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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MITOS, LENDAS E FÁBULAS DA TERRA SANTA / J.E.H
MITOS, LENDAS E FÁBULAS DA TERRA SANTA / J.E.H

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

E. Hanauer, autor desta coletânea, dedicou uma vida inteira na Terra Santa à coleta de tradições orais transmitidas de pais para filhos dos diversos povos que por ali passaram e se estabeleceram. Berço do judaísmo, cristianismo e islamismo a Terra Santa encantou o mundo com os relatos impressionantes sobre grandes homens e mulheres que marcaram para sempre a história da humanidade.

Nessa região milenarmente conhecida por disputas acirradas pela terra onde viveram reis e profetas, sacerdotes e guerreiros, cujo calor parece refletir o fervor religioso e místico, a coragem e bravura de seus povos, seu folclore, refletido nestes Mitos, lendas e fábulas da Terra Santa, tem o mérito de resgatar a raiz comum entre os três povos e lhes recompor a irmandade original.

Essa raiz comum e irmandade se revelam na forma como seus variados cenários e suas diversas vozes se entrelaçam em um mesmo espaço geográfico e idênticos ancestrais. Pode-se então apreciar as aventuras e desventuras de personagens quase arquetípicos como Adão, Abrahão e Lot, Aarão e Moisés, David e Salomão, Elias, Jesus e Maomé. A leitura nos leva ao local da morte de Abrahão e de Salomão, ao Vale do Gólgota, o cenário da crucificação de Jesus, cuja madeira, diz a lenda, já existia desde a época de Lot. Conhecemos as muralhas da Cidade de David e seus majestosos portões, não sem nos confrontarmos com os imperadores Saladino, Nabucodonosor e Alexandre o Grande.

O leitor encontrará também espertalhões pelo caminho, além, é claro, do próprio Diabo em pessoa e seus parceiros, os demônios, que atormentam a vida de Noé ou colaboram com Salomão, quando isto lhes é conveniente.

Entre personagens de contos de fadas, fábulas e anedotas nos surpreendemos com uma versão muçulmana para a história de Cinderela. Conhecemos o relato da mística Viagem Noturna de Maomé de Meca a Jerusalém, de onde o profeta parece ascender a Deus em vertiginosa viagem, capaz de levar um ser humano ao êxtase. Não menos bela é a caligrafia árabe ornamental de um desconhecido calígrafo exposta na Mesquita de El Aksa, cujas belas letras descrevem esta maravilhosa Viagem Noturna, reproduzida do Corão, o livro sagrado dos muçulmanos.

Enfim, judeus, muçulmanos e cristãos, monges e xeiques, rabinos e padres, sultões e profetas, seres humanos e animais parecem se inter-relacionar eternamente por entre as pedras da Jerusalém de judeus e cristãos, a Al Khuds dos muçulmanos, sob a guarda sempre atenta dos imortais profetas Elias, Maomé ou Jesus, e a proteção de Deus ou Alá.

 

 

 

 

 1. Uma Visão Muçulmana da Criação do Mundo

Saiba que a primeira criação de Alá foi a maravilhosa Tábua do Destino, onde está escrito não somente tudo o que aconteceu no passado, o que acontecerá no presente e no futuro, mas também o destino de cada ser humano por todo o sempre: se ele será feliz ou um desventurado, rico ou pobre; se será um verdadeiro crente e herdará o Paraíso, ou um Kafir (descrente) e irá direto para o Jehenum (Inferno). A Tábua do Destino é feita de uma imensa pérola branca coberta por duas folhas, semelhante as de uma porta. Homens muito sábios afirmam que essas folhas contêm dois rubis vermelhos de tamanho e beleza incomparáveis, mas só Alá sabe se eles dizem a verdade.

Em seguida, Alá criou uma grande pena formada de uma pedra singular. A pena era tão longa que, para percorrê-la do início ao fim, poderia levar quinhentos anos. Sua extremidade final se parecia com a de uma pena comum, e da sua ponta, bem afiada, a tinta fluía como se fosse uma pena normal ou como as águas que fluem de uma fonte. Então Alá proclamou a palavra ESCREVA e o estrondo da Sua voz fez a pena, que estava cheia de vida e inteligência, tremer. Imediatamente a sua ponta passou a correr pela tábua, da direita para a esquerda, e a inscrever as coisas que haviam ocorrido, as que estavam ocorrendo e aquelas que ainda ocorreriam até o Dia da Ressurreição. Quando a tábua foi preenchida com tudo o que havia para ser escrito, a pena secou. Então pena e tábua foram removidas e guardadas no Tesouro de Alá, e só Ele sabe tudo o que está escrito.

Depois disso, Alá criou as águas, e em seguida uma enorme pérola branca, do tamanho do céu e da terra. Assim que a pérola foi formada, Alá falou com ela que, tremendo por conta da Sua Voz de Trovão, derreteu e transformou-se em água. Ao se encontrar com as primeiras águas criadas, formou ondas gigantescas, que mergulhavam cada vez mais profundamente, uma após outra. Alá deu novas ordens e tudo parou, formando um grande oceano de águas calmas, sem onda alguma nem formação de espuma. Então Alá criou o seu Trono, constituído de duas grandes jóias muito preciosas, e colocou-o flutuando sobre as águas.

Algumas pessoas afirmam que o Trono foi criado antes das águas, do céu e da terra. Dizem que, enquanto os homens assentam antes do teto as fundações de uma habitação, Alá, a fim de demonstrar o seu Poder Onipotente, assentou o teto primeiro, que é o seu Trono.

O vento, que era alado, foi a próxima criação de Alá. Ninguém além Dele sabe quanto vento existe ou até onde se estende a atmosfera. Alá ordenou ao vento que sustentasse a água da mesma maneira que esta sustentava o Trono.

Depois disso, Alá criou uma grande serpente que volteava o Trono em círculos. A cabeça da serpente era uma grande pérola branca, seu corpo era de ouro e seus olhos, duas safiras. Ninguém além de Alá sabe qual é o tamanho da serpente.

O Trono é o Trono do Poder e da Imensidão, da Glória e da Majestade, qualidades que foram criadas, não porque Alá precisasse delas mas somente para expressar a Sua Grandiosidade e Glória, que existem por toda a eternidade.

Então Alá ordenou ao vento que soprasse o oceano, o que provocou grandes ondas espumantes com vapor, esguichando água para todo lado. Por ordem de Alá a espuma converteu-se em terra sólida, que passou a flutuar sobre a superfície das águas. O vapor e os repuxos de água converteram-se em nuvens. Foram necessários dois dias para Alá criar tudo isso. As ondas então foram congeladas e formaram montanhas que passaram a dar equilíbrio à terra, evitando que esta naufragasse. Todas as bases das montanhas estão ligadas às raízes do grande Kaf, que envolve o mundo como as laterais de uma grande bandeja redonda e impede que ele caia no espaço.

Em seguida, Alá fez com que as águas remanescentes na superfície da terra adquirissem a forma de sete grandes mares concêntricos, separados uns dos outros pelo mesmo número de continentes; todavia, estavam ligados por golfos e estreitos que continham um número infinito e uma enorme diversidade de criaturas vivas, bem como o alimento para sustentá-las. Os sete continentes também variam em clima e condições, assim como as plantas e animais que abundam sobre eles. Alá precisou de dois outros dias inteiros para deixar tudo isso em ordem.

Com isso a terra costumava chacoalhar como um barco no mar, de modo que todos os seres vivos ficaram muito doentes. Então Alá ordenou que um anjo muito forte ficasse embaixo da terra e a segurasse. O anjo fez conforme fora ordenado. Estendeu um braço em direção ao leste e o outro para o oeste, e firmou o mundo. Em seguida, a fim de que o anjo tivesse onde se apoiar, Alá criou uma grande rocha de esmeralda verde, à qual ordenou que rolasse para debaixo dos pés do anjo e os sustentasse. Mas como não havia onde a rocha se apoiar, foi criado um grande touro, que recebeu ordens para ficar embaixo da rocha a fim de sustentá-la — alguns dizem que com os chifres, outros com o dorso. Os primeiros explicam que os terremotos são causados pelo movimento do touro, quando ele passa a terra de um chifre para outro. Seus olhos são de um vermelho-fogo tão brilhante, que ninguém pode mirá-los sem ficar cego. Seu nome é Behemot, e ele se apóia sobre uma grande baleia que nada em um oceano criado por Alá para este propósito. Abaixo e ao redor deste oceano e do mundo existe ar, que permanece em absoluta escuridão e, nas estações apropriadas, move o sol, a lua e as estrelas, criados com a única função de iluminar a terra.

Às vezes ocorre um eclipse do sol ou da lua, e a explicação para cada um destes fenômenos é muito simples. Quando a lua está cheia e sua luz recai sobre parte do grande oceano onde nada a baleia, esta às vezes abre sua boca e a encobre — poderia, sem dúvida, engoli-la inteira se Alá o permitisse, mas é compelida a abrir mão do seu desejo tão rapidamente quanto os crentes do Deus Único fazem longas e ruidosas lamentações e orações. A causa do eclipse do sol é diferente. Este é um sinal de salvaguarda de Alá, uma solene advertência contra o pecado. O primeiro eclipse ocorreu para fazer com que os homens ouvissem o que dizia Ibrahim,1 o amigo de Alá (que esteja em paz).

Em nossos dias esta maravilha é muito freqüente e o seu objetivo é fazer com que toda a humanidade tenha no coração os ensinamentos de Maomé, o Apóstolo de Alá (que sobre ele estejam orações e paz).

Portanto, o mundo está apoiado sobre os ombros de um anjo, que está sobre uma grande esmeralda verde, que esta sobre os chifres ou o dorso de um touro, que por sua vez se apóia sobre as costas de uma grande baleia (ou dragão, segundo alguns), que nada em um grande oceano sustentado pelo ar, que finalmente está envolto em trevas, onde os corpos celestes se manifestam em certas estações do ano. O que há por trás das trevas? Só Alá sabe!

Você pode perguntar: como todas essas maravilhas tornaram-se conhecidas e compreendidas pelos homens? Saiba então que, após criar o mundo, Alá chamou a Mente à existência e lhe disse: “Embeba-se de conhecimento”, e esta se embebeu de conhecimento. Então Alá ordenou: “Receba a capacidade de lidar com problemas”, e assim foi. Mais tarde Alá proferiu pela boca do seu Profeta, Maomé: “O homem sábio é aquele cujo temperamento é confiável e paciente; e é a Mente que afasta o ser humano do Mal”. Por isso, Alá permite a entrada da Mente no Paraíso, onde pode descobrir todos os mistérios, e no Dia da Ressurreição não punirá os sábios da mesma maneira como o fará com os ignorantes, que papagueiam com seus lábios, mentem com suas línguas e se envolvem em problemas que não lhes dizem respeito com perguntas sobre coisas que são incapazes de compreender, ainda que saibam ler e escrever.

 

Duas histórias contadas por um ilustre muçulmano de Damasco, na Síria, ilustram um pouco da visão islâmica sobre o cuidado que se deve ter com uma oração. Ei-las.

Um crente muçulmano, velho, corpulento e muito religioso, dedilhava seu rosário enquanto invocava incessantemente o Nome de Deus. Parava apenas para falar de outras coisas relativas às suas obrigações e negócios. Em um dia chuvoso, imediatamente antes de colocar o pé esquerdo no estribo para montar no seu burro, ele gritou: “Alá, ajude-me!”. Com grande esforço, conseguiu sentar-se sobre a cela, mas o seu esforço demasiado fez que se desequilibrasse e caísse do animal em meio à rua enlameada. Ajudaram-no a subir novamente no animal, e, enquanto os transeuntes limpavam, compadecidos, suas roupas rasgadas, ele exclamou: “Alá, como me outorgaste muito mais do que eu pedi, serei mais cuidadoso com os meus pedidos no futuro. Como escapei com vida, eu digo El Hamdu Lilá, Graças a Deus”.

Em um acampamento de Benê Israel no meio do deserto havia um pobre pescador, mas muito religioso, que tinha uma esposa maravilhosa e um único filho. O homem era tão pobre, que sequer possuía um “lar para os cabelos” — ou seja, nada que lhe protegesse a cabeça — e o único abrigo que ele e sua família tinham era um poço escavado no chão e levemente encoberto por galhos e plantas do deserto. Ele mantinha uma vida precária, pescando no Mar Vermelho com uma rede feita a mão. Entretanto, um dia, ao ver Musa,2 o Profeta (que esteja em paz), iniciando uma de suas visitas periódicas ao topo do Monte Sinai, o pobre homem, caindo aos seus pés, implorou-lhe para interceder junto ao Altíssimo em seu favor. O Profeta prometeu fazer isso e disse-lhe que, ao retornar do Monte Sinai, o homem teria permissão para fazer três pedidos, pois estes seriam atendidos.

Feliz da vida, o pescador voltou para o seu poço escavado no chão, informou a esposa da sua grande sorte e acrescentou: “Não devemos ter pressa em apresentar nossos pedidos; vamos antes refletir bem sobre isso durante a noite”.

Entretanto, cansado das aventuras do dia, o pescador logo adormeceu, enquanto sua mulher permaneceu acordada: “Se meu marido pedir por riqueza, ele com certeza se cansará de mim quando eu ficar velha e se casará com outra mulher. Deixe-me então me beneficiar de pelo menos um pedido”.

Na manhã seguinte, assim que o marido acordou, a mulher lhe disse para pedir que ela fosse sempre tão bela como era quando fora noiva. O marido obedeceu prontamente. Foi pescar e, enquanto ele trabalhava, um amalequita maldoso, ao cavalgar próximo ao poço, viu aquela bela mulher, desceu do cavalo, arrebatou-a e fugiu a galopes. O barulho que ela e o filho fizeram chamou a atenção do marido, que pescava em seu barco a apenas uns duzentos passos de distância. Como era incapaz de perseguir o ladrão e resgatar sua esposa, o homem gritou: “Alá, eu te imploro, transforme-a em um porco”. O pedido foi imediatamente atendido, para horror do amalequita, que se viu carregando um pirracento e barulhento suíno. Bom, todo mundo sabe que o deserto está cheio de jins,3 ghuls4 e outros espíritos maus, e o ladrão, concluindo que o porco era um deles, derrubou-o no chão e fugiu.

Quando o pescador chegou ao local e percebeu o que ocorrera, de imediato pediu a Alá para que sua mulher voltasse ao estado original. O pedido foi atendido.

 

Aprendemos desta história tão instrutiva que nenhuma oração pode alterar “o que está escrito na Tábua do Destino”.

 

  1. Nosso Patriarca Adão

Alá formou Adão a partir de um punhado de areia. Alguns dizem que esta areia veio da Sakrá, a Rocha Sagrada que está no centro do Bet Hamicdash, o Templo Sagrado dos judeus que existia em Jerusalém. Todavia, estão mais certos aqueles que afirmam que a areia da qual foi feito o primeiro homem foi coletada de diferentes partes do mundo e consiste de diversos tipos de solo, o que é comprovado pelas cores variadas dos homens e mulheres. Outros dizem que ela veio do barro retirado das raízes de uma palmeira. Enfim, vamos em frente. Quando Alá formou Adão, deixou o seu corpo inerte e sem vida por quarenta dias (alguns dizem quarenta anos) e em seguida avisou aos anjos para estarem prontos a louvar e honrar o homem assim que Alá soprasse ar nas suas narinas. Todos obedeceram, menos Iblis que, movido por orgulho e inveja, recusou-se a fazer isso. Acabou expulso do Jardim Celestial e passou a ser conhecido como Satã, o “condenado a ser apedrejado”; seu destino é ser a causa de toda tribulação humana.

No início Adão era macho e fêmea em um só corpo: homem de um lado, mulher do outro. Em um dado momento a parte feminina separou-se da masculina. Ela se tornou uma mulher perfeita e Adão passou a ser um homem perfeito. Assim sendo, eles se uniram. Contudo, eram infelizes, porque a mulher se recusava a se submeter ao homem, afirmando que ambos haviam sido feitos da mesma areia e que ele não tinha o direito de lhe dizer o que fazer. Então ela foi expulsa do Paraíso e, ao casar-se com Iblis, tornou-se a Mãe dos Demônios. Os árabes, tanto muçulmanos como cristãos, a chamam de El-Karine. Os judeus em geral a chamam de Lilith, mas os sefaradis — judeus de descendência árabe-espanhola — a chamam de La Brusha. Alguns judeus temem até pronunciar o seu nome, chamando-a de “A Velha Senhora”. Seja como for, ela é inimiga mortal de todas as mulheres, especialmente daquelas que acabaram de se tornar mães. Estas devem ser cuidadosamente protegidas e vigiadas e, juntamente com seus bebês, precisam ser cercadas com amuletos sagrados, cabeças de alho, pedras-ume, contas azuis e assim por diante, para que Lilith, furiosa de inveja, não estrangule a criança ou perturbe a mãe até enlouquecê-la. Os médicos europeus, que acham que sabem tudo, não conhecem os perigos terríveis aos quais expõem as mães quando proíbem que outras mulheres as visitem e auxiliem.

Quando El-Karine foi expulsa do Paraíso, Alá criou a nossa Matriarca Eva, extraída de uma das costelas de Adão enquanto ele dormia. Adão e Eva eram muito felizes juntos até que Iblis conseguiu entrar no Paraíso, escondido dentro do corpo oco da serpente. O Pai de Todos os Diabos subornou a serpente com a promessa de que esta possuiria o alimento mais rico e suculento que existia: carne humana fresca. Saberemos mais adiante neste livro a maneira como a serpente engoliu essa história. Ao entrar no Jardim, Satã conseguiu persuadir Eva a comer o fruto proibido que, segundo alguns sábios muçulmanos, era o trigo. Persuadido por Eva a compartilhar da sua transgressão, Adão foi punido com a expulsão do Paraíso, juntamente com ela, Iblis e a serpente. Adão, que era inteligente, teve o bom senso de levar, do Paraíso para a terra, uma bigorna, um par de pinças, dois martelos e uma agulha. Ele teve que sair do Paraíso pelo portão conhecido como Portão da Penitência; Eva saiu pelo Portão da Misericórdia; Iblis saiu pelo Portão da Maledicência; e a serpente, pelo Portão da Calamidade. Todos os quatro caíram na terra, cada um em um lugar diferente: Adão pousou em Serendib (antigo Ceilão, atual Sri Lanka); Eva caiu em Jedá (na atual Arábia Saudita); Iblis chegou em Ailá (que fica na ponta do Golfo de Acaba, no deserto do Sinai); e a serpente acabou em Isfahã, na Pérsia (atual Irã). Passaram-se duzentos anos até que Adão e Eva se reencontrassem em Jebel Arafat, a montanha do Reconhecimento, próxima a Meca. Nesse meio tempo ocorreram coisas horríveis, pois, sob maldição, Eva recebera dentro de si a semente dos demônios e Adão teve muitos filhos de jins fêmeas. Os descendentes destes monstros horrendos, conhecidos como Afrits, Rassads, Ghuls, Marids e outros, ainda vivem na terra como pessoas comuns, e estão sempre prontos a infernizar a vida dos seres humanos.

O que aconteceu ao final dos dois séculos, de como Adão se arrependeu, foi levado pelo Anjo Gabriel para se encontrar com Eva em Jebel Arafat e de como o casal, agora perdoado, viveu em Serendib, bem como a história de seus filhos Caim, Abel e Set, é desnecessário contar, visto que isto é conhecido dos relatos dos Povos do Livro, sejam judeus, cristãos ou muçulmanos. Entretanto, o que não se sabe é que Alá mostrou a Adão toda a sua posteridade, ou seja, todas as pessoas que viveriam entre os seus dias e o Dia da Ressurreição. Como isso ocorreu? É simples: Alá golpeou as costas de Adão e de lá retirou toda uma multidão de pessoas, milhares de dezenas de milhares, cada uma do tamanho de uma formiga. Quando todas estas se deram conta de que Deus era Alá, que Abrahão era o Amigo de Alá, que Moisés foi aquele com quem Alá falou, que Jesus, filho de Maria, nasceu do Espírito de Alá, e que Maomé era o Seu Apóstolo; e quando cada ser humano confessou sua crença no Mundo Vindouro e no Dia da Ressurreição, então todos eles voltaram para as costas de Adão.

 

Adão era um homem muito alto, mais alto do que uma palmeira. Seus cabelos também eram muito longos. O Anjo Gabriel visitou-o doze vezes. Quando Adão morreu, sua descendência totalizava quarenta mil pessoas.

Alguns dizem que ele foi o primeiro a construir o Templo Sagrado. Também há opiniões diferentes sobre o local onde Adão foi enterrado: alguns afirmam que seu túmulo fica próximo à cidade de Hebron, outros que ele foi enterrado com a cabeça em Jerusalém e as pernas esticadas por todo o caminho que leva até Hebron. Muitos ainda defendem que é justamente o contrário, que a cabeça de Adão repousa em Hebron, com os pés em El-Kuds (Jerusalém). Finalmente, alguns cristãos afirmam que, na verdade, Adão foi enterrado com sua cabeça repousada aos pés do Calvário e foi ressuscitado por algumas gotas do sangue de Jesus que caíram sobre seu crânio por ocasião da Crucificação; por isso o local é conhecido como o Vale do Gólgota.5 Só Alá sabe a verdade!

 

A Causa da Maldade Humana

Conta-se que, certa vez, Adão estava trabalhando no campo e, enquanto Eva cumpria suas obrigações domésticas, ouviu o choro de um bebê. Imediatamente correu para ver e surpreendeu-se ao encontrar um belo menino. Era (não sabemos se ela sabia) um demônio malcriado que Iblis havia deixado diante da casa ansioso em tornar a vida dos pais da raça humana ainda mais turbulenta. Eva acolheu o bebê no colo e fez de tudo para acalmá-lo.

Quando Adão voltou para casa e viu o diabinho, imediatamente retirou-o dos braços de Eva e arremessou-o ao rio, onde o viu afundar.

No dia seguinte, depois que Adão foi para o trabalho, Iblis voltou e chamou: “Meu filho, onde está você?”. “Aqui estou!”, respondeu o diabinho, emergindo do rio. “Fique aqui até eu voltar”, disse o diabo-pai, colocando-o novamente à porta da casa de Eva. Quando Adão voltou e encontrou aquela criatura horripilante, embora simpática, imediatamente lançou-a ao fogo e queimou-a até transformá-la em cinzas.

Na manhã seguinte Iblis retornou mais uma vez e chamou seu filho, que novamente voltou à vida, ressuscitado das cinzas. Quando, à tardinha, o pai da raça humana voltou do seu trabalho e encontrou o pequeno demônio — que acreditava ter afogado e queimado até virar cinzas — vivo novamente, disse a Eva: “A única maneira de nos livrarmos deste inimigo tão perigoso é matá-lo, cozinhá-lo e comê-lo”.

Dito e feito. Quando na manhã seguinte o Pai dos Demônios voltou e chamou: “Meu filho, onde está você?”, duas vozes em uníssono, vindas respectivamente dos corpos de Adão e Eva, responderam: “Aqui estou, e muito confortável!”. “Era exatamente isso o que eu tanto queria”, disse o Diabo Número Um. E foi assim que todo ser humano passou a ter que lidar com o demônio que tem dentro de si.

 

  1. Noé e Og

Noé foi um dos seis maiores profetas que já viveram. Entretanto, não deixou nada escrito, ao contrário do seu avô Idris,6 o primeiro ser humano a usar uma pena com a qual escreveu trinta livros sob Inspiração Divina, entre obras de astronomia e outras ciências, que estão desaparecidas, antes que Alá o levasse para o Paraíso. Noé tinha outro nome, Abd el Gafar, que significa Servo do Deus Misericordioso. Ele nasceu 150 anos após a ascensão de Idris ao Paraíso, e viveu em Damasco até Alá enviá-lo para advertir os seres humanos do Dilúvio e construir a arca. Sob as ordens e orientações do Todo-Poderoso ele fez o primeiro sino, igual àqueles usados até os dias de hoje nas igrejas e conventos do Oriente Médio.

Além dos martelos e pinças que Adão trouxe do Paraíso e mais tarde legou a seus descendentes, o único instrumento que Noé possuía era uma grande faca. Como isso era insuficiente para uma missão tão grandiosa e trabalhosa quanto a construção da arca, o Patriarca recebeu a misteriosa promessa de que o seu pior inimigo tornar-se-ia o seu melhor assistente. Noé confiou na promessa e passou bravamente a cortar a madeira de uma grande árvore. Entretanto, num determinado momento a faca ficou tão presa na fenda produzida no tronco que, por mais que tentasse, era incapaz de retirá-la. Ele puxava e puxava por horas seguidas, mas em vão. Por fim, desistiu e foi para casa. De repente ocorreu de Iblis passar por lá. Ao ver a faca, extraiu-a com facilidade e sentiu um enorme prazer em imaginar que, se a estragasse, esta se tornaria inútil para Noé. Então passou a cegar cuidadosamente o seu fio. Apesar disso, quando o Patriarca voltou ao trabalho na manhã seguinte, encontrou uma serra excelente, pronta para ser usada.

Os esforços de Noé para modificar a conduta dos seres humanos foram em vão. Ele era agredido e ridicularizado até mesmo por sua esposa Waile, por seus filhos Canaã e pelo filho deste, Og, filho de Anak. Anak era filha de Adão, uma mulher muito má e a primeira bruxa de que se tem conhecimento. Estas quatro pessoas fizeram o máximo para persuadirem todos de que Noé estava louco.

O Dilúvio foi provocado pela forte movimentação de um tanur, um forno subterrâneo, cuja localização é incerta — alguns dizem que ficava em Guézer, na Terra Santa, outros afirmam que estava em Damasco (atualmente na Síria). A arca foi carregada pelas águas, que, alimentadas por chuvas torrenciais, aumentavam incessantemente. Noé e sua família (à exceção de sua esposa Waile, Canaã, Anak e Og), na companhia de verdadeiros crentes (segundo alguns eram seis, outros dizem que eram doze e outros ainda afirmam que eram 78 ou 80) em número igual de homens e mulheres — incluindo Jorham o Ancião, o guardião da língua árabe —, foram salvos, além dos animais que Alá permitiu que entrassem na arca. O burro, sob cujo rabo Iblis se escondera disfarçado de inseto, relutou em entrar na arca carregando consigo o Pai dos Demônios, mas acabou empurrado pelos gritos de Noé. A fim de compensar o burro por esta injustiça, foi predestinado que um dos seus descendentes entraria no Paraíso. Isso de fato ocorreu quando o burro de Ozair — que alguns dizem que era o profeta Jeremias ou o Profeta Esdras, mas outros garantem que era Lázaro de Betânia — ressuscitou e foi admitido no Jardim do Paraíso.

As águas do Dilúvio destruíram toda a humanidade, exceto aqueles que estavam na arca... e Og. Este último era tão alto que, quando veio o Dilúvio, as águas só alcançaram seus tornozelos. Ele tentou por diversas vezes afundar a arca para destruir Noé e aqueles que estavam com o Profeta, mas em vão. Og carregava uma arma tão difícil de manejar — devido à umidade, sempre lhe escorregava das mãos — que esta lhe escapou e acabou caindo intacta no chão. Quando tinha fome, Og se abaixava até a cintura, fazia uma concha com as mãos e recolhia um pouco de água. Ao deixá-la escorrer por entre os dedos, sempre encontrava uma boa quantidade de peixes, e assava-os ao sol. Quando sentia sede, tudo o que precisava fazer era colocar as mãos juntas e acumular as águas das chuvas, que caíam intermitentemente do céu. Ele viveu por muitos séculos depois do Dilúvio, até a época de Moisés. Certo dia, quando estava no Monte Hermon (na fronteira entre Israel, Síria e Líbano), Og quis atravessar El-Bekaa (uma larga planície síria). No entanto, calculou mal a distância, e não pisou no Líbano como pretendia, mas muito além, no Mar Mediterrâneo. Em outra ocasião, quando, em estado febril, deitou-se para descansar, estendeu-se desde o Banias, a nascente do rio Jordão, até o lago Merom, conhecido também como lago Hule. Enquanto estava deitado, alguns viajantes passaram por ele à altura do Banias, ao sul. Quando se aproximaram do seu rosto, Og lhes disse: “Estou muito doente para me mover. Por amor a Alá, quando vocês chegarem aos meus pés, espantem os mosquitos que estão me picando e cubram meus pés com a minha abaieh”.7 Os homens prometeram atendê-lo; mas, ao chegarem aos pés do gigante, não encontraram mosquitos, mas uma multidão de lobos.

Og finalmente morreu pelas mãos de Moisés da seguinte maneira: com o objetivo de destruir os israelitas durante a caminhada destes pelo deserto, o gigante arrancou da terra uma pedra enorme, tão grande que poderia esmagar todo o acampamento de Israel. Og a carregava sobre a cabeça com a intenção de arremessá-la sobre o acampamento, mas Alá enviou um pássaro que fez um buraco tão grande na pedra, com suas bicadas, que o pó desta caiu sobre a cabeça e os ombros de Og, numa quantidade tão grande que ele não podia dele se livrar nem enxergar por onde andava. Então Moisés — que tinha a altura de quase 7 metros e um cajado do mesmo comprimento — ficou nas pontas dos pés e conseguiu atingir o tornozelo de Og, que tombou e morreu. As pedras que cobriram o seu corpo atingiram a altura de uma montanha.

Mas voltemos a Noé. A arca flutuou para cá e para lá pela superfície do Dilúvio até chegar a Meca, e lá permaneceu imóvel por sete dias. Então se moveu em direção ao norte até chegar a Jerusalém, onde Alá o informou que ali seria erguido o Templo Sagrado, e que muitos profetas o freqüentariam, como também seus descendentes. Após o Dilúvio, os homens e mulheres saíram da arca para repovoar a terra. O Patriarca viveu só com sua filha, que cuidou da casa para ele em lugar da esposa, Waile, que perecera. Um dia apareceu um pretendente para a moça e Noé prometeu entregá-la desde que o noivo lhe oferecesse um lar aprazível. O homem partiu, prometendo retornar em breve. Como o tempo passou e nada dele voltar, Noé prometeu entregá-la a outro homem, sob as mesmas condições. Este também partiu e não retornou em tempo. Veio um terceiro pretendente, que já tinha um lar, e Noé consentiu no casamento de imediato. Infelizmente, assim que o matrimônio se consumou, o segundo pretendente retornou e reclamou sua noiva. Como não estava disposto a desapontá-lo, o Patriarca invocou o nome de Alá, que transformou uma mula em uma moça que lembrava a filha de Noé e entregou-a ao segundo candidato a noivo. Depois que o casal partiu, o primeiro pretendente finalmente apareceu e reclamou sua noiva. Desta vez Noé transformou sua cadela em moça e a fez casar-se com o retardatário. Desde então há três tipos de mulheres no mundo: primeiro, aquelas que são tementes a Deus e verdadeiras companheiras de seus maridos; segundo, criaturas estúpidas e indolentes às quais só se pode educar com uma vara na mão; e terceiro, mulheres astutas que desprezam tanto a admoestação quanto a disciplina, vivem a rosnar e implicam com seu maridos.

 

Noé viveu por mais 300 anos após o Dilúvio. Como era saudável e empreendedor, resolveu plantar um vinhedo. Entretanto, desconhecia que Iblis, o pai de todos os demônios, que criava macacos, leões e porcos, misturou o sangue destes animais e à noite regou as jovens vinhas com essa mistura horrenda. Esta é a razão pela qual as pessoas que bebem vinho à vontade, primeiro se comportam de maneira tão ridícula como os macacos, em seguida ficam ferozes e perigosas como os leões e, finalmente, acabam degradadas e imundas como os porcos. Quando chegou a época da colheita, Noé produziu o vinho e, desconhecendo as conseqüências, fez uso descuidado dele. Para consternação de seus filhos, passou a tagarelar que queria se casar novamente e dar origem a uma nova raça. Seus filhos protestaram, ele ficou furioso e violento e em seguida caiu dormindo no chão. Eis que seus dois filhos mais velhos o deixaram, mas Canaã, cuja intenção era impedir que seu pai se casasse novamente, lhe fez um corte horrível no corpo. Segundo os judeus, é por isso que, uma vez passada a bebedeira e ao acordar do seu sono, Noé amaldiçoou Canaã e todos os seus descendentes. Não acredita? Pois leia isso com seus próprios olhos: “E [Noé] disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos será para seus irmãos” (Gênesis 9:25).

 

 

  1. Jó e sua Família

Jó era um homem muito rico e tinha uma grande família. Para provar a sinceridade da sua devoção, Alá privou-o não somente de todas as suas posses e de seus filhos, mas também de sua saúde. Ele foi afligido por uma doença de pele tão repugnante, que o mau cheiro das feridas afastava as pessoas e ninguém, exceto sua esposa, conseguia ficar a menos de quinhentos metros dele. Apesar destes infortúnios, o Patriarca continuou a servir Alá e a agradecer-lhe como nos dias de prosperidade. Sua paciência, embora enorme, não era maior do que a de sua esposa, que era filha de Efraim, filho de José — alguns dizem que era filha de Menassê, irmão de Efraim. Ela não só cuidava do marido com grande devoção, como o sustentava cora o próprio trabalho e, quando não pôde mais trabalhar, passou a carregá-lo nas costas dentro de uma abaieh, pedindo esmolas de porta em porta. Fez isso por sete anos sem reclamar. Certo dia, quando foi obrigada a deixá-lo por um curto período de tempo, Iblis, que era o próprio Satã, apareceu e prometeu-lhe que, se ela o servisse, ele curaria seu marido e restauraria o patrimônio que ele havia perdido. A mulher, embora tentada, foi consultar Jô. Ele ficou tão nervoso por ela ousar conversar com o demônio, que jurou: se Alá restaurasse a sua saúde, puni-la-ia com cem chicotadas, e em seguida proferiu a seguinte oração: “Meu Deus, um demônio me aflige, mas Tu és o mais misericordioso entre todos”. Alá enviou o Anjo Gabriel, que tomou Jó pela mão e ergueu-o. No mesmo instante a fonte de água do povoado de Bir Ayub, no vale ao sul de Jerusalém, jorrou aos pés do Patriarca que, orientado pelo anjo, imediatamente bebeu da sua água. Os germes que provocavam suas feridas caíram imediatamente do seu corpo.

Em seguida, ao se banhar na fonte, sua saúde e aparência foram restauradas. Alá então ressuscitou seus filhos, rejuvenesceu sua esposa e a fez tão companheira, que ele teve com ela mais 26 filhos. Para que o Patriarca fosse capaz de sustentar uma família assim tão grande e também para compensá-lo pela perda da sua riqueza, seus campos cultivados nos arredores de Bir Ayub ficaram cobertos de moedas de ouro e prata, que choviam de duas nuvens enviadas com este propósito. Mais tranqüilo com estas evidências da misericórdia do Todo-Poderoso, Jó arrependeu-se da promessa que fizera, e desejava não ter de chicotear a esposa. Em meio a este conflito pessoal, Gabriel veio novamente em seu auxílio. O anjo sugeriu que o Patriarca recolhesse um galho de palmeira com cem folhas e com ele chicoteasse sua esposa, considerando que assim ela receberia a punição prometida.

Além da esposa devotada, Jó tinha um parente que foi um dos homens mais fantásticos que já viveu em todos os tempos, conhecido como El Hakim Lokman. Mas também já ouvi dizer que se chamava El Hakim Risto.

Esse grande homem era filho de Baura, que por sua vez era filho ou neto da irmã de Jó, embora alguns digam que era da sua tia. Viveu por muitas centenas de anos, até a época de David, de quem se tornou amigo. Era um homem extremamente feio, de pele áspera, lábios grossos e pés chatos. Para compensá-lo de suas deformidades, Alá lhe concedeu sabedoria e eloqüência. Quando lhe foi permitido optar entre os dons da profecia e os da sabedoria, escolheu o último. O Profeta David queria que ele fosse rei de Israel, mas El Hakim recusou essa importante posição e contentou-se em permanecer um simples Hakim.

Após ter sido preso e vendido como escravo por beduínos, que atacaram Hauran8 e roubaram o rebanho de Jó, El Hakim recuperou a liberdade de uma maneira impressionante. Certo dia seu senhor, após ter-lhe dado um melão amargo para comer, ficou agradavelmente surpreso com sua obediência em consumir todo o fruto e perguntou-lhe como era capaz de comer algo de sabor tão ruim. Lokman respondeu que não deveria causar surpresa o fato de ele aceitar, de vez em quando, algo ruim de alguém que havia lhe conferido tantos benefícios. A resposta agradou tanto a seu senhor, que este lhe concedeu a liberdade.

 

A história seguinte é a que mais diz respeito a esse sábio.

 

Um homem muito rico estava bastante doente e os médicos diziam que um bicho lhe apertava o coração e que morreria fatalmente. El Hakim Lokman foi chamado como a última esperança. Ele afirmou que uma cirurgia poderia salvar o paciente, mas era muito arriscada. O homem doente aceitou esta que seria a sua última tentativa de permanecer vivo e enviou ao Kadi, ao Mufti, a todo o Conselho de Notáveis e a todos os presentes um documento assinado e selado que exonerava Lokman de qualquer culpa no caso de ele morrer durante a cirurgia. Feito isso, despediu-se de seus parentes e amigos.

Lokman convidou todos os demais médicos da cidade a acompanharem a cirurgia, mas antes os fez jurar que só interfeririam por motivo humano e não por inveja.

Contudo, ele não convidou um médico: seu sobrinho, que, não obstante tivesse alcançado um nível de excelência mais elevado do que Lokman, o invejava demasiado (esta inimizade entre parentes era comum, mas o sobrinho era o seu pior rival, o que deu origem ao seguinte ditado popular: “Se não tens um sobrinho, mas és tão estúpido a ponto de desejares um, toma um monte de barro, molda um para ti e faça-o ao teu gosto; então, quando estiver perfeito, permita que finalmente ganhe vida e então o fira”). Esse rapaz resolveu acompanhar a cirurgia mesmo sem ter sido convidado. Para isso subiu no telhado da casa, onde, por uma clarabóia, podia observar tudo que acontecia..

Lokman administrou haxixe ao enfermo, e, assim que o anestésico fez efeito, passou a abrir o peito do paciente. Constatou um caranguejo enorme que lhe apertava o coração.

Lokman tremeu: “Esta é, com certeza, a causa da enfermidade, mas não tenho idéia de como retirar esse bicho daí. Se alguém souber como agir, que se apresente, em nome de Alá”. Os médicos responderam: “Não sabemos como remover a criatura, pois se usarmos a força ele poderá apertar ainda mais o coração e matar o paciente”. Assim que foram pronunciadas essas palavras desanimadoras, para surpresa e constrangimento de Lokman, a testemunha escondida no telhado da casa gritou para dentro do recinto: “Afastem-no com fogo, seus tolos!”. Ao ouvir esta que era a sugestão mais oportuna, Lokman enviou um dos seus assistentes até a Rua dos Açougueiros com a incumbência de pedir emprestado ao primeiro proprietário de uma loja de kobabs assados9 um espeto de ferro. Pediu a outros que preparassem um braseiro e, por último, aos demais que coletassem lã de algodão. Depois de tudo preparado, o grande Hakim embrulhou tecido úmido ao redor do cabo do espeto de ferro para empunhá-lo e o mergulhou no fogo até sua ponta ficar vermelha como brasa. Enquanto isso, um dos médicos assistentes preparou, obedecendo suas ordens, dois pequenos chumaços de lã de algodão. Com o espeto em brasa, tocou uma das garras do caranguejo. A dor repentina fez com que o bicho a erguesse. Pegou-a com um chumaço de algodão e arrancou-a. Arrancou todas as garras do mesmo modo e, por fim, retirou o caranguejo sem riscos ao paciente.

Enquanto Lokman limpava os ferimentos com uma colher de prata, seu sobrinho gritou lá do telhado: “Cuidado para não tocar um coração humano com metal”. Pegou então um pedaço de madeira que estava à mão e amarrou-o ao redor da colher para este fim. Após ungir os ferimentos do coração, costurou o peito do paciente, que se recuperou imediatamente e desfrutou de uma vida longa.

 

  1. Abrahão, o Amigo de Deus

Abrahão, cujo sobrenome é Khalil Alá ou El-Khalil, o Amigo de Deus, era filho de Terach, um escultor e também vizir de Nimrod, Rei de Kuta.10 Nimrod era tão impiedoso, que obrigava seus súditos a louvarem-no como se fosse um deus.

O Rei Nimrod teve um sonho que muito o perturbou. As interpretações dos adivinhos diziam que muito em breve nasceria um grande profeta que repudiaria a idolatria e levaria o rei à ruína. A fim de evitar isso, o tirano convocou todos os homens para comparecerem ao acampamento militar e ordenou o massacre de todo bebê do sexo masculino que nascesse em seus domínios. O rei ordenou também que todas as mulheres grávidas fossem acompanhadas de perto e, no caso de gerarem um menino, a criança deveria ser morta ao nascer.

Apesar de todas estas precauções, a esposa de Terach concebeu Abrahão e o fato foi mantido em segredo. Chegado o momento do parto, foi levada em oculto por anjos para uma caverna escondida e com acomodações bastante adequadas, situada no povoado de Barzeh, próximo a Damasco. O parto transcorreu sem dor, graças a Alá. Ela deixou o recém-nascido aos cuidados dos seres celestiais, e voltou para casa em perfeito estado de saúde e vigor.

Terach — que, como todos os homens, estava sempre fora de casa a serviço de Nimrod — ignorou por um longo tempo o que ocorrera na sua ausência. A esposa tinha permissão para visitar o filho periodicamente e sempre ficava surpresa com o crescimento e beleza extraordinários do bebê. Em um dia ele cresceu tanto quanto uma criança se desenvolve em um mês e, em um mês, tanto quanto outra cresceria em um ano. Ele também se alimentava de uma maneira maravilhosa. Ao entrar um dia na caverna, sua mãe encontrou a criança sentada sugando os próprios dedos com muito gosto. Desejando saber por que fazia isso, ela examinou as pontas dos seus dedos e descobriu que do primeiro jorrava leite; do segundo, mel; do terceiro, manteiga; do quarto, água. Isto era muito conveniente e a mãe deixou de se surpreender com o notável desenvolvimento do filho. Aos 15 meses de vida ele já conversava fluentemente e, muito questionador, fazia perguntas desconcertantes à mãe:

 “Mãe, quem é o meu senhor?”.

“Sou eu”, ela respondia.

“E quem é o seu senhor?”.

“Seu pai”.

“E quem é o senhor do meu pai?”.

“Nimrod”.

“E quem é o senhor de Nimrod?”.

“Hush!”, resmungou a mãe, batendo de leve na boca do filho. Na verdade ela estava tão feliz, que não podia mais manter a existência do garoto ignorada do marido, o vizir. Este então veio, foi conduzido à caverna e perguntou a Abrahão se ele era de fato seu filho. O pequeno Patriarca respondeu afirmativamente e então fez as mesmas perguntas ao pai, que deu as mesmas respostas da mãe.

Em um final de tarde, Abrahão pediu à mãe que o deixasse sair da caverna. Ela consentiu. Uma vez do lado de fora, ficou encantado com as maravilhas da Criação e fez uma declaração impressionante: “Aquele que me criou concedeu tudo o que me era necessário, deu-me de comer e de beber, Ele e somente Ele é o meu Deus”. Entardecia, e o sol, na linha do horizonte, brilhava intensamente. O menino olhava e admirava: “Com certeza este é o meu Deus!”. Mas o astro mergulhou no oeste e desapareceu. Abrahão ficou desapontado: “Não gosto de coisas que mudam. Este não pode ser o meu Deus”. Neste meio tempo surgiu a lua cheia, derramando sua luz suave por todo o céu, e a criança disse, com um sorriso: “Certamente este é o meu Deus!”, e ficou admirando-a a noite inteira. Então a lua também se foi e, muito decepcionado, Abrahão exclamou: “Eu estava absolutamente errado, a lua não pode ser o meu Deus, porque eu não gosto das coisas que mudam”. Mais tarde o céu foi tingido com todas as cores gloriosas do amanhecer e o sol surgiu em todo o seu esplendor, acordando homens, pássaros e insetos para a vida, banhando todas as coisas em uma glória dourada. Mais do que impressionado, o menino gritou: “Certamente este é o meu Deus!”. Mas à medida que as horas passavam, o sol começou a descer em direção ao oeste e as sombras se alargaram até que a noite mais uma vez cobriu a terra. Muito desapontado, o rapazinho murmurou: “Mais uma vez eu estava errado. Nenhum astro, lua ou sol podem ser o meu Deus. Não gosto das coisas que mudam”. Em meio à angústia de sua alma, fez a seguinte prece: “Alá, ó Grande, Indecifrável e Imóvel Deus, revela-Te para o Teu servo, guia-me e me guarda do erro”. O pedido foi atendido e o Anjo Gabriel foi enviado para instruir o jovem em sua busca incessante pela verdade.

Aos dez anos de vida Abrahão passou a exortar as pessoas a rezarem unicamente para Alá. Certo dia entrou em um templo que continha inúmeras imagens de deuses e, ao perceber que estava sozinho, quebrou todos os ídolos com um machado, exceto o maior deles, que deixou próximo aos que destruíra. Ao entrarem no templo, os sacerdotes ficaram furiosos e, ao verem Abrahão, acusaram-no de sacrilégio. Ele então lhes contou que ocorrera uma enorme discussão entre os deuses e que o maior destruiu aqueles que o haviam provocado. Quando os sacerdotes responderam que isto era impossível, o menino lhes mostrou que suas próprias palavras afirmavam a estupidez de suas crenças idólatras. Como era de se esperar, os sacerdotes ignoraram os argumentos daquele menino insolente de dez anos de idade e denunciaram-no a Nimrod, que construiu um grande forno, encheu-o de lenha, ateou fogo e ordenou que Abrahão fosse jogado lá dentro. Entretanto, o forno era tão grande e estava tão quente que ninguém ousava se aproximar para cumprir a ordem real. Foi aí que Iblis, o pai de todos os demônios, mostrou a Nimrod como construir uma máquina pela qual o jovem mártir, com mãos e pés amarrados, poderia ser arremessado às chamas. Mas Alá estava atento e preservou o garoto: para Abrahão o forno era um lugar tão agradável e fresco como um roseiral regado pelas fontes mais refrescantes. O menino saiu do forno sem um ferimento sequer.

 

Naquela época o rei construiu uma torre grandiosa que alcançava uma altura inimaginável. Uma vez lá em cima, o rei imaginava que poderia tocar o céu. Quando a construção da torre alcançou uma determinada altura, Alá confundiu as línguas dos trabalhadores. De uma hora para outra, 73 línguas passaram a ser faladas ao mesmo tempo e no mesmo lugar, causando um ruidoso blá blá blá; por isso a construção ficou conhecida como Torre de Babel. Peregrinos de Mosul e de Bagdá (cidades do atual Iraque) afirmam que suas ruínas existem até hoje em seu país.

Fracassado em seu intento, Nimrod construiu uma máquina voadora tão simples quanto engenhosa. Constituía-se de um compartimento com uma tampa em cima e outra embaixo. Quatro águias treinadas especialmente para isso foram presas cada uma em um dos quatro cantos do compartimento; então foram fixados quatro espetos diante de cada ave e em cada um deles foi pendurado um generoso pedaço de carne crua. Os pássaros levantaram vôo a fim de abocanhar a carne e, ao fazê-lo, carregaram consigo o compartimento onde estavam Nimrod e um arqueiro. As aves presas à curiosa máquina voadora não tinham como alcançar a carne e assim a geringonça subia mais e mais. Quando estavam tão alto a ponto de a terra praticamente não poder mais ser vista, o rei ordenou ao arqueiro que atirasse uma das flechas aos céus. Antes de subir, Nimrod, que era precavido, mergulhou as pontas das flechas em sangue. Cada uma delas foi atirada aos céus e, quando não restou uma sequer, os espetos com pedaços de carne foram retirados e puxados pela abertura superior do compartimento. Ao se perceberem privadas do alimento tão desejado, as outras três águias, já cansadas, passaram a descer, é claro. Ao aterrissar, Nimrod apontou para as flechas caídas como prova de que havia ferido Alá, e Este fora incapaz de lhe causar qualquer mal.

Esta blasfêmia decepcionou inteiramente a sua gente, cuja confiança em Nimrod já havia sido duramente abalada quando Abrahão fora arremessado ao forno em chamas. Alá tampouco deixou que a maldade do rei passasse impune. Para deixar bem clara a grandiosidade do Seu poder, o Todo-Poderoso empregou a menor das Suas criaturas para humilhar aquela que era a mais arrogante delas. Uma mosca do deserto foi enviada para entrar nas narinas do rei e atingir-lhe o cérebro. Por duzentos anos atormentou Nimrod dia e noite, até a sua morte. No final da vida a sua agonia era tão intensa, que ele só conseguia alívio mediante golpes constantes na cabeça, aplicados com machado de ferro por um homem que ele contratou exclusivamente para essa finalidade.

Neste meio tempo, quando Nimrod descobriu que não tinha como ferir Abrahão e que muitas pessoas estavam se convertendo à sua fé, o rei expulsou o Profeta dos seus domínios. Mas assim que deu esta ordem, arrependeu-se e enviou uma tropa de soldados montados em mulas — que haviam sido usadas para carregar lenha para o forno — a fim de recapturá-lo.

Quando o Patriarca, que montava em um burro, viu os soldados à distância, deu-se conta que não teria como escapar vivo, a menos que abandonasse o animal e se escondesse em algum lugar. Então ele desceu e saiu correndo.

Após correr por algum tempo, passou por um rebanho de bodes e pediu-lhes proteção. Estes recusaram e o puseram para correr. Por fim Abrahão viu um rebanho de ovelhas que, ao mesmo pedido, concordaram de imediato e o esconderam. Fizeram-no deitar-se rente ao chão e se aglomeraram de tal forma que os inimigos passaram por elas e nada notaram. Como recompensa, Abrahão pediu a Alá que lhes concedesse caudas longas e polpudas, pelas quais são conhecidas hoje as ovelhas do Oriente Médio; e como punição aos bodes, pediu para eles caudas bem curtas e retas, curtas demais para resguardar a decência; as mulas, que até então haviam sido capazes de procriar, tornaram-se estéreis, pois carregaram lenha para o forno deliberadamente e levaram de boa vontade os soldados de Nimrod em perseguição a Abrahão, o amigo de Deus.

Depois disso o Profeta viveu muitas aventuras no Egito e em Beer Sheva — no deserto do Neguev, na Terra Santa — quando aconteceram coisas que sou incapaz de contar melhor do que um dos xeiques da grande mesquita de Hebron, que me fez o seguinte relato:

Após escapar do Rei Nimrod, Abrahão recebeu ordens para ir a Meca e lá construir um santuário. Chegando ao seu destino, foi instruído a oferecer o seu querido filho Ismael como sacrifício em Jebel Arafat, a montanha onde Adão reencontrou Eva. Iblis, na esperança de perturbar a vida do Patriarca e seu filho, foi até Hagar, a Matriarca do povo árabe, e implorou para que ela dissuadisse o marido de um dever tão cruel. Ela agarrou uma pedra e arremessou-a contra o Diabo. Embora não lhe tenha causado qualquer dano, o local onde a pedra foi atirada — conhecido como Ash Sheitan er Rajim, “Satã, o Apedrejado” ou “Aquele que é para ser apedrejado” — é mostrado até hoje aos peregrinos. Ao finalizar a construção do santuário,Abrahão foi orientado a construir outro em Jerusalém. Após construí-lo, recebeu ordens para erguer um terceiro santuário em Hebron. Foi-lhe informado que o local seria indicado por uma luz sobrenatural que iluminaria a área à noite.

Outra história nos conta que três anjos disfarçados de homens apareceram ao Patriarca que, ao ver os peregrinos, convidou-os para entrar em sua tenda e ofereceu-lhes uma generosa refeição. Outra ainda relata que, sabe-se lá como, um bezerro chamou a atenção de Abrahão, que o seguiu até uma determinada caverna. Ao seguir o animal, ouviu uma voz que vinha da câmara interna da caverna, e esta lhe dizia que estava entrando no sepulcro do Patriarca Adão, onde deveria construir um santuário. Uma terceira história diz que um camelo muito estranho aproximou-se de Abrahão e o guiou até um determinado lugar. Desta vez Iblis conseguira enganar o Patriarca, que passou a construir o santuário em Ramet el Khalil, distante uma hora de Hebron. No entanto, depois de assentar algumas pedras neste lugar, onde ainda podem ser vistas, Alá lhe mostrou o erro e Abrahão seguiu para Hebron.

 

Naquela época Hebron era habitada por judeus e cristãos, cujo líder era Habrun.11 Abrahão veio visitá-los e disse que pretendia comprar tanta terra quanto a sua vestimenta de lã de ovelhas fosse capaz de cercar caso fosse cortada em tiras. Às gargalhadas, Habrun disse: “Eu lhe venderei este tanto de terra por 400 dinares de ouro, e cada 100 dinares devem ter a efígie de um sultão diferente”.12 Era chegada então a hora das orações vespertinas e Abrahão pediu para se afastar a fim de fazer suas orações. Retirou sua vestimenta e a estendeu sobre o chão como se fosse um tapete. Então realizou suas preces na posição adequada, acrescentando um pedido da soma exigida para aquisição das terras. Ao se levantar dos joelhos e vestir a túnica novamente, notou que ao seu lado havia quatro sacolas, cada uma com 100 dinares de ouro, e cada cento com a efígie de um sultão diferente.

Então, na presença de 40 testemunhas, Abrahão entregou o dinheiro nas mãos de Habrun, passou a cortar sua roupa em tiras e a cercar a terra que comprara. Habrun protestou, dizendo que não era este o acordo, mas Abrahão apelou às testemunhas, que decidiram que o tamanho ou número de tiras em que a roupa deveria ser cortada não havia sido especificado.

Isso deixou Habrun tão enfurecido que ele levou as 40 testemunhas ao topo da colina a sudoeste da cidade — onde até hoje pode-se visitar as ruínas de Deyr el Arbain, o Convento dos Quarenta — e lá degolou-lhes a cabeça. Mas nem assim conseguiu silenciá-los, pois cada uma das cabeças, ao rolar colina abaixo, gritava: “O acordo foi que a vestimenta deveria ser cortada”. Abrahão recolheu os cadáveres e enterrou-os, cada um no local onde a respectiva cabeça parou de rolar.

 

Além da sua fé inabalável na proteção de Alá, Abrahão também era conhecido por sua hospitalidade. Ele sempre dizia: “Eu era um pobre estrangeiro e fugitivo sem dinheiro, mas Alá cuidou de mim e me fez rico. Por que então eu não deveria demonstrar bondade com meus semelhantes?”. Em sua casa Abrahão tinha uma sala onde havia uma mesa sempre pronta para saciar a fome de todo forasteiro faminto, bem como roupas novas para aqueles que chegavam vestidos em trapos. Antes de fazer suas próprias refeições ele sempre saía das suas terras e andava alguns quilômetros na esperança de encontrar convidados que lhe fizessem companhia. Apesar de tão generoso, não lhe faltava dinheiro, muito pelo contrário: Alá o agraciou com muita riqueza. Em determinado ano uma grande estiagem maltratava as terras e o Patriarca enviou seus servos a um amigo que tinha no Egito, pedindo-lhe certa quantidade de grãos. O “amigo”, pensando que teria uma oportunidade para arruinar o amigo de Deus, respondeu que se os grãos tivessem sido pedidos para uso de Abrahão e os seus, e não para outros, ele teria lhe fornecido com prazer; mas, assim que soubera que o alimento seria consumido por vagabundos e mendigos, considerou que estaria agindo errado em enviá-lo, pois este estava escasso no mundo inteiro durante aquele ano.

Os servos de Abrahão, que lhe eram muito leais, estavam envergonhados em retornar à propriedade do Patriarca de mãos vazias. Então encheram seus sacos com areia branca e, ao chegarem, contaram o que aconteceu. Abrahão ficou muito decepcionado com a traição do amigo e foi dormir refletindo sobre o ocorrido. Sara, que nada sabia, abriu um dos sacos e encontrou-os repletos da mais bela farinha, com a qual assou muitos pães. Assim, quando os amigos falharam, Deus socorreu Abrahão.

Abrahão era tão hospitaleiro que não conseguia entender como os outros não o pudessem ser exatamente como ele. Certo dia teve que deixar sua casa para visitar uma parte distante do país onde pastavam alguns dos seus rebanhos, guardados pelos respectivos pastores. Ao chegar ao local onde esperava encontrá-los, um beduíno lhe contou que eles haviam partido em busca de outros pastos bem longe dali. Então Abrahão aceitou o convite do árabe para entrar na sua tenda e descansar um pouco. Uma criança foi morta para servir de refeição. Algumas semanas depois Abrahão passou novamente pelo mesmo caminho e encontrou o mesmo beduíno que, em resposta à sua pergunta sobre por onde andavam os seus pastores, respondeu: “Estão algumas horas ao norte do local onde matei uma criança por ti”. Abrahão ficou quieto e seguiu sua jornada. Algum tempo depois ele passou pela terceira vez pelo mesmo lugar e, ao encontrar o beduíno, este lhe contou que os rebanhos que procurava estavam a uma certa distância ao sul “do local onde matei uma criança por ti”. Na quarta vez que Abrahão encontrou o homem, este lhe disse que as ovelhas estavam assim e assim a leste do local onde aquela pobre criança havia sido morta. “Ah, meu Deus”, exclamou Abrahão, “Tu sabes o quão desapegado sou. Dou hospitalidade sem fazer diferenças. Eu te peço, pois, que assim como este homem colocou este pobre menino entre os meus dentes, que eu possa vomitá-lo, apesar do longo tempo desde que o devorei involuntariamente”. A prece recebeu resposta imediata e o menino ressuscitou são e salvo.

Entre outras coisas que, segundo a tradição islâmica, Abrahão instituiu, devemos mencionar três. A primeira é o rito da circuncisão, instituído a fim de que os cadáveres dos muçulmanos caídos em batalha pudessem ser distinguidos dos corpos dos descrentes e recebessem um enterro decente. A segunda, o uso daquelas largas calças orientais conhecidas como Sinval. Até a época de Abrahão, a única vestimenta era aquela conhecida como Ihram, que os peregrinos tinham que usar quando se aproximavam de Meca. Tratava-se de tecidos de lã bem grosseira e outros do mesmo tipo jogados sobre os ombros. Considerando-as inadequadas à modéstia, o Patriarca perguntou a Alá se não seria mais adequado que as pessoas usassem também roupas de baixo. Então o Anjo Gabriel foi enviado do Paraíso com uma peça de tecido da qual foi cortado o primeiro par de sirwals, que vêm a ser as ceroulas, e ensinou a Sara (que foi a primeira pessoa desde a época de Idris — Enoch, avô de Noé — a usar uma agulha) como confeccioná-las. Entretanto, Iblis, morrendo de inveja, contou aos infiéis que sabia de um modo mais econômico e eficiente de confeccionar roupas e, como prova, confeccionou as ceroulas, que, naqueles dias de depravação e degeneração, passaram a ser usadas por alguns orientais à vista de todos. A terceira inovação que começou com Abrahão foram os cabelos grisalhos. Até a sua época era impossível distinguir os jovens dos velhos, mas o Patriarca pediu que Alá desse algum sinal que demarcasse a diferença. Em resposta ao seu pedido, sua própria barba ficou branca como a neve. Ele também foi o inventor das sandálias, pois antes dele as pessoas andavam descalças.

Abrahão obteve de Alá a promessa de que não morreria até que assim o desejasse. Entretanto, como o Patriarca era muito apegado à vida e nunca se decidia pelo dia da sua morte, o Todo-Poderoso resolveu então que o momento havia chegado e foi obrigado a fazer seu amigo partir deste mundo.

