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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HERANÇAS / Janet Dailey
HERANÇAS / Janet Dailey

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Já é do conhecimento de todos que a terra indígena a oeste do Arkansas é considerada pelo próximo governo do sr. Lincoln como um território fértil e maduro para a colheita dos abolicionistas e nortistas aproveitadores. Esperamos encontrar em seu povo amigos desejosos de cooperar com o Sul.

- Henry M. Rector, Governador do Arkansas (em carta a John Ross, principal chefe da nação cherokee)

Springzeíd, Massachusetts Maio de 1860

A carruagem parou diante do prédio de três andares no bairro residencial mais elegante da cidade. com uma agilidade que negava sua idade avançada, o cocheiro saltou para ajudar a passageira, uma adorável moça de dezenove anos trajando um vestido em dois tons de azul que combinava com o louro-mel de seus cabelos e ressaltava seus olhos azuis. Aceitando a mão que ele lhe oferecia, ela desceu e imediatamente abriu a sombrinha para proteger o rosto dos brilhantes raios do sol da tarde.

- Estarei aqui à sua espera quando estiver pronta para ir, srta. Parmelee - informou-lhe o cocheiro com um rápido aceno de cabeça.

- Obrigada.

Diane Parmelee deu-lhe um sorriso charmoso. Subiu graciosamente os degraus da varanda e bateu à porta. Segundos depois ela foi aberta pela criada irlandesa dos Fletchers, Bridget OShaughnessy, que vestia um uniforme branco que combinava com seus cabelos brancos.

- Como vai, Bridie? - cumprimentou-a Diane com um sorriso amável.

A criada olhou-a, boquiaberta, surpresa com a sua presença.

- Deus seja louvado, é a srta. Diane. E como está crescida. Que dia cheio de visitas este. O capitão também veio?-perguntou, olhando por trás de Diane.

- Não, meu pai ainda está em seu posto em Saint Louis.

- Olhe só para mim, tagarelando e deixando a senhorita parada aí-repreendeu-se a criada, fazendo um gesto para que ela entrasse. - Entre, entre.

Diane fechou a sombrinha e entrou no saguão oval. A criada esfregava as mãos, nervosa.

- Sei que deveria perguntar por sua mãe, mas aborreço-me só em pensar nela. Sei que não devo julgá-la, mas é difícil perdoá-la por divorciar-se do capitão, sendo ele um oficial e um cavalheiro.

Diane riu em genuína afeição.

 

 

 

 

- Bridie, você não mudou nada - disse ela. Era incapaz de ofender-se com a crítica da criada à sua mãe. Por mais que lamentasse o recente divórcio de seus pais, Diane era crescidinha o bastante para compreender as diferenças que finalmente provocaram o término do casamento deles: seu pai amava a vida militar e a fronteira, enquanto sua mãe desejava uma vida mais civilizada e o lar permanente que tom Austin lhe oferecera.

- com certeza e seguramente a senhorita mudou - retrucou a mulher. - Está uma imagem adulta da pessoa adorável que sempre foi. Sei que a sra. Fletcher ficará triste em saber que esteve aqui e não pôde vê-la, mas hoje é dia do chá das senhoras da Sociedade Bibliotecária.

Diane ficou decepcionada. Sempre gostara da companhia da sra. Fletcher, que tinha sido sua confidente desde a sua volta à cidade, anos atrás.

- Esperava encontrá-la em casa. Mas estou hospedada na casa dos Wickhams. vou deixar meu cartão...

- Mas a senhorita não pode ir sem antes ver o sr. Fletcher argumentou a criada, enfaticamente. - É minha pele que estará salvando se assim o fizer. Venha comigo. Ele está no estúdio.

Guiou Diane pelo corredor até uma porta dupla de madeira. Bateu uma vez e abriu-a.

- com licença, senhor. Há outra visitante aqui para vê-lo. Sem anunciar Diane pelo nome, a criada deu um passo atrás para deixá-la entrar.

Diane entrou no estúdio, e Payton Fletcher moveu-se rapidamente para cumprimentá-la. Aos sessenta anos de idade, era um homem corpulento de rosto redondo e cabelos brancos que desciam pelas beiradas de sua coroa calva.

- Diane, que deliciosa surpresa. - Estendeu as mãos para dar-lhe boas-vindas. - O que está fazendo aqui em Springfield?

- Estou hospedada na casa do juiz Wickhman este verão, com sua neta Ann Elizabeth, enquanto mamãe está em lua-de-mel, fazendo o grand tour da Europa. Naturalmente uma das primeiras coisas que queria fazer depois de chegar aqui era visitar os padrinhos favoritos de meu pai.

- Somos os únicos padrinhos dele - assegurou Payton Fletcher, elevando a sobrancelha branca ante a curiosa escolha de palavras dela.

- São mesmo? - disse Diane com um brilho malicioso nos olhos, inclinando-se para dar-lhe um leve beijo no rosto.

- O quê? Oh, claro, você estava brincando, não é? Vocês jovens têm de perdoar os velhos por sermos um pouco lentos.

Ele virou-se para um ponto além do ombro esquerdo dela. Naquele instante Diane notou que havia mais alguém presente, e a frase da criada "outra visitante" ecoou em sua mente. Antes que pudesse virar-se para ver quem era, Payton Fletcher dizia com um pequeno franzido de olhos:

- Vocês dois já se conhecem, não?

- Sim. - A voz profunda e masculina causou um tremor de excitação em Diane.

O tom era mais grave do que ela se lembrava, mas assim mesmo Diane reconheceu a voz. Exercendo toda a sua força de controle, virou-se vagarosamente para olhá-lo, consciente do coração saltando em seu peito.

Lije Stuart estava parado perto da janela. Era alto, com pouco mais de 1,80m, e seus cabelos negros eram cacheados na beira da testa. Usava calças cinza e um casaco escuro, bem cortado, que lhe caía perfeitamente sobre os ombros largos e o peito musculoso. Sua voz era mais rouca e forte do que há cinco anos, quando o vira pela última vez, mas ainda retinha o corpo bronzeado que demonstrava sua ascendência cherokee, contrastando com seus surpreendentes olhos azuis.

Nascida e criada no Forte Gibson, no território índio, Diane conhecera e adorara Lije Stuart por toda sua vida. Tinha quatorze anos quando o exército fechara o Forte Gibson e designara o pai dela para um novo posto no Leste. Ela sempre imaginara se algum dia veria Lije de novo, e se seu amor por ele seria o mesmo.

Olhando para ele, Diane finalmente teve a sua resposta, logo que o avistou, o que a fez ficar sem fôlego. com uma pose elegante, ela cruzou a sala e estendeu a mão ainda com a luva para cumprimentá-lo.

- Lije, que surpresa mais maravilhosa encontrar você aqui disse ela, sem tentar esconder a alegria na voz e no sorriso, apesar do menear maroto da cabeça.

- Que bom vê-la de novo, Diane. - A resposta de Lije foi reservada, um hábito ditado pela diferença de idade entre eles.

Mas a Diane Parmelee que estava agora diante dele já não era mais a adorável menina inocente que conhecera. Transformara-se numa mulher de impressionante beleza. Seu rosto era quase misticamente perfeito, o tipo que poderia dominar as fantasias de um homem. Seu cabelo descia numa cascata dourada, gloriosa, como a de um anjo. Seus olhos transmitiam alegria de viver - e focalizaram-se nele com uma intensidade que fez seu sangue esquentar.

O desejo apossou-se dele como sempre acontecera quando se encontrava perto dela. E, como sempre, Lije disfarçou-o. Tomou as mãos dela. Seus dedos enluvados fecharam os dele numa rara mistura de força e delicadeza.

Graciosamente ela deu uma meia-volta em direção a Payton Fletcher.

- A última vez que vi Lije foi na festa anual de maio do Seminário Feminino de Cherokee, em Tahlequah. Depois que a Rainha de Maio foi coroada, a banda militar do forte tocou no gramado atrás do prédio e todos dançaram, menos eu. Minha mãe não deixou. Disse que, com quatorze anos, eu ainda era muito jovem para dançar. Fiquei arrasada. Sabe, Payton, Lije havia prometido que dançaria comigo, e fiquei excitada com a ideia.

Diane parou e olhou para Lije de soslaio, um olhar insinuante e desafiador.

- Lembra-se do que me disse?

- Que dançaríamos um dia, quando você fosse mais velha.

- E tenciono cobrar essa promessa, Lije Stuart.

- Não posso dizer que isso me surpreenda.

Mesmo quando Lije sorria ao se lembrar disso, ele a via em seus braços, os dois rodopiando num salão de baile, de olhos fechados, sem existir mais nada ou ninguém. De novo tentou controlar o desejo, tornando a esforçar-se para fixar seus olhos na direção de Payton Fletcher.

- Diane sempre foi uma jovem muito determinada. Quando não consegue o que quer de um jeito, não sossega até encontrar outro.

- Confesso que sou meio obstinada quando se trata de conseguir o que desejo. - Seus olhos continuavam fixos nele.

- Uma dança é um pedido trivial - observou Lije.

- Ah, mas as grandes coisas evoluem a partir de começos pouco auspiciosos. Não concorda, Payton? - Virou-se para o homem mais velho com um menear confiante de cabeça.

- Sim, realmente - respondeu ele com um aceno decisivo.

- Na verdade, estava acabando de dizer a Lije que sua educação em Harvard era a pedra fundamental de um futuro promissor.

- Susannah escreveu-me dizendo que você estava estudando direito em Harvard - disse Diane, referindo-se à sua amiga de infância e tia de Lije, de dezenove anos. - Cheguei a pensar que você nos faria uma visita quando nos mudamos para Boston, na primavera passada.

- Suspeito que sua mãe me teria dado uma fria recepção se isso acontecesse. - Um sorriso cínico curvou sua boca, criando duas covinhas nas faces.

- Não devia ter permitido que isso o influenciasse-repreendeu-o, dizendo-lhe indiretamente que a atitude de sua mãe era realmente um problema, mas que naquele momento era um obstáculo que se encontrava literalmente a um oceano de distância, e poderia ser deixado para ser tratado mais tarde.

- Talvez não devesse - concordou Lije com um ligeiro encolher de ombros. - Cinco anos é muito tempo. As pessoas mudam.

Diane sorriu.

- Tenho de admitir que mudei desde aquela desajeitada menina sardenta de quatorze anos que você conheceu.

- Pelo que me lembro, você só tinha sardas porque foi cavalgar com seu pai sem chapéu. E nunca foi desajeitada. Mesmo quando criança, tinha uma beleza e uma energia que cativavam o coração de todos os homens a quilómetros de distância.

- E agora?-ela esperou a resposta, prendendo a respiração.

- Agora? - O olhar dele deu um giro vagaroso e completo em volta dela antes de voltar a encará-la. - Pode parecer impossível, mas está ainda mais bonita.

Diane viu a atração nos olhos dele. Aos dezenove anos, era suficientemente experiente para saber quando um homem estava interessado nela. Lije estava. Ela queria abraçar a si mesma pela alegria de descobrir isso.

- Isso, minha querida, é um fato que confirmo com todo o coração - declarou Payton Fletcher.-Eu devia ter lhe dito antes o quão adorável está. O avô de Lije, Will Gordon, disse-me há alguns anos que nunca se faz elogios demais a uma mulher. Deveria ter-me lembrado disso. É bom ver que seu neto pensa da mesma forma.

Voltando-se para Lije, completou:

- Quando vir o seu avô, não se esqueça de dar a ele os meus mais calorosos cumprimentos.

- Darei - prometeu Lije.

- Will Gordon e eu fomos à escola juntos - disse a Diane.

- Sim, eu sei.

Ele não prestava atenção aos dois jovens diante dele que, através de olhares disfarçados e silenciosa inspeção, registravam tudo o que havia mudado no outro. Ao invés disso, ele estava temporariamente perdido nas lembranças dos dias de antigamente.

- Tivemos ótimos tempos juntos. Muitas foram as noites em que Will teve de carregar-me para casa. - Ele ria com a lembrança e sacudia a cabeça. - Se não fosse por Will, duvido que me houvesse graduado. Ele era o inteligente da turma. É emocionante ver a mesma inteligência em seu neto.

Inclinou-se em aprovação a Lije, depois informou a Diane:

- Lije é modesto demais para lhe contar, mas devemos congratulá-lo. Ele graduou-se em Harvard com louvor.

- Que maravilha. Parabéns.

- Obrigado - Lije inclinou a cabeça.

- Quais são seus planos agora?

- Voltar para casa e fazer bom uso dos meus estudos. Partirei no fim da semana.

- Tão cedo? - protestou Diane. - Certamente poderia ficar mais uma semana ou duas, não é?

- Estou longe de casa há quatro anos.

- E o que representam duas semanas a mais depois de quatro anos? - Olhou para ele, os olhos brilhando desafiadoramente e... algo mais. - O juiz Wickham dará sua festa anual de verão daqui a duas semanas. Se for um homem de palavra, você estará lá para dançar comigo.

Payton Fletcher riu em aprovação.

- Você fala como uma verdadeira filha de um oficial do exército que aprendeu, para seu proveito, o valor que um homem deposita em sua honra. Agora não terá outra escolha a não ser ficar, Lije.

- Assim parece - concordou Lije, olhando para ela, uma corrente de emoção fluindo entre eles. Quando ela era criança, ele nunca fora capaz de recusar-lhe nada. Agora achou igualmente impossível recusar algo a ela como mulher. Mais do que isso, ele não queria.

As tardes sociais, as saídas para as compras, almoços, festas ao ar livre e chás que Diane arranjava possibilitaram-lhe passar uma boa parte de cada dia ao lado de Lije. A primeira semana passou-se rapidamente, culminando com o convite do juiz Wickham aos Fletcher e a Lije para um jantar na mansão da família.

Foi um jantar formal, a refeição em si durando mais de duas horas. Depois o café foi servido no terraço. Diane caminhou com Lije em direção ao jardim, para admirarem o pequeno lago e passarem alguns momentos a sós. Ela parou e aspirou profundamente o ar cálido da noite, feliz por estar desfrutando a magia da noite - e o homem a seu lado.

- Esta é uma noite linda. Tudo está perfeito. - Ela olhou ao longe os outros convidados do jantar.-O juiz Wickham está muito impressionado com você.

- Depois que se recobrou do choque ao saber que sou cherokee - respondeu Lije secamente, com um tom de censura na voz.

- Você não o havia informado sobre isso.

- Deliberadamente - Diane voltou-se para ele, os olhos brilhando, o tom de voz divertido. - Não adiantar informação é algo que aprendi com meu pai. Se eles tivessem alguma objeção a que nós viéssemos, queria que a expressassem depois de conhecêlo. Tinha certeza de que, uma vez que o conhecessem, reconheceriam um homem inteligente e charmoso, que se comporta como um gentleman. E a noite provou que eu estava certa. Seria mais preciso dizer que os Wickham ficaram mais impressionados do que chocados ao descobrirem que você é cherokee. Na verdade, creio que agora o juiz o admira ainda mais por causa disso. - Ela fez uma pausa para examinar a reação dele. - Você não parece impressionado com isso.

- Deveria estar? - retrucou Lije, enquanto a brisa morna transportava até ele o perfume dela, suave, sedutor e extremamente feminino.

- Sim, deveria. O juiz Wickham é um homem extremamente rico e influente, o bastante para desejar tê-lo ao seu lado. Lembra-se de quando conversamos no jantar sobre a fazenda de sua família e a sra. Wickham perguntou como sua mãe consegue cuidar de uma casa tão grande? Você não tem ideia de como fiquei aliviada quando você lhe explicou que ela tinha criados para cuidar dela, assim como a sra. Wickham. Esqueci-me de avisá-lo: os Wickhams são abolicionistas ferrenhos. Teriam ficado chocados se seus pais tivessem escravos.

- Muitas pessoas aqui no Norte ficariam. É um assunto que aprendi a evitar nos últimos quatro anos.

- Você fala como um diplomata. - Ela sorriu numa aprovação morna, então parou, seu olhar abrandando-se. - Sempre penso como tive sorte em fazer aquela visita a Payton Fletcher naquele dia. Se tivesse esperado apenas um dia ou dois, você teria ido embora, e nunca mais teríamos nos encontrado. Seria uma lástima.

- Você acha?

A única resposta foi um brilho tentador nos olhos azuis dela.

Rendendo-se ao flerte, Lije segurou-a pelos ombros e gentilmente puxou-a para si. Há muito tempo desejava beijá-la.

Diane não teve tempo de pensar antes de os lábios dele tocarem os seus, acendendo suas emoções. Não foi o beijo, mas o desejo ardente que a manteve nos braços dele. Ela tomou o rosto dele nas mãos enquanto lhe dava, indiscutivelmente, o que ele queria dela.

Diane sabia que não era um fogo sem chama, mas uma paixão tão intensa e rápida que parecia que já eram amantes. Sentiu uma intimidade instantânea e, em vez de ficar assustada, compreendeu que seu coração era dele há muito tempo. Nada mais conseguiria negar a ele.

Lije puxou-a mais para perto e aspirou a fragrância cálida e insinuante que exalava da pele dela. Deleitava-se com seu sabor quente, ansiosa e excitante. O calor de seu corpo macio e esguio despertava nele uma necessidade tão insistente quanto um golpe de vento na planície.

Ela fez com que fosse impossível ele pensar em algo mais. Logo esquecia-se de tudo, menos dela. Lije sabia que o poder de Diane era do tipo que podia fazer um homem morrer de fome, capaz de fazê-lo sofrer. Poderia enfraquecê-lo, quando ele não conseguisse mais realizar os seus propósitos. Tinha outras prioridades, outras responsabilidades.

Ele soltou-se, mesmo quando queria mais e mais o que ela lhe oferecia em abundância.

Os olhos de Diane abriram-se lentamente quando sua boca ficou livre. Olhou diretamente para ele e viu o desejo e a desconfiança e emocionou-se.

- Há muito, muito tempo que queria que você fizesse isso murmurou ela.

Lije deu um suspiro profundo.

- Creio que é melhor voltarmos para dentro. - Naquele momento ele não confiava em si próprio para ficar sozinho com ela.

- Por quê? - Mas os olhos insinuantes diziam que ela sabia a resposta.

- Nunca deveria tê-la tocado.

- Porquê?

- Porque isso pode nos levar mais longe, e partirei em breve.

- Mas só daqui a uma semana, pelo menos. Não até que tenha dançado comigo, lembra-se?

Sem esperar pela resposta, ela deu-lhe o braço e dirigiram-se para perto dos outros.

Fileiras de lanternas festivas iluminavam o terraço onde casais rodopiavam em círculos ao som de uma valsa. Do pavilhão com tendas no gramado chegou o som de risos, cristais tilintando e vozes conversando. Mas Lije só tinha consciência da mulher em seus braços, tão linda em seu vestido de baile branco adornado com amores-perfeitos azuis, os olhos falseando de felicidade.

- Sabe que foi meu pai quem ensinou sua mãe a dançar, anos atrás? - Havia uma leveza na voz dela que não combinava com a pesada tensão que pulsava entre eles.

- Já ouvi essa história antes.

Ela percorria a boca dele com o olhar, impressionada com seu controle.

- Lembro-me da primeira vez que meu pai me contou. Ele a fez parecer mágica. Creio que foi quando comecei apensar se seria a mesma coisa quando dançássemos juntos. Mas é mais do que magia, Lije. Muito mais. - Ela deu um rápido olhar em direção aos outros convidados. - Todo mundo pode ver isso. É por isso que estão olhando para nós.

Lije olhou de lado para os convidados. Notou os olhares femininos buscando-o por cima dos leques esvoaçantes, e também os olhares disfarçados dos homens. A reação deles era típica dos olhares que ele encontrara durante seus quatro anos no Leste.

- Eles olham porque estão escandalizados pelo fato de você estar dançando com um cherokee, quando poderia escolher entre uma dezena de outros parceiros mais apropriados - disse a ela.

Diane deu uma risada.

- Conheço-os melhor do que você. A maioria está apenas fingindo escândalo para esconder a inveja ou o orgulho ferido. Principalmente as mulheres. Elas olham para você e secretamente desejam estar em meu lugar, mas estão preocupadas demais com o que os outros pensam.

- E você não?

As curvas dos lábios dela se aprofundaram.

- Uma das vantagens de ser criada na fronteira é que a sociedade civilizada não se incomoda quando agimos de forma que poderia ser considerada como comportamento impróprio. E isso às vezes é muito útil.

- Se for um deles.

- Sim.

Ainda sorrindo, Diane deu outra olhada para os convidados que os olhavam, enquanto Lije a guiava de volta para o salão.

- Para falar a verdade, suspeito que metade das mulheres daqui estejam esperando para ver se você me rapta e me leva para algum lugar com a intenção de me seduzir.

Ela olhou de volta para ele, o sorriso esmorecendo quando seus olhos se encontraram.

- Tenho o pressentimento de que ficarão decepcionadas se não fizer isso.

- Não podemos desapontá-las, não é? - Os dedos dele apertaram sua mão enluvada, enquanto uma onda de calor os percorria, transportando a atração madura entre homem e mulher para um outro nível.

- Não, não podemos. - A voz dela ficou rouca de desejo. A música terminou num floreado de notas. Lije deu um passo

atrás, inclinou-se para ela, pegou sua mão, colocou-a sob seu braço e guiou-a do salão para um canto escuro no terraço. Segundos depois saíram sem ser observados, procurando aquietude do jardim lateral.

Uma vez ali, Lije puxou uma sorridente Diane para as sombras de um arco de treliça de madressilvas. Ela já não sorria quando olhou-o nos olhos. Seu olhar era intenso, de um azul tão quente, que fez a garganta dela ficar seca de antecipação. Ele inclinou-se para ela, seus lábios se encontraram, a respiração dele acariciando a pele dela.

com um gemido semicontrolado, ele puxou-a para si e exigiu os lábios dela num beijo ansioso, morno, ríspido e exigente. Sua boca era como seda, lisa e aderente. O desejo que fervera entre eles a noite toda subiu à superfície. Lije soltou as rédeas, saboreando os lábios dela, mas isso não foi o bastante. Ele sabia disso mesmo quando a sentiu tremer de desejo. Tentando controlar-se, ele desviou a atenção para o rosto dela, para seu queixo, sua orelha delicada.

- Lije - ela sussurrou seu nome, macia e maleável em seu abraço, - Você não tem ideia do quanto desejava isso.

- Não mais do que eu. - Ele esfregou os lábios sobre a veia azul do pescoço dela, que latejava forte e depressa.

- Você não compreende - disse ela, balançando de leve a cabeça, depois firmando-a para tornar a olhá-lo, os olhos brilhando com uma mistura de surpresa e desejo. - Adoro você desde menina. Quando o governo fechou o Forte Gibson e tivemos de partir, fiquei desesperada.

Ela parou e sorriu, levantando a mão para correr os dedos pela linha suave do queixo dele.

- Parece bobagem, não é? Eu era apenas uma menina. O que sabia sobre o amor? Era isso que costumava dizer a mim mesma. Mas nunca parei de desejar que nos encontrássemos de novo. E ficava sempre apavorada em pensar que, quando isso acontecesse, você poderia estar casado com outra. Estou feliz que não esteja. Os dedos dela percorreram os cabelos dele, puxando-o para baixo.

- Beije-me de novo, Lije.

Ele obedeceu e perdeu-se na maciez dos lábios dela, no calor deles, em seu prazer sem fim. Apenas por um momento, não pensou em nada além dela - nem no passado com seus fantasmas, nem no futuro com seu vago mau presságio. Sabia que era loucura esquecer suas prioridades e mergulhar no encantamento dela. O perfume radiante que emanava de seu pescoço fez a cabeça dele girar.

- Amo você, Diane. - Ele a queria, em seus braços e em sua vida.

- E eu o amo. - A voz dela tremia com o sentimento profundo, e ela riu, um pouco abalada, inclinando a cabeça para apoiá-la no ombro dele. - Quem teria adivinhado que tudo terminaria tão bem?

Tomado por um sentimento de urgência, ele revelou:

- Diane, devo partir em breve...

- Não. - A cabeça dela ergueu-se, os olhos brilhantes de confiança. - Não o deixarei partir.

- Não posso ficar. - A tristeza enchia sua voz.

- Claro que pode. Outro dia mesmo ouvi o juiz Wickham mencionar que o senador Frederick estava procurando um rapaz inteligente para preencher um cargo vago em seu escritório de Boston. O juiz Wickham gosta de você. Sei que posso persuadi-lo a recomendar você. Não vê como seria perfeito... nós dois em Boston?

- Não, Diane. - Ele segurou-a pelos ombros e enfrentou seu olhar, precisando deixar claro para ela. - Tenho de voltar para casa.

Ela hesitou um pouco:

- É natural que você queira ir em casa visitar seus pais, sua família. Compreendo isso. Mas depois você volta e...

- Não.

- Não? - Ela endureceu, depois afastou-se e virou-se de costas para ele. - Por quê? O que há lá para prendê-lo? Há tantas oportunidades para você aqui, tanta coisa que pode fazer, que pode ser.

- Tenho de ir para casa. Preciso ir para casa.-Lije não sabia como colocar em palavras a inquietude que sentia, o medo que nunca o abandonava, as imagens do passado que o perseguiam e transformavam a necessidade de voltar para casa numa compulsão.

- Venha comigo, Diane.

- Ir com você? - Ela voltou-se.

- Quero que seja minha esposa.

- Assim, sem mais nem menos? Não pode estar falando sério.

- Mas estou.

Os olhos dele congelaram-se com a reação dela à sua proposta. Ele não tinha intenção de levá-la com ele, mas por alguma razão as palavras saíram sem esforço - e pareciam perfeitas.

- É muito cedo para estarmos falando de casamento. Você sabe que minha mãe nunca consentiria que eu fosse para o Oeste tão subitamente.

- Porque sou cherokee.

- Porque é um Stuart. Ela nunca fez segredo de seus sentimentos quanto à sua família.

- Não, nunca.

- Então sabe como isso é impossível agora. com o tempo...

- Partirei amanhã cedo.

- Você não está sendo razoável, Lije - disse ela com raiva.

- Não está ouvindo nada do que digo. Tudo tem sido tão maravilhoso. Por que tem de arruinar tudo desse jeito?

- Talvez você devesse ter ouvido sua mãe muito tempo atrás, quando ela a alertou para ficar longe de mim - sugeriu ele numa voz fria e áspera, disfarçando sua dor com o mau humor.

Diane retaliou da mesma forma:

- Talvez devesse!

Lije olhou para ela por mais um segundo, virou-se e desapareceu dentro da noite. Diane olhou-o por um momento, a raiva subindo em ondas, mesmo quando as lágrimas ardiam em seus olhos. Mas seu orgulho não a deixaria correr atrás dele. Ele voltaria.

Ela tinha certeza disso.

Nação cherokee, território indígena Julho de 1860

Lije começou a galopar. Tivera poucas oportunidades de cavalgar no Leste. Estava contente por ter de novo um cavalo entre as pernas, os cascos batendo com força no chão de barro vermelho, o vento açoitando seu rosto, a estrada aberta à sua frente.

A conhecida estrada conduzia a uma área arborizada com carvalhos, caquizeiros, nogueiras e cedros, os galhos pendiam para criar uma marquise de folhas. Fora do alcance do brilho quente do sol, o ar era mais fresco, cheio de ruídos e movimentos de criaturas na vegetação cerrada. Ele continuou cavalgando, a duradoura selvajaria da terra fluindo à sua volta, impregnando seus ossos e sua mente.

Tudo aquilo lhe era familiar: as velhas paisagens, os velhos sons, os velhos odores. Depois de quatro anos, receara sentir-se como um estranho em sua própria terra. Mas em vez disso, era quase como se nunca tivesse partido.

A descoberta o fez sorrir. Virou-se para seu criado Dce, que cavalgava a seu lado.

- Não estamos muito longe de Oak Hill.

- Apenas um pedaço estrada acima - confirmou Dce, apertando o passo para cavalgar ao lado de Lije. Os dois não tinham trocado nem meia dúzia de palavras desde que deixaram o atracadouro na margem do rio. Mas, como recordava Dce, o senhor Lije nunca fora do tipo que gosta do som da própria voz. Sempre deixara suas ações falarem por ele. Agia mais do que falava. Mas a curiosidade de Ike estava aumentando. Aproveitou a oportunidade para satisfazê-la.

- Como é o Norte?

- Não muito diferente daqui. Muitas árvores, montanhas e fazendas. Os invernos são longos e mais frios, as cidades são maiores. Mais prédios, mais gente... - Olhou de banda para Ike, com um brilho dançando nos olhos. - Muito mais gente.

Ike concordou, a resposta ecoando mais do que ele ouvira.

- Minha mãe contou que uma vez ela foi ao Norte com a família e ficou impressionada quando viu tanta gente morando num lugar só. O sr. Blade deu à minha família um passe para que eles pudessem fazer alguns passeios quando estiveram em Filadélfia. Foi à Filadélfia quando esteve no Norte?

- Só passei por lá.

- Então nunca viu o sino que eles têm lá. - A decepção de Ike foi breve, substituída pela lembrança das histórias que sua mãe lhe contara. Histórias que ele constantemente a fazia repetir.

- As pessoas chamam-no de Sino da Liberdade. Há uma inscrição nele que diz: "Proclamar a liberdade por toda a terra para todos os habitantes." Isso está escrito no Levítico, na Bíblia. - Ike hesitou, então perguntou o que ele mais queria saber: - Viu algum negro livre quando esteve no Norte?

- Pouquíssimos.

Com os olhos apertados, Lije estudou o negro que fora seu companheiro de brincadeiras quando criança. Liberdade. Negro livre. Essas palavras e o traço de desejo na voz de Ike avisaram a Lije que ele sonhava com a liberdade.

- É melhor tomar cuidado com o que diz, Ike - alertou-o.

- Vivemos tempos difíceis. Um homem desconfiado pode ouvi-lo falar sobre liberdade e concluir que está com ideias tolas na cabeça. Pode até resolver fazer alguma coisa a respeito.

Ike fixou o olhar num ponto distante, e toda expressão desapareceu de seu rosto, exceto a centelha de ressentimento em seus olhos. Naquele momento Lije viu que o filho de Deuteronomy Jones não compartilhava do mesmo sentimento de profunda lealdade que seu pai dedicara à família Stuart.

- Não quis dizer nada com isso-resmungou ele finalmente.

- Talvez não, mas agora é perigoso até pensar nisso.

Eles cavalgaram da sombra para o calor do sol. Lije viu a curva para a fazenda de seu avô e cutucou o cavalo para apertar o passo, eliminando qualquer outra oportunidade de conversação. Mais uma vez ike ficou para trás.

A aproximação da Fazenda Oak Hill foi marcada por uma área ladeada por arbustos de madressilvas ao longo de meio quilómetro. No final ficava a casa-grande, construída sobre um pequeno morro e rodeada por enormes carvalhos. Feita de tijolos vermelhos e com maciças colunas dóricas na parte da frente, a mansão tinha uma dignidade tranquila, como seu dono. Segundo a mãe de Lije, a casa parecia-se com a da fazenda dos Gordon, onde agora era a Geórgia. Líje nascera lá, na casa dos avós, mas não guardava lembranças disso, porque era ainda um bebé quando os soldados expulsaram sua família dali a ponta de baionetas.

Lije mal apeara do cavalo quando a porta da frente se abriu. Por ela saiu um negro magro com calças e casaco tipo fraque, camisa branca e colarinho engomado. Um sorriso de boas-vindas abriu-se em seu rosto, iluminando seus olhos gentis.

- Sr. Lije, soube que era o senhor assim que o vi chegando lá longe. Ninguém se senta num cavalo como o senhor, a não ser talvez seu pai.

- Como vai, Shadrach? - disse Lije, sorrindo para o negro que pertencia a Will Gordon desde que nascera. Quando menino, Shadrach fizera a penosa viagem vindo da terra cherokee, no Leste. Sua irmã, Phoebe, fora presenteada à mãe de Lije, que acabara de se casar, como seu dote de escravos. Ike era filho dela, e sobrinho de Shadrach. - Você não mudou nada.

Shadrach tinha um daqueles rostos imortais que não demonstram a passagem dos anos, mas Lije sabia que ele devia ter pelo menos uns quarenta anos.

- Mas o senhor mudou, sem dúvida. Aquele colégio transformou-o num homem crescido - disse Shadrach, e depois fez um gesto para o sobrinho. - Ike, leve o cavalo do sr. Lije para o estábulo.

Quando ike se adiantou, Lije entregou-lhe as rédeas e afastou-se. Shadrach alcançou a porta de entrada e abriu-a para ele.

- O senhor encontrará dona Eliza na sala de visitas - disse Shadrach.

Lije entrou e imediatamente viu a segunda esposa do avô caminhando em sua direção.

- Shadrach, será que ouvi... - Ela parou abruptamente, pôs a mão no pescoço e murmurou, surpresa: - Lije!

- Como vai, Eliza?

Movendo-se rapidamente, ela cruzou a curta distância entre eles e estendeu as mãos para pegar as dele.

- Olhe só para você-Eliza sorria. - Transformou-se num belo homem. Como foi a viagem?

- Longa, mas sem novidades.

- Ótimo-disse ela em sua voz firme, prática, que era muito conhecida dele. - Não ouvi a carruagem. Como chegou aqui? Onde está seu avô? E seus pais?

Ela olhava para a porta, franzindo os olhos.

- Vim na frente, a cavalo. Eles chegarão logo. Ela estendeu-lhe o braço.

- Maravilhoso. Venha. Vamos conversar na sala de visitas.

- Polidamente, ela deu o braço a ele, dirigindo-o à sala de visitas. - Susannah ainda está lá em cima se vestindo - disse ela, referindo-se à filha. - Mas Kipp e Alex estão aqui.

Surpreendido pelo anúncio da presença de seu tio Kipp, Lije enrijeceu-se, e seu olhar voou para a porta da sala de visitas.

A sempre astuta Eliza sentiu os músculos dele tensionarem sob sua mão e apertou-lhe o braço, num aviso silencioso.

- Esta é uma reunião de família, Lije - a ênfase era firme.

- Sejam quais forem as divergências entre seu pai e Kipp, elas pertencem ao passado. Não devemos deixar que isso influencie o presente. Por favor, lembre-se de que Kipp é o único irmão vivo de sua mãe. É hora de perdoar o que não pode ser esquecido.

Lije olhou de volta para a mulher alta e magra.

- Pelo que vejo, ainda continua sendo a mantenedora da paz.

- Sua boca virou-se num sorriso seco.

- Alguém nesta família tem de ser. Deus sabe que existem poucas ocasiões suficientemente importantes para reunir todos os membros desta família.

Por todos, Lije sabia que Eliza se referia especificamente a seu pai e a Kipp. Geralmente um ou outro faltava a uma reunião de família. Nas raras vezes em que Lije se lembrava de ambos estarem presentes, a atmosfera havia sido dolorosamente constrangedora.

- E você decidiu que minha volta era suficientemente importante - adivinhou Lije.

- Creio que isso é óbvio. - Ela pegou a frente da saia. Vamos entrar?

Certa de sua concordância, Eliza fez um movimento em direção à sala de visitas, mas Lije parou, olhando para ela.

- O que foi? - perguntou ela.

- Não vai fazer o discurso sobre a inocência de Alex nisso tudo? - perguntou ele, piscando os olhos.

Basicamente desde o dia em que seu primo nascera, há dezessete anos, Eliza decidira fazer o possível para que a animosidade entre Kipp e Blade, não se estendesse aos filhos. Como o mais velho, Lije recebeu a maior parte dos esforços dela.

Ela viu o riso nos olhos dele e retrucou, sorrindo:

- Agora você está brincando comigo.

- E você está linda - revidou ele. - A indignação fica bem em você. Traz fogo em seus olhos e colore suas faces.

- Que bobagem! - Mesmo com toda desaprovação em sua voz, Lije sabia que secretamente ela ficara satisfeita com o elogio: havia um pequeno sorriso em seus lábios enquanto o conduzia à sala de visitas.

- Kipp, veja quem chegou - anunciou ela, injetando uma nota de leveza no ar.

O homem parado na janela da sala de visitas virou-se e Lije olhou o rosto do tio, o inimigo de seu pai. Feixes de cabelos brancos subiam-lhe pelas têmporas e contrastavam com seus cabelos negros. Na maioria das pessoas isso resultaria numa aparência distinta, mas Lije nunca conseguira ver aqueles rajados de cabelos brancos na cabeça de Kipp sem se lembrar dos chifres do diabo.

Desta vez, isso despertou em Lije uma série de imagens do passado - imagens de uma carruagem descendo a estrada, seu avô Shawano Stuart com as rédeas, os cabelos cinza esvoaçando até o colarinho. De repente, uma dezena de homens de rostos cobertos com lenços negros saíram das árvores, as mãos estendidas, puxando o velho para baixo. Seu avô desapareceu, lutando sob um mar de punhais brilhando na luz, e só reapareceu sem vida, com o rosto virado para o chão.

Lije testemunhara o assassinato de Shawano Stuart quando tinha menos de três anos de idade. A cena ficou marcada em sua mente. Nunca se esquecera daquele sentimento de terror, de ser totalmente impotente para ajudar o avô que adorava. E nunca se esquecera de que Kipp Gordon era um dos homens mascarados.

Se foi feita justiça no assassinato de Shawano Stuart, isso foi questionado por muitos. O pai de Lije via aquilo como um assassinato, enquanto sua mãe, Temple, encarava como uma execução legítima, embora executada de forma desprezível.

Em 1835, antes que Lije nascesse, Shawano Stuart assinara um tratado que entregava todas as terras cherokee no Leste para o governo federal. Shawano e todos os que assinaram o documento, incluindo Blade, sabiam que era um tratado não autorizado, feito sem o consentimento do povo cherokee, e uma violação direta da Lei de Sangue Cherokee, um crime punível com a morte. Na verdade, a ação drástica foi um esforço desesperado para forçar os líderes do governo cherokee a negociarem um tratado com as autoridades federais para dar fim à abusiva perseguição dos georgianos, que acontecia há anos sem cessar.

A ação custou a vida a Shawano e a vários outros signatários. O pai de Lije escapou de um atentado e escondeu-se junto com outros até que uma anistia foi declarada.

O tempo passou, mas não a lembrança, não para ninguém que tivesse vivido aquela época. Mesmo agora silenciava as palavras de saudação que Lije pudesse fazer a seu tio. Eliza iniciou a conversa.

- Lije veio na frente-disse ela a Kipp. - Seu pai e os outros chegarão logo.

Concordando com a cabeça, Kipp olhou para ele. Não havia boas-vindas em sua expressão, mas Lije tampouco esperava alguma.

- Você está mais parecido com seu pai. - Vindo de Kipp, não era um elogio. - Estou surpreso que tenha terminado todos os quatro anos de universidade. Pensei que fosse abandoná-la depois do primeiro ano, como seu pai.

- Talvez eu tenha a tenacidade de minha mãe - sugeriu Lije, e deliberadamente virou-se para o primo.

Alex Gordon, de dezessete anos, estava parado ao lado, observando a conversa, os lábios num sorriso divertido. Parecia-se com o pai - os cabelos escuros, as maçãs do rosto salientes, o nariz reto e os olhos negros. Como Kipp, era alto e magro.

- Que bom vê-lo de novo, Alex.

- Como vai, Lije?

Alex deu um sorriso que revelou duas covinhas atraentes em sua face. Lije viu nele o jovem de quem se lembrava: inquieto, um pouco selvagem, cheio de charme e perfídia.

- Eu estava quase desistindo de você. Achei que aquele barco tivesse encalhado em algum lugar.

Lije sacudiu a cabeça.

- O rio estava cheio, e a viagem foi suave.

- Que azar-Alex suspirou num arrependimento fingido. Eu já estava achando que ia conseguir ficar com sua parte na festa que vovó preparou.

- Se conheço bem Eliza, haverá comida mais do que suficiente para todos. - Lije olhou a avó. - Geralmente as mesas quase desabam com o peso de tudo.

- Claro, esta é uma comemoração. Por falar nisso... - Eliza tirou a mão do braço de Lije e voltou-se para a porta. - Shadrach.

O criado negro apareceu em segundos.

- Sim, dona Eliza?

- Traga os refrescos. Tenho certeza de que Lije está com sede depois dessa cavalgada.

- Sim, senhora. - Ele concordou com a cabeça e saiu.

O som de seus passos foi quase imediatamente abafado pelas passadas rápidas de outra pessoa. Surgiu uma jovem, com um vestido de seda marrom enfeitado de renda maltesa. Uma fita juntava seus cabelos encaracolados e prendia-os no alto da cabeça. Lije viu o sorriso abrir-se no rosto dela quando o viu.

- Lije!-gritou ela com alegria.-Bem que achei ter ouvido sua voz.

- Susannah.

- É tão bom ter você de volta. - Ela abraçou-o com vontade.

- Senti sua falta, Lije. Todos nós sentimos.

- Também senti sua falta. - Ele segurou seus ombros e afastou-a dele. - Deixe-me olhá-la.

Ele inspecionou essa mulher que sempre lhe parecera mais uma irmã menor do que uma tia. Era alta, com cerca de 1,75m. Seus olhos cor de mel brilhavam com faíscas douradas, lembrando os de um gato.

- Onde está aquela menina alta, magrela, com pernas e braços compridos que vivia aqui quando fui embora?-Lije sacudiu a cabeça para demonstrar a surpresa diante da transformação de Susannah em mulher. - Você tornou-se uma graciosa mulher enquanto estive fora. Deve haver filas de admiradores à sua porta todas as noites.

- Que bobagem!-Susannah riu com o comentário, achando a própria ideia ridícula. - Nenhum homem corteja uma mulher que está acima dele como um carvalho. E, quando o faz, pode ter certeza de que é a meu pai que ele quer bajular, não a mim.

Lije discordava, mas sabia que ela simplesmente o acusaria de ser gentil se ele argumentasse. Susannah sempre encontrara defeito em sua aparência, convencida de que era alta e magra demais, que o cabelo era muito ondulado e seu rosto ossudo e anguloso. Em sua cabeça, estava muito longe de qualquer definição de beleza. Mas a combinação sempre fora ótima, principalmente agora, com a maturidade aflorando e suavizando todos os ângulos ásperos.

- Continua a subestimar-se, titiazinha - brincou ele.

- Chame-me disso de novo e vou bater na sua boca. - Ela apertou os olhos ameaçadoramente, mas o riso dançando neles apagava toda a seriedade da ameaça.

- Nossa, lembra-se de quando deu a Lije um olho roxo? recordou Eliza, um sorriso crescendo pela lembrança.

- E muito bem - respondeu Susannah. - Foi a última vez que ele me chamou de titia.

- Você tentou dar-me um soco na boca e errou - lembrou-se Lije.

- Só porque você se abaixou.

- Meu olho ficou roxo e azul durante semanas.

- Mas lhe serviu bem. Sou jovem demais para ser sua tia.

- Mas o fato é que você é.

- Então deixe que continue a ser um fato e não um título disse Susannah, com um gesto inconsciente mas típico de quem proclama um decreto.

- Sob seu comando - aquiesceu Lije, rindo e inclinando-se. Shadrach voltou trazendo a limonada gelada. Lije retirou dois copos da bandeja de prata e ofereceu um a Susannah. Ela sorveu um gole.

- Hum, maravilhosa.

Depois que Eliza tirou um copo, Shadrach dirigiu-se a Kipp.

- Limonada, senhor?

- Limonada? - Kipp olhou o líquido pálido com desdém.

- Não há nada mais forte na casa?

- Se preferir, posso trazer-lhe um café, senhor - ofereceu Shadrach, cautelosamente respeitoso.

Lije olhou para o outro lado da sala.

- Limonada ou café. Escolha, Kipp. Realmente não esperava nada mais forte da dona da casa, não é? - Eliza e suas amigas abstêmias tinham feito um movimento contra os vendedores de uísque até conseguirem fechar o Forte Gibson.

- Para ser franca, o trabalho que fizemos foi necessário, mas sinto muito que eles tenham fechado o forte.

Eliza pegou seu leque ornamentado e passou a abanar o rosto vagarosamente, afastando o calor do verão.

- Sinto falta dos jantares e das danças que havia por lá. E sei que as moças sentem falta dos jovens oficiais. Mas devo admitir que não sinto a menor saudade da arrogante esposa do capitão Parmelee.

O movimento do leque tornou-se mais rápido.

- Sempre admirei e respeitei Jed, mas aquela mulher dele... Movia o leque ainda mais rápido. - Quando me lembro daquela vez que proibiu sua filha, Diane, de brincar com você e Lije porque não a queria associada com índios... isso faz meu sangue ferver de novo.

- Creio que o capitão Parmelee desculpou-se depois disso, não foi? - Susannah franziu a testa, tentando lembrar-se.

- Sim - respondeu Eliza, depois suspirou. - Pobre Jed. Nunca vi um homem tão embaraçado e aborrecido quanto ele. Suspeito que mais de uma vez teve motivos para se arrepender de ter casado com aquela mulher desprezível. É realmente impressionante que Diane se tenha tornado uma moça tão meiga. Ela deve agradecer a influência de seu pai.

Susannah olhou para Lije, curiosa de ver sua reação ao comentário sobre Diane. A última carta de Diane estava cheia de referências a Lije, tanto que Susannah suspeitou que havia um romance entre os dois. Surpreendeu-se ao ver a expressão de Lije - a dureza de seus traços e a frieza em seus olhos. Só naquele momento Susannah reparou o quão silencioso ele ficara desde que tocaram no assunto sobre os Parmelee.

- Diane escreveu-me dizendo tê-lo encontrado várias vezes quando esteve lá com Payton Fletcher - insinuou Susannah.

- Ah, sim?

Ele levantou o copo e bebeu um gole rápido de limonada, mas Susannah notou a frieza em seus olhos.

- Como está ela?

- Mais linda do que nunca.

Mas seu sorriso não era gentil. A resposta foi muito abrupta, e Susannah soube imediatamente que algo estava errado, que algo acontecera. E Diane era a causa de tudo. Como? Por quê? Susannah ia perguntar-lhe, mas freou o impulso, deduzindo que obviamente era algo que ele não queria discutir na companhia de outros. Mais tarde ela daria um jeito de encontrá-lo a sós e descobrir exatamente o que acontecera entre ele e Diane.

Na janela da sala de visitas Eliza sacudia seu leque com renovado vigor.

- Meu Deus, como está quente e úmido. O que aconteceu com aquele ventinho de que desfrutamos mais cedo? - Ela olhou para fora como se esperasse encontrá-lo, depois parou, interrompendo o movimento do leque.

- Há um cavaleiro chegando. - Debruçou-se na janela. Creio que é Nathan. Que ótimo.

De repente ela começou a mover-se, saindo de perto da janela.

- Shadrach, vá pegar uma limonada para o reverendo Cole enquanto vou recebê-lo.

Quando ela deixou a sala, Kipp resmungou:

- Quantos mais Eliza convidou para jantar? Pensei que seria uma reunião de família.

- O reverendo Cole é como se fosse um membro da família, Kipp - lembrou-lhe Susannah. - Ele participa de quase todas as ocasiões importantes em nossas vidas. Por Deus, ele até realizou a cerimónia de casamento de meus pais, bem como a de Blade e de Temple.

Lije notou que Susannah não fez menção ao fato de o reverendo Cole ter também realizado o casamento de Kipp e, menos de um ano depois, as preces sobre o túmulo da jovem esposa de Kipp, quando ela morreu ao dar à luz seu filho Alex. Lije era jovem demais para lembrar-se daquele tempo, mas dizia-se que Kipp tinha sido feliz durante seu curto ano de casamento. Depois da morte prematura da mulher, seu tio ficou mais reservado e tornou-se mais triste.

Alex levantou o copo e sorriu para Susannah, dizendo com um ar de cinismo:

- Creio que isso significa que o reverendo Cole deverá vir à sua festa de despedida também.

- Que festa de despedida?-Lije deu um olhar interrogador para Susannah. - Aonde você vai?

- Mamãe ainda não lhe contou a novidade?

- Que novidade?

- vou estudar em Mount Holyoke este outono. Mamãe e papai estão planejando acompanhar-me na viagem para South Hadley. Partiremos em agosto.

- Eu volto e você parte.

- Eu sei. - A excitação que havia nos olhos dela esmoreceu.

- Eu gostaria...

Mas Susannah não teve oportunidade de completar a frase antes que Eliza retornasse com o reverendo Cole. Ele era alto e magro, com um rosto ossudo e macilento. Seu sorriso, como ele, era meigo e reservado.

- Seja bem-vindo, Elijah - disse o reverendo Cole suavemente, como sempre dirigindo-se a Lije pelo seu nome, e não pelo apelido. - É bom ter você de volta entre nós. Estávamos com saudades.

- Obrigado, reverendo Cole. É bom estar de volta, embora acabe de saber que Susannah está nos deixando.

A atenção do reverendo mudou-se para Susannah, os olhos brilhando.

- Então foi aceita em Mount Holyoke?

- Fui. Iremos em agosto.

- Will e eu a acompanharemos na viagem - explicou Eliza.

- Será a primeira vez que voltarei a South Hadley desde que saí de lá para lecionar para os filhos de uma família cherokee chamada Gordon. Quanto tempo tem isso, Nathan? Vinte e cinco anos?

- Quase trinta, creio.

- Deve ser por aí. Na época eu não tinha nem vinte anos e estava convencida de que meu destino na vida era ensinar. Nunca poderia imaginar o futuro que me esperava.

- É assim que deve ser - ele alisou a mão de Eliza. Podemos somente desejar que Susannah tenha também uma aventura estimulante.

- Você está certo, claro. Será bom levar Susannah para visitar os lugares da minha infância e ver todas as mudanças que o tempo fez. Will deseja passar algum tempo com Payton Fletcher quando estivermos lá. Ficaremos com ele depois que Susannah se alojar em Mount Holyoke - disse ela, sorrindo para a filha. - Você vai gostar de lá.

- Foi lá que estudou, vovó El? - perguntou Alex.

- Não. O seminário feminino só foi inaugurado uns quatro ou cinco anos depois. Eu já tinha saído de South Hadley. Isso foi no fim da década de 30, creio. Mas minha mãe lecionou lá, anos depois. Se ela não tivesse morrido há três anos, poderia ver sua neta.

Todos sabiam que Eliza se arrependera de não ter voltado para ver a mãe antes que ela morresse.

- Agora minha filha estará andando pelos mesmos corredores que minha mãe andou. Acho isso muito bom, embora sinta que as razões de Susannah para escolher Mount Holyoke não tenham nada a ver com o passado de sua avó. Sua professora favorita no Seminário Feminino Cherokee estudou em Mount Holyoke. Creio que Susannah está indo para lá por isso.

- Talvez seja por ambas as coisas - sugeriu Susannah.

- Uma resposta muito diplomática - elogiou o reverendo Cole em aprovação, seus olhos brilhando com um sorriso. - Uma qualidade que obviamente herdou de seu pai, já que o tato nunca foi uma virtude que sua mãe possuísse em abundância.

- Isso não é justo - protestou Eliza.

- Mas é verdade, apesar de tudo-insistiu ele, sem criticá-la.

- Talvez. - Eliza não admitiria mais do que isso e rapidamente desviou a atenção para longe de si.

- Mesmo estando muito feliz em tê-lo de volta conosco, Lije, seria ótimo se tivesse outro ano de escola para terminar, assim você ficaria perto de Susannah durante seu primeiro ano longe de casa. Sei que seria um conforto para ela. Mas temos esperança de que Alex esteja com ela no ano que vem. Sei que Kipp deseja que ele estude em Harvard. Claro, suas notas vão ter de melhorar para que isso aconteça.

- Por favor, vovó El - riu Alex, que obviamente não queria embarcar num assunto que constantemente ouvia repetir-se há anos.

- Nem todos compartilham de seu amor pelos livros e pela escola.

- Alexander Gordon, saiba que a educação é muito importante. Eu...

Ele levantou a mão para que ela parasse:

- Poupe-me, vovó El. Já ouvi isso tudo antes. Há outras coisas na vida além de educação.

- Não se quiser se tornar alguém. Veja Lije. Ele...

- Eu não sou Lije. Nunca serei como ele. - Sua raiva despontou subitamente, tão grande e súbita quanto a de seu pai, mas assim que a revelou, escondeu-a com um rápido sorriso. - Desculpe, vovó El, mas é verdade.

- Claro que é verdade. Nunca disse que deveria ser. No entanto, isso não diminui o valor da educação.

- Talvez eu não queira ir para o Leste. Talvez queira ficar aqui.

O reverendo Cole dirigiu-se a Eliza.

- Talvez alguma jovem tenha capturado a sua atenção. Alex parecia que ia começar a negar, mas mudou de ideia,

abrindo um sorriso:

- Poderia dizer que sim.

- Quem é ela? - perguntou Susannah. - Alguém que conheço?

- Você já a viu.

- Quem é? Como ela é? Não nos deixe em suspense, Alex

- Bem, vamos ver.-Ele parou, a malícia dançando em seus olhos. - Ela tem os maiores e mais belos olhos que já vi. E os cabelos negros e brilhantes como o céu da meia-noite coberto de estrelas. É jovem, um pouco selvagem e teimosa, mas...

Do outro lado, Kipp deu uma risada.

- Shooting Star - murmurou Susannah, compreendendo rapidamente. - Alex Gordon, você está descrevendo sua nova potranca.

Ele riu e desviou-se da mão dela.

- Espere até vê-la, Lije. - Havia orgulho em sua voz. - Ela corre como um raio. Espero tê-la pronta para correr no inverno. Ela limpará as pistas. Vai ser a mais rápida da região, talvez do território inteiro. Eu a cavalguei hoje. Depois do jantar vou mostrá-la a você.

- Gostaria de vê-la.

- Corrida de cavalos - disse Eliza em reprovação. - Não é uma profissão muito sólida, Alex.

- Mas é divertida, vovó El.

- Você não tem jeito. - Havia afeição na voz dela.

Ao contrário de Eliza, Lije reconhecia a atração que o esporte exercia sobre Alex. Corrida de cavalo exigia velocidade, ousadia e sorte. A emoção e o perigo inerentes a esse esporte seriam a atração para a natureza arrojada de seu primo. Quanto maior o risco, melhor.

- Você realmente não gostaria que eu fosse de outra forma, não é, vovó El? - respondeu Alex com confiança e charme.

- Eu não diria tanto - começou ela, depois parou, ouvindo sons abafados na entrada principal. - Não é a voz de Will? Não ouvi a carruagem chegar?

Tirando a mão do braço do reverendo Cole, ela virou-se em direção à porta. Do corredor chegou o ruído de passos rápidos de alguém correndo. Um segundo depois, Sorrel, a irmã de Lije de oi to anos, entrou na sala de visitas. Mais uma vez, Eliza sentiu um choque instantâneo quando se deparou com os cabelos vermelhos da menina. Em sua mente surgiu o retrato do primeiro William Alexander Gordon que estava pendurado sobre a lareira em Gordon Glen, na Geórgia. O cabelo dele também era daquela cor.

- Aqui estamos, vovó El.

- Alex! - Sorrel gritou de alegria e correu direto para o primo. - Não sabia que você também estava aqui.

- Acha que eu iria perder a chance de ver minha bela pequena Sorrel? - retrucou ele, puxando suavemente um cacho do cabelo dela.

- Se soubesse que estava aqui, teria pedido a Pompey para vir mais depressa. É um longo caminho do atracadouro do rio até Oak Hill de carruagem. Pedi a Lije para cavalgar comigo, mas ele não quis. - Ela lançou a Lije um olhar enviesado, os olhos negros revelando dor e ressentimento.-E pedi muito direitinho, também.

- Seu irmão não devia ter feito isso. - O olhar dele para Lije estava cheio de divertimento.

- Você teria cavalgado comigo se eu pedisse, não é?

- Não recusaria jamais um convite para estar com uma bela dama como você.

- Eu sabia. - Ela riu.

- Está usando um vestido novo? - perguntou ele.

- Estou. Você gosta? - Ela deu uma volta e a barra enfeitada de sua saia levantou-se, revelando as bainhas rendadas das anáguas.

- Gosto muito. Nossa, com esse vestido você é a moça mais bonita da nação - elogiou Alex enquanto a mãe de Lije entrava, com um deslumbrante vestido azul-safira, lindamente bordado, farfalhando suavemente.

- Gostaria que não enchesse a cabeça dela de elogios, Alex. Ela já é convencida demais para a idade. - Contudo, o olhar que Temple lançou à filha foi carinhoso como amor de mãe.

Aos 46 anos, Temple Stuart ostentava uma maravilhosa beleza madura. Talvez sua cintura já não fosse tão fina quanto na juventude, mas ela ainda era magra, e sua pele, ainda macia, com exceção das linhas de seu atraente sorriso que chamava a atenção para a incrível escuridão de seus olhos brilhantes.

O marido dela, Blade Stuart, estava ao seu lado, com a expressão tensa enquanto olhava Kipp do outro lado da sala. Havia nele agora uma dureza que acrescentava um toque cínico a um sorriso que antes era brincalhão. Alguns fios de prata banhavam seus cabelos negros, e eram quase imperceptíveis, a menos que a luz fosse certa - como agora.

O avô de Lije, Will Gordon, apareceu na porta. Ainda era alto, embora o peso de seus sessenta e tantos anos tivesse começado a arredondar seus ombros largos. O vermelho de seus cabelos fora substituído pelo branco, mas ficava bem nele.

Após uma ligeira pausa, Temple caminhou para cumprimentar o irmão.

- Você está bem, Kipp.

Kipp quase nem respondeu às palavras dela, seu olhar não deixava Blade por um só instante. Lije ficou atónito diante da maldade que via nos olhos do tio. Depois de quatro anos separados, ele se esquecera de como era virulento o ódio de Kipp por Blade. Subia-lhe em ondas, até que toda a sala estivesse carregada. Lije desejou mover-se para o lado do pai, para protegê-lo de Kipp, como fizera desde que crescera o bastante para reconhecer a hostilidade que Kipp sentia por ele.

Antes que Lije pudesse dar um passo, seu avô passou distraidamente por entre os dois homens.

- Ah, limonada! - Will Gordon pegou um copo na bandeja que Shadrach carregava. - Exatamente o que precisava depois de nossa cavalgada poeirenta. Seu copo está quase vazio, Kipp. Quer mais um?

Kipp sacudiu a cabeça:

- Este aqui basta.

Blade pegou o copo da bandeja e atravessou a sala. Os outros começaram a conversar, parecendo desligados da tensão que havia no ar. Mas Lije notou, assim como notou que os dois homens nunca viravam as costas um para o outro.

- Esqueci-me de como eram as coisas entre Kipp e meu pai.

O jantar terminou e todos, menos Eliza, Temple e o reverendo Cole, foram para o estábulo admirar a potranca negra de Alex. Depois de ver o animal esguio de pernas compridas, Sorrel tanto insistiu que Alex concordou em colocá-la sobre a sela, segurando-a firmemente. Depois, levou-a para um pequeno passeio em volta do pátio, enquanto os outros voltavam para a casa.

Will Gordon, Kipp e Blade caminharam juntos, com Will firmemente posicionado entre os dois. Lije ficou para trás, para caminhar com Susannah, mantendo os dois homens em seu campo de visão, incapaz de afastar o velho sentimento de que precisava ficar perto do pai. com o calor da preguiçosa tarde de verão sobre eles, ninguém corria. Num galho do alto de um carvalho, um tordo entoava seu repertório de canções.

De início Susannah não respondeu aos comentários de Lije, mas depois disse:

- Se não fosse por meu pai, duvido que qualquer um dos dois quisesse respirar o mesmo ar, e muito menos comer na mesma mesa.

- Verdade - concordou Lije, consciente de que somente a alta estima que ambos tinham por seu avô Will Gordon os juntara.

E Will Gordon estava determinado a pôr de lado os erros do passado e unir novamente sua família.

- Na verdade, as coisas estão melhores - notou Susannah.

- Lembra-se da primeira vez em que nos reunimos sob o mesmo teto? Foi no Natal, cinco anos atrás.

- Eles andavam um em volta do outro como dois cães raivosos com os pêlos eriçados - lembrou-se Lije.

- Lembra-se de quando nos sentamos para o jantar e o reverendo Cole fez a bênção?

Lije terminou o pensamento:

- E lembrou a todos do conselho de Jesus para amar seus inimigos.

- Pensei que Kipp fosse se levantar da mesa.

- Ou virá-la de pernas para o ar.

Uma lembrança veio a Susannah, com suave tristeza.

- Mamãe disse que Kipp ainda tem certeza de que seu pai só está esperando uma chance para vingar a morte de Shawano.

- Kipp quer que ele tente. Está esperando uma desculpa para matá-lo. Aos seus olhos, meu pai será sempre um traidor que merece morrer.

- Kipp é meu irmão, sempre o amarei.

Na verdade, ele era meio-irmão de Susannah, mas era uma distinção que ela nunca fazia.

- Mas ele está cego pelo ódio. Sinto pena de Alex. - Ela parou, e um sorriso voltou aos cantos de sua boca. - Que par mais triste nós somos. Está um dia lindo, e você finalmente está em casa. Deveríamos estar desfrutando disso tudo.

- Suponho que sim.

- Quais são seus planos agora? Vai abrir um escritório de direito em Tahlequah?

- Não creio - Lije estudou os recortes de luz no chão sob os carvalhos. - A ideia de ficar sentado numa mesa cercado de livros e papéis não me atrai. Tive o bastante disso por um bom tempo.

- Poderia trabalhar com seu pai em um de seus negócios.

- Poderia - concordou Lije.

Os negócios de Blade eram muitos e variados. Além da fazenda da família, possuía dois prédios em Tahlequah, três barcos fluviais e uma pequena frota de chatas. Tinha também um rebanho de gado no Outlet e uma serraria.

- Pensei em pedir a vovô para usar seus relacionamentos e conseguir minha nomeação para o Light Horse.

- Lije Stuart, oficial de paz - disse ela, imaginando-o naquele cargo. - Você seria bom isso. Tem capacidade e os conhecimentos da lei, e é um homem correto e justo. Sim, definitivamente, esse trabalho lhe cai bem.

- Talvez. Mas creio que meus pais e os seus prefeririam que eu advocasse, que me tornasse um "cavalheiro da pasta verde" disse ele, referindo-se a um antigo costume dos advogados americanos. - Felizmente não terei de tomar uma decisão agora.

Na frente deles, Kipp, Will Gordon e Blade caminhavam pelo jardim de roseiras. Botões vermelhos cobriam as treliças, perfumando o ar com sua fragrância e criando um túnel escarlate.

- Veja as rosas. Agora estão no auge - murmurou Susannah.

- Imagine como devem estar lindas na casa do chefe Ross em Park Hill. Uma alameda de mais de dois quilómetros cercada de rosas.

Levados pela brilhante cascata de flores, Susannah parou no caramanchão para olhar mais de perto. Uma abelha amarela e negra passeava no miolo de um dos botões, as asas e pernas impregnadas de pólen dourado. Susannah tocou a pétala Aveludada de uma rosa.

Lije parou, olhando-a enquanto ela se curvava para inalar o perfume. Um raio de sol atravessou a copa de folhas de carvalho e ressaltou com seu ouro as pontas encaracoladas dos cabelos castanhos dela. Contra a luz do sol e as rosas, Susannah fazia uma impressionante imagem em seu vestido marrom, alta e magra, graciosa em seu orgulho natural.

Mais do que isso, era de uma honestidade impressionante, direta tanto em relação a seus sentimentos quanto à sua maneira de ser - uma rara qualidade numa mulher. Nunca seria uma beleza deslumbrante, aquele tipo cujos olhares Provocantes fazem um homem acreditar em mais do que foi dito. Susannah não sabia nada sobre a astúcia da mulher. Olhares de flerte e sorrisos sedutores eram estranhos à sua natureza.

- O jardim sempre me recorda Diane. Costumávamos passear por ele quando crianças - comentou Susannah distraidamente, embora observasse com interesse qualquer reação que Lije pudesse ter.

Ele retesou-se. Susannah estudou-o com um interesse repentino.

- O que foi, Lije? O que aconteceu entre você e Diane?

- Nada.

Ela sacudiu a cabeça, recusando sua resposta.

- Algo aconteceu. Na última vez em que ela me escreveu contou-me que vocês dois estavam mais próximos do que nunca. Agora, cada vez que menciono o nome dela, seus olhos ficam tão brilhantes que chegam a assustar.

- Está imaginando coisas.

Quando ele se moveu, ela parou à sua frente.

- Não minta para mim, Lije Stuart. Conheço-o muito bem.

- Ele amaldiçoou-a silenciosamente por isso. Você e Diane

passaram muito tempo juntos no Leste.

- Talvez. Mas o fato é que estou aqui e ela está lá no Leste.

- Mas por quê? É isso o que desejaria saber.

- Ela está lá porque é onde quer estar.

Susannah sacudiu a cabeça diante da resposta deliberadamente vaga.

- É óbvio que vocês tiveram uma discussão. Sobre o quê? Por causa da mãe dela?

- Seja lá o que houve entre Diane e mim, está tudo terminado. Não quero falar sobre isso, Susannah - argumentou numa voz firme e dura. - Está na hora de voltarmos para dentro. Os outros já devem estar se perguntando onde estamos.

Ela hesitou, mas decidiu não insistir no assunto. Era óbvio que Lije não queria confiar nela, o que significava que, se quisesse saber de toda a história, teria de descobri-la através de Diane quando chegasse no Leste.

Lije e Susannah seguiram para casa sem conversarem mais, e nenhum dos dois notou o casal despontando do meio das árvores atrás deles, e não ouviram a voz jovem que os chamava:

- Lije, espere! Espere por nós - gritava Sorrel, começando a correr. - Espere!

Mas ele não olhou para trás, e Sorrel viu que não conseguiria alcançá-los antes que eles chegassem em casa. Cabisbaixa, ela parou, depois olhou para trás enquanto Alex a alcançava:

- Acho que ele não me ouviu.

- Creio que não.

- Fizemos uma cavalgada muito longa. Ele poderia ter nos esperado para que todos voltássemos para casa juntos.

- Parece que ele não estava querendo esperar.

- Eu sei - concordou Sorrel, ferida por dentro.

- Não fique tão triste, minha pequena Sorrel. - Alex sorriu para ela com um brilho malicioso nos olhos. - Mesmo que seu irmão não espere por você, eu sempre esperarei.

Ela levantou a cabeça, sorrindo de novo.

Lije esperou uma semana antes de informar aos pais que tencionava ser nomeado para o Cherokee Light Horse. Escolheu uma hora em que sua família estava reunida para o café da manhã. A reação geral foi a que ele previra.

- Trabalhar no Cherokee Light Horse? - Sua mãe deixou cair o garfo no prato. - Não pode estar falando sério.

- Estou. - Lije cortou sua omelete calmamente, desprendendo um delicioso aroma que se misturou aos de toucinho e café.

- Mas... eu pensei... - gaguejou ela, voltando o olhar para o pai dele, sentado à cabeceira da mesa, os olhos apertados para estudar Lije. - Seu pai e eu pensamos que, se você escolhesse ter um negócio, poderia abrir um escritório de advocacia.

- Já reservei espaço num dos prédios que temos em Tahlequah - informou Blade. - Fica bem no centro e é mais do que adequado às suas necessidades.

Lije sacudiu a cabeça.

- Passei os últimos quatro anos dentro de quatro paredes, cercado de gente, livros e papéis. Agora desejo fazer algo que exija mais do físico e ofereça menos confinamento.

- Se esse é seu critério, então assuma a fazenda-argumentou Temple. - Aqui em Grand View há trabalho mais do que suficiente para mantê-lo ocupado, e seria ótimo livrar seu pai de algumas responsabilidades.

- O supervisor da fazenda, Asa Danvers, é mais do que competente para administrá-la. Eu estaria fazendo pouco mais do que supervisionar o supervisor.

- Então ocupe-se da serraria, ou da operação de gado no Outet - disse ela, a impaciência transformando-se aos poucos numa raiva desesperada.

- De que serviria minha educação se eu fizesse isso?

- E os barcos? Veja... - começou ela, depois viu que os argumentos dele também se aplicavam a isso, e abandonou a alternativa.

O pai dele finalmente falou.

- Já pensou bastante em tudo isso, não é, Lije? - com essa observação, ganhou um olhar feroz de Temple.

- Quer dizer que aprova essa escolha? Como pode? - irritou-se ela. - Que futuro há para ele no Light Horse?

- Eu nunca disse que planejava fazer disso um trabalho para toda a vida - ressaltou Lije.

- Então por que se meter nisso?

- Porque tenho capacidade e conhecimento necessário para fazê-lo... e fazê-lo bem.

- Mas por que deseja fazer isso? Por que deseja passar o tempo perseguindo vendedores de uísque, ladrões e assassinos, apartando brigas de desordeiros e lidando com bêbados?

- Acha melhor ignorar o fato de que tais elementos existam na nação?

- Não, mas tem de ser você a combater isso? Por que não deixa esse serviço para outros?

Ela se levantou e jogou o guardanapo na mesa, soltando as rédeas de seu temperamento. Era a primeira vez - pelo menos que Lije se lembrasse - que ela descarregava a raiva sobre ele. Geralmente reservava essa duvidosa honra para seu pai. Sorrel ficou sentada em silêncio, toda olhos e ouvidos, observando a troca de palavras.

- Por quê?-Lije desafiou-a, a voz ficando mais calma, mais firme. - Como é um trabalho desagradável, deveria deixá-lo para outros. Não é o que realmente deseja? Pode ser uma atitude simpática, mas não é correta.

Ela deliberadamente ficou surda a seus argumentos.

- O Light Horse não tem a melhor das reputações. Alguns homens são pouco mais do que vigilantes que vêem sua autoridade como uma arma a ser usada contra seus inimigos.

- Mais uma razão para trabalhar lá e garantir que uns poucos não corrompam todo o sistema e que a justiça seja feita para todos.

- Que nobreza de sua parte - disse ela com cinismo. - E quanta inocência. A corrupção sempre existirá, não poderá nunca ser erradicada completamente.

- Isso não significa que não deva ser combatida quando for detectada.

- Nisso ele tem razão, Temple - disse Blade suavemente, com um pequeno sorriso beirando os lábios. - Admita.

Ela virou-se para ele, as mãos fechadas ao longo do corpo:

- Como pode estar do lado dele?

- Porque o raciocínio dele é sólido.

- Sólido? - A palavra saiu como um grito sufocado de ultraje.-E agora devo preocupar-me com sua segurança também?

Sem esperar resposta, ela saiu da sala com o nariz empinado, mas Lije viu o brilho quente das lágrimas em seus olhos enquanto a pergunta que ela fizera ecoava em sua mente. Pondo-se de pé, ele amaldiçoou-se baixinho, compreendendo por fim o verdadeiro motivo de ela estar contra sua decisão.

- Deveria ter-me lembrado - resmungou Lije, esfregando a nuca. - Nunca pensei...

- Nem eu. - Blade levantou-se e deixou o peso de seu olhar descansar em Lije. - Está mesmo resolvido?

Lije hesitou, mas depois aquiesceu.

- Estou. É melhor ir falar com ela. Blade fez um sinal para que ele ficasse.

- Não. Deixe que eu fale. Afinal de contas, fui eu quem começou tudo. - Havia mais tristeza do que humor no sorriso que ele deu a Lije.

Lije viu-o sair, depois virou-se para a mesa e encontrou o olhar acusatório de Sorrel.

- Mamãe estava chorando quando saiu.

- Eu sei.

Ele sentou-se de novo na cadeira e apanhou o guardanapo que caíra no chão. A omelete em seu prato agora estava fria e já não parecia apetitosa. Abriu o guardanapo no colo e pegou o garfo.

- Por que a fez chorar? - perguntou Sorrel.

- Foi sem querer.

- Você não é nada bom. - Ela levantou-se da cadeira e encarou-o, o queixo tremendo e os olhos faiscando. - Queria que nunca tivesse voltado. Queria que Alex fosse meu irmão, não você.

Ela correu para o quarto. Lije sentou-se por um longo tempo, depois empurrou o prato e virou-se de lado na cadeira, colocando o braço sobre o espaldar e suspirando em arrependimento. Arrependimento pela dor que causara à mãe e à irmãzinha. Mas sabia que a dor seria ainda maior se a briga começasse de novo. E se isso acontecesse, estava determinado a ocupar uma posição em que imediatamente seria informado sobre isso, podendo agir logo, dentro da lei. Não ficaria impotente uma segunda vez. Essa era a razão principal de trabalhar no Light Horse, mas sabia que jamais poderia compartilhá-la com seus pais.

Blade encontrou Temple na sala de visitas andando de um lado para o outro, empurrada pela raiva e pela dor. Ela virou-se e olhou para ele.

- Homens - disse ela, pegando uma almofada do sofá e apertando-a entre as mãos. - Nenhum de vocês liga a mínima para os aborrecimentos que causam aos outros.

- Sabe que isso não é verdade.

De repente ela virou-se e atravessou a sala, aproximando-se da bela lareira ornamentada com uma moldura de nogueira esculpida. Parou diante dela, e seu olhar fixou-se no intrincado desenho da tela de bronze diante da lareira.

- De todas as escolhas que poderia fazer, por que Lije teve de fazer essa?

- Porque acredita que é a melhor para ele - respondeu Blade, caminhando em direção a ela.

- Mas não é justo - disse ela, inflexível.

- Eu sei.

Ele passou as mãos sobre os ombros e os braços rígidos dela. Temple ficou tensa ao seu toque, mas depois relaxou, os músculos se afrouxando, e deu um soluço perdido e solitário.

- Cada vez que penso naqueles dias em nossa terra quando você assinou aquele tratado de remoção, lembro-me do medo que senti quando aqueles homens cercaram nossa casa, quando sua vida foi ameaçada, das vezes em que foi emboscado, ferido... - Ela estava com a voz trémula, prestes a chorar. - Mais tarde, quando nos mudamos para cá, quando Shawano e os outros foram assassinados e você se escondeu, lembro-me de como foi.

Temple virou o rosto para ele. Seus olhos estavam secos, mas a aridez de sua dor era ainda mais dolorosa.

- O medo que sentia cada vez que um cavaleiro se aproximava, certa de que ele trazia a notícia de que você estava ferido ou morto. Durante muitos, muitos anos tinha medo cada vez que você saía da casa. Mesmo agora, meu coração ainda se aperta quando você está longe e um cavaleiro se aproxima. E agora nosso filho anuncia que deseja ingressar no Light Horse para prender criminosos, gente desesperada, violenta.

- Eu sei, Temple. - Ele passou os dedos carinhosamente no rosto dela.

- Sabe mesmo? - Ela pegou a mão dele e apertou-a contra o rosto. - A única coisa pior do que perder você seria perder nosso filho. Não creio que possa suportar isso.

- Não haveria dor maior do que isso - concordou Blade -, mas sei como você é forte, Temple. Você suportaria isso porque deveria. Todos nós devemos.

Ela tentou mais uma vez:

- Mas você poderia conversar com ele, persuadi-lo...

- Eu não tentaria fazê-lo mudar de ideia. Lije deve seguir seu próprio caminho. Como pode esperar que escolha uma vida fácil e segura, quando é nosso filho?

- Não quero que tenha a vida que tivemos. Quero algo melhor para ele.

- Mas não cabe a nós escolher isso.

- Por que deve pensar sempre com a razão?

Ela virou-se e dobrou os braços. Ele riu e Temple ficou irritada de novo.

- Fico contente de que me ache tão divertida.

- Estava me lembrando de como Lije enfrentou o fogo de seu temperamento sem vacilar um milímetro. Creio que não terá dificuldade em enfrentar um criminoso violento e desesperado.

- Não vejo graça nenhuma nisso. Blade ficou sério mais uma vez.

- Acho que Lije partirá em breve para Oak Hill. Lá pedirá ajuda ao avô para ser nomeado para o Light Horse-avisou Blade.

- Ele sabe que você está aborrecida, e também sabe por que, mas irá de qualquer forma. Talvez você não seja capaz de dar sua aprovação, mas não deixe que ele se vá com a lembrança de palavras duras entre vocês. Vai se arrepender disso, e ele também.

Sabiamente, Blade não tocou mais no assunto e virou-se para sair. Lije ficou parado na porta. Blade olhou rapidamente para Temple, depois saiu, fazendo um sinal para Lije enquanto passava. Pensando estar só, Temple virou-se e deparou-se com Lije.

- Mandei pedir a Ike para selar meu cavalo - disse ele. Ela ergueu o queixo, numa atitude desafiadora. Mas logo

abaixou-o, resignada.

- Gostaria que mudasse de ideia, mas você é igualzinho ao seu pai.

- Ótimo - disse Lije sorrindo. - Isso quer dizer que estou perdoado.

- Você parece muito confiante. - Ela acalmou-se um pouco, apesar de tudo.

- Estou.

- Vejo que não tenho escolha. - Ela estudou-o de longe. Há muito tempo aprendi que os homens Stuart não podem ser controlados.

- E gostaria que fôssemos?

- Talvez não. Mas você é meu filho, Lije. Não pode esperar que esteja a favor de sua escolha.

- Compreendo isso. - Havia um ar de arrependimento nos olhos dele. - Darei seus cumprimentos a vovô.

Ele se virou e saiu da sala. O som de seus passos desaparecendo fez-se alto no silêncio. Temple ouviu a porta da frente abrir-se e depois fechar-se. Queria chamá-lo de volta, mas seu filho não era mais um menino para fazer o que a mãe mandava. Agora era um homem.

Por mais difícil que tivesse sido ficar neutra na briga que uma vez dividira sua família, ela agora imaginava onde encontraria forças para aceitar essa nova situação que tanto a afetava pessoalmente.

Em meados de julho, Lije foi designado para a patrulha do Light Horse em seu distrito local com o nível de tenente e o comando de quatro homens. Passou a maior parte do primeiro mês aprendendo os procedimentos, familiarizando-se com a área e tratando de pequenos delitos.

Três dias antes que seus avós e Susannah partissem para sua viagem ao Leste, um cherokee pegou um homem roubando seus cavalos. Houve uma troca de tiros e o índio caiu, mortalmente ferido. O ladrão fugiu.

Lije chegou ao local com Sam Blackburn, um de seus homens, pouco antes de o índio falecer. Depois de fazer o que pôde pela vítima, ele obteve com a viúva a descrição dos três animais roubados. Um era castanho e branco; o segundo, uma boa égua de carruagem, marrom, com uma mancha branca no focinho; o terceiro era um baio veloz com as patas brancas e um sinal na cabeça. Nenhum estava marcado, mas um deles tinha uma ferradura lascada na pata direita que deixava uma marca plana visível o bastante para qualquer cego ver. Lije e Sam saíram atrás do ladrão, seguindo o rastro que ele deixara.

Seguiram-no por dois dias. Na noite do segundo dia, Lije avistou os três cavalos, amarrados no meio de uma clareira. Parecia uma armadilha.

Cuidadosamente, Lije circundou um lado do acampamento enquanto seu colega rodeava o outro. No meio, Lije encontrou rastros do cavalo do ladrão, saindo da clareira. Seguiu a pista até constatar que o ladrão não dera uma volta apenas para disfarçar. Depois, voltou para onde estavam os animais roubados.

Havia uma nota pendurada sobre o cabresto do baio. Dizia:

"Aqui estão os cavalos que roubei. Nunca quis atirar em ninguém. Foi em defesa própria. Quando ele atirou com aquele revólver e deixou meu chapéu cheio de buracos, aquilo me enraiveceu. Nunca atirei num homem com raiva antes. E nunca farei isso de novo. Espero que ele não tenha morrido."

- Veja só isso aqui - Lije sacudiu a cabeça, surpreso, e mostrou a nota a Sam. - O idiota assinou seu nome embaixo. "D. Russell."

Sam sacudiu a cabeça e sorriu, devolvendo-lhe a nota.

- Creio que achou que, se devolvesse os cavalos e prometesse não atirar mais em ninguém, deixaríamos que escapasse.

- Pensou errado-retorquiu Lije, examinando o morro à sua frente. - Ele não pode estar a mais de uma ou duas horas à nossa frente. Vamos apertar o passo. Depois de acampar no frio por duas noites, acho que esta noite ele acenderá uma fogueira. Se pudermos chegar perto o bastante antes que a noite caia, poderemos ver a claridade do fogo.

Duas horas depois divisaram um ponto de luz numa clareira cercada de árvores. Deixaram os cavalos amarrados e aproximaram-se a pé. Encontraram o cavalo do homem amarrado no mato, perto de um córrego, ainda úmido de suor.

A fogueira na clareira era pequena, escondida atrás das árvores. Movendo-se com cuidado, aproximaram-se do acampamento escondido. O homem estava sentado junto ao fogo, o corpo inclinado para a frente, a cabeça descansando sobre as mãos, numa posição de cansaço ou derrota.

Lije fez sinal para Sam lhe dar cobertura e caminhou sem fazer barulho em direção ao círculo de luz, com o revólver na mão.

- Seu nome é Russell?

A cabeça do homem levantou-se com um pulo.

- Sim. - Ele franziu o cenho, tentando enxergar Lije, escondido nas sombras. - Quem é você?

- Meu nome é Stuart, do Cherokee Light Horse.

- Seu desgraçado! - O homem tentou alcançar o rifle. Não houve tempo para pensar, só para agir. Lije atirou. A bala

pegou o ombro direito do homem, fazendo-o rodopiar. Mesmo quando caiu, o ladrão ainda tentou pegar o rifle, mas Lije já se movia. Alcançando-o primeiro, chutou o rifle além do seu alcance. O homem rolou no chão com um grito de dor. Sam Blackburn saiu das sombras e pegou o rifle.

Lije manteve o revólver apontado para o ladrão, pronto para atirar.

- Pensei que não fosse mais disparar com raiva.

- Diabo, não foi por raiva. - O ladrão apertou a mão sobre o ferimento do ombro que sangrava, respirando com dificuldade, dolorosamente. - Foi por puro medo. Sabia que queria levar-me de volta para enforcar-me. Só que nunca fui a favor de encontrar o Criador pendurado numa corda.

- Então não deveria ter atirado no homem e roubado seus cavalos.

com Sam Blackburn por perto para manter o ladrão coberto, Lije guardou seu revólver no coldre e foi cuidar do ferimento do homem.

- Diabo, há muitas coisas que eu não deveria ter feito resmungou, dando um suspiro profundo, gemendo de dor quando Lije começou a inspecionar o ferimento. - Meu ombro está todo arrebentado, não é?

- Acho que sim. Parece que a bala ricocheteou no osso e saiu por cima do ombro. Tem um buraco de saída. - Lije começou a enrolar o ombro do homem.

A primeira luz da manhã seguinte encontrou o trio a caminho, o ladrão amarrado de lado na sela de seu cavalo e os cavalos roubados a reboque. Lije escolheu o caminho que passava pelo novo povoado de Kee-too-wah, que antes era o Forte Gibson. Ele achava que, se a sorte caminhasse com eles, poderiam chegar lá antes da partida da barca que levaria seus avós e Susannah para Massachusetts.

Por volta do meio-dia avistaram os prédios do antigo forte. Enquanto Lije apertava o passo do cavalo, ouviu o apito rouco da barca a vapor. Era o apito de "todos a bordo", anunciando que a barca começava a preparar-se para partir. Lije chamou Sam para ficar com o prisioneiro e saiu a galope. O grande baio deu um salto para a frente, com um novo ímpeto de velocidade.

Quando alcançou uma elevação, Lije viu que a prancha de desembarque ainda estava no lugar. A uma curta distância à sua esquerda, sua mãe e Sorrel se encontravam perto da carruagem da família. Ele guiou o cavalo para baixo do morro, desviando-se das pessoas.

Ao aproximar-se da barca viu que estavam prestes a retirar a prancha. Estava quase a maldizer sua sorte quando viu uma mulher com um casaco de viagem cinza-escuro conversando animadamente com um marinheiro.

Ele parou perto da prancha, e Susannah veio correndo para encontrá-lo.

- Você veio! - Ela pegou as rédeas, segurando o cavalo enquanto Lije desmontava.

- Você não achava que eu iria perder a chance de desejar a minha tia favorita sucesso em sua viagem, não é? - brincou ele, pegando as rédeas do cavalo, ainda excitado pela corrida.

- Sou muito jovem para ser sua tia. - Mesmo fazendo sua costumeira réplica, sua expressão se amaciara. - Mas creio que me aborreceria se não me chamasse assim.

- Eu sei. - Ele sorriu, depois levantou a cabeça para inspecionar o convés de cima. - Onde estão vovô e Eliza?

- No segundo convés. - Susannah apontou para eles. Você precisava ver como andam se comportando. É como um casal em lua-de-mel atrasada. Realmente comovente.

- Eles aguardaram essa viagem com ansiedade.

- É verdade - concordou ela, depois parou, seus olhos cor de mel avaliando-o de novo com prazer. - Ninguém achou que conseguiria chegar aqui hoje. Temple disse que você estava perseguindo um assassino. Mas eu sabia que ia conseguir.

- Quase não consegui.

- É verdade.

Um auxiliar do capitão aproximou-se e chamou a atenção de Susannah, tentando esconder um olhar impaciente.

- Peço desculpas, senhorita, mas estamos prontos para zarpar. Se está vindo conosco, sugiro que suba a bordo.

- Claro. Irei imediatamente. - Ela virou-se de volta para Lije, com tristeza. - Tenho de ir agora. Não deixe de escrever-me, Lije Stuart.

- Escreverei - prometeu ele.

Ela hesitou um segundo, depois perguntou:

- Tem algum recado que deseja que eu transmita a Diane? A expressão dele endureceu.

- Desista, Susannah. Está tudo terminado.

Contudo, ela notou em seus olhos uma centelha de dor que ele não conseguiu esconder com rapidez suficiente.

- Para seu próprio bem, espero que não. - Numa rara demonstração de afeto, Susannah beijou-lhe o rosto rapidamente e sussurrou: - Tome cuidado, Lije. - Juntando a barra da saia, correu para a prancha de embarque e entrou no barco.

Lije olhou-a por um momento, depois montou no cavalo e afastou-se da prancha. com um último aceno para Susannah e seus avós, guiou o baio de volta até a carruagem da família.

- Você demorou - disse Sorrel com uma leve petulância. Quase partiram sem vê-lo.

- Sim, quase - Lije desmontou, as esporas fazendo um pequeno clique quando pisou no chão.

- Você está bem? - Temple correu o olhar por ele, com uma preocupação materna nos olhos.

Atrás dela estavam seu tio Kipp e seu primo Alex, mas não havia sinal de seu pai.

- Sim.

com essa preocupação fora do caminho, a atenção dela voltou-se para a poeira e o suor que o cobriam.

- Lije Stuart, você está parecendo um de nossos trabalhadores depois de um dia na lavoura. - Ela tirou um lenço perfumado para abafar o odor que vinha dele.

- Multiplique isso por quase três dias e estará certa - Lije bateu nas pernas das calças, levantando pequenos tufos de poeira.

- Nada que um bom banho e uma muda limpa de roupas não possam resolver, e essas são as primeiras coisas que buscarei quando chegar em casa esta noite.

Ele olhou em volta, como se procurasse alguém.

- Papai não veio com vocês?

- Ele tinha algo a fazer no Forte Smith. Pretende encontrar a barca quando ela chegar lá.

- O que aconteceu com aquele ladrão de cavalos que você estava caçando? - perguntou Kipp, num tom desafiador. - Conseguiu fugir?

- Não. Nós o pegamos ontem à noite.

Ouvindo as batidas de cascos de cavalos, Lije olhou em volta enquanto Sam Blackburn se aproximava com o prisioneiro e os cavalos roubados. Parou perto da carruagem e acenou, primeiro para Lije e depois para os outros, mas sem dizer uma palavra.

- Vamos levá-lo para a corte do distrito - informou Lije. Kipp olhou para o prisioneiro.

- Ouvi dizer que o homem em quem ele atirou morreu no dia seguinte.

- É verdade.

Ao olhar para o tio, Lije notou um brilho de metal na lapela do seu casaco. Era um pequeno botão, na forma de dois pinos cruzados. Lije teve o pressentimento imediato de que o botão tinha algum significado ruim - algo que já vira antes, mas não conseguia lembrar-se quando, quem ou o quê representava. Havia um botão idêntico na lapela de Alex.

- O que acontecerá com ele? - perguntou Sorrel, com os olhos arregalados.

- Ele será mantido sob guarda até o julgamento, que provavelmente será amanhã ou depois de amanhã. A Constituição Cherokee garante que cada cidadão da nação indígena receba um julgamento rápido e justo.

- Será que vão enforcá-lo? - perguntou ela quase num sussurro, mostrando uma mistura infantil de curiosidade mórbida e apreensão.

Lije hesitou, procurando uma forma de proteger a irmãzinha da dura realidade da vida. Mas Alex, não compartilhando de tal sentimento, declarou:

- Se for julgado culpado, poderá ser enforcado no mesmo dia.

- É verdade? - Ela olhou para Lije e inconscientemente aproximou-se mais da mãe.

- Primeiro tem de ser julgado culpado de roubar e matar. No entanto, no sistema de justiça cherokee, as sentenças são

executadas tão rapidamente quanto os julgamentos.

O apito estridente desviou a atenção do prisioneiro para a barca a vapor, que fazia suas manobras longe do cais, procurando o canal do rio. Da margem, braços acenavam adeus aos passageiros.

com a partida da barca, não havia razão para mais demoras. Kipp e Alex foram os primeiros a se despedir, deixando Lije com a mãe e a irmã.

- Nós o veremos esta noite, não é? - perguntou sua mãe depois que Lije as ajudou a subir na carruagem.

Lije concordou.

- Tenho um banho quente e um jantarzinho esperando por mim?

- Não se preocupe.

- Por que não vem para casa conosco agora? - protestou Sorrel.

- Ele tem de levar o prisioneiro - explicou-lhe Temple. Sorrel deu um último sorriso para Lije e fez um sinal para o

cocheiro negro prosseguir.

O cocheiro bateu o chicote nas costas dos cavalos e sacudiu as rédeas para forçá-los a seguir adiante. Lije afastou-se das rodas da carruagem e aguardou que partissem, depois passou as rédeas sobre o pescoço de seu cavalo baio, tornando a montar.

- Pronto? - perguntou Lije.

Sam Blackburn concordou, mas o prisioneiro simplesmente olhou para ele, um pouco pálido e com os olhos vidrados de dor e desespero. Lije pegou as rédeas do cavalo do prisioneiro e partiram. Nada mais foi dito até que o vilarejo ficou dois quilómetros para trás.

- Se encontrasse um homem usando um botão em seu casaco com dois alfinetes cruzados, o que isso significaria, Sam?

Sam deu-lhe um rápido olhar, depois olhou diretamente para a frente. Levou algum tempo para responder.

- Eu diria que o homem se associou aos Keetoowahs.

- Keetoowahs? - Lije franziu a testa.

- É uma sociedade secreta. Seus membros são quase todos índios de sangue puro, mas são liderados pelo missionário Evan Jones.

- O abolicionista.

