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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HISTÓRIAS DA TERRA E DO MAR / S. M. B. Andresen
HISTÓRIAS DA TERRA E DO MAR / S. M. B. Andresen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

             História da Gata Borralheira

Como uma rapariga descalça a noite cami­nhava leve e lenta sobre a relva do jar­dim. Era uma jovem noite de Junho, a primeira noite de Junho. E debruçada sobre o tanque redondo ela mirava extasiadamente o reflexo do seu rosto.

Do jardim via-se a casa, uma casa grande cor­-de-rosa e antiga que, toda iluminada nessa noite de festa, espalhava no jardim luzes, brilhos, risos, música e vozes. A luz recortava o buxo dos canteiros e a música misturava-se com o baloiçar das árvores.

Pelas janelas abertas avistavam-se pares dan­çando e vestidos claros de raparigas, vestidos que flutuavam entre os passos e os gestos. Vultos de namorados passavam entre as cortinas e vinham apoiar-se no peitoril das janelas, inclinados sobre a noite. Às vezes um riso mais agudo cortava, como um pequeno punhal, a água lisa dos tan­ques.

 

 

 

 

Vistas do jardim essas coisas pareciam feéri­cas e irreais. Delas subia, perante a alegria serena da noite, uma alegria rápida e agitada, desgarrada e passageira, um pouco triste e cruel.

Lúcia tinha dezoito anos e era este o seu pri­meiro baile. Tinha vindo com a tia que era sua madrinha.

Seguida por Lúcia, a tia atravessou a grande entrada iluminada e, com os brincos a tilintar, avançou para os donos da casa que estavam de pé à porta da primeira sala.

Falaram-se e beijaram-se e, enquanto se fala­vam e beijavam, Lúcia, um pouco entontecida por tantas caras desconhecidas e tantos vestidos de tantas cores e pela profusão de vozes e flo­res e luzes e perfumes, tudo para ela confusa­mente próximo demais e acumulado demais, só pôde ver que o vestido da dona da casa era azul e que a cara do dono da casa era encarnada amável como uma maçã polida.

- Esta é a minha sobrinha Lúcia. É filha do meu primo Pedro - disse a tia.

A dona da casa sorriu com um ar um pouco ausente, beijou Lúcia e respondeu:

_ Conheci muito bem o seu Pai. Mas há muito tempo que não o vejo.

- Ah, é a filha do Pedro - exclamou o dono da casa com ar caloroso.

E reafirmou:

- Conhecemos muito bem o seu Pai. Ainda é meu parente, como está ele?

- Agora está bem, muito obrigado. Mas este Inverno esteve doente.

- Doente? Mas que maçada! - comentou o dono da casa, já distraído de Lúcia e sorrindo a outros convidados que chegavam.

A dona da casa chamou a sua filha que sor­riu, deu um beijo a Lúcia e a levou para a sala de baile.

A grande sala estava cheia de gente dançando, pares que se multiplicavam nos enormes espe­lhos esverdeados. Ao fundo um grupo de músi­cos tocava. Pelas janelas abertas entravam os perfumes do jardim. As cortinas inchavam-se de brisa.

A filha da dona da casa apresentou Lúcia às amigas. Estas falaram-lhe com um ar alheio e sorriram com ar indiferente. Depois continuaram as suas conversas como se ela não estivesse ali. Falavam muito depressa, em frases um pouco incompreensíveis e entrecortadas, batiam as pes­tanas e sacudiam os cabelos.

Lúcia olhava-as com um misto de temor e fer­vor. Pareciam-lhe todas bonitas, animadas por uma vida rápida e segura, e tinham faces rosa­das como um fruto e um agudo brilho nas vozes metálicas.

A música parou, os pares desfizeram-se, outras raparigas acompanhadas por rapazes vieram reunir-se ao grupo onde a filha da dona da casa estava.

Lúcia tentou seguir a conversa. Fez uma per­gunta, mas ninguém lhe respondeu.

A música começou outra vez a tocar, os rapa­zes convidaram as raparigas para dançar e o grupo desfez-se.

Lúcia ficou sozinha. Ninguém a tinha convi­dado para dançar.

Encostou-se à ombreira de uma porta. Para­ram perto dela uma rapariga vestida de azul e uma rapariga vestida de branco, que a olharam de alto a baixo, com ar misto de troça e dúvida.

E ela ouviu a rapariga vestida de azul per­guntar a meia-voz à rapariga vestida de branco:

- Quem é esta?

E a rapariga vestida de branco respondeu:

- Sei lá!

E ambas poisaram nela um olhar duro como se Lúcia fosse uma intrusa e elas a quisessem pôr fora da sala, empurrando-a com o olhar. Como se elas, afirmando não saber quem ela era, a atirassem para o mundo das coisas ine­xistentes.

Lúcia fingiu não ter ouvido. Surgiram dois rapazes que convidaram a rapariga branca e a rapariga azul para dançar.

Lúcia continuou sozinha, encostada à porta. Aquela sala cheia de gente, de luzes e de música pareceu-lhe um lugar belo e desejável mas onde não havia lugar para ela.

E passaram três raparigas que a olharam de relance e se afastaram conversando entre si.

- Estão a falar de mim - pensou Lúcia.

Continuava encostada à porta. Olhou em re­dor procurando um lugar onde estivesse menos exposta à vista de todos. E viu do outro lado da sala uma cadeira vazia perto de uma janela aberta, meia escondida pela cortina.

- Vou-me sentar ali - pensou.

Mas tinha de atravessar meia sala. No cami­nho passou em frente de' um espelho e olhou­-se. Mais uma vez verificou quanto o seu vestido era feio.

Era um vestido que lhe tinha sido dado pela tia que era sua madrinha.

Oito dias antes, a madrinha tinha aparecido em casa de Lúcia.

- Lúcia - disse ela - de hoje a uma semana vens comigo a um baile.

- Mas não tenho vestido de baile - excla­mou Lúcia.

- Eu tenho um meu que se pode arranjar para ti. Amanhã vem almoçar comigo.

No dia seguinte Lúcia foi almoçar com a tia. Mal ela chegou a tia levou-a ao quarto dos armários e tocou para chamar a costureira.

- Abre aquele armário - disse a madrinha à criada, apontando com o dedo.

A criada abriu o armário e surgiu uma fileira de vestidos de baile pendurados em cabides.

- Tira aquele vestido - mandou a madrinha apontando com o dedo.

A criada despendurou do armário o vestido e segurou o cabide com o braço erguido.

O vestido era de seda lilás.

- Está novo - declarou a madrinha - mas engorda-me.

Lúcia achou o vestido muito feio e balbuciou com cuidado:

- Lilás fica-me mal.

- Na tua idade tudo fica bem - respondeu a madrinha. - Despe-te para a costureira ver como se há-de arranjar.

Lúcia despiu-se e enfiou rápida o vestido.

A porta do armário era forrada de espelho. E nesse espelho ela viu-se de cima abaixo e achou o vestido ainda mais feio. Tornou a mur­murar:

- A cor não me fica bem.

- Esta cor é para ser vista à luz eléctrica - explicou a tia.

Lúcia não ousou dizer mais nada.

A costureira começou a marcar o vestido com alfinetes e a passar alinhavos.

- No dia do baile tens que pôr saltos altos

- disse a madrinha. - Põe-te em bicos dos pés para se calcular a altura.

- Não tenho sapatos de saltos altos -respondeu ela. Mas a tia, distraída, não ou­viu.

Lúcia pôs-se em bicos dos pés e, enquanto a costureira media a bainha, espetava alfinetes e passava alinhavos, olhava duvidosa a própria imagem.

Sempre sonhara ir a um baile. Apetecia-lhe apaixonadamente ir àquele baile.

A sua vida, entre o pai viúvo e arruinado, os dois irmãos, as velhas criadas faladoras, o jar­dim inculto, cheio de musgos e ervas selvagens, não era uma vida triste mas uma vida monó­tona e modesta. Às vezes, no colégio, algumas das suas amigas falavam de um mundo de fes­tas e divertimentos, um mundo onde tudo era fácil e todas as pessoas eram ricas. Agora, aquele baile era para ela a porta aberta para esse outro mundo. Não podia perder o convite, não podia deixar que a porta se fechasse. Com cau­tela, tentou insinuar na tia a ideia de um outro vestido. Disse:

-Gosto muito do seu vestido. É lindo.

Mas, a um primeiro baile vestido branco.

É costume ir com um Branco ou cor-de-rosa - atalhou a tia e este lilás é quase cor-de-rosa. À noite entre lilás e cor-de-rosa quase nem se distingue.

Lúcia compreendeu que não havia nada a fazer neste capítulo e que o pior de tudo seria não ir ao baile. Não disse mais nada e, mal saiu da casa da tia, começou a percorrer as sapatarias da cidade. Mas os sapatos de baile eram todos terrivelmente caros.

- Que hei-de eu fazer? - pensou.

Em casa fez uma busca ao sótão.

No sótão havia de tudo: cadeiras desmantela­das, candeeiros de petróleo de outros tempos, revistas antigas, livros roídos pelos ratos, fras­cos vazios, uma caixa com leques, uma mala com sapatos.

Lúcia procurou nessa mala e descobriu uns sapatos de salto alto que, embora um pouco lar­gos, lhe serviam.

Mas estavam fora de moda e em mau estado com o forro azul roto nas biqueiras e aqui, e além manchas de bolor.

Lúcia limpou-os o melhor que pôde mas pouco melhoraram.

- Como o vestido é comprido - calculou ela - não se vêem os sapatos.

E, quando na véspera do baile a costureira trouxe o vestido, Lúcia enfiou-o logo, calçou os sapatos e constatou que a saia tocava bem no chão e que ninguém veria como ela estava cal­çada.

O único perigo era o facto de os sapatos esta­rem um pouco largos.

- Tenho de caminhar com cuidado - pensou ela.

Mas agora, ali, na sala de baile, escondida atrás de um grupo de pessoas e voltada para o espelho murmurou:

- Era melhor não ter vindo.

O espelho era antigo e tinha um fundo emba­ciado, manchado e verde onde Lúcia se via como uma afogada boiando numa água sinistra.

- Estou pálida - constatou - preciso de pôr mais rouge.

Resolveu ir ao quarto de vestir. Indagou onde ficava, explicaram-lhe que no andar de cima, à esquerda.

Saiu da sala de baile, atravessou a entrada, subiu a escada. Mas a meio da escada fugiu­-lhe o sapato do pé direito. Olhou com terror em sua roda. Ninguém tinha visto.

Tenho que caminhar com cuidado - suspirou. No quarto de vestir estavam três raparigas a pentear-se em frente' do espelho. Não a viram entrar. Conversavam umas com as outras, mas cada uma olhava o seu reflexo. Diziam:

- Quem é aquela rapariga com um horrível vestido lilás?

- Não sei, pensei que já não havia ninguém capaz de se vestir de lilás.

- Coitada, tenho pena dela. Deve ser um ves­tido emprestado.

- Vocês são más e snobonas. O vestido é feio mas ela é bem bonita - atalhou a terceira rapa­riga que tinha estado calada.

- Talvez fosse bonita se estivesse vestida de outra maneira. Assim...

Mas Lúcia não ouviu mais.

Recuou com cuidado e saiu sem fazer baru­lho, esperando não ser vista.

- Para que vim eu a este baile? - pen­sou. - Aqui o meu vestido é uma espécie de anti-passaporte que me proíbe a passagem para o mundo deles.

Desceu a escada. Na entrada parou em frente de um grande espelho de moldura doirada, pendurado por cima de um tremó. Estava ainda mais pálida agora. Abriu a carteira e, rapida­mente, pôs um pouco mais de rouge nos dois lados da cara.

Então, no fundo do espelho, atrás da sua cara, viu, descendo a escada, a terceira rapariga. Era loira, não alta mas esguia e tinha um ar aéreo. O vestido de chiffon cor-de-rosa pálido dançava em redor de seus passos.

Lúcia fingiu não a ver mas a rapariga avan­çou, parou ao seu lado em frente do espelho, sorriu e disse:

- Não se veja nesse espelho. Faz muito má cara.

Lúcia perplexa murmurou:

- Pois é, talvez...

- A sua pele é linda e branca - atalhou a rapariga, e, ali, parece cinzenta. É melhor não olhar para lá.

Pairou um silêncio. Alguém que passava cha­mou a rapariga. Ela, sem se mover, respondeu:

- Vou já.

