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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NA PISTA DOS ANTIS / William Voltz
NA PISTA DOS ANTIS / William Voltz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

As pesquisas relativas ao liquitivo prosseguem febrilmente. Um assunto, que de início só merecia a atenção de uns poucos agentes da Divisão III, já mantém sobressaltado todo o alto comando do Império Solar, pois a situação na Terra, nos planetas coloniais terranos e nos mundos de Árcon ficou desesperadora.

Por anos a fio, deixaram de ser adotadas as necessárias cautelas, uma vez que cientistas de renome haviam chegado à conclusão de que o novo licor, denominado liquitivo, era um excelente meio de retardar o processo de envelhecimento do organismo humano e propiciar novas energias aos indivíduos que tomavam o preparado.

Já se reconheceu o engano funesto, e é por isso que os dirigentes do Império Solar se mantêm obstinadamente Na Pista dos Antis...

 

O plano de Mulvaney fora fruto de um profundo desespero. Sob o ponto de vista legal era um plano considerável, já que previa a possibilidade de Mulvaney assassinar o velho Lansing. Se estivesse em seu estado normal, Mulvaney nunca teria pensado em matar quem quer que fosse. Acontece que se encontrava num estágio que tornava impossível qualquer forma de raciocínio sensato. Estava em vias de ficar irremediavelmente louco.

De forma alguma, o motivo das intenções de Mulvaney consistia na pessoa do velho Lansing; ninguém tinha motivo para odiá-lo. O objetivo visado por Mulvaney eram algumas garrafinhas de plástico, que, segundo supunha, se encontravam em poder de sua vítima. Não era de se imaginar que Lansing entregasse voluntariamente as garrafas que possuía. Depois de o governo ter proibido a venda do licor, os estoques restantes foram guardados cuidadosamente pelos possuidores. Até que a última garrafa de liquitivo tivesse sido consumida pelos viciados, era apenas uma questão de tempo.

Henry Mulvaney não pensava nisso. Nem se lembrava de que mais de cinqüenta milhões de terranos estavam viciados, e dariam tudo para conseguir apossar-se de uma garrafinha do licor.

As mãos trêmulas de Mulvaney seguraram a coluna que ladeava a porta da casa de Lansing. Já passava da meia-noite. A rua estava deserta.

Albert Lansing era um velho esquisitão. Seu corpo achava-se paralisado da cintura para baixo. De dia, o doente dispunha de um robô de serviço. Mas de noite, a máquina tinha que abandonar a casa. Esse robô representava a única concessão que Lansing fizera ao desenvolvimento tecnológico. Sua cadeira de rodas era de um modelo antigo; apresentava uma grande roda de cada lado. A habilidade com que Lansing movimentava seu veículo dificilmente seria excedida por um produto automático da mesma espécie.

Mulvaney puxou o corpo para cima, segurando-se à coluna. A pedra parecia fria e áspera; a casa, quieta. Mulvaney virou a cabeça. A luz fosforescente que vinha do outro lado da rua provocou um reflexo em seus olhos. O rosto demonstrava uma estranha tensão.

Por um instante, Mulvaney ficou em cima da coluna. Finalmente saltou para o quintal da casa. A terra mole evitou o ruído. Ergueu-se. Ao arrastar-se, não se preocupou com as flores e os arbustos que seus pés esmagavam. Seus passos rangiam sobre o caminho coberto de areia colorida. Tirou a chave magnética do bolso. Foi acolhido pela sombra da casa, que o retirou do âmbito de visão de quem se encontrava na rua e lhe conferiu tranqüilidade e segurança. Um gato com o rabo muito levantado passou pelo jardim. Seus olhos faiscaram enquanto virava a cabeça ligeiramente em direção a Mulvaney. Mas seu corpo ágil logo desapareceu em meio às flores.

Mulvaney resmungou baixinho sem dar-se conta disso. O desejo de obter o liquitivo enchia todo seu pensamento. À medida que se aproximava do objetivo, mais crescia sua ânsia. Até então tomara regularmente uma garrafa de três em três dias.

Seguiu-se o efeito anunciado: a energia juvenil e a cessação do processo de envelhecimento. Mulvaney não compreendia por que o governo proibia o uso de um preparado como este. Não tinha o menor conhecimento sobre o estado dos destroços humanos, trazidos de Lepso para a Terra, onde se travava uma luta vã por sua salvação. Não sabia que, mesmo que pudesse continuar a tomar o licor, a decadência e a morte se verificariam doze anos e quatro meses depois do dia em que pela primeira vez experimentara a droga.

Mulvaney chegou à porta da casa. Parou e aguçou o ouvido. No interior da residência reinava o silêncio. A moradia era assobradada. Lansing mandara instalar um elevador junto à escada, a fim de levá-lo para cima e para baixo sempre que o desejasse. Mulvaney conhecia perfeitamente a divisão das peças da casa, pois muitas vezes estivera com o velho Lansing para jogar xadrez. Por isso sabia que aquele homem paralítico tomava regularmente o liquitivo. Lansing confessara perante Mulvaney que esperava que isso lhe trouxesse uma melhoria ou mesmo a cura de sua doença. No entanto, não houvera nenhuma cura. Lansing rejuvenescera, sua pele tornara-se mais lisa, e seus poucos amigos acharam-no mais enérgico.

Mas a paralisia continuou inalterada.

Mulvaney empurrou a chave magnética para dentro da fechadura. O dispositivo de segurança saiu imediatamente do suporte. Sob a pressão leve exercida pelas mãos de Mulvaney, a porta abriu-se.

O visitante clandestino teve a impressão de que a peça que tinha pela frente era um buraco negro, já que parecia impossível romper a escuridão. Não hesitou: entrou imediatamente. Voltou a trancar a porta atrás de si. Conteve a respiração e procurou captar qualquer ruído que lhe permitisse uma conclusão sobre o paradeiro atual de Lansing. Mas tudo estava em silêncio.

Mulvaney deu um passo para a frente. A ânsia furiosa tornara-se ainda mais intensa.

Tenho que arranjar o liquitivo!”, pensou.

Aquele ruído não era da cadeira de rodas que se aproximava?

Mulvaney esgueirou-se para o lado. Mas não havia nada que se aproximasse na escuridão. Os dedos do intruso tocaram na parede. Mais adiante encontraram resistência: era um cabide. Mulvaney tateou uma fazenda macia: a da capa de trabalho do robô de serviço. Era mais uma das idéias esquisitas de Lansing, fazer com que o robô vestisse uma capa. Naquele momento, Mulvaney não estava em condições de divertir-se com isso. Continuou a apalpar, até que houvesse uma interrupção na parede.

A entrada da cozinha! No interior da casa não havia portas, já que estas dificultariam a locomoção de Lansing. As entradas das diversas peças eram fechadas com cortinas duplas.

Mulvaney empurrou para o lado a fazenda pesada e entrou na cozinha. Um cheiro estranho impregnava o ar. Parecia que alguém havia derramado uma quantidade excessiva de detergentes no assoalho. Mulvaney esbarrou na mesa, que tinha uma reentrância, na qual Lansing entrava com sua cadeira de rodas, quando pretendia fazer suas refeições.

Onde é que o velho esconde o licor?”, pôs-se a refletir.

Não poderia começar a procurar ao acaso. Levaria várias horas. Além disso, seria impossível realizar esse tipo de trabalho, sem provocar barulho. Por isso tornava-se necessário localizar Lansing.

Mulvaney contornou a mesa. Tropeçou numa cadeira. Tratava-se de uma peça bastante rara na residência de Lansing. Felizmente a perna da cadeira achava-se envolta numa massa elástica, de forma que não houve um ruído mais forte. Mulvaney estava convencido de que não havia ninguém na cozinha. Lansing não se encontrava por ali. De repente Mulvaney lembrou-se de que o paralítico talvez já tivesse notado que entrara na casa e o esperava em algum lugar, de arma em punho. A idéia obsessiva de que o velho possuía uma arma fez com que Mulvaney sentisse calafrios. Por algum tempo viu-se incapaz de fazer qualquer coisa. Ficou parado, tremendo por todo o corpo. Mas logo seu organismo deu sinal de vida, exigindo sua dose de liquitivo. Aquela sensação angustiante era pior que o medo mais terrível.

Saiu da cozinha. No pavimento térreo havia mais duas peças, a biblioteca e o chamado escritório. Naturalmente Lansing nunca trabalhava, embora quase sempre ficasse no escritório. Recebia uma renda mensal e, além disso, contava com o apoio financeiro voluntário de parentes na Europa. Para uma pessoa não avisada, o aspecto do escritório de Lansing era bastante estranho. Da entrada partiam duas barras metálicas, que se dirigiam à janela. Formavam uma espécie de corredor, que tinha a largura exata para permitir a passagem da cadeira de rodas. Por uma única vez, Mulvaney tivera oportunidade de ver qual era a verdadeira finalidade da peça. Para o homem paralítico, representava a única possibilidade de sair da cadeira de rodas sem auxílio de ninguém. Fazia a cadeira rolar até as barras metálicas, pendurava os braços sobre as mesmas e arrastava-se até a Janela, onde permanecia por horas a fio, observando o movimento na rua. Quando Mulvaney o surpreendera nessa posição, Lansing ficara zangado pelo resto da noite e se mostrara bastante “distraído” durante o jogo.

— Por que não ri de mim? — indagara Lansing, depois que Mulvaney afastara a cortina e fitara o recinto com uma expressão de perplexidade. — Pelo menos deveria rir de mim.

Essa experiência deixara Mulvaney pensativo por várias semanas. Evitara Lansing, até que este lhe telefonasse, convidando-o para outro jogo.

Enquanto Mulvaney avançava pela escuridão, em direção ao escritório, lembrou-se dessas palavras do doente. Sentiu no seu subconsciente um ligeiro temor de afastar a cortina e penetrar na peça.

Uma vez vencido esse temor, constatou que Lansing não se encontrava nessa peça. Também não estava na biblioteca. Concluía-se que só poderia estar no pavimento superior. Um tanto perturbado, Mulvaney caminhou sorrateiramente em direção à escada.

Tropeçou numa das rodas da cadeira e bateu com o rosto no chão. Agitou violentamente os braços, e suas mãos tocaram em outras peças do meio de locomoção do doente. A cadeira de rodas de Lansing estava ao pé da escada, totalmente destruída. Mulvaney soltou um gemido e libertou-se da profusão de peças metálicas.

O barulho não poderia ter deixado de atrair a atenção de Lansing, se este se encontrasse por ali. Mas tudo continuava em silêncio no interior da casa, com exceção dos ruídos provocados pelo próprio Mulvaney. O invasor levantou-se com uma terrível pressa. Não se importava com mais nada. Sentia-se completamente dominado pela ânsia de obter aquilo que, para ele, era um preparado rejuvenescedor. Cambaleou na direção em que, segundo acreditava, ficava o interruptor de luz. Sentiu-se gelado de pavor ao lembrar-se da possibilidade de que outro poderia ter chegado antes dele. Talvez alguém já tivesse roubado o estoque de Lansing.

Soltou uma praga e acendeu a luz.

Viu que a cadeira de rodas caíra pela escada. Estava completamente destruída.

Albert Lansing estava deitado num degrau da escada...

Estava morto!

Estendido em posição inclinada, estava apoiado no corrimão, com os olhos muito arregalados e o rosto cor de cera. Mulvaney ficou rígido de pavor. E seu instinto lhe disse que por ali não encontraria nenhum liquitivo.

Foi-se aproximando de Lansing. Havia um bilhete na mão direita do velho. Mulvaney pegou-o e leu as poucas frases, escritas com letras trêmulas:

 

Hoje terminou meu estoque de liquitivo. Já não tenho forças para viver sem o licor. Que Deus me perdoe.

 

Mulvaney deixou cair o papel. Lansing se suicidara. Não havia nenhum licor naquela casa. O homem paralítico fizera a cadeira de rodas descer pela escada e capotara várias vezes.

— Por que não ri? — soou a voz de Lansing na mente de Mulvaney. — Pelo menos deveria rir de mim.

Mulvaney começou a rir que nem um louco. Seu corpo tremia. Precisava de liquitivo. Precisava da droga com urgência, com muita urgência. Acontece que o governo suspendera as vendas do produto. Não havia meio de conseguir o licor.

Mulvaney abandonou a casa, cambaleando que nem um bêbado.

Era um ser humano solitário. Um ser humano viciado e perdido.

Era um entre mais de cinqüenta milhões.

 

Mais de cinqüenta milhões de seres humanos ameaçavam desencadear uma revolta. A Terra transformara-se num hospício. Os viciados precisavam do licor geralmente conhecido como liquitivo, da mesma maneira que o homem normal precisava do ar para continuar vivo.

Nos planetas coloniais, a situação não era muito melhor. Atlan, o imperador do grande império, lutava com os mesmos problemas nos mundos de Árcon. Os planetas dos dois impérios aliados haviam sido inundados por quantidades gigantescas da droga traiçoeira.

Perry Rhodan, o administrador, encontrava-se de pé no centro da sala simples que lhe servia de escritório. Não estava só. Perto da escrivaninha, bem à sua frente, havia um grupo de mulheres e homens que fitavam o chefe supremo do governo com os olhos chamejantes. Rhodan não descobriu nenhuma simpatia naqueles olhares. De início sentiu-se aborrecido com o pedido de receber os viciados, mas acabou cedendo aos insistentes apelos de Reginald Bell.

O corpo daquele homem alto e esbelto parecia adquirir vida. Revelando uma tranqüilidade extraordinária, acomodou-se atrás da escrivaninha.

No mesmo instante, os doze homens e mulheres começaram a dirigir-lhe a palavra. Compreendia o estado de exaltação em que se encontravam os viciados, mas se quisesse ajudá-los teria de agir metodicamente.

— Escolham um porta-voz — pediu. — Não adianta nada todos falarem ao mesmo tempo.

Um homem, mais alto que Rhodan e de aspecto grosseiro, adiantou-se, sem que os companheiros o tivessem indicado.

— Meu nome é Godfrey Hunter — disse.

Sem dúvida, a falta de respeito que se notava no tom de sua voz era causada pela exaltação interior que Hunter não conseguia dominar. Rhodan percebeu que tinha diante de si um homem que levara uma vida pacata e bem organizada. Mas agora as coisas haviam mudado. A proibição da venda do liquitivo começava a produzir resultados.

— Sir, somos porta-vozes de um grupo mais numeroso — prosseguiu Hunter.

Enquanto falava, seus dentes mastigavam nervosamente. Seu autodomínio não parecia muito convincente.

— Sir, pedimos-lhe que volte a autorizar imediatamente a venda pública do licor.

Os outros viciados fizeram ouvir um murmúrio de aprovação. Aproximaram-se da mesa de Rhodan.

Este lançou um olhar pensativo para Hunter. Sentia pena por essa gente, mas não devia deixar que eles o percebessem. Perguntou com uma expressão de indiferença no rosto:

— Há quanto tempo estão tomando esse álcool?

— Faz cerca de três anos, sir — respondeu Hunter. — Ainda me lembro perfeitamente do dia em que minha esposa trouxe para casa uma garrafa do produto. Não vejo o menor perigo nessa bebida. Pelo contrário. Depois que minha esposa e eu passamos a tomá-la, houve uma modificação evidente em nosso estado geral. Sinto-me inclinado a afirmar que, desse dia em diante, não envelheci mais, sir.

Pobre-diabo”, pensou Rhodan. “Gostaria que você tivesse visto as pessoas que encontramos em Lepso. Nesse caso compreenderia o que estou fazendo.”

— Acredito no que está dizendo — disse em voz alta. — Peço-lhes que respondam a uma pergunta. Há quantos dias não tomam mais o licor?

— Há seis dias — respondeu Hunter, em tom indignado.

Via-se, pelo modo como respondeu, que admitia o administrador como responsável por esse fato.

Rhodan fez um gesto de assentimento. Seis dias representavam o limite de tempo. Segundo as experiências até então colhidas, depois desse prazo surgiam manifestações de cansaço. Num segundo estágio verificavam-se vertigens. O fim era lamentável. O corpo dos viciados era sacudido por convulsões nervosas.

Rhodan fitou o homem desamparado com uma expressão dura. Ainda não havia recebido o relatório dos médicos especializados, que trabalhavam febrilmente nos tratamentos de desintoxicação. Até então todas as tentativas de curar um viciado haviam fracassado.

Uma visão sinistra surgiu na mente de Rhodan. Viu milhões de terranos, que levavam uma vida miserável, mergulhados num estado de confusão mental. Ao que tudo indicava, a situação evoluíra a um ponto tal que era muito mais perigosa que a que surgira ao tempo do traficante de drogas Vincent Aplied. Este e os mercadores galácticos distribuíam os entorpecentes terranos, a fim de debilitar a posição econômica da Terra.

Os antis não conheciam escrúpulos. Para eles, qualquer meio era legítimo, desde que conseguissem colocar o poder em suas mãos criminosas. A seita espalhara-se pela Galáxia que nem uma teia de aranha. Um planeta após o outro ia caindo na mesma. Os antis não precisavam de frotas espaciais. Trabalhavam na sombra. Deixavam que outros fizessem o trabalho sujo.

Outros, como, por exemplo, o filho de Rhodan.

Ao lembrar-se de Thomas Cardif, a vista de Rhodan turvou-se.

Seria possível que sua carne e seu sangue se deixasse arrastar a atos desse tipo?

Rhodan cerrou os lábios. Lembrou-se do dia em que Allan D. Mercant lhe mostrara o retrato de um certo Dr. Edmond Hugher, que informava qualquer pessoa, que estivesse interessada, sobre as qualidades maravilhosas do novo licor. Uma das pessoas que haviam acreditado nele fora o Dr. Zuglert.

Zuglert já estava morto. Mas possuíra um retrato do tal do Dr. Hugher, já que trabalhara com este em Lepso.

E o Dr. Hugher não era outro senão Thomas Cardif, filho de Rhodan.

— Já tomou uma decisão, sir? — disse a voz nervosa de Hunter, interrompendo as reflexões do homem esbelto que se encontrava atrás da escrivaninha.

— Por enquanto não lhes posso dar qualquer informação — respondeu Rhodan, em tom tranqüilo. — Enquanto os médicos não constatarem fora de qualquer dúvida que o uso permanente do licor não oferece perigo, a venda do produto não será liberada.

— Que diabo! — gritou Hunter.

Aquela palavra pareceu encher a sala.

O silêncio passou a reinar no recinto. Então o produto dos antis podia levar um ser humano a este ponto. O rosto de Hunter ficou desfigurado. Notou que havia sido imprudente.

Rhodan levantou-se lentamente. Até mesmo um observador, nutrido de sentimentos imparciais, não teria reconhecido naquele momento os pensamentos do administrador no seu rosto impassível.

O corpo inclinado de Hunter executava movimentos pendulares. Eram movimentos estranhos, mas Rhodan sabia o que significavam.

Alguma coisa dentro de Hunter parecia dizer-lhe que devia sair dali, abandonando a sala em fuga desabalada. Mas um resto de orgulho deixou-o preso ao lugar em que se encontrava. O olhar treinado de Rhodan notou este resto de obstinação, isto é, esta luta que se travava no interior daquele homem. Hunter ainda não desmoronara por completo, mas não faltava muito para isso.

Outro homem adiantou-se e pegou o braço de Hunter.

— Vamos embora, Godfrey — disse.

Enquanto se esforçava para arrastar Hunter, gritou em tom furioso para Rhodan:

— Será que o senhor não sabe que a constituição do Império Solar nos confere certos direitos?

Rhodan manteve-se calado. O homem soltou o braço de Hunter. Estava com o rosto vermelho; até parecia que acabara de correr um bom pedaço. Seus olhos achavam-se inchados. O silêncio de Rhodan não o estimulava, mas o deixava nervoso.

— As liberdades democráticas devem garantir-nos o licor — disse com a voz aguda.

— O senhor não está em condições de conversar sobre Democracia — disse Rhodan, em voz baixa e comprimiu o botão do sistema de intercomunicação.

— Mr. Kenwood, faça o favor de comparecer ao meu gabinete e levar os visitantes de volta — disse. — A palestra já terminou.

Um dos homens pertencentes ao grupo exclamou em tom odiento:

— Ele deve ter reservado sua ração de liquitivo.

Todos colocavam-se contra ele. Suas mentes estavam perturbadas, e por isso tornavam-se injustos. Perdiam o controle. Rhodan compreendeu a reação dos presentes, mas mesmo para ele não era fácil aceitar as ofensas como se nunca tivessem sido proferidas. Contudo as acatou, pois se via diante de um grupo de doentes. E nesse caso aplicavam-se outras leis.

Kenwood entrou em atitude correta; estava limpo e disciplinado. Cumprimentou à sua maneira formalista típica. Atrás dele apareceu outro homem. Era Reginald Bell.

— Façam o favor! — disse Kenwood.

Hunter limitou-se a fazer um gesto afirmativo.

— Ele não nos pode mandar embora sem mais aquela — disse o homem que segurara Hunter pelo braço. — Tem de fazer alguma coisa por nós.

Rhodan e Bell trocaram um olhar. Perry tinha de fazer alguma coisa. Até agora sempre fizera. Seu nome estava tão intimamente ligado ao progresso da Humanidade que a simples idéia de que poderia fracassar era inconcebível.

Rhodan sentiu alguma coisa apertar sua garganta. Não era medo, mas apenas uma sensação aflitiva. Sem que o quisesse, vira-se colocado numa situação nada invejável. A Humanidade identificava-se com sua pessoa.

Quase chegara a ser uma figura mística. Na mente de bilhões de pessoas, Rhodan encontrava-se num plano existencial mais elevado, que lhe permitia dispor das coisas segundo sua vontade.

Praticamente só havia uma possibilidade de Rhodan descer desse pedestal imaginário: teria de morrer. De repente ele, o imortal, sentiu que se perdia cada vez mais em meio à solidão. Afastava-se progressivamente de sua raça, dessa raça pela qual queria fazer tudo que estava ao seu alcance. Se quisesse encontrar o caminho de volta para junto desta, teria de pagar um preço: a morte.

— Foram embora — disse Bell, em voz baixa.

Rhodan esboçou um sorriso. Não estava só em seu pedestal. Havia outros a seu lado.

— Acho que cometemos um erro ao recebê-los — disse Bell, em tom de autocrítica. — A única coisa que conseguimos com isso foi ouvir algumas ofensas.

Rhodan olhou para o relógio.

— Daqui a uma hora começará a conferência — anunciou. — É bom que eu tenha uma idéia exata sobre o estado de ânimo dos viciados.

Até parecia que as paisagens desoladas de Lepso fizeram com que Bell perdesse seu senso de humor. Fora um dos poucos que constantemente tentara convencer Rhodan de que, no fundo, Thomas Cardif não era uma pessoa má. Muitas vezes, aquele homem atarracado lembrara ao amigo de que Cardif fora criado sem os pais. Além disso, aquele homem que tinha uma dose de sangue arcônida acreditava que Perry Rhodan assassinara sua mãe. Acreditava no boato, segundo o qual Rhodan confiara uma missão absurda a sua esposa, a fim de livrar-se dela.

— Temos outras possibilidades de conhecer o estado de ânimo destas pobres criaturas — disse Bell, compenetrado.

Ligou o interfone.

