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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NORWEGIAN WOOD / Haruki Murakami
NORWEGIAN WOOD / Haruki Murakami

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Norwegian Wood explora os amores do estudante Toru Watanabe em Tóquio, nos anos 60. Depois de Kizuki inexplicavelmente cometer suicídio aos 17 anos, Watanabe apaixona-se pela sua namorada, a bela Naoko, quando a encontra em Tóquio, altura em que ambos tentam entrar para a faculdade. Mas Naoko não consegue amar outra pessoa e, enquanto Watanabe tenta fazer novas amizades e começar a trabalhar, Naoko afasta-se ainda mais, acabando por ir parar a um sanatório. Entretanto, a impetuosa e ligeiramente louca Midori entra na vida de Watanabe. Quem escolherá ele para sua companheira? E que acontecerá com a que não for escolhida? Finalmente, Watanabe consegue reconciliar-se com o passado para poder avançar para o futuro. Este livro melancólico descreve o amor de um intruso solitário à deriva num mar de tragédia e paixão. Com o movimento contra a Guerra do Vietname como pano de fundo, Norwegian Wood usa uma linguagem profunda para falar de uma pessoa forçada a dar o melhor a fim de transformar os sonhos de um rapazinho no destino de um homem.

Ao ouvir a sua música preferida dos Beatles, Norwegian Wood, Toru Watanabe recorda-se do seu primeiro amor, Naoko, a namorada do seu melhor amigo Kizuki. Imediatamente regressa aos seus anos de estudante em Tóquio, à deriva num mundo de amizades inquietas, sexo casual, paixão, perda e desejo -quando uma impetuosa jovem chamada Midori entra na sua vida e ele tem de escolher entre o futuro e o passado.

 

 

 

 

Eu tinha trinta e sete anos e viajava, de cinto posto, no meu lugar enquanto o enorme 747 mergulhava através de uma densa cobertura de nuvens a aproximar-se do aeroporto de Hamburgo. As frias chuvas de Novembro encharcavam o solo, conferindo a tudo o aspecto sombrio de uma paisagem flamenga: a tripulação em terra envergando impermeáveis, uma bandeira no topo de um atarracado edifício do aeroporto, um placard da BMW. Portanto... eis-me de novo na Alemanha.

Assim que o avião aterrou, começou a fluir uma música suave dos altifalantes no tecto: uma adocicada versão orquestral de Norwegian Wood dos Beatles. Esta melodia provocava-me sempre um calafrio, mas desta vez perturbou-me com mais força do que nunca.

Inclinei-me para a frente, com o rosto entre as mãos para evitar que o meu cérebro se estilhaçasse. Pouco depois, uma das hospedeiras alemãs aproximou-se e perguntou em inglês se me sentia agoniado.

- Não - respondi -, apenas uma ligeira tontura.

- Tem a certeza?

- Sim. Obrigado.

Ela sorriu e afastou-se, e a música foi substituída por uma melodia de Billy Joel. Recostei-me e olhei pela janela, para as nuvens negras que pairavam sobre o Mar do Norte, enquanto pensava em tudo aquilo que perdera no decurso da minha vida: tempos perdidos para sempre, amigos que tinham morrido ou desaparecido, sentimentos que não voltaria a viver.

O avião chegou ao terminal. Os passageiros começaram a desapertar os cintos e a retirarem as bagagens dos cacifos, e durante todo esse tempo eu encontrava-me no prado. Sentia o cheiro da erva, sentia o vento no rosto, ouvia os gritos das aves. Outono de 1969, e em breve teria vinte anos.

A hospedeira acercou-se de novo de mim. Desta vez sentou-se ao meu lado e perguntou-me se me sentia bem.

- Estou bem, obrigado - respondi, sorrindo-lhe. - Sinto-me apenas um pouco nostálgico.

- Compreendo - disse ela. - Também me acontece isso de vez em quando.

Levantou-se e ofereceu-me um sorriso encantador. - Bem, desejo-lhe então uma boa viagem. Auf Wiedersehen.

- Auf Wiedersehen.

Passaram-se já dezoito anos e, mesmo assim, consigo relembrar ainda cada um dos pormenores desse dia no prado. As montanhas, lavadas da poeira do Verão durante dias de uma chuva suave, ostentavam um verde carregado e brilhante. A brisa do Outono fazia baloiçar as frondes brancas das ervas altas. A comprida faixa de uma nuvem pairava ao longo de uma cúpula de intenso azul. Uma lufada de vento varreu o prado e agitou o cabelo dela até se esgueirar para o bosque, fazendo as ramagens movimentarem-se e trazendo os ecos de latidos ao longe: um som vago que parecia provir do limiar de outro mundo. Não ouvimos nenhum outro som. Não nos deparámos com mais ninguém. Vimos apenas dois cintilantes cardeais esvoaçarem sobressaltados do centro do prado e precipitarem-se para dentro do bosque. Enquanto deambulávamos, a Naoko falava-me de nascentes.

A memória é uma coisa estranha. Quando me encontrava naquele cenário, quase não lhe prestava atenção. Nunca me dei ao trabalho de pensar naquilo como algo que provocaria uma impressão duradoura, e seguramente nunca imaginei que, dezoito anos mais tarde, recordaria isso com tantos pormenores. Nesse dia não prestava a mínima atenção àquele cenário. Pensava em mim próprio. Pensava na bela rapariga que caminhava ao meu lado. Pensava em nós os dois juntos, e depois novamente em mim. Eu estava nessa idade, nessa época da vida em que cada visão, cada sentimento, cada pensamento, me era devolvido como um bumerangue. E, pior ainda, estava apaixonado. Amor com complicações. Aquele cenário era a última coisa que me ocupava a mente.

No entanto, agora, esse cenário do prado é a primeira coisa de que me recordo. A fragrância das ervas, a ténue frieza do vento, a linha das colinas, o latido de um cão: são estas as primeiras coisas, e recordo-as com uma absoluta clareza. Sinto quase que consigo estender a mão e delineá-las com a ponta do dedo. E, contudo, por mais nítido que esse cenário seja, ninguém o habita agora. Ninguém. A Naoko não se encontra lá, nem eu. Para onde desaparecemos nós? Como pôde acontecer uma tal coisa? Tudo o que parecia tão importante nessa altura - a Naoko, aquele que eu era então, o mundo que eu tinha então: para onde terá ido tudo isso? A verdade é que não consigo recordar-me do rosto dela sequer - pelo menos não imediatamente. Tudo o que me resta, é um pano de fundo, um puro cenário, sem ninguém em primeiro plano.

Na verdade, se aguardar o suficiente, consigo recordar-me do rosto dela. Começo por agrupar imagens - a sua mão minúscula e fria; o cabelo liso e escuro, tão suave e fresco ao toque; um lóbulo macio e arredondado e o microscópico sinal exactamente por baixo; o casaco de chamalote que ela usava no Inverno; o seu hábito de me olhar directamente nos olhos quando me perguntava algo; o ligeiro tremular que ocasionalmente lhe assomava à voz (como se estivesse a falar no topo de uma colina ventosa) - e de repente o rosto dela surge, sempre de perfil inicialmente, porque eu e a Naoko passeávamos sempre juntos, lado a lado. Depois, ela vira-se para mim e sorri, inclina ligeiramente a cabeça e começa a falar, e olha-me nos olhos como se tentasse captar a imagem de um vairão a dardejar através das águas de uma nascente límpida.

No entanto, o rosto da Naoko demora a aparecer. E essa demora tem aumentado à medida que os anos passam. A triste verdade é que aquilo que conseguia relembrar em cinco segundos depressa passou a demorar dez, depois trinta, depois um minuto completo - como sombras a alongarem-se no crepúsculo. Creio que um dia essas sombras serão engolfadas pela escuridão. Não há maneira de o contornar: a minha memória começa a distanciar-se cada vez mais daquele lugar onde a Naoko costumava estar - onde o meu velho eu costumava estar. E nada, a não ser o cenário, essa visão do prado em Outubro, continua a revisitar-me como uma cena simbólica num filme.

E, sempre que surge, desfere-me um pontapé algures na mente. Acorda, diz-me. Continuo aqui. Acorda e pensa nisso. Pensa por que razão continuo aqui. Esse pontapé nunca me magoa. Não há absolutamente nenhuma dor. Apenas um som cavo que ecoa a cada pontapé desferido. E até isso está destinado a esmorecer um dia. Todavia, no aeroporto de Hamburgo, os pontapés foram mais demorados e mais duros do que habitualmente. É por essa razão que escrevo este livro. Para pensar. Para compreender. Acontece que eu sou assim. Preciso de registar as coisas para sentir que as compreendo plenamente.

Pois bem, vejamos então: do que falava a Naoko nesse dia?

Claro: a «nascente do campo». Não faço ideia se essa nascente existiria realmente. Poderia ter sido uma imagem ou um sinal que existia apenas dentro da Naoko, à semelhança de todas as outras coisas que ela costumava urdir e criar na sua mente durante esses dias sombrios. No entanto, assim que ela ma descreveu nunca mais consegui pensar nesse cenário do prado desprovido da nascente. A partir desse dia, a imagem de uma coisa que eu nunca vira fundiu-se inseparavelmente com o cenário real do campo que se espraiava diante de mim. Consigo descrever a nascente com detalhes minuciosos. Situava-se precisamente na fronteira onde terminava o prado e começava o bosque: uma escura abertura no solo, com um metro de diâmetro, oculta pelas ervas. Não havia nada a assinalar esse perímetro - nenhuma cerca, nenhum círculo de pedras (pelo menos nenhum que se elevasse acima do nível do chão). Não passava de um buraco, de uma boca escancarada. As pedras desse colar haviam sido erodidas e transformadas num branco estranho e enlameado. Estavam fendidas e já derruídas em certas partes, e uma pequena lagartixa esverdeada esgueirou-se para dentro de uma dessas costuras expostas. Podíamos debruçar-nos sobre a borda e espreitar, mas não conseguíamos ver nada. Tudo o que eu sabia acerca desse poço era a sua assustadora profundidade. Era profundo para além de qualquer medição e completamente vestido de escuridão, como se todas as escuridões do mundo tivessem efervescido até assentarem ali na sua derradeira densidade.

- É mesmo, mesmo profundo - disse a Naoko, escolhendo as palavras com cuidado. Por vezes falava assim, demorando-se até encontrar a palavra exacta que procurava. - Mas ninguém sabe onde fica - continuou ela. - A única coisa que sei com certeza, é que fica algures por aqui.

Tinha as mãos enfiadas nos bolsos do casaco de fazenda e sorriu-me como se dissesse «É verdade!».

- Então deve ser incrivelmente perigoso - disse eu. - Um poço profundo, embora ninguém saiba onde fica. Se alguém caísse lá dentro, seria o seu fim.

- O fim. Aaaaaaaah! Zás! Arrumado de vez.

- Essas coisas acontecem certamente.

- Sim, acontecem, de vez em quando. Talvez uma vez em cada dois ou três anos. Alguém desaparece de repente e ninguém consegue encontrá-lo. Portanto, as pessoas destes arredores acabam por dizer: «Oh, caiu no poço do campo».

- Não é uma maneira agradável de se morrer - comentei eu.

- Pois não, é uma maneira terrível de se morrer - corroborou a Naoko, sacudindo do casaco um emaranhado de sementes das ervas. - O melhor seria quebrar o pescoço, mas o mais provável era quebrar a perna e então já não se podia fazer nada. A pessoa punha-se a gritar até ficar sem fôlego, mas ninguém a ouviria, e não havia esperança de alguém a encontrar, e haveria centopeias e aranhas a rastejarem por ela acima, e os ossos daqueles que tinham morrido antes estão espalhados por todo o lado, e está escuro e húmido, e lá no alto há um minúsculo, minúsculo círculo de luz como uma lua de Inverno. E morre-se aí nesse lugar, pouco a pouco, completamente sozinho.

- Ui, só de pensar nisso fico com a pele arrepiada - disse eu.

- Deviam localizar o poço e construir um muro à volta.

- Mas ninguém consegue encontrá-lo. Portanto, tem cuidado para não te desviares do caminho.

- Não te preocupes, não me desviarei.

Tirou a mão esquerda do bolso e apertou-me a minha.

- Não te preocupes - disse-me. - Vai correr tudo bem. Tu podias pôr-te a correr aqui à volta a meio da noite que nunca caírias dentro do poço. E, enquanto me mantiver ao teu lado, também eu não caírei.

- Nunca?

- Nunca!

- Como podes ter tanta certeza?

- Porque sei - disse ela, apertando-me a mão com mais força enquanto caminhávamos em silêncio. - Eu sei essas coisas. Tenho sempre razão. Não tem nada a ver com a lógica: sinto-o simplesmente. Por exemplo, quando estou assim tão junto de ti, não sinto uma única ponta de medo. Nada sombrio ou perverso conseguiria tentar-me.

- Bem, é essa a resposta - retorqui. - Tudo o que tens a fazer, é ficares sempre assim comigo.

- Estás a falar a sério?

- Claro.

Deteve-se de imediato. Eu também. Colocou as mãos nos meus ombros e perscrutou-me os olhos. Um líquido pesado e negro redemoinhava num estranho vórtice no fundo das suas pupilas. Os seus belos olhos continuaram a olhar dentro de mim durante um prolongado momento. Depois endireitou-se e encostou a face à minha. Foi um gesto maravilhoso e caloroso e o meu coração parou por instantes.

- Obrigada.

- O prazer é todo meu - respondi.

- Estou tão feliz por teres dito isso. Verdadeiramente feliz -disse ela com um sorriso triste. - Mas é impossível.

- Impossível? Porquê?

- Seria um erro. Seria terrível. Seria...

Calou-se de repente e recomeçou a caminhar. Sabia que uma imensidão de pensamentos lhe redemoinhavam na mente e, por conseguinte, em vez de me intrometer nas suas reflexões, mantive-me em silêncio enquanto caminhava ao seu lado.

- Seria um erro, um erro para ti, um erro para mim - proferiu ela após um prolongado momento.

- Porquê um erro? - murmurei.

- Não compreendes? Não é possível uma pessoa cuidar da outra para todo o sempre. Quer dizer, supõe que nos casamos. Terias que trabalhar durante o dia. Quem iria cuidar de mim enquanto estavas ausente? Ou se fosses numa viagem de negócios, quem iria cuidar de mim então? Posso colar-me a ti durante cada minuto das nossas vidas? Que tipo de igualdade haveria nisso? Que tipo de relacionamento seria? Mais tarde ou mais cedo, fartavas-te de mim. Começarias a questionar o que andavas a fazer da tua vida, por que razão passavas todo o teu tempo a tomar conta desta mulher. Não conseguiria suportar isso. Isso não solucionaria nenhum dos meus problemas.

- Mas os teus problemas não existirão durante toda a tua vida - disse-lhe, tocando-lhe nas costas. - Um dia terminarão. E quando isso acontecer, pararemos para pensar como iremos prosseguir a partir daí. Talvez tu própria tenhas que me ajudar a mim. As nossas vidas não se regem por nenhum livro de contabilidade. Se precisas de mim, usa-me. Não compreendes? Por que razão tens de ser tão rígida? Relaxa, baixa a guarda. Relaxa o corpo e verás como acabas por te animar.

- Como podes dizer uma coisa dessas? - perguntou com uma voz isenta de sentimento.

A voz dela alertou-me para a possibilidade de eu ter dito algo que não deveria.

- Diz-me como pudeste dizer uma coisa dessas - repetiu, olhando fixamente para o chão. - Não estás a dizer-me nada que eu não soubesse já. «Relaxa o corpo e verás como acabas por te animar». Que importância tem dizeres-me isso? Se relaxasse o corpo agora, desmoronar-me-ia. Vivi sempre assim, e é a única maneira que conheço de continuar a viver. Se relaxar por um segundo que seja, nunca mais conseguiria encontrar o caminho de regresso. Ficaria desfeita em pedaços, e esses pedaços seriam levados pelo vento. Por que não consegues compreender isso? Como podes dizer que vais cuidar de mim se não consegues compreender isso?

Mantive-me em silêncio.

- Estou confusa. Verdadeiramente confusa. E é muito mais profundo do que pensas. Mais profundo... mais escuro... mais frio. Mas diz-me uma coisa. Como pudeste tu dormir comigo dessa vez? Como pudeste fazer uma coisa dessas? Por que razão não me deixaste em paz?

Caminhávamos agora através do aterrador silêncio de um pinhal. A superfície da vereda estava juncada dos corpos mirrados das cigarras que haviam morrido no final do Verão e rangiam quando os pisávamos. Continuámos a avançar lentamente ao longo do trilho, como se procurássemos algo que perdêramos.

- Desculpa - disse ela, agarrando-me o braço e abanando a cabeça. - Não pretendia magoar-te. Não fiques perturbado com aquilo que te disse. Lamento, de verdade. Estava apenas zangada comigo mesma.

- Suponho que ainda não te compreendo realmente - retorqui. - Não sou assim tão inteligente. Demoro algum tempo a compreender as coisas. Mas, se tiver realmente tempo, acabarei por te compreender: melhor do que qualquer outra pessoa no mundo.

Detivemo-nos, envoltos no silêncio da floresta enquanto escutávamos. Comecei a revirar pinhas e corpos de cigarras com a ponta do sapato e depois observei os remendos de céu visíveis através das ramagens dos pinheiros. A Naoko, de mãos nos bolsos, continuava especada a pensar, com os olhos fixos em nada em particular.

- Diz-me uma coisa, Toru. Amas-me? - perguntou-me.

- Tu sabes bem que sim.

- Fazes-me dois favores?

- Tem três desejos, madame.

Ela sorriu e abanou a cabeça. - Não, dois são suficientes. Um é para que compreendas como estou grata por teres vindo visitar-me aqui. Espero que compreendas como isso me fez feliz. Se há algo que possa salvar-me, será isso. Posso não o demonstrar, mas é a verdade.

- Voltarei a visitar-te - disse-lhe. - E qual é o outro desejo?

- Quero que te lembres sempre de mim. Lembrar-te-ás de que existi e estive aqui ao teu lado?

- Para sempre - afirmei. - Lembrar-me-ei para sempre. Retomou a caminhada em silêncio. A luz outonal que se

infiltrava através das ramagens dançava-lhe nos ombros do casaco. Um cão latiu de novo, desta vez mais próximo. A Naoko trepou para cima de uma pequena elevação, saiu da floresta e correu por uma suave encosta abaixo. Segui-a cerca de dois ou três passos atrás.

- Vem cá! - chamei-a. - O poço pode ser algures por aqui.

- Ela deteve-se, sorriu e deu-me a mão. Caminhámos lado a lado durante o resto do percurso.

- Prometes de verdade que nunca te esquecerás de mim?

- perguntou quase num sussurro.

- Nunca te esquecerei - disse-lhe. - Nunca conseguiria

esquecer-te.

Mesmo assim, a minha memória tem-se tornado cada vez mais ténue e já esqueci muitas coisas. Quando escrevo assim de memória, sinto frequentemente uma pontada de pavor. E se esqueci já a coisa mais importante? E, se algures dentro de mim, há um escuro limbo onde todas as memórias verdadeiramente importantes estão amontoadas e começam lentamente a transformar-se em lama?

Seja como for, é tudo aquilo de que disponho para trabalhar. Agarro contra o peito estas memórias desvanecidas, evanescentes e imperfeitas e continuo a escrever este livro com toda a desesperada intensidade de um homem esfomeado a ; sugar ossos. É a única maneira que conheço de manter a minha promessa à Naoko.

Há muito, muito tempo, quando ainda era jovem, quando as memórias eram bastante mais nítidas do que agora, muitas vezes tentava escrever sobre ela. Mas não conseguia redigir uma única linha. Sabia que, se essa primeira linha surgisse, o resto verter-se-ia por si próprio para a página, mas nunca consegui isso. Era tudo demasiado nítido e claro e nunca sabia por onde começar: à semelhança de um mapa que, por mostrar demasiadas coisas, se torna por vezes inútil. Agora, porém, apercebo-me de que tudo aquilo que consigo introduzir no imperfeito recipiente da escrita são memórias imperfeitas e pensamentos imperfeitos. Quanto mais as memórias da Naoko se desvanecem dentro de mim, mais profundamente consigo compreendê-la. Sei também por que razão ela me pediu para não a esquecer. Ela própria sabia também, obviamente. Ela sabia que as memórias que eu tinha dela acabariam por esmorecer. E é precisamente por essa razão que me pediu que nunca a esquecesse, que me lembrasse que ela existira.

Este pensamento enche-me de uma mágoa quase insuportável. Porque a Naoko nunca me amou.

 

Uma vez, há muitos anos - precisamente há vinte anos, de facto -, eu vivia numa residência académica. Tinha dezoito anos e era estudante do primeiro ano da faculdade. Era a primeira vez que estava em Tóquio e a primeira vez que vivia sozinho; os meus ansiosos pais arranjaram-me uma residência académica privada para eu viver em vez de um daqueles quartos individuais onde a maior parte dos estudantes residia. A residência providenciava refeições e outras comodidades e provavelmente ajudaria os seus inexperientes hóspedes de dezoito anos a sobreviver. As despesas eram também algo a ter em consideração, pois uma residência custa bastante menos do que um quarto privado. Desde que dispusesse de roupa de cama e de um candeeiro, não havia necessidade de comprar mobília. Pela minha parte, teria preferido alugar um apartamento e viver em confortável solidão, mas, como sabia que os meus pais tinham que custear a inscrição e as propinas na universidade privada que eu frequentava, não estava em posição de insistir. Além do mais, não me importava realmente com o local onde vivia.

O complexo da residência académica, situado numa colina no meio da cidade e desfrutando de amplas vistas, elevava-se num vasto quadrângulo rodeado por um muro de betão. Uma enorme e gigantesca árvore zelkova erguia-se precisamente dentro do portão da entrada. As pessoas diziam que tinha pelo menos cento e cinquenta anos. Se nos postássemos junto à sua base e olhássemos para cima, não avistávamos o céu através da densa cobertura de folhagem verde.

A vereda pavimentada que se estendia do portão contornava a árvore e continuava em linha recta ao longo de um amplo quadrângulo até desembocar entre dois edifícios de betão de três pisos, de frente uns para os outros de cada lado da vereda.

Eram enormes, com imensas janelas, e davam a impressão de serem apartamentos convertidos em cadeias ou cadeias convertidas em apartamentos. Contudo, não havia neles nada de sujo, nem causavam qualquer sensação de taciturnidade. Ouviam-se os rádios ligados através das janelas abertas, todas com as mesmas cortinas de cor creme que o sqi, não conseguia desbotar.

Mais além dos dois dormitórios, a vereda conduzia até à entrada de um edifício comum de dois pisos: o primeiro piso continha a cantina e os balneários e o segundo consistia num auditório, salas de reunião e inclusive quartos de hóspedes, cujo uso nunca consegui averiguar. Ao lado desse edifício comum havia um terceiro dormitório, também de três pisos. Vastos relvados verdes preenchiam o quadrângulo e os pulverizadores circulares captavam a luz do sol enquanto giravam. Atrás do edifício comum havia um campo para beisebol e futebol e sete campos de ténis. O complexo tinha tudo o que uma pessoa podia desejar.

Havia apenas um problema neste lugar: o ambiente político. Era dirigido por uma espécie de dúbia fundação, centrada num indivíduo de extrema-direita, e havia algo de estranhamente distorcido - tanto quanto me dizia respeito - no modo como eles dirigiam o local. Isso era visível no panfleto que facultavam aos novos estudantes, bem como no regulamento do dormitório. O proclamado «espírito fundador» do dormitório deveria «esforçar-se por fomentar os recursos humanos ao serviço da nação, através dos mais cruciais fundamentos educacionais», e muitos líderes financeiros que sancionavam este «espírito» haviam contribuído com os seus fundos privados para a construção deste local. Este era o rosto público do projecto, embora o que existia por trás disso fosse extremamente vago. Alguns diziam que era uma fuga aos impostos, outros viam nisso um golpe publicitário destinado aos contribuintes e outros afirmavam ainda que a construção do dormitório era uma manobra para expoliar o público de um terreno valioso. Uma coisa era certa, porém: no complexo residencial existia um clube privilegiado, composto por estudantes de elite oriundos de várias universidades. Formavam «grupos de estudo» que se reuniam várias vezes por mês e incluíam alguns dos fundadores.

Qualquer membro do clube tinha a garantia de um bom emprego após a licenciatura. Eu desconhecia por completo ,' qual destas teorias - se eram de facto teorias - estaria correcta, mas todas elas partilhavam da assunção de que havia «algo dúbio» naquele local.

De qualquer modo, vivi dois anos neste «dúbio» dormitório ' - da Primavera de 1968 à Primavera de 1970. Não consigo explicar bem como consegui suportar durante tanto tempo. Em termos da vida quotidiana, não operava qualquer diferença prática se o local era da ala direita ou da esquerda ou o que quer que fosse.

Cada dia se iniciava com o solene hastear da bandeira, com o acompanhamento do hino nacional, obviamente. Uma coisa implica a outra. O mastro situava-se exactamente no centro do complexo, onde era visível de cada janela dos três dormitórios. A bandeira estava a cargo do responsável pelo dormitório leste (o meu edifício), um homem alto e de olhos aquilinos, talvez no final dos cinquenta ou início dos sessenta anos. O cabelo hirsuto ostentava manchas grisalhas e o pescoço queimado pelo sol exibia uma comprida cicatriz. As pessoas sussurravam que frequentara a escola de espiões de Nakano durante a guerra, mas ninguém tinha a certeza. Fazia-se acompanhar sempre por um estudante que desempenhava o papel de seu assistente. Ninguém conhecia realmente este indivíduo também. Tinha o corte à escovinha mais curtinho do mundo e envergava sempre um uniforme estudantil azul-marinho. Desconhecia o nome dele ou em que quarto habitava e nunca o vi na cantina nem nos balneários. Nem sequer tenho a certeza se era estudante, mas certamente seria, devido ao uniforme -que rapidamente se tornou na sua alcunha. Em contraste com o Senhor Nakano, o «Uniforme» era baixo, anafado e de rosto flácido. Este par assustador hasteava a bandeira do Sol Nascente todas as manhãs às seis horas.

Quando entrei no dormitório pela primeira vez, a absoluta novidade deste acontecimento instigava-me frequentemente a levantar-me cedo para observar o ritual patriótico. Ambos surgiam no quadrângulo quase no preciso momento em que a rádio emitia o sinal das seis horas. O Uniforme envergava o seu uniforme, evidentemente, bem como sapatos de cabedal escuro, e Nakano um casaco curto e calças de treino brancas. O Uniforme segurava numa caixa cerimonial de madeira de paulóvnia não-tratada, enquanto Nakano levava a tiracolo um leitor de cassetes Sony. Colocava-o junto à base do mastro, o Uniforme abria a caixa e retirava uma bandeira impecavelmente dobrada. Estendia-a reverentemente para Nakano, o qual a afixava à corda do mastro, expondo o cintilante círculo vermelho do Sol Nascente num campo de puro branco. Depois o Uniforme carregava no botão para tocar o hino. «Que o Reino do Nosso Senhor...»

E a bandeira começava então a ser hasteada.

«Até que os seixos se transformem em rochedos...» Alcançava o meio do mastro. «E se cubram de musgo».

Agora esvoaçava no topo. Ambos se mantinham hirtamente especados e concentrados a olharem para a bandeira, a qual constituía uma impressionante visão nos dias claros em que o

vento soprava.

O arriar da bandeira ao crepúsculo era executado com a mesma reverência cerimonial, embora de modo inverso: era descida e guardada na caixa. A bandeira nacional não esvoaçava à noite.

Desconhecia por que razão tinha que ser arriada à noite. A nação continuava a existir enquanto a escuridão imperava e muitas pessoas trabalhavam à noite-, equipas de construção da via-férrea, taxistas, empregadas de bar, bombeiros e guardas-nocturnos - parecia-me injusto que negassem a protecção da bandeira a essas pessoas. Ou talvez esse facto não importasse demasiado e ninguém se preocupava realmente - para além de mim. Não que eu próprio me importasse realmente também. Era apenas algo que me passava pela mente.

O regulamento da atribuição dos quartos colocava os estudantes do primeiro e segundo anos em quartos duplos, ao passo que os estudantes do terceiro ano e os finalistas dispunham de quartos individuais. Os quartos duplos eram estreitos e pouco maiores do que nove por doze, com uma janela de moldura de alumínio na parede oposta à porta e duas secretárias junto da janela, dispostas de modo a que os habitantes do quarto pudessem estudar de costas um para o outro.

À esquerda da porta havia um beliche de aço. A mobília fornecida era robusta e simples e incluía um par de cacifos, uma pequena mesa de café e prateleiras embutidas. Até o mais bem-humorado observador teria dificuldade em apelidar este cenário de poético. As prateleiras da maior parte dos quartos albergavam objectos como rádios de transístores, secadores de cabelo, cafeteiras e fogões eléctricos, café instantâneo, saquetas de chá, cubos de açúcar e utensílios e recipientes para preparar qualquer tipo de massa instantânea. As paredes ostentavam recortes de pin-ups retirados de revistas femininas ou posters , de filmes pornográficos. Um dos indivíduos tinha uma fotografia de porcos a acasalarem, mas tratava-se de uma rebuscada excepção às usuais mulheres desnudas, jovens estrelas pop ou actrizes. As prateleiras sobre as secretárias exibiam manuais, dicionários e romances.

A imundície destes quartos completamente masculinos era horrificante. Bolorentas cascas de tangerinas grudavam-se ao fundo dos cestos de papéis. Latas vazias, usadas como cinzeiros, ostentavam pilhas de pontas de cigarro e, quando estas se reacendiam, apagavam-nas com café ou cerveja e aí ficavam a exalar um odor acre. Um visco negro e pedaços de uma matéria indefinível encrostavam-se em todos os recipientes e pratos dispostos nas prateleiras, e o próprio soalho estava juncado com invólucros de massas instantâneas, latas de cerveja vazias e tampas disto e daquilo. Nunca ocorria a ninguém varrer estas coisas e despejá-las no cesto do lixo. Qualquer lufada de vento que soprasse pelo interior dos quartos levantava nuvens de poeira. Cada quarto possuía o seu próprio cheiro horrendo, mas os componentes desse cheiro eram sempre os mesmos: suor, odor corporal e lixo. A roupa suja acumulava-se debaixo das camas e, como ninguém se dava ao incómodo de arejar regularmente os colchões, estas trouxas impregnadas de suor emanavam odores para lá de qualquer redenção. Agora que me recordo, parece-me assombroso que esses buracos imundos não originassem epidemias fatais.

O meu quarto, por outro lado, era tão higiénico quanto uma morgue. O soalho e a janela estavam impecáveis, os colchões eram arejados todas as semanas, todos os lápis se encontravam arrumados nos seus estojos e até as cortinas eram lavadas uma vez por mês. O meu companheiro de quarto era um fanático da limpeza. Nenhum dos outros estudantes do dormitório acreditava em mim quando lhes falava das cortinas. Desconheciam que as cortinas podiam ser lavadas. Acreditavam, com efeito, que as cortinas eram partes semi-permanentes da janela. «Há algo de errado com esse sujeito», diziam, rotulando-o de nazi ou sargento da tropa.

Nem sequer tínhamos pin-ups nas paredes. Não, tínhamos apenas a foto de um canal em Amesterdão. Eu afixara a fotografia de um nu, mas o meu companheiro de quarto retirara-a. - Ei, "Watanabe - dissera ele -, e-eu não aprecio muito este tipo de coisas - e afixou então a foto do canal. Não protestei, não sentia qualquer apreço especial pela imagem do nu.

«Mas que raios é aquilo», era a reacção universal à foto de Amesterdão sempre que os outros estudantes vinham ao meu quarto.

- Oh, o Sargento gosta de se masturbar a olhar para isso -respondia eu.

Era supostamente uma piada, mas todos levavam estas palavras a sério - tão a sério que eu próprio comecei a acreditar.

Todos se compadeciam de mim por ter o Sargento como companheiro de quarto, mas esse facto não me incomodava verdadeiramente. Ele deixava-me em paz desde que eu mantivesse a minha área limpa e, de facto, tê-lo como companheiro de quarto facilitava-me a vida em muitos aspectos. Era ele quem efectuava todas as limpezas, quem se ocupava de arejar os colchões, de despejar o lixo. Costumava cheirar-me e sugeria-me um banho quando eu andava demasiado atarefado para me preocupar com o banho. Indicava-me inclusivamente quando estava na altura de eu ir ao barbeiro ou de aparar os pêlos do nariz. A única coisa que me importunava era o modo como aplicava nuvens de insecticida quando detectava uma única mosca dentro do quarto, porque nessas ocasiões eu era obrigado a procurar refúgio num dos buracos imundos vizinhos.

O Sargento estudava Geografia numa universidade nacional.

Tal como ele me disse quando nos conhecemos: - Estudo m-m-mapas.

- Gostas de mapas? - perguntei.

- Sim. Quando acabar o curso, vou trabalhar para o Instituto de Investigação Geográfica e elaborar m-m-mapas.

Impressionava-me a variedade de sonhos e metas que a vida poderia oferecer. Esta foi uma das primeiras impressões de ineditismo com que me deparei quando vim para Tóquio. Considerava assombroso que a sociedade precisasse de poucas pessoas - poucas, de facto - interessadas e até apaixonadas pela elaboração de mapas. Todavia, havia algo de bizarro no facto de alguém que pretendia trabalhar para o Instituto de Investigação Geográfica estatal gaguejasse sempre que proferia a palavra «mapa». Era frequente o Sargento não gaguejar sequer, excepto quando pronunciava a palavra «mapa», relativamente à qual havia cem por cento de certeza de que gaguejaria.

- O q-que estudas tu? - perguntou-me.

- Artes Dramáticas.

- Vais encenar peças?

- Não, limito-me a ler guiões e a pesquisar. Racine, Ionesco, Shakespeare, coisas assim.

Referiu que já ouvira o nome de Shakespeare, mas não os outros. Eu próprio desconhecia quase completamente os outros autores, vira apenas esses nomes em folhas distribuídas em palestras.

- Gostas de peças teatrais? - perguntou.

- Não particularmente.

Esta resposta confundiu-o e, quando ficava confuso, a gaguez acentuava-se. Sentia remorsos por lhe provocar isso.

- Poderia ter escolhido o que quisesse - disse-lhe. - Etnologia, História Asiática. Acabei por escolher Artes Dramáticas, é tudo - o que não era de facto a explicação mais convincente que poderia ter arquitectado.

- Não compreendo - afirmou, com uma expressão de quem não tinha realmente compreendido. - Eu gosto de m-mapas e portanto decidi vir para Tóquio e os meus pais e-e-enviam-me dinheiro para eu poder estudar m-mapas. Mas tu não, hã?

Esta abordagem fazia mais sentido do que a minha. Desisti ' de tentar justificar-me. Depois tirámos à sorte (com fósforos) para escolhermos os beliches. Ficou ele com o beliche de cima.

Era alto, de cabelo à escovinha, faces proeminentes e usava sempre a mesma indumentária: camisa branca, calças escuras, sapatos pretos e um camisolão, ao que acrescentava o casaco do uniforme e uma pasta negra sempre que assistia às aulas: um típico estudante da direita. No entanto, a política era-lhe completamente indiferente. Envergava o uniforme para evitar o incómodo de escolher a roupa. O seu interesse residia em áreas como as alterações na linha da costa ou a conclusão de um novo túnel ferroviário. E nada mais. Alongava-se durante horas assim que abordava um desses tópicos, até a audiência fugir ou adormecer.

Levantava-se todas as manhãs às seis horas, ao som de «Que o Reino do Nosso Senhor». O que equivale a dizer que o ostentoso ritual do hastear da bandeira não se revelava totalmente inútil. Vestia-se, dirigia-se para os balneários e lavava a cara - durante uma eternidade. Às vezes tinha a sensação de que ele retirava cada um dos dentes e os lavava à vez. Regressava ao quarto, sacudia a toalha para remover os vincos e colocava-a a secar sobre o radiador, arrumando depois a escova de dentes e o sabão na prateleira. Por fim, procedia aos exercícios calisténicos em simultâneo com o resto da nação.

Eu costumava ler pela noite dentro e dormia até às oito horas; por conseguinte, quando ele começava a deambular pelo quarto e a exercitar-se, eu continuava inconsciente - até ao momento em que ele começava a saltar, pois encarava os saltos com seriedade e fazia a cama oscilar sempre que batia com os pés no chão. Tolerei isto durante três dias, porque haviam-nos dito que a vida comunal exigia um certo grau de resignação, mas na manhã do quarto dia já não consegui tolerar mais.

- Ei, não podes fazer isso no telhado ou noutro sítio qualquer? - perguntei. - Não consigo dormir.

- Mas já são 6:30! - respondeu ele, boquiaberto.

- Sim, eu sei que são 6:30. Eu ainda deveria estar a dormir. Não sei como te explicar exactamente, mas é assim que eu funciono.

- De qualquer modo, não posso fazer isto no telhado. As pessoas do terceiro piso queixar-se-iam. Aqui, estamos por cima de uma arrecadação.

- Então vai lá para fora para o pátio. Para o relvado.

- Também não serve. Não tenho rádio a pilhas. E, portanto, seria preciso ligá-lo à corrente. E não se consegue executar os exercícios calisténicos da rádio sem música.

Com efeito, o rádio dele era um ferro-velho desprovido da opção a pilhas. O meu era um transístor portátil, mas, quando pretendia ouvir música, captava estritamente as ondas FM.

- Pois bem, vamos estabelecer um acordo - propus. -Executas os teus exercícios mas abdicas da parte dos saltos. É demasiado ruidoso, raios. Que dizes?

- Dos s-s-saltos? O que é isso?

- Um salto é um salto. Saltar para cima e para baixo.

- Mas eu não dou saltos.

Começou a doer-me a cabeça. Estava prestes a desistir, mas era minha intenção fazer valer o meu ponto de vista. Saí da cama e comecei a saltar e a trautear a melodia de abertura dos exercícios calisténicos da Rádio NHK. - Refiro-me a isto -expliquei-lhe.

- Oh, isso. Acho que tens razão. Nunca me tinha apercebido.

- Percebes o que quero dizer? - insisti, sentando-me na borda da cama. - Corta só essa parte. O resto consigo tolerar. Pára de saltar e deixa-me dormir.

- Mas isso é impossível - declarou num tom pragmático. -Não posso deixar nada de lado. Há dez anos que faço a mesma coisa todos os dias e, quando começo, executo essa rotina inconscientemente. Se deixar alguma coisa de fora, não conseguiria executar os exercícios sequer.

Já não me ocorria nada que pudesse responder-lhe. Que poderia eu dizer-lhe? A maneira mais rápida de pôr um fim àquilo seria esperar que ele saísse do quarto e depois lançar o seu maldito rádio pela maldita janela fora; mas, se fizesse isso, desencadearia um completo inferno. O Sargento prezava como um tesouro tudo aquilo que possuía. Sorriu quando me sentei na cama enquanto tentava encontrar uma resposta e tentou confortar-me.

- Ei, Watanabe, por que não te levantas e executas os exercícios comigo? - Pouco depois saiu para ir tomar o pequeno-almoço.

A Naoko riu-se quando lhe contei a história do Sargento e dos seus exercícios calisténicos ao som da rádio. Não era minha intenção diverti-la, mas eu próprio acabei por me rir. Embora o seu sorriso desaparecesse num instante, gostei de o apreciar - há tanto tempo que não a via sorrir.

Saíramos do comboio em Yotsuya e caminhávamos ao longo da margem junto à estação. Era uma tarde de domingo em meados de Maio. Os breves e intermitentes aguaceiros da manhã haviam-se dissipado antes do meio-dia e o vento soprando de sul varrera as nuvens que pairavam baixas. As cintilantes folhas verdes das cerejeiras agitavam-se no ar, reflectindo a luz do sol em todas as direcções. Era um extemporâneo dia de Verão. As pessoas por quem passávamos traziam as camisolas ou os casacos sobre o ombro ou nos braços. Todos pareciam felizes com o quente sol daquela tarde de domingo. Os jovens que jogavam ténis nos campos para lá da margem haviam-se despojado da roupa até ficarem em calções. A luz parecia não incidir somente no local onde duas freiras, envergando os seus hábitos invernosos, estavam sentadas num banco a falar, embora ambas ostentassem expressões de satisfação enquanto conversavam com agrado ao ar livre.

Após quinze minutos de caminhada, eu suava já o suficiente para ter de tirar a grossa camisa de algodão e ficar de T-shirt. A Naoko enrolara as mangas da camisola cinzenta-clara até aos cotovelos. Tinha um agradável tom esmaecido e fora obviamente lavada amiúde. Era como se não a visse com aquela camisola há muito tempo. Nessa altura, ainda conhecia poucas coisas acerca da Naoko.

- Gostas da vida em comunidade? - perguntou. - É agradável viver com muitas pessoas?

- Não sei, faço-o somente há cerca de um mês. Não é assim tão mau, consigo aguentar.

Deteve-se junto de um fontanário para beber um pouco de água e limpou a boca com um lenço branco que tirou do bolso das calças. Depois, debruçou-se e reapertou cuidadosamente os cordões.

- Achas que eu conseguia fazer isso?

- O quê? Viver num dormitório?

- Hã-hâ.

- Creio que não passa de uma questão de atitude. Podes irritar-te com uma data de coisas se quiseres: o regulamento, os idiotas que se julgam superiores a todos, os companheiros de quarto a executar os exercícios calisténicos da rádio às 6:30 da manhã. Mas é praticamente a mesma coisa para onde quer que vás, se conseguires lidar com isso.

- Presumo que sim - respondeu ela com aceno de cabeça. Parecia debater-se com algo na mente. Depois olhou-me directamente nos olhos, como se examinasse um objecto inusitado. Apercebi-me então de que os olhos dela eram assombrosamente profundos e claros e senti o coração começar a latejar. Nunca tivera a oportunidade de a olhar assim nos olhos. Era a primeira vez que caminhávamos juntos ou falávamos durante tanto tempo.

- Estás a pensar em ir viver para um dormitório ou algo do género? - perguntei.

- Hã-hã - retorquiu. - Interrogava-me apenas sobre como seria a vida em comunidade. E... - Parecia procurar a palavra ou a expressão certas, mas acabava por fracassar. Depois suspirou e olhou para o chão. - Oh, não sei. Deixa lá.

Foi o fim da conversa. Continuou a caminhar para leste e segui-a a um passo atrás.

Passara-se quase um ano desde a última vez em que estivera com a Naoko e durante esse tempo ela perdera tanto peso ao ponto de parecer uma pessoa diferente. As faces rechonchudas, que eram um traço especial nela, haviam desaparecido e o pescoço tornara-se delgado e esguio. Não era magra nem aparentava um aspecto doentio: havia algo de natural e sereno no modo como emagrecera, como se tivesse estado escondida num espaço comprido e estreito até ela própria se ter tornado esguia e estreita. E bastante mais bela do que me lembrava. Queria dizer-lhe isso, mas não conseguia encontrar a maneira adequada de o expressar.

Não tínhamos planeado encontrar-nos, acabáramos por nos depararmos um com o outro na linha-férrea regional de Shuo. Decidira ir ao cinema sozinha e eu dirigia-me para as livrarias de Kanda: nada de urgente para os dois. Ela sugerira apearmo-nos e acabámos por o fazer em Yotsuya, onde a margem verdejante proporcionava um agradável passeio junto ao fosso do velho castelo. Estávamos sozinhos, não dispúnhamos de nenhum assunto em particular para conversar e eu não tinha bem a certeza por que razão a Naoko sugerira que nos apeássemos do comboio. Nunca tivéramos de facto muito que dizer um ao outro.

Começou a caminhar assim que alcançámos a rua e apressei-me atrás dela, mantendo-me alguns passos atrás.

Poderia ter encurtado a distância entre ambos, mas algo me reteve. Caminhava de olhos fixos nos ombros dela e no seu cabelo escuro e liso. Usava um enorme gancho acastanhado no cabelo e, quando se virou, captei o vislumbre de uma orelha pequena e branca. De vez em quando virava-se para trás e dizia algo. Por vezes era um comentário ao qual eu poderia ter respondido e outras vezes era algo ao qual não sabia como reagir sequer. Outras vezes, simplesmente não conseguia ouvir o que ela dizia. De qualquer modo, ela não parecia importar-se. Assim que terminava de dizer o que queria, virava-se de novo para a frente e continuava a caminhar. Oh, bem, disse a mim próprio, o dia estava agradável para se passear.

No entanto, a julgar pela própria caminhada, não se tratava de um mero passeio para a Naoko. Enveredou pela direita em Iidabashi, saiu junto do fosso do castelo, atravessou a intersecção em Jinbocho, subiu a colina em Ochanomizu e saiu em Hongo. A partir daqui, acompanhou a via do eléctrico até Komagone. Foi um percurso extenuante. Quando chegámos a Komagone, o sol afundava-se já e o dia tornara-se num suave entardecer primaveril.

- Onde estamos? - perguntou, como se reparasse pela primeira vez nas redondezas.

- Em Komagone - respondi. - Não sabias? Efectuámos um círculo enorme.

- Por que razão viemos para aqui?

- Foste tu que nos trouxeste para aqui. Limitei-me a seguir-te. Entrámos numa loja junto à estação para comermos massa.

Estava sedento e bebi uma cerveja. Não proferimos uma única palavra desde que encomendámos a massa até acabarmos de comer. Sentia-me exausto devido à caminhada e ela limitava-se a permanecer sentada, com as mãos pousadas sobre a mesa, a matutar novamente em algo. O noticiário na TV anunciava que todos os locais de lazer estavam apinhados neste quente domingo. E nós limitámo-nos a caminhar de Yotsuya até Komagone, disse a mim próprio.

- Bem, estás em boa forma - afirmei quando acabei de comer.

- Estás surpreendido?

- Sim.

- Fui corredora de longa distância na escola, se queres saber.

Costumava correr os 10.000 metros. E, desde que me lembro, aos domingos o meu pai levava-me sempre em caminhadas pela montanha. Já conheces a nossa casa, mesmo junto à montanha. Sempre tive pernas robustas.

- Não se nota.

- Eu sei - respondeu. - Todos pensam que sou uma rapariguinha delicada. Mas não se pode avAliar um livro pela capa.

- E acrescentou um breve sorriso.

- Pode dizer-se o mesmo de mim - afirmei. - Estou exausto.

- Oh, desculpa, tenho estado a arrastar-te durante o dia inteiro atrás de mim.

- No entanto, estou feliz por termos tido a oportunidade de conversarmos. Nunca falámos assim, somente nós os dois - disse, tentando recordar-me, em vão, sobre que assuntos tínhamos falado.

Ela entretinha-se a brincar com o cinzeiro em cima da mesa.

- Pergunto-me... - começou por dizer - ... se não te importarias... quer dizer, se não seria de facto um incómodo para ti... Achas que poderíamos encontrar-nos de novo? Eu sei que não tenho o direito de te pedir isto.

- O direito? Que queres dizer com isso?

Corou. A minha reacção ao seu pedido talvez tenha sido excessiva.

- Não sei... não consigo explicar bem - disse, puxando as mangas da camisola acima dos cotovelos e depois baixando-as de novo. Os pêlos macios dos seus braços cintilavam com uma encantadora coloração dourada sob a iluminação da loja. - Não era minha intenção dizer exactamente a palavra «direito». Tentava encontrar as palavras para dizer isso de outra maneira.

Apoiara os cotovelos sobre a mesa e olhava fixamente para o calendário pendurado na parede, quase como se esperasse encontrar aí a expressão apropriada. Não conseguindo, suspirou e fechou os olhos enquanto se distraía com o gancho do cabelo.

- Não te preocupes - disse-lhe. - Creio que sei o que queres dizer. Mas também não sei, de facto, como o expressar.

- Nunca consigo expressar o que pretendo dizer - continuou a Naoko. - Há já bastante tempo que tem sido assim. Tento dizer algo, mas só me saem as palavras erradas: as palavras erradas ou as palavras exactamente opostas àquilo que pretendia dizer. E, se tento corrigir-me, pioro ainda mais coisas. Além do mais, esqueço-me de imediato do que estava a tentar dizer. É como uma metade a perseguir a outra metade à volta de um poste enorme e largo. O outro eu tem as palavras exactas, mas este eu não consegue apanhá-las. - Levantou a cabeça e olhou-me nos olhos. - Isto faz algum sentido para ti?

- Todos nos sentimos assim, de certo modo - afirmei. -Tentamos expressar-nos e ficamos perturbados quando não conseguimos expressar-nos correctamente.

Pareceu ficar desiludida com a minha resposta. - Não, também não se trata disso - declarou, não acrescentando nenhuma outra explicação.

- De qualquer modo, ficarei feliz por te ver de novo - disse-lhe.

- Estou sempre livre aos domingos e caminhar far-me-á bem.

Embarcámos na Linha de Yamanote e a Naoko efectuou depois o transbordo para a Linha de Chuo em Shinjuku. Vivia num minúsculo apartamento no distante subúrbio ocidental de Kokubunji.

- Diz-me, mudou alguma coisa na maneira como falo?

- perguntou-me ela quando nos despedíamos.

- Creio que sim, mas não tenho a certeza do que foi. Se queres saber a verdade, eu sei que anteriormente estava mais vezes contigo, mas não me lembro de conversar muito contigo.

- Isso é verdade - afirmou. - De qualquer modo, posso telefonar-te no sábado?

- Evidentemente. Aguardarei notícias tuas então.

Conheci a Naoko quando frequentava o décimo ano de escolaridade. Ela frequentava o mesmo ano numa dispendiosa escola para raparigas dirigida por uma das missões cristãs. Era uma escola tão refinada ao ponto de considerarem não-refinado quem estudasse demasiado. A Naoko era amiga do meu melhor (e único) amigo, o Kizuki. Eram amigos íntimos quase desde o nascimento e moravam a menos de duzentos metros um do outro.

À semelhança da maioria dos pares que se encontram juntos desde a infância, havia uma franqueza casual na relação entre o Kizuki e a Naoko e tornava-se óbvio que não pretendiam estar juntos sozinhos.

Estavam sempre em casa um do outro e comiam ou jogavam mahjong com as respectivas famílias. Eu e uma ocasional companhia saíamos frequentemente com eles. A Naoko costumava trazer uma amiga da escola para me acompanhar e íamos os quatro ao jardim zoológico, à piscina ou ao cinema. As raparigas que ela trazia eram sempre encantadoras, mas demasiado refinadas para o meu gosto. Convivia mais facilmente com as raparigas menos requintadas da minha escola estatal, com as quais era mais fácil conversar. Nunca sabia o que se passava nas encantadoras mentes das raparigas que a Naoko trazia e elas provavelmente também não me compreendiam.

Após algum tempo, o Kizuki desistiu de tentar arranjar-me companhia e começámos a conviver os três. O Kizuki, a Naoko e eu: estranhamente, era a combinação mais agradável. Introduzir uma quarta pessoa no nosso seio causava sempre um certo constrangimento. Parecíamos um talk-show televisivo: eu era o anfitrião, o Kizuki o talentoso convidado e a Naoko a sua assistente. Ele tinha as qualidades necessárias para ocupar esse papel principal. Na verdade, possuía uma faceta sarcástica que as pessoas entendiam amiúde como arrogância, mas era, de facto, uma pessoa ponderada e justa. Distribuía os seus comentários e piadas com justiça e tinha o cuidado de verificar que nenhum de nós se sentisse posto de lado. Se um de nós se mantivesse calado durante bastante tempo, rumava a conversa nessa direcção e solicitava a participação da pessoa. Provavelmente, disponibilizar esta atenção parecia mais difícil do que realmente era, pois ele sabia como monitorar e ajustar a ambiência em seu redor numa questão de segundos. Além do mais, possuía um talento raro para descortinar as partes interessantes nos geralmente desinteressantes comentários de alguém e, desse modo, enquanto falávamos com ele, sentía-mo-nos alguém excepcionalmente interessante, com uma vida excepcionalmente interessante.

E, contudo, ele não era minimamente sociável. Eu era o seu único verdadeiro amigo na escola. Nunca compreendi por que razão um conversador tão inteligente e capaz como ele não conseguia aplicar os seus talentos ao mundo mais vasto à sua volta, contentando-se por se concentrar no nosso pequeno trio.

Eu não passava de um rapaz normal que gostava de ler livros e ouvir música e não me destacava em nada de especial ao ponto de despertar a atenção de alguém como o Kizuki. No entanto, simpatizámos um com o outro desde o primeiro momento. O pai dele era dentista, famoso pelo seu profissionalismo e preços elevados.

- Queres sair em grupo no domingo? - perguntou-me logo depois de nos conhecermos. - A minha namorada frequenta uma escola de raparigas e vai trazer uma bonita para ti.

- Combinado - disse-lhe, e foi assim que conheci a Naoko. Passávamos muito tempo juntos, mas sempre que o Kizuki

saía da divisão, eu e a Naoko tínhamos dificuldade em conversar. Nunca sabíamos sobre o que deveríamos conversar. E, de facto, não partilhávamos nenhum tópico comum de conversa. Em vez de conversarmos, bebíamos água ou entretínhamo-nos com algo que estivesse sobre a mesa e esperávamos que o Kizuki regressasse e recomeçasse a conversa. A Naoko não era particularmente faladora e eu era sobretudo mais um ouvinte do que um conversador e, por conseguinte, sentia-me incomodado quando ficava sozinho com ela. Não éramos incompatíveis, simplesmente não tínhamos nenhum assunto para conversar.

Eu e a Naoko vimo-nos apenas uma vez depois do funeral do Kizuki. Duas semanas depois, encontrámo-nos num café para tratar de um assunto menor e, quando terminámos, já não dispúnhamos de nenhum assunto para falar. Tentei abordar vários tópicos, mas nenhum deles conduzia a lado algum. E quando a Naoko proferia algo, a sua voz denunciava uma ponta de irritação. Parecia zangada comigo, mas eu não fazia ideia porquê. Nunca mais nos vimos, até àquele dia, um ano depois, quando nos encontrámos por acaso na Linha de Chuo em Tóquio.

A Naoko talvez estivesse zangada comigo por ter sido eu, e não ela, a última pessoa que esteve com o Kizuki. Talvez não seja esta a melhor maneira de o expressar, mas creio que compreendia como ela se sentia. E teria trocado de lugar com ela se pudesse; mas, no fim de contas, o que aconteceu, aconteceu, e não havia nada que eu pudesse fazer.

Aconteceu numa agradável tarde de Maio. Depois do almoço, o Kizuki sugeriu faltarmos às aulas e irmos jogar bilhar ou algo do género. Como eu não tinha qualquer interesse especial pelas aulas da tarde, saímos da escola, descemos a colina em direcção a um salão de bilhares no porto e jogámos quatro jogos. Depois de eu ganhar o primeiro jogo, um jogo fácil, ele tornou-se sério e ganhou os três seguintes. Isto significava que seria eu a pagar, segundo o acordo estabelecido. O Kizuki não proferiu um único gracejo enquanto jogávamos, um facto que se revelava extremamente inusual. Depois do jogo rumámos.

- Por que razão estás tão sério? - perguntei.

- Não queria perder hoje - respondeu com um sorriso de satisfação.

Morreu nessa noite na garagem. Enfiou uma mangueira de borracha no cano de escape do N-360, introduziu a outra ponta numa das janelas, prendeu-a com fita-cola e ligou o motor. Não faço ideia quanto tempo demorou a morrer. Os pais dele tinham ido visitar um parente adoentado e, quando entraram na garagem para guardar o carro, ele já estava morto. O rádio continuava ligado e no limpa-pára-brisas estava afixado o recibo de uma bomba de gasolina.

O Kizuki não deixara qualquer nota de suicídio e ninguém conseguia descortinar nenhum motivo possível. Como eu fora a última pessoa a vê-lo, fui convocado para um interrogatório na polícia. Disse ao agente de investigação que o Kizuki não revelara qualquer indicação das suas intenções e que se comportara exactamente como sempre. O polícia formara obviamente uma triste impressão do Kizuki e de mim, como se fosse perfeitamente natural alguém faltar às aulas para ir jogar bilhar e depois cometer suicídio. Um pequeno artigo no jornal foi o ponto final deste assunto. Os pais do Kizuki livraram-se do N-360 e durante algum tempo houve uma flor branca a assinalar a sua carteira na sala de aulas.

Nos dez meses entre a morte do Kizuki e os meus exames, senti-me incapaz de encontrar o meu lugar no mundo à minha volta. Comecei a dormir com uma das raparigas da escola, mas este meu relacionamento não durou mais de seis meses. Não havia nela nada que me despertasse realmente. Candidatei-me a uma universidade privada em Tóquio, o género de lugar com exame de admissão para o qual não teria que me aplicar muito, e passei sem grande entusiasmo. A rapariga pediu-me para não ir estudar para Tóquio - «Fica a 750 quilómetros daqui!», suplicou ela -, mas eu tinha que sair de Kobe a qualquer custo. Era minha intenção iniciar uma nova vida onde não conhecesse ninguém.

- Agora que já dormiste comigo, já não te preocupas minimamente comigo - declarou ela enquanto chorava.

- Isso não é verdade - insisti. - Preciso apenas de me afastar desta cidade. - Mas ela não estava preparada para me compreender. Por conseguinte, separámo-nos. Quando me encontrava sentado no comboio expresso em direcção a Tóquio e pensava em todas as coisas que faziam dela uma rapariga muito mais encantadora do que as outras que eu conhecia, comecei a sentir-me agoniado com o que fizera, mas não havia maneira de voltar atrás. Tentaria esquecê-la.

Havia apenas uma única coisa que poderia fazer quando iniciasse a minha nova vida na residência universitária: deixar de encarar tudo tão seriamente e interpor uma distância adequada entre mim e tudo o resto. Esquecer as mesas de bilhar de feltro verde e N-360s vermelhos e flores brancas sobre as carteiras; esquecer o fumo a elevar-se das enormes chaminés de crematórios e os pesados pisa-papéis nas salas de interrogatório da polícia. De início pareceu resultar. Esforcei-me arduamente por esquecer, mas dentro de mim permanecia um vago nó de ar. E, à medida que o tempo decorria, esse nó começou a assumir uma forma nítida e simples, uma forma que consigo formular em palavras, deste modo:

A morte existe, não como o oposto da vida mas como parte dela.

É um cliché transposto em palavras, embora nessa altura não o sentisse como palavras mas como um nó de ar dentro de mim. A morte existe - num pisa-papéis, em quatro bolas vermelhas e brancas numa mesa de bilhar - e continuamos a viver e a respirá-la para dentro dos pulmões como uma poeira fina.

Até então, sempre entendera a morte como algo completamente separado e independente da vida. A mão da morte estava destinada a arrebatar-nos, eu sentia isso, mas, até se apoderar de nós, deixar-nos-ia em paz. Isto parecera-me a verdade simples e lógica. A vida está aqui e a morte ali. Eu estou aqui e não ali.

Todavia, na noite em que o Kizuki morreu, perdi a capacidade de encarar a morte (e a vida) em termos tão simples. A morte não era o oposto da vida. A morte estava já aqui, dentro do meu ser, sempre aí estivera e nada me permitiria esquecer isso por mais que me esforçasse. Quando a morte arrebatou o Kizuki de dezassete anos nessa noite de Maio, arrebatou-me a mim também.

Durante a Primavera seguinte, a dos meus dezoito anos, vivi com esse nó de ar no peito e debatia-me com todas as minhas forças para não me tornar sério. Sentia, por mais vagamente que fosse, que tornar-me sério não equivalia a aproximar-me da verdade. Mas a morte era um facto, um facto sério, independentemente de como a encarássemos. Continuava a viver girando incessantemente em círculos, encurralado dentro desta sufocante contradição. Foram dias estranhos, agora que os recordo. No meio da vida, tudo revolvia em redor da morte.

 

A Naoko telefonou-me no sábado seguinte e saímos juntos no domingo - creio que posso chamar-lhe um encontro de namorados. Não consigo pensar numa designação melhor. Caminhámos pelas ruas, tal como das outras vezes. Detivemo-nos algures para tomar café, caminhámos um pouco mais, jantámos e despedimo-nos. À semelhança das vezes anteriores, ela falava apenas intermitentemente, mas este facto não parecia incomodá-la e não envidei qualquer esforço especial para manter a conversa. Conversámos sobre o que nos ocorria: as nossas rotinas diárias, a faculdade; cada um desses tópicos era um pequeno fragmento que não conduzia a lado nenhum. Não fizemos absolutamente nenhuma referência ao passado. E, sobretudo, caminhávamos - caminhávamos sempre. Afortunadamente, Tóquio é uma cidade tão vasta que nunca conseguiríamos percorrê-la por completo.

Continuámos a caminhar deste modo quase todos os fins-de-semana. Ela tomava a dianteira e eu seguia-a de perto. A Naoko possuía uma variedade de ganchos do cabelo e usava sempre algum, expondo a orelha direita. Lembro-me nitidamente dela assim, vista de costas. Brincava com o gancho sempre que se sentia embaraçada com algo. E estava sempre a limpar a boca com o lenço, fazia-o sempre que estava prestes a dizer algo. Quanto mais observava estes hábitos dela, mais gostava dela.

A Naoko frequentava uma faculdade para raparigas na margem rural ocidental de Tóquio, um pequeno e agradável local, famoso pelo seu ensino do Inglês. Nas proximidades havia um estreito canal de irrigação provido de água límpida e fresca e percorríamos frequentemente as suas margens. Por vezes convidava-me a subir até ao seu quarto e cozinhava para mim. Parecia nunca se preocupar com o facto de estarmos juntos num espaço tão exíguo.

Era uma divisão pequena e asseada e tão desprovida de adornos que as meias a secarem no canto junto à janela eram o único sinal de que uma rapariga vivia ali. Levava uma vida simples e frugal, quase sem amizades. Quem a tivesse conhecido na escola, nunca a teria imaginado a viver deste modo. Nessa altura, vestia-se com verdadeiro garbo e rodeava-se de imensos amigos. Quando vi o quarto dela, apercebi-me de que também ela pretendera ingressar na faculdade e iniciar uma nova vida longe de todos aqueles que conhecia. - Sabes por que razão escolhi este lugar? - perguntou com um sorriso. - Porque ninguém conhecido viria estudar para aqui. Todos esperavam que optássemos por um lugar mais requintado. Percebes o que quero dizer?

No entanto, o meu relacionamento com ela não estava isento de um progresso próprio. Começámos paulatinamente a acostumar-nos um ao outro. Quando as férias do Verão terminaram e o novo semestre se iniciou, a Naoko começou a caminhar ao meu lado como se fosse a atitude mais natural do mundo. Concluí que agora me encarava como um amigo e caminhar ao lado de uma rapariga tão encantadora não era de modo algum doloroso para mim. Continuámos a percorrer Tóquio do mesmo modo tortuoso, escalando colinas, atravessando rios e linhas-férreas e limitando-nos a caminhar sem um destino certo em mente. Lançávamo-nos directamente em frente, como se as nossas caminhadas fossem um ritual religioso, destinado a curar os nossos espíritos feridos. Quando chovia, abríamos os guarda-chuvas, mas, de qualquer modo, caminhávamos sempre.

Chegou o Outono e as imediações da residência académica ficaram soterradas debaixo das folhas da zelkova. A fragrância da nova estação sobreveio quando enverguei a minha primeira camisola. Como rompera já um par de sapatos, comprei uns novos de camurça.

Não consigo recordar-me sobre o que conversávamos nessa altura. Nada de especial, suponho. Continuávamos a evitar qualquer menção ao passado e raramente referíamos o Kizuki. Conseguíamos olhar um para o outro por cima da borda das chávenas de café, em total silêncio.

A Naoko apreciava ouvir-me contar histórias acerca do Sargento.

Certa vez, o Sargento saíra com uma estudante (uma rapariga de Geografia, obviamente), mas, quando regressou ao início da noite, parecia taciturno. - Diz-me, W-w-watanabe, quando estás com uma r-r-rapariga falas de quê? - Não me recordo da resposta que dei, mas ele escolhera a pessoa errada para perguntar. Em Julho, alguém do dormitório substituíra o cenário do canal de Amesterdão do Sargento por uma foto da Ponte de Golden Gate. Essa pessoa disse-me que era sua intenção descobrir se o Sargento conseguiria masturbar-se a olhar para a ponte. - Ele adorava essa foto - relatei posteriormente, o que instigou prontamente alguém a pendurar a imagem de um icebergue. Sempre que a foto era substituída durante a sua ausência, o Sargento mostrava-se perturbado.

- Q-q-quem raios anda a fazer isto? - perguntava.

- Sei lá - respondi. - Mas que diferença faz? São todas fotos agradáveis. Deverias estar grato.

- Sim, creio que sim, mas é estranho.

As minhas histórias acerca do Sargento provocavam sempre gargalhadas na Naoko. Poucas coisas conseguiam o seu riso e, por conseguinte, eu falava frequentemente do Sargento, embora não me sentisse exactamente orgulhoso por o usar desse modo. O Sargento era o filho mais novo de uma família não muito abastada e crescera um pouco demasiado sério para o seu próprio bem. Elaborar mapas era o único pequeno sonho da sua única e pequena vida. Quem teria, pois, o direito de escarnecer dele por esse facto?

Nessa altura, porém, as piadas acerca do Sargento haviam-se tornado numa indispensável fonte das conversas no dormitório. E não havia maneira de eu próprio alterar essa situação. Além do mais, a visão do rosto sorridente da Naoko tornara-se na minha própria fonte particular de prazer. Continuei, pois, a fornecer novas histórias a toda a gente.

Certa vez - e foi a única vez -, a Naoko perguntou-me se havia alguma rapariga de quem eu gostava. Falei-lhe da rapariga que deixara em Kobe. - Era simpática, gostava de dormir com ela e ocasionalmente sinto saudades dela, mas o facto é que ela não me entusiasmava. Não sei, por vezes creio que tenho um nó duro no coração e pouca coisa consegue penetrá-lo. Duvido se conseguirei amar realmente alguém.

- Alguma vez estiveste apaixonado? - perguntou a Naoko.

- Nunca - retorqui.

Não me perguntou mais nada sobre este assunto.

Quando o Outono terminou e os ventos gélidos começaram a assolar a cidade, a Naoko caminhava frequentemente encostada ao meu braço. Conseguia sentir a sua respiração através do tecido espesso do casaco dela. Por vezes dava-me o braço, ou enfiava a mão no meu bolso, ou, quando estava realmente frio, apoiava-se firmemente no meu braço enquanto tremia. Nenhum destes gestos possuía qualquer significado especial. Limitava-me a caminhar com as mãos enfiadas nos bolsos. Os nossos sapatos de solas de borracha quase não emitiam ruído sobre o pavimento, exceptuando o rangido seco quando pisávamos as amplas e ressequidas folhas dos sicómoros. Sentia sempre um certo pesar pela Naoko quando ouvia esse som. Não era do meu braço que ela precisava, mas do braço de outra pessoa. Não era do meu calor que ela precisava, mas do calor de outra pessoa. Sentia-me quase culpado por ser eu próprio.

À medida que o Inverno se agravava, a transparente claridade dos olhos da Naoko parecia aumentar. Era uma claridade que não tinha para onde escapar. Por vezes prendia os olhos nos meus por nenhuma razão aparente. Parecia procurar algo e esse facto infundia-me uma estranha sensação de solidão e desamparo.

Perguntava-me se ela pretenderia veicular-me algo, algo que não conseguia expressar por palavras: algo anterior às palavras que ela não conseguia captar dentro de si própria, e, por essa razão, era-lhe sonegada a esperança de alguma vez o transpor em palavras. Consequentemente, distraía-se com o gancho do cabelo ou olhava-me nos olhos desse modo inexpressivo. Sentia o desejo de a abraçar com força quando ela agia assim, mas hesitava e refreava-me. Receava magoá-la. Por conseguinte, continuávamos a calcorrear as ruas de Tóquio, com a Naoko sempre a procurar as palavras no espaço.

Os outros rapazes do dormitório provocavam-me sempre que recebia uma chamada da Naoko ou saía nas manhãs de domingo. Supunham, naturalmente, que eu tinha uma namorada. Não havia maneira de lhes explicar a verdade, nem havia necessidade de o explicar, e, portanto, deixei-os pensar o que quisessem. À noite, tinha que enfrentar uma torrente de questões estúpidas: em que posição o fizéramos? Como era ela nas partes íntimas? De que cor era a roupa interior que ela usava nesse dia? Eu fornecia-lhes as respostas que esperavam ouvir.

E foi assim que transitei dos dezoito para os dezanove anos. O sol nascia e punha-se todos os dias, a bandeira era hasteada e arriada todos os dias. Todos os domingos encontrava-me com a companheira do meu falecido amigo. Não fazia ideia do que andava a fazer nem do que iria fazer. Lia Claudel, Racine e Eisenstein para as aulas, mas praticamente não significavam nada para mim. Não estabeleci qualquer amizade no curso e quase não conhecia ninguém no dormitório. Os outros estudantes supunham que eu pretendia ser escritor porque me viam sempre sozinho com um livro, mas eu não acalentava tal ambição. Não havia nada que eu aspirasse ser. Tentei abordar este sentimento com a Naoko. Pensava que ela, pelo menos, conseguiria compreender com um certo grau de precisão o que eu sentia. Mas nunca consegui encontrar as palavras adequadas para me expressar. Estranhamente, parecia que eu próprio ficara contagiado com a sua doença de procura das palavras.

Aos sábados à noite costumava sentar-me junto do telefone no átrio, à espera que a Naoko telefonasse. A maioria dos estudantes saíra já e o átrio encontrava-se geralmente deserto. Entretinha-me a olhar fixamente para os grãos de luz suspensos nesse espaço silente, debatendo-me por compreender o meu próprio coração. Que pretendia eu? E o que pretenderiam os outros de mim? Mas nunca conseguia encontrar as respostas. Por vezes estendia a mão e tentava agarrar os grãos de luz, mas os meus dedos não tocavam em nada.

Lia imenso, mas as leituras não eram variadas: gostava de reler os meus autores favoritos uma e outra vez. Nessa altura, eram Truman Capote, John Updike, F. Scott Fitzgerald, Raymond Chandler, mas nunca vi mais ninguém nas aulas nem no dormitório a ler tais autores. Apreciavam antes Kazumi Takahashi, Kenzaburo Oe, Yukio Mishima ou romancistas franceses contemporâneos, razão pela qual pouco tinha para partilhar com quem quer que fosse, a não ser comigo mesmo e com os meus livros. Fechava os olhos, tocava num desses livros familiares e inalava profundamente a sua fragrância. Era o suficiente para me fazer feliz.

Aos dezoito anos, o meu livro favorito era O Centauro de John Updike, mas, após o reler um certo número de vezes, começou a perder algum do seu brilho inicial e cedeu o primeiro lugar a O Grande Gatsby. Este livro permaneceu em primeiro lugar durante muito tempo. Retirava-o da prateleira quando sentia esse apelo e lia um trecho ao acaso. Nunca me desiludia. Não havia uma única página fastidiosa em todo o livro. Sentia o desejo de dizer às pessoas que era um romance maravilhoso, mas as pessoas que me rodeavam nunca tinham lido O Grande Gatsby nem o fariam. Embora urgir outras pessoas a lerem F. Scott Fitzgerald não fosse um acto reaccionário, também não era algo que se pudesse fazer em 1968.

Quando encontrei finalmente a única pessoa do meu mundo que lera o Gatsby, tornámo-nos amigos por via dessa cumplicidade. Chamava-se Nagasawa, era dois anos mais velho do que eu e, como estudava Direito na prestigiada Universidade de Tóquio, encontrava-se em excelente posição para alcançar um posto de liderança nacional. Vivíamos no mesmo dormitório e conhecíamo-nos somente de vista, até ao dia em que me encontrava a ler o Gatsby num local soalheiro na cantina. Sentou-se ao meu lado e perguntou-me o que estava a ler. Quando lhe respondi, perguntou-me se eu estava a apreciar. - É a terceira vez que o leio - disse. - De cada vez descubro algo novo e aprecio-o cada vez mais.

- Este tipo está a dizer-me que já leu três vezes O Grande Gatsby - proferiu, como se para si mesmo. - Bem, qualquer amigo do Gatsby é meu amigo também.

E foi assim que nos tornámos amigos. Foi em Outubro.

Quanto mais conhecia o Nagasawa, mais estranho ele me parecia. Conhecera já bastantes pessoas bizarras, mas nenhuma tão estranha quanto o Nagasawa. Era um leitor bastante mais voraz do que eu, mas tinha como regra nunca tocar num livro de nenhum autor que não tivesse morrido há pelo menos trinta anos. - É esse o único tipo de livros em que confio - declarou.

- Não se trata de não acreditar na literatura contemporânea -acrescentou -, mas não pretendo desperdiçar o meu valioso tempo de leitura com livros que ainda não passaram pelo baptismo do tempo. A vida é demasiado breve.

- Que tipo de autores aprecias então? - inquiri, falando num tom respeitoso a este rapaz dois anos mais velho do que eu.

- Balzac, Dante, Joseph Conrad, Dickens - retorquiu sem qualquer hesitação.

- Não estão exactamente na moda.

- É por essa razão que os leio. Se te limitas a ler os livros que toda a gente lê, acabas por pensar o mesmo que pensam as outras pessoas. Esse é o mundo dos papalvos e dos indolentes. As pessoas dignas teriam vergonha em agirem assim. Nunca te apercebeste, Watanabe? Tu e eu somos as únicas pessoas dignas neste dormitório. Os outros tipos são uma nulidade.

Estas palavras apanharam-me desprevenido. - Como podes afirmar isso?

- Porque é a verdade. Eu sei. Assisto a isso. É como se tivéssemos marcas na testa. E, além do mais, ambos lemos O Grande Gatsby.

Efectuei um cálculo rápido. - Mas o Fitzgerald morreu apenas há vinte e oito anos - declarei.

- E depois? Dois anos? O Fitzgerald é avançado. Mais ninguém no dormitório sabia que o Nagasawa era um secreto leitor de romances clássicos, e também não faria grande diferença se soubessem. O Nagasawa era conhecido pela sua inteligência. Fora admitido na Universidade de Tóquio, obtinha boas classificações, submeter-se-ia ao Exame de Serviço Civil, ingressaria no Ministério dos Negócios Estrangeiros e tornar-se-ia num diplomata. Provinha de uma família abastada. O pai era o proprietário de uíp enorme hospital em Nagoya e o irmão, que também se licenciara em Tóquio, frequentara uma faculdade de Medicina e um dia herdaria o hospital. O Nagasawa tinha sempre o bolso repleto de dinheiro e exibia uma pose de verdadeira dignidade. As pessoas tratavam-no com respeito, inclusive o responsável do dormitório. Quando pedia algo, as pessoas obsequiavam-no sem protestar. Outra coisa não seria de esperar.

O Nagasawa possuía uma certa qualidade inata que atraía as pessoas e as aliciava a seguirem-no. Sabia como destacar-se à cabeça do rebanho, como avaliar a situação, como proferir instruções precisas e com tacto para que os outros lhe obedecessem. Acima da sua cabeça pairava uma aura que revelava os seus poderes à semelhança do halo de um anjo e essa mera visão inspirava reverência nas pessoas em relação a este ser superior. Foi por esta razão que todos ficaram chocados por o Nagasawa me ter escolhido a mim, uma pessoa sem quaisquer qualidades distintas, como seu amigo especial. Pessoas que eu praticamente não conhecia começaram a tratar-me com um certo respeito devido a essa circunstância, mas não pareciam compreender qual a razão de ter sido eu o escolhido: nomeadamente, porque eu tratava o Nagasawa sem a adulação que ele recebia das outras pessoas. Eu sentia um interesse claro pelos estranhos e complexos aspectos da sua natureza, mas nenhum dos outros factores - as boas classificações, a sua aura, o seu aspecto - me impressionavam. Esta minha atitude deve ter sido algo inédito para ele.

Havia facetas na personalidade do Nagasawa absolutamente contraditórias. Eu próprio me comovia com a sua ocasional generosidade, mas ele conseguia ser também malicioso e cruel. Era simultaneamente um espírito de assombrosa altivez e um incorrigível terra-a-terra. Conseguia seguir em frente como um líder optimista, mesmo quando o seu coração se contorcia num pântano de solidão. Apercebi-me destas qualidades paradoxais desde o início e nunca consegui compreender por que razão não seriam tão óbvias para todos os outros. Ele vivia no seu inferno particular.

Todavia, creio que consegui encará-lo sempre sob uma luz bastante favorável. A sua maior virtude era a honestidade. Não só nunca mentia, como reconhecia sempre os seus defeitos. Nunca tentava ocultar as coisas que poderiam embaraçá-lo. E comigo era inquestionavelmente generoso e prestável. Se não fosse ele, a minha vida no dormitório teria sido bem mais desagradável. No entanto, nem uma única vez lhe abri o coração e, nesse sentido, o meu relacionamento com o Nagasawa estabelecia um nítido contraste com a minha amizade com o Kizuki. Da primeira vez que vi o Nagasawa embriagado e a atormentar uma rapariga, prometi a mim mesmo que nunca, em nenhuma circunstância, confidenciaria com ele.

No dormitório circulavam várias «Lendas Nagasawa». De acordo com uma delas, supostamente certa vez engoliu três lesmas. Uma outra atribuía-lhe um pénis enorme e referia que dormira com mais de cem raparigas.

A história das lesmas era verdadeira, ele próprio ma contou. - Três enormes bichos - relatou. - Engoli-as inteirinhas.

- Para quê, raios?

- Bem, foi durante o meu primeiro ano aqui. Havia desavenças entre os alunos do primeiro e do terceiro ano. Começou em Abril e acabou por culminar em Setembro. Na minha posição de representante dos alunos do primeiro ano, tentei resolver o assunto com os alunos do terceiro ano, uns verdadeiros idiotas da direita. Exibiam espadas kendo de madeira e «resolver as coisas» era provavelmente a última coisa que pretendiam. Por conseguinte, disse-lhes: «Muito bem, ponhamos um fim a isto. Façam de mim o que quiserem, mas deixem os outros alunos em paz». E eles disseram: «Está bem, vejamos se consegues engolir um par de lesmas». «Muito bem», respondi, «dêem-mas então». Os cabrões;. foram lá fora e trouxeram três enormes lesmas. E eu engoli-as.

- Que tal foi?

- Que tal foi?! Engole uma e já sabes. O modo como ela escorrega pela garganta abaixo até ao estômago... é fria e deixa um travo nojento... argh, até me dá calafrios só de pensar nisso. Sentia vontade de vomitar, mas refreei-me. Quer dizer, se as tivesse vomitado, teria que as engolir de novo. Portanto, mantive-as no estômago. As três.

- Que aconteceu depois?

- Voltei para o meu quarto e bebi um balde de água salgada. Que mais podia eu fazer?

- Sim, realmente.

- Mas, depois disto, ninguém tinha a coragem de me dizer nada. Nem sequer os alunos do terceiro ano. Sou o único tipo neste lugar que consegue engolir três lesmas.

- Aposto que sim.

Foi bastante fácil averiguar a verdade sobre o tamanho do seu pénis. Limitei-me a acompanhá-lo durante o banho nos balneários. Tinha de facto um pénis grande, mas ter dormido com cem raparigas era provavelmente um exagero. - Talvez setenta e cinco - redarguiu ele.

- Não consigo lembrar-me de todas, mas tenho a certeza de que foram pelo menos setenta. - Quando lhe disse que eu próprio dormira apenas com uma, retorquiu: - Oh, isso resolve-se facilmente. Da próxima vez vens comigo. Arranjo-te uma com bastante facilidade. Não acreditei nele, mas a sua afirmação revelou-se verdadeira. Era fácil, quase demasiado fácil, com toda a excitação da cerveja morta. Fomos a uma espécie de bar em Shibuya ou em Shinjuku (onde se situavam os seus bares preferidos), descobrimos um par de raparigas (o mundo estava repleto de pares de raparigas), falámos com elas, bebemos, fomos para um hotel e tivemos relações com elas. Ele era um excelente conversador. Não porque proferia coisas grandiosas, mas as raparigas sentiam-se enlevadas enquanto o ouviam, bebiam demasiado e acabavam por dormir com ele. Suponho que apreciavam estar na companhia de alguém tão agradável, encantador e inteligente. E o facto mais surpreendente era que eu próprio parecia ter-me tornado igualmente fascinante para elas pelo mero facto de o acompanhar. O Nagasawa incitava-me a falar e as raparigas respondiam-me com os mesmos sorrisos de admiração que lhe ofereciam a ele. Ele fazia uso da sua magia, um verdadeiro talento que não deixava de me surpreender. Comparado com o Nagasawa, os talentos coloquiais do Kizuki não passavam de uma brincadeira de criança. Isto era um nível completamente diferente de triunfo. No entanto, por mais que me encontrasse submetido ao poder do Nagasawa, continuava a sentir saudades do Kizuki e sentia uma nova admiração pela sua sinceridade, pois, independentemente dos talentos que possuía, partilhava-os somente comigo e com a Naoko, ao passo que o Nagasawa tinha a propensão para disseminar os seus consideráveis dons ao seu redor. Não se tratava de um desesperado anseio por dormir com as raparigas com que se deparava: para ele não passava de um jogo.

Eu não era tão entusiasta acerca da ideia de dormir com raparigas desconhecidas. Era, obviamente, uma maneira fácil de saciar o meu impulso sexual e apreciava, de facto, todo aquele agarrar e tocar, mas detestava a manhã seguinte. Acordava e descobria uma rapariga desconhecida a dormir ao meu lado, o quarto tresandava a álcool, a cama, as luzes e as cortinas ostentavam aquela especial vulgaridade de «hotel do amor» e sentia a cabeça envolta numa mortalha de nevoeiro. Depois a rapariga despertava, começava a tactear à procura das cuecas e, enquanto calçava as meias, proferia algo como «Espero bem que tenhas usado um preservativo ontem à noite. Este é o pior dia do mês para mim». Depois sentava-se diante de um espelho e começava a resmonear algo acerca de uma dor de cabeça ou da maquilhagem imperfeita enquanto aplicava batom ou afixava as pestanas falsas. Preferiria não ter de passar a noite inteira com elas, mas não podemos preocupar-nos com o recolher obrigatório à meia-noite quando seduzimos mulheres (um facto que, de qualquer modo, contraria as leis da física); por conseguinte, acabava por passar a noite com alguma delas. Isto implicava manter-me sossegado até de manhã e depois voltar para o dormitório acabrunhado de autodesprezo e desilusão, com a luz do sol a ofuscar-me, com a boca áspera como areia e sentindo que a cabeça pertencia a outra pessoa.

Após dormir deste modo com três ou quatro raparigas, perguntei ao Nagasawa: - Depois de fazeres isto setenta vezes, não começa a parecer um bocado inútil?

- Isso só prova que és um ser humano decente - retorquiu. - Parabéns. Não se ganha absolutamente nada em dormir com uma mulher desconhecida atrás de outra. Acabamos por ficar derreados e desgostosos. Comigo acontece o mesmo.

- Então, por que raios continuas a fazê-lo?

- É difícil de explicar. Ei, conheces o que o Dostoievski disse sobre jogar a dinheiro? É algo parecido. Quando estamos rodeados de infinitas possibilidades, uma das coisas mais difíceis que se pode fazer é abdicar delas. Percebes o que quero dizer?

- Acho que sim.

- Olha, o sol põe-se, as raparigas saem para ir tomar uma bebida e dão umas voltas, à procura de algo. Eu consigo dar-lhes esse algo. É a coisa mais fácil do mundo, tão fácil como beber água da torneira. Consigo descontraí-las num ápice. É o que elas esperam. É a isso que me refiro quando falo de possibilidade.

Existe a toda a nossa volta. Achas que é possível ignorar isso?

Dispomos de uma certa capacidade e da oportunidade para

desfrutarmos disso: consegues ficar de boca calada e deixar

essa oportunidade passar?

- Não sei, nunca estive numa situação assim - respondi com um sorriso. - Não consigo imaginar como seria.

- Considera-te abençoado - disse o Nagasawa.

A procura do sexo era a razão pela qual Nagasawa vivia num dormitório apesar das suas abastadas posses. O seu pai, preocupado com a possibilidade de o Nagasawa se tornar indolente se vivesse sozinho em Tóquio, compelira-o a residir no dormitório durante os quatro anos da licenciatura. Este facto pouco incomodava o Nagasawa, que nunca permitiria que um pequeno conjunto de regras o perturbasse. Sempre que sentia o ímpeto, obtinha permissão para passar a noite fora e procurava raparigas ou passava a noite no apartamento da namorada. Não era fácil obter estas permissões, mas para ele eram como livres-trânsitos - e para mim também, desde que fosse ele a solicitá-lo.

O Nagasawa tinha uma namorada que o acompanhava desde o primeiro ano. Chamava-se Hatsumi e tinha a mesma idade que ele. Eu convivera já algumas vezes com ela e achava-a muito simpática. A sua aparência não atraía imediatamente a atenção e, de facto, era um tipo de beleza tão comum que, quando a conheci, me interroguei por que razão o Nagasawa não optara por melhor, mas quem conversasse com ela apreciava-a prontamente. Era serena, inteligente, divertida, atenciosa e vestia-se sempre com um admirável bom gosto. Simpatizei imenso com ela e sabia que, se algum dia conseguisse uma namorada como a Hatsumi, não andaria a dormir com uma data de raparigas fáceis. Ela também simpatizava comigo e esforçava-se arduamente por me emparelhar com uma amiga sua do primeiro ano a fim de sairmos em grupo, mas eu inventava desculpas para evitar repetir erros do passado. A Hatsumi frequentava a faculdade feminina mais refinada do país e eu não tinha qualquer hipótese de conseguir falar com uma dessas princesas super-ricas.

A Hatsumi tinha perfeita consciência de que o Nagasawa dormia com outras raparigas, mas nunca se queixava. Estava seriamente apaixonada e nunca fazia exigências.

- Não mereço uma rapariga como a Hatsumi - disse-me ele certa vez. Vi-me forçado a concordar com ele.

Nesse Inverno arranjei um emprego em part-time numa pequena loja de discos em-Shinjuku. O salário era baixo, mas era um trabalho fácil - limitava-me a tomar conta do local durante três noites por semana - e permitia-me comprar os discos a um preço mais acessível. No Natal, comprei para a Naoko um álbum de Henry Mancini com uma versão do seu tema preferido, Dear Heart. Eu próprio o embrulhei e acrescentei uma brilhante fita vermelha. Ela ofereceu-me um par de luvas de lã que ela própria tricotara. Os polegares eram um pouco curtos, mas as luvas mantinham-me as mãos quentes.

- Oh, desculpa - disse ela, corando. - Um trabalho imperfeito!

- Não te preocupes, servem-me perfeitamente - retorqui, estendendo as mãos enluvadas para ela verificar.

- Bem, pelo menos já não terás que enfiar as mãos nos bolsos. A Naoko não regressou a casa em Kobe durante as férias

do Natal. Também permaneci em Tóquio, a trabalhar na loja de discos até ao final do ano. Não dispunha de nada particularmente divertido para fazer em Kobe nem ninguém que me apetecesse visitar. A cantina da residência universitária estava fechada durante as férias e tomava as refeições no apartamento da Naoko. Na Véspera de Ano Novo comemos bolos de arroz e sopa, tal como todas as outras pessoas.

Aconteceram bastantes coisas no final de Janeiro e durante Fevereiro desse ano de 1969-

No final de Janeiro, o Sargento ficou confinado à cama com febre alta, obrigando-me a falhar a um encontro com a Naoko nesse dia. Tive bastante dificuldade em arranjar entradas grátis para um concerto e ela estava particularmente desejosa de assistir porque a orquestra iria executar a Quarta Sinfonia de Brahms, uma das suas composições favoritas. Mas eu não podia deixar o Sargento sozinho, a agitar-se na cama e aparentemente a debater-se com uma morte agonizante, e também não consegui encontrar ninguém estúpido ao ponto de cuidar dele por mim. Comprei gelo e usei várias camadas de sacos de plástico para lho aplicar na testa; limpava-lhe a testa suada com toalhas húmidas, verificava-lhe a temperatura de hora em hora e até lhe mudei o casaco do pijama. A febre manteve-se alta durante esse dia, mas na manhã seguinte saltou para fora da cama e começou a exercitar-se como se nada tivesse acontecido.

A sua temperatura estava agora completamente normal. Custava a acreditar que ele fosse um ser humano.

- Que estranho - disse o Sargento. - Nunca tive febre alta em toda a minha vida. - Era quase como se estivesse a censurar-me.

Isto enfureceu-me. - Mas tu tiveste realmente febre - insisti, enquanto lhe mostrava as duas entradas desperdiçadas.