Depois hesitou um instante, sorriu de novo e, olhando Lúcia, continuou:

- Sabe... é preciso não dar importância a este género de espelhos. São como as pessoas más, não dizem a verdade.

- Pois, pois é - concordou Lúcia tentando entrar no imprevisto tom da conversa.

_ Sabe - e a rapariga tomou um ar ausente como se falasse sozinha - não sabemos ao certo o que querem os maus reflexos, os maus olha­res, as más palavras. Talvez a perdição da nossa alma. E temos que manter nossa alma livre.

- Pois é - concordou Lúcia espantada.

- É - rematou a rapariga.

Depois, voltou a sorrir, sacudiu os cabelos e disse:

- Tenho de ir, até já.

E afastou-se.

As palavras da rapariga, estranhas e entrecor­tadas, deixavam no ar algo inacabado, algo sus­penso.

«Que queria ela dizer?» perguntou Lúcia a si própria.

«Será que percebeu que eu ouvi a conversa no quarto de vestir e me quis consolar? Ou será que não compreendi nada? Será que ela estava a falar numa linguagem do grupo dela, que eu não entendo? Ou será que estava só a dizer fra­ses esquisitas para se fazer interessante?»

Sentia-se confusa e irritada, desconfiava da simpatia da rapariga e daquela conversa súbita e, de certa forma, estranha. Suspeitava qualquer armadilha. Mas, ao mesmo tempo, obscuramente, parecia-lhe que a rapariga a tentara ajudar a defender-se de algum perigo que ela não queria ver.

Enquanto se interrogava tinha chegado ao li­miar da sala de baile. A cadeira ao pé da jane­la, semi-escondida pela cortina, continuava vazia.

Lúcia contornou os pares que dançavam e foi sentar-se ali.

Sobre os seus ombros passava o perfume do jardim: cheiro a madressilva e erva cortada, fres­cor de humidade nocturna.

Alguém passou ali perto e disse:

- Que bonita festa!

Lúcia olhou: era uma bonita festa. Luzes, música, flores. Mas eram os vestidos que acima de tudo a deslumbravam. Nunca tinha imaginado que pudessem existir vestidos tão maravilhosos. Vestidos estreitos e esguios, vestidos flutuantes que esvoaçam ao sabor dos gestos, vestidos roda­dos como corolas brilhantes de enormes flores. Intensamente atenta, Lúcia admirava-os, invejava­-os, mirava cada pormenor, fixava a eficácia de cada feitio.

- Se um daqueles vestidos, o azul ou o branco, pudesse ser o meu! - murmurou.

De súbito irritou-se. Levantou-se e, virando as costas à sala, debruçou-se sobre o jardim.

A noite poisou a sua mão fresca sobre a sua cara afogueada.

Ficou assim alguns instantes. Quando de novo se virou para a festa, viu, perto dela, a filha da dona da casa. Estava a dançar com um rapaz alto, bonito, moreno.

O rapaz ao passar viu Lúcia atrás da cortina. Inclinou-se para a ver melhor e sorriu. Depois disse qualquer coisa à filha da dona da casa. A rapariga olhou para o lado, reconheceu Lúcia, sorriu e, sorrindo-lhe, respondeu ao rapaz.

- Estão a rir-se de mim - calculou Lúcia.

Mas quando a música. acabou a filha da dona da casa, seguida pelo rapaz, avançou para a janela.

Lúcia fingiu não os ver e olhou para o jardim.

Mas a rapariga parou em frente dela e per­guntou:

- Está a ver o jardim?

Depois, sem esperar resposta apresentou-lhe o rapaz e deixou-os.

O rapaz encostou-se à janela.

Lúcia não sabia o que havia de dizer. Por fim murmurou:

- Estava a ver a noite.

- Vamos continuar a ver a noite - respon­deu ele.

E virando as costas à sala debruçou-se sobre o jardim, respirou fundo e exclamou:

- Cheira bem, cheira a erva cortada, a buxo, a tílias, a madressilva.

- É - aprovou Lúcia debruçando-se também na janela.

- Tudo parece tão misterioso: o brilhar do luar entre as sombras e as folhas das árvores, o reflexo da lua no lago. O lago parece um espelho. É uma noite mágica.

- Está lindo - murmurou Lúcia um tanto perplexa.

- Ainda é Primavera e já é Verão. As noi­tes, neste tempo do ano, são uma maravilha, apetece vivê-las minuto a minuto, não per­der nem um instante delas, nem um suspiro da brisa.

- É maravilhoso - aprovou Lúcia tentando mais uma vez captar o estilo da conversa.

Houve um longo silêncio.

De súbito o rapaz acordou da contem­plação e com um leve arrebatamento per­guntou:

- Estas noites assim não a assustam? Assustar? Porquê?

- Tanto azul, tantos brilhos, brisas, perfumes, parecem a promessa de uma vida deslumbrada que é a nossa verdadeira vida. Mas, ao mesmo tempo, há nestas noites uma angústia especial - há no ar o pressentimento de que nos vamos despistar, nos vamos distrair, nos vamos enga­nar e não vamos nunca ser capazes de reconhe­cer e agarrar essa vida que é a nossa verdadeira vida.

Lúcia hesitou, suspeitosa. Duvidava simultaneamente do estilo da conversa e do seu próprio entendimento. O rapaz parecia-lhe tonto e lunático. Compreendeu que não pode­ria dizer que para ela a verdadeira vida seria estar naquele baile com um vestido lindíssimo. Essas coisas não se dizem. Por isso respondeu:

- Pois é, está uma noite extraordinária.

Mas, depois, abruptamente perguntou:

- Porque é que me diz essas coisas? Não me conhece, não sabe como eu sou.

- Porque você estava a olhar para a noite em vez de estar a olhar para os vestidos.

- Como é fácil enganar - pensou Lúcia.

Não respondeu nada mas abriu um grande sorriso.

O rapaz perguntou:

- Quer dançar?

- Não sei dançar - respondeu ela dura­mente.

O rapaz tornou a sorrir e disse:

- É fácil, eu ensino-lhe.

Tomou-lhe a mão para a ajudar a levantar-se e guiou-a para o lugar da dança.

Começaram a dançar. Lúcia tropeçava nos pró­prios passos. Tornou a dizer:

- Não sei dançar.

E acrescentou:

- É melhor pararmos.

Mas ele continuou a dançar, olhou-a, sorriu de novo e disse:

- Não faz mal. Eu gosto de dançar consigo mesmo que dance mal.

O rosto de Lúcia iluminou-se. Não era só o elogio daquele rapaz bonito que a alegrava. Era, posta nela, a atenção de alguém que pertencia ao mundo do brilho e poder onde ela queria penetrar.

Deixou de tropeçar, começou a seguir a música, sorriu inclinando a cabeça para o lado.

Mas foi então que a coisa mais temida acon­teceu.

Estavam agora dançando no meio da sala, precisamente no meio da sala, debaixo do lus­tre, quando o sapato esquerdo escorregou do pé de Lúcia. Ela sentiu-o escorregar, mas, levada pelo movimento da dança, não conseguiu parar logo para o segurar. Olhou e viu o sapato sepa­rado de si no meio da sala. Ia a dizer: - É meu - quando uma rapariga começou a rir e perguntou:

- O que é aquilo? Mas o que é aquilo?

Lúcia calou-se.

Várias pessoas olharam. Riam. As palavras cruzavam-se no ar.

- Um sapato!

- Todo roto!

- De quem será?

- Não é de ninguém. É uma partida?

- Quem terá tido esta ideia?

- Que ideia fazer partidas de Carnaval em Junho!

- Talvez não seja partida. Talvez seja de alguém que o perdeu.

- Ninguém é capaz de vir para um baile com um sapato daqueles.

O sapato estava miserável. Com os movimen­tos do pé de Lúcia, a seda do forro tinha reben­tado na biqueira e no salto.

Algumas pessoas não viam ou fingiam não ver, mas outras olhavam, comentavam.

Lúcia dançava muito direita em equilíbrio na ponta do pé descalço que o vestido comprido escondia.

Quando a música acabou e os pares abando­naram o espaço da dança o sapato ficou sozinho no centro da sala, esfarrapado e miserável sobre o chão polido.

Lúcia e o rapaz tinham-se sentado num sofá. Ela não sabia se ele tinha ou não tinha com­preendido que o sapato era dela. Não ousava encará-lo.

A dona da casa chamou um criado e murmu­rou qualquer coisa.

O criado foi buscar as pinças que estavam penduradas ao lado do fogão e agarrou com elas o sapato e levou-o.

A música recomeçou a tocar.

O rapaz perguntou qualquer coisa a Lúcia mas ela só respondeu:

- Tenho sede.

- Vou-lhe buscar uma bebida - disse ele.

Levantou-se e saiu pela porta da esquerda.

- Compreendeu que o sapato era meu - pen­sou ela - e arranjou uma maneira de se ir embora.

Uma das raparigas que conhecera no princí­pio da noite veio sentar-se junto dela: olhou Lúcia na cara e perguntou-lhe com ar trocista:

- De quem seria o sapato?

- Não sei disse Lúcia.

- Eu sei respondeu a rapariga.

E, rindo, afastou-se e dirigiu-se para um grupo de amigas.

- Tenho de sair daqui depressa, depressa murmurou Lúcia.

Levantou-se e saiu da sala.

A entrada estava vazia. Já tinha acabado a hora das chegadas e ainda não tinha começado a hora das partidas.

Perto da escada havia uma porta aberta que dava para um quarto pouco iluminado. Lúcia espreitou: era uma pequena sala vazia. Entrou e fechou a porta atrás de si.

Mas então viu que o lado de dentro da porta, o lado que dava para o interior da pequena sala, era, de cima a baixo, forrado de espelho. E nesse espelho ela viu-se toda, pálida, com o vestido detestado escorrendo desde os ombros até aos pés.

Recuou em frente do seu reflexo. Procurou na sala um lugar onde se pudesse esconder da sua imagem. Sentou-se na cadeira que ficava à esquerda e sentou-se no sofá que ficava à direita. Mas em toda a parte o espelho a via.

O seu olhar frio e brilhante litava o vestido lilás. Lúcia olhou em redor. Em frente da porta por onde tinha entrado outra porta abria para a varanda.

E refugiou-se na varanda.

Dali via-se o interior da sala de baile cujas janelas estavam abertas.

E, lá dentro, no meio das danças e das pes­soas, ela avistou o rapaz com quem dançara. Estava parado em frente do sofá onde ambos tinham estado sentados. Trazia na mão um copo e parecia procurar alguém.

- Está à minha procura - constatou Lúcia.

O rapaz percorreu a sala toda com o olhar, e depois aproximou-se da rapariga que momen­tos antes perguntara a Lúcia se ela sabia de quem era o sapato. O rapaz disse-lhe qualquer coisa com a expressão e o gesto de quem per­gunta.

Lúcia não podia dali ouvir nem a pergunta nem a resposta. Mas viu que a rapariga ria muito e sacudia a cabeça enquanto respondia.

O rapaz afastou-se dela com gestos um pouco incertos e ficou isolado num canto da sala, com o copo na mão.

- Ele perguntou-lhe onde eu estava. Ela deve respondido: «Foi à procura do sapato». Ele agora sabe que o sapato era meu e tem dó de mim - pensou Lúcia.

E mesmo sozinha corou de vergonha.

Afastou-se do lugar onde estava e sentou-se num canto sombrio onde havia um banco.

Apoiou o cotovelo no frio parapeito de pedra da varanda, apoiou o rosto na sua mão e mer­gulhou o olhar na onda escura da noite.

- Que hei-de eu fazer, que hei-de eu fazer? - murmurou.

Começou a imaginar que era ela própria e estava naquele mesmo dia, naquele mesmo baile, mas que tinha um maravilhoso vestido, o mais belo vestido que havia no baile. E quando ela passava, as pessoas murmuravam: - Que vestido maravilhoso! - Ouviu o roçar leve do vestido pelo chão e viu a sua imagem brilhando nos espelhos.

Sussurrou:

- Mas como?

Então lembrou-se:

Naquele ano, no dia em que fizera dezoito anos, a madrinha tinha-lhe dito:

Lúcia, tens dezoito anos, é preciso pensar no teu futuro. Não conheces ninguém, não és convidada para nada, andas vestida como uma pobre. Vem viver comigo que sou tua madrinha e não tenho filhos. Se vieres viver comigo, eu dou-te todas as coisas de que pre­cisas.

