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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO INTERNO / Robin Cook
MEMÓRIAS DE UM MÉDICO INTERNO / Robin Cook

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Os americanos se apegam aos seus mitos. Em nenhuma parte isso é mais evidente do que no campo da Medicina, cheio de emoções. As pessoas acreditam no que querem acreditar, no que sempre acreditaram, e ignoram ou repelem como falso tudo o que ameaça sua reconfortante fé em seus próprios médicos ou no tipo de tratamento que possam estar recebendo.

Só recentemente, e com relutância, está o grande público começando a se libertar da presunção de que o pessoal e o tratamento médicos nos Estados Unidos são os melhores do mundo. E mesmo esse desagradável despertar tem sido provocado mais por motivos económicos do que racionais, mais pela elevação do custo do tratamento médico do que por sua qualidade. Embora a Sra. Brown possa admitir que algumas coisas estejam erradas, apega-se firmemente à crença de que seu próprio e querido médico, lá na rua, é o melhor médico da cidade - um homem maravilhoso! E todos aqueles jovens internos, abençoados sejam - tão dedicados e bonzinhos!

A base desta adoração pelo mundo médico jaz no fundo da alma do americano moderno. Seu amor pela Medicina é demonstrado diariamente pelas horas que ele passa pregado diante do aparelho de televisão vendo os triunfos do diagnóstico e da terapêutica de médicos oniscientes.

Este romantismo, com sua credibilidade dirigida e, daí, sua tolerância tão limitada, torna extremamente difícil a apresentação de idéias que o contradigam. Não obstante, é este o objetivo do presente livro - remover a mitologia e a mística contemporâneas sobre o estágio de um ano, como interno, do médico recém-formado e mostrá-lo em sua dura realidade. Os efeitos do internato sobre o médico são profundos. (Imagine-se, assim, seus efeitos sobre uma interminável fila de pacientes!)

Peço ardentemente ao leitor que se lance à leitura com o espírito arejado, pondo de lado aquele impulso quase irresistível de glorificar a Medicina e as pessoas nela envolvidas, e que procure entender os efeitos de um internato sobre uma criatura real. As pessoas que lidam com a Medicina são gente de verdade, assediadas por toda uma série de problemas - raiva, ansiedade, hostilidade, egocentrismo. Quando em face de ambiente adverso, reagem como pessoas, e não como curadores sobre-humanos. E apesar dos dramas da televisão, o internato como hoje existe é um ambiente adverso. (Basta a falta de sono para explicar a quantidade de padrões aberrantes de comportamento. Estudos recentes demonstraram que se um indivíduo não dorme o suficiente rapidamente se torna esquizofrênico.)

Todos os fatos descritos aqui são reais. Constituem os dias comuns de um interno, e não as exceções. O Dr. Peters representa a síntese de minhas próprias experiências e as de meus colegas internos. Ele é, portanto, uma combinação de várias pessoas reais. Embora não demonstre as aberrações de uma personalidade psicossocial em particular, representa, em maior ou menor grau, cada interno. Não deve surpreender o fato de ele aparecer, não raro, como um indivíduo que vive a se lamentar, que fracassa socialmente à medida que evolui profissionalmente. É verdade que durante seu internato, o Dr. Peters ganha apreciável experiência e muitos conhecimentos médicos; desenvolve, também, atitude mais objetiva para com a morte. Contudo, ao mesmo tempo, é tão intensa a repressão de sua raiva e hostilidade, que isto o leva a um maior isolamento, a um comportamento mais autista, a maiores sentimentos de autopiedade, e a uma incapacidade em estabelecer significativos relacionamentos com o pessoal.

Outros aspectos da prática médica aqui descritos também vão ferir crenças aceitas. Mais uma vez, imploro que o leitor seja compreensivo, que se lembre de que grande parte da impessoalidade e anonimato com que é tratado o paciente nada mais significa do que o resultado inevitável da familiarização com a doença.

É claro que essa impessoalidade pode ser levada a extremos onde o paciente deixa de ser um indivíduo e torna-se apenas um objeto que deve ser tratado. Isto é definitivamente patológico. O potencial para atingir tal estado patológico não existe para um interno. Com efeito, é obrigado a medir-se com o potencial - em geral sem orientação - conforme dita sua natureza.

Uma palavra para antecipar uma crítica específica: já que O Dr. Peters fez seu internato na comunidade de um hospital-escola, ao invés de um centro médico universitário, alguém pode objetar que quaisquer conclusões só se aplicam àquele ambiente. Talvez esse comentário tenha algum mérito, mas não creio que reduza a validade do meu argumento central. Pelo contrário, as experiências do Dr. Peters podiam muito bem ter sido intensificadas se vividas num centro universitário. Ali, a competição entre os internos - o jogo para se manter à frente - é quase sempre mais sério, e nesse contexto é provável que o trabalho com os gráficos e as pesquisas na literatura médica recebam mais cuidados do que o paciente no sistema de valores diários. Acho que as experiências do Dr. Peters se aplicam tanto aos programas da universidade quanto da comunidade-escola. O que lhe aconteceu é comprovado por uma convincente semelhança dos episódios que me foram relatados por vários médicos de cada tipo de internato.

O ambiente hospitalar que não é focalizado aqui é o do hospital não universitário, que não se dedica ao ensino. É possível que a crítica se aplique aos internatos nessas instituições.

O manuscrito deste livro foi lido por oito médicos, que terminaram seus internatos não há mais de três anos. Todos, menos um, concordaram em que o conteúdo é autêntico, rudemente realístico, e completamente representativo de sua própria situação. O único discordante declarou que os médicos atendentes do hospital onde fez seu internato tinham-se mostrado muito mais dispostos a ensinar, e mais sensíveis às suas deficiências do que os que são descritos aqui. Este médico foi interno num centro médico de uma universidade da Costa do Pacífico. Talvez a lição a tirar-se disso é que todos os médicos novatos deveriam fazer seu internato onde ele o fez.

Repito que este livro é a expressão da verdade. Não representa todos os internatos de todos os hospitais; representa a maioria. Reflete com honestidade uma situação muito difundida, desencorajante, no mínimo, e perigosa, no máximo. E uma razão suficiente para as Memórias de um Médico Interno.

 

 

 

 

CIRURGIA GERAL

Eu já estava petrificado quando o telefone tornou a tocar meia hora mais tarde. Peguei-o no fim do segundo toque, segurando-o instintivamente, quase em pânico, enquanto o livro de cirurgia que me fizera dormir, caía da cama ao chão. Meu Deus, que seria agora? A enfermeira estava desesperada.

- Dr. Peters, o paciente que o senhor viu há pouco parou de respirar e está sem pulso.

- Vou já.

Desligando às pressas o telefone, iniciei minha rotina. Calças, camisa, sapatos, e uma corrida pelo corredor até o elevador, enquanto puxava o zíper da braguilha. Apertei o botão e ouvi o zumbido agudo do motor elétrico. Enquanto aguardava agitado, percebi que não sabia a que paciente ela se referia. Havia tantos. Em disparada, desfilaram por minha cabeça os quadros mentais dos que eu tinha visto naquela noite. Sra. Takura, Roso, Sperry, o novo, um velho com câncer de estômago.

Devia ser ele. Era um doente particular, e a primeira vez que o vi foi quando, ocupado com as novas admissões, me chamaram porque ele estava com fortes dores abdominais. Ele se achava tão magro e fraco que nem podia se mexer, e mal respondia às perguntas...

Irritado com a lentidão do elevador, bati na porta com as mãos.

Eu tinha poucos dados sobre o velho. A enfermeira que acompanhava o paciente não sabia muita coisa. Da papeleta não constava a história do caso, apenas uma breve nota dizendo que ele tinha setenta e um anos e que sofria de câncer gástrico há três anos. Seu estômago havia sido retirado cerca de dois meses antes. Segundo a papeleta, desta vez dera entrada no hospital preso de dor, tonteiras e mal-estar geral.

Finalizando sua luta mecânica, o elevador chegou e a porta marrom correu por dentro da parede.

Entrei, apertei o botão, e tornei a aguardar, impaciente, que aquele animal desajeitado me levasse ao andar térreo.

O exame que fiz no velho nada revelou de inesperado. Era evidente que sentia muita dor e com boas razões - sem dúvida o câncer se espalhara por dentro de todo o seu abdome. Depois de tentar em vão me comunicar com seu médico particular, limitei-me a aplicar um conta-gotas intravenoso e receitei De'merol para que dormisse. Nada mais me ocorreu para fazer.

Finalmente o elevador me deixou no térreo. Rápido, atravessei o pátio, penetrei no edifício principal do hospital e usei a escada dos fundos para subir ao andar onde estava o doente. Quando entrei no quarto vi a enfermeira de pé, desanimada, à luz mortiça da lâmpada acima do leito. O homem estava tão magro que cada costela fazia saliência dos lados do tórax; o abdome formava uma concavidade embaixo da caixa torácica. Ele jazia imóvel, os olhos fechados. Eu estava acostumado a ver tórax arfarem com respirações tão serenas que meus olhos me iludiram fazendo-me imaginar que aquele se elevava e descia um pouco, mas não era nada disso. Tomei o pulso. Nada. Embora certas pessoas tenham pulso muito fraco. Certifiquei-me de que estava do lado certo do punho, o lado do polegar, e então segurei o outro punho. Nada.

- Não é parada cardíaca, doutor. O assistente me disse que não devíamos pensar em parada cardíaca. - A enfermeira falava num tom encorajador.

Cale-se, pensei eu, irritado e aliviado ao mesmo tempo. Não me preocupava o fato de se tratar de uma parada. Eu só queria ter certeza absoluta, pois era a primeira vez que eu enfrentava a responsabilidade de confirmar a morte. É certo que na escola de Medicina haviam ocorrido muitas mortes, uma porção delas, mas sempre, naquela época - fazia com efeito apenas um ano, e no entanto parecia há tanto tempo - sempre a equipe da casa estava presente para ajudar, um interno ou um residente; não era serviço para um estudante. Agora, eu era a equipe da casa, e tinha que decidir sozinho; tinha de fazer um julgamento, pensei com ironia, como num jogo de beisebol safe ou out, e sem apelar para o juiz. Ele estava morto. Ou ... estaria mesmo? O Demerol, um velho magro, a anestesia profunda - tudo junto era capaz de provocar uma suspensão anímica.

Peguei meu estetoscópio, lentamente, adiando a decisão e, por fim, coloquei as hastes nos ouvidos, firmando o diafragma sobre o coração do velho. Percebi uma série de sons crepitantes, quando seus cabelos se deslocaram por sob o diafragma do aparelho, reagindo ao meu próprio tremor. Não pude ouvir o coração - mas ... não estava ouvindo? Abafado e muito distante?

Minha imaginação superexcitada continuava a me fazer ouvir os batimentos normais do coração, da vida. Foi então que compreendi que era o meu próprio coração que ecoava em meus ouvidos. Largando o estetoscópio, tornei a tomar o pulso nos punhos, na virilha, no pescoço. Tudo estava quieto. No entanto, uma sensação fantástica me dizia que ele estava vivo, que ia acordar e que eu ia parecer um idiota. Como podia estar morto se eu lhe havia falado algumas horas antes?

Eu odiava a minha situação. Quem era eu para dizer se ele estava vivo ou morto? Quem era eu?

A enfermeira e eu nos entreolhamos na penumbra. Ficara tão absorto em meus pensamentos que quase me surpreendi de ainda vê-la ali. Abrindo as pálpebras do homem, fitei um par de olhos castanhos, de aspecto normal, a não ser pelas pupilas dilatadas, que não se contraíram quando passei o feixe luminoso de minha lapiseira elétrica pela córnea envelhecida. Tive a certeza de que ele estava morto. Esperava que estivesse, pois me achava prestes a dá-lo como tal.

- Ele está morto - disse eu, tornando a olhar para a enfermeira, mas ela desviou a cabeça. Provavelmente achou que eu era uma besta.

- É o primeiro paciente diretamente sob meus cuidados, que morre - falou ela, voltando-se de repente para mim. Suas mãos pendiam inertes aos lados do corpo. Levei algum tempo para compreender que ela estava suplicando que eu dissesse algo sobre o Demerol, que não tinha sido o Demerol que ela havia aplicado. Mas como podia eu saber o que o havia matado? Mentalmente, eu via sem cessar uma cena de um antigo filme de terror, a cena em que o cadáver se ergue lentamente de uma mesa de cimento no necrotério. Eu estava começando a me zangar comigo mesmo, porém nada me restava senão auscultar de novo. O estetoscópio voltou aos meus ouvidos. Na calma da noite, minha própria respiração estrondava dentro de minha cabeça. Morto, morte, silêncio, sussurravam os centros do raciocínio do meu cérebro. Eu devia dizer alguma coisa reconfortante para a enfermeira.

- Deve ter sido muito suave e sem sofrimento; ele morreu com dignidade. Tenho a certeza de que ele lhe é grato pelo Demerol.

Grato? Que coisa estranha para dizer. Ali estava eu, lutando com minhas próprias incertezas, mal me agüentando, e contudo tentando fazer com que alguém se conservasse calmo. Batendo-me contra um imperioso impulso para tornar a sentir o pulso, puxei o lençol e cobri a cabeça do velho.

- É melhor telefonar para o médico dele - disse eu, enquanto saíamos do quarto.

O médico particular atendeu ao telefone tão depressa que sua voz foi como uma toalha fria em meu rosto. Disse-lhe quem eu era e por que estava telefonando.

- Muito bem, muito bem. Comunique à família, e providencie uma autópsia, como medida de segurança. Quero ver o que aconteceu com aquela ligação que fiz entre o estômago e o intestino delgado. Foi uma anastomose com uma só camada de suturas. Acho realmente que a técnica da camada única é a melhor; é muito mais rápida. De qualquer modo o velho é um caso curioso, em especial porque viveu muito mais do que se esperava. Assim, arranje a autópsia, OK, Peters?

- OK, vou tentar.

Voltando a mergulhar no silêncio de minha mente após esta jovial conversa unilateral, procurei ordenar meus pensamentos. O médico particular queria uma autópsia. Muito bem. ótimo. Onde estava o número da família? Um braço feminino passou por sobre meu ombro e apontou para uma linha na papeleta: "Parente próximo: filho." Com efeito, uma situação constrangedora. Um interno idiota e desconhecido telefonando à noite. Tentei pensar numa palavra neutra para transmitir a notícia sem aludir ao fato em si. - Morto, morte ... não, "falecimento". A chamada do telefone foi interrompida por um animado "alô".

- Meu nome é Dr. Peters, e... lamento informar que seu pai faleceu.

Seguiu-se um longo silêncio do outro lado; talvez ele não tivesse me entendido. Então a voz tornou a falar.

- Já era de se esperar.

- Há mais uma coisa. - A palavra "autópsia" estava na ponta de minha língua.

- O que é?

- Bem... esqueça. Trataremos disso mais tarde, mas peço-lhe que venha ao hospital esta noite. - A enfermeira dissera-me aquilo por meio de gestos frenéticos.

- Muito bem. Estarei aí. Obrigado.

- Lamento muito, e obrigado.

Da escuridão, materializou-se uma enfermeira mais velha, que empurrou um maço de papéis oficiais para debaixo de meu nariz, indicando onde eu devia assinar meu nome e escrever a hora da morte. Fiquei a pensar a que horas ele morrera; na verdade eu não sabia.

- A que horas ele morreu? - perguntei, olhando para a recém-chegada, que estava de pé à minha direita.

- Ele morreu quando o senhor o declarou morto, doutor. Esta enfermeira, uma supervisora noturna, era conhecida por sua incisiva retórica e aversão aos internos. Mas nem mesmo seu tom acre e evidente desdém pela minha ingenuidade puderam apagar a cena do homem levantando-se da mesa de cimento.

- Chame-me quando a família chegar - disse eu.

- Sim, doutor. Obrigada.

- Obrigado - retribuí eu. Todo mundo agradecendo a todo mundo. Na minha exaustão, coisinhas insignificantes pareciam enormes e absurdas. Eu ainda estava dominado pela vontade de entrar e tomar de novo o pulso, mas com esforço passei rapidamente pelo quarto do morto; as enfermeiras podiam estar espiando. Por que continuava a me preocupar com que ele pudesse despertar? E quanto ao homem como pessoa, isso não importava? Claro que sim, mas eu não o conhecia. Parei no patamar da escada. Na verdade eu não o conhecia, mas ele era uma pessoa. Um velho de setenta e um anos, é certo - mas de qualquer modo um homem, um pai, uma pessoa. Continuei a descer os degraus. Eu não podia me iludir. Se ele despertasse, eu seria objeto de zombaria do hospital. Minha confiança como médico estava chegando lentamente; isso a destruiria.

De volta ao elevador, procurei lembrar-me de quando eu havia mudado, mas só podia recordar algumas cenas, possíveis pontos decisivos como da minha primeira visita à enfermaria durante o curso médico e da garota de onze anos, que jazia no leito olhando esperançosa para nós. Ela estava com fibrose cística, que em geral é fatal. Ouvindo o pessoal da casa discutir o caso, eu ficara abalado, incapaz de olhar para aquele rostinho juvenil. - Talvez possamos mantê-la viva até o fim da adolescência - dissera o médico assistente, quando nos retiramos. Naquele instante eu quase resolvi ser bombeiro hidráulico.

A porta do elevador abriu-se. De algum modo, em dado momento, minhas reações tinham mudado.

Agora eu estava me preocupando com o fato de que alguém despertasse no necrotério e arruinasse minha imagem, e me fizesse parecer ridículo. Muito bem, eu havia mudado, evidentemente para pior, mas que podia eu fazer?

Voltei ao meu quarto, e a cama rangeu sob meu peso. Na semi-obscuridade, o olho de minha mente recordou todos os detalhes daquele esquelético corpo morto. Será que os outros internos se preocupavam tanto assim?

Eu não podia imaginar, mas também não podia imaginar no que eles estariam pensando. Pareciam tão senhores de si, tão certos, quando não tinham o direito de estar. Antes da escola de Medicina, eu havia imaginado as crises de um interno de modo diferente, como algo mais nobre. O problema girara sempre em torno da perda de meu próprio paciente, depois de uma longa luta, a angústia de uma vida perdida. Mas ali estava eu transpirando devido ao fato de que o paciente de um momento para o outro pudesse recomeçar a respirar, e me aborrecia que eu pudesse descartar a parte pessoal. Eram nove e quarenta e cinco. Virei-me, peguei o telefone, e liguei para o alojamento das enfermeiras. Naquele momento eu precisava estar com alguém, alguém para provar que a vida continuava.

- Srta. Stevens, por favor. Jan, você podia vir até cá? Não, não há nada de errado. Claro, traga as mangas. Isso mesmo, estou de plantão.

Através das cortinas eu podia lobrigar algumas estrelas. Há duas semanas que eu era interno, as duas semanas mais longas dos meus vinte e cinco anos, a culminação de tudo, ginásio, colégio, escola de Medicina. Como eu havia sonhado com aquilo! Agora, quase todo mundo que eu conhecia estava neste estado de graça do internato, e ele era uma tarefa sórdida, e quando não era sórdida era uma tremenda confusão. - Bem, Peters, agora você está realmente completo. Só quero lembrar-lhe de que é fácil sair das grandes associações, mas quase impossível voltar a elas. - Cito aqui o que me disse o meu professor de Cirurgia quando soube que eu havia decidido fazer o internato num centro não-universitário, longe da torre de marfim do circuito médico, numa região distante. E para a instituição médica do leste não existe lugar mais afastado do que o Havaí.

Em termos do imutável sistema de combinação internocomputador, eu tinha condições para ser admitido em qualquer das grandes associações universitárias. Quanto a isso, é bem verdade que eu havia caído fora. Mas, no fim, eu não podia agüentar mais. À medida que o curso médico ia passando comecei a ver que ser médico significava entregar-se ao sistema, como um pedaço de. madeira numa máquina de desbastar. No fim da máquina achava-me aparado e provavelmente vendável, cheio de conhecimentos. Mas, assim como os cavacos da madeira eram arrancados e jogados fora, o mesmo acontecia com os traços "não produtivos" da personalidade - a empatia, a humanidade e o instinto de cuidar. Eu tinha de impedir que isso acontecesse, se é que já não era tarde demais. Assim, no último minuto eu pulara fora da máquina. -Bem, Peters, agora você está realmente completo.

A perda do velho macilento havia-me posto tenso, e eu saltei da cama antes mesmo de Jan bater na porta. Graças a Deus não era o telefone. Eu estava com medo do telefone.

- Jan, que bom ver você, as mangas e tudo o mais. Mangas, era só o que faltava!

- Claro, pode acender a luz. Eu estava sentado aqui, apenas pensando. Facas e um prato? Você quer comer as mangas agora?

Eu não queria nada com as mangas, mas não valia a pena discutir e, de qualquer modo, ela tinha uma aparência deliciosa com a luz suave refletindo em seus cabelos, e cheirando como se tivesse acabado de sair do chuveiro, um cheiro mais doce do que qualquer perfume. Porém o que Jan tinha de mais lindo era a voz. Talvez ela cantasse um pouco para mim.

Apanhei um prato e duas facas, sentamo-nos no chão e começamos a comer as mangas. No início, ficamos calados, e isto era um dos motivos pelos quais eu gostava dela; sua discrição. E também era muito bom olhar para ela, muito mesmo, apesar de, suspeitava eu, ser terrivelmente jovem.

Antes daquela noite, tínhamos saído juntos duas vezes, mas não houvera qualquer intimidade. Isso não importava. Bem, importava porque eu queria conhecê-la, especialmente naquele momento. Seu cabelo louro e suas feições delicadas tinham algo de poético; eu precisava que nos tornássemos íntimos.

A manga estava pegajosa. Descasquei-a toda e fui até a pia para lavar as mãos. Quando voltei, ela me olhava de longe, e a luz da janela lançava manchas prateadas sobre seus cabelos. Ela se apoiava num dos braços e tinha as pernas dobradas para o outro lado. Quase lhe pedi que cantasse Try to Remember, mas não ousei porque provavelmente ela o teria feito - fazia quase tudo o que eu lhe pedia em matéria de canções. Se ela começasse a cantar agora, todo mundo nos alojamentos ia ouvir. Com efeito, era provável que estivessem nos ouvindo comer as mangas. Quando me sentei ao seu lado, inclinou o rosto e pude ver seus olhos.

- Esta noite aconteceu uma coisa - falei.

- Eu sei - retrucou ela.

Aquilo quase me impediu de prosseguir. Como diabo podia ela saber? E eu não só sabia que ela não sabia, mas também que não ia poder explicar-lhe. De qualquer modo, continuei.

- Atestei a morte de um velho macilento com câncer, e agora estou com medo de que o telefone toque e que a enfermeira diga que, afinal, ele -está vivo.

Ela inclinou a cabeça para o outro lado, afastando os olhos. Então, realmente, disse a coisa mais certa. Disse que era engraçado. Engraçado?

- Você não acha que é uma loucura?

Bem, sim, era uma loucura, mas era engraçado também.

- Você sabe que uma pessoa morreu esta noite, e eu só penso em que ainda possa estar viva, o que seria uma grande piada. Uma grande piada para comigo.

Ela concordou com que seria uma piada. Sua análise do assunto foi até aí. Eu insisti: - Você não acha estranho que eu pense uma coisa tão idiota sobre o último momento da vida de alguém?

Creio que aquilo foi demais para ela, pois a seguir perguntou se eu não gostava de mangas.

Certamente, eu aprecio as mangas, mas não as queria. Então, cheguei a oferecer-lhe um pedaço da minha. Apesar dos fracassos, eu me sentia um pouco melhor, como se a tentativa de comunicar meus pensamentos houvesse removido de minha mente o velho macilento. Imaginei se Jan cantaria Aquarius. Aquela pequena fazia sentir-me feliz de um modo simples.

Passei o braço em torno dela, e ela enfiou um pedaço de manga em minha boca, levantando, com isso, ridiculamente, sem querer, uma barreira entre nós. Muito bem, pensei eu, então não vamos falar sobre o meu velho emaciado. Beijei-a, e quando percebi que ela estava retribuindo meu beijo, pensei como seria delicioso fazer amor com ela. Beijamo-nos de novo, e ela se achegou a mim, fazendo sentir seu calor e sua maciez. Eu ainda tinha as mãos sujas da manga, mas corri-as de alto a baixo por suas costas, imaginando se ela queria amar. Este pensamento afastou tudo o mais de minha mente. Era ridículo estarmos ali no chão, e fiquei refletindo sobre como passarmos para a cama, quando senti que ela nada usava por baixo do seu vestido leve - eu me preocupara demais em acariciar suas costas para reparar nisso. Ela percebeu o meu desejo, e levantamo-nos ao mesmo tempo. Quando comecei a levantar seu vestido, ela me impediu segurando-me os braços, desabotoou-o nas costas, e emergiu de dentro dele, linda com a suavidade da luz. Podia ser que ela não houvesse compreendido o meu problema, mas não havia dúvida de que tinha desanuviado minha mente. Toda a poesia com que eu a envolvera ampliou-se para incluir seus seios. Tirei o jaleco, deixei cair o estetoscópio no chão, e avancei rápido para ela, com medo de que pudesse desaparecer.

O telefone tocou. Aquele instante passou, e o velho macilento voltou à minha vida. Jan jazia deitada na cama enquanto eu, de pé, olhava para o telefone. Dez segundos antes, meu cérebro estava claro e controlado; agora tornara a confundir-se e, com a confusão, veio o terrível pensamento: Ele começou a respirar. Deixei que o telefone tocasse três vezes, com a esperança de que parasse. Quando atendi, era a enfermeira.

- Dr. Peters, a família chegou.

- Obrigado. Irei já.

Fui invadido por uma sensação de alívio; era apenas a família. O velho ainda estava morto.

Coloquei a mão nas pequeninas costas de Jan; sua pele morna e macia exigia atenção, e suas graciosas curvas não me ajudavam muito a imaginar como pedir autorização à família para ser feita a autópsia. Achar meu jaleco branco não foi difícil, mas o estetoscópio me despistou até que pisei nele enquanto vestia o jaleco.

- Jan, tenho que ir até o hospital. Voltarei num instante. Espero.

Piscando, saí da tepidez do quarto para a fluorescência do vestíbulo, a fim de enfrentar a provação do elevador marrom.

Existe algo de sinistro na escuridão e no silêncio de um hospital adormecido. Já eram dez e meia, e a enfermaria entrara na rotina da noite, uma espécie de meia-vida feita de luzes mortiças e vozes abafadas. Caminhei ao longo do vestíbulo em direção ao posto das enfermeiras, passando por quartos marcados apenas pelo escoar das luzes noturnas. Na outra extremidade, pude ver duas enfermeiras que falavam, embora nenhum som chegasse aos meus ouvidos. Desta vez o vestíbulo parecia particularmente comprido, como um túnel, e as luzes lá no fim me lembravam uma pintura de Rembrandt, com áreas muito brilhantes cercadas de cores sombrias, queimadas. Eu sabia que a qualquer momento aquela calma podia ser quebrada, lançando-me ao encontro de uma nova crise, mas na ocasião aquele mundo permanecia sereno.

Autópsia. Eu tinha de pedir uma autópsia. Lembrei-me da primeira a que assistira, no segundo ano da escola de Medicina, no início de nosso curso de Patologia, quando eu ainda pensava que a Medicina fazia bem a todo mundo. - Entrem por aqui, rapazes, e se arranjem em torno da mesa.

Nós todos parecíamos iguais em nossos aventais brancos, marchando como um grupo de garotos de escola bem- comportados, que eu supunha sermos. Então eu a avistara, não a que nós fôramos ver ali, porém uma outra, na mesa seguinte, que era a próxima da fila a ser autopsiada. Sua pele era de um cinza amarelado frio, com uma placa de herpes-zoster que se estendia do braço pelo peito até a linha mediana. O herpes-zoster é uma grave doença da pele caracterizada por grandes lesões escamosas.

Seu efeito visual fora duplamente assustador naquele ambiente. A mulher estava deitada sobre uma mesa de cimento no meio de mil manchas repugnantes. Por baixo e em torno dela corria água através de canaletas longitudinais separadas uma das outras de mais ou menos 7,5cm, caindo num ralo na base com um obsceno ruído de sucção. Atado em seu braço direito havia uma etiqueta de papel manilha com algumas marcas rabiscadas a lápis. Seu cabelo parecia quebradiço. Porém o que mais me impressionara fora a cor doentia de sua pele. Devia ter trinta anos, não muito mais velha do que eu, pensei. O quadro não me fizera sentir mal fisicamente, como aconteceu com alguns estudantes, porém, de certo modo, mentalmente abalado.

Era inegável que estava morta, realmente morta e, no entanto, parecia tão viva, exceto por sua cor.

Morta, viva, morta. .. aquelas palavras, polaridades absolutas, pareceram fundir-se em minha mente. O corpo que eu dissecara no primeiro ano de anatomia em nada se parecia com aquele.

Estava morto e nada apresentava que sugerisse vida. É o ambiente que torna as coisas ruins, dissera comigo mesmo, a sala de um cinza sujo caindo aos pedaços e a meia-luz, ela própria parecendo suja e podre ao lutar para passar pelas janelas encardidas. Que diabo você quer, Peters? Uma carreta de veludo, velas, e rosas?

Mas aquela mulher não era o caso que tínhamos vindo ver. Comprimi-me entre os aventais brancos que se agrupavam em torno de uma outra mesa, vi de relance alguns órgãos carnudos e ouvi ruídos gorgolejantes, enquanto o professor de Patologia fazia a incisão, demonstrando sua técnica. Eu não fora capaz de ver o bastante para apreciar a lição e, de qualquer modo, o que havia me interessado estava lá atrás, por sobre o meu ombro. Todo mundo ficara paralisado à vista daqueles órgãos; eu não podia deixar de olhar para o corpo errado. Eu não tinha querido tocá-la, mas o fiz, e o fato de não senti-la muito fria só piorou as coisas. Nem por isso eu ficara chocado, apenas assustado, e não porque a houvesse tocado, mas porque ela me esbofeteara com o fato elementar de que a diferença entre a vida e a morte era uma questão de tempo e de sorte. Tampouco significava nada para ela agora. Assustado, também, porque ela fora uma mulher jovem, talvez desejada e cheia de possibilidades, e agora estava morta e amarela, deitada sobre uma mesa de cimento, manchada, numa sala subterrânea suja.

Uma coisa era tratar com o sexo quando cheio de vida, calor e vigor. Mas eu não podia tratar com aquele. Minha mente confusa tinha registrado uma centena de pensamentos; não posso negar que, entre eles, o sexo, minhas próprias lembranças do amor sexual.

Isso fora há muito tempo e a nove mil, seiscentos e cinqüenta e quatro quilómetros de distância.

Agora, tinha de tratar da autópsia do velho macilento.

- Doutor, a família está ali no sofá - disse uma das enfermeiras, quando cheguei à sala de recepção da enfermaria. Duas pessoas surgiram de repente onde antes parecia não haver ninguém.

Quando nos aproximamos, a palavra "autópsia" me fez recordar o cabelo quebradiço e o herpes- zoster. Talvez eu devesse falar em exame post-mortem; soa melhor.

- Meus pêsames.

- Está tudo bem, nós já esperávamos por isso.

- Nós gostaríamos de fazer uma autópsia. - Afinal, a palavra saiu naturalmente.

- Muito bem, é o mínimo que podemos fazer.

O mínimo que podemos fazer? Fiquei admirado com o fato de acharem que tinham de fazer alguma coisa. Eu me sentia desprezível por ser quem os chamara tão tarde da noite para lhes dizer que seu pai estava morto, e agora me sentia mais culpado ainda por pedir autorização para fazer a autópsia.

Mas, aparentemente, eles também se sentiam culpados. Desde que ninguém podia ser responsabilizado pela morte, todos partilhavam a culpa. O mínimo que podemos fazer? Eu estava fazendo uma tempestade num copo dágua. Que reação eu esperava que tivessem? Acusações? Acessos de raiva? Eu iria aprender que a maioria das pessoas fica simplesmente entorpecida com a morte, e se deixa levar simplesmente por seu comportamento habitual, cortês e refletido.

- Nós nos encarregaremos do resto dos papéis, doutor - ofereceu-se uma das enfermeiras.

- Muito obrigado.

- Somos-lhe gratos pelo que o senhor fez, doutor - disse o filho quando eu me retirava do posto das enfermeiras.

- Não há de quê. - Boa gente, pensei, afastando-me, e que felicidade que não pudessem ler meus pensamentos. Mesmo agora eu me sentia impelido a tatear o cadáver do homem à procura de um pulso. Se soubessem do meu medo secreto, ficariam irritados ou apenas chocados? Era provável que ficassem primeiro chocados, e depois irritados. Mas o que iriam pensar se seu pai despertasse no necrotério? Ri intimamente ante este pensamento, pois hoje em dia muito pouca gente é levada a um necrotério. A maioria vai a um enterro. Muitos mais assistem a programas de TV e a maus filmes. Achei que eu era um idiota, especialmente quando estava cansado, e naquele ponto eu estava exausto.

- Doutor, telefone para o senhor. - A voz veio de trás de mim, quando eu me achava quase no fim do vestíbulo escuro. Devia ser Jan, pensei eu, lembrando-me de repente de como deliciosa estava ela nua, de pé, no meu quarto. Sua imagem fundiu-se com a sala de autópsias da escola de Medicina, com aquele corpo amarelado e com o herpes-zoster no peito. Mas a chamada não era de Jan - era da Enfermaria A - outra enfermeira em pânico. Qualquer coisa sobre a pressão venosa de alguém, que estava caindo a zero. O filho do velho macilento ainda estava ali. Por uma última vez, num instante, vi seus olhos e, de repente, senti-me orgulhoso por estar ali, e depois idiota por ter orgulho disso. Correndo de volta pelo vestíbulo, achei que minha posição nada mais era do que gloriosa.

Pressão venosa? Meus conhecimentos sobre isso consistiam de uma definição devidamente memorizada. "Pressão venosa é a pressão estática nas grandes veias do corpo". Além disso eu não sabia quase nada. Não obstante, eu corria como se soubesse tudo. Aquele era o meu serviço.

O pouco de coragem que eu tinha desapareceu quando vi que as enfermeiras estavam reunidas no quarto de Marsha Potts. Marsha Potts era a tragédia do hospital. Na visita, logo no primeiro dia de meu internato, há duas semanas, tínhamos parado no quarto dela, enquanto a história se desenrolava. Sintomas de úlcera tinham-na trazido para a clínica, e ali fora constatada, grande como a vida, perfeita na radiografia. Todo mundo sempre ficava feliz quando podia ver uma úlcera.

O radiologista estava satisfeito porque conseguira uma boa chapa, e os cirurgiões estavam extáticos, cumprimentando-se uns aos outros pela precisão do diagnóstico e afiando seus bisturis.

Tudo estava ótimo. Em geral era ótimo também para o paciente, mas não para Marsha.

Os médicos tinham realizado uma gastrectomia, retirando a maior parte de seu estômago e ocluindo a extremidade do intestino delgado que normalmente sai do estômago. Em seguida, escolheram um ponto alguns centímetros mais abaixo do intestino delgado e, depois de fazerem uma abertura, tinham-na suturado à pequena bolsa formada pelos remanescentes do estômago, dando assim à Marsha um novo estômago, se bem que um tanto menor. Esta operação, conhecida como Bilroth II, envolve uma grande quantidade de incisões e suturas, e é portanto popular entre os cirurgiões.

Marsha atravessara tudo aquilo muito bem - pelo menos assim pensara todo mundo - até o terceiro dia, quando a anastomose entre a bolsa gástrica e o intestino se rompeu. Isso permitira que seus sucos gástrico e pancreático se escapassem para dentro do abdome, e ela começou a se digerir. Literalmente, as enzimas "comiam" seu caminho através da incisão, e seu abdome se tornou uma ferida aberta com cerca de trinta centímetros de diâmetro. As enfermeiras conservavam-na coberta com alimento para criança, na tentativa de absorver um pouco do suco pancreático e neutralizar as enzimas. Durante semanas, o cheiro pútrido e penetrante revoltara o estômago de todo mundo. Mas, para mim, o pior do caso é que eu sabia que não podia resolvêlo. De modo algum.

Quando entrei no pequeno quarto onde ela se achava isolada, a situação era tão ruim quanto possível. Sua pele apresentava um terrível cinzento ictérico, e as mãos se agitavam fracamente aos seus lados. A enfermeira pareceu aliviada com a chegada de um médico, mas em vez de adquirir confiança com aquilo, pensei eu, oh, menina idiota, se você pudesse olhar dentro de minha mente nada veria senão um grande vazio.

Marsha Potts, aparentemente, sofrera um colapso total. Folheando as pilhas de papeletas e resultados dos exames de laboratório, eu tentava achar uma indicação do que estava acontecendo e ganhar um pouco de tempo para ordenar meus pensamentos. Uma enorme barata preta estava grudada na parede acima do leito, mas não me incomodei; mais tarde a tiraríamos dali. Era difícil imaginar que a vida de qualquer forma dependia de meus pensamentos.

Contudo, uma série de informações começava a passar pela minha mente. O pulso, sim. Tomei-o e achei-o forte, cheio, com cerca de 72 batimentos por minuto, quase normal. Bom. Ora, se a pressão venosa tinha caído a zero enquanto o coração estava funcionando bem, isto significava que não havia sangue suficiente do lado venoso. Pelo menos eu estava pensando. A última coisa que eu queria fazer era remover o volumoso curativo de seu abdome. Gotas de suor corriam pelo meu rosto. Estava terrivelmente quente ali. Pressão arterial? A enfermeira informou que era de 110/90. Como diabo podiam estar tão bons seu pulso e sua pressão arterial sem pressão venosa? Sem pressão venosa o coração não se encheria, e se não se enchesse nada sairia dele, donde ausência de pressão arterial ou de pulso. Era assim que se esperava que tudo funcionasse, mas evidentemente este não era o caso. Que fossem para o diabo aqueles professores de Fisiologia. No laboratório da escola de Medicina, eles tinham um cão com tubos que saíam do seu coração, de suas artérias e de suas veias. Ali, tudo funcionava perfeitamente, como em geral acontecia no laboratório. Quando os professores reduziam a quantidade de sangue no coração do cachorro fazendo cair a pressão venosa, a pressão arterial do cão acompanhava e caía rapidamente. Aquilo era automático e reproduzível, como se o cão fosse uma máquina.

Marsha Potts não era máquina. Contudo, porque não podia ela funcionar como os animais no laboratório, em vez de me oferecer uma confusão total e insolúvel? Eu mal sabia por onde começar meu exame. Ela não apresentava qualquer inchação na pele devido à retenção de fluido, exceto nas costas - local habitual deste edema, em conseqüência de permanecer muito tempo deitada na cama; há cerca de três meses que Marsha estava deitada de costas. Flexionei sua mão esquerda para trás, e ela saltou para a frente. Fantástico. Ela estava com um reflexo hepático. Quando o fígado está insuficiente, o paciente desenvolve um reflexo curioso; se se flexiona a mão para trás sobre o punho, ela volta para a frente com um salto, como uma criança acenando adeus. Desfrutando da alegria de um achado positivo, tornei a examinar a papeleta. O reflexo não estava anotado. Eu não sabia muita coisa sobre a pressão venosa, mas era capaz de escrever páginas inteiras sobre o reflexo hepático, que eu só havia visto uma vez antes. Experimentei na outra mão, e o reflexo tornou a funcionar. Significava que ela estava em muito mau estado. De fato, enquanto eu me entregava à apreciação académica do meu diagnóstico, a mulher morria diante de meus olhos.

Na verdade, já se achava virtualmente morta; contudo, tecnicamente, ela ainda vivia. Tinha amigos e uma família que pensavam nela como uma pessoa viva. Mas ela não podia falar, e todos os seus órgãos falhavam. Será que ela pensava? Provavelmente não. Com efeito, por um instante, achei que era melhor que estivesse morta, mas afastei bruscamente aquele pensamento. Como se pode saber que é melhor para alguém estar morto? O caso de Marsha Potts também ficava fisicamente confuso.

A mulher com o herpes no peito parecia viva mas, na verdade, estava morta. A que eu tinha na minha frente naquele pequeno quarto quente estava viva mas. . . E as injeções endovenosas?

- Quanto soro ela tomou nas últimas vinte e quatro horas? - perguntei à enfermeira.

- Está tudo aí, doutor, na folha de administração e eliminação. Mais ou menos 4.000cc.

- Quatro mil! - Procurei não parecer surpreso, embora o estivesse, e muito. - Qual foi?

- Bem, na maior parte soro fisiológico, mas também um pouco de Isolyte M - respondeu ela.

Que diabo era Isolyte M? Eu nunca havia ouvido falar nisso. Girando a ampola que estava correndo, eu li, "Isolyte M, e torcendo-a para o outro lado: "Cloreto de sódio, potássio, magnésio.

..". Não era preciso ir adiante; tratava-se de uma solução de manutenção. A folha de administração/eliminação era uma confusão de algarismos aparentemente lançados ao acaso, mas eu gostava daquilo. Desde o início do curso médico que eu me fascinara com o equilíbrio dos fluidos e eletrólitos, tão fascinado que era capaz às vezes de me preocupar com o sódio e me esquecer do paciente. O líquido administrado a esta paciente parecia combinar com o eliminado, à exceção do que havia empapado o volumoso curativo que cobria a ferida. Fora instalado um aparelho de sucção para extrair o líquido do fundo do abdome, mas não parecia muito eficiente.

Além disso, o alimento leve que ela estava recebendo não tinha muito valor nutritivo. Era levado ao estômago por uma sonda através do nariz. Como seus próprios sucos digestivos haviam formado uma fístula, ou passagem, entre o estômago e o cólon, na verdade o alimento passava diretamente do estômago para o intestino grosso e daí para o reto praticamente inalterado.

Embora ela não demonstrasse estar desidratada, sua urina revelava evidentes sinais de infecção, na forma de sangue, bile, e pequenos pedaços de matéria orgânica que flutuavam em torno da bolsa da sonda. Com tanta impureza ali, o único meio de saber se a urina estava concentrada demais era testar sua densidade.

- Não creio que tenhamos um densímetro neste andar, temos?

A enfermeira desapareceu, muito satisfeita por ter um serviço a fazer, apesar do seu mérito potencial. Eu ainda não tinha meios para explicar a pressão venosa de Marsha. Continuei a examiná-la, à procura de algum sinal de insuficiência cardíaca para explicá-la e não encontrei nenhum. Aparentemente eu estava me aproximando do inevitável: eu teria que ver sua ferida.

- É isto o que o senhor quer, doutor? - A enfermeira entregou-me um vidro cheio de papéis destinados a testar o açúcar na urina.

- Não, quero um densímetro, um pequeno instrumento que se põe a flutuar na urina. É parecido com um termômetro.

Ela tornou a desaparecer enquanto eu lia a etiqueta no vidrinho que ela havia me dado. Talvez, de qualquer modo, eu testasse o açúcar na urina; não havia por que não o fizesse.

- É isto, doutor?

- Esta é a criança.

Peguei o densímetro e desprendi a sonda. Segurando a respiração para evitar o cheiro, despejei um pouco da bolsa num frasco que, achei, conteria urina suficiente para fazer flutuar o densímetro.

Com todo cuidado, mergulhei o instrumento na urina, mas não consegui fazer uma leitura. O danado ficava grudado ao lado do frasco em vez de flutuar livremente, como se esperava que acontecesse. Segurei o frasco com a mão esquerda, e dei um peteleco com o indicador direito, tentando soltar o instrumento. Só consegui salpicar urina no meu braço. Juntando mais urina ao frasco, finalmente fiz com que o densímetro subisse e descesse. A densidade estava dentro dos limites normais - com efeito, estava absolutamente normal - de modo que Marsha não estava desidratada. Por um motivo qualquer, os médicos não empregam a palavra "normal" sem seus qualificativos; é sempre "dentro dos limites normais" ou "essencialmente normal".

Marsha tornou a gemer. Ao respirar fundo, fui invadido por uma sinfonia de cheiros no quarto. Até onde eu podia me lembrar, jamais suportara os maus odores. No ginásio, quando um de meus colegas vomitava, era certo acompanhá-lo com um reflexo simpático, assim que o cheiro do vômito me alcançava. Na escola de Medicina, apesar de três máscaras e toda espécie de truques mentais, era sabido que eu tinha ânsias de vômito no meio do laboratório de Patologia.

Ainda tentando buscar uma explicação para o caso de Marsha Potts, pensei se ela não teria bactérias Gram-negativas na corrente sangüínea, ou talvez uma infecção bacteriana causada, por exemplo, por pseudômonas. Às vezes o pseudômonas leva a uma condição chamada de sepse Grã- negativa, que é um dos espetáculos mais aterradores da Medicina. Num minuto o paciente está muito bem; depois, um calafrio, e tudo vai para o diabo.

Talvez isso pudesse explicar o problema da pressão venosa. Mas não vi qualquer sinal de sepse.

Agora, Marsha gemia com regularidade, e cada gemido era como uma acusação contra mim. Por que eu não podia deixar de pensar nisso? Passando para o outro lado do leito, chamei a atenção da enfermeira para a barata, que havia se movido alguns centímetros, descendo até a altura do ombro.

Ela deu um pulo e sumiu, para voltar quase que instantaneamente com vários metros de papel higiênico, que prontamente resolveram o caso do bicho. Um bicho como aquele não me incomodava muito - não como os ratos no hospital em Nova York. O pessoal do térreo dizia sempre que estava a par do problema e que o estava resolvendo, mas eu os via repetidas vezes.

Talvez houvesse algo de errado com a torneira tripla do tubo endovenoso. Quando a coloquei na posição para medir a pressão venosa, ela não se mexeu do zero. Fechando-a de novo, enchi a coluna com a solução endovenosa e liguei-a na paciente. O nível permaneceu estável durante alguns segundos antes de começar a cair rapidamente, e depois lentamente, conforme a enfermeira disse, primeiro para 10cm e por fim para zero. Tudo muito confuso, especialmente aquela torneira de três saídas. Jamais soubera operá-las corretamente, jamais soubera que controle girar para que conexão.

Pedi a uma enfermeira uma seringa grande cheia de soro fisiológico e desprendi todo o emaranhado de tubos da sonda que ia para a veia femural, logo abaixo da virilha. Há tanto tempo que Marsha vinha sendo sustentada endovenosamente que as veias de seus braços não serviam mais para as injeções, e os médicos tinham começado a usar as veias das pernas. Para surpresa minha, nenhum sangue subiu pelo tubo da sonda, mesmo depois de desfeita a pressão da solução de manutenção.

Ao introduzir cerca de 10cc de soro fisiológico na sonda com a seringa, senti uma resistência;

então, de repente, o líquido fluiu com mais facilidade. Quando retirei o êmbolo da seringa, apareceu na sonda um filete vermelho de sangue.

Era evidente que um tampão obliterara a extremidade da sonda dentro da veia de Marsha, provavelmente um coágulo sangüíneo, que tinha atuado como uma válvula de esfera, permitindo que a solução endovenosa de manutenção entrasse, porém impedindo qualquer coisa de sair. A leitura da pressão venosa dependia do sangue capaz de subir pela sonda. Expliquei tudo isso à enfermeira, mas não lhe disse que provavelmente, agora, o coágulo sangüíneo estava nos pulmões de Marsha. Se assim era, tinha de ser pequeno, graças a Deus.

Prendendo a coluna uma vez mais, enchi-a e alinhei-a com a paciente. Depois de me certificar de que mostrava uma pressão venosa normal e ia permanecer onde estava, reiniciei a injeção endovenosa.

- Lamento doutor, eu não sabia - falou a enfermeira.

- Não precisa se lamentar, doçura.

Eu estava satisfeito por haver solucionado um problema, mesmo sendo um miniproblema.

Considerando que eu começara com a mente em branco, o feito parecia notável, embora a paciente continuasse na mesma. Ela gemeu de novo, torcendo os lábios. Realmente, era apenas a sombra de uma pessoa, e a certeza que eu tinha disso apagou a sensação do feito. Tudo o que eu queria agora era sair dali, mas não ia ser assim.

- Doutor, já que o senhor está aqui, importava-se em dar uma olhada no Sr. Roso? Os outros pacientes não podem dormir com os soluços dele.

Enquanto eu e a enfermeira caminhávamos pelo corredor para a enfermaria de Roso, pus-me a pensar em como era estranho o edifício do hospital, algo inteiramente novo em minha experiência.

Seus vestíbulos comunicavam diretamente com o exterior, pelo menos na seção velha, baixa, e a relva se estendia até às entradas. Uma grande sapucaia dominava o pátio, curvando-se e farfalhando ao vento. Os jardins, impecavelmente tratados e ornados com enormes árvores tropicais.

Que diferença dos outros hospitais onde eu trabalhara. No jardim da minha escola de Medicina em Nova York existiu uma árvore, mas foi cortada antes de eu sair. O resto era cimento e tijolos, tudo amarelo. Mas o lixo de todos eles era o Bellevue, onde eu havia feito o meu aprendizado clínico no quarto ano (essencialmente funcionando como um interno embora oficialmente ainda fosse um estudante). Os vestíbulos ali eram pintados de uma deprimente cor marrom, estavam descascando por toda parte e se faziam tão desagradáveis ao toque que tínhamos o cuidado de caminhar pelo meio, longe das paredes. Meu quarto de plantão tinha uma janela quebrada e um encanamento precário. Ficava do outro lado das enfermarias de clínica médica, que só podiam ser alcançadas atravessando-se o centro respiratório, onde estavam todos os doentes de tuberculose. Às vezes, durante a travessia, eu prendia inconscientemente a respiração, de modo que chegava ofegante ao meu destino.

Se Dante houvesse visto o Bellevue, ter-lhe-ia dado um lugar preeminente no Inferno. Como odiei aqueles dois meses. Uma vez vi um filme que me lembrou o Bellevue; era O Processo, de Kafka, e nele os personagens viviam andando por vestíbulos intermináveis. Assim era o Bellevue; vestíbulos intermináveis, particularmente se você estava prendendo a respiração. Qualquer janela suficientemente limpa para que se pudesse ver através dela revelava apenas outro prédio sujo com ais vestíbulos. Até a satisfação de uma necessidade fisiológica podia ser perigosa. Uma vez, entrei no banheiro dos homens um tanto apressadamente, abrindo o zíper de minha calça enquanto atravessava a porta, e caí literalmente em cima de um grupo de pacientes, que estavam muito ocupados em se injetarem heroína com as seringas do hospital. Foi a primeira vez que os doentes ameaçaram me matar, porém não a última.

O Havaí nada tinha de parecido com o Bellevue. Aqui eu não tinha sido ameaçado, ainda não, de qualquer modo, e todas as paredes eram limpas e cuidadosamente pintadas, até no porão. Eu imaginara que os porões de todos os hospitais fossem iguais, mas aqui eram limpos, até brilhantes.

Não sei por que me preocupava tanto com a tuberculose. Suponho que fazia parte da irracionalidade que existe em todos nós, quando você decide que algumas coisas são ruins e que outras não o afetarão. Depois de ler sobre a hipertensão maligna, eu achava que estava com ela, toda vez que tinha uma dor de cabeça. Talvez a tuberculose me preocupasse porque o primeiro paciente que eu examinei clinicamente estava com tuberculose.

Todos nós estudantes de Medicina pusemos a nos auscultar mutuamente, o que resultou numa risadaria geral e poucos ensinamentos. Depois fomos transportados de ônibus a um hospital de doenças crônicas a fim de auscultar pacientes pela primeira vez. Este lugar chamava-se Goldwater Memorial, e fazia com que, junto dele, o Bellevue parecesse o Waldorf. Depois de tirar um cartão com o nome de alguém, aproximei-me do leito do homem sentindo-me tão transparentemente novo que bem podia ter um letreiro em minha testa dizendo: "Aluno do 2º ano de Medicina. 1º Contato com o Doente." Tudo saiu muito bem até que auscultei a região do ângulo costo-frênico esquerdo, pelo lado direito do leito. Encostado em seu peito, eu lhe disse para tossir, o que ele fez diretamente em meu ouvido, lançando gotículas de catarro amarelo cheio de bacilos da tuberculose, antibiótico- resistentes. Nem mesmo um xampu no lavatório dos homens, ou a aplicação de sabão líquido, me fez sentir bem. Quando voltei para o meu apartamento tive de lavar-me repetidas vezes com xampu, como fez Lady Macbeth.

Até então eu não tivera de tratar com qualquer tuberculoso deste hospital. Talvez no Havaí não os houvesse.

Meu sonho terminou. Olhei para a enfermeira que caminhava comigo para ir ver Roso. Ela era outra das coisas de valor do Havaí, muito linda, com uma mistura de sangue chinês e havaiano, imaginei, com um corpinho esbelto, olhos amendoados, e belos dentes.

- Você gosta de surfe? - perguntei ao chegarmos à porta da enfermaria do homem.

- Eu não sei pranchar - respondeu ela suavemente.

- Você mora perto do hospital?

- Não, moro em Manoa Valley com meus pais. - Era uma pena. Eu queria ouvi-la falar, mas estávamos nos aproximando do quarto de Roso.

- Roso tem vomitado?

- Não, de modo algum, apenas soluçado. Nunca pensei que soluçar fosse tão ruim. Ele está num estado deplorável.

Olhando meu relógio antes de entrar na enfermaria, vi que ia dar meia-noite. Mesmo assim, eu não me importava de ver Roso. Sob muitos aspectos era meu paciente favorito. Pequenas luminárias noturnas perto do chão difundiam um brilho que parecia misturar-se com os sons calmos de respirações e roncos. De repente, um soluço agudo quebrou a tranqüilidade, e o ressonar descontrolou-se. Orientado por aqueles soluços, eu teria encontrado Roso na mais densa das trevas.

Nós o havíamos operado na minha segunda manhã como interno. Na verdade "nós" não é o termo preciso; o residente-chefe e um residente do segundo ano tinham-no operado enquanto eu, durante três horas, fiquei segurando os afastadores. Eu era o primeiro a admitir minha incapacidade na sala de operações; e do jeito que as coisas caminhavam, minha ignorância estava assegurada. Ao contrário de muitos estudantes que, regra geral ficam impacientes para praticar a cirurgia, eu tinha pouca experiência da sala de operações, principalmente porque eu não queria, mas também porque eu me interessara mais pelos problemas dos eletrólitos e dos fluidos após a operação. Isto servia a todo mundo. Os outros estudantes não ligavam para a Química, ao passo que eu tinha dificuldade em ficar de pé durante seis horas na sala de operações vendo os outros cortarem e suturarem.

Principalmente depois da cena que ocorreu na segunda vez em que eu tinha "ajudado" em Nova York.

Era uma operação de câncer, uma remoção completa do seio, ou mastectomia radical, como é chamada, a ser praticada pelo Importante, o próprio Mundialmente Famoso Cirurgião.

Sendo apenas um estudante do segundo ano naquela época, eu estava cheio de desconfianças, e o fato de todo mundo parecer um pouco tenso, até os residentes, tinha aumentado minha ansiedade.

De repente o Importante entrou a passos largos pela sala de operações, regiamente esplêndido e atrasado como de hábito. Tocou em alguns instrumentos na grande bandeja do esterilizador, pegou tudo e jogou ao chão, jurando que eles estavam arranhados, tortos, e totalmente inaceitáveis. O anestesista ficara tão assustado com o barulho que dera um pulo e arrancara a máscara do rosto do paciente. Eu desaparecera, esperando que ninguém desse por minha falta, o que de fato aconteceu.

Claro que, por fim, comecei a assistir algumas operações, do princípio ao fim, mas até hoje não consegui compreender os cirurgiões. Um outro deles lá era um tipo calmo, agradável, até entrar na sala de operação onde, uma vez, o vi atirar uma pinça em cima do anestesista residente porque o doente se mexeu. Doutra feita, o mesmo homem expulsou um dos cirurgiões residentes da sala, alegando que ele estava respirando forte demais. De qualquer modo, até agora eu não tivera muito incentivo para perder meu tempo na sala de operações, e estava bastante cru em cirurgia quando iniciei meu internato.

Apesar de minha inexperiência, eu conhecia toda a rotina da esterilização, como lavar as mãos, como mantê-las em posição, como secá-las, e como vestir o avental e calçar as luvas; era capaz mesmo de dar alguns nós cirúrgicos. Isto foi aprendido principalmente à custa de erros e tentativas.

Minha primeira esterilização, quando eu cursava o terceiro ano da escola de Medicina, tinha sido para fazer uma sutura na sala de operações de emergência. Eu levara os dez minutos habituais a escovar as mãos e os antebraços, e tinha limpado as unhas com um bastãozinho alaranjado antes de vestir desajeitadamente o avental. Meti-me nas calças balofas, estava de gorro, máscara e tudo o mais, e por fim a enfermeira ajudou-me a enfiar as luvas de borracha. Depois de vinte e cinco minutos de concentrado esforço, finalmente fiquei pronto; minhas mãos estavam tão estéreis quanto uma pedra da lua. Então, casualmente, peguei um banquinho e me encaminhei para o paciente, contaminando assim as mãos, meu avental, tudo. A enfermeira e o residente tiveram um ataque de riso; até o paciente, perplexo, juntou-se a eles quando eu tive de recomeçar tudo desde o início.

No caso de Roso, mesmo da posição desvantajosa em que eu me achava, por trás dos afastadores, percebi que nada em sua operação estava sendo fácil. O residente-chefe amaldiçoava o pobre protoplasma, e tive de admitir que os tecidos de Roso sangravam facilmente. Surgiu uma emorragia séria, perto do pâncreas, no fundo do campo operatório, mas os dois conseguiram completar o Bilroth I, técnica que consiste em ligar o estômago e o intestino como estavam antes da operação, depois de retirada a úlcera. Então eu devia suturar a pele de Roso. Nada significava para ninguém, mas para mim representava tudo. Pensei em pedir a um dos residentes que apoiasse o dedo sobre a primeira laçada do nó, como se faz ao amarrar um presente de Natal. Foi um pensamento que me divertiu durante um segundo.

Na verdade, para um processo tão simples, amarrar aquele nó fora tremendamente irritante. Não raro, as suturas são muito estreitas, e o tato é difícil através das luvas de borracha, principalmente nas pontas dos dedos, onde a luva é mais grossa e onde você precisa do máximo de sensibilidade.

Eu sabia que tinha de dar o nó de modo que as bordas da ferida se unissem, se tocassem, sem tensão e sem fazer com que a pele se dobrasse por baixo. Também sentia que todo mundo estava me observando, me julgando. Embora eu soubesse uma porção de coisas, nada importava senão aquele nó, pois sem o nó a operação literalmente se arruina.

A extremidade da seda preta em minha mão direita desapareceu na pele num dos lados da incisão e emergiu do outro. Juntei-a com a outra extremidade do fio, em minha mão esquerda, e dei o primeiro nó, apertando até que as bordas se tocassem ligeiramente. Agora, o próximo nó. Mas assim que relaxei a tensão, a ferida se abriu. Juntei-a de novo e passei o outro fio o mais rápido que pude, esperando de algum modo reduzir a abertura. O lamentável resultado deixou as bordas da ferida perigosamente afastadas. Então, apavorado, vi uma mão com uma tesoura, que cortava o nó enquanto atrás de mim ouviam-se risadas meio abafadas.

Outra mão recomeçou a sutura, enfiando a agulha curva por baixo da pele com toda a facilidade, atravessando a incisão, e saindo do outro lado. Levantei os olhos apelando para o céu; que adiantava eu estar ali se nem podia dar um nó? Tive outra chance na segunda fileira de suturas, que iam no sentido oposto. Quando enfiei a agulha pela segunda vez, a sutura ficou tão apertada que a pele formou pregas e as bordas se dobraram sob a tensão. Novamente apareceu a tesoura, cortesia do residente do segundo ano que tinha cortado o meu primeiro nó, e a ferida se abriu aliviada.

Parecia tão simples e rítmico quando outra pessoa costurava. Percebi alguns truques aqui e. ali, como, por exemplo, uma torção depois do primeiro nó. Em vez de abandonar a sutura do primeiro nó, você a puxava para trás, em sua direção, por ambos os fios. Tentei de novo, com resultado um pouco melhor, embora ela ficasse ainda muito apertada. Por fim, Roso ficou pronto, pelo menos por enquanto.

O primeiro indício de um transtorno foi o soluço, que começou cerca de três dias depois da operação. Surgindo com regularidade a cada dezoito segundos, no princípio foram divertidos. Com efeito, Roso tornou-se uma curiosidade do hospital com seu engraçado relógio de soluços. Tinha apenas cinqüenta e cinco anos, mas os anos passados nos campos de abacaxis faziam-no parecer muito mais velho, todo curvado e muito magro. Suas calças viviam a cair quando ele se arrastava pela enfermaria empurrando seu suporte de injeção endovenosa. As veias de seus braços não serviam mais para as injeções e, como Marsha, tinha um cateter na virilha direita. Isso provocava ainda mais problemas. Se ele apertava demais o cordão da cintura para segurar as calças, interrompia o fluxo da injeção. Assim, para andar, tinha que segurar o suporte com uma das mãos e as calças com a outra.

Roso era filipino, e seu vocabulário de inglês limitado a cinqüenta ou sessenta palavras concisas, que ele usava para comunicar conceitos emocionais. - Corpo não mais forte - dizia ele, e era o suficiente, como na poesia "haiku". Eu o compreendia e gostava muito dele. Havia algo de muito nobre e corajoso naquele homem. Além disso, acho que ele gostava de mim, o que percebi mais tarde ser um aspecto muito importante do meu esforço em mantê-lo vivo. Quando me via nas visitas da manhã, Roso se abria num largo sorriso a despeito de seus soluços, o que fazia todo seu corpo pular. Qualquer um podia ver que estava esgotado. Eu havia experimentado todos os remédios que pude encontrar nos livros de Cirurgia, Clínica e Farmacologia, e até remédios populares - como respirar dentro de um saco de papel, porém nada adiantara. De um modo mais científico, fiz com que respirasse gás carbônico a 5 por cento, sem nenhum efeito. Tampouco haviam funcionado o nitrito de amilo e pequenas dose de Thorazine, nem o cálcio, que eu experimentara numa tentativa de relacionar os soluços com seu estado hipernervoso; seus reflexos eram tão bruscos que quando eu batia com o martelo de borracha abaixo do joelho, sua perna pulava tanto que jogava longe o chinelo. Meu grande erro durante todo esse tempo foi não considerar os soluços como sintomas de algo mais profundo. Eu os via como um problema isolado quando, de fato eles eram um efeito colateral de uma ardente catástrofe interior.

O indício que se seguiu, ocorreu quando o residente determinou que se removesse a sonda gástrica de Roso, e permitiu que os líquidos fossem administrados pela boca. Em uma hora seu estômago duplicou de tamanho, e ele começou a vomitar. De modo algum podíamos torná-lo mais infeliz do que ele já estava com os soluços, o vômito e a falta de sono; qualquer um desses sintomas teria sido suficiente para enlouquecer a maioria das pessoas, mas o pequeno e valente Roso ainda sorria todas as vezes que eu o visitava. - Corpo não mais forte - dizia ele. Sempre as mesmas palavras, porém de cada vez com uma entonação diferente, significando algo diferente conforme o modo pelo qual ele as pronunciava. - Corpo mais forte logo. - Comecei a empregar o vocabulário dele, daquele modo curioso com que você se dirige a alguém que não fala inglês muito bem. Você começa a achar que ele entenderá melhor, se você também cometer erros. Durante o curso médico, às vezes eu me via dizendo para os doentes de língua espanhola: - Operação você precisa dentro da barriga. - Claro que isto não fazia sentido, pois se o doente entendia as palavras, certamente as compreenderia na ordem certa. Nós estávamos tentando estabelecer uma comunicação com aquela gente.

Assim, o pobre Roso tinha sido posto sob o regime de soro endovenoso acompanhado de permanente sucção gástrica através da sonda que desaparecia em seu nariz na direção do estômago.

Atormentado pelos soluços constantes, ele vomitava toda a vez que retirávamos a sonda, quer o tivéssemos alimentado ou não. Apenas alguns dias antes a sonda tinha ficado completamente obstruída, de modo que nada além do alimento se interpunha entre Roso e a morte. Quando lavei a sonda para desobstruí-la, saiu uma porção de uma substância que parecia feita de borra de café. Era sangue velho. Era uma sorte que eu gostasse de medir o equilíbrio dos fluidos e eletrólitos, porque várias vezes por dia eu tinha de calcular a quantidade de sódio e cloretos que continham os fluidos eliminados para repô-los, mais a manutenção habitual. Cheguei a administrar-lhe magnésio, na esperança de que pudesse ajudá-lo, depois que li um artigo na biblioteca do hospital sobre a depleção de magnésio.

Mas o grande problema de Roso estava lá dentro, fora do meu alcance. Como Marsha Potts, ele estava vazando no local da anastomose, a ligação entre o intestino delgado e a bolsa gástrica, exceto que, no caso de Roso, a incisão não se havia rompido.

Ele vazava constantemente por dentro, bloqueando o estômago e provocando os soluços, obrigando-o a manter-se com o soro endovenoso, reduzindo seu peso a cada dia, de modo que, agora, não pesava mais do que trinta e seis quilos e duzentas gramas. Esforçando-me para combater a perda de peso, que significava perda de resistência, descobri artigos sobre soluções de proteínas e de alta porcentagem de glicose, e experimentei tudo o que era sugerido; ainda assim ele perdia peso, ficando com uma aparência esquelética, claramente indicativa do estado de inanição. E durante tudo isso, ele sorria e falava o seu "haiku". Eu gostava dele. Além do mais, era doente meu, e eu ia vê-lo toda vez que precisava de mim.

- Então, Roso, como vai isso? - perguntei, olhando para ele.

Que cena! Ali estava ele deitado, na penumbra, usando nada mais do que as calças do pijama, com um tubo endovenoso enfiado em sua virilha direita e a sonda pendente de seu nariz. A cada dezoito segundos seu corpo se sacudia com os soluços.

- Doutoro, não mais forte, muito fraco já. - Ele conseguiu dizer isso sem soluçar. Nós tínhamos de fazer alguma coisa. Eu vinha pressionando o médico assistente, o residente-chefe, todo mundo, mas de nada adiantava. Eles diziam para esperar. Eu sabia que não podíamos esperar. Roso ainda confiava em mim, mas sua vontade estava acabando.

- Doutoro, eu não quelo viver não mais - soluço - é demais.

Ninguém jamais me falara assim, e aquilo me deixou petrificado. Embora eu pudesse compreender como ele se sentia, não queria admitir que houvesse chegado a este ponto, pois eu tinha visto o que acontecia aos pacientes quando abandonavam a luta. Morriam, ficavam à deriva. Algo no espírito humano era capaz de manter tudo unido, mesmo em face de um total colapso fisiológico, até que o espírito se rendia, e derrubava o corpo com ele. Às vezes o desespero era tão evidente que você não pedia que o doente lhe desse respostas normais, mas Roso havia falado, e isto tornava seu caso diferente. Disse comigo mesmo que ele queria que eu soubesse que ele estava perto de desistir, mas que na verdade ainda não o tinha feito.

Ele precisava desesperadamente de sono. Embora eu o pudesse dar-lhe, era uma espada de dois gumes. A Sparine, poderoso tranqüilizante, o poria a nocaute, e até anestesiaria os soluços. Mas com aquele tubo pela garganta abaixo ele vivia em constante perigo de uma pneumonia, principalmente se ficasse inconsciente; sem o tubo ele podia vomitar, e se o fizesse enquanto estava adormecido, podia aspirar o vómito.

O Demerol e o velho macilento lá em cima ainda me preocupavam, também. Seus parentes tinham sido formidáveis, jamais percebendo qualquer dúvida em mim, tomando minhas palavras como válidas, não hesitando ante a solicitação da autópsia. E se eu lhes dissesse que eu apenas pensava que seu pai estivesse morto? Como podiam eles saber que a diferença entre a vida e a morte às vezes não era como entre o branco e o preto, mas cinzenta e indistinta? Por exemplo, Marsha Potts estava viva ou se achava em algum lugar no meio? Achei que podia chamá-la de viva, pois se melhorasse ficaria ótima, talvez; por outro lado, era provável que não melhorasse, e afinal, parte de seu cérebro já podia estar morta. Uma porção de seu fígado já devia ter degenerado para que ela tivesse icterícia e apresentasse o reflexo hepático; seus rins também. De novo, não se tratava de branco ou preto, não mais do que minha decisão sobre Roso e a Sparine. Mas Roso precisava de repouso, e eu sentia um impulso irresistível de fazer alguma coisa - assim como, quando alguém desmaia no meio de uma multidão, um espectador sai em busca de um copo dágua enquanto outro arranja um travesseiro para apoiar a cabeça de quem desmaiou. Ambas as atitudes são ridículas do ponto de vista médico, porém as pessoas se sentem mais confortáveis fazendo alguma coisa, mesmo numa situação que exija um tipo de socorro que elas não são capazes de oferecer.

Várias vezes, tive a mesma sensação. Uma vez, durante uma briga num jogo de futebol no ginásio, fui lançado para cima de uma pilha de gente no justo momento em que um cara quebrou a perna com um rangido bem audível. A perna formou um ângulo bem abaixo do joelho. Embora ele não estivesse sentindo muitas dores, todos nós ficamos apavorados e, para ser fiel à regra, procurei fazê-lo beber um pouco dágua. Acho que naquele momento enveredei, inconscientemente, pela estrada que levava à escola de Medicina. A idéia de saber o que fazer, ou de satisfazer o impulso de agir, me dominou.

Então, muito bem, Peters, você agora é um médico - faça alguma coisa por Roso. Muito bem, seria a Sparine, e no instante em que tomei aquela decisão, fui inundado pela felicidade de uma ação positiva e direta.

- Roso, eu fazer você dormir você sentir mais forte.

Quando me sentei no posto das enfermeiras, a enfermeira de olhos amendoados me passou a papeleta de Roso. Ela parecia ainda mais linda do que antes.

- Você é chinesa? - perguntei sem olhar para ela.

- Chinesa e havaiana. Meu avô materno era havaiano. Achei que seria divertido saber mais sobre ela.

- Como é sua vida em casa?