- Ainda bem que eram grátis - disse ele. Senti vontade de agarrar no seu rádio e lançá-lo pela janela fora, mas limitei-me a enfiar-me na cama com uma dor de cabeça.

Nevou várias vezes durante Fevereiro.

Perto do final do mês, envolvi-me numa briga idiota com um dos estudantes do terceiro ano do meu piso e esmurrei-o. Bateu com a cabeça contra a parede de betão, mas não ficou gravemente ferido e o Nagasawa resolveu as coisas por mim. Contudo, fui convocado ao gabinete do responsável e fui repreendido; após essa ocorrência, comecei a sentir-me gradualmente desconfortável com a vida no dormitório.

O ano académico terminou em Março, mas eu não dispunha dos créditos suficientes. Os resultados dos meus exames foram medíocres: na sua maioria, classificações minimamente

razoáveis, algumas negativas e uns escassos «bons». A Naoko obteve todas as classificações de que necessitava para iniciar o segundo semestre do segundo ano. Completáramos já um ciclo total das estações.

Em meados de Abril, a Naoko comemorou o seu vigésimo aniversário. Era sete meses mais velha do que eu e o meu aniversário era em Novembro. Havia algo de estranho no facto de ela fazer vinte anos. Sentia que a única coisa que fazia sentido, quer para ela, quer para mim, seria mantermo-nos na faixa entre os dezoito e os dezanove anos. Depois dos dezoito, vinham os dezanove, e depois dos dezanove seriam de novo os dezoito, obviamente. Mas ela fez vinte anos. E no Outono acontecer-me-ia o mesmo. Somente os mortos ficam com dezassete anos para sempre.

Choveu no dia do seu aniversário. Depois das aulas, comprei um bolo numa loja próxima e apanhei o eléctrico até ao seu apartamento. - Deveríamos comemorar - propus. Eu próprio provavelmente desejaria a mesma coisa se estivesse no seu lugar.

O eléctrico estava apinhado e agitava-se tão violentamente que, quando cheguei à casa da Naoko, o bolo parecia o Coliseu de Roma. Quando consegui colocar e acender as vinte velas que também trouxera, fechei as cortinas e desliguei as luzes e tudo se assemelhava a uma festa de anos. A Naoko abriu uma garrafa de vinho. Bebemos, provámos o bolo e desfrutámos de um jantar simples.

- Não sei, é estúpido fazer vinte anos - disse ela. - Não me sinto preparada. Parece estranho, como se alguém estivesse a empurrar-me por trás.

- Ainda faltam sete meses para o meu aniversário - retorqui com uma gargalhada.

- És um felizardo! Ainda tens dezanove anos! - disse a Naoko com uma ponta de inveja.

Enquanto jantávamos, contei-lhe acerca da nova camisola do Sargento, que até então dispunha apenas de uma azul-marinho e, consequentemente, ter duas era uma grande mudança para ele. Era uma camisola bonita, vermelha e preta, com o padrão de um veado, mas quando a vestia toda a gente se ria. Ele não percebia as razões desse facto.

- O-o-onde está a piada, Watanabe? - perguntou-me, sentado ao meu lado na cantina. - Tenho alguma coisa colada na testa?

- Nada - respondi, tentando manter o rosto sério. - Não há piada nenhuma. Que camisola bonita.

- Obrigado - disse ele, resplandecendo.

A Naoko adorou a história. - Tenho que o conhecer - afirmou ela. - Nem que esteja com ele uma única vez.

- Nem pensar - retorqui. - Rir-te-ias na cara dele.

- Achas?

- De certeza absoluta. Estou com ele todos os dias e às vezes não consigo impedir-me de rir.

Levantámos a mesa e sentámo-nos no chão, a ouvir música e a beber o resto do vinho. A Naoko bebeu dois copos e eu um único apenas.

A Naoko estava inusitadamente conversadora nessa noite. Falou-me da sua infância, da escola, da família. Cada episódio era bastante extenso, executado com os denodados detalhes de uma miniatura. Estava assombrado com o poder da memória dela, mas, enquanto a ouvia, comecei a aperceber-me de que havia algo de errado no modo como contava estas histórias: algo de estranho, ou mesmo distorcido. Cada história possuía a sua própria lógica interna, mas o elo entre uma e outra era estranho. Sem que me apercebesse, a história A tornava-se na história B, a qual estivera contida na A, e depois a C surgia de algo contido na B, sem qualquer fim à vista. Nos momentos iniciais conseguia fornecer-lhe uma resposta, mas pouco depois desisti de tentar. Pus a tocar um disco e, quando acabou, levantei a agulha e coloquei outro. Quando o segundo disco terminou, voltei a colocar o primeiro. Ela tinha apenas seis discos. O ciclo começava com o Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band e terminava com o Waltz for Debbie de Bill Evans. Chovia no exterior. O tempo decorria lentamente. A Naoko continuava a falar sozinha.

Acabei por verificar o que estava errado: a Naoko estava a falar com excessivo cuidado de modo a não aflorar certas coisas. Uma dessas coisas era obviamente o Kizuki, mas havia algo mais do que o Kizuki. E embora houvesse certos tópicos que tentava evitar com determinação, prosseguia incessantemente e com incríveis pormenores acerca dos assuntos mais triviais e inanes. Nunca a ouvira falar com tal intensidade e não a interrompi.

No entanto, quando o relógio anunciou as onze horas, comecei a sentir-me nervoso. Ela falava sem uma única interrupção há mais de quatro horas. Eu estava preocupado com o último comboio e o recolher obrigatório à meia-noite. Quando tive a oportunidade, interrompi-a.

- Está na hora de as tropas voltarem para casa - afirmei enquanto olhava para o relógio. - Está na hora do último comboio.

As minhas palavras não a alcançaram aparentemente. Ou, se o fizeram, ela foi incapaz de apreender o seu significado. Manteve-se calada durante um ínfimo momento e depois prosseguiu com a sua história. Desisti, coloquei-me numa posição mais confortável e bebi o que restava da segunda garrafa de vinho. Achei que seria melhor deixá-la dizer tudo o que tinha a dizer. O recolher obrigatório e o último comboio já não me preocupavam.

Todavia, ela não se alongou durante muito mais tempo. De súbito, apercebi-me de que ela parara de falar. A ponta esfarrapada da última palavra que proferira parecia flutuar esmorecida no ar. Não terminara de facto aquilo que estava a dizer.

As suas palavras haviam-se evaporado simplesmente. Tentara prosseguir, mas não lhe ocorrera mais nada. Algo se perdera agora e provavelmente fora eu quem destruíra isso. Talvez as minhas palavras a tivessem alcançado por fim e demorassem o seu tempo a serem compreendidas, ou talvez lhe tivessem obliterado a energia que a mantivera a falar durante tanto tempo. Abriu ligeiramente os lábios e fixou em mim os olhos semicerrados. Parecia uma espécie de máquina que estivera a zumbir até alguém a desligar da tomada. Os seus olhos pareciam velados, como se recobertos por uma membrana fina e translúcida. - Lamento interromper - disse-lhe eu -, mas está a ficar tarde e... Uma enorme lágrima percorreu-lhe a face e tombou sob a capa do disco. Assim que a primeira lágrima irrompeu, as outras seguiram-se numa torrente ininterrupta. A Naoko apoiou-se de mãos e joelhos no chão, comprimiu as palmas das mãos contra a carpete e começou a chorar, convulsivamente como uma pessoa a vomitar. Nunca vi ninguém a chorar com tal intensidade em toda a minha vida. Estendi a mão para lhe tocar no ombro trémulo. Depois, de modo completamente instintivo, tomei-a nos meus braços. O seu corpo tremia encostado ao meu e continuava a chorar sem emitir um único som. Fiquei com a camisa molhada - e depois encharcada - com as suas lágrimas e a respiração quente. Pouco depois, começou a mover os dedos pelo meu braço como se procurasse algo, algo importante que sempre estivera ali. Suportei o seu peso com o braço esquerdo e acariciei-lhe o cabelo liso e macio com a mão direita. E aguardei. Foi assim, nessa posição, que aguardei que a Naoko parasse de chorar. E continuei a aguardar. Mas o choro dela não se detinha.

Nessa noite dormi com a Naoko. Terá sido uma atitude sensata? Não sei. Mesmo hoje, quase vinte anos depois, não tenho a certeza. Creio que nunca saberei. Mas, nessa altura, foi a única atitude que me ocorreu. Ela encontrava-se num enorme estado de tensão e confusão e tornara claro que pretendia que eu a ajudasse a libertar-se. Desliguei as luzes e comecei a despi-la peça a peça, com o toque mais carinhoso possível. Depois despi-me. Essa chuvosa noite de Abril estava suficientemente quente para nos agarrarmos à nudez um do outro sem sentirmos frio. Explorámos o corpo um do outro na escuridão sem proferir qualquer palavra. Beijei-a e acariciei-lhe os seios macios.

Ela tocou-me no pénis erecto. O sexo dela era quente e húmido e ansiava por mim.

Todavia, quando a penetrei, a Naoko retesou-se com dor. Era a primeira vez?, perguntei-lhe, e ela anuiu com a cabeça. Agora era eu quem se sentia confuso. Presumira que ela dormira já com o Kizuki. Penetrei-a até onde me era possível e permaneci assim durante bastante tempo, agarrado a ela sem me mover. Depois, quando ela pareceu acalmar, permiti-me mover-me dentro dela e demorei bastante tempo até atingir o clímax por via de movimentos lentos e delicados. Os seus braços retesaram-se em redor de mim quando ela rompeu por fim o silêncio. O seu grito foi o mais triste som de orgasmo que alguma vez ouvi.

Quando tudo terminou, perguntei-lhe por que razão nunca dormira com o Kizuki. Cometi um erro: assim que proferi a questão, afastou os braços e recomeçou a chorar sem emitir qualquer som. Peguei em cobertores do armário, estendi-os sobre a carpete e agasalhei-a. Fumei um cigarro enquanto observava a infindável chuva de Abril no exterior da janela.

A chuva cessou quando a manhã rompeu. A Naoko dormia de costas voltadas para mim. Ou talvez não tivesse dormido sequer. Quer estivesse desperta ou a dormir, os seus lábios já não proferiam palavras e o seu corpo parecia agora retesado e quase petrificado. Tentei várias vezes falar com ela, mas não respondia nem se movia. Olhei fixamente para o seu ombro nu durante bastante tempo, mas acabei por perder qualquer esperança de obter uma reacção e decidi levantar-me.

O soalho encontrava-se ainda juncado de capas de discos, copos, garrafas de vinho e o cinzeiro que eu usara. Metade do bolo de aniversário, agora sem consistência, continuava sobre a mesa. Era como se o tempo se tivesse detido. Arrumei as coisas do chão e bebi dois copos de água junto da banca. Na secretária da Naoko havia um dicionário e uma tabela de verbos franceses. Na parede por cima estava pendurado um calendário, desprovido de qualquer ilustração ou imagem, somente com os dias do mês. Nenhuma das datas fora assinalada com memorandos ou sinais.

Recolhi a minha roupa e vesti-me. O peito da minha camisa continuava húmido e gélido. Exalava o aroma da Naoko.

Escrevi a seguinte nota no bloco de apontamentos em cima da secretária: Gostaria de ter uma longa conversa contigo quando acalmares. Telefona-me quando puderes, por favor. Feliz aniversário. Observei o ombro dela uma última vez, saí e fechei a porta em silêncio.

Não recebi nenhum telefonema, mesmo depois de ter decorrido uma semana. A casa da Naoko não estava provida de qualquer sistema de chamar as pessoas ao telefone e no domingo de manhã apanhei o comboio para Kokubunji. Ela não estava em casa e o seu nome fora retirado da porta. As janelas e as portadas estavam firmemente fechadas. O porteiro informou-me que ela se mudara há três dias e não fazia ideia para onde fora.

Regressei à residência académica e escrevi uma longa carta à Naoko, endereçada para a sua morada em Kobe. A carta acabaria por lhe ser entregue, onde quer que ela estivesse.

Fiz-lhe um relato honesto dos meus sentimentos. Havia ainda muitas coisas que eu não compreendia, confessava-lhe, e, embora me esforçasse muito ainda demoraria algum tempo. De momento, desconhecia onde me encontraria assim que esse período tivesse decorrido e, por essa razão, era-me impossível fazer promessas ou exigências, ou escrever palavras bonitas. Com efeito, pouco conhecíamos um do outro. Contudo, se ela me concedesse o tempo necessário, esforçar-me-ia cabalmente para que pudéssemos conhecer-nos melhor. De qualquer modo, desejava vê-la de novo para termos uma longa conversa. Quando o Kizuki morreu, perdi a única pessoa com quem conseguia falar francamente dos meus sentimentos e supunha que o mesmo se aplicava à Naoko. Precisávamos um do outro, mais do que supúnhamos, Fora indubitavelmente por essa razão que o nosso relacionamento operara um desvio tão acentuado e, num certo sentido, se tornara distorcido. Provavelmente não deveria ter feito o que fiz, e, contudo, creio que era tudo o que eu podia fazer. O afecto e a proximidade que senti por ti nesse momento foi algo que nunca senti antes. Preciso que respondas a esta carta. Preciso da tua resposta, independentemente do que decidas.

Não recebi nenhuma resposta.

Algo esmorecera dentro de mim e nada viera preencher a caverna vazia. Havia uma leveza anormal no meu corpo e os sons apresentavam um eco abafado. Comecei a assistir às aulas com mais assiduidade do que anteriormente. Eram aulas entediantes e nunca falava com os meus colegas, mas não dispunha de nenhum outro modo de ocupar o tempo. Sentava-me sozinho na primeira fila do anfiteatro, não falava com ninguém e comia sozinho. Parei de fumar.

A greve estudantil teve início no final de Maio. «Abaixo a Universidade!», gritavam todos eles. Avancem, destruam-na, pensava eu. Arrasem-na. Desfaçam-na. Reduzam-na a escombros. Estou-me nas tintas. Seria uma lufada de ar fresco. Estou preparado para tudo. E ajudarei se for necessário. Avancem e destruam-na.

O campus foi barricado, as aulas foram suspensas e comecei a trabalhar numa empresa de entregas. Acompanhava os motoristas e carregava e descarregava os camiões, esse género de coisas. Era mais extenuante do que imaginara. De início, quase não conseguia sair da cama de manhã devido às dores. No entanto, era um salário bom e, desde que obrigasse o corpo a mover-se, conseguia esquecer-me do vazio que sentia interiormente. Trabalhava nos camiões cinco dias por semana e durante três noites por semana continuava a trabalhar na loja de discos. Nas outras noites bebia whisky e lia. O Sargento detestava whisky e não tolerava o cheiro a álcool; quando me deitava na cama a emborcar directamente da garrafa, queixava-se de que o cheiro o impedia de estudar e pedia-me para colocar a garrafa fora do quarto.

- Vai tu lá para fora, raios! - grunhia eu.

- Mas tu sabes que beber álcool no dormitório é c-c-contra o regulamento.

- Não quero saber. Vai tu lá para fora.

Ele parava de se queixar, mas depois era eu quem se sentia irritado. Optava então por ir beber sozinho para o telhado. Em Junho escrevi à Naoko outra extensa carta e enderecei-a de novo para a sua morada em Kobe. Dizia praticamente as mesmas coisas que escrevera na primeira, mas no fim acrescentei: Esperar por uma resposta tua é uma das coisas mais dolorosas por que já passei. Diz-me pelo menos se te magoei ou não.

Quando a enviei, senti que a caverna dentro de mim aumentara novamente.

Durante Junho saí duas vezes com o Nagasawa e dormi com raparigas. Foi fácil de ambas as vezes. Com a primeira rapariga, deparei com uma luta terrível quando tentei que ela se despisse e se deitasse na cama do hotel; mas, quando comecei a ler porque não valia a pena esforçar-me, ela aproximou-se e começou a acariciar-me. Depois do sexo com a segunda rapariga começou a interrogar-me sobre vários assuntos pessoais: com quantas raparigas eu dormira já? De onde era eu? Que universidade frequentava? Que tipo de música apreciava? Se lera já algum romance de Osamo Dazai? Para onde iria se pudesse viajar para o estrangeiro? Se achava os mamilos dela demasiado grandes? Inventei algumas respostas e tentei dormir, mas na manhã seguinte anunciou-me que desejava tomar o pequeno-almoço na minha companhia e continuou a inundar-me com uma torrente de questões enquanto comíamos os ovos e as torradas insípidos e bebíamos café. Que tipo de trabalho fazia o meu pai? Se obtivera boas notas na escola? Em que mês nasci? Se alguma vez engolira sapos? Estava a provocar-me uma dor de cabeça; assim que terminámos o pequeno-almoço, declarei que tinha de ir para o trabalho.

- Voltarei a ver-te? - perguntou com uma expressão triste.

- Oh, tenho a certeza de que em breve nos encontraremos algures - respondi, e saí. Que raios estou a fazer?, interroguei-me quando fiquei sozinho. Sentia-me enojado comigo mesmo. No entanto, não conseguia proceder de outro modo. O meu corpo ansiava avidamente por mulheres. Sempre que dormia com alguma dessas raparigas, pensava na Naoko: os pálidos contornos do seu corpo desnudo na escuridão, os seus suspiros, o som da chuva. Quanto mais pensava nestas coisas, mais ávido o meu corpo se tornava. Dirigia-me então para o telhado com uma garrafa de whisky e interrogava-me sobre o decurso da minha vida.

No início de Julho recebi finalmente uma carta da Naoko. Uma carta sucinta.

Perdoa-me, por favor, por não ter respondido mais cedo. Mas tenta compreender. Precisei de bastante tempo até estar em condições de responder e comecei a redigir esta carta pelo menos dez vezes. Escrever épara mim um processo doloroso.

Deixa-me começar com a minha conclusão. Decidi suspender os estudos durante um ano. Oficialmente, trata-se de uma licença de ausência, mas desconfio que nunca mais regressarei. Isto será sem dúvida uma surpresa para ti, mas, de facto, há muito tempo que andava a pensar fazer isto. Tentei falar-te nisto várias vezes, mas nunca fui capaz de o abordar. Receava pronunciar essas palavras.

Não deixes as coisas afectarem-te tanto. Independentemente do que aconteceu, ou não aconteceu, o resultado final teria sido o mesmo. Talvez não seja a melhor forma de o expressar e lamento se te magoo. Estou a tentar dizer-te que não quero que te censures por aquilo que me aconteceu. É algo que somente eu saberei solucionar. Há mais de um ano que andava a adiá-lo e acabei por tornar as coisas bastante difíceis para ti. Não existe provavelmente maneira de continuar a adiá-lo ainda mais.

Depois de desistir do apartamento, regressei a casa dos meus pais em Kobe e durante uns tempos fui acompanhada por um médico. Informou-me que existe um local nas colinas no exterior de Quioto que seria perfeito para mim e penso passar lá algum tempo. Não é exactamente um hospital é uma espécie de sanatório com um género de tratamento muito mais livre. Deixarei os pormenores para uma outra carta. Agora preciso de descansar num local calmo, isolada do mundo.

De certo modo, sinto-me grata pelo ano de camaradagem que me proporcionaste. Por favor, acredita que sim, mesmo se não acreditares em mais nada. Não foste tu quem me magoou. Fui eu própria quem o fez. É isto, verdadeiramente, o que sinto.

No entanto, não me sinto preparada para te ver. Não se trata de não querer ver-te: simplesmente, não estou preparada. Quando me sentir preparada, escrever-te-ei. Talvez consigamos então conhecer-nos melhor um ao outro. Tal como tu dizes, provavelmente é isso que devemos fazer: conhecer-nos melhor um ao outro. Adeus.

Reli a carta uma e outra vez e cada leitura me inundava com a mesma tristeza insuportável que costumava sentir quando a Naoko me olhava fixamente nos olhos. Não conseguia lidar com isto, não havia nenhum lugar para onde pudesse ir e ocultar essa tristeza. Tal como o vento que soprava contra o meu corpo, essa tristeza não tinha forma nem peso e não conseguia envolver-me nela. Os objectos pairavam à minha volta, mas as palavras que proferiam nunca alcançavam os meus ouvidos. Continuei a passar as noites de sábado sentado no átrio. Não esperava receber um telefonema, mas não sabia como ocupar o tempo de outra maneira. Ligava a televisão durante um jogo de beisebol e simulava ver enquanto dividia em dois o espaço entre mim e o televisor e depois o dividia de novo em dois, uma e outra vez, até formar um espaço suficientemente pequeno para o agarrar com a mão.

Desligava o televisor às dez horas, voltava para o quarto e dormia.

No final do mês, o Sargento ofereceu-me um pirilampo. Estava dentro de um boião de café, com buracos de respiração na tampa, provido de folhas de erva e um pouco de água. Na claridade do quarto, o pirilampo parecia um vulgar insecto negro que se encontraria algures junto a um tanque, mas o sargento insistiu que era um verdadeiro pirilampo. - Sei bem o que é um pirilampo - disse, e não havia qualquer motivo para não acreditar nas suas palavras.

- Pois bem - redargui. - É um pirilampo. - O insecto parecia sonolento e tentava trepar pelo vidro escorregadio do boião, mas tombava continuamente para trás.

- Encontrei-o no pátio - explicou.

- Aqui? Junto ao dormitório?

- Sim. Conheces o hotel no fundo da rua? No Verão costumam soltar pirilampos no jardim para agrado dos hóspedes. Este conseguiu fugir até aqui.

O Sargento estava atarefado a arrumar roupas e cadernos na mochila escura enquanto falava.

Haviam decorrido já várias semanas das férias de Verão e éramos praticamente os únicos residentes que continuavam no dormitório. Eu preferira continuar com os meus dois empregos em vez de voltar para Kobe e ele permanecera para uma sessão de treino prático. Agora que o treino terminara, regressaria às montanhas de Yamanashi.

- Podias oferecê-lo à tua namorada - sugeriu. - Tenho a certeza de que ela adoraria.

- Obrigado.

Depois do crepúsculo, abatia-se sobre o dormitório um silêncio de ruínas. A bandeira fora arriada e as luzes cintilavam nas janelas da cantina. Como restavam poucos estudantes, acendiam apenas metade das luzes da divisão: a metade direita permanecia na obscuridade e a esquerda iluminada. Sentia o cheiro do jantar, uma espécie de estufado cremoso.

Levei o boião com o pirilampo para o telhado deserto. Um casaco branco, que alguém se esquecera de recolher, pendia de uma corda e agitava-se na brisa do anoitecer como o invólucro abandonado por um enorme insecto. Subi a escada de aço no canto do telhado para o topo do depósito de água do dormitório. O depósito encontrava-se ainda quente devido ao calor do sol que absorvera durante o dia. Sentei-me no exíguo espaço, encostado ao corrimão e virado para uma lua cheia e branca. As luzes de Shinjuku cintilavam à direita e as de Ikebukuro à esquerda. Os faróis dos carros fluíam em brilhantes feixes de poças de luz. Pairava sobre a cidade um abafado rugido de sons diversos.

O pirilampo emitia uma ténue luminosidade no fundo do boião, mas era um brilho demasiado esbatido e pálido. Há anos que não via um pirilampo, mas os pirilampos que guardava na minha memória emitiam um brilho bastante mais intenso na escuridão do Verão e fora essa imagem resplandecente e luzidia que permanecera comigo durante todo esse tempo.

Talvez este pirilampo estivesse prestes a morrer. Agitei o boião. O insecto embateu contra o vidro e tentou voar, mas o seu brilho continuava esmorecido.

Tentei recordar-me da última vez e do lugar onde vira pirilampos. Conseguia ver essa imagem na mente, mas era incapaz de me lembrar do local e da altura. Conseguia ouvir o som da água na escuridão e via uma antiga comporta de tijolos, provida de um manípulo para a abrir e fechar. A torrente que controlava era bastante fraca e ficava oculta pelas ervas das margens.

Estava uma noite escura, tão escura que não conseguia ver os pés quando desligava a lanterna. Centenas de pirilampos esvoaçavam sobre a poça de água retida pela comporta e o seu brilho intenso reflectia-se na água como uma chuva de centelhas. Fechei os olhos e embrenhei-me nessa escuridão do passado. Ouvia o vento com uma nitidez inusitada. Senti uma leve brisa que deixava rastos estranhamente brilhantes na obscuridade. Abri os olhos e descobri que a escuridão da noite de Verão se aprofundara.

Desarrolhei o boião, retirei o pirilampo e coloquei-o na pequena borda do depósito de água. O insecto parecia incapaz de se orientar, saltitava em redor da cabeça de um parafuso de aço e emaranhava as patas na tinta descamada. Avançou para a direita até ficar com a saída bloqueada e depois recuou em círculos para a esquerda. Por fim, subiu com algum esforço para a cabeça do parafuso e aí ficou anichado e imóvel durante alguns segundos, como se tivesse exaurido o seu último fôlego.

Eu continuava encostado ao corrimão a observá-lo. Não nos movemos durante muito tempo. O vento continuava a soprar enquanto as inúmeras folhas da zelkova se agitavam na escuridão. Esperei uma eternidade.

O pirilampo esvoaçou para o ar bastante tempo depois, como se lhe tivesse ocorrido algo de repente. Abriu as asas e voou rapidamente por cima do corrimão até flutuar na palidez da escuridão. Delineou um célere arco ao lado do depósito de água, como se tentasse recuperar um intervalo de tempo perdido. Por fim, após pairar durante uns escassos segundos como se observasse a linhacurvada da sua própria luz a fundir-se com o vento, esvoaçou para leste.

O rasto da sua luz permaneceu dentro de mim bastante tempo depois de o pirilampo ter desaparecido e essa sua pálida e ténue luminosidade continuava a pairar como uma alma perdida na espessa escuridão por trás das minhas pálpebras. Tentei várias vezes estender a mão na escuridão, mas os meus dedos não tocavam em nada. O ténue brilho perdurava, mas estava para além do meu alcance.

 

Durante as férias do Verão a universidade solicitou a presença da polícia de choque. Derrubaram as barricadas e prenderam os estudantes no interior das instalações. Era um acontecimento bastante comum. Era o que todos os estudantes faziam nessa altura. Não era assim tão fácil «arrasar as universidades». Enormes montantes de capital haviam sido investidos e as universidades não iriam dissolver-se somente porque alguns estudantes se haviam revoltado. E, de facto, os estudantes que tinham barricado o campus não pretendiam arrasar a universidade. Tudo o que pretendiam realmente, consistia em alterar o equilíbrio do poder no seio da estrutura universitária, uma realidade que não me interessava minimamente. Por conseguinte, quando a greve foi finalmente esmagada, não senti nada.

Regressei ao campus em Setembro, esperando encontrar escombros. O local continuava incólume. Os livros da biblioteca não haviam sido pilhados, os gabinetes dos docentes não foram destruídos, o gabinete da associação académica não fora reduzido aos alicerces pelas chamas. Senti-me absolutamente aturdido. Que raios haviam estado eles a fazer atrás das barricadas?

Quando a greve foi neutralizada e as aulas recomeçaram sob ocupação da polícia, os primeiros alunos a ocuparem os seus lugares nas salas de aula foram precisamente os mesmos idiotas que haviam encabeçado a greve. Sentavam-se, tomavam notas e respondiam «presente» enquanto a chamada era efectuada, como se nada tivesse acontecido. Esta situação parecia-me assombrosa. Afinal de contas, os efeitos da greve ainda perduravam. Não houvera ainda qualquer declaração para a desconvocar. Os acontecimentos resumiam-se ao facto de a universidade ter solicitado a presença da polícia e removerem as barricadas, mas a própria greve continuava alegadamente. Os idiotas haviam vociferado violentamente durante a greve, denunciando estudantes que se opunham «ou que se tinham limitado a expressar as suas dúvidas» e chegaram inclusive a julgá-los nos tribunais-fantoche que haviam improvisado. Fiz questão de comparecer junto dos ex-cabecilhas para lhes perguntar por que razão assistiam às aulas em vez de prosseguirem com a greve, mas não conseguiram fornecer-me uma resposta directa. Que poderiam ter respondido? Que receavam perder os créditos devido ao absentismo? Só de pensar que esses idiotas tinham solicitado aos gritos que arrasassem a universidade! Que anedota. Assim que o vento altera minimamente o seu curso, esses gritos reduzem-se a murmúrios.

Ei, Kizuki, pensei, não estás a perder nada de especial, raios. Este mundo é uma merda. Os idiotas obtêm boas classificações e estão a ajudar a criar uma sociedade à sua própria imagem deturpada.

Assisti às aulas durante algum tempo, mas recusava-me a responder quando efectuavam a chamada. Tinha consciência de que era uma postura inútil, mas sentia-me tão desiludido que não me restava outra escolha. Continuei a isolar-me cada vez mais dos outros estudantes. Como permanecia em silêncio quando procediam ao registo da minha presença, durante alguns segundos conseguia provocar um grande desconforto em todos os presentes. Nenhum dos outros estudantes falava comigo e eu próprio não falava com ninguém.

Na segunda semana de Setembro, cheguei à conclusão de que a educação universitária era inútil. Decidi encará-la como um período de treino em técnicas para lidar com o tédio. Não havia nada que eu pretendesse alcançar em particular na sociedade ao ponto de me solicitar o abandono imediato dos estudos; por conseguinte, assistia às aulas, tomava apontamentos e passava o tempo livre na biblioteca, a ler ou a recolher material de pesquisa.

Embora a segunda semana de Setembro tivesse decorrido, não havia sinal do Sargento. Este facto era mais do que invulgar, era um acontecimento capaz de abalar o planeta.

As aulas haviam recomeçado e era inconcebível que o Sargento estivesse a faltar. Uma fina película de poeira recobria a sua secretária e o rádio. O seu copo de plástico com a escova de dentes, a lata do chá, o insecticida e itens variados continuavam arrumados com aprumo na prateleira.

Mantive o quarto limpo durante a sua ausência. Durante o último ano e meio começara a adquirir o hábito da limpeza e, na ausência dele para cuidar do quarto, não me restava outra escolha senão efectuá-la eu próprio. Varria o chão todos os dias, limpava a janela de três em três dias e arejava o meu colchão uma vez por semana, enquanto aguardava que ele regressasse e me elogiasse pelo excelente trabalho que eu fizera.

Mas nunca mais regressou. Certo dia, após regressar das aulas, descobri que todos os seus pertences haviam desaparecido e que o seu nome fora retirado da porta. Dirigi-me ao quarto do responsável e perguntei-lhe o que acontecera.

- Retirou-se do dormitório - informou-me. - Por enquanto, permanecerás sozinho no quarto.

Não consegui que me explicasse por que razão o Sargento desaparecera. A maior alegria do responsável residia em controlar tudo e manter os outros na ignorância.

A imagem do icebergue do Sargento continuou na parede durante algum tempo, mas acabei por a substituir por posters de Jim Morrison e de Miles Davís. Agora o quarto parecia um pouco mais pessoal. Usei algum do dinheiro que poupara do salário para adquirir uma pequena aparelhagem. À noite bebia, sozinho e ouvia música. Pensava ocasionalmente no Sargento, mas começava a apreciar viver sozinho.

Certa segunda-feira, às 11:30 da manhã, após uma aula de Artes Dramáticas sobre Eurípedes, empreendi uma caminhada de dez minutos até um pequeno restaurante e encomendei uma omoleta e uma salada para o almoço. Situava-se numa ruela calma e era ligeiramente mais dispendioso do que a cantina universitária, mas neste local conseguia descontrair-me e sabiam preparar uma boa omeleta. Era dirigido por um casal que raramente endereçava a palavra um ao outro e dispunham de uma empregada em part-time. Enquanto almoçava junto à janela, entrou um grupo de quatro estudantes, dois rapazes e duas raparigas, todos eles bastante aperaltados. Ocuparam a mesa perto da porta e despenderam algum tempo a examinarem o menu e a discutirem as opções, até que um deles acabou por fazer os pedidos à empregada.

Pouco depois, apercebi-me de que uma das raparigas olhava repetidamente na minha direcção. Tinha o cabelo extremamente curto, usava óculos de sol escuros e um curto vestido de algodão branco. Não fazia ideia de quem ela era e continuei a almoçar, mas ela levantou-se, acercou-se de mim e com a mão pousada na borda da minha mesa disse: - Tu não és o Watanabe?

Levantei a cabeça e observei-a mais atentamente. Não me lembrava de alguma vez a ter visto. Era o tipo de rapariga que não passava despercebida e, por conseguinte, se a conhecesse, tê-la-ia reconhecido de imediato; além disso, poucas pessoas me conheciam na faculdade.

- Posso sentar-me? - perguntou. - Ou esperas alguém? Abanei a cabeça, continuando a sentir-me perplexo.

- Não, não espero ninguém. Senta-te, por favor.

Arrastou a cadeira com um rangido e sentou-se diante de mim; olhou-me fixamente através dos óculos de sol e depois para o meu prato.

- Tem bom aspecto - afirmou.

- É saboroso. Omeleta de cogumelos e salada de ervilhas.

- Maldição - pronunciou ela. - Oh, bem, peço da próxima vez. Já fizemos os nossos pedidos.

- O que vão almoçar?

- Esparguete com queijo.

- O esparguete com queijo que servem aqui também é bem confeccionado - retorqui. - A propósito, conhecemo-nos? Não me lembro...

- Eurípedes - esclareceu ela. - Electra. «Nenhum deus atenta na voz perdida de Electra». Sabes, acabámos de sair dessa aula.

Olhei-a fixamente. Retirou os óculos de sol. Reconheci-a por fim: uma aluna do primeiro ano que eu vira nas aulas de Artes Dramáticas. Uma radical mudança de penteado impedira-me de a reconhecer.

- Oh - disse eu, tocando numa zona alguns centímetros abaixo do meu próprio ombro. - Antes das férias do Verão tinhas o cabelo por aqui.

- Tens razão - redarguiu. - Fiz uma permanente este Verão, mas ficou absolutamente horrível. Até tive vontade de me suicidar. Parecia um cadáver na praia, com algas marinhas coladas à cabeça. Portanto, decidi-me: já que sentia vontade de me suicidar, mais me valia rapá-lo por completo. Pelo menos sentir-me-ia mais fresca durante o Verão. - Passou a mão pelo cabelo curto e ofereceu-me um sorriso.

- Mas fica-te bem - disse-lhe, continuando a mastigar a omeleta. - Deixa-me ver-te de perfil.

Virou-se e manteve essa pose durante alguns segundos.

- Sim, era o que eu pensava. Fica-te mesmo bem. Tens uma cabeça bem modelada. E orelhas bonitas também, assim expostas.

- Então não sou louca, afinal de contas! Eu própria achei que me ficava bem quando o rapei. Mas nenhum dos rapazes apreciou. Todos me dizem que pareço uma sobrevivente de um campo de concentração. Que fetiche é esse de os rapazes só gostarem de raparigas de cabelo comprido? São uns fascistas, toda essa corja! Por que razão todos os rapazes pensam que as raparigas de cabelo comprido são as mais requintadas, as mais doces e as mais femininas? Quer dizer, eu própria conheço pelo menos duzentas e cinquenta raparigas de cabelo comprido sem qualquer requinte. Realmente.

- Eu acho que estás mais bonita agora - disse-lhe. E estava a ser sincero. Segundo me lembrava, quando ela tinha o cabelo comprido não passava de mais uma estudante gira. Uma força vital, fresca e física emanava agora da rapariga sentada diante de mim. Parecia um pequeno animal que assomara ao mundo com a vinda da Primavera. Os seus olhos moviam-se como um organismo independente, com alegria, riso, fúria, espanto e desespero. Há muito tempo que não via um rosto tão vívido e expressivo e apreciei observá-lo na sua vividez e movimento.

- Estás a falar a sério? - perguntou.

Anuí com a cabeça, continuando a comer a salada. Voltou a pôr os óculos de sol e olhou para mim.

- Não estás a mentir, pois não?

- Gosto de me considerar uma pessoa honesta.

- Não me digas.

- Diz-me, por que razão usas óculos tão escuros?

- Senti-me desprotegida quando fiquei com o cabelo tão curto de repente.

Como se alguém me tivesse lançado completamente nua para o meio de uma multidão.

- Faz sentido - comentei, terminando de comer a omeleta. Ela observava-me com um interesse intenso.

- Não tens que voltar para junto deles? - perguntei, indicando os seus três companheiros.

- Não. Volto para a mesa quando servirem a comida. Estou a interromper a tua refeição?

- Não estás a interromper nada, já terminei - respondi; decidi encomendar o café, pois ela não revelava qualquer sinal de querer ausentar-se. A proprietária levantou a mesa e trouxe leite e açúcar.

- Agora és tu quem vai responder-me - anunciou. - Por que razão não respondeste hoje quando efectuaram a chamada? És o Watanabe, não és? O Toru Watanabe?

- Sim, sou.

- Então, por que razão não respondeste?

- Hoje não me apeteceu.

Retirou os óculos, colocou-os sobre a mesa e olhou para mim como se estivesse num jardim zoológico a mirar a gaiola de algum animal raro. - «Hoje não me apeteceu». Pareces o Humphrey Bogart a falar. Que desprendido. Que mauzão.

- Não sejas tonta. Não passo de um tipo normal como todos os outros.

A proprietária trouxe-me o café. Tomei um sorvo sem acrescentar açúcar nem leite.

- Olha só para ti. A beber o café assim simples.

- Isto não tem nada a ver com o Humphrey Bogart - expliquei pacientemente. - Acontece que não aprecio coisas doces. Acho que tens uma ideia completamente errada de mim.

- Por que razão estás tão bronzeado?

- Durante as últimas semanas tenho feito caminhadas. De mochila e de saco-cama às costas.

- Para onde foste?

- Kanazawa. Península de Noto. Até Niigata.

- Sozinho?

- Sozinho. Encontrei companhia ocasionalmente.

- Companhia romântica? Mulheres desconhecidas em locais distantes.

- Romântica? Agora já sei por que razão tens uma ideia errada de mim. Como é que um tipo de saco-cama às costas e de rosto por barbear consegue arranjar uma companhia romântica?

- Viajas sempre sozinho?

- Hã-hã.

- Aprecias a solidão? - inquiriu, apoiando o rosto na mão.

- A viajar sozinho, a comer sozinho, sempre sentado sozinho nas aulas...

- Ninguém aprecia estar sempre assim sozinho. O facto é que não me esforço por fazer amizades, é tudo. Acabam por redundar em desilusões.

- «Ninguém aprecia estar sempre assim sozinho. O facto é que detesto ficar desiludido». Podes usar essa expressão se alguma vez pretenderes escrever a tua autobiografia - murmurou ela, com os óculos baloiçando-lhe por uma das hastes que enfiara entre os lábios.

- Obrigado.

- Gostas da cor verde?

- Por que razão perguntas?

- Estás a usar um pólo verde.

- Não em particular. Uso qualquer coisa.

- «Não em particular. Uso qualquer coisa». Adoro a maneira como te expressas. Como se estivesses a aplicar gesso, com suavidade e leveza. Nunca te disseram isso?

- Nunca.

- Chamo-me Midori, significa «verde». Mas o verde não me favorece em absoluto. É estranho, hã? Como se estivesse amaldiçoada, não achas? A minha irmã chama-se Momoko: «a rapariga-pêssego».

- O cor-de-rosa fica-lhe bem?

- O rosa favorece-á absolutamente. Ela nasceu para usar o rosa. É uma grande injustiça.

A comida começou a ser servida na mesa da Midori e um dos rapazes, que envergava um casaco de algodão fino, chamou-a: - Ei, Midori, anda comer! - Ela esboçou um gesto como se dissesse «Já vou».

- Diz-me uma coisa. Costumas tirar apontamentos nas aulas? Nas aulas de Artes Dramáticas? - perguntou.

- Sim.

- Detesto pedir, mas importas-te de me emprestar os teus apontamentos? Faltei a duas aulas e não conheço mais ninguém a quem possa pedir.

- Está bem - respondi e tirei o meu caderno do saco. Certifiquei-me de que não continha nada de pessoal e entreguei-lho.

- Obrigada. Vais às aulas depois de amanhã? -Vou.

- Encontra-te aqui comigo ao meio-dia. Devolvo-te o caderno e pago-te o almoço. Quer dizer... não vais ficar com dores de estômago ou algo do género se não almoçares sozinho dessa vez, certo?

- Pois não. Mas não precisas de me pagar o almoço somente porque te emprestei o caderno.

- Não te preocupes - respondeu. - Gosto de convidar as pessoas para almoçar. De qualquer modo, não seria melhor apontares? Não vais esquecer-te?

- Não me esquecerei. Depois de amanhã. Ao meio-dia. Midori. Verde.

Alguém chamou da outra mesa: - Despacha-te, Midori, a tua comida está a arrefecer!

Ela ignorou o companheiro e perguntou-me: - Tu expressas-te sempre desse modo?

- Creio que sim. Nunca me tinha apercebido. - Com efeito, nunca me tinham dito que havia algo de invulgar no modo como me expressava.

Ela pareceu matutar em algo durante alguns segundos. Depois levantou-se com um sorriso e regressou à sua mesa. Fez-me um aceno quando passei pela mesa deles à saída, mas os seus três companheiros quase não me prestaram atenção.

Na quarta-feira ao meio-dia não encontrei a Midori no restaurante. Pensei esperar por ela enquanto bebia uma cerveja, mas o restaurante começou a encher assim que me trouxeram a bebida e decidi encomendar o almoço e comer sozinho. Terminei às 12:35, e a Midori continuava sem aparecer. Paguei a conta, saí para o exterior e atravessei a rua em direcção a um pequeno templo, onde aguardei sobre os degraus de pedra enquanto a minha mente se desanuviava e esperava que a Midori chegasse.

Desisti à uma hora e fui ler para a biblioteca. Às duas horas fui à aula de Alemão.

Quando a aula terminou, dirigi-me ao gabinete da Associação Académica e procurei o nome da Midori na lista dos alunos da cadeira de Artes Dramáticas. A única Midori na lista era uma Midori Kobayashi. Depois verifiquei os dossiers dos alunos e descobri o endereço e o número de telefone de uma Midori Kobayashi que ingressara na universidade em 1969. Residia com a família em Toshima, um subúrbio a noroeste. Telefonei-lhe de uma cabina.

Respondeu-me um homem: - Livraria Kobayashi. Livraria Kobayabi?! - Desculpe incomodá-lo - dísse-lhe -, mas é possível falar com a Midori?

- Não, ela não está - respondeu.

- Acha que ela está na universidade?

- Hmm, não, deve estar no hospital. Quem está a telefonar, por favor?

Em vez de responder, agradeci-lhe e desliguei. No hospital? Terá tido algum acidente ou adoecera? Mas o homem falara sem qualquer preocupação na voz. «Deve estar no hospital», dissera ele, tão naturalmente como se dissesse.- «Está na loja dos animais». Ponderei noutras possibilidades, até que o próprio acto de pensar se tornou demasiado problemático; regressei ao dormitório e estendi-me na cama a ler Lorde Jim, que pedira emprestado ao Nagasawa. Quando terminei, fui ao quarto dele devolver-lho.

O Nagasawa preparava-se para ir jantar à cantina e decidi acompanhá-lo.

- Como correram os exames? - perguntei-lhe. A segunda fase dos exames do nível avançado para o Ministério dos Negócios Estrangeiros decorrera em Agosto.

- Como de costume -"respondeu, como se tivesse sido algo fácil. - Fazes os exames e passas. Discussões em grupo, entrevistas... tal qual como foder uma miúda.

- Por outras palavras, foi fácil - comentei. - Quando saem os resultados?

- Na primeira semana de Outubro. Se passar, pago-te um grande jantar.

- Diz-me uma coisa, que tipo de alunos conseguem chegar à segunda fase? Somente as super-estrelas como tu?

- Não sejas parvo. São todos um bando de idiotas. De idiotas ou anormais. Eu diria que noventa e cinco por cento dos tipos que pretendem tornar-se burocratas não valem um chavo. Estou a falar a sério. Mal sabem ler.

- Então, por que razão pretendes ingressar no Ministério dos Negócios Estrangeiros?

- Por todo o tipo de razões - redarguiu. - Por exemplo, agrada-me a ideia de trabalhar no estrangeiro. Mas pretendo principalmente testar as minhas capacidades. E, se vou testar-me, pretendo fazê-lo na maior área que existe: a nação. Quero verificar até onde consigo chegar e quanto poder consigo exercer neste enorme e insano sistema burocrático. Percebes o que quero dizer?

- Parece um jogo.

- É um jogo. Não me interessa minimamente o poder e o dinheiro em si. Não me interessam de facto. Posso ser um cabrão egoísta, mas sou incrivelmente frio em relação a essas coisas. Posso ser um santo Zen. Se há coisa que me move, é a curiosidade. Quero verificar do que sou capaz na imensidão e na dureza do mundo.

- E suponho que não te preocupas com os «ideais»?

- Em absoluto. A vida não contempla os ideais. Mas exige padrões de acção.

- Mas há muitas outras alternativas de vida, não há? - perguntei.

- Aprecias o modo como eu vivo, não aprecias?

- Não é isso que está em questão. Eu nunca conseguiria ingressar na Universidade de Tóquio; não consigo dormir com qualquer rapariga sempre que me apetece; não sou grande conversador; as pessoas não me olham com admiração; não tenho namorada; e o futuro não irá sorrir-me quando obtiver o meu bacharelato em Literatura numa universidade privada de segunda classe. Que importância tem se aprecio ou não o modo como vives?

- Estás a dizer que invejas o meu modo de vida?

- Não, não invejo - afirmei. - Estou demasiado habituado a ser quem sou. E, de facto, estou-me absolutamente nas tintas para a Universidade de Tóquio ou para o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Só sinto inveja por teres uma namorada magnífica como a Hatsumi.

O Nagasawa manteve-se em silêncio enquanto comia. Quando o jantar terminou, disse: - Sabes, Watanabe, tenho a sensação de que, talvez dentro de dez ou vinte anos depois de sairmos daqui, iremos encontrar-nos algures. E, de qualquer modo, creio que haverá uma espécie de ligação entre nós.

- Isso soa a Dickens - declarei com um sorriso.

- Realmente - disse ele, sorrindo também. - Mas os meus palpites geralmente são certos.

Saímos da cantina e fomos a um bar, onde ficámos a beber até depois das nove horas.

- Diz-me uma coisa, Nagasawa, qual é o «padrão de acção» na tua vida?

- Vais rir-te se te disser.

- Não, prometo que não.

- Muito bem. Ser um cavalheiro - respondeu.

Não me ri, mas quase caí da cadeira. - Ser um cavalheiro? Um cavalheiro?

- Tu ouviste-me bem.

- O que significa ser um cavalheiro? Como defines isso?

- Um cavalheiro é alguém que não faz aquilo que quer fazer mas aquilo que deve fazer.

- És o tipo mais estranho que já conheci - afirmei.

- E tu és o tipo mais atinado que já conheci - disse ele. E pagou a conta dos dois.

Na semana seguinte fui às aulas de Artes Dramáticas, mas a Midori Kobayashi continuava ausente. Após uma rápida inspecção à sala, convenci-me de que ela se encontrava ausente e ocupei o meu lugar habitual na fila da frente; escrevi uma carta à Naoko enquanto aguardava que o professor chegasse. Contei-lhe acerca das minhas viagens de Verão, dos caminhos que percorri, das cidades por que passei e as pessoas com quem me cruzei. E todas as noites pensava em ti. Agora que te encontras longe de mim, apercebo-me de que preciso muito de ti. A universidade é incrivelmente entediante, mas, por uma questão pessoal, assisto a todas as aulas e faço todos os trabalhos. Tudo me parece sem sentido desde que partiste. Gostaria de ter uma agradável e demorada conversa contigo. E, se possível, gostaria de te visitar na casa de repouso e estar contigo durante várias horas.

E, se possível, gostaria de caminhar ao teu lado como antigamente. Tenta responder a esta carta, por favor - nem que seja um bilhete curto. Ficaria grato.

Escrevi quatro folhas, dobrei-as, enfiei-as num envelope e enderecei a carta à Naoko para a morada da sua família.

O professor chegara entretanto e procedeu à chamada enquanto limpava o suor da testa. Era um homem baixo e de aspecto taciturno que caminhava apoiado numa bengala de metal. Embora as suas aulas não fossem propriamente divertidas, preparava-as sempre bem e eram interessantes. Teceu um comentário sobre o facto de o tempo estar abrasador como sempre e começou a discorrer sobre o uso do deus ex machina em Eurípedes, explicando como o conceito de «deus» diferia entre Eurípedes e Esquilo ou Sófocles. Discorria já há cerca de quinze minutos quando a porta da sala se abriu e a Midori entrou. Envergava uma camisa desportiva azul-escura, calças de algodão de cor creme e os habituais óculos de sol. Ofereceu ao professor uma espécie de momentâneo sorriso de «desculpe, atrasei-me» e sentou-se ao meu lado. Tirou um caderno - o meu caderno - do saco e entregou-mo. Tinha um bilhete dentro: Desculpa pela quarta-feira passada. Estás zangado?

Decorria já metade da aula e o professor desenhava o esboço de um palco grego no quadro quando a porta se abriu de novo e entraram dois estudantes de capacete na cabeça. Pareciam uma espécie de parelha cómica: um era alto, magro e pálido; o outro era baixo, gordo e moreno, provido de uma comprida barba inadequada ao seu rosto. O rapaz alto trazia um braçado de panfletos de agitação política. O rapaz baixo acercou-se do professor e disse, com alguma cortesia, que gostaria de usar a segunda parte da aula para um debate político e que esperavam que ele cooperasse, acrescentando ainda: - O mundo está cheio de problemas bem mais urgentes e relevantes do que a tragédia grega. - Era mais um anúncio do que um pedido. O professor retorquiu: - Duvido que o mundo tenha problemas bem mais urgentes e relevantes do que a tragédia grega, mas, como não estais dispostos a ouvir o que tenho para dizer, façam o que quiserem. - Agarrou-se à borda da mesa, firmou os pés no chão, agarrou na bengala e claudicou para fora da sala de aula.

Enquanto o estudante alto entregava os panfletos, o outro postou-se no estrado e iniciou a sua palestra. Os panfletos estavam repletos dos habituais slogans simplistas: «ABAIXO AS FRAUDULENTAS ELEIÇÕES PARA A REITORIA DA UNIVERSIDADE!», «REUNAM TODAS AS FORÇAS PARA UMA NOVA GREVE NO CAMPUS!», «ABAIXO O COMPLEXO IMPERIAL-EDUCACIONAL-INDUSTRIAL!». Não me senti importunado com o que eles proclamavam, mas o que escreviam era uma lástima. Não inspirava qualquer confiança nem despertava as paixões. E o discurso do estudante anafado era igualmente péssimo: a mesma velha cantiga com palavras diferentes. O verdadeiro inimigo deste bando não era o Poder Estatal mas a Falta de Imaginação.

- Vamos sair daqui - anunciou a Midori. Anuí com a cabeça enquanto me levantava e ambos nos dirigimos para a porta. O rapaz anafado endereçou-me algumas palavras, mas não consegui perceber. A Midori fez-lhe sinal e disse: - Até logo.

- Ei, seremos contra-revolucionários? - perguntou-me ela quando nos encontrávamos no exterior. - Irão pendurar-nos dos postes de telefone se a revolução for bem sucedida?

- De qualquer modo, primeiro vamos almoçar.

- Está bem. Há um lugar aonde gostaria de te levar. Mas é um pouco longe. Tens tempo?

- Sim, estou livre até à aula das duas da tarde.

Levou-me de autocarro até Yotsuya e mostrou-me uma elegante loja de comida já embalada, num local abrigado por trás da estação. Assim que nos sentámos, serviram-nos sopa e o almoço desse dia em caixas quadradas e avermelhadas. Valia a pena viajar de autocarro para comer ali.

- Excelente comida - declarei.

- E barata. Venho aqui desde o liceu. A minha escola situa-se no fundo da rua. Eram tão rigorosos que me escapulia à socapa para vir comer aqui. Aplicavam-nos uma suspensão se nos apanhassem a comer fora.

Sem os óculos, os olhos da Midori pareciam um pouco mais sonolentos do que da última vez que a vira. Quando não se entretinha com a fina pulseira de prata que usava no pulso esquerdo, esfregava o canto dos olhos com a ponta do dedo mindinho.

- Estás cansada? - perguntei.

- Mais ou menos. Não tenho dormido o suficiente. Mas estou bem, não te preocupes. Desculpa por causa do outro dia. Surgiu-me uma coisa importante e não consegui despachar-me a tempo. Foi de repente, de manhã. Pensei ligar-te para o restaurante, mas não consegui lembrar-me do nome e não sabia o número do teu piso na residência académica. Esperaste muito tempo por mim?

- Não teve importância. Disponho sempre de muito tempo livre.

- Muito tempo?

- Bastante mais do que o necessário. Quem me dera poder dar-te algum desse tempo para poderes dormir mais.

A Midori apoiou o rosto na mão e sorriu-me. - Que simpático és.

- Não sou simpático. Disponho apenas de tempo livre a mais

- retorqui. - A propósito, nesse dia liguei para a tua casa e informaram-me que estavas no hospital. Aconteceu alguma coisa?

- Telefonaste para a minha casa? - perguntou, enquanto um ligeiro vinco se formava entre as suas sobrancelhas. - Como conseguiste o meu número?

- Procurei no gabinete da Associação Académica. Qualquer um pode fazer isso.

Anuiu com a cabeça e recomeçou a distrair-se com a pulseira.

- Essa ideia nunca me teria ocorrido. Também poderia ter procurado o teu número. De qualquer modo, em relação ao hospital, conto-te da próxima vez. Agora não me apetece. Desculpa.

- Não faz mal. Não era minha intenção intrometer-me na tua vida.

- Não, não estás a intrometer-te. Eu é que estou um pouco cansada. Como um macaco à chuva.

- Não deverias ir para casa e descansar?

- Agora não. Vamos embora daqui.

Levou-me até à sua velha escola, a curta distância de Yotsuya.

Quando passámos pela estação, lembrei-me da Naoko e das nossas infindáveis caminhadas. Tudo se iniciara aí. Apercebi-me de que, se não tivesse encontrado a Naoko no comboio nesse domingo de Maio, a minha vida teria sido muito diferente do que era actualmente. Mas depois mudei de ideias: não, mesmo que não nos tivéssemos encontrado nesse dia, a minha vida não teria sido diferente. Estávamos destinados a encontrar-nos. Se não nessa altura, então numa outra. Não havia qualquer fundamento neste pensamento: não passava de um pressentimento.

Sentámo-nos num banco no parque, a observar a sua antiga escola. As paredes tinham trepadeiras e havia pombos agrupados debaixo das empenas a descansarem dos seus voos. Era um edifício velho e acolhedor, com personalidade. Um enorme carvalho elevava-se no recreio e ao seu lado pairava uma coluna de fumo branco. A claridade estival que esmorecia conferia ao fumo um aspecto suave e nebulado.

- Sabes o que é aquele fumo? - perguntou-me a Midori de repente.

- Não faço ideia.

- Estão a queimar os pensos higiénicos dos balneários.

- De verdade? - Não me ocorreu dizer mais nada.

- Pensos dos balneários, tampões, coisas desse género - proferiu com um sorriso. - É uma escola de raparigas. O velho porteiro recolhe essas coisas de todos os recipientes e queima-as no incinerador. O fumo provém disso.

- Uau.

- Sim, era o que eu costumava dizer a mim própria quando estava nas aulas e via o fumo pela janela. «Uau». Pensa bem: a escola tinha quase mil raparigas. Portanto, digamos que novecentas raparigas começavam a ter a menstruação e que talvez diariamente um quinto delas estava com o período: cento e oitenta raparigas. O que dá um total de cento e oitenta pensos nos recipientes todos os dias.

- Deves ter razão... mas não sei se essa aritmética está correcta.

- De qualquer modo, é um número considerável. Cento e oitenta raparigas. O que achas que se sente quando se recolhe e se queima todas essas coisas?

- Não consigo imaginar - retorqui. Como poderia eu imaginar aquilo por que o velho estaria a passar? Continuámos a observar o fumo.

- Na verdade, eu não queria frequentar esta escola - disse ela, abanando ligeiramente a cabeça. - Queria frequentar uma escola estatal absolutamente normal, com pessoas normais, onde pudesse descontrair-me e divertir-me como uma adolescente normal. Mas os meus pais achavam que seria bom eu frequentar este lugar requintado. Foram eles quem me enfiaram aqui. Sabes, é o que acontece quando progredimos bem durante o ensino primário. O professor diz aos nossos pais: «Com notas assim, ela deveria ir para ali». Por conseguinte, acabei por frequentar esta escola. Durante seis anos, e nunca gostei. Só pensava em sair dali. E, sabes, obtive certificados de mérito por nunca ter chegado atrasada nem ter faltado uma única vez às aulas. É só para teres uma ideia de como eu odiava tanto este lugar. Percebes?

- Não, não percebo.

- Eu odiava este lugar. E não ia deixar-me subjugar. Se permitisse que me derrotasse uma única vez, estaria condenada. A ideia de fraquejar aterrorizava-me. Arrastava-me para a escola com trinta e oito graus de febre. O professor perguntava-me se estava doente, mas eu negava sempre. Quando terminei o liceu, obtive certificados de assiduidade e pontualidade perfeitas e presentearam-me com um dicionário de francês. É por essa razão que agora optei pelo Alemão. Não queria dever nada a esta escola. Estou a falar a sério.

- Por que razão odiavas tanto isto?

- Tu gostavas da tua escola?

- Bem, não, mas também não a odiava. Frequentei uma escola estatal normal, mas nunca me ocorreu reflectir particularmente sobre isso.

- Bem, esta escola - disse a Midori, esfregando o canto do olho com o dedo mindinho - era exclusivamente frequentada por raparigas das classes altas: quase um milhar de raparigas de boas famílias e que obtinham bons resultados nos exames. Raparigas abastadas. Tinham que ser ricas para conseguirem sobreviver. Propinas elevadas, infindáveis contribuições, dispendiosas excursões escolares. Por exemplo, se fôssemos a Quioto, alojavam-nos numa albergaria de primeira classe, serviam-nos os cerimoniais doces do chá em mesas lacadas e permanecíamos uma vez por ano no mais dispendioso hotel de Tóquio para estudarmos as boas maneiras à mesa. Quer dizer, não era uma escola normal. Das cento e sessenta raparigas da minha turma, eu era a única que provinha de um meio da classe média como Toshima. Certa vez verifiquei o registo escolar para saber onde moravam as outras alunas e todas elas provinham de zonas abastadas. Bem, não, havia uma rapariga oriunda de um meio rural em Chiba e, por conseguinte, estabelecemos uma espécie de amizade. E ela era realmente simpática. Convidou-me a ir a casa dela, embora se desculpasse pela distância que eu teria de viajar. Acabei por ir e foi incrível, aquele gigantesco pedaço de terra que requeria uma caminhada de quinze minutos só para o percorrermos. Tinha um jardim assombroso e dois cães enormes e compactos como carros que eram alimentados com bifes. Mesmo assim, esta rapariga sentia vergonha de viver em Chiba. Esta rapariga ia para a escola num Mercedes Benz para não chegar atrasada! Com um motorista! Igualzinho aos do Green Hornet: o chapéu, as luvas brancas, tudo isso. E, mesmo assim, ela sentia um complexo de inferioridade. Dá para acreditar? Abanei a cabeça.

- Eu era a única rapariga em toda a escola que vivia num lugar como Kita-Otsuka Toshima. E abaixo da alínea «profissão do pai» dizia «Livreiro». Toda a gente da minha turma considerava isso algo de admirável: «Oh, és uma felizarda, podes ler qualquer livro que quiseres» e comentários do género. Obviamente, pensavam que era alguma livraria gigantesca como Kinokuniya. Nunca teriam imaginado que era a pobre e pequena Livraria Kobayashi. A porta abria-se com um rangido e só se viam revistas. As mais procuradas eram as revistas de papel lustroso, com fotos de mulheres e suplementos ilustrados sobre as últimas técnicas sexuais. As donas de casa da zona compravam-nas e sentavam-se à mesa da cozinha a lê-las de uma ponta à outra e depois experimentavam essas técnicas quando os maridos regressavam a casa. E essas revistas apresentavam as posições mais incríveis! É nisso que as donas de casa pensam durante todo o dia? Os livros de banda desenhada também se vendem bem: Magazine, Sunday, Jump, E, evidentemente, os semanários. Portanto, esta «livraria» é quase toda ela revistas. Oh, continha alguns livros: edições de bolso, livros de mistério, de faca-e-alguidar e romances. Era tudo o que vendia. E livros de «Faça Você Mesmo».- como ganhar no Go, como cultivar bonsais, como proferir discursos de casamento, como fazer sexo, como deixar de fumar e tudo o que possas imaginar. Vendíamos inclusive material de escrita: pilhas de canetas, lápis e blocos de apontamentos ao lado da caixa registadora. Limitava-se a isso. Nada de Guerra e Paz, nada de Kenzaburo Oe, nada de Uma Agulha no Palheiro. Era assim a Livraria Kobayashi. Ser uma «felizarda» reduzia-se a isso. Achas que sou uma felizarda?

- Consigo imaginar a livraria.

- Tu percebes o que quero dizer. Todas as pessoas da vizinhança a frequentavam, algumas durante anos, e nós limitávamo-nos a satisfazer os seus pedidos. É um bom negócio, mais do que o suficiente para suportar um agregado familiar de quatro pessoas; sem dívidas, duas filhas no colégio, mas pouco mais. Não havia dinheiro disponível para extras. Nunca deveriam ter-me matriculado numa escola assim. Era a receita certa para provocar dor de coração. Era obrigada a ouvi-los a resmungarem comigo sempre que a escola solicitava alguma contribuição e sentia sempre um terror absoluto de ficar sem dinheiro se saísse com as minhas amigas da escola e elas pretendessem comer algo dispendioso. Era uma vida triste. A tua família é rica?

- A minha família? Não, os meus pais são trabalhadores absolutamente normais, nem ricos, nem pobres. Sei que não é fácil para eles custearem os meus estudos numa universidade privada em Tóquio, mas, como sou filho único, não é assim tão complicado. Enviam-me o dinheiro necessário e tenho que trabalhar em part-time. Vivemos numa casa típica, com um pequeno jardim, e temos um Toyota Corolla.

- Que tal é o teu trabalho?

- Trabalho três noites por semana numa loja de discos em Shinjuku. É fácil. Limito-me a ficar sentado e a tomar conta da loja.

- Estás a falar a sério? - perguntou a Midori. - Não sei, mas, a julgar pelo teu aspecto, nunca pensei que sofresses privações.

- E é verdade. Nunca sofri privações. Mas também não tenho toneladas de dinheiro. Sou como a maioria das pessoas.

- Bem, a «maioria das pessoas» na minha escola eram ricas - retorquiu ela, com as mãos pousadas no regaço. - O problema residia nisso.

- Então agora desfrutarás de várias oportunidades para veres um mundo sem esse tipo de problemas. Mais do que desejas, provavelmente.

- Ei, diz-me uma coisa, qual é para ti a melhor coisa em se ser rico?

- Não sei.

- Ser capaz de dizer que já não temos dinheiro. Do género, se eu sugerisse algo a uma amiga da escola, ela poderia dizer: «Desculpa, não tenho dinheiro». E isso é algo que eu nunca poderia dizer se a situação se invertesse. Se eu dissesse «Não tenho dinheiro», significava realmente que «Não tenho dinheiro». É triste. Ou então, se alguma daquelas raparigas bonitas dissesse «Hoje estou com um aspecto horrível, não me apetece sair», não havia problema, mas se fosse uma das raparigas feias a dizer a mesma coisa, rír-se-iam dela. Para mim, o mundo era assim. Durante seis anos, até ao ano passado.

- Acabarás por superar isso.

- Espero bem. Frequentar a universidade é um alívio tão grande! Está cheia de gente normal.

Sorriu com um ínfimo curvar do lábio e passou a mão pelo cabelo curto.

- Tens um emprego? - inquiri.

- Sim, redijo notas para mapas. Conheces aqueles pequenos panfletos que incluem mapas? Com descrições dos diferentes bairros, o número de habitantes e pontos de interesse. Aqui há este ou aquele percurso pedestre ou esta ou aquela lenda, ou alguma flor ou ave especial. Redijo os textos disso. É tão fácil! Não me ocupa tempo nenhum. Consigo redigir um livrinho inteiro num dia passado a investigar na biblioteca. Tudo o que tenho a fazer, é dominar um par de segredos e acabam por nos solicitar todo o tipo de trabalho.

- Que género de segredos?

- Por exemplo, incluir algo que ninguém escreveu ainda e assim as pessoas da editora dos mapas pensam que somos um génio literário e enviam-nos mais trabalho. Não precisa de ser nada especial, pode ser uma coisinha de nada. Do género: quando construíram uma barragem num determinado vale, a água cobriu uma aldeia, mas todas as Primaveras as aves chegam vindas do sul e podemos vê-las a voar sobre o lago. Basta incluir um episódio do género e as pessoas adoram, é tão descritivo e sentimental.

As pessoas que normalmente trabalham em part-time não se preocupam com coisas assim, mas consigo ganhar razoavelmente com o que escrevo.

- Sim, mas tens que andar à procura desses «episódios».

- Com efeito - respondeu ela, baloiçando ligeiramente a cabeça. - Mas quando se anda à procura delas, geralmente encontramo-las. E se não as encontrarmos, sempre se pode inventar algo inofensivo.

- Aha!

- Estou inocente - disse ela.

Pediu-me que lhe falasse acerca do meu dormitório e contei-lhe as histórias habituais sobre o hastear da bandeira e os exercícios calisténicos do Sargento ao som da rádio. O Sargento fê-la rir em particular, tal como parecia acontecer com toda a gente. Ela disse que achava que seria divertido poder visitar o dormitório. Respondi-lhe que o dormitório não proporcionava qualquer diversão. - Não passa de centenas de tipos em quartos imundos, a beberem e a masturbarem-se.

- Isso inclui-te também a ti?

- Inclui qualquer homem à face da terra - expliquei. - As raparigas têm o período e os rapazes masturbam-se. Todos eles.

- Mesmo aqueles que têm namorada? Quer dizer, parceiras sexuais.

- Não tem nada a ver com isso. O estudante de Keio que vive no quarto ao lado do meu, masturba-se antes de cada encontro com a namorada. Ele diz que isso o descontrai.

- Não percebo grande coisa acerca disso. Frequentei uma escola de raparigas durante muito tempo.

- Pelos vistos, as revistas de papel lustroso com fotos de mulheres não abordavam esses assuntos.

- Nem pensar! - afirmou, rindo-se. - De qualquer modo, Watanabe, tens tempo livre este domingo? Estás disponível?

- Estou livre todos os domingos. Pelo menos até às seis. Depois tenho que ir trabalhar.

- Por que não me visitas? Na Livraria Kobayashi. A loja já estará fechada a essa hora, mas permaneço lá sozinha durante todo o dia. Para o caso de receber alguma chamada importante. E se combinássemos almoçar? Poderia cozinhar para ti.

- Gostaria muito - disse-lhe.

A Midori arrancou uma página de um caderno e desenhou um mapa detalhado do percurso até à sua casa. Desenhou um enorme X com uma caneta vermelha para assinalar a sua morada. - Facilmente a encontrarás. Tem um enorme letreiro: Livraria Kobayashi. Vem ao meio-dia. Já terei o almoço preparado.

Agradeci-lhe e enfiei o mapa no bolso. - Acho que é melhor regressar ao campus. A minha aula de Alemão começa às duas. - A Midori disse que tinha de partir também e entrou no comboio para Yotsuya.

No domingo, levantei-me às nove horas, barbeei-me, lavei a roupa e pendurei-a no telhado. Estava um dia bonito. Pairava no ar a primeira fragrância do Outono. Libélulas vermelhas esvoaçavam em redor do pátio, perseguidas pelas crianças da vizinhança que tentavam capturá-las com redes. O vento não soprava e a bandeira do Sol Nascente pendia inerte no mastro. Vesti uma camisa recém-engomada e dirigi-me para a paragem do eléctrico. Eis os arredores de uma residência académica num domingo de manhã: ruas desertas, praticamente sem vida, com a maior parte das lojas encerradas. Os poucos sons audíveis ecoavam com uma nitidez especial. Uma rapariga calçada com socos atravessou ruidosamente a rua de asfalto e quatro ou cinco miúdos ao lado da paragem do eléctrico lançavam pedras a uma fileira de latas vazias. Havia uma florista aberta e comprei um ramalhete de narcisos. Narcisos no Outono: era estranho. Mas eu sempre apreciara essa flor em particular.

Os únicos passageiros no eléctrico nessa manhã de domingo eram três velhas. Olhavam para mim e para as flores. Uma delas sorriu-me. Devolvi-lhe o sorriso. Sentara-me no último lugar e observava as casas antigas a perpassarem junto à janela. O eléctrico quase roçava nas goteiras. O estendal de uma das casas tinha dez pés de tomateiro, ao lado dos quais um enorme gato preto se estirava ao sol. No jardim de uma outra casa, uma menina soprava bolas de sabão. Captei uma canção de Ayumi Ishida proveniente de algures e conseguia sentir inclusive o aroma a caril de alguém que cozinhava. O eléctrico serpeava através desta viela retirada. Embarcaram mais passageiros nas paragens ao longo do percurso, mas as três velhas, sentadas muito juntas e viradas umas para as outras, continuavam a conversar entusiasticamente acerca de algo.

Apeei-me perto da Estação de Otsuka e, de acordo com o mapa da Midori, segui ao longo de uma ampla rua que pouco oferecia para ver. Nenhuma das lojas parecia desfrutar de um negócio próspero, até porque se situavam em velhos edifícios, de interiores de aspecto sombrio, e as palavras em alguns dos letreiros estavam já desbotadas. A julgar pela idade e estilo dos edifícios, esta área fora poupada aos ataques aéreos durante a guerra e quarteirões inteiros haviam permanecido intactos. Algumas das zonas foram completamente reconstruídas, mas as restantes haviam sido praticamente ampliadas ou reparadas, e eram estes restauros que lhes conferiam um aspecto mais andrajoso do que os próprios edifícios antigos.

A atmosfera deste lugar indicava que a maior parte dos residentes originais se haviam agastado com o trânsito, o ar poluído, o barulho e as rendas altas. Optaram por mudar para os subúrbios, deixando para trás apartamentos baratos, bem como escritórios, lojas que dificilmente encontrariam um comprador interessado e algumas pessoas obstinadas que se agarravam às velhas propriedades de família. Tudo parecia manchado e sujo, como se envolto numa névoa de gases de exaustão.

Após dez minutos de caminhada ao longo desta rua, desemboquei numa bomba de gasolina numa esquina; depois enveredei pela direita, em direcção a um pequeno bloco de lojas no meio das quais avistei o letreiro da Livraria Kobayashi. Não era, de facto, uma loja grande, mas também não era tão pequena quanto a descrição da Midori me fizera crer. Não passava de uma típica livraria de bairro, do mesmo género daquelas a que eu acorria quando publicavam a banda desenhada para rapazes. Apoderou-se de mim um sentimento de nostalgia enquanto me mantinha especado diante da livraria.

A fachada fora completamente vedada com uma enorme portada de metal com o anúncio de uma revista: ADQUIRA AQUI A SUA REVISTA SEMANAL BUNSHUN. Faltavam ainda quinze minutos para o meio-dia, mas não sentia qualquer desejo de passar o tempo a deambular através daquele bloco com um ramalhete de narcisos; por conseguinte, toquei à campainha ao lado da portada e recuei dois passos enquanto aguardava. Passaram-se quinze segundos sem aparecer ninguém e, enquanto ponderava se deveria tocar de novo, ouvi o ruído de uma janela a abrir-se no piso superior. Olhei para cima e vi a Midori debruçada a acenar-me.

- Entra! - bradou ela. - Levanta a portada.

- Não faz mal ter vindo mais cedo?

- Não faz mal, sobe. Estou atarefada na cozinha. - Fechou a janela.

A portada emitiu um horrível rangido enquanto a erguia cerca de um metro; enfiei-me debaixo e baixei-a. O interior da loja apresentava-se escuro como breu. Consegui chegar às apalpadelas até à escadaria nas traseiras e tropecei em pilhas de revistas amarradas. Desapertei os cordões dos sapatos e subi para a sala de estar. O interior da casa era escuro e lúgubre. A escadaria conduzia a um simples vestíbulo com um sofá e cadeirões. Era uma divisão exígua, provida de uma diminuta claridade proveniente da janela e lembrava os antigos filmes polacos. Havia uma espécie de área de armazenagem à esquerda e o que parecia ser a porta de um quarto de banho. Tive que subir com cuidado a escadaria íngreme até ao segundo piso, mas, uma vez aí, senti-me profundamente aliviado pois era muito mais luminoso do que o piso inferior.

- Estou aqui - ouvi a voz da Midori. À direita, no topo da escadaria, parecia situar-se a sala de jantar e, mais além, a cozinha. A casa era antiga, mas a cozinha fora aparentemente recém-equipada com novos armários, uma banca e torneiras brilhantes e reluzentes. A Midori estava ocupada a confeccionar a refeição. Havia uma panela a ferver e o ar estava repleto do aroma a peixe grelhado. - Há cerveja no frigorífico - anunciou ela, olhando na minha direcção. - Senta-te enquanto acabo isto. -Peguei numa lata de cerveja e sentei-me à mesa. A bebida estava tão gelada que provavelmente permanecera no frigorífico durante quase um ano. Havia sobre a mesa um pequeno cinzeiro branco, um jornal e um frasco de molho de soja. E também um bloco de apontamentos e uma caneta, com um número de telefone e contas que pareciam ser cálculos relacionados com a loja. - Dentro de dez minutos está pronto - anunciou. -Consegues esperar?

- Claro que consigo.

- Então aguça essa fome. Estou a preparar bastante comida. Continuei a sorver a cerveja e concentrei a minha atenção

na Midori enquanto ela prosseguia com os preparativos, de costas voltadas para mim. Os seus movimentos eram rápidos e ágeis enquanto se ocupava com mais de quatro tarefas em simultâneo. Ora provava algo que cozia, ora se atarefava com a tábua de cozinha, zás-zás-zás, ora tirava algo do frigorífico para encher um recipiente e, sem que me apercebesse, lavara inclusive uma panela que acabara de usar. De costas, parecia uma percussionista indiana: a tocar uma sineta, a bater num bloco de madeira, a percutir o osso de um búfalo, sendo cada movimento preciso e económico, num equilíbrio perfeito. Observava-a com reverência.

- Se precisares da minha ajuda, diz-me - declarei, tentando ser prestável.

- Está bem - redarguiu com um sorriso. - Estou acostumada a fazer tudo sozinha. - Envergava calças de ganga justas e uma T-shirt azul-marinho. O logotipo da Apple Records quase recobria as costas da T-shirt. Tinha ancas incrivelmente estreitas, como se tivesse descurado a puberdade, quando as ancas se tornam mais cheias, e este pormenor conferia-lhe um aspecto bastante mais andrógino do que era habitual na maior parte das raparigas que usavam calças de ganga justas. A luz que se filtrava pela janela da cozinha conferia-lhe uma espécie de contornos vagos.

- Não precisavas realmente de preparar um tal banquete -disse-lhe.

- Não é um banquete - respondeu a Midori sem se virar. - Ontem estava demasiado ocupada para efectuar verdadeiras compras. Estou apenas a juntar umas coisas que tinha no frigorífico. Não precisas de te preocupar. Além do mais, é tradição da família Kobayashi receber bem os convidados. Não sei explicar, mas gostamos de receber convidados. É algo inato, uma espécie de doença. Não por sermos especialmente cordiais ou por as pessoas gostarem de nós ou algo do género, mas, quando alguém aparece, tratamo-lo sempre bem. Todos nós temos esta falha de personalidade, para o melhor e para o pior. O meu pai, por exemplo: quase nunca bebe, mas a casa está cheia de bebidas alcoólicas.

Para quê? Para servir os convidados! Portanto, não te refreies: bebe toda a cerveja que te apetecer.

- Obrigado.

Lembrei-me de repente de que deixara os narcisos no piso de baixo. Pousara-os para tirar os sapatos. Desci ao piso de baixo e deparei-me com os dez brilhantes rebentos jazendo na obscuridade. A Midori dispôs as flores num copo alto e estreito que tirou do armário.

- Adoro narcisos - declarou. - Costumava cantar «Sete Narcisos» no concurso de talentos na escola. Conheces?

- Evidentemente.

- Tínhamos um grupo de música popular. Eu tocava guitarra. Entoou «Sete Narcisos» enquanto servia a comida.

Os cozinhados da Midori revelaram-se bem melhores do que eu esperara: um surpreendente sortido de fritos, picles, cozidos e assados, usando ovos, cavala, legumes frescos, beringelas, cogumelos, rabanetes e sementes de sésamo, tudo confeccionado segundo o delicado estilo de Quioto.

- Isto está maravilhoso - elogiei, de boca cheia.

- Está bem, mas agora diz-me a verdade - retorquiu. - Não esperavas que eu cozinhasse tão bem, pois não... a julgar pelo meu aspecto, hã?

- De facto - respondi com toda a franqueza.

- Provéns da região de Kansai e, por conseguinte, aprecias este género de temperos delicados, certo?

- Não me digas que mudaste o tipo de cozinhados especialmente para mim?

- Não sejas ridículo! Não me daria a tanto trabalho. Não, a nossa comida é sempre assim.

- Então, a tua mãe, ou o teu pai, é de Kansai?

- Não. O meu pai nasceu em Tóquio e a minha mãe é de Fukushima. Não há uma única pessoa de Kansai na minha família. Todos provimos de Tóquio ou de Kanto, no norte.

- Não percebo - disse-lhe. - Como consegues preparar este tipo de comida Kansai cem por cento autêntica? Alguém te ensinou?

- Bem, é uma longa história - respondeu enquanto comia uma tira de ovo estrelado.

- A minha mãe odiava qualquer tipo de trabalho doméstico e quase nunca cozinhava. E havia ainda que cuidar do negócio; portanto, dizia sempre: «Hoje estamos demasiado atarefados, vamos encomendar a comida», ou «Compremos uns croquetes no talho», e coisas do género. Eu detestava isso já quando era miúda, quer dizer, preparar uma grande panela de caril e comer a mesma coisa durante três dias seguidos. Um dia, frequentava eu o nono ano de escolaridade, decidi cozinhar para a família e fazê-lo bem. Fui ao enorme Kinokuniya em Shinjuku e comprei o maior e o mais atraente livro de culinária que encontrei e estudei-o cabalmente: como seleccionar a tábua de cozinha, como amolar as facas, como desossar peixe, como cortar postas de atum fresco, tudo. Descobri que o autor do livro era oriundo de Kansai, e é por essa razão que todos os meus cozinhados são ao estilo Kansai.

- Estás a dizer que aprendeste a preparar todas estas coisas a partir de um livro?!

- Poupei dinheiro e fui provar os verdadeiros cozinhados. Foi assim que aprendi os temperos. Tenho uma intuição bastante boa. No entanto, sou uma nulidade no pensamento lógico.

- É surpreendente teres aprendido sozinha a cozinhar tão bem, sem ninguém te ter ensinado.

- Não foi fácil crescer numa casa onde ninguém se preocupava minimamente com a comida - redarguiu com um suspiro. - Quando eu dizia que queria comprar facas e panelas decentes, não me davam o dinheiro. «O que temos serve muito bem», diziam-me, mas eu respondia que isso era uma tolice, pois não se conseguia desossar um peixe com o tipo de facas embotadas que tínhamos em casa, mas diziam de imediato: «Para que raios é preciso desossar o peixe?». Era inútil tentar comunicar com eles. Poupei a minha mesada e adquiri facas, panelas, passadores e utensílios do género, à verdadeiro profissional. Dá para acreditar? Uma rapariga de quinze anos a poupar os tostões para comprar passadores, pedras de amolar e panelas para a confecção da tempura, quando todas as outras raparigas da escola recebiam enormes mesadas para comprarem belos vestidos e sapatos. Não tens pena de mim?

Anuí com a cabeça enquanto engolia uma colherada de uma sopa fina com legumes junsai frescos.

- Quando estava no décimo ano, tive que arranjar uma frigideira para fritar ovos: uma comprida e estreita frigideira para confeccionar este estilo de ovos estrelados dashimaki que estamos a comer agora. Comprei-a com o dinheiro que deveria ter usado para um novo soutien. Tive que usar o mesmo soutien durante três meses. Dá para acreditar? Lavava o soutien à noite, quase enlouquecia para tentar secá-lo e usava-o no dia seguinte. E se não secasse bem, ficava a braços com uma tragédia. A coisa mais triste do mundo é usar um soutien húmido. Deambulava de um lado para o outro com as lágrimas a escorrerem-me dos olhos. Só de pensar que andava a sofrer por causa de uma frigideira!

- Compreendo o que queres dizer - respondi com uma gargalhada.

- Eu sei que não deveria dizer isto, mas foi de facto uma espécie de alívio para mim quando a minha mãe morreu, pois já podia dirigir o orçamento familiar à minha maneira. Podia comprar o que eu quisesse. Por conseguinte, agora disponho de um conjunto relativamente completo de utensílios de cozinha. O meu pai desconhece por completo o orçamento familiar.

- Quando morreu a tua mãe?

- Há dois anos, de cancro. Um tumor cerebral. Encontrava-se já internada há um ano e meio. Foi terrível. Sofreu do início ao fim. Acabou por enlouquecer; tinha que estar constantemente anestesiada e mesmo assim não conseguia morrer; mas, quando acabou por ocorrer, foi praticamente uma morte misericordiosa. É o pior tipo de morte: a pessoa sofre e a família passa por um inferno. Gastámos todos os ienes que possuíamos, quer dizer, davam-lhe injecções: zás, zás, zás, vinte mil ienes de cada vez, e era preciso prestar assistência a toda a hora. Ela ocupava-me de tal modo o tempo que não conseguia estudar, tive que adiar a universidade durante um ano. E, como se isso não fosse já suficientemente mau... - Calou-se a meio da frase, pousou os pauzinhos e suspirou. - Como é que esta conversa se tornou tão sombria de repente?

- Começou com o assunto do soutien - respondi.

- De qualquer modo, acaba os teus ovos e pensa no que acabei de te contar - disse ela com uma expressão solene.

Fiquei saciado com a porção que me servira, mas a Midori comeu bastante menos. - Cozinhar estraga-me o apetite - declarou.

Levantou a mesa, limpou as migalhas, pegou no maço de Marlboro, enfiou um cigarro na boca e acendeu-o. Pegou no copo com os narcisos e observou os rebentos durante alguns segundos. - Acho que não vou pô-los numa jarra. Se os deixar assim, é como se tivesse acabado de os colher junto a um lago e os tivesse enfiado na primeira coisa que encontrei.

- Colhi-os, de facto, junto ao lago na Estação de Otsuka -anunciei.

Riu-se. - És de facto estranho. A pregar partidas com uma cara perfeitamente séria.

Apoiara o queixo na mão e, após fumar metade do cigarro, esmagou-o no cinzeiro. Esfregou os olhos como se o fumo a incomodasse.

- É suposto as raparigas serem um pouco mais elegantes quando apagam um cigarro. Tu fizeste-o como se fosses um lenhador. Não deverias esmagá-lo contra o cinzeiro, mas pressioná-lo levemente nas bordas do cinzeiro. Assim já não ficaria todo dobrado. E é suposto as raparigas nunca expirarem o fumo pelo nariz. E a maioria das raparigas nunca contariam que usaram o mesmo soutien durante três meses se estivessem a almoçar sozinhas com um homem.

- Eu sou uma lenhadora - disse a Midori, coçando uma zona junto ao nariz. - Nunca consigo ser chique. Às vezes tento fazê-lo por brincadeira, mas nunca resulta. Tens mais críticas para mim?

- As raparigas nunca fumam Marlboro - declarei.

- Que diferença faz? Todos têm um sabor desagradável. - Revirou o maço vermelho de Marlboro na mão. - Comecei a fumar há um mês. Não se trata de morrer de desejos por tabaco ou algo do género. Apeteceu-me simplesmente.

- E porquê?

Comprimiu as mãos unidas sobre a mesa e ponderou por momentos. - Que diferença faz? Tu não fumas?

- Deixei de fumar em Junho.

- Porquê?

- Era aborrecido. Detestava ficar sem cigarros a meio da noite. Detesto ter algo a controlar-me desse modo.

- És bastante decidido sobre o que gostas e não gostas - afirmou.

- Talvez seja. Talvez seja por essa razão que as pessoas não gostam de mim. Nunca gostaram de mim.

- Deve-se ao facto de tu o mostrares - disse ela. - Tornas óbvio que não te preocupas se as pessoas gostam ou não de ti. Isso irrita algumas pessoas. - Falava quase num balbuceio, com o queixo apoiado na mão. - Mas eu gosto de conversar contigo. Falas de um modo tão invulgar. «Detesto ter algo a controlar-me desse modo».

Ajudei-a a lavar a loiça. Ela lavava enquanto eu limpava e empilhava a loiça sobre a banca.

- A tua família saiu hoje? - perguntei.

- A minha mãe continua na sua campa. Faleceu há dois anos.

- Pois, já tinhas referido isso.

- A minha irmã saiu com o noivo. Provavelmente foram dar um passeio de carro. O noivo dela trabalha numa empresa de automóveis. E adora carros. E eu não aprecio nada carros.

Parou de falar e continuou a lavar a loiça. Parei de falar também e continuei a limpar.

- E depois há o meu pai - mencionou algum tempo depois.

- Claro - disse eu.

- Partiu para o Uruguai em Junho do ano passado e tem permanecido lá desde então.

- Uruguai?! Porquê o Uruguai?

- Ele andava a considerar instalar-se lá, acredites ou não. Um velho amigo da tropa possui uma quinta lá. E de repente o meu pai anuncia que vai partir também, que não há limites para o que pode fazer no Uruguai; portanto, meteu-se no avião e lá foi ele. Tentámos tudo para o demover, dizendo coisas do género: «Para que queres ir para um lugar desses? Não sabes falar a língua, quase nunca saíste de Tóquio». Mas não conseguimos convencê-lo. A perda da minha mãe foi um verdadeiro choque para ele. Com efeito, deixou-o um pouco desorientado. Ele adorava-a. Adorava-a verdadeiramente.

Havia poucas palavras que eu pudesse proferir como resposta. Limitei-me a olhar fixamente e boquiaberto para a Midori.

- Sabes o que ele me disse a mim e à minha irmã quando a minha mãe faleceu? «Preferia ter-vos perdido a vós as duas do que a ela». Fiquei sem palavras. Não consegui dizer nada.

Percebes o que quero dizer? Ninguém deveria dizer uma coisa assim. Sim, eu sei que ele perdeu a mulher que amava, a sua companheira de vida. Compreendo a dor, a tristeza, a dilaceração. Tenho pena dele. Mas um pai nunca diria às filhas: «Deveriam ter morrido vocês em vez dela». Quer dizer, é demasiado terrível. Não concordas?

- Sim, percebo o que queres dizer.

- É uma ferida que nunca desaparecerá - declarou, abanando a cabeça. - De qualquer modo, todas as pessoas da minha família são um pouco diferentes. Todos nós temos uma faceta um pouco estranha.

- Assim parece - retorqui.

- Mesmo assim, é maravilhoso duas pessoas amarem-se, não achas? Quer dizer, um homem amar a esposa ao ponto de dizer às filhas que deveriam ter morrido elas no lugar da mãe...?

- Talvez assim seja, agora que o enuncias desse modo.

- E depois, abandona-nos às duas e foge para o Uruguai. Continuei a limpar a loiça sem responder. Quando terminámos, a Midori guardou a loiça nos armários.

- E tens tido notícias do teu pai? - inquiri.

- Um postal. Em Março. Mas imagina o que ele escreveu: «Está calor aqui», ou «A fruta não é tão boa como eu esperava». Coisas desse género. Quer dizer, por favor! Um postal com a estúpida imagem de um burro! O homem perdeu o tino! Nem sequer mencionou se encontrara o tal tipo, o tal amigo dele. Quase no final do postal, acrescentou que, assim que se instalasse, nos chamaria às duas, mas desde então não nos mandou notícias. E nunca responde às nossas cartas.

- Que farias se o teu pai dissesse «Venham para o Uruguai»?

- Eu iria, pelo menos para ter uma ideia daquilo. Talvez fosse divertido. A minha irmã diz que recusaria absolutamente. Não suporta coisas sujas e lugares sujos.

- O Uruguai é um local sujo?

- Sei lá! Ela pensa que sim. Por exemplo, diz que as estradas estão cheias de excrementos de burros e infestadas de moscas, que os quartos de banho não funcionam e que há lagartos e escorpiões a rastejarem por toda a parte. Talvez ela tenha visto um filme desse género. E também não suporta moscas. Tudo o que ela deseja, é passear em carros luxuosos através de locais paisagísticos.

