes; ele estava mostrando algo enquanto falava. O jovem olhou para cima quando ele se aproximou, fixando dois olhos cinzentos e inquisidores nele. Olhos de policial, o homem pensou, abaixou a cabeça e atravessou a rua. Talvez fosse um pouco paranoico; afinal de contas, era improvável que um policial tão jovem fosse reconhecê-lo.
Lá estava o hotel. Uma espelunca. Leon.
A rua estava quase deserta naquela parte. Do outro lado, sob uma lâmpada, ele viu o ciclista montado na sua bicicleta, com outro ciclista, também usando equipamento de ciclismo profissional. Ele estava ajudando o outro cara a se injetar no pescoço.
O homem com terno de linho balançou a cabeça e olhou para a fachada do edifício diante dele.
Lá estava a mesma faixa, cinza devido a sujeira, pendurada entre as janelas do terceiro andar e do piso superior. ‘Quatrocentas coroas por noite!’ Tudo era novo. Tudo continuava a mesma coisa.
 
O recepcionista do Hotel Leon era novo. Um jovem rapaz, que saudou o homem com terno de linho com um sorriso incrivelmente educado e uma incrível - para o Leon - falta de desconfiança. Ele desejou-lhe um caloroso ‘Welcome’ sem uma ponta de ironia na voz e pediu para ver seu passaporte. O homem assumiu que foi confundido com um estrangeiro por causa da sua pele bronzeada e do terno de linho, e entregou seu passaporte norueguês para o recepcionista. Estava desgastado e cheio de carimbos. Tantos que poderia ser chamado de um boa vida.
“Oh, tudo bem”, disse o recepcionista, devolvendo-o. Colocou um formulário no balcão e entregou-lhe uma caneta.
“Os itens assinalados são suficientes.”
Um formulário de check-in no Leon? o homem pensou com surpresa. Talvez algumas coisas tenham mudado afinal de contas. Ele pegou a caneta e viu o recepcionista olhando para sua mão, o dedo médio. O que já fora o seu dedo mais longo antes de ser cortado numa certa casa em Holmenkollen Ridge. Agora, a primeira parte tinha sido substituída por uma opaca prótese de titânio, cinza azulada. Não era de muita utilidade, mas dava equilíbrio para os dedos adjacentes quando ele tinha que segurar algo, e não deixava a mão com uma aparência tão curta. A única desvantagem eram as explicações sem fim quando ele tinha que passar pela segurança nos aeroportos.
Ele preencheu Nome e Sobrenome.
Data de nascimento.
Ele escreveu sabendo que agora aparentava ser um homem na casa dos quarenta e poucos anos e não aquele geriátrico danificado que havia deixado a Noruega, há três anos. Ele havia se submetido a um regime rigoroso de exercícios, alimentação saudável, sono abundante e - é claro - absolutamente nenhuma substância que causasse dependência. O objetivo do regime não tinha sido se parecer mais jovem, mas evitar a morte. Além disso, ele gostava. Na verdade, ele sempre gostou de rotinas fixas, disciplina, ordem. Então, por que a sua vida era um caos, tanta autodestruição e uma série de relacionamentos rompidos entre os períodos escuros de intoxicação? Os espaços em branco olhavam para ele, interrogativamente. Mas eram muito pequenos para as respostas que ele precisava.
Endereço Permanente.
Bem, o apartamento em Sofies Gate foi vendido logo depois que ele partiu há três anos, o mesmo aconteceu com a casa de seus pais em Oppsal. Na sua atual ocupação um endereço oficial implicaria num certo risco inerente. Assim, ele escreveu o que normalmente escrevia quando fazia o check-in em outros hotéis: Chungking Mansion, Hong Kong. O que não estava mais longe da verdade do que qualquer outra coisa.
Ocupação.
Homicídios. Ele não escreveu isso. Este item não estava assinalado.
Número de telefone.
Ele colocou um fictício. Telefones celulares podem ser rastreados, as conversas e o local de onde você as fez.
Número de telefone de parentes próximos.
Parente próximo? Qual marido iria voluntariamente dar o número de sua esposa quando fazia check-in no Hotel Leon? Afinal de contas, o lugar era o mais próximo que Oslo tinha de um bordel público.
O recepcionista podia evidentemente ler sua mente. “Somente para o caso de você se sentir indisposto e nós precisarmos ligar para alguém.”
Harry acenou com a cabeça. Em caso de um ataque cardíaco durante o ato.
“Você não precisa escrever nada se não quiser...”
“Não”, disse o homem, olhando para as palavras. Parente mais próximo. Ele tinha Søs. Uma irmã com, como ela própria chamava, ‘um ligeiro toque de síndrome de Down’, mas que sempre lidou com a vida muito melhor do que o seu irmão mais velho. Além de Søs não havia mais ninguém. Absolutamente ninguém. Parente mais próximo,  ninguém realmene.
Ele assinalou ‘Dinheiro’ para o modo de pagamento, assinou e entregou o formulário para o recepcionista. Que deu uma passada de olhos através dele. E então, Harry finalmente viu aquele brilho nos olhos. A desconfiança.
“Você é... você é Harry Hole?”
Harry Hole assentiu. “Isso é um problema?”
O rapaz balançou a cabeça. Engoliu em seco.
“Tudo bem,” disse Harry. “Você tem uma chave para mim?”
“Oh, desculpe! Aqui. 301.”
Harry pegou e notou que as pupilas do rapaz haviam se arregalado e sua voz se constringiu.
“É... é o meu tio”, disse o rapaz. “Ele é o gerente do hotel. Costumava ficar na recepção antes de mim. Ele me falou de você.”
“Só coisas agradáveis, tenho certeza,” Harry disse, agarrando sua mala de lona e indo para as escadas.
“O elevador...”
“Não gosto de elevadores,” Harry disse sem se virar.
O quarto era como antes. Desgastado, pequeno e mais ou menos limpo. Não, na verdade as cortinas eram novas. Verdes. Tecido grosso. Provavelmente após secar não precisava passar. O que fez ele se lembrar. Ele pendurou o terno no banheiro e ligou o chuveiro para que o vapor removesse os vincos. O terno lhe custou oitocentos dólares de Hong Kong na Punjab House na Nathan Road, mas no seu trabalho era um investimento essencial; ninguém respeitava um homem mal vestido. Ele ficou debaixo do chuveiro. A água quente fez sua pele formigar. Depois disso, ele andou nu pelo quarto até a janela e abriu-a. Segundo andar. Quintal dos fundos. De uma janela aberta escapavam gemidos de entusiasmo simulado. Ele segurou no varão da cortina e inclinou-se para fora. Olhou para baixo e sentiu o cheiro doce do lixo subindo no ar. Ele cuspiu e ouviu a batida no papel na caçamba de lixo. Mas o sussurro que se seguiu não foi de papel. Houve um estalo, e as cortinas verdes caíram no chão de cada lado dele. Merda! Ele puxou o varão para fora da bainha da cortina. Era do velho tipo com duas bolas nas extremidades; ele já tinha se quebrado antes e alguém havia tentado conserta-lo com fita adesiva. Harry sentou-se na cama e abriu a gaveta da mesinha de cabeceira. Uma Bíblia com capa de couro sintético azul claro e um kit de costura que continha uma linha preta enrolada num cartão de papelão com uma agulha enfiada nele. Refletindo seriamente, Harry percebeu que poderia não ser uma idéia tão ruim, afinal. Eventualmente os hóspedes poderiam costurar os botões soltos e depois ler sobre o perdão dos pecados. Deitou-se na cama e olhou para o teto. Tudo era novo. Tudo... Ele fechou os olhos. No voo ele não conseguiu tirar nem uma soneca, e com ou sem jet lag, com ou sem cortinas, ele ia ter que dormir. E começou a sonhar o mesmo sonho que tivera todas as noites durante os últimos três anos: ele estava correndo por um corredor, fugindo de uma avalanche devastadora que sugava todo o ar, deixando-o incapaz de respirar.
Era apenas uma questão de deixar fluir e manter os olhos fechados mais um pouco.
Ele perdeu o controle sobre os seus pensamentos; eles foram se afastando dele.
Parente mais próximo.
Parente. Família.
Parente mais próximo.
Ele era isso. É por isso que ele estava de volta.
 
ergey estava dirigindo pela E6 em direção a Oslo. Desejando estar na cama do seu apartamento em Furuset. Mantendo 120, mesmo com a autoestrada praticamente vazia tão tarde da noite. Seu celular tocou. A conversa com Andrey foi concisa. Ele tinha falado com seu tio, o ataman - o líder - como Andrey chamava o tio. Depois de terem desligado Sergey não conseguiu se segurar. Ele afundou o pé. Gritou com prazer. O homem tinha chegado. Hoje, esta noite. Ele estava aqui! Sergey não devia fazer nada no momento, pode ser que a situação se resolvesse por si mesma, Andrey tinha dito. Mas agora ele tinha que estar ainda mais preparado, mentalmente e fisicamente. Tinha que praticar com a faca, dormir, estar na ponta dos cascos. Para o caso do necessário se tornar necessário.
 

(1)  Traffic Machine: Máquina de Tráfego era um sistema viário constituído por rotatórias elevadas e pistas, também elevadas, construído no centro de Oslo. Após uma revitalização do centro, foi demolida e substituída por tuneis.
(2)  Hash é gíria para haxixe. Speed é gíria para anfetamina.

ord Schultz mal ouviu o rugido de trovão do avião quando se sentou no sofá respirando pesadamente. Uma fina camada de transpiração sobre seu torso nu, e os ecos de ferro contra ferro ainda pairando entre as paredes nuas da sala de estar. Atrás do sofá estavam seus pesos e o banco supino com estofado de couro sintético brilhando com seu suor. Da tela de TV, Donald Draper olhava através da fumaça do seu cigarro, bebericando uísque. Outro avião rugiu sobre os telhados. Mad Men. Os anos sessenta. Estados Unidos. Mulheres vestindo roupas bacanas. Bebidas bacanas em copos bacanas. Cigarros bacanas sem mentol nem filtros. Um tempo no qual o que não te matava te fazia ficar mais forte. Ele tinha comprado apenas a primeira temporada. Assistia todos os capítulos e recomeçava tudo novamente. Ele não tinha certeza se gostaria da segunda temporada.
Tord Schultz olhou para a linha branca no tampo de vidro da mesa de centro e os resíduos na borda do seu crachá da companhia. Ele tinha usado o crachá para fazer uma carreira, como de costume. O crachá que ele prendia no bolso do uniforme de comandante, o crachá que lhe dava acesso ao avião, ao cockpit, ao céu, ao salário. O crachá que fazia dele o que ele era. O crachá que - junto com todas as outras coisas - seria tirado dele se fosse descoberto. Era por isso que se sentia no direito de usar o crachá. Havia - no meio daquela desonestidade – alguma coerência.
Eles iriam viajar para Bangkok amanhã de manhã cedo. Dois dias de descanso no Sukhumvit Residence. Bom. Agora era muito bom. Melhor do que antes. Ele não tinha gostado do acordo quando voava de Amsterdam. Um risco muito grande. Depois de terem descoberto o quão profundamente as tripulações sul-americanas estavam envolvidas no contrabando de cocaína para o aeroporto Schiphol, todas as tripulações, independentemente da companhia aérea, corriam o risco ter sua bagagem de mão verificada e também de serem submetidos a uma revista corporal. Além disso, o acordo tinha sido de que, no momento do desembarque, ele levaria os pacotes dentro da mala até mais tarde quando iria pilotar um voo interno para Bergen, Trondheim ou Stavanger. Voos internos que ele tinha que fazer, mesmo que isso significasse que seria forçado a queimar combustível extra para evitar atrasos na volta de Amsterdam. No Aeroporto de Gardermoen ele ficava na área de passageiros em trânsito o tempo todo, é claro, então não havia nenhuma verificação alfandegaria, mas de vez em quando ele tinha que ficar com as drogas na mala por 16 horas antes que pudesse entregá-las. E as entregas não eram sempre isentas de risco, tampouco. Áreas de estacionamento público. Restaurantes com poucos clientes. Hotéis com recepcionistas observadores.
Enrolou uma nota de mil coroas que tinha tirado do envelope que recebeu depois da última viagem. Havia tubos de plástico especialmente projetados para aquela função, mas ele não era daquele tipo: ele não era o usuário pesado como ela tinha dito para o advogado de divórcio. A cadela astuta sustentou que queria o divórcio porque não queria ver seus filhos crescerem com um pai drogado e ela não queria vê-lo consumindo a sua casa e o seu lar. E não tinha nada a ver com as aeromoças, não se esquentava com elas, parou de se preocupar com elas anos atrás, os anos iriam cuidar disso para ele. Ela e o advogado tinham dado um ultimato. Ela iria ficar com a casa, as crianças e os remanescentes da herança que ele não tinha desperdiçado. Ou iriam denunciá-lo por posse e uso de cocaína. Ela havia reunido provas suficientes que até mesmo o seu próprio advogado lhe disse que ele seria condenado e demitido pela companhia aérea.
Tinha sido uma escolha simples. Tudo o que ela lhe permitiu manter foram as dívidas.
Ele se levantou, foi até a janela e olhou para fora. Certamente eles estariam aqui em breve, não é?
Este era um novo arranjo. Ele ia levar um pacote no voo de ida, para Bangkok. Deus sabe o porquê. Água para afogados, como dizia o ditado, ou algo assim. De qualquer forma, esta era a sexta viagem, e até agora tudo tinha corrido sem problemas.
Havia luz nas casas vizinhas, mas elas ficavam bem distantes. Habitações solitárias, pensou. Elas tinham servido como alojamento dos oficiais quando Gardermoen era uma base militar. Caixas térreas idênticas com grandes gramados entre as casas, sem árvores. Menor altura possível, para que um avião voando baixo não colidisse com elas. Maior distância possível entre as casas para que um incêndio após um acidente não se espalhasse.
Eles tinham morado aqui durante o seu serviço militar obrigatório, quando estava pilotando aviões de transporte Hércules. As crianças viviam correndo entre as casas, visitando outras crianças. Sábado, verão. Homens em volta de churrasqueiras vestindo aventais e segurando aperitivos. A tagarelice proveniente das janelas abertas, onde as mulheres estavam preparando saladas e bebendo Campari. Como uma cena de The Right Stuff, seu filme favorito, aquele com os primeiros astronautas e o piloto de testes, Chuck Yeager. Tremendamente atraentes, aquelas esposas de pilotos. Mesmo eles sendo apenas pilotos de Hércules. Eles tinham sido felizes, então, não tinham? Foi por isso que ele voltou a morar aqui? Um impulso inconsciente de voltar no tempo? Ou para descobrir onde tudo deu errado, e fazer as correções?
Ele viu o carro chegando e automaticamente olhou para o relógio. Registrando mentalmente que eles estavam com 18 minutos de atraso.
Ele foi para a mesinha de centro. Respirou profundamente duas vezes. Em seguida, colocou a nota enrolada na extremidade mais fina da carreira, abaixou-se e aspirou o pó pelo nariz. A membrana mucosa da narina ardeu. Ele lambeu a ponta do dedo, correu sobre o pó restante e esfregou-o em suas gengivas. Tinha um gosto amargo. A campainha tocou.
Eram os mesmos dois sujeitos de sempre, como aquelas duplas de mórmons. Um baixo, um alto, ambos vestindo seu melhor traje de domingo. Mas as tatuagens nos braços se projetavam sob as mangas. Era quase cômico.
Eles lhe entregaram o pacote. Meio quilo em uma longa salsicha que só iria caber dentro da placa de metal em torno da alça telescópica da bagagem de mão. Ele iria retirar o pacote depois de terem aterrisado em Suvarnabhumi e colocá-lo debaixo do tapete solto na parte de trás do armário dos pilotos no cockpit. E essa seria a última vez que ele veria a salsicha; o resto, provavelmente, seria resolvido pela equipe de terra.
Quando Mr Big e Mr Small tinham apresentado a oportunidade de levar pacotes para Bangkok, tinha parecido uma loucura. Afinal de contas, não era um país onde o preço das drogas nas ruas fosse maior do que em Oslo, então por que exportar? Ele não tinha sondado, ele sabia que não iria receber uma resposta, então tudo bem. Mas ressaltou que o contrabando de heroína para a Tailândia implicava numa sentença de morte se fosse pego, então ele queria um pagamento melhor.
Eles riram. Primeiro o pequeno. Em seguida o grande. E Tord imaginou que talvez os canais nervosos mais curtos produzissem reações mais rápidas. Talvez fosse por isso que eles faziam os cockpits dos caças a jato tão baixos, para excluir os mais altos, os pilotos lentos.
O pequeno explicou para Tord em inglês com seu rude sotaque russo que não era heroína, que era algo muito novo, tão novo que não havia sequer uma lei que proibisse isso ainda. Mas quando Tord perguntou por que então eles tinham que contrabandear uma substância legal eles riram ainda mais alto e disseram-lhe para se calar e responder sim ou não.
Tord Schultz tinha respondido sim enquanto outro pensamento surgia na sua mente. Quais seriam as consequências se ele dissesse não?
Isso foi há seis viagens atrás.
Tord Schultz estudou o pacote. Um par de vezes ele tinha pensado em aplicar detergente sobre os preservativos e os sacos de congelar alimentos que eles usavam, mas tinha ouvido que cães farejadores podiam distinguir cheiros e não seriam enganados tão facilmente. O truque era garantir que o saco de plástico fosse totalmente selado.
Ele esperou. Nada aconteceu. Ele pigarreou.
“Oh, eu quase esqueci,” disse Mr Small. “Entrega de ontem...”
Ele enfiou a mão dentro do seu paletó com uma risada maligna. Ou talvez não fosse maligna, talvez fosse o humor do leste europeu. Tord sentiu uma vontade de esmurrá-lo, por causa do sopro da fumaça de cigarro sem filtro no seu rosto, e das gotículas de uísque doze anos no seu olho. Humor do leste europeu. Em vez disso ele murmurou um agradecimento e pegou o envelope. Parecia fino entre as pontas dos dedos. Tinham que ser notas grandes.
Depois disso ele foi até a janela novamente e viu o carro desaparecer na escuridão, ouviu o som ser abafado por um Boeing 737. Talvez um 737-600. Última geração de qualquer maneira. Gutural e mais estridente do que os antigos clássicos. Ele viu o seu reflexo na janela.
Sim, ele tinha recebido a sua moeda. E ele iria continuar a receber. Pegar tudo o que a vida jogasse na cara dele. Porque ele não era Donald Draper. Ele não era Chuck Yeager e nem Neil Armstrong. Ele era Tord Schultz. Um piloto com a coluna espichada e com dívidas. E um problema com cocaína. Ele deveria...
Seus pensamentos foram abafados pelo próximo avião.
 
alditos sinos da igreja! Você pode vê-los, papai, os ditos parentes mais próximos, todos em volta do meu caixão? Chorando lágrimas de crocodilo, suas caras sombrias dizendo: “Gusto, por que você não conseguiu aprender a ser como nós?” Bem, seus desprezíveis moralistas hipócritas, eu não poderia! Eu não poderia ser como a minha mãe adotiva, uma tonta, cabeça de vento mimada, falando sobre como tudo é maravilhoso, desde que você leia o livro certo, ouça o guru certo, coma as malditas ervas certas. E sempre que alguém contestava aquela sabedoria barata que ela tinha incorporado ela sempre soltava a mesma ladainha: “Mas olhe para o mundo que criamos: A guerra, a injustiça, as pessoas que não conseguem viver em harmonia consigo mesmos” Três coisas, queridinha. Um: a guerra, a injustiça e a desarmonia são naturais. Dois: você é a menos harmoniosa de todos dentro da nossa pequena família nojenta. Você só queria o amor que lhe foi negado, e você não dava a mínima para o amor que lhe foi dado. Desculpe, Rolf, Stein e Irene, mas ela tinha espaço só para mim. O que faz o terceiro detalhe ficar ainda mais divertido: eu nunca te amei, queridinha, por mais que você considerasse que merecia. Te chamei de mamãe, porque te fazia ficar feliz, e a vida ficava mais simples para mim. Quando eu fiz o que fiz foi porque você deixou, porque eu não conseguia parar. Porque esse é o jeito como eu sou.
Rolf. Pelo menos você me disse para não chamá-lo de pai. Você realmente tentou me amar. Mas você não pode enganar a natureza; você percebeu que amava mais o seu próprio sangue: Stein e Irene. Quando eu dizia para as pessoas que vocês eram “meus pais adotivos” eu podia ver a expressão ferida nos olhos de minha mãe. E o ódio no seu. Não porque “pais adotivos” reduzia vocês a única função que tiveram na minha vida, mas porque eu feri a mulher que, incompreensivelmente, vocês amavam. Eu acho que você foi honesto o suficiente para ver a si mesmo como eu te vi: uma pessoa que em algum momento de sua vida, embriagado pelo seu próprio idealismo, comprometeu-se a aceitar um desafio, mas logo compreendeu que a sua contabilidade era deficitária. A soma mensal que te davam para os meus cuidados não cobria a despesa real. Então você descobriu que eu era um cuco no seu ninho. Que eu devorava tudo. Tudo o que você amava. Todos a quem você amava. Você deveria ter percebido mais cedo e me jogado para fora, Rolf! Você foi o primeiro a ver que eu roubei. Inicialmente foram apenas cem coroas. Eu neguei. Disse que mamãe havia me dado. “Não é verdade, mamãe? Você me deu, não foi?” E mamãe assentiu depois de alguma hesitação, com lágrimas nos olhos, disse que ela tinha se esquecido. Na vez seguinte foram mil. Da gaveta da sua escrivaninha. O dinheiro que estava reservado para as nossas férias, você disse. “As únicas férias que eu quero é de você”, respondi. E então você me deu um tapa pela primeira vez. E foi como se algo houvesse se desencadeado em você, porque você passou a me bater. Eu já era mais alto e mais robusto do que você, mas eu nunca fui capaz de lutar. Não gosto disso, não com os punhos e músculos. Eu lutei de uma outra maneira, aquela em que podia ganhar. Mas você continuou a me bater, com o punho fechado agora. E eu sabia o porquê. Você queria destruir a minha face. Destruir o meu poder. Mas a mulher que eu chamava de mamãe interveio. Então você disse aquilo. A palavra. Ladrão. Verdade. Mas isso também significava que eu teria de esmagar você, homem insignificante.
Stein. O silencioso irmão mais velho. O primeiro a reconhecer o cuco pela plumagem, mas inteligente o suficiente para manter distância. O brilhante, inteligente e esperto lobo solitário que cresceu e partiu para a cidade de estudantes mais distante quanto possível e tão logo que pôde. Que tentou convencer Irene, sua querida irmãzinha, a acompanhá-lo. Ele pensou que ela poderia terminar a escola na droga de Trondheim, que lhe faria bem ficar longe de Oslo. Mas mamãe evitou que ela fosse. Ela não sabia nada, claro. Não queria saber.
Irene. Atraente, bonita, cheia de sardas, frágil Irene. Você era boa demais para este mundo. Você era tudo o que eu não era. E ainda assim você me amava. Será que você me amaria se soubesse? Será que você me amaria se soubesse que eu estava transando com sua mãe desde os quinze anos? Transando com sua mãe chorosa e encharcada de vinho tinto, pegando-a por trás contra a porta do banheiro ou a porta do porão ou a porta da cozinha, enquanto sussurrava ‘mamãe’ em seu ouvido porque isso fazia tanto ela quanto eu ficarmos mais excitados. Ela me dava dinheiro, ela encobria meus erros, ela disse que só me queria emprestado até que ficasse velha e feia e eu conhecesse uma bela e doce menina. E quando eu respondi: “Mas, mamãe, você já é velha e feia”, ela riu e pediu mais.
Eu ainda tinha as contusões após os socos e chutes do meu pai adotivo no dia em que liguei para ele no trabalho e disse-lhe para voltar para casa as três porque havia algo muito importante que eu queria dizer para ele. Eu deixei a porta da frente entreaberta de modo que ela não iria ouvi-lo entrar. E eu falei no ouvido dela para abafar os passos dele, disse as doces palavras que ela gostava de ouvir.
Eu vi o reflexo na janela da cozinha, ele em pé na porta da cozinha.
Ele se mudou no dia seguinte. Irene e Stein foram informados de que mamãe e papai não estavam se relacionando bem há algum tempo e tinham decidido se separar por algum tempo. Irene ficou com o coração partido. Stein estava na sua cidade de estudantes, e respondeu com um bilhete: “Triste. Onde eu irei passar o natal?”
Irene chorou e chorou. Ela me amava. É claro que ela procurou por mim. Pelo ladrão.
Os sinos da igreja tocaram pela quinta vez. Lágrimas e soluços nos bancos. Cocaína, ganhos incríveis. Alugue um apartamento no West End, registre em nome de algum viciado que você paga com uma dose, e comece a vender em pequenas quantidades, nas escadas ou portões, aumente o preço quando começarem a se sentir seguros; a turma da coca paga bem pela segurança. Cresça, siga adiante, misture a droga um pouco, se torne alguém. Não morra agachado como um perdedor de merda. O padre tosse. “Estamos aqui para orar pela alma de Gusto Hanssen.”
Uma voz ao fundo: “L-la-ladrão.”
Tutu sentado lá, com sua jaqueta de motociclista e bandana. E ainda mais lá atrás: o lamento de um cão. Rufus. Bom e fiel Rufus. Você voltou para cá? Ou sou eu que já estou aí?
 
ord Schultz colocou sua mala de mão Samsonite na correia transportadora que seguia sinuosamente para dentro da máquina de raio-X ao lado do sorridente oficial de segurança.
“Eu não entendo por que você se submete a esse cronograma”, disse a comissária de bordo. “Bangkok duas vezes por semana.”
“Eu que pedi”, disse Tord, passando pelo detector de metais. Alguém no sindicato propôs que as equipes deviam entrar em greve contra ter que se expor a radiação com tanta frequência. Pesquisas americanas tinham mostrado que, proporcionalmente, mais pilotos e tripulações de voo morreram de câncer do que o resto da população. Mas os agitadores de greve não tinham dito nada sobre a expectativa média de vida também haver aumentado. Tripulantes de voo morriam de câncer porque não havia muito mais para se morrer. Eles viviam a vida mais segura do mundo. A vida mais chata do mundo.
“Você quer voar tanto assim?”
“Eu sou um piloto. Eu gosto de voar”, Tord mentiu, pegando sua mala, esticando a alça e indo embora.
Ela o alcançou em segundos, o tec-tec de seus saltos no chão de mármore cinza escuro de Gardermoen quase afogando o burburinho das vozes sob as vigas abobadadas de madeira e aço. No entanto, infelizmente, não afogava aquela pergunta sussurrada, impertinente.
“É porque ela te deixou, Tord? Será que é porque você tem muito tempo livre e nada para preenchê-lo? Será que é porque você não quer ficar sentado em casa...”
“É porque eu preciso de horas extras”, ele interrompeu. Pelo menos essa não era uma mentira deslavada.
“Eu sei exatamente como é. Eu me divorciei no último inverno, como você já deve saber.”
“Ah, sim”, disse Tord, que nem sabia que ela havia sido casada. Ele olhou-a rapidamente. Cinquenta? Tentou imaginar como ela se pareceria de manhã sem a maquiagem e o bronzeado falso. Uma comissária de bordo desbotada com um sonho desbotado de comissária de bordo. Ele tinha certeza que nunca tinha transado com ela. Não cara a cara, pelo menos. De quem tinha sido essa piada? Um dos antigos pilotos. Um dos pilotos de caça, uísque-on-the-rocks e olhos azuis. Um dos que conseguiram se aposentar antes que seu status fosse destruído. Ele acelerou a medida que se aproximavam do corredor em direção a Sala dos Tripulantes. Ela quase sem ar, mas ainda do lado dele. Mas se ele mantivesse essa velocidade ela poderia ficar sem ar suficiente para falar.
“Hmm, Tord, uma vez que vamos pernoitar em Bangkok talvez pudéssemos...”
Ele bocejou alto. Não que ele quisesse faze-la se sentir ofendida. Ele ainda estava um pouco grogue após a noite anterior - tinha ingerido mais um pouco de vodka e pó após os mórmons terem saído. Não que ele houvesse ingerido tanto que seria apanhado num teste de bafômetro, é claro, mas o suficiente para ele se preocupar com a luta contra o sono durante as 11 horas no ar.
“Olhe!”, ela exclamou naquele tom idiota, agudo e infantil que as mulheres usam quando querem dizer que alguma coisa é absolutamente, inconcebivelmente, adoravelmente, ternamente doce.
E ele olhou. Estava vindo na direção deles. Um cão pequeno e de pelos aloirados, com orelhas compridas e olhos tristes e uma cauda abanando entusiasticamente. Um Springer Spaniel. Ele estava sendo conduzido por uma mulher com cabelo loiro combinando, grandes brincos, com um universal meio sorriso de desculpas e gentis olhos castanhos.
“Ele não é um docinho?” ela ronronou ao lado dele.
“Hã hã,” Tord disse com uma voz rouca.
O cão enfiou o focinho na virilha do piloto que seguia na frente deles, e continuou adiante. Ele se virou com uma sobrancelha levantada e um sorriso torto, simulando uma expressão insolente e infantil. Mas Tord foi incapaz de seguir essa linha de raciocínio. Ele era incapaz de seguir qualquer linha de raciocínio, exceto a sua própria.
O cão estava vestindo um colete amarelo. O mesmo tipo de colete que a mulher com os brincos estava vestindo. No qual estava escrito POLICIA ADUANEIRA.
Ele estava chegando mais perto, a somente cinco metros deles agora.
Ele não deveria ser um problema. Não poderia ser um problema. As drogas foram embaladas em preservativos e envoltas com uma dupla camada de sacos de plástico. De modo que nenhuma molécula de odor pudesse escapar. Então, bastava sorrir. Relaxar e sorrir. Nem demais, nem de menos. Tord ficou virado para a voz vibrando ao seu lado, como se as palavras que eram ditas exigissem concentração profunda.
“Desculpe-me.”
Eles haviam passado pelo cão, e Tord continuou andando.
“Desculpe-me!” A voz era nítida.
Tord olhou para a frente. A porta para a Sala dos Tripulantes estava a menos de dez metros de distância. Segurança. Dez passos. Missão cumprida.
“Desculpe-me, senhor!”
Sete passos.
“Eu acho que ela está falando com você, Tord.”
“O quê?” Tord parou. Tinha que parar. Olhou para trás, com surpresa, o que ele esperava não parecer ser fingida. A mulher com o colete amarelo estava vindo na direção deles.
“O cão apontou você.”
“Ele fez isso?” Tord olhou para o cão. Como? estava pensando.
O cão olhava para ele, abanando o rabo loucamente, como se Tord fosse seu novo amigo de brincadeiras.
Como? Dupla camada de sacos de plástico e preservativos. Como?
“Isso significa que temos de revistar você. Poderia nos acompanhar, por favor.”
A gentileza ainda estava lá, nos seus olhos castanhos, mas não havia nenhum ponto de interrogação por trás de suas palavras. E, naquele momento, ele entendeu como. Ele quase tocou o crachá no peito.
A cocaína.
Ele tinha se esquecido de limpa-lo depois de cortar a última carreira. Tinha que ser isso.
Mas eram apenas alguns grãos, o que ele poderia explicar facilmente, dizendo que  havia emprestado seu crachá para alguém numa festa. Esse não era o seu maior problema agora. A mala. Seria revistada. Sendo um piloto, ele tinha treinado e praticado procedimentos de emergência tantas vezes que reagiu automaticamente. Essa era a intenção, é claro, mesmo quando o pânico te dominava isso era o que acontecia, o seu cérebro se concentrava em outras prioridades: os procedimentos de emergência. Quantas vezes ele visualizou esta situação: os funcionários aduaneiros pedindo-lhe para ir com eles? Pensando no que ele faria? Praticando em sua mente? Ele virou-se para a aeromoça com um sorriso resignado, avistou seu crachá. “Eu fui escolhido para revista, ao que parece, Kristin. Você poderia levar a minha mala?”
“A mala vem com a gente”, disse a funcionária.
Tord Schultz se voltou. “Eu entendi que você disse que o cão me apontou, não a mala.”
“Isso é verdade, mas...”
“Há documentos de voo nela e a tripulação precisa verificar. A menos que você queira assumir a responsabilidade por atrasar um Airbus 340 lotado partindo para Bangkok.” Ele notou que - literalmente - tinha inchado, enchido os pulmões e expandido seus músculos peitorais dentro do paletó de comandante. “Se atrasarmos o nosso cronograma de partida isso pode significar um atraso de várias horas e uma perda de centenas de milhares de coroas para a companhia aérea.”
“Receio que os procedimentos...”
“Trezentos e quarenta e dois passageiros,” Schultz interrompeu. “Muitas delas crianças.” Ele esperava que ela ouvisse a grande preocupação de um comandante, e não o pânico incipiente de um contrabandista de drogas.
A funcionária da alfândega deu um tapinha na cabeça do cão e olhou para ele.
Ela se parece com uma dona de casa, pensou. Uma mulher com crianças e responsabilidade. Uma mulher que deveria entender sua situação.
“A mala vem com a gente”, ela disse.
Outro funcionário apareceu em segundo plano. Estava ali de pé, com as pernas afastadas, os braços cruzados.
“Vamos acabar com isso”, Tord suspirou.
 
 chefe da Brigada Criminal de Oslo, Gunnar Hagen, recostou-se na cadeira giratória e estudou o homem com terno de linho. Passaram-se três anos desde que o corte mal costurado no seu rosto era vermelho sangrento e ele parecia um homem nos seus últimos suspiros. Mas agora seu ex-subordinado parecia saudável, tinha readquirido alguns quilos extremamente necessários, e seus ombros preenchiam o terno. Terno. Hagen se lembrou do investigador de homicídios vestindo jeans e botas, nunca outra roupa. A outra diferença era o chachá com uma etiqueta autocolante na lapela dizendo que ele não era funcionário, mas um visitante: HARRY HOLE.
Mas a postura na cadeira era a mesma, mais deitado do que sentado.
“Você parece muito melhor”, disse Hagen.
“Sua cidade também,” Harry disse com um cigarro apagado balançando entre os dentes.
“Você acha?”
“A Opera House é maravilhosa. Menos viciados nas ruas.”
Hagen se levantou e foi até a janela. A partir do sexto andar do Quartel General da Polícia ele podia ver o novo centro de Oslo, Bjørvika, banhado pelo sol. A revitalização estava a pleno vapor. A demolição mais ainda.
“Houve uma queda acentuada no número de overdoses fatais nos últimos doze meses. Os preços têm subido, e o consumo diminuiu. E a Câmara Municipal conseguiu o que desejava. Oslo já não lidera as estatísticas sobre drogados na Europa.”
“Os dias felizes estão de volta por aqui.” Harry colocou as mãos atrás da cabeça e parecia que ia escorregar para fora da cadeira.
Hagen suspirou. “Você não disse o que traz você de volta para Oslo, Harry.”
“Eu não disse?”
“Não. Ou, mais especificamente, aqui na Brigada Criminal.”
“Não é normal visitar ex-colegas?”
“Sim, para outros é normal, para as pessoas sociáveis.”
“Bem.” Harry mordeu o filtro do cigarro Camel. “Minha ocupação é homicídios.”
“Foi homicídios, não é o que você quer dizer?”
“Deixe-me reformular isso: minha profissão, minha área de especialização, é homicídios. E ainda é a única área que eu tenho algum conhecimento.”
“Então o que você quer?”
“Praticar a minha profissão. Investigar homicídios.”
Hagen arqueou uma sobrancelha. “Você gostaria de trabalhar para mim de novo?”
“Por que não? A menos que eu esteja muito enganado eu era um dos melhores.”
“Correção”, disse Hagen, voltando-se para a janela. “Você foi o melhor.” E repetiu em um tom mais baixo: “O melhor e o pior.”
“Estou pensando num dos assassinatos relacionado com drogas”.
Hagen deu um sorriso seco. “Qual? Nós tivemos quatro nos últimos seis meses. Não conseguimos avançar um centímetro sequer em qualquer um deles.”
“Gusto Hanssen.”
Hagen não respondeu, continuou a estudar as pessoas esparramadas sobre a grama. E os pensamentos vieram facilmente. Fraudes de benefícios. Ladrões. Terroristas. Por que ele via isto em vez de empregados que trabalhavam duro aproveitando algumas horas merecidas sob o sol de setembro? O olhar de policial. A cegueira de policial. Ele meio que ouviu a voz de Harry atrás dele.
“Gusto Hanssen, 19 anos de idade. Conhecido por policiais, traficantes e usuários. Encontrado morto em um apartamento na Hausmanns Gate em 12 de julho. Sangrou até a morte depois de ser baleado no peito.”
Hagen começou a rir. “Por que você quer o único caso que está esclarecido?”
“Eu acho que você sabe.”
“Sim, eu sei”, Hagen suspirou. “Mas, se eu fosse contratá-lo novamente eu iria colocá-lo em um dos outros. No caso do policial disfarçado.”
“Eu quero este.”
“Há, em números redondos, cerca de uma centena de razões pelas quais você nunca será colocado nesse caso, Harry.”
“Quais são?”
Hagen virou-se para Harry. “Talvez seja suficiente mencionar o primeiro. O caso já foi resolvido.”
“E além disso?”
“O caso não está conosco. Está com a Kripos. Eu não tenho nenhuma vaga. Muito pelo contrário, eu estou tentando fazer cortes. Você não é elegível. Devo ir em frente?”
“Hmm. Onde ele está?”
Hagen apontou para fora da janela. Do outro lado do gramado, para o edifício de pedra cinza por trás das folhas amarelas das tílias.
“Botsen”, disse Harry. “Em prisão preventiva.”
“Por enquanto.”
“Visitas estão fora de cogitação?”
“Quem rastreou você em Hong Kong e lhe contou sobre o caso? Foi...?”
“Não”, Harry interrompeu.
“Então?”
“Então.”
“Quem?”
“Eu poderia ter lido sobre isso na internet.”
“Dificilmente”, disse Hagen com um sorriso fino e os olhos sem vida. “O caso saiu nos jornais somente um dia antes de ser esquecido. E não havia nomes. Apenas um artigo sobre um viciado drogado que tinha disparado em outro viciado mais drogado ainda. Nada de interessante sobre qualquer um. Nada para fazer o caso se destacar.”
“Além do fato de que os dois viciados eram adolescentes”, disse Harry. “Dezenove anos de idade. E dezoito.” Sua voz tinha mudado de timbre.
Hagen deu de ombros. “Idade suficiente para matar, idade suficiente para morrer. No próximo ano eles seriam chamados para o serviço militar.”
“Você poderia arrumar uma visita para mim?”
“Quem te contou, Harry?”
Harry coçou o queixo. “Um amigo em Krimteknisk.”
Hagen sorriu. E desta vez o sorriso chegou aos seus olhos. “Você é tão agradável, Harry. Que eu saiba, você tem três amigos na polícia. Entre eles Bjørn Holm em Krimteknisk. E Beate Lønn em Krimteknisk. Então, qual deles?”
“Beate. Você irá conseguir a visita?”
Hagen se sentou na beirada da mesa e observou Harry. Olhou para o telefone.
“Com uma condição, Harry. Você vai prometer ficar a quilômetros de distância deste caso. Agora tudo é luz do sol e rosas entre nós e a Kripos, e eu não tenho mais nenhum problema com eles.”
Harry fez uma careta. Ele havia escorregado tão baixo na cadeira que podia enxergar a fivela do cinto. “Então, você e o Rei da Kripos se tornaram amigos do peito?”
“Mikael Bellman não está mais na Kripos”, disse Hagen. “Esse é o motivo da luz do sol e das rosas.”
“Livraram-se do psicopata? que felicidade...”
“Pelo contrário.” A risada de Hagen era oca. “Bellman está mais presente do que nunca. Ele está neste edifício.”
“Que merda. Aqui na Brigada Criminal?”
“Deus me livre. Ele está chefiando a Orgkrim há mais de um ano.”
“Vocês tem novas siglas, pelo que estou vendo.”
“Organized Crim – Crime Organizado. Eles fundiram um monte de seções antigas. Roubos, tráfico, narcóticos. É tudo Orgkrim agora. Mais de duas centenas de funcionários, a maior unidade do Departamento de Crimes.”
“Hmm Mais do que ele tinha na Kripos.”
“No entanto, seu salário diminuiu. E você sabe o que isso significa, quando as pessoas aceitam empregos com salários mais baixos?”
“Eles estão atrás de mais poder”, disse Harry.
“Ele foi o único que colocou o mercado de drogas sob controle, Harry. Um bom trabalho à paisana. Detenções e batidas. Há menos gangs e não há guerra entre elas agora. O número de drogados estão, como eu disse, diminuindo...” Hagen apontou o dedo para o teto. “E Bellman está subindo. O menino sabe para que lugar está indo, Harry.”
“Eu também,” Harry disse, levantando-se. “Para Botsen. Eu estou contando com uma autorização de visita na recepção no momento em que eu chegar lá.”
“Nós temos um acordo?”
“Claro que temos”, Harry disse, agarrando a mão estendida de seu ex-chefe. Ele balançou-a duas vezes e foi para a porta. Hong Kong tinha sido uma boa escola para mentir. Ele ouviu Hagen levantar o telefone, mas quando chegou ao limiar ele se virou.
“Quem é o terceiro?”
“O quê?” Hagen estava olhando para o teclado enquanto teclava com um dedo pesado.
“O terceiro amigo que eu tenho na força?”
O Chefe de Brigada Gunnar Hagen colocou o fone no ouvido, deu um olhar cansado para Harry e disse com um suspiro: “Quem você acha?” E: “Alo? Aqui é o Hagen. Eu gostaria de autorizar um visitante... Sim?” Hagen colocou a mão sobre o receptor. “Sem problemas. Eles estão almoçando agora, mas chegue lá por volta das doze horas.”
Harry sorriu, murmurou um agradecimento e fechou a porta silenciosamente atrás de si.
 
ord Schultz estava na saleta de revista, abotoando as calças e vestindo o paletó. Eles decidiram não fazer o exame de orifícios. A funcionária da alfândega - aquela que o havia parado - estava esperando do lado de fora. Parada ali como uma estátua.
“Obrigada por ser tão cooperativo”, disse ela, indicando a saída.
Tord imaginava que os administradores haviam discutido longamente sobre como deveriam dizer “pedimos desculpas” sempre que um cão farejador identificasse alguém, mas nenhuma droga havia sido encontrada. O indivíduo que foi parado, atrasado, considerado suspeito e envergonhado, desejaria sem dúvida, pelo menos um pedido de desculpas adequado. Mas você deve reclamar de alguém que está fazendo o seu trabalho? Cães identificavam pessoas inocentes o tempo todo, e uma queixa seria uma admissão parcial de que houve uma falha no procedimento, uma falha no sistema. Por outro lado, eles podiam ver pela divisa no seu uniforme que ele era um comandante. Não eram as três faixas daqueles caras fracassados de cinquenta anos que se sentavam no banco do lado direito como primeiro oficial porque não souberam aproveitar as oportunidades. Não, ele tinha quatro faixas, que mostravam que ele era metódico, tinha controle; um homem que era um mestre da situação e da sua própria vida. Mostrava que ele pertencia a classe nobre do aeroporto. Um comandante era uma pessoa que deveria aceitar com classe uma denúncia de um funcionário da alfândega, sendo apropriada ou não.
“Apesar de tudo, é bom saber que alguém está atento”, disse Tord, à procura de sua mala. No cenário de pior caso, eles revistaram-na; o cão não tinha detectado nada lá. E as placas de metal ao redor do espaço onde o pacote foi escondido ainda eram impenetráveis para os aparelhos de raios-X existentes.
“Sua mala estará aqui em breve”, disse ela.
Durante alguns segundos eles  ficaram em silêncio, analisando um ao outro.
Divorciada, Tord pensava.
Naquele momento, outro funcionário apareceu.
“A sua mala...”, disse ele.
Tord olhou para ele. Viu nos seus olhos. Sentiu crescer um nó no estômago, subindo, cutucando seu esôfago. Como? Como?
“Nós tiramos tudo e pesamos”, disse ele. “Uma Samsonite Aspire GRT de vinte e seis polegadas, vazia, pesa 5,8 quilos. A sua pesa 6,3. Você se importaria em explicar por quê?”
O funcionário foi muito profissional e não sorriu abertamente, mas Tord Schultz conseguia ver o triunfo brilhando no rosto dele. O funcionário se inclinou ligeiramente para a frente, baixou a voz.
“Ou devemos descobrir por conta própria?”
 
arry saiu para a rua depois de almoçar no Olympen. A velha hotelaria, ligeiramente extravagante que ele se lembrou ter sido renovada numa versão cara da Oslo Oeste num lugar da Oslo Leste, com grandes pinturas do velho bairro operário do centro. Não era que não fosse atraente, com os candelabros e tudo. Mesmo o peixe estava bom. Apenas não era... Olympen.
Acendeu um cigarro e cruzou Bots Park entre o Quartel General da Polícia e as antigas paredes cinzentas da prisão. Passou por um homem que colocava um cartaz vermelho de má qualidade numa árvore, usando uma pistola de grampo contra a casca da antiga e protegida tília. Ele não parecia estar ciente do fato de que estava cometendo um grave crime diante de todas as janelas frontais do edifício que abrigava a maior coleção de policiais da Noruega. Harry parou por um momento. Não para coibir o crime, mas para ver o cartaz. Anunciava um concerto do Russian Amcar Club no Sardines. Harry conseguia se lembrar da antiga banda decadente e do clube abandonado. Olympen. Harry Hole. Este era claramente o ano da ressurreição dos mortos. Ele estava prestes a seguir em frente quando ouviu uma voz trêmula atrás dele.
“Você tem violino?”
Harry se virou. O homem atrás dele estava vestindo uma jaqueta nova e limpa da G-Star. Ele se inclinava para a frente como se houvesse um forte vento nas suas costas, e tinha os inconfundíveis joelhos dobrados de viciados em heroína. Harry ia responder quando percebeu que o G-Star estava se dirigindo ao homem do cartaz. Mas ele continuou a andar sem responder. Novas siglas de novas unidades, novos termos para drogas. Bandas antigas, clubes antigos.
A fachada da prisão, Botsen na linguagem popular, foi construída em meados de 1800 e consistia de uma entrada espremida entre duas grandes paredes, o que sempre faziam Harry imaginar um preso entre dois policiais. Ele tocou a campainha, olhou para a câmera de vídeo, ouviu o zumbido baixo e empurrou a porta aberta. Dentro, havia um funcionário uniformizado da prisão, que o conduziu pelas escadas acima, através de uma porta, passando por dois outros funcionários até a sala retangular das visitas, sem janelas. Harry já tinha estado lá antes. Este era o lugar onde os presos encontravam seus parentes e amigos mais próximos e queridos. Tinha sido feita uma tímida tentativa de criar uma atmosfera caseira. Ele evitou o sofá, sentando-se numa cadeira, bem consciente do que se passava durante os poucos minutos que o detento era autorizado a ficar com a esposa ou namorada.
Ele esperou. Notou que ainda estava com o crachá de visitante da Polícia na lapela, puxou-o e colocou-o no bolso. O sonho do corredor estreito e da avalanche na noite passada tinha sido pior do que o habitual, ele havia sido soterrado e sua boca tinha ficado recheada com neve. Mas não era por isso que seu coração estava acelerado agora. Era pela expectativa? Ou pelo medo?
A porta abriu-se antes que ele tivesse a chance de chegar a uma conclusão.
“Vinte minutos”, disse o funcionário da prisão, e saiu, batendo a porta atrás de si.
O garoto de pé diante dele estava tão mudado que por um segundo Harry esteve a ponto de gritar que esta era a pessoa errada, este não era ele. Este garoto estava usando jeans Diesel e um agasalho com capuz preto com a estampa Machine Head, que Harry calculou não ser uma referência ao antigo álbum do Deep Purple, mas – levando em conta a diferença de tempo - uma nova banda de heavy metal. Heavy metal era, claro, uma pista, mas a prova conclusiva eram os olhos e as maçãs do rosto salientes. Para ser mais preciso: olhos castanhos e maçãs do rosto salientes de Rakel. Era quase um choque ver a semelhança. Era evidente que ele não tinha herdado a beleza de sua mãe - sua testa era demasiado saliente para isso, ela dava ao garoto uma aparência sombria, quase agressiva. O que era reforçado pela franja sedosa, que Harry sempre tinha assumido que ele tinha herdado do seu pai de Moscou. Um alcoólatra que o garoto realmente nunca tinha conhecido adequadamente - ele tinha poucos anos quando Rakel o trouxe de volta para Oslo. Onde, mais tarde, ela conheceu Harry.
Rakel.
O grande amor de sua vida. Tão simples. E tão complicado.
Oleg. Inteligente e sério Oleg. Oleg, que era tão introvertido, que não se abria com ninguém, exceto com Harry. Harry nunca tinha comentado com Rakel, mas ele sabia mais sobre o que Oleg pensava, sentia e queria do que ela. Oleg e ele jogando Tetris no seu Game Boy, os dois se esforçando para quebrar o recorde. Oleg e ele patinando no Valle Hovin; no tempo em que Oleg queria se tornar um corredor de longa distância e, de fato, tinha o talento para isso. Oleg, que sorria, paciente e indulgente, sempre que Harry prometia que no outono ou na primavera eles iriam até Londres para ver o Tottenham jogar no White Hart Lane. Oleg, que às vezes o chamava de pai quando já era tarde, estava com sono e tinha perdido a concentração. Fazia anos que Harry não via Oleg, desde que Rakel o havia tirado de Oslo, para longe das lembranças terríveis do boneco de neve, longe do mundo de violência e assassinato de Harry.
E agora ele estava ali de pé ao lado da porta, tinha dezoito anos, crescido e olhando para Harry, sem nenhuma expressão, ou pelo menos uma que Harry pudesse interpretar.
“Oi”, disse Harry. Merda, ele não havia testado a sua voz; ela saiu como uma grosa rouca. O garoto iria pensar que ele estava à beira das lágrimas ou algo assim. Como que para se distrair, ou distrair Oleg, Harry tirou um maço de cigarros Camel e enfiou um entre os lábios.
Ele olhou para cima e viu o rubor que se espalhou pelo rosto de Oleg. E a raiva. A raiva explosiva que apareceu do nada, escurecendo os olhos e fazendo com que os vasos sanguíneos em seu pescoço e na testa inchassem e vibrassem como cordas de guitarra.
“Relaxe, eu não vou acendê-lo,” Harry disse, apontando para o sinal PROIBIDO FUMAR na parede.
“Foi a mamãe, não é?” A voz também era mais velha. E grossa com fúria.
“Como?”
“Foi ela quem te fez vir aqui.”
“Não, ela não fez,  eu...”
“Claro que ela fez.”
“Não, Oleg, na verdade, ela nem sabe que estou no país.”
“Você está mentindo! Você está mentindo, como sempre!”
Harry ficou boquiaberto. “Como sempre?”
“Do jeito que você mentia quando dizia que você sempre estaria lá junto com a gente e toda aquela baboseira. Mas agora é tarde demais. Portanto,  simplesmente você pode voltar para... Timbuktu!”
“Oleg! Escute-me...”
“Não! Eu não vou ouvir você. Você não tem nenhum negócio para tratar aqui! Você não pode chegar e brincar de papai agora, você entende?” Harry viu o garoto engolir em seco. Viu a fúria refluir, apenas para que uma nova onda de escuridão chegasse para engoli-lo. “Você não é mais ninguém para nós. Você foi alguém que apareceu, ficou conosco por alguns anos e depois...” Oleg fez uma tentativa de estalar os dedos, mas eles escorregaram uns nos outros, sem um som. “Sumiu”.
“Isso não é verdade, Oleg. E você sabe disso.” Harry ouviu a sua própria voz, que estava firme e segura agora, dizendo-lhe que ele estava tão calmo e seguro quanto um porta-aviões. Mas o nó em seu estômago lhe dizia o contrário. Ele estava acostumado a ouvir gritos durante os interrogatórios, não fazia diferença para ele, na melhor das hipóteses o deixava ainda mais calmo e mais analítico. Mas com este rapaz, com Oleg...contra este ele não tinha defesa.
Oleg deu um riso amargo. “Vamos ver se eu consigo fazê-lo agora?” Ele pressionou seu dedo médio contra o polegar. “Sumiu... consegui!”
Harry levantou as palmas das mãos. “Oleg...”
Oleg balançou a cabeça enquanto batia na porta atrás dele, sem tirar os olhos escuros de Harry. “Guarda! A visita acabou. Tire-me daqui!”
Harry permaneceu na cadeira por alguns segundos depois que Oleg saíu.
Em seguida, ele se esforçou para ficar de pé e arrastou-se para um Bots Park banhado pelo sol.

Harry ficou olhando para o Quartel General da Polícia. Ponderando. Em seguida, se dirigiu para o bloco de custódia. Mas parou no meio do caminho, recostou-se contra uma árvore e esfregou seus olhos com tanta força que parecia que estava espremendo água das palpebras. Maldita luminosidade. Maldito jet lag.

“u só quero ver. Eu não vou levar nada”, disse Harry.
O funcionário de serviço atrás do balcão no guiche de custódia olhou para Harry e vacilou.
“Vamos lá, Tore, você me conhece.”
Nilsen pigarreou. “Sim, mas você está trabalhando aqui de novo, Harry?”
Harry deu de ombros.
Nilsen inclinou a cabeça e baixou as pálpebras até que suas pupilas ficaram  visíveis apenas pela metade. Como se estivesse filtrando as impressões ópticas. Filtrando o que não era importante. E o que sobrou evidentemente foi a favor de Harry.
Nilsen soltou um suspiro pesado, desapareceu e voltou com uma gaveta. Como Harry tinha imaginado os itens encontrados com Oleg quando foi preso ainda estavam lá. Apenas após a decisão de que um prisioneiro ficaria em prisão preventiva por mais de dois dias é que eles eram transferidos para Botsen, mas os bens pessoais nem sempre eram transferidos.
Harry analisou o conteúdo. Moedas. Um chaveiro com duas chaves, uma era uma caveira e a outra o emblema da banda Slayer. Um canivete suíço com uma única lâmina e os demais acessórios eram chaves de fenda e Allen. Um isqueiro descartável. E mais um objeto.
Aquilo balançou Harry, embora ele já soubesse. Os jornais tinham descrito o caso como ‘um acerto de contas no cenário das drogas’.
Era uma seringa descartável, ainda dentro da embalagem plástica.
“Isso é tudo?” Harry perguntou, pegando o chaveiro. Ele segurou-o abaixo da borda do balcão enquanto examinava as chaves. Nilsen claramente não gostava de ver Harry segurando alguma coisa fora do seu raio de visão e se inclinou.
“Não tinha uma carteira?”, Harry perguntou. “Nem cartão de banco ou de Identidade?”
“Parece que não.”
“Você poderia verificar a lista de pertences para mim?”
Nilsen pegou a lista dobrada no fundo da gaveta, se embaralhou com os óculos e olhou para a folha. “Tinha um telefone celular, mas eles levaram. Provavelmente, queriam ver se ele tinha ligado para a vítima.”
“Hmm”, disse Harry. “Algo mais?”
“O que mais deveria haver?”, disse Nilsen, relendo a lista. E concluiu que tinha verificado tudo. “Não.”
“Obrigado, já vi tudo. Obrigado pela sua ajuda, Nilsen.”
Nilsen balançou a cabeça lentamente. Ainda usando os óculos. “As chaves.”
“Sim, claro.” Harry colocou-as de volta na gaveta. Viu Nilsen certificando-se de que ainda havia duas.
Harry saiu, atravessou o parque de estacionamento e entrou na Åkebergveien. Continuou até o bairro Tøyen, até a Urtegata. Little Karachi. As pequenas quitandas, mulheres com véus e velhos sentados em cadeiras de plástico na frente dos seus cafés. Chegou no Watchtower, a Torre de Vigia, o café do Exército da Salvação para os pobres e moradores de rua. Harry sabia que em dias como hoje estaria tranquilo, mas, assim que o inverno e o frio chegassem, eles estariam reunidos em volta das mesas. Café e sanduiches feitos na hora. Um jogo de roupas limpas, da coleção do ano anterior, tênis azuis adquiridos na loja de artigos militares usados ou excedentes. Na enfermaria no primeiro andar: curativos nas feridas mais recentes adquiridas nos campos de batalha das drogas ou - se a situação fosse terrível - uma injeção de vitamina B. Harry pensou por um momento em visitar Martine. Talvez ela ainda estivesse trabalhando lá. Uma vez um poeta escreveu que, depois do grande amor havia os menores. Ela tinha sido um dos menores. Mas esse não era o motivo. Oslo não era grande, e os usuários pesados reuniam-se aqui ou no Mission Cafe na Skippergata. Não era improvável que ela houvesse conhecido Gusto Hanssen. E Oleg.
No entanto, Harry decidiu fazer as coisas na ordem certa, e continuou a andar. Passando pela ponte no Akerselva ele olhou para baixo. A água marrom que Harry se recordava da sua infância agora era tão pura quanto um córrego da montanha. Dizia-se que, agora, você podia pescar trutas nele. E então lá estavam eles, pelos caminhos e trilhas de cada lado do rio: os traficantes. Tudo era novo. Tudo continuava a mesma coisa.
Ele seguiu pela Hausmanns Gate. Passou pela igreja Jakobskirke. Olhando os números das casas. Uma placa do Teatro da Crueldade. Uma porta coberta de pichações e um smiley, aquela carinha amarela redonda e sorridente. Uma casa completamente queimada, aberta, vazia. E lá estava. Um típico edifício-cortiço de Oslo, construído em 1800, pálido, sóbrio, quatro andares. Harry empurrou a porta da frente, que se abriu. Não estava trancada. Ela se abria diretamente para a escada. Que cheirava a mijo e lixo.
Harry observou nomes e desenhos grafitados nas paredes. Corrimões soltos. Portas ostentando as cicatrizes de fechaduras arrombadas substituídas por outras mais novas e mais fortes. No segundo andar, ele parou e soube que tinha encontrado a cena do crime. Fita laranja e branca colada em X na porta.
Ele colocou a mão no bolso e tirou as duas chaves que tinha retirado do chaveiro de Oleg enquanto Nilsen estava lendo a lista de pertences. Harry não tinha certeza de qual das suas próprias chaves tinha usado para substituí-las, mas de Hong Kong não era, afinal aquele era o lugar mais difícil para fazer cópias.
Uma delas era uma Abus, que Harry sabia que era de um cadeado porque, uma vez, ele mesmo havia comprado um. Mas a outra era uma Ving. Ele inseriu-a na fechadura. Ela entrou até a metade, depois parou. Ele empurrou com mais força. Tentou girar.
“Merda.”
Ele pegou seu telefone celular. O número dela estava registrado nos seus contatos como B. Como havia apenas oito nomes registrados, uma letra era o suficiente.
“Lønn.”
O que Harry sempre gostou em Beate Lønn, além do fato dela ser uma dos dois melhores investigadores forenses com quem ele havia trabalhado, era que ela sempre resumia as informações ao básico, e ela - como Harry -  nunca encheu um caso simples com palavras supérfluas.
“Oi, Beate. Estou na Hausmanns Gate.”
“A cena do crime? O que você está fazendo...?”
“Eu não posso entrar. Você tem a chave?”
“Se eu tenho a chave?”
“Você está no comando desses assuntos por aí, não é?”
“Claro que eu tenho a chave. Mas eu não tenho nenhuma intenção de emprestá-la a você.”
“Claro que não. Mas existem algumas coisas que você tem que verificar novamente na cena do crime, não é? Lembro-me de algo sobre um guru afirmando que em casos de assassinato um investigador forense nunca pode estar completamente certo de ter visto o suficiente.”
“Então você se lembra disso, não é.”
“Foi a primeira coisa que ela disse a todos os seus formandos. Acho que eu posso acompanhá-la e ver como você trabalha.”
“Harry...”
“Eu não vou tocar em nada.”
Silêncio. Harry sabia que estava explorando Beate. Ela era mais do que uma colega, ela era uma amiga, porém o mais importante de tudo: ela era mãe.
Ela suspirou. “Dê-me vinte.”
Dizer ‘minutos’ para ela era supérfluo.
Dizer ‘obrigado’ para ele era supérfluo. Então Harry desligou.
 
 detetive Truls Berntsen caminhava lentamente pelos corredores da Orgkrim. Porque a sua experiência demonstrava que quanto mais lentos os seus passos mais rápido o tempo avançava. E se havia alguma coisa que ele tinha de sobra era tempo. Esperando por ele no escritório estava uma cadeira desgastada e uma pequena mesa com uma pilha de relatórios que estavam lá somente para manter as aparências. Um computador que ele usava mais para navegar na internet, mas que agora se tornou aborrecido depois que foi decretada uma severa limitação sobre os sites que eles podiam visitar. E uma vez que ele trabalhava na Narcóticos e não na Crimes Sexuais, ele poderia ser chamado para dar uma explicação convincente. O detetive Berntsen carregava um copo transbordando de café e depositou-o na mesa. Tomando muito cuidado para não derramá-lo sobre o folheto do novo Audi Q5. Duzentos e dezoito cavalos de potência. SUV, mas não um carro para imigrantezinhos ricos. Um carro para vencedores. Deixava o carro de patrulha Volvo V70 para trás. Um carro que mostrava que você era alguém. Mostrava para ela, aquela da casa nova em Høyenhall, que você era alguém. Não um ninguém.
Manter o status quo. Esse era o foco agora. Conseguimos ganhos significantes, Mikael tinha dito na reunião geral na segunda-feira. Traduzindo: certifiquem-se de que ninguém vai relaxar. “Nós sempre podemos desejar que haja um número ainda menor de narcóticos nas ruas. Mas, tendo alcançado tanto em tão pouco tempo, há sempre o perigo de uma recaída. Lembrem-se de Hitler e Moscou. Não devemos morder mais do que podemos mastigar.”
O detetive Berntsen sabia em termos grosseiros o que isso significava. Longos dias com os pés sobre a mesa.
Às vezes, ele ansiava por estar de volta ao Kripos. Na Homicídios não era como na Narcóticos, não era uma questão política, tratava-se apenas de resolver um caso, ponto final. Mas o próprio Mikael Bellman insistira que Truls deveria acompanhá-lo na mudança de Bryn para o Quartel General da Polícia, disse que precisava de aliados lá, no território inimigo, alguém em quem pudesse confiar, alguém que pudesse cobrir seu flanco, se ele fosse atacado. Disse sem dizê-lo, da forma como Mikael tinha coberto o flanco de Truls. Naquele caso recente do garoto em prisão preventiva com quem Truls tinha agido um pouco mais pesado, o qual, por uma terrível infelicidade, acabou ganhando uma lesão nos olhos. Mikael tinha dado uma tremenda bronca em Truls, é claro, disse que odiava a violência policial, que não queria vê-la no seu departamento, disse que agora, infelizmente, era sua responsabilidade como chefe denunciar Truls para a Corregedoria da Polícia, que em seguida iria avaliar se deveriam ir mais adiante com o incidente. Mas a visão do garoto havia retornado para uma condição quase normal, Mikael tinha negociado com o advogado do rapaz, a acusação de posse de drogas tinha sido cancelada, e não aconteceu mais nada depois disso.
Da mesma maneira que nada acontecia aqui.
Longos dias com os pés sobre a mesa.
E era lá que Truls estava prestes a colocá-los - como ele fazia, pelo menos, dez vezes por dia - quando olhou para fora, para Bots Park e a velha tília no meio do caminho que levava até a prisão.
Lá estava.
O cartaz vermelho.
Ele sentiu sua pele formigar, sua pulsação aumentar. Assim como o seu humor.
Num piscar de olhos ele estava de pé, sua jaqueta vestida e seu café abandonado.
 
 Gamlebyen Church ficava distante uma caminhada de oito minutos a pé do Quartel General da Polícia. Truls Berntsen seguiu pela Oslo Gate para Minne Park, à esquerda sobre a Dyvekes Bridge e então estava no coração de Oslo, onde a cidade teve origem. A igreja não tinha adornos, a ponto de parecer pobre, sem nenhum dos ornamentos banais como os da nova igreja do período romântico perto do Quartel General da Polícia. Mas Gamlebyen Church tinha uma história mais emocionante. Pelo menos, se metade do que sua avó tinha lhe contado durante sua infância em Manglerud fosse verdade. A família Berntsen havia se mudado de um dilapidado quarteirão em ruínas no centro da cidade para a cidade satélite de Manglerud quando foi construída no final da década de 1950. Mas, curiosamente, foram eles - uma família genuína de Oslo que vinham trabalhando como operários ao longo de três gerações - que se sentiam como imigrantes. A maioria das pessoas nas cidades satélites eram agricultores ou pessoas que vieram de longe para a cidade para iniciar uma nova vida. E quando o pai de Truls se tornou um bêbado nos anos setenta e oitenta e sentava-se em seu apartamento gritando para tudo e todos, Truls fugia para o seu melhor - e único - amigo, Mikael. Ou até sua avó em Gamlebyen. Ela havia dito que Gamlebyen Church tinha sido construída sobre um mosteiro dos anos 1200, em que os monges haviam se trancado durante a Peste Negra para orar, embora o povo dissesse que era para escapar do seu dever cristão de cuidar dos portadores da doença. Quando, depois de oito meses sem um sinal de vida, o bispo mandou quebrar as portas do mosteiro, os ratos estavam se banqueteando com os corpos em decomposição dos monges.
A história de ninar favorita de sua avó era sobre quando um hospício - conhecido localmente como ‘The Madhouse’ - foi construído no mesmo local, e alguns dos internados se queixaram de que homens encapuzados estavam andando pelos corredores à noite. E que, quando arrancaram o capuz de um deles, viram um rosto pálido, com mordidas de ratos e órbitas vazias. Mas a história que Truls mais gostava era aquela sobre Askild Øregod, Askild Bons Ouvidos. Ele viveu e morreu a mais de cem anos atrás, no tempo que Kristiania, como Oslo era conhecida então, tornou-se uma cidade propriamente dita, e uma igreja já existia há muito tempo naquele local. Dizia-se que o seu fantasma caminhava pelo cemitério, pelas ruas adjacentes, pela área do porto e pelo Kvadraturen. Mas nunca mais longe, porque ele tinha uma perna só e precisava voltar para o seu túmulo antes da luz da manhã, disse a avó. Askild Øregod tinha perdido a perna debaixo da roda de um vagão de trem quando tinha três anos, mas a avó de Truls disse que o fato de lhe terem dado um apelido baseado em suas orelhas grandes, foi um exemplo do humor da Oslo Leste. Eram tempos difíceis, e para uma criança com uma perna só a escolha da profissão era bastante óbvia. Então Askild Øregod passou a mendigar e tornou-se uma visão familiar mancando pela cidade florescente, sempre simpático e sempre pronto para uma conversa. E, em particular com aqueles que se sentavam nos bares durante o dia. Desempregados. No entanto, às vezes, de repente eles apareciam com dinheiro nas mãos. Então, uma moeda perdida também aparecia no caminho de Askild. Mas, ocasionalmente Askild necessitava de um pouco mais, e então ele iria dizer à polícia que um deles tinha sido excessivamente generoso recentemente. E que, já no quarto copo, e - sem ligar para o mendigo inofensivo por perto - contou aos outros que eles tinham recebido a oferta de uma oportunidade para roubar um ourives na Karl Johans Gate, ou um comerciante de madeira em Drammen. Então os rumores de que os ouvidos de Askild eram realmente bons começaram a se espalhar, e depois que uma gangue de ladrões em Kampen foi presa, Askild desapareceu. Ele nunca mais foi visto, mas numa manhã de inverno, nos degraus da Gamlebyen Church, apareceram uma muleta e duas orelhas decepadas. Askild tinha sido enterrado em algum lugar no cemitério, mas como nenhum padre havia pronunciado a bênção, o seu espírito ainda andava pelos arredores. E após o início da noite, no Kvadraturen ou ao redor da igreja, você podia topar com um homem, coxeando com seu boné bem enfiado na cabeça, implorando por dois Øre (3). E era sinal de má sorte não dar uma moeda ao mendigo.
Isso era o que sua avó lhe tinha contado. No entanto, Truls Berntsen ignorou o mendigo magro com o blusão estranho e a pele bronzeada sentado ao lado do portão do cemitério, caminhou pelo cascalho entre as lápides enquanto contava, virou à esquerda quando chegou a sete, para a direita quando chegou a três e parou na quarta lápide.
O nome esculpido na lápide não significava nada para ele. A. C. Rud. Ele morreu quando a Noruega ganhou sua independência em 1905, apenas 29 anos de idade, mas, além do nome e das datas não havia nenhum texto, nenhum ultimato para descansar em paz, nem quaisquer outras palavras sentimentais. Talvez porque a lápide grossa fosse muito pequena. Mas a superfície da pedra áspera significava que era perfeita para mensagens escritas a giz, e devia ter sido por isso que eles a escolheram.
 
LTZHUSCRDTO MEEIQU
 
Truls decifrou o texto, usando o código simples que tinham desenvolvido para que passantes casuais não entendessem. Ele começou pelo fim, e leu as letras em pares, se movendo para trás ao longo da linha até que alcançou as letras finais.
 
QUEIME TORD SCHULTZ
 
Truls Berntsen não anotou. Não precisava. Ele tinha uma boa memória para nomes que o aproximava cada vez mais dos bancos de couro de um Audi Q5 2.0 com cambio manual de 6 marchas. Ele usou a manga da sua jaqueta para apagar as letras.
O mendigo olhou para cima quando Truls passou pelo portão. Olhos castanhos de cãozinho abandonado. Havia, provavelmente, um bando de mendigos e um carro grande e gordo esperando em algum lugar. Mercedes, não era desse que eles gostavam? O sino da igreja tocou. De acordo com a lista de preços, um Q5 custava 666 mil coroas. Se havia uma mensagem escondida nesses números, era incompreensível para a cabeça de Truls Berntsen.
 
“ocê aparenta estar bem,” Beate disse enquanto enfiava a chave na fechadura. “Tem um novo dedo, também”.
“Made in Hong Kong,” Harry disse, esfregando o curto coto de titânio.
Ele observou a mulher pequena, pálida que abria a porta. O cabelo curto, fino, loiro, fixado com uma presilha. Sua pele tão frágil e transparente, que ele podia ver a fina rede de veias na sua têmpora. Ela lembrou-lhe os camundongos sem pelos que os cientistas utilizavam em experiências para a pesquisa de câncer.
“Como você escreveu que Oleg estava morando na cena do crime pensei que as chaves dele me abririam a porta.”
“A fechadura original provavelmente foi destruída há muito tempo”, disse Beate, empurrando a porta. “Passamos direto pela porta. Nós trocamos a fechadura para que nenhum dos viciados pudesse entrar e contaminar a cena.”
Harry concordou com a cabeça. Era típico dos antros de crack. Não adiantava ter uma fechadura, eram destruídas imediatamente. Em primeiro lugar, os viciados invadiam lugares onde sabiam que os ocupantes podiam ter drogas. Em segundo lugar, mesmo aqueles que viviam lá roubavam um do outro.
Beate puxou a fita para o lado, e Harry se esgueirou. Roupas e sacos de plástico pendurados em ganchos no hall de entrada. Harry olhou para um dos sacos. Rolos de papel toalha, latas de cerveja vazias, uma camiseta molhada e manchada de sangue, pedaços de folha de alumínio, um maço de cigarros. Contra uma parede havia uma pilha de caixas de pizza congelada Grandiosa, uma torre inclinada de Pisa que se erguia a meio caminho para o teto. Quatro porta-casacos brancos idênticos. Harry ficou confuso até que percebeu que provavelmente eram artigos roubados e que eles não foram capazes de converter em dinheiro. Ele se lembrou que em apartamentos de viciados a policia sempre iria encontrar coisas que alguém tinha pensado que poderia vender em algum lugar. Em um deles tinham encontrado sessenta celulares de modelos irremediavelmente ultrapassados dentro de uma sacola, em outro uma pequena motocicleta parcialmente desmontada estacionada na cozinha.
Harry entrou na sala de estar. Cheirava a uma mistura de suor, madeira encharcada de cerveja, cinza molhada e algo doce que Harry não foi capaz de identificar. A sala não tinha móveis, no sentido convencional. Quatro colchões estavam posicionados no chão, como se em volta de uma fogueira. De um sobressaía um pedaço de arame dobrado em noventa graus, em forma de um Y no final. O quadrado de piso de madeira entre os colchões estava preto com marcas de queimaduras em volta de um cinzeiro vazio. Harry assumiu que tinha sido esvaziado pelos peritos.
“Gusto contra a parede da cozinha, aqui”, disse Beate. Ela parou na porta entre a sala de estar e a cozinha, e estava apontando.
Em vez de entrar na cozinha Harry ficou na porta e olhou em volta. Este era um hábito. Não o hábito dos peritos de cena do crime, que iniciavam o exame da cena do lado de fora, começavam o pente fino pela periferia e em seguida, seguiam pouco a pouco em direção ao corpo. Nem era o hábito de um policial uniformizado ou um policial de carro de patrulha, o primeiro policial na cena, que estavam cientes de que poderiam contaminar as provas com as suas próprias impressões, ou pior, destruir as que lá estavam. O pessoal de Beate já tinha feito o que tinha que ser feito há muito tempo. Este era o hábito de um detetive investigando. Porque sabe que tem apenas uma chance de permitir que suas percepções sensoriais, os detalhes quase imperceptíveis, falem por si mesmos, deixem as suas impressões antes que o cimento seque. Tinha que acontecer agora, antes que a parte analítica do cérebro retomasse o seu funcionamento, a parte que exigia fatos totalmente formulados. Harry costumava definir a intuição como conclusões simples e lógicas tiradas das percepções normais que o cérebro era incapaz, ou muito lento, de converter em algo compreensível.
Esta cena do crime, no entanto, não dizia para Harry muito sobre o assassinato que tinha ocorrido ali.
Tudo o que ele viu, ouviu e sentiu foi um lugar com inquilinos flutuantes que se reuniram, tomaram drogas, dormiram, em raras ocasiões comeram e, depois de um tempo, se afastaram. Para outro acampamento, para um quarto em um albergue, um parque, um container, um saco de dormir barato debaixo de uma ponte ou num caixão branco de madeira debaixo de uma lápide.
“É claro que tivemos que fazer uma limpeza aqui”, disse Beate em resposta a uma pergunta que ele não precisava perguntar. “Havia lixo por toda parte.”
“Drogas?”
“Um saco de plástico contendo bolas de algodão usadas.”
Harry acenou a cabeça. Os viciados mais fissurados ou indigentes iriam guardar o algodão que usavam para filtrar as impurezas da droga quando enchiam a seringa. Então, em dias chuvosos, o algodão podia ser fervido e o chazinho podia ser injetado. “Além de um preservativo cheio de sêmen e heroína.”
“É?” Harry levantou uma sobrancelha. “Será que é bom?”
Harry viu Beate corar, um eco da tímida policial ainda recém-saída da faculdade, da qual ele ainda se lembrava.
“Restos de heroína, para ser mais preciso. Assumimos que o preservativo foi usado para armazená-la e, em seguida, depois de ter sido consumida o preservativo foi usado para a finalidade primária.”
“Hmm”, disse Harry. “Viciados que se preocupam com a contracepção. Nada mal. Vocês descobriram quem...?”
“O DNA do lado de dentro e de fora do preservativo combinam com dois velhos conhecidos. Uma garota sueca e Ivar Torsteinsen, mais conhecido pelos agentes disfarçados como Hivar.”
“Hivar?”
“Costuma ameaçar a polícia com agulhas infectadas, alegando que tinha HIV.”
“Hmm, explica o preservativo. Possui registros de violência?”
“Não. Apenas centenas de roubos, posse e comércio de drogas. Mais um pouco de contrabando.”
“Além das ameaças de assassinato com uma seringa?”
Beate suspirou e entrou na sala de estar, de costas para ele. “Desculpe, Harry, mas não há fios soltos neste caso.”
“Oleg nunca machucaria uma mosca, Beate. Ele simplesmente não tem esse instinto dentro dele. Enquanto este Hivar...”
“Hivar e a garota sueca estão... bem, eles foram eliminados dos inquéritos, poderíamos dizer assim.”
Harry olhou para as costas dela. “Mortos?”
“Overdose. Uma semana antes do assassinato. Heroína impura misturada com fentanyl. Acho que eles não podiam pagar pelo violino.”
Harry deixou seu olhar vagar ao redor das paredes. Os viciados mais fissurados e sem moradia fixa tinham um esconderijo ou dois, um lugar secreto onde eles podiam ocultar ou trancar uma fonte de reserva de drogas. Às vezes de dinheiro. Possivelmente outros bens de valor inestimável. Andar ao redor carregando essas coisas com você estava fora de questão, um viciado desabrigado tinha que se injetar em locais públicos e no momento em que a droga batia ele se tornava presa fácil para os abutres. Por essa razão esconderijos eram sagrados. Entretanto um viciado morto-vivo podia investir tanta energia e imaginação para esconder sua tranqueira que até mesmo os investigadores veteranos com cães farejadores não conseguiriam encontrá-la. Viciados nunca revelavam esconderijos para ninguém, nem mesmo para os melhores amigos. Porque eles sabiam, sabiam por experiência própria, que ninguém poderia ser mais amigo do que a codeína, morfina ou heroína.
“Você já procurou por um esconderijo aqui?”
Beate balançou a cabeça.
“Por que não?” Harry perguntou, sabendo que era uma pergunta estúpida.
“Porque eu presumo que teria que destruir o apartamento para encontrar qualquer coisa, e não seria relevante para a investigação de qualquer maneira”, Beate disse pacientemente. “Porque temos que priorizar os recursos limitados. E porque conseguimos a prova que precisávamos.”
Harry concordou. A resposta que ele merecia.
“E as provas?”, ele perguntou com uma voz suave.
“Nós acreditamos que o assassino atirou de onde estou agora.” Era um costume entre os peritos de cena do crime não usar nomes. Ela estendeu o braço na frente dela. “De perto. Menos de um metro. Resíduos de pólvora em torno das feridas de entrada.”
“Plural?”
“Dois tiros.”
Ela olhou para ele com uma expressão simpática que dizia que sabia o que ele estava pensando: lá se foi a chance do advogado de defesa defender a tese que a arma tinha disparado por acidente.
“Ambos os tiros entraram no peito.” Beate esticou o primeiro e o segundo dedo da mão direita e colocou-os contra o lado esquerdo da blusa, como se estivesse usando linguagem de sinais. “Supondo que a vítima e o assassino estavam de pé e o assassino disparou a arma por instinto, o primeiro ferimento de saída revela que ele tinha entre um metro e oitenta e um metro e oitenta e cinco. O suspeito deve ter um metro e oitenta e três.”
Jesus. Ele pensou no menino que tinha visto na porta da sala de visitas. Parecia que foi apenas ontem, quando eles costumavam brincar de luta e Oleg mal tinha alcançado o peito de Harry.
Ela caminhou de volta para a cozinha. Apontou para a parede ao lado de um fogão gorduroso.
“As balas entraram aqui e aqui, como você pode ver. O que é consistente com o segundo tiro na sequência do primeiro muito rapidamente enquanto a vítima caía. A primeira bala perfurou um pulmão, a segunda passou por cima de seu peito raspando na omoplata. A vítima...”
“Gusto Hanssen”, disse Harry.
Beate parou. Olhou para ele. Assentiu. “Gusto Hanssen não morreu de imediato. Suas impressões digitais estavam na poça de sangue e havia sangue em suas roupas, mostrando que ele se moveu depois que caiu. Mas não deve ter demorado muito tempo.”
“Entendi. E o que...?” Harry passou a mão pelo rosto. Ele teria que tentar conseguir dormir algumas horas. “O que liga Oleg ao assassinato?”
“Duas pessoas ligaram para a central de policia as 8:57 dizendo que tinham ouvido o que poderiam ter sido tiros vindos deste prédio. Uma morava na Møllergata, perto da esquina, o outro bem em frente daqui.”
Harry olhou através da janela encardida com vista para a Hausmanns Gate. “Nada mal, alguém ser capaz de ouvir algo de um prédio para outro bem no centro da cidade.”
“Não se esqueça que era julho. Noite quente. Todas as janelas estão abertas, férias de verão, quase nenhum tráfego. Os vizinhos estavam tentando fazer com que a polícia fechasse este ninho, de modo que o limite para uma notificação de ruído era baixo, pode-se dizer. O policial na Central de Operações disse-lhes para manter a calma e pediu-lhes para manter um olho sobre o prédio até que os carros de patrulha chegassem. Os patrulheiros foram alertados de imediato. Dois carros chegaram as 09:20 e tomaram posição enquanto esperavam pela cavalaria.”
“Delta?”
“Os meninos sempre precisam de um pouco de tempo para vestir os capacetes e armaduras. Em seguida, os carros de patrulha foram informados pela Central de Operações que os vizinhos tinham visto um garoto saindo pela porta da frente e andando em volta do prédio, em direção ao Akerselva. Portanto, dois policiais foram até o rio, e lá encontraram...”
Ela fez uma pausa até que recebeu um aceno quase imperceptível de Harry.
“... Oleg. Ele não resistiu, ele estava tão dopado que mal sabia o que estava fazendo. Encontramos resíduos de pólvora na mão e no braço direito.”
“A arma do crime?”
“Uma vez que é um calibre incomum, um Makarov nove por dezoito milímetros, não há muitas alternativas de pistolas que o utilizem.”
“Bem, a pistola Makarov que é a favorita do crime organizado nos países da extinta república soviética. E a pistola Fort 12, que é usada pela polícia na Ucrânia. Mais duas outras, talvez.”
“Verdade. Encontramos os cartuchos vazios no chão com resíduos de pólvora. A pólvora da Makarov tem uma combinação diferente de salitre e enxofre, e também usam um pouco de solvente, como na pólvora sem enxofre. O composto químico da pólvora no cartucho vazio e em torno do orifício de entrada do ferimento coincide com o resíduo na mão de Oleg.”
“Hmm. E a arma?”
“Ainda não foi recuperada. Colocamos mergulhadores e equipes para vasculhar dentro e ao redor do rio, sem sucesso. Isso não significa que a arma não está lá, com tanta lama e lodo... bem, você sabe.”
“Eu sei.”
“Dois dos rapazes que moravam aqui disseram que Oleg andava exibindo uma pistola e gabando-se que era do tipo que a máfia russa usava. Nenhum deles entende de armas, mas depois que mostramos imagens de cerca de uma centena de armas, os dois apontaram uma Odessa. E ela usa, como você provavelmente sabe...”
Harry acenou com a cabeça. Makarov, nove por 18 milímetros. Ela era inconfundível. A primeira vez que ele viu uma Odessa ele havia se lembrado da velha pistola de aparência futurista na capa do Foo Fighters, um dos muitos CDs que tinham ficado com Rakel e Oleg.
“E eu suponho que eles são testemunhas altamente confiáveis, com apenas um insignificante problema com drogas?”
Beate não respondeu. Ela não precisava. Harry sabia que ela sabia o que ele estava fazendo, um sujeito desesperado procurando pelo em ovo.
“E as amostras do sangue e urina de Oleg,” Harry disse, endireitando as mangas do paletó, como se fosse importante, aqui e agora, que elas ficassem certinhas. “O que elas revelam?”
“Violino era um ingrediente presente. Estar alto pode ser visto como uma circunstância atenuante, é claro.”
“Hmm. Isto pressupõe que ele estava alto antes de atirar em Gusto Hanssen. Mas o que dizer sobre o motivo, então?”
Beate deu um olhar vago para Harry. “O motivo?”
Ele sabia o que ela estava pensando: será que é possível imaginar um viciado matando outro por outra coisa senão drogas? “Se Oleg já estava alto por que ele iria matar alguém?”, perguntou. “Assassinatos ligados às drogas como este são, em geral, um ato desesperado e espontâneo, motivado por um desejo por drogas ou o início dos sintomas de abstinência.”
“O motivo é o seu departamento”, disse Beate. “Estou na Perícia.”
Harry suspirou. “OK. Algo mais?”
“Eu imaginei que você gostaria de ver as fotos”, disse Beate, abrindo uma pasta de couro fino.
Harry pegou a pilha de fotografias. A primeira coisa a atingi-lo foi a beleza de Gusto. Não havia nenhuma outra expressão para ele. Bonito ou atraente não era suficiente. Mesmo morto, com os olhos fechados e a camisa encharcada de sangue, Gusto Hanssen ainda tinha a beleza indefinível, mas evidente, de um jovem Elvis Presley, o tipo de aparência que atinge homens e mulheres, como a beleza andrógina das imagens que você encontra em cada religião. Ele folheou. Depois de várias fotos de longa distancia o fotógrafo tinha feito closes do rosto e dos ferimentos de bala.
“O que é isto?”, ele perguntou, apontando para uma imagem da mão direita de Gusto.
“Ele tinha sangue sob as unhas. Coletamos amostras, mas infelizmente elas foram destruídas.”
“Destruídas?”
“Pode acontecer, Harry.”
“Não no seu departamento.”
“O sangue foi destruído a caminho para o teste de DNA na Unidade de Patologia. Na verdade, nós não ficamos muito chateados. O sangue era fresco, mas ainda congelado o suficiente para não ser relevante para o momento do assassinato. E, na medida em que a vítima era um viciado em agulhas, era altamente provável que fosse o seu próprio. Mas...”
“... mas se não, é sempre interessante saber com quem ele tinha lutado nesse dia. Olhe para os sapatos dele...” Ele mostrou uma das fotos de longa distância para Beate. “Não são Alberto Fasciani?”
“Não tinha ideia que você era um expert sobre sapatos, Harry.”
“Um dos meus clientes em Hong Kong os fabrica.”
“Cliente, é? E, pelo meu conhecimento sapatos originais Fasciani são fabricados apenas na Itália.”
Harry deu de ombros. “Impossível ver a diferença. Mas se eles são Fasciani eles não exatamente combinam com o resto das roupas dele. Parece uma roupa distribuía pelo Exército da Salvação.”
“Os sapatos poderiam ter sido roubados”, disse Beate. “O apelido de Gusto Hanssen era Ladrão. Ele era famoso por roubar qualquer coisa com que se deparava, especialmente drogas. Há uma história que circula por aí afirmando que ele roubou um cão farejador aposentado na Suécia e usou o bichinho para farejar esconderijos de drogas.”
“Talvez ele tenha encontrado as de Oleg” Harry disse. “Ele disse alguma coisa durante o interrogatório?”
“Ele se manteve tão silencioso quanto um molusco. A única coisa que ele diz é que tudo é um vazio negro. Ele nem sequer se lembra de ter estado no apartamento.”
“Talvez ele não tenha estado.”
“Nós encontramos seu DNA, Harry. Cabelo, suor.”
“Ele morava e dormia aqui.”
“No corpo, Harry.”
Harry ficou em silêncio, olhou para longe.
Beate levantou a mão, talvez para colocar em seu ombro, mas mudou de idéia e deixou-a cair. “Você já teve uma conversa com ele?”
Harry balançou a cabeça. “Ele me mandou embora.”
“Ele está envergonhado.”
“Acho que sim.”
“Quero dizer. Você é seu ídolo. É humilhante para ele ser visto neste estado.”
“Humilhante? Eu já sequei as lágrimas do garoto, eu soprei seus arranhões. Afugentei os bichos-papões e deixei a luz acesa.”
Esse menino não existe mais, Harry. O Oleg atual não quer ser ajudado por você agora; ele quer viver de acordo com as expectativas inspiradas por você.”
Harry batia com um sapato nas tábuas do assoalho enquanto olhava para a parede. “Eu não valho a pena, Beate. Ele sabe disso.”
“Harry...”
"Vamos descer até o rio?”
 
ergey ficou na frente do espelho com ambos os braços pendurados para baixo ao seu lado. Abriu a trava de segurança e apertou o botão. A lâmina disparou e refletiu a luz. Era uma faca atraente, um canivete Siberiano, ou ‘o ferro’, como os urkas - a classe criminosa na Sibéria – a denominavam. Era a melhor arma do mundo para apunhalar alguém. Um cabo fino e longo com uma lâmina longa e afiada. A tradição era que você a ganhava de um criminoso mais velho da família quando você tivesse feito algo para merecê-la. No entanto, as tradições foram ficando no passado; hoje em dia você comprava, roubava ou pirateava a faca. Esta faca, no entanto, tinha sido um presente de seu tio. De acordo com Andrey, o ataman manteve a faca debaixo do colchão antes de dá-la a Sergey. Ele refletiu sobre o mito de que se você colocava ‘o ferro’ debaixo do colchão de uma pessoa doente ela absorvia a dor e o sofrimento e os transferia para a próxima pessoa esfaqueada com ela. Este era um dos mitos que os urkas tanto amavam, como o que alegava que se alguém tomasse posse da sua faca, esse alguém em breve se defrontaria com um acidente e a morte. Romantismo e superstição antigos, que estavam ficando fora de moda. No entanto, ele tinha recebido o presente com enorme, talvez exagerada, reverência. E por que não deveria? Ele devia tudo ao seu tio. Ele foi o único que tinha resolvido os problemas que ele enfrentou quando desembarcou, organizou seus papéis para que pudesse vir para a Noruega; seu tio tinha até escolhido o trabalho de limpeza em Gardermoen para ele. Era bem remunerado, e fácil de fazer, mas aparentemente era o tipo de trabalho que os noruegueses menosprezavam; eles preferiam procurar a segurança social. E os pequenos delitos que Sergey trouxe com ele da Rússia não foram problema; seu tio conseguiu fazer com que sua ficha criminal fosse adulterada. Então Sergey tinha beijado o anel azul de seu benfeitor, quando recebeu o presente. E Sergey tinha que admitir que a faca na sua mão era muito bonita. Um cabo marrom escuro feito de chifre de veado incrustado com uma cruz ortodoxa de cor marfim.
Sergey empurrou a partir do quadril do jeito que lhe tinham ensinado, podia sentir que estava devidamente preparado, e empurrou para cima. Dentro e fora. Dentro e fora. Rápido, mas não tão rápido que a lâmina não entrasse até o punho.
A razão pela qual tinha que usar a faca era porque o homem que ele iria matar era um policial. E quando policiais são mortos a caça depois era sempre mais intensa, por isso era vital deixar o menor número de pistas possível. Uma bala sempre podia ser rastreada até lugares, armas ou pessoas. A lâmina de uma faca lisa era limpa e anônima. A facada não era tão anônima, poderia revelar o comprimento e a forma da lâmina, e foi por isso que Andrey lhe tinha dito para não atingir o policial no coração, mas para cortar sua artéria carótida. Sergey nunca tinha cortado a garganta de ninguém antes, nem esfaqueado ninguém no coração, apenas tinha esfaqueado um georgiano na coxa apenas porque era um georgiano. Então ele decidiu que precisava de algo para treinar, algo vivo. Seu vizinho paquistanês tinha três gatos, e todas as manhãs quando ele entrava no hall de entrada o cheiro de mijo de gato atacava suas narinas.
Sergey abaixou a faca, estava com a cabeça baixa, revirou os olhos para cima para que pudesse ver-se no espelho. Ele parecia bem: forte, ameaçador, perigoso, pronto. Como num cartaz de filme. Sua tatuagem revelaria que ele havia matado um policial.
Ele iria ficar atrás do policial. Daria um passo a frente. Com a mão esquerda ele agarraria seu cabelo, puxando-o para trás. Colocaria a ponta da faca contra seu pescoço, do lado esquerdo, penetraria na pele, faria um corte em arco com a lâmina através da garganta, em forma de lua crescente. Deste jeito.
O coração iria bombear uma cascata de sangue para fora; três batimentos cardíacos e o fluxo iria diminuir. O homem já estaria com morte cerebral.
Dobre a faca, coloque-a no seu bolso enquanto se afasta, rápido, mas não muito rápido. Não olhe ninguém nos olhos. Caminhe, e sinta-se livre.
Ele deu um passo para trás. Esticou-se em linha reta, inalando. Visualizou a cena. Soltou a respiração. Deu um passo a frente. Posicionou a lâmina de modo que ela tivesse um brilho maravilhoso, como uma joia preciosa.
 

(3) Øre: em norueguês esta palavra tem dois significados – orelha e centavos.

eate e Harry desceram para a Hausmanns Gate, viraram à esquerda, viraram na esquina do quarteirão e atravessaram pelo terreno do edifício queimado, ainda com cacos de vidro enegrecidos e tijolos chamuscados nos escombros. Atrás dele, um declive coberto de vegetação descia até o rio. Harry notou que não havia portas na parte de trás do prédio onde Oleg morava e que, na ausência de qualquer outra saída, havia uma estreita escada de incêndio descendo desde o topo do prédio.
“Quem mora no apartamento vizinho?”, Harry perguntou.
“Ninguém”, disse Beate. “Escritórios desocupados. É onde o Anarkisten, um pequeno jornal que...”
“Eu sei disso. Não era um fanzine ruim. Os colunistas da seção de cultura agora trabalham nos grandes jornais. As salas estão destrancadas?”
“Arrombadas. Provavelmente estão abertas há muito tempo.”
Harry olhou para Beate, que com um ar resignado confirmou o que Harry não precisava dizer: alguém poderia ter entrado no apartamento de Oleg e escapou sem ser visto. Pelo em ovo.
Seguiram pelo caminho que margeava o Akerselva. (4) Harry notou que o rio era estreito o suficiente para um garoto com um braço decente conseguir arremessar a arma até a margem oposta.
“Se você ainda não encontrou a arma...”, disse Harry.
“O Ministério Público não precisa da arma, Harry.”
Ele balançou a cabeça. Os resíduos de pólvora nas mãos dele. Testemunhas que o viram se exibindo com a arma. Seu DNA no garoto morto.
À frente deles, encostados num banco de ferro verde, dois garotos brancos com agasalhos com capuz cinzentos os viram, abaixaram a cabeça e seguiram adiante pelo caminho, arrastando os pés.
“Parece que os traficantes ainda podem sentir o cheiro de tira em você, Harry.”
“Hmm. Pensei que somente os marroquinos vendiam hash por aqui.”
“A concorrência mudou. Albaneses de Kosovo, Somalis, os Europeus do Leste. Os refugiados asilados vendem todo o espectro de drogas. Speed, metanfetaminas, ecstasy, morfina.”
“Heroína.”
“Duvidoso. Não se consegue quase nenhuma heroína padrão em Oslo. Violino é o que conta, e você só pode consegui-lo ao redor da Plata. A menos que você queira viajar para Gotemburg ou Copenhaguem, onde o violino apareceu recentemente.”
“Eu estou ouvindo muito sobre essa coisa - violino. O que é isso?”
“Uma nova droga sintética. Ela não dificulta a respiração, tanto quanto a heroína padrão, por isso, ainda que ela arruíne vidas, há menos casos de overdose. Extremamente viciante. Todo mundo que experimenta quer mais. Mas é tão cara que não são muitos os que podem pagar.”
“Então eles compram outra droga?”
“Há uma grande oferta de morfina.”
“Um passo adiante, dois passos para trás.”
Beate balançou a cabeça. “É a guerra contra a heroína que importa. E ele ganhou essa.”
“Bellman?”
“Então você já ouviu falar?”
“Hagen disse que ele prendeu a maioria das gangues de heroína.”
“As gangues paquistanesas. A vietnamita. O Dagbladet chamou-o de general Rommel depois que ele quebrou uma grande rede de norte-africanos. A quadrilha MC em Alnabru. Eles foram detonados.”
“Os motociclistas? No meu tempo os garotos motociclistas vendiam Speed e se injetavam heroína como loucos.”
“Los Lobos. Imitadores dos Hell’s Angels. Pensávamos que eles eram uma das duas únicas redes que negociavam Violino. Mas eles foram apanhados e presos em massa durante uma grande batida em Alnabru. Você deveria ter visto o sorriso de Bellman até as costeletas  nos jornais. Ele estava presente quando a operação foi realizada.”
“Vamos fazer algo de bom?”
Beate riu. Outra característica que ele gostava nela: ela era uma cinéfila capaz de reconhecer um diálogo de um filme meio ruim como Os Intocáveis. Harry lhe ofereceu um cigarro, que ela recusou. Ele acendeu o seu.
“Hmm. Como diabos Bellman conseguiu concretizar o que a Unidade de Narcóticos não chegou nem perto de alcançar em todos os anos em que estive no QG da Polícia?”
“Eu sei que você não gosta dele, mas na verdade ele é um bom líder. Eles o amavam na Kripos, e eles estão chateados porque o chefe de polícia o levou para o QG da Polícia.”
“Hmm”. Harry inalou profundamente. Sentiu que aplacava a sua fome por sangue. Nicotina. Uma palavra polissilábica, como heroína, como Violino. “Então, quem sobrou?”
“Esse é o problema com a exterminação de pragas. Você perturba a cadeia alimentar e não sabe se simplesmente  abriu caminho para outra coisa. Algo pior do que o que você removeu...”
“Alguma evidência disso?”
Beate deu de ombros.
“De repente nós não estamos recebendo nenhuma informação das ruas. Nossos informantes não sabem de nada. Ou eles estão se mantendo calados. Há apenas um rumor sobre o homem de Dubai. Ninguém o viu, ninguém sabe o nome dele, ele é um tipo de marionete invisível. Podemos ver que o violino está sendo vendido, mas não conseguimos rastreá-lo de volta até sua origem. Os traficantes que prendemos dizem que compram de outros distribuidores do mesmo nível. Não é normal que as pistas sejam tão bem encobertas. Isto indica que se trata de uma única gangue muito profissional controlando as importações e a distribuição.”gênio
“O homem de Dubai. O gênio misterioso. Já não ouvimos essa história antes? E então descobrimos que se tratava de um bandido comum.”
“Isto é diferente, Harry. Houve uma série de assassinatos relacionados com as drogas recentemente. Um tipo de brutalidade que não vimos antes. E ninguém diz uma palavra. Dois traficantes vietnamitas foram encontrados pendurados de cabeça para baixo numa viga no apartamento onde trabalhavam. Afogados. Cada um tinha um saco plástico cheio de água envolvendo a sua cabeça.”
“Esse não é um método árabe, é russo.”
“Como?”
“Eles penduram a vítima de cabeça para baixo, colocam um saco plástico sobre suas cabeças e amarram ligeiramente frouxo ao redor do pescoço. Em seguida, eles começam a derramar água sobre seus calcanhares. Ela escorre pelo corpo até o saco ficar cheio. O método é chamado de Homem na Lua.”
“Como você sabe disso?”
Harry deu de ombros. “Havia um cirurgião rico chamado Birayev. Na década de oitenta ele conseguiu um dos trajes originais dos astronautas da Apollo 11. Dois milhões de dólares no mercado negro. Qualquer um que trapaceasse Birayev ou não pagasse uma dívida era colocado no traje. Eles filmavam o rosto do pobre sujeito enquanto derramavam a água. Depois disso o filme era enviado para outros devedores.”
Harry soprou a fumaça em direção ao teto.
Beate olhou-o demoradamente e balançou a cabeça lentamente. “O que você tem feito em Hong Kong, Harry?”
“Você me perguntou isso no telefone.”
“E você não respondeu.”
“Exatamente. Hagen disse que ele poderia me dar outro caso, em vez deste. Mencionou algo sobre um tira disfarçado que foi morto.”
“Sim”, disse Beate, parecendo aliviada por eles já não estarem falando sobre o caso Gusto e Oleg.
“O que aconteceu?”
“Um jovem agente disfarçado da Narcóticos. Ele foi encontrado onde a rampa da Opera House se encontra com a água. Turistas, crianças, e assim por diante. Tremendo tumulto.”
“Baleado?”
“Afogado”.
“E como você sabe que foi assassinato?”
“Nenhum ferimento externo; na verdade, parecia que ele tinha caído no mar por acidente - sua área de ação era ao redor da Opera House. Mas então Bjørn Holm verificou seus pulmões. A água era doce. E o fiorde de Oslo é de água salgada como você sabe muito bem. Parece que alguém o jogou no mar para fazer parecer que ele tinha se afogado lá.”
“Bem,” Harry disse, “como um agente da Narcóticos ele deve ter vagado para cima e para baixo ao longo do rio. É água doce e desagua no mar perto da Opera House.”
Beate sorriu. “É bom ter você de volta, Harry. Mas Bjørn pensou sobre isso, e comparou a flora bacteriana, o teor de microrganismos, e assim por diante. A água em seus pulmões era muito limpa para ter vindo do Akerselva. Ela tinha passado por filtros. Meu palpite é que ele se afogou durante um banho. Ou numa piscina com água muito purificada. Ou...”
Harry jogou a bituca no caminho à sua frente. “Um saco de plástico.”
“Sim.”
“O Homem de Dubai. O que você sabe sobre ele?”
“O que eu acabei de dizer, Harry.”
“Você não me disse nada.”
“Exatamente.”
Eles pararam na Anker Bridge. Harry olhou para o relógio.
“Indo a algum lugar?”, Beate perguntou.
“Não,” Harry respondeu. “Eu fiz isso para dar-lhe um pretexto para dizer que você tem que ir, sem sentir que estava me descartando.”
Beate sorriu. Ela era muito atraente quando sorria, pensou Harry. Estranho que ela não estivesse com alguém. Ou talvez estivesse. Uma das oito pessoas na sua lista de contatos no telefone, e ele não sabia nada sobre ela.
B para Beate.
H para Halvorsen, ex-colega de Harry e pai da criança de Beate. Morto em serviço. Mas o número dele ainda não havia sido excluído.
“Você já entrou em contato com Rakel?”, Beate perguntou.
R. Harry se perguntou se o nome dela tinha surgido como resultado da associação com a palavra “descartando”. Ele balançou a cabeça. Beate esperou. Mas ele não tinha nada a acrescentar.
Ambos começaram a falar ao mesmo tempo.
“Suponho que você...”
“Na verdade, eu...”
Ela sorriu. “...quer ficar afastado.”
“Claro.”
Ele observou-a caminhar em direção à rua.
Em seguida, ele se sentou em um dos bancos e olhou para o rio, para os patos deslizando nas águas tranquilas.
Os dois encapuzados voltaram. Aproximaram-se dele.
“Você é 5-0?”
Gíria americana para policial, roubado da série de TV Hawaii 5-0. Foi de Beate que eles tinham sentido o cheiro, não dele.
Harry balançou a cabeça.
“Procurando alg...?”
“Alguma paz,” Harry completou. “Paz e tranquilidade.”
Ele pegou os óculos de sol Prada do bolso. Tinha ganhado de presente de um comerciante da Canton Road, que estava um pouco atrasado com os pagamentos, mas que considerava estar recebendo um tratamento justo. Era um modelo feminino, mas Harry não se importava, ele gostava deles.
“Por acaso,” ele perguntou, “vocês tem algum violino?”
Um deles bufou como resposta. “Lá no centro da cidade,” o outro disse, apontando por cima do ombro.
“Onde exatamente?”
“Procure por Van Persie ou Fàbregas.” A risada deles desapareceu enquanto se dirigiram na direção do Blå, o clube de jazz.
Harry se inclinou para trás e estudou o modo estranhamente eficiente dos patos que lhes permitia deslizar através da água como patinadores de velocidade no gelo negro. (5)
Oleg estava mantendo a boca fechada. Do jeito que os culpados mantém a boca fechada. É um privilégio e a única estratégia racional. Então para onde ir a partir daqui? Como você investiga algo que já está resolvido, como responder perguntas para as quais já foram encontradas respostas adequadas? O que ele achava que poderia descobrir? Derrotar a verdade apenas negando-a? A maneira como ele, no seu papel de detetive de Homicídios, tinha visto os pais proferirem o refrão patético: “Meu filho? De jeito nenhum!” Harry sabia por que ele queria investigar crimes. Porque era a única coisa que sabia fazer. A única coisa com o que ele podia contribuir. Ele era a dona de casa que insistia em cozinhar depois do velório do seu filho, o músico que levava o seu instrumento para o funeral do seu amigo. A necessidade de fazer alguma coisa, como uma distração ou um gesto de conforto.
Um dos patos deslizou em direção a ele, talvez esperando por algumas migalhas de pão. Não porque tivesse certeza, mas nunca se sabe. Ele tinha calculado o consumo de energia em relação à probabilidade de uma recompensa. Esperança. Gelo negro.

Harry levantou-se com um sobressalto. Pegou as chaves no bolso do paletó. Ele tinha acabado de se lembrar por que tinha comprado o cadeado Abus há muito tempo. Não tinha sido para si mesmo. Tinha sido para o patinador de velocidade. Para Oleg.
 