Lije lembrava-se agora de ter ouvido que aquela insígnia de pinos cruzados indicava que o portador pertencia a um grupo antiescravidão que havia na nação. Na ocasião, preocupara-se ao saber que o movimento do Norte pela libertação dos escravos já se infiltrara na nação. Sabia o quanto podiam ser zelosos alguns de seus seguidores. Mas não era isso que o perturbava mais.

- Não faz sentido que meu tio Kipp pertença a esse grupo.

Ele não se importa absolutamente com os negros. Na verdade, tem até vários escravos na lavoura.

- Seus membros também proclamam que procuram preservar as antigas tradições cherokee.

Havia muitas tradições na cultura cherokee, mas Lije só conhecia uma que Kipp pudesse querer manter viva: a Lei de Sangue do Cherokee, que condenava à morte qualquer cherokee que se desfizesse de terras tribais - como o pai de Lije tinha feito muitos anos atrás. Alex naturalmente concordaria com seu pai.

- O ódio é uma coisa feia, Sam. Sempre começa pequeno, como uma sementinha de ressentimento que é tratada e alimentada com pensamentos venenosos. Se não for eliminado, começa a formar raízes e a crescer. E quanto mais ele for alimentado, mais cresce, até que o homem fica cego e não consegue ver, ouvir ou sentir mais nada a não ser ódio.

Sam resmungou algo imperceptível, mas não fez nenhum comentário. O silêncio permaneceu entre eles até Sam quebrá-lo com um comentário inocente.

- Ouvi dizer que Stand Watie convidou seu pai a se unir aos Cavaleiros do Círculo Dourado.

Tratava-se de outra organização secreta que era ostensivamente a favor da escravidão. Stand Watie era irmão do falecido Elias Boudinot, um dos signatários do chamado Tratado Fantasma, como também tinha sido o pai de Lije. Tal como Shawano Stuart, fora morto por mãos assassinas.

Lije sentiu essa notícia atravessá-lo com um frio na espinha. Assim como os estados americanos, a nação cherokee começava a dividir-se lentamente em campos opostos, usando a escravidão como pretexto. Ambos contudo alinhavam-se às velhas ideias que haviam separado os seguidores do major Ridge, defensores do Tratado Phantom, dos seguidores de John Ross, o chefe que lutara contra o tratado até o momento da partida - aquele dia fatídico em que os cherokees foram forçados a emigrar em direção ao Oeste.

Uma nuvem negra escureceu o céu. Ouviu-se o rugido de um trovão a distância. Uma tempestade se aproximava. Lije podia senti-la claramente.

Massachusetts, Primeira semana de setembro de 1860

Na propriedade dos Wickham, os bordos ainda ostentavam suas cores verdes de verão, mas havia no ar um ligeiro frescor que denunciava a aproximação do outono. Quando a carruagem entrou na estradinha que conduzia à mansão de tijolos, Susannah inclinou-se para a frente, ansiosa por abraçar novamente sua amiga Diane Parmelee.

As duas se conheciam desde que Susannah se entendia como gente. Quando menina, considerava em Diane Parmelee sua melhor amiga. Ainda achava isso, embora não a visse há cinco anos.

Sorrindo, Susannah pensava na menina que conhecera no Forte Gibson. A bela Diane com seus cabelos de ouro, os olhos de porcelana azuis e um rosto que só poderia ser descrito como diferente e pequeno - ou seja, tudo o que Susannah não era. Mas ela adorava Diane, e as duas aproveitavam cada oportunidade para estarem juntas... até aquele dia diante do armazém no forte.

A lembrança daquele incidente ainda se encontrava vívida em sua mente. Ainda a impressionava tanto quanto há anos...

Susannah ouviu um riso de menina, subindo como as notas da escala musical. Levantando os olhos das bolas de gude, viu sua amiga Diane, então com nove anos, de mãos dadas com o pai, caminhando em direção ao armazém. A alegria de Susannah foi instantânea.

Sempre que ficava sabendo que iria a Forte Gibson, ansiava em ver Diane Parmelee. Na maioria das vezes conseguia. O armazém ficava perto do alojamento dos oficiais onde Diane vivia. Se o tempo estivesse bom, ela geralmente encontrava Diane brincando do lado de fora. Excitada, Susannah bateu no ombro de Lije.

- Veja, lá vem Diane.

- Já a vi - disse ele sem olhar, com a bola entre os dedos, mirando uma das bolas de Susannah.

- Como pode ter visto? Você nem olhou.

- Eu a vi quando dobrou a esquina com o capitão Parmelee. Sempre vejo as coisas antes de você.

Ele arremessou sua bola, que se projetou contra uma das bolas de Susannah, lançando-a para fora do círculo.

- Por que não me disse? Ele sacudiu os ombros.

- Essa era a sua melhor bola verde. Agora é minha. Susannah ignorou o brilho malicioso nos olhos dele. A perda

de sua bola favorita de repente não parecia importante, com Diane aproximando-se. Apressada, Susannah levantou-se e acenou para a amiga. Diane acenou de volta e disse algo para o pai. Ele sorriu e concordou, soltando a mão dela para deixá-la correr na frente.

Quando a menina se aproximou, Susannah sentiu uma pontinha de inveja. Diane era a perfeita figura de uma menina na moda. Seu vestido lilás era enfeitado com laços púrpura. A delicada renda de suas anáguas era visível sob a bainha da saia. Laços violeta e púrpura trançavam o chapéu de palha que usava. Seu cabelo encaracolado era de ouro brilhante, emoldurando o rosto que sempre lembrava a Susannah uma boneca de porcelana com grandes olhos azuis, cílios espessos, o queixo pontudo, a boca perfeitamente desenhada. Susannah sabia que perdia na comparação: seu vestido rosa caía solto em seu corpo frágil, os cabelos encaracolados e rebeldes, as pernas e os braços magros e ossudos. Como sempre, quando confrontada com a inegável perfeição de Diane, Susannah erguia o queixo um pouco mais.

- Susannah, não sabia que você vinha aqui hoje. - A alegria na expressão de Diane fez Susannah sentir-se importante e querida.

- Está aqui há muito tempo?

Não muito-assegurou-lhe Susannah, notando que Lije já

estava de pé a seu lado.

Diane lançou-lhe um longo olhar, com um pequeno sorriso de prazer.

- Não vai cumprimentar-me, Lije?

- Como vai? - Ele estava sério, olhando-a intensamente.

- Muito bem, obrigada.-Ela recompensou-o com um grande sorriso. - Se soubesse que estavam aqui, teria vindo à loja com mamãe. Você foi ao alojamento para ver se eu estava lá? Papai e eu fomos dar uma volta.

Ela virou-se para o capitão, que se aproximava.

- Susannah, Lije, que bom ver vocês - cumprimentou-os o capitão Parmelee com um aceno.

Inconscientemente, Susannah ficou mais ereta, imitando a postura dele.

- Como vai, capitão Parmelee? - As palavras dela eram formais, mas seu sorriso era amigável.

Conhecia o capitão Parmelee desde pequena. Ele a conhecera quando os Gordons ainda viviam na Geórgia. com o passar dos anos, ela ouviu histórias sem fim sobre ele. Sua favorita era aquela que contava o dia em que ele conhecera a meia-irmã dela, Temple, em Washington, D.C., e ensinara-a a valsar. Isso despertava em sua mente uma vívida imagem, que adquiriu um tom romântico depois que Susannah ouviu a mãe, Eliza, dizer que suspeitava de que o capitão Parmelee ainda era meio apaixonado por Temple, mesmo já sendo casado.

- O que as crianças estão fazendo? - perguntou o capitão.

- Jogando bolas de gude-respondeu Susannah para distrair a atenção do repentino muxoxo de Lije. Sabia que ele não gostava de ser chamado de criança. Aos doze anos de idade, achava-se muito velho para ser chamado assim.

- Quem está ganhando?-Diane olhava o jogo em andamento.

- Lije. Ele sempre ganha.

- Ele é mais velho - observou o capitão Parmelee em consolo, depois virou-se para Lije. - Sua mãe está aqui?

Lije fez sinal que sim.

- Ela e Eliza estão na loja.

- Ah, sim. - Ele deu meia-volta, a atenção desviando-se para a entrada da loja.

- Sabe jogar bolas de gude? - perguntou Susannah a Diane.

- Não muito bem - admitiu ela, com pena.

- Posso ensinar-lhe - ofereceu-se Lije. - Gostaria de jogar conosco?

Diane virou-se ansiosa para o pai.

- Por favor, papai, posso?

- Como posso recusar quando você me olha com esses olhos grandes e lindos? - brincou ele, e Diane riu. - Fique aqui e jogue com Lije e Susannah enquanto vou lá dentro ver se sua mãe já terminou as compras.

- Espero que não. Mas, se terminou, talvez possa achar algo mais para ela procurar - sugeriu Diane, maliciosa.

O capitão sacudiu a cabeça, sorrindo.

- vou ver o que posso fazer.

- Obrigada, papai. Muito obrigada mesmo - disse ela, feliz com seu sucesso.

- Cuidado para não sujar esse vestido bonito, ou sua mãe arranca minha pele.

- Tomarei cuidado, papai - prometeu Diane.

- Divirtam-se, crianças - disse ele, dirigindo-se à loja de mantimentos com o passo apertado.

Susannah começou a familiarizá-la com o jogo.

- Se prender a bainha da saia entre os joelhos quando se abaixar, seu vestido não tocará o chão-explicou ela, demonstrando a Diane a maneira correta de fazê-lo.

Diane imitou seus gestos, prendendo cuidadosamente a frente da saia entre os joelhos. Logo os três estavam de joelhos em volta das bolas no chão.

- Já conhece as regras do jogo? - perguntou Lije.

- Algumas - disse Diane.

Para surpresa de Susannah, Lije não se exasperava com a falta de conhecimento de Diane. Pacientemente, ele explicava tudo a ela.

- O objetivo é tirar do círculo as bolas do outro jogador.

- Mas não tenho nenhuma.

- Pode ficar com algumas das minhas - ofereceu Lije.

Posso ficar com aquela azul ? É tão bonita-Diane apontou

para a que Susannah sabia ser a favorita de Lije.

Claro - concordou ele sem hesitação.

Susannah olhou para ele com espanto, depois percebeu que ele estava certo de que a ganharia de volta. Tomando a iniciativa, ela também deu algumas das suas para Diane. Quando as bolas foram igualmente divididas, Lije demonstrou o uso da bola atiradeira. Diane olhava surpresa enquanto ele punha no bolso a bola vermelha de Susannah que acabara de acertar e tirar do círculo desenhado no chão.

- Você fica com a bola que consegue tirar do círculo? Isso quer dizer que poderei perder minha bola azul. Você é tão melhor neste jogo do que eu. Assim não terei a menor chance.

- Usarei a minha mão esquerda para atirar, em vez da direita. Não sou tão bom com essa mão.

- Isso seria justo - concordou Susannah.

Lije mostrou que sabia jogar com a mão esquerda, mas muito mal. Perdeu na vez seguinte. Susannah jogou, mas por cortesia a Diane não apontou para a bola azul. Jogou duas vezes e errou.

- Agora pode tentar - disse ela a Diane.

Diane segurou a bola atiradeira numa posição quase correta. Mas não havia força em seus dedos, e a bola atiradeira apenas rolava deles.

- Essa foi uma jogada de treinamento - disse Lije rapidamente. -Já que está aprendendo, pode tentar mais umas duas vezes antes de valer. Mas aprenda a atirar com o dedo. Assim.

Mais uma vez ele demonstrou a técnica. E mais uma vez Diane tentou imitá-lo sem sucesso. Ela pegou a bola e jogou de novo. O resultado não foi melhor.

- Deixe-me mostrar a você.

Lije deu a volta no círculo. Tomando a mão dela, moldou seus dedos e o polegar na posição correta, depois mandou-a tentar sem a bola atiradeira. Finalmente, deixou-a usar a bola de novo. Essa tentativa foi um pouco melhor.

- Vamos tentar de novo-insistiu ele.-Desta vez, enquanto você segura, eu atiro. Quero que você sinta como o meu dedão bate na bola.

Ele chegou mais perto dela, curvando o corpo de forma a moldar-se contra o lado direito de Diane, a mão esquerda descansando no ombro dela, ajoelhado no chão para equilibrar-se. Mais uma vez ele prendeu a mão de Diane e cobriu-a com a dele, moldando-a na posição correta.

Quando a bola atiradeira estava colocada corretamente no lugar, Lije inclinou-se até que seus rostos estivessem quase juntos:

- Vamos mirar naquela bola amarela.

Então, alguma coisa-um som, uma vibração no chão, algum movimento fora de sua visão - chamou a atenção de Susannah. Ela olhou para cima e imediatamente congelou-se ao ver a esposa do capitão Parmelee ali parada, olhando para eles, com um olhar de puro ódio estampado no rosto.

- Cecília! - O grito veio do capitão Parmelee. Susannah deu uma olhada rápida para a porta do armazém. Lá estava ele, os braços carregados de embrulhos, a expressão de choque e consternação. Sua mulher dirigiu-se a eles.

- Sua criatura suja, horrível. O que está fazendo tocando minha filha? - gritou ela, as mãos agarrando Lije e arrancando-o de perto de uma Diane boquiaberta, arremessando-o ao chão.

Em seguida, pegou Diane e puxou-a, enquanto lançava um olhar assassino a Lije.

- Nunca mais ponha suas mãos sujas em minha filha! - Ela tremia de ódio. - Está ouvindo? Jamais se aproxime dela de novo!

- Mas, mamãe - protestou Diane, quase em lágrimas. Lije e Susannah são meus amigos. Estávamos brincando...

- Cale a boca! - Ela deu um safanão em Diane com tanta força que a filha se calou, assustada. - Eles não são nada mais do que índios nojentos. Você nunca mais vai brincar com eles de novo. Nunca mais!

- Cecília - Jed Parmelee aproximou-se da cena. - Pelo amor de Deus, o que está fazendo? Esse menino é filho de Temple...

- Acha que não sei quem ele é? É filho daquela desgraçada? Não vou tolerar que esse traste de índio sujo ponha as mãos em minha filha de novo. Está ouvindo? Não vou tolerar!

E afastou-se, arrastando Diane com ela. Em sua mente Susannah ainda podia ver as lágrimas escorrendo na face de Diane e o olhar de tristeza e espanto em seu rosto.

Lembrava-se de como seu coração ficara partido após o incidente, certa de que nunca mais veria sua querida amiga de novo. Contudo, menos de um mês depois disso, Diane e seu pai cavalgaram até Oak Hill; ela em seu pónei palomino e o capitão Parmelee num animal da cavalaria.

Jed Parmelee fizera a visita parecer uma coisa informal, dizendo que ele e Diane tinham saído para cavalgar e decidiram fazer uma visita aos Gordon. Como o dia estava fresco, foram servidos refrescos no jardim das rosas. Todo mundo agia como se o incidente nunca tivesse ocorrido, exceto Susannah: ela estava retraída, insegura de ser bem-vinda.

Finalmente Diane aproximou-se dela e polidamente pediu-lhe para mostrar-lhe as rosas. Quando chegaram ao caramanchão, Diane virou-se para encarar Susannah, a expressão séria mas honesta.

- Prometi à minha mãe que nunca mais brincaria com você ou com Lije - disse Diane. - De agora em diante, quando nos encontrarmos, poderemos conversar, caminhar ou cantar canções, mas jamais brincaremos juntas.

Susannah franziu o rosto, confusa.

- Mas isso tudo não é a mesma coisa que brincar?

- Não. Meu pai disse que, às vezes, é melhor fazer uma estrita interpretação das ordens. Brincar significa jogos como bolas de gude e bonecas e pular corda e brincar de esconder. E minha mãe não ia querer que eu fosse indelicada - insistiu Diane, a boca se abrindo num sorriso conspirador.

- Então ainda podemos ser amigas? - perguntou Susannah, meio amedrontada para acreditar naquilo.

- Claro - sorriu Diane. - Minha mãe só disse que não poderíamos brincar juntas. Ela nunca disse que não poderíamos ser amigas.

Olhando o passado, Susannah podia ver que Diane, com a ajuda do pai, inventara uma sutil distinção que possibilitaria continuar sua amizade. Ela estava feliz por isso.

A carruagem parou suavemente diante da mansão dos Wickham. O cocheiro deu a volta para ajudá-la a descer. Susannah agradeceu-lhe e caminhou para a porta da frente. Olhou a campainha e hesitou, tomada por um súbito nervosismo. Cinco anos haviam-se passado desde que vira Diane pela última vez. Embora tivessem mantido correspondência durante todo aquele tempo, não era o mesmo que se encontrarem de novo, cara a cara. As pessoas mudam, assim como as amizades. Talvez a delas também tivesse mudado.

Havia apenas uma maneira de descobrir isso. Susannah puxou a corda da sineta e ouviu o som abafado do sino dentro da casa. Um mordomo totalmente uniformizado abriu a porta e examinou-a com um olhar preconceituoso.

- Em que posso ajudá-la, senhorita? - perguntou.

- Sou Susannah Gordon e vim visitar a srta. Parmelee. Ela está me esperando - respondeu Susannah com uma ponta de autoridade.

- Sim, de fato. - com uma leve inclinação, ele abriu mais a porta. - Por favor, entre, srta. Gordon. Informarei à srta. Diane que a senhorita chegou.

- Não é necessário, Billings. - Ouviu-se a voz de Diane partindo do segundo andar.

Susannah olhou para cima, enquanto Diane descia as escadas correndo, a saia do vestido de seda de listras azuis e verdes voando sob ela.

- Vi a carruagem aproximar-se e sabia que era você, Susannah - ela alcançou a entrada de piso de mármore e atravessou-a, estendendo os braços para Susannah em boas-vindas. - Há anos que não nos vemos. Deixe-me vê-la... Como está alta e bonita.

Susannah riu, aliviada ao constatar que Diane era a mesma amiga de que se lembrava.

- Alta, sei que é verdade.

- E adorável também, embora suspeite de que você seja o cisne que sempre se acha um patinho feio - disse Diane, em divertida reprovação. Depois virou-se e instruiu o mordomo. Billings, guarde o casaco e o chapéu da srta. Gordon e peça à sra. Kincannon que nos prepare um chá.

- Gostaria que fosse servido em seus aposentos?

- Claro que não - riu Diane, com o mesmo som melódico e alegre de que Susannah se lembrava. - com todos os meus baús espalhados, quase não há lugar para se virar lá dentro. Tomaremos o chá na sala de visitas.

Muito bem, senhorita. - Ele recolheu o casaco e o chapéu

de Susannah e, em seguida, retirou-se.

- A sala de visitas é por aqui - Diane pegou-a pela mão e conduziu-a, como fazia quando eram meninas.

A curiosidade tomou conta de Susannah antes de chegarem à sala.

- Por que seus baús estão para fora? Vai viajar?

- Seguirei para Boston amanhã. Mamãe e o sr. Austin voltarão da viagem de lua-de-mel neste fim de semana, por isso devo me assegurar de que tudo esteja pronto por lá para a chegada deles.

Ela e Susannah entraram na sala de visitas, um cómodo grande com paredes altas e uma mistura de móveis: cadeiras de espaldar alto com assentos profundos e braços grandes e conjuntos de cadeiras macias de veludo com banquinhos combinando na frente delas. Diane sentou-se numa cadeira e fez um sinal para Susannah sentar-se na outra.

- Não imagina como estou feliz por estar aqui. Temi que nos desencontrássemos. E então, diga-me, como estão seus pais, sua irmã Temple e Blade? E a pequena Sorrel, ainda tem aqueles lindos cabelos vermelhos?

Conversaram por um longo tempo sobre a família e os amigos em comum, colocando as notícias em dia. Nem uma só vez Diane deu qualquer indicação de que pudesse estar sofrendo a dor que Susannah percebera em Lije. Ela ria e tagarelava como se nunca houvesse acontecido nada entre os dois. Susannah estava pronta a acreditar que pudesse ter sido um sentimento unilateral, não fosse o fato de que Diane evitava qualquer referência a Lije.

- Então, o que vai fazer quando regressar a Boston? perguntou-lhe Susannah.

- Não tenho nenhum plano definitivo, mas imagino que minha mãe me manterá ocupada enquanto procura um marido apropriado para mim - respondeu Diane com sua típica voz despreocupada. - Ela acha que já é tempo de me casar.

Aproveitando a oportunidade, Susannah comentou:

- Algo me diz que Lije espera que isso não aconteça.

O sorriso de Diane esmoreceu.

- Não sabia que ele pensava em mim-disse, levantando-se da cadeira e dirigindo-se para a janela.

- Ele ainda gosta de você, Diane.

Tensa, ela virou-se, uma centelha de esperança nos olhos.

- Ele lhe pediu para me dizer isso?

Para sua tristeza, Susannah teve de responder-lhe a verdade:

- Não.

- Imaginei isso - Diane tornou a virar-se, os ombros caindo um pouco enquanto o queixo se erguia.

- O que aconteceu entre vocês dois, Diane?

- Não quero falar nisso.

- Foi isso que Lije me respondeu quando lhe fiz a mesma pergunta. O que houve? Por que brigaram?

- Não importa.

- Para mim importa-insistiu Susannah.-Gosto muito dos dois. Você parecia tão feliz em sua carta. Gostaria de ajudar. Sua mãe intrometeu-se entre vocês?

Houve um longo silêncio antes que Diane finalmente respondesse:

- Só indiretamente. Ouça... - Subitamente ela começou a discutir o caso com Susannah. - O senador Frederick tinha uma vaga em seu escritório de Boston. Era uma tremenda oportunidade para Lije. Eu estava certa de que poderia persuadir o juiz Wickham a recomendá-lo. Mas Lije não aceitou isso.

- Você queria que Lije vivesse aqui no Leste - Susannah queria ter certeza de que compreendia Diane corretamente.

- Queria. Afinal de contas, havia muitas oportunidades para ele aqui, principalmente se o juiz Wickham decidisse apadrinhá-lo. Se Lije se tornasse um sucesso, mamãe não poderia fazer objeções a ele. Mas Lije rejeitou a ideia totalmente. Queria ir para casa, e pronto. Ele foi irracional, absoluta e totalmente irracional.

- Para ser honesta, Diane, não posso jamais imaginar Lije vivendo no Leste.

- Eu devia saber que você ficaria do lado dele - Diane acusou-a rapidamente.

- Não é o caso de tomar partido. É simplesmente porque conheço Lije, sei o que ele passou, o que a família passou. Ele é muito protetor do pai, Diane. Sempre foi e sempre será-Susannah levantou-se para enfatizar seu ponto de vista. - Diane, ele era um garotinho quando viu o avô ser morto por um grupo de homens com máscaras negras. Ele adorava o avô, mas não havia nada que pudesse fazer para ajudá-lo. Era jovem demais, muito pequeno. Simplesmente teve de permanecer lá e assistir a tudo. Ele nunca se esqueceu disso.

- Foi uma experiência terrível, eu sei, mas aconteceu há muito tempo - retrucou Diane.

- Mas isso ainda influencia a personalidade dele.

- Então ele deveria entender que a minha família é importante para mim também - contrapôs Diane. - Minha mãe tem seus defeitos, não nego isso, mas ainda é minha mãe. Importo-me com ela.

- E deve importar-se - concordou Susannah. - Mas, por mais que você quisesse que fosse de outro modo, não creio que jamais chegará o dia em que sua mãe vá aprovar Lije, por mais sucesso que ele possa ter.

- Não sei por que estamos discutindo isso. - Apesar da impaciência de Diane, Susannah notou que ela não discordou de seus comentários. - Lije deixou claro que não liga para os meus sentimentos. Então, por que devo importar-me com ele?

- Não está falando sério, Diane.

- É aí que você se engana, Susannah - disse Diane, seu génio despontando. - Estou falando sério.

Susannah fez outra tentativa de argumentar com ela, mas Diane ficou ainda mais revoltada. Em vez de criar um atrito com a amiga, Susannah mudou de assunto.

Particularmente, esperava ter algo de positivo para escrever a Lije, algo que lhe desse esperança. Contudo, agora que compreendia a natureza da briga deles, não via nada que pudesse remediar a situação. Incapaz de oferecer-lhe qualquer encorajamento, Susannah decidiu não mencionar seu encontro com Diane quando escrevesse para ele.

Acampamento à margem da estrada do Texas

15 de novembro de 1860

O crepúsculo desenhava no céu do Oeste espirais magenta e violeta sobre matizes que iam do cinza ao púrpura, que se espalhavam pelo resto do horizonte. As sombras se aprofundavam gradativamente até escurecerem o chão. Um vento uivante trazia o frio do inverno que se aproximava e sacudia as poucas folhas ainda presas aos galhos das árvores.

Bem no alto, a primeira estrela da noite brilhava palidamente, enquanto na terra a claridade da fogueira de um pequeno acampamento destacava-se na escuridão. Vapores aromáticos emanavam de um grande bule à beira do fogo e perfumavam o ar com o cheiro de café.

Lije tirou o bule das brasas e colocou-o sobre uma pedra. Depois, afastou-se da fogueira, abandonando seu calor para ajeitar-se de novo em sua sela, com o pesado casaco abotoado até o pescoço, as grossas luvas de couro cobrindo-lhe as mãos. O ar estava tão frio que ele podia ver sua respiração.

Tirou um pedaço de carne-seca da bolsa da sela e mastigou-o vagarosamente. À sua volta aumentava o silêncio, quebrado somente pelos estalidos da madeira no fogo e as ocasionais pisadas de seu cavalo. Ele vagarosamente examinava as sombras. Esta era a hora em que os fantasmas da noite apareciam, em que o barulho do vento lembrava-lhe o farfalhar das sedas, em que ele via as luzes douradas dos cabelos dela nas chamas oscilantes do acampamento, em que o calor do fogo acariciava sua pele como o calor do hálito dela-com o queixo rígido, meteu a mão dentro do casaco para confrontar-se mais uma vez com seu fantasma. Tirou do bolso a última carta de Susannah e aproximou-a dos olhos para deixar a luz do fogo brincar sobre as palavras escritas com a letra bonita da tia.

Querido Elijah,

É com o maior prazer que leio sua carta de 10 de outubro, informando-me da volta de meus pais. Foi muito bom recebê-la, uma vez que só recebi a carta de mamãe três dias depois.

A primeira neve já caiu aqui. Como você me preveniu, o inverno é um visitante precoce no Norte. Confesso que às vezes sinto falta de casa e de nossos dias frescos de outono que geralmente permanecem até dezembro. Mas estou muito feliz...

Lije pulou os parágrafos seguintes, que descreviam os professores e os novos amigos que ela fizera, e parou quando chegou na parte que dizia:

Hesitei em escrever sobre isso, mas talvez seja melhor que você saiba. A convite de Payton Fletcher, passei o último fim de semana na casa dele, em Springfield. O neto dele, Frank Austin Fletcher, que acho que você conheceu em Harvard, também estava presente. Os negócios exigem que Frank passe algum tempo em Boston. Como ele sabia de nossa amizade com os Parmelees e do tempo que você passou na companhia de Diane quando esteve aqui, achou que eu estaria interessada em saber que Diane se tornou - e repito suas palavras - "a belle de Boston". De acordo com ele, a lista de admiradores dela cresce a cada dia. Diz que eles a rodeiam como "abelhas em volta de um jarro de melado". Mas parece que ela não quer saber de nenhum deles.

Frank teve a "honra" - também segundo as palavras dele

- de sentar-se perto de Diane numa festa. Disse que ela perguntou por você e pareceu muito aborrecida ao saber que você não havia perguntado por ela. Mais tarde, naquela mesma noite, os convidados ergueram as taças num brinde de champanhe para celebrar o anúncio do noivado dela com John Albert Richards. Frank disse que a mãe de Diane delirava de alegria. Disseram-me que o sr. Richards é considerado muito bonito pelas mulheres, e que sua família tem milhões. Frank está certo de que você conheceu o sr. Richards quando esteve aqui.

Lije rapidamente dobrou a carta e colocou-a de volta no bolso do casaco. Lembrava-se bem do homem, de Harvard. John Richards era um esnobe rude, intolerável. Quando soube que Lije era cherokee e da área fronteiriça, passou a tratá-lo com desprezo. Lije tinha certeza de que a mãe de Diane se daria esplendidamente bem com seu futuro genro.

Na escuridão atrás dele, o grande cavalo baio deu um relincho alto, alertando Lije sobre algum odor ou som suspeito. Ele levantou-se e correu para as sombras com a destreza de um gato. Movendo-se com cuidado, pegou o rifle apoiado em sua sela e retornou sem fazer ruído para perto de seu cavalo, ajustando os ouvidos aos sons da noite.

O baio tinha a cabeça levantada, as orelhas estendidas para a frente, a atenção fixa em algum ponto nas profundezas da escuridão, na direção oposta a eles. Lije estendeu a mão para o cabresto do cavalo. Havia algo lá fora. Podia sentir isso na tensão do animal, cujas narinas se abriam para identificar os odores da noite.

- Calma, Jubal - murmurou baixinho. - O que está cheirando lá fora, amigo?

Lije sabia que poderia ser qualquer coisa, um gambá, um coiote à espreita ou até outro cavaleiro. Um segundo depois ele detectou as passadas suaves de um cavalo aproximando-se lentamente do acampamento, e sentiu o peito do baio inchar-se para relinchar uma saudação. Ele colocou a mão sobre o focinho do cavalo para silenciá-lo.

As passadas abafadas pararam. Depois ouviu-se o débil ruído de fricção do couro da sela.

- Alo, você aí do acampamento-gritou uma voz preguiçosa na escuridão, anunciando sua presença, como requeria a cortesia comum do campo. - Estou chegando.

Lije não viu nada além de uma parede de sombras.

- Aproxime-se, mas venha devagar.

Houve outro ruído de couro, seguido pelo vagaroso mas constante ruído das patas de um cavalo. Uma sombra negra saiu da escuridão, tomando a forma de um cavalo e de um cavaleiro à medida que se aproximava do fogo. O cavaleiro parou o cavalo dentro do círculo de luz e descansou as mãos no chifre da sela. O chapéu dele estava puxado para baixo, a aba jogando uma sombra sobre seus olhos. A barba de um dia escurecia seu rosto.

- Estou sentindo o cheiro de seu café há pelo menos meio quilómetro-disse o homem, naquela vagarosa maneira texana de falar. - Achei que pudesse compartilhar de seu acampamento esta noite. Estou cansado da companhia do meu cavalo. Ele nunca ouve o que digo e fala demais.

O cavalo moveu-se, sacudindo as ancas. A luz do fogo iluminavam marca estampada em sua perna.

- Seu cavalo está usando a marca Rocking Lazy L - disse Lije das sombras.

- É melhor que esteja. - O homem movia ligeiramente a cabeça enquanto tentava localizar Lije.-Eu cavalgo para o Rocking Lazy L, lá do Texas. Meu nome é Lassiter. Ransom Lassiter.

- O que o traz até aqui?

- Levei um rebanho de chifres-longos para o Norte mais cedo este ano. Estou voltando para casa - respondeu ele. - Você está fazendo um monte de perguntas. Se saísse para onde um homem pode vê-lo, seria mais fácil respondê-las. Já sabe quem sou eu. Seria bom saber quem você é.

- Parece justo-Lije caminhou até o fogo, carregando o rifle ao lado, o cabo preso sob o braço e o cano apontado para o chão. - Meu nome é Lije Stuart. Sou do Cherokee Light Horse.

- Nesse tipo de trabalho, creio que é natural suspeitar de estranhos.

- Compensa ser cauteloso.

Lije inspecionou o estranho, notando a poeira grossa da estrada em sua roupa. A poeira, as esporas em suas botas, o chapéu de abas largas, as calças de couro, o livrinho de contas saindo do bolso do colete demonstravam que o homem era um tropeiro texano. Mas Lije não encontrou nada nele que o levasse a ficar em guarda. O homem deveria ter sua idade, uns vinte e poucos anos, com os cabelos pretos encaracolados emoldurando as feições magras e fortes. Seus olhos tinham um toque de humor nas profundezas e havia um pequeno sorriso em seus lábios.

- Apeie e estenda seu cobertor onde quiser.

- Muito agradecido - Ransom Lassiter saltou da sela. - Se tiver um pouco de café sobrando, troco por uma lata de pêssegos. O meu estragou no último rio que cruzei, quando duas cobras vieram nadando e meu cavalo recusou sua companhia.

- Cavalo inteligente - observou Lije secamente, mostrando um pequeno sorriso. - Dê-me sua caneca, vou esquentar um pouco para você.

Ransom Lassiter tirou uma caneca amassada da bolsa da sela e entregou-a a Lije, depois começou a retirar a sela do cavalo e preparar-se para a noite. Momentos depois, voltou para o fogo, trazendo a sela, os arreios e um rifle.

- Levou seu gado para Kansas City ou para Westport?-No último ano as duas cidades tinham sido o destino favorito da maioria das manadas trazidas do Texas.

- íamos levá-lo para Kansas City, mas não conseguimos admitiu Rans Lassiter, enquanto colocava a sela no chão e o cobertor ao lado dela. - Assim que chegamos à divisa do Kansas fomos recebidos por um punhado de fazendeiros armados. Não tínhamos um só animal doente em todo o rebanho, mas eles recusaram-se a nos deixar passar. Disseram que tinham perdido gado demais com a febre do Texas e não iam perder mais. Por isso viramos para o leste e levamos os chifres-longos até Saint Louis.

- Lassiter tirou uma lata de pêssegos da sacola de mantimentos e entregou-a a Lije. Em seguida, retirou sua caneca com café fervendo das brasas do fogo.

- Ouvi dizer que Lincoln foi eleito.

- É verdade - As eleições tinham sido realizadas uma semana antes.

- Agora vai começar-suspirou Lassiter, puxando o chapéu para trás da cabeça, revelando os olhos cinza que brilhavam como estanho polido à luz do fogo. Deitou-se no chão, apoiou a cabeça na sela e esticou as longas pernas, a calça de couro arrastando a poeira. - Os estados do Sul vão começar a separar-se.

Não será necessário - Lije pegou a faca e começou a abrir a lata de pêssegos. - O presidente não tem poder nem autoridade para abolir a escravidão. Até Lincoln reconhece isso. E o partido dele é minoria tanto no Congresso quanto no Senado. Vai ser como seus antecessores, Tyler, Pierce e Fillmore: qualquer coisa que tentar será inútil. Tudo o que os estados do Sul têm a fazer é permanecer firmes.

A boca de Lassiter abriu-se num sorriso engraçado que parecia ser característico dele.

- Está claro que você não compreende o espírito dos sulistas. Eles prometeram dividir o país, se Lincoln fosse eleito. Agora é uma questão de honra. Disseram que fariam isso; agora vão ter de fazê-lo.

- As cabeças mais inteligentes e mais frias poderão prevalecer - Lije espetou um pêssego e levantou a fruta pingando da lata.

Lassiter riu.

- No Sul, quando se precisa escolher entre a sabedoria e a honra, a honra sempre prevalece.

- É possível.

Lije lembrou-se de ter lido num relatório que delegados da Carolina do Sul iriam reunir-se naquela mesma semana para discutir a secessão. Foi a ameaça de anulação da Carolina do Sul que Andrew Jackson enfrentou durante os problemas dos cherokees com a Geórgia. Naquela época a Geórgia ameaçou unir-se à Carolina do Sul. com os dois estados em rebelião, Jackson não permitiu que se unissem. No caso da Carolina do Sul, enviou navios de guerra ao porto de Charleston para demonstrar a autoridade federal sobre o estado; no caso da Geórgia, apaziguou o estado recusando-se a proteger os direitos dos cherokees às suas terras. Entretanto, Jackson não ocupava mais a cadeira de presidente. Talvez o tempo de evitar confrontos já tivesse passado.

- Meu pai acha que nenhum presidente determinará uma ação militar se qualquer dos estados optar pela separação - disse Lije. Ele acha que o presidente confiará na diplomacia e nos intermediários para arranjar uma solução que possa reconciliar os dois lados.

- Talvez - Rans soprou o café. - Muitos cherokees possuem escravos. Qual é a posição de seu povo a esse respeito?

- Nosso chefe principal, John Ross, disse que isso não é problema nosso, que os brancos é que devem decidir. Ele é a favor da neutralidade, e acha que a nação está muito distante da área de conflito aqui no Oeste longínquo - Lije sorriu, lembrando-se de algo mais. - Outro dia ouvi um de nossos cozinheiros dizer a Ike que as nuvens da guerra que pairam sobre o Norte e o Sul são pesadas demais para cruzarem o Arkansas.

- Quem é Ike?

- Um de nossos criados negros. Nós dois crescemos juntos.

O sorriso de Lije esmoreceu quando se lembrou de sua conversa com Ike no primeiro dia de sua volta e o anseio na voz do rapaz quando conversaram sobre liberdade. Até aquele momento, nunca ocorrera a Lije que Ike pudesse querer ser livre, e aborrecia-se ao pensar que Ike não gostava de ser escravo.

Durante toda a vida tinham sido amigos e companheiros. Mas Lije não tinha mais certeza de poder confiar em Ike. A descoberta lhe trouxe o sentimento de tê-lo perdido.

- Pelo que sei, o território indígena fica no meio de tudo. Você tem o Texas ao sul e o Arkansas ao leste. Ambos vão ficar com o Sul. Ao norte fica o Kansas, incluindo um canto do Missouri, que são principalmente da União. Não vejo como vocês conseguirão ficar neutros quando podem servir como uma rota perfeita de suprimentos - e o Norte ou o Sul vai querer controlar isso. Pode apostar que nenhum texano vai querer ver uma estrada aberta até a sua fronteira por onde possa vir marchando um exército da União. E é isso o que você tem, atravessando suas terras. Não, a nação indígena terá de escolher um lado, ou ficará no meio do fogo cruzado.

- Você fala como se a guerra já tivesse começado-Lije tirou outro pêssego da lata.

- Está começando.

- Talvez - disse Lije entre mordidas. - Meu avô disse que alguns países, como a Suíça, sempre mantiveram uma posição neutra enquanto as guerras ocorriam em volta delas.

- Sabe de uma coisa? - Rans Lassiter inclinou-se para a frente, cruzando as pernas e descansando os cotovelos nos joelhos. - Você fala um bocado sobre o que seu pai acredita, o que seu chefe e seu avô dizem, mas ainda não deu nenhuma opinião própria. Gostaria de saber o que pensa.

Penso... que se houver uma guerra, os estados do Sul

perderão.

A cabeça de Lassiter levantou-se, a expressão endurecendo diante da ofensa.

- Parece desgraçadamente resolvido a respeito disso.

- Você perguntou.

- O que lhe dá tanta certeza disso?

- O Sul não tem meios de sustentar uma guerra. O Norte pode colocar mais homens nos campos de batalha do que vocês. Mais armas, mais canhões, mais tudo. Vocês perderão em armamentos e em homens, e os navios de guerra da União fecharão seus portos, cortando seus suprimentos.

- Parece que você passou algum tempo pensando nisso.

- Passei os últimos quatro anos no Leste estudando em Harvard. Quando os primeiros rugidos da secessão e da guerra começaram, era um tema de grandes debates. Se você analisar a situação friamente, sem paixão, verá que não há chance de que o Sul vença.

- Talvez - Rans sorriu.-Mas creio que você esqueceu que Davi derrotou Golias com um golpe certeiro. Pode ser que a guerra não dure o bastante para todas essas coisas acontecerem.

- Creio que durará.

Rans balançou a cabeça em desacordo.

- Um monte de gente no Sul acredita que aqueles ianques não sabem lutar, e que um só homem do Sul é capaz de acabar com dez do Norte.

- Você acredita nisso?

- Tenho uma vaga lembrança de que aqueles meninos ianques derrotaram os ingleses duas vezes-Rans olhou-o de soslaio, um brilho de humor nos olhos cinza. - Mas claro que tinham alguns virginianos lutando do seu lado. Um dos melhores foi George Washington. O Sul sabe criar líderes.

Lije riu, gostando do texano.

- E o que você acha, Lassiter? Pela primeira vez o texano ficou sério.

- Como você, creio que os estados do Sul enfrentarão muitos problemas. Mas sou texano, nascido e criado lá. No que se refere ao Texas, se o Texas for, eu vou junto.-Levantou a cabeça, o olhar sóbrio e pensativo. - E você, Lije Stuart?

- Eu também. Aonde a nação cherokee for, aonde minha família for, eu vou também.

No entanto, Lije sabia que não seria assim tão simples. Já havia uma divisão dentro da nação, uma rachadura ao longo das velhas linhas de desafetos entre os Ross e os Ridge. Lije levantou a lata e bebeu a calda, mas já não era tão doce.

Rans Lassiter terminou de tomar o café.

- O café estava ótimo.

Recostou-se na sela, levantando o chapéu e colocando-o sobre o rosto. Lije fez o mesmo. Por um longo tempo tudo ficou silencioso, somente com alguns sons da noite e o chiado do fogo se apagando. Então Rans falou, com o chapéu abafando um pouco suas palavras:

- Estou pensando se o Texas ainda pertencerá à União quando eu chegar em casa.

Ainda pertencia. Em 20 de dezembro de 1860, porém, a Carolina do Sul desligou-se da União. Em quarenta dias os estados de Mississipi, Flórida, Alabama, Geórgia e Louisiana fizeram o mesmo. Os seis estados reuniram-se em 1? de fevereiro de 1861 para formarem seu próprio congresso e denominaram-se Estados confederados da América, escolhendo Jefferson Davis como seu presidente. O Texas ingressou nessa Confederação dos Estados do Sul em 16 de março, no mesmo dia em que o governador Sam Houston se recusou a fazer um juramento à Confederação, alegando que assim procedendo violaria seu juramento aos Estados Unidos. Foi destituído do cargo.

Em 14 de abril as armas confederadas abriram fogo no garrison da União, no Forte Sumpter, no porto de Charleston, Carolina do Sul. Dois dias depois o exército da União no forte rendeu-se. No dia seguinte o presidente Lincoln recrutou 75 mil voluntários para abafar a revolta. Virgínia, Arkansas e Tennessee imediatamente votaram pela secessão.

A guerra era inevitável.

Fazenda Oak Hill Julho de 1861

- Will Gordon, o que está fazendo?-Eliza olhou abismada para o marido.

Ele ignorou-a e continuou a mover a rolha para tirá-la da garrafa. Finalmente soltou-a com um estalo e a rolha voou para o teto. Alex estava a seu lado com uma taça para aparar o líquido espumante. Shadrach aguardava segurando uma bandeja com taças vazias.

- Will Gordon, isso é champanhe - Eliza atravessou a sala, perturbada.

- Pode ter certeza que é. - Will deu a seu neto Alex uma piscadela conspiratória e encheu uma segunda taça com o vinho espumante.

Ela parou perto dele, com as mãos nas cadeiras.

- Sabe muito bem que não permito bebidas alcoólicas nesta casa.

- Hoje é exceção - respondeu Will calmamente, e passou uma taça de champanhe para seu filho Kipp.

- Já está mais do que hora de haver nesta casa algo mais forte do que chá e limonada - resmungou Kipp, ganhando o olhar de Eliza.

- Afinal de contas, esta é uma ocasião especial - continuou Will.

- Sei muito bem que é seu aniversário - continuou Eliza.

- Meu 66? aniversário - Will inseriu a lembrança, com o olhar brincalhão e cheio de carinho. -Uma ocasião suficientemente marcante para abrandarmos um pouco as regras. Posso oferecer-lhe uma taça?

Um brilho malicioso pairava em seus olhos cor de canela. Quando ela hesitou, prestes a recusar, Alex interrompeu-a:

- Aceite, vovó El. A senhora bebe o vinho sacramental na comunhão...

- É diferente.

- Mesmo que seja, uma taça de champanhe não irá condenála à perdição - raciocinou ele. - Além disso, sabe que não pode recusar-se a fazer um brinde à saúde de vovô.

- Alex Gordon, isto não é justo - protestou ela.

- Claro que é - disse ele, rindo.

- Eliza?-Will segurava uma taça vazia numa das mãos e a garrafa de champanhe na outra.

Ela suspirou, numa alegre rendição.

- Só um golinho. Não mais do que isso.

Ela acompanhava de perto enquanto Will enchia a taça com a bebida. Fingiu ignorar seu sorriso quando ele lhe entregou a taça. Kipp ergueu sua taça.

- À sua saúde, e muitos anos repletos dela.

- Tintim - Alex levantou sua taça, ecoando o brinde. Eliza foi vagarosa ao erguer a sua.

- Acho que deveríamos esperar Temple e Blade chegarem para participarem da celebração.

- Tomaremos outra taça quando eles chegarem-disse Alex, tomando um bom gole de champanhe.

- Eu, não.

Eliza levou a taça aos lábios e inclinou-a, com a intenção de somente molhar os lábios. A precaução, entretanto, fez com que ela engolisse a espuma, que imediatamente disparou um ataque de algo entre um espirro e uma tosse engasgada. Will veio ajudá-la, batendo em suas costas, contendo-se para segurar o riso.

- Não foi nada engraçado - resmungou ela quando se recuperou.

- Claro que não. - No entanto, como Kipp e Alex, ele ainda lutava para segurar o riso. - Mas da próxima vez sugiro que beba o champanhe em vez de cheirá-lo.

- Prefiro não fazer nenhuma das duas coisas. - Ela colocou o copo na bandeja de Shadrach.

- Lembra-se daquele jantar de gala a que comparecemos no forte alguns anos depois de chegarmos aqui?-perguntou-lhe Will. Como Eliza ignorasse sua pergunta, ele confidenciou a Kipp: Um dos oficiais colocou quase uma garrafa inteira de uísque no ponche quando não tinha ninguém olhando. Sua madrasta achou que era o ponche mais diferente que já havia provado e continuou enchendo o copo.

- Eu estava apenas tentando descobrir os ingredientes. .. Will riu.

- Precisava ver a cara dela quando eu disse que continha uísque.

Eliza tentou zangar-se com ele, mas ao invés disso começou a rir também.

- Ficou um pouco tonta, vovó El? - perguntou o sorridente Alex.

- Nem um pouco - insistiu Eliza, lutando para recobrar a compostura.

- Mas, pelo que me lembro, ela teve a maior ressaca na manhã seguinte - revelou Will.

Eliza continuou rindo de si mesma, apesar de tudo.

- Foi uma grande experiência - ela admitiu, suspirando saudosamente. - Havia grandes festas no Forte Gibson.

- Depois do ataque ao Forte Sumpter pelos novos confederados do Sul, em breve vamos lamentar que as tropas da União não estejam mais no forte - ressaltou Kipp.

- A guerra civil não é problema nosso - declarou Will, rispidamente.

Guerra. Norte. Sul. Era só no que se falava ultimamente. Eliza lembrou-se bem demais de todas as ameaças de secessão pela Geórgia e a terrível confusão naquele tempo, trinta anos antes da remoção dos cherokees. Naquele tempo ela era uma ávida participante de qualquer discussão sobre política, rápida em suas opiniões e combativa ao defender suas crenças. Mas agora já não achava tais conversas tão estimulantes.

A memória do campos de detenção, a longa estrada e aqueles primeiros anos de derramamento de sangue e lutas antes de transformarem Oak Hill na grande fazenda que era agora, tudo estava ainda muito fresco em sua mente. Ela conhecia a dor, o sofrimento, a privação, a pobreza, a doença e a morte decorrentes da guerra. Fosse em lutas de rifles ou espadas, ou através de advogados ou decretos, a devastação que causava ao povo era a mesma. Covardemente ou não, não queria mais ouvir tal assunto.

- Já lhe contei, Alex, que recebi uma carta de Susannah esta semana? - perguntou ela, virando-se para ele. - Ela perguntou sobre você. Está ansiosa para saber quando você vai para Harvard.

- Ainda não decidi se vou.

- Mas você nunca esteve no Leste. A viagem será uma aventura. Nunca esquecerei a experiência da minha primeira viagem de trem quando fomos ao Leste com Susannah.

- Que diferença faz se eu quiser esperar mais um ano antes de ir para a universidade? O Leste ainda estará lá. E Harvard também, se é que eu vou decidir ir para lá.

Antes que Eliza pudesse responder, Alex virou-se para Will, mudando de assunto.

- Corri com minha potranca na semana passada - disse. Ela mostrou os calcanhares para todos eles e venceu sem dificuldade. É definitivamente o animal mais rápido que há por aqui. Pode fazer seu Firestorm parecer um velho jumento.

- E o garanhão do Blade também - incluiu Kipp com um sorriso maldoso.

Além de olhar para o pai, Alex pouco notou o comentário.

- Talvez depois do jantar possamos fazer uma corrida. Shootíng Star contra seu Firestorm.

- Você parece confiante demais - observou Will.

- E sou.

- O que vamos apostar?

- Will! - Eliza objetou por ele encorajar Alex a jogar.

- Ora, vovó El, vou fazer uma aposta que vai agradar até a senhora - sorriu Alex. - Se minha potranca perder, irei para a universidade no fim do verão.

- E se a potranca ganhar? - perguntou Will.

Alex hesitou, as covinhas do rosto aprofundando-se à medida que seu sorriso aumentava.

- Sempre admirei aquele revólver que você comprou no ano passado.

Will levantou rapidamente as sobrancelhas ao ouvir a proposta. Por um momento não disse nada, mas depois concordou.

- Muito bem. O revólver será seu, se sua potranca vencer.

- Homens... - disse Eliza. - Mesmo que eu viva até os cem anos, nem assim serei capaz de compreender o fascínio que revólveres e cavalos velozes exercem sobre eles.

Mas ela sabia que sua maior objeção quanto a isso decorria das conversas sobre a guerra civil nos Estados Unidos. Shadrach apareceu à porta.

- A srta. Temple e o sr. Stuart estão aqui, sra. Eliza. Enquanto ele se afastava para deixá-los entrar, Sorrel entrou

correndo.

- Esqueceu-se de mim, Shadrach. Também estou aqui.

- Foi um erro meu, srta. Sorrel - Shadrach inclinou-se para pedir desculpas a ela, depois anunciou mais uma vez, os olhos brilhando, reprimindo o sorriso: - E a srta. Sorrel está aqui também.

Temple e Blade entraram. Blade percorreu a sala com os olhos, procurando Kipp.

Sorrel dirigiu-se diretamente ao avô:

- Fiz um presente para o senhor, vovô - disse, sorrindo para ele, parecendo uma miniatura de coqueteria em seu vestido de festa de organdi branco enfeitado com rosinhas azuis e fitas de seda. Mas mamãe disse que não devo dá-lo antes da hora do jantar.

- E se é isso o que ela diz, não tenho escolha a não ser esperar, não é? - Will sorriu de volta.

- Quer saber o que é?

- Sorrel! - Temple reprimiu-a enquanto Will ria.

- Seja lá o que for, Sorrel - disse ele -, sei que será meu presente favorito, porque foi você quem fez para mim.

- Ouviu isso, mamãe? - Sorrel virou-se orgulhosa e excitada.

- Ouvi. - Ela passou a mão sobre os cachos ruivos de Sorrel e distraidamente arrumou a fita azul sobre eles.

- Onde está Lije? - perguntou Eliza. - Não me diga que está trabalhando...

Naquele momento, Lije entrou na sala.

- Aqui estou, Eliza.

- Ótimo. - Will pegou a garrafa de champanhe. - Agora, se pudermos conseguir que Shadrach traga mais taças... - Mas Shadrach já se antecipara e retornava com mais três taças na bandeja. - Champanhe?

Temple lançou um olhar estarrecido para Eliza.

- Sim, champanhe nesta casa. - Eliza abriu o leque e sacudiu-o diante do rosto, com a expressão desaprovadora. - Abrimos uma exceção para esta ocasião muito especial. O homem está absolutamente impossível hoje. Qualquer um pensaria que ele está completando dezesseis, e não 66 anos.

Blade lançou um olhar cúmplice a Will.

- Creio que Eliza está temendo que esse vigor de juventude não dure até esta noite.

Eliza ouviu o riso de Will e o sorriso que os outros tentaram esconder. O calor subiu-lhe ao rosto.

- Essas coisas não devem ser ditas em público - disse, sacudindo o leque com renovado vigor, tentando esfriar o rosto, embora a sugestão houvesse lhe agradado.- Will notou isso e riu, ao que ela retrucou: - Comporte-se, Will Gordon.

- Se for preciso-murmurou ele com uma aceitação fingida. Will encheu as taças de champanhe e Shadrach serviu-as.

- Um brinde a você, Will-disse Blade, levantando sua taça.

- Onde está a minha? - exigiu Sorrel. - Também quero champanhe.

- Decididamente, não - negou Eliza, enfaticamente.

- Mas nunca tomei antes - Sorrel constatou que a avó não ia ceder e apelou para o avô. - Por favor, vovô, posso tomar um pouco? Você disse que era uma ocasião especial.

Ele olhou para Eliza e sorriu para Sorrel com verdadeiro arrependimento.

- Creio que não.

Determinada, ela virou-se desafiadora para Lije, dando a ele seu sorriso mais doce e confiante.

- Vai dividir seu champanhe comigo, não é, Lije? Ele deu um leve sorriso e sacudiu a cabeça.

- Sua avó está certa, Sorrel. Você é jovem demais para tomar champanhe. Terá de esperar até que esteja crescida.

- Isso não é justo - reclamou ela, dobrando os braços, fazendo um beicinho. - Eu só queria provar.

- Sinto muito. Fica para uma outra vez.

Antes que Sorrel pudesse renovar seus protestos, Blade levantou sua taça e propôs um brinde a Will. Solidário aos sentimentos, Lije tomou um gole de seu champanhe. com o canto dos olhos viu um pequeno movimento e olhou de banda para ver Alex fazer um sinal para Sorrel ficar a seu lado. Quando ela se aproximou, ele inclinou-se e sussurrou algo em seu ouvido. A expressão dela iluminou-se, depois rapidamente mudou para algo afetado e decididamente secreto.

- Como está esse seu novo barco a vapor? - perguntou Will a Blade, enquanto Alex e Sorrel encaminhavam-se para a janela

- Ele foi cheio na última viagem - respondeu Blade. Quando Alex e Sorrel pararam diante da frente da janela, Alex

ficou ligeiramente atrás dela, protegendo-a parcialmente da vista dos outros.

- Levei-o somente até Little Rock, mas ele ultrapassou o Nancy May em três horas.

Alex passou algo a Sorrel. Lije não podia ter certeza, mas suspeitou que era sua taça de champanhe. Instantes depois, ele viu Sorrel levantar a cabeça e tomar um gole. Em seguida, ela voltou-se e passou algo a Alex, que ria baixinho.

- Um barco veloz como esse vai trazer-lhe muitos passageiros - notou Will.

- Encontrou-se com o governador e o filho de Boudinot quando esteve em Little Rock? - desafiou Kipp.

O veneno disfarçado em sua voz trouxe a atenção de Lije de volta para os adultos.

- Todo mundo sabe que eles estão tentando forçar nossa nação a aliar-se com a nova Confederação.

- Conversei com o governador... rapidamente - Blade admitiu friamente.

Eliza fechou o leque com um tapa.

- Devemos discutir esse tipo de assunto hoje?

- De que assunto estão falando? - Alex voltou sua atenção ao grupo.

- Daquele que não vamos discutir-cortou ela rispidamente. Lije mudou de assunto:

- Quer dizer que em breve você estará partindo para a universidade, não é, Alex?

- Isso será decidido mais tarde, depois do jantar-respondeu Alex, dirigindo um rápido sorriso ao avô.

- Você se sentará ao meu lado durante o jantar, Alex? perguntou Sorrel.

- Não há outra pessoa no mundo que eu preferisse ter ao meu lado, Sorrel - disse Alex.

Mais de uma hora depois, Shadrach entrou na cozinha e entregou a bandeja e os bules de prata de café a uma das criadas.

- Eles foram para a sala de estar. Você e Sally tirem os pratos da mesa de jantar.

Esperou para ter a certeza de que elas tinham feito tudo direito, depois tirou o lenço do bolso para secar o suor do rosto e do pescoço. Aproveitando-se desses poucos momentos de descanso entre seus deveres, tirou o casaco de trabalho e pendurou-o num cabide na parede. Ao lado havia outro casaco preto com um chapéu e um par de luvas brancas na prateleira sobre o cabide, parte do uniforme de seu sobrinho Ike, que trabalhava como cocheiro dos Stuart. Olhando sobre o ombro, Shadrach sorriu para o rapaz sentado na mesa da cozinha, orgulhoso de como Ike, filho de sua irmã Phoebe, havia crescido.

Ele se transformara num rapaz inteligente e bonito. Alto como o avô e com o mesmo nome, ele era mais magro, sem os músculos exuberantes que o avô adquirira ao trabalhar na forja de ferreiro. Embora tivesse a pele mais clara que a do pai de Shadrach, Ike tinha o mesmo queixo firme e o nariz comprido e reto que parecia uma seta, as narinas abertas.

Shadrach aproximou-se do grande bule de metal e serviu-se de café.

- Onde está seu pai, Ike?-Ele esperava encontrá-lo sentado à mesa, comendo com o filho.

- Está lá fora, acho - respondeu Ike, com os cotovelos apoiados na mesa, o garfo na mão, um pedaço de pão frito na outra.

- De olhos abertos, imagino. Sabe como o sr. Blade fica quando aquele irmão da senhora Temple está por perto.

Mas ele não quis desviar a vista de seu prato quando falou, e sua resposta saiu quase inaudível. Shadrach estava estranhando o sobrinho. Franzindo o rosto, sentou-se no banco comprido do lado oposto a Ike. Levando o copo à boca, Shadrach soprou o café escaldante e silenciosamente estudou o sobrinho. Olhando seu prato, viu que Ike não comera mais do que três ou quatro garfadas.

- Parece que não está com muita fome.

Ike deu-lhe um olhar rápido, então abaixou de novo a cabeça para olhar para o prato, o garfo parado na mão.

- Hoje está muito quente.

- Ou você está com alguma coisa na cabeça. Quer falar sobre isso?-Calmamente Shadrach tomou outro gole de café e esperou, notando o quanto Ike estava tenso e vagamente agitado.

Ike inclinou-se para a frente, pondo todo o seu peso em cima dos braços e lançando um olhar ansioso ao pessoal da cozinha para ver se não estariam ouvindo.

- Algum dia já pensou em ser um homem livre, Tio Shad? Sua voz vibrava com o esforço para mantê-la baixa, e com a intensidade de seus sentimentos.

Shadrach enrijeceu. Esperava que Ike fosse falar sobre alguma mulher ou talvez sobre o novo capataz de Grand View, mas não sobre aquele assunto.

- Não está pensando em tentar fugir, está, Ike?

O ressentimento e a dor eram visíveis no rosto de Ike quando ele jogou o pedaço de pão e o garfo sobre o prato, indiferente ao ruído que pudesse fazer. Empurrou o prato e levantou-se.

- Eu devia saber que o senhor pensa como eles - resmungou, dirigindo-se para a porta.

Ferido pela raiva, Shadrach demorou-se a segui-lo. Ike parou no outro lado da cozinha, as mãos nas cadeiras, o semblante refletindo a frustração enquanto olhava para o leitoso céu azul.

Quando Shadrach dirigiu-se até ele, Ike olhou-o e disse:

- Vá embora. Quero ficar sozinho. Shadrach hesitou, mas foi em frente.

- Sua pergunta pegou-me de surpresa, Ike.

- É - ele deu um pequeno riso amargo.

- Gostaria de ouvir minha resposta?

- Por quê? Sei o quanto considera sua senhora. Ouvi a mesma história mil vezes como dona Eliza ensinou a você e à minha mãe, como ela costumava deixar os livros e as lições para vocês depois que sua própria mãe se recusou a deixá-los ir à escola. Você tem com ela a mesma lealdade que meu pai tem em relação ao sr. Blade.

- Lealdade não tem nada a ver com ser escravo. É algo que se dá livremente porque foi conquistado, não pelo açoite do chicote. Escravo ou livre, sinto o mesmo em relação a dona Eliza. Cada escravo neste mundo tem seu sonho de liberdade, Ike, não pense nunca de outra forma. Mas um escravo tem somente duas formas de conseguir a liberdade: ou ganhando dinheiro o bastante para comprá-la, ou servindo a seu senhor da melhor forma possível, esperando que ele um dia reconheça isso e o recompense com a liberdade. Fugir não é ser livre. É apenas correr, trocando uma vida de medo por outra.

Ike abaixou a cabeça.

- O que acha dessa guerra de que todo mundo está falando, tio Shad? Acha que eles realmente mandarão o exército para o Sul para libertar todos os escravos?

- É o que todo mundo diz, e acho que isso pode acontecer. Ike sentiu a incerteza na voz do tio, como se ele também não

estivesse muito seguro sobre se deveria acreditar que a liberdade pudesse chegar para eles. Em algum lugar perto dali, uma cotovia cantava. Ike olhou para a fazenda, o casarão, o pomar, as distantes cabanas dos escravos, as plantações de milho e algodão. Tentava imaginar como seria ser livre. Muito diferente de tudo que conhecera. Em cada manhã de sua vida fora despertado pelo som da buzina de chifre, chamando os escravos para o trabalho. Todos os dias de sua vida tinha de fazer o que lhe mandavam. Jamais possuíra nada, nem mesmo as roupas que usava.

- O que o senhor faria se fosse livre, tio Shad?-perguntou.

- Eu ensinaria.

A resposta foi rápida e decidida. Surpreso, Ike olhou para o homem magro que era seu tio. Nunca lhe dera grande importância. Nunca pensara nele como um homem forte. A mente dele era rápida, cheia de histórias e com muito conhecimento. Mas forte? Não, ike nunca pensara nele daquela forma. Agora via a força que havia no tio - ali, no rosto dele, enquanto sonhava.

- Eu construiria uma escola e ensinaria a tantas crianças quantas a escola comportasse. Eu as livraria da ignorância, porque ela escraviza.

Ike não disse nada. Em vez disso, deixou que pairassem no ar de verão as palavras do tio, ditas com calma mas nem por isso menos eloquentes. Sonhos. Tinha de existir algo mais do que apenas sonhos.

Lije ficou parado com os outros na sombra da varanda, que servia como camarote improvisado para a corrida de cavalos. A pista irregular seguia por um caminho estreito que dobrava por trás da casa, circundava-a numa curva bem aberta e voltava até a frente, com o poste do sino marcando a linha de chegada.

- Consegue vê-los? Já pode vê-los? - Sorrel pulava de excitação, esforçando-se para ver os cavalos.

- Ainda não - Lije olhava para a estrada. - Devem estar fazendo a curva lá atrás agora. Vamos vê-los a qualquer momento.

Impaciente demais para esperar, Sorrel desceu os degraus para o centro da pista de corrida improvisada. Temple deu um passo para fora da varanda.

- Sorrel, volte aqui imediatamente.

- Já vou, mamãe, já vou. - Entretanto, continuava no meio da pista. Assim que Temple saiu para buscá-la, Sorrel virou-se, excitada:-Lá vêm eles! Lá vêm eles!-gritava, correndo de volta para a varanda.

Lije ouviu o som dos cascos velozes. Então, viu os dois cavalos correndo em direção à casa, ambos os jóqueis abaixados. A ágil potranca negra já estava na dianteira, esticada e correndo sem esforço. Um pouco atrás dela corria um belo cavalo castanho, que a ultrapassou num repentino arranque.

- Ele a está alcançando - murmurou Will, atento à corrida.

- Ele a está alcançando.

- Vamos, Firestorm - gritava Eliza, esquecida de sua prévia objeção à aposta. - Vamos lá, rapaz.

- Corra, Shooting Star! Corra! - gritava Sorrel em contraponto.

Ao lado da pista Alex gritava em direção ao jóquei.

- Pare de segurá-la. Solte a cabeça dela. Deixe-a correr. Enquanto os dois cavalos se aproximavam, a potranca negra

pareceu esticar-se mais um pouco e tomou a dianteira. O cavalo castanho tentou responder ao desafio mas saiu da pista. A dupla passou a linha de chegada com a potranca meia cabeça na frente.

Na sequência de risos e congratulações que levou os outros para fora da varanda para esperar os corredores, somente Lije notou uma charrete que surgia na estrada. Ele estudou o veículo, sem conseguir ver seus dois ocupantes, mas com a certeza de reconhecer a careca do cocheiro.

Descendo da varanda, dirigiu-se para junto do pai, no mesmo instante que chegava o esperto criado Deu.

- Está vindo alguém, senhor Blade.

Enquanto seu pai se virava para olhar, Lije acrescentou:

- Se não me engano, o cavalo e a charrete são da Cavalariça Johnson.

- Creio que tem razão - Blade tirou um charuto do bolso e acendeu-o, mas sua atenção continuava no veículo.

Os dois cavaleiros trotaram de volta para o grupo, distraindo os outros.

- Pode ver quem é? - perguntou Lije.

- Ainda não.

- São duas pessoas, acho - disse Deu.

À medida que o cavalo e a charrete se aproximavam, a observação do criado era confirmada. O toldo da charrete ocultava os rostos de seus ocupantes, mas era claro que havia um homem e uma mulher com um vestido lavanda. O rápido bater dos cascos e o ruído das rodas logo atraíram a atenção dos outros.

- Temos visitantes, Eliza - avisou Will. Ela virou-se, franzindo o rosto.

- Quem poderia vir visitar-nos hoje?

Curiosos, os outros juntaram-se à roda. Instintivamente, Blade olhou por cima do ombro, tentando localizar Kipp. Só que ele estava do outro lado do grupo, segurando as rédeas da potranca do filho e distraidamente acariciando sua cabeça negra.

Quando o cocheiro parou a charrete diante da casa, um dos rapazes correu para segurar as rédeas. Lije observava enquanto o homem descia da charrete e aprumava-se para ficar alto e ereto, a barba dourada com fios prateados. Então, olhou para o passageiro da charrete e alegrou-se ao reconhecê-lo.

- Olhe só, é Jed Parmelee - murmurou Eliza, surpresa, enquanto Jed dava a volta do lado do passageiro e estendia a mão para ajudar sua companheira feminina.-Mas quem está com ele?

Lije sabia da resposta mesmo antes de a mão enluvada aparecer e um pezinho despontar por sob a bainha do vestido lavanda. Ele empertigou-se diante da visão de Diane Parmelee, que descia e abria sua sombrinha rendada. Ela levantou a cabeça, imediatamente procurando por ele. Lije viu-se encarando os sedutores olhos azuis que o tinham perseguido desde que deixara Massachusetts. Um sorriso cálido e enigmático brincou nos lábios dela. Ele tentou parecer indiferente, mas sua mera presença atingiu-o em cheio, deixando-o completamente transtornado, como sempre acontecera. O orgulho evitou que ele se aproximasse dos outros quando foram dar boas-vindas aos recém-chegados.

- Jed Parmelee, que surpresa maravilhosa! Quase não o reconheci sem o uniforme-declarou Eliza, virando-se para a filha dele: - Você não pode ser Diane. Transformou-se numa linda moça! Seu pai deve estar orgulhoso de você.

- Espero que sim, sra. Gordon.

- Eliza. Insisto em que me chame de Eliza.

Trocaram mais cumprimentos, mas Lije deu pouca atenção à conversa até que seu avô fez a pergunta que ele gostaria de fazer.

- O que estão fazendo por estas bandas, Jed?

- Visitando velhos amigos - respondeu Jed.

- Isto é, se formos bem-vindos - acrescentou Diane, olhando diretamente para Lije.

- Ora, mas que bobagem - exclamou Eliza. - Vocês são sempre bem-vindos a Oak Hill. Devem saber disso muito bem.

- Eu não tinha certeza. Lije ainda não me cumprimentou...

- De novo Diane encarou-o fixamente, o olhar ligeiramente desafiador, ainda cheio de confiança.

Todas as atenções desviaram-se para ele. Lije reconheceu um questionamento no olhar de seu pai, mas ignorou-o. As emoções corriam soltas dentro dele, complexas demais para serem reveladas. Ele a desejava, ele a odiava, ele a amava e, acima de tudo, ressentia-se por ela vir fazê-lo passar novamente por toda a angústia que sentira antes.

- Um visitante nunca é recusado na porta de um cherokee - Lije destacou sua ascendência, mas manteve a voz calma, disfarçando os sentimentos.

Algo refletiu-se nos olhos dela. Irritação, decidiu ele, certo de que não poderia ter sido dor. De qualquer modo ela rapidamente escondeu o sentimento, abaixando os olhos. Quando tornou a erguê-los já não demonstrava qualquer reação.

- vou lembrar-me disso.-Alguma coisa no tom de voz dela mostrou que ele lhe dera algo que Diane utilizaria como vantagem.

- Vamos até o jardim para um refresco. Há sombra lá e um pouco de brisa. Gostariam de vir conosco? - convidou Eliza.

- Será um grande prazer. - Jed Parmelee inclinou a cabeça em aceitação.

Por um breve instante, Lije teve oportunidade de desculpar-se e sair. Contudo, seria covardia de sua parte, um reconhecimento tácito de que ela ainda tinha o poder de perturbá-lo. Lije não queria dar-lhe essa satisfação.

Quando todos se dirigiram para o jardim lateral, Lije acompanhou-os. No entanto, permaneceu um pouco afastado do grupo, recusando as guloseimas que Shadrach servia, bebendo a limonada com menta sem saboreá-la Raramente olhou para Diane, mas estava sempre consciente de cada movimento dela, de cada respiração.

Ela era o centro das atenções, o calor de seu sorriso cativava a todos - de Sorrel a Will Gordon. Lije não esperara que fosse de outra maneira.

- Susannah escreveu-me dizendo que você estava morando em Boston com sua mãe - disse Temple.

- Estava - respondeu Diane, sentada numa cadeira ornamentada de ferro batido, deslumbrante e extremamente feminina.

- Mas com toda essa conversa sobre a guerra e a convocação às armas, naturalmente quis ver meu pai outra vez.

- Naturalmente-Will Gordon acenou a cabeça em aprovação.

- Que lástima que Susannah não esteja aqui - lamentou Eliza. - Sei que gostaria muito de ver você.

- Como está Susannah?

- Recebi carta dela na semana passada - respondeu Eliza, e passou a relatar em detalhes os acontecimentos da vida da filha.

- Sinto falta das caminhadas que Susannah e eu costumávamos fazer - Diane levantou-se com uma graça natural. - Vocês nem imaginam quantas vezes desejei voltar aqui para matar as saudades e rever todos vocês. Nasci aqui na nação, cresci aqui. Mas mesmo assim, às vezes parece que estou longe há muito mais de seis anos.

A sinceridade em sua voz fez Lije virar a cabeça e lançar um olhar desconfiado na direção dela.

Uma sensação de nostalgia pareceu tomar conta de todos, que se calaram por alguns segundos.

- Aqueles eram dias mais simples - murmurou Eliza.

- De fato. - Will Gordon ecoou o sentimento.

Diane aproximou-se de Lije, parou e virou-se para olhar os outros.

- Acham que seria indelicadeza de minha parte roubar-lhes Lije para que me mostre nossos esconderijos dos tempos de criança?

- Claro que não. Podem ir - Eliza sacudiu a mão, dispensando os dois.

Ninguém imaginava que ele objetaria. Mas Diane sabia disso o tempo todo, notou Lije; como também sabia que ele não poderia recusar seu convite diante de toda a família. Quando ela se moveu para o lado dele e deu-lhe o braço, Lije não disse nada. Sentiu um pequeno tremor ao seu contato e enrijeceu-se contra a perturbação.

- Vamos? - Ela inclinou a cabeça, dando-lhe aquele olhar conhecido que tanto prometia quanto se retirava.

A resposta dele foi levantar levemente a mão, fazendo sinal para que ela escolhesse a direção que tomariam. Diana virou-se ligeiramente, puxando-o na direção do jardim das rosas. Lije não fez nenhum esforço para quebrar o silêncio entre eles, deixando-o aumentar devido a sua própria tensão.

- O jardim das rosas sempre foi um de meus lugares favoritos

- murmurou ela quando chegaram lá. Retirou a mão do braço dele e se aproximou para examinar uma rosa que morria. - É uma pena que haja tão poucas rosas agora.

- Por que está aqui, Diane? - Sua voz não tinha emoção, mas cobrança.

Ela virou a cabeça de lado e estudou as mudanças que um ano havia imprimido nele. O brilho ardente desaparecera de seus olhos, deixando-os frios e impenetráveis. Havia uma nova dureza em seu queixo, um novo rigor em seu rosto. Pela primeira vez Diane duvidou de sua habilidade em comandar a situação, mas sua dúvida durou somente um momento.

- Por quê? - Diane virou a sombrinha para o lado, deixando-a cobrir o sol. - Para pedir seu perdão, é claro.

Ele deu um pequeno suspiro, mal-humorado.

- Não posso imaginar você pedindo nada a ninguém.

- Admito que minha experiência é limitada.

- O que quer comigo? Que novo jogo está planejando agora?

- Não é jogo - respondeu ela, muito séria, mas Lije não ouvia.

- Vá para casa, Diane. Volte para seu noivo e para todos os seus maravilhosos amigos.

- Então soube de meu noivado - disse ela numa voz agradável, virando-se completamente para ele. - Eu estava com muita raiva de você, Lije. Na verdade aceitei a proposta de casamento de John somente por raiva. Acho que secretamente esperei que você viesse correndo para me fazer terminar o noivado. Claro que não o fez. Então não tive escolha a não ser terminá-lo eu mesma. - Ela sorriu ao lembrar da cena. - Você teria gostado de ver a cara do senhor John Albert Richardson quando lhe disse que nunca me casaria com um esnobe rude e arrogante como ele.

- Foi isso realmente o que aconteceu? - desafiou-a. - Ou foi ele quem a rejeitou?

Um olhar de dor passou pelo rosto dela. Rapidamente inclinou a cabeça para baixo, então levantou-a de novo, recuperando a pose.

- Posso ter muitos defeitos, Lije Stuart, mas mentir nunca foi um deles.

Silenciosamente, ele viu o orgulho e a determinação na expressão dela e sentiu a fraqueza de sua decisão. Virou-se para o outro lado. Ela o fizera de bobo uma vez, mas não permitiria que o fizesse de novo.

- Você tem muitos pretendentes, Diane. Vá consolar-se com eles.

Ele começou a retirar-se, necessitando soltar a energia acumulada dentro dele. Mais que depressa parou a seu lado.

- Foram todos para a guerra - disse ela, com o ar despreocupado. - Veja só, estou muito sozinha agora.

- Isso é problema seu.

- Você está sendo extremamente difícil, Lije Stuart-declarou, com a voz impaciente.

Ele parou e encarou-a.

- Como esperava que eu reagisse? Acha que correria para seus pés, quando desceu da carruagem? - perguntou ele com cinismo, depois zombou: - Ou talvez achasse que fosse tomá-la nos braços e confessar que ainda a amo?

- Isso teria sido muito bom - sibilou ela, com um brilho desafiador em seus olhos.

- Desta vez a boba é você. - Ele notou a luz nos olhos dela diminuir, e convenceu a si mesmo que estava contente.-Não pode ter sempre o que deseja, Diane.

- Mesmo quando o que desejo é você? - perguntou ela suavemente.

Ele tentou controlar-se, fazendo-se de duro.

- Diga-me, Diane - desafiou-a -, sua mãe sabe que está aqui?

- Sabe. - A simples resposta não revelava as duras palavras que trocara com sua mãe, as coisas odiosas que foram ditas e tão cedo não seriam esquecidas. Contudo, o olhar dela continuou claro e direto enquanto injetava deliberadamente uma nota leve na voz.

- Ela disse que, se eu viesse aqui, nunca mais seria bem-vinda em sua casa de novo, que não seria mais sua filha.

Ele levantou a sobrancelha.

- E devo acreditar nisso? Ela sorriu secamente.

- Asseguro-lhe que ela estava sendo muito sincera.

A leve brisa trouxe o som de um riso feminino, e Diane olhou de volta para as pessoas no jardim, reconhecendo facilmente seu pai no grupo: o de cabelos ouro-prata que olhava para Temple Stuart com uma adoração pobremente disfarçada.

- Na verdade não era você que minha mãe odiava, Lije declarou ela pensativamente. - Você ou qualquer descendente de índio são apenas um símbolo de quem ela realmente odeia, ou seja, sua mãe. Creio que ela sempre soube que meu pai estava secretamente apaixonado por Temple até mesmo antes de se casarem. Em sua mente sua mãe era rival dela. O fato de sua mãe ver nele somente um amigo nunca pareceu importar. Mamãe tornou-se cega pelo ciúme, que acabou se transformando em ódio. Quando ela se separou de meu pai e casou-se com o sr. Austin, julguei que superaria isso. Mas não. Agora duvido que algum dia supere.

Quando Diane se voltou, encontrou Lije olhando-a com nova desconfiança.

- Pode guardar sua caixinha de truques, Diane. Agora conheço-os todos.

- Você nunca me deu uma chance para fazermos as pazes.

- Agora é um pouco tarde para isso, não acha? Já se passou mais de um ano. Ou já se esqueceu disso?

- Não me esqueci - retrucou ela. - Você não é o único que possui orgulho, Lije Stuart.

- Orgulho? É essa a sua desculpa? Mas isso lhe cai bem, não é? Afinal de contas, foi orgulhosa demais para casar-se com um cherokee.

- Não foi isso de maneira alguma.

- Não foi?

- Não!

Ela parou e controlou-se, reconhecendo que jamais poderia emocioná-lo através da raiva. Deu um longo suspiro e baixou a voz.

- Estamos brigando de novo exatamente como naquela noite. Não foi assim que tudo começou. - Ela o fez recordar, deixando o brilho transparecer através de seus olhos. - Lembra-se de como, antes de fugir, esperamos até que ninguém estivesse nos olhando, rindo e correndo para o jardim, e que você me tomou em seus braços? Lembra-se, Lije?

- Lembro-me - além da lembrança a visão do rosto dela tornou a emocioná-lo.

Os lábios de Diane brilhavam, convidativos, e Lije mais uma vez percebeu-se desejando-a, precisando dela. Tinha raiva de si mesmo, mesmo quando puxou-a contra si e apertou seus lábios contra os dela, procurando puni-la pelo sofrimento que não passaria. Beijou-a sofregamente, mas os lábios dela estavam inesperadamente macios e ternos, e a dimensão de seu beijo se transformou.

Vagarosamente, suavemente, seus lábios responderam aos dela. Sua boca era tão quente, tão perfeita. Ele sentiu o trémulo movimento que sabia que as mulheres costumavam usar como sedução. Pegou-o de surpresa. Quando o desejo tentou dominá-lo, soltou-se dela e deu um passo para trás.

- Sei que ainda me deseja, Lije - murmurou ela, com um sussurro de alívio em sua voz.

Mas era o brilho de triunfo em seu olhar que ele queria derrotar.

- Desejei você naquela noite também - recordou-lhe, com a voz seca e fria.-No entanto, quando pedi para ser minha esposa, você virou-me as costas e acusou-me de ser sério demais.

- Confesso que fui muito egoísta naquela noite.

Diane aproximou-se, de novo confiante. As palavras dele eram frias, mas ele não. Ela não tinha razão para duvidar disso. Seu beijo demonstrara isso a ela. Agora tinha apenas seu orgulho para dominar, o que não seria fácil. Também não havia sido fácil dominar o próprio orgulho, mas ela conseguira. Achou que ele conseguiria também.

- Sabe - continuou ela, levantando a mão enluvada e correndo os dedos pela lapela do casaco dele, ignorando sua frieza -, queria encontrar uma forma para que pudéssemos estar juntos sem alienar minha mãe. Pensei que poderia fazer isso, se você ficasse no Leste e se tornasse um sucesso. Mas você chegou à ridícula conclusão de que eu estava hesitante pelo fato de você ser um cherokee. Convenceu-se tanto disso que não ouvia mais nada.

Ele agarrou os dedos dela com firmeza, mas não os retirou, apenas parou seus movimentos. Sua dura expressão não se alterava enquanto estudava cada milímetro da expressão do rosto dela.

- Realmente espera que eu acredite que essa foi a razão pela qual me recusou, Diane?

- Jamais o recusei, Lije - corrigiu ela.

- Tem certeza? Então, pode explicar-me por que levou um ano para trazer-me esse interessante esclarecimento?

- Você não é o único que sofre de excesso de orgulho, Lije. Afinal de contas, fui eu quem foi acusada erradamente. Na minha opinião, quem devia desculpar-se era você, pois não fez nenhum esforço para me contatar, depois de me deixar sem ao menos dizer adeus. - Os músculos da garganta dela se contraíam, abafando a sua voz.

Ela parou e olhou para o outro lado, evitando que ele visse o quão profundamente havia sido ferida. Lutava para recuperar aquela pretensa leveza.

- Isso não o aproxima de mim.

- Você diz isso tão facilmente.

- Facilmente? - Ela deixou uma faísca de raiva transparecer. -Nunca é fácil dar o primeiro passo, principalmente com você aí parado, determinado a acreditar no pior de mim.

Os olhos dele apertaram-se, estudando-a.

- Não sei em quê acreditar.

- Lije Stuart - disse ela, exasperada -, minha mãe fechou as portas para mim. Viajei desde o outro lado do continente para arrumar as coisas entre nós e dizer-lhe que ainda o amo. Se ainda quiser casar-se comigo, aceito. O que mais posso fazer para provar-me a você?

- Não sei. - Seus dedos apertaram a mão dela. Diane apertou os lábios, formando uma linha firme.

- Meu pai espera ficar na nação no máximo por uma semana. Se eu partir com ele, não voltarei mais aqui. Quando você finalmente se decidir, vai ter de vir a mim. Não vou humilhar-me duas vezes. Nem para você nem para qualquer outro homem.

- Não me lembro de lhe ter pedido isso.

Ele teve a perversa satisfação de ver a dor que transparecia nos olhos de Diane um segundo antes que ela retirasse sua mão das dele.

- Creio que é hora de voltarmos para junto dos outros-disse Diane, secamente.

- Estou de acordo.

Desta vez ela não lhe deu o braço. Andaram separadamente de volta ao resto do grupo, mas conectados por uma tensão oculta e pela lembrança das palavras ásperas, ditas com uma raiva antiga. Observando a aproximação dos dois, Jed Parmelee levantou-se do banco do jardim e ofereceu o assento à filha.

- Não ficaram muito tempo longe - observou ele, dirigindo-lhes um olhar de indagação.

- Não, não ficamos - respondeu Diane, ignorando seu olhar e sentando-se, ajeitando com prática o drapeado da saia.

Lije parou ao lado da cadeira da mãe. Ela olhou para ele.

- Acabei de sugerir a Jed que ele e Diane fiquem hospedados em Grand View enquanto estiverem aqui. Achei que seria uma ideia maravilhosa, não concorda?

- Os visitantes são sempre bem-vindos a Grand View retrucou ele.

- Não queremos causar incómodo - disse Jed.

- Não será incómodo de forma alguma - assegurou-lhe rapidamente Temple.

- Diane disse que planeja ficar uma semana - disse Lije, voltando a fixar a atenção em Jed Parmelee.

Jed hesitou por um segundo, olhando rapidamente para Will Gordon.

- Sim, aproximadamente uma semana.

Sua hesitação, além do olhar inadvertido do avô, fez Lije suspeitar que Jed Parmelee poderia ter outro propósito em sua visita.

- Estou curioso, capitão: onde está seu uniforme?

- No momento está guardado.

- Ante a deflagração das hostilidades, não é estranho que se conceda uma licença a um oficial numa época dessas?

Jed olhou para Lije com novo respeito e um brilho de admiração.

- Seria, se eu estivesse de licença.

- Mas não está.

- Não. Fui enviado para cá. Extra-oficialmente, é claro acrescentou Jed, dirigindo a explicação a Will Gordon. - Sabemos que a Confederação tem oferecido vantagens a cinco tribos civilizadas com a esperança de persuadi-las a fazer uma aliança com o Sul. Estou aqui para determinar, se possível, a posição que os cherokees pretendem assumir no conflito que se aproxima.

Por um longo momento o silêncio dominou o grupo. Blade sacudiu a cinza do charuto na grama, aparentemente indiferente ao olhar fixo que Kipp lhe dirigiu. Mas Jed estava mais interessado na reação de Will Gordon.

- Nossa nação tem um tratado com seu governo - Will escolhia as palavras com cuidado. - Tencionamos respeitá-lo. O chefe John Ross já declarou em inúmeras ocasiões que deseja que a nação cherokee permaneça neutra.

Um som curto e desafiador veio de Blade.

- Ross é como um cata-vento. Como sempre ele espera para ver de que lado o vento sopra.

- O que quer dizer com isso? - Jed lançou-lhe um olhar firme.

- Ele quer dizer-Kipp respondeu no lugar dele-que Pike prometeu a Stand Watie uma comissão no exército confederado e ofereceu-se para fornecer as armas e munições necessárias para equipar um regimento. Espero que Blade volte de sua próxima viagem a tempo de se integrar ao regimento que Watie pretende formar.

Blade ignorou a observação.

- A neutralidade é impossível, capitão. Você sabe disso, ou não estaria aqui.

Diane franziu o cenho, demonstrando apreensão.

- Por que isso é impossível?

- Porque os estados de Kansas e Missouri, que pertencem à União, ficam ao norte - respondeu Lije. - Os estados rebeldes de Arkansas e Texas ficam ao sul e a leste. Os choctaw, os chickasaw e as nações creek já manifestaram o desejo de se aliarem ao Sul. A nação cherokee está tornando-se rapidamente uma ilha no meio do mar da Confederação.

- Mas para que lado vai sua simpatia? - insistiu Jed. Blade levantou a mão para protelar a resposta.

- Antes de responder a isso, deixe-me fazer-lhe uma pergunta, capitão.

- Muito bem.

- Nosso tratado com o seu governo federal determina que tenhamos uma proteção. Onde estão suas tropas? As forças do Texas dominam todos os postos militares de nosso território, com exceção do Forte Gibson. Como se propõe a nos defender, se o exército rebelde invadir nosso território?

Era apenas uma das perguntas que Jed temia.

- No momento não podemos. Não temos soldados o bastante para mandar para cá. Mas teremos.

- Em outras palavras, seu governo nos abandonou.

- Isso não é verdade. - Contudo, na essência era, e Jed sabia muito bem disso.

- Deixe-me recordar-lhe algo, capitão - prosseguiu Blade.

- Somos há muito tempo uma nação de escravizadores. E a intenção de sua guerra é abolir a escravidão.

- Uma guerra, se houver, só será considerada para preservar a União. O presidente não tem autoridade para abolir a escravidão - nem deseja fazer isso, como tem dito repetidamente.

Entretanto, esse desajustado argumento já se provara fútil quando os estados do Sul se separaram. Jed tentou outro caminho:

- Não posso acreditar que os cherokees se aliem ao Sul. Já se esqueceram de como seu povo foi tratado pela Geórgia?

- Não me esqueci - disse Blade. - Nem me esqueci dos eventos que levaram a isso, inclusive as intenções declaradas de seu presidente Jackson de remover todos os cherokees para terras no Oeste. Ouvi um eco daquelas mesmas palavras num discurso de seu atual presidente, que declarou: "O território indígena ao sul do Kansas deve ser evacuado pelos índios."-Ele fez uma pausa, para dar maior ênfase. - Parece, capitão, que vocês esperam que obedeçamos aos termos do nosso tratado, mas se permitem ignorálo. Palavras já não nos impressionam, capitão. Somente ações.

- Ações - retrucou Kipp. - Como a tentativa de Watie na semana passada de hastear a bandeira dos confederados na praça pública de Tahlequah? Você sabe que ele está querendo derrubar Ross da chefia principal.

- Ross está velho - retrucou Blade, rompendo pela primeira vez sua compostura para revelar sua raiva. - Ele nunca foi líder, somente um seguidor, como uma folha soprada por um vento forte.

- Deve compreender, capitão - acrescentou Will rapidamente -, que os cherokees procuram a paz. Não queremos ser envolvidos em sua guerra - nem pelo Norte nem pelo Sul.

- É esse vento que está soprando atualmente - disse Blade, com cinismo.

Jed sentiu que havia verdade nas palavras de Blade. Durante os anos em que ficara aquartelado no Forte Gibson, ele aprendera alguma coisa sobre John Ross. Por mais determinado que Lincoln estivesse a preservar a União, Ross estava igualmente determinado em fazer com que a nação cherokee também permanecesse unida.

- E se o vento mudar? - perguntou, já adivinhando a resposta de Blade.

- Então Ross mudará sua posição.

- Não preste atenção a ele, capitão! - Kipp adiantou-se para confrontar Blade, as mãos fechadas ao longo do corpo.

A tensão até então presente transformava-se agora numa corrente carregada. Em dois passos silenciosos, Lije colocou-se entre os dois, pronto para intervir se a situação se tornasse violenta.

Kipp estava cego para tudo, menos para o homem diante dele, a quem odiava mais do que a qualquer outro.

- Ele acusa Ross de ser como um cata-vento, mas é ele quem muda ao sabor do vento. Acha que devemos honrar o tratado que ele e outros nos impingiram, mas ele próprio procura safar-se disso.

- O governo federal já o abandonou - declarou Blade. Não ouviu Parmelee admitir que não tem tropas para nos proteger? O governo de Lincoln já declarou que quer que todos os índios sejam removidos deste território. O tratado não nos deu esta terra; estamos aqui por condescendência. Mas a Confederação prometeunos o título da terra, representação em seu congresso e a proteção de seus exércitos. E seus soldados estão aqui no território, prontos para nos defender.

- Estão aqui prontos para nos defender ou para derrubar Ross e colocar Watie em seu lugar? - acusou Kipp.

Sua fisionomia estava carregada de ódio, mas era para sua mão que Lije olhava. Sua mão e a proximidade do bolso de seu casaco.

- Se eles fizessem isso, esta nação finalmente teria um líder.

- Um traidor, você quer dizer - retrucou Kipp.

- Chega, Kipp - ordenou Will Gordon, numa voz mansa mas firme.

Kipp lançou-lhe um olhar raivoso.

- Ele quer que Parmelee acredite que somos uma nação de traidores. Mas há somente uns poucos traidores entre nós. Fizemos um tratado e vamos honrá-lo. Não nos venderemos a ninguém!

- Está me acusando de ser traidor? - indagou Blade.- Se está, por que não diz logo? Ou não pode fazer isso sem um lenço negro em volta do pescoço?

A referência ao lenço que Kipp usara como um dos assassinos do pai de Blade, Shawano Stuart, quebrou o último resquício de reserva de Kipp. Ele resmungou uma praga em cherokee e suas mãos voaram em direção ao volume em seu casaco. Mas Lije foi um segundo mais rápido, segurando seu braço com uma força de ferro e parando seu movimento.

- Não faça isso, Kipp - alertou-o.

Kipp parou, surpreso por encontrar Lije tão perto dele. Virou a boca com um rosnado de desacato, os músculos de seu braço dobrando em resistência à sua força.

- Odiaria prender meu próprio tio por agressão, Kipp-disse Lije.

- Kipp, meu Deus. - Eliza estava de pé, com a mão no pescoço, enquanto Temple olhava, horrorizada.

De repente Lije sentiu a pressão do cano de um revólver em sua espinha. Ficou rígido com a surpresa, o sangue correndo frio.

- Solte o braço dele, primo-murmurou Alex atrás dele, com o tom de voz cínico e convencido, e Lije xingou-se por não ter vigiado o filho de Kipp. - Eu disse solte meu pai.