— Kenny, transfira as transmissões de TV vindas de Paris para nosso canal. O chefe quer assistir às mesmas.

— Sim, senhor — respondeu a voz de Kenwood.

Bell colocou-se diante da tela que ficava atrás da escrivaninha de Rhodan. O videofone permitia a recepção de qualquer transmissão de TV, desde que a pessoa que se encontrava na ante-sala transmitisse as ordens necessárias à central.

— Já avisei a central, sir — anunciou Kenwood. — A transmissão já está sendo transferida.

— Certo — disse Bell e voltou-se para Rhodan. — A transmissão foi iniciada há cerca de dois minutos. Por isso é bom que eu lhe explique que os habitantes de Paris já estão passando sem liquitivo, mais dois dias que a média de viciados de outras cidades. Isso aconteceu por pura coincidência. Houve um atraso nas remessas, motivo por que os estoques de Paris se esgotaram dois dias antes que fosse emitida a proibição de venda. Esta impediu que os estoques fossem renovados.

A tela começou a tremeluzir. A lâmina fosca iluminou-se.

A primeira coisa que Rhodan viu foi uma aglomeração de gente. O repórter dirigira a câmara sobre uma massa ondulante. Filmava de cima, em direção oblíqua, talvez da escada de uma casa. O som ainda não fora ligado. Os dois dirigentes do Império Solar contemplaram o mudo ajuntamento. O branco dos rostos contrastava fortemente com as vestes escuras. Vários grupos carregavam faixas e cartazes, cujos dizeres exigiam a revogação imediata da proibição da venda do liquitivo.

— Queira desculpar, sir — disse Kenwood pelo sistema de intercomunicação. — Houve uma ligeira falha de som.

Finalmente Rhodan conseguiu ouvir as pessoas aglomeradas. Aquelas fileiras de gente resmungavam constantemente. Não gritavam nem esbravejavam. Rhodan teve a impressão de ouvir o rugir de uma fera faminta.

— Algumas viaturas policiais pesadas, vindas de todos os lados, aproximam-se — disse a voz abafada do repórter.

A câmara efetuou um giro e mostrou vários veículos especiais que atravessavam a praça. Rhodan reconheceu os lança-esguichos.

— Faço votos de que nunca sejamos obrigados a atirar em pessoas que tenham caído nas garras do vício — disse Bell em tom deprimido.

— A exaltação da multidão está crescendo — exclamou o repórter. — Vários grupos falam em coro. Os policiais isolaram o edifício da sede do governo. As pessoas aqui reunidas não compreendem por que lhes proíbem o uso de um licor que apresenta inequívocos efeitos rejuvenescedores e regeneradores das células.

A voz do repórter assumiu um tom dramático:

— Sabemos que vários membros do governo e alguns integrantes da Frota Solar gostam de viver mais que o normal. Nosso princípio supremo impõe iguais direitos para todos.

— Será que esse sujeito está louco? — gritou Bell em tom indignado. — Para esses tipos foi que tiramos as castanhas do fogo?

— Isso é uma reação perfeitamente humana — respondeu Rhodan. — Até é possível que o repórter seja um viciado. Entretanto sua atitude exercerá uma influência nada favorável sobre o estado de ânimo do público.

Bell bateu com o punho cerrado na mesa.

— No dia em que alguém lhe cortar a garganta, você ainda perguntará se esse alguém não tem um motivo compreensível para isso — observou em tom exaltado. — Uma reação perfeitamente humana... qual o quê! Este sujeito quer fazer sensacionalismo.

— Vejo que você já se sente melhor — disse Rhodan, em tom tranqüilo. — Afinal, o sensacionalismo é parte da profissão do repórter, que aproveita toda oportunidade que se oferece para intensificá-lo.

— Acontece que existe boa probabilidade de que essa gente esteja condenada a enlouquecer — objetou Bell. — É uma falta de gosto organizar uma transmissão a este respeito.

— Muitas vezes o sensacionalismo e a falta de gosto andam juntos — disse Rhodan. — E há muita coisa que pode ser sensacional. Inclusive a morte.

— Isso é uma visão muito realista — exclamou Bell, em tom nervoso.

— Por enquanto não temos uma idéia exata do número de viciados existentes na Terra. Além disso, temos também viciados nos planetas coloniais. E Atlan enfrenta as mesmas dificuldades que nós, motivo por que dificilmente poderá dar-nos qualquer tipo de auxílio.

Notava-se perfeitamente que a atitude de Rhodan deixava Bell um tanto perplexo. Até então, o administrador sempre esclarecera as coisas com algumas ordens rápidas, fosse qual fosse a situação. Mas desta vez Rhodan parecia manter uma atitude retraída. As primeiras medidas a serem adotadas teriam que dirigir-se contra a raça humana, contra pessoas inocentes que se deixaram levar por uma propaganda bem organizada. — Infelizmente perdemos a pista de Cardif — disse Rhodan. — Conseguimos desmantelar os locais de fabricação situados em Lepso, mas sabemos perfeitamente que de forma alguma este era o único local onde se fabricava o entorpecente. A nave dos saltadores salvou os antis no último instante, retirando-os a tempo de nossos disparos.

Soltou uma risada amargurada e concluiu:

— Nem sequer conseguimos determinar o ponto em que a nave mergulhou no hiperespaço.

— As energias mentais reforçaram os efeitos do dispositivo de absorção de abalos estruturais, a tal ponto que não conseguimos uma localização perfeita do hipersalto — disse Bell.

Rhodan desligou o receptor. Parecia ter tomado uma decisão.

— Devemos impedir a revolta que talvez possa irromper. Essa gente desesperada é capaz de tudo. Durante a conferência darei ordens para ser realizada uma grande campanha de esclarecimento público. A Humanidade tem de conhecer os efeitos desastrosos do liquitivo. A televisão, a imprensa, o rádio e todos os meios de comunicação de massa deverão esforçar-se para acabar com a idéia de que o liquitivo é um elixir da longa vida.

Bell continuou cético. Apesar disso aquele homem, geralmente tão exaltado, levou algum tempo para dar uma resposta. Refletira intensamente sobre as palavras de Rhodan.

— Os homens não compreenderão e não acreditarão — disse depois de algum tempo. — Muitos deles tomam o “veneno” há vários anos, e por enquanto seus resultados foram excelentes, já que ainda não se passaram os doze anos e quatro meses. Invocarão os testes realizados com o preparado, antes que este fosse colocado no mercado. O licor foi recomendado por cientistas de primeira linha, que afirmam que a bebida é totalmente inofensiva. E essas idéias estão firmemente cravadas na mente dos viciados. Estes homens não querem acreditar em outra coisa, senão na possibilidade de prolongar a vida por meio desse entorpecente saboroso.

Rhodan apontou para a tela que estava às suas costas.

— Devemos apresentar alguma coisa contra isso. Naturalmente não podemos convencer as pessoas que ainda continuam sadias de que, um dia, a bebida os levará a um estado de perturbação mental. Porém poderemos evitar a eclosão de revoltas de grandes proporções. Se conseguirmos fazer com que os viciados sintam que estamos interessados neles, já teremos ganho muita coisa. Temos de convencê-los de que devem esperar.

Desta vez, só um milagre nos salvará”, pensou Bell, desesperado.

Não existia nada que conseguisse refrear a ânsia das pessoas que já haviam experimentado o liquitivo. Antes de se tornarem loucos, causaram muita desgraça.

A idéia de fazer com que os viciados se tornassem razoáveis era como que o plano de um único homem que vigia um poço e quer evitar que duzentos homens, mortos de sede, bebam a água do mesmo.

Bell começou a imaginar as terríveis conseqüências da ação. Ao entreolhar-se com Rhodan, percebeu que as idéias do administrador deviam ser idênticas às suas. Até então haviam passado por terríveis experiências sempre que se encontraram com os antis. Mas tudo isso parecia uma insignificância em comparação com aquilo que agora os ameaçava.

A teia dos antimutantes começava a fechar-se.

Uma aranha pode locomover-se para qualquer ponto de sua teia. Ninguém pode prever onde desfechará seu ataque. E, uma vez que sua vítima está presa na teia, tem tempo de sobra. Espera que esta se enleie cada vez mais, até ficar indefesa à sua frente.

Rhodan e Bell sabiam que qualquer medida defensiva apenas abreviaria a chegada do desastre final. A conclusão lógica ora que deveriam agir de outra forma.

Aguardar. Não demonstrar qualquer disposição defensiva.

Nem Rhodan, nem seu representante exprimiram esta idéia. Mas ambos sabiam que pensavam da mesma forma.

 

O policial desceu do veículo. Seu rosto largo movimentava-se no ritmo mastigatório com o qual empurrava de um lado para outro o pedaço de borracha que trazia na boca. Sua atitude não exprimia medo, mas antes curiosidade. Agitava lentamente o cassetete elétrico. A outra mão estava enfiada entre dois botões de seu uniforme.

De ambos os lados de sua viatura havia uma faixa na qual estavam escritas em enormes letras vermelhas as seguintes palavras:

 

QUEM TOMAR LIQUITIVO FICARÁ DOENTE.

 

Estes dizeres haviam sido colocados em todos os edifícios e veículos do governo. Esperava-se que estas palavras fizessem com que os viciados compreendessem o que os esperava. Além disso, os policiais e os médicos distribuíam folhetos que descreviam as conseqüências causadas pelo entorpecente.

O policial, chamado John Clayton, fitou calmamente a massa furiosa que se agitava à sua frente. Normalmente Andy Smither e Jonas de Werth deviam estar a seu lado. Mas foram mandados para casa. Smither e De Werth também eram viciados. Dessa forma, Clayton se via só naquele fim de rua, face a mais de cinqüenta homens exaltados. Henry Mulvaney, um dos homens que se encontrava na massa agitada, não sabia quem era John Clayton. Para ele, o policial era um inimigo. O uniforme escuro representava o único obstáculo em seu caminho. Atrás de Clayton ficava o objetivo dos viciados: uma pequena loja de bebidas.

O dono da mesma estava encostado à entrada. Sua mão trêmula segurava uma pistola de efeito moral. Ao lado da entrada, uma pequena vitrina. As mercadorias nela expostas haviam sido retiradas. Em compensação havia um letreiro com estes dizeres:

 

QUEM TOMAR LIQUITIVO FICARÁ DOENTE.

 

O negociante tomara o partido do governo e adotara suas divisas. A fúria dos viciados concentrou-se sobre ele. Naquele instante John Clayton era o único obstáculo que impedia cinqüenta pessoas de entrarem na loja e a depenarem.

Henry Mulvaney lançou um olhar ansioso para o prédio. Desde que realizara a excursão mal sucedida à casa de Albert Lansing, dois dias já se haviam passado. Sentia vertigens constantes, motivo por que sua disposição de ânimo não era das melhores. Atingira o limite do estágio que precede o desmoronamento total da pessoa.

Seus pensamentos confusos e sua fantasia descontrolada diziam-lhe que naquela loja devia haver grandes quantidades de liquitivo. A inscrição na vitrina só servia para enganar os antigos fregueses.

Mulvaney não demorara em encontrar grande número de adeptos que se encontravam no mesmo estado que ele. Tiveram “muita pressa” em acreditar no que dizia. Numa situação como aquela os homens desesperados procuravam agarrar-se a uma palha.

O policial interrompeu seus movimentos mastigatórios. Gritou em tom muito calmo:

— Vamos para casa, gente!

O dono da loja, que continuava junto à entrada, brandia ameaçadoramente sua ridícula pistola, como se com isso pudesse dar um bom apoio às palavras do policial.

John Clayton, que até então só executara serviços leves e rotineiros, agindo contra os infratores das regras de tráfego, foi-se aproximando lentamente do grupo.

Num movimento de lucidez, Mulvaney teve a idéia de que a mão do policial, enfiada embaixo do uniforme, talvez estivesse segurando uma pistola muito mais perigosa que o cassetete.

— Saia do nosso caminho! — gritou para o homem de uniforme. — Aquele sujeito está escondendo seu estoque de liquitivo. Nós o queremos.

Estas palavras foram seguidas de um murmúrio de aprovação. Mais da metade dos presentes já acreditava firmemente que encontraria o licor. Se não fosse assim, o policial não teria aparecido.

— Não estou escondendo coisa alguma — gritou o dono da loja, com a voz estridente.

Na placa da loja lia-se que seu nome era Gary P. Mocaaro.

— Está ouvindo? — disse Clayton, em tom apaziguador. — Ele não tem nada para vocês.

Mulvaney sentiu-se tão mal que pensou que teria de vomitar. O uniforme escuro à sua frente multiplicou-se. Sua vista começou a turvar-se.

— Preferimos dar uma olhada — debochou alguém que se encontrava ao lado de Mulvaney.

Mulvaney gemeu baixinho. Cambaleou para a frente, em direção ao policial. Nunca se sentira tão mal como naquele momento.

— Pare! — ordenou Clayton, em tom enérgico.

O cassetete deixou de executar movimentos giratórios. Parecia o prolongamento de seu braço. Os movimentos mastigatórios cessaram de vez.

Talvez esteja com medo”, pensou Mulvaney.

Deu mais um passo em direção a Clayton.

— Cuidado, sir! — disse Mocaaro com a voz rouca. — Estão tramando alguma coisa.

Mocaaro não se preocupava com o policial, nem com a viatura. Suas preocupações eram de natureza egoísta. O negociante temia por sua vida e propriedade. Seu instinto lhe dizia que Clayton representava a débil resistência que poderia conservar-lhe uma coisa e outra.

Dali surgiu-lhe a idéia de ajudar o homem de uniforme. Levantou o braço, fez pontaria — o que era completamente inútil numa pistola de efeitos morais — e disparou para além de Clayton.

Quando Mocaaro compreendeu que acabara de cometer um erro, o tiro ainda estava reboando. Clayton praguejou e levantou o cassetete. Como se aquilo representasse um sinal, a massa enfurecida dos viciados começou a movimentar-se.

Clayton esperou-os em atitude resoluta. Mulvaney saiu correndo com os olhos lacrimejantes. Percebeu que as pessoas que o rodeavam corriam mais depressa que ele. Ficou apavorado ao pensar que chegariam antes dele ao lugar em que se encontrava o liquitivo. Sentia-se tão fraco que não conseguia avançar com a mesma rapidez dos outros. Um ódio cego passou a dominá-lo. Queria ter sua parte. Afinal, fora ele que os conduzira para cá. Nem por isso deixariam de apoderar-se de todo o liquitivo em que conseguissem pôr as mãos. Ninguém se interessaria por Henry Mulvaney.

Viu que o policial conseguiu aplicar um choque em três dos atacantes.

Por que não usa a outra mão?”, pensou Mulvaney, perplexo.

Clayton defendia-se obstinadamente. Pelo menos dez pessoas já haviam passado por eles. Soltando gritos selvagens, correram em direção à viatura policial e arrancaram a faixa. Os gritos ressoaram em seus ouvidos. Depois tombaram o carro. Uma nuvem de poeira subiu ao ar. Clayton ouviu Mocaaro gritar de medo. Brandia o cassetete com movimentos quase automáticos.

Alguém agarrou-o por trás. Clayton dobrou os joelhos e caiu. Durante a queda conseguiu lançar um olhar para o interior da loja. Mocaaro havia desaparecido. A vitrina estava quebrada, e alguns homens se movimentavam entre os cacos de vidro. Um deles enrolara a faixa de propaganda na cabeça, como se fosse um turbante. O barulho era indescritível.

Mesmo estendido no chão, Clayton continuava a defender-se. Alguém arrancou-lhe o cassetete da mão e deu-lhe um golpe que fez com que perdesse os sentidos. As pessoas que o rodeavam afastaram-se e precipitaram-se para o interior da pequena loja.

Mulvaney foi o último a chegar ao local onde se encontrava o policial. Viu o homem de uniforme rasgado, estendido no chão. Os ruídos, que vinham da loja de Mocaaro, davam a entender que por enquanto não haviam encontrado nenhum liquitivo.

Mulvaney soluçou baixinho. Sentia a boca ressequida. Dobrou os joelhos. Fitou o rosto do policial por algum tempo. Depois olhou para a viatura tombada.

Retirou cuidadosamente a mão de Clayton de sob o uniforme. Ouviu o ranger e o estalar de madeira, vindo do interior da loja. Vidros eram quebrados, e os golpes surdos saídos da loja faziam supor que os viciados tentavam arrombar um armário.

Ouviu a sereia de uma viatura policial. O ruído vinha de longe.

Mulvaney olhou para a mão de Clayton, ou melhor, para aquilo que estava escondido sob o uniforme do mesmo. Aquele homem estava usando uma prótese.

Tinham derrubado um homem maneta.

Pobre idiota valente”, pensou Mulvaney.

Levantou-se e cambaleou em direção à loja. A placa estava quebrada. Só se liam as últimas duas letras do nome do proprietário. Mulvaney pisou em vidro e escorregou. Um homem saiu da loja. Seu rosto estava borrado de sangue. Seus olhos chamejavam que nem brasas.

— Não encontramos nenhum liquitivo — disse em tom de desespero.

— Morreremos todos — respondeu Mulvaney, abatido.

O ruído da sereia da viatura policial, que se aproximava, era cada vez mais intenso.

 

O funcionário do Império Solar que cuidava do Setor Vermelho III/b 1245 II era um homem importante. A designação numérica de seu setor destinava-se unicamente aos fichários e aos bancos de dados positrônicos, motivo por que o setor de que cuidava também era conhecido pelo nome de sistema Capra. Capra — um sol em torno do qual gravitavam nada menos de vinte e quatro planetas. O que havia de especial naquele sistema era que seis dos vinte e quatro mundos eram planetas de oxigênio, e por isso foram ocupados por colonos terranos. Face à extensão do sistema solar e ao número de planetas, Oliver Gibson simbolizava poderio.

O fato de encontrar-se ele em Terrânia fazia concluir que havia um motivo muito importante para isso. Perry Rhodan estava perfeitamente ciente da responsabilidade que pesava sobre os ombros desses encarregados, e sabia que era bom que permanecessem ininterruptamente na sua área de atuação.

Naquele momento, Oliver Gibson encontrava-se a vinte mil anos-luz do lugar em que costumava dirigir os destinos das colônias terranas. Gibson achava-se no grande auditório, situado no interior de um dos maiores edifícios de Terrânia.

Além dele havia por ali mais cinqüenta homens, que se contavam entre as figuras mais destacadas do Império Solar. O homem esbelto, bem próximo a Perry Rhodan, devia ser John Marshall, chefe do lendário Exército de Mutantes. Gibson ainda reconheceu Reginald Bell, o Marechal Solar Freyt e Allan D. Mercant, comandante do Serviço de Segurança Solar. Acreditava que havia vários mutantes no recinto. O General Deringhouse entretinha-se numa palestra com o encarregado do sistema Vega. Atrás de Rhodan estavam sentados dois homens de jaleco branco. Até parecia que haviam sido trazidos diretamente de seu local de trabalho.

Por um instante, Gibson teve sua atenção atraída para um homem que parecia um tanque e ocupava duas cadeiras. Seria Jefe Claudrin, o homem que juntamente com Rhodan fizera a Fantasy, a nave terrana equipada com um sistema de propulsão linear, passar por dentro de um sol?

De repente Gibson viu o animal!

Tinha cerca de um metro de altura e parecia um rato de dimensões descomunais, que devia ter parentesco bastante próximo com um castor. Os olhos redondos da estranha criatura fitaram Gibson. Trajava o uniforme de tenente da Frota Solar. Evidentemente tratava-se de uma peça feita sob encomenda. Apresentava até uma abertura por onde passava a larga cauda de castor.

O animal pareceu ter notado o interesse que despertara em Gibson, pois ergueu-se ligeiramente. O encarregado ficou espantado ao constatar que aquela criatura ocupava a única poltrona estofada que havia naquele auditório.

Gibson engoliu em seco. Já ouvira falar muitas vezes em Gucky. Mas escutar e ver são duas coisas muito diferentes.

Os olhos escuros do rato-castor fitaram-no. Depois de algum tempo pôs à vista um dente roedor muito feio e sorriu para Gibson. O rosto do encarregado ficou vermelho. Não sabia como agir. Afinal, aquela criatura era um oficial, e as notícias de seus feitos haviam chegado até o sistema Capra. Muito embaraçado, Gibson fez uma ligeira mesura.

Gucky cumprimentou com um gesto condescendente da cabeça. Seus olhos pareciam sonolentos.

Perry Rhodan levantou-se, obrigando Gibson a olhar em sua direção. O silêncio passou a reinar no auditório, onde se achavam reunidos homens cônscios de sua responsabilidade, que ocupavam posições elevadíssimas.

— Há algumas semanas dei ordem para que a importação de liquitivo fosse suspensa, tanto na Terra como nos planetas coloniais — principiou Rhodan. — Além disso, mandei proibir a venda do preparado. Sabíamos perfeitamente que não conseguiríamos que, de uma hora para outra, todos os estoques fossem retidos. Algumas pessoas compraram a bebida às pressas e o mercado negro começou a florescer. Apesar disso, cinqüenta milhões de seres humanos já não têm meios de obter a droga. E o número das pessoas que se encontram nessa situação cresce constantemente. Até tenho medo de pensar no número de viciados que devem estar entre nós. Prefiro nem falar nos mundos coloniais ou nos planetas de Árcon. Os antimutantes da seita de Baalol executaram um plano diabólico. Antes de inundar a Terra e os planetas de Árcon com o liquitivo, viciaram mundos afastados.

Rhodan interrompeu sua fala e fitou os assistentes com uma expressão grave. Pegou algumas folhas de papel que se encontravam à sua frente.

— Ao que tudo indica, dentro em breve teremos uma revolta — informou. — Tenho em mãos várias notícias que me deixam profundamente preocupado. Em Des Moines, a residência do prefeito foi saqueada. Em Paris, a turbulência dos homens que participam das demonstrações cresce a cada hora que passa. As tentativas de assalto aos edifícios públicos foram abafadas pela polícia por meio de jatos de água. Em Gettysburg houve uma verdadeira batalha na rua, entre um policial e um grupo de cinqüenta viciados. O policial foi posto fora do combate e seu veículo foi destruído. Uma loja foi saqueada. Na mesma cidade registrou-se o primeiro suicídio. Um homem paralítico matou-se porque não conseguia mais liquitivo.

Balançou a cabeça, num gesto de lástima.

— São apenas algumas notícias entre muitas — disse. — Mr. Bell e eu resolvemos iniciar uma grande campanha de esclarecimento público, que já está sendo levada avante. Devemos prevenir a Humanidade contra os perigos que a droga envolve.

Existem quantidades gigantescas da bebida que não puderam ser apreendidas. A mesma é vendida mais ou menos publicamente, a preços absurdos. Por isso torna-se imprescindível que toda a população seja esclarecida sobre o perigo ligado ao uso do licor.

O General Deringhouse levantou-se.

— Sir, o senhor acredita que, com isso, os homens se tornem menos brutais em suas tentativas de conseguir o entorpecente?

— É o que espero.

Oliver Gibson pensou que era chegado o momento de falar em seu problema. Levantou o braço, para pedir a palavra. Rhodan assentiu com um gesto.