- A sério?

,. - Quer dizer, que mal tem o Uruguai? Eu iria.

- E quem ficaria a dirigir a livraria?

- A minha irmã, mas ela odeia isto. Há um tio nosso que reside neste bairro, ajuda-nos e encarrega-se das entregas. Também ajudo quando tenho tempo. Uma livraria não implica propriamente trabalho árduo e conseguimos desenvencilhar-nos. Se se revelar demasiado trabalhoso, vendemos a livraria.

- Gostas do teu pai?

A Midori abanou a cabeça. - Não especialmente.

- Então como serias capaz de ir ao encontro dele no Uruguai?

- Acredito nele.

- Acreditas nele?

- Sim, não sinto um carinho especial, mas acredito no meu pai. Como poderia não acreditar num homem que abandona a casa que tem, as filhas, o trabalho e foge para o Uruguai devido ao choque de perder a esposa? Percebes o que quero dizer?

Suspirei. - Mais ou menos, mas não completamente. A Midori riu-se e deu-me uma palmadinha nas costas. - Deixa lá - disse. - Não tem grande importância.

Nesse domingo à tarde sucederam-se várias coisas bizarras.

Deflagrou um incêndio perto da casa da Midori e, quando

subimos para o terraço do terceiro piso, demos uma espécie

de beijo. Soa estúpido dizê-lo deste modo, mas foi assim que

as coisas se passaram.

Bebíamos café depois da refeição e conversávamos acerca da universidade quando ouvimos as sirenes. O som aumentava cada vez mais e parecia que havia cada vez mais carros dos bombeiros. Várias pessoas passavam a correr em frente da loja e algumas gritavam. Â Midori abriu a janela numa divisão que dava para a rua e observou o que se passava. - Aguarda um momento - disse e ausentou-se; pouco depois, ouvi passos apressados na escadaria.

Continuei sentado a beber o café sozinho enquanto tentava recordar-me onde ficava o Uruguai. Vejamos, o Brasil ficava ali e a Venezuela ali, e a Colômbia algures por ali, mas não conseguia lembrar-me onde ficava o Uruguai. Momentos depois, a Midori persuadiu-me a segui-la apressadamente.

Segui-a até ao fim do corredor e subimos uma escadaria estreita e íngreme que desembocava num terraço de madeira provido de estacas de bambu para estender a roupa a secar. O terraço era mais elevado do que a maioria dos telhados vizinhos e proporcionava um bom ponto de observação das redondezas. Enormes nuvens de fumo negro irrompiam de uma zona à distância de três ou quatro casas e fluíam em direcção à rua principal impelidas pela brisa. Pairava no ar o cheiro a queimado.

- É a casa do Sakamoto - disse a Midori, debruçando-se sobre a balaustrada. - Costumavam confeccionar os tradicionais apliques para portas e coisas do género. Mas o negócio faliu há algum tempo.

Debrucei-me também sobre a balaustrada e esforcei-me por observar o que se passava. Um edifício de três andares bloqueava-nos a visão do incêndio, mas havia aparentemente três ou quatro carros dos bombeiros que tentavam debelar as chamas. Apenas dois dos veículos conseguiram introduzir-se na estreita viela onde a casa ardia e os outros veículos aguardavam na rua principal. A habitual multidão de basbaques ocupava a zona.

- Ei, talvez fosse melhor reunires os teus pertences de valor e preparares-te para evacuares daqui - alertei a Midori. - O vento sopra agora na direcção contrária, mas pode mudar a qualquer momento e há uma bomba de gasolina precisamente ao lado. Eu ajudo-te a recolheres as coisas.

- Que pertences de valor? - perguntou ela.

- Bem, deve haver algo que queiras salvar: cadernetas de cheques, títulos, documentos legais, coisas do género. Dinheiro para emergências.

- Esquece, não vou fugir daqui.

- Nem que isto comece a arder?

- Tu ouviste-me bem. Não me importo de morrer. Olhei-a nos olhos e ela não afastou o olhar. Não sabia se ela

estava a falar a sério ou a brincar. Mantivemo-nos assim durante alguns momentos e pouco depois deixei de me preocupar.

- Está bem - disse-lhe. - Já percebi. Fico aqui contigo.

- Não te importas de morrer ao meu lado? - perguntou, com os olhos a brilhar.

- Nem pensar - respondi. - Fujo daqui se começar a tornar-se perigoso. Se queres morrer, morre sozinha.

- Que cabrão de sangue-frio!

- Não vou morrer ao teu lado somente porque me convidaste para almoçar. No entanto, se me tivesses convidado antes para jantar...

- Oh, bem... De qualquer modo, fiquemos aqui a observar um pouco mais. Podemos trautear canções. E se acontecer alguma coisa má, nessa altura preocupamo-nos com isso.

- Trautear canções?

A Midori foi buscar ao piso de baixo dois almofadões, quatro latas de cerveja e uma guitarra. Bebemos enquanto observávamos o fumo negro a elevar-se. Ela dedilhava a guitarra e cantava. Perguntei-lhe se não achava que a sua atitude poderia enfurecer os vizinhos. Beber cerveja e cantar enquanto se observa um incêndio debruçados no terraço dos estendais não parecia ser o comportamento mais digno.

- Esquece - respondeu. - Nunca nos preocupamos com o que os vizinhos possam pensar.

Trauteou mais algumas cantigas populares que costumava tocar com a sua banda. Dificilmente diria que ela cantava e tocava bem, mas parecia apreciar a sua própria música. Tocou todos os velhos clássicos: Lemon Tree, Puff (The Magic Dragon), Five HundredMiles, Where Have AU the Flowers GoneF, Michael, Row the Boat Ashore. Tentou aliciar-me inicialmente a acompanhá-la nos baixos harmónicos, mas eu era tão desafinado que acabou por desistir e cantar sozinha, para grande contentamento do seu coração. Continuei a beberricar cerveja enquanto a ouvia a cantar e observava o incêndio. As chamas deflagravam e esmoreciam intermitentemente. As pessoas gritavam e davam ordens. Um helicóptero de um jornal sobrevoou ruidosamente a zona enquanto tiravam fotografias e depois desapareceu. Assaltou-me a preocupação de podermos ter sido incluídos em alguma das fotografias. Um polícia bradou pelo megafone que os transeuntes se afastassem. Uma criancinha chorava pela mãe de quem se perdera. Ouviram-se vidros a estilhaçarem algures. Pouco depois, o vento começou a mudar imprevisivelmente de direcÇão e tombaram flocos de cinza branca à nossa volta, mas a Midori continuou a sorver a sua cerveja e a cantar. Após ter tocado a maioria das canções que conhecia, entoou uma cantiga estranha que ela própria compusera, como me informou:

Adorava cozinhar para ti,

Mas não tenho panelas. Adorava tricotar um lenço para ti,

Mas não tenho lã.

Adorava compor um poema para ti,

Mas não tenho caneta.

- Intitula-se «Não Tenho Nada» - anunciou ela. Era uma canção verdadeiramente horrível, quer a letra, quer a música.

Ouvi este desarrazoado musical enquanto pensava que a casa explodiria em pedaços se a bomba de gasolina fosse atingida pelo incêndio. A Midori cansou-se de cantar, pousou a guitarra e recostou-se contra o meu ombro como um gato ao sol.

- Gostaste da minha canção? - perguntou.

Respondi cautelosamente: - É única e original e muito expressiva da tua personalidade.

- Obrigada - disse. - O tema resume-se ao facto de eu não possuir nada.

- Sim, bem me parecia que fosse isso.

- Sabes, quando a minha mãe morreu... -Sim?

- Não me senti minimamente triste. -Oh.

- E também não me senti triste quando o meu pai partiu.

- De verdade?

- É a verdade. Achas que sou horrível? Que não tenho coração?

- Tenho a certeza de que terás as tuas razões.

- As minhas razões. Hmm. As coisas eram bastante complicadas nesta casa. Mas sempre pensei, quer dizer, tratava-se da minha mãe e do meu pai, e claro que ficaria triste se morressem ou nunca mais os visse. Mas as coisas não se passaram assim. Não senti nada. Nem triste, nem sozinha. É raro pensar neles. Mas às vezes tenho sonhos. Por vezes, a minha mãe olha-me com fúria na escuridão e acusa-me de estar feliz por ela ter morrido. Mas não estou feliz por ela ter morrido. Só não me sinto muito triste. E, para dizer a verdade, nunca verti uma única lágrima. Mas chorei durante toda a noite quando o meu gato morreu, quando eu era uma criancinha.

Por que razão haveria tanto fumo?, interroguei-me.

Não conseguia avistar chamas e a área do incêndio não parecia estar a expandir-se. Havia apenas aquela coluna de fumo elevando-se para o céu. O que estaria a alimentar as chamas durante tanto tempo?

- Mas a culpa não é minha apenas - prosseguiu a Midori.

- É verdade que possuo uma natureza fria. Reconheço que sim. Mas se o meu pai e a minha mãe me tivessem amado um pouco mais, teria sido capaz de sentir mais, de sentir uma verdadeira tristeza, por exemplo.

- Achas que não te deram o amor suficiente? Abanou a cabeça e olhou para mim. Depois anuiu levemente com a cabeça. - Algures entre o «não suficiente» e o «absolutamente nada». Sempre ansiei pelo amor. Queria saber, nem que fosse apenas uma vez, como me sentiria ao receber o amor, como me sentira ao ser alimentada com tanto amor ao ponto de já não conseguir absorver mais. Nem que fosse apenas uma vez. Mas eles nunca me deram isso. Nunca, nem uma única vez. Quando me mostrava carente e suplicava por algo, limitavam-se a afastar-me para o lado e a gritarem comigo. «Não! Isso é demasiado dispendioso!», era o que me diziam sempre. Por conseguinte, decidi que iria encontrar alguém que me amasse incondicionalmente durante os trezentos e sessenta e cinco dias do ano. Nessa altura frequentava a escola primária e decidi uma vez por todas.

- Uau! - disse eu. - E a tua busca deu frutos?

- Essa é a parte mais difícil - redarguiu a Midori. Enquanto reflectia, observou momentaneamente o fumo que se elevava. - Creio que tenho esperado tanto ao ponto de procurar a perfeição. Isso torna as coisas difíceis.

- Procuras o amor perfeito?

- Não, eu própria sei que isso não é possível. Procuro o egoísmo. O perfeito egoísmo. Por exemplo, dizer-te que tenho vontade de comer pão não-levedado com sabor a morango. E tu paras de imediato de fazer o que estás a fazer e sais porta fora a correr para mo ir comprar. E regressas sem fôlego e ajoelhas-te e estendes-me o pão com sabor a morango. E eu digo que já não me apetece e lanço-o pela janela fora. É isso o que eu procuro.

- Não tenho a certeza se isso terá alguma coisa a ver com o amor - declarei com algum espanto.

- De facto, tem - retorquiu. - Tu é que não te apercebes. Há ocasiões na vida de uma rapariga em que esse género de coisas é incrivelmente importante.

- Coisas como lançar pela janela pão não-levedado com sabor a morango?

- Exactamente. E quando eu fizer isso, quero que o meu homem me peça desculpa. «Agora compreendo, Midori. Que insensato fui! Deveria ter-me apercebido de que perdes depressa o desejo de comer pão não-levedado com sabor a morango. A minha inteligência e sensibilidade reduzem-se a meros excrementos de burro. Para te compensar, vou sair de imediato e comprar-te outra coisa. O que desejas? Mousse de chocolate? Cheesecake?».

- E depois, o que acontecia?

- Depois, dar-lhe-ia todo o amor que ele merecesse pelo que fizera.

- Isso soa-me a loucura.

- Bem, para mim, o amor é isso. Mas nem toda a gente consegue perceber-me. - Abanou ligeiramente a cabeça contra o meu ombro. - Para algumas pessoas, o amor começa por algo minúsculo ou patético. Ou começa por algo assim, ou nem sequer começa.

- Nunca conheci ninguém que pensasse como tu.

- Muitas pessoas dizem-me isso - afirmou, concentrada em arrancar uma cutícula. - Mas é essa a minha maneira de pensar. É a verdade. Estou a dizer-te aquilo em que acredito. Nunca me ocorreu que a minha maneira de pensar fosse diferente da das outras pessoas. Não estou a tentar ser diferente. Mas, quando falo com sinceridade, todos pensam que estou a brincar ou a representar um papel qualquer. Quando isso acontece, sinto que nada vale a pena!

- E é tua intenção morreres num incêndio?

- Ei, não, isso é diferente. Não passa de uma questão de curiosidade.

- O quê? Morrer num incêndio?

- Não, a minha intenção era verificar como tu reagirias -declarou. - Mas não tenho medo de morrer. De verdade. Como neste caso: o fumo abater-se-ia sobre mim, perderia a consciência e morreria de imediato. Isso não me assusta, comparado com a morte da minha mãe e de alguns familiares.

Todos os meus parentes morreram depois de sofrerem alguma doença terrível. Creio que isso nos está no sangue. É sempre um processo longo e demorado e no fim já nem se consegue distinguir se a pessoa está morta ou viva. Tudo o que resta, é dor e sofrimento.

Enfiou um Marlboro na boca e acendeu-o.

- Esse tipo de morte assusta-me. A sombra da morte a corroer lentamente a vida, e de repente tudo se torna escuro e já não conseguimos ver, e as pessoas à nossa volta começam a encarar-nos mais como uma pessoa morta do que viva. Odeio isso. Não conseguiria suportar isso.

O incêndio foi finalmente debelado meia hora depois. Aparentemente, haviam impedido que se espalhasse e não houvera feridos. Um dos carros dos bombeiros permaneceu ali enquanto os outros regressavam ao quartel e a multidão começou a dispersar num zumbido de conversas. Um dos carros da polícia permaneceu também para direccionar o trânsito, com a luz azul a girar no tejadilho. Dois corvos tinham-se empoleirado num lampião de rua ali perto para observarem a actividade das pessoas.

A energia parecia ter abandonado a Midori. Olhava com inércia para o céu e quase não falava.

- Estás cansada? - perguntei.

- Nem por isso - disse. - Deixei-me simplesmente afundar na inércia para esvaziar a mente. Há muito tempo que não fazia isso.

Olhámos um para o outro. Enlacei-a e beijei-a. Foi percorrida por um ínfimo estremecimento, depois relaxou o corpo e manteve os olhos fechados durante vários segundos. O sol do início do Outono lanhava a sombra das pestanas dela sobre a face e reparei que os seus contornos tremulavam.

Fora um beijo suave e delicado, um beijo cuja intenção se reduzia ao próprio gesto. Provavelmente não teria beijado a Midori nesse dia se não tivéssemos passado a tarde no terraço ao sol, a beber cerveja e a observar um incêndio, e creio que ela sentia o mesmo. Depois de observarmos durante algum tempo os telhados cintilantes, o fumo, as libélulas vermelhas e outras coisas, sentíramos uma certa proximidade e afecto, e provavelmente ambos desejávamos, semiconscientemente, preservar essa emoção sob alguma forma. Esse beijo significava isso. No entanto, como acontece com todos os beijos, não estava desprovido de um certo elemento de perigo.

Foi a Midori quem rompeu o silêncio. Segurou-me na mão e disse-me, com aparente dificuldade, que estava envolvida num relacionamento. Respondi-lhe que essa ideia já me ocorrera.

- Há alguma rapariga de quem gostes? - perguntou.

- Há.

- Mas estás sempre livre aos domingos, não estás?

- É muito complicado - retorqui.

Apercebi-me então de que o breve encanto daquela tarde do início de Outono se desvanecera.

Às cinco horas, anunciei que tinha que ir trabalhar e sugeri-lhe que me fizesse companhia durante o lanche. Declarou que iria permanecer em casa para o caso de alguém telefonar.

- Detesto permanecer em casa durante todo o dia à espera que alguém telefone. Quando passo o dia assim sozinha, é como se sentisse a carne a começar a apodrecer aos poucos: a apodrecer e a derreter até restar apenas uma poça esverdeada que é engolida para dentro da terra. E tudo o que resta de mim são

as minhas roupas. É isso o que sinto quando permaneço em casa durante todo o dia.

- Far-te-ei companhia da próxima vez que permaneceres em casa à espera de um telefonema. Desde que me convides para almoçar.

- Óptimo - disse ela. - Tentarei arranjar também outro incêndio para sobremesa.

A Midori não compareceu no dia seguinte à aula de Artes Dramáticas. No final da aula fui à cafetaria e almocei sozinho um prato frio e insípido. Depois sentei-me ao sol a observar a paisagem do campus. Perto de mim havia duas estudantes embrenhadas numa longa conversa. Uma delas segurava uma raquete de ténis junto ao peito, com todo o cuidado e carinho com que seguraria num bebé, ao passo que a outra segurava em livros e num LP de Leonard Bernstein. Ambas eram bonitas e estavam a apreciar a conversa. Da zona do clube dos estudantes provinha o som de uma voz de barítono a praticar escalas. Aqui e ali, grupos de quatro ou cinco estudantes expressavam opiniões sobre algo e riam e gritavam uns com os outros. Avistei skateboarders no parque de estacionamento. Um professor com uma pasta de couro atravessou o parque tentando evitá-los. Uma estudante com um capacete na cabeça estava ajoelhada no chão do pátio a pintar enormes letras num letreiro, algo acerca do imperialismo americano que invadia a Ásia. Era o habitual cenário na universidade ao meio-dia, mas, enquanto observava com uma atenção renovada, apercebi-me de algo: à sua própria maneira, cada uma das pessoas que eu via pareciam felizes. Não tinha a certeza se estavam realmente felizes ou se apenas o pareciam. No entanto, pareciam de facto felizes neste agradável início de tarde de finais de Setembro e esse facto provocou-me uma espécie de solidão que me era desconhecida, como se eu fosse a única pessoa ali que não fazia verdadeiramente parte do cenário.

Agora que pensava nisso, de que cenários fizera eu realmente parte nos anos mais recentes? O último de que conseguia recordar-me, era uma sala de bilhares perto do porto, onde eu e o Kizuki jogávamos bilhar num espírito de total camaradagem. O Kizuki morrera nessa noite e, desde então, um vento frio e crispado interpusera-se entre mim e o mundo. Este rapaz, o Kizuki: o que significara a sua existência para mim? Não encontrava qualquer resposta para esta pergunta. Tudo o que eu sabia - com uma certeza absoluta -, era que a morte do Kizuki me privara para sempre de uma parte da minha adolescência. Mas o significado disso, e as suas consequências, estava para além da minha compreensão.

Continuei ali sentado durante bastante tempo, a observar o campus e as pessoas que passavam, na esperança de avistar também a Midori. Mas ela não surgiu e, no final do intervalo para o almoço, dirigi-me para a biblioteca para preparar a minha aula de Alemão.

O Nagasawa foi ao meu quarto nesse sábado à tarde e sugeriu-me acompanhá-lo numa das habituais saídas nocturnas pela cidade; ele próprio trataria de me conseguir a autorização para passar a noite fora. Aceitei. Durante a última semana sentira-me particularmente confuso e estava disposto a dormir com alguém, fosse com quem fosse.

No final da tarde, tomei banho, barbeei-me, vesti roupa lavada - um pólo e um casaco de algodão -, depois jantei com o Nagasawa na cantina e apanhámos o autocarro para Shinjuku. Percorremos uma zona animada durante algum tempo, depois fomos a um dos bares habituais e sentámo-nos à espera de um par de raparigas agradáveis. As raparigas tendiam a frequentar este bar aos pares - excepto nesta noite em particular. Permanecemos lá durante quase duas horas, a beberricar whisky com soda a um ritmo que nos mantinha sóbrios. Duas raparigas de aspecto amigável sentaram-se por fim ao balcão e pediram um vodca limão e uma margarita. O Nagasawa abordou-as de imediato, mas disseram que estavam à espera dos namorados. Mesmo assim, embrenhámo-nos numa agradável conversa até os namorados chegarem.

Fomos a outro bar para ver se a sorte nos sorria, um pequeno estabelecimento numa espécie de beco sem saída, no qual a maior parte dos clientes se mostravam já embriagados e ruidosos. Um grupo de três raparigas ocupava uma mesa ao fundo. Juntámo-nos a elas e conversámos um pouco, até começar a instalar-se um ambiente amigável; todavia, quando O Nagasawa propôs tomarmos uma bebida noutro local, elas disseram que estava quase na hora do recolher obrigatório e que tinham de voltar para a residência académica. Lá se fora a nossa «sorte». Tentámos outro bar, com o mesmo resultado. Por alguma razão, nessa noite as raparigas pareciam destinadas a escapar-nos.

Às 23:30, o Nagasawa estava prestes a desistir. - Desculpa ter-te arrastado por aqui às voltas para nada - disse.

- Não faz mal - respondi. - Valeu a pena, só para ver que também tu tens por vezes os teus dias-não.

- Talvez uma vez por ano - admitiu.

Com efeito, já não me interessava dormir com ninguém. Enquanto deambulava por Shinjuku nessa ruidosa noite de sábado e observava a misteriosa energia criada pela mistura de sexo e álcool, comecei a sentir que o meu próprio desejo era algo insignificante.

- Que pensas fazer agora, Watanabe?

- Talvez vá a uma sessão contínua - respondi, - Há muitotempo que não vou ao cinema.

- Vou visitar a Hatsumí - declarou. - Importas-te?

- Claro que não. Por que razão me importaria?

- Se quiseres, posso apresentar-te a uma rapariga com quem poderias passar a noite.

- Não, apetece-me de facto ver um filme.

- Desculpa - disse o Nagasawa. - Da próxima vez compenso-te. - E desapareceu no meio da multidão. Comi um cheeseburger e tomei um café para ocupar o tempo e depois

fui ver A Primeira Noite num velho cinema de reposições.

Não apreciei em especial, mas também não dispunha de nada

melhor para fazer e, consequentemente, decidi vê-lo de novo.

Saí do cinema às quatro da manhã e vagueei ao longo das

gélidas ruas de Shinjuku enquanto reflectia.

Quando me cansei de caminhar, entrei num café aberto durante toda a noite e, munido de um livro e de uma chávena de café, aguardei os primeiros comboios da manhã. O estabelecimento em breve ficou apinhado de pessoas que, tal como eu, aguardavam os primeiros comboios. Um dos empregados veio perguntar-me em tom apologético se não me importava de partilhar a mesa. Respondi que não havia problema. Não me preocupava que alguém se sentasse à minha frente pois estava absorvido a ler o livro.

Duas raparigas sentaram-se à minha mesa. Pareciam ter a minha idade. Nenhuma delas era assombrosa, mas também não eram feias. Eram ambas discretas no modo como vestiam e na maquilhagem que usavam: não eram, definitivamente, o tipo de raparigas que deambulariam por Shinjuku às cinco da manhã. Supus que talvez tivessem perdido o último comboio. Pareciam aliviadas por se sentarem à minha mesa: eu estava bem vestido, barbeara-me ao início da noite e, a corolar isso tudo, encontrava-me absorvido a ler A Montanha Mágica de Thomas Mann.

Uma das raparigas era um pouco anafada. Usava uma parka verde, calças de ganga brancas, enormes brincos em forma de concha e trazia uma enorme carteira de vinil a tiracolo. A amiga era uma rapariga baixa e usava óculos; envergava um casaco azul por cima de uma camisa axadrezada e usava um anel de turquesa.

Tinha o hábito de tirar os óculos e coçar os olhos com a ponta dos dedos.

Ambas pediram café com leite e um bolo e demoraram algum tempo a consumi-los, pois pareciam envolvidas numa discussão séria em tom abafado. A rapariga anafada anuía várias vezes com a cabeça e a amiga abanava a cabeça igual número de vezes. Não consegui aperceber-me do que estavam a dizer devido ao volume da aparelhagem que tocava Marvin Gaye, ou os Bee Gees, ou algo do género, mas a rapariga mais baixa parecia estar zangada ou perturbada e a amiga tentava reconfortá-la. Comecei a alternar a leitura de trechos do livro com olhares de soslaio na direcção delas.

A rapariga baixa foi à casa de banho, agarrando a carteira contra o peito. A amiga endereçou-me a palavra.

- Desculpa incomodar-te, mas por acaso conheces algum bar nas redondezas que ainda sirva bebidas?

Apanhado de surpresa, pousei o livro e perguntei: - Depois das cinco da manhã?

- Sim...

- Na minha opinião, às 5:20 da manhã a maioria das pessoas estão já de regresso a casa para tentarem recuperar a sobriedade e deitarem-se.

- Sim, eu sei que sim - disse, um pouco embaraçada -, mas a minha amiga diz que precisa de tomar uma bebida. Por uma razão importante.

- Provavelmente não há grande alternativa, a não ser regressar e tomar essa bebida em casa.

- Mas às 7:30 tenho de apanhar o comboio para Nagano.

- Então, descubram uma máquina automática de bebidas e um lugar agradável onde possam sentar-se. Não vos restam mais hipóteses.

- Eu sei que isto é pedir muito, mas importavas-te de nos acompanhar? Não é de facto um comportamento aconselhável para duas raparigas sozinhas.

Eu já passara por várias experiências inusitadas em Shinjuku, mas nunca fora convidado para tomar uma bebida com duas raparigas desconhecidas às 5:20 da manhã. Uma recusa provocaria problemas desnecessários e, como dispunha de tempo, adquiri saque e aperitivos numa máquina próxima; dirigimo-nos para um parque de estacionamento vazio, junto à saída oeste da estação, e demos início àquela festa improvisada.

Contaram-me que se haviam tornado amigas enquanto trabalhavam numa agência de viagens. Tinham concluído a licenciatura e haviam ingressado nos seus primeiros empregos. A rapariga mais baixa namorava há um ano, mas descobrira recentemente que o namorado andava a dormir com outra rapariga e esse facto abalara-a profundamente. A rapariga anafada deveria ter partido para as montanhas de Nagano na noite passada para assistir ao casamento do irmão, mas decidira passar a noite com a amiga deprimida e apanhar o primeiro expresso no domingo de manhã.

- É doloroso aquilo por que estás a passar - disse eu à rapariga baixa -, mas como descobriste que o teu namorado andava a dormir com outra?

A rapariga dava pequenos sorvos de saque enquanto calcava as ervas no solo. - Não foi preciso descobrir nada - afirmou.

- Abri a porta e lá estava ele a fazê-lo.

- Quando foi isso?

- Anteontem à noite.

- A sério? A porta não estava trancada?

- Pois não.

- Por que razão não a fechou ele?

- Como raios posso eu saber?

- Sim, como achas tu que ela se sente? - proferiu a rapariga anafada, que parecia verdadeiramente preocupada com a amiga. - Que choque deve ter sido para ela. Não achas que é terrível?

- Sinceramente, não sei - respondi. - Deverias ter uma conversa séria com o teu namorado. E depois ponderarás se o perdoas ou não.

- Ninguém sabe como eu me sinto - proferiu a rapariga baixa com brusquidão, continuando a espezinhar a erva.

Surgiu um bando de corvos a oeste e começaram a pairar sobre um enorme centro comercial. Alvorecia já. Aproximava-se a hora do comboio para Nagano; demos o saque restante a um sem-abrigo junto das escadas na saída oeste, comprámos bilhetes de cais e fizemos companhia à rapariga anafada até ela partir. Quando o comboio se afastou, eu e a rapariga baixa acabámos inesperadamente num hotel próximo.

Não sentíamos nenhum desejo especial por dormirmos um com o outro, mas pareceu ser necessário conferir uma conclusão àquela noite.

Fui o primeiro a despir-me e sentei-me dentro da banheira a beber cerveja com sofreguidão. Ela enfiou-se na banheira comigo e ambos nos estiraçámos a emborcar cerveja em silêncio. Todavia, aparentemente, não conseguíamos embebedar-nos e não sentíamos sono. A pele dela era bastante pálida e macia e tinha umas pernas maravilhosas. Elogiei-lhe as pernas, mas o «Obrigada» soou quase como um grunhido.

No entanto, assim que nos deitámos na cama, tornou-se numa pessoa diferente. Reagia ao mais ínfimo toque das minhas mãos, contorcia-se e gemia. Quando a penetrei, enterrou as unhas nas minhas costas e, à medida que se aproximava do orgasmo, gritou o nome de outro homem, exactamente dezasseis vezes. Concentrei-me em contar as vezes de maneira a retardar o meu próprio orgasmo. Depois, ambos adormecemos.

Quando despertei às 12:30, ela já tinha partido. Não deixara qualquer bilhete. Sentia a cabeça estranhamente pesada por ter bebido a uma hora tão inusitada. Tomei um banho para despertar, barbeei-me e sentei-me nu numa cadeira a beber uma garrafa de sumo disponível no mini-bar enquanto revia a ordem dos acontecimentos da noite passada. Cada um dos acontecimentos parecia irreal e estranhamente distante, como se os revisse através de duas ou três camadas de vidro, mas esses eventos haviam ocorrido indubitavelmente. Os copos da cerveja continuavam ainda sobre a mesa e uma das escovas de dentes no lavatório fora usada.

Almocei uma refeição leve em Shinjuku e dirigi-me a uma cabina telefónica para telefonar à Midori Kobayashi na ténue esperança de que estivesse sozinha em casa a aguardar novamente uma chamada. Deixei tocar quinze vezes, mas ninguém atendeu. Tentei de novo vinte minutos depois, com o mesmo resultado. Depois apanhei o autocarro de volta à residência académica. Na caixa da correspondência junto à entrada aguardava-me uma carta que fora entregue por correio expresso. Era da Naoko.

 

Obrigada pela tua carta, escrevia a Naoko. A sua família reenviara-lhe a carta para aqui, dizia ela. A carta, longe de a perturbar, trouxera-lhe uma grande felicidade e, com efeito, ela própria se preparava para me escrever.

Após a leitura destas primeiras linhas, abri a janela, tirei o casaco e sentei-me na cama. Ouvia pombos a arrulharem num pombal próximo. A brisa agitava as cortinas. Continuava a segurar as sete páginas da carta da Naoko e abandonei-me a uma infindável torrente de emoções. Era como se as cores do mundo real em meu redor começassem a esmorecer assim que lera aquelas poucas linhas. Fechei os olhos e passei bastante tempo a ordenar os pensamentos. Após uma profunda inspiração, prossegui a leitura.

Passaram-se quase quatro meses desde que aqui estou, continuava ela.

Pensei muito em ti durante todo este tempo. Quanto mais pensava, mais sentia que estava a ser injusta contigo. Talvez devesse ter-me mostrado uma pessoa melhor e mais justa no modo como te tratei.

Mas esta não será a maneira mais normal de encarar as coisas. As raparigas da minha idade nunca usam a palavra «justo». As raparigas normais da minha idade são basicamente indiferentes ao facto de as coisas serem justas ou não. A questão central para elas não reside no facto de algo ser justo, mas se é ou não belo ou se as fará felizes, «justo» é, sem dúvida, uma palavra que os homens usam, mas sinto que é também a palavra que agora se aplica exactamente a mim. E como, segundo creio, as questões de beleza e felicidade se tornaram agora em asserções tão difíceis e retorcidas, dou por mim a reger-me por outros padrões: por exemplo, se algo é ou não justo ou honesto, ou universalmente verdadeiro.

De qualquer modo, creio que não tenho sido justa contigo e, em resultado disso, talvez te tenha confundido e magoado profundamente. Ao fazê-lo, porém, também me confundi a mim própria e magoei-me profundamente. Não digo isto como desculpa ou como forma de justificação, mas porque é a verdade. Se te causei alguma mágoa interior, não se trata apenas da tua mágoa mas também da minha. Portanto, não me odeies, por favor. Sou um ser humano com defeitos- um ser humano com mais defeitos do que tu pensas. Éprecisamente por essa razão que não quero que me odeies. Porque, se o fizeres, ficaria completamente despedaçada. Não consigo proceder como tu: não consigo recolher-me dentro da minha concha e esperar que as coisas passem. Não tenho a certeza se és realmente assim, mas ás vezes dás-me essa impressão. Muitas vezes invejo-te por isso, e talvez tenha sido por essa razão que eu te tenha confundido tanto.

Será talvez uma maneira demasiado analítica de ver as coisas. Não achas? A terapia que facultam aqui não é certamente demasiado analítica, mas, quando te submetes a tratamento durante vários meses como eu aqui, quer gostes ou não, tornas-te mais ou menos analítico. «Isto foi causado por tal e isto significa isto, e, por causa disso, tal e tal». Exactamente assim. Não sei se este tipo de análise tenta simplificar o mundo ou complicá-lo.

De qualquer modo, sinto-me mais perto da recuperação do que outrora e as pessoas aqui confirmaram-me esse facto. Há já muito tempo que não conseguia sentar-me a redigir calmamente uma carta. A carta que te escrevi em Julho era algo que tinha que arrancar de mim (mas, na verdade, já não me lembro do que escrevi: foi uma carta horrível?), mas desta vez estou muito, muito calma. Ar puro, um mundo sereno e desligado do exterior, uma vida de rotina diária, exercício regular, era disto que eu precisava, segundo parece. É maravilhoso conseguir escrever uma carta a alguém. Sentir o desejo de transmitir os pensamentos a alguém, sentar-me à secretária, pegar na caneta e transcrever os pensamentos em palavras é verdadeiramente maravilhoso. Claro, assim que os transcrevo em palavras, descubro que consigo expressar apenas uma fracção daquilo que pretendia dizer, mas não faz mal. Estou feliz por conseguir sentir que desejo escrever a alguém. É por isso que estou a escrever-te. São 19.30, já jantei e acabei de tomar banho. Tudo se encontra em silêncio e lá fora está escuro como breu. Não consigo ver uma única luz através da janela. Geralmente tenho uma visão clara das estrelas, mas hoje não, por causa das nuvens. Aqui, todos têm bastantes conhecimentos sobre as estrelas e dizem-me: Aquela é a Virgem», ou «Aquela é Sagitário». Provavelmente aprendem essas coisas involuntariamente, porque aqui há pouco para fazer assim que o sol se põe. Épor essa razão que sabem tanto acerca de aves, flores e insectos. Quando falo com estas pessoas, apercebo-me da minha ignorância sobre essas coisas, e até é agradável falarmos com eles.

Vivem aqui cerca de setenta pessoas, além do pessoal (médicos, enfermeiras, funcionários, etc), que ascendem apouco mais de vinte pessoas. É um lugar de espaços tão amplos que estes números perdem a sua dimensão. Longe disso: talvez fosse mais exacto dizer que este lugar se encontra quase vazio. É enorme, repleto de espaços naturais e toda a gente vive calmamente - tão calmamente que por vezes sinto que este é o mundo normal e real, embora não seja de facto. Podemos viver deste modo porque vivemos aqui sob certos pré-requisitos.

Jogo ténis e basquetebol. As equipas de basquetebol são constituídas por elementos do pessoal e (odeio a palavra, mas não ha modo de a contornar) pacientes. Contudo, quando estou absorvida a jogar, perco a noção da distinção entre os pacientes e o pessoal. Isto é um pouco estranho. Sei que vai soar estranho, mas quando olho para as pessoas à minha volta durante os jogos, todas elas me parecem igualmente deformadas.

Certa vez disse isto ao médico encarregado do meu caso e ele disse-me que, de certo modo, aquilo que eu sentia estava correcto, que estávamos ali não para corrigir a deformação mas para nos acostumarmos a ela: que um dos nossos problemas era a incapacidade para reconhecermos e aceitarmos as nossas próprias deformidades. Tal como cada pessoa possui certas idiossincrasias no modo de andar, também revelam idiossincrasias no modo de pensar, sentir e ver as coisas e, embora pretendamos corrigir esses aspectos, isso não acontece da noite para o dia, e se tentarmos forçar esse aspecto, pode ocorrer algo bizarro. Forneceu-me uma explicação bastante simplificada, claro, e trata-se apenas de uma pequena parte dos nossos problemas, mas creio que compreendo o que ele estava a tentar dizer. Talvez nunca consigamos adaptar-nos completamente às nossas próprias deformidades. Quando somos incapazes de encontrar um lugar dentro de nós devido à dor e ao sofrimento bem reais que estas deformidades nos causam, vimos para aqui para nos afastarmos dessas coisas. Enquanto aqui permanecermos, conseguimos prosseguir sem magoar os outros ou sermos magoados por eles, porque sabemos que estamos «deformados». É isso que nos distingue do mundo exterior: a maior parte das pessoas continuam com as suas vidas, inconscientes das suas deformidades, ao passo que neste nosso pequeno mundo as próprias deformidades são um pré-requisito. Assim como os índios usam penas na cabeça para indicarem a que tribo pertencem, nós aqui expomos as nossas deformidades. E levamos uma vida calma para não nos magoarmos uns aos outros.

Além de praticarmos desporto, todos nos ocupamos a cultivar legumes e frutos: tomates, beringelas, pepinos, melancias, morangos, cebolas, couves, rabanetes brancos, e assim por diante. Cultivamos praticamente tudo. Também temos estufas. Aqui as pessoas têm bastantes conhecimentos sobre o cultivo dos legumes e empenham-se com energia. Lêem livros sobre este assunto, convidam especialistas e conversam de manhã até à noite sobre que fertilizante usar. o estado do solo e coisas do género. Aprendi a gostar de cultivar legumes.

É maravilhoso ver diferentes frutos e legumes a tornarem-se cada vez maiores a cada dia que passa. Jà alguma vez cultivaste melancias? Começam a inchar, como se fossem uma espécie de animaizinhos.

Todos os dias comemos frutos e legumes acabados de colher. Evidentemente, também nos servem carne e peixe, mas, quando se vive aqui, cada vez nos apetece menos comer essas coisas porque os legumes são muito frescos e deliciosos. Às vezes saímos para colher plantas silvestres e cogumelos. Temos cá especialistas sobre esse género de coisas (agora que penso nisso, este lugar está cheio de especialistas) e indicam-nos que plantas colher e quais evitar. Em resultado de tudo isto, desde que aqui entrei, engordei mais de três quilos. O meu peso é agora quase perfeito, graças ao exercício e â boa alimentação a horas certas.

Quando não cultivamos produtos, lemos, ouvimos música ou tricotamos. Não temos televisão nem rádio, mas dispomos de uma biblioteca bastante decente, com livros e discos. A colecção de discos abrange tudo, desde as sinfonias de Mahler até aos Beatles, e estou sempre a requisitar discos para ouvir no meu quarto. O único problema real com este lugar é que, quando aqui entras, não te apetece partir - ou tens medo de partir. Desde que aqui permaneçamos, sentimo-nos serenos e apaziguados. As nossas deformidades parecem naturais e pensamos que estamos a recuperar. Mas nunca teremos a certeza se o mundo exterior nos aceitará do mesmo modo.

O meu médico diz-me que está na altura de começar a contactar com as «pessoas do exterior» - referindo-se às pessoas normais no mundo normal. Quando ele diz isso, o único rosto que vejo é o teu. Na verdade, não quero ver os meus pais, estão demasiado perturbados comigo e sinto-me desalentada ao vê-los. Além do mais, há coisas que tenho que te explicar. Não tenho a certeza se conseguirei explicá-las bem, mas são coisas importantes que não posso continuar a ignorar.

Mas não quero que sintas que sou um fardo para ti.

A única coisa que não pretendo é ser um fardo para alguém. Estou ciente dos teus bons sentimentos por mim. Isso torna-me muito feliz. A intenção desta carta é tentar transmitir-te essa felicidade: Esses teus bons sentimentos são provavelmente aquilo de que necessito nesta altura da minha vida. Perdoa-me, por favor, se algo do que escrevi aqui te perturbar. Tal como disse acima, sou um ser humano com mais defeitos do que pensas.

Às vezes interrogo-me: SE tu e eu nos tivéssemos conhecido em circunstâncias absolutamente normais e SE tivéssemos gostado um do outro, o que teria acontecido? Se eu fosse normal e tu fosses normal (coisa que tu és, de facto) e o Kizuki não tivesse existido, o que teria acontecido? Este "SE" é obviamente demasiado vago. Pelo menos, estou a esforçar-me por ser justa e honesta. É tudo o que consigo fazer neste momento. Espero conseguir transmitir-te assim uma pequena parte dos meus sentimentos.

Ao contrário de um hospital normal, as horas de visita neste lugar são livres. Desde que telefones no dia anterior, podes vir em qualquer altura. Podes até acompanhar-me às refeições e há um local para pernoitares. Vem visitar-me, por favor, quando tiveres disponibilidade. Estou ansiosa por te ver. Segue junto o mapa. Desculpa se a carta se tornou demasiado extensa.

Li a carta da Naoko até ao fim e decidi relê-la. Depois, fui ao piso de baixo buscar uma Coca-Cola à máquina e bebi-a enquanto lia a carta uma terceira vez. Enfiei as sete páginas dentro do envelope e deixei-o sobre a secretária. O meu nome e o endereço no envelope cor-de-rosa haviam sido redigidos em caracteres perfeitos e minúsculos que se revelavam talvez demasiado precisos para a caligrafia de uma rapariga. Sentei-me à secretária para examinar o envelope. O endereço do remetente nas costas dizia Casa de Repouso Ami. Que nome estranho. Ponderei durante alguns segundos e cheguei à conclusão de que «ami» talvez se referisse à palavra francesa para «amigo».

Guardei a carta na gaveta da secretária, mudei de roupa e saí. Receava permanecer perto da carta e acabar por a reler dez, vinte ou mais vezes, quem sabe? Percorri as ruas de Tóquio nesse domingo sem qualquer destino em mente, tal como sempre fizera com a Naoko. Vagueei de uma rua para outra, relembrando a sua carta linha a linha e esforçando-me por ponderar em cada uma das frases. Quando o sol se pôs, regressei ao dormitório e efectuei uma chamada de longa distância para a Casa de Repouso Ami. Atendeu-me uma recepcionista que me perguntou o que desejava. Perguntei-lhe se poderia visitar a Naoko no dia seguinte à tarde. Perguntou-me o nome e disse-me para voltar a telefonar meia hora depois. Atendeu-me de novo quando voltei a telefonar depois do jantar. Informou-me que podia de facto visitar a Naoko. Agradeci-lhe, desliguei e enfiei uma muda de roupa e objectos de higiene pessoal na mochila. Peguei em A Montanha Mágica e li e beberriquei brandy à espera de sentir sono. Mesmo assim, só consegui adormecer depois da uma da manhã.

 

Quando acordei às sete horas na segunda-feira, lavei o rosto, barbeei-me e, sem tomar o pequeno-almoço, dirigi-me de imediato ao quarto do responsável do dormitório para o informar de que iria ausentar-me durante dois dias a fazer caminhadas pelas colinas. Reagiu sem surpresa pois já estava acostumado ao facto de eu empreender curtas excursões quando dispunha de tempo livre. Apanhei um comboio apinhado para a Estação de Tóquio e aí comprei um bilhete para o comboio rápido para Quioto, acabando por saltar literalmente para dentro do primeiro expresso Hikari que se preparava para partir. Contentei-me com um café e uma sanduíche como pequeno-almoço e dormitei durante uma hora.

Cheguei a Quioto alguns minutos antes das onze da manhã. De acordo com as instruções da Naoko, apanhei um autocarro em direcção a um pequeno terminal que servia os subúrbios a norte. Informaram-me que a camioneta que me levaria ao meu destino partiria somente depois das 11:35 e que a viagem demoraria pouco mais de uma hora. Adquiri o bilhete e entrei numa livraria do outro lado da rua à procura de um mapa. Regressei à sala de espera e examinei o mapa para descobrir onde se situava exactamente a Casa de Repouso Ami. Para minha surpresa, descobri que se localizava no interior das montanhas. A camioneta atravessaria várias colinas no seu curso em direcção a norte, depois efectuaria meia-volta no término da estrada do desfiladeiro e regressaria à cidade. A minha paragem seria precisamente antes do término dessa linha. Segundo a Naoko, havia um trilho junto da paragem e, se o seguisse durante vinte minutos, alcançaria a Casa de Repouso Ami. Não era de admirar que fosse um local tão tranquilo, pois situava-se bem no interior das montanhas!

O autocarro partiu com cerca de vinte passageiros a bordo, e acompanhou o rio Kamo ao longo da extremidade norte de Quioto. As ruas da cidade, afuniladas por edifícios, começaram a ser substituídas por outras com habitações mais esparsas, campos e terrenos baldios. Os telhados de telhas negras e as estufas revestidas a plástico captavam o sol do início do Outono e reflectiam-no com um brilho intenso. Quando a camioneta penetrou no desfiladeiro, o motorista começou a rodar o volante de um lado para o outro de modo a acompanhar as curvas e sinuosidades da estrada e comecei a sentir-me enjoado. Ainda sentia no estômago o café que tomara de manhã. Quando as curvas diminuíram ao ponto de começar a sentir um pouco de alívio, a camioneta começou a embrenhar-se dentro de uma gélida floresta de cedros. Seriam certamente árvores antigas, a ajuizar pelo modo como se agigantavam sobre a estrada, obstruindo o sol e recobrindo tudo com sombras escuras. A brisa que se infiltrava através das janelas abertas da camioneta tornou-se subitamente fria e sentíamos nitidamente a humidade contra a pele. A estrada do vale abraçava a margem do rio, continuando tão infindavelmente através da floresta ao ponto de parecer que o mundo inteiro estivera sempre soterrado numa floresta de cedros. A zona florestal terminou e desembocámos numa bacia aberta, rodeada pelos picos das montanhas. Amplas e verdejantes terras de cultivo espraiavam-se em todas as direcções e o rio junto à estrada parecia límpido e brilhante. Um único fio de fumo branco elevava-se para o céu ao longe. Algumas casas tinham roupa a secar ao sol e ouviam-se cães a ladrar. Cada quinta exibia lenha na parte da frente, empilhada até às goteiras, geralmente com um gato a repousar algures sobre a pilha. Estas habitações ladeavam a estrada durante uma certa extensão, mas não avistei uma única pessoa. Este padrão repetia-se intermitentemente ao longo da paisagem. A camioneta percorreria a floresta de cedros, deter-se-ia numa aldeia e regressaria à floresta. Talvez houvesse passageiros que se apeassem nalguma aldeia, mas nunca havia passageiros na viagem de regresso. Quarenta minutos depois de sair da cidade, a camioneta chegou a uma garganta da montanha que proporcionava uma vista ampla. O motorista deteve o veículo, anunciou que aguardaríamos ali durante cinco ou seis minutos e que os passageiros poderiam apear-se se assim o desejassem.

Além de mim, restavam apenas três passageiros. Saímos para esticar as pernas, fumar ou observar o panorama de Quioto no fundo do vale. O motorista afastou-se para urinar. Um homem bronzeado, no início dos cinquenta e que entrara no autocarro com uma enorme caixa de cartão atada com uma corda, perguntou-me se tinha vindo para caminhar pelas montanhas. Anuí, de modo a não alongar a conversa.

Surgiu uma camioneta do outro lado da garganta e parou junto de nós. O condutor apeou-se, conversou por instantes com o nosso motorista e ambos voltaram para os seus postos. Sentámo-nos de novo e os veículos partiram em direcções opostas. Não compreendera de imediato por que razão o nosso veículo tivera que esperar pelo outro mas, após um curto percurso enquanto descíamos a encosta da montanha, a estrada estreitava de súbito. As duas enormes camionetas não conseguiriam passar uma pela outra na estrada; de facto, a passagem de carros vindos da direcção oposta exigia bastantes manobras e um dos veículos era forçado a recuar e a comprimir-se no exíguo espaço de alguma curva.

As aldeias ao longo da estrada eram agora mais diminutas e as áreas de cultivo ainda mais pequenas. A montanha era mais íngreme, as ravinas comprimiam-se cada vez mais perto das janelas da camioneta. No entanto, os cães eram aparentemente em igual número e a chegada do autocarro certamente desencadearia uma competição de uivos.

Não havia nada na paragem onde me apeei: nenhuma casa, nenhum campo, apenas a tabuleta de paragem da camioneta, um pequeno ribeiro e o início de um trilho. Lancei a mochila sobre o ombro e empreendi a caminhada. O ribeiro corria ao longo da margem esquerda do trilho e uma floresta de árvores de folha caduca ladeava a margem direita. Após cerca de quinze minutos ao longo da suave encosta, deparei-me com uma estrada que penetrava num bosque à direita e cuja abertura dificilmente permitiria a passagem de um carro. O letreiro ao lado da estrada indicava.- CASA DE REPOUSO AMI. PRIVADO. INTERDITA A ENTRADA A ESTRANHOS.

A estrada apresentava profundas marcas de pneus através das árvores. Ouvia-se ocasionalmente o esvoaçar de asas no bosque, um som que ecoava com uma estranha nitidez, como se estivesse amplificado e se sobrepusesse aos outros ruídos da floresta. Ouvi inclusivamente, ao longe, o que seria talvez o disparo de uma espingarda, mas era um som ténue e coado através de vários filtros.

Para além do bosque, deparei-me com um muro de pedra branca, pouco mais alto do que eu; facilmente o teria transposto, pois estava desprovido de barreiras adicionais no topo. Havia um portão escancarado, de ferro escurecido e de aspecto bastante robusto, mas não avistei ninguém na guarita. Havia ao lado um letreiro semelhante ao anterior: CASA DE REPOUSO AMI. PRIVADO. INTERDITA A ENTRADA A ESTRANHOS. Havia sinais indicadores da presença do guarda ali momentos antes: o cinzeiro exibia três pontas de cigarro, havia uma chávena de chá semivazia, um rádio de transístores numa prateleira; o relógio na parede anunciava a passagem do tempo com um som seco. Aguardei durante alguns instantes o regresso do guarda, mas, quando compreendi que esperaria em vão, toquei um par de vezes no que parecia ser uma campainha. A área no interior do portão era um parque de estacionamento e avistei um mini-autocarro, um Land Cruiser e um Volvo azul-escuro. A área conseguiria albergar trinta veículos, mas somente estes três a ocupavam agora.

Decorreram dois ou três minutos e avistei então o guarda, de uniforme azul-marinho, a descer a estrada da floresta em cima de uma bicicleta amarela. Era alto, no início dos sessenta e o cabelo começava a escassear-lhe. Encostou a bicicleta contra a guarita e disse: - Peço desculpa pela demora - mas não me soou minimamente pesaroso. No guarda-lamas da bicicleta estava pintado o número 32 a branco. Quando lhe disse o meu nome, pegou no auscultador e repetiu-o duas vezes a alguém; respondeu «Sim, Hã-hã, compreendo» à outra pessoa e desligou.

- Dirija-se ao edifício principal, por favor, e pergunte pela doutora Ishida - informou-me. - Siga a estrada através das árvores até encontrar uma rotunda. Depois siga o caminho na segunda à esquerda, percebeu? A segunda à esquerda, depois da rotunda. Avistará uma casa antiga. Vire à direita e atravesse mais um grupo de árvores até se deparar com um edifício de betão. É o edifício principal. É fácil, basta estar atento aos letreiros.

Segui o segundo caminho à esquerda depois da rotunda, de acordo com as direcções fornecidas, e no fim da vereda deparei-me com um edifício antigo e interessante que fora obviamente uma casa de campo. Tinha um jardim bem tratado, com pedras bem modeladas e uma candeia de pedra. Fora certamente uma moradia rural. Enveredei pela direita através das árvores e avistei o edifício de betão de três andares. Situava-se numa área isolada e não havia nada em redor que igualasse a altura dos seus três andares. Era uma construção simples e transmitia uma forte impressão de limpeza.

A entrada localizava-se no segundo andar. Subi as escadas, transpus uma enorme porta de vidro e na recepção deparei-me com uma mulher jovem envergando um vestido vermelho. Indiquei-lhe o meu nome e informei-a que me tinham dito para perguntar pela doutora Ishida. Ela sorriu e apontou para um sofá castanho, sugerindo-me em tom baixo que aguardasse pela doutora. Depois telefonou a alguém. Pousei a mochila, refastelei-me nas amplas almofadas do sofá e inspeccionei o local. Era um vestíbulo limpo e agradável, com vasos de plantas ornamentais, pinturas abstractas de bom gosto e soalho polido. Enquanto aguardava, mantive os olhos fixos no reflexo dos meus sapatos no chão.

Momentos depois, a recepcionista tranquilizou-me: - A doutora virá ter consigo dentro de momentos.

Anuí com a cabeça. Que local incrivelmente sereno! Não se ouvia um único som, como se todos estivessem a dormir a sesta. As pessoas, os animais, os insectos e as plantas talvez dormissem profundamente, pensei; estava uma tarde tão calma.

Pouco depois, ouvi o som suave de solas de borracha e surgiu uma mulher de cabelo hirsuto. Atravessou o vestíbulo, sentou-se ao meu lado, cruzou as pernas e tomou-me a mão. Em vez de me apertar a mão, revirou-a e examinou-a de ambos os lados.

- Não tocas nenhum instrumento musical, pelo menos há alguns anos, pois não? - Foram as primeiras palavras dela.

- É verdade - respondi, estupefacto. - Tem razão.

- Consigo detectar isso nas tuas mãos - disse com um sorriso. Havia algo quase misterioso nesta mulher. O seu rosto

ostentava inúmeras rugas. Era a primeira coisa que captava a atenção, mas esta característica não a envelhecia. Pelo contrário, enfatizavam uma certa jovialidade que transcendia a idade. As rugas pertenciam àquele rosto, como se fizessem parte dele desde o nascimento. Quando sorria ou franzia o rosto, as rugas sorriam ou franziam-se também. E quando não estava a sorrir nem a franzir o rosto, as rugas dispersavam-se de um modo estranho, caloroso e irónico. Rondaria os trinta e muitos e a sua cordialidade era atraente. Simpatizei de imediato com ela.

O cabelo, selvaticamente desbastado, eriçava-se em madeixas e a franja repousava desordenada contra a testa, mas esse penteado favorecia-a perfeitamente. Vestia uma camisa azul por cima de uma T-shirt branca, calças de algodão largas e de cor creme e sapatilhas. Era alta e esguia e quase não tinha seios. Os seus lábios moviam-se constantemente numa espécie de franzir irónico e as rugas nos cantos dos olhos agitavam-se em ínfimas palpitações. Parecia a mulher de um operário: bondosa, hábil e um pouco cansada da vida.

Tinha queixo achatado e lábios franzidos e durante alguns segundos examinou-me da cabeça aos pés. Imaginei que a qualquer momento sacaria da fita métrica para começar a medir-me de alto a baixo.

- Sabes tocar algum instrumento? - perguntou.

- Lamento, mas não.

- Que pena. Teria sido divertido.

- Suponho que sim - respondi. Qual seria a razão de toda esta conversa sobre instrumentos musicais?

Retirou um maço de Seven Stars do bolsinho do peito, enfiou um cigarro entre os lábios, acendeu-o e começou a fumar com nítido prazer.

- Ocorreu-me informar-te acerca deste lugar... Watanabe, não é?... antes de veres a Naoko. Foi por essa razão que decidi ter esta pequena conversa contigo. A Casa de Repouso Ami é um pouco invulgar, talvez te sintas um pouco perdido sem um prévio conhecimento. Estou certa, não estou, ao presumir que desconheces este local por completo?

- Não conheço quase nada.

- Bem, então, antes do mais... - começou por dizer, e estalou os dedos. - Lembrei-me agora, já almoçaste? Aposto que estás esfomeado.

- Sim, estou esfomeado.

- Acompanha-me então. Podemos conversar enquanto almoçamos na cantina. A hora do almoço já acabou, mas, se formos já, ainda nos prepararão algo.

Apressou-se ao longo de um corredor e de um lanço de escadas até à cantina no primeiro piso. Era uma divisão ampla, com espaço suficiente para cerca de duzentas pessoas, mas somente metade estava em uso, pois a outra parte havia sido isolada, como um hotel numa estância turística em época baixa. A ementa do dia consistia em guisado de batata com massa, salada, sumo de limão e pão. Verifiquei que os legumes eram de facto deliciosos como a Naoko me informara na carta e não deixei nada no prato.

- Gostaste da comida! - disse ela.

- É deliciosa. Além do mais, quase não comi nada durante a manhã.

- Podes servir-te do meu prato, se quiseres. Estou cheia. Toma, serve-te.

- Sim, se realmente já não lhe apetece mais.

- Tenho um estômago pequeno, quase não cabe nada. Compenso isso com os cigarros. - Acendeu mais um cigarro. - Oh, a propósito, podes chamar-me Reiko, aqui todos me chamam assim.

Parecia estar a sentir um enorme prazer enquanto me observava a mordiscar o pão dela e a comer o guisado que ela mal provara.

- A senhora é a médica da Naoko? - inquiri.

- Eu?! A médica da Naoko?! - Franziu o rosto. - O que te leva a pensar que sou médica?

- Disseram-me para perguntar pela doutora Ishida.

- Oh, já percebi. Não, não, não, ensino música aqui. É uma espécie de terapia para os pacientes e designam-me na brincadeira por «A Doutora Música» e outras vezes «Doutora Ishida». Mas não passo de mais uma paciente. Estou aqui há sete anos. Trabalho como professora de música e dou uma ajuda no escritório. Por conseguinte, tem-se tornado difícil saber se continuo a ser uma paciente ou se pertenço ao pessoal. A Naoko não te falou de mim?

Abanei a cabeça.

- Que estranho - disse ela. - Sou companheira de quarto da Naoko. Gosto de partilhar o quarto com ela. Conversamos acerca de todo o género de coisas. Inclusive acerca de ti.

- Do que conversam acerca de mim?

- Bem, primeiro tenho que te contar acerca deste lugar - disse a Reiko, ignorando a minha pergunta. - A primeira coisa que deves saber, é que não se trata de um hospital «normal». Não se destina propriamente a tratamentos, mas à convalescença. Dispomos de médicos evidentemente, que dão consultas a qualquer hora; limitam-se a verificar o estado das pessoas, a temperatura e coisas do género, mas não administram «tratamentos» como num hospital normal. Aqui não há grades nas janelas e o portão encontra-se sempre aberto. As pessoas entram e saem voluntariamente. Em primeiro lugar, deves reunir as condições necessárias para seres admitido aqui e usufruíres desse tipo de convalescença. Nalguns casos, as pessoas que necessitam de uma terapia especializada acabam por dar entrada num hospital especializado. Percebido, até aqui?

- Creio que sim - respondi. - Mas em que consiste essa «convalescença»? Podes dar-me um exemplo concreto?

Exalou uma nuvem de fumo e bebeu o resto do sumo de laranja. - A convalescença consiste em viver aqui. Uma rotina regular, exercício, isolamento em relação ao mundo exterior, ar puro e sossego. Os nossos cultivos tornam-nos praticamente auto-suficientes; não temos televisão nem rádio. Somos como uma dessas comunidades de que tanto se fala. Obviamente, um dos aspectos que nos distingue dessas comunidades é que custa uma pipa de massa ser admitido aqui.

- Uma pipa de massa?

- Bem, não é ridiculamente dispendioso, mas também não é barato. Repara bem nas instalações. Dispomos de bastante terreno, há poucos pacientes, muitos funcionários e eu, por exemplo, encontro-me aqui há já bastante tempo. De facto, pertenço quase ao quadro de funcionários e, portanto, desfruto de algumas regalias, e contudo... Bem, e se tomássemos um café?

Aceitei. Apagou o cigarro e dirigiu-se ao balcão, onde serviu duas chávenas de café de uma cafeteira ainda quente. Voltou a sentar-se, deitou açúcar no café, remexeu-o, franziu a testa e deu um sorvo.

- Sabes - disse-me-, este sanatório não é uma empresa que almeja o lucro e consegue subsistir sem cobrar tanto como cobraria se os objectivos fossem esses. O terreno foi doado e fundaram uma corporação para esse efeito. Há vinte anos atrás, o terreno inteiro era a moradia de Verão do benfeitor. Viste a velha casa, não viste? Confirmei.

- Era o único edifício na propriedade e era aí que efectuavam a terapia de grupo. Foi assim que tudo começou. O filho do benfeitor revelava indícios de distúrbios mentais e o especialista recomendou-lhe terapia de grupo. Segundo a teoria desse médico, se se conseguisse pôr um grupo de pacientes a viver no campo, a ajudarem-se uns aos outros por via do trabalho físico e dispondo de um médico para aconselhamento e exames de rotina, conseguir-se-ia curar certo tipo de doenças. Por conseguinte, procederam a essa tentativa, a iniciativa cresceu e tornou-se numa corporação, acabando por dispor de mais terreno para cultivo e a construção do edifício principal há cinco anos.

- O que significa que a terapia funcionava.

- Bem, não em todos os aspectos. Muitas pessoas não melhoram. Mas há também muitas pessoas que não conseguiram obter ajuda em mais nenhum lado e que aqui alcançaram uma recuperação completa. O que este lugar tem de melhor, é o modo como todos se entreajudam. Infelizmente, nem todas as instituições funcionam assim. Os médicos são médicos e os pacientes são pacientes: o paciente solicita a ajuda ao médico e o médico fornece essa ajuda ao paciente. Contudo, aqui ajudamo-nos todos uns aos outros. Somos o espelho uns dos outros e os médicos fazem parte desse processo. Observam-nos sem interferirem e prestam subtilmente a sua assistência quando vêem que precisamos de algo, embora por vezes sejamos nós quem os ajuda a eles. Por vezes, somos mais capazes do que eles em determinadas questões. Por exemplo, estou a ensinar um médico a tocar piano e há outro paciente a ensinar francês a uma enfermeira. Esse género de coisas. Os pacientes com problemas semelhantes aos nossos são frequentemente abençoados com capacidades especiais. Por conseguinte, aqui somos todos iguais: pacientes, funcionários... e até tu.

És um de nós enquanto aqui permaneceres, portanto eu ajudo-te e tu ajudas-me. - Sorriu e cada ruga do seu rosto se flectiu delicadamente. - Ajudas a Naoko e a Naoko ajuda-te.

- Que devo fazer, então? Dá-me um exemplo.

- Primeiro, decides que queres ajudar e que precisas da ajuda da outra pessoa. E tens que ser completamente honesto. Não mentirás, não omitirás nada, não encobrirás nada que possa embaraçar-te. Reduz-se a isto.

- Vou tentar - retorqui. - Mas, diz-me, Reiko, por que razão estás aqui há sete anos? Estou aqui a falar contigo e não acredito que haja algo de errado contigo.

- Não enquanto é dia - proferiu com um olhar sombrio. - Mas quando a noite cai, começo a babar-me e a espojar-me no chão.

- De verdade?

- Não sejas ridículo, estou a brincar - disse, abanando a cabeça com desdém. - Estou perfeitamente bem... pelo menos por enquanto. Permaneço aqui porque gosto de ajudar as outras pessoas a sentirem-se bem, gosto de ensinar música, de cultivar legumes. Gosto disto aqui. Somos todos mais ou menos amigos. Comparado com isso, o que me oferece o mundo exterior? Tenho trinta e oito anos, estou quase nos quarenta. Não sou como a Naoko. Não há ninguém há espera que eu saia daqui, não tenho família que me acolha. Não tenho um emprego e quase nenhuns amigos. E, após sete anos, desconheço o que se passa lá fora. Oh, leio ocasionalmente um jornal na biblioteca, mas, durante todo este tempo, não pus um pé fora desta propriedade. Não saberia o que fazer se saísse daqui.

- Talvez um novo mundo se abrisse para ti - afirmei. - Vale a pena tentar, não achas?

- Hmm, talvez tenhas razão - redarguiu, revirando o isqueiro na mão. - Mas tenho os meus próprios problemas. Se quiseres, um dia destes podemos conversar sobre isso.

Anuí com a cabeça. - E a Naoko, tem melhorado?

- Hmm, cremos que sim. De início estava bastante confusa e durante uns tempos tivemos dúvidas, mas acalmou e recuperou ao ponto de conseguir expressar-se verbalmente. Avança definitivamente na direcção certa. Todavia, deveria ter iniciado um tratamento bastante mais cedo. Os seus sintomas eram já patentes quando o namorado dela, o Kizuki, se suicidou.

A família dela deveria ter tratado disso e ela própria deveria ter-se apercebido de que havia algo de errado. Obviamente, as coisas em casa também não corriam bem...

- Não corriam bem? - inquiri com espanto.

- Não sabias? - A própria Reiko parecia mais surpreendida do que eu.

Abanei a cabeça.

- É preferível que seja a própria Naoko a contar-te. Está preparada para uma conversa franca contigo. - Remexeu o café e deu um sorvo. - Há mais uma coisa que precisas de saber. Segundo o regulamento, tu e a Naoko não têm permissão para estarem sozinhos. As visitas não podem estar sozinhas com os pacientes. Deve estar sempre presente um observador, que neste caso sou eu. Lamento, mas terão que me aturar. Está bem?

- Está bem - respondi com um sorriso.

- No entanto, podem conversar acerca do que quiserem -informou. - Esqueçam a minha presença. Encontro-me já a par de tudo o que há para saber entre ti e a Naoko.

- De tudo?

- Quase tudo. Sabes, temos sessões de gaipo e ficámos a conhecer-nos bastante bem uns aos outros. Além do mais, eu e a Naoko conversamos acerca de tudo. Aqui não há muitos segredos.

Observei-a enquanto beberricava o meu café. - Se queres que te diga a verdade, sinto-me confuso. Ainda não sei se aquilo que fiz à Naoko em Tóquio foi a atitude correcta ou não. Tenho pensado nisso durante todo este tempo, mas ainda não cheguei a nenhuma conclusão.

- Eu também não - afirmou a Reiko. - E a Naoko também não. Trata-se de algo que vocês os dois terão que decidir. Percebes o que quero dizer? Independentemente do que aconteceu, ambos podereis enveredar pelo rumo certo, se conseguirem alcançar uma espécie de compreensão mútua. Quando tiverem conseguido isso, talvez possam recuar no tempo e reflectir sobre aquilo que aconteceu, se foi correcto ou errado. O que te parece?

Assenti com a cabeça.

- Creio que podemos ajudar-nos uns aos outros, tu, a Naoko e eu, se realmente estivermos dispostos a isso, e se formos realmente sinceros. Quando três pessoas se empenham em algo assim, pode revelar-se incrivelmente eficaz. Quanto tempo podes permanecer cá?

- Bem, gostaria de regressar a Tóquio ao início da noite depois de amanhã. Tenho de trabalhar e quinta-feira tenho um exame de Alemão.

- Muito bem - disse ela. - Então podes permanecer aqui connosco. Não terás quaisquer custos e poderás conversar sem ter que te preocupar com o tempo.

- Conversarmos os três? - perguntei.

- Com a Naoko e comigo, evidentemente - afirmou. -Dispomos de um quarto separado, há também um sofá-cama na sala de estar onde dormirás perfeitamente. Não te preocupes.

- Isso é permitido? - inquiri. - Um visitante masculino pode permanecer em aposentos femininos?

- Não vais esgueirar-te a meio da noite e violar-nos às duas, pois não?

- Não sejas tonta.

- Então, não há problema. Ficas connosco e poderemos ter longas e agradáveis conversas. É o melhor a fazer. Assim conseguiremos compreender-nos verdadeiramente uns aos outros. E posso tocar guitarra para ti. Toco bastante bem, sabes.

- Tens a certeza de que a minha presença não causará incómodos?

A Reiko enfiou na boca o terceiro cigarro e acendeu-o após franzir o canto da boca.

- Eu e a Naoko já discutimos isso. Ambas decidimos endereçar-te este convite pessoal para permaneceres connosco. Não achas que deverias limitar-te a aceitar educadamente?

- Naturalmente, terei todo o prazer.

As rugas nos cantos dos olhos dela aprofundaram-se e olhou para mim durante alguns momentos. - Tens um modo de falar curioso - disse. - Não me digas que estás a tentar imitar aquele rapaz de Uma Agulha no Palheiro?

- Nem pensar! - respondi com um sorriso.

A Reiko sorriu também, com o cigarro na boca. - És, no entanto, uma pessoa bondosa. Nota-se pelo teu aspecto. Consigo observar esse tipo de coisas depois de sete anos a observar as pessoas que entram e saem daqui: há pessoas que conseguem abrir o coração e outras não. Tu és uma das que consegue. Ou, mais precisamente, consegues se o desejares. - O que acontece quando as pessoas abrem o coração? Enclavinhou as mãos sobre a mesa, com o cigarro pendurado dos lábios. Ela estava a apreciar a conversa. - Melhoram - respondeu. Tombou cinza sobre a mesa, mas aparentemente não se apercebeu.

Saímos do edifício principal, atravessámos uma colina e passámos por um tanque, campos de ténis e um campo de basquetebol. Estavam dois homens num dos campos de ténis: um era magro e de meia-idade e o outro era jovem e gordo. Ambos sabiam manejar bem as raquetes mas, na minha opinião, certamente não estavam a jogar ténis. Era como se ambos revelassem um interesse especial pelos ressaltos das bolas de ténis e estivessem a efectuar alguma pesquisa nessa área. Lançavam a bola de um lado para o outro com uma espécie de estranha concentração. Estavam ambos encharcados de suor. O jovem, próximo de nós, apercebeu-se da presença da Reiko e acercou-se. Trocaram algumas palavras e sorriram. Próximo do campo, um homem de rosto inexpressivo operava um enorme cortador de relva.

Continuámos a avançar e deparámo-nos com um pequeno bosque, com quinze ou vinte chalés pequenos e elegantes a pouca distância uns dos outros. Na entrada de quase todas as moradias havia o mesmo tipo de bicicleta amarela que o porteiro usava. - Os funcionários e as respectivas famílias vivem aqui - informou-me a Reiko. - Dispomos praticamente de tudo aquilo de que necessitamos e não precisamos de ir à cidade - declarou enquanto prosseguíamos. - Tal como disse antes, somos praticamente auto-suficientes em relação à comida. Temos o nosso próprio galinheiro para a produção de ovos. Dispomos de livros, discos, instalações desportivas, o nosso próprio mercado e todas as semanas recebemos a visita de cabeleireiros e esteticistas. Temos inclusivamente cinema ao fim de semana. Se precisarmos de algo especial, podemos Pedir a um dos funcionários que nos comprem isso na cidade. Encomendamos a roupa por catálogo. Viver aqui não constitui nenhum problema.

- Mas não podem ir à cidade?

- Não, isso não podemos fazer. Evidentemente, se se tratar de um caso especial, como ir ao dentista ou algo do género, isso já é diferente, mas, por regra, não podemos ir à cidade. Cada pessoa é completamente livre para abandonar este lugar, mas quem partir já não pode regressar. Não há segundas oportunidades. Não se pode passar um par de dias na cidade e pretender regressar. E tem lógica; caso contrário, toda a gente entraria e sairia daqui a seu bel-prazer.

Mais além das árvores, deparámo-nos com uma suave encosta ao longo da qual havia, a intervalos regulares, uma fileira de casas de madeira de dois pisos com uma aparência um pouco estranha. Era difícil dizer o que as tornava estranhas, mas foi a primeira coisa que senti quando as avistei. Foi uma reacção bastante similar ao que sentia quando me deparava com a não-realidade pintada de um modo agradável. Ocorreu-me que seria isto que se obteria se Walt Disney procedesse a uma versão animada de uma pintura de Munch. Todas as casas exibiam exactamente a mesma forma e cor; eram praticamente cúbicas, com perfeita simetria de ambos os lados, providas de portas amplas e várias janelas. A estrada, semelhante à via artificial de prática numa escola de condução, serpenteava através das moradias e diante de cada casa havia um arbusto florido e bem podado. O local encontrava-se deserto e todas as janelas tinham as cortinas fechadas.

- Esta é a Área C e aqui ficam alojadas as mulheres. Nós! Há dez casas, cada uma com quatro unidades, sendo cada unidade ocupada por duas pessoas. São oitenta pessoas ao todo, mas de momento somos apenas trinta e duas.

- É sossegado, não é?

- Bem, agora não está aqui ninguém - disse ela. - Disponho de uma autorização especial para me mover livremente, mas o resto das pessoas encontram-se ocupadas com os seus programas individuais. Algumas praticam exercício, outras ocupam-se com a jardinagem, outras estão em terapia de grupo e outras saíram para recolher plantas silvestres. Cada pessoa elabora o seu próprio programa diário. Vejamos, o que está a Naoko a fazer? Creio que deveria estar a tratar da nova pintura e do papel de parede. Já me esquecia que algumas dessas tarefas só terminam às cinco horas.

Caminhou em direcção ao edifício assinalado «C-7», subiu as escadas na extremidade do corredor e abriu a porta à direita, que estava destrancada. Mostrou-me a casa, uma agradável e simples unidade de quatro divisões: sala de estar, quarto, cozinha e quarto de banho. Não dispunha de mobiliário extra ou de qualquer decoração desnecessária, mas também não era um local austero. Não tinha nada de especial, mas estar ali assemelhava-se a conviver com a Reiko.- conseguia relaxar e deixar a tensão abandonar-me o corpo. Havia um sofá, uma mesa e uma cadeira de baloiço na sala de estar. Havia mais uma mesa na cozinha e enormes cinzeiros sobre ambas as mesas. O quarto dispunha de duas camas, duas secretárias e um armário. Entre as camas havia uma pequena mesinha de cabeceira, com um candeeiro de leitura e um livro de bolso voltado para baixo. A cozinha dispunha de um pequeno fogão eléctrico a condizer com o frigorífico e estava equipada para refeições simples.

- Não tem banheira, apenas um chuveiro, mas é bastante impressionante, não achas? Os balneários e a lavandaria são comunais.

- É quase demasiado impressionante. O meu quarto na residência académica reduz-se a um tecto e a uma janela.

- Ah, mas ainda não viste como são os Invernos aqui - disse ela, tocando-me nas costas enquanto me guiava para o sofá e se sentava ao meu lado. - São compridos e rigorosos. Nada a não ser neve, neve e mais neve para onde quer que olhes. O tempo fica húmido e enregelamos até aos ossos. Passamos o Inverno a remover neve. Mantemo-nos maioritariamente dentro de casa, pois é quente, a ouvir música, a conversar ou a tricotar. Se não dispuséssemos de todo este espaço, sufocaríamos. Verificarás por ti mesmo se vieres cá no Inverno.

Soltou um profundo suspiro, como se estivesse a imaginar o tempo invernal, e depois uniu as mãos sobre os joelhos.

- É esta a tua cama - disse, dando uma palmadinha no sofá. - Nós dormiremos no quarto e tu aqui. Ficas bem instalado, não achas?

- Tenho a certeza de que ficarei bem.

- Então, está decidido - disse. - Voltaremos cerca das cinco horas. Até Já, eu e a Naoko temos coisas a fazer. Não te importas de ficar aqui sozinho?

- De modo algum. Vou estudar Alemão.

Quando a Reiko saiu, estendi-me no sofá e fechei os olhos. Enquanto me embrenhava no silêncio, lembrei-me de repente da ocasião em que eu e o Kizuki passeámos de mota. Apercebi-me de que fora também num Outono. Num Outono há quantos anos atrás? Sim, há quatro anos. Lembrava-me do cheiro do casaco de couro do Kizuki e do ruído que a Yamaha vermelha de 125cc emitia. Fôramos a um local distante ao longo da costa e regressáramos exaustos nessa mesma noite. Não acontecera nada de especial durante a viagem, mas lembrava-me bem desse dia. O agreste vento outonal gemia nos meus ouvidos e, quando olhava para o céu, agarrado ao casaco do Kizuki, sentia como se estivesse prestes a ser lançado para o espaço sideral.

Estive deitado durante bastante tempo, com a mente a vaguear de memória em memória. Estranhamente, estar deitado naquela divisão parecia fazer ressurgir antigas memórias que, nunca ou raramente, me ocorriam. Algumas dessas recordações eram agradáveis, mas outras traziam-me laivos de tristeza.

Durante quanto tempo permaneci assim? Encontrava-me de tal modo imerso nessa torrente de memórias (e era de facto uma torrente, semelhante a uma nascente a jorrar das rochas) que não me apercebi de que a Naoko abrira a porta e entrara silenciosamente. Abri os olhos e deparei com ela. Levantei a cabeça e olhei-a nos olhos durante alguns instantes. Estava sentada no braço do sofá e olhava para mim. De início, imaginei que fosse uma imagem urdida pelas minhas próprias memórias. Mas era realmente a Naoko.

- Estás a dormir? - murmurou.

- Não, estou apenas a pensar - respondi. Soergui-me e perguntei: - Como estás?

- Estou bem - disse, com um pequeno sorriso semelhante a uma paisagem distante e pálida. - Mas não disponho de muito tempo. Não deveria estar aqui agora. Escapuli-me somente por uns instantes e devo voltar de imediato. Detestas o meu penteado?

- De modo algum. Está giro. - Penteara o cabelo num simples estilo colegial, apanhado de um dos lados por um gancho, como era seu hábito antigamente. Ficava-lhe bastante bem, como se usasse o cabelo sempre assim. Lembrava-me uma daquelas belas rapariguinhas que podemos ver em xilogravuras da Idade Média.

- Estava uma lástima e pedi à Reiko que mo cortasse. Achas mesmo que está giro?

- De verdade.

- A minha mãe detesta. - Retirou o gancho, soltou o cabelo, alisou-o com os dedos e voltou a colocar o gancho em forma de borboleta.

- Queria estar contigo a sós antes de nos juntarmos os três. Mas não tenho nada de especial para te dizer. Desejava apenas ver o teu rosto e acostumar-me à tua presença aqui. Caso contrário, iria ter dificuldades em familiarizar-me contigo de novo. Lido mal com as pessoas.

- E então? Isto aqui tem resultado? - perguntei.

- Um pouco - disse, tocando de novo no gancho. - Agora não tenho tempo. Tenho que ir.

Anuí com a cabeça.

- Toru - começou por dizer -, quero agradecer-te verdadeiramente por teres vindo visitar-me. Isso faz-me muito feliz. Mas se o facto de permaneceres aqui se tornar num fardo para ti, não hesites em mo dizer. Isto é um lugar especial e possui um sistema especial, e algumas pessoas não conseguem habituar-se a isso. Portanto, se te sentires assim, por favor, sê sincero comigo. Isso não me magoará. Aqui somos francos uns com os outros. Contamos uns aos outros todo o tipo de coisas, com total sinceridade.

- Assim o farei. Serei honesto.

Sentou-se no sofá e encostou-se a mim. Quando pus o braço em redor dela, repousou a cabeça no meu ombro e comprimiu o rosto contra o meu pescoço. Manteve-se assim durante algum tempo, como se estivesse a verificar-me a temperatura. Enquanto a abraçava, senti um calor no peito. Pouco depois, levantou-se sem dizer palavra e saiu tão silenciosamente quanto entrara.

Depois de ela partir, adormeci no sofá. Não era minha intenção dormitar, mas mergulhei numa espécie de sono profundo como há muito não me acontecia, preenchido pela sensação da presença da Naoko: na cozinha estavam os pratos que ela usava, no quarto de banho a escova de dentes que ela usava e no quarto a cama em que ela dormia. Enquanto dormia profundamente neste local habitado pela presença dela, expulsei, gota a gota, a fadiga de cada célula do meu corpo. Sonhei com uma borboleta a esvoaçar na meia-luz.

Quando despertei, os ponteiros do meu relógio indicavam as 16:35. A luz alterara-se, o vento esmorecera e as formas das nuvens eram diferentes. Suara durante o sono; limpei o rosto com uma pequena toalha que trouxera na mochila e vesti uma camisola interior lavada. Bebi água na cozinha e olhei através da janela por cima da banca. Avistei em frente a janela do edifício oposto, no interior da qual pendiam vários recortes de papel: uma ave, uma nuvem, uma vaca, um gato, todos em hábeis silhuetas reunidas em conjunto. Tal como anteriormente, não vi ninguém no exterior e não havia quaisquer ruídos. Era como se estivesse a viver isolado numas ruínas extremamente bem cuidadas.

Um pouco depois das cinco horas, as pessoas começaram a regressar à Área C. Olhei através da janela da cozinha e vi três mulheres passarem em baixo. Usavam chapéus e esse facto impediu-me de verificar as suas idades, mas, a julgar pelas suas vozes, não seriam muito jovens. Pouco depois de desaparecerem numa esquina, surgiram mais mulheres vindas da mesma direcção e, à semelhança do primeiro grupo, também desapareceram ao dobrarem a mesma esquina. A atmosfera do entardecer pairava sobre tudo. Da janela da sala de estar via árvores e uma linha de colinas sobre cujo cume flutuava uma linha de pálida luminosidade.

A Naoko e a Reiko regressaram juntas às 17:30. Eu e a Naoko cumprimentámo-nos apropriadamente, como se acabássemos de nos encontrar. Ela parecia verdadeiramente embaraçada. A Reiko reparou no livro que eu estivera a ler e perguntou-me de que livro se tratava. Disse-lhe que era A Montanha Mágica, de Thomas Mann.

- Como foste capaz de trazer esse livro para um local destes? - perguntou. Tinha razão, claro.

A Reiko preparou o café para os três. Contei à Naoko acerca do súbito desaparecimento do Sargento e sobre a última vez que o vira, quando ele me dera o pirilampo.

- Lamento muito que ele tenha desaparecido - disse ela. - Teria gostado de ouvir mais histórias acerca dele.

A Reiko perguntou-me quem era o Sargento e contei-lhe acerca das suas idiossincrasias, ao ponto de lhe arrancar uma enorme gargalhada. O mundo estava em paz e repleto de riso desde que as histórias sobre o Sargento continuassem a ser contadas.

Às dezoito horas, dirigimo-nos para a cantina no edifício principal para o jantar. Eu e Naoko comemos peixe frito e salada de alface, legumes cozidos, arroz e sopa de soja. A Reiko limitou-se a salada de massa e a café, acompanhados de mais um cigarro.

-Já não é preciso comer tanto à medida que se envelhece - comentou em jeito de explicação.

Estavam na cantina cerca de vinte pessoas. Chegavam e saíam mais pessoas enquanto jantávamos. Exceptuando a variedade de idades, o cenário assemelhava-se bastante ao da cantina na minha residência académica. A diferença consistia no volume uniforme das vozes. Não havia vozes ruidosas nem sussurros, ninguém ria alto ou chorava desconsoladamente, ninguém gritava com gestos exagerados, tudo se reduzia a conversas serenas e num nível uniforme. Jantavam em grupos de três a cinco pessoas, cada um dispondo de um único orador que os outros escutavam com acenos de cabeça e interjeições de interesse; quando essa pessoa terminava, uma outra retomava a conversa. Não conseguia aperceber-me do teor das conversas, mas o modo como falavam lembrou-me o estranho jogo de ténis a que assistira ao meio-dia. Perguntei-me se a própria Naoko falaria deste modo quando estava no meio deles e, estranhamente, senti uma pontada de solidão misturada com ciúmes.

Na mesa atrás de mim, um homem quase calvo, vestido de branco e com o autêntico ar de um médico, discorria para um jovem de óculos e de aspecto nervoso e para uma mulher de meia-idade, de rosto semelhante ao de um esquilo, sobre os efeitos da imponderabilidade na secreção dos sucos gástricos. Ambos o ouviam e proferiam um ocasional «Meu Deus!» ou "De verdade?»; mas quanto mais eu escutava o estilo oratório do homem, mais duvidava de que ele fosse realmente um médico, apesar da sua bata branca.

Ninguém na cantina me prestou qualquer atenção especial. Ninguém me olhava fixamente, nem parecia reparar que eu estava ali. A minha presença seria por certo um acontecimento completamente natural.

Somente uma vez o homem vestido de branco se voltou para me perguntar: - Quanto tempo vai ficar aqui?

- Duas noites. Parto quarta-feira - respondi.

- É agradável estar aqui nesta altura do ano, não acha? Mas volte cá no Inverno. É realmente encantador quando tudo fica branco.

- A Naoko poderá estar já fora daqui quando começar a nevar - disse a Reiko ao homem.

- Com efeito. Mas, mesmo assim, o Inverno é realmente encantador - repetiu ele com uma expressão sombria. Eu duvidava cada vez mais que ele fosse de facto médico.

- Costumam conversar sobre que assuntos? - perguntei à Reiko, que pareceu ficar desconcertada.

- Os assuntos das nossas conversas? Não passam de assuntos normais. O que aconteceu no dia tal, que livros temos lido, o tempo que fará amanhã, esse género de coisas. Não me digas que imaginas que as pessoas se levantam com um salto e se põem a gritar coisas do género: «Amanhã vai chover se um dos ursos polares devorar as estrelas esta noite!».

- Não, não, claro que não - redargui. - Perguntava-me apenas qual seria o assunto de todas estas conversas serenas.

- É um local calmo e, portanto, as pessoas conversam calmamente - disse a Naoko. Amontoara as espinhas de peixe na borda do prato e limpava a boca com um lenço. - Aqui não há necessidade de levantar a voz. Não é preciso convencer ninguém de nada e não é necessário atrair a atenção de ninguém.

- Suponho que não - respondi. No entanto, enquanto continuava a jantar naquele ambiente sereno, fiquei surpreendido ao aperceber-me de que sentia saudades do zumbido das pessoas a falarem. Desejava ouvir risos, pessoas a gritarem por nenhuma razão especial e a proferirem coisas em voz alterada. Era o tipo de ruído que me fatigara nos meses mais recentes, mas, enquanto jantava naquela divisão sobrenaturalmente calma, não fui capaz de relaxar. A cantina tinha todo o aspecto de uma feira mercantil dedicada a máquinas e ferramentas especializadas. As pessoas fortemente interessadas nalguma área especializada reuniam-se num local específico e permutavam informações que somente elas compreendiam.

Quando voltámos para o quarto depois do jantar, a Naoko e a Reiko disseram que iam ao balneário comunitário da Área C e que eu poderia usar o quarto de banho delas se não me importasse de tomar apenas um banho de chuveiro. Agradeci-lhes e, após saírem, despi-me e lavei-me. Encontrei um álbum de Bill Evans na prateleira e pu-lo a tocar enquanto secava o cabelo; de repente, apercebi-me de que era o mesmo disco que eu pusera a tocar no quarto da Naoko na noite do seu aniversário, na noite em que ela chorara e eu a tomara nos meus braços. Haviam decorrido seis meses apenas, mas parecia-me algo pertencente a um passado mais remoto. Talvez essa sensação se devesse ao facto de pensar tão frequentemente sobre essa noite - demasiado frequentemente, ao ponto de isso ter distorcido a minha noção de tempo.

A lua estava tão brilhante que apaguei as luzes e me estendi no sofá a ouvir o piano de Bill Evans. O luar que jorrava através da janela lançava longas sombras e tingia as paredes com laivos de tinta-da-china diluída. Tirei da mochila um pequeno frasco de metal, enchi a boca de brandy e deixei o calor da bebida deslizar lentamente pela garganta abaixo até ao estômago, donde se espalhou pelos meus membros. Após um sorvo final, guardei o frasco na mochila. Agora o luar parecia baloiçar ao som da música.

Vinte minutos depois, a Naoko e a Reiko voltaram do banho.

- Oh! Está tão escuro aqui, pensávamos que tinhas feito as malas e voltado para Tóquio! - exclamou a Reiko.

- Nem pensar - respondi. - Há anos que não via um luar tão brilhante. Apeteceu-me contemplá-lo com as luzes apagadas.

- Está encantador, de facto - disse a Naoko. - Reiko, ainda temos aquelas velas da última vez que a luz falhou?

- Provavelmente, numa das gavetas da cozinha.

A Naoko trouxe da cozinha uma enorme vela branca. Acendi-a, deixei pingar um pouco de cera sobre um prato e fixei-a. A Reiko usou a chama para acender um cigarro. Estávamos sentados a olhar para a vela neste ambiente silencioso e comecei a ter a sensação de que éramos as únicas pessoas que restavam nalgum distante recanto do mundo.

As sombras fixas do luar e as sombras móveis da luz da vela entrecruzaram-se e fundiam-se sobre as paredes brancas da divisão. Eu e a Naoko estávamos sentados no sofá, ao lado um do outro, e a Reiko instalara-se na cadeira de baloiço à nossa frente.

- Apetece-te vinho? - perguntou-me a Reiko.

- É permitido beber? - perguntei com alguma surpresa.

- Bem, não propriamente - disse a Reiko, coçando o lóbulo da orelha com um ligeiro embaraço. - Mas geralmente não fazem caso disso, se se tratar apenas de vinho ou cerveja e não bebermos demasiado. Tenho um amigo entre os funcionários e de vez em quando compra-me bebidas alcoólicas.

- Às vezes temos sessões de bebida - afirmou a Naoko com alguma malícia. - Somente nós as duas.

- Fazem bem - respondi.

A Reiko foi buscar ao frigorífico uma garrafa de vinho branco e trouxe três copos. O vinho tinha um sabor delicioso e quase parecia de fabrico caseiro. Quando o disco terminou, a Reiko tirou a guitarra de debaixo da cama e, após a afinar com um olhar de ternura, começou a tocar uma lenta fuga de Bach. Falhava as notas ocasionalmente, mas tratava-se realmente de Bach, executado com verdadeira emoção: quente, íntimo e repleto da alegria da execução.

