Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MORTE NA ALTA SOCIEDADE / Georges Simenon
MORTE NA ALTA SOCIEDADE / Georges Simenon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Era um glorioso mês de maio, desses que a gente vê apenas duas ou três vezes na vida e que têm o esplendor, o sabor e o perfume de lembranças da infância. Maigret chamou-lhe um maio ”coral”. Lembrava-lhe, ao mesmo tempo, sua primeira comunhão e sua primeira primavera em Paris, quando tudo parecia novo e maravilhoso.

Na rua, no ônibus, no escritório, acontecia-lhe interromper-se de repente, tocado por um som distante, um sopro de ar quente, a viva mancha de cor de uma blusa de mulher. E tudo isso o levava de volta à magia perdida de vinte ou trinta anos atrás.

Ainda na véspera, ao saírem para jantar com os Pardons, Mme Maigret lhe perguntara, enrubescendo, confusa:

— Não fico ridícula na minha idade com um vestido assim, estampado de flores?

Nessa noite os Pardons inovaram. Ao invés de convidá-los ao apartamento, levaram os Maigrets a um pequeno restaurante do Boulevard de Montparnasse, onde os quatro comeram no terraço.

Os Maigrets trocaram olhares cúmplices. Pois ali, naquele mesmo terraço, os dois tinham jantado pela primeira vez juntos, há quase trinta anos.

— Tem cassoulet au mouton?

Os proprietários do restaurante já não eram os mesmos, mas havia ainda cassoulet au mouton no cardápio, lâmpadas vacilantes nas mesas, samambaias em vasos e Chavignol em garrafas.

Todos os quatro estavam em grande forma. Quando veio o café, Pardon tirou do bolso uma revista de capa branca.

— Sabe, Maigret? Há uma referência de seu interesse na Lancet.

O inspetor-chefe, que conhecia de nome a famosa e austera revista inglesa de medicina, franziu a testa.

— Quero dizer, há uma referência à sua profissão. O artigo é assinado por um tal dr. Fox, Richard Fox, e esse é o trecho que lhe diz respeito:

”Um hábil psiquiatra, que use seus conhecimentos científicos e a experiência adquirida no consultório, tem excelentes condições para entender seus semelhantes. Mas é possível, especialmente se ele se deixa influenciar por teorias, que os entenda menos bem que um bom mestre-escola, um romancista ou um detetive”.

 

 

 

 

Conversaram sobre isso por algum tempo, ora brincando, ora com seriedade. Depois os Maigrets se despediram e fizeram parte do caminho a pé, através das ruas adormecidas.

Mal podia o inspetor-chefe adivinhar que essa observação do médico inglês lhe voltaria à memória várias vezes nos dias seguintes ou que as lembranças despertadas nele por esse perfeito mês de maio lhe pareceriam quase uma premonição.,

No dia seguinte também, a caminho do Châtelet, descobriu-se a interrogar o rosto dos transeuntes com a mesma curiosidade de antigamente, quando era ainda novato na capital.

Subir as escadarias da chefatura de polícia como inspetor-chefe, ser cumprimentado com deferência pelo caminho eram para ele motivo de estranheza. Fazia tanto tempo assim que tinha entrado para esse serviço, cujos chefes ainda lhe pareciam seres legendários?

Sentiu-se imediatamente sombrio e melancólico. Com a janela aberta, passou os olhos pela correspondência, e chamou o jovem Lapointe para dar-lhe instruções.

Em vinte e cinco anos o Sena não tinha mudado, nem os barcos em trânsito ou os pescadores de linha, que pareciam ocupar desde sempre aqueles mesmos lugares.

Tirando baforadas do cachimbo, fazia seus deveres de casa, como costumava dizer, limpando a mesa dos dossiês que se tinham acumulado, e tratando de assuntos menores, quando o telefone tocou.

— Pode vir ter comigo por um momento, Maigret? — perguntou o diretor.

O inspetor-chefe dirigiu-se sem pressa à sala do diretor, onde se postou de pé, junto à janela.

— Acabo de receber um curioso telefonema do Quai d’Orsay’. Não do ministro do Exterior em pessoa, mas do seu principal secretário particular. Ele me pede que mande lá, sem demora, alguém capaz de assumir responsabilidades. Foram as palavras que usou.

” ’Um inspetor?’, perguntei.

” ’Alguém de graduação mais alta seria preferível. O assunto provavelmente tem algo a ver com um crime.’ ”

Os dois homens se entreolharam com uma ponta de malícia. Nenhum dos dois tinha em grande conta ministérios de qualquer espécie e muito menos um ministério tão sofisticado quanto o do Exterior.

 

Forma como é designado o Ministério do Exterior, por se encontrar na rua desse nome. (N. do E.)

 

— Pensei que talvez gostasse de ir...

— Talvez fosse melhor...

O diretor apanhou um papel na mesa e estendeu-o a Maigret:

— Terá de procurar um certo M. Cromières. Ele o espera.

— É esse o principal secretário particular?

— Não. É a pessoa encarregada do caso.

— Devo levar um inspetor comigo?

— Nada sei além do que lhe disse. Essa gente gosta de fazer mistério.

Maigret, finalmente, escolheu Janvier para acompanhá-lo, e os dois tomaram um táxi. No Quai d’Orsay não foram conduzidos à grande escadaria, mas a uma outra, estreita e despretensiosa, no fundo do pátio. Era como se os admitissem por uma entrada de serviço ou pela porta da cozinha.

Erraram, algum tempo, pelos corredores, antes de achar uma sala de espera onde um empertigado contínuo mandou que Maigret preenchesse um formulário. Não parecia absolutamente impressionado com seu nome.

Por fim, introduziram-no numa sala onde um diplomata, extremamente jovem e enfatuado, confrontava de pé, imóvel e mudo, uma velha senhora tão impassível quanto ele. Davam a impressão de estarem nessa postura há muito tempo, provavelmente desde que o telefonema tinha sido dado, do Quai d’Orsay para a chefatura de polícia.

— Inspetor-chefe Maigret?

Este último apresentou Janvier, para quem o jovem diplomata lançou apenas um olhar distante.

— Não sabendo exatamente do que se tratava, tomei a precaução de me fazer acompanhar por um de meus inspetores.

— Queira sentar-se.

Cromières esforçava-se por parecer importante, e havia algo de tremendamente ”Ministério do Exterior” na sua maneira condescendente de falar.

— Se o Quai entrou em contato imediatamente com a chefatura de polícia...

Pronunciava a palavra quai como se falasse de alguma sacrossanta instituição.

—...foi porque, inspetor-chefe, estamos às voltas com uma situação de certo modo excepcional...

Sem tirar os olhos dele, Maigret observava também a senhora, que parecia surda de um ouvido, pois curvava-se para a frente a fim de escutar melhor, inclinando a cabeça para um lado e prestando atenção ao movimento dos lábios dos homens.

— Senhorita...

Cromières consultou um papel na sua mesa.

— Mlle Larrieu é a empregada, ou governanta, de um dos nossos mais ilustres embaixadores aposentados, o conde de Saint-Hilaire, de quem, sem dúvida, já ouviu falar...

Maigret lembrou-se efetivamente de ter visto esse nome nos jornais, mas parecia-lhe coisa de muito tempo atrás.

— Desde que deixou o serviço ativo, há cerca de doze anos, o conde de Saint-Hilaire tem vivido em Paris, no seu apartamento da Rue Saint-Dominique. Esta manhã, Mlle Larrieu veio procurar-nos às oito e meia e foi obrigada a esperar algum tempo para ser admitida à presença de um funcionário responsável.

Maigret imaginou aquela repartição deserta às oito horas da manhã e a mulher de pé, imóvel, na ante-sala, de olhos pregados na porta.

— Mlle Larrieu esteve a serviço do conde de Saint-Hilaire por mais de quarenta anos.

— Quarenta e dois — especificou ela.

— Quarenta e dois anos. Ela o acompanhou em suas várias missões no exterior e tomava conta da sua casa. Nos últimos doze anos, foi a única pessoa a viver com o embaixador no apartamento da Rue Saint-Dominique. Foi lá, esta manhã, e depois de encontrar vazio o quarto de dormir, ao levar o café, que ela o descobriu no escritório. Estava morto. A mulher olhou para cada um deles, sucessivamente, com olhos atentos, desconfiados.

— Pelo que ela diz, Saint-Hilaire parece ter sido vítima de um ou vários tiros.

— E ela não chamou a polícia?

O jovem de cabelos claros assumiu uma expressão presunçosa:

— Posso compreender a sua surpresa. Mas não esqueça que Mlle Larrieu passou boa parte da sua vida no mundo diplomático. Embora o conde de Saint-Hilaire não estivesse na ativa, ela sabe que o serviço diplomático tem suas normas de discrição.

Maigret piscou para Janvier.

— Não pensou também em chamar um médico?

— Parece não haver dúvida quanto à causa mortis.

— Quem está lá na Rue Saint-Dominique agora?

— Ninguém. Mlle Larrieu veio diretamente para cá. A fim de evitar mal-entendidos e perda de tempo, estou autorizado a informá-lo de que o conde de Saint-Hilaire não estava de posse de qualquer segredo de Estado, e que o senhor não precisará procurar uma razão política para a morte dele. Todavia, é recomendável a maior prudência. Quando um homem conhecido se envolve numa coisa dessa espécie, principalmente se esteve no serviço diplomático, os jornais se apressam em conferir proporções exageradas ao caso e em sugerir as mais mirabolantes hipóteses.

O jovem se levantou.

— Se o senhor tiver a bondade de acompanhar-me, vamos até lá, agora.

— O senhor também? — perguntou Maigret, com ar inocente.

— Oh, não tema. Não tenho intenção de interferir em sua investigação. Se vou também é simplesmente para certificar-me de que não existe nada que possa vir a nos embaraçar.

A velha governanta levantou-se também. Todos os quatro desceram.

— Será melhor que tomemos um táxi. Chamará menos atenção que uma das limusines do Quai.

A viagem foi ridiculamente curta. O carro parou em frente a uma construção imponente do fim do século XVIII, diante da qual não havia multidão ou curiosos. Debaixo do arco, passada a entrada principal, fez frio, de súbito. E, no que parecia mais uma sala de estar do que uma guarita, podia-se ver um porteiro uniformizado, tão esplêndido quanto o contínuo do ministério.

Subiram quatro degraus, à esquerda. Havia um elevador parado, num hall de mármore negro. A governanta abriu a porta de carvalho com uma chave que tirou da bolsa.

— Por aqui...

Guiou-os por um corredor a uma sala que, obviamente, dava para o pátio interno, mas onde cortinas e venezianas estavam fechadas. Foi Mlle Larrieu quem acendeu a luz elétrica. E junto de uma mesa de mogno puderam ver o corpo, estirado no tapete vermelho.

Os três homens removeram seus chapéus num único movimento, enquanto a velha senhora os olhava com uma expressão de desafio.

Parecia dizer: ”Eu não disse?”

Sem dúvida, não era preciso olhar de perto para ver que o conde de Saint-Hilaire estava morto, e bem morto. Uma das balas tinha entrado pelo olho direito, rebentando o crânio. E, a julgar pelos furos no robe de veludo preto e pelas manchas de sangue, outras balas tinham atingido o corpo em diversos lugares.

Cromières foi o primeiro a dirigir-se à mesa.

— Vê isto? Parece que ele se ocupava em corrigir provas...

— Estava escrevendo um livro?

— As suas memórias. Dois volumes já apareceram. Mas seria absurdo procurar nisso o motivo da morte. Saint-Hilaire era um dos homens mais discretos do mundo, e suas memórias têm caráter mais literário e pitoresco do que político.

Cromières falava de maneira floreada e sentia evidente prazer em ouvir-se a si mesmo. Maigret começou a ficar irritado. Ali estavam eles quatro, num quarto de janelas fechadas, às dez horas da manhã, enquanto o sol brilhava do lado de fora, a contemplar o corpo desconjuntado e coberto de sangue de um ancião.

— Suponho que — murmurou o inspetor-chefe, não sem alguma ironia -, suponho que, apesar de tudo, este seja um assunto para a Justiça, não?

Havia um telefone em cima da mesa, mas ele preferiu não tocar nele.

— Janvier, telefone da portaria. Avise o juiz e o inspetor de polícia da circunscrição.

A velha continuava a olhar de um para o outro, como se lhe competisse vigiá-los. Tinha um olhar duro, sem simpatia nem calor humano.

— O que está fazendo? — perguntou Maigret ao homem do Quai d’Orsay, que abria as portas de uma estante de livros.

— Estou dando simplesmente uma vista de olhos.

E acrescentou, com uma autoconfiança desagradável em alguém tão jovem:

— É meu dever assegurar-me de que não há papéis aqui cuja divulgação possa ser inoportuna...

Seria tão jovem quanto parecia? A que serviço pertenceria, de fato? Sem esperar pela permissão do inspetor-chefe, examinou o conteúdo da estante, abrindo pastas e devolvendo-as às prateleiras, uma depois da outra.

Enquanto isso, Maigret olhava a sala, impaciente, furioso.

Cromières passou a outras peças da mobília, remexendo em gavetas, e a velha permaneceu junto à porta, de chapéu na cabeça e bolsa na mão.

— A senhora poderá me levar ao quarto de dormir do embaixador?

Ela precedeu o homem do Quai, enquanto Maigret ficava no estúdio, onde Janvier logo se reuniu a ele.

— Onde estão?

— No quarto.

— O que estamos fazendo?

— No momento, nada. Espero que o jovem gentleman se retire e deixe a casa para nós.

Não era só Cromières que irritava o inspetorchefe. Era também o modo pelo qual o caso se apresentava e, talvez, acima de tudo isso, a atmosfera estranha na qual se via, de chofre, mergulhado.

— O inspetor local estará aqui num minuto.

— Você telefonou para os peritos?

— Moers está a caminho, com sua equipe.

— E o juizado?

— Telefonei para eles também.

O escritório era espaçoso e confortável. Embora nada tivesse de solene, aparentava um ar de distinção que impressionou o inspetor-chefe logo ao entrar. Cada peça de mobília, cada objeto era belo em si mesmo. E o ancião por terra, com a cabeça praticamente esfacelada, conservava naquela moldura uma certa grandeza.

Cromières voltou, seguido da governanta idosa.

— Penso que não tenho mais nada a fazer aqui. Recomendo aos senhores prudência e discrição. Não pode tratar-se de suicídio, uma vez que não há qualquer arma no salão. Estamos de acordo sobre esse ponto, não é verdade? Quanto a saber se houve furto, deixo aos senhores a tarefa de descobri-lo. De qualquer maneira, seria lamentável que a imprensa viesse a dar relevo indevido ao caso...

Maigret olhou para ele em silêncio.

— Tomarei a liberdade de chamá-lo ao telefone, se me permite, para saber que novidades tem — continuou o rapaz. — É possível também que o senhor precise de alguma informação. Se for esse o caso, pode sempre dispor de mim.

— Obrigado.

— Numa cômoda do quarto de dormir, encontrará certo número de cartas que provavelmente o surpreenderão. É uma velha história, que todo mundo conhece no Quai d’Orsay e que nada tem a ver com o caso.

Disse e retirou-se a contragosto.

— Conto com os senhores...

A velha empregada acompanhou-o para fechar a porta atrás dele, e voltou um pouco depois sem o chapéu e a bolsa. Não vinha para pôr-se à disposição do inspetor-chefe, mas para vigiar os dois homens.

— A senhora dorme no apartamento? Quando Maigret lhe dirigiu a palavra, ela não

estava olhando para ele e pareceu não ouvir. O inspetor-chefe repetiu a pergunta em voz alta. Dessa vez, ela voltou a cabeça, com o ouvido bem na direção dele.

— Sim. Tenho um pequeno quarto atrás da cozinha.

— Não há outros empregados?

— Aqui, não.

— A senhora se encarrega da arrumação da casa e da cozinha?

— Sim.

— Que idade tem?

— Setenta.

— E o conde de Saint-Hilaire?

— Setenta e sete.

— Quando a senhora o deixou, ontem à noite?

— Por volta das dez horas.

— Ele estava no escritório?

— Estava.

— Esperava alguém?

— Não me disse.

— Alguém costumava vir aqui à noite visitá-lo?

— O sobrinho.

— Onde mora o sobrinho?

— Na Rue Jacob. É antiquário.

— Tem o mesmo sobrenome de Saint-Hilaire?

— Não. Ele é filho da irmã do senhor conde. O nome é Mazeron.

— Anotou isso, Janvier?... Esta manhã, então, quando a senhora encontrou o corpo... Porque foi de manhã que o encontrou, não foi?

— Às oito horas.

— Não lhe ocorreu telefonar a M. Mazeron?

— Não.

— Por que não?

Ela não respondeu. Tinha o olhar fixo de certas aves e, também como certas aves, ficava às vezes empoleirada numa perna só.

— A senhora não gosta dele?

— De quem?

— De M. Mazeron.

— Não tenho nada a ver com isso. Maigret sentiu a essa altura que, com ela, tudo ia ser difícil.

— O que não é de sua conta?

— Assuntos de família.

— O sobrinho não se dava bem com o tio?

— Eu não disse isso.

— O que fez a senhora ontem à noite, às dez horas?

— Deitei-me.

— E quando se levantou?

— Às seis horas, como de costume.

— E não veio a esta sala?

— Não havia motivo para que viesse.

— A porta estava fechada?

— Se estivesse aberta eu teria notado imediatamente que alguma coisa acontecera.

— Por quê?

— Porque as luzes ainda estavam acesas.

— Como estão agora?

— Não. A luz do teto não estava acesa. Só o abajur da mesa e o abajur de pé, no canto.

— O que fez às seis horas?

— Antes de mais nada, tomei banho.

— E depois?

— Limpei minha cozinha e saí para comprar croissans.

— O apartamento ficou deserto durante esse período?

— Como toda manhã.

— E então?

— Fiz café, tomei-o, e, finalmente, subi para o quarto de dormir com a bandeja.

— A cama havia sido desfeita?

— Não.

— O quarto estava em desordem?

— Não.

— A noite passada, quando o deixou, o conde usava esse robe preto?

— Sim, como costumava fazer à noite, quando não saía.

— E saía com freqüência?

— Gostava de cinema.

— Recebia amigos aqui?

— Raras vezes, quase nunca. De vez em quando almoçava fora.

— A senhora sabe os nomes das pessoas com quem ele se dava?

— Isso não me dizia respeito.

A campainha da porta tocou. Era o inspetor local com seu secretário. Correu os olhos, surpreso, pelo escritório, encarou depois a mulher e por fim Maigret, a quem deu a mão.

— Como chegou aqui antes de nós? Foi ela quem lhe telefonou?

— Não fez nem isso. Foi diretamente ao Quai d’Orsay. Você conhece a vítima?

— É o antigo embaixador, pois não? Conhecia-o de nome e de vista. Toda manhã costumava sair para uma caminhada aqui por perto. Quem fez isso?

— Ainda não sabemos nada. Estou esperando o juiz.

— O médico-legista deve chegar a qualquer momento...

Ninguém tocou na mobília nem em qualquer outra coisa do salão. Havia uma estranha sensação de desconforto, e foi um alívio quando o médico chegou. Assobiou de leve quando se debruçou sobre o cadáver.

— Imagino que não posso virá-lo antes que os fotógrafos dêem o ar da sua graça, não?

— Sim, não toque nele. Tem uma idéia aproximada da hora da morte?

— Há bastante tempo... À primeira vista, diria alguma coisa como dez horas... É estranho...

— O que é estranho?

— Ele parece ter recebido pelo menos quatro balas... Uma aqui... outra ali...

Ajoelhando-se, examinou o corpo mais detidamente.

— Não sei o que os peritos vão pensar. De minha parte, não ficaria surpreso se o primeiro projétil o tivesse matado; o assassino, a despeito disso, continuou atirando. Note bem, é apenas uma teoria...

Em menos de cinco minutos, o apartamento se encheu de gente. Primeiro, veio o pessoal da Justiça, representado pelo subpromotor público Pasquier e por um magistrado que Maigret não conhecia muito bem e que se chamava Urbain de Chézaut.

O sucessor do dr. Paul, dr. Tudelle, chegou com eles. Imediatamente depois, ou quase, a casa foi invadida pelos peritos criminais, com sua aparelhagem volumosa.

— Quem encontrou o corpo?

— A governanta.

Maigret apontou para a velha empregada, a qual, sem emoção visível, observava os movimentos e os gestos de cada um deles.

— Já a interrogou?

— Ainda não. Apenas troquei umas poucas palavras com ela.

— Ela sabe de alguma coisa?

— Se sabe, não será fácil fazê-la falar.

E contou a história do Ministério do Exterior.

— Alguma coisa foi furtada?

— A primeira impressão é de que nada foi tirado. Estou aguardando que o pessoal termine seu trabalho para certificar-me.

— Parentes?

— Um sobrinho.

— Já foi avisado?

— Ainda não. Pretendo ir vê-lo pessoalmente, enquanto meus homens trabalham, para contar-lhe o que aconteceu. Ele vive a poucos quarteirões de distância, na Rue Jacob.

Maigret poderia ter telefonado ao antiquário pedindo-lhe que viesse, mas preferia vê-lo no seu próprio ambiente.

— Se não precisa mais de mim, irei até lá agora. Janvier, você fica.

Era um alívio sair para o ar livre e a luz do dia e as manchas de sol debaixo das árvores do Boulevard Saint-Germain. O ar era quente, as mulheres usavam vestidos de cores claras, e um carro-pipa da prefeitura regava devagarinho metade da rua.

Não teve dificuldade em achar a loja de antigüidades da Rue Jacob, que numa das vitrines mostrava apenas armas velhas, principalmente espadas. Empurrou a porta fazendo tilintar um sino no fundo do estabelecimento. Mas três ou quatro minutos se passaram antes que um homem emergisse das sombras.

Sabendo que o tio tinha setenta e sete anos, Maigret não podia esperar que o sobrinho fosse um rapazinho. Ficou, no entanto, surpreso ao ver-se face a face com alguém que já era quase um velho.

— Em que posso ser útil ao senhor?

Tinha uma cara comprida e pálida, sobrancelhas hirsutas e um crânio praticamente pelado. Suas roupas frouxas faziam que parecesse mais magro do que era.

— O senhor é M. Mazeron?

— Alain Mazeron, sim.

O interior da loja estava cheio de armas, mosquetões, bacamartes. Bem ao fundo, havia duas armaduras completas.

— Inspetor-chefe Maigret, da polícia judiciária.

Os cenhos se franziram. Mazeron procurava entender.

— O senhor é sobrinho do conde de Saint-

Hilaire, não é?

— É meu tio, sim. Por quê?

— Quando foi que o viu pela última vez? O homem respondeu sem hesitar:

— Anteontem.

— Tem outros parentes?

— Sou casado, com filhos.

— Quando o viu, há dois dias, seu tio parecia

normal?

— Sim, estava até alegre. Por que me pergunta isso?

— Porque ele está morto.

Maigret viu nos olhos de Mazeron a mesma desconfiança que a velha governanta deixara transparecer.

— Sofreu um acidente?

— De certo modo...

— O que quer dizer?

— Que foi assassinado na noite passada, em seu próprio escritório, com várias balas de revólver ou pistola automática.

O rosto do antiquário registrou incredulidade.

— Tinha inimigos, que soubesse?

— Não... certamente que não...

Se Mazeron tivesse dito simplesmente ”não”, Maigret não lhe daria atenção. O ”certamente que não”, vindo como que depois de reflexão, fez com que ficasse desconfiado.

— O senhor não sabe quem se beneficia com a morte do seu tio?

— Não, não tenho idéia.

— Era homem rico?

— Tinha uma pequena fortuna individual. Vivia principalmente da aposentadoria.

— Vinha aqui às vezes?

— Às vezes...

— Para almoçar ou jantar com o senhor? Mazeron parecia distraído, e respondeu sumariamente, como se pensasse em outra coisa.

— Não. Vinha em geral de manhã, no curso do seu passeio habitual.

— Entrava para um dedo de prosa?

— Isso mesmo. Costumava sentar um momento.

— E o senhor ia vê-lo no apartamento?

— De vez em quando.

— Com a família?

— Não.

— Disse-me que tinha filhos?

— Dois... Duas meninas...

— O senhor mora aqui?

— No primeiro andar. Uma das minhas filhas, a mais velha, está na Inglaterra. A outra, Marcelle, vive com a mãe...

— O senhor não vive com sua mulher?

— Já há alguns anos...

— Estão divorciados?

— Não... É bastante complicado. Não acha que deveríamos ir à casa de meu tio?

Foi buscar o chapéu no fundo escuro da loja, pendurou um aviso na porta dizendo que estava fora, fechou a loja e seguiu Maigret pela calçada.

— O senhor sabe como aconteceu?

Era visível que estava ansioso, preocupado.

— Sei pouco mais que nada.

— Furtaram alguma coisa?

— Não creio. Não havia sinais de desordem no apartamento.

— O que diz Jacquette?

— O senhor fala da governanta?

— Sim... É esse o prenome dela... Não sei se é o prenome verdadeiro, mas ela sempre foi conhecida por Jacquette...

— O senhor não gosta dela?

— Por que me pergunta isso?

— Ela me deu a impressão de não gostar do senhor.

— Ela não gosta de ninguém, a não ser do meu tio. Se lhe coubesse decidir, jamais pessoa alguma seria admitida no apartamento.

— O senhor a julga capaz de tê-lo matado? Mazeron olhou-o com espanto.

— Matá-lo? Jacquette?

A idéia, obviamente, parecera-lhe ridícula. E, no entanto, um momento depois a reconsiderava.

— Mas não... Não é possível...

— O senhor hesitou.

— Por causa dos ciúmes dela...

— Quer dizer que ela amava seu tio?

— Não foi sempre uma velha...

— Pensa que teriam sido, um dia...

— É provável. Mas não gostaria de jurá-lo... Com um homem como meu tio, é difícil dizer... O senhor viu as fotografias de Jacquette quando moça?

— Não vi nada, ainda...

— Pois verá... É tudo muito complicado... Especialmente acontecendo neste momento...

— O que quer dizer com isso?

Alain Mazeron olhou Maigret com certo fastio e suspirou:

— Vejo que não sabe mesmo de nada.

— E que coisas deveria saber?

— É o que me pergunto... A história é tediosa... O senhor não encontrou as cartas?

— Mal comecei minha investigação.

— Hoje é quarta-feira, não é? Maigret fez que sim com a cabeça.

— O dia do funeral.

— Funeral de quem?

— Do príncipe de V... O senhor entenderá, quando ler as cartas.

Haviam chegado à Rue Saint-Dominique justamente quando o carro da polícia saía. Moers fez um aceno de mão para Maigret.