— A maior parte dos senhores já me conhece — principiou. — Apesar disso quero dizer quem sou e de onde venho. Sou o encarregado do sistema Capra, onde seis planetas coloniais da Terra se encontram em desenvolvimento. A situação dos homens que vivem lá não pode ser comparada com a da população terrana. A vida dos colonos é muito dura. Sentem-se felizes e satisfeitos com qualquer tipo de distração, que quebre a monotonia. Por isso é perfeitamente compreensível que, num lugar como este, o entorpecente tenha sido vendido em quantidades maiores que na Terra. Acho que a mesma coisa aconteceu com outras colônias.

Sorriu.

— Senhores — disse — eu mesmo sou um viciado.

Os homens reunidos naquele auditório estavam acostumados a toda sorte de surpresas. Depois da confissão de Gibson, os rostos continuaram impassíveis. Alguns pareciam mais sérios e resolutos, enquanto outros só agora pareciam interessar-se pelo encarregado, mas ninguém fez qualquer aparte.

Gibson olhou para Perry Rhodan. Já informara o administrador, em confiança, sobre a situação miserável em que se encontrava. Rhodan não era capaz de proferir uma condenação imediata e total contra qualquer homem. Gibson não viu nenhuma recriminação nos olhos cinzentos do administrador, mas apenas um estímulo mudo para que prosseguisse no seu discurso.

— Há três dias vivo sem o licor — prosseguiu Oliver Gibson.

Sem que o quisesse, olhou para Gucky. O rato-castor mantinha os olhos fechados. Apesar disso, Gibson sentiu um fluxo inexplicável de calor humano. Sabia que tinha amigos por ali. Seus ombros se entesaram.

— Falo em nome de seis planetas coloniais terranos. Quero resumir minha contribuição nos debates num pequeníssimo discurso: devemos encontrar com a maior urgência uma solução que atenda às necessidades dos viciados e do resto da Humanidade.

Gibson concluiu com um gesto e voltou a sentar-se. Naquele recinto não havia ninguém que o desprezasse. Todos se sentiam animados do desejo de ajudar.

Rhodan virou o rosto para os dois homens de jaleco branco. Um deles levantou-se. Estava muito nervoso. Uma das mãos achava-se escondida no bolso do jaleco, enquanto a outra endireitava a gola.

— Meu colega, o Dr. Topezzi, e eu, fomos incumbidos de coordenar todas as informações recebidas da equipe médica que realiza um urgente trabalho de pesquisa, para descobrir as características perigosíssimas do entorpecente.

Pigarreou fortemente e lançou um olhar de súplica ao Dr. Topezzi que, segundo parecia, estava satisfeito por não se encontrar no lugar do orador.

— Por enquanto — prosseguiu o médico — não se conseguiu apurar de que forma os antis fabricam o veneno. Não existe a menor dúvida de que o liquitivo produz um efeito rejuvenescedor. Há um detalhe interessante: o vício só se manifesta, depois de a droga ter sido usada umas quatro ou cinco vezes. Isso permite certas conclusões, mas estas são de natureza puramente teórica e no momento não oferecem o menor interesse. O que parece certo é que o licor só se transforma num veneno, que afeta os nervos, depois de ter sido ingerido por um ser humano. Algum fermento do estômago combina-se com o licor. Como sabemos, os fermentes funcionam como catalisadores. Antes de ser ingerido, o produto não é venenoso. Só depois de entrar em contato com o fermento, adquire essa qualidade. Acho desnecessário mencionar que o liquitivo é fabricado com base em hormônios. De outra maneira não haveria como explicar o efeito rejuvenescedor.

— Está bem, doutor — disse Reginald Bell.

Era o único homem que demonstrava certa impaciência.

— Diga-nos alguma coisa sobre os tratamentos de desintoxicação; qual foi o resultado dos mesmos? — pediu Rhodan.

— Para resumir, em todos eles o resultado foi negativo — informou o médico. — Os maiores especialistas em tratamentos de desintoxicação fracassaram. Todos sabemos que uma pessoa viciada pela morfina ou pelo álcool pode ser libertada do vício. Ao que parece, isso não acontece com o liquitivo. Depois de trinta dias, a loucura é o destino fatal das pessoas que adquiriram a dependência.

Fez um sinal com as mãos. Falando muito baixo, acrescentou:

— Só podemos recomendar aos responsáveis que suspendam a proibição da importação e venda do liquitivo, pois, do contrário, correremos o risco de ver enlouquecer inúmeras pessoas.

Aquilo que Gibson não conseguira com sua exposição, o médico alcançou com sua proposta chocante: os ouvintes tornaram-se inquietos. Jefe Claudrin levantou-se instintivamente. O corpo gigantesco daquele homem de Epsal, parecia querer arrebentar o uniforme. John Marshall trocou um ligeiro olhar com outro dos presentes. Tratava-se de um japonezinho, em cujo rosto pairava um sorriso suave.

— Será que o senhor acha que devemos levantar o bloqueio, Dr. Whitman? Sabe o que significa isso? As organizações mercantis galácticas, especialmente nossos velhos amigos, os saltadores, voltarão a entrar livremente em nosso sistema.

— É verdade, sir — disse o Dr. Whitman.

Deringhouse era dotado de um raciocínio frio. Apesar disso era antes de tudo um soldado, e suas idéias logicamente se moviam principalmente na área militar. Como general, achava que sua tarefa consistia em usar a Frota Solar para manter todo mal afastado da Terra. Não era dado aos lances astuciosos, às intrigas políticas ou às hábeis manobras diversionistas.

— Isso equivaleria a uma capitulação — disse em tom amargurado.

Gucky piscou os olhos; estava bastante interessado pela discussão. Nem mesmo aquele nativo do planeta Vagabundo, sempre brincalhão, subestimava o significado da palavra capitulação.

Rhodan foi o único que conservou a calma.

— A palavra capitulação parece muito dura — disse o Dr. Topezzi. — Se falássemos numa solução de compromisso, talvez estaríamos usando termos mais adequados.

— Pouco importa que palavra queiramos usar — disse o general, em tom exaltado. — O que adianta encobrir a derrota com palavras bonitas? Sou contra a suspensão do bloqueio.

Uma exclamação surda saiu da boca de Jefe Claudrin. Todos a interpretaram como uma manifestação de concordância. Era comandante da primeira nave linear terrana, e por isso sua opinião pesava um pouco.

Perry Rhodan compreendeu que, se não interviesse imediatamente, os homens que se encontravam reunidos se dividiriam em dois partidos. Estava cônscio de sua responsabilidade. Era necessário tomar uma decisão, e dela provavelmente dependeria a existência de toda a Humanidade, tanto da que vivia na Terra como da que habitava os planetas coloniais.

Naquele momento histórico, o homem que até merecera certo respeito de Auris de Las-Toor, representante do Conselho de Ácon, e cujo nome estava indissoluvelmente ligado ao futuro da raça humana, disse:

— O bloqueio será levantado. A partir deste momento voltará a ser permitida a venda do liquitivo na Terra e em suas colônias. Vamos recomendar a Gonozal VIII, Atlan, para que adapte seu procedimento ao nosso.

Perry Rhodan fitou prolongadamente os homens ali reunidos. Notou que o General Deringhouse empalidecera e que Claudrin franziu os sobrolhos, numa expressão de contrariedade. Alguns homens engoliram em seco, e seus rostos assumiram uma expressão dura. Mas a confiança que depositavam no administrador pesava mais que seus sentimentos.

A voz de Rhodan cortou o silêncio sepulcral.

— Com isso evitaremos que milhões de seres humanos se transformem em loucos. Nossa campanha de esclarecimento deverá ser intensificada, a fim de que as pessoas sadias não se transformem em viciados. O fato de que o uso do liquitivo representa um perigo para a vida deve ser divulgado em todos os cantos do império.

Sorriu sem demonstrar muito senso de humor.

— Isso evidentemente não significa que admitimos nossa derrota — disse. — Iniciaremos um programa de pesquisas como este planeta nunca viu igual. Os maiores cientistas de todos os mundos utilizarão todos os meios para descobrir um antídoto.

Rhodan irradiava resolução. — E eles o descobrirão, da mesma maneira que eu descobrirei Thomas Cardif.

Apavorado, Gucky pôs à mostra o dente roedor. Mas não disse nada. Quando o chefe se encontrava neste estado de ânimo, era preferível ficar calado. Todos os presentes sentiram a feroz resolução que animava Rhodan.

Sua energia espalhou um otimismo que, lace aos acontecimentos posteriores, não tinha a menor razão de ser.

Alguém que está enleado na teia, dificilmente consegue libertar-se. Mesmo que se mantenha aparentemente quieto, a fim de não irritar o atacante.

Dois dias depois dessa reunião, o entorpecente voltava a ser vendido livremente em todos os pontos da Terra. Para algumas centenas de homens, já era tarde.

Em Gettysburg, um homem foi internado num hospital para doentes nervosos. Seu espírito estava totalmente perturbado.

Chamava-se Henry Mulvaney.

A semente má, lançada pelos antis, estava germinando. Nos laboratórios da Terra e dos planetas de Árcon, testes eram realizados. Rhodan não descansava. Interessava-se pessoalmente pelos resultados de todos os exames.

De repente aconteceu uma coisa que imprimiu um rumo totalmente diferente aos acontecimentos...

 

Sob o ponto de vista puramente estético, a cidade era um amontoado de edifícios cinzentos. As ruas eram estreitas e havia muitos cantos imundos. Atualmente não tinha a menor importância, e por isso sua feiúra destacava-se ainda mais. Antigamente, quando Lepso ainda era uma espécie de Tânger intercósmico, aquela cidade, e muitas outras do mesmo planeta, costumavam abrigar os representantes de inúmeras raças.

Depois que as tropas do Império Solar ocuparam Lepso, esta cidade e muitas outras do mesmo planeta passaram a ser monótonas. Os contrabandistas não vagavam mais durante a noite pelos portões arqueados, os tiros de radiações deixaram de ser trocados entre os “negociantes” que não conseguiam chegar a acordo sobre o preço de suas mercadorias escusas.

A cidade estava morta, porque Lepso estava morto. A corrupção do governo, apoiada pelos antis, chegara ao fim, pois naquele planeta já não existiam os chamados sacerdotes divinos. Rhodan mandara atacar o templo dos antis. Alguns sacerdotes haviam fugido no último instante, juntamente com Thomas Cardif. Os soldados terranos, equipados com instrumentos de localização, não tardaram em descobrir os locais de fabricação do liquitivo. Os comandos de robôs e as tropas de elite penetraram nos subterrâneos e ocuparam todos os pontos que pareciam ter alguma importância. Mas os cálculos logo demonstraram que as quantidades imensas de entorpecente, distribuídas pela Galáxia, não poderiam ter sido produzidas exclusivamente em Lepso.

Constantemente realizavam-se vôos de controle, a fim de localizar eventuais bases em Lepso que ainda permanecessem ocultas.

Stephen Elliot cruzava sobre a cidade cinzenta, atrás da qual se estendia a paisagem desolada de Lepso. Fez seu planador descer um pouco. O vôo diário de rotina estava concluído.

— Olá, Stephen — disse uma voz alegre.

Elliot sobressaltou-se. Desoga tinha uma maneira pouco convencional de se comunicar pelo rádio. Elliot ligou seu aparelho de radiofonia. Imaginou o espanhol magro sentado na central, fumando um charuto mais grosso que seu polegar.

— Aqui fala o planador FTP 34 — disse Elliot. — Pode falar.

Desoga tossiu. Era o superior hierárquico de Elliot. Mas este vivia perguntando-se como era possível que um homem de atitudes pouco militares tal qual Desoga podia dirigir um trabalho que exigia elevada dose de responsabilidade.

— Se eu olhar pela janela, eu o vejo — disse Desoga.

Perplexo, Elliot olhou para baixo. Não seria capaz de dizer qual dos edifícios cinzentos, que via lá embaixo, abrigava a central. Vistos de cima, todos pareciam iguais. Além disso, pouco lhe importava que Desoga pudesse vê-lo ou não.

— Não pouse por enquanto, Stephen — ordenou Desoga.

Elliot lançou os olhos pela carlinga panorâmica. Desoga fungou e, ao que tudo indicava, estava esperando que Elliot dissesse alguma coisa. O piloto ficou imaginando o que aconteceria se um dia os charutos do espanhol acabassem.

— Tem mais alguma ordem, sir? — conseguiu dizer com grande esforço.

No seu íntimo rogou pragas contra Desoga e seus charutos, contra aquela cidade e o planeta que parecia ser formado unicamente de pedras e montanhas desoladas. Antes que pudesse praguejar contra mais alguma coisa, Desoga disse:

— Tenho, Stephen — respondeu e pigarreou.

Elliot pensou: “Está na hora.”

— Voe até o quadrado X45-D-3 — ordenou Desoga. — Recebemos uma informação do destacamento que vigia a área. Dizem ter descoberto uma pequena base que ainda não tínhamos localizado.

Desoga não havia localizado uma única base, mas falava como quem tivesse descoberto todas elas.

— Há um mutante em companhia dos homens, Stephen. É telepata. Pelo que dizem, existe alguém nessa base. Veja o que pode fazer.

Era a maneira típica de dar ordens daquele espanhol. Não dera nenhuma indicação precisa sobre o que Elliot deveria fazer. O piloto dirigiu o planador para o ponto que lhe fora indicado.

— Talvez seria conveniente — observou Desoga em tom bonachão — se conseguíssemos prender esse sujeito vivo.

Ao que parecia, o espanhol sabia mais do que desejava confiar a Elliot. Desoga sempre parecia saber mais que os outros. De repente, o piloto se lembrou de que talvez fosse esse o motivo por que aquele magricela era seu superior, e ficava sentado na central, envenenando-se com nicotina.

— Sim, senhor — disse Elliot.

Desoga parecia nem ouvi-lo mais. A cidade desapareceu embaixo de Elliot. Olhando para trás, via apenas sua silhueta sombria desenhada no horizonte. O pequeno sol amarelo de Firing fornecia bastante luz para iluminar a paisagem que deslizava sob o planador.

Quando chegou ao lugar indicado por Desoga, viu um grupo de homens que agitavam os braços em meio à desolação. Elliot pousou habilmente. Dos uniformes dos soldados concluía-se que estes pertenciam à Frota Solar. Estavam armados até os dentes. Dois robôs de guerra mantinham-se num ponto mais afastado.

Elliot saiu do pequeno veículo aéreo. Lepso era um planeta de oxigênio, motivo por que os terranos não tinham necessidade de usar traje protetor. Elliot mal conseguia imaginar que o contrabando intercósmico tivesse florescido justamente num mundo insignificante como este. Lepso fora o ponto de entroncamento de todos os negócios escusos, até o momento em que Rhodan aparecera com a Frota Solar. Nem mesmo as naves cilíndricas dos mercadores galácticos conseguiram impedir a atuação enérgica de Rhodan, dirigida contra os antis.

— O senhor deve ser Elliot — disse um homem baixo a título de cumprimento. — Desoga já anunciou sua vinda. Recebemos ordem para não fazer nada enquanto o senhor não chegasse. Sou o cabo Higgins; dirijo este grupo.

Elliot fitou os dezesseis homens que se encontravam à sua frente. Onde estaria o mutante mencionado pelo espanhol? Elliot julgava-se capaz de reconhecer imediatamente, em meio a um grupo de homens, um membro desse exército lendário.

Higgins até parecia ter adivinhado seus pensamentos, pois disse:

— O telepata encontra-se num outro grupo, que foi ao encontro do Tenente Lechner e seus homens. Lechner prendeu alguns arcônidas suspeitos, vindos de alguma colônia, que se encontravam em Lepso por motivos dificilmente explicáveis quando iniciamos nosso ataque.

Evidentemente Higgins esperava que o piloto assumisse o comando. Elliot lançou um olhar para a paisagem desolada. Sentia-se inseguro.

— O que aconteceu? — perguntou.

— O mutante constatou que ali deve haver uma base oculta — disse Higgins, em tom apressado.

Apontou na direção de uma colina baixa, que não parecia nada suspeita aos olhos de Elliot.

Higgins sentia-se indeciso. Via-se que não compreendia a forma de trabalho dos mutantes. E, ao que parecia, não se achava muito interessado em compreender. Estava satisfeito com aquilo que já conseguira. Preferia deixar as decisões mais importantes por conta de outra pessoa.

— O membro do Exército de Mutantes afirma que ali só há um único terrano — prosseguiu Higgins. — Pelo que diz, está armado. Na opinião do telepata não é perigoso.

— Logo descobriremos — disse Elliot.

O cabo Higgins concordou com o ar sério de um velho soldado.

— Não há dúvida, sir.

Elliot não tinha uma idéia precisa sobre como fariam para atingir a base. Mas, como aqueles homens esperavam que fizesse alguma coisa, começou a deslocar-se em direção à colina.

— Já tentamos estabelecer contato pelo rádio com o misterioso terrano — observou Higgins. — Nossas tentativas não foram bem-sucedidas.

Quando haviam percorrido aproximadamente metade da distância que os separava da colina, os problemas de Elliot foram resolvidos de forma misteriosa. Um vulto cambaleante apareceu no topo da colina.

— Vamos — gritou Higgins e passou correndo por Elliot.

O tal vulto era uma figura esquisita. Tinha pernas curtas e tortas. Elliot apressou o passo.

— O homem deve ser este, sir — gritou Higgins, como se estivesse prestes a tomar de assalto um cruzador dos saltadores.

Pasmo, Elliot perguntou-se por que motivo um homem, que se mantivera escondido por tanto tempo, resolvera aparecer no momento exato em que surgiam as pessoas das quais devia ter fugido.

O homem à sua frente estava esgotado ou doente. Cambaleou colina abaixo.

— Tratem-no com cuidado — ordenou Elliot. — Parece que está ferido.

Juntamente com Higgins e dois soldados, foi o primeiro a chegar ao lugar onde estava o desconhecido. Não havia a menor dúvida de que era um terrano. Era de estatura mediana e muito magro, quase tão magro como Desoga. O rosto estava encovado e com a barba por fazer. A roupa estava muito estragada. Uma atadura precária cobria a coxa direita.

O homem fitou os olhos de Elliot. Ao que parecia, nem notava sua presença. O piloto sentiu que o estado daquele fugitivo não era causado exclusivamente pelo ferimento que trazia na perna. Elliot tinha a impressão de conhecer o porquê desse olhar vazio.

De repente lembrou-se do que vira em Lepso várias semanas atrás. Já sabia o que havia com esse homem.

É um viciado”, pensou. “Encontra-se sob a influência do terrível liquitivo!”

Elliot teve um calafrio. Desoga determinara que esse homem fosse recolhido vivo.

Estava certo de que devia apressar-se bastante se quisesse cumprir essa ordem.

— Apóie-o! — ordenou Higgins.

Reunindo suas forças, arrastaram o homem semimorto em direção ao planador.

Naquele momento, ninguém desconfiava de que aquilo representava o início de uma nova pista, de uma pista que levava diretamente ao centro da Via Láctea. Desoga, o oficial magricela que se encontrava na central, lá na cidade, aguardava muito tenso que Elliot retornasse.

 

Havia uma coisa que Elliot não podia saber, por um motivo muito simples: ninguém lho havia dito. Desoga era um especialista da Segurança Solar. Depois de uma demorada reunião, Rhodan e Mercant haviam resolvido colocar em cada cidade de Lepso um mutante e um especialista em matéria de segurança. Essa resolução prevaleceria inicialmente pelo prazo de dois meses, até que se tivesse certeza de que, no segundo planeta do sol de Firing, não se escondia mais ninguém que pudesse fornecer informações importantes.

Fazia duas horas que Miguel Desoga pedira ao piloto que se retirasse de seu gabinete. Naquele momento, só se encontrava presente o médico, que se esforçara para, por meio de injeções e medicamentos, colocar o homem inconsciente em condições de ser interrogado.

— Perdeu muito sangue — explicou o Dr. Silverman. — Não gosto nem um pouco da ferida na coxa, provocada por um tiro. Além disso, temos os efeitos desastrosos do entorpecente. Estou quase certo de que este homem é um viciado de longa data. É ao menos o que indicam os sintomas.

Os olhos escuros do espanhol estreitaram-se. O eterno charuto, que trazia entre os lábios, formava um contraste marcante com o rosto magro.

— Quer dizer que ele morrerá? — perguntou Desoga.

O Dr. Silverman lançou um olhar recriminador para o agente, quando este tirou uma enorme baforada de seu charuto.

— Isso mesmo; não demorará nada.

— Hum! — fez Desoga, lançando um olhar pensativo para o traste humano, encolhido na poltrona, a poucos metros do lunar onde se encontrava.

Aquele homem moribundo parecia ser uma pessoa culta.

— Está bem, doutor — disse Desoga, em tom rabugento. — Faça-o falar.

O médico sabia perfeitamente que seria inútil discutir com um agente. Fazia vinte anos que trabalhava com esse tipo de gente. Suas decisões sempre eram bem pensadas.

O Dr. Silverman preparou outra injeção. Desoga parecia interessar-se unicamente pela cinza de seu charuto. Esperou até que o médico concluísse seu trabalho.

— Se tivermos sorte, recuperará os sentidos dentro de dez minutos — anunciou o Dr. Silverman. — Depois disso poderá interrogá-lo.

— Por quanto tempo?

Silverman ergueu os ombros angulosos.

— Isso depende de sua resistência orgânica. Se tiver azar, só falará por alguns minutos. Na melhor das hipóteses, disporá de uma hora.

Desoga resolveu que, de qualquer maneira, faria uma gravação em fita. Ligou o aparelho. Teria de andar depressa com o interrogatório, caso contrário dificilmente conseguiria tempo para repetir suas perguntas. O gravador de fita não poderia ser enganado. Registraria todos os detalhes e, posteriormente, repetiria tudo com muito mais perfeição do que Desoga seria capaz de fazê-lo.

Assim que o agente concluiu seu trabalho, o Dr. Silverman disse:

— Está recuperando os sentidos.

Desoga puxou uma cadeira e acomodou-se de frente para o encosto. O doente gemia baixinho. Suas pálpebras tremiam.

— Pode retirar-se, doutor — disse Desoga. — É possível que mais tarde volte a precisar do senhor. Peço-lhe que se mantenha de prontidão.

— Este homem nunca mais precisará de mim — disse o Dr. Silverman e saiu.

Desoga aproximou a cadeira do desconhecido.

— O senhor me ouve? — perguntou em tom insistente. — Compreende minhas palavras?

O homem fez um gesto afirmativo. Abriu os olhos, que estavam injetados de sangue. Fitou o espanhol com uma expressão de perplexidade. Desoga resolveu conceder-lhe um minuto, para que pudesse; recuperar-se.

— Onde estou? — balbuciou o ferido.

— Na Terra — mentiu Desoga. Aquele homem sentia que a morte se aproximava, e qualquer terrano que se encontra nessa situação anseia por estar na Terra antes que chegue o fim.

— O senhor está num hospital.

— Num hospital? — repetiu a voz monótona do viciado.

Desoga pegou a mão de seu interlocutor e sacudiu-a suavemente.

— Queremos saber quem é o senhor.

— Sou o Dr. Nearman — disse o homem com certo orgulho. — Sou o conhecido biólogo e astromédico.

Desoga nunca ouvira falar no Dr. Nearman. Este prosseguiu em suas explicações, sem que tivesse sido formulada outra pergunta.