- Não posso deixar o meu pai e os meus irmãos - disse Lúcia.

- Bem - respondeu a madrinha. - Viver é escolher. Tu escolhes ficar com o teu pai. Mas o meu convite fica em aberto. Se um dia escolheres um caminho diferente, vem viver comigo.

Lúcia ficou a viver com o pai e os irmãos.

Mas agora, ali, com a cara encostada à pedra fria da parede, com o olhar mergulhado no escuro da noite, lembrou-se do convite que lhe fora feito e murmurou:

- Tenho de escolher outro caminho. Tenho de ir viver com a minha madrinha.

Mas algo nela hesitava: deixar a sua casa, aqueles que a amavam, deixar a doce liberdade familiar - entre a aérea distracção do pai, os irmãos descendo como bólides pelo corrimão, o desleixo das criadas velhas, os quartos onde o papel se descolava da parede, a sala onde a seda dos cortinados se esgarçava e trocar tudo isso, que era quente, vivo e livre, pela minuciosa tira­nia da tia rica e pelos seus discursos de pru­dência e cálculo, era difícil. Mas ela não queria renunciar ao outro caminho.

Lembrou-se da rapariga vestida de cor-de­-rosa. «Que tinha ela dito?», perguntou Lúcia a si própria. «Que era preciso não se importar». Mas ela, Lúcia, não queria não se importar. Aquele baile, aquele gente que a ignorara e humilhara era o mundo que ela decidira esco­lher. Aqueles eram os vestidos, os sapatos, as jóias que ela queria possuir. Aquele o poder que desejava.

Poisou as mãos sobre a pedra fria do corri­mão da varanda e murmurou:

- Tenho de escolher outro caminho. Um dia hei-de voltar aqui com um vestido maravilhoso e com sapatos bordados de bri­lhantes.

Daí a dias Lúcia foi viver com a tia.

Iniciou então o seu novo caminho. Passou a ter tudo que antes não tinha.

O mundo tem um preço e Lúcia pagou o preço do mundo. Onde antes encontrara des­prezo agora encontrava triunfo. Todas as coisas lhe eram oferecidas como por mãos invisíveis. Era como se ela tivesse penetrado num palácio mágico onde tudo a servia, tudo lhe obedecia.

A partir do dia da escolha, o seu êxito tornara-se mecânico. Ela nem precisava quase de lutar por ele, ele aparecia-lhe, tudo o suscitava. Era como se nela agora houvesse uma fatalidade de triunfo.

Casou com um homem rico que depois de ter casado com ela se tornou cada vez mais rico. A sua beleza crescia de ano para ano, novos amigos a procuravam todos os dias. Na sua vida não havia nenhuma sombra senão a memória do antigo baile, do primeiro baile a que tinha ido.

Tinha o vestido de seda lilás embrulhado em papel de seda, guardado dentro de uma caixa, escondida dentro de uma gaveta.

Mas, às vezes, Lúcia fechava-se à chave, sozi­nha, no seu quarto e tirava a caixa da gaveta e o vestido da caixa.

Depois estendia o vestido lilás em cima da sua cama e olhava-o longamente e pensava:

- Preciso de queimar este vestido.

E assim passaram vinte anos. Também o tempo parecia servir Lúcia. Ela tinha embelezado sempre mais. O oval da sua cara agora era mais fino, os seus traços mais desenhados, os seus gestos mais perfeitos, a sua voz mais equilibrada e serena.

E nesse vigésimo ano, em certa manhã de Maio, Lúcia recebeu um convite. Um convite para um baile no primeiro dia de Junho. Um baile na mesma casa onde ela, vinte anos antes, tinha ido com um vestido lilás, feio e fora de moda.

Sorriu e lembrou-se da frase que então dissera:

- Um dia hei-de voltar aqui com um vestido maravilhoso e com sapatos bordados de bri­lhantes.

Aquele convite para um baile, na mesma casa, na mesma noite de Junho era como um encontro marcado pelo destino. E pareceu a Lúcia que era preciso que agora ela fosse àquele baile para com o seu triunfo, o seu sucesso pre­sente, apagar, até ao último vestígio, a memó­ria da humilhação ali antes sofrida. Era preciso que ela, como a madrasta da Branca Flor, pudesse naquela noite perguntar a todos os espe­lhos da casa:

- Dizei-me espelhos, qual é a mais bela, a mais perfeita, a mais rica de triunfo, aquela que está em seu reino mais segura?

E era preciso que todos os espelhos, até de madrugada, lhe respondessem:

- Tu.

Daí a tempos, no circulo onde Lúcia vivia, começou a correr uma notícia estranha: dizia-se que Lúcia mandara fazer uns sapatos bordados de brilhantes verdadeiros.

Mas ninguém acreditou que isto fosse de facto verdade. A história pareceu fantástica demais.

O mês de Maio, trémulo de brisas, foi con­tando um por um os seus dias e no primeiro dia de Junho, à noite, depois do jantar, antes do baile, Lúcia fechou-se à chave no seu quarto.

Depois, com outra chave, abriu uma ga­veta. Tirou da gaveta uma caixa e da caixa tirou o vestido lilás e estendeu-o em cima da cama.

Em seguida, tirou do armário o vestido novo e os novos sapatos e começou a vestir-se.

Depois de vestida, penteada, pintada e perfu­mada, olhou-se no espelho. Tendo visto que tudo estava como desejava, parou ao lado da sua cama, em frente do seu antigo vestido que fitou em silêncio. Por fim disse:

- Amanhã vou queimar este vestido.

E de novo guardou o vestido na caixa e a caixa na gaveta.

Quando ela apareceu no limiar da grande sala de baile, primeiro, ninguém acreditou no que via. Agora os vestidos de baile já não se usa­vam compridos até ao chão: a saia de Lúcia ter­minava um pouco acima das canelas. E os seus sapatos bordados de brilhantes viam-se bem. Algumas pessoas pararam de dançar.

Lúcia deu lentamente a volta à sala, mostrando o brilho dos seus passos. Murmúrios correram de boca em boca:

- Não é possível que sejam verdadeiros bri­lhantes!

- É uma imitação!

- É inacreditável!

- Mas são verdadeiros!

- São falsos com certeza,

- Mas nunca vi jóias falsas brilharem tanto!

Os sapatos brilhavam com mil luzes. E o seu fogo era tão límpido, tão puro e tão agudo que todos compreenderam que, de facto, Lúcia tinha vindo àquele baile com sapatos bordados de bri­lhantes verdadeiros.

Houve um primeiro movimento de espanto e quase de escândalo.

Mas Lúcia começou a dançar. Os seus pas­sos traçavam círculos sucessivos de luz, fogo e brilho. Todos os olhares a seguiam. O lume dos diamantes espalhara-se em toda a sua pessoa.

E à medida que a sua dança dava volta à sala, Lúcia ia-se vendo de espelho em espelho. Cada espelho lhe dizia «tu». E ela sacudia os cabelos e batia as pestanas.

Era já o meio da noite quando disse a si própria: - Agora tenho de voltar àquela sala onde há vinte anos me fui esconder. Tenho de ver-me de novo no espelho que está atrás da porta, no espelho onde tive vergonha do meu reflexo.

E, como outrora, saiu da sala de baile, atra­vessou a entrada e penetrou na pequena sala que ficava à esquerda da escada. Como outrora essa sala estava vazia.

Lúcia fechou a porta atrás de si e virou-se para o espelho. Era o mesmo espelho, ainda lá estava. Mas também a mesma imagem lá estava ainda.

Todo o seu corpo gelou num momento de hor­ror. O seu sangue parou de correr. Um grito ficou estrangulado na sua garganta. Viu-se no espelho. Viu-se e viu que o vestido que ela ti­nha vestido era ainda o mesmo, era ainda o antigo vestido lilás.

E o vestido parecia encher a sala, espalhar­-se no ar. A sua cor parecia erguer-se como uma palavra, parecia escorrer como um metal fundido.

Lúcia queria gritar, mas o grito estava preso no seu pescoço.

Levou a mão à garganta.

Então o espelho muito devagar começou a mover-se. Girou lento sobre si mesmo e a porta abriu-se deixando entrar um homem.

Mas pareceu a Lúcia que ele não tinha entrado pela porta mas que tinha antes surgido do pró­prio espelho.

Era um homem de bela aparência e de ar exacto e brilhante. Tudo nele mostrava inteligên­cia, poder, posse, domínio.

Inclinou-se ligeiramente, com ar amável, segu­rou o braço de Lúcia e disse:

- Vamos para a varanda.

Cá fora na varanda a sombra da noite era inquieta e pesada.

Lúcia respirou com esforço, sentou-se no banco de pedra e disse:

- Parece-me que não o conheço.

- Conheces - respondeu o desconhecido.

Desde há vinte anos. Estivemos juntos nesta varanda, numa noite de Junho, há vinte anos. Foi aqui que nos conhecemos.

- Eu estive aqui, mas estava sozinha.

- Eu espiei-te. Vi-te.

- Vai-te embora - murmurou Lúcia.

Mas o homem respondeu:

- Há vinte anos, aqui, nesta varanda escolheste o outro caminho. Eu sou o outro caminho

- O que é que tu queres de mim agora?

- Quero o sapato do teu pé esquerdo.

- O sapato?

- Sim, o teu sapato.

- Não, não, não! - gritou Lúcia. - O sapato é meu. Ganhei-o. Fui eu que o ganhei. É o trabalho da minha vida inteira. É a minha vida.

- Dá-me o teu sapato, Lúcia.

Lúcia recuou com terror e disse:

- Não, o sapato, não.

- Ouve, Lúcia. Lembra-te: a partir daquela noite de há vinte anos tiveste uma vida maravi­lhosa. Nada te foi recusado, nunca mais sofreste uma humilhação. Outros sofreram, foram aban­donados, humilhados, vencidos. Tu, não. Tu venceste sempre. Dá-me o teu sapato: é o preço do mundo.

. - Não posso ficar no meio de um baile com um pé calçado e o outro descalço.

- Quando aqui te encontrei há vinte anos tam­bém tinhas um pé calçado e outro descalço. Mas eu penso em tudo. Não me esqueço de nada. Trouxe outro sapato para o teu pé esquerdo.

E dizendo isto o homem estendeu-lhe na mão um sapato.

Era um sapato de salto alto, forrado de seda azul, velho, miserável, esfarrapado.

Lúcia quis fugir, mas o seu corpo estava rígido e ela não pôde mover nenhum dos seus mem­bros. Quis gritar, mas a sua voz estava muda.

O homem inclinou-se, tirou-lhe do pé o sapato de brilhantes e calçou-lhe o sapato de farrapos.

Quando ao clarear do dia encontraram Lúcia morta na varanda, ninguém quis acreditar no que via. Dizia-se:

- Não é possível, não pode ser.

Parecia inexplicável.

Mas veio o médico e constatou que a morte tinha sido causada por uma síncope cardíaca. Era uma explicação.

O facto de ter desaparecido o sapato também era explicável: alguém que a vira morta ou jul­gara adormecida não tinha resistido à tentação dos brilhantes.

Mas o que era inexplicável era o facto dela ter no pé esquerdo um sapato forrado de seda

azul, um sapato de aspecto miserável, roto e coberto de manchas esbranquiçadas de bolor.

Para isso nunca apareceu explicação.

O acontecimento foi discutido com paixão obcecada durante alguns meses. Depois foi esquecido.

 

                   O Silêncio

Era complicado. Primeiro deitou os restos de comida no caixote do lixo. Depois passou os pratos e os talheres por água corrente debaixo da torneira. Depois mergulhou­-os numa bacia com sabão e água quente e, com um esfregão, limpou tudo muito bem. Depois tornou a aquecer água e deitou-a no lava-loiças com duas medidas de sonasol e de novo lavou pratos, colheres, garfos e facas. Em seguida pas­sou a loiça e os talheres por água limpa e pô­-los a escorrer na banca de pedra.

As suas mãos tinham ficado ásperas, estava cansada de estar de pé e doíam-lhe um pouco as costas. Mas sentia dentro de si uma grande limpeza como se em vez de estar a lavar a loiça estivesse a lavar a sua alma.

A luz sem abat-jour da cozinha fazia brilhar os azulejos brancos. Lá fora, na doce noite de Verão, um cipreste ondulava branda­mente.

O pão estava no cesto, a roupa na gaveta, os copos no armário. O vaivém, a agitação e o tumulto do dia repousavam.