Alex espetou-o com o cano da arma.

- Não, Alex - O pedido veio de Diane, mesmo quando Lije vagarosa e relutantemente abriu os dedos, soltando Kipp.

- Muito bem, filho - Kipp esfregou o braço onde a mão de Lije o segurara, os olhos escuros com um brilho malicioso enquanto Lije ficava sem movimento.

- É melhor vir para perto de mim - sugeriu Alex a seu pai.

- Devia ter ficado fora disso, Alex - disse Lije, sério.

- E fiquei, até você entrar, primo - Alex relaxou a pressão do revólver contra as costas de Lije.

Recuperando-se, Will Gordon adiantou-se.

- Ponha esse revólver de lado, Alex, e agora. Não permitirei esse tipo de comportamento em minha casa.

- Diga isso a ele-Alex desafiou-o, mas Lije não sentia mais o revólver em suas costas. Olhou sobre o ombro para ter a certeza de que Alex se distanciara, então voltou-se devagar para encará-lo, cuidadosamente mantendo as mãos visíveis.

- Nunca pensei que o revólver que ele ganhou do senhor fosse ser tão útil, vovô.

- Se soubesse que o usaria desta forma, nunca teria feito aquela aposta. Agora guarde-o.

Will Gordon colocou-se diretamente no meio dos dois. Lije afastou-se ligeiramente para manter Kipp e Alex à vista, mas permaneceu quieto, para não dizer nada que pudesse provocar Alex, que parecia estar se divertindo um pouco demais.

- Creio que o manterei à mão, vovô, enquanto papai e eu fizermos parte desta deliciosa reunião - respondeu, ainda sorrindo. - Está pronto para ir, papai?

- Sim, não posso mais suportar a companhia de traidores - Kipp deu um último olhar para Blade antes de virar-se e sair na direção dos estábulos.

Alex deu alguns passos para trás, vagarosamente abaixando o revólver, depois virou-se e seguiu o pai. Por alguns momentos todos ficaram no mesmo lugar. Então Sorrel quebrou o silêncio.

- Alex, volte! - Sorrel correu atrás dele, mas Lije segurou-a.

- Largue-me! Não quero que Alex vá embora.

- É melhor que ele vá, Sorrel - insistia Lije, segurando-a facilmente enquanto ela tentava se soltar.-Você poderá vê-lo uma outra vez.

- Mas quero vê-lo agora! - gritava ela. - Ele ia empurrar-me no balanço, bem alto. Ele prometeu.

- Mais tarde eu a empurrarei no balanço...

- Não, não vai não - continuou ela. Vai estar ou cansado demais ou ocupado demais, como sempre. Você é como papai.

Nunca está em casa e, quando está, nunca tem tempo para mim. O queixo dela tremeu, seu lábio inferior franzido enquanto ela fungava de volta às lágrimas. - Alex é o único que faz as coisas comigo. É o único que gosta de mim.

- Isso não é verdade. - Ele ajoelhou-se ao lado dela.

Ela soluçava agora com renovada raiva enquanto Temple corria para eles.

- Alex foi embora por culpa sua. Por que teve de ferir tio Kipp? - Então virou-se para o pai - Por que teve de brigar com ele? Eu o odeio. Odeio vocês dois!

Ela soltou-se e correu para casa. Temple olhava para Lije, os olhos negros com remorsos.

- Ela não quis dizer isso-apressou-se a dizer, dando um rápido olhar de desculpas também para Blade, e indo atrás de Sorrel.

No pesado silêncio que se seguiu, Lije ouviu o macio farfalhar da saia de uma mulher perto dele. Voltou-se. Diane ficou parada diante dele, o medo morrendo em seus olhos, mas não a preocupação por ele. Levantou a mão, como se para alcançá-lo, mas em seguida retirou-a.

- Você está bem, Lije?

- Sim.

Do estábulo veio o duro pisar dos cavalos. Lije ficou observando Kipp e Alex galoparem rapidamente. Atravessaram o campo e desapareceram de vista.

- As velhas brigas - Diane parou e sacudiu a cabeça, a expressão confusa. - Quando deixamos o Forte Gibson seis anos atrás, havia paz entre os dois lados.

- Era mais uma espécie de trégua - corrigiu Lije. - A crescente hostilidade entre o Norte e o Sul recriou uma atmosfera de desconfiança e remexeu em velhos ódios. E ambos os lados exploram isso para seus próprios propósitos.

Jed Parmelee virou-se para Will Gordon.

- Fui o responsável por causar isso, Will. Sinto muito. Will negou, sacudindo a cabeça.

- O incidente foi lamentável, mas você não é o culpado. Os temperamentos estão acirrados de ambos os lados. É preciso pouco para reacendê-los.

- Talvez - mas Jed Parmelee, porém, não parecia convencido. Voltou-se para Blade.

- Espero que compreenda que, sob tais circunstâncias, terei de reconsiderar seu convite para ficar hospedado em Grand View. Minha missão aqui é delicada. Pode ser prejudicada se julgarem que estou optando por algum lado em suas velhas disputas. Será melhor se ficar em Tahlequah. Diane, é claro, está livre para aceitar seu convite.

- Gostaria de ficar-disse ela a Blade.-Mas somente se tiver a certeza de que minha presença não criará problemas para vocês.

- Não será problema para nós. Entretanto-ele deu um olhar para Lije, um traço de diversão nos cantos da boca -, não posso falar por meu filho.

O riso dela era baixo e musical.

- Espero causar a seu filho muitos e grandes problemas.

- Talvez não tenha tantas oportunidades quanto deseja informou-a. - Meu trabalho com o Cherokee Light Horse ocupa a maior parte de meu tempo.

- O Light Horse - repetiu Diane, surpresa. - Foi isso que quis dizer quando disse a seu tio que não queria prendê-lo por agressão. Pensei que planejasse abrir uma firma de advocacia.

Lije admitiu:

- E planejava. Quando voltei, vi que a nação tinha uma grande necessidade de gente que ajudasse a manter a paz. - Parou e olhou na direção seguida por Kipp e Alex. - Mas hoje só consegui aumentar o conflito.

- Foi inevitável - declarou Blade. - Você não viu o rosto de Alex segurando aquele revólver nas suas costas. Acredite-me, ele estava gostando da sensação de poder que a arma lhe deu.

- Nunca deveria ter concordado com aquela aposta - murmurou Will.

- Isso somente teria adiado este momento - disse Blade. Isso estava prestes a acontecer. Creio que todos sabemos disso.

Secretamente Lije sabia que seu pai tinha razão. As coisas transformavam-se rápido demais. Tornara-se impossível para qualquer um controlar os acontecimentos, não somente nos estados americanos, mas também na nação cherokee. Imaginou se Diane se dava conta disso.

No final da semana as teclas do telégrafo tagarelaram de um lado a outro do continente, espalhando a notícia da vitória dos confederados em Buli Run, perto de Manassas, Virgínia. Embora essa vitória sobre o exército da União não pudesse ser chamada de decisiva, representava uma derrota para a causa da nação cherokee, e reforçava os argumentos do Sul de que os nortistas não tinham capacidade para vencer.

O pai de Lije disse mais ou menos a mesma coisa naquela noite, numa das poucas ocasiões em que Lije pôde estar presente para o jantar em família. Diane foi notavelmente rápida em contestar:

- Devo lembrar-lhe de que uma batalha não faz a guerra, sr. Stuart - censurou-o Diane, discordando com graça e simpatia de seu anfitrião.

- Mas uma batalha pode ganhar a guerra - retrucou ele.

- Talvez, mas não neste caso - contrapôs Diane com um sorriso confiante, enquanto a criada negra voltava à sala com as sobremesas. - Como o senhor sabe, nosso corpo de oficiais foi severamente desfalcado quando seus melhores comandantes desertaram para o Sul. Precisaremos de algum tempo para reorganizar nossos comandos.

- Contanto que o Sul lhes dê o tempo necessário.

Ela sorriu, sem se ofender com os comentários. Ao contrário; Diane parecia gostar de argumentar.

- Não subestime a garra do exército da União, sr. Stuart.

- Não subestimo. Mas tampouco superestimo.

- Bem colocado, sr. Stuart - Diane provou o vol-au-vent, fazendo um som de aprovação. - Está delicioso, sra. Stuart.

- Obrigada, eu...

- Mamãe mandou Essie Lou prepará-lo para mim - interrompeu Sorrel. - É minha sobremesa favorita.

- É a favorita de minha mãe também - lembrou-se Diane.

- Quando moramos no Forte Gibson, ela sempre fazia questão de servi-la quando tínhamos convidados.

Ela parou, a expressão tornando-se reflexiva, mas depois prosseguiu:

- Não é estranho como não nos esquecemos de certas coisas? No último inverno antes de o forte ser fechado, um regimento parou por alguns dias para descansar os cavalos. Creio que se encontravam a caminho de um posto militar em algum lugar do Texas. Lembro-me de que o regimento estava sob o comando do coronel Albert Johnston, o mesmo Johnston que agora é general do exército confederado. O segundo em comando era o coronel Robert E. Lee. Meu pai me disse que, em abril passado, Lee foi convidado para comandar o novo exército da União, mas recusou o convite. Em seguida, uniu-se às forças rebeldes. Agora tem sob o seu comando o exército da Virgínia. Pareceu-me ser uma pessoa muito gentil e boa, com uma dignidade serena que não se pode deixar de admirar.

Diane fez uma pausa, depois sorriu e continuou:

- Havia também outro oficial com eles. Chamava-se Stuart. J.E.B. Stuart. Um homem muito interessante e galanteador. Minha mãe ficou encantada com ele. E, como todos vocês sabem - disse ela, os olhos brilhando com um sorriso -, minha mãe é uma mulher que não se encanta facilmente por alguém.

Os outros riram. Sorrel riu mais alto ainda, ansiosa para ser aceita como igual pelos adultos, mesmo sem compreender o humor contido no comentário de Diane. Lije apenas deu um sorriso forçado. No que se referia a Cecília Parmelee, não tinha nenhum senso de humor. Quando as risadas cessaram, o humor de Diane ficou sóbrio de novo.

- Muitos oficiais que conheci no forte se aliaram à causa dos rebeldes. Lee e Longstreet, o tenente Hood do Texas, o capitão Kirby-Smith...

- Falando de rebeldes... - Lije olhou para o pai. - Ouvi dizer que Stand Watie organizou um bando de guerrilheiros. Disseram que ofereceu seus serviços ao exército confederado, embora o chefe Ross proíba qualquer cherokee de participar das lutas em nossas fronteiras. É verdade?

- Sim - Blade evitou cuidadosamente encontrar o súbito olhar que Temple lhe dirigiu. - Eles estabeleceram seu quartel-general nas vizinhanças do velho Forte Wayne.

- Mas com certeza tal ação compromete a posição neutra do chefe - reprovou Diane.

- A neutralidade será impossível - disse Blade. - Se a luta chegar aqui, tão longe, a oeste, a nação cherokee se tornará um campo de batalha.

- Temos mesmo de falar sobre guerras e lutas? - protestou Temple, mal disfarçando sua irritação. - Seguramente há muitos outros assuntos mais agradáveis para se discutir.

- Está certa. Peço desculpas - disse Blade, mas seu sorriso era provocador.-Tenho medo de adquirir o mau hábito de discutir política à mesa.

Incapaz de negar isso, Temple lançou-lhe um olhar zangado. Contudo, quando ele se voltou para seus convidados, já estava sorrindo:

- Acreditem ou não, eu não tinha qualquer interesse em política antes de conhecer minha esposa. Agora ela faz objeções a isso. Suspeito que talvez seja principalmente porque meus pontos de vista quase nunca coincidem com os dela, o que às vezes pode tornar as coisas muito desagradáveis.

- Mas nunca aborrecidas - Diane sorriu de volta.

- Não, nunca aborrecidas - concordou ele.

Quando tornou a olhar para Temple, notou desta vez o pequeno sorriso que ela tentava esconder, e viu que estava sendo perdoado. Temple voltou-se para a filha.

- Sorrel, já contou a seu pai a surpresa que planejou para ele depois do jantar?

Sorrel inclinou-se para a frente, ansiosa para conquistar o centro das atenções.

- Aprendi duas novas canções, e vou tocá-las e cantá-las para vocês esta noite.

- Você toca muito bem também - disse Diane. - Estava ouvindo hoje enquanto você estudava.

Blade franziu o rosto e tirou o relógio do colete para verificar a hora.

- Mandei dizer a Asa Danvers para vir aqui às 20h30 comunicou ele, referindo-se ao capataz da plantação. - Recebi um recado dele dizendo que precisa me ver.

- Você está sempre muito ocupado para mim - queixou-se Sorrel, afundando na cadeira.

- Certamente os negócios de seu pai com o sr. Danvers são muito importantes, mas não creio que haja necessidade de você se aborrecer, Sorrel - explicou Diane. - Quem sabe sua mãe possa mandar servir o café na sala de música? Assim você poderá tocar para nós enquanto tomamos o café, e seu pai poderá manter seu compromisso com o sr. Danvers.

Sorrel animou-se.

- Podemos, mamãe?

- Claro - Temple imediatamente mandou chamar a criada. Blad olhou para Diane Parmelee com uma mistura de gratidão

e relutante admiração. Ele estava predisposto a não gostar da bela filha de Jed Parmelee, mas Diane possuía aquela rara combinação de beleza, inteligência e simpatia. Agora ele podia ver a atração que ela sentia por seu filho, embora duvidasse que Lije tivesse lhe dirigido mais de dez palavras naquela noite. Na verdade, Lije quase não tinha estado com Diane desde que ela chegara.

As velas iluminavam bem a sala de música, levando sua luz para cada canto. Lije ficou em pé atrás da cadeira de sua mãe, olhando a irmã ao piano, que inclinava a cabeça sobre o teclado em estudiosa concentração.

Nem uma só vez ele se permitiu olhar para Diane, mas o perfil dela ocupava sua visão periférica. Estava consciente da maneira atenta com que ela olhava Sorrel, seu sorriso de aprovação, o brilho de seus cabelos à luz das velas, o mesmo brilho dourado das chamas. Era como se não houvesse ninguém e nada mais ao seu redor. Essa sensação lhe pressionava os nervos, já bastante estressados. Estava ansioso para que Sorrel terminasse seu mini concerto. No instante em que soaram os últimos acordes, ele saiu do recinto, deixando aos outros os elogios aos esforços da irmã.

Uma vez lá fora, caminhou para a grande varanda e parou para acender um charuto. Depois inclinou-se contra uma coluna, tentando relaxar. A lua cheia que pairava sobre as árvores parecia uma grande e lustrosa pérola contra a escuridão de veludo da noite, salpicada de estrelas que brilhavam como diamantes. Mas ele não encontrou satisfação na beleza e no silêncio da noite. Todos os seus sentidos concentravam-se nos sons que vinham de dentro da casa.

Quando ouviu a porta abrir-se atrás dele, Lije controlou-se para não se virar. Passos leves se aproximaram. Deu outra baforada no charuto e olhou a fumaça azul dissolver-se em filetes.

- Estava pensando onde você poderia estar - Diane parou perto dele, a saia rodada roçando em sua perna.

- Precisava de ar fresco.

O pequeno alívio que o charuto lhe proporcionara desapareceu. Ele jogou-o na noite. Seu olhar acompanhou o arco carmesim quando caiu.

- Está uma noite linda-elogiou ela.-Posso ficar aqui com você?

Tenso, Lije manteve-se apoiado contra a coluna, mas voltou-se para olhar para ela.

- Você já está aqui.

- Já - Diane virou a cabeça e deu-lhe um de seus olhares provocantes. - Importa-se que eu fique?

- Não - respondeu ele, mas de má vontade, virando-se para o outro lado.

- Estive pensando... - disse ela. - Vi você tão pouco esta semana...

- Avisei-a que ia ser assim.

- Realmente, mas estou começando a achar que deliberadamente decidiu passar o menor tempo possível comigo.

Mais uma vez ele foi alvo de seu olhar perscrutador.

- Espero que não esteja imaginando que eu vá ficar à sua volta o tempo todo-

- Como aconteceu lá no Leste? - brincou Diane. Desta vez ele a encarou.

- Sim.

- Então devo deduzir que tenciona ignorar-me completamente daqui em diante? - provocou ela.

- Diane - disse ele, perdendo a paciência.

- Você se lembra do meu nome! - debochou ela, numa surpresa fingida. - Já é alguma coisa.

Apesar de não querer, Lije começou a rir.

- Por que está fazendo isso, Diane?

- Por que está me evitando, Lije? - contestou ela. Ele controlou-se um pouco.

- Quando a gente se queima, deve tomar cuidado para não chegar muito perto do fogo de novo.

- Mas o frio não é muito pior?-perguntou ela, parada diante dele, .tão séria quanto ele, os olhos refletindo os mesmos desejos que o atormentavam.

As noites de insónia e frustração o tinham deixado irritado. Lije nunca tinha certeza de quem devia fazer o primeiro movimento. Num momento estavam afastados, no próximo, abraçados.

Os lábios dele aproximaram-se dos dela, ameaçadores, prometedores. Ela não sabia dizer ao certo, mas não se incomodava. O que queria era sentir o gosto dele, não importa o quanto áspero, o quanto exigente fosse. Levantando o rosto, Diane puxou o rosto dele para si. Sentiu seu corpo firme e confiante contra o dela. Provou os lábios dele, macios e urgentes.

Havia fogo. Havia calor. Ele tomou tudo o que ela deu, e depois mais. Nunca seria o bastante. Ela poderia torná-lo cego e surdo de desejo. Sabendo disso, Lije não podia parar. A forma com que ela o tocava, tão segura, tão doce, enquanto seus lábios derretiam-se de fogo. O desejo era tão intenso e impetuoso que ele enfraqueceu antes que sua mente aceitasse o que o corpo não podia negar. Abraçou-a ainda mais forte, o firme contra o macio, chama contra chama.

Fossem quais fossem suas dúvidas, Lije nunca duvidara de seu desejo. Nem sempre o compreendia, nem a sua intensidade, mas nunca duvidara dele. E agora essa paixão avassaladora tomava conta do seu corpo.

Quando finalmente ela afundou o rosto em seu casaco, ele sentiu os tremores que a sacudiam e abraçou-a mais ainda.

- Tem ideia do quanto o amo, Lije? - murmurou ela contra seu pescoço. - Devia ter perseguido você sem nenhum pudor até que me tomasse de volta.

O riso veio do fundo da garganta dele. Pegou o rosto dela nas mãos e segurou-a de frente para que pudesse olhá-la bem.

- Então diga-me.

- E você, não vai dizer-me, Lije? - sussurrou ela, os olhos focalizando os lábios dele. - Uma mulher gosta de ouvir essas palavras.

- Eu a amo. - Sua voz era grossa como as emoções poderosas que viviam dentro dele. - Nunca deixei de amá-la.

- Mostre-me - insistiu ela com uma agressividade que pegou Lije de surpresa.

Quando Diane viu sua expressão, riu suavemente, deliciada, e entregou-se em seus braços, que a apertavam firmemente em volta de sua cintura, deixando sua cabeça pender contra o ombro dele.

- Vê como você me faz ficar como um caldeirão? - disse Diane. - Poderia alegremente antecipar nossa noite de núpcias. Isso o choca, não é?

- Completamente.

A simples menção de casamento o tornara sério, forçando-o a encarar as escolhas que cada um teria de fazer. Escolhas que poderiam separá-los.

- Sua família não acharia impróprio um casamento precipitado?

- Depende.

Ele preferiu não mencionar os problemas que haveria no futuro. Em vez disso, desfrutou do prazer do momento, sentindo o frescor da pele dela, a textura de seda dos cabelos dela contra seu rosto.

- Minha mãe certamente não vai gostar se não tiver tempo de nos preparar uma grande festa.

- E papai vai querer participar disso - disse ela, dando um longo suspiro.

De repente Lije notou o ruído de passos.

- Alguém está vindo. - Ele soltou-a e deu um passo para trás quando viu o capataz se aproximando da casa.

Ela achou graça de sua discrição.

- Está preocupado com minha reputação? - perguntou. Antes que Lije pudesse responder, foi cumprimentado pelo

capataz.

- Boa noite, sr. Stuart. Boa noite, senhora.

Ele tocou no chapéu, fazendo uma saudação a Diane, a coroa calva de sua cabeça brilhando branca ao luar.

- Como vai, Asa? - cumprimentou-o Lije.

O capataz parou nos degraus e olhou para a escuridão.

- Vi um cavaleiro na estrada. Parece um pouco tarde para companhia.

Lije ficou tenso, numa súbita preocupação, e examinou a estrada ladeada de árvores. Notou algo movendo-se nas profundezas das sombras. A distância abafava o ruído dos cascos dos cavalos, tornando-os fracos mas audíveis, agora que seus ouvidos os haviam identificado.

- Vá dizer a meu pai que temos um visitante-disse a Diane, num tom deliberadamente informal.

- Claro. - Calmamente ela entrou na casa para dar o recado. O bom senso disse a Lije que se alguém cavalgava diretamente

para a casa, não deveria ser motivo para alarme. Mas seu instinto inato de precaução fê-lo sair da varanda iluminada pelo luar para um canto no gramado sombreado.

- Você é um alvo fácil, Asa - alertou Lije ao capataz. - É melhor sair da luz do luar.

O homem afastou-se dos degraus, abrigando-se perto de alguns arbustos altos.

- Acha que esse sujeito quer criar problemas? - disse baixinho.

- Quem sabe?-disse Lije em voz baixa, e ficou em silêncio. Cavalo e cavaleiro aproximaram-se, transformando-se numa

sólida silhueta negra contra a estrada escura. Quando cruzaram a faixa de luar, Lije notou a barba prateada do homem. Reconhecendo o cavaleiro, ele relaxou.

- Sabe quem é? - A voz de Blade veio da porta aberta.

- É Parmelee - Lije foi para a frente para encontrá-lo.

O negro Ike correu para pegar o cavalo do capitão quando ele desmontou.

- Chegou tarde hoje, capitão.

- Vim da casa de seus avós.

Jed entregou as rédeas do cavalo a Ike. Quando olhou em direção à casa, o luar brincou sobre o ar grave de suas feições e a rede de linhas cansadas em seu rosto.

- Diane está lá dentro?

Quando Lije ia dizer que estava, Diane saiu da casa.

- Papai - gritou ela, descendo os degraus para encontrá-lo. Lije deliberadamente afastou-se para lhes dar um momento de

privacidade. Quando o fez, Ike aproximou-se de Lije.

- É verdade, sr. Lije?

- O quê? - Lije franziu o cenho diante da interrupção.

Ike evitou seu olhar e esfregou a mão sobre o focinho de veludo do cavalo.

- Ouvi dizer que houve uma grande batalha lá no Leste, e os ianques perderam.

- É verdade - Lije olhou-o com curiosidade.

- Creio que isso quer dizer que a guerra acabou.

- Ainda não - respondeu Lije secamente, e saiu para juntar-se aos outros, consciente de que seria realmente mais simples se tudo já tivesse terminado.

- Que surpresa maravilhosa - disse Diane. - Não imaginava que viesse esta noite.

- Decidi na última hora - disse Jed, com um sorriso pálido. -Recebi um recado para voltar imediatamente e fazer um relatório do que encontrei aqui.

- Tão cedo? - lamentou Diane. Ele concordou.

- Pouco adiantaria ficar mais tempo. Estive com o chefe Ross esta tarde em Park Hill. Apesar de nossa recente derrota na Virgínia, ele continua defendendo a política de neutralidade para os cherokees. Sob as atuais circunstâncias, é o melhor que podemos esperar.

Blade deu um som zombeteiro, que Diane ignorou.

- Boas notícias, papai. Agora, há algo que quero lhe dizer. Parou e moveu-se para o lado de Lije, tomando seu braço. - Isto é, que nós queremos dizer a todos: Lije e eu vamos nos casar. - O rosto de Diane irradiava felicidade.

Lije notou o olhar penetrante de seu pai no mesmo instante em que sua mãe abria a boca num assombro:

- Que maravilha!

A reação de Jed Parmelee foi mais moderada que a da mãe de Lije, mas não menos autêntica. Ele pegou a mão da filha e envolveu-a nas suas.

- Não poderia estar mais feliz, Diane - murmurou ele. Sei o quanto deseja isso.

Virando-se, ele apresentou seus cumprimentos a Lije. Depois Temple veio abraçar os dois.

- Vão fazer festa de casamento? - perguntou Sorrel. Posso participar dela?

Diane riu.

- Claro que sim. Faremos um belo vestido novo para você usar no casamento.

- Pode ser amarelo? Adoro amarelo.

- Então vai ser amarelo - prometeu Diane ainda sorrindo.

- Ouviu isso, mamãe? Quero um vestido novo amarelo. Sorrel pulava de satisfação. De repente, voltou-se mais uma vez para Diane, perguntando: - Quando vai ser o casamento?

Desta vez Diane hesitou, olhando para o pai.

- Queremos que seja em breve, mas... com você partindo amanhã e... - Prestes a mencionar a guerra no Leste, Diane parou e alegrou-se com um novo pensamento. - No Natal. Todo mundo sabe que a guerra deverá terminar bem antes do Natal. Você terá tempo de obter uma licença para poder estar aqui e me entregar ao noivo. Um casamento no Natal será lindo, com guirlandas de azevinho penduradas por toda parte.

- E teremos bastante tempo para fazer seu vestido - disse Temple, começando a fazer planos. - Em sua última viagem ao Forte Smith, Blade trouxe um número recente da Godeys Lody Book. Vamos examinar os desenhos da moda: se houver algum vestido que lhe agrade, poderemos copiá-lo.

- E um para mim também - lembrou Sorrel.

- É claro - concordou Temple sorrindo. Em seguida, dirigiu-se aos outros. - Vamos entrar? Temos tanto para conversar, para comemorar... - Deu o braço a Diane e as duas se dirigiram para a casa. - Da última vez que estive no armazém de Tahlequah vi uma peça de brocado branco que daria um lindo vestido de noiva. Quando os homens começaram a acompanhá-las, Asa Danvers, o capataz, saiu das sombras.

- Posso lhe dar uma palavrinha, sr. Stuart? É importante. Algo na urgência da voz do capataz fez Lije parar ao lado do

pai. Jed Parmelee prosseguiu em direção à casa, acompanhando as mulheres.

- Muito bem - concordou Blade. - Vamos ao meu gabinete.

- Se o senhor não se incomodar, vou lhe dizer aqui mesmo

- disse Danvers. - Prefiro não ficar muito tempo sob o mesmo teto com aquele capitão ianque.

Não havia equívoco quanto à hostilidade do homem: ele virou-se e cuspiu no chão, com nojo.

- O que tem a dizer? - desafiou-o Blade, enquanto Lije permanecia imóvel, curioso em ouvir a resposta.

- É simples - começou Danvers. - Tudo bem que os cherokees permaneçam neutros enquanto o Sul luta por seus direitos. Mas eu tenho família no Arkansas. Foi lá que nasci. Portanto, estou pedindo demissão. Logo que consiga levar minha esposa e meus filhos para a fazenda da irmã dela ao norte de Forte Smith, vou alistar-me e lutar pelo Sul.

- Quando deverá partir?

- Assim que empacotar tudo.

- Suas contas estarão prontas amanhã de manhã.

O homem concordou e virou-se para sair, mas antes disse:

- Aquele Abe Lincoln pode dizer o que quiser, mas jamais vou acreditar que qualquer negro miserável seja igual a mim. Jamais! - Ele levantou o dedo para reforçar sua revolta.

Como Blade não respondesse, Danvers hesitou e depois retirou-se. Só então Lije notou que Ike estava parado a seu lado, segurando o cavalo do capitão, a cabeça erguida em orgulhoso desafio, os olhos quentes de raiva e ressentimento.

Diane chamou-os.

- Lije, você não vem?

- Estarei aí num minuto-respondeu ele, evitando mais uma vez o olhar do pai.

Dirigiram-se para a casa em silêncio, mas não por muito tempo.

- Esse seu noivado... - perguntou Blade calmamente. - É mesmo uma decisão acertada?

- É o que vamos ver - Lije tinha suas próprias dúvidas. Hoje ouvi dizer que Stand Watie o convidou para unir-se ao seu bando de guerrilheiros.

- É verdade.

- E você vai aceitar?

- Não diga nada ainda à sua mãe, mas estou inclinado a aceitar. Isso tornaria as coisas desconfortáveis para você e Diane, principalmente sendo Jed um oficial do exército da União.

- Muito desconfortáveis - concordou Lije, consciente de que teria de tomar sua própria decisão, e havia apenas uma escolha a fazer.

- Ambos sabemos que sua mãe seria contra a ideia de entrar na luta - disse Blade. - Para ser honesto, é a preocupação dela quanto à minha segurança que me faz hesitar. Já lhe causei muita ansiedade durante todos esses anos do nosso casamento. Ela vai achar que não é justo que eu lhe cause mais preocupações. Talvez eu espere. com sorte, toda essa luta se restringirá ao Leste.

- E, com sorte, no Natal estará terminada - disse Lije, repetindo as palavras de Diane.

As semanas seguintes à partida de Jed Parmelee foram cheias. Na maior parte do tempo Diane estava ocupada com os planos e os preparativos do casamento, enquanto Lije se esforçava para tentar manter em seu distrito alguma coisa que se parecesse com ordem. A vitória dos confederados em Buli Run provocara novos atritos na nação entre os Cavaleiros do Círculo de Ouro de Watie, que agora se denominava Partido dos Direitos Sulistas, e os seguidores de Ross na Sociedade Keetoowah, os chamados índios pins, agrupados sob o nome de Liga Leal. A cada dia Lije via aumentar a divisão dentro de sua nação.

Numa noite em meados de agosto, Lije voltou bem tarde para a fazenda da família. Passou pelas janelas escuras da casa e cavalgou diretamente para o estábulo. Relâmpagos clareavam o horizonte. Uma coruja piou nas imediações, e seu grito assustador pareceu reforçar seu mau presságio.

De uma das cocheiras vinha o brilho amarelo de um lampião. Lije guiou seu cavalo cansado naquela direção, os músculos retesando-se em automática preocupação. A luz moveu-se quando ele se aproximou da cocheira. Um homem saiu, segurando o lampião no alto para iluminar Lije.

- Senhor Lije?

Reconhecendo a voz de Ike, Lije relaxou e guiou o cavalo em direção à luz.

- Sim, sou eu.

Parou o cavalo e apeou, consciente da fadiga que sentia.

- O que está fazendo aqui tão tarde, Ike?

- Um dos potros ficou preso numa roseira-brava. Alguns arranhões foram profundos. Ele ficou muito inchado. Achei melhor dar uma olhada nele.

- Como está ele? - Lije afrouxou o cinto e tirou a sela do cavalo.

- Está suando muito, mas bebeu um pouco dágua. Acho que ficará bem.

Ike pendurou a lanterna na barra de ferro do lado de fora da cocheira.

Quando Lije levantou a sela para pendurá-la, viu algo no chão. Olhou para Ike, com o queixo enrijecendo de raiva.

- O que é isso, Ike?

- O quê, senhor?

- Essa roupa aí no chão perto da cocheira.

Ike olhou para o chão, depois olhou de volta para Lije, com um brilho de ressentimento nos olhos.

- O que acha que é, sr. Lije?

- Parecem ser seus pertences, Ike. Não estava pensando em ir a algum lugar, estava?

- Aonde poderia ir, sr. Lije?

- A lugar nenhum-rebateu Lije, depois lutou para controlar seu temperamento.- O que está acontecendo, Ike? Ninguém aqui jamais o chicoteou ou acorrentou. Você sempre foi bem tratado.

- Sim, senhor-concordou Ike. - Sempre fui bem tratado.

tão bem quanto seus cavalos. Tenho uma cama limpa de palha, comida, água. De vez em quando até me dão um tapinha amigável.

- Que diabo, Ike - Lije deu um passo em direção a ele.

- Se desse uma olhada mais de perto nessa roupa no chão, sr. Lije, veria que são os trapos que usei para fazer uma atadura na perna do potro - Ike esperou enquanto Lije olhava de novo os trapos no chão.

- Podia ter dito isso quando lhe perguntei - disse Lije irritado. - Por que não o fez?

Ike sacudiu os ombros, sem responder.

- Creio que deseja que tome conta de seu cavalo agora.

- Sim-Lije juntou as rédeas, mas não as deu imediatamente a ike quando ele estendeu a mão para pegá-las.

- Não ponha ideias tolas na cabeça, Ike.

- Como o quê?

- Como fugir - Lije procurou uma reação, mas não viu nenhuma. - Se tentasse, eu próprio iria atrás de você. E sei como pensa. Eu o pegaria. Que diabo, esse é meu trabalho, Ike Teria de fazer isso, gostasse ou não.

- Acho que sim - concordou Ike.

Lije estudou-o por mais um momento, depois entregou-lhe as rédeas e dirigiu-se para a casa. Um raio iluminou de novo o outro lado da noite, clareando rapidamente o caminho entre as árvores. A grama estava amarelada devido à longa seca do verão. Farfalhava como papel a cada passada.

O ar estava abafado, a brisa leve dando pouco alívio. Embora não tivesse caminhado mais de vinte metros, Lije já sentia o suor escorrendo pelas costas. Desejou um banho, mas isso implicaria chamar os criados para carregar água, e possivelmente acordar todas as outras pessoas na casa. Inclusive Diane.

Naquela noite, entretanto, ele não queria vê-la, não com as notícias inquietantes que tivera. Naquela noite ele se contentaria em lavar o suor e a poeira acumulados durante o dia. Deixaria o banho para o dia seguinte. Talvez então tivesse mais notícias sobre o pai dela.

Suspirando, Lije olhou para a casa. Uma pálida silhueta despontou do outro lado do gramado, vindo em sua direção. Ele reduziu o passo, blasfemando baixinho em cherokee ao reconhecer Diane, vestida com uma longa camisola branca de algodão fino, os cabelos soltos caindo-lhe sobre os ombros.

Ela correu para ele e abraçou-o, as mãos envolvendo o seu pescoço, puxando sua cabeça para baixo.

- Pensei que nunca chegaria em casa, Lije.

O macio fervor de sua voz surpreendeu-o, antes que ele provasse o calor e a doçura de mel dos lábios dela contra sua boca. Um tremor percorreu seu corpo, um juramento desfeito, e logo ele respondia, pedindo, excitado. Nada era claro para ele enquanto a beijava loucamente por todo o rosto. A razão diminuíacom o desejo. Havia apenas Diane e sua ânsia crescente por ela.

Em casa. Ela disse aquilo como se fosse estar ali sempre, esperando por ele. Mas será que estaria?

Irritado com a própria pergunta, para a qual não tinha resposta, e com a crueza do desejo que ela despertava nele, Lije tornou seu beijo mais agressivo. Só que ela não tinha medo da sua pressão. Em vez disso, aproximou-se ainda mais dele. Mas ainda não era o bastante, e ambos sabiam disso.

Respirando fundo e lutando para controlar-se, Lije levantou a cabeça para olhar para ela. Atrevidamente, ela devolveu-lhe o olhar, depois passou os dedos de leve sobre os lábios dele.

- Nossa, você está faminto esta noite - sussurrou-lhe, um pouco sem fôlego.

- Muito - A voz dele estava rouca.

Os olhos dela fixaram-se nos dele, deixando-o entrever o brilho travesso que dançava dentro deles.

- Então foi bom eu ter mandado Phoebe para a cozinha preparar algo para você comer. - Só que ele não sorriu como ela esperava. A referência a Phoebe foi muito próxima da conversa que tivera com Ike, filho de Phoebe. Diane não compreendeu a repentina seriedade de sua expressão. - Não me diga que já comeu...

- Não.

- Então, o que foi?

Era uma pergunta tola que não merecia nenhuma resposta séria. Lije tentou satisfazê-la.

- Nada - respondeu ele, mas sem convencê-la. Ela franziu o rosto, intrigada.

- Há algo errado. O que aconteceu? Ele hesitou antes de confessar:

- Ouvi dizer que houve uma batalha em Missouri.

- Missouri. Meu pai... - Ela se calou, abaixou a cabeça e deu um longo suspiro, depois olhou para cima, demonstrando uma postura digna da filha de um oficial. - Onde foi?

- Num lugar chamado Wilsons Creek, a sudoeste de Springfield.

- O que aconteceu?

- Quase cinco mil soldados do exército da União atacaram um batalhão misto dos confederados, duas vezes mais numeroso. Depois de uma árdua batalha, o exército da União foi forçado a retirar-se para Springfield. Dizem que houve muitas vítimas de ambos os lados.

- O regimento de meu pai - perguntou ela com a mesma calma forçada - estava envolvido?

- Honestamente, não sei. Não consegui mais informações. As primeiras notícias só mencionam um general da União chamado Sigel que comandava a artilharia.

- Então não se sabe se o regimento dele tomou parte na batalha. - Ela fixava o olhar na camisa dele. - Talvez ele ainda não tenha participado de nenhuma batalha. Talvez ainda esteja no quartel-general, preparando seu relatório. Talvez... - Sua voz esmoreceu, e ela fechou os olhos. Quando Lije apertou-a suavemente contra o peito ela não ofereceu nenhuma resistência. - E se ele estiver ferido, Lije? E se...

- Sssh. Não sabemos de nada.

- Não. Não, não sabemos - repetiu Diane, trémula, tentando agarrar-se à esperança que isso oferecia. - Não sei o que faria se algo acontecesse com ele.

- Eu sei - murmurou ele, confortando-a. - Amanhã saberemos de mais detalhes.

- Sim. - Ela se afastou, abaixando a cabeça como se estivesse envergonhada de suas ações. - Sei que não devia preocupar-me, mas...

- Ele é seu pai. Eu não compreenderia se não estivesse preocupada com ele.

Diane acariciou-lhe o rosto, agradecida, depois pegou sua mão.

- Vamos para a casa. Phoebe já deve ter preparado seu jantar. De mãos dadas, caminharam para a casa, sem falar mais.

Na tarde do dia seguinte, souberam que o regimento do capitão Parmelee não fazia parte das forças da União que lutaram na batalha de Wilsons Creek.

Mas a luta movia-se em direção ao oeste.

Os jornais do Sul não poupavam elogios a Stand Watie e seus guerrilheiros rebeldes envolvidos na luta por terem capturado a artilharia da União. Aos olhos da imprensa, Watie era um herói.

A vitória dos confederados e a nova posição de Watie pressionaram o chefe John Ross a abandonar sua posição de neutralidade. Cada vez mais parecia que o Sul sairia vitorioso da guerra. Se a nação cherokee não se tornasse sua aliada, seria considerada como inimiga.

O vento vindo do Sul soprava forte.

 

Estamos na situação de um homem solitário dentro de um fosso, com a água correndo rapidamente à sua volta. Ele vê o perigo, mas não sabe o que fazer. Se ficar onde está, será levado pela corrente e morrerá. Em seu curso louco, entretanto, a água carrega também um galho de árvore. É a esperança que vem ao seu alcance. Se falhar, será um homem condenado. Se pegá-lo, terá uma chance de viver. Poderá sobreviver graças a esse esforço, e talvez seja capaz de manter a cabeça sobre a água até que seja resgatado ou transportado para onde possa salvar-se.

- John Ross Chefe principal da nação cherokee.

Tahlequah

Nação cherokee, território indígena

21 de agosto de 1861

A potranca negra jogou a cabeça para cima e empinou, excitada, olhando para todos os cavalos selados nas carruagens e nas carroças paradas em volta da praça da cidade.

- Cheia de fogo e pronta para correr, não é? - Alex riu e refreou a potranca, interrompendo sua caminhada dançante. Pena que não seja dia de corrida.

Ele passou diante do hotel de tijolos de dois andares, lotado como o resto da cidade. As crianças corriam para dentro e para fora dos becos entre os prédios, enquanto as mulheres corriam de loja em loja para ver o que os comerciantes tinham a oferecer. Contudo, viam-se poucos homens ao longo das calçadas. Eles estavam reunidos do lado leste da praça, onde ficavam os prédios governamentais.

Alex dirigiu sua montaria para lá. Não cavalgara mais que alguns metros quando ouviu uma voz conhecida chamando-o pelo nome. Olhando em volta, viu Sorrel atravessando a rua, acompanhada da avó, da mãe e da criada negra, Phoebe. Alex acenou-lhe e continuou a cavalgar, mas depois notou Diane Parmelee no grupo. Ele sorriu quando reconheceu a filha de um capitão ianque e futura noiva de seu primo. Dirigiu-se a elas.

- Boa tarde, senhoras. - Percorreu com o olhar os embrulhos de compras em seus braços. - Parece que já compraram tudo das lojas. Para onde vão agora?

- Para a loja da modista - respondeu Eliza, enquanto Diane Parmelee lhe dirigia um olhar frio.

Alex sorriu, certo de que ela se lembrava de quando ele apontara o revólver para seu precioso noivo.

- vou mandar fazer um vestido novo para o casamento informou-lhe Sorrel. - Mas antes a sra. Adair terá de tirar minhas medidas. Não quer vir conosco?

- Parece muito interessante, mas creio que vou descobrir se finalmente entramos para a Confederação - respondeu Alex, captando o pequeno sorriso que tocava os lábios de Diane. - Seu sorriso surpreende, srta. Parmelee. Nunca pensei que fosse achar essa perspectiva engraçada.

- Considerando as poucas chances que isso tem de acontecer...

- Mas acontecerá - interrompeu-a Alex suavemente. Meu querido primo não lhe disse que a reunião de hoje é para realizar a aliança com os confederados?

Ela levantou um pouco mais o queixo.

- Ele disse que o governo rebelde fez uma outra proposta. Mas já fizeram tantas no passado... Pelo que me disse, não há nisso nada de novo que possa fazer o chefe Ross abandonar sua posição de neutralidade.

- Mas desta vez as circunstâncias são diferentes. O Sul está ganhando a guerra e fazendo de Stand Watie um herói. O chefe Ross não pode continuar de braços cruzados, se quiser continuar a ser chefe. Por isso está oferecendo seu apoio ao Sul - Alex sorriu da mistura de dúvida e choque contidos na expressão dela. - bom dia, senhoras.-Ele levou a mão ao chapéu numa saudação e saiu, rindo sozinho.

Diane olhou para Temple e depois para Eliza.

- O que ele disse...é verdade?

Eliza apertou os lábios, numa profunda desaprovação.

- Por mais que eu lamente, sim. O chefe Ross pretende apoiar a aliança com o Sul.

- Mas por quê?

- Estamos enfrentando uma escolha de Hobson, Diane. Ou fazemos a aliança ou teremos de enfrentar uma ocupação militar - respondeu Eliza.

- Foi essa a ameaça que o Sul fez? - perguntou Diane, indignada.

- Minha querida, eles não têm de colocar isso em palavras explicou Eliza.-Essas coisas são sempre acolchoadas com termos diplomáticos que tornam implícito seu verdadeiro significado. Os cherokees já viveram sob a baioneta de soldados. Não é uma experiência que gostaríamos de repetir. Por isso, vamos tentar ganhar tempo e esperar que o exército da União derrote essa rebelião dos estados do Sul.

- Sei que é difícil para você - interveio Temple, apertando o braço de Diane num gesto de carinho e compaixão. - Às vezes é muito difícil deixar de tomar partido, principalmente quando todo mundo à sua volta não faz outra coisa.

- Eu sei.

Mas Diane não ouvira mais. Muitos outros pensamentos e perguntas revolviam-se em sua mente. Por que Lije não deixara claro a gravidade da situação? Pela forma que todos falavam, ela concluíra que uma posição de neutralidade seria a única opção possível para os cherokees, considerando-se que as opiniões entre eles estavam divididas. Teria ela se envolvido tanto em seus planos de casamento que não fora capaz de ouvir corretamente? Quanto mais pensava nisso, mais irritada ficava. E, junto com a irritação, as primeiras sementes de raiva foram semeadas. Raiva e a sensação de ter sido traída.

Ao chegar do outro lado da praça, Alex viu seu pai no meio da multidão de homens que se agrupavam do lado de fora do prédio do Conselho. Após desmontar, amarrou a potranca numa baia e caminhou, desviando-se da multidão, até chegar perto do pai.

No instante em que Alex tocou o ombro do pai, este virou-se bruscamente, a mão instintivamente procurando o revólver calibre 31 que sempre carregava no bolso do casaco. Alex deu um pulo para trás, rindo do nervosismo do pai. Na realidade, as frequentes e violentas confrontações entre os seguidores de Watie e os membros da sociedade dos índios pins dera motivo a esse comportamento. Alex sabia da ocorrência de pelo menos três assassinatos.

- Nunca chegue por trás de um homem desse jeito - alertou seu pai, irritado.

- Sinto muito.

- Deveria sentir mesmo. Por onde andava? Ross está prestes a falar na convenção. Achei que fosse querer ouvi-lo.

- E quero - Alex acompanhou o pai até a área do encontro. Estava cheio de gente. A maioria vestia casaco de camponês e camisa branca de fazendeiro, enquanto outros trajavam camisa de caçador e usavam o turbante dos cavaleiros cherokees das montanhas. Kipp imediatamente correu os olhos em volta, e não parou até encontrar Blade. Lije e seu criado negro estavam ao seu lado.

Distraído pela presença de Blade, Kipp não ouviu o começo do discurso de Ross. com os dentes cerrados, Kipp olhava para Blade, notando como ele parecia presunçoso, parado ali, ouvindo Ross dizer as palavras que poderiam aliá-los aos confederados, palavras que conseguiriam exatamente o que Blade queria. O ódio subiu-lhe à garganta como uma bílis amarga. Kipp jurou a si mesmo que Blade se arrependeria daquele dia. Faria com que isso acontecesse. De algum modo. De alguma forma.

Quando a proposta de aliança com os Estados confederados da América foi posta em votação, foi saudada com gritos de aprovação e aceita por aclamação. Enquanto a reunião se dispersava, Kipp subitamente, encontrou-se cara a cara com Blade. Seu filho Lije estava a seu lado.

Blade sorriu, tirou um charuto do bolso, acendendo-o calmamente, e depois deu uma tragada.

- Parece que nos aliamos ao Sul.

- Não. Evitamos que você e seu cupincha Watie fizessem seu próprio tratado com os confederados, usurpando a autoridade de Ross, como já fizeram anos atrás-retrucou Kipp agressivamente.

- Talvez desta vez tenha sido o medo de perder o poder que forçou Ross - murmurou Blade, abaixando o olhar para o volume no casaco de Kipp. - Mas agora você terá oportunidade de usar essa pistola que sempre carrega, não é?

A surpresa tirou de Kipp a chance de dar uma resposta apropriada antes que Blade se afastasse. Ele ficou olhando aqueles ombros largos se afastarem, como sempre parcialmente bloqueados pelo criado negro que se tornara sua sombra. No calor da batalha, ninguém sabe de onde vem o tiro que mata um homem. Ninguém. A ideia cresceu na cabeça de Kipp, enraizando-se no solo fértil de seu ódio por Blade.

Lije olhou de lado para o pai.

- Não foi muito sábio provocar Kipp desse jeito.

- Kipp não precisa de provocação - respondeu Blade, encerrando o assunto.

Já do lado de fora, Blade parou para reacender o charuto. Lije parou a seu lado e vagarosamente percorreu com os olhos a multidão que se dispersava. Entre as roupas de tons escuros, ele viu uma moça num vestido rosa-escuro e fixou o olhar nela. Diane estava parada sozinha na praça, diretamente do outro lado, a sombrinha rosa aberta para quebrar o brilho do sol, enquanto olhava o rosto dos homens que saíam. Lije sabia que ela procurava por ele, e também sabia por quê.

- Diane está lhe procurando - observou seu pai. Lije concordou, sério.

- Eu sei. Voltarei logo.

Quando ela o viu cruzando a praça, deu um passo em sua direção, depois parou e esperou que ele se aproximasse, demonstrando a tensão em cada linha de seu corpo. Ele leu a ansiedade e a confusão escritas nos expressivos olhos dela.

- É verdade? - perguntou ela, já esperando a resposta dele.

- Você entrou para a Confederação?

- Ainda não é oficial. O tratado tem de ser assinado, mas Ross tem autoridade para fazer isso.

- Por que não me disse? - cobrou Diane. - Por que não deixou claro que o resultado desse encontro seria diferente? Por que tive de ouvir essa notícia de seu primo Alex?

Alex. Lije não teve nenhuma dificuldade para imaginar a alegria que Alex teria sentido em dar a notícia a Diane. Tentou controlar a raiva.

- O que teria mudado se você tivesse sabido?

- Creio que nada-admitiu Diane, frustrada.-Mas não foi justo esconder-me. Não sou criança para que me proteja de coisas desagradáveis.

- Não - concordou Lije, e procurou dar fim à discussão. Onde estão mamãe e Eliza?

- Na loja da modista. Eu tinha hora marcada para tirar as medidas para o vestido. Sorrel...

- Levarei você até lá - disse ele, pegando o braço dela e seguindo em direção à loja da costureira perto do Templo da Maçonaria. - De agora em diante, fique perto delas. Pode não ser mais uma boa ideia aventurar-se por aí sozinha.

- Está sugerindo que não é mais seguro para mim andar numa via pública?

- Todo mundo sabe que seu pai é um oficial do exército da União, Diane. E agora acabamos de nos aliar ao Sul. Talvez você não seja tratada tão gentilmente como sempre foi - Lije não sabia se seria mais sério do que isso, e tampouco se importava em descobrir.

Ela se calou. Quando chegaram à porta da loja, virou-se para encará-lo.

- O que acontecerá agora, Lije? - perguntou. - O que irá fazer?

- O que for preciso - respondeu ele, deliberadamente evasivo.

- Eu...

Sorrel veio correndo da loja.

- Vamos, Diane. A sra. Adair está pronta para tirar suas medidas. Já terminei. Ela disse que meu vestido será o mais bonito que já fez.

- Isso é maravilhoso, Sorrel. Agora vá dizer à sra. Adair que estarei lá em um minuto.

Sorrel franziu o cenho.

- Mas ela está esperando por você.

- É melhor entrar - disse Lije a Diane.

- Aonde vai?

- Meu pai e eu temos de conversar com algumas pessoas. Verei você à noite.

Ele conseguiu sorrir antes de se afastar. Mas sua expressão logo ficou séria ao pensar no que teria de fazer e o que isso poderia lhe custar.

Um sol de cobre pendurava-se na beira do horizonte do oeste. Seus raios compridos lavavam as colunas brancas das plantações com sua luz âmbar, enquanto Lije voltava para casa, acompanhado por seu pai e Deuteronomy Jones, o criado negro. Ike esperava para pegar seu cavalo. Lije desmontou, entregou-lhe as rédeas e olhou para a casa, esperando ver Diane aparecer.

Enquanto os cavalos eram levados, Blade aproximou-se dele.

- Sei como isso poderá afetar Diane.

Ele concordou, ciente de que seu pai falava por experiência própria.

- Sabia que isso poderia acontecer. Esperava que pudesse ser evitado, mas...

Ele sacudiu a cabeça, ficando sério de novo. O momento que tanto temera havia chegado. Não havia forma de evitá-lo, não havia como tornar as coisas mais fáceis.

com essa certeza, Lije entrou na casa. Temple estava na entrada e sorriu-lhe, dando as boas-vindas.

- Chegou cedo. Pensei que teria de atrasar o jantar esta noite.

Lije olhou em volta.

- Onde está Diane?

- Está no quarto dela. Eu...

Mas Lije não quis esperar para ouvir mais nada, subindo diretamente a escadaria curva que dava para os quartos no segundo andar. Subiu os degraus um a um, com movimentos sem pressa e deliberados. Quando chegou lá em cima, a porta para o quarto de hóspedes se abriu e Diane saiu. Usava agora um vestido verde de verão que intensificava o azul de seus olhos e o amarelo-ouro de seus cabelos. Lije parou e olhou-a aproximar-se, estudando a perfeição de seus traços, o penetrante fascínio de seu sorriso, o conhecido brilho de seus olhos que irradiavam um calor que ele parecia sentir no sangue.

- Esperava ter uma oportunidade para conversar com você antes do jantar, Lije.

Ela parou diante dele e passou os dedos pela lapela de seu casaco, num gesto íntimo como o de uma esposa que sutilmente faz ao marido uma sugestão.

- Hoje fui grosseira com você e me arrependo disso. A aliança com os confederados não foi culpa sua, eu sei, mas fiquei muito aborrecida pela forma como fiquei sabendo disso.

- Eu esperava que a aliança não se realizasse. - A verdade dessa declaração estava patente na firmeza de sua voz.

Quando inclinou a cabeça, convidando-o a abraçá-la, ele sentiu um forte desejo de tomá-la nos braços e esquecer o resto do mundo. Instintivamente seus braços circundaram a cintura dela, mas afastou-a rapidamente, tonto pelo perfume de seus cabelos dourados. Ele respirou fundo, memorizando seu perfume e um milhão de outros detalhes a respeito dela.

- Eu não devia ter dito que foi sem aviso - disse Diane, respirando fundo. - Havia muitas indicações, como as coisas que seu pai dizia, as mudanças de atitude dos outros. Mas recusei-me a acreditar nelas, fingindo não ouvir os muitos sinais que foram dados. Olhando para trás, posso ver tudo isso agora. Hoje, entretanto, a ideia de ver os soldados rebeldes andando livremente para todo lado...

- Por isso será melhor que você volte para Saint Louis, onde seu pai está servindo - disse Lije abruptamente.

- Sem você? - Surpresa, ela olhou para ele, os lábios abrindo-se em choque. Tentando recobrar-se, ela deu um sorriso meio irritado. - Que coisa ridícula de se dizer. Você não acredita honestamente que a chegada das tropas rebeldes me fará sair daqui. Admito que a presença delas será ofensiva, mas não a ponto de me fazer sair voando daqui.

- E se tiverem soldados rebeldes vivendo sob este teto? Diane deu um passo para trás, o choque fazendo-a empalidecer.

- O que está dizendo? As tropas rebeldes ficarão alojadas aqui?

- O chefe Ross concordou em organizar dois regimentos para os confederados. Watie mais uma vez pediu a meu pai para alistar-se em suas tropas. Dessa vez ele concordou e já está organizando uma companhia para servir com Watie, sob seu comando.

- Seu pai? - murmurou ela com uma mistura de arrependimento e angústia. - Lije, deve ser horrível para você...

Ele interrompeu-a, endurecendo a voz.

- Demiti-me do Light Horse para unir-me à companhia de meu pai. Eu...

Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, Diane afastou-se com um salto, o calor do ódio e da acusação em seus olhos.

- Como pode unir-se aos rebeldes? Sabe o que isso significa?

- Sei.- A resposta dele foi lacónica.

- Você não pode... você não faria isso. - Ela voltou-se para ele, segurando-o, seu queixo se erguendo em silenciosa determinação.- Você me ama, Lije. Sei disso. Podemos ir embora juntos. Podemos ir para o Leste, longe da guerra e da luta.

- Não. - Ele manteve os braços pendentes.

A reação dela foi exatamente a que ele esperava. Mas isso não o fazia sofrer menos.

- Mas não há razão para você envolver-se nisso - argumentou ela.

- Acho que há.

- Você não pode. - Os dedos dela agarraram o casaco de Lije, enquanto a expressão dele registrava sua decisão. - Não vê que é apenas uma questão de tempo, antes que os soldados da União sejam enviados para expulsar os confederados?

- Sei disso.

- Sabe disso? - Diane estava incrédula. - Mas meu pai poderá estar entre eles. Você poderia ter que lutar com ele.

- Gostaria que, em vez disso, eu lutasse contra meu pai? desafiou Lije.

- Por que deve lutar de qualquer maneira? Por que me colocar diante da tortura de ter meu pai de um lado e você de outro? Isso não é justo.

- Sinto muito. É o que tenho de fazer.

A resposta paralisou-a, mas somente por um instante.

- Mas... e seu avô e sua mãe? Você sabe que simpatizam com a União. Também não aprovariam isso.

- Mas eles não têm inimigos ansiosos por matá-los.

- A antiga desavença - murmurou Diane com raiva. - É este o grande problema, não é? Não tem nada a ver com o Norte ou com o Sul. - Quando ele não respondeu, Diane soltou sua frustração. - Aquilo começou muito antes de você nascer. Você não fazia parte da desavença. Não tinha nada a ver com isso.

Lije não concordava.

- Vi meu avô Shawano morrer nas mãos de assassinos. Não ficarei parado vendo meu pai ser morto.

- Só porque seu tio Kipp...

- Meu tio é somente um dos muitos que gostariam de ver meu pai morto... assim como meu pai é apenas um dos muitos que eles gostariam de ver mortos. Esta guerra dá a eles uma licença para matar. Se tiverem oportunidade, a usarão. E quando o fizerem, haverá revanches. Para muitos cherokees, a guerra entre o Norte e o Sul se transformará apenas numa desculpa para resolver antigas desavenças. Devo ficar ao lado de meu pai.

Diane olhou para ele, o corpo rijo de ressentimento e os olhos brilhantes de lágrimas.

- Não há nada mais que eu possa dizer, há? Você não se importa com o que isso possa causar a nós. Não se importa com o que isso me faz sentir.

- Importo-me, sim. Mas não mudará minha decisão.

- Não vê o que está fazendo, Lije?-disse ela, tensa. - Está escolhendo o passado em detrimento do nosso futuro. Está mais preocupado em resolver velhas desavenças do que em construir uma nova vida comigo.

- Pode parecer assim. É assim.

- Não posso arriscar-me a ver o passado se repetindo.

- Então isso termina tudo entre nós, Lije. Não posso casar-me com um homem que corre o risco de guerrear contra meu pai... Não porque acredita na causa rebelde... Eu podia respeitar isso... mas por causa de uma briga antiga que começou antes mesmo que tivesse nascido!

Ele concordou vagarosamente.

Providenciarei sua passagem na barca que parte para o Forte Smith no fim da semana. De lá pode seguir de carruagem até Saint Louis.

- Meus baús estarão prontos pela manhã. Prefiro não ficar nesta casa nem mais um dia. Se seus avós não quiserem que eu fique aqui, então ficarei no hotel até a barca partir - Diane dirigiu-se para seu quarto, depois parou, com a mão na porta, e acrescentou, sem se voltar. - Quero que saiba que o Sul perderá esta guerra.

- É bastante possível.

Ela entrou no quarto de hóspedes e fechou a porta. Lije ficou parado, consciente da sensação de perda que o deixava vazio. Lentamente, desceu os degraus, sentindo-se sozinho.

Diane retirou mais uma braçada de roupas íntimas do gaveteiro e jogou-a sobre a cama. Dobrou peça por peça, e colocou-as no baú. Cada movimento era cuidadosamente calculado, tentando controlar a tempestade de emoções que ameaçava apossar-se dela. As lágrimas queimavam seus olhos, mas ela não se entregava a elas. Tinha compreendido, dolorosamente, que Lije Stuart não valia uma só de suas lágrimas.

Alguém bateu. Diane largou a camisola que dobrava e virou-se em direção à porta.

- Quem é? - perguntou, desejando que fosse Lije. Sou eu, Temple. Posso entrar?

Uma tremedeira de decepção quase abalou seu controle. Ela pegou novamente a camisola e virou-se de volta para o baú.

- Claro, entre.

Não olhou quando a porta se abriu e Temple entrou.

- Creio que Lije lhe disse que estou partindo... que terminamos o noivado - disse ela rapidamente, tentando controlar a dor.

- Sim - respondeu Temple calmamente. - Espero que possamos conversar.

- Talvez você deva fazer isso com seu filho. É ele quem se recusa a ouvir a razão.-Diane colocou a camisola no baú e pegou uma combinação de algodão.

- Já estive numa situação parecida anos atrás - disse Temple. - Como você, pensei que minha única escolha fosse partir. Mas estava errada. Não quero ver você cometer o mesmo erro, Diane. Amar uma pessoa significa que invariavelmente chegará uma hora em que se vai discordar dela, mas é então que devemos nos apegar ao nosso amor ainda mais fortemente. Temos de nos amar um ao outro, apesar de tudo.

- Sei que tem boas intenções, sra. Stuart. Mas as circunstâncias são diferentes. Compreenda, eu estava mais do que ansiosa para me comprometer, mais do que ansiosa para encontrar seu filho na metade do caminho. Mas ele se recusou a fazer qualquer concessão.

- É uma decisão difícil para ele, uma decisão que não tomou impensadamente. Tente compreender...

- Mas eu compreendo, Temple. Compreendo muito bem. Lije preferiu o passado a mim.

Estava claro para Diane que Lije não a amava. Como poderia amá-la se não se importava nem um pouco com seus sentimentos? Ele a queria, ele a desejava, mas não a amava. Na análise final, era a única conclusão a que poderia chegar.

A névoa matinal cobria as árvores, com a umidade tornando o ar frio e pesado. Aqui e ali os raios de luz infiltravam-se pelo denso ar, parecendo teias, para brilhar na grama molhada de orvalho. Seria apenas uma questão de tempo antes que o sol se levantasse, queimando as camadas finas de nevoeiro.

Um criado trouxe outro cavalo para Lije inspecionar. O ruído dos passos pesados e vagarosos das patas do animal ecoava alto no silêncio da manhã, tão alto como ocorrera mais cedo, quando Lije ouvira um vozerio e o tumulto de uma carruagem parando diante da casa. Tinha sido enviada para transportar Diane para a casa dos avós em Oak Hill. Lije sabia que, dentro de instantes, a carruagem estaria partindo com Diane.

Atento para o som da partida da carruagem, Lije fez sinal para o criado fazer o cavalo trotar, para ver como se comportava. O animal correra apenas uns poucos metros quando Lije percebeu que a pata traseira avançava até bater na dianteira. Mandou o criado parar o cavalo, tentando determinar a origem do problema em sua marcha. Como ele não percebeu nenhum defeito na conformação das patas do animal, aproximou-se e examinou-as de perto. Assim que detectou o problema, disse ao criado:

- Leve-o para trocar as ferraduras.

Enquanto examinava o cavalo, Lije ouviu o som de passos e o farfalhar de saias aproximando-se do caminho que conduzia à casa-grande. Virou-se, desejando que... Mas era sua mãe que se aproximava do estábulo através do nevoeiro. Ele virou-se de volta para o cavalo, pegou seu queixo e abriu-lhe a boca para examinar os dentes, demorando-se deliberadamente ao fazer isso. Temple estava parada atrás dele.

- Estão trazendo o último baú de Diane, Lije. Ela vai partir logo.

- Eu sei.

Ao completar a inspeção, Lije acenou ao criado para que levasse o cavalo.

- Não vai despedir-se dela? - insistiu Temple.

- Tudo já foi dito na noite passada. - Ele esperava que trouxessem o próximo cavalo.

- Vai arrepender-se, Lije. Ele concordou.

- Ambos sentimos muito, mas isso não muda nada. Temple estudou o filho, magoada pela dureza que via em suas

feições, e pelas emoções que ele mantinha profundamente reprimidas. Como Diane, Temple discordava da decisão que seu marido e seu filho haviam tomado, mas não se afastaria deles por causa disso. Não desta vez.

Ela tocou seu braço, desejando poder afastar sua dor.

- Talvez depois da guerra - disse ela, procurando dar-lhe esperança.

- Talvez. - Só que Lije não conseguia ver um futuro tão distante assim.

Stand Watie, designado coronel do exército confederado, fizera do antigo Forte Wayne o quartel-general de seu regimento Cherokee Mounted Rifles. Quando Diane partiu para Saint Louis, Lije e Blade Stuart ofereceram-se para servir no velho forte com a companhia que haviam organizado.

Um segundo regimento da Home Guard também foi organizado para servir ao Sul sob o comando de John Drew. Lije não ficou surpreso em saber que Kipp e Alex tinham se aliado a esse regimento juntamente com um grande número de índios pins.

Em 7 de outubro de 1861, o tratado entre a nação cherokee e os Estados confederados da América foi assinado em Park Hill, tornando os cherokees oficialmente aliados ao Sul-e a União seu inimigo mútuo.

Mas houve pouca ação naquele inverno, com exceção da inglória perseguição de um grande grupo de creeks leais à União, que tentavam alcançar a segurança da fronteira do Kansas. O resto das forças marchou e exercitou-se, preparando-se para uma campanha de primavera planejada para percorrer o solidário Missouri e capturar Saint Louis. A campanha deveria ser iniciada no norte do Arkansas.

Fazenda Grand View

Nação cherokee, território indígena

11 de março de 1862

Filetes de fumaça subiam das chaminés da mansão de colunas dóricas aninhada no meio das árvores. Ao ver a fumaça Alex foi tomado por um cansaço que lhe invadia até os ossos e anestesiava a mente. Fumaça significava fogo, calor e comida. Ele conduziu sua potranca negra a galope, puxando as rédeas do cavalo que levava a reboque.

A repentina aceleração de marcha despertou um gemido de dor no homem que ia no outro cavalo. Alex imediatamente acertou o trote da potranca e olhou para trás em direção a seu pai. Ele estava inclinado sobre o pescoço do cavalo, o corpo caído para o lado, segurando as cordas que o amarravam à sela. Seu rosto esquálido estava pálido e contraído de dor sob a fuligem da batalha, o casaco sujo, rasgado e encharcado de sangue.

Atrasando o passo da potranca para emparelhar com ele, Alex cuidadosamente arrumou Kipp na sela.

- Estamos quase chegando. Só mais uns cem metros. Nada mais do que isso.

- Chegando onde? - Kipp fez uma fraca tentativa de aprumar-se. - Onde estamos?

- Na casa de Temple.

Alex decidiu não tentar alcançar Oak Hill. Seu pai já desmaiara várias vezes desde que seu ferimento recomeçara a sangrar.

- Deveria tê-lo matado... - Kipp começou a divagar. - No ataque àquela... àquela bateria... ali eu tive minha chance... deveria tê-lo... matado.

- Não fale mais. Não gaste suas energias.

Mas Alex sabia do que seu pai falava. Tão claramente quanto podia ver a casa diante dele, lembrou-se do momento em que viu seu pai apontar para Blade. Na confusão do ataque ao exército da União, seu pai tinha hesitado - não mais que um segundo. Foi quando caiu na frente dele um cavalo baleado, e a oportunidade para um tiro certeiro em Blade foi perdida.

Aquela lembrança era apenas uma das que haviam sido guardadas na mente de Alex, enchendo-o de imagens vívidas e fortes. Ele esfregou a palma da mão na perna da calça, lembrando-se de como estava suado quando se perfilaram atrás daquela cerca da estrada de ferro em Arkansas perto de um lugar chamado Pea Ridge. Havia uns mil deles: o regimento de Watie a pé, e o seu, montado, junto com um pelotão de cavalaria do Texas-todos alinhados para atacar a bateria da União, que consistia de três pelotões apoiados por um destacamento de cavalaria da União. Entre o fogo do inimigo e a repentina invasão de sangue em sua cabeça, Alex não ouviu a ordem para atacar.

Ele lembrava-se do barulho - o terrível grito de guerra dos índios, os assustadores gritos rebeldes dos texanos, o rápido chacoalhar dos cascos dos cavalos, a explosão das armas de fogo, o estrondo dos canhões. Lembrava-se também dos cheiros, o cheiro acre da fumaça da pólvora, do couro dos cavalos, da pele suada dos homens e, acima de tudo, o cheiro do medo.

De uma maneira estranha, ele vira tudo o que se passou à sua volta, mas não seria capaz de concentrar-se em nenhum episódio. Sua lembrança do ataque, da escaramuça em volta das baterias, era feita de imagens desconexas-um cavalo em queda mortal; outro, sem cavaleiro, correndo em pânico, com os estribos vazios batendo contra seus flancos; homens voando em meio às explosões; o sangue escorrendo entre os dedos da mão de alguém apertando um ferimento; e um oficial de cavalaria vestido de azul apontando sua arma... para ele.

Mesmo agora Alex não conseguia lembrar-se de ter engatilhado o revólver ou de ter apertado o gatilho. Podia apenas lembrar-se do impacto da arma em sua mão, o oficial começando a tombar para a esquerda, e o revólver vibrando de novo e de novo até o homem cair da sela.

Mas isso aconteceu depois da captura dos canhões, quando a alegria da vitória fluía em seus gritos - a alegria e uma imensa sensação de poder. A potranca negra o carregara para além da frente de ataque; ele caíra sobre os inimigos e fizera surgir o medo em seus rostos. A visão e o cheiro de sangue não eram revoltantes, como lhe haviam dito. Alex lembrava-se de que, ao recarregar o revólver, sorrira ao constatar que suas mãos não tremiam, mas estavam frias e firmes.

A potranca parou. Por uma fração de segundo, absorvido em suas lembranças, Alex não entendeu a razão. Então viu bem perto as colunas brancas e a larga varanda que circundava a mansão.

Depois de desmontar, soltou as rédeas da potranca e aproximou-se do pai. Ele estava inconsciente de novo. Onde diabos estava todo mundo? Ninguém os vira chegar? Então ele viu um escravo aproximando-se da casa, vindo do estábulo.

- Rapaz! Ei, rapaz! Ajude-me aqui! - gritou, começando a soltar a corda que prendia seu pai na sela. - O garoto negro adiantou-se vagarosamente e Alex voltou a gritar. - Diabo, eu disse para vir aqui e me ajudar. Agora!

O trote vagaroso transformou-se numa corrida rápida.

Juntos, retiraram o homem do cavalo e carregaram-no para a casa. Alex não prestou atenção à luxuosa mobília. Reparou apenas no som do piano que vinha da sala de música.

- Temple! Tia Temple! - Ele parou no grande saguão dominado pela escada curva que levava ao segundo piso.

O exercício de piano cessou, seguido rapidamente pelo som de pés correndo.

- Alex!

Sorrel, com dez anos de idade, correu rapidamente para ele, sorrindo de alegria. Então vacilou, e seu sorriso desapareceu.

- Tio Kipp! - exclamou ela, alarmada. - O que houve com tio Kipp?

Naquele instante Temple apareceu e Alex dirigiu sua resposta a ela:

- Ele está ferido.

- Não!

A expressão de choque desapareceu do rosto dela tão rápido quanto surgiu.

- Leve-o para o meu quarto lá em cima. Sorrel, vá dizer a Phoebe para trazer os remédios, bandagens e água quente.

- Mas...

- Não discuta!-interrompeu Temple. - Apenas faça o que eu disse, e depressa.

Ela pôs as mãos no ombro da filha e empurrou-a em direção aos fundos da casa. Então seguiu Alex e Ike enquanto eles carregavam Kipp pela escada para seu quarto no segundo piso. Depois que o deitaram na cama, Temple tirou o casaco dele cuidadosamente e viu a camisa rasgada e ensanguentada.

- Quando isso aconteceu?

- Há dois... não, há três dias-respondeu Alex. -Eu retirei a bala, mas está começando a sangrar de novo.

Kipp gemeu quando sua irmã cuidadosamente retirou do ferimento a atadura encharcada de sangue, revelando um buraco vermelho em carne viva. com esforço, Temple controlou-se para não reagir à visão, lembrando-se do número de negros que tinha tratado com ferimentos ainda piores que uma perfuração de bala. Só que agora tratava-se de seu próprio irmão.

- Ouvimos rumores de que todos os regimentos cherokees foram destacados para lutar contra as forças da União. O que aconteceu?

- Houve uma batalha... em Arkansas, ao longo da Telegraph Road em Butterfield, perto da parada das carruagens em Elkhorn Tavern. Durou três dias. - Passando os dedos pelo cabelo, Alex levantou-se do sofá com um ar cansado e deprimido. - Deveríamos ter vencido. Tínhamos mais de dezesseis mil homens. Disseram que o exército da União tinha menos de dez mil. No primeiro dia achei que poderíamos derrotá-los. Tomamos uma de suas bases de artilharia. Os índios chamavam os canhões de "carroças que atiram". - Ele deu um riso sem graça e olhou para o teto. – Mas não pudemos carregar os canhões para dentro de nossas linhas porque não tínhamos cavalos. Então queimamos as carroças dos canhões. Depois eles começaram a nos cercar e tivemos de nos esconder nas matas.

Phoebe entrou correndo no quarto, carregando uma chaleira de água quente, roupas para bandagens e a caixa de remédios de Temple.

- Ele está muito ferido, dona Temple?

Temple sacudiu a cabeça, demonstrando incerteza. Tinha consciência de que sua filha e Ike estavam no quarto, mas naquele momento sua preocupação estava dividida.

- Lije e Blade... sabe se eles estão bem? - perguntou, olhaado para o sobrinho enquanto Phoebe despejava água quente da chaleira na bacia de porcelana e a temperava com água fria de um bule também de porcelana.

- Não sei - Alex evitava seu olhar. - A última notícia que tive foi de que Watie e seus homens tinham tomado uma posição numa colina atrás da taverna para observar os movimentos do inimigo. Os generais McCulloch e Mclntosh foram mortos no segundo dia de batalha. O general Slack foi ferido e teve de ser tirado da batalha. Havia tanta confusão... Fomos localizados nas matas com bombas e tiros explodindo por todos os lados. Todo o nosso suprimento e munições estavam em Little Sugar Creek, em Camp Stephens. Finalmente, conseguimos voltar para lá. Foi então que papai foi ferido - quando estávamos nos retirando. Nosso regimento dispersou-se. Não consegui encontrar ajuda. Sabia que tinha de tirá-lo de lá. Tinha de trazê-lo para casa.

Quando ele se virou para olhar seu pai, Sorrel gritou:

- Alex, tem sangue no seu pescoço! Você foi ferido!

Ligeiramente surpreso, ele pôs a mão no pescoço, estremecendo ligeiramente ao tocar um filete de sangue coagulado. Sorrel correu em sua direção, mas ele impacientemente acalmou-a.

- Não é nada. É só um arranhão.

- Mas precisa ser tratado assim mesmo. - Para não ser detida, Temple pegou seu braço e fez com que ele se sentasse na requintada cadeira de mogno estofada. - Agora, sente-se aqui enquanto cuido de você.

Temple olhou para os dois. Sorrel apressou-se a molhar um pano. Seu cuidado maternal despertou um sorriso divertido no rosto de Alex.

- Creio que não vai ser necessário colocar uma atadura informou Sorrel, assumindo ares de adulta, ao terminar de limpar o ferimento.

- Estou de acordo - disse Alex, disfarçando o sorriso. Ela suspirou e olhou para ele orgulhosamente:

- Aposto que você foi muito corajoso, Alex.

- Corajoso? - Aquele pequeno sorriso esmoreceu, e sua expressão endureceu.-Eu teria me sentido corajoso se tivéssemos vencido. Poderíamos ter vencido... se os confederados tivessem mantido as promessas que nos fizeram. Mas aquelas armas obsoletas que nos deram-mosquetões velhos, espingardas de pederneira -, metade delas não funcionava. E a outra metade, você achava que ia explodir na sua cara. Não havia comparação com os modernos rifles e revólveres da União. Alguns índios preferiram lutar com seus arcos e flechas e tomahawks em vez de usarem os revólveres inúteis que nos foram dados - e eles estavam certos. Papai e eu tivemos sorte. Tínhamos nossas próprias armas. Eu não estaria vivo se não fosse o revólver que ganhei de vovô.

Ele andava de um lado para o outro e movia as mãos o tempo todo enquanto falava. Temple estava nervosa com a ferocidade que via nos olhos dele, mas sabia que ele precisava desabafar e deixouo, mantendo as próprias mãos ocupadas aplicando um cataplasma e uma bandagem no ferimento inflamado de Kipp.

- Onde está o dinheiro que eles nos deveriam ter pagado? Não recebemos nem dinheiro, nem uniformes, nem os casacos quentes que nos prometeram. Quanto à comida, quando havia, não era própria nem para alimentar um negro do campo - Alex parou e novamente riu sem vontade. - Quando voltávamos para Camp Stephens encontramos um soldado da brigada de Missouri ferido. Ele disse que, quando capturaram o campo de suprimentos da União, encontraram barris de farinha de trigo, presunto, ostras, sardinhas, lagostas, frutas enlatadas, queijo e café. com exceção de alguns esquilos magros que matei, tudo que tivemos para comer no último fim de semana foi milho assado.

Sem esconder a frustração e a amargura, Alex voltou-se para olhá-la.

- Diabo, não devíamos nem mesmo estar no Arkansas. Nosso acordo estabelecia que não teríamos de lutar além das fronteiras do território indígena. Que diabo estávamos fazendo no Arkansas?

Inesperadamente, quando Alex olhou para o pai a raiva pareceu desaparecer, deixando somente amargura em seus olhos escuros. Dirigiu-se vagarosamente para a cama.

- Nunca deveríamos ter assinado um tratado com os confederados - resmungou. - Cada vez tem mais gente dizendo isso. Meu pai dizia desde o começo, mas ninguém quis ouvi-lo. Hoje não estariam com fome ou frio, ou equipados com armas inúteis. E não teriam sido derrotados em Pea Ridge nem forçados a se retirar.

Após colocar as ataduras em Kipp, Temple puxou a coberta até os seus ombros.

- Calor e descanso são as duas únicas coisas de que ele precisa agora - disse ela, ajeitando o avental. - Limpe essa bagunça, Phoebe, e mande Caesar acender a lareira. Quando descer, diga a Dulcie para preparar algo para Alex comer. Ike, cuide dos cavalos dele.

- Imediatamente, dona Temple. - com uma rápida mesura, Ike saiu do quarto para o corredor do segundo piso.

Assim que saiu da visão de sua senhora, Ike parou e pensou em tudo o que o sobrinho de Temple dissera sobre a batalha. Se o sr Blade e Lije tinham estado lá, então seu pai também estivera. Ele nunca ia a lugar nenhum sem Deu. Teria sido ferido?

Ike tentou preocupar-se com ele. E parte dele estava preocupado. Mas o resto... o resto dele estava excitado com as notícias de que o exército da União tinha vencido a batalha. Eles poderiam estar marchando em direção à nação naquele mesmo minuto para libertar todos os escravos. Esse pensamento encheu-o de alegria. Desceu as escadas correndo, os pés mal tocando o chão.

Uma semana depois chegou a Grand View a notícia de que Blade, Lije e Deu tinham saído da batalha em Elkhorn Tavem praticamente ilesos. A essa altura Kipp já se recuperara dos ferimentos a ponto de reintegrar-se à sua companhia. Duas semanas depois fazia parte do destacamento enviado à casa de John Ross em Park Hill para proteger o chefe principal, os documentos, os registros e os recursos financeiros da nação.

Ike esperou em vão a chegada das tropas da União. Em vez de perseguir os rebeldes em retirada, o exército da União permaneceu na área da batalha. Ike teve de encarar o fato de que eles não viriam Pelo menos por enquanto.

Forte Davis

Território indígena

Julho de 1862

Quando Blade voltou de uma reunião de oficiais, a expressão dura em seu rosto alertou Lije: as notícias não eram boas. Depois da derrota dos rebeldes em Pea Ridge, Arkansas, o regimento de Lije liderado pelo coronel cherokee Stand Watie tornou-se a guarda avançada ao longo da fronteira norte do território indígena, com ordens para recolher informações sobre os movimentos das tropas da União e de atacar e desbaratar o inimigo sempre que possível. O regimento de Lije estava agora estacionado em Forte Davis, na margem sul do rio Arkansas, dentro do campo de visão e a apenas cinco quilómetros do Forte Gibson.

Blade passou por Lije sem um olhar ou uma palavra e foi diretamente para sua barraca. Deu esperava-o sob o toldo que proporcionava alívio do sol implacável de julho. Depois de tirar o chapéu e entregá-lo a Deu, Blade pegou o balde de água potável e despejou um pouco numa bacia. Colocou o balde de volta no chão, inclinou-se sobre a bacia e jogou água no rosto e no pescoço. Lije aproximou-se dele.

- Qual é a situação?

Blade aprumou-se e pegou a bandana limpa que Deu lhe entregou, olhando rapidamente para Lije.

- Ontem a bandeira da União foi hasteada no Forte Gibson.

- Esfregou o rosto com o lenço, retirando o excesso de água do pano. - Hoje soubemos que Ross foi preso em Park Hill e logo depois posto em liberdade condicional. Todo o pessoal do destacamento enviado para proteger Ross e os documentos do governo desertou em massa para se unir aos confederados.

Kipp e Alex tinham feito parte daquele destacamento, o que significava que agora estavam do lado da União.

- Você bem que achava que isso ia acontecer - lembrou-lhe Lije.

- Sim, achava - admitiu seu pai com um sorriso amargo. A União agora está recrutando ativamente os cherokees. Já formaram um regimento e estão procurando completar o próximo. No total calcula-se que uns 1.200 se juntaram a eles, na maioria desertores de nossas próprias fileiras.

- Esse número não me surpreende - disse Lije. - Embora a maioria dos cherokees fossem a favor da neutralidade, muitos também tinham uma inclinação pela União.

- Vê a ironia nisso tudo? -- Blade olhou para Lije e deu um sorriso sarcástico. - Anos atrás eles me condenaram por assinar um falso tratado que trouxe nosso povo a esta terra. Agora forçaram Ross a assinar um tratado com a Confederação e, ao verem os primeiros soldados da União, viraram as costas e correram para se unir a eles. Seu tratado era falso, e eles sabem disso. Mas essa consciência fará apenas com que eles me odeiem ainda mais - a mim e aos outros do partido do antigo tratado que permanecem fiéis aos confederados. - Ele olhou para o norte, para as ondas de calor que oscilavam a distância. - Agora está mais do que claro que essa guerra diz respeito às velhas e novas rixas.

Uma vez Lije acreditara que a Guerra Entre os Estados terminaria logo. Agora ele percebia que a nação cherokee estava iniciando uma guerra que provavelmente continuaria muito depois que a Guerra Civil Americana terminasse. Ele pensou em Diane com um profundo sentimento de dor e arrependimento. Agora não haveria mais chances para eles. Nenhuma.

- Há uma coisa em relação a isso - disse Lije, procurando algo de positivo em tudo aquilo, por mais enrodilhado que pudesse ser. - Você não vai mais ter o Kipp no seu calcanhar. De agora em diante, irá enfrentá-lo de frente do outro lado da linha de combate.

- Já é alguma coisa - concordou Blade secamente. Talvez agora desapareça aquela horrível sensação na minha espinha.

As tropas da União não ficaram na região por muito tempo. A falta de chuvas e o intenso calor do verão queimaram a grama por quase toda a nação, deixando pouca forragem para os cavalos. O trem que partira de Baxter Springs com os valiosos mantimentos não conseguira chegar. O comandante da expedição da União fora preso por um oficial de segunda categoria e acusado tanto de insanidade quanto de conspiração. A combinação desses fatores apressou o exército da União a retirar suas tropas do território em fins de julho, deixando para trás parte de dois regimentos da Indian Home Guard para proteger a área.

Tão logo os confederados souberam que as tropas dos brancos haviam sido retiradas, enviaram unidades rebeldes através do Arkansas para testar a força e a garra das duas brigadas cherokees que permaneceram, compostas principalmente de soldados que o Sul considerava como vira-casacas. Durante as primeiras semanas de combates e escaramuças houve baixas de ambos os lados.

O grande cavalo baio resfolegou e esquivou-se do toque perscrutador de Lije.

- Calma, Jubal, calma. - Lije lançou um rápido olhar para Deu, tentando certificar-se de que ele segurava firme a cabeça do cavalo.

Depois daquele pequeno acesso de resistência, o cavalo acalmou-se e ficou quieto, sem colocar peso na perna dianteira, a cabeça inclinada para baixo, as orelhas pendentes, os olhos sem brilho. Lije esperou Deu dar um laço extra na rédea principal e deslizou a mão no pêlo do cavalo em direção ao ferimento do ombro, ouvindo durante todo o tempo os diferentes grunhidos de um animal ferido.

com um suspiro aflito, Lije deu um passo para trás e fez um sinal a Deu para que soltasse um pouco o cavalo.

- Parece que ele hoje está pior do que ontem. Talvez seja bom botar um cataplasma nisso.

- Se meu menino Ike estivesse aqui, logo, logo teria Jubal correndo em volta em suas quatro pernas - disse Deu. - Ele sempre teve um toque curador quando se trata de cavalos.

Lije fez um distraído sinal de concordância, depois virou-se, ouvindo o som familiar de cascos de cavalos, atrito de couros e o ruído de correntes que indicavam a volta de uma patrulha enviada ao Arkansas. Era uma tropa do Texas, liderada por um oficial com listras douradas de tenente costuradas no casaco cinza. Havia nele algo de familiar. Lije estudou-o por um momento, depois sorriu para si mesmo ao reconhecer o vaqueiro com quem compartilhara um acampamento numa noite de guerra.

- Lassiter, não é? - disse, cumprimentando o homem. Ransom Lassiter, de Rocking Lazy L.

O texano aproximou-se e franziu os olhos, depois sorriu e inclinou-se para descansar os braços na sela, o rosto cansado.

- Lije Stuart, o que eu não daria agora para tomar um pouco daquele seu café.

O sotaque arrastado era o mesmo, mas aquele marcante senso de humor desaparecera de seus olhos cinza. A guerra e as lutas fizeram isso, pensou Lije. Tinham tirado seu riso e sua suavidade, tornando-os uma lembrança que os alcançava de vez em quando. A todos eles. E depois de apenas um ano de lutas.

- Eu também - concordou Lije.

- O que aconteceu? - perguntou Rans, com um aceno em direção ao cavalo.

- Tiros. Nada vital foi atingido. Retirei a bala há dois dias, mas ele ainda está caído.

- Bonito cavalo - elogiou Rans, examinando o baio. - É um puro-sangue, não é?

- É, sim - confirmou Lije.

- Vamos precisar de cavalos como esse-disse ele, tornando a olhar para Lije. - Um de meus rapazes costumava viver com os comanches. Ninguém sabe mais sobre cavalos do que os comanches. Se você quiser, ele pode dar uma olhada nele, ver se pode fazer alguma coisa.

- Eu ficaria muito agradecido.

Rans virou-se na sela e gritou para um de seus soldados:

- Kelly!

- Senhor! - Um soldado raso de uniforme cinza dos confederados dirigiu seu cavalo para fora da formação e avançou a meio galope. Tinha o corpo e as feições de um jovem e a barba eriçada de um homem crescido.

- Veja o que pode fazer pelo cavalo do tenente - ordenou Rans.

O soldado fez-lhe uma meia continência, levou seu cavalo para perto do baio, depois desmontou. Lije afastou-se um pouco para deixá-lo examinar o ferimento no ombro do cavalo.

- Parece que seu cavalo não foi o único atingido - Rans olhou incisivamente para a atadura amarrada no alto do braço esquerdo de Lije.

- Foi só um arranhão - disse Lije, sacudindo o ombro. O movimento causou-lhe uma dor aguda, mas ele a ignorou, como ignorou o latejar que veio em seguida.

- Ainda bem que agora ninguém vai mandar você levantar os braços para se render-observou Rans, com um pequeno sorriso enquanto se aprumava na sela. - Tanto a brigada ianque como a indígena já pularam fora. Seu chefe, John Ross, partiu com eles, levando toda a família e a maioria de seus pertences.

- Ross foi embora? - perguntou Lije, surpreso. Rans confirmou.

- Foi para o Kansas. Dizem que levou com ele os registros e os documentos do governo, e todo o dinheiro.

- Para guardar, sem dúvida - adivinhou Lije, consciente de que essa notícia desagradaria a muitos, principalmente ao seu comandante-em-chefe, coronel Stand Watie.

- Sem dúvida - Rans suspendeu as rédeas do cavalo. - É melhor preparar meu relatório. Mande Kelly para o acampamento quando terminar.

Ele começou a fazer o sinal para a patrulha seguir em frente, mas parou por um momento.

- Sabe o que mais ouvi?

- O quê?

- O exército da União no Kansas está recrutando negros. Parece que o Norte está ficando desesperado.

A música do piano penetrava vagarosamente na biblioteca. A preguiçosa melodia combinava com a brisa de agosto que entrava pelas portas francesas e fazia a chama da vela oscilar suavemente. Shadrach virou a página de Ancient History, de Rollin, e mudou a inclinação do livro para favorecer a incidência da claridade sobre as palavras impressas.

Um ruído de movimento veio de fora das portas abertas. O negro parou para ouvir, mas não ouviu mais nada. Achou que era o farfalhar da brisa na noite. Leu outra frase, depois ouviu de novo - o som, muito leve, muito cuidadoso, uma sugestão de algo secreto. Alguém estava lá fora. E não era o sr. Will ou dona Eliza.

Lenta e silenciosamente, Shadrach fechou o livro e colocou-o a seu lado, enfiando-o entre o braço e a almofada da cadeira. Ele não sabia quem estava lá fora, mas não queria que nenhum rebelde o surpreendesse lendo um livro. Houve represálias contra os simpatizantes do governo, agora que as tropas da União tinham-se retirado da área. Era sabido que Will Gordon era um seguidor incondicional de Ross. Somando-se o fato de que seu filho e seu neto tinham entrado para o exército da União, os Gordon eram um alvo prioritário. Shadrach sentiu que haveria confusão adiante, pior do que as que houvera na Geórgia.

Poderia estar acontecendo lá fora naquele instante.

- Psiu. Tio Shad - sussurrou uma voz do meio da escuridão. Franzindo o cenho, Shadrach levantou-se e foi até a porta. Mas não conseguia ver nada além de fiapos de luar infiltrando-se através das árvores em direção aos jardins.

- Ike - chamou ele baixinho. - É você?

- Sim. Preciso falar com o senhor.

Shadrach olhou para a porta aberta, da biblioteca que dava para o corredor. Lá de dentro vinham os acordes ritmados de uma valsa ao piano.

- Fique aqui. - Fez um gesto para o sobrinho, depois andou devagar para a porta e fechou-a, deixando uma pequena abertura para que pudesse ouvir Eliza, caso ela o chamasse.

Voltou para a porta e fez um sinal para que Ike entrasse. Uma figura escura saiu de trás de uma moita e entrou pela abertura da porta, abaixada. No instante em que entrou na biblioteca, Ike escondeu-se num lado para que não pudesse ser visto de fora, com um ar furtivo em seus gestos e olhar.

- O que está fazendo aqui?

- Estou partindo para o Kansas - disse Ike, rápido e baixinho. - O exército da União está recrutando negros, e vou para lá me alistar. Não posso ficar aqui esperando que eles venham nos libertar. Tenho de ir lutar... e colaborar para que isso aconteça. Gostaria de dizer a mamãe o que vou fazer, mas... ela não compreenderia. Ela pensaria tanto em deixar os Stuart como em raspar a cabeça. Ela age como se eles fossem sua família. E, como ela é sua irmã, pensei que... talvez você pudesse explicar a ela para onde fui e por quê.

- Tem certeza de que estão aceitando negros no exército? Shadrach estava cético.

- Tenho. Estão tentando organizar um regimento inteiro. Vão nos dar armas, ensinar a atirar e tudo o mais. Vão até nos dar uniformes iguais aos dos soldados brancos.

- Em que lugar do Kansas?

- Em Leavenworth. Acho que, se viajar à noite e esconder-me durante o dia, posso conseguir chegar lá sem ser preso. Não sei quanto tempo levará, mas... - Ele parou e olhou para Shadrach, desconfiado. - Por quê?

- Porque vou com você.