- Comecei a tocar guitarra aqui - declarou a Reiko. - Os quartos não dispõem de pianos, obviamente. Sou auto-didacta e não tenho dedos adequados para tocar guitarra; nunca serei muito hábil, mas adoro realmente este instrumento. É pequeno, simples e fácil, à semelhança de um quarto pequeno e caloroso.

Executou mais uma curta peça de Bach, um trecho pertencente a uma suite. Enquanto beberricava o vinho de olhos fixos na chama da vela e ouvia o Bach da Reiko, senti a tensão desvanecer-se dentro de mim. Quando a Reiko terminou, a Naoko pediu-lhe para tocar uma canção dos Beatles.

- Está na hora dos discos pedidos - anunciou a Reiko, piscando-me o olho. - Ela obriga-me a tocar os Beatles todos os dias, como se eu fosse escrava dela.

Apesar de protestar, a Reiko executou uma agradável versão do tema Michelle.

- É uma bela canção. Gosto realmente desse tema - disse ela, fechando ocasionalmente os olhos e abanando a cabeça enquanto tocava. Quando acabou, continuou a beberricar o vinho e a fumar.

- Toca a Norwegian Wood - pediu a Naoko.

A Reiko trouxe da cozinha um gato de porcelana com uma das patas levantada num aceno. Era um mealheiro e a Naoko enfiou uma moeda de cem ienes pela ranhura.

- Para que foi isso? - inquiri.

- É uma das regras - declarou a Naoko. - Sempre que requisito o tema Norwegian Wood, tenho que colocar cem ienes no mealheiro. É a minha canção preferida e faço questão em pagar por isso. Requisito que a toquem sempre que me apetece ouvi-la.

- E assim, consigo dinheiro para comprar cigarros! - anunciou a Reiko.

Flectiu os dedos e tocou Norwegian Wood. Tocou novamente com verdadeira emoção, sem nunca permitir que a execução se tornasse sentimental. Tirei uma moeda de cem ienes do bolso e enfiei-a no mealheiro.

- Obrigada - agradeceu a Reiko com um sorriso doce.

- Essa canção consegue pôr-me tão triste - disse a Naoko. - Não sei bem, mas acho que me imagino a vaguear num bosque denso. Encontro-me sozinha, está frio e escuro e ninguém vem salvar-me. É por essa razão que a Reiko só executa esta canção se eu lhe pedir.

- Até parece uma cena do Casablanca] - exclamou a Reiko com uma gargalhada.

Depois de Norwegian Wood, seguiram-se algumas bossas novas enquanto me mantinha de olhos fixos na Naoko. Tal como ela dissera na carta, parecia mais saudável, com a pele bronzeada e o corpo firme devido ao exercício e às actividades ao ar livre. Os olhos eram ainda aquelas profundas e límpidas poças que sempre foram e os seus pequenos lábios continuavam a tremular com timidez, mas a sua beleza começara a adquirir os traços de uma mulher madura. Quase desaparecera aquela acutilância - o gélido gume de uma fina lâmina que se vislumbrava nas sombras da sua beleza e em seu lugar assomava agora unicamente uma serenidade apaziguadora e tranquilizante.

Senti-me comovido com esta nova e delicada beleza dela e assombrado com a ideia de que uma mulher pudesse mudar tanto no decurso de meio ano. Continuava a sentir-me atraído por ela, talvez mais do que anteriormente, mas o pensamento daquilo que ela perdera entretanto também me causava remorsos. Ela nunca mais recuperaria aquela beleza autocentrada que parece seguir um rumo próprio e independente, aparentemente exclusivo das raparigas adolescentes.

A Naoko disse que gostaria de se inteirar do meu dia-a-dia. Contei-lhe acerca da greve dos estudantes e do Nagasawa.. Era a primeira vez que lhe falava dele. Tive alguma dificuldade em lhe fornecer um relato exacto da estranha humanidade dele, da sua filosofia única e da sua moralidade altruísta, mas a Naoko pareceu compreender por fim aquilo que eu lhe relatava. Omiti o facto de que saía à procura de raparigas com ele e revelei somente que este rapaz invulgar era a única pessoa do dormitório com quem eu passava mais tempo. A Reiko começara entretanto a praticar a fuga de Bach que tocara anteriormente e efectuava ocasionais intervalos para beberricar vinho e fumar.

- Parece uma pessoa estranha - disse a Naoko.

- Ele é estranho - afirmei.

- Mas gostas dele?

- Não tenho a certeza. Acho que não posso afirmar que gosto dele. Com o Nagasawa, não se trata de gostar ou não gostar. Ele não se esforça para que gostem dele. Nesse sentido, é uma pessoa muito honesta e inclusive estóica. Não tenta enganar ninguém.

- «Estóico», quando dorme com todas essas raparigas?! Pois bem, isso é que é estranho - comentou a Naoko, rindo. - Com quantas raparigas já dormiu?

- Provavelmente já vai em oitenta. Mas, no caso dele, quanto mais elevados são os números, menos significado parece ter cada acto individual. Acho que é isso o que ele tenta alcançar.

- E chamas a isso «estóico»?

- No caso dele, sim.

A Naoko ponderou nas minhas palavras durante alguns instantes. - Acho que ele é mais perturbado do que eu.

- Concordo. Mas ele consegue integrar todas as suas qualidades distorcidas num sistema lógico. É brilhante. Se o trouxesse aqui, dar-lhe-iam alta em dois dias. «Oh, com certeza, estou a par disso tudo», diria ele. «Compreendo perfeitamente tudo aquilo que fazeis aqui». Ele é desse género, o género de indivíduo que as pessoas respeitam.

- Creio que sou o oposto de uma pessoa brilhante - disse a Naoko. - Não compreendo nada do que se passa aqui, tal como não me compreendo a mim própria.

- Não se trata de não seres inteligente - disse-lhe. - És uma pessoa normal. Há imensas coisas que eu próprio não compreendo acerca de mim. Ambos somos normais: pessoas comuns.

A Naoko apoiou os pés em cima da borda do sofá e repousou o queixo sobre os joelhos. - Quero saber mais coisas sobre ti.

- Não passo de uma pessoa normal: família normal, educação normal, rosto normal, resultados dos exames normais, pensamentos normais a ocuparem-me a mente.

- És um grande fã do Scott Fitzgerald... não foi ele que afirmou que não se deveria confiar em quem se autoproclamasse uma pessoa normal? Tu emprestaste-me o livro! - proferiu ela com um sorriso malévolo.

- Com efeito - respondi. - Mas não se trata de afectação. Acredito verdadeira e sinceramente, bem no fundo de mim, que sou uma pessoa normal. Consegues detectar em mim algo que não seja normal?

- Claro que consigo! - exclamou com uma certa impaciência. - Não percebes? Por que razão pensas que dormi contigo? Porque estava tão bêbada que teria dormido com qualquer um?

- Não, obviamente que não penso isso.

Permaneceu em silêncio durante bastante tempo, a olhar fixamente para os dedos dos pés. Não me ocorria nada para dizer e continuei a beberricar vinho.

- Com quantas raparigas já dormiste, Toru? - perguntou-me numa voz quase inaudível, como se esse pensamento acabasse de lhe ocorrer.

- Oito ou nove - respondi com sinceridade.

A Reiko colocou ruidosamente a guitarra sobre o regaço. - Nem sequer tens vinte anos! - disse. - Que tipo de vida tens levado?

A Naoko manteve-se em silêncio e observava-me com os seus olhos claros. Contei à Reiko acerca da primeira rapariga com quem dormira e as razões de termos rompido o relacionamento. Expliquei-lhe que descobrira que me era impossível amá-la, e prossegui o relato sobre as várias raparigas com quem dormira sob a tutela do Nagasawa.

- Não estou a tentar desculpar-me, mas eu estava a sofrer

- expliquei à Naoko. - Ali estava eu, via-te quase todas as semanas e falava contigo sabendo que a única pessoa no teu coração era o Kizuki. Isso doía. Doía verdadeiramente. E creio que foi por essa razão que dormi com raparigas que desconhecia.

A Naoko abanou a cabeça por instantes e depois olhou-me nos olhos. - Perguntaste-me daquela vez por que razão nunca dormi com o Kizuki, não foi? Ainda queres saber?

- Creio que é algo que eu deveria saber de facto.

- Também creio que sim - disse a Naoko. - Os mortos continuarão mortos para sempre, mas nós temos de continuar a viver.

Assenti com a cabeça. A Reiko executou uma e outra vez o mesmo trecho difícil para tentar aperfeiçoar a sua execução.

- Estava preparada para dormir com ele - anunciou a Naoko, retirando o gancho e soltando o cabelo. Entreteve-se a remexer nas mãos o objecto em forma de borboleta. - E ele queria dormir comigo, evidentemente. E tentámo-lo. Tentámo-lo várias vezes. Mas nunca conseguíamos. Não conseguíamos fazê-lo. Nessa altura eu não compreendia a razão, e ainda não compreendo. Amava-o e não me preocupava perder a virgindade. De bom grado faria tudo o que ele desejasse. Mas nunca conseguimos.

Puxou de novo o cabelo para trás e recolocou o gancho.

- Eu não conseguia ficar húmida - disse em voz abafada. -Nunca conseguia abrir-me a ele. E doía sempre. O meu sexo não lubrificava e doía-me demasiado. Tentámos tudo o que era possível, cremes e coisas do género, mas continuava a doer-me. Optei por o excitar com as mãos ou com a boca. Era o que eu lhe fazia sempre. Tu percebes o que quero dizer.

Anuí em silêncio.

Olhou através da janela para a lua, que parecia maior e mais brilhante. - Nunca quis falar acerca disto - disse.

- Era minha intenção encerrar isto no meu coração. Quem me dera consegui-lo. Mas tenho que falar acerca disso. Não sei a resposta. Quer dizer, eu estava bastante húmida daquela vez que dormi contigo, não estava?

- Hã-hã - respondi.

- Fiquei húmida desde que entraste no meu apartamento na noite do meu vigésimo aniversário. Desejava que me abraçasses. Desejava que me despisses, que me percorresses o corpo e me penetrasses. Nunca me sentira assim. Como era possível? Por que razão as coisas são assim? Quer dizer, eu amava-o de verdade.

- Mas não a mim - disse eu. - Queres saber por que razão sentias isso comigo, mesmo não me amando?

- Desculpa - proferiu ela. - Não é minha intenção magoar-te, mas precisas de compreender isto: eu e o Kizuki tínhamos um relacionamento verdadeiramente especial. Estávamos juntos desde os três anos. Foi assim que crescemos: sempre juntos, sempre a conversar, compreendíamo-nos perfeitamente um ao outro. Beijámo-nos pela primeira vez na primeira classe, foi realmente maravilhoso. Quando tive o período pela primeira vez, corri para junto dele a chorar como um bebé. Éramos verdadeiramente íntimos. Quando ele morreu, não consegui relacionar-me com as outras pessoas. Não sabia o que significava amar outra pessoa.

Estendeu a mão para o copo de vinho sobre a mesa, mas derrubou-o inadvertidamente e entornou vinho sobre a carpete. Baixei-me para apanhar o copo e coloquei-o sobre a mesa. Perguntei-lhe se queria beber mais. Manteve-se em silêncio durante alguns momentos e de repente rompeu em lágrimas enquanto todo o seu corpo estremecia. Curvou-se para a frente, com o rosto enterrado nas mãos, e chorou com a mesma violência sufocante com que chorara naquela noite comigo. A Reiko pousou a guitarra e sentou-se ao lado dela para a confortar. Quando lhe colocou o braço sobre o ombro, a Naoko comprimiu o rosto contra o peito da Reiko como se fosse um bebé.

- Sabes - disse-me a Reiko -, talvez seja boa ideia dares um pequeno passeio. Talvez uns vinte minutos. Desculpa, mas creio que isso ajudaria.

Anuí com a cabeça, levantei-me e vesti uma camisola. - Obrigado pela tua ajuda - disse à Reiko.

- Não precisas de agradecer - disse ela com uma piscadela de olho. - A culpa não é tua. Não te preocupes, quando regressares, ela já estará bem.

Os meus pés levaram-me ao longo da estrada iluminada pelo estranho e irreal luar, em direcção ao bosque. Sob o luar, todos os sons emitiam uma estranha reverberação. O som abafado das minhas passadas parecia provir de outra direcção, como se ouvisse alguém a caminhar no fundo do mar. Ocasionalmente, ouvia atrás de mim um estalido ou um roçagar. Uma pesada mortalha pendia sobre a floresta, como se os animais nocturnos retivessem a respiração à espera que eu passasse.

Sentei-me na zona onde a estrada se elevava para além das árvores e contemplei o edifício onde a Naoko vivia. Era fácil identificar o seu quarto, bastava-me descobrir a única janela nas traseiras onde tremulava uma ténue luminosidade. Concentrei-me nesse pontinho de luz durante muito, muito tempo. Lembrava-me algo semelhante ao pulsar final das cinzas de uma alma moribunda. Senti o desejo de cobrir essa luz com as mãos a fim de a manter viva. Continuei a observar, do mesmo modo como Jay Gatsby observava a minúscula luz na margem oposta noite após noite.

Meia hora depois, quando regressei à entrada da casa, ouvi a Reiko a tocar guitarra. Subi silenciosamente as escadas e bati à porta. A Naoko ausentara-se. A Reiko estava sentada no tapete, a tocar guitarra. Apontou em direcção à porta do quarto, indicando-me que a Naoko se encontrava lá dentro. Pousou a guitarra no chão, sentou-se no sofá e fez-me sinal para me sentar ao seu lado enquanto servia o resto do vinho em dois copos.

- A Naoko encontra-se bem - disse tocando-me no joelho. - Não te preocupes, só precisa de descansar um pouco. Acabará por acalmar. Sentia-se apenas um pouco perturbada. E se entretanto déssemos um passeio?

- Está bem.

Percorremos a estrada iluminada pelos lampiões. Quando alcançámos a área junto dos campos de ténis e de basquetebol, sentámo-nos num banco. A Reiko retirou uma bola de basquete de debaixo do banco e fê-la girar nas mãos. Perguntou-me se eu jogava ténis. Disse-lhe que sabia jogar mas que era um péssimo jogador.

- E basquetebol?

- Não é o meu forte - respondi.

- Qual é o teu forte? - perguntou, franzindo os cantos dos olhos enquanto sorria. - Além de dormir com raparigas.

- Também não sou grande coisa nisso - disse, ferido com as palavras dela.

- Estava a brincar. Não te zangues. Mas, falando a sério, és bom em quê?

- Em nada de especial. Há coisas que gosto de fazer.

- Por exemplo?

- Caminhadas. Natação. Ler.

- Então gostas de fazer coisas sozinho?

- Creio que sim. As actividades em grupo nunca me entusiasmaram. Não consigo sentir qualquer entusiasmo. Perco o interesse de imediato.

- Então, tens de vir aqui durante o Inverno. Praticamos esqui. Tenho a certeza de que gostarias de esquiar na neve durante todo o dia, a suar do esforço. - Começou a olhar fixamente para a mão direita, sob a luz do lampião, como se inspeccionasse um instrumento musical antigo.

- A Naoko costuma exibir aquele comportamento? - inquiri.

- Ocasionalmente - declarou, examinando agora a mão esquerda. - De vez em quando fica perturbada e chora assim. Mas não faz mal, está apenas a extravasar a emoção. Seria assustador se não conseguisse fazê-lo. Quando a emoção se acumula e endurecemos e morremos por dentro, então estamos realmente perante um grave problema.

- Terei dito algo que não deveria?

- Não. Não te preocupes. Sê sempre sincero. É o melhor. Pode magoar um pouco por vezes, e alguém pode ficar perturbado, como aconteceu à Naoko, mas é a melhor atitude a adoptar. É o que deves fazer se pretendes verdadeiramente que a Naoko se sinta bem de novo. Tal como te disse inicialmente, não deverias preocupar-te tanto em querer ajudá-la, mas sim tentares tu próprio recuperar enquanto a ajudas a convalescer. Aqui fazemos as coisas assim. Por conseguinte, tens que ser franco e dizer tudo o que te vem à mente, pelo menos enquanto aqui permaneceres. Ninguém faz isso no mundo lá fora, pois não?

- Creio que não.

- Já vi todo o tipo de pessoas entrarem e saírem daqui - continuou -, talvez demasiadas pessoas. Geralmente, basta-me olhar para a pessoa para saber se irá melhorar ou não, quase por instinto. No entanto, no caso da Naoko, não tenho tanta certeza. Não faço a mínima ideia do que irá acontecer-lhe. Tanto quanto sei, poderá recuperar a cem por cento já no próximo mês, como poderá continuar assim durante anos. Não sei de facto dizer-te o que fazer, além do género de conselhos mais genéricos: sermos honestos e entreajudarmo-nos.

- O que torna a Naoko num caso tão complicado para ti?

- Talvez porque gosto muito dela. Creio que as minhas emoções se intrometem e não consigo olhá-la com clareza. Quer dizer, gosto realmente dela. Mas, para além desse facto, ela carrega um fardo de problemas diferentes, tão emaranhados uns nos outros que se torna difícil desvendar um único deles. Talvez demore bastante tempo a desemaranhá-los, ou talvez algo consiga desencadear o desvendar simultâneo de todos eles. Algo de género. É por essa razão que não tenho certezas acerca dela.

Pegou novamente na bola de basquete, rodou-a nas mãos e fê-la ressaltar no chão.

- A coisa mais importante consiste em não te impacientares

- continuou a Reiko. - É mais um conselho que te dou: não sejas impaciente. Mesmo que as coisas estejam confusas ao ponto de não conseguires fazer nada, não desesperes, não queimes os fusíveis nem comeces a puxar nenhum fio em particular antes da ocasião apropriada. Tens que compreender que se trata de um processo demorado e que deves progredir lentamente, um passo de cada vez. Achas que és capaz disso?

- Posso tentar - respondi.

- Sabes, pode demorar muito tempo e mesmo assim ela pode não recuperar completamente. Já pensaste nisso?

Assenti com a cabeça.

- Custa esperar - disse, fazendo a bola ressaltar de novo.

- Sobretudo para alguém da tua idade. À espera que ela melhore. Sem prazos ou garantias. Achas que consegues fazer isso? Amas a Naoko a esse ponto?

- Não tenho a certeza - declarei com sinceridade. - Tal como a Naoko, não sei realmente o que significa amar outra pessoa, embora ela tenha atribuído a isso um significado um pouco diferente. Mas desejo esforçar-me ao máximo. Terei que o fazer, caso contrário, não saberei que rumo seguir.

Tal como disseste antes, eu e a Naoko temos que nos salvar um ao outro. É a única maneira de sermos salvos.

- E vais continuar a seduzir e a dormir com raparigas?

- Também não sei como reagir em relação a isso - disse.

- O que achas? Devo continuar a aguardar e a masturbar-me? Também não tenho controlo total sobre isso.

A Reiko pousou a bola no chão e deu-me uma palmadinha no joelho. - Olha, não estou a dizer-te para deixares de dormir com raparigas. Se te sentes bem com isso, então não há problema. Afinal de contas, trata-se da tua vida, é algo que só tu podes decidir. O que estou a dizer-te, é que não deverias desgastar-te de um modo não natural. Percebes aonde pretendo chegar? Seria um grande desperdício. O período entre os dezanove e os vinte anos é uma etapa crucial na maturação do carácter e, se te tornares pervertido nessa idade, isso causar-te-á dor quando fores mais velho. É a verdade. Portanto, pondera nisso com cuidado. Se pretendes cuidar da Naoko, cuida de ti também. Disse-lhe que iria ponderar nessa questão.

- Eu própria já tive vinte anos. Há muito tempo atrás. Dá para acreditar?

- Acredito. Obviamente.

- Bem lá no fundo?

- Bem lá no fundo - anuí com um sorriso.

- E também era bonita. Não tão bonita como a Naoko, mas bastante gira. Ainda não tinha todas estas rugas.

Disse-lhe que gostava bastante das suas rugas e ela agradeceu-me.

- Mas nunca digas a nenhuma mulher que achas as rugas dela atraentes - acrescentou. - Eu gosto de ouvir isso, mas sou uma excepção.

- Serei cuidadoso.

Retirou uma carteira do bolso das calças e mostrou-me uma foto. Era um instantâneo a cores de uma menina encantadora com cerca de dez anos, com esquis nos pés e fato de esqui de cor brilhante, especada na neve e a sorrir docemente para a objectiva.

- Não é bonita? É a minha filha - disse a Reiko. - Enviou-ma em Janeiro. Tem agora... quantos?... nove anos.

- Tem o teu sorriso - comentei, devolvendo-lhe a foto.

Guardou a carteira, deu uma fungadela e acendeu o cigarro que enfiara na boca.

- Eu queria ser pianista. Tinha talento, as pessoas reconheciam isso e apaparicavam-me enquanto crescia. Ganhei concursos, obtive as classificações mais altas no conservatório e estava preparada para estudar na Alemanha após me formar. Não havia uma única nuvem no horizonte. Tudo progredia perfeitamente e, quando isso não acontecia, havia sempre alguém que resolvia as coisas por mim. Mas um dia aconteceu algo e tudo se desfez. Encontrava-me no último ano do conservatório e aproximava-se um concurso importante. Pratiquei com constância, mas o dedo mindinho da mão esquerda ficou paralisado de repente. Desconheço porquê, mas foi o que aconteceu. Tentei massajá-lo ou embebê-lo em água quente e deixei de praticar durante alguns dias: nada resultou. Senti-me aterrorizada e consultei um médico. Tentaram todo o tipo de exames, mas não conseguiram descobrir a causa. Não havia nada de errado com o próprio dedo, os nervos funcionavam perfeitamente e diziam-me que não havia razão para ter ficado paralisado. O problema deveria ser psicológico. Consultei então um psiquiatra, mas também ele não descobriu a causa. Talvez se tratasse do stresse que antecede uma competição, disse-me ele, e aconselhou-me a manter-me afastada do piano durante algum tempo.

Inalou profundamente e exalou o fumo. Depois dobrou o pescoço um par de vezes.

- Decidi tentar recuperar em casa da minha avó, na costa de Izu. Resolvi esquecer o concurso e relaxar enquanto passava um par de semanas longe do piano, a fazer o que me apetecesse. Mas foi em vão. Só conseguia pensar no piano. Talvez nunca mais conseguisse mexer o dedo. Como conseguiria viver se isso acontecesse? Estes pensamentos preenchiam-me continuamente a mente. Começara a tocar aos quatro anos e crescera a pensar somente no piano. Nunca ajudava em casa, de modo a proteger as mãos. As pessoas prestavam-me atenção apenas por essa razão: o meu talento a tocar piano. E quando se tira o piano a uma rapariga que cresceu desse modo, o que resta? Foi o que aconteceu, zás, A minha mente tornou-se num caos completo. Escuridão total.

Lançou o cigarro ao chão, calcou-o e dobrou novamente o pescoço.

- Foi o fim do meu sonho em me tornar pianista. Passei dois meses no hospital. Pouco depois do internamento, o meu dedo começou a mexer e pude então regressar ao conservatório e terminar a formação. Mas algo desaparecera dentro de mim. Uma gema de energia ou algo do género desaparecera, evaporara-se do meu corpo. O médico disse que me faltava a força mental para me tornar numa pianista profissional e aconselhou-me a abandonar essa ideia. Após a formação, aceitei alunos e comecei a dar aulas em casa. Mas a dor que eu sentia era excruciante, como se a minha vida tivesse terminado. Ali estava eu, no início dos vinte, e a melhor parte da minha vida terminara já. Tens consciência de como isso era horrível? Eu tinha tanto potencial e um dia acordo e isso desaparecera. Acabaram-se os aplausos, ninguém mais me elogiaria, ninguém mais me diria como eu era maravilhosa. Passei dias e dias dentro de casa a ensinar exercícios e sonatinas Bayer às crianças da vizinhança. Sentia-me tão infeliz que chorava a cada instante. Só de pensar no que perdera! Por vezes ouvia falar de pessoas bem menos talentosas do que eu que conseguiam o segundo lugar num concurso ou que iriam efectuar um recital nalguma sala de concertos, e então as lágrimas jorravam-me dos olhos. Os meus pais andavam com mil e um cuidados, receosos de me magoarem. Mas eu sabia quão desiludidos estavam. De repente, a filha de que tanto se orgulhavam reduzira-se a uma doente mental. Já nem conseguiam arranjar-me um pretendente. Quando as pessoas vivem juntas, pressente-se o que elas estão a sentir e comecei a odiar isso. Assustava-me sair de casa, assustava-me que os vizinhos pudessem falar de mim. í aconteceu, zás. Aconteceu de novo: a confusão, a escuridão. Ocorreu quando tinha vinte e quatro anos e dessa vez passei sete meses num sanatório. Não era como este lugar: era um desses asilos vulgares, com paredes altas e portões trancados. Um lugar imundo, sem pianos. Não sabia ° que fazer da minha vida. Desejava somente sair dali o mais rápido possível e esforcei-me desesperadamente por melhorar. Sete meses: uns intermináveis sete meses. Foi quando começaram a aparecer-me as rugas.

Sorriu com os lábios entreabertos.

- Conheci um homem pouco depois de sair do hospital e casámos. Era um ano mais novo do que eu, um engenheiro que trabalhava numa empresa de construção de aeroplanos. E era um dos meus alunos. Um homem simpático. Não falava muito, mas era caloroso e sincero. Dava-lhe aulas há seis meses e de repente pediu-me em casamento. Sem mais nem menos, num dia enquanto tomávamos chá após a aula. Dá para acreditar? Nunca namoráramos ou déramos a mão. Apanhou-me completamente de surpresa. Disse-lhe que não podia casar. Disse-lhe que gostava dele e que o achava uma pessoa simpática, mas, devido a certas razões, era-me impossível casar com ele. Quis saber que razões eram essas e expliquei-lhe tudo com total honestidade: que estivera duas vezes internada por esgotamento nervoso. Contei-lhe tudo: a causa, o meu estado e a possibilidade de isso poder acontecer de novo. Disse-lhe que precisava de tempo para ponderar e encorajei-o a esperar o tempo necessário. Todavia quando compareceu à aula na semana seguinte, reiterou o desejo de casar comigo. Pedi-lhe que esperasse três meses. Disse-lhe que conviveríamos durante esses três meses e que, se ainda desejasse desposar-me, reflectiríamos novamente sobre isso. Encontrávamo-nos uma vez por semana durante esses três meses. íamos a todo o lado, conversávamos acerca de tudo e comecei a gostar bastante dele. Quando estava com ele, sentia que a minha vida me fora finalmente restituída. Sentia uma maravilhosa sensação de alívio quando estava sozinha com ele: conseguia esquecer todas as coisas terríveis que haviam acontecido. Que interessava que não tivesse conseguido tornar-me numa pianista? Que importava que tivesse estado internada em instituições para doentes mentais? A minha vida não terminara ainda. A vida continuava repleta de coisas maravilhosas que eu ainda não vivera. Sentia-me tremendamente grata para com ele, nem que fosse só pelo facto de conseguir fazer-me sentir assim. Após o decurso desses três meses, pediu-me novamente em casamento. Foi isto o que eu lhe disse: «Se desejas dormir comigo, não me importo, nunca dormi com ninguém e gosto muito de ti; portanto, se queres fazer amor comigo, não me importo minimamente. Mas desposar-me é uma questão completamente diferente.

Se casares comigo, assumirás todos os meus problemas, e são bem piores do que imaginas». Ele disse que não se importava, que não desejava apenas dormir comigo; queria casar comigo, partilhar tudo o que havia dentro de mim. E estava a ser sincero. Era o tipo de pessoa que falava sempre com franqueza e cumpria tudo o que prometia. Por conseguinte, aceitei casar com ele. Não me restava outra escolha. Casámo-nos, vejamos, quatro meses depois, acho que foi. Teve de enfrentar os pais por minha causa e eles deserdaram-no. Provinha de uma antiga família que vivia numa zona rural de Shikoku. Investigaram o meu passado e descobriram que eu fora internada duas vezes. Não era de admirar que se opusessem ao casamento. Por conseguinte não tivemos festa. Limitámo-nos a comparecer no registo civil para oficializar o casamento e fizemos uma viagem de dois dias a Hakone. Era o suficiente: estávamos felizes. Permaneci virgem até ao dia em que me casei. Tinha vinte e cinco anos! Dá para acreditar? Suspirou e pegou de novo na bola de basquete. - Enquanto permanecesse ao lado dele, achava que tudo correria bem - prosseguiu. - Enquanto permanecesse ao lado dele, os meus problemas manter-se-iam longe. Isso é a coisa mais importante quando se tem uma doença como a minha: a sensação de confiança. Se me entregar às mãos desta pessoa, estarei bem. Se o meu estado começar a piorar, por pouco que seja, ou se algum parafuso se soltar, ele aperceber-se-á de imediato e, com um tremendo cuidado e paciência, conseguirá endireitar as coisas, conseguirá apertar de novo o parafuso e colocar todas as pontas emaranhadas no seu devido lugar. Quando possuímos essa sensação de confiança, a doença mantém-se ao longe, acabam-se os zás! Sentia-me tão feliz! , A vida era maravilhosa! Era como se alguém me tivesse arrancado ao mar frio e enfurecido e depois me agasalhasse num cobertor e me deitasse numa cama quente. Dei à luz dois anos após casarmos e desde então não tive mãos a medir! Esqueci-me praticamente da minha doença. Levantava-me de manhã, fazia a lida da casa, cuidava da bebé e preparava as refeições para o meu marido quando ele regressava do trabalho. Esta rotina repetia-se dia após dia, mas estava feliz. Foi provavelmente o período mais feliz da minha vida. Pergunto-me, quantos anos durou isso?

Pelo menos até aos meus trinta e um anos. E então, de repente, zás, Aconteceu de novo. Sucumbi.

Acendeu um cigarro. O vento esmorecera. O fumo elevou-se directamente no ar e desapareceu na escuridão da noite. Somente nesse momento me apercebi de que o céu estava repleto de estrelas.

- Tinha acontecido algo? - perguntei.

- Sim - disse -, algo muito estranho, como se me tivessem montado uma armadilha. Ainda hoje sinto um calafrio só de pensar nisso. - Esfregou a têmpora com a mão. - Desculpa estar a obrigar-te a ouvir toda esta conversa sobre mim. Vieste cá para ver a Naoko e não para ouvir a minha história.

- Gostava realmente de a ouvir. Gostava de ouvir o resto, se não te importares.

- Bem - prosseguiu -, quando a nossa filha entrou para o jardim de infância, recomecei gradualmente a tocar. Apenas para mim própria e para mais ninguém. Comecei com curtas peças de Bach, Mozart, Scarlatti. Obviamente, após um período tão prolongado e vazio, não consegui recuperar de imediato a sensibilidade musical. E os meus dedos já não eram tão ágeis como antigamente. Mas sentia-me entusiasmada por estar a tocar piano de novo. Quando colocava as mãos sobre as teclas, tinha consciência de como amava a música, de como ansiava pela música. Ter conseguido tocar música para mim foi maravilhoso. Tal como disse antes, tocava já desde os quatro anos e só então me apercebi de que nunca tocara uma única vez para mim própria. Estivera sempre empenhada em tentar passar nalgum teste, em praticar um exercício ou tentar impressionar alguém. Tudo coisas importantes, de facto, quando se pretende dominar um instrumento. Todavia, após uma certa idade, temos que começar a tocar para nós mesmos. A música é isso. Foi preciso abandonar aquele curso de elite e chegar aos trinta e um anos para finalmente ter consciência desse facto. Deixava a criança no jardim de infância e procedia apressadamente à lida da casa a fim de passar uma ou duas horas a tocar a música de que gostava. Até aqui tudo bem, certo?

Anuí com a cabeça.

- Certo dia recebi a visita de uma das vizinhas, alguém que eu conhecia suficientemente ao ponto de a cumprimentar na rua; viera pedir-me que desse aulas de piano à filha. Não conhecia a filha dela, pois, embora vivêssemos no mesmo bairro, as nossas casas eram bastante afastadas. Segundo ela, a filha costumava passar pela minha casa e gostava de me ouvir tocar; chegara inclusivamente a ver-me tocar e agora importunava a mãe para ter aulas comigo. Frequentava a quarta classe e tivera já aulas com várias pessoas, mas as coisas não haviam corrido bem por uma razão ou outra e agora não tinha professor. Recusei. Sofrera um colapso de vários anos e, embora fizesse sentido aceitar um verdadeiro principiante, era-me impossível acompanhar alguém que tivera aulas durante anos. Além disso, cuidar da minha própria filha ocupava-me demasiado e, embora não dissesse isto à mulher, ninguém consegue acompanhar uma criança que mudou frequentemente de professor. A mulher pediu-me então o favor de uma única sessão com a filha. Era um pouco insistente e apercebi-me de que não desistiria facilmente; por conseguinte, aceitei conhecer a sua filha: mas somente conhecê-la. Três dias depois, a rapariga compareceu sozinha em minha casa. Era um anjo perfeito, com aquele tipo de beleza pura, doce e transparente. Nunca vira, e nunca vi, uma menina tão bela. Tinha cabelo comprido e brilhante, negro como tinta-da-china fresca, braços e pernas esguios e graciosos, olhos cintilantes e uma boquinha delicada como se alguém tivesse acabado de a desenhar. Não consegui falar quando a vi, ela era tão encantadora. Sentada no meu sofá, transformou a minha sala de estar num elegante salão. Doía olhar directamente para ela, via-me obrigada a olhá-la de soslaio. Ela era assim. Ainda consigo visualizá-la nitidamente.

Semicerrou os olhos como se estivesse realmente a visualizar a menina.

- Conversámos durante uma hora inteira enquanto eu bebia café. Falámos acerca de todo o tipo de coisas: de música, da escola dela, praticamente de tudo. Verifiquei de imediato que era inteligente. Sabia manter uma conversa, tinha opiniões claras e argutas e um talento natural para instigar o interlocutor a falar. Era quase assustador. Na altura desconhecia a razão que a tornava assustadora. Assombrava-me que ela fosse tão assustadoramente inteligente. Porém, na sua presença, perdia os meus poderes normais de julgamento. Ela era tão jovem e bela que me sentia avassalada ao ponto de me ver a mim própria como um espécime inferior, uma desajeitada amostra de ser humano, capaz apenas de pensamentos negativos acerca dela devido à minha própria mente pervertida e imunda. Abanou a cabeça várias vezes.

- Se tivesse sido tão bonita e inteligente como ela era, teria sido um ser humano normal. Que mais poderia desejar se fosse assim tão inteligente e bela? Para que precisaria de atormentar e espezinhar as pessoas mais fracas e inferiores quando toda a gente me adorava tanto? Que razão poderia haver para agir assim?

- Ela fez-te alguma coisa terrível?

- Bem, direi apenas que a rapariga era uma mentirosa compulsiva. Ela era pura e simplesmente doentia. Inventava tudo. E enquanto inventava as suas histórias, começava a acreditar nelas. E depois alterava as coisas de modo a encaixarem na sua história. Tinha uma mente tão ágil que conseguia manter-se sempre um passo à nossa frente a fim de modelar as coisas que normalmente nos pareceriam estranhas; portanto, nunca nos ocorreria que ela estivesse a mentir. Antes do mais, ninguém suspeitaria alguma vez que uma menina tão bonita pudesse mentir acerca das coisas mais comuns. E eu muito menos. Contou-me uma data de mentiras durante seis meses, até me aperceber do mais ínfimo indício de que algo estava errado. Ela mentia acerca de tudo. E eu nunca suspeitei. Sei que isso parece uma loucura.

- Que mentiras engendrou ela?

- Quando digo tudo, significa realmente tudo. - Emitiu uma gargalhada sarcástica. - Quando as pessoas mentem acerca de algo, têm de inventar um conjunto de mentiras que corroborem a primeira. Chama-se a isso «mitomania». Quando um mitómano comum conta mentiras, trata-se geralmente de mentiras inocentes e a maior parte das pessoas apercebem-se desse facto. Mas não era isso o que acontecia com aquela rapariga. Para se proteger, contava mentiras maldosas sem pestanejar sequer. Servia-se de tudo a que pudesse deitar as mãos. E mentiria ainda mais, ou menos, dependendo da pessoa com quem estivesse a falar. Quase nunca mentia à mãe ou a amigos chegados, pois desmascará-la-iam de imediato, e, se tivesse que contar alguma mentira, seria verdadeiramente cautelosa de modo a não se expor. E se alguém descobrisse a verdade, arranjaria uma escusa ou desculpar-se-ia com aquela sua vozinha suplicante e com lágrimas a jorrarem-lhe dos olhos encantadores. Ninguém conseguia continuar zangado com ela. Desconheço ainda por que razão me escolheu a mim. Seria eu mais uma das suas vítimas ou uma fonte de salvação? Sinceramente, não sei. Claro, isso agora quase não importa, agora que tudo terminou já. Agora que sou a pessoa que sou. Seguiu-se um breve silêncio.

- Repetiu-me o que a mãe me contara, que se sentira comovida ao ouvir-me tocar piano quando passava perto de minha casa. Avistara-me também algumas vezes na rua e começara a idolatrar-me. Usou de facto essa palavra: «idolatrar». Corei profundamente. Imagine-se, ser «adorada» por uma bela menina que parecia uma boneca! Porém, creio que não se tratava de uma mentira absoluta. Eu entrara já nos trinta, claro, e nunca conseguiria ser tão bela e arguta quanto ela, além de que não possuía nenhum talento especial, mas haveria certamente algo que a fazia sentir-se atraída por mim, algo que lhe faltava a ela, creio. Talvez fosse essa a razão por que se interessara por mim. Agora, em retrospectiva, acredito nisso. E não estou a vangloriar-me.

- Sim, creio que compreendo o que queres dizer.

- Ela trouxera pautas e perguntou-me se poderia tocar comigo. Aceitei. Era uma invenção de Bach. A execução dela foi... interessante. Ou deveria dizer estranha? Não era de modo algum uma execução vulgar. Também não era requintada, obviamente. Ela ainda não frequentara uma escola profissional e as lições que até aí lhe haviam sido ministradas foram intermitentes; ela era em grande parte uma autodidacta. A execução dela evidenciava falta de prática. Tê-la-iam rejeitado de imediato em qualquer audição num conservatório. Mas ela conseguia evidenciar-se. Embora noventa por cento fossem verdadeiramente terríveis, os restantes dez por cento eram notáveis: ela fazia o piano cantar: aquilo era música. E tratava-se de uma invenção de Bach! Consequentemente, interessei-me por ela. Era minha intenção descobrir as capacidades dela.

Escusado será dizer que o mundo está cheio de crianças que conseguem executar Bach bem melhor do que ela. Vinte vezes melhor. Mas a maioria dessas execuções não patenteariam nada de especial. Seriam ocas, vazias. A técnica desta rapariga era má, mas dispunha daquele pequeno detalhe que atraía as pessoas, ou que me atraía a mim, pelo menos. Por conseguinte, achei que talvez valesse a pena ensiná-la. Naturalmente, estava fora de questão exercitá-la ao ponto de se tornar numa profissional. Mas sentia que talvez fosse possível torná-la no tipo de pianista feliz como eu era então e que ainda sou, alguém que apreciava tocar para si próprio. Isto revelou-se uma vã esperança, porém. Ela não era o tipo de pessoa que calmamente se dedica a fazer coisas sozinha. Tratava-se de uma criança que procedia a cálculos detalhados de modo a usar todos os meios ao seu dispor para impressionar as outras pessoas. Ela sabia exactamente o que fazer para que as pessoas a admirassem e a elogiassem. E sabia exactamente o tipo de execução necessária para me aliciar. Tenho a certeza de que premeditara tudo e que se empenhara ao máximo a praticar uma e outra vez as passagens mais importantes a fim de me impressionar. Ainda consigo visualizá-la. Todavia, ainda hoje, depois de tudo isso se ter tornado claro para mim, acredito que foi uma execução brilhante e, se a ouvisse de novo, sentiria os mesmos calafrios na espinha. Mesmo conhecendo todos os defeitos dela, todas as suas astúcias e mentiras, continuaria a sentir isso. Digo-te, há coisas espantosas no mundo.

Pigarreou com um som seco e áspero e silenciou-se.

- E então, aceitaste-a como aluna? - perguntei.

- Sim. Uma aula por semana, aos sábados de manhã, quando não tinha aulas. Nunca faltou a uma única aula, nunca se atrasava, era a aluna ideal. Praticava sempre para as aulas. Depois de cada lição, comíamos bolo e conversávamos.

Olhou nesse momento para o relógio, como se se lembrasse subitamente de algo.

- Não achas que deveríamos regressar? Estou um pouco preocupada com a Naoko. Certamente ainda não te esqueceste dela, pois não?

- Claro que não - ri-me. - Estava apenas absorvido pela tua história.

- Se quiseres, conto-te o resto amanhã. É uma história comprida, demasiado comprida para ser contada de uma vez só.

- És uma verdadeira Xerazade.

- Eu sei - disse, rindo também. - Nunca mais conseguirás regressar a Tóquio.

Empreendemos o caminho de volta através da vereda do bosque. As velas haviam-se extinguido e as luzes da sala de estar estavam acesas. A porta do quarto estava aberta e a luz pálida do candeeiro na mesinha de cabeceira infiltrava-se na sala de estar. A Naoko estava sentada de pernas dobradas no sofá, envolta na semiobscuridade. Envergava agora uma camisa de dormir azul e larga, com a gola apertada em redor do pescoço. A Reiko acercou-se e afagou-lhe a cabeça.

- Sentes-te bem agora?

- Sim. Desculpa - respondeu a Naoko numa voz sumida. Depois voltou-se para mim e repetiu as desculpas. - Devo ter-te assustado.

- Um pouco - respondi com um sorriso.

- Vem cá - disse. Quando me sentei ao seu lado, inclinou-se para mim até o seu rosto quase tocar na minha orelha, como se estivesse prestes a partilhar um segredo comigo. Beijou-me suavemente junto da orelha. - Desculpa - proferiu uma vez mais, desta vez directamente ao meu ouvido e com uma voz serena. Depois afastou-se de mim. - Às vezes sinto-me tão confusa que perco a noção das coisas.

- Isso acontece-me a toda a hora - comentei. A Naoko sorriu-me e olhou para mim.

- Se não te importares, gostaria que me contasses mais coisas sobre ti - solicitei-lhe. - Sobre a tua vida aqui. O que fazes todos os dias, as pessoas que encontras.

Começou a falar acerca da súa rotina diária, proferindo frases curtas mas claras. Despertava às seis da manhã, tomava o pequeno-almoço em casa e limpava a capoeira. Depois, dedicava-se geralmente a actividades agrícolas, cuidando sobretudo dos legumes. Antes ou depois do almoço, procedia a uma sessão de uma hora com o seu médico ou a uma discussão em grupo. À tarde, podia optar entre os cursos que lhe interessavam, por actividades ao ar livre ou desporto. Inscrevera-se em vários cursos: Francês, tricô, piano, História Antiga.

- A Reiko está a ensinar-me a tocar piano. Também me ensina guitarra. Todos assumimos à vez o papel de alunos ou professores. Quem fala francês fluentemente, dedica-se a ensiná-lo; quem estudou Estudos Sociais, ensina História; quem é bom a tricotar, ensina a fazer tricô. Trata-se de uma escola verdadeiramente impressionante. Infelizmente, não há nada que eu possa ensinar a alguém.

- Acontece-me o mesmo - afirmei.

- Esforço-me com bastante mais empenho nos meus estudos aqui do que na universidade. Empenho-me com afinco e gosto bastante.

- O que fazes depois do jantar?

- Converso com a Reiko, leio, ouço música, visito as outras pessoas e entretemo-nos com jogos, coisas desse género.

- Eu pratico guitarra e redijo a minha autobiografia - disse a Reiko.

- Autobiografia?

- Estava a brincar - riu a Reiko. - Deitamo-nos por volta das dez. Um estilo de vida bastante salutar, não achas? Dormimos como bebés.

Olhei para o relógio. Faltavam poucos minutos para as nove. - Suponho que em breve começarão a ficar com sono.

- Não te preocupes. Hoje podemos manter-nos acordadas até tarde - informou a Naoko. - Não te vejo há tanto tempo, quero continuar a conversar contigo. Portanto, conversemos.

- Quando fiquei aqui sozinho, de repente lembrei-me dos tempos passados - comecei por dizer. - Recordas-te de quando eu e o Kizuki fomos visitar-te ao hospital? Ao hospital junto à costa? Creio que foi no início do secundário.

- Quando fui operada ao peito - disse a Naoko com um sorriso. - Claro que me recordo. Tu e o Kizuki vieram de motorizada. Trouxeste-me uma caixa de chocolates, mas tinham derretido por completo. Custou-me tanto comê-los! Parece que foi há tanto tempo.

- Sim, realmente. Creio que na altura andavas a escrever um poema, um poema comprido.

- Todas as raparigas escrevem poemas nessa idade - riu de modo contido. - Como te lembraste disso de repente?

- Não sei. A fragrância do vento marinho, os loendros: ocorreu-me isso de súbito. O Kizuki visitava-te frequentemente no hospital?

- De modo algum! Tivemos uma enorme discussão acerca disso posteriormente. Visitou-me apenas uma vez, depois veio contigo e nada mais. Ele era terrível. Na primeira vez, não foi capaz de permanecer calmamente sentado e a sua visita durou apenas cerca de dez minutos. Trouxe-me laranjas e pôs-se a palrar sobre uma data de assuntos que não compreendi; depois descascou-me uma laranja, balbuciou algumas palavras mais e foi-se embora. Disse que tinha aversão a hospitais.

- Riu-se. - Nessas coisas, foi sempre infantil. Quer dizer, ninguém gosta de hospitais, não é? É por essa razão que se visita as outras pessoas no hospital para as fazermos sentir-se melhores e animá-las. Mas o Kizuki parecia ser alheio a isso.

- Mas não se portou tão mal quando ambos fomos ver-te. Limitou-se a ser ele próprio.

- Porque tu estavas lá também - declarou a Naoko. - Ele era sempre assim quando estavas presente. Esforçava-se por ocultar as suas fraquezas. Tenho a certeza de que ele gostava muito de ti. Fazia questão em te mostrar apenas o seu lado melhor. Comigo não se comportava assim. Comigo baixava a guarda e conseguia ser verdadeiramente temperamental. Ora tagarelava, ora ficava deprimido. Estava sempre a acontecer isso. Era assim desde criança. Mas continuava a tentar modificar-se e melhorar.

Cruzou de novo as pernas sobre o sofá.

- Esforçava-se arduamente, mas não adiantava. E isso tornava-o realmente irritadiço e triste. Havia nele bastantes coisas belas e encantadoras, mas nunca encontrava em si a confiança de que necessitava. «Tenho que fazer isto, tenho que mudar aquilo», pensava continuamente, mesmo até ao fim. Pobre Kizuki!

- No entanto, se for verdade que se esforçava sempre por me mostrar o seu lado melhor, eu diria que foi bem sucedido. Tudo o que eu via era o seu lado melhor - disse eu.

A Naoko sorriu. - Ele sentir-se-ia feliz se pudesse ouvir as tuas palavras. Eras o único amigo dele.

- É, o Kizuki era o meu único amigo - acrescentei. - Nunca houve ninguém a quem pudesse chamar amigo de verdade, nem antes dele, nem depois dele.

- É por essa razão que eu adorava a vossa companhia. Eu própria via também apenas o seu lado melhor. Conseguia relaxar e deixava de me preocupar quando estávamos os três juntos. Foram os tempos mais felizes da minha vida. Não sei se tu sentias o mesmo.

- A minha preocupação era aquilo que tu pensavas - disse-lhe, abanando a cabeça.

- O problema era que essa situação não poderia continuar para sempre - contrapôs a Naoko. - É impossível manter um grupo pequeno e perfeito. O Kizuki sabia-o, eu sabia-o e tu também. Não tenho razão?

Assenti com a cabeça.

- No entanto, se queres que te diga a verdade - prosseguiu -, também adorava o seu lado fraco. Adorava-o tanto quanto o seu lado bom. Não havia absolutamente nada de malvado ou dissimulado nele. Ele era fraco, é tudo. Tentei dizer-lhe isso, mas ele não acreditava em mim. Respondia-me sempre que isso se devia ao facto de estarmos juntos desde os três anos. Dizia que eu o conhecia demasiado bem, que não sabia distinguir entre os seus pontos fortes e as suas fraquezas, que eram a mesma coisa para mim. No entanto, não conseguiu fazer-me mudar de opinião a respeito dele. Continuei a adorá-lo do mesmo modo e nunca consegui interessar-me por mais ninguém.

Olhou para mim com um sorriso melancólico.

- O nosso relacionamento era também deveras inusitado, como se, de algum modo, estivéssemos fisicamente unidos. Quando nos separávamos, uma força gravitacional especial voltava a unir-nos. Quando nos tornámos namorados, parecia ser a coisa mais natural do mundo. Não precisávamos de pensar nisso nem de fazer opções. Começámos a beijar-nos aos doze anos e a acariciarmo-nos aos treze. Ia para o quarto dele, ou ele para o meu, e excitava-o com as mãos. Nunca me ocorreu que éramos precoces. Acontecia naturalmente. Não me importava quando ele queria afagar-me os seios ou o sexo; ou, se a vontade dele era vir-se, não me importava de o ajudar a excitar-se. Tenho a certeza de que teria sido um choque para ambos se alguém nos tivesse acusado de estarmos a agir erradamente. Pois não estávamos a agir mal, fazíamos apenas aquilo que deveríamos estar a fazer. Sempre expuséramos um ao outro qualquer parte dos nossos corpos.

Era quase como se ambos possuíssemos o corpo um do outro. Contudo, durante algum tempo abstivemo-nos de avançar mais. Havia o receio de eu engravidar e nessa altura quase não fazia ideia de como evitar isso... De qualquer modo, foi assim que eu e o Kizuki crescemos juntos, de mãos dadas, um par inseparável. Quase não sentíamos a opressão do sexo ou a angústia que acompanha a súbita exaltação do ego experimentadas pelos miúdos normais quando atingem a puberdade. Éramos totalmente francos acerca do sexo, absorvíamo-nos e partilhávamo-nos de tal modo que não tínhamos uma forte consciência dos nossos próprios egos. Percebes o que quero dizer?

- Acho que sim - respondi.

- Não suportávamos estar separados. Portanto, se o Kizuki estivesse vivo, tenho a certeza de que estaríamos juntos, a amar-nos e a tornarmo-nos gradualmente infelizes.

- Infelizes? Por que razão?

Passou várias vezes os dedos pelo cabelo. Retirara o gancho e o cabelo caía-lhe sobre o rosto quando baixava a cabeça.

- Porque teríamos sido obrigados a retribuir ao mundo aquilo que lhe devíamos - declarou, olhando-me nos olhos.

- A dor do crescimento. Não retribuímos quando o deveríamos ter feito e agora há que pagar essas dívidas. Foi isso o que provocou o acto do Kizuki, bem como a razão de me encontrar aqui agora. Éramos como crianças que haviam crescido nuas numa ilha deserta. Quando sentíamos fome, colhíamos uma banana; quando nos sentíamos sós, dormíamos nos braços um do outro. Mas essa situação não dura para sempre. Crescíamos rapidamente e tínhamos que fazer parte da sociedade. Era por isso que eras tão importante para nós. Eras o elo que nos ligava ao mundo exterior. Através de ti, esforçávamo-nos por encaixar no mundo exterior da melhor maneira possível. Claro, acabou por não resultar.

Anuí com a cabeça.

- Mas não quero que penses que estávamos a usar-te. O Kizuki gostava realmente de ti. Acontecia simplesmente que eras a nossa primeira ligação com o quer que fosse. E isso perdura ainda hoje. Embora o Kizuki esteja morto, continuas a ser ° meu único elo com o mundo exterior. E, tal como o Kizuki te adorava, também eu te adoro. Nunca foi nossa intenção magoarmos-te, mas provavelmente fizemo-lo; provavelmente acabámos por te infligir uma profunda ferida no coração. Nunca nos ocorreu que isso pudesse acontecer.

Baixou a cabeça de novo e manteve-se em silêncio.

- Ei, apetece-vos uma chávena de chocolate quente?

- sugeriu a Reiko.

- Óptimo. Apetecia-me realmente - disse a Naoko.

- Se não se importam, apetece-me beber um pouco do brandy que trouxe - afirmei.

- Oh, claro, está à vontade - disse a Reiko. - Posso dar um gole?

- Claro - respondi, rindo-me.

A Reiko trouxe dois copos e brindámos um ao outro. Depois foi para a cozinha preparar o chocolate quente.

- Podemos falar acerca de algo um pouco mais animador?

- perguntou a Naoko.

Não havia nada de animador de que eu pudesse falar. Pensei: quem me dera que o Sargento não tivesse desaparecido, pois conseguia inspirar sempre uma série de histórias, e algumas delas teriam originado um ambiente de bem-estar. Limitei-me a discorrer acerca dos hábitos imundos dos rapazes no dormitório. Senti-me incomodado por estar a falar de algo tão grosseiro, mas a Naoko e a Reiko riram às gargalhadas, era tudo uma novidade para elas. Depois a Reiko efectuou imitações de doentes mentais. Foi também bastante divertido. A Naoko começou a sentir-se ensonada depois das onze; a Reiko decidiu abrir o sofá e entregou-me uma almofada, lençóis e cobertores.

- Se te apetecer violar alguém a meio da noite, não te enganes na pessoa - disse ela. - O corpo sem rugas na cama da esquerda é o da Naoko.

- Mentirosa! A minha cama é a da direita - gracejou a Naoko.

- A propósito, consegui que nos dispensassem de algumas das actividades amanhã à tarde - acrescentou a Reiko. - E se fizéssemos um piquenique os três? Conheço um local verdadeiramente agradável perto daqui.

- Boa ideia - concordei.

Lavaram os dentes à vez e recolheram-se ao quarto. Bebi um pouco mais de brandy e estendi-me no sofá-cama a rever os acontecimentos desde essa manhã até à noite. Parecia ter sido um dia tremendamente longo. A divisão continuava iluminada pelo luar. Exceptuando o ocasional e ténue rangido da cama, quase nenhum som provinha do quarto onde a Naoko e a Reiko dormiam. Minúsculas formas diagramáticas pareciam flutuar na escuridão quando fechava os olhos e nos meus ouvidos persistiam ainda as reverberações remanescentes da guitarra da Reiko, mas nenhum desses sons perdurou por muito tempo. O sono abateu-se sobre mim e mergulhei numa massa de lama tépida. Sonhei com salgueiros, com ambas as margens de uma estrada de montanha ladeada de salgueiros. Um número assombroso de salgueiros. Soprava uma brisa levemente agreste, mas os ramos dos salgueiros nunca baloiçavam. Por que razão seria, interroguei-me, e apercebi-me então de que em cada ramo de cada árvore havia minúsculas aves empoleiradas. Era o seu peso que impedia a ramagem de se agitar. Agarrei num pau e bati num dos ramos, na esperança de afugentar as aves e permitir que a ramagem baloiçasse. Mas as aves mantinham-se no seu lugar e, em vez de fugirem, transformaram-se em pedaços de metal em forma de ave que se esmagaram contra o solo.

Quando abri os olhos, parecia estar a assistir à continuação desse sonho. O luar preenchia a divisão com o mesmo brilho suave e branco. Soergui-me na cama quase instintivamente e comecei a procurar as aves de metal que, obviamente, não estavam lá. Deparei então com a Naoko, sentada imóvel aos pés da cama enquanto olhava fixamente através da janela. Repousara o queixo sobre os joelhos e parecia uma órfã esfomeada. Procurei o relógio que deixara junto da almofada, mas não o encontrei. Supus, pelo ângulo do luar, que deveriam ser duas ou três horas da manhã. Senti uma sede intensa mas mantive-me imóvel enquanto continuava a observar a Naoko. Envergava a mesma camisa de noite azul e prendera o cabelo de lado com o gancho em forma de borboleta, expondo ao luar a beleza do seu rosto. Que estranho, pensei, pois ela retirara o gancho antes de se deitar.

A Naoko mantinha-se petrificada, como um pequeno animal nocturno atraído pelo luar para fora do seu esconderijo. O ângulo do luar realçava os contornos dos seus lábios.

Parecia extremamente frágil e vulnerável e o seu vulto pulsava quase imperceptivelmente ao ritmo do bater do coração, ou dos movimentos do seu coração interior, como se estivesse a sussurrar palavras inaudíveis para a escuridão.

Engoli em seco para tentar aliviar a sede, mas o som que emiti revelou-se imenso no silêncio da noite. Foi como um sinal, pois a Naoko levantou-se e acercou-se da cabeceira da cama, com a camisa de noite roçagando levemente. Ajoelhou-se no chão junto da minha almofada e olhou-me nos olhos. Devolvi-lhe o olhar, mas os seus olhos não me revelaram nada. Eram estranhamente transparentes, pareciam janelas para um mundo além; mas, por mais que eu sondasse essas profundezas, não conseguia ver nada. Os nossos rostos não distariam mais de vinte e cinco centímetros um do outro, mas ela encontrava-se a anos-luz de mim.

Estendi a mão e tentei tocar-lhe, mas ela afastou-se, com os lábios tremulando levemente. Momentos depois, ergueu as mãos e começou a desabotoar lentamente a camisa de noite. Sete botões ao todo. Tive a sensação de estar a assistir à continuação do meu sonho enquanto observava os seus dedos esguios e encantadores a desapertarem os botões um a um. Sete pequenos botões brancos: quando os desabotoou por completo, deslizou a camisa pelos ombros e deixou-a tombar no chão como se fosse um insecto a descartar-se da pele. Estava completamente nua. Mantivera apenas o gancho no cabelo. Olhou para mim, desnuda, ainda ajoelhada ao lado da minha cama. O seu corpo, banhado pela suave luminosidade da lua, ostentava o brilho estonteante de um corpo renascido. Quando se moveu - e fê-lo quase imperceptivelmente -, o jogo da luz e das sombras sobre o seu corpo alterou-se subtilmente. A turgidez das curvas dos seios, os minúsculos mamilos, a concavidade do umbigo, os quadris e a púbis, todos lançavam sombras granulosas cujos contornos se alteravam continuamente como a ondulação a dispersar-se sobre a serena superfície de um lago.

Que corpo perfeito!, pensei. Quando começara o corpo da Naoko a tornar-se tão perfeito? O que acontecera ao corpo que eu abraçara naquela noite na Primavera anterior?

Nessa noite, o corpo da Naoko transmitira-me uma sensação de imperfeição enquanto a despia carinhosamente e ela chorava. Os seus seios pareceram-me rígidos, os mamilos estranhamente salientes e as ancas também estranhamente rígidas. Parecera-me, de facto, uma rapariga encantadora e o seu corpo era maravilhoso e sedutor. Ela excitara-me nessa noite e arrebatara-me com uma força gigantesca. No entanto, enquanto a abraçava, a acariciava e lhe beijava o corpo desnudado, apercebera-me, com uma poderosa estranheza, do desequilíbrio e desgraciosidade do corpo humano. Enquanto a abraçava, sentira o desejo de lhe explicar: «Estou a ter sexo contigo agora. Estou dentro de ti. Mas isto não representa realmente nada. Não tem importância. Não passa da união de dois corpos. Estamos apenas a dizer um ao outro coisas que só podem ser ditas enquanto dois imperfeitos seres de carne se esfregam um contra o outro. Ao fazermos isto, estamos a partilhar a nossa imperfeição». Evidentemente, nunca poderia ter-lhe dito isto e esperar que ela compreendesse. Por conseguinte, continuara a abraçá-la fortemente e, enquanto o fazia, pressentira dentro do seu corpo uma espécie de matéria sólida e estranha, algo adicional do qual eu nunca conseguiria aproximar-me. Essa sensação enternecera-me e conferira uma intensidade assombrosa à minha erecção.

Contudo, o corpo que a Naoko me revelava agora era totalmente diferente do corpo que eu abraçara naquela noite. Este corpo sofrera inúmeras mudanças até renascer em sublime perfeição sob o luar. Todos os sinais das formas roliças da meninice haviam desaparecido desde a morte do Kizuki, sendo substituídas pelo corpo de uma mulher madura. A beleza física da Naoko era tão perfeita ao ponto de não me despertar o mínimo desejo sexual. Conseguia apenas olhar estupefacto para a encantadora curva da cinta até às ancas, para a abundância arredondada dos seios, para o suave agitar de cada arfada da barriga macia e para a suave sombra negra da púbis. Expôs-me a sua nudez deste modo durante cerca de cinco minutos, até se agasalhar de novo com a camisa de dormir e a abotoar de cima a baixo. Quando apertou o último botão, levantou-se, dirigiu-se para o quarto, abriu silenciosamente a porta e desapareceu.

Mantive-me imóvel durante bastante tempo, até me ocorrer levantar-me da cama.

Apanhei o relógio do chão e virei-o contra o luar. Eram 3:40. Fui à cozinha beber água antes de me deitar de novo. Mas o sono sobreveio somente quando a claridade da manhã começou a infiltrar-se em cada recanto da divisão, dissolvendo todos os traços do pálido brilho do luar. Encontrava-me no limiar do sono quando a Reiko me tocou no rosto e gritou: - Acorda! Acorda!

Enquanto a Reiko fechava o sofá, a Naoko foi para a cozinha preparar o pequeno-almoço. Sorriu-me e disse: - Bom dia.

- Bom dia - respondi. Mantive-me junto dela a observá-la a pôr água a ferver e a cortar o pão, sempre a cantarolar, mas o seu comportamento não revelava quaisquer sinais de me ter desvendado o seu corpo desnudo na noite anterior.

- Tens os olhos vermelhos - disse-me enquanto servia o café. - Sentes-te bem?

- Acordei a meio da noite e não consegui adormecer de novo.

- Aposto que estavas a ressonar - comentou a Reiko.

- De modo algum - retorqui.

- Ainda bem - disse a Naoko.

- Ele está apenas a ser educado - comentou a Reiko enquanto bocejava.

De início, pensei que a Naoko se sentisse embaraçada ou estivesse a simular inocência junto da Reiko; mas quando a Reiko saiu da cozinha, o seu comportamento não se alterou e os seus olhos evidenciavam o habitual olhar transparente.

- Dormiste bem? - perguntei à Naoko.

- Dormi profundamente - retorquiu com à-vontade. Usava no cabelo um gancho simples, desprovido de qualquer adorno.

Não conseguia compreender a atitude dela e continuei a sentir-me assim durante o pequeno-almoço. Enquanto barrava manteiga no pão ou descascava um ovo, olhava constante-mente para a Naoko, à procura de algum sinal.

- Por que razão me olhas assim? - inquiriu com um sorriso.

- Creio que ele está apaixonado por alguém - declarou a Reiko.

- Estás apaixonado por alguém? - perguntou-me a Naoko.

- Talvez esteja - respondi, devolvendo-lhe o sorriso. Quando ambas começaram a rir-se às minhas custas, desisti de pensar no que acontecera na noite anterior e concentrei-me na refeição.

Após o pequeno-almoço, a Reiko e a Naoko anunciaram que iam dar de comer às aves na capoeira. Ofereci-me para as acompanhar. Vestiram calças de ganga, camisas de trabalho e calçaram galochas brancas. A capoeira situava-se num pequeno parque atrás dos campos de ténis e continha galinhas, pombos, faisões e papagaios; estava rodeada por canteiros de flores, arbustos e bancos. Dois homens com cerca de quarenta anos, aparentemente pacientes do sanatório, recolhiam as folhas que haviam tombado sobre as veredas. Ambas se aproximaram deles para os cumprimentar e a Reiko fê-los rir com uma das suas piadas. Desabrochavam cosmos nos canteiros e os arbustos estavam extremamente bem podados. As aves avistaram a Reiko, começaram a emitir sons e a esvoaçarem dentro da capoeira.

Trouxeram um saco de ração e uma mangueira do casinhoto ao lado da capoeira. A Naoko atarraxou a mangueira a uma torneira e abriu a água. Entraram na capoeira, tendo cuidado para que nenhuma das aves fugisse, e a Naoko começou a molhar o chão enquanto a Reiko esfregava com a vassoura. O jorro da água cintilava sob a intensidade do sol matinal. Os faisões esvoaçavam em redor da capoeira para evitarem ficar molhados. Um peru empertigou a cabeça e olhou-me como se fosse um velho rabugento enquanto um dos papagaios no poleiro palrava o seu desagrado e batia as asas. A Reiko miou para o papagaio e este esgueirou-se para o canto mais afastado, mas em breve palrava de novo: «Obrigado!», «Louco!», «Desmiolado!».

- Quem lhe terá ensinado esse tipo de linguagem? - perguntou a Naoko com um suspiro.

- Eu não. Nunca faria uma tal coisa - disse a Reiko. Começou a miar de novo e o papagaio emudeceu. Depois riu-se e explicou: - Certa vez, este pássaro envolveu-se numa escaramuça com um gato. Agora tem um medo de morte deles.

Quando concluíram a limpeza, pousaram os utensílios e encheram os receptáculos de alimentação. O peru precipitou-se para o seu receptáculo, chapinhando através das poças no chão; enfiou a cabeça dentro e mostrou-se demasiado obcecado com a ração ao ponto de não se sentir incomodado com os puxões que a Naoko lhe dava na cauda.

- Fazes isto todas as manhãs? - perguntei à Naoko.

- Todas as manhãs! - respondeu. - Geralmente atribuem esta tarefa às recém-chegadas. É bastante fácil. Gostarias de ver os coelhos?

- Claro - disse. A coelheira, situada atrás da capoeira, continha cerca de dez coelhos adormecidos na palha. A Naoko limpou os excrementos e encheu os receptáculos com ração; depois pegou numa das crias e roçou-a contra o rosto.

- Não é tão fofinho? - rejubilou. Deixou-me pegar na cria. A pequena bola de pêlo quente estremecia nos meus braços e agitava o focinho.

- Não te preocupes, ele não vai magoar-te - disse ela à cria enquanto lhe afagava a cabeça com o dedo e me sorria. Era um sorriso tão radiante, sem qualquer indício de sombra, que não pude deixar de sorrir também. E o comportamento dela na noite anterior?, interroguei-me. Tinha a certeza de que se tratara da Naoko real e não de um sonho: ela despira indubitavelmente a roupa e revelara-me o corpo desnudo.

A Reiko assobiava uma encantadora versão de Proud Mary enquanto enchia um saco de plástico com os detritos que recolhera. Ajudei-as a carregar os utensílios e o saco da ração para o casinhoto.

- A manhã é a parte do dia que prefiro - afirmou a Naoko. - É como se tudo recomeçasse com frescura. Começo a sentir-me triste por volta do meio-dia e detesto quando o sol se põe. Vivo com estes sentimentos dia após dia.

- E, enquanto vives com esses sentimentos, vocês, os jovens, começam a envelhecer como eu - declarou a Reiko com um sorriso. - Se te pões a pensar que agora é manhã ou noite, começas a envelhecer sem te aperceberes.

- Mas tu gostas de envelhecer - replicou a Naoko.

- Nem por isso - disse a Reiko. - Mas não desejo de modo algum ser novamente jovem.

- Por que não? - perguntei.

- Porque é uma verdadeira chatice! - disse. Atirou a vassoura para dentro e fechou a porta do casinhoto enquanto assobiava Proud Mary. Quando regressámos a casa, trocaram as botas por sapatilhas e disseram que iam para a quinta. A Reiko sugeriu-me permanecer em casa a ler ou a ocupar-me com algo porque não iria divertir-me a observá-las a trabalhar, além de que estariam integradas num grupo. - E, enquanto esperas, podes lavar a pilha de roupa interior suja que deixámos na banca da cozinha - acrescentou.

- Deves estar a brincar - disse-lhe, estupefacto.

- Claro que estou - riu-se. - És tão adorável. Não achas, Naoko?

- É, realmente - retorquiu ela, rindo também.

- Vou estudar Alemão - anunciei com um suspiro.

- Sim, faz os deveres de casa como um menino aplicado - disse a Reiko. - Voltaremos antes do almoço.

Soltaram risadinhas nervosas e saíram. Ouvi os passos e as vozes de várias pessoas que passavam por perto.

Lavei de novo o rosto e aparei as unhas. Embora o quarto de banho fosse partilhado por duas mulheres, o seu conteúdo era incrivelmente simples: exceptuando alguns frascos de creme de limpeza, batom do cieiro e protector solar perfeitamente arrumados, quase não havia produtos de cosmética. Quando acabei de aparar as unhas, preparei café e bebi-o à mesa da cozinha, com o livro de Alemão aberto à minha frente. Mantive-me de T-shirt na cozinha soalheira e, quando me preparava para memorizar todas as formas de uma tabela verbal, senti-me avassalado por uma estranha sensação. Sentia que havia uma inimaginável distância entre estas formas verbais irregulares da língua alemã e a mesa da cozinha.

Ambas regressaram da quinta às 11:30, tomaram um banho de chuveiro à vez e vestiram roupa lavada. Almoçámos na cantina e depois caminhámos até ao portão da entrada. Desta vez havia um homem postado na guarita, sentado à secretária a degustar um almoço que alguém lhe trouxera certamente da cantina. O rádio na prateleira transmitia uma velha melodia pop sentimental. Acenou-nos e proferiu um amigável «Olá» quando nos acercámos; devolvemos-lhe o cumprimento.

A Reiko explicou-lhe que pretendíamos caminhar no exterior das instalações e que regressaríamos dentro de três horas. - Muito bem - disse ele. - Tiveram sorte com o tempo. Mas mantenham-se afastados da estrada do vale, ficou inundada com a chuvada que caiu. Todos os outros locais são seguros. A Reiko apontou o seu nome e o da Naoko num livro de registos, bem como a data e a hora.

- Bom passeio. E tenham cuidado - disse o guarda.

- É um tipo simpático - comentei.

- Não funciona muito bem - afirmou a Reiko, tocando com o dedo na testa.

No entanto, o homem tinha razão acerca do tempo atmosférico. O céu era de um azul recém-lavado e apenas uns fiapos de nuvens brancas se agarravam à cúpula do firmamento como uma delgada estria de tinta. Acompanhámos durante algum tempo o pequeno muro de pedra da Casa de Repouso Ami e depois afastámo-nos para subir em fileira um trilho íngreme e estreito. A Reiko seguia à frente, depois a Naoko e eu na retaguarda. A Reiko avançava com as passadas determinadas de alguém que conhecia cada recanto de cada montanha da área. Concentrámo-nos na caminhada e quase não proferimos palavra. A Naoko envergava calças de ganga, uma blusa branca e segurava o casaco na mão. Observei o seu cabelo comprido e liso a baloiçar de encontro aos ombros. Os nossos olhos entrecruzavam-se ocasionalmente. O trilho ascendia continuamente, de tal modo que era quase estonteante, mas a Reiko nunca abrandava o ritmo. A Naoko esforçava-se por a acompanhar enquanto limpava o suor do rosto. Comecei a ficar sem fôlego pois não me dedicava às actividades ao ar livre há muito tempo.

- Fazem isto muitas vezes? - perguntei à Naoko.

- Talvez uma vez por semana - retorquiu. - Está a custar-te?

- Um pouco - respondi.

- Estamos quase a chegar - anunciou a Reiko. - Percorremos já dois terços do caminho. Vá lá, és homem ou não?

- Sou, mas não estou em forma.

- Pois, sempre a entreteres-te com raparigas - murmurou a Naoko, como se falasse com os seus botões.

Senti o desejo de protestar, mas estava demasiado extenuado para conseguir falar. Cardeais com tufos na cabeça esvoaçavam ocasionalmente pelo trilho e resplandeciam contra o céu azul. Os campos em nosso redor estavam repletos de flores brancas, azuis e amarelas e as abelhas zumbiam por toda a parte. Enquanto avançava passo a passo, concentrei-me apenas na paisagem que perpassava diante dos meus olhos.

Dez minutos depois, a encosta terminou e alcançámos um planalto nivelado.

Descansámos para recuperar o fôlego, limpar o suor e beber dos cantis. A Reiko apanhou uma folha e transformou-a num apito.

O trilho embrenhava-se numa suave encosta que descia por entre enormes e oscilantes tufos de erva. Caminhámos durante mais quinze minutos até atravessarmos uma aldeia. Não havia sinais da presença humana e a dúzia de casas encontravam-se em vários estados de decadência. Entre as habitações vicejava erva à altura da cinta e pequenas manchas secas e brancas de excrementos de pombo agarravam-se aos buracos nas paredes. Num dos edifícios em ruínas, somente os pilares resistiam, ao passo que outros edifícios pareciam prestes a ser habitados assim que as robustas portadas fossem abertas. Estas casas mortas e silenciosas comprimiam-se contra ambas as margens da estrada enquanto prosseguíamos.

- Esta aldeia era habitada até há cerca de sete ou oito anos - informou-me a Reiko. - Em volta havia terra arável. Mas todos se mudaram, a vida era demasiado árdua. Ficavam encurralados quando a neve se acumulava durante o Inverno e o solo não é particularmente fértil. Optaram por uma vida melhor na cidade.

- Que desperdício - disse eu. - Algumas das casas parecem perfeitamente habitáveis.

- Alguns hippies tentaram residir aqui a certa altura, mas desistiram. Não conseguiam suportar os Invernos.

Um pouco além da aldeia deparámo-nos com uma enorme área vedada que parecia ser uma pastagem. Mais além, do lado oposto, vislumbrei cavalos a pastarem. Seguimos a linha da cerca e um enorme cão aproximou-se de nós a correr, com a cauda a abanar. Roçou-se na Reiko, farejou-lhe o rosto e lançou-se na brincadeira contra a Naoko. Assobiei e o animal aproximou-se de mim para me lamber a mão com a comprida língua.

A Naoko afagou-lhe a cabeça e explicou-me que o cão pertencia ao pasto. - Aposto que tem quase vinte anos - disse. - Tem os dentes em tão mau estado que não consegue comer nada que seja rijo. Dorme todo o dia à porta da loja e aproxima-se a correr sempre que ouve passos.

A Reiko retirou da mochila um pedaço de queijo. O cão captou o cheiro, saltou para junto dela e abocanhou-o.

- Em brevemente deixaremos de o ver - disse a Reiko, afagando-lhe a cabeça. - Em meados de Outubro transportam os cavalos e as vacas em camiões para os estábulos. Só os deixam pastar durante o Verão, quando abrem uma espécie de pequeno café para os turistas. Os «turistas»! Provavelmente vinte caminhantes por dia. Ei, e que tal bebermos algo?

- Boa ideia - concordei.

O cão seguiu à frente em direcção ao café, uma pequena casa branca, com um alpendre e um letreiro desbotado com o formato de uma chávena de café pendurado das goteiras. O animal acompanhou-nos até ao cimo das escadas e estendeu-se no alpendre de olhos semicerrados. Quando ocupámos uma das mesas, surgiu uma rapariga com rabo-de-cavalo, de camisola e calças de ganga brancas; cumprimentou a Reiko e a Naoko como se fossem velhas amigas.

- Apresento-te um amigo da Naoko - disse a Reiko, apontando para mim.

- Olá - saudou ela.

- Olá - respondi-lhe.

Enquanto ambas conversavam, afaguei o pescoço do cão debaixo da mesa. Tinha o pescoço duro e fibroso de um cão velho. Quando lhe cocei certas zonas, fechou os olhos e suspirou de prazer.

- Como se chama ele? - perguntei à rapariga.

- Pepé - respondeu.

- Ei, Pepé - chamei, mas o cão não se mexeu.

- É duro de ouvido - esclareceu a rapariga. - Tens que falar alto senão não te ouve.

- Pepé. - bradei. O animal abriu os olhos e mostrou-se subitamente atento enquanto soltava um latido.

- Sossega, Pepé- disse a rapariga. - Dorme mais para viveres mais. O Pepé aninhou-se de novo aos meus pés.

A Naoko e Reiko pediram um copo de leite frio e eu uma cerveja.

- Ouçamos a rádio - solicitou a Reiko. A rapariga ligou um amplificador e sintonizou numa estação de FM. Os Blood, Sweat & Tears cantavam Spinning Wheel.

A Reiko parecia radiante. - Era mesmo isto que procurávamos! Não temos rádio no quarto e, se não vier aqui de vez em quando, perco a noção do que anda a ouvir-se.

- Dormes aqui? - perguntei à rapariga.

- Nem pensar! - riu-se. - Morreria de solidão se passasse uma noite aqui. O sujeito da pastagem dá-me boleia para a cidade e regresso de manhã. - Apontou para uma carrinha 4x4 estacionada diante de um escritório ali próximo.

- Também entras em férias em breve, não é? - perguntou a Reiko.

- Sim, fechamos em breve - respondeu ela. A Reiko ofereceu-lhe um cigarro e ambas fumaram.

- Vou ter saudades tuas - declarou a Reiko.

- Estarei de volta em Maio - redarguiu a rapariga com uma gargalhada.

A rádio emitia agora White Room dos Cream. Após um anúncio publicitário, foi a vez de Scarborough Fair de Simon e Garfunkel.

- Dessa gosto - disse a Reiko quando a canção terminou.

- Vi o filme - anunciei.

- Quem era o protagonista?

- O Dustin Hoffman.

- Nunca ouvi falar dele - retorquiu ela com um triste abanar da cabeça. - O mundo muda vertiginosamente e deixo de estar a par dos acontecimentos.

Solicitou uma guitarra à rapariga. - Com certeza - disse ela; desligou o rádio e trouxe uma velha guitarra. O cão ergueu a cabeça e farejou o instrumento.

- Isto não é para comeres - disse a Reiko com uma severidade trocista. O alpendre foi varrido por uma brisa fragrante a erva. As montanhas estendiam-se diante de nós e a linha da cordilheira recortava-se contra o céu.

- Parece uma cena de Música no Coração - disse eu à Reiko enquanto ela afinava a guitarra.

- O que é isso? - perguntou.

Tamborilou na guitarra à procura do acorde inicial de Scarborough Fair. Tratava-se, aparentemente, da sua primeira tentativa de execução dessa canção, mas, após alguns falsos começos, conseguiu tocá-la até ao fim sem hesitar.

À terceira tentativa, lembrou-se do ritmo e começou inclusivamente a acrescentar alguns floreados.

- Tenho bom ouvido - disse-me ela com uma piscadela de olho. - Geralmente consigo tocar praticamente tudo após a terceira audição.

Trauteou suavemente a melodia e procedeu a uma execução completa de Scarborough Fair. Aplaudimo-la e a Reiko agradeceu com uma decorosa vénia.

- Costumava obter mais aplausos quando executava um concerto de Mozart - disse ela.

A rapariga anunciou que o leite seria oferta da casa se a Reiko conseguisse tocar o tema Here Comes the Sun dos Beatles. A Reiko ergueu o polegar em sinal afirmativo e procedeu à execução. Não tinha uma voz cheia e o facto de fumar em demasia conferia-lhe um tom rouco, mas era encantadora e revelava uma verdadeira presença. Quase senti que o sol nascia de novo enquanto a ouvia sentado a beber cerveja e a contemplar as montanhas. Era um sentimento apaziguante e caloroso.

A Reiko devolveu-lhe a guitarra e pediu-lhe que ligasse novamente o rádio. Depois sugeriu que eu e a Naoko deambulássemos por aquela área durante uma hora.

- Apetece-me ficar a ouvir a rádio um pouco mais na companhia dela. Podem regressar por volta das três horas.

- Não há problema passarmos os dois tanto tempo sozinhos?

- Bem, de facto é contra o regulamento, mas que se dane. De qualquer modo, não sou nenhum pau-de-cabeleira. Estou a precisar de uma folga. E tu vieste de Tóquio, tenho a certeza de que há imensas coisas que pretendes conversar com ela.

Acendeu mais um cigarro enquanto falava.

- Vamos então - disse a Naoko, levantando-se.

Segui-a. O cão despertou e acompanhou-nos durante alguns metros, mas depressa perdeu o interesse e regressou ao seu canto no alpendre. Deambulámos ao longo de uma estrada nivelada, paralela à cerca do pasto. A Naoko dava-me ocasionalmente a mão ou o braço.

- Parece que regressámos aos tempos passados, não é? - disse ela.

- Não se tratava de «tempos passados». - Ri-me. - Foi esta Primavera! Se eram tempos passados, então dez anos atrás reduzem-se a história antiga.

- A mim parece-me história antiga - reiterou a Naoko.

- Em todo o caso, desculpa por causa da noite anterior. Eu estava uma pilha de nervos. Não deveria ter-me comportado assim, vindo tu de tão longe desde Tóquio.

- Não tem importância - retorqui. - Ambos temos bastantes sentimentos que precisam de ser expressados. Portanto, se te apetecer pegar nesses sentimentos e despejá-los em cima de alguém, aqui me tens. Depois conseguiremos compreender-nos melhor um ao outro.

- E se me compreenderes melhor, o que acontece?

- Não estás a perceber, pois não? Não se trata de uma questão de saber «o que acontece». Algumas pessoas excitam-se a lerem os horários dos comboios e é isso que fazem durante todo o dia. Outras pessoas constróem enormes modelos de barcos com fósforos. Por conseguinte, o que há de errado se houver um único indivíduo no mundo que se empenha em tentar compreender-te?

- Como uma espécie de passatempo? - inquiriu, divertida.

- Sim, acho que se pode chamar-lhe um passatempo. A maioria das pessoas normais chamar-lhe-iam amizade ou amor, ou algo do género, mas, se quiseres chamar-lhe um passatempo, também não há problema.

- Diz-me, também gostavas do Kizuki, não gostavas? - perguntou-me.

- Obviamente.

- E em relação à Reiko?

- Gosto bastante dela. É verdadeiramente simpática - retorqui.

- Por que razão gostas sempre de pessoas assim, pessoas como nós? Somos um pouco estranhos, retorcidos e prestes a afogar-nos, eu, o Kizuki e a Reiko. Por que razão não consegues gostar de pessoas mais normais?

- Porque eu não te vejo assim - respondi após uns momentos de reflexão. - Não te vejo a ti, nem ao Kizuki, nem à Reiko como «retorcidos», em nenhum aspecto. As pessoas que eu considero retorcidas andam por aí à solta.

- Mas nós somos retorcidos - insistiu ela. - Eu consigo ver isso. Continuámos a caminhar, em silêncio. A estrada afastava-se da cerca e desembocava num campo verdejante e circular, circundado de árvores como se fosse um lago.

- Às vezes acordo a meio da noite tão assustada - disse a Naoko, apoiando-se no meu braço. - Sinto-me assustada por pensar que nunca mais recuperarei. Que permanecerei sempre retorcida, que envelhecerei e me extinguirei aqui. Fico tão gelada que enregelo completamente por dentro. É horrível... tão frio...

Abracei-a e aproximei-a de mim.

- É como se sentisse o Kizuki a estender-me a mão da escuridão e a chamar por mim: «Ei, Naoko, não podemos estar separados». Quando o ouço a dizer isso, não sei o que fazer.

- E o que fazes?

- Bem... tenta não me interpretar mal, então.

- Está bem.

- Peço à Reiko que me abrace. Acordo-a, enfio-me na cama dela e deixo-a abraçar-me com força. E choro. E ela acaricia-me até ao gelo derreter e me sentir quente de novo. Achas isto doentio?

- Não. Mas quem me dera ser eu a abraçar-te.

- Então abraça-me. Agora. Aqui mesmo. Sentámo-nos na relva seca do prado e abraçámo-nos.

A erva alta rodeava-nos e não víamos nada para além do céu e das nuvens. Deitei-a gentilmente e tomei-a nos meus braços. A sua pele era macia e quente e estendeu as mãos para mim. Beijámo-nos com verdadeira emoção.

- Diz-me uma coisa, Toru - sussurrou-me ao ouvido.

- O quê?

- Queres dormir comigo?

- Claro que sim.

- Consegues esperar?

- Claro que consigo.

- Quero recuperar um pouco mais antes de o fazermos outra vez. Quero tornar-me em alguém mais digno desse teu passatempo. Esperarás por mim?

- Claro que esperarei.

- Sentes-te bem fisicamente?

- Referes-te aos meus pés doridos?

- Pateta - disse, soltando uma risadinha nervosa.

- Se estás a perguntar-me se estou com erecção, claro que sim.

- Fazes-me um favor e paras de dizer «Claro»?

- Está bem, eu paro.

- É difícil?

- O quê?

- Estar assim teso.

- Difícil?

- Quer dizer, estás a sofrer?

- Bem, depende da perspectiva.

- Queres que te ajude a aliviares-te?

- Com a mão?

- Hã-hã. Se queres que te diga a verdade, isso tem estado a magoar-me desde que nos deitámos. Isso magoa.

Afastei os quadris. - Assim está melhor?

- Obrigada.

- Sabes uma coisa? - perguntei. -Diz.

- Gostava que o fizesses.

- Está bem - disse com um sorriso delicado. Abriu-me o fecho das calças e segurou no meu pénis erecto.

- Está quente - disse ela.

Começou a mover a mão, mas detive-a para lhe desabotoar a blusa e desapertar-lhe o soutien. Beijei-lhe os mamilos macios e rosados. Fechou os olhos e recomeçou a mover lentamente a mão.

- Ei, tens bastante jeito - disse-lhe.

- Sê um bom rapaz e cala-te.

Depois de ejacular, abracei-a e beijei-a de novo. Depois apertou o soutien e a blusa e abotoei as calças.

-Já consegues caminhar mais leve agora? - perguntou.

- Graças a ti.

- Bem, então, meu senhor e se for do seu agrado, podemos passear um pouco mais?

- Faça o favor.

Atravessámos o prado através de um grupo de árvores e depois percorremos outro prado. A Naoko começou a falar da irmã falecida e explicou-me que era seu desejo contar-me isso, apesar de quase nunca falar desse assunto com ninguém.

- Era seis anos mais velha do que eu e as nossas personalidades eram completamente diferentes, mas éramos muito chegadas. Nunca discutíamos, nem uma única vez. A sério. Naturalmente, tendo em conta a enorme diferença de idades, não havia grandes motivos para discutirmos.

A sua irmã era uma daquelas raparigas que tinham êxito em tudo: uma super-estudante, uma super-atleta, era popular, uma líder, generosa, franca, os rapazes gostavam dela, os professores gostavam dela, tinha as paredes do quarto cobertas de certificados de mérito. Havia sempre uma rapariga assim em todas as escolas. - Não estou a dizer isto por ser minha irmã, mas ela nunca deixou que estas coisas a influenciassem ou a tornassem minimamente arrogante ou convencida. O facto é que, independentemente da tarefa de que a incumbissem, efectuava-a melhor do que qualquer outra pessoa. Quando eu era criança, decidi ser uma rapariguinha adorável. - Torcia nas mãos uma haste de erva enquanto falava. - Como deves compreender, cresci a ouvir toda a gente a dizer como ela era inteligente, como ela se evidenciava nas actividades desportivas e como era popular. Não vou, obviamente, assumir que havia qualquer possibilidade de eu competir com ela. Mas o meu rosto era pelo menos mais encantador do que o dela e creio que as pessoas resolveram tornar-me numa menina adorável. Puseram-me desde o início numa escola daquelas. Vestiam-me com vestidos de veludo, blusas de folhos e sapatos de cabedal autêntico, tinha aulas de piano e de ballet. Isto fazia com que a minha irmã me adorasse ainda mais, tu percebes: eu era a sua adorável irmãzinha. Dava-me pequenas e adoráveis prendas, levava-me com ela para todo o lado e ajudava-me com os trabalhos escolares. Chegava inclusivamente a levar-me com ela quando saía com o namorado. Era a melhor irmã mais velha que se podia ter. Ninguém soube por que razão se suicidou. Tal como aconteceu com o Kizuki. Exactamente o mesmo. Também tinha dezassete anos e nunca revelou o mais ínfimo indício de que iria suicidar-se. Também não deixou nenhum bilhete. Foi, de facto, exactamente o mesmo, não achas?

- Parece que sim.

- Todos diziam que ela era demasiado inteligente ou que lia demasiados livros. E lia imenso, de facto. Tinha imensos livros. Li vários deles depois da morte dela e foi muito triste, pois os livros continham comentários dela nas margens, flores comprimidas entre as páginas e cartas dos namorados, e chorava sempre que me deparava com alguma dessas coisas. Chorava imenso.

Manteve-se calada durante alguns segundos enquanto contorcia de novo a haste de erva.

- Ela tratava sempre das coisas sozinha. Nunca pedia conselhos ou ajuda a ninguém. Creio que não se tratava de uma questão de orgulho. Limitava-se a fazer o que lhe parecia natural. Os meus pais estavam acostumados a esse comportamento e achavam que ela se desenvencilharia bem sozinha. Ajudava-me sempre que lhe pedia algum conselho, mas ela própria nunca recorria a ninguém. Fazia o que tinha a fazer, sempre de modo independente. Nunca se zangava nem se mostrava temperamental. Tudo isto é verdade, a sério, não estou a exagerar. A maioria das raparigas, quando têm o período ou lhes acontece algo, tornam-se irritadiças e descarregam nos outros, mas ela nunca agia assim. Em vez de ficar de mau humor, mostrava-se bastante dócil. Acontecia-lhe apenas isto no espaço de dois ou três meses: fechava-se no quarto e ficava na cama, faltava às aulas, quase não comia, permanecia no escuro e parecia alienada. Mas não revelava qualquer mau humor. Quando eu chegava da escola, chamava-me ao quarto, pedia-me que me sentasse ao lado dela na cama e perguntava-me sobre o meu dia. Eu contava-lhe tudo: os jogos com que me entretinha com os amigos, o que o professor dissera ou os resultados de algum teste, coisas desse género. Ela absorvia cada um dos pormenores e tecia comentários e sugestões; mas, assim que eu saía do quarto, por exemplo, para ir brincar com alguma amiga ou para ir a uma aula de ballet, ela alienava-se de novo. Dois dias depois, surgia de repente novamente animada e retomava as aulas. Esta situação prolongou-se durante... não sei, talvez durante quatro anos. Inicialmente, os meus pais preocupavam-se e creio que chegaram a consultar um médico, mas o facto é que passados dois dias ela ficava perfeitamente bem e eles achavam que tudo se resolveria se a deixassem em paz, pois ela era muito inteligente e disciplinada. Contudo, depois da morte dela ouvi os meus pais referirem um irmão mais novo do meu pai que falecera há vários anos.

Era também muito inteligente, mas permanecera fechado em casa durante quatro anos: desde os dezassete até fazer vinte e um anos. E de repente, um dia sai de casa e lança-se debaixo de um comboio. O meu pai disse: «Talvez esteja no sangue, da minha parte».

Enquanto falava, os seus dedos torturavam inconscientemente a haste de erva, cujas fibras se dispersavam ao vento. Quando a haste ficou reduzida, entrelaçou-a em redor dos dedos.

- Fui eu que encontrei a minha irmã morta - prosseguiu. - No Outono, quando eu andava no sétimo ano. Em Novembro, num dia escuro e chuvoso. A minha irmã frequentava o primeiro ano do secundário. Eu chegara a casa às 18:30 depois da aula de piano, a minha mãe estava a cozinhar e disse-me para ir avisar a minha irmã que o jantar estava pronto. Subi ao piso de cima, bati à porta e gritei: «O jantar está na mesa», mas não houve qualquer resposta. O quarto estava mergulhado num silêncio total. Achei estranho e bati de novo; abri a porta e espreitei para dentro. Pensei que ela estivesse provavelmente a dormir. Mas não estava na cama. Estava junto da janela, a olhar fixamente para o exterior, com o pescoço curvado num ângulo estranho, como se estivesse a pensar. O quarto estava escuro, as luzes estavam apagadas e era difícil ver o que quer que fosse. «Que estás a fazer?», perguntei-lhe. «O jantar está pronto». Foi então que reparei que ela parecia mais alta. Que estaria a acontecer?, perguntei-me, aquilo era tão estranho!. Ela teria calçado saltos altos? Ter-se-ia colocado em cima de algo? Aproximei-me e estava prestes a dizer algo quando vi que havia uma corda por cima da cabeça dela. Uma corda pendurada de uma viga do tecto, assombrosamente direita, como se alguém tivesse desenhado uma linha no espaço com uma régua. Vestia apenas uma blusa branca, sim, uma simples blusa como esta, e uma saia preta, e os dedos dos pés apontavam para baixo como os de uma bailarina, só que entre a ponta dos dedos e o soalho haveria talvez um espaço de: dezassete centímetros. Apercebi-me de cada pormenor. Do rosto dela também. Observei-lhe o rosto, não consegui evitar. Pensei: tenho que ir lá abaixo imediatamente e contar à minha mãe, tenho que gritar. Mas o meu corpo ignorou-me. Movia-se por vontade própria, separado da minha consciência.

O meu corpo tentava baixá-la da corda enquanto a minha mente me dizia para correr pelas escadas abaixo. Mas uma rapariguinha como eu não tinha obviamente a força necessária para conseguir tal coisa e, portanto, limitei-me a permanecer ali, alienada, durante cerca de cinco ou seis minutos, num vazio total, como se algo tivesse morrido dentro de mim. Fiquei assim com a minha irmã naquele quarto frio e escuro até a minha mãe vir ver o que estava a passar-se. Abanou a cabeça.

- Não consegui falar durante três dias. Permaneci deitada na cama como uma morta, de olhos desmesuradamente abertos e fixos no vácuo. Não sabia o que estava a acontecer. - Apoiou-se contra o meu braço. - Eu contei-te na minha carta que sou um ser humano com mais defeitos do que imaginas, não contei? A minha doença é pior do que julgas, as suas raízes são mais profundas. E é por essa razão que desejo que avances sem mim se puderes. Não esperes por mim. Dorme com outras raparigas se for esse o teu desejo. Não permitas que eu te retenha. Faz o que queres fazer. Caso contrário, posso acabar por te arrastar comigo e isso é a coisa que mais quero evitar. Não quero interferir com a tua vida. Não quero interferir com a vida de ninguém. Tal como disse antes, gostava que me visitasses de vez em quando e que te lembrasses sempre de mim. É tudo o que desejo.

- Mas isso não é tudo o que eu desejo - disse-lhe.

- Estás a desperdiçar a tua vida envolvendo-te comigo.

- Não estou a desperdiçar nada.

Mas eu posso nunca recuperar. Esperarás eternamente por mim? Consegues esperar dez, vinte anos?

- Estás a deixar-te assustar com demasiadas coisas - disse-lhe. -A escuridão, os pesadelos, o poder dos mortos. Tens que esquecer isso. Tenho a certeza de que recuperarás se esqueceres isso.

- Se eu conseguir - proferiu a Naoko, abanando a cabeça.

- Se conseguires sair daqui, vens viver comigo? - perguntei-lhe. - Assim poderei proteger-te da escuridão e dos pesadelos. E assim ter-me-ias a mim em vez da Reiko para te abraçar quando as coisas se tornassem difíceis.

Apoiou-se com mais firmeza contra mim. - Seria maravilhoso - disse.

Voltámos ao café alguns minutos antes das três. A Reiko lia um livro enquanto ouvia na rádio o Segundo Concerto para pianos de Brahms. Havia algo de maravilhoso no facto de Brahms estar a tocar na margem de um prado verdejante sem vivalma. A Reiko assobiava o acompanhamento do trecho de violoncelo que inicia o terceiro andamento.

- Backhaus é Bõhm - disse ela. - Há muito tempo atrás, ouvia tanto este disco que o rompi. Literalmente. Rompi os sulcos enquanto ouvia cada uma das notas. Sorvia a música directamente do disco.

Eu e a Naoko pedimos café.

- Conversaram muito? - perguntou a Reiko.

- Imenso - respondeu a Naoko.

- Mais tarde contas-me acerca daquilo... há, tu sabes.

- Não fizemos nada disso - disse a Naoko, corando.

- De verdade? Nada mesmo? - perguntou-me a Reiko.

- Nada - declarei.

- Que aborreci-i-i-do! - exclamou ela com uma expressão de enfado no rosto.

- Pois é - disse eu, continuando a beberricar o café.

O cenário na cantina era o mesmo do dia anterior: o ambiente, as vozes, os rostos. Apenas o menu se alterara. O homem calvo e vestido de branco, que no dia anterior dissertara sobre a secreção dos sucos gástricos em condições de imponderabilidade, sentou-se à nossa mesa e discorreu durante algum tempo sobre a correlação entre o tamanho do cérebro e a inteligência. Enquanto comíamos os hambúrgueres de rebentos de soja, discorreu acerca do volume do cérebro de Bismarck e de Napoleão. Depois afastou o prato e, servindo-se de uma caneta e de um bloco de apontamentos, desenhou esboços de cérebros. Começava a desenhar, declarava «Não, não é bem assim» e recomeçava a desenhar. Isto repetiu-se várias vezes. Quando terminou, guardou o bloco de apontamentos num dos bolsos do casaco branco e enfiou a caneta no bolsinho do peito, o qual continha já três canetas, lápis e uma régua. Quando terminou a refeição, repetiu o que me dissera no dia anterior: - Aqui os Invernos são realmente encantadores. Experimente vir cá durante o Inverno - e saiu da cantina.

- Ele é médico ou um paciente? - perguntei à Reiko.

- O que te parece?

- Realmente, não sei. De qualquer modo, não parece completamente normal.

- É médico. O doutor Miyata - disse a Naoko.

- Sim, mas aposto que ele é o mais louco de todos os que estão aqui - disse a Reiko.

- O senhor Omura, o guarda, também é bastante louco -acrescentou a Naoko.

- De facto - disse a Reiko, anuindo com a cabeça enquanto espetava o garfo nos brócolos. - Todas as manhãs executa uns furiosos exercícios calisténicos e grita disparates alto e bom som. E antes de tu seres admitida aqui, Naoko, havia uma rapariga na secretaria, a senhorita Kinoshita, que tentou suicidar-se. E no ano passado despediram o enfermeiro Tokushima, pois tinha um grave problema de bebida.

- Parece que os pacientes e os funcionários deveriam trocar de lugar - comentei.

- Exactamente - concordou a Reiko, acenando com o garfo no ar. - Começas finalmente a ver como as coisas funcionam aqui.

- Suponho que sim.

- O que nos torna normalíssimos, é o facto de sabermos que não somos normais - declarou a Reiko.

Quando voltámos para o quarto, eu e a Naoko jogámos cartas enquanto a Reiko praticava Bach na guitarra.

- A que horas partes amanhã? - perguntou-me a Reiko enquanto fazia uma pausa para acender um cigarro.

- Imediatamente após o pequeno-almoço - informei. - A camioneta chega às nove. Desse modo, regressarei a tempo de me apresentar ao trabalho amanhã à noite.

- Que pena. Seria agradável se pudesses permanecer mais tempo.

- Se permanecesse aqui demasiado tempo, ainda acabava a viver aqui - afirmei, rindo-me.

- Talvez - disse a Reiko. Disse depois à Naoko: - Oh, tenho que ir buscar as uvas à Oka. Esqueci-me completamente.

- Queres que te acompanhe? - perguntou a Naoko.

- E se me cedesses o jovem senhor Watanabe por uns momentos?

- Está bem - disse a Naoko.

- Muito bem. Vamos então os dois dar mais um passeio nocturno - anunciou a Reiko, dando-me a mão. - Ontem quase chegámos lá. Esta noite vamos até ao fim.

- Está bem - disse a Naoko, soltando uma risadinha nervosa. - Façam o que vos apetecer.

O ar nocturno estava frio. A Reiko envergava uma camisola azul-pálida sobre a blusa e caminhava com as mãos enfiadas nos bolsos das calças. Olhou para o céu e farejou a brisa como um cão o faria. - Vem aí chuva - anunciou. Tentei farejar também, mas não consegui aperceber-me de nenhum cheiro. Havia, com efeito, imensas nuvens no céu que obscureciam a lua.

- Quando se permanece aqui o tempo suficiente, consegue-se prever o tempo pelo cheiro do ar - afirmou a Reiko.

Entrámos na área arborizada onde se situavam as casas dos funcionários. A Reiko disse-me para aguardar alguns segundos e tocou à campainha de uma das casas. Surgiu à porta uma mulher - sem dúvida a própria residente - e ambas começaram a conversar e a rir. Depois a mulher entrou dentro de casa e trouxe um enorme saco de plástico. A Reiko agradeceu-lhe, deu-lhe as boas-noites e voltou para junto de mim.

- Olha só - disse, abrindo o saco.

O saco continha um enorme cacho de uvas.

- Gostas de uvas?

- Adoro.

Ofereceu-me uvas. - Podes comê-las. Estão lavadas.

Continuámos a caminhar enquanto comíamos uvas e cuspíamos as peles e as grainhas para o chão. As uvas eram frescas e deliciosas.

- De vez em quando dou aulas de piano ao filho deles e oferecem-me várias coisas em troca. O vinho que bebemos era deles. E às vezes peço-lhes para me fazerem algumas compras na cidade.

- Gostava de ouvir o resto da história que estavas a contar-me ontem.

- Está bem - disse a Reiko. - Mas se chegarmos novamente tarde a casa, a Naoko talvez comece a suspeitar.

- Estou disposto a correr esse risco.

- Muito bem. Mas primeiro quero abrigar-me nalgum local. Esta noite está um pouco frio.

Enveredou pela esquerda quando nos acercámos dos campos de ténis. Descemos uma escadaria estreita e deparámo-nos com um local onde se erguiam vários armazéns como se fossem um bloco de habitações. Abriu a porta do mais próximo, entrou e acendeu as luzes. - Entra. Embora não haja muito para ver.

O armazém continha perfeitas fileiras de esquis, botas e restantes adereços e no chão estava empilhado equipamento de remoção da neve e sacos de sal-gema.

- Costumava vir aqui frequentemente para praticar guitarra... quando desejava estar sozinha. É agradável e confortável, não é?

Sentou-se em cima dos sacos de sal-gema e fez-me sinal para me sentar ao seu lado. Obedeci-lhe.

- Aqui não há muita ventilação, mas importas-te que eu fume?

- Estás à vontade.

- É um vício que não consigo abandonar - disse, franzindo a testa, mas acendeu o cigarro com evidente prazer. Não eram muitas as pessoas que apreciavam o tabaco como a Reiko. Continuei a comer uvas, descascando-as uma a uma cuidadosamente e lançando as peles e as grainhas para dentro de uma lata que servia de caixote de lixo.

- Ora bem, vejamos, em que ponto ficámos ontem à noite? - perguntou-me.

- Estava uma noite escura e tempestuosa e tu trepavas por um íngreme penhasco para deitar a mão a um ninho de andorinha.

- És fantástico, a maneira como consegues gracejar com o rosto tão sério. Vejamos, creio que estava no ponto em que dava aulas de piano à rapariguinha aos sábados de manhã.

- Isso mesmo.

- Partindo do princípio de que se pode dividir todas as pessoas do mundo em dois grupos, aqueles que são bons a ensinar coisas aos outros e aqueles que não o são, devo dizer que me incluo perfeitamente no primeiro grupo. Nunca reflecti sobre isso quando era mais nova e creio que não desejava encarar-me desse modo, mas, assim que alcancei uma certa idade e um certo grau de autoconhecimento, apercebi-me de que era verdade afinal de contas: tenho jeito para ensinar as pessoas. Bastante jeito.

- Acredito que sim.

- Tenho mais paciência para os outros do que para mim própria e tenho o dom de despertar o melhor nos outros, mas não em mim própria. Tem a ver com a minha personalidade. Sou a parte áspera de uma caixa de fósforos. Mas, por mim, tudo bem. Não me importo de modo algum. É melhor ser uma caixa de fósforos de qualidade do que um fósforo de segunda classe. Creio que isto se tornou claro na minha mente quando comecei a ensinar esta rapariga. Ensinara já mais crianças quando era mais nova, estritamente como uma actividade paralela, sem nunca tomar consciência desta minha faceta. Somente quando comecei a ensiná-la é que comecei a encarar-me desse modo. Ei, tenho jeito para ensinar as pessoas. E as aulas corriam bem. Tal como te disse ontem, a rapariga não revelava nada de especial no respeitante à técnica e estava fora de questão tornar-se numa executante profissional; por conseguinte, ensiná-la não se revelaria uma grande responsabilidade. Além do facto de que ela frequentava o tipo de escola para raparigas onde qualquer aluna com classificações medianamente decentes ingressaria automaticamente na universidade; isso significava que não precisava de matar-se a estudar e a sua mãe também era da opinião de que as aulas de piano não deveriam ser muito exigentes. Consequentemente, nunca a forcei a nada. Assim que a conheci, soube de imediato que era o tipo de rapariga que nunca poderia ser forçada, era o tipo de criança que se mostraria sempre completamente doce e que diria «Sim, sim» e se recusaria absolutamente a fazer tudo aquilo que não fosse de encontro aos seus desejos. A primeira coisa que fiz, foi deixá-la executar uma peça à sua maneira: cem por cento à maneira dela. Depois, eu própria executava para ela essa mesma peça, de várias maneiras diferentes, e ambas discutíamos qual fora a melhor execução ou aquela que ela apreciara mais. Depois dava-lhe a mesma peça e a execução dela revelava-se então dez vezes melhor do que a primeira. Ela própria verificava assim o que resultava melhor e inseria essas modulações na sua execução.

Calou-se por instantes enquanto observava a ponta cintilante do cigarro. Eu continuava a saborear uvas sem proferir palavra.

- Tenho consciência de que possuo bom ouvido para a música, mas ela era melhor do que eu. Eu pensava que era um grande desperdício! Pensava: «Se ela tivesse pelo menos começado com um bom professor e tivesse recebido o treino adequado, estaria agora muito mais desenvolta!». Mas estava errada. Ela não era o tipo de criança que toleraria um treino apropriado. Acontece que há pessoas assim. São abençoadas com um talento maravilhoso, mas não são capazes do esforço para o sistematizarem. Acabam por o desperdiçar em pequenos nadas. Eu própria conheci pessoas que agiam assim. De início, pensamos que elas são assombrosas. Conseguem decifrar uma peça incrivelmente difícil e executam-na de um modo quase perfeito, do início ao fim. Vemo-las a executar a peça e sentimo-nos avassalados. E pensamos: «Eu nunca conseguiria fazer o mesmo, nem num milhão de anos». Mas não são capazes de mais. Não conseguem ultrapassar esse limiar. E por que razão não conseguem? Porque são incapazes do esforço. Ninguém conseguiu incutir-lhes a disciplina necessária. Foram mimados. Possuem apenas o talento necessário para executarem bem sem qualquer esforço especial e conseguiram que as pessoas as elogiassem desde cedo; por conseguinte, qualquer empenho lhes parece estúpido. Limitam-se a pegar numa peça que qualquer outra criança teria que aperfeiçoar durante três semanas e conseguem tocá-la com esmero em metade do tempo; o professor presume que se esforçaram o necessário e permite-lhes avançar para a etapa seguinte. Essas crianças conseguem isso em metade do tempo e avançam então para a próxima peça. Nunca chegam a conhecer o que significa ser repreendido pelo professor e ficam assim desprovidas de um elemento crucial e necessário para o desenvolvimento da sua personalidade. É uma tragédia. Eu própria revelara essas tendências, mas, felizmente, tive um professor bastante rigoroso e consegui controlar-me. Em todo o caso, ensiná-la era uma alegria. Era como conduzir ao longo da auto-estrada num potente carro desportivo que reage ao mais ínfimo toque e que por vezes reage demasiado rapidamente. O truque em ensinar tais crianças consiste em não as elogiar em excesso. Estão tão acostumadas ao elogio que isso deixa de ter sentido para elas. Temos que os dosear com sensatez.

Não se pode forçar essas crianças a nada. Temos que as deixar escolher por si próprias. E não devemos deixá-las precipitarem-se de uma coisa para a seguinte: temos que as fazer parar e pensar. E resume-se a isso. Se fizermos essas coisas, obtemos bons resultados.

Lançou a ponta do cigarro ao chão e calcou-a. Depois inspirou profundamente como se tentasse acalmar-se.

- Quando as lições terminavam, tomávamos chá e conversávamos. Por vezes demonstrava-lhe certos estilos de piano jazzístico: por exemplo, isto é Bud Powell ou Thelonious Monk. Mas conversávamos sobretudo. E que conversadora ela era! Conseguia encantar-me de imediato. Tal como te disse ontem, creio que quase tudo o que ela dizia era inventado, mas era interessante. Era uma observadora astuta, usava a linguagem com precisão, tinha uma língua afiada e era divertida. Conseguia despertar-me emoções. Sim, ela era de facto exímia em despertar emoções nas pessoas, em nos comover. E ela sabia que possuía esse poder. Tentava usá-lo o mais hábil e eficazmente possível. Era capaz de nos fazer sentir o que desejasse: fúria, tristeza, compaixão, desilusão ou felicidade. Manipulava as emoções das pessoas somente para testar os seus próprios poderes. Naturalmente, só me apercebi disto mais tarde. Nessa altura, não me apercebia do que ela estava a fazer-me.

Abanou a cabeça e comeu algumas uvas.

- Era uma doença - prosseguiu. - A rapariga era doentia. Era como a maçã podre que estraga todas as outras maçãs. E ninguém conseguia curá-la. Continuaria a sofrer dessa doença até morrer. Nesse sentido, era uma pequena criatura triste. Eu própria ter-me-ia compadecido dela se não tivesse sido uma das suas vítimas. E eu própria a teria visto a ela como uma vítima.

Comeu mais algumas uvas. Parecia pensar na melhor maneira de continuar com o seu relato.

- Bem, em todo o caso, gostei de a ensinar durante seis meses. Por vezes, surpreendia-me um pouco ou ficava perplexa com o que ela dizia. Outras vezes, enquanto ela falava, sentia uma onda de horror ao aperceber-me de que a intensidade do seu ódio por alguém era completamente irracional, ou quando me ocorria que ela era demasiado inteligente. E, nessas ocasiões, interrogava-me sobre o que se passaria de facto na mente dela. Mas, afinal de contas, toda a gente tem defeitos, certo? E, por fim, que direito tinha eu em questionar a sua personalidade ou carácter? Eu não passava da sua professora de piano. Deveria preocupar-me somente com o facto de ela praticar ou não. Além do mais, a verdade é que gostava dela. Gostava imenso dela. No entanto, tive o cuidado de não lhe dizer nada de demasiado pessoal acerca de mim. O meu sexto sentido dizia-me que seria melhor não falar sobre essas coisas. Ela fazia-me centenas de perguntas, estava desejosa de saber mais acerca de mim, mas limitei-me a contar-lhe apenas as coisas mais inofensivas, coisas acerca da minha infância, que escola frequentara, informações desse tipo. Transmitiu-me o seu desejo de saber mais coisas sobre mim, mas eu dizia-lhe que não havia nada para contar: tivera uma vida aborrecida, tivera um marido normal, uma criança normal e imensos afazeres domésticos. «Mas eu gosto tanto de ti», dizia-me enquanto me olhava nos olhos de modo tão carente. Sentia um calafrio sempre que ela fazia isso, um agradável calafrio. Contudo, mesmo assim, nunca lhe contei mais do que o necessário. E então, um dia, um dia de Maio, creio, a meio da aula ela disse que se sentia adoentada. Eu própria verifiquei que ela estava pálida e suava; perguntei-lhe se queria ir para casa, mas respondeu-me que achava que se sentiria melhor se pudesse deitar-se por alguns minutos. Levei-a para o quarto, quase a levei ao colo. O sofá era pequeno e a cama era o único local onde poderia deitar-se. Pediu-me desculpa pelo incómodo, mas tranquilizei-a, dizendo-lhe que não era incómodo algum, e perguntei-lhe, se desejava beber alguma coisa. Disse que não, que desejava somente que lhe fizesse companhia; disse-lhe que o faria de bom grado. Alguns minutos depois, pediu-me para lhe massajar as costas. Parecia estar realmente a sofrer e suava bastante; comecei, pois, a fazer-lhe uma massagem. Depois pediu-me desculpa e perguntou-me se não me importava de lhe tirar o soutien, pois estava a magoá-la. Não sei como, mas fi-lo. Ela vestia uma blusa justa e tive que a desabotoar e enfiar a mão para desapertar os ganchos do soutien. Tinha seios enormes para uma rapariga de treze anos, quase o dobro do tamanho dos meus. E não usava um soutien de menina mas um modelo para mulheres adultas, um modelo caro. Evidentemente, na altura não prestei grande atenção a esses pormenores e, como uma idiota, continuei a massajar-lhe as costas. Ela continuava a desculpar-se numa vozinha esmorecida como se lamentasse aquela situação e eu continuava a tranquilizá-la.

Varreu com a mão a cinza do cigarro para o chão. Eu parara de comer uvas e estava completamente concentrado na história dela.

- Pouco depois, começou a chorar. «Que se passa?», perguntei-lhe. «Nada», respondeu. «Alguma coisa deve passar-se», disse-lhe. «Diz-me a verdade. O que te preocupa?». Respondeu-me então: «Às vezes sinto-me assim e não sei o que fazer. Sinto-me tão sozinha e triste e não consigo falar com ninguém, e ninguém se preocupa comigo. E isso magoa-me tanto que fico assim. Não consigo dormir à noite, não me apetece comer, e vir aqui às aulas é a única coisa por que anseio». Disse-lhe: «Podes falar comigo. Conta-me por que razão isso te acontece». Contou-me que as coisas não corriam bem em casa, que não conseguia amar os pais e que estes não a amavam. Que o pai tinha outra mulher e quase nunca estava presente, e que isso quase enlouquecia a mãe, que depois se vingava na filha: batia-lhe quase todos os dias e era por isso que odiava voltar para casa. Nesse momento começou a lamentar-se de verdade e os seus olhos, aqueles seus olhos encantadores, estavam cheios de lágrimas. Uma visão suficiente para fazer um deus chorar. Disse-lhe então que, se era assim tão terrível voltar para casa, poderia vir a minha casa sempre que o desejasse. Ao ouvir isso, lançou os braços ao meu pescoço e disse: «Oh, lamento tanto, mas se eu não te tivesse a ti, não saberia o que fazer. Por favor, não me abandones. Se o fizeres, não tenho para onde ir». Não sei como, deixo-a encostar a cabeça ao meu peito, começo a afagá-la e a dizer «Pronto, pronto», ela abraça-se a mim e acaricia-me as costas, começo a sentir-me muito estranha, a sentir um calor por todo o corpo. Imagine-se, ali estava aquela rapariga, bela como uma estampa, e ambas em cima da cama, a abraçarmo-nos, e as mãos dela acariciam-me as costas de um modo tão incrivelmente sensual que nem o meu próprio marido alguma vez conseguira igualar;

sinto todo o meu corpo a libertar-se quando ela me toca e de repente despe-me a blusa e o soutien para me afagar os seios. É então que me apercebo de que ela é uma absoluta e irremissível lésbica. Essa situação já me acontecera anteriormente, na escola, com uma das raparigas no primeiro ano do secundário. Digo-lhe então para parar. «Oh, por favor», diz ela, «só mais um pouco. Sinto-me tão sozinha, tão sozinha, por favor, acredita em mim, és a única pessoa que me resta, oh, por favor, não me abandones». Pega na minha mão e coloca-a sobre o seu seio, o seu seio tão encantadoramente torneado e, apesar de eu ser mulher, sinto algo eléctrico a percorrer-me quando a minha mão a toca. Não sei o que fazer. Continuo a repetir não, não, não, não, não, como uma idiota. Não consigo mover-me, era como se estivesse paralisada. Conseguira afastar a outra rapariga na escola, mas agora não conseguia reagir. O meu corpo não obedecia às minhas ordens. Ela continua a agarrar na minha mão direita contra o seio esquerdo, beija-me e lambe-me os mamilos enquanto a sua mão direita me acaricia as costas, o flanco, as nádegas. E ali estava eu, no quarto, com as cortinas fechadas, com uma rapariga de treze anos que praticamente me despiu e me percorria o corpo e eu contorcia-me de prazer. Agora que recordo isso, parece-me incrível. Quer dizer, é insano, não achas? Mas, nessa altura, era como se ela me tivesse lançado um feitiço.

Calou-se para fumar um pouco mais.

- Sabes, é a primeira vez que conto isto a um homem - declarou, olhando para mim. - Conto-te isto porque achei que deveria fazê-lo, mas sinto-me verdadeiramente envergonhada.

- Lamento - disse-lhe, porque não sabia que mais poderia dizer.

- Isto prolongou-se durante alguns instantes, depois começou a descer a mão direita, afagou-me através das cuecas. Eu estava já absolutamente húmida. Tenho vergonha de o dizer, mas nunca me senti tão húmida, nem antes nem depois dessa ocasião. Sempre me encarara como alguém indiferente ao sexo e, portanto, estava assombrada por me sentir tão excitada. Depois enfiou os dedos esguios e suaves dentro das minhas cuecas e... bem, tu sabes, não me sinto capaz de o expressar por palavras. Quer dizer, era completamente diferente de quando um homem coloca desajeitadamente as mãos nessa nossa zona íntima.

Era espantoso, verdadeiramente espantoso. Como se fossem penas ou penugem. Parecia que todos os fusíveis na minha cabeça estavam prestes a explodir. Mesmo assim, algures no meu cérebro enublado, ocorreu-me que deveria pôr fim àquilo. Se deixasse aquilo avançar, nunca mais pararia e iria sentir-me completamente baralhada de novo se tivesse de viver com um segredo desses dentro de mim. Pensei também na minha filha. O que aconteceria se ela me visse naquela situação? Aos sábados ela permanecia em casa dos meus pais até às três, mas se acontecesse algo e viesse para casa inesperadamente? Este pensamento ajudou-me a reunir forças para me soerguer na cama. «Pára, por favor!», gritei-lhe. Mas ela não parava. Em vez disso, baixou-me as cuecas com força e começou a usar a língua. Raramente permitia que o meu próprio marido me fizesse isso, pois sentia-me tão envergonhada, mas agora aquela rapariga de treze anos estava a lamber-me essa zona. Desisti de lutar. Só conseguia chorar. E aquilo era um paraíso absoluto. «Pára!», gritei mais de uma vez e esbofeteei-a com todas as minhas forças. Ela deteve-se por fim, ergueu a cabeça e olhou-me nos olhos. Estávamos ambas completamente nuas e de joelhos sobre a cama, a olhar fixamente uma para a outra. Ela tinha treze anos, eu trinta e um, mas, ao olhar para o corpo dela, não sei como, senti-me completamente avassalada. Essa imagem é ainda tão vívida na minha mente. Não conseguia acreditar que estava a olhar para o corpo de uma rapariga de treze anos e ainda hoje não consigo acreditar. O meu corpo, em comparação, ficava bastante aquém do dela. Acredita em mim.

Não havia nada que eu pudesse dizer e, por conseguinte, mantive-me calado.

- «O que se passa?», pergunta-me ela. «Gostas disto, não gostas? Soube de imediato desde que te conheci. Eu sei que gostas. É muito melhor do que fazê-lo com um homem, não é? Vê só como estás húmida. Consigo fazer-te sentir ainda mais se me deixares. De verdade. Consigo fazer-te sentir o corpo a derreter. Queres que eu te faça isso, não queres?». Ela tinha razão, era muito melhor do que com o meu marido. E eu queria que ela me fizesse ainda mais coisas! Mas não poderia permitir que isso acontecesse. «Vamos fazer isto uma vez por semana», disse ela. «Apenas uma vez por semana. Ninguém descobrirá.

Será o nosso pequeno segredo». Todavia, saí da cama, vesti a camisa de noite e disse-lhe para nunca mais voltar. Ela limitou-se a olhar para mim. Com um olhar absolutamente neutro. Nunca vira essa expressão nos olhos dela. Era como se os seus olhos tivessem sido pintados em cartolina. Não tinham qualquer profundidade. Continuou a olhar-me assim durante momentos, depois começou a recolher a roupa em silêncio e vestiu uma a uma as peças de roupa, o mais lentamente possível, como se aquilo fosse um espectáculo. Depois foi à sala buscar uma escova que trazia no saco, escovou o cabelo, limpou o sangue dos lábios com o lenço, calçou os sapatos e partiu. Quando saía, disse-me: «És lésbica, sabes. É a verdade. Podes tentar escondê-lo, mas serás lésbica até ao fim da tua vida». - Isso é verdade? - perguntei.

A Reiko franziu os lábios e reflectiu por momentos. - Bem, é e não é. Com efeito, senti-me de facto melhor com ela do que com o meu marido. É um facto. Mas essa questão atormentava-me. Talvez fosse realmente lésbica e nunca me tivesse apercebido até então. Mas hoje já não penso assim. O que não significa que não tenha tendências. Provavelmente tenho-as, de facto. No entanto, não sou uma lésbica no sentido próprio da palavra. Nunca sinto desejo quando olho para uma mulher. Percebes o que quero dizer? Anuí com a cabeça.

- Todavia, algumas raparigas reagem à minha pessoa e sinto algo quando isso acontece. São as únicas vezes em que me apercebo dessas minhas tendências. Mas quando abraço a Naoko, não sinto nada de especial. Andamos praticamente nuas em casa quando o tempo está quente, tomamos banho juntas e por vezes até dormimos na mesma cama, mas não acontece nada. Não sinto absolutamente nada. Sei que ela tem um corpo encantador, mas não passa disso. Na verdade, eu e a Naoko chegámos a fazer uma brincadeira, fingimos que éramos lésbicas. Queres que te conte?

- Claro. Conta-me.

- Como sabes, contamos tudo uma à outra e, quando lhe contei a história que acabei de te contar, a Naoko quis fazer uma experiência. Ambas nos despimos e tentou acariciar-me, mas não resultou. Sentíamos apenas cócegas. Pensei que ia morrer de riso.

Só de me lembrar, até parece que ainda sinto as cócegas. Ela era tão desajeitada! Aposto que estás feliz por saber isto.

- Sim, para dizer a verdade, estou feliz.

- Bem, em todo o caso, não passou disso - concluiu a Reiko, coçando a pele junto da sobrancelha com a ponta do dedo mindinho. - Depois de a rapariga sair de minha casa, sentei-me numa cadeira enquanto me esvaziava por completo e pensava no que fazer. Sentia o abafado latejar do coração no meu corpo. Os meus membros pareciam pesar uma tonelada e sentia a boca como se tivesse engolido uma traça ou algo do género. Sentia-a tão seca. Consegui arrastar-me para o quarto de banho, pois a minha filha em breve regressaria a casa. Queria lavar-me nas zonas em que a rapariga me tocara e lambera. Esfreguei-me com sabão, uma e outra vez, mas parecia que não conseguia libertar-me da imunda sensação que ela deixara em mim. Eu sei que provavelmente era imaginação minha, mas isso não me confortava. Nessa noite, pedi ao meu marido que fizesse amor comigo, quase como um modo de me libertar daquela mácula. Não lhe contei nada, obviamente... não fui capaz. Disse-lhe somente que queria que ele o fizesse lentamente, que se demorasse mais do que o habitual. E ele assim o fez. Concentrou-se em cada pequeno pormenor e demorou imenso tempo; quando me vim nessa noite, oh, sim, não se assemelhava a nada que sentira antes em toda a nossa vida de casados. E por que razão achas tu que assim era? Porque o toque dos dedos daquela rapariga continuava dentro do meu corpo. Era essa a razão. Oh, que embaraçoso isto é! Vê só, estou a suar! Nem acredito que estou a contar estas coisas: que ele «fez amor comigo», que eu «me vim»! - Sorriu e os seus lábios franziram-se de novo. - Mas nem isto ajudou. Passaram-se dois dias, três dias, e o toque dela continuava em mim. E as suas últimas palavras ecoavam continuamente na minha cabeça. Não veio a minha casa no sábado seguinte. Senti o coração a latejar com força durante todo o dia enquanto esperava e me interrogava como reagiria se ela comparecesse. Não conseguia concentrar-me em nada. No entanto, ela não veio. Obviamente. Ela era orgulhosa e sabia que me desiludira. Também não compareceu na semana seguinte, nem na outra, e assim se passou um mês. Achei que, com o decorrer do tempo, esqueceria o que acontecera, mas não conseguia esquecer. Quando ficava sozinha em casa, sentia a presença dela e ficava com os nervos em franja. Não conseguia tocar piano, não conseguia pensar nem fazer nada durante aquele primeiro mês. Até que um dia me apercebi de que havia algo de errado sempre que saía de casa. Os vizinhos olhavam-me de um modo estranho, havia uma nova distância nos seus olhares. Os seus cumprimentos eram educados como sempre, mas havia algo de diferente no seu tom de voz e comportamento para comigo. A vizinha do lado, que costumava visitar-me ocasionalmente, parecia evitar-me. Tentei que estas coisas não me incomodassem. Mas quando comecei a aperceber-me dessas coisas, os primeiros sinais da doença regressaram. Um dia recebi a visita de uma amiga, filha de uma amiga da minha mãe. Éramos da mesma idade e a sua filha andava no mesmo jardim de infância da minha filha; éramos, portanto, íntimas. Visitou-me naquele dia e perguntou-me se estava a par de um horrível rumor que circulava a meu respeito. «Que tipo de rumor?», perguntei-lhe. «Quase nem consigo dizer-te, é tão horrível», disse ela. «Bem, agora que começaste, tens que contar o resto». Ela mostrava-se relutante em me contar, mas acedeu por fim. A única razão da sua visita fora para me contar o que ouvira e, obviamente, iria acabar por me contar. Segundo ela, as pessoas diziam que eu era uma lésbica inveterada e que fora internada em hospícios por essa razão. Diziam que eu arrancara a roupa à minha aluna de piano, que tentara fazer-lhe coisas e que ela me resistira ao ponto de eu a esbofetear com força e lhe deixar o rosto marcado. Tinham, naturalmente, virado a história ao contrário, e esse facto era já por si bastante grave, mas o que realmente me chocava era que as pessoas soubessem que eu estivera hospitalizada. A minha amiga disse que contava a toda a gente que já me conhecia há muito tempo e que eu não era desse género, mas os pais da rapariga acreditavam na versão da filha e andavam a espalhar a história pela vizinhança. Além do mais, tinham investigado o meu passado e descobriram que eu possuía já um historial de distúrbios mentais. Segundo o que a minha amiga ouvira, a rapariga regressara a casa nesse dia depois da aula de piano, nesse mesmo dia, obviamente, com o rosto completamente inchado, os lábios rachados e ensanguentados, com botões arrancados da blusa e até com a roupa interior rasgada. Dá para acreditar? Ela fizera tudo aquilo para corroborar a sua versão, evidentemente, uma versão que a sua mãe teve que lhe arrancar. Consigo imaginá-la perfeitamente a fazer isso: a manchar a blusa de sangue, a arrancar botões, a arrancar a renda do soutien, a obrigar-se a chorar até ficar com os olhos vermelhos, a desgrenhar o cabelo, a contar à mãe uma data de mentiras. Não estou a censurar as pessoas por acreditarem nela. Eu própria teria acreditado também nessa bonequinha encantadora e de língua afiada. Chega a casa a chorar, recusa-se a falar porque é demasiado embaraçoso, mas depois conta tudo. Claro que as pessoas vão acreditar nela. E o pior é que é verdade, pois eu possuía realmente um historial de internamento por distúrbios mentais e esbofeteara-a realmente com toda a minha força. Quem iria, pois, acreditar em mim?. Provavelmente, apenas o meu marido. Decorreram mais alguns dias enquanto me debatia com a questão de contar ou não ao meu marido, mas, quando acabei por o fazer, ele acreditou em mim. Naturalmente. Contei-lhe tudo o que acontecera naquele dia: o tipo de coisas lésbicas que ela me fizera, o facto de a ter esbofeteado. Claro que não lhe contei aquilo que sentira. Não podia contar-lhe isso. De qualquer modo, ele ficou furioso e insistia em falar de imediato com a família da rapariga. Disse-me: «És uma mulher casada, afinal de contas. Estás casada comigo. E és mãe. É impossível seres uma lésbica. Só pode ser uma piada!». Mas não o deixei intervir, pois só agravaria as coisas. Eu sabia que ela era doentia. Vira já centenas de pessoas doentes e sabia. Aquela rapariga estava podre por dentro. Bastava retirar-lhe uma das camadas daquela pele encantadora e descobrir-se-ia apenas carne podre. Eu sei que é terrível dizer isto, mas era a verdade. E tinha consciência de que as pessoas normais nunca saberiam a verdade acerca dela, que não havia maneira de vencermos. Ela era exímia em manipular as emoções dos adultos e não dispúnhamos de nada para provar o nosso caso. Antes do mais, quem iria acreditar que uma rapariga de treze anos montara uma cilada a uma mulher de trinta e um anos? Por mais que disséssemos, as pessoas acreditariam somente no que as suas mentes lhes ditassem. Quanto mais lutássemos, mais vulneráveis ficaríamos.

Havia apenas uma opção possível, disse eu ao meu marido: tínhamos que ir morar para outro local. Se eu continuasse naquele bairro, o stresse aniquilar-me-ia e a minha mente ruiria de novo. Já estava a acontecer, aliás. Tínhamos que sair dali e ir para longe, onde ninguém me conhecesse. Mas o meu marido não estava preparado para se mudar. Ainda não se apercebera da gravidade do meu estado. E a ocasião era verdadeiramente inoportuna, pois ele adorava o seu emprego, conseguira finalmente instalar-nos numa casa própria (vivíamos numa pequena casa pré-fabricada) e a nossa filha acostumara-se ao jardim de infância. «Calma», disse-me ele, «não podemos simplesmente pegar nas coisas e partir. Não consigo arranjar outro emprego tão facilmente. Teríamos que vender a casa e matricular a menina noutro jardim de infância. Tudo isso demoraria pelo menos dois meses». Disse-lhe: «Não consigo esperar dois meses. Isto vai acabar por me aniquilar de uma vez por todas. Estou a falar a sério. Acredita em mim, sei do que estou a falar». Os sintomas começavam já a manifestar-se: sentia um zumbido nos ouvidos, ouvia coisas e não conseguia dormir. Ele sugeriu então que eu partisse primeiro sozinha e que depois se juntaria a mim após ter tratado de tudo. «Não», disse-lhe», «não quero ir sozinha. Sucumbiria sem ti ao meu lado. Preciso de ti. Por favor, não me deixes sozinha». Abraçou-me e suplicou-me que esperasse um pouco mais, apenas um mês, dizia-me, que iria tratar de tudo: abandonar o emprego, vender a casa, tratar da questão do jardim de infância, arranjar outro emprego. Havia um posto que poderia ocupar na Austrália, disse-me, pretendia apenas que eu aguardasse um mês e que tudo se resolveria. Que poderia eu responder-lhe? Se tentasse objectar, isso isolar-me-ia ainda mais. Suspirou e olhou para a luz no tecto. - Mas eu não conseguiria aguentar mais um mês. E certo dia aconteceu de novo.- zás! E dessa vez foi realmente grave. Tomei comprimidos e liguei o gás. Acordei num hospital e tudo se desmoronara. Decorreram meses até acalmar o suficiente para conseguir pensar. Pedi o divórcio ao meu marido, disse-lhe que era o melhor para ele e para a nossa filha. Respondeu que não pretendia divorciar-se de mim. «Podemos recomeçar tudo», dizia ele. «Podemos ir para outro local, somente nós os três, e recomeçar tudo». «É demasiado tarde», disse-lhe. «Tudo terminou quando me pediste para esperar um mês. Se desejavas realmente recomeçar tudo, não deverias ter-me dito isso. Agora, para onde quer que fôssemos, por mais distante que fosse, voltaria a acontecer o mesmo. E eu pedir-te-ia o mesmo e só te faria sofrer. Não quero que isso volte a acontecer». Divorciámo-nos. Ou, melhor, divorciei-me dele. Casou novamente dois anos depois. Ainda bem que o convenci a deixar-me. Estou a dizer a verdade. Senão aquilo continuaria durante o resto da minha vida e não era minha intenção arrastar mais alguém comigo. Não queria obrigar ninguém a viver no receio constante de que eu pudesse enlouquecer a qualquer momento. Ele fora maravilhoso comigo: o marido ideal, fiel, forte e paciente, alguém em quem eu podia confiar completamente. Ele fizera tudo ao seu alcance para me curar e eu tudo o possível para ser curada, em nome do que sentia por ele e pela nossa filha. Eu própria acreditara que recuperaria. Desde que casara, fora feliz durante seis anos. Noventa e nove por cento desse percurso de felicidade deveu-se a ele, mas o restante um por cento desvirtuou-se. E Tudo o que construíramos, sucumbiu. Tudo se reduziu a nada numa fracção de segundos. E a responsável fora essa rapariga.

Recolheu as pontas de cigarro que esmagara sob os pés e lançou-as para dentro da lata.

- É uma história terrível. Esforçámo-nos tão arduamente para construirmos o nosso mundo tijolo a tijolo. E tudo ruiu de um momento para o outro. Tudo desapareceu de repente.

Levantou-se e enfiou as mãos nos bolsos. - Regressemos. Já é tarde.

O céu estava mais escuro, a camada de nuvens mais espessa do que anteriormente e a lua tornara-se invisível. Apercebi-me então de que também eu conseguia sentir agora o cheiro da chuva. Um cheiro misturado com o fresco aroma das uvas dentro do saco que eu segurava.

- É por essa razão que não consigo abandonar este lugar -disse ela. - Tenho receio de me envolver com o mundo exterior. Tenho receio de conhecer pessoas novas e sentir novas emoções.

- Eu compreendo - retorqui. - Mas creio que consegues fazê-lo. Acredito que podes sair daqui e conseguir isso.

Ela sorriu, mas manteve-se em silêncio.

A Naoko estava sentada no sofá a ler. Cruzara as pernas e apoiava a cabeça na mão enquanto lia. Os seus dedos quase pareciam tocar e testar cada palavra que lia. Esparsas gotículas de chuva começaram a tamborilar no telhado. A luz do candeeiro envolvia-a e pairava em seu redor como uma fina poeira. Após a minha longa conversa com a Reiko, a jovialidade da Naoko fascinou-me de um modo diferente.

- Desculpa termos chegado tarde - disse a Reiko, afagando-lhe a cabeça.

- Divertiram-se? - perguntou a Naoko, levantando a cabeça. :. - Claro - redarguiu a Reiko.

- O que fizeram? - perguntou-me a Naoko. - Os dois sozinhos...

- Não tenho autorização para o revelar, minha senhora - respondi.

A Naoko riu-se e pousou o livro. Começámos a comer uvas enquanto ouvíamos a chuva.

- Quando chove assim, sinto como se fôssemos as únicas pessoas no mundo - declarou a Naoko. - Desejava que continuasse a chover para podermos continuar os três juntos.

- Oh, sem dúvida - disse a Reiko -, e enquanto vocês os dois se entretém um com o outro, eu devo supostamente estar a abanar-vos com um leque ou tocar uma música de fundo na guitarra como se fosse a idiota de uma gueixa? Nem pensar, obrigadinha!

- Oh, eu cedia-to de vez em quando - disse a Naoko, rindo.

- Está bem, então contem comigo - afirmou a Reiko. -Vá lá, ó chuva, cai a potes!

Choveu incessantemente, durante bastante tempo. A trovoada abalava ocasionalmente o ar. Quando acabámos de comer as uvas, a Reiko fumou cus novo, retirou a guitarra de debaixo da cama e começou a tocar: primeiro os temas Desafinado e A Garota de Ipanema, depois uma canção de Bacharach e outras de Lennon e McCartney. Eu e a Reiko beberricámos vinho novamente e, quando este acabou, partilhámos o brandy que me restava. Apoderou-se de nós uma disposição calorosa e íntima enquanto conversávamos pela noite dentro e, tal como a Naoko, comecei a desejar que a chuva continuasse a cair.

- Vens visitar-me novamente? - perguntou-me ela, olhando-me nos olhos.

- Claro que sim.

- E vais escrever-me?

- Todas as semanas.

- E acrescentas algumas linhas dirigidas a mim? - perguntou a Reiko.

- Também o farei. Terei todo o gosto - afirmei.

Às onze horas, a Reiko abriu o sofá e preparou-me a cama como na noite anterior. Dissemos as boas-noites e apagámos as luzes. Não consegui adormecer e decidi tirar da mochila A Montanha Mágica e uma lanterna para ler um pouco. Antes da meia-noite, a porta do quarto entreabriu-se e a Naoko aproximou-se e deitou-se ao meu lado. Contrariamente à noite anterior, esta Naoko era a Naoko habitual. Os seus olhos olhavam-me com atenção e os seus movimentos eram ágeis. Aproximou a boca do meu ouvido e sussurrou-me: - Não consigo adormecer.

- Eu também não consigo. - Pousei o livro e desliguei a lanterna; depois abracei-a e beijei-a. A escuridão e o som da chuva envolviam-nos.

- E a Reiko?

- Não te preocupes, dorme profundamente. E quando ela dorme, dorme mesmo. - Depois perguntou-me: - Virás mesmo visitar-me de novo?

- Claro que sim.

- Mesmo que eu não possa fazer nada por ti?

Anuí com a cabeça na escuridão. Sentia a forma cheia dos seus seios contra mim. Tracejei com a mão os contornos do seu corpo através da camisa de noite. Percorri-a uma e outra vez, os ombros, as costas, as ancas, tentando absorver a linha e a maciez do seu corpo. Depois desta delicada envolvência, a Naoko aflorou-me a testa com os lábios e saiu da cama. Vi o reflexo da sua camisa de noite azul-pálida cintilar como um peixe na escuridão.

- Adeus - proferiu num suave murmúrio. Mergulhei num sono delicado enquanto ouvia a chuva.

Chovia ainda na manhã seguinte - uma delicada e quase invisível chuva outonal, diferente do aguaceiro da noite anterior. Apercebia-me de que chovia somente por causa das ondulações nas poças de água e do som nas goteiras. Ao despertar, uma neblina branca e leitosa pairava no exterior da janela, mas, assim que o sol se levantou, a brisa dispersou-a e os bosques e colinas circundantes começaram a surgir.

À semelhança do que fizéramos no dia anterior, tomámos o pequeno-almoço e depois ocupámo-nos com o galinheiro. A Naoko e a Reiko envergavam capas de chuva de plástico amarelo com capuzes. Eu vesti uma camisola e um impermeável. O ar estava húmido e frio. As próprias aves evitavam a chuva e amontoavam-se no fundo do galinheiro.

- Aqui fica frio quando chove, não fica? - perguntei à Reiko.

- Agora, sempre que chover, ficará um pouco mais frio, até a neve começar a cair. As nuvens oriundas do Mar do Japão libertam toneladas de neve quando passam aqui.

- O que fazem às aves durante o Inverno?

- Abrigamo-las, obviamente. Que outra coisa poderíamos fazer: desenterrá-las todas congeladas da neve com a chegada da primavera? Descongelávamo-las, trazíamo-las de volta à vida e gritávamos: Muito bem, está na hora da ração!

Abanei a rede de metal e o papagaio agitou as asas e palrou «Desmiolado!», «Obrigado!», «Louco!».

- Ora bem, esse bicho não me importava eu de congelar -anunciou a Naoko com uma expressão melancólica. - Vou acabar por enlouquecer se tiver que ouvir isto todas as manhãs. Depois de limparem o galinheiro, regressámos a casa. Enquanto arrumava as minhas coisas na mochila, ambas vestiram as roupas de trabalho. Saímos juntos e despedimo-nos junto ao campo de ténis. Enveredaram pela direita e eu prossegui directamente em frente. Bradámos adeus uns aos outros e prometi-lhes que viria visitá-las de novo. A Naoko ofereceu-me um ténue sorriso e desapareceu ao contornar uma esquina. Enquanto me dirigia para o portão, passei por várias pessoas, todas elas envergando as mesmas capas de chuva amarelas que a Naoko e a Reiko usavam, e todas elas haviam baixado os capuzes. As cores cintilavam com uma excepcional claridade sob a chuva: o solo era de um negro carregado, a ramagem dos pinheiros de um verde brilhante, e as pessoas recobertas de amarelo assemelhavam-se a espíritos de outro mundo que só tinham permissão para vaguear pela terra nas manhãs chuvosas. As pessoas pareciam flutuar em silêncio sobre o solo enquanto transportavam utensílios agrícolas, cestos e sacos. O guarda lembrou-se do meu nome e assinalou-o na lista das visitas quando me viu. - Vejo aqui que você é de Tóquio -disse-me. - Só fui lá uma vez. Uma única vez. Servem lá uma deliciosa carne de porco.

- De verdade? - perguntei, não sabendo o que dizer.

- Não me desagradou o que comi em Tóquio, mas a carne de porco era deliciosa. Estou em crer que têm uma maneira especial de os criarem, hã?

Respondi-lhe que não sabia, que era a primeira vez que ouvia falar disso. - A propósito, quando foi a Tóquio?

- Hmm, vejamos - disse, empertigando a cabeça -, terá sido na altura em que Sua Majestade, o príncipe da Coroa, casou? O meu filho estava em Tóquio e dizia-me que eu deveria visitar a cidade pelo menos uma vez. Deve ter sido em 1959.

- Oh, nesse caso, a carne de porco deveria ser realmente deliciosa na Tóquio dessa época - afirmei.

- E hoje em dia? - inquiriu.

Disse-lhe que não tinha a certeza, mas que não ouvira qualquer comentário especial sobre esse assunto. As minhas palavras pareceram desiludi-lo. Evidenciava todos os sinais de querer continuar a conversar, mas disse-lhe que precisava de apanhar a camioneta e avancei em direcção à estrada. Farrapos de nevoeiro continuavam a flutuar na zona onde a vereda circundava o ribeiro, mas a brisa dispersou-os para os íngremes flancos de uma montanha próxima. Enquanto caminhava, parava ocasionalmente, virava-me para trás e soltava um profundo suspiro por nenhuma razão em especial. Sentia-me como se tivesse chegado a um planeta onde a gravidade era um pouco diferente. Sim, claro, disse a mim próprio, sentindo-me triste: encontrava-me agora no mundo exterior.

Às 16:30 regressei à residência académica, mudei rapidamente de roupa e dirigi-me para a loja de discos em Shinjuku para cumprir as minhas horas de trabalho.

Tomei conta da loja desde as 18:00 até às 22:30 e vendi alguns discos, mas limitava-me sobretudo a permanecer sentado e um pouco estonteado, a observar uma incrível variedade de pessoas a passarem vertiginosamente no exterior: famílias, casais, bêbados, mafiosos, raparigas de aspecto jovial e de saias curtas, hippies barbudos, empregadas de bar e alguns tipos indefiníveis. Sempre que punha a tocar um disco de hard rock, os hippies e os miúdos da rua agrupavam-se no exterior a dançar e a snifar diluente, ou sentavam-se no chão a passarem o tempo; quando pus a tocar um disco de Tony Benett, desapareceram. A loja do lado pertencia a um homem de meia-idade e de olhos sonolentos que vendia «brinquedos para adultos». Não conseguia imaginar como poderia alguém interessar-se pelo género de parafernália sexual que ele vendia, mas parecia ser um negócio bastante próspero. Vi um estudante embriagado a vomitar na viela em frente. No salão de jogos do outro lado da rua, o cozinheiro de um restaurante local ocupava a sua pausa com um jogo de bingo que envolvia apostas em dinheiro. Um sem-abrigo de pele trigueira acocorava-se imóvel por baixo das goteiras de uma loja que fechara já. Uma rapariga com os lábios pintados de rosa-pálido e que não teria mais de doze ou treze anos, entrou na loja e pediu-me para pôr a tocar o tema Jumpin Jack Flash dos Rolling Stones. Quando encontrei o disco e o pus a tocar, começou a estalar os dedos a acompanhar o ritmo e a abanar as ancas enquanto dançava dentro da loja Depois pediu-me um cigarro. Ofereci-lhe um dos cigarros do gerente da loja; fumou com óbvio prazer e, quando o disco acabou de tocar, saiu da loja sem sequer proferir um «obrigado». Sensivelmente de quinze em quinze minutos, ouvia a sirene de uma ambulância ou de um carro da polícia. Três executivos embriagados, envergando fato e gravata, passaram pela loja e riam estrondosamente sempre que bradavam «Belo rabo!» na direcção de uma bonita rapariga de cabelo comprido que telefonava de uma cabina.

Quanto mais observava, mais confuso me sentia. Mas que raios era aquilo tudo?, interroguei-me. Que significado teria aquilo tudo?

O gerente da loja regressou após o jantar e disse-me: - Ei, Watanabe, sabes uma coisa? Anteontem à noite fui para a cama com a miúda da boutique. - Há já algum tempo que andava de olho na rapariga que trabalhava numa boutique próxima e ocasionalmente oferecia-lhe um disco.

- Fico contente por ti - disse-lhe.

Começou a contar-me todos os pormenores da sua conquista. - Se pretendes realmente dormir com alguma miúda, eis o que deves fazer - começou por dizer, cheio de auto-comprazimento. - Primeiro, tens que lhe oferecer presentes. Depois tens que a embebedar. Embebedá-la por completo. Depois só tens que o fazer. É fácil. Percebes o que quero dizer?

Sentia a cabeça confusa como de costume quando apanhei o comboio de regresso à residência académica. Quando cheguei, fechei as cortinas, desliguei as luzes, estendi-me na cama e quase sentia que a Naoko estava prestes a deitar-se ao meu lado. De olhos fechados, sentia o suave volume dos seus seios contra o meu peito, ouvia-a a sussurrar-me e senti nas mãos os contornos do seu corpo. Ali, na escuridão, regressei ao pequeno mundo dela. Sentia o cheiro da erva do prado, ouvia a chuva à noite. Imaginei-a desnuda, tal como a vira sob o luar; imaginei-a a limpar a capoeira e a inspeccionar os legumes com o seu belo e delicado corpo envolto na capa de chuva amarela. Agarrei no pénis erecto e pensei na Naoko até ejacular. Senti a mente um pouco mais desanuviada, mas não conseguia adormecer. Sentia-me exausto e desesperado de cansaço, mas o sono recusava-se simplesmente a cooperar.

Saí da cama e fui à janela; os meus olhos desatentos vaguearam em direcção ao mastro. Desprovido da bandeira nacional, parecia um gigantesco osso branco erguendo-se na escuridão da noite. O que estaria a Naoko a fazer nesse momento?, perguntei-me. Dormia, evidentemente, dormia profundamente, envolta na escuridão daquele seu estranho e pequeno mundo. Dei por mim a desejar que os sonhos angustiados a deixassem em paz.

 

Na aula de Educação Física da manhã seguinte, uma quinta-feira, nadei várias vezes os cinquenta metros de extensão da piscina. O exercício vigoroso desanuviou-me um pouco mais a mente e abriu-me o apetite. Depois de um almoço substancial num restaurante para estudantes, famoso pelas doses bem servidas, encontrei a Midori Kobayashi quando me dirigia para a biblioteca do departamento de Literatura para efectuar uma pesquisa. Acompanhava-a uma rapariga baixa e de óculos; no entanto, quando a Midori me avistou, veio ao meu encontro sozinha.

- Aonde vais? - perguntou.

- À biblioteca de Literatura.

- E se esquecesses isso e viesses almoçar comigo? -Já almocei.

- E depois? Almoça de novo.

Fomos a um café próximo onde pediu um prato de caril e eu bebi um café. Envergava uma camisa branca, de mangas compridas, sob um casaco de lã amarela com o padrão de um peixe, além de um fino colar de ouro e um relógio de pulso da Disney. Parecia estar a apreciar o caril e bebeu três copos de água.

- Por onde tens andado? - perguntou-me. -Já perdi a conta às vezes que te telefonei.

- Querias falar comigo?

- Nada de especial. Lembrei-me de te ligar.

- Estou a ver.

- Estás a ver o quê?

- Nada. Significa apenas «Estou a ver». Tem havido incêndios ultimamente?

- Foi divertido, não foi? Não houve grandes estragos, mas todo aquele fumo tornava aquilo real. Fantástico.

- Bebeu um pouco mais de água, inspirou e examinou o meu rosto durante alguns momentos. - Ei, que se passa contigo? Tens um olhar alienado. Os teus olhos estão desatentos.

- Estou bem. Regressei há pouco de uma viagem e sinto-me cansado.

- Parece que viste um fantasma.

- Estou a ver.

- Ei, tens aulas hoje à tarde?

- Alemão e Educação Religiosa.

- Podes faltar?

- A Alemão não. Tenho hoje uma frequência.

- A que horas acaba?

- Às duas.

- Está bem. Queres vir comigo depois à cidade beber uns copos?

- Às duas da tarde?!

- Para variar, por que não? Pareces tão alienado. Vá lá, anda beber uns copos comigo para ver se animas um pouco. É exactamente o que me apetece fazer: beber uns copos contigo e animar-me um pouco. Que dizes?

- Está bem - acedi com um suspiro. - Encontro-me contigo às duas no átrio do departamento de Literatura.

Depois da frequência de Alemão, apanhámos o autocarro para Shinjuku e fomos a um bar numa cave chamado DUG, situado atrás da Livraria Kinokunyia. Começámos com duas vodcas tónicas.

- Venho aqui ocasionalmente - declarou ela. - Não nos fazem sentir embaraçados por estarmos a beber à tarde.

- Costumas beber à tarde?

- Por vezes - respondeu, agitando o gelo no copo. - Às vezes, quando a vida é demasiado dura, venho aqui tomar uma vodca tónica.

- A vida torna-se demasiado dura?

- Por vezes. Eu própria tenho os meus problemazinhos especiais.

- Por exemplo?

- Por exemplo, família, namorados, menstruação irregular. Coisas desse género.

- Então pede outra bebida.

- É o que vou fazer.

Fiz sinal ao empregado e pedi mais duas vodcas tónicas.

- Lembras-te como me beijaste quando foste a minha casa naquele domingo? - perguntou-me. - Tenho pensado nisso. Foi agradável. Realmente agradável.

- É simpático da tua parte.

- «É simpático da tua parte» - imitou-me. - Falas de um modo tão bizarro!

- Achas?

- De qualquer modo, estava a pensar nessa ocasião, em como teria sido maravilhoso se tivesse sido a primeira vez que um rapaz me beijava. Se pudesse inverter a ordem dos acontecimentos da minha vida, tornaria esse beijo no meu absoluto primeiro beijo. E depois viveria o resto da minha vida a pensar coisas como - ei, o que terá acontecido àquele rapaz chamado Watanabe, agora já com cinquenta e oito anos, a quem dei o meu primeiro beijo no terraço dos estendais da roupa? Não seria maravilhoso?

- Sim, realmente - respondi enquanto descascava um pistácio.

- Ei, que se passa contigo? Por que razão estás tão alienado? Ainda não me respondeste.

- Talvez ainda não me tenha adaptado completamente ao mundo - proferi após uns momentos de reflexão. - Não sei, mas tenho a sensação de que este não é o mundo real. As pessoas, o cenário: não me parecem reais.

A Midori apoiou o cotovelo no balcão e olhou para mim. - Havia algo do género numa canção do Jim Morrison. Tenho a certeza.

- People are strange when you're a stranger.

- Poupa-me - disse ela.

- Está bem.

- Devias ir para o Uruguai comigo - declarou, ainda apoiada ao balcão. - Namorada, família, universidade, larga isso tudo.

- Não é má ideia - retorqui, rindo.

- Não seria maravilhoso livrares-te de tudo e de todos e ires para um lugar qualquer onde não conheces absolutamente ninguém? Às vezes sinto vontade de fazer isso. Por vezes apetece-me mesmo fazer isso. Por exemplo, se me levasses para algures muito distante, dar-te-ia muitos filhos, todos robustos como pequenos touros.

Ri-me e emborquei a minha terceira vodca tónica.

- Pelos vistos, ainda não estás preparado para ter muitos filhos, todos robustos como pequenos touros - disse ela.

- Estou intrigado. Gostava de ver o aspecto que eles teriam.

- Está bem, já reparei que não sentes o desejo de ter filhos - proferiu, comendo um pistácio. - Aqui estou eu, a beber à tarde, a dizer tudo o que me vem à cabeça: «Quero largar tudo e fugir para algures». Qual é o interesse de ir para o Uruguai? Tudo o que há lá é excrementos de burro.

- Talvez tenhas razão.

- Excrementos de burro por toda a parte. Um excremento aqui, um excremento ali, o mundo inteiro reduz-se a excrementos de burro. Ei, não consigo descascar isto. Toma. -Entregou-me o pistácio e tentei até conseguir tirar a casca. -Mas, oh, que alívio senti no domingo passado! Estar no terraço dos estendais contigo, a ver o incêndio, a beber cerveja, a trautear canções. Há tanto tempo que não sentia um alívio tão grande. As pessoas estão sempre a tentarem impor-me as coisas. Assim que me vêem, começam logo a dizer-me como devo agir. Tu, pelo menos, não tentas impor-me nada.

- Não te conheço o suficiente para te impor o que quer que seja.

- Quer dizer, se me conhecesses melhor, impor-te-ias como todos os outros fazem?

- É bem possível. É assim que as pessoas vivem no mundo real: impõem coisas umas às outras.

- Tu não farias isso. Eu sei que não. Sou especialista no que respeita a impor coisas aos outros ou a imporem-nos algo a nós. Tu não és desse tipo. É por essa razão que consigo relaxar na tua companhia. Fazes ideia de quantas pessoas existem no mundo que gostam de impor coisas aos outros ou que lhes imponham algo a elas? Milhares! E fazem um grande alarido disso, por exemplo: «Eu forcei-te», «Tu forçaste-me!». É disso que essas pessoas gostam. Mas eu não. Só o faço porque sou obrigada.

- Que tipo de coisas impões aos outros ou te impõem a ti? Enfiou um cubo de gelo na boca e sugou-o por instantes.

- Queres conhecer-me melhor? - perguntou.

- Sim, acho que sim.

- Ei, acabo de te perguntar «Queres conhecer-me melhor?». Que raio de resposta é essa?

- Sim, Midori, gostava de te conhecer melhor.

- De verdade?

- Sim, de verdade.

- Mesmo que fosses obrigado a desviar o olhar daquilo que vias?

- És assim tão feia?

- Bem, de certo modo - respondeu, franzindo a testa. - Apetece-me mais uma vodca.

Chamei o empregado e pedi uma quarta rodada de vodcas. Enquanto não chegavam, a Midori apoiou o queixo na mão sobre o balcão. Mantive-me imóvel enquanto ouvia Thelonious Monk a tocar Honeysuckle Rose. Havia mais cinco ou seis clientes, mas éramos os únicos que bebiam álcool. O rico aroma do café conferia uma atmosfera íntima à semiobscuridade do bar.

- Estás livre este domingo? - perguntou-me.

- Creio que já te disse antes que estou sempre livre ao domingo até ir trabalhar às seis.

- Está bem. Queres sair comigo no próximo domingo?

- Pode ser.

- Encontro-me contigo à porta da tua residência no domingo de manhã. Mas não sei bem a que horas chegarei. Não há problema?

- Está bem. Não há problema.

- Bem, tenho de te perguntar isto: fazes ideia do que me apetecia fazer neste preciso momento?

- Não consigo imaginar.

- Bem, primeiro que tudo, apetecia-me deitar-me numa cama enorme e fofa. Apetecia-me conforto total e ficar bêbada, sem quaisquer sinais de excrementos de burro à minha volta, e gostava que te deitasses ao meu lado. E depois, despias-me peça a peça. Muuuito carinhosamente. Do modo como uma mãe despe uma criança. Muuuito suavemente.

- Hmm...

- E então começava a relaxar e a sentir-me mesmo bem, até que, de repente, me apercebia do que estava a acontecer e gritava-te: «Pára, Watanabe!». E depois dizia-te: «Gosto verdadeiramente de ti, Watanabe, mas namoro com outra pessoa. Não posso fazer isto. Sou muito correcta acerca destas coisas, acredites ou não. Portanto, pára, por favor». Mas tu não paravas.

- Mas eu pararia - disse-lhe.

- Eu sei que sim. Esquece, não passa de uma fantasia minha. E então mostravas-mo. O teu coiso. Todo teso. Claro, eu tapava os olhos de imediato, mas vislumbrava-o por uma fracção de segundo. E dizia então: «Pára! Não faças isso! Não quero essa coisa tão grande e tão dura!».

- Não é assim tão grande. É normal.

- Não me importa, não passa de uma fantasia. E tu ficavas com uma expressão verdadeiramente triste e eu sentia pena de ti e tentava reconfortar-te. Pronto, pronto, coitadinho.

- Estás a dizer-me que é isso o que te apetece fazer agora?

- Isso mesmo.

- Oh, caramba.

Saímos do bar depois de cinco rodadas de vodcas tónicas. Quando tentei pagar, a Midori deu-me uma pancadinha na mão e pagou com uma nota de dez mil ienes novinha em folha que tirou da bolsa.

- Fica por minha conta - explicou. - Acabo de receber o salário e fui eu que te convidei. Mas, claro, se fores um fascista inveterado e recusares que uma mulher te pague uma bebida...

- Não, não, não há problema.

- E também não permiti que o fizesses.

- Porque é enorme e duro - acrescentei.

- Certo - retorquiu. - Porque é enorme e duro.

A Midori estava um pouco embriagada, falhou um degrau e quase tombámos pelas escadas abaixo. A camada de nuvens que obscurecera o céu dissipara-se já e a suave claridade do sol do final da tarde incidia sobre as ruas da cidade. Deambulámos durante algum tempo. Ela disse que lhe apetecia trepar a uma árvore, mas, desafortunadamente, não havia árvores adequadas para tal na cidade e os Jardins Imperiais de Shinjuku estavam prestes a fechar.

- Que pena - disse ela. - Adoro trepar às árvores. Continuámos a caminhar e a ver montras e em breve o

cenário das ruas pareceu tornar-se mais real do que anteriormente.

- Estou feliz por te ter encontrado - afirmei. - Acho que já consegui adaptar-me um pouco mais ao mundo.

A Midori deteve-se de repente e observou-me. - É verdade - disse. - Os teus olhos estão bastante mais atentos. Estás a ver? Saíres comigo faz-te bem. - Concordo plenamente.

Às 17:30, informou-me que tinha de voltar para casa e preparar o jantar. Disse-lhe que ia apanhar o autocarro para a residência académica e que a acompanharia até à estação.

- Sabes o que me apetecia agora? - disse quando se despedia de mim.

- Não tenho a mínima ideia daquilo em que estás a pensar - retorqui.

- Gostava que tu e eu fôssemos capturados por piratas. Depois despiam-nos aos dois, juntavam-nos de rosto virado um para o outro, completamente nus, e atavam-nos com cordas.

- Por que razão fariam uma coisa dessas?

- Porque são piratas pervertidos - declarou.

- A pervertida és tu - afirmei.

- E depois prendiam-nos no porão e diziam.- «Daqui a uma hora vamos lançar-vos ao mar. Portanto, divirtam-se até lá».

-E...?

- E então, divertíamo-nos durante uma hora, a rolar pelo chão e a contorcermos o corpo.

- E isso é a coisa que mais gostavas de fazer agora? -É.

- Oh, caramba - disse, abanando a cabeça.

A Midori veio buscar-me às 9-30 no domingo de manhã. Acabara de despertar e não me lavara ainda. Alguém bateu à minha porta e gritou: - Ei, Watanabe, é uma mulher! - Desci ao átrio e encontrei a Midori sentada de pernas cruzadas; envergava uma saia de sarja incrivelmente curta e bocejava. Todos os estudantes que passavam para irem tomar o pequeno-almoço abrandavam a passada e miravam as suas pernas compridas e esguias. Ela tinha pernas bem torneadas, de facto.

- Vim demasiado cedo? - perguntou. - Aposto que acabas de acordar.

- Dás-me quinze minutos? Preciso de me lavar e barbear.

- Não me importo de esperar, mas estes tipos estão todos a olhar para as minhas pernas.

- Que esperavas tu, ao entrar num dormitório masculino com uma saia tão curta? Claro que vão olhar.

- Oh, não faz mal. Hoje vesti umas cuecas realmente bonitas, cor-de-rosa, cheias de rendas e laços.

- Isso piora ainda mais a situação - comentei com um suspiro. Regressei ao quarto, lavei-me, barbeei-me o mais rapidamente possível, vesti uma camisa azul com botões no colarinho e calças desportivas cinzentas, de algodão; desci ao encontro da Midori e apressei-a em direcção ao portão da saída. Sentia um suor frio no corpo.

- Diz-me, Watanabe - perguntou ela, olhando para os edifícios da residência académica -, todos estes rapazes se masturbam enquanto o sono não chega?

- Provavelmente.

- E pensam em raparigas quando fazem isso?

- Acho que sim. Duvido que alguém se entretenha a pensar na Bolsa de Valores, nas conjugações verbais ou no Canal de Suez enquanto se masturba. Não, tenho a certeza de que quase todos pensam em raparigas.

- No Canal de Suez?

- Por exemplo.

- Então, suponho que pensam em certas raparigas em particular, não é?

- Não achas que deverias perguntar isso ao teu namorado? Por que razão tenho que ser eu a explicar-te essas coisas num domingo de manhã?

- Era apenas curiosidade - retorquiu. - Além do mais, ele zangar-se-ia se lhe perguntasse estas coisas. Diria prontamente que as raparigas não deveriam fazer perguntas dessas.

- Eu diria que é um ponto de vista perfeitamente normal.

- Mas eu quero saber. Trata-se de pura curiosidade. Os rapazes pensam em certas raparigas em particular quando se masturbam?

Desisti da tentativa de evitar a pergunta. - Bem, eu pelo menos faço-o. Mas desconheço o que os outros fazem.

- Alguma vez pensaste em mim enquanto o fazias? Diz-me a verdade, não me zangarei contigo.

- Não, nunca pensei, para te dizer a verdade - respondi com sinceridade.

- Por que não? Não sou suficientemente atraente?

- Oh, és atraente, sim. És bonita e as roupas sexy realçam-te bastante.

- Então por que razão não pensas em mim?

- Bem, antes do mais, encaro-te como amiga e, por conseguinte, não é minha intenção envolver-te nas minhas fantasias sexuais. Em segundo lugar...

- Existe outra pessoa que supostamente te ocupa os pensamentos.

- É mais ou menos isso - redargui.

- Revelas bons modos neste tipo de questões - comentou.

- Aprecio isso em ti. Mesmo assim, não poderias dispensar-me uns breves instantes de pensamento? Gostaria de fazer parte de uma das tuas fantasias sexuais ou dos teus sonhos acordado, ou o que quer que lhes chames. E estou a pedir-te porque somos amigos. A quem mais poderia pedir uma coisa dessas? Não posso dirigir-me a qualquer um e dizer: «Quando te masturbares hoje à noite, pensas em mim durante um segundo, por favor?». Só te peço porque te considero meu amigo. E depois gostaria que me dissesses como foi. Tu sabes, o que fizeste e essas coisas.

Soltei um suspiro.

- Mas não podes penetrar. Porque somos apenas amigos. Certo? Desde que não penetres, podes fazer e pensar no que quiseres.

- Não sei, nunca o fiz com tantas restrições.

- Mas pensarás em mim?

- Está bem, pensarei em ti.

- Sabes, Watanabe, não quero que fiques com uma ideia errada... de que sou ninfomaníaca, frustrada, uma provocadora ou algo do género. Acontece, que estou interessada nesse assunto. Gostaria de saber mais sobre isso. Cresci rodeada unicamente por raparigas, numa escola para raparigas, como tu sabes. E gostava de saber o que os rapazes pensam e como funcionam os seus corpos. Não somente por via de suplementos em revistas femininas, mas através do verdadeiro estudo de casos.

- Estudo de casos? - perguntei, perplexo.

- Mas o meu namorado não gosta que eu queira saber ou experimentar coisas. Zanga-se, chama-me ninfomaníaca ou louca. Nem sequer me deixa fazer-lhe uma mamada. Pois bem, morro de desejo por experimentar isso.

- Hã-hã.

- Tu detestas que te façam mamadas?

- Não, não detesto.

- Dirias que gostas então?

- Sim, diria que sim. Mas não poderíamos falar disto da próxima vez? Está uma agradável manhã de domingo e não é minha intenção estragá-la a falar sobre masturbação e sexo oral. Falemos de outra coisa. O teu namorado estuda na nossa universidade?

- Não, estuda noutra, evidentemente. Conhecemo-nos na escola durante uma actividade de um dos clubes. Eu frequentava a escola para raparigas e ele a dos rapazes, e tu sabes que programavam actividades dessas, concertos mistos e coisas do género. Começámos a relacionar-nos mais seriamente depois dos exames. Ei, Watanabe.

- Sim?

- Só tens que o fazer uma vez. Pensa em mim, está bem?

- Está bem, vou tentar, da próxima vez - acedi.

Apanhámos o comboio para Ochanomizu. Quando fizemos o transbordo em Shinjuku, comprei uma sanduíche na estação para compensar o pequeno-almoço que não tomara. O café que bebi a acompanhar tinha um sabor a tinta. Os comboios do domingo de manhã estavam apinhados de casais e famílias em excursão. Um grupo de rapazes com tacos de beisebol e demais equipamento moviam-se ruidosamente dentro da carruagem. Várias das raparigas a bordo vestiam saias curtas, mas nenhuma tão curta quanto a da Midori, que ocasionalmente a puxava para baixo. Alguns homens olhavam para as suas coxas e esse facto incomodava-me, embora ela não parecesse importar-se.

- Sabes o que me apetecia fazer agora? - murmurou quando o comboio estava já em andamento.

- Não faço ideia - respondi. - Mas, por favor, não fales dessas coisas aqui. Alguém poderia ouvir.

- Que pena. O que eu ia dizer é um pouco selvagem -declarou, com óbvio desapontamento.

- De qualquer modo, por que razão vamos para Ochanomizu?

- Não faças perguntas, depois verás.

Com todas aquelas escolas em redor da Estação de Ochanomizu, ao domingo a área estava repleta de alunos a caminho das aulas ou a prepararem-se para os exames. A Midori abriu caminho por entre a multidão agarrada à alça do saco e dando-me a mão.

Perguntou-me repentinamente: - Ei, Watanabe, sabes explicar a diferença entre o presente e o pretérito do conjuntivo dos verbos ingleses?

- Acho que sei.

- Então deixa-me perguntar-te: que utilidade têm essas coisas para o nosso dia-a-dia?

- Absolutamente nenhuma - retorqui. - Pode não servir para nenhum propósito em concreto, mas conferem-te realmente uma espécie de treino que te ajuda a apreender as coisas de um modo mais sistemático.

Ponderou seriamente nestas palavras durante alguns momentos. - És espantoso - disse. - Nunca me ocorreu encarar as coisas dessa maneira. Sempre considerei que coisas como o modo conjuntivo, o cálculo diferencial e a tabela periódica dos elementos químicos fossem completamente inúteis. Um verdadeiro tédio. Por conseguinte, sempre negligenciei essas coisas. E agora pergunto-me se toda a minha vida não tem sido um erro.

- Tens negligenciado essas coisas?

- Sim. Para mim, é como se essas coisas não existissem. Não faço a mínima ideia do que «seno» e «co-seno» significam.

- Isso é inacreditável! Como conseguiste passar nos exames? Como conseguiste entrar na universidade?

- Não sejas pateta - redarguiu. - Não é preciso saber-se nada para passar nos exames de admissão! Basta apenas um pouco de intuição, e eu sou bastante intuitiva. «Escolha a resposta correcta das três hipóteses referidas». Sei imediatamente qual é a resposta correcta.

- A minha intuição não é tão boa como a tua e, por conseguinte, tenho que ser mais sistemático. À semelhança de uma pega que guarda estilhaços de vidro num tronco oco.

- E isso tem alguma utilidade?

- Não sei. Provavelmente facilita algumas coisas.

- Que tipo de coisas? Dá-me um exemplo.

- Por exemplo, o pensamento metafísico. Dominar várias línguas.

- Que utilidade tem isso?

- Depende da pessoa em causa. Para algumas pessoas tem utilidade, para outras não. Mas consiste sobretudo num treino. O facto de ter utilidade ou não, é uma outra questão. Tal como eu disse.

- Hmm - murmurou, aparentemente impressionada, dando-me a mão enquanto descíamos a colina. - Sabes, Watanabe, tens realmente jeito para explicar as coisas às pessoas.

- Não sei - respondi.

- É a verdade. Perguntei já a centenas de pessoas que utilidade havia em saber o modo conjuntivo em inglês e nenhuma delas me forneceu uma resposta razoável e simples como a tua. Nem os próprios professores de Inglês. Ou se mostravam desconcertados ou irritados, ou riam-se sem me fornecerem qualquer resposta. Nunca me deram uma resposta apropriada. Se na altura pudesse recorrer a alguém como tu quando fazia essas perguntas e obtivesse uma explicação adequada, talvez eu própria me tivesse interessado pelo modo conjuntivo. Raios!

- Hmm.

- Alguma vez leste Das Kapital?

- Sim. Não o livro todo, obviamente, mas algumas partes, tal como a maioria das pessoas.

- E conseguiste perceber?

- Compreendi algumas coisas, mas outras não. Há que adquirir a capacidade intelectual necessária para se ler um livro como Das Kapital. No entanto, creio que apreendi a ideia geral do Marxismo.

- Achas que um aluno do primeiro ano que nunca tenha lido livros desse género conseguiria compreender Das Kapital?

- Eu diria que é praticamente impossível.

- Sabes, quando entrei para a universidade, inscrevi-me numa associação de música popular. A minha intenção era cantar canções. Mas os outros membros eram um bando de charlatães. Até fico com a pele arrepiada só de pensar nessas pessoas. A primeira coisa que me disseram quando aderi à associação, foi que teria que ler Marx. «Lê da página tal até à página tal para a próxima reunião». E havia alguém a divagar sobre o facto de as canções populares terem que estar profundamente imbricadas com a sociedade e com o movimento radical. Raios, fui para casa e esforcei-me ao máximo para ler o livro, mas não compreendi absolutamente nada. Aquilo era pior do que o modo conjuntivo. Desisti após ler três páginas. Compareci à reunião seguinte como uma boa escuteira e disse que lera o livro, mas que não conseguira compreendê-lo. Começaram a tratar-me como uma idiota desde essa ocorrência. Afirmavam que eu estava desprovida de qualquer consciência crítica em relação à luta de classes, que eu era um aleijão social. Estou a falar a sério. E tudo porque disse que não conseguia compreender um trecho de um livro. Não achas que foram terríveis?

- Hã-hã.

- E as suas supostas discussões também eram terríveis. Todos usavam palavras rebuscadas e fingiam estar a par dos acontecimentos. Mas eu colocava-lhes questões sempre que não compreendia algo. «O que é isso da exploração imperialista de que estais a falar? Estará porventura relacionado com a Companhia da índia Oriental?», «Arrasar o complexo educacional-industrial implica que não devemos trabalhar para nenhuma empresa após a licenciatura?». Perguntas desse teor. Mas ninguém se dignava explicar-me o que quer que fosse. Pelo contrário, mostravam-se verdadeiramente furiosos. Dá para acreditar?

- Sim, acredito - retorqui.

- Um deles gritou-me: «Sua cabra estúpida, como consegues viver sem nada no cérebro?». Bem, foi a gota de água. Não iria tolerar mais aquilo. Está bem, eu sei que não sou muito inteligente. Provenho da classe trabalhadora. Mas é a classe trabalhadora que faz o mundo avançar, e são as classes trabalhadoras que acabam por ser exploradas. Que tipo de revolução se limita a vociferar palavras rebuscadas que as classes trabalhadoras não entendem? Que raio de revolução social merdosa é essa? Quer dizer, também eu gostaria de tornar o mundo num lugar melhor. Se alguém está a ser realmente explorado, há que pôr cobro a isso. É nisso que acredito e era por esse motivo que fazia perguntas. Tenho razão ou não?

- Tens razão.

- Foi então que me apercebi de que aqueles tipos eram uma fraude. Tudo o que lhes interessava era impressionar as raparigas novas, com as palavras rebuscadas de que tanto se orgulhavam enquanto lhes enfiavam as mãos pelas saias acima.

E quando concluem o curso, cortam o cabelo curto e vão a passo de marcha trabalhar para a Mitsubishi, para a IBM ou para o Banco Fuji. Desposam mulheres bonitas que nunca leram Marx e têm filhos aos quais dão nomes modernos e catitas que até nos provocam vómitos. Qual quê arrasar o complexo educacional-industrial?! Não me façam rir! E os novos membros eram igualmente péssimos. Também não compreendiam absolutamente nada, mas fingiam que sim e riam-se de mim. No fim da reunião, diziam: «Não sejas idiota! Que interessa se não compreendes? Limita-te a concordar com tudo o que eles dizem». Ei, Watanabe, há outras coisas que me enfureceram ainda mais do que isto. Queres ouvir?

- Sim, por que não?

- Bem, certa vez convocaram uma reunião política que iria prolongar-se pela noite dentro e pediram a cada uma das raparigas que preparasse vinte bolos de arroz para uma leve ceia à meia-noite. E eles que tanto condenavam a discriminação sexual! Dessa vez mantive-me calma, porém, e compareci com os meus vinte bolos de arroz como uma menina bem-comportada, bolos com recheio de ameixas salgadas, enroladas em algas. E o que achas que recebi em troca dos meus esforços? Queixaram-se de que os meus bolos de arroz continham somente recheio de ameixas e que não trouxera mais nada para acompanhamento! As outras raparigas haviam recheado os seus bolos com ovas de bacalhau e salmão e tinham incluído espessas e deliciosas tiras de ovo frito. Senti-me tão furiosa que não consegui falar! Quem raios pensavam aqueles apregoadores de revoluções que eram para reclamarem por causa de bolos de arroz? Deveriam ter-se mostrado agradecidos pelos bolos. Só de pensar que há crianças a morrer à fome na índia!

Ri-me. - Que aconteceu depois?

- Desisti em Junho, estava tão furiosa - afirmou a Midori. - A maior parte daqueles estudantes eram uma fraude absoluta. Têm um medo de morte que alguém descubra que são uns ignorantes. Todos lêem os mesmos livros, todos vociferam os mesmos slogans, adoram ouvir John Coltrane e ver filmes de Pasolini. Chamas a isso uma «revolução»?

- Ei, não me perguntes isso a mim, nunca testemunhei nenhuma revolução.

- Bem, se aquilo é uma revolução, podem enfiá-la pelo traseiro acima. Eram bem capazes de me fuzilar por ter preparado os bolos de arroz com recheio de ameixa. E provavelmente também te fuzilariam a ti por compreenderes o modo conjuntivo.

- É bem provável.

- Acredita em mim, eu sei do que estou a falar. Pertenço à classe trabalhadora. Quer haja revolução ou não, a classe trabalhadora continuará a suar as estopinhas nos mesmos velhos buracos imundos. E, afinal, o que é uma revolução? Raios, não se limita obviamente à substituição de um nome na municipalidade. Mas aqueles tipos não queriam saber disso, aqueles tipos mais as suas palavras rebuscadas. Diz-me uma coisa, Watanabe, alguma vez viste um inspector das finanças?

- Nunca vi.

- Bem, eu já. Imensas vezes. Abrem caminho pelo meio de toda a gente, como se fossem figuras importantes. «Para que serve este livro de contabilidade», «Ei, os seus registos são uma lástima», «Chama a isto um registo de despesas?», «Quero ver todas as suas facturas, imediatamente. Entretanto, nós amontoamo-nos num canto e à hora do jantar somos obrigados a oferecer-lhes um requintado prato de sushi, encomenda especial. Mas devo dizer-te que o meu pai nunca falsificou a declaração de impostos. Era verdadeiramente digno, à moda antiga. Mas como convencer o inspector das finanças desse facto? Tudo o que ele sabe fazer é indagar, indagar, indagar. «Aqui as receitas são um pouco reduzidas, não acha?». Bem, claro que as receitas são baixas quando não há lucros! Apetecia-me gritar: «Vá inspeccionar as pessoas que têm dinheiro!». Achas que a atitude do inspector se alteraria se houvesse uma revolução?

- Altamente improvável, altamente improvável.

- Percebes aonde pretendo chegar? Nunca acreditarei em nenhuma maldita revolução. Acreditarei somente no amor.

- E se falássemos de outra coisa? - retorqui.

- Está bem - repetiu ela.

- Ei, aonde vamos? - perguntei.

- Ao hospital. O meu pai está lá. É a minha vez de lhe fazer companhia durante o dia.

- O teu pai?! Pensava que ele estava no Uruguai!

- Era uma mentira - proferiu ela num tom pragmático. - Ele falava sempre com entusiasmo sobre a possibilidade de ir para o Uruguai, mas nunca conseguiu fazê-lo. Quase nem consegue sair de Tóquio.

- Ele está muito mal? - perguntei.

- É apenas uma questão de tempo. Continuámos a caminhar em silêncio.

- Eu sei do que falo. A minha mãe padecia da mesma doença. Um tumor cerebral. Dá para acreditar? Ela morreu de um tumor cerebral há menos de dois anos e agora ele padece do mesmo.

Os ruidosos corredores do Hospital Universitário estavam apinhados de visitas e doentes com sintomas menos graves e por todo o lado pairava aquele cheiro especial de hospital: uma nuvem de desinfectante, fragrâncias dos ramos de flores das visitas, o cheiro da urina e da roupa de cama; as enfermeiras apressavam-se num vaivém, batendo secamente com os tacões.

O pai da Midori encontrava-se num quarto semiprivado, na cama mais próxima da porta. Estava deitado e parecia uma minúscula criatura com um ferimento fatal. Jazia de lado, imóvel, com o braço esquerdo pendendo inerte com um tubo intravenoso. Era pequeno e esquelético e dava a impressão de estar a tornar-se cada vez mais pequeno e esquelético. Tinha a cabeça envolta numa ligadura branca e os braços pálidos e pastosos apresentavam as marcas das injecções e da administração do soro por via intravenosa. Os olhos semicerrados fixavam-se nalgum ponto do espaço e as órbitas raiadas de sangue tremularam na nossa direcção quando entrámos no quarto. Manteve os olhos focados em nós durante cerca de dez segundos e depois fixou-os de novo no espaço.

Aqueles olhos revelavam que iria morrer em breve. Não havia sinal de vida no seu corpo, apenas o mais ínfimo indício do que fora outrora uma vida. O seu corpo assemelhava-se a uma velha casa delapidada, cujos adornos e apliques haviam sido removidos, que agora aguardava a demolição final. Tufos de pêlos desabrochavam como ervas daninhas em redor dos lábios secos. Pensei: a barba continua a crescer, mesmo depois de um homem perder quase toda a sua força vital.

A Midori cumprimentou um homem obeso na cama junto da janela. Este retribuiu-lhe com um aceno de cabeça e sorriu, aparentemente incapaz de falar. Tossiu um par de vezes e, após beberricar água, virou-se de lado para poder olhar pela janela. No exterior avistava-se apenas uma torre de alta tensão e cabos de electricidade, nada mais, nem sequer uma única nuvem no céu.

- Como te sentes, papá? - perguntou a Midori, falando junto ao ouvido dele como se estivesse a testar um microfone. - Como te sentes hoje?

O pai moveu os lábios. - Mal - respondeu, não tanto proferindo as palavras mas formulando-as por via do ar seco no fundo da garganta. - Cabeça - disse ele.

- Dói-te a cabeça? - perguntou a Midori.

- Sim - disse, aparentemente incapaz de pronunciar mais de uma sílaba ou duas em simultâneo.

- Bem, não é de surpreender, operaram-te recentemente à cabeça. Claro que dói. Lamento, mas tenta ser corajoso. Este é um amigo meu, o Watanabe.

- Prazer em o conhecer - disse eu. O pai da Midori entreabriu os lábios e fechou-os de novo.

Sentei-me numa cadeira de plástico aos pés da cama que a Midori me indicou. Deu de beber água ao pai e perguntou-lhe se lhe apetecia fruta ou compota. - Não - respondeu ele. E quando ela insistiu para que comesse algo, respondeu: -Já comi.

Na mesinha de cabeceira havia uma garrafa de água, um copo, um prato e um pequeno despertador. A Midori retirou um enorme saco de papel de debaixo da mesinha e pegou num pijama e em roupa interior lavada, bem como outras coisas; dobrou-as com cuidado e guardou-as no armário junto da porta. No fundo do saco havia dois ananases, compota e três pepinos para o pai.

- Pepinos?! Como veio isto aqui parar? - surpreendeu-se a Midori. - Não faço ideia em que estaria a pensar a minha irmã. Disse-lhe ao telefone exactamente o que queria que comprasse e tenho a certeza de que nunca mencionei pepinos! Deveria ter comprado quivís.

- Talvez tenha percebido mal - comentei.

- Sim, talvez, mas se ela tivesse pensado um pouco, teria compreendido que os pepinos não eram uma escolha acertada. Quer dizer, que vai um doente fazer com os pepinos? Soerguer-se na cama a mastigar os pepinos crus? Ei, papá, queres um pepino?

- Não - respondeu o pai.

A Midori sentou-se à cabeceira da cama enquanto contava ao pai pequenos acontecimentos do dia-a-dia: a televisão ficara com a imagem distorcida e tivera que a levar para reparar; a tia de Takaido viria visitá-lo dentro de dias; o senhor Miyawaki, o farmacêutico, caíra da bicicleta, e coisas do género. O pai respondia com breves grunhidos.

- De certeza que não te apetece comer nada?

- Não - retorquiu o pai.

- E tu, Watanabe? Apetece-te ananás? -Não.

Minutos depois, a Midori levou-me para a sala de convívio e fumou um cigarro sentada no sofá. Três pacientes de pijama fumavam também enquanto viam na televisão um programa de debate político.

- Ei - sussurrou ela com um piscar de olho. - Aquele velho de muletas tem estado a olhar para as minhas pernas desde que entrei aqui. Aquele de óculos e de pijama azul.

- Que esperavas tu ao usar uma saia tão curta?

- Não me importo. Aposto que se sentem completamente entediados. Talvez isto lhes faça bem. Talvez a excitação os ajude a melhorar mais rapidamente.

- Desde que não surta o efeito contrário.

Olhou fixamente para o fumo que se evolava do cigarro.

- Sabes, o meu pai não é má pessoa. Às vezes zango-me com ele porque diz coisas terríveis, mas, no fundo, é honesto e amava realmente a minha mãe. À sua própria maneira, viveu a vida com toda a intensidade de que era capaz. Talvez seja um pouco fraco, não tem de facto cabeça para o negócio e as pessoas não simpatizam muito com ele, mas, raios, ele é bem melhor do que os intrujões e os mentirosos que tentam sempre atenuar as coisas porque são tão manhosos. Tenho o mesmo defeito do meu pai em nunca ceder em relação às minhas convicções e discutimos frequentemente, mas ele não é de facto má pessoa.

Tomou-me a mão como se estivesse a pegar em algo que alguém deixara cair ao chão e colocou-a sobre o regaço. A minha mão tocava simultaneamente na saia e na coxa. Olhou-me nos olhos durante alguns segundos.

- Lamento ter-te trazido para este lugar - disse -, mas não te importas de continuar a fazer-me companhia?

- Faço-te companhia durante todo o dia se assim o desejares

- redargui. - Até às cinco horas. Gosto de passar o tempo contigo e não tenho nada para fazer.

- Como costumas passar os domingos?

- A lavar a roupa. E a passar a ferro.

- Presumo que não queiras conversar acerca dela... da tua namorada.

- Não, acho melhor não. É complicado e acho que não conseguiria explicar bem.

- Está bem. Não precisas de explicar nada. Mas importavas-te se te dissesse o que imagino que está a acontecer?

- Não me importo, podes dizer. Tudo o que possas imaginar só poderá ser interessante.

- Suponho que ela é uma mulher casada.

- De verdade?

- Sim, tem trinta e dois ou trinta e três anos, é rica, bela, usa casacos de pele, sapatos Charles Jourdan, roupa interior de seda, é ávida de sexo e gosta de fazer coisas verdadeiramente repugnantes. Encontram-se todas as tardes e devoram-se um ao outro. Mas o marido fica em casa aos domingos e ela não pode estar contigo. Estou certa?

- Muito, muito interessante.

- Pede-te para a amarrares, para lhe vendares os olhos e que lhe lambas cada centímetro do corpo. Depois obriga-te a enfiares coisas esquisitas dentro dela, coloca-se em incríveis posições como uma contorcionista e tu tiras-lhe fotografias com uma Polaroid.

- Parece divertido.

- Ela morre de desejos por fazer isso e recorre a tudo ao seu alcance para o conseguir. E pensa nisso todos os dias. Dispõe sempre de tempo livre e está sempre a planear: Hmm, da próxima vez em que me encontrar com o Watanabe, faremos isto e aquilo. Deitas-te na cama, ela enlouquece, tenta todas aquelas posições e atinge três vezes o orgasmo em cada uma delas. E diz-te: «Não achas o meu corpo maravilhoso? As raparigas jovens já não te satisfazem. As raparigas jovens não te fazem estas coisas, pois não? Ou isto? É bom, não é? Mas não te venhas já!».

- Andas a ver demasiados filmes pornográficos - comentei com uma gargalhada.

- Achas? De facto, começava a preocupar-me. Mas adoro filmes pornográficos. Leva-me a ver um da próxima vez, está bem?

- Está bem. Da próxima vez que tiveres disponibilidade.

- A sério? Mal consigo esperar. Gostava de ver um filme verdadeiramente sadomasoquista, com chicotes, do género em que obrigam a rapariga a urinar diante de toda a gente. São esses os meus preferidos.

- Está combinado.

- Sabes do que gosto mais nos cinemas que exibem filmes pornográficos?

- Nem me atrevo a adivinhar.

- Sempre que começa uma cena de sexo, ouve-se uma espécie de Gulp! quando toda a gente engole em seco ao mesmo tempo. Adoro esse Gulp. É realmente delicioso!

Voltámos para o quarto e a Midori tentou entabular de novo conversa com o pai, que se limitava a emitir um grunhido em resposta ou se mantinha em silêncio. Cerca das onze horas, a esposa do outro paciente veio mudar-lhe o pijama, descascar-lhe fruta e prestar-lhe outras amabilidades. Tinha um rosto arredondado, parecia uma pessoa simpática e começou a conversar com a Midori. Apareceu uma enfermeira com uma garrafa de soro e conversou um pouco com a Midori e com a outra mulher. Observei distraidamente o quarto e os cabos de electricidade no exterior. Pardais empoleiravam-se ocasionalmente nos cabos. A Midori continuava a falar com ambas as mulheres e dirigia algumas palavras ao pai enquanto lhe limpava o suor da testa e o ajudava a expectorar para um lenço. De vez em quando endereçava-me um comentário e verificava o tubo do soro.

O médico efectuava a ronda às 11:30 e eu e a Midori saímos do quarto para aguardarmos no corredor. Quando o médico saiu do quarto, a Midori perguntou-lhe sobre o estado do pai.

- Bem, está a recuperar da operação e está sob o efeito de sedativos. Está verdadeiramente exausto - informou o médico.

- Necessito de mais dois ou três dias para poder avaliar os resultados da operação. Se a intervenção cirúrgica foi bem sucedida, acabará por recuperar; mas, se não correu bem, teremos que proceder a algumas decisões.

- Não vão abrir-lhe novamente a cabeça, pois não?

- Só o saberei com certeza dentro de dias - afirmou o médico.

- Bem, que saia curtinha trazes hoje!

- Fica-me bem, hã?

- E como fazes nas escadas? - perguntou o médico.

- Nada de especial. Limito-me a deixar a saia estar como está

- respondeu a Midori. A enfermeira soltou uma risadinha atrás do médico.

- Inacreditável. Deverias visitar-nos um dia destes para te abrirmos a cabeça e verificar o que se passa aí dentro. Faz-me um favor e usa os elevadores enquanto permaneceres no hospital. Não posso dar-me ao luxo de acolher mais pacientes. A presente situação já me ocupa demasiado.

A ronda do médico terminou próximo da hora do almoço. Uma enfermeira circulava de quarto em quarto, empurrando um carrinho com refeições. O almoço do pai da Midori consistia em sopa, fruta, peixe cozido, com as espinhas removidas, e legumes desfeitos numa espécie de papa. A Midori rodou a manivela para elevar a cama. Começou a dar-lhe sopa com uma colher, mas, após cinco ou seis colheradas, o pai afastou o rosto e disse:

- Mais não.

- Tens que comer pelo menos isto - disse a Midori.

- Depois - respondeu ele.

- Não pode ser assim. Se não te alimentares adequadamente, nunca mais recuperarás as forças - admoestou-o. - Ainda não tens vontade de urinar?

- Não - retorquiu ele.

- Ei, Watanabe, vamos à cafetaria.

Anuí, embora não sentisse grande apetite. A cafetaria estava apinhada de médicos, enfermeiras e visitantes. Compridas fileiras de cadeiras e mesas ocupavam a enorme caverna desprovida de janelas onde cada boca parecia estar a comer ou a conversar, indubitavelmente acerca de doenças, com as vozes a ecoarem e reverberarem como num túnel.

O sistema de amplificação irrompia ocasionalmente através da reverberação com chamadas por algum médico ou enfermeira. Ocupei uma mesa enquanto a Midori foi buscar as duas refeições e as trouxe num tabuleiro de alumínio. Croquetes com molho cremoso, salada de batata, couve picada, legumes cozidos, arroz e sopa de soja: tudo alinhado no tabuleiro nos mesmos pratos de plástico branco que usavam para os doentes. Ingeri apenas metade da refeição. A Midori parecia estar a apreciar a comida até à última garfada.

- Não tens fome? - perguntou-me enquanto beberricava chá quente.

- Nem por isso.

- É o ambiente do hospital - disse ela, observando a cafetaria. - Acontece sempre quando as pessoas não estão acostumadas a este lugar. Os cheiros, os sons, o ar estagnado, os rostos dos doentes, o stresse, a irritação, o desalento, a dor, a fadiga: é essa a razão. Entranha-se-nos no estômago e mata-nos o apetite. No entanto, quando te habituas, deixa de ser um problema. Além do mais, não se consegue cuidar adequadamente de uma pessoa doente se nós próprios não nos alimentarmos bem. É a verdade. Sei do que falo, porque já cuidei do meu avô, da minha avó, da minha mãe e agora do meu pai. Nunca sabemos quando teremos que prescindir de uma refeição e, por conseguinte, é importante alimentarmo-nos sempre que possível.

- Percebo o teu ponto de vista - retorqui.

- Quando a minha família vem aqui de visita, acompanham-me às refeições e deixam sempre metade da comida no prato, tal como tu. E dizem sempre: «Oh, Midori, que maravilha teres um apetite tão salutar. Estamos demasiado perturbados para conseguir comer». Mas a verdade é que sou a única pessoa aqui que cuida realmente de um paciente! O resto da família limita-se a visitas ocasionais e a mostrar um pouco de compaixão. Sou eu a única pessoa que lhe limpa a merda e a expectoração e lhe enxuga a testa. Se bastasse somente a compaixão para limpar a merda, eu mesma mostraria cinquenta vezes mais compaixão do que qualquer outra pessoa! Em vez disso, observam-me enquanto ingiro a comida toda, olham-me perplexos e dizem: «Oh, Midori, tens um apetite tão salutar».

Quem pensam eles que eu sou, um burro a puxar uma carroça? Já têm idade suficiente para saberem como o mundo realmente funciona. Mas por que razão se mostram tão estúpidos? É fácil falar da boca para fora, e o que importa é saber se consegues ou não limpar a merda. Também eu posso sentir-me magoada, sabes. Posso ficar tão exausta como qualquer outra pessoa. Também posso sentir-me desalentada ao ponto de sentir vontade de chorar. Experimenta passar pela situação de ver um bando de médicos a abrirem a cabeça de alguém quando não há esperança de salvação, a mexerem constantemente dentro da cabeça do paciente, e de cada vez que o fazem a pessoa piora e enlouquece um pouco mais. Diz-me se gostavas! E, como se já não bastasse, as tuas poupanças começam a desaparecer. Não sei se vou conseguir manter-me na universidade durante mais três anos e meio e, dada a situação, a minha irmã não pode, de modo algum, dar-se ao luxo de uma cerimónia de casamento.

- Quantas vezes vens cá por semana? - perguntei.

- Geralmente quatro. O hospital clama que oferece cuidados médicos totais e que as enfermeiras são excelentes, mas estão sempre demasiado atarefadas. É necessária a presença de um membro da família para assegurar certos cuidados. A minha irmã encarrega-se da loja e eu tenho os meus estudos. Mesmo assim, ela consegue vir cá três vezes por semana e eu quatro vezes. Vimos cá sempre que podemos. Acredita, é um horário completamente preenchido!

- Então, como podes passar tempo comigo se estás tão ocupada?

- Gosto de estar contigo - respondeu enquanto brincava com uma chávena de plástico.

- Sai daqui durante un par de horas e dá um passeio. Eu tomo conta do teu pai entretanto.

- Porquê?

- Precisas de te afastar disto e descontrair, sem falar com ninguém, somente para desanuviares a mente.

Ponderou durante alguns segundos e anuiu com a cabeça. - Hmm, talvez tenhas razão. Mas sabes que cuidados prestar? Sabes cuidar dele?

- Tenho estado a observar. Já percebi o que é preciso fazer. Verificar o tubo do soro, dar-lhe água, limpar-lhe o suor da testa e ajudá-lo a expectorar. Debaixo da cama há uma arrastadeira e se sentir fome dou-lhe o resto do almoço. Se houver algo que não consiga fazer, chamo a enfermeira.

- Acho que será o suficiente - respondeu com um sorriso. - Há mais uma coisa, porém. Ele tem-se mostrado um pouco desorientado e de vez em quando diz coisas estranhas... coisas que ninguém consegue compreender. Não te preocupes se ele começar a fazer isso.

- Tudo correrá bem - tranquilizei-a.

Regressámos ao quarto. A Midori disse ao pai que precisava de se ausentar e que eu permaneceria ali a tomar conta dele. O pai não tinha aparentemente qualquer objecção a fazer, talvez aquelas palavras não significassem nada para ele enquanto ali jazia a olhar fixamente para o tecto. Se não pestanejasse ocasionalmente, pareceria um morto. Tinha os olhos raiados de sangue como se tivesse bebido e as narinas agitavam-se sempre que inspirava profundamente. Para além desses sinais não movia um único músculo e não tentou sequer responder à filha. Era-me impossível sondar os pensamentos ou os sen timentos nas indistintas profundezas da sua consciência.

Depois de a Midori sair, pensei falar com o pai dela, mas não fazia ideia do que dizer-lhe ou como dirigir-me a ele, por isso mantive-me calado. Pouco depois, fechou os olhos e adormeceu. Mantive-me sentado no banco à cabeceira da cama enquanto observava o seu nariz a estremecer ocasionalmente, sempre com a esperança de que ele não falecesse enquanto eu ali permanecesse. Que estranho seria se o homem exalasse o último suspiro comigo ao seu lado, pensei. Afinal de contas, conhecera-o nesse mesmo dia e o único laço que nos unia era a Midori, uma rapariga que eu conhecia somente das aulas de Artes Dramáticas.

Todavia, ele não estava moribundo e dormia pacificamente. Aproximei o ouvido do seu rosto e ouvi a sua ténue respiração. Relaxei e comecei a conversar com a esposa do outro paciente, que referia constantemente a Midori, na assunção de que eu era o namorado dela.

- É uma rapariga verdadeiramente encantadora - disse ela. - Cuida esforçadamente do pai, é bondosa, gentil, sensível e determinada e, como se não bastasse, também é bonita. Tem que a tratar bem. Nunca a abandone. Nunca encontrará mais ninguém como ela.

- Tratá-la-ei bem - retorqui sem me alongar mais.

- Tenho um filho e uma filha que ainda vivem comigo. Ele tem dezassete, ela vinte e um, e nenhum dos dois alguma vez pensaria em vir ao hospital. Assim que as aulas terminam, vão praticar surf, namorar ou o que quer que seja. São terríveis. Estão sempre a pedir-me dinheiro e depois desaparecem.

Às 13:30, a mulher saiu do hospital para ir fazer compras. Ambos os doentes dormiam profundamente. A suave claridade da tarde inundava o quarto e sentia que a qualquer momento poderia dormitar sentado no banco. Um vaso de crisântemos amarelos e brancos, colocado sobre a mesinha ao lado da janela, relembrava às pessoas que era Outono. Pairava no ar o aroma adocicado do peixe cozido que sobrara do almoço. As enfermeiras continuavam a percorrer o corredor de um lado para o outro e conversavam com vozes claras e agudas. Espreitavam ocasionalmente para dentro do quarto e ofereciam-me um sorriso ao verificarem que ambos os pacientes dormiam. Desejei ter algo para ler, mas não vi livros, revistas ou jornais no quarto, apenas um calendário na parede.

Pensei na Naoko. Pensei nela nua, somente com o gancho no cabelo. Pensei na curva da sua cintura e na sombra escura da púbis. Por que razão se desnudara assim para mim? Estaria sonâmbula? Ou não passaria de uma fantasia minha? À medida que o tempo passava e esse pequeno mundo se dissipava na distância, começara a sentir uma incerteza crescente sobre os acontecimentos daquela noite. Quando dizia a mim próprio que eram reais, acreditava niçso; e quando me dizia que não passavam de uma fantasia, pareciam-me uma fantasia. O corpo da Naoko e o luar eram demasiado nítidos e pormenorizados para terem sido uma fantasia e demasiado perfeitos e maravilhosos para terem sido reais.

O pai da Midori despertou repentinamente e começou a tossir, pondo assim fim aos meus devaneios. Ajudei-o a expectorar para um lenço e limpei-lhe o suor da testa com uma toalha.

- Quer água? - perguntei-lhe; acenou tenuemente com a cabeça. Segurei na pequena garrafa de água para ele poder beber aos poucos, com os lábios a tremer e a garganta a agitar-se. Bebeu toda a água tépida da garrafa.

- Quer mais? - Parecia estar a tentar proferir algo e aproximei-me mais.

- Já chega - disse com voz sumida e seca, uma voz ainda mais sumida e seca do que anteriormente.

- Apetece-lhe comer algo? Deve estar esfomeado. - Respondeu com um ligeiro aceno de cabeça. Tal como a Midori fizera, elevei a cama e comecei a dar-lhe de comer, alternando entre a papa de vegetais e o peixe cozido. Demorou um tempo incrível a engolir metade da comida, até acabar por abanar tenuemente a cabeça para indicar que já estava saciado. Foi um movimento quase imperceptível, pois, aparentemente, causava-lhe dor efectuar gestos mais elaborados.

- E fruta, apetece-lhe? - perguntei-lhe.

- Não - respondeu. Limpei-lhe os cantos da boca com uma toalha e baixei a cama antes de levar o tabuleiro para o corredor.

- Estava boa? - inquiri.

- Horrível - retorquiu-me.

- Sim - concordei com um sorriso. - Parecia bastante má. - O pai da Midori parecia incapaz de se decidir a abrir mais os olhos ou a fechá-los enquanto jazia em silêncio e me olhava fixamente. Saberia ele quem eu era? Parecia mais relaxado na minha companhia do que quando a Midori estava presente. Provavelmente confundira-me com outra pessoa: pelo menos era uma ideia que me agradava mais.

- Está um dia bonito - comentei, sentado de pernas cruzadas no banco. - É Outono, domingo, um tempo maravilhoso e há gente por toda a parte. Relaxar dentro de casa é o melhor que se pode fazer num dia tão agradável como hoje. Torna-se cansativo caminhar por entre a multidão. E o ar está poluído. Aos domingos ocupo-me sobretudo a lavar a roupa. Lavo-a de manhã, penduro-a no telhado do dormitório, recolho-a antes do anoitecer e depois passo-a a ferro. Não me importo de passar a ferro. Há uma satisfação especial em engomar as peças e torná-las macias. E desenvencilho-me bastante bem. Evidentemente, de início era péssimo, deixava vincos em tudo. Contudo, após um mês de prática, já sabia fazê-lo. Por conseguinte, o domingo é o dia em que me ocupo a lavar a roupa e a passá-la a ferro.

Hoje não pude fazê-lo, obviamente. Que pena, desperdicei um excelente dia para lavar a roupa. Mas não faz mal. Amanhã levanto-me cedo e trato disso. Não se preocupe. Aos domingos não tenho mais nada para fazer. Amanhã de manhã, depois de lavar a roupa e a pendurar a secar, tenho uma aula às dez horas, a aula de Artes Dramáticas, que a Midori também frequenta. Estou a fazer um trabalho sobre Eurípedes. Já ouviu falar de Eurípedes? Era um grego da Antiguidade, um dos «Três Grandes» da tragédia grega, ao lado de Esquilo e de Sófocles. Morreu, alegadamente, quando um cão o mordeu na Macedónía, mas ninguém acredita nessa versão. Esse era o Eurípedes. Aprecio mais o Sófocles, mas creio que se trata de uma questão de gosto. Não sei, de facto, qual deles é melhor. O que distingue as suas peças é o modo como as peripécias se complicam ao ponto de os personagens ficarem encurralados. Percebe o que quero dizer? Aparecem imensos personagens diferentes, todos possuem as suas próprias razões e desculpas inseridos em situações específicas e perseguem a sua própria ideia de justiça ou felicidade. Quer dizer, é basicamente impossível que prevaleça a justiça de cada um ou que triunfe a felicidade de cada um, e o caos começa então a imperar. E que acha que acontece a seguir? É simples.- surge um deus no final e começa a direccionar o trânsito. «Tu vais para ali e tu para aqui, tu juntas-te a ela e tu manténs-te quieto no teu lugar por enquanto». Tal e qual. Ele é uma espécie de solucionador e no final tudo se resolve na perfeição. Chamam a isto deus ex machina. Há quase sempre um deus ex machina em Eurípedes e é nesse aspecto que a opinião dos críticos se divide. Mas pense só: e se houvesse um deus ex machina na vida real? Tudo seria bem mais fácil! Se nos sentíssemos perdidos ou encurralados, um deus descenderia do seu trono e resolveria todos os nossos problemas. Haverá coisa mais fácil do que isso? De qualquer modo, as Artes Dramáticas resumem-se a isto. É mais ou menos isto o que estudamos na universidade.

O pai da Midori mantinha-se calado, mas os seus olhos vazios continuavam fixos em mim enquanto falei. O seu olhar não me revelava, evidentemente, se compreendia as minhas palavras.

- Acho melhor calar-me - proferi.

Sentia-me esfomeado depois de toda aquela conversa. Quase não tomara nada ao pequeno-almoço e deixara metade da comida no prato ao almoço. Agora lamentava não ter comido mais ao almoço, mas lamentar-me não iria adiantar nada. Procurei no armário algo para comer, mas encontrei apenas uma embalagem de algas secas, rebuçados Vicks para a tosse e molho de soja. O saco de papel continuava ali com os pepinos e os ananases.

- Vou comer alguns dos pepinos, se não se importar - disse ao pai da Midori, que não proferiu qualquer resposta. Lavei três pepinos no lavatório e deitei um pouco de molho de soja num prato. Envolvi um dos pepinos em algas, embebi-o no molho e engoli-o.

- Mmm, delicioso! - disse ao pai da Midori. - Fresco, simples, com o verdadeiro aroma da vida. Uns pepinos realmente deliciosos. Um alimento bem mais salutar do que os quivis.

Após devorar o primeiro pepino, ataquei o seguinte. O quarto ecoava com o ruído da minha mastigação. Só consegui fazer uma pausa depois de comer o segundo pepino. Fervi água no bico de gás existente no corredor e preparei chá.

- Quer beber alguma coisa? Água? Sumo? - perguntei ao pai da Midori.

- Pepino - proferiu ele.

- Óptimo - respondi com um sorriso. - Com algas? Anuiu tenuemente com a cabeça. Elevei a cama de novo.

Depois cortei um pequeno pedaço de pepino, envolvi-o numa tira de algas, fixei tudo com um palito, embebi-o em molho de soja e depositei-o na sua boca expectante. Mastigou demoradamente, quase sem alterar a expressão do rosto até engolir por fim.

- Que tal? Bom, hâ?

- Bom - respondeu.

- É bom quando a comida sabe bem. É quase como uma espécie de prova de que você continua vivo.

Acabou por comer o pepino inteiro. Quando terminou, quis beber água e dei-lhe de beber da garrafa. Instantes depois, disse que precisava de urinar; peguei no urinol que havia debaixo da cama e aproximei-o da ponta do seu pénis. Depois despejei o urinol e lavei-o. Regressei ao quarto e acabei de beber o meu chá.

- Como se sente? - perguntei.

- Minha... cabeça.

- Dói-lhe?

- Um pouco - respondeu com um leve franzir da testa.

- Bem, não é de admirar, foi submetido a uma intervenção cirúrgica. Nunca fiz nenhuma operação, evidentemente, e portanto não faço ideia como é.

- Bilhete - proferiu.

- Bilhete? Que bilhete?

- Midori - disse. - Bilhete.

Não fazia ideia do que se tratava e mantive-me em silêncio. Ele próprio também se manteve em silêncio durante algum tempo. Depois pareceu dizer «Por favor». Abriu desmesuradamente os olhos e olhou-me intensamente. Supus que estava a tentar dizer-me algo, mas não consegui discernir o que era.

- Ueno - disse ele. - Midori.

- Estação de Ueno?

Anuiu ligeiramente com a cabeça.

Tentei descortinar o que ele pretenderia dizer: «Bilhete, Midori, por favor, Estação de Ueno», mas não fazia ideia do que essas palavras significariam. Presumi que se sentia baralhado, embora os seus olhos revelassem agora uma terrível lucidez. Ergueu o braço livre e apontou na minha direcção. Foi certamente um esforço enorme, pois a mão tremia-lhe suspensa no ar. Levantei-me e agarrei-lhe na mão frágil e enrugada. Agarrou na minha mão com a pouca força que lhe restava e proferiu de novo: - Por favor.

- Não se preocupe. Eu trato do bilhete e cuido da Midori também.

Deixou a mão tombar sobre a cama e fechou os olhos. Depois expirou ruidosamente e adormeceu. Examinei-o para verificar se continuava vivo e saí para ferver mais água para o chá. Enquanto beberricava o chá quente, apercebi-me de que desenvolvera uma espécie de simpatia por aquele homenzinho às portas da morte.

A esposa do outro paciente regressou minutos depois e perguntou-me se estava tudo bem. Tranquilizei-a: o seu marido também dormia e respirava profundamente.

A Midori regressou depois das três horas.

- Passeei pelo parque, para espairecer - declarou. - Fiz o que me disseste, não falei com ninguém, limitei-me a desanuviar a cabeça.

- Sentes-te melhor?

- Obrigada, sinto-me muito melhor. Ainda me sinto um pouco esgotada e exausta, mas sinto o corpo mais leve. Creio que estava mais cansada do que supunha.

Como o pai dormia profundamente e dispúnhamos de tempo, fomos buscar café a uma máquina automática e bebemo-lo na sala de convívio. Relatei-lhe o que acontecera durante a sua ausência: que o pai dormira durante algum tempo, que depois acordara e comera o que sobrara do almoço, que depois me vira a comer um pepino e quisera também, acabando por comer o pepino inteiro, e que mais tarde urinara.

- Watanabe, tu és espantoso - exclamou. - Quase enlouquecemos ao tentarmos obrigá-lo a comer algo e tu conseguiste que ele comesse um pepino inteiro! Inacreditável!

- Acho que foi por ele ver que eu estava a saborear o pepino.

- Ou talvez tenhas jeito para relaxar as pessoas.

- Nem pensar - declarei com uma gargalhada. - Muitas pessoas te diriam precisamente o contrário de mim.

- O que pensas do meu pai?

- Simpatizo com ele. Apesar de não termos muito que dizer um ao outro. Mas, não sei porquê, parece-me simpático.

- Estava calmo?

- Bastante.

- Deverias tê-lo visto na semana passada. Estava terrível - disse ela, abanando a cabeça. - Foi como se tivesse enlouquecido e ficasse desvairado. Atirou-me um copo e gritou-me coisas horríveis: «Espero que morras, sua cabra estúpida!». Este tipo de doença por vezes afecta as pessoas deste modo. Elas desconhecem que agem assim, mas algumas pessoas tornam-se de repente verdadeiramente perversas. Aconteceu o mesmo com a minha mãe. Sabes o que ela me disse? «Tu não és minha filha! Tenho-te um ódio de morte!». Quando ela proferiu estas palavras, foi como se o mundo inteiro escurecesse durante um segundo. Mas esse comportamento é uma das consequências desta doença em particular.

Algo lhes comprime certa parte do cérebro e fá-las dizer todo o tipo de coisas terríveis. Eu sei que isso deriva da doença, mas, mesmo assim, é doloroso. Nunca esperaria uma coisa dessas. Ali estava eu, a esfalfar-me ao extremo por eles, e dizem-me todas aquelas coisas horríveis.

- Eu percebo o que queres dizer. - Recordei-me de repente dos estranhos fragmentos que o pai dela balbuciara.

- Bilhete? Estação de Ueno? - interrogou-se a Midori. - Estaria a referir-se a quê?

- E depois disse Porfavor e Midori.

- «Por favor, cuida da Midori»?

- Ou talvez pretenda que adquiras algum bilhete em Ueno. A ordem das quatro palavras é tão confusa que não se percebe o que ele pretende. A referência à Estação de Ueno tem algum significado especial para ti?

- Hmm, Estação de Ueno. - Ponderou durante alguns segundos. - A única coisa que me ocorre foram as duas vezes que fugi de casa: a primeira vez quando tinha oito anos e a segunda aos dez anos. Em ambas as vezes apanhei um comboio de Ueno até Fukushima. Comprei os bilhetes com dinheiro que tirei da caixa registadora. Alguém lá em casa exasperara-me profundamente e agi assim para me vingar. Uma tia minha morava em Fukushima e, como simpatizava com ela, fui para casa dela. Foi o meu pai quem me foi buscar. Fez todo aquele percurso até Fukushima para me ir buscar: cerca de cento e cinquenta quilómetros! Almoçámos comida pré-embalada durante a viagem de comboio para Ueno e contou-me imensas coisas enquanto viajávamos, pequenos fragmentos com enormes lacunas entre si. Por exemplo, acerca do enorme terramoto de 1923, sobre a guerra, ou sobre a época em que nasci, coisas que ele geralmente nunca referia. Agora que penso nisso, foram as únicas ocasiões em que eu e o meu pai tivemos algo parecido a uma boa e prolongada conversa, somente nós os dois. O meu pai encontrava-se no centro de Tóquio durante um dos maiores terramotos de que há memória e nem sequer se apercebeu, dá para acreditar?!

- A sério?!

- É verdade! Pedalava ao longo de Koishikawa, com um pequeno atrelado preso à bicicleta, e não se apercebeu de nada.

Quando regressou a casa, todas as telhas haviam tombado dos telhados do bairro, todos nós continuávamos agarrados a suportes sólidos e o solo ainda tremia sob os nossos pés. Nem assim se apercebeu e, segundo a sua versão da história, perguntou então: «Mas que raios se passa aqui?». É essa a «recordação mais grata» que o meu pai tem do Grande Terramoto de Kanto! - concluiu com uma gargalhada. - Todas as suas histórias dos velhos tempos são assim. Desprovidas de qualquer drama. Todas um pouco excêntricas. Quando ele me contava essas histórias, ficava com a sensação de que não acontecera nada de importante no Japão durante os últimos cinquenta ou sessenta anos. Para ele, a sublevação dos jovens oficiais de 1936 ou a Guerra do Pacífico não passaram de um «Oh, sim, agora que falas nisso, creio que aconteceu algo do género». É tão engraçado! Bem, como estava a dizer, o meu pai contou-me fragmentos dessas histórias enquanto viajávamos de comboio de Fukushima para Ueno. E no fim ele dizia sempre: «É para tu veres, Midori, que as coisas são iguais para onde quer que vás». Eu era jovem ainda e aquelas histórias impressionaram-me.

- Presumo então que a Estação de Ueno seja a tua «recordação mais grata»? - perguntei-lhe.

- Sim - retorquiu. - Alguma vez fugiste de casa, Watanabe?

- Nunca.

- Por que não?

- Falta de imaginação. Nunca me ocorreu fugir de casa.

- És tão estranho. - exclamou, empertigando a cabeça como se estivesse verdadeiramente impressionada.

- Provavelmente - redargui.

- Bem, em todo o caso, creio que o meu pai estava a tentar dizer-te que queria que tomasses conta de mim.

- De verdade?

- De verdade! Tenho percepção para essas coisas. Intuitivamente. E que resposta lhe deste?

- Bem, não compreendi o que ele estava a dizer e limitei-me a responder está bem, que não se preocupasse, que eu cuidaria de ti e trataria do bilhete.

- Fizeste essa promessa ao meu pai? Disseste-lhe que irias tomar conta de mim? - Olhou-me nos olhos com uma expressão absolutamente séria.

- Não foi bem assim - apressei-me a corrigi-la. - Na verdade, não compreendia o que ele estava a dizer e...

- Não te preocupes, estava a brincar - declarou com um sorriso. - Adoro quando reages assim.

Acabámos de beber o café e voltámos para o quarto. O pai dela continuava a dormir profundamente. Se me aproximasse o suficiente, conseguia ouvir a sua respiração uniforme. À medida que entardecia, a luz no exterior da janela mudou para uma suave e delicada coloração outonal. Um bando de aves empoleirara-se num dos cabos de electricidade, mas acabaram por prosseguir o seu voo. Sentámo-nos num canto do quarto a conversar em voz baixa. A Midori leu-me a palma da mão e predisse que eu viveria até aos cento e cinco anos, que casaria três vezes e pereceria de um acidente de viação. - Não é uma vida desagradável - comentei.

Quando o pai dela acordou pouco depois das dezasseis horas, a Midori sentou-se à cabeceira da cama, limpou-lhe o suor da testa, deu-lhe água e perguntou-lhe se ainda sentia dores de cabeça. Uma enfermeira veio tirar-lhe a temperatura, registou o número de vezes que urinara e verificou o tubo do soro. Fui para a sala de convívio assistir a um desafio de futebol. Às dezassete horas, disse à Midori que tinha de ir embora e expliquei ao pai dela: - Agora tenho que ir trabalhar. Vendo discos em Shinjuku, desde as 18.00 às 22:30.

O velho olhou para mim e anuiu tenuemente com a cabeça.

- Ei, Watanabe, não sei bem como o dizer, mas quero agradecer-te sinceramente pelo dia de hoje - proferiu enquanto me acompanhava até à recepção.

- Não fiz nada de especial - respondi. - Mas, se puder ajudar, também posso vir na próxima semana. Gostava de visitar o teu pai de novo.

- De verdade?

- Bem, quase não tenho com que me ocupar no dormitório e, se vier cá, posso comer pepinos.

A Midori cruzou os braços e bateu no linóleo com o tacão.

- Gostava de voltar a sair e beber uns copos contigo - disse, empertigando ligeiramente a cabeça.

- E os filmes pornográficos?

- Sim, primeiro fazemos isso e só depois vamos beber uns copos.

E conversaremos acerca de todos os habituais assuntos repugnantes.

- Eu nunca falo de coisas repugnantes - protestei. - Tu sim.

- De qualquer modo, conversaremos acerca dessas coisas, emborrachamo-nos e vamos para a cama.

- E já sabes o que acontece a seguir - proferi com um suspiro. - Eu vou tentar fazê-lo e tu não me vais deixar. Tenho razão?

Ela soltou uma gargalhada roufenha.

- De qualquer modo, vem buscar-me novamente no próximo domingo de manhã - afirmei. - Vimos para aqui juntos.

- E eu com uma saia um pouco mais comprida, não é?

- Definitivamente.

Todavia, não fui ao hospital no domingo seguinte. O pai da Midori falecera na manhã de sexta-feira.

Ligou-me às 6:30 da manhã para me informar. Acordei com o sinal de aviso de que havia uma chamada para mim e corri pelo corredor enquanto vestia à pressa uma camisola sobre o pijama. Uma chuva fria tombava silenciosamente.

- O meu pai acaba de falecer - disse a Midori com uma voz sumida e apagada. Perguntei-lhe se havia algo que pudesse fazer por ela. - Obrigada - disse. - Não há nada que possas fazer. Eu e a minha irmã já estamos habituadas a funerais. Telefonei apenas para que soubesses.

Escapou-lhe dos lábios uma espécie de suspiro.

- Não venhas ao funeral, está bem? Detesto essas situações. Não quero ver-te lá.

- Percebido.

- Estavas a falar a sério quando disseste que me levavas a ver um filme pornográfico?

- Obviamente que sim.

- Um filme bem nojento.

- Irei pesquisar a matéria a fundo.

- Está bem. Depois telefono-te - disse, e desligou.

Passou-se uma semana sem ter notícias da Midori. Não telefonou nem compareceu às aulas. Sempre que regressava ao dormitório, continuava com a esperança de encontrar uma mensagem dela, mas em vão. Certa noite, tentei manter a minha promessa de pensar nela enquanto me masturbava, mas não resultou. Tentei concentrar-me na Naoko, mas nem sequer a imagem da Naoko foi suficiente dessa vez. Senti-me tão ridículo que desisti. Sorvi uma golada de whisky, lavei os dentes e deitei-me.

No domingo de manhã escrevi uma carta à Naoko. Contei-lhe sobre o pai da Midori. Fui visitar ao hospital o pai de uma rapariga que tem uma aula em comum comigo e comi pepinos. Ele ouviu-me a mastigar, também quis e acabou por comer ruidosamente um pepino. Contudo, faleceu cinco dias depois. Ainda tenho uma memória vívida do ruído que ele fazia enquanto mastigava o pepino. As pessoas deixam atrás de si pequenas e estranhas recordações quando morrem. A carta continuava:

Penso em ti, na Reiko e na capoeira quando acordo de manhã. Recordo-me dofaisão, dos pombos, dos papagaios, dos perus e dos coelhos. Recordo-me das capas de chuva amarelas que tu e a Reiko usavam com os capuzes postos naquela manhã chuvosa. É bom pensar em ti quando estou aconchegado na cama. É como se estivesses enroscada ao meu lado, a dormir profundamente. E imagino como seria maravilhoso se fosse verdade.

Às vezes sinto umas saudades terríveis de ti, mas, no geral, prossigo a vida com toda a energia de que sou capaz. Tal como tu cuidas todas as manhãs das aves de capoeira e dos cultivos, também eu alento a minha própria Primavera. Quando me levanto, faço uma boas trinta e seis flexões, escovo os dentes, barbeio-me, tomo o pequeno-almoço, visto-me, saio do dormitório e vou para a universidade, digo a mim próprio: «Pois bem, tenta fazer com que este dia valha a pena». Nunca me apercebi, mas as pessoas dizem-me que ultimamente falo bastante com os meus próprios botões. Provavelmente balbucio baixinho enquanto alento a minha própria Primavera.

É doloroso não poder visitar-te, mas a minha vida em Tóquio seria bem pior se tu não existisses. O facto de pensar em ti quando acordo de manhã confere-me a força necessária para alentar a minha Primavera e dizer a mim próprio que tenho de fazer com que o dia valha a pena. Sei que tenho que me esforçar ao máximo aqui, tal como tu o fazes aí.

No entanto, hoje é domingo, um dia em que deixo de alentar a minha Primavera, já lavei a roupa e agora estou no meu quarto a escrever-te. Quando terminar a carta, colo o selo, deito-a na caixa de correio e depois não tenho mais nada para fazer até o sol se pôr. Também não estudo ao domingo. Durante a semana aplico-me a estudar na biblioteca durante os intervalos entre as aulas e, por conseguinte, não tenho nada para fazer ao domingo. As tardes de domingo são calmas, pacíficas e também solitárias para mim. Leio e ouço música. Às vezes relembro os vários percursos que empreendíamos durante as nossas caminhadas de domingo pelos arredores de Tóquio. Consigo visualizar uma imagem bastante nítida das roupas que vestias em cada uma dessas caminhadas. Lembro-me de todos os pormenores dessas tardes de domingo.

Diz «Olá"por mim à Reiko. Na verdade, sinto saudades de a ouvir a tocar guitarra à noite.

Quando terminei a carta, percorri um par de ruas para deitar a carta ao correio e comprei uma sanduíche de ovo e uma Coca-Cola numa padaria da vizinhança. Foi esse o meu almoço enquanto permanecia sentado num banco a observar um grupo de rapazes a jogar beisebol no campo de jogos local. O avanço do Outono conferia ao céu uma profundidade e um azul mais intenso. Olhei para o céu e avistei dois rastos de vapor em direcção a oeste, numa perfeita linha paralela como se fossem dois carris do eléctrico. Uma bola mal batida rolou na minha direcção e, quando a devolvi, os jovens jogadores agradeceram-me com uma pequena vénia dos bonés e um bem-educado «Obrigado, senhor». Como era habitual em qualquer jogo de beisebol para juniores, ocorriam imensos avanços para a primeira base e para a seguinte sem ocorrer nova batida de bola.

Depois do meio-dia, voltei para o quarto para ler, mas não consegui concentrar-me. Em vez disso, dei por mim a olhar fixamente para o tecto e a pensar na Midori. Perguntei-me se o pai dela tentara de facto pedir-me que cuidasse dela quando ele morresse, mas não havia maneira de saber o que pretendera de facto. Provavelmente confundira-me com alguém. De qualquer modo, falecera numa manhã chuvosa de sexta-feira e agora era impossível saber a verdade. Na minha imaginação, a morte encolhera-o e tornara-o mais pequeno ainda; e depois queimaram-no num forno até ficar reduzido a cinzas. O que deixara ele ao mundo? Uma modesta livraria num modesto bairro e duas filhas, sendo uma delas bastante estranha. Que vida vivera ele, afinal? Deitado na cama do hospital, com a cabeça aberta e o cérebro confuso, em que pensaria quando olhava para mim?

Estes pensamentos sobre o pai da Midori deixaram-me num estado de espírito lastimoso, de tal modo que recolhi a roupa pendurada no telhado antes de estar completamente seca. Depois deambulei pelas ruas de Shinjuku para passar o tempo. As multidões domingueiras proporcionavam-me algum alívio. A Livraria Kinokunyia encontrava-se tão apinhada quanto um comboio à hora de ponta. Comprei um exemplar de Luz em Agosto de Faulkner e dirigi-me para o café-jazz mais barulhento que conhecia para começar a ler o meu novo livro enquanto ouvia Ornette Coleman e Bud Powell e bebia café quente, espesso e amargo. Às 17:30, fechei o livro, saí para o exterior e comi uma refeição leve. Quantos domingos - quantas centenas de domingos semelhantes a este - me esperavam ainda? «Calmos, pacíficos e solitários», disse a mim próprio em voz alta. Aos domingos, deixo de alentar a minha Primavera.

 

A meio dessa semana feri inadvertidamente a palma da mão num estilhaço de vidro, pois não me apercebera de que uma das divisórias de uma das prateleiras dos discos estava rachada. Nem queria acreditar na quantidade de sangue que jorrou e tornou o chão completamente vermelho. O gerente da loja pegou em toalhas e atou-as firmemente em redor do ferimento. Depois telefonou para as urgências. Era uma pessoa bastante inútil durante a maior parte do tempo, mas dessa vez actuou com uma eficiência surpreendente. Afortunadamente, o hospital era próximo; porém, quando lá cheguei, as toalhas estavam empapadas de vermelho e o sangue que não conseguiam absorver começara as gotejar sobre o alcatrão. As pessoas afastavam-se denodadamente do meu caminho, como se pensassem que me tinha ferido numa luta. Não sentia qualquer dor, mas o sangue não parava de jorrar.

O médico removeu calmamente as toalhas empapadas de sangue, estancou a hemorragia aplicando-me um torniquete no pulso, desinfectou a ferida e, enquanto a suturava, disse-me para voltar no dia seguinte. Quando regressei à loja de discos, o gerente disse-me para ir para casa e informou-me de que não me descontaria essas horas de trabalho. Apanhei o autocarro para a residência académica e dirigi-me directamente para o quarto do Nagasawa. Sentia os nervos em franja devido ao ferimento e desejava falar com alguém, além de que já não estava com ele há muito tempo.

Encontrei-o no quarto, a beber uma lata de cerveja e a assistir a uma aula de Espanhol na televisão. - Que raios te aconteceu? - perguntou quando viu a ligadura. Disse-lhe que me cortara e que não passara de um pequeno incidente. Ofereceu-me uma cerveja mas recusei.

- Espera um pouco. Isto vai acabar dentro de um minuto -, declarou, continuando a praticar a pronúncia do espanhol. Fervi água e preparei uma chávena de chá. Uma mulher espanhola recitava frases exemplificativas: «Nunca vi uma chuvada tão forte!», «Muitas pontes ficaram inundadas em Barcelona». O Nagasawa repetia as frases em voz alta. - Que frases horríveis! Arranjam sempre umas frases merdosas - comentou.

Quando o programa terminou, desligou a televisão e retirou outra cerveja do pequeno frigorífico.

- Tens a certeza de que não estou a incomodar? - inquiri.

- Claro que não. Estava a sentir-me completamente entediado. De certeza que não te apetece uma cerveja?

- Não, não me apetece de facto.

- Oh, bem, já afixaram os resultados do exame. Passei!

- O exame para o Ministério dos Negócios Estrangeiros?

- Esse mesmo. Oficialmente, designa-se Exame de Admissão de Pessoal para Serviços de Primeira Classe dos Serviços Públicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Até dá vontade de rir!

- Parabéns! - exclamei, apertando-lhe a mão.

- Obrigado.

- Naturalmente, não estou surpreendido por teres passado.

- Pois não, nem eu - riu ele. - Mas é agradável quando o anunciam publicamente.

- Estás a pensar em ir para o estrangeiro quando terminares o curso?

- Não, primeiro temos um ano de estágio. Só depois nos enviam temporariamente para o estrangeiro.

Beberriquei o meu chá e ele continuou a sorver a cerveja com óbvia satisfação.

- Se quiseres, dou-te este frigorífico quando sair daqui - afirmou. - Não gostarias de o ter? É fantástico para manter a cerveja fresca.

- Sim, gostava, mas não vais precisar dele? Irás viver num apartamento e talvez te faça falta.

- Não sejas idiota! Quando sair daqui, vou comprar um frigorífico enorme. Vou viver uma vida de luxo! Quatro anos neste buraco imundo é demasiado tempo. Não sinto vontade nenhuma de olhar para nada que tenha usado aqui. Basta dizeres o que queres e eu ofereço-te: o televisor, a garrafa termos, o rádio...

- Aceitarei tudo o que quiseres dar-me - retorqui. Peguei no manual de Espanhol pousado sobre a secretária e examinei-o.

- Estás a aprender espanhol?

- Sim. Quantas mais línguas souber, melhor. Tenho queda para as línguas. Aprendi francês sozinho e sou praticamente fluente. As línguas são como jogos. Aprendes as regras de uma e depois todas funcionam do mesmo modo. Tal como as mulheres.

- Ah, uma vida de contemplação! - comentei com uma ponta de sarcasmo.

- Bem, e se fôssemos comer fora um dia destes?

- Referes-te a ir à procura de mulheres?

- Não, um verdadeiro jantar. Tu, eu e a Hatsumi, num bom restaurante. Para celebrar o meu novo emprego. Quem paga é o meu velho e, por conseguinte, iremos a um restaurante verdadeiramente luxuoso.

- Não deverias ir apenas com a Hatsumi?

- Não, tudo correrá melhor contigo presente. Eu e ela sentir-nos-emos mais acompanhados assim.

Oh, não, voltava a repetir-se a situação entre mim, o Kizuki e a Naoko.

- Vou passar a noite em casa dela. Por isso, vem jantar connosco.

- Está bem, se ambos o desejam de facto - acedi. - De qualquer modo, que decisão vais tomar em relação à Hatsumi? Serás destacado para o estrangeiro quando terminares o estágio e provavelmente só regressarás anos depois. O que vai acontecer-lhe?

- Isso é problema dela.

- Não compreendo - afirmei.

Bebeu um gole de cerveja e bocejou, de pés apoiados sobre a secretária. - Olha, não é minha intenção casar-me. Deixei isso bem claro à Hatsumi. Se ela quiser casar com alguém, não deverá hesitar em o fazer. Não a impedirei. Se quiser esperar por mim, então que espere. É o que penso.

- Sou obrigado a concordar contigo.

- Deves achar-me um canalha, não?

- De facto.

- Ouve, o mundo é um lugar inerentemente injusto. Não fui eu que ditei as regras. O mundo foi sempre assim. E nunca enganei a Hatsumi. Ela sabe que sou um canalha e que pode abandonar-me quando achar que já não aguenta mais. Disse-lhe isto desde o início.

Acabou de beber a cerveja e acendeu um cigarro.

- Não há nada na vida que te assuste? - inquiri.

- Ei, não sou um idiota chapado - disse. - Claro que a vida me assusta por vezes. Mas também não encaro essa premissa como o ponto de partida para tudo o resto. Vou esforçar-me ao máximo e chegar o mais longe possível. Assumirei o que quiser e renunciarei ao que não quiser. É assim que pretendo viver a minha vida e, se as coisas correrem mal, paro e reconsidero as opções. Se pensares bem, uma sociedade injusta é uma sociedade que nos permite explorar as nossas capacidades ao máximo.

- A mim soa-me a um modo de vida bastante egocêntrico.

- Talvez, mas não vou limitar-me a olhar para o céu e esperar que a fruta me caia no regaço. À minha própria maneira, tenho-me esforçado arduamente. Tenho-me esforçado dez vezes mais do que tu.

- Provavelmente é verdade - concordei.

- Às vezes olho à minha volta e fico agoniado. Por que raios estes cabrões não fazem nada? Não fazem absolutamente nada, raios, e ainda se queixam!

Olhei fixamente para ele, surpreendido com a aspereza do seu tom. - Na minha opinião, as pessoas estão a esforçar-se arduamente. Estão a aplicar-se duramente. Ou estarei a ver as coisas mal?

- Não se trata de trabalho árduo. Não passa de trabalho braçal - proferiu ele com determinação. - O «trabalho árduo» a que me refiro é mais autodireccionado e resoluto.

- Por exemplo, estudar espanhol enquanto toda a gente vive uma vida fácil?

- Isso mesmo. Na próxima Primavera já dominarei o espanhol. Já domino perfeitamente o inglês, o alemão e o francês e estou quase a conseguir o mesmo com o italiano. Achas que essas coisas se alcançam sem trabalho árduo?

Continuou a fumar enquanto eu pensava no pai da Midori, um homem que provavelmente nunca pensara em aprender espanhol através da televisão. Possivelmente, também nunca ponderara na diferença entre trabalho árduo e trabalho braçal.

Estava talvez demasiado ocupado para pensar nessas coisas: ocupado com o trabalho e preocupado com trazer de volta para casa a filha que fugira para Fukushíma.

- Bem, em relação ao jantar - disse o Nagasawa. - Este sábado estás livre?

- Pode ser - respondi.

O Nagasawa escolheu um elegante restaurante francês numa rua secundária e calma de Azabu. Disse o nome à entrada e ambos fomos conduzidos para uma sala privada. Cerca de quinze gravuras estavam penduradas nas paredes da pequena divisão. Enquanto aguardávamos a Hatsumi, beberricámos um vinho delicioso e conversámos acerca dos romances de Joseph Conrad. Ele envergava um fato cinzento de aspecto dispendioso e eu um vulgar blazer azul.

A Hatsumi chegou quinze minutos depois. Maquilhara-se cuidadosamente e usava brincos de ouro, um elegante vestido azul-escuro e sapatos vermelhos de salto alto. Quando a elogiei pela cor do vestido, disse-me que essa cor se chamava azul meia-noite.

- Que restaurante elegante! - exclamou ela.

- O meu velho come sempre aqui quando vem a Tóquio - declarou o Nagasawa. - Vim aqui com ele uma vez. Não sou grande apreciador de lugares assim pretensiosos.

- Não custa nada comer num lugar destes uma vez por outra - disse a Hatsumi. Virou-se para mim e perguntou: -Não concordas?

- Acho que sim. Desde que não seja eu a pagar.

- O meu velho costuma trazer aqui a amante - continuou o Nagasawa. - Tem umaamante em Tóquio.

- De verdade? - perguntou a Hatsumi.

Bebi um gole de vinho, como se não tivesse ouvido nada.

Um empregado trouxe-nos o menu. Escolhemos os hors doeuvres e a sopa; o Nagasawa pediu pato e eu e a Hatsumi pedimos perca. A comida ia chegando a um ritmo pausado, o que nos permitia apreciar o vinho e a conversação. O Nagasawa começou por falar do exame de admissão ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e disse que a maioria dos examinandos não passavam de pessoas reles que mais valia serem lançadas num poço sem fundo, embora concordasse que havia pessoas decentes no meio dessa corja. Perguntei-lhe se a proporção de pessoas decentes em relação às pessoas reles seria maior ou menor do que na sociedade em geral.

- É a mesma, obviamente - respondeu. Era o mesmo por toda a parte, acrescentou: era uma lei imutável.

Pediu uma segunda garrafa de vinho e um whisky duplo para si próprio.

A Hatsumi começou a falar de uma rapariga com quem pretendia emparelhar-me. Tornara-se num tópico habitual entre nós. Estava sempre a falar-me de alguma «rapariga gira do meu clube» e eu fugia sempre ao assunto.

- Ela é realmente simpática e realmente gira. Trago-a da próxima vez. Deverias conversar com ela. Tenho a certeza de que simpatizarias com ela.

- Não desperdices o teu tempo, Hatsumi - redargui. - Sou demasiado pobre para sair com raparigas da tua universidade. Não consigo falar com elas.

- Não sejas tonto - disse. - Esta rapariga é simples, natural e sem afectações.

- Vá lá, Watanabe - disse o Nagasawa. - Aceita encontrar-te com ela. Não é preciso ires para a cama com ela.

- Nem pensar! - exclamou a Hatsumi. - Ela ainda é virgem.

- Tal como tu eras - disse o Nagasawa.

- Exactamente - retorquiu a Hatsumi com um sorriso radioso. - Tal como eu era. Mas, de facto - disse-me ela -, não me venhas com essa história de seres «demasiado pobre». Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Obviamente que em cada ano há algumas raparigas super-empertigadas, mas as outras são raparigas normais. Todas almoçamos no refeitório da escola por 250 ienes...

- Bem, não é bem assim, Hatsumi - interrompi-a. - Na minha escola há três tipos de refeições: A, B e C. O Almoço A é a 120 ienes, o Almoço B a 100 e o Almoço C a 80. Toda a gente me olha de soslaio quando peço o Almoço A, e quem não pode dar-se ao luxo de um Almoço C, come sopa de massa por 60 ienes. Costumo ir a um lugar desses. Achas que ainda estou à altura de conversar com raparigas da tua universidade?

A Hatsumi quase não conseguia parar de rir. - É tão barato - disse. - Talvez eu própria devesse ir almoçar aí! Mas, realmente, Toru, és um tipo formidável, tenho a certeza de que te darias bem com esta rapariga. E ela talvez aprecie um almoço de 120 ienes.

- Nem pensar - respondi com uma gargalhada. - Ninguém come comida dessa porque gosta; comem-na porque não podem dar-se ao luxo de mais nada.

- Em todo o caso, não se deve julgar um livro pela capa. É verdade que frequentamos um estabelecimento exclusivo, mas muitas de nós somos pessoas sérias, com pensamentos sérios sobre a vida. Nem toda a gente procura um namorado com um carro desportivo.

- Eu sei que não - respondi.

- O Watanabe já tem namorada. Está apaixonado - declarou o Nagasawa. - Mas nunca fala acerca dela. É fechado como um túmulo. Um enigma total.

- De verdade? - perguntou-me a Hatsumi.

- É um facto - retorqui. - Mas não há nenhum enigma envolvido nisto. - É apenas complicado e de difícil abordagem.

- Um namoro ilícito? Ooh! Podes falar comigo! Beberriquei um pouco mais de vinho para fugir à pergunta.

- Percebes o que quero dizer? - disse o Nagasawa enquanto bebia o seu terceiro whisky. - Fechado como um túmulo. Quando este tipo decide que não quer falar sobre algo, ninguém consegue arrancar-lhe nada.

- Que pena - afirmou a Hatsumi enquanto se servia de um pouco de pâté. - Se simpatizasses com ela, poderíamos sair todos juntos.

- Sim, podíamos embebedar-nos e trocar de parceira -disse o Nagasawa.

- Já chega desse tipo de conversa - anunciou a Hatsumi.

- O que queres dizer com «esse tipo de conversa»? O Watanabe anda de olho em ti - proferiu o Nagasawa.

- Isso não tem nada a ver com o que eu estava a dizer -murmurou a Hatsumi. - Ele não é desse género de pessoas. É sincero e carinhoso. Eu sei. É por essa razão que tenho tentado arranjar-lhe uma namorada.

- Oh, sim, ele é sincero.

Como daquela vez em que ambos trocámos de parceiras, há uns tempos atrás. Lembras-te, Watanabe?

- perguntou ele com uma expressão despreocupada no rosto; depois emborcou o resto do whisky e pediu outro.

A Hatsumi pousou os talheres e limpou a boca com o guardanapo. Depois olhou para mim e perguntou: - Toru, fizeram isso de verdade?

Não soube como lhe responder e mantive-me em silêncio.

- Conta-lhe - disse o Nagasawa. - Raios, que importa?

- O ambiente estava a tornar-se crispado. O Nagasawa conseguia ser perverso quando estava embriagado, mas nessa noite a sua vileza era dirigida à Hatsumi e não a mim. Ter consciência deste facto dificultava ainda mais a minha permanência ali.

- Gostava que me falassem disso - disse ela. - Parece muito interessante!

- Estávamos bêbados - comecei por dizer.

- Não faz mal, Toru. Não estou a censurar-te. Quero apenas que me contes o que aconteceu.

- Estávamos a beber num bar em Shibuya e travámos amizade com duas raparigas. Frequentavam uma faculdade qualquer e também estavam bastante embriagadas. De qualquer modo, nós, hâ, fomos para um hotel e dormimos com elas. Os quartos eram contíguos. O Nagasawa bateu à minha porta a meio da noite e disse que deveríamos trocar de parceira; por conseguinte, fui para o quarto dele e ele para o meu.

- Elas não se importaram?

- Não, também estavam bêbadas.

- De qualquer modo, eu tinha uma boa razão para o fazer

- anunciou o Nagasawa.

- Uma boa razão?

- Bem, as raparigas eram bastante diferentes uma da outra. Uma era verdadeiramente bem-parecida, mas a outra era feia. Achei que era injusto. Eu ficara com a rapariga bonita e ele teve que se contentar com a outra. Foi por essa razão que trocámos de parceira. Certo, Watanabe?

- Sim, suponho que sim - retorqui. No entanto, eu simpatizara realmente com a rapariga feia. Era divertida e afável. Depois de termos relações, conversávamos animadamente na cama quando o Nagasawa surgiu e sugeriu que trocássemos de parceira. Perguntei à rapariga se se importava e ela disse que não havia problema se era isso o que desejávamos.

Provavelmente pensava que eu desejava ter sexo com a amiga bonita.

- Foi divertido? - perguntou-me a Hatsumi.

- Referes-te ao facto de termos trocado de parceira?

- A toda a situação.

- Não particularmente. Foi apenas uma experiência. Dormir assim com raparigas não é muito divertido.

- Então por que razão o fizeste?

- Por minha causa - disse o Nagasawa.

- Estou a perguntar ao Toru - ripostou ela na direcção do Nagasawa. - Por que razão fizeste isso?

- Porque às vezes sinto um tremendo desejo de dormir com outra pessoa.

- Se estás apaixonado por alguém, não consegues arranjar maneira de fazer isso com essa pessoa? - perguntou-me ela após ponderar por instantes.

- É complicado.

A Hatsumi suspirou.

A porta abriu-se nesse momento e trouxeram-nos a comida. O Nagasawa foi presenteado com pato assado e eu e a Hatsumi com as percas. Os empregados serviram legumes recém-preparados, deitaram o molho e retiraram-se, deixando-nos novamente a sós. O Nagasawa cortou uma fatia de pato e saboreou-a com prazer, acompanhando com mais whisky. Engoli uma garfada de espinafres. A Hatsumi não tocou na sua comida. - Sabes, Toru, não faço ideia do que torna a tua situação tão «complicada», mas creio que aquilo que acabas de me contar não é apropriado para ti - disse ela. - Não és desse género de pessoas. Não achas? - Apoiou as mãos sobre a mesa e olhou-me directamente nos olhos.

- Bem, eu próprio sinto isso por vezes - redargui.

- Então, por que razão não pões fim a isso?

- Porque às vezes sinto necessidade de calor humano - retorqui com honestidade. - Às vezes, quando não posso sentir o calor da pele de uma mulher, sinto-me tão só que não consigo aguentar.

- Bem, deixa-me sintetizar a minha opinião sobre isto - interveio o Nagasawa. - Há uma rapariga de quem o Watanabe gosta, mas, por certas razões complicadas, não podem ter sexo. E, sendo assim, ele diz a si mesmo que «sexo não passa de sexo» e sacia essa necessidade com outra pessoa. Há algum mal nisso? Faz todo o sentido. Ele não pode ficar fechado no quarto a masturbar-se a toda a hora, pois não?

- Mas se tu amas realmente, Toru, não achas que conseguirias controlar-te?

- Talvez - respondi enquanto aproximava da boca um bocado de perca envolta em molho cremoso.

- Tu não compreendes as necessidades sexuais de um homem

- disse o Nagasawa à Hatsumi. - Olha o meu caso, por exemplo. Namoro contigo há três anos e já dormi com imensas mulheres durante todo este tempo. Mas não me lembro de um único pormenor acerca delas. Não me lembro dos nomes, não me lembro dos rostos. Dormi com cada uma delas somente uma única vez. Conheci-as, fizemo-lo e adeusinho. Não passou disso. O que há de errado nisso?

- Não suporto essa tua arrogância - proferiu ela em voz baixa. - O facto de dormires ou não com outras mulheres é uma questão secundária. Eu nunca me zanguei de verdade por andares a dormir com outras, pois não?

- Nem sequer podes chamar a isso dormir com outras. Não passa de um jogo. Ninguém sai magoado - disse o Nagasawa.

- Eu fico magoada - disse a Hatsumi. - Não sou suficiente para ti?

O Nagasawa manteve-se silente durante alguns momentos enquanto agitava o whisky no copo. - A questão não é essa. Trata-se de uma outra fase, de uma outra questão. Trata-se de uma necessidade que sinto dentro de mim. Lamento se te magoei. Mas não se trata de uma questão de seres ou não suficiente para mim. Resta-me saber viver com essa necessidade. Sou assim. É isso que faz de mim a pessoa que eu sou. Não posso fazer nada acerca disso, compreendes-me?

A Hatsumi pegou por fim nos talheres e começou a comer.

- Então, não deverias arrastar o Toru para os teus «jogos».

- Mas eu e o Watanabe somos bastante parecidos - replicou ele. - Nenhum de nós está essencialmente interessado em mais nada a não ser em nós próprios. Está bem, concordo que sou arrogante e ele não, mas nenhum de nós consegue interessar-se pelo que quer que seja a não ser por aquilo em que pensamos, sentimos ou fazemos. É por essa razão que conseguimos pensar nas coisas de um modo completamente distinto das outras pessoas. É isso que aprecio nele. A única diferença é que ele ainda não se apercebeu deste facto acerca de si mesmo, hesita e sente-se magoado.

- Haverá algum ser humano que não hesite e não se sinta magoado? - exigiu a Hatsumi saber. - Estás a tentar dizer que tu próprio nunca sentiste isso?

- Obviamente que sim, mas disciplinei-me ao ponto de conseguir minimizar isso. Até um rato escolherá a via menos dolorosa se lhe administrarmos choques eléctricos suficientes.

- Mas os ratos não se apaixonam.

- «Os ratos não se apaixonam». - O Nagasawa olhou para mim. - Que maravilha. Deveria haver música de fundo neste momento... uma orquestra inteira, com duas harpas e...

- Não sejas irónico. Estou a falar a sério.

- Estamos a comer - declarou o Nagasawa. - E está aqui o Watanabe. Seria mais civilizado guardarmos a conversa «séria» para outra ocasião.

- Posso ausentar-me - proferi.

- Não - disse a Hatsumi. - Fica, por favor. É mais agradável com a tua companhia.

- Pelo menos fica até à sobremesa - sugeriu o Nagasawa.

- Posso ausentar-me, de verdade.

Continuámos a comer em silêncio durante algum tempo. Comi o que tinha no prato, mas a Hatsumi deixara metade. O Nagasawa tragara há muito o pato e estava agora concentrado no seu whisky.

- A perca estava deliciosa - comentei, mas nenhum deles reagiu. Teria obtido a mesma reacção se tivesse lançado uma pedra para dentro de um poço profundo.

Os empregados levantaram a mesa e trouxeram gelado de limão e café expresso. O Nagasawa quase não tocou na sobremesa nem no café, optando de imediato por fumar um cigarro. A Hatsumi ignorou o gelado. «Que situação», pensei com os meus botões enquanto acabava de comer o gelado e bebia café. A Hatsumi olhava fixamente para as mãos apoiadas sobre a mesa. Tal como tudo nela, as mãos tinham um aspecto elegante e refinado.

Pensei na Naoko e na Reiko. O que estariam a fazer naquele momento? A Naoko talvez estivesse deitada no sofá enquanto a Reiko tocava Norwegian Wood na guitarra. Sentia um enorme desejo de regressar ao pequeno apartamento delas. Que raios estava eu a fazer ali?

- Eu e o Watanabe somos iguais nisto: estamo-nos nas tintas se ninguém nos compreender - disse o Nagasawa. - É isso o que nos torna diferentes de todas as outras pessoas. Todos se preocupam se as outras pessoas à sua volta os compreendem, mas eu e o Watanabe somos diferentes. Estamo-nos simplesmente nas tintas. O nosso eu e as outras pessoas são coisas distintas.

- Concordas com isto? - perguntou-me ela.

- Não - retorqui. - Não sou assim tão forte. Não me sinto bem se ninguém me compreender. Há pessoas que quero compreender e que me compreendam a mim. Mas, exceptuando essas poucas pessoas, bem, sinto que é mais ou menos inútil. Não concordo com o Nagasawa. Eu preocupo-me se as pessoas me compreendem ou não.

- Consiste praticamente na mesma coisa que eu disse - proferiu o Nagasawa, pegando na colher do café. - A mesma coisa! Resume-se à diferença entre um pequeno-almoço tardio ou um almoço antecipado. A hora é a mesma, a comida é a mesma, só o nome é que difere.

- Não te preocupas se eu te compreendo ou não? - perguntou ela ao Nagasawa.

- Não estás a perceber, pois não? A Pessoa A compreende a Pessoa B porque a ocasião é a mais indicada para tal e não porque a Pessoa B quer ser compreendida pela Pessoa A.

- Por conseguinte, é um erro querer ser compreendida por alguém... por ti, por exemplo?

- Não, não é um erro - respondeu o Nagasawa. - Quando pensas que desejas compreender-me, a maioria das pessoas chamar-lhe-iam amor. O meu sistema de vida é bem diferente do das outras pessoas.

- Então, estás a dizer que não estás apaixonado por mim, é isso?

- Bem, o meu sistema e o teu...

- Que se foda o teu sistema! - gritou a Hatsumi. Foi a primeira e a única vez que a ouvi gritar.

O Nagasawa chamou o empregado, pediu a conta e entregou-lhe um cartão de crédito.

- Lamento esta situação, Watanabe - disse o Nagasawa.

- Vou acompanhar a Hatsumi a casa. Não te importas de voltar sozinho para a residência académica?

- Não precisas de te desculpar. Foi um jantar esplêndido

- declarei, mas ambos se mantiveram em silêncio.

O empregado devolveu o cartão e o Nagasawa assinou depois de verificar o montante. Levantámo-nos da mesa e saímos do restaurante. O Nagasawa estava prestes a chamar um táxi, mas a Hatsumi deteve-o.

- Obrigada, mas hoje não me apetece passar mais tempo contigo. Não precisas de me acompanhar a casa. Obrigada pelo jantar.

- Como queiras - disse o Nagasawa.

- Prefiro que seja o Toru a acompanhar-me.

- Como queiras - repetiu ele. - Mas o Watanabe é praticamente igual a mim. Pode ser um tipo simpático, mas, lá no fundo, é incapaz de amar quem quer que seja. Há sempre uma parte dele bem desperta e distante. Também ele sente a mesma necessidade que nunca desaparece. Acredita em mim, eu sei do que estou a falar.

Chamei um táxi e deixei a Hatsumi entrar primeiro. - De qualquer modo, assegurar-me-ei de que ela chega a casa em segurança - tranquilizei o Nagasawa.

- Lamento ter-te envolvido nesta situação - desculpou-se ele, mas tornava-se claro que esquecera já o assunto.

Já dentro do táxi, perguntei à Hatsumi: - Para onde queres ir? Para Ebisu? - O seu apartamento localizava-se em Ebisu. Abanou a cabeça.

- Está bem. E se fôssemos tomar uma bebida a algum lado?

. - Sim - concordou, anuindo com a cabeça.

- Para Shibuya - informei o taxista.

A Hatsumi cruzou os braços, fechou os olhos e recostou-se no banco. Os pequenos brincos de ouro reflectiam a luz enquanto o táxi avançava. O vestido azul meia-noite parecia igualar a obscuridade do interior do veículo. Os seus lábios levemente maquilhados e perfeitos tremulavam tenuemente como se estivesse prestes a falar com os seus próprios botões.

Enquanto a observava, compreendia por que razão o Nagasawa a escolhera como companheira de eleição. Havia imensas mulheres mais belas do que ela e o Nagasawa poderia ter escolhido qualquer uma delas. Mas a Hatsumi possuía uma espécie de qualidade que nos fazia estremecer o coração. Não se tratava de algo intenso. O poder que dela emanava era subtil, mas sugeria profundas ressonâncias. Observei-a durante todo o percurso até Shibuya e interroguei-me, sem encontrar qualquer resposta, o que seria aquela reverberação emocional que eu estava a sentir.

Apercebi-me finalmente do que era, cerca de meia dúzia de anos depois. Deslocara-me a Santa Fé para entrevistar um pintor e sentara-me numa pizzaria local, a beber cerveja, a comer pizza e a contemplar um pôr-do-sol miraculosamente encantador. Tudo se encontrava banhado por um vermelho cintilante - a minha mão, o prato, a mesa, o mundo -, como se o suco de algum fruto especial se tivesse derramado sobre todas as coisas. Encontrava-me envolto neste avassalador pôr-do-sol quando me perpassou pela mente a imagem da Hatsumi e nesse momento compreendi o que significara aquele estremecimento que sentira no coração. Tratava-se de uma espécie de ânsia da infância que sempre permanecera - e sempre permaneceria -por cumprir. Esquecera a existência daquela ânsia tão inocente e quase gravada a fogo: esquecera-me durante anos que tais sentimentos existiram outrora dentro de mim. Aquilo que a Hatsumi despertara em mim era uma parte do meu próprio ser que há muito jazia dormente. E quando me apercebi, este facto provocou-me uma tal mágoa ao ponto de quase irromper em lágrimas. Ela fora uma mulher absolutamente especial. Alguém deveria ter feito algo - o que quer que fosse - para a salvar. Mas nem eu nem o Nagasawa o teríamos conseguido. Tal como acontecera a muitas das pessoas que eu conhecia, a Hatsumi chegara a uma certa fase da vida e decidira pôr-lhe cobro, quase por impulsividade. Cortara os pulsos com uma lâmina de barbear, dois anos depois de o Nagasawa ter partido para a Alemanha.

Foi o próprio Nagasawa, obviamente, quem me contou o que acontecera. A carta que me enviara de Bona dizia:

«A morte da Hatsumi extinguiu algo dentro de mim. Isto é insuportavelmente triste e doloroso, até para mim». Rasguei a carta em pedaços e deitei-a fora. Nunca mais lhe escrevi.

Eu e a Hatsumi fomos a um pequeno bar e emborcámos várias bebidas. Pouco falámos. Parecíamos um entediado casal de velhos, sentados diante um do outro a beberem em silêncio e a comer amendoins. Quando o bar começou a encher, fomos dar um passeio. A Hatsumi disse que pagaria a conta, mas insisti em pagar porque a ideia das bebidas fora minha.

O ar nocturno era gélido. A Hatsumi aconchegou a camisola cinzenta-pálida contra o corpo e caminhou em silêncio ao meu lado. Não tinha nenhum destino em mente enquanto deambulávamos através das ruas vazias, com as mãos enfiadas nos bolsos. Ocorreu-me que esta situação se assemelhava aos passeios que efectuara com a Naoko.

- Conheces algum local próximo onde possamos jogar bilhar? - perguntou-me inesperadamente.

- Jogar bilhar? Sabes jogar?

- Sim, sou bastante boa. E tu?

- Jogo um pouco. Mas não sou grande coisa.

- Está bem. Vamos então.

Encontrámos um salão de bilhares próximo, um local exíguo, na extremidade de uma ruela. Ambos destoávamos no ambiente pouco asseado - a Hatsumi com o seu elegante vestido e eu de blazer azul e gravata formal -, mas esse facto não pareceu preocupá-la minimamente enquanto pegava num taco e lhe aplicava giz. Retirou do saco um gancho e prendeu o cabelo de lado para que não a incomodasse durante o jogo.

Fizemos dois jogos. Era de facto boa jogadora como afirmara, mas eu estava limitado pela espessa ligadura que ainda não retirara do ferimento na mão. A Hatsumi infligiu-me uma derrota esmagadora.

- És uma excelente jogadora - proferi com admiração.

- Estás a dizer que as aparências iludem? - perguntou enquanto calculava uma tacada e sorria.

- Onde aprendeste a jogar assim?

- O meu avô, o pai do meu pai, era um playboy. Tinha uma mesa de bilhar em casa. Eu costumava jogar bilhar com o meu irmão por diversão e, quando cresci um pouco, o meu avô ensinou-me os truques necessários. Ele era encantador, sofisticado e atraente. Já faleceu. Costumava vangloriar-se de ter conhecido Deanna Durbin(1) em Nova Iorque.

Enfiou três bolas seguidas e falhou uma quarta. Consegui obter um ponto, mas depois falhei uma tacada fácil.

- É por causa da ligadura - disse-me ela para me reconfortar.

- Não, é porque já não jogo há muito tempo. Há já dois anos

e cinco meses.

- Como sabes com tanta exactidão?

- Um amigo meu morreu na noite a seguir ao último jogo que jogámos juntos.

- E desde então nunca mais jogaste?

- Não, de facto não - respondi após ponderar por momentos. - Nunca tive o ensejo de jogar depois disso. É tudo.

- Como morreu o teu amigo?

- Num acidente de viação.

Efectuou uma série de jogadas certeiras: calculava a jogada com uma concentração absoluta e ajustava com precisão a força de cada tacada. Enquanto a observava em acção - com o cabelo cuidadosamente afastado dos olhos, os brincos a refulgirem, os sapatos de tacão alto firmemente apoiados no chão, os dedos encantadores e esguios pressionados contra o feltro verde enquanto efectuava a jogada -, era como se a área do salão onde ela se encontrava se tivesse transformado num elegante evento social. Nunca estivera a sós com ela e foi uma experiência maravilhosa para mim, como se tivesse ascendido a um plano superior da vida. No final do terceiro jogo - no qual, obviamente, me derrotou esmagadoramente de novo -, senti o ferimento a latejar e parámos de jogar.

- Desculpa, não deveria ter sugerido jogarmos bilhar - disse ela com uma preocupação aparentemente genuína.

- Não faz mal. Não é um ferimento grave e adorei jogar. A sério. Quando saímos do salão, a esquelética proprietária disse à Hatsumi:

 

*1. Deanna Durbin: famosa actriz e cantora canadiana do período áureo de Hollywood, a mais bem remunerada estrela feminina da época até se retirar com a idade de vinte e oito anos para se dedicar à família e ao marido, o realizador francês Charles Henri David. (N. do T.)

 

- Tem queda para isto. - A Hatsumi, com um sorriso caloroso, agradeceu-lhe enquanto pagava.

- Dói-te? - perguntou-me quando saímos.

- Nem por isso.

- Achas que a ferida reabriu?

- Não, não deve ser nada de mais.

-Já sei! Deverias vir a minha casa para te mudar a ligadura. Tenho desinfectante e tudo o necessário. Vamos, a minha casa é aqui perto.

Disse-lhe que não valia a pena incomodar-se, que eu ficaria bem, mas insistiu em verificar se a ferida reabrira ou não.

- Ou será que não gostas da minha companhia? Queres regressar o mais rapidamente possível para o teu quarto, é isso?

- proferiu com um sorriso brincalhão.

- De modo algum.

- Então, está decidido. Não faças cerimónias. É aqui perto. O apartamento situava-se a quinze minutos de Shibuya, em

direcção a Ebisu. Não era um edifício luxuoso, mas era mais do que apresentável, com um pequeno e agradável átrio provido de ascensor. Fez-me sentar à mesa da cozinha e foi ao quarto mudar de roupa. Surgiu depois envergando uma camisola de capuz da Universidade de Princeton e calças de algodão

- e retirara os brincos de ouro. Trouxe um kit de primeiros socorros, retirou-me a ligadura, verificou se o ferimento não reabrira, aplicou desinfectante sobre a zona e colocou uma nova ligadura. Efectuou tudo isto com perícia.

- Como consegues ser tão hábil em tantas coisas? - perguntei-lhe.

- Costumava efectuar trabalho de voluntariado num hospital. Era uma espécie de enfermeira. Foi assim que aprendi.

Quando terminou, trouxe duas latas de cerveja do frigorífico. Bebeu metade da sua e eu a minha e a restante dela. Depois mostrou-me fotografias das outras raparigas do clube a que pertencia. Ela tinha razão: algumas eram bonitas.

- Quando resolveres ter uma namorada, vem ter comigo. Arranjo-te uma imediatamente.

- Sim, minha senhora.

- Bem, Toru, diz-me a verdade. Achas que sou uma velha casamenteira, não achas?

- De certo modo - respondi com sinceridade, embora com um sorriso. Ela sorriu também. Ficava encantadora quando sorria.

- Diz-me outra coisa, Toru. O que pensas do Nagasawa e de mim?

- Como assim? Acerca do quê?

- Acerca do que eu deveria fazer. A partir de hoje.

- O que eu penso não importa - redargui, bebendo um gole de cerveja fresca.

- Não há problema. Diz-me exactamente o que pensas.

- Bem, se estivesse no teu lugar, deixava-o. Tentava encontrar alguém com uma visão mais normal das coisas e viveria feliz para todo o sempre. Não há, de modo algum, hipótese de seres feliz com ele. Do modo como ele vive, nunca lhe ocorre tentar tornar-se feliz ou fazer os outros felizes. Continuar com ele só servirá para abalar o teu sistema nervoso. Para mim, é um milagre continuares a relacionar-te com ele há já três anos. Evidentemente que gosto muito dele, à minha maneira. É divertido e possui muitas e excelentes qualidades. Possui forças e capacidades que eu nunca conseguiria igualar. No entanto, a sua visão das coisas e o modo como leva a vida não são normais. Por vezes, quando falo com ele, sinto como se estivesse a andar em círculos. O mesmo processo que o leva a ele para níveis cada vez mais altos, deixa-me a mim a dar voltas e mais voltas. Isso faz-me sentir tão vazio! E, por fim, os nossos próprios sistemas são completamente diferentes. Percebes o que estou a dizer?

- Percebo - retorquiu enquanto me trazia outra cerveja do frigorífico.

- Além do mais, ele partirá para o estrangeiro depois de ser admitido no Ministério dos Negócios Estrangeiros e concluir o ano de estágio. Que vais tu fazer durante todo esse tempo? Esperar por ele? Ele não tem intenção de casar com ninguém.

- Eu também sei disso.

- Não tenho mais nada a dizer.

- Compreendo - disse ela. Enchi lentamente o copo.

- Sabes, ocorreu-me algo quando estávamos a jogar bilhar - afirmei. - Sou filho único, mas, enquanto crescia, nunca me senti isolado ou desejei ter irmãos ou irmãs.

Sentia-me feliz por ser filho único. Todavia, de repente, enquanto jogava bilhar contigo, senti o desejo de ter tido uma irmã mais velha como tu, verdadeiramente elegante e uma brasa, de vestido azul meia-noite, brincos de ouro e hábil a jogar bilhar.

Ofereceu-me um sorriso radiante. - É a coisa mais simpática que já me disseram este ano. De verdade.

- Tudo o que te desejo - continuei, corando -, é que sejas feliz. Mas é uma loucura. Pareces alguém que poderia ser feliz com quase qualquer pessoa e, no entanto, como acabaste por escolher o Nagasawa entre todas as pessoas?

- São coisas que acontecem. E provavelmente pouco podemos fazer para alterar isso. Será essa certamente a verdade no meu caso. Claro, o Nagasawa diria que a responsabilidade é minha e não dele.

- Tenho a certeza de que o diria.

- Em todo o caso, Toru, não sou a rapariga mais inteligente do mundo. Sou, de facto, um pouco idiota e antiquada. Não estou minimamente preocupada com «sistemas» e «responsabilidades». Tudo o que desejo é casar, ter um homem que goste de me abraçar todas as noites e ter filhos. Isso é o suficiente para mim. É tudo o que desejo da vida.

- E o que o Nagasawa deseja da vida não tem nada a ver com isso.

- Contudo, as pessoas mudam, não achas? - perguntou ela.

- Referes-te, por exemplo, à circunstância de se começar a viver em sociedade e levar um pontapé no traseiro para crescermos?

- Sim. E se ele se mantiver muito tempo longe de mim, os seus sentimentos por mim poderão mudar, não achas?

- Talvez, se ele fosse uma pessoa normal. Mas ele é diferente. Possui uma vontade incrivelmente forte, mais forte do que possamos imaginar. E, a cada dia que passa, torna-se mais forte ainda. Se algo se abater sobre ele, isso só servirá para o tornar ainda mais determinado. Preferiria engolir lesmas a ter que ceder perante quem quer que fosse. Que se pode esperar de uma pessoa assim?

- Não posso fazer mais nada a não ser esperar por ele - afirmou, com o queixo apoiado na mão.

- Ama-lo assim tanto?

- Amo - retorquiu sem qualquer sombra de hesitação.

- Bem - proferi com um suspiro enquanto beberricava o resto da cerveja -, deve ser maravilhoso ter a certeza de que[ se ama.

- Sou estúpida e antiquada. Queres mais cerveja?

- Não, obrigado, tenho de ir embora. Obrigado pela ligadura e pela cerveja.

Enquanto calçava os sapatos no corredor, o telefone tocou. A Hatsumi olhou para mim, para o telefone e novamente para mim.

- Boa noite - proferi enquanto saía. Quando fechava a porta, vislumbrei a Hatsumi a pegar no auscultador. Foi a última vez que a vi.

Eram 23:30 quando regressei à residência académica. Dirigi-me prontamente para o quarto do Nagasawa e bati à porta. Após a décima tentativa lembrei-me de que era sábado à noite. Ele obtinha sempre permissão para passar a noite fora aos sábados, alegadamente para visitar familiares.

Fui para o meu quarto, tirei a gravata, pendurei o casaco e as calças numa cruzeta, vesti o pijama e escovei os dentes. Oh, não, pensei: amanhã é outra vez domingo! Os domingos pareciam suceder-se a cada quatro dias. Mais dois domingos e teria vinte anos. Estendi-me na cama e olhei fixamente para o calendário enquanto sentimentos sombrios se apoderavam de mim.

No domingo de manhã, sentei-me à secretária para escrever uma carta à Naoko enquanto bebia café de uma chávena enorme e ouvia antigos álbuns de Miles Davis. Caía uma chuva] miudinha e o meu quarto estava gélido como um aquário. O cheiro das bolas de naftalina permanecia no espesso camisolão que acabara de retirar de uma caixa. Uma mosca enorme e gorda aderia imóvel ao topo da vidraça. Como o vento não soprava, a bandeira do Sol Nascente pendia inerte contra o mastro como se fosse a toga de um senador romano. Um cão acastanhado, escanzelado e de aspecto assustado, esgueirara-se pelo pátio e farejava os rebentos do canteiro. Não conseguia imaginar por que razão um cão se dedicaria a farejar flores num dia chuvoso. Redigi uma carta extensa, e deixava os olhos vaguear pelo pátio molhado quando a palma da mão direita começava a latejar do esforço de segurar na caneta. Comecei por contar à Naoko como acontecera aquele ferimento inesperado na mão direita enquanto trabalhava na loja de discos e depois escrevi que eu, o Nagasawa e a Hatsumii efectuáramos uma espécie de celebração na noite anterior pelo facto de o Nagasawa ter passado no exame de admissão ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Descrevi o restaurante e a comida, disse que fora um jantar esplêndido, mas que o ambiente acabara por se tornar tenso.

Interroguei-me se deveria referir que me lembrara do Kizuki enquanto jogava bilhar com a Hatsumi. Decidi que sim, sentia que era algo que deveria referir.

Ainda me recordo da última tacada do Kizuki nesse dia - no dia em que ele morreu. Era uma difícil jogada de tabela e nunca esperei que ele conseguisse, Mas a sorte parecia acompanhá-lo: foi uma tacada absolutamente perfeita e as bolas branca e vermelha quase não emitiram qualquer som ao roçarem uma pela outra nessa última jogada que encerraria a partida. Foi uma tacada magnífica, ainda hoje tenho uma memória vívida disso. Nunca mais toquei num taco durante quase dois anos e meio depois disso.

Contudo, na noite em que joguei bilhar com a Hatsumi, só me lembrei do Kizuki quando a primeira partida terminou, e foi um verdadeiro choque para mim. Supusera sempre que me recordaria do Kizuki de todas as vezes que jogasse bilhar. Mas só me lembrei dele quando a primeira partida terminou e comecei a beber uma Pepsi que fora buscar a uma máquina automática. Foi a máquina automática que me despoletou esse pensamento: também havia uma no salão de bilhares onde costumávamos jogar e era frequente apostarmos que pagaria as bebidas quem perdesse.

Senti-me culpado por não me ter lembrado imediatamente do Kizuki; era como se, de algum modo, o tivesse abandonado. No entanto, durante o caminho de regresso a casa, comecei a pensar: passaram-se já dois anos e meio desde essa ocorrência e o Kizuki continua ainda com dezassete anos. Isto não significa que a minha memória dele esmoreceu. As emoções que a sua morte provocaram continuam nítidas e claras dentro de mim, algumas delas mais nítidas ainda do que quando éramos tão jovens. O que pretendo dizer é o seguinte: em breve farei vinte anos. Parte do que eu e o Kizuki partilhámos entre os dezasseis e os dezassete anos desapareceu já e, por mais que chore, nada conseguirá trazer isso de volta. Não consigo explicar-me melhor, mas creio que tu provavelmente compreenderás o que senti e o que estou a tentar dizer. Aliás, és talvez a única pessoa no mundo capaz de compreender.

Agora penso em ti mais frequentemente. Está a chover. Os domingos de chuva são penosos para mim. Quando chove, não posso lavara roupa, o que implica que não poderei passar a ferro. Não posso passear e não posso deitar-me no telhado. Fico praticamente limitado a pôr um disco a tocar em modo de repetição e ouvir Kind of Blue uma e outra vez enquanto contemplo a chuva a cair no pátio. Tal como escrevi na carta anterior, não alento a minha Primavera aos domingos. Épor essa razão que esta carta é tão comprida. Vou parar agora. Vou almoçar à cantina.

Adeus.

 

A Midori também não compareceu à aula do dia seguinte. Ter-lhe-ia acontecido algo? Haviam-se passado dez dias desde que faláramos ao telefone. Pensei em lhe telefonar, mas optei por não o fazer, pois ela própria dissera que me telefonaria.

Nessa quinta-feira encontrei o Nagasawa na cantina. Sentou-se ao meu lado com um tabuleiro cheio de comida e pediu desculpa por ter tornado a nossa «celebração» tão desagradável.

- Não faz mal - afirmei. - Eu é que deveria agradecer-te pelo magnífico jantar. No entanto, tenho de confessar que foi uma maneira bizarra de celebrar o teu primeiro emprego.

- Realmente.

Continuámos a comer em silêncio.

- Fiz as pazes com a Hatsumi - declarou.

- Isso não me surpreende.

- Lembro-me que fui um pouco áspero contigo também.

- Qual o motivo de tantas desculpas? Estás doente? - inquiri.

- Talvez esteja - retorquiu, anuindo levemente com a cabeça. - A Hatsumi contou-me que a aconselhaste a deixar-me.

- Seria a coisa mais sensata a fazer.

- Sim, suponho que sim - concordou.

- Ela é uma rapariga magnífica - declarei enquanto comia a sopa de soja.

- Eu sei - disse com um Suspiro. - Um pouco demasiado magnífica para mim.

Dormia profundamente quando a campainha tocou a anunciar que havia uma chamada para mim. O som arrancou-me numa total confusão daquele sono absoluto e profundo. Tinha a sensação de ter dormido com a cabeça mergulhada em água até o meu cérebro inchar. O despertador indicava que eram 6:15, mas não fazia ideia se seria de manhã ou de tarde, além de que não conseguia lembrar-me que dia era. Olhei para fora da janela e reparei que a bandeira não fora hasteada. Provavelmente era de tarde. Por conseguinte, hastear a bandeira servia de facto para alguma coisa.

- Ei, Watanabe, estás livre agora? - perguntou-me a Midori.

- Não sei, que dia é hoje?

- Sexta-feira.

- De manhã ou de tarde?

- De tarde, obviamente! És tão estranho! Vejamos, são, hã, 18:18. Já era de tarde, afinal de contas! De facto, deitara-me na

cama a ler e acabara por adormecer. Era sexta-feira. A minha cabeça começou a desanuviar-se. À sexta-feira à noite não trabalhava na loja de discos. - Sim, estou livre. Onde estás?

- Na Estação de Ueno. E se nos encontrássemos em Shinjuku? Vou partir agora.

Combinámos a hora e o local e desligámos.

Quando cheguei ao Bar Dug, encontrei a Midori sentada na extremidade do balcão com uma bebida. Vestia um casaco de homem branco e engelhado, uma fina camisola amarela, calças de ganga e usava duas pulseiras num dos pulsos.

- O que estás a beber? - perguntei-lhe.

- Um Tom Collins.

Pedi um whisky com soda e reparei então numa enorme mala junto aos pés dela.

- Estive fora. Acabo de regressar - informou-me.

- Onde estiveste?

- Em Nara no sul e em Aomori no norte.

- Durante a mesma viagem?!

- Não sejas idiota. Posso ser uma pessoa estranha, mas não consigo viajar para norte e para sul em simultâneo. Fui a Nara com o meu namorado e depois viajei sozinha para Aomori.

Beberriquei o meu whisky com soda e acendi o cigarro à Midori. - Deve ter sido um período difícil para ti, com o funeral e tudo isso.

- Não, os funerais são situações simples. Já estou acostumada. Visto um quimono preto, fico ali sentada como uma senhora e as outras pessoas tratam de tudo: um tio, um vizinho, há sempre alguém. Trazem o saque, encomendam o sushi, dizem palavras de conforto, choram, continuam com as suas vidas e fazem as partilhas. É como uma brisa. Um piquenique. Comparado com tomar conta de alguém dia após dia, é um verdadeiro piquenique. Eu e a minha irmã estávamos esgotadas. Nem conseguíamos chorar. Já não nos restavam lágrimas. De verdade. No entanto, quando alguém age assim, começam a sussurrar sobre nós: «Aquelas raparigas são verdadeiramente frias». Mas nós as duas somos assim, nunca choramos. Eu sei que podíamos ter fingido, mas nunca faríamos uma coisa dessas. Que cabrões! Quanto mais queriam ver-nos a chorar, mais determinadas estávamos em não lhes dar essa satisfação. Eu e a minha irmã somos completamente diferentes, mas, numa situação como esta, estamos em sintonia absoluta. As pulseiras tilintaram no seu pulso enquanto fazia sinal ao empregado para pedir outro Tom Collins e pistácios.

- Quando o funeral acabou e todos partiram, nós as duas bebemos saque até ao pôr-do-sol. Emborcámos uma daquelas enormes garrafas de quase dois litros e ainda metade de uma outra. E durante todo esse tempo dizíamos mal de toda a gente: aquele era um idiota, aquele outro um asno, um parecia um cão esfomeado e outro um porco, outro um hipócrita, outro um charlatão. Nem fazes ideia de como isso nos fez sentir bem!

- Imagino, sim.

- Ficámos completamente embriagadas e fomos dormir, ambas apagámos por completo. Dormimos durante horas e, se o telefone tocava, limitávamo-nos a deixá-lo tocar. Estávamos mortas para o mundo. Quando finalmente acordámos, encomendámos sushi e discutimos acerca do que fazer daí em diante. Decidimos fechar a loja durante algum tempo e divertirmo-nos. Há meses que andávamos a matar-nos e merecíamos um descanso. A minha irmã pretendia apenas passear com o namorado durante algum tempo e eu resolvi empreender uma viagem durante um par de dias e foder como uma maluca. - Fechou a boca de repente e coçou as orelhas. - Ups, desculpa.

- Não faz mal. Foste então para Nara.

- Sim, sempre gostei desse lugar. Dos templos, do parque dos veados.

- E fodeste como uma maluca?

- Não, de modo algum. Nem uma única vez - afirmou com um suspiro. - Assim que entrámos no quarto de hotel e pousámos a bagagem, chegou-me o período. Um verdadeiro jorro.

Não consegui impedir-me de rir.

- Ei, não tem piada. Veio com uma semana de antecedência! Não consegui refrear as lágrimas quando isso aconteceu. Creio que todo aquele stresse me abalou. O meu namorado ficou tão zangado! Ele é assim, fica logo zangado. Mas a culpa não era minha. Não fui eu que escolhi ter o período naquele momento. Além do mais, os meus períodos são de facto penosos, porque durante um dia ou dois não me apetece fazer nada. Tenta manter-te longe de mim nessas ocasiões.

- Assim o farei, mas como vou saber se estás com o período?

- perguntei.

- Bem, usarei um chapéu enquanto estiver com o período. Um chapéu vermelho. Assim já sabes - sugeriu com uma gargalhada. - Se me vires na rua com um chapéu vermelho, não fales comigo e foge de imediato.

- Óptimo. Quem me dera que todas as raparigas fizessem o mesmo. Bem, e o que fizeram em Nara?

- Que mais poderíamos nós fazer? Demos de comer aos veados e passeámos por toda a parte. Foi realmente entediante! Tivemos uma enorme discussão e não estamos juntos desde que regressámos. Permaneci cá um par de dias e depois decidi viajar sozinha. Fui para Aomori. Fiquei em casa de um amigo em Hirosaki durante as duas primeiras noites e depois comecei a viajar pelas redondezas: Shimokita, Tappi, por terras dessa zona. São locais agradáveis. Cheguei outrora a elaborar uma brochura com um mapa dessa área. Alguma vez foste lá?

- Não, nunca.

- De qualquer modo - prosseguiu, beberricando o Tom Collins e comendo pistácios -, pensei em ti durante todo esse tempo que viajei sozinha. Pensava como teria sido agradável se me tivesses feito companhia.

- Como assim?

- «Como assim»?! - Olhou para mim com perplexidade.

- O que queres dizer com «Como assim»?!

- Apenas isso. Perguntava apenas por que razão te lembraste de mim.

- Provavelmente porque gosto de ti, é essa a razão! Por que outra razão pensaria em ti? Quem se lembraria de querer estar com alguém de quem não gostasse?

- Mas tu tens namorado. Não precisas de pensar em mim. - Beberriquei lentamente o meu whisky com soda.

- Isso significa que não posso pensar em ti porque já tenho namorado?

- Não, não é isso, eu simplesmente...

- Vê se entendes isto, Watanabe - disse ela, apontando-me o dedo. - Estou a avisar-te, tenho um mês inteiro de infelicidade acumulada dentro de mim e estou prestes a explodir. Portanto, tem cuidado com o que me dizes. Dizes-me mais coisas desse género e ponho-me a chorar como uma madalena. Basta começar a chorar para se prolongar pela noite inteira. Estás preparado para isso? Sou como um verdadeiro animal quando começo a chorar, esteja onde estiver! Estou a falar a sério.

Assenti com a cabeça e mantive-me em silêncio. Pedi uma segunda bebida e comi mais pistácios. Algures, subjacente ao ruído abafado do shaker eléctrico, do tilintar dos copos e da máquina do gelo, Sarah Vaughan cantava uma velha canção de amor fora de moda.

- As coisas entre mim e o meu namorado não têm corrido bem desde o incidente do tampão.

- O incidente do tampão?

- Sim, há cerca de um mês saímos para tomar uma bebida com alguns amigos dele e contei-lhes a história de uma mulher do meu bairro cujo tampão saltou quando espirrou. Divertido, não é?

- Isso é mesmo divertido - comentei com uma gargalhada.

- Sim, todos eles acharam o mesmo. Mas o meu namorado enfureceu-se e disse que eu não deveria falar de coisas tão repugnantes. Foi um balde de água fria.

- Uau.

- Ele é um tipo magnífico, mas consegue ser verdadeiramente preconceituoso em relação a esses assuntos - continuou ela. - Por exemplo, zanga-se se eu usar roupa interior que não seja branca. Não achas isto um verdadeiro preconceito?

- Talvez, mas trata-se de uma questão de gosto. - Achava incrível que um tipo como ele quisesse a Midori como namorada, mas não dei voz a este pensamento.

- E tu, o que tens feito? - perguntou-me.

- Nada. O mesmo do costume - retorqui, mas depois lembrei-me da tentativa de me masturbar enquanto pensava nela como lhe havia prometido. Contei-lhe isso em voz baixa para que ninguém nos ouvisse.

Os seus olhos iluminaram-se e estalou os dedos. - Como foi? Foi bom?

- Não, senti-me envergonhado a meio e parei.

- Estás a dizer que perdeste a erecção?

- Mais ou menos.

- Raios - exclamou, lançando-me um olhar de exasperação.

- Mas não deverias sentir-te envergonhado. Deverias pensar em algo realmente sexy. Não há problema, dou-te autorização para tal. Ei, já sei! Da próxima vez ponho-me ao telefone contigo: «Oh, oh, que maravilha... Oh, estou a sentir... Pára, estou quase a vir-me... Oh, não faças isso!». Direi coisas desse género enquanto o fazes.

- O telefone da residência académica fica no átrio junto à porta da entrada e há sempre pessoas a entrarem e a saírem -expliquei-lhe. - O responsável matar-me-ia com as próprias mãos se me visse a masturbar-me ali.

- Oh, que pena.

- Não faz mal. Um dia destes tentarei de novo sozinho.

- Dá o teu melhor - disse ela.

- Assim o farei.

- Pergunto-me se terá a ver comigo - proferiu. - Talvez não seja sexy por natureza.

- Não é isso - tranquilizei-a. - É mais uma questão de atitude.

- Sabes, as minhas costas são incrivelmente sensíveis. O toque delicado dos dedos nessa zona... hmmmm.

- Terei isso em consideração.

- Ei, e se fôssemos ver agora um filme pornográfico?

- sugeriu. - Um verdadeiro filme sadomasoquista e perverso.

Fomos a um snack-bar e depois a um dos mais miseráveis cinemas para adultos de Shinjuku para ver uma sessão tripla. Segundo o jornal, era o único cinema que exibia filmes sado-masoquistas. O interior do cinema exalava um cheiro indefinível. Entráramos a tempo: o filme estava precisamente a começar quando nos sentámos. Era a história de uma secretária e da sua irmã colegial que haviam sido raptadas por um bando de homens e sujeitadas a torturas sádicas. Os homens obrigavam a mais velha a fazer todo o tipo de coisas horríveis mediante a ameaça de violarem a colegial, mas a secretária transformara-se em breve numa virulenta masoquista e a mais nova começou a ficar verdadeiramente perturbada ao assistir a todas aquelas contorções que obrigam a irmã a fazer. Era um filme tão sombrio e repetitivo que depressa me entediei.

- Se eu fosse a irmã mais nova, não ficava tão facilmente perturbada - comentou a Midori. - Continuaria a observar.

- Tenho a certeza de que o farias.

- E, de qualquer modo, não achas que os mamilos dela são demasiado escuros para uma colegial, uma virgem?

- Absolutamente.

A Midori continuava de olhos presos ao ecrã. Estava impressionada: quem assistia assim a um filme, com uma intensidade tão feroz, certamente daria o seu dinheiro por bem empregue. Não parava de me confidenciar os seus pensamentos: «Oh, meu Deus, olha só para aquilo!», ou «Três tipos ao mesmo tempo! Vão acabar por a rasgar toda!», ou «Gostava de experimentar aquilo com alguém, Watanabe». Estava a divertir-me muito mais com as reacções da Midori do que com o filme.

Quando as luzes se acenderam durante o intervalo, reparei que não havia nenhuma outra mulher ali. Um jovem sentado perto de nós - provavelmente um estudante - lançou um olhar à Midori e mudou-se para um lugar mais afastado.

- Diz-me, Watanabe, ficas excitado quando vês este tipo de coisas?

- Bem, sim, às vezes. É por essa razão que fazem filmes destes.

- Portanto, estás a dizer que sempre que começa uma daquelas cenas, cada homem no cinema está com o coiso em sentido? Trinta ou quarenta homens entesoados ao mesmo tempo? É tão estranho se uma pessoa se puser a pensar nisso, não achas?

- Sim, acho que sim, agora que falas nisso.

O segundo filme era um filme pornográfico vulgar, o que

significava que era ainda mais entediante do que o primeiro.

Tinha imensas cenas de sexo oral e sempre que havia algum fellatio, cunnilingus ou um 69, a banda sonora inundava o cinema com ruidosos efeitos sonoros de lambidelas e chupadelas. Quando ouvia esses sons, sentia-me estranhamente perturbado com a ideia de que estava a desperdiçar a minha vida neste nosso bizarro planeta.

- Pergunto-me quem inventará estes sons - disse à Midori.

- Eu acho que são magníficos.

Havia também o som de um pénis a entrar e a sair de uma vagina. Nunca me apercebera da existência destes sons. O homem respirava pesadamente e a mulher proferia as expressões habituais - «Sim!» ou «Mais!» - enquanto se contorcia debaixo dele. Também se ouvia a cama a chiar. Estas cenas prolongavam-se infinitamente. A Midori parecia estar a apreciar de início, mas também começou a entediar-se pouco depois e sugeriu que saíssemos. Respirámos profundamente quando saímos para o exterior. Era a primeira vez na minha vida que o ar de Shinjuku me parecia saudável.

- Foi divertido - disse ela. - Deveríamos voltar a fazê-lo um dia destes.

- São demasiado repetitivos - declarei.

- Bem, que mais podem eles fazer? Toda a gente faz sempre as mesmas coisas.

Ela tinha razão nesse aspecto.

Fomos beber a outro bar. Pedi novamente um whisky e a Midori bebeu três ou quatro cocktails que não reconheci. Quando nos encontrávamos de novo no exterior, ela disse que sentia vontade de subir a uma árvore.

- Não há árvores aqui - disse-lhe. - E, mesmo que houvesse, estás demasiado tocada para trepar o que quer que seja.

- Raios, és sempre tão sensato, estragas tudo. Se estou bêbada, é porque quero estar bêbada. Que mal tem isso? E, mesmo estando bêbada, consigo trepar a uma árvore. Merda, vou trepar até ao topo de uma árvore enorme e altíssima e vou mijar para cima de toda a gente!

- Não estarás por acaso com vontade de ir à casa de banho?

- Yup.

Levei-a a umas instalações sanitárias pagas, na Estação de Shinjuku, inseri uma moeda na ranhura e enfiei a Midori lá dentro; depois comprei um jornal vespertino num quiosque próximo e li-o enquanto aguardava que ela voltasse.

Mas ela nunca mais surgia. Quinze minutos depois, comecei a ficar preocupado e estava prestes a verificar o que lhe teria acontecido quando saiu por fim com um aspecto pálido.

- Desculpa - disse. - Adormeci.

- Estás bem? - perguntei, colocando o meu casaco sobre os seus ombros.

- Nem por isso.

- Vou levar-te a casa. Basta ires para casa, tomar um bom e demorado banho e deitares-te. Estás exausta.

- Não quero ir para casa. Para quê? Não está ninguém lá. Não quero dormir sozinha naquela casa.

- Que maravilha. Então vais fazer o quê?

- Vou para um hotel do amor desta zona e dormir abraçada a ti a noite inteira. E vou dormir como uma pedra. Amanhã de manhã tomamos o pequeno-almoço e vamos juntos para as aulas.

- Já andavas a planear isto há muito, não andavas? Foi por isso que me telefonaste.

- Obviamente.

- Deverias ter telefonado ao teu namorado e não a mim. Seria a coisa mais sensata a fazer. É para isso que servem os namorados.

- Mas eu quero estar contigo.

- Não podes estar comigo - disse-lhe. - Em primeiro lugar, tenho que voltar para a residência académica antes da meia-noite. Caso contrário, estarei a infringir o recolher obrigatório. Da única vez que fiz isso, foi um inferno para pagar a multa. E, em segundo lugar, se dormir com alguma rapariga, vou querer ter sexo com ela, e a última coisa que me apetece fazer é estar ali deitado a tentar refrear-me. Estou a falar a sério, ainda acabo por te forçar.

- Estás a dizer que me Baterias e me amarrarias para depois me violares por trás?

- Ei, olha que estou a falar a sério.

- Mas eu sinto-me tão só! Quero estar com alguém! Eu sei que te tenho feito coisas horríveis, sempre a exigir sem te dar nada em troca, a dizer o que me vem à mente, a arrastar-te para fora do dormitório e a obrigar-te a levares-me para todo o lado, mas tu és a única pessoa com quem posso fazer essas coisas! Nunca consegui fazer com ninguém as coisas que queria, nem uma única vez durante os meus vinte anos de vida. O meu pai e a minha mãe nunca me prestaram qualquer atenção e o meu namorado, bem, não é desse género. Zanga-se sempre que tento ser eu mesma. E acabamos sempre por discutir. Tu és a única pessoa a quem posso dizer estas coisas. E agora sinto-me mesmo muito, muito cansada e só me apetece adormecer a ouvir alguém dizer-me como gosta de mim e como sou bonita e essas coisas. É tudo o que desejo. E, quando acordar, estarei cheia de energia e nunca mais farei este tipo de exigências egoístas. Juro. Serei uma rapariga bem comportada.

- Eu sei, mas, acredita, não há nada que eu possa fazer.

- Oh, por favor! Senão, sento-me já aqui no chão a chorar desalmadamente durante toda a noite. E durmo com o primeiro tipo que falar comigo.

Tomei uma decisão. Telefonei para a residência académica e pedi que chamassem o Nagasawa. Quando me atendeu, perguntei-lhe se poderia ajudar-me e dispor as coisas de modo a parecer que eu regressara à noite. Expliquei-lhe que estava com uma rapariga.

- Está bem. É por uma causa justa, ajudo-te de bom grado. Pego na tua ficha e dou entrada do teu nome. Não te preocupes. Demora o tempo que for necessário. De manhã podes entrar pela minha janela.

- Obrigado. Fico a dever-te este favor - agradeci e desliguei.

- Tudo pronto? - perguntou a Midori.

- Creio que sim - respondi com um suspiro.

- Óptimo, vamos a uma discoteca, ainda é tão cedo.

- Espera aí, pensei que estavas cansada.

- Para isso sinto-me logo bem.

- Oh, meu Deus.

Ela tinha razão. Fomos a uma discoteca e recuperou gradualmente a energia enquanto dançávamos. Bebeu dois whiskys com Coca-Cola e mantivemo-nos na pista até ficar com a testa encharcada de suor.

- Isto é tão divertido. - exclamou quando fizemos uma pausa e nos sentámos a uma mesa. -Já não dançava assim há anos. Sabes, quando se mexe o corpo, é como se o espírito se libertasse.

- Eu diria que o teu espírito está sempre liberto.

- Nem pensar - retorquiu, abanando a cabeça e sorrindo.

- De qualquer modo, agora já me sinto melhor e estou esfomeada! Vamos comer uma pizza.

Levei-a a uma pizzaria que conhecia, onde pedi cerveja de pressão e uma pizza de anchovas. Não sentia muita fome e comi apenas quatro das doze fatias. A Midori comeu as restantes.

- De facto, recuperaste rapidamente - comentei. - Ainda há pouco estavas pálida e cambaleante.

- Deve-se ao facto de alguém ter ouvido as minhas exigências egoístas - respondeu. - Isso desbloqueou-me. Uau, a pizza é deliciosa!

- Mas diz-me uma coisa. Estás realmente sozinha em casa?

- É a verdade. A minha irmã vai ficar em casa de uma amiga. Mas quem é verdadeiramente assustadiça é a minha irmã. Não consegue dormir sozinha em casa se eu não estiver lá.

- Então esqueçamos a tonta ideia do hotel do amor. Ir para um lugar desses só nos fará sentir-nos indignos. Vamos para tua casa. Tens roupa de cama que possas dispensar-me?

Ponderou durante alguns segundos e anuiu com a cabeça. - Está bem, passamos a noite em minha casa.

Apanhámos a Linha de Yamanote para Otsuka e em breve levantávamos as portadas de metal que resguardavam a fachada da Livraria Kobayashi. Um aviso de papel indicava TEMPORARIAMENTE FECHADO. A livraria obscurecida exalava o cheiro de papel velho, como se as portadas não fossem abertas há muito tempo. Metade das prateleiras encontravam-se vazias e a maioria das revistas haviam sido amarradas em volumes para devolução. A sensação de vazio e frio que sentira da primeira vez era agora mais acentuada. Aquele lugar parecia o casco de um navio abandonado no litoral.

- Não fazem intenção de reabrir a livraria? - perguntei.

- Não, vamos vendê-la - afirmou. - Vamos dividir o dinheiro e viver disso durante algum tempo, sem a «protecção» de ninguém. A minha irmã vai casar-se no próximo ano e eu tenho ainda mais três anos de faculdade. Devemos conseguir o dinheiro suficiente, pelo menos para nos aguentarmos durante os próximos tempos. Vou manter também o meu trabalho em part-time. Assim que vendermos a livraria, vou viver durante uns tempos num apartamento com a minha irmã.

- Achas que alguém vai querer comprar a livraria?

- Provavelmente. Conheço uma pessoa que pretende abrir uma loja de lãs e ultimamente tem-me perguntado se quero vender a casa. Coitado do meu pai. Trabalhou tanto para estabelecer a livraria, estava a pagar o empréstimo às prestações e no fim já quase não lhe restava nada. Tudo começou a dissolver-se, como espuma num rio.

- Bem, teve-te a ti - afirmei.

- A mim?! - disse ela com uma gargalhada. Inspirou e exalou profundamente. - Vamos para o piso de cima. Está frio aqui.

Indicou-me que me sentasse à mesa da cozinha e ligou o cilindro da água para o banho. Entretanto, pus uma chaleira ao lume para preparar chá. Aguardámos que o cilindro aquecesse, sentados à mesa a beber chá. A Midori apoiara o queixo na mão e olhava-me intensa e demoradamente. Não se ouviam quaisquer ruídos, excepto o tiquetaque do relógio e o zumbido do motor do frigorífico a ser accionado e desactivado quando o termostato disparava. O relógio indicava que em breve seria meia-noite.

- Sabes, Watanabe, se se examinar o teu rosto com atenção, descobre-se que tens um rosto bastante interessante.

- Achas? - perguntei, um pouco magoado.

- Dificilmente me deparo com um rosto agradável - explicou. - Mas o teu... bem, quanto mais o observo, mais penso: «Até escapa».

- Eu também acho - retorqui. - De vez em quando penso em mim próprio e digo: «Que se dane, até escapo».

- Ei, não o disse no mau sentido. Não tenho jeito para expressar os sentimentos por palavras. É por isso que as pessoas me entendem mal. Tudo o que estou a tentar dizer é que gosto de ti. Já te tinha dito isto?

- Já.

- Quer dizer, não sou a única rapariga com dificuldades em perceber os homens. Mas vou conseguindo aos poucos.

Pegou num maço de Marlboros e acendeu um. - Quando se começa do zero, temos que aprender muitas coisas.

- Não é de surpreender.

- Oh, quase me esquecia! Queres queimar um pauzinho de incenso pelo meu pai?

Segui-a até à divisão com o altar budista, acendi um pauzinho de incenso diante da foto do pai dela e uni as mãos em prece.

- Sabes o que fiz no outro dia? - perguntou-me. - Pus-me nua diante da foto do meu pai. Tirei cada peça de roupa para ele poder contemplar-me bem. Como se estivesse numa daquelas posições do yoga. Do estilo, «Olha, papá, as minhas mamas, a minha vagina».

- Por que raios fizeste uma coisa dessas? - inquiri.

- Não sei, queria apenas mostrar-lhe. Quer dizer, metade do meu ser provém do esperma dele, certo? Por que razão não deveria mostrar-lhe? «Aqui está a filha que fizeste». Nessa altura estava um pouco bêbada. Suponho que deve ter sido por essa razão.

- Também suponho que sim.

- A minha irmã entrou e quase desmaiou. Ali estava eu, diante do retrato memorial do meu pai, toda nua e de pernas abertas. Suponho que qualquer pessoa ficaria surpreendida.

- Também suponho que sim.

- Expliquei-lhe por que razão estava a fazer aquilo e disse-lhe: «Tira também a tua roupa, Momo (chama-se Momo), senta-te aqui ao meu lado e mostra-lhe», mas ela recusou-se. Saiu dali em choque. Ela tem uma visão conservadora, de facto.

- Por outras palavras, ela é relativamente normal, queres tu dizer.

- Diz-me uma coisa, Watanabe, o que achavas do meu pai?

- Sinto-me embaraçado com as pessoas que acabo de conhecer, mas não me incomodou ficar sozinho com ele. Senti-me bastante à vontade. Falámos acerca de muitas coisas.

- Que coisas?

- Eurípedes - respondi.

A Midori riu às gargalhadas. - És tão estranho tu! Ninguém se põe a falar acerca de Eurípedes com uma pessoa moribunda que se acaba de conhecer!

- Bem, também ninguém se senta diante do retrato memorial do pai com as pernas abertas!

Riu-se e fez soar a sineta do altar. - Nana bem, papá. Agora vamos divertir-nos, não te preocupes e vê se descansas. Já não sofres mais, pois não? Estás morto, certo? Tenho a certeza de que já não sofres mais. Se estiveres a sofrer ainda, deverias queixar-te aos deuses. Diz-lhes que são muito cruéis. Espero que encontres a mamã e que façam aquilo juntos. Vi o teu pirilau quando te ajudei a fazer chichi. Fiquei bastante impressionada! Portanto, dá-lhe com toda a força. Boa noite.

Tomámos banho à vez e vesti um pijama quase novo do pai dela. Ficava-me um pouco curto, mas sempre era melhor do que nada. A Midori estendeu um colchão no chão diante do altar.

- Não vais ter medo por dormir diante do altar? - perguntou-me.

- De modo algum. Não fiz nada de mal - redargui com um sorriso.

- Mas vais ficar comigo e abraçar-me até eu adormecer, certo?

- Certo.

Abracei-a, praticamente a cair sobre a borda da pequena cama dela. Encostou o nariz ao meu peito e colocou as mãos sobre as minhas coxas. Abracei-lhe as costas com o braço direito e agarrei-me com a mão esquerda à cama para evitar cair. Não era exactamente uma situação susceptível de excitação sexual. Tinha o nariz encostado à cabeça dela e de vez em quando o seu cabelo curto fazia-me comichão.

- Vá, diz-me algo - proferiu ela, com o rosto enterrado no meu peito.

- O que queres que diga?

- Qualquer coisa. Algo que me faça sentir bem.

- És realmente bonita.

- ... Midori - acrescentou. - Diz o meu nome.

- És realmente bonita, Midori - corrigi-me.

- O que queres dizer com realmente bonita?

- Tão bonita que as montanhas se desmoronam e os oceanos secam.

A Midori levantou a cabeça e olhou para mim. - Tens um dom com as palavras.

- Sinto o coração a estremecer quando dizes isso - continuei, sorrindo.

- Diz algo ainda mais bonito.

- Gosto realmente de ti, Midori. Gosto muito.

- Esse muito é quanto?

- Tanto como um urso primaveril - acrescentei.

- Um urso primaveril? - Olhou novamente para mim. - Que estás para aí a dizer? Um urso primaveril?!

- Caminhas sozinha ao longo de um campo num dia de Primavera e vês aparecer um adorável ursinho com pelagem de veludo e olhinhos cintilantes. E ele diz-te: «Olá, senhorita. Queres dar cambalhotas comigo?». E passais o dia inteiro nos braços um do outro, a dar cambalhotas pela encosta da colina recoberta de trevos. Lindo, hã?

- Sim. Realmente lindo.

- É para veres como gosto muito de ti.

- Foi a coisa mais bonita que alguma vez me disseram - disse, enroscando-se contra o meu peito. - Se gostas assim tanto de mim, farás tudo o que eu te disser, certo? Não ficarás zangado, certo?

- Não, claro que não.

- E cuidarás de mim para todo o sempre.

- Claro que sim - respondi, afagando-lhe o cabelo curto, macio e arrapazado. - Não te preocupes, tudo se resolverá.

- Mas tenho medo.

Abracei-a delicadamente e em breve os seus ombros ascendiam e descendiam enquanto a ouvia respirar regularmente durante o sono. Esgueirei-me da cama e fui à cozinha beber uma cerveja. Não sentia sono e pensei em ler um livro, mas não consegui encontrar nenhum que valesse a pena. Pensei em voltar ao quarto dela para procurar um, mas não queria acordá-la enquanto vasculhava o quarto.

Mantive-me sentado a olhar fixamente para o vazio durante algum tempo enquanto beberricava a cerveja e de repente lembrei-me de que estava numa livraria. Fui ao rés-do-chão, liguei a luz e comecei a procurar nas prateleiras dos livros de bolso. Havia poucos livros que me apelavam e também já tinha lido a maioria deles, mas tinha que encontrar alguma coisa para ler. Optei por um exemplar desbotado de Debaixo das Rodas de Hermann Hesse, que certamente se encontraria há muito tempo por vender na livraria, e deixei o dinheiro na caixa registadora. Era uma pequena contribuição para reduzir as dívidas da Livraria Kobayashi.

Sentei-me à mesa da cozinha a beber cerveja e a ler o livro. Lera já a primeira parte do romance quando frequentava o sétimo ano de escolaridade.

E agora, ali estava eu, oito anos depois, a ler o mesmo livro, na cozinha de uma rapariga, vestido com o pijama demasiado curto do seu falecido pai. Que estranho. Se não fossem aquelas estranhas circunstâncias, provavelmente nunca teria relido Debaixo das Rodas.

O livro era antiquado, mas não era um mau romance. Li-o pausadamente, apreciando cada linha no silêncio da livraria a meio da noite. Havia uma empoeirada garrafa de brandy numa das prateleiras da cozinha. Deitei um pouco numa chávena de café e bebi. Aqueceu-me, mas não me ajudou a adormecer.

Um pouco antes das três horas fui ver a Midori; dormia profundamente. Certamente estaria exausta. As luzes do bloco de lojas no exterior da janela lançavam sobre o quarto um brilho branco parecido com o luar. A Midori dormia de costas voltadas para a luz. Jazia tão perfeitamente imóvel que se diria estar petrificada. Debrucei-me para ouvir a sua respiração. Dormia do mesmo modo que o pai.

A mala das suas recentes viagens fora deixada ao lado da cama e o casaco branco pendia das costas de uma cadeira. O tampo da secretária estava perfeitamente arrumado e na parede por cima estava pendurado um calendário com uma imagem do Snoopy. Afastei levemente a cortina para o lado e olhei para as lojas desertas no exterior. Estavam todas fechadas, com as portadas de metal corridas, e as máquinas de venda automática, aglomeradas diante do aviso de FECHADO, eram o único sinal de que algo aguardava o alvorecer. O distante gemido dos pneus dos camiões provocava ocasionalmente um profundo estremecimento no ar. Voltei para a cozinha, servi-me mais uma golada de brandy e continuei a ler Debaixo das Rodas.

O céu começava a empalidecer quando terminei de ler. Preparei café instantâneo, peguei numa caneta e escrevi um bilhete à Midori num bloco de notas. Bebi um pouco do teu brandy. Comprei um exemplar de Debaixo das Rodas. Já está a ficar dia e vou para casa. Adeus. Após alguma hesitação, acrescentei: Ficas realmente bonita a dormir. Lavei a chávena do café, apaguei a luz da cozinha, desci para o rés-do-chão, levantei suavemente as portadas e saí.

Fiquei preocupado com a hipótese de algum vizinho suspeitar da minha presença ali, mas não estava ninguém na rua às 5:50 da manhã. Avistei somente corvos no seu habitual poleiro no telhado, a olharem sombriamente para a rua em baixo. Observei as cortinas de um rosa pálido na janela da Midori e dirigi-me para a paragem do eléctrico para regressar à residência académica. Durante o regresso, encontrei um café aberto e tomei um pequeno-almoço de arroz, sopa de soja, legumes salteados e ovos estrelados. Circundei o dormitório até às traseiras e bati na janela do Nagasawa no rés-do-chão. Deixou-me entrar de imediato.

- Queres café? - perguntou-me. - Não.

Agradeci-lhe, subi para o meu quarto, escovei os dentes, despi-me, enfiei-me debaixo dos lençóis e cerrei os olhos. Um sono desprovido de sonhos abateu-se finalmente sobre mim como uma porta pesada.

Escrevia à Naoko todas as semanas e ela respondia-me frequentemente. As suas cartas nunca eram muito extensas. Em breve começaram a surgir referências às frias manhãs e tardes de Novembro.

Regressaste a Tóquio precisamente na altura em que o tempo outonal começava a agravar-se e durante algum tempo não conseguia descobrir se o vazio que se instalara dentro de mim se deveria à tua ausência ou à mudança da estação. Eu e a Reiko estamos sempre a falar de ti. Pediu-me para te dizer «Olá». Continua amigável comigo, como sempre. Acho que não conseguiria suportar este lugar sem a companhia dela. Choro quando me sinto sozinha. A Reiko diz que é um bom sinal eu conseguir chorar. Mas sentir-me sozinha magoa-me realmente. Quando fico sozinha à noite, há pessoas na escuridão que falam comigo. Falam comigo de um modo semelhante às árvores a gemerem no vento da noite. O Kizuki, a minha irmã: falam assim comigo constantemente. Também se sentem sozinhos e procuram alguém com quem falar.

Releio frequentemente as tuas cartas à noite, quando me sinto sozinha e em sofrimento. Muitas das coisas do mundo exterior provocam-me confusão, mas as tuas descrições do mundo à tua volta proporcionam-me um alívio maravilhoso. É tão estranho! Por que será? Por conseguinte, releio-as uma e outra vez, e a Reiko também. Depois conversamos acerca das coisas que me dizes. Gostei realmente daquela parte sobre o pai dessa Midori. Estamos sempre ansiosas por receber a tua carta semanal, pois é uma das nossas poucas distracções - sim, num lugar como este, as cartas são a nossa distracção.

Esforço-me ao máximo por arranjar algum tempo durante a semana para te escrever, mas sinto-me deprimida sempre que me sento diante de uma folha de papel vazia. E também estou a fazer um esforço enorme para conseguir reescrever-te esta carta. A Reiko tem andado a gritar comigo para te responder. Contudo, não me entendas mal. Há imensas coisas que desejo contar-te e dizer-te. Mas é-me difícil expressá-las em palavras. É por isso que é tão penoso para mim escrever cartas.

A propósito da Midori, ela parece uma pessoa interessante. Ao ler a tua carta, fiquei com a sensação de que ela talvez esteja apaixonada por ti. Quando disse isso à Reiko, ela respondeu: «Bem, claro que está! Até eu estou apaixonada pelo Watanabe!». Todos os dias comemos os cogumelos que colhemos e as castanhas que apanhamos. Todos os dias, de verdade-, arroz com castanhas, arroz com cogumelos matsutake, mas são tão deliciosos que nunca nos fartamos. No entanto, a Reiko não come tanto como eu. Para ela, continua a ser cigarro atrás de cigarro. As aves de capoeira e os coelhos encontram-se bem.

Adeus.

Recebi uma encomenda da Naoko três dias depois do meu vigésimo aniversário. Continha uma camisola cor de vinho, de gola alta, e uma carta.

Feliz Aniversário! Desejo-te felicidades para o teu vigésimo aniversário. O ano do meu vigésimo aniversário parece prestes a terminar e sinto-me infeliz como sempre, mas desejava realmente que pudéssemos partilhar juntos o nosso quinhão de felicidade. A sério. Eu e a Reiko tricotámos cada uma metade da camisola. Se eu o tivesse feito sozinha, teria demorado até ao Dia dos Namorados. A metade bem tricotada foi obra da Reiko e a minha é a outra metade mal feita. A Reiko faz sempre tudo na perfeição e por vezes odeio-me quando me comparo com ela. Quer dizer, não há uma única coisa que eu saiba fazer com perfeição!

Adeus.

Fica bem.

A encomenda continha também um curto bilhete da Reiko.

Como estás? Para ti, a Naoko pode ser o auge da felicidade, mas para mim não passa de uma rapariga desajeitada. Mesmo assim, conseguimos tricotar a camisola a tempo do teu aniversário. É bonita, não é? Fomos nós que escolhemos a cor e o modelo. Feliz Aniversário.

 

Quando recordo o ano de 1969, tudo o que me ocorre é a imagem de um pântano: um pântano profundo e viscoso que parece prestes a atolar-me os sapatos sempre que dou um passo. E caminho através da lama, exausto. À frente e atrás de mim, não vejo nada a não ser a infindável escuridão de um pântano.

O próprio tempo arrastava-se ao ritmo dos meus passos hesitantes. As pessoas à minha volta há muito que prosseguiram em frente, mas eu e o meu tempo ficáramos para trás a debatermo-nos com a lama. O mundo ao meu redor estava prestes a sofrer grandes transformações. A morte levara já John Coltrane, ao qual se juntavam agora muitos outros. As pessoas bradavam que haveria mudanças revolucionárias: mudanças que pareciam estar sempre mais além, na curva da estrada. Todavia, essas «mudanças» não passavam de encenações bidimensionais, panos de fundo desprovidos de substância ou significado. Arrastava-me ao longo de cada dia e raramente levantava a cabeça, sempre de olhos presos no infindável pântano que se estendia à minha frente: apoiava o pé direito e erguia o pé esquerdo, apoiava o pé esquerdo e erguia o pé direito, nunca sabia onde estava, nunca sabia se me dirigia na direcção certa, sabia apenas que tinha de continuar a avançar, um passo de cada vez.

Fiz vinte anos, o Outono foi substituído pelo Inverno, mas na minha vida nada se alterou de modo significativo. Ia para as aulas apático, trabalhava três noites por semana na loja de discos, relia ocasionalmente O Grande Gatsby e aos domingos lavava a roupa e escrevia uma extensa carta à Naoko. Por vezes comia fora com a Midori, íamos ao jardim zoológico ou ao cinema. A venda da Livraria Kobayashi decorreu como esperado e a Midori e a irmã mudaram-se para um T 2 perto de Myogadani, para uma melhor vizinhança. A Midori disse-me que alugaria um apartamento e viveria sozinha quando a irmã casasse. Entretanto, convidou-me para ir almoçar ao novo apartamento delas. Era um apartamento soalheiro e agradável e a Midori parecia mais feliz do que quando vivia na casa por cima da Livraria Kobayashi.

O Nagasawa convidava-nos ocasionalmente para as nossas habituais excursões, mas eu arranjava sempre outra coisa para fazer. Não queria precipitar-me. Naturalmente, não me desagradava a ideia de dormir com raparigas; no entanto, sentia que era um esforço desmesurado quando pensava em todo o processo por que teria de passar: beber na cidade, procurar as raparigas apropriadas, conversar com elas, ir para um hotel. Só podia admirar ainda mais o Nagasawa por continuar a proceder a esse ritual sem nunca se entediar ou fatigar. Talvez as palavras da Hatsumi me tivessem afectado: eu poderia ser bastante mais feliz se pensasse somente na Naoko em vez de dormir com alguma rapariga estúpida e anónima. A sensação dos dedos da Naoko a provocarem-me o orgasmo num campo verdejante permanecia vívida dentro de mim.

Escrevi-lhe no início de Dezembro, a perguntar-lhe se poderia visitá-la durante as férias de Inverno. Recebi uma resposta da Reiko a informar-me que adorariam a minha visita. Explicou-me que a Naoko estava com dificuldades em escrever e que respondia em nome dela, embora isto não significasse que a Naoko estivesse a sentir-se particularmente mal: não havia motivos para me preocupar, estas situações eram recorrentes.

Quando as férias começaram, arrumei as minhas coisas na mochila, calcei botas para a neve e parti para Quioto. Aquele estranho médico tinha razão: as montanhas invernosas e cobertas de neve eram incrivelmente belas. Tal como da primeira visita, dormi duas noites em casa delas e passei três dias a acompanhá-las nas mesmas actividades anteriores. Quando o sol se punha, a Reiko tocava guitarra e conversávamos. Em vez de piqueniques, praticávamos esqui. Uma hora a percorrer os bosques de esquis deixava-nos sem fôlego e a suar. Também nos juntávamos aos outros residentes e aos funcionários para retirar a neve quando era necessário. O doutor Miyata compareceu junto da nossa mesa ao jantar para nos explicar por que razão os dedos médios das pessoas eram mais compridos do que os indicadores, ao passo que com os dedos dos pés era exactamente o oposto. Omura, o guarda do portão, falou-me novamente do delicioso porco de Tóquio. A Reiko gostou dos discos que lhe trouxe como prenda. Transcreveu algumas melodias e praticou-as na guitarra.

A Naoko mostrava-se ainda menos conversadora do que durante o Outono. Quando estávamos os três juntos, sentava-se no sofá a sorrir e quase não falava. A Reiko parecia tagarelar para compensar o silêncio dela. - Não te preocupes - disse-me a Naoko. - É uma situação passageira. Entretenho-me mais a ouvir-vos do que estar eu própria a falar.

A Reiko decidiu ocupar-se com algumas tarefas e saiu de casa para eu e a Naoko podermos dormir juntos. Beijei-a no pescoço, nos ombros, nos seios e ela serviu-se das mãos para me provocar o orgasmo como da vez anterior. Depois abracei-a com força e disse-lhe que o toque dela me acompanhara durante aqueles dois meses, que pensara nela enquanto me masturbava.

- Não dormiste com mais ninguém? - perguntou-me.

- Nem uma única vez.

- Está bem. Então, vou dar-te algo que nunca mais esquecerás. - Deslizou para baixo e beijou-me o pénis; depois envolveu-o com a boca quente e passou a língua, com o cabelo comprido e liso a baloiçar sobre a minha barriga a cada movimento dos seus lábios, até me vir pela segunda vez.

- Achas que nunca mais te esquecerás disto? - perguntou.

- Claro que não. Lembrar-me-ei sempre.

Abracei-a fortemente, enfiei a mão dentro das suas cuecas e toquei-lhe na vagina ainda húmida. A Naoko abanou a cabeça e afastou-me a mão. Mantivemo-nos abraçados em silêncio durante algum tempo.

- Estou a pensar em sair da residência académica no final do semestre e procurar um apartamento - disse-lhe. - Estou farto da vida no dormitório. Se continuar a trabalhar em part-time, conseguirei cobrir bem todas as minhas despesas. Queres viver comigo em Tóquio, tal como te sugeri antes?

- Oh, Toru, obrigada. Estou tão feliz por me propores uma coisa dessas!

- Não é por pensar que este lugar tem algo de errado - continuei. - É calmo, o ambiente circundante é perfeito e a Reiko é uma pessoa maravilhosa.

Mas não é um local onde se deva permanecer durante muito tempo. É demasiado especializado para uma permanência prolongada. Quanto mais tempo permaneceres aqui, mais dificuldades terás em partires.

Em vez de responder, a Naoko olhou para o exterior da janela, para lá da qual se avistava apenas neve. No céu pairavam baixas e pesadas nuvens e o espaço entre elas e a terra coberta de neve era ínfimo.

- Demora o tempo de que precisares e pondera - disse-lhe.

- Independentemente do que acontecer, mudarei de alojamento no final de Março. E podes juntar-te a mim quando assim o decidires.

Anuiu com a cabeça. Abracei-a cuidadosamente, como se estivesse a abraçar uma obra de arte delicadamente modelada em vidro. Envolveu-me o pescoço com os braços. Estava nu e ela envergava apenas a mais reduzida roupa interior branca. O corpo dela era tão belo que de bom grado a contemplaria durante todo o dia.

- Por que razão não fico húmida? - murmurou a Naoko.

- Aquela vez contigo foi a única vez em que aconteceu. No dia do meu vigésimo aniversário, em Abril. Na noite em que me abraçaste. O que há de errado comigo?

- Tenho a certeza de que é estritamente psicológico - disse-lhe.

- Deixa passar algum tempo. Não há pressas.

- Todos os meus problemas são estritamente psicológicos

- retorquiu. - E se eu nunca melhorar? Se nunca mais puder ter relações durante o resto da minha vida? Continuarás a amar-me do mesmo modo? Contentar-te-ás sempre apenas com as minhas mãos e os lábios? Ou resolverás o problema do sexo dormindo com outras raparigas?

- Sou um optimista nato.

Soergueu-se na cama, vestiu uma T-shirt, pôs uma camisa de flanela por cima e vestiu as calças. Comecei a vestir-me também.

- Dá-me tempo para pensar nisso - afirmou. - E pensa também sobre isso.

- Está bem. E, por falar de lábios, o que acabas de me fazer com os lábios foi maravilhoso.

Corou ligeiramente e esboçou um ténue sorriso. - O Kizuki também costumava dizer isso.

- Os meus gostos e opiniões eram muito parecidos com os dele - retorqui com um sorriso.

Sentámo-nos diante um do outro à mesa da cozinha, a beber café e a conversar acerca dos velhos tempos. Ela referia agora o Kizuki mais frequentemente, embora hesitasse e escolhesse as palavras com cuidado. A neve tombava intermitentemente. O céu não clareou uma única vez durante os três dias da minha visita. - Acho que poderei visitar-te de novo em Março - disse-lhe quando me despedia. Abracei-a uma última vez, pesadamente agasalhado com o meu casaco de Inverno, e beijei-a nos lábios. - Adeus - disse-lhe.

 

 

1970, um ano com uma ressonância inteiramente nova, assinalou o fim da minha adolescência. Agora poderia deslocar-me para um pântano inteiramente diferente. Chegou a época dos exames e passei com relativa facilidade. Quando não se tem mais nada para fazer e se passa todo o tempo nas aulas, não é necessária qualquer capacidade especial para passar nos exames finais.

No entanto, ocorreram alguns problemas na residência académica. Alguns dos estudantes activos numa das facções políticas esconderam capacetes e barras de ferro nos seus quartos. Tiveram um confronto com alguns jogadores de beisebol, com o aval do responsável do dormitório, e dois deles haviam ficado feridos e outros seis foram expulsos. As consequências deste incidente prolongaram-se durante muito tempo, dando origem a rixas menores quase diariamente. A atmosfera que imperava no dormitório era opressiva e todos os estudantes andavam com os nervos em franja. Eu próprio corri o risco de ser espancado pelos jogadores de beisebol, mas o Nagasawa interveio e conseguiu acalmar a situação. De qualquer modo, chegara a altura de eu sair dali.

Assim que concluí a maioria dos exames, comecei a procurar seriamente um apartamento. Uma semana depois, encontrei um local adequado e bastante afastado, nos subúrbios de Kichijoji. Não era um local exactamente conveniente, mas tratava-se de uma casa: uma verdadeira moradia, um autêntico achado. Fora originalmente o casinhoto de um jardineiro ou uma espécie de chalé e erguia-se numa das extremidades de um pedaço de terreno de considerável extensão, separado da casa principal por um enorme jardim votado ao abandono. O senhorio usava o portão da frente e eu o das traseiras, o que me possibilitava preservar a minha privacidade. Dispunha de um quarto de tamanho considerável, de uma pequena cozinha e um quarto de banho e um armário inacreditavelmente enorme. Dispunha inclusivamente de uma varanda virada para o jardim. O simpático casal de idosos alugava a casa a um preço bem abaixo do valor de mercado, na condição de que o inquilino estivesse disposto a mudar-se no ano seguinte caso o seu neto decidisse vir para Tóquio. Disseram-me que poderia viver a meu bel-prazer e que não fariam quaisquer exigências.

O Nagasawa ajudou-me na mudança. Conseguiu arranjar uma carrinha para transferir as minhas coisas e, como prometido, deu-me o frigorífico, o televisor e uma enorme garrafa termos. Embora ele já não precisasse destas coisas, para mim eram perfeitas. Ele próprio se mudaria dentro de dois dias, para um apartamento nos arredores de Mita.

- Creio que não vamos ver-nos durante bastante tempo. Portanto, fica bem - disse-me enquanto se despedia. - Tenho a certeza de que nos encontraremos daqui a anos, nalgum lugar estranho.

- Estou ansioso por esse momento - retorqui.

- E, nessa altura, trocaremos de parceira: aquela rapariga de aspecto engraçado era de longe melhor do que a outra.

- Podes crer - respondi com uma gargalhada. - De qualquer modo, Nagasawa, cuida da Hatsumi. É difícil encontrar raparigas como ela. E ela é bem mais frágil do que parece.

- Sim, eu sei - disse, anuindo com a cabeça. - É por essa razão que tinha a esperança de que ficasses com ela quando rompêssemos. Vocês os dois fariam um par magnífico.

- Tem juízo!

- Estava a brincar - continuou o Nagasawa. - Em todo o caso, sê feliz. Tenho o pressentimento de que vais deparar-te ainda com muitas dificuldades, mas tu és um cabrão obstinado e tenho a certeza de que conseguirás lidar com isso. Posso dar-te um conselho?

- À vontade.

- Não sintas pena de ti próprio. Somente os idiotas agem assim.

- Tentarei lembrar-me disso. - Demos um aperto de mão e seguimos caminhos separados: ele em direcção ao seu novo mundo e eu de volta ao meu pântano.

Três dias depois de me mudar, escrevi à Naoko. Descrevi-lhe a minha nova casa e disse-lhe que sentia um grande alívio por estar longe dos idiotas do dormitório e das suas estúpidas lavagens ao cérebro. Agora poderia iniciar a minha nova vida com um novo estado de espírito.

A minha janela dá para um enorme jardim que todos os gatos das redondezas usam como local de encontro. Gosto de estar na varanda a observá-los. Não sei bem quantos são, mas é um enorme bando de gatos. Apanham sol em grupos. Creio que não estão muito contentes por eu viver aqui, mas certa vez coloquei lá fora um naco de queijo seco e alguns deles aproximaram-se sorrateiramente para o mordiscarem. Provavelmente não demorará muito a tornarem-se meus amigos. Entre eles há um macho listrado, com as orelhas meio-mutiladas. É impressionante, mas parece-se bastante com o responsável do meu dormitório. Quase espero vê-lo um destes dias a hastear a bandeira!

Aqui, encontro-me longe da universidade, mas no terceiro ano não vou ter muitas aulas de manhã e por isso não constituirá um grande transtorno. Provavelmente até será melhor, pois terei tempo para ler no comboio. Agora só me resta arranjar aqui um emprego simples que me ocupe durante três ou quatro dias por semana. Depois poderei continuar a alentar a minha Primavera.

Não é minha intenção precipitar-me, mas Abril é um mês excelente para dar início a novas coisas e sinto que seria melhor começarmos a viver juntos. Poderias também continuar os teus estudos se as coisas corressem bem. Se porventura tivéssemos problemas em viver juntos, poderia arranjar um apartamento para ti nas redondezas. O mais importante éficarmos sempre perto um do outro. Não é obrigatório que seja na Primavera, evidentemente.

Se achares que é melhor no Verão, por mim não há problema também. Diz-me só o que pensas, está bem?

Faço tenções de dedicar mais tempo a um emprego por enquanto, para cobrir as despesas da mudança. Vou precisar de uma quantia considerável de dinheiro para algumas coisas assim que começar a viver sozinho: tachos e panelas, pratos, coisas desse género. Todavia, em Março já estarei livre e desejo sinceramente visitar-te de novo. Que datas te conviriam mais, para eu poder planear a minha viagem a Quioto? Estou desejoso de te ver e ansioso pela tua resposta.

Ocupei os dias seguintes a comprar as coisas de que necessitava num bairro comercial próximo, em Kichijoji, e comecei a preparar refeições simples em casa. Comprei pranchas de madeira numa carpintaria local e pedi que as cortassem no tamanho adequado para improvisar um móvel que serviria de secretária e também como mesa para as refeições. Fiz umas prateleiras e adquiri uma boa colecção de especiarias. Uma gata branca, com cerca de seis meses de idade, decidiu que gostava de mim e começou a comer em minha casa. Dei-lhe o nome de Gaivota.

Assim que consegui tornar o meu espaço minimamente habitável, fui à cidade e arranjei um emprego temporário como assistente de pintura. Consegui ocupar assim duas semanas inteiras. Recebi um salário considerável, mas era um trabalho extremamente penoso e as exalações das tintas provocavam-me tonturas. No final de cada dia de trabalho, jantava num restaurante barato e engolfava a comida acompanhada de cerveja, ia para casa, brincava com a gata e depois dormia profundamente. Não recebi qualquer resposta da Naoko durante essas duas semanas.

Encontrava-me embrenhado a pintar quando me lembrei inesperadamente da Midori. Apercebi-me de que já não contactava com ela há quase três semanas e nem sequer a informara de que me mudara. Havia-lhe mencionado que estava a pensar em me mudar, ela dissera «Oh, de verdade!» e foi a última vez que falámos.

Dirigi-me a uma cabina para lhe telefonar. A mulher que me atendeu era provavelmente a irmã dela. Quando lhe disse o meu nome, respondeu «Só um minuto», mas a Midori não veio ao telefone.

Depois, a irmã, ou quem quer que fosse, voltou a falar comigo. - A Midori diz que está demasiado furiosa para falar contigo. Mudaste-te e nem chegaste a dizer-lhe nada, certo? Limitaste-te a desaparecer e nunca lhe disseste para onde ias, certo? Bem, deixaste-a verdadeiramente furiosa. E, quando ela se enfurece, fica assim durante bastante tempo. Como se fosse um animal.

- Podes chamá-la ao telefone? Eu posso explicar.

- Ela diz que não quer ouvir nenhuma explicação.

- Posso explicar-te a ti, então? Detesto colocar-te nesta situação, mas podias ouvir-me e contar-lhe o que te vou dizer?

- A mim não! Fala tu com ela. Que homem és tu? A responsabilidade é tua. Portanto, explica-lhe tu e explica-lhe bem.

Era inútil. Agradeci-lhe e desliguei. Não podia, de facto, censurar a Midori por estar enfurecida. Com toda aquela situação da mudança, de tratar das coisas e de ganhar um dinheiro extra, esquecera-me dela. Nem sequer me lembrara da Naoko durante todo esse tempo. Isto não era novidade para mim: sempre que me embrenhava em algo, esquecia-me de tudo o resto.

Mas depois comecei a pensar como me teria sentido se os papéis se invertessem e a Midori se tivesse mudado sem me dizer para onde ia e não me contactasse durante três semanas. Eu próprio teria ficado magoado: profundamente magoado, sem dúvida. Não, não éramos amantes, mas, de certo modo, abríramo-nos um ao outro mais profundamente do que se fôssemos amantes. Este pensamento causou-me bastante sofrimento. É terrível magoar alguém de quem realmente gostamos - e, ainda por cima, de modo inconsciente.

Assim que regressei a casa do trabalho, sentei-me à secretária e escrevi à Midori. Disse-lhe como me sentia, tão honestamente quanto possível. Pedi-lhe desculpa, sem entrar em explicações, por ter sido tão insensível e negligente. Tenho saudades tuas, escrevi. Gostava de te ver assim que for possível. Gostava que visses a minha nova casa. Escreve-me, por favor, disse-lhe. Enviei a carta por correio expresso.

Não recebi qualquer resposta.

Foi o começo de uma estranha Primavera. Passei a estação inteira à espera de cartas. Não podia viajar, não podia ir a casa visitar os meus pais, não podia sequer arranjar um emprego em part-time porque nunca sabia quando poderia chegar uma carta da Naoko a anunciar que desejava que eu fosse visitá-la. Passava as tardes num bairro comercial próximo, em Kichijoji, a assistir a sessões de cinema duplas ou a ler num café-jazz. Não visitava ninguém e praticamente não falava com ninguém. E escrevia à Naoko uma vez por semana. Nunca lhe indicava que esperava uma resposta. Não pretendia pressioná-la. Contava-lhe acerca do meu emprego, sobre a Gaivota, o pessegueiro no jardim, a velhinha simpática que vendia tou, a velha ruim do restaurante local, as refeições que preparava. No entanto, nunca me respondia.

Sempre que me entediava de ler ou de ouvir discos, trabalhava um pouco no jardim. Pedi ao senhorio um ancinho, uma vassoura e tesouras de poda e ocupei-me a arrancar as ervas daninhas e a podar os arbustos. Em breve o jardim ficou com um aspecto agradável. Certa vez o senhorio convidou-me para tomar chá: sentámo-nos na varanda da casa principal, a beber chá verde e a comer bolachas de arroz enquanto conversávamos. Reformara-se e arranjara emprego numa companhia de seguros, mas também acabara por prescindir dessa ocupação após um par de anos e agora vivia calmamente. A casa e o terreno pertenciam há bastante tempo à sua família, os seus filhos eram já adultos e independentes e conseguia disfrutar de uma velhice confortável sem precisar de trabalhar. Era por essa razão que ele e a esposa viajavam frequentemente.

- Que maravilha - comentei.

- Não é, não - retorquiu. - Viajar não é divertido. Preferia estar a trabalhar.

Disse-me que deixava o jardim ao abandono porque não havia jardineiros decentes naquela zona e também porque padecia de alergias que o impossibilitavam de se ocupar dessa tarefa. Cortar a erva provocava-lhe esternutação.

Quando acabámos de beber o chá, mostrou-me um anexo de arrumos e disse-me que poderia usar tudo o que quisesse, como que em jeito de agradecimento por ter tratado do jardim.

- Nós já não precisamos de nenhuma destas coisas - disse -, portanto, esteja à vontade.

De facto, o anexo estava atafulhado com todo o tipo de objectos: uma velha tina de madeira, uma piscina para crianças, tacos de beisebol. Encontrei também uma velha bicicleta, uma mesa de jantar de tamanho médio, duas cadeiras, um espelho e uma guitarra. - Gostaria que me emprestasse estas coisas, se não se importasse.

- Esteja à vontade - reiterou.

Passei um dia a consertar a bicicleta: removi a ferrugem, oleei os raios, enchi os pneus, ajustei as mudanças e levei-a a uma casa de consertos para instalarem um novo cabo das mudanças. Parecia uma bicicleta diferente depois dos consertos. Removi uma espessa camada de pó da mesa e apliquei-lhe uma mão de verniz. Substituí as cordas da guitarra e colei uma secção da caixa que se soltara. Usei uma escova de arame para retirar a ferrugem das cravelhas e afinei-as. Era uma guitarra de fraca qualidade, mas consegui afiná-la. Apercebi-me de que já não pegava numa guitarra desde o ensino secundário. Sentei-me no alpendre e tentei dedilhar Up on the Roof dos The Drifters. Fiquei surpreendido ao descobrir que ainda me lembrava da maioria dos acordes.

Depois peguei em tábuas e construí uma caixa de correio quadrada. Pintei-a de vermelho, escrevi o meu nome em cima e afixei-a no exterior da porta. Até ao dia três de Abril, o único correio que encontrei foi algo que deveria ter sido reencaminhado para a residência universitária: um aviso do comité de reuniões do meu liceu. A última coisa que desejava era uma reunião da minha antiga turma e do Kizuki. Atirei o aviso para o cesto do lixo.

Na tarde do dia quatro de Abril encontrei uma carta na caixa de correio. Dizia Reiko Ishida no verso. Abri-a cuidadosamente com as tesouras e fui lê-la para o alpendre. Tinha o pressentimento de que não se tratava de boas notícias, e tinha razão.

A Reiko começava por pedir desculpa por me ter feito esperar tanto tempo por uma resposta. Informou-me que a Naoko tentara escrever-me, mas que não conseguira redigir a carta até ao fim.

Ofereci-me para te responder em vez dela; mas sempre que lhe dizia que era indelicado fazer-te esperar tanto tempo, ela insistia que se tratava de um assunto demasiado pessoal e que ela própria te escreveria; aliás, foi por esse motivo que não te escrevi mais cedo. Lamento, sinceramente. Espero que me perdoes.

Eu sei que deve ter sido um mês difícil, sempre à espera de uma resposta, mas, acredita em mim, esse mês foi igualmente difícil para a Naoko. Por favor, tenta compreender aquilo por que ela está a passar. Devo dizer, com toda a honestidade, que o seu estado é preocupante. Esforçou-se ao máximo por se aguentar firme, mas os resultados não têm sido os melhores.

Em retrospectiva, verifico agora que o primeiro sintoma do problema dela foi a perda da capacidade de escrever cartas, que ocorreu por volta do final de Novembro ou início de Dezembro. Depois começou a ouvir coisas. Sempre que tentava escrever uma carta, ouvia pessoas a falarem com ela, e isso impedia-a de escrever. Essas vozes interferiam nas suas tentativas de escolha das palavras. Como o problema não se agravou até ao período da tua segunda visita, não vi razões para alarme. Para todos nós, que nos encontramos aqui, este tipo de sintomas ocorrem mais ou menos ciclicamente. No caso dela, agravou-se quando partiste. Agora tem dificuldades em manter inclusivamente uma conversa normal. Não consegue encontrar as palavras adequadas para se expressar e isso provoca-lhe um estado de extrema perturbação - perturbação e medo. Entretanto, as «coisas» que ela ouve têm-se agravado.

Todos os dias temos uma sessão com um dos especialistas. Eu, a Naoko e o médico conversamos para tentar descobrir exactamente que parte dela se quebrou. Ocorreu-me que talvez fosse boa ideia incluir-te numa das nossas sessões, se possível, e o médico concordou, mas a Naoko recusou. Posso dizer-te qual foi o exacto motivo dela-. «Quero que

o meu corpo esteja completamente limpo quando me encontrar com ele». Eu disse-lhe que o problema não residia nisso, que o problema consistia em a fazer recuperar o mais rapidamente possível, e esforcei-me por a persuadir, mas ela não mudava de ideias.

Creio que cheguei a explicar-te que isto aqui não se trata de um hospital especializado. Dispomos de médicos especialistas, obviamente, e providenciam-nos tratamentos eficazes, mas uma outra questão é um tratamento intensivo. O objectivo deste lugar é criar um ambiente eficaz no qual o paciente possa tratar-se a si mesmo, e isso não implica um tratamento médico propriamente dito. É por essa razão que provavelmente transferirão a Naoko para outro hospital, clínica, ou para onde quer que seja, se o estado dela se agravar. Pessoalmente, acho esta hipótese demasiado dolorosa, mas fá-lo-emos se necessário. Isso não significa que ela não possa vir aqui para tratamento, numa espécie de «licença de ausência» temporária. Ou, melhor ainda, poderá acabar por recuperar e esquecer os hospitais por completo. De qualquer modo, estamos a fazer tudo o que podemos e a Naoko também. O melhor que tens afazer, é esperar que ela recupere e continuar a enviar-lhe cartas.

A carta datava de 31 de Março. Mantive-me no alpendre depois de a ler e deixei os olhos vaguearem pelo jardim, agora preenchido pela frescura da Primavera. Havia uma velha cerejeira cujos rebentos estavam prestes a alcançar o esplendor de toda a sua glória. Soprava uma brisa suave e a luz do dia emprestava a tudo as suas cores esbatidas e esfumadas. A Gaivota surgiu vinda de algures e, depois de se coçar por instantes nas tábuas da varanda, estendeu-se ao meu lado e adormeceu.

Sabia que deveria reflectir seriamente, mas não fazia ideia de como começar. E, para dizer a verdade, reflectir era a última coisa que desejava fazer. Em breve o tempo se encarregaria de me deixar sem escolha nessa matéria e nessa altura iria precisar de muito tempo para ponderar novamente em tudo. Mas agora não. Agora não.

Passei o dia a contemplar o jardim, apoiado contra uma coluna enquanto afagava a Gaivota. Sentia-me completamente extenuado. O entardecer começava a ceder lugar ao crepúsculo que se abatia e sombras azuladas envolviam o jardim. A gata desapareceu, mas continuei a contemplar os rebentos da cerejeira. Sob a obscuridade da Primavera, pareciam carne que irrompera através da pele que recobria ferimentos purulentos. O jardim exalava o cheiro adocicado e pesado de carne putrefacta. E foi então que me lembrei do corpo da Naoko. O belo corpo da Naoko jazia diante de mim na escuridão, com inúmeros rebentos irrompendo através da sua pele, todos eles esverdeados e tremulando na brisa quase imperceptível. Por que razão um corpo tão belo estava tão doente? Por que razão não deixavam a Naoko em paz?

Fui para dentro de casa e fechei as cortinas, mas dentro de casa também não conseguia escapar ao aroma da Primavera que preenchia tudo desde o solo até ao alto. A única coisa que a fragrância da Primavera me trazia era esse fedor de putrefacção. Encerrado atrás das cortinas, senti um violento ódio pela Primavera. Odiava aquilo que a Primavera me reservava; odiava a dor baça e latejante que despertava dentro de mim. Nunca odiei nada com tanta intensidade na minha vida.

Passei três dias muito deprimido. Quase não ouvia o que me diziam e as pessoas tinham igualmente dificuldades em compreender o que eu dizia. Sentia o corpo completamente envolto numa espécie de membrana que impedia qualquer contacto directo entre mim e o mundo exterior. Não conseguia tocar «neles» e «eles» não conseguiam tocar-me. Encontrava-me absolutamente indefeso e, enquanto permanecesse nesse estado, «eles» não conseguiriam alcançar-me.

Sentava-me encostado à parede, a olhar fixamente para o tecto. Quando sentia fome, mordiscava o que encontrava ao alcance e bebia água; quando a tristeza se apoderava de mim, aturdia-me com whisky. Não tomava banho, não me barbeava. Foi assim que passei esses três dias.

Recebi uma carta da Midori no dia seis de Abril, a convidar-me para me encontrar com ela no campus e almoçarmos juntos no dia dez quando fôssemos inscrever-nos para as aulas. Decidi escrever-te o mais tardiamente possível e assim já estamos quites; portanto, façamos as pazes. Tenho que admitir que sinto saudades de ti. Reli a carta quatro vezes e continuava sem compreender o que estava a tentar-me dizer. O que pretenderia ela dizer-me? Sentia o cérebro tão obnubilado que não conseguia encontrar a ligação entre as frases. Como é que o facto de nos encontrarmos no dia da inscrição nos tornaria quites? Por que razão queria almoçar comigo? Não compreendia realmente. A minha mente cedera como as raízes encharcadas de uma planta subterrânea. No entanto, tinha consciência de que teria de me revitalizar de algum modo. Lembrei-me então das palavras do Nagasawa: «Não sintas pena de ti próprio. Somente os idiotas fazem isso».

«Está bem, Nagasawa. Em frente», pensei. Suspirei e levantei-me. Lavei a roupa pela primeira vez em semanas, barbeei-me, arrumei a casa, comprei comida e preparei uma refeição decente; dei de comer à esfomeada Gaivota, bebi cerveja e pratiquei trinta minutos de exercício. Quando me barbeava, o espelho revelou-me que me tornara emaciado. Tinha também os olhos esbugalhados. Quase não me reconhecia a mim próprio. Na manhã seguinte, dei um longo passeio de bicicleta e, depois de almoçar em casa, li novamente a carta da Reiko. De seguida, ponderei seriamente como deveria proceder. A carta da Reiko afectara-me profundamente porque perturbara a minha crença optimista de que a Naoko estava a recuperar. A própria Naoko me dissera: «A minha doença é bem mais grave do que pensas: as suas raízes são bem mais profundas». E a Reiko alertara-me para a possível imprevisibilidade dos acontecimentos. Mesmo assim, visitei a Naoko duas vezes e ficara com a impressão de que ela estava a recuperar. Pensara que o único problema dela consistia em saber se conseguiria recuperar a coragem de regressar ao mundo real e, caso o conseguisse, poderíamos depois juntar forças para tentar construir algo.

A carta da Reiko esmagou o castelo ilusório que eu construíra sobre essa frágil hipótese e agora restava apenas uma superfície achatada, desprovida de emoção. Sentia que deveria fazer algo para recuperar o equilíbrio. A Naoko provavelmente demoraria muito tempo a recuperar. E, mesmo que melhorasse, estaria indubitavelmente mais debilitada e mais desprovida de autoconfiança do que antes. Eu próprio teria que me adaptar a essa nova situação. Todavia, e independentemente da minha força, isso não iria resolver todos os problemas. Tinha consciência desse facto. Mas não podia fazer mais nada, a não ser manter-me animado e esperar que ela recuperasse.

Ei, Kizuki, pensei. Ao contrário de ti, escolhi viver - e viver do melhor modo possível. Eu sei que foi duro para ti. Que raios, também é duro para mim. Realmente duro. E tudo porque te suicidaste e deixaste a Naoko sozinha. Mas eu nunca farei uma coisa dessas. Nunca, mas nunca, lhe virarei as costas. Antes do mais, porque a amo e porque sou mais forte do que ela. E vou ser ainda mais forte. Vou tornar-me mais maduro. Vou ser um adulto. Porque é isso que devo fazer. Pensei que gostaria de ter sempre dezassete ou dezoito anos se pudesse. Mas agora não. Já não sou um adolescente. Agora tenho um sentido de responsabilidade. Não sou a mesma pessoa que era quando costumávamos sair juntos. Agora tenho vinte anos. E devo pagar o preço de continuar a viver.

- Raios, Watanabe, que te aconteceu? - perguntou-me a Midori. - Estás pele e osso!

- Estou assim tão mal, hã?

- Aposto que exageraste naquilo com aquela tua amante casada. Sorri e abanei a cabeça. - Não dormi com nenhuma rapariga

desde o início de Outubro.

- Caramba! Não pode ser verdade. Estamos a falar de um período de seis meses!

- É a verdade.

- Então, como perdeste tanto peso?

- Fui obrigado a crescer - respondi.

Colocou as mãos sobre os meus ombros e olhou-me nos olhos com uma expressão dura que depressa se transformou num sorriso doce. - De facto - disse ela. - Há algo de diferente. Tu mudaste.

- Eu disse-te, cresci. Agora sou um adulto.

- É impressionante o modo como o teu cérebro funciona

- declarou, como se estivesse verdadeiramente impressionada.

- Vamos comer. Estou a morrer de fome.

Fomos a um pequeno restaurante atrás do departamento de Literatura. Ambos pedimos o prato especial do dia.

- Ei, Watanabe, estás zangado comigo?

- Devido a quê?

- Por não te ter respondido, só para ficarmos quites. Achas que não deveria ter feito isso? Quer dizer, eu pedi-te desculpa e tudo.

- Sim, mas a culpa foi minha desde o início. É um facto.

- A minha irmã é da opinião de que agi mal. Que foi um comportamento demasiado impiedoso, demasiado infantil.

- Sim, mas isso fez-te sentir melhor, não fez, por poderes desforrar-te?

- Hã-hã.

- Então estamos entendidos.

- Perdoas facilmente, não perdoas? Mas diz-me a verdade, Watanabe: há seis meses que não tens sexo?

- Nem uma única vez.

- Então, daquela vez que me deitaste na cama, certamente estarias a sentir um desejo enorme de o fazer.

- Sim, creio que sim.

- Mas não o fizeste, pois não?

- Olha, és a minha melhor amiga presentemente - retorqui. - Não quero perder-te.

- Sabes, se nessa ocasião tivesses tentado forçar-me, eu não teria resistido, estava tão exausta.

- E eu estava excitado e rijo.

A Midori sorriu e tocou-me no pulso. - Quando me deitaste na cama, estava decidida a acreditar em ti. A acreditar cem por cento. Foi por isso que consegui dormir numa paz total. Sabia que me encontraria bem, que estaria segura ao teu lado. E dormi realmente como uma pedra, não foi?

- Sem dúvida.

- Por outro lado, se me tivesses dito «Ei, Midori, vamos fazê-lo. E tudo será maravilhoso», provavelmente tê-lo-ia feito contigo. Ora bem, não penses que estou a tentar seduzir-te ou a provocar-te.

Estou apenas a dizer-te o que me vai na mente, com total honestidade.

- Eu sei, eu sei.

Enquanto almoçávamos, mostrámos um ao outro as respectivas fichas de inscrição e descobrimos que ambos tínhamos duas cadeiras em comum. Por conseguinte, vê-la-ia pelo menos duas vezes por semana. A Midori começou a contar-me acerca da sua nova vida. Por enquanto, nem ela nem a irmã conseguiam habituar-se a viver num apartamento - porque era demasiado fácil, disse ela. Estavam acostumadas a correr todos os dias como loucas de um lado para o outro, a cuidar de pessoas doentes, a ajudarem na livraria, a fazerem isto e aquilo.

- Mas agora começámos finalmente a habituar-nos. Deveríamos ter vivido sempre assim, sem termos que nos preocupar com as necessidades dos outros e a fazermos o que nos apetecesse. Ambas nos sentíamos nervosas de início, como se os nossos corpos flutuassem a centímetros do chão. Aquilo não parecia real, a vida real certamente não seria assim. Ambas estávamos tensas, como se tudo estivesse prestes a inverter-se a qualquer momento.

- Ambas vos preocupais demasiado - comentei com um sorriso.

- Bem, o facto é que a vida tem sido cruel para nós até hoje. Mas não faz mal. Vamos recuperar tudo o que a vida nos deve.

- Estou em crer que sim, conhecendo-te como te conheço. Mas diz-me uma coisa, o que tem feito a tua irmã ultimamente?

- Uma amiga dela abriu recentemente uma requintada loja de acessórios e a minha irmã ajuda-a três vezes por semana. Entretanto, também estuda culinária, sai com o noivo, vai ao cinema, vegeta e limita-se a apreciar a vida.

Depois perguntou-me sobre a minha nova vida. Forneci-lhe uma descrição da casa, do enorme jardim, da gata Gaivota e do meu senhorio.

- Estás a gostar? - perguntou.

- Bastante.

- Quase conseguias enganar-me.

- Sim, e também é Primavera.

- E vestiste a camisola gira que a tua namorada tricotou para ti.

Momentaneamente estupefacto, olhei para a minha camisola cor de vinho. - Como sabes?

- És tão transparente - disse ela. - Limitei-me a adivinhar, obviamente! De qualquer modo, o que se passa contigo?

- Não sei. Tenho tentado incutir-me um pouco de alento.

- Lembra-te somente de que a vida é uma caixa de chocolates. Abanei reiteradamente a cabeça e olhei para ela. - Talvez eu

não seja muito inteligente, mas às vezes não sei de que raios estás a falar.

- Tu sabes, aqueles sortidos de chocolates, gostamos de alguns e de outros não? E comes todos aqueles de que gostas e os que restam são aqueles que não aprecias tanto? Penso sempre nisso quando acontece algo doloroso. «Agora tenho que engolir estes e tudo ficará bem». A vida é uma caixa de chocolates.

- Creio que se pode chamar a isso uma filosofia de vida.

- Mas é a verdade. Aprendi isso por experiência própria.

Entraram duas raparigas enquanto bebíamos café. A Midori conhecia-as, aparentemente da universidade. Puseram-se as três a comparar as fichas de inscrição e conversaram acerca de uma imensidão de tópicos diferentes: «Que nota tiveste a Alemão?», «Fulano de tal ficou ferido nos tumultos no campus», «Que sapatos fantásticos, onde os compraste?». Quase não lhes prestava atenção e era como se os seus comentários proviessem do outro lado do mundo. Continuei a beberricar o meu café e a observar a paisagem pela janela do restaurante. Era um típico cenário universitário primaveril à medida que o novo ano lectivo se aproximava: pairava no céu uma espécie de neblina, as cerejeiras desabrochavam, os novos alunos (facilmente identificáveis a olho nu) carregavam braçadas de livros. Comecei a divagar um pouco e pensei na Naoko, impossibilitada de retomar os seus estudos este ano. Junto da janela havia uma pequena jarra repleta de anémonas.

Quando as outras duas raparigas voltaram para a sua mesa, eu e a Midori saímos para passear por aquela zona. Entrámos nalgumas livrarias de livros usados, comprámos alguns, tomámos novamente café, jogámos flippers num salão de jogos e sentámo-nos num dos bancos do parque a conversar - ou, melhor, a Midori falava e eu limitava-me a emitir grunhidos em resposta.

Quando anunciou que tinha sede, corri em direcção a um quiosque para comprar duas Coca-Colas, quando regressei para junto dela, encontrei-a a escrevinhar numa folha de papel pautado.

- O que estás a escrever? - perguntei-lhe.

- Nada.

Às 15:30, anunciou: - Tenho que ir. Vou encontrar-me com a minha irmã em Ginza.

Dirigimo-nos para a estação do metro e partimos em direcções diferentes. Ao despedir-se, a Midori enfiou a folha de papel, agora dobrado em quatro, no meu bolso. - Lê isto quando chegares a casa.

Comecei a ler no comboio.

 

Estou a escrever-te esta carta enquanto foste buscar as bebidas. É a primeira vez na minha vida que escrevo uma carta a alguém sentado ao meu lado num banco, mas sinto que é a única maneira de conseguir chegar até a ti. Quer dizer, quase nunca ouves nada do que te digo. Não tenho razão?

Porventura apercebeste-te de que foste terrível para mim hoje? Nem sequer reparaste no meu novo penteado, pois não? Esforcei-me imenso para mudar de penteado, tentei deixar o cabelo crescer e, finalmente, no fim da semana passada, consegui encontrar um estilo aparentemente mais feminino, mas nem sequer reparaste. O penteado fica-me mesmo bem e pensei fazer-te uma pequena surpresa quando me visses após tanto tempo, mas nem sequer te apercebeste. Não achas isso horrível? Aposto que nem sequer te lembras de que roupa eu vestia hoje. Ei, sou uma rapariga! Que interessa que tenhas a mente ocupada com outras coisas? Podes dispensar-me pelo menos um olhar de apreciação! Só precisas de dizer «Que penteado giro» e ter-te ia perdoado por estares mergulhado num milhar de pensamentos, mas não!

Épor essa razão que te contei uma mentira. Não é verdade que tenho de me encontrar com a minha irmã em Ginza. Era minha intenção passar a noite em tua casa. Trouxe até o pijama. A sério. Trouxe o pijama e uma escova de dentes na bolsa. Sou tão idiota! Quer dizer, nem sequer me convidaste uma única vez para ir ver a tua casa. Pois bem, que se dane, obviamente pretendes estar sozinho e, por conseguinte, vou deixar-te em paz. Prossegue em frente e continua a divagar para grande contentamento do teu coração!

Mas não me interpretes mal. Não estou completamente furiosa contigo. Apenas triste. Foste sempre tão simpático comigo quando eu tinha problemas, mas agora que te encontras imerso nos teus próprios problemas, parece que não posso fazer nada por ti. Encontras-te encarcerado no teu pequeno mundo e, quando tento bater à tua porta, limitas-te a levantar a cabeça por um segundo e voltas imediatamente para dentro.

Já vens aí com as bebidas - e continuas a pensar enquanto caminhas. Tinha a esperança de que tropeçasses, mas não. Agora estás sentado ao meu lado a beber uma Coca-Cola. Acalentava ainda uma última esperança de que reparasses e dissesses «Ei, mudaste de penteado!", mas não. Se tivesses reparado, teria rasgado esta carta e dir-te-ia: «Vamos para tua casa. Vou preparar-te um esplêndido jantar. E depois podemos deitar-nos na cama e trocar carícias". Mas tu és insensível como uma pedra. Adeus.

 

P.S. - Por favor, não me dirijas a palavra quando me vires.

 

Quando saí do comboio em Kichijoji, telefonei da estação para o apartamento da Midori, mas ninguém atendeu. Como não tinha nada para fazer, deambulei pelas redondezas à procura de um trabalho em part-time que me ocupasse depois das aulas. Estaria livre todos os sábados e domingos e poderia trabalhar às segundas, quartas e sextas-feiras depois das dezassete horas; mas não era fácil encontrar um trabalho que se adequasse ao meu horário particular. Desisti de procurar e fui para casa. Quando saí para fazer compras para o jantar, telefonei de novo à Midori. A irmã disse-me que a Midori ainda não regressara a casa e que não fazia ideia a que horas voltaria. Agradeci-lhe e desliguei.

Após o jantar, tentei escrever à Midori, mas desisti após vários começos em falso; em vez disso, escrevi uma carta à Naoko.

 

Estamos na Primavera, disse-lhe, e o novo ano lectivo está prestes a iniciar-se. Disse-lhe que sentia saudades dela, que tinha a esperança de conseguir encontrar-me com ela para conversarmos. De qualquer modo, decidi tornar-me mais forte. Tanto quanto sei, é tudo o que me resta fazer.

Há mais uma coisa. Talvez diga respeito somente a mim e provavelmente não te interessa saber, mas não tenho dormido com ninguém. A razão é porque não quero esquecer a última vez em que me tocaste. Significou para mim mais do que possas imaginar. Estou sempre a pensar nisso.

 

Coloquei a carta dentro de um envelope, colei o selo e continuei sentado à secretária durante bastante tempo, a olhar fixamente para a carta. Era uma carta bastante mais breve do que o costume, mas tinha o pressentimento de que a Naoko iria compreender-me melhor. Servi-me um pouco de whisky, emborquei-o em duas goladas e fui dormir.

No dia seguinte, arranjei perto da Estação de Kichijoji um emprego que poderia ocupar-me aos sábados e aos domingos: empregado de mesa num pequeno restaurante italiano. As regalias eram bastante exíguas, mas as despesas de deslocação e o almoço estavam incluídos. E sempre que algum dos empregados do turno da noite tivesse folga numa segunda, quarta ou quinta-feira (o que acontecia frequentemente), poderia substituí-lo. Era conveniente para mim. O gerente, um indivíduo bem mais decente do que o idiota que geria a loja de discos em Shinjuku, disse que me aumentariam o salário após três meses de serviço e queriam que eu começasse nesse mesmo sábado.

Telefonei de novo à Midori e atendeu-me a irmã uma vez mais. Informou-me, de voz cansada, que a Midori se encontrava fora desde o dia anterior e que ela própria começava a ficar preocupada: perguntou-me se fazia alguma ideia onde ela pudesse estar. Tudo o que eu sabia, era que a Midori levara um pijama e uma escova de dentes na bolsa.

Vi a Midori na aula de quarta-feira. Envergava uma camisola verde-escura e usava os mesmos óculos de sol escuros que tantas vezes usara no Verão anterior. Estava sentada na última fila, a conversar com uma rapariga magra e de óculos que eu desconhecia. Acerquei-me e disse-lhe que gostaria de falar com ela no final da aula. A rapariga de óculos olhou para mim e somente depois a Midori se dignou olhar-me também. O seu penteado era, de facto, um pouco mais feminino do que habitualmente: um estilo mais adulto.

- Vou encontrar-me com uma pessoa - afirmou, empertigando ligeiramente a cabeça.

- Não te demorarei - disse-lhe. - Cinco minutos.

A Midori tirou os óculos e semicerrou os olhos. Parecia estar a olhar para uma casa abandonada e em ruínas, a centenas de metros de distância.

- Não quero falar contigo. Lamento - anunciou.

A rapariga de óculos olhou para mim com um olhar que dizia: Ela está a dizer que não quer falar contigo. Lamento.

Sentei-me na extremidade direita da fila da frente durante a aula (uma abordagem genérica sobre a obra de Tennessee Williams e a sua importância na Literatura Americana) e no final contei demoradamente até três e virei-me para trás. A Midori saíra já.

Abril era um mês demasiado solitário para se estar só. Em Abril, toda a gente à minha volta parecia feliz. As pessoas tiravam os casacos e apreciavam a companhia umas das outras ao sol: conversavam, jogavam ao apanha, davam as mãos. Mas eu andava sempre sozinho. A Naoko, a Midori, o Nagasawa: todos eles tinham desaparecido da minha vida. Agora não tinha ninguém a quem dizer «Olá» ou «Desejo-te um bom dia». Sentia saudades do próprio Sargento. Passei o mês inteiro imbuído desta desesperada sensação de isolamento. Tentei falar algumas vezes com a Midori, mas obtinha sempre a mesma resposta: «Não quero falar contigo agora», e sabia, pelo tom dela, que estava a falar a sério. Estava sempre acompanhada pela rapariga de óculos ou então por um rapaz alto, de cabelo curto, com pernas incrivelmente compridas e sempre calçado com sapatilhas.

Abril chegou ao fim e Maio começou, mas Maio era um mês ainda pior do que Abril. Na intensidade da Primavera durante Maio, não me restava outra escolha senão reconhecer a dor que sentia no coração. Acontecia geralmente quando o sol se punha. Na pálida obscuridade do entardecer, quando a suave fragrância das magnólias pairava no ar, sentia o coração latejar sem prévio aviso e depois tremia e encolhia-se com uma pontada de dor. Tentava fechar os olhos e ranger os dentes enquanto esperava que aquilo passasse. E acabava por passar - embora lentamente, demorando o seu tempo e deixando-me uma dor baça.

Nessas alturas escrevia à Naoko. Nessas cartas, descrevia-lhe apenas as coisas comoventes, agradáveis ou belas: a fragrância das ervas, a carícia de uma brisa primaveril, o luar, um filme que vira, uma canção de que gostava, um livro que me comovera. Eu próprio me sentia reconfortado com estas cartas sempre que relia o que escrevera. E sentia então que vivia num mundo maravilhoso. Escrevi várias cartas destas, mas não recebi qualquer resposta da Naoko ou da Reiko.

No restaurante onde trabalhava, conheci um estudante da minha idade chamado Itoh. Este gentil e sossegado estudante de Pintura numa faculdade de Belas Artes só começou a falar comigo passado bastante tempo e acabámos por frequentar um bar próximo no final do trabalho para conversarmos acerca dos mais variados assuntos. Também gostava de ler e de ouvir música e geralmente discutíamos livros e discos que ambos apreciávamos. Era esguio, bem-parecido, com o cabelo mais curto e roupas mais elegantes do que o típico estudante de Belas Artes. Nunca falava muito, mas tinha opiniões e gostos definidos. Gostava de romances franceses, sobretudo os de Georges Batailles e de Boris Vian. Quanto à música, preferia Mozart e Ravel. E, tal como eu, procurava um amigo com quem pudesse conversar acerca dessas coisas.

Certa vez convidou-me para ir ao seu apartamento, localizado numa zona mais central do que a minha residência: era uma estranha casa de um só piso, por trás do Parque de Inokashira. Tinha o quarto atravancado com materiais de pintura e telas.

Perguntei-lhe se podia ver o seu trabalho, mas respondeu-me que se sentia demasiado envergonhado para me mostrar o que quer que fosse. Bebemos Chivas Regal que ele sonegara sorrateiramente da casa do pai, grelhámos eperlanos no fogão a carvão e escutámos Robert Casadesus a executar um concerto de piano de Mozart.

O Itoh era oriundo de Nagasaki. Tinha uma namorada com quem dormia sempre que regressava a casa, mas as coisas entre os dois não corriam bem ultimamente.

- Tu sabes como as raparigas são - declarou. - Mal fazem vinte ou vinte e um anos, começam de repente a ter ideias bem definidas. Tornam-se super-realístas. E quando isso acontece, tudo aquilo que parecia tão doce e adorável nelas começa a parecer vulgar e deprimente. Agora, quando a vejo, começa logo a perguntar-me, geralmente depois de o fazermos: «Que vais fazer quando acabares o curso?».

- Bem, e que vais tu fazer quando acabares o curso? - perguntei-lhe.

Abanou a cabeça enquanto mastigava um naco de eperlano. - Que posso eu fazer? Faço pinturas a óleo! Se as pessoas começassem a preocupar-se com essas coisas, ninguém iria querer estudar Pintura! Ninguém o faz como ganha-pão. E ela diz-me então: «Por que razão não voltas para Nagasaki para seres professor de Artes?». Ela própria quer ser professora de Inglês.

- Já não estás tão apaixonado por ela, pois não?

- É mais ou menos isso - admitiu. - E quem raios quer ser professor de Artes? Não vou passar a puta da vida toda a ensinar macaquinhos adolescentes a desenhar!

- Não é essa a questão - declarei. - Achas que deverias romper com ela? Para bem dos dois.

- Claro que penso. Mas não sei como lho dizer. A intenção dela é passar a vida ao meu lado. Como raios lhe vou dizer: «Ei, devíamos romper um com o outro. Já não gosto de ti»?

Continuámos a beber o Chivas sem gelo e, quando acabámos de comer os eperlanos, preparámos pepinos e aipo com molho de soja. Quando comecei a mastigar as minhas tiras de pepino, lembrei-me do pai da Midori, de como a minha vida se tornara insípida e monótona sem a Midori, e estes pensamentos deixaram-me desalentado. Sem que me apercebesse, a Midori tornara-se numa enorme presença dentro de mim.

- Tens namorada? - perguntou-me o Itoh.

- Sim - retorqui; após alguns momentos, acrescentei: - Mas de momento não posso estar junto dela.

- Mas ambos compreendeis os sentimentos um do outro, certo?

- Gosto de pensar que sim. Caso contrário, por que razão namoraríamos? - respondi com uma gargalhada.

O Itoh falou num tom sussurrado sobre a grandeza de Mozart. Conhecia Mozart de trás para a frente, do mesmo modo que um rapaz do campo conhece os trilhos de uma montanha. O seu pai era um melómano e pusera-o a ouvir música desde criança. Eu não era grande conhecedor de música clássica, mas, enquanto ouvia este concerto de Mozart acompanhado dos inteligentes e sentidos comentários do Itoh («Ouve bem... esta parte», «E este trecho agora?»), senti que serenava pela primeira vez há muito tempo. Contemplámos o crescente da lua suspensa sobre o Parque de Inokashira e bebemos o Chivas Regal até à última gota. Um whisky delicioso.

O Itoh disse que eu poderia pernoitar em sua casa, mas respondi-lhe que tinha coisas para fazer; agradeci-lhe e parti antes das vinte e uma horas. Durante o regresso a casa, telefonei à Midori de uma cabina telefónica. Para grande surpresa minha, foi ela própria quem me atendeu.

- Lamento, mas não quero falar contigo tão cedo - afirmou.

- Eu sei, eu sei. Mas não quero que a nossa amizade acabe assim. És uma das poucas amigas que tenho e dói-me não poder estar contigo. Quando vou poder falar contigo? Pelo menos diz-me quando.

- Quando me apetecer falar contigo.

- Como estás? - perguntei-lhe.

- Estou bem - retorquiu, e desligou.

Recebi uma carta da Reiko em meados de Maio.

Obrigada por escreveres com tanta frequência. A Naoko gosta de receber as tuas cartas. E eu também. Não te importas que eu as leia também, pois não?

Desculpa não te ter respondido mais cedo. Na verdade, tenho-me sentido um pouco exausta e não tem havido boas notícias para dar. A Naoko não tem passado bem. A mãe dela veio um destes dias de Kobe para a visitar. Nós os quatro - a Naoko, a mãe dela, eu e o médico -tivemos uma conversa demorada e chegámos à conclusão de que a Naoko deveria mudar-se temporariamente para um hospital a sério a fim de receber um tratamento intensivo; depois, dependendo dos resultados, talvez possa voltar para aqui. A Naoko diz que gostaria de permanecer aqui se possível, até conseguir recuperar. Eu sei que vou sentir a falta dela e que vou preocupar-me com ela, mas a verdade é que se tem tornado cada vez mais difícil mantê-la aqui sob controlo. Ela esta bem durante a maior parte do tempo, mas por vezes as suas ilusões tornam-se extremamente instáveis e, quando isso acontece, temos que a manter sob vigilância. Não se sabe o que ela poderia fazer. Quando padece daqueles intensos episódios em que ouve vozes, apaga-se por completo e fecha-se dentro de si própria.

É por essa razão que concordo que o melhor seria a Naoko submeter-se temporariamente a uma terapia numa instituição mais apropriada. Detesto ter que o dizer, mas é tudo o que podemos fazer. Tal como te disse anteriormente, ter paciência é o mais importante agora. Devemos continuar a desemaranhar os fios um a um, sem perder a esperança. Por mais desesperado que o estado dela possa parecer, mais tarde ou mais cedo acabaremos por descobrir a ponta solta. Quando uma pessoa se sente envolta naescuridão total, tudo o que pode fazer é aguentar firme até os olhos se habituarem à escuridão.

Quando receberes esta carta, a Naoko já terá sido transferida para outra instituição. Desculpa estar a contar-te somente depois de as decisões terem sido tomadas, mas aconteceu tudo muito rapidamente. O novo hospital é realmente bom e dispõe de bons médicos. Indico-te a morada mais abaixo-, por favor, escreve as cartas à Naoko para este endereço. Também me manterão informada dos progressos dela e dar-te-ei conhecimento a par e passo. Espero que sejam boas notícias.

Sei que vai ser difícil para ti, mas não percas as esperanças. E mesmo que a Naoko já não esteja aqui, por favor, escreve-me de vez em quando. Adeus.

Escrevi inúmeras cartas durante essa Primavera: uma por semana para a Naoko, várias para a Reiko e muitas mais para a Midori. Redigia as cartas nas salas de aulas; em casa, sentado à secretária, com a Gaivota no meu regaço; sentado a uma mesa vazia durante as pausas do emprego no restaurante italiano. Era como se escrevesse cartas para manter unidos os alicerces da minha vida a desmoronar-se.

Escrevi à Midori: Abril e Maio foram meses solitários e penosos para mim porque não podia falar contigo. Nunca pensei que a Primavera pudesse ser tão penosa e solitária. Preferia três Fevereiros a uma Primavera assim. Eu sei que é demasiado tarde para dizer isto, mas o teu novo penteado fica-te mesmo bem. Mesmo giro. Agora trabalho num restaurante italiano e o cozinheiro ensinou-me uma receita fantástica para preparar esparguete. Gostava de te convidar em breve para provares esta receita.

Frequentava as aulas todos os dias, trabalhava no restaurante duas ou três vezes por semana, conversava com o Itoh sobre livros e música, lia alguns romances de Boris Vian que ele me emprestava, escrevia cartas, brincava com a Gaivota, preparava esparguete, trabalhava no jardim, masturbava-me a pensar na Naoko e via muitos filmes.

A Midori recomeçou a falar comigo quase em meados de Junho. Não trocáramos palavra durante dois meses. No final de uma das aulas, sentou-se ao meu lado, apoiou o queixo na mão e não proferiu palavra. A chuva tombava no exterior da janela: uma verdadeira monção que caía directamente, pois não havia vento, e encharcava tudo. Os outros alunos haviam saído há bastante tempo e a Midori continuava sentada ao meu lado em silêncio. Depois tirou um cigarro do bolso do casaco de ganga, colocou-o entre os lábios e entregou-me uma carteira de fósforos. Acendi-lhe o cigarro. A Midori esticou os lábios e soprou uma suave nuvem de fumo contra o meu rosto.

- Gostas do meu penteado? - perguntou-me.

- Fica-te mesmo bem.

- Esse «fica-te mesmo bem» é quanto?

- O suficiente para conseguir derrubar todas as árvores de todas as florestas do mundo.

- Achas mesmo?

- Sim, acho.

Continuou a olhar-me nos olhos durante alguns momentos e depois estendeu-me a mão direita. Apertei-lha. Pareceu ficar mais aliviada do que eu próprio. Deitou a cinza para o chão e levantou-se.

- Vamos comer. Estou a morrer de fome - afirmou.

- Aonde queres ir?

- Ao restaurante do centro comercial de Takashimaya, em Nihonbashi.

- Porquê esse lugar em especial?

- Às vezes gosto de ir lá, é só.

Apanhámos o metro para Nihonbashi. O local encontrava-se praticamente vazio, talvez porque tivesse chovido durante toda a manhã. O cheiro da chuva pairava no enorme e cavernoso centro comercial e todos os empregados ostentavam uma expressão de perplexidade. Fomos para um restaurante na cave e, depois de inspeccionarmos atentamente a comida de plástico na montra, ambos nos decidimos por um antiquado sortido de comida fria constituído por arroz, picles, peixe grelhado, tempura e galinha teriyaki. O restaurante encontrava-se quase vazio apesar de ser meio-dia.

- Meu Deus, há quanto tempo não almoço num restaurante num centro comercial? - perguntei-me em voz alta enquanto beberricava chá verde de uma dessas chávenas brancas e escorregadias que só existem nos restaurantes dos centros comerciais.

- Gosto de vir a este tipo de lugares - disse a Midori. - Não sei, mas é como se estivesse a fazer algo especial. Provavelmente faz-me recordar a minha infância. Os meus pais quase nunca me levavam aos centros comerciais.

- E eu tenho a ligeira sensação de que os meus não faziam outra coisa senão isso. A minha mãe adorava centros comerciais.

- Sortudo!

- Que estás para aí a dizer? Não tenho grande apreço por centros comerciais.

- Não, estou a dizer que foste sortudo por se preocuparem suficientemente contigo ao ponto de te levarem para certos lugares.

- Bem, eu era filho único - afirmei.

- Quando eu era criança, costumava sonhar que quando crescesse poderia ir sozinha a um restaurante num centro comercial e comer tudo o que quisesse. Mas que sonho mais vazio! Que gozo pode haver em encher a boca de arroz sozinha num lugar destes? A comida não é assim tão especial e é um sítio enorme, apinhado, abafado e barulhento. Mesmo assim, de vez em quando agrada-me vir a um sítio destes.

- Senti-me verdadeiramente sozinho durante estes dois últimos meses.

- Sim, eu sei. Disseste-mo nas cartas - retorquiu ela num tom neutro. - Bem, vamos comer. Por agora só consigo pensar em comer.

Comemos todos os pequenos itens fritos, grelhados e salgados dispostos nos diferentes compartimentos das nossas elegantes caixas de almoço de papel lustroso em forma de meia-lua, bebemos a sopa simples das tigelas laçadas e o chá verde das chávenas brancas. Depois a Midori fumou um cigarro. Quando acabou de fumar, levantou-se sem dizer palavra e pegou no guarda-chuva. Segui-a.

- Aonde queres ir agora? - perguntei-lhe.

- Para o terraço, obviamente. É a paragem seguinte depois de se almoçar num centro comercial.

Não havia ninguém no terraço à chuva, nenhum empregado na loja de animais de estimação, os quiosques e a cabina de venda de bilhetes para as diversões das crianças estavam fechados. Abrimos os guarda-chuvas e deambulámos por entre cavalos de madeira, cadeiras de jardim e bancas completamente encharcados. Parecia inacreditável que pudesse haver um local tão desprovido de pessoas no centro de Tóquio. A Midori disse que queria olhar pelo telescópio; inseri uma moeda e segurei no guarda-chuva para ela poder espreitar através do óculo.

Numa das extremidades do terraço havia uma área recreativa coberta, com várias diversões para as crianças.

Sentámo-nos ao lado um do outro numa espécie de plataforma a contemplar a chuva.

- Fala então - disse ela. - Eu sei que tens algo para me dizer.

- Não estou a tentar desculpar-me, mas durante estes dois meses senti-me realmente deprimido. Tinha o cérebro completamente obnubilado. Não conseguia apreender nada. Mas uma coisa tornou-se clara como cristal enquanto não podia estar contigo. Apercebi-me de que só fui capaz de sobreviver porque fazias parte da minha vida. Quando te perdi, a dor e a solidão abateram-se sobre mim.

- E não fazes ideia de como foi doloroso e solitário para mim sem ti durante os últimos dois meses?

Estas palavras apanharam-me completamente desprevenido. - Não. Nunca me ocorreu. Pensava que estavas furiosa comigo e que não querias ver-me.

- Como podes ser tão idiota? Claro que queria ver-te! Eu disse-te como gostava de ti! E quando gosto de alguém, gosto realmente dessa pessoa. Esse gostar não aparece e desaparece de um momento para o outro. Não compreendes pelo menos isso sobre mim?

- Sim, claro, mas...

- Foi por essa razão que estava tão furiosa contigo! Apetecia-me dar-te um bom pontapé no traseiro. Quer dizer, já não nos víamos há tanto tempo e andavas tão alienado a pensar nessa outra rapariga que nem sequer reparavas em mim! Como querias que não me zangasse contigo? Mas, à parte de tudo isso, sentia que seria melhor manter-me afastada de ti durante algum tempo. Para poder arrumar as ideias.

- Que ideias?

- A nossa relação, obviamente. Estávamos a chegar ao ponto em que gostava mais de estar contigo do que com ele. Quer dizer, não achas que há algo de estranho nisso? E que é difícil? Claro que ainda gosto dele. É um pouco egoísta, tacanho e uma espécie de fascista, mas também tem bastantes coisas boas, e é o primeiro homem por quem comecei a sentir algo sério. Mas tu, bem, tu és especial para mim. Quando estou contigo, sinto que as coisas batem certo. Acredito em ti. Gosto de ti. Não quero perder-te. Comecei a sentir-me cada vez mais confusa, fui ter com ele e perguntei-lhe o que deveria fazer.

Disse-me para parar de te ver. Disse que, se continuasse a ver-te, teria que romper com ele primeiro.

- E o que fizeste?

- Rompi com ele. Sem tirar nem pôr. - Enfiou outro cigarro entre os lábios, escudou-o com a mão para o acender e começou a inalar.

- Porquê?

- «Porquê?»! - gritou. - Estás louco? Sabes o modo conjuntivo em inglês, percebes de trigonometria, consegues ler Marx e não sabes a resposta a uma coisa assim tão simples? E ainda perguntas? Por que razão obrigas uma rapariga a dizer uma coisa destas? Gosto mais de ti do que dele, é tudo. Quem me dera ter-me apaixonado por alguém mais bonito, é claro. Mas não aconteceu. Apaixonei-me por tti.

Tentei dizer algo, mas sentia as palavras presas na garganta.

A Midori atirou o cigarro para uma poça de água. - Queres fazer o favor de não fazeres essa cara? Vais-me pôr a chorar. Não te preocupes, eu sei que estás apaixonado por outra pessoa. Não espero nada de ti. Mas o mínimo que podes fazer é dar-me um abraço. Foram dois meses difíceis para mim.

Fomos para trás da área recreativa e abraçámo-nos com força. Comprimimos os corpos um contra o outro e beijámo-nos. O cheiro da chuva prendia-se ao seu cabelo e ao casaco de ganga. As raparigas tinham um corpo tão suave e quente! Sentia os seus seios comprimidos através da roupa contra o meu peito. Há quanto tempo fora o meu último contacto físico com outro ser humano?

- Da última vez que estive contigo, falei com ele nessa mesma noite e acabámos tudo - disse a Midori.

- Amo-te - disse-lhe. - Do fundo do coração. Nunca mais te quero perder. Mas não há nada que eu possa fazer. Não consigo decidir-me.

- Por causa dela? Anuí com a cabeça.

- Diz-me, já dormiste com ela?

- Uma vez. Há um ano.

- E nunca mais estiveste com ela?

- Sim, estive: duas vezes. Mas não fizemos nada.

- Por que não? Ela não te ama?

- É difícil explicar - disse-lhe. - É realmente complicado. E confuso. É assim há muito tempo e já perdi a noção das coisas. E ela também. Tudo o que sei, é que tenho uma espécie de responsabilidade como ser humano em tudo isto e não posso simplesmente virar as costas. Pelo menos, é assim que penso por agora. Mesmo que ela já não esteja apaixonada por mim.

- Deixa-me dizer-te uma coisa, Watanabe - afirmou ela, encostando a face contra o meu pescoço. - Sou uma rapariga real e verdadeira, com sangue real e verdadeiro correndo-me pelas veias. Seguras-me nos teus braços e estou a dizer-te que te amo. Estou preparada para fazer tudo o que me peças. Posso ser um pouco louca, mas sou uma rapariga decente e honesta e trabalho arduamente, sou mais ou menos bonita, tenho umas boas mamas, cozinho bem e o meu pai deixou-me um fundo fiduciário. Quer dizer, sou um bom partido, não achas? Se não quiseres, vou acabar por parar nas mãos de outro.

- Preciso de tempo. Preciso de tempo para pensar, para ponderar nas coisas e tomar algumas decisões. Lamento, mas é tudo o que posso dizer neste momento.

- Sim, amas-me do fundo do coração, não é? E nunca mais me queres perder, não é?

- Disse-o e repito-o.

A Midori afastou-se com um sorriso no rosto. - Está bem, eu aguardo! Acredito em ti. Mas, quando ficares comigo, serei a única para ti. E quando me abraçares, pensarás somente em mim. Estamos entendidos?

- Entendo perfeitamente.

- Não me importa o que me faças, só não quero que me magoes. Já sofri bastante durante a minha vida. Mais do que deveria. Agora quero ser feliz.

Aproximei-a de mim beijei-a na boca.

- Larga o maldito guarda-chuva e abraça-me com os dois braços, com força! - disse ela.

- Mas vamos ficar completamente encharcados!

- Que importa? Quero que pares de pensar e me abraces com força! Esperei dois meses inteiros por isto!

Pousei o guarda-chuva e abracei-a fortemente sob a chuva. O ruído abafado dos pneus na via rápida envolvia-nos como uma neblina. A chuva caía incessantemente, sem emitir qualquer som, encharcava-nos o cabelo, escorria-nos como lágrimas pelos rostos, para dentro do seu casaco de ganga e da minha gabardina de nylon amarelo até se dispersar em manchas escuras.

- E se nos abrigássemos? - sugeri.

- Vem para minha casa. Não está ninguém em casa agora. Ainda apanhamos uma constipação.

- Tens razão.

- É como se acabássemos de atravessar um rio a nado -disse ela, sorrindo. - Que sensação maravilhosa!

Comprámos uma toalha grande na secção dos linhos e fomos à vez à casa de banho para secarmos o cabelo. Depois apanhámos o metro para o seu apartamento em Myogadani e tivemos de pagar o suplemento obrigatório. Deixou-me tomar um banho primeiro e depois foi ela. Emprestou-me um roupão para usar enquanto as minhas roupas secavam e ela própria vestiu um pólo e uma saia. Sentámo-nos à mesa da cozinha a beber café.

- Fala-me de ti - pediu ela.

- Acerca de quê?

- Hmm, não sei, das coisas de que não gostas.

- Galinha, doenças venéreas e barbeiros que falam demasiado.

- Que mais?

- As solitárias noites de Abril e coberturas em renda para os telefones.

- Que mais?

Abanei a cabeça. - Não consigo lembrar-me de mais nada.

- O meu namorado, ou seja, o meu ex-namorado, odiava imensas coisas. Por exemplo, odiava que eu usasse saias demasiado curtas, que eu fumasse ou me embebedasse demasiado depressa, que dissesse coisas nojentas ou criticasse os seus amigos. Portanto, se há alguma coisa de que não gostas em mim, basta dizeres-me e eu tento emendar isso se puder.

- Não me ocorre nada - respondi após ponderar por instantes. - Não há nada em especial.

- A sério?

- Gosto de tudo o que usas, gosto do que fazes e dizes, gosto da tua maneira de andar e de te embebedares. Gosto de tudo.

- Estás a dizer que gostas de mim como eu sou?

- Não vejo em que aspectos poderias mudar. Portanto, a tua maneira de ser agrada-me tal como é.

- Gostas muito de mim? - perguntou.

- O suficiente para amansar todos os tigres do mundo.

- Que rebuscado - comentou com laivos de satisfação. - Abraças-me outra vez?

Fomos para a cama e abraçámo-nos e beijámo-nos enquanto o som da chuva envolvia tudo. Depois conversámos sobre imensos assuntos, desde a criação do universo até às nossas preferências pessoais relativamente à consistência dos ovos cozidos.

- O que farão as formigas nos dias de chuva? - perguntou.

- Não faço ideia. São trabalhadoras árduas e provavelmente passam o dia a limpar a casa ou a recolher mantimentos.

- Se trabalham tão arduamente, por que razão não evoluem? Têm-se mantido iguais desde sempre.

- Não sei. Talvez a sua estrutura corporal não seja adequada à evolução, em comparação com os macacos, por assim dizer.

- Ei, Watanabe, há muitas coisas que desconheces. Pensei que sabias tudo.

- O mundo lá fora é imenso - retorqui.

- Montanhas altas, oceanos profundos - disse ela. Enfiou a mão dentro do meu roupão e agarrou na minha erecção. Depois, engoliu em seco e disse: - Ei, Watanabe, agora falando a sério, isto não vai resultar. Nunca vou conseguir enfiar esta coisa enorme e dura dentro de mim. Nem pensar.

- Estás a brincar - respondi com um suspiro.

- Yup - disse ela, soltando uma risadinha nervosa. - Não te preocupes. Tudo correrá bem. Tenho a certeza de que encaixará. Hã, importas-te que dê uma olhada?

- À vontade.

Enfiou-se debaixo dos cobertores e tacteou-me o corpo até ao baixo-ventre; depois esticou a pele do pénis e sopesou os testículos na palma da mão. Enfiou a cabeça de fora e suspirou. - Estou a adorar! Não estou a dizer por dizer! Adoro realmente!

- Obrigada - retorqui simplesmente.

- Mas, de facto, Watanabe, não queres fazer aquilo comigo, pois não, até resolveres definitivamente aquele assunto?

- Quero absolutamente fazê-lo contigo. Quase enlouqueço por o desejar tanto. Mas não seria correcto.

- Raios, és tão teimoso! No teu lugar, limitava-me afazê-lo... e só depois pensava nisso.

- Ai sim?

- Estava a brincar - redarguiu num tom abafado. -Provavelmente também não o faria se estivesse no teu lugar. É por isso que te adoro. É por isso que te adoro verdadeiramente.

- E adoras-me muito? - perguntei-lhe, mas não me respondeu. Em vez disso, comprimiu-se contra mim, encostou os lábios ao meu mamilo e começou a afagar-me o pénis. A primeira coisa que me ocorreu, foi que era bastante diferente do modo como a Naoko costumava acariciar-me. Ambas eram delicadas e excitantes, mas havia algo de diferente no modo como o faziam, e, por conseguinte, sentia que estava a experimentar algo completamente diferente.

- Ei, Watanabe, aposto que estás a pensar na outra rapariga.

- Não é verdade - menti.

- De verdade?

- De verdade.

- Porque eu iria odiar isso.

- Não consigo pensar em mais ninguém.

- Queres tocar-me nos seios, ou aqui em baixo?

- Oh, uau, adorava, mas é melhor não. Se fizermos todas essas coisas de uma só vez, acho que iria ser demasiado para mim.

A Midori anuiu com a cabeça, agitou-se debaixo dos cobertores, baixou as cuecas e comprimiu-as contra a ponta do meu pénis.

- Podes vir-te nas minhas cuecas - disse-me.

- Mas assim vão ficar sujas.

- Pára com isso, sim? Vais pôr-me a chorar - admoestou-me, quase à beira das lágrimas. - Basta-me lavá-las depois. Não te refreies, vem-te como quiseres. Se estás preocupado com as minhas cuecas, compra-me umas novas. Ou o que te impede de te vires é o facto de as cuecas serem minhas?

- Nem pensar.

- Então, pronto. Vem-te.

Quando terminei, a Midori inspeccionou o meu sémen. - Uau, que quantidade enorme!

- É demasiado?

- Não, não há problema, seu tonto. Vem-te à vontade - disse com um sorriso. Beijou-me.

À noite, a Midori foi fazer compras para o jantar. Comemos tempura e arroz de ervilhas, acompanhando com cerveja.

- Come muito para teres muito sémen - disse-me. - E depois serei simpática contigo e ajudo-te a livrares-te dele.

- Muito obrigado.

- Conheço várias maneiras de o fazer. Aprendi nas revistas femininas que tínhamos na livraria. Certa vez publicaram um número especial inteiramente dedicado ao modo de tratar o marido para que ele não enganasse a esposa quando esta estivesse grávida e não pudesse ter sexo. Há imensas maneiras. Queres tentar algumas?

- Mal posso esperar.

Depois de nos despedirmos, comprei um jornal na estação; todavia, quando o abri no comboio, apercebi-me de que não sentia qualquer desejo de ler e, de facto, não compreendia o que dizia. Conseguia apenas olhar fixamente para a incompreensível página impressa enquanto me interrogava sobre o que iria acontecer-me doravante e como as coisas à minha volta iriam mudar. Tinha a sensação de que o mundo pulsava intermitentemente. Soltei um profundo suspiro e fechei os olhos. Não sentia o mínimo arrependimento em relação aos acontecimentos desse dia; tinha a certeza de que viveria este dia exactamente do mesmo modo se tivesse que o fazer de novo. Abraçaria firmemente a Midori no terraço à chuva; ficaria encharcado ao lado dela; e deixaria que os seus dedos me provocassem um orgasmo deitado na cama dela. Não tinha dúvidas sobre estas coisas. Amava a Midori e estava feliz por ela ter voltado para mim. Ambos poderíamos construir uma relação, era uma certeza. Tal como ela própria dissera, era uma rapariga real e verdadeira, com sangue nas veias, e entregava o seu corpo nos meus braços. Tentara suprimir o intenso desejo que sentia de a despir, de expor o seu corpo e mergulhar no seu calor. Foi-me impossível deter-me assim que agarrou no meu pénis e começou a acariciar-mo. Queria que ela o fizesse, ela queria fazê-lo e estávamos apaixonados. Quem conseguiria deter um tal ímpeto? Era verdade.- eu amava a Midori. E provavelmente já o sabia há algum tempo. Simplesmente, esquivara-me a essa conclusão durante muito tempo.

O problema era que nunca iria conseguir explicar esta situação à Naoko.

Teria sido difícil em qualquer altura, mas, dado o presente estado dela, nunca poderia dizer-lhe que me apaixonara por outra rapariga. Além do mais, ainda amava a Naoko. Amava-a, por mais retorcido que esse amor pudesse ser. Algures dentro de mim existia ainda um espaço amplo, aberto e intocado para a Naoko e para mais ninguém.

Havia uma coisa que eu podia fazer: escrever uma carta à Reiko a confessar-lhe tudo com total honestidade. Já em casa, sentei-me na varanda a contemplar a chuva a cair no jardim à noite enquanto ordenava frases na minha cabeça. Depois sentei-me à secretária e redigi a carta. É quase insuportável para mim ter que escrever-te agora uma carta assim, comecei por escrever. Resumi-lhe o meu relacionamento com a Midori e expliquei-lhe o que acontecera nesse dia.

 

Sempre amei a Naoko e ainda a amo. Mas há uma finalidade decisiva no que nasceu entre mim e a Midori. Criou-se um irresistível poder que irá levar-me em direcção ao futuro. O que sinto pela Naoko é um amor tremendamente calmo, delicado e transparente, mas o que sinto pela Midori é uma emoção completamente diferente. É um sentimento com vida própria, vívido, pulsante, vigoroso e abala-me até à raiz do meu ser. Não sei o que fazer. Estou confuso. Não estou a tentar desculpar-me, mas acredito que tenho vivido do modo mais sincero que me é possível. Nunca menti a ninguém e durante todos estes anos tive o cuidado de nunca magoar as outras pessoas. E, no entanto, dou por mim perdido dentro de um labirinto. Como pode isto ser? Não consigo explicar. Não sei o que deva fazer. Podes ajudar-me, Reiko? És a única pessoa a quem posso recorrer.

 

Enviei a carta nessa mesma noite, por correio expresso. Recebi a resposta da Reiko cinco dias depois, datada de 17 de Junho.

 

Começo com as boas notícias. A Naoko tem recuperado mais rapidamente do que alguém poderia esperar.

Conversei com ela ao telefone e falou com uma verdadeira lucidez. Talvez possa regressar para aqui em breve. E agora, quanto a ti.

Acho que encaras tudo com demasiada seriedade. Amar outra pessoa é uma coisa maravilhosa e, se esse amor é sincero, ninguém acaba perdido num labirinto. Deverias ter mais fé em ti mesmo.

O conselho que te dou, é muito simples. Em primeiro lugar, se te sentes tão atraído por essa Midori, o mais natural é apaixonares-te por ela. Pode correr bem ou não. Mas o amor é assim. Quando nos apaixonamos, a coisa mais natural afazer é entregarmo-nos a esse sentimento. É o que eu penso. É apenas uma forma de sinceridade.

Em segundo lugar, quanto a teres ou não sexo com a Midori: é uma questão que tu próprio deves resolver. Não posso dizer nada. Conversa com ela e decide por ti mesmo, uma decisão que faça sentido para ti.

Em terceiro lugar, não contes nada disto à Naoko. Se se chegar ao ponto em que tiveres absolutamente que lhe contar, então elaboraremos juntos um bom plano. Mantém isso em segredo, por enquanto. Deixa isso comigo. Em quarto lugar, devo dizer-te que tens sido uma tal força para a Naoko e, mesmo que já não sintas amor por ela, há ainda muita coisa que podes fazer por ela. Portanto, não matutes nas coisas dessa maneira super-séria. Todos nós (e refiro-me mesmo a todos nós, pessoas normais e não tão normais) somos seres humanos imperfeitos vivendo num mundo imperfeito. Não vivemos com a precisão mecânica de um contabilista ou sempre a medirmos todas as nossas linhas e ângulos com réguas e transferidores. Não tenho razão? Sinto que a Midori é uma rapariga maravilhosa. Ao ler a tua carta, compreendo por que razão te sentes atraído por ela. E também compreendo por que razão te sentes igualmente atraído pela Naoko. Não há nada de pecaminoso nisso. Essas coisas acontecem a todo o momento neste nosso mundo enorme e maravilhoso. É como dar um passeio de barco num belo lago num dia encantador e pensar que o céu e o lago são igualmente belos. Portanto, pára de te consumires. As coisas acabarão por fazer sentido se as deixares seguir o seu curso natural. Por mais que te esforces, há pessoas que acabarão por ficar magoadas. A vida é assim. As minhas palavras talvez soem como se estivesse a pregar de um púlpito, mas já está na altura de aprenderes a viver assim. Esforças-te demasiado para fazer a vida encaixar no teu modo de fazer as coisas. Se não queres ser internado num asilo para loucos, tens que te abrir um pouco mais e abandonares-te ao fluxo natural da vida. Eu própria sou impotente e imperfeita, mas, mesmo assim, há alturas em que penso que a vida pode ser maravilhosa! Acredita em mim, é a verdade! Portanto, pára e mostra-te feliz. Esforça-te para seres feliz!

Escuso de dizer que lamento que tu e a Naoko não tivessem levado as coisas até a um final feliz. Mas quem sabe o que é melhor? É por isso que deves agarrar todas as oportunidades de felicidade com que te depares e não deves preocupar-te demasiado com as outras pessoas. A minha experiência diz-me que durante a vida não temos mais de duas ou três oportunidades assim e, se as deixarmos escapar, arrepender-nos-emos para o resto das nossas vidas.

Tenho tocado guitarra todos os dias, para ninguém em particular. Parece-me um pouco inútil. Também não gosto das noites escuras e chuvosas. Espero ter outra oportunidade para tocar guitarra e comer uvas na tua companhia e da Naoko aqui comigo. Ah, bem, até lá... Reiko Ishida.

 

A Reiko escreveu-me várias vezes depois da morte da Naoko. A culpa não foi minha, dizia ela. A culpa não fora de ninguém. Tal como não se pode culpar ninguém por chover. Mas eu nunca respondi às suas cartas. O que poderia eu dizer-lhe? Teria modificado alguma coisa? A Naoko já não existia neste mundo, tornara-se num punhado de cinzas.

Realizou-se uma discreta cerimónia fúnebre pela Naoko em Kobe, no final de Agosto, e depois regressei a Tóquio. Informei o meu senhorio e o meu patrão no restaurante italiano de que estaria ausente durante algum tempo. Escrevi um bilhete curto à Midori: por enquanto não poderia dizer-lhe nada, mas esperava que ela aguardasse por mim um pouco mais. Passei os três dias seguintes no cinema e, depois de ter visto todos os filmes estreados em Tóquio, preparei a mochila, levantei todas as minhas poupanças do banco, dirigi-me para a Estação de Shinjuku e apanhei o primeiro comboio expresso que saía da cidade.

É-me impossível recordar todos os locais por onde viajei. Lembro-me perfeitamente das paisagens, dos sons e dos cheiros, mas os nomes das cidades desvaneceram-se, bem como qualquer noção de ordenação geográfica. Viajava de cidade para cidade, de comboio, de camioneta ou à boleia nalgum camião, estendia o saco-cama em parques de estacionamento vazios, estações, parques, nas margens de rios ou na praia. Certa vez cheguei a persuadir os polícias a deixarem-me dormir num canto do posto da polícia local e outras vezes dormi ao lado de um cemitério. Não me importava onde dormia, desde que permanecesse longe das pessoas e pudesse dormir o tempo que me apetecesse. Exaurido pelas caminhadas, enfiava-me dentro do saco-cama, emborcava whisky baratucho e adormecia rapidamente.

Passei por cidades encantadoras onde as pessoas me davam comida e incenso para afastar os mosquitos, e por cidades não tão encantadoras onde as pessoas chamavam a polícia para me expulsarem dos parques. Era-me totalmente indiferente. Tudo o que desejava era dormir em cidades desconhecidas.

Quando o dinheiro começava a escassear, trabalhava temporariamente durante alguns dias até conseguir o dinheiro necessário. Havia sempre algum trabalho para eu fazer. Limitava-me a avançar de cidade em cidade, sem qualquer destino em mente. O mundo era enorme, cheio de coisas bizarras e pessoas estranhas. Certa vez telefonei à Midori porque precisava de ouvir a sua voz.

- O semestre já começou há muito tempo, sabes - declarou. - Alguns docentes começam já a pedir os trabalhos. Que vais fazer! Tens consciência de que estás incontactável há três semanas já? Onde estás? O que andas a fazer?

- Desculpa, mas ainda não posso regressar a Tóquio. Ainda não.

- E é tudo o que tens para me dizer?

- Não tenho realmente mais nada que possa dizer-te neste momento. Talvez em Outubro...

Desligou sem me dizer mais nada.

Continuei a viajar. Permanecia ocasionalmente num abrigo nocturno para tomar um banho e barbear-me. A minha imagem no espelho era horrível. O sol secara-me a pele, tinha os olhos encovados e estranhas manchas e cortes nas faces. Parecia que acabara de rastejar para fora de uma caverna, mas continuava a ser eu, afinal de contas. Era eu.

Comecei a percorrer a costa, o mais afastado possível de Tóquio: talvez estivesse em Tottori ou na baía interior de Hyogo. Caminhar ao longo do litoral era fácil. Encontrava sempre um local confortável para dormir na areia. Improvisava uma fogueira com madeira trazida pela maré e grelhava algum peixe seco que comprava a um pescador local. Depois emborcava whisky e escutava as ondas enquanto pensava na Naoko. Era demasiado estranho pensar que ela estava morta e já não fazia parte deste mundo. Não conseguia interiorizar esta verdade. Não conseguia acreditar. Eu próprio ouvira os pregos a serem martelados na tampa do caixão, mas ainda não conseguia habituar-me ao facto de que ela voltara para o nada.

Não, a imagem dela era ainda demasiado vívida na minha memória. Ainda conseguia vê-la a enfiar o meu pénis na boca, com o cabelo tombando sobre a minha barriga. Sentia ainda o seu calor e a sua respiração contra a minha pele, e aquele momento indefeso em que não podia fazer mais nada a não ser vir-me. Conseguia recordar-me nitidamente de tudo isto como se tivesse acontecido apenas há cinco minutos atrás e sentia claramente que a Naoko continuava ao meu lado, que me bastaria estender a mão para lhe tocar. Mas não, ela não estava ali, o seu corpo abandonara já este mundo.

Nas noites em que me era impossível adormecer, era assolado por imagens da Naoko e não conseguia afastá-las da mente. Havia demasiadas memórias dela acumuladas dentro de mim e sempre que alguma delas encontrava a mais ínfima abertura, as restantes escapavam-se forçosamente num fluxo infindável, numa maré imparável: a Naoko de capa de chuva amarela a limpar o galinheiro e a carregar o saco da ração naquela manhã chuvosa; o bolo de aniversário sem consistência e a sensação das lágrimas da Naoko a empaparem-me a camisa (sim, também nesse dia chovera); a Naoko caminhando ao meu lado no Inverno e envergando o casaco de chamalote; a Naoko tocando no gancho que usava sempre; a Naoko a perscrutar-me com aqueles seus olhos incrivelmente límpidos; a Naoko sentada no sofá, de pernas levantadas debaixo da camisa de noite azul e com o queixo apoiado nos joelhos.

Estas memórias abatiam-se contra mim como as ondas de uma maré impetuosa e arrastavam-me para um lugar estranho e desconhecido - um lugar onde convivia com os mortos. Era aí que a Naoko vivia e podia falar com ela e abraçá-la. Nesse lugar, a morte não era um elemento decisivo que punha fim à vida. Nesse lugar a morte não passava de mais um dos inúmeros elementos que constituíam a vida. Era aí que a Naoko vivia dentro dela própria, e disse-me: «Não te preocupes, trata-se simplesmente da morte. Não deixes que isso te perturbe».

Eu não sentia qualquer tristeza nesse local estranho. A morte era a morte e a Naoko era a Naoko. «O que te preocupa?», perguntou-me com um sorriso tímido, «Estou aqui, não estou?». Os seus pequenos gestos familiares apaziguavam-me o coração como um bálsamo. «Se a morte é isto», pensei, «então a morte não é assim tão má».

«É verdade», disse a Naoko, «a morte é uma coisa simples. Não passa de morte. Aqui as coisas são mais fáceis para mim». A Naoko falava comigo nos intervalos entre a rebentação das ondas escuras.

Todavia, a maré acabaria por refluir e eu ficaria sozinho na praia. Sentia-me impotente, não havia destino para onde pudesse ir, a própria tristeza envolvia-me naquela profunda escuridão até as lágrimas jorrarem. Sentia que não era tanto um choro, mas que as lágrimas simplesmente exsudavam de mim como uma transpiração.

Aprendera algo com a morte do Kizuki e acreditara que transformara esse facto numa parte de mim sob a forma de uma filosofia: «A morte existe, não como o contrário da vida mas como parte dela».

Nutrimos a morte enquanto vivemos as nossas vidas. Por mais verdadeiro que isto fosse, era apenas uma das verdades que tínhamos de aprender. Foi isto o que aprendi com a morte da Naoko: nenhuma verdade consegue curar a tristeza que sentimos com a perda de um ente amado. Nenhuma verdade, nenhuma sinceridade, nenhuma força, nenhuma generosidade consegue curar essa mágoa. Tudo o que podemos fazer, é suportar essa tristeza até ao fim e aprender algo com isso, mas o que aprendemos não nos ajudará a enfrentar a próxima tristeza que se abater sobre nós sem prévio aviso. Concentrava-me nestes pensamentos dia após dia, ouvindo as ondas à noite e escutando o som do vento. De mochila às costas e areia no cabelo, avançava cada vez mais para oeste, sobrevivendo à base de uma dieta de whisky, pão e água.

Numa noite ventosa, enquanto jazia agasalhado no saco-cama e chorava lágrimas ao lado do casco de um navio abandonado, um jovem pescador passou por perto e ofereceu-me um cigarro. Aceitei e fumei o meu primeiro cigarro há mais de um ano. Perguntou-me por que razão chorava e, quase instintivamente, disse-lhe que a minha mãe morrera. Contei-lhe que, incapaz de suportar a tristeza, me fizera à estrada. Expressou-me a sua profunda compaixão e foi a casa buscar uma enorme garrafa de saque e dois copos.

O vento varria a praia enquanto bebíamos sentados na areia.

Disse-me que também perdera a mãe, aos dezasseis anos: uma mulher sempre adoentada que se extenuara a trabalhar de manhã à noite. Ouvia-o um pouco distraidamente enquanto beberricava o saque e de vez em quando respondia-lhe com um grunhido. Tinha a sensação de estar a ouvir uma história oriunda de um mundo longínquo. De que raios estava ele a falar?, perguntei-me, e senti de repente uma fúria intensa: apetecia-me estrangulá-lo. Mas que raios me importava a mãe dele?! Eu perdera a Naoko! O seu belo corpo desaparecera deste belo mundo! Por que raios estava ele a falar-me da maldita da mãe?!

Mas a minha fúria dissipou-se tão rapidamente quanto deflagrara. Fechei os olhos e continuei a ouvir distraidamente a sua infindável história. A certa altura, perguntou-me se já tinha comido. Respondi-lhe que não, mas que tinha pão, queijo, um tomate e uma barra de chocolate na mochila. Que comera eu ao almoço?, perguntou-me. Pão, queijo, um tomate e chocolate, respondi-lhe. - Espera aqui - disse-me, e afastou-se. Tentei detê-lo, mas desapareceu na escuridão sem olhar para trás.

Continuei a beberricar o saque. A praia estava juncada de cinzas de papel do fogo de artifício que haviam lançado no local e as vagas rebentavam com um rugido enlouquecedor. Surgiu um cão escanzelado a abanar a cauda e começou a farejar em redor da minha pequena fogueira à procura de algo para comer, mas acabou por desistir e afastar-se.

O jovem pescador regressou meia hora depois com duas caixas de sushi e uma nova garrafa de saque. Aconselhou-me a comer imediatamente o conteúdo da caixa de cima porque continha peixe; a caixa de baixo continha apenas bolos de algas e tiras de tofu bem crestadas que durariam até ao dia seguinte. Encheu novamente os copos. Agradeci-lhe e devorei sozinho todo o conteúdo da primeira caixa, embora fosse o suficiente para duas pessoas. Depois de bebermos todo o saque que conseguimos emborcar, ofereceu-se para me alojar durante a noite; contudo, quando lhe disse que preferia dormir sozinho na praia, não insistiu. Quando se preparava para partir, tirou do bolso uma nota de cinco mil ienes dobrada e enfiou-a no bolso da minha camisa. - Toma - disse-me -, compra comida saudável. Estás com um aspecto horrível.

- Disse-lhe que fizera mais do que o suficiente por mim e que não poderia aceitar o dinheiro, mas recusou-se a aceitá-lo de volta. -Não se trata do dinheiro - disse-me -, mas dos meus sentimentos. Aceita simplesmente o dinheiro. - Aceitei e agradeci-lhe.

Quando partiu, lembrei-me subitamente da minha antiga namorada, a rapariga com quem dormira pela primeira vez no início do liceu. Senti calafrios ao aperceber-me de como a tratara mal. Ignorara quase por completo as suas ideias, os sentimentos e a dor que lhe causara. Era tão doce e gentil, mas nessa época eu aceitara essa doçura como garantida e posteriormente quase nem pensara nela. Que estaria ela a fazer agora? Ter-me-ia perdoado?

Fui abalado por uma onda de náusea e vomitei junto da velha embarcação. Doía-me a cabeça devido à quantidade de saque e estava arrependido por ter mentido ao pescador e aceitado o seu dinheiro. Decidi que estava na altura de regressar a Tóquio, não conseguiria prolongar isto para sempre. Enfiei o saco-cama na mochila, coloquei-a às costas e dirigi-me para a estação ferroviária local. Disse ao homem da bilheteira que pretendia partir para Tóquio o mais rápido possível. Verificou os horários e disse-me que poderia estar em Osaka pela manhã se fizesse o transbordo de um comboio nocturno para outro, podendo depois apanhar o comboio rápido a partir de Osaka. Agradeci-lhe e comprei o bilhete para Tóquio com a nota de cinco mil ienes que o pescador me dera. Enquanto esperava pelo comboio, comprei um jornal e verifiquei a data: dois de Outubro de 1970. Por conseguinte, viajara durante um mês inteiro; sabia agora que tinha de voltar para o mundo real.

Aquele mês de viagem não me animara nem atenuara a dor pela morte da Naoko. Regressei a Tóquio praticamente com o mesmo estado de espírito com que partira. Nem sequer sentia ânimo para telefonar à Midori. Que iria dizer-lhe? Como iria começar? «Tudo terminou já, tu e eu podemos ser felizes agora»? Não, isso estava fora de questão. Por mais que o refraseasse, os factos mantinham-se: a Naoko estava morta e a Midori continuava neste mundo. A Naoko era agora um montículo de cinzas brancas e a Midori era um ser humano vivo.

Sentia-me avassalado pelo sentimento da minha própria degradação. Embora tivesse regressado a Tóquio, não fiz nada durante dias e mantive-me fechado em casa. A minha memória continuava fixa nos mortos e não nos vivos. As divisões que iriam supostamente ser ocupadas pela Naoko encontravam-se cerradas, a mobília coberta com lençóis brancos e os parapeitos das janelas recobertos de poeira. Passava a maior parte dos dias nessas divisões. E pensava no Kizuki. «Finalmente conseguiste que a Naoko fosse tua», disse-lhe em pensamento. «Pois bem, ela foi tua desde o início. Agora talvez se encontre no local a que pertence. Mas neste mundo, neste imperfeito mundo dos vivos, fiz tudo ao meu alcance pela Naoko. Tentei estabelecer uma nova vida para os dois. Mas não faz mal, Kizuki. Ofereço-ta. Foste tu quem ela escolheu, afinal de contas. Ela enforcou-se num bosque tão escuro quanto as profundezas do seu coração. Houve uma altura em que tu próprio arrastaste parte de mim para o mundo dos mortos e agora a Naoko arrastou a outra parte de mim para esse mundo. Às vezes sinto-me como o vigilante de um museu: um museu enorme e vazio que ninguém vem visitar e onde me limito a vigiar-me apenas a mim próprio».

Recebi uma carta da Reiko por correio expresso quatro dias após o meu regresso a Tóquio. Tratava-se de um simples bilhete: Não consigo entrar em contacto contigo há semanas e estou preocupada. Por favor, telefona-me. Aguardarei junto do telefone desde as nove da manhã até às nove da noite.

Telefonei-lhe às nove horas dessa mesma noite. Atendeu-me imediatamente.

- Encontras-te bem? - perguntou-me.

- Mais ou menos.

- Posso visitar-te depois de amanhã?

- Visitares-me? Aqi» em Tóquio?

- Foi exactamente isso o que eu disse. Gostaria de ter uma longa conversa contigo.

- Vais sair do sanatório?

- É a única maneira de poder visitar-te, não é? De qualquer modo, já está na altura de sair daqui. Já estou aqui há oito anos. Se me mantiverem aqui durante mais tempo, acabarei por apodrecer.

Era-me difícil falar. Após um breve silêncio, a Reiko prosseguiu: - Chegarei depois de amanhã no comboio rápido das 15:20.

Vais esperar-me à estação? Ainda te lembras do meu aspecto? Ou já perdeste o interesse por mim agora que a Naoko morreu?

- De modo algum - retorqui. - Encontramo-nos na Estação de Tóquio depois de amanhã, às 15:20.

- Reconhecer-me-ás facilmente. Sou a velhinha com o estojo da guitarra. Não haverá muitas pessoas assim.

Com efeito, não tive dificuldades em descobrir a Reiko entre a multidão: vestia um casaco de tweed de homem, calças brancas e sapatilhas vermelhas. Usava o cabelo curto como habitualmente, com os usuais tufos espetados no ar. Trazia na mão direita uma mala de cabedal castanho e na esquerda o estojo preto da guitarra. Ofereceu-me um enorme sorriso enrugado assim que me avistou e sorri-lhe também. Peguei na mala e dirigimo-nos para o comboio com destino aos subúrbios oeste.

- Ei, Watanabe, há quanto tempo andas com essa cara horrível? Ou ultimamente é essa moda em Tóquio?

- Andei a viajar durante uns tempos e comia mal. Que achaste do comboio rápido?

- Fantástico! Não se pode abrir as janelas. Tentei comprar uma embalagem com o almoço a um dos vendedores da gare.

- Vendem isso a bordo, sabes?

- Sim, sanduíches de plástico a um preço exorbitante. Nem um cavalo esfomeado tocaria nisso. Sempre apreciei os almoços embalados da Estação de Gotenba.

- Há muito, muito tempo, antes do comboio rápido.

- Bem, eu sou dessa época do há muito, muito tempo antes do comboio rápido.

Já a bordo do comboio para Kichijoji, a Reiko contemplava com toda a curiosidade de um turista a paisagem de Muzashino que perpassava pela janela.

- As coisas mudaram muito em oito anos? - perguntei-lhe.

- Não sabes o que estou a sentir agora, pois não, Watanabe?

- Não, não sei.

- Sinto-me assustada. Tão assustada que poderia enlouquecer de um momento para o outro. Não sei o que devo fazer, vim para aqui completamente sozinha. - Calou-se por momentos. - Mas «Enlouquecer de um momento para o outro»: que expressão mais pitoresca, não achas?

Sorri-lhe e dei-lhe a mão. - Não te preocupes - disse-lhe. - Ficarás bem. Foi a tua própria força que te trouxe até aqui.

- Não foi a minha própria força que me tirou daquele lugar. Foste tu e a Naoko. Não consegui suportar aquilo sem a Naoko e tinha que vir a Tóquio para falar contigo. É tudo. Se não tivesse acontecido nada, provavelmente passaria o resto da minha vida lá.

Anuí com a cabeça.

- O que planeias fazer daqui em diante? - perguntei-lhe.

- Vou para Asahikawa - respondeu. - Bem lá no cimo das terras agrestes de Hokkaido! Uma velha amiga minha dos tempos da faculdade é directora de uma escola de música lá e há já dois ou três anos que tem pedido a minha ajuda. Respondia-lhe sempre que era um lugar demasiado frio para mim. Quer dizer, finalmente recupero a minha liberdade e vou enfiar-me em Asahikawa? Dificilmente me entusiasmaria com um local assim, não passa de um buraco no chão.

- Não é assim tão horrível - retorqui, rindo. - Já estive lá. É uma cidade pequena e agradável. Tem uma atmosfera especial.

- Tens a certeza?

- Absolutamente. É muito melhor do que viver em Tóquio.

- Oh, pois bem. Não me resta outro lugar para onde ir e já enviei as minhas coisas para lá. Ei, Watanabe, promete-me que irás visitar-me a Asahikawa.

- Claro que te visitarei. Mas tens de partir já? Não podes ficar em Tóquio durante algum tempo?

- Gostaria de permanecer aqui alguns dias, se puder. Consegues aguentar-me? Não te incomodarei.

- Não há problema. Tenho um grande armário onde posso dormir no meu saco-cama.

- Não te posso fazer isso.

- Não, de verdade, É um armário enorme.

Começou a tamborilar uma melodia no estojo da guitarra pousada entre as suas pernas. - Provavelmente vou ter que me adaptar às coisas antes de partir para Asahikawa. Não estou habituada ao mundo exterior. Há muitas coisas que não compreendo e sinto-me nervosa. Achas que podes ajudar-me? És a única pessoa a quem posso recorrer.

- Farei tudo ao meu alcance para te ajudar - respondi-lhe.

- Espero não estar a atravessar-me no teu caminho.

- Não existe nenhum caminho meu que possas atravessar. Olhou para mim e curvou os cantos da boca num sorriso, mas manteve-se em silêncio.

Quase não falámos durante o resto do percurso até à Estação de Kichijoji, nem no autocarro até minha casa. Trocámos alguns comentários aleatórios acerca das mudanças na cidade de Tóquio, sobre a época em que ela estudara no Conservatório de Música e sobre a minha viagem a Asahikawa, mas não referimos a Naoko. Haviam-se passado dez meses desde a última vez que vira a Reiko, mas, enquanto caminhava ao seu lado, sentia-me estranhamente calmo e reconfortado. Era uma sensação familiar e ocorreu-me então que costumava sentir-me assim quando percorria as ruas de Tóquio com a Naoko. E, tal como eu e a Naoko partilháramos o falecido Kizuki, agora eu e a Reiko partilhávamos a falecida Naoko. Este pensamento remeteu-me ao silêncio. A Reiko continuou a falar durante algum tempo, mas também se calou assim que se apercebeu de que eu me mantinha em silêncio. Não trocámos mais palavras durante a viagem de autocarro.

Era uma dessas extemporâneas tardes outonais em que a luz é clara e intensa, exactamente como há um ano atrás quando fui visitar a Naoko a Quioto. As nuvens brancas eram delgadas e o céu apresentava-se límpido. A fragrância da brisa, a tonalidade da luz, as minúsculas flores por entre a relva, as subtis reverberações que acompanhavam os sons: tudo isto me revelava que o Outono se instalara uma vez mais, aumentando a distância entre mim e os mortos a cada novo ciclo das estações. O Kizuki continuava com dezassete anos e a Naoko com vinte e um: para sempre.

- Oh, que alívio vir para um lugar destes! - exclamou a Reiko, olhando em seu redor quando saímos do autocarro.

- Deve ser porque aqui não há nada - comentei.

A Reiko estava impressionada com tudo o que via enquanto a conduzia pelo portão das traseiras e através do jardim para dentro de casa.

- Isto é maravilhoso! - afirmou. - Foste tu que fizeste estas prateleiras e a secretária?

- Sim - retorqui, servindo o chá.

- És verdadeiramente talentoso com as mãos. E manténs a casa tão asseada!

- Influências do Sargento. Transformou-me num maníaco das limpezas. O meu senhorio não se tem queixado.

- Oh, o teu senhorio! Deverias apresentar-nos. Suponho que a casa dele seja a do outro lado do jardim?

- Deveria apresentar-vos? Para quê?

- «Para quê», o que queres dizer com isso? Aparece uma bizarra mulher de meia-idade em tua casa e começa a tocar guitarra. Ele irá perguntar-se o que está a acontecer aqui. É melhor começar com o pé direito. Até trouxe uma caixa de doces de chá para ele.

- Muito inteligente.

- A sabedoria é um dos privilégios da idade. Vou dizer-lhe que sou tua tia pelo lado materno e que sou de Quioto. Portanto, vê lá se não me contradizes. A diferença de idades é uma vantagem nestas situações. Ninguém suspeitará de nada.

Retirou a caixa de doces do saco e foi cumprimentar o senhorio. Sentei-me na varanda a beber outra chávena de chá e a brincar com a gata. Passaram-se vinte minutos e, quando a Reiko voltou, tirou do saco uma lata de bolachas de arroz e disse que era um presente para mim.

- De que falaram para demorarem tanto tempo? - perguntei-lhe enquanto comia uma bolacha.

- Sobre ti, claro - retorquiu, embalando a gata e esfregando o rosto contra a sua pelagem. - Ele diz que és um jovem bastante decente e um estudante aplicado.

- Tens a certeza de que estava a falar de mim?

- Não tenho a mínima dúvida de que se referia a ti - declarou com uma gargalhada. Reparou então na minha guitarra, pegou nela, afinou-a e começou a executar Desafinado de António Carlos Jobim. Há meses que não ouvia a Reiko a tocar e experienciei de novo aquele velho e caloroso sentimento.

- Andas a praticar guitarra? - perguntou-me.

- Estava perdida na casa de arrumos do senhorio, pedi-lha emprestada e de vez em quando dedilho-a. É tudo.

- Mais tarde dou-te uma lição. Totalmente grátis. - Pousou a guitarra e tirou o casaco de tweed. Sentou-se contra a coluna da varanda a fumar um cigarro.

Envergava uma camisa de manga curta, de algodão cru, ao xadrez.

- É uma camisa bonita, não achas? - perguntou-me.

- É. - Era de facto uma camisa bonita, com um padrão atraente.

- Era da Naoko - disse-me. - Aposto que não sabias que usávamos o mesmo tamanho. Sobretudo quando ela veio para o sanatório, porque pouco depois começou a ganhar um pouco de peso; mas continuámos a usar sensivelmente o mesmo tamanho: blusas, calças, sapatos, chapéus. A única coisa que não podíamos partilhar eram os soutiens. Quase não tenho mamas. Estávamos sempre a trocar de roupa uma com a outra. Na verdade, éramos quase uma co-parceria.

Agora que ela o mencionava, verifiquei, com efeito, que a Reiko tinha uma constituição quase semelhante à da Naoko. Sempre me dera a impressão de ser mais baixa e mais magra do que a Naoko, devido à forma do rosto e aos membros magros, mas era de facto surpreendentemente robusta.

- O casaco e as calças também eram dela - continuou a Reiko. - É tudo dela. Incomoda-te estar a usar as coisas dela?

- De modo algum. Tenho a certeza de que a Naoko ficaria contente por alguém usar as suas roupas, especialmente tu.

- É estranho - disse a Reiko, estalando levemente os dedos. - A Naoko não deixou nenhum testamento nem nada do género, excepto no respeitante às suas roupas. Escrevinhou uma frase num bloco de apontamentos que tinha na secretária: «Por favor, dêem todas as minhas roupas à Reiko». Ela era estranha, não achas? Por que razão se preocuparia com as roupas quando se preparava para morrer? Quem raios se preocuparia com as roupas? Certamente teria imensas outras coisas que gostaria de dizer.

- Ou talvez não - acrescentei.

A Reiko continuou a fumar, aparentemente perdida em pensamentos. Momentos depois, disse: - Certamente quererás ouvir a história toda, por ordem.

- Sim. Conta-me tudo, por favor.

- Os exames no Hospital de Osaka revelaram que a Naoko estava a recuperar momentaneamente, embora devesse permanecer lá durante mais tempo para poderem prosseguir com uma terapia intensa que daria os seus frutos a longo prazo. Contei-te isso na minha carta, na carta que te enviei por volta do dia dez de Agosto.

- Sim, eu li a carta.

- Bem, no dia vinte e quatro de Agosto recebi um telefonema da mãe da Naoko a perguntar-me se a Naoko poderia visitar-me no sanatório, pois queria embalar as coisas que deixara à minha guarda e, como não iria ver-me durante algum tempo, desejava ter uma demorada conversa comigo e talvez passar a noite comigo. Disse-lhe que seria formidável. Sentia de facto um desejo enorme de voltar a vê-la e conversar com ela. A Naoko e a mãe chegaram de táxi no dia seguinte, no dia vinte e cinco. Ocupámo-nos as três a embalar as coisas da Naoko enquanto conversávamos. Ao final da tarde, a Naoko disse que a mãe poderia voltar para casa, que ela própria ficaria bem; portanto, chamou um táxi e a mãe partiu. Nem a mãe nem eu estávamos minimamente preocupadas, pois a Naoko parecia animada. Na verdade, sentira-me bastante preocupada. Esperava vê-la deprimida, exausta e emaciada. Quer dizer, eu sei bem como os exames, a terapia e os hospitais exigem de nós e sentia verdadeiras dúvidas em relação a esta visita. Mas bastou-me olhar para ela para me convencer de que se encontrava bem. Parecia bastante mais saudável do que eu esperava, sempre a sorrir, a brincar e a falar mais do que quando a vira pela última vez. Tinha ido ao cabeleireiro e estava orgulhosa do seu novo penteado. Portanto, pensei que não havia motivos para me preocupar na ausência da mãe. A Naoko disse-me que dessa vez estava disposta a deixar os médicos do hospital curarem-na de uma vez por todas e que isso era provavelmente o melhor a fazer. Saímos para dar um passeio e conversámos durante todo esse tempo, sobretudo acerca do futuro. Disse-me que o seu maior desejo era que ambas saíssemos do sanatório para vivermos juntas.

- Viverem juntas? Tu e a Naoko?

- Isso mesmo - confirmou a Reiko com um leve encolher de ombros. - Disse-lhe que me parecia boa ideia, mas perguntei-lhe: «E o Watanabe?». Respondeu: «Não te preocupes, vou esclarecer tudo com ele». Foi isso o que ela disse. Começou a falar então do lugar onde viveríamos e do que faríamos. Essas coisas. Depois fomos brincar com as aves na capoeira.

Tirei uma cerveja do frigorífico e a Reiko acendeu outro cigarro, com a gata dormindo profundamente no seu colo.

- Ela tinha planeado tudo já. Tenho a certeza de que era por essa razão que se mostrava tão enérgica, sorridente e de aspecto saudável. Deve ter sentido que lhe saíra um peso da mente quando soube exactamente o que iria fazer. Acabámos de arrumar as suas coisas, deitámos dentro de um contentor de metal aquilo de que já não precisava e queimámos tudo no jardim: o bloco de apontamentos que ela usava como diário e todas as cartas que recebera. Inclusivamente as tuas cartas. A mim pareceu-me um pouco estranho e perguntei-lhe por que razão estava a queimar essas coisas. Disse-me: «Estou a livrar-me de tudo o que diz respeito ao passado para poder renascer no futuro». Creio que acreditei literalmente nas suas palavras. Havia uma espécie de lógica própria. Lembro-me de ter pensado de como desejava que ela recuperasse e fosse feliz. Ela estava tão doce e encantadora nesse dia, quem dera que a tivesses visto! Quando terminámos, fomos jantar à cantina como costumávamos fazer outrora. Depois tomámos um banho, abri uma garrafa de bom vinho que guardara para uma ocasião especial como aquela e bebemos enquanto eu tocava guitarra: os Beatles, como sempre, Norwegian Wood, Michelle, os seus temas favoritos. Ambas nos sentíamos bastante animadas. Apagámos as luzes, despimo-nos e deitámo-nos nas nossas camas. Estava uma noite abrasadora. Mantivéramos as janelas abertas, mas quase não soprava a mínima aragem. Lá fora estava escuro como breu, as cigarras zumbiam e a fragrância das ervas do Verão era tão intensa dentro do quarto que quase nem conseguíamos respirar. A Naoko começou a falar inesperadamente acerca da noite em que tivera sexo contigo. Com incríveis pormenores. Como a despiste, como lhe tocaste, como ela começara a sentir-se húmida, como a penetraste, como tinha sido maravilhoso: contou-me tudo isto com vívidos detalhes. Perguntei-lhe por que razão estava a contar-me aquilo assim de repente. Quer dizer, nunca falara abertamente de sexo comigo. Evidentemente que tivéramos já conversas francas acerca do sexo como uma espécie de terapia, mas mostrara-se sempre demasiado embaraçada para entrar em pormenores. E eu não conseguia pará-la. Sentia-me chocada.

Diz-me ela: «Sabes, apetece-me falar contigo sobre este assunto. E, se não quiseres ouvir, eu paro». «Não», disse-lhe, «Não faz mal. Se sentes necessidade de falar sobre isso, o melhor é falares então. Ouvirei tudo o que me tenhas para dizer». A Naoko prosseguiu então com a sua história: «Quando ele me penetrou, nem queria acreditar como me doía. Afinal de contas, era a minha primeira vez. Sentia-me tão húmida e ele penetrou-me de imediato, mas continuava com a mente obnubilada e doía-me tanto. Penetrou-me o mais profundamente possível, pensava eu, mas depois ele levantou-me as pernas e penetrou-me ainda mais. Sentia calafrios por todo o corpo, como se tivesse mergulhado em água gelada. Senti os braços e as pernas dormentes enquanto uma onda de frio me percorria o corpo. Não sabia o que estava a acontecer. Pensei que ia morrer naquele momento, e não estava minimamente preocupada. Mas ele apercebeu-se de que eu estava a sentir dores e parou de se mexer; continuava profundamente dentro de mim e começou a cobrir-me de beijos: no cabelo, no pescoço, nos seios, durante muito, muito tempo. O calor regressou gradualmente ao meu corpo e ele recomeçou a mover-se muito lentamente. Oh, Reiko, foi tão maravilhoso! Sentia que o meu cérebro estava prestes a desligar-se. Queria ficar assim para sempre, ficar assim nos seus braços durante o resto da minha vida. Foi tão maravilhoso». Respondi-lhe: «Se foi assim tão maravilhoso, por que razão não continuaste com o Watanabe para o fazerem todos os dias?». Mas ela disse-me: «Não, Reiko, eu sabia que aquilo nunca mais se repetiria. Eu sabia que era algo que só experimentaria uma vez na vida, algo que depois perderia e nunca mais recuperaria. Era algo que aconteceria apenas uma única vez durante a minha vida. Nunca sentira nada assim e, na verdade, nunca mais senti isso. Nunca senti o desejo de o fazer de novo e nunca mais fiquei assim tão húmida». Evidentemente, expliquei-lhe que se tratava de algo que acontecia com frequência às mulheres jovens e que, na maioria dos casos, a cura sobrevinha com a idade. Afinal de contas, aquilo resultara já uma vez e não deveria preocupar-se com a possibilidade de isso não voltar a acontecer. Eu própria tivera imensos problemas durante o meu casamento. No entanto, ela contrapôs-me: «Não, não se trata disso, Reiko.

Não estou minimamente preocupada com isso. Simplesmente, não quero que alguém volte a penetrar-me. Não quero ser violada novamente desse modo, por quem quer que seja».

Continuei a beberricar a minha cerveja e a Reiko acabou de fumar o cigarro. A gata espreguiçou-se no colo dela, remexeu-se para mudar de posição e adormeceu de novo. A Reiko parecia não saber como prosseguir e acabou por acender um terceiro cigarro.

- Depois a Naoko começou a chorar. Sentei-me na borda da cama dela e afaguei-lhe o cabelo. «Não te preocupes», disse-lhe, «tudo se resolverá. Uma rapariga jovem e bela como tu tem que ter um homem que a abrace e a faça feliz». A Naoko transpirava abundantemente e chorava. Peguei numa toalha de banho e limpei-lhe o rosto e o corpo. Até as suas cuecas estavam molhadas e ajudei-a a tirá-las. Espera aí, não metas ideias na cabeça, não estava a passar-se nada de estranho. Sempre tomámos banho juntas. Ela era como uma irmã mais nova para mim.

- Eu sei, eu sei - tranquilizei-a.

- Pois bem, a Naoko pediu-me para a abraçar. Respondi-lhe que estava demasiado calor para a abraçar, mas ela disse que era a última vez que estaríamos juntas e, portanto, abracei-a. Apenas durante alguns segundos. A toalha de banho interposta entre as duas impedia que os nossos corpos suados se tocassem. Quando acalmou, limpei-a de novo, vesti-lhe a camisa de noite e enfiei-a na cama. Adormeceu profundamente, quase de imediato. Ou talvez fingisse que dormia. De qualquer modo, parecia tão doce e encantadora nessa noite, tinha o rosto de uma menina de treze ou catorze anos que nunca sofrera qualquer mal desde que nascera. Era essa a expressão que via no seu rosto e sabia que não havia razões para eu própria não dormir tranquila. Quando acordei na manhã seguinte, às seis horas, ela desaparecera. A camisa de noite continuava no local onde ela a deixara, mas as suas roupas, as sapatilhas e a lanterna que mantenho sempre junto da minha cama tinham desaparecido. Soube imediatamente que havia algo de errado. Quer dizer, o facto de ela ter levado a lanterna significava que saíra de noite. Inspeccionei a sua secretária e encontrei o bilhete: Por favor, dêem todas as minhas roupas à Reiko.

Acordei imediatamente toda a gente e seguimos caminhos diferentes para a procurarmos. Vasculhámos cada canto e recanto, desde o interior dos dormitórios até aos bosques circundantes. Demorámos cinco horas a encontrá-la. Ela própria trouxera a corda com que se enforcara. Suspirou e afagou a gata.

- Queres chá? - perguntei-lhe.

- Sim, obrigada.

Aqueci água e trouxe uma chaleira de chá preto para a varanda. O sol estava prestes a pôr-se. A luz diminuíra e as compridas sombras das árvores estendiam-se até aos nossos pés. Beberriquei o meu chá enquanto contemplava o jardim estranhamente caótico com a sua curiosa mistura de rainúnculos amarelos, azáleas rosadas e enormes e nandins verdes.

- Quando a ambulância levou o corpo da Naoko, a polícia começou a interrogar-me, embora houvesse poucas dúvidas: havia uma espécie de bilhete suicida, tratara-se obviamente de um suicídio e a própria polícia partia do princípio de que o suicídio era uma ocorrência comum entre os doentes com perturbações mentais. Por conseguinte, tratava-se de um mero procedimento oficial. Assim que partiram, enviei-te um telegrama.

- Foi um funeral tão triste - declarei. - A família dela estava obviamente perturbada por eu saber que a Naoko morrera. Tenho a certeza de que não queriam que as pessoas soubessem que fora um suicídio. Provavelmente, eu nem deveria ter comparecido, essa situação causou um incómodo ainda maior. Assim que regressei, fiz-me à estrada.

- Ei, Watanabe, vamos dar um passeio. Podemos comprar algo para preparar o jantar. Estou a morrer de fome.

- Está bem. Desejas comer algo em especial?

- Sukiyaki - retorquiu. - Há anos que não como isso. Costumava sonhar com sukiyaki, que enchia o estômago com carne de vaca, cebolinhos, massas, tofu assado e legumes.

- Está bem, podemos preparar isso, mas não tenho panela para o sukiyaki.

- Deixa isso ao meu cargo. Peço uma emprestada ao teu senhorio.

Precipitou-se em direcção à casa principal e regressou com uma panela de tamanho considerável e um fogareiro a gás.

- Nada mau, hã?

- Realmente!

Comprámos todos os ingredientes necessários em pequenas lojas das redondezas: carne de vaca, ovos, legumes, tou. Seleccionei um vinho branco de qualidade média. Quando tentei pagar, a Reiko insistiu em pagar tudo.

- Imagina como a família se riria de mim se soubesse que deixei o meu sobrinho pagar a comida! - disse ela. - Além do mais, trouxe bastante dinheiro. Portanto, não te preocupes. Não ia sair do sanatório sem um tostão.

Lavou o arroz e pô-lo a cozer enquanto eu arrumava tudo para podermos preparar a refeição na varanda. Quando terminei, a Reiko pegou na guitarra e parecia estar a afiná-la enquanto executava uma lenta fuga de Bach. Nos trechos mais difíceis, abrandava ou aumentava o ritmo, tornando-o impessoal ou sentimental, e eu escutava com óbvio prazer a variedade de sons que ela arrancava do instrumento. Quando a Reiko tocava guitarra, parecia uma rapariga de dezassete anos a apreciar um vestido novo. Os seus olhos cintilavam e franziam-se num ínfimo sorriso. Quando terminou de executar a peça, recostou-se contra a coluna enquanto contemplava o céu como se estivesse absorta em pensamentos.

- Posso falar contigo? - perguntei-lhe.

- Claro. Lembrei-me agora de que estou esfomeada.

- Não tencionas ver o teu marido ou a tua filha enquanto aqui estás? Devem estar aqui em Tóquio, algures.

- Estão bastante perto, em Yokohama. Mas não, não tenciono visitá-los. Creio que já te tinha dito antes: é melhor para eles se eu me mantiver afastada. Começaram uma nova vida. E sentir-me-ia mal se os visse. Não, o melhor é manter-me afastada.

Amarrotou o maço vazio de Seven Stars e tirou outro da mala. Abriu-o e enfiou um cigarro na boca, mas não o acendeu.

- Estou acabada como ser humano - continuou. - Tudo o que vês é a memória que perdura do que eu costumava ser. A parte mais importante de mim, aquilo que costumava estar dentro de mim, morreu há anos e limito-me a funcionar por automemória.

- Mas eu gosto de ti, Reiko, tal como és agora, uma memória que perdura ou o que quer que seja. Talvez não faça diferença nenhuma, mas o facto é que estou realmente feliz por usares as roupas da Naoko.

Sorriu e acendeu o cigarro. - Para alguém tão jovem, sabes fazer uma mulher feliz.

Senti-me enrubescer. - Estou a dizer apenas aquilo que realmente penso.

- Sim, eu sei - disse ela, sorrindo.

Pouco depois, quando o arroz ficou pronto, deitei óleo na panela e preparei os ingredientes para o sukiyaki.

- Diz-me que isto não é um sonho - comentou a Reiko, cheirando o ar.

- Não, é autêntico sukiyaki. Empiricamente falando, claro. - Em vez de continuarmos a falar, atacámos o sukiyaki com os pauzinhos, bebemos imensa cerveja e devorámos o arroz. A Gaivota apareceu, atraída pelo cheiro, e partilhámos a refeição com ela. Quando nos sentimos saciados, sentámo-nos encostados às colunas do alpendre enquanto contemplávamos a lua.

- Satisfeita? - inquiri.

- Absolutamente - murmurou. - Nunca comi tanto na minha vida.

- O que te apetece fazer agora?

- Fumar um cigarro e ir a um banho público. O meu cabelo está uma lástima. Preciso de o lavar.

- Tudo bem. Há um ao fundo da rua.

- Diz-me uma coisa, Watanabe, se não te importas. Dormiste com a tal Midori?

- Se tivemos sexo? Ainda não. Decidimos não o fazer até as coisas se resolverem.

- Bem, agora as coisas já estão resolvidas, não achas? Abanei a cabeça. -Agora que a Naoko morreu, queres tu dizer?

- Não, não é isso. Tomaste uma decisão muito antes de a Naoko morrer: que nunca abandonarias a Midori. Quer a Naoko esteja viva ou morta, isso não interfere na tua decisão. Escolheste a Midori. A Naoko escolheu morrer. És adulto e deves assumir a responsabilidade das tuas escolhas. Caso contrário, deitarás tudo a perder.

- Mas não consigo esquecê-la - afirmei. - Eu disse à Naoko que continuaria a esperar por ela, mas não fui capaz de o fazer. Virei-lhe as costas no fim. Não estou a dizer que alguém tem culpa: é um problema que eu próprio tenho de resolver. Creio que as coisas teriam decorrido do mesmo modo mesmo que não lhe tivesse virado as costas. A Naoko optara já pela morte. Mas não é essa a questão. Não consigo perdoar-me. Tu dizes-me que não está ao meu alcance operar uma mudança natural de sentimentos, mas o meu relacionamento com a Naoko não era assim tão simples. Se reflectires bem, eu e ela estávamos unidos no limiar entre a vida e a morte. Era essa a situação entre nós desde o início.

- Se sentires dor em relação à morte da Naoko, aconselho-te a continuares a sentir essa dor para o resto da tua vida. E se isso puder ensinar-te algo, aprende essa lição também. Todavia, e mudando de assunto, acho que serás feliz com a Midori. A tua dor não tem nada a ver com o teu relacionamento com ela. Se a magoares mais do que já o fizeste, essa mágoa poderá ser tão profunda que não haverá solução. Por conseguinte, por mais problemático que seja, deves ser forte. Tens que crescer mais e ser mais adulto. Saí do sanatório e fiz todo este percurso até aqui, a Tóquio, para te dizer isso... todo esse percurso naquele comboio que parecia um caixão.

- Compreendo o que queres dizer - disse-lhe -, mas ainda não me sinto preparado para levar as coisas até ao fim. Quer dizer, foi um funeral tão triste! Ninguém devia morrer daquela maneira.

A Reiko estendeu a mão e afagou-me a cabeça. - Todos acabamos por morrer dessa maneira. Eu morrerei assim e tu também.

Fizemos o percurso de cinco minutos ao longo da margem do rio até aos banhos públicos locais e regressámos a casa sentindo-nos mais refrescados. Abri a garrafa de vinho e sen-támo-nos a beber na varanda.

- Ei, Watanabe, trazes mais um copo?

- Está bem. Para quê?

- Vamos proceder à nossa própria cerimónia fúnebre pela Naoko, somente nós os dois. Uma cerimónia que não seja tão triste.

Quando lhe entreguei o copo, a Reiko encheu-o até à borda e pousou-o sobre a candeia de pedra que havia no jardim.

Depois sentou-se de novo na varanda, encostada contra uma das colunas, com a guitarra nos braços enquanto fumava.

- Trazes-me uma caixa de fósforos? A maior que encontrares. Trouxe uma enorme caixa de fósforos e coloquei-a ao lado dela.

- Ora bem, a minha intenção é pousar um fósforo no chão a cada canção que tocar, colocá-los numa fileira. Vou tocar todas as canções de que me lembrar.

Começou por tocar uma delicada e encantadora versão de Dear Heart de Henry Mancini.

- Deste este disco à Naoko, não deste? - perguntou-me.

- Sim, há dois anos, pelo Natal. Ela gostava muito dessa canção.

- Eu também gosto - declarou a Reiko. - É tão doce e bela... - e executou mais algumas notas da melodia antes de continuar a beberricar o vinho. - Pergunto-me quantas canções conseguirei tocar antes de ficar completamente embriagada. Vai ser uma bela cerimónia fúnebre... não tão triste, não achas?

Começou a tocar temas dos Beatles: Norwegian Wood, Yesterday, Michelle e Something. Cantou e executou Here Comes the Sun e depois The Fool on the Hill. Coloquei sete fósforos no chão.

- Sete canções - anunciou a Reiko, beberricando mais vinho e fumando outro cigarro.

- Estes tipos conheciam de facto o que era a tristeza e a delicadeza da vida.

Por «estes tipos», referia-se, evidentemente, a John Lennon, Paul McCartney e George Harrison. Depois de uma pequena pausa, esmagou o cigarro e pegou de novo na guitarra. Tocou Penny Lane, Black Bird, Julia, When I'm 64, Nowhere Man, And I Love Here Heyjude.

- Quantas canções foram?

- Catorze - disse-lhe.

Soltou um suspiro e perguntou-me: - E tu, sabes tocar alguma coisa, alguma canção?

- Nem pensar. Sou terrível.

- Toca na mesma.

Fui buscar a minha guitarra e arranhei o tema Up on the Roof. A Reiko aproveitou para fazer uma pausa enquanto fumava e bebia. Quando terminei, aplaudiu-me.

Em seguida, executou uma versão acústica de Pavannefor a Dying Queen de Ravel e uma encantadora versão de Claire de Lune de Debussy.

- Aprendi a tocar estes dois temas depois da morte da Naoko - declarou. - Já perto do fim, o seu gosto musical reduzia-se ao sentimentalismo.

Começou a executar alguns temas de Bacharach: Close to You, Raindrops Keep Falling on my Head, Walk on By, Wedding Bell Blues.

- Vinte já, - declarei.

- Pareço uma jukebox humana! - exclamou a Reiko. - Os meus professores até desmaiariam se me vissem agora.

Continuou a beber, a fumar e a tocar: várias bossas novas, Rogers & Hart, Gershwin, Bob Dylan, Ray Charles, Carole King, The Beach Boys, Stevie Wonder, além de Sukiaky Song, Blue Velvet e Green Fields de Kyu Sakamoto. Por vezes fechava os olhos e baloiçava a cabeça enquanto trauteava a melodia.

Quando o vinho acabou, começámos a beber whisky. Verti o vinho do copo no jardim sobre a candeia de pedra e enchi-o de whisky.

- Em quantos temas já vamos? - perguntou a Reiko.

- Quarenta e oito.

Eleanor Rigby foi a canção seguinte e a quinquagésima uma outra versão de Norwegian Wood. Depois, a Reiko descansou as mãos e bebeu mais whisky. - Creio que já chega - declarou.

- Sim - concordei. - Impressionante.

Olhou-me nos ombros e disse: - Agora ouve bem o que te vou dizer, Watanabe. Quero que esqueças completamente aquele funeral triste que presenciaste. Lembra-te apenas desta nossa maravilhosa homenagem.

Assenti com a cabeça.

- Aqui vai mais uma canção para terminar - afirmou, começando a executar a sua fuga de Bach favorita. Quando terminou, proferiu num quase sussurro: - Que me dizes a dormir comigo, Watanabe?

- Que estranho. Estava a pensar na mesma coisa.

Fomos para dentro de casa e corremos as cortinas. Depois, procurámos o corpo um do outro no quarto obscurecido, como se estivéssemos a fazer a coisa mais natural do mundo. Tirei-lhe a blusa e as calças e depois a roupa interior.

- Tenho vivido uma vida estranha - disse ela -, mas nunca pensei que um homem dezanove anos mais novo que eu me tiraria as cuecas.

- Preferes ser tu a tirá-las?

- Não, podes tirá-las. Mas não fiques muito chocado com as minhas rugas.

- Eu gosto das tuas rugas.

- Vais-me fazer chorar - murmurou.

Comecei a beijar-lhe o corpo, tomando um cuidado especial em percorrer com a língua todas as zonas enrugadas. Tinha os seios de uma rapariguinha. Acariciei-os e mordisquei-lhe os mamilos; depois enfiei o dedo dentro da vagina quente e húmida e comecei a movê-lo.

- Estás a tocar no sítio errado, Watanabe - murmurou-me junto do ouvido. - Isso é uma ruga.

- Não acredito como consegues dizer piadas numa situação destas!

- Desculpa. Estou assustada. Há anos que não faço isto. Sinto-me como uma rapariguinha de dezassete anos que foi visitar um rapaz ao seu quarto e de repente se encontra nua.

- Se queres que te diga a verdade, sinto-me como se estivesse a violar uma rapariga de dezassete anos.

Continuei a acariciar-lhe a «ruga» com o dedo, percorri-lhe o pescoço com a língua até à orelha e agarrei num dos mamilos. Enquanto a sua respiração se intensificava e a sua garganta começava a estremecer, afastei-lhe as pernas compridas e esguias e penetrei-a.

- Não vais engravidar-me, pois não? Vais ter cuidado, não vais? - murmurou-me ao ouvido. - Sentir-me-ia tão envergonhada se ficasse grávida com esta idade.

- Não te preocupes. Relaxa.

Quando a penetrei completamente, estremeceu e soltou um suspiro. Acariciei-lhe as costas enquanto continuava a movimentar-me e vim-me inesperadamente. Foi uma ejaculação intensa e imparável. Agarrei-me a ela enquanto o meu sémen continuava a jorrar dentro dela.

- Desculpa - disse-lhe. - Não consegui evitá-lo.

- Não sejas tonto - disse, dando-me uma pequena sapatada nas nádegas. - Não te preocupes com isso. Tens sempre essa preocupação quando dormes com raparigas?

- Sim, quase sempre.

- Bem, comigo não precisas de te preocupar com isso. Esquece isso. Abandona-te a teu bel-prazer. Foi bom?

- Foi fantástico. Foi por isso que não consegui controlar-me.

- Não precisas de te controlar. Foi bom. Também foi maravilhoso para mim.

- Sabes uma coisa, Reiko?

- O quê?

- Devias arranjar um amante. És fantástica. É um desperdício.

- Bem, vou pensar nisso. Mas pergunto-me se as pessoas em Asahikawa terão amantes e essas coisas.

Minutos depois, fiquei novamente excitado e penetrei-a outra vez. A Reiko reteve a respiração e contorceu-se debaixo de mim. Movimentava-me lenta e calmamente enquanto a abraçava e falávamos. Era maravilhoso conversarmos assim. Quando eu dizia algo divertido e a fazia rir, os seus tremores percorriam-me o pénis. Continuámos assim abraçados durante muito tempo.

- Oh, isto é maravilhoso! - disse ela.

- Também é bom se me movimentar.

- Fá-lo então. Experimenta.

Levantei-lhe as ancas e penetrei-a profundamente, saboreando depois aquela sensação de me mover num padrão circular até atingir o clímax e ejacular de novo.

Unimo-nos quatro vezes nessa noite. De cada uma das vezes, a Reiko ficava abraçada a mim tremendo levemente e de olhos fechados enquanto soltava um prolongado suspiro.

- Não vou precisar de fazer isto para o resto da minha vida - declarou. - Oh, por favor, Watanabe, diz-me que é verdade. Diz-me que agora posso descansar porque já o fiz as vezes suficientes para uma vida inteira.

- Ninguém te pode dizer isso. Não há maneira de saber.

Tentei convencê-la que seria mais fácil e mais rápido ir de avião, mas insistiu em viajar de comboio para Asahikawa.

- Gosto de viajar no ferry para Hokkaido. Não sinto qualquer desejo de viajar de avião - afirmou. Acompanhei-a até à Estação de Ueno. Ela levava a guitarra e eu a sua mala. Sentámo-nos num dos bancos da plataforma à espera do comboio. A Reiko envergava o mesmo casaco de tweed e as mesmas calças brancas que usava quando chegara a Tóquio.

- Achas realmente que Asahikawa não é um lugar assim tão mau? - perguntou-me.

- É uma cidade agradável. Visitar-te-ei em breve.

- De verdade?

Anuí com a cabeça. - E também te escreverei.

- Adoro receber cartas. A Naoko queimou todas as que lhe enviaste. E eram cartas magníficas!

- Não passam de pedaços de papel. Se as queimarmos, os sentimentos continuam dentro do nosso coração. Se as guardarmos, os sentimentos desaparecem.

- Sabes, Watanabe, a verdade é que estou assustada por ir sozinha para Asahikawa. Portanto, não te esqueças de me escrever. Sempre que ler as tuas cartas, sentir-te-ei ao meu lado.

- Se é isso que desejas, escrever-te-ei sempre. E não te preocupes. Eu conheço-te e sei que te desenvencilharás bem para onde quer que vás.

- Só mais uma coisa. Sinto que há algo preso dentro de mim. Será imaginação minha?

- Não passa de uma memória que perdura - disse-lhe e sorri-lhe. Devolveu-me o sorriso.

- Não me esqueças - pediu-me.

- Não te esquecerei. Nunca te esquecerei.

- Talvez não nos encontremos de novo, mas, para onde quer que eu vá, lembrar-me-ei sempre de ti e da Naoko.

Começou a chorar. Beijei-a quase instintivamente.

As pessoas na plataforma começaram a olhar para nós, mas essas coisas já não me preocupavam. Eu e ela estávamos vivos. E só precisávamos de pensar em continuar a viver.

- Sê feliz - disse-me a Reiko quando entrava no comboio. - Dei-te já todos os conselhos que poderia dar-te.

Não tenho mais nada a dizer-te. Simplesmente, sê feliz. Pega no meu quinhão e no da Naoko e ajusta-os à tua maneira. Continuámos de mãos dadas por mais uns momentos e despedimo-nos por fim.

Telefonei à Midori.

- Preciso de falar contigo - disse-lhe. - Há imensas coisas que quero contar-te. Imensas coisas sobre as quais precisamos de conversar. Tu és tudo aquilo que eu quero deste mundo. Quero estar contigo e falar contigo. Quero que nós os dois comecemos tudo de novo.

Respondeu-me com um silêncio prolongado: o silêncio de toda a chuva nebulosa do mundo a tombar sobre todos os recém-cortados relvados do mundo. Continuei com a testa encostada contra o vidro enquanto aguardava de olhos fechados. A voz serena da Midori rompeu por fim o silêncio: - Onde estás agora?

Onde estava eu agora?

Afastei o auscultador, levantei a cabeça e virei-me para ver o que havia para lá da cabina telefónica. Onde estava eu agora? Não fazia ideia. Não fazia a mínima ideia. Que lugar era este? Tudo o que perpassava pelos meus olhos eram os inúmeros vultos de pessoas caminhando para algures. Eu chamava uma e outra vez pela Midori do centro morto deste lugar que não era lugar nenhum.

 

 

                                                                  Haruki Murakami

 

 

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