(4) O rio Akerselva corta Oslo e suas margens contém vegetação e árvores e trilhas naturais e caminhos que o margeiam. Formam um parque publico isolado das ruas e do transito pois fica num nível abaixo delas.
(5) Em inglês Black Ice. Também chamado de Gelo Transparente. É o nome que se dá a uma fina camada de gelo vidrado sobre uma superfície. É praticamente transparente permitindo que o asfalto negro das estradas e ruas, e outros pavimentos, possam ser vistos atravé dele. Como o gelo não é notado as pessoas correm o risco de escorregar e os carros de derrapar.

detetive Truls Berntsen teve uma breve discussão com o inspetor de plantão no aeroporto. Berntsen tinha dito que sim, ele sabia que o aeroporto ficava no Distrito Policial Romerike, e ele não tinha nada a ver com aquela prisão, mas como um detetive de Operações Especiais tinha estado de olho naquele homem por um tempo e, recentemente, tinha sido avisado por uma de suas fontes que Tord Schultz tinha sido capturado com narcóticos em seu poder. Ele mostrou seu cartão de identificação mostrando que era um policial de grau 3, alocado no Distrito Policial de Oslo nas Operações Especiais e na Orgkrim. O inspetor deu de ombros e, sem mais delongas, levou-o até uma das três celas de prisão preventiva.
Depois da porta da cela ter se fechado por trás de Truls ele olhou em volta para se certificar que não havia ninguém no corredor e nas outras duas celas. Depois se sentou sobre a tampa da privada e olhou para a cama e o homem com a cabeça enterrada em suas mãos.
“Tord Schultz?”
O homem ergueu a cabeça. Ele havia tirado o paletó, e se não fossem as insígnias na sua camisa Berntsen não o teria reconhecido como o comandante de uma aeronave. Comandantes não costumam se parecer como este. Petrificado, pálido, com as pupilas dilatadas e escuras pelo choque. Por outro lado, era como a maioria das pessoas se parecia depois de terem sido presas pela primeira vez. Tinha demorado um pouco para Berntsen localizar Tord Schultz no aeroporto. Mas o resto foi fácil. De acordo com o STRASAK, o registo criminal oficial, Schultz não tinha um registro, nunca tinha tido quaisquer contatos com a polícia e era - de acordo com o seu registro não oficial - alguém sem ligações conhecidas com a comunidade das drogas.
“Quem é você?”
“Eu estou aqui em nome das pessoas para quem você trabalha, Schultz, e não me refiro a companhia aérea. Imagine o resto. Tudo bem?”
Schultz apontou para o distintivo pendurado em um cordão em torno do pescoço de Berntsen. “Você é um policial. Você está tentando me enganar.”
“Seria muito bom se eu estivesse, Schultz. Seria uma violação dos procedimentos e uma chance para o seu advogado te livrar. Mas nós vamos administrar isso sem advogados. Tudo bem?”
O comandante continuou a olhar com as pupilas dilatadas que absorviam toda a luz que podiam, um leve vislumbre de otimismo. Truls Berntsen suspirou. Ele só podia esperar que o que ia dizer seria compreendido.
“Você sabe o que é um queimador?”, Berntsen perguntou, aguardando apenas brevemente por uma resposta. “É alguém que destrói casos policiais. Ele garante que as evidências sejam contaminadas ou desapareçam, que erros sejam cometidos nos procedimentos legais, evitando assim que um caso seja levado ao tribunal, ou que negligencias sejam feitas durante o inquérito, permitindo assim que o suspeito saia livre. Você entendeu?”
Schultz piscou duas vezes. E balançou a cabeça lentamente.
“Ótimo”, disse Berntsen. “A situação é que nós somos dois homens em queda livre com apenas um paraquedas para nós dois. Eu saltei do avião para salvá-lo, por enquanto você pode poupar-me da sua gratidão, mas você deve confiar em mim cem por cento, caso contrário nós dois vamos estourar no chão. Capisce?”
Mais piscadas. Obviamente que não.
“Era uma vez um policial alemão, um queimador. Ele trabalhava para uma gangue de albaneses de Kosovar que importava heroína pela rota dos Balcãs. As drogas eram levadas em caminhões dos campos de ópio no Afeganistão para a Turquia, transportadas através de ex-Iugoslávia para Amsterdã, onde os albaneses embarcavam-nas para a Escandinávia. Muitas fronteiras para atravessar, grande quantidade de pessoas para pagar. Entre eles, o queimador. Certo dia um jovem albanês é pego com um tanque de gasolina cheio de ópio bruto, a pelotas não estavam embrulhadas, apenas colocadas diretamente na gasolina. Ele foi mantido sob custódia, e no mesmo dia os albaneses contataram o seu queimador alemão. Ele foi até o jovem, explicou que ele era o seu queimador e, portanto, agora ele podia relaxar, eles iriam resolver tudo. O queimador disse que estaria de volta no dia seguinte para orientá-lo como fazer a declaração para a polícia. Tudo o que ele tinha que fazer era manter a boca fechada. Mas esse jovem que tinha sido preso em flagrante era inexperiente. Ele provavelmente tinha ouvido muitas histórias sobre sujeitos se curvando nos chuveiros da prisão para pegar o sabonete; de qualquer forma ele rachou como um ovo no micro-ondas no primeiro interrogatório e abriu o bico sobre o queimador na esperança de que iria receber um tratamento favorável do juiz. Então, a fim de obter provas contra o queimador a polícia colocou um microfone escondido na cela. Mas o queimador, o policial corrupto, não apareceu como combinado. Eles o encontraram seis meses depois. Espalhado sobre uma plantação de tulipas, em pedaços. Eu sou um cara da cidade, mas ouvi dizer que cadáveres são um bom adubo.”
Berntsen parou e olhou para o piloto enquanto esperava pela pergunta de costume.
O piloto tinha se sentado com as costas eretas na cama, recuperara um pouco da cor do rosto e finalmente pigarreou. “Por que... hmm, o queimador? Ele não era o único que estava envolvido.”
“Porque não existe justiça, Schultz. Existem apenas soluções necessárias para problemas práticos. O queimador que iria destruir a evidência tornou-se a própria evidência. Ele havia sido desmascarado, e se a polícia o pegasse ele poderia levar os detetives até os albaneses. Uma vez que ele não era um de seus irmãos, apenas um policial corrupto, era lógico que deveriam acelerar a sua ida para o além. E eles sabiam que era um assassinato de policial que a polícia não iria priorizar. Por que deveriam? O queimador já havia recebido seu castigo, e a polícia não iria fazer uma investigação onde o único resultado que atingiriam seria informar o público sobre a corrupção policial. Concorda?”
Schultz não respondeu.
Berntsen se inclinou para a frente. A voz diminuiu em volume e em intensidade. “Eu não quero ser encontrado em uma plantação de tulipas, Schultz. A única maneira de sairmos desta situação é a confiar uns nos outros. Um paraquedas. Entendeu?”
O piloto pigarreou novamente. “O que aconteceu com o albanês? Ele teve sua sentença comutada?”
“É difícil dizer. Ele foi encontrado pendurado na cela antes que o caso chegasse ao tribunal. Alguém tinha esmagado a cabeça dele contra um gancho de roupa.”
O rosto do capitão perdeu a cor novamente.
“Respire, Schultz,” disse Truls Berntsen. Isso era o que ele mais gostava neste trabalho. A sensação de que desta vez ele estava no comando.
Schultz se inclinou para trás e descansou a cabeça contra a parede. Fechou os olhos. “E se eu recusar a sua ajuda a título definitivo e nós fingirmos que você nunca esteve aqui?
“Não vai dar. Seu empregador e o meu não querem você no banco das testemunhas.”
“Então, você está dizendo que eu não tenho escolha?”
Berntsen sorriu. E proferiu sua sentença favorita: “Schultz, já se passou um longo tempo desde que você teve uma oportunidade de escolha.”
 
alle Hovin Stadium. Um pequeno oásis de concreto no meio de um deserto de gramados verdes, bétulas, jardins e canteiros de flores nas varandas. No inverno, a pista era usada como rinque de patinação, no verão como uma sala de concertos, em geral para os dinossauros como os Rolling Stones, Prince e Bruce Springsteen. Rakel até tinha convencido Harry a ir junto com ela assistir um show do U2, embora ele sempre tivesse odiado concertos em estádios. Preferia ambientes menores. Depois ela brincou com Harry dizendo que no fundo do seu coração ele era um ouvinte de música antissocial.
Na maioria das vezes, no entanto, Valle Hovin era como agora, abandonado, degradado, como uma fábrica abandonada que tinha fabricado um produto que se tornara obsoleto. As melhores lembranças de Harry daqui eram quando assistia Oleg treinando sobre o gelo. Sentado e assistindo Oleg se esforçar ao máximo. Lutando. Falhando. Falhando. Em seguida, conseguindo. Não grandes conquistas: uma pontuação mais alta, o segundo lugar em um campeonato de clubes para sua faixa etária. Porém mais do que suficiente para fazer inchar o coração insensato de Harry até um tamanho tão absurdo que ele tinha que adotar um ar indiferente, para não constranger os dois. “Nada mal, Oleg.”
Harry olhou em volta. Nem uma alma à vista. Em seguida, ele inseriu a chave Ving na fechadura da porta do vestiário que ficava debaixo das arquibancadas. Dentro, tudo estava inalterado, porém mais desgastado. Havia lixo no chão; era evidente que há muito tempo alguém não tinha estado por ali. Era um lugar onde você podia ficar sozinho. Harry andou entre os armários. A maioria não estava trancada. Mas então ele encontrou o que estava procurando, o cadeado Abus.
Enfiou a ponta da chave na abertura recortada. Ela não queria entrar. Merda.
Harry se afastou. Deixou seus olhos deslizarem ao longo dos volumosos armários de ferro. Parou, dirigiu-se para outro armário. Este também tinha um cadeado Abus. E havia um círculo gravado na tinta verde. Um ‘O’.
Os primeiros objetos que Harry viu quando abriu o armário foram os patins de corrida de Oleg. As lâminas longas e finas tinham uma espécie de ferrugem avermelhada ao longo do fio da lâmina.
No interior da porta do armário, presas à grade de ventilação, estavam duas fotografias. Duas fotografias de família. Um mostrava cinco rostos. Duas das crianças e o que ele assumiu serem os pais não lhe eram familiares. Mas ele reconheceu a terceira criança. Porque ele o tinha visto em outras fotografias. Fotografias da cena do crime.
Tinha uma boa aparência. Gusto Hanssen.
Harry se perguntou se foi a boa aparência que lhe deu a sensação imediata de que Gusto Hanssen não pertencia à fotografia. Ou, para ser mais preciso, que ele não pertencia à família.
O mesmo, curiosamente, poderia ser dito sobre o homem alto e loiro sentado atrás da mulher de cabelos escuros e seu filho na segunda fotografia. Ela tinha sido feita num dia de outono há vários anos. Eles tinham ido fazer uma caminhada no Holmenkollen, penetraram através da folhagem cor de laranja, e Rakel havia colocado sua câmera sobre uma rocha e apertado o botão do temporizador.
Aquele era ele realmente? Harry não conseguia se lembrar de ter tais características suaves.
Os olhos de Rakel brilhavam, e ele imaginou que podia ouvir o seu riso, o riso que ele amava, do qual ele nunca se cansou, e iria se lembrar para sempre. Ela ria com os outros também, mas com ele e Oleg tinha um tom diferente, um riso reservado só para eles.
Harry procurou no resto do armário.
Encontrou um suéter branco com uma faixa azul claro. Não era o estilo de Oleg, ele usava jaquetas curtas e camisetas pretas estampadas com Slayer e Slipknot. Harry cheirou o suéter. Perfume suave, feminino. Havia um saco de plástico numa prateleira. Ele abriu. Respiração profunda e rápida. Era um kit de viciado: duas seringas, uma colher, uma faixa de borracha, um isqueiro e um pouco de algodão. Só faltava a droga. Harry estava prestes a devolver o saco quando avistou algo. Uma camiseta bem no fundo. Era vermelha e branca. Ele pegou. Era uma camiseta de futebol com uma ordem no peito: Fly Emirates. Arsenal.
Ele olhou para a fotografia, para Oleg. Ele estava sorrindo. Sorrindo como se acreditasse que, pelo menos naquele momento, as três pessoas sentadas juntas concordavam que aquilo era maravilhoso, que tudo iria ficar bem, que é assim que queremos que as coisas sejam. Então, por que as coisas saíram da rota? Por que o homem que parecia manter o controle da situação desviou-se do curso?
“A maneira como você mentiu que estaria sempre lá para nós.”
Harry removeu as fotos da porta do armário e enfiou-as no bolso.

Quando saiu o sol estava se pondo atrás da colina Ullern Ridge.

ocê pode ver como eu estou sangrando, papai? Estou sangrando seu sangue ruim. E o seu sangue, Oleg. É para você que os sinos da igreja devem estar dobrando. Eu te amaldiçoo, amaldiçoo o dia em que te conheci. Você tinha ido a um show no Spectrum, Judas Priest. Eu estava perambulando por ali e me juntei à multidão de pessoas que saiam do local.
“Uau, camiseta legal”, eu disse. “Onde você conseguiu?”
Você me olhou com estranheza. “Amsterdam”.
“Você assistiu Judas Priest em Amsterdam?”
“Por que não?”
Eu não sabia nada sobre Judas Priest, exceto que era uma banda, não um cara, e que o nome do vocalista era Rob alguma coisa.
“Demais. Priest é o máximo.”
Você se enrijeceu por um segundo e olhou para mim. Concentrado, como um animal que tinha captado um cheiro. Um perigo, ou uma presa, um parceiro da matilha. Ou - no seu caso - uma possível alma gêmea. Você carregava a sua solidão como uma capa de chuva molhada e pesada, Oleg, você andava com as costas curvadas e arrastava seus pés. Eu tinha notado você justamente por causa da sua solidão. Eu disse que ia comprar uma Coca-Cola se você me contasse sobre o show em Amsterdam.
Então, você falou sobre Judas Priest, o concerto no Heineken Music Hall, há dois anos, sobre os dois amigos de dezoito e dezenove anos que se injetaram depois de ouvir um disco do Priest com uma mensagem oculta que dizia “Faça isso”. Só um deles sobreviveu. Priest começou tocando Heavy Metal, mas mudaram para o Speed Metal. E vinte minutos depois você tinha falado tanto sobre góticos e morte que era hora de introduzir meth na conversa.
“Vamos falar de coisas mais importantes, Oleg. Comemorar este encontro de mentes semelhantes. O que você acha?”
“O que você quer dizer?”
“Eu conheço algumas pessoas divertidas que costumam queimar fumo no parque.”
“Sério?” Céptico
“Nada muito pesado, apenas ice, metanfetamina mais pura, voce conhece, não é?.”
“Eu não faço isso, me desculpe.”
“Poxa, eu também não. Vamos só fumar um pouco de cachimbo de água. Você e eu. Ice de verdade, não a merda em pó. Como Rob.”
Oleg parou de tomar a coca se engasgando. “Rob?”
“Sim.”
“Rob Halford?”
“Claro. A equipe deles compra do mesmo cara de quem eu vou comprar agora. Tem algum dinheiro?”
Eu disse de uma forma tão casual, um jeito tão casual e natural que não havia uma sombra de desconfiança nos olhos sérios dele fixados em mim. “Rob Halford fuma ice?”
Ele me deu as quinhentas coroas que eu pedi. Eu disse para ele esperar, me levantei e saí. Na direção da Vaterland Bridge. Então, em poucos minutos eu já estava fora de vista, à direita da rua, a trezentos metros da Central Station. Pensando que seria a última vez que via o porra do Oleg Fauke.
Só quando eu estava sentado debaixo da ponte com o cachimbo na minha boca foi que eu percebi que ele e eu ainda não tínhamos terminado. Não mesmo. Ele estava de pé ao meu lado sem dizer uma palavra. Ele se encostou na parede e deslizou até sentar ao meu lado. Estendeu a mão. Eu dei-lhe o cachimbo. Ele inalou. Tossiu. E estendeu a outra mão. “O troco.”
Com isso, a equipe Oleg e Gusto tornou-se uma realidade. Todos os dias, depois dele terminar sua jornada na loja de departamentos Clas Ohlson, onde tinha um emprego de verão no estoque, íamos até o centro da cidade, aos parques, mergulhávamos na água imunda em Middelalder Park, e assistíamos a remodelação do antigo centro da cidade em torno da Opera House.
Nós dizíamos um ao outro sobre todas as coisas que iriamos fazer e acontecer, sobre os lugares aonde iriamos, fumar e cheirar tudo o que pudéssemos comprar com o dinheiro do emprego de verão dele.
Eu contei a ele sobre o meu pai de criação, como ele tinha me expulsado porque minha mãe adotiva tinha avançado sobre mim. E você, Oleg, falou sobre um cara que sua mãe tinha namorado, um policial chamado Harry que você dizia ser “legal”. Alguém em quem você podia confiar. Mas as coisas tinham azedado. Primeiro, entre ele e sua mãe. E depois você foi envolvido num caso de assassinato no qual ele estava trabalhando. E foi aí que você e sua mãe se mudaram para Amsterdã. Eu disse que o cara provavelmente era “legal”, mas era uma expressão muito careta. E você disse “fudido” era ainda mais careta. Alguém alguma vez já me dissera que a palavra era “fodido”? Mesmo que soasse infantil. E por que eu falava um norueguês exageradamente classe baixa? Eu nem fui criado no East End de Oslo. Eu disse que exagerar era um princípio que eu tinha - isso enfatizava um ponto de vista - e “fudido” estava tão errado que acabava sendo certo. Oleg olhou para mim e disse que eu é quem era o 'errado' mas acabava sendo o 'certo'. E o sol brilhava, e eu pensei que era a melhor coisa que alguém tinha dito sobre mim.
Nós pedíamos dinheiro na Karl Johans Gate por diversão. Eu roubei um skate na Rådhusplassen e troquei por speed na Jernbanetorget meia hora mais tarde. Nós pegamos o barco para Hovedøya, nadamos e detonamos cervejas. Algumas meninas nos convidaram para nos juntarmos a elas no iate do pai e você mergulhou de cima do mastro, apenas para agitar. Nós pegamos o bonde para Ekeberg para ver o pôr do sol. Havia um jogo da Copa Noruega, e um torcedor triste de Trøndelag estava olhando para mim, e eu disse que eu lhe faria uma chupeta por mil coroas. Ele pagou e eu esperei até que suas calças estivessem em volta dos tornozelos antes de sair correndo. E mais tarde você me disse que ele tinha ficado 'totalmente perdido' e se virou para você, como que pedindo para você assumir a tarefa. Eita, como nós rimos!
Aquele verão nunca terminava. E então, terminou. Gastamos o seu último salário em marijuana, que sopramos no céu noturno, pálido e vazio. Você disse que ia voltar para a escola, obter as melhores notas e estudar Direito, como sua mãe. E que depois você entraria na porra da Academia de Polícia! Rimos tanto que nossos olhos ficaram lacrimejantes.
Mas quando as aulas começaram, eu quase não vi você. Depois, ainda menos. Você morava no alto da colina de Holmenkollen com a sua mãe, enquanto eu dormia num colchão na sala de ensaio de uma banda. Eles disseram que tudo bem eu ficar por lá desde que mantivesse um olho nos seus equipamentos e ficasse longe quando eles estivessem ensaiando. Então eu desisti de você, pensando que você estava confortável de volta na sua vidinha convencional. E isso foi na época em que comecei a traficar.
Aconteceu por acaso. Eu tinha arranjado uma grana com uma mulher com quem eu estava transando, então fui até a Central Station e perguntei para Tutu se ele tinha algum ice. Tutu era um pouco gago e era explorado por Odin, o chefe de Los Lobos em Alnabru. Ele ganhou o apelido quando Odin, necessitando lavar uma mala de dinheiro oriundo das drogas, tinha enviado Tutu até uns agenciadores de apostas na Itália para fazer uma aposta numa partida que Odin sabia qual seria o resultado. O time da casa iria ganhar de 2-0. Odin tinha instruído Tutu como dizer “two-zero”, mas então aconteceu o impensável número 1. Tutu estava tão nervoso e gaguejou tanto quando estava fazendo a aposta que o agenciador só ouviu tu-tu e anotou no cupom. Dez minutos antes do fim do jogo o time da casa estava, naturalmente, ganhando por 2-0, e tudo era paz e luz. Exceto por Tutu, que tinha acabado de ver no bilhete que tinha apostado o dinheiro em “tu-tu”: 2-2. Ele sabia que Odin iria atirar no joelho dele. Ele tinha uma fixação em atirar no joelho das pessoas. Mas então aconteceu o impensável número 2. No banco do time visitante estava um novo atacante polonês cujo italiano era tão mau quanto o inglês de Tutu, e ele não tinha entendido que o jogo estava arranjado. Quando o treinador mandou-o para o campo, ele jogou tão bem quanto pensava que estava sendo pago para jogar: e ele marcou. Duas vezes. Tutu foi salvo. Mas quando Tutu desembarcou em Oslo naquela noite e foi direto até Odin para contar sobre seu golpe de sorte, a sua sorte virou. Ele começou dando a notícia de que cometera um erro e apostou o dinheiro no resultado errado. E ele estava tão excitado e gaguejou tanto que Odin perdeu a paciência, pegou um revólver de uma gaveta e – o impensável número 3 – atirou no joelho de Tutu muito antes que ele pudesse contar sobre o polonês.
De qualquer forma, naquele dia na Central Station Tutu disse-me que não havia mais ice para v-v-vender, eu teria que me contentar com p-p-pó. Era mais barato e os dois eram metanfetamina, mas eu não suporto isso. Ice são adoráveis pedaços brancos de cristal que explodem na sua cabeça enquanto a merda amarela e fedorenta que você encontra em Oslo é misturada com fermento em pó, açúcar refinado, aspirina, vitamina B12 e o diabo a quatro. Ou, para os conhecedores, analgésicos picados com gosto de speed. Mas eu comprei o que ele tinha com um pequeno desconto pela quantidade e ainda sobrou dinheiro suficiente para um pouco de anfetamina. E uma vez que as anfetaminas são um alimento saudável e não adulterado em comparação com a meth, apenas um pouco mais lento para agir, eu cheirei um pouco de speed, diluiu a meth com mais fermento em pó e vendi lá na Plata com uma fantástica margem de lucro.
No dia seguinte eu voltei até Tutu e repeti o negócio, e um pouco mais. Cheirei um pouco, diluí e vendi o resto. A mesma coisa no dia seguinte. Eu disse que poderia comprar mais se ele me vendesse a crédito, mas ele riu. Quando voltei no quarto dia Tutu disse que seu chefe achou que deveríamos fazer isso em uma base mais f-f-favorável. Eles tinham me visto vendendo, e gostaram do que viram. Se eu vendesse dois lotes por dia significaria cinco mil limpos, sem perguntas. E então eu me tornei um traficante de rua para Odin e Los Lobos. Eu pegava a mercadoria com Tutu na parte da manhã e entregava a féria do dia com as sobras por volta das cinco. Turno do dia. Nunca havia sobras.
Tudo correu bem durante cerca de três semanas. Uma quarta-feira no cais Vippetangen, eu tinha vendido dois lotes, meus bolsos estavam cheios de dinheiro, meu nariz estava cheio de speed, quando de repente não vi nenhuma razão para encontrar Tutu na estação. Em vez disso eu mandei uma mensagem para ele para dizer que estava saindo de férias e embarquei na balsa para a Dinamarca. Esse é o tipo de apagão que você deve esperar que ocorra quando toma picadas por muito tempo e com muita frequência.
Na minha volta eu ouvi um boato de que Odin estava a minha procura. E isso me assustou um pouco, especialmente porque eu sabia como Tutu ganhara seu apelido. Então, eu mantive minha cabeça abaixada, me escondendo perto da Grünerløkka. E esperei pelo Dia do Julgamento. Mas Odin tinha coisas mais urgentes em sua mente do que um traficante que lhe devia alguns milhares de coroas. A concorrência tinha chegado à cidade. “O Homem de Dubai”. Não no mercado de anfetaminas, mas no de heroína, o que era mais importante que qualquer outra coisa para Los Lobos. Alguns disseram que eram russos brancos, alguns diziam que eram lituanos, e outros que eram paquistaneses-noruegueses. Todos concordavam, no entanto, que era uma organização profissional, não temiam ninguém e que era melhor saber muito mais do que muito pouco.
Foi um outono de merda.
Eu estava quebrado há muito tempo, já não tinha um emprego e era forçado a me manter escondido pelos cantos. Eu tinha encontrado um comprador para o equipamento da banda em Bispegata, ele tinha ido vê-lo, eu o tinha convencido de que era meu, afinal de contas eu morava lá! Era apenas uma questão de concordar com o prazo para a retirada. Então - como um anjo salvador - Irene apareceu. Linda, sardenta Irene. Era uma manhã de outubro, e eu estava ocupado com alguns caras em Sofienberg Park quando lá estava ela, quase em lágrimas de felicidade. Eu perguntei se ela tinha algum dinheiro, e ela acenou um cartão Visa. Do seu pai, Rolf. Fomos para o caixa eletrônico mais próximo e esvaziamos sua conta. No início Irene não queria, mas quando eu expliquei que a minha vida dependia daquilo, ela entendeu que tinha que ser feito. Fomos ao Olympen, comemos e bebemos, compramos alguns gramas de speed e voltamos para casa em Bispegata. Ela disse que teve uma briga com a mãe. Ela passou a noite comigo. No dia seguinte, eu a levei até a estação. Tutu estava sentado na sua moto vestindo uma jaqueta de couro com uma cabeça de lobo nas costas. Tutu com um cavanhaque, lenço de pirata em volta da cabeça e tatuagens aparecendo acima do seu colarinho, mas ainda parecendo um lacaio fodido. Ele estava prestes a pular e correr atrás de mim quando percebeu que eu estava indo na direção dele. Eu dei-lhe os vinte mil que devia mais cinco de juros. Obrigado por me emprestar o dinheiro para as férias. Espero que possamos virar esta página e iniciarmos outra. Tutu ligou para Odin enquanto olhava para Irene. Eu podia ver o que ele queria. E olhei para Irene novamente. Bonita e pálida, pobre Irene.
“Odin diz que quer mais c-c-cinco”, disse Tutu. “Se você não entregar eu tenho ordens para dar-lhe uma s-s-su...”   Ele respirou fundo.
“Surra”, eu disse.
“Agora mesmo”, disse Tutu.
“Bem, eu vou vender dois lotes para você hoje.”
“Você vai ter que p-p-pagar por eles.”
“Por favor, eu posso vendê-los em duas horas.”
Tutu me olhou. Acenou para Irene, que estava de pé na parte inferior dos degraus da Jernbanetorget, esperando. “E sobre e-e-ela?”
“Ela vai me ajudar.”
“As meninas são boas em v-v-venda. Ela usa drogas?”
“Ainda não”, eu disse.
“L-l-ladrão”, disse Tutu, mostrando seu sorriso desdentado.
Eu contei o meu dinheiro. O último. Era sempre o último. Meu sangue fluindo para fora de mim.
Uma semana depois, no Elm Street Rock Cafe, um rapaz parou na nossa frente.
“Diga olá para Oleg”, eu disse e me afastei da parede. “Diga Olá para minha irmã, Oleg.”
Então eu o abracei. Eu podia sentir que ele não tinha abaixado a cabeça; ele estava olhando por cima do meu ombro. Para Irene. E através da sua jaqueta jeans eu podia sentir seu coração acelerando.
 
 detetive Berntsen estava sentado com os pés sobre a mesa e o telefone no ouvido. Ele havia ligado para a delegacia de polícia em Lillestrøm, Distrito Policial de Romerike, e se apresentou como Thomas Lunder, um assistente de laboratório da Kripos. O policial com quem estava falando acabara de confirmar que tinham recebido o saco, do que eles assumiram ser heroína, apreendido no Gardermoen. O procedimento padrão era que todas as drogas apreendidas no país fossem enviadas para teste no laboratório da Kripos em Bryn, Oslo. Uma vez por semana um veículo da Kripos fazia a coleta em todos os distritos policiais de Østland. Outros distritos enviavam o material através de seus próprios meios.
“Bom”, disse Berntsen, mexendo com o cartão de identificação falso exibindo uma foto e a assinatura de Thomas Lunder, Kripos, por baixo. “Eu estarei em Lillestrøm de qualquer maneira, então eu vou pegar o saco para o pessoal de Bryn. Gostaríamos que uma grande apreensão como essa fosse testada imediatamente. OK, vejo você amanhã cedo.”

Ele desligou e olhou para fora da janela. Olhou para a nova área em torno de Bjørvika subindo para o céu. Pensou em todos os pequenos detalhes: o tamanho dos parafusos, as porcas, a qualidade da argamassa, a espessura dos vidros, tudo o que tinha que estar adequado para executar suas funções perfeitamente. E sentiu uma satisfação profunda. Porque tudo estava correto. Esta cidade estava funcionando.

s troncos dos pinheiros, como longas e elegantes pernas femininas subindo para dentro das saias verdes, lançavam sombras da tarde nebulosa sobre o cascalho na frente da casa. Harry estava no topo do caminho que levava até a casa, secando o suor após a subida das colinas íngremes de Holmendammen e observando a casa escura. A madeira de cor escura e pesada expressava solidez, segurança, um baluarte contra os trolls e a natureza. Mas não tinha sido suficiente. As casas vizinhas eram casas grandes e isoladas submetidas à ampliação e melhoria contínua. Øystein, registrado Ø em sua lista de contatos no telefone, havia dito que casas construídas com pranchas sólidas de madeira era uma demonstração da burguesia pelo retorno à natureza, pela simplicidade e pelo saudável. O que Harry via era doença e perversão, uma família sob o cerco de um serial killer. No entanto, ela tinha decidido manter a casa.
Harry caminhou até a porta e tocou a campainha.
Passos pesados soaram lá dentro. E Harry percebeu que deveria ter telefonado antes.
A porta se abriu.
O homem de pé diante dele tinha uma franja loira, o tipo de franja que tinha sido mais cheia na sua juventude e tinha, sem dúvida, proporcionado vantagens, e portanto, ele a manteve na esperança de que a versão um pouco mais rala ainda pudesse funcionar. O homem estava vestindo uma camiseta polo azul clara bem passada do tipo que Harry imaginou que ele também havia usado na sua juventude.
“Sim?”, disse o homem. Aberto, jeitão amigável. Olhos demonstrando que só tinham encontrado simpatia durante a sua vida. Um pequeno jogador de polo costurado no bolso do peito.
Harry sentiu sua garganta ficar seca. Ele olhou de relance para a placa de identificação sob a campainha.
Rakel Fauke.
No entanto, o homem com o atraente rosto ingênuo estava ali de pé e segurando a porta aberta como se fosse sua. Harry sabia que tinha várias opções para uma grande jogada de abertura, mas a escolhida foi: “Quem é você?”
O homem na frente dele produziu uma expressão facial que Harry nunca tinha sido capaz de alcançar. Ele franziu a testa e sorriu ao mesmo tempo. Uma expressão de diversão condescendente de uma pessoa superior diante da desfaçatez de uma pessoa inferior.
“Uma vez que você está do lado de fora e eu estou do lado de dentro, parece mais natural que é você quem deve dizer quem é. E o que você quer.”
“Como quiser,” Harry disse com um grande bocejo. É claro que ele poderia culpar o jet lag. “Estou aqui para falar com a senhora cujo nome está embaixo da campainha.”
“E você é...?”
“Testemunhas de Jeová,” Harry disse, olhando o relógio.
O homem desviou automaticamente os olhos de Harry para procurar o segundo homem obrigatório da equipe.
“Meu nome é Harry e eu venho de Hong Kong. Onde ela está?”
O homem arqueou uma sobrancelha. “O Harry?”
“Uma vez que este é um dos nomes menos em moda na Noruega durante os últimos 50 anos, nós podemos provavelmente assumir que sim.”
Agora o homem estudava Harry, com um aceno de cabeça e um meio sorriso nos lábios enquanto seu cérebro estava relembrando as informações que tinha recebido sobre o personagem diante dele. Mas sem sugerir que ele iria se afastar de lado na porta ou responder a qualquer pergunta de Harry.
“E então?” Harry disse, deslocando o peso de uma perna para a outra.
“Vou dizer a ela que você esteve aqui.”
O pé de Harry foi rápido. Por instinto, ele levantou a sola para cima de modo que a porta bateu nela em vez de bater na ponta do sapato. Esse era o tipo de truque que a sua nova ocupação havia lhe ensinado. O homem olhou para o pé de Harry e depois para ele. A diversão condescendente tinha ido embora. Ele estava prestes a dizer alguma coisa. Uma observação fulminante que iria restabelecer a ordem. Mas Harry sabia que ele iria mudar de idéia. Assim que ele viu o olhar no rosto de Harry, aquele que fazia as pessoas mudarem de ideia.
“Seria melhor...” disse o homem. Parou. Piscou uma vez. Harry esperou. A perplexidade. A hesitação. O recuo. Piscada número dois. O homem tossiu. “Ela não está.”
Harry ficou imóvel. Deixou o silêncio reverberar. Dois segundos. Três segundos.
“Eu... ahn, não sei quando ela vai voltar.”
Nenhum músculo se agitou no rosto de Harry, enquanto o rosto do homem saltava de uma expressão para outra, como se estivesse procurando uma para se esconder por trás. E terminou por onde começou: com uma amigável.
“Meu nome é Hans Christian. Eu... peço desculpas por ter que agir de modo tão descortês. Mas um monte de visitas bizarras tem aparecido para fazer perguntas sobre o caso, e, neste momento, é essencial que Rakel tenha um pouco de paz. Eu sou seu advogado.”
“Dela?”
“Deles. Dela e de Oleg. Você gostaria de entrar?”
Harry acenou com a cabeça.
Na mesa da sala de estar, havia pilhas de papéis. Harry foi até eles. Documentos do caso. Relatórios. A altura da pilha sugeria que eles não tinham economizado nas suas pesquisas.
“Atrevo-me a perguntar o que te trouxe aqui?”, Hans Christian perguntou.
Harry folheou os papéis. Testes de DNA. Declarações de testemunhas. “Claro, e você?”
“Eu o quê?”
“Por que você está aqui? Você não tem um escritório onde pode preparar a defesa?”
“Rakel quer ser envolvida. Ela também é advogada. Ouça, Hole. Eu sei muito bem quem você é e eu sei que você conviveu com Rakel e Oleg, mas...”
“E quão próximo você está deles exatamente?”
“Eu?”
“Sim, parece que você assumiu a responsabilidade e os cuidados por eles.”
Harry ignorou a elevação no tom da sua voz e sabia que tinha se revelado, sabia que o homem estava olhando para ele com espanto. E sabia que tinha perdido o autocontrole.
“Rakel e eu somos velhos amigos”, disse Hans Christian. “Eu cresci perto daqui, nós estudamos direito juntos, e... bem. Quando duas pessoas passam os melhores anos de sua vida juntos é óbvio que existem vínculos.”
Harry acenou com a cabeça. Sabia que deveria manter a boca fechada. Sabia que tudo o que ele dissesse iria piorar as coisas.
“Hmm. Com vínculos desse tipo é estranho que eu nunca vi ou ouvi falar de você enquanto Rakel e eu estivemos juntos.”
Hans Christian foi incapaz de responder. A porta se abriu. E lá estava ela.
Harry sentiu uma garra se fechar em torno de seu coração e torce-lo.
Sua aparência era a mesma: magra, ereta. O rosto era o mesmo: formato de coração, com olhos castanhos escuros e a boca larga que gostava muito de rir. O cabelo era quase o mesmo: comprido, embora a cor escura estivesse, talvez, um pouco mais clara. Mas os olhos mudaram. Eram os olhos de um animal caçado, arregalados, selvagem. Mas quando eles reconheceram Harry era como se algo houvesse retornado. Algo da pessoa que ela tinha sido. Do que haviam sido.
“Harry”, disse ela. E, ao som de sua voz, tudo veio à tona, tudo retornou.
Ele deu dois passos largos e abraçou-a. O perfume de seus cabelos. Seus dedos sobre sua espinha. Ela foi a primeira a se afastar. Ele recuou um passo e olhou para ela.
“Você está bem”, disse.
“Você também.”
“Mentirosa.”
Ela sorriu rapidamente. As lágrimas já estavam se formado nos seus olhos.
Eles ficaram de pé assim. Harry deixou-a estudá-lo, deixou-a absorver seu rosto mais velho com sua nova cicatriz. “Harry,” ela repetiu, inclinou a cabeça e riu. A primeira lágrima tremeu nas suas pestanas e rolou. Desenhou uma linha reta na sua pele macia.
Em algum lugar na sala um homem com um jogador de polo no bolso da camisa tossiu e disse algo sobre ter que sair para uma reunião.
Então, eles ficaram sozinhos.
 
nquanto Rakel estava fazendo o café ele a viu olhar discretamente para o seu dedo de metal, mas nenhum deles fez algum comentário. Havia um acordo tácito de que eles nunca iriam mencionar o boneco de neve. Então, Harry sentou-se à mesa da cozinha e, em vez daquilo falou sobre sua vida em Hong Kong. Disse-lhe somente o que ele podia dizer. O que ele queria dizer. Que o trabalho para Herman Kluit como “consultor de dívidas” para contas pendentes consistia em se reunir com os clientes com pagamentos atrasados e reavivar suas memórias de uma forma amigável. Em resumo, a reunião envolvia aconselha-los a pagar tão logo fosse prático e viável. Harry disse que sua principal qualificação e, basicamente a única, era que ele media 1,92 metros sem sapatos, tinha ombros largos, olhos vermelhos e uma cicatriz recém-adquirida.
“Amigável, profissional. Terno e gravata, multinacionais em Hong Kong, Taiwan e Xangai. Hotéis com serviço de quarto. Edifícios de escritórios elegantes. Bancos privados civilizados no estilo suíço com um toque chinês. Apertos de mão à moda ocidental e frases de cortesia. E sorrisos asiáticos. Em geral eles pagam no dia seguinte. Herman Kluit está satisfeito. Nós nos entendemos bem.”
Ela serviu café para os dois e se sentou. Respirou fundo.
“Eu trabalho para o Tribunal Internacional de Justiça sediado em Haia, com escritórios em Amsterdam. Eu pensei que se nós deixassemos esta casa para trás, esta cidade, toda a tensão...”
Eu, Harry pensou.
“...as memórias, tudo ficaria bem. E por um tempo ficou. Mas então começou. No início, os ataques sem sentido de mau humor. Quando menino Oleg nunca levantou a voz. Ele era mal-humorado, sim, mas nunca ... daquele jeito. Disse que eu tinha arruinado sua vida por levá-lo para longe de Oslo. Ele dizia isso porque sabia que eu não tinha defesa. E quando eu começava a chorar, ele também começava a chorar. Me perguntou por que eu tinha nos afastado de você. Você tinha nos salvado do... do...”
Ele acenou com a cabeça para que ela não tivesse que dizer o nome.
“Ele começou a chegar tarde em casa. Dizia que tinha ido se encontrar com amigos, mas eram amigos que eu nunca tinha conhecido. Um dia ele admitiu que tinha estado em um café em Leidseplein e fumado haxixe.”
“O Bulldog Palace, com todos aqueles turistas?”
“Correto. Achava que fazia parte da experiência em Amsterdam, pensei. Mas eu estava com medo ao mesmo tempo. O pai dele... bem, você sabe.”
Harry acenou com a cabeça. Os aristocráticos genes russos do pai de Oleg. Euforia, fúria e depressão. Terra de Dostoievsky.
“Ele ficava sentado no quarto dele ouvindo um monte de música. Pesadas, sombrias. Bem, você conhece essas bandas...”
Harry acenou com a cabeça novamente.
“Mas os teus discos também. Frank Zappa. Miles Davis. Supergrass. Neil Young. Supersilent.”
Os nomes saíram tão rapidamente e naturalmente que Harry suspeitava que ela tinha escutado por trás da porta.
“Então, um dia eu estava passando o aspirador no quarto dele e encontrei duas pílulas com a carinha do smiley.”
“Ecstasy?”
Ela assentiu com a cabeça. “Dois meses depois, me candidatei e consegui um emprego no Gabinete do Procurador Geral e me mudei para cá.”
“Para a velha, inocente e segura Oslo.”
Ela encolheu os ombros. “Ele precisava de uma mudança de cenário. Um novo começo. E funcionou. Ele não é do tipo que tem muitos amigos, como você sabe, mas ele encontrou dois velhos amigos e se deu bem na escola até que...” Sua voz desmoronou.
Harry esperou. Ele tomou um gole de café. Segurando-se.
“Ele chegava a ficar afastado por vários dias em seguida. Eu não sabia o que fazer. Ele fazia o que queria. Liguei para a polícia, psicólogos, sociólogos. Ele não era legalmente um adulto, mas não havia nada que alguém pudesse fazer a não ser que houvesse provas de consumo de drogas ou quebra da lei. Eu me senti tão impotente. Eu! Que sempre pensei que eram os pais que estavam falhando, que sempre tinha uma solução na mão quando os filhos dos outros saiam dos trilhos. Não seja apática, não se reprima. Ação!”
Harry olhou para a mão dela ao lado da sua sobre a mesa de café. Os dedos delicados. As finas veias na mão pálida que era normalmente bronzeada no início do outono. Mas ele não obedeceu ao seu impulso para cobrir a mão dela com a sua. Algo estava no caminho. Oleg estava no caminho.
Ela suspirou.
“Então eu fui até o centro da cidade e procurei por ele. Noite após noite. Até que eu o encontrei. Ele estava parado numa esquina de Tollbugata e ficou satisfeito em me ver. Disse que estava feliz. Ele tinha um emprego e estava dividindo um apartamento com alguns amigos. Ele precisava da sua liberdade. Eu não deveria fazer tantas perguntas. Ele estava “viajando”. Esta foi a sua versão de um ano sabático, navegando ao redor do mundo como as outras crianças de Holmenkollen Ridge faziam. Velejando ao redor do mundo aqui no centro da cidade de Oslo.”
“O que ele estava vestindo?”
“O que você quer dizer?”
“Nada. Continue.”
“Ele disse que voltaria para casa novamente em breve. E iria terminar seus estudos na escola. Então, nós concordamos que ele viria almoçar comigo no próximo domingo.”
“Ele foi?”
“Sim. E depois dele ter ido embora eu descobri que ele tinha ido ao meu quarto e roubado minha caixa de joias.” Ela deu um suspiro longo e trêmulo. “A aliança que você me comprou em Vestkanttorget estava na caixa.”
“Vestkanttorget?”
“Você não se lembra?”
O cérebro de Harry rebobinou em alta velocidade. Havia alguns buracos negros, alguns brancos que ele tinha reprimido e grandes extensões que o álcool tinha consumido. Mas também áreas com cor e textura. Como o dia em que ficaram caminhando ao redor do mercado de segunda mão em Vestkanttorget. Oleg estava com eles? Sim, estava. Claro. A fotografia. O modo automático. As folhas de outono. Ou foi em outro dia? Eles tinham caminhado de barraca em barraca. Brinquedos antigos, louças, caixas de charuto enferrujadas, discos de vinil com e sem capas, isqueiros. E uma aliança simplória de ouro.
Parecia tão solitária ali. Então Harry a comprou e colocou no dedo dela. Para dar um novo lar a uma velha aliança, ele tinha dito. Ou algo assim. Algo irreverente, que ele sabia que ela iria entender como uma tímida e disfarçada declaração de amor. E talvez fosse - pelo menos eles riram. Daquela declaração, daquela aliança, porque os dois sabiam o que o outro sabia. E porque tudo estava bem. Por tudo o que eles desejavam e ainda não queriam colocar nesta aliança barata e desgastada. Um voto de se amarem tão apaixonadamente e durante o tempo que pudessem, e se separar quando não restasse mais amor. Quando ela se separou foi por outras razões, é claro. Razões mais importantes. Mas, Harry constatou, ela tinha cuidado da sua aliança de mau gosto, guardando-a na caixa com as joias que ela tinha herdado da sua mãe austríaca.
“Podemos sair enquanto ainda há um pouco de sol?”, Rakel perguntou.
“Sim”, Harry disse, retribuindo o sorriso dela. “Vamos fazer isso.”
 
les caminharam pela rua que serpenteava até o topo da colina. Ao leste, as árvores de folhas não perenes estavam tão vermelhas que pareciam como se estivessem em chamas. A luz brilhava no fiorde fazendo-o parecer metal fundido. Mas eram, como de costume, os recursos criados pelo homem na cidade abaixo que fascinavam Harry. O formigueiro em perspectiva. As casas, parques, ruas, guindastes, barcos no porto, luzes que tinham começado a se acender. Os carros e trens correndo de lá para cá. A soma das nossas atividades. E a questão que só uma pessoa com tempo para parar e olhar para as formigas ocupadas podia permitir-se perguntar: por quê?
“Eu sonho com a paz e a tranquilidade”, disse Rakel. “Nada mais do que isso. E você? O que você sonha?”
Harry deu de ombros. “Que estou num corredor estreito e uma avalanche chegando e me enterrando.”
“Uau”.
“Bem, você me conhece, eu e a minha claustrofobia.”
“Nós muitas vezes sonhamos com o que temos medo e com o que desejamos. Desaparecendo, sendo enterrado. De certa forma, oferece segurança, não é?”
Harry enfiou as mãos mais profundamente nos bolsos. “Eu fui enterrado sob uma avalanche há três anos. Vamos dizer que é tão simples assim.”
“Então você não conseguiu se livrar dos seus fantasmas, mesmo tendo ido para Hong Kong?”
“Oh sim, eu consegui”, disse Harry. “A viagem diluiu sua força.”
“Sério?”
“Bem, na verdade é possível colocar as coisas nos seus devidos lugares, Rakel. A arte de lidar com fantasmas é ousar olhar para eles longa e duramente até que você tenha certeza daquilo que eles são. Fantasmas. Fantasmas sem vida e impotentes.”
“Então”, disse Rakel em um tom que o fez perceber que ela não gostava do tema da conversa. “Alguma mulher na sua vida?” A pergunta saiu com facilidade, tão facilmente que ele não acreditava nisso.
“Bem”.
“Conte-me.”
Ela tinha colocado seus óculos de sol. Era difícil avaliar o quanto ela queria ouvir. Harry decidiu fazer uma troca. Ele também desejava ouvir.
“Ela era chinesa.”
“Era? Ela está morta?” Ela deu um sorriso brincalhão. Ele pensou que ela demonstrava conseguir suportar a situação. Mas ele preferia que ela tivesse sido um pouco mais delicada.
“Uma mulher de negócios em Xangai. Ela trata com carinho o seu guanxi, sua rede de contatos. E também o seu rico e velho marido chinês. E - quando lhe convém. – eu.”
“Em outras palavras, você explora a sua natureza bondosa.”
“Eu gostaria de poder dizer isso.”
“Oh?”
“Ela faz exigências bastante específicas sobre onde e quando. E como. Ela gostava...”
“Basta!”, disse Rakel.
Harry sorriu ironicamente. “Como você sabe, eu sempre tive um fraco por mulheres que sabem o que querem.”
“Chega, eu disse.”
“Mensagem recebida.”
Eles continuaram a andar em silêncio. Até que Harry finalmente disse as palavras que pairavam em torno deles em negrito.
“E esse cara, Christian Hans?”
“Hans Christian Simonsen? Ele é o advogado de Oleg.”
“Eu nunca ouvi falar de um Hans Christian Simonsen quando estava trabalhando em casos de assassinato.”
“Ele é desta área. Éramos da mesma turma na faculdade de direito. Ele veio e ofereceu seus serviços.”
“Hmm. Certo.”
Rakel riu. “Eu me lembro que ele me convidou uma ou duas vezes para sairmos quando éramos estudantes. E que ele queria que fizéssemos um curso de dança juntos, jazz.”
“Deus me livre.”
Rakel riu de novo. Cristo, como ele havia desejado ouvir aquele riso.
Ela cutucou. “Como você sabe, eu sempre tive um fraco por homens que sabem o que querem.”
“Uh-huh”, disse Harry. “E o que eles já fizeram por você?”
Ela não respondeu. Ela não precisava. Em vez disso, ela formou o sulco entre suas largas sobrancelhas negras que ele tinha tantas vezes acariciado com o indicador toda a vez que ele notava. “Às vezes é mais importante ter um advogado que é dedicado ao invés de um que é tão experiente que já sabe o resultado com antecedência.”
“Hmm. Você quer dizer alguém que sabe que é uma causa perdida.”
“Você quer dizer que eu deveria ter contratado um daqueles veteranos persistentes e cansados?”
“Bem, os melhores são realmente muito dedicados.”
“Este caso é um assassinato insignificante entre drogados, Harry. Os melhores estão ocupados com casos de maior prestígio.”
“Então, o que Oleg contou para o seu dedicado advogado sobre o que aconteceu?”
Rakel suspirou. “Que ele não se lembra de nada. Além disso, ele não quer dizer nada sobre qualquer coisa.”
“E é nisso que vocês estão baseando sua defesa?”
“Ouça, Hans Christian é um advogado brilhante na sua área. Ele sabe o que está envolvido. Ele está se aconselhando com os melhores. E ele está trabalhando dia e noite, ele está mesmo.”
“Você, em outras palavras, está explorando sua natureza bondosa?”
Desta vez Rakel não riu. “Eu sou uma mãe. É simples. Eu estou disposta a fazer o que for preciso.”
Eles pararam onde a floresta começava e sentaram-se em troncos de pinheiros separados. No oeste o sol afundou lentamente entre as copas das árvores.
“Eu sei por que você veio, é claro”, disse Rakel. “Mas o que exatamente você planeja fazer?”
“Descobrir se Oleg é culpado sem qualquer sombra de dúvida razoável.”
“Por quê?”
Harry deu de ombros. “Porque eu sou um detetive. Porque este é o modo como organizamos este formigueiro. Ninguém pode ser condenado até termos certeza absoluta.”
“E você não tem certeza?”
“Não, eu não tenho certeza.”
“E essa é a única razão pela qual você está aqui?”
As sombras dos pinheiros rastejavam sobre eles. Harry estremeceu no seu terno de linho; seu termostato, evidentemente, ainda não tinha se ajustado ao paralelo 59,9º Norte.
“É estranho”, ele disse. “Mas eu tenho dificuldades para me lembrar de qualquer coisa, exceto momentos fragmentados de todo o tempo que estivemos juntos. Quando eu olho para uma fotografia é assim que eu me lembro. A forma como estávamos na foto. Mesmo que eu saiba que não é verdade.”
Ele olhou para ela. Ela estava sentada com o queixo na mão. O sol brilhava em seus olhos apertados.
“Mas talvez seja por isso que as pessoas tiram fotos,” Harry continuou. “Para fornecer provas falsas para sustentar a falsa afirmação de que éramos felizes. Porque o pensamento de que nós não fomos felizes, pelo menos por algum tempo durante a nossa vida, é insuportável. Adultos pedem para as crianças sorrirem nas fotos, envolvem-nas na mentira, então sorrimos, nós fingimos a felicidade. Mas Oleg nunca iria sorrir, a menos que ele quisesse fazer isso, não podia mentir, ele não tem esse dom.” Harry virou-se para o sol, pegando os últimos raios, estendidos como dedos amarelos entre os galhos mais altos na crista da colina. “Eu encontrei uma foto de nós três na porta do armário dele em Valle Hovin. E você quer saber, Rakel? Ele estava sorrindo naquela foto.”
Harry focou seu olhar nos pinheiros. O pouco de cor remanescente foi rapidamente sugado para longe deles, e agora eles ficaram parecidos com fileiras de guardas perfilados, uniformizados de negro. Em seguida, ouviu-a se aproximar, sentiu sua mão debaixo do seu braço, a cabeça dela no seu ombro, o calor do seu rosto quente através do terno de linho, e respirou o perfume de seus cabelos. “Eu não preciso de nenhuma fotografia para me lembrar de como éramos felizes, Harry.”
“Hmm.”
“Talvez ele tenha aprendido a mentir sozinho. Isso acontece com todos nós.”
Harry acenou com a cabeça. Uma rajada de vento o fez estremecer. Quando foi que ele próprio aprendeu a mentir? Foi quando Søs perguntou se sua mãe podia vê-los do céu? Será que ele aprendeu tão cedo? Era por isso que ele achou tão fácil mentir quando fingiu que não sabia o que Oleg estava fazendo? A perda da inocência de Oleg não aconteceu quando ele aprendeu a mentir, não quando ele aprendeu a se injetar heroína ou a roubar as joias de sua mãe. Foi quando ele aprendeu, de uma forma eficaz e sem risco, como vender drogas que consomem a alma, fazem com que o corpo se desintegre e fazem o comprador sofrer o inferno frio e gotejante da dependência. Mesmo que Oleg seja inocente do assassinato de Gusto ele ainda será culpado. Ele os tinha enviado de avião. Para Dubai.
Fly Emirates.
Dubai fica nos Emirados Árabes Unidos.
Não são árabes, apenas traficantes com camisetas do Arsenal vendendo violino. Camisetas que eles tinham recebido junto com instruções sobre como vender drogas do modo certo: um homem do dinheiro, um homem do narcótico. A visível e comum camiseta que mostrava o que eles vendiam e de qual organização eles faziam parte. Não uma das gangues padrão efêmeras que sempre eram derrotadas por sua própria ganância, estupidez, torpor e imprudência, mas uma organização que não corria riscos desnecessários, não expunha seus dirigentes e ainda parecia ter um monopólio sobre a nova droga favorita dos drogados. E Oleg era um deles. Harry não sabia muito sobre futebol, mas ele tinha certeza que Van Persie e Fàbregas eram jogadores do Arsenal. E também estava absolutamente certo de que nenhum torcedor do Spurs teria pensado em usar uma camisa do Arsenal se não fosse por um motivo especial. Oleg ao menos tinha conseguido ensinar-lhe isso.
Havia uma boa razão para Oleg não falar nada nem para ele nem para a polícia. Ele estava trabalhando para alguém ou algo do qual ninguém sabia nada. Alguém ou algo que fez com que todos ficassem mudos. Era por aí que Harry tinha que começar.
Rakel começou a chorar e enterrou o rosto em seu pescoço. As lágrimas aqueceram sua pele enquanto corriam por dentro de sua camisa, pelo peito, sobre seu coração.
A escuridão caiu rapidamente.
 
ergey estava deitado na cama, olhando para o teto.
Os segundos passavam, um a um.
Esta era a parte mais lenta: a espera. E ele nem sabia ao certo se iria acontecer. Se iria ser necessário. Ele havia dormido mal. Sonhado mal. Ele tinha que saber. Então, ele tinha ligado para Andrey, perguntou se poderia falar com o tio. Mas Andrey respondeu que o ataman não estava disponível. Nada mais do que isso.
Sempre foi assim com o tio. E, durante a maior parte da sua vida, Sergey nem mesmo tinha certeza de que ele existia. Foi só depois que ele - ou o seu testa de ferro armênio - havia aparecido e organizado o negócio que Sergey começou a fazer perguntas. Foi uma grande surpresa saber o quão pouco os outros membros da família sabiam sobre ele. Sergey imaginava que o tio tinha vindo do oeste e se casou com uma mulher da família na década de 1950. Alguns diziam que ele veio da Lituânia, de uma família kulak, a classe camponesa proprietária de terras que Stalin tinha extensivamente deportado, e que a família do tio tinha sido enviada para a Sibéria. Outros diziam que ele era parte de um pequeno grupo de Testemunhas de Jeová da Moldávia que tinham sido deportados para a Sibéria em 1951. Uma velha tia disse que, embora o tio fosse um homem instruído, um homem linguisticamente talentoso e cortês, ele tinha se adaptado imediatamente ao estilo de vida simples e esposara as antigas tradições urkas siberianas, como se fossem suas próprias. E que talvez fosse precisamente pela sua capacidade de adaptação, juntamente com sua evidente perspicácia empresarial, que em pouco tempo fez com que os outros urkas o aceitassem como um líder. Dentro de pouco tempo ele estava administrando uma das operações de contrabando mais rentáveis em todo o sul da Sibéria. Sua empresa na década de oitenta ficou tão ampla que, no final, as autoridades já não podiam ser subornadas para fazer vista grossa. Quando a polícia atacou, enquanto a União Soviética entrava em colapso ao redor deles, foi com um ataque tão violento e tão sangrento, de acordo com um vizinho que se lembrava do tio, que era mais uma reminiscência de um blitzkrieg do que a ação da mão da lei. Inicialmente o tio foi reportado como morto. Dizia-se que ele tinha sido baleado nas costas e a polícia, temendo represálias, tinha secretamente jogado o corpo no rio Lena. Um dos policiais tinha roubado seu canivete siberiano e não conseguiu parar de se gabar. No entanto, um ano depois, o tio deu sinal de vida, e naquele momento ele estava na França. Ele disse que tinha ido se esconder, e a única coisa que ele queria saber era se sua esposa estava grávida ou não. Ela não estava, e depois disso ninguém em Tagil ouviu uma palavra sobre ele por vários anos. Não até que a esposa do tio morreu. Então ele apareceu para o funeral, disse o pai. Ele pagou por tudo, e um funeral Ortodoxo Russo não sai barato. Ele também deu dinheiro para aqueles parentes que precisavam de uma esmola. O pai de Serguey não estava entre eles, mas foi até ele que o tio tinha ido quando quis um resumo sobre o que a família da sua esposa havia deixado em Tagil. E foi quando seu sobrinho, o pequeno Sergey, foi levado à sua presença. Na manhã seguinte o tio se foi, tão misteriosamente e inexplicavelmente como havia chegado. Os anos se passaram, Sergey se tornou um adolescente, um adulto, e a maioria das pessoas provavelmente pensou que o tio - de quem eles se recordavam como parecendo velho, mesmo quando foi para a Sibéria - estava morto e enterrado a muito tempo. Mas então, quando Sergey foi preso por contrabando de haxixe, um homem fez uma aparição repentina, um armênio que havia se apresentado como testa de ferro do tio, resolveu as questões de Sergey e expos o convite do tio para que fosse para a Noruega.
Sergey consultou o relógio. E confirmou que exatamente doze minutos se passaram desde a última vez que ele checou a hora. Ele fechou os olhos e tentou visualizá-lo. O policial.
Na verdade, havia outro detalhe sobre a história da suposta morte de seu tio. O oficial que havia roubado a faca havia sido encontrado logo depois na floresta de Taiga, isto é, o que restava dele – boa parte tinha sido comido por um urso.
Estava escuro, tanto fora como dentro de casa quando o telefone tocou.

Era Andrey.

ord Schultz destrancou a porta da sua casa, olhou para a escuridão e ficou ouvindo o denso silêncio por um tempo. Sentou-se no sofá sem acender a luz e esperou pelo barulho reconfortante do próximo avião.
Eles o tinham liberado.
Um homem que se apresentou como inspetor tinha entrado na sua cela, se agachou na frente dele e perguntou por que diabos ele tinha escondido farinha na sua mala de mão.
“Farinha?”
“Isso é o que o laboratório da Kripos afirma que encontraram.”
Tord Schultz tinha repetido a mesma coisa que disse quando foi preso, o procedimento de emergência, ele não sabia como o saco plástico foi parar na sua bagagem ou o que ele continha.
“Você está mentindo”, disse o inspetor. “E nós vamos ficar de olho em você.”
Então ele ficou segurando a porta da cela aberta e acenou com a cabeça indicando que ele deveria sair.
Tord tomou um susto quando o som estridente de uma campainha encheu a sala vazia e escura. Levantou-se e tateou até o telefone sobre uma cadeira de madeira ao lado do banco de exercícios.
Era o Gerente de Operações. Ele informou que Tord dali em diante não faria mais os voos internacionais, somente voos domésticos.
Tord perguntou por quê.
Seu chefe disse que houve uma reunião dos gerentes para discutir a situação dele.
“Você deve entender que não podemos mantê-lo nos voos internacionais com essa suspeita pairando sobre você.”
“Então por que você não me mantém em terra?”
“Bem”.
“Bem?”
“Se você for suspenso e a informação sobre a sua prisão vazar para a imprensa todos vão concluir imediatamente que pensamos que você é culpado e então vai ser como pó espalhado pelo vento... desculpe, sem trocadilho.”
“E voce não pensa assim também?”
Houve um silêncio antes de vir a resposta.
“Vai prejudicar a imagem da companhia se admitirmos que suspeitamos que um dos nossos pilotos é um traficante de drogas, você não acha?”
O trocadilho foi intencional.
O restante do que ele disse foi abafado pelo ruído de um TU-154.
Tord desligou o telefone.
Ele tateou de volta para o sofá e sentou-se. Seus dedos correram sobre a mesinha de vidro. Sentiu as manchas de muco seco, saliva e coca. E agora? Uma bebida ou uma carreira? Uma bebida e uma carreira?
Levantou-se. O Tupolev estava se aproximando a baixa altitude. Suas luzes inundaram toda a sala de estar e Tord viu por um segundo o seu reflexo na janela.
Em seguida ficou escuro novamente. Mas ele tinha visto. Visto nos seus olhos, e ele sabia que iria ver no rosto dos colegas. O desprezo, a condenação e - pior de tudo - a compaixão.
Doméstico. Vamos ficar de olho em você. Até a próxima vista.
Se ele não podia voar para o exterior, ele agora não teria nenhum valor para eles. Ele seria apenas um desesperado, endividado e viciado em cocaína em perigo. Um homem no radar da polícia, um homem sob pressão. Ele não sabia muito, mas sabia o suficiente para estar ciente de que poderia destruir a infraestrutura que haviam construído. E eles fariam o que tinha que ser feito. Tord Schultz envolveu as mãos em torno da nuca e gemeu em voz alta. Ele não nasceu para pilotar um avião de caça. O caça tinha entrado em parafuso, e ele não conseguiu recuperar o controle; ele apenas ficou olhando o chão girando cada vez mais perto. E sabia que sua única chance de sair vivo era sacrificar o jato. Ele teria que ativar o assento ejetor. Ejetar-se. Agora.
Ele teria que ir até alguém no alto escalão da polícia, alguém que com certeza estaria acima do dinheiro da corrupção dos traficantes. Ele teria que ir até o topo.
Sim, Tord Schultz pensou. Ele suspirou e percebeu que seus músculos estavam tensos. Relaxe. Ele teria que ir até o topo.
Antes disso, porém, um drink.
E uma carreira.
 
arry pegou a chave com o mesmo rapaz na recepção do Leon.
Agradeceu e subiu as escadas com passos largos. Não avistou nem uma única camiseta do Arsenal no caminho da estação do metrô em Egertorget até o Hotel Leon.
Quando se aproximou do quarto 301, ele diminuiu os passos. Duas das lâmpadas no corredor estavam apagadas, e a escuridão era tal que ele mal podia ver a luz debaixo da porta. Em Hong Kong os preços da energia eram tão altos que ele havia abandonado o mau hábito norueguês de deixar as luzes acesas quando saía, mas ele não podia ter certeza se a arrumadeira havia deixado. Se ela tivesse, ela também havia se esquecido de trancar a porta.
Harry estava com a chave na mão direita mas a porta se abriu com um leve toque. À luz da solitária lâmpada do teto, viu uma figura. Estava em pé de costas para ele, inclinado sobre a sua mala em cima da cama. Quando a porta bateu na parede com um leve baque a figura se virou calmamente, e um homem com um rosto oval e franzido olhou para Harry com os olhos de um São Bernardo. Ele era alto, curvado e usava um casaco longo, um pulôver de lã e um colarinho sujo de padre em volta do pescoço. Seu cabelo longo e despenteado estava dividido em ambos os lados do seu rosto atrás das maiores orelhas que Harry já tinha visto. O homem devia ter setenta anos, pelo menos. Eles não poderiam ser mais diferentes, mas o primeiro pensamento de Harry foi que era como olhar seu reflexo.
“Que diabos você está fazendo?” Harry perguntou ainda no corredor. Procedimento de rotina.
“O que você acha?” A voz era mais jovem do que o rosto, sonora com a inconfundível entonação sueca que as bandas de dança sueca e pregadores pentecostais adoram por algum motivo inexplicável. “Eu invadi para ver se você tinha alguma coisa de valor, é claro.” Não era apenas uma entonação sueca, ele estava falando sueco. Ele levantou ambas as mãos no alto. Na direita segurava um adaptador universal de tomadas, na esquerda uma edição de bolso da American Pastoral de Philip Roth.
“Você não tem nada que preste, não é.” Ele jogou os itens sobre a cama. Inspecionou a pequena mala, e olhou interrogativamente para Harry. “Nem mesmo um barbeador elétrico.”
“O que...” Harry ignorou os procedimentos de rotina, entrou na sala e bateu na tampa mala para fecha-la.
“Calma, meu filho”, disse o homem, mantendo as palmas levantadas. “Não tome isso como uma coisa pessoal. Você é novo neste estabelecimento. A única questão é quem seria o primeiro a roubá-lo.”
“Quem? Você quer dizer...?”
O velho ofereceu sua mão. “Bem-vindo. Meu nome é Cato. Eu moro no 310.”
Harry olhou uma mão que se parecia com uma frigideira suja.
“Vamos lá”, disse Cato. “Minhas mãos são a única parte de mim que é aconselhável tocar.”
Harry disse seu nome e apertou a mão. Era surpreendentemente macia.
“Mãos de padre”, disse o homem em resposta aos seus pensamentos. “Tem algo para beber, Harry?”
Harry acenou com a cabeça em direção a sua mala e as portas do guarda-roupa abertas. “Você já sabe.”
“Que você não tem nada por aqui, sim. Quero dizer com você. Nos seus bolsos, por exemplo.”
Harry tirou um Game Boy e jogou-a sobre a cama, onde todos os seus outros pertences estavam espalhados.
Cato inclinou a cabeça e olhou para Harry. A orelha dobrada contra o seu ombro. “Com esse terno eu poderia imaginar que você é um hóspede de passagem e não um residente. O que você está fazendo aqui, afinal?”
“Eu acho que essa deveria ser a minha fala.”
Cato colocou a mão no braço de Harry e olhou-o nos olhos. “Meu filho”, disse com sua voz sonora, acariciando o pano com dois dedos. “Este é um bom terno. Quanto você pagou?”
Harry estava prestes a dizer algo. Uma combinação de cortesia, rejeição e ameaça. Mas ele percebeu que era inútil. Ele desistiu. E sorriu.
Cato sorriu de volta.
Como um reflexo.
“Não tenho tempo para conversar. Tenho que ir trabalhar agora.”
“No que?”
“Que surpresa. Você também está um pouco interessado nos seus companheiros mortais. Eu proclamo a Palavra de Deus para os infelizes.”
“Agora?”
“Minha vocação não se restringe aos horários de igreja. Adeus.”
Com uma galante curva o velho se virou e partiu. Quando ele passava pela porta Harry viu a saliência de um dos seus pacotes fechados de Camel no bolso do casaco de Cato. Harry fechou a porta atrás dele. O cheiro do velho homem e de cinzas pairava no quarto. Ele foi abrir a janela. Os sons da cidade encheram a sala de uma só vez: o fraco zumbido regular do tráfego, jazz vindo de uma janela aberta, uma sirene de polícia subindo e descendo na distancia, um sujeito infeliz gritando sua dor em algum lugar ali perto, seguido do som de vidro sendo quebrado, o sussurro do vento através das folhas secas, o click-clack dos saltos das mulheres. Sons de Oslo.
Um leve movimento fez com que ele olhasse para baixo. O brilho da lâmpada do quintal iluminava a caçamba. Ele viu uma cauda marrom cintilando. Um rato estava sentado na borda da caçamba cheirando-a com um nariz brilhante. Harry lembrou-se de algo que seu reflexivo empregador, Herman Kluit, tinha dito, o que muito provavelmente era uma referência ao seu trabalho: “Um rato não é bom nem mau. Ele faz o que um rato tem que fazer.”
 
sta era a pior parte de um inverno em Oslo. A parte antes do gelo se instalar no fiorde e o vento salgado e congelante soprando através das ruas do centro da cidade. Como de costume, eu estava na Dronningens Gate vendendo speed, Stesolid e Rohypnol. Batendo meus pés no chão. Eu tinha perdido a sensibilidade dos dedos do pé e ponderava se os lucros do dia deveriam ser investidos nas horrivelmente caras botas Freelance que eu tinha visto na vitrine da Steen & Strøm. Ou em ice, pois eu tinha ouvido que estava à venda na Plata. Talvez eu pudesse surrupiar um pouco de speed - Tutu não notaria - e comprar as botas. Mas refletindo melhor eu pensei que era mais seguro afanar as botas e assegurar que Odin recebesse o que era dele. Afinal, eu estava melhor do que Oleg, que tinha que começar a venda de hash do zero no inferno congelado perto do rio. Tutu lhe tinha dado o ponto sob a Nybrua Bridge, onde ele competia com pessoas de todos os lugares mais fodidos ao redor do mundo, era provavelmente a única pessoa a falar fluentemente norueguês desde a Anker Bridge até o porto.
Eu vi um cara com uma camiseta do Arsenal mais adiante na rua. Normalmente era Bisken, um espinhento de Sørland que usava uma coleira de cachorro cravejada com tachas, quem ficava ali. Um novo sujeito, mas o procedimento era o mesmo: ele estava reunindo um grupo. Por enquanto, ele tinha três clientes esperando. Só Deus sabia por que eles estavam com tanto medo. Os policiais tinham desistido desta área, e se eles prendiam alguns traficantes da rua era apenas para salvar as aparências porque algum político estava falando demais novamente.
Um cara vestido como se estivesse indo para a missa passou pelo grupo e eu o vi trocando acenos de cabeça, quase imperceptíveis, com o cara com camiseta do Arsenal. O cara parou na minha frente. Vestindo um casaco da Ferner Jacobsen, um terno da Ermenegildo Zegna e o cabelo penteado no estilo George Clooney. Ele era grande.
“Alguém quer conhecê-lo.” Ele falou em Inglês com uma espécie de rosnado russo.
Calculei que seria o habitual. Ele tinha visto meu rosto, pensou que eu era um garoto de programa e queria uma chupeta ou minha bunda adolescente. E eu tenho que confessar que em dias como o de hoje eu chegava a considerar uma mudança de profissão; bancos de carro aquecidos e uma taxa horária quatro vezes maior.
“Não, obrigado”, respondi em Inglês.
“A resposta correta é Sim, por favor,” o cara disse, agarrando o meu braço e me levantando um pouco e arrastando para uma limusine preta, que, naquele momento, silenciosamente encostava na calçada. A porta traseira se abriu, e como a resistência era inútil eu comecei a pensar em um preço adequado. Afinal de contas, estupro pago é melhor do que não pago.
Fui empurrado para o banco de trás, e a porta foi fechada com um suave e caro clique. Através das janelas, que de fora pareciam negras e impenetráveis, vi que estávamos nos movendo para oeste. Atrás do volante estava um rapaz com uma cabeça muito pequena para todas as grandes coisas que precisavam caber nela: um enorme nariz, uma boca de tubarão-branco sem lábios e olhos esbugalhados que pareciam que tinham sido fixados com cola vagabunda. Ele também vestia um elegante terno de funeral e o cabelo repartido penteado como um coroinha. Ele me olhou pelo espelho retrovisor. “Vendas boas, hein?”
“Vendas do que, babaca?”
O rapaz deu um sorriso simpático e acenou com a cabeça. Eu tinha decidido não dar-lhes um desconto por quantidade se eles me pedissem, mas agora eu podia ver em seus olhos que não era de mim que eles estavam atrás. Havia algo mais, que no momento eu não conseguia imaginar. A Prefeitura surgiu e sumiu. A Embaixada Americana. Os jardins do palácio. Sempre para o oeste. Kirkeveien. Norwegian Broadcasting Corporation. E então, casas de ricos.
Paramos em frente a uma grande construção de madeira numa colina e os gerentes de funerária me acompanharam pelo portão. À medida que seguíamos pelo caminho de cascalho para a porta de carvalho eu dei uma olhada ao redor. A propriedade era tão grande quanto um campo de futebol com macieiras e pereiras, uma torre de cimento parecida com um bunker semelhante às torres circulares medievais, uma garagem dupla com barras de ferro que davam a impressão de que abrigavam veículos públicos de emergência. Uma cerca com dois a três metros de altura, em volta de toda a propriedade. Eu já tinha uma vaga idéia para onde estávamos indo. Limusine, inglês com um grunhido, “Vendas boas?”, fortaleza doce lar.
No hall de entrada o maior dos dois ternos me revistou, então ele e o menor foram para um canto onde havia uma pequena mesa com um pano de feltro vermelho e uma grande quantidade de ícones antigos e crucifixos pendurados na parede. Eles sacaram suas armas dos coldres de ombro, colocaram-nas no feltro vermelho e puseram uma cruz sobre cada pistola. Em seguida, uma porta se abriu para uma sala de estar.
“Ataman”, disse ele, apontando o caminho para mim.
O velhinho devia ser pelo menos tão antigo quanto a poltrona de couro em que ele estava sentado. Eu o encarei. Dedos idosos e nodosos em torno de um cigarro preto.
Ouvi um estalo animado vindo da enorme lareira, e me posicionei perto o suficiente para o calor chegar até minhas costas. A luz das chamas cintilou sobre a sua camisa branca de seda e sua face de ancião. Ele largou o cigarro e levantou a mão como se esperasse que eu fosse beijar a grande pedra azul que ele usava no seu dedo anular.
“Safira birmanesa”, ele disse. “Seis vírgula seis quilates, quatro mil e quinhentos dólares por quilate.”
Ele tinha um sotaque. Não era fácil de perceber, mas estava lá. Polônia? Rússia? Algo do leste de qualquer maneira.
“Quanto?” ele disse, com o queixo apoiado no anel.
Levou dois segundos para eu entender o que ele quis dizer.
“Pouco menos de trinta mil”, eu disse.
“Quanto menos?”
Eu calculei. “Vinte e nove mil e setecentos é bastante próximo.”
“A taxa de câmbio para o dólar é de cinco ponto oitenta e três.”
“Cerca de cento e setenta mil.”
O velhinho acenou com a cabeça. “Disseram-me que você era bom.” Seus olhos de ancião brilhavam mais azuis do que a porra da safira birmanesa.
“Eles não estão errados”, eu disse.
“Eu vi você em ação. Você tem muito a aprender, mas eu posso ver que você é mais esperto do que os outros imbecis. Você pode ver um cliente e saber o que ele está disposto a pagar.”
Eu dei de ombros. Eu me perguntei o quanto ele estava disposto a pagar.
“Mas eles também disseram que você rouba.”
“Somente quando vale a pena.”
O velhinho riu. Bem, já que era a primeira vez que eu o via, eu pensei que fosse um ataque de tosse hesitante, câncer de pulmão talvez. Havia uma espécie de ruído borbulhante no fundo da garganta, como o bom velho chug-chug de um barco à vela. Em seguida, ele fixou seus olhos frios, azuis como um olho grego (6) em mim e disse com um tom que sugeria que ele estava me descrevendo a Segunda Lei de Newton: “Você deve ser capaz de fazer o próximo cálculo também. Se você roubar de mim eu vou te matar.”
O suor escorria pelas minhas costas. Obriguei-me a encontrar o seu olhar. Era como olhar para a porra da Antártida. Nada. Terra congelada fria e inóspita. Mas eu sabia o que ele queria. Dinheiro.
“A gangue de motoqueiros deixa você vender dez gramas para si próprio a cada cinquenta gramas que você vender para eles. Dezessete por cento. Para mim, você só vai vender minha mercadoria e você será pago em dinheiro. Quinze por cento. Você terá sua própria esquina. Serão três de você. Homem do dinheiro, homem da droga e o olheiro. Sete por cento para o homem da droga, três por cento para o olheiro. Você acerta as contas com Andrey à meia-noite.” Ele acenou com a cabeça em direção ao coroinha menor.
Esquina. Olheiro. A porra do ‘The Wire’.(7)
“Feito”, eu disse. “Me passa  a camiseta.”
O velhinho sorriu, o tipo de sorriso reptiliano que servia para mostrar mais ou menos onde você estava situado na hierarquia. “Andrey vai resolver o problema para você.”
Continuamos a conversar. Ele perguntou sobre meus pais, amigos, se eu tinha onde morar. Eu lhe disse que morava com minha irmã adotiva e menti não mais do que o necessário, pois eu tinha a sensação de que ele já sabia as respostas. Apenas uma vez eu fiquei sem saber como responder, quando ele perguntou por que eu falava uma espécie de dialeto desatualizado de Oslo Leste uma vez que eu tinha crescido numa família bem-educada do norte da cidade, e eu respondi que era por causa do meu pai, o real, ele era do East End. Não sei se isso está certo, mas que porra, é o que eu sempre imaginei, papai, você andando pela Oslo Leste, azarado, desempregado, sem grana, um apartamento gelado, não tinha um bom lugar para criar uma criança. Ou talvez eu falasse desse jeito para aborrecer Rolf e os filhos dos vizinhos chiques. E então eu descobri que isso me dava uma espécie de superioridade, um pouco como uma tatuagem; as pessoas ficavam com medo, se esquivavam, me deixavam em paz. Enquanto eu estava tagarelando sobre a minha vida o velhinho estava estudando meu rosto e batendo o anel de safira no braço da poltrona, uma e outra vez, sem descanso, como se fosse algum tipo de contagem regressiva. Quando houve uma pausa no interrogatório e o único som era o tap-tap, eu me senti como se fossemos explodir a menos que eu quebrasse o silêncio.
“Cabana legal”, eu disse.
Isso soou tão loira que eu fiquei corado.
“Era a residência do Chefe da Gestapo na Noruega de 1942 a 1945. Hellmuth Reinhard.”
“Imagino que os vizinhos não te incomodam.”
“A casa ao lado também é minha. O tenente de Reinhard morava lá. Ou vice-versa”
“Vice-versa?”
“Nem tudo aqui é tão fácil de entender”, disse o velhinho. Sorriu seu sorriso de lagarto. O dragão de Komodo.
Eu sabia que tinha que ter cuidado, mas não pude resistir. “Há uma coisa que eu não entendo. Odin me paga dezessete por cento, e isso é o padrão dos outros também. Mas você quer uma equipe de três pessoas e você está dando vinte e cinco por cento no total. Por quê?”
Os olhos do velhinho se fixaram intensamente num lado do meu rosto. “Porque três é mais seguro do que um, Gusto. Os riscos dos meus vendedores são meus riscos. Se você perder todos os peões é apenas uma questão de tempo antes que você fique em xeque-mate, Gusto.” Ele parecia repetir o meu nome para se deleitar com o som.
“Mas  a rentabilidade...”
“Não se preocupe com isso”, ele retrucou rispidamente. Então ele sorriu e sua voz ficou suave novamente. “Nossos produtos vem diretamente da fonte, Gusto. São seis vezes mais puros do que a chamada heroína que é diluída primeiro em Istambul, depois em Belgrado e, em seguida, em Amsterdã. Ainda assim, pagamos menos por grama. Entendeu?”
Eu balancei a cabeça. “Você pode diluir sete ou oito vezes mais do que os outros.”
“Nós diluímos, porém menos do que os outros. Nós vendemos algo que pode ser chamado de heroína. Você já sabe disso, e foi por isso que você foi tão rápido em dizer sim por um percentual menor.” A luz das chamas brilhava nos seus dentes brancos. “Porque você sabe que vai vender o melhor produto da cidade, você vai girar três a quatro vezes mais do que você faz com a farinha de Odin. Você sabe disso porque você vê todos os dias: os compradores que andam em linha reta passando pela fila de traficantes de heroína para encontrar quem veste...”
“... a camiseta do Arsenal.”
“Os clientes vão saber que a sua mercadoria é da melhor no primeiro dia, Gusto.”
Então, ele me acompanhou até a saída.
Como ele estava sentado com um cobertor de lã sobre os joelhos, eu tinha assumido que era um aleijado ou algo assim, mas ele era surpreendentemente leve sobre seus pés. Ele parou na porta, claramente não querendo mostrar a sua face para o exterior. Colocou a mão no meu braço, acima do cotovelo. Gentilmente apertou meus tríceps.
“Vejo você em breve, Gusto.”
Eu balancei a cabeça. Eu sabia que havia algo mais que ele queria. ‘Eu já vi você em ação’. De dentro de uma limusine com vidros escuros, estudando-me como se eu fosse a porra de um Rembrandt no museu. Foi assim que eu soube que iria conseguir o que eu queria.
“O olheiro tem que ser minha irmã adotiva. E a droga vai ficar com um cara chamado Oleg.”
“Pode ser. Algo mais?”
“Eu quero o número 23 na minha camiseta.”
“Arshavin,” o coroinha alto resmungou com contentamento. “Russo”. Obviamente, ele nunca tinha ouvido falar de Michael Jordan.
“Vamos ver,” o velhinho sorriu. Ele olhou para o céu. “Agora Andrey irá mostrar-lhe uma coisa e depois você poderá começar.” Sua mão continuou segurando meu braço e seu sorriso era como uma maldita coisa fixa. Eu estava assustado. E animado. Assustado e animado como um caçador de dragão de Komodo.
Os coroinhas dirigiram até a marina deserta em Frognerkilen. Eles tinham as chaves de um portão, e nós dirigimos entre as pequenas embarcações confinadas durante o inverno. Na ponta de um cais tivemos que parar e descemos. Eu fiquei olhando para baixo, para a água calma, negra, enquanto Andrey abria o porta-malas.
“Venha aqui, Arshavin.”
Eu fui até lá e olhei para dentro do porta-malas.
Ele ainda estava usando a coleira de cachorro tacheada e sua camiseta do Arsenal. Bisken sempre tinha sido feio, mas a visão dele quase me fez vomitar. Havia grandes buracos negros com sangue coagulado em seu rosto cheio de espinhas, uma orelha foi rasgada ao meio e no local onde deveria existir um olho havia algo parecido com pudim de arroz. Depois de finalmente conseguir me afastar do mingau eu vi que havia um pequeno buraco na camisa acima do ‘m’ de Emirates. Como um buraco de bala.
“O que aconteceu?”, eu gaguejei.
“Ele conversou com o policial da boina.”
Eu soube o que ele quis dizer. Havia um policial disfarçado - pelo menos parecia ele pensou – bisbilhotando em torno da Kvadraturen.
Andrey esperou, deixou-me dar uma boa olhada, antes de perguntar: “Entendeu a mensagem?”
Eu balancei a cabeça. Eu não conseguia parar de olhar para o olho perdido. Que porra é essa que tinham feito com ele?
“Peter”, disse Andrey. Juntos, eles tiraram o corpo do porta-malas, retiraram a camiseta do Arsenal e atiraram o corpo pela borda do cais. A água preta engoliu a carga sem fazer barulho e fechou suas mandíbulas. Sumiu.
Andrey estendeu a camisa para mim. “É sua agora.”
Eu enfiei meu dedo através do buraco da bala. Virei a camisa e olhei para as costas.
52. Bendtner.
 
(6) Olho grego é um talismã contra a inveja e mau-olhado, é também conhecido como um símbolo da sorte e funciona contra energias negativas. Geralmente é um pingente redondo usado em pulseiras e correntes, e obviamente, é azul.

(7) Série da TV americana que retrata o cotidiano dos traficantes.

ram 06h30, um quarto de hora antes do nascer do sol de acordo com a última página do Aftenposten. Tord Schultz dobrou o jornal e deixou-o no banco ao lado dele. Olhou através do átrio deserto para a porta de entrada novamente.
“Ele geralmente chega cedo”, disse o guarda da Securitas atrás da recepção.
Tord Schultz tinha pegado o primeiro trem para Oslo e viu a cidade despertar enquanto caminhava da Central Station para a Grønlandsleiret. Ele tinha passado por um caminhão de lixo. Os homens manuseavam as latas de lixo com uma brutalidade que Tord julgou que mostrava mais uma postura do que a eficiência. Pilotos de F-16. Um verdureiro paquistanês tinha levado caixas de vegetais para a frente da sua loja, parou, limpou as mãos no avental e deu um bom dia para ele. Piloto de Hercules. Depois da Igreja Grønland virou à esquerda. Uma enorme fachada de vidro, projetada e construída na década de 1970, elevava-se diante dele. QG da Polícia.
As 06h37 a porta se abriu. O guarda tossiu e Tord levantou a cabeça. Ele recebeu um aceno de confirmação e se levantou. O homem vindo em sua direção era menor do que ele.
Ele andava com um passo rápido e elástico e tinha um cabelo mais longo do que Tord teria esperado do homem responsável pela maior unidade de narcóticos da Noruega. Quando ele se aproximou Tord notou as listras rosa e branca no seu rosto bronzeado e atraente como o de uma garota. Lembrou-se de uma aeromoça que tinha um defeito de pigmentação, uma mancha branca se espalhando para baixo de seu pescoço queimado de sol, por entre os seios até seu sexo depilado. Fazia o resto da sua pele se parecer com uma meia de nylon.
“Mikael Bellman?”
“Sim, como posso ajudá-lo?” O homem sorriu sem diminuir o passo.
“Um bate-papo privado.”
“Infelizmente tenho que me preparar para uma reunião pela manhã, mas se você ligar...”
“Eu tenho que falar com você agora”, disse Tord, surpreso com o tom insistente em sua voz.
“É mesmo?” O chefe da Orgkrim já ia passar o crachá na porta, mas parou para examina-lo.
Tord Schultz se aproximou. Baixou a voz, embora o segurança da Securitas ainda fosse a única outra pessoa no átrio. “Meu nome é Tord Schultz, eu sou piloto da maior companhia aérea da escandinávia, e eu tenho informações sobre o contrabando de drogas para a Noruega via Gardermoen.”
“Entendo. De quanto estamos falando?”
“Oito quilos por semana.”
Tord podia sentir os olhos do homem examinando-o fisicamente. Sabia que o cérebro do homem estava recolhendo e processando todos os dados disponíveis: linguagem corporal, roupas, postura, expressão facial, a aliança de casamento que ele por algum motivo ainda usava no dedo, o brinco que ele não tinha na orelha, os sapatos polidos, o vocabulário, a firmeza do olhar.
“Talvez fosse melhor que você se registrasse,” Bellman disse, acenando com a cabeça para o guarda.
Tord Schultz balançou a cabeça lentamente. “Eu prefiro que este encontro seja confidencial.”
“Regras exigem que todos devem ser registrados, mas posso assegurar-lhe que a informação permanece aqui no QG da Polícia.” Bellman sinalizou para o guarda da Securitas.
No elevador Schultz acariciou o dedo sobre o nome na etiqueta que o guarda tinha imprimido, colado num chachá e dito para ele colocar na lapela.
“Algo errado?”, Bellman perguntou.
“Nem um pouco”, disse Tord. Mas ele continuou esfregando, esperando que pudesse apagar seu nome.
O escritório de Bellman era surpreendentemente pequeno.
“O tamanho não importa,” Bellman disse em um tom sugerindo que ele estava acostumado a justificar. “Grandes coisas têm sido realizados a partir daqui.” Ele apontou para um quadro na parede. “Lars Axelsen, cabeça do que foi  a Unidade de Roubos. Esmagou a quadrilha Tveita na década de noventa.”
Ele acenou para Tord se sentar. Pegou um caderninho de anotações, encarou o olhar de Tord e colocou-o de lado novamente.
“Então?”, disse.
Tord suspirou. E falou. Ele começou com o divórcio. Ele precisava disso. Necessitava começar com o porquê. Em seguida, ele falou do quando e onde. Então, de quem e como. E, no final, ele falou sobre o queimador.
Durante a narração Bellman sentou-se inclinado para a frente, escutando cuidadosamente. Somente quando Tord falou sobre o queimador o seu rosto perdeu a concentrada, embora profissional, expressão. Depois da surpresa inicial uma tonalidade vermelha impregnou as manchas de pigmento branco. Foi uma visão estranha, como se uma chama tivesse sido acesa no seu interior. Ele perdeu o contato visual com Bellman, que estava olhando amargamente para a parede atrás dele, talvez para a imagem de Lars Axelsen.
Depois que Tord terminou, Bellman suspirou e ergueu a cabeça.
Tord percebeu que havia um novo olhar naqueles olhos. Duro e desafiador.
“Peço desculpas”, disse ele. “Em nome de mim mesmo, da minha profissão e da força policial. Peço desculpas por não ter eliminado o percevejo.”
Bellman devia estar dizendo aquilo para si próprio, Tord pensou, e não a ele, um piloto que andou contrabandeando oito quilos de heroína por semana.
“Eu aprecio que você esteja preocupado”, disse Bellman. “Eu gostaria de poder dizer que você não tem nada a temer. Mas minha amarga experiência me diz que quando este tipo de corrupção é exposta ela vai fundo, muito mais longe do que de apenas um indivíduo.”
“Eu entendo.”
“Você contou isso para mais alguém?”
“Não.”
“Alguém sabe que você está aqui falando comigo?”
“Não, ninguém.”
“Ninguém mesmo?”
Tord olhou para ele. Sorriu ironicamente sem dizer o que estava pensando: para quem ele iria contar?
“OK”, disse Bellman. “Você me trouxe uma questão importante, séria e extremamente delicada. Vou ter que proceder muito cautelosamente para não alertar aqueles que não devem ser alertados. Isso significa que eu vou ter que levar o assunto mais para cima. Você sabe, eu deveria colocá-lo em prisão preventiva pelo que você me disse, mas a prisão agora pode expor você e nós também. Então, até que a situação seja esclarecida você deve ir para casa e ficar lá. Você entendeu? Não conte a ninguém sobre esta reunião, não saia ao ar livre, não abra a porta para estranhos, não responda chamadas de números desconhecidos.”
Tord balançou a cabeça lentamente. “Quanto tempo vai demorar?”
“Três dias no máximo.”
“Entendido.”
Bellman parecia estar prestes a dizer algo, mas parou e hesitou antes de finalmente decidir.
“Isto é algo que eu nunca fui capaz de entender”, disse. “Que algumas pessoas estão dispostas a destruir a vida dos outros por dinheiro. Bem, talvez se você é um pobre camponês afegão... Mas um norueguês com o salário de comandante de linhas internacionais...”
Tord Schultz encontrou seus olhos. Ele tinha se preparado para isso; sentiu uma espécie de alívio quando aconteceu.
“No entanto, vir aqui de livre e espontânea vontade e colocar suas cartas na mesa é corajoso. Eu sei o que você está arriscando. A vida não será fácil a partir de agora, Schultz.”
Com isso, o chefe da Orgkrim se levantou e ofereceu sua mão. E o mesmo pensamento que lhe ocorreu quando Tord o tinha visto se aproximando na recepção retornou a sua mente: Mikael Bellman tinha a altura perfeita para um piloto de caça.
 
uando Tord Schultz estava saindo do QG da Polícia, Harry Hole estava tocando a campainha de Rakel. Ela atendeu vestindo um roupão, e os olhos eram fendas estreitas. Ela bocejou.
“Eu vou parecer melhor mais tarde”, disse.
“Ainda bem que um de nós vai,” Harry disse, dando um passo para dentro.
“Boa sorte”, disse ela, de pé em frente à mesa da sala de estar atulhada com documentos. “Está tudo aí. Relatos do caso. Fotos. Recortes de jornais. Declarações de testemunhas. É minucioso. Tenho que ir trabalhar.”
No momento em que a porta se fechou atrás dela Harry já tinha preparado a sua primeira xícara de café e começado a análise.
Depois de ler por três horas ele teve que dar uma pausa para lutar contra o desânimo que se apoderava dele. Ele pegou a xícara e ficou defronte a janela da cozinha. Disse a si mesmo que estava aqui para questionar a culpa, não para confirmar a inocência. A dúvida era suficiente. E, no entanto. A evidência era inequívoca. E todos os seus anos de experiência como investigador de homicídios trabalhavam contra ele: as coisas, muitas vezes, eram surpreendentemente exatamente o que pareciam.
Após mais três horas, a conclusão foi a mesma. Não havia nada nos documentos que sugerissem uma explicação diferente. Isso não queria dizer que não havia uma, mas não estava aqui, ele disse a si mesmo.
Ele saiu antes de Rakel voltar para casa, dizendo a si mesmo que tinha jet lag, ele precisava dormir. Mas ele sabia porquê. Ele não conseguiria dizer que a partir do que tinha lido era muito difícil agarrar-se a dúvida, a dúvida que era o caminho, a verdade, a vida e a única esperança de redenção.
Então ele pegou seu casaco e saiu. Caminhou de Holmenkollen, passando pelo bairro Ris, pelo Sogn e Ullevål e Bolteløkka até o Schrøder’s. Considerou entrar, mas decidiu não fazê-lo. Para o leste em vez disso, do outro lado do rio para Tøyen.
E quando ele abriu a porta do Watchtower, a luz do dia já tinha começado a se desvanecer. Tudo continuava como ele se lembrava. Paredes claras, uma cafeteria com decoração sem graça, grandes janelas que deixavam entrar a máxima quantidade de luz. E nesta luz a clientela da tarde estava sentada em torno das mesas com café e sanduíches. Alguns clientes estavam com suas cabeças abaixadas sobre o prato, como se tivessem acabado de atingir à linha de chegada depois de uma corrida de cinquenta quilômetros, alguns conversavam no tom staccato impenetrável da fala dos viciados, outros que você não ficaria surpreso se os visse bebendo um café expresso entre a frota de carrinhos de bebê burgueses na United Bakeries.
Alguns haviam ganhado novas roupas de segunda mão, ainda na embalagem plástica ou já vestidas. Outros pareciam agentes de seguros ou professoras interioranas.
Harry se dirigiu até o balcão, e uma garota rechonchuda e sorridente vestindo um moletom com capuz do Exército da Salvação lhe ofereceu café de coador à vontade e pão integral com queijo marrom.
“Hoje não, obrigado. Martine está aqui?”
“Ela está trabalhando na clínica.”
A menina apontou o dedo para o teto, indicando a sala de primeiros socorros do Exército da Salvação na sala do andar de cima.
“Mas ela deve estar terminando...”
“Harry!”
Ele se virou.
Martine Eckhoff ainda era tão pequena quanto sempre foi. O rosto de gatinho sorridente tinha a mesma boca desproporcionalmente ampla e um nariz que não era mais que um montículo no seu pequeno rosto. E suas pupilas pareciam como se tivessem escorrido para a borda inferior da íris marrom, tomando a forma de um buraco de fechadura. Ela já havia explicado antes que era congênito e conhecido como coloboma da íris.
Martine esticou-se e deu-lhe um abraço demorado. E quando terminou, ela não o deixou se afastar muito, mas segurou as duas mãos ao mesmo tempo olhando para ele. Ele viu uma sombra voar através de seu sorriso quando ela viu a cicatriz no rosto dele.
“Como... como você está magro.”
Harry riu. “Obrigado. Mas, enquanto eu emagreci...”
“Eu sei”, Martine se lamentou. “Eu fiquei mais gorda. Todo mundo fica mais gordo, Harry. Exceto você. Mas no meu caso eu tenho uma desculpa para ficar gorda...”
Ela deu um tapinha na barriga, onde o pulover de lã de carneiro preto estava esticado até seu limite.
“Hmm. Será que Rikard tem algo a ver com isso?”
Ela riu e concordou com entusiasmo. Seu rosto estava vermelho, o calor irradiava dela como de um aquecedor elétrico.
Eles caminharam até a única mesa livre. Harry sentou-se e observou a enorme barriga preta tentando se acomodar numa cadeira. Parecia incongruente contra aquele cenário de vidas viradas de cabeça para baixo e apática desesperança.
“Gusto”, disse ele. “Você sabe alguma coisa sobre o caso?”
Ela deu um suspiro profundo. “Claro. Todo mundo aqui sabe. Ele fazia parte da comunidade. Ele não vinha aqui com frequência, mas nós o víamos de vez em quando. As meninas que trabalham aqui morriam de amores por ele, todas elas. Ele era tão bonito!”
“E quanto ao Oleg, o cara que supostamente o matou?”
“Ele veio algumas vezes, com uma garota.” Ela franziu a testa. “Supostamente? Existe alguma dúvida sobre isso, então?”
“Isso é o que eu estou tentando esclarecer. Uma garota, você disse?”
“Adorável, mas um pouco pálida. Ingunn? Iriam?” Ela se virou para o balcão. “Hey! Qual é o nome da meia-irmã do Gusto.” E antes que alguém tivesse a chance de responder, ela respondeu para si mesma: “Irene!”
“Cabelo vermelho e sardas?” Harry perguntou.
“Ela era tão pálida que se não fosse pelo seu cabelo ela seria invisível. Falo sério. No final o sol brilhava através dela.”
“No final?”
“Sim, nós estivémos justamente falando sobre isso. Faz tempo desde a última vez que ela esteve aqui da. Perguntei para muitas pessoas que vem aqui se ela deixou a cidade ou o que, mas ninguém parece saber onde ela está.”
“Você se lembra de alguma coisa acontecendo ao redor na época que o assassinato aconteceu?”
“Nada especial, exceto naquela noite especial. Eu ouvi as sirenes da polícia e sabia que eles estavam provavelmente atrás de alguns dos nossos jovens paroquianos, quando um dos teus colegas que estava aqui recebeu um telefonema e saiu.”
“Pensei que era uma regra não escrita que policiais disfarçados não eram autorizados a trabalhar aqui no café.”
“Eu não acho que ele estava trabalhando, Harry. Ele estava sentado sozinho na mesa ali, supostamente lendo Klassekampen. Pode soar um pouco vaidoso, mas acho que ele veio aqui para olhar para moi.” Ela galantemente colocou a mão espalmada contra o peito.
“Você ainda atrai policiais solitários, suponho.”
Ela riu. “Fui eu quem ficou de olho em você, já se esqueceu?”
“Uma menina de família cristã como você?”
“Na verdade seu olhar me incomodava bastante, mas ele parou quando minha gravidez tornou-se visível. De qualquer maneira, naquela noite, ele bateu a porta atrás dele, e eu o vi ir em direção a Hausmanns Gate. A cena do crime fica apenas a algumas centenas de metros de distância daqui. Logo depois começaram a circular rumores de que Gusto havia sido baleado. E que Oleg tinha sido preso.”
“O que você sabe sobre Gusto, além do fato de que ele era atraente para as mulheres e veio de uma família adotiva?”
“Ele era chamado de Ladrão. Ele vendia violino.”
“Para quem ele trabalhava?”
“Ele e Oleg costumavam vender para os motociclistas de Alnabru, Los Lobos. Mas depois eles se juntaram ao Dubai, eu acho. Todo mundo que foi abordado aceitou. Eles tinham a heroína mais pura, e quando o violino surgiu só os traficantes de Dubai o tinham. E eu suponho que ainda é assim.”
“O que você sabe sobre Dubai? Quem é ele?”
Ela balançou a cabeça. “Eu nem sei se é quem ou o quê.”
“Tão visível nas ruas e ainda assim tão invisível por trás dos bastidores. Será que ninguém sabe?”
“Provavelmente, mas quem sabe não vai dizer.”
Alguém chamou o nome de Martine.
“Fique onde está”, disse Martine, lutando contra a cadeira. “Eu estarei de volta em um segundo.”
“Na verdade, eu tenho que ir,” disse Harry.
“Para onde?”
Houve um segundo de silêncio e então ambos perceberam que ele não tinha uma resposta sensata para aquela pergunta.
 
ord Schultz estava sentado à mesa da cozinha ao lado da janela. O sol brilhava baixo, e ainda havia luz suficiente para ele poder ver alguém andando pela estrada entre as casas. Mas ele não podia ver a estrada. Ele deu uma mordida no pão com salsichão suíço.
Aviões voavam sobre os telhados. Pousavam e decolavam. Pousavam e decolavam.
Tord Schultz ouvia os vários sons de motor. Era como uma linha do tempo: os velhos motores que soavam direito, que tinham o rosnado exato, o rosnado quente, que evocava as boas lembranças, que faziam sentido, que eram uma trilha sonora de quando as coisas tinham um significado: trabalho, pontualidade, família, carícias de uma mulher, reconhecimento dos colegas. A nova geração de motores agitavam mais o ar, eram mais frenéticos, voavam mais rápido com menos combustível, tinham maior eficiência, menos tempo para o dispensável. Mesmo para o dispensável indispensável. Ele olhou para o grande relógio sobre a geladeira novamente. Que tiquetaqueava como um pequeno coração assustado, rápido e frenético. Sete. Doze horas se passaram. Logo estaria escuro. Ele ouviu um Boeing 747. O clássico. O melhor. O som cresceu e cresceu, até se tornar um rugido que fazia as vidraças tremerem e o copo tilintar contra a garrafa meio vazia na mesa. Tord Schultz fechou os olhos. Era o som de otimismo sobre o futuro, poder bruto, a arrogância bem fundamentada. O som da invencibilidade de um homem em seus melhores anos.
Então, quando o barulho desapareceu e de repente tudo ficou silencioso na casa, ele percebeu que o silêncio era diferente. Como se o ar tivesse uma densidade diferente.
Como se estivesse preenchido.
Ele se virou para a direita, para a sala de estar. Através da porta ele podia ver o banco de musculação e mais ao fundo a mesinha de centro. Ele olhou para o chão de parquet, para as sombras da parte da sala de estar que ele não podia ver. Prendeu a respiração e escutou. Nada. Apenas o relógio na geladeira. Então, ele deu outra mordida no pão, um gole do copo e recostou-se na cadeira. Um grande avião estava a caminho. Ele podia ouvi-lo vindo de trás. Abafava o som do tempo passando. E ele estava pensando que teria que passar entre a casa e o sol como uma sombra caindo sobre ele e a mesa.
 
arry caminhou ao longo da Urtegata na direção da Platous Gate para a Grønlandsleiret. Estava indo ao QG da Polícia no piloto automático. Ele parou no Bots Park. Olhou para a prisão, as sólidas paredes cinzentas.
“Para onde?” Martine tinha perguntado.
Será que ele estava realmente em dúvida a respeito de quem matou Gusto Hanssen?
Um avião da SAS partia de Oslo para Bangkok, direto, todos os dias, antes da meia-noite. Voos partem de Bangkok para Hong Kong cinco vezes por dia. Ele poderia ir para o Hotel Leon agora. Embalar sua bagagem e fazer o check-out. Levaria precisamente cinco minutos. Pegar o Airport Express para Gardermoen. Comprar um bilhete no balcão da SAS. Uma refeição e jornais na atmosfera relaxante e impessoal da área de trânsito de um aeroporto.
Harry se virou. Viu que o pôster vermelho do concerto do dia anterior tinha desaparecido.
Ele continuou a caminhar e seguiu para a Oslo Gate e estava passando pelo cemitério do Minne Park Gamlebyen quando ouviu uma voz nas sombras junto à porta.
“Duzentos pela salvação?”, dito em sueco.
Harry parou, e o mendigo apareceu. Seu casaco era comprido e irregular, e a luz dos postes faziam suas grandes orelhas lançarem sombras sobre o seu rosto.
“Eu suponho que você está pedindo um empréstimo, não é?” Harry disse, pescando a carteira.
“Coleta”, disse Cato, estendendo a mão. “Você nunca vai recuperá-lo. Eu deixei a minha carteira no Hotel Leon.” Não havia um sopro de álcool ou cerveja no hálito do velho, apenas o cheiro do tabaco e algo que o fez se lembrar da infância, brincando de esconde-esconde com seu avô, quando Harry se escondeu no guarda-roupa e inalou o cheiro doce e bolorento de pão amanhecido nas roupas que estavam penduradas lá há anos. Elas deviam ter sido tão antigas quanto a própria casa.
Harry pegou uma nota de quinhentos e entregou-a para Cato.
“Pegue.”
Cato olhou para a nota. Passou a mão sobre ela. “Eu tenho ouvido isto e aquilo”, disse ele. “Dizem que você é policial.”
“Sim?”
“E que você bebe. Qual é o seu veneno?”
“Jim Beam”.
“Ah, Jim. Um amigo do meu Johnnie. E você conhece o garoto, Oleg.”
“Você o conhece?”
“Harry, a prisão é pior do que a morte. A morte é simples, ela liberta a alma. Mas a prisão corrói sua alma até que não haja nada de humano sobrando em você. Até você se tornar um fantasma.”
“Quem te contou sobre Oleg?”
“Minha congregação é grande e meus paroquianos são numerosos, Harry. Eu escuto. Eles dizem que você está caçando essa pessoa. Dubai.”
Harry olhou para o relógio. Geralmente os voos partem com muitos lugares vazios nesta época do ano. De Bangkok ele também poderia ir para Xangai. Zhan Yin tinha enviado uma mensagem dizendo que estava sozinha nesta semana. Eles poderiam ir para a casa de campo juntos.
“Eu espero que você não o encontre, Harry.”
“Eu não disse que eu...”
“Aqueles que o fazem, morrem.”
“Cato, esta noite eu vou...”
“Você já ouviu falar sobre o besouro?”
“Não, mas...”
“Seis pernas de insetos que perfuram seu rosto.”
“Eu tenho que ir, Cato.”
“Eu vi com meus próprios olhos.” Cato deixou o queixo cair e encostar no colarinho de sacerdote. “Debaixo da Älvsborg Bridge no porto de Gothemburg. Um policial à procura de uma gangue de heroína. Eles bateram com um tijolo cravejado de pregos no rosto dele.”
Harry percebeu do que o homem estava falando. Zjuk. O besouro.
O método tinha se originado na Rússia e era usado em informantes. Primeiro, a orelha do informante era pregada no chão debaixo de uma viga do telhado. Em seguida, seis longos pregos eram martelados pela metade em um tijolo, o tijolo era amarrado a uma corda pendurada em torno da viga e a outra ponta da corda era enfiada entre os dentes do informante. O propósito – e o simbolismo - era que enquanto o informante mantivesse sua boca fechada ele estaria vivo. Harry tinha visto o resultado do zjuk realizado pela Triad de Tapei em um pobre homossexual que encontraram numa rua afastada em Tanshui. Eles haviam usado cabeças de prego que faziam aqueles grandes buracos ao se cravarem. Quando os paramédicos chegaram e puxaram o tijolo para fora do homem morto a pele do rosto veio junto.
Cato enfiou a nota de quinhentos no bolso da calça com uma mão e colocou a outra no ombro de Harry.
“Eu entendo que você quer proteger o seu filho. Mas e sobre o outro cara? Ele também tinha um pai, Harry. Eles chamam isso de auto sacrifício, quando os pais lutam pelos seus filhos, mas na realidade eles estão protegendo a si mesmos, os que foram clonados. E isso não requer nenhuma coragem moral; é apenas egoísmo genético. Quando criança, meu pai costumava ler a Bíblia para nós, e eu pensei que Abraão era um covarde quando Deus lhe disse para sacrificar seu filho e ele obedeceu. Crescendo, eu entendi que um pai verdadeiramente altruísta está disposto a sacrificar seu filho se servir a um objetivo maior do que pai e filho. Se é que existe.”
Harry jogou o cigarro no chão na frente dele. “Você está enganado. Oleg não é meu filho.”
“Ele não é? Por que você está aqui, então?”
“Eu sou um policial.”
Cato riu. “Sexto Mandamento, Harry. Não minta.”
“Esse não é o oitavo?” Harry pisou no cigarro aceso. “E, tanto quanto me lembro, o mandamento diz que você não deve levantar falso testemunho contra o teu próximo, o que significa que é bom mentir um pouco sobre si mesmo. Mas talvez você não tenha concluído os seus estudos de teologia”
Cato encolheu os ombros. “Jesus e eu não temos qualificações formais. Somos homens da Palavra. Mas como todos os curandeiros, adivinhos e charlatães, às vezes nós podemos inspirar falsas esperanças e conforto genuíno.”
“Você nem mesmo é um cristão, não é?”
“Deixe-me dizer que até agora a fé nunca me produziu algum bem, só dúvidas. Então isso se tornou a minha pregação.”
“Dúvida.”
“Exatamente.” Os dentes amarelos de Cato brilhavam na escuridão. “Eu pergunto: Será que é tão incontestável que um Deus não existe, e que ele não tem um propósito?”
Harry riu baixinho.
“Nós não somos tão diferentes, Harry. Tenho um falso colar de padre; você tem um falso distintivo de xerife. O quanto a sua fé no seu evangelho é inabalável, realmente? Proteger aqueles que se desviaram do seu rumo e certificar-se que aqueles que se desviaram serão punidos de acordo com seus pecados? Você também não tem dúvidas?”
Harry pegou um cigarro do maço. “Infelizmente, não há dúvida neste caso. Eu estou indo para casa.”
“Se assim é, desejo-lhe uma boa viagem. Eu tenho um serviço a fazer.”
Um carro buzinou e Harry virou-se automaticamente. Dois faróis o cegaram antes de virar na esquina. As luzes de freio lembravam o brilho de cigarros na escuridão quando o veículo da polícia diminuiu a velocidade para entrar na garagem do QG da Polícia. E quando Harry virou de novo Cato tinha sumido. O velho padre parecia ter se fundido na noite; tudo o que Harry podia ouvir eram os passos indo para o cemitério.
 
a verdade, demorou apenas cinco minutos para fazer as malas e o check-out no Hotel Leon.
“Há um pequeno desconto para os clientes que pagam em dinheiro”, disse o rapaz atrás do balcão. Nem tudo era novo.
Harry folheou sua carteira. Dólares de Hong Kong, yuans, dólares, euros. Seu celular tocou. Harry levou-o ao ouvido enquanto puxava as notas e entregava ao rapaz.
“Sim”.
“Sou eu. O que você está fazendo?”
Merda. Ele havia planejado esperar e telefonar para ela do aeroporto. Torná-lo o mais simples e brutal possível. Uma torção rápida.
“Estou fazendo o check-out. Posso ligar para você de volta daqui a pouco?”
“Eu só queria dizer que Oleg entrou em contato com seu advogado. Hmm... isto é, Hans Christian.”
“Coroas norueguesas”, disse o rapaz.
“Oleg diz que quer ver você, Harry.”
“Droga!”
“Como? Harry, você está aí?”
“Você aceita Visa?”
“Sai mais barato você ir até um caixa eletrônico e sacar o dinheiro.”
“Quer me ver?”
“Isso é o que ele diz. O mais rápido possível.”
“Isso não é possível, Rakel.”
“Por que não?”
“Porque...”
“Há um caixa eletrônico a poucos metros na Tollbugata.”
“Por quê?”
“Aceite meu cartão, OK?”
“Harry?”
“Primeiro, não é possível, Rakel. Ele não tem permissão para receber visitas, e eu não vou conseguir uma autorização especial pela segunda vez.”
“E em segundo lugar?”
“Eu não vejo perspectivas, Rakel. Eu li os documentos. Eu...”
“Você o quê?”
“Acho que ele atirou em Gusto Hanssen, Rakel.”
“Nós não aceitamos Visa. Você tem mais outro? MasterCard, American Express?”
“Não! Rakel?”
“Então vou aceitar dólares e euros. A taxa de câmbio não é muito favorável, mas é melhor do que o cartão.”
“Rakel? Rakel? Merda!”
“Algo errado, herr Hole?”