Quando ele decidira isso? Shadrach estava tão estupefato quanto Ike em ouvir as palavras saírem de sua boca. A ideia era louca. Insana. Eles provavelmente não conseguiriam fazer isso... mas, por Deus, ele iria tentar.

- Tem certeza? Quero dizer... - Ike gaguejou, confuso e surpreso.

De repente Shadrach notou que Eliza não mais tocava piano. Levantou a mão para silenciar Ike e moveu a cabeça em direção à porta. Ouviu os passos de duas pessoas.

- Espere lá fora.

Baixou a voz num sussurro, depois moveu-se rapidamente em direção à porta. Saiu para o corredor, fechando parcialmente a porta atrás de si, enquanto Eliza e Will andavam de braços dados para a escada.

- DonaEliza.

Ambos passaram e se viraram.

- Shadrach, eu sabia que você ainda estava aqui - disse Eliza. - Não vamos precisar mais de você esta noite. Você...

- Por favor, posso ter uma palavrinha com a senhora, dona Eliza?

- Claro. - Ela hesitou, depois virou-se para Will. - Subo daqui a pouco.

Sorrindo, Will concordou e prosseguiu em direção à escada, enquanto ela seguia pelo corredor. Ao se aproximar de Shadrach, Eliza parou e ficou olhando o marido subir vagarosamente os degraus.

- Seu reumatismo piorou novamente-murmurou ela, preocupada. - Não consigo convencê-lo de que precisa levar as coisas mais devagar nesta idade. Will não gosta que o lembrem de que está ficando velho.

Quando ele desapareceu da sua vista, Eliza virou-se para olhar Shadrach, que tinha as mãos entrelaçadas na frente do corpo.

- Bem, o que quer falar comigo?

Um sorriso veio-lhe ao canto da boca. Nesse instante, ressurgiu o toque autoritário na voz dela: era de novo uma professora, falando a um de seus alunos. Por um rápido momento Shadrach sentiu uma onda de nostalgia, enquanto as memórias daqueles curtos meses que ele passara na classe dela cresceram fortes dentro dele.

- Há uma séria de coisas que há muito tempo queria dizer à senhora, dona Eliza. Mas, primeiro, queria agradecer-lhe por me dar o maior presente que uma pessoa pode receber: uma educação. Sei do risco que a senhora correu ensinando a um escravo...

- Nunca o vi como um escravo, Shadrach - interrompeu-o Eliza. - Sempre o vi como amigo.

- Sei disso. E sou muito agradecido à senhora. Sempre me tratou como se eu tivesse uma mente, sentimentos e sonhos. Ninguém nunca me tratou assim, com exceção talvez do reverendo Cole.

- O que está querendo dizer, Shadrach?

- É sobre mim... e meus sonhos. A senhora sempre me foi especial, dona Eliza. Abriu um mundo novo para mim. Talvez não seja bom ensinar a um escravo, porque ele fica insatisfeito com sua vida. Começa a pensar que é tão bom quanto qualquer outra pessoa, e começa também a querer coisas. Ela se afastou um pouco.

- O que está querendo dizer?

- Quero dizer... que estou partindo. Fugir nunca fez qualquer sentido para mim. Mas agora estou indo em direção a alguma coisa. Estão recrutando soldados de cor no Kansas, e é para lá que estou indo... para me alistar.

- Não pode fazer isso.

Choque, medo, confusão... Tantas coisas passaram pela cabeça de Eliza que ela não sabia exatamente o que sentia. Shadrach sorriu, um pouco triste.

- Depois de tudo o que fez por mim, não poderia partir sem dizer adeus. Não seria correto. Gostaria que a senhora explicasse tudo para o sr. Will. Ele sempre foi bom para mim, e não quero que pense que é alguma coisa contra ele.

- Quando... quando vai partir?

- Nós vamos hoje à noite.

- Nós? Shadrach hesitou.

- Vou com Ike.

- Tem consciência do quanto será perigoso?-alertou Eliza.

- Sim, senhora.

Naquele momento Eliza soube que não havia nada que pudesse dizer para persuadi-lo. O mais estranho é que tampouco queria fazê-lo. Não fazia sentido, mas ela sentia-se um pouco orgulhosa dele. Para ela, Shadrach era tão amigo quanto as barreiras sociais entre uma mulher branca e um homem negro permitiam.

- Você e Ike vão precisar de um passe. - Ela caminhou rapidamente para a biblioteca.-Tente evitar as patrulhas, se puder. Não estou certa de que eles respeitarão os passes. Principalmente agora.

Apressadamente, ela preparou um passe. Depois dobrou o papel e entregou-o a ele, deixando por um instante seus dedos se tocarem.

- Tenha cuidado, Shadrach.

- Terei. Diga a Phoebe que cuidarei de Ike. Eliza concordou.

- Você foi o melhor aluno que já tive. vou sentir muito sua falta.

Quando seus olhos se encheram de lágrimas, ela notou que os dele também estavam tímidos. E, subitamente, estava tudo bem.

- Também vou sentir sua falta, dona Eliza. Se o bom Senhor desejar, talvez algum dia a senhora possa visitar a escola que vou construir... quando todos estivermos livres.

- Eu gostaria muito disso.

Então Shadrach partiu, esgueirando-se pelas sombras. Eliza seguiu-os até perto da porta. Lá fora, sob o luar, ela podia ver as duas figuras movendo-se rapidamente em direção aos alojamentos dos negros. Achou irónico que Shadrach tivesse aparecido pela primeira vez em sua vida do lado de fora de uma janela. Agora, que o via pela última vez, era do lado de fora de uma porta - a porta que ela abrira para ele.

Duas semanas e nem uma palavra. Eliza imaginava se Shadrach conseguira chegar ao Kansas. Tentou convencer-se de que ele e Ike estavam bem. De outra forma, teria sabido de algo. Para seu alívio, Will concordou em não dizer nada sobre a ausência de Shadrach. Ela temera que Will quisesse colocar um aviso de que seu escravo fugira e oferecesse uma recompensa pela sua captura. Devia saber que Will compreenderia.

- Que bonito dia!

Eliza olhou para o marido. Havia um toque de alegria na fisionomia cansada e abatida dele. Ela estava contente por ele ter concordado com sua sugestão de se sentarem no jardim depois do almoço, em vez de voltarem diretamente para o campo. Ali, no meio de uma sombra das árvores, a brisa do sul soprava fortemente, dando uma ilusão de frescor no calor sufocante do meio-dia.

- Está quente - Eliza puxou a gola do vestido para fora do pescoço, tentando dar ao ar uma chance de alcançar mais sua pele.

- Está bonito e quente. - concordou Will, e depois respirou profundamente. - Sente o perfume dos pêssegos no ar? Eles logo deverão estar prontos para serem colhidos. vou verificar no pomar esta tarde.

- Você devia estar relaxando e não pensando em trabalho repreendeu ela.

- Ah, sim? E em que estava pensando tão séria um momento atrás? Vi muito bem essa testa franzida.

Atrás do ar brincalhão, havia um desejo de resposta a essa pergunta.

- Em Susannah - Eliza não sabia por que mencionara a filha em vez de Shadrach, embora ultimamente Susannah tivesse estado muito em seu pensamento.

- Há muito tempo não temos notícias dela. Tentarei não me preocupar. Sei que ela está segura no Leste. Só espero que possamos convencê-la a ficar lá até que a guerra termine. Mas você sabe como ela às vezes pode ser cabeça-dura.

- Exatamente como sua mãe.

- Will - disse ela, em rápido protesto.

- É verdade.

Sorrindo, Will estendeu a mão sobre o banco de ferro e pegou a mão de Eliza, entrelaçando seus dedos nos dela.

- Você é uma mulher inacreditavelmente forte, Eliza. Sempre foi. Lembro-me de quando se recusou categoricamente a deixar Gordon Glen... e de toda aquela caminhada que não precisava fazer, mas fez. Lembro-me da professora que sempre tentava fingir que era muito severa e correta. Depois surpreendi-a com as crianças no córrego, sem sapatos, sem meias e com a saia levantada. Você não mudou, Eliza.

- Há anos não ando em um córrego - respondeu ela, querendo disfarçar.

- Olhe só para você. A senhora de Oak Hill sentada com a saia acima dos joelhos, deixando a brisa soprar em suas pernas.

Subitamente consciente da sensação do ar em suas pernas, Eliza olhou para a fazenda enrolada em seu colo, um pedaço do bordado-inglês que estava na bainha das ceroulas, logo abaixo do joelho, e a branca nudez de suas pernas.

- Está quente - alegou em sua própria defesa. Depois olhou para Will e riu. - Talvez eu não tenha mudado mesmo.

- Espero que não mude nunca. Amo você assim como é.

- E eu amo você, Will Gordon.

Ela apertou a mão dele um pouco mais forte e sentiu a pressão da resposta. Inclinou-se e beijou-o, seus lábios movendo-se carinhosa e familiarmente um contra o outro antes que Eliza se afastasse. Depois de vinte anos a paixão talvez não fosse tão intensa, mas ela sabia que o amor era ainda mais forte. E isso, afinal de contas, era o que importava.

- É muito bom sentar aqui com você - disse ele.

- Também acho.

Ela estava contente por não lhe ter falado sobre as vacas de leite que tinham sido roubados do pasto na noite anterior. Quase lhe dissera durante o almoço, mas Will parecia tão cansado que decidira não aborrecê-lo. Afinal de contas, não havia nada que pudesse fazer em relação a isso. Elas se foram, sem dúvida roubadas pelas tropas confederadas da área. Antes de ir para o lado da União, Kipp sempre reclamara da falta de comida adequada, de roupas quentes e de munição do exército sulista. Eliza não se surpreendeu quando os rebeldes começaram a tomar as coisas. Àquela altura as vacas provavelmente já teriam sido mortas, cozidas e comidas, o que era uma pena, pois eram boas vacas leiteiras.

Não, ela não se arrependia da decisão de não contar a Will. Havia tempo bastante para fazer isso. Agora tudo o que ele mais precisava era dessa paz e quietude.

- Dona Liza? A louça já está toda lavada.-O chamado veio da casa, e a voz pertencia a Lucy, a criada que Eliza pusera para chefiar o pessoal da casa.

Suspirando, ela percebeu o quanto Shadrach lhe fazia falta. Agora que ele não estava ali para dirigir o pessoal, ninguém parecia saber o que fazer a seguir.

- Estarei aí num minuto.

Relutante, afastou a mão de Will e abaixou a saia e as anáguas sobre os joelhos. Quando ficou de pé, ele também começou a levantar-se, mas sentou-se de volta, estremecendo, encolhendo-se e pressionando a mão em seu ombro esquerdo.

- Gostaria que pudéssemos ir para a fonte de petróleo em New Spring Place - murmurou Eliza. - Seu reumatismo sempre melhora depois que você se banha naquele óleo esverdeado.

- Talvez quando a colheita estiver terminada. - Mais uma vez Will fez um movimento para se levantar.

- Não, fique aqui e termine sua sidra - Eliza olhou para o copo ainda cheio na mão esquerda dele.

- Está bem - Will encostou-se no banco.

Embora surpresa com sua pronta concordância, ela não o questionou. Estava contente que ele tirasse proveito daqueles poucos minutos para descansar. Ele fazia aquilo tão pouco.

Enquanto Eliza se afastava, Will olhava para ela, alta como um salgueiro, cabelos cacheados e olhos com chispas douradas. Era estranho que em sua mente ele ainda a podia ver claramente - tal como da primeira vez, assustada mas sem medo. Ele não se lembrava de tê-la visto com medo.

Distraidamente, Will olhou para a casa, estudando a varanda com colunas brancas e a fachada de tijolinhos vermelhos - tijolos feitos ali, na olaria própria. A casa ficava numa pequena elevação, circundada por árvores altas. Ultimamente ela o fazia recordar cada vez mais Gordon Glen, sua velha mansão na atual Geórgia. Tudo era parecido: os jardins, as fileiras de cabanas dos negros junto ao arvoredo, a disposição dos prédios, os pomares, os campos de algodão, de milho e de índigo, os pastos, até a terra de barro vermelho. A única coisa que faltava eram os pavões desfilando pelo gramado. Talvez da próxima vez que fosse visitar John Ross ele comprasse umas duas pavoas e um pavão. Não, não faria isso. John Ross partira. Fora para o leste, rumo ao exílio.

Ele queria levantar-se, mas sentia-se pesado demais, cansado demais para se mover. Então ouviu um som distante de música. Seria Eliza tocando piano? Tinha de ser. A melodia parecia seu noturno favorito, que ela sempre tocava para ele. Sorrindo, ele recostou-se no banco e fechou os olhos.

O copo de sidra escorregou de seus dedos abertos e caiu, batendo contra a perna do banco e derramando a bebida na grama.

- Will. Will, acorde.

Surpresa de que ele pudesse dormir tão pesadamente no banco de ferro, Eliza sacudiu seu ombro. Ao seu toque, ele caiu para o lado.

- Will.

Um pouco alarmada, ela inclinou-se sobre ele, as mãos procurando seu pulso. Mas não conseguia sentir a pulsação.

- Oh, Deus, não. - O primeiro soluço subiu-lhe à garganta, e outros se seguiram. - Não, não, não, não.

Eliza soluçava de novo e de novo enquanto a dor a fazia ajoelhar-se.

Foi assim que a criada Lucy a encontrou, ajoelhada ao lado dele e soluçando baixinho, a cabeça recostada nas pernas dele, as mãos apertando-o. Desconfiada, Lucy chegou mais perto, não querendo acreditar no que seus olhos lhe diziam.

- Dona Eliza, sr. Will! Ele está... - Ela não conseguia completar a frase. Ele parecia tão descansado.

Devagar, bem devagar, Eliza afastou-se dele e levantou-se, lutando contra o peso que sentia no corpo e no coração. Continuou de costas para a mulher, tentando guardar a dor para si só mais um pouco.

- Will está morto. - As palavras vieram daquela profunda caverna vazia que ela sentia por dentro.

Eliza não fez nenhuma tentativa para ocultar as lágrimas. Olhava para o homem carinhoso que fora seu marido, seu amante e seu mais querido amigo.

- Diga a Shadrach..

Ela se calou, lembrando que Shadrach tinha ido embora. De repente sua mente povoou-se com centenas de coisas que tinham de ser feitas, coisas que Shadrach teria providenciado se ainda estivesse lá. Agora ela teria de fazê-las.

- O velho tom deve estar no estábulo. Peça a ele ou a alguém para ajudar a carregar Will para a casa.

Lucy correu. Sozinha de novo, Eliza viu que esse seria o último momento a sós que teria com o marido. Inclinou-se e beijou-o pela última vez.

- Eu amo você, Will Gordon - sussurrou baixinho. Sempre e para sempre.

Dois dias depois da morte de Will, Lije e Blade chegaram a Oak Hill. Um ar pesado envolvia a casa e os arredores, como se o vento do verão tivesse cessado de soprar em respeito ao falecimento do proprietário. Um pano negro drapeado em volta da porta foi para Lije uma revelação mais clara do que a mensagem que haviam recebido: seu avô nunca mais estaria na porta para recebê-lo.

Quando um dos empregados negros os deixou entrar, Lije começou a sentir falta da familiar presença de Shadrach na casa. Não ficara nem um pouco surpreso ao saber que Ike fugira para alistar-se no novo regimento de cor da União, apesar da total vergonha de seu pai, Deuteronomy. Mas Shadrach... Lije ainda não conseguia visualizar aquele negro magro usando uniforme e portando armas.

- Você veio! - As palavras de alívio vinham de sua mãe enquanto ela cruzava o grande corredor para encontrá-los, estendendo as mãos para alcançar as deles, seus olhos escuros assustados de dor. - Eu não sabia se... não estava certa...

Sua voz ameaçava quebrar-se, e Temple parou, a boca tremendo num sorriso forçado.

- Vocês estão bem? Estão ambos a salvo.

- Estamos bem - assegurou-lhe Blade.

- Eu não aguentaria se algo acontecesse a vocês. Não agora, não depois de perder meu pai - disse ela suavemente.

- Eu sei.

Ele aproximou-se dela. Por um momento, Temple permitiu-se aceitar o conforto que ele oferecia. Depois, afastou-se.

- Não houve aviso. Nenhum aviso. Ele estava sentado sozinho no jardim. Estava bem quando Eliza o deixou.

- Onde está Eliza? - perguntou Lije.

- Está na sala de visitas com ele.

Ao dirigir-se para a sala de visitas, Lije notou que uma muito discreta Sorrel estava na porta, apoiada à parede. Cheio de culpa, ele percebeu que não pensara na irmã caçula. Ele se preocupara somente com sua mãe e Eliza. No entanto, ao ver a dor e a confusão no semblante dela, tudo mudou.

Aproximou-se de Sorrel. Contudo, antes que pudesse falar, ela anunciou:

- Alex e tio Kipp não estão aqui. Vovó El mandou uma mensagem falando sobre o vovô, mas ela não sabe se eles a receberam. Ela disse que, mesmo que eles tivessem recebido, provavelmente não viriam porque aqui é muito perigoso para eles.

Seus olhos acusavam Lije de ser culpado por tudo aquilo.

- Está perigoso para todo mundo, Sorrel.

- Não é justo que Alex e tio Kipp não estejam aqui.

- Muitas coisas acontecem que não são justas.

- Vovô sempre tentou fazer as coisas certas. Agora que ele se foi, ninguém irá fazê-las. - Ela virou as costas rapidamente, escondendo as lágrimas que escorriam dos seus olhos, e correu para o corredor.

Houve um tempo em que Lije também contestara passionalmente as injustiças da vida. Como Sorrel, ele fora jovem e não compreendera por que as pessoas não podiam parar de odiar e matar umas às outras para que seu pai pudesse vir para casa. Ainda não compreendia, embora aquilo estivesse mais uma vez destruindo sua família.

Sóbrio pelo pensamento, dirigiu-se à sala de visitas. Ali a mobília tinha sido arrumada para acomodar o esquife de seu avô. Eliza estava sentada ao lado dele, uma mão descansando sobre a bíblia em seu colo e a outra no caixão, a cabeça baixa, numa dor silenciosa.

Ela olhou distraidamente em volta quando ele entrou na sala.

- Elijah - Um pequeno sorriso de boas-vindas ergueu-lhe os cantos da boca, mas não apagou a tristeza que nublava seus olhos. Olhou além dele e perguntou: - Blade está com você?

- Está com minha mãe - Lije sentou-se ao lado dela e tomou-lhe as mãos entre as suas.

- Temple estava tão preocupada com vocês dois.

- Eu sei. Como está você, Eliza?

As lágrimas inundaram seus olhos, mas ela apenas sacudiu a cabeça e deu um outro sorriso corajoso.

- Foi tão rápido... e ele parecia tão contente. - Olhou para a Bíblia em seu colo. - Gostaria que o reverendo Cole estivesse aqui.

- Onde está ele?

- No Kansas. Em Baxter Springs, pregando para os refugiados das várias nações indígenas que se reúnem ali.

Sua atenção voltou-se de novo para o esquife.

- Talvez Kipp o encontre lá. Nathan vai querer saber sobre Will.

- Sim, vai.

Blade entrou na sala acompanhado por Temple e apresentou as condolências a Eliza.

No incómodo momento que se seguiu, Temple olhou em volta da sala.

- Onde está Sorrel?

- Creio que foi para o jardim - Lije manteve sua resposta casual.

- Espero que não se afaste demais da casa.-Temple foi para uma das janelas para olhar. - Têm havido muitos ataques, muitos atos de vingança, agora que as tropas federais foram embora.

Ela virou-se de costas para a sala, olhando Blade num apelo silencioso.

- Tentei convencer Eliza de que Oak Hill é um alvo primordial. Todo mundo sabe das simpatias que papai sempre teve em relação ao Norte. Agora que Kipp e Alex se foram para o lado da União, não será seguro para ela ficar aqui sozinha. Ela precisa vir morar conosco em Grand View.

- Seria sábio, Eliza - disse-lhe Blade.

- Sábio ou não, vou ficar aqui. - Havia uma gravidade em sua voz que combinava com a gravidade de seu luto. - Meu lar é aqui. Will e eu o construímos juntos. Susannah nasceu aqui.

À menção de sua filha, Eliza parou de repente e lembrou-se:

- A carta para Susannah; não posso esquecer-me de enviála.- Suspirou e disse: - Só Deus sabe onde a irá encontrar. com esta guerra, o correio não tem estado muito confiável...

- Entregue-me a carta-disse Lije.-Farei com que chegue a Susannah.

- Como... - Temple parou, um olhar de medo surgindo em sua expressão. - Você vai atacar o Norte de novo, não é?

Lije evitou cuidadosamente uma resposta direta:

- Nosso regimento foi designado para patrulhar a fronteira ao norte, e o Sul não está sem amigos em Missouri. Um deles fará com que a carta chegue a um malote de correio indo para o Leste.

As lágrimas escorreram dos olhos de Eliza enquanto ela estendia a mão e apertava seu braço.

- Obrigada.

Quando Lije se afastou do túmulo do avô, a carta para Susannah estava em seu alforje. Em uma semana seu regimento recebeu ordens para mover-se... com destino ao Norte.

Forte Scott, Kansas Novembro de 1862

Um vendaval vindo do nordeste varria as planícies do Kansas, levantando uma nuvem de poeira que circulava em volta da estação ferroviária. Diane sacudiu a saia de seu conjunto cinza e olhou preguiçosamente em volta da sala de espera. Quando uma mão tocou seu cotovelo, ela virou-se e olhou para o rosto sorridente de seu acompanhante, o major Adam Clark, o médico do posto da estação.

- Por que não se senta enquanto pergunto quando o trem vai chegar? - gesticulou em direção ao banco de madeira encostado na parede. - Espero que não esteja muito atrasado.

- Eu também. - assentiu Diane, virando-se em direção ao banco.

Contudo, depois de examinar o duvidoso conforto da carroçaambulância do posto, Diane perdeu a vontade de sentar-se de novo. Em vez disso, olhou para o fogão bojudo e estendeu as luvas para o calor que emanava dele. Um homem baixo, de meia-idade e em roupas civis estava parado do outro lado do fogão. Embora seu rosto lhe fosse familiar, Diane só o reconheceu quando ele sorriu. Era o empregado do armazém local.

- Estou muito satisfeito por Charlie ter acendido esse fogão

- declarou o homem. Hoje está soprando um vento muito frio.

Diane acenou a cabeça concordando, com um pequeno tremor diante da lembrança do frio.

- O inverno já está na esquina.

- Tem razão.- Ele olhou para fora através da janela mais próxima.-Não passará muito tempo antes que aquele vento esteja soprando neve em vez de poeira.

Parou e olhou para ela com curiosidade.

- A senhorita está indo para algum lugar?

- Não, estou aqui para encontrar o reverendo Cole. Ele vai chegar no trem.

- Reverendo Cole. - O homem franziu o cenho, tentando localizar o nome. - É o missionário que está com os índios acampados perto de LeRoy, não é?

- Ele mesmo.

- Achei que fosse. Ele já esteve no armazém uma ou duas vezes. É seu amigo?

- Conheço-o desde menina.

Na verdade, fora apenas no ano anterior que se aproximara mais do velho pastor. Mas Diane não queria se aprofundar muito sobre isso. O orgulho não permitiria que ela admitisse que procurara o reverendo Cole como um meio de saber das últimas notícias sobre Lije. Ela sempre ansiava pelas notícias de Nathan sobre como e onde ele se encontrava.

Seu noivado estava terminado. Tudo estava terminado entre eles. Diane decidira construir uma nova vida para si mesma, um novo futuro - que excluía Lije. Ela tinha feito esforços para trabalhar, lutar e competir, todo o tempo sorrindo para esconder a dor da rejeição. Mas mesmo assim...

Adam Clark aproximou-se dela, um sorriso fugaz fazendo surgir em seu rosto duas atraentes e masculinas covinhas.

- O trem deve estar chegando a qualquer instante.

- Maravilhoso-Diane sorriu de volta.-Realmente pensei que seria uma longa espera.

- Eu não teria me importado - disse ele casualmente, de forma descuidada, embora o calor de seus olhos sugerissem que seu interesse por ela era tudo, menos casual.

Não foi a primeira vez que Diane notou a forma com que Adam Clark a olhava. Como sempre, ela fingia que não notava.

- Creio que não sou tão paciente quanto você.

- Paciência é uma necessidade em minha profissão - lembrou-lhe ele. - Embora preferíssemos que fosse diferente, os médicos aprendem rapidamente que o processo de cura não pode ser apressado.

- Não, não pode-concordou ela, notando que, a seu próprio modo, ele estava lhe dizendo que sabia que ela não se encontrava totalmente refeita de seu noivado rompido, e que ele saberia esperar até que ela estivesse de novo com o coração inteiro. Diane olhou-o carinhosamente, tocada pela compreensão que ele demonstrara.

- Diga-me - disse o funcionário da loja. - Você não é o doutor do forte?

- Sim, sou - Adam Clark tirou a luva de couro e estendeu a mão para cumprimentar o homem. - Dr. Adam Clark, de Abilene.

O empregado da loja apertou-lhe a mão e identificou-se:

- Josiah Hubbard. Muito prazer em conhecê-lo, doutor... Desculpe, creio que deveria chamá-lo de major - corrigiu-se, olhando para sua insígnia.

- Major é ideia do exército, não minha - respondeu Adam com um sorriso oblíquo. - Respondo mais rapidamente a doutor do que a major Clark.

- Diga-me, doutor, não teria uma boa receita de cataplasma para furúnculos, teria? Minha senhora está cheia deles ultimamente - prosseguiu o empregado do armazém, descrevendo com detalhes o problema da esposa.

Diane aproveitou-se da distração para fazer um completo estudo do jovem médico do exército, a atuação dedicada ao paciente ainda fresca na mente dela. Ela julgou que ele tivesse trinta e poucos anos, de altura e constituição médias. Seus cabelos eram espessos e escuros, encaracolados, que ele mantinha cortados rente para manter uma aparência limpa. Tinha os finos gestos de um artista e os olhos gentis que inspiravam confiança. Seus dentes eram como pérolas brancas, e espaçados e ressaltados por um rico e cuidadoso bigode escuro. Seu porte era o de um homem tranquilamente confiante e capaz.

Mesmo procurando, Diana não podia encontrar nenhuma semelhança com Lije. E deveria ficar contente com isso. Contudo, irritava-se por ter a imagem de Lije tão vívida em sua mente.

Bastava fechar os olhos para ver o rosto forte, o escuro de seu cabelo e o azul de seus olhos. Irritava-a saber que o simples fato de pensar nele era capaz de lhe produzir de novo uma chicotada de emoção, que deveria ter diminuído há muito tempo, junto com o sofrimento.

- Parece que o trem está chegando. - O aviso do empregado interrompeu seus pensamentos, conscientizando Diane do longo e estridente som do apito que assinalava a aproximação do trem. Foi um prazer conversar com o senhor, doutor.

- Espero que tenha sido de alguma ajuda - Adam Clark acenou para o homem em despedida, depois voltou sua atenção para Diane. - Vamos sair e esperar na plataforma?

Em resposta, ela pegou o braço dele e dirigiu-se para a porta.

- Deve estar cansado de ver tanta gente desfilando suas mazelas diante de você, esperando um conselho médico grátis.

- Não me importo, a menos que esteja com alguém. Então prefiro assuntos mais agradáveis, como a maneira com que seus olhos se iluminam quando algo a diverte.

Ela riu.

- É uma observação clínica, doutor?

- É um elogio. Definitivamente um elogio. Importa-se? Embora intimamente em guarda, Diane aparentou um ar despreocupado.

- Por que deveria?

Ele lhe dedicou um olhar longo enquanto abria a porta para a plataforma da estação.

- Não estou certo de que esteja pronta para aceitar um elogio meu - respondeu ele com toda a candura.

Diane respondeu da mesma forma.

- Para ser honesta, também não estou.

- Isso, em si mesmo, é um sinal esperançoso. - Ele conduziu-a para fora, onde a algazarra e a confusão do trem se aproximando eliminavam maiores conversas.

O vento varreu a fumaça e o vapor do trem para a plataforma como um açoite. Diana virou-se para desviar-se, enquanto a locomotiva chiava ao ser freada, os carros batendo um contra o outro numa reação em cadeia. A nuvem de vapor e fumaça levantou-se rodopiando ao vento, permitindo a Diane uma clara visão dos passageiros que desembarcavam.

O reverendo Cole foi a terceira pessoa a descer do trem. Ela o viu imediatamente. Alto, de ombros largos. com um sorriso de boas-vindas, Diane adiantou-se para encontrá-lo. Ele acenou rapidamente para ela, depois virou-se e ofereceu a mão para ajudar a mulher atrás dele.

Diane olhou para a mulher, atónita.

- Susannah! O que está fazendo aqui? Pensei que estivesse em Massachu... - Subitamente sua alegria em ver Susannah desapareceu, transformando-se em tristeza e compaixão. - Seu pai... O reverendo Cole contou-me de sua morte em agosto. Susannah, sinto muito.

Elas se abraçaram e Susannah controlou umas poucas lágrimas. Então Diane lembrou-se de seus modos e apresentou Susannah a Adam Clark.

- Susannah, gostaria que conhecesse o major Adam Clark, o médico do forte. Quando comentei com ele que viria esperar o reverendo Cole, lembrou-se de que um carregamento de suprimentos médicos deveria chegar no trem e ofereceu-se para trazer-me até aqui.

Tanto Diane como o major Clark sabiam que ele poderia ter facilmente designado um de seus subordinados para pegar o carregamento. No entanto, usara aquilo como desculpa para passar mais tempo em companhia de Diane.

- Major, essa é uma das minhas amigas mais queridas, a srta. Susannah Gordon. Nós nos conhecemos desde crianças.

- Muito prazer em conhecê-lo, major Clark.

- O prazer definitivamente é meu, srta. Gordon - respondeu ele, cumprimentando logo depois o reverendo Cole. - Espero que tenha feito boa viagem, reverendo.

- Sim, obrigado.

- Ainda não posso acreditar que está aqui, Susannah declarou Diane, explicando depois a Adam: - Da última vez que a vi, ela estava indo para o Leste estudar numa escola feminina, Mount Holyoke.

- A senhorita viajou um bom pedaço, srta. Gordon.

- Um longo pedaço.

Diane virou-se para o reverendo Cole.

- O senhor sabia que Susannah estava chegando? Ele sacudiu a cabeça.

- Fiquei tão surpreso quanto você quando entrei no trem e deparei com ela. - Fez uma pausa, depois acrescentou: - Susannah está indo para Oak Hill.

- Agora ?-protestou Diane, voltando a atenção para Susannah. - Mas essa viagem é muito perigosa hoje em dia.

- O reverendo Cole alertou-me a esse respeito mais de uma vez - retrucou Susannah com um sorriso rápido, sugerindo que sua decisão fora assunto de considerável discussão entre eles no trem. Então, sua expressão ficou mais séria. - Entretanto, não posso suportar a ideia de que minha mãe está sozinha. Ela precisa de mim... agora, mais do que nunca.

- Susannah, você realmente deve esperar até que as coisas estejam mais seguras. Uma mulher viajar sozinha...

- O reverendo Cole vai acompanhar-me. Na verdade, ele insiste nisso - Susannah sorriu. - Planejamos partir amanhã cedinho, assim que clarear. Espero ver Kipp esta noite.

- Sua companhia saiu em patrulha. Eu os vi partir esta manhã. Duvido que estejam de volta antes de você partir.

- Gostaria de vê-lo. Não só ele, Alex também.

- Não há nada que eu possa fazer para convencê-la a não ir, Susannah?

- Nada - respondeu ela. Depois hesitou, seu olhar dividindo-se entre o major Clark e Diane. Procurou no rosto da amiga alguma indicação sobre o relacionamento entre eles. Sem conseguir adivinhar nada, finalmente perguntou: - Há alguma mensagem que queira que eu dê a Lije quando chegar em casa?

Diane pensou que se controlaria ao som do nome dele. Mas estava errada. Assim que o ouviu, uma saudade forte e inegável foi despertada. No entanto, ela controlou-se quase que com a mesma rapidez.

- Pode dizer a ele... que espero que tudo esteja bem-disse Diane numa voz deliberadamente despojada de emoção.

- Só isso? - insistiu gentilmente Susannah, consciente do esforço do major em avaliar a resposta da amiga.

- Sim, isso é tudo.

- Sei que é difícil para você, Diane... Seu pai lutando de um lado, Lije do outro, mas...

- Se fosse só isso, Susannah. Mas não é. Lije está obcecado por aquela briga estúpida.

- Tente compreender, Diane...

Diane interrompeu-a, tentando terminar a discussão:

- Compreendo muito bem.

Sentindo o desconforto de Diane, o reverendo Cole mudou de assunto.

- É melhor irmos para o vagão de bagagens e pegar seus baús, Susannah. O trem não vai ficar aqui por muito tempo.

- O senhor tem razão-admitiu Susannah. - Se quisermos partir amanhã de manhã temos muito o que fazer.

Dirigiram-se ao vagão de bagagens. Ansiosa por redimir-se da dureza de suas palavas anteriores, Diane adiantou-se.

- Quando terminarem os preparativos para a viagem, você e o reverendo Cole virão para jantar, não é? Quando saí, o cozinheiro de meu pai já começava a preparar um jantar especial para nós.

- Claro que sim-assegurou-lhe Susannah.-Você não tem ideia do quanto anseio por uma refeição caseira depois de toda essa viagem. Sem mencionar a companhia, é claro.

- Ótimo - alegrou-se Diane.

Contudo, ela sabia que havia a possibilidade de, durante o jantar, Susannah tornar a trazer à baila o nome de Lije. Refletiu rapidamente e olhou para Adam Clark.

- Você também aceita meu convite para jantar conosco, não é? Desejava convidá-lo mais cedo.

- com o maior prazer-disse ele, enquanto se aproximavam do vagão bagageiro.

Enquanto Susannah indicava os seus baús para o reverendo Cole, Adam Clark voltou-se para Diane e perguntou-lhe em voz baixa:

- Estou certo em achar que a srta. Gordon é parente de seu ex-noivo?

Diane concordou, desconfortável com a pergunta mas tentando não demonstrar isso.

- Susannah e a mãe dele são meio-irmãs.

- E em relação ao meu papel no jantar desta noite... devo comportar-me como um ardente admirador ou mero amigo de seu pai?

- Sou tão transparente assim? - Diane sorriu, consciente de que ele vira através de seu convite e sabia que ela planejava usar sua presença para evitar que a conversa do jantar abordasse qualquer discussão sobre seu ex-noivo.

- Não se esqueça de que sou um observador treinado-disse ele com um olhar compreensivo.

Ela sorriu suavemente.

- Gosto de você, major Clark.

- Para ser convincente esta noite, sugiro que me chame de Adam.

- Muito bem... Adam.

Mais tarde, enquanto colocavam os baús de Susannah na carroça-ambulância, Diane lançou um olhar furtivo a Adam Clark. Sabia que não era justo usá-lo daquela forma, mas desculpou-se diante do fato de que ele sem dúvida desejava que ela um dia pudesse vê-lo como mais do que um simples amigo. Na verdade, sentia-se segura com ele, confiante de que não teria de desvencilhar-se de ataques indesejados, de que ele não exigiria dela nada além do que ela estivesse disposta a dar.

Tentar ela podia, mas o que Diane não podia imaginar era amar alguém além de Lije. Esse pensamento a fez ficar com raiva. Na nova vida que estava construindo para si mesma ela não poderia seguramente encontrar um novo amor?

O problema era que ela não parecia desejar outro.

Nação cherokee, território indígena Novembro de 1862

As pequenas chamas de pontas amarelas dançavam sobre as brasas brancas da fogueira no acampamento. No caldeirão suspenso sobre ela, um cozido de coelho, batatas e cebolas exalava seu apetitoso aroma no ar da noite. Susannah Gordon mexeu-o, depois tirou o caldeirão do centro do fogo e tornou a agachar-se na frente da fogueira.

O ar tinha um frescor típico de outono e, no céu, um brilhante manto de estrelas piscava insistentemente para competir com a luz da lua ceifeira. Puxando o xale firmemente em volta dos ombros, ela olhou para o fogo, sem concentrar-se nas chamas, mas nas pontas das achas parcialmente queimadas que estavam ao redor.

Aquilo a fazia lembrar-se dos escombros da casa que vira naquele dia. As madeiras escurecidas, os restos de tijolos e as pilhas de cinzas que lembravam montes de folhas varridas no outono era tudo o que restava da casa. Um vizinho disse que os rebeldes a haviam incendiado.

Quando ela se encontrava em Massachusetts, os jornais publicaram algumas poucas notícias da guerra naquele Oeste distante. Em vez disso, as reportagems nos últimos meses abordavam principalmente sobre a segunda batalha de Buli Run e o sangrento embate em Antietam. Ao chegar ao Forte Scott, no Kansas, Susannah não compreendera por que tantas famílias tinham fugido das nações indígenas para refugiar-se ali.

Mas hoje, depois de cavalgar por campos e campos arrasados, de cruzar os pastos vazios e cheios de matos, e de observar as casas abandonadas - a maioria saqueada, algumas totalmente queimadas -, todas as histórias que tinha ouvido no Forte Scott se tornaram reais. O que falavam das guerrilhas confederadas, de bandos aterrorizando o campo, pilhando, destruindo e queimando com a força devastadora de um raio parecera-lhe impossível. Na ocasião, ela não acreditara que pudesse ser tão ruim quanto tinham dito. Agora, sim.

Algo farfalhou nas folhas mortas atrás dela. Um segundo depois, ouviu o ruído de um galho se partindo. Susannah ficou alarmada enquanto olhava em direção ao som, consciente do leve peso da pequena pistola no bolso de sua saia. Um mês antes ela achara graça quando Frank, neto de Payton Fletcher, entregara-lhe a pistola para que pudesse proteger-se. Sabia que, quando ele pensava no território indígena, evocava imagens das tribos das planícies que viveram ao longo das fronteiras a oeste.

Para tranquilizá-lo, ela colocou apistolinha na valise de viagem e esqueceu-se dela até aquela noite - até ter visto o que a guerra é capaz de fazer a uma terra e a um povo. Agora que a tinha no bolso, ela já não ria. Agora desejava ter prestado mais atenção quando Frank tentara lhe ensinar como atirar com ela.

Um homem alto e magro emergiu da escuridão, carregando um punhado de galhos quebrados e ramos secos. A luz difusa da fogueira tocou o branco de sua gola clerical. Susannah relaxou, sorrindo do medo que momentaneamente se apossara dela.

- Os cavalos estão arrumados para a noite. Peguei um pouco de madeira no caminho. Achei que podia precisar disso até o amanhecer. Humm, esse cozido está com um cheirinho delicioso, Eliza. - Ele parou na beira do acampamento, a cabeça baixa em sinal de culpa. - Sinto muito, Susannah. Olhando daqui, você se parece muito com sua mãe. Eu...

- Compreendo, reverendo. - Ela tinha perdido a conta das vezes que o reverendo Cole a chamara pelo nome de sua mãe desde que começaram a viagem. Não era de propósito, mas ele temia que ela se aborrecesse por causa disso. Na realidade Susannah achava isso muito gentil da parte dele, assim como sua insistência em acompanhá-la naquela viagem até a casa dela. Estava contente com sua companhia.

- Sua mãe sempre me chamou de Nathan. - Ele moveu-se para dentro do círculo de luz e jogou o feixe de lenha no chão perto do fogo.

- Eu sei - Susannah colocou uma generosa porção do cozido no prato de metal, adicionou um pedação do pão de frigideira, depois entregou-lhe o prato, o olhar recaindo rapidamente em seus dedos longos e ossudos, como o resto dele.

Ele sentou-se num velho tronco perto do fogo e equilibrou o prato de cozido no colo, depois esperou que Susannah preparasse um prato para si mesma e se sentasse perto dele. com a cabeça inclinada e as mãos entrelaçadas, ele começou a proferir as palavras de gratidão pela comida que iam comer, como tinha feito antes de cada refeição que tiveram.

Susannah entrelaçou as mãos para rezar e abaixou a cabeça, virando-se levemente para examiná-lo. Nobre provavelmente não seria a palavra mais usada pela maioria das pessoas para descrever Nathan Cole, mas era isso que ela achava dele. Nobre, bom e gentil -com os olhos mais carinhosos que ela jamais vira em um homem. A maioria dos pastores que conhecera pregavam sobre a raiva de Deus, mas não o reverendo Cole. Ele não temia seu Deus; ele O amava. E esse amor brilhava em seu rosto e suavizava suas feições severamente angulosas. As rugas que possuía em volta dos olhos e da boca vinham de seu sorriso.

- O cozido está excelente. Não vai provar?

Surpresa com a pergunta gentil, Susannah sentiu que não notara o fim da bênção.

- Desculpe-me, eu estava... pensando. - Rapidamente ela levantou o garfo e espetou um pedaço de carne de coelho.

- Sobre o quê?

- Sobre mamãe - o que era meia verdade. - Pensando se ela está bem.

- Sua mãe é uma mulher forte. Tenho certeza de que está bem.

- Claro.

- Às vezes acho estranho o modo como o passado se repete disse ele, pensativamente. - Sabia que acompanhei sua mãe quando ela viajou para a Geórgia muitos anos atrás? Nenhum de nós dois poderia imaginar que ela se casaria com o homem que era pai das crianças que ela tinha vindo ensinar. Eu mesmo celebrei a cerimónia de casamento, fora dos muros do Forte Gibson. Agora aqui estou, fazendo outra viagem com a filha dela, que se parece tanto com a mãe: alta, graciosa e com o mesmo brilho dourado nos olhos.

Susannah sabia que o pastor tinha sido apaixonado por sua mãe.

- Ela precisou de tanto apoio moral quanto eu?

- Sob certos aspectos, até mais - admitiu Nathan. - Ela enfrentava a terra selvagem, o desconhecido. Você está indo para casa.

Olhando-o, Susannah tinha quase certeza de que ele ainda era apaixonado por sua mãe. O brilho nos olhos dele quando falava sobre ela, a forma com que continuava a falar sobre ela lhe davam vontade de perguntar-lhe a respeito. Se ela fosse realmente como sua mãe, perguntaria. Mas Susannah não era tão falante como Eliza.

- Lembra-se daquelas reuniões de temperança que mamãe, costumava fazer em Oak Hil... e em Tahlequah também? O senhor sempre estava lá. Mamãe tocava piano e todos nós cantávamos aquelas canções. Como era mesmo? Não me lembro da letra, mas começava assim...

Ela começou a cantar a melodia, a princípio hesitante, depois, mais confiante, quando a lembrança da música se tornou mais clara.

- Já sei! Chamava-se...

Mas o nome da música não saiu de sua boca. Congelada em estado de choque, Susannah olhava para os homems armados do outro lado do acampamento. Como fantasmas, eles se materializaram vindos de lugar nenhum, sem um só ruído. Mas não havia nada de irreal nas armas que eles carregavam. O medo secou a boca de Susannah quando ela viu um revólver apontado em sua direção.

Ela se encontrava diante de um bando com roupas sujas e rotas, de rostos escuros com barbas crescidas e os chapéus puxados para baixo, deixando transparecer apenas os olhos a brilhar nas sombras de seus rostos escuros - como olhos de animais que brilham na escuridão.

- Quem são vocês? O que estão fazendo aqui?

Enquanto ela buscava a voz para fazer a pergunta direta, um deles adiantou-se silenciosamente e pegou um velho revólver que o reverendo Cole apoiara contra um toco de árvore.

- Gostaríamos de lhes fazer as mesmas perguntas. - A resposta veio numa voz arrastada.

Susannah estava tão ocupada contando que não sabia qual deles tinha falado. Havia seis homens que ela podia ver, mas não podia dizer quantos mais estavam na escuridão. Nathan levantou-se, sorrindo aquele sorriso bom que não conhecia inimigo.

- Sou o reverendo Nathan Cole. E essa é minha... tutelada, a srta. Susannah Gordon. Estamos a caminho da casa dela. Como podem ver, resolvemos acampar aqui esta noite-Ele apontou para o fogo e a carroça atrás deles.

-- E onde seria essa tal casa?

O homem no centro - o alto, magro, com os quadris estreitos

- era o que falara. A voz possuía uma tonalidade ilusoriamente suave, como veludo batendo no aço. Obviamente tratava-se de rebeldes. Pensando rápido, Susannah respondeu.

- Minha casa não fica muito longe da casa de minha irmã, a sra. Stuart de Grand View, embora eu não esteja muito segura de que isso possa ser da sua conta.

- A sra. Stuart. Não seria a esposa de Blade Stuart, do Cherokee Mounted Rifles?

O homem virou a cabeça num ângulo inquisidor. Pela primeira vez seu rosto era iluminado pela luz do fogo, e Susannah pôde distinguir suas feições - a curva de seu queixo magro, a saliência dos ossos das maçãs de seu rosto, a inclinação plana de sua testa e o cinza de seus olhos.

- Pode ser. Agora que respondemos às suas perguntas, poderia fazer a gentileza de responder às nossas?

Inesperadamente, ele tirou o chapéu e fez uma cínica mesura. Seus olhos mudaram do aço escuro para um brilho prata.

- Tenente Rans Lassiter, da Brigada do Texas. Seu servo, senhora-houve um lampejar de dentes brancos quando ele sorriu, quase zombeteiramente. - Esses são meus homens, mas há mais alguns lá fora verificando se há mais alguém com vocês.

- Não há.

- É verdade - disse uma voz de homem atrás dela. Susannah virou-se no tronco de árvore, de novo surpresa por ver mais um homem surgindo de lugar nenhum.

- São apenas os dois. Os cavalos deles estão amarrados naquelas árvores - acrescentou o recém-chegado.

- Eu já lhe disse - Susannah olhou de volta para o tenente. O chapéu dele voltara a cobrir seus cabelos castanhos e a ensombrear seu rosto.

- Sim, a senhora disse, mas quando vasculhamos uma área temos o dever de verificar essas coisas, madame. - Ele aproximou-se do fogo.-Sentimos o cheiro de fumaça a dois quilómetros daqui... e o cheiro desse cozido bem antes.

- Ainda sobrou algum. Vocês podem servir-se - ofereceu o reverendo Cole.

- Obrigado, reverendo - Lassiter fez um sinal para seus homens, indicando que podiam servir-se.

Susannah olhou surpresa quando eles se amontoaram em volta do caldeirão, tirando pratos de lugar nenhum. Dentro de segundos rasparam o caldeirão e sentaram-se em volta do fogo, comendo rapidamente o cozido e o molho com pedaços de pão de frigideira. Estavam famintos, notou Susannah. Ela olhou para seu próprio prato, subitamente culpada pela forma generosa com que se tinha servido, principalmente quando percebeu que não havia o bastante para o tenente Lassiter. Ela hesitou, depois ofereceu-lhe seu prato.

- Não tenho fome-justificou-se. Ele olhou-a por um instante.

- Acho que isso demonstra que há muito não temos uma comida decente. Perdoe nossos modos, srta. Gordon. - Ele sorriu desajeitadamente, um lampejo de humor em seus olhos cinza. Ou melhor, a falta deles.

- Não é necessário desculpar-se, tenente.

Ela sentiu-se desconfortável quando ele pegou seu prato. Parte dela arrependia-se de sentir pena deles. Eram confederados. Pelo que sabia, poderiam ser os mesmos responsáveis pela destruição que tinha visto, e ali estava ela alimentando-os.

- Devo ser honesto com a senhora - disse um deles, terminando de limpar os restinhos de molho do prato com seu último pedaço de pão. - Esta foi a melhor refeição que comi desde o último jantar dominical na casa de minha mãe quando parti.

O homem pôs um pedaço de pão na boca e mastigou-o com a boca aberta, olhando para os outros em volta.

- Vocês agora não adorariam uma xícara de café de verdade... e talvez um charuto? - Diante das veementes respostas afirmativas, o reverendo Cole falou de novo. - Temos café na carroça. Gostariam que passássemos um pouco para vocês?

- Se gostaríamos? lurru! É como perguntar a uma criança se ela gosta de Natal! - O homem riu.

- Vou preparar o café.

Quando se levantou, Susannah sentiu os olhos dos homens examinando seu corpo ao longo de sua altura de 1,75m. Achava que já se acostumara a ser olhada porque era alta. Mas estava errada.

Dirigiu-se até a carroça, pegou o bule, colocou-o no chão e depois foi pegar o café nos suprimentos do reverendo Cole. Sentiu algo dar uma batida suave no lado da carroça quando ela meteu a mão lá dentro. A pistola - quase esquecera dela.

- O que mais tem nessa carroça?

Ela pulou quando a voz falou ao seu lado.

- Ninguém nunca lhe disse que não é educado andar atrás das pessoas espionando? - rebateu ela raivosamente.

Quase no mesmo instante, encontrou o café. Levantando o bule, caminhou para o fogo, achando que o homem a seguiria. Mas não seguiu.

- Ei! Olhem aqui! Eles têm latas de pêssegos... e de tomates.

- Ele pegou algumas latas, jogou-as para seus companheiros e voltou para procurar mais.-Diabo, eles têm um bocado de comida aqui.

Quando os homens correram para a carroça, Susannah começou a protestar, mas depois olhou incerta para o reverendo Cole. Ele sorriu de volta, transmitindo-lhe que estava tudo bem. Ela hesitou por mais um momento, então pôs o café para ferver e ouviu-os conversar animadamente. Agiam como se tivessem encontrado um tesouro.

Um dos soldados abriu uma lata com a faca e espetou um pedaço de pêssego. Jogou-o todo na boca, ignorando o suco que escorria de suas barbas para a frente de sua camisa maltrapilha. Até o tenente Lassiter participou, embora se mantivesse ligeiramente distanciado de seus homens.

- O que acha que tem nesse baú ?-o homem chamado Kelly pulou para dentro da carroça para perto do baú de Susannah, e então acenou para um companheiro:

- Suba aqui, Hayes. E me dê uma mão.

- Não! - Susannah correu para a carroça.-Esse baú é meu. Ninguém lhe deu a menor atenção.

- Esses sapatos vão ser meus.

- Larguem isso aí. Esse baú não lhes pertence.

Tudo que tinha estava naquele baú - suas roupas, suas poucas jóias, seus livros, tudo. Tirar comida era uma coisa, mas roubar sua propriedade era outra. Desesperada, Susannah meteu a mão no bolso e tirou a pistola. Segurando-a com ambas as mãos esticadas diante dela, apontou para os dois homens em cima da carroça.

- Eu disse que isso não pertence a vocês. Larguem meu baú.

- Acho melhor ouvirem a moça - Lenta e cuidadosamente, Rans Lassiter colocou a lata de pêssegos na cama da carroça. Ela tem uma pistola... se é que se pode chamar isso de pistola.

- E se tiver de atirar, atirarei - insistiu ela, agressivamente, esperando secretamente que a mera visão da arma fizesse com que deixassem de lado suas coisas. - Saiam de perto de meu baú e da carroça.

- Ninguém lhe disse, srta. Gordon, que não é educado apontar uma pistola para alguém? - Rans Lassiter pôs-se diretamente na mira do cano da pistola e começou a andar para a frente, vagarosa e deliberadamente. - Definitivamente, não é uma coisa educada.

- Não chegue mais perto - avisou ela, lutando contra uma repentina invasão de nervosismo.

- Tenho de chegar - ele sorriu. - Se atirar, quero ter a certeza de que está perto o bastante para acertar no que está apontando. Essas pistolas pequenas não são muito precisas a distância. Não vai querer errar seu primeiro tiro.

- Eu disse fique onde está!

Ela apontou para o chão diante do pé dele, fechou os olhos e puxou o gatilho. Nada aconteceu.

Abriu os olhos, surpresa, e olhou a pistola. Em duas largas passadas, Lassiter cruzou o espaço que os separava e pegou os pulsos dela, forçando-os para cima. Susannah lutou desesperadamente para manter a posse da pequena pistola.

No instante seguinte, ela estava rudemente apertada contra ele. Mas não foi o impacto de seu corpo que cortou a respiração de seus pulmões, mas a descoberta do rosto dele tão perto do dela - tão perto que podia sentir as espetadelas de sua barba curta. Ele não era mais do que alguns centímetros mais alto do que ela. Seus olhos cinza olhavam quase diretamente os dela. Ela podia ver as pupilas dele, negras e aneladas de prata. Sua boca estava a um simples bafo de distância.

Ela congelou, anestesiada por mil sensações, todas implorando por se fazerem conhecidas - desde a saliência dos ossos da bacia dele pressionando o ventre dela até a sólida parede do peito dele comprimindo os seus seios. O coração dela parou de bater por um instante, depois continuou correndo como as rodas de uma locomotiva tentando encontrar a tração.

Meu Deus, o que ela estava pensando? Era uma mulher sozinha com homens que diziam ser soldados. E ela nunca tinha visto um bando mais horroroso. O reverendo Cole já não era jovem. Se eles decidissem atacá-la e violentá-la, ele não conseguiria protegê-la. Em quê havia se metido?

Susannah olhou a mão bronzeada e forte que prendia seu pulso direito. Ela ainda segurava a pequena pistola. Ele ainda não a tirara dela.

Sentiu no pescoço a calidez da respiração dele. E, de repente, ficou mais tensa do que antes.

- Perfume - murmurou o tenente. - Já faz muito tempo desde que senti o perfume de uma dama pela última vez.

- Deixe-me ir - ordenou ela, totalmente consciente de que não estava em posição de exigir nada.

Ficou olhando os dedos dele levantarem vagarosamente a mão dela e fecharem-se sobre a pequena pistola. A aspereza deles lembrava-lhe a da língua de um gato. Ela deixou que ele tirasse a pistola dela, e ele afrouxou o aperto. Susannah afastou-se rapidamente.

- Nesta parte do país, srta. Gordon, se for carregar um revólver... ou, mais importante ainda, se for apontá-lo para alguém, é melhor saber atirar.

Ela sentiu o calor subindo-lhe ao rosto. Podia bem imaginar como ele devia estar se divertindo com ela, e evitou encontrar seu olhar, sabendo que aqueles olhos cinza poderiam rir dela. Em vez disso, ele olhou para a arma em sua mão, enquanto a examinava para ver se estava carregada.

- Antes de puxar o gatilho, você tem de armá-la. Assim. com o dedo, ele puxou de volta o cão da arma. - Veja como se faz.

- Sim - respondeu ela.

Cuidadosamente, repôs o cão de volta no lugar. Então, num movimento ligeiro, passou a pistola para a palma de sua mão calejada e ofereceu-a a ela.

- É melhor ficar com isso, srta. Gordon. Da próxima vez pode precisar. Mas lembre-se de como usá-la.

Ela olhou a pistola sem acreditar, duvidando que ele realmente tencionasse devolvê-la. Ele sorriu, suavemente.

- E não atire para o chão. Essa coisa só carrega uma bala. De trás dele vinha o som de risinhos abafados. Susannah pegou a pequena pistola e meteu-a dentro do bolso da saia.

- Kelly, Hayes, fora da carroça. - Ainda olhando para ela, ele levantou a voz para gritar a ordem, depois virou-se para olhar para eles, seu tom tornando-se brando.

- Acho que a senhorita não gostaria que vocês dois mexessem nas coisas dela. Embora possam ficar muito bem usando anáguas e toucas.

Golfadas de risos acompanharam seus comentários, seguidos de algumas piadas jocosas, ditas em voz baixa em deferência a Susannah. Ela ouviu parte delas e fechou os ouvidos para o resto. Alguém mencionou o café e eles voltaram para perto da fogueira. Querendo evitá-los, ela rapidamente pôs-se a lavar os pratos.

Quase imediatamente o reverendo Cole aproximou-se.

- Você está bem?

- Sim. E, por favor, não diga nada. Foi uma atitude estúpida de minha parte.

- Todos nós já fizemos uma ou duas coisas assim em nossas vidas, Susannah. Não seja muito exigente consigo mesma.

- Isso não é fácil - ela conseguiu dar um sorriso, depois endereçou um rápido olhar para os homens que descansavam em volta da fogueira, tomando café e contando histórias.

- Talvez seja a guerra. Parecia tão longe quando eu estava na Nova Inglaterra. Continuo a lembrar-me das casas queimadas que vimos. E continuo achando que esses homens são os responsáveis.

- Não. Algumas foram queimadas por tochas ianques - Susannah ficou dura ao reconhecer a voz de Rans Lassiter atrás dela.

- Eu não sabia disso-desculpou-se ela, tentando fingir que não estava surpresa com a presença dele ali.

- É mais fácil culpar a nós, os Joões Rebeldes. Mas os ianques faziam seus ataques noturnos. E havia os outros... guerrilheiros como Quantrill. Nunca se sabe de que lado estão. Geralmente depende do que há para ser saqueado.

- Quantrill foi um dos homens que lideraram o ataque em Independence, no Missouri, em agosto passado, não foi? Li sobre isso nos jornais.

- Ele está em algum lugar do Arkansas agora, mas da forma como consegue entrar e sair do território, não se pode ter certeza. Se você vir um homem cavalgando um garanhão negro, com uma roupa esquisita, uma pluma no chapéu, fique com aquela pistola por perto, srta. Gordon. Dizem que ele aprecia muito as damas.

- Agradeço muito o aviso.

- O café está ótimo. É o primeiro que tomamos há muito tempo. - Ele sacudiu o líquido na caneca de lata, depois tomou-o.

- Somente duas coisas poderiam ser melhores do que isso: uma garrafa de um bom uísque e uma mulher bonita. Um homem pode ficar bêbado com as duas coisas.

A forma com que ele olhou para ela fez Susannah sentir um calor por todo o corpo, mas desta vez não de vergonha. Ele virou-se para o outro lado.

- É melhor a senhorita e o reverendo se servirem antes que bebamos tudo.

Ele caminhou de volta para a fogueira, parou na beira do círculo e ficou ouvindo a conversa, mas sem tomar parte nela.

- Ele parece muito só - murmurou Susannah.

- E jovem-acrescentou o reverendo Cole. - Não deve ter mais que uns 26 ou 27 anos.

- Deve ser mais velho do que isso - disse ela. - Os olhos dele...

- Os olhos dele estão envelhecidos por tudo que têm visto. E pelas coisas por que ele passou. Vi o mesmo olhar em alguns jovens cherokees que fizeram aquela longa caminhada da Geórgia. Só que os olhos deles não tinham essa amargura, apenas a gravidade da dura experiência. Ele ainda sabe sorrir. E isso é precioso, Susannah. Houve uma hora em que pensei que seu pai nunca mais sorriria de novo. Tantos não voltaram a sorrir...

Ela ouvira histórias de sofrimento muitas vezes, mas o reverendo Cole as fazia parecer reais. Talvez porque ele parecia tão triste... tão infeliz. Ela colocou a mão no braço dele.

- Vamos tomar café.

- Sim, antes que eles bebam tudo-repetiu deliberadamente as palavras do tenente, num esforço para aliviar a atmosfera.

O rebelde chamado Kelly puxou uma gaita do bolso e começou a tocar "Dixie". Três soldados pularam e começaram a dançar, rodopiando em volta um do outro, levantando os pés para o alto e rindo, enquanto os demais batiam palmas ritmadas com a música e cantavam.

No instante em que o hino do Sul terminou, o homem iniciou outra música alegre. Um magricela ruivo agarrou a mão de Susannah e puxou-a para sua roda improvisada. No instante seguinte, outro pegou-a pelo braço e virou-a, passando-a para o próximo.

Rans olhava-a enquanto ela trocava de par em par, saltitando, girando, rindo, a saia voando e revelando seus tornozelos e os cinco centímetros dos saltos de suas botas. Ela não era tão alta quanto ele pensara. E ele já sabia que também não era tão magra quanto parecia. Sentira o volume daqueles seios duros contra seu peito, seios que encheriam mais do que sua mão.

Silenciosamente ele xingou o rumo de seus pensamentos e olhou para o resto de café em sua caneca, mas a tentativa de distrair-se não funcionou. Tinha de olhá-la.

Por que não admitia? Estava com ciúmes. Ali estava ela, dançando com seus homens, passando de braço em braço, ágil e graciosa, o ouro em seus olhos brilhando de felicidade. E mais: quando ele a segurou, viu raios de fogo naquele ouro e o corpo dela ficou tão rígido quanto uma estátua de pedra - mas uma estátua com o pescoço perfumado. E o perfume não era do tipo barato que as prostitutas usavam para aplacar o cheiro de suor e sémen de outros homens. Rans conhecia a diferença.

Susannah Gordon era uma dama, e ele estava cansado das prostitutas de cabarés e seguidoras de acampamentos.

Essa guerra não era o que ele julgava ser quando se alistou. Havia pouca glória nas batalhas e escaramuças em que lutara somente muito sangue e desespero.

Para ele, a guerra consistia principalmente de patrulhas como esta: cavalgadas que se resumiam a queimar e a pilhar. Suas ordens eram cortar os suprimentos dos inimigos, destruir o feno e as plantações de cereais. Devia fazer o possível para evitar que crescesse comida para o inimigo ou para seus animais; devia tornar impossível a alimentação para o inimigo.

Talvez ele odiasse tanto Quantrill e seus homens porque odiava a si mesmo. Depois de todas as lutas e matanças, queria sentir-se bem por dentro. E ela poderia ajudá-lo nisso.

Ele ouviu os risos dela, quentes, vindos da garganta. Aqueles sons envolviam-no, imobilizando-o como uma grande dor. Vários homens cantavam. Ele não tinha prestado muita atenção na canção que Kelly tocava até que ouviu a letra.

...O sol tão quente que congelei.

Susannah, não chore.

Oh, Susannah, não chore por mim.

Ele blasfemou de novo e esfregou os músculos tensos atrás do pescoço. Quando tirou as mãos, Rans acidentalmente esfregou o queixo e sentiu a rispidez da barba crescida. Não fazia a barba há três dias e havia mais de um ano que não tomava um banho que não fosse nas águas de rios ou córregos.

O que estava acontecendo com ele? Em vez de ficar parado ali como um estudante estúpido ressentido com a alegria que todo mundo estava tendo, por que não ia lá também? Queria dançar com ela, segurá-la em seus braços. O que o detinha? Ele era Ranson Lassiter. Sua família era proprietária de um dos maiores ranchos do Texas.

Ele pendurou a caneca num galho e andou em volta do círculo em direção aos dançarinos enquanto a canção terminava. Deu um olhar de aviso para seus homens. Eles se afastaram, deixando o lugar claro para Susannah, com os olhos risonhos virando silenciosamente, especulativos e espertos. Primeiro ela não o viu, depois virou-se, e a luz da fogueira iluminou-a completamente.

Por um instante, Rans pôde somente olhar para seus lábios sorridentes, enquanto ela bebia o ar. Seus olhos brilhavam de vida e as bochechas coradas reluziam. Algumas mechas cacheadas haviam-se soltado de seu cabelo durante a dança animada. Ele gostava do toque desarrumado que isso dava a ela. Passou-lhe pela cabeça que ela ficaria assim depois que ele fizesse amor com ela. Só que os lábios dela estariam inchados por seus beijos.

Quando ele viu o sorriso dela começar a desaparecer, fez uma divertida mesura.

- Acredito que esta dança é minha, srta. Gordon.

Ela passou a mão na base da garganta como se aquilo a pudesse ajudar a respirar. Ele desejou que ela não tivesse feito aquilo. Aquela ação havia conduzido o olhar dele para a profunda subida e descida de seus seios. O tecido de seu vestido tentava cobri-los, mas em vez disso só conseguia ressaltar sua redondeza.

- Toque uma valsa, Kelly, para que a dama possa recuperar o fôlego.

Sabia que ela queria dizer que estava exausta, mas ele não deixou.

Sua mão estava na cintura dela antes que Susannah pudesse esboçar uma objeção. Na primeira nota, Rans rodopiou com ela, a pressão de suas mãos suavemente guiando seus passos. Susannah tentou, mas não conseguia deixar de olhar os seus irresistíveis olhos cinza. Eles a prendiam, meio velados pelas grandes pestanas negras e ardentes como brasas.

De volta em volta, eles rodopiavam. A cada giro ela era puxada mais para perto e tornava-se mais consciente da pressão da perna dele através do volume de sua saia. Mas ainda precisava agarrar-se a ele. Tinha a impressão de que ele sabia disso. Saberia também de todas as coisas loucas que ela sentia, como o estranho tremor em seu ventre?

- Não tenho muita certeza de que deseja que eu recobre o fôlego, tenente - acusou-o. - Acho que está tentando roubá-lo.

- Posso? - Sua pergunta suave e arrastada era como uma carícia de amante.

A pulsação dela acelerou-se a uma velocidade alarmante.

- Tenente, eu...

- Rans. Nós do Texas não somos muito formais.

- Ah. - Ela engoliu, tentando esconder a tensão que ligava seus nervos numa linha fina.

- Sabe mesmo? - Seu olhar foi para a garganta dela, lembrando a Susannah do perfume que ela tinha automaticamente posto atrás das orelhas naquela manhã, aquele perfume que ele notara mais cedo.-Não creio que saiba o quanto estou tentando esquecer que você é uma dama.

Ela olhou para o outro lado, notando de repente o quanto estavam inebriados. A escuridão os rodeava completamente.

- Um cavalheiro não diria isso.

Ele não mais rodopiava com ela em círculos graciosos. Estavam praticamente dançando no mesmo lugar, indo atrás dos movimentos dos passos da valsa, mas quase sem se mover.

- Não? Os cavalheiros que conhece devem ser tolos. Ou então eram cegos.

- Não acho que....

- Ótimo. Não quero que ache. Só quero que dance comigo. Susannah foi de novo guiada rumo a uma outra rodada. De

repente ela pisou em algo que rolou, o que a fez perder o equilíbrio e virar o corpo. Tropeçou contra ele. Imediatamente seus braços rodearam-na para pegá-la e segurá-la. Susannah encontrou-se literalmente face a face com ele, só que desta vez seus lábios estavam realmente se tocando. Era como um raio passando através dela. Olhando nos olhos dele, não conseguia mover-se em nenhuma direção.

- Não precisa ter medo de mim, Susannah - sussurrou ele confiante, movendo os lábios contra os dela para formar as palavras.

Ela não sabia que seus próprios lábios eram tão sensíveis, mas podia sentir cada toque leve como pluma contra eles.

- Não tenha medo - murmurou ele novamente.

Ela sentiu sobre a boca uma pressão quente. Meu Deus, ele a beijava, e ela estava com medo; medo das coisas que sentia. Empurrou-o e deu um passo para trás. Uma pontada de dor em seu tornozelo fez com que ela desse um gemido.

- Você está bem?

- Sim.

Ela apoiou o peso nele para testar o tornozelo, e constatou que estava apenas dolorido.

- Torci o tornozelo. Foi só isso.

De repente, ele levantou-a do chão e pegou-a no colo.

- O que está fazendo? Não pode carregar-me! Não vê como sou grande? - com 1,75m, ela não era um peso leve.

- É exatamente isso o que eu vou fazer - abriu-se uma luminosa mancha branca em sua barba negra quando ele sorriu para ela. - Coloque os braços em volta do meu pescoço.

Na verdade não havia mais lugar algum para colocá-los. Entretanto, ao sentir o formidável volume daqueles ombros e os músculos do pescoço, Susannah duvidou se fora uma boa ideia, embora tivesse de admitir que ele não parecia estar se esforçando para ampará-la.

- Isso não é necessário - murmurou ela. - Eu posso andar.

- Mas não estou querendo descobrir se você pode ou não andar - disse ele, os olhos cinzentos brilhando como mercúrio. Estou gostando demais disso.

- Pare com isso - Susannah sabia que ele não estava falando sério, não de verdade. Tudo que usasse saia pareceria bom para ele.

- Susannah, você está bem? - O reverendo Cole correu ao encontro deles.

- Torci meu tornozelo. Se o tenente me pusesse no chão, eu poderia andar. Mas ele está muito ocupado fazendo-se de galante cavalheiro sulista para ouvir.

O queixo do tenente enrijeceu-se, sua boca desapareceu na dobra de sua barba negra. Ele parou abruptamente e deixou que o pé dela virasse para o chão, os olhos voltando ao cinza metálico do chumbo. Consciente de que ele ficara com raiva, ela se afastou, caminhando cautelosamente, mas sem dificuldade.

- Meus homens e eu dormiremos sob as árvores, reverendo. Deixarei sentinelas, de modo que o senhor e a srta. Gordon estarão a salvo aqui no acampamento. Mas seria melhor apagar o fogo. Os guerrilheiros que porventura estejam rondando por aí não precisam saber onde estamos.

Seu olhar moveu-se rapidamente para Susannah.

- Amanhã nós os acompanharemos até sua casa.

- Obrigada, tenente.

- Ficaremos devendo a comida e o café.

Ele deu meia-volta e se afastou, seguido relutantemente por seus homens. Susannah olhava para ele, consciente da forte contrariedade que sentia ao vê-lo afastar-se.

- O orgulho de um homem é uma coisa frágil, Susannah - o reverendo Cole aproximou-se dela. -Às vezes é aúnicaproteção que ele tem. No entanto, pode ser facilmente atingido. Os homens podem parecer insensíveis, até invencíveis, mas eu lhe garanto, minha querida menina, nós não somos.

- O senhor acha que fui grosseira.

- Nada tira o chão debaixo de um homem mais rápido do que a língua de uma mulher.

Ele foi para perto do fogo e pôs-se a espalhar as brasas.

No dia seguinte eles se levantaram logo ao amanhecer. Após o café da manhã, Susannah guardou os acessórios do acampamento e os cobertores na carroça enquanto o reverendo Cole colocava os arreios nos cavalos. Terminando seus preparativos antes dele, ela foi ajudá-lo, então viu o tenente Lassiter cruzando a pequena clareira em sua direção. Ele parecia diferente à luz do dia. Depois ela descobriu por quê: fizera a barba.

Na noite anterior, parecia um tipo rude de bandido, mas agora parecia um homem sério e determinado.

Ela olhou suas feições ásperas, magras, sem encontrar nelas qualquer traço de suavidade. Na noite anterior ela pudera pressentir a força de seu rosto. Agora essa força se manifestava definitivamente.

Quando a alcançou, Rans tirou o chapéu e passou a mão rapidamente pelos cabelos.

- Se meu comportamento de ontem à noite a ofendeu, srta. Gordon, peço desculpas. Eu...

- Você se cortou - sem pensar, ela estendeu a mão e limpou o pequeno filete de sangue na covinha do queixo dele, deixando os dedos apoiados em seu pescoço perto da veia que pulsava.

Num piscar de olhos, ele pegou a mão dela e tirou-a do seu rosto, depois continuou a segurá-la, apertando-a tanto que quase bloqueou a sua circulação.

- Eu não tocaria um homem assim de novo, srta. Gordon.

- Porquê?

- Por quê? - a palavra explodiu de dentro dele.

Um segundo depois os braços dela foram presos vigorosamente e seus lábios apertados contra os dentes pela boca dele. Contudo ela não sentiu dor, só prazer. Os lábios dele não paravam de se mover sobre os dela, pressionando, aconchegando-se, provocando uma reação que Susannah não poderia nunca ter antecipado.

Não era um gesto desajeitado de um pretendente. Era o beijo de um amante. Ela sempre imaginara que seria assim. Agora ela sabia. Por dentro, sentia-se toda derretida e excitada.

Ele interrompeu o beijo longo e respondeu asperamente:

- Por causa disso.

Então puxou-a contra si, esfregando os lábios no rosto dela, respirando forte, trémulo.

- Queria beijá-la assim na noite passada. Diabo. Quero fazer mais do que isso, Susannah. Lembre-se: eu avisei que um homem corre o risco de ficar embriagado com uma mulher bonita. E, quando um homem se embriaga, esquece-se das gentilezas que fazem parte de um galanteio. Não há tempo para cortejar no meio de uma guerra. Compreende?

- Isso é loucura... - sussurrou ela, sentindo o cheiro de sabonete no rosto dele. - Nem o conheço...

Ela virou-se de novo, encontrando os lábios dele mais uma vez e beijando-o. Se era loucura, ela queria mais, muito mais.

- Tenente!

Eles se separaram rapidamente ao som do grito e dos cascos do cavalo. Kelly aproximava-se da clareira, trazendo um cavalo selado.

- Chavez já voltou. Disse que está tudo limpo. Estamos prontos para prosseguir assim que o pastor estiver pronto.

Naquele momento o reverendo Cole chegou com seus cavalos.

- Já estamos indo. - Virando-se de volta para Susannah, arrumou a aba do chapéu e depois colocou-o na cabeça, olhando para ela o tempo todo.

- Meu nome é Rans. Ransom Lassiter. Não se esqueça disso.

- Não me esquecerei.-Era uma promessa fácil de fazer. Ela sabia que seria impossível esquecê-lo.

No caminho para Oak Hill, os pensamentos de Susannah se dividiam entre a preocupação com sua mãe e a presença do homem que seguia ao lado da carroça. Ele cavalgava com a facilidade de alguém que passara a maior parte da vida sobre uma sela, equilibrado e relaxado, movendo-se com o cavalo e não contra ele. Olhando para Rans, Susannah quase podia acreditar que ele praticava uma cavalgada matinal prazerosa - não fosse o fato de não perder nunca o ar alerta, que garantia que, se surgissem problemas, estaria pronto para enfrentá-los. Susannah suspeitava que, se isso acontecesse, sua reação seria tão rápida e mortal quanto a situação exigisse. Esse pensamento deveria tê-la assustado, mas não assustou.

Uma dúzia de vezes ela refletiu sobre o que poderia ter acontecido na noite anterior se Rans Lassiter fosse um tipo diferente de homem. Ele e seu bando poderiam ter roubado a carroça e todo o seu suprimento, poderiam tê-los aterrorizado e abusado, e nem ela nem o reverendo Cole teriam podido evitar isso. Ambos estiveram à mercê deles. No entanto nem Rans Lassiter nem seus homens haviam agido uma só vez de forma deliberadamente ameaçadora. Desde o começo ela e o reverendo Cole haviam sido tratados com uma espécie de severo respeito.

Susannah estava agradecida por isso. Mas não foi gratidão o que sentiu quando, no meio da manhã, pararam para descansar os cavalos e Rans a suspendeu da carroça. Gratidão não esquentava o sangue nem fazia o fôlego ficar preso na garganta. O olhar dele segurou o dela por um longo segundo antes que ele se afastasse para cuidar dos cavalos.

Só voltou depois que os cavalos já tinham sido cuidados e os sentinelas colocados a postos. Susannah estava perto da carroça ajudando o reverendo Cole a dar água aos cavalos.

- Vamos prosseguir em mais ou menos dez minutos, reverendo.

- Estaremos prontos.

Susannah sentia a atenção de Rans focalizar-se sobre ela, quando o forte e musculoso cavalo cinza levantou o focinho do balde dágua de couro que ela segurava.

- vou levar isso para você - disse Rans quando ela abaixou o balde.

O balde não estava nada pesado. Susannah sabia que a oferta dele era uma desculpa para ficar por perto.

- Obrigada-agradeceu ela, enquanto ela jogava fora a água que restara no balde.-Guardamos os baldes amarrados aqui perto da barrica dágua. - Ela caminhou até a carroça para mostrar a ele.

- Você mencionou que conhecia meu cunhado, o capitão Stuart...

- Major Stuart - corrigiu Rans enquanto ela amarrava o balde de couro no lugar. - Foi promovido há seis semanas.

- Eu não sabia - admitiu ela. - Mas eu estive pensando... se você o conhece, talvez também conheça seu filho, Elijah Stuart?

Ele concordou, dando um sorriso.

- Lije e eu já compartilhamos de um acampamento. Ele apertou o nó, depois virou-se, inspecionando-a com um ar divertido. - Você não parece velha o bastante para ser tia dele.

- E não sou - Ela riu, lembrando a forma com que Lije sempre brincara com ela a respeito disso. - Como estão eles? Minha irmã vai querer saber.

- Da última vez que os vi estavam bem - O olhar dele focalizou os lábios dela durante um torturante instante, depois voltou para seus olhos.

Susannah sentiu novamente um calor por todo o corpo e virou o rosto para a brisa fresca que anunciava a aproximação do inverno.

- Onde eles estão? Você sabe? - perguntou ela.

- Não tenho certeza. Ela olhou para o chão.

- Mas mesmo se soubesse, tenho certeza de que tem ordens para não revelar a localização das tropas confederadas. Tal informação poderia ser útil para o exército da União.

- Poderia.

- Há algo que devo dizer-lhe - disse ela, levantando o queixo.

- O que é?

- Meu irmão Kipp e seu filho Alex estão lutando do lado da União.

Depois de fazer essa confissão, Susannah olhou para ver a reação dele. Era como se uma persiana houvesse baixado, fechando seu pensamento.

- Todos na nação sabem que meu pai era leal à União prosseguiu ela.

- E você?

- Minhas simpatias também estão com a União – admitiu ela, erguendo o queixo um pouco mais. - Deliberadamente, dei a você a impressão errada na noite passada ao me referir tão rapidamente ao meu cunhado, o major Stuart. Vi que vocês eram rebeldes e pensei...

Ele interrompeu-a:

- Posso imaginar o que pensou - havia alguma coisa séria na expressão dele, mas seu olhar fixo nunca vacilava. - O que a faz pensar que está mais a salvo agora do que na noite passada?

Uma breve onda de alarme passou por ela, depois desapareceu.

- Agora confio em você - respondeu ela, simples e honestamente.

Ele sacudiu a cabeça, e um rápido sorriso surgiu em sua boca.

- Devo considerar essa resposta como um elogio à minha honra de oficial e cavalheiro sulista? Se assim for, está cometendo um erro, Susannah. No que diz respeito a você, não existe nenhum pensamento honrado em minha mente. - Ele estendeu a mão, e esfregou o dedão na curva do pescoço dela - Nenhum, nenhum.

Ela tremeu, mas não de medo.

- Você não me assusta.

Ele olhou para cima, capturando seu olhar.

- Não? Pois você me assusta como o diabo, Susannah - A linha de sua boca amaciou-se enquanto ele abaixava a mão. Então, ele se virou e disse por cima do ombro: - Esteja pronta para partir em cinco minutos.

O reverendo Cole parou os cavalos diante da mansão cheia de colunas de Oak Hill. Nada se movia. Parecia tão vazia quanto os campos por onde tinham passado. Preocupada, Susannah desceu da carroça sem esperar por ajuda.

Então a porta da frente se abriu e surgiu sua mãe, um pouco mais velha do que ela se lembrava, um pouco mais magra, mas ainda alta e bonita. Susannah juntou a saia e correu para encontrá-la.

- Susannah! Como está você? Deveria estar no Leste.

- Voltei para casa - disse, abraçando-a.

Eliza afastou-se para olhá-la e levantou a mão trémula para tirar um cacho do rosto da filha.

- Recebeu minha carta sobre seu pai? Lije disse que ela passou pelas linhas de combate.

- Sim, eu... - O olhar de Susannah voltou-se para a frente da casa, quando um forte sentimento de perda passou por ela. Gostaria de poder ter estado aqui quando... Gostaria...

- Eu sei.

Eliza apertou-lhe o ombro, confortando-a, e seus próprios olhos se umedeceram. Um cavalo relinchou, fazendo com que elas se lembrassem de que não estavam a sós.

- Agora, a quem devo agradecer...

Uma rápida respiração de surpresa captou o resto de suas palavras quando viu o reverendo Cole pacientemente parado a uns poucos metros dali.

- Nathan!

- Eliza! - Ele se aproximou e dobrou os longos dedos em volta das mãos abertas dela. - Está linda como sempre.

- Não posso acreditar nisso - declarou ela, dividindo um olhar questionador entre os dois. - Como vocês dois...?

- A senhora mencionou na carta que o reverendo Cole se encontrava no Forte Scott - explicou Susannah.

- Tentei convencer Susannah a esperar até que a estrada do Texas estivesse segura para viajar, mas ela estava determinada a vir para casa, sem se importar com os riscos. E o bom tenente aqui olhou para Rans Lassiter, que estava parado, esperando, enquanto segurava as rédeas do cavalo - foi gentil o bastante para escoltarnos nesses últimos quilómetros.

- Mamãe - Susannah puxou-a para a frente. - Quero que conheça o tenente Ranson Lassiter, da brigada do Texas. Tenente, esta é minha mãe, sra. Eliza Gordon.

Ele tirou o chapéu e sacudiu a mão que Eliza lhe estendia, inclinando-se ligeiramente.

- É um prazer, sra. Gordon.

- O senhor tem minha gratidão, tenente Lassiter, por fazer minha filha chegar sã e salva em casa.

- E a senhora tem a minha, sra. Gordon, por ter uma filha tão adorável. Ela fez com que o caminho para cá fosse curto demais.

Essas palavras demonstraram que ele não conseguia disfarçar seu interesse por Susannah. Eliza notou a forma como ele olhava sua filha e como sua filha ficou corada.

- Quero que compreenda, sra. Gordon - continuou ele, com o olhar ainda em Susannah e um sorriso pairando no canto da boca. - Fazia muito tempo que qualquer um de nós não tinha a companhia de uma dama capaz de corar. Assim, fica mais fácil esquecer as inclinações ianques de sua filha e arrepender-nos da guerra que endurece mentes e corações.

- Qualquer tipo de violência é sempre lamentável - observou Eliza.

- Mas às vezes é inevitável - interpôs ele. Eliza levantou a sobrancelha.

- Os homems tendem a acreditar nisso.

Ele riu, e sua cabeça pendeu por um momento.

- É óbvio que sua filha herdou a sua personalidade, além da sua beleza, sra. Gordon.

- Espero que suas maneiras não se tornem tão pobres quanto as minhas ficaram de repente. Por favor, o senhor e seus homens queiram entrar. Deixem-me preparar-lhes algo para comer.

Ele levantou a mão, interrompendo suas palavras.

- Por mais que eu desejasse aceitar seu convite, temos que ir andando. Pode não ser uma boa ideia deixar que meus homens descubram sua simpatia pelos ianques. Se ficarmos, isso corre o risco de acontecer. Além disso, já negligenciamos demais nossos deveres.

Seu olhar sacudiu Susannah, que tentava esconder sua surpresa: não esperara que a hora de dizer adeus fosse chegar tão cedo; ou que a dor da tristeza fosse tão forte.

Por mais que tentasse, Susannah não conseguia explicar sua atração pelo oficial rebelde, mas não podia negar sua existência. Lembrava-se da forma como Rans a beijara naquela manhã -, e de como o havia beijado de volta - e de repente queria atirar-se em seus braços mais uma vez. Em vez disso, esperou pacientemente que ele se despedisse de sua mãe, e depois do reverendo Cole.

- Você e seus homens estarão em nossas preces - prometeu Nathan.

- Precisaremos delas, reverendo - disse Rans, com um sorriso agradecido.

Finalmente, sua atenção voltou-se para Susannah, os olhos cinza adquirindo um tom mais escuro.

- Reserve para mim um lugar em seu cartão de dança, srta. Gordon.

- Se desejar... - Ela inclinou a cabeça em cuidadoso aceno.

- Eu desejo. - Seu olhar queria dizer muito mais do que uma simples afirmação.

Acenando para ela, ele tocou seu chapéu e então preparou-se para montar. Ela interrompeu-o:

- Tenente, pode dar um recado a Lije para mim?

- Se puder. Não há garantia de que nossos caminhos se cruzarão - disse ele.

- Claro, mas... se o vir, diga-lhe que vi uma jovem que ele conhece, Diane. Ela está no Forte Scott, com seu pai.

- Darei o recado.-Ele subiu na sela e fez um sinal para seus homens prosseguirem.

Enquanto conduzia o cavalo em direção aos homens, ele começou a assobiar. Depois de alguns segundos, Susannah reconheceu a canção e a letra: "Oh, Susannah, não chore por mim." Ela deu um risinho e pressionou a boca com a mão enquanto as lágrimas escorriam de seus olhos.

As folhas secas se enrolavam nas pernas dos cavalos dos confederados e misturavam-se à poeira de seus cascos. O vento arrasador de novembro soprava tudo de volta, golpeando os três que olhavam a partida da patrulha rebelde.

- Venha, vamos entrar.

Eliza passou o braço em volta dos ombros de Susannah. Relutantemente, ela submeteu-se à gentil pressão e virou-se em direção à casa, com o coração pesado de tristeza.

- O tenente parece muito impressionado com você.

- Mas parece que tenho poucas chances de vê-lo de novo, não é? - Susannah expressou o pensamento que permanecia martelando sua cabeça.

- Somente Deus e o tempo dirão - respondeu Eliza com um pequeno suspiro.

A cautelosa Lucy segurava a porta da frente para eles, olhando continuamente a patrulha rebelde que partia. Susannah olhou de volta mais uma vez. Já se distanciavam, seguidos por uma nuvem baixa de poeira e folhas mortas, emoldurados pelos galhos arqueados das árvores peladas do inverno. Ela julgou ter visto Rans cavalgando na frente da companhia, mas eles estavam longe demais para que tivesse certeza.

Dentro de casa Susannah parou e soltou seu xale de lã, deixando-o cair em seus ombros. Quando se virou para dizer algo ao reverendo Cole, seu olhar percebeu a espingarda de caça apoiada contra a parede perto da porta.

- Lucy, esquente a água para o chá - instruiu Eliza-e diga a Ebediah para cuidar dos cavalos e da carroça do reverendo Cole. Eles vão...

- Mamãe, o que é isso? - Susannah apontou a espingarda perto da porta.

Sem se perturbar com o tom da pergunta, Eliza respondeu:

- É a espingarda de seu pai, é claro.

Eliza pegou a arma e começou a descarregá-la com uma intimidade que deixou Susannah surpresa.

- Seguramente, você não ficou no Leste tanto tempo a ponto de não reconhecer mais uma arma.

- Sei o que é, mamãe - disse Susannah, recobrando-se. Mas o que ela estava fazendo aí perto da porta? E quando foi que a senhora aprendeu a usar uma arma?

Colocando as balas no bolso do avental, Eliza respondeu:

- Logo depois que seu pai morreu pedi ao nosso vizinho, o velho sr. Johnson, para me ensinar. Não tive escolha. com todos esses saqueadores por aí, meus trabalhadores estavam com medo de ir para o campo fazer a colheita do que restava, a menos que eu ficasse em guarda com isso. - Ela indicou a arma que ficava muito naturalmente sob o seu braço, o cano apontado para a porta.

- E a senhora sabe atirar?-Susannah continuou a olhar para sua mãe com surpresa.

- Atirar, eu sei. Não sei é se sou capaz de atingir o alvo para o qual apontei. A menos que esteja muito, muito perto.

Susannah olhou para o reverendo Cole para verificar se ele achava essa novidade tão surpreendente quanto ela. Ele sorriu, com os olhos brilhando.

- Talvez sua mãe possa ensiná-la a usar sua pistola.

- Pistola? - A expressão de Eliza repetiu a incredulidade anterior de Susannah. - O que você está fazendo com tal coisa?

- Para me proteger... - começou a dizer Susannah, defensivamente, até começar a ouvir o reverendo Cole rir. Um momento depois os três estavam rindo.

- Se não rirmos do que nos tornamos, então devemos chorar da situação terrível em que nos encontramos-disse Eliza, enquanto os conduzia à sala de visitas. - Às vezes meu desejo era que tivéssemos empacotado tudo e partido para o norte no começo da guerra, quando tantas famílias fugiram daqui. Mas Will não quis. Anos atrás os soldados o forçaram a sair de sua casa, depois eles a pilharam e saquearam antes de destruí-la. Sei que ele não suportaria o pensamento de que a história pudesse repetir-se aqui em Oak Hill. Por isso não posso pensar em partir, mesmo agora, depois de tudo que aconteceu.

- As coisas estão mal assim, mamãe? - perguntou Susannah, preocupada com o tom de desespero que percebeu na voz da mãe.

- Os saqueadores sumiram com todo o gado, menos uma velha mula e uma vaca leiteira que escondi naquela pequena clareira perto do córrego. Eles destruíram ou queimaram a maioria das plantações. Os poucos víveres que sobraram, escondi-os no velho celeiro. Por enquanto eles não descobriram sua existência, mas temo que seja apenas uma questão de tempo antes que isso aconteça

- Ela suspirou e olhou em volta da sala de visitas. - Enterrei atrás do estábulo a prataria, o serviço de chá e todas as pequenas coisas de valor da casa.

O reverendo Cole concordou em aprovação.

- Uma sábia precaução, Eliza.

- A senhora disse saqueadores. Isso quer dizer que foram os rebeldes que fizeram isso? - Susannah não podia deixar de pensar em Rans.

- Rebeldes, guerrilheiros... os sem-lei não têm lealdade a lado nenhum. Todos eles têm causado danos aqui na nação.

Eliza contou-lhes sobre os ataques às casas vizinhas, as surras nos simpatizantes nortistas, os atos de represália cometidos pelos soldados da União durante sua breve estadia na nação, as pilhagens e as matanças.

Susannah pensou na irmã e perguntou:

- Como está Temple?

- A situação dela não é muito melhor. Ela também perdeu gado e colheitas, embora goze da proteção do nome Blade. - Ela fez uma pausa e olhou para Susannah, uma angústia serena nos olhos. - Por mais feliz que eu esteja em ver você, preferia que tivesse ficado no Leste, longe dessa guerra toda.

- Não podia deixá-la aqui sozinha, mamãe - disse Susannah, consciente de que apenas começava a compreender o quanto tinha estado protegida da brutalidade da guerra; nas semanas e nos meses seguintes compreenderia ainda mais.

O reverendo Cole ficou em Oak Hill mais duas noites; e depois partiu, com a intenção de distribuir o que restara da comida e suprimentos de sua carroça às numerosas famílias carentes da área.

No fim de novembro a temperatura quente de outono terminou, e o frio e as chuvas enregelantes do inverno se moveram através da nação cherokee. O tempo combinava com a apreensão e o desânimo que recaíam sobre o campo e todos os seus habitantes.

Em dezembro chegou na nação a notícia de uma grande batalha num lugar chamado Prairie Grove, do outro lado da fronteira com o Arkansas. Os relatórios iniciais davam conta de que uma força mista confederada de oito mil homens tinha atacado a força da União, de somente seis mil, a sudoeste de Fayetteville. Reforços federais chegaram no meio da batalha, que durou o dia todo, destruindo as esperanças de uma vitória rebelde. Diante da previsão da chegada, na manhã seguinte, de novas tropas da União, o exército confederado fugiu durante a noite, deixando as fogueiras dos acampamentos acesas para enganar o inimigo.

Susannah não conseguiu saber se uma das brigadas do Texas tomara parte na batalha, ou se o regimento de seu irmão Kipp estava lá.

No dia de Natal, Temple chegou em Oak Hill trazendo notícias de que Lije e Blade tinham saído ilesos da batalha. Ela soubera (não disse como) que eles estavam em algum lugar ao sul do rio Arkansas. Susannah alegrou-se com a notícia e, intimamente, desejou que Rans Lassiter também estivesse a salvo. Imaginou se ele teria dado sua mensagem a Lije sobre Diane. De cabeça baixa, ela ouviu as preces do reverendo Cole, desejando o fim da luta, e ofereceu um fervoroso "amém" quando ele acabou.