 

— Em que pensa o senhor, chefe? — disse Janvier. E surpreendeu-se com o efeito produzido por essa pergunta banal, que propôs simplesmente para quebrar um silêncio que já se fazia incômodo. Teve a impressão de que as palavras não penetravam no cérebro de Maigret, que eram apenas sons que ele precisava ordenar primeiro, antes que tivessem sentido.

O inspetor-chefe olhou para seu companheiro com grandes olhos vagos e um certo ar de embaraço, como se tivesse deixado escapar um segredo.

— Estou pensando nessa gente — murmurou.

Obviamente não falava dos que almoçavam em torno deles, naquele restaurante da Rue de Bourgogne, mas dos outros, desses de quem nunca tinha ouvido falar antes, e cujas vidas secretas tinha por tarefa descobrir agora.

Toda vez que comprava um terno, um sobretudo ou um par de sapatos, Maigret usava-os primeiro à noite, quando ia dar um passeio com a mulher ou quando ia com ela ao cinema.

— Preciso acostumar-me a eles — dizia, quando Mme Maigret zombava dele afetuosamente.

Quando mergulhava num novo caso, acontecia a mesma coisa. Os outros não se davam conta disso, devido à sua silhueta maciça ou à calma expressão do seu rosto — que interpretavam como autoconfiança. Na verdade, ele sempre passava por uma fase prolongada de hesitação, desconforto, timidez até.

Tinha de acostumar-se a um cenário que lhe era pouco familiar, a uma casa, a uma certa maneira de viver, a gente com hábitos peculiares, maneira própria de ver as coisas, de exprimir-se.

Com determinadas categorias de seres humanos, isso era relativamente fácil. Por exemplo, com seus ”clientes” mais ou menos regulares, ou com gente semelhante a eles.

Com outros, tinha sempre de começar do zero, principalmente por não confiar em normas e em idéias feitas.

Nesse novo caso, trabalhava sob uma desvantagem inicial. Acabara de estabelecer contato, nessa manhã, com um mundo não apenas extremamente exclusivo, mas que para ele se situava, talvez por um problema de criação, num nível todo especial.

Durante o tempo em que permaneceu na Rue Saint-Dominique, sentiu que lhe faltava a habitual segurança. Portou-se desajeitadamente. Suas perguntas foram cautelosas, canhestras. Janvier teria notado?

Mesmo que tivesse percebido alguma coisa, não lhe ocorreria que fosse produto de um distante período do passado de Maigret, dos anos passados à sombra de um castelo do qual seu pai foi o intendente e onde, por longo tempo, o conde e a condessa de Saint-Fiacre tinham sido, a seus olhos, criaturas de uma outra espécie.

Para almoçar, os dois homens escolheram o restaurante da Rue de Bourgogne por causa do seu terraço, e logo perceberam que a clientela consistia principalmente em funcionários dos ministérios vizinhos, quase todos dos escritórios do primeiro-ministro. Havia também uns poucos fregueses de uniforme, que deviam pertencer ao Ministério da Guerra.

Não eram escriturários comuns. Todos tinham, pelo menos, nível de chefe de seção, e Maigret pasmava com a juventude deles. Também sua imensa autoconfiança causava-lhe espécie. Da maneira como falavam e se portavam, era evidente que estavam seguros de si. Alguns o reconheceram, trocaram comentários em voz baixa. E Maigret se aborreceu com os olhares de que era alvo, carregados de intenção e de ironia.

Será que no Quai des Orfèvres’ os funcionários com autoridade davam essa mesma impressão de donos da verdade?

Era nisso que pensava quando Janvier o arrancou de seu devaneio. Pensava naquela estranha manhã, na Rue Saint-Dominique. No morto, esse conde de Saint-Hilaire, embaixador por tantos anos, que acabava de ser assassinado com a idade de setenta e sete anos. Em Jacquette Larrieu, com seus olhinhos fixos, que penetravam no mais fundo do seu ser enquanto o escutava, de cabeça um pouco virada para o lado, a observar cada movimento dos lábios dele. E, finalmente, no pálido e flácido Alain Mazeron, sozinho na loja da Rue Jacob, metido entre espadas e armaduras, e a quem Maigret não pôde classificar em nenhuma categoria conhecida.

Quais tinham sido mesmo os termos usados naquele artigo da Lancet? Não conseguia lembrar-se. Era alguma coisa sobre o fato de que o mestre-escola, o romancista e o detetive se acham em melhor posição para entender as pessoas que um doutor ou um psiquiatra.

Por que teriam posto o detetive no fim, depois

do mestre-escola e, principalmente, do romancista?

Isso o aborrecia ligeiramente. E ansiava por

 

Pela qual é conhecida a central de polícia, por se situar na av desse nome. (N. do E.)

 

desmentir o autor do artigo.

O almoço começou com aspargos, e agora já tinham passado à arraia na manteiga. O céu por cima da rua estava ainda tão azul como antes, e as mulheres que passavam usavam os mesmos vestidos de cores alegres.

Antes de se decidirem a ir comer, Maigret e Janvier tinham passado uma hora e meia no apartamento do morto, que já lhes era, a essa altura, um pouco mais familiar.

O cadáver foi levado para o necrotério, onde o dr. Tudelle ocupava-se do post-mortem. O pessoal da Justiça e da polícia já tinha ido embora. Com um suspiro de alívio, Maigret tinha aberto cortinas e venezianas, deixando a luz do sol entrar nos aposentos, restituindo à mobília e demais objetos seu aspecto costumeiro.

O inspetor-chefe não se sentia tolhido com o fato de ter Jacquette e o sobrinho nos seus calcanhares, a observar cada um de seus gestos, de suas expressões faciais; de vez em quando, virava-se com naturalidade para eles e perguntava-lhes alguma coisa.

Sem dúvida surpreendiam-se vendo-o ir e vir por tão longo tempo, sem olhar coisa nenhuma em particular, como se estivesse a inspecionar um apartamento para alugar.

O escritório que lhe parecera tão antiquado pela manhã, à luz artificial, fascinava-o, e agora sentia ao voltar para lá um secreto prazer. Era, sem dúvida, um dos mais deliciosos aposentos que jamais tinha visto.

O pé-direito era alto, e recebia luz de uma porta-janela, que abria para uma pequena escada de três degraus, além dos quais se descobria, com alguma surpresa, um gramado impecável, uma grande tília e um mundo de pedras.

Quem tem acesso ao jardim? — perguntou, olhando para as janelas dos outros apartamentos

acima.

A resposta foi dada por Mazeron.

— Meu tio.

— E nenhum outro inquilino?

— Não. O edifício lhe pertencia. Nasceu nesta casa. Seu pai, que era ainda muito rico, ocupava o andar térreo e o primeiro. Quando ele morreu, meu tio, que já era órfão de mãe, reservou este apartamento e o jardim para seu uso exclusivo.

O detalhe, por pequeno que fosse, era significativo. Não era comum em Paris que um homem de setenta e sete anos vivesse na casa em que nasceu.

— E o que acontecia quando estava fora do país como embaixador?

— Fechava o apartamento e abria-o de novo quando vinha de férias. Ao contrário do que o senhor poderia supor, o edifício não lhe rendia quase nada. Os inquilinos, na maior parte, estão aqui há tanto tempo que pagam aluguéis irrisórios. E a tal ponto que, em certos anos, meu tio ainda era obrigado a tirar dinheiro do próprio bolso para obras de conservação e pagamento de impostos.

Não havia muitos quartos no apartamento. O escritório fazia as vezes de sala de estar. Ao lado ficava a de jantar, em frente à cozinha. Dando para a rua havia um quarto de dormir e um banheiro.

— Onde dorme a senhora? — perguntou Maigret a Jacquette.

A governanta o fez repetir a pergunta, e ele começou a pensar que se tratava de uma mania dela.

— Atrás da cozinha.

Com efeito, havia atrás da cozinha uma espécie de alcova, com uma cama de ferro, um guarda-roupa e uma pia. Um grande crucifixo de ébano pendia por cima de uma pia de água benta, adornada com um ramo de buxo.

— O conde de Saint-Hilaire tinha religião?

— Jamais faltava à missa aos domingos, mesmo na Rússia.

O que mais o impressionava era uma harmonia sutil, uma distinção, que teria dificuldade em definir. As diversas peças da mobília eram todas de estilos diferentes, e nenhum esforço tinha sido feito para que constituíssem um conjunto. E cada aposento era, assim mesmo, belo por si. Cada um apresentava a mesma patina, a mesma personalidade.

O escritório estava quase inteiramente forrado de livros encadernados. Outros livros, de capa amarela ou branca, haviam sido dispostos em prateleiras no corredor.

— A janela estava fechada quando a senhora encontrou o corpo?

— Foi o senhor quem a abriu. Eu não toquei sequer nas cortinas.

— E a janela do quarto de dormir?

— Também estava fechada. O senhor conde era muito sensível ao frio.

— Quem tinha a chave do apartamento?

— Ele e eu. Ninguém mais.

Janvier tinha interrogado o porteiro. A pequena porta recortada na porta principal ficava aberta até a meia-noite. O porteiro nunca se deitava antes dessa hora. Algumas vezes ia até o quarto de dormir, atrás de sua guarita, de onde não via necessariamente quem entrava e saía.

Na véspera, não tinha observado nada de extraordinário. A casa era respeitável, repetia com insistência. Estava ali há trinta anos, e a polícia jamais havia tido ocasião de pôr os pés na propriedade.

Era cedo demais ainda para reconstituir o que tinha acontecido na tarde anterior ou durante a noite. Tinha de esperar pelo relatório do médico-legista, depois pelo de Moers e seus auxiliares.

Uma coisa parecia-lhe clara: Saint-Hilaire não se deitara. Vestia calças cinza-escuras listradas, camisa branca levemente engomada e gravata-borboleta com bolinhas. E, como de hábito quando ficava em casa, usava seu robe de veludo preto.

— Costumava ficar de pé até tarde?

— Depende do que o senhor entenda por tarde.

— A que horas ia habitualmente para a cama?

— Deitava-se quase sempre antes de mim.

Era de enfurecer. As perguntas mais corriqueiras chocavam-se contra a desconfiança da velha empregada, que muito raramente lhe dava resposta direta.

— A senhora não o ouviu deixar o escritório?

— Vá até o meu quarto e compreenderá que de lá posso ouvir apenas o elevador, que fica do outro lado da parede.

— Como o embaixador passava suas noites?

— Lendo. Escrevendo. Corrigindo as provas de seus livros.

— Ia deitar-se, digamos, à meia-noite?

— Talvez um pouco antes, ou um pouco depois, dependendo do dia.

— E quando ia deitar-se não chamava nunca a senhora, nunca precisava de seus serviços?

— Para quê?

— Poderia querer uma bebida quente antes de dormir, ou talvez...

— Ele nunca tomava nada quente à noite. E se quisesse alguma bebida alcoólica tinha seu bar.

— O que tomava habitualmente?

— As refeições, clarete. E, à noite, um conhaque.

Tinham encontrado um copo vazio em cima da secretária, e os peritos o levaram para verificar se revelaria impressões digitais.

Se o ancião recebeu um visitante, não lhe ofereceu bebida, ao que parecia, pois nenhum outro copo foi achado no estúdio.

— O conde de Saint-Hilaire tinha armas de fogo?

— Carabinas de caça. Estão no armário, ao fundo do corredor.

— Era bom atirador?

— Às vezes, quando convidado, caçava um pouco em algum castelo.

— Não tinha pistola ou revólver?

De novo ela se fechou em copas, como antes, de pupilas apertadas como uma gata. E seu olhar velou-se, imóvel e sem expressão.

— A senhora ouviu minha pergunta?

— O que foi que me perguntou? Maigret repetiu a pergunta.

— Acho que tinha um revólver.

— De cilindro?

— O que quer dizer com cilindro? Ele tentou explicar.

— Não, não era arma de cilindro. Era uma arma chata, azulada, de cano curto.

— E onde guardava essa automática?

— Não sei. Não a vejo há muito tempo. Da última vez que a vi estava na cômoda.

— No quarto de dormir do embaixador?

Ela mostrou-lhe a gaveta em questão, que continha apenas lenços, suspensórios e ligas de várias cores. As outras gavetas estavam cheias de roupabranca, cuidadosamente dobrada, camisas, cuecas, lenços e, no fundo, camisas sociais de gala.

— Quando viu essa automática pela última vez?

Há alguns anos.

Há quantos anos aproximadamente?

. Não sei... O tempo passa tão depressa...

. Nunca viu a arma em outro lugar? Sempre

na cômoda?

— Não. Às vezes ele a punha numa das gavetas da escrivaninha. Eu não abria aquelas gavetas. De qualquer maneira, estavam habitualmente trancadas à chave.

— A senhora sabe por quê?

— Por que as pessoas trancam móveis?

— Ele suspeitava da senhora?

— Naturalmente que não.

— De quem então?

— O senhor jamais tranca nada?

Havia uma chave, certamente, uma chave de bronze, muito decorativa, que abria as gavetas da escrivaninha estilo Império. O conteúdo nada revelou, exceto que Saint-Hilaire, como todo mundo, acumulava pequenos objetos inúteis, carteiras velhas, por exemplo, duas ou três piteiras orladas de âmbar, piteiras que não eram usadas há muito tempo, um cortador de charutos, tachinhas e clipes de papéis, e lápis, muitos lápis, de todas as cores imagináveis.

Outra gaveta continha papel de cartas gravado com uma pequena coroa, envelopes, cartões de visita, pedaços de barbante cuidadosamente enrolados, um vidro de cola e um canivete de ponta quebrada.

A treliça de cobre das portas de uma das estantes era forrada de pano verde. Dentro, não havia livros, porém maços de cartas, caprichosamente amarradas com cordão. Cada maço tinha um rótulo e uma data.

— Era sobre isso que falava há pouco? — perguntou Maigret a Alain Mazeron.

O sobrinho concordou com um aceno de cabeça.

— Sabe quem escreveu essas cartas? O homem assentiu de novo.

— Foi seu tio quem lhe falou nisso?

— Não me lembro que ele as tenha mencionado em conversa comigo. Mas todo mundo sabe da existência delas.

— O que quer dizer com ”todo mundo”?

— Nos círculos diplomáticos, na sociedade...

— O senhor teve ocasião de ler alguma dessas cartas?

— Nunca.

— A senhora pode deixar-nos e ir fazer o seu almoço — disse Maigret a Jacquette.

— Como pode pensar que vou comer num dia desses!

— Deixe-nos assim mesmo. Poderá certamente encontrar o que fazer.

Era visível que ela relutava em deixá-lo sozinho com o sobrinho. Por várias vezes, Maigret interceptara os olhares que lançava sub-repticiamente a Mazeron e em que transparecia algo muito parecido ao ódio.

— Entendeu?

— Sei que não é da minha conta, mas...

— Mas o quê?

— A correspondência de uma pessoa é sagrada...

— Mesmo se puder servir para descobrir um assassino?

— As cartas não o ajudarão em nada.

— Talvez eu venha a precisar da senhora muito em breve. Enquanto isso...

Olhou significativamente para a porta, e Jacquette, com relutância, retirou-se. Como teria ficado indignada se pudesse ver Maigret tomar o lugar do Conde de Saint-Hilaire atrás da mesa na qual Janvier arranjava ordenadamente os maços de cartas!

Sente-se — disse Maigret a Mazeron. — O senhor sabe de quem são essas cartas?

— Sim. O senhor verá que todas estão assinadas Isi.

— E quem e Isi?

— Isabelle de V... Meu tio sempre a chamou de Isi...

— Era amante dele?

Por que pareceu a Maigret que Mazeron fez uma cara de sacristão, como se sacristães tivessem um tipo especial de cara? Mazeron também, tal como Jacquette, deixava que algum tempo se passasse antes de responder às suas perguntas.

— Parece que nunca foram amantes.

Maigret desatou o cordel de um pacote de cartas amarelecidas, datadas de 1914, de poucos dias depois do começo da guerra.

— Que idade tem a princesa agora?

— Espere um momento, enquanto faço meus cálculos. Ela é cinco ou seis anos mais moça que meu tio... Deve ter, então, entre setenta e um e setenta e dois...

— Vinha aqui sempre?

— Nunca a vi aqui. E não creio que algum dia tenha posto os pés nesta casa. Ou, se pôs, foi antes...

— Antes do quê?

— Do seu casamento com o príncipe de V...

— Ouça, M. Mazeron. Gostaria que me contasse essa história com a maior clareza possível.

— Isabelle era filha do duque de S...

Era uma experiência curiosa para Maigret lidar com nomes que aprendera na escola em lições de história da França.

— Então?

— Meu tio tinha vinte e seis anos de idade quando a conheceu, por volta de 1910. Para ser mais exato, ele a conheceu quando menina, no castelo do duque, onde passava às vezes as férias. Depois, por muito tempo, não teve notícias dela. E, quando se encontraram de novo, apaixonaram-se um pelo outro.

— Seu tio já tinha perdido o pai?

— Dois anos antes.

— Havia ainda alguma coisa da fortuna da família?

— Só esta casa e uma pequena propriedade na Sologne.

— Por que não se casaram?

— Não sei. Possivelmente porque meu tio começava sua carreira no serviço diplomático e acabava de ser designado para a Polônia como segundo ou terceiro secretário de embaixada.

— Foram noivos?

— Não.

Maigret sentiu um certo constrangimento folheando as cartas espalhadas à sua frente. Ao contrário do que supôs, não eram cartas de amor. A moça que as escrevera contava simplesmente, num estilo vivo e ligeiro, os acontecimentos do seu dia-adia e a vida da sociedade parisiense.

Não empregava a forma familiar ”tu” com o seu correspondente, a quem chamava seu ”grande amigo”; assinava-se invariavelmente ”sua fiel Isi”.

— O que aconteceu depois?

— Antes da guerra, refiro-me à guerra de

1914, em 1912, se não estou enganado, Isabelle desposou o príncipe de V...

— Por amor?

— Absolutamente não. Conta-se mesmo que lhe teria dito isso, cara a cara. Tudo o que sei foi de ouvir meu pai e minha mãe conversarem a respeito da história quando eu era criança.

— Sua mãe era irmã do conde de Saint-Hilaire?

— Sim.

Ela não casou, então, na sua classe?

Casou com meu pai, que era um pintor de certa reputação àquele tempo. Está quase completamente esquecido hoje em dia, mas tem ainda uma tela no Museu do Luxemburgo. Mais tarde, para ganhar a vida, viu-se obrigado a tornar-se restaurador de quadros.

Nessa parte da manhã, Maigret tinha a impressão de arrancar cada fragmento da verdade quase que à força. Não conseguia obter uma impressão nítida. As personagens pareciam-lhe, todas, irreais, como que saídas de um romance do século XIX.

— Se estou entendendo corretamente, Armand de Saint-Hilaire não casou com Isabelle porque não era bastante rico?

— Acho que sim. Foi o que sempre me disseram, e é o que julgo mais próximo da verdade.

— E ela se casou com o príncipe de V., a quem não amava, pelo que me diz o senhor, e foi suficientemente honesta para dizer-lhe isso.

— Foi um arranjo entre duas grandes famílias, entre dois grandes nomes.

Pois não tinha sido o mesmo, outrora, com os Saint-Fiacres? E, quando se tratava de escolher uma esposa para o filho, não tinham eles se voltado para o seu bispo em busca de auxílio?

— O casal teve filhos?

— Um filho, depois de casados há vários anos.

— Por onde anda?

— O príncipe Philippe deve ter quarenta e cinco anos hoje. Casou com Mlle de Marchangy e vive quase o ano todo no seu castelo em Genestoux, perto de Caen, onde é dono de um haras e de mais de uma fazenda. Tem cinco ou seis filhos.

— Por cinqüenta anos, aproximadamente, a Julgar pela correspondência, Isabelle e seu tio continuaram a corresponder-se um com o outro. Praticamente todos os dias trocavam cartas de várias páginas. O marido não sabia disso?

— Dizem que sabia.

— O senhor o conheceu?

— Só de vista.

— E que espécie de homem era?

— Um homem de sociedade e um colecionador.

— Colecionador de quê?

— De medalhas, de caixas de rapé...

— Freqüentava muito a sociedade?

— Recebia, uma vez por semana, na casa da Rue de Varenne e, no outono, em seu castelo de Saint-Sauveur-en-Bourbonnais.

Maigret mostrava uma cara comprida. Por um lado, sabia que tudo isso era, provavelmente, verdade, mas ao mesmo tempo as pessoas envolvidas na história não lhe pareciam ter a menor consistência.

— A Rue de Varenne fica apenas a cinco minutos a pé daqui — observou.

— Mesmo assim, estou pronto a jurar que, por cinqüenta anos, meu tio e a princesa jamais se encontraram.

— Embora se escrevessem todo dia?

— O senhor tem as cartas à sua frente.

— E o marido sabia tudo sobre a correspondência?

— Isabelle não teria jamais concordado em mantê-la às escondidas.

Maigret quase se sentiu tentado a perder a calma, como se alguém estivesse zombando dele. E, todavia, as cartas eram reais, ali estavam, defronte dos seus olhos, cheias de passagens reveladoras:

”...esta manhã, às onze horas, o padre Gauge me fez uma visita, e falamos muito a seu respeito. É um consolo para mim saber que os laços que nos unem são da espécie que os homens não têm o poder de quebrar... ”

— A princesa é muito devota?

— Mandou consagrar uma capela na sua casa, Rue de Varenne.

— E o marido?

— Ele também era um bom católico.

— Tinha amantes?

— Éo que dizem.

Outra carta, de maço mais recente:

”... devo ser grata a Hubert toda a vida por haver compreendido... ”

— Suponho que esse ”Hubert” seja o príncipe de V...?

— Sim. Foi oficial de estado-maior na Escola de Cavalaria de Saumur. Até a semana passada, quando teve uma queda, costumava cavalgar toda manhã no Bois de Boulogne.

— Que idade tinha?

— Oitenta.

No caso só havia gente velha, cujo relacionamento não lhe parecia humano.

— O senhor está seguro de tudo o que me contou, M. Mazeron?

— Se duvida da minha palavra, interrogue qualquer outra pessoa.

”Qualquer outra pessoa”, num mundo de que Maigret tinha apenas uma nebulosa idéia, certamente imperfeita!

— Continuemos — disse, com um suspiro de fastio. — Esse é o príncipe que, segundo me disse, acaba de falecer?

— Morreu domingo de manhã, sim. Saiu em todos os jornais. Morreu das conseqüências da queda do cavalo, e o funeral está sendo realizado neste momento em Sainte-Clotilde.

— Ele nunca teve nada a ver com seu tio?

— Não que eu saiba.

— E o que aconteceria se se encontrassem numa recepção qualquer?

— Imagino que evitavam freqüentar os mesmos salões e os mesmos clubes.

— Odiavam-se os dois?

— Não creio.

— Seu tio lhe falou alguma vez do príncipe?

— Não. Jamais mencionou seu nome.

— E o de Isabelle?

— Contou-me, há muito tempo, que eu era o seu herdeiro universal, e que lamentava infinitamente que eu não levasse o seu nome. Entristecia-o também que eu só tivesse filhas e nenhum filho varão. Se tivesse tido um filho, acrescentou, ele pediria um decreto que lhe permitisse adotar o sobrenome de Saint-Hilaire.

— Então, o senhor é o único herdeiro do senhor seu tio?

— Sou. Mas ainda não terminei o que estava lhe dizendo. Indiretamente, e sem mencionar nomes, falou-se nesse dia da princesa. Ele disse qualquer coisa como: ”Ainda espero casar-me um dia, Deus sabe quando, mas será tarde demais para ter filhos”.

— Se compreendi bem o que me expôs, eis em resumo a situação: por volta de 1910, o senhor seu tio conheceu uma garota, a quem amou e a qual o amou também. Mas não se casaram porque o conde de Saint-Hilaire estava virtualmente sem vintém.

— Correto.

— Dois anos depois, quando seu tio servia numa embaixada em Varsóvia ou em outro lugar qualquer, a jovem Isabelle fez um casamento de conveniência e tornou-se princesa de V... Teve um filho, de modo que não foi um casamento não consumado. O casal deve ter vivido como marido e mulher, pelo menos naquele tempo.

— Sim.

— A não ser que Isabelle e seu tio se tenham visto de novo e dado livre curso à sua paixão...

— Não.

— Como pode estar tão certo disso? Pensa que nesse mundo especial...

— Digo que não porque meu tio passou toda a Primeira Guerra Mundial fora da França; quando voltou, o menino, Philippe, tinha dois ou três anos de idade.

— Muito bem. Os namorados se encontraram

outra vez...

— Não.

— Nunca mais se viram?

— Eu já lhe disse isso.

— Durante cinqüenta anos, então, eles se corresponderam praticamente todo dia. E um dia seu tio falou-lhe de um casamento que ainda se poderia realizar em futuro mais ou menos distante. O que significa, imagino, que ele e Isabelle esperavam pela morte do príncipe para casar-se.

— Imagino que sim.

Maigret enxugou a testa e olhou a grande tília pela porta-janela, como se precisasse retomar contato com uma realidade mais rotineira.

— Agora chegamos ao epílogo. Dez ou doze dias atrás, a data exata não interessa, o príncipe, de oitenta anos, foi projetado da sela pelo cavalo no Bois de Boulogne. Na manhã de domingo, morreu em conseqüência da queda. Ontem, terça-feira, quer dizer, dois dias mais tarde, seu tio foi assassinado no seu escritório. Assim, dois velhos, que por cinqüenta anos esperavam pelo tempo em que lhes seria possível unir-se finalmente, não se unirão afinal de contas. Não é assim? Obrigado, M. Mazeron. Agora, queira ter a bondade de dar-me o endereço de sua mulher.

— Rue de la Pompe, 23, Passy.

— O senhor sabe o nome do advogado de seu tio?

— Seu advogado é o dr. Aubonnet, na Rue de Villersexel.

De novo, poucas ruas adiante. Toda essa gente, com exceção de M. Mazeron, vivia praticamente como vizinhos, num bairro de Paris pouco familiar a Maigret.

— O senhor tem licença de ir, agora. Imagino que poderei encontrá-lo sempre, na sua loja, não?

— Não estarei lá esta tarde. Tenho de tomar providências para o funeral e os anúncios da morte de meu tio. Antes de mais nada, pretendo entrar em contato com o dr. Aubonnet.

Mazeron despediu-se com relutância, e Jacquette, surgindo de súbito na cozinha, foi fechar a porta para ele.

— O senhor precisa de mim no momento?

— Não agora. É hora do almoço. Estaremos de volta à tarde.