— Saí da Terra há trinta e oito anos — disse.

Desoga ficou apavorado ao notar que as pupilas do homem se modificavam constantemente, embora a luminosidade permanecesse sempre a mesma naquele recinto.

Seria o efeito estimulante da injeção, ou seria o prenuncio do fim?

— O que fez em Lepso? — perguntou Desoga.

Nos trinta minutos que se seguiram, o Dr. Nearman apresentou um relato desconexo. A todo instante, Desoga teve de interrompê-lo com perguntas, a fim de esclarecer determinados pontos.

O Dr. Nearman fizera amizade com um homem chamado Dr. Edmond Hugher, que não era outro senão Thomas Cardif. Haviam trabalhado juntos na descoberta e no aperfeiçoamento do liquitivo. Desoga foi de opinião que deram o liquitivo ao Dr. Nearman apenas no intuito de prendê-lo à organização criminosa. A suposição do Dr. Silverman, segundo a qual o doente se encontrava no último estágio, revelava-se correta. Quando a Frota Solar surgiu em Lepso, a consciência acusou pela primeira vez o Dr. Nearman pelos atos que praticara. Fugira e, na oportunidade, fora ferido por um robô de guerra. Em meio ao nervosismo geral conseguira chegar ao esconderijo em que fora localizado pelo mutante. Totalmente exausto, resolvera entregar-se.

Desoga constatou que o Dr. Nearman era muito entendido na determinação de posições galácticas. Falava constantemente num misterioso planeta designado pelo nome de Okul. Desoga estabeleceu uma ligação entre este mundo e Thomas Cardif e os antis, pois o Dr. Nearman mencionou o fato de que a organização tinha certeza de que Okul representava um refúgio seguro. O espanhol fez o possível para obter do moribundo os dados sobre aquele mundo misterioso, que parecia conhecer.

Depois de um ligeiro olhar para o gravador, Desoga soltou um suspiro de alívio. Tinha certeza de que em Terrânia saberiam fazer muito mais com as informações fornecidas pelo Dr. Nearman do que ele, ali em Lepso. Desoga resolveu enviar a fita à Terra pelo caminho mais rápido possível.

— Okul deve ser um planeta coberto por selvas — informou o Dr. Nearman, e sua voz tornava-se cada vez mais débil. — Pelo que diz o Dr. Hugher, por lá não existem seres inteligentes. Por isso os sacerdotes da seita de Baalol acharam que seria conveniente criar um estabelecimento nesse mundo.

Desoga percebeu que seu charuto se apagara.

— Prossiga, Dr. Nearman — pediu com a voz tranqüila.

De repente, o biólogo sentiu a estranha desconfiança que constitui uma característica de todas as pessoas gravemente enfermas.

— O senhor é médico? — perguntou. — O que deseja de mim?

— Está tudo em ordem — disse o agente, em tom tranqüilizador. — O senhor está em lugar seguro. Nada lhe acontecerá.

Porém os olhos do Dr. Nearman assumiram uma expressão rígida.

Desoga compreendeu que o biólogo estava morto.

Levantou-se e foi até a porta. O Dr. Silverman encontrava-se sentado no corredor, de pernas cruzadas, e fazia anotações. O bloco estava apoiado sobre o joelho.

— Venha, doutor — disse Desoga.

 

A história de todos os impérios galácticos tem algo em comum. Trata-se de um fator que parece constituir um paradoxo. À medida que um império estelar se expande, a medida que cresce em tamanho, maiores são os perigos a que está exposto, e isso por dois motivos. Um pequeno império, guardado por um imperador, não tem muita coisa a recear. Se o império for desmantelado, a respectiva comunidade passa automaticamente para o inimigo e, sob o governo deste, prossegue na sua vida tranqüila. Tal procedimento não seria possível para um grande império. Este deve lutar pela sua existência, enfrentando inimigos tão fortes como ele, inimigos mais fortes ou mais fracos. Raramente uma raça consegue dominar sozinha a galáxia que habita.

O motivo disso reside nas imensas distâncias que separam os diversos sistemas solares. Um império cósmico evidentemente é dirigido a partir do planeta que serve de pátria à respectiva raça. Dali saem fios invisíveis que unem o centro aos planetas coloniais, aos entrepostos comerciais e aos mundos habitados pelas raças amigas ou subjugadas. Com o tempo, a tarefa de coordenar os acontecimentos assume proporções gigantescas. Mesmo que se disponha de todos os recursos, torna-se impossível controlar permanentemente um enorme império estelar a partir de um único planeta.

A conseqüência inevitável disso é a aquisição da soberania política por parte de vários planetas coloniais, que passam a trilhar seus próprios caminhos. A tarefa de controlar uma via láctea de dimensões fantásticas a partir de um único planeta excede a capacidade mental de qualquer criatura inteligente. Nem mesmo o poder militar concentrado será capaz disso, pois este se perderá em meio às estrelas.

A história das raças que alcançaram um grau elevado de desenvolvimento mental ensina que o império apenas representa uma fase de transição. É nessa fase que se decide o destino de uma raça. Alguns povos conseguem, graças ao seu desenvolvimento mental e tecnológico, recolher-se em sua área e isolar-se contra todos os ataques. Outros são invariavelmente destruídos.

Uma velhíssima lei cósmica diz que, quanto mais desenvolvida uma raça, mais retraída se mostra ela na luta pelo poder galáctico.

Mas, para atingir esse estágio, a raça não pode deixar de percorrer o caminho penoso do império.

O Império Solar encontrava-se no começo desse caminho.

Entretanto, já agora notava-se que as dificuldades cresciam constantemente. Os inimigos tornavam-se cada vez mais numerosos e poderosos. Um dia, um filósofo arcônida dissera: “A única coisa que fazemos é estender constantemente nosso campo de batalha. De resto, nada muda.”

E o Império Solar mais uma vez estava prestes a estender seu campo de batalha. De repente uma área galáctica, até então inexplorada, passara a oferecer grande interesse.

A 41.386 anos-luz da Terra existia um pequeno sol amarelo, que se situava no centro da Via Láctea. Em torno dele gravitava um planeta, cuja existência até então era ignorada na Terra. Era o planeta Okul. O sistema possuía mais dois mundos, que não tinham nome e não ofereciam o menor interesse.

 

As instituições oficiais de pesquisa da Terra pareciam casas de marimbondos. Trabalhava-se noite e dia para pesquisar as características do entorpecente e descobrir um antídoto para o mesmo.

Quando a altas horas da noite se encontrou com o Marechal Solar Freyt para discutir os resultados que os computadores haviam extraído da fita gravada e enviada por Desoga, Perry Rhodan estava exausto.

Enquanto isso Reginald Bell supervisionava ao lado de Allan D. Mercant o interrogatório dos aras presos em Lepso. Os médicos galácticos estavam sendo interrogados pelos membros do Exército de Mutantes. Rhodan esperava que esses interrogatórios permitissem conclusões valiosas quanto ao entorpecente.

— Boa noite, sir — disse Freyt no tom tranqüilo que lhe era característico.

O marechal tinha muita coisa em comum com o administrador.

Rhodan olhou para o relógio.

— Já está na hora de dizer bom dia — observou. — Já passa da meia-noite.

Ao sentar-se, Freyt respondeu com o rosto impassível:

— Não queria privá-lo da sensação de que ainda dispõe de algumas horas da noite para um repouso bem merecido.

Rhodan ofereceu-lhe um refrigerante. Perry sabia que o marechal costumava trabalhar duro e não gabava-se do que fazia. Assim que Freyt terminou de tomar o refrigerante, disse em tom tranqüilo:

— Espero que tenha boas notícias, sir.

— Segundo os cálculos de probabilidade, Okul é o local em que se situa a fonte de suprimentos da matéria-prima para a fabricação do entorpecente — informou Rhodan. — Ao que tudo indica, o tal do Dr. Nearman representou uma boa presa. É pena que tenha morrido. Se o especialista em segurança que temos em Lepso fosse menos competente, provavelmente nem sequer disporíamos dos dados que temos à nossa frente. Esse Miguel Desoga não perdeu tempo.

— Quer dizer que é possível que em Okul cresçam as plantas das quais os antis extraem o liquitivo?

Rhodan refletiu por um instante. Nos últimos dias, um número cada vez maior de cientistas ressaltara o fato de que possivelmente o entorpecente não era feito com matérias-primas vegetais. De qualquer maneira, porém, o planeta Okul desempenhava um papel importante no plano dos antimutantes.

— Tenho a impressão de que as informações recebidas de Lepso não são simples fantasias de um doente mental. Desoga enviou um relatório escrito no qual informa que, em sua opinião, as declarações do Dr. Nearman correspondem à verdade. Afinal, o biólogo encontrava-se sob a influência de uma série de injeções.

Freyt afastou o copo vazio. Sabia que só lhes restava uma possibilidade. Teriam de ir a Okul. O marechal solar acreditava conhecer o administrador suficientemente bem, para saber que naquele momento ele tinha a mesma idéia. Até era provável que o motivo de sua presença, nesse lugar, a uma hora tão avançada, tinha algo a ver com os planos de Rhodan a este respeito.

— Para falar com franqueza, no momento estamos com as mãos amarradas — disse Rhodan. — Os antis mantêm-se escondidos. Conseguiram distribuir quantidades tão grandes do entorpecente que, quando notamos o perigo, já era tarde.

Lançou um olhar apreensivo para Freyt e prosseguiu:

— Sei perfeitamente que vários oficiais da Frota não concordam com a suspensão do bloqueio.

Freyt conhecia Rhodan o suficiente para compreender que o administrador se preocupava com a lealdade das pessoas que o ajudavam.

— Muita gente nos criticou por não termos notado mais cedo o perigo do licor — respondeu Freyt. — Duvida-se da seriedade dos testes a que são submetidos todos os produtos que entram no comércio cósmico.

— Ponho minha mão no fogo por cada um dos cientistas que realizou os controles — asseverou Rhodan.

Antes que Freyt tivesse tempo de responder, alguém bateu à porta. Freyt virou a cabeça e viu Bell entrar. O gorducho parecia esgotado. Caminhou a passos rápidos em direção a uma poltrona e deixou-se cair com um suspiro.

— Boa noite, sir — disse Freyt, numa cortesia irônica.

Bell sentiu-se indignado.

— Estou morto de cansaço — disse. — Esses aras são gente dura. John Marshall e cinco dos seus homens trabalharam ininterruptamente até agora, para extrair tudo dos mesmos — agitava a mão na frente do rosto, como se quisesse transformá-la num leque.

As feições de Rhodan assumiram uma expressão enérgica. Sabia que Bell estava aludindo aos aras presos em Lepso. Thomas Cardif trabalhara com eles.

— O que foi que os mutantes descobriram? — perguntou Rhodan.

Bell preferiu não olhar diretamente para o amigo. Freyt, que era um observador muito atento, logo desconfiou que aquele homem atarracado trazia notícias desagradáveis.

— Os aras confessaram quem descobriu a droga maldita — principiou Bell, em tom deprimido.

Mal Bell concluiu a frase, Freyt sabia quem era o descobridor. Tanto ele como Bell teriam concordado em mudar de assunto. Mas o orgulho de Rhodan obrigou-o a formular uma pergunta.

— Quem é?

Bel e Freyt entreolharam-se prolongadamente. Também para eles, o destino trágico do amigo representava uma carga psíquica. Por algum tempo reinou um silêncio constrangedor. Finalmente Bell disse:

— É Thomas Cardif.

Qualquer pessoa estranha, que soubesse que o nome que acabara de ser pronunciado naquele momento pertencia ao filho de Rhodan, acreditaria que o administrador fosse uma criatura fria como gelo. Bell e Freyt, porém, souberam enxergar através da blindagem do autodomínio. E viram o que havia atrás da mesma: tristeza e amargura.

Bell levantou as duas mãos.

— Não se esqueça de que Cardif estava submetido a um bloqueio hipnótico.

Quando trabalhava na descoberta do liquitivo, não era dono de si mesmo. Não se esqueça de que usava o nome Dr. Edmond Hugher. Provavelmente os antis conseguiram romper o bloqueio hipnótico por meio de suas energias mentais. Os atos de Cardif são dirigidos exclusivamente contra você e têm por fim destruí-lo. Os boatos insensatos confundiram sua mente.

— Isso foi uma fala muito eufemística — observou Rhodan, sarcástico. — Para exprimir a mesma coisa em poucas palavras, podemos dizer que Thomas Cardif, filho de Rhodan, é um criminoso.

— Isso apenas representa o resultado de uma série de circunstâncias infelizes — disse Bell, em tom apaixonado.

— Você não se lembra de que tentou trair a Terra, entregando-a aos saltadores? Não se lembra de um certo saltador que atendia ao nome Cocaze? — Rhodan elevou a voz. — Cardif e esse patriarca andaram de mãos dadas. Quase conseguiram destruir o Império Solar.

— Houve ao menos uma coisa que ele herdou do pai — disse Bell. — É a arte de colocar o adversário em situação difícil.

Reginald Bell provavelmente era o único homem que podia arriscar-se a criticar Rhodan em questões particulares. Não usava esse direito com muita freqüência, mas sempre que o fazia agia da maneira impulsiva que lhe era peculiar. Raramente Rhodan comentava as acusações de Bell; via de regra recebia-as em silêncio. Já sabia que cometera um erro ao permitir que seu filho fosse criado por pessoas estranhas. Cardif crescera sem o amor dos pais. O jovem frio transformou-se num inimigo encarniçado do pai. Rhodan já tentara promover a reconciliação. Oferecera sua mão a Cardif, junto ao túmulo de Thora. Mas sob o olhar de todos os presentes, inclusive dos telespectadores, Cardif recusara a amizade que lhe era oferecida. Essa cena dolorosa estava indelevelmente gravada na memória do administrador do pequeno império, que usava o nome de solar e que estava prestes a transformar-se num fator decisivo da luta pelo poder que se desenvolvia no interior da Galáxia.

— Teoricamente existe a possibilidade de que Cardif se encontre em Okul. Uma vez que de acordo com as informações que conseguimos colher, esse mundo deve ser o centro de fabricação do entorpecente, não temos outra alternativa senão partir para o ataque.

Rhodan acabara de proferir as palavras decisivas. A época de agüentar quieto chegara ao fim.

A vítima da aranha começava a deslocar-se na teia, exatamente em direção ao centro da mesma.

— Provavelmente já formaram certas idéias sobre nosso procedimento, sir — disse Freyt, que se sentia feliz porque o tema desagradável, que se desenvolvia em torno de Thomas Cardif, não mais estava sendo mencionado. — Já tem alguma ordem definida para a Frota?

Rhodan fez um gesto de assentimento. Seu rosto expressivo adquirira vida. Os três homens estavam conferenciando a altas horas da noite. Muita coisa podia depender das decisões que tomassem — talvez tudo.

— As condições para a ação a ser desenvolvida contra Okul são totalmente diversas daquelas a que estamos acostumados — disse Rhodan. — Devemos desferir um golpe fulminante. O inimigo só deve notar nossa presença, quando já for tarde para esboçar qualquer reação.

Bell endireitou o corpo. O cansaço parecia ter desaparecido.

— A Ironduke — disse em tom enfático. A Ironduke era uma nave de oitocentos metros de diâmetro, da classe Stardust, equipada com o sistema de propulsão linear. Enquanto a Fantasy tivera que dispensar parte do armamento usual, a Ironduke dispunha de todo o arsenal de armas altamente eficientes. Depois de mergulhar no semi-espaço, não podia ser localizada por qualquer rastreador estrutural. Não havia nenhum aparelho de localização capaz de determinar sua posição. A nave deslocava-se numa espécie de corredor, situado entre as dimensões. Esse corredor era criado pelo conversor inventado pelo Dr. Kalup. Um campo de compensação absorvia as influências da quinta dimensão, que se identificava com o hiperespaço, a tal ponto que não surgia uma desmaterialização total.

A nave linear percorria uma rota-fantasma, situada numa zona de libração onde as influências da quarta e da quinta dimensão perdiam seus efeitos. Fazia mais de cinqüenta anos que se conseguira arrancar o segredo do vôo linear dos invasores, vindos de outra dimensão temporal. Isto é, dos druufs. Mas muito tempo se passara entre o tempo de aquisição dos princípios teóricos do sistema de propulsão linear e sua realização prática, através da construção de uma nave linear terrana.

— Você está com toda razão — disse Perry Rhodan, concordando com o amigo. — Os campos de absorção evitarão que os antis nos localizem antes da hora. Quando emergirmos da zona de libração, não terão tempo para esboçar uma reação planejada.

No seu íntimo, Rhodan estava convencido de que qualquer ataque contra Okul seria inútil, a não ser que se descobrisse logo um antídoto contra o entorpecente. Não adiantava nada arrasar um templo dos antis atrás do outro, já que o germe da doença estava espalhado pela Terra e suas colônias.

Na melhor das hipóteses, Okul representava uma débil esperança.

Freyt e Bell pareciam não sentir essas dúvidas. Naquela hora avançada da noite, estavam desenvolvendo um plano de batalha.

Rhodan sabia que havia mais alguma coisa a fazer antes que a Ironduke pudesse decolar. O detalhe mais importante era o armamento.

Felizmente, por enquanto não havia ninguém na Frota Solar que desconfiasse das intenções de Rhodan. Perry pretendia armar os tripulantes da Ironduke com velhas carabinas-metralhadoras. Se estes soubessem do tal plano, ficariam indignados.

Justamente quando se tratava de enfrentar o inimigo mais perigoso do Império Solar, o administrador pretendia utilizar armas que há muito eram consideradas obsoletas?

 

Muita coisa já fora dita sobre o caráter de John Emery. Dizia-se que era preguiçoso, mau, tagarela, impertinente e egoísta. Era possível que essas acusações tivessem sua origem numa convicção sincera, mas assim mesmo constituíam indício de falta de senso psicológico.

John Emery não passava de um talento em matéria de organização. E, nessa área, chegara mais longe que em sua carreira na Frota Solar, onde apenas ocupava o posto de sargento. Era bem verdade que podia orgulhar-se de pertencer a uma tropa de elite, que só entrava em ação em casos especiais. Entretanto era a única coisa que podia ser alegada para enaltecer suas glórias militares.

Sempre que Emery descobria que alguma pessoa conhecida dispunha de algo que lhe parecia importante, era apenas uma questão de tempo que o objeto desejado pelo sargento passasse às suas mãos. Na Frota já houve pessoas que quiseram imitá-lo. Alguns homens até chegaram a manifestar o desejo de também instalar um depósito. Mas em comparação com Emery, seus concorrentes não passavam de amadores.

O sargento trabalhava com um entusiasmo a que ninguém conseguia resistir. A causa disso não podia ser procurada em sua constituição física, pois aquele homem pesava mais de cem quilos e não havia em seu corpo nenhum lugar onde a ossatura se tornasse saliente. Por outro lado, Emery não era charmoso e trabalhava sem a menor “gentileza”. Era simplesmente um certo quê que fazia dele o que era.

A lenda — Emery já se transformara numa lenda — dizia que em seu depósito havia de tudo, desde a trança cortada de um chinês até a obturação eletromagnética do dente de um nativo de Ferbador.

Se havia alguma coisa que não se encontrasse no depósito de Emery, ele a arranjaria. Conseguia satisfazer todos os seus mínimos desejos. E sua remuneração era tão sofisticada como seu trabalho. Sempre exigia alguma peça de propriedade da pessoa que lhe confiava alguma tarefa.

Dessa forma John Emery, sargento de uma unidade de elite da Frota Solar, transformara-se no curso dos anos numa verdadeira potência comercial em sua área.

Segundo afirmavam seus amigos, não havia nada que pudesse surpreendê-lo.

No dia 9 de abril de 2.103, Emery sofreu um terrível choque.

Deitado em sua cama simples, estava refletindo sobre como poderia fazer com que Eduard Gooding, um homem vindo da Nigéria, se desfizesse da máscara trabalhada a mão que trouxera de sua terra natal. Emery não tinha nenhuma predileção especial por esse tipo de máscara, mas o soldado Bergota estava louco pela mesma. Como Gooding tivesse demonstrado a obstinação de um búfalo, Bergota dirigira-se a Emery, para relatar-lhe seu insucesso.

Emery refletia tão intensamente para descobrir um meio de convencer o negro que só da terceira vez ouviu o leve zumbido.

O sargento saiu da cama. Tinha idéias bem definidas sobre uma manhã de folga bem repousante. E um chamado a uma hora dessas não se harmonizava com essas idéias.

Emery ligou a tela do videofone, que fora construída por ele mesmo, e esperou que o aparelho se aquecesse.

Finalmente viu o rosto contrariado de um homem, que evidentemente não tinha uma opinião muito favorável sobre o receptor construído por Emery.

— Com o senhor a coisa sempre é tão demorada? — perguntou em tom indignado.

O sargento fitou-o com uma expressão que representava uma mistura de irritação mal disfarçada e de um débil senso de humor.

— Às vezes isso acontece — respondeu.

— O senhor tem de interromper a folga — disse o homem.

Só agora Emery viu que o sujeito da tela usava uniforme. Fez uma tentativa desastrada de tornar mais apresentável seu pijama, repuxando-o sobre a barriga. Depois disso enfiou o indicador da mão direita na orelha.

— Está sentindo alguma coceira? — perguntou o homem uniformizado, em tom frio.

Emery teve vontade de dizer que podia sentir coceira em vários lugares, sem que ninguém tivesse nada com isso. Mas limitou-se a bocejar gostosamente.

— Apresente-se imediatamente ao seu comandante — prosseguiu o homem de uniforme. — Sua unidade deverá reunir-se dentro de três horas no porto espacial.

A primeira idéia, que lhe veio a mente, estava ligada à sua cama. E a segunda dirigia-se ao infeliz Bergota, que teria de ficar por um tempo indefinido sem a máscara que desejava. Finalmente, pensou na folga tão curta.

— Está bem — disse em tom contrariado.

Fez uma ligação e pediu a um amigo que cuidasse de seu depósito de preciosidades. Não queria que ficasse abandonado durante sua ausência. Depois disso procurou entrar em contato com Bergota.

Dali a uma hora dirigiu-se ao gigantesco porto espacial de Terrânia. Ainda não sabia que era um entre cinco mil homens que partiriam na Ironduke. Era uma novidade perfeitamente suportável.

Mas havia um detalhe que não conhecia: seria armado com uma carabina automática, antiquada... e há dois anos tentava em vão incorporar tal arma ao seu estoque de preciosidades!

 

Um tanto aborrecido, Emery contemplava o céu nublado de abril. À sua frente estendia-se o porto espacial de Terrânia. Era um homem experimentado, e por isso sabia que algo de especial devia ter acontecido para que sua folga fosse interrompida.

Até então ele e os outros homens, que participariam da ação, não haviam recebido informações mais detalhadas. Estavam de pé, próximos a um grande pavilhão, que ficava em local um tanto afastado do gigantesco campo de pouso. O comandante apresentara-se com o rosto compenetrado, o que levou Emery à suposição de que o tenente também não sabia em que local a unidade de elite entraria em ação.

Finalmente apareceu outro homem.

E este conhecia o destino da viagem.