Ela não respondeu. Muito bem, que fosse para o diabo. Abri a papeleta a fim de escrever a ordem para a aplicação da Sparine. Contudo, muito mau. Ela parecia igual a todas as pequenas que eu tinha esperado ver sob as cachoeiras do Havaí. Só que eu não tinha saído do hospital o suficiente para ver cachoeiras, e minha vida sexual, se assim se podia chamá-la, estava restrita a Jan. Será que ela ainda estava lá, à meia-noite?

É melhor eu dar logo o fora daqui, pensei enquanto escrevia: "Sparine lOO mg, intramuscular". Fiz um sinal na papeleta para indicar a nova ordem, e atirei-a sobre o balcão. Roso ia dormir. A última vez que eu lhe dera lOOmg ele apagara durante dezoito horas.

- Doutor, já que o senhor está aqui - a pergunta fatal e habitual - se importaria de ver um homem que está engessado, e também o quadriplégico? - Eu conhecia o quadriplégico, mas não o homem com o aparelho de gesso.

- Que há de errado com o aparelho de gesso? - perguntei com certa hesitação, temeroso de que me pedissem para colocar um novo aparelho àquela hora.

- Ele diz que está machucando as costas, quando se mexe.

- E o quadriplégico?

- Recusa-se a tomar o antibiótico.

Na verdade, eu preferia não ter que responder àquela pergunta. Gente paralítica sempre me deixou tão angustiado quanto os tuberculosos. Minha mente recuou ao edifício mais atraente e ao serviço mais deprimente da escola de Medicina, o de Neurocirurgia e Neurologia. Lembrei-me de ter examinado um paciente que respondia às minhas perguntas enquanto eu o espetava com um alfinete. Ele parecia tão normal que eu já estava a imaginar porque viera para o hospital quando, ao espetá-lo de novo, de repente seus olhos desapareceram dentro da cabeça e todo seu lado direito se enrijeceu empurrando-o sobre o lado esquerdo e quase fazendo-o cair da cama. Tudo o que pude ver foi o branco de seus olhos, e fiquei tão paralisado quanto ele, sem saber que diabo fazer. Não havia nem a satisfação de correr em busca de um copo dágua. O doente estava apenas tendo uma convulsão, mas na ocasião eu não sabia. Ele bem podia estar morrendo, que eu teria continuado ali, parado, de boca aberta.

Ninguém fora do mundo médico é capaz de compreender o que um ataque desses representa para um estudante de Medicina. Sente-se tão perplexo que se procura fugir logo que algo sai errado. Esperava-se que os estudantes de Neurologia ficassem de Pé, com as mãos nos bolsos, desfrutando do elegante diagnóstico do professor: - Algumas das vias espinhais se cruzam antes de se dirigirem para o cérebro. Outras não. Se você sofrer uma lesão que seccione um lado da medula espinhal, as vias que se cruzam ainda funcionarão. Reparem como este paciente é capaz de perceber esta mudança de temperatura, mas não pode ter Qualquer sensação proprioceptiva, pois eu posso mover seu artelho em qualquer direção sem que ele tome consciência disso. - E assim continuava ele.

Todo mundo se empenhou numa discussão sobre aquelas Pequeninas e complexas fibras que conduziam a sensação da temPeratura, se cruzavam na comissura branca ventral e subiam pelo trato espinotalâmico lateral até o núcleo ventral póstero-lateral do tálamo. Estabeleceram-se grandes debates sobre se as fibras seriam ou não mielinizadas. Em nenhum ramo da Medicina se usa uma terminologia tão empolada quanto na Neurologia. Enquanto isso, ninguém pensava muito no doente. Ora, mal se tinha tempo para isso, lembrando-se de todos aqueles condutos e núcleos e, além disso, não se podia fazer nada mesmo.

Talvez fosse esta falta de possibilidades a causa da dificuldade emocional que eu sentia para tratar com os casos de paralisia. Em particular, eu me lembrava de um caso de Neurologia na escola de Medicina, embora não fosse um caso raro; com efeito, era até bem típico. O paciente jazia deitado diante de nós, num respirador; seus músculos faciais mexiam-se sem cessar. Nada mais nele se movia: ele nada podia controlar, pois todo o resto de seu corpo era um monte de imobilidade e insensibilidade, incluindo tecidos e ossos, completamente impotente e na total dependência do respirador para viver. O professor estava dizendo: -- Vão achar este caso muito interessante, senhores, uma fratura da apófise odontóide, que seccionou a medula espinhal bem no ponto em que ela sai da cabeça. - O professor estava adorando aquilo. Seu diagnóstico triunfal tinha sido feito, disse-nos ele todo orgulhoso, pouco depois de um delicado exame de raios X através da boca.

Então ele disparou, estofado como um pombo e virtualmente arrulhando, numa longa preleção sobre como o atlas se havia deslocado do axis.

Eu não pudera desviar meus olhos do paciente, que olhava tolamente para o espelho colocado logo acima de sua cabeça.

Ele era mais ou menos da minha idade, e um caso desesperado. Saber que seu corpo e o meu eram basicamente os mesmos, que a única diferença residia numa pequenina separação lá dentro do seu pescoço, e que esta diferença mínima era tudo, fez com que eu, naquele instante, tomasse consciência do meu corpo e me envergonhasse dele como jamais o fizera antes. Imediatamente senti fome, senti as extremidades de meus dedos, uma dor nas costas, sensações que ele jamais tornaria a experimentar. Fui tomado de uma raiva impotente e uma espécie de pesar. O movimento é tão importante para os seres vivos, quase que a própria vida, que de dia para dia a pessoa normal repudia este tipo de morte. No entanto, eu tinha à minha frente a morte em vida, e minha mente me gritava que meu próprio corpo pendia do mesmo fio frágil que jazia partido ali, sob o respirador.

Desde então, muitas vezes, nos meus momencos sombrios, eu tinha considerado que a morbidez da Medicina me abrira o caminho errado, mas eu me mantinha nele. Será que os outros médicos têm estas dúvidas?

Contudo, agora vinha, em primeiro lugar, o homem engessado; depois eu veria o quadriplégico.

Apanhei um cortador no armário e enveredei pelo vestíbulo com a enfermeira. Ao entrarmos no quarto, vimos um homem metido num enorme aparelho de gesso que ia do umbigo, descendo pela perna direita, até os dedos do pé. A perna esquerda estava livre. Ele havia fraturado o fêmur naquela manhã, entre a virilha e o joelho, e tinha sido engessado imediatamente. Como de hábito, o primeiro dia dentro de um aparelho tão constritor é tremendamente desconfortável para o homem.

Achei a beirada que o estava incomodando e comecei a cortar alguns pedaços. Teria sido mais rápido com o cortador elétrico da sala de emergência, mas a meia-noite não é a hora indicada para uma ferramenta que guincha como uma serra de correntes. Além do mais, a vibração que ele provocava enchia de pavor o doente, por mais que se garantisse que o cortador elétrico vibrava com muita rapidez e portanto só cortava coisas duras, e não moles como a pele. Ele parecia compreender até que o aparelho entrava em ação, cortando com a maior facilidade o gesso duro como pedra.

Acabei de aparar as beiradas do aparelho de gesso, e o homem do fêmur fraturado deitou-se, suspirando de alívio, movendo-se, agradecido, de um lado para o outro. - Muito melhor, doutor.

Muitíssimo obrigado.

Essas coisas simples me faziam sentir bem. Claro que qualquer pessoa lá da rua podia ter aparado as rebarbas que estavam incomodando, mas isso não importava. Saber que agora o homem ia repousar à vontade justificava minha presença ali e me fazia sentir útil. Eu ia aprendendo que nem sempre o interno podia causar mais conforto aos pacientes. Em geral, vivia a machucá-los, a espetar-lhes agulhas, a enfiar-lhes sondas pelo nariz, persuadindo-os a tossir, após uma operação, para que expandissem totalmente os pulmões. Esta tosse é particularmente difícil e dolorosa nos casos de operações no tórax. Na cirurgia torácica, constitui uma técnica comum fender-se o esterno ao meio, unindo-o de novo, no fim da operação, com fios metálicos. Quatro ou cinco horas mais tarde, meu serviço era introduzir um pequeno tubo pela traquéia do operado, irritando a membrana para forçá-lo a tossir forte. O método era à prova de loucura. Como qualquer pessoa com um objeto estranho na traquéia, o paciente invariavelmente tossia, pensando, durante o acesso, que as convulsões iam parti-lo ao meio, tentando parar mas sem poder, e por fim rendendo-se exausto e alagado de suor, enquanto eu retirava o tubo. No fim de contas, eu estava ajudando o doente a evitar uma pneumonia ou coisa pior, mas naquele momento fazia-o passar pelo inferno. Assim, a satisfação de ter tornado o homem engessado mais confortável não era para ser menosprezada.

Contudo, minha euforia não durou muito, pois agora eu tinha de enfrentar o quadriplégico.

Completamente paralisado do pescoço para baixo, ele estava deitado sobre o estômago num berço de Striker. Dele irradiava uma aura de angustiosa irreverência. De sob seu corpo saía um tubo retorcido, ligado a uma bolsa de plástico transparente cheia, até a metade, de urina. Nesses casos, a urina era sempre um grande problema. Desde que o doente paralítico perde o controle de sua bexiga, precisa ser sondado; com a sonda vem a infecção. A maior parte das septicemias por germes Grã-negativos que eu tinha visto provinha de infecções urinárias. Os abortos criminosos eram as exceções, não muito raras. No fim de meu estágio em Ginecologia no terceiro ano da escola, tivemos tantas septicemias devidas a abortos criminosos que parecia que uma epidemia estava se espalhando por Nova York. Na maior parte jovens, garotas, que em geral esperavam até que a infecção estivesse no auge antes de virem para o hospital, e mesmo assim em nada nos ajudavam no diagnóstico. Nunca. Algumas morriam, negando o aborto do princípio ao fim.

Suponho que com a legalização do aborto o quadro tenha mudado, mas naqueles tempos eu vi muitas vezes instalarse a septicemia de germes Grã-negativos, com a irreversível combinação de pressão arterial a zero, insuficiência renal, e morte do fígado. Aquelas bactérias Grã-negativas gostam da urina, principalmente depois que um paciente vem tomando os antibióticos habituais.

Olhando para aquele camarada ali deitado, chorando e amaldiçoando, eu sabia de tudo isso.

Figuradamente, eu estava com as mãos nos bolsos, sem saber o que dizer ou fazer. Que desejaria eu se tivesse vinte anos e estivesse deitado naquela geringonça com todo mundo a me dizer que não me afobasse, que estava tudo bem, e sabendo que era mentira? Achei que talvez eu preferisse alguém mais forte, que não estivesse tentando me enganar, que conhecesse a verdade nua e crua.

Então, num esforço para ficar firme, eu lhe disse que ele tinha de tomar o antibiótico, que sabíamos que era penoso, mas que ainda assim ele tinha de tomar. Ele precisava assumir a responsabilidade de ser humano.

Às vezes nos surpreendemos falando de um lugar desconhecido lá dentro de nós. Eu não sabia se acreditava ou não no que estava dizendo, mas falei. Enquanto eu estava ali, o rapaz parou de chorar o tempo suficiente para que a enfermeira lhe aplicasse a injeção. De repente, tornou-se importante para mim saber se ele estava aliviado ou apenas furioso, mas não podia ver seu rosto, e ele não disse nada. Nem eu. O silêncio foi quebrado pela enfermeira que lhe disse que dormisse um pouco.

Já que eu não era capaz de pensar em nada para lhe dizer, coloquei levemente minha mão em seu ombro, imaginando se ele podia sentir o meu toque e o meu pesar.

Eu sabia que tinha de sair da enfermaria agora, ou entraria em colapso. A qualquer hora, em qualquer hospital, há um milhar de pequenas tarefas para se fazer, como verificar o dreno de alguém, examinar uma incisão, atender a uma queixa sobre um torcicolo, tornar a fazer correr um soro endovenoso que parou. Na verdade, as enfermeiras no Havaí faziam isso muito bem; no tempo do curso médico, era uma tarefa importante para o aluno. Nem a chuva ou a neve impediam de sermos chamados às três e meia da madrugada para caminharmos penosamente pelas ruas desertas de Nova York a fim de reajustarmos um soro endovenoso. Numa noite de inverno, arrostei os elementos apenas para me confrontar com um homem praticamente sem veias. Remexi, xinguei, e por fim consegui escalpelar uma veia no dorso de sua mão. Depois voltei debaixo de chuva, e me meti na cama após ter estado de pé por mais de uma hora, quando o telefone tornou a tocar. Era a mesma enfermeira, que se desculpava e se defendia agressivamente ao mesmo tempo. Enquanto punha mais para reforçar a aplicação do soro, havia acidentalmente cortado o tubo.

Em qualquer caso, há sempre muito o que fazer em qualquer enfermaria. Se bem que as enfermeiras normalmente tratem dessas coisas, se há um médico por perto, com toda certeza ele vai ficar ocupado, e eu estava me esgotando rapidamente. Só havia uma coisa que eu queria fazer antes de voltar para o meu quarto: era ver a Sra. Takura no Centro de Tratamento Intensivo. Eu esperava que Jan tivesse tido o bom senso de se meter debaixo das cobertas antes de dormir. Já passava bem da meia noite.

Jamais chamamos o Centro de Tratamento Intensivo pelo seu nome completo, apenas CTI. De todos os nomes, iniciais, abreviações, e gíria que um interno escuta, nenhum o faz pular como o CTI, pois é ali que se passa a ação, um quarto em crise perpétua. As probabilidades de se ser chamado para o CTI pelo menos duas vezes por noite eram muito grandes, e as de não se saber o que fazer, muito maiores. O fato de as enfermeiras serem eficientes e entendidas só tornava as coisas piores. A gente começava a imaginar o que tinha aprendido durante aqueles quatro caros anos do curso médico. Reação de Schwartzman, era isso o que tínhamos aprendido. Duas aulas sobre o assunto, e ninguém tinha certeza de que ela existisse. Uma doidice, quando um médico sabe tudo sobre uma doença que talvez não exista, porém menos do que uma enfermeira sabe sobre qualquer situação no CTI. Claro que se o doente apresentasse uma reação de Schwartzman, eu teria um sucesso instantâneo: entre outras coisas, eu era capaz de discorrer longamente sobre a aparência dos glomérulos renais vistos ao microscópio. No entanto, quanto às medidas práticas, não tivemos tempo para elas na escola de Medicina, nem o patologista se preocupara com isso, fato que realmente me aborrecia. As enfermeiras tinham passado seus três anos de treinamento principalmente carregando comadres para os quartos dos doentes. Reconheço que isso não é justo, mas ainda assim seu treinamento era trivial comparado com as pilhas de mecanismos, enzimas e reações de Schwartzman que tínhamos de memorizar. Contudo, no CTI eu podia muito bem carregar as comadres. Muitas vezes, eu achava melhor sair dali logo, antes que acontecesse alguma coisa que exigisse uma resposta inteligente.

Supõe-se que um interno adquira prática durante seu internato, mas seria muito melhor para ele e para os doentes se ele aprendesse mais na escola. No trabalho do hospital, ninguém está ligando para o que você sabe sobre a reação de Schwartzman.

O cirurgião olha para os nós que você dá. - Fraco - diz ele - muito fraco. - A enfermeira quer saber que quantidade de isuprol deve colocar em 500cc de água e dextose. - Bem, quanto você tem dado a este doente? - Em geral 0,5mg. - Hum, está bom. - Você não tem coragem de perguntar se o isuprol é a mesma coisa que o isoproterenol. Gostaria ela de saber sobre as radiações talâmicas dos núcleos ventrais do cerebelo? Não, e com toda a razão, pois isso de nada adiantaria a uma única pessoa no CTI. Que maneira de viver.

Eu pensava em tudo isso quando atravessei as portas de vaivém do CTI, como sempre hesitante e perplexo diante daquela estranha mistura de ficção científica e crua realidade. Fantásticos aparelhos pendiam do teto e das paredes, enfeitadas com milhares de botões, comutadores e telas de osciloscópios. Bips como os do sonar se misturavam sinfonicamente com os clic-dacs ritmados dos respiradores e os soluços abafados de uma mãe curvada sobre um leito num dos cantos. Movendo-se e piscando como se estivessem montando guarda à vida, essas máquinas muitas vezes pareciam mais vivas do que os pacientes, que jaziam imóveis, cobertos de volumosas bandagens como múmias e ligados por tubos de plástico aos punhados de vidros que pendiam dos suportes. A mistura formava um ambiente estranho e misterioso.

O leigo reage intensamente ao CTI. Representa a total encarnação de seus temores da morte e do hospital como lugar de morte. O câncer, por exemplo, é a doença mais temida de nosso tempo, mas a não ser que você, um parente chegado ou um amigo íntimo sejam vítimas dele, dificilmente existe fora dos hospitais. No CTI, o câncer paira no ar como uma névoa doentia e primeva. Se você trabalhar muito ali, facilmente pode esquecer que o hospital é um lugar onde a vida tanto começa quanto acaba. Mas os bebês não nascem nesta sala, e a maioria das pessoas, com toda razão, associam-na com o sinistro, o desconhecido, e o fim, onde a vida pende pelas pontas dos dedos.

Embora o ser humano normal não aprecie uma visita ao hospital, uma vez no CTI ele fica fascinado, magnetizado, apesar da morbidez, ou talvez por causa dela. Seus olhos divagavam em derredor absorvendo a fantasia, construindo em imaginação monumentos ao abstrato poder da Medicina. Com efeito, a Medicina devia ser muito poderosa, com todos aqueles aparelhos. Do contrário, por que os teria? No entanto, um observador atento percebe o medo dissimulado que se mistura com respeitoso terror do visitante, empolgando-o no conflito de querer ficar ali e, ao mesmo tempo, fugir.

Eu sentia a mesma ambivalência, por motivos outros. Eu sabia que a maioria dos aparelhos quase nada fazia. Alguns dos menores, os que menos impressionavam, executavam todo o trabalho. Por exemplo, aqueles pequenos respiradores verdes, com seus estalidos enquanto respiravam pelas pessoas que precisavam deles, valiam mais do que todos os outros juntos. Os complicados, com suas telas e bips eletrônicos de nada serviam, a não ser que estivessem sendo observados. Na escola de Medicina eu tinha aprendido a ler aqueles osciloscópios. Eu sabia que um salto para cima, na tela, significava que milhões de íons de sódio estavam correndo para as células musculares do coração. Depois vinha uma depressão quando as células se contraíam enquanto as organelas citoplasmáticas trabalhavam furiosamente para bombear os íons de volta ao fluido extracelular. Era fantástico pensar nisso; mas esta feitiçaria científica representava apenas metade da tarefa. Baseado nessas curvas e saltos, o médico ainda podia fazer o diagnóstico e prescrever a medicação. Era isso que me dividia, fazendo-me querer ficar ali porque eu podia aprender muito em pouco tempo, e contudo sempre apavorado com que eu não soubesse o que fazer quando tivesse que assumir toda a responsabilidade por ser o único médico presente.

Na verdade, meu medo já se tinha justificado várias vezes. Por exemplo, na minha primeira noite de plantão como interno, quando fui chamado pelo alto-falante para debelar uma hemorragia no CTI. Disparando pela escada acima eu tinha me tranqüilizado com o fato de que uma pressão localizada estancaria qualquer hemorragia. Então, ao entrar na sala, eu vi o doente e estaquei. O sangue se escoava por ambos os lados de sua boca, afogando-o num rio vermelho, uma contínua golfada de sangue. Apavorado, limitei-me a ficar ali de pé, mudo de terror, observando, enquanto ele implorava por socorro com os olhos. Mais tarde me disseram que nada podia ter sido feito. O câncer tinha destruído e rompido a veia pulmonar. Mas, para mim, tudo o que importava era que eu tinha me perdido, ficara com a cabeça oca, e imobilizado. Noites a fio, depois disso, eu revivera a cena, e agora tinha a obsessão de ser capaz de fazer alguma coisa, mesmo que de nada adiantasse para o paciente.

A Sra. Takura estava escorada num leito lá no canto. Tinha quase oitenta anos, a cabeça engrinaldada por uma cabeleira fina e branca. De sua narina esquerda pendia um tubo de Sengstaken, firmemente mantido por um pedaço de esponja de borracha, que pregueava e deformava seu nariz. Algumas gotas de sangue haviam secado num dos cantos de sua boca. O tubo de Sengstaken tem cerca de 6mm de diâmetro e é bem duro. Dentro do tubo grande há três outros menores chamados "lúmens". Dois dos lúmens têm balões, um por dentro do tubo num lúmen curto, e um na extremidade de um lúmen longo. Para que o tubo de Sengstaken funcione, o paciente tem de engolir tudo isso, o que jamais é uma tarefa fácil, e particularmente difícil quando o doente está vomitando sangue, como é em geral o caso. Uma vez introduzido o tubo, o balão que fica na extremidade, dentro do estômago, é dilatado até atingir o tamanho aproximado de uma laranja; isso prende tudo no lugar. Cerca de metade da extensão do tubo acha-se o segundo balão; quando inflado toma a forma de uma salsicha, aninhando-se dentro da porção inferior do esôfago. O terceiro lúmen, estreito porém comprido fica flutuando dentro do estômago e é usado para se evacuar qualquer líquido indesejável, como o sangue. O objetivo de todo o conjunto é estancar uma hemorragia esofagiana por meio da pressão exercida sobre as paredes do esôfago pelo balão em forma de salsicha. Só uma vez, na escola de Medicina, eu havia tratado um doente que precisava de um tubo de Sengstaken. O problema dele era alcoolismo, que havia causado uma cirrose grave e, por fim, uma insuficiência hepática. Claro que no caso da Sra. Takura não se tratava de alcoolismo - seu problema provinha de uma hepatite que ela sofrera alguns anos antes

- mas ambos os casos tinham um aspecto em comum. Um fígado lesado impede a passagem do sangue, de modo que a pressão se eleva pouco a pouco nos vasos sangüíneos que vão para o fígado e daí para trás, provocando uma dilatação das veias do esôfago e, nos casos extremos, rutura das mesmas. Neste ponto, o paciente vomita grandes quantidades de sangue. Embora eu só tivesse tratado o alcoólico por um ou dois dias, lembrava-me de ter tentado fazer com que ele engolisse aqueles balões. Quando não conseguiu, foi levado para a Cirurgia e nunca mais voltou para a enfermaria.

A hipertensão portal com hemorragia das varizes esofagianas era um caso grave, mas até então tínhamos conseguido estabilizar a Sra. Takura introduzindo-lhe o tubo. E ela estava programada para ser operada dentro de mais ou menos oito horas. Ela não parecia oriental, apesar de seu ótimo estado de ânimo e sua calma interior, traços que eu estava começando a ver em todos os orientais.

Todas as vezes que conversávamos ela estava lúcida e alerta, sabendo o que acontecia e falando com toda serenidade. Acho que ela seria capaz de discutir calmamente sobre seus gerânios no meio de um tufão. Quando me perguntou como eu estava, pareceu que a resposta lhe era importante. Nós nos dávamos muito bem. Além disso, eu achava que ela ia se restabelecer. Sentia-se isso com alguns pacientes, uma intuição irracional. Às vezes, funcionava.

Uma vez, depois de sua admissão, os médicos tentaram remover o tubo de Sengstaken, mas o resultado foi uma grave recidiva da hemorragia, que a pôs em estado de choque antes que o tubo pudesse ser recolocado. Como eu tinha saído do plantão naquela noite, não presenciei a hemorragia e o drama. Contudo, na manhã seguinte, ela me deu um susto quando sua pressão caiu de repente para 80/50 e seu pulso se elevou para 130 por minuto. De qualquer modo eu havia me recuperado o suficiente para pedir e administrar mais sangue, compreendendo que a continuidade da hemorragia tinha acabado por afetar sua pressão. Quando a pressão tornou a subir muito bem, meu estado de ânimo subiu com ela. Causa, efeito, cura. Isso devia ter-me conferido um pouco de duradoura confiança mas, curiosamente, achando que por trás de cada situação jazia uma decisão correta só me deixou mais nervoso ainda. Fazer a transfusão de sangue tinha sido uma decisão certa, porém simples; da próxima vez podia ser diferente.

Àquela noite, a Sra. Takura estava agradável e serena, como de hábito. Tomei sua pressão arterial e a pressão dos balões e dei uma volta pela sala tentando justificar minha presença, embora só tivesse ido ali porque só queria falar com ela.

- Então, está pronta para sua operaçãozinha?

- Sim, doutor, se o médico está, eu estou.

Aquilo foi chocante. Senti que ela usara a palavra "médico" no sentido coletivo, abrangendo toda a equipe médica. Ela não podia ter-se referido a mim. Eu não estava nada pronto, apesar de saber um bocado sobre a operação, pelo menos em teoria. Eu seria capaz de falar durante vinte minutos sobre os gradientes da pressão portal, sobre os vários benefícios e desvantagens do processo cirúrgico de realizar uma anastomose da veia porta com a cava inferior, término-terminal, ou término-lateral.

Podia mesmo lembrar-me dos diagramas da união espleno-renal - que era uma anastomose término-lateral. A idéia geral era aliviar a pressão sangüínea no esôfago através da união do sistema venoso hepático, onde a pressão tinha subido e causado a hemorragia, com uma veia onde a pressão ainda fosse normal, como a veia cava inferior ou a veia renal esquerda. Alojados em minha memória também se achavam os números comparativos da mortalidade desses vários processos, mas eu não queria pensar neles. Como é possível olhar para um paciente e pensar em 20 por cento de mortalidade?

- Nós estamos prontos, Sra. Takura. - Enfatizei no "nós", quando de fato eu queria dizer "eles", pois eu jamais tinha assistido a uma dessas operações, denominada derivação porta-cava.

Teoricamente, era fantástica. Nada excitava tanto os professores quanto discutir aquelas mudanças de pressão e ligar isso com aquilo. Quando começavam, adoravam tagarelar sobre obscuros artigos escritos por Harry Byplane da Universidade de Umpdydump (claro que Harry era sempre um bom amigo), mostrando que um artigo de George Littlechump, da Universidade de Dumpdydump estava errado em admitir que os gradientes de pressão da veia hepática intralobular com o plexo portal interlobular não eram importantes. Era assim mesmo, o tipo de tolices que você aprende à beça nas visitas às enfermarias da escola de Medicina. Para ganhar o jogo, era-se obrigado a citar o artigo mais obscuro sobre algum gradiente de pressão (eles gostam particularmente dos gradientes de pressão ou pH) dizendo que Bobble Jones demonstrou conclusivamente (qualquer dúvida seria um desastre) que numa série de setenta e sete pacientes (é necessário um número exato, mesmo que fictício), todos os setenta e sete morriam se iam para o hospital. No fim, não importava muito o que você dizia, desde que citasse suficientes números e gradientes e fizesse referências pessoais ao autor; então você era glorificado e exaltado diante da classe. Assim eram os grandes campeões:

Bem, Peters, você agora está realmente completo. - E quanto à Sra. Takura? Esqueça a doente, homem, nós agora estamos falando de íons de hidrogênio no sangue, isto é o pH, com p minúsculo e H maiúsculo.

Posso me lembrar de uma ocasião em que todos nós nos reunimos em torno de um leito durante as visitas médicas para aula prática. Os de jalecos brancos eram estudantes, como qualquer um podia perceber. Os jalecos e calças brancas indicavam os internos e residentes. Então, no píncaro, estavam aqueles aventais brancos e longos, engomados - um sonho de limpeza. Eram tão alvos que chegavam a fazer com que os lençóis dos leitos parecessem cinzentos. Preciso dizer quem usava aqueles aventais?

Alguém mencionara o nome da doença do paciente, e nos empenhamos numa intrincada discussão sobre o pH, íons de sódio e glicose, citando artigos de Houston, da Califórnia e da Suécia. Os nomes saltavam de cá para lá, numa espécie de pingue - pongue acadêmico. Quem citaria o último nome, a última novidade? Ficávamos ofegantes por antecipação quando alguém reparava que estávamos junto ao leito errado. Não se discutia a doença do paciente que tínhamos à nossa frente. Isso terminara o jogo sem vencedor, e passamos calmamente para o leito a seguir. Eu não podia calcular que diabo de diferença fazia, já que não tínhamos nem tempo para olhar para o paciente. Talvez todo mundo se sentisse envergonhado em discutir uma doença na presença de uma outra.

- Tente dormir um pouco, Sra. Takura. Tudo vai sair bem.

Olhei por cima do ombro para ver se a costa estava livre. As enfermeiras não tinham prestado muita atenção em mim, principalmente porque estavam ocupadas com um homem no outro canto. Ele estava ligado a um monitor de ECG que mostrava um traçado cardíaco muito irregular. A mulher continuava a soluçar baixinho junto ao leito do seu adolescente todo enfaixado. Ele tinha uma lesão na cabeça, resultante de um acidente de automóvel; o pobre rapaz jamais recuperou a consciência.

Encaminhei-me para a porta, abri-a e saí. O dia se transformara em noite. As luzes brilhantes, o ruído dos aparelhos, a azáfama das enfermeiras desapareceram de repente, assim que a porta se fechou atrás de mim.

Retornei ao ambiente escuro e silencioso do corredor do hospital. À minha esquerda uma enfermeira estava sentada em seu posto, com o rosto silhuetado pela luz direta à sua frente. Tudo o mais se diluía na escuridão. Virei para o corredor inteiramente às escuras. Tudo o que eu tinha a fazer era dobrar à direita, descer as escadas, e atravessar o pátio até meu alojamento. Ainda havia tempo para dormir um pouco.

Súbito, uma luz brilhou atrás de mim, e uma voz gritou:

- Uma parada, doutor. Uma parada. Venha depressa! - Quando me voltei, a luz desapareceu, deixando borrões cintilantes no centro de meu campo visual. Bloqueio de Berlim, crise dos mísseis em Cuba, Golfo de Tonquim; crises, não há dúvida, mas não tão freqüentes, nem próximas de minha casa. Para mim aquilo era um alerta vermelho, o tipo de catástrofe que eu mais temia. Meu primeiro pensamento foi o de que eu não seria apenas o primeiro médico a chegar mas também, já que estávamos no meio da noite, talvez o único. Se me fosse dada uma opção, eu teria corrido na direção oposta, sem me importar se eu era um covarde ou um realista. Mas ali estava eu, quase um clichê do jovem interno disparando por um corredor escuro, com seu estetoscópio agitando-se inutilmente em seus dedos crispados.

Você já viu tudo isso nas telas de TV e dos cinemas, e é emocionante, não é? Como o toque do clarim e a carga da cavalaria na hora H. Mas o que está ele pensando, este interno? Isto depende de para onde ele está correndo. Se tudo está negro como piche, ele está tentando chegar inteiro aonde vai. Além disso, tudo depende de há quanto tempo ele é interno. Se não faz muito tempo, apenas algumas semanas, então ele está correndo assustado - apavorado, para ser mais exato. Ele não quer ser a primeira pessoa a chegar lá.

Agora ali está ele, um pouco ofegante, mas fisicamente intacto. Quanto ao seu cérebro, a situação é outra; qualquer informaçãozinha apropriada para o caso que ele tivesse, foi drenada de sua mente pelo choque da responsabilidade. Não se incomode em aprender nomes de drogas ou suas dosagens, insistiam os professores de Farmacologia, limitem-se a aprender os conceitos. Como é que se vai dizer a uma enfermeira que aplique IQcc de conceito num paciente que está morrendo?

Quando abri a porta, fui envolvido de novo por aquele mundo fantástico e, é claro, vi que eu era o único médico ali, completamente só com duas enfermeiras ao lado da cama do homem com o ECG irregular. Enquanto minha boca articulava uma obscenidade inaudível, meus dedos se prenderam involuntariamente à grade lateral da cama, como que à procura de um apoio. Eu não era mais o interno da televisão, mas um interno de verdade, cheio de inexperiência e de terror. Quem me sustentaria se este homem morresse? As enfermeiras? Os professores da escola de Medicina? Os assistentes? O hospital? E, mais importante, eu ainda não tinha aprendido a perdoar meus próprios erros.

Tornando a olhar para a porta, eu esperava, contra todas as probabilidades, que aparecesse de repente um residente; percebi porque tantos estudantes brilhantes e dedicados fazem todo o curso médico e então, em face do internato, mudam para a pesquisa ou outro ramo afim da Medicina.

Qualquer coisa deve ser melhor do que o internato. Aqui há algo de errado. Por que não pode o interno saber alguma coisa de útil quando corre para o CTI, durante suas duas primeiras semanas de serviço? E por que os assistentes não os acompanham, para apoiá-lo? Desses, os mais prestativos se limitam a ser calmamente agressivos. Parece que estão dizendo: "Nós já passamos por toda essa merda. Agora, danem-se, é a vez de vocês."

Bem, de vez em quando eu passava, ali no CTI, sem nenhuma esperança de auxílio, mas desta vez tive sorte. Ó monitor de ECG mostrava na tela do osciloscópio um traçado totalmente esquisito, como os rabiscos de uma criança irritada. À medida que seus bips soavam cada vez mais alto, até atingirem um staccato extremamente rápido, verifiquei que o paciente tinha entrado em fibrilação ventricular; seu músculo cardíaco apenas estremecia, como uma massa desordenada. Agora eu sabia o que fazer; ia aplicar-lhe um "choque".

Na verdade, a decisão não era tanto minha quanto das enfermeiras. Sempre um passo à frente, já haviam carregado o desfibrilador e uma delas já estava me passando as placas devidamente untadas de geléia.

- Qual é a carga? - perguntei só por perguntar, mas necessitando do controle que a pergunta me dava.

- Carga total - respondeu a enfermeira que estava com as placas.

Coloquei uma delas no peito do homem, bem em cima do esterno, e a outra no lado esquerdo do tórax. Era estranho que ele não tivesse parado totalmente de respirar. Nem estava inconsciente. O único sinal de angústia, além de sua respiração ofegante, era uma espécie de olhar espantado, como se o ar lhe houvesse sido retirado.

Apertei o botão no alto do cabo da placa. Todo seu corpo se inteiriçou violentamente, e suas mãos se lançaram para cima e para baixo. O bip do ECG foi arrancado do osciloscópio pela súbita e tremenda descarga elétrica, mas retornou logo, parecendo normal. Tranqüilizei-me quando o bip também reapareceu, sugerindo uma freqüência normal do pulso, e o homem respirou fundo. Tudo pareceu ótimo durante cerca de dez segundos. Então ele parou de respirar, e imediatamente o pulso foi a zero, enquanto o ECG prosseguia com um traçado de freqüência normal. Era uma loucura. Bips no ECG e ausência de pulso era uma combinação que não constava de nenhum compêndio.

Minha mente jogava uma renhida partida de tênis interior, com os conceitos saltando de um lado para o outro - atividade elétrica, atividade elétrica porém nada de batimentos, nada de pulso.

- Arranjem um laringoscópio e um tubo endotraqueal. Uma das enfermeiras já os tinha nas mãos.

Ele precisava de oxigênio. O oxigênio e o gás carbônico tinham de resolver, mas para isso era preciso inserir um tubo endotraqueal e respirar por ele.

O tubo é colocado por meio de um negócio comprido e fino, como uma longa lanterninha elétrica, chamado laringoscópio. Este instrumento tem, em sua extremidade, uma lâmina de mais ou menos 15cm de comprimento, que é usada para levantar a base da língua e pôr à vista a entrada da traquéia, por onde o tubo deve penetrar. Quando a lâmina escorrega pela garganta, procura-se localizar a membrana que oblitera a traquéia durante os movimentos de deglutição - a epiglote.

Durante a operação, fica-se de pé atrás do paciente, puxando a cabeça dele para trás, lutando contra matérias estranhas como o sangue, muco ou vômitos. Uma vez avistada a epiglote, passa-se o instrumento por ela, avançando um pouco mais, e puxa-se para cima. Com sorte, fica-se vendo, pela traquéia, as cordas vocais, que são de um branco cremoso, contrastando com a mucosa vermelha da faringe.

Esta é a situação ideal. Não raro, na prática, fica-se empurrando com a mão livre, por aqui e ali na garganta, à procura da traquéia, às vezes sem encontrá-la. E mesmo quando você a localiza, seus problemas ainda persistem, pois a introdução do tubo pode ser tremendamente difícil. No último instante, a preciosa abertura entre as cordas vocais fica escondida pelo tubo de borracha. Não há nada a fazer senão avançar às cegas. Muitas vezes, seu cálculo errado dirige o tubo para o esôfago

e, assim, quando se espera ventilar o paciente - forçar a passagem do ar para ele - é o estômago que se expande em vez de os pulmões. E, em geral, enquanto isso, há sempre alguém socando o peito do doente, e o laringoscópio fica batendo contra os dentes ou pula para fora da boca, e toda a área pode se encher rapidamente de vários fluídos. Para mim, a introdução do tubo endotraqueal era coisa própria para pesadelos.

Porém não havia ali mais ninguém para fazê-lo e, assim, afastei a cama do homem e coloquei-me por trás de sua cabeça, com o laringoscópio.

- Qual é o caso dele? - perguntei apressadamente, puxando sua cabeça para trás.

- Nem sempre ele acompanha o seu marca-passo - disse uma das enfermeiras.

De repente aquilo fez mais sentido.

- Que é que ele está tomando? Que é aquilo naquele frasco? - falei apontando para o frasco ligado ao tubo da injeção endovenosa.

- Isuprol - foi a resposta, e então eu lhe disse para acelerar, o fluxo. Eu sabia que o isuprol ajudava o coração a se contrair, e que era particularmente útil nos casos em que o órgão não podia se contrair por si mesmo.

- Quanto?

- Quanto? - Eu não fazia a menor idéia. - Deixe-o correr. - Não pude pensar em nada melhor para responder. Agora a cabeça dele estava flexionada para trás, e o laringoscópio bem no fundo da garganta, mas eu não conseguia ver as cordas vocais.

- Arranje-me uma ampola de bicarbonato - falei.

Uma das enfermeiras sumiu do meu campo de visão, e então percebi que eu mesmo havia pensado em algo. Aí apareceram as cordas vocais. Seus contornos brancos se destacavam da zona avermelhada como portões de uma câmara subterrânea. Por essa vez, consegui enfiar o tubo na traquéia sem muito esforço.

Porém, mal eu havia introduzido o tubo, e o paciente agarrou-o e puxou-o para fora. Apenas por um segundo, aquilo me indignou, quando então vi que ele voltava a respirar. No punho, o pulso batia forte. A enfermeira apareceu com o bicarbonato. Idiotamente, agora eu queria aplicá-lo só porque tinha sido eu, e não as enfermeiras, que tinha pensado nele, e principalmente porque eu entendia um bocado de eletrólitos, pH e íons. Mas pusme a pensar no efeito que teria sobre o nível do cálcio.

O cálcio e o potássio se combinavam com o pH de um modo complicado. Eu corria o risco de estragar tudo e, assim, resolvi não usar o bicarbonato; seria um absurdo sacudir o barco.

De repente, arquejante, passou pela porta um anestesista, e outro interno seguido de um residente e mais outro. Todos estavam sonolentos. Um estava sem meias, e ainda se viam as marcas do travesseiro em sua cabeça. A multidão continuou a crescer quando chegou correndo outro residente. Era esta a hora em que eu gostaria de ter chegado, quando tudo já se achava sob controle e as decisões podiam ser tomadas em conjunto. Na verdade, eu estava começando a me acalmar, embora meu pulso ainda se mantivesse disparado. A recém-chegada equipe da casa se aboletou sobre o balcão e as cadeiras. Um deles folheou a papeleta, enquanto outro telefonava para o médico particular. Fiquei de pé ao lado do doente, que começou a falar. Seu nome era Smith.

- Muito obrigado, doutor. Agora estou bem, creio.

- Sim, todos os seus sinais estão bons. Ficamos satisfeitos que você tivesse podido reagir.

Nossos olhares estavam presos, o dele demonstrando mais confiança do que eu achava merecer, o meu procurando não deixar transparecer as dúvidas que me assaltavam interiormente. O isuprol continuava a correr adoidado, e eu não sabia se devia reduzir o fluxo ou não. Que os outros tratassem disso, agora o Sr. Smith queria falar.

- É a terceira vez que isso me acontece, quero dizer a terceira vez que meu coração resolveu não seguir meu marcapasso. Quando acontece, não tenho tempo para pensar, mas depois como agora, tudo entra num esquema padronizado. Primeiro, minha garganta se aperta, e então, de repente, eu não posso respirar, nem um pouquinho, e tudo fica cinzento e sombrio.

Eu escutava atentamente, mas só estava entendendo a metade. Era incrível estar falando com ele, quando há poucos minutos ele não se achava ali.

- Uma sombra, é a melhor palavra que eu posso encontrar, mas a sombra não passa. Cada vez mais escurece, até que nenhuma luz resta no mundo. - Ele parou abruptamente. - Mas, o senhor sabe qual é a pior parte, doutor?

Abanei a cabeça, não querendo interrompê-lo.

- A pior parte é sair dela, porque acontece muito lentamente; não é como entrar na sombra, o que se faz muito depressa. Primeiro, tenho aqueles sonhos loucos, caóticos. Não encontro nenhum sentido neles, até que finalmente - e parece durar uma eternidade - o quarto, a cama e as pessoas entram no sonho e acabam por dominá-lo. Não sei explicar por que, mas a última coisa a retornar é a consciência de mim mesmo, de quem sou eu e onde estou, e da dor. Tenho a impressão de que meu peito entrou em colapso, como se eu estivesse sufocando com a falta de ar, principalmente se há um tubo na minha garganta.

- Deve ter sido por isso que você arrancou o tubo. Já se submeteu a muitas operações? - perguntei.

- O bastante para encher um livro. Apêndice, vesícula. .. - Interrompi-o.

- Você se lembra do que sentia quando era anestesiado? Já tomou éter?

Era uma experiência de que eu me lembrava vividamente, embora tivesse sido há muito tempo, quando eu tinha quatro ou cinco anos. Naquele tempo, todo mundo arrancava as amígdalas, e me recordo do terror que senti quando colocaram a máscara em meu rosto, o quarto começou a desaparecer,. e um insuportável zumbido ecoava em meus ouvidos. Depois, círculos concêntricos que se moviam cada vez mais depressa até se reunirem num centro vermelho vivo; a seguir, nada, até que acordei vomitando.

- Minha apendicectomia foi em 1944 - disse o Sr. Smith, pensativamente - quando eu estava na Marinha, e acho que foi éter.

- Era alguma coisa parecida com a sensação que você experimenta quando o seu coração pára?

- E. quanto ao despertar?

- Não, absolutamente não. A anestesia é algo agradável, nada como lutar com o meu coração, literalmente, parece uma luta para impedi-lo de pular fora do meu peito, para mantê-lo sob controle.

Não posso me lembrar do despertar daquelas operações, mas quando meu coração recomeça a se agitar é como mil pesadelos intermináveis.

Ele alcançou e tocou minha mão que se apoiava na grade do leito.

- Meu Deus, espero que não aconteça de novo. O senhor sabe, eu não posso ter a certeza de que haverá aqui alguém para me socorrer. O senhor sabe, doutor, há uma outra coisa estranha, desta vez eu me senti como se estivesse observando meu corpo de algum lugar do lado de fora de mim mesmo, como se eu estivesse ao pé de meu próprio leito.

- Já experimentou essa sensação antes? - perguntei, agora curioso; sentir-se fora de si mesmo é um sinal de esquizofrenia.

- Jamais. Foi uma sensação única.

Uma sensação única. Uma sensação única. Este homem estava me falando sobre a morte, mas de tal modo que transformava a morte num processo vivo, algo que se podia estudar num compêndio.

Claro que, sem aquele desfibrilador ele teria morrido, e com ele todos aqueles pensamentos. Esta noite, a linha entre a vida e a morte mal existira para três pessoas: para ele, para Marsha Potts, e para o velho com câncer. Eu sentia dificuldade em pensar na vida e na morte ao mesmo tempo, mas estava feliz que este homem não tivesse morrido, pois ele era tão agradável. Que pensamento idiota. De qualquer modo, eu não podia imaginá-lo morto. Fosse o que fosse que acontecera ele não morrera, pois estava bem vivo naquele instante.

Isso faz sentido? Para mim fazia. Quem era eu para pensar que podia ter mudado o destino? Estar vivo, falar e pensar é tão diferente de estar morto e imóvel que a transição, agora, parecia impossível. Tinha sido tão simples. Apenas um zap com o desfibrilador, como bater nas costas de alguém para acabar com um engasgo, ou correr em busca de um copo dágua. Talvez ele não estivesse fibrilando; talvez tivesse reagido por si mesmo. Já o fizera antes. Eu nunca saberia.

O médico residente e um outro interno ainda se achavam ali, falando e ajustando os tubos de plástico, coçando as cabeças e segurando as tiras do ECG. Eles pareciam felizes e muito interessados. Ao sair, olhei para a Sra. Takura, que me deu um largo sorriso e acenou com a mão livre.

O estranho mundo dos mortos do CTI tornou a se desvanecer à medida que dobrei o corredor e desci as escadas. Toda a vida parecia adormecida. Lembrei-me daquelas noites na escola de Medicina lá no leste, quando eu voltava com dificuldade do hospital para o meu apartamento no meio de tudo o que o inverno tinha para oferecer. Ironicamente, as noites calmas e cheias de estrelas como esta eram ainda piores, tão desoladas que dava vontade de praguejar. No Havaí, quase todas as noites eram límpidas, fulgurando com milhares de estrelas e refrescadas por uma brisa suave.

O pensamento de Jan lá no meu quarto me animava a prosseguir. Nessas horas, quando as tensões médicas começavam a se evaporar, eu só pensava em fugir para me isolar perto de alguém viva e sadia, para falar-lhe e amá-la. Às vezes, na escola de Medicina, uma garota ficava esperando por mim em meu quarto enquanto eu saía para fazer algum serviço. Isso fazia com que a volta sempre se tornasse agradável. Mas, outras vezes, ela se limitava a grunhir qualquer coisa em seu sono, quando eu me metia na cama ao seu lado.

Aquele "serviço" que eu e meus colegas fazíamos em inusitadas horas da madrugada era, quase sempre, rotina de laboratório. A necessidade de contagens sangüíneas e análises de BenceJones para proteínas parecia ocorrer aos residentes, principalmente depois da meia-noite. Assim, centenas de vezes acabávamos passando as poucas horas que nos sobravam nas entranhas do que se poderia chamar o navio médico, contando minúsculas células, que se tornavam cada vez mais minúsculas à medida que o tempo corria. Entrementes, o residente, lá na ponte de comando, guiava o paciente, com freqüência se queixando da vagarosidade com que eram feitas as contagens, no porão. A verdade sobre as contagens sangüíneas é que se você já fez uma, praticamente fez todas elas. O ponto de cansaço e vagarosidade é alcançado rapidamente por volta das 3 horas da madrugada, quando sua mente fica pensando em voltar para o seu quarto e, talvez, para junto de sua pequena.

Num período de vinte e quatro horas eu tinha realizado vinte e sete contagens, um recorde pessoal, se bem que não um recorde do hospital. As últimas, nas horas tardias, eram, naturalmente, nada mais do que simples estimativas. Assim acontecia nas grandes instituições, onde se era treinado a um custo de 4.000 dólares por ano, para se ser um técnico de laboratório. Todos nós já tínhamos imaginado cenas fantásticas, nas quais jogávamos a urina na cara dos residentes e lhes dizíamos que enfiassem os vidros no cu, ou ficávamos em greve, sentados na cafeteria. Nada disso acontecia fora de nossa imaginação porque, para falar a verdade, tínhamos medo. Como os professores não se cansavam de dizer, havia muitos outros na fila para usar nossos jalecos brancos. O que de fato acontecia era que, quando você se sentia zonzo e explorado, tirava um pedacinho aqui, outro ali, e inventava um resultado plausível. Mas isso não era freqüente, e só acontecia tarde da noite.

Mas o pior de tudo era depois, não tendo ninguém com quem conversar. Todo o mundo parecia adormecido e totalmente indiferente à sua convicção de que a educação médica era uma porcaria e irrelevante. Assim, você voltava correndo para seu quarto, para a garota sonolenta, feliz por sentir o calor de seu corpo.

Alguns estudantes se casavam no início do curso médico. Suponho que estes não se sentiam isolados, tendo onipresente um corpo quente. E os dois primeiros anos eram ótimos - aulas durante o dia, e estudo durante a noite. Provavelmente eles eram felizes. Mas tudo mudava quando vinham aquelas contagens nos dois últimos anos, e todas as outras maluquices no meio da noite.

Pouco a pouco, creio, alguns desistiam de tentar comunicar sua frustração. O corpo quente já não era o bastante. Em todo caso, muitos já não eram mais casados quando, finalmente, recebíamos aquele pedaço de papel dizendo que éramos Doutores em Medicina. Na verdade, tínhamos sido campeões de contagens sangüíneas, Doutores de Conceito e de Bagatelas de Laboratório. Nenhum de nós sabia que dose de isuprol era necessária para salvar uma vida.

Quando abri minha porta, hesitei em fazer muito barulho ou ficar quieto. Venceram os instintos mais bondosos, e como a luz do vestíbulo entrava aos jorros, dei a volta pela porta e fechei-a rapidamente. Tirei os sapatos. No quarto, o silêncio era total, e estava tão escuro, depois da iluminação fluorescente do vestíbulo que eu não teria podido me mover se não soubesse a disposição dos móveis. Móveis! Claro, o leito de hospital em que eu dormia tinha características interessantes. Podia ser colocado numa posição tão confortável para ler, que eu jamais conseguia passar de um ou dois parágrafos sem cair no sono.

O resto do mobiliário incluía uma poltrona dura como pedra, uma estante para livros, e uma mesa projetada para uma criança. Se eu apoiasse ambos os cotovelos nela, não havia espaço para o livro, principalmente se era um daqueles de dois quilos e duzentos gramas e trinta e cinco dólares, tão populares entre os editores de publicações médicas. Enquanto eu andava no escuro, o único perigo em potencial era a prancha de surfe que eu havia pendurado no teto. Aos poucos minha vista foi se adaptando, e pude ver o contorno da janela e a cama, e corri minha mão por sob as cobertas, de cima para baixo, cada vez mais rapidamente, até certificar-me de que ela havia ido embora. Sentando na borda da cama raciocinei que, de qualquer modo, eu estava esgotado, e que provavelmente ela não teria querido conversar. Já passava das duas, e eu estava exausto, realmente estava.

Antes do amanhecer, o telefone tocou mais três vezes. As duas primeiras chamadas não eram bastante importantes para me fazer sair, apenas enfermeiras pedindo explicações sobre alguma ordem e sobre um doente que queria tomar um laxativo. A propósito de laxativos, fiz um pequeno estudo independente. O estudo prova em definitivo ser dez vezes mais provável que cinco de cada seis enfermeiras peçam uma receita para laxativos entre meia-noite e 6 horas da manhã, do que a qualquer outra hora do dia. Quanto às razões, é difícil de imaginar, prendendo-se talvez a uma interpretação freudiana das preferências anais da profissão de enfermeira. De qualquer modo, era quase um crime acordar-me para pedir-me que receitasse um laxativo.

De cada vez que o telefone tocava, eu dava um pulo e me sentava ereto, como se uma descarga de adrenalina zumbisse pelas minhas veias. Quando colocava o fone no ouvido, meu coração estava aos saltos. Mesmo que eu não precisasse sair do quarto, levava cerca de trinta minutos depois de cada chamada para me acalmar o suficiente para tornar a dormir. Numa noite anterior, respondendo ao telefone depois de acordar de um sono de pedra, tudo o que eu podia ouvir era um murmúrio distante que dizia: - Fale mais alto. - Eu gritava e cerrava os olhos, concentrando-me, porém mal entendia as palavras. Disseram-me que eu falara pelo lado errado do telefone.

A terceira chamada situava-se no extremo do espectro do meu medo de não saber o que fazer. Claro que eu sabia, tanto quanto uma criança de quatro anos, resolver o caso. A Sra. Fulana de Tal tinha caído da cama. Em geral os pacientes não se machucam quando caem da cama - acham-se muito relaxados, e, além disso, as enfermeiras sabem o que fazer. Nada daquilo importava à administração do hospital. Enquanto eles "caíssem" da cama, o interno tinha que atender ao telefone, fosse a que hora fosse.

Assim, eu me levantava sentindo - como explicar? - bem, não era náusea, embora você sentisse o estômago embrulhado, e não era febre, não obstante estar com a testa tão quente que era capaz de fritar um ovo. A melhor maneira de explicar é descrever. A gente se sente como seria de esperar, sendo acordado, às 4 horas da madrugada, depois de duas horas de sono durante as quais foi acordado de cada vez que começava a dormir - tendo finalmente me deitado, após trabalhar por quase vinte horas, emocional e fisicamente exausto - para segurar a mão de alguém que tinha "caído" da cama sem se machucar. Realmente, a maioria deles escorregava no chão a caminho do banheiro. Mas, alheias a como ele chegara até ali, mesmo que se encontrassem a seis metros da cama, as enfermeiras sempre falavam em queda do leito, e lá ia você para cumprir uma disposição absurda.

Este formalismo é ainda mais absurdo quando se verifica que o hospital confia nestas mesmas enfermeiras para avaliar o estado físico do paciente e chamar o médico se for preciso. Mas por alguma razão inexplicável, nelas não confia para ver se um doente se machucou ao escorregar no chão. Contudo, há mais coisas inúteis e arbitrárias que você deve fazer. Desde o terceiro ano da escola de Medicina, cerca da metade de seu tempo é gasto na busca do inútil e do arbitrário, que são justificados com a diáfana explicação de que são necessários para se ser estudante de Medicina ou interno, ou para se tornar médico. Merda! Isto não passa de confusão e inquietação, uma espécie de rito de iniciação à Associação Americana de Medicina. O sistema funciona, demais; Deus sabe como ele funciona! Vejam a profissão médica, moldada à perfeição, com lavagem cerebral, conservadora em sua política, e totalmente dedicada à busca do dinheiro.

Esses pensamentos se atropelavam caoticamente em minha cabeça enquanto eu me dirigia ao elevador e apertava o botão com força, na esperança de quebrar toda aquela geringonça. Voltando ao hospital, por aqueles corredores adormecidos na direção dos distantes pontos de luz, eu procurava não despertar completamente.

Uma vez contei a um amigo que não era médico os vários motivos pelos quais eu era arrancado da cama às 4:30 da madrugada. Ele não acreditou. Era muito frustrante para ele; destruía a imagem colorida que ele tinha do interno despertado de repente, impaciente em seu jaleco branco, disparando pelos corredores, subindo as escadas de três em três e quatro em quatro degraus, para salvar uma vida. Ali estava eu, aporrinhado e aos tropeções através de um vestíbulo, praguejando a caminho de dizer: "Como está, senhor paciente?"

"Ótimo, doutor". "Isso é muito bom". "Tenha um bom repouso e, por favor, não torne a cair da cama".

Quando o telefone tocou de novo já era dia, cinco e quarenta e cinco. Botei os pés no chão, sentei-me de lado, e usei as mãos para me levantar. De novo aquela sensação ligeiramente doentia, e uma tonteira momentânea, até que o chão frio arrancou-as de mim. Dirigi-me para a pia, as mãos nos seus lados, e inclinei-me um instante. Vistos ao espelho, meus olhos são como rios de lava quente correndo para um lago lamacento. A única razão pela qual as bolsas por baixo deles não se unem com os cantos de minha boca é que não posso sorrir. Ah, um fio dágua escorre da torneira. Aparando-o com uma das mãos, jogo algumas gotas no meu rosto.

Nada nesta manhã era particularmente notável ou diferente. Apenas uma manhã como tantas outras.

Em duas semanas eu conseguira um tal déficit de sono que mesmo quando dormia seis horas a fio eu me sentia do mesmo modo. A lâmina gilete, muito mais afiada do que eu estava, deixou vários pontinhos de sangue em meu pescoço. Misturados com a água do rosto pareciam um bocado de sangue e combinados com meus olhos, e as olheiras em torno deles, me faziam parecer um criminoso da Máfia.

Depois de mais ou menos trinta segundos senti-me recuperado o bastante para me vestir.

Estetoscópio, lanterninha elétrica, canetas de várias cores, caderno de notas, pente, relógio, carteira, cinto, sapatos - correndo mentalmente toda a lista. Cuidado para que as meias sejam da mesma cor. Não se pode estragar o bom tom do local. Uma última olhadela em torno do quarto para ver se não faltava nada, um pedaço de papel, um livro. Satisfeito, saí, desci pelo elevador, e enfrentei o ar da manhã.

Sempre fora uma questão de hábito para mim dar a volta pela frente do hospital a caminho da cafeteria. Havia ali qualquer coisa que me elevava o espírito. Nesta manhã o céu estava de um azul pálido e distante, pontilhado de pequenas nuvens, meio banhado a leste de tons dourados e vermelhos; a oeste as cores se esfumavam num cor-de-rosa e violeta. A grama cintilava, ainda úmida do ar da noite, e até as árvores brilhavam, e os pássaros voavam por toda parte fazendo uma algazarra incrível. Predominavam dois tipos de pássaros: os minas, que se pavoneavam desajeitadamente soltando desarmoniosos grasnidos, e as pombas, menos espalhafatosas, movendo-se mais lentamente, quase cortesmente, algumas parecendo sacudir-se para cima e para baixo quando abriam as penas da cauda e soltavam melodiosos arrulhos. Eu gostava daquele passeio matinal. Eram apenas algumas dezenas de metros, mas me fazia sentir feliz.

Seis horas da manhã não é, em meu modo de pensar, a hora perfeita para um grande café da manhã, particularmente depois de uma noite sem dormir. Mas me obriguei a comer, enfiando a comida na boca e fiando-me na água para fazê-la descer. Por experiência, eu sabia que, se não comesse, ia sentir fome dentro de mais ou menos uma hora, quando seria impossível alimentarme. Além disso, na metade das vezes eu perdia o almoço devido ao horário das operações. Para mim, outra refeição só dentro de oito ou dez horas.

Depois do café, eu tinha cerca de trinta minutos para ver meus doentes antes das visitas que começavam às seis e quarenta e cinco. Era importante ter tudo em ordem antecipadamente, saber das alterações. O CTI vinha em primeiro lugar. Eu não me importava de ir ali pela manhã ou a qualquer hora do dia. A presença de outros médicos ali diminuía a sensação de estar sozinho na corda bamba. A Sra. Takura dormia pacificamente depois da medicação pré-operatória; o tubo ainda pendia de sua narina, deformando o nariz devido à tensão. Pulso, eliminação urinária, pressão arterial, freqüência respiratória, temperatura, eletrólitos, dosagem do nitrogênio da uréia sangüínea, proteínas, bilirrubina. . . todos os exames recentes estavam de volta e registrados. Parando para escrever uma nota na folha de continuação sobre seu estado, fiz votos para que ela estivesse preparada para a operação.

Lá no outro canto, as máquinas do Sr. Smith continuavam a soltar seus bips, mostrando um ECG que parecia bem normal, embora eu não fosse perito em lê-lo, especialmente no osciloscópio. Ele também dormia. Saí para as enfermarias.

Na enfermaria o jogo era mais de números e variedades do que de crises. Eu tinha várias dúzias de pacientes, representando os mais diversos tipos de gente e de problemas. A maioria eram operados e estavam atravessando muito bem todos os estágios do pós-operatório, desde a retirada dos pontos até a alta. O comprimento de seus drenos era, em geral, uma boa indicação de quantos dias haviam decorrido desde que eles tinham saído da mesa de operação. Os drenos constituem uma coisa muito desajeitada mas muito necessária na prática da cirurgia. Implantados no fundo da ferida no fim da operação, eles servem como saída para quaisquer fluidos indesejáveis e ajudam a debelar a infecção. A idéia é retirar o dreno, polegada por polegada, a partir do segundo dia pós-operatório, permitindo, assim, que a ferida vá se fechando lentamente de dentro para fora.

Os doentes nunca entendem esses drenos. Para eles, os pedaços pendentes de borracha pálida são uma fonte interminável de conversa e desconforto, na maior parte mental. O Sr. Sperry tinha sido operado há dois dias de uma úlcera gástrica, e estava na hora de começar a retirar o seu dreno.

Segurando-o com uma pinça, dei-lhe um bom puxão. Mas ele ficou firme, apenas esticando-se um pouco como um macarrão chinês. De sua posição sentada, apoiado em dois travesseiros, o Sr. Sperry observava entre fascinado e apavorado, os olhos arregalados, grandes como almôndegas, e as mãos crispadas nos lençóis. Tornando a puxar, comecei a pensar se o dreno não tinha sido suturado acidentalmente na ferida, quando pouco a pouco ele se moveu algumas polegadas. Um pouco de líquido sero-sangüinolento escapou com o dreno, e foi prontamente embebido pela gaze.

- Doutor, o senhor tinha de fazer isso?

- Bem, o senhor não quer voltar para casa com este dreno pendurado aí, quer?

- Não.

Coloquei um alfinete de segurança, atravessando o dreno logo acima da pele para impedir que o tubo voltasse a penetrar na ferida e então, com uma tesoura esterilizada, cortei o excesso do tubo.

Era importante que a ordem certa fosse seguida nesta simples operação. Uma vez, quando eu não tinha muita prática, cortei o dreno antes de atravessá-lo com o alfinete de segurança. Durante todo aquele tempo o paciente vinha prendendo a respiração e quando, por fim, inspirou, o dreno desapareceu dentro de seu abdome. A visão de uma nova operação se acendeu dentro de minha cabeça, mas felizmente um residente havia recuperado o dreno depois de retirar três pontos da pele e pescá-lo com uma pinça.

- Por que não me faz dormir quando o puxa? - perguntou o Sr. Sperry, olhando-me inquisidoramente.

- Sr. Sperry, fazê-lo dormir não é tão fácil quanto o senhor pensa. Além disso, a anestesia sempre acarreta um risco, e puxar o seu dreno não oferece risco algum.

- Sim, mas eu não tomaria conhecimento disso.

- Doeu mesmo, quando puxei o seu dreno?

- Um pouco, e eu senti uma coisa esquisita lá dentro, como se eu estivesse me partindo.

- O senhor não está-se partindo, Sr. Sperry. O senhor está ótimo.

- Era preciso puxar com tanta força? - insistiu ele.

- Olhe, Sr. Sperry, amanhã vou calçar estas luvas no senhor, vou dar-lhe a pinça, e o senhor é que vai puxá-lo. Que tal?

Eu sabia que teria uma resposta.

- Não, não, eu não quis dizer que eu queria fazê-lo. Na verdade, eu sabia o que ele queria dizer.

Depois de uma operação a que me submeti em minhas pernas, achei que o médico fora muito brusco quando retirou os pontos. Mas eu não teria querido tirá-los. De vez em quando é bom que o médico seja um paciente - isso faz com que ele seja mais sensível a todos os medos irracionais do doente. A solução é contar tudo o que se está fazendo, mesmo as coisas mais simples, pois em muitos casos o que você menos espera é o que mais assusta o paciente.

- Olhe, Sr. Sperry, o senhor pode se mexer à vontade. Com efeito, o movimento lhe faz bem. A cicatriz não vai se abrir. O dreno é um procedimento normal. Permite a saída dos líquidos ruins enquanto o senhor se cura. O alfinete de segurança é apenas para impedir que ele volte para dentro do seu abdome.

Tudo estava bem com o Sr. Sperry, embora com toda certeza eu lhe houvesse dado o que falar para o resto do dia: como o médico cruel havia arrancado o seu dreno e fizera com que a cicatriz se abrisse e sangrasse.

Aquela era a rotina da enfermaria: verificação dos drenos, mudar os curativos, responder perguntas, examinar os gráficos de temperatura. Embora Marsha Potís não fosse minha doente, parei quase que instintivamente na porta do seu quarto. Ela agora parecia pior, com a luz do dia ressaltando sua icterícia e com a pele do rosto tão tensa e repuxada que os dentes se mostravam num perpétuo esgar. Seu aspecto era terrível; estávamos fazendo tudo o que podíamos, mas não seria o bastante.

Do lado de fora do seu quarto, onde a relva chegava até o prédio, os pássaros estavam alheios a tudo enquanto grasnavam e tagarelavam disputando os pedacinhos de torradas que os doentes em condições de andar lhes atiravam.

Agora, às sete horas, a enfermaria voltava à vida, enchendo-se às bandejas de café, suportes de injeções endovenosas, que tilintavam quando as pessoas se dirigiam para o banheiro. Aqui e ali passavam enfermeiras apressadas, carregando "comadres", agulhas, pomadas e pílulas. Arrastado para este mundo, eu não me sentia mais cansado, pelo menos enquanto pudesse me manter sobre meus pés. Reinava uma alegria na rotina; ela parecia dizer: "Aqui ninguém morreu, tudo está sob controle". Roso continuava adormecido pela sua Sparine.

Tive de sacudi-lo várias vezes para obter uma reação. Porém uma vez meio desperto ele concordou que estava mais forte, doutor, antes de tornar a cair no sono.

Uma técnica de laboratório me pediu que a auxiliasse a tirar um pouco de sangue de um paciente que tinha as veias muito ruins. Ela tentara três vezes sem sucesso. Certamente eu tentaria, e de boa vontade, pois era-me uma fonte de muito conforto ter esses técnicos para tirar sangue de manhã.

Para quem não era médico podia parecer uma coisa sem importância, porém os estudantes de Medicina se ressentiam por passarem a maior parte de seu tempo, antes das visitas matinais, tentando ordenhar os pacientes para tirar sangue. Quando as visitas começavam, eles não tinham tido tempo de ver seus doentes e portanto não sabiam como tinham passado e como estavam. Quando começavam as perguntas: - Qual é o hematócrito deste doente, Peters? - você tinha que inventar, pois não houvera tempo de consultar a papeleta. Mas não se devia deixar transparecer que se estava inventando. Era responder sem hesitação: - Trinta e sete! - como se você estivesse disposto a apostar sua vida no que dizia. Não se tratava de uma questão de honestidade. Era melhor jogar o jogo do que arriscar-se a um desastre dizendo que não sabia, fosse por que razão fosse.

Ninguém estava ligando se você tinha feito aquelas vinte e sete contagens sangüíneas, a não ser que não tivesse feito nenhuma. Assim, "chutava-se" o trinta e sete tão depressa que, na metade das vezes, o professor aceitava sem pensar. Mas se ele fazia uma pausa, você estava enrascado, a menos que pudesse distraí-lo, referindo-se a um artigo recente sobre a doença. Claro que se ele examinasse a papeleta você estava perdido, a não ser que, por um desses acasos fantásticos, o hematócrito fosse mesmo trinta e sete; ou então você dizia, meio canhestramente, que tinha pensado noutro doente. Isso provocava a última pausa, fatal, enquanto o professor folheava a papeleta em busca de uma outra coisa a perguntar.

- E a bilirrubina, Peters?

Agora você se achava realmente de encontro à parede, enfrentando um jogo do tudo ou nada. Se seu palpite sobre a bilirrubina estivesse errado também, a suspeita do professor de que você negligenciava o cuidado dos doentes se espalhava como uma onda pelo hospital. Mas, na feliz eventualidade de você acertar, você voltava ao estado de graça e passava para o próximo doente, junto ao qual ia ver outro estudante respondendo às perguntas do professor. A bilirrubina difere do hematócrito em que, ao passo que as variações deste, de indivíduo para indivíduo, são muito grandes, em geral o valor da bilirrubina é quase o mesmo em toda gente, exceto nos casos que envolvem as doenças do fígado e do sangue. Então você resolvia jogar, dizendo: - Era mais ou menos um, senhor. - Na escola de Medicina a maior parte de nós aprendia o jogo; se se jogasse bem, vencia-se mais do que se perdia.

No Havaí, os técnicos haviam assumido este encargo da coleta do sangue e eu não me incomodava de ajudá-los de vez em quando. Além disso, eu era muito bom naquilo. Tinha de ser, depois de haver colhido vários milhares de amostras de sangue na escola de Medicina. Nós, estudantes, tínhamos começado por tirar sangue, uns dos outros, o que era em geral uma canja, embora alguns de nós fizéssemos parecer uma coisa muito difícil. Até esse simples exercício não deixara de ter seus momentos dramáticos. Uma vez, depois de palpar vigorosamente a veia do braço de um outro estudante do segundo ano, fi-lo ficar de pé, como um charuto barato. O garrote já estava no lugar há cerca de quatro minutos, enquanto eu reunia minha coragem, e quando enfiei a agulha na sua veia, meu amigo desabou. Foi tudo muito rápido. Um momento antes, eu concentrara toda minha atenção na agulha que atravessava a pele, e agora não via mais nenhum braço à minha frente. Meu "paciente" jazia esparramado no chão, desmaiado. Todos nós temíamos aquelas sessões práticas, mas era mais fácil do que cada um tirar sangue de si mesmo.

Jamais esquecerei a primeira vez que colhi sangue de um paciente de verdade. Foi logo no início do terceiro ano, quando nós, estudantes de Medicina, começávamos a praticar na enfermaria. Por azar, nosso primeiro dia na enfermaria coincidira com a troca da equipe de internos e residentes. Para os novos residentes, a oportunidade era irresistível. Eles decidiram checar os diagnósticos de todos os doentes e, para isso, precisavam de provas - fatos frios, irrecusáveis evidências de laboratório. Em conseqüência, os estudantes tiveram de colher cerca de 40cc de sangue de cada paciente que nos era designado. Meu primeiro paciente, coitado, era um alcoólico crônico com uma avançada cirrose do fígado. Há anos que suas veias superficiais tinham sumido, e tive de espetá-lo doze vezes, tateando com a agulha por dentro do seu braço, sentindo a agulha bater de encontro a desconhecidas estruturas interiores, para depois escapulir com um salto quase audível. Finalmente, tive o bom senso de desistir e pedir a um interno que me ensinasse como penetrar com a agulha na grande veia femural, na virilha ou região inguinal, processo conhecido como punção femoral.

Agora a técnica de laboratório estava enfrentando o mesmo problema com um Sr. Schmidt, a quem palpei em busca das habituais veias do braço, enquanto ela me entregava a seringa. Era evidente por que ela não conseguira tirar sangue algum; não pude sentir uma só veia decente no braço dele.