— Sou obrigada a ficar aqui?

— Para onde iria?

Ela olhou para ele como se não tivesse entendido.

— Perguntei aonde gostaria de ir...

— Eu? A lugar nenhum. Para onde iria, na verdade?

Por causa da atitude dela, Maigret e Janvier não saíram logo. Maigret telefonou ao Quai des Orfèvres.

— Lucas? Você tem alguém aí que possa vir por uma hora ou duas à Rue Saint-Dominique? Torrence? Excelente. Diga-lhe que tome um carro...

Assim, enquanto os dois homens almoçavam, Torrence não fez mais do que cochilar na cadeira de braços do conde de Saint-Hilaire...

Tanto quanto puderam verificar, nada fora roubado no apartamento. Ninguém forçou a casa. O assassino entrara pela porta. E, como Jacquette jurava não ter admitido ninguém, eram forçados a concluir que o conde abrira a porta pessoalmente ao seu visitante.

Esperava-o? Ou não? Não lhe deu de beber. Tinham encontrado um só copo na escrivaninha, junto da garrafa de conhaque.

Saint-Hilaire teria conservado o robe para receber uma senhora? Provavelmente não, a julgar pelo pouco que sabiam dele.

Então foi um homem a pessoa que o visitou. E o conde não suspeitava dele, uma vez que se sentou de novo defronte das provas tipográficas que estava corrigindo minutos antes.

— Você não observou se havia pontas de cigarro no cinzeiro?

— Acho que não havia.

— Nem pontas de charuto?

— Não.

— Aposto como esta noite receberemos um telefonema do jovem Cromières.

Esse era outro que tinha o dom de enraivecer Maigret.

— Os funerais do príncipe já devem ter terminado a essa hora, não?

— Provavelmente.

— Então, Isabelle estará de volta à Rue de Varenne, com o filho, a nora e os netos.

Houve um silêncio. Maigret franziu o cenho como se não pudesse tomar uma decisão.

— O senhor vai procurá-los? — perguntou Janvier, com alguma ansiedade na voz.

— Não... Não gente assim... Você quer café? Garçom! Dois cafés.

Podia-se jurar que ele estava zangado com todo mundo, até com os funcionários mais ou menos importantes que comiam nas mesas vizinhas e o olhavam zombeteiramente.

 

Logo que viraram a esquina da Rue Saint-Dominique, Maigret os enxergou — e deixou escapar um gemido. Havia uma boa dúzia deles, repórteres e fotógrafos, em frente à casa do conde de Saint-Hilaire. Alguns tinham se sentado na calçada, com as costas contra a parede, como que preparados para uma longa vigília.

Eles, por seu lado, reconheceram-no à distância e correram a seu encontro.

— Isso vai certamente alegrar nosso querido M. Cromières! — resmungou Maigret.

Era inevitável. Logo que um caso chegava ao conhecimento de uma delegacia, havia sempre alguém para dar a notícia à imprensa.

Os fotógrafos, que tinham dúzias de fotografias dele nos seus arquivos, tiravam outras novas, como se ele parecesse diferente da véspera ou de outro dia qualquer. Os repórteres começaram a fazer perguntas. Essas, felizmente, mostravam que eles sabiam menos sobre o caso do que seria de temer.

— Foi suicídio, inspetor-chefe?

— Desapareceu algum documento?

— Por enquanto, senhores, não tenho nada a dizer.

— Podemos supor que se trata de um caso político?

Caminhavam à frente dele, de costas, com seus blocos de anotações nas mãos.

— Quando o senhor fará uma declaração?

— Talvez amanhã, talvez daqui a uma semana. E cometeu o erro de acrescentar:

— Talvez nunca. Procurou corrigir logo o lapso.

— Estou brincando, naturalmente. Agora, tenham a bondade de nos deixar trabalhar em paz.

— É verdade que ele estava escrevendo memórias?

— Tanto é verdade que dois volumes já foram publicados.

Um policial uniformizado estava de guarda à porta. Momentos depois, chamado pela campainha de Maigret, Torrence, em mangas de camisa, acorreu para abrir-lhe a porta.

— Tive de chamar um guarda, chefe. Eles entraram no edifício e divertiam-se tocando a campainha a cada cinco minutos.

— Nada de novo? Nenhum telefonema?

— Vinte ou trinta. Dos jornais.

— Onde está a velha?

— Na cozinha. Cada vez que o telefone toca, ela se precipita, na esperança de chegar antes de mim. Da primeira vez, tentou arrancar-me o fone da mão.

— Ela própria não telefonou a ninguém? Você sabe que há outro aparelho no quarto de dormir?

— Deixei aberta a porta do escritório de modo a poder ouvi-la ir e vir. Ela não esteve no quarto.

— Não saiu?

— Não. Tentou uma vez, disse que desejava comprar pão fresco. Como o senhor não me deu instruções sobre isso, decidi impedi-la. O que faço agora?

— Volte para o Quai.

Por um momento, o inspetor-chefe pensou em ir ele mesmo de volta, e em levar Jacquete, a quem queria interrogar descansadamente. Mas não se sentia preparado para esse interrogatório. Preferia ficar um pouco mais no apartamento e, por fim, seria no próprio escritório de Saint-Hilaire que tentaria fazer a velha empregada falar.

Nesse meio tempo, abriu de par em par a alta janela e sentou-se na cadeira que o conde ocupara. Estendia a mão para um dos maços de cartas quando a porta se abriu. Era Jacquette Larrieu, mais azeda e desconfiada do que nunca.

— O senhor não tem o direito de fazer isso.

— A senhora sabe de quem são essas cartas?

— Não importa que eu saiba ou não. É uma correspondência privada.

— A senhora me faça o favor de voltar para a cozinha ou para o seu quarto.

— Não posso sair?

— Ainda não.

Ela hesitou, à procura de uma resposta cortante, que não encontrou. Por fim, pálida de raiva, deixou o estúdio.

— Janvier, vá buscar-me a fotografia em moldura de prata que vi esta manhã no quarto de dormir.

Maigret não lhe prestara grande atenção de manhã. Demasiadas coisas ainda lhe eram, àquela altura, pouco familiares. E ele tinha por princípio não formar uma opinião precipitadamente. Desconfiava das primeiras impressões.

Durante o almoço, no restaurante, tinha se lembrado de súbito de uma gravura que vira anos a fio no quarto de dormir dos seus pais. Sua mãe, provavelmente, a escolhera e pendurara lá. A moldura era branca, no estilo do começo do século. A litografia mostrava uma jovem à beira de um lago, com um vestido de princesa, um largo chapéu de plumas de avestruz na cabeça e sombrinha na mão. A expressão do seu rosto era de melancolia, como a paisagem, e Maigret tinha certeza de que sua mãe considerava o quadro altamente poético. Pois não era essa a poesia da época?

A história de Isabelle e do conde de Saint-Hilaire recordava-lhe essa estampa tão claramente que podia até ver o papel de parede, de pálidas listras azuis, do quarto de seus pais.

Agora, na moldura de prata que notou pela manhã no quarto de dormir do conde, e que Janvier lhe trouxera, descobria a mesma figura, um vestido no mesmo estilo, e idêntica melancolia.

Não tinha dúvida de que se tratava de uma fotografia de Isabelle por volta de 1910, quando o futuro embaixador a conhecera.

Não era muito alta, e parecia ter uma cintura delgada, possivelmente em virtude do espartilho que usava. O busto, como então se dizia, era farto. Tinha feições delicadamente cinzeladas, lábios finos, olhos claros, azuis ou cinzentos.

— O que devo fazer, chefe?

— Sente-se.

Precisava ter alguém ali, como que para conferir as próprias impressões. À sua frente, os maços de cartas estavam dispostos em ordem cronológica, e ele tomou ano por ano, não lendo tudo, naturalmente, porque isso teria levado vários dias, mas uma passagem aqui e ali.

”Meu bom amigo... Querido amigo... Doce amigo...”

Mais tarde, provavelmente por sentir-se em maior harmonia com o seu correspondente, escrevia simplesmente: ”Amigo”.

Saint-Hilaire tinha conservado os envelopes, que traziam selos de vários países. Isabelle viajava muito. Por longo tempo, por exemplo, suas cartas de agosto eram escritas de Baden-Baden ou de Marienbad, as estações de água aristocráticas daquele tempo.

Havia também cartas do Tirol, e muitas da Suíça e de Portugal. Ela contava com vivacidade, e satisfeita de si mesma, os acontecimentos triviais que enchiam seus dias e fazia descrições engraçadas das pessoas que ia conhecendo. Muitas vezes referia-se a elas apenas pelo sobrenome, algumas vezes dava uma simples inicial.

Maigret levou algum tempo para orientar-se. Com a ajuda do selo no envelope e do contexto da referência, gradualmente conseguiu decifrar esses enigmas.

Maria, por exemplo, era uma rainha ainda reinante àquele tempo, a rainha da Romênia. Era de Bucareste, onde se hospedava na corte com o pai, que Isabelle escrevia. Um ano mais tarde, estava na corte da Itália.

”Meu primo H...”

O nome — o do príncipe de Hesse — aparecia completo em outra carta, e havia muitos outros, todos primos em primeiro e segundo grau.

Durante a Primeira Guerra Mundial, ela escrevia por intermédio da embaixada francesa em Madri.

”Meu pai me fez ver ontem que é necessário que eu case com o príncipe de V... que você encontrou várias vezes em nossa casa. Pedi-lhe três dias para refletir sobre o assunto e, nesse prazo, chorei muito...”

Maigret fumava seu cachimbo, lançava um olhar ocasional ao jardim, à folhagem da tília, e passava as cartas, uma a uma, a Janvier, estudando as reações dele.

Sentia uma vaga irritação em face dessas evocações, que lhe pareciam tão irreais. Quando criança, não tinha olhado com a mesma espécie de mal-estar para a moça do lago, no quarto dos seus pais? Aos seus olhos, ela era uma criatura irreal, impossível, aureolada de falsa poesia.

E todavia, aqui, num mundo que evoluiu, que endureceu consideravelmente, encontrava, numa pessoa viva, um quadro em tudo semelhante.

”Esta tarde, tive uma longa conversa com Hubert, e fui absolutamente franca. Ele sabe que amo você, que estamos separados por muitos obstáculos, e que apenas cedo aos desejos de meu pai...”

Havia apenas uma semana que Maigret tinha tratado de um crime simples, brutal, de paixão. O caso de um amante que esfaqueara o marido da mulher que ele amava, depois matara também a mulher e, finalmente, tentara, sem êxito, abrir as próprias veias. É verdade que isso ocorrera num bairro humilde, do Faubourg Saint-Antoine.

”Ele concordou em que o nosso casamento permaneça não consumado, e eu por minha parte jurei nunca mais tornar a ver você. Ele o tem em grande consideração e não põe em dúvida o respeito que você sempre teve por mim.”

Havia momentos em que Maigret sentia uma revolta quase física.

— Você acredita nessa história, Janvier? O inspetor também estava perplexo.

— Ela parece sincera...

— Leia esta!

”Eu sei, amigo, que isso vai feri-lo, mas, se lhe pode servir de consolação, saiba que me fere ainda mais...”

Era 1915. Anunciava-lhe que Julien, o irmão do príncipe de V., acabava de ser morto em Argonne, à testa do seu regimento. Uma vez mais, ela tivera uma longa conversa com o marido, que viera a Paris de licença.

Para resumir, o que ela contava ao homem que amava era que teria, agora, de dormir com o príncipe. Não usou esses termos, naturalmente. Não só não havia uma só palavra forte ou chocante na carta, mas o próprio assunto era tratado de maneira quase imaterial.

”Enquanto Julien viveu, Hubert não se importou, sabendo que o irmão teria filhos, e que o nome deV...”

Mas o irmão já não existia. Era, então, dever de Hubert assegurar a continuação da família.

”Passei a noite em oração e, de manhã, fui ver meu confessor...”

O padre concordava com a opinião do príncipe. Não se podia, por uma questão de amor, deixar morrer um nome que, nos últimos cinco séculos, podia ser encontrado em todas as páginas da história da França.

”Compreendi qual era meu dever...”

O sacrifício se consumou, pois nasceu um menino, Philippe. Ela comunicou o nascimento também, e a esse respeito havia uma frase que deu o que pensar a Maigret:

”Graças a Deus, é um menino...”

Não estava dizendo, preto no branco, que se a criança fosse uma menina ela teria de começar tudo de novo?

E se tivesse outra menina, e depois outra...

— Você leu?

— Sim.

Era como se ambos tivessem sido vítimas da mesma sensação desagradável. Estavam ambos acostumados a uma realidade de certo modo crua, e as paixões com que entravam em contato tomavam, via de regra, um curso dramático, uma vez que acabavam sempre no Quai des Orfèvres.

Aqui, ao contrário, era como se tentassem apanhar uma nuvem com a mão. E, quando procuravam entender as personagens, elas permaneciam nebulosas e sem substância como a dama do lago.

Por pouco Maigret não enfiou todas as cartas outra vez na estante de cortinas verdes, resmungando entre dentes:

— Um monte de asneiras.

Ao mesmo tempo, sentia certo respeito, vizinho da emoção. E, como não queria sentir isso, tinha de endurecer o coração.

— Acredita nessa baboseira toda?

Mais duques, príncipes e monarcas destronados encontrados em Portugal. Depois, uma viagem ao Quênia, com o marido. Outra viagem, dessa vez aos Estados Unidos, onde Isabelle se sentia meio perdida. A vida na América era por demais rude para seu gosto.

”Philippe cresce e a cada dia que passa se parece mais com você. Não é miraculoso? Não é como se o Céu nos quisesse recompensar por nosso sacrifício? Hubert também notou isso, percebo pela maneira como olha o menino...”

Hubert, em todo caso, não era mais admitido ao leito conjugai, e não deixou de buscar consolação alhures. Nas cartas, ele já não era Hubert mas H...

”Pobre H... Tem um novo amor e suspeito que ela o esteja fazendo sofrer. Ele emagrece visivelmente e fica mais e mais irritadiço...”

Amores desse tipo ocorriam a cada cinco ou seis meses. De sua parte, nas cartas que escrevia, Armand de Saint-Hilaire não fazia obviamente qualquer tentativa para convencer sua correspondente de que levava uma vida de castidade.

Isabelle escreveu-lhe, por exemplo:

”Espero que as mulheres da Turquia não sejam tão inacessíveis como se diz, nem seus maridos tão ferozes...”

E acrescentava:

”Seja cauteloso, amigo. Toda manhã rezo por você...”

Quando ele foi adido em Havana e, depois, embaixador em Buenos Aires, ela se preocupava com as mulheres de sangue hispânico.

”São tão belas! E eu, tão longe e esquecida, tremo à idéia de que um dia você possa se apaixonar...”

Demonstrava preocupação com a saúde dele.

”Seus furúnculos ainda o incomodam? Nesse calor, seguramente sim... ”

Ela conhecia Jacquette.

”Estou escrevendo a Jacquette para dar-lhe a receita da torta de amêndoas de que você tanto gosta...”

— Não prometeu ao marido nunca mais ver Saint-Hilaire? Pois ouça isto. É de uma carta enviada a este endereço:

”Que inefável ainda que dolorosa alegria foi para mim vê-lo ontem, à distância, no Opera... Gosto de suas têmporas embranquecendo e a discreta barriga dá-lhe um incomparável ar de dignidade... A noite inteira tive orgulho de você... Foi só ao voltar à Rue de Varenne e ao me ver no espelho que senti medo... Como poderia deixar de desapontá-lo? As mulheres ficam murchas depressa, e sou quase uma velha, agora...”

Viam-se, assim, à distância, com relativa freqüência.

”Amanhã, ali pelas três horas, vou dar um passeio com meu filho nos Jardins das Tulherias...”

Saint-Hilaire, por seu lado, passava debaixo das janelas dela em horas combinadas com antecedência.

Quando o menino tinha cerca de dez anos, houve uma referência característica a ele, que Maigret leu em voz alta:

”Philippe, vendo-me ocupada de novo a escrever, perguntou-me com toda a inocência: ’Você está escrevendo ao seu namorado outra vez?’”

Maigret suspirou, enxugou a testa, e atou de novo os maços, um depois do outro.

— Tente pôr o dr. Tudelle na linha. Precisava sentir-se outra vez em terreno firme.

As cartas tinham voltado a seu lugar na estante, e ele se prometeu não mais tocar nelas.

— O doutor ao telefone, chefe...

— Alô? Doutor? Sim, é Maigret falando... Acabou há dez minutos? Não, naturalmente não quero todos os detalhes...

Enquanto ouvia, anotava palavras e símbolos incompreensíveis no bloco de Saint-Hilaire.

— Está seguro disso? Já mandou as balas para Gastine-Renette? Eu lhe telefono mais tarde... Obrigado... A melhor coisa seria mandar o seu relatório diretamente ao magistrado... Isso lhe dará prazer... Obrigado de novo...

Começou a andar de um lado para outro, com as mãos às costas, parando de quando em vez para olhar o jardim, onde um melro mais atrevido saltitava a pouca distância dele.

— O primeiro projétil — explicou a Janvier — foi atirado de frente, praticamente à queima-roupa... É uma bala calibre 7,65 milímetros num IIIvólucro de níquel... Tudelle ainda não é tão experiente quanto o dr. Paul, mas está quase certo de que foi disparada por uma Browing automática... Tem certeza de uma coisa: esse primeiro projétil causou a morte quase instantaneamente. O corpo dobrou-se para a frente e escorregou da cadeira para o tapete...

— Como ele sabe?

— Porque os outros tiros foram disparados de cima.

— Quantos?

— Três. Dois no ventre e um no ombro. Sabendo que as automáticas têm seis balas, ou sete se uma é posta já no cano, imagino por que o assassino terá parado de atirar depois do quarto tiro. Pode ser que a arma tenha emperrado...

Olhou o tapete, que tinha sido limpo sumariamente, mas onde o contorno das manchas de sangue ainda era visível.

— Ou o assassino quis assegurar-se de que a vítima estava bem morta, ou estava em tal estado de excitação que continuou atirando mecanicamente. Ligue-me com Moers, sim?

Tinha ficado muito impressionado, de manhã, com os aspectos incomuns do caso para cuidar pessoalmente de pistas materiais, e deixou tudo com a perícia.

— Moers? Sim... Como vão indo?... Sim, naturalmente... Primeiro, encontrou os cartuchos no escritório? Não?...

Isso era estranho, parecia sugerir que o assassino sabia que não ia ser perturbado. Depois de quatro disparos ruidosos — muito ruidosos, se a arma foi efetivamente uma automática calibre 7,65 — demorou-se a procurar e a recolher os cartuchos pela sala. E haviam sido lançados a certa distância.

— A maçaneta?

— As únicas impressões razoavelmente nítidas são as da empregada.

— O copo de conhaque?

— Tem as impressões do morto.

— A escrivaninha e o resto da mobília?

— Nada, chefe. Quero dizer, não há outras impressões além das suas.

— Fechadura, as janelas?

— As ampliações das nossas fotos não mostram sinais de entrada forçada.

As cartas de Isabelle podiam não ter semelhança com as dos amantes com que Maigret estava habituado a lidar. Mas o crime era de verdade.

Dois detalhes, no entanto, pareciam, à primeira vista, contradizer um ao outro. O assassino continuou atirando no cadáver, num homem que deixara de mover-se e que, com a cabeça esfacelada, apresentava um aspecto horrível. Maigret lembrava-se do cabelo branco, ainda farto, colado ao crânio fendido, um olho que ficou aberto, e um osso que apontava na maçã do rosto rasgada.

O médico-legista tinha dito que, depois do primeiro tiro, o corpo ficara no chão, em frente da cadeira de braços, no lugar onde foi encontrado.

Isso significava que o assassino, que estava de pé, provavelmente do outro lado da escrivaninha, deu-lhe a volta para atirar de novo, duas vezes, três vezes, de cima, de perto, a meio metro de distância, segundo Tudelle.

Tão junto assim, não havia necessidade de fazer mira para atingir um local determinado. Em outras palavras, parecia que ele atirara no tórax e no ventre de propósito.

Não sugeria isso um ato de vingança ou um grau excepcional de ódio?

— Você está seguro de que não há uma arma em lugar nenhum, no apartamento? Você vasculhou tudo?

— Até a chaminé — respondeu Janvier. Maigret também procurou a automática que a

velha empregada tinha mencionado, se bem que em termos um tanto vagos.

— Vá e pergunte ao policial de guarda se não é uma arma calibre 7,65 que ele tem no coldre.

Muitos policiais fardados eram equipados com pistolas desse calibre.

— Peça-lhe que a empreste por um minuto.

E ele também saiu para o corredor, atravessou-o e empurrou a porta da cozinha, onde Jacquette Larrieu estava sentada numa cadeira, muito tesa. Tinha os olhos fechados e parecia dormir. Assustouse com o barulho.

— Queira vir comigo...

— Aonde?

— Ao escritório. Gostaria de fazer-lhe algumas perguntas.

Uma vez na sala, ela olhou em torno, como que para certificar-se de que nada tinha sido mexido.

— Sente-se.

Ela hesitou, pouco acostumada, sem dúvida, a sentar-se nessa sala, na presença de seu patrão.

— Naquela cadeira, por favor...

Ela obedeceu a contragosto, olhando para o inspetor-chefe mais ressabiada do que nunca. Janvier voltou com a pistola na mão.

— Passe-lhe a arma.

Ela encolheu-se ao invés de tomá-la, e abriu a boca para dizer alguma coisa. Mas fechou-a de novo. Maigret poderia jurar que tinha estado a ponto de perguntar:

— Onde o senhor a encontrou?

A pistola fascinava-a. Tinha dificuldade em tirar os olhos dela.

— A senhora reconhece essa arma?

— Como pode esperar que a reconheça? Nunca a examinei detidamente, e não imagino que seja a única da sua espécie.

— A arma do conde era dessa marca, então?

— Creio que sim.

— Do mesmo tamanho?

— Não saberia dizer.

— Pegue-a na mão. É mais ou menos do mesmo peso?

Ela recusou-se a fazer o que pediam.

— Não serviria de nada, uma vez que nunca toquei na outra, que estava na gaveta.

— Pode devolvê-la ao policial, Janvier.

— O senhor não precisa mais de mim?

— Fique onde está, por favor. Suponho que não sabe se seu patrão deu ou emprestou a sua arma a alguém, ao sobrinho, por exemplo, ou a qualquer outra pessoa?

— Como poderia saber? Tudo o que sei é que não vejo essa pistola há muito tempo.

— O conde de Saint-Hilaire tinha medo de assaltantes?

— Claro que não. Nem de assaltantes nem de assassinos. A prova é que, no verão, dormia de janela aberta, embora estejamos no andar térreo. Qualquer pessoa poderia saltar para o quarto dele.

— Não guardava valores em casa?

— O senhor e seus homens sabem melhor do que eu que coisas existem na casa.

— Quando entrou para o serviço do conde?

— Logo depois da guerra de 1914. Ele acabava de voltar do exterior. Seu criado tinha morrido.

— Então, a senhora teria seus vinte anos, na época?

— Vinte e oito.

— Há quanto tempo estava em Paris?

— Há alguns meses. Antes disso, vivia com meu pai, na Normandia. Quando ele faleceu, tive de procurar emprego.

— Tinha algum romance?

— O que foi que perguntou?

— Perguntei se tinha namorados, ou um noivo. Ela o olhou, melindrada.

— Nada do que está pensando.

— E vivia sozinha neste apartamento com o conde de Saint-Hilaire?

— Que mal há nisso?

Maigret não fazia perguntas de maneira lógica, pois nada lhe parecia lógico nesse caso. Passava de um assunto para outro como que às apalpadelas, em busca de um ponto fraco. Janvier, que estava de volta ao aposento, sentara-se junto da porta. Quando acendeu um cigarro e jogou o fósforo no chão, a velha, que nada perdia, chamou-o à ordem.

— O senhor poderia usar um cinzeiro.

— Incidentalmente, seu patrão fumava?

— Fumou por muitos anos.

— Cigarros?

— Charutos.

— E deixou de fumar recentemente?

— Sim, por causa da sua bronquite crônica.

— Mas parecia em excelente estado de saúde. O dr. Tudelle tinha dito a Maigret, ao telefone,

que Saint-Hilaire gozava de uma saúde de ferro.

— Corpo sadio, coração em perfeitas condições, nenhum sinal de esclerose.

Mas certos órgãos tinham sido por demais avariados pelas balas para permitirem um diagnóstico completo.

— Quando entrou para o serviço dele, o conde ainda era quase um jovem.

— Era sete anos mais velho do que eu.

— A senhora sabia que ele estava apaixonado?

— Eu costumava pôr no correio as cartas dele.

— Não tinha ciúmes?

— Por que teria ciúmes?

— Jamais viu aqui neste apartamento a pessoa a quem ele escrevia todos os dias?

— Ela nunca pisou aqui.

— Mas a senhora a viu? Jacquette não respondeu.

— Responda à minha pergunta. Quando o caso chegar aos tribunais a senhora terá de responder a perguntas muito mais embaraçosas e não lhe permitirão calar-se.

Não sei de nada.

. Perguntei-lhe se conhece essa pessoa.

Sim. Ela costumava passar pela rua. Algumas vezes, também, levei cartas para entregar-lhe em

mãos.

— Secretamente?

— Não. Pedia para vê-la e era conduzida até seus aposentos.

— Ela conversava com a senhora?

— Algumas vezes me fazia perguntas.

— A senhora está falando de quarenta anos atrás, imagino?

— Daquele tempo, e mais recentemente também.

— Que espécie de perguntas lhe fazia?

— Em geral sobre a saúde do conde.

— Não sobre as pessoas que vinham aqui?

— Não.

— A senhora acompanhava seu patrão ao exterior?

— A todos os lugares!

— Como adido e, mais tarde, como embaixador, ele tinha de manter uma grande criadagem. Qual era exatamente sua função?

— Eu olhava por ele.

— A senhora quer dizer que não estava no mesmo nível dos outros empregados, que não tinha de ocupar-se de cozinha, limpeza, recepções?

— Eu supervisionava.

— Qual era o seu título? Governanta?

— Eu não tinha um título.

— Ele tinha amantes?

Ela endureceu-se, o olhar mais desdenhoso do lue nunca.

— A senhora foi amante dele?

Maigret teve receio de que a mulher se lançasse sobre ele com as unhas em garras.

— Sei, pela leitura da correspondência dele, que teve numerosos casos.

— Era um direito que lhe assistia; ou não?

— A senhora não se enciumava?

— À vezes tinha de expulsar certas pessoas por não servirem para ele ou por temer que lhe viessem a causar problemas.