Era uma das pessoas que tinha olhos de lince e sabia como lidar com qualquer problema. Estava acompanhado dos oficiais pertencentes à tripulação da nave. Ele mesmo era de estrutura gigantesca.

Seu nome era Jefe Claudrin.

Sempre que aquele homem nascido em Epsal falava, sua voz parecia o rugido de um trovão longínquo. Dispunha de forças titânicas, que se tornavam eficientes principalmente nos planetas, onde a gravitação era inferior à reinante em Epsal.

O homem ao lado de Emery, chamado Hans Berker, cutucou o sargento. Emery limitou-se a resmungar.

— É Claudrin — disse Berker. — Isso significa que iremos na nave linear.

Claudrin quase não deu nenhuma atenção aos soldados. Prosseguiu em sua caminhada, sem dizer uma única palavra. Um dos oficiais conversou com o Tenente Henderson, que era o comandante da unidade especial. A contribuição de Henderson para a conversa consistia quase exclusivamente em gestos afirmativos e em respeitosos “sim, senhor”.

Henderson comandava apenas parte dos cinco mil homens que partiriam na Ironduke. Seu grupo estava treinado em lutas em planetas estranhos, onde reinavam condições hostis à vida. Dessa forma Henderson e seus homens pertenciam à infantaria da Frota Solar. Sua única ligação com a navegação espacial consistia no fato de que uma espaçonave os levava de um mundo a outro.

Enquanto Henderson ainda conversava com o oficial da nave, um veículo de carga equipado com esteiras aproximou-se. O motorista do veículo apresentava uma expressão indiferente. Estacionou perto dos homens, e o oficial apontou para ele e depois para os soldados.

Henderson aguardou um pouco, enquanto examinava seus subordinados, sem dizer uma palavra. Emery sentiu a inquietação que o rodeava.

— Atenção! — gritou Henderson. Berker pigarreou, e Emery lançou-lhe um olhar de advertência.

— Sargento! — ordenou Henderson.

Emery adiantou-se. Possuía a calma discreta do soldado profissional: não se abalava com nada.

— Sim, senhor.

— Pegue alguns homens e distribua as armas.

— Às ordens, sir! — disse a voz arranhenta de Emery.

Henderson virou-se sobre o calcanhar. O sargento fez um sinal para que três soldados se aproximassem.

— Temos de levantar a lona — disse o condutor do veículo de carga em tom contrariado. — Recebemos ordens para que as armas não ficassem à vista.

Soltou as correias e, ajudado por Emery, levantou a cobertura de plástico. Emery viu as armas.

— O senhor não se sente bem? — perguntou o motorista, em tom interessado.

O sargento deixou cair o queixo e olhou fixamente para dentro do compartimento de carga do veículo.

— Não... não é possível — disse depois de algum tempo.

O motorista do veículo fitou-o com uma expressão estranha e recuou um passo. Os soldados pareciam indiferentes a tudo.

— Será que o senhor vê a mesma coisa que eu vejo? — perguntou o sargento, em tom cauteloso.

Emery fechou e voltou a abrir os olhos por três vezes. Passou a mão pela testa e mordeu a língua. Com um gesto hesitante apontou para as armas.

— Tem certeza de que recebeu ordens para entregar-nos estas armas? — perguntou. — Não terá havido alguma troca?

O motorista do veículo brindou-o com uma fala prolongada, durante a qual ressaltou expressamente que não havia nada mais impossível que uma troca desse tipo. Informou o sargento de que todos os cinco mil soldados receberiam armas desse tipo.

— O senhor se espantará ainda mais quando vir a munição — disse ao concluir.

Emery realmente se sentiu espantado. Além das antiquadas carabinas automáticas entregaram-lhe cartuchos de plástico, cujos projéteis explosivos, segundo se dizia, eram totalmente antimagnéticos.

Se John Emery não soubesse que o comandante de sua nave seria Jefe Claudrin, poderia jurar que iriam fazer uma caçada cósmica às lebres. Mas, da forma que estavam as coisas, a presença daquelas armas patriarcais devia ter seus motivos.

Menos de uma hora depois disso, o grupo de Henderson subiu a bordo da Ironduke. John Emery, que já percorrera centenas de quilômetros tentando conseguir uma carabina automática, teve de ver mais de cinco mil armas desse tipo a bordo do veículo espacial.

Para Emery, isso representava um terrível golpe moral, face ao qual resolveu desmanchar seu depósito de preciosidades assim que voltasse da viagem.

 

Gucky apalpou o assento sobre o qual pretendia acomodar-se. Lançou um olhar insatisfeito para Bell.

— Continuo a afirmar que a Ironduke é a nave mais desconfortável da Frota Solar — piou. — Qualquer rato-castor decente tem direito a um lugar confortável para sentar. Sob este aspecto, a nave é uma verdadeira catástrofe. O fato de ter de sentar numa coisa como esta quase chega a ser uma automutilação.

— Os assentos não foram feitos para se dormir — disse Bell. — Se você acha que não são confortáveis, pode ficar de pé ou pairar sob o teto.

O rato-castor encolheu-se. O dente roedor demonstrava o grau máximo de irritação.

— Você está mostrando seu verdadeiro caráter — disse, acusando Bell. — Enquanto procuro despertar em meu coração sentimentos amorosos em seu favor, você trama novas crueldades.

— É a tragédia de um rato-castor numa nave desconfortável — disse Reginald Bell, em tom sarcástico.

— A viagem não será demorada — observou John Marshall. — Pelos cálculos de Rhodan e Claudrin, deverá demorar umas dezoito horas.

Gucky arrastou os pés em direção ao seu lugar e acomodou-se, reclamando furiosamente. Para ele, pouco importava a duração de uma situação desconfortável. Encontravam-se na sala de comando da Ironduke. Rhodan e Claudrin ainda não haviam aparecido, embora o homem nascido em Epsal já se encontrasse a bordo.

John Marshall e os mutantes presentes já tinham feito experiências nada agradáveis com os antis. Apesar de suas faculdades anormais, sentiam-se impotentes diante dos sacerdotes. Os antis eram produto de mutações que lhes conferia proteção total contra qualquer ataque mental. A arma mais potente do Império Solar, que era o Exército de Mutantes, praticamente estava condenada à impotência.

Apesar disso, mesmo nessa operação, Perry Rhodan preferiu não dispensar o auxílio dos mais poderosos dentre seus mutantes. Poderiam prestar serviços preciosos a certos setores e aliviar o trabalho dos demais. Sem dúvida Gucky, que possuía várias faculdades parapsicológicas, representava o maior trunfo da pequena tropa. Dominava a telepatia, a telecinese e a teleportação.

— Dezoito horas — resmungou o rato-castor. — Se imagino que tenho de passar todo este tempo nesta nave, sinto náuseas.

Abriu a boca e bocejou de forma impertinente. O dente roedor solitário parecia uma agulha branca.

— Ouvi dizer que não existe uma única cenoura a bordo da Ironduke — disse Bell, em tom bonachão. — Perry diz que precisa do espaço para coisas mais importantes.

Os olhos de Gucky arregalaram-se de pavor.

— Nem uma única cenoura? — repetiu em tom de incredulidade.

O gesto afirmativo de Bell foi inconfundível. Seu sorriso quase chegava a exprimir triunfo.

— Ainda bem que tomei minhas providências — disse Gucky, irônico.

Lançou um olhar imperscrutável a Bell. De repente, este teve a impressão de que, dali a pouco, a situação pioraria para ele. Apesar disso não pôde deixar de perguntar com um sorriso nos lábios:

— Tomou suas providências?

Gucky recostou-se confortavelmente na poltrona, que ainda há pouco lhe parecera tão desconfortável.

— Isso mesmo — piou. — Tomei liberdade de trazer certos objetos de uso pessoal na sua bagagem de mão.

Era a vez de Bell espantar-se.

— Objetos de uso pessoal? E na minha bagagem?

— São cenouras, meu velho — esclareceu o rato-castor.

— Acontece que em minha bagagem de mão não cabia mais nada — objetou Bell.

Gucky fez um gesto afirmativo.

— Infelizmente tive que tirar vários objetos, que me pareceram pouco im...

Não teve tempo para completar a frase. Jefe Claudrin entrou na sala de comando e, falando com uma voz que parecia fazer vibrar tudo, disse:

— Vamos embora, minha gente.

Os oficiais pertencentes à tripulação da nave também surgiram. Claudrin estabeleceu a ligação com vários tripulantes que se encontravam no interior da nave.

John Emery também ouviu a voz potente do homem nascido em Epsal. Lançou um olhar pensativo para a carabina automática, encostada à parede. Henderson, que estava sentado mais à frente, brincava nervosamente com os dedos.

A Ironduke decolou exatamente quatorze minutos depois desse momento.

Rhodan e Claudrin previram corretamente a duração da viagem em dezoito horas. Mas houve um imprevisto.

O pequeno sol amarelo em torno do qual gravitava, segundo se dizia, o planeta Okul, não foi encontrado. Devia haver um erro nos dados de posição fornecidos pelo Dr. Nearman.

No lugar onde se encontraria Okul não existia nada!

 

A água era rasa e pantanosa. Era tão quente que fumegava e borbulhava. Onde terminava o pântano começava a selva. Era um mundo colorido e cintilante, feito de árvores, flores, trepadeiras, samambaias e outras plantas. As raízes das árvores tombadas surgiam acima do lodo. O ar estava quente e abafado.

Entretanto havia vida nesse mundo. E vida inteligente. Era bem verdade que vinha de outro planeta, mas sempre era uma forma de vida inteligente.

O céu apresentava-se em cor amarelenta. Só mesmo dali podia-se contemplá-lo. Quem se encontrasse na selva não o enxergaria.

O homem que deslocava o barco tosco, usando uma vara que encostava a intervalos regulares ao fundo do pântano, não mostrava-se como quem tivesse vindo a esse lugar tão-somente para contemplar as nuvens.

Aquele homem solitário fazia a canoa avançar à força de vigorosos empurrões. A maneira pela qual olhava a paisagem provava que conhecia o lugar.

Era alto e esbelto; quase chegava a ser magro. Acima do nariz adunco havia um par de olhos cinzentos. No rosto havia uma expressão aristocrática.

O rosto era de Perry Rhodan!

Seu corpo, sua postura e seus movimentos, tudo isso parecia ter sido tomado de empréstimo de Rhodan.

Acontece que aquele homem não era Rhodan. Seu nome era Thomas Cardif, o filho do grande terrano. Embora de uma forma diferente, sua vida fora tão variada e cheia de aventuras como a do pai.

Mas havia uma diferença.

Perry Rhodan lutava pela Terra!

E Thomas Cardif lutava contra.

O sangue arcônida que corria em suas veias fazia com que não envelhecesse tão depressa como os terranos. Naquele momento parecia-se com o pai sob todos os pontos de vista. Seria impossível encontrar uma diferença visível entre um e outro.

Cardif levou o barco em direção à margem. Com grande habilidade fê-lo passar entre duas gigantescas raízes. Ouviu o canto dos pássaros, vindo da selva. Milhões de insetos dançavam sobre a água. Subiam e desciam em densas nuvens. Na margem havia um lugar raso e arenoso. Cardif tomou esta direção.

Naquele lugar esperava-o um pequeno avião, semelhante a um helicóptero. Um sorriso sarcástico surgiu no rosto de Cardif. Ao lado da aeronave havia um homem envolto numa capa, agitada pelo vento. Mesmo visto de longe, parecia taciturno e fechado. Segurava uma estranha arma de radiações.

No seu aspecto exterior, o homem se parecia com um arcônida de puro sangue. Acontece que era um sacerdote da seita de Baalol — um anti. Ao que se supunha, os antis eram descendentes de arcônidas emigrados há muito tempo, e que haviam sofrido mutações paranormais.

Cardif chegou ao porto natural e saltou do barco. Amarrou-o e percorreu lentamente a distância que o separava do avião.

O anti baixou a arma. Seus olhos sombrios não mostravam a menor emoção.

— O senhor acha que esse tipo de excursão é muito interessante? — perguntou, dirigindo-se a Cardif. — Se cair do barco, estará perdido. Nesse caso, nem mesmo esta arma poderia salvá-lo.

— Já fiz coisas muito mais perigosas — disse Cardif.

— Poderíamos ter sobrevoado o pântano com o avião — ponderou o sacerdote.

Cardif lançou um olhar de desprezo para a máquina voadora. Apontou para a água.

— Só existe uma possibilidade de localizar os animais — disse. — O senhor deveria saber disso melhor que qualquer outra pessoa, Hekta-Paalat.

O aspecto de Paalat tornou-se ainda mais sombrio. Se é que havia alguma amizade entre ele e o terrano, os dois faziam questão de não revelá-la. Mas Cardif não deixou que as palavras mordazes do anti o abalassem.

— Estamos construindo um barco especial — lembrou Paalat. — Se tivesse esperado mais alguns dias, sua excursão com essa canoa feita pelo senhor teria sido desnecessária.

Um estranho brilho surgiu nos olhos de Cardif.

— Esperar — disse em tom amargurado. — Já esperei demais. Agora é minha vez. Ainda acontece que sempre sugeri que os animais fossem criados em poças d’água. Dessa forma não teríamos de caçá-los constantemente.

O anti ouvia-o com uma visível contrariedade.

— Todas as tentativas de manter os animais vivos num ambiente confinado falharam por completo. Vegetaram por alguns meses e acabaram morrendo. Enquanto não soubermos o motivo, será inútil tentar criá-los.

O filho de Rhodan entrou no avião, seguido pelo sacerdote. O calor quase insuportável fazia-os transpirar.

— Se formos lentos e nos mantivermos à espera, não conseguiremos vencer a Terra — disse Cardif, em tom impaciente. — Devemos atacar em vários lugares ao mesmo tempo, recorrendo a todos os meios.

Pela primeira vez algo parecido com um sorriso esboçou-se no rosto de Hekta-Paalat. Dobrou a manta sobre as pernas.

— Existem vários métodos de derrotar um inimigo — disse. — Nem sempre o mais rápido é melhor. A impaciência do senhor tem sua origem no ódio que sente por seu pai. A impaciência e o ódio são sentimentos que fazem com que a pessoa aja irracionalmente.

Cardif respondeu em tom de desprezo:

— Normas do Ocultismo! Sua raça já se acostumou tanto a tais lemas que não consegue livrar-se dos mesmos. O que importa é golpear no momento exato. Será que minhas recomendações, que representaram um apoio na luta contra Árcon e a Terra, têm algo de irracional? De forma alguma! No momento até sou o maior trunfo desse jogo oculto. O filho do homem mais importante do Império Solar está do lado de vocês.

— Evidentemente apenas sob o ponto de vista estratégico — disse Hekta-Paalat, com um sarcasmo mordaz.

Cardif não respondeu; deu partida no motor. O avião ergueu-se do solo com um ruído quase imperceptível. Cardif estava acostumado a ouvir respostas irônicas. Raramente estivera do lado da Justiça, mas nem mesmo os injustos compreendiam que queria destruir seu pai. Aproveitavam seus sentimentos e seus planos, mas não os respeitavam. Apenas o respeitavam na sua qualidade de colaborador inteligente e capaz.

 

Se pendurarmos um saco de ervilhas ao ar livre e o abrirmos embaixo, fazendo com que as ervilhas caiam, obteremos um quadro caótico, surpreendente. Em alguns lugares haverá poucas ervilhas no chão, em outros lugares haverá muitas. Só no centro as ervilhas se aglomeram a tal ponto que se torna difícil encontrar esta ou aquela dentre elas.

Uma via láctea oferece um quadro semelhante. À medida que nos aproximamos do centro da mesma, a aglomeração de estrelas se torna mais densa. As distâncias entre os sóis vão diminuindo; as distâncias enormes entre os sistemas existentes na periferia de uma galáxia vão-se encolhendo. Nossa Via Láctea compreende cerca de cem bilhões de estrelas singulares. É um número inimaginável. No entanto, é apenas uma dentre muitas. Seu formato é o de um disco, cujo plano principal mede cerca de oitenta mil anos-luz. A maior dimensão vertical, porém, é de “apenas” dezesseis mil anos-luz.

A profusão de estrelas, que se apresentava às pessoas que observavam a tela da sala de comando da Ironduke, não poderia ser comparada com o quadro que se oferecia na periferia da Galáxia. No centro da Via Láctea existem bilhões de sóis.

Muitos milhões dentre eles são pequenas estrelas amarelas.

Segundo as informações fornecidas pelo Dr. Nearman, o planeta Okul gravitaria em torno de um sol desse tipo. Mas quando a Ironduke emergiu do semi-espaço, que ela mesma criara com as energias do conversor kalupiano, logo se viu que evidentemente os dados sobre a posição do planeta, fornecidos pelo biólogo, não eram muito precisos.

Perry Rhodan fitava intensamente a tela panorâmica. Reginald Bell e Jefe Claudrin encontravam-se a seu lado. Todas as pessoas da sala de comando fitavam os três homens sem dizer uma palavra. Depois do desapontamento, a depressão espalhara-se entre eles. Todos esses homens tinham conhecimentos suficientes de navegação galáctica, para compreenderem que as chances de encontrar Okul eram extremamente reduzidas.

— Parece que o vôo foi inútil — observou Claudrin, depois de algum tempo.

Era bastante realista para exprimir sua opinião em voz alta. Virou a enorme cabeça para Rhodan.

— O que acha, sir?

Cada um dos pontos que apareciam na tela representava um sol. A panorâmica parecia um tapete bordado de pérolas. Face a um quadro desses, Rhodan só poderia concordar com o comandante da Ironduke.

Rhodan também era realista. E seu realismo lhe dizia que não poderiam deixar de encontrar Okul, a fim de terem um ponto de partida para defender-se da ação criminosa dos antis. Milhões de seres humanos depositavam sua confiança nesses homens. Havia um governo mundial com ministros e outras autoridades, mas os homens identificavam Rhodan com esse governo, vivendo seus êxitos e fracassos.

Rhodan levantou a cabeça. Fez um sinal em direção à tela panorâmica.

— Nós o procuraremos.

O silêncio reinante na sala de comando parecia ainda mais profundo. Mas só durou um instante. Logo um novo estímulo pareceu surgir naqueles homens. As palavras de Rhodan os haviam arrancado do desespero. Se o administrador dava ordens para realizar buscas, devia haver uma possibilidade dessas serem bem-sucedidas.

Gucky que, ao contrário do que costumava fazer, permanecera quieto por algum tempo, disse com a voz ressentida:

— Quer dizer que teremos de ficar por mais tempo nesta “caixa”?

— Acredito que nossas buscas logo serão coroadas de êxito — disse Bell, com um tom estranho na voz.

— Ah, é? — piou o rato-castor, cético. — O que o levou a ter idéias tão ingênuas?

— A bordo desta nave existe alguém que tem um nariz muito comprido — respondeu Bell.

O rato-castor apalpou seu órgão do olfato. Depois olhou em torno. Mas logo teve de constatar que Bell realmente aludira a ele.

— Existe uma lei psicológica, segundo a qual todo homem que possui cabeça de cenoura é roído pela inveja — disse Gucky.

Uma gargalhada aliviadora encheu a sala de comando. O fracasso estava esquecido.

— Vamos ao trabalho — ordenou Rhodan. — Não adianta vagarmos por aí ao acaso. Por isso trabalharemos em conformidade com um método bem definido. Não sabemos qual é a diferença nos dados fornecidos pelo Dr. Nearman. Logicamente devemos iniciar nossas buscas nas estrelas mais próximas. Faremos de conta que o ponto em que nos encontramos neste momento é o centro de uma esfera.

Rhodan sabia que, do centro dessa esfera, vários eixos levariam aos diversos sóis. Uma vez que a maior parte deles possuía planetas, tornava-se imprescindível realizar pesquisas exatas em cada caso.

Claudrin já estavam transmitindo suas ordens. Depois de alguns minutos foi escolhida a primeira estrela que serviria de objeto às suas buscas. Enquanto a Ironduke se deslocava em direção à mesma, a uma velocidade várias vezes maior que a da luz, outros cálculos foram realizados

Nas salas dos tripulantes, a disposição de ânimo era boa. Ainda não se tinha um conhecimento exato sobre a natureza da missão. Segundo as informações que filtraram, a ação se dirigia contra os antis.

Antes que a Ironduke atingisse a estrela escolhida em primeiro lugar, os soldados da unidade de elite já haviam descoberto que ainda não haviam encontrado o planeta que procuravam.

— Gostaria de saber uma coisa — disse Hans Berker ao sargento Emery, que reclinara o corpo e segurava firmemente a carabina automática. — Por que Rhodan não põe em ação a Frota? Se algumas centenas de naves cruzassem os céus nesta área, chegaríamos ao destino mais depressa.

— Nesse caso, os antis teriam vários pontos capazes de refletir seus raios goniométricos — respondeu Emery. — Acredito que o chefe pretenda realizar um ataque de surpresa. Se a Frota aparecer por aqui, a surpresa já era. A presença da Ironduke não poderá ser constatada por qualquer rastreador estrutural, desde que permaneça na zona de libração.

— Devemos confiar nos homens que comandam a nave — observou Henderson.

— Sim, senhor — respondeu Berker.

Mas Emery logo viu que a confiança de Henderson não servia para muita coisa. Seu superior hierárquico estava nervoso e inseguro. Emery conhecia Henderson e sabia que essa insegurança só terminava com a luta. Quando esta tinha início, esse homem estranho tornava-se a pessoa mais importante de sua unidade. Suas ordens eram tranqüilas e bem ponderadas.

Emery acariciou a carabina. Lembrou-se de que os homens que se encontravam no centro de comando de tiro da Ironduke deviam ter a impressão de que as carabinas eram supérfluas, já que as armas eficientes e modernas da nave seriam utilizadas.

Será que se esperava que justamente essa combinação de armas antigas e modernas trouxesse a vitória? Além das carabinas automáticas haviam distribuído fuzis de radiações. Emery lembrou-se da pergunta irônica de um soldado, que quis saber se, durante a luta, sempre estaria presente um superior, para ordenar que arma deveria ser utilizada.

A risadinha de Berker arrancou Emery de suas reflexões. O alemão fitou o sargento alegremente. Emery preferiu não formular nenhuma pergunta. Qualquer soldado tinha o direito de estar alegre antes de uma batalha. E o fato de que ele, Emery, era o motivo da alegria, em nada alterava a substância desse direito.

A alegria não durou muito, nem na sala dos tripulantes nem na de comando.

O primeiro sol ao qual a Ironduke se dirigiu possuía dois planetas. Gravitavam a uma distância tão grande em torno de sua estrela que o calor desta dificilmente poderia atingi-los. Tratava-se de mundos cobertos de desertos de metano e amoníaco congelado.

O sol seguinte só possuía um planeta. Não era Okul, mas apesar disso ofereceu uma visão extraordinária aos astronautas. Estava cercado por um véu luminoso. Até parecia que a atmosfera fora enriquecida com fósforo. Mas não tiveram tempo para realizar uma investigação minuciosa.

Seguiram-se mais seis sistemas, após os quais houve uma interrupção, que foi preenchida com discussões sobre a situação.

As buscas prosseguiram. A Ironduke deslocava-se tranqüilamente de uma estrela à outra. Mas foi tudo em vão. Sete horas se passaram, sem que Okul fosse encontrado.