Pratiquei, então, uma punção femoral, e tudo se fez num instante.

Um pouco mais além da enfermaria estava o Sr. Polski, que era um problema para mim, principalmente porque eu não conseguira estabelecer um bom relacionamento com ele. Sofria de diabetes, tinha uma circulação periférica muito ruim, e uma grave infecção no pé direito. Há cerca de uma semana tínhamos-lhe praticado uma simpatectomia lombar, seccionando os nervos responsáveis pela contração das paredes dos vasos sangüíneos de seus membros inferiores. Mas ele havia melhorado muito pouco. Devido à dor, insistia em pendurar a perna por sobre o lado direito da cama, e aquilo apenas dificultava sua circulação já deficiente. No início, tentei uma aproximação amigável, explicando-lhe detalhadamente o que acontecia quando ele deixava a perna naquela posição. Apesar disso, todas as manhãs, quando eu aparecia, lá estava ele com a perna pendurada. Mudando de tática, fingi estar zangado, chegando mesmo a gritar com ele, simulando raiva - o que não alterou a situação e só serviu para que ele cada vez gostasse menos de mim. O pé, agora enegrecido e gangrenado, ia ser amputado.

Cumprimentei de cabeça a Sra. Tang, uma senhora chinesa idosa que tinha um câncer dentro da boca. Ela não podia falar e, assim, só acenávamos com a cabeça. O câncer estava tão grande que tinha destruído alguns dentes e o lado esquerdo da mandíbula, tornando-se por fim incontrolável, uma massa fungosa que, de vez em quando, rompia através do lado de seu pescoço. Ela era como muitos outros chineses mais velhos que achavam que o hospital era apenas um lugar de morte e não nos procuravam senão quando já estavam no fim. Pouco havia a fazer com Sra. Tang senão tentar um pouco de radioterapia. Cada dia o câncer ficava maior, e de certo modo, cada dia a Sra. Tang parecia menos real - talvez porque ela não pudesse falar, ou porque fosse tão resignada.

Havia outros: uma biópsia de um nódulo linfático, uma biópsia de seio, duas herniorrafias.

Cumprimentei a cada um deles, indo de cama em cama, chamando-os por seus nomes - agora eu conhecia todos eles. Conhecia até as famílias de muitos que estavam conosco há bastante tempo. O outro interno e um punhado de residentes, inclusive o residente-chefe, chegaram, e começaram as visitas matinais. O negócio era rápido. Provavelmente nós parecíamos um bando de pássaros minas, movendo-se desajeitada e rapidamente, quase pisando uns nos outros em nossa pressa ao passar de um leito para outro. A pressa era necessária, já que só dispúnhamos de meia hora até a primeira operação programada. Não se discutiam artigos; pouco mais fazíamos do que contar as cabeças, para saber se todos ainda estavam ali. A gastrectomia, cinco dias de pós-operatório, processando-se regularmente. Uma hérnia, operada há três dias, provavelmente em vias de alta. Um caso de varizes, também na expectativa de alta, com três dias de operado. Uma úlcera gástrica, todos os exames de raios X prontos, marcada para ser operada. A chapa revelara a úlcera? Sim. Bom.

Na enfermaria seguinte, paramos no meio e giramos lentamente sobre nossos calcanhares. Lesão em massa, mediastino, aortograma pendente. Num staccato, fiz uma descrição muito resumida de cada um de meus pacientes. O outro interno fez o mesmo. Havia quatro dessas enfermarias, e terminamos o último caso da quarta exatamente dezessete minutos após havermos começado.

- Peters, disseque uma outra veia na Potts, enquanto vamos ao CTI e à pediatria.

O pequeno bando desapareceu num canto, e eu me dirigi ao quarto de Marsha Potts, confuso e irritado, protestando em silêncio. Ela nem era doente minha. Eu sabia que havia sido escolhido porque não tinha nada que fazer na cirurgia senão às oito horas, em vez do horário habitual das sete e meia, mas mesmo assim não queria tornar a me envolver com ela depois daquela batalha maluca com a pressão venosa, na noite anterior. Além disso, a dissecção podia ser complicada. Eu não fizera muitas. O principal, porém, é que o ambiente ali era por demais desagradável. Contudo, Marsha Potts precisava de ter uma veia dissecada pois recebia soro e alimento por via endovenosa; sem mais veias superficiais que pudéssemos usar, era preciso dissecar uma, mais profunda.

Quando entrei naquele quarto, desapareceu a animada azáfama da manhã. Até os sons dos pássaros se tornaram inaudíveis, embora eles ainda continuassem ali. O cheiro era horrível, tão irritante e revoltante que fazia o ar parecer pesado. Era um cheiro quente de tecidos em decomposição misturado com o odor doce e xaroposo do talco perfumado, empregado em vão para disfarçar o fedor. Para mim, o talco só piorava as coisas. Evitando olhar para o rosto da pobre mulher, coloquei três máscaras para reduzir o cheiro, mas as três camadas de pano dificultavam a respiração e meu diafragma lutava para inalar o ar espesso. Eu não queria tocar em muita coisa ali. A morte parecia espalhar-se por sobre tudo, quase contagiante.

Ergui uma ponta do lençol e descobri seu pé direito. Por baixo da perna e no calcanhar havia ulcerações. De fato, havia feridas por todo o corpo, onde quer que ele tocasse alguma coisa. Depois de fazer incidir um brilhante foco de luz sobre seu tornozelo, calcei as luvas de borracha e abri a caixinha esterilizada com os instrumentos para a dissecção.

O bisturi penetrou pela pele sem nenhuma resistência. O pé estava ligeiramente edemaciado, de modo que, da ferida, correu mais uma serosidade clara do que sangue. Tive a sorte de encontrar logo a veia, e mais ainda de não tê-la seccionado acidentalmente. Pratiquei uma pequenina incisão na parede da veia, introduzi com facilidade o cateter nela, da primeira tentativa, enquanto bagas de suor escorriam na minha testa devido ao calor do foco de luz. Usando fio de seda, fixei o cateter no lugar e suturei a pequena incisão, observando o soro correr livremente. Com o pé, afastei a caixinha dos instrumentos, arranquei as luvas, e saí rapidamente para o sol e os pássaros.

Lavando as mãos, eu me sentia interiormente enojado de mim mesmo, e não sabia exatamente por quê. Ela era um ser humano; eu devia socorrê-la. Mas a situação e seu estado me revoltavam tanto que tinha dificuldade em aceitar a responsabilidade. Onde estava minha compaixão? Para onde estava indo?

A primeira operação de que eu participaria seria às oito horas, uma colecistectomia, ou retirada da vesícula biliar, com um cirurgião particular. Minha doente, a Sra. Takura, estava marcada para uma outra sala de operações, depois da remoção de um gânglio; sua operação devia começar às nove, exceto se houvesse complicações com a do gânglio. Obviamente, eu ia chegar atrasado para a operação da Sra. Takura, porém isto era típico. O interno é uma espécie de peão no jogo médico; é o primeiro na linha de defesa, sacrificado sem remorso, disponível no fim, porém necessário, parece, no meio.

Entrei na sala de vestir dos cirurgiões e comecei a enfiar-me num avental verde-pálido. Estava tão cheio ali que todo mundo se acotovelava sempre um pouco, de bom humor. De fato, o sentido de igualdade e de todos se reconhecerem como pessoas tornava a lavagem e esterilização um prazer.

Lá na escola de Medicina, os estudantes e o pessoal da casa se vestiam em áreas completamente diversas, divididas por portas e uma escada separada do sanctum sanctorum da sala de vestir dos assistentes. Era quase como se a imagem do cirurgião se desfizesse se você o visse em seu estado natural.

Um assistente da escola de Medicina era tão grosseiro que os estudantes tremiam quando apresentavam seus casos. Um amigo meu - excelente médico porém muito nervoso quando se expunha em público - teve uma vez um completo lapso de memória, junto a um leito, quando começava a relatar os fatos na frente desse assistente. Eu sabia que ele dominava o caso, mas não conseguiu desembuchar. - Esta mulher apresenta um... ah.. . ah... - Ele enrubesceu, e sua pulsação era bem visível aos lados do pescoço. O assistente poderia ter facilitado as coisas sugerindo que retornássemos ao caso mais tarde, ou mesmo dando uma pista, tirada da papeleta, para sacudir a memória do estudante. Nada disso. Ele ficou furioso, gritando que não sabia como é que uma pessoa tão estúpida conseguira entrar na escola de Medicina, e ordenando que o estudante sumisse de sua vista e só lhe aparecesse quando conhecesse seus doentes bastante bem para apresentar seus casos. Nem todos os assistentes eram assim, mas um grande número procedia do mesmo modo e até, às vezes, o chefe do serviço. Naturalmente, depois de um desses episódios, ficava muito ruim o relacionamento entre o estudante e o paciente, quando chegava a hora de colher sangue na manhã seguinte. À medida que o tempo passa, muitos detalhes da vida na escola de Medicina se fundem e mergulham na generalidade, mas não, acho, as cenas de fanfarronice e arrebatamento representadas pelos arrogantes cirurgiões. Alguns se comportavam tão violentamente que até parecia que odiavam os estudantes de Medicina. E, no entanto, esses homens eram nossos mentores, nossos professores, nossos modelos.

Depois do avental verde, calcei botas de lona e me arrastei ao longo do corredor cirúrgico. Algumas das portas das salas de operação estavam fechadas, e ao passar pelas janelinhas eu podia ver de relance grupos parecidos com os do Ku Klux Klan reunidos no centro da sala. Outras salas estavam abertas, com os doentes entrando, outras vazias por antecipação. Dezenas de enfermeiras passavam de um lado para outro, muito organizadas e atarefadas, algumas lindas - coisa difícil de conseguir com aquelas roupas disformes e os cabelos metidos para dentro de uma touca cirúrgica. Outras, no entanto, teriam se saído muito bem, jogando como agarradoras na defesa do New York Giants, mesmo sem equipamento, e apavorando os adversários. Todo mundo se dizia bom-dia; era um lugar muito agradável.

Quando me dirigi à pia, a fim de me lavar e esterilizar para a colecistectomia, o cirurgião e um residente já se achavam ali. O residente era um oriental, pequeno, calado, e respeitoso. Sorri para mim mesmo, lembrando-me da descrição que meu amigo Carao fazia do residente, dizendo que ele era tão pequeno que precisava andar a volta por todo o chuveiro para se molhar. O sorriso desencadeou uma coceira por baixo da máscara. Curioso como aquilo sempre ocorria. Sempre, depois de me lavar, começava a coceira, em geral do lado do nariz ou na fronte. Claro que eu não podia coçar senão depois que a operação terminava e não era mais preciso ficar esterilizado.

Torcendo o rosto e franzindo a testa, as vezes eu conseguia um certo alívio. Mas a coceira persistia, flutuando segundo o grau de minha concentração no que eu estava fazendo. Para mim, era a parte mais aborrecida da sala de operação - exceto os afastadores.

- Seu nome é Peters, hem? De onde veio? Que escola cursou? Ah, um dos bambas lá do leste, hem?

Ali estava, o preconceito às avessas. Agora parecia uma loucura que uma de minhas maiores motivações para ingressar na escola de Medicina tinha sido a idéia de me tornar membro de uma fraternidade altamente educada; um grupo cuja dedicação e treinamento o colocavam acima das trivialidades e mesquinhezas da sociedade do dia-a-dia. É desnecessário dizer que eu não alimentava mais essa ilusão; ela fora destruída no início do curso médico. Não obstante, a concorrência era tão acirrada que se você conseguisse entrar para uma das poucas famosas escolas de Medicina, invariavelmente isso significava que você havia zunido pelo ginásio e pelo colegial, em geral com notas ótimas. Assim, os que têm de se acomodar com a escola de Medicina de sua quinta ou sexta opção, sentem-se comumente como vítimas de um sistema no qual o desempenho é medido pela dura e imutável realidade da cópia. Eles achavam que os tipos torre-de-marfim, excepcionais, os consideravam como cidadãos de segunda classe. Tudo era um absurdo. Todos saíam daquela enorme máquina médica parecendo e pensando exatamente o mesmo, e com o mesmo diploma para praticar a Medicina. Com efeito, era a mesmice desses homens o que me assustava, não suas diferenças, que eram superficiais. Eu tinha começado a suspeitar tardiamente de que a máquina estava produzindo algo assimétrico, torto.

A lavagem, assepsia, é uma rotina invariável e monótona de dez minutos. Primeiro limpam-se as unhas, por baixo, depois uma lavagem geral e, em seguida escova-se. Escovam-se todas as superfícies das mãos ao cotovelo, e cada dedo de per si. Recomeça-se tudo. Para a frente e para trás.

Terminada a assepsia, passei pela porta, a bunda primeiro - o símbolo perfeito da posição do interno - minhas mãos levantadas numa atitude de rendição e submissão. Tudo é muito teatral. Na verdade, agora eu estava resignado. Afinal de contas, tinha sido eu mesmo quem escolhera seguir a Medicina; nenhum Romeu suspirou tanto por sua Julieta. Era uma pena que ela houvesse se transformado nesta puta. Essas tiradas pseudofilosóficas nada produziam, nada alteravam, mas ajudavam a passar aquelas intermináveis horas na sala de operações.

Toalha, avental, e depois as luvas entregues por uma enfermeira que agia maquinalmente e cujos olhos eu não podia ver, e a rotina estava completa. Nós colocávamos os lençóis no paciente enquanto o cirurgião, que era meio havaiano, e o anestesista, um oriental, mantinham uma conversa meio inteligível num inglês estropiado.

- Eu ir Vegas, próximo semano. Quer ir? - Era o anestesista olhando inexpressivamente por cima do anteparo.

- Que você pensa, eu ser esse tipo de jogador?

- Você cirurgião, esse tipo de jogador.

- Foda-se, pake. Afinal, não sou nenhum passador irresponsável de gás.

- Ah! Não gás, não trabalho para você, kanaka.

Eu me achava do lado direito do paciente, entre o cirurgião e o anestesista, de modo que esses exóticos preciosismos da lingüística havaiana vinham diretos para mim. O residente estava do outro lado, inescrutável.

Com tudo pronto, o cirurgião pegou um bisturi e incisou a pele por baixo da arcada costal. A meio caminho da incisão, todo mundo percebeu que o paciente não estava profundamente anestesiado.

Com efeito, ele se torcia e se movia como se sentisse uma coceira insuportável. Simultaneamente, cirurgião e anestesista deram umas risadinhas nervosas, as do cirurgião um tanto cínicas, pois na verdade queria dizer ao anestesista que ele não sabia que diabo estava fazendo. Não sei por que o anestesista estava rindo, a menos que fosse para disfarçar o sarcasmo do cirurgião. Os cirurgiões são conhecidos pela sua falta de tato e pela aversão que dedicam aos anestesistas.

- Kei, irmão. Que haver com você? Você estar economizando gás para próximo paciente? Dê-lhe gás, homem, dê-lhe.

O anestesista nada disse, e o cirurgião continuou: - Parecer vamos operar este caso sem ajuda anestesista.

Inevitavelmente, eu era uma espécie de árbitro neste pugilismo verbal, literalmente comprimido de encontro ao anteparo da anestesia pelo cirurgião. Só depois que eles penetraram no ventre foi que eu recebi o já familiar cabo de um afastador, a alegria e raison d'être* do interno. Há milhares de tipos de afastadores, mas todos eles fazem a mesma coisa: afastam os bordos da ferida e os outros órgãos para que o cirurgião possa atingir o seu alvo.

O cirurgião colocou o afastador na posição que desejava e me fez sinal para que eu o pegasse, dizendo-me que o puxasse mais para cima do que para trás. Bem, eu o ergui por cerca de dois ou três minutos e, então, puxei-o para trás. De onde eu me encontrava, meu poder de ação era negativo. Dois ou três minutos era o meu limite.

- Levante o maldito. Olhe, deixe-me mostrar-lhe. - O cirurgião tirou o afastador de minhas mãos.

- Assim. - No meio de outros comentários sobre a minha incapacidade, ele puxou o afastador para cima cerca de dois segundos antes de devolvê-lo a mim, depois do que eu o ergui por mais dois ou três minutos e tornei a puxá-lo para trás. Era inevitável. Aponte-me o homem capaz de puxar um afastador para cima em vez de para trás durante uma colecistectomia de cinco horas, e eu o seguirei até os confins da Terra.

Colecistectomia é simplesmente o nome técnico para a retirada da vesícula biliar. A vesícula biliar fica metida bem por baixo do fígado, e o interno tem de puxar o fígado e a porção superior da incisão para que o cirurgião, com o auxílio do residente, possa tirá-la. A vesícula biliar é um órgão muito discutível, que não merece nenhuma confiança e, assim, sua remoção é uma das operações mais freqüentes. De todos os meios mnemónicos que aprendi na escola de Medicina, um dos que eu melhor me lembrava referia-se à média dos doentes de vesícula: os quatro "f - gordo, mulher, quarentão e flatulento.**

.Durante a operação, meus braços ficavam mais ou menos por baixo do braço esquerdo do cirurgião. Ele ficava de costas

 

*Razão de ser. Em francês, no original. (N. do T.)

**Em inglês: fat, female, forty, and flatulent. (N. do T.)

 

para mim, o que tampava totalmente a incisão, nalgum lugar por cima de seu ombro. Quando o anestesista ligou seu radinho de pilha e começou a correr os olhos por um jornal, e o cirurgião começou também, alternadamente, a trautear e cantarolar de modo desafinado, o cenário se tornou cada vez menos semelhante ao silêncio tenso que se observava na escola de Medicina - quebrado apenas pelas explosões de desprazer do cirurgião. Eles eram o mesmo.

- OK Peters, dê uma olhada. - Espiei por cima, para dentro do campo operatório, um buraco vermelho e úmido com fitas cirúrgicas tracionando os órgãos abdominais. Ali estavam a vesícula, o canal cístico, o colédoco, o... - OK, chega. Não quero estragar você. - O cirurgião voltou ao seu lugar, empurrando-me e rindo com o anestesista. A sala de operações é um mundo feudal com uma hierarquia e um sistema de valores absolutos, no qual o cirurgião é o rei divino e todo-poderoso, o anestesista seu príncipe sicofanta, e o interno seu servo, supostamente grato por qualquer migalha de reconhecimento - uma olhadela dentro da incisão ou talvez a oportunidade de dar um ou dois nós. Aquela espiada dentro da ferida operatória tinha sido a minha recompensa por estar ali segurando os afastadores e olhando ou para as costas do cirurgião ou para os ponteiros do relógio na parede, à medida que eles percorriam lentamente o mostrador.

Contudo, o ambiente estava bastante agradável até que o cirurgião solicitou um colangiograma operatório, um exame de raios X, para se certificar que o colédoco estava completamente livre de cálculos. Isto se obteria injetando-se uma substância opaca nos canais e depois radiografando-se a região. Quaisquer pedras remanescentes se revelariam.

Quando não apareceu nenhum técnico de raios X, magicamente, ao estalar de seus dedos - todos se achavam ocupados com outros casos - o cirurgião xingou, sacudiu o bisturi, e ameaçou tomar terríveis represálias. As enfermeiras conservaram-se indiferentes a esta encenação, bem como o anestesista, cujo rádio continuava a tocar música e a dar notícias. Esta cena familiar era representada toda a vez que surgia a necessidade de se fazer uma radiografia no meio de uma operação.

Finalmente apareceu um técnico e fez a radiografia, voltando poucos minutos depois com uma chapa toda manchada e apagada, que o cirurgião considerou a tentativa mais inepta para se tirar uma radiografia desde o tempo do próprio Roentgen. Quer que tire outra? Não! Há muito o que aprender sobre o cirurgião. Eu estava certo ao pensar que ele queria aquela chapa porque leu a respeito em alguma revista e achou que pareceria bem no relatório da operação. De qualquer modo, o efeito prático da radiografia do modo pelo qual ele a fez seria, na melhor das hipóteses, neutro.

No dia seguinte, um radiologista lutaria para saber qual o lado de cima da chapa e porque a pinça hemostática aparecia no meio do sistema dos canais. Seu relatório não passaria de um palpite. O fim infeliz do episódio viria mais tarde, quando o cirurgião dissesse algo sarcástico para o radiologista que riria com ironia e replicaria que se os cirurgiões fossem capazes de se organizar um pouco, os radiologistas talvez pudessem fazer alguma coisa. Na verdade, os cirurgiões vivem em guerra com todo mundo - com a radiologia, a patologia, a anestesiologia, a tabela das operações, com os residentes, as enfermeiras, os internos constantemente cercados, acham eles, de uma equipe ingrata e incapaz. Numa palavra, muitos deles são perfeitamente paranóicos.

Uma vez terminado o trabalho dos afastadores, ensaiei um pedido para sair, com uma breve explicação sobre a Sra. Takura e fui dispensado do resto da colecistectomia. Quando saí da sala de operações para o corredor, o cirurgião ainda se queixava amargamente da radiografia e o anestesista ainda estava absorvido em seu jornal.

A operação da Sra. Takura já havia principiado quando comecei a me lavar pela segunda vez. Eu podia ver o residente-chefe da cirurgia e o residente de primeiro ano, Carno, ocupados em pinçar os vasos subcutâneos. Carno e eu tínhamos vindo para o Havaí ao mesmo tempo e pelas mesmas razões - fugir à pressão e nos divertir um pouco. Nos primeiros dias tudo correu muito bem, e chegamos a pensar em alugar um apartamento juntos.

A amizade entre o pessoal médico é difícil e ilusória, muito mais difícil de fazer do que no colégio.

Há tão pouco tempo para isso. Todos tendem a se introverter cada vez mais, a se tornar mais autistas, mesmo quando livres. Nos últimos dias da escola de Medicina, os horários são tão diferentes que não se pode contar com ninguém para um jantar ou uma festa. Às vezes, eu não podia contar nem comigo mesmo. Não raro eu fazia planos e depois me sentia completamente exausto para levá-los adiante.

Havia, também, a inevitável concorrência. Ela se estabelecera entre nós, desde o primeiro dia, como os esporos de um fungo, começando com a premissa de que o zénite da Medicina se achava no centro de pesquisas da universidade. Era ali que os "bambas" acabavam. Para chegar lá era preciso primeiro fazer a residência num centro universitário, e para isso necessitava-se de um internato em um dos principescos hospitais. Disseram-nos que os primeiros quatro ou cinco da turma seriam convidados a permanecer como internos, o bilhete dourado para se dar mais um passo gigantesco. Pressão!

Éramos cerca de 130, todos bons alunos no colégio, e todos cambaleantes em meio a uma névoa, absorvendo os fatos o mais depressa que podíamos, e aceitando o sistema de valores que nos dizia que precisávamos ficar no topo. A alternativa, horrível demais para ser imaginada, era que podíamos FRACASSAR e terminar como clínico geral numa pequena cidade. Isto era tão ruim quanto passar da suíte do executivo para a sala da correspondência.

Não fazia qualquer diferença se você se saísse bem; todos no grupo podiam sair-se. Afinal de contas, éramos cavalos treinados para correr, e corríamos como o diabo. A questão era sair-se melhor do que o outro cara. Isso não criava um ambiente apropriado para se fazer amizade, principalmente quando seu tempo era pouco, e você invariavelmente queria passá-lo com uma pequena.

Isto também era afetado pelo sistema, em particular nos últimos anos. No início, o fato de você ser estudante de Medicina conferia-lhe uma certa mística nos coquetéis e festinhas - todo mundo achava que um dia você ia ganhar muito dinheiro. Mas, pouco a pouco, desde que seu tempo era tão apertado, você não podia estar em lugar nenhum na ocasião certa, e passava a ser considerado um mau partido. Todas aquelas beldades de Smith e Wellesley, às quais você estava acostumado, afastavam-se para um terreno mais fértil. Então, nos voltávamos para as pequenas que estavam ali, as que tinham horários malucos como os nossos. E elas se voltavam para nós. O hospital estava cheio de garotas - técnicas de laboratório, instrutoras, enfermeiras, estudantes de enfermagem - muitas delas lindíssimas, e a maioria convenientemente disponível.

À proporção que nosso treinamento nos forçava a entrar no molde, retirávamo-nos para dentro de nós mesmos e para dentro do mundo artificial da escola de Medicina e do hospital. A mudança era imperceptível, quase inconsciente, porém constante; uma vez na escada rolante que levava à torre de marfim, nela permanecíamos intelectualmente. Embora eu tivesse vindo para o Havaí, eu não havia me separado totalmente. Jamais o faria. Ainda tinha um pé na porta, lá no leste; pois assim o esperava. Eu não era um rebelde ou um revolucionário; estava apenas um pouco aborrecido com a direção que eu estava tomando.

Naquele instante eu me dirigia para a sala de operação onde se achava a Sra. Takura, tornando a entrar de costas com as mãos para cima, pronto para envergar o avental e calçar as luvas. Eles estavam acabando de penetrar no abdome, e o residente-chefe fez-me um sinal para que eu ficasse à sua esquerda. Depois que me meti, com dificuldade, entre ele e o anteparo da anestesia, ele me passou os famosos afastadores, e ali ficamos, desta vez, durante oito horas.

Era difícil reconhecer a gentil velha Sra. Takura. Em vez de sua habitual figura agradável e atenciosa, ela sangrava por toda parte. Tinha se submetido a uma colecistectomia há vários anos, e era difícil operar através de todas as aderências e tecido fibroso. Cerca de duas horas depois de iniciada a operação, fizemos uma pausa para fechar uma pequena perfuração no intestino e, a seguir, um forte "sangramento" que esguichava o sangue no peito de Carno. Como a pressão arterial estava caindo, frascos cheios de sangue substituíam os que estavam vazios. Era uma técnica demorada, difícil, mas o residente-chefe parecia estar realizando um bom trabalho. Qualquer jovialidade que pudesse ter existido desaparecia à medida que a fadiga nos invadia.

Embora jamais se veja isto na televisão, o humor desempenha uma parte importante na sala de operações. Não há dúvida que, em geral, ele é horrível e feito, muitas vezes, à custa de um paciente inocente e inconsciente. A maioria dos cirurgiões é capaz de regalar a equipe cirúrgica durante horas com histórias bizarras e inoportunas de casos passados. Com minha limitada experiência e, portanto, com um repertório limitado, eu permanecia calado a maior parte do tempo dessas exibições, mas antes do caso da Sra. Takura assumir uma feição séria, quando todos ainda estavam de bom humor, aventurei uma história, favorita na minha escola de Medicina.

Parece que, uma vez, uma senhora tremendamente obesa tinha aparecido no hospital, numa ocasião em que a unidade cirúrgica estava a cargo de apenas dois internos e um residente. Queixava-se de uma forte dor abdominal. Pressionando fortemente o tecido adiposo, os três a examinaram, conferenciaram, tornaram a examinar, conferenciaram de novo, sem conseguirem chegar a um acordo quanto ao diagnóstico. Por fim, venceram os que achavam que ela estava com uma apendicite aguda, e a senhora foi levada para a sala de operação onde se viu literalmente enrolada nos lençóis em cima da mesa operatória. Ouvindo falar do caso, um pequeno grupo de seis ou sete outros reuniu-se no momento em que o residente começava a incisar as camadas de gordura, para atingir a cavidade peritoneal. Depois de mudar várias vezes a posição dos afastadores, à medida que se aprofundava cada vez mais, ele parou de repente, e fez reajustar o foco de luz do teto. Depois pediu uma pinça e, enquanto todo mundo observava expectante, puxou através da paciente um pedaço de pano branco. Um silêncio sepulcral caiu sobre os presentes até que, simultaneamente, todos perceberam que o residente tinha aprofundado sua incisão até à mesa de operação. Sendo muito grande, o abdome da paciente inclinara-se para a esquerda, fazendo com que o residente errasse completamente a cavidade abdominal.

Mas fazia muito tempo que o riso provocado pela história acabara. Agora trabalhávamos por dentro da Sra. Takura, e os músculos de minhas mãos e braços estavam dormentes da tensão sobre os afastadores naquela posição incómoda, hora após hora. A hora do almoço chegou e passou, e meu estômago roncou um protesto, um contraponto à coceira no meu nariz. Minha bexiga estava tão cheia que eu não ousava apoiar-me de encontro à mesa de operação. O tempo corria. Raramente eu via o interior do campo operatório, embora pudesse dizer o que estava acontecendo, pelos comentários do cirurgião. Fastidiosamente, os vasos foram unidos e costurados - por anastomose látero-lateral - a sutura final foi executada por dedos cansados. Quando, por fim, me vi livre dos afastadores, não podia nem abrir os punhos; ficaram cerrados, até que comecei a dobrar os dedos para trás, um a um, e mergulhei-os em água quente.

Embora já fossem quase quatro horas, ainda não havíamos terminado. Ainda tínhamos o que fechar. Como todos os outros, eu estava exausto, faminto e me sentindo desconfortável em todos os sentidos. Sutura após sutura, fio, seda, fio, lentamente avançando ao longo da incisão, começando do fundo e prosseguindo com rápidas laçadas, a parte aberta foi vagarosa mas progressivamente se fechando até à última sutura da aponeurose. Pronto. Depois a pele. Quando arrancamos nossas luvas, ao terminarmos, passava das cinco - o início de minha gloriosa noite de folga.

Urinei, escrevi todas as ordens para o pós-opêratório, troquei de roupa, comi alguma coisa como jantar, tudo'nesta ordem. Atravessando para a sala de jantar, eu me sentia como se tivesse sido atropelado por uma manada de elefantes no cio. Eu estava exausto e, muito pior, profundamente frustrado. Eu ajudara na cirurgia por nove horas a fio. Oito delas tinham sido as horas mais importantes da vida da Sra. Takura; contudo, eu não me sentia realizado. Eu simplesmente havia suportado e era, provavelmente, a única pessoa sem a qual eles podiam ter passado. É certo que eles precisavam de quem manejasse os afastadores, mas qualquer esquizofrênico catatônico seria o bastante. Os internos ficam impacientes para trabalhar duro, até para se sacrificarem - acima de tudo, para serem úteis e revelarem seus talentos especiais - a fim de aprender. Eu não sentia nenhuma dessas satisfações, apenas uma exaustão vazia e amarga.

Depois da ceia, embora eu não estivesse de serviço, tinha de ser feito o trabalho habitual da enfermaria e eu me movimentei superficialmente entre uma série de curativos, drenos e suturas.

Repassei as ordens para as aplicações endovenosas, examinei os relatórios do laboratório, e escrevi a observação e os preparativos pré-operatórios de um novo paciente, um caso de hérnia.

Os soluços de Roso recomeçaram, assim que ele saiu de sua hibernação com a Sparine. Ignorei tudo o que queria, apoiandome no meu estado de esgotamento. Evitei mesmo dar uma olhada no quarto de Marsha Potts.

Dormir era impossível, embora eu estivesse sem fazê-lo há mais de vinte e quatro horas. Além do mais, eu queria me afastar do hospital, para falar com alguém. Era demais para mim cuidar sozinho dos pensamentos irados e confusos, que rodopiavam dentro de minha cabeça. Carno não pôde ser localizado em nenhum lugar; provavelmente estava com sua namorada japonesa. Mas Jan, graças a Deus, estava ali e disponível. Ela queria dar um passeio de carro, talvez nadar. Ela faria qualquer coisa que eu quisesse.

Fomos de carro para o leste, na direção do violeta prateado do entardecer. A estrada nos levou por sobre o Pali para barlavento da ilha, subindo aos poucos e abrindo o cenário das cores do sol poente no panorama do oceano que se estendia por trás de nós. O espetáculo tinha uma poesia que nos conservava mudos, até que atravessamos o túnel e dele saímos, de novo para as sombras, em Kailua. Ali encontramos uma praia onde ficamos sozinhos. Pouco a pouco minha cabeça ia-se libertando dos pensamentos hostis, e a prisão do dia com o relógio que se arrastava, e os dedos rígidos pareciam muito distantes enquanto eu boiava nas águas rasas, deixando que as ondas pequenas e fatigadas me lambessem com seus movimentos.

Querendo ouvir Jan falar, fiz-lhe perguntas sobre ela própria, sua família, seus gostos e aversões, seus livros favoritos. De repente, me deu vontade de saber tudo sobre ela, e de ouvi-la cantar com sua voz pequena e macia. Depois de algum tempo ela se cansou e perguntou-me como eu passara o dia.

- Passei o dia todo na cirurgia.

- Foi?

- Nove horas.

- Oh, isso é maravilhoso! Que foi que você fez?

- Nada.

- Nada?

- Bem, praticamente nada. Quero dizer, eu era o encarregado dos afastadores, tracionando as bordas da incisão e o fígado para que os médicos de verdade pudessem operar.

- Você é um tolo - disse ela. - Isso foi importante, e você o sabe muito bem.

- Sim, foi importante, mas o problema é que qualquer um poderia tê-lo feito, qualquer um mesmo.

- Eu não acredito.

- Ora, eu sei que você não acredita. Nem ninguém mais. Todo mundo acha que só um interno pode tomar o lugar de um interno. Mas deixe que lhe diga, naquela sala de operação ninguém poderia ter feito o trabalho da enfermeira senão outra enfermeira, o mesmo no que se refere ao anestesista e ao cirurgião. Mas eu? Qualquer um! O cara da rua. Qualquer um, afinal!

- Mas você tem de aprender.

- Você tocou na ferida. O interno fica imobilizado num lugar, eternamente segurando os afastadores. Eles chamam a isso aprender - é a racionalização - mas é uma balela. Você aprende o bastante sobre como afastar os tecidos depois de um dia. Não precisa de um ano. Há tanto o que aprender, mas por que a este passo de lesma? Você se sente tremendamente explorado!

Eles deviam contratar gente só para afastar, e pôr o interno para dar nós e observar o trabalho do cirurgião.

- Você já sabe bem como dar os nós? - perguntou ela. Aquilo me interrompeu. Podia lembrar-me de ter-lhe dito que não sabia ainda dar os nós muito bem, mas mesmo assim seu comentário me parecia totalmente desencorajante. Isso revelava que eu não estava fazendo com que ela me entendesse, e era inútil tentar. No entanto, eu me sentia melhor, como se meus próprios pensamentos tivessem se focalizado. Respondi-lhe que não sabia dar nós muito bem, mas que provavelmente aprenderia se me deixassem fazê-lo.

Ela estava se voltando de novo para mim. Acabamos correndo pela água rasa. Ela era tão linda, tão cheia de vida, que eu tinha vontade de gritar de alegria. Beijamo-nos e nos abraçamos, enrolados no cobertor. Eu estava louco por ela, e sabia que íamos nos amar, e que ela queria tanto quanto eu. Mas ela se sentiu na obrigação de, primeiro, falar um pouco mais e contar-me alguns detalhes pessoais sobre si mesma. Por exemplo, que tinha feito amor apenas com um outro rapaz, mas que se decepcionara porque acontecia que ele não a amava de verdade. Isto continuou por cerca de cinco minutos, desligando-me de novo, e decidi que, no final de contas, talvez fosse uma má idéia fazer amor. Ela pôde acreditar e quis saber por quê. O verdadeiro motivo, minha frustração interior, não a teria satisfeito. Então eu lhe disse que amava o brilho de seus cabelos e o seu sentido de vida mas que, contudo, ainda não sabia se a amava. Isto agradou-lhe tanto que ela quase me fez mudar de novo de idéia. Na volta para o hospital fiz com que ela cantasse repetidas vezes Where Have Ali the Flowers Cone? (Para onde foram todas as flores) e me senti em paz.

- Você pensa que não fez nada hoje, mas fez - disse ela de repente, virando-se para mim.

- Por que diz isso? - perguntei.

- Bem, você salvou a vida da Sra, Takura. Quero dizer, você ajudou, mesmo que ache que devia ter feito alguma coisa mais.

Tive de admitir seu ponto de vista, um ponto de vista agradável, que eu quase esquecera. Pela Sra. Takura, eu seguraria um afastador durante semanas.

No hospital, meti-me no meu uniforme branco e disparei para o CTI para ver como estava passando a Sra. Takura. Seu leito estava vazio. Olhei interrogativamente para a enfermeira, retendo meu pensamento.

- Ela está morta. Morreu há cerca de uma hora.

- Ela o quê? A Sra. Takura?

- Está morta. Morreu há cerca de uma hora.

Enquanto eu cambaleava de volta ao meu quarto, meus pensamentos se amontoavam, desfazendo-se em lágrimas, expulsando todos os outros pensamentos exceto o de que aquele dia tinha sido um terrível insucesso, que nem o ato de amor compensara. Na cama, caí num sono agitado.

 

UNIDADE DE EMERGÊNCIA

Meus ouvidos eram treinados em separar os sons. Vindo de algum lugar distante, eu podia ouvir as vibrações sonoras agudas que ficavam cada vez mais altas, à medida que a ambulância se aproximava. O relógio indicava 9:15. Eu estava sentado atrás do balcão na unidade de emergência, aguardando.

Para algumas pessoas, mesmo as que estavam mais perto da ambulância do que eu, a sirene, misturada com os ruídos de fundo, era inaudível. Outras, certas de sua boa saúde, ou inconscientes de seus males, se contentavam em deixar que o som da sirene diminuísse, diluindo-se no subconsciente, entremeado com o ruído dos automóveis, dos rádios, das vozes. Para eles era algo distante que não lhes dizia respeito. Pertencia a outros.

Para mim, invariavelmente, ele se tornava cada vez mais forte, pois eu era o interno designado para a unidade de emergência - a UE para aqueles que a conheciam e amavam. Meus deveres na UE podiam ser resumidos no título de recepcionista oficial do hospital para todos os que chegavam. E chegavam - os jovens e os velhos, os insones, os deprimidos, nervosos, de vez em quando até feridos e doentes. Ali eu trabalhava, não raro febrilmente; com freqüência ali eu comia; ocasionalmente me sentava. Mas sempre à espera da terrível ambulância, eu quase nunca dormia.

Seu som significava problemas, e eu não estava preparado para eles, e achava que jamais estaria.

Embora eu houvesse sido designado para a UE há mais de um mês e já tivesse, então, meio ano de internato, meu estado emocional dominante era o de medo. Medo de me defrontar com um problema que eu não fosse capaz de resolver e estragar tudo. Por ironia, eu fora mergulhado neste novo ambiente, que exigia decisões médicas radicalmente diversas, assim que estava começando a desenvolver um certo grau de confiança nas enfermarias e no centro cirúrgico. Na UE, a não ser por um grupo de enfermeiras altamente capazes, eu estava por minha própria conta, único responsável pelo que acontecesse. Durante o dia, a situação não era tão má, quando havia outros médicos por perto - a equipe da casa estava a apenas alguns segundos de distância - porém à noite, podiam transcorrer cinco, talvez dez minutos, antes que chegasse alguém da equipe.

Então, as coisas podiam ficar críticas. As vezes eu forçava a mão.

Até a escala na UE era diferente. Vinte e quatro horas de serviço, e vinte e quatro de folga. Isso não parece tão ruim, até você trabalhar toda uma semana. Se seu serviço da semana começa às oito horas da manhã de domingo, às oito da quartafeira você já trabalhou quarenta e oito horas, e ainda tem mais quarenta e oito pela frente. Daí resulta que, depois de duas semanas, seu organismo se acha em total rebelião; você tem dores de cabeça, soltura, e um ligeiro tremor. O corpo humano é feito para trabalhar apenas certo tempo e depois descansar, não para ficar em atividade vinte e quatro horas a fio. A maior parte de seus órgãos, em particular as glândulas, precisa de repouso. Na verdade, suas funções se alteram, se eles trabalham durante um venerável período de mais de vinte e quatro horas, quer todo o corpo durma ou não. Assim, depois de dezesseis horas de serviço, suas glândulas têm de dormir mais, ou menos, porém as mesmas decisões devem ser tomadas, com as mesmas conseqüências. A vitalidade não é maior às 4 horas da madrugada do que ao meiodia. Com efeito, alguns estudos sugerem que é menor. O seu paciente mal existe, tudo é uma luta, o menor obstáculo é motivo de grande irritação...

A sirene estava agora bem perto. Eu escutava com a esperança de que o som agudo diminuísse e se afastasse, segundo o efeito Doppler que, às vezes, experimentávamos quando uma ambulância passava correndo para um dos hospitais menores das redondezas. Desta vez, não. Eu não podia vê-la mas podia dizer, pelo modo com que o ruído da sirene foi morrendo, que ela havia entrado no hospital. Mais alguns segundos e ela recuava para a área de estacionamento, e ali estava eu para recebê-la.

Pelas janelinhas traseiras eu podia ver os esforços desesperados que a equipe da ambulância fazia para ressuscitar o paciente. Um dos assistentes massageava externamente o coração, comprimindo o esterno do paciente; outro tentava em vão manter uma máscara de oxigênio em seu rosto. Quando a ambulância parou, adiantei-me e abri a porta. Alguns passantes reduziam a marcha e espiavam por cima do ombro. Para eles o caso estava encerrado. A ambulância tinha chegado, o médico aguardava com um sortimento de instrumentos estranhos e milagrosos à mão, tudo estava salvo.

Para mim era apenas o começo. Fiquei satisfeito por ninguém poder ler minha mente enquanto me preparava para o que viria.

- Levem-no para a Sala A - gritei para a equipe, que diminuía seus esforços para reanimar o paciente. Ajudei a puxar a maca para fora e corri com ela pela pequena passagem, perguntando há quanto tempo ele não respirava nem apresentava sinais de vida.

- Está assim desde que o pegamos, há dez minutos.

Era um homem barbado, aparentando cinqüenta anos, e tão grande que todos nós precisamos carregá-lo para colocá-lo na mesa de exames. Os segundos pareciam horas ante a necessidade que eu tinha de tomar uma decisão - o tipo de decisão que não é muito discutida fora do hospital. Eu devia atestar uma parada cardíaca ou simplesmente considerá-lo um DOA* - morto ao entrar.

Certamente não era justo que tomasse uma decisão dessas baseado apenas no que podia me lembrar de ter lido nos livros. No entanto, tinha de decidir, e rápido.

Que aconteceria se eu dissesse que era uma parada cardíaca? Seis semanas antes, havíamos ressuscitado um homem apenas oito minutos após a morte clínica. Ele agora jazia no CTI, como um vegetal, vivo no sentido legal mas morto em todos os outros. Vendo aquele homem, dia após dia, comecei a achar que, dando-lhe metade da vida, a tecnologia nos possibilitara privá-lo, de algum modo, de sua dignidade. Há seis semanas que o corpo funcionava - o coração batia, os pulmões eram bombeados mecanicamente, os olhos estavam dilatados e vazios, e seus parentes estavam chegando ao limite de suas reservas emocionais e financeiras. Quem ousaria desligar o aparelho que respirava, quem teria a coragem de interromper o soro endovenoso, quem relaxaria a atenção necessária para manter a adequada concentração iônica do sangue para que o coração pudesse continuar batendo sem o cérebro? Ninguém quer destruir o grão de esperança que persiste na mente mais objetiva.

Mas há o problema do leito. Precisa-se dele para outros - para gente que está mais viva talvez e que, no entanto, ficará no mesmo estado se for privada dos recursos do CTI. Chega-se a uma decisão baseada em sutis e indefinidas gradações entre a vida e a morte. Não é uma questão de branco ou preto, mas de uma variedade de nuanças de cinzento. Que significa realmente estar

 

* Sigla correspondente a dead on arrival, com que nos hospitais americanos se rotula o paciente que já chega morto. (N. do T.)

 

vivo? Uma pergunta desconcertante, cuja resposta escapa a uma mente entorpecida pela fadiga.

Nesses momentos, onde o interno exausto vai buscar uma orientação? No colégio, onde os estéreis conceitos da verdade, religião e da filosofia levam invariavelmente a uma aceitação automática da vida como o oposto da morte? Dali não vem nenhum auxílio. Na escola de Medicina? Talvez, mas na torre ebúrnea das complexidades da reação de Schwartzman e da seqüência dos ciclos dos aminoácidos foram postas de lado as questões fundamentais. Nem receberá qualquer auxílio de um médico assistente. Ele fica calado, talvez perplexo, mas endurecido pela repetição. E o parente ou amigo que está presente? Que dirá ele se você, pacientemente, expuser a proposição de que pode haver pontos intermediários entre a vida e a morte? Ai, ele não pode pensar senão na pobre alma que é, ou foi, o Tio Charlie. Abandonado, o interno então tateia interiormente e toma decisões arbitrárias que dependem do quanto ele está cansado, se é de manhã ou de noite, ou se ele está só ou tem um amor. Então, ele tenta esquecê-los, o que é fácil se ele estiver cansado; e como está sempre cansado, ele sempre esquece - exceto que, mais tarde, a lembrança pode aflorar de seu subconsciente. Zangado e indeciso, ele foi testado mais uma vez e viu que não estava preparado. ..

Paradoxalmente, mesmo com seis pessoas em torno de mim eu me sentia só, ali de pé junto à massa volumosa do homem barbado, que não respirava. Suas extremidades estavam frias, mas o peito estava bem quente; ele não tinha pulso, não respirava, e suas pupilas estavam dilatadas e fixas. Um dos atendentes da ambulância continuava a falar, contando-me o que soubera pelo vizinho do homem, e que estava com ele. O homem tinha chamado seu médico depois de um ataque de asma naquela manhã, mas havia piorado - tão pior que havia resolvido ir para a UE, guiando seu carro em companhia de um vizinho. No meio do caminho, ele sofrera um ataque de dispnéia aguda, ficara incapaz de respirar. Tinha parado o carro, saído, dera uns passos cambaleantes e caíra. O vizinho correra para socorrê-lo, e foi chamada a ambulância.

- DOA - disse eu, tentando não revelar qualquer dúvida. Na verdade, minha mente era uma mixórdia de pensamentos soltos, girando em busca de uma forma. Estranhamente, na UE, as manhãs são a hora em que um interno fica mais vulnerável. Embora revigorado por uma noite de sono, sua capacidade de tomar decisões fica reduzida pela profunda exaustão do ciclo das vinte e quatro horas. Sua experiência é insuficiente para fazer com que ele tome decisões críticas com a certeza, não do pensamento racional, mas pelo puro reflexo. Tem-se como certo o aforisma que diz que a familiaridade cria uma aceitação cega. E assim é. Muito freqüentemente, no início de sua carreira, o interno enfrenta uma situação na qual sua mente está bastante clara para pensar e, no entanto, não acha as respostas. Assim como acontece com o esquizofrênico que é incapaz de ordenar uma superabundância de dados, e a informação permanece desassociada na mente dele. Assim o interno absorve essas experiências que lhe entram precipitadamente; elas pendem em torno de sua mente como um aglomerado frouxo até que ele esteja bastante cansado para relegálas ao subconsciente e, por fim, ele chega a um ponto em que a experiência gera a familiaridade, e a familiaridade faz com que aceite o fato sem pensar. A esse tempo, grande parte do seu senso de humanidade desapareceu...

Toda esta atividade mental se processou em milissegundos. Eu não fiquei ponderando e indeciso enquanto o homem barbado jazia ali. Desde o momento em que abri a porta da ambulância até a hora em que ele foi dado como DOA, decorreram menos de trinta segundos. Mas pareceu muito mais tempo, e me afetou durante horas. Mas por uma coisa eu tinha de ser grato. Meu treinamento avançara o bastante para impedir que eu me preocupasse em procurar o pulso.

A questão principal, crucial, persistia: por que devia eu ter a permissão para tomar tal decisão? De certo modo eu me sentia um cúmplice do demônio, um agente na morte daquele homem. É verdade que, se eu não o tivesse feito, alguém mais o teria dado como morto; não era preciso fazer um drama. Isso é fácil de dizer se não se está envolvido, mas eu não podia afastar o assunto tão rapidamente. Eu tomara a decisão sem a qual o homem barbado não estaria tecnicamente morto naquele instante. Então nós o teríamos cheio de fios, e estaríamos comprimindo seu peito, respirando por ele, mantendo-o legalmente vivo. Assim eu achava que, como havia cortado essa possibilidade, eu era o único responsável por ele estar morto.

Teria eu sido muito apressado declarando-o DOA, tomando a saída mais fácil? Assim que eu disse aquilo, todas as portas médicas se fecharam. Se a decisão tivesse sido oposta, a favor de uma tentativa de reanimação, meu primeiro ato teria sido inserir um tubo endotraqueal para que pudéssemos respirar por ele. Eu sempre achara a intubação uma tarefa difícil. Talvez eu o tivesse declarado DOA, em parte para me poupar aquele problema. Ou talvez porque eu soubesse que todos os leitos do CTI estavam ocupados, e imaginasse que, mesmo que conseguíssemos ressuscitá-lo, de qualquer modo ele seria mais um outro vegetal. Agora eu penso que essas perguntas não têm respostas, mas na ocasião elas estavam me pondo doido. Naquele estado, encaminhei-me pela passagem, ao encontro da esposa e da filha. A esposa era alta e magra, quase emaciada, com os olhos fundos e negros. Usava sandálias e uma espécie de vestido comprido de velha. Encostada em suas amplas dobras, na verdade envolvida nele, estava uma garotinha de mais ou menos sete anos.

A situação era bem adequada para um programa de televisão de horário nobre - Os Internos ou Os Jovens Médicos - com os ingredientes para um confronto dramático ou terrivelmente sentimental. O fato de enfrentar a esposa assustada e apavorada e a filha nada tinha de dramático ou sentimental, para mim era apenas mais um obstáculo a transpor. Talvez uma terceira pessoa onisciente pudesse ler mais no espetáculo. Eu mal podia. Eu sabia o que tinha acontecido na sala por trás das cortinas, mas não fazia nenhuma idéia do que aquela gente estava pensando, do que precisavam ouvir. O pior de tudo era que eu me achava desesperadamente atolado nos meus próprios pensamentos loucos sobre a morte e a responsabilidade, sobre o que podia ter acontecido. Queria pedir-lhes que ouvissem minhas palestras sobre o ciclo de Krebs ou outro refinamento médico. Como a escola de Medicina me preparara tão mal para isso. - Basta pegar os conceitos, Peters. O resto virá. - O resto - a morte

- você aprendia pelo método dos erros e tentativas e, por fim, agradecido, você recorria às frases corriqueiras da televisão.

- Lamento muito. Fizemos tudo o que foi possível, mas seu marido faleceu - disse eu suavemente.

As palavras banais saíram, parecendo bastante boas, na verdade bem satisfatórias, ante as circunstâncias. Talvez eu tivesse futuro na televisão. A única coisa que me aborrecia era aquela história sobre termos feito tudo o que era possível; não tínhamos feito nada. Contudo, o que eu disse foi apenas uma hipocrisia estúpida e automática. Aquilo passaria. A esposa e a filha limitaram-se a ficar ali de pé, petrificadas, enquanto eu me virava e saía.

Graças a Deus não havia outro paciente esperando para ser examinado. Assinei a folha de papel oficializando que eu era a razão pela qual o tipo barbado estava morto, e depois entrei rapidamente no quarto dos médicos, batendo a porta atrás de mim. Com a vibração, fiz cair da parede um quadro que uma firma de produtos farmacêuticos nos havia dado, representando um bando de inças abrindo o crânio de algum pobre-diabo; mas o calendário do Playboy, no lado oposto, apenas oscilou num pequeno protesto, e a Srta. Dezembro mal pareceu incomodar-se.

Afundei-me numa enorme poltrona velha, de couro. O quarto era grande, com as paredes nuas, à exceção da gravura inca e da Srta. Dezembro. Numa das extremidades, havia uma estante baixa atulhada de livros, e na outra uma cama pequena e uma lâmpada. A cadeira em que eu estava olhava para a parede verde-pálido, que sustentava Srta. Dezembro. Eu ansiava por que minha mente ficasse tão vazia e plácida quanto aquele quarto.

A Srta. Dezembro ajudou; com efeito, ela havia me hipnotizado. O que tinha o Playboy contra os pêlos do corpo? À parte a exigida abundância capilar no alto da cabeça, a Srta. Dezembro estava tão lisa quanto uma peça de mármore - nenhum cabelo em torno dos seios, embaixo dos braços, ou nas pernas, e aparentemente nenhum entre as pernas, embora fosse difícil dizer com certeza devido à ceia de Natal engenhosamente colocada. Talvez o Playboy estivesse fazendo mau juízo de boa parte de seu mercado. Eu não achava que os pêlos púbicos fossem tão maus. Na verdade, lembrando-me da noite anterior, decidi que os pêlos púbicos de Joyce Kanishiro constituíam um de seus traços mais atraentes. Quando ela ficava nua, você os via em qualquer posição que ela estivesse. Imaginei que seria difícil colocar Joyce num calendário do Playboy.

A Srta. Dezembro, Joyce, e a estética dos pêlos do corpo não conseguiram arrancar de todo o homem barbado de minha mente. Certamente não era a primeira vez que eu me confrontava com a morte na UE. De fato, logo no meu primeiro dia de serviço na UE, quando eu tremia só de ver um doente com uma leve crise de asma, chegara uma ambulância, a sirene morrendo, e vomitara um rapaz de vinte anos no qual a equipe da ambulância praticara respiração artificial e compressão cardíaca. Eu tinha ficado parado no estacionamento, virtualmente torcendo minhas mãos e desejando que alguém chamasse um médico. Isso era ridículo. Eu era a pessoa para a qual eles tinham vindo correndo, avançando os sinais, arriscando-se a morrer ou quebrar um membro.

Baixei o olhar para o rapaz e vi que seu olho esquerdo estava para fora. A pupila distorcida olhava para nada. Que diabo podia eu fazer com aquele olho? Na verdade, não tive que pensar muito tempo, pois o rapaz não estava respirando, e seu coração deixara de bater. Rapidamente, a equipe me informou que ele não fizera o menor movimento desde que o tinham apanhado, atendendo a um telefonema de um vizinho. Quando o colocaram na mesa de exames, percebi de relance um ferimento atrás de sua cabeça. Tentei vê-la melhor, mas minha vista foi obstruída por pedaços do cérebro que vertiam de um orifício com cerca de 2,5cm de diâmetro, e de repente vi que ele tinha sido alvejado, que uma bala entrara pelo olho esquerdo e saíra atrás da cabeça. As enfermeiras e a equipe da ambulância ficaram ali, ofegantes devido aos seus esforços, enquanto eu seguia a minha rotina. Era totalmente absurdo usar o meu estetoscópio - nada faria qualquer diferença - mas à falta de outra estratégia coloquei-o sobre seu peito. Tudo o que ouvi foram meus próprios pensamentos, imaginando no que fazer a seguir. Espera-se sempre que o interno faça uma porção de coisas, mas aquele rapaz estava tão morto que, praticamente já estava frio.

- Ele está morto - falei por fim, depois de procurar os pulsos.

- O senhor quer dizer DOA, doutor? Não parada cardíaca, é isso?

Era aquilo mesmo, morto ao dar entrada. O jargão médico era reconfortante; fazia-me sentir seguro.

Aquele rapaz com o buraco na cabeça tinha sido muito diferente do homem barbado. Claro que eu ficara mortalmente apavorado com o buraco, e grandemente aliviado por me ver livre da responsabilidade de imaginar o que fazer com aquele olho. Contudo, o ponto principal era que ele tinha um grande orifício através da cabeça, o que me livrara de qualquer ação; daí eu ter-me sentido pouco responsável. Por outro lado, mesmo agora, sem o lençol que o cobria, o homem barbado parecia bem normal, como se estivesse num sono profundo. É o que acontece com a morte pela asma. Não se acha muita coisa, mesmo na autópsia, a menos que a vítima tenha sofrido um ataque cardíaco fulminante.

Sentado no quarto dos médicos, eu procurava imaginar Joyce Kanishiro na página desdobrável do centro do Playboy. Seria um espetáculo! Ela chegava mesmo a ter alguns cabelinhos pretos em torno de seus mamilos. Eles teriam que retocar um bocado a fotografia.

Joyce era uma técnica de laboratório com um horário estranho como o meu. Isso não era problema, porém havia uma grande desvantagem da parte dela: sua companheira de quarto estava sempre em casa. Todas as vezes que levei Joyce para seu apartamento, as primeiras poucas vezes que fomos para lá, sua companheira lá se encontrava comendo maçãs e vendo televisão. Havia um quarto de dormir, porém jamais era oportuno entrarmos nele. Decisivamente, a companheira era uma inveterada notívaga, e provavelmente ainda ali estaria vendo o padrão de teste da emissora quando saíssemos às 5 horas da manhã. Após umas poucas noites assistindo comédias, seguidas das últimas notícias e do último filme, compreendi que eu e Joyce tínhamos de arranjar um outro lugar.

Meu devaneio sobre Joyce foi interrompido por outra recordação, um episódio que ocorrera no fim da tarde, cerca de duas semanas depois que comecei a dar serviço na UE. A rotina de sempre - a sirene, as luzes vermelhas piscando - e aquele tipo que também parecia normal. Quando os atendentes o descarregaram e entraram com ele, disseram-me que havia caído do décimo-quinto andar em cima de um carro estacionado. Tinha-se mexido? Não. Havia respirado? Não. Mas ele parecia normal, muito calmo, assim como o homem barbado, só que muito mais jovem. Quanto tempo tinham levado para trazê-lo? Cerca de quinze minutos. Eles sempre reduziam o tempo para prevenir qualquer crítica. Com um oftalmoscópio, examinei o interior dos olhos do camarada, focalizando até ver os vasos sangüíneos. Concentrando-me nas veias, percebi grumos que só podiam ser coágulos sangüíneos. - DOA - declarei. - Não é parada cardíaca. - Aquele caso também me assustou muito, se bem que, cair quinze andares em cima de um carro estacionado seja bem conclusivo.

Depois, a família começou a chegar, aos poucos. Primeiro os primos e tios," e até os vizinhos. Parece que o homem - seu nome era Romero - havia falseado o pé quando pintava a parede externa de um edifício. Depois que as enfermeiras telefonaram para sua mulher, dizendo que Romero estava muito mal, a notícia do acidente já se espalharia rapidamente, e quando a Sra. Romero chegou, o lugar já estava apinhado de gente que desejava saber como ele estava e queria vê-lo. Quando comuniquei à Sra. Romero, do modo mais calmo e confidencial, que seu marido estava morto, ela levantou as mãos para o céu e começou a uivar. Aproveitando sua deixa, o resto da tropa começou a uivar também. Dali em diante, durante mais ou menos uma hora, assisti a um espetáculo incrível e assustador dado pelos Romeros e seus amigos, que continuavam a chegar e a abarrotar a UE. Eles batiam nas paredes, arrancavam os cabelos, gritavam, choravam, brigavam entre si, e, por fim começaram a quebrar os móveis da sala de espera. Não tive tempo de conjecturar sobre as implicações metafísicas do caso, estando por demais ocupado em me proteger e ao resto da equipe. Internos já têm sido mortos na UE. Não é piada.

Mais tarde eu vira, no relatório do patologista que realizara a autópsia, que a aorta de Romero rompera-se. Aquilo me fez sentir um pouco melhor. Mas eu sabia que o patologista não encontraria nada de tão grave e errado com o homem barbado.

Dormitando e cismando na velha cadeira de couro, eu brincava com esses pensamentos e lembranças, enquanto os enormes e quase hilariantes seios da Srta. Dezembro pareciam ficar ainda maiores. Joyce não tinha seios assim. Nós tínhamos ido para o meu quarto a fim de evitar a viciada da TV, e eu me lembrava vagamente de ter acordado às quatro e meia daquela manhã, quando Joyce saía pela porta traseira, antes que alguém subisse aos alojamentos. A idéia fora dela; eu nem teria me importado. Mas foi como conseguimos nos livrar da Srta. Maçã e TV. Era um grande programa. Durante minhas vinte e quatro horas de folga, eu praticava o surfe à tarde, lia ao anoitecer e então, cerca das onze horas, depois do trabalho dela, Joyce chegava e nos metíamos na cama. Ela era uma garota atlética, que gostava de saltitar por ali. Tinha uma grande resistência, era realmente insaciável. Quando eu a tinha perto, não pensava em nada mais.

Mas o leito de hospital em meu quarto fazia um bocado de barulho, e era muito pequeno. Quando Joyce se levantava para sair, mais ou menos às quatro e meia, eu me regalava, deliciado por poder me expandir por todo o espaço da cama. Durante algum tempo eu me levantei com ela - parecia-me gentil fazê-lo - e acenava-lhe adeus quando ela descia as escadas e pegava o carro. Depois, porém, passei a ficar apoiado num cotovelo, vendo-a vestir-se. Ela não dava mostras de se importar.

Naquela manhã, ela voltara para junto da cama, em seu uniforme branco todo engomado, e me beijara levemente. Eu lhe disse que logo estaríamos juntos. Ela era uma companheira formidável.

Quando o telefone tocou para me acordar três horas mais tarde, decorrera um tempo tão curto que eu nem esperava ver Joyce ainda de pé ali. Eu devia ter adormecido antes de ela sair pela porta.

Era sábado, o dia mais atarefado na UE, às 7:30 da manhã. Embora eu tivesse passado oito horas na cama, sentia-me fisicamente falido e defasado. Era a droga das vinte e quatro horas. Eu tinha seguido minha rotina habitual, que começava quando eu me equilibrava de encontro à pia e examinava meus olhos injetados de sangue e terminava com a minha chegada na UE um minuto depois das oito, como sempre. Estranhamente, apesar da tendência geral para os atrasos, eu dava um jeito para chegar na hora na UE a fim de render meu colega, que se retirava agradecido, com as vestes salpicadas de sangue e com as pálpebras pesadas.

Até a chegada do homem barbado, aquela manhã de sábado tinha sido relativamente calma, sem grandes problemas, com apenas a costumeira procissão de pessoas que tinham deixado cair um ferro de engomar em cima dos dedos dos pés, ou se cortado no vidro de uma janela. Tudo tinha sido resolvido prontamente.

Cerca de meia hora se interpunha entre mim e o homem barbado e, obviamente, nada desagradável havia acontecido lá fora do quarto dos médicos, do contrário não me teriam deixado ficar ali sentado, a cismar. Meu relógio marcava 10:00 da manhã. Eu sabia que era apenas uma questão de tempo.

Depois de bater levemente na porta, uma enfermeira entrou para me dizer que havia alguns pacientes esperando. Sentindo-me quase aliviado por me terem arrancado de meu devaneio, voltei para a luz do dia e apanhei as "pranchetas" que a enfermeira tinha preparado. Tiro o chapéu para essas moças. Elas escoltavam rotineiramente cada paciente para a sala de exames, resolviam todos os detalhes administrativos, tomavam a pressão arterial, e até a temperatura, se julgassem necessário. Em outras palavras, peneiravam muito bem o paciente. Não que elas decidissem quem eu devia ver, pois eu tinha de ver todos, mas tentavam estabelecer prioridades, se o lugar estava muito cheio, ou dar-me um pouco de paz, de vez em quando, se os clientes não eram muitos. Acho que toda a vez que chegava um novo interno as enfermeiras se sentiam tentadas a resolver tudo sozinhas, pois a maioria dos casos entrados realmente não podia ser catalogada de emergência.

Mas eu era o interno responsável, uniformizado com jaleco, calças, sapatos brancos e estetoscópio enfiado, de um modo especial, no bolso esquerdo do jaleco, equipado com canetas de várias cores, lanterninha-lapiseira, martelo neurológico, uma combinação de oftalmo-otoscópio, e quatro anos de escola de Medicina, aparentemente pronto para tudo. De fato, só para os casos que eu já tinha visto e tratado. Considerando que a variedade dos males do corpo se aproxima do infinito, eu não estava nada preparado. Minha incapacidade era como uma sombra que só se afastava quando o lugar estava cheio de bebés chorando e de suturas a serem feitas. Em geral, depois de mais ou menos dez horas, eu ficava tão cansado que mesmo que não houvesse pacientes eu não podia pensar. Assim, a manhã era mais árdua, avançando pela tarde; o resto parecia cuidar de si mesmo.

O primeiro dos dois novos pacientes era um surfista que fora atingido na cabeça por uma prancha, que lhe deixou um corte de 5cm por cima do olho esquerdo. Ele estava bem lúcido, esperto, e com a visão normal. Com efeito, a não ser o corte, ele se achava em ótimo estado. Telefonei para o seu médico particular que, conforme eu previa, me disse que eu seguisse em frente e desse os pontos necessários. E assim foi feito. Os doentes chegavam, eu os examinava e chamava seus médicos particulares. Se não tinham, arranjávamos um, desde, é claro, que tivessem como pagar. Caso contrário, eram considerados como doentes da casa e eu, ou um dos residentes, assumíamos a responsabilidade por seu tratamento. - Costure. - era a resposta invariável dos médicos particulares nesses casos de cortes. Nos primeiros dias, muitas vezes eu me punha a pensar se os médicos particulares não cobrariam as suturas feitas por nós, embora não fôssemos encorajados a averiguar isso.

Agora eu já dava nós e fazia suturas bastante bem, pois havia insistido nisso em várias operações, inclusive três hérnias, um par de hemorróidas, uma apendicectomia, e uma safenectomia. Contudo, na maior parte das vezes eu continuava a segurar aqueles malditos afastadores e, ocasionalmente, a arrancar verrugas.

A extirpação de verrugas é a recompensa que o interno recebe por se comportar; está mais ou menos em igualdade com a remoção das hemorróidas, se bem que estas se achem um pouco mais alto na escala. Na escola de Medicina nós havíamos extirpado cerca de uma dúzia de verrugas, durante o curso de dermatologia, já que o processo, em essência, não apresentava qualquer risco e estava muito abaixo da dignidade de um cirurgião. Minha primeira verruga havaiana viera com o Supercharger, um cirurgião assim apelidado por sua incomparável lentidão e incompetência.

Atuamos juntos numa simples biópsia do seio, que normalmente leva trinta minutos, a não ser que se descubra uma malignidade. Mas não com o Supercharger. Ele ficou fuçando ali por mais ou menos uma hora antes de enviar um pedacinho do tecido estranho para a patologia. Eu ali permaneci, de pé, fazendo votos para que o tecido fosse benigno - felizmente era - e então o Supercharger fechou a ferida operatória. Ser assistente numa biópsia de seio nada tem de excitante, em qualquer circunstância; no caso em questão foi ainda pior para mim, pois nada fiz, nem mesmo o afastamento dos tecidos. Quando o Supercharger acabou de dar o último ponto, recuou um passo, tirou as luvas e, magnaninamente, informou-me de que, agora, eu poderia extirpar a verruga do punho, o que fiz devidamente - ao som de uma porção de maus conselhos do Supercharger, que não podia entender por que eu não me mostrava mais agradecido.

Contudo, minha operação seguinte foi mais envolvente; de fato, ela quase me aniquilou. Era uma safenectomia - retirada da veia safena - e o cirurgião, um médico particular com quem eu jamais havia operado. Enquanto lavávamos as mãos, ele me disse que esperava que eu realizasse um trabalho cuidadoso no lado que me cabia. Fiquei meio sem jeito, sabendo que ele me tomara por um residente, mas deixei que continuasse pensando erradamente. Quando respondi que tentaria fazer um bom trabalho, ele retrucou que tentar não era o bastante, e que ou eu fazia a coisa certa ou não faria nada. Não tive coragem de responder que eu jamais praticara uma safenectomia. Eu tinha visto várias, mas apenas por trás dos cabos dos afastadores; além do mais eu queria tentar.

Precisando seguir a orientação do cirurgião, só comecei depois dele. A paciente era uma mulher de mais ou menos quarenta e cinco anos, portadora de varizes muito ruins. Tendo sido designado para o caso apenas alguns minutos antes da operação, eu não conhecia a paciente e, assim, tive de conjecturar como seriam suas varizes quando ela ficava de pé. Embora eu conhecesse a operação em teoria, não tinha prática. Era como ter lido tudo sobre natação, sabendo os nomes dos estilos e dos movimentos, tendo visto outras pessoas nadarem, e ser, então, jogado em águas profundas. Meu trabalho consistia em fazer uma incisão na virilha, encontrar a veia superficial, chamada safena, e isolar todos os seus tributários. Depois, devia passar para o tornozelo, fazer outra incisão, isolar a mesma veia safena ali, e prepará-la para o extirpador. O extirpador era simplesmente um pedaço de arame, que eu podia introduzir pela veia até a virilha; depois de prender a extremidade do extirpador à veia, eu puxaria ambos pela incisão na virilha. Era isso o que eu devia fazer, e o sabia de cor; tinha lido a respeito, tinha visto fazerem, e pensava naquilo.

Quase sem ser preciso qualquer pressão, o bisturi, superafiado, cortou suavemente a pele na região inguinal. Comecei a dissecar com a tesoura, mas não pude controlá-la muito bem. Passei, então, a usar uma pinça hemostática, não para pinçar um vaso, mas para separar os tecidos, abrindo-a depois de introduzi-la na camada gordurosa. Este método causa menos sangramento, e comecei a abrir caminho, aprofundando-me nas espesssas camadas adiposas. Lá no fundo da região inguinal, nada vi que eu reconhecesse, nada; era como tatear no escuro - até que esbarrei numa veia. Não fazia a menor idéia de que veia se tratava, mas, debridando lentamente em torno dela, consegui segui-la até outra maior, que eu esperava fosse a veia femoral. Se eu estivesse certo, então a primeira veia que eu encontrara era a tão desejada safena, porém eu não tinha certeza. Eu estava cheio de dedos, deixando cair os instrumentos uma ou duas vezes, e também nervoso com o meu desempenho. No fim de contas, que diria o cirurgião se eu lhe contasse que jamais havia operado e que só tinha dissecado veias para a aplicação de injeções, e feito extirpações de verrugas? Pensei em perguntar-lhe se eu estava na veia certa, mas tal confissão de ignorância só redundaria no meu afastamento de outras intervenções.

De qualquer modo, continuei esperando ter encontrado a veia safena e não um nervo. O trabalho ficava cada vez mais difícil. Com efeito, tudo era uma confusão. Sacudi a veia para cá e para lá, tentando soltá-la, abrindo bem a pinça, enxugando o sangue com uma esponja de gaze, para manter o campo limpo. Várias vezes a veia rompeu-se e o sangue se espalhou, mas, bem ou mal, consegui estancá-lo com uma pinça, depois de desordenadas tentativas no escuro. A hemorragia me proporcionou um certo consolo, pois provava que a formação que eu tinha isolado era deveras um vaso sangüíneo.