Havia um grande sossego. Tudo estava arru­mado e o dia estava pronto.

E Joana atravessou devagar a sua casa.

Ia abrindo e fechando as portas, abrindo e fechando as luzes. Os quartos desapareciam no escuro e surgiam do escuro na claridade.

Um doce silêncio pairava como uma sede estendida.

O silêncio desenhava as paredes, cobria as mesas, emoldurava os retratos. O silêncio esculpia os volumes, recortava as linhas, aprofundava os espaços. Tudo era plástico e vibrante, denso da própria realidade. O silên­cio como um estremecer profundo percorria a casa.

As coisas conhecidas - o muro, a porta, o espelho - mostravam uma por uma a sua bele­za e a sua serenidade. E nas janelas abertas a noite de Junho mostrava o seu rosto constelado e suspenso.

Joana deu lentamente a volta à sala. Tocou o vidro, a cal, a madeira. Há muito já que cada coisa tinha encontrado ali o seu lugar. E era como se esse lugar, como se a relação entre a mesa, o espelho, a porta, fossem a expressão de uma ordem que ultrapassava a casa.

As coisas pareciam atentas. E a mulher que lavara a loiça procurava o centro dessa atenção. Sempre o procurara, mas quem o pode captar?

O silêncio agora era maior. Era como uma flor que tivesse desabrochado inteiramente e ali­sasse todas as suas pétalas.

E em roda deste silêncio os astros da noite exterior giravam lentamente e o seu movimento imperceptível tornava em si a ordem e o silên­cio da casa.

Com as mãos tocando a parede branca, Joana respirou docemente. Era ali o seu reino, ali na paz da contemplação nocturna. Da ordem e do silêncio do universo erguia-se uma infinita liber­dade. Ela respirava essa liberdade que era a lei da sua vida, o alimento do seu ser.

A paz que a cercava era aberta e transparente.

A forma das coisas era uma grafia, uma escrita. Uma escrita que ela não entendia, mas reco­nhecia.

Atravessou a sala e debruçou-se na janela aberta em frente do puro instante azul da noite.

As estrelas brilhavam, íntimas e distantes. E pareceu-lhe que entre ela e a casa e as estrelas fora estabelecida desde sempre uma aliança. Era como se o peso da sua consciência fosse necessário ao equilíbrio das constelações, como se uma intensa unidade atravessasse o universo inteiro.

E ela habitava essa unidade, estava presente e viva na relação das coisas e a própria reali­dade atenta a abrigava em sua imensa e aguda presença. A felicidade e essa felicidade era no seu centro uni­dade.

Debruçou-se na janela e apoiou os braços na pedra fresca do parapeito.

Uma leve brisa agitou os ramos dos cedros. No rio, rouca, apitou uma sereia. Na torre o sino bateu duas badaladas.

Foi então que se ouviu o grito.

Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro.

Joana virou-se na janela. Houve uma pausa. Um pequeno momento imóvel, suspenso, hesi­tante. Mas logo novos gritos se ergueram, tres­passando a noite. Estavam a gritar na rua, do outro lado da casa. Era uma voz de mulher. Uma voz' nua, desgarrada, solitária. Uma voz que de grito em grito se ia desformando, desfigurando até ficar transformada em uivo. , Uivo rouco e cego. Depois a voz enfraqueceu, bai­xou, tomou um ritmo de soluço, um tom de lamentação. Mas logo voltou a crescer, com fúria, raiva, desespero, violência.

Na paz da noite, de cima a baixo, os gritos abriram uma grande fenda, uma ferida. E assim como a água começa a invadir o interior enxuto quando se abre um rombo no casco de um navio, assim agora, pela fenda que os gritos tinham aberto, o terror, a desordem, a divisão, o pânico penetravam no interior da casa, do mundo, da noite.

Joana afastou-se da janela que dava para o jardim, atravessou a sala, o corredor e o quarto e, no outro lado da casa, debruçou-se na janela que dava para a rua.

A mulher via-se mal, agarrada à parede, na meia-luz, do outro lado do passeio. Os seus gri­tos nus, próximos, desmedidos enchiam a penum­bra. Na sua voz a terra e a vida tinham despido os seus véus, o seu pudor e mostravam o seu abismo, revelavam a sua desordem, a sua treva. De uma ponta à outra da rua os gritos corriam batendo contra as portas fechadas.

Era uma rua estreita, apertada entre edifícios sem cor, pesados e tristes. Ali a noite era cin­zenta, o ar baco parado e pegajoso.

Cães vadios farejavam o chão dos passeios e rebuscavam os caixotes do lixo tentando agar­rar sob as tampas os restos, as cascas, o pes­coço da galinha degolada.

O edifício enorme da prisão enchia todo o lado esquerdo da rua com as altas paredes cortadas por pequenas janelas de grades. A essa parede estava encostada a mulher. Ás vezes erguia a cara e então via-se o rosto torcido e desfigurado pelo grito. Ao seu lado desenhava-se o vulto de um homem.

Era tarde. As portas e as janelas estavam fe­chadas sobro gente adormecida e na rua não pas­sava mais ninguém. Só de longe a longe se ouvia um chiar de carros na viragem das esquinas.

O homem procurava arrastar a mulher e, quando os gritos diminuíam um instante, implorava-lhe que se calasse, pedia:

- Vamos embora.

Mas ela não o ouvia. Gritava como se esti­vesse só no mundo, como se tivesse ultrapassado toda a companhia e toda a razão e tivesse encontrado a pura solidão. Gritava contra as paredes, contra as pedras, contra a sombra da noite. Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão, como se o seu desespero e a sua dor brotassem do próprio chão que a suportava. Erguia a sua voz como se quisesse atingir com ela os confins do universo e, aí, tocar alguém, acordar alguém, obrigar alguém a responder. Gritava contra o silêncio.

Às vezes calava-se um momento e inclinava a cabeça para trás como quem espera ouvir uma resposta.

Então, de novo, o homem implorava:

- Cala-te, cala-te. Vamos embora daqui.

Mas ela recomeçava a gritar e batia com os punhos na parede da prisão como se quisesse forçar a pedra a responder. Gritava como se qui­sesse atingir um ausente, acordar um adorme­cido, abalar uma consciência impassível e, alheada, tocar o coração de um morto.

Através das paredes, das portas, das ruas, da cidade, gritava para o fundo do universo, para o fundo do espaço, para o fundo da ocultação da noite, para o fundo do silêncio.

De repente calou-se, curvou a cabeça, tapou o rosto com as mãos. Então o homem cobriu­-lhe os cabelos com o xaile, afastou-a da parede, passou-lhe um braço em roda dos ombros, e, devagar, juntos, desceram a rua e viraram a esquina.

Durante algum tempo flutuou no ar pesado da rua um eco de soluços e de passos que se afastavam e diminuíam. Depois voltou o silên­cio.

Um silêncio opaco e sinistro onde se ouvia o esgravatar dos cães.

Joana voltou para a sala. Tudo agora, desde o fogo da estrela até ao brilho polido da mesa, se tinha tornado desconhecido. Tudo se tinha tornado acidente absurdo, sem ligação, sem reino. As coisas não eram dela, nem eram ela, nem estavam com ela. Tudo se tornara alheio, tudo se tornara ruína irreconhecível.

E, tocando sem os sentir o vidro, a madeira, a cal, Joana atravessou como estrangeira a sua casa.

 

                     A CASA DO MAR

Corre um passeio de pedra que separa a casa das areias da duna - Para além das dunas a praia estende-se a todo o comprimento da costa e só o limite do olhar a limita. E, de norte a sul, ao longo das areias, correm três linhas escuras e grossas de algas, búzios e conchas, misturados com ouriços, peda­ços de cortiça e pedaços de madeira que são res­tos de bóias e de barcos. Sobre a areia molhada que a maré cheia alisou o poisar das gaivotas deixa finas pegadas triangulares, semelhantes à escrita de um tempo antiquíssimo. As traseiras da casa dão para um jardim inculto e rude e áspero onde o vento que dobra os arbustos se precipita e dança em volta do poço redondo. O chão está coberto de pequenas pedras soltas que rangem e saltam sob os passos. Presa num arame a roupa lavada a secar ao sol estala e pal­pita como as velas de um navio .

A norte, a leste e a sul o jardim é limitado por três muros toscos feitos de calhaus de gra­nito sem reboco. No muro do fundo, que dá para a rua deserta onde os plátanos sonham devagar a própria sombra, há uma cancela que continuamente bate e gira e geme no vento.

Vai-se escangalhando dia a dia e, quando os gonzos rebentarem, ficará muito tempo caída no chão sem que ninguém a apanhe.

No lado poente, onde os dias duram e luzem e se arrastam, o jardim avança pela duna e confunde-se com a praia, apesar dos pilares de granito que marcam os seus limites. Dali se avista, para o sul, no extremo da distância, para lá da foz do pequeno rio onde a costa se encurva levemente, uma cidade que vem até à orla do mar. O seu recorte esfuma-se um pouco nas névoas marítimas mesmo quando o tempo está radioso. Porém, em certos dias, a cidade de repente torna-se extremamente nítida e con­cisa, quase geométrica, e vê-se claramente a torre aguda e fina da igreja. Então sabe-se que vai chover.

Entre a casa e a cidade longínqua estendem­-se as dunas como um grande jardim deserto, inculto e transparente onde o vento que curva as ervas altas, secas e finas faz voar em frente dos olhos o loiro dos cabelos. Ali crescem tam­bém os lírios selvagens cujo intenso perfume, pesado e opaco como o perfume de um nardo, corta o perfume árido e vítreo das areias.

Dentro de casa o mar ressoa como no interior de um búzio. Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia como um molho de algas. Profundos os espelhos reflectem demoradamente os dias. E em frente das janelas o mar brilha como inumeráveis espelhos quebrados. Os móveis são escuros e finos, sem verniz, encera­dos. O chão é esfregado, as paredes caiadas. Em todas as coisas está inscrita uma limpeza de sal. A exaltação marinha habita o ar. A casa é aberta e secreta, veemente e serena. Nela o menor ruído - tinir de louça, degrau que range, res­piração do vento, comboio que ao longe passa -é escutado. A casa está atenta a cada coisa. Todos os dias a renovam. A mais leve nuvem que passa ensombra o vidro dos espelhos. Nela cada dia é único e precioso como se contivesse a totalidade do tempo. No brilho da mesa, na transparência do copo, há como que uma inten­sidade repousada.

Quem chega pelo lado de trás da casa entra num corredor largo onde há um grande armário de madeira escura no qual estão guardadas loi­ças. À direita, depois da copa, fica a cozinha onde uma pequena mulher temível reina em frente ao fogo. A cozinha é o antro da casa. É escura no interior da casa branca. Nela secam as ervas e as chaleiras gemem e soluçam como se sofressem. Apesar do fresco cintilante dos pei­xes, apesar do vermelho das carnes, apesar do amarelo dos limões, do verde polido dos pimen­tos empilhados no prato de barro, apesar do orvalho das manhãs que treme ainda na dureza tenra das grandes couves redondas e fechadas, a cozinha, com seus ferros, suas chamas, suas facas agudas, seu cantar de chaleiras, seus fumos, seu frigir de óleos, seu cheiro de amên­doa, gordura, fogo e fruta, tem algo de inquie­tante que acompanha o longo catálogo de malefícios, desgraças, acidentes, doenças, perigos, prenúncios e ameaças suspensas que a pequena mulher temível continuamente recorda em frente do fogo.

À esquerda da copa, no lado da casa que dá para a praia, fica a sala de jantar. Tem no meio uma mesa comprida rodeada de cadeiras e em cada ângulo dos muros pequenas cantoneiras de madeira.

No centro da mesa há um fruteiro redondo onde maçãs vermelhas se recortam sobre a madeira escura e contra a cal das paredes. Poli­das e redondas as maçãs brilham e parecem interiormente acesas, como se as habitasse o lume de uma intensa felicidade à qual responde o luzir do mar cujo azul cintila entre as persia­nas. E, quando as vidraças estão abertas, o per­fume seco das dunas mistura-se com o perfume das maçãs.

Da sala de jantar passa-se para uma sala qua­drada onde há uma porta que dá directamente para o patamar de pedra que confina com a duna. Quem vem de fora sacode os pés antes de entrar para não encher a casa de areia. Ali as cadeiras de vime pintadas de castanho quase preto fazem um círculo à roda da mesa baixa onde o cigarro poisado no cinzeiro arde sozinho ao lado de uma jarra cheia de dálias vermelhas. Nesta sala reinam as fotografias.