 

Desde o início de sua carreira, Reginald Bell tinha idéias bem definidas sobre a disciplina. Antes de mais nada, não era amigo do formalismo uniformizado. Achava que um homem de colarinho aberto pode combater tão bem, ou até melhor, que um soldado impecavelmente trajado.

Cerrou os olhos, abriu o botão superior da camisa, esfregou o peito e disse:

— Estamos num beco sem saída.

Sem dúvida foi a afirmação mais categórica, formulada no interior da Ironduke, sobre o resultado até então alcançado por sua missão. E foi também a mais exata.

O quadro oferecido pelos aparelhos óticos e de localização continuava inalterado. A nave linear, que era um veículo espacial de oitocentos metros de diâmetro, pertencente à classe Stardust, continuava numa área que ainda pertencia ao sistema da Via Láctea. Embora as estrelas retratadas na tela panorâmica sempre fossem outras, sob o ponto de vista ótico não havia a menor modificação. O vôo da Ironduke conferia um triste significado à lendária procura de uma agulha num palheiro.

— Estamos num beco sem saída.

Nem todas as pessoas que se encontravam a bordo da nave compreenderam todo o sentido trágico dessas palavras. De repente, a chance de resistir aos antis, que se oferecera à Terra, voltara a ser mínima. Se a Ironduke regressasse sem ter conseguido nada, o resultado seria uma depressão profunda e generalizada. Era bem verdade que os cientistas terranos trabalhavam noite e dia, a fim de encontrar um antídoto para a droga diabólica. Porém ninguém poderia dizer se seus esforços seriam coroados de êxito.

Jens Averman, o ossudo técnico de goniometria da Ironduke, estremeceu ao ouvir as palavras de Bell. Lançou um olhar para Perry Rhodan, que era responsável pela ação. Até mesmo Jefe Claudrin aguardava um pronunciamento de Rhodan. Enquanto o administrador se encontrava a bordo, era ele quem exercia o comando.

— As informações que Miguel Desoga nos enviou de Lepso contêm um erro num ponto decisivo, ou então o Dr. Nearman começou a delirar pouco antes de morrer. Já começo a duvidar da correção das coordenadas fornecidas por ele. Não devemos esquecer-nos de que nem mesmo os velhos catálogos de Árcon mencionam o planeta Okul.

Rhodan fitou os homens com uma expressão séria e concluiu:

— Ao que tudo indica deixamos arrebatar-nos por uma informação falsa.

Não havia necessidade de explicar a quem quer que fosse qual era o significado dessas palavras. A ação chegara ao fim. Alguns terranos se haviam arriscado a executar alguns movimentos no interior da teia de aranha e ficaram irremediavelmente perdidos. O plano dos antis parecia mais seguro que nunca. Era apenas uma questão de minutos que Rhodan ordenasse o regresso. O regresso à Terra, a qual, em virtude do criminoso trabalho de sapa da seita de Baalol, vinha sendo transformada progressivamente numa concentração de viciados em entorpecentes.

Claudrin disse com a voz estranhamente abafada:

— Quer dizer que as buscas serão suspensas?

— Na Terra, precisam desesperadamente de nós — respondeu Rhodan. — Não adianta perder mais tempo à procura de Okul.

Gucky aproximou-se, arrastando os pés. Seus sentidos paranormais não deixaram de perceber que seu grande amigo se sentia desesperado. Não houvera nenhum combate, mas a missão da Ironduke fracassara e se transformara numa derrota para a Humanidade.

— Fizemos o que estava ao nosso alcance, Perry — exclamou o rato-castor, com a voz aguda.

— Gucky está com a razão, sir — disse John Marshall, cuja tranqüilidade continuou inalterada. — Não se esqueça de que existem outras maneiras de atacar os antis.

— Sem dúvida — confirmou Rhodan, em tom amargurado. — Só falta encontrá-los.

O vulto gigantesco de Jefe Claudrin passou por Bell.

— Quais são as ordens, sir?

Rhodan levantou-se e aproximou-se da tela panorâmica. O brilho das estrelas era frio e indiferente. Em meio ao silêncio reinante na sala de comando, os homens aguardavam a decisão de Rhodan.

O administrador entesou o corpo. O rosto continuou impassível.

— Vamos desistir — disse com a voz arrastada.

 

Valmonze levantou o copo e fez um gesto para Thomas Cardif. Hekta-Paalat e Rhabol acompanhavam tudo em silêncio. Não simpatizavam com os saltadores e só os toleravam, pois eram sócios.

— Possuo alguma experiência em matéria de entorpecentes — disse Valmonze, passando a mão pela barba e piscando para o filho de Rhodan. — Há um ano fizemos uma tentativa de usá-los, a fim de minarmos a influência da Terra na Galáxia. Na oportunidade vendemos os entorpecentes terranos aos outros planetas. Indiretamente todos culpavam a Terra. Em virtude de um acaso infeliz o plano não deu certo.

O patriarca dos saltadores não mencionou o fato de que o acaso infeliz foi devido, em grande parte, a um erro cometido por ele.

— Apesar de tudo devíamos pensar sobre minha proposta — disse Cardif. — A esta hora, os habitantes da Terra já conhecem os perigos do liquitivo, e por isso podemos suspender as remessas. Segundo os cálculos, o número dos viciados chega a duzentos milhões, só na Terra. Pelo que sei de Rhodan, isso bastará para exercer pressão sobre ele.

Valmonze bebeu ruidosamente e lançou um olhar indagador para os sacerdotes. Já constatara que o terrano pretendia desenvolver uma ação implacável contra os seres de sua raça. Sua fuga arrojada de Lepso não modificara sua opinião. Cardif odiava seu pai, e estendia esse ódio à Terra.

— Não. Decolarei com a Val I — prosseguiu Valmonze, ao notar que nenhum dos antis se dignava a dar uma resposta. — Decolarei com liquitivo ou sem ele. Não posso perder tempo esperando por aqui, até que alguém tome uma decisão. Sugiro que continuemos a abastecer todos os mundos com o licor.

Cardif sorriu.

— Respeito seu tino comercial, meu caro. Acontece que o senhor se esquece que lemos outros planos.

Valmonze era igual aos outros saltadores: estava disposto a lutar ferozmente por qualquer vantagem econômica. Enquanto houvesse possibilidade de continuar a vender o liquitivo, não via por que os fornecimentos deveriam ser suspensos por razões estratégicas.

Tinha bastante senso diplomático para não exprimir abertamente sua opinião. Mas como insistisse em decolar imediatamente com a Val I, obrigava os antis a tomarem uma decisão rápida. Contava com a mentalidade dos sacerdotes, que costumavam refletir bastante antes de realizarem qualquer modificação em seus planos.

Baaran, que era um dos mais velhos entre os antis presentes naquele momento, fez um gesto de assentimento.

— O senhor vai decolar — disse em tom frio.

Cardif e o patriarca inclinaram o corpo para a frente.

— E levará o liquitivo — acrescentou Baaran. — Por enquanto as remessas não serão suspensas.

Valmonze não se esforçou para disfarçar a sensação de triunfo. Conseguira um bom negócio, e o resto não lhe importava. Cardif fitou o mercador em silêncio, enquanto este esvaziava o copo e passava a mão pelos lábios.

— Sua hora também há de chegar, meu jovem — disse em tom condescendente, dirigindo-se a Cardif.

— Sem dúvida há de chegar — interveio Hekta-Paalat, em tom zangado. — Dentro em breve decidiremos sobre a suspensão dos fornecimentos.

O filho de Rhodan levantou-se e saiu sem dizer uma palavra. Atravessou um corredor e atingiu a sacada que circundava a abóbada de aço. Aqui em Okul os antis haviam abandonado as construções em forma de pirâmide. As abóbadas de aço eram mais práticas. Do lugar em que se encontrava, Cardif via o oceano, em cujas orlas praieiras começava a selva. Os sacerdotes haviam levantado suas construções num planalto. Destruíram toda a vegetação que lhes representasse um obstáculo.

A Val I estava pousada no espaçoporto ultramoderno. Os saltadores não costumavam pousar com suas gigantescas naves de formato cilíndrico. Utilizavam barcos espaciais auxiliares. Acontece que a Val I levava uma carga de entorpecente que teria de ser transferida para outras naves, e por isso tivera que aterrissar.

As instalações de condicionamento de ar, situadas sob a amurada da sacada, sopravam ar frio para cima de Cardif. Apesar disso, Thomas sentiu o calor abafado da selva próxima.

O mestiço galáctico não poderia imaginar que, dali a pouco, a calma que desfrutava seria perturbada.

Indiretamente a Val I seria responsável por esse fato, mas Cardif nunca saberia disso.

 

Muitas vezes o destino se compraz em provocar mudanças cosmopolíticas, devido a fatores aparentemente insignificantes. E Valmonze fora escolhido pelo destino para, através da decolagem de sua nave, desencadear uma série de acontecimentos, cuja evolução futura abalaria os alicerces do Império Solar.

No momento em que a Val I penetrou pela primeira vez no hiperespaço, depois de ter deixado Okul, provocou uma descarga energética superdimensional. Nenhuma das pessoas a bordo da nave saltadora imaginava que havia nas imediações um veículo espacial terrano prestes a iniciar a viagem de regresso. A Val I desapareceu no hiperespaço, com destino desconhecido, mas deixou atrás de si um sinal inconfundível do local de onde iniciou seu salto.

E os rastreadores estruturais da Ironduke registraram esse sinal...

 

Foi por puro acaso que o Major Hunt Krefenbac, imediato da Ironduke, olhava por cima do ombro de Jens Averman no momento exato em que se verificou a reação dos rastreadores estruturais.

O major e Averman gritaram a uma voz:

— Pare, sir!

Averman anotou apressadamente a intensidade da reação, a distância e a duração. Rhodan, que acabara de dar ordem para regressar à Terra, avançou e colocou-se à frente do aparelho. Jefe Claudrin, que tinha apenas um metro e sessenta de altura, parecia um barril ao lado de Rhodan. Até Bell tornava-se esbelto ao lado de Jefe.

Carlos Riebsam, o matemático, colocou-se junto ao computador da nave. Certamente imaginava que haveria trabalho para ele.

Gucky foi o único a continuar em sua poltrona, em atitude sonolenta, como se não tivesse nada com aquilo.

— Localizamos um salto, sir! — exclamou Averman. — Sem dúvida trata-se de uma espaçonave. Os dados são típicos.

— Apurou a distância? — perguntou Rhodan.

— Sim senhor. Os dados exatos só podem ser apurados pela calculadora.

Como todos os operadores de rádio, Averman tinha uma aversão instintiva pelas máquinas cibernéticas. Nutria um receio inconsciente de que um dia seu trabalho poderia ser executado por um cérebro positrônico. Dessa forma tornava-se perfeitamente compreensível que desse o nome de calculadora ao computador de bordo, que afinal era um cérebro positrônico, dotado de milhões de variantes.

— Se por aqui há espaçonave, também deve haver planeta. Afinal a nave deve ter vindo de um — disse Bell.

— Talvez o planeta seja Okul — retumbou a voz de Claudrin. — Aposto que essa nave vem de Okul.

Olhou em torno, como se quisesse verificar se alguém duvidava do que acabava de afirmar.

Não havia ninguém que estivesse disposto a fazer a aposta. Muito tensos, os homens acompanharam os cálculos. Dentro de alguns minutos Carlos Riebsam poderia realizar a primeira programação do computador positrônico. Hunt Krefenbac entregou-lhe os dados apurados por Averman.

Perry Rhodan acompanhava o trabalho do matemático sem dizer uma palavra. Se a suposição do homem de Epsal fosse correta, seria apenas uma questão de tempo encontrarem Okul.

Perry Rhodan sabia perfeitamente que um ataque contra o misterioso planeta poderia representar a morte de seu próprio filho. Sentimentos conflitantes manifestaram-se em seu interior. Não era nenhum segredo que Thomas Cardif procurava a todo custo matar Rhodan, mesmo que esse custo representasse o Império Solar.

Para Rhodan, o inverso era inconcebível. Estava colocando em risco a vida do filho, que constantemente lhe criava terríveis dificuldades. No entanto refletia para encontrar uma possibilidade de destruir os antis sem arriscar a vida do filho.

O administrador sabia perfeitamente que, assim que encontrassem Okul, daria ordem de atacar. A vida do filho não poderia impedi-lo de agir dessa forma. Não era a primeira vez que Rhodan se defrontava com a decisão de sacrificar umas poucas vidas em benefício da Humanidade. E sempre decidira a favor da última.

Nos momentos de tranqüilidade perguntara várias vezes a si mesmo se o plano de conduzir a Humanidade, sã e salva, através de todos os perigos, em direção ao poder galáctico, não se transformara numa obsessão em que se empenhava com a fúria de um louco. Sentia-se aliviado ao cercar-se de homens de cabeça fria, que concordavam com seus planos e os apoiavam sem restrições. Homens como Freyt, Mercant, Bell e Deringhouse não eram sonhadores dispostos a acompanhar um aventureiro político.

Essas reflexões fizeram com que Rhodan tivesse certeza de que estava trilhando o caminho correto. Vez por outra sentia-se torturado pela dúvida. Mas não seria isso apenas uma prova de que estava cônscio das suas responsabilidades e ponderava cuidadosamente os seus atos?

A seita de Baalol estava prestes a colocar a Humanidade no estágio da escravidão. O filho de Perry encontrava-se em suas fileiras, mas isso apenas representava um golpe duro do destino. Quando desse suas ordens, Rhodan se obrigaria a fazer de conta que Thomas Cardif não existia.

A voz fria do Dr. Riebsam soou.

— Pronto — disse o matemático. — Sem dúvida havia um pequeno erro nos dados fornecidos pelo Dr. Nearman.

— Não procure torturar-nos — advertiu Bell.

Riebsam agitou o cartão perfurado que retirara do computador.

— Erramos o alvo por pouco menos de quatro anos-luz — principiou Riebsam. — Isso, naturalmente, se o ponto de imersão da nave desconhecida corresponder a uma posição próxima à de Okul.

Claudrin deslocou-se pesadamente em sua direção. Riebsam podia olhar o comandante de cima para baixo, mas não poderia olhar para além do mesmo. A largura do corpo do Major Claudrin era quase igual à altura.

O matemático entregou-lhe a fita de plástico.

— Vamos dirigir-nos a este ponto, sir — sugeriu Claudrin.

Rhodan voltou a ser apenas o homem de raciocínio frio. Balançou a cabeça.

— Não, major — disse. — Observaremos, em silêncio, ao menos por duas horas. Afinal, sempre é possível que apareçam outras naves.

Um profundo suspiro fê-lo virar-se abruptamente. Gucky lançou-lhe um olhar de recriminação e apontou sua poltrona incômoda.

— Vamos esperar mais ainda? — gemeu. — Já estou com bolhas.

— Bolhas, tenente? — perguntou o Major Krefenbac.

O rato-castor fez uma careta. Não suportava ser chamado de tenente. Ergueu-se ligeiramente da poltrona, respirou com dificuldade e lastimou-se terrivelmente.

— É horrível — disse.

— Dirija-se depressa à enfermaria, Tenente Guck — ordenou Krefenbac com o rosto impassível. — Quero que um caso sério como este seja tratado imediatamente.

O rato-castor não disse uma palavra. Pôs à mostra o dente roedor. Logo agora, que as coisas começaram a ficar interessantes, teria que abandonar a sala de comando?

— Acho que agüento mais um pouco — disse com a voz mais tranqüila. Encolheu-se na poltrona.

— O que acha do estado do tenente, sir? — perguntou o major, dirigindo-se a Perry, que sorria.

— Acho que meus conhecimentos médicos não são suficientes para que eu me responsabilize pelo mesmo — disse Rhodan, em tom sombrio. — Por isso sou de opinião que o Tenente Guck deve ficar sob os cuidados do Dr. Gorsizia.

— Muito bem, Guck — disse o Major Krefenbac, em tom enérgico. — Apresente-se ao Dr. Gorsizia.

Gucky apalpou cuidadosamente as costas. Conseguiu esboçar um sorriso alegre.

— Desapareceram — piou.

— Desapareceram? — perguntou Rhodan, em tom de espanto. — Quem?

— As bolhas — respondeu Gucky.

Rhodan não estava em condições de contradizê-lo, pois ele mesmo acabara de afirmar que seus conhecimentos médicos não eram suficientes para formular qualquer juízo sobre a “doença” de Gucky.

— Quer dizer que vamos aguardar por algum tempo — repetiu Rhodan. — Enquanto isso vou me comunicar com as diversas unidades. Deverão saber contra quem lutaremos e quanta coisa dependerá do resultado da luta.

Claudrin e Bell afastaram-se, para que Rhodan pudesse tomar lugar à frente do aparelho de intercomunicação.

O discurso do administrador durou doze minutos. Não teve a menor dúvida em oferecer um quadro dramático da seriedade da situação. E informou-os sobre os motivos por que apenas uma nave terrana, a Ironduke, participava da perigosa missão.

Sua voz foi ouvida em todos os cantos da nave.

Rhodan omitiu uma frase. Ansiava por proferi-la, mas dominou seus sentimentos.

Não atirem contra terranos”, foi o que pensou. “Um deles pode ser meu filho.”

Refletia constantemente sobre o problema que o atormentava. Sob o ponto de vista puramente objetivo, Thomas Cardif mereceria a morte.

Acontece que os sentimentos de um pai jamais conseguem ser objetivos, cruéis.

 

John Emery apalpou o traje de combate ; arcônida, no qual os técnicos terranos haviam introduzido muitas melhorias. Agora, seu sistema de propulsão antigravitacional permitia à pessoa levitar pela atmosfera de um planeta e modificar à vontade a direção do deslocamento. A qualquer momento poderia tornar-se invisível por meio do defletor. Apesar disso Emery tinha um pressentimento nada agradável. Não sabia se cinco mil homens seriam capazes de conquistar um planeta ocupado pelos antis.

Afinal, o que eram cinco mil homens num mundo de tamanho médio?

Só podiam fazer votos de que os sacerdotes não se tivessem espalhado por todo o planeta. Só teriam uma chance de vencer se estes estivessem concentrados numa área reduzida.

Quando foi acordado por Berker, que chamou sua atenção para a fala de Rhodan, Emery havia dormido pouco mais de três horas. O fato de que o administrador, em pessoa, se encontrava a bordo realçava a importância da missão. A fala de Rhodan foi breve, mas Emery teve a impressão de senti-la preocupada.

Os homens ao seu redor estavam acordados. Alvarez e Dreyer jogavam uma partida de xadrez convencional. Henderson lia e Bowling escrevia uma carta ou diário. Mas a maior parte dos homens estava deitada de costas, fitando o teto.

Emery não teve a menor dificuldade de imaginar o que pensavam os soldados. Desde tempos imemoriais, toda batalha era precedida da indagação relativa à sobrevivência. John Emery era soldado profissional; os raciocínios filosóficos lhe eram estranhos. Apenas vez por outra experimentava um sopro ligeiro de uma estranha sensação, que lhe incutia uma repulsa violenta contra qualquer tipo de luta.

— Ainda bem que o chefe está conosco

— observou Berker, que se encontrava a seu lado.

O chefe era Perry Rhodan. Esse homem experimentado, que conduzira inteligentemente inúmeras batalhas cósmicas, sem dúvida os levaria à vitória na luta contra os antis.

— Além disso, temos mutantes a bordo — disse Emery. — Os antis terão uma surpresa.

A Ironduke corria vertiginosamente para o destino...

 

Três planetas gravitavam em torno do sol sem nome. A Ironduke penetrou no sistema, protegida pelo campo de absorção da sexta dimensão. Nenhum goniômetro ou rastreador seria capaz de registrar sua presença.

O segundo mundo do sistema era Okul.

— Conseguimos — disse o Major Hunt Krefenbac, que se encontrava na sala de comando. — Todas as informações fornecidas pelo Dr. Nearman aplicam-se a este planeta. Se emergimos num ponto errado, isso foi devido exclusivamente a um erro das coordenadas.

— Colocar em funcionamento os rastreadores de matéria e de energia — ordenou Rhodan.

A nave esférica entrara numa órbita estável em torno de Okul.

— Ordem cumprida, sir! — exclamou Jens Averman.

— Tentar a localização goniométrica. — disse a voz de Rhodan.

Averman começou a manipular seus aparelhos. Okul possuía um movimento de rotação independente. Por outro lado, os aparelhos de localização da Ironduke eram capazes de atingir uma área extensa. Por isso Rhodan conseguiu, num curto espaço de tempo, dados preciosos sobre o que acontecia na superfície desse mundo.

Depois de a nave ter contornado o planeta pela segunda vez, o ponteiro do indicador de massa movimentou-se.

— Localização, sir! — exclamou Averman. — Parece que há alguma coisa lá embaixo. Registramos descargas energéticas de intensidade extraordinária.

— Desça mais um pouco, major — ordenou Rhodan ao homem de Epsal.

Não teve necessidade de explicar a Claudrin o que ele deveria fazer. O major conhecia seu serviço. Dali a dez minutos não havia mais ninguém a bordo que não soubesse o que fora descoberto.

Em plena selva, junto de um oceano, havia sessenta e sete abóbadas de aço de dimensões imensas.

— É uma cidade! — exclamou Bell, em tom exaltado. — Uma cidade de aço. Os antis têm senso prático nas suas construções, desde que não queiram impressionar ninguém.

— Aqui puderam dedicar-se tranqüilamente às suas atividades criminosas — disse Rhodan. — Lá embaixo são produzidas quantidades gigantescas de liquitivo. Acho que já chegou a hora de acabarmos com isso.

Claudrin perguntou com a voz grave:

— Vamos atacar, sir?

— Mande todos os homens entrarem em forma, próximos das eclusas. Diga-lhes que vistam os trajes de combate. Devem ligar o propulsor antigravitacional. Explique-lhes como devem usar os diversos tipos de arma. Os campos defensivos individuais dos antis só podem ser atravessados pelos projéteis de plástico.

Bell passou a mão pelo cabelo rebelde. Fez um sinal para os homens da sala de comando.

— O espetáculo vai começar — disse à sua maneira pouco convencional.

 

Casnan viu um ponto escuro no céu. Esfregou os olhos com ambas as mãos e voltou a olhar para cima. Agora eram três pontos. Casnan estava petrificado. De repente ouviu uma voz exaltada, vinda do outro lado da sacada. Alguém correu apressadamente sobre o piso gradeado.

Outros pontos haviam aparecido. Eram centenas. Incrédulo, Casnan fitou o céu límpido.

Segurou a manta.

Naquele instante, uma gigantesca esfera surgiu sobre a cidade abobadada. Era ela que cuspia os “pontos” que desciam. Naquele momento, Casnan compreendeu o que havia acontecido.

Aquela esfera era uma espaçonave terrana, que se aproximara sem ser notada. Milhares de homens caíam sobre a reserva dos antis.

— Alarma! — berrou Casnan, desesperado.

Seu grito foi abafado pelo uivo das sereias de alarma.

Finalmente, o pessoal dos postos de vigilância notara a invasão. Casnan preferiu não lançar outro olhar sobre a desgraça que se aproximava.

Entrou apressadamente na abóbada. Viu-se acolhido por um longo corredor. Outros sacerdotes saíram de várias salas. Todos pareciam muito perturbados. A maior parte deles nem sequer parecia conhecer o motivo do alarma.

Naquele instante, uma voz saída dos alto-falantes, espalhados por todos os cantos, parecia chicotear o ambiente.

— Estamos sendo atacados por uma nave terrana. Todos devem dirigir-se imediatamente aos seus postos. Devemos procurar destruir os atacantes, antes que consigam pousar.

A confusão cresceu. Casnan esbarrou em outro sacerdote que se precipitou para o corredor.

— Terranos? — fungou. — Quantos são?

Casnan não perdeu tempo com explicações. Continuou a correr.

— Suas armas energéticas não conseguem romper nossos campos defensivos individuais — disse a voz pelos alto-falantes.

Os homens recuperaram a capacidade de raciocínio. Casnan passou a correr mais devagar. Era verdade. Os terranos haviam perdido a luta antes de pousarem. Não poderiam atacar cada um dos sacerdotes, que eram mais de mil, com os pesados canhões de sua nave. E as armas portáteis de radiações não eram capazes de romper os campos energéticos dos antis. A atividade mental dos sacerdotes influenciava a estrutura dos campos defensivos individuais.

Um sorriso de triunfo surgiu no rosto de Casnan. Tomou uma decisão. Pegaria uma arma e sairia para a sacada. Os terranos se ofereciam como ótimos alvos, enquanto ele mesmo era praticamente invulnerável.

Um chiado fê-lo virar-se apressadamente. Bem acima de sua cabeça, uma mancha incandescente branca surgiu no teto amplo. Cresceu rapidamente. O metal derretido começou a pingar. Casnan soltou um grito. Sentiu o cheiro do plástico queimado. Atrás dele, um sacerdote começou a disparar contra a abertura que se formava.

— Já estão sobre os nossos telhados! — gritou alguém.

Estão abrindo buracos na abóboda”, pensou Casnan, apavorado.

No seu subconsciente sentiu uma espécie de admiração pelo arrojo dos terranos. Apesar do êxito inicial, aquilo não passava de uma missão suicida.

O número dos buracos aumentou. Casnan continuou a correr. Antes que o primeiro terrano entrasse na abóboda, queria ter uma arma na mão.

 

Ao lado de John Emery, pairavam cerca de vinte homens que não pertenciam à sua unidade. Abaixo, viu o clarão dos primeiros tiros. As construções em abóbada pareciam tigelas emborcadas. Acima delas, viu uma enorme sombra ameaçadora.

É a Ironduke”, refletiu o sargento.

Por enquanto o inimigo não havia revidado. Conseguiram pegar os antis de surpresa. Emery tomou a direção do telhado mais próximo. Em torno dele, os homens começavam também a disparar. Segurou firmemente a arma de radiações e puxou o gatilho. A distância ainda era muito grande. O ar começou a tremeluzir sob o calor insuportável, provocado pelo tiro. Em todos os lados viam-se nuvens de fumaça.

— Agora — disse Emery.

Sem querer falara em voz alta. Precisava ter cuidado para não ferir nenhum dos seus soldados. Os primeiros homens já se encontravam em cima do telhado. Abriam entrada sem dar atenção a nada. Em torno da abóbada estendia-se uma espécie de sacada.

Emery viu homens de mantas largas surgirem por lá. Tinham armas e começaram a disparar contra os terranos que desciam sobre o edifício.

Então são estes os antis”, refletiu.

Emery perdeu-os de vista quando caiu na cobertura da abóbada. Perto dele quatro soldados estavam fazendo buracos com suas armas de radiações.

— Atirem contra os sacerdotes. Usem as carabinas automáticas — gritou Emery.

Um homem baixo e magro brandia furiosamente a arma. Seu rosto estava vermelho; o calor era intenso. Emery correu em direção ao grupo.

— Acho que já podemos entrar — disse um baixote, apontando para o buraco.

Não perdeu tempo. Penetrou na abóbada. Emery seguiu-o com os olhos. Era um homem pequeno e valente. Os corredores achavam-se enxameados de sacerdotes. Disparou três vezes. Depois foi atingido, e Emery viu-o inclinar-se para o lado e tombar para a frente. Subitamente caiu como uma pedra sobre os antis que recuavam.

Emery e os soldados restantes fitaram-se.

Não disseram uma palavra. Saltaram para dentro da abertura... um após o outro.

 

Doze seres, semelhantes a formigas, moviam-se sobre a superfície cinzenta. Perry Rhodan fitou a tela com os olhos ardentes. Aqueles seres do tamanho de insetos eram membros da unidade de elite. Os pensamentos de Rhodan acompanhavam esses homens intrépidos.

— Nestas três abóbadas, os sacerdotes estão oferecendo uma resistência encarniçada — disse Bell em tom deprimido. — Até parece que dali conseguirão resistir.

Rhodan teve de confessar para si mesmo que as coisas não estavam correndo tão bem quanto imaginara. Os antis logo se haviam adaptado à situação. Quando notaram que não poderiam resguardar todas as abóbadas ao mesmo tempo, concentraram seus recursos defensivos em algumas delas. E a partir dali, realizavam investidas bem-sucedidas.

Enquanto nas outras abóbadas, os terranos eram surpreendidos com escaramuças, os antis esperavam que, partindo do centro, acabariam por rechaçar o ataque. Era uma hábil manobra estratégica.

O Major Krefenbac, que mantinha contato pelo rádio com os chefes dos diversos destacamentos, estava com a testa enrugada; parecia preocupado.

— Henderson informa que se apoderou definitivamente de quatro abóbadas — falou, dirigindo-se a Rhodan. — Pelo que diz, só há uns poucos antis nas mesmas, que oferecem uma feroz resistência, enquanto fogem. Com isso prendem nossos homens no lugar. Temos de arranjar reforços para essas três abóbadas.

Fez uma pausa e depois disse, em tom deprimido:

— Pastenaci não responde mais. A comunicação foi interrompida. As informações de Sokura Tajamo são semelhantes às que recebemos de Henderson.

Rhodan dirigiu-se ao Major Claudrin.

— Assuma a Ironduke — ordenou. — Está na hora de darmos algum apoio aos homens que se encontram lá embaixo.

Fez um sinal para Bell, que apoiou as mãos nos quadris. Krefenbac levantou-se de um salto, mas Rhodan balançou a cabeça.

— Não, major, aqui sua presença é mais necessária. Bell e eu escolheremos mais alguns homens que possam ser dispensados por Jefe Claudrin.

Krefenbac obedeceu a contragosto.

— O senhor realmente acredita que deve intervir pessoalmente na luta, sir?

— Acredito — respondeu Rhodan.

Bell trouxe dois trajes de combate. Gucky caminhava nervosamente entre Rhodan e o gorducho. Via-se que gostaria de acompanhá-los.

— Não, pequeno — disse Rhodan. —Você terá de esperar mais um pouco.

O rato-castor voltou ao seu lugar. Parecia decepcionado.

— Boa sorte, sir — disse Claudrin em tom sombrio, assim que Rhodan e Bell estavam prontos para partir.

Dali a alguns minutos, quando os dois desciam sobre a cidade de aço, viram um quadro caótico. A maior parte das abóbadas estava com os telhados parcialmente destruídos. Nuvens de fumaça saíam das aberturas.

Rhodan fez um sinal para que os sete homens, que o acompanhavam, permanecessem bem próximos um do outro. Dali de cima viam-se perfeitamente as três abóbadas, em torno das quais a luta era mais feroz. Por lá ainda havia uma intensa troca de tiros, enquanto nos outros lugares, só vez por outra, se via o lampejo produzido por um tiro de radiações ou se ouvia o estampido seco de uma carabina automática.

A essa hora, os antis já deviam ter notado que seus campos defensivos, mentalmente reforçados, não os protegiam contra os projéteis antimagnéticos.

Rhodan viu os soldados agitarem os braços sobre os telhados.

Não ouvia o que gritavam. Só quando chegou mais perto entendeu suas palavras. Festejavam sua presença em meio ao cerrado tiroteio. Dali a um minuto não havia um único soldado que não soubesse que Rhodan estava participando ativamente da luta.

— O chefe! — gritaram os homens. — Perry Rhodan está chegando!

Dali a uma hora, o quadro estava modificado. Os terranos, que envergavam trajes de batalha arcônida, avançavam firmemente. À frente deles, combatia um homem alto e esbelto. Os sacerdotes arregalavam os olhos ao avistá-lo, pois acreditavam que aquele homem fosse Thomas Cardif.

 

— Isso é traição! — gritou Thomas Cardif com o rosto desfigurado. — Alguém nos traiu. Se não fosse assim, Rhodan não poderia ter encontrado este mundo. Quem são os traidores que se encontram nas fileiras dos antis?

Falava com os punhos cerrados. A cada palavra que proferia, esmurrava a mesa. Seus olhos exprimiam ódio. Mais uma derrota começou a desenhar-se diante de si. Já soubera que seu pai fizera as unidades terranas avançar sobre as três abóbadas, nas quais até então os antis haviam sido bem-sucedidos na sua defesa.

Nessas abóbadas ficavam as instalações de purificação da matéria-prima do liquitivo. Os sacerdotes haviam decidido que estas deveriam ser salvas de qualquer maneira.

E agora o êxito desse plano parecia tão duvidoso. Nenhum dos antis teve uma visão mais trágica da situação que Cardif.

— Entre nós não existe nenhum traidor — respondeu Hekta-Paalat, em tom tranqüilo.

A manta do anti fora chamuscada pelo tiro de uma arma de radiações. Seguira o exemplo da maior parte dos membros de sua raça: desistira de manter ativado seu campo defensivo individual, pois também percebera que os projéteis antimagnéticos, disparados pelas armas terranas, eram capazes de atravessar o mesmo.

— É possível que em outras raças exista — acrescentou, numa alusão evidente a Cardif.

— Conseguiremos defender as abóbadas? — perguntou gritando o filho de Rhodan.

— Não — respondeu Rhabol, que se encontrava do lado oposto da mesa.

Os olhos do terrano chamejavam. Contornou a mesa e agarrou a manta do sacerdote.

— Temos que defendê-las. Há um único couraçado sobre Okul. Dessa nave dificilmente podem ter desembarcado mais de cinco mil homens. Exijo que o comando da batalha seja transferido a mim. Ao lado dos sobreviventes, poderei salvar as instalações.

Os olhares dos antis que se encontravam presentes exprimiam uma rejeição sombria.

O choque, que haviam sofrido, ao saberem que as armas dos terranos eram capazes de romper seus campos defensivos individuais, minara o moral dos sacerdotes. Se não fosse assim, o resultado da batalha só poderia ser-lhes favorável.

— Fugiremos — disse Baaran em tom tranqüilo.

Cardif soltou uma risada sarcástica. Cruzou os braços sobre o peito e fez um aceno de cabeça em direção às telas que mostravam as abóbadas queimadas.

— Pretende fugir? — perguntou de modo irônico. — Para onde, meu velho? Para a selva? Os homens de Rhodan disparam contra qualquer pessoa que apareça lá fora.

— Para o mar — respondeu Baaran, ainda tranqüilo.

Ao que parecia, não se impressionava nem um pouco com o fato de que, a algumas centenas de metros do lugar em que se encontrava, seus confrades iam cessando um após o outro na resistência aos soldados terranos, que penetravam na abóbada.

A voz sarcástica de Cardif ainda revelava ironia, quando perguntou:

— Será que teremos de nadar?

Ninguém lhe deu resposta. Baaran e Rhabol voltaram-se para as telas, pois desejavam acompanhar o estágio final da batalha.

 

Durante todo esse tempo, o sargento John Emery sentira-se incapaz de conceber uma idéia clara. Numa atitude puramente automática disparara contra os sacerdotes que se interpunham em seu caminho. Outros homens lutavam a seu lado. Emery não percebeu que o número de seus soldados diminuía constantemente.

Os olhos de Emery estavam quase fechados devido ao suor. Os pulmões não queriam aceitar o ar aquecido, carregado de fumaça. Sentado no fim de um longo corredor, o sargento disparava contra três dos antis, que se haviam abrigado num pequeno estrado.

Por toda a abóbada rugiam lutas violentas. Um tiro de radiações chiou acima de Emery e chamuscou suas costas. Apoiando-se sobre os cotovelos, disparou a carabina automática e... conseguiu acertar!

Emery resmungou, satisfeito.

O inimigo parecia imobilizado. Pela primeira vez o sargento resolveu olhar para trás. Era o único terrano que se encontrava naquele corredor! Não tinha tempo para pensar nisso. Dedicava sua atenção aos três antis, cujo silêncio o deixava desconfiado.

Disparou três vezes, mas o inimigo não respondeu ao fogo.

Emery passou a língua pelos lábios ressequidos. O silêncio tomou conta de toda a abóbada. Até parecia que alguém havia ordenado um cessar fogo imediato.

Emery ergueu-se cautelosamente. Era arriscado oferecer um alvo exposto aos antis. Mas por outro lado, não poderia ficar deitado ali, para todo o sempre. Percebeu que alguma coisa tinha mudado. A batalha parecia ter sido decidida. Emery não conseguiu reprimir uma sensação de medo.

Será que o ataque de surpresa malograra? Seria ele um dos poucos sobreviventes?

Levantou-se. Permaneceu ereto no corredor. Olhou para seu corpo. O aspecto que oferecia não inspirava muita confiança. Seu uniforme estava queimado em vários lugares. Era duvidoso que o traje de batalha ainda estivesse em pleno funcionamento.

Bem; seria fácil verificar. Enquanto ligava o propulsor antigravitacional, o sargento mostrava-se zangado. Deixou que o aparelho o levasse ao estrado, que já fora abandonado pelos antis.

Emery pousou são e salvo. Olhou em torno. Dali enxergava todo o corredor. Viu o lugar em que antes se encontrara. Sentiu um calafrio descer-lhe pela espinha. Lutara contra os sacerdotes praticamente sem a menor proteção.

Emery continuou a avançar de arma em punho. Viu-se em outro corredor: uma descida. Alguns passos adiante deparou-se com um vulto que jazia imóvel no chão. Era um anti. Estava gravemente ferido, mas ainda estava vivo.

Assim que ouviu os passos de Emery, virou-se. O sargento apontou a carabina automática. O ferido fitou-o tranqüilamente. Emery parou a três metros do moribundo.

— O que está esperando? — perguntou o anti, num intergaláctico impecável. — Acha que Casnan tem medo de morrer?

— Não — disse Emery, mas sua boca apenas conseguiu expelir um grasnado.

— O que pretende fazer? — perguntou Casnan.

— Quero seguir adiante — respondeu Emery, em tom áspero.

Um sorriso martirizado surgiu no rosto do sacerdote. Conseguiu erguer um pouco o corpo e segurar a arma de radiações, que jazia no chão. Fitou-a com uma expressão pensativa.

— Nada de truques — preveniu Emery. — Guarde isso.

Não sei por quê, mas o fato é que ele procura deter-me”, pensou o sargento.

Aproximou-se de Casnan. Este rolou para o lado e fez pontaria para Emery, que soltou uma praga e deu um enorme salto para a frente. O raio escaldante da morte chiou acima de sua cabeça. As pernas do terrano atravessaram o ar e atingiram o anti, que soltou um grito. Com movimento lerdo, ele ainda moveu a arma em direção de Emery.

Desta vez, o sargento estava prevenido. Um golpe com a quina da mão fez com que o anti deixasse cair a arma. Emery apoderou-se da pistola.

— Pronto! — exclamou. — Agora vamos ver o que está sendo escondido por aqui.

Casnan estremeceu. O sargento viu nisso uma prova de que estava na pista certa.

— Se prosseguir, o senhor morrerá — ameaçou o sacerdote que, exausto, desfaleceu.

Emery não lhe deu mais nenhuma atenção. Desceu correndo. Seus passos produziram um eco trovejante. O corredor descreveu uma curva fechada e, de repente, Emery se viu diante de um poço envolto numa tremenda escuridão. Deixou-se cair no chão e aguçou o ouvido.

Estaria enganado, ou realmente ouvia o borbulhar da água? O que haveria no fundo desse poço? Tirou a lanterna do cinto do traje de batalha e ligou-a. As paredes atingidas pelo feixe de luz eram totalmente lisas. Emery refletiu intensamente. A luminosidade da lanterna não era suficiente para atingir o fundo do poço.

Lembrou-se da advertência do sacerdote moribundo.

Será que realmente havia um perigo misterioso que o espreitava?

Num gesto resoluto, Emery cerrou os dentes. Deixou-se cair no poço com o auxílio de seu traje de batalha.

 

Perry Rhodan levantou o braço.

As três abóbadas, em torno das quais se travavam combates violentos, haviam caído. Em todos os lados, os robôs de guerra estavam destruindo os últimos focos de resistência, para o que usavam suas armas pesadas. A cidade abobadada, com seus sessenta e sete edifícios, estava praticamente destruída.

Um dos combatentes, que se reunira em torno de Rhodan, disse com a voz exausta:

— Gostaria de saber onde eles se meteram, sir.

De um instante para outro, os sacerdotes haviam abandonado seus postos no interior dessa abóbada, que, segundo tudo indicava, era muito importante para eles. Até parecia que se dissolveram no ar.

Rhodan calculava que pelo menos duzentos sacerdotes tinham fugido para um local ignorado. Sem dúvida, Thomas Cardif era um dos fugitivos.

A abóbada estava completamente fechada. Para onde teriam ido os antis? Haveria alguma passagem subterrânea?

Rhodan chamou um soldado que trazia um aparelho de rádio.

— Entre em contato com a Ironduke — ordenou.

Dali a alguns segundos ouviram a voz trovejante do Major Claudrin:

— Meus parabéns, sir. Vejo que conseguiu.

Claudrin, que via da sala de comando da nave toda a área do estabelecimento, devia ter uma idéia exata da derrota sofrida pelos antis. Era ao menos o que se deduzia do tom de triunfo que vibrava em sua voz.

— Um grupo considerável conseguiu escapar, major — disse Rhodan, com a voz cansada. — Provavelmente existe alguma passagem secreta. Para o senhor, será muito mais fácil verificar se os antis aparecem em algum lugar.

— A Ironduke vai lhes proporcionar uma recepção bem quente — asseverou Claudrin. O tom de sua voz revelava um evidente aborrecimento; sentia-se chateado porque até então só figurara como espectador.

Rhodan passou os olhos pelos soldados reunidos em torno dele. Eram algumas centenas. Os outros encontravam-se nas diversas abóbadas. Sem dúvida já estavam revistando tudo, sob a direção de competentes oficiais.

O administrador também iria executar essa tarefa.

— Vamos dar uma olhada por aí — gritou para seus homens. — Vasculharemos detalhadamente um recinto após o outro. Tudo que possa fornecer alguma indicação sobre a fabricação do entorpecente deverá ser apreendido.

Antes que pudesse prosseguir, notou-se um movimento entre os soldados. Ouviram-se alguns gritos. O grupamento abriu alas, e dois homem conduziram um anti à presença de Rhodan. O administrador notou imediatamente que o sacerdote estava ferido. Os dois homens fizeram continência.

— Pegamos oito antis — disse um deles. — Sete são tagarelas que nem um toco de pau. Este jovem amigo é o único que parece disposto a contar-nos uma história.

O anti ferido era relativamente jovem.

— Eles nos deixaram para trás — gritou para Rhodan. — Quando viram que a coisa começava a ficar perigosa, fugiram...

Sem dúvida, sua indignação dirigia-se contra os sacerdotes que haviam fugido, e em cuja companhia se devia encontrar Thomas Cardif.

— Não se exalte — disse Rhodan. — Nem por isso deixaremos de prendê-los.

O anti soltou uma risada sarcástica. Ao que parecia, não acreditava na afirmação de Rhodan.

— Suponho que estejam interessados em nosso produto denominado liquitivo.

Rhodan pensou nas preciosas vidas humanas que custara a conquista de Okul. Para dispensar um tratamento decente àquele anti, teve de esforçar-se ao máximo.

— Fale — pediu com a voz embaraçada.

O sacerdote fitou-o atentamente.

— O senhor é igualzinho àquele traidor chamado Cardif — disse, bastante impressionado.

— É possível — admitiu Rhodan, com a maior tranqüilidade. — Afinal, ele é meu filho.

O anti recuou instintivamente. Os olhos frios e cinzentos pareciam perfurá-lo.

— Nestas abóbadas estava instalado o equipamento de purificação do entorpecente — disse o anti com a voz apressada, tentando fugir do assunto.

— De que tipo de planta é extraído o tóxico? — perguntou Bell.

— De que planta? — repetiu o membro da seita de Baalol, franzindo a testa, espantado. — O tóxico não é nenhum produto vegetal. É extraído da secreção das glândulas de animais que vivem neste planeta.

— De animais? — espantou-se Rhodan. — Faça o favor de explicar-se melhor.

— Trata-se de lagartas, cobertas de córneas, que medem dois metros de comprimento e quarenta centímetros de espessura. Locomovem-se sobre inúmeros pés muito pequenos. São encontradas principalmente nas áreas pantanosas da selva. Na sua cabeça redonda, coberta de uma blindagem córnea, existe um círculo cortante de quinze centímetros de diâmetro, que lhes permite revolver a terra. Costumamos chamar estes animais de fura-lama. O círculo perfurador é movimentado por um estranho órgão, que reúne ar comprimido numa espécie de câmara de compressão. Este ar comprimido movimenta o círculo cortante. Essas lagartas possuem uma série de glândulas peculiares, das quais é extraída a substância ativa do liquitivo.

A voz do anti tornava-se cada vez mais fraca. Ao que parecia, os ferimentos enfraqueciam-no bastante. Rhodan fez um sinal, e os soldados levaram o sacerdote.

— Pois bem — observou Bell. — Então é isso. Basta pegar alguns desses animais e examiná-los.

— Acho que seu otimismo é prematuro — respondeu Rhodan. — É bem possível que tenhamos surpresas bem desagradáveis pela frente.

Deu outras ordens. Os homens dividiram-se, para revistar as abóbadas, quase totalmente destruídas.

 

O ruído da água tornava-se cada vez mais forte. Enquanto planava pela escuridão compacta, Emery conteve a respiração. Desligara a lanterna. Desceu muito devagar, para poder fazer meia-volta, assim que surgisse algum perigo.

Teve a impressão de ouvir o ruído de uma máquina, mas talvez fosse engano. O ar frio subia das profundezas. Emery pensou que talvez se encontrasse no interior de um elevador antigravitacional.

Subitamente sentiu chão firme sob os pés. Bem à sua frente, uma luz forte atravessava uma fresta na parede. O sargento enfiou os dedos na brecha. Ficou espantado ao notar que a fenda se alargou.

É uma porta de correr dupla”, pensou Emery.

Enfiou a cabeça na abertura e olhou para o interior do recinto.

Viu um ancoradouro subterrâneo!

Um estranho barco estava encostado ao cais. Vários antis movimentavam-se sobre a embarcação. O pavilhão era iluminado por uma fonte de luz artificial. Os sacerdotes pareciam ter pressa. Foram desaparecendo no interior do barco.

Subitamente, Perry Rhodan apareceu na frente de um grupo.