— Em outras palavras, a senhora zelava pela vida particular dele.

— Ele era um homem de muito boa fé. Conservava toda a sua ingenuidade de menino.

— E, no entanto, desempenhou suas funções de embaixador com considerável distinção.

— Não é a mesma coisa.

— A senhora jamais o deixou?

— As cartas dizem que deixei?

Foi a vez de Maigret não responder, de insistir:

— Quanto tempo esteve longe dele?

— Cinco meses.

— Quando foi isso?

— Quando ele era adido em Havana.

— Por quê?

— Por causa de uma mulher que insistiu em que ele se livrasse de mim.

— Que espécie de mulher? Silêncio.

— Por que ela não podia suportá-la? Ela vivia com ele?

— Ia vê-lo diariamente, e muitas vezes passava a noite na embaixada.

— Para onde foi a senhora?

— Aluguei um pequeno quarto perto do Prado.

— Seu patrão ia vê-la?

— Não ousava. Costumava apenas telefonar-me, para pedir-me que tivesse paciência. Sabia perfeitamente que aquilo não ia durar. Assim mesmo, comprei minha passagem de volta para a Europa.

Mas não chegou a embarcar?

- Ele foi me buscar na véspera da minha partida.

— A senhora conhece o príncipe Philippe?

— Se o senhor leu realmente as cartas não precisa perguntar-me todas essas coisas. Não deveria ser permitido isso, ler a correspondência de alguém depois de sua morte.

— A senhora não respondeu à minha pergunta.

— Costumava vê-lo quando menino.

— Onde?

— Rue de Varenne. Estava muitas vezes com a mãe.

— A senhora não pensou em telefonar à princesa esta manhã, antes de ir ao Quai d’Orsay?

Ela o encarou sem pestanejar.

— Por que não o fez, se, ao que a senhora mesma diz, serviu por tanto tempo de elemento de ligação entre eles?

— Porque hoje é o dia dos funerais.

— E mais tarde, esta manhã, quando estávamos fora da casa, não esteve tentada a contar-lhe o que aconteceu?

Ela olhou para o telefone.

— Havia sempre alguém no escritório. Bateram à porta. Era o policial de sentinela, na rua.

— Não sei se lhe interessa. Mas pensei que talvez quisesse ver o jornal.

Era a edição antecipada de um vespertino, que devia ter saído há uma hora. Na primeira página, em duas colunas, uma manchete bastante destacada anunciava:

 

MORTE MISTERIOSA DE EMBAIXADOR

O texto era curto:

”Esta manhã, em sua casa da Rue Saint-Dominique, foi encontrado o corpo do conde Armand de Saint-Hilaire, que serviu por muitos anos como embaixador da França em várias capitais, inclusive Roma, Londres e Washington.

Desde sua aposentadoria, há alguns anos, Armand de Saint-Hilaire publicou dois volumes de memórias, e corrigia as provas de um terceiro volume, ao que parece, quando foi assassinado.

O crime foi descoberto esta manhã por uma velha empregada.

Não se sabe ainda qual o motivo do crime”.

Maigret passou o jornal a Jacquette, e olhou, hesitante, para o telefone. Pensava se já teriam lido o jornal na Rue de Varenne ou se alguém dera a notícia a Isabelle.

Como reagiria ela? Ousaria vir pessoalmente? Mandaria o filho pedir notícias? Ou se limitaria a esperar, no silêncio de sua casa, onde, em sinal de luto, as persianas estariam sem dúvida cerradas?

Não deveria ele, Maigret...

Levantou-se, aborrecido consigo mesmo, aborrecido com todo mundo. E foi plantar-se em frente da larga janela, batendo o cachimbo no salto do sapato, para indignação de Jacquette.

 

Para espanto da velha senhora, uma figura ereta na sua cadeira, a voz do inspetor-chefe assumiu um tom que não lhe ouvira ainda. Naturalmente, não era com ela que Maigret falava, mas com um interlocutor invisível, na outra ponta da linha.

— Não, M. Cromières, não fiz qualquer declaração à imprensa, e não me fiz acompanhar de qualquer repórter ou fotógrafo como os ministros gostam de fazer. Quanto à segunda pergunta, não tenho nada de novo a contar-lhe nem qualquer idéia, como disse o senhor. Se descobrir algo, comunicarei imediatamente ao magistrado...

Interceptou um olhar furtivo de Jacquette em direção a Janvier. Parecia pedir que testemunhasse a raiva contida do inspetor-chefe. Tinha um leve sorriso nos lábios, como se dissesse: ”Muito bem. Escute só o seu chefe...”

Maigret levou o inspetor para o corredor.

— Vou dar um pulo até o escritório do advogado. Continue a fazer-lhe perguntas, sem pressioná-la demasiadamente. É preciso agir com jeito. Sabe

o que quero dizer. Talvez você seja mais atraente para ela do que eu.

Era verdade. Se ele tivesse conhecimento, antes de sair naquela manhã, de que teria de haver-se com uma velha solteirona empedernida, levaria consigo o jovem Lapointe ao invés de Janvier. De todos os inspetores da chefatura de polícia, Lapointe era quem tinha o maior sucesso com mulheres de meiaidade. Uma delas lhe tinha dito, na verdade, sacudindo tristemente a cabeça:

”Fico pensando como é que um rapaz de tão boas maneiras pode ter uma profissão dessas!”

Acrescentando:

”Estou certa de que é contra a natureza!”

O inspetor-chefe viu-se outra vez na rua, onde os repórteres tinham deixado um único homem de plantão, enquanto iam beber alguma coisa num bar das proximidades.

— Nada de novo, meu velho... Não adianta seguir-me...

Não ia longe. Não havia necessidade de andar muito, nesse caso. Era como se, para todos aqueles relacionados com a história, Paris se reduzisse a umas poucas ruas aristocráticas.

A casa do advogado, Rue de Villersexel, era da mesma época e do mesmo estilo da casa da Rue Saint-Dominique, com uma entrada em arco para carruagens, uma larga escadaria, atapetada de vermelho, e um elevador que, com certeza, subia macio e silente. Não precisou usá-lo, porque o escritório ficava no térreo. As maçanetas de metal dourado das portas duplas estavam bastante polidas, assim como a placa que pedia aos estranhos que entrassem sem bater.

”Se me vejo de novo confrontado com um ancião...”

Ficou agradavelmente surpreso de ver, entre os empregados, uma mulher bonita de seus trinta anos de idade.

— Dr. Aubonnet, por favor.

Sem dúvida, o escritório era um tanto tranqüilo, um tanto austero, mas não o fizeram esperar. Foi introduzido quase imediatamente numa sala imensa, onde um homem de seus cinqüenta e cinco anos no máximo levantou-se para cumprimentá-lo.

— Inspetor-chefe Maigret... Vim vê-lo a respeito de um dos seus clientes, o conde de Saint-Hilaire...

O outro homem respondeu com um sorriso:

— Nesse caso, o assunto não me diz respeito, mas a meu pai. Vou ver se ele está disponível no momento.

O jovem dr. Aubonnet foi à outra sala e demorou-se por lá.

— Queira vir por aqui, M. Maigret.

Dessa vez o inspetor-chefe se viu na presença de um velho de verdade, cujas condições não eram nada satisfatórias. O Aubonnet pai sentava-se numa cadeira de espaldar alto, piscando os olhos com a expressão atônita de um homem que acaba de ser arrancado à sua sesta.

Obviamente fora, um dia, muito gordo. Guardava ainda uma certa enxúndia, mas seu corpo era flácido, com rugas por toda parte. Tinha só um pé calçado de sapato. No outro, de tornozelo inchado, usava um chinelo de feltro.

— Suponho que tenha vindo falar-me do meu pobre velho amigo...

A boca era flácida também, e as sílabas que emergiam dela formavam uma espécie de pasta. Mas não havia necessidade de fazer-lhe perguntas para que se pusesse a falar com volubilidade:

— Imagine o senhor que Saint-Hilaire e eu nos conhecemos no Stanislas... Foi há quantos anos? Espere um momento... Estou com setenta e sete. Então, faz sessenta anos que fomos colegas no sexto grau... Ele já pretendia entrar para o serviço diplomático... Meu sonho era fazer cavalaria, em aumur... Ainda tinham cavalos naquele tempo... Não estavam inteiramente motorizados... O senhor sabe? Nunca tive oportunidade de andar a cavalo em toda a minha vida. Tudo pelo fato de ser filho único e de ter a obrigação de suceder a meu pai neste escritório...

Maigret conteve-se para não perguntar se o pai dele vivia na mesma casa naquele tempo.

— Mesmo quando estudante, Saint-Hilaire já era um bon vivant, mas um bon vivant de tipo muito especial, uma pessoa de tremenda distinção...

— Imagino que tenha deixado o testamento com o senhor?

— O sobrinho, o jovem Mazeron, perguntoume a mesma coisa há pouco. Pude tranqüilizá-lo...

— O sobrinho herda tudo?

— Não, a propriedade toda não. Conheço o testamento de cor, uma vez que fui eu mesmo que o redigi.

— Há muito tempo?

— A última versão data de uns dez anos.

— Os anteriores eram diferentes?

— Só em detalhes. Não pude mostrar o documento ao sobrinho, já que todas as partes interessadas têm de estar presentes.

— Quem são?

— De maneira geral, Alain Mazeron herda o bloco de apartamentos da Rue Saint-Dominique e o grosso da fortuna, que, em todo caso, não é muito vultosa. Jacquette Larrieu, a governanta, recebe uma pensão que lhe permitirá viver o resto da vida confortavelmente. Quanto à mobília, bricabraque, quadros e objetos pessoais, Saint-Hilaire os lega a uma velha amiga...

— Isabelle de V...

— Vejo que sabe tudo a respeito.

— O senhor a conhece?

— Muito bem. Conheci o marido ainda melhor, pois foi um dos meus clientes.

Não era surpreendente que os dois homens tivessem o mesmo advogado?

— Não receavam encontrar-se, por acaso, aqui no seu escritório?

— Isso jamais aconteceu. A possibilidade talvez nem lhes tenha ocorrido, e não sei se ficariam tão embaraçados assim. O senhor compreende, eles estavam fadados, se não a ser amigos, pelo menos a ter uma alta opinião um do outro, sendo ambos homens de escol e, o que conta mais ainda, de bom gosto...

Mesmo as palavras que ele usava vinham do passado. Fazia tempo que Maigret não ouvia a expressão ”homem de escol”.

O velho advogado, em sua poltrona, sacudia-se de riso, por algum pensamento fugaz:

— Homens de bom gosto, sim — repetiu maliciosamente —, e o senhor poderia acrescentar que, pelo menos num particular, tinham gostos idênticos... Agora que estão mortos, não creio trair um segredo profissional se lhe disser isso, principalmente porque o senhor também é obrigado, por ofício, a ser discreto... Um advogado é, quase sempre, um confidente... Além disso, Saint-Hilaire era um velho amigo, que costumava vir contar-me suas escapadas... Durante um ano ou mais ele e o príncipe tiveram a mesma amante, uma jovem adorável, de busto opulento, figurante de uma revista qualquer de boulevard. Nenhum dos dois sabia do outro... Tinham dias diferentes...

O velho lançou a Maigret um olhar expressivo.

— Essa gente sabe viver... Há vários anos ja, tenho pouco a ver com este escritório. Meu filho primogênito tomou o meu lugar. Assim mesmo, desço todos os dias para ajudar uns poucos clientes antigos...

— Saint-Hilaire era homem de muitos amigos?

— Acontecia com os amigos dele o que eu dizia dos meus clientes há pouco. Na nossa idade, a gente vê as pessoas irem morrendo, uma depois da outra. Acredito que, no fim, eu era a única pessoa que ele costumava visitar. Tinha ainda o uso de suas pernas, e fazia uma caminhada a pé todos os dias. Algumas vezes vinha ver-me e ficava nessa cadeira aí, em que o senhor está sentado...

— De que falavam?

— Dos velhos tempos, naturalmente, sobretudo dos rapazes que conhecemos em Stanislas. Poderia ainda dar ao senhor a maior parte dos nomes. É espantoso como a maioria fez carreira. Um dos nossos colegas, que não era o mais inteligente, aliás, foi primeiro-ministro não sei quantas vezes e morreu só no ano passado. Outro é um dos membros militares da Academia...

— Saint-Hilaire tinha inimigos?

— Como poderia ter feito inimigos? Na vida profissional, nunca atropelou ninguém, como é tão comum fazerem hoje em dia. Conseguia seus postos esperando a vez, pacientemente. E nas suas memórias não acertou contas, o que explica que tão pouca gente se tenha interessado em ler os livros...

— E quanto aos V... ?

O advogado olhou-o com surpresa.

— Já lhe falei do príncipe. Ele sabia da história toda, naturalmente, e sabia que Saint-Hilaire cumpriria a palavra. Não fosse a sociedade, estou seguro de que Armand seria recebido na Rue de Varenne, e que teria, até, seu lugar à mesa naquela casa.

— O filho sabe de tudo, também?

— Certamente.

— Como é ele?

— Não penso que tenha a inteligência do pai. É verdade que não o conheço tão bem quanto conheci o pai. Parece muito menos comunicativo, o que se deve, talvez, à dificuldade, nos dias que passam, de levar um nome como o seu. A vida social não lhe interessa. Raramente é visto em Paris. Passa a maior parte do ano na Normandia, com a mulher e os filhos, tomando conta de suas fazendas, de seus cavalos...

— O senhor o viu recentemente?

— Vou encontrá-lo amanhã, e a sua mãe também, na leitura do testamento, de modo que talvez tenha de tratar dos dois espólios no mesmo dia.

— A princesa não lhe telefonou hoje?

— Ainda não. Se leu os jornais, ou se alguém lhe deu a notícia, sem dúvida entrará em contato comigo. Ainda não entendo como poderia alguém assassinar meu velho amigo. Se tivesse acontecido em qualquer outro lugar que não a casa dele, eu diria que o tinham matado por engano.

— Suponho que Jacquette Larrieu tenha sido sua amante?

— Essa não seria a palavra apropriada. E note que Saint-Hilaire jamais me falou nela. Mas eu o conhecia. Conheci Jacquette também, quando jovem, e era uma moça bonita. Agora, Armand jamais deixou passar por perto uma moça bonita sem tentar a sorte. Fazia isso por espírito estético, se o senhor me entende. E é mais do que provável que, tendo surgido a oportunidade...

— Jacquette tem parentes?

— Não conheço nenhum. Se teve irmãos e irmãs um dia, o mais provável é que estejam todos mortos.

— Agradeço-lhe muito...

— Imagino que tenha pressa, não? Em todo caso, não esqueça que estou inteiramente à sua disposição. O senhor me parece um sujeito decente também, e espero que encontre o miserável do culpado.

Sempre essa impressão de estar imerso num passado remoto, num mundo que, por assim dizer, já se esfumou. Por isso era desnorteante ver-se outra vez na rua, em Paris, com gente viva, mulheres de calças compridas a fazer compras, bares cheios de mesas e cadeiras niqueladas, automóveis resfolegando nos sinais vermelhos.

Maigret encaminhou-se para a Rue Jacob, mas em vão. Na porta fechada do estabelecimento, um cartão tarjado de preto anunciava:

”Fechado por motivo de morte na família”.

Apertou a campainha várias vezes, sem obter resposta. Depois atravessou a rua para observar as janelas do primeiro andar. Estavam abertas, mas não havia qualquer som. Uma senhora de cabelos cor de fogo e grandes seios caídos emergiu da escuridão de uma galeria de quadros:

— Se é M. Mazeron que procura, ele não está. Vi quando saiu depois de fechar a loja.

Ela não sabia para onde fora.

— Ele não fala muito com as pessoas...

Maigret poderia ir ver Isabelle de V..., naturalmente. Mas a idéia dessa visita o afligia um pouco, e ele preferia adiá-la, procurando, entrementes, descobrir um pouco mais.

Raras vezes se sentira tão perplexo em face de outros seres humanos. Um psiquiatra, um mestre escola ou um romancista — para citar a lista da Lancet — estariam em melhor posição para entender essa gente de outro século?

Uma coisa era certa: o conde Armand de SaintHilaire, um ancião afável, inofensivo, um homem de escol, para usar a expressão do advogado, fora assassinado, em sua própria casa, por alguém em quem confiava.

A possibilidade de que se tratasse de um crime não premeditado ou acidental, um assassino anônimo estúpido, podia ser afastada, em primeiro lugar porque nada desapareceu, em segundo porque o antigo embaixador estava sentado calmamente à sua mesa quando a primeira bala, disparada de perto, o atingiu no rosto.

Ou abriu pessoalmente a porta ao seu visitante, ou este tinha uma chave do apartamento, embora Jacquette afirmasse haver apenas duas chaves, a sua e a do conde.

Ainda a revolver esses confusos pensamentos na cabeça, Maigret entrou num bar, pediu uma cerveja e foi trancar-se na cabine telefônica.

— É você, Moers?... Tem o inventário aí, à sua frente?... Quer verificar se há menção de chaves?... Sim, da chave do apartamento... Como?... Sim... ? Onde a encontraram?... No bolso da calça?... Obrigado... Alguma novidade?... Não... Estarei de volta ao Quai logo mais à tarde... Se tiver algo para mim, telefone a Janvier, que ficou lá, na Rue Saint-Dominique...

Tinham encontrado uma das duas chaves no bolso da calça do defunto, e Jacquette estava com a sua, uma vez que abrira a porta de manhã, quando Maigret e o homem do Ministério do Exterior entraram com ela no apartamento do andar térreo.

Ninguém mata ninguém sem motivo. E que restava, uma vez afastado o roubo? Um crime passional, entre dois velhos? Uma questão de dinheiro?

Jacquette Larrieu, segundo o advogado, receberia pensão mais que adequada para o resto da vida.

O sobrinho, por sua parte, herdava o bloco de apartamentos e o grosso da fortuna.

Quanto a Isabelle, era difícil imaginar que, quase imediatamente depois da morte do marido, lhe tivesse ocorrido...

Não, não havia explicação satisfatória, e o Quai d’Orsay, por seu lado, excluía categoricamente qualquer motivo político.

— Rue de la Pompe! — disse Maigret ao motorista de um táxi amarelo.

— Muito bem, inspetor-chefe!

De há muito ele deixara de sentir-se lisonjeado quando o reconheciam. O porteiro conduziu-o ao quinto andar, onde uma mulher bonita, miúda e morena abriu uma frincha de porta antes de deixar que Maigret entrasse no apartamento, banhado de sol.

— Desculpe a desordem... Eu estava ocupada fazendo um vestido para minha filha...

Vestia calças compridas muito justas, de seda preta, que revelavam a forma de suas nádegas bem fornidas.

— Imagino que veio ver-me por causa do crime, embora eu não possa imaginar o que espera de mim.

— Seus filhos não estão?

— Minha filha mais velha está na Inglaterra, para aprender a língua. Vive com uma família IIIglesa. A mais moça está trabalhando. É para ela que eu...

E mostrou a mesa, onde havia uma fazenda leve, estampada, que ela cortava para o vestido.

— Já esteve com meu marido, não?

— Sim.

— Qual a reação dele?

— Há muito não o vê?

— Quase três anos.

— E o conde de Saint-Hilaire?

— Da última vez, esteve aqui pouco antes do Natal. Veio trazer presentes para minhas filhas. Nunca se esquecia. Mesmo quando estava no exterior em algum posto, lembrava-se delas no Natal e mandava algum presentinho. Sempre. É por isso que têm bonecas de todas as partes do mundo. O senhor pode vê-las no quarto delas.

Não teria mais de quarenta anos, e se mantinha extremamente atraente.

— É verdade o que os jornais dizem? Que ele foi assassinado?

— Fale-me do seu marido.

A animação fugiu-lhe imediatamente do rosto.

— O que quer que eu diga?

— A senhora casou por amor, não foi? A menos que eu me engane, ele é muito mais velho do que a senhora.

— Só dez anos. Ele sempre pareceu mais velho.

— A senhora o amava?

— Não sei. Vivia só, com meu pai, homem difícil, amargurado. Tinha-se na conta de grande pintor, e como não era apreciado, e tinha de ganhar a vida restaurando quadros, mortificava-se. Eu trabalhava numa loja nos Grands Boulevards. Conheci Alain. O senhor gostaria de tomar alguma coisa?

— Não, obrigado. Tomei um copo de cerveja há pouco. Continue.

— Talvez me atraísse o ar de mistério que ele tem. Não era como os outros homens, falava pouco, e o que dizia era sempre interessante. Casamo-nos e tivemos logo uma filha...

— Viviam na Rue Jacob?

— Sim. E eu gostava daquela rua também, e do nosso pequenino apartamento no primeiro andar. Nessa época, o conde de Saint-Hilaire ainda era embaixador. Estava em Washington, se não me engano. Durante as férias veio ver-nos, e nos convidou também à Rue Saint-Dominique. Ele me impressionou bastante.

— Como se dava ele com seu marido?

— Não saberia realmente dizer. Era um homem afável com todo mundo. Pareceu surpreso de que eu fosse mulher de seu sobrinho.

— Por quê?

— Só muito mais tarde entendi por quê, e não estou segura de ter entendido bem. Ele devia conhecer Alain melhor do que eu pensava, certamente melhor do que eu o conhecia naquela época...

Interrompeu-se, como que arrependida do que havia dito.

— Não quero dar-lhe a impressão de que estou falando assim por despeito, por estarmos eu e meu marido separados. Ademais, fui eu que saí.

— E ele não tentou impedi-la?

A mobília era moderna, as paredes em tons pastel. Maigret podia ver parte de uma cozinha branca, asseada. Ruídos familiares subiam da rua, e havia perto o grande espaço verde do Bois de Boulogne.

— Espero que não suspeite de Alain.

— Para ser perfeitamente franco, não suspeito de ninguém por enquanto. Mas também não excluo qualquer hipótese, a priori.

— Estaria enganado, no entanto, se desconfiasse de Alain. E sei o que digo. Alain é um pobrediabo, que jamais conseguiu ajustar-se à vida e que jamais conseguirá ajustar-se a nada. Não é curioso que, depois de deixar meu pai, por ser um homem amargo, eu me casasse com um homem ainda mais amargo que ele? Levei tempo para perceber isso. Mas o fato é que nunca o vi satisfeito com coisa alguma. Talvez jamais tenha sorrido a vida inteira. Preocupa-se com tudo, a saúde, os negócios, a opinião dos outros a seu respeito, clientes, vizinhos. Acha que todo mundo tem má vontade com ele. É difícil explicar. E o senhor não vai rir do que vou lhe dizer. Quando vivia com ele, tinha a impressão de que o ouvia pensar, dia e noite, e era tão aflitivo como o tique-taque de um despertador. Ele ia e vinha em silêncio, e às vezes me olhava de repente como se os seus olhos estivessem voltados para dentro’ e eu não podia saber o que se passava. Ainda é tão pálido como antes?

— É pálido, sim.

— Já era assim, quando nos conhecemos. E fica assim, no campo, na praia. De uma palidez que se diria artificial... E nada transparece, do lado de fora! É impossível estabelecer contato com ele... Anos a fio dormimos na mesma cama e, ao acordar, eu me apanhava olhando para Alain como se fosse um perfeito estranho. E ele é cruel...

Disse, e procurou recolher a palavra.

— Talvez eu esteja exagerando. Ele se julgava justo, e queria ser justo, a todo custo. Tinha mania disso. Era escrupulosamente justo, e é isso que me faz falar em crueldade. Observei isso sobretudo depois que tivemos as meninas. Ele olhava para as filhas como olhava para mim e para outras pessoas, com uma espécie de lucidez fria. Se as meninas faziam alguma coisa errada, eu corria a defendê-las.

” ’São tão pequenas, Alain...’

” ’Mas não há razão para que se habituem a trapacear...’

”Era uma das suas expressões favoritas. Trapacear... Fazer sujeiras, ursadas... Até os detalhes da vida diária tinham de ser exatos.

” ’Por que você comprou peixe?’

”Eu tentava explicar. E lá vinha ele:

” ’Eu disse vitela.’

” ’Quando fui comprar...’

”Ele repetia, teimoso:

” ’Eu disse vitela, você não tinha nada que comprar peixe’ ”.

Ela se interrompeu de novo.

— Não estou falando demais, estou? Estou dizendo tolices?

— Continue.

— É só isso. Depois de alguns anos, pensei saber o que os americanos entendem por crueldade mental e por que isso constitui causa de divórcio por lá. Há professores, homens e mulheres que, sem levantar a voz, conseguem impor um reino de terror nas suas classes. Com Alain, nós nos sentíamos sufocadas, minhas filhas e eu, e não tínhamos sequer a consolação de vê-lo sair para o escritório toda manhã. Estava embaixo, debaixo dos nossos pés, de manhã à noite, e subia dez vezes por dia para ver o que estávamos fazendo, com aqueles seus olhos frios. Eu tinha de prestar-lhe contas de qualquer franco que gastasse. Quando eu saía, ele insistia em saber aonde ia. Quando voltava, queria saber com quem eu falara, o que tinha dito às pessoas e o que tinham respondido.

— A senhora lhe era infiel?

Ela não mostrou indignação. Na verdade, pareceu a Maigret que ficou tentada a sorrir, com uma certa satisfação, até com certo prazer, mas conteve-se.

— Por que me pergunta isso? Alguém lhe disse alguma coisa a meu respeito?

— Não.

— Enquanto vivi com ele, não fiz nada que pudesse usar contra mim.

— O que a fez tomar a decisão de deixá-lo?

— Estava no limite da minha resistência. Sufocava, como lhe disse, e queria que minhas filhas crescessem numa atmosfera em que pudessem respirar livremente.

— Não teve qualquer razão mais pessoal para desejar recobrar sua liberdade?

— Talvez tivesse.

— Suas filhas sabem disso?

— Não escondi o fato de que tenho um amante, e elas me apoiam nisso.

— Ele vive com a senhora?

— Vou encontrá-lo no apartamento dele. É um viúvo da minha idade, que não foi mais feliz com a mulher do que eu com meu marido. Assim, é como se estivéssemos os dois a atar os fios rompidos de nossas vidas.

— Ele vive neste bairro?

— Neste mesmo edifício, dois andares abaixo. É médico. O senhor verá sua placa na porta. Se, algum dia, Alain concordar em dar-me o divórcio, nós nos casaremos. Mas duvido que concorde. É muito católico, mais por tradição que por convicção.

— Seu marido ganha bem com a loja?

— O negócio tem altos e baixos. Quando o deixei, combinamos que ele me pagaria uma pensão modesta para as crianças. Manteve sua palavra durante alguns meses. Depois, houve alguns atrasos. Finalmente, deixou de pagar completamente, a pretexto de que as meninas já têm idade para ganhar seu próprio sustento. Mas isso não faz dele um assassino, não é?