Cercadas pelas molduras de prata, ora ovais ora redondas, ora rectangulares, as fotografias estabelecem, dentro do tempo, outro tempo, e, dentro de casa, outras casas e lugares e jardins. Verdes jardins sombrios e secretos cujo sussur­rar se funde no silêncio. Largas salas de muros claros com mobílias império e cortinados brancos, onde respira a brisa. Claras varandas debruçadas sobre o tanque rodeado de vasos. Salas, varandas, jardins habitados por persona­gens que são, todos eles, estranhamente belos: como se o seu corpo fosse a sua alma. Talvez a arte do fotógrafo os tivesse idealizado, talvez o tempo tivesse feito uma escolha, ou talvez que, nessa época, só as pessoas belas fossem fotogra­fadas. No papel semi-brilhante e semi-baço das fotografias pessoas e lugares, como se o tempo ali fosse outra coisa, vivem, sem cessar, a paixão e veemência do instante objectivo: a mão polida pela penumbra e pela luz e que docemente poisa sobre a mesa, o perfil sereno e claro com o cabelo brilhando sobre o vestido escuro, o colar de con­tas grossas em redor do pescoço fino, a pedra da escada, a sombra da tília sobre os ombros, a hera cobrindo o granito do muro, o longo corredor que tem, ao fundo, uma arca de cânfora sob o quadro do homem a cavalo, o quarto onde o rosto emerge branco da sombra, enquanto o espelho, ao fundo, mostra o outro lado do perfil.

A parte de trás da casa forma um L pois o lado sul se prolonga numa ala formada por quatro quartos dispostos ao longo do corredor que contorna a casa. Das janelas desses quartos virados para o sul não se vê o mar: vê-se a cho­rina de grossos dedos verdes e de flores ama­relas e roxas que cresce no jardim de areia, vê-se o muro de granito e, para lá do muro, a duna onde as ervas secas e transparentes dese­nham o ar e, aqui e além, ao longe, se avis­tam telhados, e se ouve, solitário, o ladrar dos cães. No andar de cima, mais pequeno do que o andar de baixo, há só quatro quartos. Para eles se sobe pela escada de madeira que estala e canta sob os passos acompanhando as idas e vindas da casa.

O quarto que fica ao cimo da escada, à esquerda de quem sobe, é um quarto pequeno onde a cama enche a parede do fundo, e a cómoda ocupa, quase por inteiro, a parede que fica ao lado da porta e em frente da janela. Por cima da cómoda há um espelho onde se vê o mar. A cama e a cómoda são móveis antigos, amplos e pesados e atravancam um tanto o quarto onde não há muito lugar para o movi­mento das pessoas. É um quarto para dormir ou para longas sestas semi-acordadas em tardes de Agosto e nortada, quando o vento cintila, o sol cintila e a portada verde bate. Quando está frio corre-se o vidro da janela de guilhotina e então o exterior parece nebuloso e fosco porque os vidros entre os caixilhos de madeira estão pica­dos e despolidos pelo morder do sal.

No fundo do corredor, no outro extremo desse andar, há um quarto grande e comprido, orien­tado de este a oeste no sentido do comprimento, e todo atravessado pela luz que vem do mar.

É um quarto simultaneamente luminoso, esver­deado e sombrio. Nas suas penumbras brilham pontos de oiro. E há reflexos vagabundos que vagueiam entre loiças, vidros, pratas, espelhos. No ar paira o perfume que sobe de um frasco de vidro doirado e preto que alguém deixou des­tapado.

Uma nuvem de fumo azul sobe muito lenta­mente. O quarto está cheio de livros empilhados nas mesas, na estante e mesmo nas cadeiras. Livros de capas amarelas e brancas e cinzentas. Alguns, dobrados ao meio, mostram a cor de trigo do papel e o desenho contínuo e cerrado das letras.

O quarto tem algo de glauco e de doirado como se nele morasse uma mulher de olhos ver­des e cabelos loiros, leves e compridos, de um loiro brilhante e sombrio, e cujo perfume é o perfume do sândalo. A beleza da sua testa é grave como a beleza da arquitrave de um tem­plo. Nos seus pulsos há um quebrar de caule. Nas suas mãos, através da finura da pele e do azul das veias, o pensamento emerge. Nesse quarto se vê a pausa em que o instante, de súbito, surpreende e fita e enfrenta a eternidade. E ali se vê o brilho vivo que navega no inte­rior da sombra. Ali se ouve a linguagem que, como nenúfar, aflora à tona das águas paradas do silêncio. Porque o quarto sussurra como se fosse o interior de uma tília onde palpitam miría­des de folhas verdes cujo reverso é branco e que batem como pálpebras, ora revelando ora escon­dendo o interminável brilho dos olhos magnéti­cos, verdes, cinzentos, azuis e desmesurados como mares. Ali o ar, em frente dos espelhos, oscila e parece arder como se as mãos, macias como pétalas de magnólia, alisassem e torces­sem longas madeixas de cabelo denso como sea­ras e leve como o fogo.

No entanto, às vezes o espaço torna-se apaixonadamente vazio, como se apenas o povoasse um longo e monótono e alucinado mar e tudo fosse impossibilidade, separação e distância, ou como se aquele quarto fosse o umbral do vazio, do indizível, da solidão total, do caos, da noite, do indecifrável.

É ali que, nas noites de vento sul, incide com mais força o clamor do temporal. Então, às vezes a janela abre-se de repente e o cheiro das flores selvagens da duna passa através da casa.

Esse quarto grande e comprido comunica com um quarto pequeno e quadrado, onde a parede da esquerda está quase totalmente ocupada por um toucador de mogno e mármore que tem, no centro um grande espelho oval. No toucador rei­nam os boiões e os frascos, as escovas e os pen­tes. Há o frasco de vidro dentro da caixa verde, a caixa de loiça, a tesoira, o anel esquecido, a écharpe caída.

Quem sai do quarto do fundo e espreita pela janela do corredor que dá para o pátio das tra­seiras vê, lá fora, os dois perdigueiros que erguem a cabeça quando alguém, com o nó dos dedos, para os chamar, bate nos vidros.

Entre o quarto do fundo e a escada, exactamente no centro da casa, fica o quarto que dá para a varanda de madeira pintada de verde.

Nesse quarto os móveis - o divã, a mesa estreita e baixa, a pequena cómoda com o espe­lho, o armário - estão encostados à parede e o quarto tem, no centro, em frente do espelho, um espaço livre como um palco onde a luz, o nevoeiro e os gestos dançam.

Sobre a mesa verde, ao lado dos cadernos de capa de oleado, onde, na leve escrita acinzen­tada do lápis, as palavras se alinham dia após dia como se emergissem dos dias, está uma jarra de vidro coalhado azul cheia de cravos cujo per­fume se recorta, nítido e delimitado, no perfume salino do ar.

Nas paredes brancas reflecte-se uma grande claridade de areal e o sabor a algas, como um grito de contínua alegria, invade todos os espa­ços, gavetas, armários, roupas, caixas, livros.

Aqui, de manhã, se é acordado por um marulho de vaga e o dorso do mar coberto de brilhos cin­tila entre as persianas como um peixe na rede. O fulgor exterior assedia as orlas da penumbra.

No centro vazio do quarto pode-se dançar. Os ges­tos deslizam entre o animal e a flor como medusas.

E, às vezes, de súbito, uma gaivota atravessa, sem o quebrar, o vidro dos espelhos. Porém, como um jardim, o quarto é também um lugar de contemplação. A luz é lisa. O espaço está atento, o silêncio imóvel. Mas esse silên­cio e essa atenção recebem em si a larga respi­ração oceânica que no quarto implanta seu tumulto ébrio e lúcido.

Há na casa algo de rude e elementar que nenhuma riqueza mundana pode corromper, e, apesar do seu halo de solidão e do seu isola­mento na duna, a casa não é margem, mas antes convergência, encontro, centro.

Quem nas janelas do corredor olha para fora e vê o muro de granito, as árvores na distância e os telhados a oeste, aquilo que vê aparece-lhe como um lugar qualquer da terra, como um acidente, um lugar ocasional entre o acaso das coisas.

Mas quem do quarto central avança para a varanda e vê, de frente, a praia, o céu, a areia, a luz e o ar, reconhece que nada ali é acaso mas sim fundamento, que este é um lugar de exaltação e espanto onde o real emerge e mos­tra seu rosto e sua evidência.

Pelo gesto de dobrar o pescoço e de sacudir as crinas, as quatro fileiras de ondas, correndo para a praia, lembram fileiras brancas de cavalos que no contínuo avançar contam e medem o seu arfar interior de tempestade. O tombar da rebentação povoa o espaço de exultação e clam­or. No subir e descer da vaga, o universo ordena seu tumulto e seu sorriso e, ao longo das areias luzidias, maresias e brumas sobem como um incenso de celebração.

E tudo parece intacto e total como se ali fosse SAGA o lugar que preserva em si a força nua do pri­meiro dia criado.

 

                 SAGA

Mar do Norte, verde e cinzento, ro­deava Vig, a ilha, e as espumas var­riam os rochedos escuros. Havia nesse começo de tarde um vaivém incessante de aves marítimas, as águas engrossavam devagar, as nuvens empurradas pelo vento sul acorriam e Hans viu que se estava formando a tempestade. Mas ele não temia a tempestade e, com os fatos inchados de vento, caminhou até ao extremo do promontório.

O voo das gaivotas era cada vez mais inquieto e apertado, o ímpeto e o tumulto cada vez mais violentos e os longínquos espaços escureciam. A tempestade, como uma boa orquestra, afinava os seus instrumentos.

Hans concentrava o seu espírito para a exaltação crescente do grande cântico marítimo. Tudo nele estava atento como quando escutava o cân­tico do órgão da igreja luterana, na igreja aus­tera, solene, apaixonada e fria.

Para resistir ao vento, estendeu-se ao comprido no extremo do promontório. Dali via de frente o inchar da ondulação cada vez mais densa como se as águas se fossem tornando mais pesadas.

Agora as gaivotas recolhiam a terra. Só a pro­celária abria rente à vaga o voo duro. À direita, as longas ervas transparentes, dobradas pelo vento, estendiam no chão o caule fino. Nuvens sombrias enrolavam os anéis enormes e, sob uma estranha luz, simultaneamente sombria e cinti­lante, os espaços se transfiguravam. De repente, começou a chover.

A família de Hans morava no interior da ilha. Ali, o rumor marítimo só em dias de temporal, através da floresta longínqua, se ouvia.

Mas ele vinha muitas vezes até à pequena vila costeira e, esgueirando-se pelas ruelas, caminhava ao longo do cais, ao lado de botes e veleiros, atravessava a praia e subia ao extremo do promontório. Ali, no respirar da vaga, ouvia o respirar indecifrado da sua própria paixão.

Nesse dia, quando ao cair da noite entrou em casa, Hans curvou a cabeça. Pois aos catorze anos já tinha quase a altura de um homem e, em Vig, as portas de entrada são baixas.

Assim é desde o tempo antigo das guerras quando os invasores que ocupavam a ilha pene­travam nas casas de cabeça erguida mas exigiam que a gente da ilha se curvasse para os saudar. Então, os homens de Vig baixaram o lintel das suas portas para obrigarem o vencedor a baixar a cabeça.

Sõren, pai de Hans, era um homem alto, magro, com os olhos cor de porcelana azul, os traços secos e belas mãos sensíveis que mais tarde, durante gerações, os seus descendentes herdaram. Nele, como na igreja luterana, havia algo de austero e solene, apaixonado e frio. À casa e à família imprimia uma inominada lei de silêncio e reserva onde o espírito de cada um concentrava a sua força. De certa forma Sõren reconhecia o risco que corria: sabia que é no silêncio que se escuta o tumulto, é no silêncio que o desafio se concentra. Mas ele impunha a si mesmo e aos outros uma disciplina de res­ponsabilidade e de escolha dentro da qual cada um ficava terrivelmente livre. Havia porém algo de taciturno e ansioso em Sõren: ele pensava tal­vez que a integridade humana, mesmo a mais perfeita, nada podia contra o destino. Do dever cumprido, da liberdade assumida, não esperava sucesso nem prosperidade, nem mesmo paz.

Os seus irmãos mais novos - Gustav e NieIs - tinham morrido no naufrágio de um veleiro que lhe pertencia. Sõren sabia que o seu barco era um bom barco onde ele próprio inspeccio­nara com minúcia cada cabo e cada tábua, sabia que os seus jovens irmãos eram perfeitos homens do mar e hábil e competente o capitão a quem tudo entregara. No entanto, o navio naufragou quando a experiência e o cálculo não mediram exactamente a força e a proximidade do tem­poral.

Mal a notícia do naufrágio foi confirmada pelo cargueiro inglês que dois dias depois recolhera ao largo os destroços do veleiro desmantelado - o mastro partido, as bóias, o bote virado -Sõren vendeu os seus barcos e comprou terras no interior da ilha. Dizia-se mesmo que nunca mais olhara o mar. Dizia-se mesmo que nesse dia tinha chicoteado o mar.

No entanto Hans suspirava e nas longas noi­tes de Inverno procurava ouvir, quando o vento soprava do sul, entre o sussurrar dos abetos, o distante, adivinhado, rumor da rebentação. Car­regado de imaginações queria ser, como os seus tios e avós, marinheiro. Não para navegar ape­nas entre as ilhas e as costas do Norte, seguindo nas ondas frias os cardumes de peixe. Queria navegar para o Sul. Imaginava as grandes solidões do oceano, o surgir solene dos promontó­rios, as praias onde baloiçam coqueiros e onde chega até ao mar a respiração dos desertos. Ima­ginava as ilhas de coral azul que são como os olhos azuis do mar. Imaginava o tumulto, o calor, o cheiro a canela e laranja das terras meridionais.

Queria ser um daqueles homens que a bordo do seu barco viviam rente ao maravilhamento e ao pavor, um daqueles homens de andar baloi­çado, com a cara queimada por mil sóis, a roupa desbotada e rija de sal, o corpo direito como um mastro, os ombros largos de remar e o peito dilatado pela respiração dos temporais. Um daqueles homens cuja ausência era sonhada e cujo regresso, mal o navio ao longe se avistava, fazia acorrer ao cais as mulheres e as crianças de Vig e a história que eles contavam era repetida e contada de boca em boca, de geração em geração, como se cada um a tivesse vivido.

Sõren e Maria jantavam com os filhos, Hans e Cristina, em redor do círculo luminoso da lâmpada. Lá fora as madeiras da janela batiam, através da floresta arfava o rumor marinho da tempestade. Por entre as agulhas dos pinheiros e os ramos das bétunas perpassavam ecos, sibilâncias, gritos e, contra o céu baixo de nuvens, ressoava o longínquo tumulto da rebentação.

- Sõren, que notícias ouviste hoje na vila? -perguntou Maria.

- Más notícias. O Elseneur devia ter entrado a barra a meio da tarde mas, ao pôr do sol, ainda não se avistava. Vão ser obrigados a pas­sar o temporal e a noite no mar.

_ É um bom barco - disse Hans que conhe­cia o Elseneur palmo a palmo. - É um navio que aguenta muito mar.

-Deus os guarde - murmurou Maria. Pois o Elseneur era o melhor navio de Vig e a sua tripulação era formada por gente da ilha, homens jovens que ela conhecia desde o berço, ou velhos lobos do mar que a conheciam desde a própria infância.

Porém, nessa noite, enquanto Hans dormia, o Elseneur naufragou contra os rochedos negros das falésias.

Nenhum homem se salvou. O vento espalhou os gritos no clamor da escuridão selvagem, a força das braçadas desfez-se nos redemoinhos, a água tapou as bocas. Nem os que treparam aos mastros se salvaram, nem os que se meteram nos botes, nem os que nadaram para terra. O mar quebrou tábua por tábua o casco, os mas­tros, os botes e os marinheiros foram rolados entre a pedra e a vaga.

Estas foram as notícias que as criadas de manhã trouxeram do mercado.

. Nesse dia, à noite, depois do jantar, quando a mulher e a filha se levantaram da mesa, Sõren continuou sentado e disse a Hans:

- Fica.

Hans apoiou-se ao grande armário de madeira lavrada, fora do círculo da luz da lâmpada, semioculto na penumbra. Lá fora continuava o mau tempo e a ventania sacudia as portadas fechadas.

- Senta-te - ordenou Sõren.

Hans avançando, entrou no círculo da luz, e sentou-se em frente de Sõren e fitou o branco da toalha.

Quando o vento 'parava, ouvia-se um tilintar de loiça no interior da casa.

Um instante passou, pesado como um longo tempo. Finalmente Sõren falou:

- Hoje escrevi para Copenhague. No fim deste Verão vais para lá estudar. Escolhe o que queres estudar.

- Quero ser marinheiro - respondeu Hans.

- Não. Escolhe outra coisa. Podes estudar leis ou medicina ou engenharia.

- Quero ser capitão de um navio.

Sõren poisou as mãos sobre a mesa sob a luz branca e directa da lâmpada. Hans mais uma vez viu como elas eram belas, belas e penetradas de domínio em sua austera e contida paixão. No entanto, nesse momento, tremiam um pouco e Sõren apertava-as uma contra a outra enquanto falava.

- Ouve - disse ele. - Esta manhã fui ao lugar do naufrágio, à Ponta do Norte. Fui acom­panhar Knud que ia em busca do corpo dos seus dois filhos. O mar já tinha atirado muitos dos corpos para a praia. Mas estavam quase todos completamente desfigurados de tanto terem sido batidos contra os rochedos da falésia. A praia estava cheia de gente. Cada um procurava os seus mortos. Knud só pôde reconhecer os filhos pelo anel de prata que ambos usavam no terceiro dedo da mão direita. Disse: «Maldito seja o mar». Não hás-de ser marinheiro, Hans. Escolhe outro ofício. Não quero amaldi­çoar o mundo onde nasci nem acusar o Deus que me criou. Muda de ideias. Promete-me que nunca serás homem do mar. Dá-me a tua palavra.

Hans fitou a toalha. Baixo e devagar, res­pondeu:

- Não posso.

Sõren apertou uma contra a outra as mãos, levantou-se em silêncio e saiu sem fechar a porta. Sob os seus passos ouviram-se gemer os degraus da escada. Depois, no interior da casa, soou o tilintar da loiça e subiu um riso de mulher.

Hans estava de pé na penumbra, encostado ao armário de madeira lavrada.

Lá fora o vento fazia ressoar todas as suas harpas.

Em Agosto, chegou a Vig, vindo da Noruega, um cargueiro inglês que se chamava Angus e seguia para o Sul. O capitão era um homem de barba ruiva e aspecto terrível que navegara até aos mares da China. Foi no «Angus» que Hans fugiu de Vig, alistado como grumete.

Navegaram primeiro com bom tempo e o veleiro corria esticado no vento. Unido ao balanço, Hans, enquanto lavava o convés, polia os metais ou enrolava os cabos, aspirava a vee­mência da vasta respiração marítima. Os seus ouvidos escutavam a força viva do navio que galgando a onda reencontrava o equilíbrio sobre o desequilíbrio das águas.

Depois atravessaram as tempestades da Biscaia. Ali a vaga media dez metros e a água tornara-se espessa, pesada e brutal em seu cinzento metálico. Todas as madeiras gemiam como se fossem despedaçar-se e sentia-se a tensão dos cabos repuxados. As ondas varriam o convés e o navio, ora erguido na crista da vaga ora caindo pesadamente, parecia a cada instante tocar seu ponto de ruptura e desmantelamento. Mas Hans sentia a elasticidade do barco, a sua precisão de extremo a extremo e o equilíbrio que, entre vaga e contra-vaga, não se rompia. Mais tarde os navios de Hans nunca naufra­garam.

Contornaram a terra, navegaram para o Sul e, ao cair de uma tarde, penetraram sob o arco das gaivotas, na barra estreita de um rio esverdeado e turvo, flutuante de imagens entre as margens cavadas. À esquerda, subindo a vertente, erguia-se o casario branco, amarelo e vermelho, misturado com os escuros grani­tos.

Na luz vermelha do poente a cidade parecia carregada de memórias, insondavelmente an­tiga, feérica e magnetizada, com todos os vidros das suas janelas cintilando. Animava-a uma veemência indistinta que aqui e além aflorava em ecos, rumores, perpassar de vultos, gritos longínquos e perdidos, reflexo de luzes sobre o rio.

Hans amou desde o primeiro momento a respiração rouca da cidade, o colorido intenso e sombrio, o arvoredo murmurante e espesso, o verde espelhado do rio. Na estrada que corria junto às margens viam-se bois enfei­tados e vermelhos, puxando carros de madeira que chiavam sob o peso de pipas, pedra e areias.

O navio demorou-se vários dias no cais, car­regando e descarregando. Na véspera da partida entre Hans e o capitão levantou-se uma furiosa querela.

Hans estava de pé no cais, vestido com uma pele de urso branco que encontrara no porão. No centro de um círculo de marinheiros, que batiam palmas para marcar o ritmo, dançava e ria sacudindo uma pandeireta. Juntava-se gente. Como se se tratasse de um circo ambulante um grufaete tirara o barrete e estendia-o aos espectadores que começavam a lançar moedas. A tarde corria sobre o rio.

Foi esta cena que o capitão viu quando, de súbito, irrompeu no convés. A sua barba verme­lha brilhava de fúria. Hans, sozinho, no meio do círculo vazio, suportou com um sorriso calmo o rosto irado que o fitava. Houve um pesado silêncio.

- Despe isso - gritou o capitão. - Aqui não é um circo.

Hans, devagar, com um sorriso petulante, des­piu a pele do urso e estendeu-a a outro grumete, dizendo:

- Toma, meu pagem, leva o meu manto.

E a pele, sem que nenhum braço se estendesse para a receber, caiu mole no chão.

- Aqui não é um teatro - disse o capitão, olhando Hans na cara.

Hans sustentou o olhar e o seu sorriso tornou­-se duro e teimoso.

- Apanha a pele - ordenou o capitão. - E vai para bordo, tu e os outros, todos, para bordo.

No porão o capitão chicoteou Hans em frente dos homens calados.

No fim disse-lhe:

- Agora aprendeste a ter juízo.

Mas nessa madrugada, em segredo, Hans aban­donou o navio.

Caminhou ao acaso na cidade desconhecida, perdido no som das palavras estrangeiras, per­dido na diferença dos sons, da luz, dos rostos e dos cheiros, carregando o seu pequeno saco, procurando nas ruas o lado da sombra. Através de grades de ferro pintadas de verde, espreitou o interior sussurrante de insondáveis jardins onde sob enormes arvoredos se abriam trémulos junquilhos. Parou em frente dos ourives para olhar as montras, à porta das adegas respirou a frescura sombria e o cheiro do vinho entor­nado. Caminhou ao longo do rio, na margem onde as mulheres, descalças, carregavam cestos de areia enquanto outras discutiam, aos magotes, cortando com grandes brados e largos gestos o ar liso da manhã. Penetrou nas igrejas de azulejo e talha que não eram claras e frias como as igrejas do seu país, mas doiradas e sombrias, numa penumbra trémula de velas onde negrumes e brilhos, animavam o rosto das imagens que num incerto sorriso pareciam reconhecê-lo. Dormiu nos degraus de uma escada, sob os arcos da praça, nos bancos do jardim público e as noites pareceram-lhe mor­nas e transparentes.

Assim, diz-se, terá vagueado quatro dias, tonto de descobrimento, de espanto e de solidão. Mas ao quinto dia o seu ânimo quebrou-se. A lín­gua estrangeira fechava em sua roda um círculo. De repente, reconheceu o seu exílio, a sua fra­queza. Foi então que um inglês chamado Hoyle que morava para o lado do rio o encontrou, a chorar, encostado ao muro da sua quinta e lhe bateu com a mão no ombro e o levou consigo e o recolheu.

Hoyle era armador e negociava no transporte de vinho para os países do Norte. Vivia naque­la cidade há trinta anos, mas sempre como estrangeiro, sem aprender decentemente a lín­gua da terra nem se habituar à sua comida. Só ao clima e aos vinhos se habituara. Para além das relações com empregados, criados e alguns comerciantes não convivia com indígenas. As suas relações e amizades eram só com ingle­ses, só falava bem inglês, só lia jornais in­gleses e comia só comida inglesa com mostarda inglesa, na sua casa mobilada com mesas, cadeiras, armários, camas e gravuras inglesas e onde pairava sempre um cheiro inglês a far­mácia.

Hans ficou a viver nessa casa, em parte como empregado, em parte como filho adopti­vo.

A sua adolescência cresceu entre os cais, os armazéns e os barcos, em conversas com mari­nheiros embarcadiços e comerciantes. De um barco ele sabia tudo desde o porão até ao cimo do mais alto mastro. E, ora a bordo ora em terra, ora debruçado nos bancos da escola sobre mapas e cálculos, ora mergulhado em narrações de viagens, estudando, sonhando e praticando, ele preparava-se para cumprir o seu projecto: regres­sar a Vig como capitão de um navio, ser per­doado pelo Pai e acolhido na casa.

Dois dias depois de ter recolhido Hans, Hoyle levou-o ao centro da cidade e comprou-lhe as roupas de que precisava e também papel e caneta.

Hans escreveu para casa: pediu com ardor per­dão da sua fuga, dizia as suas razões, as suas aventuras, o seu paradeiro. Prometia que um dia voltaria a Vig e seria o capitão de um grande veleiro.

A resposta só velo meses depois. Era uma carta da mãe. Leu:

«Deus te perdoe, Hans, porque nos inju­riaste e abandonaste. Manda-me o teu pai que te diga que não voltes a Vig pois não te rece­berá. »

Depois dessa carta, Hans sonhou com Vig muitas vezes. Era acordado de noite pelo cla­mor de tempestades em que naufragava à vista da ilha sem a poder atingir. Ou deslizava, ao lado do Pai, num grande lago gelado, rente à luz de cristal e havia em seu redor um infinito silêncio, uma transparência infinita, uma leveza e uma felicidade sem nome. Mas outras noites acordava chorando e soluçando, pois o seu pai era o capitão do navio e o chicoteava brutal­mente no convés e ele fugia e de novo ficava sozinho e perdido numa cidade estrangeira.

Os anos passaram e Hans aprendeu a arte de navegar e a arte de comerciar.

Hoyle nunca casara e, numa terra para ele estrangeira, não tinha família e as suas raras amizades eram pouco íntimas. No adolescente evadido ele via agora um reflexo da sua pró­pria juventude aventurosa que, há muito tempo, naquela cidade ancorara. Para ele, Hans era a sua nova possibilidade, o destino outra vez ofe­recido, aquele que iria viver por ele a verda­deira vida, que nele, Hoyle, estava já perdida como se o destino, tendo falhado seus propósi­tos, fizesse, com uma nova mocidade, uma nova tentativa. Assim, Hans era para ele não o her­deiro daquilo que possuía e fizera mas antes o herdeiro daquilo que perdera. Por isso seguiu passo a passo os estudos e a aprendizagem do adolescente, controlando a qualidade do ensino nas escolas onde o inscrevera e vigiando a com­petência dos superiores sob suas ordens a bordo o colocava. Aos 21 anos, já Hans era capitão de um navio de Hoyle e homem de confiança nos seus negócios.

Assim, desde muito cedo, Hans conhecera as ilhas do Atlântico, as costas de África e do Bra­sil, os mares da China. Manobrou velas e diri­giu a manobra das velas, descarregou fardos e dirigiu o embarque e desembarque de mercado­rias.

Respirou o arfar dos temporais e a imensidão azul das calmarias. Caminhou em grandes praias brancas onde baloiçavam coqueiros, rondou pro­montórios e costas desertas, perdeu-se nas rue­las das cidades desconhecidas, negociou nos portos e nas fronteiras.

Escorrendo água do mar, estendido na praia, afastado um pouco dos companheiros, poisava sobre os ouvidos dois grandes búzios brancos, rosados e semi-translúcidos e pensava: «Um dia levarei estes búzios para Vig.» E à noite, já a bordo, escrevia para casa uma longa carta que falava de búzios do Índico.

Encostado à amurada do navio em noite de luar e calmaria, com os olhos postos no grande olhar magnético da lua cujo rasto trémulo de brilho como o dorso de um peixe cortava a es­curidão estática das águas, pensava: «Um dia contarei em Vig este brilho, esta escuridão trans­parente, este silêncio». No dia seguinte escrevia para casa, contando a noite, o mar, o luar.

Num porto distante, sentado a cear na varanda da hospedaria, sob a luz das lanternas de cor, enquanto se deslumbrava com a beleza das loiças, com seus desenhos azuis e seu branco azulado e descobria o sabor sábio dos temperos exóticos, pensava: «Levarei para Vig esta loiça e estas especiarias para alegrar e aquecer as ceias do Inverno». E, no dia seguinte, escrevia para casa contando o azul das loiças, a beleza das sedas e das lacas e as maravilhas do tempero.

Mas, quando ao fim de longos meses regres­sou e Hoyle lhe entregou o correio chegado na sua ausência, as cartas da mãe, em resposta às notícias que do cabo do mundo mandara, eram sempre a mesma mensagem: «Deus te proteja e te dê saúde. Mas não voltes a Vig porque o teu pai não te quer receber.»

Quando estava já passada a sua primeira moci­dade, um dia, à volta de uma das suas viagens, Hans encontrou o inglês doente. O mal atacara os seus olhos e a cegueira avançava rápida.

- Hans - disse ele -, estou velho e cego, já não posso tratar dos meus barcos, dos meus armazéns, dos meus negócios. Fica comigo.

Hans ficou. Deixou de ser empregado de Hoyle e tornou-se seu sócio. Sentado em frente da pesada mesa de carvalho recebia os comerciantes, os chefes dos armazéns e os capitães de navio. As suas narinas tremiam quando no gabi­nete entravam gentes vindas de bordo. Porque deles se desprendia cheiro a mar. A renúncia endurecia os seus músculos. À noite relatava a Hoyle as conversas que tivera, as decisões que tomara. Depois bebiam juntos um copo de vinho.

A vida de Hans mais uma vez tinha virado. Já não eram as longas navegações até aos con­fins dos continentes, o avançar aventuroso ao longo de costas luxuriantes e de costas desérti­cas, de povo em povo, de baía em baía. Agora verificava a ordem dos armazéns, o bom estado dos navios, a competência das equipagens, controlava as cargas e descargas, discutia negócios e contratos. As suas viagens iam-se tornando rápidas e espaçadas.

E Hans compreendeu que, como todas as vidas, a sua vida não seria mais a sua própria vida, a que nele estava impaciente e latente, mas um misto de encontro e desencontro, de desejo cumprido e desejo fracassado, embora, em rigor tudo fosse possível. E compreendeu que as suas grandes vitórias seriam as que não tinha desejado e que, por isso, nem sequer seriam vitórias.

Escreveu ao Pai. Disse-lhe que não era mais um navegador entre as ondas e o vento. Que era um homem estabelecido, em terra firme e que queria voltar a Vig. Foi a Mãe que respon­deu à sua carta dizendo que o pai não o rece­beria.

Associado ao inglês, Hans começou a construir uma fortuna pessoal que nunca tinha projectado. Era um homem de negócios hábil porque se apercebia da natureza das coisas e da natureza das pessoas e negociava sem paixão. A fortuna não era nem a sua ambição, nem a sua aven­tura nem o seu jogo e nela nada de si próprio envolvia. Enriquecia porque a sua percepção e os seus cálculos estavam certos.

Algum tempo depois casou com a filha de um general liberal que desembarcara no Mindelo e cuja espada, mais tarde, transitando de herança em herança, se conservou na família.

Escolheu Ana porque tinha a cara redonda e rosada e cheirava a maçã como a primeira mulher criada e como a casa onde ele nascera,

e porque o seu loiro de minhota lhe lembrava as tranças das mulheres de Vig.

Pouco antes do seu casamento Hoyle morrera e Hans fundara a sua própria firma cuja pros­peridade crescia. Era agora um homem rico e também respeitado e escutado. A sua honestidade era célebre e a sua palavra era de oiro.

Parecia estar já inteiramente integrado na cidade onde, quase ainda criança, vagueara estrangeiro e perdido. Conhecia um por um os notáveis do burgo: ele próprio agora era um dos notáveis do burgo, Amava o rio, o granito das casas e calçadas, as enormes tílias inchadas de brisas, as cameleiras de folhas polidas que flo­riam desde Novembro até Maio.

E foi no tempo das últimas camélias (verme­lhas, pesadas e largas) que nasceu o seu primeiro filho.

Tinha sido decidido que a criança seria bapti­zada no seu sétimo dia de vida e que, após o baptizado, o primeiro navio de Hans seria lan­çado à água.

Tudo se preparava para a festa quando, na madrugada no sexto dia, o recém-nascido adoe­ceu. Foi baptizado de urgência recebendo o

nome de Sõren. Foi Hans quem, dobrando o seu corpo, colocou no caixão o pequeno corpo dei­tado nas suas mãos abertas.

Mas não deixou adiar o lançamento do navio e no dia seguinte desceu a pé desde o cemité­rio até à doca.

Na manhã de Maio, as árvores estavam cheias de folhas novas, e ao longe, do outro lado da foz, a claridade brilhava na rebentação da praia, as ondas sacudiam as crinas como cavalos feli­zes e as gaivotas descreviam no céu grandes arcos festivos.

Quando o navio começou a deslizar Hans disse:

- Vai Sõren, Deus te proteja e navega por todo o mar.

Nasceu o seu segundo filho no tempo das pri­meiras camélias, em Novembro do seguinte ano. Era um rapaz grande e robusto e quando ele começou a andar Hans, mais uma vez, escre­veu para Vig. E mais uma vez foi a Mãe que respondeu dizendo que o Pai não o receberia.

Os anos foram passando e a riqueza de Hans continuava a crescer. Nasceram-lhe mais cinco filhos, três rapazes e duas raparigas. Aumentou também o número dos seus barcos e a extensão dos seus negócios.

E de novo se multiplicaram as suas viagens. Mas não eram já os aventurosos caminhos da sua juventude: eram viagens de negociante que vai estudar mercados, abrir sucursais, estudar con­tratos e contactos. Porém quando a bordo, à noite, sozinho à popa, olhando o rasto branco da espuma, respirava o vento salgado, ou quando no seu beliche sentia o bater das ondas no casco, às vezes, de súbito, reencontrava a voz, a fala do seu destino. Mas era só o fantasma do seu destino. Em rigor ele já não era quem era e tinha encalhado em sua própria vida. Já não era o navegador que no barco e no mar está em sua própria casa, mas apenas o viajante que por uns tempos deixou a sua própria casa aonde vai regressar. Já não era como se o barco fosse o seu corpo, como se o emergir das paisagens fosse a sua alma e o seu próprio rosto, como se o seu ser se confundisse com as águas.

A sua antiga fuga de Vig fora, de certa forina, inútil. Nem a traição lhe dera o seu destino.

E entre negócios e nostalgia, viagens e empreendimentos se foram os anos passando. No entanto parecia a Hans que algo em sua vida, embora fosse já tão tarde, era ainda espera e espaço aberto, possibilidade.

Quando a Mãe morreu, mais uma vez ele escreveu ao Pai. Mas do Pai nunca veio resposta e foi então que Hans compreendeu que jamais regressaria a Vig.

Passados alguns meses comprou uma quinta que do alto de uma pequena colina descia até ao cais da saída da barra.

Entrava-se na quinta, pelo lado dos campos, por um portão de ferro que, depois de o pas­sarmos, ao fechar-sebatía pesadamente.

Em frente, surgia a casa, enorme, desmedida, com altas janelas, largas portas e a ampla esca­daria de granito, abrindo em leque. Na parte de trás, corria uma longa varanda debruçada sobre os roseirais do poente.

Hans mandou fazer grandes obras. Da Boémia vieram os vidros de cristal lavrado das portas, semi-transparentes e semí-foscas e tendo grava­das as suas iniciais, vieram os copos, jarras, jarros, taças e compoteiras cuja transparência bri­lhava e tilintava em almoços e jantares. Da Ale­manha, da França, de Itália vieram as sedas e os veludos dos cortinados e os móveis à última moda e muito do vinho das garrafeiras, vinho do Reno e Moscla e vinho tinto da Borgonha, vinho de Champagne e vinho de Itália, alinha­dos por ordem de origem ao lado dos vinhos das mestras e criadas, divagaram em explorações sonhadoras, marfim encarnadas e brancas onde vieram jogar todos os campeões da região, o piano de cauda onde tocaram meninas prendadas, mas também verdadeiros pianistas, os espelhos de fundo esver­deado, as caixas de laca com os tentos de madrepérola, os quadros de um realismo român­tico onde se viam campos, aldeias, pontes e camponesas sonhadoras, vestidas à moda da Calábria. Chegavam lustres, bustos, estátuas e o enorme globo terrestre onde os filhos e os netos cismaram a geografia. Mas o grande maravilha­mento das crianças era uma caixa rectangular e alta e para dentro da qual se espreitava através de dois óculos. Lá dentro se viam, em relevo e a cores, cenas de óperas e bailados. Fazia-se girar um botão e as cenas mudavam. E durante horas as crianças espreitavam, pois os óculos eram para elas janelas abertas para o jardim de um outro mundo, um mundo onde princesas, caçadores, pagens e bailarinas viviam misterio­sos enredos, um mundo real e inacessível como o verdadeiro destino de cada um.