Mas o ano terminou com outra incursão da União na nação. As tropas federais rapidamente reocuparam o Forte Gibson, cruzaram o rio Arkansas e atacaram e queimaram as fortalezas dos confederados no Forte Davis, levando os rebeldes a penetrar mais fundo na nação choctaw.

Mais uma vez o exército da União não ficou para guardar a área. Retirou-se para seus quartéis de inverno em Fayetteville, Arkansas. com os ianques no norte do Arkansas e os confederados hibernando em Camp Station na nação choctaw, a nação cherokee ficou desprotegida.

O forte frio golpeou o rosto de Susannah no instante em que ela saiu da cozinha para o lado de fora, naquela manhã de fevereiro. Ela olhou para o céu azul e o sol brilhante que não conseguia aumentar a gélida temperatura mais do que alguns graus. Ela tremeu e puxou a manta de lã para cobrir o nariz e a boca.

Em seguida ouviu os passos pesados de Ebediah no chão frio em direção à cozinha, com o vapor ainda saindo do balde de leite fresco que carregava. Usava um pesado casaco de inverno que fora de seu pai, mas ainda parecia meio congelado. Susannah anotou mentalmente que deveria falar com sua mãe para que um dos trabalhadores mais jovens passasse a tirar o leite da vaca durante o inverno. Ebediah estava muito velho, parecia frágil demais.

Na verdade ela desejava que sua mãe desse a liberdade a todos os escravos. Contudo, como sua mãe raciocinara, enquanto a guerra durasse eles não teriam para onde ir, nem como se alimentar. havia poucas chances de sobrevivência para eles.

Como poderiam sobreviver?, pensou Susannah. Dois ovos era tudo que fora coletado naquela manhã. Sem o milho para alimentá-las, as galinhas pararam de pôr ovos, mas ela sabia que deveria estar grata por ainda terem galinhas.

Quando se virou em direção à casa, Susannah ouviu o ruído de cascos de cavalos como um distante ronco de trovão. Parou e olhou para a estrada além da terra alqueivada, com o coração batendo um pouco mais rápido ao ver um bando de cavaleiros. Mas ninguém cavalgava um rajado. Ela sentiu um primeiro sinal de alarme.

Sem se arriscar, Susannah chamou Ebediah.

- Uns cavaleiros se aproximam. Jogue esse leite no chão. Se souberem que temos uma vaca, não descansarão até encontrá-la.

Ele hesitou apenas um instante antes de virar o balde e esvaziar o leite morno no chão frio. Susannah correu em direção à casa para dar o alarme.

Mas Eliza já vira os cavaleiros da janela da sala de jantar Encontrou Susannah ao pé da escada.

- Estão entrando na estrada da fazenda. Venha comigo. Não temos muito tempo.

Ela subiu as escadas e foi direto para seu quarto.

- Na gaveta de baixo daquela cómoda tem uma velha anágua. Traga-a aqui.

- Por quê? O que quer fazer com uma velha anágua? perguntou Susannah, ajoelhando-se para procurá-la na gaveta. Ao levantá-la ficou surpresa com seu peso. - Está um bocado pesada. Quanto chumbo costurou na bainha para dar caimento?

- Não é chumbo, querida - Eliza pôs a mão no ombro de Susannah para equilibrar-se enquanto vestia a anágua. - Quatrocentos dólares em ouro. Tirei do cofre de seu pai e costurei-o nesta velha anágua para escondê-lo. Amarre-a bem apertada ou ela vai cair.

- Ouro - Susannah apertou o cordão, sorrindo, admirada com a inteligência da mãe.

- Deixei alguns dólares no cofre para que possam encontrar algo.

Eliza ajeitou a saia para disfarçar a anágua.

- Agora vamos esperar que os visitantes não sejam do tipo que molesta mulheres.

Quando terminaram, as pisadas e o resfolego dos cavalos já podiam ser ouvidos na estradinha bem em frente à casa.

- Já estão lá fora - Susannah olhou para a mãe. Eliza sorriu nervosamente e ajeitou os ombros:

- Vamos recebê-los.

Quando alcançaram a escada, a porta da frente foi aberta e uma dúzia de homens mal vestidos entraram na casa, armados de rifles e pistolas. Eliza congelou por um instante, transportada de volta para um certo dia há muito tempo em Gordon Glen, quando os soldados da União invadiram sua casa.

- O que significa isso? - disse Susannah. Recobrando-se, Eliza ajudou a filha.

-?- Quem pensam que são, invadindo minha casa? - Viu os desordeiros virar os rostos espantados e barbudos para cima e olhar para elas. - Não viram uma aldrava na porta? Foi colocada lá para ser usada.

- Ah, sim - respondeu um deles. - Só que não estávamos certos de que abririam a porta para nós.

- Quem são vocês?

Susannah percorreu o olhar pelo grupo variado. Um deles usava um casaco da União, um outro tinha um boné bico-de-pato dos confederados.

- A que regimento pertencem?

- Regimento? - repetiu um deles, e deu uma gargalhada. Bem, creio que se pode dizer que estamos com nosso próprio regimento.

- Você é líder dessa ralé? - perguntou Eliza, descendo a escada, com Susannah bem atrás dela.

- Acho que sim.

- Então tenha a bondade de explicar o que deseja - disse Eliza. - Se é comida, ficarei feliz de compartilhar os poucos suprimentos do armário de estoque com vocês. Nenhum homem sai com fome de Oak Hill.

- Ora, é muito bom saber disso, senhora - o homem riu. Gosto de mulheres generosas. Mas vamos fazer uma coisa: apenas entregue a chave desse seu armário e nós nos serviremos de tudo que precisamos.

E assim foi feito. Susannah e Eliza ficaram indefesas enquanto eles vasculhavam a casa toda, levando tudo de valor, esvaziando baús e gavetas, arrancando os enfeites dos chapéus e dos vestidos, não deixando nada sem tocar.

Tarde da noite, Susannah e Eliza chegaram em Grand View com uns poucos pertences que conseguiram salvar, carregados numa carroça de campo puxada por uma velha mula. Seus escravos caminhavam atrás delas, levando a vaca leiteira.

Quando Temple saiu, Susannah olhou-a com tranquilidade.

- Eles levaram tudo - disse, olhando preocupada para o olhar distante no rosto de sua mãe. - Todos os suprimentos, cobertores, cobertas, lençóis, todas as coisas de costura, botões, linhas, alfinetes, agulhas. Não sei quantas mil coisas.

- Eliza... - Temple abraçou-a, penalizada.

Eliza tremeu levemente quando ela a tocou, e abaixou a cabeça.

- Quando saímos... Oak Hill estava em chamas.

- Não! - murmurou Temple, olhando para Susannah.

- É verdade. Puseram fogo no estábulo, no celeiro, em tudo. Eles riam o tempo todo.

- Vamos levar sua mãe para dentro, onde está mais quente. As duas ajudaram Eliza a descer da carroça e levaram-na para dentro da casa.

Cabin Creek

Território indígena

12 de julho de 1863

O suor escorria pelo rosto, ardendo no canto dos olhos. Lije esfregou-os com a mão enquanto vigiava sem descanso a estradinha que vinha do córrego. A densa mata à sua volta quebrava a intensidade do sol branco sobre ele. Um cheiro almiscarado de madeira molhada e terra úmida era forte no calor de verão enquanto ele olhava e esperava a aproximação do comboio de suprimentos da União com destino ao Forte Gibson, que fora retomado pelas forças federais em abril. Mas o ruído do córrego ditado pelas chuvas mascarava qualquer som.

Lije olhava a poeira subindo no horizonte, uma nuvem negra e comprida que pendia sobre a estrada do Texas. As carroças rolavam embaixo dela, e o comboio de suprimento se estendia por mais de três quilómetros, flanqueado por um completo regimento de infantaria apoiado pela unidade de artilharia, e ainda com um regimento de cavalaria percorrendo a frente, os lados e a retaguarda do comboio.

O comboio de suprimentos estava para enfrentar problemas. Atrás de Lije, no outro lado do Cabin Creek, 1.600 confederados se encontravam entrincheirados à espera dele

A qualquer minuto, pensou Lije, as patrulhas de reconhecimento estariam se aproximando para examinar o local de travessia do córrego.

Ele verificou seus homens, escondidos ao longo das margens arborizadas. Suas posturas demonstravam que eles estavam igualmente alertas, esquecendo-se temporariamente do calor pegajoso e do cansaço, seus constantes companheiros.

Um frio percorria os nervos de Lije e a tensão afiava seus sentidos, mas ele sabia que era melhor não se angustiar com a espera. Dois anos de luta o haviam ensinado que a espera logo terminaria.

E assim foi. O forte ressonar de tiros de mosquetes sobrepôs-se ao ruído das águas velozes do córrego.

Ele virou a cabeça rapidamente quando ouviu os tiros. A guarda da União não avançara pela estrada do Texas - viera pela passagem ao lado.

Lije apoiou o cabo do rifle no ombro e fez pontaria. A fumaça de um disparo surgiu à sua esquerda. Lije atirou. O inimigo estava atacando. O instinto e a experiência tomaram conta dele; não havia tempo para pensar, só para agir e reagir.

O ruído das varetas de espingardas emergiu com o zunido das balas, o estalar de galhos e o latejar do sangue pulsando em sua cabeça. Panos chapinhando na água indicavam que seus homems começavam a avançar no córrego cheio. Lije mudou de posição para atirar de novo. Abaixando o rifle, procurou as insígnias azuis de um oficial, esperando diminuir o ataque dos olheiros e ganhar tempo, fazendo com que seus homens cruzassem o córrego com segurança. Seria ótimo se conseguisse acertar um major da União. Enquanto apontava para um deles, outro oficial moveu-se em direção à linha de fogo.

Reconhecendo as inconfundíveis mechas prateadas, Lije olhou para o homem, sem acreditar no que estava vendo. Kipp. Seu tio era parte do destacamento avançado. Estaria Alex com ele?

Outra bateria de tiros atravessou as folhas. Lije atirou cegamente e recuou, abraçando a margem e cruzando o córrego. A guarda da União apertava o ataque. Quando ele se aproximou do outro lado do córrego, as armas rebeldes abriram fogo, dando-lhe cobertura Lutando contra a força da correnteza, Lije subiu rapidamente e rolou para uma trincheira. Ficou imóvel o bastante para recuperar o fôlego e contar seus homens, e então foi fazer seu relatório a Blade.

- Perdi seis - disse. - Dois, talvez três mortos e mais três desaparecidos. Feridos, talvez capturados. - Respingando água e suor, Lije arrastou-se de volta para a inclinação da trincheira e esfregou o rosto com a manga da camisa, sua energia demonstrando-se enfraquecida agora que o auge da luta passara. - Kipp estava com a guarda de avanço.

Blade olhou para o outro lado.

- Então ele está diante de nós. Lije sorriu ironicamente.

- O general Cabell chegou com seus homens? E Cooper?

Tanto Lije quanto Blade sabiam que essas forças eram necessárias para capturar o comboio de suprimentos. Desde maio nenhum comboio de suprimentos conseguira atravessar. Sem esses suprimentos o Forte Gibson cairia e o Sul voltaria a controlar todo o território indígena.

- Ainda não. As cheias dos rios podem estar retardando-os. Lije concordou, olhando para Deu, que se aproximava trazendo duas canecas.

- Preparei um caldo para o sr. Blade - disse Deu. - Achei que também gostaria de um pouco, sr. Lije.

- Gostaria.

Lije pegou a caneca, o aroma fervente despertando as dores da fome que sua refeição matinal de pão duro e carne-seca não haviam aplacado. Sorveu o caldo temperado, misturando-o com o pó sujo dos cartuchos grudado em seus lábios. Olhou para o lado norte de Cabin Creek - o lado da União.

- Qual a força deles?

- Nossos vigilantes identificaram a Terceira Brigada Indígena, reforçada com unidades do Forte Gibson, a Segunda Infantaria do Colorado, uma companhia da artilharia do Kansas, e... - Blade parou, olhando para Deu, que se afastava-os Primeiros Voluntários Negros do Kansas.

Lije comprendeu a hesitação de seu pai. Ike, filho de Deu, estava naquele regimento. Assim como Shadrach. E Jed Parmelee era um dos oficiais.

- Diabo - disse Lije, consternado.

Do outro lado do córrego a artilharia da União posicionou-se na margem norte, com uma bateria de seis quilos apoiando os canhões leves.

- Abriguem-se. - A ordem desnecessária atravessou as fileiras rebeldes.

Iniciou-se um bombardeio de artilharia, uma mistura de sólidos tiros potentes e mortais rajadas de metralhadoras. com a cobertura da artilharia os soldados da União moveram-se para a margem e testaram a profundidade do córrego. Uma vez conhecida, pararam o ataque da artilharia e afastaram-se, deixando uma guarda pesada posicionada na margem norte.

- Eles acamparão esta noite e esperarão baixar o nível da água - conjecturou Blade.

- Talvez isso nos dê tempo para a chegada de Cabell e Cooper - disse Lije, afastando-se para verificar as baixas.

O precioso comboio de suprimentos retrocedeu três quilómetros e acampou numa área de prado aberto ao lado da estrada do Texas. A principal força da União acampou bem afastada de Cabin Creek, fora do alcance da artilharia dos confederados.

Fora da barraca, Jed Parmelee fumava um charuto vagarosamente e olhava o grande acampamento à sua volta. Fogueiras pontilhavam a cena, brilhantes pontos de luz contra a escuridão da noite que caía. Vozes murmuravam em conversas baixas, enquanto alguém em algum lugar tocava numa gaita uma canção triste.

- Um pouco mais de café, major?

Jed olhou distraidamente para seu ordenança negro.

- Talvez mais tarde. Acho que darei uma volta por aí, Johnson.

- Sim, senhor, major. vou conservá-lo quente para o senhor. Sem procurar companhia, Jed caminhou em direção à beira do acampamento e levantou a cabeça para estudar o brilho das primeiras estrelas da noite. Procurar e identificar as constelações sempre havia sido um passatempo relaxante para ele, mas naquela noite sua silenciosa contemplação foi interrompida por um leve ruído, um suave farfalhar na grama, indicando a leveza de um pé cuidadosamente colocado. Jed voltou-se, esperando ser abordado por um sentinela. Mas a silhueta de um soldado continuou parada e silenciosa.

- Quem está aí? - indagou Jed.

- O cabo Gordon - A vagarosa resposta veio um instante depois de o homem aproximar-se, saindo das sombras profundas para o alcance da luz do acampamento.

- Sou Alex Gordon, major Parmelee. Talvez não se lembre de mim, mas conhece meu pai, Kipp Gordon, e, claro, conhece muito bem minha tia Temple Stuart.

Jed enrijeceu-se diante do comentário malicioso, mas não podia ignorar a vívida imagem da morena e linda Temple saltando rapidamente em sua mente. Seu olhar concentrou-se no sorriso presunçoso do homem.

- Lembro-me de você, cabo Gordon. - Na última vez que o vira, Alex apontava um revólver para Lije Stuart. - O que está fazendo tão longe do acampamento de sua companhia, cabo?

- Apenas desfrutando um pouco do ar da noite - respondeu Alex. - Tenho ensinado a alguns índios as finas sutilezas do jogo de dados... e aproveitado para ganhar algum dinheiro fácil enquanto isso. Então decidi caminhar um pouco antes de voltar, para ver como seus negros estão indo, agora que soube que eles serão a principal força do ataque de amanhã. Eles parecem muito quietos para meu gosto.

- Ah, sim? - Jed não gostou do tom de desacato e zombaria em sua voz.

- Deveria ter ouvido meu pai quando soube que nossas unidades ficariam de reserva para defender os flancos. Ele só faltou ajoelhar-se e implorar para participar do ataque. - Alex fez uma pausa. - Aqueles lá são os homens de Watie.

- Eu sei - respondeu Jed.

- Isso quer dizer que Blade também está lá. Meu pai queria tornar minha tia viúva antes de amanhã. Ele odeia a ideia de que alguém mais possa privá-lo do prazer de matar Blade. - Seu sorriso tomou um ar cínico. - Acho que ele sabe que você também gostaria de ver Blade morto.

- Ele está equivocado - retrucou Jed.

- Está?

- É melhor voltar para sua companhia, cabo.

- Boa caça amanhã, senhor - Alex levantou a mão numa saudação descuidada. - Isto é, se os seus negros realmente conseguirem cruzar o córrego amanhã.

Jed ouviu o comentário sarcástico e apertou os dentes em volta do charuto, sem dar resposta. Ainda sorrindo, Alex deu meia-volta e caminhou para as sombras.

Suspirando, Jed virou-se para o acampamento, uma vez que a paz da noite fora interrompida. Seu olhar percorreu os rostos negros dos homens reunidos em volta das fogueiras do acampamento, observando a tensão estampada neles, as dúvidas de apreensão. Era sempre assim em véspera de batalha, essa espera, assombrada pelo espectro do que o amanhã pudesse trazer.

com relação a esses homens, Jed notou algo mais. No dia seguinte iriam estar numa batalha pela primeira vez. Ele também estava tenso, mas essa fusão já lhe era familiar, como o eram todos os sons, visões e cheiros de uma batalha. Para ser honesto, ele não tinha certeza de como esses soldados negros reagiriam no dia seguinte. Porém, de uma coisa ele sabia: nunca comandara homens mais dispostos a serem soldados.

Ali, ao lado de uma das fogueiras, Jed notou a figura familiar do ex-mordomo de Will Gordon, Shadrach. Lembrou-se da surpresa que teve ao reconhecê-lo entre os negros recrutas. Como tantos ex-escravos, ele assumira o nome de seu ex-dono.

com quarenta e tantos anos, Shadrach era com toda certeza o mais velho dos recrutas. Tio Shad, era como todo mundo o chamava -oficiais e soldados. Era um dos quatro negros de todo o regimento que sabiam ler e escrever. À noite, diziam, Shad dava aulas nas barracas.

Pelo que parecia, ele estava ensinando de novo. Jed aproximou-se do fogo do acampamento, onde um punhado de soldados negros se aglomeravam em volta do magro Shadrach Gordon. Chegando mais perto, viu que ele não estava ensinando a escrever as letras de seus nomes, mas sim escrevendo cartas para eles. Cartas para casa. Surpreso pela descoberta, Jed parou nas sombras, fora do alcance da luz do fogo.

- Diga a ela que estou bem, que não se preocupe comigo dizia o negro ao lado direito dele, conferindo de perto depois enquanto Shadrach fazia as marcas no papel. No fim, o homem hesitou, então sacudiu os ombros, incerto. - Acho que isso é tudo. Se puder assinar Cuffy, farei meu sinal sobre o nome para que ela saiba que sou eu.

Shadrach entregou-lhe a caneta, e o homem chamado Cuffy fez um X no papel com grande cuidado. Alguém jogou mais um galho no fogo. Quando as chamas rapidamente se elevaram, a luz recaiu sobre Jed. Imediatamente dois soldados levantaram-se e colocaram-se rigidamente em posição de sentido, as mãos levantadas numa dura continência, que teria feito jus a qualquer cadete de West Point.

Quando os outros começaram a acompanhá-los, Jed entrou no círculo da luz, bateu uma continência como resposta e olhou para o resto deles.

- Fiquem à vontade, rapazes.

Eles relaxaram, mas não completamente. Um homem alistado nunca relaxa completamente na presença de um oficial.

- Ainda tem um pouco de café?

- Sim, major, sim. - Rapidamente uma caneca de café quente lhe foi oferecida. - Está limpa, senhor. Não bebi nela.

Jed ia fazer algum comentário sobre isso, depois achou melhor simplesmente concordar.

- Obrigado, soldado.

- De nada, senhor.

com a caneca, ele gesticulou para o papel nas mãos de Shadrach.

- Estou vendo que está escrevendo cartas.

- Tio... quero dizer, o soldado Gordon aqui escreveu uma carta para minha esposa em meu nome - admitiu Cuffy. - Ela não sabe ler, mas trabalha para uma família de brancos. Achei que eles a leriam para ela. Eu... eu pensei que a carta poderia servir de algum conforto para ela caso... bem, se por acaso...

- Esta noite mais cedo eu também escrevi para minha filha Diane - admitiu Jed. - Queria escrever-lhe há mais de uma semana, mas esta noite decidi... que não adiaria mais. Diane disse que toda vez que recebe uma carta minha sabe que houve alguma batalha em algum lugar. Cada soldado, não importa seu nível, pensa na família numa noite como esta.

- É verdade - Cuffy sorriu, agradecido. Jed sorveu um gole do café quente.

- Este café está ótimo.

- Foi tio Shad quem fez - disse alguém.

- Achei que sim. - Seu olhar procurou Shadrach do outro lado do fogo.

Shadrach tinha o olhar mais gentil e amigável que Jed jamais vira em qualquer outro homem. Uma confiança quase infantil transparecia naqueles olhos. Mas havia também inteligência. Definitivamente, muita inteligência. Agora Jed suspeitava que Shadrach sabia exatamente o que estava fazendo ali entre aqueles homens. À sua própria maneira, Jed procurava assegurar-lhes que todos os soldados sentiam os mesmos medos, dúvidas e apreensões que eles sentiam naquela noite.

- Não há nada que um soldado goste mais do que um bom café - comentou Jed.

- Essa é a pura verdade, senhor - concordou alguém.

- Vocês são bons soldados - Jed olhou para sua xícara, sentindo o silêncio crescer pesado à sua volta. - Há um monte de gente que acha que vocês não merecem usar esse uniforme azul.

- O que o senhor acha, major Parmelee? - perguntou Shadrach.

- Amanhã de manhã, quando começarem a atravessar aquele córrego, o que penso não vai importar. Somente o que vocês pensam; o que todos vocês pensam. Vocês mesmos responderão a essa pergunta.

Sem se apressar, ele tomou o resto do café, depois entregou a xícara vazia de volta a seu dono.

- Boa sorte... e boa caçada.

Depois que o major deixou o acampamento, o único som que se ouviu por vários minutos foi o crepitar das chamas. Ike olhou para eles, agachando-se sobre um joelho.

- Como acha que será amanhã, tio Shad?

- Barulhento. - Sua resposta foi seca.

- Isso vai ser, com certeza. - Alguém riu baixinho.

- Olha, vou dizer-lhe uma coisa - disse Cuffy. - Vermelho ou branco, esses rebeldes não vão gostar de ver negros armados com revólveres. Não, senhor, amanhã de manhã eles não vão mostrar piedade. De forma nenhuma.

- Só escravos fogem - gritou uma voz na escuridão. - E não sou mais escravo. Sou um soldado.

- Bravo, bravo - murmurou Shadrach em serena concordância.

À primeira luz do amanhecer, Lije viu os Primeiros Voluntários Negros de Kansas marchando numa longa coluna pela empoeirada estrada do Texas em direção à margem de Cabin Creek. Ali, eles formaram em fila dupla, enquanto atrás deles um pelotão da cavalaria galopava junto com os batedores, arrastando os canhões e as caixas de munição para as posições designadas.

Momentos depois a artilharia abriu fogo. O chão vibrou com o impacto de outro tiro pesado, desta vez mais perto. Lije rolou sobre as costas e olhou para os homens lá embaixo agarrando-se às paredes da trincheira. Até então o general Cabell ainda não chegara. Nem o general Cooper.

Apoiando o rifle contra o peito, Lije olhou para cima, procurando outras bolas negras. Mas embaixo, na linha, uma rajada de tiros explodiu numa forte lufada de fumaça sobre a trincheira, arremessando milhares de bolas de metal pelos ares, numa chuva mortal de granizo negro. Lije tremeu, odiando as malditas metralhadoras.

Fixou o olhar no céu da manhã e estudou sua suave cor azul, da mesma cor dos olhos de Diane. Diane... Ele havia tentado não pensar nela, queria bloqueá-la da mente e da memória. Entretanto, em momentos estranhos como esse, no meio do bombardeio da artilharia, sua imagem vinha até ele. Diane com seus cabelos dourados e olhos vivos.

Sabia que não adiantava olhar para trás. Naquele momento não adiantava pensar em nada. Apertando as mãos sobre o rifle, respirou o ar da manhã, a fumaça e o cheiro de terra atrás dele.

Ele imaginava como Ike se sairia na batalha que viria – e lembrou-se dos dias em que caçavam juntos faisões e esquilos. O menino sabia atirar. Mas Ike não era mais um menino. Estranhamente, queria que Ike se saísse bem na batalha. Lentamente, lembrou-se da fome de liberdade que vira nos olhos de Ike e imaginou se ele sabia que o conselho cherokee no exílio aprovara uma lei de emancipação no último mês de fevereiro, libertando todos os escravos dos cherokees.

Um silêncio arrastava-se estranhamente depois do trovejar de tantos canhões. Lije pôs-se de pé num salto e olhou sobre a trincheira. Os homens tomavam posição do outro lado da margem.

- Eles virão agora - disse a seu tenente. - Prepare seus homens.

Do outro lado do córrego uma companhia de cavalaria aproximou-se da margem norte a pé. Um major a cavalo puxou as rédeas e levantou a espada, e o brilho do sol incidiu sobre a lâmina de aço. Lije viu logo que não era Jed Parmelee. Parmelee era muito experiente; nunca teria feito de si alvo tão óbvio.

- Atacar! - A ordem soou rompendo o silêncio.

Como uma só unidade, a companhia correu para a frente, descendo desordenadamente a margem inclinada e entrando na água que ia até o peito, com as armas e munições erguidas sobre as cabeças. O major entrou no córrego com eles, sacudindo a espada e conclamando-os ao avanço.

Lije caminhou ao longo da trincheira, avisando:

- Fiquem firmes agora. Suspendam o fogo. Suspendam. Suspendam - Olhou e esperou até que os soldados de casacos azuis ultrapassassem a metade do córrego e se aproximassem de suas posições na margem sul, depois deu a ordem: - Agora!

De cima a baixo na margem sul, as armas rebeldes abriram fogo, disparando uma rajada mortal. O cavalo do major relinchou quando duas balas atingiram seu cavaleiro, e o oficial ianque rolou da sela, caindo na água.

- Atirem para valer! - gritou Lije.

Lije reagrupou sua companhia atrás da trincheira, com o prado às suas costas. Olhou para o muro azul das unidades de infantaria e cavalaria galopando para atacar sua posição. Mesmo quando deu ordem para atirar, Lije sabia que não seriam capazes de enfrentar o ataque da União; não sem reforços, não sem a artilharia de Cabell.

Enquanto a onda azul avançava, Lije levantou o revólver e atirou. No meio da fumaça viu de relance um oficial com barba dourada e prateada. Jed Parmelee, ali, no meio da infantaria dos homens de cor. No instante seguinte ele desapareceu, atirado para trás pela força de uma bala. De seu revólver? De alguém mais? Isso importava?

- Estão fugindo! - gritou alguém com alegria embaixo da linha. Limpando o suor dos olhos, Ike viu as forças rebeldes retrocedendo diante do pesado ataque, suas resistências desintegrando-se numa retirada desordeira.

- Conseguimos! - Ike jogou um punho vitorioso no ar. Nossa, homem, nós mostramos a eles.

- Ike, venha cá. Rápido! - chamou-o Shadrach. - O major Parmelee foi ferido.

Virando-se para o lado, o major Parmelee caiu contra o magro suporte dos braços de Shadrach, e seus joelhos dobraram-se mesmo quando tentava manter-se de pé. Seu braço esquerdo caiu para o lado, amolecido, a manga e o ombro de seu uniforme escuros de sangue.

Ike correu em direção a ele, viu a palidez de seu rosto e a expressão de choque em seus olhos.

- Major, precisa sentar-se, major. Está sangrando muito. Jed tentou empurrá-los para o lado, mas a perda de sangue o

enfraquecera, roubando suas forças.

- Estarei bom num minuto - disse, com as palavras arrastadas. - Vá. Volte para sua companhia. Quebre aquela linha rebelde.

- Já está quebrada, senhor - disse-lhe Shadrach. - Os rebeldes estão fugindo para o sul tão rápido quanto podem, e a cavalaria está se assegurando para que não mudem de direção.

Jed virou a cabeça e tentou focalizar os olhos em Shadrach.

- Fugindo?

- Fugindo como se todas as fúrias estivessem atrás deles, senhor.

Mais afastado no prado, um corneteiro deu o toque de chamada, convocando de volta as tropas para perseguir os rebeldes que fugiam. Ouvindo isso, Jed levantou a cabeça, os olhos brilhando por um momento. Então recostou-se contra Shadrach. - vou descansar um minuto - disse. Cuidadosamente, eles o colocaram no chão. Ike gritou sobre

seu ombro:

- Ei, Cuffy, vá chamar o médico para o major.

Um capitão branco de uma das companhias do regimento chegou e assumiu o comando, ordenando que os dois voltassem para suas unidades. ike roubou um olhar sobre o ombro enquanto se afastavam.

- Como acha que ele está, tio Shad?

- Não sei - respondeu, sacudindo a cabeça. - O major perdeu um bocado de sangue.

- Será que vai perder o braço?

- Não sei.

Fazenda Grand View

Nação cherokee

4 de julho de 1863

- Veja como o chão está seco - Eliza sacudiu a cabeça, desolada com a terra seca que caía das cenouras que tirara do solo. - Se não chover em um ou dois dias, teremos de buscar água do rio.

- Vai chover, vovó El - assegurou-lhe Sorrel, limpando vagarosamente o canteiro de beterrabas. - Não está ouvindo os trovões lá longe?

- Trovões? - Susannah abaixou a enxada e examinou o céu azul com ceticismo. - Não há nem uma nuvem à vista. Está imaginando coisas, Sorrel.

- Não, não estou. Ouça. Pode-se ouvir o trovejar ao longe. Sorrindo, Susannah levantou a enxada para tirar outra touceira

do mato que crescia perto de uma batateira.

- Tenho medo de estar imaginando coisas. Você não gosta de tirar... - Ela parou e inclinou a cabeça, ouvindo um som longo, baixo e retumbante. - Mamãe, Temple, estão ouvindo? O que é isso?

- Já lhes disse: é trovoada - Sorrel levantou-se e sacudiu a terra da saia.

- Não pode ser - Temple ouviu com atenção o som baixo, vibrante e constante. - Não pára nem muda.

- Pode ser de canhões? - perguntou Susannah. – Ouvi rumores sobre combates ao norte daqui dois dias atrás. Achavam que o comboio de suprimentos de Kansas tinha sido atacado.

- É isso! - Eliza ficou de pé.

- O quê?

- Deus seja louvado, é o comboio de suprimentos - exclamou Eliza.-E está vindo pela estrada do Texas. É isso que estamos ouvindo: o ressoar dos cascos dos cavalos e das rodas das carroças.

Num segundo, Susannah viu que sua mãe tinha razão.

- Eles conseguiram passar!

Ela soltou a enxada e agarrou as mãos de Temple, rindo e chorando ao mesmo tempo. Logo as três riam e se abraçavam, chorando, comemorando a notícia.

Surpresa, Sorrel perguntou:

- Por que estão tão felizes com o comboio de suprimentos? Temple pôs a mão sobre a boca, emocionada demais para

responder. Nos últimos meses elas tinham evitado cuidadosamente mandar Sorrel à despensa. Não queriam que ela visse o quanto estava vazia, o quanto perigava não ter comida na mesa. Sem os legumes frescos da horta, o leite da vaca e os ovos das poucas galinhas que tinham escapado, sua situação teria sido verdadeiramente terrível. Elas ainda tinham mais sorte de que a maioria das pessoas - bem mais do que as centenas de famílias famintas de refugiados acampadas em volta do forte.

Grand View fora poupada da pilhagem e devastação que atingira a maioria das casas da nação, graças em parte ao tácito acordo de ambos os lados de que o local deveria ser considerado um campo neutro. Para as forças rebeldes, era o lar do major Stuart. Para o Norte, era a residência da viúva e da filha do líder anti-separatista da União, Will Gordon. Por enquanto os saqueadores eram a sua única preocupação.

Susannah pôs os braços em volta da sobrinha.

- As carroças da União estão trazendo alimentos e suprimentos.

- Teremos açúcar de novo - exclamou Temple, sorrindo através das lágrimas. - E talvez fubá. E café. Café de verdade.

- E linha-lembrou Eliza. - Talvez um corte de tecido para fazer um vestido novo para você, Sorrel. Seus vestidos já não lhe cabem mais. Também, do jeito que está crescendo como mato.

Olhando para a garota, Eliza notou que ela não apenas estava crescendo, como também ganhando formas. Às vezes tinha a sensação de que Sorrel transformava-se de criança em mulher bem diante de seus olhos.

- E toucinho - Susannah acrescentou mais um desejo. Não comemos toucinho desde o inverno passado. Não sentem o cheirinho dele chiando na frigideira?

- Ouça-Temple olhava na direção da estrada do Texas, que passava a dois quilómetros de sua propriedade. - Está ficando mais alto agora. As carroças devem estar mais perto.

- Isso merece uma comemoração - observou Eliza.

- Vamos lá ver - sugeriu Sorrel, contagiada por sua agitação.

Susannah riu:

- Você só quer uma desculpa para parar de se preocupar com o jardim.

Sorrel deu um sorriso maroto.

- E você não?

Susannah sorriu de novo e olhou para Temple e Eliza.

- Seria um espetáculo de se ver, não seria?

- Sim, seria - concordou Eliza com um aceno decisivo. Phoebe está no tanque lavando roupas. Vá chamá-la, Sorrel. Se vamos pôr o trabalho de lado, é justo que todos o façam.

O comboio de suprimentos era realmente um espetáculo. Envolto numa nuvem de poeira cercada por mais de trezentos vagões carregados por mulas e bois, com sua escolta militar de cavalaria, infantaria e artilharia, estendia-se por vários quilómetros. O ressoar constante das rodas, as batidas dos cascos dos cavalos e das botas em marcha pareciam incessantes.

Quando a primeira cavalaria passou, Sorrel pegou o braço de Temple e apontou:

- Olhe, mamãe, lá está Alex!

- Onde? - Temple começou a perguntar, mas Sorrel correu para a beira da estrada, acenando e gritando para atrair a atenção de seu primo.

Um segundo depois, Temple viu Alex no meio de um grupo de cavaleiros, depois viu Kipp perto do mesmo grupo. Correu para saudá-lo, pegando as rédeas de seu cavalo quando ele se aproximou.

- Kipp, há tanto tempo não o vejo. Como está você?

- Bem. Mas não graças ao seu marido e aos traidores que andam com ele - rebateu Kipp.

O sorriso de boas-vindas desapareceu do rosto dela. Temple viu o ódio nos olhos dele. Um homem passou a cavalo, com uma atadura ensanguentada em volta da cabeça. Ela sentiu-se mal.

- O que aconteceu? - Susannah perguntou a ele.

- Eles estavam de tocaia esperando por nós em Cabin Creek, mas sua pequena emboscada falhou. - Ele meteu as esporas no cavalo e guiou-o para a frente, forçando Temple a afastar-se.

- E Blade... e meu filho? - A voz de Temple esmoreceu quando ela percebeu que sua pergunta ficaria sem resposta. Apertou o estômago, tentando controlar o medo.

- Eles estão bem, Temple - Susannah olhou para Kipp, que se afastava.-Todos os dois. Conheço seu irmão. Se não estivesse, ele agora estaria sorrindo satisfeito.

- Sim... sim, estaria!

Saber disso, entretanto, não aliviava a apreensão de Temple. Era algo com que convivia. Sempre.

Uma carroça puxada por uma parelha de mulas passou por elas. E outras seguiam passando. O comboio de carroças estendia-se até desaparecer na própria poeira. Os remanescentes de uma linha de infantaria arrastavam-se ao longo das carroças, acompanhando o comboio. A fadiga transparecia em seus rostos empoeirados e suados. Alguns empertigavam-se, aprumando os ombros ao passar por Temple e Susannah, mas a maioria estava muito cansada para dar a elas mais do que um olhar.

Um capitão de cavalaria adiantou-se a galope, vindo de trás do comboio, e vagueou em volta delas, cumprimentando-as com um aceno e uma mesura. O toque de galanteria do gesto fez Susannah lembrar-se de Rans Lassiter. Ela pensou onde ele poderia estar, o que estaria fazendo, se estava a salvo. Depois sentiu-se uma idiota. Ele provavelmente não pensava nem um pouco nela.

Um sargento de infantaria de cara avermelhada parou para avisá-las:

- Desculpe, senhoras, mas é melhor se afastarem um pouco antes que um desses cavalos as atropele.

- Claro.

Temple olhou em volta procurando Sorrel, e finalmente viu-a com Eliza e Phoebe na beira da larga estrada do Texas. As três sorriam. Temple tentou sorrir também quando se juntou a elas, mas foi uma tentativa infeliz. De repente, ao pressentir a aproximação do comboio de suprimentos, parecia que há muito tempo ela não se sentia feliz. A notícia de que Lije e Blade possivelmente tinham participado de um ataque contra o comboio modificara tudo.

- Agora que já vimos o comboio, é hora de voltar e terminar nossas tarefas.

- Espere - Phoebe adiantou-se, a esperança brilhando em sua expressão. - Estão vendo aqueles soldados se aproximando? São negros, sra. Eliza. Acha que Ike está com eles?

- E Shadrach? - acrescentou Eliza rapidamente.

- Sim. Eles não disseram à senhora que estavam fugindo para se alistarem no exército da União? Talvez...

Phoebe deixou a frase incompleta e correu ao encontro das tropas negras que se aproximavam. As outras a seguiram, Temple atraída pela possibilidade de que Ike ou Shadrach pudessem dar-lhe alguma notícia sobre Lije e Blade. Phoebe não perdeu tempo, perguntando a cada homem que passava:

- Meu filho Ike, conhece-o? Ike Jones. Ele fugiu para juntar-se ao exército.

Homem após homem sacudia a cabeça. Alguns deram esperanças.

- Talvez esteja numa das companhias lá atrás.

E Phoebe perguntava ao próximo homem, repetindo a pergunta, às vezes acrescentando:

- Meu irmão Shadrach também se alistou. Conhece-o? Finalmente um soldado lembrou-se do nome.

- Shadrach. Pode ser... o tio Shad. Ele estava me ensinando a ler e escrever.

- Deve ser Shadrach - insistiu Eliza. - Tem de ser.

- Aúltima vez que o vi ele estava duas carroças atrás de mim.

- O homem fez um gesto sobre o ombro.

- Shadrach vai dar notícias de Ike - Phoebe deu um soluço e correu para trás para encontrá-lo. Três carroças depois ela viu Ike e esqueceu tudo sobre o irmão enquanto corria para o filho com um grito de alegria.

Sorrel apontou-os.

- Mamãe, veja, é Ike, Phoebe encontrou-o.

- Estou vendo. - Contudo foi outro rosto, logo atrás de Ike, que prendeu a atenção de Temple.

- Dona Eliza, dona Temple-chamou-as Shadrach, com um sorriso aberto.

Temple estava um passo atrás quando Eliza e Susannah correram para encontrá-lo.

- Shadrach, que bom vê-lo de novo - disse Eliza, sorrindo através das lágrimas. Meu Deus, está muito elegante nesse uniforme. Como está você?

- Estou bem, dona Eliza. Estou bem.

- Will ficaria muito orgulhoso se o visse.

O sorriso dele desapareceu, seus olhos escurecendo-se de pesar.

- O major Parmelee falou-me sobre o senhor Will. Sinto muito, dona Eliza. Espero que...

- Eu sei - Ela limpou rapidamente as lágrimas do rosto e empinou o queixo para cima, recusando-se a falar de sua dor.

Ciente disso, Shadrach virou-se para Temple quando ela se aproximou dele.

- Como tem passado, dona Temple? Acho que seu irmão Kipp está com o comboio, em algum lugar aí na frente.

- Já o vi. Ele disse que o comboio foi atacado em Cabin Creek. Disse que foi o regimento do general Watie.

- É verdade. Mas eu verifiquei, sra. Temple. Seu filho Lije e o sr. Blade não estavam entre os rebeldes mortos ou feridos que encontramos depois da batalha. Se estavam com o general Watie, saíram ilesos.

- Obrigada. Graças a Deus - murmurou Temple, aliviada.

- O major Parmelee ainda está no seu regimento? - Susannah olhou para três oficiais que passavam a cavalo.

- Sim, mas... o major foi ferido durante a luta no córrego. Ferido no braço.

A preocupação transpareceu nos olhos de Shadrach. Susannah notou-a.

- É muito sério? - perguntou ela, lembrando-se de ter lido nos jornais do Leste notícias de barracas de hospitais armadas perto dos campos de batalha, médicos cheios de sangue com seus serrotes de cortar ossos e os gritos dos pacientes semidrogados.

- O médico acha que pode ser que ele se salve... a menos que tenha gangrena.

- Oh, meu Deus, não-exclamou Susannah apreensiva, com os olhos fechados.

- Onde está ele agora, Shadrach? - perguntou Temple.

- Está na cama numa das carroças lá atrás, com outros feridos. Estão dando a ele algo para mantê-lo dormindo para que não sinta o sacolejar da carroça.

- Graças a Deus - murmurou Eliza.

Shadrach olhou para os soldados negros, já quase fora de vista.

- Tenho de alcançar minha unidade - disse, caminhando naquela direção. - Deveremos chegar ao Forte Gibson amanhã.

- Eu o verei lá quando formos pegar os suprimentos prometeu Eliza, acenando, enquanto ele corria atrás de sua companhia.

Não havia mais razão para ficar à beira da estrada. Elas se viraram e voltaram para casa, tristes com as notícias que haviam recebido.

- Não consigo parar de pensar em Jed - Eliza sacudiu a cabeça, consternada. - vou rezar para que ele não perca o braço.

- Diane vai ficar doente de preocupação quando souber disso

- declarou Temple com um suspiro. - Pobre garota.

- Susannah! Susannah, está me ouvindo? - A voz de Eliza finalmente quebrou sua distração.

- Desculpe, mamãe, o que disse?

- Esta noite devemos fazer uma lista dos suprimentos de que necessitamos - disse Eliza. - Ah, também prometi a Nathan que da próxima vez que fôssemos ao forte, levaríamos roupas velhas, cobertores, objetos caseiros, tudo que pudesse ser distribuído entre as famílias que estão refugiadas lá. Precisamos juntar essas coisas.

- Tenho muitos vestidos que estão apertados em mim. Podemos levá-los - ofereceu Sorrel.

- E sapatos também - acrescentou Temple. - Não esqueça seus sapatos velhos.

Sorrel concordou distraidamente, pois seus pensamentos estavam em outra direção.

- Espero poder ver Alex quando formos ao Forte Gibson.

- Alex - repetiu Temple, irritada. - Você só fala nele.

- Mas não pude dar nem uma palavrinha com ele hoje queixou-se Sorrel em defesa própria. Então, seu rosto iluminou-se com um pensamento repentino. - Acho que vou usar meu vestido verde enfeitado com os raminhos de violeta. Fico parecendo mais velha. Será que ele vai me reconhecer? Acha que vai, mamãe?

- Acho que sim. - Era a vez de Temple responder distraidamente.

- Você parece triste, mamãe. O que há de errado?

- Estava pensando no major Parmelee... pensando que poderia ter sido seu pai... que poderia ser ele naquela carroça com o braço... - O resto das palavras ela engoliu em seco.

- O braço de Jed vai ficar bom - assegurou-lhe Eliza.

Como o resto do Forte Gibson, o hospital se encontrara lotado tanto de soldados quanto de civis. Cada centímetro estava ocupado por doentes e feridos, sobrando pouco espaço para se andar entre eles. Susannah entrou pela porta aberta e parou, sobressaltada com os gemidos febris, as respirações ofegantes e os soluços fracos que enchiam o ar. Cometeu o erro de dar um rápido e profundo suspiro e inalou odores fétidos intensificados pelo calor sufocante de julho. Tossiu e rapidamente levantou a mão para bloquear os odores. Ao lado dela, Temple murmurou:

- Eu sabia que as condições tinham se deteriorado aqui no forte, mas nunca pensei... - Sua voz esmoreceu enquanto olhava as fileiras de macas cobertas com redes de mosquito.

Um ordenança saiu de trás de uma das macas com uma bacia nas mãos. Seu rosto estava sem barbear e abatido pelo cansaço. Seu olhar se dirigiu a elas em rápida avaliação.

- Se estiverem procurando o médico, ele está descansando. Se não for sério, procure um médico assistente na barraca lá fora. - Ele começou a dar meia-volta, depois se voltou de novo, animando-se um pouco. - Mas se estiverem aqui para ajudar...

- Viemos ver o major Parmelee - explicou Susannah, evitando olhar para as ataduras cheias de pus esverdeado dentro da bacia.

-- O major? É só me seguir: eu lhes mostro onde ele está disse ele, seguindo na frente dela.

- Como está ele? - perguntou Temple.

- Está bem, apesar de tudo - respondeu o ordenança sem olhar para trás.

- Apesar de quê? - Susannah queria saber.

- Seu braço... eles não tiveram de... - gaguejou Temple.

- Amputar? - Ele terminou a pergunta. - Não, o doutor fez um excelente trabalho, salvando-o. Mas aquela bala foi uma... fez um estrago em seu braço. Arrancou um monte de músculos. Mesmo se cicatrizar bem, não tenho certeza do quanto vai poder usá-lo. Ele parou e usou a bacia para apontar uma divisória. - Ele está ali dentro. O criado está cuidando dele.

Diante da previsão nada animadora, Susannah olhou para a irmã.

- Um braço aleijado. - A ansiedade estava estampada nos olhos de Temple.

- Podia ser pior, Temple - disse Susannah em voz baixa.

- Eu sei.

Temple puxou a saia para o lado e deu a volta pela divisória. Susannah acompanhou-a.

Um vento de verão entrou pela janela aberta para a direita da cama do hospital, sua frescura poeirenta aliviando os odores desagradáveis que inundavam o resto da enfermaria. Um soldado levantou-se rapidamente da cadeira ao lado da cama, olhando para Temple e Susannah.

- Eu estava dando uma sopa para o major. Ele tomou quase tudo.-Colocou o prato de sopa e a colher numa caixa de madeira sob a janela. - Ninguém avisou que o major ia receber visitas. Se me derem apenas um minuto, vou arrumá-lo um pouco.

Voltou-se para a cama e tirou o pano que colocara sob o queixo do major. com a ponta do pano, gentilmente limpou a boca de Parmelee.

- Ele pode estar um pouco enjoado de tanto tomar sopa, mas está ficando cada dia mais forte.

Na opinião de Susannah o homem deitado na cama parecia tudo, menos forte. Seus olhos estavam fechados, o rosto, pálido como giz; a respiração, entrecortada, e o braço e o ombro esquerdos cobertos de ataduras.

- Major. - O soldado inclinou-se sobre a cama e pôs a mão no seu ombro direito bom. - Major, o senhor tem visitas. Algumas senhoras estão aqui para vê-lo.

Ele moveu a cabeça ligeiramente, piscando os olhos.

- Johnson? - ouviu-se a voz fraca, mas inconfundível, de Jed Parmelee.

- Sim, major, sou eu. O senhor tem visitas.

- Visitas... Jed passou a língua nos lábios secos e virou um pouco a cabeça no grande travesseiro duro, procurando com o olhar abatido. - Quem... Diane?

Temple moveu-se para o lado oposto da cama e pôs a mão em seu braço direito com um sorriso determinado nos lábios.

- Não, Jed, sou eu. Temple.

- Temple. - Seus olhos iluminaram-se com vida e luz. Era uma visão reconfortante. - Estava preocupado com... você.

- E nós com você - retrucou ela. - Shadrach nos contou que você foi ferido.

A cabeça dele oscilou num débil aceno, e sua boca curvou-se num sorriso lento.

- O braço... eu disse àqueles carniceiros que tinham de salvá-lo. Precisava de dois braços para valsar com uma... bela dama.

- Ele está delirando um pouco, senhora-apressou-se a dizer o soldado. - Eles deram-lhe morfina para a dor. Às vezes o que ele diz não faz sentido.

- Desta vez está fazendo. - A voz de Temple amaciou-se com a lembrança.

- A primeira vez, Temple - disse Jed cuidadosa e vagarosamente. - Lembra-se... eu a ensinei...

- Sim, você me ensinou a dançar valsa há muito tempo. Ele balançou a cabeça.

- De novo... guerra terminar... em breve... - Seus olhos acesos voltaram-se para o criado. - Diga... notícias.

- Sim, major- respondeu o homem, voltando os olhos para Temple, com a expressão brilhando de contentamento. - No mesmo dia em que o major lutou com os rebeldes em Cabin Creek, na Pensilvânia, descobrimos que o general Meade estava derrotando o velho Bobby Lee num lugar chamado Gettysburg. No dia seguinte, o general Grant tomou Vicksburg. O Norte agora tem todo o rio Mississipi nas mãos e cortou o Sul pela metade. A guerra terminará logo, com certeza.

- Vamos rezar por isso. - Susannah, entretanto, achava difícil ser tão positiva.

Franzindo o cenho, Jed Parmelee levantou a cabeça um centímetro.

- Quem...

- Susannah está aqui também - explicou Temple.

As rugas desapareceram de sua testa e ele levantou as mãos, dobrando os dedos.

- Susannah...

Ela chegou mais perto da cama, estendendo a mão para apertar sua mão direita.

- Minha mãe manda lembranças, major. Ela está com o reverendo Cole. Disse que virá vê-lo antes de ir embora.

- Diane... diga a ela para não se preocupar. Eu ficarei... bom.

- vou escrever para ela e direi o que vimos. Garantirei a ela que o senhor está se recuperando bem.

- Por favor... - o pedido saiu num suspiro, as pálpebras ficando mais pesadas de cansaço.

- É melhor ele descansar um pouco - sugeriu seu criado. Falar tira a força dele.

- Claro - Temple aproximou-se de Parmelee. - Agora durma, Jed. Voltaremos depois, quando estiver mais forte.

A boca dele torceu-se num quase-sorriso, enquanto seus olhos se fechavam e sua respiração tornava-se mais equilibrada. Temple ergueu-se.

- Muito obrigada, soldado.

- Johnson, senhora. Soldado Johnson - disse ele, movendo-se rapidamente para acompanhá-las em direção à área divisória.

- Não se preocupe com a aparência do major. Da forma que ele está comendo, vai ficar corado logo, logo. Da próxima vez que vierem, o major já estará de pé, andando.

- Espero que sim - murmurou Temple, sem muita certeza.

- Não se preocupem. Eu cuidarei dele. O major é um bom homem.

- Um homem muito bom - concordou Susannah. - Obrigada, soldado Johnson.

- De nada, senhora.

Fora do hospital, Susannah parou, sentindo um peso no coração.

- Viu bem o braço dele, Temple? Ele nunca vai conseguir usá-lo de novo.

- Mas está vivo. O que é a perda de um braço quando se poderia ter perdido a vida?

Os olhos de Temple ardiam com uma luz que era quente demais, brilhante demais. Naquele instante, era óbvio que ela não pensava em Jed Parmelee, mas em Blade, sempre com medo de que a guerra o tirasse dela.

Não havia palavras de conforto que Susannah pudesse lhe oferecer. Em silêncio elas cruzaram o complexo, desviando-se da confusão de veículos militares, soldados e refugiados até a loja de armazéns, onde encontraram Eliza e Sorrel.

- Como está Jed? - Eliza não perdeu tempo com preliminares.

- Fraco, mas lúcido. E não parecia febril - respondeu Temple - Ele foi ferido há cinco dias. Creio que o perigo de complicações já passou.

- É uma boa notícia.

- Onde está Phoebe? - Temple olhou em volta à procura de sua criada.

- Ainda está paparicando Ike, que está morrendo de vergonha

- disse Eliza, sorrindo.

- E brigando com Shadrach, que fugiu e deixou vovó El acrescentou Sorrel. Então ela parou, os olhos brilhando de excitação. - Vi Alex. Ele ficou surpreso do tanto que eu cresci. Disse que estou ficando uma bela moça. Mamãe, ele estava tão bonito em seu uniforme!

- Tenho certeza de que sim.

- Sabe mais o que ele disse? - perguntou Sorrel, erguendo as sobrancelhas. - Disse que os rebeldes estão se juntando em massa do outro lado do rio, e que se pode ver suas barracas de cima dos prédios aqui do forte. Estão chegando perto assim.

Temple virou-se para olhar naquela direção, apertando os olhos para a margem distante, tentando ver através das pessoas e dos prédios que bloqueavam sua visão.

- Tão perto... - murmurou ela, e Susannah sabia que se referia ao marido e ao filho, não à presença das tropas rebeldes.

- Alex disse que à noite se pode ver as fogueiras do acampamento à nossa volta. Disse que todo o exército rebelde está se juntando ali, que nossos espiões da União resolveram que eles estão se aprontando para atacar o forte, e que há seis mil homens ou mais. Todo mundo está com medo, porque não temos bastantes soldados para lutar com tanta gente. Eles pediram reforços, mas não sabem se chegarão aqui a tempo. Todo mundo pode ser morto.

Susannah apertou os lábios, irritada com Alex por alarmar Sorrel com boatos e especulações.

- Ele não deveria nunca dizer essas coisas a você.

- Estou contente que tenha dito-Sorrel endureceu-se diante da crítica feita ao primo. - Odeio os rebeldes. Tomara que todos eles morram!

Temple virou-se.

- Você não deve dizer o que não deseja, Sorrel. Se quiser desejar algo, deseje que a guerra termine, mas não deseje a morte de todos os rebeldes, porque estará desejando a morte de seu pai e de seu irmão. E você não deseja isso.

Sorrel virou a cabeça em inesperado e raivoso desafio.

- Se eles não se incomodam com o que acontece conosco, por que devo me incomodar com o que acontece com eles? Veja o que fizeram. As casas que queimaram, as pessoas que mataram, a comida e as colheitas que destruíram. As pessoas estão doentes e passando fome por causa deles. Eles merecem morrer pelo que fizeram.

No instante em que Sorrel fez sua amarga e vingativa denúncia, Temple explodiu e deu um ressonante tapa em seu rosto.

- Não diga isso! - Agarrou-a pelos ombros e sacudiu-a com força. - Nunca mais diga isso de novo, está ouvindo? Os confederados não são responsáveis por toda a destruição e devastação que há por aqui! Os ianques também têm sua parte, também devastaram e saquearam - tanto quanto os guerrilheiros. Se quiser culpar alguém pela miséria e sofrimento, culpe a guerra. Culpe a guerra!

Quando começou a dar outra sacudida em Sorrel, Eliza interrompeu-a.

- Temple, não - reprovou-a suavemente.

Ainda em movimento, Temple soltou a filha e virou-se com o corpo tenso e trémulo.

- Como pude ter uma filha dessas? Por que ela ficou assim? Alex! Alex! Alex! - gritou ela numa voz raivosa. - Ela só sabe falar nele, em vez de Lije. Devia pensar em Lije.

Sorrel olhou para ela, ainda paralisada e magoada pela bofetada física e verbal da mãe.

- Não sou mais criança para falarem como se eu não estivesse aqui. Também tenho sentimentos.

- Claro que tem - Susannah moveu-se rapidamente para o lado de Sorrel, colocando o braço em volta de sua cintura e afastando-se com ela. - Mas sua mãe também tem.

- Não me importo com o que ela sente.

- Agora está falando como uma criança - recriminou-a Susannah. - Sorrel, você já está crescidinha o bastante para comprender como foi cruel e impensado dizer que deseja que seu pai e seu irmão morram. Não quer realmente que eles morram, quer?

- Não - admitiu ela numa voz baixa, olhando para o chão.

- Você feriu sua mãe profundamente quando disse isso. Já existem dor e sofrimento suficientes, não é preciso que você acrescente mais.

- Eu sei. Mas Alex disse... Susannah interrompeu-a.

- Não importa o que Alex diz. Deve aprender a pensar por si mesma.

- Ele não mentiria para mim - insistiu Sorrel.

- Mas pode ser que ele não saiba de toda a verdade. Atrás dela, Susannah ouviu Temple formular um ardente desejo.

- Rezo a Deus para que Jed esteja bem e que a guerra termine logo.

Susannah acrescentou uma prece silenciosa por si mesma.

forte Gibson

Nação cherokee

11 de julho de 1863

Três dias depois, Jed Parmelee recuperou-se o bastante para mudar-se do hospital para seus próprios aposentos no posto. O soldado Johnson abriu a porta quando Temple e Susannah vieram vê-lo no dia seguinte e deu um sorriso.

- O coração do major certamente vai alegrar-se com a presença de vocês.

- Como está ele? - Temple estudou o rosto do negro, procurando a menor reação.

- Vejam por si mesmas. - Ele abriu a porta e conduziu-as ao salão principal.

Jed estava sentado numa cadeira de braços, com um cobertor sobre as pernas, apesar do calor do dia. A camisa do uniforme meio aberta revelava as ataduras em seu braço esquerdo, que faziam um volume desnatural no meio. Seu rosto ainda tinha aquele olhar dolorido, mas a cor já começara a voltar, como seu criado previra.

No instante em que as viu, Jed segurou no braço da cadeira com a mão direita e empurrou-se para cima, empalidecendo ligeiramente com o esforço e desequilibrando-se por um instante.

- Não, Jed, não faça isso.

Temple correu em sua direção, certa de que ele cairia. Ele, entretanto, pegou a mão enluvada que ela teria usado para ajudá-lo a voltar à sua cadeira e levou-a aos lábios.

- Sou capaz de ficar de pé, Temple. Esse ferimento roubou muito das minhas energias, mas não me transformou num inválido.

Ela sorriu, aliviada.

- Estou feliz em saber disso, mas espero que me agrade voltando para a cadeira.

- Claro. - Jed soltou a mão dela e não ofereceu resistência quando ela pegou seu braço, amparando-o enquanto ele se sentava na cadeira.

- Por favor, sente-se também.

Ele fez um gesto em direção ao sofá encostado à parede, a única peça de mobília que existia no quarto, além de sua cadeira e de um caixote de madeira bem ao lado dele.

- Nosso conforto aqui é espartano, mas é melhor do que o hospital.

- Definitivamente - Susannah sentou-se no sofá ao lado de Temple, alisando automaticamente a saia.

- Escrevi a Diane dizendo que está bem, mas é lógico que tenho de escrever de novo para informá-la da sua melhora.

- Comecei a escrever três cartas para ela - Jed esfregou a mão sobre o volume que a atadura fazia em sua camisa.-O médico disse que provavelmente não recuperarei o uso do braço, mas oficiais de um braço so já serviram o exército antes.

Antes de levantar-se ele parou, por um momento perdido em seus pensamentos.

- Johnson, prepare um chá para as senhoras. E traga um prato daqueles biscoitos amanteigados que você fez.

- Sim, senhor. Já, já, senhor. - O criado saiu do quarto e desapareceu no interior do cómodo dos fundos.

- Não esperava que me visitassem tão cedo de novo comentou Jed. Subitamente ele franziu os olhos, preocupado. As estradas estão seguras para vocês viajarem?

- Estávamos bem protegidas - assegurou-lhe Susannah, sorrindo. - Desde que entramos na estrada do Texas, ficamos a uma pequena distância de um completo regimento de soldados da União. Eles vieram marchando para o forte bem atrás de nós.

- Deve ser o general Blunt com reforços - observou Jed, satisfeito. - Se Deus permitir, voltaremos à ofensiva e atacaremos aqueles Joões Rebeldes antes que eles possam reagrupar-se Temple estremeceu diante do tom de impaciência na voz dele, uma alusão à irritação que poderia advir se isto não acontecesse. Ele notou seu movimento e imediatamente suspirou, arrependido. Desculpe-me, Temple. Eu não estava pensando.

- Isso não é verdade. Você estava pensando, mas como um soldado, que é o que você é. - Ela sentou-se com uma empertigação pouco natural, as mãos dobradas sobre o colo.

- Mesmo assim... com a guerra e tudo o mais...-eleescolhia as palavras com cuidado, fazendo referência a Blade e Lije -. Eu compreenderia se não tivesse vindo me ver.

Temple negou com a cabeça.

- Essa guerra destruiu muitas famílias, acabou com muitas relações. Detestaria ver nossa amizade tornar-se outra vítima dela.

- Eu também - Jed acenou vagarosamente. - Eu também. Do lado de fora da porta veio o som de vozes e de passos. A

fechadura girou, a porta se abriu e deu entrada ao major Adam Clark, o médico do exército que Susannah conhecera com Diane no Forte Scott. Trazia uma sacola de viagem sob o braço e a valise na outra mão. Virou-se para alguém atrás dele:

- Aqui estamos.

Afastou-se enquanto Diane entrava, segurando as fitas de sua touca, uma camada de poeira de viagem embaçando a cor marromcafé de seu vestido.

- Obrigada, Adam. - Ao levantar a mão para tirar a touca, ela viu Jed na cadeira. Parou por um instante, o alívio em seus olhos, as linhas de tensão suavizando-se em seu rosto.

- Papai, que maravilha vê-lo sentado nessa cadeira. - Sorrindo, ela puxou a touca e, enquanto corria para ele, viu Temple e Susannah. - E cheio de visitas. Inclinando-se, ela beijou-lhe o rosto, depois levantou-se. - Não esperava encontrar vocês duas aqui, mas estou contente que tenham vindo. Que bom vê-la de novo, Susannah.

- Que bom vê-la também, Diane - retrucou Susannah com sinceridade.

Houve uma hesitação mínima, uma pequena tensão quando Diane se voltou para cumprimentar Temple, a mulher que poderia ter sido sua sogra.

- Como está, sra. Stuart?-perguntou, incerta sobre a recepção que teria.

- Estaria bem melhor se me chamasse de Temple, como sempre fez - respondeu ela, gentilmente.

O sorriso de Diane foi rápido e cheio de gratidão.

- Como está, Temple?

- Assim é bem melhor.

Ela olhou de volta para seu acompanhante, que colocava as malas no chão.

- Temple, gostaria de apresentar-lhe o major Adam Clark, o médico do regimento do general Blunt. Esta é a sra. Stuart, Adam. Sei que se lembra de Susannah, do Forte Scott.

- Sim, realmente - confirmou ele, acenando para elas. Senhoras...

- Como está, major Clark?

Susannah procurou por alguma indicação de que o relacionamento entre Diane e o médico progredira além da amizade. Não encontrou nenhuma, mas sabia que não era por falta de desejo por parte de Adam Clark.

- Muito bem, obrigado. - A atenção dele voltou-se para Jed, a quem examinou com olhar clínico. - É bom ver o senhor bem-disposto, major Parmelee.

- com certeza-concordou Diane, dirigindo-se em seguida a Temple e Susannah. - Digam-me, papai tem-se comportado bem?

Antes que elas pudessem responder, Jed pegou a mão de Diane para mantê-la perto de sua cadeira.

- Diane, o que está fazendo aqui?

- Que pergunta boba - retrucou ela, ainda sorrindo. - Vim ver como você está. Não achava que eu fosse ficar no Forte Scott depois de ser informada de que estava seriamente ferido. Receei encontrá-lo às portas da morte. Estou feliz por ter-me enganado.

Jed acabou com a preocupação dela com um impaciente menear de cabeça.

- Mas como chegou aqui?

- O general Blunt foi gentil o bastante para acompanhar-me.

- Ela parou, com o olhar matreiro. - Embora, naturalmente, ele não estivesse consciente disso. Assim que soube que o general marchava para o Forte Gibson, joguei algumas coisinhas na bolsa e me juntei a uma família de refugiados que planejava seguir nos calcanhares do exército, para ter proteção.

- Você é muito criativa - elogiou Jed com orgulho.

- A filha de um oficial de exército tem de ser - disse Diane com um sorriso, dirigindo em seguida um rápido olhar para o fundo do alojamento.

- Onde está Johnson? Ele ainda está com o senhor, não?

- Está - respondeu Jed, sendo interrompido pela volta do criado.

- Aí está você, Johnson - Diane olhou a bandeja esmaltada que ele carregava com várias xícaras. - E fez chá. Que maravilha.

- Achei que tinha ouvido sua voz, srta. Diane, por isso coloquei uma xícara extra para a senhorita. Mas não sabia que o major também estava aqui. vou pegar mais uma.

- Não se preocupe - disse Adam Clark. - Não vou poder ficar. Tenho certeza de que estão precisando de meus serviços na enfermaria. Voltarei para vê-lo mais tarde, Jed. Senhoras...

Despediu-se e saiu.

Diane olhou-o por um momento, depois puxou o caixote de madeira para perto do sofá, longe do pai.

- Pode pôr a bandeja aqui, Johnson.

- Sente-se, Diane - Temple afastou-se para dar lugar a ela no sofá.

- Depois de tantos dias chacoalhando naquela carroça, prefiro ficar de pé - insistiu ela com um sorriso.

Jed riu. Era o primeiro som de verdadeira alegria que Susannah ouvia dele. Silenciosamente ela ficou maravilhada pela forma com que Diane trazia cor e alegria a cada canto do quarto sem vida. Não havia dúvida de que ela seria um excelente remédio para Jed.

- Por favor, Temple, sirva.

- Se deseja...

O criado colocou a bandeja no caixote.

- Desculpem não termos xícaras bonitas para servi-las, mas o chá está quente.

- Notei que há muitas coisas que não temos - observou Diane. - Faltam cortinas nas janelas, tapetes no chão, quadros nas paredes. Estou vendo que vou estar muito ocupada nos próximos dias tentando tornar este quarto apresentável.

- Acredite-me, vocês não reconhecerão este quarto quando Diane terminar com ele - disse Jed. - Como eu disse antes, ela é muito criativa.

- Num posto militar, isso significa que sou uma excelente desencavadora de coisas.

Depois que o chá foi servido, Diane pegou duas xícaras e levou uma para seu pai, virando-a para que ele pudesse segurá-la pela alça.

- Vai ter de ser - disse Susannah. - Principalmente aqui, onde até o básico é difícil de se encontrar.

- Sim, tanta gente amontoada - suspirou Diane. - As condições sanitárias são deploráveis. Há lixo por toda parte, latrinas abertas. Tremo só de pensar nas refeições. Isolado como é este posto, e quase sem receber suprimentos.

Ela parou perto da cadeira do pai, a mão descansando ligeiramente em seu ombro. Ele sorriu para elas.

- Diane era muito ativa nas organizações femininas de assistência social em Kansas. Além de ajudar doentes, escrever cartas e recolher ataduras, roupas e alimentos, era extremamente ágil em chamar a atenção do comandante do posto para qualquer deficiência na limpeza, na dieta e na ventilação.

- Às vezes eu fazia papel de maluca - mais uma vez seu sorriso estava de volta, como que fazendo pouco das suas contribuições.

- E trabalhava duro também.

- Quando era necessário.

- com tantas famílias refugiadas no forte, as necessidades não têm fim - admitiu Temple. - Muitas delas sentem falta inclusive do básico, como comida, roupas e abrigo. Na semana passada trouxemos cobertores e todas as roupas que não usamos mais para o reverendo Cole, mas isso é tão pouco... E há tanta gente, tantos doentes e feridos... é muito difícil para o médico do forte dar conta de tudo.

- Uma pessoa sozinha não pode resolver todos os problemas daqui - argumentou Diane. - Mas várias pessoas trabalhando juntas podem fazer uma grande diferença e, no mínimo, melhorar a situação. Claro que a primeira coisa que deve ser feita é identificar-se os pontos mais deficientes. Depois disso, tomam-se providências para corrigi-los. Para isso, são necessárias muitas mãos querendo ajudar. - Ela parou e passou o olhar por Temple e Susannah, numa rápida avaliação. - Sei que isso agora é apenas uma luta pela sobrevivência, mas se pudessem dar algumas horas de seu tempo por semana...

- Vejam como ela fala-disse Jed, divertido e orgulhoso. Não está aqui nem há cinco minutos e já está recrutando voluntários.

- Papai está certo. - Os cantos da boca de Diane viraram-se para cima num sorriso pesaroso. - Desculpem-me. Mas há tantas coisas diante das quais me sinto impotente que, quando encontro algo que posso fazer, começo a dedicar-me imediatamente a isso. É um defeito meu.

- Um defeito louvável - sorriu Susannah. - Ficarei feliz em ajudar quando e como puder.

- Todos ajudaremos - acrescentou Temple.

- Ótimo - Diane iluminou-se de alegria. - Afinal de contas, isso não tem nada a ver com o Norte ou com o Sul. Trata-se de ajudar àqueles que estão sofrendo, que estão vivendo em condições deploráveis.

Temple concordou.

- Sei que Eliza sempre se lamenta da não poder fazer nada para ajudar a diminuir a carga que o reverendo Cole assumiu para si mesmo, especialmente em relação aos órfãos.

- E como está Eliza? E Sorrel?

Elas conversaram sobre a família, cada qual evitando qualquer conversa sobre a guerra que pudesse levar a uma imprudente referência a Lije ou a Blade. Mas todas essas precauções verbais transformaram-se num grande peso. Antes que isso se tornasse óbvio, Susannah, procurando mudar de assunto, perguntou, depois de ver a xícara vazia de Jed.

- Mais chá, major?

Ele olhou para a xícara, surpreso de encontrá-la vazia, enquanto Susannah notava os primeiros sinais de fadiga em volta de sua boca e de seus olhos.

- Não, acho que não - respondeu ele, inclinando-se para colocar a xícara na bandeja.

- Deixe que eu faço isso, papai - Diane tomou-a dele.

- Creio que está na hora de ir - disse Susannah. - Não desejamos cansá-lo, e temos um longo caminho até em casa.

Jed ensaiou um protesto, que só conseguiu demonstrar a Temple e Diana o quanto ele estava sem energia.

- Voltaremos depois - assegurou-lhe Temple, levantando-se.

- vou acompanhá-las até a porta.

Ao afastar-se, Diane olhou de volta para o pai. Ele já abandonara sua pose alerta: seu queixo estava caído, e seu corpo pendia contra a cadeira. Todas as antigas preocupações de Diane voltaram.

Ao chegarem à porta, Temple virou-se para despedir-se. Diane pôs o dedo nos lábios, fazendo sinal para que ambas saíssem. Seguiu-as e fechou a porta atrás de si. Foi direto ao ponto.

- Eu não podia perguntar a ele. Como está o braço dele, é muito sério?

Temple hesitou, depois admitiu:

- É possível que nunca recupere os seus movimentos, mas poderia ter sido pior, Diane.

- Claro. - Ela inclinou a cabeça formalmente. - Disseram-me que o comboio de suprimentos foi atacado pelo regimento de Watie. É verdade?

- Sim, mas... você não pode culpar Lije por isso, Diane protestou Susannah.

Diane ergueu a cabeça, os olhos frios, a dor escondida em suas profundezas.

- Então ele estava lá.

Susannah queria mentir, mas tudo o que pôde fazer foi sacudir a cabeça.

- Não faça isso, Diane.

Ela virou-se para a porta, fazendo menção de abri-la de novo.

- Por favor, venham visitar papai de novo. Não deixem minha presença ser um empecilho.

- Nunca faríamos isso. Somos amigas há muito tempo disse-lhe Susannah. - E isso nunca mudará, não importa o que aconteça.

Diane olhou para a amiga, com gratidão nos olhos.

- Obrigada.

De volta ao quarto, Diane dirigiu um rápido olhar ao pai e parou. Os olhos dele estavam fechados, e havia uma pequena careta de dor em seu rosto. Seu olhar desviou-se para a manga vazia alfinetada em seu ombro.

Subitamente ela sentiu-se à beira das lágrimas, mas agora não havia tempo para chorar. Não havia tempo para filosofar sobre o que poderia ter sido.

Deu meia-volta e empurrou a porta, que se fechou com uma batida seca, despertando seu pai, como ela imaginara que faria. Então, tornou a entrar no quarto.

- Juro que lá fora está quente o bastante para cozinhar um ovo com casca e tudo. Um dia desses deveríamos ser suficientemente sábios para seguir o exemplo dos mexicanos e tirar uma siesta.

Jed levantou a sobrancelha.

- Está dando uma indireta para que eu me deite? Ela riu, inclinou-se e deu-lhe um beijo no rosto.

- Sempre soube que você era um homem inteligente. Quanto amim... -ela levantou-se, mantendo sua atitude alegre -... tenho um milhão de coisas para fazer, mas a primeira é tomar um banho. Enquanto você se deita para descansar, Johnson pode começar a me trazer uns baldes dágua. Só Deus sabe como vou precisar deles. Sinto como se tivesse a metade da estrada do Texas sobre a pele.

Jed riu, pegou a mão dela e apertou-a.

- Eu amo você.

- Também amo você, papai. - Ela desejava ter seis anos de novo para poder se deitar no colo dele e sentir o conforto de seus braços à sua volta, mantendo distantes todos os seus problemas.

Mas jánão era criança. Seus problemas não eram tão facilmente descartados.

Lije era a causa da dor insistente que ela sentia por dentro, que não desaparecia. Era a lembrança que a perseguia, que jamais a deixava em paz. Que Deus a ajudasse, ela ainda o amava - e odiava-o por causa disso. Desejava desesperadamente esquecê-lo.

Algum dia conseguiria, prometeu a si mesma.

Nação cherokee Setembro de 1863

Os soldados de uniforme azul da União enxameavam sobre a carroça, revirando seu conteúdo e jogando fora a maior parte do que encontravam. A tarde era invadida pelo ruído da queda de panelas, de madeiras se partindo, de porcelanas quebrando e pelos urros de descoberta. Alex empurrou o boné de bico-de-pato para trás e olhou com indiferença. A carroça e seu conteúdo pertenciam a John Meynard, um cherokee há muito conhecido como advogado defensor da causa rebelde.

A esposa de Meynard correu para a égua negra e agarrou a perna de Alex.

- Estão destruindo tudo. Faça-os parar, por favor. É tudo que temos.

Impassível diante dos apelos desesperados, Alex olhou devagar na direção do marido dela, que estava com os olhos vidrados diante de Kipp. O sangue ainda corria fresco do ferimento na testa de Meynard, onde Kipp lhe dera uma coronhada por ele ter-se recusado a dar informações sobre as tropas rebeldes que se encontravam na área. De novo ele ouviu a voz do homem ensanguentado dizer-

- Vocês foram os únicos soldados que vimos hoje.

Ele mentia. Como seu pai, Alex estava convencido disso. Há dias se ouvia sobre um grande batalhão de confederados que teria cruzado o rio Arkansas em direção ao norte. Numa fazenda a três quilómetros da estrada, um velho e dois meninos disseram que tinham visto um bando de vinte ou trinta rebeldes passando por sua cabana por volta do meio-dia. O velho também garantira ter visto uma grande nuvem de poeira indo para o oeste - e jurou que não era a poeira de uma cavalgada de búfalos.

Se a poeira fosse da parte principal do exército confederado, então o bando de cavaleiros era sua patrulha avançada. E, se tivesse estado na estrada ou em algum lugar perto dela, aquelas pessoas não poderiam deixar de vê-la.

De volta à carroça, a farinha crescia como fumaça branca do saco que um dos soldados segurava de cabeça para baixo. Rindo alto, o homem deu uma sacudida final e jogou-o na poça negra de graxa da carroça, amontoada perto de um balde virado.

Amulher mais uma vez implorou a Alex:

- Por favor, nossa comida, não. Temos crianças para alimentar.

Alex olhou para a menina com o nariz escorrendo agarrada à saia da mãe. Um menino de sete anos ficou parado ao lado da canga de bois, as lágrimas escorrendo pela face, o queixo tremendo e os olhos brilhando de ódio e medo.

- Faça-os parar, por favor.

Quando a mulher chegou mais perto, o cavalo negro bufou e dançou para o lado, tentando escapar de seu contato. Alex não se perturbou.

- Se quiser que paremos, diga ao seu marido para dizer o que queremos saber.

Ela olhou para o marido, hesitou, e então deixou os ombros caírem, derrotada.

- Não vimos rebeldes - disse ela numa voz partida. Depois, virou-se e olhou em silêncio enquanto um pesado baú

de madeira era atirado da parte de trás da carroça. A tampa se abriu no impacto, espalhando roupas e cobertores. Ela pôs a mão sobre a boca, calando um involuntário som de protesto.

Alex viu que as roupas no chão eram de boa qualidade, melhores do que as que a família vestia. Ele tornou a olhar a vaca bem alimentada, toda respingada de barro. Deliberadamente?

Alex sabia que John Meynard era um próspero fazendeiro. Talvez não tão rico quanto Blade Stuart, mas ele e sua família viviam muito confortavelmente. Entretanto, sua fazenda agora estava sob o domínio da União e, como tantos outros simpatizantes da Confederação, eles estavam fugindo para o sul em busca de territórios mais amistosos. Não puderam carregar tudo que tinham, mas transportavam os objetos mais valiosos. Sorrindo, Alex desmontou da égua.

- Ei, rapazes - chamou os soldados na carroça. - Joguem tudo fora e arranquem as tábuas do piso. Pode ser que estejam carregando ouro dos rebeldes.

Enquanto os homens cumpriam a tarefa como uma vingança, Alex observava a reação da mulher com o canto dos olhos. Ela deu outro soluço de protesto mas não demonstrou nenhum alarme. Ele sacudiu a cabeça pela sua sorte - ou pela falta dela-e caminhou até a barrica dágua presa ao lado da carroça.

No instante em que tocou a tampa da barrica, a mulher correu.

- O que quer? O que está fazendo?

Lembrando suas súplicas anteriores, Alex chegava a achar graça de tanta veemência.

- Um dia quente como este faz um homem ficar com sede.

- Se quer água, vou pegar para o senhor. - Ela apressou-se para pegar a cabaça de água da barrica.

Suspeitando da oferta, Alex agarrou-a pelo pulso, parando-a.

- Eu mesmo pego - disse ele.

Quando ela olhou para cima, ele viu o pânico em seus olhos e sorriu, as suspeitas crescendo.

- O que há na barrica? - perguntou baixinho.

- Água, é claro - Ela abaixou os olhos, olhando para os lados, mas nunca para ele.

- Acho que eu mesmo darei uma olhada.

- Não! - Ela gemeu, apertando os olhos.

Ele manteve a pressão no punho dela, levantou a tampa e olhou para dentro. Lá, no fundo escuro do barril de madeira, havia uma trouxa de pano, quase invisível, se ele não tivesse olhado mais de perto.

- O que temos aqui?-Rindo, Alex levantou a tampa e meteu o braço dentro da água.

Seus dedos fecharam-se rapidamente em volta da trouxa e ele sentiu o formato chato de moedas. Saltou ao sentir uma picada. Um broche de mulher, talvez? Depois de um furtivo olhar para certificar-se de que ninguém além da mulher o observava, Alex puxou a trouxa para fora e colocou-a dentro da camisa. Rindo baixinho, quase silenciosamente, Alex sacudiu-a com força.

- Sua ideia foi muito boa - disse-lhe em voz baixa e insultuosa enquanto ela se afastava dele. - Água agora é muito abundante. Não é nada que alguém se incomodaria em roubar. Mas a senhora denunciou-se.

com um soluço, ela soltou-se, correu alguns passos e depois parou, apertando a menina para mais perto de sua saia. Alex riu.

- Ei, cabo. - Um soldado pôs a cabeça para fora do toldo de lona dacarroça. - Não há nada debaixo desse assoalho além de terra.

- Que pena - disse Alex com desdém, sorrindo diante da fria umidade da trouxinha contra sua pele.

Ouviu-se um estampido. Alex virou-se e viu o homem caindo no chão, o sangue escorrendo de um novo ferimento ao longo da orelha e do rosto. Kipp estava parado sobre ele, apontando o revólver para sua cabeça.

- Que diabo, estou cansado de suas mentiras! -gritou Kipp.

- John! Não! - A mulher gritou e correu em direção ao marido, só parando quando Kipp virou o revólver para ela.

- Afaste-se - ordenou-lhe, com um olhar impaciente para Alex quando ele se aproximou.

- Já perdemos tempo demais. O tolo sabe para onde aqueles rebeldes foram, mas não quer dizer.

- Pergunte a ela - Alex sacudiu o dedo na cara da mulher.

- Ela sabe.

- Não! - Ela negou com a cabeça, com medo nos olhos.

- Onde disse que os viu? Para onde estavam indo? - perguntou Kipp à mulher, apontando o revólver para o homem no chão.

- Ou me responde ou será uma viúva.

- Oh, Deus, não! - Ela pegou a mão de Kipp num apelo mudo, depois percebeu a futilidade do seu gesto e soluçou, desesperada: - Vocês são uns animais. Animais!

Ela não prestou atenção à menina que se aproximava, choramingando, implorando para ser pega no colo. Alex desviou o olhar do homem inconsciente no chão para a mulher.

- Ela parece não se importar muito em salvá-lo, não é? Adiantando-se um passo, pegou a criança no ar e arrancou-a da mulher ao mesmo tempo que tirava seu revólver e apontava para a menina, gritando:

- Fale ou ela morre.

- Pelo amor de Deus, não! Não a machuque! - A mulher caiu de joelhos, as mãos estendidas para a criança. - Não machuque minha filhinha...

- Fale! - Alex tornou a berrar e armou o revólver.

- Nós os vimos! - gritou ela, começando a soluçar. -Não machuque minha filhinha, por favor, por favor!

- Onde? Quando?

- Há três horas. Quatro. Não sei direito - disse ela, dando outro soluço. - No córrego. Eles estavam sob as árvores perto da margem, molhando os cavalos.

- Quantos?-perguntou ele, abafando os soluços da criança.

- Vinte... não tenho certeza. Pelo amor de Deus, solte-a.

- Onde estava o resto deles? O corpo principal?

- Não vi mais nenhum.

Ele agarrou a menina pelos cabelos, ignorando seus gritos e as mãozinhas que tentavam se livrar dele.

- Onde?

Quando a mulher, soluçando, sacudiu a cabeça de um lado para o outro indicando que não sabia, Alex apertou o cano do revólver contra a cabeça da menina.

- Fale!

- Não! - disse a mulher, engasgando. - Não os vimos, mas... John... John achou que eles estavam mais longe, a oeste. Há uma cidade., ao norte. Ele... ele disse que eles passariam ao largo dela. Por favor.

Satisfeito com a informação obtida, Alex começou a afrouxar o cão do revólver, mas seu pai interveio.

- com que regimento eles estavam? Quem os comandava? Ela sacudiu a cabeça, abrindo a boca, muda por um segundo.

- Eu... - Apertou a mão sobre a testa, tentando lembrar-se.

John... John conhecia um deles. Disse que seu comandante era o coronel Watie.

- O homem que ele conhecia, qual era o nome dele?-exigiu Kipp com uma repentina e selvagem intensidade.

- Acho que era... Stuart. Era do Light Horse. É tudo o que sei, juro. Por...

Kipp já ouvira tudo que queria.

- Vamos-ordenou ele, afastando-se a passos largos, gritando para seus homens. - Montem!

Alex empurrou a menina sobre a mulher e correu para o cavalo, colocando o revólver no coldre. Ela pegou a criança nos braços e correu, soluçando, para o marido. Alex olhou-os e pulou para a sela, sorrindo para si mesmo. Encontrar os Meynards fora proveitoso de muitas maneiras.

Blade galopava pelo prado em seu cavalo. Como sempre, Deu cavalgava ao seu lado, além de uma escolta de três homens. O corpo principal de sua tropa, em torno de cem soldados, vinha a uns seis quilómetros atrás, e Lije estava em algum lugar mais à frente com sua patrulha de reconhecimento.

Era o algum lugar que incomodava a Blade. Lije partira aos primeiros clarões do dia. Já deveria ter voltado há horas. Será que havia se deparado com a patrulha da União? Blade não ouvira nenhum tiro, mas sabia que podia estar além do alcance dos estampidos.

Mais uma vez arrependia-se de tê-lo colocado à frente da patrulha de vigilância. Ele confiava no instinto e no julgamento de Lije, mas ter um filho sob seu comando enfraquecia um homem, fazia-o preocupar-se com um, em vez de todos. Além disso, Temple jamais o perdoaria se algo acontecesse a Lije.

Onde diabos ele estava?

Blade açoitou seu cavalo em direção ao morro. Conhecia bem a região. Estavam a poucas horas de Grand View. A poucas horas de casa. Mas não podia pensar nisso. Na noite anterior sonhara com Temple inclinando-se sedutoramente para amá-lo. Mesmo agora era só fechar os olhos e...

Sacudiu a cabeça, tentando afastar a visão dela de sua mente, e galopou para o alto do morro. Lá de cima, parou o cavalo e inspecionou a área em volta.

- Aqui, senhor Blade. - Sempre antecipando suas necessidades, Deu estendeu-lhe uma luneta.

Todo o equipamento do regimento era de qualidade tão inferior quanto aquela desgraçada pólvora mexicana. Quase 20% dos homens de Watie sequer tinham arma. O resto empunhava velhos mosquetes, espingardas de pederneira ou, pior ainda, rifles texanos, sujeitos a explodir na cara deles. Os uniformes prometidos nunca chegaram. Poucos homens possuíam uma muda de roupa, muitos estavam maltrapilhos ou com uniformes azuis que haviam roubado de algum ianque morto. Entretanto, cada um deles era um lutador. Não conheciam nada sobre disciplina militar ou protocolo, mas sabiam como lutar. Se pelo menos pudessem pôr as mãos em alguns daqueles rifles repetidores da União...

Blade suspirou e ergueu a luneta para fazer um levantamento completo e minucioso da área, de leste a norte, mas não viu nem sinal da patrulha. Na hipótese de que Lije tivesse passado ao largo, verificou o quadrante nordeste. Nada. Abaixou a luneta, com um olhar preocupado.

- Cavaleiros.-Um de seus soldados da escol ta apontou para a estreita estrada de terra que atravessava o vale à direita, a quase um quilómetro dali. - Parece que é nossa patrulha. - Ele apoiou-se em seus arreios e acenou.

Blade procurou os cavaleiros. Assim que os viu, eles se viraram para a esquerda e galoparam diretamente para o morro. Ao primeiro olhar, achou que era a patrulha de vigilância, exceto que., estavam vindo do sul.

Ele levantou a luneta e xingou.

- Ianques! - Estendeu a luneta para Deu e pegou as rédeas.

- Espalhem-se. Agora!

Blade puxou o revólver, enquanto os outros metiam as esporas nos cavalos. Viu Deu aproximar-se para esperar por ele.

- Siga em frente, estarei bem atrás de você.

Ele atirou na direção dos cavaleiros e começou a virar o cavalo para seguir os outros, depois hesitou. O líder ianque era Kipp.

Xingou enquanto as primeiras balas vinham em volta dele. Atirou mais, tentando detê-los.

Algo bateu em seu ombro esquerdo. O impacto quase o jogou para fora da sela. Agarrou-se na crina do cavalo, consciente de um fogo quente e lancinante em seu braço esquerdo. Esporeou o cavalo para galopar, lutando contra a dormência que sentia do lado esquerdo.

Quando chegou à planície, olhou para trás. Kipp alcançara o topo do morro e agora corria atrás dele, chicoteando o cavalo sem piedade. Outro cavaleiro se encontrava a curta distância dele. Seria Alex? Não sabia dizer.

Seu cavalo começou a ficar mais lento. Blade açoitou-o, mas sentiuo cansado, diminuindo a marcha. Olhou para baixo. O sangue escorria de um pequeno buraco no dorso do animal, do lado direito. Ele também fora ferido. Blade viu uma moita bem à sua esquerda e meteu as esporas no cavalo conduzindo-o em direção a ela.

- Mais um pouco. Você consegue - incentivou, tanto a si mesmo quanto ao cavalo.

Encorajado, o animal continuou galopando, agora com uma espuma ensanguentada jorrando de suas narinas. A uns cinco metros da moita, o cavalo tropeçou e caiu, atirando Blade para a frente. Ele caiu pesadamente do lado esquerdo. A dor explodiu em todo o seu corpo.

Role. O instinto lhe disse para rolar para o lado da moita.

Quando abriu os olhos de novo, encontrou-se emaranhado no mato rasteiro. Será que desmaiara? Não sabia. Não tinha certeza. Cavalos. Podia ouvi-los. Lutando contra a escuridão em sua cabeça, arrastou-se para a moita, ignorando os galhos e os espinhos que o arranhavam. O revólver. Ainda estava em sua mão.

Não vá muito para dentro do mato, o instinto alertou-o. É o que Kipp deseja. Fique junto à beira.

Depois de se atirar na moita como um animal meio enlouquecido e ferido, Blade se arrastava com cuidado, movendo-se com o menor ruído possível. A dor em seu braço transformara-se num forte latejar. Agora podia pensar sem aquela escuridão na cabeça.

Apenas uma moita separava-o da grama alta do prado. Ele parou e agachou-se, tentando orientar-se.

Cascos de cavalos batiam no chão à sua direita. Então, de repente pararam.

- Nós o pegamos! - Era a voz de Kipp, a menos de seis metros.

Blade virou-se para vê-lo. Através das grossas folhas podia ver as patas dos animais, depois as calças azuis de dois cavaleiros. Estaria Alex com Kipp?

- Ele está naquele mato ali, estou-lhe dizendo. Está lá. Estou sentindo o cheiro dele. Saia daí, Stuart!

Subitamente ouviu-se o disparo de um revólver. Blade abaixou-se, instintivamente, mas a bala atingiu o arbusto bem longe dele. Kipp atirava cegamente.

- Saia daí, Stuart! Ou terei de ir aí e pegá-lo, como fiz com seu pai? Você é traidor como uma cobra. Devia ter morrido há muito tempo. Mas desta vez não vai escapar. Saia daí! - Kipp atirou de novo.

Ao ouvir o nome de seu pai, Blade involuntariamente apertou sua arma, colocando automaticamente o polegar no cão do revólver e enganchando o indicador suavemente em volta do gatilho. Furtivamente abriu caminho pelo resto da moita até o mato alto.

- Esta é sua última chance, Stuart! - gritou Kipp. - Ou sai e morre como homem ou vou até aí para matá-lo como a cobra que é.

Blade aprumou-se devagar, apontando o revólver. Nem Kipp nem Alex perceberam sua presença. Ambos tinham a atenção concentrada nos galhos quebrados diante deles, os revólveres apontados para eles.

- Está me procurando, Kipp?

Kipp virou-se, com um rosnado de raiva. Quando levantava a pistola para apontar, Blade rapidamente apertou o gatilho de sua arma já engatilhada. Sua mão deu um solavanco. Kipp gritou, e os dedos de sua mão direita se abriram, soltando o revólver enquanto uma mancha vermelha se alastrava rapidamente em seu antebraço direito. Ele apertou o ferimento e começou a dobrar-se para pegar o revólver.

- Tente, Kipp. Tente para ver o que acontece.

Blade puxou o cão da arma de volta. Alex estava atrás de Kipp, sua linha de fogo bloqueada por seu pai.

- Jogue seu revólver no mato, Alex. Não quero matá-lo - Blade não tirava os olhos de Kipp.

Houve um movimento atrás de Kipp. Depois a luz do sol refletiu o azul-aço enquanto o revólver girava pelo ar e caía em algum lugar dentro do mato, perto do cavalo caído de Blade. Movendo-se vagarosamente e mantendo a arma apontada para Kipp, Blade andou até os cavalos deles, com o braço esquerdo pendendo, mole.

- O que está esperando?-zombou Kipp. - Por que não me mata? Há anos que quer fazer isso. Esta é a sua chance. Puxe o gatilho Stuart, ande, atire.

- Agradeça por ser irmão de Temple, Kipp.