— A senhora sabia da ligação do tio dele?

— O senhor se refere a Isabelle?

— Ouviu que o príncipe de V... morreu domingo de manhã e que foi enterrado hoje?

— Li sobre isso no jornal.

— Acha que, se Saint-Hilaire não tivesse morrido, teria desposado a princesa?

— Provavelmente. Toda a vida esperou que pudessem unir-se algum dia. Falava de Isabelle como de uma mulher à parte, de uma criatura quase sobrenatural, e eu sempre achei isso tocante. E ele era um homem que apreciava as realidades da vida, às vezes até um pouco demais...

Dessa vez ela sorriu abertamente.

— Um dia, há muito tempo, quando fui vê-lo por um motivo qualquer, já não lembro a que propósito, custou-me escapar de suas garras. Era astuto o velho. A seus olhos, a coisa era perfeitamente normal...

— Seu marido soube disso? Ela deu de ombros.

— Naturalmente que não.

— É ciumento?

— A seu modo. Não fazíamos amor com grande freqüência, e era sempre um ato frio e mecânico. Ele não condenaria que eu me sentisse atraída por outro homem, mas sim que eu fosse culpada de contravenção, que cometesse um pecado, um ato de traição, algo que ele considerasse sujo. Perdoe-me se falei mais do que devia, se dei a impressão de querer vê-lo em desgraça, pois não é esse o caso. O senhor mesmo viu que não me fiz valer também, que não quis parecer melhor do que sou. Não vou ser moça por muito tempo mais, e aproveito o que posso, enquanto posso...

Tinha uma boca sensual, olhos brilhantes. Há vários minutos que cruzava e descruzava as pernas.

— O senhor tem certeza de que não quer tomar nada?

— Não. Está na hora de ir.

— Presumo que tudo isso seja confidencial. Ele sorriu e dirigiu-se para a porta, onde ela

lhe estendeu a mão, quente e gorda.

— Tenho de continuar com o vestido para minha filha — disse, quase pesarosa.

Ele acabara de conseguir, afinal de contas, escapar por um momento do círculo dos velhos. Saindo do apartamento da Rue de la Pompe, foi sem qualquer sentimento de surpresa que se viu de volta à rua, com seus ruídos e odores.

Pegou um táxi quase imediatamente, e disse ao chofer que o levasse para a Rue Saint-Dominique. Antes de ir ao bloco de apartamentos, resolveu tomar o copo de cerveja que tinha recusado em casa de Mme Mazeron. No bar misturou-se aos motoristas dos ministérios e das mansões vizinhas. O repórter estava ainda a postos.

— O senhor viu que não procurei segui-lo. Não poderá dizer-me onde esteve?

— No advogado.

— Ele tinha algum fato novo para contar?

— Nada, absolutamente.

— Ainda não há pistas?

— Não.

— E não se trata de um crime político?

— Aparentemente, não.

O policial de uniforme estava lá também. Maigret tocou a campainha junto ao poço do elevador. Foi Janvier, em mangas de camisa, quem veio abrir a porta para ele. Jacquette não estava no escritório.

— O que fez com ela? Deixou que saísse?

— Não. Ela tentou, depois do telefonema, a pretexto de que não havia nada de comer em casa.

— E onde está?

— No quarto. Foi descansar.

— A que telefonema se referiu?

— Meia hora depois que o senhor saiu, o telefone tocou e eu atendi. Era voz de mulher, uma voz calma.

” ’Quem fala?’, perguntou.

”Em vez de responder, perguntei:

” ’Quem fala?’

” ’Desejava uma palavra com Mlle Larrieu.

” ’Quem deseja falar?’

”Houve um silêncio. E depois:

”’A princesa de V...’

”Todo esse tempo, Jacquette me olhava como se soubesse de quem se tratava.

” ’Ela está aqui.’

”Passei-lhe o fone, e imediatamente ela disse:

” ’Sou eu, senhora princesa... Sim... Eu teria ido, mas esses senhores não me permitem sair... Há muitos deles, por toda a casa, com toda espécie de instrumentos... Passam horas a perguntar-me coisas. Agora mesmo tenho um inspetor aqui, ouvindo minha conversa...’ ”

Janvier acrescentou:

— Era como se estivesse me desafiando. Depois disso, apenas ouviu a maior parte do tempo.

” ’Sim... Sim, princesa... Sim... Compreendo... Não sei... Não.... Sim... Vou tentar... Gostaria sim, igualmente... Obrigada, senhora princesa...’”

— E o que disse, depois?

— Nada. Foi sentar-se na sua cadeira. Depois de um quarto de hora de silêncio, resmungou tristemente:

” ’Suponho que não vá permitir que eu saia? Mesmo não tendo nada de comer em casa, mesmo ficando eu sem jantar?’

” ’Veremos mais tarde.’

” ’Nesse caso, não sei o que estamos fazendo, sentados assim, um em frente ao outro. Preferiria ir descansar. Tenho sua permissão para isso?’

”E desde então está no quarto. Trancou a porta à chave.”

— Ninguém veio?

— Ninguém. Houve alguns telefonemas, de uma agência de notícias americana, de jornais da província...

— Você não conseguiu arrancar nada de Jacquette?

— Comecei fazendo-lhe perguntas as mais inocentes, na esperança de ganhar-lhe a confiança. O único resultado foi que falou, numa voz sarcástica: ” ’Meu jovem, você está malhando em ferro frio. Se seu chefe pensou que eu iria lhe contar algum segredo...’ ”

— O Quai não ligou? — perguntou Maigret.

— Não. Só o juiz.

— Ele quer ver-me?

— Pediu que lhe telefonasse quando tivesse alguma notícia. Alain Mazeron esteve com ele.

— E por que não me disse?

— Estava deixando isso para o fim. Ao que parece, o sobrinho de Saint-Hilaire foi queixar-se por ter o senhor lido a correspondência particular do tio sem a sua permissão. Como testamenteiro, pediu que o apartamento ficasse lacrado até a leitura do testamento.

— E o que disse o juiz?

— Que ele viesse falar com o senhor.

— E Mazeron veio?

— Não. Talvez esteja a caminho, porque não faz muito tempo que recebi esse telefonema. O senhor acredita que ele venha?

Maigret hesitou. Finalmente, puxou um catálogo telefônico e, depois de encontrar o que procurava, discou um número, de pé, e com uma expressão preocupada no rosto.

— Alô? É da residência V... ? Eu desejava falar com a princesa de V... É o inspetor-chefe Maigret, da polícia judiciária. Sim, espero na linha...

Houve como que uma espécie diferente de silêncio na sala, e Janvier prendeu a respiração, olhando seu chefe. Passaram-se vários minutos.

— Sim?... Eu espero... Obrigado... Alô... Sim, minha senhora, é o inspetor-chefe Maigret...

Aquela não era sua voz de todos os dias. Sentia uma certa emoção, como a que tinha em criança, quando lhe acontecia falar com a condessa de SaintFiacre.

— Pensei que talvez a senhora desejasse entrar em contato comigo, pelo menos para que eu lhe desse alguns detalhes... Sim, sim... Quando quiser... Irei, então, Rue de Varenne, daqui a uma hora...

Os dois homens se olharam em silêncio. Por fim, Maigret soltou um suspiro.

— É melhor que você fique — disse. — Chame Lucas e peça-lhe que lhe envie alguém, de preferência Lapointe. A velha pode sair quando quiser, mas um de vocês deverá segui-la.

Tinha de esperar uma hora. Para passar o tempo, tirou um dos maços de cartas da estante de cortinas verdes.

”Ontem, em Longchamps, avistei-o de fraque, e você bem sabe como gosto de vê-lo nesse traje. Você levava uma bela ruiva pelo braço...”

 

Maigret não esperava encontrar uma casa que ainda cheirava a velório, como acontece na classe baixa e mesmo na classe média, com o odor dos crisântemos e das velas, uma viúva de olhos vermelhos, e parentes de lugares remotos, todos de luto pesado, sentados em círculo, a comer e beber. Por causa da sua infância no campo, o cheiro do álcool, principalmente o do marc de conhaque, estava para sempre associado, para ele, a mortes e funerais.

”Beba isto, Catherine”, costumavam dizer à viúva antes de saírem todos para a igreja e o cemitério. ”Você precisa de alguma coisa para levantarlhe o ânimo.”

Ela bebia, chorando ao mesmo tempo. Por sua vez, os homens bebiam na estalagem local e quando voltavam para casa.

Se a entrada principal estivera decorada com sanefas de prata pela manhã, essas já tinham sido removidas de há muito, e o pátio recobrava sua aparência habitual, metade na sombra, metade no sol, com um chofer de uniforme a lavar uma comprida limusine preta, e três carros, inclusive um esporte (amarelo, estacionados à espera em frente à escada. Era tão vasto quanto os Elysées, e Maigret lembrou-se de que a casa costumava servir de cenário a bailes e bazares de caridade.

No alto da escadaria, empurrou uma porta de vidro e achou-se inteiramente só num hall de piso de mármore. Portas duplas, abertas, à sua direita e esquerda, davam-lhe uma visão de salões de recepção em que inúmeros objetos, provavelmente as moedas antigas e as caixas de rapé de que lhe tinham falado, estavam expostos como num museu.

Deveria entrar por uma dessas portas ou subir o lance duplo de escadas que levava ao andar superior? Hesitava quando um mordomo, surgindo Deus sabe de onde, veio ter com ele em silêncio, tomou-lhe o chapéu das mãos e, sem perguntar-lhe o nome, murmurou:

— Por aqui.

Maigret seguiu seu guia escada acima, atravessou uma outra sala de estar no primeiro andar, depois um aposento que era, obviamente, uma galeria de pintura,

Não o fizeram esperar. O empregado entreabriu uma porta e anunciou em voz baixa:

— O inspetor-chefe Maigret.

A saleta em que ele foi, então, admitido não dava para o pátio, mas para um jardim, e a folhagem das árvores cheias de pássaros roçava contra as duas janelas abertas.

Alguém levantou-se de uma poltrona e, por um momento, ele não percebeu que se tratava da pessoa que viera ver, a princesa Isabelle. Sua surpresa deve ter sido óbvia, pois indo ao seu encontro ela disse:

— O senhor fazia uma idéia muito diferente de mim, não é?

Ele não ousou concordar com ela. Deixou de responder, simplesmente, tomado de estupor diante da aparência da mulher. Em primeiro lugar, embora se vestisse de preto, ela não dava a impressão de estar de luto pesado. Não saberia dizer por quê, mas era assim. Não parecia estar sequer profundamente desolada.

Era mais baixa do que imaginara pelas fotografias, mas, em contraste com Jacquette, por exemplo, não estava curvada ao peso dos anos. Não teve tempo de analisar suas impressões. Faria isso mais tarde. No momento, apenas registrava-as, mecanicamente.

O que o surpreendia acima de tudo era encontrar uma mulher gorda, de rosto cheio, faces lisas, corpo atarracado. Seus quadris, que o vestido de princesa na fotografia do estúdio de Saint-Hilaire apenas sugeria, haviam ficado tão largos como os de qualquer mulher de camponês.

Passaria a maior parte da vida nesse boudoir? Havia tapeçarias antigas nas paredes. O soalho brilhava, e cada peça do mobiliário parecia em seu lugar exato, o que recordou a Maigret, por nenhuma razão em particular, o convento onde, no passado, visitara às vezes uma tia freira.

— Queira sentar-se.

A princesa apontou uma poltrona dourada, mas ele preferiu uma cadeira de espaldar reto, talvez com medo de quebrar as delicadas pernas da outra.

— Meu primeiro impulso foi correr para lá — confessou ela, sentando-se por sua vez —, mas depois compreendi que ele não estaria mais na casa. O corpo deve ter sido levado para o necrotério, não é?

Não tinha medo das palavras, nem das imagens que evocavam. Seu rosto era sereno, quase alegre, e isso também lembrava o convento, a peculiar serenidade das boas irmãs, que não davam nunca realmente a impressão de pertencerem a este mundo.

— Quis muito vê-lo uma última vez. Voltarei a isso, depois. O que desejo saber antes de tudo é se morreu dolorosamente.

— Pode ficar tranqüila, minha senhora. O conde de Saint-Hilaire morreu instantaneamente.

— Estava no seu escritório?

— Sim.

— Sentado?

— Sim. Parece que corrigia provas tipográficas.

Ela fechou os olhos, como para dar tempo de formar-se o quadro em sua mente. E Maigret ousou fazer por sua vez uma pergunta.

— A senhora esteve alguma vez na Rue SaintDominique?

— Uma vez só, há muito tempo, com a conivência de Jacquette. Escolhi uma ocasião em que tinha certeza de que ele não estava. Queria ver o ambiente de sua vida, para poder visualizá-lo em casa, nos diversos cômodos.

Uma idéia lhe ocorreu então:

— Quer dizer que o senhor não leu as cartas? Ele hesitou, depois decidiu-se pela verdade.

— Passei os olhos pela correspondência. Não li tudo, todavia...

— Estão ainda guardadas na estante Império, de treliça dourada?

Ele assentiu.

— Eu pensei que o senhor as tivesse lido. Não o censuraria por isso. Imagino que seja parte do seu dever.

— Como a senhora soube da morte dele?

— Pela minha nora. Meu filho Philippe veio da Normandia com a mulher e os filhos para assistir aos funerais. Há pouco, quando voltávamos do cemitério, minha nora viu um dos jornais que os empregados põem habitualmente em cima de uma das mesas, no hall.

— Sua nora sabe de tudo a respeito do assunto?

Ela o encarou com um assombro que raiava a inocência. Se ele não soubesse quem ela era, pensaria que estivesse representando um papel.

— Tudo sobre o quê?

— Sobre a sua relação com o conde de SaintHilaire.

O sorriso dela era também um sorriso de freira.

— Mas naturalmente. Como poderia ignorar uma coisa dessas? Nunca fizemos o menor esforço para encobrir o assunto. Não havia nada de errado. Armand era um amigo muito querido...

— Seu filho sabe?

— Meu filho também sempre soube de tudo. Quando menino, eu costumava apontar-lhe Armand, às vezes, à distância. Penso que da primeira vez foi em Auteuil...

— Ele nunca foi vê-lo?

Ela respondeu, não sem uma certa lógica, sua própria lógica, se não a dos outros:

— Por que iria?

Os passarinhos chilreavam na folhagem, e uma deliciosa brisa soprou do jardim.

— O senhor aceitaria uma xícara de chá?

A mulher de Alain Mazeron, na Rue de Ia Pompe, oferecera-lhe cerveja. Aqui era chá.

— Não, obrigado.

— Conte-me o que descobriu, M. Maigret. Veja o senhor, por cinqüenta anos eu me acostumei a viver com ele na imaginação. Sabia o que estava fazendo todas as horas do dia. Visitei as cidades em que ele viveu, quando era ainda embaixador, e fiz arranjos com jacquette para ver por dentro todas as suas sucessivas casas. A que horas ele foi morto?

— Tanto quanto posso precisar, entre onze horas e meia-noite.

— E, todavia, ainda não estava pronto para recolher-se.

— Como sabe?

— Porque antes de ir para o quarto ele sempre me escrevia algumas palavras como fecho da sua carta diária. Começava-as, toda manhã, com uma frase ritual: ”Bom dia, Isi...” Exatamente como teria me cumprimentado se o destino tivesse permitido que vivêssemos juntos. Acrescentava umas poucas linhas e, depois, ao longo do dia, voltava à carta para dizer o que estivera fazendo. À noite, suas últimas palavras eram, invariavelmente: ”Boa noite, bela Isi...”

Sorriu, dessa vez com embaraço.

— Tenho de desculpar-me por contar-lhe algo que provavelmente o fará rir. Para ele eu permaneci a mesma Isabelle de vinte anos.

— Ele a viu, depois disso?

— Sim, de longe. Conseqüentemente, sabia que eu me tornara uma velha. Mas para ele o presente não era tão real quanto o passado. Pode compreender isso? Da mesma maneira, ele não mudara para mim. Mas agora conte-me o que aconteceu. Conte-me tudo, sem tentar poupar-me. Quando uma mulher chega à minha idade, sabe, isso significa que não é uma fracalhona. Quem é o assassino? Como entrou na casa?

— Alguém entrou, por certo, uma vez que não havia arma na sala ou no apartamento. E como Jacquette afirma que trancou as portas por volta das nove horas, como faz toda noite, fechando o trinco de segurança e passando a corrente, somos obrigados a supor que o próprio conde de Saint-Hilaire admitiu o visitante. Ele costumava receber pessoas à noite?

— Nunca. Desde a sua aposentadoria, ele se tornou um homem metódico e adotou uma rotina cotidiana praticamente invariável. Poderia mostrarlhe as cartas que me escreveu nos últimos anos... O senhor veria que a primeira sentença é, muitas vezes: ”Bom dia, Isi... Envio-lhe a minha habitual saudação da manhã, uma vez que um novo dia começa, enquanto eu, de meu lado, enceto a monótona rotina do meu circo...” Era assim que chamava os seus dias cuidadosamente planejados, em que não havia lugar para o inesperado. A não ser que eu recebesse uma carta pelo correio da tarde. Mas naturalmente que não! Era Jacquette quem as postava, de manhã, quando ia comprar croissants. Se tivesse posto uma no correio hoje, ela teria me dito ao telefone.

— O que a senhora pensa dela?

— Era-nos absolutamente devotada, a Armand e a mim. Quando ele quebrou o braço, na Suíça, era ela quem redigia as cartas ditadas por ele. E quando mais tarde ele fez uma operação, ela me mandou uma carta todos os dias com as últimas notícias.

— A senhora não pensa que ela possa ter tido ciúmes?

Ela sorriu de novo, e Maigret achou difícil acostumar-se com isso. Essa calma e serenidade o surpreendiam; tinha esperado uma entrevista mais ou menos dramática.

Era como se a morte, aqui, não tivesse o mesmo sentido que tinha alhures, como se Isabelle convivesse com ela naturalmente, sem medo, vendo-a como parte do curso normal da vida.

— Ela era ciumenta como um cão é ciumento do seu dono.

Ele hesitava em fazer certas perguntas, em abordar certos assuntos, e era ela quem os introduzia na conversa com uma simplicidade desarmante.

— Se, nos velhos tempos, ela algumas vezes sentiu ciúmes de outra maneira, como mulher, foi das amantes dele, não de mim.

— A senhora crê que ela tenha sido amante dele, um dia?

— Não pode haver dúvida sobre isso.

— Ele lhe contou isso em carta?

— Nunca escondia nada de mim, mesmo as coisas humilhantes que os homens hesitam em contar às mulheres. Escreveu, por exemplo, uma vez, não faz muitos anos: ”Jacquette está nervosa, hoje. Devo lembrar-me, e dar-lhe prazer, à noite...”

Parecia divertir-se com o pasmo de Maigret.

— Isso o surpreende? E, todavia, é muito natural.

— A senhora tampouco tinha ciúmes?

— Não dessas coisas. Meu único temor era que ele encontrasse outra mulher capaz de tomar o meu lugar no seu espírito. Prossiga com o que me contava, inspetor-chefe. O senhor não sabe nada sobre esse visitante?

— Unicamente que ele deu um primeiro tiro com uma arma de calibre pesado, provavelmente uma pistola automática calibre 7,65 milímetros.

— Onde feriu Armand?

— Na cabeça. O perito diz que a morte foi instantânea. O corpo escorregou para o tapete, junto ao pé da cadeira. Então, o assassino deu mais três tiros.

— Por quê, se ele estava morto?

— Não sabemos. Teria entrado em pânico? Estaria num tal estado de fúria que perdeu o controle? É difícil responder a essa pergunta por enquanto. Nos tribunais, um assassino que tenha atacado sua vítima de novo e de novo, esfaqueando-a, por exemplo, repetidas vezes, é acusado de crueldade. Pois bem, julgando pela minha experiência e pela dos meus colegas, são quase sempre os tímidos — hesito em dizer os sensíveis — que agem assim. Têm medo, não querem ver a vítima sofrer, perdem a cabeça...

— O senhor acredita que foi isso o que aconteceu, no caso?

— A não ser que se trate de vingança, ou de ódio reprimido por muito tempo, coisa mais rara ainda.

Começava a sentir-se à vontade com essa mulher velha, que podia dizer qualquer coisa e ouvir qualquer coisa.

— O que parece contradizer essa hipótese é que o assassino, depois, teve a presença de espírito de recolher todos os cartuchos. Devem ter estado espalhados pela sala, longe do corpo. Mas ele os encontrou a todos e não deixou impressões digitais. Resta uma questão que ainda me intriga, principalmente depois do que acabou de me dizer a respeito de suas relações com Jacquette. Depois que ela encontrou o corpo, esta manhã, não pensou em telefonar-lhe; ao invés disso, foi ao Quai d’Orsay, não à delegacia mais próxima.

— Penso que posso dar-lhe uma explicação para isso. Logo depois da morte do meu marido, o telefone tocou sem parar. Gente que mal conhecíamos queria informações sobre os arranjos funerais ou queria expressar-me simpatia. Meu filho decidiu desligar o telefone.

— Então, crê que Jacquette tenha tentado comunicar-se com a senhora?

— Muito provavelmente. E se não veio dar-me a notícia em pessoa foi porque sabia que teria sido difícil ver-me no dia dos funerais.

— A senhora sabe se o conde de Saint-Hilaire tinha inimigos?

— Não tinha nenhum.

— Nas suas cartas, mencionou alguma vez o sobrinho?

— O senhor esteve com Alain?

— Esta manhã.

— O que diz ele?

— Nada. Foi ver o dr. Aubonnet. O testamento será lido amanhã, e o advogado espera entrar em contato com a senhora, uma vez que sua presença será necessária.

— Eu sei.

— Conhece, então, os termos do testamento?

— Armand insistiu em deixar-me seus móveis, de modo que, se morresse antes de mim, eu tivesse até certo ponto a impressão de ter sido mulher dele.

— A senhora vai aceitar esse legado?

— Era desejo dele, não? Meu também. Se ele não tivesse morrido, logo que terminasse meu luto eu me teria tornado a condessa de Saint-Hilaire. Isso esteve sempre certo entre nós dois.

— Seu marido sabia de seus planos?

— Naturalmente.

— Seu filho e sua nora também?

— Não só eles, mas todos os nossos amigos. Não tínhamos nada a esconder, como já lhe disse. Agora, por causa do nome que eu ainda trago, serei obrigada a continuar a viver nesta imensa casa ao invés de instalar-me na Rue Saint-Dominique, como tantas vezes sonhei. O apartamento de Armand será reconstituído aqui, da mesma maneira. Sem dúvida não tenho muito tempo mais de vida, mas, qualquer que seja, vivê-lo-ei no cenário dele — entende o senhor? — como se fosse sua viúva.

Maigret experimentava um sentimento estranho, que o aborrecia intensamente. Para começar, estava cativado por essa mulher, tão diferente de todas as que conhecera antes. E não só cativado pela pessoa da princesa, mas pela lenda que ela e SaintHilaire haviam criado e na qual tinham vivido.

À primeira vista, isso era tão absurdo como um conto de fadas ou os relatos edificantes dos livros religiosos.

Aqui, diante dela, acreditava na história. Começava a adotar a maneira que eles tinham criado de ver e sentir, como no convento de sua tia andara nas pontas dos pés e falara em sussurros cheios de untuosa piedade.

Então, de repente, via a velha senhora de modo diferente, com olhos de homem do Quai des Orfèvres. E foi tomado de repulsa.

Estariam fazendo troça dele? Estaria toda essa gente, Jacquette, Alain Mazeron, sua mulher — a das calças muito justas —, Isabelle, até mesmo o advogado, Aubonnet, conspirando para enganá-lo?

Havia um morto, um cadáver verdadeiro, de crânio esfacelado e ventre aberto. Isso implicava a existência de um assassino, que não poderia ser de nenhum modo um criminoso comum, pois fora convidado a entrar pela porta no apartamento do exembaixador e pudera matá-lo à queima-roupa sem que ele tivesse qualquer suspeita ou procurasse defender-se.

Maigret aprendera, com os anos, que as pessoas não matam sem motivo, e motivo sério. Mesmo se, nesse caso, o assassino fosse um louco ou uma louca, ele ou ela, era ainda assim uma criatura de carne e osso, que vivia no círculo da vítima.

Seria Jacquette maluca — com sua desconfiança agressiva? Seria Mazeron desequilibrado, esse a quem a própria mulher acusava de crueldade mental? Ou teria sido Isabelle quem perdera o juízo?

Cada vez que começava a pensar dessa maneira, mudava de atitude, dispunha-se a fazer perguntas cruéis, a fim de dispersar a brandura contagiosa que começava a envolvê-lo.

E sempre um olhar surpreso ou malévolo da princesa o desarmava, fazia com que se sentisse envergonhado de si mesmo.

— Na verdade, ignora quem poderia lucrar matando Saint-Hilaire?

— Lucrar? Certamente ignoro. O senhor conhece tão bem quanto eu as linhas gerais do testamento.

— E se Alain Mazeron precisasse de dinheiro desesper adamente ?

— Seu tio costumava dar-lhe algum, sempre que necessário. E, de qualquer maneira, deixar-lhe-ia sua fortuna.

— Mazeron sabia disso?

— Não tenho dúvida de que sim. Uma vez morto o meu marido, Armand e eu nos teríamos casado, é verdade; mas eu nunca teria permitido que minha família herdasse o dinheiro dele.

— E Jacquette?

— Estava ciente da provisão feita para a sua velhice.

— Estava também ciente de que a senhora pretendia ir viver na Rue Saint-Dominique?

— Aguardava ansiosamente que isso acontecesse.

Algo em Maigret protestava. Tudo aquilo era falso, inumano.

— E seu filho?

Surpresa com a pergunta, ela esperou que ele se explicasse. E, como Maigret permanecesse calado, perguntou por sua vez:

— O que tem meu filho a ver com isso?

— Não sei. Estou apalpando o meu caminho. Ele é o herdeiro do nome.

— Continuaria a sê-lo, mesmo que Armand vivesse.

Era óbvio. Mas não teria considerado uma diminuição para sua mãe casar-se com Saint-Hilaire?

— Seu filho estava aqui, ontem à noite?

— Não. Ele se hospedou com a mulher e os filhos num hotel da Place Vendôme, onde costumam ficar sempre que vêm a Paris.

Maigret franziu o cenho e fixou os olhos nas paredes, como se, através delas, pudesse calcular as dimensões da casa da Rue de Varenne. Seguramente continha grande número de quartos vazios, de suítes desocupadas.