Tudo na casa era desmedidamente grande desde os quartos de dormir onde as crianças andavam de bicicleta até ao enorme átrio para o qual davam todas as salas e no qual, como Hans dizia, se poderia armar o esqueleto da baleia que há anos repousava, empacotado em numerosos volumes, nas caves da Faculdade de Ciências por não haver lugar onde coubesse armado.

Agora que os filhos cresciam, Hans gostava dos longos jantares. Além da família, sempre havia amigos e convidados, muitos deles gente de passagem, capitães de. navios, negociantes, músicos que vinham dar concertos na cidade. Hans precisava da diversidade das companhias, de conversas que lhe trouxessem um eco de ter­ras e vidas diferentes. E gostava da animação das vozes, da abundância e da qualidade das comidas, da excelência dos vinhos, da frescura e da beleza das rosas, do brilho das pratas do tilintar de copos e talheres.

Entretanto, à medida que a vida ia cumprindo os seus ciclos, noivados, casamentos, nascimen­tos, baptizados iam povoando a casa de azáfama e festas, animando e dramatizando os dias, rea­justando as relações dos personagens como num caleidoscópio, quando, num clic, se reajustam as relações das figuras.

Os filhos tinham crescido. As quatro Estações giravam.

De súbito, Hans não reconhecia o tempo. Como alguém que distraído deixa passar a hora em que devia comparecer em determinado jar­dim e se espanta que seja já tão tarde, assim agora ele se espantava como se não tivesse à passagem reconhecido os dias e, por descuido, tivesse deixado passar os anos sem comparecer à sua própria vida. E não sabia bem como tanto se atrasara, encalhado em hábitos, afazeres e demoras sem jamais surgir, assomar, à proa do navio, no horizonte de Vig. Faltava algo que lhe era devido.

E agora deitava-se tarde. Quando os convida­dos saíam e a casa adormecia, ficava sozinho no átrio, sentado à mesa redonda onde se empilha­vam as revistas do mês e os jornais da semana. Folheava o Times, via as cotações da Bolsa de Londres, programava e meditava os seus próprios empreendimentos. Pensava na mulher, nos filhos que tinham crescido, e que, ao crescer, se tinham ido definindo, enquanto ele, atenta­mente, procurava neles parecenças - ecos de memórias, sombras de rostos amados e per­didos. Depois o seu pensamento derivava e a alta proa do grande navio avançava com terra à vista ao longo de praias desertas. O cheiro de África penetrava o seu peito. Via as florestas, as embocaduras, ouvia gemer os mastros. Dis­persas memórias irrompiam: sob a vasta noite atlântica estava deitado no convés com o brilho das estrelas sobre o rosto, ouvindo o bater do mar no barco e o bater das velas inchadas e, sobre o seu corpo, corriam brisas e alísios sal­gados e, brandamente, penetrava no interior do universo e da noite. Estava sentado num pequeno muro em frente do cais de um porto chinês onde juncos e faluas se cruzavam, enfeitados de cores vivas, cheias de vozes, luzes e música: e as cores e as luzes reflectiam-se deslizando nas águas e as vozes e as músicas flutuavam no ar pesado e leve das noites. E no souk de Marro­cos um rapaz sentado no chão respirava uma rosa. Sentia ainda a frescura do leite e a doçura das tâmaras que lhe tinham oferecido à chegada e como então descobriu um luxo que não era a pesada riqueza da Europa, mas era silêncio e rumor de água e o cerimonial das vozes, das palavras e dos gestos. E no canto do átrio vazio cismava vagamente, nem sequer sabendo que cis­mava, debruçado sobre papeladas, contas e jor­nais ingleses. Mas de súbito estremecia e passava para além do próprio cismar: a memória de Vig subia à flor do mar. Os nevoeiros marítimos in­vadiam a sua respiração. Desde o horizonte os navios avançavam para a ilha. Grandes velas côncavas e abertas, negros cascos cortando as águas frias. Vozes roucas no cais, cabos puxados, amarras, azáfama do atracar, dedilhar de água nas pedras, vaivém de botes. Descarga, rol­danas, manobras, ordens. E um por um, nim­bados de sal e distância, queimados pelo vento e pelo sol, altos homens de largos ombros desembarcavam na tarde fria e, daí a poucas horas, já de boca em boca, de casa em casa, corria a notícia das suas pescarias, das tempes­tades atravessadas, das singraduras percorridas, dos perigos, medos e maravilhas que tinham encontrado. E daí em diante a sua história seria contada junto ao lume dos longos Invernos e, cismada por crianças, sonhada por adolescentes, entraria no grande espaço mítico que é a alma da vida. Mas dele, Hans, burguês próspero, comerciante competente, que nem se perdera na tempestade nem regressara ao cais, nunca nin­guém - contaria a história, nem de geração em geração, se cantaria a saga.

Fechou os livros de contas, dobrou os jornais, levantou-se pesadamente e atravessou como estrangeiro a sua casa. Vagos os espelhos luziam nas penumbras. Neles uma pesada imagem sua, não reconhecida, passava.

Porém em redor da casa os anos faziam crescer os jardins e pomares. As cerejas bran­cas e as camélias da quinta tornaram-se célebres. nas cerejas brancas havia um leve sabor a amên­doa, um levíssimo travo amargo cortando a doçura sumarenta da polpa. Em Novembro as primeiras camélias eram de um rosa pálido e transparente e mantinham-se direitas e rijas na haste. Os seus troncos largavam nos dedos um pó escuro que as crianças limpavam ao bibe.

E ritmados pelas quatro estações, os anos pas­savam e, como as tílias e os pomares, a nova geração de crianças crescia.

No fundo da quinta, para os lados da barra, Hans mandou construir uma torre. Segundo disse para ver a entrada e a saída dos seus barcos.

Daí em diante, de vez em quando, à tarde, em vez de trabalhar no escritório, trabalhava no quarto da torre onde recebia os empregados e as pessoas que o procuravam. Consigo às vezes levava Joana, a neta mais velha, que achava na torre grande aventura e mistério, e a quem ele ensinava o nome e a história dos navios.

Depois, quando queria trabalhar, dava à neta lápis e papel para que ela desenhasse enquanto ele se debruçava sobre contratos, cartas, livros, contas, relatórios.

Mas Joana desenhava pouco. Levantava a cabeça e fitava intensamente Hans pois algo na sua cara a fascinava e inquietava. E via então que também ele não trabalhava: para além da barra, para além da rebentação, os seus olhos fitavam os verdes azuis do horizonte marinho.

- Avô - disse Joana - porque é que está sempre a olhar para o mar?

- Ah! - respondeu Hans. - Porque o mar é o caminho para a minha casa.

E os anos começaram a passar muito depressa. E uma certa irrealidade começou a crescer.

Hans agora já não viajava. Estava velho como um barco que não navegava mais e prancha por prancha se vai desmantelando. Tinha as mãos um pouco trémulas, o azul dos olhos desbotado, fun­das rugas lhe cavavam a testa, os cabelos e as compridas suíças estavam completamente brancas. Mas era um velho imponente e terrível, alto e direito em seu pesado andar, autoritário nas ordens que dava e sempre um pouco impaciente e taciturno.

Quando adoeceu para morrer, ia Novembro perto do fim. As camélias brancas estavam em flor, levemente rosadas, macias, transparentes. Algumas lhe trouxeram ao quarto, apanhadas à beira do roseiral.

Num templo ainda sem radiografias morria em casa à maneira antiga, de uma doença incerta­mente diagnosticada, rodeado pela mulher, pelos filhos, por criados antigos e médicos e enfer­meiros. A incerteza do diagnóstico era, de certa forma, uma misericórdia. Quase até ao fim todos esperaram que o homem robusto sacudisse a doença.

Durante seis dias, Hans sereno e consciente pareceu resistir. Mas ao sétimo dia a febre subiu, a respiração começou a ser difícil e na sua atenção algo se alterou. No quarto o ambiente tornou-se sussurrado, com luzes vela­das e gestos silenciosos como se cada pessoa tivesse medo de quebrar qualquer fio.

Ao cair da noite, Hans - que durante longas horas parecera semi-adormecido - abriu os olhos e chamou.

A mulher e os filhos debruçaram-se sobre ele para o ouvir.

- Quando eu morrer - pediu Hans - man­dem construir um navio em cima da minha sepultura.

- Um navio? - murmurou o filho mais velho. - Um navio como?

- Naufragado - disse Hans.

E, até morrer, não falou mais.

Talvez Hans estivesse já delirante quando pronunciou as últimas palavras, pensou-se. No entanto o pedido foi cumprido.

Hans foi enterrado no lado sul do cemitério, no terreno reservado aos protestantes. Daí se vê o rio, a barra, o mar e, ao longo das aveni­das, os plátanos arrastam no Outono as suas folhas.

Em pedra e bronze, com mastros quebra­dos e velas rasgadas, o navio foi construído sobre a campa de Hans. Este estranho jazigo que entre lápides, bustos, anjos de pedra, canteiros e piedosas cruzes tinha algo de arrebatado e selvático, tornou-se depressa um dos mo­numentos famosos da cidade e vinha gente das redondezas para o ver.

A sua enorme sombra inquieta quem passe sozinho na avenida dos plátanos e muitos per­guntam porquê tão estranha sepultura. Porém é nesse navio que, nas noites de temporal, Hans sai a barra e navega para o Norte, para Vig, a ilha.

 

                   VILA D’ARCOS

Vila d'Arcos fica ao Norte, um pouco para Leste, numa região de montanhas. é uma cidade de província e pequena

com ruas empedradas em torno da catedral enorme como um navio de eternas viagens. As suas casas antigas - nobres mesmo quando pobres - são proporcionadas com justeza desde o. degrau da escada até ao quadrado da janela, desde a balaustrada da varanda até à superfície da parede de granito sem reboco onde só a pedra de armas com arruelas, grifos e leões é grande demais sobre os ferros e as madeiras des­conjuntadas da porta; como se no mundo em que estamos nada importasse, nem o frio do granito, nem a estreiteza sombria dos quartos, nem a pobreza monótona dos dias, mas só importasse

a nobreza que mostramos à luz e que é o pro­jecto da nossa alma.

É uma cidade antiga onde estagnada se desa­grega e se dissolve lentamente uma vida desvi­vida gesto por gesto, sílaba por sílaba.

Os carros gemem ao longo das ruas empedra­das. Passam poucos homens e rápidas mulhe­res vestidas de preto e em Maio as roseiras florescem nos muros que o Inverno cobriu de musgo. Por trás da portada verde da pequena janela da casa de esquina uma mulher de olhos agudos, muito juntos e castanhos, vê tudo, sábia e arguta, terrivelmente atenta, como se o seu olhar lesse e amparasse o desacontecer das coi­sas. Há jardins imprevistos, mais subtis e com­plexos do que o imaginável, onde crescem altas magnólias, com grande flores brancas de péta­las profundas e largas, macias e espessas e onde a água de prata que irrompe da boca dos golfi­nhos de pedra cai nos pequenos tanques oitava­dos. Jardins de buxo, camélias e violetas perfumados de contemplação e paixão, de esque­cimento e silêncio. Jardins docemente abandona­dos a uma solidão dançada pelas brisas, enquanto um longo sussurro de adeus acena de folha em folha nos ramos mais altos das árvores. Jardins onde reconhecemos que a vida é um sonho do qual jamais acordamos, um sonho onde irrom­pem aparições prodigiosas como o lírio, a águia e o inesquecível rosto amado com paixão, mas onde tudo se transforma em esquecimento, dis­tância, impossibilidade e detrito. Jardins onde reconhecemos que a nossa condição é não saber. É não poder jamais encontrar a unidade. E encontrar a unidade seria acordar.

 

 

                                                                  Sophia de Mello Breyner Andresen

 

 

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