As rédeas ainda estavam em volta do pescoço do cavalo castanho. Ele resfolegou, desconfiado, quando Blade subiu pelo seu lado direito, mas continuou quieto e parado. Mantendo o revólver apontado para Kipp, Blade colocou um pé no estribo, pulando rapidamente para a sela.

- Você é um covarde, Stuart. Todos os traidores são. Seu pai também era.

- Nunca conheci um homem que merecesse morrer tanto quanto você, Kipp.

De repente o cavalo sacudiu a cabeça, distraindo sua atenção por um instante. Quando ele tornou a olhar, Kipp estava puxando algo de dentro do casaco - um revólver de bolso. Reagindo instintivamente, Blade atirou. Kipp deu um passo para trás e levou a mão ao estômago. O revólver caiu no chão enquanto ele se arremessava para a frente.

Alex correu para o pai.

- Ele está morrendo - O ódio e a dor contorceram seu rosto.

- E estava desarmado.

As palavras de Alex quase não atingiam Blade. A fraqueza o envolvia. Precisava sair dali enquanto ainda tinha energia. O cavalo castanho saiu em disparada pelo prado, num trote rápido. Alex levantou-se, gritando:

- Seu assassino desgraçado! Vai morrer por isso!

Furioso, Alex revirou a grama pisoteada perto de seu pai e encontrou o revólver que ele tinha deixado cair. Rapidamente, empunhou-o e fez pontaria, apertando o gatilho sem uma piscadela. O estampido ecoou pelo prado. Ele sorriu quando Blade caiu na sela do cavalo. Assustado, o cavalo disparou em galope.

Alex voltou-se para o corpo do pai, o sorriso se apagando.

- Matei-o para você - disse.

Depois, com cuidado, pegou o corpo do pai nos braços e carregou-o até a égua negra. Ela afastou-se ligeiramente, sentindo cheiro de morte, mas Alex acalmou-a. Insegura, a égua deixou-o colocar o corpo na sela e rosnou seu desagrado em relação ao peso.

Deu galopou mais três quilómetros antes de notar que Blade não estava atrás dele. Preocupado, galopou de volta em direção ao som dos tiros. Mais adiante, viu que a patrulha surpreendera os atacantes ianques, pondo-os em fuga. com os ianques em retirada, eles se foram. Embora não visse Blade entre eles, viu Lije afastando-se dos outros para encontrá-lo.

Lije parou com seu cavalo espumante.

- Toda a droga dessas terras estão infestadas de patrulhas da União. - Olhou para Deu. - Onde está o major?

- Não sei. Pensei que estivesse bem atrás de mim.

Lije ergueu-se na sela para olhar em volta do prado. Nada. Teve um mau presságio.

- Algo está errado.

Ele bateu em seu cavalo, que iniciou um galope cansado. Deu foi atrás dele.

Meio quilómetro adiante viram um cavalo castanho parado num vale, com um cavaleiro agarrado a seu pescoço.

- O sr. Blade cavalgava um baio - disse Deu quando chegaram mais perto. - E aquele casaco é dele. Eu o remendei tantas vezes que não posso deixar de reconhecê-lo.

Foram os duzentos metros mais longos que Lije percorreu em sua vida. Quando chegaram, Lije saltou da sela antes que seu cavalo parasse completamente. Deu estava bem atrás dele.

O cavalo castanho deu mais alguns passos, depois caiu no pasto. Lije sentiu uma sensação de frio no estômago quando viu a mancha de sangue alastrada nas costas do casaco do pai. Aproximou-se do cavalo devagar, falando suavemente para não assustá-lo. Quando pegou as rédeas, moveu-se para o lado do pai e levantou-lhe a cabeça. Ele deu um gemido e bateu as pálpebras.

- Está vivo - disse Lije, cheio de esperanças.

- Lije... - balbuciou Blade, a voz débil.

- Estou aqui, Deu está comigo. Não se preocupe, cuidaremos de você.

- Kipp...

Um músculo tremeu visivelmente no queixo de Lije.

- O que tem ele? Foi ele quem fez isso?

- ...está morto - murmurou Blade. - Matei-o... não posso dizer Temple... ferida.

Sua voz esmoreceu num suspiro.

- Desmaiou - disse Lije, dominando a raiva. - Diabo, eu devia ter ficado com ele. Devia ter ficado ao seu lado. - A culpa era dele.

- O senhor Blade vai ficar bom. Tomaremos conta dele disse Deu, embora, parecesse tão preocupado quanto Lije.

Mas Lije sabia que caso seu pai fosse viver, não seriam palavras que iriam salvá-lo. E não havia nenhum médico em sua patrulha.

- Procure Duncan - disse a Deu. - Diga-lhe o que aconteceu, e que estamos levando meu pai para casa.

Nação cherokee

Setembro de 1863

- Eliza-murmurou Temple, sacudindo o ombro de sua madrasta. - Eliza, acorde.

- Hummmm... o quê? - Eliza mexeu-se, sonolenta, levantando a cabeça. - O que foi?

- Há alguém lá fora. Vi da janela do quarto.

Os olhos de Eliza se arregalaram. Temple afastou-se da cama. Eliza tirou as cobertas.

- Deve ser um desertor ou algum escravo fugitivo procurando algo para comer - disse Temple. - Só vi um, mas podem ser mais. Não sei.

Ela virou-se em direção às portas abertas da varanda do segundo andar e ouviu por um momento. O cabo de nogueira do revólver Colt era liso e estranhamente frio em sua mão.

- Mandei Phoebe acordar Susannah e Sorrel. Eu...

- Já estou acordada-disse Sorrel da porta do quarto. - Por que estão cochichando?

Temple virou-se num sussurro raivoso.

- Shhh! Não fale tão alto. Há alguém lá fora.

- Quem?

- Não sabemos.

Enquanto Eliza vestia seu roupão de algodão, Susannah correu para o quarto, com Phoebe atrás dela.

- Temple, não consigo encontrar... aí está você - disse ela, quando viu Sorrel perto da porta.

- Vocês todas fiquem aqui - ordenou Temple. - vou lá embaixo para ver quem está lá.

- Sozinha você não vai - retrucou Susannah. Temple começou a discutir, mas acabou cedendo.

- Muito bem, venha comigo - retrucou, irritada, dirigindo-se ao corredor.

Quando chegou no topo da escada, ouviu a porta da frente se abrir. com grande cuidado, Temple começou a descer os degraus, tranquilizada pela presença de Susannah bem atrás dela.

No silêncio pesado, cada pequenino som parecia amplificar-se

- o farfalhar de sua camisola, o pisar macio dos pés de Susannah atrás dela, o rangido de uma tábua no chão. De repente ela viu uma silhueta contra a palidez da parede do vestíbulo. Estava andando em direção à escada.

Pegando o revólver com ambas as mãos, Temple ergueu-o, apontando para a forma escura.

- Quem é você? O que quer? - exigiu ela. - Fale rápido ou atiro.

- Sou eu. Lije.

- Lije!

Num arroubo de alegria, Temple baixou o revólver e levantou a bainha da camisola para correr escada abaixo.

- É Lije - gritou de volta para as outras. - Phoebe, acenda as velas. Depressa!

Quase imediatamente, uma luz cintilou atrás dela, iluminando até o local onde se encontrava Lije. Temple correu direto para ele.

- Você está em casa. Não posso nem acreditar.

Ela abraçou-o e riu quando ele descobriu o revólver ainda em sua mão.

- Pensei que você estivesse... não importa o que pensei. Ela afastou-se, estendeu a mão para acariciar o rosto dele,

correu os dedos por seus cabelos.

- Olhe só para você... o cabelo todo desalinhado. Quando o cortou pela última vez, pelo amor de Deus? Mas você está maravilhoso. Tão maravilhoso!

Ela continuou tagarelando, o rosto brilhando de alegria.

Lije pensou em toda preocupação, dor e medo que ela conhecera por tantos anos. Deveriam tê-la tornado amarga e fria. Mas isso não acontecera. Sua mãe era tão forte, tão indomável. Ela iria precisar daquela força de novo.

Ele tinha de pará-la. Procurou as palavras, lutou por elas, embora soubesse do choque que causariam. Sentiu-se culpado de novo. Minha culpa. Minha culpa.

- Sei que devo perguntar por que veio, o que está fazendo aqui - Temple prosseguiu. - Mas isso não importa.

- Sim, você devia - disse ele calmamente, mas ela não lhe deu atenção.

- Parece cansado, exausto. Aposto que está com fome também. Phoebe, vá ver o que temos na cozinha para preparar para Lije. E passe um café. Temos café de verdade - disse a ele. - Sem um grama de chicória.

Lije olhou em volta e viu Susannah. Ela sabia que não se tratava de uma visita. O olhar dela estava cheio de apreensão e perguntas.

- Onde está seu pai? Queria que ele tivesse vindo com você

- continuou Temple.

- Ele está aqui, mamãe. Lá fora.

Ele viu o choque tomar conta da expressão dela - e o medo que se seguiu.

- Ele foi ferido. Deu está com ele.

Temple oscilou. Ela vivera tanto tempo com medo desse dia que, por um momento, não conseguia reagir. As palavras que tanto temera ouvir tinham sido realmente ditas.

Mas ele estava vivo. Blade estava vivo.

- Onde está ele? Leve-me até ele.

Esforçando-se com o peso de chumbo de Blade, eles o carregaram para casa e para cima das escadas até o quarto principal. Quando o puseram na cama, Temple mandou Phoebe pegar a cesta de remédios.

- Sorrel, quero que traga aquelas ataduras que íamos levar para o hospital no Forte Gibson.-Ela empurrou a filha em direção à porta. - E ande rápido.

- Como isso aconteceu, Lije? Não ouvimos falar de combates na região - Eliza desamarrou cuidadosamente a tipóia que sustentava o braço esquerdo de Blade.

Lije hesitou um segundo, mas depois respondeu:

- Uma patrulha da União saltou sobre nós. Ele levou um tiro no ombro. Quebrou o osso. Deu e eu fizemos o melhor que pudemos, mas não havia muito que pudéssemos fazer. Ele foi ferido nas costas. A bala ainda está lá. - Por enquanto, ele não via razão para mencionar Kipp.

Temple deixou cair a bota que havia tirado do pé dele, ao mesmo tempo que Eliza virava-se para olhar Lije.

- Ajude-me a virá-lo de lado. Cuidado com esse ombro.

- Onde está minha tesoura?-Temple foi procurá-la na cesta de costuras. - Teremos de cortar a camisa e o casaco dele.

Dentro de minutos as roupas estavam em pedaços no chão. Eliza deu uma olhada no ferimento na parte inferior das costas.

- Ele precisa de um médico, Temple.

- O mais próximo está no Forte Gibson - lembrou Lije. Mas quando o exército da União descobrir que Blade está aqui, eles o levarão preso.

- O sinhô Lije está certo-acrescentou Deu. - Não há nada que aqueles soldados da União iam gostar mais do que pôr as mãos num oficial das tropas do coronel Watie. O sr. Blade tem uma reputação tão boa quanto a do coronel.

- Então teremos de tirar a bala nós mesmos.

Temple olhou para as costas esguias e musculosas do marido. Sua pele, da cor de teca, era lisa, exceto pelo buraco escuro bem próximo à espinha. Em algum lugar lá dentro escondia-se uma bala.

Temple sentiu-se trémula e percebeu que jamais sentira tanto medo em toda sua vida.

- Temple, tem certeza... - disse Eliza.

- Sim, Eliza, sim! - retrucou Temple rapidamente, rígida e pálida de medo e determinação.

Eliza parou por um instante e depois disse calmamente:

- Muito bem, eu farei isso. Susannah, pode me ajudar?

- Ele é meu marido. Eu...

- Exatamente. - Rápida e eficientemente, Eliza assumiu o controle.

- Lije, você e Deu ajudem-me a virar Blade de bruços. Precisaremos de mais luz. Temple, seria uma boa ideia fechar as cortinas também. Não queremos que alguém passe e fique imaginando o que estamos fazendo a esta hora da noite.

Depois que a bala foi removida e o ferimento enfaixado, Eliza anunciou.

- A respiração dele parece boa. O pulso está fraco, mas constante. Acho que por enquanto não podemos esperar mais do que isso. O que ele precisa agora é de calma e descanso.

Lije ficou ao lado da cama enquanto Eliza gentilmente expulsava todos do quarto, exceto Temple. Ele olhava para o pai com o queixo apertado e o estômago revirado, como se uma mão apertasse seu coração. Na mesinha-de-cabeceira estava a bacia de porcelana com uma pinça, uma pequena faca e pedaços de algodão ensanguentados. A bala também estava lá. Lije pegou-a. Ainda estava pegajosa de sangue coagulado. Ele olhou-a por um longo segundo, depois fechou a mão em volta dela.

- Ele vai ficar bom, Temple - murmurou Eliza em algum lugar atrás dele.

- Vai. - A tensa resposta sussurrada, crivada de ansiedade e incerteza, cortou Lije como um sabre.

com a bala mortífera ainda na mão, olhou uma última vez para o pai, depois virou-se e afastou-se da cama. Sua mãe permanecia ali, as mãos apertadas em volta do balaústre entalhado da cabeceira alta, o olhar sempre em Blade. Lije queria dar a ela algum conforto e confiança, mas, sem sentir nada disso ele próprio, apenas pôs a mão no ombro dela ao passar.

Parando no corredor, ele estendeu a mão e puxou a porta atrás dele. Quando estava prestes a fechá-la, ouviu a voz da mãe e parou para escutar.

- Estou cansada, Eliza - murmurou ela. - Estou cansada disso. Sabe há quanto tempo venho passando por isso? Sem perguntar se ele vai morrer, mas quando?

- Sei.

Sem demonstrar nenhuma indicação de que tinha ouvido a quieta resposta, Temple continuou:

- Quantos dias, meses e anos passei sozinha, imaginando onde ele estaria, se estaria vivo? Cada vez que ele partia... cada vez que me despedia dele, sabia que poderia ser a última vez que o veria, que havia aqueles que desejavam vingar-se pelo tratado que ele assinou há quase trinta anos. Trinta anos, Eliza. Tenho me preocupado com ele durante todos esses anos e agora ele está deitado aí. Talvez desta vez ele realmente morra. Oh, Deus, não quero perdêlo. - Ela deu um soluço.

- Claro que não vai perdê-lo. Ouviu-se o som de um longo suspiro.

- Já disse a mim mesma tantas vezes que tudo ficará bem, que agora não tenho mais certeza de que sou capaz de acreditar nisso.

- Ele vai ficar bom - insistiu Eliza. - Não sei por que acredito nisso, por que sinto e tenho tanta certeza disso, mas tenho. Você tem de acreditar nisso também. Ele vai precisar de você.

- Eu sei.

Ouvindo o som de passos na escada, Lije moveu-se para longe da porta, deixando-a entreaberta. Susannah parou perto do topo da escada.

- Estava à sua procura-disse ela. - Phoebe preparou algo para você comer. Está na sala de jantar.

Lije acenou com a cabeça e seguiu-a pela escada até a sala de jantar. Seu olhar dirigiu-se à cadeira vazia na cabeceira da mesa. A cadeira de seu pai. Um prato de feijão temperado, um prato de broa de milho, talheres, uma xícara e um jarro de melado, tudo arrumado diante da cadeira dele. Lije empurrou tudo para o outro lado da mesa e sentou-se na cadeira do pai.

Observá-lo partiu o coração de Susannah. Algo estava errado. Ela soube disso no instante em que Lije lhe falou a respeito de Blade. Ela duvidava que ele tivesse dito mais de uma dúzia de palavras desde então. Todo o tempo que Eliza levara para tirar a bala, Lije tinha simplesmente ficado lá, segurando a vela, sem dizer nada, sem nada demonstrar.

No entanto, em algum lugar sob aquele inflexível silêncio, Susannah podia sentir uma raiva que ia além da preocupação relativa ao estado de seu pai.

Sufocando um suspiro preocupado, ela aproximou-se da mesa.

- O café está cheiroso, não? Posso servir-lhe uma xícara? Ele assentiu com a cabeça.

Ela puxou a xícara dele mais para perto e encheu-a enquanto Lije afogava sua broa de milho numa piscina de melado negro. Ao colocar a xícara diante dele, Susannah viu a bala em cima da mesa. Aquilo provocou nela um arrepio de repulsa.

- Meu Deus, onde você arranjou isso?

Ela quis pegá-la, mas a mão dele fechou-se sobre a bala primeiro. Susannah olhou para cima e viu o olhar frio de Lije.

- Quero ficar com ela.

Ela afastou-se, endireitando-se.

- Não faça isso Lije. Ele está vivo.

Ele pegou a bala e rolou-a entre os dedos, olhando para ela.

- Kipp está morto.

- Kipp? - repetiu ela num eco de choque. - Onde? Como?

- então o completo significado das palavras dele a alcançaram, e ela afundou-se na cadeira mais próxima. - Oh, meu Deus, você está dizendo que Blade foi ferido por... como... - Ela sabia o que perguntar, mas não conseguia pronunciar as palavras.

Houve um pequeno e vago sacudir da cabeça dele.

- Kipp devia estar na patrulha da União que o atacou. Não vi o que aconteceu. - Sua voz não tinha emoção. - Quando Deu e eu o encontramos, ele ainda estava consciente. Disse que tinha matado Kipp. Queria que eu dissesse a mamãe que ele sentia muito.

- E você...

- Não. Ela já tem o bastante com que se preocupar - Lije continuou a mexer na bala. - O exército pode notificá-la sobre Kipp, ou o próprio major pode dizer a ela, se ele melhorar.

- Não diga isso, Lije. Ele vai melhorar.

Deixando o silêncio aumentar, ele botou a bala no bolso do colete, pegou o garfo, mergulhou-o no feijão temperado, mastigou-o e então lavou-o com um gole de café.

Susannah olhava-o, preocupada. Todos os gestos dele eram controlados demais, sem emoção. Ela podia sentir a frustração e a tensão dentro dele. Era como estar num quarto fechado sabendo que havia um incêndio do outro lado da porta. Ela podia sentir o calor escaldante, embora não pudesse ver a fumaça ou ouvir o crepitar das chamas.

- Você ainda não me contou tudo o que aconteceu, não é, Lije?

O olhar dele era frio e rápido.

- Eu lhe disse tudo que sei.

- De verdade? - insistiu ela.

O olhar dele foi duro e lancinante.

- Eu não estava lá.

Sua voz era abrupta e cheia de culpa. Um suspiro pesado e raivoso escapou de dentro dele. Empurrou o garfo, afastou-se da cadeira e pegou seu café.

- Eu não estava lá. - Tomou um rápido gole de café, depois abaixou a xícara, olhando para ela. - Eu deveria ter ficado com ele, mas não fiquei. Ele está deitado lá em cima por minha culpa.

- Por quê? Onde você estava? - perguntou Susannah numa voz baixa, rápida.

- Eu tinha saído com um destacamento para vigiar as patrulhas inimigas. - A linha de sua boca ficou séria com a lembrança.

- Eu sabia que Kipp estava de volta à nação. Eu o vi quando atacamos o comboio de suprimentos na travessia de Cabin Creek. E sabia que ele estaria procurando uma oportunidade para investir contra o major... papai. Eu pensei...

Ele mordeu o resto das palavras, a boca fechando-se numa linha tensa.

- O que pensou?

Ele deu um suspiro. Virou a cabeça para trás e olhou para o teto.

- Pensei que, se tomasse o ponto, poderia ver Kipp primeiro. Pensei... - sacudindo a cabeça, descartou aquele pensamento e nivelou o queixo de novo, inclinando-se para a frente e colocando a xícara na mesa. - Saí por muito tempo, cavalguei muito distante na frente. Devia saber que Kipp se meteu atrás de mim. Devia ter ficado com o major. Devia estar lá. A culpa é minha.

- É a coisa mais ridícula que já ouvi.

Susannah levantou-se e saiu da mesa. Bateu o bule no descanso de prato e voltou-se para encontrar o olhar chocado de Lije.

- O que aconteceu foi trágico, mas você não pode se culpar por isso, Lije Stuart.

- Você não compreende - começou ele, impaciente.

- Isso é óbvio. O que teria feito se estivesse lá?-questionou ela, com as mãos nas cadeiras. - Jogar-se na frente de seu pai, pegar a bala que era para ele? Então você estaria naquela cama lá em cima, e seu pai estaria se culpando por isso.

Ela viu a rejeição de suas palavras e suspirou, frustrada.

- Seja realista, Lije. Mesmo se tivesse estado com ele, não havia nada que pudesse fazer para evitar o que aconteceu.

- Nunca saberemos disso, não é?

Ela apertou os lábios, depois tentou de novo.

- Aquela bala em seu bolso veio do revólver de Kipp. Ele é o responsável por seu pai estar naquela cama. Ninguém mais.

Ele pegou o garfo de novo e continuou a comer. Susannah olhava-o, esperando que ele dissesse algo. Depois da terceira mordida, Lije comentou:

- Pensei que não estivesse com fome, mas isso está bom. Melhor do que aquele pão seco e a carne-seca que comi esta manhã.

Susannah puxou a cadeira e sentou-se.

- Está mudando de assunto deliberadamente, não é? Ele ignorou o que ela disse e mudou a conversa.

- Já aprendeu a atirar com aquela sua pistolinha? Surpresa com a pergunta, Susannah franziu o cenho.

- Pistolinha? Quem foi que lhe disse que eu tinha uma pistola?

- Ran Lassiter, um tenente da brigada do Texas-respondeu ele, juntando uma garfada de broa ensopada de melado.

Susannah hesitou, consciente do próprio coração disparando.

- Ele disse que conheceu você.

Isso tinha acontecido um ano antes, mas ela ainda se lembrava dele como se fosse na véspera.

- Fico sempre imaginando... Será que ele ainda está no território?

- A unidade dele regressou há umas duas semanas.

- Então ele já partiu?

Lije lançou-lhe um olhar lento e examinador. _ Você o impressionou muito.

- Foi? - Ela abaixou a cabeça para esconder um súbito brilho de prazer que sentia.

- Ele passou por Oak Hill em uma de suas patrulhas. Na volta, ele nos disse que a casa fora queimada até o chão. Poucos dias depois soubemos que você e Eliza tinham vindo para cá.

Susannah estava aquecida pela notícia de que Rans tentara vê-la. Então outro pensamento intrometeu-se na lembrança dele.

- Ele lhe deu meu recado sobre Diane?

- Deu. - Mais uma vez o queixo de Lije enrijeceu-se.

- Ela está aqui, Lije. No Forte Gibson - disse Susannah. Veio cuidar do pai, que foi ferido.

- Vi quando ele foi ferido-Lije cortou outro pedaço de broa com o garfo, sem olhar para ela. - Como está ele?

- Melhor. Voltou ao serviço na semana passada. - Ela hesitou, depois viu que tinha de dizer a ele: - Ele foi ferido no braço esquerdo, Lije. Conseguiram salvá-lo, mas parece que o dano foi permamente.

- Está com o braço aleijado? - Ele concentrou-se nas últimas poucas mordidas da comida em seu prato, empurrando-o com o garfo.

- Sim-disse Susannah.-É o risco que um homem assume quando vai para a guerra. O próprio Jed disse isso.

Lije concordou, depois colocou o garfo no prato, pegou o guardanapo e limpou a boca.

- Diga a Phoebe que o jantar estava ótimo - ele se levantou.

- Aonde vai?

- Verificar os cavalos, para ter certeza de que Deu os escondeu direito.- Seguiu em direção à porta.

- Não vai perguntar sobre Diane? - desafiou-o Susannah.

- Não quer saber como ela está? Há algo que quer que eu diga a ela?

Ele começou a afastar-se.

- Lije - disse ela em protesto.

- O que posso dizer? - A pergunta explodiu como um soco de raiva, mas Susannah viu que, sob a raiva, havia dor.-Que ainda penso nela? Que isso faria bem para nós dois? Tenho uma responsabilidade que me coloca em oposição direta aos desejos dela. Mas ela não vê isso desta forma. Não compreende que tenho de fazer o que acredito que está certo.

Ele parou, trémulo ao reconhecer que tinha feito revelações demais.

- São águas passadas, Susannah. Deixe isso para lá - disse ele, e foi embora.

Temple sentou-se na cadeira ao lado da cama, os olhos fechados de exaustão, naquele estado que não se está nem desperto nem dormindo. Acordou com o som de gemidos fortes e o roçar de lençóis. Olhou para a cama onde Blade estava estirado, o rosto virado numa careta, os dedos agarrando e apertando as cobertas. Os gemidos vinham dele, em meio à respiração profunda e grunhidos.

Ela moveu-se rapidamente para o lado dele e pôs a mão em sua testa para verificar a febre.

- Shhh, meu amor - ela murmurou.

- Dor... minhas costas... perna.

Ela virou-se para a cesta de medicamentos na mesinha-de-cabeceira e tirou um vidro de láudano. Puxou rapidamente a rolha, depois levou o vidro aos lábios dele, segurando-lhe a cabeça.

- Tome isso. - Falando com ele como se estivesse falando com uma criança, ela colocou um pouco em sua boca. - Isso fará a dor melhorar. Agora beba mais um pouco. Assim... ótimo.

Enquanto esperava a droga fazer efeito, Temple umedeceu um pano e banhou o rosto e o pescoço dele. Vários minutos se passaram antes que os gemidos cessassem. Os olhos dele abriram-se lentamente e tentaram focalizá-la através da névoa de dor e ópio.

- Temple? - murmurou ele, confuso.

- Estou aqui mesmo - respondeu ela, forçando um sorriso.

- Desculpe.... eu não quis...

- Shhh. Não fale agora. Descanse. Obediente, ele fechou os olhos.

- Como está ele? - Lije parou na porta, uma figura escura contra a luz fraca das velas.

- Bem. - Ela arrumou as cobertas em volta do marido e moveu-se em direção a Lije, suas mãos entrelaçadas, em silenciosa preocupação. - É a dor. Acabei de lhe dar láudano. Agora ele vai descansar confortavelmente por algum tempo.

Um galo cantou. Ela olhou para as cortinas fechadas, depois para a cama.

- Que horas são?

- Já é madrugada - Lije ficou nas sombras, sob a luz fraca.

- Agora você precisa descansar. Ficarei com ele.

Temple sacudiu a cabeça.

- Eu não conseguiria dormir.

- Precisa tentar. Ele vai precisar de sua energia.

- Sei, mas... - ela tornou a olhar para a cama.

- Se houver alguma mudança, eu a acordarei imediatamente Temple hesitou, mas acabou concordando.

- Está bem, mas só por umas duas horas.

- Eu a despertarei.

Ele esperou que ela saísse do quarto, depois foi até a cama. A luz suave da manhã infiltrava-se pelas cortinas. Lije soprou as velas e sentou-se na cadeira ao lado da cama, fazendo sua vigília e rolando a bala entre os dedos.

Sem descansar, com cada músculo tenso, Lije pôs o chapéu militar e encaminhou-se para a porta, sem conseguir mais ver seu pai sofrer. Nas últimas 36 horas quase não houvera mudança no estado de Blade. Lije teria ficado animado com isso, se não fosse a dor intensa que ele voltara a sentir assim que o láudano parou de fazer efeito. Seu pai estava louco de dor.

Ele parou nos degraus de trás da casa e deu um suspiro profundo, tentando aplacar a raiva que sentia em seu âmago. O sol estava alto no céu. As primeiras folhas marrons do outono caíam sobre a grama, embaladas pela fresca brisa vespertina.

com os olhos apertados, ele olhou em volta. Nada se movia, tudo estava parado. Em outras épocas, durante a colheita, aquela fazenda estaria fervendo de atividades. Agora não havia trabalhadores nos campos, gado no pasto, o cheiro de feno recém-cortado, nem ruído de prensas de cidras. Em vez disso, ele via cercas caídas, as cabanas dos negros vazias, equipamentos enferrujando e somente um velho galo passeando na beira do mato.

Dirigiu-se aos alojamentos dos negros, onde os cavalos estavam escondidos. Não dera três passos quando Sorrel chamou-o da varanda dos fundos.

- Lije!

Ele virou-se, mentalmente instruído para ser chamado de volta para dentro.

- O que foi?

Ela ficou parada na varanda, com um braço em volta de uma pilastra.

- Está indo embora? - perguntou ela, com rara timidez.

- Não - resmungou ele, irritado. - vou ver se os cavalos têm bastante água.

- Posso ir com você?

Ele estudou-a por um momento, seus lábios juntando-se numa linha séria e firme. A solidão era o que ele queria - um tempo sozinho para praguejar e organizar o emaranhado de emoções que deixava seus nervos à flor da pele. Mas Sorrel estava muito quieta, não lembrava em nada a irmãzinha mimada e tempestuosa que sempre fora. Na verdade, desde que voltaram, ela andava para lá e para cá em segundo plano, como uma sombra.

- Pode vir, se quiser - respondeu ele, sério.

Lije virou-se e continuou indo em direção às cabanas. Ouviu os passos dela correndo atrás dele para alcançá-lo. Assim que se emparelhou com ele, ela diminuiu o passo e andou silenciosamente ao seu lado, com os olhos para baixo.

Os cavalos estavam nos destroços de uma das cabanas que fora atingida por um raio no ano anterior. Lije passou com dificuldade por trás do mato alto e seco ao lado da cabana, levantando os galhos secos das árvores onde os cavalos estavam amarrados.

Ao ver Lije, um grande cavalo capão avermelhado levantou o focinho, resfolegou uma vez e continuou a pastar na grama a seus pés. Os outros dois sacudiram as orelhas para ele e continuaram a comer. Verificou que os baldes ainda tinham água pela metade. Lije moveu-se entre os cavalos.

- Qual é o seu? - Sorrel chegou mais perto, observando onde pisava.

- Tenho cavalgado o capão avermelhado.

Ela parou ao lado do capão e passou a mão pelo pescoço dele.

- O que aconteceu com seu cavalo Jubal? - perguntou ela, com curiosidade.

- Levou um tiro quando eu o cavalgava, em fevereiro Lije examinou um ferimento provocado pela sela nas costas do castanho.

- Qual é o nome desse aqui?

- Não me preocupei em lhe dar um.

Ele pegou a perna direita dianteira do castanho e limpou seu casco com uma faca. Não quis dizer a ela que, na guerra, os cavalos morrem cedo demais para ganhar um nome - balas inimigas, pernas quebradas ou doenças. Além de Jubal e do capão, ele já tivera mais dois cavalos, que agora estavam enterrados.

- Eu o chamaria de Fumaça Vermelha. É com o que ele se parece.

Lije grunhiu alguma coisa e pegou a outra pata, sentindo em volta o cheiro de couro, cinzas e estrume.

- Lije? - De novo, havia uma urgência em sua voz, tornando-a doce, insegura e preocupada.

- Sim? - Ele virou-se para ver Sorrel olhando-o com os olhos escuros e assustados.

- Papai vai morrer?

- Não. - Sua resposta foi forte e rápida, e uma certeza percorreu seu corpo tão logo ele se calou.

- Mas poderia, não poderia? - disse ela, envolta em tristeza.

- Poderia - admitiu Lije, embora não acreditasse nisso. O queixo dela tremeu.

- Se ele morresse a culpa seria minha. Aprumando-se, Lije franziu os olhos, erguendo uma sobrancelha, surpreso.

- Porquê?

- Porque... - Ela virou o rosto para cima, lutando para segurar as lágrimas que de repente surgiram em seus olhos. Desejei que ele morresse. Eu disse... que ele devia morrer por todas as casas que queimou, pela comida que roubou, pelas pessoas que matou. Disse que você devia morrer também, mas estava brincando. Não estava falando sério. Não estava.

Lije dirigiu-se a ela.

- Claro que não.

Primeiro ela se encolheu, quando ele colocou os braços à sua volta. Ele passou os dedos pelos cabelos vermelhos dela e puxoulhe a cabeça contra o peito. Ela encostou-se nele e soluçou com vontade. Ele deixou que ela chorasse.

- Você não tem culpa, Sorrel. - Lá estava a bala no bolso de sua camisa; podia senti-la contra a pele. - Você não tem nada a ver com o que aconteceu.

- Mas desejei que ele morresse - disse ela, chorando.

- Quantos anos você tem agora, Sorrel? Onze? Doze? - Ele tentou lembrar-se.

- Quase doze - admitiu ela, com as lágrimas já desaparecendo, mas ainda escondendo o rosto no peito dele.

-- Quase doze. - Ele pegou o queixo dela, levantou-o e limpou com os dedos as lágrimas de seu rosto, suavemente. - Então você é grande o bastante para saber que desejar não faz acontecer. Você não pode fazer nada acontecer simplesmente por desejar. Somente quando age sobre o desejo. E você não fez isso, fez?

- Não.

- Foi apenas algo que disse quando estava aborrecida, não foi?

Sorrel concordou, olhando-o de perto.

- Tenho ficado chateado algumas vezes, e disse coisas que não quis dizer. Sempre me arrependi depois... como você - acrescentou ele com um sorriso fraco.

- Sinto muito. - Ela fungou as lágrimas de volta.

- Eu sei-Lije parou, ouvindo o ruído de alguém caminhando através do mato alto.

- Lije? - Susannah chamou-o. - Você está aí?

- Sim. - Ele afastou Sorrel e murmurou para ela. - É melhor limpar essas lágrimas. Não queremos explicar a Susannah o motivo que levou você a chorar.

Ele deixou Sorrel esfregando a manga do vestido no rosto e foi encontrar Susannah.

- Você me chamou?

- Sim. Pode me ajudar a pegar uma mula? Preciso ir ao forte.

- Por quê? -- perguntou Lije de volta. - O major piorou?

- Não é isso. O láudano está quase acabando. Temple teve de aumentar a quantidade e a frequência das doses para manter as dores num nível que Blade possa aguentar. Agora parece que não vai haver o bastante para durar a noite toda. vou pegar mais.

- Como? - Lije franziu os olhos.

- Não sei-admitiu Susannah sacudindo um pouco a cabeça.

- vou pensar em algo para dizer ao médico. Se for preciso, eu roubo. Não posso deixar Blade sofrer desse jeito.

- Não - Quanto a isso, Lije concordava totalmente.

A mula parou na frente do hospital. Susannah enrolou as rédeas em volta do freio da carroça, agarrou a saia para descer e congelou-se, com um choque de alarme percorrendo-a, quando viu Alex sair do hospital. Entre as muitas possibilidades que imaginara durante o trajeto até o forte, não havia considerado a hipótese de que pudesse encontrar-se com ele. com o reverendo Cole, sim. com Diane, sim. Mas não com Alex.

- Alex, o que está fazendo aqui? - Ela deixou a surpresa escapar, assim que tocou o chão e virou-se para ele.

- Poderia fazer-lhe a mesma pergunta - sua boca torceu-se num de seus sorrisos conhecidos, mas havia algo frio e duro no olhar que ele dirigiu a ela.

- Não está ferido, está?

Susannah apressava-se para evitar uma resposta, a mente disparando. Lije dissera a ela que Kipp estava morto, mas o instinto alertou-a para não deixar Alex descobrir que ela já sabia. Ela olhou para o hospital, de repente ocorrendo-lhe que Lije poderia estar errado.

- E Kipp? Ele está...?

- Meu pai está morto.

Depois de um instante de dúvida, a confirmação dele era como ouvir a notícia de novo.

- Não!-exclamou Susannah.

- Trouxe o corpo dele de volta para o posto ontem. Foi enterrado ao entardecer - Suas palavras eram desprovidas de emoção, como se todo o sentimento tivesse se esvaído dele.

- Alex - murmurou Susannah com verdadeiro pesar. Estendeu-lhe a mão e segurou seu braço num gesto de conforto. - Sinto muito.

Os olhos dele apertaram-se para estudá-la, enervantes devido à sua forma direta de fixá-la.

- Não vai perguntar como ele morreu?

- Como? - repetiu ela.

Estava surpresa com a pergunta inesperada e com tudo o que isso implicava. Será que Alex estava lá? Será que ele tinha visto o que acontecera? Por que faria tal pergunta?

- Pensei... ele não foi morto por rebeldes?-Ele considerou a resposta dela durante um longo e agonizante minuto antes de concordar, sua boca transformando-se numa linha amarga e cínica.

- Sim, pelos rebeldes. Blade vai ficar contente quando souber que ele está morto, não é?

- Não diga uma coisa dessas, Alex. Seu pai está morto. Deixe todo o ódio morrer com ele.

- É...-pela primeira vez, ele desviou o olhar dela.-Minha companhia vai sair em patrulha de novo amanhã. O reverendo Cole disse que vai falar com Temple, contar-lhe sobre meu pai.

- Ele não precisa ir até Grand View. Sei o quanto está ocupado. Diga-lhe que direi a ela.

Ele concordou, depois foi até a caixa na carroça. -.O que tem aí dentro?

- Roupa de cama velha que rasgamos para fazer ataduras. O reverendo Cole disse que, infelizmente, estão sempre precisando de mais.

As ataduras já eram uma boa desculpa para vir ao forte. Consciente disso, Susannah procurou mudar de assunto.

- Ainda não disse por que veio ao hospital.

- Vim ver um amigo - respondeu ele. Em seguida, dobrou os ombros, numa súbita pressa.

- Olhe, eu devia estar nos estábulos. É melhor voltar antes que dêem pela minha falta. Dê minhas lembranças a vovó El e a Sorrel.

- Darei.

Susannah olhou enquanto ele se afastava na direção dos estábulos. No instante em que ele saiu de sua visão, ela relaxou, aliviada, e pegou o pacote de ataduras - sua desculpa para vir ao forte, caso encontrasse com Diane.

Armada com a experiência de ter trabalhado como voluntária de Diane no hospital em três ocasiões anteriores, Susannah correu para o prédio. Passou pela enfermaria, onde poderia encontrar Diane, e foi diretamente ao quartinho de suprimentos.

Para seu alívio, reconheceu o ordenança de plantão, um homem baixo, forte, com costeletas compridas.

- Soldado Cosgrove, como vai?

Ele olhou para ela, levantando as costeletas com a rapidez de seu sorriso.

- Bem, srta. Gordon. Que bom vê-la. A srta. Parmelee não disse que viria nos ajudar hoje.

- Na verdade, vim para fazer outras coisas, mas queria deixar essas ataduras aqui até a hora de sair.

- O que estou dizendo?... - Ele bateu a mão na testa, assombrado.-O tenente Gordon era seu irmão, não era? Ah, meus pêsames, srta. Gordon. Provavelmente vai aproveitar para visitar o túmulo dele.

- Primeiro quero ver o médico a respeito de um outro assunto. O major Clark está ocupado?

- A senhorita não se está sentindo bem? - Ele estudou-a um instante.

- Não, minha mãe é que não está muito bem. O major Clark está ocupado?

- Está no escritório dele, preparando seus relatórios. vou levá-la até lá.

Depois que o ordenança a conduziu ao escritório de Adam Clark, Susannah gastou pouco tempo em conversa mole antes de contar sua história cuidadosamente ensaiada da suposta queda e subsequentes dores lancinantes nas costas da mãe.

- Embaixo das costas, você disse? - Adam Clark franziu o cenho, pensativamente.

- Horríveis, às vezes, tanto que ela quase grita de dor. E minha mãe não é uma mulher sujeita a melodramas.

- Entendo.

Ele continuou a questioná-la exaustivamente a respeito da condição de sua mãe. Havia notado algum inchaço? Tinha febre? Alguma dormência ou perda de sentidos nos pés ou nas pernas? O abdómen estava flácido?

Em sua mente, Susannah aplicou as perguntas a Blade, e respondeu "não" a todas elas.

- Interessante - Adam Clark continuou a franzir o cenho enquanto distraidamente punha tabaco fresco no cachimbo. Talvez um ferimento num nervo esteja causando a dor.

- Tínhamos um pouco de láudano que lhe deu um certo alívio, mas já está acabando. Vai acabar durante esta noite explicou ela. - Foi por isso que vim aqui, para ver se poderia arranjar-me mais.

- Claro, claro, venha comigo.

Deixando o cachimbo de lado, ele se levantou.

Quinze minutos depois Susannah subia na carroça com uma lata de morfina no bolso do vestido. Pelos cálculos do major Clark, havia o bastante para durar uma semana, se seguisse as quantidades prescritas. com a missão cumprida, Susannah bateu as rédeas na mula e o animal iniciou um trote relutante. Adam Clark acenou um adeus enquanto a carroça se afastava, mas Susannah estava muito interessada em chegar em casa para notar. Tanto que nem viu Diane e o reverendo Cole saírem da tenda do hospital quando passou por ali.

- Como John Wesley disse, "limpeza se aproxima da divindade" - disse o reverendo Cole para Diane.

- Deveria fazer disso o tema de seu sermão para os refugiados neste domingo. Isso pode encora... - Diane interrompeu-se ao olhar a carroça. - Aquela não era a Susannah?

O reverendo Cole virou-se para olhar.

- Creio que tem razão. O que será que veio fazer aqui? Adam Clark aproximou-se deles.

- Reverendo Cole. Diane. - Havia um calor extra em sua voz e em seu sorriso quando se dirigiu a Diana. - Belo dia, não é? Não parece que teremos muitos mais assim. O inverno está chegando.

- É verdade - concordou Diane distraidamente. - Diga-me, aquela que acabou de sair não era Susannah?

- Era.

- Estou imaginando por que será que ela não parou para me ver.

- Imagino que estava com pressa de chegar em casa para ver a mãe - disse ele, tornando a franzir pensativamente o cenho. Parece que a mãe dela levou um tombo feio.

- Eliza? - disse o reverendo Cole, preocupado.

- Segundo Susannah, nada foi quebrado, não havia indicações de ferimento interno. Mas está com fortes dores. Excruciantes, às vezes. Obviamente, deve ter atingido algum nervo. Enviei um pouco de morfina por Susannah. Isso deve aliviar um pouco.

- Acha que foi sério? - perguntou Diane.

- É difícil dizer. Mas tenho esperanças de que seja algo que o repouso total possa curar - respondeu Adam. - Ela prometeu manter-me informado a respeito do estado da mãe.

O crepúsculo tingia o céu de roxo e aprofundava suas sombras em volta da casa quando Susannah finalmente chegou em casa. Quando a carroça parou, Lije saiu das sombras para encontrá-la.

- Estava começando a imaginar o que teria acontecido com você. Conseguiu?

- O bastante para uma semana - respondeu ela, enquanto Deu aparecia e subia na carroça.

- Cuidarei da carroça e da mula para a senhora, dona Susannah.

- Obrigada, Deu. - Ela passou-lhe as rédeas enquanto Lije esperava para ajudá-la a descer da carroça - Como está ele?

- Igual.

Juntos, caminharam rapidamente para a casa. Os outros cercaram Susannah no instante em que ela entrou. Ela respondeu à torrente de perguntas tirando a lata do bolso.

- Graças a Deus-murmurou Temple, apoiando-se em Eliza com alívio.

- É morfina-disse-lhes Susannah.-O major Clark avisou que é um remédio contra a dor mais forte do que o láudano e precisa ser administrada em quantidades específicas.

- Teve algum problema em consegui-la?-perguntou Eliza.

- Nenhum. Ele acreditou na minha história sobre sua queda. Ainda bem - acrescentou Susannah com um sorriso aliviado, que depois se desmanchou. - Mas encontrei Alex.

Ela sentiu o olhar instantâneo de Lije sobre ela.

- Você o viu?-disse Sorrel excitada, queixando-se logo em seguida. - Eu devia ter ido ao forte com você. Eu...

Susannah ignorou-a.

- Tenho más notícias. Kipp está morto.

Um gemido de dor e protesto brotou instantaneamente de Temple. Eliza abraçou-a, a tristeza escurecendo seus próprios olhos.

- Devemos rezar para que depois de tantos anos só conhecendo o ódio, Kipp tenha finalmente encontrado a paz.

com os próprios pensamentos longe de serem tão caridosos, Lije virou-se e dirigiu-se ao quarto do pai. Phoebe estava sentada ao lado da cama, com uma colher numa mão e um prato de sopa na outra. Blade estava reclinado contra vários travesseiros, com a já conhecida respiração entrecortada de gemidos, os olhos fechados.

- Ele está comendo? - Lije olhou para o prato de sopa.

- Um pouco.

Mas a expressão de Phoebe indicava que era muito pouco.

- Deixe-me alimentá-lo. - Ele foi para a cama para tomar o lugar dela. - Desça e diga à minha mãe que ficarei com ele. Ela pode jantar com o resto da família.

Phoebe deu-lhe o prato e a colher.

- Precisa fazê-lo comer agora ou ele não terá forças para se recuperar.

Ele viu a preocupação nos olhos dela e concordou.

- Ele vai comer.

Ele sentou-se, encheu a colher de sopa e levou-a aos lábios do pai.

- Coma um pouco - disse, enquanto Phoebe retirava-se silenciosamente do quarto.

Os olhos de Blade abriram-se apenas um pouco.

- Lije? - Sua voz era um sussurro arranhado.

Lije imediatamente empurrou a colher entre os lábios abertos.

- Sou eu. Agora coma isso.

Puxou a colher vazia de volta, passando-a sobre os lábios dele para limpá-los. Depois ficou olhando para Blade, esperando-o engolir antes de dar-lhe outra colherada.

- Nunca pensei... que pudesse... doer tanto.

- Coma. Não fale. - Lije empurrou outra colherada em sua boca e esperou de novo, dando a Blade a chance de descansar.

Depois de mais três colheradas, Blade forçou os olhos a se abrirem de novo, tentando focalizá-los em Lije.

- Sua mãe... Kipp?

Lije não teve nenhum problema em descobrir o que seu pai estava tentando lhe perguntar.

- Ela sabe que Kipp está morto, mas é só o que sabe. E é tudo o que precisa saber. Só iria machucá-la.

Colocou outra porção de sopa na colher.

- Deixe-a pensar o que quiser. Kipp está morto. Você agora é o único que sabe o que aconteceu.

- Alex... - disse, enrugando a testa.

Lije parou a colher a um centímetro da boca de Blade.

- Alex estava lá?

Houve um leve, quase imperceptível aceno. Lije praguejou e apertou os lábios, raivosamente. Sabia que Alex nunca se calaria sobre isso. Nunca.

- Espere um minuto - Lije enrijeceu-se numa suspeita repentina. - Quem atirou em você? Foi Kipp? Ou Alex?

- Não sei... - Sua cabeça inclinou-se ligeiramente - Kipp, morto... deve ter sido... Alex.

- Alex!

Lije sentiu o ódio e a amargura crescerem dentro dele. Não estava terminado ainda. A morte de Kipp não terminara nada.

Um vento arrasador percorria o noroeste, espalhando poeira, folhas e escombros. De vez em quanto uma forte rajada sacudia a charrete que seguia pela estrada do Texas. Apertando os olhos contra a poeira, Diane segurava a grade lateral com uma das mãos e, com a outra, o chapéu.

- Estamos quase chegando. - O vento açoitava o som da voz do reverendo Cole, diminuindo seu volume. - Ainda bem. Vem uma tempestade por aí.

Diane olhou para cima.

- Não há nenhuma nuvem no céu.

- Ainda não.-Ele acenou para o oeste, indicando as nuvens escuras sobre o horizonte.

- Acho que não é mais época de tempestades. - No entanto, ela vivera a maior parte da vida naquelas terras e sabia que as tempestades poderiam ocorrer em qualquer época do ano, até mesmo no inverno, embora raramente. E estavam ainda em setembro.

- Mas o ar tem aquele calor pesado, mesmo com o vento. o reverendo Cole viu a entrada para a casa dos Stuart e dirigiu a charrete rumo à estradinha.

O vento agora estava às suas costas, empurrando-os. A capota da charrete quebrou um pouco sua força. O alívio foi instantâneo e bem-vindo. Soltando o chapéu, Diane relaxou pela primeira vez em quilómetros. O cavalo relinchou de prazer e aumentou o trote, como se sentisse que a viagem estava terminando.

E estava. Ali, no fim da estradinha, erguia-se a casa dos Stuart, emoldurada por árvores açoitadas pelo vento e parcialmente obscurecida pela neblina da poeira voadora. Diane olhou para ela e foi logo tomada por lembranças arriscadas demais, vívidas demais. Antes que a dor se apossasse dela, Diane disse:

- Espero que Eliza esteja melhor. O reverendo concordou.

- Essa queda que ela sofreu é mais uma razão para eu desejar que elas se mudem para perto do forte. Em tempos traiçoeiros como este, não é nada seguro três mulheres viverem sozinhas, distantes de qualquer ajuda.

- Mas Temple não quer nem pensar em deixar sua casa.

- Enquanto ela ficar, Eliza e Susannah ficarão com ela. São três mulheres teimosas.

Diane preferia pensar que elas haviam aprendido a ser independentes e a cuidar de si mesmas, qualidades que ela achava admiráveis.

A charrete parou diante da casa. Ninguém saiu para recebê-las. Os únicos ruídos eram a fúria do vento através das árvores, o farfalhar das folhas, o ruído dos galhos esfregando-se uns nos outros e o ocasional estalido de um galho se partindo.

O reverendo Cole deu uma olhada em volta da casa e comentou:

- Por mais feliz que eu esteja com a libertação dos escravos, ainda parece estranho vir a esta casa e não ver ninguém chegar correndo para pegar os cavalos.

Ele abaixou as rédeas e desceu da charrete. Pegou a cesta de alimentos e colocou-a no chão, depois estendeu a mão para ajudar Diane a descer.

Assim que deixou a proteção da charrete, Diane foi de novo atingida pela ferroada da poeira e o puxão do vento em seu chapéu. Tornou a pôr a mão sobre ele e correu com o reverendo para a porta da frente. Quando alcançou a aldrava de bronze, a porta se abriu.

Sorrel olhava para eles com surpresa.

- Reverendo Cole. Diane. Achei que tinha visto uma charrete do lado de fora, mas... Susannah não disse que vocês vinham.

- Ela não sabia - Diane sorriu. - Podemos entrar?

- Claro.

Sorrel afastou-se para deixá-los entrar, depois fechou a porta.

Uma rajada de vento sacudiu as janelas como para protestar por sua exclusão.

- Tome. - Diane pegou a cesta do reverendo Cole e entregou-a a Sorrel. - Pode levar isso para Phoebe?

- O que é? - Ela segurou-a, tentando olhar sob o pano que a cobria.

- Algumas latas de frutas do armazém de mantimentos e um presunto defumado que meu pai encontrou lá nos fundos. - Diane distraidamente alisou as mechas de cabelo que o vento desarrumara.

- Presunto de verdade? - Sorrel suspirou de prazer. - Não me lembro da última vez que comemos um.

- Viemos ver Eliza - disse calmamente o reverendo Cole.

- Onde está ela?

- Vovó El? Está lá em cima no quarto de minha mãe. Eu...

- Obrigada. Conheço o caminho-disse Diane, movendo-se em direção às escadas.

O reverendo Cole acompanhou-a. Sorrel hesitou, depois começou a correr para os fundos da casa, carregando a cesta. Na metade da escada, Diana pensou alto:

- Por que será que Eliza está no quarto de Temple?

- Certamente deve haver alguma explicação lógica - respondeu o reverendo Cole sem se preocupar.

- com certeza, mas não posso imaginar qual. Eliza é uma mulher que gosta de suas próprias coisas.

A porta do quarto principal estava aberta apenas alguns centímetros. Diane bateu e recebeu uma resposta instantânea.

- Quem é? - Era a voz de Eliza, forte e atenta.

- É Diane. O reverendo Cole está comigo. Podemos entrar?

- Diane! - Havia um tom de alívio na resposta. Em seguida, ouviu-se um som como um suspiro preocupado. - Sim, podem entrar.

Mais curiosa do que nunca, Diane entrou no quarto e parou abruptamente quando viu Eliza de pé ao lado da cama, sem parecer doente nem sofrendo.

- Eliza, o que... Disseram...

Diane ouviu atrás dela o som inconfundível de um revólver sendo engatilhado. Voltou-se e ficou imóvel. Lije estava atrás da porta, com um revólver na mão, apontando para o teto. O olhar dela encontrou o dele, e ela instantaneamente lembrou-se de tudo que acontecera entre eles, todas as razões apaixonadas, intrusas e perturbadoras pelas quais tinham amado e lutado contra aquele amor. A presença dele sempre revivia antigas ânsias e desejos, e uma sensação de frustração que ela jamais fora capaz de ignorar. E que ainda persistiam.

Notou o quanto ele emagrecera. Seu rosto estava mais fino, dando um ar esquelético a suas bochechas e endurecendo-lhe as feições. Seu corpo era todo magro, os longos músculos endurecidos pelas ásperas exigências da guerra. Seus cabelos negros e emaranhados desciam até a gola da camisa. Ela nunca o vira mais glorioso.

- Lije... - sussurrou ela e quase correu para ele, parando diante da frieza que registrou nos olhos dele, fazendo-a lembrar-se de todas as coisas que houvera entre eles. O vento soprava por dentro da chaminé num som lamentoso que a entristeceu.

- O que... o que está fazendo aqui?

Um gemido baixo veio de algum lugar no quarto. Lije saiu de perto da parede e pôs o revólver no coldre, fechando automaticamente a aba sobre ele enquanto seu olhar se desviava dela.

- Meu pai foi ferido. - Ele encaminhara-se para o lado da cama.

Virando-se, Diane viu Blade deitado na cama, o rosto contorcido de dor. Temple estava ansiosa ao seu lado, com Susannah. Naquele momento Diane sentiu o quanto bloqueara tudo, não permitindo que nada e ninguém existisse além de Lije. Mesmo agora uma parte dela queria continuar olhando para ele.

Para compensar, ela começou a agir, tirando os alfinetes do chapéu, o próprio chapéu, o xale e a bolsinha e colocando-os sobre a cómoda mais próxima.

- O que aconteceu? Como ele foi ferido? Uma granada? Uma bala? - Um tiro - respondeu Temple.

- Onde? - Diane dirigiu-se até lá, aproximando-se de Temple do outro lado da cama.

- No braço esquerdo e nas costas - disse-lhe Susannah. íamos trocar as ataduras quando ouvimos vozes lá em baixo.

- Você nos deu um grande susto - Eliza olhou para o reverendo Cole.

- Sinto muito - a bondade estava no olhar do reverendo. Quando soubemos que havia se machucado, ficamos preocupados com seu bem-estar. Agora, claro, compreendo por que Susannah inventou essa história.

Cole olhou de volta para Blade, a compaixão em seus olhos se intensificando.

- Era a única forma que eu tinha de conseguir morfina disse Susannah.

- Claro, claro - concordou ele, compreensivamente. Agora, o que posso fazer para ajudar?

- íamos virá-lo de lado - disse Lije. - Ele pode ajudar um pouco, mas seria mais fácil se o senhor me desse uma mão. Cuidado com o braço dele.

- Está quebrado? - Diane notou a tala rústica que o imobilizava.

- Sim, mas é só uma fratura. Não teve nada mais sério, como seu pai - disse-lhe Temple, que olhava ansiosa enquanto Lije e o reverendo Cole viravam Blade cuidadosamente para o lado direito.

- Parece que uma bala ricocheteou no osso e saiu do lado do braço depois de quebrá-lo.

- E o ferimento nas costas? - perguntou Diane, aproximando-se quando Temple começou a remover o curativo. - Deixe-me ajudá-la com isso.

Lije olhou para ela, estudando o brilho cor de mel de seus cabelos e a confiança silenciosa de seus dedos.

Desde o momento em que reconhecera sua voz, ele viu que o tempo não diminuíra nenhum de seus sentimentos por ela, ao contrário, havia-os intensificado, deixando-o com raiva.

Assim que os curativos foram retirados, Diane inclinou-se para inspecionar o ferimento.

- Parece que está cicatrizando bem.

Ela sorriu em aprovação, atraindo o olhar dele para a curva sedutora de seus lábios. Ele lembrava-se do gosto deles e do calor de seus beijos. Mesmo quando as antigas lembranças afloraram, ele observou, sem piedade:

- Essa opinião vem da sua vasta experiência, não é? -debochou, consciente de que ela não merecia tal tratamento, mas incapaz de frear seus impulsos.

Ela olhou para ele, exibindo rapidamente uma faísca de raiva antes de abaixar os olhos.

- Ultimamente tenho tido alguma experiência com ferimentos - respondeu ela calmamente.

O reverendo Cole se manifestou, num caloroso elogio a ela:

- Diane vai todos os dias ao hospital cuidar dos feridos e doentes.

- Um belo anjo de misericórdia planando de cama em cama, colocando um pano frio nas testas dos soldados, segurando a mão do próximo - debochou Lije, recorrendo ao sarcasmo para sobrepujar o ciúme que o revolvia.

O reverendo lançou-lhe um olhar indignado.

- Se acha que a ajuda dela se limita a coisas como essas, está muito enganado, Lije.

Diane repreendeu-o suavemente:

- Está perdendo seu tempo, reverendo Cole. Lije prefere me ver como uma pessoa mimada que nunca se dignaria a usar sua linda mãozinha para tarefas servis - disse Diane, a voz deliberadamente leve, virando as costas para Lije. - Eu não me surpreenderia se ele achasse que eu desmaiaria assim que visse sangue. Ele prefere esquecer que fui criada como filha de soldado. Posso ter sido mimada, mas estragada, nunca.

Sabiamente, Lije não disse nada. Não havia desculpas para as coisas que dissera, não havia justificativa, exceto que sua mente estava sendo cruel com ele, fazendo-o lembrar de como uma vez a sentira em seus braços e do amor que ela lhe dera-e de que nunca mais sentiria essas emoções. Mais uma vez ele sentia a perda de tudo isso.

Ficou olhando em silêncio enquanto ela fazia um curativo no ferimento. Não havia gestos desperdiçados, ou incertezas. Ela demonstrava experiência e cuidado.

Quando terminou, Lije estudou-a com renovado respeito.

- Onde aprendeu a fazer isso?

- Quando os feridos chegam do campo de batalha, os médicos e ordenanças ficam agradecidos pelas mãos extras que ajudam a estancar o sangue de um ferimento. Na verdade não importa a eles que rosto atraente aquelas mãos possam ter. - Sua voz era doce e calorosa, mas seus olhos tinham fogo, deixando claro que ela não o perdoara por seus ataques anteriores.

- Deve ter ajudado muitos feridos - disse Lije sem rancor. O fogo saiu dos olhos dela quando disse:

- Muitos. Tanto no Forte Scott quanto no Forte Gibson. Ela voltou sua atenção para Blade. - Se estiver pronto, vamos virá-lo para uma posição mais confortável. Assim ele poderá descansar.

De novo o reverendo Cole ajudou Lije a levantar e a virar Blade cuidadosamente. Apesar do cuidado que tiveram, os movimentos levaram Blade a deixar escapar um forte gemido de dor, acompanhado de uma careta.

Temple afagou seu rosto com carinho.

- Ssssh, já terminou. Agora descanse-murmurou baixinho. Em seguida ela se afastou, entrelaçando os dedos de preocupação.

- Dei-lhe uma dose de morfina antes de começarmos, mas os ferimentos causam tanta dor...

- Ele está melhorando - Lije tentava ser positivo. - Há poucos dias teria gritado se o movêssemos.

- Fique contente de ele sentir alguma coisa, mesmo que seja dor, Temple - comentou Diane, e Lije compreendeu instantaneamente que Jed Parmelee perdera não somente o uso, mas também toda a sensibilidade de seu braço.

- Tem razão, claro-Temple virou-se para ela.-Como está seu pai?

Diane deu um sorriso fugaz.

- Frustrado por estar atrás de uma mesa, impaciente para voltar à ação, sempre tentando ser reintegrado ao seu regimento.

Sorrel entrou correndo no quarto, mas se deu conta e começou a andar mais devagar.

- Phoebe está preparando chá. Perguntou se vocês querem que seja servido na sala de visitas.

- Na sala de visitas será ótimo. - A resposta de Temple quase desapareceu com a súbita lufada de vento que sacudiu a casa.

- Ouçam só esse vento - disse Eliza, sacudindo a cabeça.

- Como está soprando feroz hoje. Parece até que estamos em março.

- Há uma tempestade se aproximando. O reverendo Cole e eu notamos a barreira de nuvens no horizonte quando nos aproximávamos. - Diane parou, olhando para o reverendo numa mensagem muda. - Tenho medo de que nossa visita tenha de ser curta, se quisermos voltar ao forte antes que a tempestade comece.

- Vão ficar para o jantar, não é? - protestou Temple. - Se esperarem pela tarde, ainda poderão escapar da tempestade. E, claro, não podem estar viajando rápido assim.

- Por que não continuamos nossa conversa na sala de visitas?

- sugeriu Eliza, indicando a todos o caminho até a porta.

Quando Temple hesitou olhando incerta na direção de Blade, Lije se adiantou.

- Pode ir, eu vou ficar.

Temple tocou seu braço agradecida.

- Ótimo. Não gosto de deixá-lo sozinho.

Mas foi o rápido olhar de alívio e gratidão de Diane que Lije notou. Ela estava tão desejosa de escapar à tensão da companhia dele quanto ele de evitá-la. Depois de todos esses meses longe um do outro, estar com ela lhe trouxera de volta a lembrança de como as coisas eram - e de que jamais poderiam voltar a ser iguais.

Lije parou ao lado da cama, o olhar fixo no pai enquanto ouvia o murmúrio das vozes sumindo. Era fácil destacar a de Diane entre elas. Fácil demais. Lije começou a dirigir-se à porta para bloquear todo o som, mas depois mudou de ideia e sentou-se na cadeira ao lado da cama.

Ele estava só, perseguido pela imagem dela no quarto cuidando dos ferimentos de seu pai, os olhos cheios de compaixão. Ele aspirou e sentiu o perfume dela, misturado aos outros odores do quarto de doente.

Lije tirou a bala do bolso e rolou-a entre os dedos, depois recostou-se na cadeira e estirou suas longas pernas. Entretanto, não conseguia ficar confortável. Fixou o olhar no pai e olhou a lenta subida e descida de seu peito enquanto Blade dormia profundamente no sono induzido pela droga.

Em silêncio, Lije esperou o tempo passar, seus dedos ocupados constantemente com a bala. De vez em quando ele ouvia o riso dela, baixo e sedutor, vindo do andar de baixo, e seus dedos apertavam a bala. Lá fora, o vento soprava à espreita.

As vozes lá embaixo ficaram mais altas, mudando de direção, movendo-se da sala para fora, a conversação quase mascarando o som de passos do lado de fora, no saguão. Lije levantou a cabeça, olhando para a porta, os músculos tensos por um instante. Mas os passos dirigiram-se para a escada dos criados. Lije reconheceu que se tratava de Deu e relaxou a guarda.

Um momento depois, Deu entrou.

- Dona Temple me mandou ficar com o sinhô Blade. Ela disse para você vir descer e jantar com todos.

Lije sacudiu a cabeça.

- Não estou com fome.

- Dona Diane trouxe um grande presunto defumado. Phoebe preparou-o para o jantar. O cheiro dele vai fazer sua boca aguar. Vá comer alguma coisa, capitão.

Quando Lije começou a recusar de novo, Deu acrescentou:

- Sentar do outro lado da srta. Diane não pode ser pior do que enfrentar uma linha completa de soldados ianques com aqueles rifles repetidores. Ou enfrentar a dona Temple quando ela descobrir que você não vai descer.

Suspirando pesadamente, Lije pôs-se de pé. Mas não era o pensamento da raiva de sua mãe que o persuadira. Era a constatação de que não havia muita diferença entre estar no mesmo cómodo com Diane ou ficar a um andar acima. Cada um era um inferno diferente.

Os outros já haviam se acomodado quando Lije entrou na sala de jantar. Diane estava à direita da mãe. Ela olhou para cima somente com um pequeno interesse quando ele entrou. Lije apertou os dentes. Tudo bem, pensou selvagemente, se ela pode fingir, também posso.

- Sente-se, Lije - Temple deu-lhe um sorriso rápido. Nathan já ia fazer a prece.

Ele andou diretamente para a cadeira vazia na cabeceira da mesa e puxou-a.

- Já que o major não pode jantar conosco, sentarei em seu lugar.

Recobrando-se de sua surpresa inicial, Temple instruiu Phoebe a mudar o lugar dos talheres. Lije sentou-se. Temple acenou para o reverendo começar.

- Deus todo-poderoso, confira suas bênçãos aos que estão juntos aqui nesta mesa...

Lije abaixou a cabeça e observou Diane, a cabeça inclinada, as mãos juntas em oração. De novo ele emocionou-se com a perfeição de sua beleza, a delicada linha de seu queixo e a forte curva das maçãs de seu rosto. Seu cabelo tinha o brilho dourado do sol, e seu rosto era como marfim, com o rubor de rosas sobre ele. Seus cílios eram longos e, como seus olhos, letais. Mas ela não era só uma dama recatada e elegante. Tinha muito humor, muito gosto pela vida; estava pronta a se aventurar. Isso era o que o atraíra desde o início, muito mais do que a força de sua beleza. Era o que ainda o atraía. Seu orgulho e sua paixão, a força de seu caráter. Ele a maldizia por isso.

- ...nome, Amém - concluiu o reverendo Cole.

- Amém - ecoou Diane.

Ela levantou a cabeça, os cílios batendo para revelar o azul claro e límpido de seus olhos. Ele xingou-a por aquilo também, e tirou seu guardanapo da mesa, desdobrando-o com uma sacudidela.

Phoebe carregava uma terrina de sopa de batatas e colocou-a diante de Temple.

- Por acaso tem visto Shadrach? - Eliza dirigiu a pergunta a Diane quando ela passou o prato de sopa para Temple.

- Meu pai tenta vê-lo constantemente. Shadrach o mantém a par de todos os acontecimentos do regimento. Claro, nosso criado nos conta todos os mexericos que Shadrach não acha adequado para contar a um oficial - respondeu Diane com um riso nos olhos.

- Shadrach sempre foi muito circunspecto em relação a essas coisas - Eliza pegou o prato com sopa de Temple e passou-o para Susannah, começando a cadeia até que todos os pratos estivessem servidos.

- Sabe que Shadrach está ensinando a uma dúzia de soldados negros a ler e escrever durante suas horas livres? - Diane mergulhou a colher na sopa e provou-a. - Hum, está deliciosa.

Eliza concordou.

- Sim, está. Não me surpreende nem um pouco que Shadrach esteja lecionando. Sem desejar ofendê-la, Temple, ele sempre foi meu melhor aluno - declarou, e depois suspirou. - Sinto falta dele, mas também estou orgulhosa.

- Tem razão em estar orgulhosa por ele, e por Ike tambémacrescentou Diane quando Phoebe voltou para pegar a terrina de sopa. -Meu pai garante que nunca comandou soldados melhores do que os seus Primeiros Voluntários Negros do Kansas. Na batalha de Honey Springs, há dois meses, eles sustentaram o centro, a posição mais importante na linha da União, aguentaram um ataque da brigada do Texas. Depois atacaram a linha rebelde e a romperam. O general Blunt em pessoa condecorou-os por seu valor e coragem. Disse que tinham lutado como veteranos e que nunca vira tanta frieza e bravura.

Phoebe empertigou-se um pouco mais, os olhos brilhantes de orgulho pelo filho.

- É um grande elogio do general - disse-lhe Diane. - E bem merecido, também. O regimento perdeu alguns bons homens na batalha.

- Bons homens foram perdidos dos dois lados naquele dia - ressaltou Lije, atraindo a atenção deles.

Um momento de tensão encheu o cómodo. A guerra com suas divisões de lealdade ameaçava dominar a refeição. Então Diane sorriu com um humor cínico.

- Tinha-me esquecido de que tínhamos um rebelde à mesa. vou observar minhas palavras com mais cuidado.

- Duvido - retrucou Lije secamente, provocando sorrisos em volta. O desconforto dissolveu-se.

- Ele a conhece bem demais, Diane - observou o reverendo Cole.-O que me faz lembrar... Eliza, lembra-se daquela reunião...

A partir daí a conversa centralizou-se nas lembranças compartilhadas do passado.

Os pratos de sopa foram logo retirados e a refeição principal servida, trazendo paz ao ambiente.

- Não é impressionante como todo mundo pára de falar assim que seus pratos estão servidos? - observou Diane.

- Comida tão deliciosa como esta merece nossa inteira atenção - Susannah deu uma mordida na batata-doce espetada em seu garfo.

- Está ótimo - concordou Temple. - Principalmente esse presunto. Raramente temos comido carne, é uma maravilha.

- Agora que o major está melhorando, sairei à caça para mudar isso - disse Lije.

- Outro dia vi rastros de veado atrás dos estábulos - disse Sorrel.

- Isso indica que há caça na região. Embora ache que veado fresco não vai ser tão bom quanto esse presunto.

Mas ele não achava bom caçar na fazenda. Ficava muito perto da estrada do Texas. Se uma patrulha passasse poderia ouvir e decidir investigar o som de um tiro.

- Então você gostou - retrucou Diane com uma voz inocente. - Fico contente. Estava com medo de que tivesse algum problema em comer presunto ianque.

- Engana-se - disse Lije, espetando com o garfo outro pedaço de presunto. - Macio como está, só pode ser presunto rebelde. Os ianques devem tê-lo roubado de algum confederado, por isso tenha cuidado para que você não se engasgue com ele.

Diane levantou a cabeça e riu. Sua risada era como o som das trombetas de Jericó, derrubando as defesas erguidas cuidadosamente por ele. Naquele momento Lije quis tirá-la daquela cadeira e carregá-la para algum lugar, qualquer lugar, como ela lhe pedira para fazer anos atrás. Mas naquela época ele não pôde fazer isso, e tampouco poderia fazê-lo agora, não com seu pai na cama no piso de cima.

De repente a comida em seu prato ficou sem gosto. Lije recusou a torta de maçã que Phoebe acabara de preparar para a sobremesa e pediu licença para retirar-se da mesa e ver seu pai.

- Como ele está?

- Descansando - Deu pegou a bandeja de comida. – Comeu quase tudo. Acho que teria comido mais, mas ficou cansado. Tudo bem. O importante é que começou a comer de novo, e quando um homem começa a ter apetite é porque está começando a ficar bom. Isso nunca falha.

Tirando a bandeja, Deu deixou o quarto.

Impaciente, Lije foi até a janela. O vento transformou-se numa brisa densa. Lá em cima, as nuvens vagavam pelo oceano de céu azul, anunciando a mudança de tempo. Ele olhou-as por um longo tempo, até que ouviu passos macios nas escadas e o leve farfalhar de saias compridas.

Tenso, ele virou o rosto para a porta. Diane entrou e, assim que o viu, ela parou, o queixo levantando em resposta ao olhar desafiador dele. -

- Vim pegar o xale e o chapéu que deixei sobre a cómoda disse ela.

Lije concordou, consciente de que não era uma permissão que ela estava pedindo. Quando ela foi pegar as coisas, ele saiu de perto da janela e aproximou-se da cama.

- Então você e o reverendo Cole já estão partindo.

- Sim. Deu foi buscar a charrete - Diane pegou suas coisas e virou-se para sair.

Lije ficou diante dela.

- O que vai fazer quando voltar para o forte?

- Como assim?-Ela franziu as sobrancelhas, intrigada com a pergunta.

- Não finja que não está entendendo. - A impaciência marcava a voz dele. - Você e eu sabemos que capturar um dos oficiais das tropas de Watie seria um valioso prémio para os ianques. Vai contar a seu pai que o major está aqui?

Ferida pela fria acusação em sua voz, Diane reagiu com raiva.

- Sinceramente, até agora esse pensamento não tinha cruzado minha mente. Mas não há nada que possa fazer para deter-me, há? - desafiou-o ela. - Não pode manter-me aqui. Se o fizesse, sabe que meu pai mandaria imediatamente uma patrulha à minha procura. Ele sabe onde estou, o que significa que aqui é o primeiro lugar onde iriam procurar. E você não pode desaparecer com seu pai depois que eu partir. Ele está fraco demais, mal pode ficar de pé, que dirá sentar-se num cavalo. Suas mãos estão atadas, não é?

- Você vai contar?

- Deveria. Ele é um confederado. Um traidor, como você. Ela tentou controlar a raiva, mas muitas outras emoções se

juntaram a ela. Virou-se para escapar dos olhos perscrutadores dele.

- Mas às vezes... - sua voz ficou grave. Ela parou e tentou de novo. - Às vezes é difícil pensar em você como inimigo, Lije. Às vezes...

Ela parou de novo. Teria sido simples não dizer nada, mas uma honestidade inata impeliu-a a terminar a frase.

- Às vezes sinto tanta falta sua. - Ela olhou de volta para ele com um misto de dor, amor e desejo.

Ele aproximou-se e abraçou-a, apertando os braços dela entre eles e amassando o xale e o chapéu. Não queria tocá-la; esse foi seu último pensamento coerente antes de buscar os lábios dela num beijo rude e desesperado. O gemido dela transbordava na boca dele como um vinho rico e embriagador.

Necessidades e desejos há muito tempo suprimidos tomaram conta dele. Ele pegou o xale, o chapéu e as luvas das mãos dela e jogou-os longe, não se importando em saber onde cairiam. As mãos dela instantaneamente envolveram-lhe o pescoço, os dedos agarrando seu cabelo, devolvendo a pressão crua de seu beijo e querendo mais.

Ele não conseguia resistir-lhe. Sentiu-a tremer quando a tocava, saboreava e tentava. A respiração dele confundiu-se com o nome dela. Dor e poder estavam ambos misturados na necessidade que ele tinha dela. Ela o fazia sofrer ainda mais, apenas por estar em seus braços.

- Não sabe o quanto tentei esquecê-la-disse ele, com a voz rouca. - Mas você sempre está lá, na beira de cada pensamento. Nunca deixei de desejá-la. De precisar de você.

- Fico feliz-ela murmurou, puxando sua boca de volta para a dela.

Ela estava tirando algo dele, arrancando algo para fora dele. A mente dele flutuava no nevoeiro de suas necessidades, enquanto seus dedos perscrutadores, depois de encontrarem a frente abotoada do casaco burgandy de viagem dela e tirava os botões de suas casas.

Por baixo ela usava uma blusa de renda marfim que lhe subia até a garganta, mas que a ele parecia tão sensual como os mais ousados decotes. Arqueando as costas dela para trás, ele libertou a boca para colocá-la sobre o seio dela, sugando com ganância através do algodão.

O prazer que isso despertou atravessou-o como um sabre. Ouviu a respiração ofegante dela e buscou novamente seus lábios, enquanto enchia as mãos com seus seios, os dedos descobrindo a fazenda molhada onde sua boca tinha estado.

Seus lábios não paravam, indo do rosto ao queixo, ao ouvido, e voltando ao rosto, de novo e de novo. A respiração dele era pesada e entrecortada.

- Cada minuto, cada hora, cada dia, eu a queria.

Ela ficou macia de novo contra ele por um instante. Depois inclinou a cabeça para trás e respondeu, num sussurro:

- Eu também o quis sempre, Lije. Mais do que pode imaginar. -Estendendo-se, ela passou amão trémula no rosto dele.-Quero que fiquemos juntos. Agora. Para sempre. E podemos ficar. Seu pai deve ir para um hospital, sob os cuidados de um médico. Leve-o para o Forte Gibson.

- Não. - Ele pegou a mão dela e tirou-a de seu rosto.

- Desista, Lije - pediu ela, num tom insistente. - O Sul não pode ganhar. Não mais. O Forte Smith já está nas mãos da União. As forças rebeldes estão sendo expulsas mais e mais para o sul. Você não tem de ficar com eles. Pode vir para o forte e fazer como tantos outros cherokees fizeram. Entre para a União.

- Não. Não posso fazer isso. Não faria isso.

- A guerra está perdida. Para quê continuar lutando?

- vou continuar enquanto ele continuar - acenou com a cabeça em direção a Blade.

Diane soltou-se e deu uma passada raivosa para longe.

- Por que é tão teimoso? - com as mãos trémulas, ela continuou a abotoar a frente do casaco.

Lije não se moveu.

- Vai contar a seu pai?

Diane congelou-se por um instante, depois seus ombros vergaram e ela deixou escapar um longo suspiro.

- Não sabe como estou cansada de tomar decisões - ela

olhou para trás, o olhar correndo para ele com desejo e remorso. Às vezes gostaria que você nunca tivesse me deixado sair desta casa, que nunca tivesse me deixado empacotar minhas coisas. Você poderia ter-me persuadido, Lije. Poderia ter-me convencido. Eu o amava tanto, que teria ficado. Você sabia disso, mas nunca tentou. Por que, Lije?

- Porque você me teria odiado por isso. Mais do que isso, você teria passado a odiar a si mesma. Você não gosta de fraqueza, Diane. Em ninguém. Nem mesmo em você própria.

Ela deu outro longo suspiro.

- Gostaria de poder dizer que você está errado.

- Eu sei.

- Sabe? - Ela virou-se, a cabeça erguida, recuperando seu controle, com um toque de tristeza nos lábios. - Gostaria que deixasse essa luta enquanto ainda há tempo. Não há mais razão para proteger seu pai. A briga está terminada agora. Kipp está morto.

Em resposta, Lije tirou a bala do bolso.

- Eliza tirou isso das costas de meu pai. - Ela olhou-a e depois olhou para ele, indagando silenciosamente. - Saiu do revólver de Alex.

- Blade lhe contou isso?

- Sim.

- E acha que Alex virá atrás dele agora que Kipp morreu. Ela olhou para ele, compreendendo repentinamente.

- Não posso ter certeza. E não posso arriscar-me a crer que ele não venha - disse ele, pondo a bala de volta no bolso.

- É claro que nada mudou. Para você, essa briga ainda é mais importante do que eu - disse ela, toda dura e armada com seu orgulho.

- Se é assim que prefere ver as coisas...

- É a única maneira como posso ver. - Ela pegou seu chapéu amassado, o xale e as luvas do chão, depois deu um passo em direção à porta e parou.

- Quanto ao outro... quando eu voltar ao forte, vou fazer o seguinte: não darei nenhuma informação sobre Blade, mas se me perguntarem, não mentirei.

Ela saiu do quarto. Lije segurou-se firme, ouvindo as vozes abaixo trocando despedidas. A porta da frente abriu-se e se fechou. Ela partira. O queixo dele ficou duro quando ele voltou para a cama.

Blade gemia em seu sono, nervoso, fazendo uma careta de dor. Suas pálpebras tremeram por um momento. Depois ele esticou a perna sob as cobertas e gemeu de novo. A morfina estava perdendo o efeito.

Lije tirou uma pílula da latinha que sua mãe mantinha na cesta de remédios ao lado da cama. Usando a própria embalagem como socador, ele transformou a pílula em pó e dissolveu-o numa pequena quantidade de água. Pôs a mão atrás da cabeça de Blade e levantou-a cuidadosamente, apertando o copo em seus lábios.

- Beba isso. Vai parar a dor.

- Não - Blade gemeu e tentou virar a cabeça para o outro lado. - Vamos. Você se sentirá melhor depois de tomá-la.

De novo houve um pequeno movimento de recusa. Lije abaixou o copo e franziu os olhos.

- Não quer tomar isso?

- Veja se posso ficar... de pé. - As palavras incompreensíveis eram empurradas através dos dentes apertados contra a dor. Faz... minha mente nadar... muito fraco... pior do que bebida... não gosto... disso.

- Está bem - Lije baixou a cabeça dele de volta ao travesseiro e colocou o copo na mesa. - Vamos esperar. Diga se ficar ruim demais.

Ele deu um pequeno aceno. Blade abriu os olhos e lutou para focalizar Lije.

- Depois... quero ficar de pé... quero ver... se posso.

- Mais tarde - prometeu Lije.

Blade fechou os olhos, dando um suspiro profundo enquanto divagava numa sonolência induzida pela droga e pela dor. Resmungou outra vez:

- Perigoso, aqui...

Era a primeira indicação de que ele sabia como estava exposto e vulnerável ali.

As batidas da lâmina de um machado mordendo a madeira ressoavam na quietude da tarde. A égua negra virou a cabeça na direção dos ruídos, depois prosseguiu cuidadosamente seu caminho ao longo da estradinha barrenta, evitando as poças deixadas por dois dias de chuva. Alex estudou com atenção a casa diretamente à sua frente. Não havia nenhum cortinado negro de luto na porta da frente, mas ele não tinha certeza de que isso significava alguma coisa e fez a égua galopar. Ela chapinhou por uma poça, resfolegou em desprazer pelo respingar da água lamacenta.

- Alex! Alex, espere.

Ele parou, olhou para trás e viu Sorrel andando pesadamente através do mato à sua esquerda. Calçava um par de botas pesadas dois tamanhos maiores do que o seu. Sorrindo pela sua sorte, ele virou a égua e cavalgou de volta para encontrá-la. Poderia sempre contar com Sorrel para dizer-lhe qualquer coisa que quisesse saber.

Ela esperou por ele na grama à beira da estradinha, excitada e ofegante.

- O que está fazendo aqui, Alex?

- Parei para trazer-lhe um presente de aniversário.-Parecia uma desculpa tão boa quanto qualquer outra. Alex nunca visitara a família sem um motivo.

- Ainda não é meu aniversário.

- Mas talvez eu não possa vir no seu aniversário. Então achei melhor dar seu presente enquanto tenho uma chance.

Alex desmontou, desafivelou a aba da bolsa da sela e tirou dela um pequeno embrulho marrom.

- Vai ser mandado para longe de novo?

- Não que eu saiba, mas no exército nunca se pode ter certeza.

Ele virou-se e entregou-lhe o embrulho.

- Desculpe, não tinha nenhuma fita bonita para colocar em volta dele.

- Tudo bem - Sorrel pegou-o com indisfarçável avidez, depois virou seus olhos alegres para ele. - Posso abri-lo agora?

- Claro.

Alex sorria e olhava enquanto ela rasgava o papel. Seus lábios se abriram num grande "Oh" e seus olhos ficaram quase do mesmo tamanho quando viu a medalha de ouro e a corrente.

- Gostou?

- É lindo - sussurrou Sorrel. - É a coisa mais linda que já tive.

Ela interrompeu-se o tempo suficiente para atirar-se sobre ele e dar-lhe um rápido abraço. Em seguida, voltou a admirar a medalha.

- Se abri-la, vai ver que pode colocar dentro dela um retrato ou uma mecha de cabelo.

Alex já retirara as mechas de cabelo negro que estavam na medalha. No fim das contas, a trouxinha que ele tirara da família Meynard se revelara de bom proveito. Além de quase trinta dólares em moedas de ouro, ele agora era dono de um broche feminino, um par de brincos e um belo relógio de bolso de ouro.

- Alex - Sorrel lançou-lhe um olhar preocupado e perplexo.

- Tem o nome de alguém aqui atrás.

- Comprei-a na loja de mantimentos - mentiu ele. - Acho que alguém a vendeu em troca de mantimentos. Assim que a vi, lembrei-me da moça perfeita para usá-la. Vire-se que vou colocá-la em você.

Satisfeita com a explicação, Sorrel entregou-lhe as pontas da corrente e virou-se, levantando os longos cabelos ruivos do pescoço para que ele pudesse prendê-la. Assim que ele a fechou, ela virou-se e olhou para ele orgulhosamente.

- Como está?

- Linda - respondeu ele distraidamente, e Sorrel logo olhou para ela.

O machado bateu de novo. Alex olhou na direção do som.

- Então, o que está fazendo aqui no mato?

- Estava ajudando Deu a cortar lenha para que tenhamos bastante durante o inverno - disse ela, passando os dedos pela corrente, continuando a admirá-la.

- Deu - Alex retesou-se, olhando-a com um olhar cortante.

- O que ele está fazendo aqui? Aconteceu algo com seu pai?

Ele esperou o olhar de tristeza surgir no rosto dela.

- Ele foi ferido. Deu e Lije trouxeram-no para casa; na semana passada. É, acho que foi na semana passada.

- Está vivo? - O primeiro fluxo de preocupação correu através dele.

Sorrel concordou e deu um exagerado suspiro de alívio, sorrindo.

- Primeiro tive medo de que ele fosse morrer, mas agora está melhorando. Ontem Lije ajudou-o a ficar de pé. Mamãe ficou furiosa quando viu. Ela o fez voltar correndo para a cama.

Frio com o choque, Alex olhou para a casa, sua mente correndo em repentino pânico. O desgraçado estava vivo. Seu tiro não o matara. Por que não havia se assegurado de que Blade estava morto? Agora viria atrás dele para matá-lo, como fizera com seu pai. E Lije poderia vir junto com ele.

Alex precisava sair dali depressa. Agarrou as rédeas.

- Vamos até lá em casa, Alex.

Sorrel tocou a medalha e tentou assumir um ar adulto. Sentia-se deslumbrada. Uma jóia! Ninguém jamais lhe dera uma jóia de presente. Não era um presente de criança; era o que se costumava dar a um adulto.

- Quero mostrar a todo mundo meu presente de aniversário -- disse.

- Sinto muito, mas tenho de ir - Ele colocou o pé no estribo e montou na égua.

- Mas por quê? Você acabou de chegar - protestou Sorrel.

- Eu sei. - Ele deu-lhe um rápido sorriso. - Mas já disse que só vim trazer seu presente. Preciso apresentar-me no forte antes de escurecer, e ainda tenho de ir até a fazenda de meu pai verificar as coisas. Ver se os saqueadores de Watie ainda não queimaram tudo.

- Eles não fariam isso - disse Sorrel rapidamente, embora soubesse que sim. Saqueadores haviam pilhado e queimado a casa de seu avô.

A boca de Alex torceu-se maliciosamente.

- Eles fariam isso num piscar de olhos, Sorrel. Num piscar de olhos.

Ele tocou a espora na égua e partiu. Sorrel olhou-o por um momento, depois virou-se e correu para casa. Assim que entrou, sua mãe chamou-a.

- Sorrel, não quero você andando pela casa com as botas sujas de barro.

- Por favor, mamãe, não sou mais criança. Já tirei as botas antes de entrar - retrucou ela, com um ar de dignidade, dirigindo-se ao espelho com moldura dourada para admirar sua medalha.

- Venha ver o que Alex me trouxe de aniversário.

- Alex? - Temple apareceu do corredor. - Ele está aqui?

- Agora não. Teve de partir.

Sorrel olhou-se no espelho, virou-se de um lado para outro para examinar o reflexo da luz em volta da medalha de ouro. Quando viu o olhar de Temple no espelho, virou-se e segurou a medalha.

- Olhe o que Alex me deu. Não é linda?

- É linda. Só que o seu aniversário...

- Alex sabe que não é meu aniversário, mas queria dar meu presente agora, caso seja mandado para algum lugar. Sabe como é o exército - Sorrel fingiu um conhecimento adulto de tais assuntos.

Lije desceu as escadas.

- Por acaso ouvi você dizer que Alex está aqui? O que ele quer?

Sorrel irritou-se com seu tom de voz.

- Ele não quer nada. Só veio me ver e me dar este presente.

- Segurando a medalha, ela virou-se de volta para o espelho e sorriu ao vê-la em volta de seu pescoço.

- Por que ele não entrou? - perguntou Temple, curiosa.

- Porque tinha de ir à fazenda de tio Kipp para ver se está tudo bem lá. Depois, ele tem de voltar para o forte antes do anoitecer

- Sorrel parou quando um pensamento lhe ocorreu. - Embora a fazenda seja dele agora que tio Kipp morreu, não é?

Ela sentiu uma pontada de culpa porque não tinha pensado em dizer a Alex o quanto sentia pela morte do pai dele.

- O que ele disse? Fez alguma pergunta? - Lije apareceu atrás dela, seu reflexo unindo-se ao dela no espelho. A hostilidade e a desconfiança em sua voz eram indisfarçáveis.

Sorrel reagiu com uma raiva instantânea.

- Odeio quando fala assim sobre Alex. Você não gosta dele. Nunca gostou dele, mas eu gosto. Por que não pode deixá-lo em paz?

- Sorrel - murmurou Temple, em desaprovação.

- Mas isso não é justo - Sorrel virou-se para ela. - Alex veio trazer-me essa medalha e eu estava tão feliz. E agora... ele estragou tudo! - Ela saiu correndo, chorando.

Lije olhou-a, franzindo as sobrancelhas. Talvez a visita de Alex fosse tão inocente quanto ela dizia. Talvez.

- Srta. Temple, srta. Temple - Phoebe entrou no quarto, lutando para recuperar o fôlego depois de subir correndo as escadas de trás.

- Soldados ianques... estão marchando para cá.

- Lije já voltou?

- Não - disse Phoebe, ainda ofegante. - Ele ainda deve estar caçando.

- Tenho que sair... sair daqui.

Ainda semidrogado pela morfina que Temple lhe dera horas antes, Blade tentava levantar-se nos cotovelos. Mas a mistura de dor e fraqueza derrotou sua tentativa. Ele caiu no colchão, pálido, o rosto torcendo-se em agonia.

- Não posso... deixar que... me encontrem.

- Não vai a lugar nenhum até terminarmos com essa atadura. Termine isso para mim, Eliza - Temple foi até a janela verificar por si mesma.

- Blade tem razão, Temple. Precisamos tirá-lo de casa.

- É tarde demais. Já estão quase chegando.

Temple olhou a coluna de infantaria de negros, liderada por um trio de oficiais brancos montados.

- Nunca conseguiremos tirá-lo daqui sem ser visto. Temos de escondê-lo. - Ela saiu da janela e esquadrinhou o quarto.

- Embaixo da cama. É tão óbvio que talvez eles não pensem em olhar ali.

- Não sabemos por que estão vindo, Temple. Não sabemos se vão revistar a casa - raciocinou Eliza.

- Não podemos arriscar. Você e Phoebe coloquem-no debaixo da cama. vou para baixo... recebê-los. - Retardá-los, era o que ela queria dizer.

Talvez Eliza tivesse razão. Talvez fosse apenas sua consciência culpada fazendo-a acreditar que os soldados estivessem ali procurando Blade. Talvez fosse somente algum tipo de visita. Mas tinha medo de acreditar nisso.

Lá fora Temple parou entre duas colunas da varanda. À medida que o oficial que liderava o pequeno grupo se aproximava, Temple fixava nos lábios o que esperava ser um agradável sorriso. De repente, não pôde acreditar em seus olhos. Seu sorriso não era mais forçado.

- Jed!

Ela correu para encontrá-lo, sem mesmo esperar que ele descesse do cavalo. Ela pegou a rédea e segurou a cabeça do animal, enquanto Jed Parmelee desmontava, seu braço esquerdo fazendo um volume sob o casaco do uniforme, a manga vazia presa no ombro.

- Mas que surpresa... maravilhosa! Não preciso perguntar como tem estado. Posso ver por mim mesma que está bem.

- E posso dizer o mesmo de você, Temple. - Ele pegou a mão dela e levou-a aos lábios, inclinando-se ligeiramente.

Temple sorriu:

- Você fez isso da primeira vez que nos conhecemos em Washington. Lembro-me de tê-lo achado tão imponente... e bonito - admitiu ela, com certa reserva, sentindo-se subitamente jovem e sedutora.

- E achei-a a moça mais bonita que já vira - respondeu ele, muito sério. - E ainda é.

Ela soltou uma suave gargalhada.

- Que pena que não haja uma orquestra por perto para que me ensine a valsar de novo.

- E seu marido também, para que ele pudesse olhar enquanto dançássemos.

- Sim.

Subitamente o azul do uniforme de Jed ressaltou-se, e Temple tornou-se cautelosa. Deliberadamente, olhou para o outro lado da casa, como se Blade estivesse lá fora em vez de estar escondido lá em cima. Depois virou-se, consciente de que Jed a observava com atenção, embora ela não soubesse por quê.

- Deve estar com sede depois dessa cavalgada. E seus homens também. Phoebe! - gritou ela sobre o ombro para a criada negra. - Ela pode mostrar a seus homens onde fica o poço. Venha para dentro comigo.

Temple deu-lhe o braço, esperando não estar convidando a raposa para o galinheiro.

- Pode ficar para o jantar, não pode? Phoebe está preparando a sobremesa, tortinhas nadando em calda de amoras. - Ela conversava, tentando preencher o silêncio, enquanto caminhava com ele pela varanda. - Eliza vai ficar tão contente em vê-lo...

- Temple - Jed parou na porta. - Esta não é uma visita social.

O coração dela batia com força quando o encarou.

- Você está aqui em alguma missão do exército? - Buscou todo o seu controle para olhá-lo fingindo curiosidade.

A hesitação dele parecia confirmar o medo dela, mas ela não o demonstrava. Em vez disso, abriu os olhos e fingiu inocência. Finalmente, ele foi direto ao assunto.

- O exército recebeu certas informações que nos levam a crer que seu marido, major do exército confederado, está aqui.

- O quê? - Temple afastou-se dele. Não era difícil fingir estar chocada e alarmada. - Isso não é verdade.

- Então - Jed parou, seu olhar passando rapidamente por ela-talvez possa explicar por que Deu está aqui. Ambos sabemos que seu marido nunca vai a lugar nenhum sem ele.

- Deu?

Temple olhou para trás e viu-o parado a alguns metros. Por um instante seus olhos se fecharam, sentindo pânico e arrependimento. Nunca lhe ocorreria que a presença de Deu delataria seu marido.

- Blade mandou-o para ajudar-me - mentiu rápida e desesperadamente. - Ele sabe como tem sido difícil para nós...

- Não adianta, Temple. Tenho ordens para vasculhar a casa e as demais dependências... Sinto muito.

Ela levantou o queixo um pouco mais.

- Se são essas suas ordens, major, então, por favor, vasculhe a casa. Mas não vai encontrar meu marido. Ele não está aqui.

Quando Jed se virou para dar instruções a seus homens, Temple voou para a casa, precisando daqueles preciosos segundos para parar de tremer. Ela não poderia deixar Jed suspeitar do medo que sentia com aquela busca. Se confiasse nela, ele poderia procurar com menos atenção. Ela conseguiria distraí-lo.

Ouvindo passos, Temple virou-se. Eliza e Phoebe desciam as escadas, enquanto Susannah entrava no saguão. Sorrel estava bem atrás dela, com os olhos escuros brilhando e questionando.

- Por que esses soldados estão aqui, mamãe?

- O que eles querem? - ecoou Eliza.

- Eles sabem que ele está aqui - Temple moveu-se rapidamente para perto da escada.

Surpresa, Susannah murmurou:

- Como?

- Creio que alguém reconheceu Deu. Eu...-naquele instante a porta da frente se abriu atrás dela, e Temple rapidamente mudou de assunto - E eu disse que ele não estava aqui, claro. Mas Jed explicou que será obrigado a procurar na casa toda assim mesmo.

A casa vibrou com o pisar ruidoso de uma dúzia de soldados. Imediatamente ela olhou para os soldados negros entrando pela casa, depois olhou para Jed.

- Se deve haver uma busca, é um alívio que a esteja conduzindo, Jed. Sei que não permitirá que seus soldados despedacem minha casa. Há tantos roubos e pilhagens acontecendo por aí... de ambos os lados.

- Já lhe dei minhas ordens. - Foi tudo o que ele disse, mas pela maneira com que evitava encontrar seus olhos, ela podia garantir que ele se sentia desconfortável com aquela missão. Isso lhe deu esperança.

Eliza respirou com dificuldade.

- Shadrach.

Ela passou por Temple e dirigiu-se rapidamente ao encontro do magro soldado negro parado no saguão com os outros. Abaixando o rifle, Shadrach sorriu de volta e tirou o chapéu, revelando a quantidade de cabelos brancos que agora prateavam seus cabelos encaracolados.

- Dona Eliza.

- Que bom vê-lo de novo - disse ela. - Você está esplêndido nesse uniforme, Shadrach.

- A senhora também está muito bem.

- Eu sei.

Ike, que estava parado a alguns passos da escadaria, não prestou atenção na conversa entre Shadrach e sua antiga dona. Seus olhos estavam em sua mãe, parada ao lado da escadaria. Havia alegria em seus olhos. No entanto a alegria se transformou rapidamente em surpresa quando reparou nos uniformes azuis dos soldados em volta dele.

De um certo modo sua reação era a mesma que o pai dele tivera quando Deu o vira lá fora minutos atrás: uma alegria inicial, seguida quase instantaneamente por uma expressão de dor e silenciosa acusação. E em ambos os rostos, havia medo.

Blade estava lá. Ike podia sentir nos olhos dela. Eles o haviam escondido em algum lugar. Agora olhavam para ele como se fosse o inimigo... como se ele tivesse se voltado contra eles. Não iam falar com ele; não iam nem mesmo perguntar como ele estava; não iam dar-lhe a chance de explicar que não sabiam que estavam vindo para Grand View até saírem do forte.

Sim, ele conhecia cada recanto e esconderijo daquela casa, cada tábua do chão que gemia e cada dobradiça que rangia. Mas será que não compreendiam que ele apenas cumpria ordens? Por que tinham de fazê-lo sentir-se culpado de estar ali?

Então o tenente branco começou a gritar ordens, sua voz severa chamando a atenção de Ike. Os homens foram divididos em pelotões de três e designados a uma certa área da casa para procurar metodicamente. Ike ficou aliviado quando ele e mais dois foram enviados para o segundo andar. Havia poucos esconderijos nos quartos de cima, e pouquíssimos capazes de esconder um adulto. Provavelmente eles esconderam Blade na despensa do porão, ou naquele velho celeiro perto da cabana dupla de madeira. Ele tinha certeza, isto é, tinha até ver o ar de pânico estampado no rosto de sua mãe, e a maneira com que seus olhos lhe imploravam.

Ike sentiu o estômago embrulhar-se. Blade estava lá em cima. Ele tinha tanta certeza disso quanto teria se ela lhe tivesse dito. Ele começou a subir os degraus, os pés se arrastando como se estivessem agrilhoados a algemas e correntes. Lembrou-se de que era um soldado do exército da União. Estava cumprindo seu dever. Mas desejava que sua mãe não o tivesse olhado daquela forma.

com esforço, Temple afastou o olhar de Ike enquanto ele acompanhava os outros soldados que subiam a escada ruidosamente. Ela estava lá na noite em que ele nasceu. Tinha-o colocado nos braços de Phoebe. com certeza ele não poderia... não entregaria Blade se o encontrasse. Mas a cor de seu uniforme era a mesma do uniforme de Jed, e ela lembrou que, embora relutantemente, Jed sempre obedecia ordens - como tinha feito naquele dia, muito tempo atrás, quando forçara os membros da família dela a deixar seu lar ancestral de Gordon Glen e marchar para o campo de concentração à espera da remoção para o oeste.

O coração dela batia na garganta quando se virou para Jed. Viu como ele a examinava e sabia que tinha de lembrar-se daquilo também. Não podia demonstrar como estava assustada.

- Phoebe, sirva o café na sala de visitas - disse, sorrindo para Jed. - Se não se incomodar em associar-se ao inimigo, ficaríamos felizes se nos acompanhasse, Jed.

- Há um momento atrás eu era o major Parmelee - lembrou-a.

- Há um momento atrás eu estava aborrecida com você, porque pensei que não tivesse acreditado quando lhe falei que Blade não estava aqui. Esqueci-me de que, mesmo acreditando, você ainda seria obrigado a cumprir ordens. Você é um soldado. É seu dever. Eu não deveria ter tomado isso pessoalmente, Jed. Pode desculpar-me?

Ele hesitou por um segundo, depois sorriu.

- Claro.

- Sabia que compreenderia-Temple suspirou mais aliviada e conduziu-o para a sala de visitas.

De todas as partes da casa ouviam-se ruídos de soldados procurando, a maioria deles abafados pelas grossas paredes. Eram os barulhos do segundo andar, no entanto, que deixaram Temple na beira de sua cadeira com os nervos tensos. Conversar calmamente era uma dificuldade.

Ike estava diante do quarto do casal, lutando contra a sensação de que não tinha direito de entrar sem permissão. Contudo seus companheiros já estavam lá dentro, começando a procurar. Lembrou-se de que não era mais um escravo; era um soldado com ordens para vasculhar a casa. E entrou no quarto.

Olhou em volta. Da última vez que estivera naquele quarto tinha ajudado a carregar Kipp, ferido depois daquela batalha em Pea Ridge, Arkansas. Haviam-no colocado na cama, e ele ouvira Alex contar tudo sobre a batalha. Ele julgara que os soldados ianques logo estariam chegando para libertá-lo. Agora estava livre, mas às vezes era difícil parar de pensar como escravo. Ainda agora sentia-se desconfortável por estar naquele quarto sem permissão.

Havia uma cesta no chão, perto da mesinha-de-cabeceira. Atraídopela sua forma vagamente familiar, Ike caminhou até lá e pegou-a. Era a cesta de remédios de dona Temple. O que estava fazendo ali? Então ouviu algo, como alguém respirando forte. Chegou mais perto. Os outros dois soldados estavam do outro lado do quarto.

Ele não sabia por que, mas ajoelhou-se e levantou o babado de renda branca que cobria a cama. Cautelosamente, olhou embaixo dela. Quando viu a forma escura e longa de um corpo, ele abriu a boca para gritar, mas viu-se subitamente encarando um par de olhos azuis torturados. Blade olhava para ele com o rosto contorcido de dor, o suor escorrendo. Havia algo em sua boca. Primeiro Ike pensou que o tivessem amarrado com um pedaço de couro. Depois viu que Blade o estava mordendo, os músculos em volta do queixo rígidos pelo esforço de sufocar qualquer gemido de dor. Ele estava ferido. Estava muito ferido.

Lentamente, Ike deixou o babado cair de volta. Um soluço de frustração alojou-se em sua garganta. Apertou o rifle em sua mão. Não poderia fazer aquilo. Não poderia entregá-lo. Sabia que devia. Blade era inimigo. Ele não lhe devia nada. Então, por que não? Por que não poderia gritar que o havia encontrado? Qualquer soldado faria isso. Parou e olhou para a cama.

- Encontrou algo, Ike?

Ele hesitou, depois sacudiu a cabeça negativamente e andou em direção à porta, evitando o olhar dos companheiros.

Depois de vasculhar a casa, o celeiro, os estábulos, as cabanas dos negros e os prédios em volta durante três horas, o jovem tenente reportou a Jed que não haviam encontrado nada. Quase imediatamente Jed virou-se para Temple, que teve de disfarçar rapidamente o suspiro de alívio.

- Peço desculpas, Temple, por ter interrompido sua manhã desta forma.

- Se quiser realmente desculpar-se, fique para o almoço. Ela estava ansiosa para que ele fosse embora, para que todos fossem embora, mas não queria deixar que isso transparecesse.

- Talvez numa outra oportunidade... em circunstâncias mais agradáveis.

- Não vamos esperar por isso.

Quando Jed se afastou, estava mais do que aliviado por não encontrar Blade em Grand View. Odiara ter sido o escolhido para conduzir a busca dele, assim como odiava ser o comandante que forçara Temple e sua família a saírem de seu lar na Geórgia. Estava contente por, pelo menos desta vez, não ter prejudicado Temple. Ela já sofrera o bastante.

Assim que os soldados desapareceram, Temple correu para a casa. Susannah esperava por ela.

- Eles já se foram?

Temple acenou dizendo que sim e, depois de fechar a porta, apoiou-se contra ela por um momento, aliviada.

- Eu os vi entrar na estrada do Texas. Estão voltando para o forte.

- Graças a Deus - murmurou Eliza com sinceridade. Recobrando as forças, Temple afastou-se da porta.

- Viu Blade? Ele está bem?

- Está ótimo, dona Temple - disse Phoebe de cima da escada.

- Onde está Deu? - Temple caminhou para a escada. Precisamos de sua ajuda para colocar Blade na cama.

- A última vez que o vi, estava lá fora. vou procurá-lo. Quando Susannah se virou, Deu entrou no saguão vindo do

corredor de trás.

- Não sei onde a senhora escondeu o senhor Blade, dona Temple, mas eu não teria tanta pressa em tirá-lo de onde está avisou. - Acabei de ver dois cavaleiros atrás dos estábulos.

- Não é possível-Temple congelou, a mão no balaústre do pé da escada e um pé num degrau. - Todos os soldados foram embora. Eu vi.

- Tem certeza de que eram dois? - perguntou Susannah rapidamente. - Deve ser Lije.

- Eram dois, e estavam tentando esconder-se para que eu não os visse bem - ele virou-se para Temple. - Os ianques são espertos. Podem ter mandado outro destacamento para cercar o lugar, caso o senhor Blade tente escapar.

- vou lá fora dar uma olhada - anunciou Susannah, determinada.

- Mas se tiver... - Eliza começou a protestar.

- Trarei de volta uma braçada de lenha.

- vou com você - disse Temple. - Eliza, você e Sorrel fiquem espiando a janela da frente. Phoebe, diga a Blade que ele vai ter de ficar no esconderijo mais um pouco. Deu...

- O senhor Blade vai querer que eu vá com a senhora, dona Temple.

- Três pessoas para pegar uma braçada de lenha vai parecer ridículo.

- Então vou fingir que estou rachando lenha.

- Quem se importa com o que pareça - declarou Susannah, impaciente.

Ela dirigiu-se para a porta de trás. Temple e Deu rapidamente a acompanharam.

Mal elas acabaram de sair, ouviram o barulho abafado de cascos de cavalo na grama. Susannah parou, alarmada. Um cavaleiro a galope dobrou a esquina do prédio da cozinha.

- Lije - disse Temple, aliviada.

Mas foi o segundo cavaleiro, montado num baio, que chamou a atenção de Susannah. Quase um ano havia passado desde que o vira, mas ela reconheceu Rans Lassiter imediatamente. A visão dele era como algo inebriante correndo por suas veias, fazendo-a sentirse quente e tonta de repente.

Lije pulou da sela assim que seu cavalo parou.

- O que Parmelee fazia aqui? O que ele quer? - perguntou a Temple.

- Estava procurando seu pai. De alguma forma descobriu que ele...

- Diane - disse ele num murmúrio selvagem, lançando um olhar raivoso na direção do forte distante.

Temple sacudiu a cabeça.

- Não pode ter certeza de que foi Diane. Acho que alguém reconheceu Deu e achou que Blade também estaria aqui. De qualquer modo, não o encontraram - Rans desmontou, atraindo seu olhar. - Quando Deu viu vocês perto dos estábulos, pensou que eles estavam voltando para procurar de novo.

- Não se preocupe, senhora - disse Rans. - Um de meus rapazes está seguindo a coluna ianque para ter certeza de que não vão voltar. O resto está espalhado pela área.

- Capitão Lassiter, da brigada do Texas - disse Lije, apresentando-o, ainda com a cara fechada.

Rans inclinou a cabeça para ela.

- É um prazer conhecê-la, sra. Stuart.

Seus olhos cinza viraram-se para Susannah, fazendo-a perder a respiração.

- Foi uma sorte ter encontrado Lije quando ele estava caçando. Quando comentei que tinha visto um destacamento da infantaria vindo nesta direção, descobrimos que só podiam ter vindo para cá.

- Estou contente - murmurou Susannah, seu pulso acelerando-se diante do olhar fixo dele.

- Nem a metade do que estou - retrucou ele depressa, com um longo suspiro de satisfação.

- Você é uma festa para olhos famintos, Susannah. - Aproximou-se e pegou a mão dela, levando-a aos lábios. Ela sentiu uma vibração quando ele roçou a boca sobre seus dedos.

- Deu, sele os cavalos e traga-os aqui - ordenou Lije de repente. - Lassiter, preciso que me ajude com o major.

- Por quê? - perguntou Temple, alarmada - O que vai fazer? Aonde pensa que vai levá-lo?

- Não estamos seguros aqui. Não mais. - A expressão dele era grave. - Se Diane ainda não contou que ele está aqui, agora vai contar. Eles voltarão. E, da próxima vez que vierem, vão virar esta casa de cabeça para baixo até encontrá-lo.

- Mas ele não tem condição de viajar - protestou ela.

- Ele está melhor do que estava quando o trouxe para cá.

- Não. Não vou deixar você levá-lo.

- Lije está certo, sra. Stuart - acrescentou Rans antes que a discussão entre eles aumentasse. - Se seu marido ficar, é quase certo que será levado prisioneiro. Mas se partir conosco, poderemos escoltá-lo com segurança através das linhas ianques até abraçarmos um hospital rebelde. O major é um homem valioso. Nós cuidaremos dele.

- Eu... - Temple procurou um argumento, mas depois virou-se;derrotada, lutando contra as lágrimas.

Lije moveu-se em direção à casa. Quando chegou na porta, parou e olhou de volta.

- Você vem, Lassiter?

- Num minuto - respondeu ele, virando-se para Susannah. Ela quase não notou quando Temple saiu atrás de Lije. Ela só

percebia Rans e a emoção crescente dentro dela.

- Não pode ficar mais? - perguntou-lhe. - Não seria mais seguro esperar anoitecer para partir protegido pela escuridão?

Ele sacudiu a cabeça.

- Seria muito arriscado ficar aqui mais tempo, por mais que eu desejasse. Muitas patrulhas ianques usam a estrada do Texas, e este lugar fica muito perto dela. Cada minuto aqui aumenta a chance de meus homens serem localizados e de termos que lutar para escapar. Tenho de partir agora - assim que pudermos.

Ele colocou os braços em volta da cintura dela e puxou-a para si, como se abraçá-la fosse a coisa mais natural deste mundo.

- Parece que cada vez que nos encontramos é assim: mal acabei de dizer alo e já estou dizendo adeus. É uma droga de cortejo.

- É isso o que é? Um cortejo? - perguntou Susannah, sem fôlego.

- Para mim é. - Ele esfregou seu rosto contra os cabelos dela. - Adoro o cheiro do seu perfume, esse cheirinho fresco, limpo, de sândalo. Faz-me pensar em raios de sol e dias de primavera.

- Ele passou a mão nas costas dela. - Passaremos aqueles dias juntos, Susannah. Juro a você.-Ele afastou-se e levou a mão ao rosto dela.

- Agora tudo que temos são estes minutos. Têm de ser o bastante.

- E são-sussurrou ela, amando-o intensa e completamente.

- Claro que são - murmurou ele, beijando-a ansiosa e rapidamente, e logo se encaminhando para a casa.

Uma hora depois colocaram Blade nas costas de um cavalo. Lije montou atrás dele e estendeu amão para pegar as rédeas. Rans ficou em pé no estribo e deu um assobio alto. Uma dúzia de cavaleiros - duas dúzias - saíram de seus esconderijos de trás das árvores e convergiram em pares.

Lije checou para ter a certeza de que Deu estava montado, depois inclinou-se para olhar o rosto do pai.

- Está pronto?

Blade concordou, ainda gemendo de dor.

- Vamos.

- Ele está sofrendo, Eliza - murmurou Temple, arrasada.

- Ele vai ficar bom-ela colocou o braço em volta de Temple e acariciou o ombro dela, tratando de confortá-la enquanto Lije punha o cavalo em movimento.

Rans levou seu cavalo para a varanda de trás, colocou o braço em volta da cintura de Susannah e deu-lhe um grande beijo. Depois soltou-a no chão.

- vou voltar para cobrar minha dança - disse a ela. - É melhor guardar uma para mim.

- Pode deixar - prometeu ela, meio tonta e totalmente deslumbrada.

Ele tocou o chapéu olhando para ela, virou o cavalo e foi atrás de Lije. Seus homens seguiram. No meio do barulho de cascos e couro roçando, Susannah ouviu-o assobiar. Bastou ouvir um trecho da música para saber que a canção era "Oh, Susannah".

Sorrel olhou de lado de uma maneira curiosa.

- Você está apaixonada por ele, Susannah?

- Não tenho certeza, mas acho que sim. - Ela sorriu, gostando secretamente da ideia. Era uma loucura, mas uma loucura

perfeita.

A casa estava silenciosa. Não havia movimento em lugar nenhum em volta dela. De novo Alex verificou as cabanas abandonadas dos negros e os prédios de fora da fazenda. Nada, exceto algumas galinhas ciscando.

A charrete ainda se encontrava no celeiro. Ele já verificara isso. Eles tinham de estar em casa em algum lugar. Talvez na horta. Ele montou na égua negra. Aproximando-se das árvores, cavalgou em volta da casa-grande até o canteiro perto do rio. Phoebe estava abaixada com uma pá, arrancando batatas.

- Onde está sua patroa? - Alex parou a égua perto da cerca, sem se esforçar para frear a dança nervosa dela.

- Está no pomar, colhendo maçãs.

Ele ia perguntar sobre Blade, mas depois pensou melhor. Tirou a égua de perto da cerca e foi galopando para a horta.

Blade tinha estado lá. Ele sabia disso. Entretanto, os soldados não o encontraram quando procuraram na fazenda três dias antes. Por quê? Onde o haviam escondido? Estaria ali ainda? Teria morrido? Essas perguntas o atormentavam há dias.

Uma mula estava amarrada a uma carroça, na sombra das macieiras, com o rabo espantando preguiçosamente as moscas. Alex diminuiu a marcha da égua, saiu da trilha e entrou na grama alta e amarelada que atapetava o pomar. Quase imediatamente viu Temple e Susannah, ambas nas escadas, colhendo maçãs.

Depois viu Sorrel, voltando para a carroça, carregando uma cesta de maçãs. Ele se aproximou enquanto Sorrel pegava as maçãs uma a uma e colocava-as num engradado de madeira atrás da carroça. A última ela esfregou e mordeu, levantando o rosto para pegar o suco que escorria pelo queixo.

- Você deveria estar comendo?

Surpreendida, Sorrel virou-se, escondendo a maçã nas costas. Ao reconhecê-lo, ela abriu um sorriso.

- Alex! O que está fazendo aqui?

- O que você acha? - Ele desmontou e andou para trás da carroça. Vim visitar minha prima favorita. Mas vejo que sua mãe colocou você para trabalhar colhendo maçãs. Ela torceu o nariz em repugnância.

- Mamãe está determinada a evitar que os ladrões roubem todas as frutas este ano. Quer uma? - Ela gesticulou para a caixa

- Elas são melhores assim, ainda quentes do sol.

Ele tirou uma da caixa, fruta com pele de rubi, mas não mordeu-a imediatamente.

- Como está seu pai?

- Pelo que sei, está bem.-Ela sacudiu e tornou a morder sua maçã.

- O que quer dizer? Ele não está aqui?

- Não. Partiu há dois... três dias.

- Então ele ficou bom dos ferimentos.

Isso queria dizer que agora Blade iria atrás dele. Não necessariamente logo. Escolheria a hora e o lugar - a menos que Alex o pegasse primeiro.

- Ele ainda sentia muitas dores. - Ela lambeu o suco de maçã de seus dedos. - Mamãe estava chateada.

- Porquê?

- Não sei. Apenas estava.

- Será que ela descobriu?

- Descobriu o quê, Alex? - A voz era de Temple.

Ele virou-se rapidamente, surpreso por encontrá-la parada atrás dele. Ela saberia? Deveria dizer a ela?

- Não ouvi você chegar - disse ele, tentando ganhar tempo.

- Desculpe. Não quis assustar você. - Ela foi para a carroça e levantou a cesta até o engradado de madeira. Em seguida, parou e limpou as mãos na frente de seu avental. - E então? O que você queria que eu soubesse?

- Que meu pai morreu.

Ela olhou para ele com súbita desconfiança.

- Você disse a Susannah que ele foi morto.

- Foi assassinado, morto a sangue-frio... por Blade.

- Não - Susannah aproximou-se. - Não acredito em você!

- É verdade - disse Alex, seus olhos ficando frios. - Eu estava lá, eu vi tudo.

- Não - Temple murmurou e olhou para o outro lado, os ombros caindo.

- Primeiro ele pegou o revólver da mão de meu pai, depois ordenou que eu jogasse o meu fora. - Sua voz era pesada e amarga. -Ele disse: "Você é um homem que merece morrer, Kipp." Depois atirou nele.

- Se isso é verdade, por que não me disse antes?-perguntou Susannah.

- Não tinha certeza de que acreditaria.

- Não tenho certeza de que acredito agora.

- Mas ela acredita - Alex sorriu e apontou para Temple. Horrorizada com o que acabara de ouvir, Sorrel virou-se para

Temple.

- É verdade, mamãe? Meu pai matou Kipp? Meu pai é um assassino?

Quando Temple não respondeu, Susannah acudiu-a.

- Sorrel, você tem de compreender que há uma guerra acontecendo. Seu pai e Kipp estavam em lados opostos. Durante uma guerra, as pessoas são mortas. Isso não faz dele um assassino.

- Mas você ouviu Alex. Tio Kipp não tinha um revólver, e ele atirou nele assim mesmo - disse Sorrel com um soluço na voz.- Ele sabia que era Kipp e o matou. Isso não é guerra! - Ela virou-se e correu, com lágrimas de vergonha correndo por suas faces.

Tahlequah Nação cherokee Maio de 1864

Enormes buquês de azaléias silvestres e perfumadas madressilvas foram mais uma vez colocados no grande salão do antigo Seminário Feminino Cherokee. Nessa noite suas portas estavam abertas para um baile militar. As cores vermelha, branca e azul da bandeira da União, ostentadas com destaque, repetiam-se na decoração drapeada do palco, onde os músicos do Forte Gibson tocavam.

Oficiais em uniformes de gala rodopiavam com seus pares em volta da pista de dança. Para Adam Clark, no entanto, nenhuma das moças do baile era tão adorável quanto a mulher que tinha nos braços, nenhuma era mais sedutora, mesmo que os decotes de seus vestidos de baile fossem mais ousados. A ilusão do decote estava no vestido azul de cetim de Diane, mas um pedaço de renda de linhas prateadas e azuis cobria discretamente o volume de seus seios e a nudez de seus ombros, culminando numa gola franzida de cetim no pescoço.

- Sabia que sou o homem mais invejado daqui?-perguntou ele, tentando fazer com que ela o olhasse.

- Tem certeza? - murmurou ela, com os cantos dos lábios curvando-se para cima.

- Finalmente tirei um sorriso de você.

- Não estou sendo uma boa companhia esta noite, não é? Desculpe-me.

- Não precisa desculpar-se - disse Adam. - Afinal de contas, está nos braços do melhor dançarino do lado de cá do Mississippi.

Em seguida, deliberadamente, pisou de leve no pé dela. Diane não pôde deixar de rir.

- Puxa!- exclamou ele. - Esta é a música pela qual estive ansiando a noite toda.

- Você não tem jeito, Adam.

- Não. Nunca perco a esperança.

Era a coisa errada para dizer. Ele percebeu imediatamente, quando o sorriso desapareceu dos lábios dela e de novo ela pareceu preocupada. Estava daquele jeito desde que chegaram. Algo a estava aborrecendo.

Quando a canção terminou ele parou lentamente, mas hesitou, sem querer largá-la. Em volta deles outros casais agradeciam a seus pares. Adam deu um passo para trás e fez o mesmo, inclinando-se ligeiramente, e oferecendo o braço para escoltá-la para fora do salão. Mas no instante em que se virou para Eliza Gordon e sua filha Susannah, ele sabia que não queria levar Diane de volta para elas. Queria mantê-la para si mesmo um pouco mais, e descobrir o que a aborrecia. Aquele mau humor não era típico de Diane. Sua Diane era vibrante, cheia de vida e sorrisos, raramente se abatia.

- Vamos dar uma volta lá fora - sugeriu ele.

- Deveria convidar Susannah para a próxima dança.

- O reverendo Cole pode dançar com ela.

- O reverendo Cole? - Ela deu um sorriso de surpresa. Pode imaginá-lo dançando com seus dois pés esquerdos, aprumado como uma tábua? Ou deveria dizer... uma Bíblia?

Adam riu, sentindo a Diane que ele conhecia tão bem. Mas, como antes, isso não durou.

- Não, verdadeiramente não posso imaginar isso. Mas não acho que Susannah vai ficar aborrecida se ficar sentada mais uma dança. Estou convencido de que ela aceitará meu convite só pelo senso de dever. O coração dela não está nisso mais do que o meu - ele guiou Diane em direção à porta, consciente de que ela não ofereceria objeção.

- Não. Creio que o coração dela está em outro lugar. Quando caminhavam para fora, em direção ao pórtico colunado

do seminário, a banda tocava uma marcha militar. O ar com aroma de lilás passava por eles na escuridão. A brisa quente dançava sobre o gramado da frente. A meia-lua oblíqua iluminava a noite e as grandes colunas de tijolos da varanda. Juntos eles caminharam para o fim da colunata. Diane passou a mão sobre os tijolos, devagar, com o olhar distante.

- Está muito quieta hoje - observou Adam. - Quer falar sobre isso?

- Sobre o quê?

- Sobre o que está se passando em sua cabeça. Prometo que vou ser um bom ouvinte.

- Você sempre é. - Havia uma certa ironia na voz dela.

- Conte-me. O que a está aborrecendo?

- Não sei. - Os ombros dela arquearam-se vagamente. Talvez seja apenas tudo isso: você em seu uniforme de gala, eu no meu melhor vestido, a música tocando ao fundo, as pessoas dançando, sorrindo... fingindo que a guerra não existe. Como podem fazer isso? Como podemos fazer isso?

- De vez em quando, todos precisamos escapar da guerra e da tensão senão corremos o risco de ficar loucos. Tem sido um longo inverno - e com pouca ação, ele poderia acrescentar.

A inatividade, a espera e a incerteza tinham enervado a todos. Além de um raro encontro com uma ou outra patrulha, as coisas haviam estado quietas demais naquela área. Uma dezena de vezes Adam quis acreditar que a guerra esmorecia, que o Sul fora derrotado. Mas não podia deixar de sentir que talvez tudo não passasse de uma calmaria antes da tempestade. Embora os rebeldes não pudessem vencer, eles não desistiam.

- Depois de toda a miséria vivida nesses últimos três anos, temos direito a alguma alegria, Diane. Mesmo que seja apenas por uma noite.

- Talvez. Mas enquanto estamos aqui dançando, não muito longe as pessoas sofrem. Outro dia o reverendo Cole falou com um dos prisioneiros rebeldes. O homem disse que, no condado de Red River, no Texas, as pessoas estão passando fome. Não quero nem pensar como este último inverno deve ter sido para eles, com pouca comida, roupa e abrigo, e quase sem suprimentos médicos. Deve ter sido horrível.

- Mas não estamos muito melhor. Os rebeldes não puderam fazer uma colheita para o inverno - nós tampouco.

- Mas não é o mesmo.

- Não?

- Você sabe que não. Às vezes eu queria... - ela parou e suspirou pesadamente. - Nem sei mais o que eu queria.

- Como todos nós, você quer que a guerra termine.

- Só que nunca vai terminar. Nunca. E tudo porque o ódio não termina. Estou tão cansada disso, Adam.

Quando sentiu o toque da mão dele, Diane oscilou em seus braços, desesperadamente querendo e precisando do que os braços e os lábios dele ofereciam. Ela estava ávida para ser amada, confortada e protegida; para ter suas preocupações afastadas e seu vazio preenchido.

Ele fez tudo isso com o toque carinhoso de suas mãos e o desejo de sua boca. Ela tomou e tomou - e queria mais, os seus dedos correndo pelos cabelos dele, forçando-o a aumentar a pressão. Gananciosamente, ela tomou tudo o que ele tinha a oferecer, e as lágrimas rolaram de seus olhos porque ela não tinha nada para lhe dar. Já dera tudo a Lije.

Reprimindo as lágrimas e a dor, ela afastou-se do beijo e empurrou-o com as mãos contra seu peito, os olhos baixos.

- Sinto muito, Adam. É cedo demais.

- Cedo demais? - repetiu ele asperamente, apertando-lhe as mãos para evitar que ela fugisse completamente dele. - Devo acreditar nisso depois da forma com que me beijou?

Vagarosamente, ela levantou a cabeça e olhou para ele.

- É verdade. Não queria que fosse assim, mas é.

A decepção reluziu nos olhos dele por um segundo, seguida por um suspiro profundo e conformado.

- Posso esperar. Já esperei até agora. - Ele deu um passo para trás, soltando-a. - Acho que uma pequena caminhada seria boa antes de voltarmos para dentro.

- Também acho. - Como ele, Diane não estava pronta para reunir-se aos outros convidados da festa.

Conseguindo escapar do salão, Susannah saiu do seminário sem ser notada. Se tivesse de sorrir e manter uma conversa polida com mais uma pessoa, ela gritaria. Sabia que não deveria sentir-se daquela forma. Era uma festa, um baile: dançar e conversar faziam parte dela.

Parou nas sombras profundas perto da porta e olhou para ambos os lados. À sua esquerda, um casal olhava a grama coberta de luar prateado, e movia-se lentamente em sua direção. Reconhecendo Diane e Adam Clark, Susannah caminhou rapidamente para a direita, escondendo-se dentro das densas sombras perto do prédio. Não queria explicar seu desejo de estar só.

Depois de dobrar a esquina do prédio sem ser vista, ela diminuiu o passo e começou a caminhar ao longo da colunata, o tafetá de seu vestido cor de cobre farfalhando suavemente à sua volta. O ar da noite levava até ela claramente a música do salão, uma suave serenata, que estranhamente não conseguia aplacar sua impaciência.

Quase sem perceber, Susannah relembrou seus dias de escola ali no seminário. Sempre achara que voltaria para lecionar, mas agora a escola estava fechada, como todas as outras do país-por causa da guerra.

Mas ela não queria pensar na guerra. Tentou lembrar-se da última vez que ouvira a banda militar do forte tocar. Fora também no seminário, mas do lado de fora, no gramado lá trás, perto dos carvalhos.

Atraída pela lembrança e pela massa escura das árvores à sua frente, Susannah deixou o abrigo da colunata e seguiu pelo gramado. A brisa da noite perambulava sobre a nudez de seus ombros. Rapidamente ela desejou ter trazido o xale, mas assim teria demonstrado que estava saindo do salão, e o jovem tenente teria insistido no convite para levá-la a um passeio à luz do luar. Sabia que deveria ter ficado vaidosa por seu interesse, mas em vez disso desejou que ele a deixasse em paz.-Como desejou que ele não tivesse elogiado o perfume que estava usando.

Isso só a fazia lembrar-se de Rans Lassiter. Era melhor esquecer-se dele. Seis meses se haviam passado, e ela não o tinha visto, nem sequer ouvira falar nada sobre ele. Ela não tinha certeza do que esperava, mas certamente não era o silêncio. Talvez ele não fosse sincero no que dissera. Talvez fosse apenas conversa - um truque para roubar-lhe um beijo. Talvez ela fosse simplesmente uma tola.

Ouviu alguém assobiar e olhou de volta para o seminário, arrependendo-se de que estivesse ali no descampado, facilmente visível. Então reconheceu a música: "Oh Susannah." Seu coração bateu mais forte. O som vinha das árvores. Rans. Tinha de ser ele.

Olhou depressa sobre o ombro para certificar-se de que não estava sendo vista, segurou a saia de tafetá e correu para o poço de sombras negras à beira das árvores. Uma figura negra de chapéu deixou o esconderijo das árvores e andou em sua direção para encontrá-la.

- Rans!

A luz do luar emprestava um brilho prateado a seus olhos cinza quando ele sorriu para ela.

- Acho que esta é a minha valsa, srta. Gordon.

Quando percebeu que tocavam uma valsa, ele já a prendera nos braços, dando os primeiros passos.

- O que está fazendo aqui? - Ela ainda sentia-se atordoada, como se fosse tudo um sonho. Tinha medo que, se fechasse os olhos, Rans desaparecesse quando os abrisse. Mas o braço atrás de sua cintura e as mãos apertando-a não eram ilusão.

- Soube que os ianques dariam um baile aqui esta noite. Quando passei por sua casa, sua criada Phoebe disse que você estava aqui. Eu não podia deixar que esses oficiais ianques dançassem todas as músicas com você.

De repente Susannah lembrou-se de que o salão estava repleto de uniformes azuis.

- Rans, e se um deles vir você? Não sabe que praticamente todos os oficiais do forte estão aqui?

- Como uma ianque leal, você deve cumprir seu dever e dar o alarme - disse ele num tom meio solene.

- Estou falando sério. Você é louco em vir aqui assim.

- Foi isso que meus homens disseram.

- E você deveria tê-los ouvido. Não é seguro aqui.

- Mas estou aqui, de qualquer jeito. - Sua voz tinha um toque raivoso. - Não vai dizer que está contente em me ver?

- Estou contente em vê-lo, Rans, Eu...

com um gemido, ele puxou-a contra si e esmagou os lábios contra os dela, cortando definitivamente o resto da frase. O desejo surgiu de dentro dela, inflamado pela faminta exigência de seu beijo. Não havia nada de delicado na paixão ou no desejo dele. Chamuscava, queimava e cauterizava. E Susannah respondia com o mesmo nível de urgência e desespero.

Respirando entrecortadamente, ele retirou a boca dos lábios dela, correndo-a por seu queixo e no côncavo sob a orelha dela.

- Por Deus, como senti sua falta, Susannah.

- Também senti saudade - sussurrou ela, a voz tremendo como todo seu corpo.

- Preciso de você. Não sabe o quanto preciso de você.

A boca dele parecia estar em todos os lugares de uma só vez, beijando seus olhos, seu rosto, cheirando seu pescoço e mordiscando seus ombros. Gemendo de prazer, ela não conseguia concentrarse no que ele dizia. A boca e as mãos dele excitavam cada parte dela.

- Eu teria escrito, mas não havia maneira segura de enviar-lhe uma carta. - Ele percorreu-a com os lábios. - Se esta guerra terminar um dia... Que diabo, Susannah, não posso fazer nenhuma promessa. Não sei se vou ficar vivo, mas, se conseguir...

- Eu sei, eu sei.

Ela agarrou os cabelos dele e forçou-o a beijá-la. Não queria falar sobre morte quando se sentia tão viva.

Um bacurau chamou das árvores, depois repetiu seu canto triste, mas estridente. com esforço, Rans pegou-a pelos braços e afastou-a de si.

- Tenho de ir, Susannah.

Mas ele não a soltava, e seu olhar inflamado atravessava o rosto dela abaixo do pescoço, e sobre a nudez revelada pelo vestido de baile.

- Verei você de novo... quando puder. Acredite nisso.

- Eu acredito. - Ela tremeu com os desejos que ele despertara.

- Capitão. - Um sussurro áspero, baixo e insistente veio de algum lugar sob os carvalhos. - Venha logo!

- Já vou. - Mas as mãos dele ainda correram pelos ombros nus dela, e pelo decote de seu vestido.

- Que diabo, capitão - repetiu a voz.

- Rans, por favor, vá antes que o peguem aqui - implorou Susannah.

com as mãos em volta do pescoço dela, ele beijou-a ansiosa e rapidamente.

- Não chore por mim - cantou suavemente na sua boca e depois partiu, engolido pela escuridão das sombras.

Ela ouvia um sussurro, mas não podia dizer se era Rans ou a brisa soprando nas folhas. Passou a mão sobre o vestido e lutou contra a sensação de que havia perdido algo.

Ouvindo o bater dos cascos, virou-se em direção ao seminário. Um destacamento montado da União passou por perto. Uma patrulha. Ela rezou silenciosamente para que Rans e sua companhia não fossem descobertos, depois tremeu quando considerou o risco que ele tinha corrido ao vir vê-la. Ele a amava. Ele não dissera isso, mas ela sabia. Sorrindo, começou a voltar pelo gramado para o seminário - e para o baile.

Fiat Rock

Território indígena

16 de setembro de 1864

Deitado de barriga para baixo na beira do cume de um pico junto à campina, Blade examinou com sua luneta o campo de feno da União, depois focalizou os soldados negros cortando e estocando feno. Ao lado dele estavam os generais Watie e Gano, o último da brigada do Texas, comandante da força confederada de aproximadamente dois mil homens que se estendia ao longo da estrada do Texas.

- Eu diria que eles têm lá embaixo entre 125 homens, dependendo de quantos estiverem fora em patrulha - calculou Blade.

Mais uma vez, as ordens para a expedição eram simples: cortar os suprimentos da guarnição da União no Forte Gibson e dos dezesseis mil refugiados concentrados lá.

Quando Blade começava a baixar a luneta, um dos homens lá embaixo chamou sua atenção. Ele focalizou o soldado negro cortando feno. Era Ike, filho de Deu. Lembrou-se de si mesmo deitado embaixo da cama, gemendo de dor, e o rosto de Ike, seus olhos, olhando para ele sem dar uma palavra de alarme.

Um enjoo apertou seu estômago quando ouviu a ordem do general Gano para avançar e impedir qualquer retirada para o forte. Devagar, ele abaixou a luneta. Suas forças eram muito mais numerosas, a proporção de vinte para um. Os homens no campo não teriam nenhuma chance. Ike não tinha chance. E não havia nada que ele pudesse fazer. Nada.

Shadrach parou para limpar o suor do rosto. Ike olhou para ele e riu.

- Pobre tio Shad, se não mandam limpar o jardim, mandam juntar o feno. Aposto que quando entrou para o exército, nunca pensou que fosse acabar fazendo tanto trabalho de campo. Em vez de passar de negro de casa para soldado, você virou negro de campo.

Antes que Shadrach pudesse responder, o corneteiro tocou do outro lado do campo.

- Parece que vamos voltar a ser soldados, Ike. Correram de volta para o acampamento. Uma força inimiga

calculada em duzentos soldados tinha sido vista perto da estação de feno.

- Duzentos, uma conversa - murmurou Ike. - Devem ser quase dois mil. Contei seis peças de artilharia.

Após uma pausa, Ike olhou para Shadrach por algum tempo e acrescentou:

- Teremos que lutar por nossas vidas, tio Shad. Eles já nos isolaram do forte.

Shadrach não respondeu.

- Ouviu o que eu disse? - insistiu Ike.

- Ouvi - respondeu Shadrach devagar, consciente do desespero do sobrinho. - Como parece que já estamos mortos, não precisa mais se preocupar com a morte.

Agora foi ike quem silenciou, o olhar sóbrio. Havia tanto que Shadrach queria dizer-lhe - sobre a vida, a liberdade, sobre ser negro. Queria lembrá-lo de que não estavam morrendo como escravos, mas como soldados que lutavam pela liberdade de cada negro. Queria dizer-lhe que estava bem morrer por isso, mas as palavras pareciam muito elevadas, nobres demais, principalmente quando o sentimento dentro dele era tão humilde.

Um débil sorriso repuxou os cantos da boca de Ike. Ele rapidamente colocou a mão no ombro de Shadrach.

- Não vamos morrer de graça, tio Shad. Eles vão pagar um alto preço por nós.

Shadrach sorriu de volta enquanto o fogo espalhado de mosquetes começou. Uma linha de rebeldes avançou no desfiladeiro. A batalha começara. Shadrach imaginou por quanto tempo eles resistiriam.

O sol lá em cima olhava tudo, um globo dourado no céu de setembro, enquanto a infantaria rebelde avançava em formação. Tudo parecia ser sombras de ouro, desde a grama alta da campina e os ramos de feno no campo até a cor de manteiga das roupas que os Joões Rebeldes usavam. Shadrach posicionou o rifle mais confortavelmente no ombro e esperou, a boca e a garganta secas. Pensou em sua irmã Phoebe, e em Eliza. Pensou na escola que nunca seria construída.

A duzentos metros dali a infantaria confederada abriu fogo e não havia muito mais tempo para pensar. Fora da paisagem dourada veio um som estranho e agitado de arrepiar os cabelos, os gritos agudos dos rebeldes. O chão vibrou sob os trovões do ataque da cavalaria.

Durante meia hora foi ataque depois de ataque. Então, detectando uma fraqueza na linha rebelde, o capitão da União ordenou a qualquer homem que tivesse um cavalo que montasse imediatamente. Eles iam tentar a penetração. Era uma tentativa desesperada para salvar algumaparte de seu comando do aniquilamento, embora só houvesse cavalos para menos da metade dos homens.

Quando Ike hesitou, Shadrach retrucou grosseiramente:

- Você ouviu o capitão. Suba no cavalo.

- Não posso - Ike virou a cabeça do outro lado do cavalo estirado no chão e olhou aterrorizado para a frente rebelde.-Meu cavalo está morto. Acho que vou ficar aqui com você. Não gosto mesmo da ideia de fugir.

Ao todo, 65 dos 125 soldados da União galoparam para fora da campina. Por alguns minutos parecia que iriam conseguir. A linha rebelde cedeu e hesitou sob o peso de seu ataque inesperado. Reforços da cavalaria rebelde correram para a linha, e a luta tornou-se selvagem. Cavalos sem cavaleiro por todos os lados, aumentando a confusão.

- Acha que alguém conseguiu passar? - perguntou Ike.

- Talvez um punhado. Não sei.

Shadrach parou para recarregar e olhou os restos de sua unidade. Exceto pelo tenente e alguns poucos homens brancos da infantaria, a maioria era composta de soldados negros. Mas as expressões em todos os rostos eram a mesma: horrível desespero e a antevisão da morte.

O exército rebelde empreendeu outro assalto, atacando a campina de todos os lados, como antes. Uma bala atingiu o braço direito de Ike. O sangue correu do ferimento, encharcando a manga. Mas Ike não tinha tempo de colocar uma atadura nele. A luta era intensa demais.

Momentos depois, em seu campo de visão periférica, Ike viu a força de uma bala derrubar Shadrach.

- Tio Shad!

Ike correu em direção a ele, mas Shad já se levantava, lutando para voltar à posição de fogo.

- Estou bem - insistiu Shadrach enquanto o sangue saía por entre os dedos da mão que apertava sobre o ferimento em seu peito.

com um esforço, ele levantou o rifle e apontou de novo. Ike hesitou, depois acompanhou-o. Por duas horas eles se seguraram, depois a munição acabou.

- Espalhem-se - ordenou o tenente. - E salvem-se da melhor forma que puderem.

- Vamos, Shad - gritou Ike junto à borda da ravina, segurando o braço ferido.

- Não.

Shadrach não se moveu. Doía muito para mover-se... para respirar. O ferimento de bala no lado esquerdo de seu peito não sangrava muito, mas a dor era uma agonia.

- Vai, sim. Tenho mais alguma munição. vou mantê-los ocupados enquanto você e os outros escapolem.

- Não vou deixá-lo. Venha. Vamos juntos. - Quando Ike levantou o braço esquerdo do tio para ajudá-lo, Shadrach quase perdeu os sentidos de dor.

- Não, não faça isso - gemeu. - Tem de deixar-me, Ike. Não vou conseguir de jeito nenhum. Fui ferido no pulmão. Pelo amor de Deus, vá!

- Tio Shad!

Ike ajoelhou-se a seu lado, com a mão estendida. Shadrach viu a angústia em seus olhos e tentou sorrir.

- Está tudo bem. Vá em frente. Sua mãe nunca me perdoaria se lhe acontecesse algo.

- Shad, você tem sido um pai para mim. Mais do que o meu próprio pai. Sempre me compreendeu - disse ele pesadamente.

- E você tem sido como um filho. Acho que somos muito parecidos. - Shadrach sorriu e continuou a respirar com dificuldade, a dor lentamente desaparecendo.- Mas nasci antes de meu tempo. Este é o seu tempo. Tome-o e faça algo dele... algo de que nós dois possamos nos orgulhar. Agora vá antes que eles venham de novo e você perca sua chance.

Ike hesitou mais um segundo, depois partiu para a campina numa corrida, agachado. Vagarosamente, apertando os dentes contra a nova onda de dor, Shadrach colocou-se em posição de fogo e esperou pelo fim chegar, rezando para que não fosse igual para Ike.

Os confederados correram de novo em direção à ravina. Dois caíram diante de seu rifle, que logo ficou descarregado. Shadrach tentou levantar-se para atacar com o sabre, mas uma bala atingiu-o no peito. Deitou-se contra o barranco, olhando para o sol pendurado pesadamente no céu de verão. Ele encheu sua visão.

Dourado, era tão dourado...

Blade levou seu cavalo até o corpo de Shadrach e olhou para baixo. Por dentro sentia-se vazio e um pouco morto também. A guerra destruía mais do que pessoas; transformava lembranças em coisas agridoces e modificava a tal ponto crenças que um homem se questionava se valia a pena lutar.

- Conhecia-o? - perguntou uma voz arrastada.

com um esforço, Blade desviou o olhar de Shadrach e focalizou-o no capitão texano à sua direita. Notando o olhar perscrutador daqueles olhos cinza, Blade demorou a lembrar-se da pergunta que Rans Lassiter acabara de fazer e acenou afirmativamente a cabeça.

- Sim, eu o conhecia.

Descansando as mãos na frente da sela, Rans Lassiter olhou para os corpos espalhados pela ravina.

- Para tão poucos, eles lutaram demais.

- Sim.

Blade não encontrava o corpo de Ike. Estaria ele entre a dezena de cavaleiros que conseguiram atravessar a linha de volta no começo da luta? Esperava que sim... para alegria de Deus.

- Há algo errado, major?-Rans Lassiter virou a cabeça para o lado, observando-o com atenção.

Blade viu que olhava através do texano e rapidamente desviou o olhar para o lenço ensanguentado amarrado em cima do braço do homem.

- É melhor mandar alguém dar uma olhada nesse ferimento

- disse ele, guiando seu cavalo para longe.

A fumaça negra subia dos montes de feno no campo.

Num dos charcos do Rio Grande, Lije desmontou e deixou seu cavalo beber água. Barulhento e ávido, o cavalo sugou o líquido, seu pescoço e flancos cobertos pelo suor ressecante dos repetidos ataques vespertinos.

Distraidamente, levou um ombro à frente e limpou a boca nele, respirando o cheiro penetrante de suor e pólvora. Levantando os olhos, examinou as colunas de fumaça que subiam do campo de feno.

Por cima dos gritos distantes que vinham do antigo campo federal ele ouviu o tamborilar dos cascos. Virou-se quando um sargento se aproximou. O homem parou ao lado do charco.

- Cobrimos toda a área em volta do desfiladeiro - reportou.

- Não há mais lugar para um homem se esconder. Se houvesse alguém lá, teríamos visto.

- Ponha seus sentinelas a postos e mande o resto dos homens voltar para o acampamento - disse Lije.

com um aceno, o sargento afastou-se. Lije juntou as rédeas de seu cavalo e preparou-se para montar. Tinha terminado a desagradável mas necessária tarefa de procurar por sobreviventes. Quando se virou para a sela, ouviu um som como se fosse o de um sapo caindo na água. Seu cavalo relinchou e virou as orelhas na direção da corrente no pequeno canal de escoamento do lado esquerdo do charco. Uma pequena onda redonda abria-se na superfície do charco, parte de um círculo centralizado nos juncos altos.

Cautelosamente, Lije estudou a área, consciente de que seu cavalo continuava a olhar para aquilo. Numa guerra um homem aprende a obedecer a seus instintos; às vezes são eles que o mantêm vivo. Vagarosamente, Lije empunhou o revólver e conduziu o cavalo em volta do charco, procurando a grama densa e o chão macio para abafar o som dos cascos.

Quando chegou na beira da corredeira, uma cabeça levantou-se da água sob os juncos.

- Saia. Agora!

Lije armou o revólver. O homem colocou a cabeça para fora dos juncos, e Lije congelou ao reconhecê-lo.

- Ike!

Ike olhou de volta, a água escorrendo suavemente em volta de seu pescoço. A mente de Lije recordou seu tempo de menino, quando os dois cresciam juntos. Depois pensou em Deu e Phoebe.

Desarmou o revólver, devolveu-o ao coldre, e então olhou para o sol que se abaixava.

- Quando escurecer, você terá mais umas duas horas antes de a lua aparecer - disse Lije baixinho. - Boa sorte, Ike.

Não olhou para trás enquanto conduzia seu cavalo para fora do charco e de volta para o acampamento. Por todo o caminho continuou dizendo a si mesmo que tinha feito a coisa certa - a única coisa que poderia ter feito. Diabo, devia dar a Ike pelo menos uma chance.

Vendo Blade próximo ao pé do desfiladeiro, Lije correu para fazer seu relatório. Blade não olhou em volta.

- Cobrimos todo o perímetro - começou Lije, e logo viu Deu no fundo da ravina, abaixado ao lado do corpo de um soldado negro, dobrando gentilmente os braços do homem sobre o peito. Ele franziu o cenho. - Quem...

- Shadrach. - A triste resposta de Blade veio seguida por um pesado suspiro.

Lije virou a cabeça quando seu pai olhava os outros corpos jogados em volta do desfiladeiro, o queixo contraído. Lije adivinhou o que ele estava pensando.

- Ele não vai encontrar o corpo de Ike. - Instantaneamente toda a atenção de Blade se voltou para Lije, o olhar inquisidor. Pode dizer a ele que Ike está vivo.

- Como...

- Digamos apenas que eu sei. Vamos deixar as coisas assim. Blade concordou vagarosamente. Um pequeno sorriso brilhou no azul de seus olhos. Lije sorriu de volta, depois virou o cavalo e dirigiram-se ao acampamento.

Quando a noite engoliu os últimos raios do crepúsculo, Ike saiu da corredeira. Todo molhado, tremendo e meio dormente de frio, seu braço ferido latejando, nadou para fora do charco, fazendo o menor barulho possível. Haveria sentinelas em algum lugar. Ele tinha de passar por elas. Tinha de chegar ao forte.

Ike arrastou-se por dentro do mato alto, apertando os dentes para não deixá-los bater. A uns trinta metros do charco viu o primeiro guarda e esgueirou-se por ele, suando de nervosismo. Continuou engatinhando até ter certeza de que estava fora da vista dele, depois levantou-se e dirigiu-se cambaleando em direção ao forte, ao sul. Perto do amanhecer as paliçadas do Forte Gibson surgiram diante dele. Ferido, exausto e congelado até os ossos, Ike cambaleou até chegar ao portão.

- Consegui, tio Shad - murmurou quando o guarda de plantão o socorreu.

Mais tarde Ike soube que, dos 125 homens que se encontravam na plantação de feno em Fiat Rock Ford, noventa sobreviveram. Na louca cavalgada pela liberdade das tropas montadas, quinze haviam conseguido escapar. Três outros além de Ike tinham-se escondido com sucesso na pradaria ou nos charcos do Rio Grande, ultrapassando as linhas inimigas durante a noite.

Dois dias depois as mesmas forças confederadas que arrasaram a maioria de sua unidade atacaram o comboio de suprimentos em Cabin Creek, assaltando-o logo depois da meia-noite. Cem carroças foram queimadas, e outras 130 foram apreendidas pelo exército rebelde, contendo cerca de um milhão e meio de dólares em carregamentos.

Enquanto Ike convalescia dos ferimentos, seu regimento foi transferido para o Arkansas, primeiro para Little Rock, depois para o Forte Smith. No começo da primavera de 1865, o telégrafo tagarelou as notícias da rendição de Lee num lugar chamado Appomattox. Depois voltou a tagarelar com a trágica notícia do assassinato do presidente Lincoln. A guerra, entretanto, para todos os fins e propósitos, estava terminada. Uma após a outra, as tropas da Confederação desistiram da luta. Em 23 de junho de 1865 o general Stand Watie rendeu suas tropas em Doaksville - e foi o último general confederado a fazer isso.

Folhas marrons voavam diante do cavalo de Ike, saltando umas sobre as outras, como se estivessem brincando. Ike ignorou o desconforto do cavalo e olhou para a casa. De uma distância que parecia tão grande quanto o nome sugeria, quanto mais ele se aproximava da casa-grande de Grand View, maiores eram os sinais de abandono.

Quatro dias antes - no fim de outubro - Ike tivera baixa do exército. Ia para casa ver a mãe, mas não tinha certeza se seria bem-vindo. Cavalgou em volta da casa, em direção ao prédio da cozinha, nos fundos. A fumaça subia pela chaminé. Ike desmontou e amarrou as rédeas em volta do galho de um arbusto, deixando o cavalo pastar na grama alta.

Quando entrou viu uma mulher trabalhando numa mesa, de costas para ele. Depois ela se virou, limpando as mãos no avental. Era a mãe - mais velha, mais pesada, com os cabelos mais grisalhos, mas com as bochechas ainda cheias e os grandes olhos doces. Ela olhou para ele, chocada.

Rapidamente Ike tirou o chapéu, segurando-o, inseguro, diante dele, mexendo nervosamente na sua aba.

- Como vai, mamãe?

Phoebe deu um passo na direção dele, ainda com um olhar de dúvida.

- Ike! É você mesmo? - Ela gritou e correu para abraçá-lo, as lágrimas escorrendo pelo rosto.-Pensei que estivesse sonhando, mas você está aqui. É você de verdade!

- Não tinha certeza de que queria me ver... - ele procurou as palavras, lutando para conter as lágrimas e a alegria que comprimiam sua garganta.

- Não querer ver meu menino? Sou sua mãe. - Ela afastou-se e olhou para ele, ainda segurando seus braços como se ele pudesse escapar. Depois sorriu e disse, brincando: - Finalmente não está mais usando aquele horrível uniforme azul.-E abraçou-o de novo, incapaz de conter a felicidade. - Espere até dona Temple ver você. E Eliza.

Pegando-o pela mão, como se ele ainda fosse um menino, Phoebe levou-o para a casa-grande e gritou alto:

- Dona Temple! Ike está aqui, ele voltou para casa!

Em minutos ele se viu cercado de cumprimentos, com Temple, Eliza e Susannah agitando-se à sua volta. Ele não esperava nada daquilo - não depois da forma como fugira de casa para juntar-se ao exército. Quando se deu conta, estava sentado à mesa com um prato de comida à sua frente.

A faca e o garfo estavam em suas mãos, mas ele não podia dar a primeira garfada.

- Mamãe, tenho de contar-lhe sobre o tio Shad. Ele...

- Já sabemos - disse Eliza. - Jed... o major Parmelee nos contou sobre ele... sobre sua bravura.

- Ele foi um herói, mamãe. Foi o homem mais corajoso que conheci.

- Sempre foi. Meu Deus, quando penso na maneira com que ele costumava entrar de fininho naquela escola para pegar as lições que a senhora deixava para ele, dona Eliza... - Phoebe sacudiu a cabeça expressivamente, depois sorriu.-Mamãe o teria açoitado se descobrisse. Mas isso não o detinha. Estava determinado a ter uma educação.

- Eu sei - murmurou Ike.

Ela apertou carinhosamente a mão dele.

- Gostaria que seu pai estivesse aqui.

- Ele vai chegar logo, Phoebe - assegurou-lhe Temple. Ike hesitou.

- Eu... não contaria muito com isso, dona Temple.

- Por quê? - O olhar de alarme dela se aproximou do medo.

- Eles estão bem - apressou-se a dizer Ike. - Eu os vi no mês passado no Forte Smith quando foram àquela reunião com os representantes federais. Não conversei com eles, mas sei que estão bem.

- E por que não voltam para casa? A guerra terminou.

- Dona Temple, a senhora sabe que há muita animosidade entre os cherokees que lutaram pela União e os que lutaram pelo Sul... principalmente depois que os representantes federais disseram aos delegados de todas as nações indígenas que, quando se uniram aos confederados, perderam todos os direitos às suas terras tribais e anuidades. Toda a nação cherokee está sendo culpada pelas ações de Stand Watie e seus rebeldes, embora a metade da nação continue fiel à União. Eles têm de fazer um novo tratado, desistir de parte de suas terras e seus direitos, e garantir a cidadania cherokee aos ex-escravos.

- Está dizendo que... não é seguro para eles voltarem... que pode haver represálias?

Ike concordou, imaginando se ela conseguia se dar conta do quanto aquela guerra tinha sido devastadora para o país. A maioria das lutas no território indígena ocorreram em solo cherokee. Praticamente por todo lado que um homem cavalgasse encontraria destruição, campos tomados pelo mato e uma grande miséria onde antes havia prosperidade. Pelo que Ike ouvira, só uma outra área sofrera mais dano do que a nação cherokee: a faixa de terra arrasada que Sherman deixara para trás em sua marcha rumo ao mar. Ironicamente, grande parte daquela terra arrasada incluía a antiga terra dos cherokees na Geórgia.

- Temple, não é que eles não queiram voltar para casa... disse Eliza.

- Eu sei - retrucou ela asperamente, lutando contra o desespero que sentia. Parecia que aquela rixa nunca iria terminar. Nunca.

- Talvez eu não devesse ter dito nada - arrependeu-se Ike.

- Bobagem. É sempre melhor saber das coisas-disse Eliza, colocando as mãos juntas na mesa, numa atitude que terminava com o assunto.

- Não disse nada a respeito dos seus planos, Ike, agora que o exército o dispensou.

- Ainda não sei. Não tenho certeza. - Ele sacudiu os ombros, depois olhou para a mãe. - Conheci uma moça no Forte Smith. Ela se chama Ginny e acho que você gostaria dela. É quase tão bonita quanto você.

- Você se parece com seu pai, com todo esse palavreado. Mesmo assim, Phoebe sorriu para ele.

- Pensei em voltar para lá. Talvez arranjar um emprego, economizar um dinheiro para juntar com o que resta de meu soldo do exército, e montar um lugar para nós em algum lugar.

- Por que não a traz para cá?

- Não, mamãe. Agora sou um homem livre. Quero trabalhar na minha própria terra, ter meu próprio chão. Tenho de fazer isso. Sei que não compreende, mas prometi a tio Shad.

 

As casas e as cabanas foram queimadas. Os campos foram de novo tomados por mato e arbustos. O gado e os porcos que os soldados não tinham matado voltaram a ficar selvagens nas matas e capinzais. Todos tiveram de recomeçar a vida - construir cercas, cabanas de madeira, limpar a terra, replantar.

- Sra. Mary Cobb Agnew Cherokee

Grand View Nação cherokee Agosto de 1866

Sorrel arrancou outra espiga de milho da haste e jogou-a na carroça com as outras. Seu corpo todo coçava com o suor. Ela parou e levantou do pescoço o peso quente de seus longos cabelos vermelhos. Sentiu um pequeno alívio. Não havia um sopro de ar em lugar algum.

- Como pode aguentar isso, Susannah? - Sua tia estava na fileira ao lado, arrancando metodicamente as espigas de seda marrom dos pés, parecendo ignorar completamente o calor. - Estou toda melada.

Susannah sorriu, solidária.

- Estamos quase acabando. Só duas fileiras mais.

- Acho que odeio milho - Sorrel olhou para o monte de espigas no carro, certa de que não sentiria a menor falta se jamais voltasse a ver milho.

- Estava pensando em como será bom tomar um banho frio quando terminarmos aqui - sugeriu Susannah.

- Se eu durar até lá.-Com um suspiro pesado, Sorrel voltou para a fileira de milho, mas foi logo distraída pelo clip-clop dos cascos de um cavalo. - Está chegando alguém.

Ela saiu do canteiro de milho para olhar na viela. O ar tremeluzia como vidro líquido, embaçando o cavaleiro no cavalo negro.

Assim que Sorrel viu a estrela branca na testa do cavalo, soube quem era.

- ÉAlex!

Correu para encontrá-lo, sua touca caindo e balançando-se em suas costas, presa apenas pelas fitas amarradas em volta do pescoço. Quando parou ao lado da égua, estava sem fôlego e sorrindo abertamente.

- Você voltou para casa. Finalmente está em casa.

Sorrel esperou que ele desmontasse. com quase quatorze anos, ela estava crescida demais para atirar-se sobre ele num abraço infantil, mas tinha de tocá-lo. Então, descansou as mãos nos ombros dele e esticou-se para dar-lhe um rápido beijo no rosto, afastando-se em seguida.

- Estou tão feliz com sua volta. Senti muita saudade.

- Eu também senti saudade.

- Ainda estou usando a medalha que me deu. - Ela tirou-a de dentro do vestido e levantou-a para mostrá-la a ele. - Uso-a o tempo todo.

Alex olhou e lembrou-se da trouxa de moedas de ouro e da jóia que estava junto. Não foram os únicos itens de valor que ele "confiscara" de alguém, rebelde ou não. De uma maneira ou de outra, conseguira ganhar uma considerável soma de dinheiro enquanto esteve no exército. Um de seus esquemas mais lucrativos era o de forçar os fazendeiros locais a vender-lhe o milho a uma fração do valor, revendendo-o depois ao exército. Ganhara um bom dinheiro com isso, mas já gastara tudo.

- A medalha fica linda no seu pescoço. Seu pai sabe que a usa? - divertia-o pensar no quanto Blade ficaria irritado em saber que Alex dera a medalha a ela.

- Não. - Ela pôs a medalha de volta dentro do vestido. Ele e Lije ainda não voltaram para casa, embora mamãe esteja esperando a chegada deles a qualquer hora, agora que um novo tratado foi assinado. Soube que o chefe John Ross morreu em Washington?

- Soube.

- Todo mundo diz que seu sobrinho William Potter Ross será eleito chefe principal quando o Conselho Nacional se reunir em novembro.

- Provavelmente.

Ao contrário de seu pai, Alex não tinha interesse em política. Tudo que sabia era que, se Blade fosse a favor, ele seria contra.

- Já esteve em sua fazenda? Alguém disse a mamãe que a cabana está em péssimas condições: todas as janelas quebradas, um buraco no teto. Posso ir lá ajudar você a consertá-la.

- Obrigado, mas pretendo vender a fazenda se achar algum comprador interessado.

- Por que faria isso? Sei que é tarde demais para plantar qualquer coisa este ano, mas na próxima primavera...

- Não fui feito para ser um plantador, Sorrel - disse ele. Não quero passar a maior parte da minha vida olhando para a traseira de uma mula. Não faz parte de mim. Nunca fez. Se tiver de sentar-me e esperar a plantação crescer, ficarei louco.

- Mas, se vender a fazenda, o que vai fazer? Onde vai morar?

- Ainda não decidi. - Ele passou a mão no pescoço da égua.

- Ainda não vi um cavalo que possa correr mais do que este bebé aqui. Pensei que poderia ir para o Kansas ou o Missouri, algum lugar onde a reputação dela não seja conhecida, e ganhar dinheiro correndo com ela.

Sorrel dirigiu-lhe um olhar longo e pensativo.

- Sei por que quer partir. Não precisa fingir comigo, Alex. É por causa do meu pai, não é? - perguntou ela, séria. - Acha que, quando ele voltar, vai sair atrás de você, que vai tentar matá-lo da mesma forma que matou seu pai.

- Não acho, apenas, eu sei que ele me quer ver morto. Mas Alex tinha seus próprios planos com relação a Blade. Já

planejara cuidadosamente como vingar-se da morte do pai. Na verdade, Alex estava contente por Blade não ter morrido quando atirou nele. Teria sido rápido demais, fácil demais, principalmente quando lembrava dos anos que seu pai passara esperando e imaginando quando Blade faria sua tentativa contra ele. Aquilo tinha corroído Kipp por dentro como um câncer. Alex decidiu que seria uma justiça poética Blade ter de esperar e imaginar também. Mas chegaria o dia em que Alex o mataria - tão a sangue-frio quanto Blade matara Kipp. Mas ele escolheria a data, não Blade.

- Mas isso não tem nada a ver com minha partida - disse ele a Sorrel. - Seu pai não está me afastando daqui. vou voltar. Pode apostar nisso. Apenas preciso primeiro ter algum dinheiro no bolso.

- Não me importo se você tem dinheiro ou não. Ele inclinou a cabeça para trás e riu.

- Mas eu me importo. Cuide-se bem, Sorrel, e continue usando essa medalha.

Ele subiu de volta na sela, fez uma saudação a Sorrel e levou a égua negra de volta à estradinha que conduzia à estrada do Texas. Sentia-se bem por dentro, tão bem que queria jogar a cabeça para trás e rir.

Vendo a estrada aberta à sua frente, a égua aumentou o passo.

- Está com vontade de correr, não é?

Alex riu e relaxou a pressão. A égua começou a correr.

Um quilômetro depois ela levantou as orelhas, atenta. Alex olhou-a com curiosidade, depois começou a ouvir um som baixo e constante. Primeiro pensou que fosse um comboio de suprimentos, depois ouviu o grito de um cavaleiro e soube que era um rebanho sendo transportado. As levas de gado para o mercado no nordeste tinham começado de novo.

Ele andou mais um quilómetro antes de ver os homens cavalgando na frente do rebanho. Agora estava perto o bastante para ouvir o tamborilar dos cascos e os longos chifres do gado batendo uns nos outros. Virou a égua para fora da estrada e afastou-se para deixar o rebanho passar.

Um dos cavaleiros separou-se de outros dois e galopou para cima da estrada. Mas era para o gado que Alex olhava, refletindo. Em Kansas City, Sedalia, ou Saint Louis, um boi daqueles seria vendido por vinte ou trinta dólares. Aquele rio de chifres representava uma fortuna.

Ao longo da fronteira do Kansas, alguns atravessadores menos escrupulosos pagariam dezoito dólares por cabeça, sem fazer perguntas. Durante os últimos dois anos da guerra, roubar e vender gado para os atravessadores do Kansas tinha sido uma operação lucrativa, e as autoridades olhavam para o outro lado. Pelo que Alex ouvira, isso ainda existia. Um homem poderia fazer um bocado de dinheiro com isso. Um monte de dinheiro. E ele estava planejando ir para o Kansas, de qualquer forma.

Depois de colher a última espiga de milho, Susannah foi para casa. Haveria tempo bastante para descascá-lo à noite, quando estivesse mais fresco. Agora ela queria tomar um bom banho e trocar de roupa. Usando a frente do avental, enxugou o suor do rosto e do pescoço. Cansada e com calor, tentou não pensar que teria terminado o trabalho bem mais cedo se Sorrel não tivesse corrido para ver Alex, e se não tivesse demorado a voltar depois que ele partiu. Quatorze anos era uma idade difícil.

Ela olhou para baixo da estrada e viu outro cavaleiro se aproximando.

- Esta é a manhã dos visitantes - murmurou.

As ondas de calor distorciam as formas do cavalo e do cavaleiro, escondendo sua identidade. Mas logo Susannah ouviu um assobio e parou.

O cavalo começou a galopar. Ela ficou imóvel, prendendo a respiração, esperando a imagem desaparecer ou atravessar as ondas de calor. De repente, não havia mais dúvida em sua mente. Era Rans!

Ela correu para encontrá-lo. Ele saltou do cavalo e tomou-a nos braços, virando-a e abaixando os lábios para esmagarem os dela. Quando os pés de Susannah pousaram de volta no chão, ela colocou os braços em volta dele enquanto o beijava com ardor faminto.

Mesmo depois que se afastaram para respirar, ela não se sentia satisfeita. Queria mais, e acariciava avidamente seu rosto e cabelos, deixando os lábios sentirem e explorarem o sabor salgado do queixo e do pescoço dele. Rans cheirava a poeira, suor e gado, mas Susannah nunca sentira um aroma tão maravilhoso.

- Você está aqui - sussurrou ela, tremendo contra a pele dele. - Estava começando a acreditar que nunca mais o veria.

- Não recebeu minha carta?

As mãos dele moviam-se para cima e para baixo nas costas dela, acariciando-a, pressionando-a e afagando-a.

- Aquela que dizia que seu pai estava com problemas e que você ia para casa? - Era a única carta que recebera dele.

- Essa mesma.

- Mas isso foi no ano passado, logo depois que a guerra terminou.

- Acho que foi. Tem acontecido tanta coisa que perdi a noção do tempo. - Ele esfregou a boca na testa dela, a respiração ficando úmida e aquecendo o cabelo dela. - O rancho foi vendido para pagar impostos atrasados. Meu pai morreu logo depois disso. Acho que morreu de desgosto.

- Sinto muito - murmurou ela.

- Oh, Deus, senti muito a sua falta, Susannah - disse ele, abraçando-a mais uma vez.

- Também senti sua falta. Mas agora você está aqui. Nada mais importa.

- Não posso ficar - disse Rans. - Estou levando um rebanho para Iowa. Só devo voltar no fim de novembro ou começo de dezembro. Parece que estou sempre lhe pedindo para me esperar. Você vai me esperar?

- Não sei por que se incomoda em pedir. Você sabe que vou. Ele beijou-a longamente.

Grand View

Nação cherokee

Dezembro de 1866

Fora da janela da sala os flocos brancos rodopiavam e brilhavam à luz do sol, uma ilusão de neve caindo criada pelo vento soprando para o chão os cristais das árvores cobertas de gelo. Diane concentrou a atenção numa rajada de flocos que dançavam e giravam, e fez de tudo para bloquear os sentimentos de inveja que a apunhalavam.

- Vamos fazer um brinde aos noivinhos? - A pergunta de Jed Parmelee foi respondida com um coro de concordância.

Dando um suspiro rápido na tentativa de acalmar-se, Diane virou para o grupo e levantou o copo de xerez, consciente de que seu sorriso era um pouco alegre demais.

- Para Rans e Susannah. - O aperto em sua voz era felizmente mascarado pelas outras vozes.

Tomou um gole do vinho, seu olhar buscando o casal no sofá, tão abraçados quanto a decência permitia. Lembrou-se bem demais de quando ela e Lije tinham agido assim - neste mesmo cómodo. Lembrava-se, também, da excitação que sentia quando ele estava perto.

Quando o riso e o clamor das congratulações terminaram, Jed perguntou:

- Como foi a viagem com seu gado, Rans?

- Não tão bem quanto eu esperava - admitiu com um suspiro. - Consegui um bom preço em Iowa, mas perdi quase duzentas cabeças para uns ladrões. Eles atacaram o rebanho alguns quilómetros ao sul da fronteira do Kansas. Depois que descontei todas as despesas com a viagem, o lucro não foi o que eu esperava.

Rans serviu-se de xerez e passou os olhos rapidamente por Susannah, que sorria.

- O que precisamos é de mercados mais próximos.

- O Leste está gritando por carne de boi, enquanto esse gado de chifres compridos anda solto aqui pelo Texas às centenas de milhares. Eles representam o único dinheiro que temos. Dinheiro vivo no Texas é mais raro do que asa de anjo. Não tenho escolha a não ser tentar fazer outra viagem no ano que vem. Ele buscou de novo o olhar de Susannah. - vou precisar de pelo menos mais umas duas viagens até poder ter um lugar próprio: nosso lugar.

- Já pensou em construir um rancho aqui na nação, Rans? Embora Eliza tentasse, sua pergunta parecia tudo, menos desprovida de interesse. - Sei que estou sendo terrivelmente egoísta, mas não gostaria de fazer longas viagens ao Texas para ver meus netos.

- Realmente, eu não tinha pensado nisso, sra. Gordon. Diane não queria ouvir mais conversa sobre lar, marido e

família. Tão disfarçadamente quanto possível, dirigiu-se à lareira com frente de mármore para olhar as chamas crepitando. Não era tanto a conversa que a aborrecia, mas sim ser testemunha da felicidade do jovem casal.

Surpreendera-se ao descobrir o quanto desejava aquilo para ela mesma. Parada ali, quase podia sentir a sensação dos lábios de Lije nos seus, os braços fortes dele envolvendo-a. Não esperava que o desejo ainda fosse doer assim-não depois de todos aqueles meses. O tempo deveria ter anestesiado tais emoções. Mas elas continuavam fortes e dolorosas como antes. Inconscientemente, ela tremeu com a força desses desejos.

- Está com frio, Diane? Posso botar mais lenha no fogo. Ela virou-se, surpresa de encontrar o pai ao seu lado.

- Não, não foi nada. - Ela segurou o cálice de xerez com ambas as mãos, os dedos soltos em volta dele, o olhar voltando-se para as chamas saltitantes. - Foi apenas um fantasma do passado.

- Brindamos ao seu noivado com Lije aqui neste mesmo lugar, não foi? - disse ele calmamente.

- Isso foi há muito tempo - Diane manteve a voz baixa para que os outros não a ouvissem.

- A guerra terminou, Diane. Ela sacudiu a cabeça.

- É tarde demais.

- Não, se você não quiser. Ela sorriu para ele.

- É tarde demais - repetiu, terminando suavemente com o assunto.

- Diga-me, major - começou o reverendo Cole, interrompendo-se em seguida com um olhar desolado. - Desculpe... Jed. Temo que nunca vá me acostumar a vê-lo de novo como um civil. Já se ajustou à vida longe do exército?

- Diga o que disser, a verdade é que ele sente falta do exército. -com sua longa prática, Diane voltou a fazer o papel de charmosa filha de oficial. - Qualquer dia desses ele entra em casa com uma corneta, esperando que eu aprenda a tocá-la para que ele possa voltar a acordar ao som do toque de despertar, tornar a ser chamado para a mesa na hora do rancho, e ir para a cama com o "Butterfield Lullaby" ecoando através da noite.

- Uma corneta - repetiu Jed, com a expressão meio séria.

- Uma excelente ideia. Deveria ter pensado nisso antes.

Diane sorriu e ergueu os ombros numa sacudidela desesperançosa:

- Perceberam o que eu quis dizer? Todos riram.

- Falando sério, Jed - disse Temple. - Sei que o conselho lhe deu permissão para ficar na nação e abrir um armazém. Você já escolheu o local?

- Já. - Ele sorriu, satisfeito. - Tive sorte, pois outro dia soube que um comerciante em Tulsey Town, perto da nação creek, queria vender seu negócio. Diane e eu acabamos de voltar de lá.

- E compraram - adivinhou Temple.

- Sim, compramos - confirmou Jed. - O local é bom, e tenho a impressão de que vai ser perfeito. Como o novo tratado dá a companhias de estradas de ferro o direito de passar pelo território, será apenas uma questão de tempo antes que uma delas comece a instalar os trilhos. Estou convencido de que Tulsey Town estará no caminho de qualquer estrada Leste-Oeste que venha a ser construída.

Eliza deu um suspiro de preocupação que atravessou a sala inteira.

- Não gosto da ideia de estradas de ferro passando por aqui.

- Por que não? - Jed levantou uma sobrancelha em aguçada interrogação. - Imagine os negócios que elas poderão trazer e o mercado que será aberto aos produtos locais.

- Mas imagine os colonos brancos que trarão também. Não precisamos de mais - Eliza olhou para Jed incisivamente.

- Mamãe - protestou Susannah. - Veja bem o que está dizendo. Há um minuto você estava encorajando Rans a abrir um rancho aqui.

- Sim, mas ele está se casando na nação, assim como eu fiz.

- E quanto a Jed e o reverendo Cole? - repreendeu Susannah. - Está dizendo que eles não deveriam estar aqui?

- Creio que falo também por Jed - interveio Nathan -, quando digo que não poderia ser feliz vivendo em outro lugar. Vivo na nação há quase trinta anos. Este é o meu lar. É onde estão meus amigos... e as pessoas de quem eu gosto.

- Concordo - Jed ergueu seu cálice de xerez em saudação.

- Não me referia a vocês dois em particular - insistiu Eliza.

- É que... não consigo esquecer-me do que aconteceu na Geórgia. Eles não se limitaram a cobiçar a terra que viram. Odiaria ver a história se repetir.

- Todos aqui concordamos com isso, Eliza - tranquilizou-a Jed.

Rans virou a cabeça.

- Estou ouvindo cavalos lá fora - disse, levantando-se do sofá e dirigindo-se à janela.

- Cavalos? - perguntou Temple, escutando o som da porta da frente se abrindo e logo depois passos pesados no vestíbulo de entrada. Ela correu para a porta.

- Quem poderia vir nos visitar a esta hora?

Do vestíbulo veio a alegre exclamação de Phoebe.

- Deu! Você voltou!

Temple respirou profundamente, com medo de acreditar no que aquilo significava. Suas esperanças tinham sido frustradas muitas vezes. Mas ela tinha de descobrir. Agarrou a bainha da saia e correu para o vestíbulo. Quando se deparou com Blade, estacou, atordoada pelo prateado em seus cabelos negros. Depois seu olhar dirigiu-se à pálida cicatriz em seu rosto bronzeado, e um segundo depois encontrou o azul profundo dos olhos dele. Havia neles uma saudade intensa, ecoando tudo o que ela sentia, e isso a conduziu através do espaço que os separava. Totalmente alheia a tudo e a todos, Temple pulou nos braços dele.

Atraída para o vestíbulo como todos os outros, Diane parou na arcada da sala de visitas e ao ver o rosto sorridente de Lije apoiou-se na moldura da porta para não cair. Todo aquele tempo tinha estado pensando nele, desejando-o. Doía vê-lo. Doeu ainda mais quando ele a viu e seu sorriso abandonou seu rosto magro e severo.

Ele desviou os olhos de Diane e dirigiu-os para o local onde estava o pai dela. Seus olhos se apertaram, e ela sabia que ele estava olhando para aquela manga vazia e o volume sob o casaco de seu pai. Lije afastou os olhos e virou-se, os lábios se abrindo para cumprimentar Susannah.

Diane olhou de relance para o pai. Ele olhava para o vestíbulo, com uma expressão de dor nos olhos. Por um momento Diane não compreendeu. Olhou de volta, tentando ver o que era. Ali estava Temple, abraçada a Blade, radiante de felicidade. Diane então descobriu a causa da dor do pai e sentiu pena quando ele deu meia-volta e se afastou em direção à sala de visitas.

Olhando Temple e Blade juntos, Diane sentiu uma nova onda de inveja e amargura. Ela deveria ter dado as boas-vindas a Lije com a mesma alegria. Mas ele arruinara qualquer chance de felicidade para eles. Ela quase o odiou por isso.

Todos se dirigiram à sala de visitas. As boas maneiras ditavam que Diane ficasse ali para saudar a dupla que voltava. As boas maneiras e o orgulho. Mas foi sua filha que Blade notou primeiro.

- Você ficou uma moça muito bonita enquanto estivemos fora, Sorrel. - Seu sorriso trouxe um ar carinhoso aos seus olhos.

- Vocês ficaram longe muito tempo - retrucou ela sem oferecer nenhum sorriso.

- Creio que sim - concordou Blade, sério.

- Parece que chegamos bem na hora de manter um olho em todos os pretendentes que virão cortejá-la - comentou Lije.

- Não chateie, Lije-retrucou Sorrel aguçadamente, logo se afastando para a sala de visitas.

- Seja bem-vindo, major. Estou contente em ver que está bem

- observou Diane rapidamente, antes que as coisas ficassem desajeitadas demais.

Mas ela estava consciente de duas coisas: a forma com que Lije evitava olhar para ela, e a forma com que Temple se abraçava a Blade.

- E você está cada vez mais bonita, Diane - disse ele, olhando em seguida para Jed. - Vejo que está sem uniforme de novo, Jed.

- E, desta vez, permanentemente-respondeu Jed, enquanto Blade passava por Diane para entrar na sala, de braço dado com Temple.

Aprumando-se, Diane virou-se para falar com Lije, mas ele eliminou essa necessidade com um rápido aceno de cabeça, e depois passou pelo par para juntar-se aos outros na sala. Diana seguiu-o com o olhar por um instante, até que ele parou junto a Sorrel. Então concentrou a atenção nos pais, com uma mistura de inveja e acusação em seu rosto.

Diane olhou para Temple de novo e suspirou, confusa.

- Você está bem? - Eliza tocou o braço dela.

- Não posso entender como Temple pode estar tão feliz admitiu por fim.

- Isso é óbvio. Blade está em casa.

- Sei, mas... ele matou o irmão dela. Como pode esquecer-se disso?

Eliza sorriu.

- Ela o ama.

Diane considerou a resposta por um momento, seu olhar buscando Lije.

- Não - ela sacudiu a cabeça. - Não pode ser simples assim. Amor não é o bastante.

- Se amor não é o bastante, então o que é?-contestou Eliza, com um toque de impaciência. Depois sorriu e segurou o braço de Diane.

- Uma das grandes lições da vida, uma das grandes lições do amor, é aprender a perdoar o que não se pode esquecer. Há muito tempo Temple aprendeu essas lindas palavras, "eu perdoo", da forma mais difícil. Amar é perdoar um erro. Talvez você devesse falar com o reverendo Cole a respeito disso - sugeriu Eliza, tocando no braço de Diane de novo e saindo para deixá-la pensar no assunto.

Virando-se para Blade, Eliza abordou um de seus assuntos favoritos.

- Sorrel contou-lhe que é uma das melhores alunas da classe?

- Não, ela não falou sobre isso. Parabéns-Blade sorriu para a filha.

- Obrigada.

Ela permitiu-se um pequeno sorriso, mas Lije notou que a cautela não largava os olhos dela. Ele não tinha de adivinhar a quem deveria culpar por essas boas-vindas tão pouco calorosas. Só podia ser Alex.

- Eliza merece crédito pelos sucessos de Sorrel - disse Temple. - Ela ensinou-a durante toda a guerra, até que as escolas se abrissem de novo. Estou vendo as escolas preparatórias para que possamos matriculá-la depois que ela se formar, em junho.

- Em junho?-surpreendeu-se Blade.-Parece impossível.

- Vai haver uma cerimónia de formatura. Qualquer um pode ir - disse Sorrel, levantando o queixo desafiadoramente. - vou convidar Alex.

Lije olhou para a medalha dourada em volta de seu pescoço, o presente de Alex.

- Isso quer dizer que Alex anda por perto. Eu imaginava isso.

Ele está vivendo na fazenda de Kipp? - perguntou, muito casualmente.

- Não - disse Temple.

- Ele foi para o Kansas - informou-o Sorrel.

- Para o Kansas? - Lije levantou as sobrancelhas, surpreso.

- O que está fazendo lá?

- Ele disse que por lá ninguém sabe como Shooting Star corre bem, então vai ganhar dinheiro botando-a para correr.

- Então ele ainda tem sua égua corredora. Sorrel concordou.

- E ela está correndo mais ainda. Não há outro cavalo em todo o território que a possa derrotar.

- Há um cavalo que talvez possa derrotá-la- interveio Rans.

- Onde está ele? - desafiou Sorrel.

- Um dos ladrões que roubaram nosso gado cavalgava um cavalo negro que era a coisa mais rápida que já vi.

- Foi atacado por ladrões? - perguntou Lije. Rans concordou.

- No sul da linha do Kansas. E foi a operação mais suave que já vi. Eles atacaram por volta da meia-noite, estouraram o gado e levaram umas trezentas cabeças. Logo que conseguimos parar o rebanho, alguns de nós corremos atrás deles. Era quase de madrugada quando nos aproximamos deles... ou pensamos ter nos aproximado.

Uma ponta de humor despontou em suas feições rudes e bronzeadas.

- Primeiro esperei que nos enfrentassem, mas eram somente dois, enquanto nós éramos seis. Por isso não fiquei surpreso quando deram uns dois tiros e se foram. Continuamos atrás deles, e achei que fôssemos pegá-los. Então aquele sujeito montado num cavalo negro saiu disparado. Da forma com que voava pelo prado, eu podia jurar que aquele cavalo tinha asas. O outro ladrão metia as esporas e chicoteava seu cavalo como um louco, mas aquele cavalo negro deixou-o comendo poeira. Era uma coisa impressionante-contou Rans com olhar espantado.

- E o gado roubado? - perguntou Lije.

- Nós o levamos de volta e o juntamos à manada principal.

Depois do estouro, levamos dois dias para juntar todo o gado perdido. No entanto, quando fiz a contagem, descobri que ainda faltavam umas duzentas cabeças. Demos outra batida na área. Foi então que descobrimos que eles tinham dividido o gado roubado em dois grupos e deixado um rastro evidente com o grupo menor para nos despistar. Foi um plano inteligente, muito inteligente.

- Pelo que me lembro - recordou o reverendo Cole no silêncio que pairou no quarto -, Alex cavalga uma égua negra.

O comentário foi feito com toda a inocência, mas Lije já suspeitara da conexão.

- Provavelmente é uma coincidência.

Mas ele não estava convencido disso e, a julgar pela expressão de Susannah, ela tampouco estava.

- Entretanto, temo que a guerra tenha conduzido alguns homens para o caminho do mal, e ensinado muitos outros a roubar e a matar. Lembra-se de Frank James? - disse Lije a Rans. - Ele cavalgava com Quantrill durante a guerra.

Rans concordou.

- Tinha um irmão mais jovem, Jesse, que se juntou aos guerrilheiros de Bill Sangrento Anderson. Eles roubaram um banco em Libertyville, Missouri, em fevereiro passado. Depois disso já roubaram mais. Semana passada ouvi dizer que Cole Younger se juntara à quadrilha. Ele é outro homem de Quantrill.

Diane deu a volta para parar ao lado do pai perto da lareira. Lije deu-se conta disso no instante em que ela se afastou da porta. Era mais do que o sussurro do movimento feito por ela. Era a consciência da presença dela sempre que partilhavam o mesmo ambiente.

- Não foram muitas as pessoas que sofreram quando Quantrill foi assassinado em Kentucky nos últimos dias da guerra - comentou Jed.

- Nisso você tem razão-concordou Lije. - Os confederados podem ter dado a ele o posto de capitão, mas a União pôs nele a marca certa: bandido.

- Imagino que o tempo que você passou no Light Horse o tenha ensinado a reconhecer os fora-da-lei - disse o reverendo Cole.

- Você os reconhece por suas ações, assim como acontece em seu ramo de trabalho, reverendo. Um homem não é um pecador até pecar. Até os homens bons podem ficar maus. - Ele olhou diretamente para Sorrel. - Às vezes é a tentação de dinheiro fácil, como os rapazes de James roubando um banco, às vezes é por vingança; Às vezes é pela sede de poder. Pessoas que você menos espera viram bandidos.

Suspeitas. Era tudo que ele tinha quanto a Alex. Lije tentou transmiti-las a Sorrel, que idolatrava Alex. Sempre idolatrara.

- Posso estar errada - Eliza parou e inclinou a cabeça para o lado, um pouco divertida e um pouco afetada -, mas, pelo seu último comentário, tenho a impressão de que pretende retomar seu antigo posto no Cherokee Light Horse.

- Não está errada. Na verdade, já procurei.

- Não está falando sério - disse Temple num protesto. Você acabou de chegar em casa...

Ele fez sinal para ela parar.

- Só tenho de começar a trabalhar depois do Natal

- Graças a Deus - disse Temple, aliviada.

- Por falar em casa - interveio Jed Parmelee -, já é hora de Diane e eu irmos embora.

- Tão cedo? Não podem ficar para o jantar? Jed sacudiu a cabeça.

- Gostaria de chegar em Tahlequah antes do anoitecer. Vamos estar muito ocupados nos próximos dias com todos os preparativos e bagagem para a mudança.

- Jed comprou um armazém em Tulsey Town - explicou o reverendo Cole.

- Esperamos estar estabelecidos durante o Natal-disse ele.

- Se forem por aquelas bandas, não deixem de nos visitar. com um armazém para administrar, duvido que possamos nos ausentar muito.

- Mas virão para o meu casamento, não é?-disse Susannah num tom que alertava que não toleraria um "não" como resposta-

- Quando vai ser? - perguntou Diane, quebrando um silêncio auto-imposto que durava desde a hora em que cumprimentara Blade, um fato que não passou despercebido por Lije.

Rans e Susannah responderam à sua pergunta ao mesmo tempo, só que Rans disse "junho", e Susannah, "março". Jed riu.

- Quando vai ser, em março ou junho?

- Em março - respondeu Susannah, avisando a Rans.-Eu esperei por você todo um tempo. Nós vamos casar em março, aqui nesta casa, e o reverendo Cole vai oficializar a cerimónia.

Tomando a concordância dele como garantida, ela virou-se para Jed e Diane, com um rápido sorriso iluminando o seu rosto.

- Gostaria que fosse minha dama de honra, Diane. Você aceita, não é?

Diane hesitou, lembrando-se dolorosamente dos preparativos de seu próprio casamento. Olhou para Lije, que desviou o olhar para o chão. Ela conscientizou-se então do quão grande era o abismo entre eles. Só não sabia como atravessá-lo.

- Eu ficaria orgulhosa de ser sua dama de honra, Susannah. Obrigada por me convidar.

Depois das despedidas, Diane saiu para o frio ar de dezembro protegida por suas luvas e agasalhada em sua capa de inverno quentinha. O sol tinha descongelado as árvores, deixando um resplendor de umidade nos galhos. As gotas de água com brilho de diamante eram quase tão bonitas quanto o fora a cobertura da geada. Mas Diane estava absorta demais em seus pensamentos para notar.

Jed ofereceu-lhe a mão para subir na charrete, depois sentou-se ao lado dela. Tão logo a coberta de couro foi colocada em volta de suas pernas, ele bateu de leve no cavalo com as rédeas e eles se foram. Diane olhava ao redor, distraída, a estéril paisagem invernal, inconsciente do longo silêncio e dos olhares indagadores de seu pai. Por fim ele falou:

- Você está muito quieta, Diane. Pode me dizer no que está pensando?

Ela respondeu sacudindo vagamente a cabeça, depois murmurou.

- Acho que cometi um erro horrível. E não sei o que fazer para repará-lo.

Ela ainda amava Lije, mas fora ela quem terminara o noivado, ela o havia desprezado. Diane tinha certeza de que ele jamais confiaria nela de novo, jamais voltaria a acreditar nela.

Deitada na cama, completamente nua, com apenas um fino lençol cobrindo-a, Temple sentia-se maravilhosamente má e pecadora. E amava essa sensação. Dentro dela era tudo quente e macio, como mel num dia quente. Ela aconchegou-se mais perto de Blade e esfregou o rosto contra seu ombro. Seu braço apertou-a ligeiramente como resposta. Temple sorriu e deixou sua mão viajar de seu estômago liso para seu peito. Seu corpo ainda era rijo e magro, e ela ainda gostava de acariciá-lo.

Ela ouviu o suave estalido das chamas na lareira do quarto, relembrando o quanto apaixonadamente ele a amara, sem deixar nenhuma dúvida do quanto sentira falta dela, do quanto a desejava e amava Ele apagara todas as dores e o vazio que ela tinha experimentado por tanto tempo.

Quando ela sentiu as mãos dele acariciando suas costas, sussurrou:

- No que está pensando?

- Em porcos. Ela sentou-se.

- Porcos! - Ela olhou para seus olhos azuis sorridentes. Blade Stuart, eu deveria...

Rindo, ele pegou os punhos dela e puxou-a para cima dele, seu olhar deslizando para os montes maduros de seus seios agora deitados pesadamente em seu peito.

- Aquele presunto do jantar foi o primeiro que comi desde o começo da guerra.

- E eu? Você também só me comeu antes da guerra lembrou-o zombeteiramente.

- Mas juro que não gostei tanto do presunto quanto gostei de você. Isso a satisfaz?

Ele ria dela, o que a fez ficar com mais raiva.

- Não - retrucou ela. - Para começar, você não deveria nunca fazer essa comparação.

- Eu não fiz. Quem fez foi você.

- Então por que mencionou isso?

- Porque me lembrei de que o porco está em alta no Texas. Praticamente vale seu peso em ouro. Temos um bocado de reconstruções a fazer, Temple, e como todo mundo, não temos dinheiro vivo para isso. No Texas você pode trocar cinquenta ou cem quilos de toucinho por um boi chifre-longo adulto, sementes ou qualquer coisa que necessitar. Notei alguns porcos no celeiro quando cheguei. Quantos temos agora?

- Seis. Bastante grandes para abater.

- Já é um começo. - Ele sorriu e passou os braços em volta dela, puxando-a para si. Contente de novo, Temple aninhou a cabeça no peito dele e ficou ouvindo sua voz grave.

- Tenho pensado sobre algumas coisas que Lassiter disse na mesa hoje. Não temos bastantes negros, nem dinheiro para contratá-los para arar, preparar e plantar nesta primavera. Mas há muita grama e água no rio Verdigris, a nordeste daqui. Poderíamos colocar uma boa manada de chifres-longos ali, para engordá-los. Depois, em novembro, quando a proibição não estiver vigorando, nós os levaremos para o Kansas. Acho que poderia convencer Lassiter a ser meu sócio nisso. Eu gosto dele. É um bom sujeito.

- Estou de acordo. - Distraidamente, ela passou os dedos pela cicatriz deixada pela bala em seu braço esquerdo, começando a pensar em seus próprios planos de reconstrução.

- Se fizer isso, eu poderia usar os negros que temos trabalhando para nós para reabrir a serraria. Muita gente vai precisar de madeira para reconstruir suas casas.

- É uma boa ideia. - Ele parecia surpreso. - Foi Parmelee quem sugeriu isso?

- Para falar a verdade, ninguém sugeriu. Eu pensei nisso sozinha.

Um pouco irritada com a atitude dele, Temple levantou a cabeça e olhou para ele.

- Quem você pensa que dirigiu Grand View durante os últimos cinco anos? Considerando as circunstâncias, acho que fiz um bom trabalho. Pelo menos você tem algo para recomeçar, o que é muito mais do que muita gente tem.

- Muito mais - concordou, sério. - Para falar a verdade, Temple, seria impossível ter feito melhor. Olhando em volta, olhando tudo o que você conseguiu guardar, dói um pouco constatar que você realmente não precisa de mim.

- Eu preciso de você. Sempre vou precisar de você. Carinhosamente, ela pegou seu rosto nas mãos - Eu não fiz tudo sozinha. Eliza me ajudou muito... e Susannah e Sorrel.

Ao ouvir o nome da filha, ele franziu o cenho.

- Sorrel não ficou muito feliz em me ver, não é? Temple hesitou. Era maravilhoso estar deitada ali com ele,

falando sobre o futuro. Ela não queria estragar tudo, escavando a feiúra do passado. Mas como evitar isso? Ele teria de saber, mais cedo ou mais tarde.

- O que é? - ele olhou para ela.

Ela deitou a cabeça para trás em seu peito e aconchegou-se um pouco mais a ele.

- Nós sabemos como Kipp morreu.

Ela sentiu-o enrijecer, o peito cessando de subir e descer. Então ele suspirou.

- Então Alex lhe contou. Eu deveria ter adivinhado. - Seus braços a enlaçaram e ele enterrou sua boca nos cabelos dela murmurando:

- Que diabo, Temple, eu queria poupá-la disso tudo. Você tem de acreditar que eu não queria que isso acontecesse. Tentei evitar isso. Se ele não tivesse puxado aquele revólver...

Ela se levantou, tensa.

- Alex disse que ele não estava armado.

- Kipp tinha um revólver, um pequeno revólver de bolso escondido no casaco. Alex estava parado atrás dele. - Blade estudou-a com os olhos apertados. - Quando Kipp puxou o revólver, não tive escolha a não ser atirar nele. Temple, você não pensa que eu matei seu irmão a sangue-frio, não é?

- Eu... - ela olhou para baixo em direção ao seu peito liso de bronze. - Lembro que Shawano também não estava armado.

Colocando um dedo sob o queixo dela, ele levantou-o.

- Não. Meu pai não estava armado, mas Kipp estava.

- Acredito em você - sussurrou Temple. - E Sorrel também acreditará, quando contarmos a ela o que realmente aconteceu.

- Por que ela iria acreditar? Ela não me conhece. Ela olhou para mim hoje como se eu fosse um estranho. Depois de cinco anos acho que é isso que sou para ela.

- Mas não podemos deixá-la pensar que você é um assassino.

- Então diga a ela, se quiser. Talvez não faça sentido para você, Temple, mas quero deixar o passado morrer. Estou cansado da guerra, da matança, do ódio. Finalmente está tudo terminado, e quero deixar isso assim. - Ele pegou um cacho de seus longos cabelos negros e brincou com ele distraidamente.

- Sim, a guerra terminou finalmente.

- Kipp está morto. Talvez a rixa tenha acabado para nós também.

- Você acha?-perguntou num tom esperançoso. - E Alex?

- Por mim está terminado - disse Blade.

- Espero que Alex sinta da mesma forma. - Mas Temple estava cética. - Seria um alívio para todos nós.

- Seria, de verdade-disse Blade, terminando num profundo suspiro. - Como você, odiaria que Lije tivesse de enfrentar isso depois que eu partir.

Algo em sua voz fez Temple estremecer. Imediatamente ela procurou aliviar o momento, brincando.

- Partir? Aonde você pensa que vai agora?

- A lugar nenhum - disse ele. - A lugar nenhum mesmo. Estou em casa, Temple. Finalmente voltei para casa. E, desta vez, prometo que não vou deixar você de novo.

- Não. - Ela apertou a mão contra os lábios dele. - Não faça promessas. Você está aqui agora, e é isso que importa.

- Amo você - disse ele, puxando-a para beijá-la.

Grand View Nação cherokee Março de 1867

Lá fora o sol brilhava num céu de cristal azul e o ar estava morno com a primavera. Dentro da casa, a multidão de convidados movia-se por todos os lados, de um cómodo para outro, as vozes transbordando por toda a casa enquanto riam, conversavam e parabenizavam os noivos.

- Susannah é uma noiva tão bonita, não é? - Eliza sorria, orgulhosa da filha.

- É mesmo.

Lije bebericava seu ponche e olhava na direção dos recém-casados, mas a lembrança de Diane parada ao lado de Susannah durante a cerimónia continuava a persegui-lo. Ela usava um vestido azul da cor do céu, que acentuava a sua cintura fina e a delicadeza de porcelana de sua pele.

- A cerimónia foi maravilhosa - disse Eliza, suspirando. Quisera que Will estivesse aqui.

- Ele teria gostado de Rans.

- Sim. - Ela iluminou-se ao pensar nisso. - Sei que minha opinião não vale muito, mas aprovo sua escolha de marido.

Lije simplesmente concordou e tomou um outro gole do ponche, sem ao menos prová-lo. O incessante borburinho de vozes, a multidão de convidados e o esforço de ter que manter uma conversa educada o aborreciam.

- Que bom ter vindo tanta gente - Eliza comentou. - Pena Jed e Diane não terem chegado mais cedo para que pudéssemos conversar antes do casamento. Já falou com ela?

Lije sentiu seu olhar especulador e olhou para o copo.

- Não. Não temos nada para conversar.

Ele virou o ponche e desejou que fosse uísque. Ponche não aliviaria a tensão que se revolvia dentro dele como uma cobra.

- Como sabe disso, se não conversou com ela?

- Não se intrometa, Eliza - quase com hostilidade, ele colocou o copo vazio na mesa de refrescos. - Se me der licença, creio que vou sair e tomar um pouco de ar.

A saída mais próxima era pela porta da frente. Lije dirigiu-se para ela, desviando-se dos altos vasos de flores amarelas espalhados pelo vestíbulo e da multidão que se comprimia, respondendo sem parar àqueles que falavam com ele. Lá fora, a impaciência empurrou-o para o fim da varanda. Dali ele podia ver a coleção de charretes e carruagens que obstruíam a entrada.

Afrouxou o nó da gravata de seda de listras e desabotoou o botão de cima da gola da camisa que lhe apertava o pescoço. Tirando um charuto do bolso, acendeu-o, depois encostou o ombro na pilastra, olhando indiferente através do gramado.

O tagarelar de vozes e as risadas de dentro da casa transbordavam até a varanda. Lije bloqueou tudo, não querendo reconhecer o som da voz de Diane inadvertidamente. Uma brisa suave como um suspiro varreu a espiral de fumaça azul de seu charuto e fez a ponta brilhar. Ele perdeu-se contemplando a forma dourada de sua fumaça.

Uma tábua rangeu perto dele, quebrando seu sonho. Lije virou a cabeça rapidamente e viu Diane ali parada, estudando-o. Um intenso desejo correu dentro dele.

Abruptamente, Lije rompeu o contato entre seus olhos e afastou-se da pilastra, virando-se para sair.

- Não sabia que você estava aqui.

- Não estava. - A resposta simples dela, carregada de significado, o fez parar.

- Quando o vi, notei que esta provavelmente seria a única oportunidade de falar com você a sós antes que papai e eu tenhamos de partir.

- O que quer? - Suas próprias necessidades insaciáveis tornavam-no impaciente em relação a ela.

Diane abaixou os olhos. Lije esperou que voltasse a erguê-los, que ela lhe desse um daqueles seus olhares provocadores. Mas ela continuava olhando para baixo, a cabeça ligeiramente inclinada. Naquele momento Diane parecia frágil, vulnerável. Então ela levantou o queixo e olhou-o com uma franqueza que ele não esperava, um orgulho firme mantendo-a tensa.

- Tive esperança de que viesse à loja visitar papai... e a mim - disse ela.

- A nação creek fica fora da minha jurisdição.

- Tulsey Town não é muito longe do rancho de Rans e Susannah. Rans sempre parava na loja para comprar mantimentos quando estava construindo sua cabana. Você poderia vir quando for visitá-los.

- Para que, Diane? De que serviria isso? - desafiou-a. Ela começou a responder, mas depois virou o rosto para olhar

os veículos estacionados na frente da casa. Lije olhou também, mas seu olhar voltou a ser atraído para ela, para o reflexo da luz do sol em seus cabelos. Ela usava uma intricada trança atrás da cabeça, num estilo que acentuava a curva esguia de seu pescoço.

- Não imagina quantas vezes ensaiei isso - começou ela, com um tom tímido na voz. - Ou quantas coisas inteligentes e interessantes pensei em dizer. Agora todas elas parecem tolas e falsas.

Lije apertou o charuto entre os dentes, depois deu uma tragada e esforçou-se para relaxar. O fumo queimou sua língua.

- Então diga em palavras simples - impaciente e aborrecido, jogou o charuto na grama.

- Em palavras simples, quero que tudo dê certo entre nós. Quero que nossas desavenças acabem. Nós nos conhecemos há tanto tempo, desde que éramos crianças...

- Não posso ser seu amigo, Diane. Já passamos dessa fase há muito tempo.

- Eu sei. Mas seguramente podemos colocar o passado atrás de nós.

A cadência desigual de cascos de cavalos soava na tarde, quando surgiram dois cavaleiros vindo em direção à casa. Lije estava concentrado em Diane.

- O passado sempre estará conosco - disse ele. - Não pode ser mudado.

- Mas a forma como o olhamos pode ser mudada - insistiu Diane. - Nós podemos mudar. Eu mudei. Agora o compreendo muito mais do que...

A porta da frente abriu-se, distraindo Lije. Sorrel apareceu correndo na varanda, depois mudou o passo e continuou caminhando como uma mocinha madura de quatorze anos. Mas sua expressão era a de uma criança borbulhando de excitação. A atenção de Lije imediatamente voltou-se para os cavaleiros desmontando. Ele não tinha uma visão clara de seus rostos, mas apostava que um deles era Alex.

- Lije, olhe para mim - disse Diane, com um arroubo de frustração na voz. - Precisamos conversar.

- Agora não. - Ele interrompeu-a.

Ela começou a discutir, mas notou a forma com que ele colocou a mão em seu casaco, procurando sentir seu revólver no coldre. Só que ele não estava usando um...

- O que foi? O que há de errado?

Olhando sobre o ombro, ela viu Sorrel com dois homens.

- É Alex, não é? Acha que ele está aqui para causar problemas, não acha? - adivinhou Diane, sentindo o perigo.

- Ele é o problema-Lije segurou-a pelo braço e virou-a em direção à porta da frente. - Vá lá dentro e diga a papai que Alex acabou de chegar.

Diane dirigiu-se rapidamente para a casa, enquanto ele seguia para a entrada da frente, onde Sorrel estava com Alex e um homem que Lije não reconheceu.

Alto e magro, o estranho tinha cabelos castanhos e um rosto placidamente torneado. Era plácido demais, pensou Lije, como um rosto esculpido na pedra, sem expressão. Mas os olhos do homem não paravam de se mover, olhando para cá e para lá, examinando a todos - como um animal quando entra num território novo e estranho. Seu casaco marrom escuro estava aberto, um lado puxado para trás, revelando um revólver no coldre amarrado na cintura. No cabo do revólver estavam gravadas as iniciais MB.

As iniciais imediatamente intrigaram Lije. Ele tinha ouvido algo, lido algo sobre aquilo. Quando ou onde, não conseguia lembrar-se.

- Olá, primo Lije - cumprimentou-o Alex com um sorriso aberto, mas os olhos cínicos. - Como está?

Lije não perdeu tempo com cortesias.

- O que o traz aqui, Alex?

- Ele veio para o casamento de Susannah - apressou-se a dizer Sorrel, defendendo-o com a expressão determinada e desafiadora.

- É isso mesmo - Alex sorriu de novo. - Mas Sorrel disse que a cerimónia já terminou. Acho que isso significa que teremos de nos satisfazer parabenizando a noiva.

- Susannah vai querer saber que está aqui. Por que não vai dizer a ela, Sorrel? - sugeriu Lije, sem deixar a atenção desviar-se de Alex ou de seu companheiro. A jovem hesitou.

- Vai entrar, não vai, Alex?

- Daqui a pouco - Lije respondeu por ele.

- Está certo. vou dizer a ela. - com o farfalhar suave de seu vestido de organdi, Sorrel caminhou em direção à casa.

Alex inclinou a cabeça para o lado, o olhar cínico e desafiador.

- Há algo que deseja me dizer, primo Lije?

- Quem é o seu amigo?

- Não o apresentei? Mel Brandon, corretor de gado. As peças finalmente se encaixavam.

- Brandon, você disse? Engraçado. Outro dia vi um cartaz de "procura-se" sobre um homem chamado Morgan Bennet, um conhecido ladrão de gado. Ele está sendo procurado no Missouri por roubar um banco e matar um dos caixas. E combina com a descrição de seu amigo - até as iniciais no cabo do revólver.

- É mesmo? - O homem sorriu, despreocupado. Alex sacudiu a cabeça, fingindo surpresa.

- Isso é o que se chama de estranha coincidência.

- De acordo com o cartaz, mais dois homens ajudaram esse tal Morgan Bennet a roubar o banco. As descrições eram vagas prosseguiu Lije. - Um deles poderia ser você, Alex?

Alex riu, os olhos tornando-se desafiadores.

- E se foi, qual é o problema, primo? O banco roubado está no Missouri. Não pode prender-me aqui por isso. Não infringi nenhuma lei daqui da nação. Portanto você não pode me tocar.

- Não, por lei não posso - admitiu Lije. - Mas posso observar que você e seu amigo estão vestidos demais para a festa. Por que não deixam seus revólveres nas selas? Não gostaria que se sentissem deslocados aqui.

Alex hesitou, mas depois, contra a vontade, desabotoou o cinto do revólver. Em seguida, Bennet, aliás Brandon, fez o mesmo. Quandoas armas dos dois estavam guardadas dentro das sacolas de seus alforjes, eles tornaram a olhar para Lije.

- Está satisfeito agora, primo? - Alex riu. - Sorrel deve estar imaginando o que aconteceu comigo.

- Fique longe dela, Alex. Ele riu mais uma vez.

- O que posso fazer? Ela gosta de mim. Ficaria magoada se a ignorasse. Não posso ser cruel assim.

- Você não se importa com o que ela sente.

- Ela nunca vai acreditar nisso. - Ele sorriu e olhou para Bennet. - Está pronto? O homem concordou.- Então vamos para a festa. Vá na frente para me indicar o caminho, primo.

Lije sacudiu a cabeça e se afastou.

- Vá você primeiro, Alex. Prefiro que siga na minha frente. Por um instante a máscara caiu e Alex dirigiu-lhe um olhar

maldoso, uma expressão que lembrava demais Kipp. Naquele momento, Lije teve certeza de que Alex não tinha intenção de deixar o passado morrer.

Por pura maldade Alex ficou mais tempo do que planejara, misturando-se à multidão e conversando com todos, rindo com uma ou outra pessoa. Estava se divertindo com a tensão de Lije e Blade, que não o perdiam de vista, e com o criado negro de Blade, que os rondava como uma sombra do meio-dia.

Jed Parmnelee e sua filha Diane tinham acabado de sair quando Alex finalmente se aproximou de Sorrel.

- Temos de ir agora. Vai me acompanhar até meu cavalo?

- Claro que vou. - Ela sorriu com prazer.

Alex ofereceu-lhe o braço e olhou em volta, deliberadamente capturando o olhar de Lije quando Sorrel lhe deu o braço. Ele quase riu alto ao ver a expressão tensa do primo.

Quando chegaram junto aos cavalos, Sorrel levou a sério o papel de anfitriã e virou-se para o companheiro de Alex.

- Foi um prazer conhecê-lo, sr. Brandon.

- O prazer foi meu, senhorita. - Ele acenou e desamarrou as rédeas de seu cavalo.

Olhando para Alex mais uma vez, ela desvencilhou-se do braço dele e puxou-o para o lado.

- Antes de ir, quero lhe contar algo-sussurrou ela, olhando rapidamente para Bennet, e demonstrando que não queria que ele a ouvisse.

- Claro. - Alex deu mais dois passos para o lado junto com ela e sorriu quando percebeu Lije olhando da varanda. - O que é?

- Foi algo que minha mãe disse... sobre quando tio Kipp morreu.

- O que foi? - Ele parou, sorrindo.

- Ela disse que tio Kipp tinha um revólver escondido no casaco. Meu pai atirou nele quando Kipp sacou seu revólver. Ela disse que você não poderia ver a arma porque estava parado atrás de tio Kipp.

Um pequeno estremecimento de choque passou por Alex quando ele se lembrou do revólver de bolso que seu pai sempre carregava. Havia se esquecido dele. Então fora aquilo que acontecera?

Seu pai teria puxado o revólver de bolso?

Ele olhou rapidamente para Sorrel.

- Não acredita nisso, acredita?

- Poderia ter acontecido assim, não poderia?

- Claro que poderia, mas não aconteceu. - Ele deliberadamente descartou a ideia.-Vi tudo o que aconteceu, e meu pai não tinha um revólver. Blade inventou essa história para que sua mãe não soubesse que ele o assassinou a sangue-frio.

- Então... não é verdade?

- Eu disse que estava lá. Vi tudo - Alex parou e lançou-lhe um olhar magoado e triste. - Não há nada que eu possa fazer para provar isso. E ninguém acredita em minha palavra. Nem mesmo você.

Ele virou-se e andou até a égua.

- Alex, espere!-Sorrel correu atrás dele e pegou seu braço.

- Eu acredito em você.

- Espero que sim. - Ele lhe dirigiu um longo e triste olhar

- Um homem fica solitário quando não tem ninguém que se importe com ele ou acredite nele.

- Eu me importo com você, Alex. Pode contar sempre comigo.

Ele estendeu a mão e passou os dedos na corrente dourada presa ao pescoço dela.

- Cuide bem de si e continue usando isso.

- Pode deixar - prometeu Sorrel dando um passo para trás quando ele pegou as rédeas.-Aonde vai? Quando o verei de novo?

- Não sei, mas se precisar de mim, contate o velho Joe Washburn em Salina. Ele saberá me encontrar onde eu estiver.

- Sr. Washburn, em Salina - repetiu ela para fixar na memória.

- Esse é o nosso segredo, agora. Não conte a ninguém. Ele subiu na égua.

- Não contarei. Pode confiar em mim, Alex.

Lije aguardava na varanda, com crescente impaciência. A única coisa que o impediu de expulsar Alex da casa foi a certeza de que ele estava deliberadamente atrasando sua partida somente para irritá-lo.

Por fim Alex virou a égua e partiu. Sorrel acenou-lhe, depois virou-se e olhou de volta para a casa. Quando viu Lije, seus passos hesitaram um pouco. Depois, com o olhar decidido, ela entrou na varanda.

- O que está fazendo aqui? - Ela desafiou-o.

- Mantendo um olho em você - o que era meia verdade. O que Alex tinha a dizer? Vocês dois conversaram bastante.

- Era pessoal. Não tinha nada a ver com você.

- Sorrel, tenha cuidado com Alex. Ele não é o tipo de homem que você acha que é.

- Você não o conhece tanto quanto eu.

- Mas posso saber mais sobre ele do que você - retrucou Lije. - Ele está viajando em má companhia, Sorrel. O nome verdadeiro daquele homem que está com ele, que diz se chamar Brandon, é Morgan Bennet, procurado no Missouri por roubar um banco e matar um caixa. Tinha dois outros homens com ele quando assaltou aquele banco. Um deles foi descrito como alto e magro, de cabelos negros e olhos escuros.

- Está tentando dizer que era Alex, não é? - acusou ela. Mas essa descrição também poderia corresponder a um monte de gente. Você não conseguiria fazer-me acreditar que era Alex. Ele não faria isso.

Lije atacou, irritado pela fé cega que ela mantinha no primo.

- Que tipo de trabalho ele faz, Sorrel? Onde consegue seu dinheiro? Estava usando uma camisa e um casaco novos, e tinha uma sela nova na égua. Como pagou por isso?

- Provavelmente com o dinheiro que ganhou correndo com Shooting Star - contestou ela, os olhos brilhando de raiva. - Ele não roubou nada.

- Ele está usando você, Sorrel. Está usando você para vingarse do major, tentando jogar você contra ele, contra todos nós. E está rindo de você o tempo todo, sabendo que acredita em tudo que ele diz. Ele não se importa com você.

- Mentira! - enfureceu-se ela. - Alex se importa comigo. Sou a única pessoa em quem ele pode confiar, a única pessoa que acredita nele. Você está inventando isso tudo para deixá-lo mal. Mas é mentira. Mentira!

Ela retirou-se, com raiva. Lije começou a ir atrás dela, mas depois parou e suspirou, frustrado e desgostoso. Sorrel estava na idade rebelde de contestar as opiniões dos mais velhos e tentando afirmar-se. Quanto mais se falasse contra Alex, mais ele se tornaria um mártir aos olhos dela. Ao invés de diminuir Alex, ele estava elevando-o, transformando-o numa figura romântica, como se ele fosse um ser terrivelmente incompreendido por todo mundo, menos Sorrel.

Blade se aproximou.

- Alex já foi?

- Há poucos minutos.

Lije olhou para Sorrel. Ela ainda estava na varanda, numa pose desafiante e orgulhosa, a mão tocando a medalha em seu pescoço. Lije xingou baixinho quando viu aquilo.

- O que há de errado? - Blade olhava com curiosidade para Sorrel e Lije.

- Tentei avisar a Sorrel sobre Alex, mas ela não ouve-disse ele, contando a Blade o que sabia e suspeitava, e sobre sua confrontação com Alex e o bandido Bennet.

- E ela não acreditou em você.

- Ela me chamou de mentiroso. Não sei como chegar a ela. Está tão aborrecida e raivosa agora... - ele sacudiu a cabeça, desanimado.

- Vou falar com ela.

- Boa sorte - desejou Lije com ceticismo, e voltou para dentro.

Sorrel continuou a olhar para a estrada, mas Blade sentiu que ela estava consciente de sua aproximação. Quando se aproximou, ela deu-lhe um olhar de banda. A faísca de mau humor em seus olhos lembrava tanto Temple que ele quase sorriu.

- Acho que vai me dizer que homem terrível e diabólico Alex é. - A voz baixa dela vibrava de raiva.

- Lije disse que está aborrecida. Vai ter de desculpar seu irmão. Ele ainda tende a vê-la como sua irmãzinha, alguém que precisa cuidar e proteger. Não se dá conta de que você fará quinze anos daqui a poucos meses, e que já está uma moça crescida e inteligente o bastante para ver as coisas por si mesma.

- Está me elogiando só porque acha que assim posso mudar de ideia sobre Alex - disse ela.

Desta vez Blade não escondeu o sorriso.

- Estava falando a verdade. Mas você provou que é inteligente o bastante para reconhecer isso.

- Como Alex, suponho-disse ela com um tom de sarcasmo.

- Não estou aqui para falar de Alex.

- Não? - Ela virou-se e levantou uma sobrancelha numa demonstração de ceticismo do qual Temple teria se orgulhado. Então, por que está aqui?

- Dois amigos de Rans da brigada do Texas trouxeram um banjo e um violino. Sua avó está limpando o piano, enquanto os outros estão preparando um espaço na sala de visitas para as pessoas dançarem. - À medida que ele falava, as primeiras notas vieram da casa. - Quanto a mim, gostaria de convidar uma certa linda jovem para dançar comigo.-Ele virou-se e estendeu-lhe o braço.

- Você me daria a honra de ser minha parceira?

Sorrel olhou para ele, desconfiada.

- Quer mesmo dançar comigo?

- Ah, se quero.

Ele deu o braço a ela. Nos últimos anos tivera poucas chances de ser um pai para sua filha. Tinha a certeza de que se tivesse estado por perto para dar-lhe a atenção de que necessitava, ela não teria se voltado para Alex. Ele queria compensar isso.

- Já posso ouvir as pessoas sussurrando umas para as outras: "Quem é aquela bela jovem dançando com Blade Stuart?" E alguém dirá: "É a filha dele, Sorrel." Será um dos momentos mais orgulhosos de minha vida.

- Está dizendo isso para me fazer sentir melhor.-Mas havia um brilho de prazer nos olhos dela.

- Não, isso me faz sentir bem - disse ele, parando por um momento. - Vamos?

- Muito bem - disse ela, empertigando-se. - Mas fique sabendo que ainda não acredito nessas coisas todas que Lije disse sobre Alex.

Blade jogou a cabeça para trás e riu.

Rancho Stuart Lassiter no rio Verdigris Nação cherokee Junho de 1867

O líquido no balde tremeluzia um verde leve e iridescente. Lije tirou um pouco com seus dedos, sentindo sua lustrosidade, e jogou-o de volta no balde. Cheirou-o, tocou-o com a ponta da língua e olhou para Rans.

- Lembre-me de não me deixar mais tirar dois dias para ajudá-lo. Estou pouco ligando para sua falta de pessoal, Rans.

- Não veio para me ajudar. Veio por causa de um rumor sem fundamento a respeito da presença de Alex aqui.

- Mas fiquei para ajudá-lo - Lije pegou um pano e limpou o líquido pegajoso dos dedos. - É óleo, sem dúvida.

- Que maravilha. Isso é maravilhoso - resmungou Rans. Cavamos mais fundo para aumentar o suprimento de água e veja o que acontece. Diga-me, que diabo devo fazer com isso?

- Poderia fazer o que os caras da Pensilvânia fizeram depois da guerra. Eles tiraram esse óleo, separaram a água salgada, colocaram o resto em recipientes e venderam como combustível de lâmpadas ou parasiticida de gado.

- Não pode estar falando sério. Sabe quanto tempo isso levaria? - perguntou Rans, contrariado.

- Eu não estava falando sério.

- Espero que não - retrucou Rans, suspirando e sacudindo a cabeça. - Acho que o melhor mesmo é rir, já que não vamos poder beber isso.

Lije cutucou o balde com o pé.

- Poderia encher umas duas barricas e usá-las como combustível e graxa de carroça.

- Posso fazer isso, mas só depois de furar um novo poço para encontrar água.

Um cavalo relinchou. Seu apelo foi rapidamente respondido por um segundo cavalo em algum lugar no prado. Lije franziu o cenho e olhou em volta, tentando localizar o segundo cavalo.

Ao sul, não mais que a um quilómetro de distância, uma charrete atravessava a grama alta. Um cavalo selado estava amarrado atrás dela, e dois homens montados acompanhavam o trajeto da carroça.

- Parece que você tem visitantes - anunciou Lije. Os dois olharam a pequena charrete que se aproximava.

- Não é Blade? - indagou Rans.

Lije concordou, sua atenção fixando-se no segundo homem com um braço só.

- Jed Parmelee está com ele.

Por simples lógica, deduziu que Diane se encontrava na charrete. Um arrepio de nervoso atravessou-o como um raio.

Quando a charrete parou perto deles, Deu segurava as rédeas com Diane ao seu lado. Rans desceu para cumprimentá-los. Lije sentiu o mesmo impulso, mas resistiu e manteve-se a distância.

- Como vai, Diane? - Rans deu um sorriso. - Susannah ficará feliz em revê-la. Ela sente falta de companhia feminina. Acho que é por isso que está tão ansiosa para irmos amanhã à formatura de Sorrel.

- Não é de surpreender. Para uma mulher pode ser solitário aqui-disse Diane, olhando para Lije com uma pergunta nos olhos.

- Depois da nossa conversa no casamento de Susannah, pensei que viesse nos visitar.

- Tenho estado muito ocupado.

Ele não disse que várias vezes tinha sido tentado a fazer isso. Pelo menos uma dúzia de vezes teve vontade de selar o cavalo e ir até Tulsey Town. Mas a fria realidade sempre prevalecera. com os nervos à flor da pele, Lije virou-se para o pai dela.

- Que prazer revê-lo, Jed.

- Digo-lhe o mesmo, Lije - retribuiu Jed, descendo do cavalo.

Rans foi cumprimentá-lo.

- Quem está cuidando da loja enquanto vocês dois estão fora?

- Meu antigo criado Amos Johnson veio para trabalhar conosco. Ele e a esposa estão cuidando das coisas.

- No caminho, parei no armazém e convenci Jed e Diane a virem comigo.

A sela de couro rangeu quando Blade desmontou.

- Achei que Susannah podia estar querendo companhia. Assim poderemos viajar juntos amanhã. - Virando-se para Lije, perguntou: - O que descobriu sobre Alex?

- Ninguém o viu por aqui.

- Eu esperava por isso-disse ele.-Como está indo o novo poço?

- Não está. Encontramos uma fonte de óleo - Rans olhou com desgosto para os baldes de óleo cru. - Terei de cavar outro poço.

- Minhas notícias também não são muito melhores - Blade parou e olhou para a carroça. - Deu, por que não leva Diane para dentro? Diga a Susannah que já estamos indo.

Lije sentiu o rápido olhar de Diane antes que Deu sacudisse as rédeas e a charrete se movimentou. Quando ela passou por ele, ele se virou e olhou por mais um segundo enquanto a charrete chacoalhava em direção à casa de madeira assentada sozinha na imensidão do prado vazio.

- Quais são as novidades? - perguntou Rans, atraindo a atenção de Lije de volta para Blade.

- Mataram o velho Johnny Scott três dias atrás. Bateram nele até morrer.

Lije perguntou, surpreso:

- Johnny Scott, o velho vendedor de uísque? Antes da guerra persegui aquele homem pelo menos uma dezena de vezes. Era um velho patife. Nunca consegui chegar perto dele - Lije teve um momento de arrependimento pela morte do homem. - Sempre achei que ele morreria bebendo seu próprio uísque ruim. Acho que alguém estava atrás do seu ouro.

- Que ouro?

Rans olhou de Blade para Lije, que explicou:

- Scott tinha uma cabana bem do outro lado da fronteira, no Arkansas, perto de Dutch Mills. Se dermos crédito a todas as histórias, ele deve ter enterrado o ouro que fez contrabandeando uísque em algum lugar nas matas atrás de sua cabana. - Seu olhar fixou-se em Blade. - Por que tenho a sensação de que a morte de Scott tem algo a ver com Alex?

- Um vizinho de Scott viu dois homens passarem por sua casa cavalgando por volta do anoitecer. Ele não conseguiu ver direito os homens, mas um deles montava uma égua negra com uma estrela branca. O velho foi encontrado morto na manhã seguinte, e pistas frescas de dois cavalos foram encontradas em seu quintal.

- E o ouro foi roubado? Eles sabem? - perguntou Rans.

- Havia buracos cavados no meio do mato, e alguns potes de ferro enferrujados foram encontrados por perto. Vazios, é claro.

- Então toda essa história sobre ouro enterrado deve ter sido verdade - deduziu Lije. - Sorrel sabe disso?

- Sabe, mas está convencida de que Alex não teve nada a ver com isso. De acordo com ela, deve haver uma dúzia de éguas negras com estrelas brancas neste território. Não há prova de que o vizinho, tenha visto a égua de Alex.

- Mas se houvesse provas ela também não acreditaria - observou Lije, desgostoso.

- Não - concordou Blade. - Alex deve tê-la enfeitiçado. A única maneira de quebrar isso é mantê-la longe dele. E não quero ele perto dela de novo.

- Isso pode não ser muito inteligente - alertou Lije.

- Inteligente ou não, não confio nele. O cara é um ladrão e um assassino, e não o quero perto de minha filha.

Lije não podia contestar isso, mas Sorrel poderia. E ele sabia disso.

- Não vamos resolver nenhum problema parados aqui disse Rans finalmente. - Vamos entrar e nos preparar para o jantar.

- Vá na frente - Lije sabia como a casa era pequena, e seria ainda menor com Diane dentro dela. - Tenho que terminar algumas coisas aqui.

Ele ficou lá fora enquanto pôde, e passou mais um bom tempo lavando as mãos e o rosto, enquanto ouvia o som ocasional da voz dela. Jogou água fria no rosto uma última vez, depois secou-o.

Quando finalmente entrou na casa todos já se encontravam sentados em volta da mesa. Duas cadeiras estavam vazias, uma ao lado de Diane e outra do outro lado de Susannah. Lije fez a longa caminhada até a última. Seus músculos ficaram tensos, e seus nervos à flor da pele.

Na mesa estavam um belo rosbife, uma cesta de pão feito em casa, uma tigela de canjica, cebolas assadas,vagens frescas da horta de Susannah, picles de beterraba, milho cozido e jarras de mel, raiz-forte e manteiga. Lije encheu seu prato, o tinir dos copos e dos pratos irritando seus nervos. Deu a primeira garfada nas vagens.

- Deixe-me cortar isso para você - Diane disse baixinho do outro lado da mesa.

Ele levantou os olhos e viu Diane calmamente cortando a carne para seu pai. Sem se envergonhar, Jed Parmelee recostou-se na cadeira para dar lugar a ela.

- Por mais inútil que esse braço seja, tem hora em que desejaria que o tivessem serrado fora. Nunca pensei que o consideraria dispensável, mas foi isso que se tornou. Principalmente no verão, quando fica quente. Se amarrá-lo do lado como geralmente faço, o calor me dá alergia. Se colocá-lo numa tipóia, o pano fica se esfregando no meu pescoço até deixá-lo em carne viva. E se deixá-lo pendurado, ele me atrapalha. - Tudo isso foi dito com mais humor do que rancor.

Diane reprovou-o.

- Reclama, reclama, é só o que sabe fazer. Jed riu quando ela lhe devolveu o garfo.

- Aqui está - disse ela, pegando seu garfo. - Na verdade, sempre me surpreendo em ver como papai está se adaptando ao uso de apenas um braço. Acreditem-me, ele pode fazer mais coisas com um braço do que a maioria das pessoas com dois. Claro, seu braço direito é tão forte quanto dois.

- Sei o que quer dizer - disse Rans, e começou a contar uma história sobre um amigo do Texas que perdera uma perna na guerra e ficara cego de um olho. - Deviam vê-lo trabalhando com o gado. Ainda não sei como ele pode ficar sentado na sela.

A comida estava sem gosto na boca de Lije. Mudanças. Diane tinha falado sobre mudar, mas uma coisa nunca mudaria: Jed Parmelee jamais recuperaria o uso do braço. Serviria sempre como uma lembrança do quão longe suas crenças os haviam levado.

Ele comeu a comida em seu prato, e tomou seu café. No instante em que Susannah se levantou para tirar a mesa, Lije desculpou-se e foi até a varanda.

Lá ele parou e respirou profundamente, os nervos trémulos da tensão da última hora. Quando ouviu o rangido da dobradiça da porta, acompanhado por passos leves, enrijeceu-se e meteu o chapéu na cabeça, andando em direção aos passos.

- Lije, espere.

O som da voz de Diane era como um laço atirado em volta de seu pescoço, puxando-o para trás. Ele fixou o olhar no prado verde que se estendia até o horizonte, sua vastidão reduzida diante do céu imenso.

Ela saiu de trás dele.

- Espero que possamos conversar. Tenso, Lije voltou-se e encontrou seu olhar.

- Sobre o quê?

- Sobre nós - respondeu ela depressa.

- Não existe nós, Diane. Não mais. Ela abaixou os olhos.

- Isso é muito definitivo.

- O que espera que eu diga?

- Não sei - admitiu ela. - Eu... recebi uma carta de Adam Clark na semana passada. Ele foi médico do forte durante a guerra. Teve de voltar a Abilene para assumir o consultório do pai. Pediu-me em casamento.

- Parabéns - disse ele, descendo os degraus da varanda. Diane seguiu-o e parou diante dele para bloquear-lhe o caminho. Ela levantou a cabeça. Seus olhos brilhavam com determinação.

A combinação acentuava o orgulho e a força de vontade que Lije sempre admirara nela.

- Ainda não aceitei a proposta, Lije-disse ela, desafiando-o. -Já pensou sobre o que lhe disse no dia do casamento de Susannah?

Ele deu um risinho sem graça.

- Já pensei, mas minha opinião não mudou. Não posso ser seu amigo. Já lhe disse antes; já passamos desse ponto.

- Sei disso. Mas seria um começo, Lije.

Ele sacudiu a cabeça, visualizando o inferno que era estar com ela e não tomá-la nos braços, vê-la sorrir e não beijá-la.

- Já se esqueceu de que seu pai ficou com o braço aleijado numa batalha contra o meu regimento, Diane? Esqueceu o quanto nos distanciamos desde que a guerra começou?

- Não esqueci, mas a guerra terminou, Lije.

- Sim, a guerra terminou - concordou. - Mas a briga não, Diane. Alex ainda está por aí.

Impaciência e desdém luziram nos olhos dela por um instante, mas logo depois ela se controlou.

- Sei que ainda vê Alex como uma ameaça. Sei que ele se tornou um criminoso perigoso, capaz de tudo.

Foi a breve hesitação dela, a escolha cuidadosa de palavras, que disseram a Lije que ela não acreditava - que não acreditava que a velha rixa ainda continuava. Doía-lhe o fato de ela não compreender, de não aceitar isto como verdade.

Mas talvez fosse melhor assim. Ele pensou em sua mãe e nos anos de agonia que ela tinha passado, temendo pela segurança de seu pai. Ele não sabia o quanto a luta com Alex poderia durar. E não queria que Diane sofresse a angústia que sua mãe sofrera.

- Lije? - indagou Diane, confusa por seu silêncio prolongado. - Eu disse algo errado?

- Não, você está absolutamente certa, Diane. Alex é capaz de qualquer coisa.

- Então...

- Talvez você deva aceitar a proposta de casamento do doutor. Por enquanto não posso resolver as coisas entre nós. Tenho muitos negócios a serem resolvidos. Muita coisa, anda acontecendo. Não tenho tempo para descobrir se ainda há algo para salvarmos.

- Não para salvar-corrigiu ela.-Algo para construir. Não faço por menos.

- É melhor verificar se seu pai precisa de você - disse ele.

- Tenho trabalho a fazer.

Enquanto ele se afastava, Diane olhou-o, confusa, ferida e um pouco assustada. Sabia que poderia ter perdido a última chance de reconstruir seu relacionamento com Lije. Mas ainda havia a formatura de Sorrel. Ela esperaria, antes de tomar uma decisão com relação ao seu futuro.

Grana View Nação cherokee junho de 1867

Lije conduziu a carruagem até a frente da casa e desceu. O sol estava alto no céu de puro azul e o ar tinha aquela sensação quente e preguiçosa de verão. Nas árvores, uma cambaxirra gorjeava num arroubo musical.

Deu aproximou-se na charrete.

- Sr. Lije, pode dizer a Phoebe que estou aqui esperando por ela?

- Certo - Lije caminhou em direção à casa. Eliza saiu do saguão, viu Lije e parou.

- A carruagem já está aí na frente?

- Pronta e esperando-confirmou Lije. - Onde está Phoebe? Deu está lá fora esperando por ela.

- Vou dizer a ela.

Eliza cruzou o corredor de trás e foi para a despensa dos criados. Phoebe estava lá.

- Deu está aí-disse Eliza, colocando uma luva marfim. Está pronta?

- Sim, senhora - Phoebe prendeu as pontas da toalha quadriculada em volta da cesta grande, depois pegou a alça de madeira com ambas as mãos.

- Como está bonita, Phoebe. Esse chapéu é novo?

Eliza admirou o chapéu de abas curtas sobre os cabelos de Phoebe. Um buquê de flores azuis da mesma cor do vestido adornava a aba.

- É, sim - Phoebe ajeitou-se, toda orgulhosa. - Deu comprou-o para mim. Disse que hoje seria uma ocasião especial, por isso deveria usar algo especial.

- Concordo plenamente - Eliza ajeitou uma das luvas nos dedos, depois pôs a outra. - Diga a Ike que assim que a formatura de Sorrel terminar, Nathan e eu iremos diretamente para a escola dele. Devemos chegar lá bem antes da cerimónia.

- Ele vai ficar tão contente, dona Eliza.

- Não tanto quanto eu. É uma coisa maravilhosa o que ele está fazendo, dedicando a escola a Shadrach. Como sua ex-professora, não perderia a cerimónia por nada - Eliza sorriu orgulhosamente, consciente das lágrimas que ameaçavam encher seus olhos.

- Ike disse que só está fazendo o sonho do tio tornar-se realidade. Shadrach sempre quis construir uma escola para crianças negras. É justo que ela seja dedicada à sua memória.

- Sem dúvida - concordou Eliza com firmeza, logo acrescentando rapidamente: - Não deixe Deu esperando. Veremos vocês na escola.

Eliza afastou-se, rememorando sua vida, os pensamentos cheios de mil lembranças. Mas não havia tempo para pensar no passado. Primeiro teria de ir à formatura de Sorrel. Ela foi direto para a sala de visitas, onde já estavam os outros: Blade, o reverendo Cole, Jed Parmelee, Diane e Lije, Susannah e Rans.

- O que estamos esperando? - perguntou Eliza, parada na porta.

- Temple e Sorrel ainda não estão prontas - explicou Susannah.

- Por que estão demorando tanto? Estamos atrasadas - Eliza virou-se para a escada com uma expressão impaciente.

Sorrel surgiu no topo da escada curva, em seu vestido de formatura, com uma faixa lilás em volta da cintura, os cabelos ruivos presos por uma fita da mesma cor. Temple estava atrás dela.

- Lá vêm elas - disse Eliza para os outros. - Ótimo, estamos todos prontos.

Diane aproximou-se da porta, parou ao lado de Eliza e olhou para cima.

- Está linda, Sorrel.

- Está, não está?

Enquanto olhava a menina a emoção apossou-se novamente de Eliza. Não era uma menina, era uma moça. Ela descia as escadas, movendo-se com uma graça e sofisticação que lembravam Temple. Algo brilhava naquele vestido. O brilho atraiu o olhar de Eliza.

- O que está usando, Sorrel?

Ela aproximou-se da escada para olhar mais de perto e ficou surpresa ao reconhecer o broche em forma de espada com pérolas e uma ametista no cabo.

- O broche! - Os olhos de Eliza nublaram, quando ela dirigiu seu olhar de Sorrel para Temple. - Você deu o broche de presente para ela.

- Queria que fosse dela, e hoje parece ser o dia perfeito para dá-lo.

Estendendo a mão, Temple passou a mão carinhosamente sobre as tranças ruivas da filha. Era um carinho de mãe, um rápido abraço na criança que se transformara em mulher.

Blade aproximou-se da escada.

- Aquele broche está na família Gordon há mais de cem anos. Deve estar orgulhosa em recebê-lo de sua mãe.

- E estou - respondeu Sorrel.

Mas Lije notou que era a medalha de ouro em volta de seu pescoço que ela acariciava. A medalha que Alex dera a ela. Lije fez um ar de irritação, quando ouviu passos na varanda. A porta da frente se abriu, e Lije enrijiceu-se.

- Alex, você veio! - Sorrel lançou-se em direção ao primo. Blade agarrou-a pelo braço antes que ela pudesse passar por

ele.

- O que está fazendo aqui, Alex? - indagou Lije passando por Diane para ficar perto do pai.

- Largue meu braço! Está me machucando - protestou Sorrel.

Blade ignorou sua tentativa de soltar-se.

- Não respondeu à minha pergunta, Alex.

- Estou aqui para a formatura de Sorrel. - Alex sorria para ele, a satisfação e a confiança brilhando em seus olhos negros. Ela me convidou.

- Sorrel cometeu um erro. Você não é bem-vindo aqui avisou Lije.

- Não! - A surpresa e o choque crisparam a expressão de Sorrel. - Pedi a ele para vir.

Blade ignorou-a.

- Vá embora, Alex, e não se aproxime de minha filha de novo. Lije viu a surpresa, a descrença e a raiva no rosto de Alex, uma vermelhidão subindo pelo seu pescoço.

- E não me faça repetir isso de novo - avisou Blade. Alex hesitou por mais um instante, deu um olhar de puro ódio

para Blade, depois virou-se e pegou a maçaneta.

- Não! - gritou Sorrel, mas ele abaixou a cabeça, evitando-a, e saiu pela porta. Num acesso de fúria, ela se virou para Blade.

- Como se atreve a expulsá-lo daqui? É minha formatura. Posso convidar quem eu quiser.

- Menos ele - disse Blade, relaxando a pressão em seu braço.

Ela soltou-se com um safanão.

- Se não deixar Alex ir à minha formatura, então eu também não vou.

- Sorrel, você não está falando sério - Temple foi em direção a ela.

- Estou! Não vou.

- Mas todo mundo está aqui. Jed e Diane vieram de Tulsey...

- Alex também veio de longe, mas ele o mandou embora - Sorrel sacudiu a mão para Blade. - Pode dizer a eles para irem embora também. Não vai haver nenhuma formatura!

- Sorrel... -Temple começou a dizer num tom razoável, mas Sorrel passou por ela e subiu os degraus correndo. Segundos depois, a porta do seu quarto bateu. Depois da gritaria, seguiu-se um pesado silêncio.

- É melhor eu ir falar com ela-Temple olhou para a longa escada.

- Deixe-a sozinha - pediu Blade. - Ela está com muita raiva para ouvir quem quer que seja agora.

- Não acha que ela está falando sério, acha? - murmurou Diane.

Blade deu um longo suspiro e sacudiu a cabeça.

- Para falar a verdade, Diane, não ficaria surpreso se estivesse.

Uma hora depois ficou óbvio que Sorrel não iria sair do quarto, pelo menos não a tempo de participar da formatura. Lije levou Nathan e Eliza para a cerimónia na escola de Ike.

A cerimónia foi simples, assim como a escola de um cómodo, construída com madeira da serraria dos Stuart. Lije ficou lá atrás, olhando Ike receber os parabéns com expressões de sinceridade das famílias negras que enchiam a escola. Ike parecia orgulhoso e um pouco nervoso, mas principalmente ansioso e determinado.

Quando o último convidado foi para a mesa de refrescos, Ike notou Lije parado, olhando para ele. Hesitou por um momento, depois atravessou as longas mesas e os bancos de madeira que serviam de carteiras até aproximar-se dele.

- Estou contente que tenha vindo - disse Ike, um pouco formal e sem jeito.

Lije também sentiu-se sem graça.

- Também estou contente - disse ele. - Sei que foi difícil construir a escola.

Ike olhou em volta.

- Ainda falta muita coisa. Algum dia espero ter carteiras, bancos, um quadro-negro e lousas para todos os meus estudantes. E ainda falta...

- Mas já é um bom começo, Ike...

No instante em que disse essas palavras, Lije notou que se referia a algo além da escola. Via Ike com novos olhos.

- Shadrach estaria orgulhoso da escola. Estaria orgulhoso de você. Agora é dono de seu próprio nariz.

- Sim, senhor, sou mesmo-Ike olhou diretamente nos olhos de Lije, com um brilho de desafio em seus olhos negros.

- Foi uma tremenda de uma resistência o que você e sua companhia fizeram no campo de feno. Muitos homens corajosos morreram naquele dia junto com Shadrach. Estou feliz que não tenha sido um deles.

- Eu também - respondeu Ike, inchando-se de orgulho.

- Algum dia precisamos nos juntar para trocar histórias de guerra. Jamais esquecerei o olhar de seus rapazes atacando do outro lado de Cabin Creek.

Ike respondeu com uma risada:

- Nem eu. O som dos gritos dos rebeldes era o bastante para fazer o sangue congelar. Você estava em Elk Creek quando... - ele parou a pergunta no meio quando sua esposa se aproximou:

- Os Radley já estão indo - disse ela. - Disseram que vão matricular os dois meninos. Talvez queira falar com eles antes que partam.

- Vou em um segundo - disse Ike, virando-se para Lije com uma mistura de arrependimento e incerteza. - Acho que teremos de falar sobre a guerra naquele "algum dia" que você disse.

- vou contar com isso.

Lije hesitou, depois estendeu-lhe a mão. Ike olhou para ela por um segundo, depois apertou-a. Suas mãos se apertaram, pela primeira vez de homem para homem.

Durante a viagem de volta para Grand View, Lije refletiu sobre aquele momento. Tinha ido à inauguração da escola pelo senso de dever, mas descobriu que saíra de lá sentindo-se bem por dentro sobre Ike e sobre si mesmo.

Deixou Eliza e o reverendo Cole em casa e dirigiu-se para o estábulo para guardar a carruagem e os cavalos. Ao voltar para casa, notou que a cortina da janela do quarto de sua irmã estava aberta. Sorrel continuava lá, sem dúvida ainda furiosa com Blade. Sua lealdade a Alex irritava Lije. Desejava poder colocar algum bom senso nela.

Centímetro por centímetro, a luz do sol entrou pela janela e subiu até as paredes. Sorrel estava sentada na cama e tinha o olhar fixo. Cada músculo e cada nervo dela estavam tensos, esperando o sol se pôr. A necessidade de andar pelo quarto era forte, mas ela não se entregou. Não queria fazer nenhum barulho que pudesse ser ouvido lá embaixo, com medo de que suspeitassem quando os ruídos cessassem.

Seu estômago vazio ampliava as pontadas de fome. Sorrel apertou a barriga com a mão, tentando fazer parar os roncos, depois alisou o tecido negro de sua saia de cavalgar. Já devia estar perto da hora do jantar. Por que não estavam comendo ainda?

Um segundo mais tarde ficou tensa ao ouvir som de passos na escada. Virou a cabeça para olhar a porta, ouvindo atentamente. O ruído era leve, indicando passos de mulher. Eram vagarosos, não tão rápidos quanto os de Susannah ou de Diane. Poderiam ser de sua mãe ou de sua avó. Cada uma tinha vindo à sua porta naquela tarde tentando persuadi-la a sair.

De novo os passos pararam perto da porta. Silêncio, hesitação, depois uma batida, e a voz de sua mãe:

- Sorrel. Sorrel, você já ficou aqui o bastante - Sorrel deliberadamente não respondeu logo. - O jantar está pronto. Desça e venha comer algo.

- Não estou com fome.

- Quer deixar de ser teimosa e sair daí? - Havia um tom de impaciência no pedido.

- Vá embora e deixe-me só.

- Está agindo como uma criança.

Sorrel poderia ter facilmente argumentado que a estavam tratando como tal, determinando quem ela poderia ou não ver.

- Sorrel? - Sua mãe bateu na porta de novo.

Sorrel ignorou-a e esperou o silêncio terminar. Finalmente ouviu um suspiro profundo, em seguida passos, desta vez descendo as escadas. Ouviu até não poder ouvir mais. Depois, levantou-se e foi até a porta, cuidadosamente, para não deixar os saltos de suas botas de cavalgar baterem no chão.

Debruçada na porta, Sorrel entreabriu-a e colocou o ouvido na pequena abertura. Ouvia vozes lá em baixo, abafadas e indistintas, mas não poderia dizer de qual dos cómodos elas vinham.

Os minutos se passaram. Cada um deles parecia uma hora. Depois veio o ruído dos talheres. Ela esperou mais um pouco para ter certeza de que todos estavam na sala de jantar, comendo. Lentamente, Sorrel virou a chave e destrancou a porta. Abriu um pedaço e ouviu de novo, dando em seguida uma espiada para ver se havia alguém no corredor.

Furtivamente, saiu e puxou a porta atrás dela. Olhou a escada principal, depois seguiu em direção oposta, para a escada de trás. Engatinhou para baixo, abraçada à parede, esperando que, a qualquer momento, Phoebe aparecesse. De alguma forma, conseguiu passar pela cozinha sem ser vista.

Salva lá fora, Sorrel andou rápida e confiantemente em direção ao estábulo. Seu plano era simples: iria para a casa de Washburn, perto de Salina. Se ele não quisesse dizer onde Alex estava, ela o persuadiria a entregar uma mensagem a Alex, dizendo-lhe que ela estava lá. Se seus pais não deixavam Alex vê-la, então ela iria até ele. Mas eles não a impediriam de vê-lo.

As primeiras estrelas brilhavam no céu púrpura quando Alex atravessou as matas escuras. Viu as luzes da casa e parou para desmontar. Amarrou as rédeas da égua no tronco de uma árvore, deu um tapinha no pescoço dela, depois engatinhou para a frente.

Ele agachou-se perto de outra árvore e estudou a casa. Cada vez que se lembrava da forma como Blade lhe ordenara que saísse, a raiva e a absoluta humilhação queimavam dentro dele. Frustrado por sua impotência, sabia que não tinha outra escolha a não ser ir embora. Havia muitos lá: Blade, Lije, Lassiter. Estavam em maioria. Blade tinha ido muito longe daquela vez. Mas iria pagar por isso. Iria pagar por tudo.

Uma luz brilhou na janela do gabinete. Alex deu alguns passos para a direita para ter uma visão melhor. Alguém estava ali, e provavelmente era Blade. Estaria sozinho? Alex hesitou. Se estivesse, que melhor oportunidade poderia ter?

Temple suspirou desesperançosa e olhou para Blade.

- Lije acha que devemos arrombar a porta e pegar Sorrel pelos cabelos. Estou tentada a fazer isso. Acho que ela já foi longe demais. Será que não pode ver que você mandou Alex embora para o próprio bem dela? Você não fez isso para aborrecê-la-ela estava perdendo a paciência com a filha, mas Blade parecia estar resignado. - Por que não está mais chateado com ela?

Ele sacudiu a cabeça, mas havia uma ponta de cansaço em seu gesto.

- Talvez já tenha me acostumado a isso. Toda minha vida fui censurado porque agi para o bem dos outros. Por que acha que minha filha reagiria diferente de todo mundo?

Surpresa pela comparação e pela derrota em sua voz, Temple virou-se e olhou para ele, sentindo sua dor tão claramente como se fosse a sua própria.

- Nunca condenei você. Sei que fez o que achou que fosse melhor para todos. E o que fez hoje, expulsar Alex, também foi uma atitude correta. Sei disso.

- Espero que Sorrel... - Ele interrompeu a frase, os ombros caindo. - Não importa o que espero. A realidade é que ela está trancada em seu quarto. Está lá agora, odiando-me pelo que fiz.

- Não diga isso. - Ela pegou o rosto forte dele nas mãos e fez com que ele olhasse para ela. - Não é verdade. Ela pode estar com muita raiva de você, mas ainda o ama. Sei que ela o ama. Quantas vezes reclamei de você nesses anos todos... Houve vezes em que fiquei com tanta raiva que queria jogar algo em você.

- Acho que jogou, uma ou duas vezes - disse ele, escondendo um sorriso.

- A verdade é... não importa quanta raiva eu tenha, nunca deixei de amá-lo. Sorrel também o ama. Mesmo agora. Tem de acreditar nisso.

Ela parecia tão honesta, tão irresistivelmente adorável, que Blade não pôde deixar de sorrir. Ele inclinou-se e sentiu o volume dos lábios dela - o sabor de mel selvagem não tinha desaparecido com o passar dos anos. Por um momento seu sangue correu mais rápido e forte como uma intoxicação juvenil, apaixonando-se novamente pela mulher orgulhosa e viva que conseguia satisfazê-lo como nenhuma outra havia conseguido. Quando seus lábios se separaram, ele puxou-a para si, abraçando-a e descansando o queixo na cabeça dela.

- Eu a amo-disse ele, consciente do estranho contentamento que sentia em simplesmente abraçá-la.

- Espero que sim.

Ele riu baixinho da reprovação captada na voz dela e deixou os braços caírem, soltando-a.

- Estranho - murmurou ele pensativamente, caminhando em direção à sua mesa. - Sempre achei que Sorrel fosse nos causar aborrecimento por causa de um homem, mas nunca suspeitei que esse homem fosse Alex.

- Quem suspeitaria?

Houve uma leve batida na porta. Blade voltou-se, esperando que Sorrel tivesse finalmente saído do quarto.

- Sim? Entre.

Deu entrou carregando uma bandeja com um serviço de café e um pequeno prato de frango, nozes picadas e pontas de aspargos.

- Notei que o senhor não comeu muito durante o jantar, então achei que poderia desejar comer algo antes de ir para a cama disse ele, colocando a bandeja na mesa. - Achei que a senhora gostaria de lhe fazer companhia, dona Temple, por isso trouxe uma xícara a mais e alguns talheres para a senhora.

Temple não deu sinal de que o ouvira, enquanto olhava para a comida.

- Sorrel também não comeu o dia inteiro. vou preparar uma bandeja para ela. Talvez possa chantageá-la a abrir a porta-disse, levantando a sobrancelha para Blade.

- É bem melhor do que a sugestão de Lije de pôr a porta abaixo.

Particularmente, Blade achava que a ideia de Lije daria melhor resultado, mas guardou essa opinião, enquanto Temple saía da sala. Quando Deu começou a sair, Blade acenou para ele.

- Sente-se e tome uma xícara comigo... se tiver tempo.

- Sempre tenho tempo, sinhô Blade - Deu encaminhou-se para a mesa e encheu duas xícaras com café.

- Falando em tempo: não acha que já é tempo de parar de me chamar de sinhô? Você é um homem livre, Deu. Não sou mais seu senhor.

Blade caminhou e sentou-se na cadeira de mogno e couro atrás da mesa.

- Eu sei, mas chamei-o assim por tanto tempo que acaba saindo naturalmente - Deu carregou sua xícara para uma cadeira diante da mesa. - Mas o engraçado é que... realmente nunca me senti como escravo. Sei que era, mas...

- Eu sei. Acerta altura também parei de pensarem você como escravo.

Blade serviu-se de um pedaço de frango frio, mas quando tentou levá-lo à boca, não conseguiu. A visão da comida lembrou-o de Temple - e de Sorrel. Suspirando, colocou o garfo e a faca atravessados no prato.

- O que vou fazer com aquela garota lá em cima, Deu? Como posso fazê-la entender a respeito de Alex? Não consigo conversar com ela. Ela não me ouve.

- É sempre assim com as crianças. O senhor teve sorte com Lije, mas... veja o Ike, por exemplo. Lembro-me de quando ele fugiu e foi para o exército da União. Não pude acreditar que ele fizesse uma coisa daquelas. Fiquei chateado e magoado porque ele não ficou para tomar conta da mãe e de dona Temple-Deu sacudiu a cabeça com a lembrança. - Tentamos criá-lo direito, mas achamos que tínhamos falhado. Mas veja-o agora, eu não poderia estar mais orgulhoso dele do que hoje naquela escola. Algum dia o senhor vai sentir-se da mesma forma em relação a Sorrel. Espere e verá.

- Espero que esteja certo.

- Sei que sim. Ela é uma boa moça que está um pouco confusa. - Ao ouvir passos passando pela porta do gabinete, Deu pôs sua xícara na mesa e empurrou a cadeira.

- Acho que é dona Temple. vou levar aquela bandeja para ela e volto depois.

Blade olhou a porta do estúdio fechando-se atrás de Deu, depois olhou para a comida no prato diante dele. Suspirando, empurrou-a para o lado e pegou a xícara de café. Levantando-se da cadeira, parou atrás da mesa por vários segundos, depois olhou para o lado, consciente da fria brisa que entrava pela janela aberta.

Escondendo-se nas sombras, Alex arrastou-se ao longo da parede em direção ao gabinete, com o revólver na mão. Achou que tivesse ouvido vozes vindas do quarto e apertou-se contra a parede, sentindo o sangue correr pesadamente pela veia de seu pescoço. Tentou ouvir de novo, mas havia apenas silêncio. Aproximou-se mais do peitoril da janela, depois agachou-se para olhar para dentro.

Blade estava parado bem à sua vista, calmamente tomando café numa xícara de porcelana chinesa. Não havia mais ninguém na sala. Lenta e cuidadosamente, Alex colocou-se em posição. Blade começou a andar em direção à janela e Alex abaixou-se. Ficou esperando, com medo de respirar, ouvindo intensamente o som de passos se aproximando da janela. Ninguém apareceu. Não havia sinal de nenhum movimento. Desconfiado, ele deu outra olhada lá dentro. Blade ainda estava no mesmo lugar, com as costas voltadas para a janela. Alex sorriu.

Lije saiu da sala e notou um movimento na escada. Virou-se, meio esperando que fosse Sorrel, mas era sua mãe, subindo a escada, lutando com uma bandeja.

- Deixe-me carregá-la para você, mamãe.

- Não se preocupe, sr. Lije. Estou aqui para ajudá-la - Deu cruzou a escada.

- Lije, é Deu que estou ouvindo? - Eliza chamou da sala.

- Peça a ele para dizer a Phoebe que nos traga café.

- Vá em frente, Deu. Eu ajudo mamãe - Lije segurou a bandeja. - Está levando isso para Sorrel?

- Sim - Temple continuou a subir as escadas com Lije. Ela não comeu o dia inteiro. Talvez isso a convença a destrancar a porta.

- Eu não ficaria muito animado.

Quando chegaram ao quarto de sua irmã, Lije ficou parado de um lado enquanto Temple batia na porta.

- Sorrel. Trouxemos comida para você. Silêncio.

- Sorrel, sei que está aí. Por favor, responda. - Ela esperou a resposta que nunca veio, e bateu de novo, mais alto. - Você já foi longe demais, Sorrel. Já provou o que queria. Não foi à formatura. Está acabado. Agora quero que destranque esta porta imediatamente.

Lije franziu o cenho, desconfiado do silêncio permanente.

- Tente a porta.

- Não adianta - respondeu Temple, irritada, pegando a maçaneta. - Ela tinha tran...

A maçaneta girou sob sua mão. Ela deu um olhar surpreso para Lije, depois empurrou a porta e entrou no quarto escuro.

- Sorrel?

Lije estava bem atrás dela, o olhar percorrendo a escuridão enquanto ele colocava a bandeja na penteadeira. Mesmo antes de sua mãe acender uma vela, ele já sabia que Sorrel não estava ali.

- Ela foi embora - disse Temple, chocada.

- Maldição - praguejou Lije suavemente.

- Aonde ela iria?

- Encontrar Alex, onde mais? - retrucou ele, e silenciosamente xingou a irmã por ser tão idiota.

Do andar de baixo veio o som de um tiro abafado. Lije virou-se em direção à porta.

- O que foi isso?

Ele saiu correndo do quarto sem responder à pergunta da mãe.

Uma espiral de fumaça azul saía do cano do revólver de Alex enquanto ele olhava Blade desabar no chão. Arremessou-se para a frente, a xícara voando de sua mão. Alex sorriu friamente. Estava terminado. Blade estava morto.

Mas, para sua surpresa, o corpo se moveu. Blade tentava empurrar-se com as mãos. O desgraçado não morria. Raivosamente, Alex apertou o gatilho, atirando outra vez no homem caído no chão. Ele tombou de novo. Mas estaria morto? Desta vez Alex tinha de estar seguro. Passou a perna pela janela aberta e começou a subir para o quarto.

Naquele instante a porta se abriu e Deu entrou, parando abruptamente quando viu Alex subindo no peitoril da janela. Alex atirou instintivamente, acertando dois tiros no negro antes de descer de volta pela janela e fugir correndo.

com Rans ao seu lado, Lije correu para o gabinete. Os outros foram atrás deles. Ele hesitou rapidamente ao ver o pai caído imóvel no chão e Deu tentando arrastar-se até ele. A cortina da janela tremulava na brisa que soprava para dentro.

Ajoelhando-se ao lado do pai, Lije tomou seu pulso. Não havia nenhum. Lije sentiu um aperto no peito, dolorosamente forçando o ar para fora de seus pulmões. Por um instante abaixou a cabeça, fechando os olhos e apertando as mãos.

Ouviu sua mãe gritar no meio de outras vozes:

- Não!

Ele levantou-se, segurando-a, antes que Temple alcançasse Blade. O terror nos olhos dela o apunhalou como uma faca. Ele sacudiu a cabeça.

- Ele está morto, mamãe.

- Não! Não pode estar! - Ela soltou-se e caiu de joelhos ao lado do corpo do marido.

Chocado, Lije olhava para ela, sem notar quando Eliza o empurrou para ficar junto de Temple. Abruptamente, ele virou-se, lutando contra as ondas de raiva que se apossavam dele.

- Lije - chamou-o Rans. - Deu ainda está vivo.

Rans tinha um braço sob o ombro do velho, apoiando-o, enquanto Susannah tentava estancar o sangue do ferimento em seu peito. Lije ajoelhou-se ao lado dele. Os olhos de Deu estavam fechados. Ele fez uma fraca tentativa de abri-los.

- Sr.Bla... Blade? - Sua voz era um sussurro quando tentou focalizar o olhar em Lije.

Lije sacudiu a cabeça, incapaz de dizer as palavras de novo. Deu gemeu:

- Eu deveria... ficar com... ele. Ele... queria que eu... ficasse.

- Deu, quem atirou nele? Viu quem foi?

Houve uma pequena afirmativa de cabeça como resposta, depois ele umedeceu os lábios e disse a palavra.

- Alex.

- Alex? Foi Alex? - Lije tinha de ter certeza. Deu concordou de novo.

- Já chega, Lije - pediu Susannah quando uma soluçante Phoebe se aproximou deles. - Ele está muito fraco, e não consigo estancar o sangue. Mamãe, pegue a cesta de Temple enquanto mantenho a pressão em seu ferimento.

Mas Lije já tinha o que precisava. Ele parou, surpreso ao constatar a calma que sentia por dentro. Abriu o armário das armas e tirou um cinturão. Depois de verificar para ter certeza de que seu revólver estava carregado, apertou o cinto, tirou uma carabina e pegou uma carga de munição. Quando se virou para sair, Diane parou diante dele.

- A rixa... eu realmente nunca havia compreendido. - Seus olhos se encheram de lágrimas quentes de raiva. - Você tem de pegá-lo. Tem de ir atrás de Alex, ou isso nunca terminará.

Suas palavras correram através dele como um vento revigorador, enchendo-o, levantando-o. Ela compreendera. Foi tomado por um profundo carinho por ela, sentindo que aquele era um momento a ser saboreado. Mas não havia tempo.

Ele pegou o rosto dela.

- Cuide de minha mãe.

- Volte para mim, Lije Stuart.

- Eu voltarei.

Lije virou-se para sair, mas Rans estava no caminho. Ele passou direto rumo à porta do gabinete. No vestíbulo, Rans agarrou seu braço.

- Aonde acha que vai, Lije?

- Atrás de Alex.

- Diabo, você não pode. Pense em sua mãe.

- Estou pensando em minha irmã - disse Lije. - Ela partiu, provavelmente para encontrar Alex. Tenho de encontrá-lo antes que ela o faça.

- vou com você - Rans soltou o braço de Lije.

- Não. Fique aqui - Lije olhou de volta para o gabinete. A família vai precisar de você.

Ele dirigiu-se para a porta.

Gritos de lamentação saíam do gabinete. Rans virou-se da porta, o queixo duro com o sentimento que se arrastava dentro dele. Caminhou de volta para o quarto, chegando quando Eliza entrava correndo com a cesta de remédios de Temple. Phoebe estava no chão com Deu em seus braços, balançando-se para a frente e para trás, enquanto chorava. Susannah virou-se para ele, as mãos molhadas de sangue - sangue de Deu. Seus olhos estavam cheios de tristeza, desespero e desculpas.

- Eu... não consegui estancar o sangue - murmurou ela. A bala deve ter atingido alguma artéria...

Havia uma tristeza em cada linha de seu corpo, mas ela não chorava. De alguma forma Rans sabia que ela não o faria. Agora as outras precisavam de sua força, não de suas lágrimas. Ele colocou o braço em volta de seus ombros, oferecendo-lhe conforto antes que ela fizesse o mesmo pelas outras.

Ao mesmo tempo Nathan e Jed ajudavam Temple, que soluçava baixinho a seus pés. Suavemente, tiraram-na de perto do corpo de Blade. Eliza foi até ela.

- Depois... de todos esses anos, Eliza... - murmurou Temple, alquebrada- ...depois de todos esses anos... finalmente aconteceu.

- Eu... eu sei, Temple. - A voz de Eliza tremia. - Eu sei. Temple olhou em volta, o olhar em branco.

- Agora Lije vai atrás de Alex. Oh, Deus. - Ela pegou o braço de Eliza. - É a história se repetindo com Lije.

- Ele vai voltar, Temple - disse Diane, com certeza.-Lije vai voltar.

Quando Temple viu Phoebe relutantemente soltar seu marido morto no chão, foi para perto da mulher que chorava.

- Phoebe.

Esperou que ela se levantasse. Elas olharam uma para a outra por vários segundos, com os olhos cheios de lágrimas.

- Sinto muito, Phoebe-Temple apertou-a num longo abraço. - Sinto muito.

Alex galopou na égua por uns oito quilómetros, tentando colocar o máximo de distância entre ele e Grand View. Aproximou-se de um pequeno povoado e diminuiu a marcha da égua, tomando um atalho que encurtava o caminho em dezesseis quilómetros.

O instinto alertou-o para manter-se num trote e não parar até que estivesse além da fronteira do Kansas. Mas seu suprimento e a maior parte de sua quota do ouro do velho Scott estavam no esconderijo, uma cabana a leste dali, nas acidentadas montanhas de Boston. E Morgan Bennet também esperava lá por ele.

Durante um quilómetro e meio Alex cavalgou pela trilha acidentada. Quando a lua saiu para pratear o caminho, ele forçou a égua a galopar por mais cinco quilómetros. Marchava um, galopava três. Manteve essa combinação até chegar ao cruzamento com a estrada principal. Segundos antes de entrar na estrada, desmontou sob as árvores e certificou-se de que a estrada estava vazia.

Ele começou a soltar a barrigueira, depois ouviu o ritmo de um cavalo galopando. Instantaneamente Alex colocou a mão sobre o focinho da égua e olhou a estrada iluminada pela lua.

Um cavaleiro solitário apareceu e colocou-se no caminho sob o luar. Alex olhou sem acreditar. Era Sorrel. Mas como? Por quê? Ela saberia sobre seu pai? Não podia saber.

Hesitou por mais um segundo, depois virou-se na sela e entrou na estrada para interceptá-la. Ela puxou as rédeas rapidamente, demonstrando alarme.

- Sorrel, sou eu, Alex.

- Alex? - Ela riu de alegria. - Vim para encontrá-lo.

- Sua família sabe que está aqui? - perguntou ele, desconfiado.

- Não - disse ela, agitando a cabeça desafiadoramente. Eles acham que ainda estou no meu quarto de porta trancada. Depois que você saiu, recusei-me a ir à formatura. Fugi enquanto eles jantavam. Só vão sentir minha falta amanhã.

Mas Alex sabia que sentiriam a falta dela mais cedo do que ela pensava. Ele não podia mandá-la para casa... não agora. Queria não tê-la parado, seria melhor tê-la deixado prosseguir a cavalgada. Mas isso tampouco teria funcionado. Ela sabia sobre Washburn, e ele poderia dizer onde era a cabana. Tinha de levá-la com ele.

- Tenho uma cabana a dezesseis quilómetros daqui. Vamos para lá - Alex virou a égua e apontou para cima da estrada.

- Uma cabana? Não sabia que tinha uma cabana, Alex. Havia muitas coisas sobre ele que ela não sabia. E ele pretendia

que continuasse assim.

Sorrel estava parada na pequena varanda da cabana de dois quartos construída ao lado de um morro íngreme. O sol da manhã batia em cheio em seu rosto e ela podia sentir o ar fresco e frio. Arrancou outro pedaço de carne-seca com os dentes e mastigou-o, enquanto Alex terminava de amarrar os suprimentos no burro de carga.

- Nunca pensei que carne-seca pudesse ser tão gostosa. Acho que é preciso estar com fome.

- Acho que sim. - Ele deu-lhe um sorriso, depois bateu no pescoço do burro.

- Por que temos de sair tão cedo?

- Quer ir a Kansas City, não quer? É uma longa cavalgada e, quanto mais esperarmos, mais tempo levará.

- Eu sei.

Sorrel tentou sorrir. Na noite anterior, ir para Kansas City com Alex parecera divertido. Mas sabia que seus pais estariam preocupados imaginando onde ela poderia estar. Alex disse que ela poderia escrever-lhes e dizer que estava bem. Entretanto, mesmo assim....

- Alex - Morgan Bennet chamou-o da beira da clareira. Temos companhia subindo a trilha.

Curiosa, Sorrel seguiu Alex quando ele foi olhar para baixo do morro. Estava escuro quando chegaram na noite anterior. Sorrel não sabia que a trilha poderia ser vista da clareira. Ela reconheceu o cavaleiro no mesmo instante que Alex.

- É Lije - anunciou ele, sério.

- Podemos sair por trás antes que chegue aqui - disse Morgan.

- Não. Ele ficaria perto demais de nós.

Sorrel mordeu os lábios, ciente de que Lije vinha atrás dela. Deviam ter descoberto seu desaparecimento ainda na noite anterior. com o canto do olho, viu a mão de Morgan puxar o revólver do coldre.

- Vamos dar um jeito nisso. - Ele apontou para Lije.

- Não - disse ela chocada.

No mesmo instante, Alex aproximou-se e empurrou a mão dele para baixo.

- Tenho uma ideia melhor - Alex virou-se em direção à cabana. - Vamos esconder os cavalos atrás da cabana. Morgan, fique no quarto de trás. Sorrel, chame Lije para a cabana, diga-lhe que está sozinha, que não estamos aqui. Mas mantenha-se do lado direito do quarto, fora do caminho. vou entrar pela frente. Vamos pegá-lo.

A mão dele segurava o braço dela, empurrando-a de volta para a cabana.

- O que vai fazer? - murmurou Sorrel, confusa. Alex deu um rápido olhar para Morgan, depois sorriu.

- Amarrá-lo e deixá-lo aqui para que não possa nos seguir, pelo menos até conseguir soltar-se. O que acha que iríamos fazer? Matá-lo?

- Não sei - disse ela, olhando para Morgan, lembrando-se de como ele apontara seu revólver para Lije.

- Está dizendo isso pelo que aconteceu agora? - perguntou Alex, com um sorriso brincalhão. - Morgan queria apenas assustar o cavalo dele, fazê-lo tombar. Um homem a pé nesses morros está perdido. Seus pés ficariam cobertos de bolhas e calos antes que ele conseguisse sair daqui. Não se preocupe, Sorrel. Tudo ficará bem. Deixe isso comigo e com Morgan. E fique do lado direito do quarto, está bem?

- Está bem - disse ela, ainda hesitante.

- Vá para a cabana. Quando ele chegar, chame-o para dentro. Ainda assim Sorrel hesitou, olhando Morgan Bennet enquanto

ele se movia calmamente para dentro da cabana. Ela lembrou-se do que Lije tinha dito sobre Bennet. Isso a deixou ainda mais inquieta.

- Alex... talvez eu deva voltar com Lije.

- O quê?

Por um instante os olhos negros dele brilharam. Ela sentiu um pequeno tremor de medo. Ele a assustara. Então Alex inclinou a cabeça. Quando olhou para ela de novo, tinha uma expressão desolada.

- Pensei que você quisesse ficar comigo. Queria levá-la a muitos lugares e mostrar-lhe muitas coisas. Você é a única família que tenho, Sorrel, a única pessoa que se importa comigo. Mas, se preferir ficar com eles...

- Não é isso, Alex. - Ela correu em direção a ele. - É que não quero causar problemas para você.

- Quero fazer isso.

- E eu quero ir a Kansas City com você. Ele parecia aliviado.

- É melhor entrar na cabana antes de Lije chegar.

- Está bem. - Ela moveu-se em direção à porta.

- Lembre-se - Alex chamou-a suavemente. - Morgan vai estar atrás do quarto, mas não demonstre que ele está lá.

Ela concordou e entrou. Olhou em volta do quarto, examinando as paredes rachadas, a lareira de pedras, a mesa e as cadeiras toscas de madeira e a cama estreita onde ela dormira na noite anterior. Aproximou-se dela e sentou-se. O colchão grosso de palha e as molas de corda não eram nem de longe tão confortáveis quanto a maciez de sua cama, mas na noite anterior ela estava cansada demais para se importar. Colocou a mão no colchão duro e estremeceu, pensando se haveria piolhos nele. O lugar estava imundo.

Ela não compreendia por que Alex tinha uma cabana nas montanhas. A terra não prestava para nada. Era muito rochosa para ser lavrada, e não havia pasto para o gado. Parecia um esconderijo de bandido. De repente, Sorrel pensou se tudo que Lije tinha dito sobre Alex não seria verdade. Tocou a medalha no pescoço.

As pedras faziam barulho do lado de fora, deslocadas pelos cascos, enquanto Alex conduzia os cavalos para trás da cabana. Sorrel estava tensa, a apreensão apertava seus músculos. Olhou para o cobertor sujo pendurado no portal do segundo quarto da cabana. Morgan estava atrás dele. Morgan e seu revólver. Ela sentiu um frio na espinha.

Um corvo guinchava numa árvore lá fora. Sorrel deu um pulo e agarrou-se à beira da cama.

Finalmente ela ouviu o cavalo de Lije. Sabia que ele só veria a cabana quando virasse o promontório rochoso. Então já estaria na clareira. Ela forçou-se a deitar na cama tosca fingindo estar dormindo, fingindo que tudo estava bem, que tudo estaria bem.

Fechou os olhos e ouviu, tentando acompanhar a aproximação de Lije apenas com os ouvidos: o rangido da sela de couro quando ele desmontou, o fraco arrastar de suas botas no cascalho quando ele se moveu em direção à cabana, o gemido de um degrau de madeira quando ele começou a subir, depois, nada. Ela teve a certeza de que ele estava dentro da cabana, mas não conseguia ouvi-lo mais. Não sabia que seu irmão podia mover-se tão silenciosa e furtivamente. Por que ele não gritava? Por que estava sendo tão cauteloso? Ela não podia mais ficar em suspense. Virou-se na cama, fingindo despertar.

Quando abriu os olhos, ele estava a meio metro dentro da porta, os olhos apertados, vasculhando desconfiadamente o quarto. Tinha um revólver na mão, engatilhado. Por um segundo ele se pareceu tremendamente com seu pai, mas sem a cicatriz no rosto.

- Lije - ela sentou-se, esfregando os olhos. - O que está fazendo aqui? Como conseguiu encontrar-me?

- Onde está Alex?

- Ele não está aqui - respondeu ela rapidamente, depois preocupou-se, imaginando se não teria dito depressa demais.

- O que há aí atrás? - Ele gesticulou em direção ao cobertor que cobria a porta.

- Nada - mentiu Sorrel, odiando-se por isso.

O sentimento intensificou-se quando Lije olhou severamente para ela, como se duvidasse de suas palavras.

- Venha - ordenou ele, gesticulando em direção a ela. Você vai sair daqui.

Sorrel ficou parada, sem saber o que fazer ou como atrasá-lo. Então, num lampejo, Morgan levantou o cobertor e surgiu com o revólver na mão.

- Cuidado! - Mas o estrondo do revólver de Morgan abafou o alerta de Sorrel.

Quase simultaneamente o revólver de Lije deu um salto em sua mão. As duas explosões se misturaram num estrondo ensurdecedor. Em choque, Sorrel viu Morgan ser atirado com força contra a parede pela bala que se enterrara nele. Ele tentou apontar o revólver de novo e, mais uma vez, ouviu-se a descarga da arma de Lije. Morgan escorregou pela parede, as pernas dobrando-se sob ele, com um olhar de choque.

- Lije - Sorrel virou-se, aliviada de vê-lo parado em pé, mas seu alívio rapidamente transformou-se em alarme quando viu sua mão apertando o braço, o sangue escorrendo por entre os dedos. Você foi ferido!

Ela deu um passo em direção a ele, que, branco de dor, acenou com o revólver para que voltasse.

- Onde está Alex?

- Bem aqui, Lije.

Alex estava parado na porta, o revólver apontado para as costas de Lije. Seu sorriso era aterrorizante. Lije começou a virar-se, mas parou ao ouvir o clique do revólver.

- Isso mesmo, não se mova. Sorrel, tire o revólver dele. Ela hesitou, de novo insegura sobre o que fazer. Olhou para

Lije, e ficou vagamente enervada com o olhar triste e penalizado que ele lhe dirigiu.

- Sinto muito - murmurou ela.

Aproximou-se para tirar o revólver dele. Ele entregou-o a ela pelo cabo.

- Agora saia de perto dele, Sorrel - ordenou Alex.

- Espere por mim lá fora, Sorrel - Alex desviou-se para a esquerda da porta e fez sinal para ela sair.

- Fique, Sorrel - Lije levantou a cabeça um pouco, mas sem olhar em volta. - Quero que saiba que ele vai estar mentindo quando lhe disser que tentei pegar seu revólver, e ele teve de me matar.

Sorrel olhou para Alex, esperando que ele negasse. Em vez disso, ele disse:

- Vire-se, Stuart.

- Não. Vai matar-me pelas costas, como matou meu pai.

- O quê? - Pasma, Sorrel olhou para ele. - Papai está morto?

- Não sei do que está falando - resmungou Alex. - Saia daqui, Sorrel.

- Sabe muito bem do que estou falando - disse Lije com escárnio. - Você cometeu o mesmo erro da última vez.

- Cale a boca.

- Deu não morreu logo, Alex. Ele viveu o bastante para identificá-lo.

Deu estava morto também? Alex tinha matado Deu e seu pai? Não. Seu pai não podia estar morto. Não podia!

- Você já falou bastante - Alex apontou o longo cano de seu revólver para as costas de Lije.

Meu Deus, ele ia matar Lije também. Sem pensar, Sorrel ergueu o revólver e apontou-o para Alex.

- Alex, não. - Sua voz oscilou, mas ela conseguiu segurar firme a arma - Não. Abaixe seu revólver... por favor.

Por um segundo, Alex congelou-se ao ver o revólver em sua mão. Desviou o olhar para ela, depois deu um sorriso torto.

- O que acha que vai fazer com isso? Não vai atirar em mim. Ela engoliu, nervosamente.

- Não vou deixar que mate meu irmão, Alex.-Para confirmar sua declaração, puxou o cão para trás, usando dois dedos.

O sorriso dele aumentou, assim como sua confiança.

- Não vai atirar em mim, Sorrel. - Ele olhou para Lije, centralizando a atenção nele. - Não em mim.

Ela notou o leve movimento dele no gatilho e atirou. O revólver pulou em suas mãos e o alto disparo vibrou contra seus ouvidos. Através dos olhos semicerrados ela viu Alex cambalear e depois cair vagarosamente para o lado.

- Alex! - Ela deixou o revólver cair e correu para ele, abaixando-se no chão ao lado dele.

Os olhos dele se voltaram para ela, demonstrando dor e confusão.

- Por quê? - murmurou ele fracamente. - Por quê?

- Tive de fazer isso. Não vê que tive de fazer isso? - soluçou ela.

- Eu... confiei em você.

Então, veio aquele som: o som inesquecível de um longo suspiro, seguido de absoluto silêncio.

- Alex. - Ela jogou-se sobre ele e soluçou. Uma mão puxou-a.

- Sorrel. - A voz de Lije veio de longe.-Não há mais nada que possa fazer por ele, Sorrel.

Ainda soluçando, ela deixou que ele a puxasse para cima.

- Tive de fazê-lo, Lije - repetiu ela. - Não podia deixar que ele atirasse em você. Tive de fazer isso.

Ele colocou o braço em volta dela e puxou-a para ele.

- Eu sei.

Ela apertou a cabeça contra o peito do irmão e ele deixou-a chorar.

- Eu sei - repetiu ele.

Por fim Sorrel afastou-se e limpou as lágrimas com as mãos. Depois olhou para o corpo de Alex.

- É verdade, Lije? - perguntou ela numa voz arrasada. Papai está mesmo morto?

- Sim, está - disse ele, alisando-lhe os cabelos.

Seu rosto comprimiu-se e as lágrimas correram de novo.

- Por quê? Por que ele tinha de morrer? Não é justo, Lije. Não é justo.

- Eu sei.

- Mas você não compreende. Nunca tive a chance de dizer a ele que o amava. E eu o amava. Realmente amava, Lije. - Ela soluçou.

- Sei disso. E juro que ele também sabia-garantiu Lije, sua própria voz pesada de mágoa e dor. - Venha. Vamos para casa.

Ele virou-se e conduziu-a para fora. Sorrel virou-se de volta.

- Espere.

Ela levantou as mãos e colocou-as atrás do pescoço, desatarrachando a corrente. Depois tirou-a do pescoço e jogou-a no chão. A corrente caiu nas sombras, perto do corpo de Alex.

- Não quero mais isso.

Era quase noite quando eles chegaram em Grand View. Rans viu-os se aproximando. Quando estavam perto da casa, todos se encontravam do lado de fora, esperando-os, Lije desmontou primeiro e ajudou Sorrel a descer. Sem palavras, Temple correu para abraçá-lo. Lije virou-se. Diane chegou até ele, mais devagar, examinando-o cuidadosamente. Viu o lenço manchado de sangue amarrado em volta de seu braço.

- Está ferido.

- Não muito - disse ele, tomando-a nos braços. Por um momento ele queria simplesmente abraçá-la e sentir o prazer correr através do seu corpo.

- E Alex? - perguntou ela.

- Está morto. - Ele esfregou o rosto contra os cabelos dela.

- Está acabado. Desta vez é para sempre.

Ela tremeu e apertou-o mais.

- Eu o amo, Lije.

- E eu também a amo. - Ele levantou a cabeça para olhar para ela, seus olhos preguiçosos e quentes.

- Casa-se comigo?

Ela respirou fundo, depois deu um suspiro alegre.

- Pensei que nunca me pediria.

 

 

                                                                  Janet Dailey

 

 

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