— A senhora quer dizer que, desde o seu casamento, ele nunca ficou nesta casa?

— Em primeiro lugar, Philippe vem raramente a Paris. E nunca por muito tempo, pois detesta vida social.

— Sua mulher também?

— Sim. Nos primeiros anos do casamento, ocupavam uma suíte aqui. Então, tiveram o primeiro filho, e o segundo, e o terceiro...

— Quantos são ao todo, agora?

— Seis. O mais velho tem vinte anos; o mais jovem, sete. O que vou dizer talvez o choque, mas não posso viver com crianças. É um erro pensar que todas as mulheres nascem para ser mães. Tive Philippe porque era meu dever tê-lo. Cuidei dele tanto quanto se esperava de mim que cuidasse. Mas seria demais para mim suportar, anos mais tarde, um bando de crianças gritando e correndo pela casa. Meu filho sabe disso. E sua mulher também.

— Não a detestam por isso?

— Eles me aceitam como sou, com meus defeitos e excentricidades.

— A senhora estava só, aqui, ontem à noite?

— Com os empregados e duas freiras que velavam o corpo, na capela mortuária. O padre Gauge, meu confessor, e também velho amigo meu, ficou até as dez horas.

— A senhora disse há pouco que seu filho e família estão aqui na casa, agora.

— Esperam para dizer-me adeus, pelo menos minha nora e as crianças. O senhor deve ter visto o automóvel deles no pátio. Voltam hoje para a Normandia, exceto meu filho, que deve acompanhar-me amanhã ao escritório do advogado.

— A senhora me permitiria falar com seu filho?

— Por que não? Esperava, aliás, que me pedisse isso. Cheguei a pensar que desejaria ver a família toda, e foi por isso que disse a minha nora que adiasse a partida.

Seria inocência da parte dela? Ou desafio? Voltando à teoria do médico inglês, teria um mestreescola mais facilidade que Maigret em descobrir a verdade?

O inspetor-chefe sentia-se mais humilde e inerme do que nunca diante desses estranhos seres humanos que tinha por obrigação julgar.

— Venha por aqui.

A princesa conduziu-o através da galeria, detendo-se por um momento com a mão na maçaneta de uma porta atrás da qual se ouviam vozes.

Depois abriu a porta, anunciando simplesmente:

— O inspetor-chefe Maigret...

E, num salão imenso, o inspetor-chefe notou, primeiro, uma criança comendo bolo, depois uma menina de seus dez anos, que pedia alguma coisa à mãe num cochicho.

Esta era uma mulher de cabelos claros, de cerca de quarenta anos. Com a tez rosada, lembrava uma dessas robustas holandesas que a gente vê em gravuras e postais.

Um menino de treze anos olhava pela janela. A princesa apresentou todo mundo, e Maigret registrou os retratos, um por um, planejando juntá-los mais tarde, como peças de um jogo de armar.

— Frédéric, o mais velho...

Um rapaz magro, de cabelos louros como os de sua mãe, curvou-se ligeiramente, sem estender a mão.

— Ele pretende entrar para o serviço diplomático também.

Havia uma outra menina, de quinze, e um garoto de doze ou treze.

— Philippe não está?

— Desceu para ver se o carro está pronto. Davam todos a impressão de que a vida fora

de súbito suspensa, como acontece numa sala de espera de estação.

— Venha por aqui, M. Maigret.

Seguiram por outro corredor ao fim do qual encontraram um homem alto, que vinha em direção oposta, com uma expressão levemente aborrecida.

— Estava à sua procura, Philippe. O inspetorchefe Maigret deseja dar-lhe uma palavrinha. Onde poderá vê-lo?

Philippe estendeu a mão, com um ar um tanto vago, talvez, mas curioso também, por ver um detetive de perto.

— Oh, não importa. Aqui mesmo serve.

Empurrou uma porta que dava para um escritório, que tinha papel vermelho nas paredes e retratos de antepassados.

— Vou ter de ir agora, M. Maigret, mas não me deixe, por favor, sem notícias. Logo que o corpo esteja de volta à Rue Saint-Dominique, queira ter a bondade de avisar-me.

E desapareceu, leve, irreal.

— O senhor deseja falar-me?

De quem seria o escritório? Provavelmente de ninguém, porque nada havia nele que indicasse que alguém trabalhava ali. Philippe de V. mostrou uma cadeira e ofereceu cigarros.

— Não, obrigado.

— O senhor não fuma?

— Fumo cachimbo.

— Eu também, quase sempre. Mas não nesta casa. Minha mãe detesta cachimbo.

Tinha na voz uma nota de irritação, talvez até de impaciência.

— Suponho que deseje me falar sobre SaintHilaire?

— O senhor sabe que ele foi assassinado ontem à noite?

— Minha mãe contou-me há pouco. É uma coincidência curiosa, devo admitir.

— O senhor quer dizer que essa morte pode ter ligação com a de seu pai?

— Não sei. Os jornais nada dizem das circunstâncias do crime. Suponho que suicídio esteja fora de questão, não?

— Por que pergunta? O conde teria motivo para cometer suicídio?

— Não me ocorre nenhum, mas a gente nunca sabe o que anda pela cabeça das pessoas.

— O senhor o conhecia?

— Minha mãe me chamou a atenção para ele uma vez, quando eu era criança. Vi-o mais tarde algumas vezes.

— Falou com ele?

— Nunca.

— Tinha-lhe rancor?

— Por que razão?

Parecia genuinamente surpreso com as perguntas que lhe eram feitas. Dava também a impressão de ser um sujeito decente, que nada tinha a esconder.

— Toda a sua vida minha mãe conservou por ele uma espécie de amor místico do qual não tínhamos motivo de nos envergonhar. Meu pai era o primeiro a zombar disso com uma espécie de afetuoso divertimento.

— Quando o senhor veio da Normandia?

— Domingo de tarde. Vim sozinho, na semana passada, depois do acidente de meu pai, mas voltei quando ele pareceu estar fora de perigo. Fiquei surpreso domingo, quando minha mãe me telefonou para dizer que ele sucumbira a um ataque de uremia.

— Veio, então, com a família?

— Não. Minha mulher e as crianças só vieram segunda-feira. Exceto meu filho mais velho, que é interno aqui, na Escola Normal.

— Sua mãe lhe falou em Saint-Hilaire?

— O que quer dizer?

— Talvez seja uma pergunta idiota. Mas alguma vez ela lhe contou que agora poderia tornar-se a condessa de Saint-Hilaire?

— Ela não precisava falar nisso. Eu sempre soube que, se meu pai morresse antes dela, esse casamento se consumaria.

— O senhor nunca participou da vida social de seu pai?

Tudo parecia surpreendê-lo. Pensou cuidadosamente antes de responder.

— Acho que compreendo o seu ponto de vista. O senhor viu fotografias de meu pai e de minha mãe nas revistas, em visita a alguma corte estrangeira ou em algum grande casamento ou recepção. Eu também assisti a algumas dessas festas de sociedade entre os dezoito e os vinte e cinco anos. Quando digo vinte e cinco é aproximativo. Depois disso, casei e fui viver no campo. Contaram-lhe que cursei a escola de agricultura de Grignon? Meu pai deu-me uma de suas propriedades na Normandia, e vivo lá, com minha família. Era o que queria saber?

— O senhor suspeita de alguém?

— Com referência ao assassinato de SaintHilaire?

Pareceu a Maigret que o lábio inferior do outro havia tremido ligeiramente, mas não poderia jurá-lo.

— Não. Não diria uma suspeita.

— Mas uma idéia lhe ocorreu, assim mesmo?

— É tão absurda que eu preferiria não tocar

nisso.

— O senhor pensou em alguém cuja vida iria mudar com a morte de seu pai?

Philippe de V... levantou os olhos, que tinha abaixado por um momento.

— Digamos que alguma coisa dessa natureza passou-me pela cabeça, mas não me demorei nela. Tenho ouvido tanto sobre Jacquette e sua lealdade e devoção...

Parecia contrariado pelo rumo que a conversa tomava.

— Não quero apressar sua partida, mas tenho de dizer adeus a minha família. Gostaria que estivessem em casa antes do anoitecer.

— O senhor ficará alguns dias em Paris?

— Até amanhã à noite.

— Na Place Vendôme?

— Minha mãe lhe disse?

— Sim. Por uma questão de rotina, devo fazer-lhe uma última pergunta, e espero que não me leve a mal. Fui obrigado a fazê-la também a sua mãe.

— Onde estive a noite passada, imagino. A que horas?

— Digamos entre dez horas e meia-noite.

— Isso é um largo intervalo de tempo. Espere um pouco. Jantei aqui com minha mãe.

— Sozinho com ela?

— Sim. Saí às nove e meia, quando chegou o padre Gauge, porque não morro de amores pelo homenzinho. Voltei para o hotel para dar boa-noite a minha mulher e meus filhos.

Houve um silêncio. Philippe de V... olhava direto para a frente, hesitante e contrafeito.

— Saí depois para uma caminhada pelos Champs-Elysées...

— Até a meia-noite?

— Não.

Dessa vez olhou Maigret nos olhos, com um sorriso amarelo.

— Talvez isso lhe pareça peculiar, em vista do meu luto recente. Mas é uma espécie de hábito meu. Em Genestoux, sou conhecido demais para ter qualquer espécie de caso, e isso nem me passou jamais pela cabeça. Talvez tenha algo a ver com lembranças da juventude. O fato é que, sempre que estou em Paris, passo uma hora ou duas com uma mulher bonita. Como não desejo que isso tenha conseqüências, ou venha a complicar-me a vida, contento-me com...

E fez um gesto vago.

— Nos Champs-Elysées? — perguntou Maigret.

— Eu não diria isso em frente de minha mulher, que não compreenderia. Na sua opinião, fora de uma certa sociedade...

— Qual o nome de solteira de sua mulher?

— Irene de Marchangy... Posso dar-lhe alguns detalhes sobre a minha companheira da noite passada, se isso lhe for útil. É morena e não muito alta. Usava um vestido verde-pálido. E tem um sinal de nascença debaixo de um dos seios, creio que o esquerdo, mas não estou certo.

— O senhor foi à casa dela?

— Suponho que vive no hotel da Rue de Berry, para onde me levou, porque havia roupas no armário e objetos pessoais no banheiro.

Maigret sorriu.

— Desculpe a minha insistência, e obrigado por ter sido paciente.

— Tranqüilizou-se, então, no que me diz respeito? Por aqui... não o acompanho porque tenho pressa e...

Olhou o relógio, estendeu a mão.

— Boa sorte!

No pátio, um chofer esperava junto da limusine, cujo motor já funcionava com um ronronar macio, quase imperceptível.

Cinco minutos depois, Maigret mergulhava literalmente na atmosfera enfumaçada de um café e pedia uma cerveja.

 

Acordou com o sol que passava pelas frestas da veneziana e, com um gesto que, após tantos anos, já se fizera automático, procurou com a mão o lugar da mulher. Os lençóis ainda estavam quentes. Da cozinha, com o cheiro do café moído há pouco, vinha um leve assobio, o de água fervendo na chaleira.

Aqui também, como na aristocrática Rue de Varenne, havia gorjeios de pássaros, embora não tão junto da janela, e Maigret teve uma sensação de bemestar físico com a qual se misturava algo de desagradável e ainda meio vago.

Tivera uma noite ruim. Lembrava-se de ter sonhado muito e de ter acordado pelo menos uma vez, em sobressalto.

Sua mulher, inclusive, falara com ele, em certo momento, para tranqüilizá-lo, e lhe dera um copo de água.

Não se recordava muito bem do sonho. Eram várias histórias emendadas, e ele perdeu o fio da meada. Tinham uma coisa em comum: em todas, desempenhava papel humilhante.

Um quadro voltava à sua mente, mais nítido que o resto. Um lugar parecido à casa dos V., porém maior e menos luxuoso. Tinha algo de convento ou de ministério, com intermináveis corredores e um número infinito de portas.

O que fazia por lá não era muito claro. Sabia que tinha uma obrigação a cumprir, de importância capital. O problema é que não tinha quem o guiasse. Pardon lhe dissera que seria assim, ao se despedirem na rua. Não podia ver o dr. Pardon nos seus sonhos nem a rua. Estava, porém, seguro de que o amigo o prevenira sobre o que seria de esperar.

O fato era que não podia perguntar o caminho. Tentou no começo, antes de entender que isso não se fazia. Os velhos simplesmente olhavam para ele, sorrindo e abanando a cabeça.

Porque havia velhos por toda parte. Talvez fosse uma casa de caridade, um asilo para velhos, mas não tinha essa impressão.

Reconheceu Saint-Hilaire, uma figura ereta, de rosto corado e cabeleira branca, sedosa. Um homem extremamente bem apessoado, que obviamente tinha consciência disso, e ria-se do inspetor-chefe. O advogado Aubonnet estava sentado numa cadeira de rodas e divertia-se indo e vindo, a grande velocidade, por uma galeria de quadros.

Havia muitos outros, inclusive o príncipe de V... Com uma das mãos no ombro de Isabelle, observava com ar indulgente os vãos esforços de Maigret.

O inspetor-chefe encontrava-se numa situação delicada, pois não fora iniciado ainda, e ninguém lhe dizia por que provas teria de passar.

Sentia-se como um recruta ainda cru, no exército, como um calouro numa universidade. Os outros lhe pregavam peças. Cada vez que empurrava uma porta, ela se fechava de novo, por conta própria; ou, ao invés de dar para um quarto de dormir ou para uma sala de estar, dava para outro corredor.

Só a velha condessa de Saint-Fiacre se mostrava disposta a ajudá-lo. Não tendo, porém, o direito de falar, procurava fazê-lo entender por gestos o que estava errado. Por exemplo, ela apontou para os joelhos dele, e Maigret, olhando para baixo, descobriu que estava de calças curtas.

Mme Maigret, na cozinha, estava finalmente coando o café. Maigret abriu os olhos, contrariado com a lembrança desse sonho estúpido. Era, em suma, como se ele tivesse apresentado sua proposta a um clube, no caso um clube de velhos, e fosse recusado porque o tinham na conta de um menino.

Mesmo agora, sentado à beira da cama, sentia-se ainda aborrecido, a olhar vagamente para a mulher, a qual, depois de pôr uma xícara de café na mesa-de-cabeceira, abria as venezianas.

— Você não devia ter comido aqueles escargots a noite passada.

Para consolar-se de um dia cheio de frustrações, ele a tinha levado para jantar fora e comera, mesmo, escargots.

— Como se sente?

— Muito bem.

Não se deixaria impressionar por sonhos. Bebeu seu café e foi até a sala de jantar, onde passou os olhos pelo jornal enquanto tomava com a mulher o desjejum habitual.

Davam mais detalhes do que na véspera sobre a morte de Armand de Saint-Hilaire, e tinham encontrado uma boa fotografia dele. Havia também uma de Jacquette, surpreendida quando entrava numa leiteria. Fora tirada no dia anterior, e no fim da tarde, quando ela saíra para fazer compras com Lapointe nos calcanhares.

”No Quai d’Orsay, a hipótese de um crime político está completamente excluída. Por outro lado, em círculos bem informados, a morte do conde é associada a outra morte, de natureza acidental, ocorrida há três dias,”

Isso queria dizer que, na edição seguinte, a história de Saint-Hilaire e Isabelle viria a lume com todos os pormenores.

Maigret sentia-se ainda entorpecido e obtuso, e era em momentos assim que desejava ter escolhido outra profissão.

Esperou pelo ônibus na Place Voltaire, e teve a sorte de apanhar um com uma plataforma na qual podia fumar seu cachimbo enquanto via passarem as ruas. No Quai des Orfèvres, saudou com um gesto o policial de serviço à entrada, e subiu as escadas que uma servente varria depois de tê-las aspergido com água para que o pó se assentasse.

Na sua mesa encontrou uma pilha de documentos, relatórios e fotografias.

As fotos do morto eram impressionantes. Algumas mostravam o corpo todo, tal como fora encontrado, com a perna da mesa no primeiro plano e as manchas no tapete. Havia outras da cabeça, do peito e do estômago, tiradas quando o cadáver estava ainda inteiramente vestido.

Outras fotografias numeradas mostravam os orifícios feitos pelos projéteis ao entrarem no corpo, e um inchaço escuro, debaixo da pele das costas, onde uma das balas, depois de quebrar a clavícula, se detivera.

Houve uma batida na porta e Lucas apareceu, fresco como uma rosa, bem barbeado, e ainda com um pouco de talco atrás de uma orelha.

— Dupeu está aí, chefe.

— Mande-o entrar.

O inspetor Dupeu, como o filho de Isabelle, tinha família numerosa, seis ou sete filhos, mas não foi por ironia que Maigret lhe confiara determinada tarefa no dia anterior. Aconteceu que o homem estava disponível, na hora.

— E então?

— O que o príncipe lhe contou é a verdade. Ele esteve na Rue de Berry por volta de dez horas. Como sempre, havia quatro ou cinco fazendo o trottoir. Só uma era morena, e essa me disse que não tinha trabalhado na noite passada por ter ido ver seu bebê no campo. Esperei um bocado e então vi uma outra morena que saía de um hotel com um soldado americano.

” ’Por que me pergunta isso?’, disse, assustada, quando lhe perguntei a respeito. ’A polícia está atrás dele?’

” ’Não. É apenas para conferir.’

” ’Um sujeito grande, cerca de cinqüenta anos, corpulento?’”

Dupeu continuou:

— Perguntei à menina se tinha um sinal debaixo do seio e ela disse que sim, e que tinha outro num quadril. Naturalmente, o homem não lhe deu seu nome, mas foi o único que ela pegou naquela noite, pois lhe pagou três vezes mais do que costuma pedir.

” ’E não ficou sequer meia hora...’ ” ’Quando foi que ele abordou você?’ ” ’Às dez para as onze. Lembro-me disso, porque eu saía do bar aí do lado, onde tomava um café, e olhei o relógio atrás do balcão.’ ” Maigret observou:

— Se ficou só meia hora com ela, então deve tê-la deixado antes de onze e meia.

— Foi o que ela me disse.

O filho de Isabelle não tinha mentido. Ninguém nesse caso parecia mentir. Todavia, deixando a Rue de Berry às onze e meia, ele poderia facilmente chegar à Rue Saint-Dominique antes da meia-noite.

Por que teria ido ver o velho namorado de sua mãe? E por que o teria assassinado?

O inspetor-chefe não teve melhor sorte com o sobrinho, Alain Mazeron. No dia anterior, quando foi à Rue Jacob logo antes do jantar, não encontrou ninguém. Tinha telefonado mais tarde, cerca de oito horas, sem obter resposta.

Disse, então, a Lucas que mandasse alguém ao antiquário de manhã cedo. Bonfils se encarregou disso e agora entrava no escritório com informações também desapontadoras.

— Ele não se perturbou absolutamente com as minhas perguntas.

— A loja estava aberta?

— Não. Tive de tocar a campainha. Ele olhou de cima, da janela do primeiro andar, antes de descer, de suspensórios e com a barba por fazer. Pedilhe um relato dos seus movimentos ontem à tarde e à noite. Ele me disse que, para começar, foi ver o advogado.

— É exato.

— Sim, não tenho dúvidas. Depois, foi à Rue Drouot, onde está havendo um leilão de capacetes, botões de uniforme e armas do período napoleônico. Ele me disse que a competição é tremenda entre os colecionadores dessas relíquias. Mazeron comprou um love e mostrou-me uma fatura cor-de-rosa com a lista das coisas que deve ir buscar esta manhã.

— E depois disso?

— Foi jantar num restaurante da Rue de Seine, onde quase sempre faz suas refeições. Estive lá e confirmei a história.

Outro que não mentiu! Estranha profissão essa, em que a gente fica desapontado quando alguém não cometeu um assassinato! Era esse o caso, agora, e o inspetor-chefe, a contragosto, irritava-se com todos os seus suspeitos por serem inocentes ou darem essa impressão.

Porque o fato não mudara: havia um cadáver.

Pegou o telefone.

— Quer descer, por favor, Moers?

Não acreditava em crime perfeito. Em vinte e cinco anos de carreira na polícia, jamais vira um sequer. É verdade que podia lembrar-se de uns poucos crimes que tinham escapado à punição. Muitas vezes a identidade do criminoso era conhecida, mas ele tivera tempo de fugir para o exterior. Ou eram crimes de violência e de envenenamento.

Não era o caso, aqui. Nenhum criminoso ordinário entrou no apartamento da Rue Saint-Dominique e disparou quatro tiros num velho sentado à sua secretária, para ir-se embora depois, sem nada levar.

— Entre, Moers. Sente-se.

— O senhor leu meu relatório?

— Ainda não.

Maigret não confessou que não tivera a coragem de lê-lo e, muito menos, as dezoito páginas do médico-legísta. Na véspera entregara a busca de pistas a Moers e seus homens; confiava neles, sabia que nada lhes escaparia.

— Gastíne-Rennette já enviou suas conclusões?

— Estão na pasta. A arma do crime foi uma automática calibre 7,65. Pode ter sido uma Browning ou uma das muitas imitações encontradiças no mercado.

— Você está certo de que nenhum cartucho foi deixado no apartamento?

— Meus homens vasculharam centímetro por centímetro.

— Nenhuma arma também?

— Nem armas nem munição, exceto algumas carabinas de caça e as balas que vão com elas.

— Impressões digitais?

— As da velha, as do conde, da mulher do porteiro. Tirei as impressões deles por precaução, antes de deixar a Rue Saint-Dominique. A mulher do porteiro ia duas vezes por semana para ajudar Jacquette Larrieu no serviço pesado.

Moers também parecia perplexo e aborrecido.

— Fiz um inventário de tudo o que encontramos nos móveis e nos armários embutidos. Mas passei boa parte da noite examinando-o sem descobrir nada de suspeito ou inesperado.

— Dinheiro?

— Uns poucos mil francos numa carteira, algum troco numa gaveta na cozinha, e talões de cheques do Banco Rothschild na escrivaninha.

— Canhotos?

— Alguns canhotos também. O pobre velho estava tão longe de imaginar que ia morrer, que tinha encomendado um terno há dez dias num alfaiate do Boulevard Haussmann.

— Não havia marcas no peitoril da janela?

— Nenhuma, absolutamente.

Olharam um para o outro e entenderam-se. Trabalhavam juntos há anos e não podiam lembrar um só caso em que, passando pente-fino na cena do crime, como dizem os jornais, não tivessem descoberto uns poucos detalhes mais ou menos suspeitos, pelo menos à primeira vista.

Aqui, tudo era perfeito demais. Tudo tinha uma explicação lógica, exceto, naturalmente, a morte do ancião.

Limpando o cabo da pistola e deixando-a na mão de Saint-Hilaire, o criminoso poderia ter dado a impressão de um caso de suicídio se tivesse parado de atirar depois da primeira bala. Mas por que disparara as outras três?

E por que não conseguiram encontrar a automática do embaixador? A velha Jacquette admitia tê-la visto há apenas alguns meses, na cômoda do dormitório.

A arma já não estava no apartamento e, segundo a descrição da empregada, era, grosso modo, do mesmo tamanho e peso de uma automática 7,65.

Supondo que o embaixador admitiu alguém no apartamento... Alguém que ele conhecia, uma vez que se sentou de novo à mesa, no seu robe de chambre...

À sua frente, uma garrafa de conhaque e um copo. Por que não oferecera um drinque ao visitante?

Maigret procurava imaginar a cena. O visitante indo até o quarto — ao longo do corredor ou através da sala de jantar —, apanhando a pistola, voltando ao escritório, aproximando-se do conde e dando o primeiro tiro à queima-roupa...

— Não tem sentido — suspirou.

E ainda mais: não havia motivo, ou motivo bastante forte, para que a pessoa que fez isso corresse o risco de uma sentença de morte.

— Quero crer que você não submeteu Jacquette ao teste da parafina...

— Eu não teria ousado fazer isso sem consultá-lo antes.

Quando uma arma é disparada, especialmente uma automática, a explosão projeta a certa distância partículas características que se entranham na pele da pessoa que usou a arma, especialmente ao longo da mão, e ali permanecem por algum tempo.

Maigret tinha pensado nisso, na véspera. Mas tinha direito de suspeitar da velha governanta mais do que de qualquer outra pessoa?

Reconhecia que ela estava numa posição única, ideal para cometer o crime. Sabia onde encontrar a arma. Poderia ir e vir pelo apartamento enquanto seu patrão trabalhava,, sem despertar suspeitas, e atirar. E era provável que, com o corpo jazendo à sua frente no tapete, ela tivesse continuado a atirar.

Era também suficientemente meticulosa para ir, depois, por toda a sala recolhendo os cartuchos.

Mas seria possível que tivesse ido, em seguida, calmamente, deitar-se, a poucos metros da sua vítima? Ou que, de manhã, a caminho do Quai d’Orsay, tivesse parado em algum lugar, à beira do Sena, por exemplo, para livrar-se da pistola e dos cartuchos?

Tinha um motivo, é certo, ou um motivo aparente. Por cinqüenta anos ou quase, vivera com Saint-Hilaire, à sua sombra. Ele nada lhe escondia, e, com toda a probabilidade, tinham sido amantes, em cetra época.

O embaixador não parecia dar grande importância a isso, nem Isabelle. Referira-se à história com um sorriso.

Mas e Jacquette? Não era ela, para todos os efeitos, a verdadeira companheira do velho?

Sabia do seu amor platônico pela princesa, punha diariamente suas cartas no correio, e era ela também quem admitia Isabelle no apartamento na ausência do patrão.

— Pode ser que...

Maigret achava a teoria desagradável, fácil demais. Embora pudesse concebê-la, não a sentia.

Com o príncipe de V... morto e Isabelle livre, os velhos namorados podiam, finalmente, casar-se. Tinham só de esperar até o fim do período de luto para procederem à cerimônia, na prefeitura e na igreja, e poderiam viver juntos, depois, na Rue SaintDominique ou na Rue de Varenne.

— Escute, Moers... Vá até lá... Seja amável com Jacquette. Não a assuste. Diga-lhe que se trata de uma formalidade apenas...

— O senhor quer que faça o teste?

— Tirar-me-ia pelo menos um peso das costas.

Quando lhe disseram, um pouco mais tarde, que M. Cromières estava ao telefone, mandou dizer que tinha saído e que não se sabia a que horas voltava.

Ler-se-ia nessa manhã o testamento do príncipe de V. Lá, face a face com Aubonnet, estariam Isabelle e seu filho. Mais tarde, no mesmo dia, a princesa voltaria ao escritório do advogado para a leitura de outro testamento.

Os dois homens da sua vida, e no mesmo dia.