Talvez a parte mais difícil tenha sido passar um fio em torno da pinça que eu havia colocado lá no fundo, a fim de parar a hemorragia. Colocar o fio de seda na ponta da pinça foi bastante fácil, mas tentar manter a tensão, do primeiro golpe, parecia impossível. Então, quando eu soltava a pinça, o laço que eu acabara de fazer escapava, e a hemorragia recomeçava. De um modo geral, do ponto de vista técnico, era como se eu estivesse matando um porco. De vez em quando eu olhava de relance, semiconsciente, para o cirurgião, mas ele parecia alheio às minhas tentativas e atento ao que fazia do seu lado, onde tudo se achava sob controle.

Que maneira de aprender, pensava eu. Mas era a única. Se ele soubesse que eu era um novato na extirpação de uma veia, não teria deixado que eu o fizesse. Era só isso. Assim, continuei, acabando por libertar todos os tributários da veia safena. Mesmo depois, com todos eles isolados, fiquei nervoso em seccionar a veia em duas, um ato irreversível. Então, passei para o tornozelo e fiz uma incisão, localizando facilmente a safena, pois era a mesma veia que eu dissecava para as aplicações de soro. Enfiei um extirpador na veia, e fui empurrando até ele aparecer na incisão na região inguinal. Depois de fixar a veia ao extirpador no tornozelo, puxei tudo com força, através da perna, arrancando a veia.

Um jato de sangue, ruído agudo, e a veia saiu, toda enrugada, na extremidade do extirpador. Há muito tempo que o cirurgião terminara, e tinha desaparecido para tomar café, deixando-me a tarefa de suturar tudo. Não soube de nenhum comentário desairoso aos resultados das operações do dia, donde admito que a mulher em absoluto ficou pior, a despeito da minha estréia.

Apesar de ter costurado centenas de incisões no centro cirúrgico, os primeiros cortes e lacerações na unidade de emergência tinham sido grandes problemas para mim. Em primeiro lugar, na UE quase todo paciente está acordado e atento. No meu primeiro dia na UE, quando a enfermeira me perguntou qual o fio que eu queria, era o mesmo que ter perguntado qual era a população de Madagascar. Na sala de operação, o cirurgião estipula qual o material de sutura que ele deseja para a pele, antes de começar a operação; você se limita a pegar o que a enfermeira lhe passa, mesmo que o cirurgião já tenha se retirado. Mas na UE eu me confrontava com uma variedade de opções - nylon, seda, mercilena, categute - que vinham em todas as espessuras. A enfermeira não estava querendo me humilhar; apenas desejava saber.

- Que fios o senhor vai usar, doutor? - Então não fazia a menor idéia.

- Os de hábito, enfermeira.

- Os de hábito, doutor?

Era óbvio que não havia nenhum hábito.

- Hum, nylon - arrisquei.

- Que número?

- Quatro-zero - respondi-lhe, imaginando o que eu estava pedindo.

Não é preciso dizer que eu aprendi depressa tudo sobre os fios, e também a suturar, mas sempre pelo processo de erros e tentativas. No primeiro caso, dei pontos demais, e no segundo, cheguei ao fim do corte com um excesso de pele por cima. Pouco a pouco, mas com segurança, aprendi os pequenos truques como aparar os bordos desbeiçados, e até a usar materiais extravagantes como os agrafes em Z, a fim de mudar o eixo de um corte para reduzir a cicatriz. Cheguei a gostar bastante de suturar, pois era um problema cuja solução simples e clara aprendi rapidamente a empregar. Fazia-me sentir útil, sensação rara e gratificante.

Agora, todo aquele aprendizado estava no passado. O surfista aguardava com um lençol sobre a cabeça. Pela pequena abertura no lugar do corte, comecei a limpar e a anestesiar a área com xilocaína. Após afrontar ligeiramente as bordas da ferida, apoiei a agulha com o respectivo fio de nylon mais ou menos no meio do talho e a alguns milímetros para trás da beira. Guiada por um movimento rotatório do meu pulso, a agulha penetrou na pele, atravessou o corte, e emergiu do outro lado. Puxei-a com o pegador de agulhas. Depois, mal pegando os bordos da ferida com a agulha, voltei com o fio para o lado original e dei o nó, não apertado, mas um pouco frouxo de modo que o intumescimento da ferida unisse as bordas. Mais quatro pontos, e o trabalho terminou.

A outra paciente era uma garota de vinte e quatro anos, um tanto misteriosa, que parecia cronicamente doente. Ela confessou que estava em tratamento de um lúpus eritematoso sistêmico, que lhe tinha sido diagnosticado. O nome por si só já é medonho, e com efeito, o lúpus é uma doença grave. Foi uma das doenças que discutimos ad nauseam* na escola de Medicina porque, sendo tão rara e mal compreendida, servia para um bocado de especulação acadêmica. Assim, eu não me sentia completamente despreparado - exceção feita ao fato de ela se queixar de dor abdominal - que não era um sintoma comum a alguém portador de lúpus. Procurando reunir os dois sintomas em minha mente, palpei seu abdome, e fiz-lhe perguntas sobre seu estado, que ela ou a mãe respondiam. Então, precisando pensar, voltei ao balcão-escrivaninha que ficava no centro da UE e dei tratos à bola em busca de uma associação entre a dor dela e sua doença básica. Enquanto eu pensava sair dali com um qualquer exame exótico de laboratório, mãe e filha passaram por mim, disseram que a dor se fora, agradeceram-me, e saíram pela porta. Era demais para o meu desafiante mistério diagnóstico, e um dos poucos casos da UE para o qual eu estava preparado por quatro anos de curso médico.

Neste ponto, Quase entrou correndo e, praticamente, caiu na minha frente, apoiando a testa no balcão, ofegando e chiando. Seu verdadeiro nome era Fogarty, mas nós o chamávamos de Quase porque ele invariavelmente agüentava até o último instante

 

Em latim, no original. "Até enjoar". (N. do T.)

 

antes de vir para a UE a fim de se medicar de sua asma. Era como esperar que acabasse o combustível para entrar num posto de abastecimento. As enfermeiras o conduziram, cianótico e ofegante para um dos quartos, enquanto eu preparava um pouco de aminofilina. Eu já vira Quase várias vezes, a começar do meu segundo dia de serviço na UE. Da escola de Medicina eu sabia um bocado sobre a asma em termos de gradientes de pressão pulmonar, alterações do pH, função muscular, e fenômenos alérgicos, e até conhecia as drogas que eram indicadas e úteis - adrenalina, aminofilina, bicarbonato, THAM, e esteróides. Porém nada sabia quanto às dosagens.

Assim, na primeira vez, enquanto Quase estava num outro quarto soprando no respirador de pressão positiva, corri para o quarto dos médicos e consultei uma brochura. Tudo para evitar perguntar às enfermeiras. Dos casos da enfermaria, em verdade, eu tinha uma idéia do quanto e do que aplicar nos doentes hospitalizados, em repouso. Mas este tipo vivia andando por toda a parte, não ficava na cama, e isso fazia uma grande diferença. Não se pode usar as mesmas doses.

Perguntar qualquer coisa às enfermeiras seria desmoralizante para mim. De qualquer modo, o velho Quase e eu tínhamo-nos habituado um ao outro, e a aminofilina resolveu, como de hábito.

Embora algumas vezes a UE ficasse tão cheia que os pacientes tinham de se sentar no chão ou ficar encostados às paredes, o mais comum era ter uma corrente contínua no período de vinte e quatro horas, que atingia, talvez, a 120 mais ou menos nos dias de semana e duplicava nos sábados. Eram, agora, cerca de 10:30 da manhã. A corrente tinha começado a fluir, e eu estava a postos, indo rapidamente de um quarto para o outro, telefonando para os médicos particulares, sem realmente pensar muito, quase alheio ao medo onipresente do próximo grande caso.

Uma papeleta dizia: "Principal queixa: depressão." Uma senhora de trinta e sete anos. Ao entrar em seu quarto, ela acendia um cigarro, protegendo o fósforo com as mãos em concha, como se estivesse ventando muito. Jogando a cabeça para trás, o cigarro precariamente metido no canto da boca, ela me olhou inexpressivamente.

- Lamento, minha senhora, não pode fumar aqui. Aqueles cilindros verdes, de metal, estão cheios de oxigênio.

- Está bem, está bem. - Com evidente irritação, ela amassou impiedosamente o cigarro num pequeno prato de aço inoxidável acidentalmente deixado sobre a mesa de exame. Ela estava calada. Quando o cigarro ficou completamente destruído, ela levantou o olhar e fitou-me agressivamente dentro de meus olhos, pronta para explodir, pensei eu.

- Seu nome é Carol Narkin, certo?

- Certo. Você é o único médico aqui? - Ela queria me atingir.

- Sim, o único aqui, agora. Mas vamos chamar o seu médico, também. O nome dele é Laine, diz aqui na papeleta.

- Isso mesmo, e é também um ótimo médico - disse ela, na defensiva.

- Viu-o recentemente? - Eu estava tentando acalmá-la com as perguntas de rotina, procurando descobrir por que ela havia vindo para a UE.

- Não queira bancar o esperto comigo.

- Lamento, Srta. Narkin, devo fazer-lhe algumas perguntas.

- Não vou responder mais nada. Chame o meu médico.

- Com raiva, ela desviou o olhar.

- Senhorita Narkin, que devo dizer ao seu médico? - Ela não se mexeu. - Senhorita Narkin?

Era claro que eu não podia ajudá-la, e então saí, pensando em voltar depois de ter visto o paciente a seguir. Por que viera ela para cá? Não adiantava telefonar para o seu médico sem poder lhe fazer um relatório. Ao retornar para vê-la, após alguns minutos, ela tinha ido embora. Isto era típico do trabalho na UE - breve, encontros inconclusivos e um bocado de tempo perdido.

A seguir, a enfermeira meteu-me nas mãos cinco papeletas e apontou, um pouco encabulada, para o próximo quarto, onde me vi em frente de toda uma família - mãe, pai e três filhos - esperando de pé para ser atendida.

A mãe falou:

- Viemos porque Johnny aqui está com febre e tosse. Olhei para a papeleta. "Temperatura 37,2."

- E, já que o senhor está aqui, acho que não se incomodaria de dar uma espiadela nessas manchas na língua de Nancy. Mostre a língua para o doutor, Nancy. E Bill, levou uma queda na escola na semana passada. Está vendo o joelho dele, está vendo aquela esfoladura? Bem, ele tem ficado em casa por causa disso, e precisa de uma nota. E George, é meu marido, precisa que um médico assine sua carteira de trabalho e saúde devido ao estado de suas costas, já que ele não está trabalhando e acabamos de chegar da Califórnia. E nas últimas três ou quatro semanas não tenho passado bem dos intestinos.

Olhei atentamente para aqueles rostos. O marido não sustentou meu olhar, e os garotos estavam muito ocupados em trepar na mesa de exames, mas a mãe estava adorando aquilo, olhando-me excitadamente. Meu primeiro impulso foi pô-los para fora. Eles deviam estar numa clínica, não na UE. Não estávamos ali para cuidar de pacientes de fora. Mas, se eu desse vazão à minha ira, tinha a certeza de que a mãe se queixaria ao administrador do hospital de que eu não os atendera quando eles precisavam. O administrador comunicaria aos atendentes encarregados do departamento de ensino, e ia ser uma merda para mim. Era este o apoio com que se podia contar.

Ademais, ainda era manhã; o sol brilhante coava através das janelas, e eu me sentia muito bem. Por que estragar tudo? Por isso, em vez de ficar zangado, olhei rapidamente para as manchas e a escoriação, e receitei-lhe uns comprimidos. Mas me excusei de assinar a carteira de saúde. Eu nada podia dizer sobre uma dor nas costas com os recursos da UE; e muitas vezes eu tratava desses caras

e os via correndo de motonetas no dia seguinte.

O paciente a seguir, um bêbado chamado Morris, também era um visitante habitual da UE. Sua papeleta rezava: "Alcoolizado, escoriações múltiplas." A descrição se ajustava. Aparentemente o homem tinha rolado um lance de escadas, como de hábito. Quando entrei no quarto, ele se ergueu sobre os cotovelos com grande dificuldade, as pupilas meio cobertas pelas pálpebras, e berrou:

- Não quero um interno, quero um médico! - Era incrível como essas observações podiam penetrar nos mais tenros recessos de meu cérebro e causar tanta destruição. Aquele bêbado idiota realmente feria meus sentimentos. Ele me fazia, de novo, consciente de que muitas vezes eu tinha de recorrer aos livros em busca de uma dosagem, de que na maior parte do tempo eu vivia apavorado, de que eu tinha gasto quatro anos memorizando um milhão de fatos e de que parecia não saber nada. Com ele, não pude me conter.

- Cale a boca, seu bêbado! - gritei.

- Eu não estou bêbado!

- Mais um comentário desses e eu o atiro daqui para fora de cabeça.

- Eu não estou bêbado. Há anos que eu não bebo.

- Você está tão bêbado que nem pode manter os olhos abertos.

- Não estou. - Praticamente, ele rolou para fora da mesa de exames tentando apontar o dedo para mim.

- Você também está.

Nosso relacionamento não se fazia num nível muito elevado. Prosseguimos nesta infantil troca de palavras enquanto eu o examinava grosseiramente, chegando a vergar meu martelo neurológico ao pressioná-lo contra seus tendões de Aquiles, mas provando que ele tinha sensações táteis nas extremidades inferiores. Acabei por mandá-lo à radiologia, mais para me ver livre dele do que para radiografar os ossos por baixo de suas escoriações.

Naquela hora, já no fim da manhã, o número de pacientes que chegavam era superior aos que saíam. Como que por uma conspiração, entrou, ao mesmo tempo, um bando de bebês berrando, e que foi distribuído pelos vários quartos. Realmente, eu não gostava de tratar de bebês. Era mais ou menos o conceito que eu fazia da Medicina Veterinária - comunicação zero com o paciente. Na metade do tempo eu era obrigado a ignorar a criança e a tentar arrancar, da mãe, alguma coisa que fizesse sentido. Além do mais, eu achava quase impossível ouvir qualquer coisa com o estetoscópio no peito de um garoto de doiss anos a berrar. Os casos rotineiros eram resfriados, diarréias e vômitos - nada de grave. Parece que esses guris esperavam por mim, guardando tudo o que tinham para urinar e defecar, a fim de pôr para fora quando eu os estava examinando.

A manhã de sábado não era exceção. As crianças tinham de tudo, e usavam de suas artimanhas. O primeiro bebê apresentava uma purgação no ouvido direito há vários dias, e que a mãe achou que era devida ao Pablum, um certo produto alimentar, mas da qual começou a suspeitar quando o corrimento continuou depois de ela haver mudado a dieta da criança. Pelo estado higiênico dos dois, pensei que talvez fosse a alimentação, mas acontece que era pus. O bebê tinha uma tremenda infecção em ambos os ouvidos médios, por trás dos tímpanos. O tímpano direito havia-se perfurado, provocando o corrimento; o esquerdo ainda estava intacto, saliente devido à pressão interna. Seria indicado praticar uma pequena incisão no tímpano esquerdo para permitir a saída do pus, mas eu não sabia como fazê-lo, e quando me comuniquei com o médico particular, ele só queria que eu medicasse a criança com drogas - penicilina, como sempre, e gantrisin, uma sulfa.

Quando insisti na gravidade do tímpano esquerdo intacto ele me interrompeu, dizendo que ia examinar a criança segunda-feira pela manhã. Devidamente, escrevi a prescrição para a penicilina e o Gantrisin.

O bebé seguinte não comia há uma semana. Já era um caso de emergência. O outro estava com diarréia, mas só evacuara uma vez. Eu achava incrível que uma mãe corresse com o filho para o hospital devido a uma soltura, mas logo se aprende que nada é incrível na UE. Outras crianças estavam resfriadas, com os narizes entupidos, e um pouquinho de febre.

Para ver tudo, eu tinha que examinar todos os ouvidos e todas as gargantas. Esse trabalho, não raro, parecia mais uma luta do que Medicina. As crianças, mesmo as pequenas, são muito fortes, e embora eu sempre suplicasse às mães que segurassem os braços das crianças por sobre as cabeças durante o exame, elas invariavelmente os soltavam e o guri agarrava o otoscópio, arrancando-o do ouvido e trazendo com ele uma gota de sangue do canal auditivo. Naturalmente, isso fazia todo o mundo alegre e confiante, mas eu insistia no exame, espiando pelo pequeno orifício o interior do ouvido da criança que se debatia e gritava. Se algum deles tinha muita febre, 40 ou mais graus, eu recomendava à mãe que lhe desse banhos tépidos com uma esponja. Naquela manhã, havia dois desses casos. De um modo geral, às vezes, a LIE parecia uma clínica pediátrica. Claro que havia ocasionais emergências, mas não tão freqüentemente quanto o público pensa. A maior parte dos casos era banal, do tipo que poderia ser tratado na clínica. Quando ocorria uma coisa inusitada e horrível, toda a equipe ficava sombria e recolhia-se por várias horas. Uma manhã, uma senhora miúda, escura, entrou calmamente, carregando um bebezinho envolto num cobertor corde-rosa. No momento, nem prestei atenção a ela, ocupado que estava com um outro caso. Uma das enfermeiras pegou uma papeleta em branco e saiu com a mãe. Alguns segundos depois, ela reapareceu apressada, dizendo que eu devia ver a criança imediatamente. Quando entrei no quarto, a criança ainda se achava embrulhada no cobertor. Ao abrir e afastar o cobertor, vi um bebé azulado e enegrecido, cujo abdome tinha duas vezes o volume normal e estava duro como pedra. Eu não podia dizer com certeza há quanto tempo ele estava morto, mas calculei que há um dia. A mãe estava sentada a um canto, sem se mover. Não falamos; nada havia a dizer. Limitei-me a olhar para o bebé, anotei a papeleta, e saí.

Cerca de duas vezes por semana, alguns pais histéricos invadiam a UE com um filho preso de convulsões. Em geral a criança era muito jovem, e da primeira vez que vi uma delas quase morri de ansiedade. Esta garotinha tinha mais ou menos dois anos. Estava dobrada em duas, com os braços apertados junto ao peito; de sua boca escorriam sangue e saliva, e todo o seu corpo se sacudia com movimentos convulsivos, ritmados e sincrônicos. Como sempre, nesses casos, a criança não controlava nem as fezes nem a urina. Ainda apavorados, porém aliviados porque o médico estava ali, os pais depuseram a garotinha sobre a mesa. Como estavam muito nervosos para serem úteis, pedi-lhes que esperassem do lado de fora. Eu queria evitar que julgassem o meu modo de agir - ou minha inação - pois, realmente, eu não sabia o que fazer. Foi então que uma daquelas formidáveis enfermeiras me tirou do apuro, entregando-me uma seringa e oferecendo-se para segurar a criança enquanto eu tentava achar uma veia. De repente eu me lembrei: fenobarbital endovenoso. O problema a seguir era enfiar a agulha numa veia. Mesmo numa criança que esteja em repouso e quieta, pode ser muito difícil encontrar uma veia. Numa que está em convulsões, o caso se aproxima do impossível. Que quantidade aplicar era outro dilema, mas pensei em injetar um pouco e aguardar a reação. Por fim, penetrando numa veia, depois de várias tentativas em vão, dei um jato e, súbito, as convulsões se reduziram e depois cessaram; graças a Deus continuava a respirar forte. Depois daquela experiência, o meu terror das convulsões diminuiu um pouco, principalmente depois que aprendi a usar Valium, paraldeído e fenobarbital intramuscularmente.

Mas daquela primeira vez, poderia ter sido qualquer dos dois processos.

No que respeita às crianças, passei um susto ainda maior com um caso aparentemente rotineiro.

Serviu para reforçar meu medo de que uma situação comum podia se complicar diante de meus olhos, deixando-me desesperado. O menino tinha cerca de seis anos, era um garotinho muito esperto, fora trazido para a assustadora UE pelos pais excessivamente cuidadosos. Via-se que ele não estava passando bem, pois tinha vomitado três vezes e apresentava outros sintomas além dos do resfriado de que era portador. Para sossego dos pais, e também do menino, mediquei-o com um antimético chamado Compazine, um medicamento que eu tinha usado com sucesso centenas de vezes, após as operações. Desta vez, porém, fui apanhado por um daqueles efeitos colaterais que o fabricante da droga coloca ao pé das bulas, o tipo de episódio de que os propagandistas dos laboratórios não gostam de falar e o médico raramente vê. Dois minutos após a injeção a criança teve uma convulsão, os olhos reviraram, ela ficou incapaz de se sentar sozinha, e apresentou um tremor ritmado. Os pais ficaram apavorados, principalmente porque eu lhes dissera que o garoto não tinha nada demais. Desvairado, acalmei a criança com um pouco de fenobarbital. Enquanto o fazia, talvez devesse ter aplicado um pouco nos pais e também em mim próprio. Acabei tendo que admitir a criança no hospital. Não é preciso dizer que os pais não ficaram muito satisfeitos com o acontecido, nem eu.

Assim transcorreram as primeiras horas do sábado, uma combinação de clínica pediátrica glorificada, fábrica de suturas, e ocasionais crises de verdade. Os poucos trabalhos de sutura tinham sido rotineiros e rápidos. Meu único e desconcertante problema tinha sido aquele cara barbado, porém as horas e o tédio tinham-me embotado suficientemente de modo que o dia se tornou típico de uma monotonia generalizada pontuada de raros porém memoráveis momentos de terror e incerteza.

Na verdade, eu estava começando a gostar da rotina rápida e sem envolvimento da UE. Nenhum paciente exigia uma atenção tão profunda que me fizesse apelar para minhas verdadeiras emoções.

Eu me lembrava de como fora diferente, seis meses atrás, quando iniciei meu internato. Por exemplo, a Sra. Takura havia me cativado. Tínhamo-nos tornado amigos; sua demorada operação, durante a qual eu segurara os afastadores, sem poder sequer ver o campo operatório, tinha sido um trauma físico e emocional. Quando a operação terminou e eu fui para a praia com Jan, eu estava certo de que a Sra. Takura se recuperaria. O fato de ela estar morta quando voltei tinha sido a aniquilação final no meu desencanto com o que estava me acontecendo como interno. Eu havia amaldiçoado o sistema - as mesquinhas importunações do dia-a-dia, os afastadores, a falta de ensino, e o constante e aborrecido medo do fracasso. Eu levara muito tempo para esquecer a Sra. Takura e, finalmente, não tinha aceito o destino dela apenas para pô-lo de lado, fazendo votos para não me deixar envolver emocionalmente de novo. Ficou então mais fácil não deixar que os pacientes me impressionassem. Comecei a pensar neles em termos frios e clínicos como tantas outras hemorróidas, apêndices, ou úlceras gástricas.

Roso também fora uma provação. Ao contrário da Sra. Takura, com quem pouco tempo eu tivera de contato, meu relacionamento com ele se estendera por vários meses. Cheguei a cortar-lhe o cabelo, depois de ele ter ficado tanto tempo conosco que seu cabelo se transformara numa juba desalinhada, que chegava até o meio de suas costas. Ele não tinha dinheiro, e então ofereci-me para aparar seu cabelo, se ele quisesse. Ele ficou deliciado; empoleirado num banquinho à luz do sol que entrava pela enfermaria, ele parecia orgulhoso de estar vivo. Todos acharam que aquele era o pior corte de cabelo que já tinham visto.

Roso vivia a sorrir, mesmo quando estava passando muito mal, o que acontecia na maior parte do tempo. Com efeito, ele tinha apresentado todas as complicações sobre as quais eu já tinha lido, e algumas outras que nem constavam da literatura médica. Seus vômitos e soluços tinham persistido até que se impôs uma outra operação. Encontrei-me, então, em minha posição familiar, com ambas as mãos fechadas em torno de peças de metal, e olhando para as costas do residente-chefe durante seis horas e meia enquanto o Bilroth I de Roso era convertido num Bilroth II; seu estômago, agora, estava ligado ao intestino delgado num ponto cerca de 25cm mais baixo do que o comum.

Esperava-se que essa técnica acabasse com os problemas de Roso, pois a obstrução em seu aparelho digestivo, e que os estava causando, localizava-se bem na anastomose entre o estômago e o intestino, que tinha sido praticada na primeira operação. Porém mesmo depois desta segunda operação tudo em sua papeleta girava em torno de crises; o curso do tratamento prosseguia numa senóide. Soluços, vómitos, perda de peso, e horríveis crises hemorrágicas do trato digestivo superior me mantinham ocupado - especialmente as hemorragias. Uma semana depois do Bilroth II, Roso vomitou sangue puro, e entrou rapidamente em choque. Passei várias noites a fio com ele, irrigando continuamente seu estômago com soro fisiológico gelado, tirando a sonda naso-gástrica quando ela entupia, e tornando a enfiá-la. De certo modo, ele pendia entre nossos erros e meus enganos, e seu progresso implacável e perturbado.

Depois da hemorragia, nada entrava em seu estômago, até que eu tive a sorte de fazer com que a sonda nasogástrica passasse pela anastomose e entrasse no intestino delgado. Então eu o alimentava diretamente pelo intestino, com um alimento especial. Uma certa porção ficava ali - mas ele teve diarréia. Então, um dia, com um espirro, ele deitou fora o tubo nasogástrico. Tive de alimentá-lo durante quatro meses por meio de injeções endovenosas, equilibrando os iontes de sódio, potássio e magnésio. Ele sofreu uma infecção da ferida operatória, uma inflamação nas veias da perna, uma pneumonia, e uma infecção urinária. Depois, tomamos conhecimento de um abscesso subdiafragmático, que estava provocando os soluços; nova operação. Seja como for, ele conseguiu não só sobreviver a tudo isso como recuperar-se. Levei quatro horas para preparar o relatório de sua alta; sua papeleta pesava 2,265kg - mais de dois quilos escritos por mim mesmo, freqüentemente manchados de sangue, muco e vómitos. Quando ele deixou o hospital, fiquei feliz por vê-lo vivo e grandemente aliviado por ele ter ido embora. Mais do que tudo, tinha sido quase impossível suportar o meu relacionamento com o caso dele. Às vezes, durante as hemorragias, quando eu administrava o soro fisiológico gelado e observava sua sonda gástrica, fiquei a imaginar se eu não o tinha constituído num desafio só porque todo mundo dizia que ele não sairia daquela. Talvez até eu nem me importasse com ele, e o estava usando apenas para provar a mim mesmo que eu era capaz de cuidar de um caso difícil. Contudo, no fim, deixei de examinar minhas motivações e comecei a encarar meus pacientes como hérnias, ou seja lá o que tivessem; era infinitamente menos desgastante. A UE era um criadouro fácil. Sempre se estava demasiado ocupado, cansado ou assustado para pensar...

Onze e quarenta e cinco da manhã. Eu estava quase saindo para almoçar, quando uma jovem muito pálida, de vinte e poucos anos, entrou acompanhada de duas amiguinhas. Depois de cochichar com a enfermeira, a moça pálida seguiu com ela para uma das salas de exame. As outras duas sentaram- se nervosamente e acenderam cigarros. Enquanto eu escrevia a última frase na papeleta de um bebê e a colocava na cesta de "Encerrado", chegou-me, da sala de exames, um sotaque tipicamente novaiorquino. Impaciente por sair para almoçar, entrei apressadamente na sala para onde a enfermeira levara a moça. A papeleta indicava uma hemorragia vaginal há dois dias, e o aparecimento de coágulos naquela manhã. A moça puxou um cigarro.

- Por favor, é proibido fumar aqui, senhorita.

- Desculpe. - Cuidadosamente ela recolheu o cigarro, olhou-me e depois desviou o olhar. Era de compleição média, e vestia uma blusa de mangas curtas e uma minissaia. Com um pouco de cor no rosto, até que seria bonita. Sua conversa indicava uma educação não além do ginásio.

- Há quantos dias está sangrando?

- Três - disse ela. - Desde que fiz a curetagem.

Ambos estávamos nervosos. Imaginando se eu estaria deixando transparecer minha indecisão, procurei ficar ali, imóvel, dando a impressão de um entendido.

- Por que você fez a dilatação e a curetagem?

- Não sei. O médico disse que eu tinha que fazer, então eu fiz, está bem? - Ela procurava dissimular seu nervosismo.

- Onde foi, aqui ou em Nova York?

- Em Nova York.

- E depois você veio direto para cá?

- Sim.

Realmente, ela tinha sotaque. O fato de ter vindo tão depressa para o Havaí era um absurdo. Uma viagem de 9.600 quilómetros logo depois de uma curetagem nada tinha de um procedimento médico padrão.

- Foi feito por um profissional? - perguntei.

- Claro. O que você quer dizer por um profissional? Quem mais o praticaria?

O que fazer? Se ela tivesse abortado - e eu estava absolutamente certo disso - eu sabia que teria dificuldade para conseguir um médico particular. Lembrei-me, também, de uma fileira de garotas, na escola de Medicina, que se achavam em estado de choque devido às endotoxinas liberadas por uma curetagem malfeita. Aquilo acontecia muito depressa; os rins claudicavam e a pressão arterial desaparecia. No entanto, no momento, a pressão arterial dessa moça estava muito boa. Com efeito, ela estava funcionando muito bem em todos os sentidos, exceto pelo fato de estar bastante irritada e um pouco pálida. Fiquei a pensar se ela estava tentando seguir meus pensamentos. Ela não precisava se preocupar. Pouco me importava como havia ela chegado àquela situação, apenas como tirá-la daquele estado. Minhas chances de descobrir a causa exata de sua hemorragia eram muito pequenas. Era provável que ela tivesse de se submeter a outra curetagem. Neste caso, eu tentaria localizar um ginecologista particular, mas poucos desejariam se meter num negócio desses - por assim dizer, remendar o que outro tinha feito. De um modo ou outro, eu antevia a necessidade de um toque ginecológico, e isto era a última coisa que eu queria fazer logo antes do almoço.

A lembrança de meu primeiro exame ginecológico atravessou minha mente. Fora durante o segundo ano da escola, na cadeira de diagnóstico físico. Eu não tinha preconceitos, o que era uma sorte, pois a paciente era uma mulher bastante robusta. Viera se submeter a um checkup regular. De início, achei que meu braço não era suficientemente longo para alcançar o útero, e o cara que a examinou depois de mim dizia que havia perdido o relógio, embora o achasse mais tarde no saco em que havia jogado as luvas. Naquela ocasião, ainda não havíamos passado pela obstetrícia ou ginecologia, e enfiar a mão por dentro da mulher era muito aflitivo. Mas depois de mais ou menos uma centena de exames ginecológicos, o fato se torna uma rotina como qualquer outra. O único problema reside em encontrar a cervix - o que pode parecer absurdo, porque ela está sempre ali. Mas quando há muito sangue e coágulos, a tarefa pode ser bem difícil, principalmente se a paciente não coopera. Além do mais, não se quer machucar a paciente, remexendo tudo lá dentro. Assim, vale a pena gastar uns minutos extras, e realizar um trabalho bem-feito. Mas não antes do almoço.

- Quanto tempo você esteve grávida? - perguntei de repente à garota de Nova York.

- O quê? - Ela voltou a falar agitadamente, evidentemente surpresa. Como era importante que eu o soubesse, deixei a questão pendente, em silêncio. - Seis semanas - disse ela, por fim.

- E foi um médico, ou outra pessoa?

- Um médico em Nova York - veio a resposta, resignada.

- Muito bem, faremos, o que for possível - disse eu, e ela fez que sim com a cabeça, aliviada.

Deixando a sala, eu disse à enfermeira que preparasse a moça para o exame ginecológico. Numa questão de minutos a enfermeira tornou a aparecer para dizer que tudo estava pronto, e quando voltei, a paciente estava envolta nos lençóis, aguardando nervosamente com os pés apoiados nos estribos da mesa de exames, a saia arregaçada até a cintura. Ao me preparar para introduzir o espéculo, não pude deixar de recordar uma noite, seis meses antes, quando fui despertado por uma enfermeira dizendo que não podia cateterizar uma paciente idosa, que estava com a bexiga cheia, porque não conseguia encontrar o orifício certo. Eu tinha me levantado e me achava a meio caminho do hospital antes que tomasse consciência do ridículo da situação. Se a enfermeira não pudera localizá-lo, como o localizaria eu? Mas consegui depois de algum tempo; foi apenas uma questão de persistência.

O mesmo acontecia para encontrar a cervix, ou colo do útero. Persistência. Cercada de sangue e coágulos, que limpei o melhor que pude, de repente a cervix saltou à vista. O orifício estava fechado, e não apareceu mais sangue, quando o toquei com um estilete envolvido numa esponja.

Com grande desconforto para a moça, comprimi seu abdome, de cima para baixo, e nada saiu.

Reparei, então, numa pequena laceração que sangrava lentamente, na parte posterior da cervix. Era quase certo que o problema estava ali. Cauterizei-a com nitrato de prata, chamei um ginecologista, expliquei-lhe do que se tratava, e saí para almoçar com a deliciosa sensação de me haver realizado. Milagrosamente, ainda estava com fome.

O almoço era uma coisa rápida; quinze minutos para deglutir dois sanduíches e dois copos de leite, em meio as descuidadas piadas sobre surfe, cirurgia e sexo. Nada de sério - não havia tempo para isso. Tentei fazer alguns planos com Hastings para praticarmos surfe no dia seguinte à tarde, mais ou menos às quatro e meia. Carno comia numa mesa ao longe; a não ser quando nos víamos no hospital, raramente nos reuníamos. Falei também durante alguns minutos com Jan Stevens.

Ultimamente não a via muito, embora durante julho e agosto, no início do meu internato, tivéssemos feito uma farra que terminou num estranho passeio de fim de semana em Kauai.

O primeiro dia, sábado, tinha sido ótimo. Enchemos o carro de cervejas, frios e queijos, e fomos para o grande canhão de Kauai. No trajeto, a estrada subia e descia entre as nuvens, fazendo-nos entrar e sair de uma poeira de chuva, enquanto os campos de cultura de cana-de-açúcar passavam aos lados. O canhão era ainda mais extenso e espetacular do que eu esperara. Encontrei um abrigo para nós, e Jan transformou as vitualhas em sanduíches. Pedi-lhe que não falasse - precaução necessária, porque pelo modo com que se desenvolvera nosso relacionamento, assim se desenvolvera o desejo dela de se comunicar. A vista era maravilhosa, com a chuva, as cachoeiras e os arco-íris cintilando nos cantos dos vales alcantilados que irradiavam do canhão principal. Eu me sentia totalmente em paz.

Pelo fim da tarde tínhamos dirigido até o fim da estrada no litoral norte, bem no início da costa de Napali. Num isolado bosquezinho de evergreen, armei nossa barraca, que mais parecia uma casinha de cachorro, que tínhamos pedido emprestada, e quando o sol se preparava para se pôr no horizonte, entre flocos de nuvens, nadamos nus nas águas calmas protegidas pelos recifes. Não importava que houvesse outras pessoas acampadas à vista na outra extremidade da praia - embora me intrigasse o fato de estarem muito mais perto da água do que onde nós estávamos, no terreno mais elevado entre os pinheiros.

Um tanto semiconscientes, corremos para o carro. Vesti um jeans branco e Jan meteu-se num blusão de nylon. Mesmo uma outra refeição de frios e cerveja era incapaz de destruir o ambiente. A noite descia rapidamente, ao som das ondas que quebravam nos recifes misturado com o suave murmúrio da brisa que soprava por entre as evergreen acima de nós. As criaturas da noite iniciaram sua sinfonia fantástica, aumentando de intensidade até dominar, inclusive, o ruído das ondas. Para o poente, o céu era apenas uma mancha vermelha. Jan estava linda à meia luz, e o fato de vê-la apenas com aquele blusão de nylon parecia fantasticamente sexy. Com efeito, eu estava delirante com a sensualidade do momento.

Novamente nus, voltamos para a praia. Quando entramos nágua, a lua cheia havaiana flutuava por sobre a crista das árvores; a paisagem era tão perfeita que parecia irreal. Não agüentei esperar mais um segundo sequer. De mãos dadas, voltamos correndo para a barraca e caímos juntos sobre os cobertores. Eu queria devorá-la, fixar aquele momento em minha mente.

Lenta e reluntantemente, das profundezas deste abraço molhado, tomei conhecimento do zumbido dos mosquitos. De início, na ânsia de fazer amor, procuramos ignorá-los, mas eles começaram tanto a picar quanto a zumbir. Nenhuma paixão teria resistido àquele furioso ataque. Em terríveis segundos, toda aquela atmosfera sensual se desintegrou, terminando com a partida de Jan para o abrigo do nosso Volkswagen. Ainda vibrante de desejo, resolvi resistir a ele ali dentro da barraca a dormir todo amassado num carro feito para anões. Embrulhei-me num dos cobertores de modo a que apenas meu nariz e minha boca ficassem vulneráveis. Mesmo assim, os mosquitos me picavam tão impiedosamente que meu rosto começou a inchar e, por fim, rendi-me, caminhando penosamente até o carro, acompanhado por um enxame de mosquitos que pareciam tão insatisfeitos quanto eu.

Bati na janela e Jan sentou-se, de olhos arregalados, abrindo a porta aliviada quando me reconheceu. Entrei aos tropeções, exausto, e disse-lhe que voltasse a dormir. Depois de esmagar os mosquitos que tinham entrado comigo, de certo modo consegui dormir por baixo do volante, enrodilhado como uma bola. Dentro de mais ou menos duas horas, acordei lavado de suor. A temperatura e a umidade haviam subido aos níveis de um banho turco; a umidade era tão grande que tinha se condensado em todas as janelas. Ao abrir uma das janelas, senti uma lufada de ar fresco, e cerca de cinqüenta mosquitos entraram no carro. Assim era. Liguei o motor, disse a Jan que relaxasse e dirigi para a estrada principal voltando para Lihue, até que encontrei um local elevado com bastante vento, onde consegui dormitar até o sol sair. Meu café da manhã foi pão e queijo misturados com formigas e areia e engolido com cerveja quente, tudo tirado do capô do carro. Então acordei Jan e voltamos para a cidade.

De certo modo, depois disso, Jan e eu havíamos nos afastado. Não que eu a censurasse pelo fim de semana. Foi mais porque ela começou a me importunar, principalmente depois que começamos a dormir juntos, querendo saber se eu a amava, e por que não, e o que era que eu pensava disso. Às vezes eu a amava, de um modo que era difícil de explicar; quanto ao que eu pensava, na maior parte do tempo em que estávamos juntos, minha mente apenas divagava. De qualquer modo, eu não podia enfrentar suas perguntas. Simplesmente tinha sido conveniente deixar que tudo voltasse à situação de uma amizade casual. Mas foi bom vê-la no restaurante. Ela ainda era uma garota muito bonita.

A UE havia se transformado completamente nos quinze ou vinte minutos em que me ausentei para o almoço. Um novo grupo de pessoas ali estava esperando, e oito papeletas novas aguardavam na cestinha. Era evidente que não havia nenhum caso de urgência, ou as enfermeiras teriam me chamado imediatamente. Apenas mais casos de rotina. Um dos novos pacientes era um freguês crônico da UE, que vinha tomar sua habitual injeção de xilocaína para aplacar uma dor que tinha nas costas. Suas visitas eram tão freqüentes e previsíveis que as enfermeiras sempre tinham uma seringa cheia de xilocaína, e preparada esperando por mim na bandeja junto ao paciente. Kid Xilocaína, como nós o chamávamos, tinha desenvolvido uma certa perícia quanto ao seu estado, e estava na hora de ele brilhar, dizendo-me onde enfiar a agulha, como enfiá-la, e que quantidade injetar. Sentindo-me, até certo ponto, humilhado por este ritual, não obstante eu fazia o que ele queria; ele dava um suspiro, aparentemente aliviado, e ia embora.

Entrando a seguir na Sala B, fui cumprimentado de novo pelo meu amigo bêbado Morris, que finalmente voltara da radiologia. Jogado sobre a mesa de exames e preso por um cinto largo, Morris segurava um envelope grande cheio de chapas de raios X frescas. Ele me acolheu assim:

- Tudo o que consegui aqui foi um maldito interno. Nem sei por que ainda venho aqui.

O almoço tinha-me amolecido e, de certo modo, me tornado capaz de ignorar aquele palavrório.

Tirei as radiografias do envelope e levantei-as, uma a uma, examinando-as contra a luz da janela.

Eu não esperava encontrar nada importante, exceto no braço esquerdo, que estava muito manchado.

Ant"s, quando levantei e girei o braço, Morris havia-me gratificado com uma enxurrada de obscenidades. Algo podia estar errado ali. Continuei a examinar toda a pilha de chapas - joelho esquerdo, joelho direito, pelve, punho direito, cotovelo esquerdo, pé esquerdo - e assim por diante, sem achar nada no braço esquerdo e no ombro esquerdo. Nem ali. Nada havia a fazer senão mandar que a enfermeira levasse de novo Morris para a radiologia.

- Eles vão adorar o senhor lá, Dr. Peters - disse a enfermeira. - Ele aterrorizou o departamento durante toda a manhã, e gastou duas caixas de filme.

- Isto não me surpreende - respondi, apanhando uma pilha de papeletas novas e dirigindo-me para a Sala C.

Os bebês da tarde eram muito semelhantes aos da manhã, a maioria com resfriados e diarréia. Um teve de ser banhado, pois estava com uma temperatura de 40 graus, e outro, com cerca de quatro anos, precisava costurar um corte no queixo. Fazer uma costura numa criança é muito, muito difícil. O terror de que são possuídos por serem trazidos ao hospital, muitas vezes sangrando e com dores, apenas piora quando eles são metidos naquele dispositivo semelhante aos dos indiozinhos, para que fiquem quietos. Mas nem esse dispositivo podia imobilizar o queixo do guri; era como procurar atingir um alvo móvel. A pior parte para ele era estar debaixo daquele lençol com um buraco. Depois da picada de xilocaína, ele não sentia quase nada além da pressão e da tração. Mas mesmo assim berrava e odiava tudo aquilo. Eu também.

Numa outra sala, um homem de trinta e dois anos apresentava uma lista de queixas, começando com uma na garganta e prosseguindo por todo o corpo. O que ele queria mesmo era ser admitido como doente do hospital, e quando viu que a garganta seca não tinha me impressionado muito, seu mal passou para uma dor no lado direito do peito. Para testar sua reação, eu lhe disse por fim que o hospital já estava superlotado, ao que ele teve uma explosão de raiva, queixando-se de que quando se precisa realmente de um hospital ele está sempre cheio.

A tarde transcorreu relativamente calma. Até então eu tinha visto cerca de sessenta pacientes, média natural, não mais do que o trabalho normal. Mas a noite de sábado estava se aproximando, e isto sempre significava problemas. Dois homens idosos, com asma, entraram juntos, e as enfermeiras os colocaram em salas separadas com os aparelhos de respiração de pressão positiva. O cavalheiro na Sala C estava chiando, o esterno retraído com as inspirações quase profundas, o dorso ereto, as mãos sobre os joelhos. Perguntei-lhe se fumava. Ele respondeu que não, que não fumava há anos. Baixei-me e retirei, devagar, o maço de Camel do bolso de sua camisa. Seus olhos acompanharam minha mão até que ele viu os cigarros.

Quando ele me olhou, a expressão de seu rosto, mesmo sofrendo, era tão cômica, mas tinha tanto calor humano que eu não pude deixar de sorrir. Era como se eu tivesse pegado um garoto fazendo uma travessura. Grande parte do atrativo da unidade de emergência residia nessa prodigiosa demonstração da variedade e da loucura da humanidade.

Os velhos conhecidos continuavam a chegar. Outro paudágua bem conhecido nosso, entrou cambaleante, queixando-se de haver caído sobre uma cadeira de balanço que o deixara com uma úlcera de perna, crônica! Eu tinha visto a mesma úlcera algumas semanas antes, quando ele era um dos pacientes da enfermaria - tempo movimentado para nós todos. Apesar das rigorosas medidas de segurança, ele permanecera bêbado dias a fio, e provavelmente sua alta foi apressada quando o residente-chefe o encontrou atrás do banco de sangue com duas garrafas de Old Crow e uma das doentes. Desta vez, envolvi a úlcera com gaze, e disse-lhe que voltasse à clínica na segunda-feira.

Entre os bêbados e os bebês chorando com resfriados, chegou, sem se anunciar, uma ambulância, sem sirene e sem piscapisca vermelho. Isso queria dizer que o caso não era muito urgente. Quando a maca foi retirada, surgiu uma mulher magra de mais ou menos cinqüenta anos, vestida de trapos sujos. Acompanhei uma das enfermeiras que dizia não poder arrancar nenhuma resposta daquela paciente. E nem eu pude. A mulher apenas fitava o teto, respirando pesadamente. Apresentava um pequeno corte na testa, na linha de implantação dos cabelos, mas que nem merecia ser costurado.

Parecia estar bem consciente e, contudo, achava-se completamente imóvel. Iniciei um exame neurológico, testando primeiro as pupilas e depois os reflexos. Nada de mau. Mas quando tentei pesquisar o reflexo de Babinski, arranhando ligeiramente a pele do pé com uma chave, ela praticamente saltou até o teto, berrando que não tinha nada no pé, que era a cabeça que estava ferida, e por que estava eu mexendo em seus pés? Ela pulou da mesa de exames e saiu correndo pelo hall com uma enfermeira em sua perseguição. Por fim chamamos a administração do hospital e a polícia, que acabou carregando com ela ainda gritando que estava muito bem.

Na Sala F estava um senhor idoso cujo diurético, ou pílulas para eliminar a água, acabara e cujas pernas se achavam inchadas pelo excesso de fluido. Ele era uma daquelas pessoas que possuem um notável talento para falar continuamente, aparentemente de modo sensato mas sem dizerem nada.

Enquanto eu o examinava, expelia uma torrente de palavras. Falou de sua percepção extra-sensorial e das muitas vezes que fora capaz de usá-la, em especial para se comunicar com a esposa, que havia morrido há vários anos. Contra minha vontade parei para escutar enquanto ele descrevia como podia tomar uma garrafa dágua e destilá-la em seu próprio modelo do universo. De fato, ele achava que a Terra era uma pequena porção de uma molécula de um objeto gigantesco de outro universo em outra dimensão. Um pouco aturdido, dei-lhe uma porção de pílulas, disse-lhe para fazer repouso, e passei à próxima papeleta.

Era importante escutar o que diziam esses pacientes, apesar das loucuras e das banalidades.

Quantas vezes suas conversas sem nexo eram procedentes. Uma vez no hospital da escola de Medicina, um homem registrou-se na UE queixando-se de que havia comido vários pedaços de vidro sem o costumeiro complemento de pão. O residente e o interno levaram-no até a porta, sugerindo que ele voltasse de manhã, quando a seção de psiquiatria teria gente para atendê-lo.

Vendo que não lhe acreditavam, o homem meteu a mão no bolso do interno, retirando-a com um tubo de vidro para exames e um abaixador de língua, de madeira, e rapidamente pôs-se a mastigá-los e a engoli-los enquanto o pessoal da casa assistia paralisado sem crer no que via. Então, fizeram-no voltar para a sala de exames, sugerindo delicadamente que passasse a noite ali. Ao exame de raios X seu abdome parecia uma bolsa cheia de pedaços de bolas de gude.

- Maldito hospital! Nunca mais volto aqui. Da próxima vez vou para o Santa Maria. - Isto vinha do ubíquo Morris, enquanto era colocado sobre uma mesa de exames. Evidentemente ele ia me assombrar o dia todo, embora eu alimentasse alguma esperança ao ver que ele parecia estar segurando a radiografia do braço direito. Afinal de contas, talvez eu pudesse me livrar dele.

- Doutor, telefone para o senhor, no 84 - disse uma das enfermeiras.

Eu já estava com o fone no ouvido, escutando o sinal de ocupado da minha terceira tentativa para localizar um Dr. Wilson, do qual, um paciente entrara com uma infecção do trato urinário.

Sentindo-me frustrado, apertei o botão do 84.

- Dr. Peters.

- Doutor, meu filho está com uma terrível dor de cabeça, e não consigo encontrar o meu médico.

Não sei o que fazer.

Sua história ficou na minha cabeça, de mistura com a algazarra dos bebés chorando lá no fundo.

Não precisávamos de mais um caso para receitar aspirina, mas eu não tinha meios de dizer-lhe que não viesse. Com relutância, respondi:

- Se a senhora está convencida de que o garoto está doente, arranje um meio de trazê-lo para a unidade de emergência.

- Doutor, uma chamada no 83. - Disse para a enfermeira que segurasse a linha enquanto eu tornava a discar para o Dr. Wilson, preparando-me para outro sinal de ocupado. Em vez disso, apareceu o ruído de chamada, e o Dr. Wilson atendeu.

- Doutor Wilson, tenho aqui uma doente sua, uma Sra. Kimora.

- Sra. Kimora? Acho que não a conheço. Está certo de que é uma de minhas doentes?

- Bem, é o que ela diz, Dr. Wilson. - Era freqüente os médicos não se lembrarem dos nomes de seus clientes. Talvez uma descrição do caso dela ajudasse a sacudir sua memória, e parece que sacudiu mesmo quando eu prossegui:

- Ela tem uma infecção urinária, com ardor à micção, e sua temperatura...

- Dê-lhe um pouco de Gantrisin e mande-a ao meu consultório na segunda-feira - disse ele, interrompendo-me.

Hesitei, lutando com a vontade de desligar. Por que ele não queria ouvir sobre o caso dela? Sobre sua temperatura, seu exame de urina, seu hemograma?

- Que tal uma cultura? - perguntei.

- Certo, faça uma cultura.

- OK. - Apertei o 83 para atender à chamada que estava esperando.

- Doutor - queixou-se uma voz no outro lado da linha - acabo de ter uma evacuação com sangue.

- Havia sangue vivo no papel higiénico?

- Sim.

Decidimos que suas hemorróidas eram a causa provável de seu sangramento e que ela devia vir à unidade de emergência, apenas para consultar o seu médico na segunda-feira. Com um suspiro de alívio e muitos agradecimentos, ela desligou. A enfermeira estava segurando uma outra chamada no 83, mas isso ia continuar indefinidamente, e eu a ignorei. Em vez de atender, voltei-me para a Sra. Kimora e expliquei detalhadamente como tomar o gantrisin, que ela devia tomar duas cápsulas quatro vezes ao dia. Uma enfermeira colheu a urina para a cultura.

Agora Morris. Imóvel sobre a mesa e, aparentemente, menos bêbado do que antes, ele me recebeu com sua habitual animosidade.

- Quero sair daqui.

Pelo menos, nisso estávamos de acordo. Pegando as novas radiografias, ergui-as contra a luz e vi de imediato, com grande desapontamento, que ele apresentava uma fratura bem definida entre o cotovelo e o ombro, bem no meio, como se houvesse sofrido um golpe de caratê. Ele ia ficar conosco por mais tempo.

- Sr. Morris, o senhor está com o braço quebrado. - Olhei austeramente para ele.

- Não estou - revidou ele. - Você não sabe o que está fazendo.

Querendo evitar mais uma série de você-faz-eu-não-faço, afastei-me e escrevi rapidamente uma ordem encaminhando Morris para o residente da ortopedia. A enfermeira falou com a telefonista e pediu que chamasse o residente pelo sistema de alto-falantes.

Pelo meio da tarde, eu mal tomava conhecimento da multidão. Mais ou menos às 4 horas fomos ligeiramente sobrecarregados por um bando de surfistas com lacerações na cabeça, dedos cortados e profundos talhos causados pelos corais. O surfe estava no auge! Pelos cantos, os bebés pareciam não mais acabar de chorar, com suas febres, diarreias e vómitos. Eu costurava como um doido, mandando gente para o raios X, e procurava desesperadamente examinar os ouvidos de crianças que em nada cooperavam. Uma mãe entrou desvairada, dizendo que seu bebé havia caído numa lixeira do terceiro andar cheia de lixo. Tive vontade de perguntar como exatamente acontecera aquilo. Mas, em vez de fazer perguntas, examinei a criança, e removi rodelas de cebolas de seus ouvidos, e grumos de café de seu cabelo. Espantosamente, ela estava intata. Mas enviei-a ao raios X porque seu braço direito parecia estar um pouco mole, e aconteceu que ela estava com uma pequena fratura do braço úmero direito - o mínimo que se podia esperar depois de cair três andares num monte de lixo.

Enquanto isso, as radiografias iam-se empilhando, chapas de todos os tipos, desde crânios até pés.

Eu era o primeiro a admitir que não era muito bom para interpretar aquelas coisas. Mas aquele era o sistema - o interno interpretava as radiografias à noite e nos fins de semana. Não fazia qualquer diferença que estivéssemos mal treinados para aquele serviço; tínhamos de fazê-lo o melhor que podíamos. Conhecendo a minha falta de qualificações, sempre temia deixar passar algo importante, principalmente depois da humilhante experiência que tive com o artelho. O incidente tinha ocorrido numa outra noite de sábado, quando uma moça entrou coxeando, amparada pelo braço de seu namorado. Ela havia dado uma topada com o dedo do pé. Quando a mandei para fazer uma radiografia, seu namorado a acompanhou. Cerca de uma hora mais tarde, em meio ao pandemônio, olhei as radiografias, principalmente os metatarsianos, e lhes disse que, aparentemente, tudo estava bem e ... o amiguinho da jovem me interrompeu calmamente para observar que quando viu a chapa achou que havia uma fratura. Eu fiz uma pausa e engoli em seco. - Achou? - De volta ao negatoscópio*, ele apontou para uma linha no meio da falange do terceiro artelho, definitivamente suspeita, que podia ser - e com efeito era - uma fratura. E assim decorre o treinamento em serviço!

Morris estava agora devidamente guardado na sala da ortopedia, de onde não podia ser ouvido. O residente da ortopedia tinha atendido ao chamado, examinara Morris e sua resma de radiografias, e desaparecera depois de tentar em vão se comunicar com o assistente da equipe de ortopedia. Morris ia ficar na sala de ortopedia até que o assistente fosse localizado. Assim, Morris era um albatroz que ainda devia ser carregado, mas não dependia mais de mim. Eu o esqueci.

Por volta das cinco e meia começaram a pingar as lesões de pescoço. Isto era de praxe toda a vez que o tráfego ficava pesado e os carros começavam a se empilhar uns sobre os outros nas estradas.

Qualquer um que se queixasse de um traumatismo no pescoço precisava de uma cuidadosa palpação, um completo exame neurológico, e uma radiografia da coluna cervical antes que se chamasse seu médico. Todas essas radiografias pareciam terrivelmente iguais, e quando eu prendia uma delas no gigantesco negatoscópio, no meio da UE, sentia-me tão vulneravelmente transparente quanto o próprio negativo. Além disso, os pacientes estavam sempre ali, espiando por cima do meu ombro, ansiosamente, enquanto eu lia suas chapas. Eu só esperava que ficassem impressionados com a minha magia em tirar tanta coisa daquelas fotografias de ossos e tecidos manchadas de preto, branco e cinza. Era mais por pena deles que eu, em geral, fingia uma análise completa, demorando-me um pouco mais do que o necessário em algumas partes do negativo. Na verdade, qualquer coisa que eu pudesse diagnosticar tinha que estar muito longe do normal ou claramente partida em duas, o que levava cerca de dez segundos para determinar. Tudo o mais era um golpe de sorte. Mas não se podia decepcionar a turma da casa, e assim eu olhava sabiamente para os negativos, murmurando comigo mesmo e tomando notas, enquanto o paciente se remexia inquieto, esperando pelo pior

 

* Aparelho dotado de iluminação especial para perfeita observação dos negativos ou chapas radiográficas. (N. do T)

 

Quando o relógio se aproximou das seis horas, nosso movimento decaiu bastante, dando-me uma curta trégua. Cheguei mesmo a me adiantar um pouco, e depois de retirar um grande anzol de um homem de meia-idade, não havia mais ninguém esperando. De repente, a UE ficou em paz, lá fora, o sol dourado da tarde lançava longas sombras cor violeta através do parque de estacionamento.

Era a calmaria que antecede às tempestades, um armistício temporário entre as batalhas.

Sentindo-me cansado e isolado - surpreendentemente isolado com tanta gente em redor - encaminhei-me a passo para o jantar. No caminho passei por algumas pessoas que aguardavam condução para casa. As que tinham vindo da UE cumprimentaram com um aceno de cabeça e sorriram; retribuí o sorriso, satisfeito por aquele segundo encontro e esperando que tivesse feito tudo certo por eles. O relacionamento com os pacientes fora do hospital fazia todos nós parecermos mais reais e nos aliviava um pouco do medo que nos perseguia, quando esperávamos um desastre a qualquer momento do relógio.

Sentar-me foi uma experiência deliciosa. Estiquei as pernas por baixo da mesa e coloquei os pés em cima da cadeira oposta. Joyce chegou e sentou-se junto a mim, o que foi agradável, embora não tivéssemos muito o que falar. Ela estava cheia de mexericos do laboratório e de hemogramas, o que ameaçava me dar uma indigestão; nem eu desejava discutir os casos da UE. Comi rapidamente, sabendo que cada dentada podia ser a última por aquela noite. Pelo menos aquela parte dos programas de televisão sobre medicina está certíssima. Acabamos falando sobre surfe com outro interno, chamado Joe Burnett, de Idaho.

Todo interno precisa de uma saída, de uma válvula de segurança; a minha era o surfe.

Proporcionava o perfeito alheamento, a fuga perfeita. Não apenas o ambiente diferia nos sons, no cenário, nas sensações; no alto de uma onda decente, lutando e se concentrando para chegar à praia, nenhum outro pensamento era possível. À medida que os meses passavam e crescia minha dedicação ao surfe, comecei a compreender por que as pessoas seguem o sol em busca da onda perfeita. Suponho que seja mais saudável do que as drogas e o álcool, mas sua garra é igualmente forte, e um movimento em falso pode matá-lo. O Havaí não faz muita publicidade deste último fato.

Mas não se incomode com isso. Mesmo que as ondas não sejam boas, há beleza por todos os lados.

E quem dizer? A qualquer minuto pode se erguer uma onda para desafiar você. O surfe é único, basicamente diferente de qualquer outro esporte, embora se assemelhe ligeiramente ao esqui na neve. A diferença está em que, quando se esquia, a montanha fica firme; numa onda, tudo se move - você, a montanha, a prancha, o ar à sua volta - e quando se cai da prancha dentro de uma onda grande, não se pode dizer para onde se vai. Tudo o que se sabe é que não se devia estar ali. Assim Joe e eu falávamos sobre surfe, descrevendo com excitação pequenos episódios, gesticulando com as mãos e os pés, contando como as ondas se dobravam, ou como ficávamos presos nelas, ou delas éramos expelidos, enfim, tudo. E eu esquecia a UE.

Curiosamente, o surfe não é um esporte sociável, a não ser quando se está fora dágua, falando sobre ele. Ali, em cima de sua prancha, você mal pode falar. Você faz parte de um grupo de pessoas destacadas que se mantêm unidas por um elo dágua, mas você ignora os outros, a não ser quando alguém entra na sua onda. Cada onda que você pega é, de certo modo sua onda, mesmo que você não esteja praticando o surfe sozinho. Sempre se vai com alguém, mas não se fala.

O telefone tocou para mim e tive de interromper a conversa com Joe; a UE estava começando a ficar agitada. Já não estava mais em paz quando eu cheguei. Durante a minha ausência de trinta minutos, tinham entrado mais bebés chorando, com as queixas habituais. Uma garota de dez anos queixava-se de cólicas. Perguntei-lhe se tinha tido alguma melhora com a aspirina. Ela ainda não havia experimentado aspirina. Dei-lhe dois comprimidos. Outra cura milagrosa digna de quatro anos de escola de Medicina. E os resfriados. Havia um grupo de pessoas com os velhos resfriados comuns - nariz escorrendo, garganta irritada, tosse, o habitual. Por que tinham recorrido à EU estava além de minha compreensão. Mesmo tendo tomado o meu terceiro fôlego após o jantar, qualquer graça que as situações apresentassem me passava despercebida. Havia gente esperando para ser costurada, e eu tinha de ver aqueles narizes escorrendo.

Uma das suturas foi um pouco fora do comum. Uma mulher tinha decepado a ponta do dedo indicador com uma faca de trinchar carne. Ela apanhara o pedacinho com muita rapidez, e depois de eu embebê-lo em soro durante algum tempo, coloquei-o no lugar e suturei com seda muito fina.

Tudo isso foi feito enquanto o médico particular me dava explícitas instruções pelo telefone. Teria eu esperado seriamente que ele próprio viesse fazer o trabalho?

Numa das salas de trás estava um homem idoso com uma lombalgia e incapaz de reter a urina. Este último sintoma era evidente pelo cheiro da sala, que quase me sufocava enquanto eu examinava o homem aos poucos, saindo para o vestíbulo de tempos em tempos a fim de respirar ar fresco. Os cheiros ruins sempre foram minha bete noire. Achei que ele talvez pudesse ser admitido no hospital, desde que tinha uma infecção urinária e não podia cuidar de si mesmo. No entanto, o primeiro assistente que eu chamei conhecia-o e não o quis como paciente. Disse-me que procurasse outro médico. Parece que o velho era um paciente notoriamente ruim, famoso por deixar o hospital sem ter alta, e sempre voltando nos fins de semana ou no meio da noite. O médico que se seguiu recusou-se também, e sugeriu outro. Por fim, depois de chamar cinco médicos, consegui que um concordasse em tê-lo como paciente, mas quando as enfermeiras estavam preparando a admissão do homem descobriram que ele era um veterano. Todos os meus esforços ao telefone saíram pela janela; agora tínhamos que enviá-lo para um hospital militar.

Ao passar pela entrada para ver outro doente, quase esbarrei numa jovem de cerca de vinte anos, agarrada a um poodle e empurrada por um homem não muito mais velho do que ela. Ela berrava que não queria falar com diabo de médico nenhum. Achei isso ótimo; continuei para o quarto aonde eu ia. Mas, no fim, de qualquer modo eu tinha de vê-la, e quando o fiz ela não disse uma palavra; teria sido mais fácil me comunicar com o poodle, que ela ainda apertava contra si. Resolvi deixá-la sentar-se um pouco, mas foi um equívoco, porque depois de alguns minutos ela saiu em disparada pelo vestíbulo e desapareceu. Eu estava por demais atarefado para me preocupar muito com aquilo - até que o psiquiatra da família chegou, pouco depois, com os pais da moça. Parece que o hospital chamara a polícia quando a moça foi encontrada no jardim, arrancando as flores. Fiquei um pouco surpreso ao ver o psiquiatra - sempre tinha muita dificuldade em conseguir que algum deles viesse nos fins de semana ou depois das 4 horas da tarde. E eu podia contar com dois ou três casos de psiquiatria na noite de sábado, má ocasião para eles. Como jamais conseguia que aparecesse um psiquiatra, limitava-me a fazer o que podia para acalmar os pacientes e pô-los confortáveis; mas um sedativo leve e boas palavras não adiantavam muito para eles.

- Doutor, 84 - falou-me uma enfermeira lá do balcão principal. Peguei o telefone do lado de fora da Sala B e apertei o botão 84.

- Peters, aqui é Sterlímg. - Sterling era o residente da ortopedia. - Finalmente consegui falar com o Dr. Andrews, que está chefiando a equipe de ortopedia este mês, e ele acha que um aparelho de gesso pendente servirá para Morris.

Seguiu-se uma pausa. Comecei a traçar círculos entrelaçados no bloco de papel que ficava junto ao telefone. Aquele patife do Sterling não pretendia vir para colocar o aparelho, qualquer que fosse aquela porcaria.

- Por que você não coloca, Peters? E se tiver algum problema me comunique, OK?

- Tenho aqui cerca de oito pacientes que ainda nem vi.

- Bem, se ele tiver que esperar muito, telefone-me.

- Pelo amor de Deus, Sterling, ele está aqui desde as dez horas da manhã. Você não acha que isto é muito? Quero dizer, nove horas?

- Ah, está bem. Dê-lhe uma chance para sair da bebedeira. Discutir com Sterling exigia mais esforço mental do que eu queria empregar e, além disso, ia contra minha determinação de manter minha distância, de não me deixar humilhar.

- OK, OK colocarei assim que puder. - Desliguei o telefone, delineando mentalmente a próxima meia hora.

- Enfermeira, mande a atendente levar algumas ataduras gessadas e um pouco de água quente para a sala de ortopedia.

- Qual o tamanho das ataduras, doutor?

- De cinco e sete e meio centímetros, quatro rolos de cada. Assumindo o ar mais despreocupado possível, fui para o quarto dos médicos e esquadrinhei as estantes em busca de um livro sobre ortopedia. Felizmente achei um, e fui rapidamente para o índice. Ali estava - aparelho de gesso, pendente, vide pág. 138, que era uma discussão de fissuras e fraturas da extremidade proximal do úmero, justamente o que eu estava procurando. Apesar de minha apreensão por ser lançado numa outra tarefa estranha, fiquei impressionado com a engenhosidade do aparelho pendente que realizava, com efeito, seu trabalho por uma espécie de tração. Em vez de engessar todo o braço e ombro do paciente, o aparelho era colocado em torno da área logo acima e abaixo do cotovelo, onde seu peso fazia uma tração para baixo sobre o osso fraturado, facilitando o seu alinhamento e redução da fratura. O braço era então puxado para junto do corpo, enfaixando-se o aparelho junto ao peito; isso mantinha o braço imóvel mas permitia o movimento do ombro. Espantoso. Uma enfermeira enfiou a cabeça pela porta.

- Doutor, há nove pacientes esperando.

Eu sabia que as enfermeiras me chamariam se surgisse uma emergência de verdade; agora era hora de me livrar de Morris de uma vez por todas. Depois de recolocar o livro na estante, dirigi-me para a sala de ortopedia, um tanto melhor preparado para fazer um aparelho pendente do que estava há cinco minutos. Ao entrar na sala, tornou-se evidente por que tinha sido fácil esquecer Morris na hora que passara. Ele estava deitado na mesa de exames, dormindo, ressonando levemente, mantido por uma larga correia de couro. Nem acordou quando acionei a manivela da cama e o coloquei na posição sentada, segurando sua cabeça para impedi-la de cair. Maldito Sterling, aquilo era serviço para ele. Enquanto ele falava ao telefone comigo, eu ouvia o som da televisão no fundo. Depois de cortar a manga esquerda da camisa de Morris até o ombro, modelei um pedaço de meia para servir de forro ao aparelho de gesso, e vesti-o pelo seu braço, com cuidado para não perturbar a fratura.

- Doutor, há uma chamada no 83.

Nem respondi à enfermeira, esperando que, fosse o que fosse, se resolveria por si mesmo.

- Ooooh! - Morris tornou a si quando coloquei seu braço em posição para o aparelho. - Que é que você está fazendo comigo?

- Sr. Morris, o senhor quebrou o braço quando caiu na escada, e estou botando um aparelho de gesso nele.

- Mas eu não...

- Quebrou, sim! Agora fique calado. - Eu esperava que Sterling me pedisse um favor algum dia.

Depois de embeber os rolos de gaze na água, o tempo suficiente para não fazerem mais bolhas, comecei a enrolá-los em torno do braço de Morris, fazendo o aparelho, camada sobre camada. Fi-lo bastante grande, com quase uma polegada de espessura. Já que ele funcionava por seu peso, o que estava fazendo ia funcionar muito bem.

- Agora fique onde está, Sr. Morris. Não se mexa. Espere secar.

Chegando à parte principal da UE, peguei o 83, mas não havia ninguém na linha. Boa estratégia.

Eram apenas sete e meia; eu já tinha onze pacientes esperando, e sabia que ia ficar pior. Apanhando um punhado de papeletas, saí, olhando de relance para a que estava em cima: "Erupção da pele."

Os problemas de pele sempre formavam um vazio em minha mente, por mais que tivesse lido e relido as descrições das erupções pápulo-escamosas, eritematosas, pruriginosas e vesículas. As palavras perdiam todo o sentido, contorcendo-se em minha memória de modo que se eu visse um paciente com qualquer outra coisa que não acne ou queimadura por hera eu estava perdido. E na minha frente achava-se um homem com uma erupção pruriginosa, eczematosa e eritematosa.

Eu sabia o que era, pois um dermatologista havia usado aquelas palavras para descrever minha queimadura de sol, depois de uma semana de Páscoa passada em Miami, ainda quando eu estava na escola de Medicina. Isso significava que coçava, dessorava um líquido e era vermelha, mas os cientistas preferiam aquele complicado jargão científico. De fato, a dermatologia é o único ramo da Medicina que ainda usa muito o latim - num certo sentido, muito adequado, já que eu não podia ver nenhum avanço daquela ciência desde os tempos da alquimia. Embora a terminologia e o diagnóstico das doenças da pele fossem difíceis, o tratamento era a própria simplicidade. Se a lesão era úmida, usava-se um agente secante; se era seca, mantinha-se molhada. Se o doente melhorasse, continuava-se com o que se estava fazendo; do contrário, tentava-se outra coisa, e assim ad infinitum.

O paciente que estava diante de mim era um homem magro pálido, cabelos escuros, emaranhados e despenteados. Olhando para suas mãos e seus braços, eu só podia pensar no quão pouco eu sabia de dermatologia. Ele não tinha médico particular, o que queria dizer que eu teria de chamar um, e fiquei a pensar no que diria sem parecer um idiota.

Notei que também as palmas das mãos estavam lesadas, e dentro de minha mente soaram uns sinos muito distantes. Só umas poucas doenças da pele ocorrem nas palmas das mãos. A sífilis é uma delas. Hum. Eu estava tão entretido com meus próprios pensamentos, que mal ouvi o paciente quando disse que tinha uma neurodermatite e precisava de tranqüilizantes. Eu ainda estava procurando me lembrar da lista exata daquelas doenças que ocorrem nas palmas das mãos, quando suas palavras marcaram um ponto no meu consciente. Neurodermatite. Com a prática, eu tinha desenvolvido a habilidade de não demonstrar surpresa ou gratidão quando se apresentavam esses presentes de diagnóstico, e continuei a examinar seus braços com ares de entendido, até passar o tempo suficiente. Senti que meus conhecimentos de dermatologia igualavam aos dele, ao calcular corretamente que ele tomava Libnum. Ele ficou agradecido quando lhe dei um pouco mais.