Por pouco Emery não solta um grito. Aquele homem não era Rhodan; era o filho de Perry. Ao ver Cardif entrar no barco, Emery manteve-se imóvel. Seria insensato arriscar-se a atacar o barco sozinho. De qualquer maneira, Rhodan teria de ser avisado imediatamente.

Assim que o último sacerdote desapareceu em seu interior, o barco foi saindo lentamente em direção ao centro do ancoradouro. E, também lentamente, afundou na água.

É um submarino”, pensou Emery. “Estão mergulhando por baixo da abóbada.”

O mar ficava bem próximo. Ao que tudo indicava, havia um canal subterrâneo que levava diretamente da abóbada para o oceano.

Emery não perdeu mais tempo. Subiu o mais rápido possível por aquele poço apertado.

 

Thomas Cardif aproximou-se do periscópio, para lançar mais um olhar sobre a cidade destruída. Conseguira escapar mais uma vez de seu pai e da Frota Solar. Porém a idéia de que sofrerá outra derrota, reduzia o contentamento que sentia por isso.

— Recolher o periscópio! — ordenou Hekta-Paalat.

Cardif encostou as barras de direção. Dirigiu-se aos sacerdotes.

— Preparar a imersão — gritou Baaran.

— Vamos nos esconder que nem uns animais! — exclamou Cardif, em tom amargurado. — Mas enquanto tiver forças, não descansarei sem ver meu plano executado.

— Mais dia menos dia, Rhodan descobrirá o porto — disse Rhabol. — Quando isso acontecer, saberá onde procurar-nos. Acredito que encontrará um meio de continuar a acossar-nos. Nossa situação não é muito animadora. Por isso sugiro que, por enquanto, fiquemos quietos. Baaran, acho que, por ora, as profundezas do oceano são o lugar mais seguro para nós.

Cardif também sabia perfeitamente que, na situação atual, não tinham a menor chance de agir contra os terranos. Só podiam fazer votos de que o tempo trouxesse uma reviravolta. O prejuízo tremendo, que a destruição do estabelecimento de Okul representava para a seita de Baalol, sem dúvida não contribuiria para estimular as atividades dos sacerdotes.

De repente um sorriso sarcástico surgiu no rosto de Cardif.

— Será que o senhor teve mais uma das suas excelentes idéias? — perguntou Rhabol.

Cardif fez que sim. Se os pesquisadores terranos não conseguissem encontrar um antídoto para o entorpecente, a vitória que Rhodan alcançaria em Okul lhe sairia muito cara.

— Acabo de pensar em Valmonze — disse Cardif.

Os antis fitaram-no como quem não entendia nada.

— O patriarca recebeu o último liquitivo que tínhamos — disse. — Não estamos em condições de continuar a produzir a matéria-prima. As respectivas instalações foram destruídas.

— Isso significa que o governo do Império Solar se defrontará com milhões de viciados, que serão levados a desencadear uma revolta, em virtude da inesperada privação do entorpecente — completou Hekta-Paalat, parecendo satisfeito por ter compreendido o raciocínio de Cardif.

— A não ser que na Terra seja encontrado um antídoto eficaz — objetou Baaran.

— O tempo de que os cientistas dispõem para isso não é ilimitado — ponderou Cardif. — Se quiserem ser bem-sucedidos na cura de todos os viciados, terão de andar muito depressa.

Vista sob este ângulo, a derrota já não parecia tão trágica a Cardif. Os contornos pouco nítidos de um fantástico plano começaram a surgir em seu cérebro.

Quanto mais refletia sobre sua idéia arrojada, maiores lhe pareciam as possibilidades de transformá-la em realidade.

 

O antigo estabelecimento dos antis era a própria imagem da destruição. Das sessenta e sete abóbadas haviam sido destruídas mais de cinqüenta. E as restantes encontravam-se num estado tal que sua utilização futura parecia pouco recomendável. Os velhos lança-foguetes da Ironduke haviam aberto brechas com seus projéteis antimagnéticos, sempre que nenhum terrano corresse o risco de ser ferido pelas cargas atômicas.

O Major Krefenbac fez o jato espacial descrever uma curva ampla sobre a cidade estorricada de aço. Em todos os lugares, as nuvens de fumaça subiam ao céu. Constantemente se viam grupos de busca em meio às ruínas. Os corpos metálicos dos robôs de guerra, equipados com armas pesadas, garantiam os flancos dos diversos grupos. Qualquer ataque desfechado por antis ocultos seria rechaçado com uma fúria devastadora. Mas era inconcebível que ainda houvesse alguém capaz de oferecer resistência. Rhodan ordenara aos homens que prestassem muita atenção a eventuais elementos que pudessem fornecer indicações sobre a produção de entorpecentes.

— Dentro de alguns anos, a selva voltará a tomar conta deste lugar, sir — disse o Major Krefenbac. — Sem dúvida esta elevação era coberta pela mata.

— Os sacerdotes devem ter tido um motivo para escolher este lugar, pois está situado nas proximidades do oceano — disse Rhodan, em tom pensativo. — Por que não construíram mais para o interior?

— Minha pergunta é muito mais interessante — interveio Bell. — Os antis, que nos criaram tamanhos problemas nas três abóbadas principais, desapareceram sem deixar vestígio. Thomas Cardif deve estar com eles. Onde será que se esconderam?

Krefenbac refletiu intensamente.

— Talvez disponham de transmissores de matéria — disse. — Ainda não revistamos todos os edifícios.

— Isso é impossível — objetou Rhodan. — A bordo da Ironduke existem aparelhos de localização extremamente sensíveis, que sem dúvida teriam registrado uma descarga energética de quinta dimensão. Acontece que Claudrin não nos forneceu nenhuma informação a este respeito. Os antis devem ter fugido por outro caminho, Krefenbac.

O major fez o jato espacial descrever mais uma curva e desceu.

— Neste caso só resta a selva — respondeu.

Antes que Rhodan tivesse tempo de responder, o aparelho de rádio chamou. O rosto largo de Jefe Claudrin apareceu na tela do videofone.

— Desculpe, sir — trovejou sua voz. — Infelizmente vejo-me obrigado a interromper seu vôo de inspeção.

— Tem alguma novidade, major?

Claudrin fez que sim.

— Um dos homens que voltou para a nave diz ter descoberto um porto subterrâneo. Afirma que os antis e Thomas Cardif fugiram pelo tal porto num submarino.

Bell estalou os dedos. Apontou para o mar.

— O oceano! — exclamou. — Quer dizer que mergulharam lá.

— Vamos voltar para a Ironduke, Krefenbac — ordenou Rhodan e voltou a dirigir-se a Claudrin. — Iremos ao hangar, major. Quero falar pessoalmente com o homem. Organize um grupo bem armado, com o qual possamos penetrar no porto.

Claudrin confirmou e seu rosto empalideceu na tela. Bell passou a mão pelos cabelos rebeldes.

— Agora só falta uma isca para fazer com que o peixe morda o anzol — disse.

— Não sei, mas tenho a impressão de que por enquanto nem sequer temos um anzol — respondeu Rhodan, pensativo. — A Frota Solar não dispõe, no momento, de naves anfíbias.

Bell parecia indignado. Não gostava que seu otimismo fosse abafado.

— Quer dizer que percorremos muitos anos-luz — disse em tom exaltado — para fracassar diante de uma poça d’água como esta.

 

O sargento John Emery mantinha-se garboso na sala de comando da Ironduke. Via-se que não recuara diante da luta. Depois de algumas tentativas inúteis desistiu de prender os farrapos que pendiam de seu traje de batalha. Sempre que Claudrin levantava a voz, encolhia-se. Nunca vira os homens célebres tão de perto.

— O jato espacial acaba de pousar no hangar — anunciou Averman. — Rhodan deverá chegar num instante.

Emery contemplou seu uniforme. Sentia-se triste por ter de apresentar-se ao administrador com uma vestimenta destas. Muito triste, lembrou-se de seu depósito de Terrânia, onde guardava os trajes de velhos príncipes. Com uma roupa dessas, sem dúvida causaria uma impressão muito “forte” em Rhodan.

Rhodan, Bell e o Major Hunt Krefenbac, imediato da Ironduke, entraram na sala de comando. Emery ficou em posição de sentido.

— O homem é este, sir — disse a voz retumbante de Claudrin.

O sargento engoliu em seco.

— Sargento John Emery, sir — disse a título de apresentação. — Pertenço ao destacamento de Henderson.

Rhodan fitou-o em silêncio. Ao notar um sorriso irônico no rosto de Bell, Emery ficou apavorado.

— Desculpe minha apresentação, sir — gaguejou Emery. — Infelizmente não pude evitar alguns ferimentos durante a batalha.

— Pelo que vejo, esses ferimentos atingiram principalmente seu traje de batalha — disse Rhodan com um sorriso. — Faça o favor de contar o que descobriu.

Emery relatou suas experiências e manifestou a opinião de que havia um canal subterrâneo que levava diretamente ao oceano.

— O senhor acha que é capaz de encontrar novamente esse lugar? — perguntou Rhodan.

— Quando quiser, sir.

— Muito bem. Seu nome foi anotado na lista de promoções, sargento. No entanto, o senhor levará um grupo até o porto. Quero que tudo seja cuidadosamente revistado. Mande verificar se existe alguma indicação quanto ao lugar em que se refugiou o submarino. Se encontrar outras embarcações, as mesmas deverão ser apreendidas imediatamente.

— Sim, senhor — disse Emery em tom resoluto.

O Major Krefenbac levou Emery para junto do grupo de soldados que acompanharia o sargento.

— Temos mais um problema pela frente — disse Bell. — Devemos encontrar um meio de prender os antis que fugiram.

John Marshall, chefe dos mutantes, disse:

— Talvez os sacerdotes tenham uma espaçonave guardada em algum lugar deste planeta. Quem sabe se estão se dirigindo para lá?

Rhodan fez um gesto de assentimento. Não tinha meio de verificar a profundidade dos oceanos.

— Está na hora de termos uma boa idéia — resmungou Gucky, com sua voz aguda.

O rato-castor sentia-se visivelmente contrariado porque não lhe haviam dado possibilidade de participar da ação.

— Não podemos suportar pelo resto da vida o desconforto da Ironduke.

Ninguém deu atenção à sua reclamação. Gucky parecia ofendido.

— Devemos evitar de qualquer maneira que os antis saiam de Okul — disse Rhodan, em tom pensativo. — Conhecemos a posição aproximada de seu submarino. Quanto mais esperarmos, mais difícil se tornará descobrir o paradeiro dos sacerdotes. Eles não poderão ficar para sempre no fundo do mar. Terão de emergir certa hora. Quando isso acontecer, deveremos dispor de um número suficiente de naves para exercer uma vigilância total sobre Okul. Não devemos esquecer-nos da possibilidade de os sacerdotes receberem reforços vindos do espaço. Nem mesmo a Ironduke estaria em condições de resistir a um ataque maciço de grandes unidades.

— É verdade, sir — concordou Claudrin, com sua voz potente.

Rhodan apresentou seu plano aos oficiais.

 

O General Deringhouse tirou as pernas compridas da cama e observou, com uma expressão contrariada, o desenho da parede diante de si. Durante as últimas horas passara a maior parte do tempo nessa posição. O cadete Oscar Hardin, que fora nomeado seu ordenança, fitou-o de modo inseguro. Compreendia perfeitamente a impaciência do general.

— Se a Ironduke não entrar em contato conosco nas próximas horas, agirei por conta própria — disse Deringhouse, dirigindo-se a Hardin, que o ouvia atentamente. — O prazo fixado esgotou-se há muito tempo.

— Sem dúvida o administrador teria entrado em contato com a Frota, se a nave linear se defrontasse com um perigo mais sério, sir — atreveu-se a objetar o cadete.

Deringhouse bateu com a palma da mão na armação da cama. Esta lhe parecia um objeto supérfluo, pois ele mal a usava, a não ser para sentar-se na mesma. No entanto, Hardin mostrava uma dedicação pior que uma galinha choca. Parecia treinado para adivinhar os desejos de seu superior. Deringhouse nem se arriscava a fazer qualquer movimento que pudesse ser interpretado como uma manifestação de cansaço. O cadete correria imediatamente em direção à cama, alisaria os lençóis e exclamaria em voz de tenor:

— Posso servir-lhe um café, sir?

Deringhouse sabia perfeitamente que o jovem apenas cumpria seu dever. Mas, por mais que amasse a disciplina e a meticulosidade, não precisaria mostrar-se tão solícito no cumprimento das normas de trabalho.

De qualquer maneira, o general não tinha outra alternativa senão contemplar o desenho simples, que via na parede, e comportar-se de modo a não provocar suspeitas de que se sentisse cansado.

— Não se esqueça da Fantasy — disse. — A Ironduke também não está livre de um naufrágio espacial.

Hardin balançou a cabeça. Parecia pensativo. Ao que supunha Deringhouse, o cadete refletia desesperadamente sobre como deveria tratar um oficial numa situação daquelas.

— Sem dúvida, sir — disse Hardin, revelando senso diplomático.

Deringhouse levantou-se e abriu os braços. No último instante conseguiu reprimir um bocejo. Hardin fitou-o com uma expressão preocupada.

O alto-falante veio em auxílio de Deringhouse, salvando-o de novas investidas do cadete.

— Sala de comando chamando o General Deringhouse! Sala de comando chamando o General Deringhouse!

Deringhouse ligou o aparelho de intercomunicação. Assim que respondeu ao chamado, uma voz desconhecida disse:

— Estabelecemos contato com a Ironduke, sir. O administrador quer falar com o senhor.

Deringhouse achou que seria desnecessário dar uma resposta a essas palavras. Atravessou o camarote a passos largos e saiu correndo. Hardin fitou-o com uma expressão desolada.

Assim que chegou à sala de comando, o general reconheceu o rosto de Rhodan na tela do aparelho de telecomunicação. Deringhouse ouviu seu próprio suspiro de alívio.

— Espero que tenha boas notícias, sir — disse Deringhouse, enquanto cumprimentava os dois radioperadores com um gesto de cabeça.

Os dois homens de serviço na sala de rádio retiraram-se sem dizer uma palavra. O rosto de Rhodan parecia sério.

— Apoderamo-nos de Okul. Conseguimos destruir o estabelecimento dos antis. Mas alguns deles conseguiram fugir num submarino para as profundezas de um dos numerosos mares deste mundo — o rosto que aparecia na tela assumiu uma expressão dura. — Uma das pessoas que fugiram é Cardif.

— Descobriu alguma coisa sobre o entorpecente? — perguntou Deringhouse, em tom preocupado.

— Descobrimos — respondeu Rhodan. — Mas, no momento, não é isto que importa. Quero evitar que os antis e Cardif saiam de Okul, ou que sejam libertados por alguém que lhes traga auxílio do espaço.

O oficial experimentado inclinou o corpo para a frente. Parecia muito tenso. Já sabia quais seriam as ordens de Rhodan.

— Qual é sua sugestão, sir?

— A Frota Solar está de prontidão — disse Rhodan. — Cinco mil unidades dirigir-se-ão imediatamente a Okul, a fim de bloquear o planeta.

— As naves estão prontas para decolar, sir! — exclamou Deringhouse com os olhos chamejantes.

Finalmente o tempo de espera chegara ao fim. O general sabia que os tripulantes de todas as naves aguardavam a ordem de entrar em ação.

O administrador fez um gesto de assentimento.

— Está bem, general. Todos os supercouraçados entrarão em transição, juntamente com outras unidades pesadas e leves. Okul nos pertence, e não haverá mais nada que possa modificar essa situação.

— Não tenha a menor dúvida — disse Deringhouse, em tom resoluto.

 

A estrutura espácio-temporal parecia arrebentar no momento em que o grupo de naves da Frota Solar irrompeu do hiperespaço. As descargas provocadas pela transição das gigantescas espaçonaves esféricas criaram terríveis ondas de choque. Os efeitos atingiram o pequeno sistema ao qual pertencia o planeta Okul. Houve uma série de terremotos e inundações.

Esses efeitos colaterais da navegação espacial podiam ser evitados com o uso das modernas naves lineares. A Ironduke podia chegar sem o menor risco às imediações de qualquer planeta, deslocando-se pelo semi-espaço. Os saltos pelo hiperespaço sempre exigiam certo cuidado. Se toda a Frota Solar entrasse em transição nas imediações da Terra — o que evidentemente representa apenas uma hipótese — haveria um deslocamento da órbita do planeta, com todas as conseqüências resultantes do mesmo.

Perry Rhodan, que se encontrava na sala de comando da Ironduke, acompanhava a aparição das naves.

— É um espetáculo impressionante — confessou Bell que, embora já tivesse assistido muitas vezes ao fenômeno, nunca deixava de sentir-se fascinado pelo acontecimento.

As espaçonaves ali reunidas seriam capazes de bloquear Okul de tal maneira que, para usarmos uma hipérbole, nem mesmo um inseto conseguiria decolar do planeta ou nele pousar sem ser notado. Milhares de goniômetros e aparelhos de localização vasculhariam a superfície do planeta e o espaço adjacente.

— Velhas naves, boas e confortáveis — piou Gucky. — Terei muito prazer em teleportar-me para bordo da Drusus, a fim de tirar um cochilo.

Olhou em torno com uma expressão de desprezo e concluiu em tom azedo:

— O Capitão Graybound tem razão... Ninguém consegue impressionar-me com esses veículos-molezas.

Rhodan estava ocupado com os contatos mantidos com os comandantes das naves que chegavam. Apesar disso teve tempo para ordenar a Gucky:

— O senhor permanecerá a bordo da Ironduke, Tenente Guck.

O administrador entrou em contato pelo rádio com os comandantes das naves, a fim de colocá-los a par da situação. Aqueles oficiais experimentados, compreenderam imediatamente. Não demorou uma hora, e Okul ficou totalmente bloqueado.

— Muito bem — disse Rhodan, satisfeito. — De qualquer maneira, nossos amigos estão presos. Terão que inventar uma coisa muito especial se quiserem escapar.

Jefe Claudrin colocou a Ironduke numa órbita estável em torno de Okul. A velocidade elevada tornava-a apta para essa missão. Os lança-foguetes ameaçavam a superfície do planeta. Um manto impenetrável passara a envolver Okul.

Os oficiais mais categorizados encontraram-se na sala de comando da Ironduke, a fim de discutir a situação.

Rhodan sabia perfeitamente que por enquanto sua ação não produziria nenhum resultado. As naves estavam praticamente imobilizadas. A única coisa a fazer seria aguardar que o misterioso submarino aparecesse na superfície.

O administrador voltou a entrar em contato com Terrânia. Falou com o Dr. Topezzi e o Dr. Whitman. Informou-os sobre a descoberta dos fura-lamas. Os médicos, que eram os coordenadores do programa de pesquisas destinado ao combate dos efeitos do entorpecente, sugeriram que algumas naves de pesquisa e naves-laboratório fossem destacadas para Okul.

— É o que faremos — concordou Rhodan. — Por enquanto procuraremos capturar os fura-lamas encontrados em toda parte. Quando os especialistas chegarem, poderão começar a trabalhar imediatamente. Com isso evitaremos qualquer demora.

— Estou plenamente convencido de que, com isso, conseguiremos encontrar um antídoto — disse o Dr. Whitman, com a voz segura. — Afinal, já dispomos de todos os requisitos técnicos para isso. Sabemos qual é a natureza da toxina segregada pelas glândulas dos animais e conhecemos o processo de produção da mesma.

— Faço votos de que seu otimismo tenha fundamento, doutor — disse Rhodan, dando fim à palestra.

Desligou. Ao virar-se, viu o rosto sorridente de Bell. A expressão fria abandonou os olhos cinzentos do grande homem. Virou-se para os oficiais, que estavam reunidos na sala de comando, e começou a falar com a foz firme.

 

A enfermeira passa lentamente entre as fileiras de camas brancas. Dirige seu olhar para os pacientes que jazem imóveis. A luz do Sol penetra pelas amplas janelas. A sala parece limpa e alegre. A enfermeira chega à última cama. Sorri para o homem que ocupa o leito. Mas o rosto rígido do doente não mostra a menor reação.

— Venha — diz a enfermeira, em tom suave.

O homem continua imóvel. Parece olhar para o infinito. Não há o menor brilho em seus olhos. Aquele rosto não revela nenhuma tristeza, nenhuma dor, nenhum sofrimento. Parece completamente insensível. A enfermeira inclina-se sobre o doente e puxa-o lentamente pelo braço. O paciente executa movimentos desajeitados, cedendo à pressão exercida pela mão da enfermeira.

— Tenha cuidado — diz esta.

Sabe que o sentido de suas palavras não é compreendido pelo doente. Nenhum dos pacientes a compreende. Às vezes, a enfermeira tem a impressão de encontrar-se numa câmara mortuária.

O homem pôs-se de pé junto à cama. Não parece notar nada do que existe em redor dele. Outra enfermeira leva-o pelo longo corredor. Nenhum dos pacientes diz alguma coisa; nenhuma cabeça move-se na direção da enfermeira.

— Será um dia lindo — diz a mulher. Chegam a outro corredor.

Ela entra com seu mudo acompanhante cuidadosamente no elevador.

Dali a pouco alcançam o grande parque que cerca o hospital. As aves gorjeiam nas árvores. Os bancos estão ocupados por homens e mulheres. Os pacientes acham-se acompanhados por enfermeiras. Em todos nota-se o terrível olhar vazio. Ficam sentados imóveis, como se fossem bonecos.

— Vamos para lá — diz a enfermeira.

O homem segue-a prontamente. Não sabe mais nada deste mundo. Talvez o mesmo já tenha deixado de existir para ele. Aquele homem e seus companheiros de sofrimento levam uma vida apagada.

São vítimas do liquitivo. Encontram-se num estado de obnubilação mental. Estão irremediavelmente perdidos.

A enfermeira passeia durante meia hora com o paciente. Depois leva-o de volta à sua cama. Todos os doentes têm de ser levados a passear. Os médicos insistem nesse ponto, mas a enfermeira não acredita que isso adiante alguma coisa. Sabe que o estado dos doentes se mantém inalterado até que sobrevenha a morte. E a morte vem muito depressa.

Os doentes abandonam a existência neste mundo, sem oferecer a menor resistência.

— Foi um belo passeio, não foi? — pergunta a enfermeira.

Não obtém resposta. Nunca obterá. Apesar disso, vez por outra tem de dizer algumas palavras, pois, do contrário, também acabará enlouquecendo. Seu trabalho consiste em ajudar essa gente, mas muitas vezes pergunta a si mesma qual será a finalidade preenchida pela ação que desenvolve junto a esses pacientes.

O primeiro passeio daquela manhã chegou ao fim. A enfermeira leva o paciente de volta à sala dos cadáveres-vivos. Passam pelas longas fileiras de camas.

Reina o silêncio. O ruído dos pássaros mal penetra na sala. As ajudantes arrumaram a cama do doente.

Na cabeceira vê-se uma pequena placa. Nela está escrita, em letras negras, o nome do homem que a ocupa; é um nome que ele mesmo já não consegue ler.

O olhar da enfermeira não se prende à placa. As palavras escritas ali nada significam, tanto para ela como para o doente. É bem verdade que há um destino ligado a este nome, mas o nome em si só interessa aos registros da instituição.

Na placa que está presa àquela cama lê-se HENRY MULVANEY.

 

 

                                                                  WilliamVoltz

 

 

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