“Ela desligou. Isso é suficiente?”

u estava na Skippergata comtemplando o balde de chuva que caía. O inverno ainda não tinha se estabelecido, em vez disso estava caindo uma grande quantidade de chuva. Mas não diminuía a procura. Oleg, Irene e eu vendíamos mais em um dia do que eu conseguia em uma semana inteira com Odin e Tutu. Eu ganhava cerca de seis mil por dia. Eu tinha contado todas as camisas do Arsenal no centro. O velhinho devia estar faturando mais de dois milhões de coroas por semana, fazendo um cálculo conservador.
Todas as noites, antes de nos encontrarmos com Andrey, Oleg e eu cuidadosamente contávamos a féria do dia e conferíamos contra a mercadoria. Nunca faltou uma mísera coroa. Não teria valido a pena.
E eu podia confiar em Oleg cem por cento. Eu acho que ele não tinha imaginação para pensar em roubar ou ele não entendia o conceito. Ou talvez sua cabeça e seu coração estivessem demasiado cheios de Irene. Era quase ridículo ver como ele abanava o rabo quando ela estava por perto. E como ela era totalmente cega para a adoração dele. Porque Irene podia enxergar apenas uma coisa.
Eu.
Isso não me incomodava ou me dava prazer, apenas era assim e sempre tinha sido.
Eu a conhecia tão bem, sabia exatamente como poderia fazer seu pequeno coração puro baquear, sua doce boca sorrir e - se eu realmente quisesse - seus olhos azuis se encherem de lágrimas. Eu poderia tê-la deixado ir, abrir a porta e dizer: Você está livre. Mas eu sou um ladrão, e os ladrões não descartam qualquer coisa que eles possam converter em dinheiro. Irene pertencia a mim, mas dois milhões por semana pertenciam ao velhinho.
É engraçado como seis mil por dia ganham pernas quando você toma cristal de meth como se fossem cubos de gelo no seu refrigerante, e usa roupas que não são da Cubus. Era por isso que eu ainda estava vivendo na sala de ensaios com Irene, que dormia num colchão atrás da bateria. Mas ela estava administrando, não tocava em nada mais forte que um cigarro ‘batizado’, comia aquelas merdas vegetarianas e tinha aberto uma porra de uma conta bancária. Oleg estava morando com sua mãe, então ele devia estar nadando em dinheiro. Ele estava ‘limpo’, estava estudando e até tinha voltado a praticar patinação no Valle Hovin.
Enquanto eu estava parado na Skippergata, pensando e fazendo contas mentais, vi uma figura vindo na minha direção na chuva. Óculos embaçados, cabelo fino colado na cabeça, usando uma jaqueta impermeável do tipo que uma namorada gorda e feia compra para os dois no Natal. Bem, ou a namorada era feia ou ela não existia. Eu podia ver o seu modo de andar. Ele mancava. Provavelmente já foi inventada uma palavra politicamente correta para definir adequadamente. Eu chamo de pé torto, mas eu também digo ‘deixa que eu chuto’ e ‘manquitola’ .
Ele parou na minha frente.
Eu tinha deixado de ficar surpreso com o tipo de pessoas que compravam heroína, mas este homem definitivamente não se enquadrava na categoria de consumidores habituais.
“Quanto...”
“Trezentos e cinquenta por um quarto.”
“...você pagaria por um grama de heroína?”
“Pagar? Nós vendemos, babaca.”
“Eu sei. Estou apenas pesquisando um pouquinho.”
Eu olhei para ele. Um jornalista? Um assistente social? Ou talvez um político? Enquanto eu estava trabalhando para Odin e Tutu um palhaço apareceu e disse que participava de alguma comissão chamada RUNO, e me perguntou muito educadamente se eu participaria de um encontro sobre “Drogas e Juventude.” Eles queriam ouvir “as vozes da rua.” Eu me diverti muito enquanto ouvia os caras tagarelando sobre Cidades Europeias Contra as Drogas e um grande plano internacional para uma Europa livre de drogas. Me deram um refrigerante e um cookie e eu ri até chorar. Mas a pessoa que comandava a reunião era uma MILF (8), uma loira oxigenada, rosto com traços ligeiramente masculinos, seios enormes e a voz de um sargento. Por um segundo eu me perguntei se ela tinha ‘feito’ apenas os seios. Após a reunião, ela se aproximou de mim, disse que era secretária da Conselheira para Serviços Sociais e que ela gostaria de falar mais sobre aquelas coisas, poderíamos nos reunir na sua casa se eu tivesse “a oportunidade” algum dia. Ela era uma MILF sem o M, descobri depois. Vivia sozinha em uma fazenda, estava usando calças de montaria apertadas quando abriu a porta e queria que “aquilo” fosse feito no estábulo. Não me incomodava se ela realmente tinha um pau ‘feito’. O estábulo estava bem limpo e o par de ordenhadores fazia um barulho parecido com uma tempestade. Mas era um pouco estranho foder uma mulher que uiva como um caça a jato e quando você está a dois metros de distância de um grupo de cavalos robustos, ruminando e assistindo tudo com um olhar semi-interessado. Depois eu tive que tirar palha do meio da minha bunda, e perguntei se ela tinha mil coroas para me emprestar. Mantivemos essas reuniões até que eu comecei a ganhar seis mil por dia, e entre as trepadas ela teve tempo para explicar que uma secretária não ficava sentada escrevendo cartas para a Conselheira, mas tratava de política prática. Mesmo que ela fosse um peão era ela a pessoa que fazia as coisas acontecerem. E quando as pessoas certas entendessem aquilo, seria a sua vez de ser uma Conselheira. O que eu aprendi com aquela conversa sobre a Prefeitura era que todos os políticos, do alto ou de baixo, queriam as mesmas coisas: poder e sexo. Nessa ordem. Sussurrar “gabinete do ministro” em seu ouvido e ao mesmo tempo enfiar dois dedos na sua buceta poderia fazê-la ejacular quase até o chiqueiro. Eu não estou brincando. E na cara do sujeito parado na minha frente eu podia ler alguns dos mesmos desejos, intensos e doentes.
“Cai fora”.
“Quem é o seu chefe? Eu quero falar com ele.”
Leve-me ao seu líder? O cara era ou maluco ou estúpido.
“Se manda cara”.
O cara não se mexeu, apenas ficou lá e tirou algo do bolso da sua jaqueta impermeável. Um saco de plástico com um pó branco - contendo metade de um grama ou algo próximo.
“Esta é uma amostra. Leve-a para o seu chefe. O preço é de oitocentas coroas cada grama. Cuidado com a dosagem, divida isso em dez. Vou estar de volta depois de amanhã, no mesmo horário.”
O homem passou-me o saco, virou-se e saiu mancando pela rua.
Normalmente eu teria atirado o saco na lata de lixo mais próxima. Eu não podia nem vender a merda e ficar com o dinheiro; eu tinha que manter a minha reputação. Mas havia algo no brilho dos olhos do louco. Como se ele soubesse alguma coisa. Assim, quando o dia de trabalho acabou e nós tínhamos acertado as contas com Andrey, eu fui com Oleg e Irene ao Heroin Park. Perguntamos se alguém por lá queria ser um piloto de testes. Eu já tinha feito isso antes com Tutu. Se houvesse mercadoria nova na cidade você ia até onde os viciados mais desesperados matavam o tempo, aqueles dispostos a testar qualquer coisa, contanto que fosse gratuito, aqueles que não se importavam se aquilo os mataria, porque a morte estava na próxima  esquina de qualquer maneira.
Quatro se ofereceram, mas disseram que queriam um oitavo(9) da melhor heroína. Eu disse que não estava negociando e então ficamos com três. Eu distribuí as doses.
“Não é o suficiente!”, gritou um dos viciados com a dicção de um paciente de derrame. Eu disse para ele se calar, se ele quisesse sobremesa.
Irene, Oleg e eu ficamos olhando enquanto eles procuravam veias entre crostas de sangue e se injetaram com movimentos surpreendentemente eficientes.
“Oh, Jesus,” um deles gemeu.
“Ffffff...” gaguejou o outro.
Em seguida, tudo ficou parado. Silêncio total. Era como enviar um foguete ao espaço e perder o contato. Mas eu já sabia, podia ver o êxtase em seus olhos antes deles desaparecerem: Houston, não temos nenhum problema. Quando eles desembarcaram de volta na Terra já estava escuro. A viagem durou mais de cinco horas, o dobro do tempo de uma viagem normal de heroína. O resultado do teste foi unânime. Eles nunca tinham experimentado nada com aquela ‘energia’. Eles queriam mais, o resto do pacote, agora, por favor, e cambalearam na nossa direção como se fossem os zumbis em ‘Thriller’. Nós caímos na gargalhada e saímos correndo.
Quando me sentei no meu colchão na sala de ensaios meia hora mais tarde, fiz algumas reflexões. Um viciado veterano geralmente usa um quarto de grama da heroína normal das ruas por injeção, mas a maioria dos viciados de Oslo ficavam tão altos quanto virgens desvairadas com um quarto disso! O cara tinha me dado merda da pura. Mas o que era? Parecia e cheirava como a heroína, tinha a consistência de heroína, mas o barato durava cinco horas com uma dose tão pequena. Seja lá o que fosse, eu sabia que estava sentado em uma mina de ouro. Oitocentas coroas por grama, e que podia ser diluída três vezes e vendida por mil e quatrocentos. Cinquenta gramas por dia. Trinta mil diretamente para o bolso. No meu. E no de Oleg e de Irene.
Eu mostrei a proposta de negócio para eles. Expliquei os números.
Eles olharam um para o outro. Eles não pareciam ter ficado tão entusiasmados quanto eu esperava.
“Mas Dubai...”, disse Oleg.
Eu menti e disse-lhes que não havia perigo, enquanto nós não enganássemos o velhinho Em primeiro lugar, iriamos até ele e para dizer que íamos parar, que tínhamos encontrado Jesus ou alguma outra besteira. Em seguida, esperar um pouco antes de iniciarmos nosso próprio negócio devagar.
Eles olharam um para o outro novamente. E de repente eu percebi que havia algo acontecendo, algo que eu não tinha pegado antes.
“É só que...”, disse Oleg, com os olhos lutando por um lugar na parede para se concentrar. “Irene e eu, nós...”
“Vocês o que?”
Ele se contorceu como um verme empalado e no final olhou para Irene pedindo ajuda.
“Oleg e eu decidimos morar juntos”, disse Irene. “Estamos poupando para fazer um depósito em um apartamento em Bøler. Estamos planejando trabalhar  até o verão e então ...”
“E então?”
“Então nós vamos terminar a escola”, disse Oleg. “E, em seguida, entrar numa faculdade.”
“Direito”, disse Irene. “Oleg sempre teve boas notas.” Ela sorriu do jeito que ela costumava fazer quando pensava que tinha dito algo estúpido, mas suas bochechas geralmente pálidas estavam quentes e vermelhas de prazer.
Eles estavam se esgueirando e se unindo por trás da porra das minhas costas! Como eu não percebi isso?
“Direito”, eu disse, abrindo o pacote, que ainda tinha mais do que um grama nela. “Não é isso o que as pessoas estudam quando querem atingir o topo na carreira policial?”
Nenhum dos dois respondeu.
Eu encontrei a colher que  costumo usar para comer flocos de milho e limpei-a na minha coxa.
“O que você está fazendo?”, Oleg perguntou.
“Isto precisa ser comemorado”, eu disse, derramando o pó sobre a colher. “Além disso, temos que testar o produto nós mesmos antes de recomendá-lo para o velhinho.”
“Então você não se importa?” Irene exclamou com alívio na voz. “Nós podemos continuar como antes?”
“Claro, minha querida.” Eu coloquei o isqueiro sob a colher. “Este aqui é para você, Irene.”
“Eu? Mas eu não acho...”
“Por minha causa, irmãzinha.” Eu olhei para ela e sorri. Sorri o sorriso que ela sabia que eu sabia que ela não podia resistir. “É chato ficar alto sozinho, você sabe. Muito solitário.”
O pó fundiu-se borbulhando na colher. Eu não tinha nenhuma bola de algodão, então eu pensei em filtrá-lo através do filtro de um cigarro. Mas parecia tão limpo. Branco, bem consistente. Então eu deixei esfriar por alguns segundos antes de puxá-lo para dentro da seringa.
“Gusto...” Oleg começou a dizer.
“É melhor termos cuidado para não sofrermos uma overdose, há o suficiente para três aqui. Você está convidado, também, meu amigo. Mas talvez você prefira só assistir.”
Eu não precisava olhar para cima. Eu o conhecia muito bem. Puro de coração, cego pelo amor e vestido com a armadura de coragem que o fez mergulhar do alto do mastro de quinze metros no fiorde de Oslo.
“OK”, disse ele e começou a arregaçar a manga. “Estou dentro.”
A mesma armadura que iria levá-lo até o fundo e afogá-lo como um rato.
 
cordei com as batidas na porta. Minha cabeça parecia que tinha uma britadeira dentro dela, e eu temia abrir até mesmo só um olho. A luz da manhã penetrava pela fresta entre as tábuas de madeira pregadas às janelas. Irene estava deitada no seu colchão, e eu vi os tênis Puma Cat brancos de Oleg aparecendo entre dois amplificadores. Eu podia ouvir que quem quer que fosse tinha começado a usar os pés.
Levantei-me e cambaleei pelo quarto, tentando lembrar-me de quaisquer mensagens sobre o ensaio da banda ou sobre a retirada dos instrumentos. Abri a porta uma fração e instintivamente coloquei meu pé contra ela. Não adiantou. O empurrão me jogou para trás pela sala e eu caí em cima da bateria. Um inferno de barulho. Depois de afastar os suportes de prato e o bumbo, eu olhei para o rosto do meu querido irmão adotivo, Stein.
Esquece o querido.
Ele tinha crescido bastante, mas o corte de cabelo da força aérea e os olhos escuros e cheios de ódio eram os mesmos. Eu o vi abrir a boca e dizer algo, mas meus ouvidos ainda retiniam com o som dos pratos. Automaticamente eu coloquei minhas mãos na frente do meu rosto quando ele veio para perto de mim. Mas ele passou correndo, passou por cima do conjunto de tambores e foi até Irene no colchão. Ela deu um gritinho quando ele agarrou um braço para levantá-la.
Ele a abraçou com força enquanto enfiava alguns dos pertences dela na mochila. Ela desistiu de resistir quando ele puxou-a para a porta.
“Stein...” eu comecei.
Ele parou na porta e olhou para mim com expectativa, mas eu não tinha nada a acrescentar.
“Você já causou bastante dano a nossa família”, disse.
Ele parecia a porra do Bruce Lee quando girou a perna e chutou a porta para fecha-la. O ar tremeu. Oleg enfiou a cabeça por cima do amplificador e disse alguma coisa, mas eu ainda estava surdo.
 
iquei de costas para a lareira e senti o calor fazendo minha pele formigar. As chamas e uma fodida luminária de mesa antiga constituíam a única luz na sala. O velhinho sentado na cadeira de couro examinando o homem que tínhamos trazido conosco na limusine da Skippergata. Ele ainda usava a jaqueta impermeável. Andrey estava atrás do homem desamarrando a venda dos olhos dele.
“Bem”, disse o velhinho. “Então você é o cara que fornece este produto do qual tenho ouvido falar muito.”
“Sim”, disse o homem, colocando os óculos e passando os olhos apertados ao redor da sala.
“De onde é que ela vem?”
“Estou aqui para vendê-la, e não para fornecer informações sobre ela.”
O velhinho coçou o queixo com o polegar e o indicador. “Nesse caso, eu não estou interessado. Adquirir mercadoria roubada de outros sempre termina com corpos mortos neste jogo. E cadáveres significam problemas e são ruins para os negócios.”
“Isto não é mercadoria roubada.”
“Atrevo-me a sugerir que eu tenho uma boa visão geral dos canais de abastecimento, e este não é um produto que alguém já tenha visto antes. Portanto, repito: eu não vou comprar nada até ter a certeza de que isto não vai causar problemas para nós.”
“Eu me permiti ser trazido até aqui com os olhos vendados porque eu entendo a necessidade de discrição. Eu espero que você possa me mostrar a mesma sensibilidade.”
O calor fez seus óculos ficarem embaçados, mas ele os deixou assim mesmo. Andrey e Peter o revistaram no carro enquanto eu tinha examinado seus olhos, sua linguagem corporal, voz, mãos. Tudo o que eu encontrei foi solidão. Não havia namorada gorda e feia, só este homem e sua fantástica droga.
“Pela minha experiência, você poderia ser um policial”, disse o velhinho.
“Com isso?”, disse o homem, apontando para o pé.
“Se você importa mercadorias, por que não ouvi falar de você antes?”
“Porque eu sou novo. Eu não tenho nenhuma passagem pela polícia e ninguém me conhece, seja na polícia ou neste negócio. Eu tenho uma profissão respeitável e até agora tenho vivido uma vida normal.” Ele fez uma careta cautelosa, e eu percebi que era supostamente para ser um sorriso. “Uma vida anormalmente normal, alguns poderiam dizer.”
“Hmm.” O velhinho coçou o queixo repetidamente. Em seguida, ele pegou minha mão e me puxou para perto da sua cadeira para que eu ficasse de pé ao lado dele e olhando para o homem.
“Sabe o que eu penso, Gusto? Eu acho que ele mesmo fabrica o produto. O que você acha?”
Eu ponderei. “Talvez”, eu disse.
“Você sabe, Gusto, você não precisa ser exatamente um Einstein em química. Há receitas detalhadas na internet ensinando como transformar o ópio em morfina e em seguida heroína. Vamos dizer que você consegue dez quilos de ópio bruto. Então você adquire alguns equipamentos de ebulição, uma geladeira, um pouco de metanol e um ventilador, e tcham, presto, você tem oito quilos e meio de cristais de heroína. Dilui e você tem mil quilos e duzentos gramas de heroína de rua.”
O homem da jaqueta impermeável tossiu. “É necessário um pouco mais do que isso.”
“A questão é”, disse o velhinho, “como você conseguiu o ópio.”
O homem balançou a cabeça negativamente.
“Aha,” o velhinho disse, acariciando o interior do meu braço. “Não opiáceos. Opióides.”
O homem não respondeu.
“Você ouviu o que ele disse, Gusto?” O velhinho apontou o dedo para o cara do pé torto. “Ele faz droga totalmente sintética. Ele não precisa de qualquer ajuda da natureza ou do Afeganistão; ele aplica a química simples e faz tudo na mesa da cozinha. Controle total e não o contrabando arriscado. E é pelo menos tão poderoso quanto a heroína. Nós temos um cara inteligente entre nós, Gusto. Esse tipo de empreendimento impõe respeito.”
“Respeito”, eu murmurei.
“Quanto você pode produzir?”
“Dois quilos por semana, talvez. Depende.”
“Vou comprar tudo isso”, disse o velhinho.
“Tudo isso?” A voz do homem era plana e não continha nenhuma surpresa real.
“Sim, tudo que você produz. Posso fazer-lhe uma proposta de negócio, Herr ...?”
“Ibsen.”
“Ibsen?”
“Se você não se importar.”
“De modo nenhum. Ele também era um grande artista. Eu gostaria de propor uma parceria, Herr Ibsen. A integração vertical. Nós monopolizamos o mercado e definimos o preço. Melhor margem para nós dois. O que você diz?”
Ibsen balançou a cabeça.
O velhinho inclinou a cabeça, um sorriso em sua boca sem lábios. “Por que não, Herr Ibsen?”
Eu assisti o homenzinho endireitar-se; ele parecia crescer na folgada jaqueta impermeável, a jaqueta da pessoa mais chata do mundo.
“Se eu lhe der o monopólio, Herr ...”
O velhinho juntou as pontas dos dedos. “Você pode me chamar do que quiser, Herr Ibsen.”
“Eu não quero ser dependente de um único comprador, Herr Dubai. É muito arriscado. E isso significa que você pode forçar os preços para baixo. Por outro lado, eu não quero compradores demais, porque, então, o risco de que a polícia consiga me rastrear é maior. Eu vim até você porque você é conhecido por ser invisível, mas eu quero mais de um comprador. Já estive em contato com Los Lobos. Espero que você possa entender.”
O velhinho deu sua risada chug-chug. “Ouça e aprenda, Gusto. Ele não é só um farmacêutico, ele é também um homem de negócios. Bom, Herr Ibsen, digamos que então será assim.”
“O preço...”
“Eu vou pagar o que você pediu. Você vai descobrir que este é um negócio em que você não pode perder tempo regateando, Herr Ibsen. A vida é muito curta e a morte está muito perto. Podemos dizer que a primeira entrega será na próxima terça-feira?”
No caminho para a saída o velhinho agiu como se ele precisasse se sustentar em mim. Suas unhas arranharam a pele do meu braço.
“Você já pensou em exportar, Herr Ibsen? Os controles de exportação de drogas na Noruega são inexistentes, você sabe?”
Ibsen não respondeu. Mas agora eu percebi o que ele queria. Percebi enquanto ele estava sobre seu pé torto com um quadril virado. Percebi no reflexo da sua testa suada e brilhante abaixo da linha do cabelo. A condensação desapareceu de seus óculos, e seus olhos tinham o mesmo brilho que eu tinha visto em Skippergata. Retorno, papai. Ele queria algum retorno. Retorno por todas as coisas que não tinha recebido: respeito, amor, admiração, aceitação, tudo aquilo que, supostamente, você não pode comprar. Mas você pode, é claro. Não é verdade, papai? A vida nos deve, mas às vezes você tem que ser o seu próprio cobrador de dívidas, porra. E se tivermos que queimar no inferno por isso, o céu vai ficar pouco povoado. Não é verdade, papai?”
 
arry estava parado à beira da estrada olhando para a pista. Vendo os aviões taxiando ao chegar e os que estavam decolando.
Ele estaria em Xangai dentro de 18 horas.
Ele gostava de Xangai. Gostava da comida, gostava de caminhar pelo Bund – o parque arborizado construído na margem aterrada ao longo do rio Huangpu - até o Hotel Peace, gostava de ir até o Old Jazz Bar e ouvir os velhos músicos de jazz tocando ao seu modo os antigos clássicos, gostava da ideia de que estavam tocando lá sem uma pausa desde a revolução em 1949. Gostava dela. Gostava do que os dois tinham, e do que não tinham, mas ignoravam.
A capacidade de ignorar. Era uma qualidade maravilhosa, não algo com o que ele foi naturalmente abençoado, mas algo que ele tinha praticado ao longo dos últimos três anos. Não bata sua cabeça contra a parede, se você não tem que fazê-lo.
Como está a sua fé inabalável em seu evangelho, realmente? Você também não tem dúvidas?
Ele estaria em Xangai em 18 horas.
Poderia estar em Xangai dentro de 18 horas.
Merda.
Ela atendeu no segundo toque.
“O que você quer?”
“Não desligue novamente, OK?”
“Eu estou aqui.”
“Ouça, o quão forte é a confiança que você tem nesse Nils Christian?”
“Hans Christian.”
“Ele está apaixonado o suficiente para que você possa convencê-lo a me ajudar com um golpe muito duvidoso?”
 
(8) MILF é uma sigla em inglês que significa ‘Mom I'd Like To Fuck’ (‘Mãe que eu gostaria de foder’), e refere-se a um fetiche sexual com mulheres mais velhas com idade suficiente para serem mães de parceiros mais jovens. Geralmente uma MILF tem entre 35 a 50 anos. O termo foi popularizado pelo filme American Pie, onde a personagem Janine Stifler era a atraente e voluptuosa mãe de um dos personagens, e era cobiçada pelos amigos do filho.

(9) oitavo significa uma quantidade de heroína ou cocaína com o peso de 1/8 de onça ou seja 3,5 gramas.

inha chovido durante toda a noite, e de onde Harry estava, na frente da prisão do distrito de Oslo, ele podia ver uma camada de folhas frescas espalhadas como uma lona amarela molhada sobre o parque. Ele não tinha dormido muito depois de ter ido direto do aeroporto para a casa de Rakel. Hans Christian foi até lá, não protestou muito e foi embora. Depois Rakel e Harry beberam chá e conversaram sobre Oleg. Como as coisas eram antes. Sobre como tinha sido, mas não sobre como poderia ter sido. Como já era tarde Rakel dissera que Harry poderia dormir no quarto de Oleg. Antes de ir para a cama Harry tinha usado o computador de Oleg para procurar, e encontrar, artigos antigos sobre o policial encontrado morto debaixo da Älvsborg Bridge, em Gothemburg. Ficou confirmado tudo o que Cato tinha dito, e Harry também encontrara um artigo no sempre sensacionalista Göteborgstidningen sobre o vazamento de rumores de que o homem morto era um queimador. Passaram-se apenas duas horas depois que Rakel o tinha acordado com uma xícara de café e um sussurro. Ela sempre tinha feito isso, começava o dia com sussurros, para ele e Oleg, como que pretendendo suavizar a transição dos sonhos para a realidade.
Harry olhou para a câmera de vigilância, ouviu o zumbido baixo e abriu a porta. Em seguida entrou rapidamente. Mantinha a maleta na sua frente para que todos pudessem vê-la e colocou sua carteira de identidade no balcão, virando o rosto para mostrar a bochecha boa.
“Hans Christian Simonsen...” a policial da recepção resmungou sem olhar para cima, passando os olhos pela lista que tinha nas mãos. “Aqui está. Para Oleg Fauke.”
“Correto”, disse Harry.
Outro policial levou-o pelos corredores e pela galeria aberta no centro da prisão. O policial falou sobre o quão quente o outono tinha sido e chacoalhava o enorme molho de chaves sempre que abria uma nova porta. Atravessaram a sala comunitária, e Harry viu uma mesa de ping-pong com duas raquetes e um livro aberto em cima, e uma copa, onde um pão integral e uma faca de pão tinham sido deixados junto com manteiga e patês de vários tipos. Mas nenhum preso.
Eles pararam diante de uma porta branca que o oficial destrancou.
“Eu pensei que as portas das celas estavam abertas nesta hora do dia”, disse Harry.
“Os outras estão, mas este prisioneiro está em prisão preventiva”, disse o oficial. “Ele está autorizado a sair apenas uma hora por dia.”
“Onde estão todos os outros, então?”
“Deus sabe. Talvez eles conseguiram sintonizar o Playboy Channel na TV novamente.”
Depois que o policial o deixou entrar, Harry ficou encostado na porta até que ouviu os passos desaparecendo na distância. A cela era do tipo costumeiro. Dez metros quadrados. Uma cama, um armário, uma escrivaninha e uma cadeira, estantes, uma TV. Oleg estava sentado à mesa e olhava surpreso.
“Você queria falar comigo”, disse Harry.
“Eu pensei que não podia receber visitas”, disse Oleg.
“Esta não é uma visita. É uma consulta com o seu advogado de defesa.”
“Advogado de defesa?”
Harry acenou com a cabeça. E viu a luz de compreensão nos olhos de Oleg. Garoto esperto.
“Como...?”
“O tipo de assassinato que você é suspeito de ter cometido não te qualifica para uma prisão de alta segurança. Não foi tão difícil.” Harry abriu a pasta, tirou o Game Boy branco e entregou para Oleg. “Pegue. É para você.”
Oleg correu os dedos sobre a tela. “Onde você encontrou isto?”
Harry pensou que poderia ver a sugestão de um sorriso no rosto sério do garoto. “Modelo vintage com bateria. Comprei-o em Hong Kong. Meu plano era derrotá-lo no Tetris na próxima vez que nos encontrássemos.”
“Nunca!” Oleg riu. “De jeito nenhum, nem na disputa de nado submerso.”
“Aquela vez em Frogner Lido? Hmm. Eu me lembro de que estava um metro na sua frente...”
“Um metro atrás é o mais correto! Mamãe era testemunha.”
Harry estava sentado bem quieto de modo a não destruir o momento, absorveu a felicidade ao ver o prazer no rosto dele.
“Sobre o que você quer falar comigo, Oleg?”
As nuvens invadiram seu rosto. Ele mexia com o Game Boy, girando-o na mão como se estivesse procurando o botão Liga/Desliga.
“Leve o tempo todo que você precisar, Oleg, mas é muitas vezes mais fácil começar pelo início.”
O garoto levantou a cabeça e olhou para Harry. “Posso confiar em você? Não importa o que eu disser?”
Harry estava prestes a dizer algo, mas parou. Apenas balançou a cabeça.
“Você tem que trazer algo para mim...”
Era como se alguém estivesse torcendo uma faca no coração de Harry. Ele já sabia aonde Oleg iria chegar.
“Aqui eles só tem coca e speed, mas eu preciso de violino. Você pode me ajudar, Harry?”
“Foi por isso que você me pediu para vir?”
“Você é a única pessoa que conseguiu contornar a proibição de visitas.” Oleg encarou Harry com seus solenes olhos escuros. Uma pequena contração na pele fina abaixo de um olho revelava o desespero.
“Você sabe que eu não posso, Oleg.”
“Claro que você pode!” Sua voz soava dura e metálica entre as paredes da cela.
“E as pessoas para quem você vendia, eles não podem te fornecer?”
“Vendia o quê?”
“Não minta para mim!” Harry bateu a mão sobre a tampa do armário. “Eu encontrei uma camisa do Arsenal no seu armário no Valle Hovin.”
“Você invadiu...?”
“Eu achei isto também.” Harry colocou a fotografia da família na mesa. “A garota na foto, você sabe onde ela está?”
“Quem...?”
“Irene Hanssen. Sua namorada.”
“Como...?”
“Vocês foram vistos juntos no Watchtower. Encontrei um suéter com cheiro de flores selvagens e um kit de viciados para dois no armário. Compartilhar seu esconderijo é mais íntimo do que compartilhar o leito conjugal, não é? Além disso, sua mãe me disse que viu você na cidade, parecendo um idiota feliz. Meu diagnóstico: amor.”
O pomo de adão de Oleg subiu e desceu.
“Então?”, disse Harry.
“Eu não sei onde ela está! OK? Ela simplesmente desapareceu. Talvez seu irmão veio pega-la novamente. Talvez ela esteja em reabilitação em algum lugar. Talvez ela tenha pegado um avião e caiu fora de toda esta merda.”
“Ou talvez a notícia não seja tão boa”, disse Harry. “Quando foi a última vez que a viu?”
“Eu não me lembro.”
“Você se lembra até dos minutos.”
Oleg fechou os olhos. “Cento e vinte e dois dias atrás. Muito antes do caso com Gusto, então o que isso tem a ver com o caso?”
“Tudo junto pode se encaixar, Oleg. Um assassinato é uma baleia branca. Uma pessoa desaparecida é uma baleia branca. Se você viu duas vezes uma baleia branca então trata-se da mesma baleia. O que você pode dizer sobre Dubai?”
“É a maior cidade, mas não a capital, dos Emirados Árabes Unidos.”
“Por que você está protegendo esses caras, Oleg? O que é que você não pode me dizer?”
Oleg tinha encontrado o botão iniciar do Game Boy e acionou-o para lá e para cá. Em seguida, ele tirou a tampa da bateria na parte de trás, levantou a tampa da lata de lixo ao lado da mesa e deixou cair as baterias dentro antes de passar o brinquedo de volta para Harry.
“Pifado”.
Harry olhou para o Game Boy e o colocou no bolso.
“Se você não pode me conseguir violino, eu vou tomar um pico com a merda diluída que eles têm aqui. Ouviu falar de fentanil e heroína?”
“Fentanil é receita para uma overdose, Oleg.”
“Correto. Então depois você pode dizer para mamãe que a culpa foi sua.”
Harry não respondeu. A patética tentativa de manipulação de Oleg não o deixou irritado, apenas fez com que ele desejasse abraçar o garoto e segura-lo firmemente. Harry não precisava ver as lágrimas nos olhos de Oleg para saber da luta que estava ocorrendo no seu corpo e cabeça, ele podia sentir a fome roendo o garoto, era físico. E então não existe mais nada, nenhuma moralidade, nem amor, nem consideração, apenas o pensamento eternamente pulsante pelo barato, pela viagem, pela paz. Uma vez Harry esteve a ponto de aceitar um pico de heroína, mas uma segunda reflexão de clarividência o fez declinar. Talvez tenha sido a certeza de que a heroína faria o que o álcool ainda não tinha sido capaz de fazer: matá-lo. Talvez fosse a garota que lhe tinha contado como ficou viciada desde o primeiro pico, porque nada, nada que ela já tinha experimentado ou imaginado, poderia ultrapassar o êxtase da heroína. Talvez fosse seu amigo de Oppsal que tinha ido para a reabilitação a fim de zerar a sua tolerância, porque ele tinha esperança de que quando se injetasse novamente sentiria a mesma sensação do primeiro e doce pico. E também disse que quando viu a marca de vacinação na coxa do seu filho de três meses, começou a chorar porque aquela visão tinha provocado um desejo por drogas tão forte que ele estava disposto a sacrificar tudo, ir direto da clínica para Plata.
“Vamos fazer um acordo,” Harry disse, consciente de sua própria voz grossa. “Eu vou te dar o que você pediu e você vai me contar tudo o que sabe.”
“Ótimo!” Oleg disse, e Harry viu suas pupilas se alargarem. Ele tinha lido em algum lugar que, com usuários muito dependentes de heroína partes de seus cérebros poderiam ser ativadas antes mesmo da seringa ser inserida, que já estavam fisicamente altos enquanto o pó derretido ainda estava sendo bombeado numa veia. E Harry também sabia que eram estas partes do cérebro de Oleg que estavam falando agora, que não havia outra resposta além de “Ótimo!”, não importando se era uma mentira ou a verdade.
“Mas eu não quero comprá-lo na rua”, disse Harry. “Você tem algum violino no seu esconderijo?”
Oleg pareceu hesitar por um segundo. “Você já esteve no meu esconderijo.”
Harry se lembrou novamente que não era verdade que nada era sagrado para um usuário de heroína. O esconderijo era sagrado.
“Vamos lá, Oleg. Você não guarda drogas onde outros viciados têm acesso. Onde fica seu outro esconderijo, suas reservas?”
“Eu só tenho um.”
“Eu não vou roubar nada de você.”
“Eu não tenho outro esconderijo, eu estou dizendo a verdade!”
Harry podia jurar que ele estava mentindo. Mas isso não era tão importante; ele só queria dizer, presumivelmente, que não tinha violino lá.
“Eu voltarei amanhã”, Harry disse, levantando-se, batendo na porta e esperando. Mas ninguém apareceu. No final, ele girou a maçaneta. A porta se abriu. Definitivamente não era uma prisão de alta segurança.
Harry voltou pelo mesmo caminho por onde tinha vindo. Não havia ninguém no corredor, nem na sala comum, onde Harry notou que a comida ainda estava lá, mas a faca de pão tinha sumido. Ele continuou até a porta que conduzia para fora da unidade e acessava a galeria e descobriu, para sua surpresa, que estava aberta também.
Ele só encontrou portas fechadas na recepção. Ele mencionou o fato para a funcionária da prisão por trás do vidro, e ela levantou uma sobrancelha e olhou para os monitores acima dela. “Ninguém vai conseguir ir mais longe do que daqui de qualquer maneira.”
“Além de mim, eu espero.”
“Ahn?”
“Nada.”

Harry tinha andado cerca de cem metros através do parque na direção da Grønlandsleiret quando estacou. As salas vazias, as portas abertas, a faca de pão. Ele congelou. Seu coração acelerou tão rápido que sentiu náuseas. Ele ouviu um pássaro cantando. O cheiro de grama. Então ele se virou e correu de volta para a prisão. Sentiu sua boca secar com o medo e seu coração espalhar adrenalina por todo o seu corpo.

violino atingiu Oslo como a porra de um asteroide. Oleg me explicou a diferença entre um asteroide, um meteorito e um meteoro e todos os outros lixos que poderiam cair sobre a nossa cabeça a qualquer momento, e este foi um asteroide, enorme, um brutamontes muito feio que poderia achatar a terra com... Merda, você sabe o que quero dizer, papai, não ria. Nós estávamos vendendo oitavos, quartos, gramas e cinco gramas de manhã à noite. O centro da cidade estava virado de cabeça para baixo. E, então, elevamos o preço. E as filas se esticando ainda mais. E, então, elevamos o preço novamente. E as filas ficaram mais compridas ainda. E, então, subimos o preço novamente. E foi então que o mundo desabou.
Uma gangue de albaneses do Kosovar roubou nossa equipe atrás da Bolsa de Valores. Havia dois irmãos estonianos que operavam sem um olheiro, e os albaneses usaram tacos de beisebol e soco ingles. Pegaram o dinheiro e as drogas e esmagaram os quadris deles. Duas noites mais tarde uma gangue vietnamita atacou na Prinsens Gate, dez minutos antes que Andrey e Peter chegassem para fazer a coleta do dia. Eles atacaram o homem da droga  sem que o homem do dinheiro e o olheiro percebessem. Ficou uma pergunta no ar: “E agora?”
A pergunta foi respondida dois dias depois.
As pessoas de Oslo que acordavam cedo para ir trabalhar avistaram um sujeito de ‘olhos puxados’ pendurado de cabeça para baixo na Sanner Bridge antes que os policiais chegassem. Ele estava vestido como um louco, numa camisa de força e com uma mordaça na boca. A corda em volta de seus tornozelos tinha o comprimento suficiente para que a cabeça dele não ficasse acima da água. Pelo menos depois que os músculos do seu estômago ficassem cansados.
Naquela mesma noite, Oleg e eu recebemos uma pistola de Andrey. Era russa, Andrey só confiava em coisas russas. Ele fumava cigarros pretos russos, usava um telefone celular da Rússia (não estou brincando, papai. Gresso - aparelho de luxo, caro, feito de mogno africano, mas aparentemente à prova d’água e não enviava sinais quando estava ligado, por isso, os policiais não podiam rastreá-lo) e só confiava nas pistolas russas. Andrey explicou que o a marca da arma era Odessa, que era uma versão barata de uma Stechkin, como se soubéssemos alguma coisa sobre qualquer uma delas. No entanto, a especialidade da Odessa era que ela podia disparar em salvas. Tinha um carregador com capacidade para vinte projéteis Makarov, calibre nove por dezoito milímetros, o mesmo que Andrey e Peter e alguns dos outros usavam. Deu-nos uma caixa de balas, e também nos mostrou como carregar, acionar a trava de segurança e disparar aquela arma desajeitada e estranha. Ele disse que tínhamos que segurá-la bem firme com as duas mãos e mirar um pouco abaixo de onde queríamos atingir, a fim de acertar. E que não devíamos visar a cabeça, que era o que devíamos estar pensando, mas em qualquer lugar na parte superior do tronco. Se colocássemos a pequena alavanca lateral em C iriamos disparar salvas, e um pouco de pressão sobre o gatilho era o suficiente para liberar três a quatro tiros. Mas ele nos garantiu que em nove de cada dez vezes você só tinha que mostrar a arma. Depois que ele saiu, Oleg disse que ela se parecia com a arma na capa de algum disco do Foo Fighters, e ele não seria louco de atirar em alguém, devíamos joga-la no lixo. Então eu disse que ficariamos com ela.
Os jornais ficaram fora de controle. Eles alardearam sobre uma guerra de gangues, sangue nas ruas, igual a porra de Los Angeles, e assim por diante. Os políticos da oposição retornaram com a mesma conversa de que a política contra os crimes falhou, falhou a política contra as drogas, falhou o presidente da Câmara Municipal, falhou a Câmara Municipal. Um maluco do Partido do Centro, disse que Oslo era uma cidade falida e que devia ser varrida do mapa, era uma desgraça para o país. A pessoa que recebeu mais paulada foi o chefe de polícia, mas como já sabemos merda afunda, e depois que um somali matou com tiros à queima-roupa dois parentes da tribo nos arredores da Plata, em plena luz do dia, e ninguém foi preso, o chefe da Orgkrim apresentou sua renúncia. A Conselheira para os Serviços Sociais - que também era chefe da Comissão de Polícia - disse que o crime, as drogas e os policiais eram fundamentalmente responsabilidade do Estado, mas encarava como seu dever garantir que os cidadãos de Oslo pudessem andar pelas ruas em segurança. Isso foi gentil da parte dela. E por trás dela estava sua secretária. Era a minha velha amiga. MILF sem o M. Ela parecia séria e profissional. Apesar de tudo, o que eu vi foi uma cadela no cio com calças de montaria abaixadas até os joelhos.
Uma noite Andrey veio cedo, disse que podíamos parar e que eu deveria ir com ele até Blindern.
Quando chegamos na casa do velhinho e ele passou direto eu comecei a ter pensamentos muito desagradáveis. Mas então, felizmente, Andrey entrou no terreno vizinho, que é claro também era dele. Andrey me acompanhou. A casa não era tão vazia quanto parecia do lado de fora. Por trás das paredes descascadas e vidros rachados era mobiliada e aquecida. O velhinho estava sentado numa sala com estantes do chão ao teto, e um tipo de música clássica estava saindo de grandes caixas acústicas no chão. Sentei-me na única cadeira na sala, e Andrey fechou a porta quando saiu.
“Eu decidi pedir-lhe para fazer algo por mim, Gusto”, disse o velhinho, colocando a mão no meu joelho.
Olhei para a porta fechada.
“Estamos em guerra”, disse, levantando-se. Ele foi até uma das prateleiras e pegou um livro grosso com uma capa marrom desgastada. “Este texto é de 600 anos antes de Cristo. Eu não sei ler chinês, então eu só tenho esta tradução francesa, que foi feita há mais de duzentos anos atrás por um jesuíta chamado Jean Joseph Marie Amiot. Eu fui a um leilão e tive meu lance de 190.000 aceito. O livro é sobre como enganar o inimigo na guerra e é a obra mais citada sobre o assunto. Stalin, Hitler e Bruce Lee consideravam este livro como sua bíblia. E você quer saber? Ele recolocou o livro e pegou outro. “Eu prefiro este.” Ele jogou o livro para mim.
Era um volume fino com uma capa azul brilhante, evidentemente muito novo. Eu li o título: ‘Xadrez para Iniciantes’.
“Sessenta coroas numa liquidação”, disse o velhinho. “Nós vamos executar um movimento chamado roque.”
“Roque?”
“Uma troca de posições entre o rei e a torre para permitir uma defesa. Vamos formar uma aliança.”
“Com uma torre?”
“Pense na torre da Prefeitura.”
Eu pensei.
“Câmara Municipal”, disse o velhinho. “A Conselheira para os Serviços Sociais tem uma secretária chamada Isabelle Skøyen, que na verdade é a executora da política de drogas da cidade. Eu verifiquei junto a uma fonte e ela é perfeita. Inteligente, eficiente e extremamente ambiciosa. A razão pela qual ela não subiu mais, segundo a minha fonte, é o seu estilo de vida, que tem o poder de atrair manchetes. Apenas uma questão de tempo. Ela frequenta festas, fala o que pensa e tem amantes por toda a Oslo.”
“Parece absolutamente terrível”, eu disse.
O velhinho me enviou um olhar repreensivo antes de continuar. “Seu pai era porta-voz do Partido do Centro, mas foi jogado para escanteio quando tentou entrar na política nacional. E a minha fonte me diz que Isabelle herdou seus sonhos e como as melhores chances estão no Partido Socialista ela saiu do pequeno partido de agricultores do seu pai. Em suma, tudo sobre Isabelle Skøyen é flexível e pode ser adaptado para se adequar a sua ambição. Além disso, ela é solteira, com uma dívida substancial na fazenda da família.”
“Então o que vamos fazer?”, perguntei como se eu fosse parte da administração do violino.
O velhinho sorriu como se estivesse achando minha questão encantadora. “Nós estamos preparando o caminho para ameaçá-la para que ela venha até a mesa de negociações, aonde vamos seduzi-la para uma aliança. E você está no comando das ameaças, Gusto. É por isso que você está aqui agora.”
“Eu? Ameaçar uma mulher da política?”
“Precisamente. Uma mulher da política com quem você transou, Gusto. Uma funcionária do Comitê que tem usado sua posição e status para fins de exploração sexual de um adolescente com problemas sociais consideráveis.”
 No começo eu não podia acreditar nos meus ouvidos. Até que ele tirou uma foto da sua jaqueta e colocou-a em cima da mesa na minha frente. Parecia que tinha sido tirada de trás de uma janela do carro escurecida. Era na Tollbugata e mostrava um jovem rapaz entrando em um Land Rover. O número da placa era visível. O garoto era eu. O carro pertencia a Isabelle Skøyen.
Um calafrio percorreu minha espinha. “Como você sabia...?”
“Meu querido Gusto, eu disse que estava de olho em você. O que eu quero que você faça é entrar em contato com Isabelle Skøyen no número privado que estou certo que você ainda tem e contar-lhe sobre esta história que preparamos para a imprensa. E, em seguida, pedir uma reunião extremamente privada entre nós três.”
Ele caminhou até a janela e olhou para o clima monótono.

Você vai descobrir que ela tem um horário disponível na agenda.”

urante os últimos três anos em Hong Kong Harry havia praticado mais corrida do que em toda a sua vida anterior. No entanto, nos treze segundos que passou cobrindo os cem metros até a entrada da prisão, seu cérebro estava analisando vários cenários com um tema comum: ele chegaria atrasado.
Ele tocou e resistiu à tentação de chacoalhar a porta enquanto esperava que ela fosse aberta. Por fim, houve um zumbido, e ele correu para a recepção.
“Esqueceu alguma coisa?”, a policial perguntou.
“Sim”, Harry disse e esperou por ela para deixá-lo passar através da porta trancada. “Acione o alarme!”, ele gritou, largou a maleta e saiu correndo. “Cela de Oleg Fauke.”
Seus passos ecoavam pela galeria vazia, pelos corredores vazios e pela sala comunitária demasiadamente vazia. Ele não estava com falta de ar, embora sua respiração soasse como um rugido dentro da sua cabeça.
O grito de Oleg atingiu-o quando ele contornou o último corredor. A porta da cela estava entreaberta, e segundos antes dele chegar lá parecia como no pesadelo, a avalanche, os pés que não se moviam rápido o suficiente.
Em seguida, ele estava dentro da cela observando a cena.
A escrivaninha estava tombada de lado, papéis e livros estavam espalhados pelo chão. No outro extremo da sala, de costas para o armário, estava Oleg. A camiseta preta do Slayer estava encharcada de sangue. Ele estava segurando a tampa de metal da lixeira na frente dele. Sua boca estava aberta, e ele estava gritando e gritando. Harry viu as costas de uma camiseta de ginástica sem mangas, acima dela um largo e suado pescoço de touro, acima dele um crânio brilhante e, acima de tudo, uma mão levantada segurando uma faca de pão. Metal ressoou contra metal quando a lâmina atingiu a tampa da lixeira. O homem devia ter notado a mudança de luz no quarto, porque no momento seguinte ele girou. Baixou a cabeça e segurou a faca embaixo, apontada para Harry.
“Fora!”, ele sibilou.
Harry evitou a tentação de olhar para a faca; em vez disso ele se concentrou nos pés. Ele observou que por trás do homem Oleg tinha escorregado para o chão. Em comparação com os praticantes de artes marciais Harry tinha um lamentavelmente pequeno repertório de movimentos ofensivos. Ele tinha apenas dois. E também apenas duas regras. Um: não há regras. Dois: atacar primeiro. E quando Harry agiu foi com os movimentos automáticos de alguém que tinha aprendido, praticado e repetido apenas dois métodos de ataque. Harry deu um passo em direção a faca para que o homem fosse forçado a recuar para girar o braço com a faca. E no tempo que o homem estava girando o braço Harry ergueu a perna direita em ângulo com seu quadril. À medida que a faca estava vindo para a frente, o pé de Harry estava indo para baixo. Ele atingiu o joelho do homem acima da patela. E uma vez que a anatomia humana não é muito bem protegida contra violência a partir desse ângulo, o quadríceps imediatamente cedeu, seguido pela junta dos ligamentos do joelho e - como a rótula foi pressionada para baixo na frente da tíbia - também o tendão patelar.
O homem caiu no chão com um uivo. A faca caiu no chão enquanto suas mãos procuravam o joelho. E seus olhos giraram quando o encontrou em uma nova posição.
Harry chutou a faca e levantou o pé para acabar com o ataque como lhe haviam ensinado: carimbar sobre os músculos da coxa do adversário para causar tal hemorragia interna que ele não seria capaz de se levantar novamente. Mas ele viu que o trabalho já estava bem feito e abaixou o pé.
Ele ouviu o som de pés correndo e o chocalho de chaves do lado de fora no corredor.
“Por aqui!” Harry gritou, passando por cima do homem, que gritava muito, na direção de Oleg.
Ele ouviu uma respiração ofegante vindo da porta.
“Tire este homem daqui e chame um médico.” Harry teve que gritar para abafar os gritos incessantes.
“Caramba, o que...”
“Não importa o que agora, procure o médico.” Harry rasgou a camiseta do Slayer e procurou através do sangue pela ferida. “E o médico deve vir aqui primeiro. Esse aí só está com um joelho ligeiramente instável.”
Harry segurou o rosto de Oleg entre as mãos manchadas de sangue enquanto escutava o homem sendo arrastado para fora, ainda gritando.
“Oleg? Você está aí? Oleg?”
Os olhos do garoto rolaram e a palavra que escapou de seus lábios era tão fraca que Harry mal ouviu. Sentiu seu peito se apertar.
“Oleg, tudo ficará bem. Ele não esfaqueou alguma coisa muito importante.”
“Harry...”
“E em breve vai parecer que é véspera de Natal. Eles vão aplicar morfina em você.”
“Cale a boca, Harry.”
Harry calou a boca. Oleg abriu os olhos. Havia um brilho febril e desesperado neles. Sua voz estava rouca, mas bastante clara agora.
“Você deveria ter deixado ele terminar o trabalho, Harry.”
“O que você está dizendo?”
“Você tem que me deixar fazer isso.”
“Fazer o que?”
Sem resposta.
“Fazer o quê, Oleg?”
Oleg colocou uma mão atrás da cabeça de Harry, puxou-o para baixo e sussurrou: “Você não pode parar isto, Harry. Tudo isto já aconteceu antes. Tem que seguir seu curso natural. Se você ficar no caminho, mais irão morrer.”
“Quem vai morrer?”
“Isto é muito grande, Harry. Vai engolir você, engolir todo mundo.”
“Quem vai morrer? Quem você está protegendo, Oleg? É a Irene?”
Oleg fechou os olhos. Seus lábios mal se moviam. E então, mais nada. E Harry pensou que ele se parecia como quando tinha onze anos e acabara de adormecer após um longo dia. Então ele falou.
“É você, Harry. Eles vão matá-lo.”
 
uando Harry estava deixando a prisão a ambulância já havia chegado. Ele pensou em como as coisas costumavam ser. Como a cidade costumava ser. Como sua vida costumava ser. Enquanto ele estava usando o computador de Oleg ele também tinha pesquisado sobre o Sardines e o Russian Amcar Club. Ele não tinha encontrado quaisquer sinais que sugerissem que haviam sido ressuscitados. Ressurreição geralmente é demais para ser desejada. Talvez a vida não lhe ensine muito, além de uma única coisa: não existe caminho de volta.
Harry acendeu um cigarro, e antes que ele desse a primeira tragada, o cérebro já comemorando o fato de que a nicotina iria inundar o sangue, ele ouviu aquele som sendo reproduzido, o som que ele sabia que iria ouvir pelo resto da tarde e da noite, a palavra quase inaudível que tinha atravessado pela primeira vez os lábios de Oleg na cela:

“Papai”.
mãe rato lambeu o metal na mão. Tinha gosto de sal. Ela tomou um susto quando a geladeira saltou para a vida e começou a zumbir. Os sinos da igreja ainda estavam tocando. Havia um caminho para o ninho que ela ainda não tinha tentado. Não se atreveu a tentar porque o humano que bloqueava a entrada ainda não estava morto. Mas os gritos agudos das suas crias estavam deixando-a desesperada. Então ela agiu. Ela correu até a manga do paletó do humano. Havia um cheiro vago de fumaça. Não fumaça de cigarro ou de uma fogueira, mas outra coisa. Algo na forma de gás que tinha estado nas roupas, mas tinha sido lavado, de modo que apenas algumas moléculas restaram entre as fibras mais recônditas do pano. Ela se aproximou do cotovelo, mas era demasiado estreito. Ela parou e ouviu. À distância, havia o som de uma sirene de polícia.
 
avia todos aqueles pequenos detalhes e decisões, papai. Aqueles que eu achava que eram sem importância, hoje presente, amanhã ausente, digamos assim. Mas eles se acumulam. E antes que você perceba eles se tornam um rio que te arrasta junto com ele. Conduz você para onde você deve ir. E este era o lugar para onde eu devia vir. Este maldito julho. Não, eu não devia estar vindo para cá! Eu queria ir para outro lugar, papai.
Quando viramos na direção da construção principal, Isabelle Skøyen estava na entrada de carros, com suas calças justas de montaria, pernas afastadas.
“Andrey, você espera aqui”, disse o velhinho. “Peter, você verifica a área.”
Nós saímos da limusine para o cheiro de estábulo, o zumbido das moscas e chocalhos de vacas distantes. Ela apertou com firmeza as mãos do velhinho, me ignorou e nos convidou para um café, com ênfase no ‘um’.
No corredor fotos de cavalos das melhores linhagens, troféus das mais importantes corridas e sabe-se lá que diabos mais. O velhinho caminhava olhando as fotos e perguntou se uma delas era de um puro-sangue Inglês e elogiou as pernas finas e o peito impressionante. Eu me perguntei se ele estava falando sobre um cavalo ou sobre ela. No entanto, funcionou. A expressão de Isabelle descongelou um pouco e ela tornou-se menos áspera.
“Vamos sentar na sala e conversar”, disse ele.
“Eu acho que nós vamos para a cozinha”, disse ela e a sua voz voltou a soar fria.
Sentamo-nos, e ela colocou a jarra de café no meio da mesa.
“Você nos serve, Gusto”, disse o velhinho, olhando para fora da janela. “Linda fazenda você tem aqui, fru Skøyen.”
“Não há nenhuma ‘fru’ aqui.”
“Onde eu cresci chamamos todas as mulheres que podem dirigir uma fazenda de ‘fru’ sejam elas viúvas, divorciadas ou solteiras. Isso é considerado um sinal de respeito.”
Ele se virou para ela com um sorriso largo. Ela encarou seus olhos. E por alguns segundos tudo ficou tão silencioso que somente se ouvia uma estúpida mosca batendo contra a janela tentando sair.
“Obrigado”, ela disse.
“Muito bem. Agora vamos esquecer a história das fotos, fru Skøyen.”
Ela endureceu na cadeira. Quando conversei com Isabelle pelo telefone, inicialmente ela tentou rir da sugestão de que poderíamos enviar à imprensa as fotos dela junto a mim. Ela disse que era uma mulher solteira, sexualmente ativa e que havia se encontrado com um homem mais jovem, e daí? Primeiro, ela era uma secretária insignificante de uma Conselheira, e segundo esta era a Noruega. Hipocrisia era o que eles perseguiam nas eleições presidenciais americanas. Então, eu tinha pintado a ameaça em cores brilhantes com golpes concisos. Ela havia pago pelo nosso encontro, e eu poderia prová-lo. Ela usava os serviços de garotos de programa, e prostituição e drogas eram questões abordadas por ela na imprensa em nome da Comissão do Serviço Social, correto?
Dois minutos depois, tínhamos combinado hora e lugar para esta reunião.
“A imprensa já escreve bastante sobre a vida privada dos políticos”, disse o velhinho. “Em vez disso, vamos falar sobre uma proposta de negócio, fru Skøyen. Uma boa proposta pode, ao contrário de chantagem, proporcionar vantagens para ambas as partes. Concorda?”
Ela franziu a testa. O velhinho sorriu. “Por proposta de negócio não me refiro, é claro, que dinheiro esteja envolvido. Embora esta fazenda provavelmente não funcione sozinha. Isso seria corrupção. O que eu estou oferecendo é uma operação puramente política. Por baixo dos panos, vou admitir, mas isso é algo praticado todos os dias na Câmara Municipal. Sempre no melhor interesse do povo, não é?”
Skøyen balançou a cabeça novamente, em guarda.
“Este acordo terá que ficar entre você e nós, fru Skøyen. Ele vai beneficiar principalmente a cidade, embora se você tiver ambição política, eu posso enxergar uma possível vantagem para você pessoalmente. Tendo em conta que este é o caso, ele irá naturalmente abrir caminho para uma cadeira na Câmara Municipal num curto prazo. Nunca se esquecendo dum papel na política nacional.”
A xícara de café tinha parado a meio caminho da sua boca.
“Eu nem sequer considerei a hipótese de pedir-lhe para fazer algo antiético, fru Skøyen. Eu só quero mostrar onde temos interesses comuns e, em seguida, deixar que você faça o que eu acho que é certo.”
“Eu devo fazer o que ‘você’ acha que é certo?”
“A Câmara Municipal está numa situação difícil. Mesmo antes dos acontecimentos infelizes do mês passado, o objetivo dos dirigentes da cidade era conseguir tirar Oslo da lista das piores cidades da Europa por consumo de heroína. A meta era reduzir a rotatividade de drogas, reduzir o número de jovens viciados e não menos importante, o número de mortes por overdose. Agora tudo isso parece muito improvável. Não é isso, fru Skøyen?”
Ela não respondeu.
“É necessário um herói, ou uma heroína, para arrumar a bagunça de baixo para cima.”
Ela assentiu com a cabeça lentamente.
“O que ela tem que fazer é acabar com as gangues e os cartéis.”
Isabelle bufou. “Obrigado, mas isso já foi tentado em todas as cidades da Europa. Novas quadrilhas surgem novamente como ervas daninhas. Onde há demanda sempre haverá novos fornecedores.”
“Exatamente”, disse ele. “Como as ervas daninhas. Estou vendo que você tem um campo de morangos, fru Skøyen. Você usa ‘mulch’?”
“Sim, trevo de morango.”
“Posso oferecer-lhe o mulch”, disse o velhinho. “Trevo de morango vestindo camisetas do Arsenal.”
Ela olhou para ele. Eu podia ver seu cérebro ganancioso trabalhando na máxima rotação. O velhinho parecia satisfeito.
“‘Mulch’, meu querido Gusto”, disse ele, tomando um gole de café, “é uma erva daninha que você planta e deixar crescer sem obstáculos para impedir que outras ervas daninhas piores apareçam. Porque o trevo de  morango é um mal menor do que as alternativas. Você entende?”
“Acho que sim”, eu disse. “Uma vez que ervas daninhas sempre vão crescer de qualquer maneira, é uma boa idéia plantar uma erva daninha que não destrói os morangos.”
“Exatamente. E nesta pequena analogia a visão da Câmara Municipal de uma Oslo mais limpa são os morangos, e todas as quadrilhas que vendem a perigosa heroína e criam a anarquia nas ruas são as ervas daninhas. Enquanto nós e o violino somos o ‘mulch’.”
“Então?”
“Então primeiro você tem que fazer a capina. E depois você pode deixar o trevo de morango em paz.”
“E porque ele é realmente muito melhor para os morangos?”, perguntou ela.
“Nós não atiramos em ninguém. Atuamos de forma discreta. Nós vendemos uma droga que não provoca overdoses. Com o monopólio no campo de morangos, podemos aumentar os preços de tal modo que haverá cada vez menos jovens recrutados para o vício. Sem o nosso lucro total ir para o ralo, é óbvio. Menos usuários e menos vendedores. Os viciados deixarão de ocupar os parques e as nossas ruas no centro da cidade. Em breve, Oslo será uma delícia de se ver para turistas, políticos e eleitores.”
“Eu não estou no Comitê de Serviços Sociais.”
“Ainda não, fru Skøyen. Mas capina não é para Comitês. Para isso é que eles têm uma secretária. Para tomar todas as pequenas decisões diárias que em sua totalidade constituem a ação real. Naturalmente você segue as políticas adotadas pelo Comitê, mas você é a pessoa que tem contato diário com a polícia, que discute suas atividades e empreendimentos na Kvadraturen por exemplo. Você terá, naturalmente, que definir o seu papel um pouco mais, mas você parece ter um certo talento para isso. Uma pequena entrevista sobre as políticas contra as drogas em Oslo aqui, uma declaração sobre overdoses de drogas lá. De modo que quando o sucesso for uma realidade a imprensa e seus colegas de partido vão saber quem é o cérebro por trás de tudo” - ele mostrou seu sorriso de dragão de Komodo – “o orgulhoso vencedor da produção dos maiores morangos deste ano.”
Ficamos sentados quietos e em silencio. A mosca tinha desistido de tentar escapar quando descobriu o açucareiro.
“Essa conversa nunca aconteceu”, disse Isabelle.
“Claro que não.”
“Nós nem sequer nos conhecemos.”
“É uma pena, mas é verdade, fru Skøyen.”
“E como você imagina... que a capina deve ser conduzida?”
“Nós podemos oferecer uma mão amiga. Há uma longa tradição sobre dar informações para eliminar rivais nesta indústria, e nós vamos lhe fornecer as informações necessárias. Você irá, naturalmente, abastecer o Comitê dos Serviços Sociais com sugestões para a Comissão de Polícia, mas você vai precisar de um confidente na polícia. Talvez alguém que pode se beneficiar se fizer parte desta história de sucesso. Uma pessoa...”
“Uma pessoa ambiciosa que pode ser pragmática, desde que seja no melhor interesse da cidade?” Isabelle Skøyen levantou a taça para um skål. “Podemos  ir nos sentar na sala?”
 
ergey estava deitado de costas na mesa enquanto o tatuador estudava os desenhos em silêncio.
Quando ele chegou pontualmente na pequena loja, o tatuador estava ocupado desenhando um grande dragão nas costas de um garoto que estava deitado com os dentes cerrados, enquanto uma mulher, que obviamente era sua mãe, estava confortando-o e perguntando se a tatuagem precisava ser tão grande. Ela pagou quando a obra estava terminada e indo para a saída perguntou ao menino se ele estava feliz, agora que tinha uma tatuagem ainda mais legal do que as de Preben e Kristoffer.
“Esta vai ficar mais adequada nas suas costas”, disse o tatuador, apontando para um dos desenhos.
“Tupoy,” Sergey murmurou. Idiota.
“Ahn?”
“Tudo tem que ser exatamente igual ao desenho. Eu preciso dizer a toda hora?”
“Sim, bem, eu não posso fazer tudo hoje.”
“Sim, você pode, faça tudo. Pago o dobro.”
“Urgente, não é?”
Sergey respondeu com um breve aceno. Andrey tinha ligado todos os dias, mantendo-o atualizado. Então, quando ele ligou hoje, Sergey não estava preparado. Preparado para o que Andrey tinha a dizer.
O necessário tornou-se necessário.
E Sergey entendeu que não havia como voltar atrás.
Ele imediatamente pensou: voltar atrás? Quem queria voltar atrás?
Talvez ele tivesse pensado em cair fora porque Andrey lhe havia alertado. Disse que o policial conseguiu desarmar um preso que foi pago para matar Oleg Fauke. Tudo bem, mas o preso era apenas um norueguês e nunca matara alguém com uma faca antes, mas isso significava que este trabalho não ia ser tão fácil como o da última vez. Atirar no vendedor de drogas, o garoto, tinha sido uma execução simples. Desta vez, ele teria que seguir o policial, esperar até que ele estivesse num local adequado e atacá-lo quando ele menos estivesse esperando, como uma cobra.
“Eu não quero ser um desmancha-prazeres, mas as tatuagens que você já tem não possuem exatamente um acabamento de qualidade. As linhas não são nítidas, e a tinta é de má qualidade. Não deveríamos retocá-las um pouco?”
Sergey não respondeu. O que o cara sabia sobre acabamento de qualidade? As linhas não eram nítidas porque o tatuador na prisão teve que usar uma ponta afiada de corda de guitarra ligado a um barbeador elétrico como agulha, e a tinta foi feita de sola de sapato derretida misturada com urina.
“Comece a desenhar”, disse Sergey, apontando. “Agora!”
“E você tem certeza que quer uma pistola? A escolha é sua, mas a minha experiência é que as pessoas ficam chocadas com símbolos violentos. Só para você ficar sabendo.”
O cara claramente não conhecia nada sobre as tatuagens dos criminosos russos. Não sabia que o gato significava que ele tinha sido condenado por roubo, a igreja com duas cúpulas significava que ele tinha duas condenações. Não sabia que as marcas de queimadura no peito eram de pó de magnésio, que ele tinha aplicado diretamente na sua pele para remover uma tatuagem. Era uma tatuagem dos órgãos genitais femininos e tinha sido feita nele quando estava curtindo uma segunda temporada na prisão por membros da gangue de georgianos Black Corn que achavam que ele lhes devia dinheiro depois de um jogo de cartas.
O tatuador também não sabia que a pistola no desenho, uma Makarov, arma de serviço da polícia russa, significava que ele, Sergey Ivanov, havia matado um policial.
Ele não sabia de nada, e que era bom, era melhor para todos se ele continuasse a tatuar borboletas, símbolos chineses e dragões coloridos nos bem alimentados jovens noruegueses que pensavam que suas tatuagens de catálogo eram uma declaração sobre alguma coisa.
“Vamos começar, então?”, perguntou o tatuador.
Sergey hesitou. O tatuador tinha razão, esta era urgente. Mas por que era tão urgente, por que não poderia esperar até que o policial fosse morto? Porque se ele fosse preso depois do assassinato e enviado para uma prisão norueguesa, onde ao contrário da Rússia não havia tatuadores, ele não conseguiria fazer a famigerada tatuagem que precisava.
Mas também havia outra resposta para a pergunta.
Estava ele fazendo a tatuagem antes do assassinato porque, no fundo, ele estava com medo? Com tanto medo que não tinha certeza se seria capaz de ir adiante? Era por isso que ele tinha que fazer a tatuagem agora, para queimar todas as pontes atrás de si, remover todas as possibilidades de um recuo de modo que ele tinha que realizar o assassinato? Nenhum urka siberiano pode viver com uma mentira cravada na sua pele, isso é bastante óbvio. E ele tinha sido feliz, ele sabia que tinha sido feliz, então o que significavam esses pensamentos, de onde eles vêm?
Ele sabia de onde eles vinham.
O vendedor de drogas. O garoto com a camiseta do Arsenal.
Ele tinha começado a aparecer em seus sonhos.
“Sim, vamos começar”, disse Sergey.

“ médico avalia que Oleg estará recuperado dentro de alguns dias”, disse Rakel. Ela estava encostada na geladeira segurando uma xícara de chá.
“Então a polícia vai ter que transferi-lo para algum lugar onde absolutamente ninguém poderá pôr as mãos nele”, disse Harry.
Ele estava de pé diante da janela da cozinha olhando para a cidade lá embaixo, onde os carros naquela hora do rush da tarde rastejavam como vaga-lumes ao longo dos principais eixos viários.
“A polícia deve ter lugares para proteção de testemunhas”, disse ela.
Rakel não tinha ficado histérica. Ela tinha ouvido a notícia do ataque à faca que Oleg sofreu com uma espécie de serenidade resignada. Como se fosse algo que ela estivesse meio que esperando. Ao mesmo tempo, Harry podia ver a indignação em seu rosto. Seu rosto de briga.
“Ele tem que ficar numa prisão, mas eu vou falar com o promotor público sobre uma mudança para outra unidade”, disse Hans Christian Simonsen. Ele tinha chegado tão logo Rakel havia ligado, e sentou-se à mesa da cozinha com círculos de suor na camisa debaixo dos braços.
“Veja se você pode evitar os canais oficiais”, disse Harry.
“O que você quer dizer?”, o advogado perguntou.
“As portas foram destrancadas, portanto, pelo menos um dos guardas da prisão devia estar envolvido. Enquanto nós estamos no escuro sobre quem estava envolvido, temos que assumir que todo mundo poderia estar.”
“Você não está sendo um pouco paranoico?”
“Paranoia salva vidas”, disse Harry. “Você pode consertar isso, Simonsen?”
“Verei o que posso fazer. E sobre o local onde ele está agora?”
“Ele está no Ullevål Hospital, e eu me certifiquei de que há dois policiais em quem confio cuidando dele. Só mais uma coisa: o agressor de Oleg está no hospital, mas depois ele vai ficar com direitos restritos.”
“Sem cartas ou visitas?”, perguntou Simonsen.
“Sim. Você pode descobrir o que ele afirmou no depoimento à polícia, ou ao seu advogado?”
“Isso é mais complicado.” Simonsen coçou a cabeça.
“Eles provavelmente não tiraram nenhuma palavra dele, mas tente mesmo assim,” Harry disse, abotoando o paletó.
“Para onde você está indo?”, Rakel perguntou, segurando seu braço.
“Para a fonte,” disse Harry.
 
ram oito horas da noite, e o tráfego na capital do país com menor jornada de trabalho do mundo estava tranquilo há muito tempo. O garoto em pé na escada na parte inferior da Tollbugata usava a camiseta número 23. Arshavin. Ele tinha tirado seu capuz da cabeça e usava um par de tênis Air Jordan brancos de tamanho maior que seus pés. As calças jeans Girbaud estavam tão bem passadas e engomadas e rígidas que quase podiam manter-se em pé sozinhas. Estilo gangsta rap completo, tudo foi copiado até o último detalhe do mais recente videoclipe de Rick Ross, e Harry pensou que, debaixo das calças estaria uma cueca boxer adequada, sem nenhuma cicatriz de facas ou balas, mas pelo menos uma tatuagem glorificando a violência.
Harry caminhou até ele.
“Violino, um quarto.”
O garoto olhou para Harry sem tirar as mãos dos bolsos do casaco e assentiu.
“Então?”, disse Harry.
“Você vai ter que esperar, boraz.”(10) O garoto falava com um sotaque paquistanês que Harry presumiu que deixava de usar quando estava comendo as almôndegas que sua mãe preparava na sua casa cem por cento norueguesa.
“Eu não tenho tempo para esperar até você reunir um grupo.”
“Chillax, vai ser rápido.”(11)
“Vou pagar cem a mais.”
O garoto mediu Harry com os olhos. E Harry sabia mais ou menos o que ele estava pensando: um homem de negócios feio, vestindo um terno estranho, consumidor controlado, morrendo de medo que os colegas ou familiares surgissem por acaso. Um homem que pedia para ser explorado.
“Seiscentos”, disse o garoto.
Harry suspirou e acenou com a cabeça.
“Idra”, disse o garoto e começou a andar.
Harry presumiu que a palavra significava que era para segui-lo.
Eles dobraram a esquina e passaram por um portão aberto entrando num quintal. O homem da droga era negro, provavelmente um norte-africano, e estava encostado numa pilha de paletes de madeira. Sua cabeça estava balançando para cima e para baixo ao ritmo da música de um iPod. Um dos fones de ouvido pendurado ao lado do pescoço.
“Quarto”, disse o Rick Ross com camiseta do Arsenal.
O traficante tirou algo de um bolso profundo e passou para Harry com a palma para baixo para que a coisa não pudesse ser vista. Harry olhou para o saquinho que tinha recebido. O pó era branco, mas com pequenas manchas escuras.
“Eu tenho uma pergunta,” Harry disse, colocando a saquinho no bolso do paletó.
Os outros dois se retesaram, e Harry viu a mão do homem da droga ir para trás das costas. Harry supôs que ele tinha uma pistola de pequeno calibre na cintura da calça.
“Algum de vocês viu esta garota?” Ele levantou a foto da família Hanssen.
Eles olharam e balançaram a cabeça.
“Eu tenho cinco mil para quem puder me dar uma pista, um boato, qualquer coisa.”
Eles olharam um para o outro. Harry esperou. Em seguida eles deram de ombros e voltaram as costas para Harry. Talvez eles entendessem a pergunta por que já tinham ouvido isso antes, um pai à procura da filha na comunidade de viciados de Oslo. No entanto, faltava-lhes o cinismo ou imaginação necessária para inventar uma história para ganhar o dinheiro de uma recompensa.
“OK”, disse Harry. “Mas digam olá para Dubai por mim e digam que tenho algumas informações que podem ser do interesse dele. Com respeito a Oleg. Digam que ele pode ir até o Hotel Leon e perguntar por Harry.”
Num instante ela apareceu. E Harry estava certo - parecia um modelo Cheetah da Beretta. Nove milímetros. Cano curto, uma coisinha desagradável.
“Você é baosj?”
Kebab norueguês. Polícia. (12)
“Não”, Harry disse, tentando engolir a náusea que sempre sentia quando olhava para o cano de uma arma.
“Você está mentindo. Você não pica violino - você é um policial disfarçado.”
“Eu não estou mentindo.”
O homem da droga acenou para Rick Ross, que foi até Harry e puxou a manga do paletó. Harry tentou tirar os olhos da arma. Houve um assobio. “Parece que o noruega aqui se pica muito”, disse Rick Ross.
Harry tinha usado uma agulha de costura padrão, que segurou sobre a chama do isqueiro. Ele fez incisões profundas em torno de quatro ou cinco lugares no seu antebraço e esfregou amônia nas feridas para lhes dar uma cor vermelha mais inflamada. Finalmente ele havia perfurado a veia perto da dobra do cotovelo para que o sangue aparecesse sob a pele e criasse alguns hematomas impressionantes.
“Eu acho que ele está mentindo de qualquer maneira”, disse o homem da droga, afastando as pernas e agarrando a arma com as duas mãos.
“Por quê? Olha, ele também tem uma seringa e uma folha de alumínio no bolso.”
“Ele não está com medo.”
“Que porra é essa que você quer dizer? Olhe para o cara!”
“Ele não está assustado o suficiente. Hey, baosj, mostre-nos uma seringa agora.”
“Você pirou, Rage?”
“Cala a boca!”
“Chillax. Por que tanta raiva?”
“Acho que o Rage não gosta que você fale o nome dele”, disse Harry.
“Cala a boca você também! Um pico! E pode usar do seu próprio saquinho.”
Harry nunca tinha derretido ou injetado antes, pelo menos não quando sóbrio, mas ele tinha usado ópio e conhecia o mecanismo da coisa: derreter a substância em uma forma fluida e puxá-la com uma seringa. Quão difícil pode ser isso? Ele se agachou, derramou pó na folha, caiu um pouco no chão e ele lambeu o dedo e esfregou-o nas gengivas, tentou parecer ávido. Tinha um gosto amargo como outros pós que ele havia testado como policial. Mas havia outro gosto também. Um gosto quase imperceptível de amônia. Não, não amônia. Lembrou-se agora, o sabor o lembrou do cheiro de mamão maduro demais. Ele acendeu o isqueiro, esperando que eles pensassem que a sua ligeira falta de jeito era pelo fato de que estava trabalhando com uma arma apontada para sua cabeça.
Dois minutos depois, ele tinha a seringa carregada e pronta.
Rick Ross tinha recuperado a sua frieza gangsta. Ele tinha enrolado as mangas até os cotovelos e estava posando com as pernas afastadas, os braços cruzados e a cabeça inclinada para trás.
“Manda bala”, ele ordenou. Ele se virou e levantou a mão espalmada em defesa. “Não você, Rage!”
Harry olhou para os dois. Rick Ross não tinha marcas nos seus braços nus, e Rage parecia bastante alerta. Harry ergueu o punho esquerdo para cima na direção do seu ombro duas vezes, deus uns tapinhas no seu antebraço e inseriu a agulha no ângulo de trinta graus conforme as normas. E esperava que parecesse profissional para alguém que não se injetava.
“Ahh,” Harry gemeu.
Profissional o suficiente para que eles não imaginassem o quão longe de uma veia a agulha penetrou, só na carne.
Ele revirou os olhos e seus joelhos cederam.
Profissional o suficiente para eles se enganarem com um orgasmo fingido.
“Não se esqueçam de dizer a Dubai”, ele sussurrou.
Em seguida, ele cambaleou para a rua e oscilou para o oeste na direção do Palácio Real.
Apenas na Dronningens Gate ele se endireitou.
Na Prinsens Gate ele sentiu o efeito retardado. Causado pela quantidade de droga que tinha entrado no sangue, que tinha alcançado o cérebro através dos caminhos sinuosos dos vasos capilares. Foi como um eco distante da viagem causada por uma agulha inserida numa artéria. Ainda assim, Harry sentiu seus olhos se encheram de lágrimas. Era como se encontrar com alguém que você amou e pensava que nunca mais veria novamente. Seus ouvidos cheios, não com música celestial, mas com a luz celestial. E de repente ele sabia por que eles chamavam aquela droga de violino.
 
ram dez horas da noite, e as luzes estavam apagadas nos escritórios da Orgkrim, e os corredores estavam vazios. Mas no escritório de Truls Berntsen a tela do computador lançava uma luz azul sobre o policial sentado com os pés sobre a mesa. Ele tinha apostado mil e quinhentos na vitória do Man City e estava prestes a perdê-los. Mas agora eles tinham um chute livre indireto. Dezoito metros e Tévez.
Ele ouviu a porta se abrindo, e seu dedo indicador direito bateu automaticamente no botão Esc. Mas já era tarde demais.
“Espero que isso não seja o meu orçamento pagando por navegação na internet.”
Mikael Bellman sentou-se na única outra cadeira. Truls tinha notado que, conforme Bellman tinha subido na hierarquia, havia mudado o sotaque de quem tinha crescido no Manglerud. Era só quando ele conversava com Truls que às vezes voltava às suas raízes.
“Você já leu o jornal?”
Truls assentiu. Uma vez que não tinha nada mais para ler ele tinha lido as páginas policiais e desportivas até o fim. Ele tinha visto menções elogiosas sobre a secretária do Comitê, Isabelle Skøyen. Ela tinha começado a ser fotografada em estreias e eventos sociais após o Verdens Gang ter publicado um perfil elogioso sobre ela intitulado “A mulher que está limpando as ruas”. Ela tinha sido creditada como a responsável pela limpeza das ruas de Oslo, ao mesmo tempo se tornando uma política de âmbito nacional. De qualquer forma seu trabalho no Comitê tinha feito progressos. Truls notou que seu decote aumentava em compasso com o apoio da oposição, e seu sorriso nas fotografias logo ficou tão amplo quanto seu traseiro.
“Eu tive uma conversa não oficial com a Comissária de Polícia,” disse Bellman. “Ela vai me nomear Chefe de Polícia, reportando ao Ministro da Justiça.”
“Merda!”, gritou Truls. O chute livre direto de Tévez tinha se esmagado contra a trave.
Bellman se levantou. “Ah, antes que eu me esqueça, pensei que você gostaria de saber. Ulla e eu vamos convidar algumas pessoas para o próximo sábado.”
Truls sentiu a mesma facada no coração, como sempre, quando ele ouviu o nome de Ulla.
“Casa nova, trabalho novo, você sabe. E você ajudou a construir o terraço.”
Ajudou? Truls pensava. Eu construí toda a maldita coisa.
“Então, a não ser que você esteja muito ocupado...” Bellman disse, apontando para a tela. “Você está convidado.”
Truls agradeceu e aceitou. Da maneira como ele sempre tinha feito desde que eram garotos, concordou em segurar vela, ser um espectador da felicidade óbvia de Mikael Bellman e Ulla. Concordou com mais uma noite na qual teria que esconder quem ele era e como ele se sentia.
“Uma outra questão”, disse Bellman. “Você se lembra do cara que eu lhe pedi para excluir do registo dos visitantes na recepção?”
Truls assentiu sem pestanejar. Bellman tinha ligado e explicou que um certo Tord Schultz havia se apresentado para dar-lhe informações sobre o contrabando de drogas e dizer-lhe que havia um queimador em suas fileiras. Ele estava preocupado com a segurança do homem e seu nome deveria ser retirado do registo no caso deste queimador estar trabalhando no QG e eventualmente acessar o registro.
“Eu tentei ligar para ele várias vezes, mas não tive resposta. Estou um pouco preocupado. Você tem certeza que a Securitas retirou seu nome do registro e que ninguém descobriu?”
“Absolutamente, Chefe de Polícia”, disse Truls. Man City estava de volta na defesa e jogou a bola para longe. “Falando nisso, você ouviu alguma coisa sobre esse inspetor irritante do aeroporto?”
“Não”, disse Bellman. “Parece que ele aceitou que era farinha de batata. Por quê?”
“Só para saber, Chefe de Polícia. Lembranças para o dragão lá em casa.”
“Eu prefiro que você não use esse termo, OK?”
Truls deu de ombros. “É como você a chama.”
“Quero dizer essa coisa de Chefe de Polícia. Ainda faltam algumas semanas para se tornar oficial.”
 
 gerente de operações suspirou. O oficial de controle de tráfego aéreo tinha telefonado para dizer que o voo de Bergen foi adiado porque o comandante não tinha aparecido nem telefonado, e eles tiveram que convocar outro piloto com urgência.
“Schultz está passando por um momento difícil neste momento”, disse o gerente.
“Ele também não atende o telefone”, disse o oficial.
“Era o que eu receava. Ele pode estar aproveitando o tempo livre para fazer uma viagem sozinho.”
“Também ouvi isso, sim. Mas isto não é tempo livre. Nós quase tivemos de cancelar o voo.”
“A estrada da vida dele está um pouco esburacada no momento, como eu disse. Eu vou falar com ele.”
“Todos nós temos estradas esburacadas, Georg. Vou ter que fazer um relatório completo, você entende?”
O gerente de operações ia falar alguma coisa. Mas desistiu. “Claro.”
Quando eles desligaram uma imagem apareceu na memória do gerente de operações. Uma tarde, churrasco, verão. Campari, Budweiser e enormes bifes vindos diretamente do Texas, trazidos por um estagiário. Ninguém viu Else e ele se esgueirando para um quarto. Ela gemeu baixinho, baixinho o suficiente para não ser ouvida acima dos gritos das crianças brincando, dos voos que chegavam e do riso despreocupado do lado de fora da janela aberta. Aviões indo e vindo. A risada alta de Tord, depois de outra história clássica de pilotos. E os gemidos baixinhos da mulher de Tord.
 

(10) Boraz: amigo em Romani (língua dos Ciganos do Kosovo)
 
(11) Chillax: "chill and relax". Chill em inglês significa frio, portanto "fique frio e relaxe"
 

(12) Kebab Norueguês: variedade da língua norueguesa que incorpora palavras de idiomas de imigrantes não ocidentais (turco, curdo, árabe, urdu, pashto, persa e punjabi). Teve sua origem entre os jovens imigrantes e os jovens noruegueses que convivem com eles nas áreas da Oslo Leste. (não é considerado gíria, mas um dialeto étnico).

“ocê comprou violino?”
Beate Lønn olhava incrédula para Harry, que estava sentado no canto do seu escritório. Ele arrastara a cadeira para longe da luz brilhante da manhã para a sombra e estava com as mãos cruzadas em volta da caneca que ela lhe tinha oferecido. Ele tinha pendurado o paletó nas costas da cadeira, e o suor brilhava como uma película grudada na sua face.
“Você não...?”
“Você está louca?” Harry sorveu o café fervente. “Alcoólatras não podem lidar com esse tipo de negócio.”
“Bom, porque caso contrário eu pensaria que foi um pico mal feito”, disse ela, apontando.
Harry olhou para o antebraço. Além do terno, ele tinha apenas três pares de cuecas, dois pares de meias e duas camisas de manga curta. Ele havia pensado em comprar mais roupas em Oslo, mas até agora não conseguiu um tempo livre. E esta manhã ele tinha acordado com o que se parecia tanto com uma ressaca que ele quase vomitou no banheiro. O resultado do pico na carne tomara a forma e a cor de uma mancha de vinho Bordeaux numa toalha.
“Eu gostaria que você analisasse isto para mim”, disse Harry.
“Porquê?”
“Por causa das fotos da cena do crime que mostram o saquinho que você encontrou com Oleg.”
“Sim?”
“Você tem câmeras fantásticas. Você pode ver que o pó é branco puro. Este pó tem partículas marrons. Eu quero saber o que é.”
Beate pegou uma lupa da gaveta e se inclinou sobre o pó que Harry polvilhou sobre a capa da Forensic Magazine.
“Você está certo”, disse ela. “As amostras que obtivemos eram brancas, mas na realidade não houve um único confisco nos últimos meses então isto é interessante. Especialmente porque um inspetor da polícia em Gardermoen ligou há poucos dias e disse algo parecido.”
“O quê?”
“Eles encontraram um saco de pó na bagagem de mão de um piloto. O inspetor perguntou como tínhamos chegado à conclusão de que era farinha de batata. Ele tinha visto os grãos marrons no pó com seus próprios olhos.”
“Será que ele acha que o piloto estava contrabandeando violino?”
“Uma vez que não houve um único confisco de violino nas fronteiras, o inspetor provavelmente nunca viu essa droga. Heroína branca é rara. A maioria das apreensões que aparecem aqui é marrom, de modo que o inspetor provavelmente pensou que a droga era misturada. Ah! só para constar, o piloto não estava entrando, ele estava saindo.”
“Saindo?”
“Sim.”
“Pra onde?”
“Bangkok.”
“Ele estava levando farinha de batata para Bangkok?”
“Talvez fosse para alguns noruegueses poderem fazer molho branco para suas almondegas de peixe.” Ela sorriu, corando ao mesmo tempo pela sua tentativa de ser engraçada.
“Hmm. Muito interessante. Acabei de ler sobre um agente disfarçado que foi encontrado morto no porto de Gothemburg. Havia rumores de que ele era um queimador. Houve rumores sobre ele em Oslo?”
Beate balançou a cabeça. “Não. Pelo contrário. Ele tinha a reputação de ser extremamente zeloso na caça aos bandidos. Antes se ser morto ele falou sobre ter um grande peixe no anzol e queria enrolar a carretilha sozinho.”
“Sozinho.”
“Ele não quis dizer mais nada, ele não confiava em ninguém. Parece com alguém que você conhece, Harry?”
Ele sorriu, levantou-se e enfiou os braços nas mangas do paletó.
“Aonde você vai?”
“Vou visitar um velho amigo.”
“Não sabia que você tinha algum.”
“É uma maneira de falar. Liguei para o chefe da Kripos.”
“Heimen?”
“Sim. Eu perguntei se ele poderia me dar uma lista das pessoas com quem Gusto conversou pelo seu celular antes do assassinato. Ele respondeu que, em primeiro lugar, era um caso muito simples e eles não tinham uma lista. Em segundo lugar, se tivessem eles nunca dariam uma cópia para um... deixe-me ver...” Harry fechou os olhos e contou nos dedos. “... policial dispensado, alcoólatra e traidor como eu.”
“Como eu disse, eu não sabia que você tinha algum velho amigo.”
“Portanto agora vou ter que tentar em outros lugares.”
“OK. Eu vou ter o resultado da análise deste pó ainda hoje.”
Harry parou na porta. “Você disse que recentemente o violino apareceu em Gothemburg e Copenhagen. Isso significa que ele apareceu lá depois de Oslo?”
“Sim.”
“Não é geralmente o contrário? Uma nova droga vai para Copenhagen primeiro e depois se espalha para o norte?”
“Você provavelmente está certo. Por quê?”
“Não estou bem certo ainda. Como você disse que era o nome do piloto?”
“Eu não disse. Schultz. Tord. Algo mais?”
“Sim. Já pensou que o homem disfarçado poderia estar certo?”
“Certo?”
“Em manter a boca fechada e não confiar em ninguém. Ele pode ter sabido que havia um queimador de algum lugar.”
 
arry olhou ao redor da grande e arejada catedral que era a área de recepção do QG da Telenor em Fornebu. No balcão a dez metros de distância duas pessoas estavam recepcionando. Viu-as entregar e recolher passes das pessoas que estavam visitando e passando pelas catracas. A Telenor tinha, obviamente, reforçado os seus procedimentos de segurança, e seu plano de entrar mais ou menos sem ser convidado no escritório de Klaus Torkildsen já não era mais viável.
Harry avaliou a situação.
Torkildsen certamente não iria apreciar a visita. Pela simples razão de que ele havia sido pego se exibindo em público, o que ele tinha conseguido manter em segredo do seu empregador, mas Harry, durante vários anos, tinha usado esse episódio para pressioná-lo a dar-lhe acesso a informações, às vezes muito além do que uma empresa de telefonia tinha legalmente direito de fazê-lo. No entanto, sem a autoridade de um cartão de identificação da polícia para dar aval, Torkildsen provavelmente nem mesmo aceitaria falar com Harry.
À direita das quatro catracas que levavam aos elevadores havia uma porta maior que tinha sido aberta para liberar a entrada de um grupo de visitantes. Harry tomou uma decisão rápida. Ele caminhou até o grupo e se infiltrou no meio da multidão, que estava se arrastando em direção ao representante da Telenor que segurava o portão aberto. Harry virou-se para seu vizinho, um homem pequeno com características chinesas.
“Ni Hao.”
“Sorry?”
Harry viu o nome no crachá do visitante. Yuki Nakazawa.
“Oh, Japanese.” Harry riu e deu um tapinha no ombro do homenzinho várias vezes, como se ele fosse um velho amigo. Yuki Nakazawa deu um sorriso hesitante.
“Belo dia,” Harry disse, ainda com a mão sobre o ombro do homem.
“Sim”, disse Yuki. “Em qual empresa você trabalha?”
“TeliaSonera”, disse Harry.
“Muito, muito bom.”
Eles passaram pelo empregado da Telenor e pelo canto dos olhos Harry podia vê-lo vindo na direção deles e sabia mais ou menos o que ele diria. E ele estava certo.
“Desculpe senhor. Eu não posso deixa-lo entrar sem um crachá com seu nome.”
Yuki Nakazawa olhou para o homem com surpresa.
 
orkildsen tinha ganhado um novo escritório. Depois de caminhar um quilômetro através de um escritório aberto Harry finalmente viu um grande corpo familiar em uma gaiola de vidro.
Harry foi direto até lá.
O homem estava sentado de costas para ele, telefone pressionado contra sua orelha. Harry podia ver a chuva de saliva destacando-se contra a janela. “Agora você já tem a porra do servidor SW2 instalado e funcionando!”
Harry tossiu.
A cadeira girou. Klaus Torkildsen estava ainda mais gordo. Um terno surpreendentemente elegante, sob medida, conseguia esconder parcialmente os rolos de flacidez, mas nada conseguia esconder a expressão de puro medo que se espalhou pelo seu rosto extraordinário. O que era tão extraordinário nele era que, com uma tal extensão à sua disposição, os olhos, o nariz e a boca consideraram mais oportuno se juntar numa pequena ilha no meio daquele oceano de face. Seus olhos desceram para a lapela de Harry.
“Yuki... Nakazawa?”
“Klaus.” Harry sorriu e estendeu os braços para um abraço.
“O que diabos você está fazendo aqui?” Torkildsen sussurrou.
Harry deixou cair os braços. “Estou feliz em ver você também.”
Ele se sentou na ponta da mesa. No mesmo lugar que ele sempre sentava. Invadir e encontrar um terreno mais elevado. Maneira simples e eficaz para comandar. Torkildsen engoliu em seco e Harry viu grandes gotas brilhantes de suor se formando na testa dele.
“A rede móvel em Trondheim,” Torkildsen resmungou, indicando o telefone. “O servidor deveria estar instalado e funcionando na semana passada. Não se pode confiar mais em ninguém, porra. Estou sendo pressionado o tempo todo. O que você quer?”
“A lista de chamadas de e para o celular de Gusto Hanssen desde maio.” Harry pegou uma caneta e escreveu o nome em um post-it amarelo.
“Agora estou na gerência. Eu não trabalho mais no chão.”
“Não, mas você ainda pode conseguir os números.”
“Você tem alguma autorização?”
“Se eu tivesse eu teria ido direto falar com um contato da polícia em vez de você.”
“Então, por que o seu superior na polícia não autorizou esta consulta?”
O antigo Torkildsen não teria coragem de fazer esta pergunta. Ele tinha se tornado mais difícil. Tinha mais autoconfiança. Seria a nova promoção? Ou algo mais? Harry viu as costas de uma moldura de foto sobre a mesa. O tipo de foto pessoal utilizada para lembrá-lo que você tem alguém. Então, a menos que fosse um cão, era uma mulher. Talvez até mesmo com uma criança. Quem teria pensado nisso? O velho exibicionista tinha arranjado uma mulher.
“Eu não trabalho mais para a polícia”, disse Harry.
Torkildsen sorriu. “No entanto você ainda quer informações sobre conversas?”
“Eu não preciso de muito, apenas deste celular.”
“Por que eu deveria? Se alguém descobrir que eu passei este tipo de informação eu levarei um pé na bunda. E não seria difícil para alguém perceber que eu entrei no sistema.”
Harry não respondeu.
Torkildsen deu um riso amargo. “Compreendo. É o mesmo velho truque de chantagem covarde. Se eu não lhe der a informação, em desacordo com os regulamentos, você vai garantir que os meus colegas fiquem sabendo do meu pecado.”
“Não”, disse Harry. “Não, eu não vou falar nada. Estou simplesmente pedindo-lhe um favor, Klaus. É pessoal. O garoto da minha ex-namorada corre o risco de receber pena de prisão perpétua por algo que ele não fez.”
Harry viu o queixo duplo de Torkildsen estremecer e criar uma onda de carne que ondulou pelo pescoço até ser absorvida pela grande massa corporal mais abaixo e sumir. Harry nunca tinha abordado Klaus Torkildsen pelo seu nome de batismo antes de hoje. Torkildsen olhou para ele. Piscou. Concentrou-se. As gotas de suor brilhavam, e Harry podia ver a calculadora cerebral somando, subtraindo e - por fim - chegar a um resultado. Torkildsen ergueu os braços e recostou-se na cadeira, que rangeu sob o peso.
“Desculpe, Harry, eu gostaria muito de ajudá-lo. Mas agora eu não posso pagar por esse gesto de simpatia. Espero que você entenda.”
“Claro,” Harry disse, esfregando o queixo. “É completamente compreensível.”
“Obrigado,” Torkildsen disse, claramente aliviado e começando a se esforçar para se levantar da cadeira, de modo a poder escoltar Harry para fora da gaiola de vidro e da sua vida.
“Certo”, disse Harry. “Se você não me fornecer os números não serão apenas seus colegas que saberão do seu vício, mas também a sua esposa. Haverá filhos? Sim? Um, dois?”
Torkildsen caiu de volta na cadeira. Olhando fixamente para Harry com descrença. O velho e trêmulo Klaus Torkildsen. “Você... você disse que não iria...”
Harry deu de ombros. “Desculpe. Mas agora eu não posso me dar ao luxo desse tipo de simpatia.”
 
ram dez e dez da noite e o Schrøder's estava meio cheio.
“Eu não queria que você viesse ao meu escritório”, disse Beate. “Heimen me ligou e disse que você tinha perguntando sobre uma lista de ligações de telefone, e ele ouviu que você veio me ver. Ele me alertou para não me meter no caso Gusto.”
“Bem,” Harry disse, “é bom que você pode vir aqui.” Ele estabeleceu contato visual com Rita que estava servindo cerveja na outra extremidade da sala. Ele levantou dois dedos. Ela assentiu com a cabeça. Passaram-se três anos desde a última vez que ele tinha estado aqui, mas ela ainda compreendia a linguagem de sinais de seu ex-freguês assíduo: uma cerveja para a companhia, um café para o alcoólatra.
“Seu amigo ajudou com a lista?”
“Sim, ele ajudou muito.”
“Então o que foi que você descobriu?”
“Gusto devia estar quebrado no final; seu número havia sido bloqueado várias vezes. Ele não usou muito o telefone, mas ele e Oleg tiveram algumas conversas curtas. Ele ligou para sua irmã adotiva, Irene, muito pouco, mas as conversas de repente terminaram algumas semanas antes dele morrer. De resto, as chamadas eram na sua maioria para a Pizza Xpress. Eu vou até a casa de Rakel mais tarde para pesquisar os outros nomes no Google. O que você tem para me dizer sobre a análise?”
“A substância que você comprou é quase idêntica às amostras iniciais de violino que examinamos. Mas existe uma pequena diferença no composto químico. E também há as partículas marrons.”
“Sim?”
“Não é um ingrediente farmacêutico ativo. É simplesmente o invólucro que é usado em pílulas. Você sabe, para torná-las mais fáceis de engolir ou dar-lhes um sabor melhor.”
“É possível rastrear até o fabricante?”
“Em teoria, sim. Mas eu verifiquei, e constatei que os fabricantes de medicamentos geralmente fazem o seu próprio invólucro, o que significa que há milhares deles em todo o globo.”
“Portanto, não vamos fazer nenhum progresso por esse caminho?”
“Não com o invólucro”, disse Beate. Mas no interior de alguns fragmentos havia restos do conteúdo da pílula. “Era metadona.”
Rita trouxe o café e a cerveja. Harry agradeceu e ela seguiu adiante.
“Eu pensei que a metadona era líquida e vinha em frascos de vidro.”
“A metadona usada na chamada reabilitação assistida de toxicodependentes com medicamento vem em frascos de vidro. Então liguei para o St Olav’s Hospital. Eles pesquisam opióides e opiáceos e disseram-me que as pílulas de metadona são utilizadas no tratamento da dor.”
“E no violino?”
“Eles disseram que era possível que a metadona modificada pudesse ser usada na sua fabricação, sim.”
“Isso só significa que o violino não é feito a partir do zero, mas como é que isso nos ajuda?”
Beate enrolou a mão em volta do copo de cerveja. “Porque há muito poucos produtores de pílulas de metadona. E um deles está instalado em Oslo.”
“AB? Nycomed?”
“Radium Hospital. Eles têm seu próprio instituto de pesquisa e fabricam uma pílula de metadona para tratamento de dor severa.”
“Câncer.”
Beate assentiu. Uma mão transportou o copo à boca, enquanto a outra colocou algo em cima da mesa.
“Do Radium Hospital?”
Beate assentiu com a cabeça novamente.
Harry pegou a pílula. Era redonda, pequena e tinha um R gravado no invólucro marrom.
“Você quer saber de uma coisa, Beate?”
“O que?”
“Acho que a Noruega criou um novo artigo de exportação.”
 
“ocê quer dizer que alguém na Noruega está produzindo e exportando violino?”, Rakel perguntou. Ela estava recostada com os braços cruzados no batente da porta do quarto de Oleg.
“Há pelo menos alguns fatos que sugerem que alguém pode estar,” Harry disse, digitando o nome seguinte da lista que ele tinha recebido de Torkildsen. “Em primeiro lugar, as ondas se espalham para o exterior a partir de Oslo. Ninguém na Interpol tinha visto ou ouvido falar de violino antes dele aparecer em Oslo, e somente agora você pode encontrá-lo nas ruas da Suécia e Dinamarca. Em segundo lugar, a substância contém partículas de pílulas de metadona que eu posso jurar que são fabricadas na Noruega.” Harry pressionou pesquisar. “Em terceiro lugar, um piloto foi preso em Gardermoen com algo que poderia ter sido violino, mas depois foi trocado.”
“Trocado?”
“Nesse caso, temos um queimador no sistema. O detalhe é que este piloto estava viajando para Bangkok.”
Harry sentiu o aroma do perfume dela e sabia que ela havia se desencostado da porta e estava de pé perto do seu ombro. O brilho da tela do monitor era a única luz no quarto escuro.
“Sexy. Quem é?” A voz dela soou ao lado da sua orelha.
“Isabelle Skøyen. Câmara Municipal. Uma das pessoas para quem Gusto ligava. Ou para ser mais preciso, ela ligou.”
“A camiseta de doador de sangue é muito pequena para ela, não é?”
“Provavelmente faz parte do trabalho de um político participar da campanha para doação de sangue.”
“Alguém é realmente um político sendo apenas uma secretária da Câmara?”
“De qualquer forma a mulher diz que é AB negativo, então simplesmente está exercendo o seu dever cívico.”
“Sangue raro, realmente. É por isso que você está olhando para a foto há tanto tempo?”
Harry sorriu. “Havia muitos elogios aqui. Criadora de cavalos. ‘A varredora das ruas’.”
“Ela é a única que recebeu créditos pela colocação de todas as gangues de traficantes atrás das grades.”
“Nem todas, obviamente. Eu me pergunto o que ela e Gusto poderiam ter o que conversar.”
“Bem, ela dirige os trabalhos contra as drogas no Comitê de Serviços Sociais, então talvez ela o contatasse para obter informações em geral.”
“À uma e trinta da madrugada?”
“Uau!”
“É melhor eu perguntar a ela.”
“Sim, eu tenho certeza que você gostaria de fazer isso.”
Ele virou a cabeça para ela. Seu rosto estava tão perto que ele mal conseguia foca-la.
“Eu ouvi o que eu acho que ouvi, meu amor?”
Ela riu suavemente. “De modo nenhum. Ela parece vulgar.”
Harry inalou lentamente. Ela não se moveu. “E o que faz você pensar que eu não gosto de mulheres vulgares?”, perguntou.
“E por que você está sussurrando?” Seus lábios se moviam tão perto dos dele que ele podia sentir o fluxo de ar das suas palavras.
Durante dois longos segundos o som do ventilador do computador era tudo o que podia ser ouvido. Então, de repente ela se endireitou. Olhou para Harry distraidamente, um olhar distante, e colocou as mãos contra o rosto como que para resfriá-lo. Então ela se virou e saiu.
Harry se inclinou para trás, fechou os olhos e praguejou baixinho. Ouviu-a fazendo barulho na cozinha. Respirou profundamente um monte de vezes. Decidiu que o que tinha acabado de acontecer, não tinha acontecido. Tentou ordenar seus pensamentos. Em seguida, continuou seu trabalho.
Ele pesquisou os nomes restantes. Alguns apareciam em reportagens de dez anos atrás sobre resultados de competições de esqui ou numa nota sobre uma reunião familiar, outros nem isso. Eram pessoas que já não existiam, que tinham sido afastadas de quase tudo que é abrangido pelos holofotes da sociedade moderna, que tinham encontrado recantos obscuros onde se sentavam à espera da próxima dose ou então à espera de nada.
Harry ficou olhando para a parede, para um cartaz de um cara com uma plumagem na cabeça. Embaixo estava escrito ‘Jónsi’. Harry tinha uma vaga lembrança de que tinha algo a ver com a banda islandesa Sigur Rós. Sons etéreos e um implacável cantar em falsete. Muito longe de Megadeath e Slayer. Mas é claro que Oleg pode ter mudado o seu gosto. Ou ter sido influenciado. Harry se acomodou com as mãos atrás da cabeça.
Irene Hanssen.
Ele ficara surpreendido com a quantidade de ligações. Gusto e Irene tinham se falado ao telefone quase todos os dias, então abruptamente houve uma interrupção. Depois disso, ele não tinha sequer tentado telefonar-lhe. Como se tivessem se afastado. Ou talvez Gusto soubesse que Irene não podia ser contatada por telefone. Mas, de repente, algumas horas antes de ser baleado, Gusto ligara para o telefone fixo no endereço residencial dela. E tinha obtido uma resposta. A conversa durou um minuto e doze segundos. Por que ele achava que era estranho? Harry tentou retornar ao ponto onde esse pensamento se originou. Mas teve que desistir. Ele ligou para o número de telefone fixo. Sem resposta. Tentou o celular de Irene. Uma voz disse-lhe que a conta foi bloqueada temporariamente. Não pagamento de faturas.
Dinheiro.
Tudo começava e terminava com dinheiro. Com as drogas sempre era assim. Harry tentou se lembrar do nome que Beate lhe dissera. O piloto que havia sido preso com pó na bagagem de mão. A memória de policial ainda funcionava. Ele digitou TORD SCHULTZ em informações da lista telefônica.
Um número de celular surgiu.
Harry abriu uma gaveta da escrivaninha de Oleg para procurar uma caneta. Ele levantou o Masterful Magazine e seu olhar caiu num recorte de jornal numa pasta de plástico. Ele reconheceu imediatamente seu próprio rosto, mais jovem. Ele pegou a pasta e folheou os outros recortes. Todos eram de casos em que Harry havia trabalhado e onde o nome de Harry tinha sido mencionado ou sua imagem aparecia. Havia também uma entrevista antiga em um jornal de psicologia onde ele tinha respondido - não sem alguma irritação ele ainda se lembrava - perguntas sobre assassinatos em série. Harry fechou a gaveta. Olhou ao redor. Ele sentiu a necessidade de quebrar alguma coisa. Então ele desligou o computador, pegou sua pequena mala, entrou na sala e vestiu o paletó. Rakel apareceu. Ela escovou um pontinho invisível de pó na lapela.
“É tão estranho”, disse. “Eu não vejo você há muito tempo, eu estava apenas começando a me esquecer de você, e então, eis você aqui de novo.”
“Sim”, disse ele. “É uma coisa boa?”
Um sorriso fugaz. “Eu não sei. É bom e ruim ao mesmo tempo. Você entende?”
Harry acenou com a cabeça e puxou-a para perto dele.
“Você é a pior coisa que já me aconteceu”, disse ela. “E a melhor. Mesmo agora, apenas só por estar aqui, você consegue me fazer esquecer todo o resto. Não, eu não tenho certeza se isso é bom.”
“Eu entendo.”
“O que é isso?” ela perguntou, apontando para a mala.
“Eu vou fazer o check-in no Hotel Leon.”
“Mas...”
“Amanha a gente se fala. Boa noite, Rakel.”
Harry beijou-a na testa, abriu a porta e saiu para a noite quente de outono.
 
 rapaz na recepção disse que ele não precisava preencher outro formulário de inscrição e ofereceu o mesmo quarto da última vez, 301. Harry disse que estava tudo bem, contanto que consertassem o varão quebrado da cortina.
“Está quebrado novamente?” disse o rapaz. “Foi o hóspede anterior. Ele era um pouco impaciente, eu imagino.” Ele entregou a chave do quarto. “Ele era policial também.”
“Residente?”
“Sim, ele era um dos mensalistas. Um agente, disfarçado como vocês dizem.”
“Hmm. Parece que o disfarce dele não era muito eficiente, uma vez que você sabia.”
O rapaz sorriu. “Deixe-me ir e ver se eu tenho um varão de cortina em estoque.” E saiu.
“O Homem da Boina era muito parecido com você,” disse uma voz com forte acento sueco. Harry se virou.
Cato estava sentado numa cadeira no que, com um pouco de caridade, poderia ser denominado como lobby. Ele parecia abatido e estava balançando a cabeça lentamente. “Muito parecido como você, Harry. Muito passional. Muito paciente. Muito obstinado. Infelizmente. Não tão alto como você, é claro, e ele tinha olhos cinzentos. Mas com a mesma expressão de policial no olhar, e tão solitário. E ele morreu no mesmo lugar aonde você também vai. Você deveria ter ido embora, Harry. Você devia ter pegado o avião.” Ele gesticulava algo incompreensível com seus longos dedos. Sua expressão era tão triste que por um momento Harry pensou que o velhinho iria chorar. Ele se levantou de modo titubeante quando Harry se virou para o rapaz que já estava de volta.
“O que ele está dizendo é verdade?”
“Quem está dizendo?” o rapaz perguntou.
“Ele,” Harry disse, girando para apontar para Cato. Mas ele já tinha ido embora. Ele devia ter deslizado escuridão adentro pelas escadas.
“Será que o policial disfarçado morreu aqui, no meu quarto?”
O rapaz olhou para Harry antes de responder. “Não, ele desapareceu. Ele foi devolvido pelo mar em frente da Opera House. Sinto muito, mas eu não tenho um varão para a cortina, mas que tal esta linha de nylon? Você pode enfia-lo através da cortina e amarrá-lo nos suportes do varão.”
Harry balançou a cabeça lentamente.
 

á passava das duas horas da manhã. Harry ainda estava acordado e fumando seu último cigarro. No chão estavam as cortinas e a linha de nylon fina. Ele podia ver uma mulher do outro lado do pátio; ela estava dançando uma valsa silenciosa, sem parceiro. Harry ouvia os sons da cidade e olhava a fumaça se enrolando em direção ao teto. Estudou as rotas sinuosas que elas formavam, as formas aparentemente aleatórias e tentou enxergar um padrão nelas.

ois meses se passaram, depois da reunião entre o velhinho e Isabelle, para a limpeza começar.
Os primeiros a serem pegos foram os vietnamitas. Os jornais disseram que os policiais haviam feito uma blitz em nove lugares simultaneamente, encontraram cinco depósitos de heroína e prenderam trinta e seis Vietcongs. Uma semana depois, foi a vez dos albaneses do kosovar. Os policiais usaram as tropas de elite Delta para invadir um apartamento em Helsfyr que o chefe cigano pensava que ninguém conhecia. Em seguida, foi a vez dos norte-africanos e lituanos. O cara que era o chefe da Orgkrim, um sujeito de boa aparência, tipo modelo, com pestanas longas, disse nos jornais que haviam recebido denúncias anônimas. Ao longo das semanas seguintes os vendedores de rua, desde os somalis preto-carvão até os branco-leitosos noruegueses, foram tirados de circulação e presos. Mas nem um único de nós vestindo uma camisa do Arsenal. Já estava claro que tínhamos mais espaço de manobra e as filas foram ficando mais longas. O velhinho estava recrutando alguns dos vendedores de rua desempregados, mas mantendo a sua parte do acordo: o tráfico de heroína tornou-se menos visível no centro da cidade de Oslo. Nós reduzimos as importações de heroína porque nós ganhávamos muito mais com o violino. Violino era caro, por isso alguns tentaram mudar para a morfina, mas logo retornaram.
Nós estávamos vendendo mais rápido do que Ibsen conseguia produzir.
Numa terça-feira nós ficamos sem estoque e ainda era meia noite e meia, e uma vez que era estritamente proibido o uso de celulares - o velhinho pensava que Oslo era a porra de Baltimore - eu fui até a estação e liguei de uma das cabines telefônicas para o telefone Gresso. Andrey disse que estava ocupado, mas ele iria ver o que podia fazer. Oleg, Irene e eu nos sentamos nos degraus da Skippergata afastando os viciados e vagabundos. Uma hora depois, vi uma figura mancando em nossa direção. Era Ibsen em pessoa. Ele estava furioso. Gritando e praguejando. Até que ele viu Irene. Em seguida, era como se a tempestade tivesse passado e seu tom se tornou mais conciliador. Seguiu-nos até o quintal, onde ele nos entregou um saco plástico contendo cem pacotes.
“Vinte mil”, disse ele, estendendo a mão. “Esta é uma entrega à vista.” Levei-o de lado e disse que da próxima vez que nosso estoque acabasse poderíamos ir até o local onde ele vivia.
“Eu não quero visitas”, disse ele.
“Eu poderia pagar mais do que duzentos pelo saco”, eu disse.
Ele me olhou com desconfiança. “Você está planejando iniciar o seu próprio negócio? O que o seu chefe iria dizer sobre isso”
“Isto é entre eu e você”, eu disse. “Estamos falando de ninharia. Dez a vinte sacos para amigos e conhecidos.”
Ele começou a rir.
“Eu vou levar a menina”, eu disse. “O nome dela é Irene, só para você saber.”
Ele parou de rir. Olhou para mim. O Pé torto tentou rir de novo, mas não conseguiu. E agora tudo estava escrito em letras grandes nos seus olhos. Solidão. Ganância. Ódio. E desejo. O maldito desejo.
“Sexta à noite”, disse ele. “Às oito. Será que ela bebe gin?”
Eu balancei a cabeça. De agora em diante ela beberia.
Ele me deu o endereço.
Dois dias depois, o velhinho me convidou para almoçar. Por um segundo eu pensei que Ibsen tinha me dedurado, porque eu ainda me lembrava da sua expressão. Nós fomos servidos por Peter e nos sentamos à mesa comprida na fria sala de jantar, enquanto o velhinho me disse que tinha cortado as importações de heroína de Amsterdam e agora só importava de Bangkok através de alguns pilotos. Ele falou sobre os números, verificou se eu entendi e repetiu a pergunta de sempre: eu estava me mantendo longe do violino? Ele ficou ali sentado na semiescuridão olhando para mim, então ele chamou Peter e disse-lhe para me levar para casa. No carro eu considerei a hipótese de questionar Pedro se o velhinho era impotente.
Ibsen vivia num típico apartamento de solteiro num bloco de apartamentos em Ekeberg. Grande tela de plasma, geladeira pequena e nada nas paredes. Ele nos serviu um gin barato com tônica sem gás, sem uma fatia de limão, mas com três cubos de gelo. Irene estava seguindo o roteiro. Sorriu, foi delicada, e deixou a conversa comigo. Ibsen sentou-se com um sorriso idiota no rosto, de boca aberta, olhos fixos em Irene, embora ele conseguisse fechar a boca sempre que a saliva ameaçava vazar. Ele tocou a mesma ladainha de merda. Eu receberia meus pacotes e nós concordamos que eu voltaria novamente em uma quinzena. Com Irene.
Então saiu o primeiro relatório sobre a diminuição do número de overdoses. O que eles não escreveram era que os usuários inexperientes de violino, depois de apenas algumas semanas, formavam filas com olhos fixos e os tiques visíveis dos sintomas de abstinência. E quando eles estavam lá com suas notas amassadas de cem coroas e descobriam que o preço tinha subido novamente, eles choravam.
Após a terceira visita, Ibsen me chamou de lado e disse que da próxima vez ele queria que Irene viesse sozinha. Eu disse que estava bem, mas então eu queria cinquenta pacotes e o preço seria de cem coroas cada. Ele balançou a cabeça.
Para persuadir Irene foi necessário algum esforço, e pela primeira vez os velhos truques não funcionaram. Eu tive que ser duro. Expliquei que essa era a minha chance. A nossa chance. Perguntei se ela queria continuar dormindo num colchão no chão de uma sala de ensaio de uma banda. E afinal ela murmurou que não. Mas ela não queria... E eu disse que ela não tinha que... ela devia apenas ser boazinha com o velho homem solitário, ele provavelmente não tinha muita diversão com aquele  pé torto dele. Ela assentiu com a cabeça e disse que eu tinha que prometer não contar para Oleg. Depois que ela saiu para o apartamento de Ibsen eu me senti tão baixo que diluí um pacote de violino e fumei o que sobrou num cigarro. Eu acordei com alguém me sacudindo. Ela estava sobre meu colchão chorando tanto que as lágrimas batiam no meu rosto fazendo meus olhos arderem. Ibsen tinha tentado, mas ela conseguiu fugir.
“Você pegou os pacotes?” perguntei.
Obviamente era a pergunta errada. Ela desmoronou completamente. Então eu disse que tinha algo que faria tudo ficar bem de novo. Preparei uma seringa e ela olhou para mim com olhos arregalados e molhados enquanto eu encontrava uma veia azul na sua pele fina e branca e inseria a agulha. Senti os espasmos do corpo dela se transmitirem para o meu enquanto eu pressionava o êmbolo. Sua boca se abriu em um orgasmo silencioso. Em seguida, o êxtase desenhou uma cortina brilhante na frente de seus olhos.
Ibsen podia ser um velho sórdido, mas ele conhecia muito bem a sua química.
Eu também sabia que tinha perdido Irene. Eu podia ver no seu rosto quando perguntei sobre os pacotes. Nunca mais seríamos os mesmos. Naquela noite eu vi Irene deslizar no feliz esquecimento junto com as minhas chances de me tornar milionário.
O velhinho continuou a fazer milhões. Mesmo assim ele queria mais, e mais rápido. Era como se houvesse algo urgente que ele tinha pela frente, uma dívida que venceria em breve. Ele não parecia precisar do dinheiro; a casa era a mesma, a limusine estava lavada, mas nada mudou e a equipe continuava sendo dois: Andrey e Peter. Nós ainda tínhamos um concorrente - Los Lobos - e eles também tinham ampliado suas operações de venda na rua. Eles contrataram os vietnamitas e marroquinos que não foram presos, e eles vendiam violino não só no centro da cidade, mas também em Kongsvinger, em Tromsø, Trondheim e – conforme os boatos - em Helsinque. Odin e Los Lobos podiam estar ganhando mais do que o velhinho, mas os dois compartilhavam o mercado, não havia luta por território, ambos estavam ficando muito ricos. Qualquer empresário com um cérebro totalmente conectado estaria feliz com aquele maldito status quo.
Havia apenas duas nuvens no céu azul brilhante.
Uma delas era o policial disfarçado com o chapéu estúpido. Sabíamos que a polícia tinha sido avisada que as camisas do Arsenal não eram um alvo prioritário no momento, mas o Homem da Boina estava fuçando em torno mesmo assim. A outra era que Los Lobos tinham começado a vender o violino em Lillestrøm e Drammen a um preço mais baixo do que em Oslo, o que significava que alguns viciados decidiram pegar o trem até lá.
Um dia eu fui convocado pelo velhinho e ele me pediu para levar uma mensagem a um policial. Seu nome era Truls Berntsen, e isso tinha que ser feito com discrição. Eu perguntei por que ele não poderia pedir para Andrey ou Peter, mas o velhinho explicou que não queria ter qualquer contato que pudesse levar a polícia de volta para ele. Era um de seus princípios. E mesmo tendo informações que poderiam expô-lo eu era a única pessoa além de Peter e Andrey em quem ele confiava. Sim, em muitos aspectos, ele confiava em mim. O Barão das Drogas confia no Ladrão, pensei.
A mensagem era que ele tinha combinado uma reunião com Odin para discutir Lillestrøm e Drammen. Eles se encontrariam no McDonalds na Kirkeveien, Majorstuen, na quinta-feira às sete da noite. Eles tinham reservado todo o primeiro andar para uma festa privada para crianças. Eu podia visualizá-la, balões, flâmulas, chapéus de papel e a porra de um palhaço. Cujo rosto congelaria quando visse os convidados do aniversário: motociclistas fortões com brilho assassino nos olhos e soco-inglês nas mãos, cossacos de dois metros e meio parecendo muralhas, e Odin e o velhinho tentando encarar um ao outro com um olhar mortal por cima das batatas fritas.
Truls Berntsen vivia sozinho num bloco de apartamentos em Manglerud, mas quando toquei a campainha cedo numa manhã de domingo, não havia ninguém em casa. O vizinho, que tinha obviamente ouvido a campainha de Berntsen, enfiou a cabeça para fora da varanda e gritou que Truls estava na casa de Mikael, construindo um terraço. E enquanto eu estava indo para o endereço que ele tinha me dado eu fiquei pensando que Manglerud devia ser um lugar terrível. Todos sabiam tudo sobre todos.
Eu já tinha ido a Høyenhall antes. Esta é a Beverly Hills de Manglerud. Grandes residências isoladas com uma vista sobre Kværnerdalen, o centro e Holmenkollen. Eu estava na rua olhando para o esqueleto semiacabado de uma casa. Na frente havia alguns caras com suas camisas de fora, lata de cerveja na mão, rindo e apontando para a estrutura que iria, obviamente, ser o terraço. Eu imediatamente reconheci um deles. O sujeito de boa aparência, tipo modelo, com pestanas longas. O novo chefe da Orgkrim. Os homens pararam de falar quando me viram. E eu sabia por que. Eles eram policiais, cada um deles, e sentiam o cheiro de um bandido. Situação complicada. Eu não tinha perguntado ao velhinho, mas o pensamento me ocorreu, Truls Berntsen era o contato na polícia cooptado por Isabelle Skøyen conforme o conselho do velhinho.
“Sim?”, perguntou o homem dos cílios. Ele estava em muito boa forma também. Abdômen bem definido. Eu ainda tinha a oportunidade de recuar e visitar Berntsen no final do dia. Então, eu não sei bem porque eu fiz o que fiz.
“Eu tenho uma mensagem para Truls Berntsen,” eu disse, alto e claro.
Os outros se viraram para um homem que tinha colocado a sua cerveja num canto e se aproximava sobre suas pernas arqueadas. Ele não parou até que estivesse tão perto de mim que os outros não poderiam nos ouvir. Ele tinha cabelos loiros, um poderoso queixo prognata que se projetava como uma gaveta inclinada. Um brilho de ódio e suspeita nos pequenos olhos. Se ele tivesse nascido como um animal de estimação, teria sido descartado por razões puramente estéticas.
“Eu não sei quem é você,” ele sussurrou, “mas posso imaginar, e eu não quero nenhuma porra de visitas desse tipo. OK?”
“OK.”
“Rápido, desembuche logo.”
Eu lhe contei sobre a reunião e a hora. E que Odin tinha avisado que iria aparecer com toda a sua gangue.
“Ele não se atreverá a fazer qualquer coisa”, disse Berntsen com um grunhido.
“Temos informações de que ele acabou de receber uma enorme quantidade de heroína”, eu disse. Os caras no terraço tinham retomado sua tarefa de tomar cerveja, mas eu podia ver o chefe da Orgkrim lançando olhares para nós. Falei em voz baixa e me concentrei em repassar todos os detalhes. “Está armazenada no clube em Alnabru, mas vai ser enviada para fora dentro de alguns dias.”
“Parece que teremos uma batida e algumas detenções.” Berntsen grunhiu novamente, e foi só então que eu percebi que era para ser uma risada.
“Isso é tudo”, eu disse, virando-me para ir embora.
Eu só tinha andado poucos metros adiante quando ouvi alguém gritar. Eu não precisava me virar para saber quem era. Eu tinha visto no seu olhar antes. Afinal, esta é a minha especialidade. Ele veio na minha direção, e eu parei.
“Quem é você?”, perguntou.
“Gusto.” Eu afastei o cabelo dos meus olhos para que ele pudesse vê-los melhor. “E você?”
Por um segundo, ele me olhou com surpresa, como se fosse uma pergunta difícil. Em seguida, ele respondeu com um sorriso: “Mikael.”
“Oi, Mikael. Onde você treina?”
Ele tossiu. “O que você está fazendo aqui?”
“O que eu já disse. Entregar uma mensagem para Truls. Eu poderia tomar um gole da sua cerveja?”
As estranhas manchas brancas do seu rosto se acenderam de repente. Sua voz estava tensa com raiva quando ele falou de novo. “Se você já fez o que veio fazer eu sugiro que caia fora.”
Eu encarei o seu olhar. Um olhar furioso. Mikael Bellman era tão incrivelmente bonito que eu senti vontade de colocar a mão no seu peito. Sentir a pele suada aquecida pelo sol sob meus dedos. Sentir os músculos automaticamente tensos pelo choque com a minha audácia. O mamilo que endureceria enquanto eu o apertava entre o polegar e o indicador. A dor maravilhosa quando ele me desse um soco para salvar o seu bom nome e reputação. Mikael Bellman. Senti o desejo. Meu fodido desejo.
“Até logo”, eu disse.

Na mesma noite tudo ficou claro. Como eu iria ser bem sucedido no que eu acho que você nunca conseguiu. Porque se tivesse, você não teria me abandonado, teria? Como eu iria me tornar inteiro. Como eu iria me tornar humano. Como eu iria me tornar um milionário.

sol brilhava tão intensamente no fiorde que Harry teve que apertar os olhos mesmo com seus óculos de sol femininos.
Oslo não só estava ganhando um facelift em Bjørvika, também estava ganhando seios de silicone, um novo distrito se erguia no fiorde onde antes tinha sido uma área plana e chata. A maravilha de silicone recebeu o nome de Tjuvholmen e parecia cara. Luxuosos apartamentos com vista para o fiorde, luxuosas instalações para ancorar barcos, luxuosas lojas de joias e peças de decoração com itens exclusivos, galerias de arte com piso em parquet de selvas que você nunca tinha ouvido falar, galerias que eram mais espetaculares do que a arte nas paredes. O mamilo na borda mais destacada do fiorde era um restaurante com o tipo de preços que fez com que Oslo ultrapassasse Tóquio como a cidade mais cara do mundo.
Harry entrou e um maitre amigável cumprimentou-o.
“Estou à procura de Isabelle Skøyen,” Harry disse, vasculhando o ambiente. Parecia estar lotado até o teto.
“Você sabe em nome de quem a mesa foi reservada?” o maitre perguntou com um pequeno sorriso que indicava para Harry que todas as mesas foram reservadas semanas atrás.
A mulher que havia respondido quando Harry ligou para o escritório do Comitê de Serviços Sociais na prefeitura tinha inicialmente a intenção de dizer apenas que Isabelle Skøyen saíra para almoçar. Mas quando Harry tinha dito que era por isso que ele estava ligando, ele estava sentado no Continental esperando por ela, a secretária deixou escapar, sem pensar, que o almoço era no Sjømagasinet.
“Não”, disse Harry. “Será que eu poderia entrar e dar uma olhada?”
O maitre hesitou. Analisou o terno.
“Não se preocupe”, disse Harry. “Eu já a encontrei.”
Ele passou pelo maitre antes do julgamento final ser promulgado.
Ele reconheceu o rosto e a pose das imagens na Net. Ela estava encostada no bar com os cotovelos no balcão, de frente para a entrada. Presumivelmente ela estava esperando por alguém, mas parecia mais como se estivesse se apresentando num palco. E quando Harry olhou para os homens sentados nas mesas ele entendeu que ela provavelmente estava fazendo as duas coisas. Seu rosto comum quase masculino era dividido em dois por um nariz parecido com a lâmina de um machado. No entanto, Isabelle Skøyen tinha uma espécie de atração convencional que outras mulheres poderiam chamar de “elegância”. Seus olhos estavam pesadamente maquiados, uma constelação de estrelas em volta das íris frias e azuis, que lhe emprestava um olhar predatório, lupino. Por essa razão, o cabelo dela era um contraste cômico: a juba de uma boneca loira disposta em guirlandas suaves de cada lado do rosto másculo. Mas era seu corpo que fazia Isabelle Skøyen ser um imã para os olhares.
Ela era uma figura imponente, atlética, com ombros e quadris largos. As calças pretas apertadas enfatizavam suas coxas grandes e musculosas. Harry decidiu que seus seios foram comprados, suportados por um sutiã simplesmente impressionante. Sua busca no Google tinha revelado que ela criava cavalos numa fazenda em Rygge; tinha se divorciado duas vezes, a última de um financista que tinha feito fortuna quatro vezes e perdeu três; ela tinha sido uma participante de competições nacionais de tiro; era uma doadora de sangue, em apuros por ter demitido um funcionário e colega político porque ele ‘era um covarde’; e ela, mais do que feliz, posava para fotógrafos em premières de cinema e teatro. Em suma: mulher demais para o seu dinheiro.
Ele entrou no campo de visão dela, e quando ele já tinha atravessado metade do salão ela ainda não tinha deixado de olhar para ele. Como alguém que considera ser seu direito natural olhar para os outros. Harry foi até ela, plenamente consciente de que ele tinha pelo menos uma dúzia de olhares nas suas costas.
“Você é Isabelle Skøyen”, disse.
Ela olhou como se estivesse prestes a dar-lhe pouca atenção, mas mudou de idéia, inclinou a cabeça. “Essa é a questão sobre estes restaurantes superfaturados de Oslo, não é? Todo mundo é alguém. Então...” Ela esticou “ão” enquanto seu olhar o media da cabeça aos pés. “Quem é você?”
“Harry Hole.”
“Há algo de familiar em você. Você já esteve na TV?”
“Há muitos anos. Antes disto.” Ele apontou para a cicatriz no rosto.
“Oh, sim, você é o policial que pegou aquele assassino em série, não é?”
Havia duas maneiras de lidar com esta pergunta. Harry escolheu ser direto.
“Eu era.”
“E o que você faz agora?”, perguntou ela, desinteressada, o olhar vagando por cima do ombro dele, para a saída. Apertou os lábios vermelhos juntos e arregalou os olhos um par de vezes. Aquecimento. Devia ser um almoço importante.
“Roupas e sapatos”, disse Harry.
“Estou vendo. Terno legal,”
“Botas legais. Rick Owens?”
Ela olhou para ele, aparentemente, redescobrindo-o. Estava prestes a dizer algo, mas seu olhar captou um movimento atrás dele. “Minha companhia para o almoço chegou. Até a próxima, Harry, talvez.”
“Hmm. Eu esperava que nós pudéssemos ter um bate-papo agora.”
Ela riu e se inclinou para frente. “Eu gosto do jogo, Harry. Mas é meio dia, eu estou tão sóbria quanto um juiz e já tenho companhia para o almoço. Tenha um bom dia.”
Ela se afastou click-clackeando sobre os saltos.
“Gusto Hanssen foi seu amante?”
Harry disse em um tom baixo, e Isabelle Skøyen já estava a três metros de distância. No entanto, ela endureceu, como se tivesse encontrado uma frequência capaz de cancelar o ruído de vozes, dos saltos e da voz de Diana Krall ao fundo, e somente ela estava vibrando no seu tímpano.
Ela se virou.
“Você telefonou para ele quatro vezes na mesma noite, a última foi há uma hora e quarenta e quatro minutos da madrugada.” Harry tinha sentado num banquinho do bar. Isabelle Skøyen refez os três metros. Ela se elevou sobre ele. Harry lembrou-se de Chapeuzinho Vermelho e o Lobo. E ela não era a Chapeuzinho Vermelho.
“O que você quer, garotão?”, perguntou.
“Eu quero saber tudo o que você sabe sobre Gusto Hanssen.”
As narinas do nariz-machado fremiam e seus seios majestosos inflaram. Harry percebeu que sua pele tinha grandes poros negros, como os pontinhos em uma história em quadrinhos.
“Como uma das poucas pessoas nesta cidade preocupada em manter os toxicodependentes vivos eu também sou uma das poucas a lembrar de Gusto Hanssen. Nós o perdemos, e isso é triste. Essas ligações são porque eu tenho seu número de celular guardado no meu telefone. Nós havíamos convidado Gusto para uma reunião do comitê RUNO há algum tempo. Eu tenho um amigo cujo nome é parecido, e às vezes eu aciono o número errado. Esse tipo de coisa pode acontecer.”
“Quando foi a última vez que se encontrou com ele?”
“Escute aqui, Harry Hole,” ela sussurrou baixinho, salientando Hole e abaixando o rosto ainda mais perto dele. “Se eu entendi corretamente você não é um policial, mas alguém que trabalha com roupas e sapatos. Eu não vejo nenhuma razão para falar com você.”
“É o seguinte,” Harry disse, recostando-se contra o balcão, “eu estou muito interessado em falar com alguém. Então, se não for com você, vai ser com um jornalista. E eles sempre ficam muito contentes em conversar sobre os escândalos envolvendo celebridades e afins.”
“Celebridades?”, ela disse, virando-se com um sorriso radiante dirigido não para Harry, mas para um homem vestindo terno que estava perto do maitre e acenando com os dedos. “Eu sou apenas uma secretária do Comitê, Harry. As fotos esporádicas nos jornais não fazem de você uma celebridade. Basta ver como você já foi esquecido.”
“Eu acredito que os jornais veem em você uma estrela em ascensão.”
“Você acredita realmente? Talvez, mas até mesmo os piores tabloides precisam de algo concreto, e você não tem nada. Ligar para o número errado é...”
“...o tipo de coisa que pode acontecer. O que não pode acontecer, no entanto ...” Harry respirou fundo. Ela estava certa; ele não tinha nada sobre ela. E por isso não era uma ótima idéia falar diretamente. “... é que o sangue do tipo AB negativo aparece por acaso em dois lugares no mesmo caso de assassinato. Uma pessoa em duzentas pertence a esse grupo. Então, quando o relatório forense mostra que o sangue sob as unhas do Gusto é AB negativo e os jornais dizem que é o seu grupo, um velho detetive não pode deixar de somar dois com dois. Tudo o que precisa fazer é pedir um teste de DNA, então saberemos com cem por cento de certeza em quem Gusto enfiou as garras antes de morrer. Será que isso se parece como uma manchete de jornal interessante e um pouco acima da média, Skøyen?”
A secretária do Comitê piscava sem parar, como se suas pálpebras estivessem tentando ativar sua boca.
“Diga-me, o príncipe herdeiro não pertence ao Partido Socialista?” Harry perguntou, franzindo os olhos. “Qual é o nome dele?”
“Podemos conversar”, disse Isabelle Skøyen. “Mais tarde. Mas você tem que jurar que vai manter sua boca fechada.”
“Quando e onde?”
“Dê-me seu número e eu vou ligar depois do trabalho.”
Lá fora, o fiorde cintilava e brilhava. Harry colocou seus óculos de sol e acendeu um cigarro para comemorar um blefe bem realizado. Sentou-se na beira do porto, curtindo cada tragada, recusou-se a sentir o remorso que surgiu, e se focou nos brinquedos caros e fúteis que a mais rica classe trabalhadora do mundo tinha atracado ao longo do cais. Em seguida, ele apagou o cigarro, cuspiu no fiorde e estava pronto para a próxima visita da lista.
 
arry confirmou para a recepcionista no Radium Hospital que tinha agendado uma visita, e ela deu-lhe um formulário. Harry preencheu nome e número de telefone, mas deixou “empresa” em branco.
“Visita particular?”
Harry balançou a cabeça. Ele sabia que esse era um hábito ocupacional das boas recepcionistas: obter uma visão geral, coletar informações sobre as pessoas que entravam e saíam e daqueles que trabalhavam no local. Se, como um detetive, ele precisasse de informações sobre alguém em uma organização, o caminho mais curto seria a recepcionista.
Ela apontou para o escritório no final do corredor. Pelo caminho até lá Harry passou por portas de escritório fechadas e vidraças com vista para grandes salas, pessoas vestindo jalecos brancos lá dentro, bancos repletos de frascos e suportes de tubos de ensaio e grandes cadeados nos armários de aço que Harry calculou que seria um El Dorado para qualquer viciado em drogas.
No final do corredor Harry parou e, para confirmar, leu a placa de identificação antes de bater na porta: Stig Nybakk. Ele mal tinha acabado de bater quando uma voz ecoou: “Entre!”
Nybakk estava de pé atrás da mesa com um telefone ao ouvido, mas acenou para Harry e indicou uma cadeira. Depois de três ‘Sim’, dois ‘Não’, um ‘Estou muito surpreso’ e uma gargalhada, ele desligou e fixou um par de olhos brilhantes em Harry, que como era seu costume sentou-se numa cadeira com as pernas esticadas.
“Harry Hole. Você provavelmente não se lembra de mim, mas eu me lembro de você.”
“Eu já prendi muitas pessoas”, disse Harry.
Mais uma gargalhada alegre. “Frequentamos a Oppsal School. Eu era dois anos mais novo que você.”
“Crianças mais novas costumam se lembrar dos mais velhos.”
“Isso é verdade. Mas, para ser franco eu não me lembro de você da escola. Você estava na TV e alguém me disse que você tinha frequentado a Oppsal e você era amigo de Tresko.”
“Hmm.” Harry estudou as pontas de seus sapatos para sinalizar que ele não estava interessado em falar de assuntos particulares.
“Então você se tornou um detetive? Qual assassinato está investigando agora?”
“Estou investigando uma morte relacionada com as drogas,” Harry começou, para se manter o mais próximo possível da verdade. “Você deu uma olhada no material que lhe enviei?”
“Sim.” Nybakk ergueu o receptor novamente, teclou um número e coçou febrilmente atrás da orelha enquanto esperava. “Martin, você pode vir aqui? Sim, é sobre o teste.”
Nybakk desligou, e houve três segundos de silêncio. Nybakk sorriu; Harry sabia que seu cérebro estava fazendo uma varredura para encontrar um tópico para preencher a pausa. Harry não disse nada. Nybakk tossiu. “Você morava na casa amarela seguindo abaixo pela trilha de cascalho. Eu cresci na casa vermelha no topo da colina. Família Nybakk, lembra?”
“Certo,” Harry mentiu, demonstrando novamente a si mesmo o quão pouco ele se lembrava da sua infância.
“Você ainda tem a casa?”
Harry cruzou as pernas. Sabendo que não poderia evitar o jogo antes que Martin chegasse. “Meu pai morreu há alguns anos. A venda se arrastou um pouco, mas...”
“Fantasmas.”
“Perdão?”
“É importante deixar que os fantasmas saiam antes de você vender, não é? Minha mãe morreu no ano passado, mas a casa ainda está vazia. Casado? Crianças?”
Harry balançou a cabeça. E jogou a bola para a outra metade do campo. “Mas você é casado, já percebi.”
“Oh?”
“A aliança.” Harry acenou com a cabeça na direção da sua mão. “Eu costumava usar uma idêntica.”
Nybakk levantou a mão com a aliança e sorriu. “Usava? Você se separou?”
Harry se amaldiçoou por dentro. Por que diabos as pessoas têm que bater papo? Separado? Claro que ele foi separado. Separado da mulher que ele amava. Daqueles que ele amava. Harry tossiu.
“Pode entrar”, disse Nybakk.
Harry se virou. Uma figura curvada vestindo um jaleco azul olhava para ele da porta. Alto, uma franja negra que pairava sobre uma pálida testa alta, quase branco-neve. Olhos fundos no rosto. Harry não tinha sequer ouvido ele chegar.
“Este é Martin Pran, um dos nossos melhores pesquisadores,” disse Nybakk.
Este, pensou Harry, é o Corcunda de Notre-Dame.
“E então, Martin?”, disse Nybakk.
“O que vocês chamam de violino não é heroína, mas uma droga similar ao levorphanol.”
Harry anotou o nome. “O que é isso?”
“Um opióide altamente explosivo,” Nybakk interveio. “Analgésico poderoso. Seis a oito vezes mais forte do que a morfina. Três vezes mais potente do que a heroína.”
“Sério?”
“Realmente”, disse Nybakk. “Seu efeito dura o dobro do tempo do efeito da morfina. Oito a doze horas. Basta ingerir apenas três miligramas de levorphanol e você tem uma anestesia geral. Metade da dose se for uma injeção.”
“Hmm. Parece perigoso.”
“Não é tão perigoso como se poderia imaginar. Doses moderadas de opióides puros como heroína não destroem o corpo. De jeito nenhum, quem faz isso é principalmente a dependência.”
“Correto. Viciados em heroína morrem como moscas.”
“Sim, mas por duas razões principais. Primeiro, a heroína é misturada com outras substâncias que a transformam em nada menos do que veneno. Misture a heroína e a cocaína, por exemplo, e...”
“Speedball”, disse Harry. “John Belushi...”
“Que ele descanse em paz. A segunda causa de morte muito comum é que a heroína inibe a respiração. Se você tomar uma dose muito grande você simplesmente parar de respirar. E como o nível de tolerância aumenta você toma doses cada vez maiores. Mas isso é a coisa interessante sobre o levorphanol - ele não inibe a respiração de maneira alguma. Não é verdade, Martin?”
O Corcunda assentiu, sem levantar os olhos.
“Hmm,” Harry disse, observando Pran. “Mais forte do que a heroína, efeito por mais tempo, e pouca chance de overdose. Soa como a substância dos sonhos de um viciado.”
“Dependência”, o Corcunda murmurou. “E o preço.”
“Como é?”
“Vemos isso com os pacientes,” Nybakk suspirou. “Eles ficam viciados assim.” Ele estalou os dedos. “Mas com pacientes com câncer a dependência não é um problema. Nós aumentamos o tipo de analgésico e a dosagem de acordo com um gráfico. O objetivo é evitar a dor, não pegar no pé deles. E levorphanol é caro para produzir e importar. Essa pode ser a razão de você não vê-lo nas ruas.”
“Isto não é levorphanol.”
Harry e Nybakk se viraram para Martin Pran.
“É modificado.” Pran levantou a cabeça. E Harry pensou que podia ver seus olhos brilhando, como se uma luz tivesse acabado de ser acesa.
“De que jeito?”, perguntou Nybakk.
“Vai levar um tempo para descobrir como, mas parece que uma das moléculas de cloro foi trocada por uma molécula de flúor. Pode não ser tão caro para produzir.”
“Jesus”, Nybakk disse. “Como Dreser?”
“Possivelmente,” Pran disse com um sorriso quase imperceptível.
“Meu Deus!”, exclamou Nybakk, coçando a parte de trás da cabeça com ambas as mãos com entusiasmo. “Então, nós estamos falando da obra de um gênio. Ou um enorme golpe de sorte.”
“Acho que não estou conseguindo acompanhar vocês, rapazes”, disse Harry.
“Oh, desculpe,” disse Nybakk. “Heinrich Dreser. Ele descobriu a aspirina em 1897. Mais tarde, ele trabalhou na modificação da diacetymorphine. Não muito difícil, uma molécula aqui, outra molécula lá, e voilá, a coisa consegue se ligar a outros receptores no corpo humano. Onze dias depois, Dreser havia descoberto uma nova droga. Ela foi vendida como remédio para tosse até 1913.”
“E a droga era...?”
“O nome era para ser um trocadilho com uma mulher corajosa.”
“Heroína”, disse Harry.
“Correto”.
“E quanto ao invólucro?” Harry perguntou, virando-se para Pran.
“Chama-se revestimento,” o Corcunda retorquiu. “O que há sobre ele?” Ele estava de frente para Harry, mas seus olhos estavam em outro lugar, na parede. Como um animal sendo caçado a procura de uma saída, Harry pensou. Ou um animal de rebanho que não queria enfrentar o desafio hierárquico da criatura que estava olhando diretamente nos olhos dele. Ou simplesmente um ser humano com inibições sociais ligeiramente acima da média. Mas havia algo mais que chamou a atenção de Harry, algo sobre a maneira como ele estava de pé, sua postura curvada.
“Bem,” Harry disse, “os peritos dizem que as manchas marrons no violino se originam do invólucro finamente picado de uma pílula. E é o mesmo... revestimento que vocês usam nas pílulas de metadona que são feitas aqui no Radium Hospital.”
“E então?”, replicou Pran.
“É concebível que o violino seja feito aqui na Noruega por alguém com acesso as pílulas de metadona feitas aqui?”
Stig Nybakk e Martin Pran trocaram olhares.
“Hoje em dia nós fornecemos pílulas de metadona para outros hospitais também, então muitas pessoas a manuseiam”, disse Nybakk. “Mas violino é química de alto nível.” Ele expulsou o ar por entre os lábios com força. “O que você acha, Pran? Já temos competência nos meios científicos noruegueses para descobrir tal substância?
Pran negou com a cabeça.
“E quanto ao acaso?”, perguntou Harry.
Pran deu de ombros. “É claro que é possível que Brahms tenha escrito ein deutsches Requiem por acaso.”
A sala ficou em silêncio. Nem mesmo Nybakk parecia ter alguma coisa a acrescentar.
“Bem,” Harry disse, levantando-se.
“Espero que tenha sido de alguma ajuda”, disse Nybakk, estendendo a mão para Harry do outro lado da mesa. “Diga olá para Tresko. Suponho que ele ainda trabalha a noite na Hafslund Energy, mantendo o dedo no interruptor da rede de energia elétrica da cidade?”
“Algo assim.”
“Será que ele não gosta da luz do dia?”
“Ele não gosta de ser aborrecido.”
Nybakk deu um sorriso hesitante.
A caminho da saída Harry parou duas vezes. Primeiro para examinar o laboratório vazio no qual as lâmpadas tinham sido desligadas durante o dia. A segunda vez foi do lado de fora da porta exibindo na placa de identificação - Martin Pran. Havia luz debaixo da porta. Harry pressionou com cuidado a maçaneta. Trancada.
A primeira coisa que Harry fez quando entrou no carro alugado foi verificar seu telefone celular. Ele viu uma chamada perdida de Beate Lønn, mas ainda nada de Isabelle Skøyen. Perto do Ullevål Stadium Harry percebeu que tinha programado sua saída do centro da cidade muito mal. A nação com a jornada de trabalho mais curta do mundo estava a caminho de casa. Levou 50 minutos para chegar a Karihaugen.
 
ergey estava sentado em seu carro tamborilando os dedos no volante. Em teoria, o seu local de trabalho estava situado no lado oposto do tráfego da hora do rush, mas quando ele estava no turno da noite, ele acabava ficando preso no engarrafamento que deixava a cidade. Os carros seguiam na direção de Karihaugen como lava se resfriando. Ele havia pesquisado sobre o policial. Clicado em notícias velhas. Casos de assassinato. Ele tinha desmascarado um serial killer na Austrália. Sergey tinha se lembrado disso porque naquela manhã, ele estava assistindo um programa da Austrália no Animal Planet. Era sobre a inteligência dos crocodilos do Território do Norte, sobre como eles aprenderam os hábitos de sua presa. Quando os homens acampam no mato eles geralmente pegam um caminho ao longo de um billabong (13) para coletar água depois de acordar de manhã. No caminho eles ficam a salvo dos crocodilos que se encontram na água, observando. Se eles acampam uma segunda noite, certamente repetem o mesmo trajeto do dia anterior. Se eles acampam uma terceira noite e percorrem o mesmo caminho novamente, então desta vez eles não verão um crocodilo na água. Não até que ele corra para fora dos arbustos e arraste sua presa para dentro da água.
O policial parecia desconfortável nas imagens na Net. Como se ele não gostasse de ser fotografado. Ou observado.
O telefone tocou. Era Andrey. Ele foi direto ao ponto.
“Ele está hospedado no Hotel Leon.”
O dialeto do sul da Sibéria era na realidade como uma metralhadora, staccato, mas Andrey fazia soar suave e fluído. Ele disse o endereço duas vezes, devagar e claramente, e Sergey memorizou.
“Certo”, disse ele, tentando parecer interessado. “Vou perguntar o número do quarto. E a menos que seja no final de um corredor vou esperar lá, no final. De modo que quando ele sair do quarto para a escada ou o elevador ele vai ter que virar as costas para mim.”
“Não, Sergey.”
“Não?”
“Não no hotel. Ele estará esperando por nós no Leon.”
Sergey teve um sobresalto de surpresa. “Como assim?”
Ele mudou de pista, uma mais lenta, e ficou atrás de um carro alugado enquanto Andrey explicava que o policial tinha contatado dois vendedores e convidou o ataman para encontrá-lo para uma conversa no Leon. À distância cheirava a uma armadilha. O ataman tinha dado ordens claras para que Sergey fizesse o trabalho em outro lugar.
“Onde?”
“Espere por ele na rua em frente ao hotel.”
“Mas onde eu devo fazê-lo?”
“Você pode escolher”, disse Andrey. “Mas o meu favorito é uma emboscada.”
“Emboscada?”
“Sempre uma emboscada, Sergey. E mais uma coisa...”
“Sim?”
“Ele está começando a avançar sobre áreas onde nós não queremos que ele avance. Isso significa que este assunto está se tornando uma questão de urgência.”
“O que... ahn... isso significa?”
“O ataman diz que você deve levar o tempo que você precisar, mas não demais. Hoje é melhor do que amanhã. O que é melhor do que depois de amanhã. Entendeu?”
“Sim”. Serguey esperava que Andrey não houvesse ouvido ele engolir em seco.
Quando desligou Sergey ainda estava no engarrafamento. Ele nunca havia se sentido tão sozinho em toda a sua vida.
 
 hora do rush estava no seu auge, e o tráfego não ficou mais leve até Berger, pouco antes do cruzamento para Skedsmo. Até então Harry ficou sentado no carro por uma hora e tinha sintonizado todas as estações de rádio antes de ficar com a NRK Clássica por puro protesto. Vinte minutos depois, ele viu a saída para Gardermoen. Ele tinha ligado para o número de Tord Schultz uma dúzia de vezes durante o dia, sem ser atendido. O colega de Schultz, a quem ele, por acaso, localizara na companhia, disse que não tinha idéia de onde Tord poderia estar e que ele geralmente ficava em casa quando não estava voando. E confirmou o endereço que Harry tinha encontrado na Net.
A escuridão estava caindo quando Harry encontrou placas na estrada que indicavam que estava no lugar certo. Ele dirigiu lentamente entre as caixas de sapatos idênticas em ambos os lados da estrada recém-asfaltada. As casas estavam iluminadas o suficiente para ele ser capaz de ler os números, e ele encontrou a casa de Tord Schultz. Estava na mais completa escuridão.
Harry estacionou. Olhou para cima. O brilho de prata surgiu do céu negro, um avião, tão silencioso quanto uma ave de rapina. Luzes varreram os telhados, e o avião desapareceu atrás dele carregando o ruído atrás de si como a cauda de um vestido de noiva.
Harry caminhou até a porta da frente, colocou seu rosto contra o painel de vidro e tocou a campainha. Esperou. Tocou novamente. Esperou por um minuto.
Então ele chutou o painel.
Ele passou a mão através do vidro quebrado, encontrou o trinco e abriu a porta.
Pisando sobre os cacos de vidro, ele continuou até a sala de estar.
A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi a escuridão, estava mais escura do que uma sala devia estar, mesmo com a luz apagada. Ele percebeu que as cortinas estavam fechadas. Cortinas opacas e espessas do tipo que eles usavam no acampamento militar em Finnmark para manter afastado o sol da meia-noite.
A segunda coisa que lhe chamou a atenção foi a sensação de que ele não estava sozinho. E uma vez que a experiência de Harry era que tais sentimentos eram quase sempre acompanhados de impressões sensoriais bastante tangíveis, ele se concentrou no que elas poderiam ser, reprimindo sua própria reação natural: o pulso batendo mais rápido e a necessidade de voltar por onde tinha vindo. Ele ouviu, mas tudo o que podia ouvir era um relógio em algum lugar, provavelmente na sala ao lado. Ele cheirou. Um cheiro penetrante, envelhecido, mas havia outra coisa a mais, distante, mas familiar. Ele fechou os olhos. Como regra geral ele podia vê-los antes que surgissem. Ao longo dos anos ele tinha desenvolvido estratégias mentais para mante-los afastados. Mas agora eles estavam sobre ele antes que pudesse trancar a porta. Os fantasmas. Cheirava a uma cena de crime.
Ele abriu os olhos e ficou ofuscado. A luz que vinha da clarabóia no alto da parede do lado oposto da janela. Ela varreu o chão da sala de estar. Em seguida, veio o som do avião, e no segundo seguinte o ambiente estava mergulhado na escuridão novamente. Mas ele tinha visto. E já não era mais possível reprimir o pulso mais rápido e o urgente desejo de sair dali.
Era o besouro. Zjuk. Ele pairava no ar na frente do seu rosto.
 
(13) Bilabong é uma lagoa ou pequeno riacho sem saída, uma lagoa isolada deixada para trás após um rio ter seu curso aumentado por uma enchente e que depois retornou ao seu curso natural.

rosto estava uma bagunça.
Harry tinha acendido a luz da sala e estava olhando para o homem morto.
A orelha direita havia sido pregada no chão de parquet e seu rosto exibia seis negras crateras sangrentas. Ele não precisou procurar a arma do crime: ela estava pendurada na altura da cabeça diretamente na frente dela. No final de uma corda amarrada numa viga havia um tijolo. Do tijolo se projetavam seis pregos cobertos de sangue.
Harry se agachou e estendeu a mão. O homem estava frio, o rigor mortis era evidente, apesar do calor da sala. O mesmo se aplicava ao livor mortis; a combinação da gravidade e da ausência de pressão sanguínea tinha permitido que o sangue se assentasse no ponto mais baixo do corpo e emprestava ao lado de baixo dos braços uma cor ligeiramente avermelhada. O homem já estava morto há mais de 12 horas, Harry deduziu. A camisa branca e bem passada tinha se enrugado e algumas áreas da barriga podiam ser vistas. Ela ainda não tinha a tonalidade verde que mostrariam que as bactérias começaram a consumi-lo, uma festa que geralmente se inicia após 48 horas e se espalha a partir do estômago.
Além da camisa, ele estava usando uma gravata, que estava solta, calças de terno preto e sapatos engraxados. Como se ele tivesse vindo diretamente de um funeral ou de um emprego que exigisse traje social completo, Harry pensou.
Ele pegou seu telefone e se perguntou se ligava para a Central de Operações ou diretamente para a Brigada Criminal. Ele digitou o número da Central de Operações enquanto olhava ao redor. Ele não tinha notado qualquer sinal de arrombamento, e não havia sinais de luta nesta sala. Além do tijolo e do cadáver não havia nenhuma evidência de qualquer espécie, e Harry sabia que quando o pessoal do Comando Especial de Operações chegasse não iriam encontrar nenhum traço. Nenhuma impressão digital, nenhuma pegada, nenhum DNA. E os detetives não conseguiriam nenhuma informação; nenhum vizinho que tinha visto algo, nenhuma câmera de vigilância em postos de gasolina nas proximidades com cenas de rostos familiares, nenhuma conversa telefônica reveladora para ou a partir do telefone de Schultz. Nada. Enquanto Harry esperava por uma resposta ele foi até a cozinha. Instintivamente pisou com cuidado e evitou tocar em algo. Seu olhar caiu sobre a mesa da cozinha e um prato com um pedaço comido pela metade de pão com salsichão suíço. Sobre o encosto da cadeira havia um paletó combinando com as calças do cadáver. Harry procurou nos bolsos e encontrou quatrocentas coroas, um crachá de visitante, um bilhete de trem e um crachá de linha aérea. Tord Schultz. O sorriso profissional no rosto na foto se parecia com os restos do que ele tinha visto na sala de estar.
“Sala de controle.”
“Eu tenho um corpo aqui. O endereço é...”
Harry olhou o passe de visitante.
“Sim?”
Havia algo familiar nele.
“Alo?”
Harry pegou o crachá de visitante. No topo estava escrito OSLO POLITIDISTRIKT. Embaixo, TORD SCHULTZ e uma data. Ele tinha visitado o QG da Polícia ou uma delegacia há dois dias. E agora ele estava morto.
“Alo?”
Harry desligou.
Sentou-se.
Ponderou.
Ele passou 90 minutos revistando a casa. Depois disso, ele limpou todos os lugares onde poderia ter deixado impressões e removeu o saco de plástico que tinha colocado em volta da cabeça com um elástico de modo a não deixar cair fios de cabelo. Era uma regra estabelecida que todos os detetives e outros policiais que podiam entrar numa cena de crime deviam registrar suas impressões digitais e DNA no banco de dados da Polícia. Se ele deixasse alguma pista não demoraria cinco minutos para a polícia descobrir que Harry Hole tinha estado lá. Os frutos do seu trabalho eram três pequenos pacotes de cocaína e quatro garrafas do que ele assumiu ser bebida contrabandeada. Fora isso, foi exatamente o que ele presumiu: nada.
Ele fechou a porta, entrou no carro e foi embora.
Oslo Politidistrikt.
Merda, merda, merda.
 
uando ele chegou ao centro da cidade, estacionou e ficou olhando para fora pelo para-brisas. Então digitou o número de Beate.
“Oi, Harry.”
“Duas coisas. Eu gostaria de lhe pedir um favor. E dar-lhe uma dica anônima de que há outro homem morto neste caso.”
“Eu acabei de saber.”
“Então, você já sabe?” Harry disse, surpreso. “O método é chamado Zjuk. Besouro em russo”.
“Do que você está falando?”
“O tijolo.”
“Que tijolo?”
Harry respirou. “Do que você está falando?”
“Gojke Tošic.”
“Quem é esse?”
“O cara que atacou Oleg.”
“E?”
“Ele foi encontrado morto na cela.”
Harry olhou diretamente para um par de faróis vindo na sua direção. “Como...?”
“Eles estão verificando agora. Parece que ele se enforcou.”
“Esqueça o se. Eles mataram o piloto também.”
“O quê?”
“Tord Schultz está deitado no chão da sala da sua casa em Gardermoen.”
Dois segundos se passaram antes de Beate responder. “Eu vou informar a Central de Operações.”
“OK.”
“Qual é a segunda coisa?”
“O quê?”
“Você disse que queria me pedir um favor?”
“Oh, sim.” Harry puxou o crachá de visitante do seu bolso. “Gostaria de saber se você pode verificar o registro de visitantes na recepção do QG da Polícia. Veja quem Tord Schultz visitou há dois dias.”
Silêncio novamente.
“Beate?”
“Você tem certeza que isso é algo com o que eu vou querer me envolver, Harry?”
“Tenho certeza que isso é algo que você não vai querer se envolver.”
“Foda-se.”
Harry desligou.
 
arry deixou seu carro no parque de estacionamento de vários andares no Kvadraturen e se dirigiu para o Hotel Leon. Ele passou por um bar e a música flutuando através da porta aberta fez com que ele se lembrasse da noite em que chegou: o convite do Nirvana ‘Come As You Are’.(14) Ele não percebeu que tinha entrado no bar até notar que estava em pé na frente do balcão num salão que parecia um esgoto.
Três clientes estavam sentados nos bancos curvados sobre o balcão. Parecia com um velório de um mês e ninguém ainda havia se levantado. Havia um cheiro de carniça e bancos rangendo. O barman deu um olhar para Harry do tipo peça-agora-ou-vá-para-o-inferno enquanto removia uma rolha lentamente com um saca-rolhas. Ele tinha cinco grandes letras góticas tatuadas no seu pescoço largo. COMER.
“O que é que vai ser?” gritou, conseguindo abafar Kurt Cobain, que estava pedindo para Harry vir como um amigo.
Harry umedeceu os lábios, que tinham ficado repentinamente secos. Olhou para as mãos do barman torcendo. Era um saca-rolhas do tipo mais simples, que requer uma mão firme e treinada, algumas voltas para penetrar, seguido de um puxão rápido. A cortiça foi puxada. Este, porém, não era um bar de vinhos. Então, o que mais eles serviam? Ele viu a imagem distorcida de si mesmo no espelho atrás do barman. O rosto desfigurado. Mas não era apenas o seu rosto; todos os seus rostos, todos os fantasmas, estavam lá. E Tord Schultz foi o último a se juntar. Seu olhar esquadrinhou as garrafas na prateleira espelhadas e como um míssil com sensor de calor encontrou seu alvo. O velho inimigo. Jim Beam.
Kurt Cobain não tinha uma arma.
Harry tossiu. Apenas um.
Nenhuma arma.
Ele fez seu pedido.
“O que?”, o barman gritou, inclinado para a frente.
“Jim Beam”.
Não há nenhuma arma.
“Gin o quê?”
Harry engoliu em seco. Cobain repetiu a palavra ‘memoria’. Harry tinha ouvido a música mais de uma centena de vezes antes, mas ele percebeu que ele sempre tinha pensado que Cobain cantava ‘the more’ seguido por outra coisa.
Memoria. In memoriam. Onde tinha visto isso? Numa lápide?
Ele viu um movimento no espelho. Nesse momento o telefone no bolso começou a vibrar.
“Gin o quê?”, gritou o barman, colocando o saca-rolhas em cima do balcão.
Harry pegou seu celular. Olhou para o display. R. Ele apertou uma tecla.
“Oi, Rakel.”
“Harry?”
Outro movimento atrás dele.
“Tudo o que posso ouvir é só barulho, Harry. Onde você está?”
Harry se virou e caminhou com passos apressados para a saída. Inalou o ar poluído pelos gases de escapamento, mas ainda mais fresco do que o ar lá dentro.
“O que você está fazendo?” Rakel perguntou.
“Me perguntando se viro à esquerda ou à direita,” disse Harry. “E você?”
“Estou indo para a cama. Você está sóbrio?”
“O quê?”
“Você me ouviu. E eu posso ouvi-lo. Eu sei quando você está estressado. E aquilo parecia um bar.”
Harry tirou um maço de Camel. Pegou um cigarro. Viu que a sua mão estava tremendo. “Foi bom você ter ligado, Rakel.”
“Harry?”
Ele acendeu o cigarro. “Sim?”
“Hans Christian conseguiu que Oleg seja mantido sob custódia em um local secreto. É em Østland, mas ninguém sabe onde.”
“Nada mal.”
“Ele é um bom homem, Harry.”
“Não duvido.”
“Harry?”
“Estou aqui.”
“Se pudéssemos plantar alguma evidência. Se eu alegasse a culpa pelo assassinato. Você poderia me ajudar?”
Harry respirou profundamente. “Não.”
“Por que não?”
A porta se abriu atrás de Harry. Mas ele não ouviu nenhum passo se afastando.
“Vou ligar para você do hotel. OK?”
Harry desligou e caminhou a passos largos pela rua sem olhar para trás.
 
ergey observou o homem se afastar pela rua adiante.
Observou-o entrar no Hotel Leon.
Ele tinha estado tão perto. Quase. Primeiro no bar e agora aqui na rua.
A mão de Sergey ainda estava pressionada contra o cabo de chifre de cervo da faca no seu bolso. A lâmina estava para fora e cortando o forro. Por duas vezes ele tinha estado a ponto de dar um passo a frente, agarrar o cabelo com a mão esquerda, enfiar a faca, esculpindo um crescente. É verdade que o policial era mais alto do que ele tinha imaginado, mas não seria um problema.
Nada seria um problema. E como a sua pulsação desacelerou ele podia sentir sua calma retornando. A calma que ele tinha perdido, a calma que seu terror havia reprimido. E novamente ele podia sentir-se ansioso, ansioso para realizar sua tarefa, para se tornar alguém com uma história que já havia sido contada.
E este seria o lugar, o lugar para a emboscada. Sergey tinha visto os olhos do policial quando estava olhando para as garrafas. Era o mesmo olhar que seu pai tinha quando voltava para casa da prisão. Sergey era o crocodilo no billabong, o crocodilo que sabia que o homem faria o mesmo caminho para conseguir algo para beber, que sabia que era apenas uma questão de espera.
 
arry estava deitado na cama no quarto 301, soprando a fumaça para o teto e ouvindo a voz dela no telefone.
“Eu sei que você fez coisas piores do que plantar provas”, disse ela. “Então, por que não? Por que não para uma pessoa que você ama?”
“Você está bebendo vinho branco”, disse ele.
“Como você sabe que não é o vinho tinto?”
“Eu posso ouvir.”
“Então, explique por que você não vai me ajudar.”
“Posso?”
“Sim, Harry.”
Harry apagou o cigarro no copo de café vazio na mesa de cabeceira. “Eu, transgressor da lei e policial demitido, considero que a lei significa algo. Será que isso soa estranho?”
“Continue.”
“Lei é a cerca que erguemos à beira do precipício. Sempre que alguém quebra a lei também rompe a cerca. Então nós temos que consertá-la. O culpado tem que reparar o seu erro.”
“Não, alguém tem que reparar. Alguém tem que levar a punição para mostrar à sociedade que o assassinato é inaceitável. Qualquer bode expiatório pode reconstruir a cerca.”
“Você está arrancando pedaços da lei para atender sua vontade. Você é uma advogada. Você sabe muito bem.”
“Eu sou uma mãe - trabalho como advogada. E quanto a você, Harry? Você é um policial? É isso o que você se tornou? Um robô, um escravo do formigueiro e das ideias que outras pessoas tiveram? É isso que você é?”
“Hmm.”
“Você tem uma resposta?”
“Bem, por que você acha que eu vim para Oslo?”
Pausa.
“Harry?”
“Sim?”
“Desculpe.”
“Não chore.”
“Eu sei. Desculpe.”
“Não peça desculpas.”
“Boa noite, Harry. Eu...”
“Boa Noite.”
 
arry acordou. Ele tinha ouvido alguma coisa. Algo que afogava o som dos seus passos correndo pelo corredor e da avalanche. Ele olhou para o relógio. Uma e trinta e quatro. O varão da cortina, quebrado no meio, dobrou-se na janela e formou a silhueta de uma tulipa. Ele se levantou e foi até a janela e olhou para o quintal. Um latão de lixo estava tombado, ainda chacoalhando. Ele encostou a testa contra o vidro.
 

(14)
Come As You Are                                             Venha Como Voce É        
  Nirvana
Come as you are, as you were                                  Venha como voce é, como você era
       As I want you to be, as a friend                                Como eu quero que você seja, como um amigo
      As a friend, as an old enemy                                      Como um amigo, como um velho inimigo
 
Take your time, hurry up                                          Leve o seu tempo, se apresse
       Choice is yours, don't be late                                    A escolha é sua, não se atrase
       Take a rest, as a friend                                               Dê um descanso, como um amigo
        As an old memoria, memoria                                    Como uma velha memória, memória
       Memoria, memoria                                                    Memória, memória
 
Come doused in mud                                                Venha mergulhado em lama
       Soaked in bleach                                                        Embebido em água sanitária          
      As I want you to be                                                   Como eu quero que você seja
 
As a trend, as friend                                                  Como uma tendência, como amigo
      As an old memoria, memoria                                      Como uma velha memória, memória
      Memoria, memoria                                                     Memória, memória
 
And I swear that I don't have a gun                          E eu juro que não tenho uma arma
      No, I don't have a gun, no, I don't have a gun            Não, não tenho uma arma, não, não tenho uma arma
 
Memoria, memoria, memoria (don't have a gun)      Memória, memória, memória (não tenho uma arma)
 
And I swear that I don't have a gun                           E eu juro que não tenho uma arma
      No, I don't have a gun, no, I don't have a gun             Não, não tenho uma arma, não, não tenho uma arma
      No, I don't have a gun, no, I don't have a gun             Não, não tenho uma arma, não, não tenho uma arma
 
Memoria, memoria                                                      Memória, memória

ra cedo, e o rush da manhã já estava rastejando com um sussurro no sentido da Grønlandsleiret Gate enquanto Truls caminhava para o QG da Polícia. Avistou o cartaz vermelho na tília pouco antes de chegar às portas com suas estranhas portinholas de vigia. Então ele se virou, e caminhou calmamente de volta. Passou pelas filas em slow motion na Oslo Gate na direção do cemitério.
O cemitério estava tão deserto como de costume neste horário. Pelo menos no que diz respeito aos vivos. Ele parou em frente à lápide de A.C. Rud. Não havia mensagens escritas na lápide, portanto tinha que ser dia de pagamento.
Agachou-se e cavou a terra ao lado da pedra. Encontrou o envelope marrom e puxou-o para fora. Resistiu à tentação de abri-lo e contar o dinheiro ali mesmo e, em seguida, enfiou-o no bolso do paletó. Ele estava prestes a se levantar, mas uma súbita sensação de que estava sendo observado o fez ficar agachado mais alguns segundos, como se meditando sobre A.C. Rud e a natureza transitória da vida ou alguma outra besteira.
“Fique onde está, Berntsen.”
Uma sombra caiu sobre ele. E com ela um calafrio, como se o sol tivesse se escondido atrás de uma nuvem. Truls Berntsen se sentiu como se estivesse em queda livre, e seu estômago invadiu seu peito. Então era isso que estava acontecendo. Estava exposto.
“Desta vez nós temos um tipo de trabalho diferente para você.”
Truls sentiu a terra firme sob seus pés novamente. A voz. O ligeiro sotaque. Era ele. Truls olhou para o lado dele. Viu a figura de pé, com a cabeça curvada, distante duas lápides ao lado, aparentemente orando.
“Você tem que descobrir onde eles esconderam Oleg Fauke. Olhe para frente!”
Truls olhou para a pedra na frente dele.
“Eu tentei”, disse. “Mas a mudança não foi registrada em nenhum lugar. Em qualquer lugar que eu possa acessar. E ninguém com quem falei já ouviu algo sobre o cara, por isso o meu palpite é que eles lhe deram outro nome.”
“Fale com aqueles que conhecem. Fale com o advogado de defesa. Simonsen.”
“Por que não a mãe? Ela deve...”
“A mulher não!” As palavras vieram como uma chicotada. Se houvessem outras pessoas no cemitério elas certamente os teriam ouvido. Em seguida, mais calmo: “Experimente o advogado de defesa. E se isso não funcionar...”
Na pausa que se seguiu Berntsen ouviu um barulho através das copas das árvores do cemitério. Devia ter sido o vento; que de repente fez tudo ficar mais frio.
“... tem um homem chamado Chris Reddy,” continuou a voz. “Na rua, ele é conhecido como Adidas. Ele lida com...”
“Speed. Adidas significa amfet...”
“Cale a boca, Berntsen. Apenas ouça.”
Truls calou a boca. E escutou. Da maneira como ele se calava sempre que qualquer pessoa com uma voz semelhante lhe tinha falado para calar a boca. Como obedecia sempre que escutava quando lhe pediam para fazer trabalho sujo. Quando...
A voz deu um endereço.
“Você ouviu um boato de que Adidas andou se gabando por aí de ter atirado em Gusto Hanssen. Então você o levará para interrogatório. E ele fará uma confissão incondicional. Vou deixar para você chegar num acordo sobre os detalhes de modo que sejam cem por cento confiáveis. Primeiro, porém, tente fazer Simonsen falar. Você entendeu?”
“Sim, mas por que Adidas...”
“Por que não é problema seu, Berntsen. Sua única pergunta deve ser quanto.”
Truls Berntsen engoliu em seco. E continuou engolindo. Falou merda. Engoliu merda. “Quanto?”
“Isso mesmo, sim. Sessenta mil.”
“Cem mil.”
Sem resposta.
“Olá?”
Mas tudo o que podia ser ouvido era o sussurro do congestionamento matinal.
Berntsen ainda olhava para a pedra. Olhou para o lado. Ninguém lá. Sentiu o sol começando a aquecê-lo novamente. E sessenta mil era bom. Era mesmo.
 
inda havia neblina no chão quando Harry estacionou em frente ao edifício principal na fazenda de Skøyen às dez da manhã. Isabelle Skøyen estava nos degraus, sorrindo e batendo com um pequeno chicote de equitação contra a coxa do seu culote negro. Enquanto Harry estava saindo do carro ele ouviu o ruído do cascalho sob as botas dela.
“Bom dia, Harry. O que você sabe sobre cavalos?”
Harry bateu a porta do carro. “Eu perdi muito dinheiro com eles. Isso ajuda?”
“Então você é um jogador também?”
“Também?”
“Eu fiz um pouco de trabalho investigativo também. Suas realizações são compensadas pelos seus vícios. Isso, pelo menos, é o que os seus colegas afirmam. Você perdeu o dinheiro em Hong Kong?”
“Pista de corridas Happy Valley. Isso só aconteceu uma vez.”
Ela começou a caminhar na direção de uma baixa construção vermelha, e ele teve que apressar o passo para acompanhá-la. “Você já praticou equitação, Harry?”
“Meu avô tinha um cavalo velho e resistente em Åndalsnes.”
“Tem experiência em cavalgar, então.”
“Uma única vez. Meu avô dizia que os cavalos não eram brinquedos. Ele dizia que montar por prazer mostrava uma falta de respeito para com os animais de trabalho.”
Ela parou na frente de um suporte de madeira com duas selas de couro estreitas. “Nem um único dos meus cavalos já viu ou irá ver uma carroça ou arado. Enquanto eu selo os cavalos eu sugiro que você vá lá...” Ela apontou para a casa da fazenda. “Você vai encontrar algumas roupas mais adequadas que pertenciam ao meu ex-marido no guarda-roupa do hall. Nós não queremos arruinar seu terno elegante, não é?”
No guarda-roupa Harry encontrou um suéter e uma calça jeans que eram de fato grandes o suficiente. Porém, os pés do ex-marido deviam ter sido menores, porque ele não conseguia calçar nenhum sapato, até que encontrou um par de tênis azuis muito usados, do Exército, no fundo do armário.
Quando ele ressurgiu no quintal, Isabelle estava pronta a espera com dois cavalos selados. Harry abriu a porta do passageiro do carro alugado, sentou-se no interior, com as pernas para fora, tirou os sapatos, tirou as palmilhas dos tênis e deixou-as no chão do carro, calçou os tênis e pegou os óculos escuros no porta-luvas. “Pronto”.
“Esta é Medusa”, disse Isabelle, batendo levemente no focinho de um grande alazão. “Ela é uma Oldenburger da Dinamarca, raça perfeita para o adestramento. Dez anos de idade e é a líder do rebanho. E este é Balder, ele tem cinco anos, é castrado, então ele vai seguir Medusa.”
Ela passou-lhe as rédeas de Balder e montou em Medusa.
Harry pôs o pé esquerdo no estribo esquerdo e levantou-se para a sela. Sem esperar por um comando o cavalo começou a andar rapidamente atrás de Medusa.
Harry tinha mentido quando disse que tinha montado uma única vez, mas isto era muito diferente do pangaré lento como uma tartaruga do seu avô. Ele teve que se equilibrar na sela, e quando ele apertou os joelhos contra os lados do cavalo magro ele pode sentir suas costelas e o movimento de seus músculos. E quando Medusa acelerou na trilha através do campo e Balder respondeu, mesmo este pequeno aumento de ritmo fez Harry sentir que tinha um Fórmula Um animal entre suas pernas. No final do campo eles atingiram uma trilha que desaparecia na floresta e seguia para o topo da colina. Onde o caminho bifurcava em volta de uma árvore Harry tentou orientar Balder para a esquerda, mas o cavalo ignorou o comando e seguiu as pegadas de Medusa para a direita.
“Eu pensei que garanhões fossem os líderes de um rebanho”, disse Harry.
“Como regra geral eles são”, disse Isabelle por cima do ombro. “Mas tudo se trata de um personagem. Uma égua forte, ambiciosa e inteligente pode suplantar todos eles se ela quiser.”
“E você quer.”
Isabelle Skøyen riu. “Claro. Se você deseja algo então você tem que estar disposto a competir. A política é toda baseada na aquisição de poder.”
“E você gosta de competir?”
Ele a viu encolher os ombros na frente dele. “A concorrência é saudável. Isso significa que o mais forte e o melhor toma as decisões, e isso é para o benefício de todo o rebanho.”
“E ela também pode acasalar com quem ela gostar?”
Isabelle não respondeu. Harry observou-a. Suas costas eram esbeltas e suas nádegas firmes pareciam estar massageando o cavalo, movendo-se de um lado para o outro com suaves movimentos de quadril. Eles entraram em uma clareira. O sol estava brilhando, e abaixo deles a névoa se espalhava como flocos de algodão por toda a paisagem.
“Vamos deixá-los descansar um pouco”, disse Isabelle Skøyen, desmontando. Depois de terem amarrado os cavalos numa árvore, Isabelle deitou-se na grama e acenou para Harry a seguir. Ele se sentou ao lado dela e ajeitou os óculos de sol.
“Esses óculos são para homens?”, ela brincou.
“Eles protegem contra o sol,” Harry disse, tirando um maço de cigarros.
“Eu gosto disso.”
“Do que você gosta?”
“Eu gosto de homens que estão seguros com a sua masculinidade.”
Harry olhou para ela. Ela estava inclinada sobre os cotovelos e tinha desabotoado um botão da blusa. Ele esperava que seus óculos fossem suficientemente escuros. Ela sorriu.
“Então, o que você pode me dizer sobre Gusto?”
“Eu gosto de homens que são autênticos”, disse ela. O sorriso se alargou.
Uma libélula marrom passou zunindo no seu último voo do outono. Harry não gostou do que viu em seus olhos. O que ele tinha visto desde que chegou. Uma expectativa prazerosa. E nada do mal-estar atormentado que alguém deveria demonstrar quando enfrenta um escândalo que ameaça sua carreira.
“Eu não gosto de falsidade”, disse ela. “Tal como blefar, por exemplo.”
O triunfo brilhava nos seus olhos azuis maquiados.
“Liguei para um contato na polícia, você sabia? E além de me contar um pouco da história sobre o lendário detetive Harry Hole, ele foi capaz de me dizer que não houve análise de sangue no caso Hanssen Gusto. A amostra, aparentemente, tinha sido destruída. Não há unhas com o meu tipo de sangue sob elas. Você estava blefando, Harry.”
Harry acendeu um cigarro. Nenhum sangue nas bochechas e orelhas. Ele se perguntou se havia se tornado muito velho para corar.
“Hmm. Se todo o contato que você teve com Gusto foram algumas entrevistas inocentes por que você estava tão assustada quando eu disse que ia enviar o sangue para ser testado?”
Ela riu. “Quem disse que eu estava com medo? Talvez eu só quisesse que você viesse aqui. Apreciar a natureza e assim por diante.”
Confirmando que não era velho demais para ficar corado Harry deitou-se e soprou a fumaça para o céu ridiculamente azul. Fechou os olhos e tentou encontrar algumas boas razões para não foder Isabelle Skøyen. Havia muitas.
“Agi errado?”, ela perguntou. “Tudo o que estou dizendo é que eu sou uma mulher adulta, solteira e com necessidades naturais. Isso não significa que eu não estou falando a verdade. Eu nunca teria me envolvido com alguém que eu não considerasse meu igual, como Gusto.” Ele ouviu a voz dela se aproximando. “Com um homem adulto e alto, por outro lado...” Ela colocou a mão quente em seu estômago.
“Gusto e você se deitaram onde estamos deitados agora?” Harry perguntou suavemente.
“O quê?”
Ele se contorceu sobre os cotovelos e acenou para os tênis azuis. “Seu armário estava cheio de sapatos masculinos exclusivos, tamanho 42. Estas barcaças eram as únicas 45.”
“E daí? Não posso garantir que eu não tive um visitante do sexo masculino que calçava tamanho 45 alguma vez.” Sua mão acariciou para trás e para frente.
“Este tênis foi fabricado há algum tempo para as Forças Armadas, e quando eles trocaram de modelo, o estoque excedente foi doado para organizações de caridade que os distribuiu para os necessitados. Na polícia os chamamos de tênis de viciados porque eles foram distribuídos pelo Exército da Salvação. A questão é clara, como um visitante casual, tamanho 45, deixaria para trás um par de calçados? A explicação óbvia é que ele provavelmente ganhara um novo par.”
A mão de Isabelle Skøyen parou de se mover. Então Harry continuou.
“Eu vi uma foto da cena do crime. Quando Gusto morreu, ele estava usando um par de calças baratas, mas um sapato muito caro. Alberto Fasciani, a menos que eu esteja muito enganado. Um presente generoso. Quanto você pagou por eles? Cinco mil?”
“Eu não tenho idéia o que você está falando.” Ela afastou a mão.
Harry considerou sua ereção com desaprovação; estava claramente impressa contra as calças emprestadas. Ele esticou os pés.
“Eu deixei as palmilhas no carro. Você sabia que o suor do pé é excelente para o teste de DNA? Nós provavelmente vamos encontrar alguns restos microscópicos de pele, também. E não deve haver muitas lojas em Oslo que vendem sapatos Alberto Fasciani. Uma, duas? De qualquer forma, vai ser um trabalho simples fazer uma verificação cruzada contra o seu cartão de crédito.”
Isabelle Skøyen sentou-se. Ela olhou para a distância.
“Você pode ver as fazendas?”, perguntou ela. “Elas não são lindas? Eu amo paisagens cultivadas. E eu odeio florestas. Menos as plantadas. Eu odeio o caos.”
Harry estudou seu perfil. O nariz- machado parecia francamente perigoso.
“Conte-me sobre Gusto Hanssen.”
Ela encolheu os ombros. “Por quê? Você, obviamente, já descobriu muita coisa.”
“Por quem você quer ser questionada? Por mim ou pelo Verdens Gang.”
Ela deu uma risada curta. “Gusto era jovem e de boa aparência. Esse tipo de garanhão tem uma ótima aparência, mas tem genes duvidosos. O pai biológico é um criminoso e a mãe é uma viciada em drogas, de acordo com o pai adotivo. Não é um cavalo que você possa utilizar para reprodução, mas um que é divertido para você passear se você...” Ela respirou fundo. “Ele vinha aqui e transávamos. Uma vez ou outra eu lhe dei dinheiro. Ele se encontrava com outras pessoas também, não era nada de especial.”
“Isso te fez ficar com ciúmes?”
“Ciúmes?” Isabelle balançou a cabeça. “O sexo nunca me fez ficar ciumenta. Conheci outras pessoas, também. E depois de algum tempo, alguém especial. Então eu deixei Gusto. Ou talvez ele já tivesse me abandonado. Ele já não parecia precisar de dinheiro, aparentemente. Mas então ele entrou em contato comigo novamente. Ele se tornou um incômodo. Eu acho que ele teve problemas financeiros. E também um problema com drogas.”
“Como ele era?”
“Ele era egoísta, não confiável, charmoso. Um bastardo autoconfiante.”
“E o que ele queria?”
“Eu me pareço com uma psicóloga, Harry?”
“Não.”
“Não. As pessoas não me interessam muito.”
“Sério?”
Isabelle Skøyen balançou a cabeça. Olhou para a distância. Seus olhos brilhavam.
“Gusto era solitário”, disse ela.
“Como você sabe?”
“Eu sei o que é solidão, OK? E ele estava cheio de auto-aversão.”
“Autoconfiança e auto-aversão?”
“Não é uma contradição. Você sabe o que pode conseguir, mas isso não significa que você se vê como alguém que os outros possam amar.”
“E porque esse sentimento?”
“Eu já disse a você, eu não sou psicóloga.”
“Não, concordo.”
Harry esperou.
Ela limpou a garganta.
“Seus pais o entregaram para adoção. O que você acha que isso faz com um menino? Por trás de todos os gestos e do jeito de durão ele era alguém que não achava que valia muito. Tão pouco quanto aqueles que tinham desistido dele. Não é uma lógica simples, herr quase policial?”
Harry olhou para ela. Assentiu. Notou que seu olhar a incomodava. Mas ele se absteve de fazer as perguntas que ela, obviamente, sabia que estavam na cabeça dele: qual era a história dela? Quão solitária, quanta auto-aversão havia por trás daquela fachada?
“E sobre Oleg? Você conheceu?”
“Aquele que foi preso pelo assassinato? Nunca. Mas Gusto mencionou um Oleg um par de vezes, disse que ele era seu melhor amigo. Eu acho que ele era seu único amigo.”
“E quanto a Irene?”
“Ele a mencionou também. Ela era como uma irmã.”
“Ela era uma irmã.”
“Não de sangue, Harry. Nunca é a mesma coisa.”
“Não é?”
“As pessoas são ingênuas se acreditam que são capazes de ter amor altruísta. Mas tudo está nos genes que são o mais próximo possível de seu próprio eu. Eu vejo isso na criação de cavalos todos os dias, acredite em mim. E, sim, as pessoas são como cavalos, nós somos animais de rebanho. Um pai vai proteger seu filho biológico, um irmão sua irmã biológica. Em qualquer conflito, instintivamente, vamos ficar do lado daqueles que se parecem mais conosco. Imagine que você está caminhando pela selva e de repente vê outro homem branco, vestido como você, lutando com um homem negro seminu com pintura de guerra. Os dois têm facas e se empenham numa luta mortal. Você tem uma pistola. Qual é o seu primeiro instinto? Disparar no homem branco para salvar o homem negro? Claro que não, não é.”
“Hmm. O que você quer provar?”
“A prova é que a nossa lealdade é determinada biologicamente. Círculos que se espalham para fora a partir do centro, que somos nós mesmos e nossos genes.”
“Então, você atiraria num deles para proteger seus genes?”
“Sem pensar duas vezes.”
“E quanto a matar os dois para ficar mais segura?”
Ela olhou para ele. “O que você quer dizer?”
“O que você estava fazendo na noite que Gusto foi morto?”
“O quê?” Ela franziu um olho no sol e sorriu para ele. “Você suspeita que eu matei Gusto, Harry? E que incriminei aquele... Oleg?
“Apenas me responda.”
“Eu me lembro de onde eu estava, porque ressurgiu na minha mente quando li sobre o assassinato no jornal. Eu estava sentada numa reunião com representantes da Unidade de Narcóticos da Polícia. Eles devem ser testemunhas confiáveis. Quer nomes?”
Harry balançou a cabeça.
“Algo mais?”
“Bem, esse tal de Dubai. O que você sabe sobre ele?”
“Dubai, hmm. Tão pouco quanto qualquer um. Há rumores, mas a polícia não está fazendo nenhum progresso. É típico; os profissionais por trás dos golpes sempre fogem.” Harry procurou por uma mudança no tamanho das pupilas, na cor das bochechas. Se Isabelle Skøyen estava mentindo, ela era muito boa.
“Eu pergunto porque você limpou as ruas de todos os traficantes de drogas menos de Dubai e umas poucas gangues menores.”
“Não eu, Harry. Eu sou apenas uma secretária da conselheira seguindo as ordens do Comitê dos Serviços Sociais e do Comitê da Polícia. E o que vocês chamam de limpar as ruas, estritamente falando, é um trabalho da polícia.”
“Hmm. A Noruega é uma terra de conto de fadas. Mas eu passei os últimos anos no mundo real, Skøyen. E o mundo real é impulsionado por dois tipos de pessoas. Aqueles que querem o poder e aqueles que querem dinheiro. O primeiro quer uma estátua, o segundo quer usufruir. E a moeda que eles usam quando negociam uns com os outros para conseguir o que querem é chamado corrupção.”
“Eu tenho coisas para fazer, Hole. Aonde você quer chegar?”
“Até onde os outros, obviamente, não tiveram a coragem ou a imaginação para chegar. Se você mora numa cidade por um longo tempo você costuma ver a situação como um mosaico de detalhes que você conhece bem. Mas alguém que retorna à cidade, e não conhece os detalhes, só vê a imagem. E a imagem é que a situação em Oslo é favorável para os dois grupos: os grandes traficantes que têm o mercado para si e os políticos que são creditados por terem limpado as ruas.”
“Você está dizendo que eu sou corrupta?”
“Você é?”
Ele viu o flash de fúria nos seus olhos. Genuíno, sem sombra de dúvida. Ele se perguntou se era unicamente a ira dos justos ou a dos enredados. Então, do nada, ela riu. Uma vibrante, e surpreendente, risada de menina.
“Eu gosto de você, Harry.” Ela levantou-se. “Eu conheço os homens, e eles são fracos quando surge uma crise. Mas eu acho que você pode ser uma exceção.”
“Bem,” Harry disse, “pelo menos você sabe com quem está lidando.”
“A realidade nos chama, meu querido.”
Harry se virou para ver o balanço do volumoso traseiro de Isabelle Skøyen enquanto ela ia buscar os cavalos.
Ele a seguiu. Pôs os pés nos estribos. Montou Balder. Olhou para cima e encontrou os olhos de Isabelle. Havia um pequeno sorriso provocante no meio daquele rosto duro, generosamente cinzelado. Ela fez um biquinho de beijo. Fez um som de sucção obsceno e cravou seus calcanhares nos lados da Medusa. E suas costas sacudiram quando o grande animal saltou para a frente.
Balder reagiu sem aviso, mas Harry conseguiu manter-se firme.
Isabelle assumiu o comando novamente, e torrões de terra molhada dos cascos de Medusa choveram em volta. Em seguida, a égua aumentou seu ritmo, e Harry viu o rabo de cavalo de Isabelle de pé quando ela desapareceu numa curva. Ele agarrou as rédeas mais para cima, da forma como o seu avô lhe tinha ensinado, sem apertá-las. O caminho era tão estreito que os galhos batiam nele, mas ele se agachou na sela e apertou os joelhos com força contra o cavalo. Ele sabia que não seria capaz de fazê-lo parar, então se concentrou em manter os pés nos estribos e a cabeça baixa. Na margem da sua visão, árvores passavam em listras amarelas e vermelhas. Automaticamente ele se ergueu na sela e colocou seu peso sobre os joelhos e os estribos. Abaixo dele músculos ondulavam e vibravam. Ele tinha a sensação de que estava sentado em uma jiboia. E agora eles tinham encontrado uma espécie de ritmo, acompanhado pelo rufar de trovão dos cascos no solo. Um sentimento de horror competiu com um senso de obsessão. O caminho se endireitou, e a cinquenta metros na frente deles Harry viu Medusa e Isabelle. Por um momento, foi como se a imagem estivesse congelada, como se tivessem parado, como se cavalo e cavaleiro estivessem flutuando sobre o solo. Então Medusa retomou seu galope. Mais um segundo passou antes que Harry percebesse.
E tinha sido um segundo valioso.
Na Academia de Polícia ele tinha lido relatórios científicos que mostravam que durante catástrofes o cérebro humano tenta processar enormes quantidades de dados em segundos. Para alguns policiais isso pode levar a uma paralisia; para outros a um sentimento de que o tempo está seguindo mais devagar, que a vida passa diante deles, e eles conseguem fazer um número surpreendente de observações e avaliações da situação. Tais como, estando a uma velocidade de quase 70 quilômetros por hora eles tinham coberto vinte metros e havia apenas trinta metros e noventa segundos restantes para o abismo que Medusa tinha acabado de atravessar.
E era impossível ver o quão grande era.
Aquela Medusa era treinada, um cavalo enorme e totalmente adestrado com uma amazona experiente enquanto Balder era mais jovem e menor e tinha um novato de cerca de noventa quilos nas costas.
Aquele Balder era um animal de rebanho e, claro, Isabelle Skøyen sabia disso.
Então já era tarde demais para parar.

Harry relaxou as mãos nas rédeas e cravou os calcanhares nos lados de Balder. Sentiu uma última onda de ritmo. Então tudo ficou quieto. O rufar parou. Eles estavam flutuando. Muito abaixo deles viu uma copa de árvore e um córrego. Em seguida, ele foi empurrado para a frente e bateu a cabeça contra o pescoço do cavalo. Eles caíram.

ocê também era ladrão, papai? Porque eu sempre soube que ia ser um milionário. Meu lema sempre foi roubar apenas quando valia a pena, então eu tinha sido paciente e esperei. E esperei. Esperei tanto tempo que, quando a oportunidade finalmente surgiu eu pensei que realmente merecia aquela porra.
O plano era tão simples quanto brilhante. Enquanto a gangue de motoqueiros de Odin estivesse em reunião com o velhinho no McDonalds, Oleg e eu iriamos roubar parte do estoque de heroína que eles tinham em Alnabru. Em primeiro lugar, não haveria ninguém na sede do clube porque Odin levaria todos os seus homens com ele. Em segundo lugar, Odin nunca iria descobrir que tinha sido roubado porque ele seria preso no McDonalds. Quando ele estivesse sentado no banco dos réus ele iria agradecer a nós dois por reduzirmos o número de quilos do material que seria apreendido durante a batida. O único problema seria a polícia e o velhinho. Se os policiais percebessem que alguém tinha dado um passo a frente deles e roubado parte do estoque, e isso fosse parar nos ouvidos do velhinho, estaríamos fodidos. O problema seria facilmente resolvido do jeito como o velhinho me ensinou: com um roque, uma aliança estratégica. Fui direto ao bloco de apartamentos em Manglerud, e desta vez Truls Berntsen estava em casa.
Ele me olhou com ceticismo quando expliquei, mas eu não estava preocupado. Porque eu já tinha percebido aquilo nos seus olhos. A ganância. Outra daquelas pessoas desesperadas por retorno, que acreditavam que o dinheiro podia comprar o remédio para o desespero, solidão e amargura. Não só isso, também havia uma coisa chamada justiça, e ela é um produto de consumo, mais ou menos. Expliquei que precisava de sua experiência para cobrir eventuais pistas que nós deixássemos para a polícia, e para ‘queimar’ qualquer coisa que eles achassem. Talvez até mesmo jogar a suspeita diretamente sobre outros, se necessário. Eu vi o brilho nos seus olhos quando eu disse que levaria cinco dos vinte quilos do esconderijo. Dois para mim e para ele, um para Oleg. Eu o vi fazendo os cálculos, um vírgula dois milhões vezes dois, dois vírgula quatro para ele.
“E esse Oleg é a única outra pessoa que com quem você conversou?”, perguntou.
“Juro.”
“Você tem alguma arma?”
“Uma Odessa para nós dois.”
“Hein?”
“A versão C&A de uma Stechkin.”
“OK. É improvável que os detetives vão reparar no número de quilos, se não houver sinais de arrombamento, mas eu suponho que você está com medo que Odin venha atrás de você.”
“Não”, eu disse, “Eu não dou a mínima para Odin. É do meu chefe que eu estou com medo. Eu não tenho nenhuma idéia de como, mas eu sei que ele sabe quantas gramas de heroína Odin tem armazenado lá.”
“Eu quero a metade”, disse ele. “Você e Boris podem compartilhar o resto.”
“Oleg.”
“Fique feliz por eu ter uma memória ruim. E isso funciona nos dois sentidos. Vai me levar metade de um dia para encontrar você e cinco øre para destruir você.” Ele amorosamente rolou o “r” em destruir.
Foi Oleg quem deu a ideia de como deveríamos camuflar o roubo. Era tão simples e óbvio que eu não sei por que não tinha pensado nisso.
“Nós trocamos o que pescarmos por farinha de batata. A polícia vai reportar quantos quilos confiscaram, não a pureza do seu conteúdo, não é?”
O plano era como eu disse, tão brilhante quanto simples.
Na mesma noite em que Odin e o velhinho estariam participando da festa de aniversário no McDonalds e discutindo o preço do violino em Drammen e Lillestrøm, Berntsen, Oleg e eu estávamos de pé na escuridão do lado de fora da cerca do clube dos motociclistas em Alnabru. Berntsen estava no controle, e nós estávamos usando meias de nylon na cabeça, jaquetas pretas e luvas. Em nossas mochilas tínhamos armas, uma furadeira, uma chave de fenda, um pé de cabra e seis quilos  de farinha de batata em sacos pláticos . Oleg e eu tínhamos explicado onde Los Lobos haviam colocado suas câmeras de vigilância, mas pulando a cerca e correndo encostados na parede do lado esquerdo, ficaríamos no ponto cego o tempo todo. Sabíamos que poderíamos fazer tanto barulho quanto quiséssemos porque o tráfego pesado na E6 abafaria tudo, então Berntsen perfurou a parede enquanto Oleg ficava de vigia e eu cantarolava ‘Been Caught Stealing’ (ser preso roubando), que era a trilha sonora do jogo GTA de Stein, e ele me dissera que era de uma banda chamada ‘Jane’s Addiction’ (O Vicio de Jane), e eu me recordei porque era um nome legal, mais legal do que as músicas, na verdade. Oleg e eu estávamos em território familiar e o layout do clube era simples: ele consistia de um grande salão. Mas, como todas as janelas haviam sido habilmente cobertas com persianas de madeira o plano era perfurar um olho mágico, então poderíamos ter certeza que o clube estava desocupado antes de entrarmos. Berntsen tinha insistido nisso, ele se recusava a acreditar que Odin deixaria vinte quilos de heroína, com um valor de mercado de vinte e cinco milhões, sem vigias. Conhecíamos Odin melhor do que ele, mas cedemos. Segurança em primeiro lugar.
“Pronto”, disse Berntsen, segurando a furadeira, que morreu com um grunhido.
Eu coloquei meu olho no buraco. Não podia ver merda nenhuma. Ou alguém tinha desligado a luz ou então Berntsen não tinha perfurado até o fim. Virei-me para Berntsen que estava limpando a broca. “Que tipo de isolamento de merda é este?”, ele disse, levantando um dedo. Parecia gema de ovo e cabelo.
Nós caminhamos dois metros para o lado e fizemos um novo buraco. Olhei através dele. E lá estava o bom e velho clube. Com as mesmas cadeiras de couro antigas, o mesmo bar e a mesma imagem de Karen McDougal, a Playmate do Ano, montada numa motocicleta personalizada. Eu nunca descobri o que lhes dava mais tesão: mulheres ou motocicletas.
“Tudo limpo”, eu disse.
A porta dos fundos estava enfeitada com ferrolhos, cadeados e fechaduras.
“Eu pensei que você disse que havia apenas ‘uma’ fechadura!”, disse Berntsen.
“Antes era”, eu disse. “Odin, obviamente, tornou-se um pouco paranoico.”
O plano tinha sido desaparafusar a fechadura e coloca-la novamente antes de sairmos, de modo que não haveria sinais de arrombamento. Ainda era possível, mas não no tempo que tínhamos calculado. Nós começamos a trabalhar.
Depois de vinte minutos Oleg olhou para o relógio e disse que precisávamos nos apressar. Nós não sabíamos exatamente quando a batida ocorreria, apenas que iria acontecer em algum momento após as prisões, e as prisões teriam de ocorrer muito rapidamente porque Odin não gostaria de ficar por lá quando percebesse que o velhinho não iria aparecer.
Passamos meia hora tirando aquelas merdas, três vezes mais do que o calculado. Nós pegamos nossas armas, puxamos as meias para baixo sobre o rosto e entramos, Berntsen primeiro. Tínhamos quase passado pela porta quando ele caiu sobre um joelho e segurou a arma na frente dele com as duas mãos, como um membro da porra da SWAT.
Um cara estava sentado numa cadeira ao lado da parede oeste. Odin tinha deixado Tutu como cão de guarda. Em seu colo estava uma escopeta. Mas o cão de guarda estava sentado com os olhos fechados, boca aberta e a cabeça contra a parede. Os boatos que circulavam diziam que Tutu gaguejava mesmo quando roncava, mas agora ele estava dormindo tão docemente quanto um bebê.
Berntsen ficou de pé novamente e foi na ponta dos pés em direção ao dorminhoco Tutu, arma na frente. Oleg e eu seguimos atrás dele, também na ponta dos pés.
“Só tem um buraco,” Oleg sussurrou para mim.
“O quê?” eu sussurrei de volta.
Mas então eu percebi.
Eu podia ver o último furo. E imaginei, onde o primeiro deveria estar.
“Merda,” eu sussurrei. Mesmo já percebendo que não havia mais nenhum motivo para sussurrar.
Berntsen tinha furado Tutu. Ele deu-lhe um cutucão. Tutu rolou para o lado da cadeira e caiu no chão. Ele estava deitado de bruços no concreto e pudemos ver o furo circular na parte de trás da cabeça dele.
“A broca perfurou até o fim”, disse Berntsen. Ele enfiou seu dedo no orifício na parede.
“Maldição” sussurrei para Oleg. “Quais são as probabilidades disso acontecer, hein?”
Mas ele não respondeu. Ele estava olhando para o corpo, como quem não sabe se vomita ou chora.
“Gusto”, ele disse finalmente, “o que nós fizemos?”
Eu não sei o que deu em mim, mas eu comecei a rir. Era impossível segurar. A pose elegante, com as mãos no quadril, do policial com o queixo proeminente, o desespero no rosto de Oleg, achatado atrás da meia, e Tutu com a boca aberta mostrando que, afinal de contas, tinha um cérebro. Eu ria tanto que uivava. Até que levei um tapa e vi fagulhas na frente dos olhos.
“Recomponha-se, a menos que você queira outro tapa”, disse Berntsen, esfregando a palma da mão.
“Obrigado”, eu disse com sinceridade. “Vamos procurar a droga.”
“Primeiro temos que descobrir o que fazer com o Drillo”(14), disse Berntsen.
“É tarde demais”, eu disse. “De qualquer maneira agora eles vão descobrir que houve uma invasão.”
“Não se conseguirmos levar Tutu no carro e aparafusarmos toda a tranqueira novamente”, comentou Oleg numa voz esganiçada, cheia de lágrimas. “Se eles descobrirem que uma parte das drogas sumiu, certamente vão pensar que ele fugiu com ela.”
Berntsen olhou para Oleg e assentiu. “Parceiro brilhante que você tem aí, Wussto(15). Vamos indo.”
“A droga primeiro”, eu disse.
“Drillo primeiro”, disse Berntsen.
“Droga”, repeti.
“Drillo”.
“Tenho a intenção de me tornar um milionário, esta noite, Sr. queixada.”
Berntsen levantou a mão. “Drillo”.
“Calem a boca!” Foi Oleg. Nós olhamos para ele.
“É  lógica simples. Se Tutu não estiver no carro antes da polícia chegar perdemos tanto a droga quanto a nossa liberdade. Se Tutu estiver no carro, mas não a droga, perderemos apenas o dinheiro.”
Berntsen virou para mim. “Parece que Boris concorda comigo, Wussto. Dois contra um.”
“OK”, eu disse. “Você carrega o corpo e eu vou procurar a droga.”
“Errado”, disse Berntsen. “Levamos o corpo e você limpa a merda.” Ele apontou para a pia na parede ao lado do bar.
Eu coloquei água num balde enquanto Oleg e Berntsen agarraram uma perna cada um e arrastaram Tutu para a porta, deixando um fino rastro de sangue. Sob o olhar provocante de Karen McDougal esfreguei cérebro e sangue da parede e, em seguida, do chão. Eu tinha acabado e estava prestes a começar a procurar pelas drogas quando ouvi um som vindo da frente do clube, que dava para a E6. Um som que eu tentei me convencer que estava acontecendo em outro lugar. O fato de que o som estava ficando cada vez mais alto poderia ser uma invenção da minha imaginação. As sirenes da polícia.
Verifiquei o bar, o escritório e o banheiro. Era um salão simples, sem segundo andar, sem porão, não havia muitos lugares para se esconder vinte quilos de drogas. Então meus olhos caíram sobre a caixa de ferramentas. O cadeado. Que nunca tinha estado lá antes.
Oleg gritou alguma coisa da porta.
“Me dá o pé de cabra”, gritei de volta.
“Nós temos que sair agora! Eles estão chegando!”
“O pé de cabra!”
“Agora, Gusto!”
Eu sabia que estava lá dentro. Vinte e cinco milhões de coroas, na minha frente, dentro da merda de uma caixa de madeira. Eu comecei a chutar o cadeado.
“Eu vou atirar, Gusto!”
Virei-me para Oleg. Ele estava apontando a porcaria da Odessa para mim. Não que eu pensasse que ele iria me acertar daquela distância, era bem mais que dez metros, mas apenas pela idéia de que ele estava apontando uma arma para mim.
“Se eles pegarem você eles vão nos pegar!”, ele gritou com lágrimas na garganta. “Vamos!”
Eu chutei o cadeado novamente. As sirenes estavam ficando cada vez mais altas. A questão sobre sirenes, porém, é que elas sempre parecem estar mais perto do que estão.
Eu ouvi um estalo como um chicote acima de mim na parede. Olhei para a porta, e meu sangue gelou. Era Berntsen. Ele estava lá com sua pistola da polícia fumegante na mão.
“A próxima vai acertar”, ele disse calmamente.
Eu dei um último chute na caixa. Então corri.
Mal tínhamos passado por cima da cerca e retirado as meias quando nos deparamos com os faróis dos carros da polícia. Caminhamos casualmente na direção deles.
Eles passaram acelerados por nós e viraram para estacionar na frente da sede do clube.
Continuamos subindo a colina até onde Berntsen havia estacionado seu carro. Entramos e partimos tranquilamente. Quando passamos pelo clube eu me virei e olhei para Oleg no banco traseiro. A luz azul varria seu rosto, inflamado pelas lágrimas e pelas meias apertadas. Ele parecia completamente esgotado, olhando para a escuridão como se estivesse pronto para morrer.
Nenhum de nós disse nada até Berntsen parar num ponto de ônibus em Sinsen.
“Você ferrou com tudo, Wussto”, ele disse.
“Eu não tinha como saber sobre os ferrolhos”, respondi.
“Chama-se preparação”, disse Berntsen. “Coletar informações, fazer reconhecimento. Já ouviu falar? Nós vamos encontrar uma porta aberta com os ferrolhos desmontados.”
Eu percebi que por ‘nós’ ele quis dizer ‘os policiais’. Sujeito esquisito.
“Eu peguei a tranqueira”, Oleg fungou. “Vai parecer que Tutu correu como o diabo fugindo da cruz quando ouviu as sirenes, nem sequer teve tempo para fechar a porta. E as marcas dos parafusos poderiam ter ficado depois de uma invasão feita anteriormente, certo?”
Berntsen olhou para Oleg no espelho. “Aprenda com o seu amigo, Wussto. Na verdade, melhor não. Oslo não precisa de mais um ladrão inteligente.”
“Certo”, eu disse. “Mas talvez também não seja uma idéia muito inteligente estacionar nas linhas amarelas do ponto de ônibus com um corpo no porta-malas.”
“Concordo”, disse Berntsen. “Pode ir, então.”
“O corpo...”
“Vou descartar o Drillo.”
“Onde...?”
“Não é da sua conta. Fora!”
Nós saímos e  o Saab de Berntsen partiu acelerado.
“A partir de agora, nós temos que nos manter longe desse cara”, eu disse.
“Por quê?”
“Ele matou um homem, Oleg. Ele tem que apagar todas as evidências físicas. Primeiro, ele vai ter que encontrar um lugar para esconder o corpo. Mas depois disso...”
“Ele vai ter que apagar as testemunhas.”
Eu balancei a cabeça. Senti-me deprimido pra caralho. Então, eu aventurei um pensamento otimista: “Parecia que ele tinha em mente um grande esconderijo para o corpo do Tutu, não é?”
“Eu ia usar o dinheiro para me mudar para Bergen com Irene”, disse Oleg.
Eu olhei para ele.
“Eu consegui uma vaga para cursar Direito na universidade de lá. Irene está em Trondheim com Stein. Eu estava pensando em ir até lá e convencê-la a ir comigo.”
Nós pegamos o ônibus para a cidade. Eu não podia suportar o olhar vazio de Oleg por mais tempo, tinha que ser preenchido com algo.
“Vamos”, eu disse.
Enquanto eu preparava um pico na sala de ensaios eu vi que ele me olhava com impaciência, como se quisesse assumir o controle, como se achasse que eu era desajeitado. E quando ele arregaçou as mangas eu entendi o porquê. Ele tinha marcas de agulha por todo o seu antebraço.
“Só até Irene voltar”, ele explicou.
“Você já tem um estoque particular, hein?”, perguntei.
Ele balançou a cabeça. “Tenho roubado.”
Foi nessa noite que eu lhe ensinei onde e como fazer um esconderijo adequado.
 
ruls Berntsen estava esperando há mais de uma hora no estacionamento de vários andares quando um veículo finalmente entrou no lugar vago com uma placa indicando que era reservado para a sociedade de advogados Bach & Simonsen. Ele tinha decidido que este seria o lugar certo; apenas dois carros tinham chegado a esta parte do estacionamento desde a hora que ele chegou ali, e não havia câmeras de vigilância. Truls conferiu se o número da placa era o mesmo que encontrara no site do Departamento de Transito. Hans Christian Simonsen tinha acordado tarde. Ou talvez ele não estivesse dormindo, talvez ele estivesse com uma mulher. O homem que desceu do carro tinha uma franja juvenil loira, do tipo que as crianças mimadas e enjoadas da Oslo Oeste costumavam usar.
Truls Berntsen colocou seus óculos de sol, enfiou as mãos nos bolsos do casaco e apertou o punho da pistola, uma Steyr, austríaca, semiautomática. Ele não usaria o revólver padrão da polícia para que o advogado não tivesse nenhuma pista desnecessária. Ele caminhou rapidamente para cortar o caminho de Simonsen, enquanto ele ainda se encontrava entre os carros. Uma ameaça funciona melhor se é rápida e agressiva. Se a vítima não tem tempo para mobilizar outros pensamentos além do medo da morte, você vai conseguir o que quer imediatamente.
Era como se Berntsen tivesse pó efervescente no sangue – suas orelhas zumbiam, as veias das virilhas e da garganta pulsavam. Ele visualizou o que ia acontecer. A arma no rosto de Simonsen, tão perto que o cano seria tudo o que ele se lembraria. Então diria: ‘Onde está Oleg Fauke? Responda-me, rapidamente e com precisão, ou então eu vou matar você agora mesmo.’ A resposta. Em seguida: ‘Se você avisar alguém ou disser que esta conversa aconteceu nós iremos voltar para matá-lo. Entendeu?’ Sim. Ou acenos dormentes. Talvez micção involuntária. Truls sorriu com o pensamento. O ritmo aumentara. A pulsação se espalhou para o estômago.
“Simonsen!”
O advogado olhou para cima. E seu rosto se iluminou. “Oh, olá! Berntsen. Truls Berntsen, não é?”
A mão direita de Truls congelou no bolso do casaco. E ele devia ter ficado com uma expressão desanimada porque Simonsen deu uma gargalhada. “Eu tenho uma boa memória para rostos, Berntsen. Você e seu chefe, Mikael Bellman, investigaram o caso do desfalque no Heider Museum. Eu era o advogado de defesa. Você ganhou o caso, eu fico triste em dizer.”
Simonsen riu de novo. O jovial e ingênuo riso da Oslo Oeste. O riso de pessoas que cresceram com todos desejando somente o melhor uns para os outros, num lugar com a riqueza necessária para que fossem capazes alcançar esse objetivo. Truls odiava todos os Simonsens deste mundo.
“Qualquer coisa em que eu possa ajudá-lo, Berntsen?”
“Eu...” Truls Berntsen se atrapalhou com as palavras. Este não era o seu forte, decidir o que fazer face a face com... com o quê? Pessoas que eram mais rápidas verbal e mentalmente do que ele? Tinha sido muito bom aquele dia em Alnabru, eram apenas dois garotos e ele tinha tomado o comando. Mas Simonsen tinha um terno, educação, uma maneira diferente de falar, superioridade, ele... merda!
“Eu só queria dizer olá.”
“Olá?”, disse Simonsen com um ponto de interrogação na sua entonação e no rosto.
“Olá”, disse Berntsen, forçando um sorriso. “Que lástima esse caso. Você vai nos vencer da próxima vez.”
Em seguida, dirigiu-se para a saída num passo acelerado. Sentindo os olhos de Simonsen nas suas costas. Falou merda, comeu merda. Fodam-se todos eles.
Experimente o advogado, e se isso não funcionar, tem um homem chamado Chris Reddy que todo mundo conhece como Adidas.
O traficante de speed. Truls esperava que tivesse um pretexto para usar a violência durante a prisão.
 
arry nadou para a luz, em direção à superfície. A luz se tornou mais forte e mais forte. Em seguida, ele atingiu a superfície. Abriu os olhos. E olhou diretamente para o céu. Ele estava deitado de costas. Algo entrou em seu campo de visão. Uma cabeça de cavalo. Em seguida outra.
Ele protegeu os olhos. Alguém estava sentado num cavalo, mas ele estava ofuscado pela luz.
A voz veio de longe.
“Eu pensei que ouvi você dizer que já tinha cavalgado antes, Harry.”
Harry gemeu e se esforçou para ficar de pé enquanto recordava o que tinha acontecido exatamente. Balder tinha flutuado através do abismo e aterrissou no chão com as patas dianteiras, Harry tinha sido atirado para a frente, batendo no pescoço de Balder, perdendo os estribos e deslizando de lado e segurando as rédeas firmemente. Ele se lembrava vagamente de arrastar Balder com ele, mas jogou-se para fora dele, para não ter meia tonelada de cavalo caindo por cima.
Suas costas doíam como se estivessem quebradas, mas por outro lado ele parecia estar inteiro.
“O pangaré do meu avô não saltava sobre canyons”, disse Harry.
“Canyons?” Isabelle Skøyen riu, passando-lhe as rédeas de Balder. “Isto não é mais do que uma pequena fenda de cinco metros. Eu posso saltar mais longe sem um cavalo. Não sabia que você era do tipo nervoso, Harry. Vamos ver quem vai chegar primeiro na fazenda?”
“Balder”, Harry disse, batendo no focinho do cavalo enquanto eles observavam Isabelle Skøyen e Medusa correrem pelo campo aberto, “você está familiarizado com o passo equino chamado marcha?”
 
arry parou num posto de gasolina na E6 e comprou um café. Ele voltou para o carro e olhou no espelho. Isabelle tinha lhe dado um curativo para colocar no arranhão da testa, um convite para acompanhá-la na estreia de Don Giovanni na Opera House (“... impossível encontrar um acompanhante mais alto do que meu queixo quando uso saltos altos... não fica bom nas fotos nos jornais...”) e um forte abraço de despedida. Harry pegou seu celular e leu a mensagem.
“Onde você estava?”, perguntou Beate.
“Um pouco de trabalho de campo”, disse Harry.
“Não havia muito para nos ajudar na cena do crime em Gardermoen. O meu pessoal vasculhou o lugar. Nada. A única coisa que nós descobrimos é que os pregos são uma variedade de aço padrão, com cabeças extragrandes de dezesseis milímetros de alumínio, e que o tijolo provavelmente veio de uma propriedade em Oslo construída no final de 1800.”
“Ahn?”
“Nós encontramos sangue de porco e crina de cavalo na argamassa. Houve um pedreiro muito conhecido em Oslo que costumava fazer esta mistura, há grande quantidade dela nos blocos de apartamentos no centro da cidade. Você pode fazer argamassa com qualquer coisa.”
“Hmm.”
“Finalmente, nenhuma pista por lá também.”
“Também?”
“Sim, aquela visita que você falou comigo. Deve ter sido em outro lugar, não no QG da Polícia, porque nenhum Tord Schultz foi registrado. Os passes de visitante tem apenas a inscrição Oslo Politidistrikt e há outros similares em várias delegacias de polícia.”
“OK. Obrigado.”
Harry procurou nos bolsos até que encontrou o que estava procurando. O crachá de visitante de Tord Schultz. E o seu, o que tinham dado quando ele visitou Hagen na Brigada Criminal no seu primeiro dia em Oslo. Ele os colocou um ao lado do outro no painel de instrumentos. Estudou-os. Tirou suas conclusões e colocou de volta no bolso. Virou a chave de ignição, puxou o ar com força, confirmou que ainda podia sentir cheiro de cavalo e decidiu visitar um antigo rival em Høyenhall.
 
(14) Drillo: jogo de palavras com ‘drill’ que significa broca. Também é o apelido do treinador da seleção de futebol norueguesa, Egil ‘Drillo’ Olsen.
(15) Wussto: jogo de palavras com ‘wusste’ conjugação do verbo alemão “wissen” que significa conhecer, saber. A intenção é chamar Gusto de ‘sabichão’.

omeçou a chover por volta das cinco, e quando Harry tocou a campainha da grande casa, as seis, estava tão escuro quanto uma noite de Natal em Høyenhall. A casa tinha todos os sinais de ser recém-construída; ainda havia restos de materiais de construção empilhados ao lado da garagem, e sob a escada ele viu latas de tinta e embalagens de isolação térmica.
Harry viu uma figura se movimentando por trás do vidro bisotado decorativo e sentiu os cabelos da nuca se arrepiarem.
Então a porta se abriu, rápida, feroz, os movimentos de um homem que não tem nada a temer de ninguém. No entanto, ele ficou tenso quando viu Harry.
“Boa noite, Bellman”, disse Harry.
“Harry Hole... Bem, devo dizer...”
“Dizer o que?”
Bellman riu. “É uma surpresa vê-lo aqui na minha porta. Como foi que você descobriu onde eu moro?”
“Quanto mais famoso, menos segredos. Na maioria dos outros países, o chefe da Orgkrim teria um guarda-costas na porta, você sabia? Estou interrompendo alguma coisa?”
“Nem um pouco”, disse Bellman, coçando o queixo. “Eu estou me perguntando se convido você a entrar ou não.”
“Bem,” disse Harry, “está molhado aqui fora. E eu venho em paz.”
“Você não sabe o que essa palavra significa”, disse Bellman, abrindo mais a porta. “Limpe seus pés.”
Mikael Bellman levou Harry pelo corredor, passando por uma torre de caixas de papelão, uma cozinha onde ainda não havia nenhum equipamento da linha branca, até uma sala de estar. Não luxuosa do jeito como ele tinha visto em algumas casas em Oslo Oeste, mas sólida e espaçosa o suficiente para uma família. Harry observou que a vista do Kvaerner Valley, da Central Station e do centro da cidade era fantástica.
“A vista custa quase tanto quanto a casa”, disse Bellman. “Você vai ter que desculpar a confusão. Ainda estamos fazendo a mudança. Nós daremos uma festa de inauguração na próxima semana.”
“E você se esqueceu de me convidar?” Harry disse, tirando o casaco molhado.
Bellman sorriu. “Posso oferecer-lhe uma bebida agora. Que tal...”
“Eu não bebo,” Harry sorriu de volta.
“Oh, maldição,” disse Bellman sem qualquer sinal de remorso, “a gente se esquece tão rapidamente. Veja se você consegue encontrar uma cadeira em algum lugar, e eu vou ver se consigo encontrar uma jarra de café e duas xícaras.”
Dez minutos depois, eles estavam sentados perto das janelas diante do terraço e da vista. Harry foi direto ao que interessava. Mikael Bellman escutou sem interromper, mesmo quando Harry podia notar a descrença nos seus olhos. Quando Harry terminou Bellman resumiu.
“Então você acha que o piloto, Tord Schultz, estava tentando contrabandear violino para fora do país. Ele foi preso, mas liberado após um queimador com distintivo da polícia ter trocado o violino por farinha de batata. E esse Schultz foi executado em sua casa após ser liberado, provavelmente porque o seu patrão tinha descoberto que ele visitou a polícia e estava com medo que ele fosse contar tudo o que sabia.”
“Hmm.”
“E você apoia a sua alegação de que ele tinha ido ao QG da Polícia pelo fato de que ele possuía um crachá de visitante com Oslo Politidistrikt escrito nele?”
“Eu comparei com o passe que eu recebi quando visitei Hagen. A impressão na barra do “H” esta desbotada em ambos. Definitivamente a mesma impressora.
“Eu não vou perguntar como você pegou o passe de visitante de Schultz, mas como você pode ter tanta certeza de que não foi uma visita normal? Talvez ele quisesse explicar a farinha de batata, certificar-se que acreditavam nele.”
“Porque o seu nome foi excluído do livro dos visitantes. Era importante que esta visita fosse mantida em segredo.”
Mikael Bellman suspirou. “É o que eu sempre pensei, Harry. Deveríamos ter trabalhado em conjunto, não uns contra os outros. Você teria gostado da Kripos.”
“Do que você está falando?”
“Antes de dizer qualquer outra coisa, eu tenho um favor para lhe pedir. Por favor, mantenha silêncio sobre o que eu vou dizer a você.”
“OK.”
“Este caso já me colocou em uma situação embaraçosa. Fui eu a pessoa que Schultz visitou. E, você está certo, ele queria me dizer o que sabia. Entre outras coisas, ele me disse o que eu tinha suspeitado por muito tempo: que temos um queimador entre nós. Alguém, eu acredito, que trabalha no QG, perto dos casos da Orgkrim. Eu disse a ele para esperar em casa, enquanto eu falava com o meu superior. Eu tive que pisar com cautela para não alarmar o queimador. Mas cuidado, muitas vezes significa que as coisas se movem lentamente. Falei com o Chefe da Polícia, que está se aposentando, mas ele deixou para mim a tarefa de encontrar uma maneira de lidar com isso.”
“Por quê?”
“Como eu disse, ele está se aposentando. Ele não tem nenhuma vontade de tratar de um caso envolvendo um policial corrupto como presente de despedida.”
“Então ele queria manter o caso em segredo até que se aposentasse?”
Bellman olhou para sua xícara de café. “É muito provável que eu vou ser nomeado novo chefe de polícia, Harry.”
“Você?”
“Provavelmente ele pensou que eu poderia muito bem começar com um caso de merda. O problema é que eu fui muito lento no gatilho. Pensei demais. Poderíamos ter conseguido que Schultz revelasse a identidade do queimador imediatamente. Mas, em seguida, todos os outros iriam se esconder. Então pensei, que tal se colocarmos um microfone em Schultz e faze-lo chegar até aqueles a quem queríamos prender? Quem sabe, talvez chegar até o atual Mr Big de Oslo.”
“Dubai”.
Bellman assentiu. “O problema era: em quem eu podia confiar no QG e em quem eu não poderia? Eu tinha acabado de recrutar um pequeno grupo de policiais, verifiquei a ficha de todos pessoalmente, e então a notícia chegou na forma de uma denúncia anônima...”
“Tord Schultz tinha sido encontrado morto,” disse Harry.
Bellman olhou severamente para ele.
“E agora,” Harry disse, “o problema é que se o assunto vir à tona, a sua nomeação como chefe de polícia poderá ser questionada.”
“Bem, é isso”, disse Bellman. “Mas isso não é o que mais me preocupa. O problema é que nada do que Schultz me disse pode ser usado. Nós não temos mais do que tínhamos antes. Esse suposto policial que visitou Schultz na sua cela e pode ter trocado a droga...”
“Sim?”
“Ele se identificou como policial. O inspetor em Gardermoen parece se lembrar que o nome dele era Thomas ou algo parecido. Nós temos cinco Thomas no QG da Polícia. Nenhum deles na Orgkrim, só para constar. Enviei as fotos dos nossos Thomas, mas ele não reconheceu nenhum deles. Então, por tudo que sabemos, o queimador pode até mesmo não ser da polícia.”
“Hmm. Portanto, uma pessoa com identidade falsa da polícia. Ou, mais provavelmente, alguém como eu, um ex-policial.”
“Por quê?”
Harry deu de ombros. “É preciso ser um policial para enganar outro policial.”
A porta da frente fez um click.
“Querida!” Bellman chamou. “Nós estamos aqui.”
A porta da sala se abriu, e o rosto doce e bronzeado de uma mulher de trinta anos surgiu. Seu cabelo loiro estava preso num rabo de cavalo, e Harry se lembrou de ex-esposa de Tiger Woods.
“Eu deixei as crianças com a mamãe. Você está vindo, docinho?”
Bellman tossiu. “Temos um visitante.”
Ela inclinou a cabeça. “Eu estou vendo, querido.”
Bellman olhou para Harry com uma expressão resignada o-que-se-pode-fazer?
“Oi,” ela disse com um olhar sedutor para Harry. “Meu pai e eu temos outra carga no reboque. Se você...?”
“Estou com dor nas costas e uma súbita saudade de casa”, Harry murmurou, terminando sua xícara de café e ficando de pé.
“Só mais uma coisa,” Harry disse quando ele e Bellman já estavam do lado de fora na varanda. “A visita de que lhe falei, ao Radium Hospital?”
“Sim?”
“Tem um homem lá, um cientista. Martin Pran. Apenas um instinto, mas eu me pergunto se você poderia verificá-lo para mim.”
“Para você?”
“Desculpe, velho hábito. Para a polícia. Para o país. Para a humanidade.”
“Instinto?”
“Isso é tudo que tenho a oferecer, no que se refere a este caso. Se você puder, me informe sobre o que você conseguir encontrar...”
“Eu vou levar em conta.”
“Obrigado, Mikael.” Harry podia perceber como era estranha a sensação que ele sentia na língua ao dizer o nome de batismo daquele homem. Perguntou-se se já sentira isso antes. Mikael abriu a porta para o tempo chuvoso, e o ar frio os atingiu.
“Lamento ouvir sobre o garoto,” disse Bellman.
“Qual?”
“Ambos.”
“Hmm.”
“Sabe de uma coisa? Eu conheci Gusto Hanssen uma vez. Ele veio aqui.”
“Aqui?”
“Sim. Um garoto incrivelmente atraente. O tipo...” Bellman procurava as palavras. Desistiu. “Você era apaixonado por Elvis quando era menino? Um homem sedutor, como dizem os americanos.”
“Bem,” Harry disse, tirando um maço de cigarros. “Não.”
Ele podia jurar que viu um lampejo de vermelho nas manchas de pigmentos brancos de Mikael Bellman.
“O garoto tinha esse tipo de rosto. E carisma.”
“O que ele queria aqui?”
“Queria falar com um policial. Eu tinha um bando de colegas me ajudando aqui. Quando você só tem um salário de policial você tem que fazer a maioria das coisas por si mesmo, você sabe.”
“Com quem ele falou?”
“Quem?” Bellman olhou para Harry, embora seus olhos estivessem fixos em outro lugar, em algo que tinha acabado de ver. “Eu não me lembro. Estes viciados estão sempre prontos a dedurar alguém se você lhes der mil coroas para um pico. Boa noite, Harry.”
 
arry estava cruzando o Kvadraturen. Uma van parou adiante na rua perto de uma prostituta negra. A porta se abriu e três rapazes - eles não poderiam ter mais de vinte anos - saltaram para fora. Um filmava enquanto um segundo se dirigiu para a mulher. Ela balançou a cabeça. Provavelmente não queria fazer um filme erótico em grupo e que acabaria saindo no YouPorn. Também tinham Internet no lugar de onde ela veio. Família, parentes. Talvez eles pensassem que o dinheiro que ela mandava para casa era do seu emprego de garçonete. Ou talvez eles não pensassem, e preferiam não perguntar. Quando Harry chegou mais perto um dos rapazes cuspiu no chão na frente dela e disse com uma voz estridente e embriagada: ‘ Bunda negra barata. ’
O olhar de Harry encontrou o olhar cansado da mulher negra. Acenaram a cabeça como se ambos tivessem visto algo que eles reconheciam. Os dois outros rapazes notaram Harry e se endireitaram. Rapazes fortes e bem alimentados. Bochechas de maçã, bíceps de academia, talvez depois de um ano de kick-boxing ou karate.
“Boa noite, cavalheiros”, Harry sorriu, sem abrandar o passo.
Em seguida, depois de passar por eles, ouviu a porta bater e o motor da van rugir.
Ouviu a mesma música que tocava sempre. “Come as You Are”. O convite.
Harry diminuiu o passo. Por um momento.
Em seguida, ele aumentou o passo novamente, caminhou sem olhar para trás.
 
arry foi acordado na manhã seguinte pelo toque do seu celular. Sentou-se, olhou para a luminosidade na janela sem cortinas, esticou o braço para o paletó pendurado sobre a cadeira, vasculhou os bolsos até que encontrou o telefone.
“Pode falar”.

“É Rakel.” Ela estava sem fôlego de tanta excitação. “Eles soltaram Oleg. Ele está livre, Harry!”

arry estava no meio do quarto de hotel, banhado pela luz da manhã. Exceto pela sua orelha direita coberta pelo telefone ele estava nu. No quarto do outro lado do pátio uma mulher estava olhando para ele com os olhos sonolentos com a cabeça inclinada enquanto mastigava lentamente uma fatia de pão.
“Hans Christian não sabia de nada até chegar no trabalho 15 minutos atrás”', disse Rakel. “Eles soltaram Oleg ontem no final da tarde. Outra pessoa confessou o assassinato Gusto de Hanssen. Isso não é fantástico, Harry?”
Sim, de fato, pensou Harry. Era fantástico. Como em i-na-cre-di-tá-vel.
“Quem confessou?”
“Alguém que se chama Chris Reddy, alias Adidas. Ele é um viciado e pequeno traficante. Ele atirou porque Gusto lhe devia dinheiro de uma compra de anfetaminas.”
“Onde Oleg está agora?”
“Nós não sabemos. Acabaram de nos contar.”
“Pense, Rakel! Onde ele poderia estar?” A voz de Harry soou mais dura do que ele queria.
“Qual... qual é o problema?”
“A confissão. A confissão é o problema, Rakel.”
“Como assim?”
“Você não entendeu? A confissão é uma invenção!”
“Não, não, não. Hans Christian diz que a confissão é extremamente detalhada e crível. É por isso que já soltaram Oleg.”
“Este Adidas diz que atirou em Gusto porque ele lhe devia dinheiro. Portanto ele é um assassino cínico e frio. Por quê de repente sentiu dor de consciência e simplesmente resolveu confessar?”
“Quando ele viu que a pessoa errada estava prestes a ser condenada...”
“Esqueça! Um viciado desesperado tem uma única coisa na cabeça: se drogar. Não sobra nenhum espaço para uma consciência, acredite em mim. Este Adidas está tão desesperado que, por uma compensação adequada, está mais do que disposto a confessar um assassinato e então retirar a sua confissão mais tarde, depois que o principal suspeito for liberado. Você não percebe o enredo que montaram? Se o gato sabe que não pode chegar perto do passarinho engaiolado...”
“Pare!” Gritou Rakel, já em lágrimas.
Mas Harry não parou. “...o passarinho tem que sair da gaiola.”
Ele ouviu seu choro. Sabia que tinha, provavelmente, colocado em palavras o que ela mesma já tinha meio que considerado.
“Você não pode dizer algo para me tranquilizar, Harry?”
Ele não respondeu.
“Eu nunca mais quero ter medo”, ela sussurrou.
Harry respirou fundo. “Nós conseguimos antes, e nós vamos conseguir novamente, Rakel.”
Ele desligou. E aquele pensamento o atingiu novamente. Ele tinha se tornado um brilhante mentiroso.
A mulher na janela do outro lado acenou preguiçosamente para ele com três dedos.
Harry passou a mão sobre o rosto.
Agora era só uma questão de quem encontraria Oleg primeiro, Harry ou eles.
Pense.
Oleg foi solto ontem à tarde, em algum lugar em Østland. Um viciado em drogas com uma fissura por violino. Ele teria feito um caminho mais curto para Oslo, Plata, se ele não tivesse uma reserva escondida. Não seria confiável para ele aparecer na Hausmanns Gate, a cena do crime ainda estava lacrada. Então, aonde ele iria dormir, sem dinheiro, sem amigos? Urtegata? Não, Oleg sabia que seria visto por lá, e os rumores voam.
Havia apenas um lugar onde Oleg poderia estar.
Harry olhou para o relógio. Era vital que ele chegasse lá antes que o pássaro tivesse voado.
 
 estádio estava totalmente deserto como da última vez que esteve em Valle Hovin. A primeira coisa que Harry viu quando virou a esquina para a área do vestiário era que um dos painéis ao nível da rua estava amassado. Ele olhou para dentro. Havia vidro espalhado pelo chão. Então, caminhou até a porta, abriu-a com a chave que ainda estava com ele e entrou.
E foi atingido por um trem de carga.
Harry se engasgou tentando inspirar o ar enquanto estava deitado no chão se debatendo com algo em cima dele. Algo fedorento, molhado e desesperado. Harry se contorceu tentando sair do aperto. Ele refreou suas ações reflexas de esmurrar; em vez disso agarrou um braço, uma mão, inclinou-a para trás. Fez um grande esforço para ficar de joelhos e ao mesmo tempo usou essa força para empurrar o rosto do assaltante para o chão.
“Ui. Merda! Me solta!”
“Sou eu. Oleg, é o Harry.”
Ele soltou e ajudou Oleg a se levantar, e soltou-o no banco do vestiário.
O garoto estava num estado lastimável. Pálido. Fino. Olhos esbugalhados. E fedia a uma mistura indefinível de excrementos e cirurgia dentária. Ele não estava alto.
“Eu pensei...”, disse Oleg.
“Você pensou que eu fosse eles.”
Oleg cobriu o rosto com as mãos.
“Vamos”, disse Harry. “Vamos lá para fora.”
Sentaram-se nas arquibancadas. Na luz pálida que brilhava na plataforma de cimento rachado. Harry pensou em todas as vezes em que esteve lá assistindo Oleg patinar, ouvindo as lâminas de aço cantando no gelo, observando o reflexo dos holofotes na superfície verde-mar e, eventualmente, branco-leitosa.
Eles se sentaram juntinhos, como se a arquibancada estivesse lotada.
Harry ouviu a respiração de Oleg por um tempo antes de começar.
“Quem são eles, Oleg? Você tem que confiar em mim. Se eu consegui encontrar você, então posso encontra-los.”
“E como você me encontrou?”
“Por um processo conhecido como dedução.”
“Eu sei o que é. Eliminar o impossível e ver o que restou.”
“Quando você chegou aqui?”
Oleg deu de ombros. “Ontem à noite. Em torno das nove.”
“Por que não você não ligou para sua mãe quando foi libertado? Você sabe que agora é perigoso ficar aqui fora.”
“Ela só iria me levar para algum lugar, me esconder. Ela e aquele Nils Christian.”
“Hans Christian. Aqueles caras vão te encontrar, você sabe.”
Oleg olhou para suas mãos.
“Eu achei que você viria para Oslo para um pico”, disse Harry. “Mas você está limpo.”
“Estou há mais de uma semana.”
“Por quê?”
Oleg não respondeu.
“É ela? É por causa da Irene?”
Oleg olhou para a pista, como se pudesse se ver lá. Pudesse ouvir o canto alto no gelo quando estava patinando. Ele balançou a cabeça lentamente. “Eu sou a única pessoa que está tentando encontrá-la. Ela não tem mais ninguém além de mim.”
Harry não disse nada.
“A caixa de joias que eu roubei da Mamãe...”
“Sim?”
“Eu vendi tudo por causa das drogas. Menos a aliança que você comprou para ela.”
“Por que você não vendeu aquela aliança também?”
Oleg sorriu. “Primeiro porque ela não vale muito.”
“O quê?” Harry fingiu uma expressão de horror. “Eu fui enganado?”
Oleg riu. “Uma aliança de ouro que fica com manchas verde-cinzentas? Isso se chama zinabre. Aquela aliançal é de cobre com um pouco de chumbo para dar peso.”
“Então, por que você simplesmente não deixou lá mesmo?”
“Mamãe não iria usá-la nunca mais. Então, eu queria dá-la para Irene.”
“Cobre e chumbo banhado a ouro.”
Oleg deu de ombros. “Parecia a coisa certa. Lembro-me de quão feliz mamãe ficou quando você a colocou no dedo dela.”
“O que mais você se lembra?”
“Domingo. Vestkanttorget. O sol abaixando e as folhas secas de outono estalando sob nossos pés. Você e mamãe sorrindo e rindo de alguma coisa. Eu queria segurar a sua mão. Mas é claro que eu não era mais um garotinho. Você comprou a aliançal numa barraca onde vendiam artigos de segunda mão.”
“Você ainda se lembra de tudo isso?”
“Sim. E eu pensei que se Irene ficasse feliz, pelo menos a metade, como mamãe...”
“Ela ficou?”
Oleg olhou para Harry. Piscou. “Eu não me lembro. A gente devia estar muito alto quando eu dei a aliança para ela.”
Harry engoliu em seco.
“Ele está com ela”, disse Oleg.
“Quem?”
“Dubai. Ele pegou Irene. Ela está lá como refém por isso não vou falar.”
Harry olhou para Oleg, que abaixou a cabeça.
“É por isso que eu não disse nada.”
“Você sabe disso? E eles ameaçaram você sobre o que vai acontecer com Irene se você falar?”
“Eles não precisam. Eles sabem que eu não sou estúpido. Além disso, eles têm que mantê-la calada também. Eles estão com ela, Harry.”
Harry mudou de posição. Ele se recordava que costumavam sentar-se desse jeito antes de corridas importantes. Cabeças inclinadas, em silêncio, em uma espécie de concentração comunal. Oleg não queria nenhum conselho. E Harry não tinha nenhum. Mas Oleg simplesmente gostava de ficar sentado ali.
Harry tossiu. Esta não era uma corrida de Oleg.
“Para termos uma chance de salvar Irene você precisa me ajudar a encontrar Dubai”, disse Harry.
Oleg olhou para Harry. Enfiou as mãos sob suas coxas e balançou os pés. Do jeito como costumava fazer. Então, acenou com a cabeça.
“Comece com o assassinato”, disse Harry. “Leve o tempo que você precisar.”
Oleg fechou os olhos por alguns segundos. Então ele os abriu novamente.
“Eu estava alto, eu tinha aplicado um pico de violino perto do rio atrás do nosso apartamento na Hausmanns Gate. Era mais seguro. Se eu aplicasse o pico no apartamento alguns dos outros ficariam desesperados, eles iriam saltar em cima de mim para roubá-lo. Você entende?”
Harry acenou com a cabeça.
“A primeira coisa que eu vi, ao subir as escadas, foi a porta do escritório em frente. Tinha sido assaltado. Mais uma vez. Eu não pensava em mais nada. Eu entrei na nossa sala de estar e vi Gusto. E um homem com uma balaclava. Ele estava apontando uma arma para Gusto. E eu não sei se foi a droga ou sei lá o que, mas eu sabia que não era um assalto. Gusto ia ser morto. Então eu reagi instintivamente. Atirei-me para a mão com a arma. Mas já era tarde demais e ele conseguiu disparar um tiro. Eu caí no chão e quando olhei para cima novamente eu estava deitado ao lado de Gusto com o cano de uma arma na minha cabeça. O homem não disse uma palavra, e eu estava certo que ia morrer. Oleg parou, respirou fundo. “Mas parecia que ele não conseguia tomar uma decisão. Em seguida, ele passou um dedo na garganta para indicar o que aconteceria se eu abrisse o bico.”
Harry acenou com a cabeça.
“Ele repetiu a mensagem e eu indiquei que havia entendido. Então ele saiu. Gusto estava sangrando como um porco, e eu sabia que ele precisava de ajuda rapidamente. Mas eu não me mexi, eu estava certo que o homem com a arma ainda estava do lado de fora porque eu não tinha ouvido seus passos na escada. E se ele me visse poderia mudar de idéia e atirar em mim também.”
Os pés de Oleg estavam balançando para cima e para baixo.
“Eu tentei tomar o pulso de Gusto, tentei falar com ele, disse que eu iria buscar ajuda. Mas ele não respondeu. E então eu não consegui mais sentir o seu pulso. E eu não podia ficar lá dentro por mais tempo. Eu fugi. Oleg endireitou-se como se estivesse com dor nas costas, cruzou as mãos e colocou-as atrás da cabeça. Quando ele continuou a sua voz tornou-se mais espessa. “Eu estava alto, eu não conseguia pensar direito. Eu fui até o rio. Eu pensei em nadar. Talvez eu tivesse sorte e me afogasse. Então eu ouvi as sirenes. E depois, eles estavam lá... E tudo que eu consegui pensar foi no dedo na garganta. E que eu tinha que manter minha boca fechada. Porque eu sei como eles são, essas pessoas, eu os ouvi falando sobre o que eles fazem.”
“E o que eles fazem?”
“Eles procuram descobrir onde você é mais vulnerável. No começo eu estava com medo pela mamãe.”
“Mas era simples pegar Irene”, disse Harry. “Ninguém iria se importar com uma garota da rua que sumisse por um tempo.”
Oleg olhou para Harry. Engoliu em seco. “Então você acredita em mim?”
Harry deu de ombros. “Eu sou muito crédulo no que diz respeito a você, Oleg. É completamente normal quando você está... quando você... você sabe.”
Os olhos de Oleg ficaram lacrimejantes. “Mas... mas a história é tão implausível. Todas as evidências...”
“As coisas estão se encaixando”, disse Harry. “O resíduo de pólvora no seu braço foi obtido quando você se jogou para a frente. O sangue foi quando você tomou o pulso dele. E foi assim que você deixou suas impressões digitais nele. A razão pela qual ninguém viu alguém saindo do prédio após o tiroteio é porque o assassino foi para o escritório, saiu pela janela e desceu a escada de incêndio de frente para o rio. Foi por isso que você não ouviu os passos dele na escada.”
Oleg tinha os olhos pensativos fixos em algum lugar no peito de Harry. “Mas por que mataram Gusto? E quem o matou?”
“Eu não sei. Mas eu acho que ele foi morto por alguém que você conhece.”
“Alguém que eu conheço?”
“Sim. É por isso que ele usou gestos em vez de falar. Assim você não iria reconhecer a sua voz. E a balaclava sugere que ele receava que outros no mundo das drogas pudessem reconhecê-lo também. Ele podia ser alguém que a maioria de vocês que circula por lá viram antes.”
“Mas por que ele me poupou?”
“Não tenho ideia.”
“Eu não entendo isso. Eles tentaram me matar na prisão depois. Embora eu não tivesse dito uma palavra.”
“Talvez o assassino não recebesse instruções detalhadas sobre o que fazer com as eventuais testemunhas. Ele hesitou. Por um lado, se você o viu muitas vezes antes, poderia reconhecê-lo pelo seu corpo, pela linguagem corporal e jeito de andar. Por outro lado, você estava tão alto que provavelmente não tinha muita noção das coisas.”
“A droga salva vidas?” Oleg disse com uma tentativa de sorriso.
“Sim. Mas o chefe dele não teve a mesma opinião quando recebeu o relato. Mas, então, já era tarde demais. Portanto, para garantir que você não abriria o bico eles sequestraram Irene.”
“Eles sabiam que eu iria ficar de boca fechada durante o tempo que eles estivessem com Irene, então por que me matar?”
“Eu apareci”, disse Harry.
“Você?”
“Sim. Eles sabiam que eu estava aqui em Oslo desde o momento que desci do avião. Eles sabiam que eu era o único que poderia fazer você falar. Ter Irene não era o suficiente. Então Dubai deu ordens para que você fosse silenciado na prisão.”
Oleg balançou a cabeça lentamente.
“Conte-me sobre Dubai”, disse Harry.
“Eu nunca me encontrei com ele. Mas acho que estive na casa dele uma vez.”
“E onde ela fica?”
“Eu não sei. Gusto e eu fomos apanhados por seus capangas e conduzidos até uma casa, mas eu estava com os olhos vendados.”
“Você sabe que era a casa de Dubai, não é?”
“Isso foi o que Gusto me disse. Cheirava a casa ocupada. Os sons eram de uma casa com móveis, tapetes e cortinas se você...”
“Sim. Continue.”
“Fomos levados para um porão e foi quando retiraram a venda. Um homem morto estava deitado no chão. Eles disseram que era o que faziam com as pessoas que tentavam enganá-los. Deem uma boa olhada, disseram. Então nós tivemos que dizer a eles o que tinha acontecido em Alnabru. Por que a porta não estava trancada quando a polícia chegou. E por que Tutu tinha desaparecido.”
“Alnabru?”
“Eu vou chegar lá.”
“OK. Esse homem, como ele foi morto?”
“O que você quer dizer?”
“Será que ele tinha marcas de perfurações no rosto? Ou levou um tiro?”
“Bem, eu não sabia do que ele tinha morrido até que Peter pisou no estômago dele. Em seguida, a água escorreu pelos cantos da boca dele.”
Harry umedeceu os lábios. “Você sabe quem era o morto?”
“Sim. Um policial disfarçado que costumava circular em torno de onde estávamos. Nós o chamávamos de Homem da Boina por causa do boné que ele usava.”
“Hmm.”
“Harry?”
“Sim?”

Os pés de Oleg estavam tamborilando descontroladamente no concreto. “Eu não sei muito sobre Dubai. Nem mesmo Gusto poderia falar sobre ele. Mas eu sei que se você tentar pega-lo você vai morrer.”
rata dava voltas pelo assoalho, impaciente. O coração do humano estava batendo, mas estava ficando cada vez mais fraco. Ela parou perto do sapato novamente. Mordeu o couro. Couro macio, mas grosso, sólido. Ela correu sobre o corpo novamente. As roupas tinham mais cheiros do que os sapatos, elas cheiravam a suor, comida e sangue. Ele - porque ela podia sentir pelo cheiro que era um ele - estava deitado na mesma posição, ele não se mexia, ele ainda estava bloqueando a entrada. Ela arranhou o estômago do homem. Sabia que era o caminho mais curto. Batimento cardíaco fraco. Não iria demorar muito para que ela pudesse começar.
 
ão é que você tem que parar de viver, papai. Mas para por um fim na merda você tem que morrer. Deveria haver uma maneira melhor, você não acha? Um êxodo indolor em direção à luz, em vez desta maldita escuridão fria que cai sobre você e te envolve. Alguém definitivamente deve ter colocado uma pitada de opiáceos nas balas Makarov, deve ter feito o que eu fiz com Rufus, o cão sarnento, deve ter me comprado um bilhete só de ida para Euphoria, e tenha uma maldita boa viagem! Mas tudo o que é bom neste mundo de merda precisa de receita médica, acabou o estoque ou é tão caro que você tem que penhorar sua alma para prová-lo. A vida é um restaurante que você não pode pagar. A morte é a conta pelo alimento que você nem sequer teve a oportunidade de comer. Então você pede a coisa mais cara do menu - você já está lá dentro de qualquer maneira, certo? - e se você tiver sorte vai conseguir provar um pouquinho.
OK, eu vou parar de me lamuriar, papai, por isso não vá embora, você ainda não ouviu o resto. O resto é bom. Onde estávamos? Sim, apenas dois dias após o roubo em Alnabru, Peter e Andrey vieram até Oleg e eu. Eles amarraram um lenço em volta dos olhos de Oleg e nos levaram para a casa do velhinho e nos levaram até o porão. Eu nunca tinha estado lá antes. Fomos levados por um corredor longo, estreito e baixo onde nós tivemos que inclinar nossas cabeças. Os nossos ombros raspavam nas laterais. Eu gradualmente deduzi que não era uma adega, mas um túnel subterrâneo. Uma passagem de fuga talvez. Que não tinha ajudado o Homem da Boina. Ele parecia um rato afogado. Bem, ele ‘era’ um rato afogado.
Depois levaram Oleg de volta para o carro enquanto eu fui convocado para ir falar com o velhinho. Ele se sentou numa cadeira em frente a mim, sem nenhuma mesa no meio.
“Você dois estavam lá?”, perguntou.
Eu olhei diretamente nos olhos dele. “Se você está perguntando se estávamos em Alnabru a resposta é não.”
Ele me estudou em silêncio.
“Você é como eu”, disse ele finalmente. “É impossível ver quando você está mentindo.”
Eu não seria capaz de jurar, mas eu pensei ter vislumbrado um sorriso.
“Bem, Gusto, você entendeu o que era aquilo, lá embaixo?”
“Era o policial disfarçado. O Homem da Boina.”
“Correto. E por quê?”
“Eu não sei.”
“De um palpite.”
Eu imagino que ele deve ter sido um professor de merda numa vida anterior. Mas, tanto faz, eu respondi: “Ele roubou alguma coisa.”
O velhinho balançou a cabeça. “Ele descobriu que eu morava aqui. Ele sabia que não tinha base para um mandado de busca. Após a prisão de Los Lobos e da recente apreensão de Alnabru a ficha caiu, ele nunca iria conseguir um mandado de busca, mesmo que a investigação fosse muito boa.” O velhinho sorriu. “Nós tínhamos dado um aviso e pensamos que ele iria desistir.”
“Oh?”
“Tiras como ele confiam na sua falsa identidade. Eles acham que é impossível descobrir quem eles são. Quem é sua família. Mas você pode encontrar tudo nos arquivos policiais, desde que você tenha as senhas corretas. E você teria se, por exemplo, você tivesse uma posição de confiança na Orgkrim. E como é que nós demos o aviso?”
Respondi sem pensar por um segundo. “Matou seus filhos?”
O rosto do velhinho ficou sério. “Nós não somos monstros, Gusto.”
“Desculpe.”
“Além disso, ele não tinha filhos.” Risadinha chug-chug. “Mas ele tinha uma irmã. Ou talvez fosse apenas uma irmã adotiva.”
Eu balancei a cabeça. Era impossível ver se ele estava mentindo.
“Nós dissemos que ela iria ser estuprada e, em seguida, iriamos sacrifica-la para aliviar o sofrimento. Mas eu julguei mal o sujeito. Em vez de pensar que tinha  parentes para proteger, ele partiu para o ataque. Um ataque muito solitário, mas desesperado. Ele conseguiu nos invadir na noite passada. Não estávamos preparados para isso. Ele provavelmente amava muito essa irmã. Ele estava armado. Eu fui até o porão, e ele me seguiu. E então ele morreu.” Ele inclinou a cabeça. “De quê?”
“Estava saindo água da boca dele. Afogamento?”
“Correto. Mas afogado onde?”
“Ele foi trazido para cá de um lago ou algo assim?”
“Não. Ele invadiu, e se afogou. Então?”
“Não tenho ideia”
“Pense!” A palavra estalou como uma chicotada. “Se você quer sobreviver você tem que ser capaz de pensar, tirar conclusões a partir do que você consegue ver. Assim é a vida real.”
“Certo, certo.” Eu tentei pensar. “A adega não é uma adega, mas um túnel.”
O velhinho cruzou os braços. “E?”
“É mais comprido do que esta propriedade. A saída pode, claro, dar num campo aberto.”
“Mas?”
“Mas você me disse que  é dono da propriedade vizinha, por isso provavelmente vai dar lá.”
O velhinho sorriu com satisfação. “Imagine a idade deste túnel.”
“Muito antigo. As paredes estavam verdes com o musgo.”
“Algas. Após o movimento de resistência ter efetuado quatro ataques fracassados à casa, o chefe da Gestapo mandou construir um túnel. Eles conseguiram manter isso em segredo. Quando Reinhard chegava em casa a tarde, ele entrava pela porta da frente para que todos pudessem ver. Acendia a luz e, em seguida, caminhava através do túnel para sua verdadeira casa ao lado e enviava para cá o tenente, que todos pensavam que morava ao lado. E este tenente desfilava pela casa, muitas vezes perto de janelas, usando o mesmo tipo de uniforme que o seu chefe da Gestapo.
“Ele era um chamariz.”
“Correto”.
“Por que você está me contando isso?”
“Porque eu quero que você saiba como é a vida real, Gusto. A maioria das pessoas neste país não sabe nada sobre isso, não sabe quanto custa para sobreviver na vida real. Mas eu estou lhe dizendo tudo isso porque eu quero que você se lembre que eu confiei em você.”
Ele olhou para mim como se estivesse dizendo uma coisa muito importante. Fingi compreender; eu queria ir para casa. Talvez ele pudesse ver isso.
“Foi bom ver você, Gusto. Andrey vai levar vocês dois de volta.”
Quando o carro passou pela universidade devia estar havendo algum show estudantil no campus. Podíamos ouvir as guitarras de uma banda de rock tocando num palco ao ar livre. Jovens caminhando em nossa direção pela Blindernveien. Rostos expectantes, felizes, como se lhes tivessem prometido algo, um futuro ou qualquer coisa assim.
“O que é isso?”, perguntou Oleg, que ainda estava com os olhos vendados.
“Isso”, eu disse, “é a vida irreal.”
 
“ você não tem nenhuma idéia de como ele se afogou?”, perguntou Harry.
“Não”, disse Oleg. “O balanço dos pés tinha aumentado; todo o seu corpo estava vibrando.”
“OK, então você estava com os olhos vendados, mas diga-me tudo o que você pode se lembrar sobre a viagem de e para aquele lugar. Todos os ruídos. Quando você saiu do carro, por exemplo, você ouviu um trem ou um bonde?”
“Não. Mas estava chovendo quando chegamos, então, basicamente isso foi o que eu ouvi.”
“Chuva pesada ou chuva leve?”
“Leve. Eu mal senti quando saímos do carro. Mas foi quando eu ouvi.”
“OK, chuva leve geralmente não faz muito barulho, mas poderia quando cai sobre as folhas?”
“Possivelmente.”
“O que havia sob seus pés no caminho para a porta da frente? Asfalto? Pedras? Grama?”
“Cascalho. Eu acho. Sim, havia um barulho de esmagamento. Era por isso que eu sabia onde Peter estava. Ele é o mais pesado, então ele fazia mais ruído.”
“Bom. Degraus até a porta?”
“Sim.”
“Quantos?”
Oleg gemeu.
“OK”, disse Harry. “Ainda estava chovendo perto da porta?”
“Sim, claro.”
“Quero dizer, no seu cabelo?”
“Sim.”
“Portanto, nenhuma varanda ou pórtico então.”
“Você está planejando procurar casas sem varanda em Oslo?”
“Bem, diferentes partes de Oslo foram construídas em épocas diferentes, e elas possuem uma série de características comuns.”
“E qual é a época das casas de madeira com caminhos de cascalho e degraus para uma porta sem pórtico ou varanda nem trilhos nas proximidades?”
“Você parece um chefe-superintendente.” Harry não recebeu o sorriso ou o riso que esperava. “Quando você partiu você notou qualquer som por perto?”
“Tal como?”
“Tal como o toc-toc da travessia de pedestres.”
“Não, nada disso. Mas havia música.”
“Gravada ou ao vivo?”
“Ao vivo, eu acho. Os pratos eram audíveis claramente. Você podia ouvir as guitarras, flutuando e desaparecendo ao vento.”
“Som ao vivo, parece ser um concerto. Bem lembrado.”
“Eu só me lembrei porque eles estavam tocando uma de suas músicas.”
“Minhas músicas?”
“De um de seus discos. Lembro-me porque Gusto disse que esta era a vida irreal, e eu pensei que devia ter sido uma associação de ideias inconsciente. Ele deve ter ouvido o refrão que tinham acabado de cantar.”
“Qual refrão?”
“Algo sobre um sonho. Eu esqueci, mas você costumava tocar aquela música o tempo todo.”
“Vamos lá, Oleg, isso é importante.”
Oleg olhou para Harry. Seus pés pararam de bater. Ele fechou os olhos e tentou cantarolar uma melodia. “It’s just a dreamy Gonzales...” Ele abriu os olhos, seu rosto estava vermelho. “Algo assim.”
Harry cantarolou para si mesmo. E balançou a cabeça.
“Desculpe”, Oleg disse, “Eu não tenho certeza, e durou apenas alguns segundos.”
“Tudo bem,” Harry disse, dando um tapinha no ombro do rapaz. “Diga-me o que aconteceu em Alnabru então.”
O pé de Oleg começou a bater novamente. Ele respirou duas vezes, duas inspirações de ar profundas, como tinha aprendido a fazer na linha de partida antes de se agachar. Então falou.
Quando terminou Harry ficou sentado calado por um longo tempo esfregando a nuca. “Então vocês mataram um homem com uma broca?”
“Nós não. O policial.”
“Cujo nome você não sabe. Ou onde trabalha.”
“Não, tanto Gusto como ele foram cuidadosos sobre isso. Gusto disse que seria melhor que eu não soubesse.”
“E você não tem nenhuma idéia do que aconteceu com o corpo?”
“Não. Você vai me denunciar?”
“Não” Harry pegou o maço de cigarros.
“Posso pegar um?”, perguntou Oleg.
“Desculpe, filho. Ruim para sua saúde.”
“Mas...”
“Com uma condição. Você vai deixar Hans Christian escondê-lo e deixar comigo a tarefa de encontrar Irene.”
Oleg olhou para os blocos de apartamentos na colina atrás do estádio. As jardineiras ainda suspensas nas varandas. Harry estudou seu perfil. O pomo de Adão subindo e descendo no pescoço magro.
“Feito”, ele disse.
“Bom.” Harry acendeu dois cigarros e lhe passou um.
“Agora eu entendo o dedo de metal,” disse Oleg. “É para você poder fumar.”
“Sim,” Harry disse, segurando o cigarro entre a prótese de titânio e seu dedo indicador enquanto digitava o número de Rakel. Ele não teve necessidade de pedir o número de Hans Christian porque ele estava lá com ela. O advogado disse que viria de imediato.
Oleg se encolheu como se de repente o ar tivesse ficado mais frio. “Aonde ele vai me esconder?”
“Eu não sei, e também não quero saber.”
“Por que não?”
“Eu tenho testículos sensíveis. Eu abro o bico à simples menção das palavras bateria de carro.”
Oleg sorriu. Durou pouco, mas foi um sorriso. “Eu não acredito. Você deixaria eles tirarem sua vida antes de dizer uma palavra.”
Harry olhou para o garoto. Ele podia fazer piadas fracas durante todo o dia só para ver esses vislumbres de sorriso.
“Você sempre teve grandes expectativas de mim, Oleg. Muito grandes. E eu sempre quiz que você me visse melhor do que eu sou.”
Oleg olhou para suas mãos. “Todos os meninos veem seus pais como heróis, não é?”
“Talvez. E eu não quero que você me veja como um desertor, alguém que caiu fora. Mas as coisas aconteceram do jeito que aconteceram. O que eu queria dizer é, embora eu não estivesse lá com você, isso não significa que você não era importante para mim. Nem sempre podemos viver da maneira que gostaríamos. Nós somos prisioneiros de... coisas. De quem somos.”
Oleg ergueu o queixo. “De lixo e merda.”
“Isso também.”
Eles suspiraram em uníssono. Olhando a fumaça que subia em espirais para o vasto céu azul. Harry sabia que a nicotina não podia apaziguar os desejos do garoto, mas pelo menos era uma distração. E ficaram assim pelos próximos minutos.
“Harry?”
“Sim?”
“Por que você não voltou?”
Harry deu outra tragada antes de responder. “Porque sua mãe achava que eu não era bom para você ou ela. E ela estava certa.”
Harry continuou a fumar olhando para a distância. Sabendo que Oleg não gostaria que Harry olhasse para ele. Garotos de dezoito anos de idade não gostam de ser vistos quando estão chorando. Nem queria que ele colocasse um braço em torno do seu ombro e dissesse alguma coisa. Só queria que ele estivesse lá. Sem se afastar. Para pensar a seu lado sobre a nova vida que o esperava.
Quando ouviram o carro se aproximando eles desceram da arquibancada e foram para o estacionamento. Harry viu Hans Christian colocar uma mão no braço de Rakel quando ela estava prestes a sair do carro.
Oleg voltou-se para Harry, estufou o peito, enganchou seu polegar no de Harry e encostou seu ombro direito contra o dele. Mas Harry não deixou Oleg escapar tão facilmente e o puxou para perto. Sussurrou em seu ouvido: “Vitória!”
 
 último endereço conhecido de Irene Hanssen era o da casa da sua família. A casa ficava em Grefsen, geminada. Um pequeno jardim cheio de macieiras sem maçãs, mas com um balanço.
Um jovem que Harry calculou ter cerca de vinte anos abriu a porta. O rosto era familiar, e o cérebro policial de Harry pesquisou por um décimo de segundo antes de obter duas correspondências no banco de dados.
“Meu nome é Harry Hole. E você deve ser Stein Hanssen, certo?”
“Sim?”
Seu rosto tinha a combinação de inocência e agilidade de um jovem que tinha experimentado coisas boas e ruins, mas ao se confrontar com o mundo ainda vacilava entre a abertura excessivamente reveladora e a cautela excessivamente inibidora.
“Eu reconheço você de uma foto. Eu sou um amigo de Oleg Fauke.”
Harry procurou alguma reação nos olhos cinzentos de Stein Hanssen, mas não encontrou nada.
“Você deve ter ouvido que ele foi solto? Alguém confessou o assassinato do seu irmão de criação.”
Stein Hanssen balançou a cabeça. A expressão ainda era mínima.
“Eu sou um ex-policial. Eu estou tentando encontrar sua irmã, Irene.”
“Por quê?”
“Eu quero ter certeza que ela está bem. Prometi para Oleg eu o faria.”
“Grande. Para que ele possa continuar a alimenta-la com suas drogas?”
Harry trocou o pé de apoio. “Oleg agora está limpo. Como você deve saber isso não é fácil. Mas ele está limpo porque ele queria tentar encontrá-la. Ele a ama, Stein. Mas eu gostaria de tentar encontrá-la para o bem de todos nós, não só pelo seu. E eu sou reconhecido pela minha habilidade em encontrar pessoas.”
Stein Hanssen olhou para Harry. Hesitou. Então abriu a porta.
Harry seguiu-o para a sala de estar. Estava arrumada, bem decorada e parecia completamente desocupada.
“Seus pais...”
“Agora eles não moram mais aqui. E eu só moro aqui quando não estou em Trondheim.”
Ele tinha um notável “r” gutural e vibrado, do tipo que já foi considerado um símbolo de status para as famílias que podiam trazer babás de Sørland. O tipo de “r” que faz com que a sua voz seja fácil de lembrar, Harry pensou, sem saber muito bem por que.
Havia uma fotografia sobre o piano, que parecia nunca ter sido usado. A fotografia devia ser de seis ou sete anos atrás. Irene e Gusto eram mais novos, em versões menores de si mesmos, ostentando roupas e penteados que Harry presumiu que eles achariam mortalmente embaraçoso mostrar agora. Stein estava na parte de trás com uma expressão séria. A mãe estava com os braços cruzados e mostrava um condescendente, quase sarcástico, sorriso. O pai estava sorrindo de uma forma que fez Harry pensar que tinha sido sua idéia tirar esta foto de família. Pelo menos, ele era a única pessoa que mostrava algum entusiasmo.
“Então esta é a família?”
“Era. Meus pais estão divorciados agora. Meu pai mudou-se para a Dinamarca. Fugiu provavelmente é a palavra mais precisa. Minha mãe está no hospital. O resto... bem, você obviamente sabe o resto.”
Harry acenou com a cabeça. Um morto. Um desaparecido. Grandes perdas para uma família.
Harry sentou-se, sem ser convidado, em uma das poltronas. “O que você pode dizer que possa me ajudar a encontrar Irene?”
“Eu não tenho a menor idéia.”
Harry sorriu. “Experimente”.
“Irene foi morar comigo em Trondheim depois de passar por uma experiência que ela não quis me contar. Mas eu tenho certeza que Gusto estava por trás. Ela idolatrava Gusto, faria qualquer coisa por ele, imaginava que ele se importava com ela, porque ocasionalmente lhe dava tapinhas na bochecha. Mas depois de alguns meses houve um telefonema e ela disse que precisava voltar para Oslo. Se recusou a divulgar o porquê. Isso foi há quatro meses, e desde então não tenho visto nem ouvido nada sobre ela. Quando, depois de mais de duas semanas, eu não consegui entrar em contato com ela, eu fui até a polícia e registrei o seu desaparecimento. Tomaram nota, investigaram um pouco, então nada mais aconteceu. Ninguém se preocupa com um drogado sem-teto.”
“Alguma teoria?”, Harry perguntou.
“Não. Mas ela não desapareceu voluntariamente. Ela não é do tipo que foge... como alguns outros.”
Harry não tinha idéia a quem ele realmente se referia, mas sentiu o soco atingi-lo.
Stein Hanssen cutucava uma crosta no seu antebraço. “O que é que todos vocês veem nela? A sua filha? Vocês acham que podem possuir suas filhas?”
Harry olhou para ele com surpresa. “Vocês. O que você quer dizer com isso?”
“Vocês, velhos libidinosos babando em cima dela. Só porque ela parece uma Lolita de quatorze anos de idade.”
Harry lembrou a imagem na porta do armário. Stein Hanssen estava certo. E o pensamento se enraizou em Harry. Ele podia estar errado, Irene podia ser a vítima de um crime que não tinha nada a ver com este caso.
“Você estuda em Trondheim. Na Universidade de Ciência e Tecnologia ?”
“Sim.”
“Qual curso?”
“Tecnologia da Informação.”
“Hmm. Oleg também queria ir para a faculdade. Você o conheceu?”
Stein negou com a cabeça.
“Nunca falou com ele?”
“Nos encontramos apenas duas vezes. Encontros muito curtos, podemos dizer. “
Harry examinou o antebraço de Stein. Era um vício profissional para Harry. Mas além da crosta não havia outras marcas. Claro que não - Stein Hanssen era um sobrevivente, um daqueles que sabia como se virar. Harry ficou de pé.
“De qualquer forma, eu sinto muito sobre o seu irmão.”
“Irmão adotivo.”
“Hmm. Eu poderia anotar o seu número de celular? Caso surja alguma coisa.”
“Como o que?”
Eles olharam um para o outro. A resposta ficou no ar entre eles, desnecessária para elucidar, insuportável para articular. A crosta tinha estourado e uma linha de sangue estava escorrendo em direção a sua mão.
“Eu sei de uma coisa que pode ajudar”, disse Stein Hanssen quando Harry já estava do lado de fora, no degrau. “Os lugares que você está pensando em procurar por ela. Urtegata. Møtestedet Kafé. Os parques. Os albergues. Os pontos de encontro de viciados. O distrito da luz vermelha. Esqueça. Eu já estive lá.”
Harry acenou com a cabeça. Colocou seus óculos de sol. “Mantenha o seu celular ligado, OK?”
 
arry foi até o Lorry Kafé para almoçar, mas nos degraus sentiu um repentino desejo por cerveja e fez meia volta na soleira da porta. Em vez disso ele foi para um lugar novo em frente a Casa da Literatura. Saiu após uma verificação rápida na clientela, e acabou indo ao Plah onde pediu uma variante tailandesa do tapa espanhol.
“Bebida? Singha?”
“Não.”
“Tiger?”
“Você só tem cerveja?”
O garçom entendeu o recado e voltou com água.
Harry comeu os camarões e o frango, mas deixou de lado a salsicha estilo tailandês. Então telefonou para a casa de Rakel e pediu-lhe para ir até onde guardava os CDs que ele havia levado para Holmenkollen ao longo dos anos e que foram deixados lá. Alguns para seu próprio prazer, e outros porque ele queria levar-lhes a salvação. Elvis Costello, Miles Davis, Led Zeppelin, Count Basie, Jayhawks, Muddy Waters.  Mas não salvaram ninguém.
Ela reservou uma divisão na prateleira a qual, sem qualquer intenção de ser irônica, chamava “Músicas do Harry”. (16)
“Eu gostaria que você lesse todos os títulos”.
“Você está brincando?”
“Eu vou explicar mais tarde.”
“OK. O primeiro é Aztec Camera.”
“Você...”
“Sim, eu organizei os CD’s em ordem alfabética.” Ela parecia envergonhada.
“Isso é coisa de homens .”
“É coisa de Harry. E são seus CDs. Eu posso lê-los agora?”
Depois de vinte minutos eles chegaram no W e na banda Wilco, sem Harry conseguir fazer alguma associação. Rakel soltou um suspiro, mas continuou.
“When You Wake Up Feeling Old”.
“Hmm. Não.”
“Summerteeth.”
“Hmm. Próximo.”
“In a Future Age”.
“Espere!”
Rakel esperou.
Harry começou a rir.
“Qual é a graça?”, perguntou Rakel.
“O refrão em Summerteeth. “É assim,” Harry cantou... “It’s just a dream he keeps having.” (É um sonho que ele continua tendo).
“Isso não soa agradável, Harry.”
“Soa sim! Quero dizer, no original. Tão bonito que eu toquei várias vezes para Oleg. Mas ele achava que a letra era “It’s just a dreamy Gonzales”. Harry riu de novo. E começou a cantar: “It’s just a dreamy Gonz...”
“Por favor, Harry.”
“OK. Você poderia ir até o computador de Oleg e encontrar algo na Internet para mim?”
“O quê?”
“Pesquise Wilco e encontre sua Home Page. Veja se eles fizeram algum show em Oslo este ano. Em caso positivo, onde exatamente.”
Rakel voltou depois de seis minutos.
“Somente um”. E ela disse onde foi.
“Obrigado”, disse Harry.
“Você está com aquela voz de novo.”
“Que voz?”
“Sua voz entusiasmada. A voz de criança.”
 
omo uma armada hostil, as nuvens sinistras aço-cinza chegaram rolando sobre o fiorde de Oslo às quatro horas. Harry vinha dirigindo pela Skøyen na direção do Frogner Park e estacionou na Thorvald Erichsens Vei. Antes ele havia ligado três vezes para o celular de Bellman sem ser atendido, então telefonou para o QG da Polícia e lhe disseram que Bellman tinha saído mais cedo para treinar com o filho no Oslo Tennis Club.
Harry observou as nuvens. Em seguida, entrou e contemplou as instalações do OTC.
Instalações maravilhosas, quadras de saibro, quadras de piso sintético, até mesmo uma quadra central com arquibancadas. No entanto, apenas duas das doze quadras estavam em uso. Na Noruega, você joga futebol e esquia. Declarar-se um jogador de tênis atrai sussurros e olhares desconfiados.
Harry encontrou Bellman numa das quadras de saibro. Ele estava pegando bolas de uma cesta e batendo-as suavemente para um garoto que parecia estar praticando rebatidas em backhand cruzado; mas era difícil afirmar, porque as bolas estavam indo para todas as direções.
Harry atravessou o portão atrás de Bellman, foi até a quadra e ficou ao lado dele. “Parece que ele está se esforçando”, Harry disse, tirando seu maço de cigarros.
“Harry,” disse Mikael Bellman, sem parar ou tirar os olhos do menino. “Ele está chegando lá.”
“Há uma certa semelhança. Ele é...?”
“Meu filho. Filip. Dez anos.”
“O tempo voa. Talentoso?”
“Ele tem um pouco do pai nele, mas eu tenho fé. Ele só precisa ser empurrado.”
“Eu acho que não é correto.”
“Nós queremos o melhor para nossos filhos, Harry, mas nesta idade eles nem sempre entendem. Mova seus pés, Filip!”
“Você descobriu algo sobre Martin Pran?”
“Pran?”
“A esquisitão corcunda do Radium Hospital.”
“Oh, sim, o seu instinto. Sim e não. Isto é, sim, eu verifiquei. E não, não temos nada sobre ele. Nada mesmo.”
“Hmm. Eu estava pensando em pedir outra coisa.”
“Fique de joelhos! O que seria?”
“Um mandado para desenterrar Gusto Hanssen para ver se havia algum sangue sob suas unhas para um novo teste.”
Bellman tirou os olhos do filho, para se certificar que Harry estava falando sério.
“Temos uma confissão muito plausível, Harry. Eu acho que posso dizer com alguma confiança que o mandato seria rejeitado.”
“Gusto tinha sangue sob as unhas. A amostra desapareceu antes de ser analisada.”
“Esse tipo de coisa acontece.”
“Muito raramente.”
“E de quem é o sangue, na sua opinião?”
“Não sei.”
“Você não sabe?”
“Não. Mas se a primeira amostra foi sabotada isso indica que significa perigo para alguém.”
“O traficante que confessou, por exemplo. Adidas?”
“Nome verdadeiro: Chris Reddy.”
“De qualquer maneira, você já não está satisfeito com este caso, principalmente agora que Oleg Fauke foi libertado?”
“De qualquer maneira, o garoto não deveria segurar a raquete com as duas mãos para o backhand?”
“Você conhece alguma coisa sobre o tênis?”
“Vi um pouco na TV.”
“Backhand com uma só mão desenvolve o caráter.”
“Eu nem sei se o sangue tem algo a ver com o assassinato. Talvez alguém esteja com medo de ser relacionado com Gusto?”
“Por exemplo?”
“Dubai talvez. Além disso, eu não acho que Adidas matou Gusto.”
“Por que não?”
“Um traficante calejado que confessa inesperadamente?”
“Entendo o seu ponto de vista”, disse Bellman. “Mas é uma confissão. E muito boa.”
“E isso é apenas um assassinato entre viciados”, Harry continuou, se abaixando para pegar uma bola perdida. “E você já tem casos suficientes para solucionar.”
Bellman suspirou. “É como sempre foi, Harry. Os nossos recursos são escassos e estão sob muita pressão para nós gastarmos tempo priorizando casos que já possuem uma solução.”
“Uma solução? E sobre a solução?”
“Como chefe sou obrigado a lidar com a ambiguidade.”
“OK, então me deixe oferecer-lhe dois casos para solucionar. Em troca de ajuda para encontrar uma casa.”
Bellman parou de bater bolas. “O quê?”
“Uma morte em Alnabru. Um motociclista chamado Tutu. Uma fonte me informou que ele teve sua cabeça perfurada por uma broca.”
“E a fonte está disposta a testemunhar?”
“Talvez.”
“E a segunda?”
“O tira disfarçado que apareceu nas margens do fiorde perto da Opera House. A mesma fonte o viu morto no porão de Dubai.”
Bellman fechou um olho. As manchas de pigmentação inflamaram-se e Harry se lembrou de um tigre.
“Pai!”
“Vá encher a garrafa de água no vestiário, Filip.”
“O vestiário está trancado, pai!”
“E o código é?”
“O ano que o rei nasceu, mas eu não me lembro.”
“Lembre-se e mate a sua sede, Filip.”
O menino passou pelo portão, os braços balançando ao lado do corpo.
“O que você quer, Harry?”
“Eu quero uma equipe vasculhando a área em Frederikkeplassen, em torno da universidade, num raio de um quilometro. Eu quero uma lista de todas as moradias isoladas que se encaixam nesta descrição.” Ele entregou uma folha de papel para Bellman.
“O que aconteceu em Frederikkeplassen?”
“Apenas um concerto.”
Percebendo que ele não iria dizer muito mais, Bellman olhou para o papel e leu em voz alta: ‘casa de madeira antiga com um caminho comprido de cascalho, árvores de folhas não perenes e degraus na porta da frente, sem pórtico?’ “Parece uma descrição da metade das casas em Blindern. O que você está procurando?”
Harry acendeu um cigarro. “Um buraco de ratos. Um ninho de águia.”
“E se nós encontrarmos, o que vai ser então?”
“Você e seus funcionários precisam de um mandado de busca para poderem fazer qualquer coisa, enquanto um civil comum como eu poderia se perder numa noite de outono e ser forçado a refugiar-se na casa mais próxima.”
“OK, eu vou ver o que posso fazer. Mas me explique primeiro porque você está tão interessado em pegar esse Dubai.”
Harry deu de ombros. “Deformação profissional, talvez. Consiga a lista e envie para o e-mail escrito na parte inferior dessa folha. Então vamos ver o que posso fazer por você.”
Filip voltava sem a água quando Harry estava saindo, e a caminho para o carro ouviu uma bola batendo com força contra a grade no fundo da quadra e uma maldição abafada.
Canhões distantes retumbaram na armada de nuvens, e estava escuro como a noite quando Harry entrou no carro. Ele ligou o motor e telefonou para Hans Christian Simonsen.
“Harry falando. Quais são as penalidades para profanação de sepultura?”
“Hmm, quatro a seis anos, eu acho.”
“Você está disposto a correr esse risco?”
Uma pequena pausa. Em seguida: “Qual o motivo?”
“Para pegar a pessoa que matou Gusto. E talvez a pessoa que está atrás de Oleg.”
Pausa longa. “Se você tem certeza do que está fazendo, eu topo.”
“E se eu não tiver tanta certeza?”
Muito pequena pausa. “Estou dentro.”
“OK, descubra onde Gusto está enterrado e consiga duas pás, uma lanterna, tesouras de unha e duas chaves de fenda. Nós vamos fazer isso amanhã à noite.”
Quando Harry passava pela Solli Plass a chuva caiu. Ela chicoteou os telhados, as ruas e o homem no Kvadraturen na calçada em frente da porta aberta do bar onde todos poderiam vir como eram.
 
uando Harry entrou o rapaz da recepção recebeu-o com um olhar severo..
“Gostaria de pegar um guarda-chuva emprestado?”
“Não, a menos que tenha um vazamento no hotel,” Harry disse, passando a mão pelo cabelo escovinha e espalhando um spray pelo ar. “Alguma mensagem?”
O rapaz riu, como se fosse uma piada.
Quando Harry estava subindo as escadas para o segundo andar ele imaginou ter ouvido passos mais abaixo e parou. Ouviu. Silêncio. Ou tinha sido o eco de seus próprios passos, ou então a outra pessoa também tinha parado.
Harry caminhou lentamente. No corredor, ele aumentou a velocidade, inseriu a chave na fechadura e abriu a porta. Esquadrinhou a sala escura e olhou através do pátio para a sala iluminada da mulher. Ninguém lá. Ninguém lá, ninguém aqui.
Ele acionou o interruptor.
Quando a lâmpada iluminou o quarto, viu seu reflexo na janela. E alguém que estava atrás dele. Imediatamente ele sentiu uma mão pesada apertar seu ombro.
Apenas um fantasma pode ser tão rápido e silencioso, Harry pensou, girando em torno de si, mas ele sabia que já era tarde demais.
 

(16) Na Noruega, o nome Harry tornou-se um adjetivo que significa “caipira”.

“u os vi. Uma vez. Parecia um cortejo fúnebre.”
A grande mão suja de Cato ainda estava descansando no ombro de Harry.
Harry se ouviu suspirar e sentiu seus pulmões pressionando contra o interior das costelas.
“Quem?”
“Eu estava falando com alguém que vende essa coisa do diabo. Seu nome era Bisken e ele usava uma coleira de couro no pescoço. Ele veio me ver porque estava com medo. A polícia o prendeu por posse de heroína, e ele tinha dito para o Homem da Boina onde Dubai morava. O Homem da Boina lhe havia prometido proteção e uma anistia se ele testemunhasse no tribunal. E enquanto eu estava ali eles chegaram num carro preto. Ternos pretos, luvas pretas. Ele era velho. Rosto largo. Ele parecia um aborígine branco.”
“Quem?”
“Eu o vi, mas... ele não estava lá. Como um fantasma. E quando Bisken o viu, não se moveu, não tentou correr nem lutou quando o levaram com eles. Depois que eles se foram era como se eu tivesse sonhado tudo aquilo.”
“Por que você não me contou isso antes?”
“Porque eu sou um covarde. Você tem um cigarro?”
Harry deu-lhe o maço, e Cato caiu na cadeira.
“Você está perseguindo um fantasma, e eu não quero ser envolvido.”
“Mas?”
Cato encolheu os ombros e estendeu a mão. Harry passou-lhe o isqueiro.
“Sou um velho moribundo. Eu não tenho nada a perder.”
“Você está morrendo?”
Cato acendeu o cigarro. “Não tão já, talvez, mas estamos todos morrendo, Harry. Eu só quero ajudá-lo.”
“Com o que?”
“Não sei. Quais são os planos que você tem?”
“Posso confiar em você?”
“Cristo, não, você não pode confiar em mim. Mas eu sou um xamã. Eu também posso me tornar invisível. Eu posso ir e vir sem que ninguém perceba.”
Harry coçou o queixo. “Por quê?”
“Eu já disse por quê.”
“Eu estou perguntando novamente.”
Cato olhou para Harry, primeiro com um olhar de reprovação. Então, quando isso não ajudou, ele soltou um profundo suspiro de aborrecimento. “Talvez, um dia, eu tenha tido um filho. Um que eu não tratei tão bem como eu deveria. Talvez esta seja uma nova oportunidade. Você não acredita em novas oportunidades, Harry?”
Harry olhou para o velho. Os sulcos em seu rosto pareciam ainda mais profundos, como vales, como cortes de uma faca. Harry estendeu a mão, e com relutância Cato pegou os cigarros do bolso e os devolveu.
“Eu aprecio isso, Cato. Eu vou te dizer se eu precisar de você. Mas o que eu vou fazer agora é descobrir a ligação entre Dubai e a morte de Gusto. Depois as pistas levarão diretamente até o queimador da polícia e ao assassinato do policial disfarçado que se afogou na casa de Dubai.”
Cato balançou a cabeça lentamente. “Você tem um coração puro e corajoso, Harry. Talvez você vá para o céu.”
Harry enfiou um cigarro entre os lábios. “Então, depois de tudo, vai ser uma espécie de final feliz.”
“Que deve ser comemorado. Posso oferecer-lhe uma bebida, Harry Hole?”
“Quem está pagando?”
“Eu, é claro. Se você desembolsar. Você pode dizer olá para o seu Jim, e eu posso dizer olá para o meu Johnnie.”
“Vade retro, satanás.”
“Vamos lá. No fundo Jim é um bom homem.”
“Boa Noite. Durma bem.”
“Boa Noite. E não durma muito bem, mas caso...”
“Boa Noite.”
 
inha estado lá o tempo todo, mas Harry foi bem sucedido em suprimi-la. Até agora, até o convite de Cato. Foi o suficiente, agora era impossível ignorar seu estomago se roendo. Tinha começado com a injeção de violino, que pôs tudo em movimento, tinha soltado os cães novamente. E agora eles estavam latindo e arranhando, um latido rouco, suas entranhas sendo roídas. Harry estava deitado na cama com os olhos fechados, ouvindo a chuva e esperando que o sono chegasse e o levasse embora.
O sono não veio.
Ele tinha um número de telefone no seu celular registrado com duas letras. AA. Alcoólicos Anônimos. Trygve, um membro e orientador da AA que ele tinha procurado várias vezes durante as crises críticas. Três anos. Por que começar agora, agora quando tudo estava em jogo e ele precisava mais do que nunca estar sóbrio? Era uma loucura. Ele ouviu um grito do lado de fora. Seguido de uma risada.
As onze e dez ele se levantou e saiu. Ele mal sentiu a chuva escorrendo pela sua cabeça enquanto atravessava a rua para a porta aberta. E desta vez ele não ouviu os passos atrás dele, a voz de Kurt Cobain encheu seus canais auditivos, a música como um abraço, e ele entrou, sentou no banquinho do balcão e chamou o barman.
“Whis...ky. Jim ... Beam.”
O barman parou de esfregar o balcão, colocou o pano ao lado do saca-rolhas e pegou a garrafa na prateleira espelhada. Serviu uma dose num copo. Colocou o copo sobre o balcão. Harry colocou os braços de cada lado do vidro e olhou para o líquido marrom-dourado. E a partir daquele momento nada mais existia.
Nem Nirvana, nem Oleg, nem Rakel, nem Gusto, nem Dubai. Nem o rosto de Tord Schultz. Nem a figura que abafou o barulho da rua quando passou pela porta. Nem o movimento atrás dele. Nem o canto das molas quando a lâmina saltou para fora. Nem a respiração pesada de Sergey Ivanov de pé a um metro dele com as pernas juntas e as mãos abaixadas.
 

ergey olhou para as costas do homem. Ele estava com os dois braços apoiados sobre o balcão. Não podia ser mais perfeito. A hora tinha chegado. Seu coração estava batendo. Batendo descontroladamente com sangue fresco, como tinha acontecido na primeira vez que ele foi buscar os pacotes de heroína na cabine do avião. Todo o medo desapareceu. Porque agora ele sabia - ele estava vivo. Ele estava vivo e prestes a matar o homem diante dele. Tomar a sua vida, torná-la parte de si mesmo. Esta idéia o fazia crescer; era como se ele já houvesse comido o coração do inimigo. Agora. Os movimentos. Sergey respirou fundo, deu um passo para a frente e colocou sua mão esquerda sobre a cabeça de Harry. Como se estivesse abençoando. Como se fosse batizá-lo.

ergey Ivanov não conseguia agarrar. Simplesmente não conseguia agarrar. A maldita chuva tinha encharcado a cabeça e o cabelo do homem, e as pontas curtas escorregavam por entre seus dedos impedindo-o de puxar a cabeça para trás. A mão esquerda de Sergey avançou para a frente novamente, agarrou a testa do homem e puxou-a contra ele enquanto com a outra mão colocava a faca em volta da garganta do homem. O corpo do homem deu um solavanco. Sergey cortou com a faca, sentiu o contato contra a carne, sentiu que cortava através dela. Hurra! O jato quente de sangue no seu polegar. Não foi tão profundo como ele esperava, mas somente mais três batimentos cardíacos e tudo estaria acabado. Ele levantou o olhar para o espelho para ver o jorro. Ele viu uma fileira de dentes arreganhados e abaixo deles uma ferida aberta a partir da qual o sangue escorria na frente da camisa. E os olhos do homem. Foi esse olhar - um brilho frio e irritado de predador - que o fez perceber que o trabalho ainda não fora feito.
 
uando Harry sentiu a mão na sua cabeça compreendeu instintivamente. Compreendeu que não era um cliente bêbado ou um velho conhecido, eram eles. A mão escorregou o que deu a Harry um décimo de segundo para olhar no espelho, para ver o brilho do aço. Ele já sabia o que ia acontecer. Em seguida, a mão estava em volta da sua testa e puxando-a para trás. Era tarde demais para colocar uma mão entre a garganta e a lâmina, então Harry se firmou na barra de apoio dos pés e ergueu o corpo para cima, enquanto apertava o queixo contra o peito. Ele não sentiu dor quando a faca cortou sua pele, não sentiu até que ela cortou o queixo e penetrou na membrana sensível ao redor do osso.
Então, ele encontrou os olhos do outro homem no espelho. Ele puxou a cabeça de Harry de volta contra a sua própria, tornando-os parecidos com dois amigos posando para uma foto. Harry sentiu a lâmina sendo pressionada contra seu queixo e peito, tentando encontrar um caminho para uma das duas artérias do pescoço, e ele sabia que dentro de poucos segundos o outro homem teria sucesso.
 
ergey envolveu todo o seu braço em torno da testa do homem e puxou com toda sua força. A cabeça do homem inclinou para trás, e pelo espelho, viu a lâmina finalmente encontrar o espaço entre o queixo e o peito. A lâmina de aço encostou na garganta e foi para a direita, em direção à artéria do pescoço, a artéria carótida. Blin! O homem tinha conseguido levantar a mão direita e enfiar um dedo entre a faca e a artéria. Mas Sergey sabia que a lâmina afiada iria cortar um dedo. Era apenas uma questão de aplicar a pressão suficiente. Ele empurrou. E empurrou.
 
arry podia sentir a pressão da faca, mas sabia que não iria avançar. O metal com maior relação resistência-peso. Nada cortava o titânio, tivesse sido feito em Hong Kong ou não. Mas o cara era forte, logo ele iria perceber que a lâmina não estava cortando.
Ele tateou com a mão livre na frente dele, derrubando sua bebida, e encontrou uma coisa.
Era um saca-rolhas em forma de T. Do tipo mais simples. Ele agarrou o cabo com a haste espiralada entre o dedo indicador e o médio. Sentiu uma onda de pânico quando ouviu a lâmina da faca deslizar sobre a prótese. Ele forçou seus olhos para baixo para ver no espelho. Ver para onde ele devia apontar. Levantou a mão para o lado e bateu para trás, atrás de sua cabeça.
Ele notou corpo do outro homem endurecer quando a ponta do saca-rolhas perfurou a pele no lado do seu pescoço. Mas foi uma ferida superficial, inócua e não fez ele se afastar. Ele estava começando a mover a faca para a esquerda. Harry se concentrou. O saca-rolhas exigia uma mão firme e experiente. No entanto, duas ou três voltas era o suficiente para penetrar profundamente na rolha. Harry torceu duas vezes. Sentiu a espiral deslizar através da carne. Perfurando. Pouca resistência. O esôfago. Então ele puxou.
Foi como puxar o tampão de um barril cheio de vinho tinto.
 
ergey Ivanov estava plenamente consciente e viu toda a cena pelo espelho quando a primeira batida do coração enviou um jato de sangue para a direita. Seu cérebro registrou, analisou e chegou a uma conclusão: o homem cuja garganta ele estava tentando cortar tinha atingido a sua carótida com um saca-rolhas, e ao puxar rasgou a veia do pescoço e agora a sua vida estava sendo bombeada junto com seu sangue. Sergey ainda teve tempo de formar mais três pensamentos antes da segunda batida do coração e da perda de consciência.
Ele deixaria seu tio desapontado.
Ele nunca mais iria rever sua amada Sibéria novamente.
Ele iria ser enterrado com uma tatuagem que contava uma mentira.
Na terceira batida do seu coração ele desmaiou e caiu. E quando Kurt Cobain terminava de cantar o último refrão - memoria, memoria -  Sergei Ivanov já estava morto.
 
arry se levantou do banco. No espelho, viu o corte no seu queixo. Mas isso não era o pior; havia cortes profundos na garganta dos quais o sangue escorria e já tinha tingido todo o seu colarinho.
Os três outros clientes do bar já tinham sumido. Ele olhou para o homem deitado no chão. O sangue ainda estava fluindo do buraco no seu pescoço, mas não estava sendo bombeando. O que significava que seu coração havia parado de bater e ele poderia poupar-se o esforço de uma tentativa de reanimação. E mesmo que ele ainda tivesse um resto de vida, Harry sabia que esse homem nunca teria revelado quem o havia enviado. Porque ele viu as tatuagens sobressaindo acima da gola da camisa. Ele não conhecia nenhum dos símbolos, mas ele sabia que eram russos. Gang Black Corn talvez. Elas eram diferentes da tatuagem tipicamente ocidental do barman, que estava encostado contra a prateleira espelhada e olhando estarrecido com as pupilas tão negras com o choque que pareciam cobrir o branco de seus olhos. Nirvana havia se calado e não se escutava nem um suspiro. Harry olhou para o copo de uísque tombado diante dele.
“Desculpe pela bagunça”, disse.
Em seguida, ele pegou o pano no balcão, limpou primeiro a área onde suas mãos estiveram, em seguida, o copo, em seguida, o cabo do saca-rolhas, que ele colocou de volta sobre o balcão. Ele conferiu que seu próprio sangue não tinha pingado em cima do balcão ou no chão. Em seguida, ele se inclinou sobre o homem morto e limpou a mão sangrenta, o cabo de marfim da faca e a lâmina fina. A arma - pois era uma arma e inútil para qualquer outra coisa - era mais pesada do que qualquer faca que ele já tinha manuseado. A fio era tão afiado quanto uma faca japonesa para cortar sashimi. Harry hesitou. Em seguida, ele dobrou a lâmina, ouviu um clique suave quando ela travou, acionou a trava de segurança e colocou-a no bolso do paletó.
“Você aceita dólares?” Harry perguntou, usando o pano para pegar uma nota de vinte dólares da sua carteira. “Garantido pelos Estados Unidos, dizem.”
Pequenos ruídos de lamúria vieram do barman como se quisesse dizer algo, mas tinha perdido a capacidade de falar.
Harry estava prestes a sair, então parou. Virou-se para olhar para a garrafa na prateleira espelhada. Umedeceu os lábios novamente. Ficou imóvel por um segundo. Em seguida seu corpo se arrepiou e ele saiu.
 
arry atravessou a rua debaixo de uma chuva torrencial. Eles sabiam onde ele estava hospedado. Eles poderiam tê-lo seguido é claro, mas também poderia ter sido o rapaz da recepção. Ou o queimador que descobriu seu nome através do registro de rotina dos hóspedes nos hotéis. Se ele entrasse pelo quintal ele conseguiria chegar no seu quarto despercebido.
O portão dos fundos estava trancado. Harry amaldiçoou.
O balcão da recepção estava vazio quando ele entrou.
Nas escadas e no corredor ele deixou um rastro de pontos vermelhos no linóleo azul claro, como um código Morse.
Dentro do seu quarto, ele levou o kit de costura da mesa de cabeceira para o banheiro, despiu-se e se inclinou sobre a pia, que logo ficou vermelha do sangue. Ele embebeu uma toalha e lavou o queixo e a garganta, mas os cortes logo se encheram com mais sangue. Debaixo da luz fria, branca, ele conseguiu enfiar a linha através do buraco da agulha e enfiar a agulha através das abas brancas da pele da garganta, debaixo primeiro e, em seguida, acima da ferida. Costurava, parava para enxugar o sangue e continuava. A linha quebrou quando ele estava quase terminando. Ele praguejou, puxou as extremidades para fora e começou novamente com linha dobrada. Depois disso, ele costurou a ferida no queixo, que foi muito mais fácil. Ele lavou o sangue do seu peito e pegou uma camisa limpa na sua mala. Depois se sentou na cama. Ele estava tonto. Mas estava com pressa, duvidava que eles estivessem muito longe, ele tinha que agir agora antes que descobrissem que ainda estava vivo. Ele ligou para o número de Hans Christian Simonsen e depois do quarto toque, ele ouviu um sonolento: “Hans Christian.”
“Harry. Onde Gusto está enterrado?”
“Vestre Cemetery.”
“Você está com o equipamento pronto?”
“Sim.”
“Nós vamos fazer serviço esta noite. Encontre-me no caminho do lado leste em uma hora.”
“Agora?”
“Sim. E traga alguns curativos.”
“Curativos?”
“Um barbeiro desajeitado, só isso. Sessenta minutos a partir de agora, OK?”
Uma ligeira pausa. Um suspiro. E depois: “Ok.”
Quando Harry estava prestes a desligar ele pensou ter ouvido uma voz sonolenta, a voz de outra pessoa. Mas quando terminou de se vestir já havia se convencido de que tinha ouvido mal.

arry estava debaixo da lâmpada de um poste solitário. Já estava esperando há 20 minutos quando Hans Christian, vestindo um agasalho preto, surgiu caminhando rapidamente pelo caminho de cascalho.
“Eu estacionei na Monolitveien”, disse, sem fôlego. “É um padrão vestir terno de linho para profanar uma sepultura?”
Harry levantou a cabeça, e os olhos de Hans Christian se arregalaram. “Meu Deus, o que foi isso? Esse barbeir...”
“Não é recomendável”, disse Harry. “Vamos, vamos sair da luz.”
Quando eles estavam na escuridão, Harry parou. “Trouxe os curativos?”
“Aqui.”
Hans Christian estudou as casas apagadas na colina atrás deles enquanto Harry cuidadosamente colocava curativos sobre os pontos na garganta e no queixo.
“Relaxe, ninguém pode nos ver,” Harry disse, agarrando uma das pás e andando. Hans Christian correu atrás dele, tirou uma lanterna e acendeu.
“Agora eles podem nos ver”, disse Harry.
Hans Christian apagou a lanterna.
Eles atravessaram a bosque do memorial da guerra, passaram pelas sepulturas dos marinheiros britânicos e continuaram ao longo dos caminhos de cascalho. Harry pode constatar que a morte não nivelava as diferenças; as lápides do cemitério da Oslo Oeste eram maiores e mais brilhantes do que no leste da cidade. O cascalho rangia debaixo dos seus pés, eles estavam andando cada vez mais rápido e no final o som se tornou um ruído contínuo.
Eles pararam perto de um túmulo de cigano, fácil de ser reconhecido por ser mais requintado.
“É a segunda à esquerda,” Hans Christian murmurou e tentou virar o mapa que tinha imprimido para o luar escasso.
Harry olhou para a escuridão atrás deles.
“Alguma coisa?”, sussurrou Hans Christian.
“Só pensei ter ouvido passos. Eles pararam quando paramos.”
Harry levantou a cabeça, como se estivesse farejando o ar.
“Deve ser o eco”, disse. “Vamos.”
Dois minutos depois, eles estavam de pé diante de uma modesta pedra negra. Harry segurou a lanterna perto da pedra antes de acendê-la. O texto foi gravado em letras douradas.
 
Gusto Hanssen
14.03.1992 - 12.07.2011
Descanse em paz
 
“Bingo”, Harry sussurrou sem cerimônia.
“Como nós...” Hans Christian começou, mas foi interrompido pelo ruído da pá de Harry entrando na terra macia. Ele agarrou sua pá e começou a cavar com entusiasmo.
Eram três e trinta, e a lua tinha sumido atrás de uma nuvem quando a pá de Harry bateu em algo duro.
Quinze minutos depois um caixão branco foi revelado.
Ambos pegaram uma chave de fenda, ajoelharam-se sobre o caixão e começaram a retirar os seis parafusos da tampa.
“Não conseguiremos abrir a tampa com nós dois aqui”, disse Harry. “Um de nós tem que ir para cima para que o outro possa abrir o caixão. Voluntários?”
Hans Christian já estava com metade do corpo para fora.
Harry colocou um pé no chão ao lado do caixão e outro contra a parede de terra e colocou seus dedos sob a tampa. Em seguida ele exerceu pressão e por força do hábito começou a respirar pela boca. Antes mesmo de olhar para baixo, ele pode sentir o calor subindo do caixão. Ele sabia que o processo de decomposição produzia energia, mas o que fez os cabelos da nuca ficarem de pé foi o som.
O farfalhar das larvas de mosca na carne. Ele colocou a tampa do caixão ao lado da sepultura.
“Ilumine aqui”, disse.
Larvas brancas se contorcendo brilhavam dentro e ao redor da boca e do nariz do cadáver. As pálpebras tinham afundado porque os globos oculares foram as primeiras partes a serem consumidas.
Harry ignorou os sons de Hans Christian que estava vomitando e acionou as suas faculdades analíticas: face escurecida, impossível determinar se era Gusto Hanssen, mas a cor do cabelo e o formato do rosto sugeriam que sim.
Mas havia algo que chamou a atenção de Harry e fez com que parasse de respirar.
Gusto estava sangrando.
Rosas vermelhas foram crescendo na mortalha branca, rosas de sangue que estavam se espalhando.
Dois segundos se passaram antes que Harry percebesse que o sangue estava vindo dele. Ele agarrou sua garganta. Seus dedos sentiram o sangue espesso. Os pontos tinham se desfeito.
“Sua camiseta”, pediu Harry.
“O quê?”
“Eu preciso de atadura.”
Harry ouviu a breve canção de um zíper, e alguns segundos mais tarde uma camiseta flutuou para a luz. Ele agarrou-a, viu o logotipo. Assistência Jurídica Gratuita. Céus, um idealista. Harry enrolou a camiseta em volta da garganta sem uma idéia clara de como isso iria ajudar, mas era tudo o que podia fazer no momento. Em seguida, ele se inclinou sobre Gusto, agarrou a mortalha com as duas mãos e rasgou-a para abri-la. O corpo estava escuro, um pouco inchado e larvas rastejavam para fora dos buracos de bala no peito.
Harry podia ver que as feridas eram consistentes com o relatório pericial.
“Dê-me a tesoura.”
“A tesoura.”
“A tesoura de unhas.”
“Droga,” Hans Christian tossiu. “Esqueci. Talvez eu tenha algo no carro. Eu posso...”
“Não há necessidade”, Harry disse, pegando a longa faca no bolso do paletó. Destravou o fecho de segurança e apertou o botão para liberar a lâmina. A lâmina disparou com um poder brutal, tão feroz que fez seu punho vibrar. Ele podia sentir o equilíbrio perfeito da arma.
“Eu estou ouvindo alguma coisa”, disse Hans Christian.
“É uma música do Slipknot”, disse Harry. “Pulse of the Maggots”.(17) Ele estava cantarolando baixinho.
“Não, caramba. Alguém está vindo!”
“Posicione a lanterna para que eu possa enxergar, e fuja,” Harry disse, levantando mãos do Gusto e estudando as unhas da mão direita.
“Mas você...”
“Fuja”, disse Harry. “Agora”.
Harry ouviu os passos de Hans Christian desaparecendo na distância. A unha do dedo médio de Gusto estava cortada mais curta. Examinou o dedo indicador e o anular. Disse calmamente: “Eu sou da casa funerária. Nós estamos fazendo um pouco de hora extra.”
Em seguida, ele virou o rosto para o guarda muito jovem de pé na borda da sepultura olhando para ele.
“A família não estava muito feliz com a manicure.”
“Saia daí!” ordenou o guarda com um leve tremor na voz.
“Por quê?” Harry perguntou, tirando um saquinho plástico do bolso do paletó e colocando-o debaixo do dedo anular enquanto cortava diligentemente. A lâmina cortava a unha como se fosse manteiga. Realmente, um instrumento fantástico. “Infelizmente para você, suas instruções dizem que você não pode intervir diretamente contra intrusos.”
Harry utilizou a ponta da lâmina para raspar os restos de sangue seco debaixo da unha mais curta.
“Se você fizer isso, você vai ter demitido e a Academia de Polícia vai rejeitá-lo, e você não terá permissão para usar uma  arma potente e atirar em alguém em legítima defesa.”
Harry voltou sua atenção para o indicador. Usou outro saquinho.
“Faça conforme as suas instruções, ligue para um adulto na polícia. Se você tiver sorte eles estarão aqui em meia hora. Mas, se formos realistas provavelmente terá que esperar até o horário do início do expediente da manhã. Pronto!”
Harry fechou os saquinhos, colocou-os no bolso do paletó, recolocou a tampa do caixão e subiu para fora da sepultura. Ele sacudiu a terra do terno e se abaixou para pegar a pá e a lanterna.
Viu os faróis de um carro virando na capela.
“Na verdade, eles disseram que viriam imediatamente”, disse o jovem guarda, recuando para uma distância segura. “Eu disse a eles que era o túmulo do cara que foi baleado. Quem é você?”
Harry apagou a lanterna e tudo ficou escuro.
“Eu sou aquele por quem você devia estar torcendo.”
Então Harry saiu correndo. Ele se dirigiu para o leste, para longe da capela, de volta pelo caminho por onde tinha vindo.
Ele estava se dirigindo para uma luz brilhante que imaginava ser um poste de luz no Frogner Park. Se ele pudesse chegar no parque, e com sua forma física atual conseguiria, ele sabia que poderia escapar deles. Ele só esperava que eles não tivessem cães. Ele odiava cães. Melhor se manter nos caminhos de cascalho para não tropeçar nas lápides e nos ramos de flores, mas o ruído de trituração tornava mais difícil ouvir quaisquer potenciais perseguidores. Quando atingiu o memorial de guerra Harry desviou para a grama. Ele não ouvia ninguém atrás dele. Mas então ele viu. Um feixe de luz trêmula sobre as copas das árvores. Alguém estava perseguindo Harry com uma lanterna.
Harry saiu para o caminho novamente e se dirigiu para o parque. Tentou esquecer a dor em volta da garganta e procurou correr descontraidamente, de modo eficiente, concentrando-se na técnica e na respiração. Disse a si mesmo que estava se afastando. Ele correu na direção do Monolito do parque, sabendo que iria vê-lo sob as lâmpadas da rua ao longo do caminho que continuava para além do monte e então iria avistar a entrada principal do parque, ao leste.
Harry esperou até passar pelo topo da colina e ficar fora de vista antes de se dirigir para o sudoeste em direção da Madserud Allé. Até então, a adrenalina tinha ajudado a esconder os sinais de fadiga, mas agora ele podia sentir seus músculos se enrijecendo. Por um segundo, as coisas ficaram pretas e ele pensou que iria perder a consciência. Mas, em seguida, a visão voltou ao normal, e uma náusea repentina se apoderou dele, seguida por uma esmagadora vertigem. Ele olhou para baixo. O sangue estava escorrendo sob a manga do paletó e pingando entre os dedos, como geleia de morango escorrendo de uma fatia de pão na casa de seu avô. Ele não ia conseguir.
Ele virou a cabeça. Viu um vulto passar sob a luz de uma lâmpada no topo da colina. Um homem grande, mas com um estilo leve de corrida. Roupas pretas justas. Não era um uniforme da polícia. Poderia ser um cara da Delta? No meio da noite, num prazo tão curto? Só porque alguém estava cavando num cemitério?
Harry vacilou, mas conseguiu se firmar. Ele não tinha nenhuma esperança de escapar de ninguém naquele estado. Ele tinha que encontrar um lugar para se esconder.
Harry se dirigiu para uma das casas na Madserud Allé. Saiu do caminho, desceu por uma encosta gramada, teve de esticar os braços para não cair, continuou pela rua asfaltada, pulou a cerca baixa de madeira, correu por entre as macieiras e foi para a parte de trás da casa. Onde se jogou na grama alta e molhada. Respirou fundo, sentiu seu estômago se contrair, preparou-se para vomitar. Concentrado na respiração enquanto escutava.
Nada.
Mas era apenas uma questão de tempo para que eles chegassem aqui. E ele precisava de um curativo decente para a sua garganta. Harry se levantou e caminhou até o terraço da casa. Espiou pelo vidro da porta. Sala de estar totalmente escura.
Ele chutou no vidro e enfiou a mão dentro. O bom e velho norueguês ingênuo. A chave estava na porta. Ele deslizou para dentro da escuridão.
Prendeu a respiração. Os quartos ficavam, provavelmente, no primeiro andar.
Ele acendeu uma luminária de mesa.
Cadeiras de pelúcia. Rack para TV. Enciclopédia. A mesa coberta com fotografias de família. Agulhas de trico. Portando moradores idosos. E as pessoas de idade dormiam bem. Ou era o contrário?
Harry encontrou a cozinha, acendeu a luz. Vasculhou as gavetas. Talheres, panos. Tentou se lembrar onde costumavam guardavam aquele tipo de coisa quando ele era criança. Abriu a última gaveta. E lá estava. Fita adesiva comum, fita adesiva de alta aderência, fita adesiva de tecido. Ele pegou o rolo de fita adesiva de alta aderência e abriu duas portas antes de encontrar o banheiro. Tirou o paletó e a camisa, segurou a cabeça sobre a banheira e usou o chuveiro de mão para lavar a garganta. Viu o esmalte branco ganhar uma película vermelha num piscar de olhos. Em seguida, ele enxugou-se com a camiseta e uniu as bordas da ferida apertando bem com os dedos enquanto enrolava a fita em volta da garganta várias vezes. Testou para se certificar de que não estava muito apertado. Afinal de contas ele precisava que um pouco de sangue fluísse para o cérebro. Vestiu a camisa. Outro ataque de tontura. Ele sentou na borda da banheira.
Notou um movimento. Levantou a cabeça.
Na porta o rosto pálido de uma mulher idosa estava olhando para ele com grandes olhos assustados. Por cima da camisola ela estava vestindo um roupão acolchoado vermelho. O roupão emitia um brilho estranho e eletricidade estática sempre que ela se movia. Harry calculou que era feito de algum material sintético que já não existia, fora proibido, era cancerígeno, de amianto ou algo assim.
“Eu sou um agente da polícia”, disse Harry. Tossiu. “Ex-policial. E, enfrentando um pouco de dificuldades no momento.”
Ela não disse nada, apenas ficou ali.
“Claro que eu vou pagar pelo vidro quebrado.” Harry levantou o paletó do chão do banheiro e tirou sua carteira. Colocou algumas notas sobre a pia. “Dólares de Hong Kong. Eles são... melhores do que parecem.”
Ele ensaiou um sorriso e viu uma lágrima escorrendo pelo rosto enrugado.
“Oh, querida,” Harry disse, sentindo pânico, a sensação de que estava escorregando, perdendo o controle. “Não tenha medo. Eu realmente não vou fazer nada com você. Vou sair agorinha mesmo, OK?”
Ele colocou o braço na manga do paletó e caminhou em sua direção. Ela recuou, se encolheu, passos trôpegos, mas não afastou os olhos dele. Harry levantou as palmas das mãos e caminhou rapidamente para a porta do terraço nos fundos.
“Obrigado”, disse. “E desculpe.”
Então ele abriu a porta e foi para o terraço.
A força da explosão sugeria que era uma arma de grosso calibre. Depois veio o som do tiro, e o impacto para confirmar. Harry caiu de joelhos quando a bala seguinte estilhaçou a parte de trás da cadeira de jardim ao lado dele.
Era realmente de grosso calibre.
Harry retornou para a sala de estar.
“Deite-se!”, gritou enquanto a janela da sala de estar explodia. Cacos de vidro tilintaram no chão de parquet, na TV e na mesa coberta com fotografias da família.
Agachado, Harry correu pela sala de estar, pelo hall, para a porta da frente. Abriu-a. Viu o clarão da chama na porta aberta de uma limusine preta sob uma lâmpada de rua. Ele sentiu uma dor intensa no rosto, e um som agudo, penetrante e metálico ecoou. Harry virou-se automaticamente e viu que a campainha ao lado da porta havia ficado em pedaços. Grandes lascas brancas de madeira na parede.
Harry recuou. Deitou-se no chão.
Um calibre mais grosso do que qualquer uma das armas da polícia. Harry pensou na figura alta que ele tinha visto correndo no topo da colina. Que não parecia ser um policial.
“Você tem algo no rosto...”
Era a mulher; ela teve de gritar sobre o toque estridente da campainha que estava travada. Ela estava de pé atrás dele, nos fundos da sala. Harry tateou com os dedos. Era uma lasca de madeira. Ele puxou-a para fora. Teve tempo de pensar que foi sorte ter acertado no mesmo lado da cicatriz - ele não iria perder seu valor de mercado dramaticamente. Em seguida, houve outra explosão. Desta vez foi a janela da cozinha. Ele estava perdendo todos os seus dólares de Hong Kong.
Por cima do barulho da campainha ele podia ouvir sirenes à distância. Harry levantou a cabeça. No corredor e na sala dava para ver que as luzes das casas vizinhas foram acesas. A rua estava iluminada como uma árvore de Natal. Ele iria se  tornar um alvo em movimento e iluminado em qualquer direção que tomasse. Só havia duas opções: ser baleado ou preso. Não, nem isso. Eles ouviram as sirenes também, e sabiam que o tempo estava se esgotando para eles. E ele não havia atirado de volta, então eles deviam estar pensado que ele estava desarmado. Eles iriam segui-lo. Ele tinha que fugir. Ele pegou seu celular. Merda, por que não se deu ao trabalho de registrar o número do T? Afinal de contas a sua lista de contatos não estava exatamente cheia.
“Qual é o número da Consulta de Telefones?”, ele gritou.
“O número... para... Consulta de telefones?”
“Sim.”
“Bem.” Ela enfiou um dedo pensativo na boca, enfiou o roupão de amianto vermelho embaixo dela enquanto se sentava numa cadeira de madeira. “Tem o 1880. Mas eu acho que eles são mais atenciosos no 1881. Eles não são tão rápidos ou estressados. Eles tem paciência e até batem um papinho se você...”
“Consulta 1880,” disse uma voz anasalada no ouvido de Harry.
“Asbjørn Treschow”, disse Harry. “Com CH.”
“Temos um Asbjørn Berthold Treschow em Oppsal, Oslo, e um Asbjø...”
“É ele! Você poderia me informar qual é o número do celular dele?”
Depois de três segundos de uma longa eternidade uma voz familiar e mal-humorada respondeu.
“Eu não quero nada.”
“Tresko?” (18)
Uma longa pausa sem resposta. Harry visualizou o rosto espantado do seu amigo gordo.
“Harry? Quanto tempo...”
“Você está no trabalho?”
“Sim.” O i prolongado indicava uma suspeita. Ninguém ligava para Tresko sem motivo.
“Eu preciso de um favor rápido.”
“Sim, eu suponho que você precisa. Tá legal, e aquelas cem coroas que você me pediu? Você disse...”
“Eu preciso que você desligue a energia elétrica no Frogner Park no setor da Madserud Allé.”
“Você o que?”
“Nós temos uma emergência policial aqui. Tem um maluco com uma arma. Precisamos de cobertura, de escuridão. Você ainda está na subestação em Montebello?”
Outra pausa.
“Até agora, mas você ainda é um policial?”
“Claro. Tresko, isto é realmente muito urgente.”
“Eu não dou a mínima. Eu não tenho autorização para fazer isso. Você vai ter que falar com Henmo, e ele...”
“Ele está dormindo e não temos tempo!” Harry gritou. Naquele momento, outro tiro ecoou e um armário na cozinha foi atingido. Um conjunto de pratos deslizou para fora com barulho e se espatifou no chão.
“Que diabos foi isso?”, Tresko perguntou.
“O que você acha? Você pode escolher entre a responsabilidade por um apagão de 40 segundos ou uma pilha de corpos.”
Silêncio na outra extremidade por alguns instantes. Então ele falou, lentamente:
“Imagina só, Harry? Eu estou sentado aqui e estou no comando. Você nunca teria acreditado nisso, não é?”
Harry respirou fundo. Viu uma sombra se esgueirando no terraço. “Não, Tresko. Eu não teria acreditado. Você pode...”
“Você e Øystein nunca pensaram que eu iria chegar a tanto, não é?”
“Não, naquele tempo nós agíamos como grandes idiotas.”
“E quanto a dizer por fav...”
“Desliga essa merda de eletricidade porra!” Harry gritou. E a ligação foi cortada. Ele se levantou, pegou a senhora debaixo do braço e levou-a até o banheiro. “Fique aqui”, ele sussurrou, fechando a porta atrás dele e correndo para a porta aberta da frente. Ele correu para a luz, preparando-se para o dilúvio de balas.
E então tudo ficou escuro.
Tão negro que quando pisou nas pedras do caminho ele olhou em volta, confuso, pensando que estava morto. Então percebeu que Asbjørn “Tresko” Treschow tinha acionado uma chave, apertado uma tecla ou qualquer outra coisa conforme os procedimentos que eles cumpriam na subestação. E que ele tinha 40 segundos.
Harry correu cegamente dentro da escuridão. Tropeçou na cerca de madeira, sentiu o asfalto debaixo de seus pés e correu. Ouviu os gritos e sirenes se aproximando. Mas também o rosnado de um poderoso motor de carro dando partida. Harry manteve a sua direita, podia ver o suficiente para ficar na rua. Ele estava ao sul de Frogner Park. Havia uma chance de que conseguisse. Ele passou por moradias isoladas escuras, árvores, floresta. O setor ainda estava sem eletricidade. O motor do carro estava se aproximando. Ele deu uma guinada à esquerda para a área de estacionamento das quadras de tênis. Uma poça no cascalho quase o derrubou, mas ele continuou aos trambolhões. Os únicos objetos que refletiam luz suficiente para serem vistos eram as listras brancas de cal das quadras de tênis atrás da cerca de arame. Harry viu o contorno do edifício principal do OTC. Ele correu para a parede em frente à porta do vestiário e mergulhou de cabeça quando as luzes dos faróis do carro varreram aquele espaço. Ele aterrissou e rolou de lado no concreto. Foi um pouso suave, mas mesmo assim ele ficou tonto.
Ele ficou deitado e imóvel como um rato, esperando.
Não ouviu nada.
Olhou para a noite escura.
Então, subitamente, foi ofuscado pela luz.
A lâmpada do lado de fora sob o telhado. A eletricidade estava de volta.
Harry ficou por dois minutos ouvindo as sirenes. Carros iam e vinham pela rua perto do clube. Os grupos de busca. A área provavelmente já estava cercada. Logo eles estariam trazendo os cães.
Ele não podia se afastar, então ele teria que entrar no edifício.
Ele se levantou, olhou por cima da borda da parede.
Viu a caixa com a luz vermelha e o teclado ao lado da porta.
O ano em que o rei nasceu. Por Deus, quando foi isso?
Ele visualizou uma foto de uma revista de fofocas e tentou 1941. Ouviu um bip e agarrou a maçaneta da porta. Trancada. Espere, o rei já não tinha nascido quando a família real fugiu para Londres em 1940? 1939? Um pouco mais velho talvez. Harry temia que fossem três tentativas e então você continuaria do lado de fora. 1938. Agarrou a maçaneta. Merda. 1937? Luz verde. A porta se abriu.
Harry avançou e ouviu a fechadura da porta travando atrás de si.
Silêncio. Segurança.
Ele acendeu a luz.
Vestiário. Bancos de madeira estreitos. Armários de ferro.
Só nesse momento ele percebeu como estava exausto. Ele poderia ficar aqui até de madrugada, até que a caça tivesse sido cancelada. Ele inspecionou o vestiário. Uma pia com espelho. Quatro chuveiros. Um banheiro. Abriu uma pesada porta de madeira na parede dos fundos.
Uma sauna.
Ele entrou e deixou a porta se fechar atrás dele. O cheiro de madeira. Deitou-se num dos grandes bancos perto do forno frio. Fechou os olhos.
 
(17) Slipknot é uma banda Thrash Metal ou Heavy Metal ou algo similar. Pulse of the Maggots significa Pulsação dos Vermes. Os fãs dessa banda também são chamados de Maggots.

(18)  Tresko significa 'tamanco' em norueguês.

les eram três. Corriam por um corredor, segurando as mãos uns dos outros, e Harry gritou que eles tinham que segurar firme as mãos uns dos outros quando a avalanche os atingisse para que não fossem separados. Ele ouviu a neve se aproximando por trás deles, primeiro como um estrondo, depois como um rugido. Em seguida, ela estava lá, a escuridão branca, o caos preto. Ele agarrou tão firme quanto podia, mesmo assim ele sentiu as mãos deles escorregando das suas.
Harry acordou com um sobressalto. Olhou para o relógio e viu que havia dormido durante três horas. Ele soltou a respiração com um longo chiado como se quisesse mantê-la presa. Seu corpo se sentia golpeado e ferido. Sua garganta doía. Ele estava com uma dor de cabeça trovejante. E ele estava suando. Estava tão encharcado de suor que seu terno tinha manchas escuras. Ele não precisava se virar para descobrir o motivo. O forno. Alguém havia ligado a sauna.
Ele se levantou e cambaleou para o vestiário. Havia roupas sobre os bancos, e ele ouviu o som das raquetes batendo nas bolas. Eles iriam querer uma sauna depois do tênis.
Harry foi até a pia. Olhou-se no espelho. Olhos vermelhos, rosto inchado e vermelho. O colar ridículo de fita adesiva prateada; a borda tinha marcado a pele macia. Ele jogou água no rosto e caminhou em direção ao sol da manhã.
Três homens, todos com bronzeado de aposentado e pernas finas de aposentado, pararam de jogar e olharam para ele. Um deles endireitou os óculos.
“Está faltando um homem para jogarmos em dupla, meu jovem. Gostaria...?”
Harry olhou para a frente e se concentrou em falar calmamente.
“Desculpe, rapazes. Cotovelo de tenista.” (19)
Harry sentiu os olhos deles nas suas costas enquanto caminhava em direção a Skøyen. Devia haver um ponto de ônibus por aqui em algum lugar.
 
ruls Berntsen bateu à porta do chefe.
“Entre!”
Bellman estava com o telefone no ouvido. Ele parecia calmo, mas Truls conhecia Mikael muito bem. A mão que ia e vinha pelo cabelo bem cuidado, a forma ligeiramente acelerada de falar, a ruga de concentração na testa.
Bellman desligou.
“Manhã estressante?”, perguntou Truls, entregando uma xícara de café para Bellman.
O chefe olhou para a xícara com surpresa, mas pegou.
“O Chefe de Polícia,” Bellman disse, acenando em direção ao telefone. “Os jornais estão nas costas dele por causa desta velha senhora da Madserud Allé. A casa dela foi meio devastada por tiros, e ele quer que eu explique o que aconteceu.”
“O que você respondeu?”
“A Central de Operações mandou um carro patrulha depois que o guarda do Vestre Cemetery nos informou que havia pessoas desenterrando Gusto Hanssen. Os culpados já haviam escapado no momento em que o carro chegou, mas, em seguida, um tiro estourou em torno da Madserud Allé. Alguém estava atirando em alguém que invadiu uma casa. A senhora está em choque, ela apenas diz que o intruso era um jovem educado, dois metros e meio de altura com uma cicatriz no rosto.”
“Você acha que o tiroteio está conectado com a profanação da sepultura?”
Bellman assentiu. “Havia torrões de lama no chão da sala de estar que certamente vieram do cemitério. Portanto, agora o Chefe da Polícia quer saber se isso está relacionado com drogas, se é um novo confronto entre gangues. Se eu tenho a situação sob controle, esse tipo de coisa.” Bellman foi até a janela e acariciou o nariz estreito com o indicador.
“É por isso que você me pediu para vir?”, perguntou Truls, tomando um gole de café com cuidado.
“Não”, disse Bellman, de costas para Truls. “Eu estava pensando sobre aquela noite em que recebemos a informação anônima de que toda a gangue Los Lobos estaria no McDonalds. Você não estava naquela prisão, não é?”
“Não”, disse Berntsen com uma tosse. “Não foi possível. Eu estava doente naquela noite.”
“A mesma doença que você teve recentemente?” Bellman perguntou sem se virar.
“Ahn?”
“Alguns policiais ficaram surpresos porque a porta do Clube dos motociclistas não estava trancada quando eles chegaram. E se questionaram como este Tutu, que, de acordo com Odin, estava vigiando o Clube conseguiu fugir. Ninguém poderia ter sabido que estávamos chegando. Poderiam?”
“Até onde eu sei”, disse Truls, “só nós.”
Bellman continuou a olhar para fora da janela, se balançando sobre os calcanhares. Mãos atrás dos quadris. Balançou para trás. E balançou para frente.
Truls limpou o lábio superior. Esperava que o suor não fosse visível. “Algo mais?”
Continuou se balançando. Para trás e para frente. Como um menino que tenta ver alguma coisa, mas é muito pequeno.
“Isso era tudo, Truls. E obrigado... pelo café.”
De volta ao seu próprio escritório Truls foi diretamente até a janela. Viu o que Bellman devia ter visto. O cartaz vermelho estava pendurado na árvore.
 
ra meio dia, e na calçada em frente ao Schrøder’s estavam as habituais almas sedentas esperando enquanto Rita abria o bar.
“Oooh,” ela disse quando avistou Harry.
“Relaxe, eu não quero cerveja, apenas o café da manhã”, disse Harry. “E um favor.”
“Quero dizer a garganta”, disse Rita, segurando a porta para ele. “Está azulada. E o que é...?”
“Fita adesiva”, disse Harry.
Rita assentiu e foi anotar os pedidos. No Schrøder’s a política era que cada um cuidava da sua vida.
Harry sentou-se na sua mesa de sempre no canto perto da janela e ligou para Beate Lønn.
Foi atendido pelo correio de voz. Esperou pelo sinal sonoro.
“Harry falando. Eu esbarrei numa senhora idosa e ela deve ter ficado um pouco impressionada comigo, então eu não acho aconselhável me aproximar de delegacias de polícia por um tempo. Estou deixando dois saquinhos com amostras aqui no Schrøder’s. Venha em pessoa e pegue com a Rita. Tem um outro favor que eu gostaria de pedir. Bellman iniciou uma investigação de endereços em Blindern. Eu gostaria que você, o mais discretamente possível, desse um jeito de conseguir cópias das listas das equipes, antes de serem enviadas para a Orgkrim.”
Harry desligou. Então ligou para Rakel. Correio de voz novamente.
“Olá, é o Harry. Eu preciso de algumas roupas limpas e do meu tamanho, imagino que ainda tem algumas na sua casa desde... desde aquele tempo. Eu vou fazer um upgrade e me hospedar no Plaza, por isso, se você pudesse enviar algumas para lá num táxi quando você voltar para casa seria...” Ele automaticamente procurou encontrar uma palavra que poderia ter uma chance de fazê-la sorrir. Como ‘hiperjóia’ ou ‘Megabom’. Mas falhou e se contentou com um convencional ‘ótimo’.
Rita chegou com café e um ovo frito quando Harry estava telefonando para Hans Christian. Ela olhou com um ar de reprovação. O Schrøder’s sempre teve uma regra mais ou menos tácita de que computadores, jogos de tabuleiro e telefones celulares estavam fora de cogitação. Este era um lugar para beber, de preferência cerveja, comer, conversar ou se desligar lendo um jornal. Presumivelmente, a leitura de livros era uma área cinzenta.
Harry sinalizou que isso levaria apenas alguns segundos, e Rita assentiu graciosamente.
Hans Christian parecia aliviado e horrorizado. “Harry? Meu Deus. Tudo bem?”
“Numa escala de um a dez...”
“Sim?”
“Você ouviu sobre o tiroteio em Madserud Allé?”
“Oh, Senhor! Era você?”
“Você tem uma arma, Hans Christian?”
Harry pensou que podia ouvi-lo engolir.
“Preciso de uma, Harry?”
“Você não. Eu preciso.”
“Harry...”
“Apenas para autodefesa. Se houver necessidade.”
Pausa. “Eu tenho um velho rifle de caça que meu pai me deixou. Para caçar alces.”
“Vai servir. Você pode pega-lo, embalar e entregar no Schrøder’s dentro de quarenta e cinco minutos?”
“Eu posso tentar. O que você vai fazer?”
“Eu”, disse Harry, encontrando os olhos de Rita recriminando-o do balcão, “vou tomar meu café da manhã.”
 
 caminho para o cemitério de Gamlebyen Truls Berntsen viu uma limusine preta estacionada em frente ao portão, por onde ele geralmente entrava. E quando se aproximou, a porta se abriu do lado do passageiro e um homem saiu. Ele estava usando um terno preto e devia ter bem mais de dois metros de altura. Mandíbula poderosa, franja lisa e algo indefinivelmente asiático que Truls sempre associava aos sami, aos finlandeses e aos russos. O paletó devia ter sido feito sob medida, mas ainda estava muito apertado nos ombros.
Afastou-se para o lado e fez um gesto indicando que Truls deveria tomar seu lugar no banco do passageiro.
Truls parou. Se estes eram homens de Dubai então era uma quebra inesperada das regras relativas ao contato direto. Ele olhou em volta. Ninguém à vista.
Ele hesitou.
Se eles tivessem decidido se livrar do queimador, é assim que eles iriam agir.
Ele olhou para o homem enorme. Era impossível ler qualquer coisa na sua expressão facial, e Truls não conseguia decidir se o detalhe do homem ter tomado o cuidado de colocar um par de óculos escuros era um bom ou um mau sinal.
Claro que ele poderia se virar e fugir. Mas e depois?
“Q5”, Truls murmurou para si mesmo em voz baixa.
A porta foi fechada imediatamente atrás dele. Estava estranhamente escuro lá dentro, devia ser por causa dos vidros escuros. E o ar condicionado parecia ser extraordinariamente eficaz, ele sentiu como se estivesse vários graus abaixo de zero. No banco do motorista estava um homem com um rosto de lobo. Terno preto também. Franja lisa. Provavelmente russo.
“Muito bom você ter aceitado o convite”, disse uma voz atrás de Truls. Ele não precisava se virar. O sotaque. Era ele. Dubai. O homem que ninguém conhecia. Quer dizer, mais ninguém conhecia. Mas o que Truls ganhava por saber um nome, conhecer um rosto? Além disso, você não morde a mão que te alimenta.
“Eu quero que você bote a mão numa pessoa para nós.”
“Botar a mão?”
“Prender. E entregar para nós. Você não precisa se preocupar com o resto.”
“Eu já lhe disse que não sei onde Oleg Fauke está.”
“Não se trata de Oleg Fauke, Berntsen. Trata-se de Harry Hole.”
Truls Berntsen mal podia acreditar nos seus próprios ouvidos. “Harry Hole?”
“Você não sabe quem é ele?”
“Claro que sim. Ele estava na Brigada Criminal. Completamente louco. Um bêbado. Resolveu alguns casos. Ele está na cidade?”
“Ele está hospedado no Hotel Leon. Quarto 301. Pegue-o lá a meia noite em ponto.”
“E como eu deveria prende-lo?”
“Agarre. Derrube. Nocauteie. Diga que você quer mostrar o seu barco. Faça como você achar melhor, basta levá-lo para a marina em Kongen. Nós faremos o resto por lá. Cinquenta mil.”
O resto. Ele estava falando em matar Harry Hole. Ele estava falando de assassinato. De um policial.
Truls abriu a boca para dizer que não, mas a voz no banco de trás foi mais rápida.
“Euros”.
A mandíbula de Truls Berntsen se abriu com um ‘não’ perdido em algum lugar entre o cérebro e as cordas vocais. Em vez disso, ele repetiu as palavras que pensava ter ouvido, mas quase não acreditava.
“Cinquenta mil euros?”
“Então?”
Truls olhou para o relógio. Ele tinha um pouco mais de 11 horas. Tossiu.
“Como você sabe que ele vai estar no seu quarto à meia-noite?”
“Porque ele sabe que nós estaremos chegando.”
“Ahn? Você não quer dizer que ele não sabe que você estará chegando?”

A voz atrás dele riu. Soou como o motor de um barco de madeira. Chug-chug.
 
(19) Cotovelo de tenista (Epicondelite lateral) afeta o tendão do cotovelo de pessoas que exercem atividades que exigem esforço do cotovelo, principalmente tenistas.

ram quatro horas e Harry estava debaixo do chuveiro no décimo oitavo andar do Radisson Plaza. Ele esperava que a fita adesiva resistisse na água quente - pelo menos a água entorpeceria a dor por algum tempo. Ele tinha recebido o quarto número 1937, e algo passou pela sua mente quando pegou a chave. O ano do nascimento do rei, Koestler, sincronicidade e coisas assim. (20) Harry não acreditava nisso. Ele acreditava era na capacidade da mente humana de encontrar padrões. Inclusive onde, de fato, não havia nenhum. Era por isso que ele sempre tinha sido um cético enquanto detetive. Ele tinha duvidas e procurava, tinha dúvidas e procurava. Enxergava os padrões, mas duvidava da culpa. Ou vice-versa.
Harry ouviu o toque do telefone. Era audível, mas discreto e agradável. O som de um hotel caro. Ele desligou o chuveiro e foi para a cama. Ergueu o receptor.
“Há uma senhora aqui”, disse a recepcionista. “Rakel Fauske... Minhas desculpas. Fauke, diz ela. Ela tem algo que gostaria de lhe entregar.”
“Dê-lhe uma chave do elevador e deixe-a subir,” disse Harry. Ele olhou para seu terno pendurado no guarda-roupa. Parecia que tinha passado por duas guerras mundiais. Ele enrolou uma toalha na cintura e abriu a porta do quarto. Sentou-se na cama e ficou ouvindo. Ouviu o pling do elevador e, em seguida, seus passos. Ele ainda conseguia reconhecê-los. Passos muito firmes, mas curtos, com uma alta frequência, como se ela sempre estivesse vestindo uma saia justa. Ele fechou os olhos por um segundo, e quando os reabriu ela estava de pé na frente dele.
“Oi, homem nu”, ela sorriu, jogando as sacolas no chão e a si mesma na cama ao lado dele. “O que é isto?” Ela acariciou a fita adesiva com os dedos.
“Apenas um curativo improvisado”, respondeu. “Você não precisava vir pessoalmente.”
“Eu sei”, disse ela. “Mas eu não consegui encontrar nenhuma das suas roupas. Elas devem ter desaparecido durante a mudança para Amsterdã.”
Foram jogadas fora, Harry pensou. Muito justo.
“Mas então eu falei com Hans Christian, e ele tinha um guarda-roupa cheio de roupas que não usa mais. Não é bem o seu estilo, mas são praticamente do seu tamanho.”
Ela abriu as sacolas, e ele olhou com horror quando ela tirou uma camiseta polo Lacoste, quatro pares de cuecas passadas, um par de calças jeans Armani com vinco, um suéter com decote em V, uma jaqueta Timberland, duas camisetas com jogadores de pólo e até mesmo um par de sapatos de couro macio, marrons.
Ela começou a pendurá-los no guarda-roupa e ele levantou-se e assumiu a tarefa. Ela ficou de lado observando-o, sorriu enquanto colocava uma mecha de cabelo atrás da orelha.
“Você não iria comprar qualquer roupa nova até que o terno literalmente caísse aos pedaços. Não é verdade?”
“Bem,” disse Harry, movendo os cabides. As roupas não eram familiares, mas havia um leve aroma familiar. “Eu tenho que admitir que estava precisando de uma camisa nova e talvez um par de cuecas.”
“Você não tem nenhuma cueca limpa?”
Harry olhou para ela. “Defina limpa.”
“Harry!” Ela deu um tapa no ombro dele com uma risada.
Ele sorriu. A mão dela permaneceu em seu ombro.
“Você está quente”, ela disse. “Febrilmente quente. Você tem certeza que seja lá o que estiver sob o que você chama de curativo não está infeccionado?”
Ele balançou a cabeça. Sabendo muito bem, pela dor latejante e pulsante, que a ferida estava inflamada. Mas, com seus muitos anos de experiência na Brigada Criminal ele sabia outra coisa também. Que a polícia havia interrogado o barman e os clientes do bar Nirvana e saberia que a pessoa que tinha matado o Homem da Faca havia deixado o lugar com cortes profundos no queixo e na garganta. Eles também teriam alertado todos os médicos da cidade a ficarem atentos aos atendimentos na Emergência. E a situação não lhe permitia ser preso.
Ela acariciou seu ombro até o pescoço e de volta. O peito. E ele pensou que ela seria capaz de sentir seu coração batendo e que ela era como a TV Pioneer que tinham parado de produzir porque era muito boa, e você podia ver que era boa porque as cenas pretas eram intensamente pretas.
Ele tinha conseguido abrir um pouco da janela; não queriam suicídios no hotel. E mesmo no décimo oitavo andar podiam ouvir a hora do rush, as buzinas ocasionais dos carros, e de algum outro lugar, talvez de um outro quarto, uma inadequada e deslocada canção de verão.
“Você tem certeza que quer isso?”, ele perguntou, sem tentar limpar sua voz rouca. Ficaram ali; ela com a mão em seu ombro, olhos fixos nos dele como um parceiro de tango muito concentrado.
Ela assentiu com a cabeça.
Ele se sentiu sugado por um cósmico buraco negro, um preto intenso dentro da escuridão. Ele nem sequer percebeu ela levantar o pé e fechar a porta. Ouviu-a se fechando, tão suavemente, o som de um hotel caro, como um beijo.
E enquanto faziam amor ele só pensava na escuridão e no aroma. A escuridão do seu cabelo, sobrancelhas e olhos. E o aroma do perfume que ele nunca tinha perguntado o nome, mas que era apenas dela, que estava nas suas roupas, no seu guarda-roupa, que tinha passado para as roupas dele quando foram penduradas junto com as dela. E que agora estava no guarda-roupa daqui. Porque as roupas do outro homem tinham estado penduradas no guarda-roupa dela. E foi de lá que ela as tinha pegado, e não na casa dele, talvez ele nem tivesse dado a sugestão, talvez ela tivesse decidido por conta própria pega-las no guarda-roupa e traze-las para cá. Mas Harry não disse nada. Porque ele sabia que estava com ela a título de empréstimo, ponto final. Ela estava com ele agora, e era isso ou nada. Então, ele segurou a língua. Fez amor com ela do jeito que ele sempre fez, com intensidade e no seu ritmo. Não se permitindo ser influenciado pela avidez ou pela impaciência dela, mas o fez com tão lenta paixão que ela alternava entre suspiros e gritos de impaciência. Não porque era assim que ele pensava que ela queria, mas porque era assim que ele queria. Porque ele a tinha somente por empréstimo. Ele tinha apenas estas poucas horas.
E quando ela gozou, ficou rígida e olhou para ele com uma expressão paradoxalmente ofendida, e ele se lembrou de todas as noites que passaram juntos e sentiu vontade de chorar.
Depois, eles compartilharam um cigarro.
“Por que você não me disse que vocês estão juntos?” Harry disse, inalando e passando-lhe o cigarro.
“Porque nós não estamos. É uma... uma coisa tipo quebra galho.” Ela balançou a cabeça. “Eu não sei. Eu não sei mais nada. Eu deveria ficar longe de tudo e de todos.”
“Ele é um bom homem.”
“Este é o ponto. Eu preciso de um homem bom, então por que não quero um homem bom? Por que somos tão malditamente irracionais quando nós realmente sabemos o que é melhor para nós?”
“Os seres humanos são uma espécie pervertida e danificada”, disse Harry. “E não há cura, apenas alívio.”
Rakel aconchegou-se a ele. “Isso é o que eu gosto em você, o otimismo indomável.”
“Eu encaro isso como o meu dever de espalhar a luz do sol, meu amor.”
“Harry?”
“Hmm.”
“Existe uma maneira de voltar atrás? Para nós?”
Harry fechou os olhos. Ouviu os batimentos cardíacos. Os seus e os dela.
“Não, voltar não.” Ele se virou para ela. “Mas se você acha que ainda tem algum futuro dentro de você...”
“Você quer dizer o que?”
“Esta é apenas uma conversa de travesseiro, não é?”
“Tolinho”. Ela o beijou na bochecha, passou-lhe o cigarro e se levantou. Vestiu-se.
“Você sabe que pode ficar lá na minha casa.”
Ele balançou a cabeça. “Por enquanto é melhor assim.”
“Não se esqueça que eu te amo”, disse ela. “Nunca se esqueça disso. Aconteça o que acontecer. Você promete?”
Ele balançou a cabeça. Fechou os olhos. A porta se fechou suavemente pela segunda vez. Em seguida, ele abriu os olhos. Olhou para o relógio.
Por enquanto é melhor assim.
O que mais ele poderia ter feito? Voltar para Holmenkollen com ela, sabendo que Dubai iria seguir seu rastro até lá, e arrastar Rakel para este confronto, do modo como ele tinha feito com o boneco de neve? Porque agora ele podia ver, ele podia ver que eles tinham monitorado seus passos desde o primeiro dia. Enviar um convite para Dubai através de seus traficantes tinha sido supérfluo. Eles iriam encontrá-lo antes que ele os encontrasse. E então eles iriam encontrar Oleg.
Então, a única vantagem que ele tinha era que podia escolher o lugar. A cena do crime. E ele tinha escolhido. Não aqui no Plaza, este lugar foi para que ele pudesse dar uma pausa, ter algumas horas de repouso e tempo para se recuperar. O lugar era o Hotel Leon.
Harry tinha considerado contatar Hagen. Ou Bellman. Explicar a situação para eles. Mas isso não lhes daria nenhuma outra escolha senão prendê-lo. Mesmo assim, era apenas uma questão de tempo antes que a polícia juntasse as três descrições que tinham sido fornecidas pelo barman do Kvadraturen, o guarda de segurança do Vestre Cemetery e a velha senhora da Madserud Allé. Um homem com um metro e noventa e dois, vestindo um terno de linho, cicatriz num lado do rosto e o queixo e a garganta enfaixados. Eles logo iriam emitir um mandato de busca para Harry Hole. Por isso, era urgente.
Levantou-se com um gemido, abriu o guarda-roupa.
Colocou as cuecas passadas a ferro e uma camisa com um jogador de pólo. Olhou para os jeans Armani. Abanou a cabeça com um pequeno palavrão e vestiu seu terno de linho.
Então ele puxou a sacola de tênis deitada na prateleira dos chapéus. Hans Christian tinha explicado que era a única que tinha espaço suficiente para um rifle.
Harry colocou-a no ombro e saiu. A porta se fechou atrás dele com um beijo suave.
 
(20) Arthur Koestler,  escritor e jornalista húngaro-britânico.  Em 1931 se filiou ao Partido Comunista da Alemanha, até que, desiludido com o stalinismo, renunciou em 1938. Em 1940 publicou seu romance Darkness at Noon, uma obra anti-totalitária que lhe deu fama internacional. Ao longo dos anos seguintes, Koestler se dedicou a muitas causas políticas e escreveu romances, memórias, biografias e numerosos ensaios.  Em 1976, Koestler foi diagnosticado com  Parkinson e, em 1979, com leucemia. Em 1983, ele e sua esposa se mataram em casa.
O fascínio pelo paranormal e pelo misticismo também ocuparam seu tempo. Endossou uma série de temas paranormais, como percepção extrassensorial, psicocinese e telepatia. Seu livro As raízes da Coincidencia (1974) afirma que a resposta a tais fenômenos paranormais podem ser encontrados na física teórica. O livro menciona ainda outra linha de investigação não convencional, a teoria da sincronicidade.
 
Sincronicidade é um conceito desenvolvido por Carl Gustav Jung para definir acontecimentos que se relacionam não por relação de causa e efeito e sim por relação de significado. A sincronicidade difere da coincidência, pois não implica somente na aleatoriedade das circunstâncias, mas sim num padrão subjacente ou dinâmico que é expresso através de eventos ou relações significativas.

Você está em casa, pensando em alguém. De repente, o telefone toca. Do outro lado, a voz que responde ao seu “alô” é a da pessoa na qual você estava pensando. Na noite da véspera do seu aniversário você sonha com uma borboleta. Um dos presentes que recebe no dia seguinte é um brinco em forma de borboleta! Isso é sincronicidade.

u não sei se é possível dizer exatamente como o trono mudou de mãos. Exatamente quando o violino chegou ao poder e começou a nos governar e não o contrario. Tudo tinha ido por água abaixo; o negócio que eu tinha tentado fazer com Ibsen, o golpe em Alnabru. E Oleg, que andava com uma cara de russo deprimido, reclamando que a vida sem Irene não tinha sentido. Depois de três semanas, gastávamos mais do que ganhávamos, nós sempre estávamos altos durante o trabalho e sabíamos que tudo estava prestes a ir pra merda. Mas o que importava era o próximo pico. Parece um clichê, é um clichê, e essa era a realidade. Tão simples assim e tão absolutamente impossível. Eu acho que posso dizer com segurança que nunca amei qualquer ser humano, quero dizer, amor de verdade. Mas eu estava perdidamente apaixonado pelo violino. Enquanto Oleg estava usando violino como remédio para aliviar a dor do seu coração partido, eu estava usando o violino como supostamente deveria ser usado. Para ser feliz. E eu quero dizer exatamente isso: feliz pra caralho. Era melhor do que comida, sexo, sono, sim, ele era ainda melhor do que a respiração.
E foi por isso que eu não fiquei chocado quando, uma noite após o acerto de contas, Andrey me chamou de lado e disse que o velhinho estava preocupado.
“Eu estou bem”, eu disse.
Ele explicou que, se eu não me corrigisse e fosse trabalhar com a cabeça limpa todo o santo dia de agora em diante o velhinho disse que eu seria despachado à força para a reabilitação.
Eu ri. Disse que eu não sabia que este emprego dava direito a benefícios como planos de saúde e outras coisas. Será que Oleg e eu também tínhamos direito a tratamento dentário e aposentadoria?
“Oleg não.”
Eu vi nos olhos dele mais ou menos o que isso significava.
Eu não tinha intenção de largar o hábito ainda. E nem Oleg. Então, nós nem ligamos, e na noite seguinte nós estávamos tão altos quanto o Edifício dos Correios, vendemos metade do nosso estoque, reservamos o resto, roubamos um carro e dirigimos para Kristiansand. Tocando Sinatra no máximo volume, ‘I Got Plenty of Nothing’ – ‘Eu Tenho Abundancia de Nada’ -, o que era verdade, nós nem sequer tínhamos uma maldita carta de motorista. No final Oleg também estava cantando, mas apenas para abafar Sinatra e ‘moi’, segundo ele. Nós rimos e bebemos cerveja morna, foi como nos velhos tempos. Ficamos no Hotel Ernst, que não era tão maçante quanto parecia, mas quando perguntamos na recepção onde ficava o ponto dos traficantes, recebemos apenas um olhar frio e distante como resposta. Oleg me contou sobre o festival da cidade, que foi destruído por algum idiota que estava tão desesperado para se tornar um guru, que contratava bandas que eram tão legais que eles não podiam pagar por elas. No entanto, o povo cristão da cidade sustentou que a metade da população entre dezoito e vinte e cinco tinham comprado drogas por causa do festival. Mas não encontramos nenhum cliente; nós vasculhamos ao redor pela área de pedestres onde havia um - um! - homem embriagado e também quatorze membros do coral Ten Sing,(21) que perguntaram se queríamos encontrar Jesus.
“Se ele quiser um pouco de violino, sim”, eu disse.
Mas, aparentemente, Jesus não queria, então nós voltamos para o nosso quarto de hotel e tomamos um pico de boa noite. Eu não tenho idéia do por que, mas nós ficamos naquele fim de mundo por mais algum tempo. Não fazendo nada, só ficando altos e cantando Sinatra. Uma noite eu acordei com Oleg de pé perto de mim. Ele estava segurando a porra de um cachorro em seus braços. Disse que foi acordado pelo guincho dos freios e, quando olhou pela janela, este cão estava deitado na rua. Eu dei uma espiada. Ele não parecia bem. Oleg e eu concordamos, ele estava com as costas quebradas. Sarnento e com muitas feridas também. A pobre criatura tinha sido espancada, seja por um proprietário ou por outros cães, quem sabe? Mas era bonito, era mesmo. Calmo, olhos castanhos olhando para mim como se acreditasse que eu poderia corrigir o que estava errado. Então, eu tentei. Dei-lhe comida e água, acariciei sua cabeça e falei com ele. Oleg disse que deveríamos levá-lo a um veterinário, mas eu sabia o que eles fariam, então ficamos com o cão no quarto do hotel, penduramos uma placa ‘Não Perturbe’ na porta e deitamos ele na cama. Nós nos revezamos para ficar acordados e checar se ainda estava respirando. Ele ficou lá, ficando mais quente e mais quente e o pulso ficando mais fraco. No terceiro dia eu lhe dei um nome. Rufus. Por que não? É bom ter um nome já que você vai bater as botas.
“Ele está sofrendo”, disse Oleg. “O veterinário vai colocá-lo para dormir com uma injeção. Não vai doer nada.”
“Ninguém vai injetar Rufus com um narcótico barato,” eu disse, sacudindo a seringa.
“Você está louco?”, disse Oleg. “Esse violino vale duas mil coroas.”
Talvez custasse. De qualquer forma Rufus deixou este mundo de merda na primeira classe.
Eu me lembro que na viagem de volta o céu estava nublado. De qualquer forma não havia Sinatra, ninguém cantou.
De volta a Oslo, Oleg estava apavorado com o que estava por vir. Quanto a mim eu estava muito tranquilo, por incrível que pareça. Era como se eu soubesse que o velhinho não iria nos tocar. Nós dois, viciados inofensivos indo para o buraco. Quebrados, desempregados e, dentro de pouco tempo, sem violino. Oleg havia descoberto que a expressão americana ‘junkie’, usada para denominar os viciados, tinha mais de cem anos, surgiu quando os primeiros viciados em heroína roubaram sucata de metal (junk) no porto da Filadélfia e venderam para financiar o seu consumo. E isso foi exatamente o que Oleg e eu fizemos. Começamos a nos esgueirar em locais de construção na área do porto em Bjørvika e roubávamos tudo o que víamos pela frente. Cobre e ferramentas valiam ouro. Vendíamos o cobre para um comerciante de sucata em Kalbakken, as ferramentas para um casal de comerciantes lituanos.
Mas à medida que as pessoas perceberam o golpe, as cercas cresceram em altura, mais guardas noturnos foram empregados, os policiais apareceram e os compradores desertaram. Então, nós ficamos largados a toa, a nossa fissura nos torturando vinte e quatro horas por dia. E eu sabia que precisava ter uma idéia decente, tipo Ou Tudo ou Nada. Então eu tive.
É claro que eu não disse nada para Oleg.
Eu preparei o discurso durante um dia inteiro. Então eu liguei para ela.
Irene tinha acabado de chegar em casa da academia de ginástica. Ela parecia quase feliz ao ouvir minha voz. Eu falei sem parar por uma hora. Quando eu tinha terminado ela estava chorando.
Na noite seguinte eu fui até a Central Sation e estava lá na plataforma quando o trem de Trondheim chegou.
Suas lágrimas estavam rolando quando ela me abraçou.
Tão jovem. Então carinhosa. Tão preciosa.
Como já mencionei, eu realmente nunca amei ninguém. Mas eu estive bem próximo disso, porque eu estava quase chorando.
 

(21) Ten Sing  é um trabalho cultural e musical com os jovens cristãos dentro da ACM, originou-se na Noruega e depois se espalhou pela Europa, EUA, América do Sul,Filipinas e China.

ela estreita abertura da janela do quarto 301 Harry ouviu as onze badaladas de um sino de igreja em algum lugar na escuridão. A dor no seu queixo e na garganta tinha uma vantagem: ela o mantinha acordado. Ele saiu da cama e sentou-se na cadeira, inclinando-se para trás contra a parede ao lado da janela, de modo que ficasse de frente para a porta com o rifle no colo.
Ele tinha parado na recepção e pediu uma lâmpada forte para substituir a que tinha queimado no seu quarto e um martelo para bater alguns pregos que estavam mal pregados na soleira da porta. Disse que iria consertar ele mesmo. Então substituiu a lâmpada fraca do corredor e usou o martelo para soltar e remover a tábua da soleira da porta.
De onde estava sentado, ele poderia ver a sombra na fresta sob a porta quando eles chegassem.
Harry acendeu outro cigarro. Verificou o rifle. Acabou com o resto do maço. Lá fora, na escuridão o sino da igreja tocou doze vezes.
O telefone tocou. Era Beate. Ela disse que tinha conseguido cópias de quatro das cinco listas dos carros de patrulha que fizeram o levantamento no bairro de Blindern.
“O último carro de patrulha já havia entregado sua lista na Orgkrim”, disse.
“Obrigado,” disse Harry. “Você pegou os sacos com a Rita no Schrøder’s?”
“Sim eu peguei. Eu pedi para o pessoal da Patologia dar prioridade. Eles estão analisando o sangue agora.”
Pausa.
“E?”, perguntou Harry.
“E o que?”
“Eu conheço essa entonação, Beate. Há mais alguma coisa.”
“Testes de DNA demoram mais do que algumas horas, Harry. Po...”
“...pode levar dias antes que nós tenhamos o resultado final.”
“Sim, então, por enquanto, está incompleto.”
“Como incompleto?” Harry ouviu passos no corredor.
“Bem, há pelo menos cinco por cento de probabilidade de que não há compatibilidade.”
“Você recebeu o perfil de DNA preliminar e encontrou uma compatibilidade ao fazer a comparação com os arquivos de DNA, não é?”
“Nós usamos testes incompletos só para saber quem podemos eliminar.”
“Quem é o compatível?”
“Eu não quero dizer nada até...”
“Vamos lá!”
“Não posso. Mas eu posso dizer que não é o sangue de Gusto.”
“E?”
“E também não é do Oleg. Tudo bem?”
“Tudo muito bem,” Harry disse, de repente consciente de que estava prendendo a respiração.
Uma sombra debaixo da porta.
“Harry?”
Harry desligou. Apontou o rifle para a porta. Esperou. Três batidas curtas. Esperou. Ouviu. A sombra não se mexeu. Ele foi na ponta dos pés ao longo da parede até a porta, afastado de uma possível linha de fogo. Colocou seu olho no olho mágico no meio da porta.
Ele viu as costas de um homem.
A sua jaqueta justa era tão curta que ele podia ver a cintura da calça. Um pedaço de pano preto pendurado do bolso de trás, um boné, talvez. Mas ele não estava usando cinto. Seus braços pendurados junto ao corpo. Se o homem estava carregando uma arma então tinha que ser num coldre, ou no peito ou no lado de dentro da panturrilha. Nada muito comum.
O homem virou-se para a porta e bateu duas vezes, mais forte desta vez. Harry prendeu a respiração enquanto estudava a imagem distorcida do rosto. Desfigurado, mas ainda havia algo inconfundível nele. O queixo pronunciado. E ele estava coçando debaixo do queixo com um distintivo que estava pendurado no pescoço. Da maneira como os policiais às vezes usam o distintivo quando vão fazer uma prisão. Merda! A polícia tinha sido mais rápida do que Dubai.
Harry hesitou. Se o cara tinha ordens para prendê-lo, ele também deveria ter um mandado de busca, ele já teria mostrado ao recepcionista e ele pediria uma chave mestra. O cérebro de Harry calculou. Ele voltou na ponta dos pés para trás, enfiou o rifle atrás do guarda-roupa. Voltou e abriu a porta. Disse: “O que você quer e quem é você?” Enquanto olhava para os dois lados do corredor.
O homem olhou para ele. “Que estado lastimável, Hole. Posso entrar?” Ele levantou seu distintivo.
“Truls Berntsen. Você costumava trabalhar para Bellman, não é?”
“Ainda trabalho. Ele mandou lembranças.”
Harry deu um passo para o lado e deixou Berntsen entrar.
“Aconchegante,” disse Berntsen, olhando ao redor.
“Sente-se,” Harry disse, indicando a cama e sentou-se na cadeira perto da janela.
“Chiclete?”, disse Berntsen, oferecendo um pacote.
“Provoca cáries. O que você quer?”
“Amigável como sempre?” Berntsen sorriu, tirou o papel do chiclete, colocou-o na sua mandíbula prognata tipo gaveta e sentou-se.
O cérebro de Harry estava registrando a entonação, a linguagem corporal, o movimento dos olhos, o cheiro. O homem estava descontraído, mas ameaçador. Mãos abertas, nenhum movimento brusco, mas seus olhos estavam coletando dados, fazendo uma leitura da situação, se preparando para alguma coisa. Harry se lamentou por ter guardado seu rifle. Não possuir uma licença era o menor de seus problemas.
“É o seguinte, encontramos sangue na camisa de Gusto depois de uma grave profanação no Vestre Cemetery na noite passada. E o teste de DNA mostra que o sangue é seu.”
Harry observou enquanto Berntsen cuidadosamente dobrava o papel prateado que tinha embrulhado o chiclete. Harry lembrou-se melhor agora. Chamavam-no de Beavis. (21) Moço de recados de Bellman. Estúpido e inteligente. E perigoso. Forrest Gump do mal.
“Eu não tenho nenhuma idéia do que você está falando”, disse Harry.
“Não, eu posso imaginar”, disse Berntsen com um suspiro. “Erro nos arquivos talvez? Eu vou ter que levá-lo até o QG da Polícia para tirar outra amostra de sangue.”
“Estou à procura de uma menina”, disse Harry. “Irene Hanssen.”
“Ela está no Vestre Cemetery?”
“Ela está desaparecida desde o verão passado. Ela é a irmã adotiva de Gusto Hanssen.”
“Novidade para mim. No entanto, você vai ter que vir comigo até o...”
“É a garota no meio”, disse Harry. Ele tinha pegado a fotografia da família Hanssen do bolso do paletó e passou para Berntsen. “Eu preciso de um pouco de tempo. Não muito. Mais tarde você vai entender por que eu tive que fazer coisas deste tipo. Prometo me apresentar no prazo de quarenta e oito horas.”
“48 Horas”, disse Berntsen, estudando a foto. “Bom filme. Nick Nolte e aquele negro. McMurphy?”
“Eddie Murphy.”
“Certo. Ele deixou de ser engraçado. Não é estranho? Você tem alguma coisa, e então de repente você perde. Qual é a sensação, na sua opinião, Hole?”
Harry olhou para Truls Berntsen. Ele já não tinha mais tanta certeza sobre essa coisa de Forrest Gump. Berntsen segurou a fotografia debaixo da luz. Apertou os olhos bem concentrado.
“Você reconhece a garota?”
“Não”, disse Berntsen, devolvendo a fotografia se contorcendo. Obviamente, ele não estava confortável sentado sobre o pano preto no seu bolso traseiro, porque ele rapidamente mudou-o para o bolso da jaqueta. “Nós vamos dar um passeio até o QG da Polícia, onde vamos discutir as suas quarenta e oito horas.”
Seu tom era leve. Muito leve. E Harry já tinha chegado a uma conclusão. Beate tinha priorizado os testes de DNA que ele pediu e ainda não tinha um resultado final. Então como é que Berntsen tinha o resultado de um exame de sangue da mortalha de Gusto? E tinha outro detalhe. Berntsen não moveu o pano com rapidez suficiente. Não era um boné, era uma balaclava. Do mesmo tipo da que foi usada quando Gusto foi executado.
E a próxima conclusão foi automática. O queimador.
Será que o lacaio de Dubai foi o primeiro a chegar, e não a polícia?
Harry pensou no rifle atrás do guarda-roupa. Mas já era tarde demais para escapar agora. No corredor, ouviu passos que se aproximavam. Duas pessoas. Um deles tão grande que o assoalho rangeu. Os passos pararam do lado de fora da porta. A sombra de dois pares de pernas, pernas afastadas, surgiu no chão pela fresta no chão. Ele poderia naturalmente ter imaginado que eram os colegas policiais de Berntsen, que esta era uma prisão de verdade. Mas ele tinha ouvido os gemidos do chão. Um homem grande, ele imaginou o tamanho da figura correndo atrás dele pelo Frogner Park.
“Vamos lá”, disse Berntsen, levantando-se e ficando de pé na frente de Harry. Coçou o peito por dentro da lapela de um modo aparentemente casual. “Um pequeno passeio, só você e eu.”
“Nós não estamos sozinhos, ao que parece,” disse Harry. “Vejo que você tem retaguarda.”
Ele acenou para a sombra debaixo da porta. Outra sombra apareceu. Uma sombra alongada e ereta. Truls acompanhou seu olhar. E Harry viu. Um espanto genuíno no rosto dele. O tipo de espanto que Truls Berntsen não podia simular. Eles não eram colegas de Berntsen.
“Afaste-se da porta,” Harry sussurrou.
Truls parou de mastigar o chiclete e olhou para ele.
 
ruls Berntsen gostava de usar sua pistola Steyr num coldre de ombro, posicionada de tal forma que a arma ficasse achatada contra seu peito. Desse jeito ficava mais difícil de ser vista quando você ficava cara a cara com alguém. E, como ele sabia que Harry Hole era um detetive experiente, treinado pelo FBI em Chicago e assim por diante, ele também sabia que Hole notaria automaticamente qualquer coisa volumosa nos locais habituais. Não que Truls tivesse pensado que seria necessário usar a pistola, mas ele tinha tomado precauções. Se Harry resistisse ele iria escolta-lo com a Steyr discretamente apontada para suas costas, depois de ter colocado a balaclava para que as testemunhas potenciais não pudessem dizer que ele tinha sido visto com Hole antes dele desaparecer da face da terra. O Saab estava estacionado em um beco; ele até quebrou a única lâmpada da rua para que ninguém pudesse ver a placa. Cinquenta mil euros. Ele tinha que ser paciente, construir pedra por pedra. Adquirir uma casa um pouco mais acima na Høyenhall com uma vista, olhar para eles de cima. Para ela lá embaixo.
Harry Hole parecia se menor do que o gigante. E mais feio. Pálido, feio, sujo e exausto. Resignado, sem foco. Este ia ser um trabalho mais fácil do que o previsto. Então, quando Hole sussurrou que ele devia se afastar da porta a primeira reação de Truls Berntsen foi de irritação. Porque o cara resolvera brincar agora que tudo parecia estar indo tão bem? Mas sua segunda reação foi a de pensar que esta era a voz que eles usavam. Os policiais, em situações críticas. Sem enfeites, sem drama, apenas uma clareza neutra e fria com o mínimo de chance possível de haver um mal-entendido. E a maior chance possível de sobrevivência.
Então Truls Berntsen - quase sem pensar - deu um passo para o lado.
Nesse momento, a parte superior do painel da porta foi soprada para dentro do quarto.
Quando Berntsen girou para a porta sua conclusão instintiva foi a de que o cano devia ter sido serrado para poder provocar aquele rombo a uma distância tão curta. Ele estava com a mão dentro da jaqueta. Com o coldre na sua posição convencional e sem o casaco ele teria sacado mais rápido porque o cabo da pistola estaria apontando para fora.
Truls Berntsen caiu de costas sobre a cama com a arma no final do braço estendido quando o resto da porta se abriu com um estrondo. Ele ouviu o vidro da janela se quebrando atrás dele antes de tudo ser abafado por uma nova explosão.
O barulho encheu seus ouvidos, e havia uma tempestade de neve no quarto.
Na porta a silhueta de dois homens de pé no monte de neve. O mais alto levantou a arma. Sua cabeça quase tocava o batente da porta, ele devia ter bem mais que dois metros. Truls disparou. E disparou novamente. Sentiu o recuo maravilhoso e a ainda mais maravilhosa certeza de que isto era real, para o inferno com as consequências. O alto saltou, sua franja se agitou antes dele se afastar e desaparecer de vista. Truls deslocou sua pistola e seu olhar. O segundo homem ficou ali sem se mover. Penas brancas esvoaçavam ao seu redor. Truls o tinha sob sua mira. Mas não disparou. Ele o viu mais claramente agora. Cara de lobo. O tipo de rosto que Truls sempre associava aos Sami, finlandeses e russos.
Agora o cara calmamente levantou a arma. Dedo enrolado em torno do gatilho.
“Calma, Berntsen”, disse inglês.
Truls Berntsen deu um longo e forte rugido.
 
arry caiu.
Ele abaixou a cabeça, dobrou as costas e se moveu para trás quando a primeira explosão da carabina zuniu sobre a sua cabeça. De costas para onde sabia que a janela estaria. Sentiu a janela quase dobrar antes dela se lembrar que era de vidro e então cedeu.
Em seguida, ele estava em queda livre.
O tempo tinha pisado no freio, como se ele estivesse afundando na água. Mãos e braços trabalhando como pás lentas num ato de puro reflexo para tentar fazer o corpo parar de girar no início de um salto mortal para trás. Pensamentos incompletos saltavam entre as sinapses do cérebro.
Ele iria pousar de cabeça e quebrar o pescoço.
Foi sorte não ter cortinas.
A mulher nua na janela em frente estava de cabeça para baixo.
Em seguida, ele foi recepcionado pela suavidade em toda a sua volta. Caixas vazias de papelão, jornais velhos, fraldas usadas, embalagens de leite e pão velho da cozinha do hotel, filtros de café molhados.
Ele estava deitado de costas dentro da caçamba aberta em meio a uma chuva de vidro. Flashes de luz surgiram na janela acima dele, como flashes de câmeras. Chamas provocadas por tiros. Mas estava estranhamente quieto, como se os flashes viessem de uma TV com o volume baixo. Ele podia sentir que a fita adesiva em volta da garganta estava rasgada. O sangue estava escorrendo. E por um momento de pura insanidade ele considerou ficar onde estava. Fechar os olhos, dormir, ficar à deriva. Parecia que ele estava assistindo a si mesmo sentando-se, saltando sobre a borda da caçamba e correndo em direção ao portão no final do quintal. Estava abrindo o portão quando ouviu um rugido longo e furioso saindo pela janela e chegando à rua. Escorregou numa tampa de bueiro, mas conseguiu permanecer em pé. Viu uma mulher negra com jeans apertados, ela sorriu instintivamente e fez beicinho para ele, então percebeu a situação e desviou o olhar.
Harry correu.
E decidiu que desta vez ele iria apenas correr.
Até onde não houvesse mais como correr.
Até que tudo acabasse, até que eles o pegassem.
Ele esperava que não demorasse demais.
Nesse meio tempo, ele faria o que presas sendo caçadas estão programadas para fazer: fugir, tentar fugir, tentar sobreviver por mais algumas horas, mais alguns minutos, mais alguns segundos.
Seu coração batia em protesto, e ele começou a rir quando cruzou a rua na frente de um ônibus e continuou em direção ao centro de Oslo.
 

(21) Personagem do seriado de animação Beavis and Butt-Head. Tem queixo avançado, pouco inteligente e ‘ajudante e seguidor’ de Butt-Head. Também é violento.

arry estava trancado. Ele acabara de acordar e percebera. Na parede diante dele estava pendurado um cartaz de um corpo humano descascado. Ao lado dele, uma figura de madeira finamente esculpida que mostrava um homem numa cruz sangrando até a morte. E ao lado disso, armários de remédios um ao lado do outro.
Ele se virou no sofá. Tentou continuar a partir de onde havia parado ontem. Tentou montar o quadro. Havia um monte de pontos, mas ele ainda não tinha conseguido ligá-los. E, neste momento, até mesmo esses pontos ainda eram meras suposições.
Suposição um. Truls Berntsen era o queimador. Como funcionário da Orgkrim ele provavelmente estava numa posição perfeita para servir Dubai.
Suposição dois. A compatibilidade que Beate encontrou nos arquivos de DNA foi com Berntsen. Foi por isso que ela não iria dizer nada até estar com cem por cento de certeza; o teste no sangue sob as unhas de Gusto indicava um membro da polícia. E se isso fosse verdade Gusto arranhou Truls Berntsen no mesmo dia em que foi morto.
Então chegamos a parte mais complicada. Se Berntsen estava de fato trabalhando para Dubai e tinha recebido a tarefa de eliminar Harry, por que os Blues Brothers aparecem e tentaram explodir as cabeças dos dois? E se eram capangas de Dubai porque eles e o queimador estavam tentando acabar uns com os outros daquele jeito? Eles não estavam do mesmo lado? Ou será que foi apenas uma operação mal coordenada? Talvez não fosse coordenada porque Truls Berntsen agira por sua conta para impedir que Harry entregasse a evidência do túmulo de Gusto, para evitar que ficasse exposto.
Houve um barulho de chaves e a porta se abriu.
“Bom dia!”, Martine cantou. “Como você se sente?”
“Melhor,” Harry mentiu, olhando para o relógio. Seis horas da manhã. Ele jogou o cobertor de lado e girou as pernas para o chão.
“Nossa enfermaria não foi projetada para pernoites”, disse Martine. “Deite-se para que eu possa colocar uma nova bandagem na sua garganta.”
“Obrigado por me receber aqui na noite passada”, disse Harry. “Mas, como eu já disse antes, me esconder aqui pode te trazer perigo, então eu acho que devo ir embora.”
“Deite-se!”
Harry olhou para ela. Suspirou e obedeceu. Fechou os olhos e ouviu Martine abrindo e fechando gavetas, o barulho de uma tesoura tilintando num vidro, o som das primeiras pessoas que chegavam para o desjejum no Café Watchtower no andar de baixo.
Enquanto Martine desfazia a bandagem aplicada no dia anterior Harry usou a mão livre para ligar para Beate e encontrou uma mensagem minimalista dizendo para ele ser breve, bip.
“Eu sei que o sangue é de um ex-detetive da Kripos”, disse Harry. “Mesmo que isso seja confirmado hoje pela Unidade de Patologia você deve esperar antes de dizer para alguém. Por si só, não é suficiente para justificar uma ordem de prisão, e se sacudirmos a gaiola agora corremos o risco dele queimar todo o caso e levantar voo. Então, nós devemos prende-lo por outra coisa qualquer para podermos trabalhar em paz. Invasão do clube dos motociclistas em Alnabru, por exemplo. A menos que eu esteja muito enganado ele é cúmplice de Oleg. E Oleg irá depor. Então, eu gostaria que você enviasse um fax com uma foto de Truls Berntsen, agora trabalhando na Orgkrim, para o escritório de Hans Christian Simonsen e peça para ele mostrá-la para Oleg para identificação.”
Harry desligou, respirou fundo, e o fez com tanta força que de repente, ele se engasgou. Ele se virou, sentiu o conteúdo do seu estômago considerar a possibilidade de uma viagem para cima.
“Dói?” disse Martine enquanto passava o algodão embebido em álcool nos ferimentos.
Harry acenou com a cabeça e balançou a cabeça na direção da garrafa de álcool aberta.
“Certo,” Martine disse, apertando a tampa. “Isso nunca vai melhorar?” disse em voz baixa.
“O que?”, Harry disse com voz rouca.
Ela não respondeu.
Harry girou os olhos em volta da enfermaria para se distrair, algo para reorientar sua mente, qualquer coisa. Eles encontraram a aliança de ouro que ela tinha retirado e colocado no sofá antes de tratar seus ferimentos. Ela e Rikard estavam casados há alguns anos agora; a aliança tinha pequenos arranhões, não era brilhante e nova como o de Torkildsen da Telenor. Harry sentiu um calafrio repentino e seu couro cabeludo começou a coçar. Claro que poderia ter sido apenas de suor.
“Ouro genuíno?” ele perguntou.
Martine começou a enrolar a nova bandagem. “É uma aliança de casamento, Harry.”
“E daí?”
“E daí, é claro que é de ouro. Por mais pobre e miserável que você seja, você não compra uma aliança de casamento que não seja de ouro.”
Harry acenou com a cabeça. Seu couro cabeludo coçava e coçava; Ele podia sentir os cabelos na nuca ficando arrepiados. “Eu comprei”, disse ele.
Ela riu. “Neste caso você é a única pessoa no mundo inteiro que fez isso, Harry.”
Harry olhou para a aliança. Era como que ela tinha dito. “Diabos, eu sou o único...”, disse lentamente. Os cabelos da sua nuca nunca erravam.
“Ei, espere, eu não terminei!”
“Está tudo bem”, disse Harry, que já estava sentado.
“Pelo menos você deve colocar algumas roupas limpas. Você fede a lixo, suor e sangue.”
“Os mongóis costumavam esfregar excrementos de animais pelo corpo antes das grandes batalhas”, disse Harry, abotoando a camisa. “Se você quiser me dar algo, uma xícara de café seria muito...”
Ela olhou resignadamente para ele. Atravessou a porta e desceu as escadas balançando a cabeça.
Harry apressadamente pegou seu celular.
“Sim?” Klaus Torkildsen parecia um zumbi. Crianças gritando no fundo provavelmente era a explicação.
“É o Harry H. Se você fizer isto para mim eu nunca mais vou incomodar você, Torkildsen. Eu gostaria que você verificasse algumas estações de base. Eu tenho que saber todos os lugares onde Truls Berntsen - endereço em algum lugar em Manglerud - esteve na noite de 12 de Julho.”
“Nós não podemos identificar metro por metro quadrado ou mapear...”
“...movimentos minuto a minuto. Eu sei disso tudo. Basta fazer o melhor que você puder.”
Pausa.
“Isso é tudo?”
“Não, tem outro nome.” Harry fechou os olhos e se concentrou. Visualizou as letras da placa de identificação na porta do Radium Hospital. Murmurou para si mesmo. Em seguida, disse o nome no telefone, alto e claro.
“Notável. E nunca mais significa?”
“Nunca mais.”
“Entendo”, disse Torkildsen. “Mais uma coisa.”
“Sim?”
“A Polícia solicitou o seu número ontem. Você não tem nenhum.”
“Eu tenho um número chinês não registrado.”
“Eles pareciam estar interessados em rastreá-lo. O que está acontecendo?”
“Tem certeza que você quer saber, Torkildsen?”
“Não”, disse Torkildsen após outra pausa. “Vou ligar para você quando eu tiver alguma coisa.”
Harry terminou a chamada e raciocinou. Ele era procurado pela polícia. Mesmo que eles não encontrassem o seu nome contra um número, eles poderiam somar dois e dois se rastreassem as chamadas de Rakel e vissem aparecer um número chinês. O telefone daria a localização, e ele teria que se livrar dele.
Quando Martine voltou com uma xícara fumegante de café quente, Harry tomou dois goles e depois perguntou sem rodeios se ele poderia levar seu telefone emprestado por alguns dias.
Ela estudou Harry com aquele seu olhar puro e direto e disse que sim, já que ele tinha refletido muito bem sobre isso.
Harry acenou com a cabeça, pegou o pequeno telefone vermelho, beijou-a na bochecha e levou o seu café para o salão do café. Cinco das mesas já estavam ocupadas, e mais espantalhos madrugadores estavam a caminho. Harry se sentou em uma mesa livre e anotou os números da memória do seu telefone chinês. Enviou mensagens de texto informando seu novo número temporário para os mais importantes.
Os viciados em drogas são tão inescrutáveis quanto as outras pessoas, mas numa questão eles são razoavelmente previsíveis, portanto, quando Harry deixou seu celular chinês sobre a mesa e foi ao banheiro ele estava bastante certo do resultado. Ao retornar o telefone tinha desaparecido. Estava saindo para uma jornada que a Polícia seria capaz de seguir pela cidade através das estações de base.
Harry, por sua vez, saiu e seguiu pela Tøyengata na direção da Grønland.
Um carro de polícia subia a colina na direção dele. Ele imediatamente abaixou a cabeça, pegou o telefone de Martine e fingiu que estava telefonando como pretexto para esconder melhor o rosto.
O carro passou. Nas próximas horas ele teria que ficar escondido.
Mas, o mais importante, ele sabia alguma coisa. Ele sabia por onde começar.
 
ruls Berntsen jazia congelado sob duas camadas de galhos de abeto.
Ele tinha repassado o mesmo filme a noite toda, do começo ao fim. Cara de Lobo, que havia se afastado com cuidado, repetindo “calma” como uma oração por uma trégua enquanto eles apontavam suas armas um para o outro. Cara de Lobo. O motorista da limusine lá no Gamlebyen Cemetery. Homem de Dubai. Quando ele se abaixou para pegar o grandalhão que Truls tinha acertado, ele teve que abaixar sua pistola e Truls percebeu que aquele homem estava disposto a se arriscar para salvar a vida do seu colega. Cara de Lobo devia ser um ex-soldado ou um ex-policial, mas de qualquer maneira havia algum tipo de porcaria de código de honra. O grandalhão gemeu naquele momento. Ele estava vivo. Truls sentiu alívio e decepção ao mesmo tempo. Mas ele tinha deixado Cara de Lobo ajudá-lo, permitiu que ele erguesse o homem sobre seus pés e ficou ouvindo o sangue chapinhando nos seus sapatos enquanto eles cambaleavam pelo corredor até a porta dos fundos. Quando eles já estavam lá fora ele colocou sua balaclava e correu, passando pela recepção, para o seu Saab, dirigiu diretamente até aqui, não se atrevendo a ir para casa. Este era um local seguro, um local secreto. Um lugar onde ninguém poderia vê-lo, um lugar que só ele conhecia e para onde ele ia quando queria vê-la.
O lugar ficava em Manglerud, numa área de caminhada muito popular, mas os caminhantes seguiam pela trilha e nunca iam até a sua pedra, que além do mais estava cercada por um denso matagal.
A casa de Mikael e Ulla Bellman ficava na colina em frente à rocha, e ele tinha uma visão perfeita da janela da sala onde ele a tinha visto sentada inúmeras noites. Apenas sentada no sofá, seu belo rosto, seu corpo gracioso que pouco havia mudado ao longo dos anos, ela ainda era Ulla - a garota mais atraente de Manglerud. Às vezes Mikael também estava lá. Ele tinha visto eles se beijando e acariciando, mas sempre tinham ido para o quarto antes de mais alguma coisa acontecer. De qualquer maneira, ele não sabia se queria ver algo a mais. Para ele bastava vê-la sentada ali sozinha. No sofá, com um livro e com os pés dobrados debaixo dela. De vez em quando ela lançava um olhar na direção da janela como se pudesse sentir que estava sendo observada. E naquelas ocasiões ele tremia de emoção com a idéia de que ela pudesse saber. Saber que ele estava lá fora em algum lugar.
Mas agora a janela da sala de estar estava escura. Eles haviam se mudado. Ela havia se mudado. E não havia nenhum ponto de observação seguro perto da nova casa. Ele procurou. E da maneira como as coisas estavam caminhando ele não tinha certeza se iria precisar de um. Se ia precisar de alguma coisa. Ele era um homem marcado.
Eles o induziram a ir visitar Hole no Hotel Leon à meia-noite e depois atacaram.
Eles tentaram se livrar dele. Tentaram queimar o queimador. Mas por quê? Porque ele sabia demais? Mas ele era um queimador, não era? Queimadores sabem demais, e isso era natural. Ele não conseguia entender. Inferno! Não importava o por que, acima de tudo ele tinha que se manter vivo.
Ele estava com tanto frio e cansado que seus ossos doíam, mas não se atreveu a ir para casa antes de amanhecer e poder conferir se a área estava limpa. Se ele pudesse entrar no seu apartamento, ele teria artilharia suficiente para resistir a um cerco. Ele devia ter atirado nos dois quando teve oportunidade, porra, mas se eles tentassem novamente veriam que não seria tão fácil agarrar Truls Berntsen.
Truls se levantou. Varreu com a mão as agulhas de abeto da roupa, estremeceu e cruzou os braços contra o peito. Olhou para a casa novamente. O dia estava nascendo. Ele pensou nas outras Ullas. Como a moreninha do Watchtower. Martine. Ele tinha, realmente, pensado que poderia conquista-la. Ela trabalhava com pessoas perigosas, e ele era alguém que poderia protegê-la. Mas ela o tinha ignorado, e como de costume ele não tinha tido a coragem de se aproximar dela e ouvir o não e aceitar o fracasso. Era melhor manter a esperança, prolonga-la, se atormentar, enxergar encorajamento onde homens menos desesperados só enxergavam a simpatia universal. E então um dia ele ouviu alguém dizer alguma coisa para ela, e então ele percebeu que ela estava grávida. Maldita prostituta. Todas elas são prostitutas. Como aquela garota que Gusto Hanssen usava como olheira. Prostituta, prostituta, prostituta. Ele odiava essas mulheres. E os homens que sabiam como fazer com que essas mulheres os amassem.
Ele saltou para cima e para baixo e girou os braços em volta, mesmo sabendo que nunca mais iria ter o seu calor de volta.
 
arry tinha voltado ao Kvadraturen. Encontrou um banco no interior do Postcafé. Este era o único que abria cedo, quatro horas antes do Schrøder’s, e ele teve que esperar pela fila dos clientes com sede de cerveja até conseguir pedir algo que poderia passar por café da manhã.
Rakel foi a sua primeira ligação. Ele pediu para ela verificar a caixa de entrada de Oleg.
“Tem algo de Bellman”, disse ela. “Parece que é uma lista de endereços.”
“OK”, disse Harry. “Encaminhe para Beate Lønn.” Ele deu o endereço do e-mail.
Então ele mandou uma mensagem para Beate, disse que as listas tinham sido enviadas, e terminou o seu café da manhã. Ele tinha ido para o tradicional Café e Restaurante Stortorvet Gjæstgiveri, e mal tinha recebido uma xícara de café expresso espumante quando Beate ligou.
“Eu comparei as cópias das listas que consegui dos carros de patrulha com a lista que você me encaminhou. Que lista é esta?”
“É a lista que Bellman recebeu e encaminhou para mim. Eu queria conferir se ele me entregou o relatório certo ou se ele foi manipulado.”
“Entendo. Todos os endereços que consegui antes estão na lista que você e Bellman receberam.”
“Hmm”, disse Harry. “Não tinha uma lista de um carro de patrulha que você não conseguiu receber?”
“Que história é esta, Harry?”
“É sobre eu tentando fazer o queimador nos ajudar.”
“Ajudar-nos a fazer o quê?”
“Apontar onde fica a casa de Dubai.”
Pausa.
“Vou ver se consigo a última lista”, disse Beate.
“Obrigado. Falo com você mais tarde.”
“Espere.”
“Sim?”

“Você não está interessado no resto do perfil de DNA do sangue sob a unha Gusto?”

ra verão, e eu era o rei de Oslo. Eu consegui meio quilo de violino em troca de Irene e eu tinha vendido metade na rua. Era para ser o capital inicial para algo grande, uma nova rede que tiraria o velhinho de campo. Mas, primeiro, aquele começo tinha que ser comemorado. Gastei uma pequena fração do dinheiro das vendas para comprar uma roupa que combinasse com os sapatos que Isabelle Skøyen tinha me dado. Eu parecia um milionário, e ninguém ergueu uma sobrancelha quando eu fui até a porra do Grand e pedi uma suíte. Ficamos lá. Nós éramos baladeiros de tempo integral, vinte e quatro horas. Exatamente quem era ‘nós’ podia variar um pouco, mas era verão, Oslo, mulheres, rapazes, era como nos velhos tempos, embora com medicação ligeiramente mais pesada. Mesmo Oleg animou-se e agiu como o seu antigo eu por um tempo. Acontece que eu tinha mais amigos do que eu conseguia me lembrar, e a droga sumiu mais rápido do que você poderia acreditar. Fomos expulsos do Grand e fomos para o Christiania. Em seguida, para o Radisson na Holbergs plass.
Claro que não poderia durar para sempre, mas, porra, alguma coisa dura para sempre?
Uma ou duas vezes eu vi uma limusine preta no lado oposto da rua quando eu saía do hotel, mas há muitos carros iguais a esse. Porém, este não ia a lugar nenhum.
E então chegou o inevitável dia em que o dinheiro acabou, e eu teria que vender mais drogas. Eu tinha feito um esconderijo em um dos armários de vassouras no andar de baixo, entre o teto e as telhas, por trás de um monte de cabos elétricos. Mas, ou eu abri minha boca enquanto estava alto, ou então alguém deve ter visto quando eu ia até lá. Porque o esconderijo estava limpo. E eu não tinha nada de reserva.
Estávamos de volta à estaca zero. Além do fato de que não havia mais nenhum ‘nós’. Era hora de fechar a conta no hotel. E injetar o primeiro pico do dia, que teria que ser comprado na rua. Mas na hora de pagar a conta do quarto onde fiquei por mais de duas semanas eu não tinha as quinze mil coroas, dá para acreditar?
Eu tomei a única atitude sensata naquele instante.
Eu corri.
Corri em linha reta através do lobby para a rua, através do parque em direção ao mar. Ninguém me seguiu.
Então eu caminhei até o Kvadraturen para fazer algumas compras. Não vi nenhuma camiseta do Arsenal à vista, apenas zumbis de olhos esgazeados vagabundeando em torno procurando um traficante. Falei com alguém que queria me vender metanfetamina. Ele disse que o violino estava em falta no mercado há dias, os estoques tinham simplesmente acabado. Mas rumores em circulação afirmavam que viciados estavam vendendo seus últimos quartos de violino por cinco mil coroas cada lá no Plata, assim eles conseguiam suprimento de heroína para uma semana.
Eu não tinha cinco mil porra nenhuma, é claro, então eu sabia que estava em apuros. Três alternativas: vender, trambicar ou roubar.
Vender primeiro. Mas o que eu realmente tinha para penhorar, eu que até tinha vendido minha irmã adotiva? Lembrei-me. A Odessa. Ela estava na sala de ensaio, e os paquistaneses no Kvadraturen definitivamente desembolsariam cinco mil por uma pistola que disparava uns tiros bem fodidos. Então eu corri para o norte, passei pela Ópera House e pela Central Station. Mas a sala devia ter sido assaltada, porque tinha uma nova fechadura na porta e os amplificadores tinham sumido. Apenas os tambores ficaram. Eu procurei a Odessa, mas eles deviam tê-la levado também. Malditos ladrões.
Trambicar era a próxima opção. Tomei um táxi, direto para oeste, até Blindern. O motorista exigia o dinheiro desde o momento que eu entrei, parece que ele estava pressentindo um golpe. Eu disse a ele para parar onde a rua terminava perto das linhas ferroviárias, saltei e me esquivei do motorista correndo para a passarela. Corri através do Forskningsparken, corri mesmo com ninguém me perseguindo. Corri, porque eu estava com pressa. Por quê? Eu não sabia.
Abri o portão, corri pelo caminho de cascalho para a garagem. Olhei pela fresta no lado da cortina de ferro. A limusine estava lá. Bati na porta da frente.
Andrey abriu. O velhinho não estava em casa, ele me disse. Apontei para a casa vizinha atrás da torre, disse que então ele tinha que estar lá, porque a limusine estava na garagem. Ele repetiu que ‘ataman’ não estava em casa. Eu disse que precisava de dinheiro. Ele disse que não poderia me ajudar e que eu nunca mais deveria ir lá novamente. Eu disse que precisava de violino, só desta vez. Ele disse que não tinha violino no momento, Ibsen estava com falta de algum ingrediente, eu teria que esperar duas semanas. Eu disse que estaria morto até lá. Eu precisava de dinheiro ou violino.
Andrey estava prestes a fechar a porta, mas eu estendi o pé.
Eu disse que se eu não conseguisse eu diria às pessoas onde ‘ele’ morava.
Andrey olhou para mim.
“Você está tentando se matar?” ele disse, com aquele sotaque cômico. “Lembra-se de Bisken?”
Eu estendi a mão. Disse que a polícia iria pagar muito bem para descobrir onde Dubai e seus lacaios moravam. E um pouco mais para saber o que aconteceu com Bisken. E eles desembolsariam mais se eu lhes contasse sobre o tira disfarçado morto no chão do porão.
Andrey balançou a cabeça lentamente.
Então eu disse para o cossaco filho da puta ‘passhol v’chorte’, que eu acho que é ‘vá para o inferno’ em russo, e saí.
Senti seus olhos nas minhas costas por todo o caminho até o portão.
Eu não tinha idéia de por que o velhinho tinha me deixado fugir com a droga roubada, mas sabia que desta vez eu não iria escapar. Mas eu estava me lixando, eu estava desesperado, tudo o que eu ouvia eram os gritos de fome das minhas veias.
Eu andei até o caminho por trás da Vestre Aker Church. Fiquei lá olhando para as senhoras idosas indo e vindo. Viúvas a caminho das sepulturas, de seus maridos e delas próprias, carregando bolsas recheadas com dinheiro. Mas caramba, eu não tinha coragem. Eu, o Ladrão, fiquei imóvel, suando como um porco, me cagando de medo de velhinhas de oitenta anos, frágeis e desossadas. Era motivo para você chorar.
Era sábado, e eu estava repassando de cabeça a lista dos amigos que poderiam estar dispostos a me emprestar dinheiro. Não demorou muito. Ninguém.
Então me ocorreu quem deveria me emprestar dinheiro. Porque ele sabia o que era bom para ele.
Eu subi no ônibus, seguindo para o leste, de volta para o lado apropriado do rio, e desci no Manglerud.
Desta vez Truls Berntsen estava em casa.
Ele estava de pé na soleira da porta, no quinto andar de seu edifício e ouviu-me dar-lhe aproximadamente o mesmo ultimato eu tinha dado na Blindernveien. Se ele não pusesse cinco das grandes nas minhas mãos, eu iria tornar público que ele tinha matado Tutu e enterrado o corpo depois.
Mas Berntsen era legal. Me convidou para entrar. Ele estava certo de que poderíamos chegar a um acordo, disse.
Mas havia algo muito errado nos seus olhos.
Então, eu não me mexi e disse que não havia nada para discutir, ou ele pagava ou eu iria denunciá-lo por dinheiro. Ele disse que a polícia não pagava por denúncia de policiais. Mas cinco mil estava de bom tamanho, disse ele, nós estávamos nos entendendo novamente, éramos quase amigos. Disse que não tinha muito dinheiro em casa, por isso teria que ir até um caixa eletrônico, o carro estava lá embaixo na garagem.
Eu matutei um pouco. Campainhas de alarme estavam tocando na minha cabeça, mas o desejo era um pesadelo desgraçado, calava todos os pensamentos sensatos. Então, mesmo sabendo que não era uma boa ideia, eu concordei.
 
“ntão, você tem o resultado final, não é?” disse Harry, examinando a multidão no café. Nenhum tipo suspeito. Ou, para ser mais preciso, uma enorme quantidade de tipos suspeitos, mas ninguém que supostamente pudesse ser um policial.
“Sim”, disse Beate.
Harry trocou o telefone de mão. “Eu acho que já sei quem Gusto arranhou.”
“Oh?” Havia surpresa na voz de Beate.
“Sim. Um homem com DNA nos arquivos geralmente é um suspeito ou um criminoso condenado ou um policial que eventualmente poderia contaminar uma cena de crime. Neste caso, é o último. O nome dele é Truls Berntsen e ele é um policial da Orgkrim.”
“Como você sabe que é ele?”
“Bem... somando as coisas que têm acontecido, digamos assim.”
“Certo”, disse Beate. “Eu não duvido que seu raciocínio seja sólido.”
“Obrigado”, disse Harry.
“Mas mesmo assim você está errado”, disse Beate.
“O quê?”
“O sangue sob as unhas do Gusto não são de alguém chamado Berntsen.”
 
as enquanto eu estava esperando de pé na frente da porta do Truls Berntsen - ele tinha ido buscar as chaves do carro - eu olhei para baixo. Para os meus sapatos. Sapatos fantásticos pra caramba. Então eu comecei a pensar em Isabelle Skøyen.
Ela não era perigosa como Berntsen. E ela era louca por mim. Não era? Talvez?
Louca e meio.
Portanto, antes que Berntsen voltasse eu pulei sete degraus de cada vez e apertei o botão do elevador em cada andar.
Eu entrei no Metro para a Central Station. No começo eu pensei que deveria telefonar, mas mudei de idéia. Ela poderia me esnobar no telefone, mas nunca se eu surgisse maravilhosamente, lindo de morrer, em pessoa. Sábado também significava que o seu cavalariço estava de folga. Que por sua vez - já que cavalos e porcos não tem muito jeito para pegar comida na geladeira - significava que ela estava em casa. Então, na Central Station entrei no vagão season-ticket (22) da linha Østfold porque a viagem para Rygge custava cento e quarenta e quatro coroas, as quais eu ainda não tinha. Eu fui caminhando da estação até a fazenda. É uma boa distância. Especialmente se chover. Começou a chover.
Quando eu entrei no quintal, vi o carro dela, um desses 4x4 que as pessoas dirigem para abrir caminho através das ruas no centro da cidade. Bati na porta da casa da fazenda, que ela uma vez me ensinou que era o nome da construção onde os animais não ficavam. Mas ninguém abriu. Eu gritei, o eco retumbando em torno das paredes, mas ninguém respondeu. Ela poderia naturalmente ter saído para um passeio a cavalo. Tudo bem, eu sabia onde ela guardava o dinheiro, e no interior as pessoas não tinham o costume de trancar as portas. Então eu acionei a maçaneta, e, obviamente, a porta se abriu.
Eu estava indo para o quarto, quando de repente lá estava ela. Grande, de pé com as pernas afastadas nas escadas, vestindo um roupão.
“O que você está fazendo aqui, Gusto?”
“Eu queria ver você”, eu disse, com um sorriso enorme. Com todos os dentes.
“Você precisa de um dentista”, ela disse friamente.
Eu sabia o que ela queria dizer, eu tinha alguma coisa marrom nos dentes. Eles pareciam um pouco podres, mas nada que uma boa escova não pudesse consertar.
“O que você está fazendo aqui?”, ela repetiu. “Dinheiro?”
Essa era a coisa entre Isabelle e eu, nós éramos do mesmo tipo, nós não precisávamos fingir.
“Cinco grandes?”, eu disse.
“Seu truque não vai funcionar, Gusto, nós já acabamos com isso. Quer que eu te leve de volta para a estação?”
“Ahn? Vamos lá, Isabelle. Que tal uma trepada?”
“Shh!”
Levei um segundo para entender a situação. Eu estava um pouco lento na percepção das coisas. Tudo culpa da maldita fissura. Lá estava ela, no meio do dia, num roupão de banho, mas totalmente maquiada.
“Você está esperando alguém?”, perguntei.
Ela não respondeu.
“Um novo parceiro de trepada?”
“Isso é o que acontece quando você desaparece, Gusto.”
“Eu estou quente e pronto para recomeçar”, eu disse e fui tão rápido que ela perdeu o equilíbrio quando eu agarrei seu pulso e puxei-a para mim.
“Você está molhado”, ela disse e se contorceu, mas não do jeito que ela fazia quando queria uma transa selvagem.
“Está chovendo”, eu disse, mordendo o lóbulo da orelha dela. “Qual é a sua desculpa?” Eu já estava com uma mão sob seu roupão.
“E você fede. Solte-me!”
Minha mão acariciava sua buceta raspada, encontrei a fenda. Ela estava molhada. Pingando. Eu podia enfiar dois dedos de uma vez. Muito molhada. Senti algo pegajoso. Puxei minha mão. Ergui-a. Meus dedos estavam cobertos com algo branco e viscoso. Eu olhei para ela com surpresa. Vi o sorriso triunfante quando ela se inclinou para mim e sussurrou: “Como eu disse. Se você desaparece...”
Eu perdi, levantei a mão para dar-lhe um tapa, mas ela agarrou minha mão e me parou. Cadela forte, aquela Skøyen.
“Vá embora agora, Gusto.”
Senti algo nos meus olhos. Se eu não me conhecesse bem, eu teria dito que eram lágrimas.
“Cinco mil”, eu sussurrei com uma voz grossa.
“Não”, ela disse. “Depois você vai voltar. E nós não podemos continuar com isto.”
“Você é uma puta!”, gritei. “Você está se esquecendo de algumas coisas importantes. Pague ou eu vou até os jornais para contar todo o seu esquema. E com isso eu não estou me referindo as nossas trepadas, mas ao fato de que toda essa merda de história - ‘Oslo Limpa’ - é criação sua e do velhinho. Malditos pseudo Socialistas. Dinheiro de drogas e política na mesma mesa. Quanto você acha que o 'Verdens Gang' vai pagar?”
Eu ouvi a porta do quarto se abrindo.
“Se eu fosse você eu sairia correndo agora”, disse Isabelle.
Eu ouvi o ranger das tábuas do chão na escuridão atrás dela.
Eu queria correr - eu queria de verdade. No entanto, eu não me mexi.
Ele chegou mais perto.
Eu imaginei que podia ver as listras no seu rosto brilhando no escuro. Parceiro de trepada. Tigrão.
Ele tossiu.
Então ele entrou na luz.
Ele estava tão lindo de morrer que, mesmo doente como eu estava, eu podia sentir aquilo novamente. O desejo de colocar a minha mão no seu peito. Sentir a pele suada aquecida pelo sol sob meus dedos. Sentir os músculos que automaticamente ficariam tensos pelo choque com a minha maldita audácia.
 
“uem foi que você disse?”, Harry perguntou.
Beate tossiu e repetiu: “Mikael Bellman.”
“Bellman?”
“Sim.”
“Gusto tinha sangue de Mikael Bellman sob as unhas quando morreu?”
“É o que parece.”
Harry se inclinou para trás. Isso mudava tudo. Ou não? Não precisava ter algo a ver com o assassinato. Mas tinha algo a ver com alguma coisa. Algo que Bellman não queria falar.
 
“aia”, disse Bellman com o tipo de voz que não é alta porque não precisa ser.
“Então são vocês dois, não é?”, eu disse. “Eu pensei que ela havia recrutado Truls Berntsen. Inteligente ir mais para cima, Isabelle. Qual é o esquema? Berntsen age apenas como seu escravo, Mikael?”
Eu mais acariciava do que pronunciava seu primeiro nome. Afinal de contas foi assim que nos apresentamos naquele dia, Gusto e Mikael. Como dois garotos, dois potenciais companheiros de brincadeiras. Eu vi algo que parecia luz nos seus olhos, estavam em chamas. Bellman estava completamente nu; talvez por isso eu imaginava que ele não iria me atacar. Ele foi muito rápido para mim. Ele pulou sobre mim e prendeu a minha cabeça debaixo de um braço.
“Solte-me!”
Ele me puxou para o topo da escada. Meu nariz estava espremido entre seu peito e axila e eu podia sentir o cheiro deles dois. E este foi o pensamento que se alojou no meu cérebro: se ele queria que eu saísse porque me puxava pelos degraus acima? Eu não conseguia me soltar, então eu cravei minhas unhas no peito dele e arrastei as mãos como garras, senti uma unha arranhar seu mamilo. Ele praguejou e afrouxou o aperto. Saí do abraço e saltei. Pousei no meio da escada, mas consegui ficar em pé. Corri para a porta, peguei as chaves do carro e corri para o quintal. Naturalmente, o carro também não estava trancado. As rodas patinaram no cascalho quando eu soltei a embreagem. Pelo espelho, vi Mikael Bellman correndo pela porta afora. Vi algo brilhando na sua mão. Em seguida, as rodas encontraram solo firme, fui empurrado contra o assento e o carro disparou pelo quintal em direção à estrada.
 
“oi Bellman quem levou Truls Berntsen para a Orgkrim”, disse Harry. “É concebível que Berntsen esteja fazendo o trabalho de queimador sob instruções de Bellman?”
“Você está ciente de que estamos nos movendo em terreno minado, Harry?”
“Sim”, disse Harry. “E a partir de agora você não tem nada a ver com isto, Beate.”
“Não tente me parar, merda!” O diafragma do telefone estalou. Harry não conseguia se lembrar de ter visto Beate Lønn praguejando antes. “Esta é a minha força policial, Harry. Eu não quero que pessoas como Berntsen arrastem nossa reputação para a lama.”
“OK”, disse Harry. “Mas não vamos tirar conclusões precipitadas. A única evidência que temos é que Bellman conheceu Gusto. Nós nem sequer temos algo de concreto contra Truls Berntsen ainda.”
“Então o que você vai fazer?”
“Eu vou começar a agir. E se as coisas saírem como eu imagino as peças vão derrubar uns contra os outros como dominó. O problema é conseguir ficar livre tempo suficiente para realizar o plano.”
“Você está dizendo que  tem um plano?”
“Claro que eu tenho um plano.”
“Um bom plano?”
“Eu não disse isso.”
“Mas um plano?”
“Absolutamente.”
“Você está mentindo, não está?”
“Nem a metade.”
 
u estava correndo para Oslo pela E18 quando me dei conta do quão profunda era a bagunça em que eu tinha me metido.
Bellman tentou me arrastar para cima. Para o quarto. Onde tinha uma pistola. Puta que pariu, ele estava disposto a me liquidar para manter minha boca fechada. O que só podia significar que ele estava afundado até os joelhos na merda. Então, o que ele faria agora? Prender-me, é claro. Por roubar um carro, negociar drogas, não pagar a conta do hotel, tinha um montão de opções. Colocar-me atrás das grades antes que eu pudesse abrir o bico. E logo que eu estivesse amarrado e amordaçado não havia dúvidas sobre o que iria acontecer: eles iriam fazer com que se parecesse ou como suicídio ou como se outro prisioneiro tivesse me matado. Então a coisa mais estúpida que eu poderia fazer seria continuar com este carro que eles provavelmente já estariam rastreando. Então eu pisei fundo. O lugar para onde eu ia ficava no leste da cidade, e eu poderia evitar ir pelo centro. Eu dirigi até a colina, dirigi até as áreas residenciais tranquilas. Estacionei um pouco distante e comecei a andar.
O sol apareceu de novo, e as pessoas estavam passeando, empurrando carrinhos de bebé, armando churrasqueiras no quintal. Sorrindo para o sol como se fosse a suprema felicidade.
Eu joguei as chaves do carro em um jardim e caminhei até os apartamentos.
Encontrei o nome na campainha e toquei.
“Sou eu”, eu disse quando ele finalmente respondeu.
“Estou um pouco ocupado”, disse a voz no interfone.
“E eu sou um viciado”, eu disse. Era para ser uma piada, mas eu senti o impacto das palavras. Oleg achava engraçado quando por brincadeira eu ocasionalmente perguntava para um cliente se por acaso ele estava sofrendo de dependência de drogas e queria um pouco de violino.
“O que você quer?” perguntou a voz.
“Eu quero um pouco de violino.”
A ‘fala’ dos clientes havia se tornado a minha.
Pausa.
“Não tenho nada. Acabou. Sem matéria prima para fazer mais nada.”
“Matéria prima?”
“Levorphanol. Você quer que a fórmula também?”
Eu sabia que era a verdade, mas ele tinha que ter algum. Tinha que ter. Eu ponderei. Eu não poderia ir para a sala de ensaio, eles estariam a minha espera. Oleg. O bom e velho Oleg me deixaria entrar.
“Você tem duas horas, Ibsen. Se você não chegar na Hausmanns Gate com quatro quartos eu irei diretamente até a polícia e vou contar tudo. Não tenho mais nada a perder. Você entende? Hausmanns Gate 92. A porta vai estar destrancada e você vai direto até o segundo andar.”
Tentei imaginar seu rosto. Aterrorizado, suando. O pobre velho pervertido.
“Tudo bem,” ele respondeu.
Esse era o caminho. Você apenas tinha que fazê-los compreender a gravidade da situação.
 
arry estava engolindo o resto do café e olhando para a rua. Hora de seguir em frente.
A caminho, pela Youngstorget, para os quiosques de Kebab na Torggata ele recebeu um telefonema.
Era Klaus Torkildsen.
“Uma boa notícia”, disse ele.
“Sério?”
“Na hora em questão o telefone de Truls Berntsen foi registrado em quatro das estações de base no centro da cidade de Oslo, e que localiza sua posição na área em torno da Hausmanns Gate 92.”
“Qual o tamanho da área da qual estamos falando?”
“Hmm, um tipo de área hexagonal com um diâmetro de oitocentos metros.”
“OK”, disse Harry, absorvendo a informação. “E sobre o outro cara?”
“Eu não consegui encontrar nada no seu nome exatamente, mas ele tinha um telefone comercial registrado pelo Radium Hospital.”
“E?”
“E, como eu disse, é uma boa notícia. Esse telefone esteve na mesma área, e ao mesmo tempo.”
“Hmm.” Harry entrou em uma porta, passou por três mesas ocupadas e parou na frente de um balcão no qual era exibida uma seleção de kebabs estranhamente brilhantes. “Você tem o endereço dele?”
Klaus Torkildsen ditou o endereço, e Harry anotou num guardanapo.
“Você tem outro número registrado neste endereço?”
“O que você quer dizer?”
“Eu queria saber se ele tinha uma esposa ou uma namorada.”
Harry ouviu Torkildsen digitando num teclado. Então veio a resposta: “Não. Ninguém mais nesse endereço.”
“Obrigado.”
“Já chegamos a um acordo, então? Nós nunca vamos nos falar de novo?”
“Sim. Somente uma última coisa. Eu quero que você verifique Mikael Bellman. Com quem ele falou nos últimos meses, e onde ele estava no momento do assassinato.”
Gargalhadas. “O chefe da Orgkrim? Esqueça! Eu posso esconder ou explicar uma pesquisa sobre um simples funcionário, mas se eu fizer o que você está me pedindo eu serei demitido num piscar de olhos.” Mais risos, como se a idéia fosse realmente uma piada. “Espero que você mantenha sua palavra e acabe com este negócio, Hole.”
A linha ficou muda.
 
uando o táxi chegou no endereço anotado no guardanapo um homem estava esperando do lado de fora.
Harry saiu e foi até ele. “Ola Kvernberg, o zelador?”
O homem acenou com a cabeça.
“Detetive Hole. Liguei para você.” Ele viu o zelador desviar os olhos para o táxi, que estava à espera. “Nós usamos táxis quando não há carros de patrulha suficientes.”
Kvernberg examinou o cartão de identificação que o homem levantou na frente dele. “Eu não vi qualquer sinal de arrombamento”, disse.
“Mas alguém ligou, então vamos verificar. Você tem uma chave mestra, não tem?”
Kvernberg assentiu com a cabeça e abriu a porta principal, enquanto o policial olhava os nomes nas campainhas. “A testemunha afirmou que ele tinha visto alguém escalando os terraços e invadiu o segundo andar.”
“Quem ligou?”, o zelador perguntou.
“Assunto confidencial, Kvernberg.”
“Você tem algo nas suas calças.”
“Molho de Kebab. Eu preciso envia-las para a lavanderia assim que possível. Você pode abrir a porta?”
“Do farmacêutico?”
“Oh, é nisso que ele trabalha?”
“Trabalha no Radium Hospital. Não deveríamos ligar para ele no trabalho antes de entrar?”
“Eu prefiro ver se o assaltante está aqui para que possamos prendê-lo, se você não se importar.”
O zelador murmurou um pedido de desculpas e apressou-se a abrir a porta.
Hole entrou no apartamento.
Era óbvio que um solteirão morava aqui. Mas um organizado. CDs clássicos numa prateleira apropriada para CDs, em ordem alfabética. As revistas científicas sobre química e farmácia empilhadas em pilhas altas, mas sem pó. Em uma estante havia uma fotografia emoldurada de dois adultos e um menino. Harry reconheceu o rapaz. Ele estava inclinado um pouco para o lado com uma expressão solene. Ele não podia ter mais do que doze ou treze anos. O zelador estava perto da porta da frente observando cuidadosamente, portanto, para manter as aparências, Harry verificou a porta da varanda antes de ir de um ambiente para outro. Abriu as gavetas e armários. Mas não havia nada comprometedor a vista.
Dificilmente seria um suspeito, alguns colegas diriam.
Mas Harry já tinha visto isso antes; algumas pessoas não tinham segredos. Poucas vezes, é justo dizer, mas acontecia. Ele ouviu o zelador deslocando o peso de pé para pé na porta da sala atrás dele.
“Não há sinais de arrombamento ou qualquer coisa remexida”, disse Harry, passando por ele em direção à saída. “Um alarme falso.”
“Estou vendo”, disse o zelador, trancando a porta atrás deles. “O que você teria feito se um ladrão estivesse lá? Levaria no táxi?”
“Nós provavelmente iriamos chamar um carro patrulha,” Harry sorriu, olhando para as botas na sapateira ao lado da porta. “Diga-me, estas duas botas não são de tamanhos muito diferentes?”
Kvernberg coçou o queixo enquanto examinava Harry.
“Sim talvez. Ele tem um pé torto. Posso dar outra olhada na sua identidade?”
Harry passou o cartão para ele.
“A data de expiração...”
“O taxi está esperando,” Harry disse, arrancou o cartão da mão do zelador e desceu as escadas correndo. “Obrigado por sua ajuda, Kvernberg!”
 
u fui para a Hausmanns Gate, e, claro, ninguém tinha trancado as portas, então eu fui direto para o apartamento. Oleg não estava lá. Nem mais ninguém. Eles estavam lá fora, estressados. Preciso conseguir um pico, preciso conseguir um pico. Vários viciados vivendo juntos, então o lugar deveria ter alguma coisa. Mas não havia nada lá, é claro, apenas garrafas vazias, seringas usadas, chumaços de algodão manchados de sangue e maços de cigarro vazios. Maldita terra devastada. E foi enquanto eu estava sentado num colchão imundo e praguejando que eu vi o rato. Quando as pessoas descrevem ratos eles sempre dizem que era um rato enorme. Mas os ratos não são enormes. Eles são bem pequenos. É claro que suas caudas podem ser muito longas. OK, se eles se sentem ameaçados e se levantam sobre duas pernas podem parecer maiores do que são. Além disso, eles são pobres criaturas que ficam estressadas tanto quanto nós. Preciso conseguir um pico.
Eu ouvi um sino da igreja tocar. E eu disse a mim mesmo que Ibsen estava chegando.
Tinha que vir. Merda, eu me sentia tão mal. Eu tinha visto os caras em pé e esperando quando íamos para o trabalho, tão felizes de ver que estávamos chegando. Tremendo, suas notas na mão, reduzidos a meros mendigos amadores. E agora era eu quem estava nesta situação, eu mesmo. Doente, com saudades de ouvir o som manquitola de Ibsen na escada, ansioso para ver o seu rosto estúpido.
Eu tinha jogado minhas cartas como um tolo. Eu queria um pico, nada mais, e tudo o que eu consegui foi juntar todos eles atrás de mim. O velhinho e seus cossacos. Truls Berntsen com sua broca e olhos enlouquecidos. Rainha Isabelle e seu chefão-companheiro-de-foda.
O rato correu ao longo do rodapé. Por puro desespero eu verifiquei debaixo dos tapetes e colchões. Debaixo de um colchão eu encontrei uma foto e um pedaço de arame de aço. Era uma foto do passaporte de Irene, amassada e desbotada, então eu imaginei que devia ser o colchão de Oleg. Mas eu não conseguia entender para que servia o arame. Até que lentamente me dei conta. E eu senti minhas palmas ficarem suadas e meu coração bater mais rápido. Afinal de contas, eu tinha ensinado Oleg a fazer um esconderijo.
 

(22) season-ticket é um bilhete de passagem que pode ser usado muitas vezes dentro de um período de tempo limitado e é mais barato do que pagar separadamente por cada viagem.

ans Christian Simonsen zig-zagueou entre os turistas pela rampa de mármore branco italiano que fazia a Opera House parecer um iceberg flutuando no final do fiorde. Quando chegou ao topo do telhado, olhou em volta e viu Harry Hole sentado num muro baixo. Ele estava relativamente sozinho, uma vez que os turistas de um modo geral olhavam para a frente para apreciar a vista do fiorde. Mas Harry estava sentado de costas olhando para dentro, para as antigas áreas feias da cidade.
Hans Christian sentou-se ao lado dele.
“HC,” Harry disse, sem tirar os olhos do folheto que estava lendo. “Você sabia que este mármore é chamado de mármore de Carrara e que o Opera House custou mais de duas mil coroas para cada norueguês?”
“Sim.”
“Você sabe alguma coisa sobre Don Giovanni?”
“Mozart. Dois atos. Um jovem libertino arrogante, que acredita que é um presente de Deus para as mulheres e os homens, engana todo mundo e atrai o ódio geral. Ele pensa que é imortal, mas no final, chega uma estátua misteriosa e leva sua vida enquanto ambos são engolidos pela terra.”
“Hmm. Uma nova produção vai estrear dentro de alguns dias. Diz aqui que na cena final o coro canta: “Tal é o fim dos malfeitores: a morte de um pecador reflete sempre a sua vida.” Você acha que isso é verdade, HC?”
“Eu sei que não é. A morte, é triste dizer, não é mais justa do que a vida.”
“Hmm. Você sabia que um policial foi devolvido pelo mar aqui?”
“Sim.”
“Tem alguma coisa que você não sabe?”
“Quem foi que atirou em Gusto Hanssen?”
“Oh, a estátua misteriosa,” Harry disse, abaixando o folheto. “Você quer saber quem é?”
“Você não?”
“Não necessariamente. O importante é provar quem não foi, que não foi Oleg.”
“Concordo”, disse Hans Christian, estudando Harry. “Mas ouvir você falando não se coaduna com o que eu ouvi sobre o zeloso Harry Hole.”
“Então, afinal de contas talvez as pessoas mudem.” Harry sorriu furtivamente. “Você conseguiu verificar o andamento da investigação sobre o caso do cemitério e do tiroteio com o seu colega promotor?”
“Seu nome ainda não se tornou público, mas foi enviado para todos os aeroportos e postos de controle nas fronteiras. Falando claramente, o seu passaporte não está valendo muito.”
“Então a minha viagem para Mallorca virou fumaça.”
“Você sabe que está sendo procurado, e mesmo assim marcou este encontro na atração turística número um de Oslo?”
“Lógica do peixe miúdo, testada e aprovada, Hans Christian. É mais seguro ficar no meio do cardume.”
“Eu pensei que você considerava a solidão mais segura.”
Harry pegou o maço de cigarros e ofereceu. “Rakel te disse isso?”
Hans Christian assentiu com a cabeça e pegou um cigarro.
“Há quanto tempo vocês dois estão juntos?” Harry perguntou com uma careta.
“Pouco tempo. Dói?”
“Minha garganta? Uma pequena infecção talvez.” Harry acendeu o cigarro de Hans Christian. “Você a ama, não é.”
O advogado tragou de um jeito que sugeria que ele pouco tinha fumado desde as festinhas nos seus dias de estudante.
“Sim.”
Harry acenou com a cabeça.
“Mas você sempre esteve presente”, disse Hans Christian, chupando o cigarro. “Nas sombras, no guarda-roupa, debaixo da cama.”
“Parece que você está falando de um monstro”, disse Harry.
“Sim, suponho que sim”, disse Hans Christian. “Tentei exorcizar você, mas falhei.”
“Você não precisa fumar todo o cigarro, Hans Christian.”
“Obrigado.” O advogado jogou-o fora. “O que você quer que eu faça desta vez?”
“Um roubo”, disse Harry.
 
les saíram apenas depois do anoitecer.
Hans Christian pegou Harry no Bar Boca em Grünerløkka.
“Carro agradável”, disse Harry. “Carro de família.”
“Eu tive um cão elkhound”, disse Hans Christian. “Caça. Cabana. Você sabe.”
Harry acenou com a cabeça. “A boa vida.”
“Ele foi pisoteado até a morte por um alce. Consolei-me com o pensamento de que devia ser um bom jeito para um elkhound morrer. Em serviço, por assim dizer.”
Harry acenou com a cabeça. Eles se dirigiam para Ryen e serpenteavam em volta das curvas dos melhores lugares com vista para a Oslo leste.
“Aqui, à direita,” Harry disse, apontando para uma casa toda apagada. “Estacione num ângulo de modo a que os faróis iluminem as janelas.”
“Devo...?”
“Não”, disse Harry. “Você espera aqui. Mantenha o telefone ligado e me ligue se alguém aparecer.”
Harry levou o pé de cabra com ele e subiu o caminho de cascalho até a casa. Outono, ar fresco da noite, o aroma de maçãs. Ele teve um momento de déjà vu. Ele e Øystein rastejando por um jardim e Tresko de vigia em cima do muro. E, de repente emergiu da escuridão uma figura mancando na direção deles vestindo um cocar indígena e guinchando como um porco.
Ele tocou.
Esperou.
Ninguém atendeu.
No entanto Harry tinha a sensação de que havia alguém em casa.
Ele inseriu o pé de cabra entre a porta e o batente ao lado da fechadura e cuidadosamente aplicou o seu peso. A porta era velha, a madeira macia e úmida, e a fechadura também antiga. Então ele usou a outra mão para inserir seu cartão de identificação na lingueta. Pressionado com mais força. A fechadura se abriu. Harry deslizou para dentro e fechou a porta atrás de si. Parou no meio da escuridão segurando a respiração. Sentiu um fio fino na mão, provavelmente os restos de uma teia de aranha. Havia um cheiro de abandono, úmido. Mas também algo mais, algo acre. Doença, hospital. Fraldas e remédios.
Harry ligou a lanterna. Viu um cabide de pedestal sem nada pendurado. Continuou para o interior da casa.
Parecia que a sala tinha sido polvilhada com pó; as cores pareciam ter sido sugadas para fora das paredes e do mobiliário. O cone de luz atravessou a sala. O coração de Harry parou quando a luz refletiu num par de olhos. Em seguida, voltou a bater. Uma coruja de pelúcia. Cinza como o resto da sala.
Harry se aventurou ainda mais para dentro da casa e confirmou que era igual ao apartamento. Nada fora do comum.
Isto é, até que entrou na cozinha e viu os dois passaportes e as passagens de avião em cima da mesa.
Embora a foto do passaporte provavelmente fosse de quase dez anos atrás Harry reconheceu o homem que encontrara na visita ao Radium Hospital. O passaporte dela era novo. Na foto ela estava quase irreconhecível, pálida, cabelo sem graça e escorrido. Os bilhetes eram para Bangkok, partida em dez dias.
Harry virou-se. Dirigiu-se para a única porta que ainda não tinha verificado. Tinha uma chave na fechadura. Ele abriu a porta. O mesmo cheiro que tinha notado quando entrou no vestíbulo. Ele ligou o interruptor ao lado da porta, e uma lâmpada acendeu sobre os degraus que levavam para o porão. A sensação de que havia alguém na casa. Ou “Oh, sim, o instinto”, que Bellman havia dito com leve ironia quando Harry tinha perguntado se ele tinha verificado os registros de Martin Pran. Harry agora sabia que o seu instinto o tinha enganado.
Harry queria descer, mas algo o segurava. O porão. Semelhante ao que tinha na sua casa quando criança. Quando sua mãe lhe pedia para buscar batatas, que eles guardavam no escuro em dois grandes sacos, Harry descia correndo tentando não pensar. Tentando pensar que estava correndo porque era muito frio. Porque eles estavam com pressa para preparar o jantar. Porque ele gostava de correr. Não tinha nada a ver com o homem amarelo esperando lá em baixo; um homem nu e sorridente com uma língua comprida que você podia ouvir deslizando para dentro e para fora da boca. Mas não foi por isso que ele parou. Foi por outra coisa. O sonho. A avalanche através do corredor do porão.
Harry reprimiu os pensamentos e pôs o seu pé no primeiro degrau. Houve um rangido de advertência. Ele se forçou a descer lentamente. Ainda com o pé de cabra na mão. Embaixo, ele começou a caminhar por um corredor com várias portas. Uma lâmpada no teto lançava uma luz escassa. E criava mais sombras. Harry notou que todas as portas estavam trancadas com cadeados. Quem iria trancar um depósito dentro do seu próprio porão?
Harry enfiou a extremidade pontiaguda do pé de cabra sob um cadeado. Respirou, temendo o ruído. Pressionou o pé de cabra para trás rapidamente, e houve um pequeno crack. Ele prendeu a respiração, escutou. A casa parecia estar prendendo a respiração também. Nem um som.
Em seguida, ele empurrou a porta delicadamente. O cheiro assaltou suas narinas. Seus dedos encontraram um interruptor na parede, e no momento seguinte Harry estava banhado pela luz. Tubos fluorescentes.
A sala era muito maior do que parecia do lado de fora. Ele a reconheceu. Era uma cópia de uma sala que ele tinha visto antes. O laboratório do Radium Hospital. Bancadas com frascos de vidro e suportes de tubos de ensaio. Harry levantou a tampa de uma grande caixa de plástico. O pó branco estava salpicado com partículas de cor marrom. Harry lambeu a ponta do seu dedo indicador, passou no pó e esfregou contra as gengivas. Amargo. Violino.
Harry se sobressaltou. Um som. Ele prendeu a respiração novamente. O mesmo som de novo. Alguém fungando.
Harry correu de volta para desligar a luz e se encolheu no escuro, segurando o pé de cabra em riste.
Outra fungada.
Harry esperou alguns segundos. Em seguida, com passos rápidos e tranquilos, saiu da sala em direção ao local de onde os sons vieram. Uma porta do lado esquerdo. Ele mudou o pé de cabra para a sua mão direita. Foi na ponta dos pés até a porta, que tinha um pequeno postigo coberto com uma tela de arame. Com uma diferença: esta porta era reforçada com metal.
Harry segurou a lanterna, encostou-se contra a parede ao lado da porta, contou até três, ligou a lanterna e apontou-a para o postigo.
Esperou.
Após três segundos de espera ninguém tinha dado um tiro ou avançado para a luz, então ele colocou a cabeça contra o arame e olhou para dentro. O feixe vagueava sobre paredes de tijolo, iluminou uma corrente, passou por um colchão e, em seguida, encontrou o que estava procurando. Um rosto.
Seus olhos estavam fechados. Ela estava sentada muito quieta. Como se estivesse acostumada com aquilo. Ser inspecionada por uma lanterna.
“Irene?”, Harry perguntou timidamente.

Nesse momento o telefone no bolso de Harry começou a vibrar.

lhei para o meu relógio. Eu tinha vasculhado o apartamento inteiro e ainda não tinha encontrado o esconderijo de Oleg. E Ibsen já deveria ter chegado há vinte minutos. Ele nem experimentasse não vir, o pervertido! Prisão perpétua por sequestro e estupro. No dia em que Irene chegou na Central Station eu a levei para a sala de ensaios,  eu disse que Oleg estava esperando por ela. Ele não estava, é claro. Mas Ibsen estava. Ele a segurou enquanto eu lhe apliquei um pico. Eu pensei em Rufus. Foi melhor assim. Em seguida, ela relaxou, e nós só tivemos que arrastá-la para o carro dele. O meu meio-quilo estava no porta-malas. Será que eu me arrependi? Sim, eu me arrependi de não ter pedido um quilo! Não, claro que eu tinha um pouco de arrependimento. Eu não sou totalmente insensível. Mas quando eu penso ‘Porra, eu não deveria ter feito aquilo’ eu digo a mim mesmo que Ibsen iria cuidar bem dela. Ele deve amá-la, do seu próprio modo distorcido. De qualquer forma já era tarde demais, agora a coisa principal era conseguir alguma droga e voltar a ser saudável novamente.
Esta era uma novidade para mim, era mesmo, não conseguir o que o corpo precisava. Eu sempre consegui o que eu queria, eu percebi isso agora. E se o futuro era para ser assim eu preferia cair morto agora. Morrer jovem e bonito, com os dentes mais ou menos intactos. Ibsen não viria. Eu sabia. Eu estava na janela da cozinha com vista para a rua, mas não estava vendo o porra do manquitola. Nem ele, nem Oleg.
Eu tentei todos eles. Só faltava um deles.
Eu evitei essa opção por um longo tempo. Eu estava assustado. Sim, eu estava. Mas eu sabia que ele estava na cidade. Ele estava aqui desde o dia que descobriu que ela tinha desaparecido. Stein. Meu irmão adotivo.
Olhei para a rua novamente.
Não. Preferia morrer a ter que ligar para ele.
Os segundos se passaram. Ibsen não viria.
Inferno! Melhor morrer do que me sentir tão mal.
Eu esfreguei meus olhos, mas os insetos estavam rastejando para fora das cavidades, furtivamente sob minhas pálpebras, arranhando todo o meu rosto.
Morrer perdeu para a ligação.
O final esperaria.
Ligar para ele ou morrer?
Merda, merda, merda!
 
arry apagou a lanterna quando o telefone começou a vibrar. Viu pelo número que era Hans Christian.
“Alguém está chegando,” a sua voz sussurrou no ouvido de Harry, rouca de nervosismo. “Ele estacionou em frente ao portão, e agora está indo para a casa.”
“OK”, disse Harry. “Vá com calma. Envie uma mensagem de texto se você notar alguma coisa. E caia fora se...”
“Cair fora?” Hans Christian parecia genuinamente indignado.
“Só se você perceber que tudo está indo para o ralo, OK?”
“Por que eu deveria...”
Harry desligou, acendeu a lanterna novamente e iluminou o postigo. “Irene?”
A garota piscou para a luz com olhos esbugalhados.
“Escute-me. Eu me chamo Harry. Eu sou policial e estou aqui para te soltar. Mas alguém está chegando. Se ele vier até aqui aja como se nada tivesse acontecido, OK? Eu vou voltar em breve para tirar você daqui, Irene. Eu prometo.”
“Você...?”, ela murmurou, mas Harry não pegou o resto.
“Eu o quê?”
“Você tem um pouco de... violino?”
Harry cerrou os dentes. “Aguente firme mais um pouco”, ele sussurrou.
Harry correu para o topo das escadas e apagou a luz. Empurrou a porta entreaberta e olhou para fora. Ele tinha uma visão clara da entrada da frente. Ele ouviu um andar arrastado no cascalho lá fora. Um pé sendo arrastado atrás do outro. Pé torto. E então a porta se abriu.
A luz se acendeu.
E lá estava ele. Grande, redondo e gordo.
Stig Nybakk.
O chefe de departamento do Radium Hospital. O único que se lembrava de Harry na escola. Que conhecia Tresko. Que tinha uma aliança de casamento com um risco preto. Que tinha um apartamento de solteirão onde era impossível encontrar qualquer coisa fora do normal. Mas também uma casa deixada pelos pais que ele ainda não tinha vendido.
Ele pendurou o casaco no cabide e caminhou na direção de Harry com a mão estendida. Parou de repente. Moveu sua mão para os lados diante dele. Um sulco profundo na testa. Ficou escutando. E agora Harry sabia por quê. O fio que sentiu no rosto quando entrou, que ele havia tomado por uma teia de aranha, devia ter sido algo mais. Algum fio invisível que Nybakk tinha esticado no corredor para indicar se ele tinha recebido algum visitante indesejado.
Nybakk moveu-se com surpreendente velocidade e agilidade em direção a um armário. Enfiou a mão lá dentro. Retirou-a com algo e a luz refletiu no metal fosco. Uma espingarda.
Merda, merda, merda. Harry odiava espingardas.
Nybakk tirou uma caixa de cartuchos, que já estava aberta. Pegou dois grandes cartuchos vermelhos, segurou-os entre o indicador e o dedo médio.
O cérebro de Harry zumbia e zumbia, mas não conseguia pensar numa boa idéia, então ele escolheu a ruim. Pegou o telefone e começou a digitar.
e-r-t-e-a-n-d-r-a-j-p
Merda! Errado!
Ele ouviu o clique metálico quando Nybakk abriu a arma.
Delete. Onde você está? “j” e “p” não, “e” e “s” sim.
Ouviu-o carregar os cartuchos.
e-s-p-e-r-e  a-t-e  e-l-e  i-r
Malditas teclas minúsculas! Vamos!
Ouviu o clique do cano se encaixar no lugar.
n-a  j-a-n-d
Errado! Harry ouviu Nybakk se aproximar mancando. Não tinha tempo suficiente. Restava torcer para que Hans Christian usasse sua imaginação.
f-a-r-o-i-s!
Ele pressionou “Enviar”.
Harry podia ver que Nybakk tinha levado a espingarda ao ombro. E ocorreu-lhe que o farmacêutico tinha notado que a porta do porão estava entreaberta.
Naquele momento, uma buzina de carro soou. Alta e insistente. Nybakk se encolheu. Olhou para a sala de estar, que ficava de frente para a rua. Hesitou. Em seguida, foi para a sala.
A buzina tocou de novo, e desta vez não parou.
Harry abriu a porta do porão e seguiu Nybakk, não precisando ir na ponta dos pés, sabia que a buzina abafaria seus passos. Ele viu Nybakk afastando as cortinas. A sala foi inundada pela luz ofuscante dos poderosos faróis de xenônio do carro de Hans Christian.
Harry deu quatro passos largos, e Stig Nybakk nem viu nem ouviu a aproximação. Ele estava segurando uma mão na frente do rosto para protegê-lo da luz quando Harry envolveu ambos os braços em volta dos ombros de Stig Nybakk, pegou a arma, puxou o cano contra seu pescoço carnudo. Cravou os joelhos na parte de trás das pernas de Nybakk, forçando a queda de ambos enquanto Nybakk lutava desesperadamente para respirar.
Hans Christian deve ter percebido que a buzina tinha feito o seu trabalho, porque ela silenciou, mas Harry continuou a aplicar pressão. Até os movimentos de Nybakk desacelerarem, perderem a energia e ele ficar murcho.
Harry sabia que Nybakk estava perdendo a consciência. Depois de alguns segundos sem oxigênio o cérebro poderia sofrer danos, um pouco mais e Stig Nybakk, o sequestrador e o gênio por trás do violino, estaria morto.
Harry fez um balanço. Contou até três e abriu uma das mãos para soltar a arma. Nybakk escorregou para o chão, sem um ruído.
Harry se sentou numa cadeira, ofegante. Gradualmente, conforme o nível de adrenalina em seu sangue diminuía, a dor no queixo e garganta retornou. Ela estava ficando pior a cada hora. Ele tentou ignorá-la, e digitou “O” e “K” para Hans Christian.
Nybakk estava curvado em posição fetal e começou a gemer baixinho.
Harry revistou-o. Colocou tudo o que encontrou nos bolsos sobre a mesa de café. Carteira, telefone celular e um frasco de comprimidos com o nome dele e do seu médico. Zestril. Harry se lembrou que seu avô tomava esse comprimido para prevenir um ataque cardíaco. Harry enfiou os comprimidos no bolso do paletó, colocou o cano da espingarda na testa pálida de Nybakk e ordenou-lhe para se levantar.
Nybakk olhou para Harry. Estava prestes a dizer algo, mas mudou de idéia. Lutou para ficar de pé e cambaleou.
“Para onde estamos indo?”, ele perguntou quando Harry o cutucou para ir em frente para o corredor.
“Lá embaixo”, disse Harry.
Stig Nybakk ainda estava instável, e Harry apoiou uma mão em seu ombro e a arma em suas costas quando eles desceram para o porão. Eles pararam ao lado da porta onde ele tinha encontrado Irene.
“Como você sabia que era eu?”
“A aliança”, disse Harry. “Abra.”
Nybakk tirou uma chave do bolso e torceu-a no cadeado.
Lá dentro, ele acendeu uma luz.
Irene não estava no mesmo lugar. Ela estava encolhida no canto mais afastado deles, tremendo, um ombro levantado, como se tivesse medo que alguém pudesse bater nela. Em torno de seu tornozelo tinha uma algema presa a uma corrente que ia até o teto, pregada numa viga.
Harry notou que a corrente era longa o suficiente para ela se mover pela sala. Comprida o suficiente para ela poder acender a luz.
Ela tinha preferido ficar na escuridão.
“Solte-a”, disse Harry. “E coloque a algema em você.”
Nybakk tossiu. Levantou as palmas das mãos. “Ouça, Harry...”
Harry bateu nele. Perdeu a cabeça completamente e bateu nele. Ouviu o baque sem vida de metal contra carne e viu o vergão vermelho que o cano da arma tinha feito no nariz de Nybakk.
“Diga meu nome mais uma vez,” Harry sussurrou e percebeu que estava forçando as palavras, “e eu vou espremer sua cabeça contra a parede com o lado errado da arma.”
Com as mãos tremendo Nybakk destrancou a algema do pé dela enquanto Irene olhava para a distância, estática e apática, como se nada disto fosse da sua conta.
“Irene”, disse Harry. “Irene”
Ela pareceu acordar, e olhou para ele.
“Saia daqui”, disse.
Ela apertou os olhos como se precisasse mobilizar toda a sua capacidade de concentração para interpretar os sons que ele tinha feito, para converter as palavras em significado. Em ação. Ela passou por ele na direção da porta para o corredor do porão numa marcha lenta, sonâmbula.
Nybakk tinha se sentado no colchão e puxado a perna da calça. Ele estava tentando prender a algema estreita em volta da sua panturrilha branca e gorda.
“Eu...”
“Prenda no seu pulso”, disse Harry.
Nybakk obedeceu, e Harry puxou a corrente para verificar se estava firme o suficiente.
“Tire a aliança, eu a quero.”
“Por quê? É apenas bijuteria bara...”
“Porque não é sua.”
Nybakk tirou a aliança e entregou para Harry.
“Eu não sei de nada”, disse ele.
“Sobre o quê?”, perguntou Harry.
“Sobre o que eu sei que você vai perguntar. Sobre Dubai. Eu me encontrei com ele duas vezes, mas nas duas vezes eu fui levado até lá com os olhos vendados, então eu não sei onde estive. Seus dois russos vinham aqui e recolhiam a mercadoria duas vezes por semana, mas eu nunca ouvi quaisquer nomes sendo mencionados. Ouça, se é dinheiro que você quer eu...”
“Porque tudo isso?”
“Isso o que?”
“Tudo. Foi pelo dinheiro?”
Nybakk piscou duas vezes. Deu de ombros. Harry esperou. E então uma espécie de sorriso cansado passou pelo rosto de Nybakk. “O que você acha, Harry?”
Fez um gesto em direção ao seu pé.
Harry não respondeu. Não sabia se queria ouvir. Ele podia entender. Dois rapazes crescendo em Oppsal, sob as mesmas condições, e um defeito congênito, aparentemente inócuo, podia tornar a vida dramaticamente diferente para um deles. Alguns ossos fora de linha, virando o pé para dentro. Pes equinovarus. Pé de cavalo. Porque a forma como alguém com um pé torto caminha lembra um cavalo marchando nas pontas dos cascos. Um defeito que lhe dá um começo de vida um pouco desvantajoso, e você tem que encontrar maneiras de compensar, mas às vezes não encontra. O que significa que você tem que compensar um pouco mais para se tornar popular, alguém que eles admirem: o menino que é líder de classe, o cara legal que tem amigos legais e a menina na fileira ao lado da janela, aquela cujo sorriso faz o seu coração explodir, mesmo que o sorriso não seja para você. Stig Nybakk tinha mancando ao longo da vida, sem ser notado. Tão despercebido que Harry não conseguia se lembrar dele. E ele tinha se saído razoavelmente bem. Ele conseguiu uma boa educação, trabalhou duro, foi promovido a chefe de departamento, tinha até começado a ser um líder de classe. Mas faltava o ingrediente essencial. A menina da fileira junto à janela. Ela ainda estava sorrindo para os outros.
Rico. Ele tinha que se tornar rico.
Porque o dinheiro é como cosméticos - esconde tudo, te dá tudo, inclusive aquelas coisas que se diz que não estão à venda: respeito, admiração, amor. Você só tinha que olhar em volta; beleza se casa com dinheiro sempre. Então, agora era a vez dele, a vez de Stig Nybakk, o pé torto.
Ele havia inventado o violino, e o mundo deveria se dobrar aos seus pés. Então, por que ela não o queria? Por que ela se afastava com nojo mal disfarçado, embora ela soubesse - sabia- que ele já era um homem rico e ficaria mais rico ainda a cada semana que passasse. Seria porque ela estava pensando em outro alguém, alguém que lhe dera a aliança boba e de mau gosto que ela usava no dedo? Era injusto, ele tinha trabalhado duro, incansavelmente, para cumprir os critérios, a fim de ser amado, e agora ela tinha que amá-lo. Então, ele a tinha capturado. Arrancou-a da fileira junto à janela. Algemou-a aqui, para que ela nunca mais sumisse novamente. E para completar o casamento forçado ele tinha tomado a sua aliança e colocou-o no seu próprio dedo.
A aliança barata que Oleg tinha dado para Irene, que por sua vez tinha roubado da sua mãe, que por sua vez tinha ganhado de Harry, que por sua vez havia comprado em um mercado de rua, onde, por sua vez... era como na brincadeira Passa Anel das crianças. Harry acariciou o risco preto na superfície dourada da aliança. Ele tinha sido observador e ao mesmo tempo cego.
Observador na primeira vez que havia se encontrado com Stig Nybakk e disse: “A aliança. Eu costumava ter uma idêntica.”
E cego porque ele não tinha refletido sobre o que significava idêntico.
O risco no cobre que tinha ficado preto.
Foi só quando ele viu a aliança de casamento de Martine e ouviu-a dizer que ele era a única pessoa no mundo que iria comprar uma aliança de gosto duvidoso que ele fez a conecção entre Oleg e Nybakk.
Harry não duvidou nem por um momento, mesmo não tendo encontrado nada de suspeito no apartamento de Stig Nybakk. Muito pelo contrário, era tão completamente desprovido de objetos comprometedores que Harry imaginou de imediato que Nybakk devia manter sua má consciência escondida em outros lugares. A casa dos pais, que estava vazia e ele não conseguiu vender. A casa vermelha na colina acima da casa da família de Harry.
“Você matou Gusto?”, perguntou Harry.
Stig Nybakk balançou a cabeça. Pálpebras pesadas. Ele parecia sonolento.
“Álibi?”
“Não. Não, eu não tenho um.”
“Conte-me.”
“Eu estive lá.”
“Onde?”
“Na Hausmanns Gate. Eu estava indo para encontrar-me com ele. Ele ameaçou me denunciar. Mas quando cheguei lá havia carros da polícia por todo o canto. Alguém já tinha matado Gusto.”
“Já? Então você planejava fazer o mesmo?”
“Não é o mesmo. Eu não tenho uma pistola.”
“O que você tem, então?”
Nybakk deu de ombros. “Um diploma de química. Gusto estava sofrendo de sintomas de abstinência. Ele precisava de violino.”
Harry olhou para o sorriso cansado de Nybakk e assentiu. “Então, você sabia que qualquer coisa branca que você lhe desse, Gusto iria injetar-se imediatamente.”
A corrente sacudiu quando Nybakk levantou a mão para apontar para a porta. “Irene. Posso dizer algumas palavras para ela antes...?”
Harry observou Stig Nybakk. Viu algo que ele reconheceu. Uma pessoa danificada, um homem acabado. Alguém que havia se rebelado contra as cartas que o destino lhe dera. E perdeu.
“Vou perguntar a ela.”
Harry encontrou Irene na sala de estar. Ela estava sentada numa cadeira com os pés enfiados por baixo dela. Harry foi buscar o casaco no cabide da sala, colocou sobre seus ombros. Ele falou com ela num sussurro. Ela respondeu com uma voz pequena, como se tivesse medo dos ecos nas paredes frias da sala de estar.
Ela contou que Gusto e Nybakk, ou Ibsen como eles o chamavam, tinham agido juntos para prendê-la. O pagamento tinha sido meio quilo de violino. Ela estava presa há quatro meses.
Harry deixou Irene falar no seu ritmo. Esperava até perceber que ela tinha acabado antes de fazer a próxima pergunta.
Ela não sabia nada sobre o assassinato de Gusto, além do que Ibsen tinha dito a ela. Ou quem era Dubai, ou onde ele morava. Gusto não tinha dito nada, e Irene não queria saber. Tudo o que ela tinha ouvido falar de Dubai eram os mesmos rumores sobre como ele andava pela cidade como uma espécie de fantasma e que ninguém sabia quem ele era ou como ele era, e que ele era como o vento, impossível de apanhar.
Harry acenou com a cabeça. Ele tinha ouvido falar daquela descrição com uma frequência um pouco demasiada nos últimos tempos.
“HC vai te levar até a delegacia. Ele é um advogado e vai ajudá-la a informar esta situação. Depois disso, ele vai levá-la para a mãe de Oleg onde você poderá ficar por enquanto.”
Irene abanou a cabeça. “Vou telefonar para Stein, meu irmão. Eu posso ficar com ele. E...”
“Sim?”
“Eu tenho que relatar isto?”
Harry olhou para ela. Ela era tão jovem. Tão pequena. Como um filhote de passarinho. Era impossível dizer o tamanho do dano provocado.
“Isso pode esperar até amanhã”, disse Harry.
Ele viu as lágrimas nos seus olhos. E seu primeiro pensamento foi: finalmente. Estava prestes a colocar a mão no ombro dela, mas mudou de idéia a tempo. A mão de um homem estranho não era, talvez, o que ela precisava. Mas no instante seguinte, as lágrimas tinham desaparecido.
“Existe... existe alguma alternativa?”, perguntou.
“Tais como?”, disse Harry.
“Como nunca mais ter que vê-lo novamente.” Os olhos dela não largavam os seus. “Nunca.”
Então ele sentiu. A mão dela em cima da dele. “Por Favor.”
Harry deu um tapinha na mão, e depois colocou-a de volta em seu colo. “Vamos lá, eu vou te levar até o HC.”
 
epois que Harry viu o carro ir embora, voltou para a casa e para o porão. Ele não conseguiu encontrar uma corda, mas sob as escadas encontrou uma mangueira de jardim. Ele levou-a até Nybakk. Olhou para a viga. Alta o suficiente.
Ele pegou o frasco de comprimidos de Zestril que havia encontrado no bolso de Nybakk. Esvaziou o conteúdo na mão. Seis.
“Você tem um problema cardíaco?”, perguntou.
Nybakk assentiu.
“Quantos comprimidos você toma por dia?”
“Dois”.
Harry colocou os comprimidos na mão de Nybakk e o frasco vazio no bolso do paletó.
“Eu estarei de volta em dois dias. Eu não sei o que a sua reputação significa para você. A vergonha certamente teria sido pior se os seus pais estivessem vivos, mas eu tenho certeza que você já ouviu falar como os outros prisioneiros tratam criminosos sexuais. Se, quando eu voltar, você não existir mais, você estará esquecido, seu nome nunca será mencionado novamente. Caso contrario, nós vamos levá-lo para a delegacia. Entendeu?”
Os gritos de Stig Nybakk seguiram Harry todo o caminho até a porta da frente. Os gritos de alguém que estava completamente sozinho com sua própria culpa, seus próprios fantasmas, sua própria solidão, suas próprias decisões. Sim, havia algo familiar nele. Harry bateu a porta com força atrás de si.
 
arry chamou um táxi em Vetlandsveien e disse ao motorista que queria ir para Urtegata.
Sua garganta doía e latejava como se tivesse um pulso próprio, tornara-se viva, trancada, um animal inflamado feito de bactérias que queriam sair. Harry perguntou se o motorista tinha algum analgésico no carro, mas ele balançou a cabeça.
Na altura de Bjørvika Harry viu foguetes que explodiam no céu sobre a Opera House. Alguém estava comemorando alguma coisa. Pareceu-lhe que ele também deveria fazer uma comemoração. Ele tinha conseguido. Ele havia encontrado Irene. E Oleg estava livre. Ele tinha conseguido o que ele se propôs fazer. Então porque ele não estava em clima de comemoração?
“Qual é a comemoração?” Harry perguntou.
“Oh, é a noite de abertura de alguma ópera. Eu levei alguns tipos elegantes para lá mais cedo esta noite.”
“Don Giovanni. Eu fui convidado.”
“Por que você não foi? Deve ser boa.”
“Tragédias me fazem ficar muito triste.”
O motorista olhou para Harry com surpresa pelo espelho. Riu. “Tragédias me fazem ficar muito triste?”
Seu telefone tocou. Era Klaus Torkildsen.
“Pensei que nunca iriamos nos falar de novo”, disse Harry.
“Eu também,” disse Torkildsen. “Mas eu... bem, de qualquer maneira eu fiz o que você pediu.”
“Não é mais tão importante”, disse Harry. “O caso está resolvido, no que me diz respeito.”
“Tudo bem, mas poderia ser interessante você saber que antes e depois do assassinato, Bellman - ou pelo menos o seu telefone - estava em Østfold. Teria sido impossível para ele ir até a cena do crime e voltar.”
“OK, Klaus, obrigado.”
“OK. Até nunca mais?”
“Até nunca mais.”
Harry desligou. Recostou-se contra o encosto de cabeça e fechou os olhos.
Agora ele podia se sentir feliz.

Sob as pálpebras podia ver as centelhas dos fogos de artifício.
“u vou com você.”
Tinha acabado.
Ela era dele outra vez.
Harry entrou na fila do check-in no grande saguão do Gardermoen. De repente ele tinha um plano, um plano para o resto da sua vida. Um plano, enfim. E ele saboreava uma sensação inebriante que não poderia descrever com uma palavra melhor do que feliz.
O monitor acima do balcão de check-in informava “Thai Air, Classe Executiva”.
Tinha acontecido tão rápido.
Ele foi direto da casa de Nybakk até o Watchtower para ver Martine, para devolver o telefone dela, mas ela disse que ele poderia ficar com o telefone porque ela já tinha comprado um novo. Ela também o convenceu a aceitar um casaco que quase não fora utilizado, de modo que ele parecia relativamente apresentável. Além disso, três comprimidos de Paracet para a dor, mas ele se recusou a deixá-la examinar o ferimento. Ela só gostaria de troca-lo, mas não havia tempo. Ele tinha ligado para a Thai Air e feito uma reserva.
Então, aconteceu.
Ele tinha ligado para Rakel, disse que Irene tinha sido encontrada e que, junto com a liberação de Oleg sua missão estava cumprida. Agora ele deveria deixar o país antes que fosse preso.
E foi então que ela disse.
Harry fechou os olhos e ouviu as palavras de Rakel mais uma vez: “Eu vou com você, Harry. Eu vou com você. Eu vou com você.”
Em seguida, “Quando?”
Quando?
Sua vontade era responder ‘imediatamente’. Faça a mala e venha agora!
Mas, mesmo assim, ele tinha conseguido pensar racionalmente.
“Escute, Rakel, eu sou um homem procurado, e a polícia provavelmente está de olho em você, esperando que você vá me encontrar, OK? Eu vou sozinho esta noite. Então você embarca amanhã no voo da noite. Vou esperar em Bangkok. De lá, faremos uma conexão para Hong Kong.”
“Hans Christian pode defendê-lo se você for preso. A sentença não será tão...”
“Não é a duração da pena que me preocupa”, disse Harry. “Quanto mais tempo eu ficar em Oslo maiores as chances de Dubai me encontrar. Você tem certeza que Oleg está num lugar seguro?”
“Sim. Mas eu quero que ele se junte a nós, Harry. Eu não posso viajar...”
“É claro que ele vai se juntar a nós.”
“Você fala sério?” Ele podia ouvir o alívio na voz dela.
“Nós ficaremos todos juntos, e em Hong Kong Dubai não pode nos tocar. Vamos esperar alguns dias e então eu vou enviar dois homens de Herman Kluit até Oslo para escoltá-lo.”
“Eu vou avisar Hans Christian. Em seguida eu vou comprar a passagem de avião para amanhã, meu amor.”
“Eu estarei esperando em Bangkok.”
Um pequeno silêncio.
“Mas você está sendo procurado, Harry. Como você vai embarcar no avião sem...”
“O próximo.” Próximo?
Harry abriu os olhos e viu a mulher atrás do balcão, sorrindo para ele.
Ele se adiantou e entregou o bilhete e o passaporte. Observou-a digitando o nome do passaporte.
“Eu não posso encontra-lo na lista, herr Nybakk...”
Harry mostrou um sorriso tranquilizador. “Na verdade eu estava com reserva para daqui a dez dias, mas eu liguei uma hora e meia atrás e solicitei a mudança para esta noite.”
A mulher pressionou mais algumas teclas. Harry contou os segundos. Inspirava. Expirava. Inspirava...
“Aqui está, achei. Reservas de última hora nem sempre aparecem imediatamente. Mas aqui informa que você está viajando com uma Irene Hanssen.”
“Ela irá viajar como planejado anteriormente”, disse Harry.
“Tudo bem. Alguma bagagem para o check-in?”
“Não.”
Mais digitação de teclas.
Em seguida, ela franziu a testa. Abriu o passaporte novamente. Harry se preparou. Ela colocou o cartão de embarque no passaporte e entregou para ele. “É melhor você se apressar, herr Nybakk. O embarque já começou. Tenha uma boa viagem.”
“Obrigado,” Harry disse com um pouco mais de sinceridade do que havia previsto e correu para a segurança do portão de embarque.
Foi só no outro lado da máquina de raios-X, quando estava pegando as chaves e o telefone celular de Martine, que ele percebeu que tinha recebido uma mensagem de texto. Ele estava prestes a salvá-la junto com as outras mensagens de Martine quando viu que o remetente tinha um nome curto - B. Beate.
Ele correu para o portão 54. Bangkok, chamada final.
Leu.
“Consegui a última lista. Há um endereço que não estava na lista que você recebeu de Bellman. Blindernveien 74.”
Harry enfiou o telefone no bolso. Não tinha fila no controle de passaportes. O funcionário conferiu o passaporte e o cartão de embarque. Olhou para Harry.
“A cicatriz é mais recente do que a foto”, disse Harry.
O funcionário observou-o. “Tire uma nova foto, Nybakk”, disse e devolveu os documentos. Fez um gesto para a pessoa atrás de Harry para indicar que era a sua vez.
Harry estava livre. Salvo. Toda uma nova vida se estendia diante dele.
Cinco retardatários ainda estavam na fila para passar pelo portão.
Harry olhou para o seu cartão de embarque. Classe executiva. Ele nunca tinha viajado em nada além da classe econômica, mesmo para Herman Kluit. Stig Nybakk tinha se dando bem. Dubai tinha se dando bem. Estavam se dando bem. Estão se dando bem. Agora, nesta noite, neste momento, os viciados estavam lá, tremendo e com fome, esperando que o cara com a camisa do Arsenal dissesse: ‘Vamos lá.’
Só dois ainda estavam na fila.
Blindernveien 74.
Eu vou com você. Harry fechou os olhos para ouvir a voz de Rakel novamente. Mas então: Você é um policial? É isso o que você se tornou? Um robô, um escravo do formigueiro e das ideias que outras pessoas tiveram.
Ele era isso?
Era a sua vez. A mulher na porta do túnel de embarque ergueu as sobrancelhas.
Não, ele não era um escravo.
Entregou o seu cartão de embarque.
Ele caminhou. Caminhou pelo túnel para o avião. Através do vidro ele podia ver as luzes de um avião que estava aterrissando. Passando sobre a casa de Tord Schultz.
Blindernveien 74.
O sangue de Mikael Bellman sob as unhas do Gusto.
Merda, merda, merda!
Harry embarcou, encontrou seu lugar e se afundou no assento de couro. Deus, que suavidade. Ele apertou um botão e o assento foi para trás e mais para trás até ele ficar deitado na posição horizontal. Ele fechou os olhos novamente, queria dormir. Dormir. Até acordar  num dia e perceber que havia mudado e estava num lugar muito diferente. Ele procurou pela voz dela. Mas em vez disso encontrou outra, em sueco:
Tenho um falso colar de padre; você tem um falso distintivo de xerife. O quanto a sua fé no seu evangelho é inabalável, realmente?
O sangue de Bellman. “...em Østfold. Teria sido impossível para ele...”
Tudo se encaixava.
Harry sentiu uma mão no seu braço e abriu os olhos.
Uma comissária de bordo tailandesa com maçãs do rosto altas sorriu para ele.
“Sinto muito, senhor, mas o assento deve ser erguido na posição vertical para a decolagem.”
Posição vertical.
Harry inspirou. Pegou seu celular. Olhou para a última chamada.
“Senhor, o celular deve ser desligado.”
Harry levantou a mão e apertou “Call”.
“Pensei que nunca iriamos nos falar de novo”, respondeu Klaus Torkildsen.
“Exatamente onde em Østfold?”
“Não entendi?”
“Bellman. Onde em Østfold ele estava quando Gusto foi morto?”
“Em Rygge, perto de Moss.”
Harry colocou o telefone de volta no bolso e se levantou.
“Senhor, o sinal do cinto de segurança...”
“Desculpe”, disse Harry. “Este não é o meu voo.”
“Tenho certeza que é. Checamos o número de passageiros e...”
Harry caminhou a passos largos pelo corredor do avião. Ele ouviu o tamborilar de pés atrás dele.
“Senhor, nós já fech...”
“Então abra.”
O chefe de comissários se juntou a eles. “Senhor, eu receio que as regras não nos permitem abr...”
“Eu estou sem meus comprimidos,” Harry disse, mexendo no bolso do paletó. Encontrou o frasco vazio com a etiqueta Zestril e segurou-o na frente do rosto do chefe dos comissários de bordo. “Eu sou o Sr. Nybakk, está vendo? Você quer que um passageiro tenha um ataque cardíaco a bordo quando estivermos por cima... digamos, do Afeganistão?”
 
assava das onze horas, e o trem expresso do aeroporto estava quase vazio quando partiu para Oslo. Harry distraidamente lia as notícias na tela pendurada no teto. Ele tinha um plano, um plano para uma nova vida. Agora ele tinha 20 minutos para encontrar um novo. Era loucura. Ele deveria estar num avião para Bangkok. Mas esse era o ponto; ele deveria estar num avião para Bangkok agora. Ele simplesmente não tinha essa capacidade - era uma deficiência, uma falha de funcionamento; seu pé torto era nunca ter sido capaz de dizer a si mesmo que ele não se importava, devia esquecer, devia cair fora. Ele poderia beber, mas optou por ficar sóbrio. Ele poderia ir para Hong Kong, mas voltou. Ele era, sem dúvidas, uma pessoa muito danificada. E os comprimidos que Martine lhe dera estavam perdendo o efeito; ele precisava de mais, a dor estava deixando-o tonto.
Harry estava com os olhos focados nas manchetes sobre a cotação de ações e dos resultados desportivos quando lhe ocorreu o pensamento: e se isto era o que ele estava fazendo agora? Caindo fora. Se acovardando.
Não. Desta vez era diferente. Ele tinha reagendado a data do voo para amanhã à noite, no mesmo voo de Rakel. Ele tinha até mesmo reservado um assento para ela ao lado dele na classe executiva e pagou pelo upgrade. Ele havia planejado lhe contar sobre o que estava prestes a fazer, mas sabia o que ela pensaria: ele não tinha mudado. A loucura de sempre ainda o dominava. Nada iria mudar, nunca. Mas, quando estivessem sentados no avião, um ao lado do outro, com a aceleração pressionando-os para trás no assento e, em seguida, sentindo a subida, a leveza, o inexorável, ela finalmente saberia que eles haviam deixado os velhos tempos para trás, lá embaixo, que sua viagem tinha começado.
 
arry saiu do expresso do aeroporto, atravessou a ponte para a Opera House, caminhou pelo mármore italiano em direção à entrada principal. Através do vidro ele podia ver as pessoas elegantemente vestidas conversando, com canapés e bebidas nas mãos, por trás das cordas do caro saguão.
Na porta principal Harry avistou um homem vestindo terno e com um fone de ouvido, com as mãos na frente da virilha como se estivesse numa barreira diante da cobrança de uma falta. De ombros largos, mas nenhuma gordura. Olhos treinados que tinham visto Harry há muito tempo, e agora estavam estudando as coisas ao redor que pudessem ter algum significado. O que só podia significar que ele era um policial do PST, o serviço de segurança da Noruega, e que o chefe de polícia ou alguém do governo estava presente. O homem deu dois passos na direção de Harry quando ele se aproximou.
“Desculpe, festa privada...”, ele começou, mas parou quando viu o distintivo de Harry.
“Não tem nada a ver com o seu chefe, amigo,” disse Harry. “Só preciso trocar algumas palavras com alguém. Assunto oficial.”
O homem acenou com a cabeça, falou no microfone da lapela e deixou Harry passar.
O saguão era um enorme iglu e Harry podia ver que estava povoado por muitos rostos que ele reconhecia, apesar de seu longo exílio: as figurinhas da imprensa, personalidades da TV, artistas, esportistas e políticos, além de eminências da cultura mais ou menos pardas. E Harry percebeu o que Isabelle Skøyen quis dizer quando disse que era difícil encontrar uma companhia bastante alta quando ela usava saltos. Ela era fácil de avistar, como uma torre acima dos demais convidados ali reunidos.
Harry passou por cima da corda e caminhou através do saguão, repetindo um ‘não, obrigado’ sempre que uma taça de vinho branco surgia na frente dele.
Isabelle estava falando com um homem que era metade de uma cabeça menor do que ela, mas a insinuante e entusiástica expressão facial dela fez Harry concluir que ele estava muitas cabeças acima dela no escalão do poder e do status. Harry estava a três metros de distância quando um homem apareceu na frente dele.
“Eu sou o policial que acabou de falar com o seu colega lá fora”, disse Harry. “Eu vou ter uma conversa com ela.”
“Fique a vontade”, disse o segurança, e Harry pensou que podia subtender uma determinada insinuação.
Harry deu os últimos passos.
“Oi, Isabelle”, disse e viu a surpresa no rosto dela. “Espero não estar interrompendo... a sua carreira?”
“Inspetor Hole,” ela respondeu com uma risada estridente como se partilhasse uma piada com o seu grupinho.
O homem ao lado dela foi rápido no gatilho com a mão e disse seu nome - desnecessariamente. A longa carreira até o último andar da Câmara Municipal tinha presumivelmente lhe ensinado que ser simpático com o homem comum seria recompensado no dia da eleição. “Você gostou do desempenho, inspetor?”
“Sim e não”, disse Harry. “Eu estava feliz porque tinha acabado, e já estava a caminho de casa quando eu percebi que havia algumas coisas que eu precisava esclarecer.”
“Como o que?”
“Bem, como Don Giovanni é um ladrão e um mulherengo certamente é justo e correto que ele merecia ser punido no ato final. Eu acho que entendi quem é a estátua que chega e leva Don Giovanni para o inferno. O que eu estou querendo saber, no entanto, é quem lhe disse que ela poderia encontrar Don Giovanni exatamente naquele local? Você pode me responder isso...?” Harry se virou. “Isabelle?”
O sorriso de Isabelle estava rígido. “Se você tem uma teoria da conspiração é sempre interessante ouvir. Mas talvez outra vez. Agora eu estou falando...”
“Eu preciso trocar umas palavras com ela,” Harry disse, encarando o seu interlocutor. “Com sua permissão, é claro.”
Harry viu que Isabelle estava prestes a protestar, mas o interlocutor foi mais rápido. “Claro.” Ele sorriu, acenou com a cabeça e virou-se para um casal de idosos que estava esperado na fila por uma audiência.
Harry tomou Isabelle pelo braço e levou-a para perto das placas indicadoras dos banheiros.
“Você fede”, ela sibilou quando ele colocou as mãos em seus ombros e apertou-a contra a parede ao lado da entrada para o banheiro dos homens.
“Este terno andou caindo no lixo um par de vezes,” Harry disse, e notou que eles estavam atraindo alguns olhares de pessoas ao seu redor. “Ouça, nós podemos fazer isso de um modo civilizado ou bruto. No que consiste sua cooperação com Mikael Bellman?”
“Vá para o inferno, Hole.”
Harry chutou a porta do banheiro e arrastou-a para dentro.
Um homem num smoking, em frente da pia, olhou espantado pelo espelho quando Harry encostou Isabelle contra a porta de um dos cubículos e forçou o seu antebraço contra a garganta dela.
“Bellman estava com você quando Gusto foi morto,” Harry sibilou. “Gusto tinha sangue de Bellman sob as unhas. O queimador de Dubai é o amigo de infância e colaborador mais próximo de Bellman. Se você não falar agora eu vou ligar para meu contato no Aftenposten e tudo sairá na edição de amanhã. E depois eu vou colocar tudo o que tenho na mesa do promotor público. Então como é que vai ser?”
“Desculpe-me.” Era o homem de smoking. Ele manteve uma distância respeitosa. “Você precisa de ajuda?”
“Dá o fora daqui, porra!”
O homem ficou chocado, talvez não tanto pelas palavras grosseiras, mas pelo fato de que foi Isabelle quem as havia pronunciado, e saiu atabalhoadamente.
“Nós estávamos transando”, disse Isabelle, meio estrangulada.
Harry a soltou e ele poderia dizer pela sua respiração que ela tinha bebido champanhe.
“Você e Bellman estavam transando?”
“Eu sei que ele é casado, e nós estávamos transando, isso é tudo”, disse ela, esfregando seu pescoço. “Gusto apareceu do nada e arranhou Bellman quando estava sendo jogado para fora. Se você quer dizer isso para a imprensa, vá em frente. Eu suponho que você nunca transou com uma mulher casada. Mas você precisa considerar o impacto que as manchetes vão causar na esposa e nos filhos de Bellman.”
“E como você e Bellman se conheceram? Você está tentando me dizer que este triângulo com Gusto e vocês dois aconteceu por acaso?”
“Como você acha que as pessoas em posições de poder se conhecem, Harry? Olhe ao seu redor. Olhe quem está aqui nesta festa. Todo mundo sabe que Bellman vai ser nomeado como novo Chefe de Polícia de Oslo.”
“E que você irá obter uma posição mais elevada na prefeitura?”
“Nós nos conhecemos em algum evento ou outro, uma première, uma exibição particular, não me lembro quando. É assim que acontece. Você pode ligar e perguntar para Mikael. Mas não esta noite, provavelmente ele está aproveitando o seu tempo com a família. Isso é apenas... bem, é isso.”
É isso. Harry olhava para ela.
“E sobre Truls Berntsen?”
“Quem?”
“Ele é o queimador de vocês, não é? Quem o mandou para o Hotel Leon para cuidar de mim? Foi você? Ou Dubai?”
“O que, em nome de Deus, você está falando?”
Harry podia perceber. Ela realmente não tinha idéia de quem era Truls Berntsen.
Isabelle Skøyen começou a rir. “Harry, não fique tão abatido.”
Ele poderia estar sentado num avião para Bangkok. Para outra vida.
Ele já estava de saída.
“Espere, Harry.”
Ele se virou. Ela estava encostada na porta do cubículo e tinha levantado sua saia. Tão alto que ele podia ver o topo das suas meias e as ligas. Uma mecha de cabelo loiro caiu sobre sua testa.
“Agora que temos os banheiros só para nós...”
Harry encontrou os olhos dela. Eles estavam enevoados. Não pelo álcool, não com desejo, havia algo mais. Ela estava chorando? A Isabelle Skøyen resistente, solitária, com baixa-estima? Mais o quê? Ela era mais uma pessoa amarga disposta a arruinar a vida dos outros para conseguir o que ela pensava ser seu direito de nascença: ser amada.
A porta continuou a balançar nos dois sentidos depois que Harry saiu, roçando contra a vedação de borracha, cada vez mais rápido, como uma última salva de palmas acelerando no final.
 
arry caminhou de volta sobre a ponte coberta da Central Station, e desceu para Plata. Tinha uma farmácia vinte e quatro horas no outro extremo, mas a fila era sempre muito comprida, e ele sabia que comprimidos sem prescrição médica não tinham força suficiente para matar a dor. Ele continuou, passando pelo Heroin Park. Tinha começado a chover, e as lâmpadas da rua brilhavam nos trilhos molhados da Prinsens Gate. Ele avaliou a situação enquanto caminhava. A espingarda de Nybakk em Oppsal era mais fácil de recuperar. Além disso, uma espingarda dava-lhe mais espaço de manobra. Para recuperar o rifle detrás do guarda-roupa no quarto 301, ele teria que entrar no Hotel Leon despercebido, e ele nem mesmo tinha certeza de que já não tivesse sido encontrado. Mas o rifle era mais eficaz.
A fechadura do portão do pátio dos fundos do Hotel Leon estava danificada. Ela tinha sido quebrada recentemente. Harry presumiu que foi como os dois caras de terno tinham entrado na noite em que vieram visita-lo.
Harry entrou e, com certeza, a fechadura da porta dos fundos também estava danificada.
Harry subiu as escadas estreitas que eram usadas como saída de emergência. Nem uma alma no corredor no segundo andar. Harry bateu no 310 para perguntar para Cato se a polícia tinha aparecido. Ou qualquer outra pessoa. Mas não houve resposta. Ele colou o ouvido contra a porta. Silêncio.
A porta de seu quarto não tinha sido consertada, portanto, uma chave era, neste caso, supérflua. Ele empurrou a porta e abriu. Notou o sangue que havia se infiltrado no cimento exposto onde ele havia removido a tábua.
Nada tinha sido feito com a janela, também.
Harry não acendeu a luz, entrou sem muitos cuidados, enfiou a mão atrás do guarda-roupa e constatou que o rifle não estava mais lá. Nem a caixa com os cartuchos, que ele tinha colocado ao lado da Bíblia na gaveta na mesinha de cabeceira. E Harry percebeu que a polícia não esteve lá; os hóspedes e vizinhos achavam desnecessário envolver a lei por conta de alguns míseros tiros de espingarda, pelo menos enquanto não houvesse corpos. Ele abriu o guarda-roupa. Suas roupas e a mala estavam lá, como se nada tivesse acontecido.
Harry viu a mulher no quarto do outro lado.
Ela estava sentada na frente de um espelho, de costas para ele. Penteava seu cabelo, pelo que ele podia ver. Ela estava usando um vestido que parecia estranhamente antiquado. Não velho, apenas à moda antiga, como um traje de outra época. Sem entender o porquê, Harry gritou pela janela despedaçada. Um grito curto. A mulher não reagiu.
De volta na rua, Harry percebeu que não estava em condições de lidar com a situação. Sua garganta parecia estar em chamas, e o calor estava fazendo seus poros suarem. Ele estava encharcado e sentiu os primeiros calafrios.
A música no bar tinha mudado. Da porta aberta veio a voz de Van Morrison cantando ‘And It Stoned Me’ (E aquilo me entorpeceu).
Analgésica.
Harry começou a atravessar a rua, ouviu um guincho desesperado e estridente, e no instante seguinte uma parede azul-e-branco encheu seu campo de visão. Durante quatro segundos ele ficou completamente imóvel no meio da rua. Em seguida, o bonde passou e a porta aberta do bar apareceu de novo.
O barman levou um susto quando levantou os olhos do jornal e viu Harry.
“Jim Beam”, disse Harry.
O barman piscou duas vezes sem se mover. O jornal escorregou para o chão.
Harry puxou euros da carteira e colocou sobre o balcão. “Dê-me a garrafa.”
A boca do barman estava aberta. A tatuagem COMER tinha uma mancha de gordura em cima do R.
“Agora”, disse Harry. “E eu vou cair fora.”
O barman olhou para as notas. Olhou para Harry. Pegou a garrafa de Jim Beam, mantendo os olhos fixos nele.
Vendo que a garrafa estava abaixo da metade, Harry suspirou. Ele colocou-a no bolso do casaco, olhou em volta, tentou pensar em algumas palavras memoráveis para uma despedida, desistiu, acenou com a cabeça e saiu.
 
arry parou na esquina da Prinsens com Dronningens Gate. Primeiro ele ligou para informações de listas telefônicas. Então abriu a garrafa. O cheiro de bourbon fez o estômago dar um nó. Mas ele sabia que não seria capaz de realizar o que precisava sem um anestésico. A última vez tinha sido a três anos. Talvez as coisas houvessem melhorado. Ele colocou a garrafa na boca. Virou a cabeça para trás e tomou um gole. Três anos de sobriedade. O veneno atingiu seu organismo como uma bomba de napalm. As coisas não tinham melhorado; estavam piores do que nunca.
Harry se inclinou para a frente, estendeu um braço e apoiou-se numa parede, para não salpicar suas calças ou os sapatos.
Ele ouviu os saltos altos no piso atrás dele. “Ei, senhor. Eu bonita?”
“Claro,” Harry conseguiu proferir antes que sua garganta ficasse cheia. O jato amarelo bateu no pavimento com uma potência impressionante e espirrou em volta, e ele ouviu os saltos altos tiquetaqueando na distância. Ele limpou a boca com as costas da mão e tentou novamente. Cabeça para trás. Whiskey e fel correram goela abaixo. E foram regurgitados.
Na terceira tentativa ficaram. Por enquanto.
A quarta foi um sucesso.
A quinta foi celestial.
Harry chamou um táxi e deu o endereço ao motorista.
 
ruls Berntsen caminhou a passos largos no escuro. Atravessou a área de estacionamento em frente ao bloco de apartamentos iluminado pelas luzes dos lares seguros e confortáveis onde as pessoas estariam na sala de estar com seus lanches e canecas de café, e talvez até mesmo uma cerveja, ligando a TV, agora que o noticiário havia terminado e a programação era mais divertida. Truls tinha ligado para o QG da Polícia e informado que estava doente. Eles não tinham lhe perguntado qual era o problema, apenas perguntaram se ele iria ficar afastado pelos três dias a que tinha direito sem precisar de atestado médico. Truls tinha respondido, merda, como diabos ele poderia saber se iria ficar doente por exatamente três dias? Este é um país de preguiçosos de merda, com malditos políticos hipócritas alegando que as pessoas, se pudessem, realmente queriam trabalhar. Os noruegueses votaram no Partido Socialista porque eles fizeram disso um direito humano: praticar o absenteísmo, fugir do trabalho; e quem seria burro o suficiente para não votar num partido que lhe dava três dias de folga sem atestado médico, lhe dava carta branca para ficar em casa se masturbando ou para sair para esquiar ou para se recuperar de uma ressaca? O Partido Socialista sabia, é claro, que era um benefício exagerado, mas mesmo assim tentava parecer responsável e se vangloriava da sua ‘confiança na maioria das pessoas’ e instituiu o direito de fingir estar doente como uma espécie de reforma social. O Partido Progressista era uma merda ainda mais irritante, se dizia honesto, mas comprava votos com promessas de cortes de impostos e nem se preocupava em disfarçar.
Ele ficou sentado e pensando nisso o dia inteiro enquanto revisava suas armas, carregava, verificava o funcionamento, mantendo um olho na porta trancada, examinando todos os veículos que chegavam no estacionamento, através da luneta do Märklin, o enorme rifle de atiradores de elite confiscado alguns anos atrás, que o policial encarregado das armas confiscadas, provavelmente, ainda pensava que estava no QG da Polícia. Truls sabia que mais cedo ou mais tarde ele teria que sair para se alimentar, mas esperou até que estivesse escuro e não houvesse muitas pessoas nas ruas. Um pouco antes das onze horas, hora de fechamento do Rimi Supermercado, ele pegou a sua Steyr, saiu furtivamente e correu para lá. Caminhando ao longo dos corredores com um olho na comida e outro nos clientes. Comprou um estoque de rissoles Fjordland para uma semana. Pacotes transparentes de batatas descascadas, almôndegas, ervilhas e caldo de carne. Jogue tudo, ainda nas embalagens, numa panela com água e cozinhe por alguns minutos, abra as embalagens e despeje num prato, e se você fechar bem os olhos, duvido que aquela gororoba não vai te fazer pensar que é comida de verdade.
Truls Berntsen estava na entrada do bloco de apartamentos, enfiando a chave na fechadura, quando ouviu passos apressados atrás dele na escuridão. Ele se virou, frenético, e sua mão já estava na coronha da pistola dentro da jaqueta quando ele encarou o rosto aterrorizado de Vigdis A.
“E-eu assustei você?”, ela gaguejou.
“Não”, disse Truls bruscamente e entrou sem segurar a porta aberta para ela, mas ouviu-a se espremer com sua gordura por entre a abertura antes da porta se fechar.
Ele apertou o botão do elevador. Assustado? É claro que ele estava assustado, porra. Cossacos siberianos estavam atrás do seu rabo. Será que isso não era suficiente para deixar alguém assustado?
Vigdis A ofegava atrás dele. Ela estava com excesso de peso, problema que afligia muitas mulheres. Não que ele se importasse, mas por que ninguém falava abertamente sobre isso? As mulheres norueguesas estavam ficando tão gordas que não iam só acabar com elas mesmas em decorrência de uma infinidade de doenças, mas elas também estavam destruindo o ciclo da reprodução humana; elas estavam despovoando o país. Porque no final nenhum homem se sentia motivado a cavalgar tanta gordura. Sem falar da sua própria, é claro.
O elevador chegou, eles entraram e os cabos gritaram de dor.
Ele tinha lido que os homens também estavam ficando obesos, mas que não era visível da mesma forma. Eles tinham bundas menores, e apenas pareciam maiores e mais fortes. Como ele mesmo. Ele parecia tremendamente melhor agora do que dez quilos atrás. Mas as mulheres tinham aquela gordura em ondas tremulantes que lhe dava vontade de chuta-las, só para ver o pé desaparecer naquela banha. Todo mundo sabia que a gordura era o novo câncer, mas todos reclamavam da histeria pelas dietas e incensavam o ‘verdadeiro’ corpo da mulher. Como se a falta de exercício físico e a supernutrição fosse algum tipo de modelo sensato e natural. Seja feliz com o corpo que você tem, esse tipo de coisa. Muito melhor que centenas de pessoas morressem de doença cardíaca do que uma pessoa pudesse morrer de transtorno alimentar. E agora até mesmo Martine estava ficando igual. Certo, ela estava grávida, ele sabia disso, mas ele não conseguia tirar da cabeça que ela havia se tornado uma delas.
“Parece que você está com frio”, Vigdis A sorriu.
Truls não sabia o que o A significava, mas era o que estava escrito na sua campainha, Vigdis A. Ele se imaginava dando um soco nela, um gancho de direita, com toda a sua força, ele nem precisava se preocupar com os nós dos dedos com aquelas tremendas bochechas de hamster. Ou transando com ela. Ou ambos.
Truls sabia por que estava tão irritado. Era o celular.
Quando eles finalmente conseguiram o mandato para que a Telenor rastreasse o telefone do Hole descobriram que ele estava no centro da cidade, em torno da Central Station para ser mais preciso. Não havia provavelmente nenhum outro lugar em Oslo tão cheio de pessoas dia e noite. Em seguida, uma dúzia de policiais vasculhou pelo meio da multidão em busca de Hole. Eles gastaram muitas horas. Nada. No final, um policial com cara de criança tinha surgido com a idéia banal de sincronizar seus relógios, espalhar-se ao redor da área e, em seguida, um deles iria ligar para o número a cada quarto de hora. E se alguém ouvisse um telefone tocar naquele momento, ou visse alguém pegando um telefone, eles deviam atacar, Hole tinha que estar ali em algum lugar. Dito e feito. Eles conseguiram encontrar o telefone. No bolso de um viciado sentado, meio dormindo, nos degraus na Jernbanetorget. Ele disse que tinha “ganhado” o telefone de um cara no Watchtower.
O elevador parou. “Boa noite,” Truls murmurou e saiu.
Ele ouviu a porta se fechar atrás dele e o elevador partir de novo.
Rissoles e um DVD. O primeiro Fast & Furious, talvez. Filme de merda, é claro, mas tinha uma ou duas cenas boas. Ou Transformers, Megan Fox e uma boa e longa punheta.
Ele ouviu a respiração dela. Ela saiu do elevador atrás dele. Aquela puta. Truls Berntsen iria transar esta noite. Ele sorriu e virou a cabeça. E bateu em alguma coisa. Algo duro. E frio. Truls Berntsen forçou a vista. O cano de uma arma.
“Muito obrigado”, disse uma voz familiar. “Eu adoraria entrar.”
 
ruls Berntsen estava sentado na poltrona olhando para o cano da sua própria pistola.
Ele o havia encontrado. E vice-versa.
“Não podemos continuar nos encontrando assim”, disse Harry Hole. Ele havia colocado o cigarro no canto da boca para que a fumaça não entrasse nos seus olhos.
Truls não respondeu.
“Você sabe por que eu prefiro usar sua arma?”, perguntou, dando um tapinha no rifle de caça que tinha colocado no colo.
Truls continuou com a boca fechada.
“Porque eu prefiro que as balas que eles encontrarem em você sejam rastreadas até a sua arma.”
Truls deu de ombros.
Harry Hole inclinou-se para a frente. E Truls podia sentir o cheiro agora: o hálito alcoólico. Porra, o cara estava bêbado. Ele tinha ouvido histórias sobre o que o homem fazia em estado sóbrio, e agora ele estava bêbado.
“Você é um queimador, Truls Berntsen. E aqui está a prova.”
Ele levantou o distintivo que tinha tirado dele junto com a arma. “Thomas Lunder? Não é aquele policial que recolheu a droga em Gardermoen?”
“O que é que você quer?”, disse Truls, fechando os olhos e recostando-se na cadeira. Rissoles e um DVD.
“Eu quero saber qual é a ligação entre você, Dubai, Isabelle Skøyen e Mikael Bellman.”
Truls se retorceu na cadeira. Mikael? O que diabos Mikael têm a ver com isso? E Isabelle Skøyen? Ela não é aquela política?
“Eu não faço a mínima ideia...”
Ele observou Harry armar o cão da pistola.
“Cuidado, Hole! Esse gatilho é mais sensível do que você pensa. Ele...”
O cão da arma subiu ainda mais.
“Espere! Aguarde, pelo amor de Deus!” A língua de Truls Berntsen circulou dentro da boca em busca de saliva. “Não sei nada sobre Bellman ou Skøyen, mas Dubai...”
Sim?
“Eu posso falar dele...”
“O que você pode me dizer?”

Truls Berntsen respirou fundo, prendeu o ar. Em seguida, soltou-o com um gemido. “Tudo”.

rês olhos fitavam Truls Berntsen. Dois com íris azul claro, diluídas em álcool. E um preto e redondo, que era o cano da sua própria Steyr. O homem que segurava a arma estava mais deitado do que sentado na poltrona, e suas longas pernas esticadas sobre o tapete. Ele disse com uma voz rouca: “Diga-me, Berntsen. Conte-me sobre Dubai.”
Truls tossiu duas vezes. Maldita garganta seca.
“A campainha da porta tocou numa certa noite. Eu peguei o interfone, e uma voz disse que queria trocar algumas palavras comigo. No início eu não queria deixá-lo entrar, mas, em seguida, ele mencionou um nome e... bem...”
Truls Berntsen segurou seu queixo entre o polegar e o dedo médio.
O outro homem esperou.
“Aconteceu um negócio infeliz e eu pensei que ninguém mais sabia.”
“O que foi?”
“Um detento. Ele precisava de umas lições de boas maneiras. Eu não pensava que alguém soubesse que eu fui o único que tinha... dado as lições.”
“Qual foi o dano?”
“Os pais queriam me processar, mas o garoto não poderia me apontar no paredão de identificação. Devo ter danificado seu nervo óptico. Sorte no azar, hein?” Truls grunhiu seu riso nervoso, mas calou-se rapidamente. “E agora este homem estava do lado de fora da minha porta e ele sabia. Disse que eu tinha um certo talento para agir sem ser detetado pelo radar, e ele estava disposto a pagar muito bem para um homem como eu. Ele falava norueguês, mas com um pouco de sotaque. Parecia bastante decente. Eu o deixei entrar.”
“Você se encontrou com Dubai?”
“Sim. Ele estava sozinho. Um homem velho num terno elegante, mas à moda antiga. Colete, chapéu e luvas. Ele me disse o que desejava que eu fizesse. E quanto pagaria. Ele era um cara cuidadoso. Disse que não iriamos nos encontrar cara a cara novamente, sem telefonemas, nem e-mails, nada que pudesse ser rastreado. E isso me agradou.”
“Então, como vocês se comunicavam?”
“Os trabalhos eram escritos numa lápide. Ele me explicou onde ela ficava.”
“Onde?”
“Gamlebyen Cemetery. Era ali que eu pegava o dinheiro também.”
“Conte-me sobre Dubai. Quem é ele?”
Truls Berntsen olhou para a distância. Tentou enxergar o balanço dos prós e contras da equação. As consequências.
“O que você está esperando, Berntsen? Você disse que poderia me dizer tudo sobre Dubai.”
“Você está ciente que eu estou me arriscando contan...”
“Da última vez que nos encontramos, dois dos rapazes de Dubai estavam tentando enchê-lo com chumbo. Portanto, mesmo sem esta arma apontada para você, você já está ferrado Berntsen. Desembucha. Quem é ele?”
Os olhos de Harry Hole estavam fixos nele. Enxergando através dele, Truls pensou. E agora o cão da arma estava se movendo e sua equação foi ficando mais simples.
“Tudo bem, tudo bem”, disse Berntsen, segurando as mãos. “Seu nome não é Dubai. Chamam-no assim porque seus traficantes usam camisas de futebol que anunciam uma companhia aérea que voa para os países da região. Países árabes.”
“Você tem dez segundos para me dizer algo que eu ainda não sei.”
“Espera aí, espera aí, vou dizer! O nome dele é Rudolf Asayev. Ele é russo, seus pais eram dissidentes intelectuais e refugiados políticos - pelo menos é o que ele disse no julgamento. Ele viveu em muitos países e, aparentemente, fala algo como sete línguas. Veio para a Noruega nos anos setenta e foi um dos pioneiros no tráfico de haxixe, segundo a história. Ele ficou sempre na moita, mas foi denunciado por um dos seus próprios camaradas em 1980. Foi quando a venda e importação de drogas recebia a mesma pena do crime de alta traição. Então ele ficou um longo tempo na cadeia. Depois de ser libertado, ele se mudou para a Suécia e passou a trabalhar com heroína.”
“O mesmo risco de trabalhar com haxixe, mas com uma margem de lucro muito maior.”
“Certo. Ele construiu uma rede em Gothemburg, mas depois que um policial disfarçado foi morto ele teve que ir para a clandestinidade. Ele voltou para Oslo cerca de dois anos atrás.”
“E ele lhe contou tudo isso?”
“Não, não, eu descobri por minha conta.”
“Ah sim? Como? Eu pensei que o homem era um fantasma e que ninguém sabia nada sobre ele.”
Truls Berntsen olhou para suas mãos. Olhou novamente para Harry Hole. Mal podia conter um sorriso. Porque isso era algo que ele sempre quis dizer para alguém. Como ele tinha enganado o próprio Dubai. Mas não havia ninguém para contar. Truls lambeu os lábios. “Ele estava sentado aí onde você está agora, com os braços apoiados nos da poltrona.”
“E?”
“A manga da sua camisa tinha subido e mostrou uma área entre as luvas e a manga do paletó. Ele tinha algumas cicatrizes brancas. Você sabe, do tipo que você tem quando remove uma tatuagem. E quando eu vi aquilo no seu pulso eu pensei...”
“Prisão. Ele estava usando luvas para não deixar impressões digitais que você pudesse comparar com as do arquivo mais tarde.”
Truls assentiu. Hole era muito rápido na compreensão das coisas, tinha que admitir.
“Exatamente. Mas depois que eu concordei com as condições propostas ele parecia um pouco mais relaxado. E quando fomos apertar as mãos para fechar o negócio, ele tirou uma luva. Depois eu levantei um par de impressões razoáveis da parte de trás da minha mão. O computador fez o resto.”
“Rudolf Asayev. Dubai. Como é que ele conseguiu manter sua identidade oculta por tanto tempo?”
Truls Berntsen deu de ombros. “Vemos isso na Orgkrim o tempo todo. Há uma coisa que separa os Chefões que não são capturados daqueles que são. Uma organização pequena. Pouquíssimas conexões. Pouquíssimos assessores confiáveis. Os reis do narcotráfico que pensam que estão mais seguros com um exército ao redor sempre são presos. Há sempre algum funcionário desleal, alguém que quer assumir o negócio ou abre o bico para negociar uma sentença reduzida.
“E você só o viu uma vez, aqui?”
“Houve outro encontro. No Watchtower. Acho que era ele. Ele me viu, virou-se na soleira da porta e sumiu.”
“Então é verdade, este rumor sobre ele vagando ao redor da cidade como um fantasma?”
“Quem sabe?”
“O que você fazia no Watchtower?”
“Eu?”
“A polícia não está autorizada a entrar lá.”
“Eu conhecia uma garota que trabalha lá.”
“Hmm. Martine?”
“Você a conhece?”
“Será que você se senta lá e fica olhando para ela?”
Truls sentiu o sangue subir à cabeça. “Eu...”
“Relaxe, Berntsen. Você acabou de se livrar de um inquérito.”
“O...o que?”
“Você é um voyeur, o cara que Martine pensava que era um policial disfarçado. Você estava no Watchtower quando Gusto foi baleado, não estava?”
“Voyeur?”
“Esqueça isso e responda.”
“Jesus, você não acha que eu...? Por que eu iria querer apagar Gusto Hanssen?”
“Você poderia ter recebido ordens de Asayev”, disse Hole. “Mas você tinha um motivo sólido e pessoal. Gusto tinha visto você matar um homem em Alnabru. Com uma broca.”
Truls Berntsen avaliou o que Hole tinha dito. Avaliou da maneira como um policial cuja vida tem sido uma mentira constante, todo dia, toda hora, precisa distinguir blefe de verdade.
“Este assassinato também lhe deu um motivo para matar Oleg Fauke, que era a outra testemunha. O preso que tentou esfaquear Oleg...”
“Não trabalhava para mim! Você tem que acreditar em mim, Hole, eu não tive nada a ver com isso. Eu só queimava provas. Eu nunca matei ninguém. O caso em Alnabru foi pura má sorte.”
Hole inclinou a cabeça. “E quando você foi até o Hotel Leon, não foi com o objetivo de me matar?”
Truls engoliu em seco. Porra, esse Hole era capaz de matá-lo, era mesmo. Enfie uma bala na têmpora, limpe as impressões digitais da arma e coloque na mão da vítima. Nenhum sinal de arrombamento. Vigdis A poderia dizer que ela tinha visto ele voltar para casa sozinho, que ele parecia estar com frio. Solitário. Havia dito que estava doente. Deprimido.
“Quem eram os dois caras que apareceram? Homens de Rudolf?”
Truls assentiu. “Eles escaparam, mas eu coloquei uma bala em um deles.”
“O que aconteceu?”
Truls deu de ombros. “Suponho que eu sei demais.” Ele tentou uma risada, mas soou como uma tosse seca.
Eles ainda estavam sentados, olhando um para o outro.
“O que você está planejando fazer?”, Truls perguntou.
“Capturá-lo”, disse Hole.
Capturar. Fazia muito tempo que Truls não ouvia alguém usar essa palavra.
“Diga-me, ele vai ter muitas pessoas ao redor?”
“Três ou quatro, no máximo”, disse Truls. “Talvez apenas aqueles dois.”
“Hmm. Você tem algum outro equipamento?”
“Equipamento?”
“Além daqueles.” Hole acenou para a mesinha de café, onde estavam duas pistolas e uma metralhadora MP5, carregadas e prontas para disparar. “Vou algemá-lo e revistar o apartamento, portanto você poderia colaborar me mostrando o que você tem escondido por aí.”
Truls Berntsen pesou as opções. Então, acenou com a cabeça em direção ao quarto.
 
ole balançou a cabeça quando Truls abriu a porta do guarda-roupa e acendeu uma lâmpada fluorescente que lançou uma luz azulada sobre o conteúdo: seis pistolas, duas grandes facas, um cassetete preto, soqueiras, uma máscara de gás e uma arma antimotim, curta e troncuda com um tambor no meio com grandes cartuchos de gás lacrimogêneo. Truls tinha retirado a maior parte das armas do estoque da polícia, do depósito que eles mesmos admitiam que não conseguiam administrar direito.
“Você é maluco, Berntsen.”
“Por quê?”
Hole apontou. Truls havia martelado pregos na parede com o contorno de todas as armas. Tudo tinha o seu lugar.
“Colete à prova de bala num cabide de roupas? Com medo que vá ficar amassado?”
Truls Berntsen não respondeu.
“OK,” Hole disse, pegando o colete. “Quero a arma antimotim, a máscara de gás e munição para a MP5 que está na sala. E uma mochila.”
Hole ficou olhando enquanto Truls enchia a mochila. Depois voltaram para a sala, onde Harry pegou a MP5.
Depois foram até a porta.
“Eu sei o que você está pensando”, disse Harry. “Mas antes de fazer qualquer telefonema ou tentar me impedir de qualquer outra forma é bom você ter em mente que tudo o que eu sei sobre você e este caso foi reportado para um advogado. Ele foi instruído sobre como agir se alguma coisa acontecer comigo. Entendido?”
Mentiras, Truls pensou, e concordou com a cabeça.
Hole riu. “Está pensando que eu estou mentindo, não é. Mas você não pode ter cem por cento de certeza, não é?”
Truls sentia um ódio profundo por Hole. Odiava seu sorriso indiferente e paternalista.
“E o que vai acontecer se você sobreviver, Hole?”
“Então seus problemas acabaram. Eu vou embora, eu vou voar para o outro lado do globo. E eu não vou voltar. Uma última coisa...” Hole abotoou o casaco comprido sobre o colete à prova de bala. “Foi você quem excluiu Blindernveien 74 da lista que Bellman e eu recebemos, não foi?”
Truls Berntsen estava prestes a responder “não” automaticamente. Mas alguma coisa - uma intuição, um pensamento semidigerido - o deteve. A verdade era que ele nunca tinha descoberto onde Rudolf Asayev morava.
“Sim”, disse Truls Berntsen enquanto seu cérebro se agitava, absorvendo informações. Tentou analisar o que isso implicava. A lista que Bellman e eu recebemos. Tentou tirar uma conclusão. Mas ele não conseguia pensar rápido o suficiente, nunca tinha sido o seu forte, ele precisava de mais tempo.
“Sim”, ele repetiu, esperando que a sua surpresa não fosse óbvia. “Claro que fui eu quem apagou o endereço.”
“Vou deixar este rifle,” Harry disse, abrindo a câmara e retirando o cartucho. “Se eu não voltar, você deve entregar num escritório de advogados, Bach & Simonsen.”
Hole bateu a porta e Truls ouviu seus passos largos descendo as escadas. Esperou até ter certeza de que ele não voltaria. E então reagiu.
Hole não tinha visto o Märklin encostado na parede por trás da cortina ao lado da porta da varanda. Truls pegou o pesado rifle, escancarou a porta da varanda. Descansou o cano nas grades. Estava frio e chuvoso, mas o mais importante, quase não havia vento.
Ele viu Hole saindo do bloco lá embaixo, viu seu casaco batendo em volta dele enquanto trotava em direção ao táxi que estava esperando no estacionamento. Viu através das lunetas sensíveis à luz. Óptica alemã e engenharia de alta tecnologia. A imagem era granulada, mas focada. Ele poderia acertar Hole daqui sem dificuldades; a bala atravessaria da cabeça aos pés, ou - melhor ainda - sairia diretamente pelo seu equipamento reprodutor. Afinal de contas, a arma foi originalmente feita para caçar elefantes. Mas ele esperaria até Hole ficar debaixo de uma das lâmpadas dos postes no estacionamento porque desse modo o tiro seria ainda mais preciso. E isso seria muito prático; não havia muitas pessoas no estacionamento àquela hora e estaria mais perto quando Truls fosse arrastar o corpo para seu carro.
Orientou um advogado? Ele tinha culhões. Mas é claro que ele teria que avaliar se deveria elimina-lo também, por questões de segurança. Hans Christian Simonsen.
Hole estava se aproximando da luz. No pescoço. Ou na cabeça. O colete à prova de balas era do tipo alto, cobria todo o peito e costas. Pesado como o inferno. Ele pressionou o cão de volta. Uma voz interior baixa e quase inaudível lhe disse que não deveria fazer aquilo. Era assassinato. Truls Berntsen nunca tinha matado ninguém antes. Não deliberadamente. Tord Schultz? Não tinha sido ele, tinha sido um dos malditos cães de guarda de Rudolf Asayev. E Gusto? Sim, quem diabos tinha ferrado com Gusto? Não ele, de qualquer modo. Mikael Bellman. Isabelle Skøyen.

A vozinha se calou e a cruz da mira parecia estar colada na parte de trás da cabeça do Hole. Kapow! Ele já podia ver o spray. Pressionou o gatilho. Em dois segundos Hole estaria sob a luz. Pena que ele não podia filmar tudo isto. Gravar num DVD. Seria melhor do que Megan Fox, com ou sem rissoles Fjordland.

ruls Berntsen inspirou, profunda e lentamente. Seu pulso tinha subido, mas estava sob controle.
Harry Hole estava debaixo da luz. E enchia o visor da luneta.
Realmente era uma pena não poder filmar...
Truls Berntsen hesitou.
Raciocínio rápido nunca foi o seu forte. Não que ele fosse estúpido, mas de vez em quando as coisas simplesmente ficavam um pouco mais lentas.
Durante a infância e adolescência, isso é o que sempre fez a diferença entre ele e Mikael; Mikael era o cérebro e o orador. O ponto era que Truls também tinha chegado lá no final. Como agora. Com esse negócio do endereço ausente na lista. E com a pequena voz que lhe dizia para não atirar em Harry Hole, não agora. Matemática básica, Mikael teria dito. Hole estava nos calcanhares de Rudolf Asayev e Truls - nessa ordem, felizmente. Então, se Hole matasse Asayev ele iria pelo menos ter eliminado um dos problemas de Truls. E idem se Asayev matasse Hole. Por outro lado...
Harry Hole ainda estava na luz.
O dedo de Truls apertando o gatilho com uma leve pressão. Ele foi o segundo melhor atirador de rifle na Kripos, e o melhor atirador de pistola.
Esvaziou os pulmões. Seu corpo estava completamente relaxado, não iria cometer uma idiotice descontrolada. Ele inspirou novamente.
E abaixou o rifle.
 
lindernveien estava toda iluminada diante de Harry. Era como uma montanha russa através do terreno montanhoso cercado por casas antigas, grandes jardins, edifícios universitários e gramados.
Ele esperou até que as luzes do táxi desaparecessem na distância, em seguida começou a andar.
Faltavam quatro minutos para uma hora, e não havia uma alma à vista. Ele havia dito ao motorista para parar no número 68.
Blindernveien 74 ficava por trás de uma cerca de três metros de altura, e a cinquenta metros da rua. Ao lado da casa havia uma construção cilíndrica de tijolos medindo cerca de quatro metros de altura e de diâmetro, como uma torre de água. Harry nunca tinha visto tais torres de água na Noruega antes, mas notou que a casa vizinha também tinha uma. Realmente, um caminho de cascalho levava aos degraus da frente da casa de madeira imponente. Uma lâmpada solitária acesa estava pendurada acima da porta escura e provavelmente de madeira sólida.
Havia luz em duas das janelas do andar térreo e uma no primeiro.
Harry ficou na sombra de uma árvore de carvalho no lado oposto da rua. Tirou a mochila das costas e abriu-a. Preparou a arma antimotim e colocou a máscara de gás na cabeça de modo a só precisar abaixar sobre o rosto na hora H.
Ele esperava que a chuva pudesse ajudá-lo a chegar tão perto quanto precisava. Ele checou se a metralhadora MP5 estava carregada e se estava destravada.
Estava na hora.
Mas o anestésico estava perdendo efeito rapidamente.
Ele pegou a garrafa de Jim Beam, tirou a tampa. Havia somente um restinho no fundo da garrafa. Ele olhou para a casa novamente. Olhou para a garrafa. Se a coisa desse certo ele iria precisar de um gole depois. Ele fechou a tampa e enfiou a garrafa no bolso interno do casaco com o carregador extra para a MP5. Verificou se estava respirando normalmente, se o seu cérebro e músculos estavam recebendo oxigênio. Olhou para o relógio. Um minuto depois da uma. Dentro de 23 horas o avião estaria decolando. O avião dele e Rakel.
Ele respirou profundamente mais duas vezes. O portão provavelmente teria um alarme, mas ele estava muito sobrecarregado para passar por cima da cerca rapidamente, e não tinha vontade de ficar ali parado como um alvo vivo como acontecera na Madserud Allé.
Dois e meio, pensou Harry. Três.
Em seguida, ele foi até o portão, pressionou a maçaneta, abriu. Segurando a arma antimotim em uma das mãos, a MP5 na outra, ele começou a correr. Não pelo caminho de cascalho, mas pela grama. Ele correu para a janela da sala de estar. Como um oficial de polícia com suficiente experiência em detenções relâmpago sabia como o elemento surpresa era uma vantagem incrível. Não apenas a vantagem de poder atirar primeiro, mas também os efeitos do choque sob a forma de som e luz que poderiam levar um adversário à paralisia total. Mas ele conhecia a vida útil do elemento surpresa também. Quinze segundos. Ele reconheceu que era tudo que tinha. Se não conseguisse abate-los rapidamente, eles seriam capazes de se recuperar do choque, se reagrupar, contra atacar. Eles conheciam a casa; ele nunca tinha visto nem sequer a planta da casa.
Quatorze, treze.
A partir do momento que atirou dois cartuchos de gás na janela da sala de estar, que explodiu e tornou-se uma avalanche branca, foi como se o tempo tivesse parado e se transformado num filme de ação em que ele percebia que estava em movimento, seu corpo estava fazendo o que deveria, seu cérebro estava capturando meros fragmentos.
Doze.
Ele puxou a máscara de gás para baixo, jogou a arma antimotim pela janela na sala de estar, varreu os cacos de vidro maiores na janela com a MP5, colocou a mochila sobre o peitoril e pôs as mãos sobre ela, levantou um pé bem alto e balançou-se em meio à fumaça branca esvoaçante que vinha na direção dele. O colete à prova de balas, de chumbo, tornava os movimentos mais difíceis, mas uma vez que  estava lá dentro era como voar dentro de uma nuvem. Ele ouviu tiros sendo disparados e atirou-se ao chão.
Oito.
Mais tiros. O som seco do piso de parquet sendo estraçalhado. Eles não tinham ficado paralisados. Ele esperou. Em seguida, ele ouviu. Tosse. Do tipo que você era incapaz de conter com o gás lacrimogêneo ardendo nos olhos, nariz e pulmões.
Cinco.
Harry ergueu a MP5 e disparou na direção do som no meio da névoa cinza e branca. Passos curtos, bruscos. Passos do tipo correndo-escada-acima.
Três.
Harry levantou-se e correu.
Dois.
No primeiro andar, não havia fumaça. Se o fugitivo conseguisse escapar as chances de Harry ficariam dramaticamente piores.
Um, zero.
Harry podia discernir o contorno de uma escada, depois o corrimão gradeado. Ele passou a MP5 entre as frestas, virou-a para o lado e para cima. Apertou o gatilho. A arma balançou na sua mão, mas ele segurou firme. Esvaziou o carregador. Puxou a metralhadora para trás, soltou o carregador enquanto sua outra mão procurava no bolso do casaco pelo outro. Encontrou apenas a garrafa. Ele tinha perdido o carregador de reposição enquanto estava deitado no chão! Os outros ainda estavam na mochila no peitoril da janela.
Harry sabia que ele estava morto quando ouviu os passos na escada. Descendo. Lentos, hesitantes. Em seguida, mais rápidos. Em seguida, correndo para baixo. Harry viu uma figura saindo da névoa. Um fantasma cambaleando vestindo camisa branca e terno preto. Ele bateu no corrimão, dobrou-se ao meio e deslizou sem vida até o patamar da escada. Harry viu as bordas desgastadas das feridas na parte de trás do terno onde as balas tinham entrado. Foi até o corpo, agarrou a franja e levantou a cabeça. Sentiu sensações de asfixia e teve que lutar contra o impulso de tirar a máscara de gás.
Uma bala tinha rasgado metade do nariz quando saiu. No entanto, Harry ainda o reconheceu. O cara mais baixo na porta do quarto no Hotel Leon. O homem que havia atirado nele do carro na Madserud Allé.
Harry escutou. Silêncio total, exceto pelo silvo dos cartuchos de gás lacrimogêneo que ainda jorravam fumaça branca. Ele voltou até a janela da sala de estar, encontrou a mochila, inseriu um novo carregador na MP5 e enfiou outro sob o colete à prova de balas. Só agora ele sentiu o suor escorrendo pelo lado de dentro.
Onde estava o cara mais alto? E onde estava Dubai? Harry ouviu novamente. O silvo do gás. Mas ele não tinha ouvido passos no andar de cima?
Através do gás ele vislumbrou outro quarto e uma porta aberta que conduzia à cozinha. Apenas uma porta fechada. Ele ficou de pé ao lado da porta, abriu-a, enfiou a arma antimotim para dentro e disparou duas vezes. Fechou a porta e esperou. Contou até dez. Abriu e entrou.
Vazia. Através da fumaça ele identificou estantes, uma poltrona de couro preto e uma grande lareira. Acima dele estava pendurado um quadro de um homem vestindo um uniforme da Gestapo. Seria uma antiga casa nazista? Harry sabia que Karl Marthinsen, o líder norueguês da milícia nazista morou numa casa confiscada em Blindernveien, onde terminou seus dias crivado de balas diante do prédio da Faculdade de Ciências.
Harry refez seus passos, passou pela cozinha, pela porta traseira para o quarto de empregada típico da época, e encontrou o que estava procurando, a escada dos fundos.
Normalmente, estas escadas também serviam como escada de incêndio, mas estas não terminavam numa porta externa, muito pelo contrário, elas continuavam até um porão; o que tinha sido no passado uma porta dos fundos havia sido emparedada.
Harry verificou que ainda restava um cartucho de gás na arma e subiu as escadas em passos largos e silenciosos. Disparou o último cartucho para o corredor, contou até dez e seguiu adiante. Abriu as portas, com dores lancinantes na garganta, mas ainda conseguia se concentrar. Exceto pela primeira porta, que estava trancada, todos os quartos estavam vazios. Dois dos quartos pareciam estar em uso. A cama em um deles estava sem lençóis, e Harry podia ver que o colchão estava escuro, como se estivesse encharcado de sangue. Na mesa de cabeceira do segundo quarto havia uma Bíblia. Harry abriu. Letras cirílicas. Russa Ortodoxa. Ao lado, um zjuk preparado. Um tijolo vermelho, com seis pregos. Exatamente a mesma espessura da Bíblia.
Harry voltou para a porta trancada. O suor dentro da máscara tinha embaçado o vidro. Ele encostou-se à parede oposta, levantou o pé e chutou a fechadura. A porta rachou no quarto chute. Harry se agachou e atirou uma rajada no quarto, ouviu o tilintar de vidro. Esperou até que a fumaça do corredor entrasse no quarto. Entrou. Encontrou o interruptor de luz.
O quarto era maior do que os outros. A cama de dossel disposta ao longo da parede estava desfeita. Um anel com uma pedra azul brilhava sobre a mesa de cabeceira.
Harry colocou a mão debaixo do edredom. Ainda quente.
Ele olhou em volta. Quem quer que estivesse deitado nesta cama podia naturalmente ter saído do quarto e trancado a porta atrás de si. Só que a chave estava do lado de dentro. Harry verificou a janela: fechada e travada. Ele examinou o guarda-roupa sólido e imponente. Abriu as portas.
À primeira vista, era um guarda-roupa normal. Ele pressionou a parede traseira. E ela se abriu.
Uma passagem de fuga. Meticulosidade alemã.
Harry empurrou as camisas e paletós para o lado e enfiou a cabeça através do painel falso. Uma rajada de ar frio bateu no seu rosto. Um poço. Harry tateou. Barras de ferro tinham sido fixadas na parede como se fossem uma escada de mão. Tinham que levar até o porão. Uma imagem tremulou através de seu cérebro, um fragmento de um sonho. Ele reprimiu a imagem, tirou a máscara de gás e passou através da parede falsa. Seus pés encontraram os degraus, e quando começou a descer cuidadosamente e seu rosto estava ao nível do piso do guarda-roupa ele viu algo ali. Tinha a forma de U, feito de algodão engomado. Harry colocou-o no bolso do casaco e continuou descendo na escuridão. Ele contou os degraus. Depois de vinte e dois um pé tocou em terra firme. Mas, quando estava prestes a abaixar o outro pé, a terra já não tão firme se moveu. Ele perdeu o equilíbrio, mas sua queda foi suave.
Suspeitamente suave.
Harry ficou imóvel e escutou. Então pegou o isqueiro no bolso da calça. Acendeu e deixou aceso por dois segundos. Apagou. Já tinha visto o suficiente.
Ele estava deitado em cima de um homem.
Um homem extraordinariamente grande e nu. Com a pele tão fria quanto o mármore e a palidez azul típica de cadáveres recentes.
Harry afastou-se do corpo e caminhou pelo piso de concreto até uma porta de bunker que havia notado. Com o isqueiro aceso ele era um alvo; com mais luz todos seriam um alvo. Ele segurou a MP5 com mão firme enquanto acionava o interruptor com a mão esquerda.
Uma linha de lâmpadas se acendeu. Elas iluminavam um túnel baixo e estreito.
Harry percebeu que ele e o homem nu estavam sozinhos. Olhou para o corpo. Ele estava sobre um tapete no chão e tinha um curativo manchado de sangue em volta do estômago. No peito uma tatuagem da Virgem Maria olhava para ele. Simbolizando, como Harry já sabia, que o portador tinha sido um criminoso desde a infância. Como não havia outros sinais visíveis de lesão Harry assumiu que a ferida sob a bandagem era a causa da morte, e com toda a probabilidade causada por uma bala da Steyr de Truls Berntsen.
Harry pressionou os dedos contra a porta do bunker. Trancada. A parede do fundo do túnel era uma placa de metal selada na parede. Rudolf Asayev tinha, em outras palavras, apenas uma saída. O túnel. E Harry sabia por que havia tentado todas as outras saídas primeiro. O sonho.
Ele olhou para o túnel estreito.
Claustrofobia é contraproducente, dá sinais falsos de perigo, é algo que tem de ser combatido. Ele conferiu se o carregador estava encaixado corretamente na MP5. Dane-se. Fantasmas só existem se você permite que existam.
E seguiu em frente.
O túnel era ainda mais estreito do que imaginava. Ele se abaixou, mas mesmo assim batia a cabeça e os ombros no teto e nas paredes cobertas de musgo. Ele tentou manter seu cérebro ativo de modo a não dar espaço para a claustrofobia. E pensou que isto devia ter sido uma passagem de fuga que os alemães haviam usado; com o mesmo formato de barril da porta de trás. A força do hábito garantiu que ele conseguisse se orientar e, a menos que estivesse muito enganado estava indo para a casa vizinha com uma torre de água idêntica. O túnel tinha sido construído com cuidado meticuloso; havia até mesmo vários drenos no chão. Estranho que os alemães, tão experientes, tivessem construído um túnel tão estreito. Quando formulou a palavra 'Estreito', a claustrofobia se apoderou dele. Concentrou-se em contar seus passos, tentando visualizar onde ele poderia estar em relação à superfície. Na colina, do lado de fora, livre, respirando ar fresco. Conte, conte pelo amor de deus. Quando chegou a 110 viu uma linha branca no chão embaixo dele. Ele podia ver que mais adiante não tinha mais lâmpadas e quando se virou percebeu que a linha no chão devia marcar o meio do túnel. Levando em conta os pequenos passos que foi forçado a dar ele estimou que a distância que tinha percorrido devia ser entre sessenta e setenta metros. Logo chegaria lá. Tentou acelerar o passo, arrastando os pés debaixo dele como um homem velho. Ouviu um clique e olhou para baixo. Veio de um dos drenos. As barras se moveram até se sobreporem, como as saídas de ar internas num carro. E naquele momento ele ouviu um barulho diferente, um forte estrondo atrás dele. Ele se virou.

Ele podia ver o brilho de luz no metal. Era a placa de metal que tinha sido cravada no interior da extremidade do corredor, tinha se movido. Escorregou para o chão, e esse movimento foi o que provocou o barulho. Harry parou e segurou sua metralhadora em riste. Ele não podia ver o que havia por trás da placa, estava muito escuro. Mas então algo brilhou, como a luz do sol refletindo no fiorde de Oslo numa bela tarde de outono. Houve um momento de silêncio total. O coração de Harry estava batendo loucamente. O homem da Boina estava deitado no meio do túnel e havia se afogado. As torres de água. O túnel subdimensionado. O musgo no teto que não era musgo mas algas. Então ele viu a parede chegando. Esverdeado escuro com bordas brancas. Ele se virou para correr. E viu uma parede semelhante vindo na direção dele do outro lado.

ra como estar entre duas locomotivas que se aproximavam. A parede de água da frente bateu nele primeiro. Jogou-o de costas, e ele sentiu sua cabeça bater no chão. Em seguida, ele foi envolvido pelo turbilhão e girou para a frente. Ele se debateu desesperadamente, seus dedos e joelhos raspando contra a parede, tentando agarrar-se a alguma coisa, mas ele não tinha nenhuma chance contra as forças ao seu redor. Então, tão rapidamente como tinha começado, terminou. Ele podia sentir os movimentos da água enquanto as duas correntezas se neutralizavam. E viu algo nas suas costas. Dois braços brancos com um brilho verde abraçaram Harry por trás, dedos lívidos acariciaram seu rosto. Harry bateu os pés, se virou e viu o corpo com a bandagem em volta do estômago girando na água escura como um astronauta nu, sem peso. Boca aberta, cabelo e barba se agitando lentamente. Harry colocou os pés no chão e se esticou até o teto. Havia água até o topo. Ele se agachou, vislumbrou a MP5 e a linha branca no chão debaixo dele quando deu suas primeiras braçadas. Ele havia perdido seu senso de orientação até que o corpo lhe disse em qual direção devia nadar para retornar para o lugar de onde tinha vindo. Harry nadou com o seu corpo em diagonal às paredes, desse modo ele encontrava maior espaço para as braçadas, se esforçando ao máximo, obrigando-se a não pensar em outra coisa. Flutuabilidade não era um problema, muito pelo contrário, o colete à prova de balas estava arrastando-o para baixo. Harry considerou se deveria gastar algum tempo tirando o casaco que estava flutuando acima dele e criando mais resistência. Ele tentou se concentrar no que tinha que fazer, nadar de volta para o poço, não contar os segundos, não contar os metros. Mas já podia sentir a pressão na cabeça, como se ela fosse explodir. E, em seguida, um pensamento surgiu, apesar de tudo. Verão, uma piscina externa de cinquenta metros. De manhã cedo, quase ninguém ao redor, luz do sol, Rakel com um biquíni amarelo. Oleg e Harry iam disputar quem conseguia nadar mais longe debaixo d’água. Oleg estava em forma após a temporada de patinação no gelo, mas a técnica de natação de Harry era melhor. Rakel aplaudia e ria sua risada maravilhosa enquanto eles se aqueciam. Ambos se exibiam para ela - ela era a rainha do Frogner Lido e Oleg e Harry seus súditos buscando o favor de um olhar seu. Então eles começaram. E foi um empate. Depois de quarenta metros ambos romperam a superfície, ofegantes e certos de que tinham ganhado. Quarenta metros. Dez metros para o fim da piscina. Com a parede da piscina para dar o impulso inicial e espaço irrestrito para movimentar os braços. Pouco mais do que metade da distância até a extremidade do poço. Ele não tinha esperanças. Ele ia morrer aqui. Ele ia morrer agora, em breve. Parecia que seus olhos estavam sendo espremidos para fora da cabeça. O avião saía à meia-noite. Biquíni amarelo. Dez metros até o fim. Ele deu outra braçada. Conseguiria dar mais uma. Mas, em seguida, iria morrer.
 
ram três e meia da manhã. Truls Berntsen estava dirigindo pelas ruas de Oslo com a garoa sussurrando e murmurando contra o para-brisa. Ele estava dirigindo há duas horas. Não porque estivesse procurando por algo, mas porque lhe dava calma. Calma para pensar e calma para não pensar.
Alguém tinha excluído um endereço da lista que tinham dado para Harry Hole. E não tinha sido ele.
Talvez nem tudo fosse tão óbvio como tinha acreditado.
Ele repassou a noite do crime mais uma vez.
Gusto tinha aparecido no seu apartamento, tão desesperado por uma dose que estava tremendo, e ameaçou entregá-lo a menos que Truls desse algum dinheiro para comprar violino. Por alguma razão o violino estava em falta há várias semanas, houve pânico em Needle Park, e um quarto custava três mil, pelo menos. Truls tinha dito que precisaria ir até um caixa eletrônico, ele só tinha que buscar as chaves do carro. Ele tinha levado sua pistola Steyr; não havia dúvidas de que teria de ser feito. Gusto usaria a mesma ameaça novamente e novamente. Viciados são bastante previsíveis. Mas quando retornou o garoto tinha sumido. Presumivelmente porque teve um pressentimento. É justo, Truls tinha pensado. Gusto não iria dedurar uma vez que não tinha nada a ganhar com isso, e afinal de contas ele tinha participado do roubo também. Era um sábado, e Truls estava no que era conhecido como plantão reserva, o que significava que ele eventualmente poderia ser chamado para uma ocorrência, mas não tinha que ficar na delegacia, então tinha ido para o Watchtower, ler um pouco, observar Martine Eckhoff e beber café. Então, ele tinha ouvido as sirenes e alguns segundos depois, seu celular tocou. Era a Central de Operações. Alguém tinha ligado para dizer que estavam atirando na Hausmanns Gate 92, e eles não tinham ninguém da Brigada Criminal de plantão. Truls tinha corrido até lá, ficava há apenas algumas centenas de metros do Watchtower. Todos os seus instintos policiais estavam em alerta, ele havia observado as pessoas que passavam pelo seu caminho, com pleno conhecimento de que suas observações poderiam ser importantes. Uma pessoa chamou sua atenção, era um jovem com um gorro de lã, inclinado contra uma casa. O jovem tinha sua atenção fixa no carro de polícia estacionado junto ao portão do endereço da cena do crime. Truls tinha notado o jovem porque ele não gostou da maneira como suas mãos estavam enterradas nos bolsos da jaqueta North Face. Ela  era muito grande e muito grossa para aquela época do ano, e os bolsos poderiam estar ocultado todos os tipos de coisas. O jovem estava com uma expressão séria no rosto, mas não se parecia com um vendedor de drogas. Quando a polícia estava trazendo Oleg Fauke do rio para o carro patrulha o jovem tinha virado as costas e seguido pela Hausmanns Gate.
Agora Truls provavelmente poderia se lembrar de mais dez pessoas que ele havia observado em torno da cena do crime e desenvolver teorias para eles. A razão pela qual se lembrava deste em especial era porque ele tinha visto aquele jovem novamente. Na foto de família que Harry Hole lhe mostrou no Hotel Leon.
Hole tinha perguntado se ele reconhecia Irene Hanssen, e ele tinha respondido - sinceramente - não. Mas ele não contara para Hole quem ele tinha reconhecido na foto. Gusto é claro. Mas havia outra pessoa. O outro garoto. O irmão adotivo de Gusto. Com a mesma expressão séria. O jovem que tinha visto na cena do crime.
Truls estacionou na Prinsens Gate, um pouco abaixo do Hotel Leon.
O rádio da polícia estava ligado, e, finalmente, ouviu a mensagem da Central de Operações que estava esperando.
“Zero Um. Nós estamos checando a denuncia sobre o barulho na Blindernveien. Parece que houve uma batalha aqui. Gás lacrimogêneo e sinais de um tiroteio dos infernos. Arma automática, não há dúvidas sobre isso. Um homem morto a tiros. Nós fomos até o porão, mas está cheio de água. Acho que é melhor chamar a Delta para verificar o primeiro andar.”
“Você pode esclarecer se ainda há alguém vivo?”
“Venha e verifique você mesmo! Você não ouviu o que eu disse? Gás e uma arma automática!”
“OK, OK. O que você quer?”
“Quatro carros de patrulha para proteger a área. Delta, a equipe da perícia e talvez um encanador.”
Truls Berntsen abaixou o volume. Ouviu o guincho dos freios de um carro, viu um homem alto atravessar a rua na frente do carro. O motorista, furioso, apertou a buzina, mas o homem não percebeu, apenas caminhou na direção do Leon Hotel.
Truls Berntsen apertou os olhos.
Seria ele realmente? Harry Hole?
A cabeça do homem estava curvada contra o peito entre os ombros de um casaco gasto. Foi só quando ele virou a cabeça e o rosto foi iluminado pela lâmpada da rua que Truls viu que estava enganado. Havia algo familiar nele, mas não era Hole.
Truls recostou-se no assento. Agora ele sabia. Quem havia vencido. Ele olhou para a sua cidade. Porque ela era sua agora. Sobre o teto do carro a chuva sussurrava que Harry Hole estava morto, e torrentes de lágrimas escorriam pelo para-brisas.
 
s duas da madrugada, geralmente, a maioria das pessoas tinha bebido ou transado o suficiente e já estavam em casa, e até o Hotel Leon estava mais tranquilo. O rapaz na recepção mal levantou a cabeça quando o pastor entrou. A água da chuva escorria pelos seus cabelos e casaco. Ele costumava perguntar para Cato o que ele tinha feito para chegar naquele estado, no meio da madrugada, após uma ausência de vários dias. Mas as respostas que recebia eram sempre tão exaustivamente longas, intensas e detalhadas sobre a miséria dos outros que ele tinha deixado de perguntar. Mas esta noite Cato parecia mais cansado do que o normal.
“Noite difícil?”, perguntou, esperando por um ‘sim’ ou um ‘não’.
“Ah, você sabe,” o velho disse com um sorriso pálido. “Humanidade. Humanidade. Eu quase fui morto há pouco.”
“Sério?”, disse o rapaz e se lamentou por ter perguntado. Era quase certeza que uma longa explicação estava a caminho.
“Um carro quase me atropelou”, disse Cato, continuando a subir as escadas.
O rapaz suspirou com alívio e se concentrou na leitura do The Phantom novamente.
O velho colocou a chave na porta e girou. Mas, para sua surpresa, descobriu que já estava aberta.
Entrou. Acendeu a luz, mas a lâmpada do teto não se acendeu. Viu que a luminária na mesinha estava acesa. O homem sentado na cama era alto, estava inclinado para a frente e vestia um casaco longo, como ele. A água pingava do casaco no chão. Eles não poderiam ser mais diferentes, entretanto, o velho homem  se assustou e percebeu pela primeira vez: era como se olhar no espelho.
“O que você está fazendo aqui?”, sussurrou.
“É claro que eu invadi seu quarto”, disse o outro homem. “Para ver se você tinha alguma coisa de valor.”
“Será que você encontrou alguma coisa?”
“De valor? Não. Mas eu encontrei isto.”
O velho pegou o que o outro atirou para ele. Segurou entre os dedos. Balançou a cabeça lentamente. Era feito de algodão engomado, em forma de U. Não estava tão branco quanto deveria estar.
“Então você encontrou isso no meu quarto?”, o velho perguntou.
“Sim, no seu quarto. No guarda-roupa. Coloque.”
“Por quê?”
“Porque eu quero confessar os meus pecados. E porque você parece estar nu sem ele.”
Cato olhou para o homem sentado na cama, curvado. Água escorria do seu cabelo, pela cicatriz do rosto até seu queixo. De lá, pingava no chão. Ele tinha colocado a única cadeira no meio do quarto. A cadeira confessional. Sobre a mesinha havia um pacote fechado de Camel e ao lado dele um isqueiro e um cigarro quebrado, tudo encharcado.
“Como você quiser, Harry.” Em norueguês.
Sentou-se e desabotoou o casaco e empurrou o colar clerical em forma de U nas fendas da camisa de padre. O outro homem se encolheu quando ele colocou a mão no bolso do paletó.
“Cigarros”, disse o velho. “Para nós. Parece que os seus se afogaram.”
O policial acenou com a cabeça e o velho tirou sua mão com um maço aberto.
“Você fala norueguês muito bem.”
“Um pouquinho melhor do que o sueco. Mas como você é norueguês não consegue perceber o sotaque quando falo sueco.”
Harry pegou um dos cigarros pretos. Avaliou.
“Você quer dizer o sotaque russo, não é?”
“Sobranie, o famoso cigarro russo preto”, disse o velho. “Os únicos cigarros decentes encontrados na Rússia. Produzido na Ucrânia agora. Eu costumo roubá-los de Andrey. Falando de Andrey, como ele está?”
“Mal”, o policial disse, permitindo que o homem velho acendesse o cigarro para ele.
“Sinto muito por ouvir isso. Falando nisso, você deveria estar morto, Harry. Eu sei que você estava no túnel quando abri as comportas.”
“Eu estava.”
“As comportas se abriram ao mesmo tempo e as torres de água estavam cheias. Você deveria ter sido atingido no meio.”
“Eu fui.”
“Então eu não entendo. A maioria entra em pânico e se afoga ali mesmo.”
O policial exalou a fumaça por um canto da boca. “Como os combatentes da Resistência que foram atrás do chefe da Gestapo?”
“Eu não sei se eles chegaram a testar sua armadilha durante uma fuga real.”
“Mas você usou. Com o policial disfarçado.”
“Ele era como você, Harry. Homens que pensam que têm uma vocação são perigosos. Tanto para si como para os que estão ao seu redor. Você deveria ter se afogado como ele.”
“Mas como você pode ver, eu ainda estou aqui.”
“Eu ainda não entendo como isso foi possível. Você está dizendo que quando foi atingido pela água você ainda tinha ar suficiente nos pulmões para nadar por oitenta metros de água gelada através de um túnel estreito, totalmente vestido?”
“Não.”
“Não?” O velho sorriu. Ele parecia genuinamente curioso.
“Não, eu tinha muito pouco ar nos pulmões. Mas eu tinha o suficiente para quarenta metros.”
“E depois?”
“Então eu fui salvo.”
“Salvo? Por quem?”
“Pelo homem que você disse que, lá no fundo, era bom.” Harry levantou a garrafa vazia. “Jim Beam.”
“Você foi salvo pelo uísque?”
“Por uma garrafa de uísque.”
“Uma garrafa vazia de uísque?”
“Ao contrário, uma garrafa cheia.”
Harry colocou o cigarro no canto da boca, tirou a tampa, segurou a garrafa acima da cabeça.
“Cheia de ar.”
O velho olhou com incredulidade. “Você...?”
“O maior problema depois de esvaziar meus pulmões dentro da água foi colocar minha boca na garrafa, incliná-la de modo que o pescoço estivesse apontando para cima, para que pudesse aspirar. É como mergulhar pela primeira vez. O seu corpo protesta. Porque o seu corpo tem um conhecimento limitado da física e acha que vai sugar água e se afogar. Você sabia que os pulmões comportam quatro litros de ar? Bem, uma garrafa inteira de ar e um pouco de determinação foram o suficiente para nadar mais quarenta metros.” O policial colocou a garrafa na mesinha, tirou o cigarro e olhou para ele com ceticismo. “Os alemães deveriam ter feito um túnel um pouco mais comprido.”
Harry observou o velho. Viu o rosto franzido do velho se expandir. Ouvi-o rir. Parecia o chug-chug de um barco.
“Eu sabia que você era diferente, Harry. Eles me disseram que você voltaria para Oslo assim que ouvisse falar sobre Oleg. Então eu fiz algumas perguntas. E agora eu tenho certeza que os rumores não eram exagerados.”
“Bem,” disse Harry, mantendo um olho nas mãos unidas do padre. Sentado na beirada da cama com os dois pés no chão, pronto para o bote, por assim dizer, com tanto peso nos dedos do pé que podia sentir o fino fio de nylon debaixo do seu sapato. “E quanto a você, Rudolf? Será que no seu caso os rumores são exagerados?”
“Quais?”
“Bem, por exemplo, aqueles que dizem que você montou uma rede de heroína em Gothemburg e matou um policial por lá.”
“Parece que sou eu quem tem vai confessar e não você, hein?”
“Pensei que seria bom para você desabafar seus pecados com Jesus antes de morrer.”
Mais risadas chug-chug. “Boa, Harry! Boa! Sim, tivemos de eliminá-lo. Ele era o nosso queimador, e eu tinha a sensação de que ele não era confiável. E eu não podia voltar para a prisão. Nas prisões existe uma umidade envelhecida que corrói a alma, do mesmo jeito que o bolor come as paredes. A cada dia tira mais um pedaço. Seu lado humano é consumido, Harry. É algo que eu só desejo ao meu pior inimigo.” Ele olhou para Harry. “Um inimigo que eu odiasse mais do que tudo.”
“Você sabe por que eu voltei para Oslo. Qual foi o seu motivo? Eu pensei que a Suécia era um mercado tão bom quanto a Noruega.”
“O mesmo que você, Harry.”
“O mesmo?”
Rudolf Asayev deu uma tragada no cigarro preto antes de responder. “Esqueça. A polícia estava nos meus calcanhares após o assassinato. E é estranho o quão longe você está da Suécia aqui na Noruega, apesar da proximidade.”
“E quando voltou você se tornou o misterioso Dubai. O homem que ninguém tinha visto. Mas que pensam que assombra a cidade à noite. O fantasma de Kvadraturen.”
“Eu tinha que ficar escondido. Não só por causa dos negócios, mas porque o nome Rudolf Asayev traria de volta memórias ruins para a polícia.”
“Nos anos setenta e oitenta,” disse Harry, “viciados em heroína morriam como moscas. Mas talvez você os tenha incluido nas suas orações, não é Pastor?”
O velho deu de ombros. “Não se julga as pessoas que produzem carros desportivos, paraquedas, base-jumping, armas ou outros bens que as pessoas compram para se divertir, mas que podem enviá-los para a morte. Eu entrego algo que as pessoas querem, de qualidade e com um preço que me faz ser competitivo. O que os clientes fazem com os produtos é com eles. Você está ciente, não está, que há cidadãos em pleno funcionamento que tomam opiáceos?”
“Sim, eu era um deles. A diferença entre você e um fabricante de carros esportivos é que o que você faz é proibido por lei.”
“É importante não misturar direito e moral, Harry.”
“Então você acha que o seu Deus vai perdoar você, não é?”
O velho apoiou o queixo na mão. Harry podia perceber que ele estava exausto, mas também sabia que poderia ser falso, e observava seus movimentos com cuidado.
“Eu ouvi dizer que você era um policial zeloso e um moralista, Harry. Oleg falou sobre você para Gusto. Você sabia? Oleg te amava como um pai gostaria que um filho pudesse amá-lo. Moralistas zelosos e pais com necessidade de amor como nós têm um enorme dinamismo. Nosso ponto fraco é que somos previsíveis. Era apenas uma questão de tempo antes de você chegar. Nós temos um contato em Gardermoen, que vê as listas de passageiros. Nós sabíamos que você estava vindo, mesmo antes de se sentar no avião em Hong Kong.”
“Hmm. Foi o queimador, Truls Berntsen?”
O velho sorriu como resposta.
“E Isabelle Skøyen na Câmara Municipal? Você trabalha com ela também?”
O velho deu um suspiro pesado. “Você sabe que eu vou levar as respostas comigo para o túmulo. Fico feliz por morrer como um cão, mas não como um informante.”
“Bem,” Harry disse, “o que aconteceu depois?”
“Andrey te seguiu desde o aeroporto até o Hotel Leon. Eu fico em uma variedade de hotéis semelhantes quando estou em circulação como Cato, e o Leon é um lugar onde eu fico muito. Então no dia seguinte fui até você.”
“Por quê?”
“Para ver o que você estava fazendo. Eu queria ver se você estava chegando perto de nós.”
“Como você fez quando o Homem da Boina esteve aqui?”
O velho acenou com a cabeça. “Eu sabia que você podia ser perigoso, Harry. Mas eu gostei de você. Então, eu tentei dar-lhe algumas advertências amigáveis.” Suspirou. “Mas você não me deu ouvidos. Claro que não. Pessoas como você e eu não fazem isso, Harry. É por isso que somos bem sucedidos. E também é por isso que  um dia cometemos uma falha no final.”
“Hmm. Do que você estava com medo que eu pudesse fazer? Persuadir Oleg a abrir o bico?”
“Isso também. Oleg nunca me viu, mas eu não tinha como saber o que Gusto lhe dissera. Gusto era, é triste dizer, não confiável, especialmente depois que começou a usar violino.” Havia algo nos olhos do velho que Harry percebeu com surpresa que não era o resultado de cansaço. Era dor. Uma dor verdadeira, não fingida.
“Então, quando você pensou que Oleg poderia querer falar comigo você tentou matá-lo. E quando isso não funcionou, você se ofereceu para me ajudar. Assim eu poderia levá-lo até Oleg.”
O velho balançou a cabeça lentamente. “Não é pessoal, Harry. Essas são as regras neste setor. As ervas daninhas são eliminadas. Mas você sabia disso, não é?”
“Sim, eu sabia. Mas isso não significa que eu não vou deixar de matar você porque você seguiu suas regras.”
“Então por que você não faz isso já? Tem medo? Medo de queimar no inferno, Harry?”
Harry apagou o cigarro sobre a mesinha. “Porque eu quero saber algumas coisas antes. Por que você matou Gusto? Você estava com medo que ele pudesse passar informações sobre você?”
O velho acariciou o cabelo branco, colocando-o atrás das orelhas de Dumbo. “Gusto tinha sangue ruim correndo nas veias, assim como eu. Ele era um informante por natureza. Ele já teria me denunciado antes, tudo o que estava faltando era algo a ganhar. Mas então ele ficou desesperado. Era o desejo de violino. É pura química. A carne é mais forte do que o espírito. Todos nós enfraquecemos diante do desejo.”
“Sim”, disse Harry. “Todos nós enfraquecemos.”
“Eu...” o velho tossiu. “Eu tive que deixá-lo ir.”
“Ir?”
“Sim. Ir. Sumir. Desaparecer. Eu não podia deixá-lo assumir os negócios, eu descobri isso. Ele era inteligente o suficiente, ele tinha herdado isso do pai. O que lhe faltava era a força de caráter. Ele herdou essa deficiência da mãe. Eu tentei dar-lhe responsabilidade, mas ele falhou no teste.” O velho continuou acariciando seu cabelo para trás, cada vez mais forte, como se estivesse sujo e ele tentando limpar. “Não passou no teste. Sangue ruim. Então eu decidi que teria de ser outra pessoa. No começo eu pensei em Andrey e Peter. Cossacos siberianos de Omsk. Cossaco significa ‘homem livre’. Você sabia disso? Andrey e Peter eram meu regimento, meu stanitsa. Eles são leais ao seu ataman, fieis até a morte. Mas Andrey e Peter não eram homens de negócios, entende?” Harry notou as gesticulações do velho, como se imerso em seus próprios devaneios. “Eu não poderia deixar a loja para eles. Então eu decidi que teria de ser Sergey. Ele era jovem, tinha o futuro pela frente, poderia ser moldado...”
“Uma vez você me disse que pode ter tido um filho.”
“Sergey podia não ter a cabeça de Gusto para números, mas era disciplinado. Ambicioso. Disposto a fazer o que fosse necessário para ser um ataman. Então eu dei-lhe a faca. Só faltava um teste. Nos velhos tempos, para um cossaco poder se tornar um ataman, ele tinha que ir até a Taiga e voltar com um lobo vivo, amarrado. Sergey estava disposto, mas eu tinha que ver se ele também poderia cumprir o chto nuzhno.”
“Perdão?”
“O necessário.”
“O filho era Gusto?”
O velho acariciou o cabelo para trás com tanta força que seus olhos se estreitaram até formarem duas fendas.
“Gusto tinha seis meses quando fui enviado para a prisão. Sua mãe procurou consolo onde podia. Conseguiu, pelo menos por um tempo. Ela não estava em condições de cuidar dele.”
“Heroína?”
“Os Serviços Sociais tiraram Gusto dela e providenciaram pais adotivos. Eles decidiram que eu, o prisioneiro, não existia. Ela teve uma overdose no inverno seguinte. Ela deveria ter feito isso antes.”
“Você disse que voltou para Oslo, pela mesma razão que eu. Seu filho.”
“Eu soube que ele havia se afastado da sua família adotiva, ele tinha se desviado do caminho do bem. Eu estava pensando em deixar a Suécia de qualquer maneira, e a competição em Oslo não era muito forte. Eu descobri onde Gusto estava vivendo. Estudei-o de longe primeiro. Ele era tão bonito. Tão danado de bonito. Como sua mãe, claro. Eu poderia apenas ficar sentado olhando para ele. Olhando e olhando, e pensando que ele era meu filho, meu próprio...” A voz do velho engasgou.
Harry olhou para os seus pés, para o fio de nylon que lhe deram em vez de um novo varão para a cortina, apertou-o no chão com a sola do sapato.
“E então você levou-o para o seu negócio. E ele foi testado para ver se poderia assumir.”
O velho acenou com a cabeça. Sussurrou: “Mas eu nunca disse nada. Quando morreu ele não sabia que eu era seu pai.”
“Por que a pressa repentina?”
“Pressa?”
“Por que você precisava ter alguém para assumir tão rapidamente? Primeiro Gusto, em seguida, Sergey.”
O velho esboçou um sorriso cansado. Inclinou-se na cadeira, para a luz da lâmpada de leitura na mesinha.
“Estou doente.”
“Hmm. Pensei que fosse algo assim. Câncer?”
“Os médicos me deram um ano. Seis meses atrás. A faca sagrada usada por Sergey estava deitada debaixo do meu colchão. Você sente alguma dor na ferida? É o meu sofrimento que a faca transmitiu para você, Harry.”
Harry balançou a cabeça lentamente. Pode ser que sim. Pode ser que não.
“Se você tinha apenas alguns meses de vida por que estava com tanto medo de ser denunciado, que chegou ao ponto de matar o seu próprio filho? A longa vida dele pela sua vida curta?”
O velho tossiu abafado. “Urkas e cossacos são homens simples do regimento, Harry. Nós juramos fidelidade a um código, e nós cumprimos. Não cegamente, mas com os olhos abertos. Somos treinados para disciplinar os nossos sentimentos. Isso nos faz senhores de nossas próprias vidas. Abraão concordou em sacrificar seu filho porque...”
“...foi a ordem de Deus. Eu não tenho nenhuma idéia do tipo de código que você está falando, mas ele diz que é correto deixar um jovem de dezoito anos ir para a prisão por seus crimes?
“Harry, Harry, você não entendeu? Eu não matei Gusto.”
Harry olhou para o velho. “Você não acabou de dizer que foi o seu código? Mataria o seu próprio filho se fosse necessário?”
“Sim, eu disse, mas eu também disse que eu nasci de gente ruim. Eu amo meu filho. Eu nunca poderia ter tirado a vida de Gusto. Muito pelo contrário. Que Abraão e seu deus se fodam.” A risada do velho se transformou em tosse. Ele pôs as mãos sobre o peito, inclinou-se sobre os joelhos e tossiu e tossiu.
Harry piscou. “Quem o matou, então?”
O velho se endireitou. Na mão direita segurava um revólver. Era um objeto grande, feio e parecia ainda mais antigo do que o seu proprietário.
“Você não deveria ter vindo desarmado, Harry.”
Harry não respondeu. A MP5 estava no fundo de um porão cheio de água, o rifle estava no apartamento de Truls Berntsen.
“Quem matou Gusto?” Harry repetiu.
“Pode ter sido qualquer um.”
Harry pareceu ouvir um rangido quando o dedo do velho se dobrou em volta do gatilho.
“Matar não é muito difícil, Harry. Você não concorda?”
“Eu concordo,” Harry disse, levantando o pé. Houve um assobio sob a sola do seu pé quando o fino fio de nylon disparou em direção ao suporte do varão da cortina.
Harry viu os pontos de interrogação nos olhos do velho, viu seu cérebro processando rapidamente os bits das informações mal digeridas.
A lâmpada que não funcionou.
A cadeira que estava no meio do quarto.
Harry, que não tinha ido procura-lo.
Harry, que não se moveu um centímetro de onde estava sentado.
E talvez agora ele pudesse ver o fio de nylon na semiescuridão, enquanto corria debaixo do sapato de Harry até o suporte do varão da cortina para o suporte da lâmpada do teto acima de sua cabeça. Onde já não havia uma lâmpada, mas a única coisa que Harry havia retirado da casa na Blindernveien além do colar clerical. Que era tudo o que ele tinha em mente enquanto estava deitado na cama de dossel de Rudolf Asayev, encharcado, ofegante, com pontos pretos saltando no seu campo de visão e com a certeza que iria desmaiar a qualquer momento, mas lutou para ficar consciente, para ficar do lado de cá da escuridão. Então, ele se levantou, e pegou o zjuk que estava ao lado da Bíblia no outro quarto.
Rudolf Asayev desviou-se para a esquerda, portanto os pregos de aço embutidos no tijolo não perfuraram a cabeça, mas a pele entre a clavícula e o músculo do ombro direito, e continuou até uma junção de fibras nervosas, o plexo cervico-braquial, e como consequência, quando dois centésimos de segundo depois ele puxou o gatilho, o músculo do seu braço estava paralisado, fazendo o revólver abaixar sete centímetros. A pólvora chiou e queimou pelo milésimo de segundo necessário para a bala deixar o cano do velho Nagant. Três milésimos de segundo depois a bala furou a armação da cama entre as panturrilhas de Harry.
Harry levantou-se. Soltou a alça de segurança para o lado e apertou o botão de liberação. O cabo tremeu quando a lâmina saltou. Harry balançou a mão, abaixada, passando pelo quadril, com o braço em linha reta, e a lâmina da faca, longa e fina, entrou entre as abas do casaco, na parte inferior da camisa do padre. Ele sentiu a resistência do material e da pele, em seguida a lâmina deslizou até o punho, sem qualquer resistência. Harry soltou a faca sabendo que Rudolf Asayev era um homem que estava morrendo quando a cadeira se inclinou para trás e o russo bateu no chão com um gemido. Ele chutou a cadeira para longe, mas ficou onde estava, enrolado como uma vespa ferida, mas ainda perigoso. Harry posicionou-se com as pernas em cada lado do corpo no chão, abaixou-se e puxou a faca para fora do corpo. Olhou para a cor invulgarmente vermelho escuro do sangue. Do fígado, talvez. A mão esquerda do velho apalpava pelo chão, em volta do braço direito paralisado, procurando o revólver. E por um momento selvagem Harry desejou que a mão o alcançasse, para lhe dar o pretexto de que precisava...
Harry chutou a pistola para longe, ouviu a batida forte contra a parede.
“O ferro”, o velho sussurrou. “Abençoe-me com o meu ferro, meu rapaz. Está queimando. Pela nossa salvação, coloque um fim nisto.”
Harry fechou os olhos por um breve instante. Podia sentir que tinha perdido ele. Ele tinha ido embora. O ódio. O maravilhoso ódio branco, que tinha sido o combustível que manteve Harry em movimento. Ele tinha acabado de perdê-lo.
“Não, obrigado”, disse Harry. Passou por cima e para longe do velho. Abotoou o casaco molhado. “Eu estou indo embora, Rudolf Asayev. Vou pedir para o rapaz na recepção chamar uma ambulância. Então eu vou ligar para o meu ex-patrão e dizer onde eles podem encontrá-lo.”
O velho riu e bolhas vermelhas se formaram no canto da sua boca. “A faca, Harry. Não é assassinato, eu já estou morto. Você não vai acabar no inferno, eu prometo a você. Vou dizer para eles no portão para não deixa-lo entrar.”
“Não é o inferno que me assusta.” Harry colocou o pacote de Camel molhado no bolso do casaco. “Eu sou um policial. Nosso trabalho é levar os eventuais infratores à justiça.”
As bolhas estouram quando o velho tossiu. “Vamos lá, Harry, o seu distintivo de xerife é feito de plástico. Estou doente. A única coisa que um juiz pode fazer é dar-me custódia, beijos, abraços e morfina. E eu cometi tantos assassinatos. Rivais que eu enforquei nas pontes. Empregados, como aquele piloto em quem usamos o tijolo. Policiais também. O Homem da Boina. Enviei Andrey e Peter para o seu quarto para atirar em você. Em você e Truls Berntsen. E você sabe por quê? Para fazer parecer que vocês dois tinham disparado um no outro. Iríamos deixar a arma como prova. Vamos lá, Harry.”
Harry limpou a lâmina da faca no lençol da cama. “Por que você queria matar Berntsen? Afinal ele trabalhava para você.”
Asayev virou para o lado e pareceu ser capaz de respirar melhor. Ele ficou deitado assim por alguns segundos antes de responder. “Ele roubou um estoque de heroína em Alnabru nas minhas costas. Não era minha heroína, mas quando você descobre que o seu queimador é tão ganancioso que você não pode mais confiar nele e, ao mesmo tempo, ele sabe o suficiente sobre você para derrubá-lo, você calcula que a soma dos riscos tornou-se demasiado grande. E empresários como eu eliminam o risco, Harry. Vimos uma oportunidade perfeita para matar dois coelhos com uma cajadada só. Você e Berntsen.” Ele riu. “Como eu tentei matar seu filho em Botsen. Sente o ódio agora, Harry? Eu quase assassinei o seu menino.”
Harry parou junto à porta. “Quem matou Gusto?”
“A humanidade vive pelo evangelho do ódio. Siga o ódio, Harry.”
“Quem são seus contatos na polícia e no Conselho Municipal?”
“Se eu te contar, você vai me ajudar a dar um fim nisto?”
Harry olhou para ele. Assentiu rapidamente. Esperava que a mentira não fosse transparente.
“Chegue mais perto”, sussurrou o velho.
Harry curvou-se. E de repente a mão do velho homem, como uma garra dura, agarrou suas lapelas e o puxou para perto. A voz áspera chiou baixinho no seu ouvido.
“Você sabe que eu paguei um homem para confessar o assassinato de Gusto, Harry. Mas você pensou que era porque eu não podia matar Oleg enquanto ele estava sendo mantido em um local secreto. Errado. Meu homem na força policial tem acesso ao programa de proteção a testemunhas. Eu poderia fazer com que Oleg fosse esfaqueado até a morte facilmente no lugar em que ele estava. Mas eu tinha mudado de ideia. Eu não queria que ele fosse embora tão fácil assim...”
Harry tentou se afastar, mas o velho o manteve seguro.
“Eu queria ver ele pendurado de cabeça para baixo com um saco plástico sobre sua cabeça,” a voz retumbou. “Sua cabeça dentro de um saco plástico transparente. Água derramada nos seus pés. Água percorrendo seu corpo e escorrendo para dentro do saco. Eu queria filmá-lo. Com som para que fosse possível ouvir os gritos. E depois eu lhe enviaria o filme. E se você me deixar assim eu vou cumprir o meu plano. Você ficará surpreso com a rapidez com que irão me liberar por falta de provas, Harry. E então eu vou encontrar Oleg, Harry, eu juro que vou, você só terá que ficar de olho na caixa de correspondências para quando o DVD chegar.”
Harry agiu instintivamente, empurrou a mão. Sentiu a lâmina abrir caminho. Indo fundo. Ele deu uma torção. Ouviu o velho homem suspirar. Continuou a torcer. Fechou os olhos e sentiu os intestinos e órgãos sendo enrolados, estourando, virando do avesso. E quando finalmente ouviu o velho gritar, era o próprio grito de Harry.

arry foi acordado pelo sol que brilhava num lado do seu rosto. Ou foi um ruído que o tinha acordado?
Ele abriu um olho cuidadosamente e olhou ao redor.
Viu uma janela de sala de estar e o céu azul. Nenhum ruído, pelo menos não agora.
Respirou o cheiro de sofá impregnado de fumaça de cigarro e ergueu a cabeça. Lembrou-se de onde estava.
Ele tinha saído do quarto do velho e ido para o seu próprio, arrumado sua mala de lona com calma, depois saiu do hotel pela escada dos fundos e tomou um táxi para o único lugar que tinha certeza que ninguém iria encontrá-lo: a casa que pertencera aos pais de Nybakk em Oppsal. Aparentemente ninguém esteve por lá desde que ele a deixou, e a primeira coisa que fez foi revistar as gavetas da cozinha e o armário do banheiro até que encontrou uma caixinha de analgésicos. Ele tinha tomado quatro comprimidos, lavado as mãos para tirar o sangue do velho e descido ao porão para ver se Stig Nybakk tinha tomado uma decisão.
Ele tinha.
Harry tinha voltado para cima, tinha se despido e pendurado suas roupas para secar no banheiro, encontrou um cobertor e adormeceu no sofá antes que a sua mente pudesse começar a pensar em alguma coisa.
Harry se levantou e foi para a cozinha. Pegou dois analgésicos e os empurrou goela abaixo com um copo de água. Abriu a geladeira e olhou para dentro. Havia um monte de comida gourmet; ele claramente havia alimentando Irene muito bem. A náusea do dia anterior voltou, e ele sabia que seria impossível comer. Voltou para a sala de estar. No dia anterior ele também tinha visto um bar. Tinha evitado olhar para ele antes de encontrar um lugar para dormir.
Harry abriu a porta do bar. Vazio. Suspirou com alívio. Tateou no bolso. A falsa aliança de casamento. E, naquele momento, ouviu um som.
O mesmo que ele pensou ter ouvido quando estava acordando.
Ele foi até a porta aberta do porão. Ouviu. Joe Zawinul?(23) Desceu e se dirigiu para a porta da sala no porão. Espiou através do postigo. Stig Nybakk estava girando lentamente, como um astronauta sem peso no espaço. Harry se perguntou se a vibração do celular no bolso das calças de Stig poderia estar funcionando como uma hélice. O ringtone - quatro, ou, na verdade, três notas de “Palladium” da banda Weather Report de Joe - soava como um sinal de chamada do além. E foi exatamente nisso que Harry estava pensando quando pegou o telefone, que era Nybakk ligando, querendo falar com ele.
Harry olhou para o número que aparecia no visor. E apertou o botão. Reconheceu a voz da recepcionista do Hospital Radium. “Stig! Olá! Você está aí? Você pode me ouvir? Estamos tentando encontrar você, Stig. Onde você está? Você deveria ter participado duma reunião, várias reuniões. Estamos preocupados. Martin esteve no seu apartamento, mas você não estava lá. Stig?”
Harry desligou e colocou o telefone no bolso. Iria precisar dele; o celular de Martine tinha ficado arruinado depois do mergulho.
Foi buscar uma cadeira na cozinha e sentou-se na varanda. Sentou-se ali com o sol da manhã no rosto. Tirou o maço de cigarros, colocou um dos estúpidos cigarros pretos na boca e acendeu. Melhor que nenhum. Então discou o número que conhecia de cor.
“Rakel.”
“Oi. Sou eu.”
“Harry? Eu não reconheci o número.”
“Eu tenho um telefone novo.”
“Oh, estou tão contente em ouvir sua voz. Correu tudo bem?”
“Sim”, Harry disse e teve de sorrir da felicidade na voz dela. “Tudo correu bem”.
“Está muito quente?”
“Muito quente. O sol está brilhando, e eu estou prestes a tomar o café da manhã.”
“Café da manhã? Não são quatro horas da tarde ou algo próximo disso?”
“Jet Lag”, disse Harry. “Não foi possível dormir no avião. Eu encontrei um ótimo hotel para nós. Fica em Sukhumvit.”
“Você não tem idéia do quanto eu estou ansiosa para te encontrar de novo, Harry.”
“Eu...”
“Não, espere, Harry. Estou falando sério. Eu estive acordada a noite toda pensando nisso. Estamos agindo corretamente. Ou seja, o tempo vai mostrar que estamos. Mas esse é o ponto sobre tudo isto. Descobrir. Oh, imagine se eu dissesse que não, Harry .”
“Rakel...”
“Eu te amo, Harry. Eu te amo. Você está me ouvindo? Você pode ouvir como esta palavra é plana, estranha e fantástica? Você realmente tem que dizer isso para entender - como um vestido vermelho-bombeiro que é preciso ter coragem para vestir. Eu te amo. Você acha que estou sendo exagerada?”
Ela riu. Harry fechou os olhos e sentiu o sol mais maravilhoso do mundo beijar sua pele e a risada mais maravilhosa do mundo beijar seus tímpanos.
“Harry? Você está aí?”
“Estou sim.”
“É tão estranho. Você parece tão próximo.”
“Hmm. Em breve vou estar muito mais próximo, querida.”
“Diga isso de novo.”
“Dizer o que?”
“Querida.”
“Querida.”
“Hummmmm.”
Harry sentia que estava sentado em algo. Algo duro no bolso de trás. Puxou para fora. O sol fez o folheado do anel brilhar como o ouro.
“Rakel”, disse, acariciando o risco preto com a ponta do dedo. “Qual seria a sensação de estar casada?”
“Harry, não brinque comigo.”
“Eu não estou brincando. Eu sei que você nunca poderia imaginar estar casada com um cobrador de dívidas e morar em Hong Kong.”
“Não mesmo. Com quem eu deveria imaginar estar me casando então?”
“Eu não sei. Que tal um civil, um ex-policial, que leciona investigações criminais na Academia de Polícia?”
“Não se parece com alguém que eu conheço.”
“Talvez alguém que você pode vir a conhecer. Alguém que pudesse surpreendê-la. Coisas estranhas sempre acontecem.”
“Você é o único que está sempre dizendo que as pessoas não mudam.”
“Então, se agora eu sou alguém que diz que as pessoas podem mudar, isso prova que é possível mudar.”
“Garoto esperto.”
“Digamos, hipoteticamente falando, que eu estou certo. As pessoas podem mudar. E é possível deixar o passado para trás.”
“E encarar os fantasmas que assombram você?”
“Então o que você diria?”
“Sobre o quê?”
“Sobre a minha pergunta hipotética de se casar.”
“Isto seria uma proposta? Hipotética? No telefone?”
“Agora você está esticando o assunto. Eu estou apenas sentado ao sol e conversando com uma mulher encantadora.”
“E eu estou caindo fora!”
Ela desligou, e Harry se esticou na cadeira da cozinha com os olhos fechados e um sorriso enorme. Aquecido pelo sol e livre da dor. Dentro de quatorze horas ele iria vê-la. Ele imaginou a expressão de Rakel quando ela chegasse no portão em Gardermoen e o visse sentado esperando por ela. Seu rosto enquanto Oslo encolhia debaixo deles. A cabeça dela se apoiando no seu ombro quando adormecesse.
Ele ficou assim até que a temperatura despencou. Ele meio que abriu um olho. A borda de uma nuvem tinha entrado na frente do sol, nada mais.
Fechou o olho novamente.
Siga o ódio.
Quando o velho tinha dito aquilo, a princípio Harry tinha pensado que ele quis dizer que Harry devia seguir seu próprio ódio e matá-lo. Mas e se ele quis dizer outra coisa? Ele disse isso logo após Harry perguntar quem tinha matado Gusto. Seria aquela a resposta? Será que ele quis dizer que se Harry seguisse o rastro de ódio isso o levaria ao assassino? Neste caso havia vários candidatos. Mas quem tinha o maior motivo para odiar Gusto? Além de Irene, é claro, mas ela estava presa quando Gusto foi morto.
O sol estava de volta novamente, e Harry concluiu que estava interpretando demais as palavras do velho, o trabalho estava feito, ele devia relaxar, logo precisaria de outro comprimido. E ele precisava ligar para Hans Christian e dizer que Oleg estava finalmente fora de perigo.
Outro pensamento atingiu Harry. Truls Berntsen, um policial pilantra da Orgkrim, não teria acesso aos dados do programa de proteção a testemunhas. Tinha que ser outra pessoa. Alguém mais de cima.
Pare com isso, pensou. Pare por amor de Cristo. Todos eles podem ir para o inferno. Pense sobre o voo. O voo desta noite. As estrelas sobre a Rússia.
Então voltou para o porão, considerou a possibilidade de cortar Nybakk, rejeitou a idéia e encontrou o pé de cabra que estava procurando.
 
 porta principal da Hausmanns Gate 92 estava aberta, mas a porta do apartamento estava fechada e trancada. Talvez por causa da nova confissão, Harry pensou, antes de inserir o pé de cabra entre a porta e o batente.
Dentro, tudo parecia intocado. As faixas da luz do sol da manhã no chão da sala de estar pareciam teclas de piano.
Ele colocou a pequena mala de lona contra a parede e sentou-se em um dos colchões. Conferiu se a passagem estava no bolso interno. Olhou para o relógio. Treze horas para a decolagem.
Olhou em volta. Fechou os olhos. Tentou imaginar a cena.
Um homem usando uma balaclava. Que não disse uma palavra, porque sabia que eles iriam reconhecer sua voz.
Um homem que tinha visitado Gusto. Que não levou nada dele, a não ser a sua vida. Um homem que tinha ódio.
A bala tinha sido uma Makarov nove por 18 milímetros, com toda a probabilidade, portanto, o assassino tinha usado uma pistola Makarov. Ou uma Fort-12. Até mesmo uma Odessa, já que elas pareciam estar se tornando equipamento comum em Oslo. Ele esteve lá. Atirou. Saiu.
Harry ouviu, esperando que o aposento pudesse conversar com ele.
Os segundos passavam, tornaram-se minutos.
Um sino de igreja tocou.
Não havia mais nada para encontrar aqui.
Harry levantou-se e preparou-se para partir.
Tinha alcançado a porta de saída quando ouviu um som entre as badaladas do sino. Ele esperou até que o próximo repique tivesse acabado. Lá estava de novo, um arranhão suave. Ele se virou na ponta dos pés e olhou ao redor da sala.
Lá estava, perto do limiar da porta interna, de costas para Harry. Um rato. Marrom com uma cauda cintilante, orelhas rosadas por dentro, e estranhos pontinhos brancos nas costas.
Harry não entendia como ele conseguia sobreviver aqui. Um rato aqui, não era algo que alguém esperasse encontrar.
Porém, aqueles pontinhos brancos.
Era como se o rato tivesse chafurdado em sabão em pó. Ou...
Harry olhou ao redor da sala novamente. O grande cinzeiro entre os colchões. Ele sabia que só teria uma chance, então tirou os sapatos, foi até o outro lado da sala durante a badalada seguinte, pegou o cinzeiro e ficou perfeitamente estático, a um metro e meio do rato, que ainda não tinha detectado a sua presença. Fez o cálculo, cronometrou. Quando o sino tocou, ele saltou para a frente, com o braço estendido. As reações do rato foram demasiado lentas para evitar ser capturado pelo cinzeiro de cerâmica. Harry ouviu o silvo, sentiu o rato se atirando para trás e para a frente. Arrastou o cinzeiro pelo chão até a janela, onde havia uma pilha de revistas, e colocou-as no topo do cinzeiro. Então começou a procurar.
Depois de inspecionar todas as gavetas e armários do apartamento ele não conseguiu encontrar qualquer coisa.
Ele pegou o tapete de tecido do chão e puxou um fio; o longo fio de tecido iria servir. Fez um laço na extremidade. Em seguida, afastou as revistas e levantou o cinzeiro, o suficiente para enfiar sua mão. Preparou-se para o que certamente iria acontecer em seguida. Quando sentiu os dentes do rato afundando-se na carne macia entre o polegar e o dedo indicador, ele afastou o cinzeiro e agarrou o animal com a outra mão. Ele silvou quando Harry pegou alguns dos grãos brancos presos entre os pelos. Colocou-os na língua e provou. Amargo. Mamão maduro demais. Violin. Alguém tinha um esconderijo por ali perto.
Harry amarrou o fio bem apertado na base da cauda do rato. Colocou o animal no chão e deixou-o livre. O rato disparou e o fio desenrolou na mão de Harry. Para a toca.
Harry foi atrás. Entrou na cozinha. O rato correu para trás de um fogão gorduroso. Harry inclinou o fogão pesado e antigo sobre as rodinhas dos pés traseiros e o afastou da parede. Havia um buraco do tamanho de um punho na parede através do qual o fio desaparecia.
Até que parou de desenrolar.
Harry enfiou a mão no buraco, a que já havia sido mordida. Tateou o interior da parede. Material de isolamento a esquerda e a direita. Tateou para cima no buraco. Nada. O isolamento tinha sido bastante cavado. Harry amarrou o final da linha sob um pé do fogão, foi até o banheiro, pegou o espelho, que estava respingado com saliva e catarro, bateu contra a lateral da bacia e escolheu um pedaço adequadamente grande. Entrou no quarto, puxou uma luminária de leitura da tomada e voltou para a cozinha. Colocou o pedaço de espelho no interior do buraco. Então enfiou o plugue da luminária na tomada ao lado do fogão e iluminou o espelho. Ajustou a luz até que o ângulo estivesse certo, e então ele viu.
O esconderijo.
Um saco de pano, pendurado em um gancho a meio metro acima do chão.
A abertura era estreita demais para enfiar sua mão e torcer o braço para cima para alcançar o saco. Harry quebrava a cabeça. Qual ferramenta o proprietário tinha utilizado para alcançar o saco? Ele tinha revistado várias gavetas e armários no apartamento, então pesquisou seu banco de dados.
O arame.
Ele voltou para a sala de estar. Foi ali que tinha visto, na primeira vez que ele e Beate estiveram aqui. Aparecendo debaixo do colchão e dobrado num ângulo de noventa graus. Apenas o dono do arame rígido sabia da sua utilidade. Harry enfiou-o através do buraco e usou a extremidade dobrada para desenganchar o saco.
Era pesado. Tão pesado quanto ele esperava. Ele teve que espreme-lo para conseguir puxa-lo para fora.
O saco tinha sido colocado no alto para que os ratos não conseguissem alcançá-lo, ainda assim eles conseguiram mordiscar um buraco no fundo. Harry balançou o saco e alguns grãos caíram. Isso explicava o pó sobre os pelos do rato. Então abriu o saco. Tirou três saquinhos de violino, provavelmente quartos. Não havia um kit completo de viciado lá dentro, apenas uma colher dobrada em curva e uma seringa usada.
Ela estava no fundo do saco.
Harry usou um pano de prato para não deixar impressões digitais nela quando a puxou para fora.
Ela era inconfundível. Rústica, estranha, quase cômica. Foo Fighters. Era uma Odessa. Harry cheirou a arma. O cheiro de pólvora podia persistir por meses após uma pistola ser usada se não fosse limpa e lubrificada. Esta tinha sido utilizada há pouco tempo. Ele verificou o carregador. Dezoito. Faltavam dois. Harry não tinha dúvidas.
Esta era a arma do crime.
 
uando Harry entrou na loja de brinquedos na Storgata ainda faltavam 12 horas para a decolagem.
A loja tinha dois conjuntos de equipamentos de impressão digital diferentes para escolher. Harry escolheu o mais caro, com uma lupa, uma lanterna de LED, uma escova macia, pó para polvilhar em três cores, fita adesiva para coletar as impressões e um álbum para armazenar impressões digitais da família.
“Para o meu filho”, ele explicou enquanto pagava.
A menina atrás do caixa mostrou o seu sorriso rotineiro.
Ele caminhou de volta para a Hausmanns Gate e começou a trabalhar usando a ridiculamente pequena lanterna de LED para procurar impressões e polvilhar o pó de uma das latas em miniatura. A escova era tão pequena que ele se sentia como o gigante d’ As Viagens de Gulliver.
Havia impressões no cabo da pistola.
E uma muito nítida, provavelmente de um polegar, sobre o êmbolo da seringa, onde também havia pontos pretos que poderiam ter sido qualquer coisa, mas Harry calculou que era resíduo de pólvora.
Assim que acabou de coletar as impressões digitais na película aderente ele as comparou. A mesma pessoa tinha segurado a arma e a seringa. Harry tinha verificado nas paredes e no chão perto do colchão e tinha encontrado algumas impressões, mas nenhuma delas correspondia com as da pistola.
Ele abriu a mala de lona e o bolso interno, tirou o conteúdo e os colocou na mesa da cozinha. Acendeu a lanterna de LED.
Olhou para o relógio. Onze horas para partir. Uma eternidade.
 
ram duas horas e Hans Christian Simonsen parecia estranhamente fora de lugar quando entrou no Schrøder’s.
Harry estava sentado no canto perto da janela, a sua mesa favorita.
Hans Christian sentou-se.
“Bom?”, ele perguntou, apontando para a xícara de café na frente de Harry.
Harry balançou a cabeça.
“Obrigado por vir.”
“Sem problemas. Sábado é um dia livre. Um dia livre e nada para fazer. O que está acontecendo?”
“Oleg pode voltar para casa.”
O advogado se animou. “Isso significa...?”
“Aqueles que podiam ser um perigo para Oleg se foram.”
“Se foram?”
“Sim. Ele está longe?”
“Não, 20 minutos fora da cidade. Nittedal. O que quer dizer com eles se foram?”
Harry levantou sua xícara de café. “Tem certeza que você quer saber, Hans Christian?”
O advogado olhou para Harry. “Será que isso significa que você também desvendou o caso?”
Harry não respondeu.
Hans Christian se inclinou para frente. “Você sabe quem matou Gusto, não é.”
“Ham-Ham.”
“Como?”
“Algumas impressões digitais correspondentes.”
“E quem...?”
“Não é importante. Mas eu estou de partida hoje, por isso seria bom poder dizer adeus a Oleg.”
Hans Christian sorriu. Doloroso, mas um sorriso, no entanto. “Você quer dizer, antes de você e Rakel partirem?”
Harry girou sua xícara de café. “Então ela lhe contou?”
“Nós almoçamos. Eu concordei em cuidar de Oleg por alguns dias. Entendi que alguns homens virão de Hong Kong para buscá-lo, alguns da sua turma. Mas não devo ter compreendido algum detalhe direito. Eu pensei que você já estava em Bangkok.”
“Eu me atrasei. Há algo que eu quero perguntar para você...”
“Ela disse mais. Ela disse que você tinha proposto casamento.”
“Oh?”
“Sim, do seu jeito, é claro.”
“Bem...”
“E ela disse que tinha refletido sobre isso.”
Harry levantou a mão. Ele não queria ouvir o resto.
“A conclusão da sua reflexão foi não, Harry.”
Harry expirou. “Bom.”
“Então ela parou de refletir sobre isso, ela me disse. E em vez disso ela começou a sentir.”
“Hans Christian...”
“A resposta dela é sim, Harry.”
“Ouça-me, Hans Christian...”
“Você não ouviu? Ela quer se casar com você, Harry. Sortudo.” O rosto de Hans Christian se iluminou como se fosse de felicidade, mas Harry sabia que era o brilho do desespero. “Ela disse que queria estar com você até o fim de seus dias.” Seu pomo de Adão balançava para cima e para baixo, e a sua voz se alternava entre falsete e rouca. “Ela disse que teria momentos terríveis e quase catastróficos com você. Ela teria momentos razoáveis com você. E ela teria momentos fantásticos com você.”
Harry sabia que ele estava citando-a literalmente. E ele sabia por que ele estava fazendo isso. Porque cada palavra ficou gravada no seu coração.
“Quanto você a ama?”, Harry perguntou.
“Eu...”
“Você a ama o suficiente para cuidar dela e de Oleg pelo resto da sua vida?”
“O quê?”
“Responda-me.”
“Sim, claro, mas...”
“Jure.”
“Harry”.
“Jure, eu disse.”
“Eu... eu juro. Mas isso não muda nada.”
Harry sorriu ironicamente. “Você está certo. Nada muda. Nada pode mudar. Não pode mudar nunca. O rio sempre corre ao longo do mesmo maldito curso.”
“Isso não faz sentido. Eu não entendo.”
“Você vai,” disse Harry. “E ela também vai.”
“Mas... vocês se amam. Ela me disse sem rodeios. Você é o amor da vida dela, Harry.”
“E ela é o meu. Sempre foi. Sempre será.”
Hans Christian observou Harry com uma mistura de perplexidade e algo que se assemelhava a simpatia. “E ainda assim você não a quer?”
“Não há nada que eu mais queira nesta vida. Mas não tenho certeza se vou estar aqui por muito mais tempo. E se eu não estiver, você me fez uma promessa.”
Hans Christian bufou. “Você não está sendo um pouco melodramático, Harry? Eu nem sequer sei se ela vai me querer.”
“Você tem que convencê-la.” As dores no pescoço pareciam estar tornando o ato de respirar mais difícil para ele. “Você promete?”
Hans Christian balançou a cabeça e disse: “Eu vou tentar.”
Harry hesitou. Então estendeu a mão.
Eles apertaram as mãos.
“Você é um bom homem, Hans Christian. Eu salvei seu número no H.” Ele levantou o celular. “Você substituiu Halvorsen.”
“Quem?”
“Apenas um ex-colega que espero ver novamente. Eu tenho que ir agora.”
“O que você vai fazer?”
“Me encontrar com o assassino de Gusto.”
Harry levantou-se, virou-se para o balcão e acenou para Rita, que acenou de volta.
Uma vez lá fora e atravessando a rua entre os carros, houve uma explosão atrás de seus olhos, e sua garganta parecia que iria se dilacerar. E na Dovregata veio o fel. Ele se dobrou ao meio contra a parede na rua tranquila e pôs para fora o bacon, os ovos e o café de Rita. Em seguida, se endireitou e caminhou para a Hausmanns Gate.
 
inalmente tinha sido uma decisão simples, apesar de tudo.
Eu estava sentado num colchão imundo e senti meu coração petrificado palpitando quando eu liguei. Eu esperava que ele atendesse  o telefone, e esperava que ele não atendesse.
Eu estava prestes a desligar quando ele respondeu, e lá estava a voz do meu irmão de criação, sem vida e clara.
“Stein.”
Ocasionalmente eu pensava como esse nome era adequado. Stein = Pedra. Uma superfície impenetrável com um miolo de pedra dura. Impassível, sombrio, pesado. Mas até mesmo as rochas têm um ponto fraco, um lugar onde um golpe suave de uma marreta pode dividi-las. No caso de Stein era fácil.
Limpei a garganta. “É Gusto. Eu sei onde Irene está.”
Ouvi a respiração leve. A respiração de Stein era sempre leve.
Ele podia correr e correr por horas, quase não necessitava de oxigênio. Ou de uma razão para correr.
“Onde?”
“Essa é a coisa”, eu disse. “Eu sei onde, mas não vou contar de graça.”
“Por quê?”
“Porque eu preciso.”
Foi como uma onda de calor. Não, de frio. Eu podia sentir seu ódio. Ouviu-o engolir.
“Quanto...”
“Cinco mil.”
“Certo.”
“Quero dizer dez.”
“Você disse cinco.”
Porra.
“Mas é urgente”, eu disse, embora eu soubesse que ele já estava de pé.
“Certo. Onde você está?”
“Hausmanns Gate 92. A fechadura da porta está quebrada. Segundo andar.”
“Estou a caminho. Não saia daí.”
Sair daqui? Eu peguei duas bitucas no cinzeiro da sala de estar e fui acendê-las na cozinha no meio do silencio ensurdecedor da tarde. Merda, estava tão quente aqui. Algo sussurrou. Eu segui o barulho. O rato de novo, correndo ao longo da parede.
Ele saiu de trás do fogão. Tinha um bom esconderijo lá.
Fumei a bituca número dois.
Então eu tive um sobressalto.
O fogão pesava uma maldita tonelada, até que descobri que tinha duas rodas na parte de trás.
O buraco do rato era maior do que deveria ser.
Oleg, Oleg, meu caro amigo. Você é inteligente, mas este truque você aprendeu comigo.
Eu caí de joelhos. Eu já estava alto, mesmo enquanto trabalha com o arame. Meus dedos tremiam tanto que parecia que eu estava com Parkinson. Eu podia sentir que tinha conseguido, mas então eu perdi. Tinha que ser violino. Tinha que ser!
Então, finalmente eu fisguei, e era um dos grandes. Eu puxei. Um grande saco de pano pesado. Eu abri. Tinha que ser, tinha que ser!
Um tubo de borracha, uma colher, uma seringa. E três pequenos pacotes transparentes. O pó branco dentro era salpicado com marrom. Meu coração cantava. Eu estava reunido com a única amiga e amante em quem eu sempre poderia confiar.
Enfiei dois dos pacotes no meu bolso e abri o terceiro. Agora eu tinha o suficiente para uma semana se eu consumisse moderadamente, agora eu apenas tinha que aplicar o pico, e rápido antes que Stein ou qualquer outra pessoa chegasse. Eu polvilhei um pouco de pó na colher, acendi meu isqueiro. Eu costumo acrescentar algumas gotas de limão, do tipo que você compra em garrafas e as pessoas colocam no chá. O suco de limão impedia que o pó encaroçasse. Mas eu não tinha nem o limão nem a paciência, agora só uma coisa importava: injetar a merda na minha corrente sanguínea.
Enrolei o tubo em volta do meu antebraço, coloquei a ponta entre os dentes e puxei. Encontrei uma grande veia azul. Inclinei a seringa para obter o maior alvo possível e reduzir o tremor. Porque eu estava tremendo. Tremendo como o inferno.
Errei.
Uma vez. Duas vezes. Respirei fundo. Não pense muito agora, não seja impaciente, não entre em pânico.
A agulha vacilou. Eu dei uma espetada no verme azul.
Errei novamente.
Eu lutei contra o meu desespero. Pensei que eu poderia fumar um pouco dele primeiro, para me recompor. Mas eu queria  o pico, o pontapé que você toma quando a dose inteira atinge o sangue, vai direto para o cérebro, o orgasmo, a queda livre!
O calor e a luz do sol estavam me cegando. Mudei-me para a sala de estar, sentei na sombra da parede. Merda, agora eu não podia mesmo ver a porra da veia! Vá com calma. Eu esperei as minhas pupilas se dilatarem. Felizmente meus braços eram tão brancos como telas de cinema. A veia parecia um rio num mapa da Groenlândia. Agora.
Errei.
Eu não tinha energia para isso, senti as lágrimas chegando. Um sapato rangeu.
Eu estava tão concentrado que não o tinha ouvido entrar.
E quando eu olhei os meus olhos estavam tão cheios de lágrimas que as formas ficaram distorcidas, como em um maldito espelho de parque de diversões.
“Oi, Ladrão.”
Eu não tinha ouvido alguém me chamar assim há muito tempo.
Pisquei as lágrimas. E as formas se tornaram familiares. Sim, agora eu reconhecia tudo. Até mesmo a arma. Não tinha sido roubada da sala de ensaio por assaltantes como eu tinha pensado.
O estranho era que eu não estava com medo. De modo nenhum. De repente eu estava muito calmo.
Olhei para a veia novamente.
“Não faça isso”, disse a voz.
Estudei minha mão. Estava firme como a mão de um batedor de carteiras. Esta era a minha chance.
“Eu vou atirar em você.”
“Eu acho que não”, eu disse. “Porque então você nunca vai descobrir onde Irene está.”
“Gusto!”
“Eu estou fazendo o que eu tenho que fazer”, eu disse e espetei. Bateu na veia. Levantei o polegar para pressionar o êmbolo. “E você pode fazer o que tem que fazer.”
Os sinos da igreja começaram a badalar novamente.
 
arry estava sentado no lado da sombra na parede. A luz da lâmpada da rua caía sobre os colchões. Olhou para o relógio. Nove. Três horas para o voo para Bangkok. As dores no pescoço de repente se intensificaram. Como o calor do sol antes de desaparecer atrás de uma nuvem. Mas em breve o sol teria ido embora; em breve ele estaria sem dor. Harry sabia como isso iria acabar. Era tão inevitável quanto seu retorno a Oslo. Assim como ele sabia que a necessidade humana por ordem e coesão significava que ele teria que utilizar sua mente para encontrar alguma lógica para explicar tudo isso. Porque a noção de que tudo é apenas o caos frio, que nada tem algum significado, é mais difícil de suportar do que até mesmo a pior tragédia, que é mais compreensível.
Ele tateou no bolso do casaco pelo maço de cigarros e sentiu o cabo da faca contra as pontas dos dedos. Tinha a sensação de que deveria ter se livrado dela. Uma maldição estava sobre ela. Sobre ele. Mas não faria qualquer diferença; ele havia sido amaldiçoado muito antes da faca aparecer. E essa maldição era pior do que qualquer faca; ela dizia que seu amor era uma desgraça que ele carregaria por todo o canto com ele. Assim como Asayev tinha dito que a faca transmitia o sofrimento e a doença do seu proprietário a quem fosse esfaqueado por ela, todos aqueles que se deixassem ser amados por Harry teriam que pagar. Seriam destruídos ou afastados dele. Só restariam os fantasmas. Todos eles. Em breve Rakel e Oleg seriam fantasmas também.
Ele abriu o maço e olhou para dentro.
O que foi que ele tinha imaginado? Que ele teria permissão para escapar da maldição? Que ele seria capaz de fugir para o outro lado do globo com eles para viverem felizes para sempre? Ele estava pensando nisso quando olhou para o relógio novamente, perguntando-se qual o horário limite para sair a tempo de pegar o voo. Era o seu coração egoísta e ganancioso que ele estava ouvindo.
Ele tirou a foto amassada da família e olhou para ela novamente. Para Irene. E o irmão, Stein. Aquele com o olhar cinza. Harry tinha dois registros no seu banco de dados de memória quando o conheceu. Um deles era desta fotografia. O segundo foi da noite em que Harry chegou em Oslo, quando esteve no Kvadraturen. O exame minucioso que Stein fez nele induziu Harry a pensar que ele era um policial, mas estava errado. Muito errado.
Então ouviu os passos na escada.
Os sinos da igreja soaram. Pareciam frágeis e solitários.
 
ruls Berntsen parou no degrau mais alto e olhou para a porta da frente. Sentiu seu coração batendo. Eles iriam se ver outra vez. Ele aguardava com ansiedade esse encontro, mas mesmo assim ainda temia isso. Respirou fundo.
E tocou.
Ajeitou a gravata. Ele não se sentia confortável de terno. Mas sabia que não tinha saída quando Mikael lhe disse quem fora convidado para a festa de inauguração. Toda a cúpula, o Chefe de Polícia, que estava se aposentando, bem como o chefe e rival da sua antiga Brigada Criminal, Gunnar Hagen. Políticos estariam lá também. A sexy mulher do Conselho cujas fotos ele tinha admirado, Isabelle Skøyen. E uma ou duas celebridades da TV. Truls não tinha idéia de como Mikael os conhecera.
A porta se abriu.
Ulla.
“Você está bonito, Truls”, disse ela. Sorriso de anfitriã. Olhos brilhantes. Mas ele soube imediatamente que havia chegado muito cedo.
Ele apenas acenou com a cabeça, incapaz de dizer o que deveria ter dito, que ela estava muito atraente.
Ela deu-lhe um rápido abraço, disse para entrar. Eles dariam as boas-vindas aos convidados com taças de champanhe, mas ela ainda não tinha enchido as taças. Ela sorriu, apertou as mãos e lançou um olhar de pânico para a escada que subia para o andar superior. Provavelmente esperando que Mikael viesse logo e assumisse. Mas Mikael devia estar se arrumando, inspecionando-se no espelho, verificando se cada fio de cabelo estava no lugar certo.
Ulla estava falando um pouco rápido demais sobre pessoas de sua infância em Manglerud. Será que Truls sabia o que elas estavam fazendo agora?
Truls não sabia.
“Nunca mais tive contato com eles,” respondeu. Mesmo tendo quase certeza de que ela sabia que ele nunca mais tinha tido qualquer contato com eles. Com nenhum deles, Goggen, Jimmy, Anders ou Krøkke. Truls só tinha um amigo: Mikael. E ele também fez questão de manter Truls a uma certa distancia depois que tinha subido na hierarquia social e profissional.
Eles tinham esgotado todos os temas de conversa. Ela tinha esgotado todos os temas de conversa. Ele não tinha nada a dizer desde o início. Uma pausa.
“Mulheres, Truls? Nenhuma novidade?”
“Nenhuma novidade, não.” Ele tentou dizer no mesmo tom brincalhão dela. Ele realmente precisava daquela bebida de boas-vindas agora.
“Não existe realmente alguém que possa capturar seu coração?”
Ela inclinou a cabeça e piscou um olho sorrindo, mas ele podia ver que ela já estava lamentando sua pergunta. Talvez porque ela estava vendo seu rosto corado. Ou talvez porque ela sabia a resposta. Que só você, você, você, Ulla, poderia capturar meu coração. Ele sempre tinha andado três passos atrás do supercasal Mikael e Ulla em Manglerud, esteve sempre presente, pronto para servir, embora isto fosse negado pelo seu ar taciturno e indiferente do tipo estou-entediado-mas-eu-não-tenho-nada-melhor-para-oferecer. Enquanto seu coração queimava por ela, enquanto pelo canto do olho, ele tinha registrado todos os seus movimentos e expressões. Ele não poderia tê-la, era uma impossibilidade, ele sabia. No entanto, ele ansiava da forma que as pessoas anseiam por voar.
Então, finalmente Mikael surgiu descendo as escadas, puxando as mangas da camisa para baixo para que as abotoaduras pudessem ser vistas sob as mangas do smoking.
“Truls!”
Soou como a cordialidade um pouco exagerada geralmente reservada para as pessoas que você realmente não conhece. “Porque essa cara emburrada, meu amigo? Temos um palácio para comemorar!”
“Eu pensei que era o cargo de Chefe de Polícia que íamos celebrar”, disse Truls, olhando em volta. “Eu vi no noticiário hoje.”
“Um vazamento. Não foi formalmente anunciado ainda. Mas é o seu terraço que vamos homenagear hoje, Truls, não é? Como está indo com o champanhe, querida?”
“Eu vou encher as taças agora”, disse Ulla, escovando um pontinho invisível de pó do ombro de seu marido e se afastando.
“Você conhece Isabelle Skøyen?”, Truls perguntou.
“Sim”, disse Mikael, ainda sorrindo. “Ela virá esta noite. Por quê?”
“Nada.” Truls inspirou. Tinha que ser agora, ou nunca. “Andei pensando numa coisa.”
“Sim?”
“Alguns dias atrás eu fui enviado para fazer um trabalho, prender um cara no Leon, o hotel, você sabe?”
“Eu acho que sei, sim.”
“Mas quando eu estava no meio da detenção dois outros policiais, que eu não conheço, apareceram, e eles queriam prender nós dois.”
“Excesso de zelo?” Mikael riu. “Fale com o Finn. Ele coordena questões operacionais.”
Truls balançou a cabeça lentamente. “Eu não acho que foi um excesso de zelo.”
“Não?”
“Eu acho que alguém me enviou para lá de propósito.”
“Você quer dizer que alguém quer te ferrar?”
“Sim”, disse Truls, procurando os olhos de Mikael, mas não encontrando nenhuma indicação de que ele entendeu o que Truls estava realmente falando. Será que, por acaso, estava enganado? Truls engoliu em seco.
“Então eu queria saber se você sabe alguma coisa sobre isso, se você poderia estar envolvido.”
“Eu?” Mikael inclinou-se para trás e começou a rir. E quando Truls viu sua boca, ele se lembrou de como Mikael sempre voltava do dentista da escola com zero cáries. Nem mesmo Karius e Bactus (24) levavam a melhor sobre ele.
“Eu gostaria! Diga-me, eles te deitaram no chão e algemaram?”
Truls olhou para Mikael. Viu que estava errado. Então ele riu junto com ele. De alívio, da imagem dele sendo algemado por outros policiais, e porque o riso contagiante de Mikael sempre o induzia a rir junto. Não, ordenava-lhe a rir junto. Mas também o envolvia, aquecia, fazia com que se sentisse parte de algo, membro de alguma coisa, uma dupla constituída por ele e Mikael Bellman. Amigos. Ele ouviu sua própria risada-grunhido enquanto a risada de Mikael diminuía.
“Você realmente acha que eu estava envolvido nisso, Truls?” Mikael perguntou com uma expressão pensativa.
Truls, sorriu, olhou para ele. Pensou sobre como Dubai tinha descoberto seu crime, pensou no garoto que ele tinha espancado até a cegueira. Quem poderia ter contado para Dubai? Pensou no sangue que os peritos tinham encontrado debaixo das unhas de Gusto na Hausmanns Gate, o sangue que ele tinha contaminado antes de chegar no laboratório de teste de DNA. Mas ele havia guardado uma parte consigo. Provas como esta poderiam ser valiosas num dia de tempestade. E uma vez que, definitivamente, tinha começado a chover, ele tinha ido até a Unidade de Patologia esta manhã com o sangue. E recebeu o resultado antes de vir para cá esta noite. O teste sugeria que os fragmentos de sangue e unha eram iguais as amostras que foram envidadas por Beate Lønn há poucos dias. Será que eles não se falavam uns com os outros lá no QG? Será que eles achavam que a Unidade de Patologia não tinha trabalho suficiente para fazer? Truls pediu desculpas e desligou. E considerou a resposta. O sangue sob as unhas de Gusto Hanssen eram de Mikael Bellman.
Mikael e Gusto.
Mikael e Rudolf Asayev.
Truls tocou o nó da gravata. Não foi seu pai quem lhe ensinara como fazê-lo; ele não conseguia nem fazer o seu próprio nó. Foi Mikael quem lhe ensinou quando eles estavam indo para o baile de formatura. Ele tinha mostrado para Truls como fazer um nó Windsor simples, e quando Truls perguntou por que o nó de Mikael parecia muito mais gordo, Mikael respondeu que era um duplo Windsor, mas era improvável que ficasse adequado em Truls.
O olhar de Mikael repousava sobre ele. Ele ainda estava esperando por uma resposta para a sua pergunta. Por que Truls pensou que Mikael estava envolvido?
Estar envolvido na decisão de matá-lo junto com Harry Hole no Hotel Leon.
A campainha tocou, mas Mikael não se mexeu.
Truls fingiu estar coçando a testa enquanto usava as pontas dos dedos para secar o suor.
“Não”, respondeu e ouviu sua própria risada-grunhido. “Apenas uma idéia, só isso. Esqueça.”
 
s escadas rangeram sob o peso de Stein Hanssen. Ele podia sentir cada passo e prever cada rangido e gemido. Ele parou no topo. Bateu na porta.
“Entre”, veio lá de dentro.
Stein Hanssen entrou.
A primeira coisa que viu foi a mala.
“Tudo pronto?”, perguntou.
Um aceno de cabeça.
“Você achou o passaporte?”
“Sim.”
“Eu já chamei um táxi.”
“Já vou.”
“OK”. Stein olhou em volta. Da maneira como fez nos outros quartos. Se despedindo. Dizendo que não iria voltar. E ouvindo os ecos da sua infância. A voz encorajadora do pai. A voz segura da mãe. A voz entusiástica de Gusto. A voz feliz de Irene. A única que não ouvia era a sua própria. Ele havia ficado em silêncio.
“Stein?” Irene estava segurando uma fotografia na mão. Stein já tinha visto, ela prendeu aquela foto na parede acima da cama na mesma noite que Simonsen, o advogado, a levara até lá. A fotografia dela com Gusto e Oleg.
“Sim?”
“Alguma vez você sentiu vontade de matar Gusto?”
Stein não respondeu. Apenas pensou naquela noite.
O telefonema de Gusto dizendo que ele sabia onde estava Irene. Correndo para Hausmanns Gate. E ao chegar: os carros da polícia. As vozes em volta dele dizendo que o garoto estava morto lá dentro, um tiro. E o sentimento de excitação. Sim, quase felicidade. E depois disso, o choque. A tristeza. Sim, de certa forma ele tinha ficado entristecido pelo que aconteceu com Gusto. Ao mesmo tempo em que nutria a esperança de que Irene, pelo menos, estava bem. Essa esperança tinha, é claro, ficado menor com o passar dos dias e ele percebeu que a morte de Gusto significava que tinha perdido a chance de encontrá-la.
Ela estava pálida. Sintomas da abstinência. Ia ser difícil. Mas eles iriam conseguir. Eles iriam conseguir juntos.
“Vamos...?”
“Sim”, ela disse, abrindo a gaveta de mesinha de cabeceira. Olhando para a fotografia. Pressionando os lábios contra ela e colocando na gaveta, com a face para baixo.
 
arry ouviu a porta se abrir.
Ele estava sentado imóvel na escuridão. Ouviu os passos atravessando o chão da sala de estar. Viu os movimentos perto dos colchões. Vislumbrou o arame quando refletiu a luz da lâmpada da rua lá fora. Os passos se dirigiram para a cozinha. E a luz se acendeu. Harry ouviu o fogão ser afastado.
Ele se levantou e foi para lá.
Harry ficou parado na porta olhando para ele de joelhos na frente do buraco, abrindo o saco com as mãos trêmulas. Colocando os objetos um ao lado do outro. A seringa, o tubo de borracha, a colher, o isqueiro, a pistola. Os pacotes de violino.
A soleira rangeu quando Harry mudou o peso das pernas, mas o garoto não percebeu, apenas continuou com a sua atividade febril.
Harry sabia que era a fissura. O cérebro estava focado numa só coisa. Ele tossiu.
O garoto ficou rígido. Os ombros curvados, mas não se virou. Sentou-se sem se mover, a cabeça baixa, olhando para o esconderijo. Não se virou.
“Eu pensei nisso,” Harry disse. “Aqui é onde você iria vir em primeiro lugar. Você sabia que agora a área estava limpa.”
O garoto ainda não tinha se mexido.
“Hans Christian disse que nós a encontramos para você, não foi? No entanto, você tinha que vir aqui primeiro.”
O garoto se levantou. E mais uma vez Harry se espantou. Como ele tinha ficado alto. Um homem, quase.
“O que você quer, Harry?”
“Eu vim te prender, Oleg.”
Oleg franziu a testa. “Pela posse de dois saquinhos de violino?”
“Não é pelo narcótico, Oleg. É pelo assassinato de Gusto.”
 
“ão faça isso!”, ele repetiu.
Mas eu já estava com a agulha enfiada numa veia profunda, que tremia de expectativa.
“Eu pensei que seria Stein ou Ibsen”, eu disse. “Não você.”
Eu não vi o maldito pé dele chegando. Ele bateu na agulha, que voou pelo ar e aterrissou nos fundos da cozinha, ao lado da pia cheia de pratos.
“Mas que porra, Oleg”, eu disse, olhando para ele.
 
leg olhou para Harry por um longo tempo.
Era um olhar sério, um olhar fixo e calmo, sem nenhum sinal de surpresa. Mais como se estivesse analisando a situação, tentando encontrar uma saída.
E quando falou o tom de Oleg era mais curioso do que irritado ou confuso.
“Mas você acreditou em mim, Harry. Quando eu disse que foi outra pessoa, alguém com uma balaclava, você acreditou em mim.”
“Sim”, disse Harry. “Eu acreditei em você. Porque eu queria muito acreditar em você.”
“Mas, Harry,” Oleg disse suavemente, olhando para o saquinho de pó que tinha aberto, “se você não pode acreditar no seu melhor amigo, no que você pode acreditar?”
“Evidências,” Harry disse, sentindo a garganta se apertar.
“Que evidências? Nós encontramos explicações para as evidências, Harry. Você e eu, nós desmontamos as evidências juntos, já esqueceu?”
“A outra evidência. A nova.”
“Qual evidência nova?”
Harry apontou para o chão, perto de Oleg. “Essa arma é uma Odessa. Ela usa balas do mesmo calibre que matou Gusto, Makarov, nove por 18 milímetros. Aconteça o que acontecer, o relatório da balística vai afirmar com cem por cento de certeza que esta arma é a arma do crime, Oleg. E tem as suas impressões nela. Apenas as suas. Se alguém a tivesse usado e depois limpado as impressões, as suas também teriam sido removidas.”
Oleg tocou a arma, como se para confirmar que era dela que eles estavam falando.
“E depois há a seringa”, disse Harry. “Há muitas impressões sobre ela, talvez a de duas pessoas. Mas é definitivamente a sua digital sobre o êmbolo. O êmbolo que você tem que pressionar quando vai aplicar um pico. E nessa impressão existem partículas de pólvora, Oleg.”
Oleg correu um dedo ao longo da seringa. “Como essa evidência pode ser usada contra mim?”
“Porque você disse no seu depoimento que estava alto quando entrou na sala. Mas as partículas de pólvora provam que você usou a seringa depois de ter adquirido as partículas. Isso prova que você atirou em Gusto primeiro e depois aplicou o pico. Você não estava alto no momento do ato, Oleg. Este foi um assassinato premeditado.”
Oleg balançou a cabeça lentamente. “E você conferiu as minhas impressões digitais na arma e na seringa contra o registo da polícia. Então, eles já sabem que eu...”
“Eu não entrei em contato com a polícia. Eu sou a única pessoa que sabe sobre isto.”
Oleg engoliu em seco. Harry viu os minúsculos movimentos da sua garganta. “Como você sabe que são minhas impressões se você não verificou com a polícia?”
“Eu tinha outras impressões para usar como comparação.”
Harry enfiou a mão no bolso do casaco. Colocou o Game Boy na mesa da cozinha.
Oleg olhou para o Game Boy. Piscou e piscou como se tivesse algum cisco no olho.
“O que fez você suspeitar de mim?”, sussurrou.
“O ódio”, disse Harry. “O velho, Rudolf Asayev, disse que eu deveria seguir o ódio.”
“Quem é esse cara?”
“Ele é o homem que você chamava de Dubai. Levei um tempo para perceber que ele estava se referindo ao seu próprio ódio. O ódio por você. O ódio pelo fato de você ter matado o filho dele.”
“Filho?” Oleg levantou a cabeça e olhou fixamente para Harry.
“Sim. Gusto era filho dele.”
Oleg abaixou o olhar, agachou-se e olhou para o chão. “Se...” ele balançou a cabeça. Começou de novo. “Se é verdade que Dubai era o pai de Gusto e se ele me odiava tanto por que ele não se certificou de que eu fosse morto na prisão de imediato?”
“Porque você estava exatamente onde ele queria que você estivesse. Porque para ele prisão era pior que a morte. Prisão come a tua alma, a morte simplesmente te liberta. A prisão era o que ele mais desejava para aqueles que ele mais odiava. Você, Oleg. E ele tinha total controle sobre o que você fazia lá. Foi só quando começou a falar comigo que você passou a representar um perigo, e ele teve de se contentar com a sua morte. Mas ele não conseguiu concretiza-la.”
Oleg fechou os olhos. Ficou assim, sentado sobre as pernas. Como se tivesse uma corrida importante pela frente, e agora eles só tinham que ficar quietos e concentrados.
A cidade estava tocando sua música lá fora: os carros, uma sirene de nevoeiro de um barco distante, uma buzina desanimada, o ruído da somatória das atividades humana, o crepitar do formigueiro, regular, contínuo e monótono, soporífero, tranquilizante como um edredom quente.
Oleg inclinou-se lentamente sem tirar os olhos de Harry.
Harry balançou a cabeça.
Mas Oleg agarrou a arma. Cuidadosamente, como se tivesse medo que fosse explodir nas suas mãos.
 
(23) Joe Zawinul foi um músico austríaco, de ascendência húngara, tcheca e cigana. Tecladista, compositor e arranjador de jazz, foi um dos principais criadores do jazz fusion, juntamente com Chick Corea, Herbie Hancock, John McLaughlin e Miles Davis. Zawinul, Corea e Hancock foram os primeiros músicos a utilizar piano elétrico e sintetizador.
 

(24) ‘Karius e Bactus’ é um livro infantil norueguês escrito e ilustrado por Thorbjørn Egner. Foi publicado pela primeira vez em 1949. Os personagens principais são Karius e Bactus. Seus nomes são trocadilhos de cárie e bactérias, e são dois pequenos ‘trolls dos dentes’ que vivem dentro das cavidades dos dentes de um menino chamado Jens.

ruls refugiou-se na solidão do terraço.
Ele tinha circulado pela periferia de alguns grupinhos de conversas, bebericando champanhe, comendo canapés e tentando agir como se fizesse parte dali. Algumas pessoas bem-educadas tentaram incluí-lo. Disseram olá!, perguntaram quem ele era e o que ele fazia. Truls tinha dado respostas breves, mas não lhe passou pela cabeça retribuir o favor. Como se ele não estivesse na posição de fazer isso. Ou estivesse com medo de ficar sabendo quem eram e que tipo de empregos superimportantes eles tinham.
Ulla se mantinha ocupada servindo e sorrindo e conversando com essas pessoas, como se fossem velhos conhecidos, e Truls tinha conseguido contato visual com ela somente em duas ocasiões. E então, com um sorriso, ela imitou algo que ele adivinhou, supostamente, que significa que ela teria gostado de falar com ele, mas os deveres de uma hostess eram prioritários. Constatou-se que os outros rapazes que haviam ajudado na construção do terraço ficaram incapacitados de comparecer, e o Chefe de Polícia não tinha reconhecido Truls, e nem os chefes de unidade. Ele refreou a vontade de ir até eles e dizer-lhes que ele era o policial que tinha dado o soco que fez o garoto ficar cego.
Mas o terraço era maravilhoso. Oslo brilhava como uma joia a seus pés.
O frio do outono tinha chegado com a alta pressão. Temperaturas abaixo de zero durante a noite tinham sido previstas nas áreas mais altas. Ele ouviu sirenes à distância. Uma ambulância. E pelo menos uma viatura da polícia. Em algum lugar no centro. Truls teria gostado de poder se esgueirar, ligar o rádio da polícia. Ouvir o que estava acontecendo. Sentir o pulso da sua cidade. O sentimento de fazer parte.
A porta do terraço se abriu, e Truls automaticamente deu dois passos para trás, para as sombras, para evitar ser envolvido numa conversa que o forçaria a se encolher ainda mais.
Era Mikael. E a política. Isabelle Skøyen.
Ela estava obviamente bêbada; de qualquer maneira Mikael estava lhe dando apoio. Uma grande mulher, ela se elevava acima dele. Eles pararam junto ao parapeito de costas para Truls, na área afastada da porta, de modo que eles ficaram escondidos dos hóspedes no salão.
Mikael ficou atrás dela, e Truls meio que esperava ver alguém acionar um isqueiro Zippo e acender um cigarro, mas isso não aconteceu. E quando ele ouviu o farfalhar do vestido e o abafado riso de protesto de Isabelle Skøyen, já era tarde demais para ele se mostrar. Ele viu o brilho de uma coxa branca antes da barra da saia ser puxada para baixo com firmeza. Agilmente ela se virou para ele, e suas cabeças se fundiram numa silhueta contra a cidade lá embaixo. Truls podia ouvir os ruídos de língua molhada. Ele se virou para a porta do salão. Viu Ulla sorrindo e circulando entre as pessoas com uma bandeja com novas provisões. Truls não conseguia entender. Não conseguia entender a maldita situação. Não que ele ficasse chocado, não era a primeira vez que Mikael se envolvia com outra mulher, mas ele não conseguia entender como Mikael tinha estômago para isso. Coragem para isso. Quando você tem uma mulher como Ulla, quando você tem essa incrível boa sorte, quando você acerta na loteria, como você pode querer arriscar tudo por uma transa furtiva? Será que só porque Deus, ou quem diabos for, deu-lhe tudo o que as mulheres desejam nos homens - boa aparência, ambição, uma língua suave que sabe o que dizer, e como - você se vê na obrigação de exercitar o seu potencial, sempre que houver oportunidade? Como as pessoas que medem dois metros e vinte que acham que devem jogar basquete. Ele não sabia. Tudo o que sabia era que Ulla merecia coisa melhor. Alguém para amá-la. Que a amasse do jeito que ele sempre tinha amado. E sempre amaria. O negócio com Martine tinha sido uma aventura frívola, nada sério, e de qualquer maneira nunca mais se repetiria. De vez em quando ele pensava que, de alguma forma, ele deveria deixar Ulla saber que se ela perdesse Mikael, ele, Truls, estaria lá. Mas ele nunca tinha encontrado as palavras certas para dizer isso a ela. Truls apurou os ouvidos. Eles estavam falando.
“Só sei que ele sumiu”, disse Mikael, e Truls podia ouvir pela fala um pouco atrapalhada que ele não estava totalmente sóbrio, também. “Mas eles encontraram os outros dois.”
“Os cossacos dele?”
“Eu ainda acredito que toda essa conversa deles serem cossacos é besteira. De qualquer forma, Gunnar Hagen da Brigada Criminal entrou em contato comigo e perguntou se eu poderia ajudar. Foram usadas bombas de gás lacrimogêneo e armas automáticas, então eles imaginam que pode ter sido um ajuste de contas entre gangues rivais. Ele me perguntou se a Orgkrim tinha alguma sugestão. Eles estavam tateando no escuro, ele me disse.”
“O que você respondeu?”
“Eu respondi que não tinha idéia de quem poderia ser, o que é verdade. Se é uma gangue eles conseguiram agir com total discrição.”
“Você acha que o velhinho conseguiu escapar?”
“Não.”
“Não?”
“Acho que seu corpo está apodrecendo em algum lugar lá embaixo.” Truls viu uma mão apontando para o céu estrelado. “Podemos, talvez, encontrá-lo muito em breve, ou talvez nós nunca iremos encontrá-lo.”
“Corpos sempre aparecem, não é?”
Não, Truls pensou. Ele estava com o peso distribuído uniformemente sobre os dois pés, sentiu-os pressionar contra o cimento do terraço, e vice-versa. Corpos nem sempre aparecem.
“No entanto,” Mikael disse, “alguém fez isso, e é alguém novo no pedaço. Logo veremos quem é o novo rei do mercado atacadista de narcóticos de Oslo.”
“E quais são as implicações para nós, na sua opinião?”
“Nenhuma, meu amor.” Truls podia ver Mikael Bellman colocando a mão atrás do pescoço de Isabelle Skøyen. Em silhueta, parecia que ele estava prestes a estrangulá-la. Ela cambaleou de lado. “Nós já temos o que queríamos. É neste ponto que nós descemos. Na verdade, este foi um final melhor do que esperávamos. Nós não precisamos mais do velhinho, e quando penso no que ele tinha em mãos sobre você e eu durante a nossa... nossa cooperação, bem...”
“Bem?”
“Bem...”
“Tire a mão, Mikael.”
Um riso alcoólico, suave como veludo. “Se este novo rei não tivesse feito o trabalho para nós eu teria que fazer isso sozinho.”
“Mandar Beavis fazer, você quer dizer?”
Truls estremeceu ao ouvir o apelido odiado. Mikael tinha sido o primeiro a usá-lo. E pegou. As pessoas tinham feito a ligação entre o queixo e o riso-grunhido. Mikael até tentou remediar, dizendo que estava pensando mais sobre a ‘percepção anarquista da realidade’ e a ‘moralidade não conformista’ do personagem do desenho animado da MTV. Do modo como ele explicou parecia que lhe havia concedido a porra de um título honorífico.
“Não, eu nunca deixaria Truls saber sobre o meu papel neste negócio.”
“Eu ainda acho que é estranho você não confiar nele. Vocês não são velhos amigos? Ele não fez este terraço para você?”
“Ele fez. Sozinho no meio da noite. Entende o que eu quero dizer? Estamos falando de um homem que não é cem por cento previsível. Ele está propenso a todos os tipos de ideias estranhas e maravilhosas.”
“No entanto, você aconselhou o velhinho a recrutar Beavis como um queimador?”
“Isso é porque eu conheço Truls desde a infância, e sei que ele é completamente corrupto e fácil de ser comprado.”
Isabelle Skøyen soltou uma risada aguda, e Mikael a silenciou.
Truls tinha parado de respirar. Sua garganta ficou apertada, e se sentiu como se tivesse um animal no estômago. Um animal pequeno e inquieto procurando uma saída. Provocando cócegas e sacudidelas. Tateando um caminho para cima. Apertando seu peito.
“Por falar nisso, você nunca me disse por que me escolheu como parceiro de negócios”, disse Mikael.
“Porque você é bem dotado, é claro.”
“Não, sério. Se eu não tivesse concordado em trabalhar com você e o velhinho, eu teria que prendê-los.”
“Prender?” Ela bufou. “Tudo o que fiz foi para o bem da cidade. Legalizando a maconha, distribuindo metadona, financiando locais privados para as injeções. Ou abrindo o caminho para uma droga que resulta em menos overdoses. Qual é a diferença? As políticas de drogas são pragmáticas, Mikael.”
“Relaxe, eu concordo, é claro. Fizemos de Oslo um lugar melhor. Ergueu o copo, façamos um brinde.”
Ela ignorou o copo levantado. “Você nunca teria me prendido de qualquer maneira. Porque, se você tivesse, eu teria dito para quem quisesse ouvir que eu estava transando com você por trás das costas da sua doce e encantadora esposa.” Ela riu. “Bem atrás das costas dela. Você se lembra da primeira vez que nos encontramos naquele estreia e eu disse que você poderia me foder? Sua esposa estava de pé bem atrás de você, quase ao alcance da nossa voz, mas você nem sequer piscou. Apenas me pediu 15 minutos para mandá-la para casa.”
“Shh, você está bêbada”, disse Mikael, colocando a mão nas costas dela.
“Naquele momento eu percebi que você era igual a mim. Então, quando o velhinho disse que eu deveria procurar um aliado com as mesmas ambições que eu, eu sabia exatamente a quem me dirigir. Skål, Mikael.”
“Falando nisso, nós precisamos encher os copos. Talvez devêssemos voltar e...”
“Apague o que eu disse sobre ‘ser igual a mim’. Nenhum homem é igual a mim, eles só estão atrás da minha...” Risada gutural profunda. Dela.
“Venha, vamos.”
“Harry Hole!”
“Shh.”
“Eis um homem diferente. Um pouco estúpido, é claro, mas... hmm. Onde você pensa que ele está?”
“Fizemos um demorado arrastão pela cidade sem sucesso, eu presumo que ele deixou o país. Ele conseguiu livrar Oleg, ele não vai voltar.”
Isabelle balançou, mas Mikael a segurou.
“Você é um filho da puta, Mikael, e nós, filhos da puta, nos merecemos.”
“Talvez, mas nós devemos voltar lá para dentro”, disse Mikael, olhando para o relógio.
“Não fique tão estressado, garotão. Eu posso lidar com uma bebida. Sabia?”
“Sei, mas você vai na frente, para não parecer tão...”
“Suspeito?”
“Algo parecido.”
Truls ouviu sua risada enérgica e a seguir seus saltos ainda mais enérgicos batendo no piso.
Ela tinha ido embora e Mikael ficou ali, encostado na grade.
Truls esperou alguns segundos. Então deu um passo adiante.
“Oi, Mikael.”
Seu amigo de infância se virou. Seus olhos estavam vidrados; seu rosto estava um pouco inchado. Truls presumiu, pelo tempo que Mikael demorou a reagir com um sorriso alegre, que era devido à bebida.
“Aí está você, Truls. Eu não ouvi você chegar. Existe vida lá dentro?”
“Merda, sim.”
Eles olharam um para o outro. E Truls perguntou-se exatamente quando e onde eles tinham se esquecido como era conversar um com o outro, o que tinha acontecido com aquelas conversas despreocupadas, os devaneios que tinham feito juntos, os dias em que era normal conversar sobre qualquer coisa e falar sobre tudo. Os dias em que os dois tinham sido um só. Como no início de suas carreiras quando eles batiam em qualquer sujeito que ousasse se aproximar de Ulla. Ou a merdinha da bicha que trabalhava na Kripos e tentou cantar Mikael, e então o levaram para a sala da caldeira em Bryn alguns dias mais tarde. O cara tinha chorado e pediu desculpas, dizendo que não tinha interpretado Mikael direito. Tinham evitado o rosto para que não ficasse tão óbvio, mas o maldito choro de bebê deixou Truls tão irritado que ele empunhou o cassetete com mais força do que pretendia, e Mikael mal conseguiu detê-lo. Não eram o que se poderia chamar de boas lembranças, mas ainda assim, foram experiências que uniam duas pessoas.
“Bem, eu estou aqui admirando o terraço”, disse Mikael.
“Obrigado.”
“Por falar nisso, eu pensei em algo. Na noite em que você colocou o concreto...”
“Sim?”
“Você disse, se me recordo bem, que estava agitado e não conseguia dormir. Mas agora me lembrei que foi na noite da prisão de Odin e da batida em Alnabru. E aquele cara desapareceu - qual era o nome?”
“Tutu”.
“Tutu, sim. Você deveria ter ido com a gente naquela noite, mas estava doente, você me disse. E então você misturou concreto”
Truls sorriu. Olhou para Mikael. Por fim, ele conseguiu captar o olhar dele, e mantê-lo.
“Você quer ouvir a verdade?”
Mikael pareceu hesitar antes de responder. “Adoraria.”
“Eu estava matando o trabalho.”
O terraço ficou em silêncio por alguns segundos; tudo o que se podia ouvir era o ruído distante da cidade.
“Você estava matando o trabalho?” Mikael riu. Um riso céptico, mas bem-humorado. Truls gostava da risada dele. Todo mundo gostava, tanto homens como mulheres. Era uma risada que dizia ‘você é engraçado e simpático e, provavelmente, inteligente e merece uma risada amigável’.
“Você matando trabalho? Você que nunca falta e adora fazer uma prisão?”
“Sim”, disse Truls. “Eu não estava a fim. Eu tinha transado.”
Silêncio novamente.
Então, Mikael caiu na gargalhada. Ele se inclinou para trás e riu tanto que ficou ofegante. Nenhuma cárie. Inclinou-se novamente e bateu no ombro de Truls. Sua risada era tão feliz e solta que depois de alguns segundos Truls não podia mais se conter. Ele riu também.
“Trepando e construindo um terraço,” Mikael Bellman se engasgou. “Você é demais, Truls. É demais mesmo.”
Truls sentiu o elogio fazer a sua autoestima retornar e sentiu-se normal novamente. E, por um momento, era quase como nos velhos tempos. Não, não quase, foi como nos velhos tempos.
“Você sabe”, ele grunhiu, “de vez em quando você tem que fazer as coisas por conta própria. Essa é a única maneira de você conseguir fazer um trabalho decente.”
“Certo”, disse Mikael, envolvendo um braço em volta dos ombros de Truls e batendo os dois pés no terraço. “Mas isto, Truls, é muito cimento para um homem.”
Sim, Truls pensou, sentindo uma deliciosa risada borbulhando no peito. É muito cimento para um homem.
 
“u deveria ter ficado com o Game Boy quando você me deu”, disse Oleg.
“Você deveria”, Harry disse, inclinando-se contra a porta. “Então você poderia melhorar a sua técnica no Tetris.”
“E você deveria ter retirado o carregador antes de recolocar a arma no lugar.”
“Talvez.” Harry tentou não olhar para a Odessa que apontava metade para o chão, metade para ele.
Oleg deu um sorriso pálido. “Eu suponho que nós dois cometemos uma série de erros. Não?”
Harry acenou com a cabeça.
Oleg tinha se levantado e estava de pé ao lado do fogão. “Mas eu não cometi apenas erros, não é?”
“De modo nenhum. Você fez muitas coisas certas também.”
“Como o que?”
Harry deu de ombros. “Quando disse que você se jogou contra a arma do suposto assassino. Dizendo que ele usava uma balaclava e não disse uma palavra. Que só usou gestos. Você me induziu a fazer as conclusões óbvias: que explicava o porquê do resíduo de pólvora na sua pele, e que o assassino não falou porque tinha medo que você reconhecesse sua voz, portanto ele tinha alguma ligação com o tráfico de drogas ou com a polícia. Meu palpite é que você falou da balaclava porque notou que o policial que foi com vocês até Alnabru tinha uma. Na tua história você o localizou no escritório vizinho porque tinha sido arrombado, e estava aberto de modo que qualquer um poderia entrar e sair de lá para o rio. Você me deu as dicas para que eu pudesse construir minha própria explicação convincente do por que você não tinha matado Gusto. Uma explicação que você sabia que meu cérebro iria aceitar. Porque os nossos cérebros estão sempre dispostos a deixar as emoções tomarem as decisões. Sempre prontos a encontrar as respostas consoladoras que nossos corações precisam.”
Oleg balançou a cabeça lentamente. “Mas agora você tem todas as outras respostas. As corretas.”
“Menos uma,” disse Harry. “Por quê?”
Oleg não respondeu. Harry levantou a mão direita, enquanto colocava lentamente a esquerda no bolso da calça e puxava  um maço de cigarros amassado e o isqueiro.
“Por quê, Oleg?”
“O que você acha?”
“Por um tempo eu pensei que foi por causa de Irene. Ciúmes. Ou que você sabia que ele tinha vendido Irene para alguém. Mas se ele era o único que sabia onde ela estava, então você não poderia matá-lo até que ele lhe dissesse. Por isso, o motivo devia ter sido outro. Algo tão forte quanto o amor por uma mulher. Porque você não é nenhum assassino, não é?”
“Você é quem está dizendo.”
“Você é um homem com um motivo clássico que tem impulsionado os homens, homens bons, a cometerem atos terríveis, inclusive eu. A investigação tem andado em círculos. Chegando a lugar nenhum. Eu estou de volta ao ponto por onde começamos. Um caso de amor. O pior tipo.”
“O que você sabe sobre isso?”
“Porque eu estive apaixonado pela mesma mulher. Ou pela sua irmã. Ela é linda de morrer durante a noite, e tão feia quanto o pecado quando você acorda na manhã seguinte.” Harry acendeu o cigarro preto com o filtro dourado e a águia imperial russa. “Mas quando a noite chega você esqueceu tudo e está apaixonado novamente. E nada consegue competir com este amor, nem mesmo Irene. Estou errado?”
Harry deu uma tragada e observou Oleg.
“O que você quer que eu diga? Você sabe tudo de qualquer maneira.”
“Eu quero ouvir você dizer isso.”
“Por quê?”
“Porque eu quero que você se ouça dizendo isso. Para que você possa ouvir como é doentio e sem sentido.”
“O quê? É doentio atirar em alguém porque ele está roubando a sua droga? A droga que você fez das tripas coração para adquirir?”
“Você não percebe como essas palavras são banais e doentias?”
“E é você quem diz isso!”
“Sim, sou eu. Eu perdi a melhor mulher do mundo porque eu não fui capaz de resistir. E você matou seu melhor amigo, Oleg. Diga o nome dele.”
“Por quê?”
“Diga o nome dele.”
“Eu tenho a arma.”
“Diga o nome dele.”
Oleg sorriu. “Gusto. O que...”
“Mais uma vez.”
Oleg inclinou a cabeça e olhou para Harry. “Gusto”.
“Mais uma vez!” Harry gritou.
“Gusto!” Oleg gritou de volta.
“Mais uma v...”
“Gusto!” Oleg respirou fundo. “Gusto! Gusto...” Sua voz tinha começado a tremer. “Gusto!” Ela estava se desfazendo. “Gusto. Gus...” Um soluço finalmente. “... to” Lágrimas rolaram quando ele apertou os olhos e sussurrou: “Gusto. Gusto Hanssen...”
Harry deu um passo adiante, mas Oleg levantou a arma.
“Você é jovem, Oleg. Você ainda pode mudar.”
“E quanto a você, Harry? Você não pode mudar?”
“Eu gostaria de poder, Oleg. Eu gostaria de ter podido, então eu teria cuidado melhor de nós dois. Mas é tarde demais para mim. Eu sou a pessoa que eu sou.”
“Qual? Alcoólatra? Traidor?”
“Policial.”
Oleg riu. “É isso? Policial? Não um ser humano ou quase?”
“Principalmente um policial.”
“Principalmente um policial”, Oleg repetiu com um aceno de cabeça. “Isso não é banal?”
“Banal e triste,” Harry disse, pegando o cigarro fumado pela metade e olhando com desaprovação, como se ele não estivesse funcionando como devia. “Porque isso significa que eu não tenho escolha, Oleg.”
“Escolha?”
“Eu tenho que garantir que você receberá a sua punição.”
“Você não trabalha mais para a polícia, Harry. Você está desarmado. E ninguém mais sabe o que você descobriu ou que você está aqui. Pense na mamãe. Pense em mim! Pela primeira vez, pense em nós, em nós três.” Seus olhos estavam cheios de lágrimas, e havia um tom de desespero agudo e metálico na voz. “Por que você não pode simplesmente ir embora, e então vamos esquecer tudo, então vamos dizer que isso não aconteceu?”
“Eu gostaria de poder”, disse Harry. “Mas você me encurralou. Eu sei o que aconteceu, e eu tenho que parar você.”
“Então por que você me deixou ficar com a arma?”
Harry deu de ombros. “Eu não posso prendê-lo. Você tem que se entregar. É a sua obrigação.”
“Me entregar? Por quê? Acabei de ser solto!”
“Se eu te prender eu vou perder a sua mãe e você. E sem você eu não sou nada. Não posso viver sem você. Você entende, Oleg? Eu sou um rato que foi encurralado e só há um caminho. O caminho passa por você.”
“Então me deixe ir! Vamos esquecer todo o negócio e começar de novo!”
Harry balançou a cabeça. “Assassinato premeditado, Oleg. Eu não posso. Você é o único com a arma, a decisão está nas suas mãos. Agora é você quem deve pensar em nós três. Hans Christian pode resolver as coisas e a sua pena será substancialmente reduzida.”
“Mas vai ser longa o suficiente para eu perder Irene. Ninguém iria esperar tanto tempo.”
“Talvez sim, talvez não. Talvez você já tenha perdido.”
“Você está mentindo! Você sempre mente!” Harry observou Oleg piscar para expulsar as lágrimas dos olhos. “O que você vai fazer se eu me recusar a me entregar?”
“Então eu vou ter que prender você.”
Um gemido escapou dos lábios de Oleg, um som a meio caminho entre um soluço e um riso incrédulo.
“Você é louco, Harry.”
“É assim que eu sou, Oleg. Eu faço o que eu tenho que fazer. Como você tem que fazer o que você precisa fazer.”
“Tem que? Você faz parecer como uma maldição dos infernos.”
“Talvez.”
“Besteira!”
“Quebre a maldição, então, Oleg. Porque você realmente não quer matar de novo, não é?”
“Saia!” Oleg gritou. A arma balançou na mão. “Vá embora! Você não está mais na polícia!”
“Correto”, disse Harry. “Mas eu sou, como eu disse...” Ele apertou os lábios em torno do cigarro preto e aspirou profundamente. Fechou os olhos, e por dois segundos ficou assim, como se estivesse saboreando. Em seguida, ele expulsou o ar e a fumaça para fora dos pulmões com um silvo. “...um policial.” Ele deixou o cigarro cair no chão na frente dele. Pisou nele enquanto avançava na direção de Oleg. Levantou a cabeça. Oleg era quase tão alto quanto ele. Harry encontrou os olhos do garoto atrás da mira da arma levantada. Ouviu a arma ser engatilhada. Já sabia o resultado. Ele era um obstáculo, o garoto não tinha outra escolha; eles eram duas incógnitas de uma equação sem solução, dois corpos celestes em curso para uma inevitável colisão, um jogo de Tetris em que apenas um deles poderia ganhar. Onde apenas um deles queria ganhar. Ele esperava que Oleg tivesse o bom senso de se livrar da arma depois, que ele pegasse o avião para Bangkok, que ele nunca transpirasse uma palavra para Rakel, que ele não acordasse gritando no meio da noite com o quarto cheio de fantasmas do passado e que ele tivesse sucesso em construir uma vida digna de ser vivida. A sua já não tinha jeito. Não tinha mais tempo. Ele preparou-se e continuou a andar, sentiu o peso do seu corpo, viu o olho preto do canhão crescendo. Um dia de outono, Oleg, 10 anos de idade, seu cabelo arrepiado pelo vento, Rakel, Harry, folhas alaranjadas, olhando para a câmera, esperando o clique do disparador automático. Prova inequívoca de que eles tinham feito aquilo, tinham estado lá, atingiram o auge da felicidade. O dedo indicador de Oleg, branco nas articulações enquanto se enrolava apertado em volta do gatilho. Não havia caminho de volta. Nunca tinha havido tempo para pegar o avião. Nunca houve qualquer avião, nem Hong Kong, apenas uma ideia de vida que nenhum deles teria sido capaz de viver. Harry não sentia medo. Somente tristeza. A breve salva soou como um único tiro e fez vibrar as janelas. Ele sentiu a pressão física das balas atingindo-o no meio do peito. O recuo fez o cano subir e a terceira bala atingiu-o na cabeça. Ele caiu. Abaixo dele, a escuridão. E ele mergulhou nela. Até ser engolido e envolvido por um ‘nada’ refrescante e indolor. Finalmente, ele pensou. E esse foi o pensamento final de Harry Hole. Depois de tudo, finalmente ele estava livre.
 
 mãe rato ouvia. Os gritos da sua jovem prole eram ainda mais distintos agora que os sinos da igreja tinham se calado depois de anunciar as dez horas e a sirene da polícia que tinha se aproximando desapareceu na distância novamente. Só restaram apenas os fracos batimentos cardíacos. Em algum lugar da sua memória de rato estava armazenado o cheiro de pólvora e um outro, o cheiro de um corpo humano mais jovem deitado aqui e sangrando no mesmo chão desta cozinha. Mas isso tinha sido no verão, muito antes do nascimento dos seus filhotes. E o corpo não bloqueava o caminho para o ninho.
Ela tinha descoberto que o estômago do homem era mais difícil de ser atravessado do que pensava e teria de encontrar outra opção. Então ela voltou para onde tinha começado.
Mordeu mais uma vez o couro do sapato.
Lambeu o metal novamente, o metal salgado que se projetava entre dois dos dedos da mão direita.
Arranhou o paletó que cheirava a suor, sangue e comida, tantos tipos de comida que o linho parecia ter sido retirado de um depósito de lixo.
E lá estava novamente, moléculas do invulgarmente forte cheiro de fumaça que não tinha sido completamente diluído. E mesmo as poucas moléculas faziam seus olhos arderem e lacrimejarem e tornava a respiração difícil.

Ela correu até o braço, passou pelo ombro, encontrou um curativo manchado de sangue ao redor do pescoço, que a distraiu por um momento. Então, ela ouviu os gritos da sua prole novamente e correu para o peito. Ainda havia um cheiro forte vindo dos dois furos redondos no paletó. Enxofre, pólvora. Um era bem em cima do coração; de qualquer forma a rata podia sentir as vibrações quase imperceptíveis das batidas do coração. Ele ainda estava batendo. Ela continuou até a testa, lambeu o sangue que escorria num único fluxo fino do cabelo loiro. Desceu para os lábios, nariz, pálpebras. Havia uma cicatriz ao longo da bochecha. O cérebro de rato trabalhou como cérebros de ratos fazem em experimentos de labirinto, com surpreendente racionalidade e eficiência. A bochecha. O interior da boca. O pescoço logo abaixo da cabeça. Em seguida, ela estaria do outro lado. A vida de um rato era difícil e simples. Você faz o que tem que fazer.
luar brilhava no rio Akerselva, fazendo o córrego depravado que atravessava a cidade fluir como uma corrente de ouro. Poucas mulheres ousavam caminhar pelas trilhas desertas à beira d’água, mas Martine ousava. Tinha sido um longo dia na Watchtower, e ela estava cansada. Mas se sentindo bem. Tinha sido um dia longo e agradável. Um garoto, saindo das sombras, se aproximou dela, viu seu rosto sob a luz de um poste, murmurou um baixo ‘oi’ e se afastou.
Rikard tinha perguntado, várias vezes, se ela não deveria, principalmente agora que estava grávida, usar um caminho diferente para casa, mas ela respondeu que era o caminho mais curto para Grünerløkka. E ela se recusava a deixar alguém impedi-la de caminhar livremente pela sua cidade. Além disso, ela conhecia tantas daquelas pessoas que viviam sob as pontes que se sentia mais segura aqui do que em qualquer bar badalado de Oslo Oeste. Ela passou pelo Posto de Atendimento de Emergências e Acidentes, pela Schous plass e estava se dirigindo para Blå quando ouviu o piso ressoar com as batidas curtas e fortes de sapatos. Um jovem alto vinha correndo na sua direção. Deslizando pela escuridão, iluminando com uma lanterna ao longo do caminho. Ela teve um vislumbre do seu rosto antes dele desaparecer, e ouviu a sua respiração ofegante se dissipando na distância atrás dela. Era um rosto familiar, que ela já tinha visto na Watchtower. Mas havia tantos deles, e muitas vezes ela pensava que tinha visto determinadas pessoas e depois os colegas lhe diziam que já estavam mortas há meses, anos até. Mas, por alguma razão, aquele rosto a fez pensar em Harry novamente. Ela nunca falou sobre ele com ninguém, muito menos com Rikard, é claro, mas ele tinha criado um pequeno espaço dentro dela, uma pequena sala onde ela poderia eventualmente ir visitá-lo. Teria sido Oleg? Foi por isso que se lembrou de Harry agora? Ela se virou. Viu as costas do rapaz que ainda estava correndo. Como se o diabo estivesse nos seus calcanhares, como se ele estivesse tentando fugir de algo. Mas ela não viu ninguém atrás dele. Ele foi ficando cada vez menor. E logo estava perdido na escuridão.
 
rene olhou para o relógio. Onze e cinco. Ela se inclinou para trás na sua cadeira e olhou para o monitor de avisos. Em poucos minutos os passageiros seriam autorizados a entrar no avião. Papai tinha enviado uma mensagem de texto para dizer que iria se encontrar com eles no aeroporto de Frankfurt. Ela estava suando e seu corpo doía. Não ia ser fácil. Mas tudo daria certo.
Stein apertou a mão dela.
“Como vão as coisas, querida?”
Irene sorriu. Apertou de volta.
Tudo daria certo.
“Nós a conhecemos?” Irene sussurrou.
“Quem?”
“Aquela de cabelos escuros sentada ali sozinha.”
Ela já estava sentada lá quando eles chegaram, numa cadeira perto do portão de embarque em frente a eles. Ela estava lendo um Guia de Viagens sobre a Tailândia. Ela era bonita, o tipo de beleza que a idade nunca apaga. E ela irradiava alguma coisa, uma espécie de felicidade tranquila, como se estivesse rindo por dentro, mesmo estando sozinha.
“Eu não. Quem é ela?”
“Eu não sei. Ela me lembra alguém.”
“Quem?”
“Eu não sei.”
Stein riu. Aquele riso seguro e tranquilo de um irmão mais velho. Apertou a mão dela novamente.
Ouviram um pling prolongado, e uma voz metálica anunciou que o voo para Frankfurt estava aberto para o embarque. Pessoas se levantaram em direção à mesa. Irene segurou Stein, que também queria se levantar.
“O que foi, querida?”
“Vamos esperar até que a fila fique menor.”
“Mas...”
“Eu não me sinto confortável entrando no túnel de embarque tão perto... de pessoas.”
“OK. Estúpido da minha parte. Como você se sente?”
“Bem, ainda.”
“Bom.”
“Ela parece solitária.”
“Solitária?” Stein olhou para a mulher. “Eu discordo. Ela parece feliz.”
“Sim, mas só.”
“Feliz e solitária?”
Irene riu. “Não, eu estou enganada. Talvez seja aquele garoto com quem ela se parece que é solitário.”
“Irene?”
“Sim?”
“Você se lembra do que combinamos? Pensamentos felizes, OK?”
“Certo. Nós dois não estamos sozinhos.”
“Não, nós estamos aqui um para o outro. Para sempre, certo?”
“Para sempre”.
Irene enganchou a mão sob o braço do irmão e descansou a cabeça no seu ombro. Pensou no policial que a tinha encontrado. Ele disse o seu nome, Harry. No início, ela tinha pensado no Harry que Oleg sempre mencionava. Ele era policial também. Mas da forma como Oleg tinha falado ela sempre tinha imaginado um homem mais alto, mais jovem, talvez mais bonito do que aquele um pouco feio que a libertara. Mas ele havia visitado Stein também, e agora ela sabia que era ele. Harry Hole. E ela sabia que iria se lembrar dele pelo resto da sua vida. Seu rosto cheio de cicatrizes, a ferida no queixo e a grande atadura em volta do pescoço. E a voz. Oleg não tinha contado que ele tinha uma voz tão suave. E, de repente ela tinha certeza, havia uma certeza, ela não tinha idéia de onde vinha, apenas estava lá:
Tudo daria certo.
Assim que tivesse deixado Oslo, ela seria capaz de deixar tudo para trás. Não iria tocar em nada, nem álcool nem drogas, que foi o que o pai e o médico que havia consultado tinham explicado para ela. O violino estaria lá, sempre estaria, mas ela iria mantê-lo à distância. Assim como o fantasma de Gusto iria assombrá-la sempre. O fantasma de Ibsen. E todas as pobres almas para quem ela tinha vendido morte em pó. Eles iriam aparecer quando desejassem. E em poucos anos talvez eles se tornassem pálidos. E ela voltaria para Oslo. O importante era que tudo daria certo. Ela conseguiria criar uma vida que valia a pena viver.
Ela olhou para a mulher que estava lendo. E a mulher olhou para cima, como se tivesse pressentido. Ela deu um breve mas brilhante sorriso, em seguida, seu nariz apontou novamente para o Guia de Viagens.
“Vamos lá,” disse Stein.
“Vamos lá,” Irene repetiu.
 
ruls Berntsen dirigia através do Kvadraturen. Ladeira abaixo em direção a Tollbugata. Pela Prinsens Gate. Para Rådhusgata. Ele havia deixado a festa mais cedo, entrou no carro e dirigiu para onde quer que o capricho o levasse. Estava frio e claro e o Kvadraturen era vibrante à noite. Prostitutas o chamavam - elas deviam ter sentido o odor de testosterona. Os traficantes engajados numa guerra de preços. O alto-falante de um Corvette estacionado vibrava, bum, bum, bum. Um casal estava se beijando no ponto do bonde. Um homem corria pela rua rindo alegremente, o paletó aberto esvoaçando ao vento; outro homem num terno idêntico estava correndo atrás dele. Na esquina da Dronningens Gate uma camisa do Arsenal solitária. Ninguém que Truls já tivesse visto antes, devia ser novo na área. Seu rádio da polícia estalava. E Truls sentia uma estranha sensação de bem-estar: o sangue estava fluindo nas suas veias, o alto-falante, o ritmo de tudo o que estava acontecendo, sentado ali e assistindo tudo, vendo todas as pequenas engrenagens que não sabiam nada uma da outra, mesmo assim fazendo as outras continuar em movimento. Ele era o único a ver, ver a totalidade. E era exatamente assim que devia ser. Era assim que a sua cidade deveria ser.
 
O sacerdote da Igreja Gamlebyen abriu a porta e saiu. Ouviu o farfalhar das copas das árvores no cemitério. Olhou para a lua. Uma noite linda. O concerto tinha sido um sucesso e o público foi grande. Mais numeroso do que o público do culto matinal, amanhã de manhã. Ele suspirou. O sermão que estava preparando para pregar aos bancos vazios iria tratar do perdão dos pecados. Desceu os degraus. Passou pelo cemitério. Ele decidiu pregar o mesmo sermão que tinha usado durante o funeral na sexta-feira. O falecido, de acordo com o parente mais próximo - sua ex-esposa - tinha se envolvido em negócios criminosos no fim dos seus dias e mesmo antes disso tinha vivido uma vida tão cheia de pecados que formavam uma montanha difícil de escalar para aqueles que se aventurassem. Mas não havia muitos interessados. Os únicos enlutados presentes eram a ex-esposa e seus filhos, além de uma colega que tinha fungado ruidosamente durante toda a cerimônia. A ex confidenciou-lhe que a colega era, provavelmente, a única aeromoça da companhia com quem o falecido não tinha dormido.
O sacerdote passou por uma lápide, viu nela os restos de alguma coisa branca ao luar, como se alguém tivesse escrito com giz e depois apagou. Era a lápide de Askild Cato Rud. Também conhecido como Askild Øregod. Desde tempos imemoriais, a regra era que o contrato de arrendamento de túmulos expirava depois de uma geração, a menos que fosse renovada - um privilégio reservado para os ricos. Mas por razões desconhecidas a sepultura do pobre Askild Cato Rud tinha sido preservada. E uma vez que era realmente muito antiga, tinha sido protegida. Talvez houvesse uma esperança otimista de que poderia se tornar um local de interesse especial: a lápide mais pobre de Oslo Leste, onde os parentes dos infelizes só podiam pagar apenas por uma pequena pedra e - uma vez que o pedreiro era pago por letra - apenas pelas iniciais antes do sobrenome e as datas, nenhum texto abaixo. O curador do cemitério tinha afirmado que o sobrenome correto era Ruud, e a família tinha economizado mais uma ninharia com isso. Então, apareceu esse mito de que Askild Øregod ainda perambulava pelo bairro. Mas esse mito não conseguiu ir muito longe. Askild Øregod tinha sido esquecido e deixado - literalmente - descansando em paz.
Quando o sacerdote foi fechar o portão do cemitério uma figura surgiu das sombras da parede. O padre endureceu automaticamente.
“Tenha misericórdia,” disse uma voz rouca. E uma grande mão aberta foi estendida.
O sacerdote olhou para o rosto sob o chapéu. Era uma cara velha, vincada, com um nariz robusto, orelhas grandes e dois olhos azuis, inocentes e surpreendentemente claros. Sim, inocentes. Isso foi precisamente o que o padre pensou depois de dar ao pobre homem uma moeda de vinte coroas enquanto continuava para sua casa. Os olhos azuis inocentes de um bebê recém-nascido que ainda não precisava de perdão pelos pecados. Ele poderia colocar isso no sermão de amanhã.
 
A história está chegando ao fim agora, papai.
Estou sentado aqui, e Oleg está de pé em cima de mim. Ele está segurando a Odessa com as duas mãos, como se estivesse agarrado a um galho pendurado num precipício. Segurando firme e gritando. Totalmente fora de si. “Onde ela está? Onde está Irene? Diga-me, ou então... ou então...”
“Ou então o quê, drogado? Você não é capaz de usar essa arma. Você não foi feito para isso, Oleg. Você é do time dos mocinhos. Vamos lá, relaxe e vamos compartilhar um pico. OK?”
“De jeito nenhum. Não até que você me diga onde ela está.”
“Então vou poder ficar com o pico todinho para mim?”
“Metade. É o meu último.”
“Combinado. Abaixe a arma primeiro.”
O idiota fez como eu disse. Curva de aprendizado muito plana. Tão fácil de enganar como na primeira vez, ao sair do concerto do ‘Judas Priest’. Ele se abaixou, colocou a arma esquisita no chão na frente dele. Eu vi a alavanca na posição C, o que significava que dispararia em salvas. A menor pressão sobre o gatilho e...
“Então, onde ela está?”, ele perguntou, levantando-se.
E agora, agora que eu não tinha aquele trabuco apontando para mim, eu podia sentir aquilo chegando. A fúria. Ele havia me ameaçado. Assim como meu pai adotivo tinha feito. E se há uma coisa que eu não posso suportar, é me sentir ameaçado. Então, ao invés de vender uma versão agradável - ela estava num centro de reabilitação secreto na Dinamarca, isolado, não podia ser contatada por amigos que poderiam levá-la de volta as drogas, bla, bla, bla – eu torci a faca. Eu tive que torcer a faca. Sangue ruim corre pelas minhas veias, papai, então mantenha sua a boca fechada. Isto é, o que sobrou de sangue, porque a maior parte está no chão da cozinha. Mas eu torci a porra da faca como o idiota que eu sou.
“Eu vendi Irene,” eu disse. “Por algumas gramas de violino.”
“O quê?”
“Eu vendi Irene para um alemão no centro. Não sei o nome dele ou onde ele mora. Munique talvez. Talvez neste momento ele esteja sentado no seu apartamento em Munique com um amigo e os dois estão sendo chupados por Irene, com aquela boquinha linda. E ela está tão alta como uma pipa e não sabe de quem é o pau  porque tudo o que ela consegue pensar é no seu verdadeiro amor. E o nome dele é...”
Oleg ficou de boca aberta, piscando e piscando. Com o olhar tão estúpido como no dia que me deu quinhentas coroas. Eu abri meus braços como um mágico do caralho.
“...violino!”
Oleg continuou piscando, tão chocado que não reagiu quando eu me atirei para a arma.
Ou assim eu pensei.
Porque eu tinha esquecido alguma coisa.
Naquele dia ele me seguiu. Ele sabia que eu não ia comprar metanfetamina. Ele tinha certas habilidades. Ele podia ler os pensamentos das pessoas também. Pelo menos a de um ladrão.
Eu deveria saber. Eu deveria ter aceitado a meia dose. Ele alcançou a arma antes de mim. Provavelmente ele apenas roçou no gatilho. Estava selecionada em C. Eu vi seu rosto chocado antes de bater no chão. Ouvi tudo ficar tão tranquilo. Ouvi Oleg se inclinando sobre mim. Ouvi um zumbido lamuriento, como um motor em marcha lenta, como se ele quisesse chorar, mas não podia. Então ele caminhou lentamente para a extremidade da cozinha. O verdadeiro viciado faz as coisas numa sequência específica. Ele se aplicou um pico e colocou a seringa ao meu lado. Até perguntou se eu queria compartilhar. Seria legal, mas eu não podia falar mais nada. Apenas escutava. E eu ouvi seus passos lentos e pesados nas escadas quando saiu. E eu fiquei sozinho. Mais só do que nunca.
Os sinos da igreja pararam de badalar.
Suponho que contei toda a história.
Agora não dói tanto.
Você está aí, papai?
Você está aí, Rufus? Você está me esperando?

De qualquer forma, eu me lembro de algo que o velhinho me disse. A morte liberta a alma. Liberta a porra da alma. Será? Dane-se se eu sei. Veremos.

 

 

                                                                                                    Jo Nesbo

 

 

 

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