À medida que a tarde se fundia com a noite, meus passos se tornavam forçados e lentos, e meus receios cresciam, criando em minha imaginação uma série de casos desesperados, que aguardavam para cair em cima de mim. Não havia uma trégua na contínua enxurrada de pacientes, o que sempre me deixava atrasado com relação a cinco ou seis doentes. Minhas suturas tornaram-se mais rápidas, numa combinação de necessidade e perda de interesse. Toda vez que eu começava uma costura, as pessoas que esperavam se amontoavam, e eu tinha de agir rápido, dispensando o afrontamento das bordas e outras fantasias. Não que eu trabalhasse a esmo, apenas com menos cuidado, e talvez me satisfazendo mais facilmente. Como, por exemplo, com o homem que tinha um corte com um retalho no braço. Durante o dia provavelmente eu teria excisado o retalho e feito a sutura como se fosse um corte linear. Agora eu limitara-me a costurar tudo junto, fazendo votos pelo melhor.

Na sala de otorrinolaringologia, sentado sobre a mesa de exames, com ar infeliz, estava um garoto de quatro anos. Junto dele achava-se o avô. Quando entrei, o guri começou a choramingar, estendendo os braços para o avô, que o segurou enquanto eu lia a papeleta. Dizia: "Corpo estranho, ouvido direito." Depois de falar calmamente com o garoto por alguns minutos, convenci-o a deixar que eu examinasse seu ouvido. Lá no fundo do canal vi algo preto; parecia uma passa ou uma pedrinha.

Como o avô não conhecia nenhum otorrino, escolhi um na lista dos médicos, um Dr. Cushing, e telefonei para ele.

- Dr. Cushing, aqui fala o Dr. Peters na UE. Estou aqui com um garoto de quatro anos, que tem um corpo estranho no ouvido.

- Qual é o nome da família, Peters?

- Williams. O nome do pai é Harold Williams.

- Eles têm seguro de saúde?

- O quê?

- Eles têm seguro de saúde?

- Não tenho a menor idéia.

- Então procure saber, meu rapaz.

Que cena, pensei, retornando à sala de otorrino. Com uma dúzia de pessoas esperando, tenho de descobrir um seguro de saúde. Não, disse o avô, eles não tinham seguro.

- Não, não estão segurados, Dr. Cushing.

- Então veja se algum dos adultos está empregado.

Tornei a voltar para a sala de otorrino a fim de interrogar o preocupado avô. Na verdade, eu sabia que era mais fácil colher essa informação do que chamar uma dúzia ou mais de médicos até encontrar um que não estivesse tão interessado em ser pago; mas do mesmo modo me parecia grosseiro e desumano.

- Ambos os pais estão empregados, Dr. Cushing.

- Ótimo. Agora, qual é o problema?

- O pequeno David Williams tem um corpo estranho no ouvido, alguma coisa preta.

- Você é capaz de tirá-la, Peters?

- Acho que sim. Posso tentar.

- Bom. Mande-os ao meu consultório na segunda-feira, e me telefone se surgir algum problema.

- Ah, Dr. Cushing.

- O que é?

- Esta manhã tive aqui uma garotinha com infecção em ambos ouvidos médios. - Lembrei-me de repente da criança do Pablum. - Um dos tímpanos estava perfurado, e o outro bem saliente. Eu devia tê-lo drenado?

- Sim, provavelmente.

- Como se faz isso?

- Usa-se um instrumento especial chamado bisturi para miringotomia. Basta fazer uma pequena incisão na parte ínferoposterior do tímpano. É muito simples, e o doente sente um alívio imediato.

- Obrigado, Dr. Cushing.

- Não há de que, Peters.

Obrigado por nada, Dr. Cushing. Depois de todo aquele absurdo, eu mesmo tinha que me ajeitar com o corpo estranho. Quanto à incisão do tímpano, resolvi que devia me considerar instruído sobre como proceder.

De volta à sala de otorrino, imobilizei o garoto, e penetrei em seu ouvido, tentando pegar o objeto preto. Quando puxei a pinça, ele veio aos pedaços, e quando olhei para o que tinha saído, mal pude acreditar no que meus olhos viam. Era a perna posterior de uma barata. O camaradinha soluçava enquanto eu tirava a barata pedaço por pedaço, com pena do garoto e desejando acabar de vez com aquilo, quase vomitando de nojo. Os últimos pedaços saíram com uma seringada. O choro do guri pouco a pouco foi diminuindo, e limpei o ouvido com um desinfetante. Ele parecia muito bem, mas eu estava quase desmaiando.

Durante toda a última parte do processo, uma enfermeira ficara se remexendo atrás de mim. Ela me informou, um tanto friamente, que Morris ainda estava esperando na sala de ortopedia. Às vezes, aquelas enfermeiras me aborreciam mortalmente, em particular à noite. Contudo, eu me sentia um pouco culpado quanto a Morris, porque agora já fazia doze horas que ele estava conosco, e eu achava que minha culpa se somava à animosidade para com a enfermeira. Mergulhado num sono profundo, Morris não podia ter-se importado menos. Seu aparelho estava bem seco. Infelizmente, eu tinha de acordá-lo para prender o aparelho ao seu corpo com uma atadura Ace e, ao fazê-lo provoquei mais alguns xingamentos, que não me pareceram muito à altura do padrão de Morris. O que me preocupava um bocado era se Morris seria capaz de mexer o ombro, com o braço esquerdo bem fixado ao peito.

Mas eu estava fazendo tudo conforme o livro, e eu me veria em apuros com a clínica na segunda-feira, se algo saísse errado. Voltando para a parte principal da UE, disse à inquieta enfermeira que Morris podia ir para casa, se ela pudesse encontrar um tempinho para lhe aplicar uma injeção antitetânica, entre as folgas para o café.

Por volta das dez horas, o lugar estava realmente animado, cheio de todos os tipos de doenças corporais. Com o aumento da clientela, eu já me achava ligeiramente atrasado, talvez com umas doze papeletas. De pé, calmamente, no meio da principal sala de espera, estava uma mulher que queria que eu examinasse um pequeno ferimento perfurante na ponte do nariz, produzido cerca de oito horas antes por uma tesoura de podar. Seu nome era Josephs. Não sei por que a Sra. Josephs havia esperado tanto mas, em todo caso, seu médico tinha-a enviado à UE para fazer uma injeção antitetânica. Contudo, o toxóide tetânico apenas ajuda o corpo a desenvolver a imunidade; além disso, age muito devagar. Parecia prudente suplementar a injeção tetânica com anticorpos pré-fabricados para uma proteção temporária, principalmente num ferimento, que já tinha oito horas.

Havíamos recebido uma nova remessa de um soro anticorpo humano muito bom chamado Hypertet, mas eu não podia aplicá-lo na Sra. Josephs sem primeiro falar com seu médico, um Dr. Sung, muito conhecido por sua língua viperina e sua medicina antiquada. Disquei, alarmado, o número dele.

- Dr. Sung, aqui é o Dr. Peters na UE. A Sra. Josephs está aqui, e quero dar-lhe uma injeção antitetânica, mas acho que ela devia tomar qualquer coisa para protegê-la até que a injeção faça efeito.

- Sim, você está certo, Peters. Faça uma dose de antitoxina de cavalo, e rápido, por favor. Não quero que ela espere.

- Temos uma globulina tétano-imunizante humana muito boa chamada Hypertet, Dr. Sung. Não seria melhor do que o soro de cavalo? Age muito mais depressa, e ademais. . .

- Não discuta comigo, Peters. Você não sabe nada. Se eu quisesse o Hypertet, eu mandaria aplicá-lo.

- Mas, Dr. Sung, se eu usar o soro de cavalo, há possibilidade de uma reação alérgica, e terei que fazer um teste de pele. Tudo isso leva tempo.

- Bem, que diabo, para que é que você está sendo pago? Faça o que eu digo.

O súbito ruído de desligar feriu meus ouvidos. Muito bem, foda-se. O velho Dr. Sung praticava uma Medicina muito ruim, e um dia ia arrepender-se. Por que haveria eu de me aborrecer?

Contudo, era uma pena para o Hypertet, que já vinha muito bem acondicionado e pronto para a injeção. Eu apostava dez contra um como o velho bastardo nunca ouvira falar dele. Então era para isso que nós éramos pagos, pensava eu, trabalhando carrancudo, seguindo uma série de instruções para o teste de sensibilidade ao lado do vidro de soro cavalar, enquanto quinze pessoas esperavam lá fora.

Mas não fui muito longe com o soro de cavalo. O som de uma sirene, a distância, fez voltar o velho medo. Horrorizado e sem poder crer, vi chegarem três ambulâncias ao mesmo tempo, e as equipagens saltarem, tirando de dentro uma porção de gente, todos vítimas do mesmo desastre de automóvel, colocando-os na sala onde outros já estavam esperando. Um corpo amassado teria sido terrível, cinco era simplesmente opressivo. Enquanto as enfermeiras subiam as escadas para pedir auxílio ao pessoal da casa, procurei fazer alguma coisa, qualquer coisa, antes que a situação me imobilizasse. Um dos pacientes era um rapaz com um dos lados da cabeça esmagado. Sua respiração era muito estertorosa; às vezes parava, para se reiniciar segundos após. Iniciei um soro endovenoso, de que talvez ele não precisasse de imediato. Mas ia acabar precisando, e ocupei-me em aplicá-lo e em retirar um pouco de sangue para determinar o tipo. A seguir veio a inserção de um tubo endotraqueal, opção automática. Normalmente um trabalho muito difícil para mim, desta vez foi fácil porque a mandíbula do rapaz achava-se tão quebrada que eu podia afastá-la da face.

Depois de proceder à aspiração da boca e da garganta, retirando pedaços de osso e um bocado de sangue, coloquei o tubo para ele respirar. Surpreendentemente, sua pressão arterial estava boa. Eu queria ficar junto ao rapaz, embora não houvesse nada mais que eu pudesse fazer por ele, mas por toda parte havia outros pacientes clamando por socorro - e, de qualquer modo, um neurocirurgião já estava a caminho. Mais tarde eu soube que o rapaz tinha morrido alguns minutos depois de eu ter saído da cirurgia. Fiquei um pouco chocado, até que racionalizei que ele já se achava virtualmente morto quando eu o pegara.

Agora, depois de todos aqueles meses, era-me mais fácil não me deixar emocionar por caso algum.

Outros problemas aguardavam, exigindo atenção. Por exemplo, a mulher no quarto ao lado - também estava em estado crítico. Uma enorme área de pele e cabelos, que ia da orelha esquerda ao alto da cabeça, podia ser levantada, revelando uma rede de múltiplas fraturas do crânio, como um ovo cozido batido e pronto para ser descascado. A pupila do lado esquerdo estava muito dilatada.

Por onde começar? Enquanto eu olhava para o crânio, ela de repente vomitou cerca de meio litro de sangue, que bateu na mesa e salpicou sobre minhas calças e meus sapatos. Graças a Deus pelo soro endovenoso, que ordenou meus pensamentos caóticos. Rapidamente aproveitei-me daquilo, mandando ao mesmo tempo uma amostra de sangue para determinação do tipo e pedindo sangue para transfusão. Já que ela havia vomitado sangue, achei que podíamos precisar de oito unidades em vez das habituais quatro, embora sua pressão arterial estivesse espantosamente forte. Este fato de uma pressão arterial aceitável, e até normal, em face de uma evidente falência orgânica, tinha começado a me intrigar. Todos os livros citavam a pressão arterial como o principal e mais fidedigno indicador da função sistêmica geral, porém a maioria de minhas experiências parecia estar contrariando aquela regra. Seja como for, palpei o abdome da mulher, procurando descobrir de onde podia ter vindo aquele sangue.

Bem naquele instante, uma enfermeira chamou-me com urgência para outra sala, onde um homem mal respirava e, pensava ela, estava com convulsões. Aparentemente atingido no estômago, imaginei que ele tinha sido um dos motoristas. A enfermeira me entregou um pouco de amobarbital para cessar a convulsão mas, antes de aplicá-lo, vi que, em vez de convulsões, ele estava com o que alguns chamam "ânsias de vômito". Ele também vomitou um pouco, mas não sangue, e sim algo cheirando a álcool azedo, que também borrifou meus sapatos. Quando o Dr. Sung telefonou, em meio àquela confusão, querendo saber se eu já havia aplicado o soro de cavalo, fiquei tentado a descarregar em cima dele, mas limitei-me a dizer que não, que estávamos muito ocupados.

Uma motocicleta também se envolvera no mesmo acidente. O motociclista fora virtualmente esfolado vivo. Ele apresentava escoriações por todo corpo, exceto a cabeça. Era um dos poucos que usavam capacete. Todo fim de semana tinha sua quota de motociclistas descuidados mortos.

Quanto ao retalhamento nada havia que os igualasse - com efeito, ficavam tão ruins que corria uma anedota sobre o paciente que chegara ao hospital em várias ambulâncias. Escoriações, fraturas e lacerações generalizadas era uma descrição melhor para este caso. Se esses caras pudessem falar, insistiriam com firmeza que a motocicleta não era tão perigosa, porque se é lançado fora quando se sofre um acidente. Mas ser jogado fora a 96km por hora, sobre o concreto, de cabeça, e depois ser atropelado, não nos deixava muito com que trabalhar. Este não estava apenas totalmente esfolado; a parte inferior de sua perna esquerda estava também esmagada. Os dois ossos pendiam do lado de fora num ângulo de quarenta e cinco graus, com o pé preso apenas por alguns fios de tendão. Calças, meias, pedaços do tênis e de asfalto achavam-se comprimidos dentro do ferimento.

Espantosamente, ele estava consciente, embora atordoado.

- Está sentindo alguma dor?

- Não, dor não. Mas tenho qualquer coisa me incomodando no olho direito.

Por Deus, com todas aquelas lesões ele estava preocupado com um cisco no olho. Retirei-o. Sua pressão estava boa, o pulso um pouco alto a 120. Comecei um soro endovenoso e mandei sangue para determinar o tipo, pedindo arbitrariamente cinco unidades para ficarem à disposição.

Aparentemente ele não precisava já de sangue, mas era evidente que ia enfrentar uma cirurgia óssea. Com uma pinça procurei parar o pouco de sangue que escorria dos músculos da perna, e que estavam à vista. Era de admirar como ele sangrava pouco.

Retornei para junto da mulher que tinha vomitado sangue e fiquei aliviado ao ver que sua pressão continuava boa. Talvez ela tivesse apenas engolido o sangue, raciocinei; afinal de contas, ela sangrava por ambas as narinas. Vinte minutos haviam-se passado desde que a ambulância chegara, e agora achava-se ali mais gente da equipe do hospital, ajudando a estabilizar os pacientes. Fiz descer o raio X e tiramos uma porção de radiografias de cabeças, costelas e outros ossos. É impossível descrever o tumulto daquele momento. O caos era total, com os resfriados, diarréias, bebês e asmáticos misturados com os ossos quebrados e as cabeças amassadas. Tampouco as coisas melhoraram quando chegaram os assistentes e começaram a distribuir os pedidos de cada um. Finalmente, a unidade cirúrgica, já alertada, começou a absorver as vítimas do desastre de automóvel.

O Dr. Sung tornou a telefonar, ameaçando queixar-se ao hospital se eu não aplicasse imediatamente o soro de cavalo. Naquele ponto, eu estava ligando muito pouco para o seu soro de cavalo, e bati o telefone. Isto fez com que ele retornasse vinte minutos mais tarde, furioso, pronto para me arrasar, bem no momento em que removíamos o último dos feridos graves para a cirurgia. Fiquei ali, de pé, coberto de uma mistura de sangue e vômito, mal ouvindo o que ele berrava. Este lunático era capaz de me meter numa embrulhada séria, e por isso eu nada falei senão para tornar a mencionar o Hypertet, e como tão mais rápida teria sido a sua aplicação. Isto o enfureceu ainda mais, e ele ameaçou levar a paciente com ele. É claro que alguns dias mais tarde apareceu em minha caixa uma reprimenda. Não é preciso dizer mais sobre as prioridades.

Por volta das onze horas, o ciclone havia passado, deixando a costumeira mixórdia de doentes com afecções menos graves, em número muito maior que o de hábito devido ao que acontecera. Eles estavam por toda parte - dentro, fora, sentados na plataforma das ambulâncias, no chão, nas cadeiras. Comecei a andar de um quarto para o outro, meio ouvindo, funcionando como uma máquina cansada. Um homem tinha caído em sua piscina durante uma festa, quebrando o nariz na plataforma de saltos e cortando o dedo polegar num copo de gim tônica. O nariz estava certo, e não mexi nele. O corte, eu suturei rapidamente, depois de contar ao seu médico particular a triste história. Até ele parecia estar bêbado.

Foi, com efeito, uma grande noite para os paus-dágua; a maioria deles apresentava pequenos cortes e escoriações ou ressacas prematuras, com náusea e vômitos. E os guris continuavam a chegar, muito depois da hora de dormir, com suas diarréias, seus narizes escorrendo e suas febres. De vez em quando entrava um com uma temperatura de cerca de 40 graus, e eu não encontrava nada de errado. Isso me constrangia muito. Como um ser humano você sente um desejo quase irresistível de medicar; espera-se que você medique. Os pais, quase invariavelmente, pediam penicilina, mas eu tinha senso bastante para não aplicá-la na maioria das vezes. Tratar um sintoma como a febre sem um diagnóstico firmado é medicina ruim; e, não raro, eu só tinha uma fugidia e limitada visão dos tímpanos e das gargantas daqueles berradores em miniatura. Às vezes, eu medicava; outras, não; eu seguia os palpites mais prováveis.

Na UE continuava a ser uma típica noite de sábado. Pela uma hora da madrugada a multidão diminuía. De agora em diante veríamos menos das várias coisas que afastavam as pessoas dos seus aparelhos de TV durante o anoitecer para buscar a santidade da UE - coisas como leves resfriados, diarréias, e ferimentos sem importância. Dentro de mais ou menos uma hora, os problemas que as estavam impedindo de dormir começariam a aparecer. Os mesmos males que elas haviam ignorado o dia todo e no início da noite as conservariam acordadas, obrigando-as a ir a EU no meio da noite para ver o astuto e sabido interno. Com coceiras nas coxas. Num outro turno de serviço, eu havia adormecido por volta das 5 horas da manhã, apenas para ser acordado porque alguém se queixava de coceiras nas coxas.

Pouco depois da uma hora entrou uma ambulância, sem sirene, e a equipagem retirou dela uma moça de aspecto muito calmo, de vinte e poucos anos, que se achava num sono profundo, aproximando-se do coma. Tentativa de suicídio. O mesmo de sempre, conforme descobri: doze aspirinas, duas cápsulas de Seconal, três de Librium, e um punhado de tabletes de vitamina. Todas essas drogas - exceto, talvez, as vitaminas - podiam ser perigosas - em particular o Seconal, um comprimido para dormir, mas era preciso tomar um bocado deles, se se estava levando a coisa a sério. Do contrário era apenas uma exibição, um meio infantil de chamar a atenção na estrutura social da vida do indivíduo; o caso habitual da tentativa de suicídio é o da jovem perdida no mundo irreal da revista True Romance. Eu era capaz de demonstrar interesse e simpatia, não porém no estado em que eu estava; eu me achava tão exausto que qualquer senso de empatia há muito se dissolvera em irritação. Como podia essa moça estúpida recorrer a esse tipo de publicidade tão tarde numa noite de sábado? Por que não podia fazer o seu pequeno show na manhã de terça-feira?

Como sempre acontecia, vários membros da família e amigos chegaram pouco depois da ambulância. Ficaram na sala de espera, falando e fumando nervosamente. Olhei para a moça, que dormia sobre a mesa. Então, segurei-lhe o queixo e sacudi sua cabeça com força, e chamei-a pelo primeiro nome, Carol. Os olhos se abriram lentamente, de modo que só aparecia metade das pupilas, e ela choramingou:

- Tommy.

- Tommy, uma merda. - A irritação transformou-se em raiva à medida que minha exaustão e hostilidade buscavam expressar-se e dominar. Pedi um pouco de ipeca à enfermeira, e decidi fazer uma lavagem de estômago. A lavagem de estômago não era um negócio agradável para nenhum de nós dois, mas eu queria que ela se lembrasse da UE. Além disso, eu sabia que quando telefonasse para seu médico particular, ele ia perguntar o que eu tinha tirado do estômago dela.

O tubo para lavagem de estômago tem cerca de 1,25cm de diâmetro. Depois de girar a manivela da cama e colocá-la em posição sentada, enfiei um deles, através de sua narina esquerda, pela garganta abaixo. De repente, seus olhos se abriram de todo enquanto ela vomitava e procurava se livrar das atendentes que a seguravam. Ela vomitou um pouco em torno do tubo, enquanto eu o empurrava cada vez mais para o fundo de seu estômago, e então, tudo o que estava lá dentro saiu, inclusive uma cápsula de Seconal ainda não dissolvida e parte de uma das cápsulas de Librium. Quando puxei o tubo, o que restava saiu com ele. Minutos depois, a ipeca fez efeito, obrigando-a a vomitar cada vez mais, até seu estômago ficar vazio. A esta hora, Tommy tinha-se juntado aos outros na sala de espera. Talvez ele quisesse também um pouco de ipeca, para assim desempenhar um papel completo no acontecimento melodramático.

Depois de enviar uma amostra de sangue ao laboratório para ver se a aspirina havia modificado a acidez do sangue, e saber que isso não acontecera, telefonei para o médico de Carol. Contei-lhe o que ela havia tomado e que, a não ser a sonolência, ela agora estava bem, bastante tranqüila.

- Que foi que você tirou quando fez a lavagem?

- Um Seconal, pedaços de Librium, pouca coisa mais.

- Ótimo, Peters, bom trabalho. Mande-a para casa, e diga ao pai dela para me procurar na segunda-feira.

Logo em seguida, Carol foi levada para casa, em toda sua glória, coberta de vômito. Nunca discuti a minha atitude grosseira para com ela, não depois de dezoito horas de trabalho na UE, e embora não me orgulhe disso agora, assim é que foi.

Pela meia-noite chegara uma nova turma de enfermeiras. Eram duas horas, agora, e eu estava realmente me derreando, mas as enfermeiras formavam um bando bonito, animado e tagarela para aquela hora da noite. O contraste fez-me sentir ainda mais desprezível, como uma silhueta. E o próximo paciente não ajudou em nada. Sua papeleta dizia: "Depressão, dificuldade respiratória."

Ao entrar no quarto, meu desalento foi instantaneamente confirmado à vista de uma senhora de quarenta e muitos anos, que usava uma camisola azul, muito leve. Jazia deitada sobre a mesa, com uma das mãos apertada contra seu busto muito amplo. Duas outras senhoras, junto dela, contavam, histericamente, a mim e à enfermeira que sua amiga não podia respirar. De longe, eu pude ver que a mulher estava respirando muito bem.

- Oh, doutor - lamentava-se a mulher, pronunciando a palavra com um forte sotaque sulista. - Quase não posso respirar. O senhor tem de me socorrer.

Ela cheirava a martínis velhos de uma semana. Uma das senhoras histéricas mostrou um vidro de remédio. Olhei-o. Seconal.

- Oh, essas pilulinhas vermelhas. Tomei duas. Está certo? - A mulher do sul fitou-me com os olhos piscando; ela estava se divertindo um bocado às duas horas da manhã. Tive uma vontade muito grande de atirar seu rabo neurótico para fora da UE. Contudo, isso seria uma bomba, talvez até um suicídio de minha carreira. A despeito de meu desencanto com o sistema, eu ainda não havia chegado a esse ponto.

- Está ouvindo alguma coisa de anormal, doutor? - Eu me forçara a auscultar o tórax dela. Que estava completamente limpo. - Oh, o senhor vai tomar minha temperatura e minha pressão - disse ela alegremente. - Sinto-me como se fosse desmaiar. Não posso entender o que está me acontecendo. - O manguito do aparelho de pressão foi colocado em seu braço e o termômetro na boca, fazendo, por fim, com que ela se calasse. Aproveitei a oportunidade para sair um pouco e telefonar para o médico do hotel onde ela residia. Ele disse que eu lhe desse Librium.

Voltando à presença dela, persuadi-me a ser gentil:

- Madame, o médico do hotel sugeriu que eu lhe desse Librium.

- Librium, doutor? São aquelas capsulazinhas pretas e verdes? Bem, acho que sou alérgica a elas.

Fazem-me ficar cheia de gases e, às vezes - disse ela, agora sentada, e a todo vapor - às vezes fico tão ruim que minhas hemorróidas saem. - Com isto, enveredamos pela extensa história de suas pílulas e nos horríveis detalhes de seu trato intestinal baixo.

No meio de seu recital, um desempenho digno de Blanche Du-Bois, interrompi-a para dizer que talvez a alaranjada Thorazine também servisse.

- Cápsulas alaranjadas de Thorazine! - Virtualmente, ela guinchou de prazer. - Nunca tomei dessas! Não sei como agradecer-lhe, doutor. O senhor tem sido tão gentil. - E prosseguiu tagarelando alegremente com suas amigas sobre as maravilhas da Medicina.

Uma das enfermeiras de uma enfermaria particular apareceu mancando levemente. Tinha caído um lance de escadas; não parecia ter nada de grave, mas achara melhor verificar. Eu concordei. Seu nome era Karen Christie, e aparentemente nada tinha de errado no quadril, mas mesmo assim sugeri que fizesse uma radiografia da bacia, para me certificar. Compreende-se que os hospitais sejam sensíveis a quaisquer queixas de lesões em seu pessoal. Quando a chapa da Srta. Christie apareceu, quinze minutos depois, prendi-a no negatoscópio, em meio a uma porção de crânios e ossos quebrados. Meus olhos estavam um pouco toldados quando os corri pelo fémur, acetábulo, ílio, sacro, e assim por diante. Tudo estava normal. Quase deixei passar a espiral branca no centro

e, quando a vi, não pude imaginar como o técnico do raio X conseguira arranjar aquela imagem na chapa. Então, minha mente adormecida despertou e vi que estava olhando para um DIU*, que serviu ao duplo propósito de tornar a Srta. Christie um caso muito mais interessante e de aliviar momentaneamente meu mau humor.

Infelizmente, meu azedume retornou com o próximo paciente. Ele estava sentado, soluçando em silêncio porque havia quebrado o nariz quando o carro que dirigia bateu num hidrante de incêndio.

Sem que eu o encorajasse, contou loquazmente toda a história. Ele estava tratando de sua vida, quando foi apanhado por uma lésbica, que assustou tanto o companheiro a ponto de fazer com que os dois se chocassem contra o hidrante. Não perguntei o que havia acontecido à lésbica, sentindo- me muito satisfeito por não tê-la ali também. Cheio de raiva e maldade, achei que aquele tipo era o rebotalho da noite em muitos sentidos. Conformar-me, era o máximo que eu podia fazer, já que o meu estado de compaixão caíra a zero. Eu estava preparado para lidar apenas com simples problemas médicos - diagnosticar e medicar. Aquele cara precisava mais do que isso. Ele se recusava a fazer qualquer coisa que não fosse ficar sentado, chorar e chamar pelo Tio Henry.

 

* Dispositivo Intra-Uterino. Pequeno dispositivo que se coloca dentro do útero com fins anticoncepcionais. (N. do T.)

 

Nem mesmo o Tio Henry, quando chegou, conseguiu persuadir o homem de que uma radiografia nada tinha de letal. Finalmente, quando o Tio Henry concordou em não sair do lado dele nem um instante, ele desapareceu na direção do raio X. O filme revelou um nariz quebrado, e seu médico particular internou-o no hospital pelo telefone. Um pouco mais tarde, chegou um policial com a verdadeira história. Tinha sido um simples soco que ele recebera num dos bares locais de homossexuais; a lésbica era imaginária.

Novamente, a distância, percebi o fatídico som de uma sirena, esperando que ela passasse por nós.

Em vez disso, a ambulância guinchou estridentemente no parque do estacionamento, recuando rapidamente para a plataforma. Eu não estava em condições de ver o que vi, os destroços humanos de mais um desastre de automóvel. Era evidente que as duas moças nas macas tinham saído pelo pára-brisa. Estavam ensangüentadas da cintura para cima, e tinham a cabeça e o rosto cobertos pelas ataduduras dos primeiros socorros. Depois das moças, saltaram da ambulância, por si mesmos, dois homens que apresentavam pequenas escoriações.

Ao remover as ataduras do rosto de uma das moças, um geiser de sangue espirrou diretamente no meu rosto e no meu peito. Um caso de hemorragia arterial, típico de livro, pensei eu, recolocando as ataduras. Calcei um par de luvas esterilizadas, pus uma máscara e, de um só golpe, arranquei as ataduras, fazendo imediatamente pressão sobre a ferida com uma gaze, correndo a mão ao longo de um largo corte que descia da testa, por entre os olhos dela, quase até à boca. Vasos lançavam pequenos jatos de sangue em várias direções. Com muita dificuldade consegui pinçá-los com pinças hemostáticas "mosquitos", mas antes que pudesse ligá-los, a moça arrancou as pinças. Ela estava bêbada. Durante um minuto ou dois, empenhamo-nos numa rotina cruel e sangrenta, com ela arrancando as pinças tão logo eu as colocava. Acabei vencendo, devido a uma obstinada insistência, ligando os vasos que sangravam, mas deixando serviço bastante para enriquecer um cirurgião plástico. Entrementes, chegara um residente para cuidar da outra moça. Então, descobrimos que as duas eram dependentes de militares, e como sua situação era estável - quer dizer que não iam morrer de uma hora para outra - foram mandadas para um hospital militar. Isso me deixava com os dois camaradas que se achavam relativamente em bom estado. Limpei suas escoriações e suturei alguns cortes sem dizer uma palavra.

Por volta das três e meia havia apenas mais um paciente para ser examinado, um bebê de dezesseis meses. Já então eu estava mesmo me arrastando, e não me recordo muito do caso, a não ser que os pais tinham trazido a criança porque há mais ou menos uma semana que ela não vinha comendo muito bem. Pensando, devo ter deixado escapar qualquer coisa que os fiz repetir várias vezes.

Durante todo esse tempo, a criança estava sentada ali, esperta e sorridente. Com um toque de ironia, perguntei-lhes se não achavam um pouco estranho o seu procedimento. Estranho, por quê?, queriam eles saber. Fui sendo envolvido por uma ardência, enquanto examinava o garoto perfeitamente normal, e depois corria para o telefone a fim de chamar seu médico particular, que ficou igualmente irritado por eu acordá-lo àquela hora. Isto também era um absurdo. O médico se zangara porque seu cliente estava me importunando às 3 horas da madrugada. Acabei entregando tudo às enfermeiras, que mandaram todos eles para casa. Eu não podia falar mais com eles.

Depois que a criança foi embora, fiquei andando a esmo pela plataforma, olhando desinteressado a escuridão silenciosa. Eu me achava enjoado e esgotado, mas sabia, por uma penosa experiência, o quanto pior eu me sentiria ao ser acordado para ver o próximo paciente, depois de dormir apenas quinze ou vinte minutos. Todas as enfermeiras estavam ocupadas com pequenos serviços, exceto uma que tomava café. Eu me sentia estranhanhamente alheio, como se meus pés não estivessem firmes sobre o chão, e totalmente isolado. Até o medo havia desaparecido, banido pela exaustão. Se algo de grave acontecesse agora, tudo o que eu podia fazer era procurar manter o paciente vivo, até que chegasse um médico. Bem, de certo modo era uma função útil. Claro que eu continuaria a operar milagres com os bêbados e os deprimidos, e as crianças que não vinham comendo muito bem - minha verdadeira clientela.

Perto dali, e aproximando-se cada vez mais, ouvia-se a buzina de um Volkswagen, perturbando a enganosa tranqüilidade da UE. À medida que o som da buzina se tornava mais alto, comecei a me lembrar de um personagem da história em quadrinhos chamado Road Runner - uma associação absurda, mas até certo ponto apropriada ao meu estado mental. Trinta segundos mais tarde, a fantasia foi substituída por um VW que entrou e parou, ainda buzinando, junto à plataforma. De dentro dele saltou um homem gritando que sua mulher estava tendo um filho no banco traseiro. Depois de pedir a uma enfermeira que trouxesse o instrumental de parto, corri para o VW e abri a porta do lado direito.

No banco de trás, deitada de lado, achava-se uma mulher, evidentemente nos últimos estágios do trabalho de parto. A luz era muito fraca, obscurecendo a região do parto; tudo tinha de ser feito pelo tato. Quando ela entrou noutra contração, senti a cabeça bem no períneo. As calcinhas da mulher estavam no caminho, e cortei-as com uma tesoura de curativos, e enquanto ela gemia durante a contração, conservei minha mão na cabeça da criança para impedir que saísse. Depois de convencê-la a deitar-se de costas, empurrei os bancos dianteiros para a frente, e apoiei uma de suas pernas na janela traseira, e a outra sobre o banco do motorista. Agora, minhas mãos se moviam por puro reflexo, deixando minha mente pensar coisas absurdas, como uma velha anedota - o que é mais difícil do que meter uma elefanta grávida dentro de um Volkswagen? Meter a elefanta grávida dentro de um Volkswagen. Passada a contração, puxei lentamente a cabeça do bebê, girei-a, e levei- a para baixo para liberar um ombro e depois o outro e, de repente, fiquei segurando uma massa escorregadia. Quase deixei-a cair ao tentar sair do carro. Graças a Deus, neste justo momento o bebê sufocou e começou a chorar. Sem saber o que fazer nesse entretempo, o pai vinha se comportando estranhamente; interrompeu seu audível desagrado sobre o estado do estofamento, que agora estava todo sujo, para perguntar se era menino ou menina. No escuro eu não podia dizer.

Não deve ser o primeiro filho deste cara, pensei eu. Eu quis aspirar a boca do bebê com a seringa de borracha, mas ele estava muito escorregadio para ser segurado apenas com uma das mãos. Em vez disso, entreguei a criança a uma das enfermeiras, com instruções explícitas para conservar a criança ao nível da mãe e, depois, colocando algumas pinças, cortei o cordão. Então todo mundo - assistentes, enfermeiras e o pai - ajudou a tirar a mãe de dentro do carro. Na UE, a placenta saiu sem qualquer esforço. Fiquei espantado por não haver lacerações. Toda a equipe desapareceu, dirigindo-se para a unidade de centro obstétrico.

Aquele bebê compensou a noite. Talvez lhe pusessem o meu nome. Seria mais adequado chamá-lo de Volkswagen.

Quase não me importei de ver o bêbado sujo que tinha chegado durante a agitação causada pelo parto. Tinha um corte na cabeça, que eu costurei sem anestesia enquanto ele me xingava. Na verdade, ele começou a praguejar e a investir contra mim assim que eu apareci. Estava tão bêbado que nem sentia nada. Terminado o último ponto, fui para o quarto dos médicos e joguei-me na cama, dormindo instantaneamente.

Eram 4:45; às 5:10 uma enfermeira bateu na porta e entrou para dizer que havia um paciente esperando para ser visto. De início, fiquei desorientado, incapaz de me lembrar de onde eu estava, consciente apenas do martelar de meu coração. Naqueles vinte e cinco minutos, o sono, o grande reconstituinte, havia-me incapacitado, deixando-me zonzo e fraco, com uma porção de pontinhos brilhantes na periferia de meu campo visual. Isso passou quando eu comecei a me movimentar.

Mesmo assim meu olho esquerdo recusava a entrar em foco, e quando abri a porta a luz do vestíbulo parecia a de mil lâmpadas. Eu me sentia tão merda quanto possível e ainda ia funcionar.

O paciente, onde estava o paciente? A papeleta em minha mão dizia: "Dor abdominal, há doze horas". Jesus! Isto significava que eu tinha, talvez, de registrar uma história completa e provavelmente aguardar os exames de laboratório. Entrei na sala e olhei para a paciente. Cerca de quatorze anos, cabelos macios caindo sobre os ombros, magra, nariguda. A mãe estava sentada num canto. A lista de perguntas para uma possível apendicite é longa, e eu comecei. Quando começou a dor? Quando a sentiu pela primeira vez? Mudava de lugar? Era como uma cólica de indigestão? Ia e vinha, ou se mantinha constante? Enquanto isso, eu palpava casualmente o abdome, em busca de sensibilidade, através de bermudas, vestimenta razoável para o clima do Havaí - mas por baixo havia qualquer coisa esquisita, o contorno distinto de uma cinta? Tolice. Você comeu hoje? Esta noite? Sentiu vontade de vomitar? O estômago parecia mole. Sua palpação não revelava qualquer sinal de desconforto. Evacuou? Evacuação normal? Peguei meu estetoscópio. Tem urinado normalmente? Coloquei o estetoscópio nos ouvidos e apliquei a campânula sobre o abdome. As palavras do paciente filtravam-se através das hastes nos ouvidos. Já teve outras dores no ventre antes? Já teve úlcera? Por alguma razão eu sempre deixava as perguntas sobre o ciclo menstrual para o fim. Era apenas uma questão de decoro. Quando ficou regrada pela última vez? A resposta veio quase como uma desculpa: - Eu sou homem.

Por um minuto olhei para ela - ele - minha mente embotada e cambaleante. Longos cabelos sedosos, ampla camisa de veludo purpurino. Não, era uma blusa. Cinta! Passando a mão por baixo da cinta, puxei tudo para cima, praticamente erguendo-o da mesa. Não havia dúvida. Era um pênis.

A mãe limitou-se a desviar o olhar. Eu não estava preparado para essa reviravolta. Tudo parecia uma tremenda, uma cruel piada. Ali estava eu lutando para fazer um sofisticado diagnóstico abdominal, e estava errado até quanto ao sexo. De qualquer modo, ele não tinha apendicite nem nada de muito sério.

Provavelmente um caso de simples cólica abdominal. Pensei comigo mesmo que se lhe dissesse que eram cólicas menstruais, ele teria ficado satisfeito.

Sendo um lento aprendiz, imediatamente tornei a dormir. Crash! A porta abriu-se e uma alegre enfermeira me informou de que eu tinha um paciente. Repetiu-se o mesmo processo, o mesmo agonizante desafio para levantar, piscar e, pouco a pouco clarear a mente enquanto emergia para a luz. Esta era uma melindrosa, uma samoana, rebocando a mãe doente, que não sabia falar uma palavra de inglês. Com tantas línguas faladas nas ilhas, nós estávamos acostumados a trabalhar com intérpretes, mas neste caso o inglês da filha nem chegava a ser um jargão aceitável. Além disso, as queixas eram tantas que todo o organismo parecia estar doente. Ela sofria de dores aqui, dores ali, dores de cabeça, fraqueza, não podia dormir, e de um modo geral se sentia um lixo. Parecia até eu.

Muito cautelosamente perguntei à filha se a mãe sentia ardência ao urinar, e fui agraciado com um olhar inexpressivo. Tornando a falar, perguntei se sua mãe sentia alguma dor quando fazia pipi, vivi, xixi, hum... - minha mente desencavava os sinônimos ... quando ela faz água. Achei que isso provocou uma fraca compreensão, e assim repeti. Sua mãe sente dor quando faz água? A resposta foi formidável, deu-me vontade de abandonar inteiramente a Medicina. Ela disse que não sabia. O dicionário de inglês não tem uma palavra para descrever minha frustração. Eu disse: - Pelo amor de Deus, então pergunte a ela. - Ela perguntou. Sim. O mesmo aconteceu com cada pergunta. Lentamente, e todas as respostas eram sim. Ela sentia ardor à micção, urinava com freqüência, tinha enjôo, vômitos, corrimento vaginal, diarréia, prisão de ventre, dor no peito, tosse, dor de cabeça ... Como a mãe dava muita ênfase à dor no peito, tentei fazer um eletrocardiograma, porém o aparelho quebrou. Quando os pássaros começaram a cantar lá fora, era como se eles quisessem me agredir com o seu canto; mas naturalmente estavam apenas anunciando a luz. Eu estava tão cansado que nem me importava com a velha nem com coisa alguma. Firmemente convencido de que ela não ia morrer nas próximas horas, dei-lhe um pouco de Gelusil, de que ela gostou imensamente, e marquei uma consulta na clínica. Quando ela partiu, já era a gloriosa manhã.

Antes que eu pudesse me recolher de novo no quarto dos médicos, entraram ao mesmo tempo um bebê e um velho. A mãe tinha deixado o bebé cair sobre o braço, que estava um pouco inchado, e o homem tinha distendido as costas alguns dias antes. Com o bebé e o homem lá no raio X, adormeci numa cadeira junto ao balcão, bem no centro da UE. Quando meu substituto veio me render, deixou-me dormir. Quarenta e cinco minutos mais tarde acordei sentindo-me tão mal quanto antes, mas sabendo que desta vez eu poderia voltar para minha própria cama. Onde estavam, agora, as câmeras da televisão? Eu meditava, caminhando penosamente para casa, parecendo uma pintura de Jackson Pollock em movimento, feita de muco, vómito e sangue secos. Experimentei uma estranha e maravilhosa sensação quando tirei as roupas e me meti entre os lençóis frescos e um tanto ordinários.

Assim começaram as minhas vinte e quatro horas de folga. Depois de mais de um mês de rotina na UE, eu era uma ruína mental e física. Fiquei lúcido pela hora do almoço, quando fui acordado por uma combinação dos pássaros, sol e fome. Uma barba e um banho de chuveiro fizeram-me sentir um tanto humano, e quando saí para almoçar à luz quente do meio-dia, retornei ao mundo real.

Em seguida ao almoço, sucumbi a um imperativo interior para me afastar do hospital.

Naturalmente, teria sido mais prudente dormir mais um pouco, mas eu havia descoberto através da experiência que, por mais cansado que eu estivesse, a algazarra geral em torno do meu alojamento me impediria de dormir. Assim, vesti o calção de banho, coloquei a prancha de surfe em cima do meu carro, joguei alguns livros de Medicina no banco traseiro, e parti para a praia.

Era um prazer dirigir ali, deixando que o conjunto das cores e do movimento empolgasse minha mente. Parecia haver gente por toda parte, todos íntegros e sadios. No hospital, tem-se a impressão de que todos no mundo estão com diarréia ou dores no peito. Mas ali estavam eles, passeando ocupados e felizes, os risos se misturando com a atividade física, bronzeando-se ao sol e com fulgurantes e brilhantes biquinis. Aquela gente parecia tão normal. Com meus pensamentos tristes, eu era de certo modo um estranho, que não pertencia a eles. Por demais cansado para nadar ou jogar voleibol, atirei-me de encontro a prancha de surfe, encarando o sol e deixei a paisagem se desenrolar.

Não procurava falar com ninguém, e ninguém se aproximava de mim, o que era muito bom. Eu estava tão cheio da UE que rapidamente teria transtornado a mente de qualquer um falando de sangue e ossos quebrados. Mas este não era o meu verdadeiro objetivo; meu objetivo real seria eu - minha raiva, meu esgotamento, e meu medo.

Vamos, pensei eu, já chega de nomes dramáticos e terríveis; basta de se espojar na autopiedade.

Ultimamente você não tem feito mais do que isso, sentir pena de si mesmo. De que adianta, se ser um interno é um negócio sujo? Mude, se puder, mas pare de ter pena de si mesmo. Isto não vai ajudar a ninguém, e muito menos a você. Contudo, eu ainda desejava que nossa cultura abrandasse a pressão, verificando que um jaleco branco e um estetoscópio não conferem sabedoria. E muito menos nobreza.

Muito bem, que se fodam. Vou é tirar uma soneca.

Adormeci ali ao sol, no meio de toda aquela alegria e risos. Na verdade isso ocorreu em todas as tardes que eu estava de folga durante o período de serviço na UE. Dormir de manhã, comer, dormir de tarde, comer. Passar algum tempo sem fazer nada, depois dormir, apenas para acordar e reiniciar o ciclo das vinte e quatro horas, imaginando para onde fora o tempo. Quando acordei, a tarde já ia avançada; o número de pessoas tinha diminuído bastante e o sol estava mais fraco. Ninguém me importunou enquanto eu continuava sentado a olhar para o sol sobre a água. Era como contemplar uma fogueira. Sua atividade parecia uma desculpa para minha imobilidade e meu alheamento. Não que eu estivesse inconsciente; eu percebia tudo em derredor - todos os movimentos, sons e cores.

Apenas não fazia qualquer associação. Hastings teve de sacudir a mão várias vezes na frente de minha cara, antes que me apercebesse de sua presença. Surfe? Claro, por que não, se eu conseguisse levar a mim e à minha prancha até a água. Eu me sentia imobilizado, como se o sol houvesse sugado toda a energia que me restava. Esta era outra parte da rotina da tarde de folga.

Hastings encontrava-se comigo na praia, bastante tarde, e íamos fazer surfe, sem nos falarmos, exceto para dizer algumas palavras como "para fora", se vinha uma onda grande. Eu não entendia por que elaborávamos tantos planos para nos encontrarmos e depois nos ignorávamos. Mas era assim que nós gostávamos.

Remar para sair era o ponto alto do dia, uma espécie de catarse. Eu sentia que meu corpo e minha mente se uniam de novo. Eu usava os braços e os pés para remar, sentindo a força que ali havia e o contato da água por baixo de mim, fresca e movendo-se suavemente. A vastidão do oceano, que se estendia aparentemente até o infinito em torno de mim, fazia-me sentir pequenino, embora o verdadeiro centro de tudo aquilo. As pessoas sumiam, suas vozes se alteravam, tornando-se abafadas e distantes como se varridas pelas ondas. A oeste, o sol poente transformava todo o céu, colorindo-o de mornos e suaves alaranjados e vermelhos que se refletiam milhões de vezes da superfície das águas, como uma pintura de Claude Monet. A leste começavam a aparecer os violetas e azuis prateados entre os distantes rosas e verdes. Em derredor, os veleiros eram pontos esparsos, como leves toques de cor contra a água e o céu. A ilha erguia-se abruptamente da borda do mar, e a luz do sol lançava sombras contrastantes entre os canhões, criando uma tessitura macia como veludo, fazendo com que as escarpas arrojadas se elevassem como os arco-botantes de uma catedral gótica.

Nuvens de um violeta escuro pairavam por sobre a ilha, ocultando os picos, formando reflexos prismáticos de arco-íris nas sombras dos vales. Fosse qual fosse o seu efeito sobre os outros, aquela beleza me embalava, drenava todos os outros pensamentos e tornava a me integrar.

As ondas somavam sua impetuosidade e seu ritmo ao ambiente; num minuto uma vibração organizada de movimento harmónico, no seguinte uma massa rodopiante confusa e sem sentido.

Peguei uma das ondas. Senti sua força, o vento, o ruído. Retorcendo-me enquanto a prancha reagia, eu fazia meu corpo lutar para não cair; velocidade e cruciais milissegundos. A descida pela onda e uma torção do corpo, passando a mão pela transparente parede dágua e o baque e o rodamoinho e, no entanto, ainda de pé, meus pés sobre a prancha perdida sob um turbilhão de espuma branca. Por fim a súbita expulsão, com uma torção violenta porém controlada para trás, deu-me vontade de gritar de alegria por estar vivo.

A escuridão apagava pouco a pouco o cenário e nos levava para a praia. Hastings seguiu seu caminho e eu o meu, para o hospital, a fim de tomarmos um banho de chuveiro. De volta ao mundo geométrico, higiénico, de chãos limpos, chuveiros utilitários, e luzes fluorescentes, vesti-me e tornei a sair. Subindo de carro pelo Monte Tantalus, eu antecipava com prazer a noite que chegava.

Seu- nome era Nancy Shepard, e eu a havia conhecido - não podia ser de outro modo - através do hospital. Seu pai fora um doente da vesícula cujo progresso eu acompanhara de perto depois de servir como assistente na operação realizada por um médico particular. Toda vez que eu mudava seu curativo, ele dizia que queria que eu conhecesse sua filha, tornando a contar como tinha ela ido para Smith e passado um ano na Universidade de Boston fazendo o mestrado em História Africana.

Para falar a verdade, eu já estava cansado de ouvir a história, embora continuasse interessado em conhecê-la. Finalmente, um dia antes do pai deixar o hospital, ela apareceu, e era bonita - muito bonita. De fato, ela se parecia um pouco com uma outra garota do Smith, com quem eu me encontrara quando estava no colégio. De qualquer modo, fomos à praia algumas vezes, o que nos agradava a ambos. Ela era capaz de falar sobre quase tudo; era divertido estar com alguém culto e inteligente. Especialista em ciência política, ela adorava discutir acaloradamente sobre pequenos pontos de governo, em particular sobre a África. Apesar de inúmeros encontros bem-sucedidos e de minha admiração por ela, deixei de pedir-lhe para sair com mais freqüência, principalmente devido a apatia e falta de tempo. Com efeito, o convite daquela noite para jantar tinha surgido de inopino.

Não que eu não quisesse ver Nancy. Apenas não queria iludi-la - e então Joyce havia se tornado muito conveniente.

O jantar foi ótimo. Também estavam presentes os pais e dois irmãos de Nancy, todos animados conversadores. Depois do café, Nancy e eu fomos para o grande pátio verdejante e começamos uma discussão sobre Jomo Kenyatta e a Tanzânia. Por que tinha a África fracassado em produzir mais Kenyattas? Ela estava empolgada com o assunto; era bom vê-la corar quando a discussão se acalorava, tornando-a ainda mais bonita.

Então ela começou a me fazer perguntas sobre Medicina. Já que ela estava realmente interessada, e não apenas passando o tempo, como muitas outras, esforcei-me por fazê-la entender, respondendo o melhor que podia. Inevitavelmente, ela perguntou por que eu resolvera ser médico. Para esta pergunta um interno tem muitas respostas. A maior parte são evasivas meias-verdades. Mas com ela, eu resolvi contar toda a verdade.

- Bem, Nancy, acho que jamais saberei exatamente. Suponho que no princípio eu tinha uma vaga noção sobre como ajudar os outros escolhendo uma profissão nobre. Mas agora que já tenho um bocado de Medicina por trás de mim, acho que fui atraído também pela idéia de que ser um médico me daria uma espécie de poder que as outras pessoas não têm, poder tanto sobre as pessoas quanto sobre a doença. Poucas coisas são mais caras aos americanos do que uma boa saúde, e aqueles que a têm para dar, ou dizem ter, passam a ser automaticamente autoridades em nossa sociedade.

- O que você quer dizer com poder e autoridade?

- Isso mesmo, suponho. É como o poder que o curandeiro mantém numa sociedade tribal primitiva. Ele só conserva uma alta posição enquanto é capaz de jogar com os medos dos seus companheiros de tribo, e de fazê-los pensar que pode controlar a natureza. É uma espécie de farsa legítima, legítima porque ele exerce uma função mais ou menos útil, e farsa porque, em verdade, ele não controla nada senão a psicologia tribal. Acho que a Medicina moderna é a feliz herdeira daquele tipo de falso juízo psicológico. Meus pacientes não se prostram diante do raio e do trovão, mas ficam apavorados diante do câncer e de outras doenças que eles não entendem. Quando vêm ao hospital, em mais de um sentido, estão à procura de um curandeiro. Antes de iniciar meu curso médico, eu era como qualquer outro tipo de rua. Quer dizer, eu acreditava no poder da Medicina para fazer quase tudo, e queria aquele poder, queria ser olhado como um agente daquele poder.

- Mas certamente você quer se referir ao poder de socorrer as pessoas? - Ela ainda não entendia.

- Claro, eu posso socorrer as pessoas. Não tanto quanto eu gostaria, e em absoluto tanto quanto elas esperam, mas um pouco. Porém este tipo de poder está severamente limitado. A Medicina ainda é muito primitiva. Apenas não sabemos o bastante. É do outro tipo de poder, do mais abstrato, que eu estou falando. Este é quase ilimitado. Por exemplo: eu jogava um pouco de futebol no ginásio, e uma vez um camarada quebrou a perna durante o jogo. Eu estava perto dele, no bolo, e vi-me olhando bem para ele, querendo fazer alguma coisa, mas totalmente incapaz. Ao pensar nisso mais tarde, lembrei-me da inveja que senti dos médicos. Sei agora que o médico não fez muito, exceto acalmá-lo com palavras, administrar-lhe um analgésico, e carregá-lo. Mas para mim, para todos nós, ele era uma espécie de deus. Quanto mais eu pensava nisso, mais eu queria um pouco daquele poder.

- E quanto a idéia com que você começou, da Medicina como uma profissão nobre, de socorrer o rapaz com a perna quebrada. Para onde foi tudo isso?

- Ficou tudo misturado com a idéia do deus. De qualquer modo, fui para o colégio planejando tornar-me um médico. Embora depois disso se abrissem novos caminhos, não apareceu qualquer alternativa que se impusesse. Assim, acabei na escola de Medicina sem ter, realmente, nada mais em minha cabeça, querendo ambos os tipos de poder, e verificando que podia obtêlos através da profissão médica, mais o status social e uma renda razoável. Agora, que já consegui alguma coisa, todas aquelas noções abstratas desabaram em cima de mim. Não desfruto de uma posição social elevada, não tenho dinheiro algum, o poder divino parece totalmente vazio, e quanto ao poder sobre a doença, praza aos céus que eu jamais precise me submeter a uma operação. Sei demais sobre as limitações da Medicina.

Eu precisaria ser muito perspicaz para perceber o leve arrepio que percorreu Nancy, mas não o fiz.

Ela estava esperando pela história do "desde que eu era menino" tão cara à televisão e outros relatos ficcionistas da Medicina. Mas ela fizera com que eu me revolvesse por dentro, em busca das respostas, e ali não estava o menino.

- Então você não sente que possua qualquer qualidade especial que o tenha feito abraçar a Medicina? Por assim dizer, nenhuma vocação? - Ela ainda estava à procura de Ben Casey.

- Não. Definitivamente, isto em nada se parece com o sacerdócio para mim. O mais próximo que eu posso chegar da vocação para Medicina é ter sido um bom aluno em ciências e humanidades no colégio, e a Medicina é uma combinação lógica das duas.

- Bem, parece-me que você não tem as mesmas motivações dos médicos que eu conheço. - Ela estava se inflamando. E eu também.

- Quantos médicos você conhece, Nancy? O meu mundo todo é feito deles. Eu vivo com eles, internos, residentes, atendentes, o pessoal da escola de Medicina, e posso dizer-lhe que, em geral, o que me aconteceu, aconteceu a eles, e o que eu sinto é quase o mesmo que eles sentem, se você puder fazer com que confessem isso.

- Bem, acho que isto cheira mal.

- O que é que cheira mal?

- Que a nossa sociedade tenha deixado você chegar até aqui. Você é a pessoa errada para ser médico, porque você não se importa o bastante com ajudar as outras pessoas.

- Eu lhe disse que quero socorrer as pessoas, e o faço, mas no todo, a coisa é mais complicada do que isso. Que diabo, eu sou apenas como todo mundo mais. Não tenho um objetivo que me consuma e exclua tudo o mais. Eu também quero viver. Além disso, um bocado do idealismo que eu tinha foi destruído na escola de Medicina. Apenas não está orientado deste modo.

- Você não gosta de ser um interno? - interrompeu ela.

- Para falar a verdade, não. Ela tornou a ficar surpresa.

- Por que não?

- Fundamentalmente eu me sinto cansado, exausto, o tempo todo. E, contudo, me falta qualquer sentido de uma verdadeira utilidade. Acho que a maior parte das coisas que eu faço podia ser feita por qualquer pessoa sem o treinamento que eu tenho. E vivo constantemente apavorado, achando que vou estragar tudo e parecer um idiota. Como você vê, no final de contas, parece que a escola de Medicina não me preparou muito bem. - Já então, a resolução que eu tomara de conservar a boca fechada naquela tarde se dissolvera na intensidade do momento.

- Bom, eu acho isso compreensível. A escola de Medicina não pode fazer tudo - disse ela.

- Pode ser compreensível à distância, mas quando você se acha no meio da coisa, você não compreende o que lhe está acontecendo. E quando eu paro para pensar, e vejo que os quatro anos da escola de Medicina foram gastos, na maior parte, no que se refere a cuidar dos pacientes, e que eu estou sendo explorado à guisa de aprender, a carga psicológica é pesada demais. Fico furioso com o sistema, pelo modo com que se interligam a escola de Medicina, o internato e a prática médica, e com a sociedade que o sustenta.

- Ficar furioso é, dificilmente, a melhor atitude para um médico assumir - acrescentou ela com frieza.

- Eu não poderia concordar mais com você, e quem me dera que a instituição compreendesse isso também. Por fim você chega a um ponto em que não liga para mais nada. Às vezes, depois de ser chamado para ver uma parada cardíaca no meio da noite, de repente percebo que estou desejando que o cara tenha morrido para que eu possa voltar para a cama. Isso mostra o quanto estou cansado e desencantado. Num certo sentido, deixei de pensar nos pacientes como gente, e claro que isso só serve para aumentar o sentimento de culpa.

Olhando para ela, eu podia ver seu sentido da moral chiando sob a tensão de minhas palavras. Mas segui em frente.

- Suponho que este negócio de não pensar nos pacientes como gente é o mais difícil de explicar. Talvez alguns médicos sejam capazes de demonstrar uma empatia infinita. Mas não eu. Agora, para sobreviver, eu quero sentir meus pacientes apenas como vesículas biliares, hérnias ou úlceras. Naturalmente, nisso eu incluo tudo o que, neles, afete diretamente seus processos mórbidos básicos, e acredito que estou me tornando, tecnicamente, um bom médico mas, além disso, não quero me envolver com mais nada. Meu sistema não está engrenado para isso. Tive um doente chamado Roso, e fiquei tão ligado a ele que, quando teve alta, fiquei mais aliviado por ter ido embora do que feliz por estar vivo.

O silêncio era gelado. Eu fitava o céu, propositalmente evitando olhar para ela. Depois continuei.

- Outra coisa. Muito importante. Como interno eu sou tão explorado quanto um país subdesenvolvido em suas relações mercantilistas com uma potência colonial. Por exemplo, tudo o que faço na sala de operações em noventa e nove por cento do tempo é segurar os afastadores, não raro para o mais desleixado dos FIGURÕES, que não devia estar operando de modo algum. Estou ali para ser usado. Qualquer coisa que eu aprenda é apesar do sistema, não por causa dele. E se eu não fizer o que me mandam, ou me queixar muito do sistema medieval - puf! - lá se vai a minha chance de me especializar num bom hospital. Assim, quando digo que fico apavorado por cometer um erro, o que me preocupa não é tanto o paciente, embora em parte o seja, mas o fato de eu poder ser chutado e acabar numa cidadezinha do interior, aplicando vacinas contra o tifo. Isso, na Medicina, equivale a morte em vida. Além disso surgem problemas verdadeiramente graves, sobre os quais ninguém nos fala nem se oferece para ajudar. Como acontece na unidade de emergência com um caso que você não sabe se deve reanimar ou deixar à sua própria sorte. Nesses casos, como internos, somos totalmente vulneráveis. E isso não é um problema apenas médico. Que dizer da ética que ele implica? Se a pessoa é reanimada e se torna um corpo sem cérebro, o que significa que vai ocupar um leito muito necessário no CTI, então você priva alguém mais, que poderia ter melhor chance, daquele leito. É uma decisão a ser tomada por um deus. A escola de Medicina nunca me ensinou a fazer as vezes de Deus. E depois tudo...

Eu vinha divagando, olhando por entre as árvores escuras, juntando esses pensamentos pela primeira vez. De certo modo eu falava comigo mesmo, e quando me virei e olhei para Nancy ela explodiu, fazendo-me parar no meio de uma frase.

- Você é um incrível egoísta! - disse ela.

- Não penso assim. Apenas vivo no mundo real.

- Para mim, você é um egoísta, frio, desumano, sem ética, imoral, e sem empatia. E esses não são os traços que eu busco num médico. - Realmente, ela podia expressar aquilo quando quisesse.

- Olhe aqui, Nancy, o que eu lhe disse é a verdade, e não somente a minha verdade. Eu sou um composto da maior parte dos internos que conheço.

- Então o bando a que você pertence devia ser jogado fora.

- Perfeito, garota! Se você se acha tão certa disso, por que não organiza um movimento de protesto na UE? A compaixão é um artigo muito barato quando se dorme oito horas por noite. A maior parte das noites, durmo menos da metade disso. O resto do tempo, passo examinando as hemorróidas da Sra. Apertabotões, que estão coçando. Não venha pregar-me moral de sua cadeira de balanço.

E assim continuou a discussão, que acabou com nós dois cheios de raiva. Parti depois de prometer debilmente que lhe telefonaria um dia.

De volta ao meu quarto geométrico e todo branco, deiteime fumegando, agitado, com menos de nove horas para reiniciar o holocausto na UE. Pensar em dormir estava fora de questão. Telefonei para o laboratório, e Joyce atendeu. Poderia ela vir às onze? Ela disse que podia, e eu me senti melhor.

 

CIRURGIA GERAL

SERVIÇO DE ENSINO PARTICULAR

        Para um interno na prática da Medicina na última metade do século vinte, Alexandre Graham Bell é o arquivilão de todos os tempos. Naturalmente, a culpa deve ser repartida mais amplamente, para não incluir apenas o homem que inventou o telefone, mas também o sádico que projetou a campainha. E depois todos aqueles que trabalham para Ma Bell que perpetuam os ruídos desagradáveis e estridentes - esses também estão incluídos. Como funcionavam os hospitais antes da invenção do telefone? Com freqüência, eu pensava em mim, nos dias de hoje, como uma simples extensão daquele pedaço de plástico negro. Era tão aterrorizador quanto a ambulância, e muito mais repentino - de certo modo sempre à espera no fundo de minha mente e, no entanto, ao mesmo tempo me pegando de surpresa. Em todo o mundo não existe som que se iguale a este para perturbar a paz.

Minha paz, então, consistia em adormecer suavemente ao lado de Karen Christie em seu apartamento, depois de, acredito, uma relação mutuamente satisfatória. Quando o telefone tocou às 2:00 da madrugada, ambos corremos para ele. Deixei que ela o pegasse - não porque talvez fosse para ela. Desde que eu estava de plantão, era muito mais provável que fosse a telefonista da noite do hospital, convidando-me para voltar àqueles corredores. Mas poderia ser o chamado amiguinho de Karen.

Com efeito, era a telefonista do hospital, que me pôs em contato com uma enfermeira.

- Doutor, o senhor podia vir imediatamente? Um dos doentes particulares do Dr. Jarvis está tendo dificuldade em respirar, e o Dr. Jarvis quer que o senhor o veja.

Deitando de costas, fitei o teto e amaldiçoei interiormente, segurando o telefone longe do ouvido.

Eu conhecia muito bem o Dr. Jarvis. Era nem mais nem menos o nosso velho amigo Supercharger, famoso por sua carnificina na sala de operações, principalmente nas biópsias de seio.

O senhor ainda está aí, doutor? - insistiu a enfermeira.

- Sim, enfermeira, estou ouvindo. O Dr. Jarvis pretende vir?

- Não sei, doutor.

Isso era típico. Não só do Supercharger, porém da maioria dos médicos particulares filiados ao hospital. O interno ia ver o paciente, receitava qualquer coisa, e telefonava para o médico particular que, era claro, dizia ao interno para fazer o que ele achava melhor. Em muitas dessas ocasiões, esses caras nem se importavam em ser delicados. Uma vez, eu passara uma hora vendo um dos casos do Supercharger. Quando telefonei para fazer meu relatório, o Supercharger tinha saído do consultório e tive de deixar um recado com sua secretária para que ele me telefonasse. Realmente, ele telefonou, mas para a enfermeira do andar, não para mim. Quando ela lhe disse que eu precisava falar-lhe urgentemente, ele respondeu que não tinha tempo para falar com nenhum interno do hospital. Correr, correr para ganhar mais alguns dólares - este era o jogo do Supercharger.

O Supercharger tinha um outro hábito cativante. Ele dava entrada em quase todos os seus doentes no chamado programa de ensino. É natural que se pense que um programa de ensino, de fato, ensinasse pelo menos um pouco. Só Deus sabe como nós, internos, precisávamos disso. Na prática, o programa de ensino era uma triste anedota. Isso queria dizer apenas que eu ou um dos outros internos fazíamos a observação do paciente admitido e o exame semiológico - o trabalho "chato".

Como recompensa, podíamos ter permissão para preparar também a papeleta da alta. Mas entre a admissão e a alta não podíamos nos meter com as ordens e, na sala de operações nossa contribuição consistia em segurar os afastadores, extirpar verrugas e, talvez, dar alguns nós, se o médico estava de bom humor.

O último descaramento do Supercharger ocorrera pouco antes, naquela biópsia de seio, a tal que ele tanto maltratara. Na papeleta de admissão, dando os particulares do caso, ele escrevera uma pequena nota dizendo que quando o pessoal da casa - significando com isto o interno - fizesse a observação do caso, não devia examinar os seios. Ora, como se esperava que eu fizesse uma descrição e exame de um caso de biópsia de seio sem examinar os seios? Ridículo. E agora ele queria que eu saltasse da cama às duas horas da manhã para consertar outra de suas embrulhadas.

A enfermeira ainda estava esperando na linha.

- O paciente foi operado? - perguntei.

- Sim, esta manhã. Uma herniorrafia - replicou ela. - E não está passando bem. Há várias horas que está com dificuldade de respirar.

- Muito bem, estarei aí para vê-lo em poucos minutos. Enquanto isso, providencie um raio X portátil e peça uma radiografia do tórax. E tire um pouco de sangue para um hemograma completo, e veja se há um respirador de pressão positiva e um eletrocardiógrafo no andar.

Eu não queria esperar o resto da noite por aquele equipamento. Talvez não fosse precisar dele, mas era melhor estar ali. Quando saí da cama, Karen nem se mexeu. Ao me vestir, tornei a pensar em quão conveniente ela era. Seu apartamento ficava bem do outro lado da rua do hospital, ainda mais perto do que meu quarto no alojamento. Era dotado de todo conforto: televisão, toca-discos, uma geladeira bem suprida de cerveja e frios.

Karen e eu tínhamos começado a nos ver quatro meses antes, logo depois que eu olhara sua estranha radiografia da bacia, na noite em que ela caíra nas escadas do hospital. Logo depois disso, ela havia sido transferida para um dos turnos do dia, onde tornamos a nos encontrar e a ter folgas para o café juntos. Uma coisa levou à outra, e ir ao seu apartamento tornou-se um hábito - justo no momento em que Joyce deixava por seu lado de ser um hábito.

Joyce, que também tinha sido transferida para um turno do dia, começou querer a bancar a turista, a visitar todos os locais noturnos. Com isso veio uma certa pressão para que eu conhecesse seus pais e um crescente desgosto pelas minhas furtivas saídas de madrugada. Eu tentava ficar com ela, mas sua companheira de quarto, a aficcionada da TV, ainda estava lá, e nosso relacionamento, que tinha começado muito bem, acabou por se deteriorar completamente. De qualquer modo, Joyce e eu decidimos deixar esfriar um pouco, para termos uma chance de pensar.

Karen tinha um outro amiguinho que me intrigava. Ela o via de vez em quando, talvez duas ou três vezes por semana, quando iam a um cinema ou a um nightclub. Ela dizia que este cara queria desposá-la, mas que ela não podia decidir-se. Eu não o conhecia, nem sabia muita coisa a seu respeito, embora houvéssemos falado uma vez, brevemente e quase por acidente, quando ele telefonara para o apartamento de Karen. No todo, eu não queria me expor ao perigo de perder uma boa coisa, fazendo mais investigações.

Enquanto caminhava para ver o paciente do Supercharger, reparei que a noite estava estranhamente calma, sem quase nenhum vento, embora uma camada de nuvens pairasse bem baixo por sobre a ilha, obscurecendo o céu. Durante toda a semana tinha chovido forte. Ao contornar a ala oeste do hospital, olhei de relance para a UE, e a lembrança de minha exaustiva e cega azáfama, ali, retornou correndo. Eu podia ver os habituais grupos cheios de atividade, com gente esperando e as enfermeiras aparecendo por fugazes momentos numa aparentemente total confusão. Parecia haver mais agitação do que de hábito para uma noite de terça-feira, e eu esperava que ela se mantivesse calma o bastante para não exigir minha presença. Toda vez que eu recebia um chamado noturno da UE, em geral isso significava uma admissão - provavelmente um caso cirúrgico, e isso podia ser mau.

O vestíbulo da enfermaria estava mortalmente calmo e escuro, com exceção das luzes que filtravam dos quartos enquanto eu passava rapidamente por eles, em direção ao posto das enfermeiras. O posto das enfermeiras ficava no fim da enfermaria, e à medida que eu me aproximava dele a luz ia- se tornando mais forte. Era-me, agora, uma sensação familiar, andar por aqueles corredores escuros, o silêncio apenas quebrado pelos sons dissimulados do hospital - o leve tilintar de um suporte de soro, um ocasional gemido sonolento - sons que sempre me faziam sentir como se eu estivesse sozinho no mundo. Outros médicos têm-me dito que experimentam sensação semelhante.

Na verdade, eu tinha deixado de analisar o hospital e seus efeitos sobre mim, como costumava fazer, tendo ficado, num certo sentido, cego ao ambiente que me cercava. Como um cego, eu confiava nos vários acidentes, nas várias portas e esquinas, e muitas vezes chegava ao meu destino sem reparar no meu trajeto nem em meus pensamentos durante o caminho.

Há alguns meses, a telefonista tinha-me chamado de madrugada para ver uma parada cardíaca. Eu me levantei, vesti-me e fiz todo o trajeto até o hospital antes de me dar conta de que ela se esquecera de me dizer onde estava o paciente, em que enfermaria. Felizmente, eu tinha calculado o lugar certo - através de um sexto sentido, chegava-se ao ponto de se ficar tão habituado que, quando se era despertado, automaticamente pegava-se a informação certa, sem se ser avisado.

Isso tinha suas desvantagens ocasionais como, por exemplo, num dos freqüentes chamados de noite para ver um doente que havia caído da cama. Automaticamente, dirigi-me para a enfermaria e naturalmente o encontrei ali em boa forma. Depois de telefonar para seu médico, prescrevi uma injeção de Seconal, para ter a certeza de que dormiria, e voltei-me arrastando para a cama. Tudo isso sem estar completamente desperto. Pouco depois, a mesma enfermeira tornou a telefonar para dizer que o doente caíra de novo, desta vez num lance de escadas. Então, tornei a levantar-me, entrei na enfermaria e saí. No meio do caminho, enquanto subia um lance de escada, tropecei numa massa inerte que jazia no chão. Ali, de pé, estonteado, levei bem uns dez segundos para me reprogramar para o fato de que, diante de mim, jazia o doente que eu tinha vindo ver. Ele devia estar no andar de cima! Mas, naturalmente, ele estava onde estava por ter caído pelas escadas.

Como estava totalmente relaxado durante a queda, não se machucara nem um pouquinho. Acontece que todas as suas injeções - o analgésico, o anti-histamínico, o relaxante muscular, e o Seconal que eu receitara - tinham sido aplicados simultaneamente pela enfermeira e tinham agido ao mesmo tempo, assim que ele deu o primeiro passo para baixo.

Nem sempre eu caminhava num nevoeiro. Simplesmente eu desenvolvera uma espantosa habilidade de dormir enquanto me dirigia para fazer algum serviço idiota no meio da noite. Era diferente quando me chamavam para algo grave, ou quando eu estava zangado. Mas como nosso hospital sofria de uma epidemia de pacientes que habitualmente caíam da cama, aprendi a levar a cabo aquela missão apenas meio acordado.

Depois da longa caminhada no escuro, o posto das enfermeiras parecia tão brilhante como um estúdio de televisão. A enfermeira ficou muito satisfeita de me ver e mostrou o que já tinha feito. O sangue já havia sido enviado para cima e a radiografia feita, e tanto o eletrocardiógrafo como o aparelho respirador de pressão positiva já se achavam prontos no quarto do paciente. Tomei a papeleta da mão dela e esquadrinhei a observação que, naturalmente, tinha sido feita por um interno. Fui atraído por uma caixa de chocolates que estava na mesa próxima, e meti um punhado deles na boca. A temperatura estava normal. A pressão arterial alta e o pulso muito freqüente. Os chocolates recheados de cereja eram particularmente gostosos. Não consegui encontrar nenhuma explicação para o distúrbio respiratório. Tudo parecia mais ou menos normal para uma operação recente de hérnia. Retornei sobre meus passos até quase o fim do vestíbulo. Entrando no quarto, acendi a luz, que iluminou um homem pálido apoiado na cama e inspirando com muito esforço. Aproximando-me mais pude ver que ele estava muito suado, com bagas de suor brilhando na testa. Ele olhou-me por um segundo e desviou o olhar como se tivesse de se concentrar em sua respiração. Olhando de soslaio, percebi que podia ver o edifício de apartamentos pegado, e a janela de Karen, a segunda da direita no terceiro andar. Fiquei a imaginar se ela sabia que tinha saído.

Com o estetoscópio nos ouvidos, empurrei o doente para a frente e auscultei seus campos pulmonares. Os sons respiratórios estavam limpos - nada de estertores, de roncos, de chiados. Nada ali. Talvez seus campos pulmonares soassem um pouco alto; isso parecia estar de acordo com o fato de seu abdome se achar crescido e um tanto duro. Auscultando o abdome, ouvi os familiares e reconfortantes gargarejos. Os sons cardíacos estavam normais; ele não apresentava sinais de insuficiência cardíaca. Restava ver se seu estômago estava cheio de gases. A dilatação gástrica era um problema freqüente após a anestesia geral. Disse à enfermeira para trazer um tubo nasogástrico, enquanto eu ligava o aparelho de ECG. Esses aparelhos de ECG eram uma fonte de irritação para mim toda vez que eu tentava usá-los à noite, sem técnicos para me ajudar. Como parecia que eu jamais conseguia uma boa ligação com a terra, o traçado errava por toda a página. Mas desta vez arranjei uma muito boa prendendo o fio terra ao cano de esgoto da pia, e obtive um traçado enquanto o paciente jazia ali ofegante. Antes de eu ter acabado o ECG, a enfermeira retornou com o tubo nasogástrico. Ao lubrificar o tubo, não pude deixar de pensar naquele médico dormindo em sua casa, enquanto eu ali estava colocando o tubo nasogástrico.

Nos últimos dez meses, uma coisa eu conservava, e até ficara mais forte - a satisfação de conseguir o resultado desejado rapidamente - e me senti aliviado quando retirei uma grande quantidade de fluido e ar do estômago do paciente. Contudo, meu alívio foi mínimo, comparado ao dele. Ele ainda sentia qualquer coisa, mas a respiração estava muito mais fácil. Quando ele me agradeceu muito, precisou de duas inspirações para a frase sair. Tornei a auscultar seus pulmões, apenas para ter a certeza de que não havia qualquer fluido neles. Estavam limpos. Suas pernas também estavam normais, sem apresentarem qualquer edema ou sinais de tromboflebite. Olhando por baixo do curativo, achei que a incisão estava ótima, sem muita secreção. Disse à enfermeira que providenciasse um aparelho de sucção e o adaptasse ao tubo nasogástrico, enquanto eu ia para o posto das enfermeiras com o ECG.

Eu ainda estava muito cru para ler o ECG, mas aquele me parecia bom. Pelo menos, não havia arritmias. Era possível que houvesse uma leve indicação de esforço do coração direito com a onda S, porém nada de drástico. Por medida de precaução, resolvi chamar o clínico residente para apoio da leitura do ECG. Depois de um ou dois minutos embaraçosos, durante os quais eu explicava a situação e o residente ouvia, ele acabou por dizer que não viria ver o ECG por se tratar de um paciente cirúrgico particular.

Eu podia entender sua relutância. Parecia com a minha quando o interno clínico de serviço me chamou à noite para ajudá-lo num corte ou algo mais num paciente clínico particular. Tivessem os assistentes feito com que sentíssemos que era uma questão de cooperação mútua, cada um cuidando do que lhe competia, e aqueles pequenos e aborrecidos serviços seriam muito mais fáceis de realizar. Mas na Medicina americana, grande parte da diferença entre um interno e um médico já emplumado é, literalmente, a diferença entre o dia e a noite. Eles nos deixavam fazer virtualmente qualquer coisa depois que o sol se punha, quando terminava a parte do ensino, porém nada durante o dia, quando podíamos aprender alguma coisa. Como sempre, umas poucas agradáveis exceções provavam a regra - porém muito poucas.

No início do meu internato, eu tinha sido bastante ingénuo quanto a este relacionamento entre senhor e escravo, nada sabendo sobre os meus direitos. Até ficar esgotado por aquilo, eu tentava ver todos os pacientes, particular ou gratuito, no serviço, escola ou não, por mais insignificante que fosse a queixa. No fim, contudo, era uma questão de sobrevivência para mim. Agora, toda vez que sou chamado à noite para algum serviço de rotina referente a um paciente particular - por exemplo uma elevação de temperatura - sempre perguntava o nome do médico. Se ele estava do lado errado da resposta - e na maior parte das vezes estava - eu dizia à enfermeira que telefonasse para ele que os internos não são obrigados a ver os casos particulares, exceto numa emergência. Claro que isso não valia para os casos particulares no serviço-escola. Então eu tinha de ir, fosse quem fosse o médico.

Os médicos de meia-idade ou mais velhos adoravam fazer comparações individuais entre nossa suposta boa vida e os seus dias de disciplina espartana. Diziam que há trinta anos os internos viviam bem abaixo do nível da pobreza. Nossos suntuosos salários, que eu reconhecia serem cerca da metade do que se pagava a um ajudante de encanador, simplesmente os enraivecia. Onde vai parar o mundo?, costumavam dizer. Porque, tínhamos de fazer as observações de todos os pacientes, fosse qual fosse o seu status, jamais dormíamos, não dispúnhamos de todos esses aparelhos fantásticos, e assim por diante. Sua atitude para conosco era uma simples questão de despeito: eles tinham sofrido, e por isso nós precisávamos sofrer. Assim segue a educação médica nesta era de luzes, passando de geração para geração: cada uma tira sua doce vingança.

Onde ficava o paciente em tudo isso? Apanhado bem no meio - o lugar mais desconfortável, com as granadas e bombas da guerra médica caindo em torno dele.

Curiosamente, a maior parte da legislação que saía de Washington só piorava a situação. A força era muito forte no sentido de fornecer cada vez mais cuidados particulares à custa do governo, porém sem nenhuma tentativa ou par-a controlar a qualidade dos cuidados médicos ou para educar o paciente em potencial. Armados de repente com a força do dólar, pacientes anteriormente indigentes eram lançados no mercado da Medicina sem qualquer noção de como escolher um médico e, de certo modo, como se levados por um grande e maldoso plano, pareciam se dirigir aos bandos para os marginalmente competentes Doutoresem-Medicina, cuja clínica dependia do volume, e não da qualidade. O resultado imediato disso foi que os tipos de pacientes que os internos e assistentes costumavam cuidar estavam agora aparecendo nas enfermarias particulares sob os reduzidos cuidados de médicos que, como o Supercharger, não sabiam como tratar, e muito menos ensinar. Até o velho Roso tornara a aparecer, por causa de um problema sem importância, sob os cuidados de um médico particular que não queria que ninguém da casa metesse o nariz na papeleta. Apertados em matéria de dinheiro, os internos eram forçados a cair nas garras desses médicos arcaicos a fim de ganharem experiência no trato com certos tipos de casos. Todo mundo sofria. No passado, quando esses pacientes eram admitidos para a equipe de serviço, eram cuidados com o auxílio dos melhores especialistas. Logicamente, acontecia que os assistentes mais capazes e entendidos se achavam também na equipe de ensino, pois a comissão de ensino do hospital e a equipe da casa escolhiam os melhores que podiam. E os assistentes mais interessados pelo ensino eram quase invariavelmente os mais entendidos. Se acontecia eu ser chamado à noite para ver um de seus pacientes, eu ia, fosse qual fosse o motivo.

Mas agora, em vez de serem admitidos para a equipe de serviço, onde eram de um valor inestimável para os propósitos do ensino e onde, ao mesmo tempo, recebiam melhores cuidados médicos do que qualquer outra pessoa no hospital, esses antigos pacientes da equipe estavam, todos, correndo para os Neandertais. Como podia algo tão vital quanto o ensino e o tratamento médicos ser estragado assim? Para mim, isto era particularmente apavorante no que dizia respeito à cirurgia, e certamente fazia com que os ingleses, os suecos e os alemães parecessem iluminados. Só os especialistas têm permissão para operar em seus hospitais. Nos Estados Unidos, qualquer maluco com um diploma de médico pode realizar qualquer tipo de operação que deseje, desde que o hospital o permita. Eu sabia quão inadequado fora o meu treinamento na escola de Medicina com respeito aos cuidados para com o doente; e, no entanto, sabia também que podia obter uma licença para praticar a Medicina e a Cirurgia em qualquer um dos cinqüenta Estados. Que é que há na alma do americano que nos permite gastar bilhões policiando o mundo mas faz com que nos conformemos com um sistema médico retrógrado e criminoso? Como todas as demais questões importantes durante o meu internato, esta também foi posta de lado devido à exaustão. Comecei a aceitar a situação como se não houvesse alternativa. De fato, no presente, não há alternativa. Agora o problema só surgia em minha cabeça quando estava se formando alguma dificuldade, e eu sabia que ia ter muitas com o Supercharger com aquelas radiografias e outros exames que eu havia pedido para o seu doente da herniorrafia. Mais uma vez pus-me a pensar por que não me dedicava à pesquisa.

Antes de telefonar para o Supercharger e acordá-lo, quis dar uma olhada na radiografia que tinha sido feita com o aparelho portátil. Provavelmente, ele ia explodir quando soubesse disso pela manhã, mas eu pouco estava ligando.

O vestíbulo ficava cada vez mais escuro à medida que eu, penosamente, caminhava pelo labirinto do hospital, na direção do raio X. Quando cheguei ali, o silêncio e a escuridão eram tão grandes que não pude achar o técnico. Por fim, em desespero, peguei o telefone e disquei um dos números do departamento de raio X. Em torno de mim, cerca de doze telefones começaram a tilintar. Em algum lugar, alguém atendeu a um deles, fazendo com que os outros se calassem. Eu disse a quem falava, que estava em seu departamento e queria ver uma radiografia feita por ele, há mais ou menos uma hora, com o aparelho portátil, ao que ele apareceu por uma porta a menos de três metros, piscando os olhos e enfiando a camisa para dentro das calças. Acompanhei-o até uma penca de negatoscópios, esperando enquanto ele remexia numa pilha de negativos.

A propósito do departamento de raios X - parecia que ali nunca se sabia onde estava nada. Esta chapa tinha menos de uma hora de idade, e ainda assim ele não podia encontrá-la. Ele não podia entender. Era sempre o que diziam, e eu tinha de concordar com eles. Durante o dia, as secretárias eram muito boas para achar aquelas malditas coisas, mas eram as únicas. Enquanto o técnico passava de uma para outra pilha de filmes, apoiei-me no balcão e esperei. Por fim, ele puxou uma chapa de uma pilha, supostamente já interpretada. Prendendo-a no negatoscópio, ele ligou a luz, que piscou um par de vezes e depois se firmou. A chapa estava às avessas, e virei-a.

Estava uma droga - a radiografia, não o paciente. De fato, os aparelhos portáteis não eram nada bons, e eu tinha a certeza de que o radiologista ia me dizer que fora ridículo eu pedir radiografias portáteis quando o doente podia ter sido levado para cima a fim de fazer uma boa chapa. Eu jamais tentaria explicar que o aparelho portátil se justificava porque eu podia pedi-lo pelo telefone, do meu quarto, e depois recebê-lo - desde que ele não se perdesse - quando eu tivesse chegado no quarto do doente. Do contrário, eu ia esperar sentado por uma hora, no meio da noite, enquanto o paciente fazia uma radiografia regular. Este tipo de raciocínio não fazia muito sentido para alguém - digamos, um radiologista - que dormia a noite toda.

Para um aparelho portátil, aquela chapa estava normal, o que significa dizer que estava borrada, manchada, exceto pelo gás no estômago e pelo fato de que o diafragma aparecia elevado. Mesmo isto era enganoso, pois com o cara deitado na cama nunca se podia ter a certeza de que ângulo o técnico de raios X havia batido a chapa. De qualquer modo, tudo parecia bem.

A seguir telefonei para a técnica de laboratório e perguntei pelo resultado dos exames de sangue. O laboratório de sangue era muito bom; geralmente eles davam logo o resultado. Mas naquela noite, a técnica queria que eu me identificasse, porque o hospital não permitia que se desse essas informações a pessoal não autorizado. Que coisa ridícula! Quem mais poderia estar telefonando às três horas da madrugada para saber do resultado de um hemograma? Eu me identifiquei como Ringo Starr, o que pareceu satisfazer a moça. O hemograma estava normal.

Armado com todos esses dados, telefonei para o Supercharger. O ruído do telefone tocando do outro lado era uma delícia para os meus ouvidos. Ele tocou quatro, cinco, seis vezes. Fiel à sua reputação, o Supercharger tinha um sono de pedra. Finalmente ele atendeu.

- Aqui fala o Dr. Peters, do hospital. Vi seu doente, o da hérnia, que estava respirando com dificuldade.

- Bem, como está ele?

- Muito melhor, doutor. Seu estômago estava muito dilatado, e retirei quase meio litro de líquido e um bocado de gás com uma sonda nasogástrica.

- Eu achava que era isso mesmo.

Que mentira, pensei eu, convicto de que o Supercharger não tinha a menor idéia de onde pudesse estar o problema. Eu continuei.

- Achei aconselhável examinar os outros sistemas também, e assim, tenho os resultados de um hemograma, de uma radiografia do tórax, e de um ECG. Todos estão aceitáveis. Tudo, exceto o diafragma, que...

A explosão veio pelo telefone.

- Meu Deus, rapaz, você não precisa de tudo isso. Meu doente não é nenhum milionário, e isto aí não é a Clínica Mayo. Que diabo está você fazendo? Eu seria capaz de lhe dizer o que havia de errado usando nada mais do que um estetoscópio e percutindo um pouco. Vocês guris acham que o mundo foi feito para as máquinas. Quando eu fazia o seu serviço, nós não... - Eu podia imaginar seu rosto congestionado, as veias pulando no pescoço. Sinceramente, eu esperava que ficasse insone pelo resto da noite.

- E o que fez você com aquele tubo nasogástrico, Peters?

- Liguei-o ao aparelho de sucção, doutor, e deixei-o ali.

- Você não sabe nada? Ele vai pegar uma pneumonia, com esta coisa nele. Tire-a imediatamente.

- Mas, doutor, o paciente ainda não está respirando bem, e receio que seu estômago volte logo a se dilatar.

- Não discuta comigo. Tire. Nenhum de meus operados de hérnia botam tubos nasogástricos. É uma de minhas regras, Peters, básica. - Click. Fiquei segurando um telefone mudo.

Voltei para a enfermaria e tirei o tubo. O doente ainda estava fazendo força para respirar, mas não tanto quanto antes. Quando eu saía chegava uma enfermeira, obviamente um pouco surpresa e nervosa de me ver ali. Vinha com uma seringa. Como se fosse culpada, ela disse que o Supercharger tinha mandado aplicar mais sedativo. Eu estava tão chateado que nem perguntei o que era; limitei-me a ir embora.

Agora eu tinha que decidir para onde ir, se para o meu quarto, se para o apartamento de Karen. Este último não fazia sentido, pois com toda a certeza Karen estaria dormindo profundamente. Além disso meu material de barbear não estava lá - política que nós seguíamos para evitar explicações ao outro cara. Se eu voltasse ao meu quarto, poderia me barbear de manhã, dali a poucas horas. Já passava das três. Assim, retornei ao meu alojamento e chamei a telefonista da noite para dizer-lhe que não estava mais no outro número. Ela respondeu que entendia. Fiquei a pensar até onde ela entendia.

Mal botei a cabeça no travesseiro e o telefone tornou a tocar. Jesus, pensei eu, provavelmente era alguma entrada na UE. Que noite de terça-feira mais filha da puta! Mas era a mesma enfermeira dizendo que o doente da hérnia estava muito pior, e que o médico particular queria que eu o visse imediatamente. Eu estava ficando cansado desta rotina sobe, desce, sobe, desce, vendo pacientes para os quais a minha responsabilidade era tão confusa e indistinta que eu nunca sabia onde eu estava. As ironias da situação eram consideráveis. Aqui, o Supercharger nem bem tinha acabado de berrar comigo por eu ter pedido alguns exames de laboratório e por ter colocado o tubo nasogástrico, e telefonara para a enfermeira - não para mim - para fazer uma injeção; e agora queria que eu visse de novo o doente. Isso não faz nenhum sentido até que você percebe que nada mais é do que um meio conveniente de deixar o médico continuar o seu sono. Era óbvio que o paciente não estava recebendo pelo que havia pago. E eu? Bem, eu estava ganhando menos que zero em matéria de ensino. Um dia, se eu tivesse sorte, esperava ser um médico como ele e não dar a mínima importância ao interno, ao doente, ou ao tratamento médico em geral.

Só me restava, pois, tornar a descer pelo elevador, atravessar o longo vestíbulo, penetrar na obscuridade da luz azul que envolvia o hospital adormecido, fazendo distintos ruídos com minhas passadas, como se estivesse no vácuo. Agora reinava a paz, mas quando chegasse sete e meia, eu estaria num estado deplorável para a cirurgia. Eu me sentia como se devesse procurar o hospital para sofrer um checkup total. Eu havia perdido quase sete quilos desde o meu primeiro dia de internato.

De repente, por trás de mim, o mundo foi abalado por um ruído delirante de vidro e metal se entrechocando. Virando-me, vi o interno da UE correndo em minha direção na luz azul do vestíbulo, segurando um laringoscópio e um tubo endotraqueal. Atrás dele, uma enfermeira empurrava um carrinho, que fazia o barulho.

- Parada cardíaca - falou ele ofegante, fazendo-me sinal para que eu o seguisse. Agora nós ambos corríamos, e eu imaginei que fosse o paciente da hérnia.

- Em que andar? - perguntei.

- Na enfermaria particular deste andar. - Ele atravessou impetuosamente as portas de vaivém.

Uma luz brilhava do quarto onde eu tinha estado, e nós entramos. O paciente achava-se no chão perto da pia. Ele havia arrancado o tubo do soro endovenoso do braço e saído da cama. Duas enfermeiras estavam ali, uma delas tentando fazer uma massagem cardíaca.

Peguei a prancha que a enfermeira tinha trazido e atirei-a sobre a cama para ter uma superfície mais firme onde fazer a massagem.

- Ponham-no ali - gritei, e nós quatro o levantamos e o colocamos em cima da prancha. Ele estava sem pulso e sem respirar. Seus olhos estavam abertos, as pupilas muito dilatadas, e a boca grotescamente aberta. O interno da UE esmurrava o peito com muita força; nenhuma resposta.

Apertei o nariz do doente, colei minha boca à dele e soprei. Não houve resistência, e o peito ergueu-se levemente. Tornei a respirar por ele e fiz sinal para que me dessem o laringoscópio, enquanto o interno da UE começava a massagem cardíaca, subindo na cama e ajoelhando-se ao lado do paciente, para fazê-lo. De cada vez que ele comprimia o peito, a cabeça do enfermo sacudia violentamente.

- Você é capaz de manter a cabeça firme? - perguntei a uma das enfermeiras. Ela tentou, mas, realmente, não pôde. Entre as sacudidelas, introduzi o laringoscópio pela boca e pela garganta. A epiglote aparecia e sumia alternadamente. Empurrando o laringoscópio mais um pouco, levantei-o e ele bateu contra seus dentes. Nada. Eu não conseguia orientar-me nas dobras vermelhas da membrana mucosa. Retirando rapidamente o instrumento, dei mais alguns sopros entre as compressões no peito. O interno da UE estava conseguindo ótimas incursões esternais; o esterno se elevava e descia cerca de 5cm, sem dúvida forçando muito bem o sangue através do coração.

Tornei a tentar com o laringoscópio, enfiando-o pela epiglote, a ponta do instrumento voltada para cima, depois mais um pouco e para baixo. Aí, durante um segundo, eu vi as cordas vocais.

- O tubo endotraqueal. - Uma enfermeira entregou-me. Eu não tirava os olhos da garganta dele.

- Pressione a laringe - disse eu, indicando o pescoço. A enfermeira fez pressão. - Com mais força. - Então tornei a ver as cordas e empurrei o tubo. - O balão Ambu. - Adaptei o balão respiratório e, enquanto o comprimia, fiquei observando seu peito. Em vez de o tórax elevar-se, foi o estômago que fez uma pequena saliência. - Diabo! Errei! - Retirei o tubo, tornei a unir minha boca à do paciente e soprei mais duas vezes. De novo, o laringoscópio. Desta vez, eu tinha de acertar. - Torne a empurrar a laringe.

- Puxei com força, e então pude ver as cordas vocais, entre cada compressão do tórax. O interno da UE interrompeu seu ritmo por um segundo, enquanto eu fazia o tubo deslizar; depois recomeçou imediatamente a massagem. Com o balão Ambu adaptado e comprimido, o peito ergueu-se lindamente. A enfermeira da UE havia colocado as ligações para o ECG, e obtivemos um blip no osciloscópio. Não estava muito nítido.

- Ponha o ECG na derivação dois - falou o interno da UE. Estava melhor. Eu estava comprimindo o balão Ambu, quando chegou uma enfermeira anestesista. Ela se encarregou do Ambu.

- Punção. - A enfermeira me entregou um cateter, e eu passei um garrote de borracha bem apertado no braço dele. As punções podem ser complicadas, principalmente quando se tem pressa, mas são muito mais rápidas do que dissecar o vaso, porque para colocar o trocarte dentro da veia basta empurrá-lo através da pele, em vez de fazer uma incisão para a dissecção. Enfiei o trocarte no braço do paciente, e avancei até achar que estava na veia; felizmente o sangue apareceu na seringa - mas aquilo era apenas metade da batalha. Empurrei o cateter de plástico para a frente, com a seringa, esperando que ele ficasse dentro da veia. Depois, avançando e recuando a agulha, tentei introduzir ainda mais o cateter. Quando puxei a agulha, fluiu pelo cateter um pouco de sangue marrom avermelhado escuro, que correu pelo seu braço e em cima da cama. Uma enfermeira ainda lutava com o tubo plástico do frasco de soro. Eu me limitei a deixar o sangue escorrer; não fazia nenhuma diferença. Depois de fixar a extremidade do tubo ao cateter, pude ver o sangue desaparecer deste, retornando à veia, assim que comecei o soro. Arrancando o garrote de borracha, examinei o conta-gotas e abri-o todo, até o líquido correr livremente. - Esparadrapo. - Fixei o cateter ao braço. O ECG ainda mostrava uma fibrilação rápida, porém ruim. - Adrenalina! - gritei. Achei que um estimulante cardíaco podia reduzir a fibrilação antes de tentar fazer o coração voltar ao ritmo normal, eletricamente.

- Que tal injetar diretamente no coração? - sugeriu o interno da UE.

- Experimentemos primeiro na veia. - Eu não confiava muito no processo intracardíaco. A enfermeira entregou-me uma seringa dizendo que era uma solução a 1:1000 para lOcc. Injetei-a rapidamente no novo local da aplicação do soro, através de uma pequena extensão do tubo de borracha, tendo o cuidado de apertar a extremidade distal deste, a fim de impedir que a adrenalina retornasse para o frasco de soro. - Bicarbonato - falei para a enfermeira, estendendo minha mão que estava livre. A enfermeira me deu uma seringa, dizendo que continha 44 miliequivalentes.

Como vai indo com as compressões no peito? - perguntei ao interno da UE.

- Muito bem - respondeu ele.

Injetei o bicarbonato no mesmo local do soro - e ao fazêlo, piquei meu dedo, atravessando toda a seção do tubo de borracha com a agulha. Chupando o dedo indicador, eu olhava o ECG. Aos poucos, ele começou a mostrar uma fibrilação mais intensa.

- E se desfibrilássemos agora? - insinuou o interno da UE. O desfibrilador já estava carregado.

Uma enfermeira segurava as placas, já untadas com a geléia condutora. Parando a compressão que vinha fazendo, o interno pegou as placas, colocando uma sobre o coração, e a outra no tórax. -

Para fora da cama! - A enfermeira largou o Ambu. Wham! O paciente deu um pulo, seus braços se sacudiram, estremecendo, e o traçado desapareceu do ECG. Quando voltou, estava como antes.

Chegou um médico residente, ofegante, e rapidamente se inteirou da situação.

- Prepare um soro bicarbonato endovenoso a 5% e me dê um pouco de xilocaína. - A enfermeira lhe passou SOmg de xilocaína, que ele me entregou e eu injetei. Tornamos a desfibrilar. Com efeito, tentamos cerca de quatro vezes antes da fibrilação desaparecer. Mas em vez de se estabelecer um ritmo cardíaco normal, desapareceu toda a evidência de atividade no coração, já que o traçado na tela do ECG tornou-se perfeitamente retilíneo.

- Diabo! Assistolia! - exclamou o residente, observando o traçado.

Adrenalina, isuprel, atropina, marca-passo, tentamos tudo o que tínhamos. Enquanto isso, as pupilas do homem retornavam do estado de dilatação em que se encontravam quando começamos, a quase o tamanho normal. Pelo menos, isso indicava que o oxigênio estava chegando ao seu cérebro, que nossa massagem cardíaca estava sendo efetiva.

Chegou outro interno que assumiu a parte da massagem, a fim de que o interno da UE pudesse voltar às suas obrigações principais, sobre o camarada. Então eu fiz uma série de massagens.

- E se déssemos cálcio? - sugeriu o outro interno.

O residente injetou um pouco de cálcio. Eu pedi outra sonda gástrica, mas só pude introduzi-la depois que o interno me substituiu nas massagens. Não havia muita coisa em seu estômago, exceto um pouco de gás, provavelmente o que eu havia insuflado antes, por engano, através do tubo endotraqueal erradamente colocado. Contei ao residente que aquele paciente era o mesmo para cujo ECG eu o havia chamado antes. Disse-lhe também que a radiografia feita com o aparelho portátil estava, de um modo geral, limpa.

Olhando para trás, fiquei surpreso de ver o Supercharger ali, de pé, observando nossa febril atividade, com toda a calma. Acho que as enfermeiras o haviam chamado. Ele não dizia uma palavra. O residente fez várias injeções intracardíacas de adrenalina. Contudo, a assistolia persistia, e nossas opções iam se reduzindo. Comprimindo e respirando, comprimindo e respirando durante mais quinze minutos, víamos o aparelho traçar uma linha reta horizontal na tela do osciloscópio.

- Muito bem, chega. Agora podem parar. - Era o Supercharger quem falava, depois de permanecer em silêncio durante trinta minutos. Suas palavras nos surpreenderam e não interromperam nossa rotina, e não paramos logo, continuando a respirar e a pressionar como se ele nada tivesse dito. - Chega - repetiu ele. A enfermeira anestesista, que comprimia o Ambu, foi a primeira a parar. Depois o interno, que estava massageando o tempo todo. Então todos nós nos sentimos cansados e conscientes de que podíamos ter parado antes, se as pupilas do homem não se houvessem contraído tão bem. A constrição das pupilas é um dos sinais do revivescimento; fora aquilo que nos fizera insistir. Era claro, porém, que desta vez tinha sido um sinal falso. Paramos, o homem estava morto. O Supercharger saiu e desapareceu pelo corredor, na direção do posto das enfermeiras, onde preparou os papéis e telefonou para os parentes. As enfermeiras desligaram o elearocardiógrafo, enquanto eu retirava a longa agulha intracardíaca.

- Como está você, para atingir o coração? - perguntei ao outro interno.

- Tenho conseguido cem por cento, mas só com duas tentativas - respondeu ele.

- Eu só consigo cinqüenta por cento - confessei. Depois de adaptar uma seringa de lOcc à agulha, encaminhei-me para o paciente e procurei a crista transversa, chamada ângulo de Louis, mais ou menos no meio do esterno. Ela se orientou em relação à caixa torácica. Foi, então, uma questão muito simples encontrar o quarto espaço intercostal à esquerda. A agulha penetrou facilmente, e quando puxei o êmbolo, a seringa encheu-se de sangue. Bem no alvo! - Acho que o meu problema é que eu tenho usado o terceiro espaço intercostal - aventurei. Tentei de novo, desta vez no terceiro espaço e quando aspirei não veio sangue algum. - Aí está. Agora você. - Entreguei-lhe a seringa, e ele pegou o coração imediatamente.

Retirei o tubo endotraqueal do morto, limpando a mucosidade um tanto espessa da extremidade no lençol, onde ficou um traço cinzento.

- Foi mesmo difícil entubar este cara. Quer experimentar? - Segurando com todo o cuidado o tubo entre os dedos polegar e indicador, estendi-o para o outro interno. Eu agora estava muito bom nas entubações, pois nos últimos meses eu insistia em praticar toda a vez que não tínhamos sucesso numa ressuscitação, como aquela, o que acontecia com certa freqüência. Ele pegou o laringoscópio e introduziu-o. Falou que não conseguia ver nada. Espiei por cima do seu ombro e lhe disse que ele não estava levantando suficientemente a ponta da lâmina. - Levante até você achar que vai deslocar a mandíbula dele. - Seu braço tremeu, quando ele forçou. Ainda havia algo de errado.

Deixe-me tentar. - Puxei para cima e, depois, com minha mão direita pressionei a laringe para baixo. As cordas vocais ficaram à vista. - Ele tem ali um ângulo muito agudo. Tente de novo, mas pressione um pouco a laringe. - A enfermeira meteu a cabeça, dizendo que precisava do laringoscópio para poder voltar com o carro do material para a UE. Com um aceno de mão, afastei- a por um segundo, enquanto olhava por sobre o ombro do interno. Ele soltou um som de satisfação quando, finalmente, viu as cordas vocais. Então, saindo, entreguei o instrumento à enfermeira, que cacarejou em desaprovação.

De repente, quando a atividade se deslocou para os vivos nas outras partes do hospital, senti-me sozinho, como num desfile soturno. Tornei a pensar se ia para o apartamento de Karen ou para o meu. Era uma hora de solidão, principalmente porque o homem tinha morrido. Eu fora uma das últimas pessoas a vê-lo vivo. Mas eu tinha feito tudo o que era possível - nós todos tínhamos - e achava que havíamos tentado tudo. Ademais, fora o Supercharger quem me fizera tirar a sonda gástrica e que lhe havia aplicado uma droga qualquer. Não era culpa minha, embora provavelmente ele não pensasse assim.

Sem dúvida ele ia pôr a culpa em todos aqueles exames caros. Este era um dos problemas da organização no que dizia respeito aos doentes particulares. Eu estava à disposição para ver o paciente mas não tinha qualquer responsabilidade real, ao passo que o assistente assumia toda a responsabilidade mas não estava presente à cena. Isso me punha numa situação ambígua, para dizer o mínimo. Era muito complicado para as 4:00 da manhã. Contudo, eu estava curioso sobre a última injeção ordenada pelo Supercharger. A enfermeira tinha dito que era um sedativo. Se eu voltasse para ver a papeleta, ia me encontrar de novo com o patife, e ele teria e aproveitaria a oportunidade para fazer alguns comentários sobre os dispendiosos exames de sangue. Mas, enveredando pelo vestíbulo, achei que valia a pena correr o risco.

O Supercharger já tinha saído. Foi um alívio; era também uma indicação de seu interesse pelo ensino. Seconal, dizia a ordem na papeleta. Nada acrescentava ao que sabia. Relendo toda a observação, reparei que o homem não tinha qualquer história cardíaca. O estômago e os rins também estavam normais. Depois li que a hérnia fora um problema muito grande, do tipo basquetebol; ainda assim, isto não parecia explicar o andamento do caso. Algo o levara a uma insuficiência respiratória, que terminara na insuficiência cardíaca. A distensão gástrica, que eu havia aliviado podia ter concorrido para o problema, mas não o causara. E quanto à anestesia?, pensei. Passando para o relatório da anestesia, li que tinha sido induzida por pentotal, e mantida por óxido nitroso, sem complicações. Procurei, em vão, juntar todas as peças, mas não consegui aclarar a confusão. Eu estava cansado demais. Era melhor correr para a cama, pensei cinicamente, para estar ali quando a telefonista me acordasse para o serviço do dia. Muito engraçado.

Mas era uma noite de terça-feira ruim, muito ruim. Em geral, as noites de terça-feira eram muito ativas, como as das segundas-feiras, já que tanto as segundas como as terças-feiras eram sempre cheias de operações, e isso significava um bocado de curativos, dores e problemas com os drenos durante a noite; assim mesmo, eu conseguia dormir um pouco. Desta vez, não: mal eu tinha posto a cabeça no travesseiro quando o telefone tocou de novo. Era do centro cirúrgico; ia chegar um caso de amputação e eu era solicitado. Eu sempre ficava perturbado quando se tratava de uma amputação, principalmente da perna. Uma apendicectomia, uma colecistectomia ou qualquer outra operação interna deixavam a superfície da pessoa intacta. Mas levantar uma perna e um pé da mesa de operação, arrancando-os da pessoa a quem pertenciam, era uma alteração irreversível. Por mais habituado que eu estivesse, jamais conseguia encarar a remoção de um membro humano como apenas mais um procedimento médico.

Mas tinha de ser feito. Assim, levantei-me de novo, com a mais completa falta de motivação, e arrastei-me para o centro cirúrgico. Avental, gorro e máscara. Colocada a máscara, puxei-a para baixo, deixando os cordões atados, e me estudei diante do espelho. Mal reconheci o homem exausto que dele olhava para mim.

Felizmente, ao entrar na sala de operações propriamente dita, vi que, no final de contas, não ia ser uma amputação, mas uma tentativa para salvar uma perna cujo joelho tinha sido esmagado por um caminhão. Apenas o nervo e a veia estavam intactos, estendendo-se pelo buraco onde existira o joelho. A artéria, os ossos, tudo o mais havia desaparecido. Para surpresa minha, encontrei ali dois cirurgiões particulares, ambos excelentes angiologistas. Perguntei se eu era necessário, desde que os dois estavam ali, e eles responderam:

- Talvez. - Isso não me deixava escolha senão lavar-me e pôr um avental esterilizado e luvas.

Meu trabalho consistia em ficar na extremidade da mesa, de frente para o anestesista, e segurar bem o pé, com ambas as mãos em concha em torno dele. Claro que ambos os cirurgiões tinham de ficar próximo à extremidade da mesa onde eu estava para trabalharem no joelho. Porém, como de hábito, ficavam de costas para mim - principalmente o cirurgião à minha esquerda, que se inclinava sobre a mesa. Eu nada podia ver. O relógio à minha direita indicava que eram quase 5:00 horas da manhã, quando a operação realmente começou. Pela conversa deles, deduzi que estavam colocando um enxerto na artéria principal, que desce por trás do joelho até o pé. Passou-se uma hora, tão lentamente quanto possível, o ponteiro dos minutos arrastando-se em torno do mostrador. Eles colocaram o enxerto, e o pulso apareceu no pé, para desaparecer depois de alguns minutos. Isso queria dizer que os cirurgiões tinham de abrir o enxerto e retirar um coágulo de sangue recente.

Conseguiram outro pulso, que tornou a sumir. Outro coágulo. Nova abertura. Coágulo. E o processo se repetia. Eu estava espantado com a fria persistência e paciência deles.

Sem nada para fazer e nada para ver exceto o relógio, e ali de pé, imóvel, com as mãos numa única posição, comecei a sentir um sono irresistível. Os sons das vozes dos cirurgiões entravam e saíam de minha cabeça juntamente com a imagem da sala. Meio consciente, lutei para me manter acordado, mas perdi; adormeci, ainda segurando o pé. Não caí. Ao contrário, minha cabeça foi descendo lentamente até tocar de leve no ombro do cirurgião à minha esquerda. Isso me fez acordar, tão perto do tecido do avental dele, que eu podia ver o entremeado dos fios. O cirurgião olhou em derredor, e me fez recuar e ficar ereto, com a ponta de seu cotovelo. Por sobre a máscara, uns olhos azuis dardejaram-me um olhar de franca desaprovação. Eu nem me incomodei, mas o incidente serviu para me manter no jogo, porque fez retornar toda a minha fúria contida.

Agora eram oito horas da manhã e ali estava eu, depois de uma noite sem dormir, com um programa cirúrgico cheio à minha frente, ainda de pé, e segurando aquele pé como um peso morto.

Tarefa para uma penca de sacos de areia. De fato, alguns sacos de areia teriam feito um trabalho muito melhor; eles não vergam nem se irritam. Não era esta a primeira vez que eu cochilava na sala de operações. Uma vez, ajudando num caso de tireóide, depois de passar uma noite sem dormir, eu havia cambaleado enquanto segurava os afastadores. Por apenas um instante, creio, porque de repente dei um daqueles solavancos próprios de quem cai a dormir, e que assustou o cirurgião. Ele perguntou, em parte apenas por brincadeira, se eu ia ter um ataque epiléptico. Mas não creio que o cirurgião tenha percebido que eu adormecera. Este percebeu, e ficou irritado, embora juntamente com o companheiro tenham continuado a me ignorar. Por fim, quando tudo terminou e eu me preparava para sair, ele não se conteve:

- Bem, Peters, se dormir durante uma operação indica o seu interesse pela Cirurgia, acho que o fato devia ser levado à apreciação da diretoria.

Em vez de mandá-lo para o inferno, recuei e aleguei a falta de sono e o fato de não poder ver o campo operatório. Ele não se impressionou.

- Aviso-o para que isso não se repita.

- Não, senhor. - Saí, alimentando débeis pensamentos assassinos.

Há mais de uma hora que o programa regular das operações tinha começado. Na verdade, eu perdera o meu primeiro caso, que não me incomodou muito. Eu ia atuar como segundo assistente numa colecistectomia, totalmente de rotina. Além disso, eu estava marcado para mais duas operações naquela tarde. Insinuando-me na sala de estar dos cirurgiões, filei uns pedaços de pão, meu primeiro alimento em cerca de quinze horas. Quanto ao sono, eu não estava muito melhor - uma hora durante as últimas vinte e seis. Eu me sentia um pouco enfraquecido. O pensamento de um outro dia cheio na Cirurgia não era nada animador.

Na sala, fui agarrado por um residente-chefe irritado, que queria saber onde eu estivera durante as visitas. Bem cedo um interno aprende a impossibilidade de agradar a todo mundo. No entanto, ultimamente, eu estava cortando todo o meu tempo, sem agradar a ninguém, e muito menos a mim.

Fiz, ao residente-chefe, um relatório dos poucos doentes da equipe que eu tinha. Como eu estava no serviço particular de ensino, eu não tinha muitos pacientes na equipe do hospital - apenas aqueles cujas operações eu havia ajudado. Ambas as hérnias estavam passando muito bem; o gastrectomizado já estava comendo; o das varizes ia bem e já andando, e nem as hemorróidas tinham precisado de um Bacharel em Medicina. As doenças jorravam verbalmente de mim, sem quaisquer ligações com nomes das pessoas ou com pensamentos.

Quase me esqueci de mencionar o doente do aneurisma, cuja aortografia estava programada para aquele dia. Ele tinha sido mandado para nós de uma das ilhas exteriores porque sua radiografia revelava uma sombra suspeita no campo pulmonar esquerdo. Era provavelmente um aneurisma, uma bossa em sua principal artéria. Se não for operado, o aneurisma rompe, em geral em seis meses, e o paciente sangra rapidamente até morrer. Assim, era importante agir rápido, e ter um diagnóstico certo, o que podíamos conseguir melhor fazendo um aortograma. Este processo muito simples realizava-se no raio X, onde uma substância opaca aos raios X seria injetada na artéria do homem, logo acima do coração. Por alguns momentos, antes do sangue carregá-la, o contraste delineava a forma da artéria, e chapas batidas em rápida seqüência acusavam qualquer má-formação. Só então saberíamos se era preciso operar. Como fora eu quem fizera a observação do homem e o examinara, desejava estar ali, e pedi ao residente.

- Pois não - disse ele - se a tabela cirúrgica o permitir.

Esta parte do sistema não havia mudado durante os últimos nove meses. Nós, internos, éramos jogados de um lado para o outro, entre os casos, segundo o capricho da tabela cirúrgica; com freqüência tínhamos de deixar de ver nossos próprios doentes. Se você preparava um paciente, devia ficar com ele durante a realização dos exames para o diagnóstico e durante a operação.

Ninguém cuidava de discutir contra isso, quer do ponto de vista acadêmico ou do ponto de vista do bem do paciente. Não obstante, toda a vez que se precisava de um par extra de mãos para uma cirurgia de vesícula (parece que jamais nossas mentes eram consideradas), éramos sacrificados, sem o menor respeito pelo aspecto educacional ou o efeito psicológico em nossos próprios doentes.

Era uma outra maneira de nos fazer sentir o quanto éramos dispensáveis.

O residente-chefe desapareceu, e poucos minutos depois recebi um chamado do centro cirúrgico dizendo que eu havia sido designado para ajudar numa gastrectomia, que já estava em andamento.

Parece que precisavam daquelas mãos extras. Terminei o meu pão dormido e arrastei-me uma vez mais para o centro cirúrgico, traçando mentalmente um mapa do resto do meu dia na Cirurgia.

Depois daquela gastrectomia eu estava marcado para uma nefrectomia - retirada de um rim - na Sala 10, e depois as duas colecistectomias. Ao passar pela Sala 10, vi que a nefrectomia já estava em curso e que ia perdê-la. Nakano, outro interno, estava ajudando. Felizardo! Aquela nefrectomia era mais interessante para mim do que todos os outros casos juntos. O paciente tinha um tumor no rim, e o tumor precisava ser removido, mesmo não sendo maligno. Até recentemente, nesses casos, o cirurgião era obrigado a retirar todo o rim; agora, com o progresso da radiologia, esses tumores podiam ser "mapeados" com muita precisão, de modo que apenas a porção envolvida precisava ser extirpada. Bem, havia uma outra vez. Segui pelo corredor, em direção à gastrectomia para a qual eu havia sido designado. Normalmente eu também teria ficado desalentado ante a perspectiva de sair de uma colecistectomia para outra. Mas hoje eu estava com muita sorte, pois ambas estavam programadas para serem realizadas por um bom cirurgião e professor. Este homem era um oásis no deserto do conservantismo. Claro que havia sempre uma possibilidade de que a gastrectomia de que eu ia participar agora, entrasse pela primeira colecistectomia com o cirurgião professor. Eu fazia votos para que não.

Mas reparando na atividade que se desenvolvia em torno de mim, avancei lentamente para a Sala 4, sem pressa, quase que me obrigando a fazê-lo durante o trajeto. Um olhar de relance na tabela das operações afixada no quadro de avisos aumentou o meu terror. Como o Supercharger, aquele FIGURÃO era um homem de idade avançada, pouca habilidade, e nenhuma modéstia. Ele também era dado a intermináveis e egoístas histórias sobre o seu trabalho em tempos idos. Aparentemente, ele havia carregado sobre seus ombros, durante anos, a maior parte dos serviços médicos americanos, realizando feitos de habilidade e resistência capazes de estourar a cabeça. No fim, acabaram por estourar a dele. Um residente muito pândego tinha-o apelidado de Hércules, e o apelido pegou. Hércules era outro que sempre admitia seus pacientes no serviço-escola, para que a equipe da casa fizesse as observações e os exames físicos para ele. Se você pedisse uma radiografia, ou mesmo um exame de sangue extra, ele dava pulos até o teto, censurando-o por sua extravagante utilização de dispendiosos exames de laboratório. Parece que 99 por cento dos exames de laboratório tinham sido criados desde que ele se formara na escola de Medicina, ao tempo em que os Curies estavam começando a mexer com a pechblenda. Além do mais, ele tinha um hábito favorito de prescrever penicilina ou tetraciclina para todos os resfriados que apareciam na UE - prática que, virtualmente, todas as autoridades médicas, agora, estão de acordo em achar que é pior do que não fazer nada. Que, supostamente, ele fosse um de nossos professores era simplesmente uma piada ruim.

Vários meses antes, eu havia ajudado o Hércules numa retirada de um cálculo renal. Na época, ele havia acabado de ler, assim dizia, um artigo numa recente revista cirúrgica recomendando um novo processo para remoção de cálculos renais. Eu duvidava que Hércules lesse muito e com freqüência, mas aquele artigo o havia intrigado, embora ele não parecesse se lembrar do nome do artigo, do autor, nem da revista, ou mesmo da experiência que fora realizada. Enquanto ele abria caminho para o rim, acariciando a noção deste novo processo, tinha-se entregue ao hábito de ir seccionando as artérias indiscriminadamente e depois recuar para dizer:

- Cuide desse sangramento, rapaz - quase sem interromper o que estava falando.

O residente remexia dentro da ferida operatória, fazendo pressão com as compressas de gaze e pinçando os vasos, enquanto o cirurgião pontificava.

Este novo método renal de Hércules implicava colocar um fio cromado 2-O - fio muito grosso através do rim e depois, segurando ambas as pontas e usando-o como se fosse um bisturi cego, ir serrando, puxando-o para cima, através do rim. Esperava-se que isso reduzisse a hemorragia. O processo me parecia muito estranho e simples demais. Aconteceu que o meu cepticismo procedia.

Hércules se esquecera de um ponto vital, que o artigo enfatizava repetidamente: antes de "serrar" com o fio, primeiro o cirurgião devia controlar o pedículo renal - a fonte de abastecimento de sangue para o rim - de modo que o sangue que fluía pelo órgão fosse essencialmente interrompido. Ora, nosso intrépido inovador meteu mãos a obra despreocupadamente serrando o rim "para reduzir a hemorragia". O resultado foi a pior hemorragia que eu já vi numa sala de operações - exceto no dia em que o cateter arterial de uma máquina cárdiopulmonar escapou-se do paciente. Mas aquilo fora um erro legítimo. O desastre do rim não. O sangue dos vasos renais encheu imediatamente o campo operatório, transbordando e empapando a mesa e toda a equipe cirúrgica. Começamos a despejar sangue dentro do homem, através da veia, como se num poço profundo. Quatro litros e setecentos gramas mais tarde, finalmente tínhamos conseguido pinçar os vasos renais, e aspirado suficientemente a ferida operatória para que o cálculo pudesse ser extraído, e feito enormes suturas através do córtex renal. Como o corpo humano tem cerca de 5 litros e 600 gramas de sangue, tínhamos, praticamente, esgotado o pobre homem e o enchido de novo. Todo mundo ficou apavorado. Até o anestesista - normalmente num outro mundo por trás de seu anteparo transparente, com um olho no respirador automático e as mãos em seu jornal, ficou assustado.

Era, pois, muito natural que eu não estivesse muito ansioso por esta gastrectomia com o Hércules, que eu podia ver trabalhando lá dentro, enquanto me lavava. Esperava que ele não tivesse lido mais nenhuma literatura recente. Um residente chamado OToole também estava ali, mas não se via nenhum interno. Ao entrar na sala, conformado, pude sentir que o ambiente nada tinha de agradável.

- Quero uma pinça decente - berrou Hércules para a enfermeira da sala, atirando por cima do ombro a sua, que foi bater contra a parede de azulejos brancos. - Peters, isto aqui está um inferno. Como se espera que alguém opere sem ajuda? - Alguns desses cirurgiões habitualmente procediam assim. Na maior parte do tempo comportavam-se como crianças petulantes, particularmente quando se tratava dos instrumentos, que eles atiravam indiscriminadamente e usavam do modo mais inesperado - como cortar fios com tesouras de dissecção. No entanto, da próxima vez que recebiam um desses instrumentos que eles próprios podiam ter estragado, se irritavam e batiam os pés, pondo a culpa de todas as suas recentes "mancadas" na falta de equipamento adequado. Ninguém dizia nada ante essas explosões. Depois de certo tempo, a gente se habituava.

Ao me aproximar do Hércules, ele fechou minhas mãos em torno de um par de afastadores e disse que os puxasse para cima, não para trás. Uma rotina familiar. Na verdade, eu era capaz de fingir, pois no momento não havia nada para afastar. O estômago, que o Hércules estava operando, achava-se bem no alto da incisão, todo à vista. Mais tarde ele ia precisar do afastamento, quando fizesse a anastomose do estômago com o início do intestino chamado duodeno. Eu tinha muita esperança de que ele já houvesse seccionado os nervos do estômago, parcialmente responsáveis pela secreção dos ácidos. Esses nervos vagais se enrolam em torno do esôfago, e para que o cirurgião possa cortá-los, o interno tem de manter suspensa a caixa torácica; eu odiava fazer este afastamento.

Ali estava eu, de novo, em meu posto na sala de operações, contemplando o ponteiro dos minutos, que parecia pregado em seu lugar. Lutando para ficar acordado, meus olhos se embaciavam depois de cada bocejo, e meu nariz coçava incontrolavelmente do lado esquerdo, um pouco abaixo do olho, como se eu estivesse sendo atacado por um inseto sutil e sádico.

A posição de minha máscara era outra pequena tortura. De cada vez que eu bocejava, ela escorregava um pouco pelo nariz, talvez cerca de 2,5cm. Após cinco bocejos, ela deixou completamente meu nariz e ficou cobrindo apenas minha boca. Isto pôs em ação a enfermeira da sala. Ela chegou-se a mim, de lado, e suspendeu a máscara, segurando-a com tanto cuidado para evitar tocar em minha pele, como se meu rosto fosse infeccioso. Desejando aliviar a coceira, tentei várias vezes esfregar meu nariz na sua mão, enquanto ela ajustava a máscara. Ela, porém, era muito rápida, e se afastava antes que o nariz e a mão pudessem se encontrar.

Hércules estava ainda mais nervoso e excêntrico do que habitualmente. Nenhum de nós, em torno da mesa, podia prever qual seria o seu próximo movimento. Felizmente eu estava imobilizado pelos afastadores e não esperava contribuir de outro modo, mas o pobre OToole estava como um rato num labirinto desconhecido, sendo chamado para realizar, por antecipação, feitos impossíveis.

- OToole, você está comigo, ou contra mim? Segure firme este estômago! - Ao mesmo tempo que fazia esta observação retórica, Hércules bateu forte na mão esquerda de OToole com a tesoura de Mayo. OToole rangeu os dentes e ajustou sua pegada no estômago. - Pelo amor de Deus, Peters, você ainda não aprendeu a afastar? - Ele agarrou meu pulso cerca da sexta vez para reajustar os afastadores, embora o afastamento nada tivesse que ver com o que ele estava fazendo na ocasião. Na verdade, eu não era necessário; mas ele queria que eu ficasse ali. Ele era como muitos cirurgiões, que se sentem diminuídos se não forem assistidos por um residente e um interno, seja ou não preciso. Eu era um símbolo de status.

O Hércules havia girado na minha frente, de modo que eu estava olhando para suas costas quando ele começou a suturar a segunda camada do estômago. Eu não podia ver o campo operatório nem minhas mãos.

O anestesista falou um tanto abruptamente.

- Peters, não encoste no peito do paciente. Você está comprometendo sua ventilação. - Ele me empurrou para trás, através do anteparo, para evitar que me emaranhasse nos tubos endovenosos.

Mas eu não tinha para onde ir, já esmagado de encontro ao Hércules.

Foi então que OToole recuou com uma expressão de espanto, levantando a mão direita. Pude ver algumas gotas de sangue escorrendo de um belo corte através da luva de borracha ao lado de seu dedo indicador.

- Se você estivesse com o dedo onde devia, isto não teria acontecido, OToole. Preste atenção - explodiu o Hércules.

OToole nada disse, virando-se para a enfermeira da sala, que lhe calçou outra luva. Acho que ele deu graças por ainda estar na posse do seu dedo.

Apesar de tudo, mal ou bem o cirurgião terminou, e começamos a fechar. Um dos meus deveres consistia em lavar com a seringa de borracha, depois que o forte feixe aponeurótico da parede abdominal tinha sido fechado com pontos de seda, intervalados de cerca de seis milímetros. A esse tempo, OToole e eu estávamos nos sentindo leves, e enquanto o Hércules lavava as mãos, levantei a seringa de sobre a incisão do paciente e esguichei um jato de soro fisiológico quente na barriga de OToole. Nossos olhos se encontraram em mútua compreensão; éramos parceiros numa situação infeliz.

Reunindo-se a nós na mesa, Hércules de repente ficou jovial. Obviamente, ele achava que realizara de novo o impossível.

- É uma pena que a minha arte fique oculta pela pele em vez de estar à mostra para o paciente.

Tudo o que ele tem para exibir é esta pequena incisão.

OToole revirou os olhos num pânico fingido e zombeteiro. Já que OToole e Hércules estavam ali para terminar, reuni minha coragem para a saída.

- Tenho ainda várias outras operações, doutor. O senhor podia me dispensar? - Isso irritou um pouco o velho mas ele me liberou com um aceno de mão, um gesto de noblesse oblige.

Primeiro, cocei meu nariz com força e por bastante tempo. Uma experiência sensual. Depois urinei, o que foi igualmente agradável. Eram onze e vinte e cinco, e como o paciente da nefrectomia estava acabando de sair da Sala 10, eu dispunha de alguns minutos enquanto ela era preparada para a primeira de minhas colecistectomias. Junto à porta da sala de recuperação, vi Karen, meu anjo de misericórdia e sexo, imaculada em seu uniforme branco. Ela tinha vindo buscar um paciente para a enfermaria, e ao me ver abriu um largo sorriso, perguntando com um toque de sarcasmo se eu tinha dormido bem a noite. Respondilhe que fosse boazinha, ou qualquer noite dessas eu a jogaria para fora da cama. Olhando em derredor, ela pediu silêncio, acrescentando que tinha dito ao seu amiguinho que não queria sair naquela noite; ela ia ficar em casa, provavelmente das onze em diante, no caso de eu estar livre. Anotei o fato, mas não achava que estivesse em condições de fazer nada.

O aortograma do meu aneurisma tinha sido marcado para as onze e quinze, e desci para ver o que estava acontecendo. Ao entrar na sala de fluorescopia, vi que o residente-chefe estava nos preparativos finais para o seu estudo.

- Você está dez minutos atrasado, Peters. Eu podia ter usado você para ajudar a colocar o cateter no bulbo da aorta.

- E eu teria estado aqui, se não tivesse que ajudar num outro caso. - Conscientemente, retive um - "graças a você".

- Bem, ali está a posição do cateter. Mas primeiro ponha um avental forrado de chumbo. Este fluoroscópio emite um bocado de radiação. É preciso proteger as velhas gônadas.

Seguindo seu conselho, peguei um dos pesados aventais chumbados e coloquei-o. Ficando por trás dele, eu podia ver a tela do fluoroscópio. Quando as luzes se apagaram, o fluoroscópio ligou-se automaticamente com um ressoante estalido. Como sempre, a imagem estava muito fraca. Para se ver bem uma fluoroscopia, deve-se adaptar os olhos, usando óculos vermelhos trinta minutos antes.

Eu não podia dizer muita coisa sobre o doente do aneurisma na tela fluoroscópica, porque não tinha tido a chance de adaptar meus olhos à escuridão, mas podia distinguir a nítida listra radiopaca do cateter.

- Eis a extremidade do cateter. - O residente apontava com o dedo que fazia uma silhueta contra a luz da tela. - Está dentro da aorta, bem acima do coração. Vê como ele pula a cada contração cardíaca? - Isso eu podia ver sem qualquer dificuldade. - Agora vamos injetar bastante contraste radiopaco na artéria para obtermos uma imagem, e para isso temos de usar o injetor de pressão. - E apontou para um pequeno aparelho que parecia uma bomba de bicicleta virada de lado. Na extremidade havia três ou quatro torneiras em posição; eu achei que uma ou duas teriam sido suficientes para impedir um acidente. - Tudo o que temos a fazer é empurrar este cabo que injeta o contraste muito rapidamente no coração, a cerca de 400psi.* Ao mesmo tempo a câmera Schonander estará tirando radiografias a uma velocidade de uma a cada meio segundo, durante dez segundos. Nós observamos na tela fluoroscópica.

O residente-chefe entrou nos preparativos finais, avisando aos técnicos de raios X que estivessem prontos, e tomando, ele próprio, posição por trás do braço do injetor de pressão. Querendo proteger-me o máximo possível, esgueirei-me por trás do anteparo de chumbo com o técnico do raio X. Ficamos olhando através da janela de quartzo.

A um grito do residente-chefe, o técnico de raio X acionou a câmera Schonander, que funcionava com estalidos, batendo as chapas, uma após outra, em rápida sucessão, enquanto o residente-chefe empurrava o êmbolo do injetor de pressão até o fim. O jato do contraste passou do injetor para as torneiras, e depois, em vez de ser impelido para o coração do paciente, subiu graciosamente como um gêiser até o teto onde, depois de se espalhar e correr um pouco, começou a pingar sobre o residente-chefe, o paciente e todo o equipamento. O residente-chefe tinha se esquecido de abrir a última torneira.

 

Unidade de pressão. Libra por polegada quadrada. (N. do T.)

 

Quanto ao paciente, ficou ali, olhando em torno de si, tentando imaginar que diabo de exame tão estranho era aquele. O residente-chefe ficou num estado de choque que passou rapidamente para o de exasperação. Já que todo o processo tinha de começar de novo e eu já estava um pouco atrasado para a colecistectomia, aproveitei a oportunidade para fazer uma retirada discreta, e voltei correndo para o centro cirúrgico.

Trabalhar com um profissional de verdade é diferente em todos os sentidos do que com um Hércules ou um Supercharger, e o Dr. Simpson era o melhor que o hospital tinha. Com o residente de um lado dele e eu do outro, lavamo-nos juntos, conversando e pilheriando. Simpson nos contou uma anedota sobre um professor de Colúmbia que descobrira um método de criar a vida em laboratório. Tudo correu muito bem até que a mulher dele o pegou em flagrante.

Uma anedota despretensiosa - talvez, pensando bem, nem mesmo muito boa. Mas no contexto de minhas horas passadas com o Hércules, a cena do contraste espalhado por toda a sala de fluoroscopia, e o meu cansaço, aquela piada me fez dar gargalhadas histéricas. Ainda nos ríamos quando entramos, os três, na sala de operações, onde o ambiente mudou imediatamente para o de uma concentração agradável. Prontos para começar, ainda nos sentíamos alegres, mas, não obstante, intensamente interessados no trabalho que tínhamos pela frente.

A enfermeira entregou um bisturi a Simpson. Interessante como ele principiava uma operação. Não havia pausa. A lâmina mergulhou toda e moveu-se corretamente em diagonal pelo abdome abaixo. Ele não parou a fim de pinçar os pequenos vasos que sangravam.

- Por que ficar ciscando como uma galinha - dizia ele, completando rapidamente a incisão com a mesma determinada e propositada dissecção, enquanto os tecidos se separavam. Então o residente

pegava o tecido do seu lado, o cirurgião do outro, ambos usando pinças denteadas, e com um golpe final do bisturi eles estacavam dentro do abdome. Só então eram alguns vasos pinçados e ligados.

Não mais de três minutos para ir da pele à cavidade abdominal. Uma perfeição.

Desta vez, porém, Simpson não fez a primeira incisão. Em vez disso, surpreendeu-nos entregando o bisturi ao residente.

- A vesícula é sua - disse ele. - Um movimento em falso, e você vai passar um mês aplicando lavagens. Sob seu olhar de perito, o mesmo tipo de incisão foi feito mais ou menos com a mesma rapidez. Rapidamente, o cirurgião explorou o interior, depois o residente, depois eu.

Estômago, duodeno, fígado, vesícula biliar (eu pude sentir os cálculos), baço, intestinos. O exame foi feito com toda a cautela, mas completo; com o braço enfiado até o cotovelo dentro do abdome de alguém você tende a ser cauteloso. Eu disse a Simpson que estava tendo dificuldade em localizar o pâncreas. Ele me explicou um ponto de referência e uma saliência. Então eu o senti.

Empregando a técnica de Simpson, o residente colocou cuidadosamente e dispôs as toalhas brancas molhadas de soro fisiológico que são usadas para separar a vesícula biliar da massa dos intestinos.

Eu recebi os habituais afastadores. Por sugestão de Simpson, o residente deslocou-se um pouco, permitindo que eu visse o interior da ferida. Tudo decorreu rapidamente, com Simpson incentivando, mas sem intervir manualmente. A vesícula saiu facilmente, a base foi fechada, depois a pele, tudo em trinta minutos. Agora, sentindo-me muito bem, dei os parabéns ao residente ao nos dirigirmos para a sala de recuperação. Ele havia realizado um trabalho profissional.

Com trinta minutos de intervalo entre as operações, Simpson e eu descemos para ver vários de seus doentes, um dos quais, uma gastrectomia, eu vinha acompanhando de perto, depois de ter ajudado na operação. Eu havia recebido total permissão para passar as ordens sobre o caso, embora eu procurasse seguir as preferências de Simpson que, agora eu sabia, eram corretas e sensatas. Quando ele mudava uma de minhas ordens, como acontecia ocasionalmente, invariavelmente ele escrevia uma curta explicação, uma opinião sobre uma droga ou técnica. Ele era um professor nato.

Depois de nossa visita à enfermaria, envergamos novos aventais cirúrgicos e começamos a nos lavar de novo, com as mesmas brincadeiras, desta vez sem qualquer nervosismo de minha parte.

Resolvi, pensando bem, fazer a assepsia das mãos mudando para o Betadine; sua cor amarelopálido proporcionava uma variante, depois do Fisohex incolor, que usávamos habitualmente. Ao entrarmos na sala de operações observamos a habitual rotina hierárquica. Primeiro uma toalha para Simpson, depois uma para o residente, e por fim uma para mim. Com as luvas foi a mesma coisa.

Quando nos reunimos em torno do paciente, a enfermeira entregou um bisturi a Simpson, e fiquei completamente confuso quando ele o passou para mim.

- Muito bem, Peters, retire a vesícula, e faça-o direito da primeira vez, senão vou tirar a sua sem anestesia.

Obviamente, eu jamais havia realizado uma colecistectomia, embora tivesse atuado como assistente numa centena ou mais, e isto definitivamente não me passara pela cabeça. Eu tinha previsto mais outra operação, na qual eu seria um espectador interessado, observando dois profissionais (o residente tinha atingido a maturidade) trabalharem juntos. No entanto, agora, eu não ia ser um espectador, mas um participante - com efeito, o ator principal. De repente, o homem sobre a mesa e o bisturi em minha mão assumiram uma nova realidade. Interiormente nadando na incerteza, eu sabia que se hesitasse agora, eu podia ficar muito apavorado para tentar de novo. De certo modo tomado por um tremor que ameaçava estender-se à minha mão direita, agarrei firme o bisturi e procurei imitar o primeiro golpe de Simpson no alto do abdome, mergulhando a lâmina toda, e depois fazendo-a correr diagonalmente por baixo das costelas à direita, procurando conservar a lâmina num ângulo de noventa graus com a pele. Eu desejava agradar a Simpson como um filho a um pai.

- Por Deus, que você promete! - exclamou ele em tom de brincadeira, sem saber o quanto aquelas palavras soavam doces para mim. Ao repetir a manobra, os músculos e a camada adiposa se separaram e retraíram. Apareceu um pouco de sangue, porém não muito.

- Pinças. - A enfermeira deu um par a mim, e um para o cirurgião. Levantei uma das bordas da incisão, ele a outra. Neste ponto estávamos bem próximo da delgada membrana peritoneal que forra a cavidade abdominal. Suspendemo-la a fim de proteger os órgãos subjacentes enquanto eu enfiava o bisturi. Pop! Surgiu um orifício no abdome, e eu soltei a pinça.

- Segure a pinça - sugeriu Simpson - e vá cortando enquanto puder ver. - Eu tentei, indo com todo o cuidado, pois o fígado e os intestinos apareciam claramente na incisão que se alargava. Tudo funcionou bem. Soltando a pinça, enfiei a mão na ferida e abri o resto do peritônio cortando entre meus dedos, metidos por baixo. Meu coração estava disparado. Agora eu não estava cansado, nem notava o relógio, o rádio, ou o anestesista. Eu estava assustado mas determinado. Simpson explorou o interior, depois eu, depois o residente, que pegou os afastadores quando me afastei para ele dar uma espiada, se o quisesse fazer. Procurei também seguir a técnica de Simpson com as fitas abdominais. Ele me ajudou na última, e com a mão afastou bem o duodeno para que eu pudesse ver uma suave curva do tecido que se estendia do alto do duodeno até a vesícula biliar. Depois de pinçar a vesícula e puxá-la para cima, usei a tesoura de Metzenbaum para afastar os tecidos delicados. Em alguma parte ali havia uma artéria, a artéria cística, que levava o sangue para a vesícula. Não podia ser cortada.

Os músculos do meu pescoço estavam duros como pedra, à medida que eu me esticava, para ver melhor. Simpson disse-me que me endireitasse, ou eu não agüentaria quinze minutos. A artéria apareceu - mais ou menos do tamanho normal para a artéria cística - e eu a isolei com uma pinça de vesícula. Passei um fio em torno dela e segurei as extremidades. Primeiro lance. Com o indicador direito levei o fio até embaixo. Segundo lance. Para baixo. Que tensão devia eu manter no fio? Aquela era suficiente; eu não queria que ele se partisse. Mais um puxão para me certificar.

Com o auxílio da pinça da vesícula, outro fio foi passado em torno da artéria cística. Desta vez, eu tinha de fazer o fio descer até perto da artéria hepática, que vai para o fígado. A artéria cística saía da artéria hepática, e tracionando levemente o fio já passado em torno da artéria cística eu podia ver a parede da artéria hepática. Na verdade podia até ver o ramo que se dirigia para o lado direito do fígado. Aquilo fez-me sentir melhor, pois havia sempre o perigo de confundir aquele patife com a artéria cística e ligá-lo.

Eu estava muito preocupado com este segundo nó na artéria cística. Era o nó mais importante de toda a operação. Se ele soltasse alguns dias mais tarde, o paciente morreria de hemorragia interna.

Com isto em mente, reexaminei o primeiro nó e olhei bem pela abertura. Tudo parecia bem.

Involuntariamente, olhei de relance para Simpson, que nada disse. Então terminei, e seccionei a artéria entre as duas ligaduras, iniciando o isolamento da vesícula biliar.

A seguir, vinha o canal cístico, através do qual a bile corre normalmente. Tratei-o do mesmo modo, ligando-o com dois fios, e cortando entre as ligaduras. Uma vez isolada a vesícula, muito tenso, eu passei o bisturi, de leve, em torno de seu leito para que se separassem apenas a camada exterior de tecidos brilhantes. Com a tesoura, comecei a levantar a vesícula, afastando-a do fígado.

- Ele está fazendo as coisas parecerem difíceis - brincou Simpson. - Se demorar muito mais tempo, isso aí vai gangrenar. - Eu mal o ouvia. Até então, toda a operação durava apenas vinte e cinco minutos.

Com mais um pequeno corte e um puxão, a vesícula saiu. Atirei-a na cuba apresentada pela enfermeira. Com a outra mão ela me deu um porta-agulha com um fio cromado 3-0. Pegando o tecido da borda do leito da vesícula e cobrindo com ele o canal hepático e a artéria hepática direita, que estavam expostos, dei um ponto e apertei firme o nó. Firme demais. A sutura rompeu-se. Outro, no mesmo ponto, ligado desta vez com mais cuidado, e menos tensão. Então, com uma sutura contínua, fechei o leito da vesícula.

Depois de remover os campos usados para separar a zona da vesícula dos outros órgãos internos, comecei a fechar. As enfermeiras iniciaram a contagem das esponjas e instrumentos para se certificarem de que não faltava nada. Tudo estava em ordem. Cuidadosamente, identifiquei todas as camadas da parede abdominal, especialmente a camada aponeurótica, que se retraíra e desaparecera de vista. Fui dando ponto após ponto, com o cirurgião e o residente ajudando-me a atá-los. Eu enfiava a agulha curva do lado inferior da incisão, atravessava-a, passava-a para a mão esquerda, e tornava a enfiá-la do lado superior. Camada por camada, fui fechando a incisão, como se estivesse embaralhando cartas, vendo-as se fecharem e se superporem. Por fim, a pele. Quando tudo terminou, fui invadido por uma grande confiança, como a sensação que se experimenta no fim de uma boa onda quando sua prancha salta da água branca. Ao tirar minhas luvas, o residente retribuiu-me o cumprimento que eu lhe fizera antes. O mundo era meu.

Acompanhando o paciente pelo vestíbulo até a sala de recuperação, eu ainda estava exultante. Duas enfermeiras se encarregaram do doente enquanto eu passava as ordens pós-operatórias e ditava o relatório da operação. Então a fadiga retornou, e forte. Eu estava faminto também, e resolvi comer, pois nada ingerira, senão aqueles dois pedaços de pão, desde o jantar na noite anterior, há dezenove horas; eram 2:00 da tarde.

Fora do hospital, a chuva caía forte; achei que tinha caído o dia todo, já que havia água acumulada nos lugares mais baixos. O céu rodopiava com nuvens cinzentas tocadas por sobre a ilha pelos fortes ventos kona. Estava chovendo tão forte que eu mal podia distinguir a cafeteria a 90 metros de distância. Enquanto eu corria, a brisa agitava as poças dágua coletadas por baixo da saliência do telhado. Senti que minha felicidade diminuía um pouco quando vi Joyce lá no salão e, dito e feito, ela imediatamente veio para junto de mim. Com muita gente perto de nós, discutindo sobre a chuva, a Hula Bowl, e não sei mais o que, Joyce pouco falou de início, o que me era muito conveniente. Depois, como que obedecendo a um sinal, todo mundo foi embora, e Joyce começou:

- Tem pensado muito? - perguntou ela.

- Pensado em quê? - Eu estava curioso.

- Você sabe, sobre nós, como você disse que ia fazer.

- Ah, sobre nós. Sim. Tenho pensado um pouco - respondi.

- Bem, eu também tenho - continuou ela, sentando-se um pouco - E acho que devíamos nos abrir mais um com o outro.

- Você acha? - Meu tom era ligeiramente sarcástico, não o suficiente, porém, para que ela notasse.

- É que não temos falado bastante sobre nossos sentimentos e nossos pensamentos - acrescentou ela.

Aí ela estava errada. Ela havia falado demais, principalmente sobre como eram terríveis aquelas escapulidas pelas escadas dos fundos. Inquieto, percebi que ela se encontrava a um passo de propor uma cura instantânea para aquilo - o casamento. Ela se mostrava levemente descontrolada.

- Você tem me falado muito bem do que tinha em mente - disse eu. - Você nunca parou de falar sobre aquelas escadas, e como tudo aquilo era desagradável.

- Aquilo estava ficando muito desconfortável - falou ela, com toda a justiça.

- Desconfortável. Lá isso é verdade. Por que você não dá um jeito na sua Srta. Maçãs e TV para que possamos ir ao seu apartamento como gente normal?

- Minha companheira nada tem a ver com isso.

- Sua companheira tem muito o que ver. Se não fosse por ela, poderíamos ficar em seu apartamento e você não teria que se esgueirar descendo as escadas.

- Você não liga nada para mim - falou ela com petulância.

- Claro que ligo, mas o caso não é este. Se você...

- Este é o caso - interrompeu ela.

- Você está mudando de assunto - protestei.

- Bem, é o único assunto que me interessa - falou ela calmamente, levantando-se e empurrando a cadeira para trás.

- De qualquer modo, decidi que você pode deixar de pensar em nós, e dar tudo por acabado. - E partiu indignada.

Tudo por acabado. Uma grande sugestão. Na verdade, a idéia encerrava uma espécie de atrativo mórbido. Era o que cansava.

Com a partida de Joyce, o salão afastou-se subitamente de mim. Havia ainda muita gente sentada às outras mesas, mas nem uma só pessoa estava comigo. Os sons de centenas de vozes misturavam-se, todos distantes e incompreensíveis. Fitando através da janela a chuva e as nuvens cinzentas que corriam pelo céu, eu mastigava distraidamente, abatido pela solidão. Nada restava daquela boa sensação de depois da operação de vesícula, eu ficara simplesmente esgotado de toda a emoção. Olhando para o relógio, vi que vinha trabalhando a todo o vapor há trinta horas. Pensei na clínica, e em que eu devia estar lá. Espera-se que os internos ajudem no atendimento dos pacientes externos durante o seu "tempo livre". Mas no estado em que me encontrava, eu não seria útil em nada. A clínica que fosse para o inferno.

As gotas de chuva dançavam em derredor da platibanda à medida que o vento as atirava nas áreas abrigadas. Estava fazendo muito frio. Quando cansado, o corpo não pode tolerar as mudanças de temperatura. Assim, os calafrios que eu sentia pelo corpo eram, provavelmente, mais produto de meu estado físico do que do tempo. Apressei o passo, concentrando-me totalmente em minha cama, antecipando o prazer de me meter nela. Todos os internos desenvolvem uma extraordinária apreciação pelas coisas simples que outros têm como certa - o livre movimento muscular, o direito de se coçar, de esvaziar a bexiga ou os intestinos, de fazer as refeições mais ou menos regularmente, de uma decente quantidade de sono. Na cama, senti meu corpo esmorecendo, crescendo tremendamente e enchendo o quarto, até que, enorme, aos poucos foi se fundindo com o quarto, tornou-se um só, e eu dormi.

Quando eu comecei, o abscesso era pequeno, não maior do que uma espinha. Agora estava enorme, cobrindo a maior parte do braço esquerdo, e crescendo. Quanto mais eu cortava, mais aparecia; agora ele subia para o ombro. Atrás de mim, Hércules murmurava para o Supercharger: - Ele não vai conseguir. Nem o paciente. - Precisando de encorajamento, olhei para Simpson, que disse: -

Pegue direto da primeira vez, Peters, ou vai para uma cidadezinha do interior. - Num último e desesperado esforço, rasguei os tecidos até o osso e, para meu horror, seccionei o nervo cubital, imobilizando a mão para sempre. Tempo esgotado, pensei, quando a campainha tocou; fracasso!

Mas claro que era o telefone. Dei um pulo para atendê-lo, ainda no meio do sonho e confuso devido à luz. Teria eu perdido as visitas? Não, elas só começavam depois das cinco horas, e meu relógio marcava três. Era do centro cirúrgico. Eu tinha sido designado para uma operação que ia ter início dentro de quinze minutos.

Desligando, pouco a pouco fui-me orientando. Por que tinha acordado em tal estado de terror?

Então relacionei o sonho com a incisão e drenagem de um enorme abscesso do cotovelo, que eu tinha feito no dia anterior. Depois de abrir o abscesso com uma lâmina afiada, provocando a espontânea saída do pus, eu tinha enfiado dentro dele uma pinça hemostática para assegurar uma boa drenagem. Mas o abscesso era muito mais profundo do que eu esperava; parecia estender-se até a área do nervo cubital. Eu tinha cortado cada vez mais, sem nunca chegar ao fundo do abscesso e por fim desisti com medo de seccionar o nervo cubital, se é que já não o havia feito. De qualquer modo, decidi parar por enquanto, e examinar o caso enquanto me dirigia para o centro cirúrgico.

O reflexo do terror tinha me tirado da cama, mas então meu estado de desintegração física começou a voltar. O fato de ter ficado de pé tanto tempo, dormindo menos de uma hora, só servira para piorar as coisas. Nada em mim parecia funcionar direito; senti-me zonzo e ligeiramente nauseado quando me pus de pé, depois de calçar os sapatos. Infelizmente, olhei-me no espelho - um grave erro, porque vi que tinha de me barbear para me juntar aos vivos. Minha mão estava trémula e, como de hábito, cortei-me várias vezes, sem gravidade, mas o suficiente para que o sangue corresse apesar da compressão, da água fria, e de uma forte e ardente aplicação de um bastão hemostático.

Corri para a enfermaria. Tinha parado de chover, embora as nuvens pairassem grossas e pesadas por sobre as montanhas. O meu paciente do abscesso ficou, talvez, um pouco surpreso, quando entrei correndo no quarto e lhe pedi que levantasse as mãos e estendesse os dedos. Quando o fez, procurei comprimir todos os dedos juntos, e obtive uma boa resistência; isto indicava que seu nervo cubital estava perfeito. Não tive tempo de ver mais ninguém, exceto o meu paciente que estava com um edema generalizado, todo encharcado dágua, e cujo leito ficava perto do do abscesso. Ele tinha um problema com seus comprimidos diuréticos e que eu achava que não podia ignorar.

Eu havia desenvolvido um grande respeito pelos casos graves de edema do tipo que exigem uma redução dos fluidos do corpo por meio de uma ou outra espécie de diuréticos. Meu despertar tinha sido súbito e brutal - uma doente de carcinoma, transferida de uma enfermaria de clínica médica, com o corpo todo inchado por um edema generalizado, estado a que se dá o nome de anasarca.

Decidi que ela se achava naquele estado porque o departamento de clínica havia cochilado; havia sempre um pequeno atrito entre os que cortavam - os cirurgiões - e os que tratavam com drogas - os caras da clínica. Esta doente tinha um câncer, diagnosticado pela biópsia de um gânglio linfático. Embora o ponto de origem jamais houvesse sido encontrado, nem o tipo exato de câncer determinado, alguém decidiu submetê-la à radioterapia, que nada influiu no câncer, e depois à quimioterapia, que foi igualmente inútil.

Enquanto isso, a paciente vivia a tomar soro endovenoso, e a turma da clínica médica permitiu que ela juntasse tanta água que seus níveis de sódio e cloretos caíram a um ponto que a pôs a delirar. E ignoraram as proteínas do plasma, que também caíram. Quando recebi a doente, resolvi livrar-me de toda aquela água. Administrando-lhe um pouco de albumina e um diurético, consegui alguma diurese, e daí uma ligeira melhora do edema. Mas eu queria mais. Ao tentar obter alguns conselhos, ninguém pareceu muito interessado, inclusive o assistente. Como a urina dela estava muito alcalina, resolvi dar-lhe uma boa dose de cloreto de amónio com o diurético, e desta vez os resultados foram espetaculares. Que diurese! A água a abandonava à medida que sua excreção urinária crescia. Foi terrível, espantoso - à exceção do fato de que aquilo não parou, e da noite para o dia ela secou como uma ameixa. Imediatamente instalou-se uma broncopneumonia, e um dia e meio depois ela estava morta. Nunca mais falei sobre o caso com os rapazes da clínica médica, mas agora eu tinha muito cuidado com os agentes diuréticos. E eu estava muito cauteloso com este homem próximo do abscesso. Ele só estava tomando comprimidos.

Na verdade, eu tinha aprendido também a respeito dos abscessos. Houve um paciente - não meu, embora eu o tivesse visto todos os dias durante as visitas - que foi admitido com uma celulite que se espalhou por sua perna direita, e devida a uma zona abscedada. Quando ele deu entrada, a maior parte dos músculos da panturrilha já se tinha liquefeito. Nós cultivamos inúmeros organismos diferentes retirados daquele abscesso; todos eles pareciam estar trabalhando juntos contra o doente.

Um dia, quando o interno que cuidava do caso adoeceu, eu tive de drenar o abscesso. O cheiro era indescritível; uma vez mais recorri à minha máscara tripla para não vomitar. Ao tentar abrir a cavidade do abscesso, vi que ele irradiava em todas as direções, até onde a pinça hemostática podia alcançar. Durante as visitas, nascera uma discussão sobre se sua perna devia ser amputada, mas os adeptos de novo método de perfusão contínua com antibióticos tinham vencido - pelo menos vencido a discussão - e gotejaram litros de antibióticos dentro de sua perna, parecendo estabilizá-lo por alguns dias. Mas de repente, um dia, enquanto o examinávamos na visita da manhã, o homem morreu. Tínhamos acabado de nos aproximar da cama, e outro interno começava a dizer que o paciente estava "essencialmente" inalterado.

Esquisito como a palavra ''essencial" era usada com tanta freqüência nas visitas. Este homem estava com insuficiência hepática, cardíaca e renal - de fato, com uma insuficiência total de seu corpo. Mas assim que o interno começou a ler o seu relatório sobre o estado neutro em que se achava o doente, este deu um suspiro e foi-se. Pareceu um ato de muito mau gosto. Ficamos mudos de terror. Ninguém tentou ressuscitá-lo, porque todos nós já nos havíamos habituado à sua situação desesperada. Nossas drogas insignificantes apenas serviram para mantê-lo precariamente durante algum tempo, até que o fundo caiu, como acontecera com aqueles casos de septicemia por Grã-negativos na escola de Medicina. Era como se ele não dispusesse de qualquer defesa contra a infecção. Assim, passei a respeitar os abscessos. Eu estava aprendendo a respeito de todas as doenças, por mais inócuas que parecessem ser.

Agora eu corria para o centro de cirurgia, já atrasado. Havia um bocado de atividade no andar da clínica médica. Passei por internos, residentes e médicos de pé, em torno dos leitos, falando, como sempre o faziam - a não ser que estivessem sentados e conversando na sala de estar. A maior parte das discussões girava em torno do tratamento, sobre que drogas usar. Quando se chegava próximo de um acordo quanto a uma medicação, um dos participantes apresentava um efeito colateral, ao que era sugerida uma droga para anulá-lo, droga esta que, por sua vez, tinha seu próprio efeito colateral. Agora se queria saber o que era pior, o segundo efeito colateral ou a condição original? Será que a segunda droga pioraria os sintomas originais mais do que eram antes da primeira tê-los melhorado? E assim por diante, rodando e rodando, até que, em geral, a discussão ficava tão complicada que parecia melhor recomeçá-la junto ao paciente que se seguia.

Era assim que eu via as enfermarias de clínica médica. Conversas, conversas, só conversas. Pelo menos, na cirurgia nós fazíamos alguma coisa. Mas os caras da clínica médica diziam, com certa razão, que nós só cortávamos quando não podíamos curar. Nós revidávamos dizendo que, cortando, com efeito, não raro curávamos. A discussão prosseguia inconclusiva, para a frente e para trás, sempre conduzida num estilo amigável, até jovial, mas suas raízes eram profundas.

Meter-me noutra roupa cirúrgica era um fato déja vu. Eu estava começando a viver dentro daquelas coisas. Como não restavam conjuntos de tamanho médio, eu tinha de usar um grande, e os cordões das calças davam duas vezes a volta em mim. Através das portas de vaivém para a área das salas de operação, enquanto calçava os sapatos de lona, olhei de relance para o quadro de avisos para ver quem estava operando. Zap' Nem mais nem menos do que El Todo-Poderoso Cirurgião Cardíaco.

Mas o que estava ele fazendo ali? A operação fora relacionada como "Abscesso abdominal", e obviamente El Todo-Poderoso operava em geral no tórax. No entanto, eu havia deixado de me surpreender por essas coisas estranhas. Quando ergui o olhar, ele me viu e me cumprimentou pelo nome, muito amavelmente, mas eu sabia que era melhor não baixar minha guarda. Era apenas o primeiro movimento, um ato de condescendência no início do espetáculo - principalmente desde que ele gritara o cumprimento lá da metade do corredor, para dar a perceber a todo o mundo sua boa disposição e sua camaradagem.

Eu me lembrava amargamente de uma vez que eu e um residente fomos designados para uma operação cardíaca, não com um mas com dois cirurgiões. Esses homens, completamente semelhantes em suas maneiras e ocultos por trás de suas máscaras, só podiam ser diferenciados por suas barrigas, sendo um mais gordo do que o outro. A operação começara bastante calmamente, afavelmente, com distribuição de tapinhas cordiais. De repente, sem nenhum aviso, um dos cirurgiões começou a arengar com o residente por administrar sangue a um paciente moribundo de câncer do pulmão. Realmente, a decisão era discutível mas não tão grave que justificasse aquela tirada na frente de todo o mundo. Ele estava apenas se pavoneando, valorizando sua auto-imagem.

E assim foi durante toda a operação, louvor e censura, cada qual mais exagerado, até alcançarmos um frenético crescendo de invectivas que pouco a pouco foi morrendo, retornando a um ambiente de bom humor. Tinha sido igual a um hospício.

Existe um pouco desse comportamento em muitos cirurgiões - uma espécie de critério passivo-agressivo - para enfrentar a vida. Num minuto você se acha perto de um amigo valioso; no seguinte, quem sabe? Era como se eles ficassem emboscados, à espera que você cruzasse uma linha invisível, e quando você o fazia - záz. - você recebia uma salva de xingamentos orais.

Talvez isso seja um efeito natural do sistema, o resultado final de muita tensão e repressão durante os muitos anos de aprendizado. Eu mesmo estava começando a senti-lo em mim. Se deseja progredir, um interno aprende a manter a boca fechada. Mais tarde, como residente, ele aprende a lição tão bem que isso passa a fazer parte dele. Por baixo, contudo, ele passa a maior parte do tempo revoltado. Por mais gratificante que pudesse ter sido dizer a alguém que se impregnasse daquilo, jamais o fiz, nem mais ninguém. Colocados bem embaixo do mastro totêmico, naturalmente nós aspirávamos subir, e isso significava jogar o jogo.

Neste jogo, o medo vivia em simbiose com a raiva. A parte do medo era mais complicada do que tudo o mais. Como interno, vivia-se apavorado na maior parte do tempo; pelo menos, eu vivia.

Primeiro, como qualquer bom humanista, tinha-se medo de cometer um erro, que pudesse prejudicar o paciente, e até tirarlhe a vida. Contudo, depois de mais ou menos seis meses, o doente começava a ficar para trás, tornando-se menos importante à medida que sua carreira avançava. A esse tempo, chegara-se a acreditar que nenhum interno seria prejudicado devido a uma desaprovação oficial por desleixo ou incompetência em sua prática na Medicina. O que não se tolerava era a crítica ao sistema. Apesar disso, entrementes, era-se esgotado, aprendia-se a passo de tartaruga, se se aprendia, e vivia-se explorado. Se você queria uma boa residência - e eu queria uma desesperadamente - tinha de aceitar tudo sem murmurar. A fila estava cheia de gente esperançosa de tirar o seu lugar nas grandes instituições. Assim, eu segurava os pés e os afastadores, e engolia qualquer merda. E durante todo esse tempo a raiva me devorava.

A maioria de nós não acreditava na teoria da história do diabo, ou na extrema noção do pecado original, e assim sabíamos que esses homens mais velhos, que tanto odiávamos, deviam ter sido outrora como nós. De início idealistas, depois revoltados, e depois resignados, eles acabaram por se tornar mesquinhos como o diabo. Por fim, a raiva e a frustração mantidas por tanto tempo, estavam jorrando numa suntuosa demonstração de auto-indulgência. E a custa de quem? De quem mais? Os pecados dos pais e dos avós caíam sobre nós, os filhos do sistema. Aconteceria comigo? Eu achava que sim. Com efeito, já havia começado, porque eu já avançara muito além do meu período de idealismo da escola de Medicina. Eu já não me surpreendia mais que houvesse tão poucos cavalheiros entre os cirurgiões; de fato, o que me admirava era ver que alguns médicos saíam daquilo como verdadeiros seres humanos. Aparentemente, poucos o conseguiam. Entre eles não estava o El Todo-Poderoso, com quem eu ia me enfrentar.

Ele me deu um tapinha nas costas, querendo saber como ia tudo, nos menores detalhes. Era como se fosse me dar uma bala ou beijar meu bebê como um político corrupto de uma grande cidade à cata de votos. Na verdade ele colhia pontos para o seu ego. Eu estava tão extenuado que não ligava para o que ele dizia ou fazia. Eu me mantinha de cabeça baixa, fazendo a minha assepsia, uma coisa de cada vez. Pus o avental, e depois as luvas. O ambiente que me cercava era irreal. A voz do cirurgião estrondava por nada e por tudo, vários decibéis acima da de qualquer outro. O anestesista parecia ter ou uma imunidade especial ou tampões muito eficientes nos ouvidos; alheio ao cirurgião, foi tratar calmamente de seus afazeres. Até a enfermeira ignorava o El Todo-Poderoso.

Se ele pedia uma pinça delicadamente ou trovejando, ela a entregava do mesmo modo reservado e eficiente, e continuava a arrumar os instrumentos. Eu esperava que ele estivesse se ouvindo bem, pois aparentemente ele era sua única audiência.

O caso se transformou numa nova operação para acabar com a inflamação de pequenas bolsas que às vezes se formam na porção inferior do cólon das pessoas de certa idade. Este infeliz paciente tinha sido operado de sua diverticulite, como se chama este estado, cerca de um mês antes.

Geralmente, recomenda-se que a operação seja feita em três etapas, mas o primeiro cirurgião a operar o cara havia tentado fazer tudo de uma só vez. O resultado foi um grande abscesso, que íamos drenar, e uma fístula fecal, que ia da incisão anterior até o cólon, que estava eliminando pus e fezes.

Felizmente, a operação era curta. Dei alguns nós, todos insatisfatórios para o cirurgião. Mantive-me calado e imóvel quando ele começou a discorrer sobre as vicissitudes de sua vida quando era interno.

- Aqueles é que eram dias realmente duros... .redigir observações e fazer os primeiros exames ... de todos os pacientes ... pela porta ... e além disso ... um quarto do salário ... e vocês vigaristas ganham...

Eu mal ouvia. Realmente, meu cansaço me tornava imune, fazia com que todos os seus comentários batessem e ricocheteassem no meu cérebro.

Ao terminar, saí e vesti minhas roupas habituais. Eram quase quatro horas. Um pálido sol da tarde havia penetrado as nuvens espessas e se esgueirava pela janela. Os raios retratavam e faziam brilhar as gotas de chuva presas à janela. Aquilo me fez pensar em sair para praticar surfe. Mas faltavam ainda as visitas da tarde; eu ainda não estava livre.

Descendo para uma das enfermarias de cirurgia particulares, vi meu operado da vesícula, que estava indo muito bem. Pressão, pulso, excreção urinária, tudo normal. O soro estava correndo bem, e as ordens adequadas para a noite. Escrevi na papeleta e me dirigi para a outra vesícula, embora eu tivesse a certeza de que o residente já a tinha visto. E tinha.

Parando no raio X, pedi à secretária para localizar o aortograma do meu doente do aneurisma feito naquela manhã. Aparentemente, o residente-chefe conseguira fazê-lo depois de sua terrível luta. A secretária logo encontrou as chapas, e eu comecei a dispô-las no negatoscópio. Eram tantas que não cabiam na tela. Graças a Deus, os números permitiram que eu as colocasse em seqüência. Agora descobrir qual era o problema - em geral um palpite para mim. Mas desta vez eu pude perceber uma saliência bem grande, logo além da artéria subclávia. Vendo-me em frente do raio X, o radiologista me chamou para me passar o costumeiro pito sobre as chapas feitas com o aparelho portátil, especialmente sobre as do homem da hérnia na noite anterior. Mas desta vez quem deu a última palavra fui eu. O radiologista ficou abatido ao saber da morte do paciente. Talvez agora ele acreditasse que eu não podia ter enviado o homem para cima, para o raio X, para fazer um exame, uma chapa regular. Eu saboreei a vitória embora, é claro, eu não achasse que a radiografia, boa ou má, tivesse feito qualquer diferença.

Todo mundo no serviço da enfermaria estava sob controle. Ambos os operados de hérnia estavam em boas condições, já andando; o da gastrectomia já tomara uma refeição completa; a das varizes estava pronta para ir para casa de manhã; um dos operados de hemorróidas já tivera uma evacuação. O meu doente do abscesso, muito razoavelmente, queria saber por que eu havia apertado seus dedos, e o homem do edema tornou a perguntar por seus comprimidos, imaginando de que modo eles o faziam perder água. Animei ambos os doentes com respostas bem simplistas.

Só um problema - um novo paciente, ou melhor, um novo velho paciente para que eu fizesse a observação. Este homem, com uma grande úlcera de decúbito, tinha uma história de, pelo menos, vinte e cinco entradas anteriores. Uma foi por ter engolido lâminas de gilete, outras por tentar o suicídio por meios mais tradicionais e por reações psiconeuróticas, convulsões, alcoolismo, dor abdominal, úlcera de estômago, apendicite, insuficiência hepática - sua papeleta era um rol de doenças primárias e secundárias. Durante dez anos, ele também tinha entrado e saído de um hospital de doenças mentais. Justamente o tipo de paciente que eu precisava para minha satisfação e bom humor. Falar com ele era impossível, pois ele estava tão bêbado, que só vagamente podia se lembrar do que lhe acontecera poucas horas antes. Examiná-lo e percorrer sua papeleta levou mais de uma hora.

Depois eu tinha de limpar sua úlcera, processo conhecido pelo romântico nome francês de débndement.

Curvado sobre suas nádegas e olhando para sua úlcera necrótica negra e cheia de secreção, que ele havia contraído por ter ficado deitado muito tempo na mesma posição, eu quisera ter estudado Direito. Com um diploma de bacharel, há já dois anos que teria saído da escola e estaria ganhando minha vida. Boas roupas, um imponente escritório, papéis limpos, uma secretária, longas noites cheias de sono - tudo isso teria sido meu. Agora, nada disso eu tinha. Pelo contrário, ali estava eu debruçado sobre o traseiro fedorento de um pau-dágua, arrancando pedaços de tecidos mortos, procurando evitar vomitar. Tinha sido excitante quando pela primeira vez, na escola de Medicina, enverguei aquele avental branco, fingindo que fazia parte do complexo misterioso e agitado do hospital. E como eu invejara os veteranos e os internos, com seus estetoscópios e livrinhos pretos, com maneiras determinadas e de quem era entendido. Eu havia conseguido, subindo lentamente a escada da Medicina e saltando os obstáculos específicos - até que a realidade se escancarou diante de meus olhos. Aquelas nádegas eram a realidade, a extremidade posterior da vida, onde eu vivia.

Ao cortar, a úlcera começou a sangrar um pouco nas bordas. Quando as juntas dos dedos do paciente, que seguravam os lençóis ficaram brancas, e ele começou a praguejar e a bater no travesseiro, concluí que tinha chegado ao tecido vivo. Espremi ali dentro um pouco de Elase, que se espera continue a limpar a ferida destruindo enzimaticamente o tecido morto; depois enchi tudo com gaze iodoformada. A gaze iodoformada não era nenhum Chanel n° 5, mas pelo menos dominava os outros cheiros, transformando-os de uma porcaria doentia para um desagradável odor químico. Eu preferia o cheiro da substância química. Elase? Eu não sabia se ia funcionar, mas apliquei-a devido a um artigo que eu lera recentemente; aquilo deu-me a sensação de estar fazendo algo científico.

Diante de mim, agora, abria-se a alegria da visita da tarde. Ninguém gostava dessas visitas, e alguns achavam que era desnecessário que todos nós estivéssemos presentes, pois todos os preparativos essenciais eram, por assim dizer, feitos pela comissão. Não obstante, tínhamos as visitas da tarde como se fossem um dos Dez Mandamentos. Ali parados, ora num ora noutro pé, por longos e enfadonhos minutos, falávamos e gesticulávamos indicando, aqui uma hemorróida, ali uma gastrectomia. Examinávamos todas as feridas para ver se estavam fechadas e não inflamadas.

Os curativos eram substituídos rapidamente, ao acaso, enquanto os doentes se submetiam calados como se estivessem sendo sacrificados num altar. Quando um deles aventurava uma pergunta, em geral ela era ignorada, perdida no meio da falação "Quantos dias de operado? Devíamos passar para uma dieta branda, ou continuar com a líquida apenas?" Como os outros, eu apresentava meus casos concisa e monotonamente. "Hemorróidas, operado há dois dias, retiradas as mechas, não houve hemorragia, ainda não evacuou, dieta normal."

Arrastamo-nos para junto do leito seguinte; um par de médicos parecia muito interessado numa rachadura no reboco do teto, perto de uma das lâmpadas. "Gastrectomia, seis dias de operado, dieta branda, tem soltado gases mas não evacuou, ferida operatória cicatrizando bem, retirada dos pontos amanhã, alta antecipada." Alguém perguntou se a operação tinha sido um Bilroth I ou II. Claro que ele pouco estava ligando para aquilo; era apenas uma das perguntas que sempre se faz a respeito de uma gastrectomia. "Bilroth II."

Alguém mais indagou se fora feita uma vagotomia. "Sim, foi feita vagotomia, e o relatório final foi positivo para o tecido neural." De repente o paciente se interessou e perguntou o que era uma vagotomia, mas ninguém lhe deu atenção. Em vez disso, um residente perguntou se a vagotomia tinha sido seletiva - outra pergunta apropriada para levar a uma confusão. "Não, não foi seletiva.

O relatório sobre a úlcera confirmou o diagnóstico pré-operatório de doença péptica." Dando, de repente, uma informação concreta não diretamente associada com o curso da discussão, eu conseguira mudar de assunto, e passamos para o outro leito.

E assim prosseguíamos, cada vez mais cansados- e irrequietos, remexendo todos os curativos. O assistente disse que tudo parecia estar sob controle e que ele nos veria à mesma hora, no dia seguinte. Como no sexto ano, num jogo de pás, todo mundo se espalhou em todas as direções, exceto eu. Aparentemente eu estava me divertindo, pois limitei-me a ficar ali, sem pensar em nada de particular, olhando apenas para a quina de uma mesa que estava inclinada um pouco e dava um aspecto estranho à perspectiva.

Quando saí do meu semitranse fiquei indeciso sobre o que fazer. Eu podia reexaminar os casos particulares, ou ficar sentado na enfermaria à espera de novas admissões, ou voltar para tirar um cochilo. A última opção foi imediatamente afastada por motivos supersticiosos. Se eu fosse dormir, tinha a certeza de que seria chamado para cuidar de algumas admissões, enquanto que, se eu ficasse na enfermaria, talvez não entrasse ninguém. Ponto de vista muito científico. De qualquer modo, estacionei junto ao posto das enfermeiras e folheei alguns números atrasados do Glamour, que uma das enfermeiras tinha deixado. Eu não estava gravando nada do que via. Virando as páginas e olhando para as cores, à medida que as figuras se misturavam com o que estava impresso, eu me achava perdido no meu próprio mundo fechado, percebendo os ruídos e movimentos em derredor, porém indiferente a eles. Um fato externo atravessou a minha muralha; começara a chover de novo.

Curiosamente, o barulho da chuva me deu vontade de pegar um surfe; uma boa onda ou duas poderiam lavar e arrancar meus pensamentos depressivos. Eu estava supercansado, e sabia que ficaria me debatendo se fosse direto para a cama. Além disso ainda restava uma boa hora de luz do dia.

A chuva batia fria em minhas costas enquanto eu amarrava a prancha na capota do Volkswagen.

Uma vez no carro, liguei o aquecedor e me esforcei para ver através do pára-brisa. Estava chovendo muito forte e os limpadores, como sempre, tinham dificuldade em remover a água. Eu tenho uma grande fé no VW, exceto no que toca aos limpadores do pára-brisa. Jamais conservam o vidro limpo e sem distorções - uma peça muito má de engenharia num carro que, a não ser isso, é de toda confiança.

Enquanto me dirigia para a praia a chuva aumentava, transformando a visão que tinha da estrada em manchas cinzentas e negras. De tempos em tempos eu esticava a cabeça para fora da janela, a fim de retomar a perspectiva. O limpador do lado do passageiro estava funcionando um pouco melhor agora, e achei que podia ver muito bem, se me encontrasse daquele lado. De certo modo, a chuva me confortava, fechando um pouco o mundo e dominando minha consciência.

Lutando para tirar a prancha do suporte, senti a chuva ainda mais fria em minhas costas. Não tinha sido uma idéia feliz ligar o aquecedor do carro. Contudo, assim que a prancha se desprendeu e eu a coloquei sobre a cabeça, fiquei protegido dasgotas geladas. Impaciente para ver as ondas, atravessei a rua correndo, na direção da praia, mas não conseguia enxergar mais do que alguns metros dentro do cinzento do ar e do céu. Pela primeira vez, desde que eu praticava o surfe, a praia estava totalmente deserta. Atirando a prancha na água, pulei nela, ficando de joelhos, e comecei a remar furiosamente, procurando gerar um pouco de calor em meus ossos frios. A chuva despencava com força suficiente para machucar meu nariz, obrigando- me a baixar a cabeça e a olhar para frente por baixo das sobrancelhas. A água estava agitada e tumultuada, à medida que eu avançava. Quanto mais longe eu ia, mais difícil se tornava manter a velocidade e a direção em face do forte vento kona que soprava na praia. Remar, remar, olhando para baixo a maior parte do tempo, para minha prancha a frente de meus joelhos. A água passava em rodamoinhos. Quando a frente da prancha saía da água, parecia estar seca devido à cera, mas depois a prancha tornava a mergulhar ao sabor das ondas, quando eu dava outro impulso.

Lá na rebentação, a praia e toda a ilha desapareciam na muralha nevoenta da chuva. Era uma rebentação agitada, cheia de vento, tempestuosa, e completamente imprevisível. Quando eu pegava uma onda, não podia dizer de que modo ela se comportaria, se quebraria ou apenas desapareceria.

Os movimentos harmónicos e os habituais pontos de referência tinham sumido. Era como se eu estivesse milhares de quilómetros adentro, no mar. Os únicos sons eram os do vento, da chuva e das ondas. Minha mente começou a ver formas fantásticas nas ondas e na imutável cortina cinzenta que pendia sobre mim. Imaginando tubarões patrulhando por sob a superfície agitada da água, puxei os braços e as pernas e me deitei ao comprido na prancha. De repente ergueu-se uma onda, quebrou-se e voltou-se sobre mim. Em pânico, recuei na prancha como um gato com as orelhas murchas, receoso de olhar para trás. Deixei que o movimento da onda e o vento me empurrassem na direção da praia enquanto procurava sinais da ilha, que me assegurariam que eu não estava à deriva num mar isolado. Experimentei uma sensação de alívio quando o contorno confuso de um edifício tomou forma. Minha quilha raspou pelo coral. Depois apareceu a ilha, a areia batida e transformada pela chuva em milhões de crateras em miniatura. Algumas pessoas corriam, formas indistintas, grotescas e sem rosto, procurando abrigar-se da chuva e do vento.

De volta ao carro, liguei o aquecedor com os dedos engelhados, e senti seu bem-vindo calor soprar pela abertura de ar. Eu estava roxo e tiritando quando voltei para o hospital, de novo inclinado para o lado do assento do passageiro, para poder ver lá fora. A chuva ainda era muito forte, e os faróis dos outros carros atingiam a estrada molhada, dispersando-se em várias direções.

A felicidade é uma ducha quente. Nuvens de vapor quente enchiam o banheiro, lavando e tirando o sal, o frio e os temores idiotas que minha mente exausta havia conjurado. Fiquei ali durante quase vinte minutos, deixando que a água quente batesse em minha cabeça e corresse por todas as fendas e saliências de meu corpo. Já relaxado, comecei a pensar em como passar a noite. Dormindo. Eu devia dormir. Eu sabia disso. Mas sentia também uma compulsão de sair do hospital para ver alguém. Afinal, Karen tinha dito que não ia sair. Karen. Era isso; eu ia estacionar na frente de seu aparelho de TV, beber cerveja e deixar minha mente vegetar. A cada duas noites que eu não estava de serviço, o telefone permanecia quieto. Era um prazer saber que ele não tocaria. Esta ia ser uma das noites calmas. Ah!

Enxuguei-me, lenta e voluptuosamente, e retornei ao quarto, calmamente, com uma toalha enrolada na cintura. A cama estava tentadora, mas eu receava que se eu dormisse umas seis horas não teria ânimo para tornar a sair, quando me levantasse. Era melhor ficar de pé e dormir mais tarde. Foi então que o telefone tocou. Inocentemente, eu atendi. Antes não o tivesse feito, pois era o interno que estava de plantão. Ele estava numa situação difícil e tinha de ir em casa por uma ou duas horas no máximo. Tratava-se de um problema que não podia esperar.

- Desculpe, Peters, mas tenho de ir. Será que você podia ficar em meu lugar?

- Está programada alguma operação?

- Não, nada. Tudo está calmo.

Embora a idéia de substituí-lo me desanimasse, eu não podia recusar. Faz parte do código, auxiliar os outros e, quem sabia? Algum dia eu talvez precisasse que ele me retribuísse o favor.

- Muito bem, eu fico em seu lugar.

- Graças a Deus, obrigado, Peters. Vou dizer à telefonista que você está me substituindo, e voltarei o mais breve possível. Mais uma vez obrigado.

Desligando, pensei, desanimado, que se tivesse de ajudar outra operação, eu ia desmaiar. Eu estava certo de cair aos pedaços, mental e fisicamente, se tivesse de enfrentar uma longa sessão de qualquer tipo, especialmente se tivesse de assistir alguém como o Supercharger, o Hércules ou El Todo-Poderoso Cirurgião Cardíaco.

Por antecipação, vesti o uniforme branco, de novo esperando precaver-me contra preparativos excessivos. Telefonei para Karen, mas ninguém atendeu, e então lembrei-me vagamente de ela ter dito qualquer coisa sobre onze horas, porém não podia lembrar-me do que exatamente. À falta do que fazer, deitei-me e abri um compêndio de Cirurgia, apoiando-o no peito. Seu peso dificultava um pouco a respiração. Sem me concentrar realmente no livro, minha mente vagueava até Karen.

Que estaria ela fazendo às sete horas se não tinha saído com seu amiguinho? Eu não podia dizer que tivesse muitos motivos para confiar nela. No entanto, que queria eu dizer com confiança? Por que a palavra entrava nisso tudo? Não deixava de ser um tanto adolescente falar de confiança, quando éramos apenas uma conveniência mútua.

Meus sonhos embalaram-me e me fizeram dormir quando o telefone tocou. O excomungado compêndio de Cirurgia ainda estava sobre meu peito, e eu estava respirando com os músculos abdominais. Era da Unidade de Emergência

- Dr. Peters, aqui é a enfermeira Shippen. A telefonista disse que o senhor está substituindo o Dr. Greer.

- Isso mesmo - concordei com relutância.

- O interno de serviço aqui está muito atrasado. O senhor podia descer para dar uma mão?

- Quantas papeletas estão esperando na cesta?

- Nove. Não, dez - respondeu ela.

- O interno pediu mesmo ajuda? - Que diabo, durante os meses que eu servira na Unidade de Emergência, todas as noites de sexta-feira e sábado eu deixava empilhar dez papeletas.

- Não, mas ele é muito lento, e ...

- Se ele deixar acumular mais ou menos quinze, e se ele mesmo pedir auxílio, então torne a me telefonar.

Desliguei, cheio até os olhos com aquelas enfermeiras da UE, sempre querendo dirigir o espetáculo e tomar as decisões. A UE era território do interno; talvez até ele se aborrecesse se eu aparecesse de repente. Suponho que naquilo havia um grão de verdade e um quilo de racionalização. Contudo, durante os dois meses em que servi na Unidade de Emergência, nem uma só vez eu tinha pedido ajuda ao interno de plantão. Eu não conseguia imaginar a UE incontrolavelmente apinhada e atarefada numa noite de quarta-feira. Tentei ler mais um pouco, sem fazer qualquer progresso e ficando cada vez mais nervoso e perturbado.

Minhas mãos tremiam ligeiramente - um fato novo - quando eu equilibrava o livro sobre meu peito. Meus pensamentos disparavam, desconexos, da Cirurgia para Karen, de Karen para o tempo horrível que eu passara pegando surfe, e voltavam à Cirurgia. Levantando-me, fui ao banheiro e tive uma ligeira diarréia - coisa que não era estranha para mim naqueles dias.

Quando o telefone tornou a tocar, era a mesma enfermeira intrometida da UE dizendo, com satisfação, que o interno tinha pedido ajuda. Aquilo me irritou tanto que eu nada respondi, apenas desliguei. Antes que eu saísse do quarto, o telefone tocou de novo. Era a enfermeira perguntando ofendida se eu ia ou não. Reuni todo o azedume que pude e respondi que estaria lá se eles conseguissem manter as coisas enquanto eu calçava os sapatos. Não adiantou. Ela estava acima dos insultos, e eu sem pressa alguma de ir; talvez quando eu chegasse lá, tudo estivesse calmo. Eu não me incomodaria de fazer uma ou duas suturas, qualquer coisa assim. Mas eu estava certo de que ia me enfrentar com um desastre ocorrido numa estrada ou uma convulsão.

A chuva cessara, e lá em cima uma ou duas estrelas piscavam por entre as massas de nuvens pesadas e de cor violeta escuro. O vento tinha mudado de novo, e agora sopravam os alíseos, afastando o kona.

Ao chegar à UE, fui obrigado a admitir que as coisas estavam longe de calmas. Ao longe, trabalhavam um interno da clínica médica e dois residentes. Ademais, quatro ou cinco assistentes estavam vendo seus próprios doentes. Uma das enfermeiras entregou-me uma papeleta, e disse que aquele camarada fazia tempo que estava esperando; não tinham conseguido achar seu médico particular. Tomei a papeleta e me encaminhei para a sala de exames, lendo-a enquanto andava. A doença principal era "Nervosismo; está sem pílulas." Por Cristo! Estaquei e olhei a papeleta mais atentamente. O médico particular era um psiquiatra; não era de admirar que tivessem podido localizá-lo. E o doente, um homem de trinta e cinco anos, estava na sala da psiquiatria. Era do outro lado, atrás à direita. Que sorte a minha, pensei, um doente psíquico. Por que não um simples corte, algo que eu pudesse resolver, em vez de um negócio lá dentro da cabeça?

Entrando no quarto e sentando-me, vi-me face a face com um homem de aparência jovem, sentado em cima da cama. O leito e a cadeira de espaldar reto em que eu estava eram as duas únicas peças de mobiliário no quarto limpo e de paredes brancas.

Tanto o leito quanto a cadeira estavam firmemente fixados ao assoalho. A limpeza ali era impecável, e a luz forte, vinda de um renque de lâmpadas fluorescentes no teto. Depois de rever mais uma vez a papeleta, olhei para ele. Era um tipo de razoável bom aspecto, olhos castanhos e cabelos castanhos muito bem penteados. As mãos crispadas à sua frente eram o único sinal de seu nervosismo. Apertavam-se uma contra a outra, como se ele estivesse modelando gesso em suas palmas.

- Não está se sentindo bem? - perguntei.

- Não. Ou, sim, não estou me sentindo muito bem - replicou ele, pondo as mãos sobre os joelhos e desviando o olhar de mim. - Suponho que você é um interno. Meu médico não vem?

Fitei-o durante alguns segundos. Eu tinha aprendido que deixá-los falar era a melhor coisa a fazer, mas era visível que ele queria que eu respondesse às suas perguntas.

- Sim, sou um interno - falei, um tanto para me defender. - E não, não pudemos encontrar seu médico. Contudo, acho que podemos ajudá-lo agora, e você poderá ver seu médico depois, talvez amanhã.

- Mas preciso dele agora - insistiu ele, tirando um cigarro que eu permiti que ele acendesse. Os

doentes mentais podiam fumar se quisessem; naquela sala não havia oxigénio.

- Por que você não me diz o que o está aborrecendo, e eu ou o psiquiatra residente poderemos ajudá-lo. - Eu tinha a certeza de que não conseguiria que o psiquiatra residente viesse, mas talvez pudesse falar com ele ao telefone.

- Estou nervoso - disse o homem. - Vivo nervoso, todo o meu corpo, e não posso ficar calmo. Tenho medo de fazer alguma coisa.

Seguiu-se uma pausa. Ele estava olhando de novo para mim, firme. Embora tivesse acendido o cigarro, não o levou à boca, mas segurava-o entre os segundo e terceiro dedos, com a espiral de fumaça passando por seu rosto. Seus olhos, muito abertos, mostravam as pupilas relativamente dilatadas. O suor brilhava em sua testa.

- Que espécie de coisa você está com medo de fazer? - perguntei para lhe dar toda a corda que ele quisesse pegar. Além disso, eu não me importava se ia ficar sentado ali por muito tempo ou não.

Os outros problemas da UE, lá no pandemônio, se resolveriam sem mim. Eu os estava ajudando muito bem, tomando conta de um doente mental.

- Não sei o que eu posso fazer. Isto é metade do problema. Só sei que quando fico assim, não tenho muito controle sobre o que penso . . . sobre o que penso. Penso. - Ele olhava na minha direção, para a parede branca, fixamente, sem piscar. Então, súbito, fez uma careta, formando com a boca uma fenda estreita.

- Há quanto tempo você tem este tipo de problema? - Perguntei, tentando quebrar o transe e fazer com que ele continuasse a falar. - Há quanto tempo está se tratando com um psiquiatra?

Primeiro ele pareceu nada ter ouvido, e quando eu ia repetir a pergunta ele tornou a se voltar para mim.

- Há cerca de oito anos fui diagnosticado como esquizofrênico, do tipo paranóide, e fui hospitalizado duas vezes. Desde a primeira internação fiquei aos cuidados de um psiquiatra, e fiquei muito bem, principalmente no ano passado. Mas esta noite, senti-me como há muitos anos. A única diferença é que, agora, eu sei o que está acontecendo. É por isso que preciso de mais Librium, e de ver meu médico. Tenho de parar com isso, antes que perca o controle.

Fiquei surpreso com sua perspicácia. Presumi que ele tivera um tratamento intensivo, talvez até feito psicanálise. Sem dúvida ele era inteligente. Embora eu fosse um novato neste tipo de coisa, sabia o bastante para fazer com que continuasse falando e se comunicando. Teria sido fácil apenas dar-lhe um pouco mais de Librium e aguardar que fizesse efeito ou não. Mas, agora, eu estava interessado, parcialmente nele e parcialmente em sua habilidade para me manter fora do resto da UE. Lá do fundo, veio o grito de uma criança.

- Por que você teve de se internar? - perguntei. Ele respondeu com animação.

- Eu estava num colégio de Nova York e tinha algumas dificuldades com meus estudos. Vivia em casa com minha mãe. Meu pai morreu quando eu ainda era um bebê. Então, durante o meu segundo ano de colégio, minha mãe começou a ter um caso com este homem, o que me aborreceu, se bem que, no princípio, eu não soubesse por quê. Ele era um cavalheiro, bonito e muito agradável, e tudo isso. Acho que devia ter gostado dele. Mas não. Sei disso agora. Na verdade, eu o odiava. De início disse comigo mesmo que gostava dele. Quero dizer, fui atraído por ele. Também sei disso agora.

Eu estava começando a formar o quadro - o mesmo que o psiquiatra lhe tinha dado, uma estrutura para suas ansiedades. Agora que eu tinha feito com que começasse, ele continuou.

- Quanto à minha mãe, bem, também comecei a odiá-la por vários motivos. Claro que era um ódio ao nível do subconsciente. Um dos motivos foi ter-se enredado com este homem e haver-me posto de lado, e o outro por conservá-lo para ela. Acho que eu tinha tendências homossexuais latentes.

Mas eu amava minha mãe. Ela era a única pessoa a quem eu me apegava. Eu não tinha muitos amigos, nunca tive, nem achava muito prazer em encontros com moças. Bem, então o Presidente Kennedy foi morto, e eu soube que por um jovem. Naquela ocasião eu estava viajando de metrô, voltando da escola para casa, e pude ver os jornais em torno de mim: KENNEDY ASSASSINADO POR UM JOVEM. Fiquei nervoso, há dias que eu estava, e de repente, já que eu era um jovem, concluí, não me pergunte por que, que tinha sido eu quem matara Kennedy. Tanto quanto posso me lembrar, os dias que se seguiram foram um verdadeiro inferno. Não voltei para casa. Eu estava apavorado, com medo de que todo mundo quisesse me pegar. O que piorou as coisas foi que havia gente chorando por toda a parte. Fiquei preocupado com que eles descobrissem que eu era o criminoso e, assim, pusme a correr, durante dois dias, aparentemente com medo de todas as pessoas que eu via e, acredite-me, é difícil fugir de gente em Nova York. Felizmente, acabei num hospital.

Levei quase um ano para me acalmar, e outro tanto de tratamento intensivo para compreender o que me havia acontecido. Então as coisas foram ...

Súbito, parou no meio da frase e voltou a fixar a parede. Depois olhou-me e pediu:

- O senhor quer tirar a minha pressão? Acho que está muito alta.

Eu não me incomodava em tirar sua pressão, mas na sala não havia equipamento para isso. Saí em busca de um aparelho de pressão, ligeiramente aturdido pela súbita, concisa, e impressionante história de um esquizofrênico paranóide. Ao voltar, uma enfermeira tentou dar-me outra papeleta, mas acenei-lhe com a mão para que se afastasse, dizendo que ainda não terminara com aquele doente.

Na sala, o paciente já havia arregaçado, por antecipação, a manga. Ele se mostrou muito interessado quando coloquei o manguito em torno de seu braço, e procurou ver o manômetro quando comecei a inflá-lo. Sua pressão era de 142/96. Disse-lhe que estava ligeiramente elevada, mas de acordo com sua agitação.

Na verdade, eu estava um pouco surpreso com sua elevação. Então perguntei-lhe o que acontecera depois que ele saiu do hospital.

- De que vez? - indagou ele.

- Você esteve internado mais de uma vez?

- Já lhe disse. Duas vezes.

- O que aconteceu depois da primeira internação?

- Tudo correu muito bem. Eu via meu psiquiatra regularmente. Então, sem razão aparente, comecei a ficar nervoso, e fui piorando, até que tive de voltar para o hospital por mais quatro meses.

- Quanto tempo decorreu entre as duas hospitalizações? - perguntei.

- Cerca de um ano e meio. O verdadeiro problema foi que jamais conseguimos entender por que aconteceu da segunda vez. Eu não estava paranóico, apenas nervoso. Eu tinha o que eles chamam de ansiedade total. Então meu psiquiatra começou a me falar sobre esquizofrenia pseudoneurótica, mas eu não entendia aquilo muito bem, embora tivesse lido um livro a seu respeito. É por isso que essa situação me preocupa tanto. Agora eu estou nervoso, realmente nervoso. Sinto a mesma ansiedade que sentia antes de ir para o hospital pela segunda vez e não posso suportá-la. Não quero que as coisas endoideçam de novo. Não sei por que devo estar me sentindo assim agora. Ultimamente tudo tem corrido tão bem. Até o meu negócio vai bem.

Percebi que ele devia ter sido psicologicamente bem compensado. Ele conseguira estabelecer um novo lar no Havaí e até começar um negócio. Estranhamente, eu também me sentia nervoso mas, claro, por motivos diferentes e em diferente grau. Eu estava exausto, porém meu problema podia ser curado com um pouco de sono e relaxação. O dele era a longo prazo e, além do mais, agora, ele se preocupava com o que pudesse se descontrolar de repente. Uma enfermeira abriu a porta, ia dizer qualquer coisa, mas tornou a fechá-la quando nos viu falando.

- Você tem muitos amigos aqui? - perguntei.

- Não, realmente não. Nunca tive muitos amigos. Prefiro ficar em casa e ler. Não gosto de sair para ficar sentado nos bares a beber. Me parece um desperdício de tempo. Acho que não tenho muito em comum com as outras pessoas. Gosto de pegar um surfe de vez em quando, e tenho um par de caras com quem pego as ondas, mas nem sempre. Prefiro pegar surfe sozinho.

Aquilo me divertiu por um instante. Um surfista esquizofrênico. Mas, em alguns sentidos, o seu estilo era um pouco parecido com o meu.

- E sua mãe? Onde está ela agora?

- Lá em Nova York. Casou-se com aquele camarada com quem andava. Meu psiquiatra sugeriu-me que eu me afastasse por algum tempo. Foi por isso que vim para o Havaí. Não há dúvida de que minha vida mudou para melhor.

Levantei-me e dirigi-me para a porta. Uma de minhas pernas começara a ficar dormente, e meu pé estava formigando.

- Qual o seu ramo de negócio?

- Fotografia - respondeu. - Sou fotógrafo, franco-atirador, mas faço também algum trabalho para a indústria. É isso o que me mantém ocupado. - Ele se levantou para esticar, e caminhou até o outro lado da sala, perto da cadeira. Eu me virei, coloquei as mãos atrás da cabeça e me encostei na porta. Ele parecia um pouco mais calmo, levemente aliviado de sua ansiedade.

- E quanto às mulheres? - perguntei, um pouco hesitante, pensando no que acontecera àquelas tendências homossexuais que mencionara antes.

Ele me olhou por um breve momento depois que as palavras saíram de minha boca, e depois se sentou na cadeira, fitando o chão.

- Tudo ótimo, ótimo. Nunca melhor. Para falar a verdade vou casar em breve com uma ótima garota. É por isso que quero ter a certeza de que tudo está bem comigo. Não quero passar mais tempo algum no maldito hospital. Não agora.

Eu podia entender sua preocupação. Ao expressá-la ele havia deslocado, de repente, a conversa para um plano mais pessoal. Não que já não estivéssemos falando muito pessoalmente; mas o fato de que ele ligava o desejo de casar-se às suas dificuldades mentais tornava mais fácil para mim entendê-lo e simpatizar com ele. Afinal de contas, se ele pudesse afastar tudo e estabelecer um verdadeiro relacionamento com sua noiva, ela podia ser o meio de se conseguir uma compensação permanente. Pelo menos havia uma chance. Ao contrário de muitos doentes mentais, aquele cara estava realmente tentando. Aquilo me agradava. Sentei-me sobre o leito, perto da cadeira onde ele estava.

- Isso é bom - falei. - Você está dominando o seu problema básico.

- Sim, é maravilhoso - redarguiu, sem muita emoção.

O fato de que os esquizofrênicos demonstram cegas afeições surgiu em minha mente vindo de uma vaga aula de psiquiatria. Aquilo me deu uma fugaz sensação de entendimento e de prazer académico.

- Quando é o casamento? - perguntei, para ver se conseguia obter alguma reação emocional dele.

- Bom, este é um dos problemas - disse. - Ela ainda não marcou uma data definitiva.

Aquela observação me fez recuar um pouco.

- Mas ela concordou em se casar com você, não?

- Claro que sim. Mas ainda não decidiu quando exatamente devemos nos casar. Com efeito, eu estava planejando perguntar-lhe esta noite se podíamos nos casar durante o verão. Eu gostaria de me casar neste verão. - E por que não pergunta? - indaguei. Eu começava a formular uma definitiva impressão de um caso de hipersensibilidade esquizofrênica para com qualquer sinal de rejeição. Talvez sua ansiedade houvesse nascido do seu medo de ser rejeitado pela moça. Todos os sinais levavam a isso.

- Esta noite eu não posso. - disse.

- Por que não? - Este era um ponto crucial. Se tudo corresse bem, ele ficaria feliz; mas se ela o rejeitasse, ia ser uma catástrofe. Ele também sabia isso.

- Porque ela me telefonou de manhã e me disse que não podia me ver esta noite. Quando lhe perguntei por que não, ela apenas respondeu que tinha uma coisa muito importante a fazer. Ela faz isso com freqüência.

Eu sabia que ele estava numa posição difícil. Quanto mais ele insistia, mais dependente ficava de sua noiva para sua estabilidade mental. Eu não sabia o que dizer. Tínhamos chegado a uma espécie de impasse, e eu achava que agora podia ser o momento para lhe dar um pouco de Librium ou de qualquer coisa. Então, recomeçou a falar.

- Talvez você a conheça - disse. - É enfermeira deste hospital.

- Como se chama? - Eu estava curioso.

- Karen Christie. - falou. - Mora bem perto do hospital, do outro lado da rua.

Suas palavras caíram dentro de meu cérebro, esmagando as muralhas de defesa cuidadosamente levantadas e arrancando tudo. Senti que meu queixo caiu involuntariamente e que uma névoa cobria e vidrava meus olhos, refletindo a confusão e a incredulidade que me iam por dentro. Lutei muito para recuperar minha compostura exterior. Ele estava por demais mergulhado em seus problemas para reparar na minha inquietação. E continuou descrevendo o seu relacionamento com Karen. Agora, vinte segundos após a revelação, eu me mostrava, exteriormente, completamente calmo e ouvindo mas, por dentro, minhas próprias mensagens urgentes tiravam todo o significado de suas palavras. Éramos como dois homens discutindo o mesmo assunto, mas em línguas diferentes.

Então, ali estava o "amiguinho", "noivo". Eu estava partilhando Karen com um esquizofrênico que dependia totalmente dela para o seu equilíbrio mental, cujo mundo se fazia em pedaços quando aquela compensação lhe era negada, como acontecera devido à decisão de Karen de ficar comigo naquela noite. De um modo grotesco porém muito real, havíamos trocado os papéis: ele agora era o terapeuta e eu o paciente. Como que condizendo com a situação, eu me achava sentado no leito e ele na cadeira. Cerca de meia hora antes, eu me sentira rejeitado porque Karen só podia se encontrar comigo tarde da noite, depois das onze horas. Ao mesmo tempo, eu tinha, ilogicamente, abençoado minha felicidade pelo fato de ela ter um outro homem que queria sair com ela, mas trazendo-a para casa a tempo de beber cerveja e fazer sexo comigo. O fato de eu vir compartilhando um papel com um esquizofrênico tentava-me a me identificar com ele. Fiquei a imaginar quanto de minha personalidade era esquizofrênica. Mas certamente eu não era um esquizofrênico; minha consciência da realidade era muito boa. Eu não podia crer que tivesse quaisquer ilusões porque, quando nada, eu era o realista, principalmente no que tocava ao meu papel de interno. Além disso, eu jamais tivera alucinações. Eu teria sabido, pensei. Ou não teria?

De repente fui tomado pela idéia de que ele estava me olhando como que à espera de uma resposta.

Com meus olhos, pedi-lhe que repetisse a pergunta.

- Você a conhece? - insistiu ele.

- Sim - falei mecanicamente - ela trabalha de dia. Novamente começamos a falar e a pensar em diferentes idiomas, ele continuando a contar a história de sua meia vida com Karen e eu recolhido às minhas especulações. Não, com toda a certeza eu não era esquizofrênico, mas talvez tivesse tendências esquizóides. Recuando às aulas e às páginas dos compêndios, eu procurava lembrar-me das características da personalidade esquizóide. A maior parte desses casos, eu me recordava, evitava as ligações prolongadas e muito íntimas. Aquilo se aplicava a mim? Sim, definitivamente, pelo menos recentemente. Claro que ninguém descreveria minhas relações com Karen, Joyce ou mesmo Jan como firmes, ou caracterizadas pelo respeito e afeição. Situavam-se mais no terreno das conveniências recíprocas, nas quais eu - e talvez as moças também - não tínhamos investido muita afeição ou ligação. Eu tinha que admitir que, para mim, elas eram mais vaginas ambulantes do que pessoas no todo, servindo não como meios de aproximação, mas como um processo de fuga e posterior retirada. O mesmo acontecia com meus pacientes. Com o passar dos meses, minha atitude para com eles havia mudado. Cada caso transformara-se num órgão, numa doença específica, ou numa técnica. Desde Roso, eu evitava todo o contato íntimo, toda a intimidade e envolvimento. Até isso, agora, me parecia uma atitude esquizóide. De repente, meu cérebro foi atravessado por pensamentos vis, doentios, que me envenenavam, e vi que precisava deixar rapidamente aquele quarto e fugir do hospital para algum lugar onde eu pudesse respirar.

Reunindo meus pensamentos, concentrei-me na realidade à minha frente.

- Que tipo de tranqüilizante você tem tomado? - perguntei apressado.

- Librium de 25mg - respondeu ele, um pouco confuso. Era evidente que eu o interrompera.

- Ótimo. Vou dar-lhe algumas cápsulas, mas recomendo que entre em contato com seu médico esta noite ou amanhã. Enquanto isso, vou-lhe receitar uma injeção de Librium para fazer efeito imediato.

Antes que ele pudesse dizer alguma coisa mais, levantei-me da cama rapidamente, abri a porta e saí para a fluorescência e agitação da UE. Mecanicamente, passei uma receita de "Librium 25mg, 10 cápsulas", tornando a pensar no absurdo de um paciente passar a ser o médico. Só isto parecia quase uma alucinação esquisofrênica. Uma enfermeira tentou entregar-me outra papeleta, mas afastei-a com a mão. Disse a outra enfermeira que aplicasse, no doente que estava na sala da psiquiatria, 50mg de Librium intramuscular. Eu estava apenas meio consciente da atividade à minha volta. Então, antes de sair, tive de voltar e ver mais uma vez aquele esquizofrênico, para me certificar de que não era uma alucinação. Abri a porta. Ali estava ele, muito bem, olhando fixo para mim.

Fechei a porta e comecei a caminhar pelo longo corredor para o meu quarto. Tudo era verdadeiro demais - todas as coisas em que eu havia pensado a meu respeito naqueles segundos depois que ele pronunciara o nome de Karen. Eu era um frio e desligado filho da puta, e ficando assim cada vez mais. Tudo o que eu pensava a respeito, confirmava isso. Por exemplo, minhas relações iniciais com Carno; tinha desaparecido apenas num disfarce de inconveniência. De fato, eu tinha sido muito egoísta e indolente para conservá-las. Provavelmente o surfe era a maior fuga de todas, especialmente desde que, na aparência, eu o usava para encobrir e aliviar a minha vida cada vez mais isolada. E a própria Karen, uma relação vazia e sem sentido, se é que existira. Sentimentos que eu vagamente experimentara, o desejo vazio e desorientado - eu havia procurado reprimi-los em vão pelos meus encontros com Karen, Joyce e até mesmo Jan. Muita coisa ficou terrivelmente clara para mim, enquanto eu estava sentado em meu quarto, às escuras, buscando as respostas.

Nem sempre eu fora assim. Não no colégio, onde eu fazia facilmente amizades duradouras. E agora aquele desejo de isolamento que fazia parte de mim? Talvez o sentisse um pouco durante o primeiro ano de colégio, mas não depois disso. Em seguida viera a escola de Medicina. As sementes da mudança teriam sido plantadas ali? Sim. Afinal de contas, foi durante a escola de Medicina que os amigos tinham se afastado, e as atitudes e práticas para com as mulheres haviam mudado, por necessidade, levado que eu era pelas dificuldades econômicas e limitações de tempo.

Mas só depois do internato foi que as sementes germinaram. Agora eu era, sexual e socialmente, pouco mais do que um barco de recreio, a não ser que eu operava num hospital em vez de no mundo real. Como tudo ficara diferente. O telefone tocou, mas eu o ignorei. Tirando o uniforme branco, vesti um jeans cor de trigo e uma camisa de gola roulé preta.

Por que me acontecera isso? Fazia parte apenas do programa? Ou se combinava com o medo e a raiva que viviam sempre dentro de mim? Seria basicamente o desgosto por não falar quando eu acreditava que o sistema estava podre, por deixar-me levar apesar disso, e de agüentar tudo? Eu não sabia. Quanto mais eu pensava, mais confuso e deprimido eu ficava. Confuso quanto às causas, não aos efeitos. Em conjunto, os efeitos eram claros: eu havia me tornado um verdadeiro bastardo.

De repente, pensei em Nancy Shepard, em como a havia expulsado de minha mente, e rejeitado suas perguntas e acusações. Na noite em que discutimos, ela havia tentado me dizer o que eu acabara de aprender do meu terapeuta - meu terapeuta, o esquizofrênico. Que triângulo, pensei: uma enfermeira velhaca, um esquizofrênico malcompensado, e um interno fodido. Nancy Shepard havia me chamado de egoísta, de uma bolha de egoísmo que se dirigia para um ponto onde o amor seria impossível. E ela estava certa. Que importava que houvesse mais do que isso; que aquilo não era inato em minha personalidade, mas que se desenvolvera nela; que eu fora encorajado, dia a dia, a evitar um genuíno envolvimento porque, agindo assim, era a única e natural defesa que eu podia conjurar para tratar com a raiva, a hostilidade e a exaustão? Que importava que a rotina de um interno fosse de uma insensata monotonia, ou que o sistema médico fosse criado para usá-lo e atormentá-lo? Para uma Nancy Shepard - para qualquer pessoa - o resultado final da personalidade era tudo o que importava.

Ela havia me arranhado ligeiramente com um pouco da verdade, e eu a havia expulsado de minha vida por ser chata.

Deitado na cama, eu pensava no que fazer agora. No momento, dormir. Quantas pontes ainda me restavam intactas? E Karen? Eu não sabia. Talvez eu a procurasse, talvez não. Eu esperava não vê-la, mas sabia que provavelmente a veria.

 

PARTIDA

O apêndice jazia num dos lados da cuba de aço, onde eu o depositara um momento antes de retornar à mesa de operação. O cirurgião estava terminando de suturar o coto apendicular.

Estávamos tão concentrados que só vimos a mão depois que ela se insinuou no campo operatório e começou a tatear a esmo os intestinos roliços e úmidos. A mão estava sem luva, mais do que definitivamente deslocada em nosso campo operatório previamente esterilizado. Parecia uma coisa estranha, saída da zona crepuscular debaixo dos lençóis cirúrgicos. O cirurgião e eu entreolhamo-nos alarmados, e depois para Straus, o interno recémchegado, mas Straus não podia tirar seus olhos daquela mão. Os segundos que se seguiram desencadearam um rodamoinho de confusão mental, enquanto nós três nos esforçávamos para relacionar a intrusa com alguém da equipe operatória.

Deixei cair a agulha e o fio, e ia afastar a mão da incisão, quando o cirurgião compreendeu tudo.

- Pelo amor de Deus, George, o cara meteu a mão nas tripas!

Despertado de seu devaneio, George, o anestesista, enfiou o nariz por sobre o anteparo e comentou reservadamente:

- Diabos me levem! - antes de voltar a sentar-se em seu banco. Com uma destreza que desmentia seu aparente torpor, ele injetou uma potente droga musculoparalisante, a succinilcolina, no tubo do soro. Só então a mão do paciente relaxou e retornou para cima dos lençóis cirúrgicos.

- Quando você disse que ia manter uma anestesia leve, nunca pensei que ia ter de lutar com o paciente - falou o cirurgião.

Em vez de responder, George afrouxou a passagem da succinilcolina pelo tubo do soro com a mão direita, enquanto que, com a esquerda, abria o tanque de óxido nitroso, dando mais algumas voltas no registro. Depois de várias compressões fortes no saco de ventilação, a fim de acelerar a passagem do óxido nitroso para os pulmões do paciente, George ergueu o olhar para se juntar à discussão.

- Sabe George, esta sua anestesia epidural é muito engraçada. Desafia a cirurgia. Com efeito, esta operação é exatamente como uma apendiceitomia do século XVI.

- Não sei - retorquiu George. - Naquele tempo os pacientes não só atacavam com as mãos, mas com os pés também. Você reparou como os pés dele estão quietos? Estamos progredindo muito na anestesia.

Ao correr das piadas, esta era uma barragem muito forte, e o cirurgião resolveu não responder ao fogo. Em vez disso, ele se empenhou em salvar o que podia do campo operatório. Enquanto ele segurava precavidamente a desastrosa mão do paciente, eu cobria a incisão com uma toalha empapada em soro fisiológico. Straus e a instrumentadora ainda estavam estéreis, segundo a terminologia da sala de operação.

A quebra da esterilidade do campo operatório era um problema muito sério, pois aumentava muito a possibilidade de uma infecção pós-operatória com algo como os estafilococos. Alguns cirurgiões chegavam a ser maníacos quanto a assepsia, a esterilização, mas nunca, ao que parece, de um modo consistentemente real. Por exemplo, um professor da escola de Medicina exigia que os internos, residentes e alunos se lavassem por exatamente dez minutos, marcados no relógio. Quem quer que entrasse na sala depois de se escovar menos de dez minutos, tinha que recomeçar tudo desde o início. Essa regra estrita, contudo, não se aplicava a ele próprio que demorava, fazendo um cálculo generoso, não mais do que três ou quatro minutos. Aparentemente, os outros estavam mais contaminados, ou suas bactérias eram menos virulentas.

Sua exigência quanto à esterilização fora responsável por um episódio memorável. Era um caso interessante, um ferimento a bala no pulmão direito, e os residentes e internos se comprimiam em três camadas em torno da mesa de operação. Um estudante de Medicina muito engenhoso, e um tanto baixo, estava decidido a não perder um detalhe. Empilhou vários escabelos, trepou sobre eles e, apoiado na lâmpada em cima, inclinando-se, podia olhar diretamente para o campo operatório.

Este vantajoso ponto de observação funcionou muito bem até que seus óculos escorregaram e caíram diretamente dentro da ferida operatória. Isso irritou tanto o professor, que ele ordenou ao residente que continuasse com a operação.

Felizmente, Gallagher, o cirurgião da apendicectomia, tinha melhor controle sobre suas emoções do que o professor da escola de Medicina. Embora evidentemente contrariado, ele ainda estava operando.

- George, veja se você é capaz de tirar esse braço de baixo dos lençóis e segurá-lo bem firme - falou Gallagher, olhando para mim e revirando os olhos ante o absurdo de tudo aquilo, ao mesmo tempo que o anestesista se enfiava de cabeça por baixo dos panos.

- E você, Straus - disse eu - afaste-se da mesa. - O pobre Straus estava evidentemente confuso. Seus olhos iam e vinham do cirurgião para a mão do paciente, que ainda segurava os lençóis que se mexiam, indicando o progresso e os movimentos do anestesista por baixo deles. - Basta cruzar as mãos e mantê-las à altura do peito. - Straus recuou, grato pela orientação.

Com alguma dificuldade, o anestesista puxou a mão do paciente para a posição adequada, e tentou prendê-la sobre a mesa. Então o cirurgião deu um passo atrás e deixou que a enfermeira da sala retirasse seu avental e suas luvas, enquanto a instrumentadora descia de seu escabelo com um novo conjunto esterilizado, para substituí-los.

Que maneira de terminar o meu internato, pensei. Era a última vez que eu ajudava numa operação como interno - talvez a última vez que eu ia à sala de operações como interno, se bem que eu estivesse designado para ficar de plantão naquela noite e pudesse ter mais algumas horas de cirurgia. De qualquer modo, este caso tinha sido uma pantomima desde o início. Para começar, o paciente havia tomado café pela manhã porque eu me esquecera de anotar na papeleta: "nenhuma alimentação", e as enfermeiras, que deviam saber melhor, também tinham deixado passar isso no meio de todas as outras ordens.

- Straus, ajude-me com os lençóis esterilizados. - Inclinei-me sobre o paciente e estendi uma das pontas do novo lençol esterilizado para o novo interno. A diferença entre nós era de um dia - o primeiro dia dele e o meu último. Oficialmente eu ainda era um interno, embora, supunha eu, eu vinha agindo mais como residente desde a chegada de todos os novos internos. Eles pareciam formar um bom grupo, tão impacientes e crus como eu fora. Straus e eu tínhamos sido postos juntos para que eu o ajudasse a se aclimatar. Com efeito, estávamos de serviço juntos naquela noite.

- Segure-o no alto - disse eu, levantando a minha ponta do lençol até a altura dos olhos e deixando que a borda cobrisse o lençol antigo. - Bom. Agora vamos deixar que a parte superior caia por sobre o anteparo do anestesista. - Ele parecia aprender com facilidade, e passei-lhe o lençol inferior. Mas o cirurgião, agora com avental e luvas novas, estava impaciente, pegou o lençol de Straus, ajudando-me a recobrir tudo rapidamente, sem dizer palavra.

O grande relógio com seu familiar mostrador institucional marcava duas e quinze. Eu custava a compreender que dentro de vinte e quatro horas eu ia deixar o meu internato para trás. Como o ano passara depressa. No entanto, algumas recordações pareciam mais velhas do que um ano. Por exemplo, Roso. Não tinha sido ele, sempre, uma parte de mim? E...

- Que tal uma ajudazinha, Peters? - Gallagher já estava brandindo um porta-agulhas com um fio fino pendendo de sua ponta. Mas ele não podia começar porque a toalha estéril que eu lançara por sobre a incisão ainda estava lá.

- Pinça grande e uma bacia. - Dirigi-me para a instrumentadora, ela me deu uma pinça, batendo forte na palma de minha mão. Ela era um demónio quando se tratava de técnica na sala de operações. Aparentemente ela via muito televisão, pois batia com os instrumentos em sua mão quase ao ponto de causar dor, e quando lhe calçava as luvas era como se quisesse esticá-las até o sovaco. Com a pinça, retirei a toalha sem tocar nela e joguei-a dentro da bacia. O conceito de assepsia na sala de operações me confundia ao ponto de eu sempre errar para o lado da segurança.

Eu não sabia se Gallagher achava que a toalha estivesse contaminada mas, pelo sim pelo não, não toquei nela. Claro que, com o paciente remexendo na ferida operatória com sua mão nua, todo esse procedimento era absurdo.

Com a toalha fora do caminho, Gallagher voltou ao coto apendicular. Felizmente, o paciente tinha escolhido uma boa hora para sua trapalhada; não só o apêndice já havia sido removido, como o coto sepultado. Gallagher estava quase pronto para iniciar a segunda camada de sutura na área quando aparecera a mão misteriosa.

George, o anestesista, havia realizado uma fantástica recuperação. De sua parte, as coisas já se tinham normalizado - o nível do som de seu rádio portátil Panasonic estava competindo com o do respirador automático, que tinha sido trazido depois da administração da succinilcolina. Não se tratava de uma simples precaução. A succinilcolina é tão potente que o paciente agora estava totalmente paralisado, e o aparelho respirava por ele. Quando Gallagher deu o primeiro ponto depois de sua luta com o braço, o ambiente voltou ao nível de antes da crise.

Chegamos a fazer uma pausa para ouvirmos o informe sobre o surfe, que o rádio de George lançava por sobre o anteparo do anestesista. "Ala Moana três-quatro e macio". Mas eu já havia vendido a minha prancha. Gallagher era um de um par de cirurgiões assistentes mais jovens que ocasionalmente pegava um surfe. Eu o tinha visto algumas vezes no "número 3" ao largo de Waikiki e, definitivamente, ele era melhor cirurgião do que surfista, sendo ainda mais elegante no coração. Ele tinha o hábito denunciador de pegar os instrumentos cirúrgicos com o dedo mínimo esticado, do modo com que uma dama da sociedade segura uma xícara de chá.

Foi assim que ele deu o ponto seguinte, esticando o máximo possível o dedo mindinho do resto dos outros dedos e habilmente retirando o fio de seda do porta-agulhas e passando-o para minha mão, que o aguardava. Desde que eu era o primeiro-assistente, cabia a mim dar o nó. Straus segurava os afastadores. A primeira costura foi feita rapidamente, como acontece quando o ato se torna reflexo.

As paredes opostas do intestino grosso se uniram sobre o coto apendicular invaginado. Enquanto eu apertava o nó, Gallagher fingia não reparar, mas eu tinha a certeza de que ele tinha os olhos pregados em mim. Como ele nada disse, calculei que aprovava o grau de tensão com que dei o nó.

Então ele pegou o porta-agulhas da instrumentadora, o que ela havia montado recentemente, enquanto eu iniciava a segunda sutura.

- Ei, Straus, que tal puxar esses afastadores um pouco para cima para que eu possa ver o meu nó?

Aborrecia-me o fato de Straus estar olhando para o espaço. Fiz a segunda camada de sutura enquanto ele olhava para dentro da ferida operatória e levantava-a com a mão direita, tornando mais ampla a abertura. Aquilo me permitia que meu dedo indicador direito levasse a laçada do fio até junto do primeiro nó, onde a apertei com uma precisão que me parecia correta. Mais outra laçada, orientada pela mão esquerda, de modo que o nó ficasse bem firme e não escorregadio.

Cinco dessas suturas cobriam a zona do coto apendicular, e ficamos prontos para fechar.

- Straus, você fez um trabalho ótimo - disse Gallagher, piscando para mim, e tomando os afastadores do interno. - Sem você, eu não poderia ter trabalhado. - Sem saber se Gallagher o estava instigando, Straus prudentemente resolveu ficar calado.

- Onde você aprendeu a afastar assim, Straus?

- Eu ajudei algumas vezes na escola de Medicina. - disse ele calmamente.

- Eu sabia - continuou Gallagher com um sorriso desdenhoso saindo pelos lados de sua máscara.

- Peters, será que você e nosso jovem cirurgião aqui podem fechar a parede?

- Acho que sim, Dr. Gallagher. Olhando para a incisão, Gallagher hesitou.

- Pensando bem, talvez seja melhor eu ficar. Se o paciente tiver uma infecção pós-operatória, quero que a culpa recaia no menor número de pessoas possível; só George. Está ouvindo, George?

- Que é que há? - George levantou os olhos do relatório da anestesia, mas Gallagher ignorou-o e recuou para lavar as mãos na bacia.

- Straus, como está você para dar os nós?

- Receio que não muito bem.

- Muito bem. Está pronto para tentar alguns?

- Acho que sim.

- OK. Quando chegarmos à pele, você vai dar os nós.

A sutura da aponeurose foi feita rapidamente. Eu agora dava os nós quase tão rápido quanto o cirurgião ia costurando, e a instrumentadora tinha de andar depressa para nos acompanhar. A ferida aberta foi se fechando, à medida que os pontos subcutâneos eram colocados e atados.

- Muito bem, Straus, vejamos o que você é capaz de fazer - disse Gallagher, depois de dar o primeiro ponto da pele no centro da incisão e puxar o fio de seda por sobre o abdome do paciente.

O primeiro ponto da pele, no centro da incisão, é o mais difícil, porque até que os outros sejam colocados suporta um bocado de tensão, e esta torna difícil apertá-lo devidamente. Gallagher piscou para mim enquanto Straus pegava as duas extremidades do fio. Straus não estava com as luvas bem esticadas, de modo que a borracha fazia pregas nas pontas dos dedos. Contudo, ele não levantou os olhos, o que era bom, pois eu sabia o que ia acontecer e meu rosto se contorcia num sorriso antecipado.

Pobre Straus. Quando ele deu a segunda laçada, estava suando, e as bordas da pele ainda tinham um afastamento de quase quatro centímetros. Além do mais, ele havia embrulhado os dedos no ponto de um modo que indicava que ele ia se meter numa rotina cômica. Mas ele continuava sem erguer o olhar, um bom sinal. Ele ia acabar bem.

- Straus, você pegou bem a teoria. Os pontos da pele não devem ser muito apertados. - Gallagher riu discretamente. - Mas um centímetro é ir longe demais.

- Vocês podem levar o tempo que quiserem. O paciente vai ficar paralisado por bastante tempo com aquela succinilcolina - acrescentou George.

Cortei o ponto frouxo e afastado, e joguei-o no chão. Gallagher enfiou outro em seu lugar, retirando o fio da agulha com um movimento quase imperceptível de sua mão. Silenciosamente, Straus pegou as extremidades e recomeçou sua trapalhada.

- Não é a primeira vez que vejo uma mão sem luva num campo operatório. Uma vez, vi uma num estômago - falei, olhando para Gallagher. - Uma vez, na escola de Medicina, cerca de oito alunos estávamos tentando ver uma operação, e o cirurgião disse: "Sintam esta massa. Digam-me o que acham." Todos os residentes tocaram, assentindo com um sinal de cabeça, e então uma mão nua se insinuou por entre dois residentes e palpou também.

- Era de um dos alunos? - perguntou o anestesista.

- Provavelmente. Na verdade, nunca soubemos, pois o residente-chefe, que estava procurando acalmar o cirurgião, nos botou a todos para fora.

Straus ainda estava atarantado com o segundo nó, deixando escapar as pontas do fio, enredando seus dedos no laço e se inclinando daqui para ali, numa espécie de conjunto inglês. Não sei bem que tipo de ajuda ele esperava desses movimentos, mas reconhecia que eu tinha a mesma tendência.

- O operado pegou uma infecção pós-operatória? - perguntou Gallagher.

- Nada. Tudo correu sem nenhuma complicação - disse eu.

- Vamos ver se temos a mesma sorte.

Sem dizer nada, desemaranhei o fio de seda das mãos de Straus, e rapidamente dei o nó, puxando-o para o lado, a fim de que ficasse fora da incisão. Obstinadamente, Straus conservava a cabeça baixa enquanto Gallagher passava outro fio.

- Que tal este, futuro cirurgião? - falou Gallagher, esticando os braços com as mãos voltadas para dentro e os dedos entrelaçados. Uma ou duas juntas estalaram.

Não havia dúvida que Straus era um cara calado; não emitiu qualquer som, concentrando-se no ponto da pele. Na verdade, eu estava começando a me cansar da brincadeira, de vê-lo atrapalhar-se todo. Eram quase três horas, e eu tinha muito o que fazer, pacotes de última hora e outros detalhes. Depois de olhar de relance para Gallagher, tranqüilizando-o, tornei a desfazer o emaranhado de Straus e rapidamente dei um nó perfeito, aproximando as bordas da pele sem qualquer tensão.

- Bem, acho que você pode terminar isso. Lembre-se, quero apenas um pedaço de tira de papel como curativo. - Com essas palavras, Gallagher dirigiu-se, todo elegante, para a porta, arrancou as luvas e desapareceu. Pela primeira vez desde que começara com os pontos da pele, Straus levantou o olhar.

- Você prefere dar o nó ou o ponto? - perguntei, olhando para seu rosto vincado e suado.

Realmente, eu não podia dizer o que seria pior, se os nós ou os pontos. O que eu queria era sair dali.

- Darei os pontos - retrucou ele, voltando-se para a enfermeira que, de acordo com o ritual, tacou o porta-agulhas na palma de sua mão. O som agudo do metal sobre a luva de borracha distendida ecoou pelas paredes lisas da sala de operação. Literalmente, Straus deu um pulo, assustado pelo impacto. Então, encolheu-se de dor e, depois de se empertigar e olhar rapidamente para mim, curvou-se sobre o campo e procurou enfiar a agulha na pele no lado superior da incisão.

- Straus.

- Sim? - Curvado como estava, ele inclinou o rosto.

- Segure a agulha de modo que a ponta fique perpendicular à pele, e depois gire seu pulso - em outras palavras, acompanhe a curvatura da agulha.

Ele tentou mas, ao girar o punho girou o porta-agulhas sem levar em conta a distância entre o cabo e a extremidade que segurava a agulha curva. O resultado foi um fraco estalido metálico que a agulha fez ao se quebrar bem na pele. Sua mão ficou paralisada, e seus olhos, incrédulos e cheios de ansiedade, dardejaram da agulha para mim.

Merda! Pensei eu.

- Muito bem, Straus, não toque em nada. - O "Big Ben" marcava três e cinco. As pontas de agulhas, para falar a verdade, as agulhas mesmo inteiras, eram quase impossíveis de achar, depois que se as perdia. Felizmente, eu podia ver a parte superior daquela aflorando à superfície da pele. - Pinça mosquito. - Sem tirar os olhos da ponta da agulha, quase invisível, voltei-me para a instrumentadora. Wham! A força do delicado instrumento lançou uma onda de choque que subiu por meu braço, fazendo vibrar meu campo de visão. A agulha quebrada desapareceu. Franzi a cara para a enfermeira. Ela era bojuda, praticamente esférica, pesando bem mais uns nove quilos do que eu, e seu olhar naquele instante tinha tal expressão de malícia que eu declinei da oportunidade de falar alguma coisa.

Em vez disso, concentrei-me na delicada pinça mosquito que ainda estava, de qualquer modo, intacta na minha mão que formigava. Colocando o indicador esquerdo na incisão e forçando levemente por baixo da agulha partida, pude sentir uma certa resistência antes de pegar o pedaço de aço ali enfiado. No entanto, a primeira tentativa só serviu para empurrar o maldito um pouco mais para dentro. Foi quando decidi dar, eu mesmo, os pontos e atar os nós. A segunda tentativa teve mais sucesso; puxando a pinça, senti um alívio ao ver a ponta brilhante da agulha presa na extremidade e, com o cuidado de um relojoeiro, depositei o pedaço quebrado no canto da bandeja de instrumentos, conferindo-o com a sua base, para ter a certeza de que não faltavam outros segmentos. Satisfeito, pedi um fio, evitando olhar para Straus.

A pele se amolgou ante a pressão perpendicular da agulha até que, com um estalido a agulha a atravessou. Girando meu punho num arco cujo centro se afastava para eliminar o toque sobre a ponta da agulha - a força que Straus havia ignorado - enfiei-a por baixo da pele do outro lado da incisão. Forçando a contra-pressão exercida pelos dedos indicador e médio de minha mão esquerda, dei uma torção final e decisiva com a mão direita, e a ponta da agulha penetrou. Puxando a agulha com o portaagulha eu completei o ponto. Retirei o fio virando o porta-agulha de modo que o buraco da agulha ficasse para cima; o arranco no fio que atravessava a pele fê-lo soltar-se do instrumento.

Seguindo a rotina aceita, joguei o porta-agulha vazio sobre o lençol, entre as pernas do paciente.

Automaticamente, a instrumentadora pegaria o instrumento e tornaria a enfiá-lo. Entrementes, agarrei a extremidade do fio, dei quatro laçadas para um nó firme, e acabei com as duas pontas distendidas. Só então olhei para Straus.

- Que tal, se você cortasse? - perguntei.

Ele se moveu sem responder, cortou o fio, e continuou a olhar para a incisão. Mais dez pontos foram dados do mesmo modo e sem nos falarmos. Depois de cortar um pedaço de fita de papel e colocá-lo sobre a incisão fechada, virei-me para Straus.

- Por que você não escreve as ordens para o pós-operatório? Alguma vez você vai ter de começar. Eu as verei depois de me trocar. E então vou apresentá-lo aos seus pacientes. OK?

- OK - retrucou ele, finalmente, num tom inexpressivo.

- E também vou-lhe mostrar o que eu sei sobre suturar e dar os nós, se você quiser. - Straus nada disse.

Que chatice, pensei. Se ele já está cansado, vai ter um ano muito comprido, muito mesmo. Mas isso era problema dele, e sua atitude não me preocupou por muito tempo; eu tinha muita coisa a fazer.

Jogando minhas luvas no saco junto à porta, deixei a sala de operações pela última vez como interno, sem o menor sentimento de saudade. De fato, eu estava eufórico. Senti que havia cumprido o meu tempo e estava pronto para ser um residente, pronto mesmo. Finalmente a clínica estava à vista. Caminhando pelo corredor do centro cirúrgico, eu ia pensando se comprava um Mercedes ou um Porsche. Eu sempre desejara um Porsche, mas, afinal de contas, eles eram pouco práticos. Um Cadillac? Eu jamais possuiria um Cadillac. Que automóvel obsceno! Embora fosse o favorito dos cirurgiões. O Hércules tinha um, e o Supercharger também. De qualquer modo um Mercedes me parecia melhor.

O menu dizia que eram croquetes de vitela, mas para nós eram bolinhos misteriosos; o antídoto era o ketchup. Como a maioria dos restaurantes de hospital, a comida aqui exigia uma imaginação viva e boa vontade da parte de quem comia. Se o menu dizia que era vitela, era melhor prender-se bem à noção de vitela, apesar da evidência em contrário no gosto, consistência e aparência. Era útil também suprimir qualquer conhecimento que se tivesse das técnicas ruins dos açougues, estar-se com fome, e ser favorecido com uma boa conversa.

Em honestidade, suponho que a cozinha do restaurante no Havaí era cordon bleu se comparada com os restaurantes de hospitais que eu vira em Nova York durante o curso médico. Contudo, mesmo no Havaí o serviço de comida recorria ocasionalmente a misteriosos pastéis de carne da terra e, como se quisessem ajudar-me a celebrar, tendo escolhido aquela noite para servir vitela, um dos meus pratos favoritos. Além disso, eu ainda estava de serviço. Mesmo assim, a refeição foi como que um banquete. Era minha última noite como interno, e eu estava a um passo de ser retirado do campo de batalha. Se, e quando começassem os problemas, Straus estaria na primeira linha de defesa.

O clima no salão de jantar era agradável. Nítidos e finos raios de sol coavam por entre as frestas e persianas das janelas que davam para o sudoeste. Grãozinhos de poeira dançavam nos feixes dourados da luz, como bactérias sob um microscópio. Só mesmo um médico para fazer uma comparação dessas. Uma das desvantagens do aprendizado técnico concentrado, como o que se faz na Medicina, é que sua mente acaba por reduzir tudo a uma experiência técnica. A poeira podia muito bem ser comparada a peixes no oceano ou pássaros no céu. Mas para mim pareciam bactérias numa amostra de um exame de urina.

Nosso grupo estava esparramado junto a uma das grandes mesas perto da janela. Straus estava à minha esquerda, logo depois de Jan, que se sentava ao meu lado. Socialmente, longe dos terrores da sala de operação, Straus nada tinha de quieto e reservado, conforme eu o caracterizara. De fato, ele era extremamente animado, falante e, era-se obrigado a dizer, rixento. Ele parecia discordar de todos os meus pontos de vista quer sobre automóveis, tóxicos ou Medicina.

Como freqüentemente acontecia, a conversa havia derivado inexoravelmente para o assunto da assistência médica nos Estados Unidos. À mesa havia mais seis ou sete outros, além de Straus, Jan e eu, mas, por uma razão ou outra, tinham preferido, desde o início da refeição, ouvir em vez de intervir na conversa, comendo, e bebendo seu café em silêncio, deixando que nós discutíssemos.

Sua única participação consistia num ocasional riso de incredulidade, acompanhado de um revirar dos olhos e de um sacudir de cabeça, para demonstrar o ridículo do que se acabava de dizer. Era evidente que não iam acrescentar nada de concreto ou relevante. Comecei a desligar-me deles, concentrando-me em Straus, que prosseguia com toda a loquacidade.

- O único meio de distribuir equitativamente a assistência médica de modo a que todos gozem de seus benefícios é reestruturar todo o sistema de acesso a ela - dizia Straus, levantando a mão espalmada, e baixando-a quando queria enfatizar um certo ponto.

- Você quer dizer que se deve jogar fora o atual sistema de médicos, hospitais etc, e tentar algo novo? - perguntei.

- Acertou em cheio! Jogar tudo no lixo. Vejamos. A Medicina está recuada nos tempos pelo modo com que organiza e distribui sua assistência. Pense em quanto a tecnologia mudou nos últimos quinze ou vinte anos. E a Medicina mudou? Não. Claro que sabemos mais, mas isso não ajuda ao homem da rua. Os figurões se beneficiam do recém-criado teste das izoenzimas, do atendimento vinte e quatro horas por dia, de tudo o que é novo. E o pobre cara lá do gueto? Ele não tem nada. Você sabia que quarenta milhões de americanos jamais viram um médico?

Straus não esperou a resposta, mas prosseguiu em seu ataque, chegando-se mais para perto da mesa. Foi bom que ele não parasse, porque quarenta milhões me parecia um bocado de gente, e eu queria discutir aquele número. Além do mais, o que importava o número, se era do conhecimento de todos que muitos americanos estavam, literalmente, morrendo de fome? O que adiantava uma assistência médica sofisticada quando as pessoas não tinham o que comer? Mas a estatística se perdia na conversa, enquanto Straus continuava.

- O que temos é um bando de médicos que mais parecem vendilhões de rua, empurrando carrinhos na era do espaço. E isso é culpa dos médicos!

- Espere um segundo - disse eu. Eu não podia deixar passar aquela generalização. - As coisas podem não estar na melhor forma possível, mas há muitos dedos metidos na massa.

- Certo, um bocado de dedos gordos e ricos. Quero dizer que a assistência médica, má como é, leva sete por cento do seu produto nacional bruto, ou seja cerca de setenta bilhões de dólares por ano - há muita gente interessada nela. Mas o fato é que, nos Estados Unidos, foram os médicos que criaram o sistema, e são eles que o dirigem. Dirigem os hospitais, as escolas de Medicina, e maior parte da pesquisa. Mais importante que tudo, os médicos controlam o suprimento de médicos.

- E o que diz você das companhias de seguro médico e dos laboratórios farmacêuticos?

- Companhias de seguro? Bem, suas mãos não são tão limpas, mas, de qualquer modo, não têm interferido nas relações médico-paciente, suponho que com medo da AMA.* Quero dizer que, se uma companhia forçar muito, a AMA pode, compreensivelmente, recusar-se a acatá-la e se recusar a tratar seus clientes.

- Oh, seja razoável, Straus. - Procurei um apoio e não recebi nenhum, exceto de Jan, que sacudiu a cabeça vigorosamente.

- Então você não acha que a AMA faria isso? - perguntou Straus.

 

* Associação Médica Americana. (N. do T.)

 

- Não posso imaginar.

- Ah, ah, meu amigo. Você conhece a gloriosa história da AMA?

- O que você quer dizer? Conheço alguma coisa sobre a organização. - Na verdade, eu estava longe de ser uma autoridade no assunto, já porque ela fora ignorada na escola de Medicina, já porque, bem, eu não estava interessado nela.

- O que você quer dizer com alguma coisa sobre a AMA? Você é membro dela?

- Bem, de certo modo. Você sabe que os internos e residentes podem inscrever-se nela a uma, taxa reduzida. Eu me inscrevi. Mas nunca fiz nada. Quero dizer, nunca compareci a qualquer reunião, nunca votei ou participei de modo nenhum.

- Aí está um dos problemas. Você é um dos membros. Você faz parte de suas estatísticas. Eles gostam de pensar que todo mundo é membro, só que alguns são mais ativos do que os outros. A AMA proclama que representa cerca de duzentos mil médicos no país, mas você sabe como?

- Como? - Definitivamente, Straus dava a impressão de saber o que estava dizendo.

- Seus números não são corretos. Em muitos Estados é convencionado que, a fim de gozar dos privilégios de um hospital, um médico deve entrar para a sociedade médica local, e com isso ele se torna automática e compulsoriamente membro da AMA. E você pensa que a maioria desses médicos está-se importando com o que se está passando na AMA? Se você quiser, pense, porque eles não. Eles dizem intimamente: estou muito ocupado; não tenho tempo para isso. Ou talvez sintam, embora não o examinem a fundo, que a AMA é política, e suja. Neste ponto eles estão certos. Mas, devido a apatia deles, a doce e velha AMA permanece de pé em Washington e diz falar por cerca de duzentos mil médicos, que nunca contradizem sua alegação. Para piorar as coisas, ela não só fala por eles, como gasta o dinheiro deles. Você sabe que o orçamento da AMA é de mais de vinte e cinco milhões de dólares por ano pagos em contribuições pelos médicos que dizem não ter tempo para saber o que se está passando?

- Muito bem, muito bem. - Tive de interrompê-lo porque ele estava se excitando demais. Dois dos residentes no outro lado da mesa levantaram-se e saíram, jogando os guardanapos em suas bandejas. Já passavam das seis e eu tinha de empacotar minhas coisas. Contudo, eu não podia ignorar Straus. Agora ele estava curvado para mim, literalmente na frente de Jan, que teve de se empertigar para lhe dar lugar. Eu podia ver seus olhos. Ele era um cara magro, veemente, e seus olhos estavam ardendo.

- Straus, não vou defender a AMA, mas é do conhecimento de todos que eles elevaram a arte da Medicina do caos em que se encontrava no século dezenove. Antes do relatório Flexner, por volta de 1910, o treinamento médico era uma piada, e foi a AMA que assumiu o encargo de modificar isso.

- Sim, claro que eles o fizeram. Mas deixe-me perguntarlhe com que objetivo?

- O que quer você dizer com que objetivo? Para consertar uma situação triste.

- Talvez, mas também para seus próprios fins.

- O que quer dizer com isso?

- Apenas que eles reduziram o número de escolas de Medicina e as tornaram melhores; nisso eu concordo. Mas, ao mesmo tempo, enfeixaram o controle do credenciamento das escolas médicas. Traduzido, isso significa que eles controlam o suprimento de médicos e o currículo. Em outras palavras, determinaram o caminho social pelo qual devem passar os médicos em potencial, e fizeram tudo para ter a certeza de que os estudantes se amoldem ao sistema.

- Straus, você é um romântico. Você tem certeza de que quer iniciar o internato?

- Eu quero ser médico, e se houvesse outro meio de conseguir isto eu o adotaria. Mas, mudando de assunto, diga-me, Peters, você está consciente da carga histórica que está assumindo ao entrar para a profissão médica na América?

- Onde você quer chegar? - Os dois outros médicos que estavam sentados e calados do outro lado da mesa, empurraram suas cadeiras e saíram. Ficamos apenas Straus, Jan e eu, debruçados sobre uma mesa cheia de pratos sujos e bandejas com restos de comida.

Intrepidamente, Straus continuou.

- A AMA tem um registro quase impecável do fracasso em apoiar, e muito menos iniciar, mudanças sociais progressistas. Por exemplo, a AMA foi contra o Departamento de Saúde Pública aplicar vacinas contra difteria e em estabelecer clínicas de doenças venéreas. E contra o seguro social, o seguro de saúde voluntário, e as clínicas de grupo. Na verdade, na década de trinta, a AMA rotulou essas clínicas como sovietes!

Apressadamente, tentei dizer alguma coisa, mas não pude falar.

- Você sabia que a AMA lutou contra o salário de tempo integral para os chefes no hospital e, mais referente a nós, contra os empréstimos federais a baixo juro para os estudantes de Medicina?

- O que era aquilo? - Eu havia começado a me desligar de Straus quando ele tornou à sua lista de queixas, até que as palavras "empréstimos" e "estudantes" se juntaram em minha cabeça. Eu ainda devia uma boa quantia de dinheiro dos meus dias de escola. - Eles foram contrários aos empréstimos para os estudantes de Medicina?

- É melhor você acreditar.

- Por quê? - Aquilo realmente me surpreendeu.

- Só Deus sabe! Acho que isso abria a carreira médica para os que não são ricos. Porém um dos mais patéticos aspectos desse episódio é que, depois que as reformas foram aceitas pela sociedade e impostas à AMA, a AMA mais tarde procura assumir o crédito por elas. Isto faz pensar na linguagem confusa de Orwell em 1984. Quero dizer que toda a sordidez do episódio mudou. Acho que o governo tem de fazer isso.

- Muito bem, Straus. Está você tentando me dizer que depois de passar por todos esses anos de estudo, e os que ainda tem de enfrentar, vai querer trabalhar para o governo federal? Ao que parece, é isto o que você está sugerindo.

- Não necessariamente. Estou dizendo é que os médicos tiveram todo o controle, e estragaram tudo. Sua responsabilidade é bem mais ampla do que suas clínicas solitárias, tratando de uma sucessão de doentes individuais. Eles tiveram de considerar a totalidade dos cuidados com a saúde, inclusive o tratamento de um homem no Harlem e de uma família nos Apalaches; eles são tão importantes quanto tratar o presidente do conselho no Pavilhão Harkness. Se os médicos tornarem a falhar, o governo tem de assumir o controle e ordenar que a profissão médica realize o que é preciso. Afinal de contas, uma adequada assistência médica é um direito de todos os cidadãos.

- Isto é fácil de dizer, mas não tenho tanta certeza. Afinal de contas, quando alguém é incomodado por uma dor de cabeça às 4 horas da manhã, e tira um médico da cama porque a assistência médica é um direito seu, que dizer sobre os direitos daquele médico? Isto é, até onde se pode impor a uma pessoa os direitos de outra? Certamente o médico também tem direitos. E, além disso, se os rins de uma pessoa deixam de funcionar, mas todos os rins artificiais estão em uso, quem o paciente vai processar? A sociedade não pode ter um rim artificial em cada canto para todos os doentes. A verdade é que o cuidado com a saúde é uma indústria de serviços fornecidos por gente altamente treinada e equipamento sofisticado, e que se acham sempre em escassez. Não se pode prometer cuidar da saúde de todos quando se dispõe de recursos limitados.

- Não vou discutir esse ponto, Peters. O governo federal definiu claramente a assistência médica como um direito dos cidadãos com a aprovação das leis Medicare e Medicaid.

- Bem, Straus, eu gostaria de tornar a falar com você, depois que você terminar seu internato. Até agora você foi um estudante, e vejamos, se as coisas lhe corressem muito mal, bastava você cair fora e deixar alguém mais com a responsabilidade. Quero ver se você sentirá o mesmo depois de passar este ano.

Jan escutava calmamente, mais ou menos do meu lado, pensei eu. Agora ela assentiu.

- Pode haver alguns problemas quanto à distribuição da assistência médica, mas temos a melhor medicina do mundo, Straus. Toda gente sabe disso.

- Besteira - retorquiu Straus. - Tome-se a mortalidade infantil. Os Estados Unidos ocupam o décimo quarto lugar na prevenção da mortalidade infantil, o décimo oitavo na perspectiva de vida do homem, e o décimo segundo. . .

- Espere um minuto - disse eu, recusando-me a ouvir mais uma estatística.

- Só o décimo quarto na mortalidade infantil? - perguntou Jan. Straus havia-a realmente impressionado.

- Jan, querida, não se deixe enganar pelas estatísticas. Você pode provar quase tudo com as estatísticas se tratar com diferentes amostras de população. Pode ser uma espécie de tramóia matemática. Straus, sermos o décimo quarto ou seja lá o que for na mortalidade infantil talvez tenha mais que ver com o fato de que neste país os registros são muito precisos. Em muitos países os registros de nascimento são feitos apenas nos hospitais. Todos os outros passam ignorados.

- Eles fazem registros muito bons na Suécia - respondeu Straus com um sorriso.

- E, depois, os registros diferem conforme o tempo de gravidez em que se deu o nascimento, se se trata de um natimorto, morto dentro do útero, ou de um caso em que o guri morreu quando era na verdade um ser viável. Faz muita diferença onde um país traça a linha para a coleta dos dados estatísticos sobre a mortalidade infantil.

Levantando as mãos, com as palmas viradas para mim, e abaixando-as lentamente, Straus continuou:

- Mais uma vez, não desejo discutir os detalhes técnicos das estatísticas. Mas o fato é que os Estados Unidos não estão no topo. E décima quarta é uma colocação muito baixa, se considerarmos que somos os maiores em outros campos de serviços e tecnologia. Francamente, a Suécia nos faz sentir muito mal.

- A Suécia não tem nossos problemas - falei asperamente. Eles lidam com uma população homogénea relativamente pequena, enquanto que os Estados Unidos são uma sociedade pluralista.

Você acha então que um estado previdencial socialista como é a Suécia é a resposta para todos os males sociais, e a solução para nós?

- Parece ser melhor para a mortalidade infantil, a assistência dentária às crianças, e para a longevidade. Mas eu não estou dizendo que os Estados Unidos devam adotar o sistema de assistência médica do governo sueco. Tudo o que estou tentando dizer é que há lugares em que a assistência médica é melhor do que aqui. Isso traduzido quer dizer que, uma assistência médica melhor é possível, e que nós temos de fazer com que isso aconteça.

- Bem, você não pode criar do nada um serviço como a Medicina, nem legislar abruptamente sobre ele. As modificações na estrutura social só ocorrem através de alterações nas atitudes do povo. Essas mudanças são lentas, e relacionadas com as forças educacionais organizadas para lidar com elas. As pessoas estão habituadas ao atual relacionamento médico-paciente. Não creio que desejem mudá-lo.

- Pelo amor de Deus, Peters, quarenta milhões de pessoas nunca viram um médico! Como podem assumir uma atitude? Homem, esta é uma desculpa vazia. E típica, também. Você e seus camaradas podem pensar num milhão de pequenos e irrelevantes motivos pelos quais o atual sistema deve prevalecer sem alterações. Eis por que toda a estrutura tem de ser jogada fora. Do contrário, vamos diluir os problemas por compromissos como o Medicare e o Medicaid.

- Então até o Medicare e o Medicaid são maus. Straus, você é um verdadeiro lançador de bombas.

De onde você está, tudo é negro. Eu acho que o Medicare e o Medicaid são leis muito boas. O único problema que vejo nelas é que estragam o sistema de ensino universitário possibilitando a muitos pacientes, que de outro modo nos chegariam às mãos, irem para os médicos particulares, que não permitem que os internos e residentes vejam os casos. Em conseqüência, perdemos efetivamente uma grande população de doentes que seriam úteis ao aprendizado.

- Ora, isso é muito importante - disse Straus. - E é indicativo de uma solução tipo Band-Aid para gigantescos males sociais. Contudo o maior problema do Medicare e do Medicaid é que eles jogaram mais dinheiro no funil, criando uma demanda maior. Se a demanda sobe e o suprimento permanece o mesmo, os preços disparam.

- Claro, claro. - Agora eu estava começando a ficar um pouco zangado. - O que você quer é

outra monolítica burocracia governamental, com milhões de arquivos e máquinas de escrever. Mas isto vai custar muito dinheiro. Com tanta burocracia, provavelmente o custo da assistência médica vai subir, não baixar. E suponho que você imagina todos os médicos como assalariados do Estado.

Isso seria interessante! A sociedade vai sofrer um pequeno choque quando descobrir quanto dinheiro é necessário para pagar esses médicos. A retribuição financeira subiria, assim que o médico aprendesse, rapidamente, a se comparar a um piloto comercial sindicalizado, capaz de ganhar cinqüenta mil dólares por ano por um mês de sessenta e cinco horas de trabalho. Quantos médicos seriam precisos para levar a cabo o sistema de assistência médica se cada um trabalhasse sessenta e cinco horas por mês? Além disso, eles iam querer os benefícios de uma aposentadoria. . .

- Isto é um. . .

- Deixe-me terminar, Straus. Colocando-se todos os médicos sob salários, haveria outros efeitos mais sutis. Se você é um assalariado, faça o que fizer, nenhum efeito isso tem sobre sua motivação nas situações excepcionais. Olhe, Straus, quando você se arranca da cama às 4 horas da madrugada, você quer algo por isso, algo mais do que a satisfação que isso lhe dá. Muitas vezes não lhe dá satisfação alguma. Muito pelo contrário.

"No fim de contas, o lixeiro, o piloto comercial, todo o mundo ganha quando faz serão. O médico vai querer ganhar também, ou não sairá da cama. Vamos considerar de um outro ângulo. Quando se trabalha por um salário, tem-se horas específicas. O relógio bate cinco horas, e o médico assalariado lava as mãos e vai para casa. Acontece que eu sei que, despido de sua mitologia, o médico é um ser humano bastante comum.

- Posso falar agora? - perguntou Straus.

- Por favor.

- Há várias coisas. Número um: um serviço nacional de saúde não é a única resposta. Os planos particulares de saúde, pagos por antecipação, por exemplo, funcionam bem, além de melhorar a produtividade dos médicos individuais por várias razões. O papel do governo podia ser apenas o de garantir que todos fossem atendidos, de um ou de outro modo, com um mínimo de assistência médica de boa qualidade. E, número dois, eu não concordo com seus pontos de vista sobre o médico que está dormindo. Ao mesmo tempo, acho que o médico terá de ser pago segundo uma escala racional que os compare favoravelmente com os pilotos comerciais, os encanadores, ou qualquer outra pessoa, levando-se em conta a duração e o investimento feito em seu aprendizado, bem como as longas horas que ele devia trabalhar. Mas, acima disso, acredito que o prazer profissional de praticar a Medicina fará com que o médico sobrepuje os choques do dia, principalmente se ele for aliviado da carga da papelada e de outras tarefas insignificantes que absorvem, por exemplo, vinte e cinco por cento do tempo do clínico, somente. Além disso. . .

- Dr. Peters, Dr. Peters. - De repente, o alto-falante do sistema de comunicações interno, perto do teto, proclamou meu nome, ecoando pelo salão. Straus continuava a falar, enquanto eu me dirigia para o telefone no canto.

- Além disso, na clínica em grupo - prosseguia Straus, - há mais probabilidade de melhor revisão. Os médicos podem se vigiar uns aos outros, aconselhando e fazendo críticas quando necessário. E os registros. Os registros dos pacientes serão muito melhores, porque serão organizados e completos, quer o doente tenha consultado um clínico geral ou um especialista.

Quando peguei o telefone e disquei para a telefonista, Straus estava, literalmente, berrando. Depois, graças a Deus, ele se calou.

A telefonista ligou-me com o andar de cirurgia particular, e tive de esperar enquanto procuravam uma determinada enfermeira.

- Dr. Peters?

- Sim, sou eu.

- Temos uma doente do Dr. Moda que está com dificuldade para respirar. Ele quer que um interno a veja. E, também, preciso de uma ordem para dar um laxativo a um dos pacientes do Dr. Henry.

- Ela está com muita dificuldade para respirar?

- Não muita. Sente-se bem quando está sentada.

- O Dr. Straus irá logo.

- Muito obrigada.

Virando-me e voltando pelo mesmo caminho, reparei que o restaurante estava vazio, a não ser por nós. O sol tinha desaparecido, e a iluminação da sala mudara de um forte contraste entre a luz e as sombras para uma luminosidade suave e difusa. Era um ambiente cheio de paz, construído mais pela minha alegria íntima por saber que podia mandar Straus ver a senhora que respirava mal e tratar do caso da prisão de ventre.

- Peters?

- Sim? - A voz do outro lado da linha me era familiar.

- Aqui é Straus.

- Eu não podia imaginar. Parece que você está muito ocupado.

- Eu não posso resolver. Todo mundo está ficando mal-humorado - disse ele.

Consultei meu relógio. Dez e meia.

- Muito bem, qual é a crise? - perguntei.

- Uma velha que morreu. Cerca de oitenta e cinco anos. Doente particular da Enfermaria F, no segundo andar.

Seguiu-se uma pausa. Eu me calei, esperando que ele falasse mais sobre o problema. Podia-se ouvir a respiração de Straus no outro lado da linha, mas aparentemente, ele nada tinha a acrescentar. Por fim falei.

- Muito bem, então uma velha morreu. Qual é o problema?

- Realmente não há problema nenhum. Mas você podia vir aqui para dar uma olhadela?

- Olhe, Straus, ela está morta, certo?

- Certo.

- O que é que você espera que eu faça? Que eu realize um milagre?

Seguiu-se mais um breve período de silêncio.

- Só pensei que você quisesse vê-la.

- Mil vezes obrigado, meu chapa. Mas eu passo.

- Peters?

- O que é?

- O que eu faço com a família e a papelada?

- Basta perguntar às enfermeiras. Elas já estão treinadas nisso. Tudo o que você tem a fazer é assinar alguns papéis, notificar à família, e providenciar uma autópsia.

- Autópsia? - indagou ele, realmente surpreso.

- Claro, uma autópsia.

- Você acha que o médico particular vai querer que se faça uma autópsia?

- Bem, ele devia querer, por uma questão de garantia. Se ele não quiser, pode anular o pedido.

Mas devemos autopsiar todos os que morrem aqui. Talvez não seja fácil mas veja se consegue que a família concorde.

- Muito bem, vou tentar, mas não garanto nada. Não estou certo de poder comunicar muito entusiasmo a um pedido de autópsia.

- Tenho certeza que pode resolver tudo. Ciao.*

- Ciao.

Ele desligou e eu também, tornando a pensar na mulher amarela na sala de autópsias na escola de Medicina. Jan interrompeu-me.

- Alguma coisa errada? - perguntou ela.

- Não. Alguém que morreu, e Straus queria saber o que fazer.

- Você vai para o hospital?

- Você está brincando.

Jan estava me ajudando a empacotar minhas coisas. De fato, ela estava apenas ali. Não precisávamos de nenhum pretexto para estarmos juntos; tínhamos passado muito tempo juntos. Tanto que, com efeito, a iminência de minha partida lançava uma sombra sobre o anoitecer, embora tivéssemos parado de discutir.

O ponto em debate era se eu a amava bastante - palavras dela - para pedir-lhe que me acompanhasse no meu período de residência. Eu tinha pensado naquilo muitas vezes, mas algo me impedia de pedir-lhe diretamente. O que havia tentado dizer-lhe era que eu queria que ela tomasse a decisão, sem minha interferência direta. Eu não queria assumir a responsabilidade de forÇá-la a vir comigo. Era assim que eu encarava a questão. Quero dizer: que tal se não a tomássemos até eu ter recebido minha residência? Se eu a forçasse a deixar o Havaí, então me sentiria obrigado a dar-lhe uma espécie de garantia, e eu não podia fazer isso. Claro que eu queria que ela viesse, mas por sua espontânea vontade.

Jan e eu havíamos nos divertido muito. Fora um alívio criar um significativo relacionamento com ela depois do desastre com Karen Christie e seu noivo fodido. Embora eu tivesse estado com Karen umas poucas vezes depois do confronto com seu amiguinho, acabei por concluir que não podia continuar a vê-la.

 

* Em italiano, no original. Tchau, até logo. (N. do T.)

 

Assim, parei.

O telefone tocou de novo.

- Necrotério - respondi numa voz alta e animada.

- Peters, é você?

- Às suas ordens, Straus, meu chapa.

- Realmente, por um instante, você me deixou confuso. Não faça isso - disse Straus.

- Muito bem, procurarei ser mais cortês. Que é que há?

- Recebi um chamado do CTI, e há um doente com dificuldade de respirar. A enfermeira disse que talvez se trate de um edema pulmonar. Parece que o médico particular está preocupado com a possibilidade de uma insuficiência cardíaca.

- Que enfermeiras formidáveis, hem, Straus? Fazem diagnóstico, fazem tudo. Isto é que é um serviço de verdade. Você concorda com elas?

- Ainda não vi o paciente. Estou a caminho. Telefoneilhe para o caso de você querer agir desde o princípio.

- Straus, sua gentileza enternece meu coração. Mas por que você não corre para lá, examina, e depois me dá um toque, hem? Está bem?

- Muito bem. Tornarei a telefonar.

- Ótimo.

Jan estava absorvida, tentando arrumar minha biblioteca médica em diversas malas. Evidentemente era um problema de complexidade gordiana, e que exigia uma solução igualmente drástica. Eu tinha que decidir quais os livros que ia deixar - tragédia terrível para um médico. Muita gente aprecia os livros, mas os médicos os adoram e se comunicam com eles quase que sensualmente. Em conseqüência, ele se cerca deles, procurando avidamente razões para comprar um novo compêndio, quer o leia ou não. Os livros são o envoltório protetor do médico, e aqueles eram meus.

O simples pensamento de me desfazer de meus livros me cheirava a um sacrilégio - mesmo do compêndio de Psiquiatria e do de Urologia. A Urologia não era minha especialidade favorita, de modo algum. Com freqüência eu me punha a pensar como alguém podia passar o resto de sua vida metido com aqueles problemas de hidráulica - embora o ramo não devesse ser muito ruim, pois em média os urologistas pareciam formar um grupo muito feliz. Sem dúvida, eles tinham o melhor repertório de anedotas indecentes.

- Você jamais vai conseguir pôr todos esses livros aqui, - disse Jan.

- Bem, vamos tirar tudo e começar de novo. Vamos experimentar colocá-los de pé, em vez de deitados. - Mostrei-lhe como fazer, colocando no canto da mala o Comprehensive Texíbook of Psychiatry, que pesava mais ou menos 21 quilos e 700 gramas. Então o telefone tornou a tocar. Era Straus; sua voz tinha um quê de urgência.

- Peters?

- O que há de errado agora, Straus?

- Sabe, o paciente de que lhe falei, o que as enfermeiras achavam que estava com edema pulmonar?

- Que é que há com ele?

- Acho que está mesmo com edema pulmonar. Quase até o ápice, posso ouvir estertores bolhosos em ambos os pulmões.

- Muito bem, Straus. Acalme-se. Já telefonou para o residente de plantão?

- Já.

- O que foi que ele disse?

- Ele disse para chamar você.

- Oh, magnífico! - Hesitei, reunindo meus pensamentos.

- É doente particular?

- Sim. De um Dr. Narru, ou qualquer coisa assim.

- É um caso para ensino?

- Não sei.

- Procure saber, Straus. - Fiquei brincando com o pavilhão do meu estetoscópio enquanto Straus saía da linha. Jan estava fazendo um bom progresso com os livros; estava começando a parecer que ia conseguir arrumar todos.

- Sim, é um caso para aula, Peters - disse Straus.

- Já telefonou para o Dr. Narru?

- Claro. Foi a primeira coisa que fiz.

- Que disse ele?

- Ele disse que eu fosse em frente e fizesse o que fosse necessário, que passaria mais tarde aqui para ver as coisas, quando fizesse sua visita da noite.

Com o dedo indicador, toquei meu relógio para poder ver o mostrador. Onze e cinco. Ou ele estava enganando Straus, ou realmente passava visita à noite - a horas tardias da noite. De qualquer modo, eu não podia acreditar naquilo.

- Jan, por que você não põe a Cirurgia de Christopher antes de pôr aqueles livros pequenos? Só um minuto, Straus. O Christopher é aquele vermelho grande ali. Esse mesmo. Ia ficar apertado. Muito bem, Straus, estt cara está operado de quê?

- Não tenho muita certeza. Cirurgia abdominal. Está com um curativo no abdome.

- Está com febre?

- Febre? Não sei.

- Está tomando digitalis?

- Não sei. Olhe aqui, tudo o que fiz foi auscultar seu tórax.

- Ouviu o coração?

- Mais ou menos.

- Havia ritmo de galope?

- Não estou bem certo - disse ele evasivamente.

Bom Deus, este cara está realmente angustiado, pensei com ironia.

- Straus, quero que você examine este doente tendo em mente três possibilidades diagnósticas: edema pulmonar, que é o que provavelmente ele tem, embolia pulmonar, e pneumonia. Leia a papeleta e procure ver sua história cardíaca. Enquanto isso, providencie uma radiografia do tórax, um hemograma completo, um exame de urina, um ECG, e tudo o mais que você quiser. Ele está muito caído?

- Não, está bem esperto.

- Muito bem, aplique-lhe 10 mg de morfina e ponha-lhe uma máscara de oxigênio. Mas cuidado, veja bem quando aplicar o oxigênio. Depois que tiver organizado tudo, torne a me chamar.

Eu estava para desligar, quando pensei em algo mais.

- Outra coisa. Se ele nunca tomou digitalis, pelo menos nas duas últimas semanas, aplique-lhe 1 mg de digitoxina endovenosa. Mas lentamente. Straus, está me ouvindo?

- Sim. Ainda estou aqui.

- Talvez devêssemos dar-lhe também um diurético para nos livrarmos desse excesso de fluido. Experimente cerca de 25 mg de ácido etacrínico. - Eu sabia que aquela droga era tão poderosa que era capaz de fazer uma pedra mijar. Poderosa - meu medo interior dos diuréticos fez-me pensar duas vezes, e mudei de idéia. - Pensando bem, suspenda o diurético até termos certeza de que se trata de edema pulmonar. Se ele estiver com pneumonia, isso não vai ajudar muito. - A velha senhora com câncer, que eu tinha matado com o diurético me assombrou por um momento; ela havia morrido de pneumonia. Por fim, desliguei o telefone.

- Ei, Jan, isso é formidável! - Ela havia conseguido enfiar todos os livros menos um, pequenino. O volume que restara era o que chamamos de folheto de propaganda, dado por um laboratório farmacêutico na esperança de convencer alguém de que uma de suas drogas era a resposta para todos os males. Nunca o li, nem pretendia lê-lo. Mesmo assim, atirei-o dentro de uma de minhas maletas já cheias.

Excetuados o meu material de barbear e outros artigos de toalete, as roupas que eu ia vestir de manhã, e o conjunto do uniforme sujo que eu estava usando agora, toda a minha tralha já estava empacotada. Os carregadores estavam aprazados para pegar minhas malas pela manhã; as maletas iam comigo, juntamente com uma porção de bagagem de mão que incluía um grande pedaço de coral. Por fim, tudo ficou pronto. Eu podia relaxar e aproveitar o que restava do meu ano no Havaí.

Jan escolheu aquele momento para deixar cair a bomba, dizendo-me abruptamente que ia para casa.

Logo quando podíamos esquecer toda aquela arrumação de malas e ficar juntos, ela resolvia ir embora. Aquilo me pegou totalmente de surpresa, desde que, muito satisfeito, eu admitira que íamos dormir juntos, como de hábito.

- Jan, em nome de Deus, você tem de ir embora? Por favor, fique. É minha última noite.

- Você precisa de uma boa noite de sono antes de viajar, - disse ela evasivamente.

- Bem, que me diz disso? - falei, olhando para seu rosto bronzeado pelo sol. Ela me fitou, com a cabeça ligeiramente inclinada para a frente e para o lado, flertando com habilidade e sugerindo que seu súbito acanhamento se baseava em complicadas razões femininas. Contudo eu não tinha certeza. Eu podia entender seu desejo de partir se nascesse de um desdém pela artificial e última noite de rotina, de não querer reduzir nosso ato de amor a uma espécie de ritual para comemorar uma era que passava. Era provável que a intimidade de que normalmente desfrutávamos não estivesse ali, desde que ambos estaríamos pensando noutras coisas.

Ela me beijou delicadamente, disse que me veria na manhã seguinte, e silenciosamente desapareceu pela porta. Tudo aconteceu rápido demais para ser digerido mentalmente.

Momentaneamente pensei em ir ao CTI, embora na verdade não o quisesse, mas acabei afastando o pensamento, raciocinando que Straus precisava aprender a cuidar de si mesmo.

Então resolvi tomar um banho de chuveiro, e mal havia entrado nele quando o telefone tocou estridentemente. O único meio de abafar o som da campainha era meter a cabeça bem em baixo da ducha. Eu não devia ter deixado a porta do banheiro entreaberta. Mas o hábito tinha vencido. Ao tocar pela quarta vez, corri para o quarto e peguei no telefone, enquanto uma poça dágua se formava aos meus pés, expandindo-se rapidamente.

- Peter, aqui é Straus.

- Que surpresa!

- Imagine o que aconteceu. Boas notícias!

- Estou preparado para um pouco disso.

- O paciente do edema pulmonar sobre que lhe falei é do serviço de clínica médica, não da cirurgia, e o interno da clínica assumiu o controle do caso.

- E a operação que ele fez? - perguntei, muito admirado.

- Ele não fez operação nenhuma. Pelo menos nada recente. O curativo estava protegendo uma colostomia que ele fez há anos.

- Parabéns, Straus. Pelo seu primeiro sucesso clínico como interno. Mas por que não fica aí para acompanhar o caso? A não ser que tenha mais o que fazer.

- Desculpe, não posso ficar. Recebi um chamado da Cirurgia. Marcaram a remoção de uma rótula. Acho que é um desastre de automóvel. A menos que você queira ir, vou-me tocar para lá.

Uma patelectomia, um caso de ortopedia! Estava ficando muito claro para mim o quanto valia ser um residente em vez de um interno. Imagine poder mandar outra pessoa para uma patelectomia à meia-noite! Isso é que era a verdadeira felicidade.

- Não quero privá-lo deste prazer, Straus. Vá em frente e ajude.

A cirurgia ortopédica realmente me desanimava. Antes de entrar para a escola de Medicina, eu vivera com a ilusão de que a Cirurgia era uma arte acurada e delicada. Depois chegara o holocausto do primeiro caso ortopédico que ajudei, e onde testemunhei o maior dos pregos que se possa imaginar, batendo, perfurando o osso, que rangia. Não apenas isso; a mutilação tinha sido acompanhada de comentários como: "Tragam um raio X para cá", para que eu possa ver onde diabo se meteu o prego; e depois de se olhar para a chapa: "Maldição! Perdi completamente o fragmento do quadril. Vamos bater outra, mas, desta vez, mire para o umbigo."

Essas experiências rapidamente eliminaram a cirurgia ortopédica como especialidade para mim.

Descartei a neurocirurgia logo depois, quando vi o melhor neurocirurgião de Nova York parar durante uma operação e espiar no buraco que ele havia aberto no cérebro do paciente para perguntar: "O que é aquela coisa cinzenta ali?" Ninguém respondeu, afinal de contas ele estava falando com ele mesmo, mas aquilo foi o fim da neurocirurgia para mim. Se ele não sabia onde estava depois de vinte anos, que esperança tinha eu de aprender algum dia?

Com todos os meus livros de Medicina empacotados, eu não tinha nada para ler para dormir. Lembrei-me então do folheto de propaganda que eu tinha enfiado na minha maleta. Tirei-o e acomodei-me no travesseiro branco e fresco. Com bastante propriedade ele se intitulava A Anatomia do Sono. Indo para o fim do livro, vi que se tratava de uma grande mistificação para vender um comprimido para dormir. Abri o livro ao acaso e comecei a ler. Com tanta coisa em minha cabeça, consegui ler uma página inteira antes de meus olhos começarem a se fechar.

A desagradável campainha do telefone começou a tocar antes mesmo de eu ter a possibilidade de iniciar um sonho decente. Tomado do pânico habitual, agarrei o fone como se minha vida dependesse disso. Quando a telefonista me ligou com a enfermeira que havia me chamado pelo sistema de comunicação interna, eu já estava bem orientado quanto ao tempo, lugar e pessoa.

- Dr. Peters, aqui é a enfermeira Cranston, da F-2. Desculpe-me acordá-lo, mas a Sra. Kimble caiu da cama. Será que o senhor podia vir vê-la, por favor?

O mostrador luminoso do meu despertador indicava que eu havia dormido cerca de uma hora.

- Srta. Cranston, esta noite temos um novo interno. Seu nome é Straus. Que tal chamá-lo para resolver este caso?

- A telefonista já tentou - disse ela - mas o Dr. Straus está ajudando na Cirurgia.

- Merda!

- Que foi que o senhor disse, doutor?

- A paciente está bem? - Eu estava protelando.

- Parece que está. O senhor vem, doutor?

Engrolei qualquer coisa implicando uma afirmativa e desliguei. Era bastante claro que eu ainda não me diplomara como interno. Até que eu me encontrasse fora de alcance, sempre haveria mais um doente para cair da cama. Cometi um erro ficando deitado, ali, pensando nisso. Dormi de novo.

Quando o telefone voltou a tocar, atendi tomado do costumeiro pânico, imaginando quanto tempo eu tinha dormido. A telefonista me esclareceu - vinte minutos, disse ela - e, astuta como era, livrou-me do esforço para dar uma desculpa, insinuando que eu devia ter dormido de novo. Afinal, isso acontecia a toda gente, mesmo nas emergências. Se eu não pusesse logo os pés no chão frio, minhas chances de me levantar cairiam rapidamente. Durante algum tempo eu me valera do truque de colocar o telefone vários metros distante da cama, fora de alcance, de modo que eu tinha de ser retirado da tepidez de meu ninho para atendê-lo. Contudo, com tantas chamadas a propósito de laxativos, que eu podia resolver mesmo deitado, acabei por abolir aquele estratagema e tornei a pôr o aparelho perto da cama.

Depois do segundo telefonema, ergui-me imediatamente e vesti-me com rapidez. Com sorte, dentro de vinte minutos eu estaria de novo na cama. Meu recorde era de dezessete minutos.

As luzes fluorescentes do vestíbulo, as portas do elevador, as estrelas no céu - na verdade, todo o trajeto para a Enfermaria F me passou despercebido. Só voltei a funcionar conscientemente quando me vi face a face com a Sra. Kimble.

- Como está passando, Sra. Kimble? - perguntei, tentando avaliar sua idade à luz fraca da lâmpada sobre a mesinha-de-cabeceira. Calculei mais ou menos cinqüenta e cinco. Ela estava bem arrumada e asseada, e dava a impressão de ser uma pessoa muito meticulosa. Seu cabelo era repuxado para trás e atado num coque com alguns fios cinzentos.

- Sinto-me mal, doutor, muito mal.

- Onde foi que se machucou? Bateu com a cabeça quando caiu?

- Graças a Deus, não. Não me machuquei nada. Realmente, eu nem caí. Eu me sentei.

- A senhora não caiu da cama?

- Não, absolutamente não. Eu voltava do banheiro, e estava me agachando aqui. - Ela apontou para o chão, junto a meus pés. - Estava procurando tirar meu caderninho da mesinha-de-cabeceira, quando perdi o equilíbrio.

- Bem, agora procure dormir um pouco, Sra. Kimble.

- Doutor?

- Sim? - Olhei por sobre o ombro, quando já me dirigia para a porta.

- O senhor podia fazer-me o favor de me dar alguma coisa para meus intestinos? Há cinco dias que não tenho uma evacuação decente. Deixe-me mostrar-lhe.

Com grande esforço, ela alcançou e puxou a gaveta da mesinha-de-cabeceira, dali retirando um caderninho de notas preto. Teve de se esticar tanto para pegar o caderno que senti que ela ia acabar caindo. Aproximei-me mais da cama, e passei os braços por baixo de seu corpo estendido.

- Veja aqui, doutor. - Ela abriu o caderninho e correu o dedo por uma lista de dias, muito bem escrita. Cada dia era seguido de um gráfico e uma descrição completa de sua atividade intestinal, forma e cor das fezes, e o esforço despendido. Súbito, seu dedo parou num dos dias.

- Aqui, foi há cinco dias que tive a última evacuação normal. Mesmo assim não foi completamente normal porque as fezes não eram marrons. Tinha uma cor verde-oliva, e eram desse tamanhinho. - Ela levantou a mão esquerda, com o polegar e o dedo indicador formando um círculo de mais ou menos 1,25cm de diâmetro.

Que poderia eu dizer-lhe para lhe louvar a competência e interesse e, mais importante ainda, que me permitisse sair imediatamente. Eu olhava do caderninho para o rosto dela, imaginando uma resposta, mas não achei nenhuma. Entreguei-lhe o "abacaxi".

- Tenho a certeza de que seu médico sabe muito mais do que eu o que é melhor para a senhora, Sra. Kimble. Experimente só dormir um pouco agora.

De volta ao posto das enfermeiras, escrevi qualquer coisa em sua papeleta sobre a suposta queda; depois dessas "quedas" era preciso uma anotação na papeleta. Em seguida iniciei a viagem de volta à minha cama que esperava por mim.

- Bem, Straus - ruminei mentalmente. - Quanto valeria este pequeno episódio em seu novo sistema? Prazer profissional? Bolas!

Minha fé nos aviões não é ilimitada. De fato, não confio muito nos princípios da aeronáutica. Mas era obrigado a admitir que os motores Pratt & Whitney pareciam firmes e seguros. Eu podia ouvi-los zunindo quando começaram a trabalhar, e o enorme e desajeitado bojo do 747 ergueu-se do chão, deixando para trás o Havaí e o meu internato. Eu tinha um lugar à janela, do lado esquerdo do avião, junto a um casal de meia-idade que usava camisas havaianas estampadas com flores. Minha bagagem de mão havia causado um bocado de problemas - onde pôr tudo - e agora eu estava sentado segurando o meu pedaço de coral, que não foi planejado pela natureza para se adaptar a um moderno transporte público.

As despedidas finais tinham sido, afinal de contas, bastante moderadas. No aeroporto, Jan havia me "engrinaldado" quatro vezes, conforme a terminologia havaiana. Duas das grinaldas eram feitas de pekaki, e seu aroma delicado flutuava em torno de mim. Não se havia mais falado de Jan, de mim e do futuro. Nós nos escreveríamos.

Deixando o Havaí, eu levava emoções confusas, mas nenhuma ambivalência sobre o término do meu internato. Contudo, eu já estava notando uma tendência para lembrar e aumentar as coisas boas, o ano divertido, e para esquecer as brigas e os sofrimentos que, em verdade, prevaleceram durante todo o ano. O corpo tem uma memória curta.

Quando o avião se inclinou para a esquerda, olhei pela janela, pela última vez, para a ilha de Oahu. Não havia como negar sua beleza. Montanhas denteadas e enrugadas lançavam-se para o céu, cobertas de uma vegetação aveludada e cercadas por um mar azul-escuro brilhante. Pressionando meu nariz contra o vidro, eu podia ver bem lá em baixo onde as ondas se quebravam sobre os recifes externos de Waikiki, formando longos estirões de espuma branca. Eu ia perder tudo aquilo.

Pensei em Straus começando o seu internato, com todo um ano à sua frente. Agora mesmo ele estaria passando por uma das experiências que eu passara. A vida se repetia. Straus e o Hércules, isso é que seria um confronto. Imaginei que as bordas afiadas do idealismo de Straus logo se embotariam bastante, depois de quatro ou cinco colecistectomias com o Hércules.

Como um grande pássaro em câmara lenta, o avião retornou à posição horizontal a caminho da Califórnia. A única evidência de que estávamos nos movendo era uma vibração quase imperceptível. A ilha desapareceu, substituída por um horizonte indistinto onde a ampla expansão do oceano se fundia com o céu. Pensei na Sra. Takura, no bebê nascido no VW, em Roso, e novamente em Straus. Eu não concordava com tudo o que ele tinha dito, mas ele me fizera ver quão pouco eu sabia, quão pouco eu me importava com o sistema, a não ser, é claro, quando ele me afetava diretamente. Imagine a AMA tentando bloquear o meu empréstimo federal para estudar Medicina! Tomado de um impulso, virei-me ligeiramente para a direita, segurando o coral, e peguei minha carteira em meu bolso. Recostando-me na poltrona, comecei a separar meus cartões e licenças até encontrar o que eu queria. "O médico cujo nome e assinatura estão neste cartão é membro acreditado da Associação Médica Americana". As palavras eram imponentes. Sugeriam devotamento a uma poderosa instituição. Eu havia trabalhado cinco longos anos, e agora ali estava.

Só então senti a primeira sacudida, e mais outra, mais forte, ao mesmo tempo que se acendia o sinal luminoso. "Senhoras e cavalheiros, queiram colocar seus cintos de segurança. Esperamos um pouco de turbulência local", zumbiu a aeromoça para tranqüilizar os passageiros.

Sentado ali junto às camisas floridas, fiquei segurando meu pedaço de coral e dobrando, para a frente e para trás, o meu cartão da AMA, para a frente e para trás, nervosamente, até que ele se rasgou e se partiu pelo meio.

 

ÚLTIMAS PALAVRAS

O Dr. Peters realizou toda a jornada desde estudante de Medicina, passando pelo internato, até o ponto em que a sociedade vai reconhecê-lo como um médico qualificado. Ele pode requerer, e sem dúvida vai receber, uma licença para praticar a Medicina e a Cirurgia em qualquer um dos Estados da União. Isto assinala sua impaciência para que lhe confiem todas as responsabilidades que uma licença médica confere.

Graças a seu rigoroso treinamento, pode-se admitir que ele está academicamente preparado. Mas estará o Dr. Peters psicologicamente equipado para praticar a Medicina conforme a moderna sociedade humana tem o direito de esperar?

Os médicos da "velha guarda" acham que ele está. Para a maioria, as aberrações de sua personalidade são a garantia de que a "confusão" que lhe adveio durante o seu internato, o iniciou na fraternidade. O internato foi severo para eles, e deve ser também para as próximas gerações. É preciso endurecê-los - esses jovens são moles demais. Indicará esta lógica que os mais velhos talvez possam sofrer dos mesmos problemas psicológicos que o Dr. Peters, e pelas mesmas razões?

E o que acontece ao paciente durante esses exercícios juvenis?

O médico tradicional - com efeito, antigo - se eleva majestosamente na escala mundial de valores sociais e, nos Estados Unidos, o reverente temor pela tecnologia levou a uma atitude de crescente veneração pelo profissional da Medicina. Como corolário direto desta veneração por tudo o que respeita à Medicina, tornou-se inimaginável questionar o controle da profissão médica sobre a educação do médico em embrião. As escolas de Medicina e os programas de treinamento médico têm sido relativamente livres para fazerem o que lhes agrada. Ninguém pergunta por quê.

Contudo, nem sempre foi assim. Uma vez, o treinamento dos médicos nos Estados Unidos sofreu um sério desafio, no início deste século, quando um grupo extramédico foi indicado para estudar a educação médica americana. Este grupo - no notável relatório Flexner - expôs impiedosamente as abomináveis condições então existentes. Dizia que as escolas de Medicina são simples fábricas de diplomas carecendo totalmente dos controles acadêmicos. Indiretamente, o relatório acusava a própria profissão médica por ter feito um uso tão ruim da carta-branca que lhe foi outorgada por um público de adoradores.

Os efeitos deste documento alcançaram muito longe. Ele deu início a uma gradativa e implacável melhoria nos padrões acadêmicos nas escolas de Medicina. Mas seus efeitos não foram totalmente benéficos. Em primeiro lugar, o relatório possibilitou que a profissão médica - na pessoa da Associação Médica Americana - apertasse mais sua garra sobre a educação médica fazendo reduzir o número de escolas de Medicina e das instalações de treinamento, movimento que era necessário, afirmava-se, para elevar a qualidade da instrução.

E a melhoria e padronização do currículo que o relatório incitou fez com que o pêndulo oscilasse para a inclusão de mais cursos de laboratório e ciências no estudo da Medicina. Mas só depois de chegar ao ponto de violar a Medicina clínica foi que o pêndulo parou de oscilar. (Alguém parou para pensar no doente?) Um dos resultados foi que os diplomados em Medicina atuais estão cheios das mais modernas hipóteses sobre as doenças mais bizarras e os complexos processos metabólicos, mas muitas vezes desconhecem os mais simples fatos clínicos para tratar o resfriado comum ou como lidar humanamente com um moribundo que está além do socorro estritamente médico.

Expande-se pela América a sensação de que talvez seja necessário um outro "Relatório Flexner" para reformar certos aspectos do treinamento médico. Nunca houve um exame objetivo da educação psicológica dos médicos. Qualquer análise amadurecida, honesta e avançada teria de considerar isso com a mesma seriedade que a educação acadêmica.

O público está muito longe de saber que alguns médicos tendem a apresentar peculiaridades pessoais como, por exemplo, os acessos de ira infantil dos cirurgiões. A maioria das pessoas tem mais propensão a saber que, quando um estudante entra na escola de Medicina, em geral, sua cabeça está cheia de visões idealistas sobre como aliviar o sofrimento, ajudar os pobres, e fazer o bem à sociedade. No entanto, poucos têm notado a discrepância entre o número de idealistas que entram e a pequena porcentagem que sai do outro lado com os ideais ainda intactos. E quase ninguém estabelece uma relação entre a perda dos ideais e as idiotas extravagâncias do cirurgião. Ou entre os ideais perdidos e a preocupação de muitos médicos que, depois de terminarem seu longo período de treinamento, saem "exigindo" um grupo de clientes financeira e socialmente compensador, e sonhando com a compra de carros e mansões luxuosos para se indenizarem das privações de seus anos de preparação.

Obviamente, a possibilidade de que os ideais de um médico possam mudar entre a escola de Medicina e seu desempenho na prática da profissão é diametralmente oposta ao que o povo quer acreditar - e que lhe é apresentado pelos meios de comunicação de massa. O cinema, a televisão e as novelas sobre "médicos", tudo isso tende a reforçar o mito da inerente saúde psicológica e bondade dos médicos, especialmente dos médicos jovens.

Voltamos, assim, à credibilidade do Dr. Peters como representante dos internos em geral. Uma vez mais, reafirmo minha crença em que ele é um tipo representativo. Ele não é uma das poucas aberrações. Ele é o tipo do jovem formado que começa com objetivos relativamente idealistas. Ele é o tipo do interno e do estudante, cuja personalidade vai, aos poucos, sofrendo certas modificações que o transformam no indivíduo lamuriento, queixoso e egoísta que vimos de conhecer - compreensível mas não admirável.

A alegação de que o mundo está cheio de Drs. Peters é um grande bocado para se engolir. Se, além disso, se puder admitir que quase todas as pessoas que passam pela escola de Medicina vão sofrer semelhantes lesões em sua personalidade, é de suspeitar que o mal reside no sistema, e não nas pessoas que nele entram. E, por sua vez, isso não sugere que o sistema precisa ser estudado no que toca aos seus efeitos psicológicos, e alterado no sentido de fortalecer, e não extinguir, o idealismo e a sensibilidade dos estudantes?

A mudança é inevitável, e os homens e mulheres de boa vontade esperam que seja feita para melhor - melhor para a sociedade e para cada indivíduo. A reforma voluntária é mais saudável do que as medidas explosivas tomadas em conseqüências dos abusos. É hora para uma análise e reforma de nossas escolas de Medicina e dos centros médicos onde os internos e os residentes são treinados, se se deseja que a Medicina - tanto como ciência quanto como arte - satisfaça as necessidades de nosso tempo. As análises mais ponderadas e penetrantes hão de ser imperfeitas. Mesmo os remédios mais severamente estudados não vão obter um êxito total. Mas se não podemos atingir o ideal, podemos nos orientar no sentido dele. No mínimo teremos tido o senso e a coragem de tentar.

 

 

                                                                  Robin Cook

 

 

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