Telefonou à Rue Saint-Dominique. Na véspera hesitara em afixar lacres às portas do escritório e do quarto de dormir. Preferiu esperar, de modo a poder examinar os dois cômodos outra vez.

Lapointe, que estava de serviço no local, obviamente tinha cochilado numa poltrona.

— É o senhor, chefe?

— Nada de novo?

— Nada.

— Onde está Jacquette?

— Esta manhã, às seis horas, quando eu dava plantão no escritório, ouvi-a passando o aspirador de pó no corredor. Saí correndo a perguntar-lhe o que estava fazendo e ela me olhou com espanto:

” ’Limpando os aposentos, naturalmente.’ ” ’Que aposentos?’

” ’Primeiro o quarto de dormir, depois a sala de jantar, depois...’ ”

Maigret soltou um grunhido:

— E você a deixou limpar?

— Não. Mas ela não pareceu entender por quê. ” ’O que devo fazer, então?”, perguntou.

— O que você respondeu?

— Pedi-lhe que coasse café para mim, e ela saiu para comprar croissants.

— Não parou pelo caminho para dar algum telefonema ou botar alguma carta no correio?

— Não. Eu disse ao policial de sentinela à porta que a seguisse à distância. Ela foi realmente apenas à padaria, e não se demorou lá mais que um minuto.

— Está furiosa?

— É difícil dizer. Ela vem e vai, mexendo os lábios como se estivesse falando consigo mesma. Agora mesmo está na cozinha e não sei o que andará fazendo.

— Tem havido telefonemas?

A porta-janela que dava para o jardim devia estar aberta, pois Maigret podia ouvir o canto dos melros pelo telefone.

— Moers estará aí com você em poucos instantes. Já se encontra a caminho. Você não está cansado?

— Devo admitir que dormi um bocado.

— Mandarei alguém substituí-lo mais tarde. Uma idéia lhe ocorreu.

— Não desligue. Vá pedir a Jacquette que lhe mostre suas luvas.

Era mulher devota, e Maigret juraria que, para a missa de domingo, usava um par de luvas.

— Espero na linha.

Esperou com o fone na mão. Levou tempo.

— O senhor ainda está aí, chefe?

— Então?

— Ela mostrou-me três pares.

— Não ficou surpresa?

— Lançou-me um olhar malévolo, antes de ir abrir uma gaveta no quarto. Pude ver um missal, dois ou três rosários, postais, medalhões, lenços e luvas. Dois pares, de algodão branco.

Maigret podia vê-la no verão, com luvas brancas, e, sem dúvida, um aplique branco no chapéu.

— E o outro par?

— De pelica preta, bastante usado.

— Bom. Vejo você mais tarde.

A pergunta de Maigret estava ligada à missão de Moers. O assassino de Saint-Hilaire poderia ter aprendido nos jornais ou revistas que uma pessoa que dispara um revólver fica com as mãos incrustadas de pólvora por algum tempo depois do. tiro. Se Jacquette usara a automática, não teria pensado em pôr um par de luvas? Nesse caso, teria dado fim a elas?

Para esclarecer esse ponto, folheou o dossiê à sua frente. Encontrou o inventário, com o conteúdo de cada peça de mobília, aposento por aposento.

Quarto da empregada... Uma cama de ferro... Uma velha mesa de mogno coberta com um pano de veludo carmesim com franjas...

Acompanhava a lista com o dedo.

Onze lenços, inclusive seis marcados com a inicial J... Três pares de luvas...

Ela havia mostrado três pares a Lapointe.

Saiu, sem pôr o chapéu, e dirigiu-se para a porta que comunica a chefatura de polícia com o Palácio da Justiça. Não fora ainda ver o juiz, Urbain de Chézaud, que servia antes em Versalhes e com quem não tinha tido até então oportunidade de trabalhar. Subiu ao terceiro piso, onde ficavam as salas mais antigas, e acabou por achar o cartão do magistrado numa porta.

— Entre, M. Maigret. Fico encantado em vê-lo. Já estava pensando se não deveria telefonar-lhe.

Tinha uns quarenta anos, e ar inteligente. Na mesa dele, Maigret reconheceu a duplicata da pasta que ele mesmo tinha recebido e notou que diversas páginas continham anotações a lápis vermelho.

— Não temos muitas pistas materiais, não é mesmo? — suspirou o magistrado, convidando o inspetor a sentar-se. — Acabo de receber um chamado do Quai d’Orsay...

— Do jovem M. Cromières...

— Ele diz que tem tentado inutilmente entrar em contato com o senhor, e não pode imaginar onde os jornais da manhã obtiveram informações.

Por trás de Maigret, a secretária do juiz datilografava furiosamente. As janelas abriam para o pátio, de modo que jamais poderia haver sol na sala.

— O senhor tem alguma novidade?

Por gostar do magistrado, Maigret não tentou esconder seu desânimo.

— O senhor leu isso — disse, mostrando com o dedo o dossiê. — Esta tarde, ou amanhã, vou mandar-lhe um relatório preliminar. Roubo não foi o motivo do crime. Parece-me que não é também uma questão de interesse financeiro, porque seria por demais óbvio. O sobrinho da vítima é a única pessoa que lucra com a morte de Saint-Hilaire. Assim mesmo, apenas ganharia uns poucos meses ou anos.

— Não estará em dificuldades?

— Sim e não. É difícil arrancar qualquer coisa positiva dessa gente sem acusá-los frontalmente. E não tenho base para uma acusação. Mazeron vive separado da mulher e das filhas. Tem um gênio reservado, bastante desagradável. A mulher o descreve como uma espécie de sádico. Pelo aspecto da sua loja, o senhor imaginaria que ninguém jamais vai lá. É verdade que se especializou em troféus militares, e que há alguns entusiastas loucos por essas coisas. Sabe-se que pedia dinheiro ao tio. Mas não há provas de que este não o atendesse de boa vontade. Temeria que, com o casamento, Saint-Hilaire o deserdasse? É possível. Mas não creio nisso. Famílias como aquela têm uma mentalidade toda especial. Cada membro se tem na conta de depositário ou curador da propriedade, que deverá transmitir, tanto quanto possível intacta, aos seus descendentes, diretos ou IIIdiretos.

Percebeu um sorriso nos lábios do magistrado, e lembrou-se de que ele se chamava Urbain ”de” Chézaud, um nome com a partícula da nobreza.

— Prossiga.

— Fui ver Mme Mazeron, no seu apartamento de Passy, e não vejo razão para que ela matasse o tio do marido. O mesmo se aplica às duas filhas. Uma delas, de qualquer maneira, está presentemente na Inglaterra. A outra trabalha fora.

Maigret encheu o cachimbo.

— O senhor se importa que eu fume?

— Claro que não. Eu também fumo cachimbo.

Era a primeira vez que encontrava um juiz fumante de cachimbo! É verdade que o outro acrescentou:

— Em casa, à noite, quanto estudo meus processos...

— Fui ver a princesa de V... Lançou uma olhadela ao magistrado.

— O senhor conhece a história, não?

Maigret juraria que Urbain de Chézaud freqüentava círculos em que as pessoas comentavam sobre Isabelle.

— Ouvi falar nisso.

— É verdade que muita gente tinha ciência da ligação do conde, se é que, no caso, se pode falar em ”ligação”?

— Em certos círculos, sim. Os amigos dela chamam-na Isi.

— Éo nome que o conde lhe dá em suas cartas.

— O senhor as leu?

— Não todas. E não de ponta a ponta. Há cartas em número suficiente para encher vários volumes. Pareceu-me, embora seja apenas uma impressão, que a princesa não estava tão abalada com a morte de Saint-Hilaire como seria de esperar.

-— Na minha opinião, nada na vida dela jamais conseguiu abalar-lhe a serenidade. Já nos encontramos mais de uma vez. Tenho também ouvido impressões de amigos comuns. Pensam que ela chegou a uma certa idade e que o tempo, para ela, estacou. Diz-se que permaneceu tal qual era aos vinte anos; outros chegam a dizer que não mudou desde a escola, no convento.

— Os jornais vão publicar tudo. Já começaram a aludir ao romance.

— Percebi isso. Era fatal.

— No curso da nossa conversação, ela nada disse que me fornecesse uma linha a seguir. Esta manhã, está no advogado, para a leitura do testamento do marido. Vai voltar à tarde, para o testamento de Saint-Hilaire.

— Ele deixou-lhe alguma coisa?

— Só os móveis e objetos pessoais.

— O senhor esteve com o filho?

— Phillipe, mulher e filhos. Estavam todos reunidos na Rue de Varenne. O filho ficou sozinho em Paris.

— O que achou deles? Maigret foi obrigado a responder:

— Não sei.

Phillipe também, a rigor, tinha motivo para matar Saint-Hilaire. Tornara-se o chefe da histórica família de V. aparentada a todas as cortes da Europa.

Seu pai havia tolerado o amor platônico de Isabelle pelo discreto embaixador, que ela via apenas à distância e a quem escrevia cartas infantis.

Uma vez morto, a situação estava fadada a mudar. A despeito dos seus setenta e dois anos e dos setenta e sete do seu amado, a princesa ia casar-se com Saint-Hilaire, perder o título e mudar de nome.

Mas seria isso motivo bastante para cometer um crime e arriscar-se a uma sentença de morte?

Maigret se perguntava. Seria, afinal, substituir um escândalo moderado por outro, de natureza muito mais grave.

O inspetor-chefe murmurou, atrapalhado:

— Verifiquei os movimentos dele na noite de terça-feira. Instalou-se com a família num hotel da Place Vendôme, como tem costume de fazer. Quando os filhos foram para a cama, saiu só e subiu os Champs-Elysées a pé. Na esquina da Rue de Berry apanhou uma das cinco ou seis prostitutas disponíveis e acompanhou-a ao hotel dela.

Maigret conhecia assassinos que, depois do crime, vão em busca de mulher, qualquer mulher, como que por uma necessidade de desafogo.

Não sabia de um só que o tivesse feito antes. Poderia ter sido apenas pelo álibi?

Nesse caso, o álibi era incompleto, pois Phillipe de V... deixara a prostituta por volta das onze e meia, o que lhe dava tempo bastante para ir à Rue Saint-Dominique.

— As coisas estão assim, por enquanto. Vou procurar uma nova pista, sem grande esperança de achá-la. Talvez algum amigo do embaixador, alguém de quem ninguém me falou até agora. Saint-Hilaire tinha hábitos extremamente regulares, como a maior parte dos velhos. Quase todos os seus amigos já estão mortos...

O telefone tocou. A secretária atendeu. E, voltando-se para o inspetor-chefe:

— É para o senhor.

— Dá-me licença? Deve ser urgente.

— Pois não.

— Alô? Sim, Maigret... Quem fala?

Não reconheceu a voz porque Moers, que finalmente se identificou, parecia em estado de grande excitação.

— Tentei comunicar-me com o seu escritório. Disseram-me...

— Sim, sim.

— Estou chegando ao ponto. É tão extraordinário! Fiz o teste...

— Eu sei. E então?

— É positivo.

— Está certo disso?

— Absolutamente certo. Não há dúvida de que Jacquette Larrieu deu um ou mais tiros nas últimas quarenta e oito horas.

— Ela concordou em submeter-se ao teste?

— Não opôs qualquer dificuldade.

— E como explica o resultado?

— Não explica. Eu não lhe disse nada. Tive de ir ao laboratório para completar o exame.

— Lapointe continua com ela?

— Continuava quando saí da Rue Saint-Dominique.

— Você tem absoluta certeza do que acaba de me contar?

— Absoluta.

— Obrigado.

Desligou, sério, uma ruga no meio da fronte, enquanto o magistrado o olhava, à espera.

— Eu estava enganado — murmurou Maigret, com pesar.

— O que quer dizer?

— Por precaução, sem convicção nenhuma, pedi ao laboratório que fizesse um teste de parafina na mão direita de Jacquette Larrieu.

— E foi positivo? Foi o que pensei que lhe diziam ao telefone, mas achei difícil acreditar.

— Como eu.

Deveria ter sentido alívio, como se lhe tirassem um grande peso das costas. Depois de uma IIIvestigação de apenas vinte e quatro horas, o problema que parecia insolúvel há poucos minutos estava resolvido.

E, todavia, o fato não lhe trazia qualquer satisfação.

— Enquanto estou aqui, o senhor poderia assinar o mandado de prisão?

— O senhor mandará seus homens prendê-la?

— Irei eu mesmo.

E, curvando-se, Maigret acendeu outra vez o cachimbo, enquanto o magistrado preenchia calado os espaços em branco de um formulário impresso.

 

Maigret passou por sua sala, a fim de pegar o chapéu. Quando ia isair de novo, teve de repente uma idéia. Furioso consigo mesmo por não haver pensado nisso antes, correu ao telefone.

Para ganhar tempo, discou pessoalmente o número da Rue Saint-Dominique, sem usar os serviços da telefonista. Estava ansioso por ouvir a voz de Lapointe, ansioso por assegurar-se de que nada acontecera por lá. Mas, ao invés da campainha, ouviu o zumbido staccato da cigarra, indicando que o aparelho estava ocupado.

Não pensou e, por alguns segundos, sentiu pânico.

Para quem estaria Lapointe telefonando? Moers deixara-o há pouco. Sabia que Moers entraria imediatamente em contato com o inspetor-chefe para fazer-lhe o seu relatório.

Se o inspetor deixado no apartamento de SaintHilaire usava o telefone era porque algo de inesperado tinha acontecido, e que chamava a chefatura de polícia, ou um médico.

Maigret ligou outra vez, abriu a porta da sala ao lado e deu com Janvier, que acendia um cigarro.

— Espere por mim no pátio e fique ao volante.

Fez uma última tentativa, mas ouviu de novo o mesmo sinal de ocupado.

Pouco depois podia ser visto correndo escadas abaixo, saltando no pequeno automóvel preto e batendo a porta.

— Rue Saint-Dominique. O mais depressa que puder. Use a sirene.

Janvier, que não sabia da evolução do caso, olhou-o surpreso, pois o inspetor tinha ódio da sirene e raramente a usava.

O carro disparou em direção ao Pont SaintMichel, dobrando à direita ao longo do cais, enquanto os outros automóveis encostavam ao meio-fio e os transeuntes paravam para segui-los com o olhar.

Talvez a reação de Maigret fosse ridícula, mas ele não podia livrar-se da imagem de Jacquette morta e de Lapointe ao lado dela, agarrado ao telefone. Isso ficou tão nítido na sua mente que ele chegou a ponderar de que maneira teria cometido o suicídio. Não poderia saltar pela janela, o apartamento ficava no primeiro andar. Não havia arma disponível, exceto as facas da cozinha.

O carro parou. O policial, de guarda à porta, no sol, ficou surpreso com a sirene. A janela do quarto estava escancarada.

Maigret entrou correndo, subiu os degraus de pedra, apertou a campainha e viu-se cara a cara com Lapointe, ao mesmo tempo calmo e atônito.

— O que houve, chefe?

— Onde está ela?

— No quarto.

— Quando você a ouviu andar, pela última vez?

— Agora mesmo.

— Para quem estava telefonando?

— Tentava falar com o senhor.

— Para quê?

— Ela está se vestindo para sair, e eu queria pedir instruções.

Maigret sentiu-se ridículo diante de Lapointe e de Janvier, que se reunira a eles. Em contraste com a ansiedade de há pouco, o apartamento parecia mais tranqüilo do que nunca. O estúdio estava inundado de luz, a porta aberta para o jardim, a tília com um alvoroço de pássaros.

O inspetor-chefe foi à cozinha, onde tudo estava em ordem, e ouviu pequenos ruídos no quarto da governanta.

— Posso vê-la um momento, Mlle Larrieu? Uma vez ele dissera madame e ela protestara:

”Mademoiselle, por favor!”

— Quem é?

— Inspetor-chefe Maigret.

— Um minuto.

Lapointe continuava, num sussurro:

— Ela tomou banho no banheiro do patrão. Maigret jamais estivera tão descontente consigo

mesmo, e lembrou-se do seu sonho, de todos aqueles velhos que o olhavam com superioridade, abanando as cabeças porque ele estava de calças curtas e porque, a seus olhos, não passava de um menino.

A porta do quarto abriu-se, uma baforada de perfume lhe chegou às narinas, um perfume fora de moda havia anos, e que ele reconheceu porque sua mãe o usava sempre, aos domingos, para ir à missa cantada.

Jacquette estava arrumada como se fosse, justamente, a uma missa cantada. Usava um vestido preto de seda, um lenço de seda ao pescoço, um chapéu preto debruado de seda branca e um imaculado par de luvas. Só faltava um missal.

— Sou obrigado — disse — a levá-la ao Quai des Orfèvres.

Estava disposto a mostrar-lhe o mandado assinado pelo juiz, mas, ao contrário do que esperava, ela não mostrou surpresa nem indignação. Sem uma palavra, foi até a cozinha verificar se o gás estava fechado, e ao escritório para fechar a janela. Fez apenas uma pergunta:

— Alguém vai ficar aqui?

E, como ninguém lhe respondesse imediatamente, acrescentou:

— Senão, será melhor que eu feche também a janela do quarto.

Não só, sabendo-se apanhada, não tinha intenção de suicidar-se, como também jamais parecera tão digna, tão senhora de si. Foi ela quem saiu na frente. Maigret disse a Lapointe:

— Será melhor que você fique.

Não teria sido ridículo, abominável até, algemar essa mulher de setenta anos? Maigret convidou-a a entrar no carro e tomou seu lugar ao lado dela.

— Não precisamos mais de sirene.

O tempo estava ainda magnífico, e eles passaram por um grande ônibus, todo branco, repleto de turistas estrangeiros. Maigret não achava nada para dizer, nenhuma pergunta para fazer.

Centenas de vezes já voltara ao Quai des Orfèvres assim, em companhia de um suspeito, homem ou mulher, que teria de submeter a um desapiedado interrogatório. Isso podia durar várias horas e, às vezes, terminava só ao raiar do dia, quando os habitantes de Paris começavam a ir para o trabalho.

Para Maigret, essa fase de uma investigação era sempre desagradável.

Agora, pela primeira vez na vida, tinha de submeter uma anciã à mesma operação.

No pátio da chefatura de polícia, tentou ajudá-la a sair do automóvel, mas Jacquette empurroulhe a mão e caminhou com atitude digna para a escadaria, como se estivesse atravessando a praça fronteira de uma igreja. Maigret fizera sinal a Janvier para que os seguisse. Todos os três subiram pela escada principal e foram ter, juntos, à sala do inspetor-chefe, onde a brisa enfunava as cortinas.

— Sente-se, por favor.

Embora tivesse apontado para uma poltrona, ela escolheu uma cadeira de espaldar reto, enquanto Janvier, familiarizado com a rotina, instalava-se a um canto da mesa e sacava bloco e lápis.

Maigret limpou a garganta, encheu um cachimbo, andou até a janela, e voltou para plantar-se em frente da velha, que o observava com seus olhinhos brilhantes e duros.

— Antes de mais nada devo informá-la de que o juiz acaba de assinar o seu mandado de prisão.

Apresentou-lhe o papel. Ela mostrou apenas um interesse polido.

— A senhora é acusada de cometer o assassinato voluntário de seu patrão, o conde Armand de Saint-Hilaire, na noite de terça para quarta-feira últimas. Um técnico da polícia procedeu há pouco a um teste de parafina na sua mão direita. Esse teste consiste em recolher as partículas de pólvora e de substâncias químicas que se entranham na pele de uma pessoa quando ela faz uso de uma arma de fogo, particularmente de uma pistola automática.

Observava-a, esperando alguma reação, mas era ela quem parecia estudá-lo, e era ela a mais calma e a mais controlada dos dois.

— A senhora não diz nada?

— Não tenho nada a dizer.

— O teste foi positivo, o que significa que ficou estabelecido, sem qualquer possibilidade de dúvida, que a senhora usou uma arma de fogo recentemente.

Impassível, parecia estar na igreja escutando um sermão.

— O que fez com a arma? Suponho que, na manhã de quarta-feira, ao ir ao Quai d’Orsay, a senhora a tenha lançado ao Sena, com os cartuchos. Aviso-a de que serão tomadas as necessárias providências para que essa arma seja recuperada, que mergulhadores pesquisarão o leito do rio.

Decidira guardar silêncio, e silenciosa ficou. Quanto aos olhos, permaneceram tão serenos que se poderia pensar que ela nada tinha a ver com o que se passava, que sua presença ali era um mero acidente, que ouvia coisas que não lhe diziam absolutamente respeito.

— Não sei qual terá sido o motivo, embora possa imaginar. A senhora viveu cinqüenta anos com o conde de Saint-Hilaire. Foi tão íntima dele como dois seres humanos podem ser.

Um efêmero sorriso adejou nos lábios de Jacquette, um sorriso em que havia, misturadas, coqueteria e uma secreta satisfação.

— A senhora sabia que, com o casamento, seu patrão realizaria o sonho da sua juventude.

Era aborrecido falar inutilmente, e de quando em vez Maigret tinha de controlar-se para não sacudir a velha pelos ombros.

— Se não tivesse morrido, ele teria se casado, não é verdade? Teria a senhora conservado seu lugar na casa? E, se tivesse, sua posição seria ainda a mesma?

Com o lápis no ar, Janvier esperava uma resposta para registrar.

— Na noite de terça-feira, a senhora foi ao escritório do seu patrão. Ele corrigia as provas do seu livro. Discutiu com ele?

Depois de outros dez minutos de perguntas, sem uma só resposta, Maigret, totalmente exasperado, sentiu necessidade de sair e descansar por um momento na sala dos inspetores. Isso o fez lembrarse de que Lapointe estava sozinho na Rue Saint-Dominique desde a noite anterior.

— Você está ocupado, Lucas?

— Nada de urgente.

— Nesse caso, vá substituir Lapointe. Depois, como já passasse de meio-dia, acrescentou:

— No caminho, pare na Brasserie Dauphine e diga-lhes que mandem um prato de sanduíches, cerveja e café para nós.

E, pensando na velha governanta:

— E uma garrafa de água mineral também.

Na sua sala, encontrou Jacquette e Janvier imóveis, cada um na sua cadeira, como se estivessem num cinema.

Durante meia hora, andou de um lado para outro, fumando cachimbo, detendo-se em frente da janela, e plantando-se perto da empregada para encará-la.

Não era um interrogatório, pois a mulher permanecia teimosamente calada, mas um longo e mais ou menos descosido monólogo.

— É possível — digo-lhe isso limpamente — que os peritos encontrem atenuantes. Seu advogado certamente pretenderá que se trata de um crime passional.

Parecia ridículo, mas era verdade.

— Ficando muda, a senhora não ajudará a sua causa, muito pelo contrário. Ao passo que confessando-se culpada terá toda a possibilidade de comover os jurados. Por que não começa logo a fazer isso?

As crianças têm um brinquedo assim. A gente não pode abrir a boca, diga o adversário o que disser. Sobretudo, não pode rir.

Jacquette nem falava nem ria. Acompanhava Maigret com os olhos enquanto ele ia e vinha, comportando-se todo o tempo como se não fosse parte do caso, sem demonstrar emoção ou reação de qualquer espécie,

— O conde foi o único homem da sua vida? Mas de que servia? Procurava em vão pelo

calcanhar-de-aquiles da mulher. Bateram à porta. Era o garçom da Brasserie Dauphine, que depôs uma bandeja na mesa do inspetor-chefe.

— Será melhor que coma alguma coisa. Assim como vamos, ficaremos aqui por muito tempo.

Ofereceu-lhe um sanduíche de presunto. O garçom se foi. Ela tirou um pedacinho do pão e, como que por milagre, falou.

— Não como carne há quinze anos. Gente velha não precisa de carne.

— Prefere queijo, então?

— De qualquer maneira, não tenho fome. Maigret saiu de novo para a sala dos inspetores.

— Alguém faça o favor de telefonar à brasserie e pedir que mandem alguns sanduíches de queijo.

Ele, por seu lado, comeu enquanto andava, como que por vingança, segurando o cachimbo numa das mãos e o sanduíche na outra, e parando de vez em quando para tomar um gole de cerveja. Janvier deixou o inútil lápis na mesa e comeu também.

— A senhora prefere falar a sós comigo? Isso produziu apenas um encolher de ombros.

— A senhora tem direito, desde este momento, a um advogado de sua livre escolha. Estou preparado para mandar chamar imediatamente qualquer um que me indique. A senhora conhece algum?

— Não.

— Quer que eu lhe forneça uma lista de advogados?

— Não teria utilidade.

Tinham feito algum progresso. Pelo menos agora ela falava.

— A senhora admite que matou seu patrão?

— Não tenho nada a dizer.

— Em outras palavras, jurou calar-se, aconteça o que acontecer?

De novo, o mesmo exasperante silêncio do começo. A fumaça do cachimbo flutuava no ar do escritório, onde a luz do sol caía obliquamente. A atmosfera começou a recender a presunto, cerveja e café.

— A senhora gostaria de uma xícara de café?

— Só tomo café de manhã e, assim mesmo, com bastante leite.

— O que gostaria de tomar?

— Nada.

— Pretende fazer greve de fome?

Fora um erro dizer isso, porque ela disfarçou um sorriso à idéia, que possivelmente lhe agradou.

Já tivera suspeitos de todas as espécies naquela sala, em circunstâncias parecidas, tanto sujeitos duros como sujeitos fracos. Alguns gritavam, outros ficavam pálidos, outros o desafiavam e riam-se dele.

Era a primeira vez que alguém, sentado àquela cadeira, mostrava tanta indiferença e tão calma obstinação!

— A senhora ainda não tem nada a dizer?

— Ainda não.

— Quando pensa falar?

— Não sei.

— Espera alguma coisa? Silêncio.

— Gostaria que eu telefonasse à princesa de V...?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não.

— Há alguma pessoa a quem a senhora desejaria mandar uma palavra ou que gostaria de ver?

Os sanduíches de queijo chegaram, e ela olhou para eles apaticamente. Sacudiu de novo a cabeça e disse:

— Não agora.

— Está mesmo determinada a não dizer nada, a não beber nada, não comer nada?

A cadeira era dura, e quase todos os que nela se sentavam logo se sentiam desconfortáveis. Ao cabo de uma hora, ela mantinha a mesma postura ereta do princípio, sem mover pés ou braços, sem mudar de posição.

— Ouça, Jacquette...

Ela franziu o cenho, chocada pela familiaridade, e foi o inspetor-chefe quem demonstrou algum embaraço.

— Advirto-a de que ficaremos nesta sala enquanto for necessário. Temos a prova material de que a senhora disparou um ou mais tiros. Tudo o que lhe peço é que me diga por que e em que circunstâncias. Por esse seu estúpido silêncio...