Por outro lado, outras pessoas me contaram uma versão diferente para a morte do Patriarca. Você já sabe que Abrahão era muito hospitaleiro. Certo dia, ao ver um homem muito velho caminhando com dificuldade por suas terras, enviou um servo com um burro para ajudá-lo. Quando o estranho chegou, Abrahão, como de costume, recebeu-o com muita hospitalidade e lhe ofereceu uma refeição. No entanto, como o convidado ficava cada vez mais debilitado à medida que comia e era com muita dificuldade que levava um pouco de comida à boca, o Patriarca, que o observava com surpresa e piedade, perguntou:

“Do que padeces, meu bom homem?”

“É a fraqueza da idade”, respondeu.

“E qual é a sua idade?”, perguntou Abrahão.

Ao ouvir a resposta, exclamou:

“O quê! Será que daqui a dois anos estarei como o senhor?”

“Com toda certeza!”, respondeu o forasteiro.

Então Abrahão voltou-se ao Todo-Poderoso e pediu: “Meu Deus, leve a minha alma antes que eu chegue a uma condição tão digna de pena!”. Em seguida o homem velho, que era Azrael, o Anjo da Morte disfarçado, revelou-se e recebeu a alma do amigo de Deus.

Abrahão foi enterrado na caverna da Machpelá, em Hebron, ao lado de Sara, sua esposa. Cada um ao seu tempo, o filho Isaac e o neto Jacob também foram enterrados ali. No entanto, é um erro dizer que eles estão mortos em seus túmulos, porque estão vivos e bem. Esses profetas, assim como David e Elias, ainda aparecem de tempos em tempos para salvar os servos de Deus em épocas de perigo e perseguição, conforme me contou o rabino-chefe dos judeus em Hebron.

Os judeus de Hebron, disse-me ele, eram muito pobres e só faziam jejuar e pedir por auxílio. A noite anterior ao dia em que receberiam seus salários era passada em claro, em orações incessantes na sinagoga. O dinheiro, entretanto, ia quase todo para o perverso Pashá, que lhes tomava tudo em impostos. Certa vez, por volta da meia-noite, eles ouviram fortes batidas no portão do seu bairro. Um deles foi até lá e, tremendo de medo, perguntou quem era o forasteiro que vinha perturbá-los uma hora dessas. “Um amigo”, foi a resposta. Ainda com medo, não abriu e voltou para a sinagoga. Neste meio tempo, o homem que estava do lado de fora estendeu a mão por entre o portão e deixou uma grande sacola na fenda que havia no muro interno do bairro. Então seu braço recuou e tudo ficou como antes. A sacola foi encontrada e, para surpresa de todos, continha a soma exata de ouro que lhes era exigida como imposto pelo Pashá. Na manhã seguinte, os judeus se apresentaram diante do seu opressor e depositaram o dinheiro aos seus pés. Ao ver a sacola, o Pashá recuou e questionou como esta viera parar ali. Ao saber do ocorrido, confessou que aquela sacola e o ouro nela contido haviam sido seus até a noite passada quando, embora sua tenda estivesse fortemente protegida, um xeique ricamente vestido veio e tomou-a, ameaçando o Pashá de morte instantânea caso se movesse ou dissesse uma só palavra. Ele então soube que Abrahão viera para proteger os judeus, e pediu-lhes perdão pela conduta perversa que costumava ter com eles. Os judeus de Hebron ainda mostram a todo visitante a fenda no muro onde Abrahão colocou a sacola com o dinheiro.

 

  1. Lot e a Árvore da Cruz

Em seu leito de morte, o Patriarca Adão ficou tão aterrorizado com a idéia da sua própria partida, que enviou seu filho, o Patriarca Set, até o portão do Paraíso a fim de pedir ao querubim que lá estava de guarda para lhe dar um fruto da Arvore da Vida. Todavia, o anjo, incapaz de atender ao pedido, sentiu pena da raça humana e obteve permissão de Alá para entregar ao mensageiro uma muda com três ramos. Set voltou para casa, mas encontrou seu pai já morto. Plantou a muda no túmulo à altura da cabeça de Adão, onde esta criou raízes e cresceu ao longo dos séculos. Embora tenha sobrevivido ao Dilúvio, foi esquecida pelos seres humanos.

O Patriarca Lot, cuja esposa foi transformada em uma gigantesca estátua de sal, que ainda causa admiração, nas proximidades de Jebel Usdum — na costa sul do mar que leva seu nome, também conhecido por Mar de Sal ou Mar Morto —, cometeu um pecado tão grave que, quando se deu conta, desesperou-se. Ele teria cometido suicídio se um anjo de Alá não tivesse aparecido e dito que havia uma árvore que, se regada e cuidada, traria graça a toda a humanidade. Entusiasmado, Lot preparou-se para sair em sua busca. O dia estava terrivelmente quente quando ele partiu: soprava o Siroco, aquele vento quente que vem do Mediterrâneo, desde o Norte da África. Assim que chegou ao topo de uma montanha, avistou um peregrino caminhando nos arredores, aparentemente exausto. Lot, que tinha um bom coração, ofereceu-lhe um pouco de água. Para sua surpresa, o peregrino — que era Iblis, o pai de todos os demônios — virou a jarra num só gole.

Sem dizer palavra, Lot voltou ao rio Jordão e encheu novamente a jarra; e mais uma vez, quando já havia vencido uma boa parte do caminho, Satã, disfarçado de um pobre peregrino, abusou da sua bondade e bebeu toda a água outra vez. Uma terceira tentativa foi frustrada da mesma maneira. Por fim, o penitente, arrasado com o terceiro fracasso, caiu ao chão, gemendo: “Se eu não consigo aliviar o sofrimento de todos os homens, pelo menos mato a sede daqueles que já estão caídos. Por outro lado, se eu der de beber a todo homem sedento que encontrar, como poderei regar a árvore da minha salvação?”. Triste e vencido pela fadiga, Lot caiu em sono pesado e sonhou. Em sonho o anjo lhe apareceu mais uma vez e disse onde estavam os verdadeiros peregrinos, acrescentando que a sua bondade agradara a Alá e os seus pecados haviam sido perdoados. Enquanto isso, a árvore fora regada pelos anjos.

Lot morreu em paz e a árvore cresceu e floresceu. No entanto, o diabo não deixou de tentar destruí-la e conseguiu persuadir o rei de Tiro, Hiram, a cortá-la para a construção do Templo de Salomão. O tronco foi levado a Jerusalém, mas como o arquiteto não encontrou como usá-lo, deixou-o no vale a leste da cidade, onde serviu como ponte sobre as torrentes do rio Kidron (entre Jerusalém e o Monte das Oliveiras, no setor oriental da cidade; no inverno suas águas são turvas e escuras e no verão está seco) e foi usada como passagem até que Belkis, a Rainha de Sabá, veio visitar Salomão. Assim que se aproximou da cidade, ela sentiu no coração a natureza preciosa da ponte que teria de cruzar. Ao alcançá-la, recusou-se a colocar os pés e então se ajoelhou e rezou. O sábio rei de Israel, que viera encontrar sua convidada, ficou muito surpreso com sua atitude; mas quando ela lhe contou sobre as origens daquele tronco e o propósito ao qual estava destinado, o rei mandou retirá-lo. O tronco foi cuidadosamente limpo e preservado no Templo em uma das câmaras do tesouro e lá permaneceu até ser requerido para a construção da cruz na qual Jesus morreu. Qualquer um que examinar as pedras que ainda estão às margens do rio Kidron, próximo ao Pilar de Avshalom,13 em Jerusalém, poderá ver algumas das grandes pedras que um dia escoraram aquele tronco maravilhoso.

 

  1. A Morte de Aarão e Moisés

Ao chegarem às fronteiras de Israel, na terra dos seus antepassados, os israelitas acamparam no país, próximos ao Wady Musa.14 Em um final de tarde, logo após terem chegado, Aarão mostrou a Moisés um local em uma encosta distante que parecia muito verde e belo à luz do entardecer, e expressou seu desejo de visitá-lo. Moisés então prometeu que viajariam até lá ao amanhecer. Assim, na manhã seguinte os dois irmãos, acompanhados dos respectivos filhos, partiram em uma expedição ao local. Ao alcançarem aquela terra, ficaram felizes em deparar com uma caverna onde encontraram abrigo do sol escaldante. Quando entraram, surpreenderam-se em ver uma bela cama com uma inscrição que dizia: “Esta cama está reservada ao uso daquele cuja estatura é compatível e consiga se acomodar sem sobras ou apertos”. Cada um dos integrantes da expedição tentou deitar-se sobre ela; todavia não foram bem-sucedidos; Aarão, quando nela se deitou, coube exato na cama. Enquanto ainda estava deitado, um estranho entrou na caverna e, após cumprimentar respeitosamente cada um dos presentes, apresentou-se como Azrael, o Anjo da Morte, e decretou que havia sido enviado por Alá para receber a alma de Aarão. O venerável Sumo Sacerdote, embora acatasse a vontade do Todo-Poderoso, chorou muito ao ter que abandonar seu irmão, filhos e sobrinhos. Entregou sua família aos cuidados de Moisés e pediu que ele os abençoasse. Então Azrael pediu que todos deixassem a caverna por um tempo. Quando permitiu que retornassem, o Sumo Sacerdote já estava morto sobre a cama. Os demais levaram o corpo, lavaram-no e o prepararam para o enterro. Após realizarem as orações apropriadas para a ocasião, trouxeram-no de volta para a caverna e o deitaram sobre a cama. Em seguida, após fecharem cuidadosamente o tampo da sepultura, retornaram tristemente para o acampamento e contaram ao povo que Aarão estava morto. Ao ouvirem aquelas palavras, os filhos de Israel, que amavam o Sumo Sacerdote, acusaram Moisés de ter assassinado o irmão. A fim de eximir o Seu servo desta acusação, Alá fez com que os anjos carregassem a cama com o corpo de Aarão pelos ares e pairassem sobre o acampamento, à vista de todo o povo de Israel. Ao verem aquilo, todos proclamaram que Alá levara a alma de Aarão e que Moisés era inocente.

Sobre a morte do grande Legislador há duas versões diferentes. A primeira, muito comum entre os judeus, relata brevemente como Deus, após informar a Moisés que a hora da sua partida chegara, permitiu-lhe passar seus últimos dias exortando o povo de Israel a viver em temor ao Eterno e a cumprir os Seus mandamentos. Então, ao anunciar solenemente Josué como seu sucessor e entregar-lhe o governo, Moisés morreu enquanto estudava a Lei, que é a Torá.

A outra versão, mais comum entre os muçulmanos, é a seguinte:

Assim como ocorrera a Abrahão, Moisés recebera a promessa de que não morreria até que ele próprio se deitasse no túmulo por livre e espontânea vontade.

Sentindo-se seguro com esta promessa, o Profeta simplesmente se recusou a morrer quando o Anjo da Morte informou que sua hora chegara. O Anjo ficou tão bravo, que retornou ao Criador e se queixou da conduta de Moisés. Então foi enviado novamente e fez promessas sedutoras e muito atraentes: que o seu túmulo seria visitado todos os anos por peregrinações com milhares de muçulmanos e que as próprias pedras ao redor seriam utilizadas como combustível para acender lamparinas em sua memória. Azrael também lembrou Moisés de todos os favores que recebera de Alá ao longo da sua vida e predisse as grandes honras que o aguardavam no Paraíso. Tudo em vão. O Profeta se fez de surdo para cada um dos argumentos. Finalmente, muito incomodado com a aterrorizante persistência do anjo, disse-lhe para partir dali, abandonou o acampamento e vagou por entre as encostas em direção ao oeste do Mar Morto. Lá passou pelo pastor a quem confiara o seu próprio rebanho — Jetro, seu sogro — quando fora enviado à missão de retirar o povo de Israel do Egito. Os dois começaram a conversar e o homem, não escondendo a sua surpresa em ver o Legislador, perguntou-lhe a razão pela qual havia se afastado da sua gente. Quando Moisés lhe contou, o pastor, para sua decepção, tomou partido de Azrael, sugerindo que o Profeta deveria perceber que estaria simplesmente trocando os fardos, dificuldades e tristezas da sua vida pelas alegrias infindáveis oferecidas pela mão direita de Alá, e que deveria agradecer com alegria pelo anúncio da sua partida iminente. “Eu também temo demasiado a morte”, continuou o sogro, “mas é a natureza das coisas para uma pessoa como eu, um pobre pecador. Quanto a você, que tem um conceito tão elevado para Alá, deveria estar alegre com esta perspectiva”.

Ao ser repreendido desta maneira, Moisés ficou contrariado e falou: “Bom, então como você mesmo disse que teme a morte, que você não morra jamais!”. “Amem”, respondeu Jetro à prece do Profeta, mal sabendo que se tratava de uma maldição.

Quando Jetro completou os dias normais da sua vida, caiu desmaiado. Seus amigos, imaginando que estava morto, enterraram-no em um lugar onde até hoje seu túmulo pode ser encontrado, não muito longe do de Moisés. No entanto, assim como o Profeta desejara, Jetro não morreu, mas está vivo e vagando por aí, montado em um cabrito montês. Às vezes é visto entre beduínos e caçadores de bodes selvagens na região próxima ao Mar Morto e nos vales a oeste do vale do rio Jordão, bem ao norte do Mar da Galiléia, que fica próximo à cidade de Tiberíades. Alguns confundem o pastor com El Khudr, de quem se diz que teria encontrado a Fonte da Juventude (do qual falaremos em outro conto). Ainda teria sido visto lançando-se de um despenhadeiro, tentando desesperadamente cometer suicídio; tudo em vão. As pessoas que cruzavam seu caminho o descreviam como um homem velho e muito alto, com longos cabelos brancos, barba cor de neve e um nariz enorme. Ele sempre foge quando tentam se aproximar dele.

Voltemos a Moisés. Ao deixar o pastor, o Profeta seguiu adiante pelas encostas pedregosas até chegar inesperadamente a um grupo de mineiros que escavavam uma câmara na rocha. Os homens cumprimentaram-no e Moisés perguntou o que faziam. Eles contaram que o rei daquele país tinha um tesouro muito precioso e desejava escondê-lo cuidadosamente dos olhos das pessoas. Por isso lhes ordenara cavar uma câmara na rocha naquele ponto remoto do deserto. Era meio-dia e o calor era muito forte. Sentindo-se cansado e como não houvesse sombra em lugar algum, o Legislador pediu permissão para entrar na caverna e descansar; permissão cortesmente concedida. Exausto, o Profeta não se lembrara de que havia pedido para se deitar dentro da sua própria sepultura. Assim que se recostou confortavelmente, o chefe do grupo dos mineiros, que era ninguém menos do que o Anjo da Morte disfarçado, ofereceu-lhe uma maçã. Moisés cheirou a fruta e deu uma mordida, expirando na mesma hora. Então os rituais fúnebres foram realizados pelos supostos trabalhadores, que eram, na verdade, anjos enviados especialmente para esse propósito.

 

  1. David e Salomão

David era um homem que cultivava uma religiosidade e dedicação únicas no cumprimento de suas obrigações com Deus e com seus semelhantes. Ele costumava dividir o seu tempo em três partes: devotava um dia para suas orações ao Eterno e ao estudo da Torá, um dia para questões de Estado e um dia para as obrigações domésticas e o trabalho — sim, porque David trabalhava como qualquer pessoa comum para sustentar sua família. E por que um rei deveria trabalhar? Prestem atenção e acompanhem:

Depois que assumiu o trono, David vivia ansioso para saber se a sua gente estava satisfeita com o seu governo. Como sabia que as informações fornecidas por seus mensageiros não eram confiáveis, pois buscavam poupar-lhe de qualquer dissabor, resolveu descobrir por contra própria e, disfarçado, passou a ouvir o que diziam a respeito da sua administração.

Em certa ocasião, foi informado por um anjo em forma de gente que a grande falha do seu governo era viver à custa do tesouro público em vez de trabalhar com as próprias mãos pelo pão de cada dia. David ficou muito incomodado e pediu que Deus lhe indicasse algum tipo de trabalho do qual ele e sua família pudessem viver sem onerar a nação. Então o Anjo Gabriel foi enviado para ensinar ao rei a arte de confeccionar armaduras. Daí em diante, durante suas horas de lazer o Rei David sempre podia ser encontrado trabalhando em sua oficina. Ele recebia uma profusão de pedidos, pois a armadura que confeccionava era à prova de todas as armas existentes na época. O preço médio de cada armadura completa era alto, seis mil dinares, e o rei era capaz de confeccionar uma por dia. Um terço de toda receita obtida era destinado à manutenção da sua família, um terço doado para as pessoas carentes e o que restava era destinado à compra de material de construção para o Templo.

Seu filho Salomão também tinha um negócio: ele conhecia a arte de trabalhar pedras. Em suas mãos ganhavam formas as mais variadas. No Domo da Rocha, em Jerusalém, alguns curiosos eixos de mármore, torcidos como se fossem cordas, são apresentados aos visitantes como de sua autoria.

 

Certa vez David fez uma peregrinação aos túmulos dos Patriarcas em Hebron e, ao retornar a Jerusalém, expressou em uma longa oração o desejo de ser tão abençoado por Deus quanto eles haviam sido. O rei chegou a afirmar que tinha certeza de que, caso fosse exposto a qualquer tipo de tentação, seria capaz de evitar cada uma delas; dizia isso com a perspectiva de receber uma recompensa equivalente à sua conduta. Em resposta, Deus lhe disse que o seu pedido seria atendido, porém, ciente de que a raça de Adão havia degenerado, o Todo-Misericordioso acrescentaria ao pedido uma condição que os Patriarcas haviam sido incapazes de cumprir: que Ele deveria ser informado do exato momento em que David seria julgado por suas ações.

Quando este dia chegou, David, inteiramente confiante, subiu no topo de uma torre que até hoje leva o seu nome15 e ordenou que não fosse perturbado em hipótese alguma. Ele passou o tempo lendo e meditando. Muitos pombos de pedra passaram a sobrevoar a torre e o rei teve a suas orações perturbadas pelo bater das asas. Ao olhar pela janela, viu o pombo mais maravilhoso jamais visto: tinha uma plumagem que reluzia um arco-íris de cores; suas penas eram de ouro e cravejadas de pedras preciosas. O rei então jogou algumas migalhas de pão no chão; o pássaro se aproximou e veio bicá-las aos seus pés, mas fugia sempre que estava prestes a ser capturado. Por fim, voou até a janela e lá pousou. David tentou capturá-lo novamente, mas a criatura escapou e então, enquanto admirava o vôo do pássaro, o rei viu aquilo que o levaria aos seus grandes crimes cometidos contra Urias.

Dois anjos foram enviados em seguida, disfarçados de homens, para reprovar a conduta do monarca. Quando alcançaram o portão da Torre de David, os guardas os impediram de entrar; contudo, para assombro deles, os homens escalaram o muro da fortaleza com extrema facilidade e entraram na câmara real. Surpreso com a chegada não anunciada e sem ter como escapar, David exigiu saber o que queriam dele e ficou estupefato quando eles relataram a parábola da ovelhinha.16

Deus enviou Natan até David, que lhe contou:

“Havia numa cidade dois homens, um rico e outro pobre. O rico tinha ovelhas e gado em grande número; mas o pobre não tinha coisa alguma a não ser uma ovelhinha que comprara e criara. A criaturinha crescera em sua casa, junto com seus filhos. Comia do seu pão e do seu copo bebia; dormia nos seus braços e era tratada como uma filha. Quando um viajante chegou à casa do homem rico, este não quis sacrificar nem uma das suas ovelhas ou do seu gado para lhe dar de comer; em vez disso, tomou a ovelhinha do homem pobre e a preparou para o seu convidado”. David ficou irado com a conduta do homem rico, e disse a Natan:

“Tão certo como Deus é vivo, o homem que fez isso deve morrer”. Natan respondeu:

“David, você é este homem, porque foi você, que é um rei e tudo tem, que tomou a mulher de Urias após matá-lo ao fio da espada”. Em seguida os anjos denunciaram a sua iniqüidade e, com a missão cumprida, partiram deixando o rei com tal remorso por ter fracassado em resistir à tentação, conforme havia prometido, que chorava dia e noite.

As montanhas e os vales, as árvores e as pedras, os animais selvagens na terra e as aves que se habituaram às canções de louvor a Deus agora se solidarizavam com o rei em suas lamentações. Era um choro tão sentido e as lágrimas de David fluíam tão copiosamente, que preencheram os reservatórios de água de Birket el Sultan17 e de Birket Hamam el Batrak.18 Por último, um anjo foi enviado para informar ao pecador arrependido que, em consideração à sua penitência, Deus perdoava o pecado em relação a Ele, porém para obter o perdão pelo crime cometido contra seu semelhante o rei deveria pedir desculpas diretamente à pessoa prejudicada. David então empreendeu uma peregrinação até o túmulo de Urias. Enquanto confessava seus pecados, veio uma voz de dentro da tumba que disse:

“Senhor meu rei, como o seu crime me garantiu o Paraíso, eu lhe perdôo de todo coração”.

“Mas Urias”, disse David, “eu fiz o que fiz para ficar com a sua esposa!”. Como Urias não respondia à sua aflição, já desesperado, David rezou a Deus para que Urias o perdoasse. Então a voz veio da tumba mais uma vez e disse: “Eu lhe perdôo, Rei David, porque em compensação pela esposa que me foi retirada na terra, Alá me concedeu mil mulheres no Paraíso”.

 

No muro sul do Domo da Rocha — em geral chamado equivocadamente de Mesquita de Ornar — do lado direito, bem junto ao portão externo, há duas pequenas placas de mármore. Foram cortadas do mesmo bloco, e por isso apresentam os mesmos veios. Colocadas lado a lado, as linhas dos veios formam uma figura que se parece com dois pássaros empoleirados nos lados opostos de um mesmo vaso. A imagem está em uma pedra de mármore escuro, e sobre ela conta-se o seguinte:

Certo dia, o grande Rei Salomão estava sentado próximo à janela do seu palácio ouvindo palavras de amor trocadas entre um casal de pombos que estavam no telhado. O pombo se gabava: “Quem é este Rei Salomão? E por que se orgulha tanto das suas construções? Porque eu, se quiser, posso bicá-las e derrubá-las em um minuto!”.

Ao ouvir isso, Salomão inclinou-se sobre a janela, chamou o pássaro fanfarrão e lhe pediu para explicar os motivos pelos quais mentia daquele jeito. “Majestade”, foi a estridente resposta, “perdoe-me, pois eu estava me exibindo para uma fêmea. O rei sabe que ninguém deixa de se vangloriar nessas circunstâncias”. O monarca soltou uma gostosa gargalhada e ordenou que o pássaro voasse dali, advertindo-o para que jamais falasse naquele tom novamente. Após uma profunda reverência, o pombo voou para reencontrar sua parceira.

Uma vez juntos novamente, a pomba perguntou ao pombo por que o rei o havia chamado. “Ah,” respondeu cora desdém, “ele estava ouvindo o que eu lhe contava e me pediu para não repetir mais isso”. Salomão ficou tão enfurecido com a irreprimível vaidade do pombo tagarela que transformou o casal em pedra, como sinal de advertência aos homens para que não fiquem se vangloriando, e às mulheres para que não os deixem mentir.

 

Salomão conhecia a língua das plantas. Sempre que se deparava com uma planta nova ele perguntava o seu nome, o uso, o solo e o modo de cultivo mais apropriado para o seu crescimento e suas propriedades; e a planta respondia com prazer. Foi Salomão que construiu o primeiro jardim botânico do mundo.

Certo dia o rei encontrou dentro dos muros do Templo uma planta que lhe era desconhecida e perguntou imediatamente o seu nome. “Sou El Karrub, a Caroba”,19 foi a resposta. Bem, mas El Karrub também significa “o destruidor”. “Qual uso podemos fazer de ti?”, prosseguiu o rei. “Destruir as suas obras”, respondeu a planta. Ao ouvir isso, o Rei Salomão exclamou com tristeza: “O quê? Deus criou a causa da destruição das minhas obras durante a minha vida?”

Então pediu a Deus para que, onde quer que viesse a morrer, fosse escondido dos jans (espíritos maus) até que os homens soubessem do ocorrido. A razão para este pedido era o temor de que os jans, se soubessem da sua morte antes dos seres humanos, pudessem aproveitar a oportunidade para ensinar crueldades e maldades às pessoas. Após completar suas orações, o rei plantou a caroba junto a um dos muros do seu jardim. A fim de evitar ao máximo qualquer dano que esta pudesse causar, acompanhou o seu crescimento todos os dias até que ela se tornou uma árvore forte e muito troncuda. Ele então serrou os galhos do tronco e com eles fez diversos cajados, que usava em suas caminhadas para monitorar as ações dos espíritos maus, que eram seus escravos, a fim de evitar que exercessem seus poderes contra as pessoas.

Entretanto, muitos anos antes, Belkis, a Rainha de Sabá, veio até Salomão com perguntas muito difíceis de responder. Uma delas era: “Como passar um fio de seda por uma conta cuja perfuração é sinuosa como o corpo de uma serpente em movimento?” Esta complicada tarefa foi realizada, a pedido do rei, por uma pequenina minhoca branca (alguns dizem que era a larva de um inseto) que, ao prender uma das pontas do fio de seda entre os dentes, rastejou por uma entrada e saiu pela outra. Para recompensar aquela criatura minúscula por seu trabalho, o rei atendeu ao seu pedido e permitiu, desde então, que essas minhoquinhas se alojassem dentro das cascas dos troncos e em outras partes das árvores e lá obtivessem o seu alimento. Salomão só não sabia que a criaturinha escolhera a casca da jovem El Karrub, localizada dentro dos muros do Templo, e instalou-se bem no meio do seu tronco.

Por fim, chegou a hora da morte para Salomão. Ocorreu de estar sentado, como era de costume, monitorando o crescimento de El Karrub, quando chegou Azrael, o Anjo da Morte, e levou sua alma sem que os jans soubessem. Isto fez com que estes espíritos do mal trabalhassem por 40 anos inteiros sem saber que o rei estava morto, porque o seu corpo permaneceu exatamente no lugar onde costumava ficar quando estava vivo. Contudo, no final a minhoca acabou perfurando o tronco da árvore, que se partiu em dois e atingiu o corpo de Salomão, fazendo com que este rolasse pelo chão. Foi assim que os espíritos do mal souberam que o rei estava morto. Deste dia em diante, todo aquele que viaja pelo Leste se depara com uma enorme pedra de corte inacabado nas pedreiras de Baalbec, e outras no mesmo estado em diferentes partes do país. Os moradores da região contam que elas fazem parte das muitas tarefas deixadas inacabadas pelos jans depois que souberam que o Rei Salomão estava morto.

 

  1. El Khudr

Uma das personalidades santas mais freqüentemente invocadas na Terra Santa é o misterioso El Khudr, o Perene. Costuma-se dizer que ele foi bem-sucedido em descobrir a Fonte da Juventude, que está situada em algum lugar próximo à confluência entre os dois mares: o Mediterrâneo e o Mar Vermelho. A fonte foi buscada em vão por outros aventureiros, incluindo o famoso Dhul’karneyn, Alexandre dos Dois Cornos que, juntamente com seus companheiros, alcançou as margens do rio que fluía da fonte. Nas suas águas lavaram o peixe salgado que trouxeram com eles como provisão; o peixe retornou à vida e lhes escapou, frustrando a alegria que haviam obtido com a sua proeza. Eles seguiram caminho até alcançarem o local em que o sol se põe num lago de lama negra; lá o seu líder construiu dezoito cidades e a todas chamou de Alexandria em sua própria homenagem. Todavia, nem ele nem seus companheiros se tornaram imortais, porque falharam em perceber e utilizar a única oportunidade de uma vida inteira.

El Khudr,20 mais afortunado e mais observador, não apenas encontrou a fonte, mas bebeu das suas águas; portanto, nunca morre, e reaparece de tempos em tempos como uma espécie de avatar para se confrontar com as mais monstruosas formas de mal e proteger os justos. Ele é identificado com Pinchas, filho de Eleazar, com o Profeta Elias e com São Jorge. Quando vêem a vida dos seus filhos ameaçada, as mães judias o invocam como Eliahu Hanaví (o Profeta Elias), as cristãs como Mar Jiryis e as muçulmanas como El Khudr. Os devotos das três religiões visitam seus numerosos santuários em diferentes partes da terra.

Embora se acredite que as orações a ele dirigidas em todos esses lugares sejam eficazes, às sextas-feiras o próprio Al Khudr reza para Alá sucessivamente em diferentes santuários: uma sexta-feira em Jerusalém, a seguinte em Medina, e depois novamente em Jerusalém, El Kuba21 e Et Tur.22 El Khudr faz apenas duas refeições por semana, sacia a sua sede alternadamente entre os poços de Zemzem, em Meca, e de Salomão, em Jerusalém; e se banha na Piscina de Siloam.

Um dos santuários dedicados a El Khudr está situado uma milha ao norte das Piscinas de Salomão, em Belém, e é uma espécie de casa mal-assombrada. Desordeiros de todas as três religiões eram levados para lá e trancafiados na corte da capela, onde eram mantidos a pão e água; o sacerdote grego que chefiava o estabelecimento lia para eles os Evangelhos ou os açoitava, conforme a necessidade de cada caso.

A lenda seguinte a respeito desse santuário foi relatada por um nativo da cidade vizinha de Beit Jala.23

Há muito tempo, nos dias dos antepassados dos nossos bisavôs, o sacerdote grego estava administrando a Santa Comunhão na igreja de El Khudr. Como vocês sabem, os gregos esmigalhavam o pão consagrado em uma taça de vinho e ingeriam os dois elementos juntos com uma colher. Se o celebrante estava embriagado ou não, eu não sei dizer, mas é certo que, quando colocou a colher na boca de um fiel que se ajoelhava diante dele, de um modo ou de outro acabou derramando o conteúdo sagrado. A mistura caiu sobre os seus pés, fez um buraco no chão e deixou uma marca nas lajes. A ferida que o corpo e o sangue do Salvador fizeram no pé do sacerdote nunca cicatrizou, pelo contrário, foi a causa da sua morte.

No entanto, algum tempo depois, um homem que contraíra uma grave enfermidade visitou a mesma igreja. Desconhecendo o fato citado acima, ajoelhou-se sobre a laje que recebera uma marca daquele pão e vinho consagrados, e rezou pela sua recuperação. Para sua grande alegria e surpresa de todos os presentes, ficou imediatamente curado. A fama da sua cura trouxe à igreja de El Khudr muitos outros que estavam acometidos de males incuráveis e assim que se ajoelhavam sobre a pedra sagrada, também ficavam curados. A reputação da igreja se espalhou, chegando aos ouvidos do Sultão dos moscovitas que, com inveja por uma pedra assim tão sagrada estar numa vila tão remota, desejou-a para o seu próprio benefício e o da sua gente. Por isso, ele enviou um militar para Iafo24 portando uma carta endereçada ao Patriarca de Jerusalém. Nela estava escrito que a laje deveria ser retirada imediatamente e transportada para Iafo. Como o Sultão dos moscovitas era um bom amigo, benfeitor e protetor da igreja, o Patriarca não hesitou em obedecer e enviou a pedra para a cidade portuária. A laje foi colocada em um barco, que seria erguido a bordo do navio militar ao qual pertencia, mas todas as tentativas dos marujos para erguê-lo foram vãs. Neste momento o próprio El Khudr apareceu e, com sua lança, empurrou o barco de volta para a costa. Isso aconteceu tão de repente que os moscovitas se viram obrigados a desistir do seu propósito. Quando o episódio foi relatado ao Patriarca, este reconheceu o seu erro, fazendo com que a pedra retornasse ao seu lugar e fosse reverentemente depositada na igreja de El Khudr, onde pode ser vista até o dia de hoje.

 

Há muitas igrejas e conventos dedicados a São Jorge. Dentro dos muros de Jerusalém há pelo menos duas igrejas gregas e um convento copta com este nome; defronte do Portão de Iafo, no lado ocidental do tradicional Vale de Gihon, oposto à Torre de David, há outro convento. Os muçulmanos acreditam que, no Ultimo Dia, Cristo matará o Anti-Cristo; alguns deles crêem que esse convento marca o local exato onde isto acontecerá.

No declive norte do Monte Carmel há outro célebre centro de culto a El Khudr, freqüentemente visitado por judeus, cristãos, muçulmanos e drusos, que ali vão em busca de cura para o corpo e para a alma. Conta-se que muitas curas notáveis foram realizadas naquele lugar. O exemplo seguinte me foi contado pelo já falecido Dr. Chaplin, que chefiou por muitos anos a Missão Médica da LJS25 em Jerusalém. Certa vez o médico recebeu uma jovem judia que sofria de crises nervosas consideradas curáveis, mas somente mediante longo tratamento. Os amigos da jovem a princípio concordaram em deixá-la no hospital, mas posteriormente a retiraram de lá, apesar dos protestos do médico. Eles disseram estar certos de que ela não estava realmente doente, mas apenas sob a influência de um dibuk — um demônio parasita — e pretendiam tratá-la de acordo com isso.

Alguns meses depois o médico encontrou a jovem na rua, e descobriu, surpreso, que ela estava novamente bem. Ao lhe perguntar como havia sido curada, ela lhe contou que seus amigos a haviam levado para o Monte Carmel e a trancaram por uma noite na caverna de Elias. Ali permaneceu em silêncio e adormeceu, mas foi despertada à meia-noite por uma luz brilhante. Então ela viu um homem velho todo vestido de branco, que se aproximou lentamente e lhe disse: “Não tema, minha filha”. Ele repousou gentilmente a mão sobre a cabeça da jovem e desapareceu. Quando ela acordou na manhã seguinte, estava perfeitamente bem.

Entre os judeus, o Profeta Elias é mais do que apenas o guardião de Israel; ele também é um atendente invisível a cada circuncisão. Por isso, um assento especial, conhecido como Kissê Eliahu, é preparado para ele nestas ocasiões. Da mesma maneira lhe são disponibilizadas uma cadeira e uma taça de vinho durante as celebrações do Pessach, a Páscoa judaica. Entre os cristãos armênios de Jerusalém há uma crença de que se durante uma refeição cair no chão, nem que seja somente uma fatia de pão, ou ela parar em uma das extremidades da mesa, este é um sinal de que Mar Jiryis está lá presente, invisível, como um dos convidados, e concordou em abençoar os alimentos.

A história de São Jorge e o Dragão é, obviamente, muito conhecida na Terra Santa. O túmulo do santo pode ser visto na cripta da igreja dos velhos Cruzados em Lydda; em Beirute está o lugar onde ele lançou o monstro morto, como também o lugar onde lavou as mãos quando a sua missão estava encerrada. O relato seguinte é, resumidamente, a lenda contada pelos cristãos.

Houve certa vez uma grande cidade que dependia do suprimento de água de uma fonte externa aos seus muros. Um enorme dragão, possuído pelo próprio Satã e movido por ele, tomou posse da fonte e se recusava a liberar água, a menos que as pessoas que ali viessem lhe entregassem um jovem, moça ou rapaz, para ele devorar. O povo muitas vezes tentara destruir o monstro, mas, embora os valentes da cidade destemidamente o atacassem, a respiração do dragão era tão venenosa que eles caíam mortos antes mesmo de sentirem aquele odor fatal.

Os habitantes, aterrorizados, foram então obrigados a sacrificar os seus jovens ou a morrer de sede; isto ocorreu até que todos os jovens foram entregues ao monstro, exceto a filha do rei. A angústia dos súditos, causada pela necessidade de água, era tanta que a família real não viu outra alternativa a não ser entregá-la. Diante das lágrimas da população, a moça foi enviada até a fonte, onde o dragão já a esperava. Mas assim que o monstro venenoso se preparava para saltar sobre ela, São Jorge apareceu com uma armadura dourada, montado em um corcel branco e com uma lança na mão. Ele rapidamente montou no dragão, golpeou-o entre os olhos e o fez cair morto. O rei, extremamente grato pelo socorro inesperado, entregou a São Jorge sua filha e metade do seu reino.

Conforme falamos, Elias geralmente aparece nas lendas judaicas como o Protetor de Israel, sempre pronto a orientar, confortar e curar. Algumas vezes ele cura uma complicação tão simples quanto uma dor de dente, outras vezes chega até a prestar falso testemunho com o intuito de salvar os rabinos de perigos e dificuldades.

Os habitantes judeus da Terra Santa acreditam piamente na intervenção do Profeta Elias em épocas de dificuldade. Assim, nas sinagogas sefaradis (judias-espanholas) de Jerusalém há uma pequena câmara subterrânea chamada de “Sinagoga do Profeta Elias”. Vejamos a seguinte história.

Em um Shabat, há quatro séculos, quando poucos judeus viviam na cidade, faltava apenas um homem para formar um minián, o quorum mínimo de dez judeus, necessário para o serviço religioso de uma congregação. Por isso foi anunciado que o tradicional serviço tinha sido cancelado e os presentes deveriam partir para outras localidades. Neste momento surgiu um homem idoso com a aparência de um rabino, envolto no seu talit (manto de orações) e ocupou um lugar no meio deles. Quando o serviço religioso terminou, ao deixar a sinagoga, o “Primeiro de Sion” — título concedido ao rabino-chefe da comunidade judaica de Jerusalém — olhou para o forasteiro com a intenção de lhe pedir para oferecer a refeição de Shabat, mas o homem não pôde mais ser encontrado em lugar algum. Os presentes concluíram que o misterioso visitante não poderia ter sido outro além do famoso Elias, o Tishbita.

 

A próxima história, uma versão de outra contada no Corão, é narrada pelos muçulmanos a respeito de El Khudr.

Moisés, o grande Legislador, que ficava muito perplexo e perturbado ao pensar a respeito das decisões aparentemente confusas e estranhas da Providência Divina, pediu para que Alá o iluminasse. Em resposta à sua prece, recebeu ordem para partir em determinado dia rumo a determinado local onde encontraria um servo do Todo-Misericordioso que o instruiria. Moisés fez conforme lhe fora ordenado e encontrou com um venerável dervixe26 que, para começar, o fez prometer que não faria comentários nem perguntas sobre o que veria se viajassem juntos. Moisés prometeu, e então eles partiram para a viagem.

Ao entardecer, chegaram a uma vila e foram para a casa de um xeique, um homem rico e bondoso, que lhes deu as boas vindas e ordenou que um cordeiro fosse abatido em honra deles. Quando chegou a hora de se deitarem, foram conduzidos para um grande dormitório, muito bem decorado. O tusht e o ibrik,27 que na maioria das casas são de cobre e estanho, ali eram de prata incrustada com pedras preciosas.

Muito cansado, Moisés logo adormeceu; mas antes do raiar do dia seu companheiro o acordou, dizendo que tinham muita coisa para fazer e precisavam partir imediatamente. Moisés resistiu, achando a cama confortável, e estava insatisfeito em ter que sair tão cedo, pois o seu anfitrião ainda estava dormindo e eles não poderiam partir sem agradecê-lo quando acordasse. “Lembre-se dos termos do nosso acordo”, disse duramente o dervixe, enquanto, para surpresa de Moisés, deslizava ligeiramente o tusht de prata para dentro do seu casaco. Então Moisés se levantou em silêncio e deixaram a casa.

No fim de mais um dia, pela madrugada, chegaram a uma outra vila e mais uma vez foram recepcionados por um xeique, mas este se mostrou o oposto do anfitrião da noite anterior. Para não ficar abaixo daqueles a quem considerava vagabundos, o xeique ordenou que um criado os levasse até uma caverna atrás do estábulo, onde eles poderiam dormir em um monte de tibn (palha cortada). Para a ceia, o anfitrião lhes enviou restos de pão mofado e algumas azeitonas passadas. Embora estivesse com muita fome, Moisés foi incapaz de tocar na comida, mas o seu companheiro comeu com satisfação.

Na manhã seguinte, Moisés acordou muito cedo, sentindo-se faminto e miserável. Ele acordou o seu guia e sugeriu que já era tempo de levantar e partir. Mas o dervixe falou: “Não, não devemos partir furtivamente como se fôssemos ladrões”, e voltou a dormir.

Duas horas depois, o dervixe despertou, acordou Moisés, colocou as sobras da refeição da noite anterior dentro do casaco e disse: “Agora devemos dizer adeus ao nosso anfitrião”. Na presença de Moisés e do xeique, o dervixe fez uma sóbria reverência, agradeceu a hospitalidade do anfitrião e lhe implorou para aceitar um símbolo da estima que tinham por ele. Para surpresa dos presentes, o dervixe pegou o recipiente roubado e colocou-o aos pés do anfitrião. Moisés, ciente da sua promessa, não proferiu uma palavra.

O terceiro dia de viagem aconteceu ao longo de uma região estéril. Moisés estava feliz pelos restos de comida que, se não fosse pelo dervixe, teriam sido jogados fora. A noite eles alcançaram um rio e o dervixe decidiu não tentar cruzá-lo antes da manhã seguinte, preferindo repousar em uma miserável cabana de bambu onde moravam a viúva de um barqueiro e o seu sobrinho órfão, um garoto de treze anos. A pobre mulher fez tudo o que estava ao seu alcance para que os peregrinos ficassem confortáveis, e pela manhã lhes preparou um desjejum antes da partida. Ela enviou o seu sobrinho com eles para lhes mostrar o caminho até uma frágil ponte que ficava mais adiante, rio abaixo. A viúva passou instruções ao garoto para que, antes de retornar, guiasse os seus nobres convidados em segurança. O guia foi na frente, com o dervixe atrás dele e Moisés na retaguarda. Quando chegaram ao meio da ponte, o dervixe agarrou o menino pelo pescoço, jogou-o na água e logo ele submergiu.

“Monstro, assassino!”, gritou Moisés, ao lado dele. O dervixe se voltou para o seu discípulo, e o Profeta o reconheceu como El Khudr.

“Você novamente se esqueceu dos termos do nosso acordo”, disse duramente, “e desta vez devemos partir. Tudo o que eu fiz estava predestinado pela Misericórdia Divina. Nosso primeiro anfitrião, embora fosse um homem com as melhores intenções, confiava e ostentava demais. A perda da bacia de prata lhe servirá como lição. Nosso segundo anfitrião era um avarento. Agora ele passará a ser mais hospitaleiro, na esperança de se beneficiar disso; o hábito crescerá dentro dele e gradualmente modificará sua natureza. Quanto ao menino cuja morte tanto o revoltou, ele foi para o Paraíso, mas se tivesse vivido por mais dois anos, teria assassinado sua benfeitora e, no ano seguinte, ele mataria você”.

Quando ocorreram as chuvas “prematuras” durante os meses de novembro e dezembro de 1906,28 foram oferecidas orações pela chuva em todos os lugares de culto religioso: muçulmanos, cristãos e judaicos. Naquele tempo as seguintes histórias circularam por Jerusalém.

Uma mulher que acabara de encher o seu jarro, gota a gota, em uma escassa fonte próxima a En Kerem, em Jerusalém, de repente foi abordada por um cavaleiro que carregava uma longa lança. Ele lhe ordenou que esvaziasse o jarro em uma rocha e molhasse o seu cavalo. Ela resistiu, mas acabou se rendendo a suas ameaças. Para seu horror, não era água, mas sangue que jorrava da fonte. O cavaleiro então lhe ordenou que informasse aos seus vizinhos na aldeia que, se Alá não tivesse enviado a seca, a peste e outras calamidades os teriam acometido. Após esta advertência, ele desapareceu. O cavaleiro era El Khudr.

Uma mulher muçulmana de Hebron, ao dar de beber a um velho homem estrangeiro que lhe pedira um pouco de água, recebeu a ordem de passar aos habitantes da sua cidade uma mensagem semelhante à que acabamos de contar, e a acrescentar que Alá enviaria chuvas após o Ano Novo grego. De fato, a Terra Santa experimentou um clima bastante úmido após aquela data.

 

  1. Simão o Justo29

Na parte superior do Vale de Kidron, não distante da região norte de Jerusalém, onde passa a estrada para Nablus, existe uma antiga sepultura de pedra lavrada. Dentro de uma sala cuja entrada está fechada por uma porta mais recente, pode-se ver uma inscrição em latim — antiga, propositalmente mutilada e pouco perceptível — provando que certa vez essa sepultura foi o último lugar de descanso de uma nobre senhora romana chamada Júlia Sabina, antes que fosse muito alterada e passasse a servir como sinagoga.

Os judeus de Jerusalém afirmam que esta é a tumba de Simão o Justo. Eles sempre realizam peregrinações ao local no trigésimo terceiro dia da contagem do Ómer,30 e também na Festividade de Shavuot, dezessete dias depois.

Simão II, filho de Onias, viveu durante o período da história judaica entre a época de Zerubavel e o tempo dos macabeus. O modo como é conhecido, “Simão o Justo”, demonstra o respeito que ele desfrutava dos seus contemporâneos. Ele era mais alto, de corpo e em sabedoria, do que os demais sumo-sacerdotes do período, e fechou honrosamente a longa linhagem dos maiores sábios antigos de Israel.

Ben Sira descreve a sua obra nos reparos e fortificações da cidade e do Templo, e fala com entusiástica reverência da sua aparência majestática, quando Simão saía de dentro do véu que escondia o lugar Santo dos Santos, em meio às pessoas que lotavam as cortes do Templo na grande celebração anual do Yom Kipur, o Dia da Expiação. Era como uma estrela da manhã brilhando após cruzar uma nuvem, ou como a lua cheia. Simão era como os raios do sol refletidos nos pináculos dourados da Casa de Deus, ou o arco-íris quando brilha em meio à escuridão de uma tempestade. Era como rosas, lírios à beira do córrego, a oliveira carregada de frutos, um frondoso abeto,31 a fragrância do incenso, a beleza de um vaso de ouro cravejado de pedras preciosas. Cada movimento do sumo-sacerdote é descrito com ardente admiração. As vestimentas sacerdotais, belas e gloriosas, pareciam ainda mais deslumbrantes pela maneira como as usava. Simão era fisicamente mais alto do que todos os demais sacerdotes, como um cedro em meio a um bosque de palmeiras; e todos os seus atos cerimoniais — o despejo das libações, o toque retumbante das trombetas de prata, o clamor da multidão, a harmonia evocada pela banda de músicos e cantores levitas e, acima de tudo, a bênção final — jamais foram esquecidos por quem os testemunhou.

No entanto, não era apenas a sua beleza física que despertava o amor daqueles que o conheceram. São muitos os relatos de sua influência sobre as pessoas e do poder das suas orações junto a Deus. Segundo uma tradição, ele foi o último sobrevivente da “Grande Assembléia”, que canonizou a Bíblia hebraica. Outra tradição conta que foi ele quem encontrou Alexandre o Grande quando o conquistador (conhecido no folclore árabe como El Khadr, o segundo Iskander Dhul’karnein) veio para Jerusalém no ano 330 da nossa era. Uma terceira tradição afirma que Simão o Justo tentou dissuadir Ptolomeu Filopator de entrar no Templo Sagrado em Jerusalém. Toda a cidade entrou em pânico quando o monarca anunciou a sua resolução. As grandes multidões soltaram um grito de dor tão agudo e penetrante, que era como se os próprios muros e fundações estivessem participando deste clamor. De repente, no meio do tumulto ouviu-se a oração de Simão invocando o Deus Onisciente. E então, como uma cana quebrada pelo vento, o rei egípcio caiu ao chão e foi carregado por seus guardas.

Também conta-se que, até os dias de Simão o Justo, era sempre a mão direita do sumo-sacerdote que definia o local do sacrifício do bode expiatório; mas depois dele, a direita e a esquerda revezavam-se. Até a sua época, a lã escarlate envolta ao redor dos chifres do animal sacrificado tornava-se branca como símbolo de que a expiação fora aceita e todo pecado perdoado; mas depois dos seus dias esta mudança de cores ficou incerta. A Menorá — candelabro de ouro que existia no Templo Sagrado —, que permanecia acesa intermitentemente, se apagou depois, muitas vezes. Nos seus dias, dois galhos ao dia eram suficientes para manter viva a chama no grande altar de oferendas queimadas diante do Templo; depois, pilhas de madeira não bastavam.

No último ano da sua vida conta-se que Simão o Justo previu o dia da própria morte. Ele teve o seguinte presságio: em todas as ocasiões anteriores, no solene dia anual de jejum, ele fora acompanhado à entrada para o local Santo dos Santos por um anjo na forma de um ancião vestido de branco dos pés à cabeça. Nesse ano o seu misterioso companheiro estava vestido de preto e o acompanhou o tempo inteiro, quando entrou e quando saiu do local sagrado.

Seus ensinamentos podem ser resumidos nesta sua declaração: “O universo é sustentado por três coisas: a Torá, o serviço religioso e os atos de piedade”.

Simão o Justo ficava extremamente desgostoso ao receber a dedicação ascética dos nazarenos. No entanto, certa vez abriu uma exceção. Um jovem alto e de esplêndida aparência, com belos olhos e cabelos longos caindo em cachos sobre os ombros, um dia chegou vindo de um lugar do sul da Terra Santa e apresentou-se diante do sumo-sacerdote, ansioso para fazer os seus votos. “Por quê?”, perguntou Simão, “Você cortaria este belo cabelo?”. O jovem respondeu: “Eu estava pastoreando as ovelhas do meu pai quando, certo dia, enquanto puxava água de um poço, observei, envaidecido, o reflexo da minha própria imagem na água. Por conseguinte, fui tentado a seguir uma inclinação pecadora e a me desviar. Então disse a mim mesmo: ‘Seu perverso! Como você pode se orgulhar daquilo que não lhe pertence, pois teu corpo é dos vermes e do pó. Ó Deus, eu cortarei estes cachos para a glória do Senhor”. Depois disso, Simão abraçou o jovem, exclamando:

“Ah, se tivessem mais nazarenos como você em Israel!”.

Diante da memória venerável de sua vida, não surpreende que, nos tempos modernos, os judeus de Jerusalém descrevam os poderes milagrosos das intervenções desse homem santo e ofereçam votos e orações no seu santuário, conforme é relatado na história seguinte.

Há duzentos anos, quando o rabino Galanti era o “Primeiro em Sion”, houve um ano de grande angústia em razão da falta de chuvas. Toda a população da cidade jejuava e orava. Os cristãos realizavam serviços religiosos e recitavam salmos em suas igrejas, os muçulmanos em suas mesquitas, e os judeus no Muro das Lamentações; mas em vão. Crianças — muçulmanas, cristãs e judias — passavam horas sem comer nem beber. O sofrimento e o choro destas, acreditava-se, poderia trazer a tão esperada bênção, porque Deus ama as orações das crianças. Os estudantes das escolas muçulmanas marchavam em procissão por toda a cidade, entoando orações e passagens do Corão; mas o céu ainda estava escaldante, e o Todo-Misericordioso parecia ter se esquecido da Sua Terra e da Sua Cidade escolhida.

Essa terrível seca fez despertar o preconceito popular contra os judeus. Um xeique muçulmano contou para o Pashá que Alá estava guardando a chuva porque eles haviam permitido que os judeus vivessem em Jerusalém. Ouvindo isto, o Pashá enviou uma mensagem para o rabino Galanti advertindo que os judeus seriam expulsos, a menos que as chuvas caíssem dentro de três dias.

Pode-se imaginar a consternação causada por essa mensagem. Os judeus passaram os dois dias seguintes em oração constante. Antes do amanhecer do terceiro dia, Galanti ordenou que a sua gente vestisse roupas próprias para dias de chuva e que o acompanhassem até o túmulo de Simão o Justo, a fim de agradecer pelas fortes chuvas que cairiam antes do anoitecer.

Os judeus acreditavam que o seu rabino enlouquecera, mas não ousaram desobedecer ao Keter Rosh Israel, “a Coroa da Cabeça de Israel”. Assim que a procissão cruzou o Portão de Damasco, os guardas muçulmanos zombaram deles por vestirem roupas de chuva naquele dia tão intoleravelmente quente, de um céu escaldante, mas os judeus continuaram marchando, apesar do ridículo.

Ao chegarem ao santuário de Simão o Justo, a fé do seu rabino os contaminou. Eles se uniram, com fervor, em agradecimento, quando de repente o céu ficou encoberto e as chuvas desceram torrencialmente. A tempestade foi tão intensa que, apesar das suas roupas de chuva, eles ficaram totalmente encharcados.

Ao retornarem, os soldados no portão, que haviam zombado deles caíram aos pés de Galanti pedindo perdão. O Pashá também estava muito impressionado, e desde então, por muito tempo os judeus foram respeitados pela habitantes de Jerusalém.

 

  1. Bab el Khalil, O Portão de Iafo em Jerusalém

Na tradição islâmica, Bab el Khalil denomina-se o Portão de Lydda, onde Jesus filho de Maria destruirá o Anti-Cristo. Alguns eruditos, como Abulfeda32 e Kemal-ed-din,33 afirmam que o evento ocorrerá próximo à entrada da cidade de Lydda, mais exatamente junto a um poço dentro de um pequeno edifício abaulado situado a meio caminho entre Lydda e Ramle, conhecido como Bir Zeybak (Poço de Mercúrio), onde o Anti-Cristo será morto.

Bem junto ao setor interno do portão, à esquerda, estão dois monumentos fúnebres protegidos por grades de ferro. Jarros e tinas velhas, colocados atrás deles ou empilhados nos cantos da sala ao seu redor, mostram que ali estão enterrados dois homens santos. Como as inscrições existentes estão muito apagadas, ninguém sabe exatamente quem foram eles. Alguns imaginam que as tumbas são de dois irmãos arquitetos, sob cuja supervisão os muros da atual cidade foram construídos, no início do século XVI. Outros dizem que os monumentos marcam as sepulturas dos mujahedin ou guerreiros do Islã, nos dias de Nabucodonosor34 ou do Sultão Saladino; outra história diz que o homem santo enterrado ali era um homônimo e contemporâneo de Saladino, que controlava o portão quando os cristãos sitiaram a cidade.35 Saladino perdeu a batalha, mas a sua cabeça, mesmo decepada, agarrou a sua cimitarra entre os dentes e afastou os cristãos por sete dias e sete noites.

Com relação a Nabucodonosor, conta-se que muito antes da destruição de Jerusalém e do exílio dos judeus, o profeta Jeremias o conheceu como um rapaz faminto e aflito, com a cabeça cheia de sarna e coberto por vermes. Após prever o grande futuro que o aguardava, o profeta obteve dele uma carta de salvaguarda, para si e para os amigos próximos, quando os desastres previstos pelo profeta atingissem o Templo Sagrado. Quando, muitos anos depois, Jeremias soube que os babilônios estavam de fato a caminho de Jerusalém, viajou até Ramle, entregou o documento a Nabucodonosor e cobrou a proteção prometida. Esta lhe foi concedida, mas quando o profeta pediu para que a cidade e o Templo também fossem poupados, o invasor afirmou que já havia recebido a ordem de Alá para destruí-los.

Como prova da sua declaração, o imperador ordenou que Jeremias assistisse ao vôo de três setas que ele atiraria ao acaso. A primeira foi atirada para o oeste, mas se virou para a direção oposta e atingiu o topo do Templo de Jerusalém. A segunda seta, que voava em direção ao norte, virou-se do mesmo modo, e assim ocorreu também com a terceira, que fora atirada para o sul. A cidade e o Templo foram totalmente destruídos e a sua mobília de ouro foi levada para Roma, por ordem de Nabucodonosor.

Esdras recebeu a promessa de Deus de que teria o privilégio de levar adiante a restauração de Jerusalém. Certo dia, ao passar pelas ruínas com um burro e um cesto de figos, duvidou que isto fosse possível. Deus então o fez dormir durante um século inteiro; quando Esdras acordou, viu a cidade reconstruída, povoada e próspera. O seu burro, cujo esqueleto fora recoberto de carne e ressuscitara, começou a zurrar e foi admitido no Paraíso como recompensa pela atitude de um dos seus antepassados, injustamente importunado por Noé, quando não quis carregar Iblis, o Diabo, para dentro da arca. Ao testemunhar a ressurreição do burro, Esdras convenceu-se de que o que estava vivenciando era real e que ele realmente dormira por cem anos. Então, em obediência ao mandamento divino, entrou em Jerusalém e instruiu seus habitantes conforme a Lei de Deus. O local exato onde o profeta adormeceu pode ser visto em El Edhemíeh, ao norte da Cidade Santa, na grande caverna conhecida como Gruta de Jeremias (a Gruta de Jeremias tem este nome, pois se acredita que lá foi escrito o Livro das Lamentações). O precipício que se abre aos pés da gruta é identificado pela tradição judaica como “Bet Hassekelá”, ou o local de apedrejamento. Alguns cristãos supõem que Santo Estevão foi apedrejado ali, e também que o topo da colina, agora ocupada por um cemitério muçulmano, foi o local do Calvário. Os restos do mártir — descobertos aproximadamente em 415, como resultado de uma visão de Lucianus, um padre de certa aldeia conhecida como Kfar-Gamala — foram enterrados com ritos solenes e estão expostos em uma igreja no norte da colina, erguida pela Imperatriz grega Eudócia e consagrada no ano 460. Um relato semelhante ao de Esdras é lido nas igrejas gregas durante os serviços religiosos no dia 4 de novembro, quando é relembrada a queda de Jerusalém.

A tradição judaica declara que o celebrado poeta judeu medieval, o rabino Yehuda Halevi de Toledo (1086-1145), cuja obra mais conhecida é “O Kuzarí”, encontrou a sua morte em Bab el Khalil, o Portão de Iafo. Desde a juventude ele ansiava visitar a Terra Santa e a cidade de Jerusalém. Na velhice superou os obstáculos no seu caminho e finalmente visitou Israel, mas não entrou em Jerusalém. Ao chegar ao portão da cidade, Yehuda Halevi ficou tão emocionado que se curvou ao chão e começou a orar, sem noção do perigo que corria. Foi quando um bando de cavaleiros armados invadiu a cidade a galopes. O rabino não os viu nem ouviu; tudo foi tão rápido que, antes que alguma pessoa tivesse tempo para impedir a tragédia e resgatar o velho judeu, ele já havia sido pisoteado até a morte.

Muitos judeus ortodoxos de Jerusalém acreditam que, escondida dentro dos batentes desse portão, há uma mezuzá36 — exatamente como aquelas que existem nas portas dos lares judeus — colocada ali pelo Todo-Poderoso. Ela guarda um pergaminho no qual está escrito, pelo dedo do próprio Deus, versículos contidos no livro de Deuteronômio (6:4-9 e 11:13-21). Graças a essa crença, muitos judeus religiosos, ao entrarem e saírem da Cidade Santa pelo Portão de Iafo, tocam o batente de modo delicado e reverente, e então beijam os próprios dedos. Este costume é repetido por judeus do mundo inteiro quando entram em seus próprios lares.

 

  1. Turbet Birket Mamilla e Johha

Turbet Birket Mamilla é um grande cemitério muçulmano, localizado cerca de 700 metros a oeste de Jerusalém. Antes e durante as Cruzadas foi um cemitério cristão, e nele estão os restos mortais de cânones da Igreja e do abade do Santo Sepulcro. Neste cemitério há sepulturas de muitas pessoas importantes, e, como seria de se esperar, contam-se muitas lendas a respeito delas. A mais antiga está relacionada a uma caverna que fica a alguma distância do Poço de Mamilla, conhecida como “A Caverna do Leão”. Eis a lenda:

Há muitos anos viveu na Pérsia um grande rei idólatra e mago. Ele morava em uma espaçosa torre em cujo topo havia um templo, e ali cultuava os corpos celestes com ritos profanos, tais como o sacrifício de bebês recém-nascidos. Neste templo podiam ser vistas muitas engenhocas curiosas, usadas para fazer imagens dos deuses que o pagão supunha que regiam os diferentes corpos celestes, tais como Júpiter, Marte e Vênus, de modo que estes se movimentavam como se estivessem vivos.

Esse monarca, cujo nome era Khorsu, era muito ambicioso e cruel. Ele enviou um grande exército para invadir a Terra Santa, massacrar os monges em Mar-Saba e conquistar Jerusalém. Eles mataram todos os habitantes da cidade, destruíram as igrejas, levaram consigo tudo o que havia de valor — incluindo a verdadeira Cruz, que havia sido guardada em uma caixa-forte lacrada pelo Patriarca de Jerusalém algum tempo antes da chegada dos invasores — e retornaram para o seu próprio país. Os crânios dos monges martirizados em Mar-Saba estão lá até hoje. Os persas foram obrigados a deixar Jerusalém — onde assassinaram 60 mil pessoas — devido ao ar fétido decorrente do enorme número de cadáveres insepultos. Como não havia quem enterrasse os mortos, Deus inspirou um leão com piedade para enterrar os restos dos Seus servos, mortos pelos pagãos. O animal selvagem de fato carregou os cadáveres, um por um, para esta caverna — que originalmente era muito profunda e tinha cem pés de profundidade — e lá os enterrou reverentemente, um ao lado do outro.

Muitos anos depois, São Mamilla ergueu uma igreja no local, onde sempre há pessoas rezando diariamente pelo repouso das almas dos mártires enterrados na caverna. Do mesmo modo, os visitantes do convento de Mar-Saba são levados à caverna onde o fundador daquele monastério foi morar juntamente com o leão que lá residia. Conta-se que quando o santo expressou a sua opinião de que o lugar era muito pequeno para acomodar dois hóspedes, o rei dos animais aceitou cortesmente a sugestão e foi morar em outro lugar.

 

O que mais chama a atenção no cemitério muçulmano é uma pequena construção abaulada que marca a sepultura de Amír Ala ed-din Aidi Ghadi ibn Abdala el Kebkebi, que morreu no ano muçulmano de 688 (1289 d. C), de acordo com a inscrição sobre a porta de entrada. Dentro da construção há uma notável sepultura, cuja ornamentação leva a suspeitar que provavelmente fora erguida sobre a tumba de algum importante cruzado cristão, uma conjetura reforçada por duas tradições que contradizem as declarações da supracitada inscrição.

A primeira afirma que o Amír ali enterrado era um homem negro de força descomunal que, certa vez, ao combater cristãos, rachou o seu oponente em dois, do capacete até os pés, com um único sopro. A segunda tradição declara que o mausoléu pertence a uma pessoa sob cuja guarda o Sultão Saladino deixou Jerusalém após retirá-la das mãos dos cruzados, em 1187. A data da inscrição sugere a época do Sultão Beybars.

Uma terceira história relata que a construção cobre a sepultura de Johha, um homem muito tolo, segundo alguns, ou muito esperto, segundo outros. Apresentamos em seguida algumas histórias a respeito desse curioso personagem.

Quando Johha era muito jovem, sua mãe o enviou até o mercado para buscar um pouco de sal e outro tanto de manteiga. Ela lhe entregou um prato para a manteiga, e estava certa de que o dono da mercearia colocaria o sal em um embrulho de papel. Chegando ao mercado, o jovem estendeu o recipiente em direção ao vendedor para que este colocasse a manteiga. Então virou o prato de cabeça para baixo e pediu que o dono do estabelecimento colocasse o sal nos fundos do recipiente. Ao chegar em casa, Johha disse: “Aqui está o sal, mãe”. Surpresa, ela lhe perguntou:

“Mas, meu filho, onde está a manteiga?”.

“Aqui”, respondeu, virando o prato para o lado certo. É óbvio que o sal se perdeu, assim como a própria manteiga já havia caído no chão da mercearia.

 

Quando Johha já era grande o bastante para trabalhar pelo seu próprio sustento, tornou-se um montador de burros. Certo dia, quando guiava doze burros utilizados para levar terra até a cidade, ocorreu-lhe de contar os animais antes de carregá-los. Após completar a tarefa, levou-os até o seu destino e descarregou-os. Então montou em um dos burros e já estava retornando quando percebeu que faltava um animal. Imediatamente desceu do burro e colocou todos em fila; ficou admirado e muito aliviado por verificar que lá estavam os doze animais. Ele então montou novamente e partiu, imaginando, enquanto viajava, como foi que perdera um burro. De repente suspeitou que também a segunda contagem estivesse errada; contou novamente e descobriu que havia apenas onze burros viajando diante dele. Terrivelmente desconcertado, desceu novamente da criatura que estava montando e, brecando as demais, recontou-as. Ficou ainda mais confuso ao descobrir que, mais uma vez, havia doze burros com ele. Johha ficou tão absorto com este mistério, que passou a viagem inteira contando e recontando os animais até que o seu patrão, surpreso com a imensa demora, veio até ele e esclareceu as dificuldades ao rapaz, obrigando-o a seguir os burros a pé.

 

Quando seu pai morreu, Johha herdou a propriedade da família, uma pequena casa. Como estava necessitando de dinheiro, planejou obtê-lo colocando toda construção à venda, à exceção de um kirát 37 do qual ele se recusava a abrir mão. A fim de demarcar a porção da propriedade que decidira manter, colocou um gancho em uma das paredes e estipulou com os compradores que aquela parte da construção seria inquestionavelmente reservada para o seu próprio uso. Durante algum tempo, os novos moradores da casa puderam viver ali sem que fossem perturbados. Entretanto, certo dia Johha apareceu carregando um saco de lentilhas e pendurou-o naquele gancho, sem que ninguém fizesse qualquer objeção. Alguns dias depois ele removeu o saco e pendurou uma cesta com alguma coisa igualmente irritante. Johha continuou com este procedimento por algum tempo sem que ninguém protestasse, pois achavam que ele estava apenas exercendo os seus direitos inalienáveis. Por fim, certo dia o jovem apareceu com um gato morto e pendurou-o ali. Então os ocupantes da casa — achando que protestos, solicitações ou ameaças não poderiam induzi-lo a remover aquela amolação, e certos de que de nada adiantaria apelar para a justiça, porque Johha era protegido do governador — ficaram felizes em revender a casa por um valor mais baixo. Desde então, a expressão “gancho de Johha” é usada comumente pelos nativos do Oriente Médio no mesmo sentido que os ocidentais falam de um “elefante branco”.

 

Um dia Johha pediu emprestado uma grande tanjera (caçarola de cobre) de um vizinho para uso doméstico. No dia seguinte ele a devolveu junto com outra, muito menor, mas nova.

“O que é isso?”, perguntou o proprietário, surpreso.

“A sua tanjera deu à luz uma filha durante a noite”, respondeu o tolo. Apesar da incredulidade do homem, Johha manteve a sua afirmação e se recusou a receber de volta a pequena tanjera, justificando que a jovem caçarola pertencia à sua mãe e ao dono desta. Além disso, seria cruel separar uma criança assim tão jovem da mãe. Após muito protestar, o vizinho, acreditando que Johha era louco, resolveu zombar dele; ficou então com a pequena tanjera, desejando muito ver qual seria agora a reação daquele tolo.

Alguns dias depois, Johha voltou e pediu emprestado um valioso disti (caldeirão) de cobre. No entanto, para tristeza do vizinho, este ele não devolveu, mas levou-o para outra cidade e o vendeu. Quando o dono do caldeirão foi até Johha para pedir a peça de volta, o jovem disse que lamentava, uma vez que o utensílio infelizmente havia morrido e fora devorado por hienas.

“O quê!”, exclamou o dono, furioso. “Você pensa que eu sou tão tolo a ponto de acreditar nisso?”.

“Bem, meu amigo”, foi a resposta, “às vezes acontecem coisas maravilhosas. Você se deixou convencer de que a sua tanjera, por exemplo, gerou uma jovem caçarola. Por que então você não acreditaria que o seu dist, que é simplesmente uma tanjera adulta, poderia morrer?”.

Nestas circunstâncias, o argumento parecia inquestionável, especialmente quando o caldeirão foi procurado na casa de Johha, mas não pôde ser encontrado.

 

Os vizinhos de Johha, fartos de ser enganados deste jeito, se reuniram para pensar em um modo de dar uma lição no jovem. Eles então o persuadiram a acompanhá-los numa expedição até uma região remota da costa. Quando chegaram lá, ameaçaram afogá-lo, a menos que ele jurasse solenemente parar com as suas artimanhas e “comesse sal” com eles.

“Eu ouso não comer sal com vocês”, respondeu o jovem maroto, “porque tenho um pacto e já comi sal com os demônios. Não posso quebrar o meu pacto com eles apenas para satisfazer vocês”.

“Muito bem”, disseram seus vizinhos, “é uma escolha sua. Nós amarraremos você nesta árvore e o deixaremos aqui até a meia-noite. Se porventura não mudar de opinião nem comer sal conosco, vamos afogá-lo”.

“Pior para vocês”, respondeu Johha. Então eles o amarraram rapidamente na árvore e foram embora.

Johha quebrou a cabeça para inventar algum jeito de fugir. Qual não foi a sua alegria quando, no final daquela tarde, viu à distância um pastor com um grande rebanho de ovelhas. Ele o chamou e o convenceu a libertá-lo. Ao ser questionado por seu libertador qual era o motivo pelo qual fora amarrado, Johha respondeu: “Eu me recusei a experimentar açúcar”. O pastor pareceu admirado com aquilo, pois ele próprio era apaixonado por açúcar. Johha então propôs que o pastor ficasse amarrado no seu lugar. Na esperança de comer açúcar, aquele homem ingênuo consentiu. Depois de trocarem de roupas e o pastor ensinar ao espertalhão a sua forma especial de chamar as ovelhas, o primeiro se deixou amarrar na árvore enquanto Johha prometeu cuidar do rebanho, levá-lo até uma determinada caverna e ali aguardar pelo retorno do amigo. Ele estava certo de que o pastor seria libertado quando descobrissem que pegaram a pessoa errada. No entanto, não foi isso o que aconteceu, porque na pressa, além da escuridão da noite e do assobio dos ventos, ao som das ondas e pelo fato de o pastor imitar a voz de Johha, os inimigos deste não suspeitaram que haviam sido enganados; e quando o pobre pastor lhes contou que queria comer açúcar, eles o lançaram ao mar.

Grande foi a surpresa e o horror dos inimigos de Johha quando, três dias depois, o viram marchando alegremente pela aldeia seguido por um belo rebanho de ovelhas. Eles se aventuraram a abordá-lo e perguntaram como escapara do mar e ainda trazia consigo aqueles animais. Johha respondeu: “Eu lhes disse que tenho uma aliança com os demônios. Se eu tivesse comido sal com vocês, eles teriam me tratado como um traidor e me deixado dolorosamente enfermo; no entanto, não só pouparam a minha vida como ainda me deram este rebanho como recompensa pela minha lealdade”.

Os vizinhos de Johha ficaram muito impressionados com esta declaração e pediram desculpas ao rapaz pela má conduta que tiveram. Mais do que isso, ainda perguntaram de que forma também poderiam obter a amizade dos demônios. Johha então lhes disse decididamente para que pulassem no mar à meia-noite, no mesmo dia da semana em que tinham tentado afogá-lo e da mesma rocha da qual ele fora arremessado. Poucos dias depois, os vizinhos de Johha desapareceram da aldeia e nunca mais foram vistos.

 

  1. En Nebi Daud, a Tumba de David

Muitos relatos convencionais, semelhantes àqueles relacionados aos Patriarcas enterrados em Hebron, são narrados acerca do Profeta David e da sua tumba em Jerusalém.

No reino do Sultão Murad, o Governador de Jerusalém, Mahmud Pashá, era um homem justo e correto que protegia os judeus. Todavia, como naqueles dias os cargos governamentais podiam ser comprados por qualquer um, Ibn Faraj, conhecido como um árabe cruel, conseguiu obter um cargo público do Pashá de Damasco, que naquela época era o Governador-Geral da Síria e da Terra Santa. Ibn Faraj mostrou-se extremamente tirânico e ávido, e oprimia muito os judeus de Jerusalém. Em um dia de Shabat (4 de Elul de 538538 — 27 de agosto de 1625) ele atacou a sinagoga durante as horas do serviço religioso e prendeu quinze dos mais respeitáveis judeus, que só foram libertados ao desembolsarem 3.000 ducats.

Eventos como este eram freqüentes. Em decorrência disso, os judeus empobreceram muito. Muitos deles tentavam fugir, mas eram impedidos pelos guardas estrategicamente estacionados nas fronteiras com este propósito. No entanto, finalmente os judeus conseguiram fazer com que o Sultão soubesse o que ocorria em Jerusalém. Ele ficou irado ao tomar conhecimento dos fatos e, no dia 22 de Kislev de 5386 (11 de dezembro de 1625) enviou ordens ao Pashá de Damasco para demitir o cruel funcionário. No entanto, Ibn Faraj conseguiu subornar o Governador-Geral e o Agha (o comandante das tropas da corte); agora a sua fúria não conhecia limites, e muitos judeus adoeceram na prisão porque eram incapazes de satisfazer as suas ávidas exigências.

De repente, numa terça-feira, 12 de Kislev de 5387 (21 de novembro de 1626), Ibn Faraj fugiu. Conforme foi descrito em um documento impresso em Veneza no ano seguinte e confirmado por todos os principais membros da comunidade judaica de Jerusalém, um venerável ancião, envolto num manto de cor púrpura, lhe apareceu em sonho dizendo que ia estrangulá-lo. Aterrorizado, Ibn Faraj perguntou: “Por quê?”, e foi informado de “que o Rei David desejava vingar os seus súditos”. Após implorar, de forma comovente, para não morrer, sua vida foi poupada sob a condição de que deixasse Jerusalém e a Terra Santa ao amanhecer do dia seguinte.

Outro governador muçulmano de Jerusalém, em visita à Tumba de David, queria muito ver esta sepultura. Ele então entrou em uma sala imediatamente acima da câmara mortuária e observou por uma fresta no chão. Enquanto fazia isso, um punhal cravejado de pedras preciosas escorregou da sua cinta e caiu na abóbada. Incomodado com a perda, fez com que um dos seus criados descesse até lá por uma corda para procurar o punhal. Após algum tempo, como o homem não retornava, os demais, já muito ansiosos, puxaram a corda de volta; junto com ela, resgataram o seu corpo, inerte. Um segundo e terceiro homens que tentaram recuperar o punhal falharam da mesma forma; até que o governador, determinado a não perder a bela arma, pediu ao próprio xeique do santuário para que fosse lá embaixo procurá-la.

O xeique respondeu que estava claro que o Rei David não gostava que muçulmanos entrassem na sua tumba, e sugeriu que o Pashá pedisse este favor ao Rabino-Chefe, já que era conhecido como uma pessoa querida dos judeus. O governador então enviou uma mensagem urgente àquele dignitário, que em seguida reuniu os judeus para jejuar e rezar pela libertação da ira dos muçulmanos, e também pelo Rei David, que, acreditavam os judeus, permanecia “chai vecaiám”.39 O rabino pediu aos fiéis três dias de dedicação a fim de encontrar uma pessoa que se dispusesse a empreender uma aventura assim tão perigosa. No terceiro dia um judeu se apresentou como voluntário para a tarefa, na esperança de salvar a comunidade.

Após purificar a sua alma e o seu corpo, ele desceu na câmara diante de todos os líderes muçulmanos da cidade. Quase imediatamente, pediu para ser puxado de volta, aparecendo vivo e bem, com o punhal na mão. Um pouco antes, lá embaixo, ele se viu frente a frente com um ancião de aparência nobre, cujas vestimentas brilhavam como as de um verdadeiro líder, e este lhe entregou o punhal no instante em que seus pés tocaram a terra e, com um gesto, o mandou embora.

 

Uma velha viúva judia, religiosa e trabalhadora, costumava lavar roupas para um dos xeiques da Tumba de David. Um dia, quando ela levava algumas roupas para a casa dele, o xeique se propôs a lhe mostrar a sepultura de David, e a senhora o seguiu com muito prazer. Ao abrir a porta do recinto, ele a fez entrar, mas em seguida trancou a porta e foi diretamente ao Kadi.40 O xeique contou ao juiz que uma judia entrara sem ser vista no santuário e o deixou aberto por alguns minutos para poder respirar; então ele, ao descobrir o sacrilégio, trancara a porta para que ela fosse punida formalmente, e assim servisse de exemplo público.

O Kadi, juntamente com outros muçulmanos, foi imediatamente para a Tumba de David, mas quando a sala foi aberta, a mulher judia não estava lá. O xeique jurou solenemente que ela estava lá dentro quando ele trancara a porta. “Eu a conheço bem”, disse, “ela é a minha lavadeira”. Então um dos presentes retrucou: “Não pode ser, faz menos de quinze minutos que o meu servo foi até a casa dela com uma trouxa de roupas e a viu trabalhando duro”. Os inquisidores foram até a casa da mulher e a encontraram lavando roupas, pronta para jurar que ali estivera desde o nascer do sol.

Convencido da sua honestidade, o Kadi condenou o xeique por falso testemunho e fez com que fosse punido severamente. Somente pouco antes de morrer, aquela senhora viúva contou a verdadeira história da sua aventura. Após reunir os anciãos da comunidade judaica, ela confessou que o xeique a trancara naquela sala escura, como ele mesmo dissera. Então um ancião de aparência nobre, vestido com uma roupa brilhante como a de um verdadeiro líder, apareceu imediatamente diante dela e disse: “Não tema, siga-me”. Ele a guiou por uma trilha através de uma fenda no coração da terra, até uma porta que se abria por sobre uma colina em Meydan.41 Lá ele ordenou que ela voltasse imediatamente para casa, retomasse o trabalho e não contasse a ninguém o que lhe havia acontecido.

 

  1. Bab el Asbat, o Portão dos Leões

Quatro diferentes tradições estão associadas e oferecem nomes diversos ao único portão aberto (os demais foram murados) da muralha oriental de Jerusalém. Ele é conhecido pelos muçulmanos como Bab el Asbat — o Portão das Tribos dos Filhos de Israel, geralmente abreviado para Birket Israil, um enorme reservatório ao longo do lado norte da área do Templo, considerado por sábios muçulmanos um dos três construídos por Ezequias, Rei de Judá. Entre os cristãos o portão é denominado Nossa Senhora Maria, porque bem dentro dele está o tradicional local onde a Virgem deu à luz, e também porque a rua que passa pelo portão, descendo pelo vale, termina na sua suposta tumba, em uma grande igreja subterrânea do período das Cruzadas. Durante muitos séculos os europeus chamaram o portão pelo nome de Santo Estevão, pois uma tradição do século XIV afirma que o santo fora apedrejado sobre uma rocha à margem desta rua, não muito distante da igreja mencionada. Na época das Cruzadas era conhecido como Portão de Josafá, graças ao vale do mesmo nome, onde está situado. Entre os judeus alemães o portão é conhecido como “das Löwentor” (Portão dos Leões), devido aos dois leões esculpidos nas muralhas da cidade, um de cada lado da entrada.

Pois bem. Como é raro encontrar “a semelhança de qualquer coisa no céu ou na terra” na ornamentação das edificações muçulmanas, embora aqui ou acolá tais representações sejam encontradas — como no caso da interessantíssima ponte do século XIII em Lydda, construída pelo Emir de Ramle, o mesmo a enviar traiçoeiramente assassinos para matar o Cruzado que era herdeiro do Reino da Inglaterra, mais tarde o Rei Eduardo I —, busca-se naturalmente alguma tradição para explicar o ornamento incomum. No caso de Bab el Asbat, sua história foi folcloricamente preservada no conto seguinte:

O Sultão Selim42 sonhou que havia sido despedaçado por quatro leões. Após acordar Sobressaltado, contou imediatamente esta visão para todos os intérpretes de sonhos, mas estes foram incapazes de decifrá-la. Ele então recorreu a um famoso xeique que morava numa região remota. Este sábio, ao ser informado do problema, quis saber em que o Sultão pensava antes de se deitar naquela noite.

“Eu estava pensando como punir o povo de Jerusalém”, foi a resposta, “porque eles têm se recusado a pagar os seus impostos, e são intratáveis”.

“Ah!”, disse o xeique, “Alá enviou o sonho para impedir Sua Majestade de cometer um grande pecado. El Kuds (Jerusalém) é a Casa do Santuário, a cidade dos homens santos e dos profetas. É uma cidade tão santa que, de acordo com os sábios, foi fundada pelo Anjo Asrafil, por ordem de Alá, construída por seus anjos assistentes, e então visitada por eles em uma peregrinação ocorrida dois mil anos antes da criação do nosso Patriarca Adão, que ali foi enterrado. Abrahão, David e muitos outros profetas e homens santos viveram e morreram em Jerusalém; por isso o próprio Alá ama este lugar e punirá todo aquele que odiá-lo e lhe causar qualquer dano. Eu te advirto, ó Monarca desta Época, a realizar uma obra que possa honrar esta cidade”.

Impressionado por estas palavras, o Sultão partiu imediatamente para uma peregrinação até Jerusalém. No decorrer da sua estada na cidade, deu ordens para a restauração do Monte do Templo e a reconstrução das muralhas.

Ele delegou a reconstrução à supervisão de dois irmãos arquitetos. Cada um deles tinha a sua própria equipe de trabalhadores e o seu próprio campo de obras. Ambos começaram por Bab el Asbat: uma equipe trabalhava em direção ao norte e a outra em direção ao sul. Levaram sete anos para completar a tarefa.43 Ao final, os grupos de trabalho se reencontraram em Bab el Khalil (Portão de Iafo).Todavia, o arquiteto que assumira a obrigação de concluir a parte sul da cidade foi decapitado por ordem do Sultão, porque deixou o Cenáculo — local sagrado onde ocorreu a Santa Ceia — e construções adjacentes do lado de fora das muralhas. Os leões em Bab el Asbat foram colocados ali para lembrar o sonho que levou o Sultão a realizar a grande obra.

 

Esta não é a única lenda relacionada a Bab el Asbat. Dentro da cidade velha de Jerusalém, distante algumas jardas do portão e entre este, a igreja histórica e a Abadia de Santa Ana, havia, até o verão de 1906, um interessante balneário sarraceno44 antigo que foi destruído para dar lugar a um novo edifício. A lenda abaixo conta um pouco sobre isso:

Quando Belkis, a Rainha de Sabá, visitou Jerusalém, o Rei Salomão, impressionado com seus encantos, desejou se casar com ela; mas uma mulher mal-intencionada lhe contou que a rainha não era humana, mas uma jin, um demônio em forma de gente, e que tinha pernas e pés semelhantes aos de uma jumenta. O rei ordenou que a sua informante, uma mulher invejosa,45 segurasse a própria língua se não quisesse ser morta. No entanto, aquilo ficou na cabeça do rei, que decidiu verificar por si mesmo se tudo era ou não verdade. Então ele fez com que um jan (um demônio) construísse um espaçoso salão cujo piso era uma enorme vidraça de cristal transparente, por meio do qual podia ser visto um córrego de água corrente com peixes. Ao final ele colocou ali o seu próprio trono e, ao lado deste, o trono da Rainha de Sabá, que era feito de metais nobres e incrustado com as mais caras pedras preciosas.

Ao voltar para sua terra, a rainha, que considerava esse trono o seu maior tesouro, guardou-o trancado no lugar mais interno dentro de sete câmaras, no mais inacessível dos seus castelos, com guardas nos portões dia e noite, a fim de impedir qualquer um de chegar perto dele. Todavia, todas estas precauções foram em vão, porque Salomão, desejando um dia convencê-la do poder do nome de Deus, invocou o Seu Nome e o trono foi transportado para Jerusalém em menos tempo do que se leva para contar o fato.

Quando estava tudo pronto, o rei convidou a rainha a vir e conhecer a sua nova e bela construção. Ao entrar ela ficou surpresa por encontrar o rei sobre um trono que parecia flutuar sobre as águas, como o de Deus. Ao se dirigir para o seu próprio trono, ao lado do rei, ela achou que deveria caminhar com muito cuidado (para não se molhar), por isso ergueu as saias, expondo os pés e pernas quase até os joelhos. No instante seguinte percebeu o seu erro, mas como sapatos e meias eram desconhecidos naquela época, Salomão pôde ver que os pés da rainha eram humanos, todavia suas pernas eram cobertas de pêlos tão felpudos como os de uma jovem jumenta. Após convertê-la à religião verdadeira, Salomão reuniu todos os sábios para aconselhá-lo como remover aquela quantidade enorme de pêlos. “Permita que ela se depile”, foi a sugestão unânime. “Não!”, Salomão rosnou de raiva, “ela pode se cortar; além disso, os pêlos cresceriam novamente”. O rei dispensou os sábios e convocou um demônio para ver se este poderia ou não ajudá-lo. Desesperado, disse-lhe para construir um balneário para uso exclusivo da rainha, e também o orientou sobre o modo como preparar um creme depilatório, por meio do qual as pernas da rainha rapidamente ficaram tão lisas, claras e graciosas como se fossem feitas de prata. “Desde então”, afirma Mejr-ed-din, o famoso sábio e confiável historiador árabe, “as mulheres têm usado o balneário para se lavar e se depilar, e costuma-se dizer que o balneário de Belkis, a Rainha de Sabá, é o mesmo que está situado em Bab el Asbat, próximo a Medresset es Salahiyeh,46 e que ele foi o primeiro já construído”.

 

  1. Histórias de Detetive

Na primeira parte do século XVIII o rabino Kolonimus,47 um grande erudito e escritor, era o líder da pequena e intensamente oprimida comunidade judaica de Jerusalém.

Em um dia de Shabat o rabino estava rezando em direção ao Muro das Lamentações, quando o shamash48 da sinagoga chegou apressado, ofegante e amedrontado, para lhe falar que a cidade estava em grande alvoroço: os maometanos estavam ameaçando exterminar os judeus porque um menino muçulmano havia sido encontrado morto no bairro judeu. Ele ainda não terminara de falar quando um grupo de muçulmanos se aproximou e começou a agredir o rabino, arrastando-o para o terraço. O Pashá, diante dele, apontou para o corpo do rapaz assassinado — que também fora levado até ali — e disse que, a menos que o rabino pudesse apresentar o verdadeiro assassino, todos os judeus seriam massacrados.

O rabino afirmou que poderia detectar o culpado se lhe entregassem uma caneta, papel e uma tigela de água. Quando tudo foi providenciado, ele escreveu no papel o Tetragrama, que é o Nome Impronunciável de Deus, juntamente com certas passagens da Bíblia e de textos cabalísticos. Enquanto mergulhava o documento na água, repetia incessantemente uma determinada fórmula mágica. Em seguida aplicou o papel molhado nos lábios e na testa do menino assassinado, o que fez com que este imediatamente se sentasse. Após se contemplar por alguns instantes, o rapaz se ergueu, agarrou um dos presentes pela garganta e exclamou: “Este homem, e nenhum outro, é o culpado pelo derramamento do meu sangue”. Então tombou ao chão e voltou a ser um cadáver. O homem acusado do crime, um muçulmano, confessou e foi levado para receber o castigo merecido.

(O que provavelmente aconteceu foi algo assim: enquanto o rabino escrevia e murmurava o seu hocus-pocus, esquadrinhava furtivamente a face dos espectadores para ver se algum dos presentes parecia particularmente interessado no assunto ou no resultado da sua ação. Ao perceber temor ou ansiedade no comportamento de um deles, concluiu que isto se devia à sua consciência pesada; quando teve certeza, apenas precisou apontar o suposto culpado para assim extrair dele a verdade).

O rabino foi libertado imediatamente, mas ao se lembrar de que, por ter escrito e utilizado artes mágicas, ele não somente profanara o Shabat como também se tornara culpado de um pecado odioso, ainda que tivesse sido forçado a isso para preservar o seu rebanho, passou o resto do seu dia em penitência.

Alguns anos depois, sobre o seu leito de morte, o rabino Kolonimus declarou que não poderia ser enterrado com honras; seus amigos deveriam levar o seu corpo para o cume da colina que tem vista para o vale de Kidron, na direção oposta ao tradicional monumento do profeta Zacarias, e lançá-lo pelo despenhadeiro do mesmo modo que as carcaças de cavalos e asnos são lançadas até hoje no mesmo local. Onde parasse de rolar, ali seria enterrado. Nenhum monumento deveria ser erguido sobre a sepultura e, durante um século após a sua morte, todo judeu que passasse por aquele local deveria colocar uma pedra ali, conforme o costume no caso das sepulturas de malfeitores.49 Os amigos do rabino cumpriram as instruções até o momento em que o corpo foi enterrado, mas foram incapazes de deixar a sepultura sem uma lápide em sua memória. Eles então colocaram uma grande pedra sobre a sepultura, mas já na manhã seguinte a encontraram quebrada; e o mesmo acontecia toda vez que era substituída. Percebeu-se que o rabino não devia ser desobedecido. Por isso criou-se o costume entre os judeus que por ali passavam de se colocar uma pedra sobre a sepultura e recitar algumas orações, conforme o desejo do rabino Kolonimus.A história acima pode ter alguma veracidade histórica. Kolonimus era muito conhecido e, na sua época, pouquíssimas pessoas na Terra Santa sabiam ler ou escrever. Aqueles que possuíam estas habilidades exerciam uma tremenda influência sobre seus contemporâneos; conhecimento realmente significava poder, conforme demonstrado no relato seguinte, preservado pela tradição.

 

Durante a Guerra da Independência da Grécia (1821-1828), um mensageiro tátaro50 chegou um dia de Constantinopla51 trazendo uma ordem escrita do Governador Otomano para o Governador de Jerusalém, exigindo deste a morte imediata do Patriarca Ortodoxo Grego e de vários dos seus chefes eclesiásticos. No entanto (felizmente para os condenados), de todos os funcionários do governo, do Pashá para baixo, o único que sabia ler e escrever era um Effendí52 que simpatizava com os cristãos; por isso a carta de Istambul foi entregue em suas mãos para ser decifrada. Após lê-la, ele informou aos seus colegas que esta se referia a uma questão inteiramente diferente. Ninguém duvidou da sua palavra, e o documento foi deixado sob sua posse para ser respondido. Assim que se viu sozinho, o homem chamou o Patriarca grego e os demais clérigos mencionados na carta e, em um encontro particular, lhes apresentou a declaração de morte, mas prometeu manter o seu verdadeiro significado em segredo. Ele cumpriu lealmente a sua palavra, e a comunidade ortodoxa grega, imensamente grata por este grande favor, concedeu aos descendentes do benfeitor o direito, do qual ainda desfrutam, de serem recebidos como convidados de honra não apenas no convento ortodoxo grego de Jerusalém, mas também em todos os demais monastérios ortodoxos gregos dentro do Patriarcado da cidade.

Há alguns anos um conhecido estava na casa de um dos principais rabinos de Jerusalém quando um muçulmano de excelente reputação veio lhe pedir conselho e ajuda. Ele contou como um judeu, de quem disse o nome, viera ao seu local de trabalho cerca de uma hora antes do início dos negócios, quando o muçulmano ainda estava sozinho. Logo após o judeu entrar no escritório, o negociante sentiu falta de um valioso anel que estava sobre a mesa. Ninguém estivera ali antes. O muçulmano não tinha provas nem testemunhas contra o judeu em questão, mas estava certo de que este havia levado o anel. Ao escutar cuidadosamente o muçulmano, o rabino percebeu que este dizia a verdade; então pediu-lhe para aguardar enquanto chamava o acusado. O judeu veio sem saber por que havia sido convocado pelo rabino. Antes que tivesse tempo de proferir uma palavra de saudação, o rabino se voltou para ele em hebraico, em tom de exaltada contestação:

“Eu lhe imploro, em nome de tudo o que é sagrado, que você negue saber qualquer coisa a respeito do anel que este gentio lhe acusa de ter roubado!”. O pilantra então respondeu:

“Era exatamente isto o que eu pretendia fazer!”.

“Muito bem”, disse o rabino em voz alta, “como você praticamente confessou diante de todas estas testemunhas que está com o anel, devolva-o ao seu dono imediatamente, e se dê por feliz se ele não adotar nenhuma medida punitiva contra você”. O ladrão devolveu o anel e não foi castigado.

 

Durante a ocupação da Terra Santa pelo Egito entre 1831 e 1840, ocorreu de Ibrahim Pashá, governador do país, estar em Iafo, quando um certo ourives veio até ele queixando-se de que a sua loja fora assaltada durante a noite, e, aos gritos, exigia justiça.

“Enquanto estávamos sob a proteção do Sultão, eu jamais perdi coisa alguma. Mas agora, com vocês, egípcios, que falam tanto do seu bom governo, no primeiro mês eu perdi metade do meu patrimônio. É uma vergonha para vocês e uma grande perda para mim; e eu penso que você me deve uma compensação, se ainda quer se dar ao respeito”.

“Muito bem, eu assumo a responsabilidade”, respondeu Ibrahim, bem humorado. Ele então saiu com o reclamante pelas ruas e conclamou todo aquele que adorava ver coisas estranhas a estar na loja do ourives em uma determinada hora do dia seguinte. Como resultado, quando a hora chegou, a rua em frente à loja estava cheia de gente. Foi quando Ibrahim apareceu, acompanhado por seus funcionários e pelo executor público. Primeiro o Pashá discursou diante de todos pregando a honestidade, afirmando que o governo egípcio estava determinado a administrar com justiça estrita, e a punir, com imparcialidade, o menor abuso de confiança, ainda que este fosse cometido por um objeto inanimado. Dizendo isso, virou-se para a porta da loja e afirmou com veemência:

“Até mesmo esta porta poderá ser punida por faltar com a sua obrigação, que é afastar os ladrões, a menos que me conte quem passou por ela anteontem à noite e roubou a loja”. Como a porta não respondia, ele ordenou ao executor público que lhe administrasse cem chicotadas com o seu kurbaj.53

Quando a punição terminou, ele novamente exortou a porta a falar, dizendo que, se esta estava com medo de pronunciar o nome em voz alta, poderia murmurá-lo no seu ouvido. Ele se curvou e aproximou o ouvido da porta, como que escutando; então se reergueu e riu de modo desdenhoso: “Esta porta só está me contando tolices. Executor, outras cem chicotadas!”.

Depois do segundo castigo, ele mais uma vez aproximou o ouvido para escutar o que a porta tinha a dizer, enquanto as pessoas murmuravam e davam de ombros umas para as outras, imaginando que o governador estava louco. “A mesma ladainha estúpida!”, gritou desesperadamente. “Ela persiste em me contar que o ladrão está presente nesta multidão de gente honesta e que ainda carrega algum pó e teias de aranha da loja no seu tarbush”.54 Neste momento, ao ver um homem preocupado em escovar o seu turbante, o Pashá mandou prendê-lo. O homem confessou a sua culpa e foi punido.

 

Conta-se outra história do mesmo tipo a respeito de Ibrahim Pashá. Quando estava em Jerusalém, ele estimulou os camponeses do país a levarem a sua produção para a cidade, garantindo-lhes que os soldados do governo seriam punidos se os ferissem ou tomassem qualquer coisa deles sem pagar. Um dia, uma mulher de Siloam com um cesto de jarros cheios de manteiga veio e se queixou dizendo que um soldado agarrara um dos jarros e bebera o seu conteúdo sem a sua permissão. Ibrahim lhe perguntou quando isto havia ocorrido e se ela era capaz de identificar o soldado. A camponesa respondeu que isto ocorrera naquele instante, e que reconheceria o homem mesmo que este estivesse entre outros dez mil.

“Veremos”, disse Ibrahim. Então ordenou que fossem tocadas as trombetas, e logo todos os soldados da cidade estavam em formação diante do castelo. O Pashá conduziu a mulher pelas escadas, enquanto lhe pedia para indicar o agressor. Ela apontou para um determinado homem e parou diante dele. Ibrahim perguntou se ela estava certa de que este era o culpado, e a mulher jurou por Alá que não estava equivocada.

Ibrahim repetiu a pergunta por três vezes, e ela respondeu ter certeza do que estava dizendo. Então ele desembainhou a sua espada e, num golpe certeiro, abriu o soldado ao meio, liberando assim a manteiga ainda não digerida. “Sorte a sua por ter dito a verdade”, falou para a mulher, “ou o seu destino teria sido muito pior do que o deste soldado”.

 

  1. AsRuínas da Terra Santa na Tradição oral

Cerca de um quarto de milha para baixo do manancial de Bir Ayub,55 do lado direito de quem desce para o vale, há um recesso na margem que, em épocas de estiagem, poderia ser confundido com uma cova. No entanto, durante a estação das chuvas as águas deste lugar alcançam a superfície em quantidade considerável. O lugar é conhecido como Ain el Lozê, a Fonte da Amendoeira. Há muitos anos, um camponês contou a Sir Charles Warren56 que, segundo uma tradição, havia uma passagem subterrânea servida por uma escadaria esculpida na rocha, cujos degraus mais baixos eram de metal precioso. Esta escadaria e o túnel haviam sido fechados por ordem do governo egípcio, porque os soldados egípcios escondiam-se lá com freqüência a fim de atacar mulheres que ali desciam para buscar água.

Em Ain el Lozê há uma trilha ladeira acima que alcança as ruínas da aldeia de Bet Sahur,57 cujos habitantes fugiram uma noite, por volta do início do século XIX, para escaparem do alistamento militar. Desde então seus descendentes vivem como beduínos no deserto da margem ocidental do Mar Morto.

Do outro lado do vale, no declive da sua margem norte, estão as ruínas de um monastério que, por se assemelhar a um poço, é conhecido pelos camponeses como Deyr es Sinneh.58 Perto dali, alguns anos atrás, foram descobertos traços de uma aldeia e de antigas casas de banho. Algumas histórias curiosas estão relacionadas aos antigos habitantes do convento e da aldeia, conhecidos como Es-Sanawíneh ou essênios. Conta-se que eles eram pessoas tão estúpidas que Alá foi obrigado a destruí-los. Eles nunca cozinhavam corretamente a própria comida, mas penduravam a panela em um buraco no telhado do poço mencionado, a aproximadamente 6 metros acima do fogo. Mesmo após a queima de toda quantidade de combustível, a comida permanecia crua. A religião deles baseava-se no culto aos corpos celestes, dos quais conheciam tão pouco que, certa noite, como a lua demorasse a subir, imaginaram que os homens de Abu Dis, uma aldeia vizinha, a tinham roubado e decidiram atacá-los, armados até os dentes.

Do topo da colina, que fica entre as duas aldeias, eles viram a lua subindo; então começaram a gritar e a dançar em triunfo, dizendo uns aos outros: “Aqueles malandros ouviram que estávamos chegando e permitiram que a nossa lua escapasse”.

Sempre que estavam em dificuldades ou perplexos, em vez de pedirem conselho a outros povos, costumavam observar o comportamento dos animais e tomá-los como exemplo. “Todos os outros homens, exceto nós”, diziam, “são perversos, e por isso tolos, portanto não podem nos instruir. Por outro lado, os pássaros e os animais na terra, na sua maioria, são inocentes e sábios; sendo assim, é com eles que devemos aprender”.

Um dia alguns deles quiseram introduzir uma longa viga de madeira em uma câmara, onde pretendiam instalar uma prensa de óleo. Eles tentavam, mas não conseguiam, uma vez que procuravam introduzi-la pela porta de entrada em vez de levá-la pelos fundos. Muito preocupados, enviaram doze homens em diferentes direções para tentarem obter algum exemplo dos métodos usados pelos animais. Os mensageiros voltaram depois de sete dias, mas somente um deles encontrou uma solução para o problema, ao observar um pardal puxando uma palha muito longa pela parte de trás do buraco onde estava construindo o seu ninho. Como recompensa pela descoberta, o homem tornou-se o xeique da comunidade.

Como eles não usavam o bom senso que Alá deu aos filhos de Adão, que superam as demais criaturas em sabedoria, Ele decretou que este povo morreria sem deixar filhos, à exceção de uma família: provavelmente a do xeique, cujos descendentes ainda vivem em Betânia. E até mesmo sobre eles repousa uma maldição, porque nunca têm mais do que um filho para representá-los.

 

No precipício que se sobressai sobre a via férrea — no lado norte do desértico Wady Ismain, a leste de Artuf, na região de Jerusalém — há uma grande caverna que guarda traços evidentes de que possa ter servido de domicílio para ascetas.59 No passado, era conhecida como a “Caverna de Sansão”, pois supõe-se que ali o jovem da tribo de Dã encontrou refúgio após a façanha das raposas e a matança seguinte.60 Um pouco mais a leste há várias cavernas menores que também parecem ter sido usadas como refúgio para ermitões, conhecidas pelo nome de Alali el Benat, “As Câmaras Superiores das Moças”.

Os camponeses da aldeia vizinha de Akur dizem que, na época em que a Terra Santa era governada por cristãos, estas cavernas que, muito altas, só podiam ser alcançadas por meio de cordas e escadas, estavam lotadas de belas donzelas. As moças, que fizeram voto de permanecer solteiras, retiraram-se do convívio para se afastarem do caminho da tentação. Água e comida lhes eram baixadas dia após dia por meio de cordas desde o topo do precipício, e a reclusão delas era a mais rígida possível. No entanto, depois de alguns anos foram vistas crianças correndo de uma caverna para outra; descobriu-se que as moças haviam baixado uma corda até o vale e de lá trouxeram um caçador muito belo, a quem elas costumavam espiar. Conta-se que, por sua hipocrisia, estas mulheres foram abandonadas e morreram de fome.

 

No alto, do lado sul do tradicional Vale de Hinnom, onde este se abre para dentro do Vale de Kidron, está o convento grego de Santo Onófrio, erguido sobre vários sepulcros em ruínas, cheios de ossos humanos.

Entre os camponeses de Siloam existe uma tradição muito curiosa: conta-se que os restos humanos destes sepulcros são de eremitas cristãos que foram massacrados durante a perseguição levada a cabo pelo insano Califa Fatemita El Hakim bi amr Illah — que até hoje os drusos cultuam como um deus. No décimo quinto ano do seu reinado, no ano 1010, o califa obrigou o seu secretário cristão, Ibn Khaterín, a escrever o seguinte decreto fatal ao Governador de Jerusalém: “O Imã lhe ordena destruir o Templo da Ressurreição, de modo que o seu céu se converta na sua terra e o seu comprimento, na sua largura”. O decreto foi literalmente executado, e Ibn Khaterín, na sua aflição e desespero por ter sido forçado a escrever esta sentença, bateu sua cabeça contra o chão, quebrou as juntas dos dedos e morreu em poucos dias.

 

As cavernas de Wad er Rababeh serviam, na época, como residência para uma população de monges e homens santos que passavam o seu tempo em jejum e oração. Ocorreu um dia que El Hakim precisava de dinheiro, então enviou ordens ao Governador de Jerusalém obrigando todos os seus habitantes a lhe pagarem um tributo. O governador e o seu conselho responderam dizendo ser impossível cumprir aquela ordem, pois havia um grande número de homens religiosos pobres na região que, embora fossem cristãos, viviam como dervixes em cavernas nuas e não tinham condições de pagar tributo algum, ainda que pequeno. Ao receber as notícias, o califa ordenou que o seu secretário escrevesse: “Conte os homens”.

Se o secretário foi descuidado ao escrever e colocou um ponto na segunda letra da primeira palavra, ou se El Hakim, em sua maldade, pegou o decreto que seu escriba escrevera e acrescentou este ponto, só Alá sabe; mas quando o decreto chegou a Jerusalém, o ponto estava lá, e no decreto não se lia “Aksa er-rijal” (Conte os homens), mas sim “Akhsa er-rijal” (Mutile os homens).61 A ordem foi cruelmente cumprida, levando suas vítimas à morte. Estas foram enterradas onde viveram. Os ossos humanos hoje encontrados nas cavernas de Wad er Rababeh são destes homens.

 

Em um declive em Guileád está a aldeia de Remamín, cujos habitantes, em sua maioria cristãos nativos, a preservam desde a época das Cruzadas, graças à seguinte história romântica.

Quando os cruzados ocuparam pela primeira vez a Terra Santa, na margem oriental do rio Jordão vivia uma grande população de cristãos dispersos em várias antigas cidades e aldeias, que eram martirizados diariamente pelos muçulmanos. Muitos migraram para a margem ocidental com suas famílias e rebanhos, trocando alegremente as montanhas arborizadas, os pastos férteis e os ricos vinhedos da zona rural oriental do Jordão pelos distritos ocidentais, menos férteis, mas com um governo cristão. No entanto, alguns preferiram ficar, entre eles um homem famoso por sua integridade. Quando os beduínos tomaram posse das terras cultivadas abandonadas pelos emigrantes, ele consentiu em se tornar um wakil ou supervisor daqueles cristãos que tinham caído nas mãos de um grande xeique árabe cujos súditos se recusavam a cultivar as terras. O xeique estava feliz por assegurar os serviços de uma pessoa competente para supervisionar seus escravos e os refugiados camponeses ao longo do Jordão que haviam fugido do seu domínio.

O acordo funcionou bem até que, um dia, o xeique discutiu com sua jovem esposa, filha do emir de uma tribo distante, com quem se casara recentemente. Como as tendas do pai dela estavam distantes, a mulher fugiu para a casa do cristão e lá permaneceu com a família deste até se reconciliar com o marido.

As coisas andaram bem entre o casal por algum tempo. Então surgiu uma nova discussão, e o xeique disse energicamente à esposa:

“Vá embora novamente e peça abrigo no canil daquele cachorro cristão”.

“Ele não é um cachorro”, retrucou a mulher, “mas um homem íntegro, ainda que seja um cristão. Se alguém é um cachorro, é você” — e a estas palavras ela acrescentava expressões que só podem sair dos lábios de uma mulher nervosa. Furioso com a língua ferina da esposa, o xeique resolveu se vingar do cristão. Montou em sua égua e galopou até a sua residência, e este o recebeu com toda a cortesia e disponibilidade. Ao partir, o xeique montou novamente na égua e o cristão auxiliou-o, segurando o estribo. Assim que estava na sela, de repente o beduíno retirou um punhal da cinta e enfiou-o até o cabo por entre os ombros do cristão, que caiu ao chão, morto. A esposa e os três filhos pequenos do homem assassinado viram tudo. O xeique então foi embora a galope.

A cristã recém-enviuvada correu para ajudar o marido, mas em vão. Ela retirou o punhal da ferida e fez seus filhos jurarem sobre o pai que, se Deus lhes permitisse alcançar a idade adulta, castigariam o assassino com a sua própria arma.

Assim que o marido foi enterrado, a viúva empacotou os próprios pertences e, acompanhada por um ou dois vizinhos cristãos que o seu falecido esposo dissuadira de migrarem para a margem ocidental do Jordão, foi viver em Nazaré com parentes.

Os anos passaram. Quando os três meninos já eram homens, a mãe lhes contou que era o aniversário da morte do pai, relembrou-os novamente de cada detalhe do assassinato, e, colocando o punhal nas mãos do primogênito, ordenou aos três para que partissem e vingassem a morte do pai, conforme haviam jurado fazer ao lado do cadáver.

Naquela mesma noite, armados e bem montados, eles partiram em silêncio, após tomarem a precaução de amarrar várias camadas de feltro grosso ao redor das patas dos cavalos. Viajando por rotas fora da estrada durante as horas de escuridão, e escondendo-se em alguma caverna quando a luz do dia se aproximava, levaram três dias para chegar aos arredores do planalto onde, como haviam ouvido em Nazaré, o inimigo estava acampado.

A primeira atitude deles foi encontrar algum abrigo para os animais, garantindo-lhes um descanso seguro antes de reiniciarem a viagem. Uma vez encontrado o local, permaneceram ali escondidos até depois de o sol se pôr e houvesse razão suficiente para pensar que os beduínos acampados estivessem dormindo. Os três dias e noites vento oeste trazia nuvens de orvalho. Após deixarem seus cavalos selados para uma fuga imediata, os vingadores se aproximaram do acampamento dos árabes, que estava envolto em silêncio e escuridão. Até os cachorros dormiam. Nada se ouvia.

Ao se aproximarem, dois espreitaram por trás de um monte de pedregulhos, enquanto o primogênito, armado com o punhal, rastejou por entre as barracas. O xeique foi facilmente encontrado. Sua lança, delicadamente adornada com penas de avestruz, estava fincada no chão diante da entrada, e sua égua inestimável, estava amarrada ao lado. Após soltar um dos prendedores da cortina, o jovem a ergueu e rastejou por baixo dela, para dentro da tenda. Lá estava o assassino do seu pai, agora um homem velho com uma longa barba branca, adormecido no chão diante dele. Ao lado do xeique estavam a sua esposa e filhos, todos dormindo profundamente. Pela luz lânguida das estrelas que iluminavam a tenda por entre as frestas da cortina, o visitante esquadrinhou as características do velho assassino. Certo de que realmente era ele, elevou o punhal para matá-lo. Todavia, naquele momento foi tomado pela fraqueza: ele não poderia matar assim, a sangue frio, um homem velho e dormindo; seria assassinato. Com uma oração aos santos para que encontrasse o seu inimigo face a face, e assim castigá-lo abertamente, o jovem guardou o punhal e, rastejando, voltou para o local onde seus irmãos o esperavam.

Após ouvir o ocorrido, o segundo levou o punhal e rastejou até o acampamento, para voltar no mesmo tempo com a mesma história. Então foi a vez do mais jovem avançar. Ele também entrou na tenda do inimigo e o encontrou dormindo, mas foi incapaz de matá-lo; porém, ao deixar a tenda, aproximou-se da égua: com o punhal do inimigo, cortou a sua bela juba, a longa crina entre as orelhas e todo o pêlo do seu extenso rabo; então embrulhou o punhal nos pêlos da égua, entrou novamente na tenda e colocou a arma sob o travesseiro do inimigo.

Após deixar o local, puxou o seu próprio punhal e cortou praticamente toda a corda da tenda, deixando o suficiente para impedir que a estrutura desmoronasse. Em seguida arrancou a lança do chão, levou-a consigo, voltou até os irmãos e lhes disse que o pai deles fora vingado. Os três então voltaram ao local onde haviam deixado os seus cavalos e, antes de raiar o dia, estavam em viagem. Galopando dia e noite chegaram ao lar em segurança.

Qual não foi a consternação no acampamento árabe quando foi descoberto o terrível insulto contra o xeique! Estava claro que os agressores eram inimigos mortais, para desfigurar daquela maneira a égua do xeique, cortar as cordas da tenda e remover a lança. Era evidente que a vida do líder estava à mercê deles, mas por que então não o assassinaram? E o que significava aquele punhal embrulhado nos pêlos da égua? O próprio xeique não reconheceu a arma. Contudo, após passar de mão em mão, o irmão mais novo do líder a examinou mais de perto e sugeriu que fora com ela que o supervisor cristão fora assassinado na aldeia de Remamín. Então o xeique finalmente se lembrou do ocorrido e compreendeu que devia a sua vida à magnanimidade dos seus inimigos mais mortais.

Com remorso pelo assassinato do pai dos rapazes, o xeique decidiu fazer o que pôde para solucionar a questão sem que esta se transformasse num banho de sangue constante. Acompanhado pelos anciãos da sua tribo, viajou até Nazaré e, ali chegando, fez com que um amigo atuasse como intermediário. Propôs pagar uma indenização pelo assassinato e, mais do que isso, assegurou à família do homem morto que, caso eles optassem por retornar à terra do pai, em Remamín, os rapazes, seus descendentes e seus vizinhos cristãos teriam permissão para morar ali, respeitados e sem que fossem molestados. Suas condições foram aceitas, e desde então há uma comunidade cristã na aldeia de Remamín.

 

Há cerca de quatro séculos, quando o Sultão Selim conquistou a Terra Santa, introduziu um conjunto de tropas de curdos em Hebron que tratava os orgulhosos habitantes da cidade com grande arrogância. Os árabes, desunidos pelo conflito entre as facções dos Keys e do Iêmen, foram incapazes de se opor à tirania dos curdos, que se tornaram os senhores de Hebron e, sem tomar partido, dominaram ambos os grupos. Construíram belas casas no lado norte do Monte do Templo e plantaram pomares de árvores estrangeiras, até então desconhecidas na região. Pois bem, é um costume na Terra Santa que todo aquele que passa por uma estrada tenha permissão para colher as frutas de um pomar sem ser repreendido.62 Apesar disso, se os curdos surpreendessem um homem colhendo frutas dentro dos limites das suas plantações, cortavam suas mãos. Eles eram odiosos em todos os sentidos. A sua tirania cresceu a um nível tão insuportável, que as duas facções rivais finalmente se uniram, determinadas a acabar com a dominação, e passaram somente a esperar o momento propício para o levante. Em uma noite de comemoração do Bairam,63 os curdos e o seu Agha (comandante), cujo nome era Abd-ur-Rahman, bebiam café no mercado quando o comandante sugeriu que eles convocassem Budríyeh, a filha de um homem importante de Hebron, para entretê-los. Após este insulto, os homens da cidade pegaram em armas e provocaram um grande derramamento de sangue — os curdos foram pegos desprevenidos, pois sempre trataram os habitantes de Hebron como cães medrosos. Os poucos sobreviventes, entre eles o comandante das tropas, fugiram para Beit Umar,64 Beit Fajar65 e outras aldeias; e nunca mais voltaram para Hebron.

No entanto, um dia o tal comandante disfarçou-se de mulher, apresentou-se à porta do pai de Budríyeh ao anoitecer e pediu para falar com o dono da casa. Quando este desceu as escadas para ver o que queriam dele, Abd-ur-Rahman o matou e foi embora.

Em 1840, após o bombardeio da cidade de Acre, os turcos foram sucedidos pelas tropas britânicas e austríacas unidas, que assim reconquistaram o poder na Terra Santa. O comandante curdo foi deposto e, mais tarde, exilado para o Chipre, onde morreu.

 

  1. Os Julgamentos de Karakash

A expressão “Este é um julgamento de Karakash” é comum entre os nativos da Terra Santa, quando a decisão adotada beira o absurdo, ainda que baseada estritamente nas evidências do caso. Conta-se que ela surgiu há centenas de anos, durante o governo do Emir Beha-ed-din Karakash, no final do século XII. Ele era um fiel oficial do grande Imperador Saladino, que lhe confiou a construção das novas fortificações em Jebel el Mokattam, no Cairo, Egito. Conta-se que a trincheira de pedra talhada que protege a fortaleza foi cavada sob suas ordens. Ele também foi comandante-em-chefe das tropas em Acre quando esta cidade foi conquistada por Ricardo Coração de Leão, durante a Terceira Cruzada, por volta de 1192. Portanto, Karakash é um personagem histórico, e as excentricidades judiciais pelas quais ele é lembrado podem ter se originado nas sátiras contadas por seus inimigos. Eis algumas das histórias contadas a respeito dos seus julgamentos.

Antes de trancar a porta da sua loja durante a noite, um tecelão deixou uma longa agulha presa ao seu trabalho no tear. Um ladrão a invadiu com uma chave falsa, mas, após tropeçar em meio à escuridão, feriu um dos olhos com a agulha. Então saiu e fechou a porta atrás de si.

Na manhã seguinte o ladrão contou a sua história para Karakash, o juiz imparcial, que chamou o tecelão e, olhando-o firmemente, perguntou:

“Antes de trancar a sua loja ontem à noite, você deixou uma agulha no trabalho do seu tear?”

“Sim, deixei”.

“Bem, este pobre ladrão perdeu um dos seus olhos graças à sua negligência; ele roubaria a sua loja, mas tropeçou e a agulha furou seu olho. Não sou eu Karakash, o juiz imparcial? Este pobre ladrão perdeu um olho por culpa sua; portanto, você também deve perder um olho.”

“Mas, meu senhor”, disse o tecelão, “ele veio para me roubar, não tinha o direito de estar ali.”

“Não estou preocupado com o que este ladrão foi fazer, mas com o quê você fez. A porta da sua loja estava arrombada ou danificada esta manhã, ou havia alguma coisa faltando?”

“Não, senhor.”

“Portanto, ele não lhe causou nenhum prejuízo; mas você, além de insultá-lo, prejudicou-o ao acabar com o seu modo de vida. A justiça exige que você perca um olho.”

O tecelão ofereceu dinheiro ao ladrão e a Karakash, mas em vão; o julgamento imparcial não seria modificado. Por fim, teve uma idéia brilhante e disse:

“Olho por olho, esta é a lei justa, ó Karakash, meu senhor; contudo, este caso não se aplica a mim. Você é um juiz imparcial, e lhe afirmo que eu, um homem casado e com filhos, Sofrerei um dano maior com a perda de um olho do que este pobre ladrão, que não tem dependentes. Como poderei continuar a tecer com apenas um olho? Mas tenho um bom vizinho, zelador de um depósito de armas, que é solteiro; arranque um dos olhos dele. Por que ele precisa de dois olhos para guardar armas?”

O juiz imparcial, convencido da justiça destes argumentos, chamou o armeiro e arrancou um dos seus olhos.

 

Um carpinteiro estava ajustando as portas e treliças de uma casa recém-construída quando uma pedra que estava em cima de uma das janelas caiu e lhe quebrou uma das pernas. Ele reclamou a Karakash, o juiz imparcial, que chamou o proprietário da casa e o condenou por negligência culposa. “A culpa não é minha, mas do construtor”, alegou o proprietário; assim, o construtor foi chamado.

Por sua vez, o construtor disse que a culpa não era sua, porque no momento em que colocava a tal pedra, passou na rua uma jovem com um vestido vermelho tão brilhante que ofuscou a sua vista e ele não pôde ver o que estava fazendo. O juiz imparcial ordenou que buscassem a jovem, que foi encontrada e levada diante dele.

“Mulher”, disse o juiz, “o vestido vermelho que você usava naquele dia custou uma perna quebrada a este carpinteiro, e por isso você deve pagar pelos prejuízos.”

“A culpa não é minha, mas daquele que me vendeu a peça”, disse a jovem, “porque quando fui comprar fazenda para um vestido, o comerciante tinha apenas este tecido vermelho.”

O comerciante foi convocado imediatamente. Ele disse que a culpa não era sua, porque o fabricante inglês lhe enviara apenas a fazenda vermelha brilhante, embora tivesse encomendado outros tecidos.

“O quê! Seu cachorro!”, gritou Karakash. “Você negocia com um infiel?”. Em seguida ordenou que o comerciante fosse pendurado no batente superior da sua própria porta. Os executores da justiça o levaram e tentaram pendurá-lo, mas ele era tão alto e a porta da sua casa tão baixa, que eles voltaram sem cumprir a sentença. Karakash então lhes perguntou:

“O cachorro já está morto?”

“Não senhor. Ele é muito alto e a porta da sua casa muito baixa. O comerciante não pode ser pendurado ali.”

“Então pendurem o primeiro homem baixo que encontrarem”, ordenou Karakash.

 

Um homem velho, muito rico e avarento, costumava cair e ter desmaios freqüentes, que atormentavam dois dos seus sobrinhos, pois estes desejavam sua morte, mas o homem sempre se levantava novamente. Incapazes de suportar mais a tensão, após um novo desmaio eles o levaram e prepararam-no para o enterro. Chamaram um oficial de justiça que retirou as roupas do avarento — conforme um antigo costume, estas deveriam ser deixadas como herança. Em seguida fechou seus maxilares, executou as lavagens habituais no corpo, preencheu suas narinas, orelhas e outras aberturas com lã de algodão embebida em água de rosas, cânfora seca e folhas de lótus (este recheio era colocado para impedir que demônios entrassem no corpo). Por fim, juntou seus pés com uma bandagem ao redor dos tornozelos, e dispôs suas mãos sobre o peito.

Tudo isso levou tempo, e antes que a operação estivesse concluída, o homem acordou, mas estava tão assustado com o que estava acontecendo que desmaiou novamente, e seus sobrinhos puderam levar o funeral adiante.

Quando haviam percorrido metade do caminho até o cemitério, o avarento acordou novamente e sacudiu o caixão, em conseqüência da troca constante entre os carregadores, que se revezavam incessantemente para se aliviarem do peso ao longo do ato meritório de levar um verdadeiro crente à sepultura. Após erguer a tampa do caixão, que estava solta, o homem sentou-se e clamou por ajuda. Para o seu alívio, viu Karakash, o juiz imparcial, caminhando junto à procissão em direção ao cemitério, e chamou-o pelo nome. O juiz interrompeu imediatamente a procissão e perguntou aos sobrinhos:

“O tio de vocês está vivo ou morto?”, ao que eles responderam:

“Está morto, meu senhor”. Karakash se voltou para as pessoas que acompanhavam o velório:

“Este corpo está vivo ou morto?”.

“Está morto, meu senhor!”, foi a resposta de uma centena de vozes.

“Mas vocês podem ver por si mesmos que eu estou vivo!”, gritou rispidamente o avarento. Karakash olhou-o firmemente nos olhos e disse:

“Que Deus me livre de confiar na percepção evidenciada pelos meus pobres sentidos e na sua palavra, velho avarento, apesar desta multidão de testemunhas afirmar o contrário. Não sou eu um juiz imparcial? Prossigam com o funeral!”

Depois disso o avarento desmaiou pela última vez, e foi enterrado pacificamente.

 

  1. O Purim de Zaragoza

Além das tradicionais festividades de Pessach, Shavuot, Sucot,66 etc., alguns judeus residentes em Jerusalém comemoram o “Purim de Zaragoza”, celebrando a libertação dos judeus de Zaragoza, capital do antigo Reino de Aragão (atualmente pertencente à Espanha), de uma grande desgraça. A história da sua fuga é lida em público a cada celebração — tal como relatada em meguilot (pequenos rolos de pergaminho) e escrita no mesmo estilo, uma evidente imitação da Meguilát Ester, o Livro de Ester contido na Bíblia. Eis a narrativa:

Em 1440, no reino de Alfonso V de Aragão, havia em Zaragoza uma dúzia de belas sinagogas mantidas por diversas congregações de judeus prósperos e influentes, os quais eram tão bem tratados pelo governo que, sempre que o rei vinha à cidade, todos os rabinos saíam em procissão em sua homenagem, cada um carregando, em bolsas apropriadas os Rolos da Torá67 pertencentes à sua sinagoga. Muitos fiéis se queixavam que era uma desonra o Livro Sagrado ser levado às ruas com o intuito de saciar a vaidade do rei; por isso, os rabinos, provavelmente felizes por terem um pretexto para não carregar os pesados manuscritos, adotaram o hábito de, nestas ocasiões, deixar os pergaminhos na sinagoga e saírem com as bolsas vazias.

Um homem de nome Marcos de Damasco, um judeu que se convertera recentemente ao cristianismo, tornou-se inimigo mortal do povo que abandonou. Um dia, quando o rei estava louvando a lealdade dos seus súditos judeus, este renegado, que estava entre os cortesãos, declarou que sua Majestade estava sendo sobejamente enganada. A lealdade dos judeus era uma fraude tão grande, afirmou, como as bolsas vazias que levavam diante do rei, fingindo carregar os rolos das suas respectivas sinagogas.

O rei ficou furioso com os judeus, mas decidiu não puni-los até certificar-se da veracidade da acusação. Naquela sexta-feira, dia 2 de fevereiro de 1440 (17 de Shevat de 5200, no calendário judaico), o rei partiu imediatamente para Zaragoza, acompanhado de Marcos, que estava eufórico por imaginar que arruinara os judeus. Mas naquela noite um ancião despertou os bedéis de cada uma das sinagogas e lhes advertiu da intenção do rei de pegar os rabinos de surpresa. Assim que ouviram o rei aproximar-se naquela manhã, eles saíram para recepcioná-lo como sempre, mas não estavam desprevenidos. Alfonso não retribuiu as boas vindas e, carrancudo, ordenou que as bolsas fossem abertas. Sua ordem foi obedecida alegremente, e verificou-se que todas continham o seu respectivo rolo da Torá. O rei então voltou a sua fúria contra Marcos, que foi enforcado na primeira árvore que encontraram.

Para comemorarem este evento, os judeus de Zaragoza instituíram uma celebração anual, realizada todos os anos nos dias 17 e 18 de Shevat. A data continuou a ser comemorada mesmo após a terrível expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, e ainda hoje é festejada anualmente por seus descendentes no mundo inteiro.

Há muitas outras comemorações de Purim baseadas em histórias semelhantes à relatada no Livro de Ester. São elas: Purim do Cairo, Egito (1524); Purim de Chios, Grécia, conhecido como o “Purim de la Señora” (1595); Purim de Basra, Iraque (1774); Purim de Fossano, Itália (1798); e Purim de Rhodes, Grécia (1840).

 

  1. Al Isrá, a Viagem Noturna de Maomé

Os muçulmanos relembram o Miraj, a visão espiritual que o Profeta Maomé teve da Mesquita de El Aksa em Jerusalém no século VII.

Uma noite o Profeta estava em Meca, rezou e em seguida adormeceu. Então sentiu que era despertado pelo arcanjo Gabriel, que o montou na garupa de um cavalo celeste e com ele partiu para uma longa jornada de ascensão aos céus. A viagem terminou em Jerusalém, no Monte do Templo. Subindo por uma escada, Maomé viu os sete céus: o primeiro era presidido por Adão; o segundo, por Jesus e João Batista; o terceiro, por José; o quarto, por Enoque; o quinto, por Aarão; o sexto, por Moisés; e o sétimo, por Abrahão. Na ponta superior da escada deparou o Trono de Alá. Na mesma noite, foi levado de volta para Meca.

Alguns exegetas islâmicos vêem a Viagem Noturna como a ascensão corpórea de Maomé aos céus. Mas o fato de não estar descrita no Corão (há apenas duas referências, nas Suras 17:1 e 53:1—18) corrobora a tradição deixada por Aisha, uma das esposas do Profeta, que trata a viagem noturna como uma experiência mística e pessoal, o que é reforçado por outra tradição da época do Califa Moawiyeh, do século VIII. Seja como for, a viagem noturna de Maomé, desde Meca até Jerusalém, e a sua derradeira ascensão aos céus, se tornou fundamental para o desenvolvimento da religião islâmica.

 

  1. A Caligrafia do Sultão Mahmud

Sobre a parede sul da grande Mesquita de El Aksa, em Jerusalém, está pendurada uma armação dourada com um fantástico exemplar de caligrafia árabe ornamental. Trata-se de um famoso texto do Corão, o livro sagrado dos muçulmanos, que relata a Viagem Noturna de Maomé de Meca a Jerusalém.

Os guardiões do santuário afirmam que foi escrito pelo Sultão Mahmud, pai do Sultão Abd-al Mejíd, que o deu de presente para a mesquita. O Sultão Mahmud era um excelente calígrafo. Ao ouvir tantas pessoas elogiarem a caligrafia de um outro especialista, ele o convidou para uma prova de habilidade. As escritas produzidas por ambos foram submetidas a vários peritos, dos quais todos, exceto um, decidiram que o Sultão tinha a melhor caligrafia. Contudo, um dos juízes buscou ser justo com o rival, mais habilidoso, sem com isso ofender o Pashá. No papel do primeiro escreveu: “A letra do melhor dos calígrafos”; e no de Mahmud: “A letra do melhor dos Sultões e calígrafos”. O Sultão, impressionado com o senso de justiça, lhe concedeu um esplêndido presente: uma cópia do mesmo texto que escrevera para a Mesquita de El Aksa.

 

  1. A Resposta Certa

Um certo Sultão sonhou que todos os seus dentes caíram subitamente da boca. Ao acordar, estava tão amedrontado, que despertou seus servos e ordenou a convocação imediata de todos os sábios.

Reunidos às pressas, os sábios ouviram o sonho e ficaram em silêncio. Pareciam muito constrangidos. Então um jovem recém-formado lançou-se aos pés do Sultão e exclamou:

“Ó Sultão! O sonho está relacionado aos seus inimigos, e a interpretação tem a ver com todos os que lhe odeiam. Isto significa que todos os seus parentes serão mortos diante dos seus olhos em um único dia”.

Furioso, o Sultão ordenou que o jovem fosse chicoteado, aprisionado e alimentado a pão e água por um ano. Feito isso, virou-se duramente para seus conselheiros, que estavam trêmulos, e, batendo o pé, repetiu a exigência de interpretarem o terrível sonho, mas eles permaneceram em silêncio. Então El Ulema, o xeique dos sábios, deu um passo adiante, elevou as mãos e olhos ao céu e exclamou:

“Bendito seja Alá, que nos concede o privilégio de revelar a sua Majestade a bênção que Ele guarda para todas as nações sob o seu domínio; porque esta é a interpretação do sonho enviado do Céu: o Sultão está destinado a salvar todos os seus queridos súditos”.

Após ouvir isso, o monarca encheu o velho sábio de pérolas, pendurou uma corrente de ouro no seu pescoço e o vestiu com uma roupa que lhe conferia todas as honras.

 

  1. Pessoas de Boa Família e Pessoas Simples

Ahmad Al-Muttafakhir ibn Al-Muttashakhia, xeique dos árabes fasharín, orgulhava-se muito da sua ascendência nobre e costumava ostentá-la sempre que podia. Um dia, durante uma viagem entre Tadmor e Aco, na Terra Santa, Ahmad falava do seu tema favorito com seus companheiros de viagem, quando viu um dervixe às margens da estrada encarando atentamente um objeto branco que tinha nas mãos. Aflito de tanta curiosidade, galopou a seu encontro para ver o que o dervixe tanto olhava: tratava-se de um crânio humano. O xeique perguntou-lhe por que ele estava examinando aquilo tão de perto. “Ah!”, afirmou o homem santo, que evidentemente conhecia Ahmad, “achei este crânio diante da entrada de uma caverna pela qual eu passava esta manhã, e estou tentando descobrir se pertenceu, quando ainda vivo, a algum grande homem, ou se foi somente o cérebro de algum simples mortal como você ou eu”.

Ofendido, Ahmad partiu a galope, e a partir de então cessou de falar dos seus antepassados nobres. No entanto, quando mais adiante a caravana passava pelo cemitério de uma aldeia, notou que o telhado da abóbada de uma sepultura estava caído e os ossos dos mortos, expostos. Dos crânios, alguns eram pretos e marrons, outros eram brancos. “Vejam!”, gritou, “Até depois da morte há diferenças entre pessoas de boa estirpe e os de nascimento comum; os crânios dos primeiros são brancos, os dos demais são mais escuros”.

Alguns dias depois, os viajantes chegaram ao seu destino. Sobre os portões da cidade estavam fixadas cabeças de homens que haviam sido condenados à morte por crimes hediondos. As aves predatórias, os insetos, a ação do sol e da chuva, combinados, atacaram completamente os crânios, que ficaram brancos. “Olhe para cima, ó Emir”, gritou um dos homens da caravana, “cada um desses crânios lá em cima pertenceu a uma pessoa de família nobre, como você”.

 

Um Sultão tinha dois conselheiros, um judeu e um cristão, que se invejavam mutuamente. Um dia o Sultão perguntou se era melhor ter nascido de uma família humilde, mas bem educada, ou pertencer a alguma família nobre, porém pobre. O judeu defendeu a família nobre, enquanto o cristão voltou-se para o lado da boa educação, afirmando que ele mesmo treinara um gato para fazer o trabalho de um bom criado. “Se sua Majestade permitir que o cristão mostre o seu gato”, disse o judeu, “demonstrarei que um nascimento nobre está acima da boa educação”.

O desafio aconteceu no dia seguinte. A um sinal do conselheiro cristão, um belo gato se aproximou elegantemente ante a presença imperial carregando uma pequena bandeja de ouro coberta de delícias. Contudo, o judeu retirou da manga uma caixinha com um ratinho dentro e, enquanto o gato oferecia sua bandeja ao Sultão, liberou o rato. Ao se dar conta da presença da sua presa natural, o gato hesitou por um momento, mas em seguida jogou a bandeja para cima e correu apressado, em franca perseguição ao rato.

O judeu então pediu que fosse convocada uma camponesa bem-educada do harém do Sultão. A jovem foi trazida e ele lhe fez a seguinte pergunta:

“Suponha que depois da meia-noite, mas antes do amanhecer, você tenha despertado do seu sono. Como será capaz de afirmar quando o amanhecer se aproxima?”. Ela respondeu:

“Eu devo escutar um burro mugindo, porque à aproximação do amanhecer eles mugem assim...”, e imitou o mugido dos burros.

Depois que a moça foi dispensada, o judeu disse: “Sua Majestade, por favor, observe que ela respondeu de acordo com a sua ascendência, e não conforme a sua educação. Agora me permita fazer a mesma pergunta para alguma moça de ascendência nobre, mas pobre e sem educação”. Uma jovem que atendia a estas exigências foi convocada. Ela havia se juntado recentemente ao harém, e os seus modos revelavam uma graciosa timidez. Quando o Sultão lhe perguntou como ela perceberia a aproximação do amanhecer, esta respondeu:

“Que seja do agrado de sua Majestade. Minha mãe me contou que a luz de um diamante cresce lentamente, anunciando a aproximação do amanhecer”.

O Sultão e todos os presentes aplaudiram a resposta e deram ao bom nascimento preferência sobre a boa educação.

 

Um certo imperador da China foi visitado por um importante viajante, que relatou as maravilhas que testemunhara em diferentes países. Entre outras coisas, informou ao imperador que o Xá da Pérsia tinha um leão tão manso, que seguia seu dono em qualquer lugar, como se fosse um cão de caça domesticado; o Emir de Cabul tinha um tigre; o governante de Casimira, um leopardo; em resumo, em todo país visitado ele ouviu dizer que alguma fera selvagem aprendera a ser sociável. Isto fez com que o governante chinês se sentisse diminuído ao pensar que somente ele, entre os soberanos da terra, não tinha um animal selvagem domesticado. O grande imperador, que se considerava o mais sábio dos homens e o chefe dos monarcas, comparou desdenhosamente aqueles pobres mortais — tais como o Xá da Pérsia ou o Czar de Moscou — a macacos, e decidiu adotar alguma criatura que nenhum outro ser humano sequer sonhou em domesticar.

Após muita reflexão, finalmente o imperador fez a sua escolha. Convocou seus conselheiros e lhes ordenou a invenção de algum meio de domesticar aquele animal feroz e rebelde: o porco. Este deveria ser treinado a ponto de se tornar tão limpo, manso e sociável como um cordeiro.

Os sábios e outros membros da corte, reunidos, disseram ao soberano que o que ele lhes pedia era factível; na realidade, era tão fácil que eles o fariam imediatamente.

“Tudo o que se deve fazer é dar ordens para que uma porca seja assistida de perto; assim que ela se cobrir de lixo, um dos seus filhotes deve ser retirado de perto dela antes de ter tempo para cheirá-la ou provar do seu leite. Deve ser amamentado por uma ovelha, lavado diariamente e condicionado a hábitos limpos. Se este processo for adotado, a mais vil das feras crescerá tão mansa e irrepreensível quanto um cordeiro”.

O monarca então ordenou que isto fosse feito. Um funcionário do alto escalão foi designado guardião do porquinho do imperador. Abaixo dele, havia uma equipe especial de lavadoras e tratadores, e o soberano da China esperou com paciência imperial o resultado dos trabalhos dos seus servos. O filhote de porco foi obtido da maneira recomendada, lavado em banhos freqüentes com água de rosas e outros perfumes e treinado da maneira orientada pelo instrutor. Após um tempo, os funcionários tiveram a honra de apresentar ao seu senhor um porco elegante e semelhante a um cordeiro. O monarca recompensou espontaneamente todos os envolvidos e fez do dócil porquinho seu companheiro constante. Para grande deleite do imperador, o animalzinho o seguia por todos os lugares.

No entanto, um dia o imperador decidiu estender a sua caminhada para além dos pátios do palácio. O porco, que usava um colarinho de ouro cravejado de pedras preciosas, seguia seus passos. De uma hora para outra, porém, o animal deixou seus modos de lado. Começou a fungar e a grunhir de maneira pouco amistosa e, apressadamente, antes que algo pudesse ser feito para impedi-lo, abandonou seu dono, correu pelos campos, subiu por cercas vivas e entrou em um pântano onde havia vários suínos chafurdando. Horrorizados, os membros da corte correram o mais rápido que puderam em sua perseguição, esquecendo-se de toda a dignidade e tomando o cuidado de proteger as próprias vidas, mas todo esforço foi em vão. Quando alcançaram a extremidade do brejo, ninguém poderia dizer qual das bestas sujas que rolavam na lama era o animal doméstico real. Suspeitaram de uma certa criatura particularmente imunda, mas não tinham certeza, pois ignoravam onde estava o colarinho de ouro. Então, tremendo de medo, voltaram até o soberano, que ameaçou fazer coisas terríveis no caso da perda do animal.

Deram-se ordens para que todos os membros do Conselho e sábios ausentes da capital se apresentassem imediatamente diante do imperador. Quando todas as amedrontadas barbas cinzentas, pretas e marrons estavam presentes, disseram a eles que o soberano estava extremamente tentado a cortar-lhes a cabeça naquela hora; mas como lhe agradava lembrar que ele era a fonte de toda clemência e de retribuição, o imperador lhes concedeu três dias para encontrarem um meio infalível de transformar um porco em um cordeiro de verdade.

Gratos pela chance, os conselheiros, anciãos e sábios discutiram a delicada questão em todos os seus aspectos. Ao fim da última hora do terceiro dia, foram até o salão de audiência, prostraram-se diante do trono e o porta-voz fez uso da palavra:

“Ó poderoso monarca desta época dourada, seus humildes e obedientes criados e servos consideraram e discutiram cuidadosamente o assunto que lhes foi confiado, e encontraram uma solução para o problema. De fato, é algo muito difícil de se realizar, mas justamente por isso, digno de um grande imperador. Então, se for do agrado de sua Majestade, ordene que seus embaixadores e representantes no exterior prometam grandes recompensas ao cirurgião qualificado que empreender a operação de cortar simultaneamente um porco e um cordeiro vivos, extrair o coração do primeiro e inserir o do cordeiro em seu lugar. Quando a ferida estiver costurada e o suíno recuperado, teremos um cordeiro perfeito, e a realização servirá para enriquecer ainda mais os maravilhosos registros históricos do glorioso reino de sua Majestade”. O Imperador da China, muito grato com a sugestão, determinou imediatamente que as ordens fossem enviadas aos seus representantes no exterior. No entanto, embora os anúncios tenham sido amplamente publicados, não se soube de nenhum cirurgião que tenha respondido à convocação.

 

  1. O segredo do Sucesso

Há alguns anos, em uma cidade próxima à capital, vivia um jovem notável por sua capacidade de aprender. Ele completou seus estudos na grande Universidade de El Azhar, no Cairo, tornou-se mestre nas sete ciências68 e dominava as sete línguas. Tinha uma bela caligrafia e era um poeta tão talentoso, que os amigos afirmavam que seus versos mereciam ser afixados nos portões do Templo em Meca.69 Além disso, era um sábio tão erudito que ninguém questionava o seu direito de usar um mukleh, turbante muitíssimo formal e respeitado. Apesar destas qualidades, ele não prosperava, uma vez que não tinha parentes influentes na corte. Mesmo assim, corajoso e ambicioso, decidiu ganhar a atenção e aprovação do próprio Sultão; como resultado, conquistou posição e riqueza. Como isso aconteceu? Eis a sua história:

O jovem escreveu um poema magnífico em louvor do líder máximo dos verdadeiros crentes, o Sultão Fulan, comandante dos árabes, persas e rums (bizantinos), cuja fama e influência estendiam-se pelos sete continentes e sete mares. Quando a ode estava terminada, ele a enviou ao reino, não antes de vender quase tudo o que possuía para obter o favor de vários funcionários por cujas mãos o documento precisava passar antes de ser colocado aos pés do divã onde repousava o Soberano da Época.

O rapaz tinha grande esperança em seus versos, porém grande foi o seu desgosto quando o xeique local um dia o chamou para assinar uma nota do tesouro imperial no valor de cinqüenta dinares. Feito isso, o xeique lhe contou tranqüilamente que quarenta dinares eram para pagar propina a vários funcionários entre o trono e o rapaz; cinco dinares eram para si próprio e três para algum outro pretexto, deixando apenas dois dinares para pagamento do poeta. Contudo, isto não foi barreira capaz de desanimá-lo. Completamente investido do seu desejo por sucesso e dono de um caráter perseverante, nosso herói escreveu uma segunda ode, ainda mais bela que a anterior, e seguiu a pé para Istambul. Decidido a não confiar em intermediários, iria dar um jeito de colocar pessoalmente o seu trabalho aos pés da fonte de toda generosidade terrestre.

O rapaz chegou à capital em uma noite de quinta-feira e hospedou-se em uma pousada. Na manhã seguinte, após lavar-se, arrumou seu turbante e roupas a fim de causar uma boa impressão, e posicionou-se próximo à entrada da mesquita na qual o Padixa costumava realizar semanalmente suas orações públicas. Assim que o Sultão apareceu, o poeta se aproximou apressadamente e, caindo aos seus pés, entregou-lhe o poema. O documento foi bem recebido pelo monarca, que imediatamente entrou na mesquita. O poeta esperou pelo seu retorno, e quando o Sultão o viu, ordenou-lhe graciosamente que o seguisse até o palácio. Lá chegando, o Sultão leu o poema e, como este lhe agradara, entrou no seu cofre particular, dali retirou dez dinares e os entregou ao jovem. Ao notar o olhar de desapontamento no rosto do poeta, e estando ele mesmo de ótimo humor, o Padixa lhe perguntou por que ele estava tão triste, e que o dissesse francamente, sem medo ou reserva. O poeta então caiu aos seus pés e lhe contou suas aspirações e decepções: relatou como gastara tudo o que tinha em um esforço para alcançar o sucesso e atingir uma alta posição. Assim que terminou de falar, o benevolente governante lhe disse: “Meu filho, contente-se com o que por ora eu lhe dou. Para você, receber mais no momento lhe causaria apenas mais dificuldades, pois isto certamente despertaria a atenção, a inveja e o ódio dos seus vizinhos. Contudo, acrescentarei a estes dez dinares algo de valor maior que todos os talentos e aprendizados que você já possui. Eu lhe contarei qual é o segredo do sucesso na vida: ele está expresso em uma palavra árabe, Heylim.70 Faça de Heylim uma regra em sua vida e você alcançará o sucesso”. Com estas palavras, o jovem erudito foi dispensado.

Enquanto retornava para casa, o jovem refletia sobre o estranho conselho do seu soberano. De repente foi atingido por uma idéia luminosa. Ao se deparar na estrada com um padre ortodoxo grego coberto por belas vestimentas, ele o abordou: “O nazareno filho de um cão, troque de roupas comigo”. Em princípio o padre resistiu, mas finalmente se rendeu às ameaças do muçulmano e ficou feliz em poder seguir o seu caminho incólume, vestido como um sábio muçulmano. Por sua vez, o poeta, vestido como um padre grego, voltou para Istambul, alojou-se no quarto de um albergue afastado e ali permaneceu até que seus cabelos estivessem suficientemente longos para parecer um padre da Igreja Ortodoxa sem ser reconhecido.

Após alcançar o seu objetivo, chamou o xeique muçulmano e lhe pediu uma entrevista particular. Durante a entrevista, o impostor contou:

“Três noites atrás eu tive um sonho que muito me perturbou, e que se repetiu nas duas noites seguintes. Sonhei que um homem venerável, com tais e tais características, vestindo tais e tais trajes” (aqui ele fez uma descrição que lembrava um sábio muçulmano cuja aparência tradicional se assemelhava à do Fundador do Islã) “apareceu diante de mim e, ao declarar que fora enviado para me ensinar a verdadeira religião, me fez repetir várias vezes uma oração, até que eu a soubesse de cor. Quando pude fazer isto, ele me disse que viesse até você, repetisse o que ele me ensinara, e pedisse novas instruções”.

Então, para a grande surpresa do xeique, o jovem declamou o primeiro capítulo do Corão com grande desenvoltura. O líder muçulmano interrogou diligentemente o seu visitante, mas não o desconcertou. Parecia que se tratava realmente de um padre cristão a quem o próprio Maomé ensinara os primeiros rudimentos do Islã; um convertido muito interessante. Assim, o mais alto funcionário religioso do mundo muçulmano recebeu-o na sua casa e lhe concedeu a desejada instrução.

No dia seguinte o rapaz informou seu anfitrião que sonhara novamente. Neste sonho, foi visitado pela tal pessoa venerável, que lhe ensinara um segundo conjunto de textos e lhe pedira para recitá-los diante do xeique. Ele então repetiu a segunda Sura do Corão, intitulada “A Vaca”, com 286 versos, sem cometer um único erro de pontuação vocal ou de acento. O xeique ficou extremamente surpreso e não menos impressionado com a idéia de que o próprio Profeta o tivesse escolhido para ser o instrutor religioso de um discípulo tão maravilhoso. O que diriam seus rivais quando se tornasse conhecido que a sua autoridade não apenas era apoiada pelo Califa, mas pelo próprio Maomé?

Na noite seguinte o pseudo-cristão aprendeu, conforme declarou, a terceira Sura, e pela manhã a repetiu corretamente diante do seu anfitrião, que então a explicou ao incrível aluno. Mais uma noite, e foi revelada a quarta Sura, e assim por diante, noite após noite. O xeique já não podia se privar de convidar todos os sábios que conhecia para testemunharem aquela maravilha. Eles vieram, viram, ouviram, interrogaram e inquiriram, mas aprenderam mais do que ensinaram, e partiram encantados e convencidos. Enquanto isso, o caso de conversão era comentado abertamente por toda Istambul. Os cristãos não ousavam desmentir os triunfantes muçulmanos, que ostentavam a maravilhosa conversão de um grande teólogo cristão feita pelo próprio Profeta e assistida pelo xeique do Islã, cuja fama se espalhou rapidamente. Suas fatwas (decisões legais) eram prontamente aceitas. Presentes lhe eram enviados de todos os lugares, e, sendo um homem generoso, ele os compartilhava com seu discípulo.

Porém, o suposto cristão mantinha a veste clerical, asseverando que o Profeta o proibira de retirá-la e não admitiria a sua entrada no Islã pela circuncisão enquanto sua instrução não estivesse completa. As notícias a respeito do caso extraordinário chegaram aos ouvidos do Líder dos Crentes que, sendo um homem sábio, imediatamente questionou o momento em que o notável nazareno começara a receber as instruções do xeique do Islã. A situação lhe despertou suspeitas, e ele ordenou que o suposto cristão lhe fosse levado imediatamente para uma conversa reservada. O Sultão reconheceu-o imediatamente, apesar do disfarce dos cabelos longos, e questionou duramente qual era o significado daquela falácia.

“Ó Governante da Época!”, respondeu o malandro, enquanto se curvava aos pés do Sultão, “sua Majestade me aconselhou o Heylim e eu, obedecendo, percebi quanto isto era vantajoso”. Enquanto contava a sua história, surpreendia o Sultão. Este então escreveu para o xeique dizendo que, a partir daquele momento, assumiria a responsabilidade pelos novos progressos daquele interessante convertido, que permaneceria no palácio como seu convidado. Depois disto, ordenou que o barbeiro do palácio cuidasse do malandro, entregou-lhe roupas adequadas a um verdadeiro crente, fez dele um dos seus secretários e gradativamente o alçou aos postos mais elevados do seu governo. Desde então, o ditado “Heylim e viverás”, ou, em outras palavras, “Beije um cachorro na boca até obter o que quiser dele”, tornou-se comum no Oriente Médio.

 

  1. O Origem de Três Ditados Famosos

Um rico comerciante tinha três filhos. Já idoso, sentia-se inseguro com relação à maneira como os negócios seriam administrados após a sua morte; embora seus filhos fossem homens adultos, trabalhadores e responsáveis, o homem temia que eles, por terem crescido com todo conforto, fossem muito acomodados e talvez não dessem o devido valor ao dinheiro. Resolveu então criar uma estratégia para verificar qual dos filhos tinha mais tino para os negócios: fingindo estar muito doente, comunicou aos filhos, empregados em diferentes ramos dos seus extensos negócios, que deveriam cuidar dele, pois estava com os dias contados.

O primogênito veio imediatamente. Quando chegou à beira da cama do pai, o velho reclamou que seus pés estavam muito frios. Notando que estes estavam descobertos, o jovem cobriu-os com a ilhaf.71 Alguns minutos depois o pai reclamou que seus ombros estavam frios; então o filho puxou a ilhaf para cima, mas ao observar que era muito curta para cobrir pés e ombros ao mesmo tempo, decidiu que iria para casa buscar uma colcha maior. Porém, o idoso ficou furioso e o impediu de fazer isso, dizendo-lhe que ele não podia agüentar uma coberta mais pesada e que preferia aquela colcha a outras. Sem a intenção de desobedecer ou provocar seu pai, o filho primogênito passou diligentemente um dia e uma noite inteiros puxando a pequena coberta ora sobre seus ombros, ora sobre seus pés. Ele já estava extenuado quando o segundo irmão chegou para auxiliá-lo.

O segundo passou pela mesma situação. Apesar de persuadir e protestar, o velho comerciante não permitiu que o filho lhe trouxesse uma colcha mais longa para cobri-lo, e ainda reclamava constantemente, pois ora seus ombros, ora seus pés estavam frios.

Então o filho mais novo se aproximou da cama do pai e também tentou, em vão, persuadi-lo a permitir que lhe fosse trazida uma colcha maior. No entanto, ao observar seu pai pensativo, vendo-o desfrutar a refeição, e intrigado por este não se queixar de dor, o terceiro filho suspeitou de algum tipo de jogo. Deixou a beira da cama por um instante, foi até um pé de romã no jardim, cortou uma vara boa e flexível e retornou imediatamente ao quarto do enfermo, onde foi recebido com a já habitual queixa de ombros e pés frios. Então esticou a colcha com a vara para além dos pés do ancião e disse: “Muito bem, pai! Agora estenda suas pernas de acordo com o comprimento da sua colcha”.

O efeito foi mágico. O idoso pulou imediatamente da cama, completamente curado. Em seguida decidiu que, após a sua morte, a supervisão e administração dos negócios seriam entregues ao seu filho mais jovem, que demonstrou ser suficientemente astuto para não se deixar enganar nem mesmo pelo próprio pai. Conta-se que graças a este incidente surgiu o provérbio: “Estenda suas pernas de acordo com o comprimento da sua colcha”.

 

Um afrít72 já envelhecido, pressentindo o fim da sua existência, decidiu arrepender-se dos pecados da vida e realizar uma peregrinação. Então chamou seus amigos, informou-os da sua conversão e despediu-se. No entanto, entre eles havia um casal que tinha um filho por cujo futuro estavam muito temerosos. Imaginando que seria muito vantajoso para o jovem demônio viajar sob a proteção do amigo tão bom e venerável, o casal pediu licença para que o filho deles acompanhasse o afrít. A princípio, este resistiu, mas finalmente se rendeu aos pedidos dos amigos, com uma condição: que o seu companheiro jurasse pelo Selo de Salomão73 que, enquanto estivessem viajando, ele não prejudicaria nenhum ser humano, animal ou pássaro, nem sequer uma serpente. O jovem demônio e seus pais concordaram prontamente com a condição.

O penitente então partiu com seu jovem discípulo, mas em pouco tempo o diabinho começou a achar a viagem intolerável, pois não podia se divertir fazendo mal a alguém. Os afarít 74 sempre viajavam à noite e dormiam durante o dia. Em uma noite escura e sem lua, os dois chegaram a um grande acampamento de beduínos. O silêncio era total; estava claro que toda a tribo estava adormecida. Os dois demônios atravessaram o acampamento sem perturbar uma alma; mas pouco depois o jovem implorou para voltar e caminhar novamente pelo acampamento, alegando pura curiosidade e sem nenhuma má intenção em mente.

O rapazinho foi e voltou em um minuto, e então continuaram a viagem. Contudo, ainda não haviam seguido muito adiante quando ouviram, vindo do acampamento, um estrondo capaz de ressuscitar os mortos — cavalos relinchavam, cachorros latiam, mulheres berravam, homens gritavam. O velho afrít virou-se furioso para o seu discípulo e falou:

“Mentiroso! Você quebrou seu juramento solene!”

“Não é verdade”, respondeu o jovem, “eu não fiz mal a nenhum ser vivo”.

“Então qual é o significado daquele estrondo?”

“Eu nem imagino; pode ser que o garanhão do xeique tenha se soltado. Ele estava amarrado a uma das travas da tenda, e fui verificar se a corda estava bem firme. Talvez eu a tenha afrouxado um pouco”.

Desta resposta vem o ditado:”Ele só mexeu na trava”, dito quando alguém prejudica outro indiretamente.

Karakoz e Iweyz eram dois velhacos que há muito tempo mantinham os mais estreitos laços de amizade, compartilhando aventuras, perigos e os frutos de suas patifarias. Mas houve um período em que deixaram de falar um com o outro.

Um dia Iweyz estava sentado em sua casa, tramando alguma nova artimanha para encher seus bolsos de dinheiro, quando se aproximou um conhecido, um jovem cujo pai morrera há pouco. Após as saudações habituais, a visita contou para Iweyz que o seu pai lhe deixara mil dinares, mas que ele ainda não sabia o que fazer com o dinheiro. Enquanto isso, estava ansioso para encontrar alguém honesto que cuidasse do montante até que ele, o proprietário, pudesse se decidir por algum negócio onde aplicá-lo. Perguntou então a Iweyz se ele poderia lhe fazer este favor. Embora intimamente estivesse encantado com a oferta, o velhaco demonstrou a maior aversão ao pedido e protestou:

“Não! Não! Não! Vá e encontre outra pessoa que se encarregue do seu dinheiro. Eu não posso me responsabilizar por uma quantia tão elevada”.

Ao ouvir uma recusa assim tão enfática, o jovem o importunou novamente:

“No seu leito de morte, meu pai me advertiu para não confiar em ninguém que demonstrasse ansiedade em aceitar a oferta de guardar o meu dinheiro; por outro lado, insistiu para que eu tivesse plena confiança em qualquer um que demonstrasse aversão a esta responsabilidade. Como você é esta pessoa, eu lhe peço para guardar isso para mim”.

“Não! Não! Não!”, Iweyz repetiu, com veemência ainda maior. “Faça o que você quiser com seu dinheiro: enterre, guarde num cofre, mas não o deixe comigo”.

“Eu o deixarei contigo”, disse o jovem, enquanto preparava a bolsa de dinheiro. Embora Iweyz tenha implorado para o rapaz levar aquilo para longe, este colocou a bolsa no sofá sem levar recibo nem contar com testemunhas. Quando o jovem foi embora, Iweyz, muito feliz, pegou a bolsa e trancou-a num lugar seguro. Uma hora depois, Karakoz chegou à casa do amigo. Impressionado com a felicidade de Iweyz, perguntou-lhe o motivo de tanta alegria:

“Eu assumi a custódia de mil dinares, sem recibo nem testemunhas”, disse Iweyz, e contou o ocorrido.

“Isso é ótimo”, observou Karakoz, “mas você não pode gastar o dinheiro, ainda que este tenha sido colocado em suas mãos sem recibo ou testemunhas, porque pode ser forçado a prestar juramento a respeito deste valor no mazar (santuário) de algum homem santo, que lhe atormentará no caso de você jurar em falso. Mas eu tenho a solução. O que você me dará se eu lhe mostrar um modo de escapar deste problema?”

“Meu querido amigo”, respondeu Iweyz, calorosamente, “você sabe que somos camaradas e dividimos igualmente aquilo que a sorte nos destina. É claro que eu lhe entregarei metade do dinheiro, ou seja, quinhentos dinares”.

“Muito bem”, disse Karakoz, “o expediente que recomendo é muito simples. A qualquer um que lhe perguntar a respeito do dinheiro, seja o tolo que deixou o dinheiro contigo, seja o juiz ou qualquer outro, responda sempre: Shurulub”.

“Gostei do seu conselho, vou segui-lo à risca”, disse Iweyz.

Alguns meses depois o jovem proprietário do dinheiro chegou para Iweyz e o pediu de volta, pois tinha a intenção de iniciar um negócio.

“Pth, tth, th”, respondeu o malandro, titubeando e gaguejando, “pth, tth, th, sh, th, shurulub”!

O rapaz, extremamente surpreso, explicou novamente que queria o seu dinheiro de volta.

“Pth, tth, th, sh, th, shurulub”, respondeu Iweyz, solenemente.

“Meu dinheiro, devolva o meu dinheiro!”, gritou o jovem.

“Pth, tth, th, sh, th, shurulub”, respondeu o hipócrita, com um olhar de surpresa e menosprezo.

“Se você não devolver imediatamente o meu dinheiro, eu o acusarei perante o juiz”, esbravejou furiosamente o jovem.

“Pth, tth, th, sh, th, shurulub”, respondeu Iweyz, assumindo um ar de enorme indiferença.

Percebendo que todas as solicitações, pedidos e ameaças eram inúteis, e que a única resposta que ele receberia seriam titubeios e gaguejos que finalizavam com um incompreensível “shurulub”, o jovem enganado foi se queixar para o juiz.

Ao ser convocado, Iweyz compareceu prontamente sem discutir. Contudo, a única resposta que deu às perguntas e questionamentos, mesmo depois de ter sido severamente açoitado — o que agüentou sem vacilar — foi “Pth, tth, th, sh, th, shurulub”.

Tamanho absurdo fez com que finalmente o juiz e seu tribunal explodissem em risos. Dispensaram o acusado, não antes de culpar severamente o acusador por ter negligenciado a simples precaução de depositar o dinheiro na presença de testemunhas, em vez de, como o jovem confessou posteriormente, teimar em deixar a quantia com um homem que se recusara a assumir qualquer responsabilidade.

Iweyz voltou para casa rindo à toa graças ao seu sucesso, quando Karakoz chegou e pediu a sua parte no golpe.

“Pth, tth, th, sh, th, shurulub”, respondeu Iweyz.

“Ei, ei”, surpreendeu-se Karakoz, “não se faça de bobo comigo, pois fui eu que lhe mostrei o modo de adquirir esta dinheirama. Você com certeza não vai enganar um velho amigo e camarada!”

“Pth, tth, th, sh, th, shurulub”, respondeu Iweyz, com um gesto zombeteiro.

A expressão popular “Shurulub” — adquirir dinheiro em confiança — deriva deste acontecimento.

 

  1. Fábulas

Certo dia, enquanto cavalgava pelos campos, um velho camponês de aparência respeitável que plantava uma figueira chamou a atenção do Califa Harun er Rashid. O Comandante dos Crentes abordou-o e perguntou por que ele estava se dando ao trabalho de plantar uma árvore cuja fruta dificilmente teria o prazer de saborear.

“Ó Califa”, respondeu o ancião, “Deus queira que eu possa viver o suficiente para provar a fruta desta árvore, mas se assim não for, meus filhos o farão, assim como eu comi a fruta de árvores plantadas por meu pai, avô e bisavô.”

“Qual a sua idade?”, perguntou o monarca.

“107 anos”, respondeu o ancião.

“107 anos!”— exclamou o Califa com surpresa, e acrescentou: “Bem, no caso de você realmente viver para comer a fruta desta árvore, quando isto ocorrer, por favor, me avise”.

Passados vários anos, Harun havia esquecido completamente o ancião. Um dia, porém, lhe anunciaram que um velho camponês desejava uma audiência, declarando que, por ordens do próprio Califa, trazia-lhe uma cesta de figos. Após ordenar a entrada do homem, Harun ficou surpreso ao descobrir que o mesmo camponês que, anos antes, vira plantando uma figueira, agora lhe trazia um pouco de frutas selecionadas daquela mesma árvore. O Califa recebeu bondosamente o presente. Em retribuição, convidou o ancião a sentar-se ao seu lado no divã e ordenou que lhe fossem dadas belas roupas; então lhe pagou um dinar de ouro por figo e se despediu respeitosamente.

Quando o velho camponês partiu, o filho do Califa perguntou ao seu pai por que tanta bondade fora dispensada a um camponês analfabeto. “Meu filho”, respondeu Harun, “o próprio Alá o honrou; eu só fui chamado para fazer o mesmo”.

O velho camponês voltou à sua aldeia em grande júbilo, e lá exaltou a liberalidade e condescendência do Califa. No entanto, na porta ao lado da sua vivia uma mulher ciumenta e avarenta que, invejosa da felicidade do vizinho idoso, resolveu sobrepujar-se a ele. Então perturbou tanto seu marido que, em nome da paz, este encheu uma grande cesta de figos e foi até o palácio do Califa. Quando questionado sobre o motivo da sua presença, o homem respondeu que, como o Comandante dos Crentes era conhecido por sua imparcialidade e recompensara enormemente o seu vizinho por alguns figos, ele também resolvera lhe trazer alguns e esperava receber uma recompensa semelhante. Ao ouvirem isto, os guardas informaram o caso a Harun, que por sua vez ordenou que o tolo fosse alvejado por suas próprias frutas. Furioso e ferido, o homem voltou para casa e divorciou-se da esposa cuja loucura o expusera a tamanha vergonha.

 

Certo dia um Sultão foi perturbado pelos gritos de dois mendigos na rua próxima ao seu palácio. Um deles gritava:

“Ó Alá, o Abundante”, enquanto o outro berrava:

“Ó Alá! Conceda a vitória ao Sultão!”.

O monarca, lisonjeado pelo interesse que o último demonstrava por seu bem-estar, convocou seu conselheiro e disse: “Cuide para que esse mendigo, que reza por mim, receba uma ave assada recheada com barras de ouro; mas para o outro entregue uma ave cozida do modo habitual”.

O conselheiro obedeceu. Feliz da vida, o homem que dissera que Alá era Abundante levou a ave à sua esposa, enquanto o outro lhe disse:

“Compre esta ave de mim. Eu não tenho esposa nem filhos. O que eu quero é dinheiro, e não comida farta”.

“Mas eu tenho apenas algumas moedas de pouco valor”, respondeu, “e isso não é nada comparado ao valor de uma ave assada”.

“Você pode levá-la por estas moedas”, disse o outro; e foi assim que o mendigo que louvou a Alá não só adquiriu um bom jantar, como também amealhou uma pequena fortuna.

Esse homem deixou de mendigar e abriu uma pequena loja. Por outro lado, seu companheiro gastou suas poucas moedas, voltou ao portão de palácio e clamou: “Ó Alá! Conceda a vitória ao nosso Sultão”. O monarca enviou-lhe uma segunda ave recheada de ouro. Ao recebê-la, apressou-se em encontrar seu amigo e ofereceu-a por outro punhado de moedas, que foram prontamente pagas.

Quando o grito “Ó Alá! Conceda a vitória ao Sultão!” foi ouvido pela terceira vez à entrada do palácio, o Sultão esbravejou: “O que é isso? Eu tornei este homem duplamente rico e ele ainda precisa implorar esmolas? Tragam-no até aqui”. Quando o mendigo foi levado até o Sultão, este, intrigado, perguntou:

“Por que você continua mendigando se eu lhe fiz rico?”

“Ah, Sultão da Época”, respondeu o mendigo, “tudo o que eu recebi diante do portão de sua Alteza foram duas aves, que eu vendi para o mendigo que clamava ‘Ó Alá! Tu és Abundante!’. Desde então, ele enriqueceu e até abriu uma loja”.

“Wallahi! Alá mostrou que é melhor louvar a Sua generosidade do que rezar pela minha prosperidade”, clamou o Sultão, impressionado.

 

Certa vez, em um debate entre um Sultão e seu conselheiro sobre o que se poderia chamar de bondade verdadeira, o primeiro afirmava que esta podia ser encontrada na mais pobre das pessoas, enquanto o conselheiro defendia que era impossível ser bondoso ou demonstrar bondade a menos que se fosse próspero. Quando o Sultão imaginou que tudo já fora dito, convocou o xeique muçulmano e ordenou que o debate e os argumentos de ambos os lados fossem registrados e depositados nos arquivos públicos.

Uma tarde o Sultão convocou secretamente o xeique; então os dois, disfarçados como mendigos, saíram para verificar a questão. Ao chegarem à cidade encontraram muita coisa interessante, mas nada que solucionasse o problema que desejavam resolver. Ao anoitecer alcançaram os arredores da cidade, e quanto mais avançavam para a zona rural, mais escura ficava a noite. Viram uma luz brilhando em um campo à margem da estrada e seguiram naquela direção. Chegaram, por fim, a uma casa feita de barro; era o lar de um pobre pastor que àquelas horas estava trabalhando, mas na sua ausência a esposa recepcionou os visitantes. Alguns minutos depois ele chegou trazendo consigo quatro cabras, que eram tudo o que ele tinha.

“Minha casa é sua casa”, disse o pastor aos convidados. Em seguida pediu licença para retirar-se por alguns minutos e dirigiu-se ao proprietário do rebanho que ele pastoreava para lhe pedir dois pães de trigo, pois era incapaz de servir pães velhos aos seus convidados. Os dois pães com alguns ovos, coalhos e azeitonas, transformaram-se num apetitoso jantar. “Perdoe-nos”, disse o Sultão, “mas fizemos um voto de não comer nada além de pão e rins por um ano e um dia”. Sem dizer uma palavra, o anfitrião saiu, matou suas quatro cabras e grelhou seus rins. Mas quando o jantar foi servido ao Sultão, este disse: “Fizemos um voto de não comer nada depois da meia-noite. Levaremos isto conosco e comeremos quando nosso voto expirar. E agora, lamento dizer, temos que partir”. O pastor e sua família lhes imploraram que ficassem até a manhã, mas em vão.

Quando os falsos mendigos estavam novamente sós na estrada, o Sultão disse ao xeique: “Agora vamos ver como se comporta o meu conselheiro!”. Quando chegaram à casa deste, perceberam que havia luz e música; ele estava se divertindo. O humilde pedido de dois mendigos por comida e hospedagem foi prontamente recusado, e quando eles insistiram, ouviu-se o conselheiro gritar: “Soltem os cachorros, deixem que ataquem estes miseráveis. Isso lhes ensinará a não mais infestar a casa dos outros”. As ordens foram obedecidas e os dois foram atacados, mas conseguiram fugir. Machucados e sangrando, chegaram ao palácio no meio da noite. Após retirarem seus disfarces, o Sultão chamou reservadamente um médico para cuidar das suas feridas. Em seguida reuniu o seu conselho de ministros, apresentou-lhes um mapa para indicar onde ficava a residência do pastor, ordenou que todos fossem até lá e espreitassem, sem perturbar os moradores. “Quando o proprietário daquela casa sair pela manhã, cumprimentem-no com o maior respeito, e digam que eu o convido a me visitar. Escoltem-no com todas as honras, e tragam com vocês os corpos de quatro cabras que encontrarão próximos à casa”.

Quando viu sua casa cercada por uma multidão de cortesãos e soldados naquela manhã, o pastor temeu por sua vida; tampouco se tranqüilizou com o modo amável com que eles o convidaram para o palácio do Sultão, nem com a inexplicável conduta de apanharem as cabras mortas e as levarem com honras.

Quando a procissão chegou ao palácio, o Sultão fez o pastor sentar-se ao seu lado e ordenou que o registro do seu debate com o conselheiro fosse lido em voz alta para todos ouvirem. Uma vez encerrada a leitura, o Sultão passou a relatar suas aventuras na noite anterior. Em seguida voltou-se para o conselheiro e afirmou: “Você traiu a sua própria causa! Ninguém neste reino está em melhor posição do que você para demonstrar bondade por seus semelhantes. No entanto, demonstrou apenas crueldade! A partir de agora você não é mais meu conselheiro, e suas riquezas serão confiscadas. Porém este pastor — que mendigou um pão melhor para dar de comer aos mais gananciosos e rudes convidados que já entraram na sua casa, e preferiu sacrificar quatro cabras, que eram tudo o que ele tinha, a desapontar seus visitantes — tornar-se-á meu amigo e sentar-se-á ao meu lado”. Assim, a bondade foi recompensada e a maldade, punida.

 

Em Jerusalém havia dois irmãos gêmeos que, mesmo depois de adultos, viviam e trabalhavam juntos, compartilhando o produto de suas plantações. Uma noite, após colherem milho e dividirem as espigas em partes iguais, como era de costume, dormiram junto ao milharal para evitar roubos. A noite um deles despertou e pensou: “Meu irmão é um homem casado com filhos para cuidar, enquanto eu sou solteiro. Não está certo que eu receba uma parte igual à dele pelo produto do nosso trabalho”.

Pensando assim, ele levantou-se em silêncio e passou sete medidas da sua parte para o lado do irmão; então voltou a dormir. Pouco tempo depois, seu irmão despertou e, enquanto admirava as estrelas, refletiu: “Graças ao Altíssimo, eu tenho uma boa esposa e quatro filhos adoráveis. Tenho alegrias que meu irmão desconhece. Não está certo que eu receba uma parte igual à dele pelo produto do nosso trabalho”. Logo após, ele rastejou silenciosamente até o seu quinhão de espigas e transferiu sete medidas para o lado do seu irmão; então voltou a dormir. Pela manhã ambos, constatando que possuíam o mesmo tanto de milho, ficaram pasmos. Então Deus enviou um mensageiro para lhes informar que o amor que tinham um pelo outro agradava ao Todo-Poderoso, e aquele milharal foi eternamente santificado.

O Kadi Abdula el Mustakim — cujos descendentes habitam até hoje na cidade portuária de Iafo — vivia em Bagdá durante o reinado de El Mansur, um dos Califas da dinastia de Abbas, e acredita-se que obteve seu honrado sobrenome, que significa “o honesto” ou “o correto”, da rígida imparcialidade com que julgava seus casos. Conta-se a seguinte história a seu respeito:

Ao sair da sua casa pela manhã, o honesto juiz encontrou uma pobre mulher que, acompanhada por seu filho, montava num burro e queixava-se amargamente da sua má sorte. Ao ver a sua angústia, o Kadi, que era bondoso com os pobres e aflitos tanto quanto era duro com os malfeitores, parou diante dela e perguntou a razão de tamanha tristeza:

“Ai meu senhor”, disse a mulher, “então eu não tenho motivos para lamentar? Meu marido morreu alguns meses atrás, depois de me fazer jurar, ao lado do seu leito de morte, que eu não venderia o nosso pequeno lote de terra cujo cultivo nos manteve, e o conservaria para o nosso filho, este menino. Eu também prometi ensinar esta criança a cultivar o campo como nossos antepassados fizeram, geração após geração. Mas o Califa enviou um dos seus criados e fez uma oferta para comprar esta terra, porque ela é adjacente a uma propriedade sua onde pretende construir um palácio. Dizia que precisava adquirir o meu lote de terra com o propósito de viabilizar os seus planos. Eu me recusei a vender, pela razão que lhe contei. Depois de muito me pressionar para abrir mão de minha terra e eu sempre recusar, esta manhã o Califa expulsou-nos da nossa propriedade legal, herdada dos nossos antepassados, e nos falou que como eu me recusara a vendê-la, esta seria tomada sem pagamento de indenização. Foi assim que perdemos tudo, exceto um ao outro e este burro com um saco vazio na traseira, e não sabemos a quem pedir ajuda, pois não há quem possa se contrapor ao Califa”.

“Onde fica a sua terra?” — perguntou El Mustakim.

“Naquela região”, apontou a mulher.

“E você afirma que saiu há pouco dali, e que o Califa lá estava quando você partiu?”

“Sim, meu senhor”.

“Muito bem, fique na minha casa até eu retornar, e enquanto isso me empreste o seu burro e o saco vazio durante algumas horas. Inshalá, como eu sou razoavelmente conhecido do Comandante dos Crentes, acho que posso persuadi-lo a alterar seus planos e lhe devolver a propriedade”.

Ao ouvir estas palavras, a pobre viúva aceitou imediatamente a proposta do juiz, que montou no burro e partiu, levando consigo o saco vazio. Logo chegou ao lugar e ali encontrou o Califa dando várias ordens ao arquiteto para erguer o novo palácio. Ao se aproximar, o juiz prostrou-se diante dele e pediu uma breve audiência privada. O Califa, que tinha um enorme respeito pelo Kadi, recebeu-o para uma conversa reservada. Então o juiz, agindo em defesa da viúva, suplicou em seu favor. Como o monarca estava irredutível, o Kadi lhe disse:

“Ó Príncipe dos Crentes, nosso governante, que Alá prolongue o seu reinado, mas como sua Alteza ocupou a propriedade da viúva e do órfão, eu imploro, em nome deles, que me permita levar-lhes um saco desta terra”.

“Pode levar dez sacos, se quiser”, riu-se o Califa, “mas não vejo como isso os ajudará”.

O Kadi agarrou uma pá, cavou a terra e a colocou no seu saco. Então, voltando-se para o Califa, disse:

“Agora eu suplico a sua Alteza, por tudo o que nós, muçulmanos, temos de mais sagrado, que me ajude a colocar isto na parte de trás deste burro”.

“Você é um homem engraçado”, respondeu o governante, que estava se divertindo muito com a inusitada situação, “por que não chama alguns daqueles escravos para erguer isto para você?”

“Ó Príncipe dos Crentes”, respondeu o Kadi, “a terra no saco perderia completamente as suas virtudes se sua Alteza ordenasse que outros a erguessem; e sua Alteza seria quem mais sofreria com a perda”.

“Bem, então que assim seja”, disse o Califa, cada vez mais curioso. Ele então agarrou o saco, mas não pôde movê-lo. “Eu não posso, é muitíssimo pesado”.

“Neste caso”, disse o honesto juiz, “já que sua Majestade considera que o peso de um saco de terra, que está disposto a restabelecer aos seus legítimos donos, é mais do que pode agüentar, permita-me perguntar: como suportará o peso de todo este pedaço de terra que retirou violentamente da viúva e do órfão, e como responderá por sua injustiça no Dia de Julgamento?”

Esta dura repreensão enfureceu o Califa; porém, após refletir por um instante, ele respondeu: “Louvado seja Alá, que me concedeu um servo assim tão consciencioso. Eu restabeleço a terra à viúva e ao seu filho, e, para compensar as lágrimas derramadas por minha causa, eu perdôo todas as dívidas e impostos devidos por este lote de terra”.

 

Um rebanho de camelos passava por um pomar cujo proprietário estava sentado sobre uma cerca de pedra quando um dos animais, um belo macho, agarrou um dos ramos de uma árvore e rompeu-o com os dentes. Ao ver isso, o proprietário do pomar pegou uma pedra e lançou-a contra o camelo. Sua pontaria foi tão precisa, que o animal caiu morto. Seu dono, furioso com a perda, pegou a mesma pedra e lançou-a com precisão contra o proprietário do pomar que, golpeado nas têmporas, morreu de imediato. Horrorizado por seu ato impulsivo e ciente das conseqüências que estavam por vir, o dono do rebanho montou sobre o mais ligeiro dos seus camelos, abandonou os demais à própria sorte e fugiu tão rápido quanto pôde. Porém, foi seguido prontamente pelos filhos do homem morto e forçado a voltar com eles à cena da tragédia, que era próxima ao acampamento do Califa Omar ibn el Khattab. Os filhos do morto exigiram a vida do homem que matara o pai deles; todavia, o dono dos camelos explicou que não agira premeditadamente, mas sob a influência de uma provocação. Por não haver testemunhas para provar que ele falava a verdade, e como os filhos do homem morto não queriam ouvir falar de uma indenização, o Califa ordenou que o assassino fosse decapitado.

Naquela época era costume que a execução de um criminoso ocorresse imediatamente após a condenação à pena de morte. Eis o procedimento: uma pele ou coberta, conhecida como nut’a, era aberta na presença do monarca e a pessoa a ser decapitada deveria se ajoelhar sobre ela com as mãos para trás. O executor, colocado por trás do condenado com sua espada desembainhada, clamava então em voz alta:

“Ó Comandante dos Crentes, está realmente decidido que fulano deixe este mundo?” Se o Califa respondesse “sim”, então o executor repetia a mesma pergunta novamente. Se a resposta afirmativa permanecesse, a pergunta era refeita pela terceira e última vez para que, em seguida — a menos que o monarca revogasse a ordem fatal imediatamente — a cabeça do prisioneiro fosse decapitada.

Na ocasião da qual estamos falando, o condenado, imaginando que sua vida estava inexoravelmente perdida, pediu encarecidamente ao Califa três dias de folga para ir à sua tenda, que ficava em uma localidade distante, e organizar questões familiares. Ele jurou que retornaria ao fim dos três dias e cumpriria a pena imposta. O Califa respondeu que, considerando a hipótese de ele faltar com a palavra, ele deveria encontrar um infeliz para morrer no seu lugar. O pobre homem, desesperado, olhava ao seu redor e só via uma multidão de desconhecidos. A pele foi trazida e o executor avançou com o intuito de lhe amarrar as mãos. Completamente desiludido, o condenado clamou: “Será que a raça dos homens virtuosos não mais existe?” Fez-se silêncio absoluto. O pobre homem repetiu a pergunta com maior ênfase; foi então que o nobre Abu Dhur, que era um dos Sohabas, companheiros do Profeta, deu um passo adiante e pediu ao Califa permissão para se tornar o seu eventual substituto. O monarca aceitou o seu pedido, mas advertiu-o de que sua própria vida seria sacrificada no caso de o assassino não retornar no tempo estipulado. Abu Dhur concordou, e o condenado, uma vez libertado, partiu em desabalada correria e logo estava longe da vista dos presentes.

Os três dias se passaram, e como o homem não retornara e ninguém acreditava que ele o faria, o Califa, voltando-se aos parentes do homem morto, ordenou que Abu Dhur pagasse a penalidade. A pele foi trazida e Abu Dhur, com as mãos amarradas às costas, ajoelhou-se sobre ela, entre as lamentações e lágrimas dos seus numerosos amigos e parentes. Por duas vezes, com uma voz abafada pela algazarra da assembléia, o executor perguntou ao governante muçulmano se realmente era da sua vontade que o nobre homem deixasse este mundo. Em ambas as ocasiões o monarca respondeu com um severo “sim”. Contudo, antes que a pergunta fatal fosse feita pela última e derradeira vez, alguém gritou: “Parem, em nome de Alá: vejam quem vem correndo!” A um sinal do Califa, o executor permaneceu calado e, para surpresa de todos, o homem condenado à morte três dias antes se aproximava correndo. Então, quase sem fôlego, gritou:

“Louvado seja Alá”, e caiu exausto ao chão.

“Tolo”, disse-lhe o Califa, “por que retornou? Caso tivesse fugido, o seu substituto teria morrido no seu lugar e você estaria livre”.

“Eu retornei”, respondeu o homem, “não só para provar que a raça dos virtuosos não desapareceu, mas que também a dos homens que mantêm a palavra ainda existe”.

“Por que você não foi embora de vez?”, insistiu o monarca, incrédulo. O homem, agora ajoelhado com as mãos sobre a pele da qual Abu Dhur levantara-se, respondeu:

“Como eu lhe disse, ó Califa, voltei para provar que a raça dos homens confiáveis não pereceu”.

“Explique-se”, afirmou o Califa.

“Algum tempo atrás, uma pobre viúva veio até mim e me pediu para guardar alguns objetos de valor. Como eu tinha que viajar a negócios, levei estas coisas comigo para o deserto e as escondi sob uma grande rocha, em um local onde ninguém, além de mim, poderia encontrá-las. Lá estavam os pertences da viúva quando fui condenado a morrer. Se a minha vida não tivesse sido poupada por alguns dias, eu teria morrido com o coração pesado, pois o conhecimento do esconderijo morreria comigo, a mulher estaria irreparavelmente prejudicada, e meus filhos teriam ouvido a viúva amaldiçoar a minha memória sem meios para esclarecer-lhe o meu trágico fim. Porém, agora que solucionei esta questão pessoal e devolvi à mulher os seus objetos de valor, estou pronto para morrer com o coração leve”.

Ao ouvir isto, Ornar virou-se para Abu Dhur e lhe perguntou:

“Este homem é seu amigo ou parente?”

“Wallahi!” respondeu Abu Dhur, “eu lhe asseguro, ó Califa, que eu jamais havia posto os olhos sobre ele até três dias atrás”.

“Então por que você foi tão tolo a ponto de arriscar a sua vida? Pois se ele não tivesse retornado, eu determinaria que você morresse no lugar dele”.

“Eu fiz isso apenas para provar que a raça dos homens virtuosos não desapareceu”, respondeu Abu Dhur.

Ao receber esta resposta, o Califa permaneceu um tempo calado; então, virando-se para o homem ajoelhado, declarou:

“Eu o perdôo, pode ir”.

“Por que, ó Califa?”, perguntou um velho e honrado xeique. Ornar respondeu:

“Porque como ficou provado que a raça dos virtuosos e dos homens de palavra não desapareceu, só me resta demonstrar que a raça dos homens clementes e generosos também ainda está viva. Por isso eu não só perdôo este homem, como pagarei o resgate da sua vida com meus próprios recursos”.

 

  1. O Anjo da Morte

Três anjos poderosos, prostrados com a mais profunda reverência diante do trono de Deus, esperavam as Suas mais elevadas ordens. O Todo-Poderoso disse a um deles:

“Desça para a Terra e traga um punhado do seu pó para cá”. Ao receber esta ordem, o mensageiro, com um vôo ligeiro e mergulhando na atmosfera, desceu para a Terra para juntar um punhado do seu pó. Porém, assim que começou a colher a terra, o mundo inteiro estremeceu, do centro à circunferência, fazendo gemer a maioria dos seus pobres habitantes. Comovido e assustado pela angústia que seus movimentos causaram, o anjo deixou o pó que juntara para trás, terra sobre terra, e retornou, envergonhado e lamentando-se, ante a Presença Daquele que o enviara. Então Deus disse: “Não te culpo, não estava escrito na Tábua do Destino que esta seria a tua tarefa. Irei te ocupar com outro serviço”.

Então Deus disse ao segundo anjo:

“Vá você, e busque um punhado do pó da Terra”. Este também voou rapidamente até a Terra e tentou recolher um punhado do seu pó. No entanto, ao ver como a Terra tremia e estremecia, e após ouvir os gemidos de seus habitantes, nada pôde fazer a não ser deixar o que juntara ali, pó sobre pó, e voltar envergonhado e chorando ante a Presença Daquele que o enviara. Então Deus disse: “Esta tarefa não era para ti. Eu não te culpo; outro serviço será o teu”.

Em seguida Deus enviou o terceiro anjo para a Terra, que desceu rapidamente e recolheu o pó. Quando a Terra começou a gemer e a estremecer, causando imensa dor e angústia, o anjo, entristecido, pensou: “Essa dolorida tarefa me foi determinada por Deus, e a Sua vontade deve ser cumprida, mesmo que os corações sofram de dor e tristeza”. Em seguida retornou e entregou o punhado do pó da Terra diante do trono do Todo-Poderoso. Então Deus disse: “Como tu cumpriste o que deveria ser feito, agora a tua tarefa, ó Azrael, será recolher para mim as almas dos homens e mulheres quando a hora destes chegar: as almas dos santos e dos pecadores, dos mendigos e dos príncipes, do velho e do jovem, onde quer que estejam, ainda que os amigos e familiares lamentem e sofram de tristeza e angústia a perda daqueles que amam”. Foi assim que Azrael se tornou o anjo da Morte.

Azrael fizera algo de errado no céu. A fim de expiar a sua transgressão, foi obrigado a viver como homem na Terra, sem, porém, negligenciar seus deveres de Anjo da Morte. Ele tornou-se médico, e como tal alcançou grande celebridade. Casou-se e teve um filho, mas sua esposa era uma megera terrível; não aumentava a sua felicidade saber que ela estava destinada a sobreviver a ele.

Quando Azrael envelheceu e o tempo da sua partida se aproximava, revelou o seu real caráter ao filho mediante juramento de manter o mais rígido segredo.”Como eu estou para partir em breve”, disse, “é meu dever garantir o seu futuro. Você saberá tudo o que pode ser conhecido das ciências e seus procedimentos. Eu lhe ensinarei a ser um médico. Sempre que você for chamado para o lado de um doente, eu estarei presente, mas somente você poderá me enxergar. Se eu estiver à cabeça da cama, esteja certo de que o paciente morrerá, apesar do tratamento que lhe oferecer; se eu estiver ao pé do leito, ele vai se recuperar, ainda que você lhe ministre o veneno mais mortal”.

Azrael morreu, como estava predestinado; e o seu filho, seguindo suas instruções, logo se tornou um médico rico e famoso. No entanto, era esbanjador e nada guardava do que ganhava. Um dia, quando seus bolsos estavam completamente vazios, foi chamado para o lado da cama de um homem muito rico que estava à beira da morte. Ao entrar no quarto do doente, viu seu pai em pé à cabeça da cama; então, após examinar o moribundo, declarou que o estado do paciente era irrecuperável. Diante do diagnóstico, o milionário, com muito medo, apertou os joelhos do médico e lhe prometeu metade das suas posses se ele lhe poupasse a vida. O filho de Azrael ficou extremamente tentado. “Bem, verei o que posso fazer se você me entregar três quartos da sua fortuna, quer eu tenha sucesso ou não”. O paciente, temendo a própria morte, consentiu. O médico lhe entregou o contrato, que o milionário assinou e selou. Em seguida o filho de Azrael virou-se para o pai e, através de gestos frenéticos, lhe implorou para se mover em direção ao pé da cama, mas o Anjo da Morte não se moveu. Então o médico chamou quatro homens fortes, ordenou que cada um deles erguesse um dos cantos da cama e, juntos, a girassem tão rapidamente que a cabeça do doente passou a ocupar o lugar onde antes estavam seus pés. Tudo foi feito com muita agilidade, mas Azrael ainda estava parado à cabeça da cama. A manobra foi repetida, mas o Anjo da Morte sempre se movia juntamente com o leito. O filho quebrava a cabeça para imaginar algum novo expediente. Após dispensar os quatro fortes auxiliares, o médico repentinamente caiu em lágrimas e sussurrou: “Pai, eu ouço a minha mãe vindo”. Num instante o medo tomou conta do severo anjo, e ele se foi. De imediato o doente se recuperou. Contudo, daquele dia em diante Azrael deixou de aparecer para o seu filho, que passou a cometer tantos erros médicos que sua reputação foi por água abaixo.

Um dia ele estava no funeral de um judeu, vítima de seus erros médicos. Deixou a cerimônia fúnebre e, enquanto passeava tristemente por Wady-en-Nar,75 pensava em seu pai. Então viu que Azrael surgiu à entrada de uma caverna e lhe disse pesarosamente:

“Você morrerá em poucos minutos. Porque me impediu de cumprir meus deveres, sua vida será encurtada”. O jovem implorou clemência, enquanto caía aos seus pés, beijando-os, até que Azrael lhe falou em um tom mais amável:

“Bem, entre na minha oficina e veja se a sua esperteza é capaz de encontrar um modo de lhe tirar desta dificuldade. Embora eu esteja agora impotente para ajudá-lo, é possível que você mesmo ainda possa se salvar”. Eles atravessaram um salão com sete câmaras, cujos lados se assemelhavam às paredes de uma farmácia, cobertos com estantes cheias de todo tipo de garrafas, urnas e caixas. Azrael lhe explicava que cada uma delas continha o sopro da morte de algum ser humano. O médico retirou um dos recipientes de uma das estantes, abriu sua tampa de metal, e lhe pareceu que dele escapava um pouco de ar. “Um certo jovem morrerá em poucos minutos, após cair do seu cavalo; eu há pouco soltei o demônio que assustará aquele animal”, contou Azrael. De um segundo recipiente ele relatou: “Este contém cascas de ovo de safat, um estranho pássaro que nunca pousa em lugar algum, mesmo ao se acasalar. Seus ovos são postos em pleno vôo e chocados antes de alcançarem o chão. Somente as cascas caem na terra, pois os filhotes já saem voando assim que deixam o ovo. Estas cascas são encontradas com freqüência e devoradas pelo ganancioso e sanguinário leopardo76 que, furioso, morde toda criatura que encontra pelo caminho, espalhando terror e causando muitos danos”.

Assim eles passaram de sala em sala até chegarem a um grande salão, onde em filas e filas de mesas estavam inúmeras luminárias de várias formas e tamanhos; algumas queimavam vivamente, outras tinham uma chama fraca, e muitas estavam se apagando.

“Estas são as vidas dos seres humanos”, disse Azrael. “É papel do Anjo Gabriel alimentá-las e acendê-las; mas ele é bastante descuidado. Veja! Ele deixou seu lançador de óleo na mesa ao teu lado”.

“Minha luminária! Onde está a minha luminária?”, gritou desesperadamente o médico. O Anjo de Morte apontou para uma que estava a ponto de se apagar.

“Meu pai, por piedade, realimente-a”.

“Esta é a função de Gabriel, não a minha. Todavia, por ora não levarei sua vida, pois tenho que recolher aquelas luminárias espalhadas até o fim deste salão, que já se apagaram”. O filho, deixado em pé diante da sua chama moribunda, agarrou o lançador do Anjo Gabriel e tentou verter um pouco de óleo no seu próprio recipiente; mas nervoso e apressado como estava, derrubou a luminária e quebrou-a. Azrael voltou e recolheu a luminária vazia de seu filho, carregando-a ao longo das salas até a boca da caverna, onde mais tarde o médico foi encontrado morto. “Que tolo foi meu filho”, refletiu o Anjo da Morte, “por que ele tinha que interferir no trabalho dos anjos? De qualquer modo, ele não pode dizer que eu o matei”.

Como diz o ditado: “Azrael sempre encontra um pretexto”.

 

Entre os soldados de Herodes havia um italiano de nome Francesco, um jovem valente que se destacara nas guerras e era o favorito do seu comandante, bem como de todos os que o conheciam. Ele era gentil com os fracos, bondoso com os pobres, e exceto nas lutas justas, jamais se soube que ferira um ser vivo. As crianças em particular se encantavam com a sua companhia. Mas ele tinha um vício: era um jogador inveterado, e todos os seus momentos de folga eram gastos com cartas.

Além de jogar, parecia sentir um prazer especial em persuadir outros a seguir o seu exemplo. Ele convidava os meninos e rapazes que iam a caminho da escola, e estes deixavam seus deveres de lado para tentar a sorte no jogo. Conta-se que Francesco era tão convencido da sua capacidade de persuasão, que costumava abordar até alguns respeitáveis judeus no caminho para o Templo e convidá-los a se unir a ele na sua tão amada diversão. Por fim, as coisas foram tão longe que os sumo-sacerdotes e os governantes se reuniram com Herodes e exigiram que o jovem fosse punido. Todavia, o carteado se tornou um passatempo pelo qual o próprio Herodes se encantou; por essa razão, ele não levou a punição a Francesco muito a sério. Somente porque os governantes judeus continuaram perturbando-o é que ele aplicou ao italiano a sua pena, expulsando-o de Jerusalém para nunca mais voltar.

Francesco iniciou vida nova. Reuniu alguns dos seus antigos colegas cujo tempo de serviço militar havia expirado e tornou-se o líder de um bando de homens armados cujo negócio era tocaiar viajantes no caminho para a Cidade Santa. O principal esconderijo dos bandidos era uma grande caverna à margem da estrada um pouco ao norte de El Bireh, a antiga Beerot.77 Eles jamais foram acusados de violência, tampouco molestavam os pobres. O modo de agirem era peculiar: paravam e cercavam os viajantes que aparentavam ser ricos e os convidavam para uma visita à sua caverna a fim de jogarem cartas com Francesco. Os viajantes não ousavam recusar um convite tão cortês vindo de um grupo de soldados armados. Eles eram gentilmente recepcionados pelo jogador, servidos com vinho e convidados a apostar tudo o que possuíam nas cartas. Quando ganhavam, não eram saqueados; quando perdiam, ficavam atordoados e imploravam para voltar com mais dinheiro e tentar a sorte uma segunda vez.

Esta situação perdurou um bom tempo, até que um dia um dos seguranças externos de Francesco anunciou a aproximação de um grupo de pedestres.

“Se eles estão a pé”, disse o líder dos bandidos, “é improvável que estejam carregando algo de valor para apostarem no jogo; mas deixem-me ver quantos eles são?”

“Treze”, foi a resposta.

“Treze!”, repetiu Francesco,”Este é um número curioso. Onde foi que eu encontrei um grupo com exatamente treze homens? Ah! Agora me lembro; eu estava em Cafarnaum onde o rabino-carpinteiro de Nazaré curou o criado de um dos centuriões que pertenciam à nossa legião. Eu gostaria de saber se por acaso é ele quem está vindo com seus doze discípulos. Preciso ir e ver com meus próprios olhos”. Dizendo isso, Francesco saiu da caverna e se juntou ao guarda no seu posto.

Os viajantes já estavam suficientemente próximos para que Francesco reconhecesse Jesus e seus Apóstolos. O inveterado jogador reuniu rapidamente seus homens e lhes falou que desta vez se aproximava um homem realmente bom e um grande profeta. Pediu que escondessem as cartas e tudo o que fosse pecaminoso, pois aquele homem era completamente diferente dos demais de Jerusalém. Dito isso, Francesco foi recepcionar os visitantes. Após descer rapidamente pela estrada, saudou o Salvador e seus companheiros, e convidou-os a entrar, pois a noite caía e uma ameaçadora tempestade se aproximava. O convite foi aceito. Jesus e seus seguidores tornaram-se convidados dos bandidos, que faziam o melhor que podiam para bem receber os viajantes. Após o jantar, reuniram-se ao redor do mestre e, ao beberem das suas sábias palavras, ficaram impressionados. Embora em tudo o que Jesus falava não houvesse uma palavra que pudesse ser interpretada como uma condenação ao estilo de vida deles, ainda assim um sentimento de culpa lhes golpeava enquanto o escutavam. Os combatentes ofereceram suas próprias camas para os convidados, deitaram-se sobre seus próprios abayehs e dormiram no chão. Aquela noite era a vez de Francesco fazer a vigília. Ele percebeu que o Salvador, que adormecera rapidamente, não estava completamente coberto; então o cobriu com o seu próprio abayeh. Em seguida passou a caminhar para cima e para baixo a fim de se manter aquecido, mas não parava de tremer.

Na manhã seguinte, após o desjejum, Jesus e os Apóstolos partiram. Francesco e alguns dos seus homens lhes mostraram o melhor caminho a seguir. Antes de se despedir, o Salvador agradeceu Francesco e seus companheiros pela hospitalidade e perguntou se ele poderia de algum modo satisfazer algum desejo deles em particular.

“Um não, ó Salvador, mas quatro”, respondeu o jogador.

“E quais são eles?”, perguntou Jesus.

“Primeiro”, disse Francesco,”sou apaixonado por carteado, e te imploro para que me assegures que, não importa com quem eu jogue, seja ou não humano, eu sempre vença. Segundo, no caso de eu convidar qualquer um a sentar-se em um determinado banco de pedra à entrada da nossa caverna, que ele não possa se levantar sem a minha permissão. Terceiro, há um limoeiro que cresce ao lado da caverna, e eu peço que ninguém que suba nele, a meu pedido, possa descer ao chão a não ser que eu o permita. Quarto e último, eu imploro que, mesmo sob qualquer disfarce, quando Azrael se aproximar para levar minha alma, que eu possa descobri-lo antes que se aproxime demais e, assim, esteja pronto”.

Ao ouvir estes estranhos pedidos, Jesus sorriu com tristeza e respondeu:

“Meu filho, tu falaste infantilmente e não com sabedoria. Contudo, aquilo que me pediste em tua simplicidade será concedido, e eu acrescentarei a promessa de que quando tu perceberes o teu erro e desejares fazer um novo pedido, este te será concedido. Fique bem”.

 

Os anos passaram e muitos dos camaradas de Francesco já haviam morrido, quando um dia o Anjo de Morte, disfarçado de peregrino, foi visto nos arredores. Francesco o reconheceu de longe, e quando Azrael alcançou a entrada da caverna, o jogador o convidou para sentar-se no banco de pedra, do lado de fora. Ao certificar-se de que o anjo estava sentado, Francesco gritou: “Eu te conheço. Tu vens levar a minha alma ou a alma de um dos meus camaradas, mas eu te desafio! Há alguns anos eu recebi o próprio Jesus nesta caverna, e ele me concedeu o poder de impedir que se levante deste banco sem minha permissão quem, a meu convite, nele sentar-se.” O anjo tentou se levantar, mas percebeu imediatamente que estava paralisado. Vendo que não havia jeito, implorou humildemente para ser libertado. Francesco extorquiu dele um juramento solene de não levar a sua alma nem a dos seus camaradas pelo período de quinze anos, e então o deixou ir.

Os quinze anos passaram, e Francesco agora morava sozinho na sua caverna como um ermitão religioso. O Anjo da Morte voltou e se aproximou mais uma vez. O recluso recolheu-se imediatamente para o interior da caverna e deitou-se em sua cama, enquanto gemia como se estivesse agonizando. Desta vez Azrael entrou na caverna vestido com o hábito de um monge.

“O que te aflige, meu filho?”, perguntou Francesco.

“Tenho febre e tenho sede”, foi a resposta. “Eu te imploro para que colha um limão da árvore que cresce ao lado da caverna e misture um pouco do seu suco com água, para que eu possa saciar a minha sede”. Como ainda restavam alguns minutos para o tempo designado, Azrael viu no pedido uma boa desculpa para lhe administrar uma bebida mortal; assim, escalou a árvore para alcançar a fruta. Todavia, não demorou e, quando estava sobre um dos galhos do limoeiro, o Anjo da Morte ouviu um riso e, ao olhar para baixo, viu Francesco no melhor de sua saúde. Ele se esforçou para descer, mas não pôde se mover sem a permissão do jogador, que só foi concedida quando o anjo empenhou sua palavra de se afastar por outros quinze anos.

Quando este novo prazo expirou, Azrael voltou à caverna pela terceira vez.

“Você pretende pregar mais algumas das suas peças em mim?” — perguntou a Francesco, agora um homem velho.

“Não se você me conceder um favor”, respondeu Francesco, “e permitir que eu leve as minhas cartas de jogar para o outro mundo”.

“Será que a minha permissão levará você a me enganar novamente?”

“Eu lhe asseguro solenemente que não”, respondeu o ancião.

Depois disso o Anjo da Morte arrebatou a alma de Francesco e o seu jogo de cartas, subiu com ele até o portão do Paraíso, onde São Pedro recebia as almas dos homens íntegros, e disse a Francesco para bater no portão. Assim que o fez, o portão se abriu, mas quando o porteiro viu quem era e que ele trouxera as cartas consigo, bateu-lhe a porta na cara. Então Azrael tomou novamente a pobre alma e desceu com ela até o portão do Inferno, onde fica Iblis, o Rei dos Demônios, ansioso por agarrar e atormentar os pecadores mortos. Ao ver quem o Anjo da Morte trazia, o Diabo clamou com grande alegria:

“Aqui está você afinal, meu querido. Eu esperei muito tempo por sua chegada, assim como muitos outros aqui com quem você jogou baralho na Terra. Todos esperam vê-lo derrotado, pois, assim como você não permitia que os viajantes chegassem à Cidade Santa antes de jogarem contigo, do mesmo modo eu não permitirei que queime no carvão incandescente até que você jogue uma partida comigo. Vejo que traz suas cartas; comecemos então imediatamente”.

Francesco e o Diabo começaram a jogar e, para surpresa de ambos, Francesco venceu o jogo. Satã insistiu em desafiá-lo para uma nova partida e, derrotado novamente, insistiu mais e mais, até que, depois de sete vezes, perdeu a paciência e expulsou Francesco, dizendo-lhe que ninguém no Inferno poderia vencê-lo em coisa alguma, ainda que fosse somente um jogo de cartas.

Ao ouvir isto, surgiu uma esperança no coração do pobre pecador. Recordando-se da promessa do Salvador de lhe conceder mais um benefício, ele implorou a Azrael, que assistira a todas as partidas, para que o levasse de volta aos portões do Paraíso, pois estava seguro de que Jesus não o trataria de modo tão severo como havia feito São Pedro, o Príncipe dos Santos, tampouco como Iblis, o Chefe dos Espíritos Perdidos. Azrael levou a pobre alma de volta para o portão do Céu e ali bateu mais uma vez. Quando São Pedro abriu, antes de ser posto para correr Francesco reivindicou a promessa do Salvador de lhe conceder mais um benefício. São Pedro chamou o seu Mestre. Quando o jogador pediu para ser admitido, não antes de confessar que a sua vida havia sido um grande engano e após se dispor a jogar fora suas cartas, Jesus permitiu que ele entrasse; e foi assim que o ex-jogador entrou no Paraíso.

 

Um padeiro muito rico e viúvo, sem filhos nem família, costumava todos os dias distribuir pão gratuitamente para cem pessoas dignas, porém necessitadas. Ele já fazia isso há muitos anos e, abençoado por Alá, o seu negócio prosperava maravilhosamente.

Um dia um santo ermitão desceu da sua caverna nas montanhas para visitar o benevolente padeiro. Em uma conversa particular, informou-lhe que recebera uma visão na qual o Arcanjo Gabriel pedia para falar-lhe que suas ações de caridade eram agradáveis ao Altíssimo Deus. A fim de recompensá-lo, iria, antes do final do ano, removê-lo deste mundo de pecado e pesar, e levá-lo para viver com Ele no Paraíso.

Ao receber a mensagem, o humilde padeiro agradeceu a Deus e daquele dia em diante fez com que não mais cem, mas duzentas pessoas dignas, porém pobres, fossem supridas de pão diariamente; e determinou que, quando morresse, toda a sua riqueza fosse usada para dar continuidade à sua obra de caridade. Ele dedicou todo o seu tempo aos detalhes do assunto.

Para a sua grata surpresa, aquele ano chegou ao fim, seguido de muitos mais, e ele permanecia vivo. Porém, quando soube que, ano após ano, o caridoso padeiro permanecia vivo e próspero, o ermitão ficou enraivecido, pois suas predições não se mostraram dignas de crédito. Ele se tornou tão sombrio e mal-humorado que gradualmente as pessoas deixaram de lhe pedir conselho e conforto. Esta perda de admiração o afligiu extremamente; até que, finalmente, teve outra visão, na qual o anjo o repreendia por seus maus pensamentos.

“Entre os homens santos”, disse o visitante celestial, “há aqueles que jejuam, rezam e passam noites sem dormir, voltados para o céu; e há aqueles que, tementes a Deus e esforçando-se para agradá-Lo, permanecem entre as pessoas do seu povo, têm paciência com as suas fraquezas e fazem o melhor que podem para ajudá-las — e o padeiro é um destes. Nestes tempos difíceis, Deus não pode poupá-lo do seu serviço. Se você tivesse entregado a mensagem a outro, este teria abandonado seus negócios e passado seus últimos dias de vida se lamentando. Porém, o padeiro vive cada dia como se fosse o último e o faz em benefício de outros. Ao se lamentar porque Deus prolonga a vida de Seus servos, e ao fazer com que a tua fama como monge santo fosse diminuída, você incorreu em um doloroso pecado. Fui enviado para adverti-lo de que vá até o padeiro e peça para trabalhar com ele como um voluntário na sua padaria e assim, como ele, servir a Deus através da distribuição de pão”.

O ermitão aceitou a repreensão em seu coração, obedeceu ao conselho dado pelo anjo e confessou o seu pecado abertamente e com humildade. Dali em diante, e até o fim dos seus dias, tornou-se um fiel assistente do padeiro.

 

  1. Os Seres Demoníacos — Que Deus nos Proteja!

Muita gente na Terra Santa acredita na existência de uma raça de seres que já existia antes mesmo de Adão e Eva, conhecidos como jans. Os judeus os conhecem sob outro nome, shedim. Existem ainda os anjos, que moram nos céus e têm vários aspectos e formas, que diferem segundo uma certa hierarquia celestial (aqueles que estão no céu mais baixo, por exemplo, têm a aparência de vacas; os do segundo céu parecem falcões; os do terceiro, águias; os do quarto, cavalos, e assim por diante). Os sábios contam que os jans foram criados a partir do fogo do simum, um fogo desprovido de calor e fumaça. Eles moram principalmente entre ou dentro das montanhas de Jebel Kaf, que cercam a terra. Alguns jans são bons muçulmanos e não fazem mal aos humanos seus correligionários, mas a maioria deles é formada de infiéis imundos que constroem suas moradias em rios, fontes, poços, edifícios em ruínas, banheiros, porões, fornos, cavernas, esgotos e latrinas. Alguns deles escolhem morar nas rachaduras das paredes, debaixo das escadas ou nas varandas de casas habitadas. Isso representa um enorme perigo para as pessoas, especialmente para as mulheres que costumam sentar-se diante da porta à noite, quando estes maus espíritos noturnos podem causar sérios danos físicos. Acredita-se que os jans podem assumir qualquer aparência que lhes convenha, e mudá-la ao seu bel-prazer.

Os camponeses contam que os demônios têm uma outra origem. Nossa primeira matriarca, Eva, que a paz lhe seja, gerou quarenta filhos, mas como não podia alimentar mais do que metade deles, escolheu os vinte mais vigorosos e abandonou os demais. Ela sempre contava para Adão que gerara apenas vinte, mas ele não acreditava nela. Então o nosso primeiro patriarca pediu a Alá para que cada um daqueles filhos abandonados vivesse nos subterrâneos do mundo e viessem à superfície enquanto os seres humanos estivessem dormindo.

Esta foi a origem dos jans, que invejam os homens e as mulheres, sempre esperando uma oportunidade de prejudicá-los; e se alguém não invocar “Bismillah”, o Nome de Deus antes de algum trabalho ou de fazer uso de alguma coisa do seu empreendimento comercial, eles com certeza o roubarão.

Certa vez, um homem que vivia em Ein Kerem (atualmente no setor ocidental de Jerusalém) sofreu na pele a ação dos jans. Ele tinha uma filha inconseqüente que, apesar das advertências freqüentes de seus pais e vizinhos, não costumava invocar o Nome de Alá. Embora este homem fosse muito rico, a bênção de Deus não repousava sobre a sua propriedade. Por fim, perplexo e desanimado, recorreu a um grande xeique que lhe perguntou:

“Quem mora contigo?”

“Minha esposa e filha”.

“Sua esposa invoca o Nome de Alá?”

“Eu não teria me casado se ela não o fizesse”.

“E sua filha, invoca o Nome?”

“Lamento dizer que não”.

“Então”, disse o xeique, “não a deixe tocar em nada da casa e livre-se dela imediatamente!”

O pai seguiu o conselho do xeique; apresentou um noivo à filha e, assim que ela se casou e saiu de casa, o jan deixou de aborrecê-lo. O noivo, porém, embora fosse um homem trabalhador, não tinha dinheiro para comprar o óleo necessário para manter uma luminária acesa no seu lar durante toda a noite.

Os jans machos e fêmeas, além de se apaixonarem entre si, podem também vir a se casar com descendentes de Adão — em geral contra a vontade das famílias humanas — quando estes deixam de pedir a proteção de Alá. Como prova disso, contarei um incidente que aconteceu alguns anos atrás.

Havia um homem da aldeia de El Isawiyen, no vale ao norte do Monte das Oliveiras, em Jerusalém, que após descer até a sua plantação no bairro de Ushwan, próximo a Artuf, desapareceu por nove anos. Acreditava-se que ele havia sido devorado por uma hiena, mas no fim o homem reapareceu e contou o que lhe ocorrera.

Uma noite ele estava dormindo no chão da sua loja a fim de proteger as suas durras (cereal, espécie de sorgo) quando foi despertado à meia noite por vozes próximas. Supondo tratar-se de um cobrador de impostos e de seu assistente, permaneceu em silêncio, com medo de ser abordado — mas eram jans. Por estar muito cansado, o homem esqueceu de invocar a proteção de Alá, e agora um medo súbito o impediu de usar esta precaução simples, deixando-o à mercê dos demônios. Quando percebeu que eram jans, já era tarde demais, e tornou-se vítima deles. Tudo o que sabia era que uma mulher se aproximou e lhe golpeou a testa, roubando-lhe todas as forças. Ela lhe ordenou que a seguisse, e ele obedeceu cegamente.

Quando eles haviam se distanciado da plantação ela lhe contou que era a sua esposa, e que, a menos que ele se submetesse aos seus desejos, os irmãos dela, que a seguiram, o matariam de uma maneira horrível. Logo depois os irmãos chegaram e ele pôde ver que também eram demônios. Estes lhe disseram que ele se tornara um deles e que daquele momento em diante seria invisível aos olhos dos humanos.

O pobre homem pertenceu aos jans por nove anos e participou das suas maldades. Um dia, quando os demônios estavam escondidos entre algumas ruínas, ele percebeu que seus companheiros se mantinham distantes de uma das paredes onde havia uma exuberante Jeyjan, uma planta pegajosa cujas folhas sempre foram utilizadas por exorcistas para atacar os demônios. Então, por curiosidade, ele foi até ali. Ao perceberem a sua movimentação, os demônios gritaram: “Não se aproxime desta planta!”. Ele correu e arrancou punhados inteiros da planta. Olhando em volta, constatou que os demônios haviam fugido e ele estava livre para voltar à sua família humana.

Como os camponeses, seus vizinhos, não acreditaram na sua história, ele procurou por uma mulher chamada Ayesha, pois sabia que o marido a repudiara porque ela o roubara e entregara seus bens aos irmãos. Não havia outra explicação para o modo como as coisas sumiram da casa do marido. Um dia, este havia enchido um grande khabieh (caixote de barro) com cevada; mas na manhã seguinte, quando o abriu, estava vazio. Concluiu que a esposa o havia roubado, apesar dos protestos da mulher que dizia não tê-lo feito.

O homem que estivera entre os jans explicou que ele pedira, de propósito, para a mulher provar a sua inocência. Ele estava presente quando a cevada foi levada pelos jans, que sabiam que o Nome Divino não costumava ser invocado naquela casa. Outras coisas haviam desaparecido da mesma maneira quando o marido estava fora. Daquele dia em diante todas as pessoas se tornaram mais cautelosas: trataram de juntar punhados de Jeyjan para deixar dentro de casa; nenhum homem bom iniciou mais o seu trabalho sem invocar o nome de Alá, o Misericordioso e Compassivo; e nenhuma mulher respeitável levou um punhado de farinha até o seu devido lugar sem antes clamar pelo Altíssimo.

 

Um certo casal jovem, embora muito trabalhador e cuidadoso com seu dinheiro, não alcançava a prosperidade porque sempre sumia alguma coisa da casa. A noite a esposa colocava um saco de trigo ao lado do moinho, e pela manhã havia desaparecido; e se ela colocava do lado de fora carnes cozidas ou conservas, também sumiam. O marido tinha uma égua da qual muito se orgulhava. Todas as noites, antes de deitar-se, ele a alimentava, trancava cuidadosamente a porta do estábulo e mantinha a chave debaixo do seu travesseiro até o dia seguinte. Uma manhã, após destrancar a porta, viu que a égua havia sumido; acreditando ter sido roubado por algum inimigo humano, viajou até as cidades vizinhas, onde havia feiras de animais, na esperança de recuperar o querido animal, mas em vão. Afinal, o homem concluiu que um beduíno de Belka, de alguma maneira, teria confeccionado uma chave falsa, utilizado-a para abrir o estábulo e lhe roubar a égua. Então ele partiu para os campos a leste do rio Jordão, na expectativa de encontrar o animal perdido em algum acampamento árabe.

Ao anoitecer do primeiro dia ele estava próximo a um estreito desfiladeiro, em cujas margens havia muitas cavernas. Vendo luz numa delas, supôs que alguns pastores ou condutores de camelos haviam pousado ali durante a noite e apressou-se em unir-se a eles. Mas ao entrar, viu que a caverna estava cheia de jans. Temeroso em ofendê-los caso saísse dali, cumprimentou-os da forma mais simpática de que foi capaz. Eles responderam educadamente com a saudação típica: “Nossa casa é sua casa, nosso lar e tudo o que há nele lhe pertence”.

Ao sentarem para o jantar, os demônios convidaram o visitante a cear com eles, e o jovem, sem alternativa e muito nervoso, aceitou. Entre os pratos havia uma mistura de arroz e lentilhas da qual, atendendo à solicitação dos demônios, ele compartilhou, embora relutante. “Nós já lhe dissemos que tudo aqui é seu”, disseram. Então, olhando ao seu redor, o homem constatou uma semelhança entre a mobília da caverna e as coisas que haviam desaparecido misteriosamente da sua própria casa. Em seguida iniciou-se uma conversa durante a qual ele contou aos seus anfitriões sobre a perda da sua égua e que entrara naquela caverna na esperança de encontrá-la. Os jans disseram que ele não precisava mais procurar, porque a égua estava com eles; poderia pegá-la, se lhes pedisse. O homem pediu para vê-la e a égua foi trazida imediatamente. Mesmo estando muito escuro, ele montou e já estava de partida para casa quando seus anfitriões o convidaram para passar a noite com eles. Como ele temia ofendê-los, amarrou o animal e pernoitou. Quando amanheceu, verificou que a caverna estava vazia, mas a sua égua ainda estava amarrada no mesmo lugar onde ele a colocara antes de dormir.

Sem rodeios, montou sobre o animal e voltou para casa, onde sua esposa o recebeu com a boa novidade de que as coisas deles reapareceram à noite tão milagrosamente quanto haviam sumido. Ao ver a égua, a alegria dela tornou-se ainda maior. O marido, que não havia tomado o café da manhã, pediu comida. Então ela foi em busca de um prato de lentilhas com arroz, explicando que o havia cozinhado no dia anterior, mas, como estava sem muita fome, guardara-o para a chegada do esposo. Assim que ela descobriu o prato, caiu para trás, assustada. “O que é isso?”, exclamou. “Quando eu guardei este prato ontem, estava cheio e cuidadosamente coberto; no entanto, como você está vendo, alguém o provou. Não pode ter sido o gato porque, ainda que ele pudesse ter movido a cobertura, não poderia tê-la substituído”. O homem ficou surpreso ao ouvir isto da esposa, pois ao examinar o prato, reconheceu que era o mesmo do qual comera a convite dos demônios. Este fato esclareceu aquela estranha experiência. “Minha querida esposa”, ele lamentou, “agora eu sei o segredo dos nossos recentes infortúnios. Nós negligenciamos o piedoso costume de nossos pais de sempre invocar o Nome de Alá. Nossas coisas eram roubadas pelos jans por nossa culpa. Daqui em diante vamos nos emendar”. Desnecessário dizer, daquele dia em diante o casal tornou-se muito cuidadoso em proferir uma bênção para tudo o que faziam, e assim, até o fim dos seus dias, desfrutaram da proteção do Altíssimo.

 

Além de, por si só, ser temeroso sentar-se no degrau da porta na varanda de uma casa, especialmente ao pôr-do-sol, não se deve, em hipótese alguma, chamar qualquer animal, mesmo que seja um inseto, sem ao mesmo tempo apontar para ele, porque muitos demônios têm nomes de animais e outros seres da natureza. E se o nome de algum animal for usado sem ser acompanhado de um gesto, algum demônio pensará que está sendo chamado e se aproveitará do engano para fazer mal à pessoa que o chama. Mais do que isso, graças a uma chamada, uma multidão de demônios podem se reunir inadvertidamente, pois entre eles, assim como entre os homens, alguns nomes são comuns. Veja esta história e você entenderá.

Uma mulher que não tinha filhos, mas desejava tê-los, sentou-se uma noite no degrau da sua porta sem imaginar o perigo que corria, quando viu um besouro preto rastejando perto. “Eu quero um filho”, disse a mulher, “ainda que seja apenas uma menina tão negra quanto este besouro. O besouro preto! Você não que ser a minha filha?”

Após ouvir isso, o besouro subiu na mulher e entrou com ela na casa. Alguns instantes depois, para a sua enorme surpresa, ele gerou uma multidão de besouros pretos. “Meu Deus, mas eu só pedi um! O que farei com estas centenas? Eu os ajuntarei nesta cesta onde coloquei lenha seca, levarei ao forno e queimarei todos ali”. Foi exatamente o que ela fez. No entanto, ao voltar para casa, a mulher percebeu que uma das criaturas havia escapado ao se agarrar à cesta de vime com suas patinhas. “Bem, eu pedi uma filha. Farei deste besouro meu animal de estimação e, a partir de agora, será minha filha”. Então ela levou o inseto de volta para casa e cuidou dele.

O tempo passou, o besouro cresceu e se desenvolveu. Para a alegria da sua mãe, transformou-se numa linda jovem negra a quem deu o nome de Khuneyfseh (pequeno besourinho negro). Todavia, a criatura era um ghul fêmea, um dos mais terríveis inimigos da raça humana; e cresceu rapidamente, tornando-se grande e forte. Um dia sua mãe lhe ordenou que fosse comprar quatro pães e um prato de manteiga para o seu suposto pai, que estava trabalhando no campo. O monstro comeu o pão com a manteiga ao seu modo e, ao se aproximar do lavrador, devorou-o juntamente com seus bois. Em seguida voltou para casa e disse à sua mãe:

“Mãe, eu devorei os quatro pães e a manteiga, assim como o lavrador e os seus bois; posso também lhe devorar juntamente com a massa que você está misturando?”

“É claro que pode, querida!”, respondeu a mãe, imaginando que sua preciosa filha estava apenas se divertindo. A ghul engoliu de uma só vez a sua mãe, a massa e a tábua de amassar. Então foi até a sua avó, que estava moendo trigo, e disse:

“Vó, eu comi os quatro pães e a manteiga, o lavrador e seus bois, minha mãe, a massa e a amassadeira. Posso comer você também?”

“É claro que sim, minha neta!” — respondeu a avó, que foi imediatamente devorada junto com o seu moinho. Em seguida Khuneyfseh saiu da aldeia. Sentada ao lado dos excrementos das cabras — que eram usados como combustível, à maneira dos anciãos da aldeia — avistou um velho sábio que, embora ela não soubesse, estava armado com um punhal duplamente afiado. Ao abordá-lo, ela lhe disse:

“Ó xeique, eu devorei os quatro pães e a manteiga, o lavrador e seus bois, minha mãe, a massa e sua amassadeira, minha avó e o seu moinho. Posso devorar você também?”

Mas o ancião era sábio e experiente. Pelo modo como a jovem falava, adivinhou com quem estava lidando e respondeu:

“Muito bem, minha filha; devore-me, se isto lhe agrada”.

Mas quando ela se aproximou, ele a golpeou com o seu punhal e a matou. Então lhe abriu o ventre e... Puxa! Dentro dela estavam, inteiros e ilesos, os quatro pães e a manteiga, o lavrador e seus bois, a mãe, sua massa e sua amassadeira, a avó e o seu moinho. Desde então as pessoas aprenderam a não mais sentar do lado de fora de casa à noite e a não falar com nenhuma criatura viva, exceto seres humanos, sem apontar para elas.

 

Eis outra história que ilustra muito bem o perigo que as pessoas correm ao chamar seus animais sem apontar para eles.

Um dia, a esposa de um jovem camponês tinha tanto para fazer que somente à tarde encontrou tempo para preparar o pão. Quando a massa do pão estava pronta, já era noite, e estava tão escuro que ela teve medo de ir desacompanhada até o forno da aldeia. Então pediu ao marido para que a acompanhasse, mas ele zombou da mulher e não a escoltou. Ela partiu em seguida, mas, assim que saiu, o marido gritou zombeteiramente para um bode que estava amarrado ali perto: “Vai bode, pegue a mulher, pegue-a!”. O marido achou que fizera uma piada, porém se surpreendeu quando sua mulher não retornou. Ele foi até o forno, mas ela não estava lá. Ninguém no vilarejo a vira. Ele foi de casa em casa, procurou por toda a cidade e nos arredores, mas em vão. Incapaz de acreditar que ela tivesse partido com outro homem, pois sabia que sua esposa o amava, também não admitia ser o culpado pelo desaparecimento da esposa, mas seus vizinhos começaram a suspeitar que ele, segundo os costumes do lugar, a tivesse matado por infidelidade.

Um dia, quando o inconsolável marido estava trabalhando no campo, um velho e pobre dervixe aproximou-se dele e iniciou uma conversa. O camponês lamentava a perda da esposa quando o dervixe lhe perguntou:

“Quanto você me dá se eu lhe contar como recuperá-la?”

“Se me ajudar a encontrá-la, poderá ficar com estes bois”, respondeu o camponês.

“Ah não, eles me seriam inúteis”, riu o dervixe, “mas me dê algo para comer e eu estarei satisfeito”.

O camponês levou o dervixe para casa e colocou diante dele o melhor que tinha. Quando o convidado terminou de comer, falou: “Eu tenho certeza de que sua esposa foi seqüestrada por algum demônio, a quem o teu gracejo tolo deu poder para prejudicá-la. Eu o aconselho que vá hoje à noite em tal e tal caverna de um tal e tal vale, que é o lugar onde os jans costumam passar a noite nesta região. Assim que você perceber a caverna iluminada após o pôr-do-sol, entre corajosamente e arranque a sua esposa dali”.

O camponês fez como lhe foi dito. Naquela mesma noite ele se escondeu em um lugar próximo à caverna e, assim que a viu iluminada, pediu que Alá o ajudasse e a invadiu com coragem. Lá dentro Iblis, o rei de todos os demônios, presidia um tribunal. O corajoso camponês exigiu sua esposa de volta. O rei dos demônios não ficou surpreso nem ofendido pelo tom áspero da voz do marido, e perguntou calmamente aos seus súditos se alguém sabia de quem o homem estava falando.

“Eu a vi não faz muito tempo em nossas próprias terras, em Jebel Kaf, em algum lugar”, disse um.

“Quanto tempo levará para buscá-la, ó Camelo?”, perguntou-lhe o monarca.

“Jebel Kaf é distante daqui, e eu precisaria de três anos para ir e voltar”.

Então Iblis perguntou a outro demônio:

“Ó Cavalo, de quanto tempo você precisa para buscar a mulher?”

“Três meses”, foi a resposta.

A mesma pergunta foi feita a um terceiro demônio, que respondeu:

“Três semanas é do que preciso”.

E assim, um a um, todos os demônios responderam à mesma pergunta, dizendo qual era o tempo necessário para buscar a mulher. Afinal Iblis pediu para o homem detalhar as circunstâncias sob as quais ele perdera a esposa, especialmente as palavras que usara ao se despedir dela. O camponês então confessou, envergonhado, que havia impensadamente entregado a esposa para o Bode. Ao ouvir isso, o Diabo ordenou que o Bode devolvesse imediatamente a mulher ao seu legítimo marido; e o demônio obedeceu prontamente.

 

Certa vez, um pastor, após recolher o seu rebanho para a noite, foi dormir em uma caverna. Ele despertou por volta da meia-noite na presença de uma grande festa de jans. Temendo ser atacado, mas ao mesmo tempo curioso, permaneceu com os olhos semicerrados, fingindo dormir.

O líder da festa enviou alguns dos seus seguidores para buscar provisões. Foram e voltaram rapidamente com todo tipo de comida, e os demônios devoravam tudo com muito prazer.

Entre as delícias estava uma grande bandeja de baklava — um delicioso doce de massa folhada com amêndoas ou pistache, coberta por uma calda de açúcar — que logo foi cercada por todos. Então uma jovem sugeriu que despertassem o dorminhoco para que se unisse a eles. Muitos contestaram, pois o pastor poderia proferir uma bênção sobre a comida, o que faria com que eles se dispersassem e deixassem para trás tudo o que haviam roubado das casas daqueles que não invocam o Nome de Alá. “Coloquemos uma grande porção de guloseimas em uma bandeja ao lado dele para que coma assim que acordar. Quando isso ocorrer já teremos partido, e sua bênção, se é que a fará, não nos ferirá”.

Ao ouvir isso, o pastor sentou-se e exclamou: “Bismillah er Rahman er Rahim” (Em Nome de Alá, o Misericordioso, o Compassivo), como que despertando, alerta, em meio a estranhos. Ao ouvirem o nome do Altíssimo todos os demônios saíram correndo, gritando. O pastor voltou a dormir sem ser perturbado até o dia seguinte, quando, por fim, encontrou a caverna plena de provisões suficientes para manter a sua família durante um ano inteiro. Ele as aceitou como um presente de Deus e as levou para sua própria casa.

 

É extremamente importante recordar que os demônios sempre devem ser tratados com respeito. Ao entrar em uma sala vazia, um porão, uma caverna, ou até mesmo ao varrer um quarto que há algum tempo estava fechado, nunca se deve esquecer de dizer: “Dusturkum ya mubarakin” (com a sua permissão, abençoados) ou, para ser breve, “Dustur” (permissão). Por exemplo, se você se deparar inadvertidamente com uma serpente, como deve agir? Diga-lhe: “Com a sua permissão, ó abençoada!”. A mesma fórmula deve sempre ser usada quando uma pessoa está carregando fogo ou água, pois estes podem fugir ao controle e não podemos correr o risco de molhar ou queimar alguém. No entanto, o caminho mais seguro é invocar o nome e a proteção de Alá.

Os ocidentais costumam ficar chocados com a freqüência com que os nativos do Oriente Médio usam o Nome de Alá, em vista do Terceiro Mandamento: “Não jurarás em nome do Eterno, teu Deus, em vão; porque não livrará o Eterno ao que jurar Seu nome em vão”. Mas eles não se dão conta de que se trata de um costume, de uma prática que vem desde a infância, pois foram acostumados a isso como algo que faz parte da essência da religião, uma proteção contra os poderes do mal. A importância devida à prática já foi explicada, mas será ilustrada mais adiante pelos contos seguintes.

Havia uma boa mulher cujo marido era tão pobre que, quando a única faca deles se quebrou, ele não pôde comprar outra. O desejo por uma faca causou um grande transtorno à mulher e às suas vizinhas, que nem sempre queriam emprestar seus utensílios. Assim, um dia, quando o marido trouxe para casa carne de ovelha para ela cozinhar, a mulher foi até uma vizinha cujo marido era muito rico e pediu uma faca emprestada, o que lhe foi recusado. A boa mulher voltou para casa muito chateada e nervosa. Na falta de uma faca, ela foi obrigada a rasgar a carne crua com os dentes e as unhas, como, se transformada em ghul, não conhecesse o aço. Envergonhada, ela se esqueceu de invocar o Nome de Alá antes de rasgar a carne; assim, imediatamente um demônio tirou proveito da omissão. Um súbito vendaval passou por debaixo dos seus pés e abriu uma fenda no chão. Quando afinal o movimento cessou e a mulher recuperou os sentidos para ver o que ocorrera, percebeu que agora estava em um salão grande e bem mobiliado, aparentemente vazio, exceto por uma bela gata persa. Ao notar que a criatura estava prenhe e logo geraria muitos gatinhos, ela a acariciou, enquanto dizia: “Que o Nome de Alá esteja sobre ti! Que Alá lhe conceda plena recuperação!”. O animal parecia entender e demonstrou grande prazer, ronronando e esfregando-se nela. De repente ouviram-se ruídos de uma multidão que se aproximava. A gata então sussurrou em árabe:”Não tenha medo, entre debaixo daquela cadeira”. A visita obedeceu imediatamente; pouco depois vários demônios entraram e, enquanto se reuniam ali dentro, fungavam e diziam: “Estamos sentindo cheiro de humanos. Se for um ancião, é nosso pai; se for uma velha, é nossa mãe; se for um rapaz ou uma jovem, ele ou ela devem ser nosso irmão ou irmã; se for um menino ou menina, eles também receberão um tratamento fraternal. Mostre-se e não tema, porque é nosso convidado de honra, e os convidados estão plenamente seguros em nossa companhia”.

Nisto a mulher deixou seu esconderijo e cumprimentou os recém-chegados, que a trataram educadamente e lhe ofereceram comida. Depois de um determinado tempo, ela pediu humildemente para ser levada de volta para casa. O vendaval que a trouxera, que também era um demônio, foi chamado e questionado se ela viera por sua livre vontade. O vento reconheceu que a trouxe sem a sua concordância, porque, em um momento de distração, a mulher não pronunciara o Nome de Alá. “Neste caso, agora ela já pode voltar para casa”, afirmou o líder dos demônios. Mas antes da mulher partir, o vento fez com que ela arrancasse um fio de suas roupas e com elas fizesse uma espécie de saco, que foi preenchido com cebolas descascadas. Então o vendaval a levou e logo a boa mulher estava novamente em casa.

No entanto, ela de repente sentiu que o conteúdo colocado dentro das suas roupas era pesado demais para um punhado de cebolas; ela simplesmente não podia se mover. Ao tentar se desvencilhar delas, para a sua surpresa e encanto, descobriu que, em vez de cebolas, havia peças de ouro. Como era uma mulher prudente, nada comentou da sua boa sorte com as vizinhas e escondeu o ouro fora de casa até seu marido retornar. Então lhe contou o que ocorrera e mostrou o tesouro. O casal decidiu, de comum acordo, comprar gado e terra, mas aos poucos, de modo que seus vizinhos pensassem que toda aquela prosperidade era fruto do trabalho deles.

Contudo, houve quem não acreditasse nisso, e foi aquela vizinha para quem a boa mulher pediu uma faca emprestada. A inveja a fez suspeitar, e ela não deixou sua amiga em paz até descobrir o segredo. Quando finalmente soube o que ocorrera, foi direto para casa e fez seu marido trazer carne de ovelha, que ela rasgou aos pedaços com os dentes e as unhas, omitindo propositadamente o Nome de Alá. O resultado inicial da sua ação estudada e premeditada foi igual ao da sua vizinha: um vendaval a levou para o fundo da terra e ela se viu num salão onde havia uma gata persa. Mas o comportamento dela foi o oposto da conduta daquela boa mulher. Ela perturbou a gata, e até ousou dizer que esperava que ela não vivesse para ver seus gatinhos. Quando, do seu esconderijo debaixo da cadeira, ela ouviu o demônio garantir que estava segura, ao deixar aquele local e se erguer, a mulher deixou grosseiramente de cumprimentá-lo. Após devorar com grande voracidade a comida colocada diante dela, exigiu ser enviada de volta para casa.

O demônio, que não levou em conta toda aquela grosseria, perguntou então ao vento se ela viera por espontânea vontade. “Sim”, foi a resposta. Então o chefe dos demônios ordenou que ela tirasse as calças, encheu-as com moedas de ouro e fez com que fosse levada para casa. Porém, quando ela ali chegou, após fechar portas e janelas, sentiu suas calças cheias de aranhas, escorpiões e centopéias, que em seguida puseram fim à vida daquela mulher má.

 

Ao notar que um leiteiro, camponês de Siloam, tinha o hábito de sempre invocar o Nome de Alá antes de medir quanto leite entregaria para o nosso criado todas as manhãs, um dia eu lhe perguntei por que ele fazia isso:

“Ah, é sempre bom proferir o Nome, e nós, camponeses, sempre fazemos isso quando colocamos as mãos em um recipiente ou instrumento de trabalho de qualquer tipo”.

“Concordo totalmente contigo, devemos sempre pedir para Alá nos abençoar em tudo o que fazemos. Agora, supondo que você omitisse esta precaução, o que imagina que aconteceria?”

“Com certeza cairíamos nas mãos dos demônios”, respondeu o homem com seriedade, e acrescentou: “Que Deus nos proteja!”

“Como seria isso?” indaguei; então, após colocar a tina de leite no chão, o leiteiro me contou a seguinte história:

O filho de um grande xeique árabe, um jovem muito bem apessoado, foi enviado por seu pai para viajar e conhecer o mundo. Um dia, ao chegar a uma cidade, escolheu um local para montar a sua tenda e colocou seus criados para erguerem-na enquanto passearia pelos mercados. Ele jamais havia entrado em uma cidade antes, e ficou tão interessado pelo que viu que passou mais tempo do que pretendia, e quando por fim resolveu voltar ao seu acampamento, já havia anoitecido e ele não pôde encontrar o caminho. Caminhando ao acaso por uma grande área aberta, decidiu dormir ali mesmo até o dia seguinte; então, embrulhando-se com o seu abayeh, deitou-se no chão, não sem antes dizer: “Em Nome de Alá, o Misericordioso, o Compassivo, eu coloco a minha confiança, e me entrego à proteção do proprietário deste campo”.

Pois bem, àquela noite os jans estavam celebrando uma festa de casamento e convidaram o demônio daquele campo em particular para o banquete. Este recusou, dizendo que tinha um convidado e que não poderia abandoná-lo.

“Traga-o contigo”, responderam os festeiros.

“Impossível, porque ele invocou o Nome. Portanto, sou responsável por seu bem-estar”.

“Ah, mas você pode fazer o seguinte: o Sultão tem uma filha adorável trancafiada no castelo. Leve-o até ela enquanto ele dorme, deixe-o com a princesa e venha para a festa. Antes do amanhecer você pode buscá-lo e trazê-lo de volta. Ele ficará muito feliz, e nenhum mal acontecerá ao rapaz”.

O anfitrião gostou da sugestão e resolveu agir exatamente assim. O jovem despertou por volta da meia-noite e percebeu que estava deitado numa cama luxuosa ao lado de uma linda moça cujo sono era iluminado pela luz de velas acesas sobre grandes castiçais de ouro. Enquanto ele estava absorto com tanta beleza e encantamento, os olhos dela se abriram e o fitaram; então o rapaz viu o mesmo êxtase naqueles olhos. O casal iniciou uma conversa, falaram de amor, trocaram seus anéis e então se deitaram e voltaram a dormir. Quando o jovem despertou pela segunda vez, viu-se num pedaço de terra deserta próximo aos muros da cidade. A princípio, imaginou que sua aventura noturna fora um sonho feliz; mas, quando viu o anel que a jovem colocara em seu dedo, não teve dúvida da realidade daquela estranha experiência e decidiu não deixar a cidade antes de solucionar o mistério.

A princesa igualmente, ao despertar na manhã seguinte, ficou igualmente surpresa ao encontrar o anel que confirmava suas lembranças daquela noite. Passado um tempo, ela deu à luz um filho; mas o Sultão, seu pai, embora adorasse a filha, não pôde deixar de pensar em matar o homem que a ofendera, uma vez que ela não tinha irmãos. Sim, porque a tradição daquela região ordenava que, no caso de a irmã ter sido desrespeitada, os irmãos deveriam matar o infeliz que fizera isso; no caso de não ter irmãos para protegê-la, o pai deveria vingá-la. Todavia, a visão do anel que o amante desconhecido colocara no dedo da filha fez com que o Sultão decidisse poupar a vida daquele homem; afinal, sabia do poder e da maldade dos jans, e via a mão deles naquela situação constrangedora. Assim, decidiu enviar a princesa e seu filho para o exílio, juntamente com uma velha babá.

Pois bem, a cidade para a qual a jovem fora enviada era a mesma onde seu amante permanecia morando, na esperança de obter notícias da mulher amada. Ela vivia ali na obscuridade, dedicando-se ao filho, que não deixava nas mãos de outra pessoa de maneira alguma, e chorava sempre que alguém tentava pegá-lo no colo. Um dia, quando estava cansada de cuidar do pequenino, pediu à sua criada que o levasse para passear ao ar livre, apesar do menino estar chorando. Ao obedecer estas ordens, a babá passou pelo local onde o jovem beduíno estava sentado, distraído. Algo no choro da criança tocou o coração do rapaz, que pediu à mulher para segurá-la um pouquinho. No instante em que ela lhe passou o menino, como por magia a criança deixou de chorar e passou a sorrir, o que fez com que o pai inconscientemente ficasse tão feliz que, antes de devolver o pequenino à babá, lhe comprou muitas guloseimas de um vendedor ambulante.

Ao voltar para casa, a criada encontrou a princesa e exaltou a beleza e bondade do jovem que acalmara o bebê. Imediatamente uma esperança flamejou na mente da mãe, que ordenou à babá para levá-la até aquele rapaz.

Ao se reencontrarem, o casal se reconheceu imediatamente e seus anéis confirmaram que não estavam enganados. Eles se casaram em seguida, com o consentimento do Sultão; e conta-se que viveram felizes para sempre.

 

Quando o leiteiro terminou de contar a sua história, eu comentei: “Não teria sido melhor o jovem ter invocado o Nome de Alá sem necessariamente precisar ficar sob a proteção de um demônio? Se ele tivesse apenas confiado em Alá, nada disso lhe teria acontecido”.

“Não, Alá só faz o bem. Se o rapaz tivesse deixado de reivindicar a proteção do dono do campo, o demônio o teria ferido ou matado enquanto ele dormia. Ao pedir por hospitalidade, o jovem evitou qualquer tipo de desgraça, e por isso só lhe ocorreram coisas boas”.

 

Há alguns anos uma camponesa de El Welejeh78 perdeu um olho sob as seguintes circunstâncias: ela voltava de Jerusalém quando, ao passar pela fonte conhecida como Ain El Haniyeh, ouviu uma rã coaxar. Olhando em volta, viu a rã em gravidez avançada; então, maldosamente, disse à criatura: “Que Alá não permita que você gere seu filhote até que eu seja chamada para ser a sua parteira”. Após proferir esta fala indelicada, a mulher foi embora. A noite ela se preparou para descansar junto aos seus filhos, cujo pai morrera na guerra, mas qual não foi o seu terror quando, ao despertar durante a noite, viu-se numa caverna cercada por pessoas desconhecidas e mal-encaradas; uma delas virou-se para ela e disse bruscamente:

“Ai de você se invocar o Nome de Alá. Será uma mulher morta. Se nós, que vivemos nos subterrâneos do mundo, viermos até você, que vive na superfície da terra, então estará protegida pelo Nome; se por outro lado, você se intrometer desnecessária e deliberadamente conosco, de nada adiantará invocar o Nome de Alá. Que mal lhe fez minha esposa para você amaldiçoá-la como fez esta tarde?”

“Eu não sei do que está falando, nunca vi sua esposa antes”, respondeu a mulher, aterrorizada.

“Ela é a rã grávida com quem você falou em Ain El Haniyeh. Quando nós, que vivemos nos subterrâneos, queremos passear por aí afora, em geral assumimos a forma de algum animal. Minha esposa adotou a forma da rã que você amaldiçoou mencionando o Nome quando ela estava sofrendo as dores agudas do parto. Porém, graças à sua cruel maldição, a dor de minha esposa não poderá ser aliviada até que você a ajude. Por isso eu lhe advirto: a menos que ela gere um menino, serei muito duro contigo”.

Então ele a conduziu para o local onde a esposa estava rodeada por outras rãs. A mulher estava tão amedrontada que quase não conseguia raciocinar; fez o melhor que pôde por sua estranha paciente, que logo deu à luz um belo filhote macho. Quando o pai foi informado, ficou muito feliz e entregou à parteira humana um mukhaleh (cosmético muito usado no Oriente Médio para escurecer as beiras das pálpebras), dando instruções para aplicá-lo nos olhos da criança, de modo que estes ficassem escuros e luminosos.

Ao fazer isso, ela notou que os olhos do bebê, assim como os dos demais demônios ao seu redor, eram muito diferentes dos olhos dos homens e mulheres comuns, pois suas pupilas eram longitudinais e verticais. Após aplicar o mukhaleh nos olhos do pequenino, pegou um pequeno recipiente que levara consigo, com o intuito de guardar nele um pouco daquele pó e passá-lo nos seus próprios olhos. Porém, antes que tivesse tempo, uma jan fêmea, que notou seus movimentos, arrancou furiosamente o mukhaleh das suas mãos. Os demônios então pegaram uma das mangas das roupas da mulher — que, como outras camponesas sírias, era usada para carregar coisas — e encheram-na com algo que ela não sabia o que era. Em seguida colocaram-lhe uma venda e a conduziram para fora da caverna. Quando os demônios permitiram que abrisse os olhos, a camponesa, ao olhar ao seu redor, viu-se só diante da fonte de Ain El Haniyeh. Curiosa para saber o que estava na sua manga, abriu-a e encontrou muitas cascas de cebola, que prontamente jogou fora. Ela chegou em casa alguns minutos depois, onde encontrou seus filhos dormindo tranqüilamente. Ao se preparar para deitar, algo mais caiu da sua manga. Ao apanhar o objeto, percebeu que era uma pequena peça de ouro. Dando-se conta da verdadeira natureza das supostas cascas de cebola que acabara de jogar fora, apressou-se em ir novamente até a fonte e encontrou as cascas de cebola intactas, mas todas elas transformadas em peças de ouro. A mulher ajuntou-as avidamente e voltou para casa; como ainda faltavam algumas horas para o amanhecer, deitou-se e voltou a dormir.

No dia seguinte, ao acordar, pensou que provavelmente sonhara com tudo aquilo. Porém, um dos seus filhos lhe contou que um dos olhos da mãe estava escurecido com mukhaleh e o outro não; além disso, ela verificou que o seu depósito estava repleto de peças de ouro e convenceu-se de que não sonhara; agora era uma mulher rica.

Algum tempo depois a camponesa foi a Jerusalém para fazer compras. Quando se aproximou do vendedor de roupas — um judeu em frente ao empório de trigo — viu no meio da multidão a jan fêmea que conhecera na forma de rã. Enquanto ia de uma loja a outra, furtava objetos. A camponesa foi até ela, tocou-lhe no ombro e perguntou-lhe por que estava fazendo aquilo. Mesmo amedrontada pelo olhar pouco amistoso da jan, inclinou-se e beijou o bebê. As pessoas que estavam em volta acharam que ela era louca quando, como supunham, viram-na beijando o ar, pois como não tinham mukhaleh aplicado nos olhos, não podiam ver o que acontecia. No entanto, a jan disse furiosamente: “Afaste-se! Você quer nos desgraçar?”. Em seguida enfiou o dedo diretamente no olho da pobre mulher — aquele que estava pintado com mukhaleh — e cegou-o no mesmo instante.

O infortúnio que poderia ter acontecido se ela tivesse aplicado o mukhaleh nos dois olhos, só Alá sabe; mas com certeza, graças ao curioso formato dos olhos dos jans, eles podem ver e saber muitas coisas que os simples mortais não podem. E o mukhaleh os ajuda a ter uma segunda visão que nós não possuímos. É raro conhecermos pessoas com os olhos assim. Talvez encontremos uma em dez mil, mas aqueles que têm olhos assim podem fazer coisas que as outras pessoas nem imaginam. Os mugharibehs, árabes da África do Norte, cientes de que tesouros escondidos podem ser encontrados por meio de magia, estão sempre de olho nestas pessoas, na esperança de obter a ajuda deles para enriquecerem.

 

Certa manhã, o parente próximo de um dos meus vizinhos levantou-se muito cedo para ir ao trabalho. Como a lua cheia brilhava no céu, ele não percebeu que era tão cedo. Ao longo do caminho foi colhido por uma procissão de casamento. Os homens empunhavam tochas e as mulheres proferiam a alegre zagharit. Como seguiam todos pelo mesmo caminho, o homem acompanhou-os por curiosidade, mesmo notando que os homens pareciam severos e pouco amistosos. Uma das mulheres lhe deu uma vela iluminada, que ele aceitou prontamente. O homem então se deu conta do verdadeiro caráter daquelas pessoas que, antes, tinha imaginado ser circassianos; porém, ao ter a presença de espírito de invocar imediatamente o Nome de Alá, seus terríveis companheiros desapareceram e ele se achou só na rua, com um osso da pata de um burro na mão. Terrivelmente amedrontado, voltou imediatamente para casa e permaneceu doente por um longo tempo.

 

  1. Filhos e Filhas

Alá permitiu que uma certa mulher tivesse sete filhos, e ela era muito grata por isso, mas há muito tempo desejava ter uma filha; então pediu ao Todo-Poderoso que lhe concedesse esta dádiva. Um dia, quando andava pelo mercado, viu à venda um belo pedaço de queijo branco de cabra. Aquela visão lhe causou tamanha boa impressão, que exclamou:

“Ó Senhor! Ó Alá! Eu Te peço, conceda-me uma filha tão branca e bela como este queijo, e eu a chamarei de Ijbeyneh.”79 Sua prece foi atendida, e no devido tempo a mulher se tornou mãe de uma linda menina com pele cor de queijo branco de cabra, pescoço de gazela, olhos azuis, cabelos pretos e bochechas róseas. A criança recebeu o nome de Ijbeyneh, e todos que a viam — exceto suas primas invejosas — a amavam.

Quando Ijbeyneh tinha aproximadamente sete anos, pediu que suas primas a levassem com elas a uma excursão na floresta, onde costumavam passear para colher acerolas. Após encher a sua tarbíach (véu de linho para a cabeça) com as frutinhas, a menina a colocou aos pés de uma árvore e saiu para passear, enquanto colhia flores. Quando voltou ao lugar onde deixara o seu véu, encontrou, em vez das acerolas, frutas podres; suas primas haviam ido embora. Ela andou para cá e para lá pela floresta chamando por elas, mas não recebeu resposta alguma. Então começou a procurar sozinha o caminho de casa, mas acabou indo bem mais longe. Por fim, surgiu um ghul caçador; ele a teria devorado se a menina não fosse protegida por Alá, que a dera de presente a seus pais. Assim, em vez de devorá-la, o monstro sentiu pena da moça. Ijbeineh lhe implorava:

“Ó caçador, diga-me, para onde foram minhas primas?”

“Eu não sei, minha querida, mas vem e viva comigo até suas primas voltarem e lhe buscarem”.

Ijbeyneh consentiu, e o ghul a levou para a casa dele no topo de uma montanha. Lá ela se tornou a sua pastora e ele, apaixonado, todos os dias lhe trazia algo diferente para comer. Apesar de tudo, ela era extremamente infeliz e se lamentava o tempo inteiro, com saudades dos pais e do seu lar.

Pois bem, as pombas que pertenciam aos pais de Ijbeyneh também tinham muitas saudades dela, pois a moça costumava alimentá-las com muito carinho; então resolveram procurá-la por conta própria. Um dia elas a viram sozinha, bem longe, e voaram até ela. Felizes da vida, pousaram nos seus ombros e se aconchegaram junto às suas bochechas, como estavam acostumadas a fazer. Quando Ijbeyneh as viu, deixou cair lágrimas de felicidade e lhes cantou os seguintes versos:

Ó queridas pombas de minha mãe e de meu pai,

Levem a minha saudade até minha mãe e meu pai,

Digam-lhes que a sua querida Ijbeyneh

Pastoreia ovelhas na montanha.

As primas malvadas de Ijbeyneh haviam retornado para casa e a deram por perdida, sem dizer que a haviam abandonado de propósito. O pai e os irmãos da menina a procuraram por todos os lugares. A mãe se lamentava o dia inteiro, exclamando que Alá a castigara por não ter se contentado com sete filhos; e até mesmo as pombas pareciam tristes e não cantavam mais como antigamente. Um dia, porém, o comportamento dos pássaros mudou. De tristes, ficaram agitados e felizes, e pareciam ansiosos para fazer com que seus donos os compreendessem. Os esforços das pombas eram evidentes, o que fez com que os vizinhos daquela pobre família se voltassem para os pais de Ijbeyneh e lhes dissessem para tentar descobrir para onde os pássaros costumavam voar diariamente, e que os seguissem. O pai, os irmãos e vários amigos resolveram então seguir as pombas.

Eles então descobriram que elas voavam diretamente para o topo de uma montanha, e foi para lá que se dirigiram. Ao escalarem-na, encontraram a menina desaparecida, que ficou imensamente feliz por vê-los. Eles levaram dali todos os bens, cabras, aves e tudo o mais que pertencia ao ghul, que estava fora, caçando. Quando o monstro retornou, encontrou sua casa pilhada e nada da presença de Ijbeyneh. Ficou tão deprimido que morreu na mesma hora.

Ao chegar em casa, Ijbeyneh contou toda a sua história, quando então se soube que suas primas lhe tomaram as acerolas e a abandonaram no meio da mata. Isto deixou a todos furiosos. Um religioso pregador que havia chegado por aqueles dias na aldeia conclamou: “Que todo aquele que ama a justiça traga carvão em brasa!” Assim que a grande fogueira foi montada, as primas malvadas foram queimadas e viraram cinzas, como mereciam. Mas Ijbeyneh cresceu, conheceu o filho do Sultão e com ele se casou.

 

Um homem inteligente, cujo nome era Uhdey-dun, morava em um castelo no topo de uma rocha muito íngreme. Ele era inimigo de uma terrível ghul que devastara o país e vivia com suas três filhas em uma caverna escura num vale próximo ao deserto. Naquele tempo não se conheciam armas de fogo, por isso Uhdey-dun não podia atirar contra a ghul ou suas filhas, mas tinha uma machadinha afiada, uma longa lança e outras armas. Por sua vez, a ghul tinha apenas um caldeirão de cobre no qual cozinhava comida para ela e suas filhas; porém, elas dificilmente se davam ao trabalho de cozinhar, porque devoravam a comida crua. Como não tinham faca, rasgavam a carne com os dentes e quebravam os ossos martelando-os com uma pedra.

No entanto, a ghul tinha uma vantagem sobre seu adversário, uma vez que podia mudar de forma ao seu bel-prazer. Pois bem, um dia ela apareceu disfarçada de uma velha senhora ao pé da rocha onde Uhdey-dun morava e gritou:

“Ó Uhdey-dun, você não quer me acompanhar até a floresta amanhã a fim de conseguirmos um pouco de lenha?”

Mas Uhdey-dun era perspicaz; reconheceu a ghul e imaginou que, se ela o encontrasse só, o mataria e o comeria na mesma hora. Contudo, para não ofendê-la, respondeu: “Não se dê ao trabalho de vir até mim, eu irei encontrá-la amanhã pela manhã na floresta”.

Na manhã seguinte, muito cedo, Uhdey-dun, que conhecia um atalho para chegar à floresta, pegou sua machadinha, a lança e um saco, e partiu. Como chegou ao local muito antes da ghul, reuniu rapidamente a lenha e encheu o seu saco, abriu um buraco nele e lá se escondeu. Então amarrou o saco na superfície e permaneceu em silêncio absoluto até o monstro aparecer (como ele conseguiu amarrar o saco estando ali dentro eu não sei dizer, mas Uhdey-dun era um homem inteligente). Algum tempo depois a ghul chegou, viu o saco e sentiu o cheiro de Uhdey-dun. Procurou por ele, mas não pôde encontrá-lo. Afinal, cansada de caçá-lo, disse: “Levarei este saco de lenha para a minha caverna, e então voltarei para matar meu inimigo”. Em seguida ergueu o saco e o colocou nas costas. Assim que deu alguns passos, Uhdey-dun lhe deu uma punhalada com a sua longa lança. A ghul imaginou que fora ferida por um pedaço de madeira, e então passou o saco para uma outra posição. Assim que começou novamente a caminhar com o fardo, Uhdey-dun lhe deu outra punhalada com a lança; e muitas outras punhaladas se seguiram até ela chegar à sua caverna sangrando por feridas incontáveis.

“Mãe!” gritaram as filhas, quando ela apareceu, “você trouxe Uhdey-dun para nos servir de jantar, como prometeu?”

“Não o encontrei, minhas queridas, mas trouxe o saco de lenha dele. E nem tudo está perdido, minhas crianças, estou voltando agora para a floresta a fim de encontrá-lo e matá-lo para o nosso jantar”. Ela descarregou o fardo, colocou o caldeirão cheio de água no fogo e partiu.

Assim que Uhdey-dun percebeu que a ghul estava distante, passou a fazer um ruído semelhante ao de alguém mastigando uma goma de mascar, e gritou:

“Eu tenho uma goma de mascar, eu tenho uma goma de mascar!”

“Quem é você?” — perguntaram as filhas da ghul.

“Eu sou Uhdey-dun, e tenho uma goma de mascar”.

“Ah, por favor, dê-nos algumas”, imploraram as pequeninas.

“Abram o saco e me deixem sair”, disse Uhdey-dun. Foi exatamente o que as pequenas ghuls fizeram. Mas quando conseguiu sair, Uhdey-dun pegou a sua machadinha e as matou. Em seguida cortou-as em pedaços e as colocou no grande caldeirão de cobre cheio de água que fora colocado no fogo para cozinhar o próprio Uhdey-dun. Escondeu as cabeças dos monstrinhos sob uma bandeja de palha. Depois disso deixou a caverna e foi para o seu castelo no topo da rocha.

Enquanto isso, a ghul procurava por Uhdey-dun na floresta, mas em vão. Por fim ela retornou à sua caverna. Estranhou não encontrar suas pequeninas, mas como sentia o cheiro de Uhdey-dun, bem como o de carne cozida, pensou: “Ah, estou certa de que meu inimigo foi colocado neste caldeirão; minhas queridas o mataram, colocaram-no para cozinhar e devem ter saído a fim de convidar seus priminhos para o banquete. Mas como estou com muita fome, pegarei alguns pedaços deste cozido e comerei”. Foi exatamente o que ela fez. Entre uma mastigada e outra, surpreendia-se com a maciez daquela carne; ela nem sequer suspeitava de que estava jantando a sua própria descendência. Quando estava satisfeita, passou a olhar ao redor e percebeu que pingava sangue debaixo da bandeja de palha. Ao erguer a bandeja, deparou, consternada, com as cabeças das suas três filhas. Aflita e desesperada, começou a cuspir a carne que acabara de mastigar e jurou se vingar do seu astuto inimigo.

Alguns dias depois Uhdey-dun foi convidado para o casamento do seu primo, e como estava certo de que a ghul tentaria matá-lo naquela ocasião, colocou-se num canto do salão e manteve atenção redobrada sobre todo convidado que entrava na festa. Após algum tempo viu uma enorme cadela de olhar raivoso aproximar-se da casa e rodeá-la, e observou como os demais cachorros se afastavam dela. Percebeu que o monstro viera ao casamento para matá-lo. A ceia do casamento — que, como sempre, consistia em pedaços de carne cozidos com arroz — foi servida, e Uhdey-dun sentou-se para comer. Em seguida pegou um grande osso, foi até a porta da casa e chamou os cachorros. A ghul correu até ele. Uhdey-dun arremessou o osso com tamanha pontaria, que acertou-lhe a testa. O ferimento provocado foi tão grande que um fluxo de sangue escorreu pelo rosto da cadela. Depois disso, ela lambeu a ferida com a língua, enquanto dizia: “Ah, como é doce o dibs (melaço de uva)!”.

“Ah!”, disse Uhdey-dun, enquanto empunhava sua machadinha, “você pensa que eu não posso reconhecê-la sob seu disfarce? Fui eu que destruí suas filhas, eu que a cutuquei com a minha lança enquanto você carregava aquele saco de lenha, e também sou eu que lhe matarei! Duvida? Então ouse se aproximar de mim!”. Pois bem, os ghuls têm pavor do aço; assim, quando a ghul percebeu que seu inimigo estava armado, afastou-se e fugiu, desapontada.

Alguns dias depois ela imaginou uma maneira de surpreendê-lo e atacá-lo desarmado. Aproximou-se da rocha do castelo disfarçada de camponesa, pedindo-lhe uma peneira emprestada.

“Suba e venha pegar”, disse Uhdey-dun.

“Eu não consigo escalar a rocha”, respondeu a falsa camponesa.

“Então eu baixarei uma corda até você”. E foi o que ele fez, mas ao notar que sua visita subia pela corda com uma habilidade incomum, observou-a com mais atenção e a reconheceu. Então soltou a corda; o monstro despencou no precipício e foi feito em pedaços. Foi assim que Uhdey-dun livrou o seu país da ghul e de suas filhas.

 

Um pobre lenhador, que tinha esposa e três filhas, estava trabalhando na floresta quando um estranho passou por ele e iniciou uma conversa. Ao ouvir que o pobre homem tinha três filhas, o estranho pediu sua filha mais velha em casamento, em troca de uma boa soma em dinheiro paga com antecedência.

Quando o lenhador voltou para casa ao entardecer, comentou da oferta com sua esposa, que concordou com a negociação. Então na manhã seguinte levou a menina até uma caverna e lá a entregou ao estranho, cujo nome era Abu Freywar. Assim que o lenhador partiu, Abu Freywar disse à jovem esposa: “Você deve estar com fome, coma isto”. Então ele pegou uma faca, cortou as próprias orelhas e entregou à jovem com uma fatia de pão preto de péssima aparência. Como a garota se recusou a comer aquilo, ele a pendurou pelos cabelos no teto de uma das câmaras da caverna, que neste meio tempo se tornara um magnífico palácio. No dia seguinte, Abu Freywar foi novamente até a floresta e encontrou-se com o lenhador. “Eu quero a sua segunda filha para o meu irmão, aqui está o dinheiro. Traga-a amanhã até a caverna”. O lenhador, encantado com a enorme fortuna daquele homem, levou no dia seguinte a sua segunda filha até Abu Freywar que, assim que o pobre homem partiu, ofereceu as próprias orelhas — que haviam crescido novamente — para a jovem comer. Ela respondeu que não tinha fome, mas que ficaria com elas para comer mais tarde. Assim que o homem saiu do quarto, ela tentou enganá-lo escondendo aquelas orelhas no chão, debaixo de um tapete. Quando ele voltou e perguntou se ela comera as orelhas, a jovem respondeu:

“Sim, comi”; então ele chamou:

“Orelhas, minhas orelhas, vocês estão quentes ou frias?” — e elas responderam prontamente:

“Frias como o gelo, e debaixo do tapete”. Abu Freywar ficou furioso e pendurou a menina ao lado de sua irmã.

Ele então voltou à floresta e pediu para o lenhador lhe entregar a filha mais nova, cujo nome era Zerendac, pois a queria para o seu outro irmão. A menina, uma criança inteligente, recusou-se a ir, mas cedeu com uma condição: levar consigo um carinhoso gatinho e uma caixa na qual guardava tudo o que lhe era valioso. Abraçando-os, ela partiu com Abu Freywar para a caverna.

Zerendac mostrou ser mais esperta do que suas irmãs. O marido repetiu todo o procedimento e lhe entregou as próprias orelhas para ela comer, e assim como fizera a irmã do meio, ela disse que não tinha fome, mas guardaria para comê-las mais tarde. Assim que o esposo saiu do quarto, a caçula entregou aquelas orelhas para o gato, que as devorou avidamente enquanto ela comia um pouco da comida que trouxera de casa. Abu Freywar, que na verdade era um ogro, voltou e chamou:

“Orelhas, minhas orelhas, vocês estão quentes ou frias?”

“Tão quentes quanto podemos estar neste pequeno estômago”, foi a resposta. Isto o deixou tão feliz que daquele dia em diante o seu amor por Zerendac somente cresceu.

Depois que a jovem passou alguns dias com ele, o ogro lhe disse: “Querida, preciso fazer uma viagem. Há quarenta quartos neste palácio. Aqui estão as chaves com as quais você pode abrir qualquer porta que quiser, exceto aquela cuja chave dourada abre-a”, e em seguida partiu. Zerendac se divertiu na sua ausência, abrindo e examinando cada um dos quartos. Ao entrar no trigésimo nono, ela olhou pela janela, que se abriu para um enorme cemitério, e ficou horrorizada ao ver seu marido devorando um cadáver que pouco antes havia retirado da sepultura com suas longas garras. Ela estava tão impressionada com a visão que (escondida atrás da cortina da janela) ficou estática, assistindo seu marido em sua horrível refeição. Alguns instantes depois ela o viu esconder-se atrás de um monumento; ele fora perturbado pela aproximação de um funeral. Assim que a procissão se aproximou, a jovem ouviu um dos carregadores do caixão dizer: “Vamos fazer o que temos para fazer o mais rapidamente possível, para que o ogro que freqüenta este local não nos encontre e acabe conosco”; Zerendac pôde ver que toda a procissão parecia muito ansiosa.

Esta descoberta deixou a moça muito intranqüila. Ela estava ansiosa para saber o que havia no quadragésimo quarto, e a descoberta que fizera acerca do real caráter do marido a incitou a solucionar o mistério a qualquer preço. Então pegou a chave e abriu a última porta. Ali encontrou suas duas irmãs, ainda vivas, penduradas no teto pelos cabelos, balançando de um lado para outro. Ela as soltou, alimentou-as, e assim que pareceram mais coradas, mandou-as de volta para os seus pais.

Abu Freywar voltou no dia seguinte, mas não por muito tempo. Ele deixou o lar alguns dias depois, não sem antes dizer à esposa que ela poderia convidar quem quisesse para lhe fazer companhia. Zerendac convidou muitos dos seus amigos e parentes, que efetivamente vieram visitá-la, mas nada sabiam das suas dificuldades. Ela fez bem em não reclamar, porque suas visitas não eram as pessoas que pareciam ser; na verdade era o seu próprio marido, disfarçado de várias formas, a fim de saber o que ela pensava a seu respeito. Finalmente ele foi bem-sucedido quando assumiu a aparência da avó da jovem. A moça estava começando a contar suas tristezas quando a velha voltou a ser Abu Freywar. Então, com sua unha envenenada, o monstro feriu o peito de Zerandac. A ferida não a matou, mas a fez desmaiar. Ainda inconsciente, a moça foi colocada pelo ogro numa caixa e jogada no fundo do mar.

Pois bem, o filho do Sultão daquele país adorava navegar de barco e pescar. Um dia, do seu barco, o príncipe lançou uma grande rede num local próximo daquele em que Zerendac estava presa no fundo do mar. A rede acabou agarrando a caixa, que foi puxada para cima com a maior dificuldade. O filho do Sultão colocou-a dentro do barco e, antes de abri-la, disse aos seus criados: “Se esta caixa contiver dinheiro ou jóias, podem ficar com tudo; mas se contiver qualquer outra coisa, será minha”.

Ao abri-la, o príncipe ficou muito chocado com o que viu e lamentou o triste destino daquela menina adorável. Ele levou o corpo da jovem até a mãe dele, que a prepararia dignamente para o enterro. Felizmente, durante o processo Zerendac espirrou e voltou à vida assim que a unha envenenada foi retirada.

Ela se casou com o príncipe, e algum tempo depois gerou uma filha. Mas um dia, quando Zerendac estava sozinha com a criança, de repente a parede do seu quarto se abriu ao meio e Abu Freywar apareceu. Sem dizer uma palavra, ele arrebatou a criança e a engoliu, para em seguida desaparecer tão subitamente como havia surgido. Zerendac ficou tão desnorteada com esta tragédia que, quando questionada sobre o paradeiro do bebê, ela só fazia chorar desesperadamente.

A sua segunda criança, um filho, e a terceira, outra filha, também lhe foram subtraídas da mesma maneira horrível. Nesta última ocasião, o cruel ogro cobriu a face da pobre mãe com o sangue da sua filha. Ela lavou o rosto, mas, na sua pressa e angústia, deixou uma leve mancha nos lábios. O marido e a sogra já desconfiados, julgaram, claro, que ela era uma ghul e que devorara seus bebês.

Zerendac contou a sua versão da história, mas ninguém acreditou. Seu marido, embora fosse contra condená-la à morte, ordenou que fosse presa em uma pequena câmara subterrânea e, conforme a sugestão de sua mãe, o príncipe buscou outra noiva. Ao ouvir falar da beleza da filha de um Sultão das vizinhanças, ele foi até lá pedi-la em casamento. Mas antes de partir, como ainda amava Zerendac, apesar de tudo, chamou-a e lhe perguntou o que ela gostaria que ele lhe trouxesse quando retornasse. Ela pediu uma caixa de sebr80 (babosa), outra de henna81 e um punhal. Quando o príncipe voltou noivo da filha do Sultão vizinho, trouxe consigo o que Zerendac lhe pedira. Ela abriu as caixas, uma por uma, dizendo: “Ó caixa de sebr, a tua paciência não é maior do que a que já demonstrei ter até aqui. Ó caixa de henna, a tua delicadeza não é maior do que aquela que eu tenho expressado até este momento”. Em seguida, quando segurava o punhal, a parede da sua prisão se abriu ao meio e Abu Freywar apareceu, trazendo consigo um lindo menino e duas meninas adoráveis.

“Estão vivos, vivos!” — ela gritou.

“Eu não matei suas crianças. Aqui estão elas”. Então, por meio de magia, ele criou uma escadaria secreta que ligava o Calabouço onde estava Zerendac com o grande salão do palácio. Em seguida arrancou o punhal da mão dela e se matou.

Quando começaram as primeiras festividades para o casamento do príncipe, Zerendac enviou as três crianças, ricamente vestidas em roupas que Abu Freywar deixara para ela no topo da escada, dizendo-lhes para se divertirem muito, sem respeito pelos convidados nem pela mobília. E foi assim que elas se comportaram: quebraram tudo o que puderam — mas a mãe do príncipe resistia em castigá-las, porque as três eram muito bonitinhas e a faziam lembrar-se do próprio filho. Contudo, finalmente perdeu a paciência; quando se preparava para bater em uma das crianças, estas gritaram imediatamente: “Ó Senhora Lua Cheia! Veja como a lua está ficando redonda!”. Todos se apressaram e foram até a janela, mas quando se viraram, as crianças já haviam desaparecido.

No dia do casamento as crianças apareceram novamente, correram, quebraram pratos e copos de porcelana; enfim, destruíram aquilo que era possível destruir. Quando o príncipe as repreendeu, as crianças responderam com surpresa:

“Esta é a nossa casa, e tudo aqui pertence a nós e aos nossos pais”.

“O que vocês querem dizer com isso?” — perguntou o príncipe, atônito.

As crianças então levaram o pai até a escadaria secreta que levava ao Calabouço onde estava presa Zerendac; esta então lhe explicou quem eram de fato aquelas crianças, e como haviam chegado até ali. O príncipe, comovido, abraçou-a com ternura e jurou lhe ser fiel até os últimos dias da sua vida. A filha do Sultão foi devolvida, acompanhada de um pedido de desculpas e uma compensação satisfatória para o pai dela.

Daquele dia em diante o príncipe e Zerendac viveram felizes para sempre.

 

Em um dia de muita neve, uma mulher deu à luz uma menina chamada Thaljlyeh — conhecida também como Branca de Neve — e morreu no parto. A órfã foi então adotada pela avó, que a criou até que ela pudesse andar e brincar com as outras crianças. No entanto, o pai de Branca de Neve casou-se novamente com uma viúva que tinha duas filhas, o que deixou a avó materna muito triste. A nova esposa tratava a jovem como uma empregada doméstica. A menina tinha que carregar jarros de água sobre a cabeça, do campo distante até a sua casa. A meia-noite ela precisava ajudar a separar o milho para preparar o pão do dia seguinte e, quando já estava mais velha e forte o bastante para fazer isso sozinha, a madrasta e suas meio-irmãs deixaram de ajudá-la, e dormiam até o amanhecer. Também era o seu dever sair com outras meninas para buscar lenha, mato ou esterco seco de vaca para servir de combustível ao forno da aldeia, e depois disso misturar a massa e assar o pão; e quando nada havia para fazer em casa — o que raramente acontecia —, era enviada para recolher cacos de cerâmica a fim de preparar o cimento para o poço. Não lhe era permitido ir a casamentos ou festas; entretanto, na véspera ela sempre bordava os tecidos que enfeitavam o busto dos vestidos de festa de suas cruéis irmãs.

Apesar de tanto sofrimento, Deus concedera a Branca de Neve uma natureza doce. Ela gostava de cantar durante o trabalho e estava sempre pronta a ajudar quem estivesse ao seu redor. Todavia, a sua alegria não agradava à madrasta nem às filhas, cujas vozes eram irritantes e desafinadas como o guincho das corujas; então, invejosas, proibiram-na de cantar na casa.

Um dia, quando toda a família seguiu para um casamento, Branca de Neve foi deixada só na torre de vigia do vinhedo, em pleno verão. Junto ao lado externo do portão do vinhedo, à margem da estrada, havia um poço que acumulava água da chuva, que ela puxava para levar para casa, encher a caixa d’água e dar de beber aos viajantes sedentos. Naquele dia, quando Branca de Neve baixava o seu balde no poço, a corda arrebentou e o recipiente caiu lá no fundo. Ela então se viu obrigada a pedir um khuttâfeh82 emprestado à vizinha. Quando conseguiu um, a jovem amarrou-o a uma corda e, não sem antes proferir uma oração, advertindo qualquer espírito que porventura estivesse no poço para ficar fora do seu caminho, baixou o khuttâfeh enquanto cantava:

Ó khuttâfeh! Agarre, agarre,

E tudo o que encontrar, puxe, puxe!

Pois bem, embora ela não soubesse, estas palavras eram um feitiço; além disso, havia um demônio dentro do poço que gostava de Branca de Neve. Ao perceber que agarrara algo pesado, a jovem passou a puxar o balde com muito esforço. Para sua enorme surpresa, encontrou-o cheio de lindas jóias, muitas pulseiras, colares e brincos de ouro. A menina estava tão feliz com a sua boa sorte, que levou tudo isso para a torre. Quando suas irmãs voltaram para casa, ela deixou todas as jóias sob os cuidados delas. Porém, elas fingiram não querer aceitar, e, ao ouvirem como Branca de Neve as adquirira, decidiram que conseguiriam algumas jóias para elas também. Então ambas baixaram um balde no poço e, aos gritos e com arrogância, proferiram as palavras do feitiço que Branca de Neve antes cantara tão docemente. Elas tentaram inúmeras vezes, mas sempre que puxavam o balde para cima, ele vinha cheio de lama, pedras, minhocas e outros seres repugnantes. Desapontadas, resolveram tomar as jóias da irmã e continuaram tratando-a muito mal.

Uma noite, porém, após a morte do pai, a situação virou ao avesso. Estava chovendo, e a pobre menina não queria estragar seus belos sapatos, feitos de couro vermelho de Damasco, um presente do pai. Ela então os amarrou e lançou-os sobre os ombros, um pendurado na frente e o outro nas costas. Já estava muito escuro, e Branca de Neve não sabia por onde seguir. Ao ver uma luz brilhando em uma caverna habitada, ela foi naquela direção na expectativa de obter abrigo durante a noite. Sentada à porta daquela humilde habitação estava uma anciã. Era a avó materna de Branca de Neve a quem, no entanto, não conhecia, porque era muito jovem quando seu pai casou-se de novo com a viúva. Porém, a anciã reconheceu sua neta e aceitou alegremente hospedá-la aquela noite. “Minha neta não deveria andar sozinha por aí a esta hora da noite. E claro que você pode ficar aqui. Querida, minha filha morreu quando você nasceu; se quiser, pode ocupar o quarto dela no meu lar.” A mulher então lhe ofereceu o que de melhor tinha para comer, e Branca de Neve, após descobrir o seu parentesco com aquela senhora, concordou alegremente em permanecer ali.

No entanto, um dos sapatos da jovem se perdeu quando ela estava a caminho da caverna da anciã. O nó no cordão com o qual o par fora amarrado afrouxou-se, e o sapato que estava pendurando atrás do ombro caiu, enquanto o outro ficou preso a algum gancho do seu vestido, de modo que ela só percebeu a perda ao encontrar abrigo na casa da avó. Mas era muito tarde para sair e procurar o sapato perdido; a moça resolveu que esta seria a primeira coisa que faria pela manhã.

No dia seguinte, a velha senhora estava desfiando lã a fim de tecer um abayeh para o filho de um xeique muito rico. O jovem era muito bonito, e todas as mães, incluindo a cruel madrasta, tentavam de todas as maneiras tê-lo como genro, todas mal-sucedidas. Branca de Neve estava almoçando quando o príncipe se aproximou da caverna; ele encontrara o sapato da jovem na estrada e procurava a dona. Ao ouvir os passos do rapaz, a moça saltou apressadamente e se escondeu em um canto escuro da caverna, onde poderia vê-lo e ouvi-lo sem ser vista.

“Minha boa senhora, já desfiou a linha para o meu novo abayeh?” — perguntou o príncipe, assim que entrou na caverna.

“Sim, meu querido, devo terminar de costurá-lo até o meio-dia de amanhã”, respondeu a anciã. “Mas diga-me, o que você traz aí na sua mão?”

“É o sapato de uma jovem que encontrei pelo caminho e recolhi. É tão pequeno, que a sua dona deve ser uma moça muito bonita; estou procurando por ela e, se Deus quiser, quando encontrá-la, tornar-se-á minha esposa”.

A anciã estava impressionada com a fala impetuosa do rapaz; mas, sábia como era, não lhe contou nada. Em vez disso convidou-o a encontrá-la no dia seguinte na frente da loja do tintureiro.

Na manhã seguinte, após terminar a sua tarefa, a mulher deixou Branca de Neve sozinha na caverna. Ela a orientou a manter a porta fechada e não atender o jovem, caso ele aparecesse por lá — como a anciã suspeitava — para perguntar novamente se o seu abayeh estava pronto. As coisas saíram como a anciã esperava. O jovem, que imaginava que a velha costureira não cumpriria a sua promessa de preparar o abayeh para aquele dia, em vez de ir encontrá-la diante da loja do tintureiro resolveu ir até a caverna. Deparou a porta fechada e não recebeu qualquer resposta quando chamou pela anciã. Porém, ao ouvir Branca de Neve cantando enquanto girava a roda de fiar, ele espiou por uma fenda na porta para ver quem era a dona de uma voz tão doce. Imaginando que a moça estava só e arrependido por ter sido tão apressado na noite anterior, partiu em direção ao tintureiro para se encontrar com a velha senhora. Esta lhe entregou o abayeh, conforme o combinado. Quando o príncipe lhe perguntou quem estava cantando na caverna, ela respondeu:

“Sua noiva”.

“O que você quer dizer com isso?” — perguntou surpreso.

“É a moça a quem pertence o sapato que você encontrou ontem à noite, e com quem você jurou por Deus que se casaria”, respondeu a mulher.

O jovem ficou encantado. Seu pai não fez qualquer objeção ao matrimônio, pois sabia que Branca de Neve era de uma boa família. Graças à bondade do demônio que vivia dentro do poço, todas as jóias pertencentes à noiva foram encontradas uma manhã diante da sua cama, na caverna da avó. E o que aconteceu à madrasta cruel? Ela e suas filhas experimentaram o dissabor de ouvir o Zagharít, o canto de felicidade entoados pelos amigos da noiva. Branca de Neve, a jovem a quem elas tanto menosprezaram e maltrataram, foi conduzida sobre um camelo todo ornamentado em feliz procissão até a casa do seu marido.

É muito provável que muitos leitores reconheçam nesta história uma versão local de “Cinderela”.

 

  1. Sátiras

No topo da montanha acima de uma aldeia muçulmana havia a tumba de um santo cujo guardião era o Xeique Abdullah, um sábio ancião muito amado nas vizinhanças. Acompanhado por seu discípulo, um órfão de nome Ali, e montado em um asno que ele criara desde que era um filhote, Abdullah viajava de aldeia em aldeia prescrevendo medicamentos para os doentes, vendendo amuletos e encantamentos escritos por ele, que supostamente protegiam do mau-olhado e de outras estranhas adversidades. Ele também preparava horóscopos e revelava segredos por meio de um espelho mágico ou de uma tábua de areia.

Quando Ali se tornou adulto, o ancião lhe disse: “Meu filho, eu lhe ensinei tudo o que sei. Há poucos pregadores, e não sabem metade do que você conhece. Agora, tudo o que você tem a fazer é se tornar um Haji e peregrinar até os Locais Santos. Então, se Deus quiser, você conseguirá facilmente um posto, como eu, de homem honrado. Como um dervixe, você não precisa de dinheiro. Leve consigo o meu velho abayeh, este mahjaneh83 e o asno para montar; a partir de amanhã já pode viajar com os demais peregrinos”.

Embora relutante em se afastar de seu pai adotivo, Ali seguiu o conselho do xeique e, após receber a sua bênção, partiu no dia seguinte. Com a proteção de Alá, viajou em segurança durante muitos meses, até que um dia chegou a uma planície estéril, varrida pelo sopro de um vento quente, distante de qualquer habitação humana. Ele seguia a pé a fim de poupar o seu asno, que estava debilitado, quando de repente o pobre animal parou, esfregou seu focinho no braço do rapaz, e caiu morto. Ali não podia suportar a idéia de abandonar o corpo do seu velho amigo para os urubus e as hienas; então decidiu lhe cavar uma sepultura. Embora esta não fosse uma tarefa fácil, ele a completou antes do pôr-do-sol. Quando se preparava para dormir ao lado daquele monte de terra, ouviu o som de galopes e percebeu a aproximação de uma tropa de cavaleiros. De onde estava, pôde ouvir o líder gritar para seus companheiros: “Vejam! Um dervixe santo está de luto diante de uma sepultura recém-construída. A Morte colheu um de seus companheiros de viagem e ele misericordiosamente o enterrou naquele local. Como é triste morrer abandonado em um lugar tão inóspito, onde não se pode encontrar água sequer para lavar o cadáver! Preciso ir até lá e falar com ele”.

O cavaleiro foi até Ali, e após cumprimentar o dervixe, perguntou o nome do morto.

“Ele se chamava Eyr”, respondeu Ali, utilizando-se de uma palavra poética e incomum para “asno”.

“Ah! Pobre Xeique Eyr”, suspirou o chefe dos cavaleiros, cheio de compaixão. “Os caminhos de Alá são muito misteriosos. Porém, não deixe que esta morte lhe entristeça. Pelo menos a memória dele continuará viva. Amanhã pela manhã enviarei para cá meus homens para construir um esplêndido santuário sobre a sepultura”; e, antes que Ali tivesse tempo para explicar que se tratava da sepultura de um asno, o nobre impulsivo partiu com os demais cavaleiros.

Ali não pôde dormir aquela noite; ele não parava de pensar naquela estranha situação. Na manhã do dia seguinte vislumbrou pequenos pontos no horizonte; mais alguns minutos e pôde ver camelos carregando limo e burros trazendo pedras lavradas, dirigidos por uma equipe de pedreiros e construtores que haviam recebido ordens para construir imediatamente o Santuário do Xeique Eyr. Ali somente pôde assistir ao trabalho deles, que começou sem demora. Em primeiro lugar construíram um monumento sobre a sepultura e dentro dele abriram um vestíbulo de determinado tamanho e forma. Em seguida abriram um salão com um local apropriado para as orações. No lado do salão oposto à câmara onde estava a tumba, foi erguida uma segunda sala para a acomodação do guardião do santuário. Por último construíram um pequeno minarete, cavaram um poço e cercaram tudo com muros, formando um grande pátio com abóbadas de claustro nos quatro cantos. A obra levou um bom tempo para ser concluída, mas Ali, que ouvira do próprio Emir que ele seria o xeique do santuário e receberia um bom salário por isso, assistiu a tudo pacientemente e aceitou suas novas obrigações com muita alegria.

Situado num local conveniente para o descanso dos viajantes que cruzavam o deserto, em pouco tempo o novo santuário ganhou fama e era visitado anualmente por hordas de peregrinos. Estes presenteavam ricamente o seu xeique, que passou a exibir sinais de riqueza na forma de se vestir e de se conduzir.

As notícias a respeito do novo santuário e da sua crescente popularidade chegaram finalmente aos ouvidos do velho Xeique Abdullah, que na sua juventude visitara a maioria dos lugares santos, mas não se lembrava de ter ouvido falar deste. Por curiosidade, decidiu fazer uma peregrinação até o santuário do Xeique Eyr a fim de descobrir a sua origem e história. Ao chegar ali, ficou surpreso com a incontável multidão de peregrinos. Quando encontrou o guardião do santuário, foi pego de surpresa ao reconhecer seu discípulo Ali. Eles se abraçaram com gritos de alegria, e Ali convidou Abdullah para jantarem juntos na sua casa. Após a ceia, o Xeique Abdullah olhou firmemente para Ali e perguntou solenemente:

“Meu filho, eu lhe peço em nome dos santos, profetas, e de tudo o que nós, muçulmanos, consideramos sagrado, para que não esconda nada de mim. Afinal de contas, quem está enterrado neste lugar?”

O jovem contou a sua história sem reservas, e, quando terminou o relato, disse:

“Pois bem, meu pai, agora me diga: qual santo enterraram no seu santuário?”

O ancião voltou os olhos para baixo, visivelmente constrangido, mas, pressionado por Ali, sussurrou: “Bem, se você quer mesmo saber, ali está enterrado o pai do seu asno”.

 

Certa vez vivia em Jerusalém uma velha viúva muito religiosa cujo nome era Hanneh, pertencente à Igreja Ortodoxa Oriental. Embora fosse muito pobre, ela fazia muita caridade e tinha o amor de todos que a conheciam. Havia apenas uma pessoa no mundo cujas faltas ela não perdoava, e este era o Patriarca, um exemplar de sacerdote um tanto cômico, para não dizer trágico. Há alguns anos ela fora governanta da família onde ele, a única criança, muito vivida e arteira, aprontara tantas com ela que fizera da vida da pobre mulher um fardo; e ela jamais poderia imaginar que, mais tarde, ele ainda aprontaria das suas. Quando ele era uma criança, ela não tinha dúvidas do que ele viria a se tornar; mas quando freqüentou a escola, em vez de ser castigado e expulso, como ela esperava, tornou-se conhecido por sua dedicação e era muito querido pelos colegas e mestres. “Ah”, ela pensava, “um dia eles descobrirão como estão enganados!”.

Os dias escolares daquele rapaz terminaram e ele foi ordenado diácono; Hanneh balançava a cabeça, estupefata, enquanto refletia em seu coração: “Ai ai ai! Nossos padres devem sofrer de cegueira espiritual para admitir este moleque nos serviços religiosos”. A sua surpresa e horror cresceram quando, com o passar do tempo, ele se tornou padre, arcebispo, bispo, e finalmente ascendeu ao trono patriarcal. Ela sentiu-se amargamente humilhada quando, ao encontrá-lo na rua, teve que ajoelhar-se e beijar a sua mão, embora pudesse ver no olho dele aquela centelha de maldade que a mulher aprendera a associar às suas molecagens, quando jovem. No entanto, dizia para si mesma: “Aqui na terra, naturalmente, erros são cometidos, mas no céu estes serão corrigidos”.

Hanneh morreu santa e a sua alma flutuou até o portão do céu, diante do qual São Pedro está sentado com as chaves para permitir a entrada daqueles que merecem.

“Quem vem lá?” — perguntou São Pedro, olhando pela janela machicolatada84 por cima do portão. “Ah! Outra alma redimida! Seu nome, minha filha”.

“Hanneh, sua criada”, foi a resposta submissa. São Pedro abriu imediatamente o portão e a recebeu calorosamente, indicando-lhe um lugar entre o coro divino. Ali ela finalmente estava a salvo, e para sempre, do seu desafeto, o Patriarca.

De repente três grandes batidas no portão do céu assustaram os felizes cantores. São Pedro levantou-se e correu até a janela para ver quem era. Então, visivelmente agitado, enviou atendentes apressados para todas as direções. Regimentos de querubins e serafins marcharam até o portão e ficaram em posição de sentido em ambos os lados. Em seguida vieram dois arcanjos, enquanto São Pedro, com incomum cerimônia, também se esticou inteiro, em posição de respeito. Todos os santos estavam ali, em pé, impacientes para ver quem era o merecedor desta recepção triunfal: para pesar e espanto de Hanneh, o Patriarca cruzou o portão entre altas aclamações. Quando os olhos dele se encontraram com os dela por um instante, a pobre mulher pôde ver que ele ainda estava aprontando das suas. O Patriarca foi conduzido até um assento elevado, próximo ao trono, enquanto a velha governanta se desfazia em uma inundação de lágrimas.

Contudo, não são permitidas lágrimas no céu. Então, quando os outros santos a viram lamentar, imaginaram que ela era um dos condenados que entrara ali por engano, e se afastaram. Assim, a mulher foi deixada sozinha, fora do círculo dos abençoados, que recuaram como ovelhas assustadas e pararam de cantar. São Pedro notou a interrupção dos cantos e veio ver qual era o problema. Ao ver a santa em lágrimas, disse-lhe severamente:

“Quem é você?”

“Hanneh, sua criada”, foi a resposta, e ele verificou o nome no registro celeste.

“Parece que está tudo correto”, pensou consigo mesmo; e voltando novamente para Hanneh, disse: “Você não sabe que aqui as lágrimas são proibidas? Diga-me por que está chorando neste lugar feliz”.

Então Hanneh, aos prantos, contou a sua história: relatou como o Patriarca, quando criança, lhe beliscava e provocava, ao mesmo tempo em que não aceitava ser banhado e vestido, e assim por diante, até que ela teve a certeza de que aquele menino seria sempre um arteiro; contou ainda como ele enganara seus colegas de escola e mestres, e mais tarde as autoridades da Igreja; e como o próprio São Pedro agora havia destruído o senso dela de justiça ao conceder ao velhaco uma entrada triunfal no céu. São Pedro caiu na gargalhada e bateu levemente nas costas dela, enquanto dizia:”Então é isso, minha filha! Vamos, pare com essa choradeira e volte a ocupar o seu lugar no coro. Ele não é tão ruim como você pensa. E quanto à entrada triunfal, é porque, enquanto centenas de santos como você, graças a Deus, são admitidos diariamente, só uma vez em mil anos é que abrimos as portas para um Patriarca”.

 

Havia certa vez em Jerusalém um jovem padre que, além de saber de cor a liturgia do dia-a-dia, aprendera a ler um capítulo da Bíblia em árabe que adorava recitar diante da sua congregação. Ele sempre começava:”Então Deus disse a Moisés...”.

A primeira vez que leu isto, os fiéis se deleitaram e se surpreenderam com a sua erudição; mas logo cansaram deste sermão, que era repetido domingo após domingo. Então uma manhã, antes do serviço, um dos fiéis entrou na igreja e retirou a marcação da bíblia do padre. Quando, durante o serviço religioso, chegou o momento daquela leitura, o padre abriu a bíblia e começou, confiante: “Então Deus disse a Moisés...”. Mas ao olhar para a página diante dele, não a reconheceu; só aí percebeu que a sua marcação fora removida. Perturbado, começou a virar as páginas freneticamente, esperando encontrar o seu capítulo. Mais de uma vez imaginara tê-lo encontrado, e então recomeçava: “Então Deus disse a Moisés...”, mas não sabia como continuar. Finalmente um ancião da congregação, intrigado com a repetição daquela frase, perguntou: “Padre, o que Deus disse a Moisés?”

E o padre respondeu furiosamente: “Ele disse: Que Deus destrua a casa do desgraçado que retirou a marcação do meu livro!”.

 

Um padre aprendera de cor todas as datas de jejuns e feriados religiosos da Igreja Ortodoxa, inclusive o número de dias intermediários de semi-feriados. A fim de manter o controle das datas para avisar aos demais, com antecedência, quando seria o próximo jejum ou feriado, ele colocou em um dos seus bolsos um número de ervilhas equivalente ao de datas que precisava lembrar, e todas as manhãs transferia uma delas para o outro bolso. Assim, ao contar as ervilhas do primeiro bolso, saberia sempre dizer quantos dias faltavam para a próxima data religiosa.

Este padre tinha uma esposa85 que não sabia deste seu engenhoso método. Um dia, ao lavar as roupas do marido, encontrou as tais ervilhas nos bolsos e concluiu que ele adorava tê-las consigo. Então, por amor, encheu os bolsos do marido com muitas, muitas ervilhas. No dia seguinte, o padre foi visto muito angustiado, enquanto batia a testa na parede e gritava: “De acordo com as ervilhas, não haverá mais jejum”.

 

Os dias de jejum da Igreja ortodoxa Oriental representam mais de um terço de todos os dias do ano. Nestes dias evita-se comer qualquer coisa que seja de origem animal, inclusive ovos, leite e manteiga e tudo o que é cozido com estes ingredientes. Pois bem, em um destes dias de jejum, um monge passeava pelo mercado quando se aproximou de uma camponesa que vendia ovos. Mortalmente doente por não comer nada além de legumes, o homem comprou alguns ovos, levou-os secretamente à sua cela no convento e lá os escondeu até tarde da noite, esperando que todos os demais monges se deitassem. Então ele se levantou para cozinhar os ovos e comê-los. Como não tinha onde fervê-los, segurou um dos ovos com uma pinça e colocou-o por cima da chama de uma vela, até achar que estava pronto. Fez isso com todos os ovos, um por um. Um cheiro horrível de cascas de ovo queimadas espalhou-se pelo monastério e chegou até a cela do abade, que veio imediatamente até a cozinha do convento com uma vela na mão, mas encontrou-a vazia. Ele então andou para cima e para baixo por todos os corredores, cheirando porta depois de porta, até chegar à cela do culpado. Ao espiar pelo buraco da fechadura, o abade viu o monge assando o último dos seus ovos.

Então bateu à porta, ainda com o olho no buraco da fechadura. O monge pegou os ovos, escondeu-os sob o travesseiro, apagou a luz e roncou ruidosamente. O abade bateu novamente, desta vez com mais força, e pediu permissão para entrar. Finalmente os roncos cessaram e o monge perguntou, com voz de sono: “Quem está aí?”

“Sou eu, seu abade!”. A porta foi aberta rapidamente.

Sem levar em conta as desculpas do monge, o abade o acusou de cozinhar ovos dentro da sua cela. A acusação foi veementemente negada, e o odor típico foi explicado pelo fato de sua vela ter queimado por muito mais tempo que o habitual sem ser apagada, porque o monge, imerso em suas orações, esquecera-se de soprar a chama.

O abade então foi até a cama do monge e, ao apalpar sob o travesseiro, encontrou os ovos cobertos de fuligem. Incapaz de continuar negando a sua culpa, o monge reconheceu a sua transgressão, mas implorou clemência porque o próprio Diabo o levara a pecar. Pois bem, mas o que ele não esperava era que o Pai de todos os demônios passasse por ali naquele exato instante, e ao ouvir a desculpa do monge, deu um passo adiante e esbravejou:

“Isso é uma mentira deslavada! Eu nunca tentei este monge. Não havia necessidade. É verdade que passo meus dias tentando os incrédulos, mas à noite costumo vir para os conventos como um humilde aprendiz”.

 

Certa vez, um monge estava no mercado quando viu duas aves à venda. Somente depois de aceitar o preço que a vendedora pedia pelas aves é que percebeu que estava sem dinheiro suficiente. A mulher se ofereceu para guardar as aves enquanto ele buscaria a sua bolsa, mas o monge contestou, dizendo preferir levar somente uma ave, deixando a outra guardada com ela. A mulher recusou, retrucando que nem mesmo sabia o nome dele e que faria uma queixa ao seu abade.

“Ah, resolvemos isso facilmente”, respondeu o monge. “Iremos juntos ao meu convento verificar os nomes contidos na Bíblia. O meu é ‘Perdoai os nossos pecados’. Você só precisa perguntar por ‘Perdoai os nossos pecados’ e eu serei chamado imediatamente”.

“Ah, que nome bonito você tem”, disse a mulher, “mas o meu é mais bonito: ‘Não nos deixe cair em tentação, e livrai-nos de todo mal’”.

 

Em Damasco vivia um homem muito rico cujo nome era Haj Ahmad Izreyk. Seu patrimônio consistia de grandes rebanhos de camelos com os quais ele supria as caravanas daquela cidade.

Quando chegou a hora deste homem morrer, em vez de partir depressa, ele demorava tanto antes de dar o último suspiro que seus amigos estavam certos de que o milionário deveria ter causado um mal a alguém que ainda não o perdoara. Eles então convocaram todos os seus familiares e pediram a cada um para que declarasse solenemente que não guardava nenhum rancor do moribundo. Até mesmo seus inimigos, comovidos por aquela agonia prolongada, vieram ao lado da sua cama e imploraram para que Haj Ahmad os perdoasse como eles já o haviam perdoado por qualquer injustiça que ele pudesse lhes ter feito; todas as tentativas, porém, foram em vão. Os portões da morte permaneciam fechados para o homem agonizante.

Finalmente alguém imaginou que ele poderia ter ofendido algum animal. Como o homem tinha muito contato com os camelos, decidiu-se pedir para que estes o perdoassem. Mas os camelos são criaturas rebeldes, e se recusaram a comparecer até que lhe lhes fosse concedido um dia inteiro de folga para se reunirem e discutirem a questão. Isto lhes foi concedido, e no dia seguinte milhares de camelos estavam reunidos na planície diante dos jardins da cidade. Os grunhidos, gemidos, gargarejos, fungadas e sopros faziam tanto barulho que os camelos foram ouvidos até em Mazarib. O debate foi longo e acirrado, mas à noite finalmente eles chegaram a uma decisão, que o xeique deles comunicaria a Haj Ahmad.

O xeique dos camelos era tão enorme que mais se parecia com uma montanha ambulante. Os pêlos pendiam das suas costas como um par de bolsas amarradas a uma sela. A cada passo que dava, levantava uma nuvem de poeira que escurecia o ar, e a sua pata deixava uma pegada tão grande quanto um cesto para amassar o pão. Todos os que passavam por ele exclamavam: “Mashallah! Louvado seja o Criador!”, ao mesmo tempo em que cuspiam para a direita e para a esquerda, para espantar o mau-olhado.

O xeique dos camelos se aproximou da casa de Haj Ahmad, mas não conseguiu entrar, pois era grande demais. Pediram-lhe então para transmitir a sua mensagem pela janela. No entanto, como o mais nobre dos representantes daqueles animais, ele ficou indignado com a sugestão e ameaçou ir embora. Os amigos de Haj Ahmad lhe pediram para ter paciência e decidiram demolir uma das paredes da casa. Finalmente o camelo veio até a beira do leito de morte do seu dono e, ajoelhando-se, pronunciou:

“Ó Haj Ahmad, descanse em paz, os camelos te perdoam; mas eles me enviaram para te dizer por que precisas do perdão deles. Não é por nossos fardos nem pelas chicotadas que recebemos diariamente das mãos dos teus criados. Isto vem de Alá, e faz parte da nossa porção em vida. Mas nos carregar pesadamente, nos amarrar juntos como contas em um rosário e nos obrigar a seguir a traseira de um burrico miserável — ah, isso nós consideramos um sofrimento terrível!”.

Essa história, anterior à expulsão dos turcos da Terra Santa, era uma crítica velada ao governo; o “burrico miserável” é uma referência ao Sultão.

 

  1. As Mulheres

Um homem vivia com sua esposa e a sogra acamada em uma casa. de dois andares quando a residência pegou fogo. O homem, que havia jogado pela janela toda a mobília do pavimento superior, procurava alguma coisa que porventura ainda pudesse ser aproveitada. Ao olhar para sua sogra, agarrou-a em seus braços, levou-a até uma das janelas e também a jogou na rua. Então, após enrolar cuidadosamente o seu colchão, carregou-o escada abaixo. Quando apareceu diante da porta da sua casa, os vizinhos lhe perguntaram:

“O que você está carregando com tanto cuidado?”

“O colchão da minha sogra”

“E onde ela está?”

“Ah”, respondeu o homem, “eu a joguei pela janela”.

Os vizinhos assentiram com a cabeça, concordando que ele agira com sabedoria.

 

Não há nada mais astuto e temido do que uma mulher velha. Certa manhã, uma senhora com esta descrição estava passeando quando encontrou Iblis, o Diabo. Cumprimentou-o e, como ditava a boa educação, perguntou-lhe o que estava fazendo:

“Ah, o de sempre, estou indo colocar pessoas em dificuldade”.

“O que há de mais? Qualquer tolo é capaz de fazer isso”.

“Eu ouço isso o tempo inteiro”, disse Iblis. “Mas tenho ouvido que não apenas os tolos, mas também mulheres velhas como você são capazes de me superar no meu próprio negócio”.

“Muito bem”, disse ela, sorrindo, “proponho então uma disputa”.

O diabo concordou, e propôs que ela fosse a primeira; mas a mulher recusou dizendo que, como todos sabiam que ele era o mal por excelência, deveria ter a precedência.

Perto deles havia um belo garanhão amarrado numa cavilha ao lado de uma tenda. “Veja”, disse Iblis, “soltarei o animal sem arrancar a cavilha do chão; agora note o estrago”. O cavalo escapou imediatamente e fugiu a galope, pisoteando tudo o que encontrava pela frente; antes de ser recapturado, já havia matado dois homens e ferido várias mulheres e crianças.

“Muito bom”, disse a mulher velha, “esta foi uma obra-prima da vilania. Mas agora desfaça o que fez!”

“Como?” — gritou o diabo. “Isso é algo que eu jamais tentei”.

“Então, meu caro, eu sou mais hábil do que você”, gargalhou a mulher, “porque eu posso consertar os estragos que faço”.

“Ah, isso eu gostaria de ver!” — zombou Iblis, incrédulo.

“Você só precisa assistir”, foi tudo o que ela teve tempo de dizer antes de iniciar a sua demonstração.

A mulher velha correu para casa a fim de buscar um pouco de dinheiro; então entrou na loja de um negociante de vestidos de seda, um homem recém-casado.

“Bom dia, meu senhor”, ela disse, enquanto parava diante da cadeira onde ele estava sentado. “Eu quero o vestido mais bonito que você tem à venda”.

“É para a sua filha?”

“Não, para o meu filho”.

“Ele vai se casar, então?”

“Não!”— respondeu a mulher, demonstrando impaciência com o rapaz, “é que meu filho está apaixonado por uma jovem mulher recém-casada com outro homem, e ela pediu a ele um vestido muito caro como pagamento por seus favores”.

O comerciante, atônito com a confissão, disse:

“Uma senhora de respeito como você não deveria demonstrar tanta maldade!”

“Ah, meu caro”, ela sussurrou, “ele ameaçou bater em mim se eu não fizer a sua vontade”.

“Tudo bem, aqui está o vestido, mas o preço é quinhentos dinares; depois do que você me contou, minha consciência não me permite vendê-lo mais barato do que isso”.

No entanto, após ela pechinchar um pouco, ele aceitou lhe vender o vestido por duzentos dinares; então a mulher velha levou o vestido e foi embora.

Iblis, que testemunhara a transação, exclamou:

“Que mulher tola, a quem você prejudicou pagando duzentos dinares por um vestido que não vale metade desta quantia?”

“Espere e verá”, foi a resposta.

A mulher velha voltou novamente para casa, vestiu-se como uma dervixe, cobriu a cabeça com um véu verde e pendurou um grande rosário com noventa e nove contas ao redor do pescoço. Ao meio-dia ela partiu novamente, levando consigo o vestido que comprara há pouco, e foi até a residência particular do comerciante. Chegou bem no momento em que uma religiosa da mesquita vizinha lembrava aos crentes que chegara a hora das orações. Ela bateu à porta e, assim que esta foi aberta, pediu licença para entrar e dizer ali suas orações, justificando que não teria tempo de chegar em casa para fazê-las. A mulher explicou ao comerciante que era uma velha religiosa, cerimonialmente pura e não mais sujeita às fraquezas das mulheres. O criado comunicou isso à sua patroa que, feliz em ter uma visita tão honrosa, veio recebê-la e levou-a até uma sala onde ela poderia fazer suas orações.

Mas esta senhora não era lá muito fácil de agradar. “Minha querida, os homens costumam fumar nesta sala. Eu acabei de me banhar e estou perfeitamente pura, mas se eu descalçar as minhas botas amarelas aqui, meus pés ficarão sujos novamente”.

Ela foi levada então para outra sala. “Ah, minha filha”, reclamou, “alguém fez suas refeições aqui. Minha mente seria desviada para as coisas carnais. Será que você não tem um quartinho isolado?”

“Eu sinto muito”, respondeu a anfitriã, “não há outra sala, a não ser o nosso dormitório”.

“Leve-me até lá então”, disse a mulher velha.

Ao ver o quarto, a mulher finalmente se deu por satisfeita e pediu para ser deixada só a fim de proferir suas orações. Ela prometeu incluir nelas uma prece para que a sua anfitriã tivesse um filho.

Assim que se viu só, a senhora escondeu debaixo do travesseiro o pacote com o vestido de seda, esperou tempo suficiente para fingir que fizera suas orações, e então foi embora abençoando a casa e seus amáveis moradores.

O comerciante voltou para casa no fim do dia como de costume, jantou, fumou o seu cachimbo e foi para a cama. O travesseiro estava incômodo e, tentando acomodá-lo direito, sentiu o pacote sob sua cabeça; ao abri-lo, encontrou um vestido que ele bem conhecia. Ao se recordar das palavras da velha que o comprara, a respeito do destino daquele vestido, o homem pulou da cama furioso; agarrou a esposa pelo braço, arrastou-a até a porta e, sem dizer uma palavra, empurrou-a, ainda seminua, para o olho da rua, após o que trancou a porta da casa. Felizmente era uma noite sem luar e ninguém viu a desgraça da mulher, exceto a autora da maldade, a velha, que assistira a tudo. Então ela foi ao encontro da jovem esposa — que estava de cabeça baixa, infeliz e apavorada em meio à escuridão da noite — e perguntou, dissimuladamente horrorizada, o que havia acontecido. A pobre alma respondeu que o seu marido ficara repentinamente furioso. “Não importa, minha filha”, disse a velha ternamente, “Alá me enviou para lhe ajudar. Venha para a minha casa esta noite e confie em mim, encontraremos uma solução”.

A residência daquela megera tinha um único aposento. Ao chegarem lá, o filho da velha já havia se deitado, e estava dormindo. A mulher foi buscar dois outros colchões e muitas colchas de algodão, e esticou-os no chão ao lado da cama do filho. Em seguida se deitou na cama próxima à dele e convidou a visita a repousar no outro. Assim, a mulher velha posicionou-se entre o seu filho e a visita, que logo caiu em sono profundo. Logo que isso aconteceu, a senhora levantou-se, atenta aos ruídos noturnos. Em pouco tempo ouviu o som pelo qual estava esperando: os passos de guardas fazendo a ronda noturna. Ela então abriu as janelas e gritou: “Venham, ó verdadeiros crentes! Venham e vejam a desgraça que está acontecendo na minha velhice. Meu filho trouxe uma prostituta para casa e me obriga a dormir no mesmo quarto que eles”. Os guardas, ao ouvirem o clamor, entraram na casa, agarraram os jovens inocentes e os levaram para a prisão.

Na manhã seguinte, assim que raiou o dia, a mulher velha foi até a prisão, envolta em um longo véu. Pediu licença ao carcereiro — que conhecia de longa data — para falar com a jovem mulher que fora presa durante a noite. Quando estava diante dela, disse: “Não tema, minha filha, livrarei você daqui. Troque de roupa comigo e cubra-se com este véu. Assim poderá passar pelo carcereiro e ir até a minha casa sem ser reconhecida. Agora vá, eu me encontro contigo lá”.

A jovem esposa fez como lhe foi dito e escapou sem dificuldade. A mulher velha esperou até que o carcereiro fizesse a sua ronda, e então começou a gritar clamando justiça. O funcionário, querendo saber o motivo de tanto alvoroço, ficou surpreso ao descobrir que era causado por uma velha conhecida. Ela gritava: “O guarda noturno estava bêbado quando entrou na minha casa e levou meu filho para a prisão sem motivo algum”. O carcereiro percebeu claramente a armação daquela mulher, porém ele havia quebrado os regulamentos ao admitir uma visita tão cedo pela manhã e não lhe agradava a idéia do escândalo que isso poderia gerar; então ordenou que a megera e seu filho fossem libertados.

Enquanto isso, o comerciante foi, como sempre, para o seu trabalho. A mulher velha esperou até a cidade estar desperta e então saiu para visitar o pobre homem a quem tinha envergonhado. Ele a saudou com uma maldição, mas ela lhe ordenou para que ficasse calado. Chamou-o para uma conversa em particular no canto da loja e lhe contou tudo: como, após visitar a loja, ela fora tão bem recebida pela esposa do rapaz, que lhe permitira fazer as suas orações no quarto do casal; como ela deixara o pacote com o vestido de seda debaixo do travesseiro dele; e como a esposa, que a megera agora tinha a honra de hospedar em sua humilde residência, era totalmente inocente da acusação que pesava contra ela.

O comerciante ficou estupefato e, ao mesmo tempo, imensamente aliviado ao ouvir aquilo. Ele amava a sua esposa; mais do que isso, não tinha mais qualquer evidência de que ela o traíra, o que seria motivo de escárnio dos seus amigos e parentes. Então, após devolver àquela senhora o dinheiro pago pelo vestido, pediu-lhe para interceder por ele. Ela consentiu graciosamente e convidou-o para ir à sua casa. Ao chegar lá e encontrar a sua esposa, o homem lhe confessou o engano e foi perdoado. O casal voltou a ser unido como antes e nunca mais se separou. A jovem esposa, felicíssima com a reconciliação, deu um belo presente à mulher velha.

Então Iblis, o Diabo, teve forças para resmungar, conformado: “O diabo não é páreo para uma mulher velha”.

 

As esposas do harém do Rei Salomão, ciumentas de uma das favoritas do soberano, subornaram uma mulher velha para fazer intriga entre a jovem e o rei. Após elogiar a beleza da favorita até que esta estivesse nas suas mãos, a velha declarou que o rei deveria manifestar o seu amor pela beldade concedendo-lhe algum pedido extraordinário. “Minha querida, você sabe: Salomão conhece o idioma dos pássaros e tem poder sobre todas as criaturas vivas. Será fácil para ele construir para a sua amada um palácio de penas que flutue no ar”.

A jovem aceitou a sugestão, e assim que o rei se aproximou, ela se aconchegou nele toda manhosa e fazendo beicinho, como se estivesse entristecida. Comovido, ao saber o que a deixara triste, ordenou imediatamente que todos os pássaros viessem perante ele e sugerissem algum meio de demonstrar o seu amor. Todos obedeceram, exceto a coruja, que se recusou terminantemente a conceder um conselho. Salomão advertiu-a de que, se a criatura persistisse em desobedecê-lo, ele lhe cortaria a cabeça. Como a coruja rapidamente mudou de opinião e pediu perdão por sua conduta anterior, o rei prometeu relevar isso, mas sob uma condição: que ela lhe respondesse corretamente algumas perguntas.

“Coruja, por que não vieste quando eu te convoquei pela primeira vez, juntamente com todas as aves?” — perguntou Salomão.

“Porque uma velha malvada virou a cabeça de uma jovem e incitou-a a pedir uma coisa impossível; afinal, quem pode construir um palácio sem fundações?” — respondeu a coruja.

Voltando-se para os milhares de pássaros que haviam se apresentado, o rei perguntou:

“Qual de todos estes pássaros você considera o mais gentil?”

“O meu filhote”, respondeu a coruja.

“O que é mais numeroso, os vivos ou os mortos?”

“Os mortos”, respondeu o pássaro.

“Como você prova isso?”

“Tudo que dorme está morto, e é visivelmente mais numeroso do que aqueles que ficam acordados, preocupados com os problemas da vida”.

“O que é mais abundante, o dia ou a noite?”

“O dia”.

“Como assim?”

“Porque quando a lua brilha também pode ser considerada luz diurna, permitindo assim que as pessoas viajem”.

“Última pergunta”, disse o rei. “Quem é mais numeroso, os homens ou as mulheres?”

“As mulheres”.

“Prove”.

“Meu rei, conte todas as mulheres, e então some-as aos seus maridos, pois estes são governados pelos caprichos delas”, respondeu a coruja.

Ao ouvir isso o rei deu uma sonora gargalhada e disse à coruja que ela poderia ir em paz.

 

Sempre que o Rei Salomão estava viajando para o exterior, os pássaros, ao comando dele, pairavam em bandos sobre a sua cabeça como um grande pálio. Por ocasião do matrimônio do rei, este ordenou que seus servos emplumados concedessem a mesma honra à sua noiva. Todos obedeceram, exceto o hoopoe (pica-pau) que, em vez de lisonjear a mulher, partiu e se escondeu.

No dia do seu casamento, o rei, sentindo falta do seu pássaro favorito, ordenou que os demais fossem procurá-lo. Os pássaros voaram em todas as direções, norte, sul, leste e oeste; e somente após muitos meses o fugitivo foi descoberto dentro de um buraco na rocha de uma ilha no mais distante dos sete mares.

“Vocês são muitos, e eu sou apenas um”, disse o hoopoe.  “Não há como fugir agora que me encontraram, irei com vocês — contra aminha vontade — até Salomão, cuja tolice em nos pedir para homenagear a mais inútil das criaturas me exaspera e me causa repugnância. Mas antes de partirmos, deixem-me lhes contar três histórias a respeito da natureza da mulher, para que julguem quem tem razão, o rei ou eu”.

Então o hoopoe começou a contar.

 

Um homem tinha por esposa uma linda mulher por quem era completamente apaixonado; e ela era ainda mais apaixonada por ele, porque o homem era muito rico.

“Se eu morresse”, ela às vezes sussurrava no seu ouvido, “você logo secaria suas lágrimas e se casaria novamente com uma mulher mais linda do que eu; mas se você morrer primeiro, terminarei meus dias em completa aflição”.

“Não, por Deus”, respondeu o homem, com firmeza, “se você morresse, eu deixaria de trabalhar e choraria sobre a sua sepultura por sete anos seguidos”.

“Você faria isso por mim?”— ela dizia, chorando e emocionada.

“Oh, eu faria muito mais do que isso pela sua doce memória!” — respondeu o homem, todo meloso.

Conforme estava escrito nos céus, a mulher morreu antes. Por sua vez, o homem, fiel à sua promessa, manteve o seu juramento: abandonou os negócios e chorou sobre a sepultura da amada, dia e noite, por sete longos anos, sobrevivendo de nacos de carne a ele lançados por almas caridosas. Suas roupas logo se tornaram trapos; seus cabelos e barba cresceram em longas madeixas; suas unhas ganharam a dimensão das garras de uma águia, e ele emagreceu tanto, que mais parecia um Louva-a-Deus.

Ao final dos sete anos, El Khudr86 viu o estranho enlutado e pediu que este contasse a sua história. O homem santo lhe perguntou se ele realmente acreditava que a sua esposa, caso tivesse vivido mais do que ele, teria feito tanto.

“Claro que sim”, foi a resposta.

“Você imagina que, se ainda estivesse viva agora, ela ainda o amaria?”

“Claro que eu acredito”.

“Muito bem”, disse El Khudr, “veremos”. Após dizer isso, golpeou a sepultura com a vara de Moisés e escancarou-a, fazendo com que a mulher surgisse envolta na sua mortalha, tão jovem e linda como era antes de morrer. El Khudr escondeu-se atrás de um monumento, de modo que a mulher só viu o marido diante dela. Horrorizada com sua aparência, ela gritou:

“Quem é você, criatura horrenda, que mais se assemelha a uma fera selvagem do que a um homem? Por que eu estou aqui no cemitério? Se você for um ghul, imploro para que não me devore”.

Ela estremeceu ainda mais quando soube que aquela criatura assustadora era o seu fiel marido, e afirmou que só voltaria para casa com ele após o anoitecer, dizendo: “O que as pessoas falarão ao me verem andando por aí, envolta numa mortalha?”

Ele sentou ao seu lado, colocou a cabeça no colo dela, e crente que voltaria a tê-la como esposa, caiu em sono profundo.

Um sultão que viajava por aquela estrada viu o casal junto à sepultura aberta, e golpeado pela beleza da mulher envolta na mortalha, convidou-a para ser a sua amada. Ela afastou a cabeça do marido, colocou-a no chão e entrou numa liteira que estava pronta para levá-la dali.

Quando o sultão partiu com sua nova mulher, El Khudr saiu do seu esconderijo, despertou o marido e contou-lhe como a esposa fora levada, sugerindo que eles a seguissem. Os dois partiram em perseguição e logo chegaram ao palácio do sultão. El Khudr pediu uma audiência que, graças à sua imponente presença, foi imediatamente concedida. O sultão ficou abismado e irado quando El Khudr proclamou a identidade do seu companheiro, enquanto a mulher declarou que aquele velho de dar medo jamais fora o seu esposo. O homem santo se ofereceu para solucionar o dilema e ordenou à mulher que vestisse novamente a sua mortalha, pois ia levá-la de volta para o cemitério. O sultão, em temor a El Khudr, teve que se submeter, e a mulher foi levada à beira da sua própria sepultura. Na mesma hora ela voltou a ser um cadáver. Alguns dizem que isso ocorreu graças a um olhar tétrico lançado por El Khudr, outros acreditam que foi resultado do sopro do bico de uma grande águia que de repente se abateu sobre eles desde o céu.

Então, com um golpe da vara de Moisés, El Khudr cerrou a sepultura. Por ordem de Deus, o marido recuperou os sete anos que havia perdido, obteve permissão para se casar novamente e viveu feliz e por muito tempo com outra esposa — a quem, por não ter mais ilusões, colocou no seu devido lugar.

 

Dois bons amigos, comerciantes, celebraram uma parceria. O primeiro, um homem gordo, tinha uma esposa que o amava muito; o outro, magro, estava amarrado a uma megera que fazia da vida dele algo miserável. Quando certa vez o homem gordo convidou seu sócio para ir à sua casa passar a noite, a esposa, embora não tenha sido informada do convite, recebeu-o com muita cordialidade; mas quando o homem magro se aventurou a devolver a hospitalidade, sua esposa o recebeu com xingamentos e acabou expulsando-o de casa, juntamente com seu convidado. O homem gordo simplesmente riu e levou o marido ofendido para a sua casa, enquanto dizia: “Agora eu sei por que você é tão magro e o seu olhar é tão triste; mas eu imagino que conheço a cura. Siga meu conselho: viaje com a sua mercadoria por, digamos, seis meses; então envie uma carta comunicando que está morto. Sua esposa perceberá a boa sorte que perdeu e se arrependerá de ter lhe maltratado tanto. Quando eu e minha esposa percebermos que ela realmente se tornou uma mulher humilde, darei um jeito de você saber disso, e então será a hora de retornar”.

O homem magro aceitou o plano e, no seu devido tempo, deu início à viagem. Seis meses depois, o seu sócio recebeu a carta anunciando a morte do parceiro. O homem gordo informou à viúva, então, que agora a loja e toda a mercadoria eram somente dele. Em seguida tomou-lhe todos os pertences sob o pretexto de uma ou outra dívida, deixando-a sem nada. Como era uma conhecida megera, a mulher não conseguia emprego algum, e finalmente foi obrigada a implorar a ajuda do homem gordo. Este lhe lembrou, friamente, da rudeza que ela demonstrara antigamente, e repreendeu o modo como ela maltratara seu falecido marido. Foi apenas por respeito à memória do saudoso sócio que ele finalmente convenceu a “viúva” a ser sua empregada.

O feliz casal fez da sua vida algo tão miserável que ela passou a ver a sua vida anterior como um paraíso, lembrando-se do marido como um anjo de luz. Então, quando o homem magro reapareceu, ela caiu aos seus pés. Desde então viveu submissa a ele, como uma esposa obediente.

 

Havia um comerciante que conhecia o idioma dos animais.

Mas este conhecimento só lhe havia sido concedido sob a condição de que, se ele contasse este segredo a alguém, morreria na mesma hora. Ninguém, nem mesmo a sua esposa, sabia que ele tinha este talento fora do comum.

Uma noite, parado próximo aos seus estábulos, ele ouviu um boi que há pouco voltara do campo, onde puxava o arado. O boi se queixava amargamente do seu pesado trabalho e perguntava para o burro — sobre o qual o comerciante montava a negócios — como era possível aliviar o seu fardo. O burro lhe aconselhou a ficar muito doente, deixar a sua comida intacta e rolar de dor no chão quando o lavrador viesse para levá-lo ao campo. O boi seguiu o conselho, e no dia seguinte seu dono soube que o animal estava muito doente para trabalhar. O comerciante prescreveu descanso e comida extra para o boi, e ordenou que o burro, que estava forte e gordo, fosse amarrado ao arado no seu lugar.

Naquela noite o comerciante permaneceu novamente no estábulo, só escutando. Quando o burro voltou do trabalho, o boi agradeceu o seu conselho e expressou a intenção de se comportar do mesmo jeito no dia seguinte.

“Se você dá valor à própria vida, não faça isso novamente”, disse o burro. “Hoje, enquanto eu estava arando, veio o seu dono e disse ao lavrador para que te levasse amanhã até o açougueiro, pois você estava sofrendo muito e ele ficaria feliz em lhe abreviar tamanha dor; também disse que, se você adoecesse e morresse, ele perderia o valor da sua carcaça”.

“O que eu faço?” — gritou o boi, aterrorizado.

“Esteja bem e forte amanhã pela manhã”, respondeu o burro.

O comerciante, sem saber que a esposa estava ao seu lado, riu em voz alta, atiçando a curiosidade da mulher. Suas respostas evasivas só a fizeram perguntar mais e mais; e quando ele se recusou terminantemente a lhe contar por que soltara aquela gargalhada, ela perdeu a paciência e foi se queixar aos parentes, que logo ameaçaram o comerciante com um divórcio. O pobre homem, que realmente amava sua esposa, ficou desesperado e resolveu contar tudo a ela, mesmo sabendo que morreria em seguida. Então ordenou seus negócios, preparou o testamento e prometeu à mulher que lhe contaria tudo no dia seguinte.

Na manhã seguinte, diante de uma janela aberta para o galinheiro, onde o galo se galanteava para várias galinhas ao mesmo tempo, ele ouviu o seu cão de guarda repreender o galo por sua conduta tão fútil em um dia de luto.

“Por quê? Qual é o problema?” — indagou o galo.

O cão então lhe contou a história das dificuldades que o amo estava passando. Em resposta o galo exclamou: “Nosso dono é um tolo. Não é possível que ele tenha problemas com uma esposa, enquanto eu não os tenho com vinte. Basta-lhe carregar consigo uma vara e aplicar na sua mulher uma sonora chibatada, que ela se tornará muito amável”.

Estas palavras vieram iluminar a escuridão em que estava o comerciante, que levou imediatamente a esposa para uma sala fechada e lá a castigou a ponto de lhe tomar uma polegada de vida. Daquele dia em diante ela nunca mais lhe causou problemas.

 

“Você pode perceber, por meio destas três histórias”, concluiu o hoopoe, “que as mulheres são criaturas tolas, vãs e cansativas; e quão errado está Salomão em nos pedir para que façamos homenagem a uma deles. Quando você encontra uma boa mulher, pode estar seguro de que as virtudes dela são fruto da vara”.

Os pássaros, em assembléia, concordaram com todos os argumentos do hoopoe. Eles consideraram que, se aqueles fatos valiosos fossem apresentados a Salomão, ele mudaria a sua conduta com relação ao sexo feminino e talvez até recompensasse o hoopoe por ter ousado, por motivos humanitários, desobedecê-lo. Todos eles então foram até o rei que, após escutar as três histórias do hoopoe, tirou a coroa da sua cabeça e a colocou sobre a do pássaro, cujos descendentes a usam até hoje. O hoopoe ou pica-pau é conhecido pelos camponeses da Terra Santa pelos nomes de “pássaro do homem sábio” e “pássaro de Salomão”.

 

  1. Os Animais

O cão e o gato nem sempre foram inimigos. Já houve uma época de forte amizade entre eles. A hostilidade surgiu do seguinte incidente.

Há muitos anos, quando cada uma das diferentes espécies de animais no mundo tinha sua própria obrigação e dever determinados, o cão e o gato, embora classificados entre os animais domésticos, estavam isentos de trabalhar pesado; o primeiro por sua fidelidade, o último por sua limpeza. A pedido deles, cão e gato receberam um documento por escrito atestando e confirmando este privilégio. O cão o recebeu como uma salvaguarda e o enterrou juntamente com seus ossos. Mortos de inveja, o cavalo, o burro e o boi contrataram o rato que, escavando, achou e destruiu a escritura. Assim, desde aquela época o cão foi o responsável, graças ao seu descuido, por ser mantido amarrado ou acorrentado pelo seu dono; além disso, o gato nunca o perdoou. Tanto o cão como o gato odeiam ratos, e sempre que podem os matam. O cavalo, o burro e o boi, por outro lado, permitem que os ratos partilhem das suas provisões.

Entretanto, alguns dizem que os cães já foram classificados entre as feras selvagens e viviam nos campos, enquanto os lobos tinham o dever e privilégio de serem amigos e guardiões dos seres humanos. A razão por que suas posições foram invertidas deve-se ao seguinte: os cães, que invejavam os lobos, conspiraram para expulsar seus rivais das cidades e aldeias. Um dia, quando o xeique dos cães ficou doente, estes pediram aos lobos para fazerem a gentileza de trocar de papel com eles durante algum tempo, para que o xeique canino e outros cães enfermos pudessem receber tratamento médico adequado. Além disso, os cães teriam tempo para se instruir e se tornarem mais civilizados. Os lobos concordaram de boa-fé, mas os cães, que eram mais numerosos, fortes e inteligentes, assim que obtiveram a posição desejada, recusaram-se a voltar à antiga condição.

Até hoje, as pessoas que não falam o árabe e vivem na Terra Santa podem ouvir claramente, à noite, o uivo dos lobos perguntando:

“Kayf-hoo, Kayf-hoo?”, que significa “como ele está, como ele está?”, e os cães ladram em resposta:

“Baad-oh, Baad-oh”, “ainda na mesma, ainda na mesma”.

O gato é um animal limpo, e conta com a bênção do rei Salomão. Assim, se um gato bebe de um recipiente com leite ou água potável, o que resta após ter saciado a sua sede permanece limpo e pode ser consumido por seres humanos — pelo menos é o que um camponês de Belém me assegurou. Em contrapartida, o cão é sujo, e um recipiente do qual ele bebe fica imundo. De fato, o cão é considerado tão indisciplinado pelos muçulmanos mais rígidos, que se estes estiverem fazendo suas orações e um cão se molhar a quarenta passos deles, eles se levantam imediatamente, executam as suas abluções e recomeçam a orar do início.

Por outro lado, sempre podemos encontrar pessoas apaixonadas por cães. Conta-se que um muçulmano possuía um belo Slugi87 pelo qual era aficcionado. Quando o animal morreu, ele o enterrou reverentemente, com as próprias mãos, no jardim da sua casa. Então seus inimigos foram imediatamente até o juiz e o acusaram de enterrar um animal sujo com o respeito e as cerimônias devidas a um muçulmano. O homem teria sido severamente punido caso não tivesse contado ao Kadi que o animal provara a sua sagacidade ao deixar um testamento mencionando uma grande soma de dinheiro como um legado à sua adoração. Ao ouvir isto, o juiz decidiu que este cão, de rara sabedoria e discernimento, tinha o direito a um enterro decente.

 

Conta-se que o Patriarca Abrahão era muito amável e hospitaleiro não só com as pessoas, mas também com os cães. Seus rebanhos eram tão numerosos, que eram necessários quatro mil cães para vigiá-los, e estes eram alimentados diariamente pela generosidade do Patriarca. Também se diz que, antigamente, se uma pessoa matasse o cão do seu vizinho, tinha o dever de pagar uma indenização pela criatura da mesma maneira que faria por um ser humano. O valor desta compensação era calculado da seguinte maneira: o animal morto era pendurado pelo rabo, com o focinho tocando o chão. Uma estaca de altura igual à do animal suspenso era fixada no solo. Em seguida se amontoava trigo ou farinha em volta desta, até cobri-la por inteiro. Então seria estimado o valor do grão ou da farinha amontoada e o assassino do cão deveria pagar como indenização justamente este valor.

No local onde a estrada do Portão de Herodes, no muro norte de Jerusalém, se une à grande estrada para Nablus, próximo à Tumba dos Reis, havia um poço diante do qual o já falecido guardião do santuário muçulmano adjacente a Sheykh Jerrah me contou a seguinte lenda:

Há muitos anos um homem foi assassinado, mas sua cadela não deixava o local do crime e atacava todos que por lá passavam, até que ela também foi morta. No entanto, isto foi inútil, pois agora o seu fantasma aparecia na companhia do seu dono, amedrontando os viajantes. Com o intuito de afastar os fantasmas, o irmão do homem assassinado colocou o poço e a fonte de água potável construídos no local à disposição, gratuitamente, dos homens e dos animais. Desde então os fantasmas nunca mais foram vistos, mas o poço, antigamente conhecido como Bir el Kelb, “o Poço da Cadela”, está fechado e a fonte foi destruída durante o Mandato Britânico na Palestina.

Muito provavelmente esta lenda se origina do fato de a Tumba dos Reis ser conhecida entre os judeus pelo nome de Kalba Shevua,”a Cadela Enlutada”. Conta a tradição que Kalba Shevua, sogro do grande sábio judeu do século II, Rabi Akiva, era conhecido por fornecer comida do próprio bolso aos pobres de Jerusalém quando uma grande fome assolava a cidade. A gruta onde Kalba Shevua fazia a sua tsedacá (caridade) fica nos arredores da tradicional tumba de Simão o Justo.

 

Há três provérbios muito populares relativos a cães:

“É melhor alimentar um cão do que alimentar um homem”, ou seja, ao contrário do ser humano, o canino não esquecerá a bondade.

“Para o bem de cavalos e homens, amarre os cães”.

“O cão do xeique é o verdadeiro xeique”.

 

O gato é amado pelos muçulmanos pela seguinte razão: um dia, o Profeta Maomé, no tempo em que ele guiava camelos, estava dormindo à sombra de alguns arbustos no deserto quando uma serpente saiu de um buraco e o teria matado se não houvesse um gato rondando o local, que saltou sobre ela e a destruiu. Quando o Profeta despertou, viu o que ocorrera e, chamando o gato para perto de si, afagou-o e abençoou-o. Desde então ele se tornou apaixonado por gatos. Conta-se que um dia ele cortou a longa manga da sua veste, sobre a qual o gato dormia, preferindo isto a atrapalhar o sono do animal. Mas embora o gato seja um animal santificado, alguns estranhos felinos domésticos, especialmente gatos pretos, deveriam ser evitados, pois podem ser demônios disfarçados.

 

Um grande xeique muçulmano no Egito tinha por animal de estimação uma gata preta pela qual era muito afeiçoado e que à noite costumava dormir ao seu lado. Uma noite o xeique estava enfermo e não conseguia dormir. Ao se levantar, ouviu um gato miando na rua. Seu animal de estimação correu imediatamente e foi até a janela. O gato de rua então chamou a gata preta pelo nome, em árabe, perguntando-lhe se havia alguma comida na casa. Ela respondeu, também em árabe, que havia bastante, mas que nem ela nem qualquer outro gato poderiam colocar as patas na comida porque o seu dono sempre proferia o Nome de Deus sobre as caixas com provisões, e assim a pretensa visita teria que procurar comida em outro lugar.

 

Lilith, o demônio feminino, “a primeira esposa de Adão”, às vezes está disfarçada de coruja, mas em geral se apresenta como uma gata. A história seguinte, contada por uma judia espanhola, ilustra esta crença.

É bem verdade que La-Brusha (Lilith) em geral assume a aparência de uma gata. Isto é o que minha mãe contava desde que eu nasci, e lhe foi contado pela mãe dela, minha avó. Ambas eram mulheres muito dignas. Nos primeiros oito dias após o nascimento de uma criança a mãe jamais deve ser deixada sozinha no quarto. Eis o que aconteceu quando a minha mãe nasceu:

Minha bisavó, que estava cuidando da minha avó, saiu um pouco do quarto, deixando a mãe e a criança (que era minha mãe) cochilando. Quando ela voltou, minha avó contou-lhe que tivera um sonho estranho. Ela tinha visto uma grande gata preta entrar no quarto assim que minha bisavó virou as costas. A criatura foi até um dos cantos do dormitório e se transformou em um jarro. Ouviu-se então um gato miando na rua, e o jarro imediatamente retomou a forma de uma gata preta, que veio até a cama (minha avó estava desamparada e paralisada de medo), levou o bebê até a janela e perguntou ao outro lá de fora: “Posso jogar?” — “Jogue”, foi a resposta. A gata fez a mesma pergunta algumas vezes, e sempre recebia a mesma resposta. Ela então jogou a criança (minha mãe) pela janela. Porém, bem naquele momento a minha bisavó entrou no quarto e a gata desapareceu na mesma hora. Ao notar que de fato a criança não estava em seu berço nem na cama de sua mãe, minha bisavó, com grande presença de espírito, escondeu o seu desespero e disse à filha: “É claro que você estava apenas sonhando, minha querida. Fui eu que levei a pequena para trocar de roupas enquanto você ainda dormia, e a trarei de volta em um momento”. Após dizer isso, ela deixou o quarto calmamente. Assim que fechou a porta e se viu do lado de fora, saiu em busca da gata. Após algum tempo de caminhada, viu um gato enorme cruzando um campo com a criança em sua boca. O amor pela netinha a fez correr. Em poucos instantes ela agarrou a criatura e, sendo uma mulher sábia, ciente do que fazer em tal situação de emergência, proferiu uma forma de oração que não só forçou o demônio a soltar a sua presa como também fez Lilith jurar que, pelas próximas onze gerações, não molestaria a sua família ou a dos seus descendentes. Minha bisavó trouxe a criança de volta e somente quando a mãe do bebê já estava bem e forte novamente é que ela contou à minha avó que o seu suposto sonho fora uma realidade assustadora.

 

Matar um gato é considerado um grande pecado para muitos camponeses, e certamente traz azar ao assassino. Quando um camponês de Artass perdeu a visão, ele e outros atribuíram o infortúnio ao castigo divino, pois na sua juventude o camponês fora um assassino de gatos. Embora geralmente respeitado, o gato às vezes é considerado a personificação da astúcia e da hipocrisia.

 

Após acabar com quase todos os ratos do lugar, um gato urbano viu-se forçado, por falta de novas presas, a entrar nos campos e caçar pássaros, ratos e lagartos. Naqueles tempos de necessidades, seguiu a seguinte estratégia: afastou-se durante algumas semanas dos seus abrigos habituais e, ao retornar, com um rosário ao redor do pescoço, parou em frente a uma casinha de ratos e, de olhos fechados, passou a ronronar ruidosamente. Logo um rato colocou a cabeça para fora do buraco, mas, ao ver o felino, voltou rapidamente para dentro.

“Por que você foge de mim?” — perguntou delicadamente o felino. “Em vez de ficar feliz com a volta de um velho vizinho, você sai correndo assim que me vê! Vamos nos visitar, não tenha medo”. Surpreso ao ouvir isso da boca do gato, o rato se aventurou novamente à porta do seu buraco e disse:

“Como você pode esperar que eu o visite? Você não é o inimigo da minha raça? Se eu aceitasse o seu convite, você com certeza me agarraria e me devoraria como fez com meus pais e com muitos outros da minha família”.

“Ah!” — suspirou o gato, “seus temores são justos; eu já fui um grande pecador, e só ganhei discórdia e inimizade. Mas agora estou verdadeiramente arrependido. Como pode ver, tenho um rosário em volta do meu pescoço. Agora me dedico a orar, meditar e recitar os Livros Sagrados de cor e salteado, e há pouco estava reiniciando minhas devoções quando você me apareceu. Além disso, eu visitei os Locais Santos, portanto sou um peregrino e um Hafiz, ou seja, sei o Corão de cor. Vem, ó meu amigo ferido — mas não obstante, generoso e que perdoa —, permita que a minha mudança de conduta e de sentimentos seja conhecida por toda a sua gente e que não mais tenham medo da minha presença, pois você pode ver que me tornei um monge. Enquanto estiver ausente, meu querido amigo, eu estarei aqui, rezando”. E voltou a ronronar: “Purr, purr, purr”.

Muito surpreso com o que acabara de ouvir, o rato espalhou a boa notícia por toda a sua tribo. No início todos estavam incrédulos. Mas finalmente, depois que uns e outros se aventuraram a espiar pelo buraco e viram o felino com o rosário em volta do seu pescoço, aparentemente alheio às coisas deste mundo e repetindo continuamente o seu ronronar — que eles imaginaram ser o conteúdo dos Livros Sagrados — concluíram que poderia haver alguma verdade naquilo. Então reuniram uma assembléia de ratos para discutir o assunto. Após muito debate, decidiram testar a veracidade da conversão do gato, porém seriam prudentes; e assim, um rato velho e experiente foi enviado para o encontro. Por ser muito vivido, ele se manteve bem longe do alcance do gato, e saudou-o respeitosamente. Este permitiu que o rato circulasse por muito tempo sem ser molestado, na esperança de que os outros saíssem da toca; então teria presas fáceis e abundantes. Todavia, nenhum deles se arriscou a colocar a cabeça para fora. Por fim, pontadas agudas de fome levaram o felino a não esperar mais.

No entanto, o velho rato estava alerta e fugiu no momento em que percebeu o mais leve movimento dos músculos do “convertido”, pois o gato “santo” estava a ponto de devorá-lo.

“Por que você está indo embora assim de repente?” — miou o gato; “será que cansou de me ouvir recitar as Escrituras, ou duvida da sinceridade das minhas intenções?”

“Nem uma coisa nem outra”, respondeu-lhe o rato, assim que se refugiou novamente no buraco. “Estou convencido de que você realmente está inteiramente comprometido com os Livros Sagrados, mas ao mesmo tempo tenho a certeza de que, por mais que você tenha aprendido o conteúdo do Corão de cor, ainda não aprendeu a evitar seus hábitos de se lançar contra nós”.

 

O burro é um animal muito útil, ingênuo e muito resistente. Ele trabalha bem, mas faz, no seu próprio ritmo, o que precisa ser feito. O burro odeia a pressa, e suas patas carregam a inscrição “A pressa é de Satanás, mas a paciência vem do Todo-Misericordioso”. No entanto, é um animal muito estúpido... ou realista. Quando certa vez foi convidado para um casamento, conta-se que fez o seguinte comentário: “Só fui convidado porque precisam de mim para carregar lenha ou água”.

 

Embora muito valioso e útil, o camelo é um animal desajeitado, mal-humorado e malcheiroso. Herdou seus lábios rachados de um antepassado que era muito castigado porque ria descontroladamente das corcundas de outros camelos, esquecendo-se da sua própria. Porém, um incidente ocorrido há alguns anos demonstrou que ele não é inteiramente destituído de gratidão e coragem.

Um camponês que morava com sua esposa, um filho e um camelo em uma cabana nos arredores de uma aldeia no distrito de Hebron, um dia foi obrigado a deixar sua família e partiu a negócios para uma aldeia distante, onde passou a noite. De repente imaginou que algum perigo poderia ameaçar seus familiares na sua ausência, o que o forçou a voltar para casa o mais cedo possível. Então constatou que seus pressentimentos tinham fundamento. Um vizinho mal-intencionado, que dele guardava rancor, aproveitou-se da sua ausência, à noite, para arrombar a sua casa com o propósito de prejudicar a sua família. Como estava armado, teria sido bem-sucedido se o camelo não tivesse lutado corajosamente e expulsado o assaltante. O camponês encontrou seu fiel animal agonizando devido a inúmeras punhaladas; Pouco depois o camelo morreu. Em circunstâncias normais, sua pele teria sido vendida ao curtidor, e sua carne, para o açougueiro; mas o camponês ficou tão comovido com a fidelidade do seu animal à sua esposa e filho, que comprou uma mortalha para a sua carcaça e lhe concedeu um enterro digno.

Por outro lado, o camelo é vingativo e guarda por muito tempo rancor contra seu dono, até encontrar uma oportunidade de demonstrar a sua vingança.

 

O cavalo, como seria de esperar, é uma figura de destaque no folclore do Oriente Médio. Há cinco raças nobres: Siklawi-Jedrani, Umm Arkub-Shoovay, Shuweineh-Sabbah, Kuheile-El Ajuss e Ubbeyeh-Sharrak. Enquanto o primeiro termo dos nomes compostos refere-se à raça, o último registra o nome do homem que capturou o primeiro antepassado desta estirpe eqüina. De acordo com uma antiga lenda árabe, os cavalos e outras criaturas salvaram-se do dilúvio ao se refugiarem nos planaltos de Nejd.88

Cinco caçadores — Jedran, Shoovay, Sabbah, El Ajuss e Sharrak — capturaram respectivamente o primeiro cavalo de cada uma das raças nobres. Eles descobriram a única fonte dos campos em que os cavalos vinham beber, impediram a fuga deles e os domesticaram. Para conseguirem isso, fizeram os animais passar fome até obedecerem ao comando de seus donos. Por fim, cada um montou sobre o seu corcel e partiu de volta para casa, numa viagem de vários dias. Quando suas próprias provisões terminaram, os caçadores decidiram promover uma corrida, e que o animal mais lento fosse sacrificado e servisse de alimento. Porém, o perdedor contestou e pediu que fosse realizada uma nova corrida. Os demais concordaram, e como agora o cavalo deste venceu a prova, por justiça, outras corridas se seguiram. Como cada um deles venceu uma prova, ficou constatado que todos eram igualmente velozes. Não muito distante dali, os caçadores viram um rebanho de gazelas e o perseguiram diligentemente; por fim, cada homem capturou uma gazela. Deste modo a provisão de comida foi reposta e não houve necessidade de se sacrificar um cavalo.

O nome do corcel Siklawi deriva de seu pêlo macio e lustroso; Umm Arkub tinha o tronco elevado; Shuweineh era manchado; Kuheile era notável por seus olhos negros; e Ubbeyeh recebeu este nome porque, enquanto corria, o capote daquele que o capturou caiu sobre os ombros do animal, mas não se perdeu — é que o cavalo, ao perceber o ocorrido, balançou seu rabo para cima e, de um só golpe, impediu que o capote caísse ao chão e se estragasse.

Há vários provérbios árabes sobre o cavalo, como: “Não pode haver felicidade em uma casa onde não há um cavalo”; “Deixe aquele que não tem um cavalo ter o crânio de um”; “A Fortuna está atrelada às crinas dos cavalos”, etc. Os nativos do Oriente Médio também são muito supersticiosos com respeito a cavalos e muito cuidadosos ao comprarem um. Cavalos com duas patas brancas é sinal de um mau presságio, pois denotam que o infortúnio perseguirá todas as pessoas boas da casa que possui um cavalo assim. Outro sinal ruim para um cavalo é quando este possui duas borlas de pêlos enroladas crescendo fora da sua testa: sinal de uma sepultura aberta. Uma pata branca denota uma mortalha para o dono da criatura. Pêlos enrolados ao lado do pescoço sob a crina e correndo na direção do corpo do animal significa “a espada do inimigo no coração do cavaleiro”; por outro lado, pêlos enrolados debaixo da crina, mas correndo na direção da cabeça do cavalo, é sinal de que “a espada do cavaleiro perfurará o coração do inimigo”. Se o animal possui todas as patas brancas, exceto a dianteira direita, isto significa que o cavaleiro terá “carta branca”, ou seja, será vitorioso no combate.

 

A hiena é um animal perverso e amaldiçoado. Sempre que se ouve uma coruja piar à noite, é porque esta — que é Lilith disfarçada — está vendo um ladrão humano ou uma hiena. Entre os judeus há uma crença de que a hiena é originalmente branca, mas pode assumir tantas cores diferentes quantos são os dias do calendário solar. Quando uma hiena macho alcança os sete anos de vida, geralmente se transforma em uma fêmea da mesma espécie ou então em um morcego. Os árabes da Terra Santa acreditam que a hiena, não contente em desenterrar e devorar cadáveres, costuma freqüentemente encantar as criaturas vivas e atraí-las para a sua guarida. Normalmente, ela sai à noite para abordar o viajante solitário, esfrega-se intensamente contra ele e então sai correndo. O homem contra quem ela se esfregou fica imediatamente encantado, e com o grito “Ó hiena, pare, espere por mim”, ele segue o animal tão velozmente quanto for capaz até que, ao entrar na guarida da fera, acaba sendo devorado. Às vezes a entrada para a guarida é muito baixa, e assim, quando tenta entrar ali, a vítima humana bate a cabeça contra uma pedra projetada. Quando isso ocorre, ele imediatamente recupera os sentidos e se salva, porque a hiena, que é uma grande covarde, jamais ataca um homem a menos que ele esteja adormecido, inválido ou em estado de encantamento. Algumas vezes a assustadora criatura se esconde atrás de pedras ou arbustos à margem de estrada; quando, após o anoitecer, alguém se aventura a circular sem uma lanterna, a hiena simula o gemido de alguém que está com uma dor imensa. Se o viajante se desviar do seu caminho para ver o que está acontecendo, a fera selvagem salta sobre ele e se esfrega, fazendo com que o pobre homem fique encantado e siga a hiena por onde quer que ela vá.

Costuma-se contar a seguinte história de um camponês que pegou uma hiena de maneira muito esperta. O homem viajava acompanhado de um burro carregado com um saco de grãos. Ao anoitecer, o camponês chegou a um casebre na margem da estrada. Como a noite estava quente, levou o burro ao estábulo, mas retirou o saco das suas costas e colocou-o no chão. Então se envolveu em seu capote e foi dormir. Por volta da meia-noite, o homem foi acordado por algo arranhando o chão perto dele. Ao abrir os olhos, viu uma grande hiena ao seu lado cavando uma sepultura, pois evidentemente pretendia matá-lo, enterrá-lo e mais tarde exumar e devorar o seu cadáver. O camponês deixou a hiena cavando até que as costas do animal estivesse em um nível inferior ao do chão. Então rolou o saco de grãos para cima do animal e assim o manteve dentro da cova até a manhã seguinte, quando então seria muito fácil dominá-la — porque, assim como um leão à noite, à luz do dia a hiena não é mais do que um vira-lata. A noite ela teme a luz do fogo, e um modo simples de afastá-la é acender fósforos ou produzir faíscas com pedra e aço.

Apesar das más qualidades popularmente atribuídas à hiena, credita-se a este animal uma característica boa, que é a gratidão por aqueles que a tratam bem.

 

Quando um beduíno foi encontrado assassinado, a suspeita recaiu sobre um jovem de uma aldeia que, embora inocente, teve que fugir da sua casa para escapar à vingança dos parentes do homem morto. Ao correr em direção ao norte, ele encontrou um xeique conhecido dele, que lhe perguntou para onde ia e o dissuadiu de seguir naquela direção, porque os vingadores de sangue o estavam aguardando numa emboscada logo adiante. O jovem virou-se para o oeste, mas não foi muito longe e encontrou outro amigo que o fez retroceder, dizendo que os parentes do beduíno morto o estavam esperando na próxima curva da estrada. O pobre homem então seguiu para o leste, mas encontrou um terceiro amigo que o advertiu: naquela direção também havia uma porção de inimigos no seu encalço.

Sem saída, ele clamou: “Alá, Tu sabes que sou inocente, e, mesmo assim, para onde quer que eu me vire, me defrontarei com aqueles que querem me matar”. Ele então desceu correndo por uma ladeira coberta com moitas e muito mato, em direção a um vale onde conhecia algumas cavernas; e foi numa delas que se escondeu. Assim que se acostumou à escuridão do local, percebeu, horrorizado, que estava na guarida de uma hiena fêmea que, após deixar seus filhotes dormindo, saíra em busca de presas. O rapaz estava para fugir da caverna quando ouviu passos humanos. Temendo ter sido descoberto por seus inimigos, penetrou até a câmara mais escura da caverna. Percebeu quando um homem entrou rastejando, levou os dois filhotes da hiena consigo e partiu com a intenção de vendê-los. O fugitivo reconheceu-o e, avançando, lhe implorou para poupar os filhotes, dizendo que ele agora sabia quão amargo era ser caçado. Caso o seu amigo poupasse as jovens hienas, um dia estas poderiam salvá-lo de algum mal. O homem ficou comovido e, largando os filhotes, deixou a caverna prometendo não trair o fugitivo; em vez disso, lhe avisaria quando pudesse deixar a caverna em segurança e voltar para casa.

Assim que o amigo se foi, a hiena voltou da sua caça. Ao ver um homem na sua guarida, preparou-se para atacá-lo, quando os filhotes se apressaram ganindo, o que atraiu a atenção da hiena mãe. Após a conversa entre a fera e seus filhotes, ela pareceu compreender que o homem fora o protetor deles e demonstrou sua gratidão oferecendo-lhe comida; não carne putrefata, que é o que as hienas mais gostam, mas lebres e perdizes que ela capturara vivas. Assim, o jovem morou como convidado da hiena até seu amigo vir e lhe contar que o verdadeiro assassino havia sido encontrado e punido.

 

A raposa é o mais astuto e esperto dos animais. Se houver perdizes por perto, ela percebe a provável direção para onde as aves correrão; então corre diante delas e se joga ao chão, fingindo-se de morta e espumando pela boca. Quando os pássaros se aproximam, imaginam que está morta e passam a bicá-la. Eles enfiam os bicos na saliva que corre da boca da raposa, que então os agarra com firmeza. Houve um dia em que a raposa aplicou a mesma estratégia com a mulher de um camponês que carregava uma cesta cheia de aves vivas para vender no mercado. Ao ver qual era o caminho da mulher, a raposa correu na frente e se deitou, fingindo estar morta. Quando a mulher passou pelo animal, não achou que valia a pena parar para lhe arrancar a pele. Assim que a mulher se distanciou, a raposa levantou-se num pulo e, seguindo por um atalho, novamente correu na frente e jogou-se outra vez na estrada. A mulher foi pega de surpresa ao ver novamente a raposa, e pensou consigo mesma: “Será que está havendo uma peste entre as raposas? Se eu tivesse arrancado a pele da primeira que vi esticada à margem da estrada, faria sentido fazer o mesmo com esta que acabo de encontrar; mas como não fiz isso antes, tampouco o farei agora”.

A mulher seguiu o seu caminho, e para sua surpresa ainda maior, após um tempo, viu o que imaginava ser um terceiro cadáver de raposa à margem da estrada. “Eu devo estar agindo errado em negligenciar as coisas boas que Alá põe no meu caminho”, pensou a mulher. “Deixarei minhas aves aqui, voltarei e arrancarei a pele das outras duas raposas mortas, antes que alguém o faça”. Assim que retornou, porém, de mãos vazias, a esperta raposa já tinha agarrado as aves e partido.

A raposa adora pregar peças em outros animais. Às vezes, porém, ela torna-se a vítima das próprias artimanhas. Um dia, ao conhecer a águia, perguntou-lhe quão grande era o mundo visto do ponto mais alto por onde a ave já planara. “Ah, minha cara raposa, é tudo tão pequeno que parece quase invisível”, respondeu o rei dos pássaros. Como a raposa parecia incrédula, a águia a convidou para montar nos seus ombros enquanto planava, só então a raposa poderia julgar por si mesma.

“Quão grande é a terra vista daqui de cima agora?” — perguntou a águia, quando eles já haviam subido bastante.

“Tão grande quanto uma cesta de palha feita em Lydda”, respondeu a raposa.

Elas subiram mais um tanto, e a águia repetiu a sua pergunta. “Agora não é maior do que uma cebola”, respondeu a raposa. Os dois animais continuaram subindo mais e mais, e por fim, ao ser questionada, a raposa reconheceu que o mundo estava longe do alcance da vista. “Quão alto você imagina que estamos?” — perguntou maliciosamente a águia. A raposa, que já há um bom tempo estava muito amedrontada com aquela viagem, respondeu que não sabia. “Neste caso, descubra por si mesma”, disse o grande pássaro, virando-se de repente. E lá se foi a raposa, em queda livre; teria morrido se não tivesse a sorte de cair sobre um casaco de lã felpuda que um lavrador carregava nas costas. Grata por escapar com vida, a raposa deslizou por debaixo do casaco e seguiu com o homem. Um pouco mais adiante, sem que este percebesse, ela saltou com o casaco e correu pelos campos.

De repente a raposa se viu cara a cara com um leopardo, que lhe perguntou onde ela arranjara aquelas roupas novas. A raposa respondeu prontamente que se tornara uma comerciante de casacos de pele, e sugeriu ao leopardo para encomendar um para ele; no entanto, para isso precisaria lhe conseguir a pele de seis carneiros: dois para a parte da frente, dois para a de trás e dois para as mangas. O leopardo concordou, e após anotar o endereço da raposa, prometeu lhe enviar seis carneiros cujas peles ela receberia como pagamento pelo seu trabalho. No dia seguinte os carneiros foram levados à porta da guarida da raposa. Esta, que tinha esposa e sete filhotes, viveu por certo tempo com muito luxo, e já havia se esquecido do casaco quando o leopardo reapareceu, perguntando se a sua nova roupa já estava pronta. A raposa então respondeu que subestimara a quantidade de pele e que os seis couros de carneiro haviam servido apenas para a confecção do corpo, mas ainda faltavam as mangas, para as quais necessitaria de mais duas peles e meia. “Você terá três”, disse o cliente compreensivo; então, no dia seguinte o leopardo voltou com três peles de carneiro e deixou-as à porta da raposa; esta lhe prometeu que, desta vez, o seu casaco estaria pronto em uma semana.

No dia combinado o cliente voltou e perguntou por sua roupa nova, mas recebeu outra desculpa e o pedido para voltar no dia seguinte. Sempre que ele aparecia, a raposa inventava alguma história para justificar o motivo pelo qual o casaco ainda não estava pronto. Finalmente o leopardo perdeu a paciência; quando a raposa tentou fugir para dentro da sua guarida, o leopardo agarrou-a pelo rabo e gritou que não a largaria enquanto não recebesse o seu casaco. A fera puxava o rabo com tanta força que acabou arrancando-o; a raposa, gritando de dor, escapou com vida, pois o buraco da caverna era muito pequeno para o leopardo entrar.

“Este velhaco perdeu o rabo”, disse o leopardo consigo mesmo. “Bem, eu o reconhecerei quando nos encontrarmos novamente. Então, quando isso acontecer, aplicarei um castigo muito mais severo assim que ele tentar sair da sua guarida”. O leopardo aguardou até anoitecer, quando as vespas estão dormindo, e então desenterrou um ninho delas e colocou-o à entrada da guarida do seu inimigo. Na manhã seguinte, quando a raposa despertou e quis deixar a pequena caverna, ouviu o zumbido das vespas e imaginou que era o leopardo ronronando. Em vez de sair, enfiou-se o mais que pôde no interior da sua habitação. Durante muitos dias ela não ousou ver a luz do sol, uma vez que os ruídos continuavam. Faminta, a raposa se viu obrigada a devorar seus próprios filhotes, um por um; por fim, sua esposa tentou convencê-la a lutar com o leopardo, entendendo que o vencedor devoraria o perdedor. Mas em vez de enfrentar o adversário, a criatura decidiu, antes, se alimentar da própria esposa; esta ainda teve tempo de lhe implorar para que sua vida fosse poupada, mas foi morta e devorada.

Saciada, a raposa suportou a fome por mais alguns dias, mas como o zumbido à sua porta persistia, não teve outro jeito a não ser arriscar a própria vida em um corajoso confronto em nome da liberdade. Ela rastejou cautelosamente pela porta da guarida e então colocou as patas do lado de fora, quando descobriu finalmente que o zumbido que a amedrontara e a fez destruir a própria família havia sido provocado por vespas. Agora era inútil lamentar, e ela ainda tinha que se livrar da vingança do leopardo, que a reconheceria em qualquer lugar; afinal, ela agora era uma raposa sem rabo.

Ela então convidou todas as raposas das redondezas para um banquete de uvas em um vinhedo ali próximo. Quando todas chegaram, a anfitriã conduziu cada convidada até uma videira diferente e lhes disse que, embora elas quisessem passear livremente a fim de comer de qualquer videira que desejassem, poderiam surgir divergências entre elas, e o barulho das discussões colocaria a vida de todas em risco. Por isso, era necessário amarrar o rabo de cada um delas à sua própria videira. Quando todas estavam devidamente amarradas e comendo silenciosamente, a anfitriã escapuliu para o topo de uma colina e dali gritou: “Reúnam-se, ó filhos de Adão, reúnam-se e vejam como o vosso vinhedo está sendo saqueado!”. Ao ouvirem esse alarme, as raposas, desesperadas, tentaram fugir; mas, amarradas aos vinhedos, fizeram tanta força que tiveram seus rabos arrancados. Como agora nenhuma raposa tinha rabo, o leopardo, ao se encontrar com o nosso herói, não pôde provar que fora ele quem o enganara com o tal casaco de peles.

 

Uma pobre viúva cujos parentes já estavam todos mortos, vivia sozinha em uma pequena cabana de barro, distante de qualquer aldeia. Era uma noite escura e tempestuosa, e a água gotejava pelo telhado em cima da cama da miserável. Ela levantou-se, arrastando o seu tapete de palha e o velho colchão para outro canto da choupana; mas em vão, a água pingava ali também, fazendo um ruído irritante: “Dib, dib, dib, dib”. Ela se levantou novamente e arrastou a sua cama para outro canto, mas lá a água também gotejava: “Dib, dib, dib, dib”. Até que, desesperada, gemeu: “Ah meu Deus! Livra-me deste terrível dib, dib, dib, dib. Veja como me atormenta, roubando-me o sono, e amanhã todos os meus ossos estarão doendo de maneira intolerável. Não tem nada pior do que esse dib, dib, dib, dib. Não tenho medo de feras selvagens, leão, leopardo, lobo ou hiena; o que mais me mete medo são estes dib, dib, dib, dib horríveis, que não me deixam dormir e continuarão me atormentando amanhã”.

Do lado de fora da choupana uma fera selvagem aguardava a velha dormir para arrombar a porta e devorá-la. Ao ouvir aqueles lamentos, a criatura ficou curiosa em saber que tipo de animal era aquele “dib dib”, e concluiu que seria prudente não invadir a cabana enquanto aquele “dib dib” estivesse ali atormentando a viúva. Uma coisa parecia certa à fera selvagem: o “dib dib” devia ser um monstro assustador, com quem era melhor não entrar em confronto.

“Eu sei o que é um dub (urso)”, pensou a fera,”e eu sei o que é um dib (lobo), mas nunca ouvi falar no dib dib; e como não quero correr riscos desnecessários, acho melhor deixar a viúva para outro momento. Ela já não tem muita carne mesmo, e se o dib dib a considera um prato saboroso, bem, que faça bom proveito; eu jantarei em outro lugar. Mas escute! Quem se aproxima? Eu não tenho qualquer intenção de me encontrar com o dib dib. Melhor permanecer em silêncio até que ele se vá, se não é capaz de também me encontrar e me atormentar”.

Mas quem se aproximava era um homem, um vendedor de água da aldeia mais próxima cujo burro escapara aquela noite. Era um animal que só lhe trazia problemas; ele sempre escapava, e nestes seus passeios já perdera boa parte de suas duas orelhas e fora pego inúmeras vezes invadindo milharais que não eram do seu dono. Em resumo, era um burro mau-caráter cujo dono o procurava há muitas horas nessa noite escura de tempestade. O homem estava muito mal-humorado, e, quando viu a fera selvagem tremendo de medo do “dib dib”, teve a impressão de ser um animal com orelhas curtas e do mesmo tamanho que o seu burro. Então o vendedor proferiu um juramento solene: ele quebraria todos os ossos do animal, amaldiçoaria o seu pai e todos os seus antepassados, bem como a religião do seu dono e dos seus antepassados também; e sem verificar que animal era aquele, começou a golpear pesadamente a criatura apavorada com uma grande vara. A fera selvagem, agora certa de que estava sob o poder do “dib dib”, estava tão amedrontada que se abaixou passivamente, sem exibir a menor resistência àquela fúria incomensurável. Quando o homem, ainda gritando maldições, o fez levantar-se e montou no seu lombo, o animal aceitou a humilhação com conformismo e mansidão, e o levou na direção que ele quis.

Algum tempo depois, quando o vendedor finalmente se acalmara um pouco, percebeu que o lombo onde estava montado era diferente daquele com o qual estava acostumado, e que também o passo do animal era silencioso, bastante diferente de qualquer outro burro; então percebeu que, na sua pressa, havia montado alguma criatura selvagem. No entanto, como já estava mesmo em suas costas, considerou que não seria capaz de matar o pobre animal; além do mais, como este parecia temê-lo, decidiu manter aquela situação até descobrir que criatura era aquela e como faria para escapar dela. Assim, sempre que o passo tornava-se menos manso, ele golpeava o animal com fúria e descarregava sobre ele uma tempestade de maldições.

Quando raiou o dia, o homem se viu montado em um enorme leopardo, e tentou imaginar uma maneira de descer sem que fosse esfolado até a morte. Por sua vez, o leopardo não se deu conta de que era um homem quem o maltratava, e ainda pensava que era o “dib dib”. Quando eles passavam debaixo de algumas árvores com galhos baixos, o homem, pensando rapidamente, agarrou-se a um dos galhos, soltou as pernas das costas do animal e deixou este seguir sozinho por entre as folhagens. O leopardo se viu livre de forma tão inesperada, que nem parou para olhar para trás e olhar para o seu malfeitor, mas correu tão velozmente quanto suas pernas foram capazes de carregá-lo. Um pouco mais adiante ele encontrou uma raposa que, surpresa em ver um leopardo aterrorizado, perguntou-lhe o que acontecera. Sentindo-se seguro, o leopardo parou e contou à raposa quanto ele havia sofrido nas mãos do “dib dib”.

“Bem”, disse a raposa educadamente, “eu conheço todas as espécies de animais, mas nunca ouvi falar desse tal ‘dib dib’”. Então ela sugeriu que deveria ter sido provavelmente um homem.

“Volte comigo à árvore onde você o deixou e veja se eu tenho ou não razão. Se eu estiver errada, podemos escapar antes que se aproxime para nos ferir; mas se for um homem, você poderá matá-lo facilmente e se vingar de todo o mal que ele lhe causou”.

“Como saberei que você está sendo sincera?” — perguntou o leopardo. “Todos os animais sabem que você é mentirosa e traiçoeira, engana todo mundo; e que prova eu tenho de que você não foi contratada pelo dib dib para me atrair até a minha ruína?”

“Amarre o seu rabo ao meu”, respondeu a raposa, “e então, se eu estiver lhe enganando, você me terá em suas mãos e poderá me matar”.

O leopardo aceitou esta gentil oferta. Após amarrar o seu rabo ao da raposa, fez mais um nó, por garantia, e então ambos seguiram para o local onde o vendedor de água tinha escapado. Este ainda estava na árvore, porque, embora já estivesse em plena luz do dia, temeu uma emboscada do leopardo e evitou descer antes que todos já estivessem acordados. Assim, embora fosse o tipo de dia que o xeique dos lagartos costuma entregar a sua filha em casamento, o pobre homem, encharcado e com calafrios, permanecia sobre a árvore. Finalmente ele se decidiu e estava pronto para descer quando viu o leopardo, acompanhado pela raposa, emergirem de uma moita e virem na sua direção. A princípio, ele não entendeu por que os dois animais estavam amarrados um ao outro pelo rabo, mas, como era um homem inteligente, logo entendeu o motivo daquela estranha união; e enquanto o par ainda estava a certa distância, o homem gritou: “Ó raposa, por que você me manteve tanto tempo esperando? Vamos, venha depressa e me traga o velho leopardo para que eu lhe quebre os ossos”. Ao ouvir essas palavras terríveis, o leopardo virou-se para a raposa e lhe disse desesperado: “Eu não lhe falei que você é um vilão traiçoeiro, e que me enganaria?” Em seguida correu para salvar a sua vida, arrastando atrás dele a infeliz raposa, que acabou morta por tantos esbarrões em pedras e troncos de árvore por onde o leopardo passou na sua fuga impetuosa. Finalmente o vendedor de água desceu da árvore e voltou para casa. Foi assim que Deus castigou simultaneamente a raposa por seus crimes anteriores e o leopardo, por suas más intenções. Por outro lado, o Misericordioso protegeu a pobre viúva e ensinou o vendedor de água a ser mais cauteloso.

 

Como seria de esperar, a serpente figura assiduamente no folclore da Terra Santa. De acordo com a tradição judaica, “a espinha dorsal de um homem que, por sete anos seguidos, não dobra seus joelhos na repetição da oração que começa com a expressão modim anachnu lach89 se torna uma serpente; quando esta atinge a idade de mil anos, dirige-se para o mar e se torna uma baleia”. De acordo com o Talmud — que, juntamente com a Torá escrita, forma um só conteúdo sagrado — “Setenta anos devem decorrer antes que uma víbora possa reproduzir sua própria espécie, e um período semelhante é requerido para a alfarrobeira,90 enquanto a serpente má requer sete anos”. A história seguinte é um relato típico sobre a serpente.

A serpente é a mais amaldiçoada de todas as criaturas, e muito traiçoeira. Ela está na raiz de todo mal existente no mundo. Quem não sabe que quando Iblis, o Diabo, teve recusada a sua admissão no Jardim do Éden, ele foi, furtivo, ao redor das moitas, tentando persuadir, em vão, diferentes animais para que o deixassem entrar? Finalmente, a serpente, subornada por uma promessa do mais doce alimento existente no mundo — que, segundo Satã lhe contou, era a carne humana — introduziu o Diabo no Paraíso escondido entre suas presas. Desse esconderijo, Iblis conversou com Eva, que imaginou ser a serpente que lhe falava. O prejuízo decorrente disso é bem conhecido. Porém, a serpente não recebeu a sua recompensa. Quando, após o outono, um anjo foi designado para determinar a cada criatura o seu país e alimento apropriado, a serpente — que mesmo antes de o diabo tentá-la, já invejava a vida de Adão, pois este era servido pelos anjos com carne assada e vinho — sem qualquer pudor exigiu ser alimentada com carne humana, conforme lhe fora prometido. Porém, nosso patriarca Adão protestou, justificando que, como ninguém jamais provara o sabor de carne ou sangue humanos, era impossível afirmar que este era o alimento mais delicioso existente no mundo. Assim ele ganhou um ano de sossego; neste meio tempo, o mosquito foi enviado ao redor do mundo com instruções para provar do sangue de toda criatura viva e informar a sua avaliação. Após doze meses foi proclamado em assembléia pública o resultado das suas pesquisas.

No entanto, naquele tempo Adão tinha um grande amigo, a andorinha, um pássaro sagrado que anualmente fazia a sua peregrinação a Meca e aos Lugares Santos. Invisível para o mosquito, a andorinha o acompanhou de perto por todos os doze meses, até que chegou o grande dia da decisão. Então, quando o inseto estava a caminho da assembléia, a andorinha confrontou-o abertamente e perguntou qual carne e sangue o mosquito tinha considerado o mais doce.

“Carne e sangue humanos”, respondeu o mosquito.

“O quê?” — perguntou a andorinha. “Por favor, repita isso pausadamente, porque eu sou muito surda”.

Quando o mosquito abriu a boca para pronunciar em alto e bom tom a sua resposta, o pássaro, numa velocidade incrível, lançou-se contra ele e arrancou-lhe a língua. Em seguida eles voaram até o local onde estavam reunidos todos os seres vivos, ansiosos para ouvir a decisão. Quando questionado acerca do resultado das suas investigações, o mosquito, que agora só era capaz de zumbir, não soube se fazer compreender; por sua vez, a andorinha, fingindo ser o seu porta-voz, declarou que o inseto lhe havia dito que considerara o sangue da rã o mais delicioso de todos. A fim de corroborar esta declaração, o pássaro afirmou que acompanhara o mosquito em suas viagens e assistira a tudo; muitos dos animais presentes, que vieram de diferentes e remotas regiões do mundo, testemunharam ter visto ao mesmo tempo o mosquito e a andorinha nos seus respectivos países. Assim, foi proferida a sentença de que as rãs, e não os homens, deveriam servir de alimento para a serpente.

Irada e decepcionada, a serpente saltou contra a andorinha para matá-la; mas o pássaro era muito rápido, e ela só conseguiu morder algumas penas do rabo da ave — e é por isso que as andorinhas têm o rabo na forma de forquilha. Desconcertada, a serpente — que então era um quadrúpede capaz de vencer em uma hora um percurso que o homem levaria sete dias — embora não pudesse devorar carne humana, tampouco sugar o sangue dos homens, não perdia uma oportunidade de picá-los e matá-los. Ela fez isso sem dó nem piedade até a época do sábio Rei Salomão, que a amaldiçoou de maneira tão efetiva que as patas da serpente simplesmente caíram e ela se tornou um réptil. O animal peçonhento ainda implorou para ser poupado do castigo, mas o rei, ciente de que as promessas daquela criatura de nada valiam, permaneceu impassível.

Uma vez, quando Salomão estava em Damasco, a serpente e a toupeira o abordaram, a primeira pedindo para ter suas patas restabelecidas, e a última para que lhe fosse concedido um par de olhos. O rei respondeu que estava em Damasco em missão particular e somente receberia petições dali a uma semana, quando estaria de volta a Jerusalém. Quando retornou para a Cidade Santa, os primeiros solicitantes chamados foram justamente a serpente e a toupeira. Em resposta aos pedidos, o rei informou-lhes a sua decisão: como ambas foram capazes de viajar rapidamente de Damasco a Jerusalém — no mesmo tempo em que Salomão fizera o percurso sobre uma carruagem puxada por cavalos — estava claro que a serpente não precisava de patas, tampouco a toupeira de olhos.

 

Além da vida e da boa saúde, o pão, a base da vida, é a mais preciosa das dádivas que Deus concedeu aos homens; os nativos do Oriente Médio o tratam com grande reverência. Um pedaço de pão caído no chão é imediatamente recolhido, beijado como algo sagrado e então colocado em algum lugar onde será alcançado por pássaros, ratos ou insetos. Conta-se a seguinte história a respeito do pecado que é fazer uso indevido do pão.

Uma mulher carregava seu filho em uma pequena rede pendurada nas costas e, sobre a cabeça, um batié (cesto redondo de madeira) cheio de pães quentes cobertos com um tabak (bandeja redonda de palha). Ela caminhava em meio a uma cerimônia de casamento cujos convidados, em procissão, seguiam em direção a Mal’ha, uma aldeia a sudoeste de Jerusalém. O bebê começou a chorar, e a mãe percebeu que ele defecara; sem nada à mão, a mulher utilizou um pão para limpá-lo. Na mesma hora o céu se fechou em pesadas nuvens e caiu uma terrível tempestade, transformando os participantes da procissão em uma fila de pedras ásperas que até hoje podem ser vistas no mesmo lugar. O vendaval desequilibrou os pés da mãe e a fez cair com o rosto no chão; o cesto de pães cresceu, caiu sobre as costas da mulher e a cobriu por inteiro, enquanto a bandeja de palha também aumentou e se fundiu ao cesto, formando uma carapaça. Assim, como castigo divino, a mulher que fez uso indevido do pão foi transformada em uma tartaruga, a ancestral de todas as tartarugas que conhecemos hoje; por sua vez, a criança transformou-se num macaco, o antepassado de todos os macacos.

 

  1. Plantas

Dentre outras árvores e arbustos, como a figueira e o sicômoro, a alfarrobeira é um poleiro para demônios de várias espécies e está classificada entre as plantas profanas; enquanto a oliveira, entre outras, é sagrada, não só graças ao seu grande valor, por fornecer azeite e nutrição, mas também devido à lenda seguinte.

Quando Maomé morreu, as árvores, com algumas exceções — como o carvalho, o pinheiro, a laranjeira e a cidreira — enlutaram-se, e demonstraram isto deixando cair suas folhas ao chão, como se fora inverno. Quando as demais árvores foram questionadas do motivo pelo qual não fizeram o mesmo, a oliveira, como porta-voz e a mais velha de todas, respondeu:

“Vocês demonstram a sua tristeza por meio de sinais externos, mas a nossa aflição independe da opinião dos outros, porque somente Alá — que lê os segredos do coração e deve aprovar os nossos motivos — sabe que não há maior lugar de sinceridade do que o íntimo de cada uma de nós. Se vocês partirem meu tronco em dois, por exemplo, descobrirão que o meu caroço está preto de pesar”.

 

O Abhar91 é outra árvore sagrada, porque sua noz é usada na manufatura de rosários — usados por cristãos e muçulmanos — e por que, quando fugiu do Faraó, Moisés, exausto no deserto e sem uma sombra sob a qual descansar, plantou algumas mudas de Abhar e deitou-se sob suas sombras escassas. Estas logo aumentaram, pois Deus fez com que as mudas brotassem e se espalhassem em galhos repletos de folhas e flores. Do mesmo modo, a Miriamiyeh, ou sálvia, é muito estimada não apenas por suas propriedades medicinais — em casos de cólera, varíola, sarampo e outras doenças contagiosas — mas também porque a Virgem Maria, ao ser vencida pela fadiga durante a sua viagem para o Egito, descansou sob o arbusto de uma sálvia e, após arrancar algumas de suas folhas, esfregou-as nas sobrancelhas para refrescar-se; depois disso, santificou a planta e concedeu-lhe as virtudes que desde então a sálvia possui.

 

A Arvore de Lótus92 também é uma planta sagrada. Em geral demarca as fronteiras entre as terras de aldeias diferentes, e alguns acreditam que os arbustos que rodeiam o Jardim do Éden são formados desta planta. Quando uma árvore de lótus alcança a idade de quarenta anos, em geral se torna o domicílio de algum homem santo solitário. Por isso é muito perigoso podar uma árvore de lótus com mais de quarenta anos, porque o santo pode se ressentir com esta ação.

 

Ao se viajar pela Terra Santa, podem se encontrar bosques de árvores sagradas — não necessariamente a árvore de lótus — repletos de espíritos de homens santos; em particular às quintas-feiras à noite, quem por ali passar poderá ver estas árvores com o topo iluminado e ouvir acordes de música instrumental sagrada vindos lá de cima, enquanto as luzes parecem saltar de árvore em árvore. Isto é sinal de que os santos estão realizando alguma comemoração e visitando uns aos outros. Uma árvore sagrada muito afetada por estes espíritos é o Tamarisco. Se alguém passar por estas árvores em noites de ventania e escutar atentamente, poderá ouvir o Nome de Deus ressoando por entre os ramos.

 

Uma das provas de que a data em que os cristãos ortodoxos gregos comemoram o Natal é a correta, e que os latinos e outros ocidentais estão equivocados em comemorá-lo no dia 25 de dezembro, é que na véspera do Natal grego todas as árvores e plantas, em particular às margens do rio Jordão, louvam o Salvador. Este fato importante foi descoberto do seguinte modo:

Um homem entrou em Lydda pouco antes da meia-noite, na véspera do Natal grego. Ao chegar a uma pousada e acomodar-se em seu quarto, amarrou o seu burro ao tronco de uma palmeira que, como estava tombada no chão, ele naturalmente supôs que fora derrubada pela ventania durante uma tempestade recente. No entanto, na manhã seguinte, quando o homem acordou e foi atrás do seu burro, ficou muito surpreso por encontrar a árvore erguida e o seu burro pendurado no seu tronco. Como o animal estava praticamente morto, o fato de as árvores louvarem o Salvador no Natal grego ficou inteiramente comprovado.

 

Outra planta muito rara, porém muito reputada, é a Ushbet el Kurkaa ou Erva-Tartaruga. Aquele que a encontra faz fortuna em vários sentidos. Em primeiro lugar, suas folhas são de ouro puro. Além disso, se alguém tiver a sorte grande de encontrá-la e colhê-la, terá o poder maravilhoso de fazer com que todos, inconscientemente, o tratem com boa vontade; ele pode optar por fascinar homens e mulheres e fazer destes seus criados. Caso ele tenha colhido a planta sem conhecer os seus poderes, mesmo assim será capaz — ainda que desconheça o motivo e outros tampouco saberão explicar — de ganhar o amor e a estima de todas as pessoas que encontrar. Até mesmo as cabras que, ao pastar, comem desta erva, têm seus dentes transformados em ouro.

Infelizmente esta planta é extremamente rara. Alguns anos atrás havia um camponês de uma aldeia no deserto da Judéia que sabia tudo sobre esta planta maravilhosa: onde crescia, em qual estação do ano poderia ser encontrada, sua aparência e assim por diante. Um milionário de Belém lhe ofereceu uma formidável soma em dinheiro para que revelasse estes segredos, mas sendo um homem de princípios elevados, o camponês recusou a oferta. Assim, não cedeu à tentação de trair a honra da sua região, pois isso levaria um cristão a tomar posse de todos aqueles poderes. O camponês já morreu há muito tempo, e seu conhecimento foi sepultado com ele.

 

  1. O Café

A origem do costume de beber café está conectada a várias lendas e idéias supersticiosas. Conta-se que o arbusto no qual crescem os frutos de café é original da Abissínia (atual Etiópia) e corre a história de que as virtudes da planta foram descobertas por acaso. Fugindo da perseguição, nos fins do século III, um grupo de monges do Egito encontrou refúgio nos planaltos abissínios, onde se instalaram e cultivaram a agricultura e a criação de rebanhos, cujos irmãos de fé se revezavam para pastoreá-los. Certa noite, um dos monges veio com uma história muito estranha: após um dia inteiro de trabalho, as ovelhas e cabras não estavam descansando, mas em vez disso brincavam e estavam tão despertas que pareciam estar enfeitiçadas. Apesar das orações e exorcismos, esse estado de coisas já perdurava vários dias, quando afinal o chefe dos monges decidiu ele próprio pastorear os animais. Quando os levou para pastar, observou por quais plantas os animais passavam, e assim descobriu que a insônia deles era efeito das folhas de um certo arbusto. Ao experimentar e mastigar alguns brotos da planta, ele percebeu que poderia ficar desperto, sem maiores dificuldades, durante os serviços religiosos noturnos, conforme prescrevia a sua forma de religião. Foi assim que se descobriu o café.

No início o café não foi usado na forma de bebida, mas era comido na forma de uma pasta, algo semelhante ao chocolate. Foi introduzido na Arábia em tempos pré-islâmicos, provavelmente na época da famosa cruzada empreendida por Elesbaan — ou Caleb Negus, o Nagash dos escritores árabes — com o propósito de punir o governante judeu iemenita Dhu Nowas.

Elesbaan foi um rei cristão na Etiópia durante o século VI. Seu reinado dependia muito da conquista do povo do Iêmen, de quem estava separado pelo estreito de Bab-el-Mandeb: ao cruzarem o território iemenita, os comerciantes da Síria e de Roma alcançavam o grande porto de Aden. O rei iemenita, Dhu Nowas, foi levado ao trono no ano 490 pelo povo após livrá-los do tirano Laknia Dhu Sjenatir. Então se afastou da idolatria, converteu-se ao judaísmo e decidiu impor a nova religião pela espada. Em vingança pelos sofrimentos impingidos aos judeus pelo império cristão, impôs pesados pedágios a todos os comerciantes cristãos que cruzavam o seu território em direção ao porto de Áden e ao estreito de Bab-el-Mandeb. Esta ação era muito prejudicial ao comércio de todos os povos vizinhos, em particular à Etiópia; após subir ao trono, Elesbaan, depois de protestar inutilmente, preparou-se para a guerra. No ano 519 cruzou o estreito, derrotou as forças árabes e expulsou o rei judeu para as colinas. Finalmente deixou seu vice-rei para manter as leis cristãs no Iêmen e retornou para a Etiópia.

Quando os muçulmanos foram proibidos de beber vinho, passaram a submeter os grãos de café a decocções.93 O nome café é derivado do árabe kahweh, cujo significado original referia-se ao vinho e outras bebidas tóxicas. A cidade de Áden parece ter sido o primeiro local onde surgiu o costume de beber café, em meados do século XV. Um mufti sonolento conhecido como Jemaleddin descobriu que o café o mantinha desperto, assim como também o deixava mais disposto a realizar os seus deveres espirituais. Esta é claramente uma versão da história dos monges abissínios citada anteriormente. A reputação das virtudes que Jemaleddin, que morreu em 1470, atribuiu ao café fez com que, em pouco tempo, a bebida fosse introduzida por Fakreddin em Meca e Medina. No entanto, esta só se tornou conhecida na cidade do Cairo, Egito, no século XVI.

Sua introdução causou uma amarga controvérsia teológica entre os muçulmanos. Em 1511 o café foi publicamente condenado pelos sábios muçulmanos em Meca; seu uso foi declarado contrário ao Islã e prejudicial ao corpo e à alma. Esta decisão ecoou no Cairo. Todos os armazéns onde estava estocado o “grão sedicioso”94 foram deliberadamente queimados, as cafeterias foram fechadas e seus proprietários afastados, juntamente com suas panelas e xícaras. Isto ocorreu em 1524. No entanto, por ordem de Selem I, os decretos dos sábios foram anulados, os conflitos no Cairo terminaram e o costume de beber café foi considerado perfeitamente aceitável. Quando dois doutores persas, segundo os quais o café era prejudicial à saúde, foram enforcados por ordens do Sultão, a xícara de café iniciou o seu reinado sem mais perturbações e, desde então, reina soberana no Oriente Médio.

Se você quiser que alguém, para quem seria um insulto oferecer bakshish (esmola), lhe faça um favor, ofereça-lhe uma xícara de café e ele estará aberto a lhe ajudar. Assim também, se quiser desfazer uma inimizade, tudo o que precisa fazer é conseguir alguém que ofereça ao adversário uma xícara de café. Esta dupla utilidade da xícara de café é proverbial.

Para os árabes do deserto, preparar e beber café é um ritual, uma cerimônia quase religiosa. Apenas um homem pode preparar a bebida, e ele deve fazê-lo com o maior cuidado. Os grãos são assados em uma concha rasa ou panela (mahmaseh), e quando estão parcialmente torrados, são moídos em uma pedra ou com um grande pilão (mahbash), que o transforma gradualmente em pó. Enquanto é moído, uma panela apropriada é colocada no fogo. Após a fervura, retira-se a panela do fogo e o pó de café é misturado à água fervida. Coloca-se então a bebida novamente no fogo, e quando esta entra em ebulição a panela é retirada novamente. O café ainda pode ser fervido mais uma ou duas vezes. Aquele que prepara o café mantém do seu lado esquerdo um conjunto de pequenas xícaras, uma colocada dentro da outra; então joga um pouco de café na primeira delas e deixa verter o líquido para as demais. Quando o líquido atinge a última xícara, o seu conteúdo volta ao fogo como uma libação em homenagem ao Xeique Esh Shadhilly, protetor dos bebedores de café. Meia xícara é estendida ao convidado mais velho e respeitado, que em seguida recebe uma segunda xícara de café; depois disso, o mesmo procedimento é oferecido a todos os convidados. Considera-se um insulto deliberado oferecer uma xícara cheia, assim como também o é oferecer uma terceira xícara. O ditado é:”A primeira xícara para o convidado, a segunda para o prazer, e a terceira para a espada”.

Onde quer que se reúna um grupo de bebedores de café, lá está o espírito de Esh Shadhilly para mantê-los longe de qualquer mal. Do mesmo modo, quando uma noiva deixa a casa dos seus pais para ser levada ao noivo, o proprietário de uma casa de café da vizinhança demonstra sua boa vontade saindo do seu local de trabalho e vertendo uma xícara de café no chão, no caminho por onde ela passar; este café é destinado ao seu santo protetor, para que Esh Shadhilly se disponha em favor da noiva.

 

Um grande número de pessoas reuniu-se em uma casa de uma aldeia, onde lhes estava sendo preparado o café. Ao lado do fogo havia uma panela enorme, dentro da qual o homem que preparava a bebida colocou uma panela menor para ferver água, após acrescentar o pó de café. Depois de todo o processo descrito acima, ele estendeu uma xícara de café ao convidado mais próximo que, por educação, a estendeu ao seu vizinho, e assim por diante; até que, para surpresa do anfitrião, a xícara lhe retornou, intacta. Alguém sugeriu que Esh Shadhilly deve ter tido alguma participação no ocorrido evitando de propósito que os convidados experimentassem o café. Por isso, o café que estava na panela foi jogado fora e, para horror de todos os presentes, junto à bebida caiu o corpo morto de uma cobra venenosa (outros dizem que era um sapo). Como entrou ali ninguém soube, mas ficou comprovado que Esh Shadhilly protegera seus devotos.

Além de uma grande panela, é comum haver próximas ao fogo pequenas panelas de bronze ou recobertas de estanho, prontas para receber a bebida da panela maior e levadas para ferver. Não é muito seguro beber o café feito nesses recipientes, pois nem sempre são mantidos limpos, o que já provocou casos trágicos de envenenamento pela oxidação do cobre.

O ditado providencial a respeito da terceira xícara de café, citada anteriormente, é ilustrado pela história seguinte.

Durante uma época de grande escassez no início do século XIX, um xeique beduíno deixou o seu acampamento, que ficava em algum lugar do distrito de Gaza, e viajou até o Egito com seus homens e camelos para comprar milho. Quando anoiteceu, ele já havia cruzado a fronteira, e à meia-noite, ao ver uma luz ao longe, o xeique, que jamais visitara aquela parte do país, imaginou que deveria estar próximo de alguma aldeia. Então deixou seus homens e camelos onde haviam acampado e seguiu sozinho, em missão de reconhecimento. A luz vinha de uma casa cuja porta estava entreaberta. Como ele sentiu o aroma de grãos de café torrado, concluiu que se tratava de uma pousada para viajantes e entrou; mas estava enganado. As únicas pessoas presentes na sala iluminada eram uma mulher nua e seu marido, um mameluco.95 A entrada do inesperado visitante, a mulher gritou e escondeu o rosto, mas o seu marido disse que ela não devia ter medo e perguntou ao estranho o que ele queria. O xeique respondeu que imaginara ser aquela uma casa onde se recebiam viajantes, mas como se enganara, estava já de partida. Porém, o mameluco insistiu que o visitante permanecesse e lhe ofereceu uma xícara de café. Quando o xeique terminou de beber, o anfitrião lhe ofereceu uma segunda xícara, que foi prontamente aceita. Quando, porém, lhe foi oferecida uma terceira xícara, o xeique recusou, mesmo pressionado a aceitá-la. Sentindo-se ofendido, o mameluco desembainhou sua espada e ameaçou matar o beduíno a menos que ele bebesse a terceira xícara de café. O homem continuou recusando, dizendo que preferia ser morto.

“Por quê?” — perguntou seu sinistro anfitrião.

“Porque a primeira xícara é para o convidado, a segunda para o prazer e a terceira para a espada. Embora eu seja um guerreiro, assim como você, no momento estou desarmado; vim em missão de paz e não de guerra”.

“Muito bem”, respondeu o mameluco, guardando a sua espada, “sua resposta demonstra que você é um verdadeiro homem. Eu te tomei por um ladrão em busca de um esconderijo, mas vejo que estava enganado. Por favor, permaneça debaixo do meu teto como meu convidado”.

O xeique aceitou o convite, e quando contou ao seu anfitrião o propósito da sua viagem ao Egito, o mameluco, que tinha muito milho estocado, fez um trato com ele, e por anos seguidos vendeu e forneceu o grão ao xeique e à sua tribo. Em 1811, com o massacre dos mamelucos a mando de Mohamed Ali, o único a escapar foi este indivíduo de quem se fala nesta história. Conta-se que ele conseguiu escapar e fugiu para as tendas do seu amigo beduíno, onde foi protegido até poder, finalmente, retornar para o seu lar sem medo.

 

  1. Curas Mágicas

Havia, na Terra Santa, algumas superstições relacionadas ao curandeirismo e ao exorcismo dos demônios, que eram praticadas por mulheres judias sefaradis. Os rabinos consideram que, como estas práticas não fazem mal a ninguém e não há má intenção envolvida, não existe problema em utilizá-las. Eis o que disse um rabino sefaradi: “O que não prejudica ninguém nem fere a nossa religião, si es por buena [só pode ser bom]”. Um outro rabino sefaradi residente em Iafo, Israel, falou a respeito do amuleto da sua esposa contra o mau-olhado: “Ela foi advertida a não falar disso, e não me falou sobre o amuleto”, mas ele a viu usando-o. Embora não acreditasse no uso de amuletos, ele tampouco proibia o seu uso. “Cada um com seus costumes”, ele dizia.

Na mesma linha, Hayim Palache (1788-1868), um importante rabino de Izmir, escreveu a respeito dos remédios mágicos em oposição a um rabino de Hebron: “Até mesmo o indulko (cura mágica) que as mulheres praticam aqui em nossa cidade, Izmir, utiliza apenas água, açúcar e outros tipos de ingredientes... e enquanto fazem isso, elas proferem ‘Eterno, ó Deus de Israel’ e o nome dos nossos santos Patriarcas a fim de apaziguar os shedim [demônios] e exortá-los a não causar mal a ninguém. Não há proibição contra isso... E nós também sabemos que todos os rabinos das gerações anteriores à nossa não se opuseram a tais práticas...”. Portanto, de acordo com as leis judaicas não há proibição às curas mágicas feitas pelas mulheres, pois com certeza não fazem mal a ninguém.

 

De todos os remédios oferecidos pelas curandeiras, o mais popular era o múmia. A droga é supostamente composta de fragmentos de cadáveres humanos embalsamados há séculos no Egito. Acreditava-se que era particularmente eficaz contra o mau-olhado, medos súbitos e nervosismo, e em geral era utilizado do seguinte modo:

Um pequeno pedaço de múmia é amassado por um pilão e às vezes misturado com açúcar ou temperos. Então um punhado deste pó é colocado para descansar durante a noite sobre o telhado da casa, a fim de ser umedecido pelo orvalho, ou misturado a uma xícara de café e administrado ao paciente durante nove noites seguidas. Na quinta e nona noites, antes da droga lhe ser administrada, o paciente é banhado da cabeça aos pés; alguém precisa ficar sentado a noite inteira ao seu lado a fim de certificar-se de que a droga está fazendo efeito, o que se espera que aconteça em uma dessas duas noites. Em geral o doente é submetido a uma dieta de pão e leite; no entanto, há casos em que é mantido à base de mel e amêndoas. Durante o período de tratamento, o paciente é impedido de cheirar qualquer aroma forte ou agressivo, como de cebolas ou peixes. Enquanto o enfermo é tratado com múmia, os vizinhos que moram no mesmo edifício ou quadra devem abandonar suas habitações por risco de contágio; todavia, supõe-se que estas conseqüências são neutralizadas ao se pendurar um hamsa, amuleto na forma de uma mão, sobre a porta da própria residência.

Outro procedimento utilizado é o indulko, um pedido de clemência e perdão por pecados cometidos, que supostamente provocam enfermidades; acredita-se que este tratamento cura nervosismo, mal-estar causado por medo súbito, esterilidade, propensão à impotência, etc. Há dois tipos de indulko: o “menor” e o “maior”, ambos relacionados a um curioso ritual de exorcismo de demônios conduzido por uma mulher que conhece os segredos desse processo de cura. Durante todo o procedimento, as curandeiras repetem incessantemente: “Eterno, ó Deus de Israel”.

Pois bem, todos os membros da família e os vizinhos que moram no mesmo edifício ou quadra devem deixar suas habitações por alguns dias, durante os quais o paciente permanece sozinho, atendido apenas pela curandeira. Esta traz consigo uma pequena quantidade de trigo, cevada, água, sal, mel, de quatro a seis ovos, um pouco de leite e dois tipos de doces ou açúcar. Ela pega esses alimentos, exceto os ovos, mistura-os e borrifa o conteúdo ao redor da cama do paciente, nos limites e quatro cantos do quarto. Enquanto faz isso, profere a seguinte prece:

“Nós pedimos, ó demônios, que tenham clemência e compaixão da alma do enfermo fulano de tal, e que façam com que a sua enfermidade o abandone; que o seu pecado seja perdoado e a sua alma e o seu corpo restabelecidos, para que tenha cura perfeita”. Se o paciente for uma mulher que não consegue engravidar, a curandeira acrescenta: “Que o útero dela se abra e seja restabelecido o fruto do seu ventre”. Para uma mulher com pouca fertilidade acrescenta-se o seguinte: “Que sejam estimuladas dentro dela as vidas de seus filhos e filhas”. A oração de exorcismo continua assim: “Eis o mel (ou açúcar) para adoçar suas bocas, ó demônios; milho e cevada para o seu gado; água e sal para estabelecer o amor, a fraternidade, a paz e a amizade”. A mulher então se prostra em atitude de louvor a Deus, e após beijar várias vezes o chão, continua a prece e quebra os ovos: “Eis que entrego o sacrifício de uma alma (contida no ovo) em substituição a outra (humana), para que seja restabelecida a alma desta pessoa enferma e devolvida a sua saúde”. Esta prece é repetida várias vezes durante três noites sucessivas. Caso este procedimento seja insuficiente para a cura, pode-se prolongá-lo por até nove noites seguidas.

Todavia, se o paciente é pobre, a mulher utiliza apenas um pouco de água salgada e profere a seguinte oração abreviada: “Vejam, ó shedim, eis aqui sal e água, deixem este pobre enfermo em paz”. Por ser uma forma barata de indulko, era largamente utilizada. No caso em que um homem pobre estivesse desanimado porque o seu negócio não prosperava, borrifava-se água salgada à entrada do seu estabelecimento comercial e proferia-se a oração abreviada. Se um homem ou uma mulher sofria um acidente, tal como uma queda que resultasse em uma perna ou um braço quebrado, um tornozelo deslocado, etc., era averiguado o local exato onde ocorrera o infortúnio e ali se borrifava água salgada, acrescida da mesma oração.

Em alguns casos, porém, se o acidente e suas conseqüências tivessem sido muito severos, a cerimônia ocorria do seguinte modo:

A curandeira, após ter borrifado água salgada no local exato onde ocorrera o acidente, espalhava açúcar sobre ele e acrescentava à sua prece a seguinte cláusula: “Nós rogamos, perdoe Fulano, filho ou filha de Cicrano, por ter, inadvertidamente e sem intenção, transtornado e talvez ferido algum de vocês, ó demônios, e que seja restabelecida a sua saúde”. Então se recolhia um pouco de terra do local, que era cuidadosamente dissolvida em água. Em seguida administravam-se periodicamente algumas doses desta preciosa poção ao paciente.

O indulko maior diferia do menor porque era mais caro e mais demorado, às vezes com duração de quarenta ou cinqüenta dias. O quarto do enfermo era ricamente mobiliado e iluminado com muitas velas, e o paciente era vestido com roupas brancas. A mesa ficava repleta com as comidas já citadas, além de outros doces, guloseimas, flores e perfumes em abundância. A prece de exorcismo dos demônios era igual à descrita anteriormente.

 

Freskura é o nome de outro remédio supersticioso que era ministrado às mulheres em benefício dos seus filhos, quando estes eram acometidos de comportamento desajustado, febre, etc. Eis o procedimento:

Legumes ou pepinos eram cuidadosamente escavados e deixados ocos. Em seguida eram embebidos em uma solução de anil e expostos sobre o telhado da casa durante toda a noite para que fossem banhados pelo orvalho. Na véspera do dia 9 de Av — um dia de luto para os judeus, pois neste, em anos diferentes, foram destruídos os dois Templos Sagrados de Jerusalém — os vegetais eram levados para a sinagoga, e no momento do rito em que as luzes são apagadas, os legumes ou pepinos eram preenchidos com uma mistura de sementes de pinha e barro amarelo umedecido com suco de uvas verdes. Então eram deixados para secar ao sol por muitas semanas, até que a mistura dentro deles estivesse bem assada. Se a criança estivesse com febre, a curandeira colocava um pedaço deste vegetal na sua boca e o esfregava no seu palato, enquanto proferia a seguinte oração: “Que saia o calor e entre o frescor (freskura); que entre o frescor (freskura) e saia o calor”. Em seguida pedaços do legume seco e seu conteúdo interno eram esfregados no corpo e nos membros da criança enferma. Acreditava-se que a freskura também era eficaz também na proteção contra o mau-olhado.

 

  1. Calendário Popular, Ditados e Crenças

Domingo: dia especialmente favorável para plantar e construir. Uma criança nascida em um domingo é santificada. Não é bom aparar as unhas neste dia.

Segunda-feira: dia bom para iniciar uma viagem, mas recomenda-se precaução ao comprar alimentos. Os católicos romanos e os protestantes geralmente são da opinião de que uma criança nascida em uma segunda-feira costuma ter um rosto rechonchudo. Os judeus jejuam em uma segunda-feira em memória da primeira descida de Moisés do Monte Sinai, quando foram quebradas as primeiras Tábuas da Lei. Você pode até deixar de comer neste dia, mas não trabalhe numa segunda-feira. Não visite uma pessoa enferma, pois só estará aumentando o sofrimento dela. Se você gastar qualquer quantia em dinheiro na manhã de segunda-feira, estará fadado a perder dinheiro a semana inteira. As moças jejuam às segundas-feiras para que possam se casar logo; e as mulheres idosas, para que São Michel esteja com elas na hora da morte.

Terça-feira: De acordo com a tradição islâmica, é bom aparar as unhas em uma terça-feira. Este é um dia de luta e de combates mortais. Dia de Marte.

Quarta-feira: É o dia do infortúnio. Toda quarta-feira tem pelo menos uma hora de azar. É um dia que deve ser destinado à purificação. A criança nascida em uma quarta-feira é amável e alegre. É o melhor dia para as moças se casarem.

Quinta-feira: A criança nascida neste dia está inclinada ao roubo. Os judeus jejuam em memória da subida de Moisés ao Monte Sinai para buscar as Tábuas da Lei. Este é melhor dia para as viúvas se casarem novamente.

Sexta-feira: Dia bom para noivados e casamentos, mas não entre os judeus. A tradição muçulmana prescreve: “Cubram-se com preciosos ungüentos às sextas-feiras”. Quem ficar doente numa sexta-feira certamente morrerá. Se uma pessoa nasce em uma sexta-feira, ou ele mesmo morrerá neste dia, ou seu pai ou sua mãe. Se uma mãe muçulmana fere seu filho no olho em uma sexta-feira ao se levantar sobre o degrau da escada quando o muezzin avisar o horário da oração, ela fará com que o demônio monte na criança e o dirija enlouquecidamente. O grande rio subterrâneo que corre sob o portão de Damasco deixa de correr para fazer suas orações às sextas-feiras. Não retire água de um poço neste dia na hora da chamada do muezzin para a oração; se você fizer isso, o demônio que mora no poço arrancará a sua inteligência.

Sábado: É um ato meritório visitar as sepulturas dos mortos aos sábados, mas não para os judeus, que dedicam o sábado às orações. Não se deve visitar uma pessoa enferma neste dia, pois lhe será prejudicial. Uma criança nascida no sábado será pobre e quase nunca ficará forte e saudável.

 

Os primeiros quatro dias de qualquer mês, assim como os quatro dias que se seguem imediatamente após o décimo dia, são “plenos” ou de sorte, e devem ser escolhidos para semear, plantar ou iniciar um novo negócio. Do quinto ao nono dia do mês e o décimo quinto são dias “vazios” ou de azar.

 

Kanun el Awwal — Dezembro

Em 4 de dezembro, Dia de Santa Bárbara, a água sobe pelos ralos. As moças pintam seus olhos com uma tinta escura e sensual; e em toda família se come milho cozido no vapor. Um prato de milho fervido, coberto com açúcar e sementes de romã, é preparado em benefício de cada habitante da casa, parentes, amigos, etc. Então é guardado durante toda a noite para que Mar Saba, cujo dia vem imediatamente após o de Santa Bárbara, possa andar sobre eles, abençoando assim a casa e os seus afazeres domésticos.

 

A lenda regional de Santa Bárbara é muito curiosa. Ei-la: O pai de Bárbara era um grande funcionário romano, pagão, que vivia em Jerusalém, onde, segundo dizem, a sua casa ainda existe. A filha se converteu ao cristianismo, e como se recusava a voltar atrás, seu pai e irmão ficaram tão bravos que a trancaram por quatro noites em um forno aquecido. Quando, ao final do período, eles abriram o forno, a moça, para grande surpresa deles, estava viva e bem. Como ela ainda se recusava a negar o Cristo, eles decidiram fervê-la até a morte. Então colocaram um grande caldeirão cheio de água no fogo; mas quando a água começou a ferver e os pagãos estavam a ponto de jogá-la ali dentro, descobriram que o caldeirão estava repleto de trigo até o topo, e não havia espaço para a santa. Por fim o pai e irmão de Bárbara desembainharam suas espadas e a mataram, mas foram imediatamente atingidos por um raio que os reduziu a pó. O Dia de Santa Bárbara é comemorado pelos cristãos romanos, gregos e armênios.

 

Kanun eth Thani — Janeiro

No Oriente Médio este é um mês úmido e miserável, e tão frio que as galinhas botam ovos manchados de sangue. No Dia do Ano Novo, após as refeições a mesa é deixada com os pratos e os restos de comida, para que o mais poderoso entre os demônios possa depositar bolsas de ouro sobre ela. No entanto, não se deixa a mesa posta nos demais dias do ano. Se assim fosse, esta seria levada pelos anjos.

No Banquete da Epifania a massa sobe sem estar fermentada, e a levedura feita desta massa não deve em hipótese alguma ser emprestada a ninguém. Ações de graças especiais são realizadas neste dia, e conta-se que as árvores às margens do rio Jordão louvam o Salvador durante esta festividade.

 

Shevat — Fevereiro

Um mês terrível, com uma onda de verão sobre ele. Não se pode confiar neste mês, mas é o melhor para os gatos procriarem. O brilho do sol em fevereiro causa dores de cabeça intensas.

 

Adar — Março

Adar é o pai dos terremotos e tempestades. Economize seus maiores pedaços de carvão para este mês. Ele o presenteará com sete grandes nevascas. Além disso, durante Adar o pastor pode secar a sua roupa encharcada sem acender o fogo. Conta-se que o sol de Adar faz com que as roupas penduradas para secar ao ar livre fiquem alvas como a neve. Por isso é a melhor época para as mulheres lavarem roupas, especialmente as túnicas brancas. O sol desta época também torna as pessoas mais bonitas. Por isso as mulheres mais velhas dizem: “O sol de Shevat (fevereiro) é para a minha nora (porque causa dor de cabeça); o de Adar é para a minha filha (porque torna a mulher mais bela); e o de Nissan (abril) é para a minha velhice (porque traz rejuvenescimento e vigor)”. No Festival dos Quarenta Mártires é comum acender quarenta pavios colocados no azeite em homenagem a estes homens santos que eram os cristãos dos dias de Nero. A fim de forçá-los a voltar atrás, foram expostos, inteiramente nus, durante uma noite de Adar em que nevava muito, enquanto em um palácio diante deles se desenrolava uma grande festa; então lhes informaram que se, durante a noite, qualquer um deles decidisse negar o Cristo, todos poderiam entrar no palácio e se unir às festividades. A meia-noite um deles não resistiu e negou o Mestre; porém, na mesma hora um dos guardas romanos o substituiu e provou a sua sinceridade, afirmando a sua crença no Salvador. Na manhã seguinte todos os participantes da festa foram encontrados mortos e congelados.

Os três primeiros dias de Adar eram conhecidos como El Mustakridat, “dias de quaresma”, e deles conta-se a seguinte lenda:

Uma velha pastora beduína, que mantinha seus rebanhos pastando em um dos vales nos arredores do Mar Morto, zombou de Shevat por não ter enviado chuvas. Ele, furioso por ser motivo de chacotas, disse a Adar: “Meu querido irmão Adar, restam-me apenas três dias, que são insuficientes para me vingar desta mulher velha que zombou de mim. Por favor, empreste-me três dias teus”. Adar então concedeu, de boa vontade, três dias ao irmão Shevat. Como resultado disso, houve seis dias de chuvas pesadas. As nevascas de inverno desceram das colinas e carregaram a velha pastora e seu rebanho para o mar.

Se o ano será bom ou não, isso depende de Adar. Os muçulmanos costumam dizer: “A carne e a manteiga de Adar estão proibidas para os infiéis”, ou seja, estes alimentos são tão bons que os cristãos não devem provar deles — um deboche ao rígido jejum da Quaresma.

 

Nissan — Abril

Nissan é a vida da humanidade; reaviva e revigora. Durante as chuvas de Nissan as ostras que vivem no fundo do mar sobem à superfície e abrem suas conchas. Assim que uma gota de chuva cai sobre uma ostra aberta, esta se fecha e afunda novamente no mar. A gota de chuva dentro dela se transforma numa pérola.

Neste mês as pessoas costumam fazer piquenique e beber leite.

 

Yiar — Maio

Yiar amadurece os pêssegos e pepinos. As serpentes e perdizes ficam brancas, pois durante este mês as primeiras trocam de pele e as últimas migram.

 

Hezeran e Tamuz — Junho e Julho

Ferva a água no chão, porque estes meses são muito quentes.

 

Av — Agosto

O mês do terror. Para os judeus, 9 de Av é um dia de luto, pois em duas épocas diferentes, no mesmo dia, foram destruídos os dois Templos Sagrados de Jerusalém. Contudo, arranque um cacho de uvas e afaste o medo, porque as uvas estão maduras e podem ser comidas sem problemas. Cuidado ao manejar uma faca no dia 29 de Av, o dia da decapitação de São João Batista.

 

Elul — Setembro

Na Véspera do Festival da Cruz (Dia da Santa Cruz, 14 de setembro) é comum os cristãos exporem sobre o telhado das casas sete pequenos montes de sal, representando os sete meses que se seguem a Elul. Ao se verificar, na manhã seguinte, quais destes montinhos de sal estão mais úmidos, é possível saber em quais meses haverá chuvas fortes.

 

Tashrin el Aw-al e Tahrin Eth-Thani — Outubro e Novembro Pessoas nascidas durante estes dois meses ficam nervosas com facilidade.

 

Ditados e Crenças Populares

No caso de uma morte na casa, é proibido varrer o local por três dias, para que outros moradores da residência não morram em seguida.

Tenha muito cuidado para não derramar água sem dizer o Nome de Deus, caso contrário os demônios podem lhe perturbar e entrar em você. Evite de qualquer maneira pisar na cabeça de um menino, caso contrário ele terá sarna e morrerá.

Durante o período entre o Carnaval e o Domingo de Palmas, as almas dos falecidos têm permissão para visitar seus amigos vivos.

Todo número ímpar, especialmente o número onze, traz azar.

É melhor encontrar um demônio pela manhã do que conhecer um homem que, por natureza, não tem barba no rosto.

É muito difícil lidar com um homem caolho, e um homem que ostenta uma barba branca e pontuda é mais esperto do que o próprio Iblis, o Diabo.

A cabeça fica fervendo quando a pessoa tenta contar as estrelas.

Aquele que espalha sal sofrerá de tumores.

É um pecado matar uma pomba, porque este pássaro foi tingido com as gotas do sangue do Salvador na Cruz.

Se está havendo uma discussão e uma das pessoas envolvidas coloca um dos seus sapatos de cabeça para baixo, o conflito ficará mais violento.

Pessoas altas são simplórias.

Se um cachorro uivar à noite debaixo da janela de uma casa, é sinal de que alguém naquela residência morrerá.

Se você ouvir um cachorro uivando à noite, vire um sapato de cabeça para baixo e a criatura com certeza silenciará.96

 

 

Notas

1 O Patriarca Abrahão. (N.T.)

2 Moisés. (N.T.)

3 Segundo a tradição islâmica, os jins são criaturas em forma de chama de fogo sem fumaça. Os primeiros jins desobedientes de que se tem registro são os Iblis. Jins e pessoas desobedientes são conhecidos como shedim (demônios). Segundo o Corão (Ar-Rahmaan 55:15, 15): “Ele criou o homem (Adão) do barro sonoro como o barro da olaria, e os jins Ele criou de uma chama de fogo sem fumaça”. (N.T.)

4 Segundo a tradição islâmica, os ghuls são uma espécie de jins. Os dicionários árabes mais populares definem o ghul como um mágico ou feiticeiro. Alguns dizem que os ghuls são jins vistos à noite e os siláas são jins vistos durante o dia. (N.T.)

5 Gólgota: palavra derivada da palavra hebraica gulgólet, crânio. (N.T.)

6 Enoch ou Enoque, na tradição judaica. (N.T.)

7 Vestimenta larga e grosseira que era muito comum no Oriente Médio. (N.T.)

8 Hauran era a região mais fértil na Síria. Até hoje é recoberta de ruínas de cidades, muitas delas com portões de pedra e grandes muros. Era conhecida pelos gregos e romanos como “Auranitis”. (N.T.)

9 Equivale ao que é conhecido como churrasquinho grego (N.T.).

10 Segundo a tradição judaica, Nimrod era rei de Ur dos Caldeus, na Babilônia (N.T.).

11 Diferente deste conto folclórico, não havia judeus nem cristãos morando na região à época de Abrahão, simplesmente porque o próprio Patriarca foi o primeiro hebreu e o Cristianismo somente surgiria quase dois milênios depois. O líder de Hebron aparentemente era Efron, do povo de Chêt e, talvez, o Habrun do conto refira-se a ele. (N.T.)

12 Segundo o Pentateuco (Gênesis 23), Abrahão pretendia comprar um pedaço de terra em Hebron, no fim do campo de Efron, do povo de Chêt, que habitava a região, a fim de enterrar Sara, sua esposa. Após um diálogo respeitoso entre ambos, Abrahão fez questão de pagar 400 moedas de uso corrente entre os mercadores da época, em um negócio lícito e feito aos olhos de todos os que estavam presentes. (N.T.)

13 Avshalom construiu um monumento com seu nome no Vale do Rei (Salomão) porque não teve filhos e, assim, não teria outra maneira de manter seu nome para a posteridade: “Agora Avshalom, quando ainda vivia, levantara para si um pilar, que está no Vale do Rei, porque dizia: Eu não tenho filho para conservar meu nome vivo. Ele então colocou o pilar após o seu nome e por isso este se chama Monumento de Avshalom até o dia de hoje” (II Samuel 18:18).(N.T.)

14 Vale de Moisés, próximo à cidade de Petra, na atual Jordânia. (N.T.)

15 A Torre de David está situada dentro da Cidade Velha de Jerusalém, próxima ao Portão de Iafo (N.T.).

16 Bíblia, II Samuel 12:1-10.

17 A Piscina do Sultão, em Hebron. (N.T.)

18 A Piscina dos Banhos do Patriarca, em Jerusalém. (N.T.)

19 A Caroba (Ceratonia Silíqua) é uma planta leguminosa muito comum no sul da Europa, Síria e Ásia,

Mantém-se verde o ano inteiro e suas folhas densas, escuras e brilhantes fazem com que seja notada facilmente. Não confundir com outra árvore conhecida no Brasil como Caroba, da família dos jacarandás (N.T.).

20 Segundo algumas tradições islâmicas e cristãs, Al Khudr era o próprio Alexandre o Grande (356-323 A.C), também conhecido como Al Khadir ou Dhul’Karneyn, “Dois Cornos”, que indicavam a dupla condição de Alexandre, como mortal e como divindade, por supostamente ter encontrado a Fonte da Juventude (N.T.).

21 Provavelmente no Egito. (N.T.)

22 O Monte das Oliveiras, em Jerusalém. (N.T.)

23 Beit Jata, uma antiga cidade que conta hoje com cerca de 15 mil habitantes, é vizinha de Belém e fica a apenas 2 km da Igreja da Natividade, local do nascimento de Jesus (N.T.).

24 Iafo, também conhecida como Jaffa, é uma das mais antigas cidades portuárias do mundo, de onde partiam navios carregados do famoso cedro do Líbano, usado pelo Rei Salomão para edificar o seu Templo. Segundo a tradição cristã, foi em Iafo que o apóstolo Pedro, hóspede de Simão, ressuscitou Tabita (N.T.).

25 LJS: London Jews’ Society, missão cristã anglicana fundada em 1809, que tinha por objetivo fixar-se em Jerusalém e converter judeus ao cristianismo (N.T.).

26 Dervixe: membro de uma ordem monacal muçulmana que geralmente faz votos de pobreza e humildade (N.T.).

27 Recipientes para ablução cerimonial.

28 Naquela região costuma haver chuvas “prematuras” nos meses de outono; as chuvas só passam a cair com mais intensidade de janeiro ao início de abril. A partir daí não cai uma gota de água do céu até o início do próximo outono (N.T.),

29 Simão o Justo, ou Shimon Hatsadic, viveu há aproximadamente 2.300 ou 2.400 anos. Foi sumo-sacerdote no Templo Sagrado de Jerusalém por 40 anos. (N.T.)

30 Período de 49 dias entre o início de Pessach (a Páscoa judaica) e Shavuot (Pentecostes). (N.T.)

31 Árvore da família das pináceas (Coníferas da América do Norte e da Europa).

32 Abulfeda (1273-1331), historiador e geógrafo nascido em Damasco, Descendente de Ayyub, o pai do Imperador Saladino, tornou-se sultão em 1320 e reinou por mais de 20 anos. Sua maior obra histórica, “Uma Breve História da Raça Humana”, estende-se desde a Criação do mundo até o ano de 1329. (N.T.)

33 Kemal-ed-din, historiador de Alepo, Síria, em meados do século XII. (N.T.)

34 Nabucodonosor e Tifo são freqüentemente confundidos pelos árabes muçulmanos. Conta-se que o sangue de São João Batista continuou fluindo como uma fonte sob o grande altar até que o Templo foi destruído por Nabucodonosor, e não parou de jorrar até que o imperador assassinou mil judeus,

35 O que, aliás, não ocorreu no período de Saladino.

36 Mezuzá: pequeno rolo de Pergaminho. A mezuzá deve ser afixada no umbral direito da porta de cada dependência de um lar ou estabelecimento judaico, por obediência ao seguinte mandamento bíblico: “E as escreverás nos umbrais de tua casa, e nas tuas portas” (Deuteronômio 6:9, 11:20). (N.T.)

37 A 24.ª parte de qualquer coisa.

38 Do calendário judaico. (N.T.)

39 Vivo e em atividade.

40 Juiz muçulmano.

41 Meydan fica no bairro judeu da Cidade Velha de Jerusalém, no cume nordeste do tradicional Monte Sion. O local exato por onde a lavadeira saiu estava, até o início de 1905, marcado por uma grande pedra octogonal, que hoje está desaparecida.

42 O Sultão Selim conquistou a Terra Santa em 1517 com a intenção de restaurar completamente as muralhas de Jerusalém, o que foi realizado de fato por seu filho e sucessor, Suleiman, o Magnífico, que, nas inscrições existentes, é nomeado “Rei dos árabes, dos persas e dos rums” (romanos, ou seja, bizantinos).

43 Esta afirmação de que a obra levou sete anos para ser concluída é puro orientalismo. De acordo com inscrições ainda visíveis, a obra foi iniciada em 1536 no lado norte da cidade, e concluída no lado sul em 1539.

44 Sarraceno: relativo ao povo árabe-berbere que conquistou a península Ibérica; mouro, árabe. (N.T.)

45 Alguns estudiosos dizem que essa mulher era um demônio feminino. Ela temia que aquela mulher de sangue real, cuja mãe havia sido uma jin. Se convertesse da idolatria para o Islã e, no seu matrimônio com o rei, revelasse certos segredos que poderiam manter os demônios para sempre na servidão à qual Salomão os reduzira.

46 Onde hoje está a Igreja de Santa Ana.

47 Provavelmente o conto se refere ao rabino Kolonimus Kalman, filho do rabino Rubele Medenburg, o Rabi de Dvinsk, primeiro mentor do rabino Avraham Yitzchak Kook (1865-1935), por sua vez o primeiro rabino-chefe de Israel. (N.T.)

48 Funcionário que auxilia nos serviços de zeladoria de uma sinagoga. (N.T.)

49 Não é incomum que judeus muito religiosos ordenem que, após a morte, e como forma de expiar os pecados cometidos durante a vida, seus corpos sejam maltratados. Alguns até mesmo pedem que os quatro modos de pena capital ordenados pela Lei — decapitação, estrangulamento, queima e apedrejamento — sejam executados sobre seus cadáveres. Outros consideram que, após a morte, devem receber macot, ou açoitamento público com quarenta chibatadas. Outros ainda ordenam que seus corpos sejam arrastados ao longo do caminho até a sepultura.

50 Os tátaros são um povo que habitou a península da Criméia, hoje parte da Ucrânia, entre os séculos VII e XIV. Atualmente, mais de 250 mil tátaros moram na Criméia e outros 250 mil ainda estão em exílio na Ásia Central. (N.T.)

51 Atual Istambul.

52 Effendi: título de respeito para os homens na Turquia, equivalente a senhor. (N.T.)

53 Chicote de pele de hipopótamo.

54 Pano para a cabeça clássico dos turcos, de feltro vermelho com uma borla de seda azul, usado sozinho ou como parte do turbante masculino. (N.T.)

55 Conhecido também como Ain Roguei, próximo a Jerusalém. (N.T.)

56 Soldado, explorador e arqueólogo, Sir Charles Warren (1840-1927) inspecionou o Templo de Herodes e as escavações realizadas em Jerusalém como agente do Palestine Exploration Fund em 1867, e registrou suas descobertas em dois livros: “The Temple or the Tomb” (O Templo ou a Tumba) e “Under Jerusalem” (Debaixo de Jerusalém). (N.T.)

57 Cidade histórica cujo nome significa “Aldeia do Pastor”, de 2 a 3 km a leste de Belém. No passado, os cananeus habitaram suas numerosas cavernas; conta atualmente com muitas igrejas e conventos. (N.T.)

58 O nome sugestivo e as histórias contadas a respeito do povo excêntrico de Deyr es Sinneh são supostamente reminiscências da então famosa seita dos essênios, muito mencionados pelo historiador judeu Flavius Josefus. (Atualmente sabemos um pouco mais sobre os essênios, graças à descoberta, em 1947, dos Pergaminhos do Mar Morto, na caverna de Kumran, em Israel. — N.T.)

59 Devotos dedicados a orações, privações e modificações. (N.T.)

60 Ver na Bíblia, Juízes 15:1-8. (N.T.)

61 A diferença entre uma palavra e outra, em árabe, é apenas um ponto na segunda letra, que transforma Ahsa em Akhsa.

62 “Quando entrares na vinha de teu companheiro, poderás comer uvas conforme teu desejo até te fartares, porém na tua bolsa não porás. Quando entrares na seara de teu companheiro, poderás colher espigas com a tua mão, porém foice não porás na seara de teu companheiro” (Deuteronômio 23:25-26). (N.T.)

63 Festividades muçulmanas, entre as quais uma (o Bairam Menor) é realizada ao fim do jejum de Ramadã, e a outra (o Bairam Maior) setenta dias após o jejum.

64 Beit Umar: aldeia árabe que fica a menos de quinze minutos do centro de Hebron. (N.T.)

65 Beit Fajar: aldeia árabe próxima a Belém. (N.T.)

66 Festividades judaicas que encontram algum paralelo respectivamente nas festividades cristãs da Páscoa, de Pentecostes e dos Tabernáculos, na tradição cristã, (N.T.)

67 O Pentateuco manuscrito em dois rolos de Pergaminho. (N.T.)

68 Dialética, Retórica, Música, Aritmética, Geometria, Gramática e Astronomia.

69 Era costumeiro entre os antigos árabes premiar poetas de reconhecida eminência ao permitir que cópias dos seus versos fossem afixadas no portão do Templo em Meca. Sete destes poemas foram selecionados, e são conhecidos na literatura como “Moallakat” (Poemas Suspensos).

70 As palavras em português “lisonjeie, insinue, valorize-se e dissimule” dificilmente expressam, mesmo em conjunto, o significado pleno desta palavra singular.

71 Colcha de algodão acolchoada que, no Oriente Médio, substitui as mantas.

72 O afrít é um demônio especialmente maligno que habita nos telhados das casas, batentes das portas e buracos nas paredes ou nas varandas. É considerado muito perigoso, principalmente para as mulheres que sentam nas varandas de suas casas após o anoitecer, quando os afarít saem de seus esconderijos e podem lhes causar grandes danos.

73 Estrela de cinco ou seis pontas, cujo uso era muito difundido durante a Idade Média nos países muçulmanos e cristãos. Entre os muçulmanos, o Selo de Salomão era muito usado como proteção. O hexagrama também é encontrado em igrejas e catedrais, assim como em sinagogas. (N.T.)

74 Plural de afrít.

75 O inferno tem sete portões, um deles está em Wadi-en-Nar onde, em uma de suas cavernas, o Anjo da Morte mantém sua oficina.

76 No folclore, o leopardo é descrito como uma criatura que combina as características do texugo e da hiena.

77 Acredita-se que Beerot foi o local onde José e Maria iniciaram sua busca por Jesus entre os peregrinos. A busca terminou no Templo de Jerusalém (Lucas 2:42-46).

78 Aldeia a cerca de 15 km a sudeste de Jerusalém, à margem da estrada de ferro Jerusalém-Iafo.

79 Diminutivo de jibn, queijo.

80 Significa também “paciência”.

81 Significa também “ternura”.

82 Instrumento que consiste em um arco plano de ferro com pequenas argolas das quais pendem ganchos curtos, que funcionam como garras.

83 Vara com uma pedra em forma de cunha, como apoio, e uma espécie de garfo na outra extremidade.

84 Na primeira parte do século XIX, as “machicolações” ou janelas protegidas por sobre os portões eram muito comuns em Jerusalém, não apenas sobre as entradas para os monastérios e edifícios públicos, mas também em residências particulares.

85 O padre ortodoxo grego é obrigado a se casar; quando a sua esposa morre, ele se retira para um monastério, porque lhe é proibido casar-se novamente.

86 Veja o capítulo 9, “El Khudr”.

87 Espécie de Greyhound, cão de companhia conhecido como o mais rápido do mundo, atingindo a velocidade de 65 km/h. É um cão carinhoso e de bom caráter, amável com a família e gentil com as crianças.

88 Um vasto platô situado na região central da Arábia Saudita, onde fica a capital, Ryiad. Varia entre 760m e 1520m de altitude, aproximadamente. (N.T.)

89 Na Amidá, reunião de orações da liturgia judaica composta por 19 orações, este é o início da 18.a oração, quando se costuma dobrar levemente os joelhos, sem ajoelhar-se, e cujo significado é “Nós reconhecemos humildemente que Tu és o Eterno”. (N.T.)

90 Ceratonia Silíqua.

91 Storax offícinalis, conhecida como estoraque ou benjoeiro. Quando são feitas incisões em seus ramos, a resina, também conhecida como benjoim, flui e posteriormente endurece, formando um bálsamo aromático muito utilizado na fabricação de incenso, em cosmética e farmácia contra a bronquite, como expectorante, antisséptico e cicatrizante.

92 Ziziphus lótus ou Ziziphus spina Christi. Árvore nativa do Mediterrâneo, cujos frutos pequenos e amarelos eram consumidos pelos antigos. Acredita-se que seus galhos, duros e cheios de espinhos, foram utilizados para preparar a coroa de espinhos de Jesus. (N.T.)

93 Decocção: processo de extração dos princípios ativos de substância ou planta pela ação de líquido em ebulição.

94 Sedicioso: que incita à revolta e à insubordinação.

95 Membro de antiga milícia turco-egípcia, originalmente formada por escravos caucasianos convertidos ao islamismo, que conquistou grande poder político no Egito. Essa milícia ocupou o sultanato entre os séculos XIII e XVI, foi derrotada por Napoleão em 1798, exterminada e dispersada em 1811 por Mohamed Ali.

96 O costume de virar o sapato de cabeça para baixo é um ato de respeito com os demônios. Quando se reza para Deus, a face é voltada para Ele e as solas dos pés estão voltadas para o chão. Portanto, ao se virar a sola do sapato, a pessoa insinua um respeito aos demônios que se aproxima da adoração. Os demônios aceitam o louvor e ficam mansos, e Deus, que é bom e sabe que não se trata de um insulto a Ele, não se ressente com esta atitude.

 

                                                                               J.E. Hanauer 

 

 

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