Usou a palavra sem pensar e corrigiu-se:

—...por esse silêncio, corre o risco de pôr a polícia na pista errada, lançando suspeitas sobre outras pessoas. Se daqui a meia hora não tiver respondido às minhas perguntas, eu mandarei chamar a princesa de V... e farei uma confrontação das duas. Chamarei também o filho dela, Alain Mazeron e a mulher dele, e veremos se dessa confrontação geral... — O que é? — perguntou Maigret, com raiva.

Tinham batido à porta. O velho Joseph chamou-o para o corredor e, com a cabeça curvada, disse-lhe ao ouvido:

— Está aí um moço, que insiste...

— Que moço?

— Joseph entregou-lhe um cartão de visita com o nome de Julien de V..., neto de Isabelle.

— Onde está ele?

— Na ante-sala. Disse que é urgente, pois tem uma aula importante a que não pode faltar.

Maigret voltou ao seu escritório.

— O neto de Isabelle, Julíen, pede para verme. A senhora ainda se obstina em calar-se?

Era, na verdade, exasperante, mas era patético também. Maigret julgou detectar sinais de um conflito na mente da mulher, e hesitou em forçar a mão. Até Janvier, que era um simples espectador, afinal de contas, parecia um tanto envergonhado.

— A senhora terá de falar, mais cedo ou mais tarde. Nesse caso, por que...

— Posso ver um padre?

— A senhora deseja confessar-se?

— Estou apenas pedindo permissão para falar com um padre por alguns minutos. O padre Barraud.

— Onde posso encontrar esse padre Barraud?

— No presbitério de Santa Clotilde.

— É o seu confessor?

Não desejava perder qualquer oportunidade e apanhou o telefone.

— Ligue-me com a casa paroquial de Santa Clotilde... Sim... Eu espero... O padre Barraud... Não importa como se escreve...

Ficou arrumando seus cachimbos em cima da mesa. Colocou-os em fila indiana.

— Alô? Padre Barraud? Aqui fala o inspetorchefe Maigret, divisional... Tenho uma de suas paroquianas no meu escritório, e ela deseja falar-lhe... Sim... É Mlle Larrieu... O senhor poderia tomar um táxi e vir ao Quai des Orfèvres? Obrigado... Sim, ela esperará pelo senhor...

E para Janvier:

— Quando o padre chegar, traga-o aqui e deixe-os a sós... Há alguém que eu tenho de ver, enquanto isso...

Foi à sala de espera, envidraçada, cujo único ocupante era o rapaz de preto que ele vislumbrara antes na Rue de Varenne em companhia dos pais, irmãos e irmãs. Quando ele viu Maigret, levantou-se e acompanhou o inspetor-chefe até uma saleta desocupada.

— Sente-se.

— Não tenho muito tempo. Tenho de voltar à Rue d’Ulm, onde devo assistir a uma aula dentro de meia hora.

No minúsculo escritório, ele parecia ainda mais alto e mais magro do que antes. A expressão do seu rosto era séria e também tristonha.

— Ontem, quando foi ver minha avó, quase falei com o senhor.

Por que teria Maigret pensado que gostaria de ter um garoto assim como filho? Ele tinha uma encantadora naturalidade de maneiras e, ao mesmo tempo, uma espécie de modéstia inata. E era também reservado. Podia-se dizer que por falta de experiência.

— Não sei se o que tenho a dizer-lhe será de qualquer utilidade para o senhor. Pensei muito nisso a noite passada. Na tarde de terça-feira fui ver meu tio.

— Seu tio?

O rapazinho corou, de- um rubor muito leve, que desapareceu imediatamente e que ele substituiu por um sorriso tímido:

— É como chamávamos o conde de SaintHilaire.

— E você costumava ir vê-lo?

— Sim. Não falava disso com meus pais, mas também não procurava esconder o fato. Ouvi falar dele pela primeira vez quando menino.

— Quem lhe falou dele?

— Minhas governantas e, depois, meus colegas de escola. A história de amor de minha avó é coisa quase lendária.

— Eu sei.

— Quando tinha dez ou onze anos, pergunteilhe sobre ele, e pegamos, os dois, o hábito de falar de Saint-Hilaire. Ela costumava ler para mim certas cartas, aquelas em que ele descrevia, por exemplo, recepções diplomáticas ou relatava conversas com chefes de Estado. O senhor leu as cartas dele?

— Não.

— Escrevia muito bem, num estilo vivo, como o do cardeal de Retz. Talvez tenha sido por causa do conde e de suas histórias que eu escolhi a carreira diplomática.

— Quando foi que travou relações pessoais com ele?

— Há dois anos. Eu tinha um amigo em Stanislas, cujo avô pertencera, também, ao serviço diplomático. Um dia, em casa dele, encontrei o conde de Saint-Hilaire, e pedi para ser-lhe apresentado. Pensei perceber nele certa emoção. Ele me olhou de cima a baixo, e eu também fiquei comovido. Fez-me, depois, perguntas sobre meus estudos e sobre meus planos futuros.

— Você foi vê-lo na Rue Saint-Dominique?

— Ele me convidou, embora tivesse acrescentado: ”Uma vez que seus pais não façam objeção”.

— E você o via freqüentemente?

— Não. Uma vez por mês, aproximadamente. Dependia. Eu lhe pedi conselho, por exemplo, sobre o meu bacharelado, e ele me encorajou na minha decisão de entrar para a Escola Normal. Considerava, como eu também, que, mesmo que isso não ajudasse diretamente minha carreira, daria uma base sólida. Um dia, sem pensar duas vezes, eu disse:

” ’É como se eu falasse com um tio’. ” ’E eu com um sobrinho’, disse ele. ’Por que não me chama de tio?’

”Foi por isso que usei a palavra, ainda agora.”

— Não gostava do seu avô?

— Eu não o conhecia muito bem. Embora ele e o conde de Saint-Hilaire pertencessem à mesma geração, eram homens completamente diferentes. Meu avô, para mim, foi sempre uma personagem impressionante e inacessível.

— E sua avó?

— Sempre fomos grandes amigos. Ainda somos.

— Ela sabia das suas visitas à Rue Saint-Dominique?

— Sim. Eu costumava contar-lhe tudo sobre nossas conversas. Ela me pedia pormenores e, algumas vezes, me lembrava que já fazia tempo que eu não visitava nosso amigo.

Embora atraído pelo rapaz, Maigret, não obstante, estudava-o com um assombro que raiava a incredulidade. Não estavam acostumados, ali, no Quai des Orfèvres, a encontrar adolescentes dessa espécie. E uma vez mais tinha a impressão de um mundo irreal, de gente que saía, não da vida verdadeira, mas de um livro edificante.

— Então, na tarde de terça-feira, você foi à Rue Saint-Dominique?

— Sim.

— Tinha alguma razão especial para essa visita?

— De certo modo. Meu avô morrera dois dias antes. Pensei que minha avó gostaria de saber a reação do seu amigo.

— Você mesmo não sentia curiosidade idêntica?

— Talvez. Sabia que os dois haviam jurado casar-se um dia, se isso fosse possível.

— A idéia agradava a você?

— Sim, muito.

— E a seus pais ?

— Nunca discuti isso com meu pai. Mas tenho todos os motivos para crer que não se importava. Quanto a minha mãe...

Como ele não terminasse a frase, Maigret incitou-o:

— Sua mãe... ?

— Não estarei sendo injusto para com ela se disser que dá mais importância a títulos e privilégios que qualquer outra pessoa da nossa família.

Provavelmente por não haver nascido princesa, mas simplesmente Irene de Marchangy.

— O que aconteceu no curso da conversa, na Rue Saint-Dominique?

— Nada que eu possa explicar com muita clareza. Mesmo assim, pensei que deveria contar tudo ao senhor. Desde o começo, o conde de Saint-Hilaire pareceu-me preocupado. E, de súbito, tomei consciência do fato de que ele era muito velho. Antes nunca me parecera ter aquela idade. Podia-se ver que amava a vida, que se encantava com todos os seus aspectos, com todos os momentos, como um connaisseur. A meu ver, era um homem do século XVIII deslocado no século XX. O senhor entende o que quero dizer?

Maigret fez que sim com a cabeça.

— Não esperava encontrá-lo alquebrado pela morte do meu avô, que era dois anos mais velho do que ele. Principalmente porque a morte foi acidental e não muito dolorosa, na verdade. Mas na tarde de terça-feira Saint-Hilaire estava deprimido e evitava olhar-me de frente, como se tivesse algo a esconder. Eu disse qualquer coisa como:

” ’Daqui a um ano, o senhor poderá, finalmente, desposar minha avó’.

”Ele desviou a cabeça, de modo que eu insisti: ” ’Como se sente com relação a isso?’ ”Desejaria lembrar exatamente as palavras dele. E é estranho que não as recorde, uma vez que me impressionaram tanto por tudo o que significavam. O que disse, em suma, foi:

” ’Não me será permitido fazê-lo’.

”E quando eu o encarei, julguei ver medo no rosto dele. Como o senhor percebe, é tudo muito vago. Na hora, não dei grande importância à história, imaginando ser a reação natural de um ancião que fica sabendo da morte de outro e se diz que logo chegará a sua vez. Quando soube que tinha sido assassinado, a cena me voltou à memória.

— Você mencionou isso a alguém?

— Não.

— Nem mesmo à sua avó?

— Não quis causar-lhe preocupação. Podia jurar que o conde se sentia em perigo de vida. Não era homem de imaginar coisas. A despeito da idade, sua mente era ainda excepcionalmente lúcida e sua filosofia o imunizava contra temores infundados.

— Se compreendi bem, você pensa que ele previu o que lhe aconteceria.

— Previa algo de desagradável, sim. Decidi contar-lhe isso porque desde ontem o fato me preocupa.

— Ele nunca lhe falou de amigos seus?

— Apenas de amigos mortos. Não tinha mais nenhum amigo vivo, mas isso não o perturbava muito. Pensando bem, ele costumava dizer que não era, afinal, tão triste ser o último a ir-se. E acrescentava, com melancolia: ”Quero dizer que existe ainda uma memória em que os outros podem continuar vivendo”.

— Não lhe falou de inimigos?

— Estou seguro de que nunca teve nenhum. Uns poucos colegas invejosos, talvez, no começo da carreira, que foi rápida e brilhante. Esses também estão mortos e enterrados.

— Obrigado. Você fez bem em vir.

— O senhor ainda não descobriu nada? Maigret hesitou, e esteve a ponto de mencionar

Jacquette, que, naquele exato momento, estaria encerrada no seu gabinete com o padre Barraud.

Na chefatura de polícia costumavam chamar à sala do inspetor-chefe o ”confessionário”. Mas essa era a primeira vez em que de fato servia para uma confissão propriamente dita.

— Nada de palpável, não.

— Tenho de ir embora, para a Rue d’Ulm. Maigret acompanhou-o até o alto da escadaria.

— Mais uma vez, obrigado.

Caminhou, então, pelos corredores por algum tempo, com as mãos atrás das costas. Depois, acendeu o cachimbo e entrou na sala dos inspetores.

— O padre está aí, do outro lado da porta?

— Já está fechado com ela há algum tempo.

— Que cara tem?

Janvier respondeu com uma ironia um tanto amarga:

— É o mais velho do love.

 

— Ligue-me com Lucas.

— Na Rue Saint-Dominique?

— Sim. Mandei que fosse render Lapointe.

Começava a perder a paciência. A conversa prosseguia, a meia voz, na sala vizinha, e quando ele se aproximava da porta tudo o que podia ouvir era uma espécie de cochicho, como o que se ouve do lado de fora de um verdadeiro confessionário.

— Lucas? Tudo em paz por aí?... Apenas telefonemas de jornalistas?... Continue a dizer-lhes que não há novidades... O quê? Não, ainda não falou... Sim, está na minha sala, mas não comigo nem com outra pessoa da chefatura... Com um padre...

Pouco depois, era o juiz ao telefone, e Maigret repetiu aproximadamente as mesmas palavras.

— Não, não se incomode... Não estou pressionando... Muito ao contrário...

Não se lembrava mesmo de ter sido assim tão brando e paciente em toda a sua vida. Uma vez mais o artigo inglês que Pardon lera para ele lhe veio à memória, arrancando-lhe um sorriso irônico.

O articulista da Lancet estava enganado. No fim de contas, não era um mestre-escola, nem um romancista, nem um detetive que resolveria o problema de Jacquette. Mas um padre, e octogenário.

— Há quanto tempo estão aí?

— Há vinte e cinco minutos.

Ele não tinha sequer o consolo de um copo de cerveja, pois a bandeja estava na outra sala. Quando pudesse entrar, a cerveja estaria quente. Já estava quente. Ficou tentado a ir à Brasserie Dauphine, mas hesitou em sair naquele momento.

Sentia que a solução estava ao alcance da mão, e procurou adivinhar qual seria, não tanto na sua qualidade de inspetor-chefe da polícia judiciária, cujo dever era identificar um criminoso, e extrair dele uma confissão, mas na sua qualidade de ser humano.

Desse modo conduzira o caso como um assunto pessoal e, a despeito de si mesmo, este lhe trouxera lembranças da infância.

Não se sentia envolvido pessoalmente na história? Se Saint-Hilaire foi embaixador por várias décadas, se o seu amor platônico por Isabelle datava de quase cinqüenta anos atrás, ele, Maigret, tinha a seu crédito vinte e cinco anos de serviços na chefatura de polícia e, até a véspera, acreditava ter visto passar por ali toda espécie possível de criminoso.

Não se julgava nenhum super-hotnem. Não se considerava infalível. Pelo contrário, era com certa humildade que começava todas as investigações, mesmo as mais simples.

Desconfiava das provas, dos julgamentos apressados. Procurava pacientemente entender, tendo sempre em mente que os motivos óbvios nem sempre são os mais importantes.

Se não tinha dos homens uma alta opinião, dos homens e da sua capacidade, continuava assim mesmo a crer no próprio homem.

Procurava seus pontos fracos. E, quando por fim punha o dedo neles, não se vangloriava; sentia, ao contrário, uma certa tristeza.

Desde a véspera, andava um tanto perdido. Viu-se de súbito confrontado com pessoas de cuja existência sequer suspeitava antes. Todas as suas atitudes, opiniões, reações lhe eram pouco familiares. E era em vão que tentava classificá-las.

Gostaria de gostar deles, de Jacquette inclusive, embora ela tivesse o dom de irritá-lo.

Descobria na sua maneira de viver uma graça, uma harmonia, uma certa inocência também, que lhe agradavam.

Mas, de repente, voltou a si:

”Saint-Hilaire foi assassinado, apesar de tudo

isso”.

E por uma daquelas pessoas, isso era praticamente certo. Por Jacquette, se testes científicos tivessem algum valor.

Sentiu, por alguns momentos, uma intensa repulsa por eles todos, até mesmo pelo defunto, e pelo moço que tinha vindo, e despertado nele, mais agudamente do que nunca, o desejo de ser pai.

Por que não poderiam ser como os outros? Por que não conheceriam os mesmos sórdidos interesses ou as mesmas paixões?

Essa história de amor, toda feita de inocência, passou de repente a aborrecê-lo. Deixou de crer nela e começou a buscar outra coisa, uma explicação diferente, mais coerente com sua experiência.

Duas mulheres que amam o mesmo homem muitos anos não acabam odiando uma à outra?

E uma família, aparentada à maior parte das casas reais da Europa, não reagiria violentamente à ameaça de um casamento tão ridículo quanto esse, que os dois velhos tinham em vista?

Nenhum deles acusou ninguém. Nenhum deles tinha inimigos. Todos viviam em aparente harmonia, exceto Mazeron e a mulher, que tinham finalmente se separado.

Irritado pelos murmúrios que ainda continuavam, Maigret quase abriu a porta. O que o deteve foi, talvez, o olhar de reprovação que Janvier lhe lançou.

Este também foi conquistado!

— Espero que você tenha posto alguém de guarda, no corredor.

Chegava a imaginar o velho padre desaparecendo com sua penitente.

Ao mesmo tempo, sentia que estava quase descobrindo a verdade, que lhe escapara até então. Era tudo muito simples, sabia disso. Dramas humanos são invariavelmente simples, quando considerados a posteriori.

Inúmeras vezes, desde a véspera, e em especial desde essa manhã — embora não pudesse dizer exatamente quando —, esteve a ponto de saber.

Um toque discreto na porta de comunicação fê-lo saltar da cadeira.

— Devo entrar com o senhor? — perguntou Janvier.

— Seria bom que o fizesse.

O padre Barraud, que era, na verdade, um homem muito velho, estava de pé — figura esquelética, de longos cabelos despenteados, que lhe formavam uma auréola em torno da cabeça. Sua batina, muito usada, brilhava e estava remendada sumariamente aqui e ali.

Jacquette não parecia ter deixado a cadeira, na qual se mantinha tão ereta como antes. Só a expressão do seu rosto mudara. Não estava mais tensa, belicosa. Não havia nela, agora, desafio, ou determinação de calar-se.

Se não sorria, ganhara certa serenidade.

— Preciso desculpar-me, senhor inspetor-chefe, por fazê-los esperar tanto tempo. O senhor compreende, a pergunta que Mlle Larrieu me fez era deveras delicada e eu tinha de pesá-la cuidadosamente antes de dar-lhe uma resposta. Devo admitir que quase lhe pedi permissão para telefonar ao arcebispo para consultá-lo.

Janvier, sentado à ponta da mesa, tomava notas, em taquigrafia. Maigret, como se sentisse necessidade de manter a calma, instalou-se à sua mesa.

— Sente-se, padre Barraud.

— Posso ficar?

— Imagino que sua penitente ainda precisa de seus serviços.

O padre sentou-se numa cadeira, tirou uma caixinha de madeira da batina e tomou uma pitada de rape. Esse gesto e os grãos de rape na batina esverdeada evocaram muitas lembranças em Maigret.

— Mlle Larrieu, como sabe, é extremamente devota, e sua piedade levou-a a adotar uma atitude que achei de meu dever persuadi-la a abandonar. O que a preocupava era o pensamento de que o sr. conde de Saint-Hilaire não recebesse sepultura cristã, e foi por isso que decidiu esperar até que o funeral se realizasse antes de dizer qualquer coisa.

Para Maigret foi como se um balão de criança tivesse explodido de repente ao sol. Corou por ter estado tão próximo da verdade sem conseguir captá-la.

— O conde de Saint-Hilaire suicidou-se?

— Temo que seja essa a verdade. Mas, como disse Mlle Larrieu, não temos prova de que ele não tenha se arrependido III extremis. Nenhuma morte é instantânea aos olhos da Igreja. O infinito existe no tempo como no espaço, e um tempo infinitamente pequeno, embora desafie ser medido pelos médicos, basta à contrição. Não creio que a Igreja recuse seus últimos ritos ao conde de Saint-Hilaire.

Pela primeira vez, os olhos de Jacquette ficaram enevoados, e ela tirou um lenço da bolsa para enxugá-los, enquanto fazia beiço, como uma menina.

— Fale, Jacquette — disse o padre, encorajando-a. — Repita o que me contou há pouco.

Ela engoliu a saliva.

— Eu estava deitada. Dormindo. Ouvi uma explosão e corri ao escritório.

— E encontrou seu patrão caído no tapete com metade do rosto arrancada.

— Sim.

— Onde estava a pistola?

— Sobre a mesa.

— O que fez?

— Fui apanhar um espelhinho no quarto para certificar-me de que parará de respirar.

— Assegurou-se de que estava morto. E então?

— Meu impulso foi telefonar à princesa.

— Por que não o fez?

— Primeiro, porque era quase meia-noite.

— Não temia que ela desaprovasse seu plano?

— Não pensei nisso imediatamente. Apenas pensei que a polícia viria e que, de repente, tratando-se de suicídio, o conde não teria um enterro cristão.

— Quanto tempo se passou desde que soube que seu patrão estava morto até o momento em que, por sua vez, a senhora disparou a pistola?

— Não sei. Dez minutos, talvez? Ajoelhei-me junto dele e disse uma oração. Depois, de pé, apanhei a pistola e atirei, sem olhar, pedindo ao velho, no céu, que me perdoasse.

— Deu três tiros?

— Não sei. Puxei o gatilho até que ele não funcionou mais. Percebi, então, manchas brilhantes no tapete. Não entendo nada de armas. Mas percebi que eram os cartuchos e apanhei-os todos. Não dormi aquela noite. E cedo, de manhã, fui jogar a pistola e os cartuchos no Sena, do alto da Pont de la Concorde. Tive de esperar um bom tempo, porque havia um policial de sentinela à porta da Câmara dos Deputados que parecia vigiar-me.

— Sabe por que seu patrão cometeu suicídio? Ela olhou para o padre, que lhe fez um sinal de

encorajamento.

— Havia algum tempo que estava ansioso e preocupado.

— Por quê?

— Há uns meses o médico aconselhou-o a abandonar a bebida: vinho e qualquer bebida alcoólica. Ora, ele era grande amante de vinhos. Deixou de beber por alguns dias, depois recomeçou. Davalhe dores de estômago, e ele tinha de levantar-se à noite para tomar bicarbonato de sódio. Nos últimos tempos eu já lhe comprava um pacotinho por semana.

— Qual o nome do médico de Saint-Hilaire?

— Dr. Ourgaud. Maigret apanhou o telefone.

— Ligue-me com o dr. Ourgaud, por favor. E para Jacquette:

— Era médico dele há muito tempo?

— O senhor quase poderia dizer que foi seu médico sempre.

— Que idade tem o dr. Ourgaud?

— Não sei, exatamente. A minha idade, mais

ou menos.

— E ainda clinica?

— Continua a ver os pacientes antigos. O consultório do filho dele fica no Boulevard Saint-Germain, na frente do dele.

Até o fim, permaneciam eles não só no mesmo bairro mas entre gente que se poderia dizer pertencia à mesma espécie.

— Alô? Dr. Ourgaud? Aqui é o inspetor-chefe Maigret.

O médico pediu-lhe que falasse mais alto, desculpando-se por não escutar direito.

— Como pode ter adivinhado, gostaria de fazer-lhe algumas perguntas sobre um dos seus pacientes. Sim, é dele justamente que estou falando. Jacquette Larrieu está aqui no meu escritório e acaba de dizer-me que o conde de Saint-Hilaire cometeu suicídio. O quê? O senhor esperava que eu fosse procurá-lo? O senhor adivinhou que se tratava disso? Alô?... Estou falando tão junto do receptor quanto possível. Ela diz que há vários meses o conde vinha sofrendo de dores no estômago... Posso ouvi-lo perfeitamente... O dr. Tudelle, o médico que fez o exame post-mortem, disse ter ficado surpreso por encontrar os órgãos do ancião em muito boas condições.

— Como?... Era isso que o senhor dizia ao seu paciente?... Ele não acreditava? Sim... Sim... Entendo... O senhor não conseguia convencê-lo... Ele foi ver outros colegas...

— Obrigado, doutor... Terei, provavelmente, de incomodá-lo para tomar o seu depoimento... Mas não, ao contrário, é da maior importância...

Desligou. Seu rosto estava sério, e Janvier julgou perceber nele uma certa emoção.

— O conde de Saint-Hilaire — explicou Maigret numa voz sem expressão — meteu na cabeça que estava com câncer. A despeito do seu médico, que lhe assegurava o contrário, passou a ir a vários facultativos para ser examinado, concluindo sempre que estavam lhe escondendo a verdade.

Jacquette murmurou:

— Ele foi sempre tão orgulhoso da sua saúde! Nos velhos tempos, dizia muitas vezes não ter medo da morte e estar preparado para ela. O que não podia suportar era a idéia de ficar inválido. Quando tinha um resfriado, por exemplo, escondia-se como um animal doente, e tentava manter-me longe do quarto tanto quanto possível. Era muito suscetível a esse respeito. Há tempos, um dos seus amigos morreu de câncer depois de estar acamado perto de dois anos. Fez vários tratamentos complicados e inúteis, e o conde costumava dizer com impaciência: ”Por que não o deixam morrer? Eu lhes pediria que abreviassem a minha partida o mais possível”.

O neto de Isabelle, Julien, não conseguia lembrar-se das palavras que Saint-Hilaire usara poucas horas antes de morrer. Pensando que iria encontrá-lo feliz por ver seu sonho tão perto de realizar-se, viu-se em presença de um velho aflito e preocupado, que parecia temer alguma coisa.

Pelo menos, foi isso o que o rapaz pensara. Porque ele não era um velho. Jacquette, por seu lado, compreendera imediatamente. E Maigret, que estava mais do que a meio caminho na mesma estrada, mais próximo dos velhos que dos estudantes da Rue d’Ulm, compreendia também: Saint-Hilaire temia tornar-se um inválido dentro de pouco tempo.

E isso justamente quando um velho amor, que nada empanara em cinqüenta anos, estava a ponto de consumar-se.

Isabelle, que o via à distância, e que guardava, sempre presente, a imagem da juventude dos dois, ficaria reduzida a uma irmã de caridade ao tornar-se sua esposa, e apenas conheceria as debilidades de um corpo gasto.

— Desculpem-me — disse, subitamente, e dirigiu-se para a porta.

Meteu-se pelos longos corredores do Palácio da Justiça, subiu ao terceiro andar, e passou meia hora fechado com o juiz.

Quando voltou à sua sala, as três pessoas estavam ainda nos mesmos lugares, e Janvier chupava seu lápis.

— A senhora pode ir — disse a Jacquette. — Está livre. Um carro a levará para casa. Ou, melhor: penso que deveria ir ao advogado Aubonnet, onde tem um compromisso. Quanto ao senhor, caro padre, mandarei que o conduzam ao presbitério. Nos próximos dias, haverá algumas formalidades a completar e documentos a assinar.

E, voltando-se para Janvier:

— Você guia?

Passou uma hora com o diretor da chefatura de polícia e, depois, foi à Brasserie Dauphine, onde tomou, no bar, dois grandes copos de cerveja.

Mme Maigret esperava um telefonema avisando-a que ele não ia jantar em casa, como acontecia tantas vezes no curso de uma investigação.

Ficou surpresa, às seis e meia, quando ouviu que ele subia as escadas, e abriu a porta no exato momento em que o marido atingia o patamar.

Parecia mais sério que de hábito, sério e sereno, mas ela não ousou fazer-lhe perguntas quando, ao beijá-la, apertou-a contra o peito por muito tempo, sem dizer nada.

Não podia saber que ele tinha mergulhado, até bem pouco, num passado distante, e num futuro menos distante.

— O que temos para o jantar? — perguntou, afinal, como que recobrando o domínio de si mesmo.

 

 

                                                                  Georges Simenon

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades